Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Emma lutará para sobreviver e proteger os que ama, mesmo que talvez até
os deuses resolvam se meter nessa história.
Emma cursa Design na Universidade Miami e tenta ser uma jovem normal,
embora não esteja muito satisfeita com o curso e com a vida universitária.
Entre festas que ela não deseja ir e um rapaz que ela tenta evitar, Emma
esconde um segredo revelado há uns anos numa noite que tivera que lutar
para salvar a vida de sua irmã, ela é uma bruxa e talvez uma má.
Com as repercussões daquela noite, Emma deixara sua cidade, mas sua irmã
a chama de volta para seu aniversário e ela não consegue se negar a ir.
Sem dinheiro para a viagem, Emma acaba aceitando uma carona justo de
Andrew, um cara doido por super-heróis e o rapaz que ela tenta evitar, e
aquele que ficará com ela mesmo que seu passado a atinja com força e
respingue nele.
Uma noite amarga aguarda Emma ou talvez ela consiga alguma doçura
dessa história toda.
1. Abra o Spotify
2. Pressione a lupa para buscar
3. Pressione na câmera
4. E aponte para o QR Code
formar no colégio, fui delicadamente induzido por minha mãe a vir para cá.
— Ela não deixa de ter a razão. A vida é difícil lá fora. — Eu bem o
sabia. — Fez bem em ouvi-la.
— Eu sempre ouço, mesmo quando não gosto do que ela diz.
Não pude impedir de mover meus olhos para ele com uma ternura
que me era incomum. Andrew me tirava do sério, mas não podia negar que
era um bom homem e me deixava feliz que ele tinha uma boa mãe.
— Então, escolhi o que me pareceu mais fácil e próximo ao trabalho
que queria fazer e nunca errei tanto. — Andrew completou, sorrindo e
coçando a cabeça sem graça. — Mas estou aqui, resistindo. Falta pouco
para acabarmos o curso. Então, só aguente firme também.
Realmente, ser um design e ser um artista eram coisas que pareciam
alinhadas, mas estavam bem mais distantes uma das outras do que alguém
fora da área poderia imaginar.
— Está cada vez mais difícil e essa matéria em específico parece
que é capaz de sugar toda a vida das pinturas. Se os grandes artistas
trabalhavam assim, creio que aquela coisa de colocar a alma no trabalho era
meio equivocada. Elas não tinham era nenhuma.
— São os superpoderes do Desenho Técnico, acho que ninguém
descreveria tão bem como é cursá-la como você o fez — brincou ele,
virando seu rosto em direção ao meu. — Mas por que você entrou nesse
curso afinal?
Fiquei muda diante de sua pergunta e isso não era nada bom, ele não
desistiria até que me cansasse e desse uma resposta convincente.
— Eu te falei minha história, sua vez de contar a sua — insistiu ele.
Conviver nesse mundo de fato era exaustivo. Andrew se pusera na
minha frente, braços cruzados e detendo meus passos, imóvel com uma
pedra inconveniente no meu caminho e aguardando uma resposta que não
poderia dar a ele. Então optei pela mentira, apesar de que não deixava de
ser verdade.
— Eu não tinha nota para mais nada nem atividades
extracurriculares para tentar qualquer outra coisa. Não tinha nada para me
levar a lugar nenhum, então aceitei o que me ofereceram.
De fato, era o que eu fizera a vida toda. Não me restava outra coisa
que aceitar qualquer coisa que me dessem.
— O que fez durante o colégio todo? — brincou ele, não
percebendo o quanto suas perguntas me abalaram ao me recordar de minha
situação.
Ir para a faculdade naquele país era um projeto que se trabalhava
desde cedo para fazê-lo, como explicar que nunca fui a uma escola? Que
nem ao menos eu era desse século? Como dizer que eu tinha nascido em
mil e trezentos e alguma coisa?
Ou ainda melhor? Onde eu estava quando deveria estar na escola?
Ah, Andy você não gostaria de saber onde eu estive esse tempo
todo. Seu aborrecimento comigo exposta a garotos aqui não seria nada perto
do seu estado de ânimo se soubesse as coisas pelas quais eu passei.
Era melhor que continuasse sem saber.
— Vai no jogo amanhã da nossa universidade? Vai ser um bom
amistoso entre o Hurricanes[11] contra o time da Universidade do Sul da
Flórida? Encontrar seu jogador? — questionou, mudando do tom alegre e
divertido para o amargo que secou até as palavras em minha boca.
Queria lamentar por ele ter mudado de assunto tão de repente para
um ainda pior que eu preferia evitar a dizer a verdade, mas acabei optando
por ela.
— Ele não é meu. Isabella tem interesse nele.
Vi o alívio em seu rosto e resolvi que ele não poderia permanecer
com aquela boca boba exibindo um sorriso mais do que animado. Eu devia
ter mentido antes ou melhor continuado com a mentira que comecei na festa
da irmandade.
— Mas, sim, irei a partida, quem sabe não arrumo outro jogador? —
brinquei, virando-me com a intenção de me afastar logo dele e me vi não
tão surpresa com sua mão em meu pulso detendo meu afastamento.
Ele exibia um cenho franzido contrariado tão comum a ele quando
eu passava do limite em minhas provocações.
— Mais alguma coisa, Andrew? — questionei, num aviso que não
havia motivos para me reter ali.
— Não, nada. — Sua voz não podia esconder o desgosto expresso
em seu rosto e vi a frustração faiscar em seus olhos um segundo antes que
sua mão caísse pesada ao seu lado e eu continuasse meu caminho sem olhar
para trás.
Havia algo de bom nessa história toda, bastava uma palavra minha e
conseguia impor minha vontade sobre ele sem usar magia alguma.
Isabella quicava na arquibancada torcendo pelo seu cara que corria
pelo campo, como se fosse um herói nacional, indiferente a uma multidão
tentava detê-lo, bem ele era, ao menos daquele povo alucinado que gritava
palavras de incentivo da arquibancada.
A torcida vibrava em êxtase, já eu olhava para o campo e só via um
monte de homens brincando com uma bola. Nenhum herói entre eles. Eu
merecia aquela tortura autoimposta por meu comentário desnecessário na
minha conversa com Andrew.
E eu aqui vim, uma vez que a mentira deveria ser tornar uma
verdade ou ele acabaria por descobrir que eu não estivera aqui. Não teve
outro jeito a não ser pegar uma carona com Isabella numa viagem de
quatros horas até Tampa para assistir a essa coisa chata. Se eu ficasse no
meu alojamento e dormisse o dia inteiro, seria mais proveitoso. Já estava
quase dormindo mesmo.
Tão cansada disso, do jogo, verdade. Obviamente da faculdade e de
evitar Andrew também. Ele poderia simplesmente entender que eu não
tinha interesse nenhum nele, mas não. Ele não conseguiria desistir, então só
me restava deslizar para longe de seu alcance toda vez.
O jeito era aguentar que logo o jogo acabaria, aquele que acontecia
no gramado e o que rolava comigo e Andrew. Só que meu jogo particular
necessitaria de tempo e distância, já a brincadeira naquele estádio encerraria
em poucos minutos e ao menos eu poderia ir para casa.
Deixei meus ombros caírem em resignação e revirei meus olhos por
um instante com desgosto daquela euforia toda daquela gente, quando senti
o clima mudar muito antes que os gritos tomassem uma intensidade
diferente.
— Emmie... — Isabella murmurou, angustiada, segurando meu
braço de repente, enquanto a torcida convulsionava em urros
ensurdecedores.
Eu voltei meus olhos para ela e depois para o campo.
Quatro caras gigantescos se jogaram sobre o corpo de Taylor e o
imobilizaram. Ele estava fora de ação e a expressão em sua face não parecia
nada boa. Eu também não estaria se tivesse homens daquele tamanho,
pesados e fortes em minhas costas me forçando no chão. Bem, não havia
heróis ali, mas ainda era uma brincadeira violenta para humanos frágeis.
“O quarteback foi pego numa blitz[12] faltando poucos minutos para
o fim do jogo do amistoso estudantil aqui no Raymond James Stadium [13]. A
torcida chora em desespero pelo seu jogador que foi carregado para o
banco e parece que irá ser substituído por seu colega de time Brandon.
Taylor Jones pareceu ter machucado feio as costelas, aqueles jogadores o
acertaram em cheio com os capacetes. É uma pena que o astro da
Universidade de Miami talvez não possa brilhar hoje. Só vamos ter a
certeza quando voltarem do tempo solicitado pelo treinador. Todos os
torcedores do Hurricanes têm suas mãos juntas rezando pelo seu
campeão.”
Isabella chorava e apertava meu braço com mais força, que já
deixava minha pele avermelhada.
— Ele vai ficar bem, não se preocupe tanto. — O rosto dela se
tornou rubro e me olhou com ultraje como nunca tinha visto antes. — É só
um jogo — falei, tentando acalmá-la.
— Nunca é só um jogo, Emma, e hoje ainda parece que tem
olheiros. — Ela quase gritava para ser ouvida entre as lamentações da
torcida. — É um jogo importante contra o Notre Dame.
— É o que eu disse, um jogo. Não é vida ou morte — insisti.
— Taylor vem treinando pra isso. Ele esperava fazer o ponto
decisivo e isso seria a chance dele para ir para a NFL[14]. — Ela arfou,
angustiada e eu estava era consternada que ela já soubesse tanto sobre ele.
— Ele perdeu a chance dele, Emma. — Isabella cobriu seu rosto com as
mãos e eu ergui as minhas com a intenção de tranquilizá-la, mas acabei foi
concentrando minha atenção na partida.
Aquilo tudo era tão importante assim?
Não era uma guerra, não iria fazer muita diferença para o mundo
uma partida de futebol americano. Não tinha valor algum para mim, mas
era importante para minha amiga. Achei a reação dela um pouco exagerada
para quem tinha começado a sair há pouco com o cara. Mas ao ver aquele
choro todo, ela devia estar saindo com ele já há um tempo, e meu estômago
revirou por tê-lo beijado naquela festa.
Eu não tinha ideia de que ela estava com ele, Taylor estava sempre
cercado de garotas.
Isabella não comentara nada, mesmo que eu a tenha machucado.
Certo. Talvez eu pudesse fazer algo por ela.
Fechei minhas pálpebras e minha forma astral [15]deixou meu corpo
naquele banco, guiando-se para o vestiário masculino do time de futebol
para avaliar o estado do cara que estava fazendo Isabella chorar.
Encontrei Taylor cercado por seus colegas de time no vestiário com
rostos preocupados e já descrentes de que ganhariam essa partida. O
jogador estava deitado no banco, com uma perna caída para fora dele, sem
camisa e tinha o antebraço cobrindo seus olhos. Ele parecia soluçar pelo dor
da perda do jogo, mas o treinador não parecia se importar muito com o
estado perturbado que se encontrava e continuava a passar orientações
duras para os demais jogadores que não o incluíam.
Havia sido culpa dele, eu podia vê-lo se lamentando em sua mente.
Sua ganância em ser relevante nesse jogo e se exibir para qualquer olheiro
que estivesse ali o fizera não passar a bola, rapidamente, e os caras o
pegaram.
Agora ele estava fora do jogo.
Certo, não negava que esse era um esporte muito violento para os
humanos com todos aqueles empurrões e choques corporais, era óbvio o
motivo de que só os maiores brutamontes estavam aptos a brincar num
campo desses. Um homem mais fraco teria mais contusões do que os roxos
e inchaços que eu podia ver por toda parte na pele de Taylor que estava à
mostra. Ele era um desses caras musculosos prontos para aguentar as
porradas do futebol, mas não era invencível, como boa parte dos homens
gostava de pensar, era só um sujeito como todos os outros.
Cruzei os braços no peito, decidindo se valia a pena uma
intervenção, quando vi Taylor contrair o corpo e tentar levantar do banco
com seus colegas o detendo, sendo que o treinador o mandara ficar ali.
— Cara, você não pode entrar assim.
— Cale a boca, Brandon! É do meu futuro que estamos falando... —
rosnou ele. — Você só quer ocupar o meu lugar.
— Então termine por se arrebentar sozinho e arque com as
consequências, seu babaca.
O colega deu um empurrão em seu peito que fez Taylor cambalear
um pouco antes de tornar a se sentar no banco meio de lado como se mesmo
ficar em pé por aquele pouco tempo tivesse sido esgotante.
Futuro.
Isabella parecia muito interessada nele e ela era rica. Precisaria de
alguém no mesmo nível, embora o rapaz não fosse exatamente pobre, não
se comparava a riqueza dela, então tomei minha decisão. Afastei seus
colegas com uma ordem mental e toquei o abdômen dele para transferir
parte da minha força.
Suas costelas doeriam mais tarde, por ora ele estava empoderado
com uma bomba diferente do que esses caras costumavam tomar, uma feita
da minha própria energia fluindo por seu corpo.
— Eu vou voltar para o campo — afirmou ele, determinado,
levantando-se e encorajado pela minha energia correndo nele.
O treinador tentou impedir colocando suas mãos em seu peito, mas
sussurrei em seu ouvido que Taylor estava bem e ele acatou minha ordem.
Eu sorri e voltei ao meu corpo num impacto que me curvou para a
frente, a perda repentina de uma boa quantidade da minha energia vital
transferida para Taylor contribuiu para meu abatimento, enquanto ele
apareceu logo depois bem e corado cruzando o campo e se posicionando
para o término da partida sob o uivo da plateia.
— Você está bem, Emmie? — Isabella questionou, enquanto me
amparava com um braço sob meus ombros.
Ela assentiu, aliviada, e me ajudou a me sentar, mas logo depois já
se concentrou na partida e deu gritinhos de alegria por Taylor estar
novamente em campo e parecendo perfeitamente bem.
ambos desejavam levá-la para cama. Eles se perguntavam com qual dos
dois ela iria sair dali e cogitavam se ela aceitaria a acompanhar ambos.
Modernidades. Eu não me intrometeria. Nenhum dos dois pretendia
machucá-la, suas auras estavam num frenesi sexual, mas não tinham
intenções malignas. Cabia a ela aceitá-los ou não.
Voltei a minha atenção para minhas mensagens antigas de Scarlet.
Ela vinha silenciosa até esses dias que cismou em me convencer a retornar
para casa. Seu aniversário seria daqui a três dias e não me sobrava tempo
para decidir. Lembrei-me como ela me abraçou feliz pensando que eu era
sua irmã de verdade, presa a falsas lembranças, isso aconteceu uns dias
depois que eu cheguei a sua casa.
Scarlet fazia aniversário dia vinte e um de novembro, eu cheguei em
sua casa poucos dias antes da comemoração, ela pensara que havia ganhado
uma irmã de presente e logo depois acabei enfeitiçando a mim mesma e a
ela fazendo-a crer que eu sempre estivera ali.
Acreditamos realmente nessa mentira, menos seus pais que não
estavam presentes quando decidi que faria parte da família e acabei me
lobotomizando. Eu nunca esqueceria seus olhos perplexos quando os
chamei de pais segundos depois que vieram falar que o jantar estava pronto.
O pesar pela pobre garota perdida não superava a irritação que
sentiram naquele momento e em tantos outros.
Ignorei qualquer desprezo que sentissem por mim, meu peito doía
de aflição. Mas naquele momento eu só queria um pouco de amor, o mesmo
que eu via darem a Scarlet e eu nunca tive uma prova disso.
A droga que foi tão pouco tempo para cavar um pouco em seus
corações, no ano seguinte o clima já era ruim graças a aparição de Irene no
Halloween.
Bem, era só mais um pesadelo para minha cota infinita deles.
Iria sobreviver, eu o vinha fazendo há um longo tempo.
Fiquei pensando esses dias se seus pais gostariam de me ver em sua
casa e cheguei à conclusão de que não era a resposta, mas não poderia
negar o pedido de Scarlet.
Talvez ainda houvesse alguma chance de ser aceita numa família de
verdade. Uma composta somente por eu e Scarlet, mas uma irmã era mais
do que eu tive alguma vez.
Então, estava decidido. Eu iria enfrentar parte de meus fantasmas na
pequena Cartersville.
Senti meu rosto se curvando num sorriso ao me lembrar de como
Scarlet ficara bonita vestida de princesa no Halloween, eu queria que ela
fosse minha irmã de verdade. Mas não tive sorte nem que fosse sua irmã
adotiva por muito tempo, nem mesmo um ano inteiro.
Levei minhas mãos aos olhos, costumava aguentar mais fácil a dor
antes que voltasse a esse mundo. Conhecer os Davis foi como me mostrar
uma face diferente do que era sofrimento. Família, eu nunca tive nenhuma.
Antes de Scarlet o mais próximo que eu tive como família fora
Darío, nem mesmo os Davis me fizeram me sentir tão acolhida como ele.
No entanto, por mais que o amasse, era uma noção diferente de família, um
homem que eu desejava e não um núcleo familiar que me quisesse como
uma querida integrante.
Não era como ter pais e irmãos. Eu queria isso.
Achei que ele seria o suficiente para mim, mais lá no fundo, eu
queria ter parentes para amar nos bons momentos e brigar quando as coisas
estivessem ruins. Era isso que as famílias faziam e me vi tentada ao
encontrar os Davis.
Eu devia ter ido embora logo, mas não pude.
Me deixei afundar em autopiedade e fiquei ali na casa deles até que
Irene quebrou minha ilusão e com ela as minhas esperanças.
Algo que o seu coven tinha por hábito de fazer, me destruir. De
múltiplas formas.
Então recolhi os pedaços de minha mente fragmentada e os colei aos
poucos nos anos que se seguiram e achei um cantinho para mim nesse
mundo tão diferente do que eu deixei quando fui tragada pelas trevas. Um
que eu ainda me escondia embora seguisse de encontro ao motivo que me
fizera encarar os demônios e abrir meu caminho do inferno para o mundo
dos humanos novamente.
Inferno. Um tempo difícil. Assim eu poderia descrever meu período
de cativeiro por lá onde tudo que tive para me amparar foi meu apego as
memórias de Darío, assim como fizera depois que deixei os Davis.
Eu devia visitar menos essas memórias. Elas me sustentavam, mas
me machucavam. A deusa sabia que eu precisava delas para viver, mas era
difícil seguir em frente, pois me apegara nelas.
Apagá-las era algo que eu não faria mais, eram meu passado e quem
eu era. Embora, eu tivesse uma nova identidade, não sendo mais a mesma
Livia.
Meu novo eu, Emma não era tão diferente dela. Eu só precisava
caminhar para o futuro não mantendo as lembranças e velhos sentimentos
tão vivos dentro de mim.
Porém, era difícil manter a mente nisso quando meus pensamentos
só caminhavam pelo passado e tudo que eu via me levava a ele. Nesse
momento, mesmo na boate, o cheiro que flutuava no ar misturado com
perfume caro era tão almiscarado como o cheiro natural de Darío e isso era
torturante demais.
Particularmente, era mais difícil de superá-lo a perca da família que
eu nem cheguei a ter.
Porque Darío me amou e os Davis não.
Nem mesmo Scarlet o fez, eu era algo como uma estranha divertida
que ela gostava de passar tempo e adotou como uma falsa irmã sem
perceber. Mas atualmente, já não queria saber de mim, enquanto eu ansiava
por manter qualquer vínculo que pudesse.
Era doloroso desejar migalhas de afeto, mas não havia muita gente
aí fora que me quisesse por perto e eu aceitaria as dela se ela quisesse me
oferecer.
— Uma bebida por seus pensamentos.
Ergui minha cabeça e fechei minha cara de imediato.
Andrew me encontrou novamente e eu não imaginava como ele
conseguia fazer isso. Nesse momento, ele estava parado ali com aquele
olhar de cachorrinho pidão após depositar uma taça de algum coquetel
vermelho sobre a mesinha à minha frente numa oferenda para que o
convidasse a se sentar.
Como se ele não fosse fazê-lo, eu o convidando ou não.
Eu não podia negar, não havia muita gente querendo a minha
companhia, com exceção dele. E bem, de Isabella também. Eu era grata por
sua companhia, ela era uma amiga gentil, embora fosse tão cansativa em
suas demandas quanto Andrew. Só que com ela era mais de querer me fazer
aproveitar a vida e me arrastar por todo lado. Minha amiga não achava que
eu me divertia o suficiente, mas eu não tinha vontade de agitar por aí, eu
quase poderia ouvi-la falando algo assim.
Não estava acostumada com essas coisas, não houve muito espaço
para elas na minha longa vida. Se ela soubesse o quanto eu vivera sem elas,
estaria decretado que seria arrastada para cada festa que ela encontrasse na
cidade, até mesmo para os velórios. Me obrigaria a qualquer contato social
que ela conseguisse para mim, inclusive e, principalmente, com os caras
que eu fazia questão de rejeitar.
Caras, eu tentava evitá-los, em especial, o sorridente à minha frente
sempre que eu podia, mas essa não parecia ser a noite que eu conseguiria
fazê-lo.
Alguns dias era bem difíceis lidar com Andrew, ele sabia ser
irritante com aqueles olhos que pareciam cavar tanto na minha alma que era
capaz de encontrar meus segredinhos.
Mas não, nada de tentar invadir minha privacidade, mocinho. Só eu
devia fazer tal coisa. Joguei meu celular na mesa e percebi que ele esticara
o pescoço numa falha tentativa de checar minhas mensagens.
Estreitei meus olhos diante de sua curiosidade tola e parti para o
ataque.
— Oi, Andy. Você aqui? Não sabia que frequentasse tais lugares.
— Só porque sou meio nerd, não quer dizer que de vez em quando
eu não me misture com outras tribos.
— Na verdade, quer dizer exatamente isso. Devia estar em sua cama
entre as cobertas em segurança, lendo revistinhas e brincando com os
bonequinhos
— São HQs e figuras de ação. Só para constar.
— Está bem, estou ciente dos termos técnicos.
— Você é terrível! — Ele riu diante da minha implicância, mas não
era esse o meu objetivo. Cruzei meus braços emburrada com sua alegria, ele
fazia com que me sentisse uma mulher frustrada em muitos termos. —
Emma, seus olhos estão mais bonitos hoje.
— Só os olhos? — provoquei, não resisti.
— Toda você, mas eles estão especialmente brilhantes. — Percebi
que ele moveu as mãos embaixo da mesa. — Não leve a mal, parecem íris
de gatos bem cristalinas. Só vi olhos assim na gatinha da minha avó que
faleceu.
Canalizei mais poder do que eu fizera há muito tempo, naturalmente
minha pele devia estar mais viçosa e meus olhos azuis deviam estar
resplandecentes. Muita energia fluíra por mim, embora por dentro eu
estivesse um pouco cansada.
— A gata ou sua avó?
— As duas faleceram. Mas seus olhos se parecem como de Diana, a
gata.
— Sinto por sua avó.
— Faz tempo. Eu era criança ainda. Está tudo bem agora, estou
bem.
Ele não parecia muito bem, seus olhos estavam mais caídos do que
se eu tivesse dado um fora nele. A morte de sua avó ainda doía.
Era melhor mudar de assunto, não gostava de vê-lo abatido desse
jeito. Preferia ele alegrinho me cercando pelos cantos, essa sempre seria
uma visão agradável, embora eu nunca fosse admitir.
— Não compare garotas a animais, não é legal. Faz parecer que
somos selvagens — brinquei com ele pensando que o tiraria daquela tristeza
toda.
— Ah, não foi minha intenção — disse num muxoxo enquanto se
acomodava de forma ainda mais desconfortável do que eu, naquela cadeira
pequena o que me fez pensar que não era só a mobília que causou o
incômodo. Minha tentativa de animá-lo teve o efeito reverso, ele acreditou
que eu o repreendi.
Provavelmente, era o resultado das minhas constantes indiretas
malcriadas e necessárias. Se fosse amigável demais, aí que ele fincaria
residência perseguindo a minha sombra.
Mas aquela amargura toda não era o que eu planejava.
— Pode fazer com que me sinta um pouco selvagem demais —
ronronei, enquanto descalçava meus sapatos e deslizava meu pé por sua
perna, talvez isso ajudasse a melhorar o ânimo.
Um pouco de flerte nesse momento não faria mal, eu tive um dia
estressante, talvez até fizesse bem. Pensaria assim, ele viera atrás de mim de
novo, não tinha jeito mesmo de mandá-lo para casa. Só um pouco de
conforto para nós dois, depois eu daria um jeito de mantê-lo sob controle,
sim, eu pensaria nisso mais tarde.
Mordi minha língua para conter um gemido ao constatar em minha
pele todo o poder que eu possuía sobre Andrew, seus músculos ficavam
mais tensos por onde meu pé passava. Até mesmo a parte que não tinha
nenhum músculo, essa parecia maior e mais dura do que eu já havia notado
antes.
Não pude evitar de sorrir ou tocá-lo ali com mais intensidade.
Ergui meus olhos para ele e Andrew tinha um punho apertado com
força sobre a mesa e os olhos firmemente fechados, tão firme quanto o que
eu tocava nesse momento com movimentos insistentes com a sola do meu
pé.
Retirei-me dele e o vi arfar tentando se recompor.
— Qual é o problema desse lugar? Por que é tudo tão pequeno e
espremido?
— Talvez eles achem aconchegante assim, mais íntimo —
provoquei, debruçando-me sobre a mesa e deixando que ele desse uma boa
olhada nos meus seios à mostra naquela camiseta preta e colante.
Uma coisa eu tinha a certeza, as calças de Andy deviam estar mais
apertadas do que o espaço reduzido entre nossos corpos. Antes as coisas já
estavam bem sem espaço lá embaixo, mas com ele tendo uma visão perfeita
dos meus seios saltando da camiseta, as coisas deviam estar mais intensas
considerando seus olhos fixos neles.
Não que eu fosse bem favorecida nesse quesito, eu sempre os
julguei pequenos. Ainda mais para os padrões americanos, mas uma coisa
era certa, o tamanho não importava tanto assim para um homem. Seios
eram seios e os homens gostavam deles.
E não via outra garota oferecendo os seus ao seu olhar assim, na
verdade, nunca via nenhuma oferecendo qualquer coisa a ele. Nem mesmo
uma conversa à toa sobre a faculdade. Qual era o problema daquelas
mulheres? Ele era meio esquisito, mas ainda assim lindo. Definitivamente,
havia algum problema com elas.
Deve ter sido por esse motivo que ele cismara comigo. Eu dera
atenção a ele, mas do que eu planejara alguma vez.
E no momento estava dando mais do que isso, uma boa visão do
meu decote era o que recebia e, pelo visto, ele gostou da vista. Até eu
apreciei meus peitos, estavam mais bonitos e altos, destacados com uma
camiseta preta de um tecido bem firme que os sustentava juntos num amplo
decote que devia estar surtindo um efeito interessante num cara como
Andrew. Já que a única garota que eu o via atrás era a que exibia os peitos
em questão. As garotas não corriam atrás dele, mas eu também não o via se
esforçando para ganhar a atenção de nenhuma delas.
Com olhos tão vidrados como estavam, imaginei que já tivesse
percebido que eu não usava sutiã e que ele adoraria se eu fosse mais amável
no futuro.
Depois de anos usando espartilho e uma vida de reclusão, eu me
manteria o mais longe possível de qualquer prisão e isso incluía qualquer
roupa íntima. Se estivesse à solta nos anos sessenta, eu estaria nas fileiras
de garotas louca para acender um isqueiro e tacar fogo nos meus sutiãs.
Tudo pela liberação feminina, é claro, não porque não gosto da peça
mesmo.
— Ah, Emma, eu... — Andy engoliu em seco.
Eu sabia, desconcertei o bom moço.
— Sim?
— Você está muito linda.
— Você já disse isso hoje e deveria ver essa cara, tire os olhos dos
meios peitos. — Torci os lábios fingindo estar contrariada.
Até me arrumei um pouquinho para vir a boate, embora mantivesse
minhas roupas negras padrão uniforme de todo dia. Me adequei bem à
moda casual atual, e fiquei feliz de não ter que estar sempre num vestido
como no passado. Mas quando estava me aprontando mais cedo decidi
escolher uma roupa mais bonita, embora tão simples como todas as outras.
Eu não costumava me enfeitar muito, Andrew menos ainda. Nesse
momento que eu notara finalmente as roupas que ele vestia.
— Até numa boate, Andy?
— Eu não esperava reagir assim, me perdoe. — Ele abaixou a
cabeça, rubro como a fogueira que eu queria tacar meus sutiãs, crente que
eu estava falando de sua reação ao meu pé que eu esfreguei nele ou do
decote que botei embaixo de seu nariz.
— Falo da camiseta de super-heróis sob essa jaqueta que é bem
bonita por sinal. — Eu ri de seu constrangimento. — Embora verde
combine com você, podia escolher um monstro mais bonitinho para vestir
ou aboli-las uma noite que seja.
— Ah, eu decidi vir de repente. — Coçou a cabeça sem graça. — Já
estava indo para cama, na verdade, e ler...
Sorri mediante sua fala.
— Ler revistinhas — completei.
— Você deve pensar que sou uma criança grande — disse,
esfregando a testa.
Mesmo para um cara sem traquejo social, como ele, que passava
mais tempo vendo filmes de super-herói do que devia para a sua idade,
enquanto deveria estar pegando garotas em festas, aquilo fora cruel.
Minhas diretas maldosas às vezes eram diretas demais. Eu precisava
corrigir isso.
Me levantei da minha cadeira, peguei meu casaco no encosto da
cadeira e me aproximei de sua orelha devagar antes de murmurar em seus
ouvidos.
— Penso, mas eu prefiro você assim.
Ele saltou na cadeira numa empolgação misturada com susto o que
levou que batesse seus joelhos na mesa entornando a bebida que trouxera
em mim, um pouco na mesa e muito em suas calças.
— Droga, sua bebida — falou, chateado enquanto olhava ao estrago
que fizera.
— Eu não bebo nada alcoólico, não se preocupe. Peça outra para
você e vá para casa.
— Eu te acompanho — ele se ofereceu, já se levantando e meio que
derrapando na bebida que escorrera pelo piso.
Eu o vi se curvar para trás e o medo que ele se machucasse gritou
alto no meu peito, quando percebi já estava segurando-o pela cintura e o
encarando, assustada demais, para um simples flerte.
Andrew não podia perceber isso.
Graças a deusa as reações de seu corpo ao meu eram mais
energéticas e perfeitas do que minha capacidade de fingimento, me dando
um assunto ótimo para que eu fugisse de explicações sobre qualquer
sentimento que estivesse escancarado em meu rosto. Era isso que dizia seu
pau me espetando um pouco mais abaixo. Dei uma espiada, afastando um
pouco meu corpo do dele e não pude impedir o sorriso de lado que brotou
na minha face ao encará-lo, novamente, só para vê-lo desviar os olhos para
o teto, sem ter como disfarçar algo tão óbvio e que eu já sentira há pouco.
Ele ficara mesmo animado com meu pequeno entretenimento.
— Acho que você devia ir imediatamente para casa e ler algo mais
adulto que HQs de super-heróis. Vai te acalmar um pouco — fiz uma pausa
e mordi meus lábios —, ou animar mais, vai saber.
— Emma, pare — suplicou, já muito torturado para um dia só.
— Parei! — Estendi as mãos ao alto para assegurar que já o toquei
demais por hoje. — Vá brincar com suas garotas de papel agora.
— Você não iria imaginar os milagres que super-heroínas fazem na
vida de um cara solitário.
— Arrume uma garota de verdade, super-heroínas são muito
problemáticas.
— Você está disponível para ser essa garota?
Andy estava ficando ousado graças ao meu excesso de incentivos
essa noite. Infelizmente, era mais problemática do que mulheres fictícias de
HQs. Afinal, eu era real e carregada de arqui-inimigos de verdade.
— O único encontro que eu quero é com a minha cama agora.
Eu dei pequenos tapinhas em seu peito na intenção de pontuar
minhas palavras e acabei por me surpreender o quanto aquele peito era duro
para um cara que não se exercitava, a menos que levantar copos de
refrigerante contasse como atividade física. Isso eu o via entornar entre uma
aula e outra somado a meia dúzia de donuts. Devia ser daí que estava vindo
essa energia toda para me perseguir.
— Vá para casa — reforcei, virando-me em direção à porta.
Isabella teria diversão essa noite, Andrew se divertiria sozinho e eu
iria para casa dormir.
— Você quer vir para minha casa no feriado?
O convite veio de surpresa, ele devia estar se referindo ao Ação de
Graças daqui a poucos dias. Eu não devia ter mexido com ele, devia ser o
cansaço, fora um dia complicado, mas não resisti a provocá-lo.
Meu corpo tomara decisões sozinho e se movera para ele, mas nesse
momento Andy esperava que eu passasse o Ação de Graças [23]em sua casa.
Era tão óbvio que eu nunca ia para casa, todas as pessoas próximas sabiam
e isso me chateava.
Eu era a única que não tinha uma família querida para voltar.
Ninguém que se importasse comigo para dividir a refeição, não que ligasse
para a parte religiosa da coisa, eu não tinha essas crenças. Mas a data era
um costume local, para ficar com os que te amavam, mas ninguém nutria
tais coisas por mim.
Ele estava se oferecendo para me emprestar a família dele, mas isso
estava fora de cogitação.
Bem, eu não podia dizer que não havia ninguém absolutamente na
minha vida. Tinha uma irmã me chamando para casa, teria que bastar. Era
isso, eu iria para Cartersville no aniversário de Scarlet e talvez estendesse
minha visita até o feriado.
— Sinto muito, não vai dar. Eu vou para casa — falei, deixando a
boate e Andrew com um palavrão que escapou de seus lábios junto com um
Você estragou tudo se referindo a ele mesmo.
Mas ele não havia estragado nada.
Eu sim cometera um erro terrível essa noite, eu o deixei se
aproximar mais do que devia. Até parecia que eu tinha bebido algo forte
quando não entornara uma gota de álcool. Não contava o que fiz Andrew
derrubar em suas calças e acabara tendo efeitos adversos.
Precisava calcular melhor meus movimentos no futuro, estar numa
boate que emanava desejo sexual naqueles corpos suados não era uma coisa
boa para uma bruxa com a sensibilidade aflorada. Nem mesmo toda de
preto a cor me protegeu de ser preenchida por toda a luxúria que reinava ali.
Mas a chegada de Andy fora o pior, o próprio desejo dele pulsou em
mim.
Essa era a parte da magia que eu mais detestava, ser empata[24]. Uma
luta constante para saber se o que eu sentia era real ou se estava canalizando
os sentimentos de outras pessoas como, aparentemente, fizera, absorvi toda
aquela energia sexual que reinava ao meu redor.
Odiava boates.
O som era detestável e eu mal podia me concentrar em meus
próprios pensamentos. Fiz um esforço para checar os novos amigos de
Isabela e acabei fragilizada. Daí Andrew apareceu com seus próprios
pensamentos impuros que se acumularam com os demais pervertidos locais,
e eu virei uma máquina de sedução. Fora que ainda havia aquele cheiro de
suor misturado ao almíscar pelo ar, perdi a cabeça e era culpa deles.
Não minha de forma alguma, claro que não. Toda deles.
Mas desse momento em diante eu que teria que lidar com as
consequências. Paciência. Nunca imaginei que Andrew iria num lugar
daqueles.
Aula de empreendedorismo, uma lição de como ganhar dinheiro se
você tem zero centavos. Boa aula e uma total mentira. Grana sempre
chamava mais grana, a menos que a pessoa fosse ruim o suficiente para
falir. Mas a ausência dela só chamava uma coisa se você fosse burro para
tentar ganhá-la, dívidas.
Uma tonelada delas, na verdade.
Universidade, a terra das ilusões, bufei enquanto batia minha caneta
num movimento ritmado sobre a mesa e dava uma olhada nos colegas ao
meu lado. Todos tinham olhos de esperança e, provavelmente, pensavam o
que podiam fazer com suas habilidades. Mas acabariam como a maioria,
queimando a vista diante de um computador num escritório apertado em
algum centro comercial e perdendo o cabelo antes dos trinta.
Ainda bem que aparentemente eu era imortal, ou ao menos viveria
mais algumas centenas de anos pelo simples fato, da sorte ou azar, de meu
nascimento especial, abençoada pelos deuses ou a descendente bastarda de
algum deles. Essa última parte carecia de interpretação, mas não me parecia
uma benção. Bem, ao menos não precisaria me preocupar em perder cabelo
e nunca teria miopia num trabalho desses.
Era uma droga que eu acabaria tendo que arrumar algo do tipo a
menos que eu resolvesse mendigar pelas ruas, pena que meu senso de certo
e errado, apesar de falho, ainda dizia que eu não devia brincar com a mente
das pessoas para que me dessem toda a grana delas.
Bem, de vez em quando ele dizia. Mas na maioria das vezes eu o
ignorava e tentava ser tão boa quanto uma bruxa má era capaz de ser.
Boa...
Havia alguém de fato bom nesse mundo? Eu duvidava.
Mordi a ponta da caneta e tentei prestar atenção a projeção naquele
grande telão, enquanto o professor Smith fazia o melhor para nos convencer
do quanto a vida seria fácil se o ouvíssemos com afinco.
Eu poderia gritar naquela sala que a vida era uma merda, mas eles
descobririam sozinhos cedo ou tarde.
Nesse momento, o professor batia na tecla de como o marketing
digital era importante para desenvolver a consciência de marca nas mentes
dos possíveis clientes, ou melhor, fãs. Assim, eles se identificariam com o
que éramos e com nossos valores.
No fim, a aula era de vilania.
Não pude conter um sorriso com a constatação disso, tive que
abaixar minha cabeça, encostando meu queixo no peito na tentativa de
escondê-lo. Ele nos ensinava a manipular da melhor maneira as pobres
mentes indefesas, eu retirava o que disse a ser um fracasso. Talvez eu
conseguisse me dar bem na área, afinal, eu era boa nisso.
Tirando a parte de mostrar sua verdadeira identidade, bem eu era de
uma época que mostrar quem você era poderia levar a uma sessão de
tortura, exílio e com um pouco mais de azar a fogueira. Não
necessariamente nessa ordem, você também tinha a opção de não
sobreviver a tortura.
De todo, era melhor fingir e se juntar a manada. Dizer o que os
outros queriam ouvir, mas fazer o que te convir. A única coisa que ninguém
podia mandar era nos seus pensamentos, a menos que desse de cara com
alguém, como eu, que podia lê-los. Bem, se encontrasse alguém como eu,
devia cuidar mesmo da aura que exalava, porque nem seus sentimentos ali
gravados me escapariam.
A droga era que havia outros assim como eu no mundo e com
intenções piores. Ao menos também existia mais gente para me deter caso
eu resolvesse brincar de marketing, numa versão de puro feitiço.
Sacudi minha cabeça afastando as malvadezas dela e dei de cara
com aqueles bons olhos fixos em meu rosto. Eu atiçara Andrew mais do
que devia ontem.
Sr. Smith, vire-se.
Enviei uma ordem mental ao professor com um comando direto e
ele chamou a atenção de Andrew, que se voltou novamente para frente,
deixando-me menos tensa sem sua vigília sufocante. Revirei meus olhos,
recordando-me de que além dos problemas que eu teria após a formatura, eu
precisava lidar com outros imediatos e um homem apaixonado só me
atrapalharia.
E ainda tinha o problema que decidi voltar à cidade que me acolheu
e me chutou logo a seguir, a repercussão disso me assustava um pouco. A
recepção dos Davis era um problema maior a se lidar, mas por Scarlet achei
que valia a pena. Embora o dinheiro estivesse curto para visitá-la, assim tão
de repente.
A bolsa da faculdade não era muita e comprar uma passagem de
avião estava fora de cogitação, então achataria minha bunda num ônibus de
Miami até a pequena cidade de Cartersville por longas dezessete horas, isso
se eu conseguisse passagens tão em cima da hora.
A aula terminou e eu mordi os lábios insegura, ainda mais depois do
que aconteceria nesse fim de semana. Fiquei um tempo olhando as
mensagens de minha irmã até que todos os alunos deixaram a sala e eu me
levantei, torcendo que fosse um dia de sorte, apesar de que essa não era
uma palavra que podia ser atribuída muito a mim.
Ainda mais quando podia sentir os olhos de Andrew me
perseguindo no meu caminho pelo corredor até a saída do prédio.
E meu medo se manifestou numa forma real, nas palavras ingratas
da funcionária da estação de ônibus.
Não há mais passagens daqui até o Dia de Ação de Graças. A
atendente dissera sem piedade, enquanto assoprava uma fumaça em minha
cara que cheirava a rosas.
Tive um ataque de tosse que me levou a me sentar nas escadas da
estação sem achar nenhuma solução. Quem fumava cigarros de rosas[25]? Eu
era a favor do Você quer se matar, faça-o direito com a velha e péssima
nicotina. Ambos fediam de qualquer jeito. Dado meu verdadeiro desprezo
por rosas, acreditava que elas fediam até mais.
Eu apertara a alça da sacola de viagem com força entre meus dedos,
enquanto insistia se não havia uma passagem sobrando nem mesmo em
outro horário. Mas não havia nenhuma opção disponível, segundo a mulher.
Não podia pedir que Isabella me levasse como fizera no jogo de
futebol, na ocasião ela já estava mesmo indo para lá. Tampouco pediria
dinheiro emprestado, seria abuso demais.
— Como que não sobrou nada? Nem uma passagem para Atlanta?
Seria ruim fazer uma baldeação, mas eu aceitaria qualquer coisa no
momento.
Me questionava desanimada ainda sentada nas escadarias da porta
da estação de ônibus com meus cotovelos apoiados em minhas coxas e
minhas mãos em meu rosto num momento de abatimento quando senti meu
celular vibrar novamente. Já era a terceira mensagem hoje e ainda não
passava das onze da manhã.
chegamos, o que me fazia pensar Como que não podia ter mais de um
quarto vago no lugar? Num lugar daqueles sem nem uma TV nos quartos,
era de se esperar que as pessoas ficassem na lanchonete, bebendo e
comendo. Só que não tinha ninguém ali, o que era muito estranho.
— Não há o que fazer — lamentei de como andava a minha sorte.
— Por que tinha que ser tão complicado lidar com Andrew?
Observei o tamanho do quarto, era muito bom, certeza de que era
maior do que aquele que eu dividia na faculdade com aquela menina que eu
nunca me recordava o nome, mas eu também só a via embaixo de um cara
toda vez que eu tinha o azar de encontrá-la no alojamento, na verdade, acho
que nem a reconheceria se a visse por aí. Toda vez que a pegava lá dentro
com alguém, eu saía e ficava vagando pelos corredores até que voltava e ela
estava dormindo.
Estalei a língua em revolta com a gerência daquele motel.
— Num espaço desses era só botar duas camas e quem quisesse que
juntasse as duas.
— Acredito que a maior parte dos casais não gostariam dessa sua
ideia.
Me encolhi ao ouvir a voz de Andrew, jurava que ele estivesse ainda
sob a água do chuveiro e não falando essas provocações num tom,
perigosamente, baixo demais. Fiquei tão entretida analisando o quarto que
não me dei conta de que ele desligara o chuveiro. Desde quando que ele
estava ali?
Ele falara parado ainda em frente à porta do banheiro e eu não podia
vê-lo diretamente, uma parede nos separava, mas seu reflexo no espelho
sobre a escrivaninha era claro e seus olhos estavam mais amorosos do que o
normal e me analisavam com um cuidado redobrado.
Essa seria uma longa noite.
— Eu acredito que talvez os quartos sejam melhor aproveitados e
atenderiam uma gama maior de visitantes.
— É uma noite num motel na estrada, Emma — suspirou ele,
cansado. — Me recordo de uma pessoa que disse que o espaço reduzido
entre a mesinha de uma boate e os assentos era aconchegante, então não
faça tanto caso agora.
— Passei um par de horas naquele lugar, não esperava me deitar ali
para dormir.
— Ainda bem, né? — Um sorriso abusado se exibiu em seu rosto e
resmunguei em pensamento.
Estávamos numa situação que poderia acontecer muito mais do que
meu pé em sua virilha como fora na boate.
Ele não precisava ter me recordado dessa cena e em minha defesa,
eu tinha o dito só para provocá-lo. Fora só isso e eu ainda estava sob o
efeito de toda a luxúria que aqueles jovens exalavam.
Talvez eu estivesse sob o efeito da luxúria novamente, o pensamento
picou em meu cérebro quando ele veio em minha direção andando descalço
pelo cômodo usando um moletom preto e uma camiseta branca que se
agarrara ao seu peito perfeitamente, mais do que devia, na verdade.
Fechei olhos puxando mais as cobertas até meu pescoço e me
embalei como uma múmia na expectativa que se deitasse na cama,
entretanto, um tempo depois ouvi sua respiração pesada se afastando e abri
os olhos, pude vê-lo deitado naquele sofá minúsculo com o travesseiro que
estivera ao meu lado sob sua cabeça.
Não sei se me preocupei com seu desconforto ou com a frustração
que brotara no meu ventre, mas me ergui na cama e deixei que o edredom
escorregasse até a minha cintura.
— Suas pernas estão penduradas fora do sofá.
— É o que acontece quando um homem de um metro e noventa se
deita num sofá de dois lugares.
— Não está desconfortável.
— É só uma noite, vou sobreviver.
— Não tem uma coberta.
— Não tem mais nenhuma que eu possa usar, só a sua.
A tensão do silêncio era tudo que pairava entre nós à espera da
minha resposta àquela pergunta indireta se ele poderia se juntar a minha
cama. Me deitei mais uma vez e me virei de lado com as cobertas até a
cabeça.
— Andy, já é novembro e as noites são mais frias. Deite-se na cama,
mas se comporte.
— Tem certeza? — Ouvi seu sorriso satisfeito em sua voz.
— Deite-se de uma vez.
Poucos passos pelo quarto depois e prendi a respiração ao sentir o
colchão se afundando com seu peso, as cobertas sendo puxadas com ele, à
medida que se colocava embaixo delas e próximo demais do meu corpo a
ponto que eu podia sentir seu calor ao espaço de um toque. Só de imaginar
a sensação, meus seios ficaram turgidos o que me recordou que não havia
muito o que os cobrisse, eu só vestia uma camiseta branca me fazendo
repensar aquela história de não gostar de sutiãs, eu queria um nesse
momento.
Agradeci a deusa por ter levado algumas calcinhas na mochila, não
tinha o hábito de usar, mas iria dormir na casa do Davis e separei algumas.
Se não fosse isso só haveria a camisa baby look entre mim e
Andrew. Obrigada deusa que ainda havia uma calcinha e era tipo boxer.
Ao contrário dele que devia ter mais roupas na mochila enorme que
carregara, até pensei em nossa caminhada até o motel que ele planejava
acampar. Já eu só tinha o que vestia na minha mochila que mais parecia
uma bolsa de passeio e minha sacola de viagem ficara no carro.
Sem problemas, eu só precisava dormir dura como uma estátua,
acordar antes dele amanhã e vestir as mesmas calças empoeiradas da
estrada.
Bem, esse era o plano até sentir seu calor tão perto do meu corpo.
Nesse momento, eu esperava me conter e manter minhas mãos longe dele
para o bem de nós dois.
— Emmie...
Me movi ligeiramente para ele e o vi apoiando a cabeça em sua mão
enquanto o cotovelo descansava sobre o travesseiro. Uma forma
interessante de ficar mirando minha cara, enquanto eu tinha pensamentos
esquisitos.
E, ainda por cima, ele tinha começado a me chamar de Emmie.
Andrew nunca usara o diminutivo de meu nome e era uma péssima hora
para começar. Eu já o chamava sempre de Andy e ele parecia não ligar, mas
fazer o mesmo por mim me dava uma sensação de intimidade que eu não
queria sonhar.
— Sim? — respondi, engolindo em seco.
— Obrigado por me deixar deitar ao seu lado.
— É o mínimo — murmurei, encolhendo-me mais nas cobertas e
me virando para o lado. — Se ficasse resfriado, seria minha culpa.
O silêncio foi nossa única companhia por um tempo até que senti o
colchão afundar mais com ele se remexendo sem parar. Andrew devia ter se
cansado de ficar me olhando e se deitado. Deusa, faça-o dormir logo, por
favor.
— Emmie, você está saindo com aquele jogador?
— Não, não estou. — Bufei, já que estava negando algo que eu fiz
com a única intenção de que ele acreditasse. — E você já havia me
perguntado isso.
Eu devia falar que sim, tinha me esforçado tanto para que ele
acreditasse nisso. Não entendia por que a primeira chance que eu tivera de
afirmar que sim, eu negava.
Havia sido um movimento totalmente errado.
— Eu vi você deixando o vestiário com Isabella.
O sangue no meu corpo gelou. Será que ele me vira atacando
Taylor? E pior, de um jeito violento. Eu não planejara isso. O beijo sim, a
surra não. Ferrou. Não conseguiria brincar com a mente dele como fizera
com Isabella para que esquecesse que passei dos limites ao agredir o
quarterback.
— Acreditei que as duas estivessem se encontrando com ele ao
mesmo tempo. — Ele soltara um suspiro frustrado e eu um aliviado. Ele
não me vira machucando Taylor ou sua fala iria por outro caminho.
— Não curto essas coisas — fiz uma pequena pausa, bolando uma
desculpa —, ela marcou comigo ali, saímos para comemorar numa boate, a
mesma que você me encontrou mais tarde, após ela terminar sua relação
com Taylor.
— Ele deve ter ficado muito magoado para beber a ponto de
desmaiar e fraturar a cabeça. Alguém chamou uma ambulância e foi tão
grave que o cara está em coma.
Que maravilha! Limpar o lugar e esconder a bola destroçada fora
uma boa ideia. Isabella fora para casa e demorara tanto se trocando para sair
que se eu quisesse poderia ter ido e voltado duas vezes no vestiário para
arrumar tudo, até mesmo tive tempo de buscar meus livros que haviam
ficado no gramado ao correr para salvá-la.
— Ah, ele é um babaca, mas espero que fique bem — Bem mal,
seria a resposta completa.
— Sim.
— Ah, cheguei a pensar que tivesse ficado chateada com ele saindo
com Isabella, vocês são próximas e tudo mais. Mas depois do jeito que
Taylor te tratou na festa, fico aliviado que ele a tenha deixado por ela.
Ele pensava que eu tinha sido largada? Isabella era linda e isso era
um fato, mas eu poderia ter o cara que quisesse e isso sem nenhum pingo de
magia. Apesar de ter usado um pouco com aquele jogador, mas esse não era
o ponto da questão aqui.
— Eu que o deixei. — Me virei para Andrew, apoiando minha
cabeça em minha mão como ele fizera a pouco e deixando que a coberta
caísse um pouco até a minha cintura.
— Sério?
Eu vi seus olhos se moverem rapidamente, Andrew parecia
espantado com aqueles olhos verdes enormes e isso só fez aumentar minha
vontade de mostrar para ele o que Emma Davis era capaz.
— Por que não poderia ser eu a deixá-lo?
— Bem, ele tem grana e as garotas gostam disso.
Ele tinha os olhos fixos no teto, parecia mais pensativo do que outra
coisa e eu acreditando a pouco que Andrew estivesse me julgando por
tentar roubar o homem da minha amiga e ter perdido a batalha. Não
aconteceu nada assim, mas outros poderiam acreditar que as coisas
ocorreram desse jeito. Vê-lo tão pensativo, desanimado, me pareceu que ele
estivesse fazendo uma lista mental das coisas que Taylor tinha e ele não.
— E o que tem demais nisso?
— Fora que tem todo aquele porte de atleta e deve ter um futuro
bom como jogador também. Então que garota não iria querer agarrar um
cara assim?
— Bem, eu não ligo para nada disso.
— Não acredito. — Seus olhos deixaram o teto e miraram meu rosto
com uma sobrancelha arqueada. — Então, o que fazia com um cara como
ele, afinal?
Afastando você da melhor forma que eu podia. Mas eu nunca
poderia dizer isso e desviei meus olhos para a parede do outro lado do
quarto.
— Ah, eu tinha razão — resmungou ele, virando-se para o lado que
eu olhava e me dando as costas.
Não, ele não tinha. Senti a necessidade de dar uma prova disso a
Andrew e colei meu corpo as suas costas deixando que sentisse meus peitos
se pressionando contra ele, minhas pernas entre as suas e minha virilha em
sua bunda.
— Você já se olhou no espelho? É belo, só se esconde bem.
Andando sempre curvado, com roupas dois números maiores do que
deveria vestir e tão inseguro de si que transmite isso para os outros.
Andrew não moveu um músculo, então me pressionei contra ele
com mais força e deixei que meus dedos percorressem seu antebraço, num
toque calculado para gerar arrepios em seu corpo o que foi um verdadeiro
sucesso, o senti trêmulo no casulo que eu o abrigara envolvendo-o por
inteiro.
Como recompensa por sua resposta intensa, beijei de leve a pele de
seu pescoço permitindo que meus dentes roçassem um pouco nele e eu
sentisse em meu ventre a vibração que percorreu sua espinha.
Não imaginava que passaria disso, e foi só um engano dentre os
muitos que já cometi.
Andy se virara do nada, rolando na cama e me levando junto com
ele. Acabei presa embaixo de seu corpo, minhas mãos no alto de minha
cabeça foram seguradas firmemente pelas suas e com seu pau duro
pressionando contra o meu centro, permiti que um gemido escapasse de
meus lábios. Era um pequeno gosto da sensação que seria tê-lo se
movimentando dentro de mim.
Ele se deitara por completo sobre meu corpo e sua essência inundou
meus sentidos, o cheiro de sua pele me afetaria mesmo a distância. Excitado
e sobre mim, era como enfeitiçar uma bruxa. Fiquei perdida por alguns
segundos saboreando a maravilha de ter seu corpo colado ao meu, seu calor
e peso eram a coisa mais aconchegante que eu experimentara em séculos.
Poderia passar alguns anos assim, sem pedir que se levantasse alguma vez.
Foi quando tentei abraçá-lo que notei que ele não liberaria minhas
mãos seguras sobre os travesseiros, enquanto ele me olhava com a mesma
fome que eu vivia para esconder. Embora essa noite não estivesse fazendo
um bom trabalho nesse quesito.
— Emmie, eu gosto de você e não espero nada em retorno — falou
num tom sussurrado tão próximo de meu rosto, que fui capaz de sentir seu
hálito quente aquecendo mais partes do que só minha boca que ansiava pelo
gosto da sua. — Mas me magoam essas brincadeiras de me tocar e fugir, só
para ver minha reação uma vez que, é claro, sabe o que eu sinto por você.
Mas era por saber que eu sempre fugia e nunca foi para ver sua
reação. Era por gostar de tocar e nos últimos meses eu não conseguia mais
resistir.
— Tem sido um tormento desde que pus os olhos sobre você, não
entendo por que, mas tudo que eu queria era te tocar e não podia. — Seu
quadril se chocou levemente contra o meu e ele fechou os olhos por um
segundo, parecendo sentir dor ao se conter. — Foi difícil ficar perto de
você, mas quando vi, três anos se passaram nesse tormento.
— Andy, acho que devemos parar aqui.
— Você deve achar estranho eu sempre te cercando — Ele apertou
os lábios antes de continuar. — Não é como se eu fizesse de propósito,
sempre que me aparece o desejo de estar em algum lugar de qualquer jeito,
eu encontro você nele.
— Eu sei que não é.
— Sabe, eu respondo até ao seu cheiro, sempre me põe em alerta
toda vez que vejo você passar. O bobo aqui até foi numa loja de perfumes
tentando achar algo parecido sem sucesso.
Ele não acharia, eu não usava perfume.
Me disseram uma vez que eu cheirava a lótus branca, o cheiro dos
esquecidos[32]. Combinava comigo, não sabia de onde vim, então nunca
liguei, apesar de até meu perfume natural sugerir abandono. Era realmente
bom, agradável e limpo.
Me movi tentando me soltar, mas estava sob seu julgo. Não me
soltaria sem bater nele ou levantar alguma suspeita que não era normal. Eu
não queria fazer nenhum dos dois, mas essa conversa estava indo para um
rumo perigoso.
— Eu sei que você não gosta nem um pouco de mim, mas se diverte
por achar engraçado minhas roupas e meu jeito. Eu não ofereço um perigo a
uma garota como você mesma já disse e acredito que seja por isso que tem
se aproximado mais.
— Andy, não estou brincando com você.
— Não? Eu gostaria que brincasse comigo, Emmie. — Meu corpo
tremeu diante da possibilidade, uma tão errada que eu deveria refutar. —
Espero que goste de fazê-lo, pelo menos uma vez nos dê essa chance.
— Andy, não posso...
— Por quê? Você não está com Taylor — murmurou, meio perdido
e irritado. — Há outro homem?
— Sim...não! — Eu amava outro, mas Darío não existia mais.
— Entendo — assentiu.
— Não, você não entende — choraminguei, colando meu queixo no
peito.
— Estar aqui deitado ao seu lado com tão poucas roupas não é a
coisa certa a se fazer quando eu só penso em tocá-la e não ajuda que me
provoque só porque sabe o que eu sinto.
— Nunca foi minha intenção.
— Está bem. Não o faça mais, só porque se sente segura comigo. Eu
ofereço minha amizade, mas não para me tratar como lixo.
Nunca quis que pensasse assim. Aquilo me deu um leve desespero,
não era a minha intenção que ele se sentisse tão mal.
Comecei a respirar com dificuldade não sei se pelo desejo, pelo seu
peso sobre meu corpo ou pelo desespero que suas palavras me causavam.
Mas vi quando ele ficou parado por um tempo preso na visão de meus seios
subindo e descendo em busca de ar.
Sempre soube que essa viagem não daria certo. Minha respiração
acelerada e aqueles olhos cobiçosos eram a prova disso.
Fora que tudo que eu queria era que minhas mãos estivesse livres
para que pudesse tocar as reentrâncias dos músculos em seu peito e permitir
que minha boca seguisse o mesmo caminho.
Acabei por abandonar esses pensamentos ao perceber que baixava
seus lábios vagarosamente sobre os meus, nossas respirações se misturando,
enquanto nossas bocas se aproximavam, ansiosas para se tocarem.
Nem acreditava que depois de tantos flertes e brincadeiras, um beijo
finalmente aconteceria, quando ele deveria ter vindo bem antes de tudo
aquilo.
Seus lábios pousados nos meus e a corrente de excitação que
percorreu meu corpo fez aquilo parecer tão certo que me esqueci por um
momento de que não deveria me aproximar dele.
Eu deveria ser fria e distante, mas nesse instante estava próxima e
quente. Então me deixei levar pelo calor que me aquecia abrindo minha
boca para receber seu beijo. Sua língua se encontrou com a minha,
movendo-se como se quisesse memorizar todos os detalhes com precisão e
reconhecer os pontos que faziam meu corpo pulsar em direção ao dele.
Me vi abrindo minhas pernas para que ele se acomodasse melhor
entre elas e se friccionasse em meu centro, o que ele começou com
movimentos ligeiros e repetidos, fazendo-me gemer dentro de sua boca.
Aquilo era tão certo que eu queria chorar com aquele pequeno contato e
impulsei minha língua em direção à sua boca, numa singela indicação do
que eu queria que ele fizesse com meu corpo.
Andrew deixou meus lábios concentrado em manter o ritmo que me
fazia estremecer contra seu corpo ao mesmo tempo em que ansiava por
tocá-lo e ter sua boca de novo em seu lugar, sobre a minha.
Eu tenho certeza de que se ele estivesse em meu interior eu já teria
gozado nesse momento, mas Andrew só seguia numa doce tortura com seu
pau se esfregando contra mim sem piedade sobre aquela calcinha maldita
que eu desejava ter deixado em casa. Sim, mudei de opinião quanto a peça
que agora era uma barreira incômoda ao seu contato.
Excitada ao limite e ansiando por um alívio que nunca veio, me
empurrei contra ele para aumentar o contato entre nossos corpos.
— Emmie, me põe louco quando me provoca desse jeito.
Andrew sussurrou em meus ouvidos, ele pareceu notar só nesse
instante o que estava fazendo e, por isso, se jogou ao meu lado na cama.
Estremeci com o abandono prematuro enquanto o vi saltar da cama
logo a seguir e voltar a se deitar no sofá, dessa vez, mesmo sem travesseiro.
— Ficarei melhor por aqui. Não estou muito a fim de cair nas
brincadeiras tipo como na boate, você me provoca e depois me trata como
se eu fosse um inseto.
— Andy...
— Por vezes, pensei que iria me acertar com um jornal ou algum
spray contra insetos.
— Eu sinto muito, eu nunca quis...
— Brincar comigo a ponto de que eu quisesse tocá-la?
— Não é isso — murmurei, sentida. — Você não entende.
— Não entendo mesmo. Espero que sinta um pouco do que eu passo
toda vez que me escorraça. Boa noite, Emma.
Eu sempre sentia o mesmo que ele. Andrew não precisava me
amaldiçoar. Era suposto que eu o fizesse, eu era a bruxa, afinal.
E como raios eu teria uma boa noite depois dessa apresentação? Se
o astro deixou o palco antes do encerramento? Soquei o travesseiro e me
revirei embaixo dos lençóis angustiada com a minha incapacidade de forçá-
lo a voltar para cama com nenhuma espécie de feitiço. Tirando aquele
instante momentâneo no carro, ele nunca me obedecia.
Pude ouvir um risinho baixo por sua pequena vitória em alterar
meus nervos, quando só quis ser gentil com ele. Não, nunca passou pela
minha cabeça ser montada até desmaiar em um quarto de motel barato.
Nunca fora minha intenção, não mesmo.
Embora, nesse segundo fosse. Ódio.
Soquei mais uma vez o travesseiro e me virei para o canto
determinada em pegar no sono logo, assim as horas passariam mais rápido e
eu chegaria àquela cidade dos infernos.
Por essa noite, eu era uma mulher amaldiçoada e dormiria numa
cama sozinha após provar o calor do inferno mais uma vez.
Cartersville continuava exatamente como eu a deixei há três anos,
sem graça. Um punhado de casas germinadas de cores pastéis sem vida ou
brilho, assim como a minha luz fora roubada mais uma vez no dia em que
abandonei aquela cidade.
Não havia lugar para mim ali, e isso ficara claro quando Rick Davis
avançara com os olhos esbugalhados e a testa franzida numa carranca
permanente atingindo a minha cara com seu punho fechado.
Eu nem revidei. Mereci aquele soco.
Ele nem parecia o homem gentil que me socorrera na estrada, mas
eu não o culpava.
Scarlet sofria há meses graças a Irene. Era uma menina aterrorizada
e perdera sua aura de princesa feliz.
Ela revivia quase todos os dias o pesadelo de ficar perdida numa
casa velha por algumas horas, atormentada por uma bruxa que queria sua
irmã. Ela nunca superara o ocorrido e os Davis nunca puderam me perdoar.
Sarah Davis não olhara na minha cara por uma vez que fosse desde
que Scarlet retornara a casa com seu vestido de princesa coberto de lama e
Rick parecia querer me esmurrar só porque eu respirava.
Eu era a culpada. Era uma praga e trouxera a agonia para suas vidas.
Tudo que eu queria era uma família e inventei uma farsa.
A esperança de receber migalhas de afeto deles foi o que me fez
ficar ali por semanas após o incidente, até que desisti. Não havia nada ali
para mim.
Ainda mais depois de torcer o braço de Rick até que ele se quebrou.
Eu lhe permiti um soco, mas ele insistira em três. No terceiro, ele ganhara
uma fratura. Então, deixei a casa com rumo à Miami e encontrara Isabella
no caminho.
Sentada ao lado de Andy naquele Sedan velho que ele comprara do
dono do motel, eu senti o pânico me tomar, à medida que avançávamos para
a casa dos Davis.
— O que estou fazendo aqui? — Juntei minhas trêmulas no colo e
prendi a respiração enquanto via aquele mar de casas beges e rosas passar,
um posto de gasolina, uma igreja, uma casa verde e uma amarela até uma
pequena casa branca com cerca tão branca como ela e um telhado azul.
Estava em casa. A única que eu conhecia e a que não devia ter
voltado.
Andrew parou o carro e ficou me encarando um tempo, o cenho
franzido, uma mão segurando o volante e a outra cobrira a minha no meu
colo.
— Nunca te vi tão assustada. Você quer mesmo visitar a sua irmã?
Não, me leve embora. Eu tive vontade de dizer. Mas a imagem de
Scarlet assustada e me abraçando no chão naquela noite de Halloween
piscou na minha mente.
— Eu quero vê-la, mas não vou ficar para o Dia de Ação de Graças.
Podemos voltar para Miami hoje? — Minha voz saiu mais fina do que
pensei que sairia e ele concordou com a cabeça.
— Vou só dar um oi e sairei em uns minutos. Me espere aqui.
Abri a porta com um pouco de dificuldade, ela parecia mais pesada
do que devia sob o olhar atento de Andrew em minhas costas e aquelas
cercas brancas a serem atravessadas parecendo intimidadoras demais, só
seria pior se eu voltasse para a Espanha e passasse novamente pelas portas
negras do castelo de Trasmoz.
Parei em frente à porta da casa e não encontrei a campainha, parecia
que tinha sido substituída por uma aldrava. Era uma coisa esquisita, algo
velho demais. Fiquei encarando a peça insegura se devia mesmo bater,
estava prestes a tocá-la quando vi a mão de Andy batê-la duas vezes e uma
sorridente senhora Davis abrir a porta.
Eu odiei essa parte minha que teve vontade de chorar quando a viu.
A Emma totalmente fragilizada, me lembrava a Livia chorando no quarto
de um castelo apavorada e sem expectativas de escapar. A menina que não
tinha uma mãe era a mesma que olhava aquela mulher tão loira quanto
Scarlet usando um vestido alinhado, perfeitamente, como a filha costumava
usar.
E ela sorria pra mim, mas nem me olhava mais quando fugi dali.
— Olá, Emma. Esperava por você — disse Sarah, a mãe de Scarlet.
— Filha, você voltou! Entre, quero te ver — Ouvi o senhor Davis
exclamar de dentro de casa numa voz tão doce que soou irreal, no entanto
eu não podia negar que aquele tom me convidava a entrar e esquecer o que
se passara entre nós.
Eu nunca ouvira nada como isso antes, nem mesmo quando ele não
me odiava. Era um homem bruto que dirigia caminhões e me encontrara
caída na estrada que ligava Atlanta a Miami. Não era um cara que carregava
ternura em sua voz.
Apertei minhas mãos até sentir as unhas cravarem na pele.
— Por aqui, querido. É o namorado de Emma? — A senhora Davis
tocou os ombros de Andrew ainda na entrada da porta, levando-o para
dentro e encaminhando-o a sala de estar.
Eu os acompanhei não deixando que ele se afastasse muito de mim
com aquela mulher.
— Não, senhora — ele respondeu, sem graça, coçando a cabeça. —
Só a trouxe para a casa, sou um colega da faculdade.
— Ora, minha filha não é boa suficiente para você?
— Não, quero dizer, ela é ótima. Mas temos sido só amigos. — Os
olhos de Andrew encontraram os meus antes que ele continuasse num tom
amargo. — Ela não me quer.
— Ah, não foi isso que ouvi dizer. — O sorriso tomou um brilho
diferente, um que fez minhas mãos suarem.
Eles não sabiam nada de mim por anos e não poderiam saber sobre
Andrew.
— Onde ela está? — rosnei baixo e Andrew me olhou sem entender
por que era tão áspera com a minha mãe. — Eu mandei dizer onde ela está!
Minha voz ecoara pela casa e sacudira o lustre de cristal da sala, até
que as luzes começaram a piscar num balançar que refletia sombras escuras
no rosto de Sarah Davis. Um brilho, rosto perfeito. Uma sombra, um rosto
seco e olhos afundados em formas negras.
— Filha, depois do jantar. Faz muito tempo que não te vejo.
Avancei para mulher, puxando-a pela gola do vestido e encarando
seus olhos sem vida até que ela começara a gargalhar toda torta em meus
braços.
— Emma, não faça isso! — Andrew gritou, avançou para nós e
segurou meus dedos, tentando afastá-los da minha suposta mãe.
Mas logo recuou, horrorizado e se engasgando com a própria voz.
Sarah Davis tombou para trás em meus braços com membros finos
caídos de qualquer jeito e tão finos como o cabo de uma vassoura cobertos
por uma pele ressecada e quebradiça que se tornara translúcida.
Eu estrangulava uma boneca.
Um fantoche bem empalhado. Morta por inanição. Bem, talvez essa
última parte fosse sua culpa. Sarah estava sempre de dieta e era uma coisa
que tentava incorporar na vida de Scarlet. Ela vivia para tentar transformar
a filha em uma pequena miss mirim e alcançar algum status com o sucesso
dela.
Ela própria já trabalhara como modelo, então era normal passar
fome a fim de conservar a beleza de outrora, embora tenha se casado com
um homem simples e sem glórias como Rick.
Me perguntava se ela estaria feliz se vendo tão magra, suas
bochechas cavadas formavam um bom par com o queixo quebrado de onde
saía uma risada fina que irritaria um monge e incomodou um de fato.
— Que isso! O que está acontecendo? — Andrew falou, alarmado.
Ele nunca vira um fantoche de cadáver antes. Eu podia entender.
Andrew colocara as mãos nos ouvidos tentando bloquear o barulho
perturbador, enquanto meus olhos buscavam por todos os cantos tentando
achar aquela que me trouxera ali.
Larguei o saco de ossos no chão, enquanto recitava uma prece a
deusa para que minha menina não tivesse se juntado aos seus pais.
Scarlet, onde você está?
— Sabe, é bom que seu ponto fraco ainda seja o mesmo. — A coisa
que se passava pelo Rick Davis se materializou na sala com sua aparência e
começou a falar com uma voz ainda mais grossa do que o pai de Scarlet
jamais usou, não mais ensaiando o som caloroso que me chamou de dentro
da casa.
A barba e as sobrancelhas grossas eram as mesmas. Mas a atitude
era pior, seus olhos eram mais cruéis e sua boca se curvou num sorriso
estranho, um dos poucos que eu já vira naquele homem de bochechas
fundas, bigode de morsa e o humor de uma bigorna.
— Emmie, o que está acontecendo?
— Logo saberá, rapaz. Seu destino logo chegará.
Sombras abandonaram o corpo de Rick Davis que tombou de
joelhos diante da figura que ressurgiu no meio da fumaça negra. O vulto de
uma mulher envolvida em sombras com só um sorriso satisfeito brilhando
entre elas.
— Andy, sai daqui!
— Emmie, quem é ela?
— Só uma amiga do passado. — As palavras proferidas num tom
aspirado deixaram a garganta de Rick Davis e pesaram no ambiente mais do
que a fumaça que começava a se tornar sufocante.
Uma amiga do passado, algo que nunca tive, mas que tornaria a
insistir em me incomodar.
O corpo do homem cedera ao chão e a fumaça se dissipara uma
pouco, revelando mais da forma da mulher que me atormentara, eu
precisava retirar Andrew dali. Peguei sua mão e o forcei a correr para a
porta da casa, eram só dois metros, duas passadas ou um pouco mais seriam
suficientes, mas não foram.
A porta batera e desaparecera.
O chão que pisávamos tremera e começara a ficar mole.
Virei-me e meus pés afundaram onde devia estar o piso, mas não
havia mais tábuas no lugar, a terra molhada o tomara.
E era nessa lama que o corpo do senhor Davis se afundava aos pés
de Irene, liberto da influência dela só para que se enterrasse na casa que me
escorraçou. Algo que já devia ter sido feito há um bom tempo, a julgar
pelos vermes passeando por sua barba rala, nadando na pele rasgada e no
sangue seco para alcançar o buraco onde devia estar seus olhos e num
instante depois encontrar a saída por sua boca aberta.
A luz vacilava continuamente, num piscar incessante. Mas que não
poderia esconder o estado de putrefação do corpo do pai de Scarlet. Sim,
sua condição indicava que seu funeral estava atrasado, mas não seria mais
evitado.
Ele e sua esposa não seriam os únicos a serem enterrados naquela
casa. A mulher à minha frente logo os faria companhia.
Fechei meus olhos e enviei um chamado silencioso, quando os abri
mais uma vez, correntes de ar vindas de lugar nenhum me circularam e se
lançaram contra Irene rasgando o papel de parede em suas costas, como se
animais o tivesse feito com suas garras.
O impacto foi tanto que atingiu a base de madeira da parede e a
poeira cobriu tudo, as janelas bateram num estrondo como se trovões
tivessem atingindo a casa, tanto que pensei que os vidros iriam se partir,
mas eu me enganei.
Não estava tão forte assim.
Mas minha decepção de fato não foram as janelas que se
mantiveram inteiras, mas que a onda de choque que rasgou as paredes nem
ao menos arranhou a pele da minha inimiga que tinha os olhos vidrados em
mim.
Irene estava de volta do inferno.
Ela me tinha em choque que só foi incrementado, quando notei,
finalmente, que ela continuava a se vestir como nos tempos de nossa vida
naquele pequeno vilarejo na Espanha, um vestido com espartilho num tom
de azul-cobalto que parecia indicar a sua inclinação para viver no passado.
Nenhuma rebeldia contra o coven corria em seu corpo, contudo ela
nunca sentira o mesmo terror com o que eu cresci. Era natural que só
habitasse em si a serena aceitação de que eu não compartilhava, mas eu era
a parte que sempre esteve em perigo naquele jogo de mentiras que eu me
enredei.
Minha vida, minha liberdade e a segurança dos que eu amava. Tudo
dependia de que eu fosse mesmo a abençoada com superpoderes para
derrotar a bruxa que fugira do inferno. Só temia que me faltassem nesse
momento, ainda mais agora que eu percebia o que ela carregava consigo.
Maldição.
Uma peça especial brilhava em seu pescoço e isso colocava mais
pressão em meus ombros.
Carecia de força e ela ostentava aquele maldito colar.
Eu estava muito ferrada. Não havia outro termo para descrever
minha situação.
— Achei que você gostou tanto de brincar comigo há quatro anos
que resolvi redecorar esse lugar como a outra casa — Ela abriu os braços
mostrando a sala e rodopiando entre os móveis. — Estou mais forte, vamos
poder brincar até que você volte para o meu lado!
Ela avançou deslizando no meio da fumaça que restou em torno de
seu corpo e eu retesei o meu tentando evitar o contato, mas ela apanhou
minhas mãos entre as suas, ao passo que me olhava como se eu nunca a
tivesse banido para o inferno, mas tinha certeza de que se lembrava. Era
louca, nunca tive dúvidas.
— Emmie, não estamos no Halloween, mas por que parece que
estamos? É uma pegadinha com fantasmas? Acho que já deu, podemos
parar.
— Andy, fique quieto — falei, rispidamente, concentrada em qual
seria o próximo passo da minha velha inimiga.
Andrew, finalmente, recuperara a fala e resolvera absorver tudo
aquilo como uma mentira, eu queria que fosse mesmo. Mas não era e dado
a beleza louca à minha frente, eu sentia que essa noite seria muito longa.
— Rapaz, hoje você vai mesmo se encontrar com fantasmas —
Irene o mirou com ódio não contido, e no segundo seguinte alcançou seu
queixo fincando suas unhas nele e o fitou bem nos olhos antes de soltá-lo de
maneira bruta lançando ao lado.
Os olhos de Andrew se arregalaram com o pânico que o tomou.
Ela agira mais rápido do que eu pudesse detê-la ainda com minhas
mãos seguras pela sua mão livre e depois se afastara a tropeços para trás
com a cara enojada sem me dar tempo de revidar por tê-lo tocado.
— Irene, devia estar no inferno — intervi, atraindo a atenção da
mulher. Talvez isso despertasse sua raiva por mim e assim acabaríamos logo
com isso.
— Inferno?! — Eu pude sentir a revolta em sua voz. Ela,
definitivamente, se recordava de tudo.
— Você não é a única capaz de fazer amizades, Livia. — Seu olhar
se tornou tão maldoso quanto quando possuía o pai de Scarlet.
— Emmie, o que está acontecendo? — A voz dele tomava um tom
mais amedrontado a cada vez que falava, ganhando a aceitação dos fatos
apesar da persistência de seu questionamento.
Desejei que se calasse para que Irene não se fixasse nele.
— Emmie? Ele a chama igual àquela pequena garota pela qual você
me trocou. Por que você gosta tanto de me trocar? — Sua voz foi tão
desgostosa a falar de Scarlet que me preocupei que minha menina não
estivesse mais nesse plano.
Eu não podia demonstrar fraqueza. Me ensinaram assim, mas meus
olhos estavam molhados e minha visão já embaçava.
— Ah, não chore, minha adorada rainha. Você terá a chance de se
encontrar com ela em breve.
Andrew apanhou minha mão e entrelaçou seus dedos, firmemente,
nos meus, enquanto mantinha os olhos fixos em Irene. A mulher nos
encarava de volta e segurava um riso entre seus lábios, até que não se
conteve mais e deixou que sua mão cobrisse sua boca numa tentativa de ser
coquete, mas que mal podia cobrir sua risada esganiçada.
— Só me deixe vê-la, por favor — clamei, preferindo tentar outro
caminho que não a irritasse e me permitisse retirar Andrew e Scarlet dali
em segurança.
Nossa briga ficaria para depois.
— Emma, vamos chamar a polícia. — Olhei, rapidamente, em
direção ao Andrew e ele parecia que, apesar de tudo, estava querendo negar
as coisas que vira.
Mas se tocara que não era uma pegadinha, lidávamos com uma
psicopata em sua concepção e de fato era verdade.
— Eles não podem ajudar, Andy.
— Como não? — ele perguntou, atônito, e apanhou o celular do
bolso da calça.
Um instante depois, uma cadeira fora lançada contra seu braço,
levando-o ao piso com o rosto contraído de dor.
— Não! — gritei, e corri para ele, amparando-o em meus braços. —
Deixe-o ir.
Me dava ânsia fazer qualquer pedido a ela, mas Andrew não podia
ficar. Não sabia o que Irene planejava para mim e não queria que ele fosse
outra vítima dela. Ainda mais que não sabia qual era extensão de sua magia.
Irene nunca tivera esses poderes.
Ela nunca controlara o vento ou qualquer outro elemento. Produzir
ilusões através de feitiços era seu talento, mas não conseguia tão facilmente.
Em nosso último encontro, Irene canalizara um cemitério para fazê-lo. O
colar preso em seu pescoço era o que estava empoderando seu corpo.
Haveria pouco que ela não pudesse fazer com ele e eu estava
exausta.
Devia ter dormido mais ontem à noite, mas não esperava que a
vinda a essa cidade seria esse tipo de batalha. Não que eu esperasse uma
boa recepção dos Davis, no entanto não imaginava que rolaria sangue.
Fiquei com vontade de enfiar minhas unhas no mocinho que gemia em
meus braços justo porque ele não me permitiu essa opção na noite anterior.
Eu o olhei feio e ele me encarou de volta, levantando uma
sobrancelha sem entender o porquê da minha cara.
— Ele fica, Livia.
Mordi os lábios e encarei Irene, que me retirara do meu jogo de
provocação com Andrew.
— Ele não tem nada a ver com isso. Eu fico aqui com você.
— Não vejo assim e você ficará aqui de qualquer jeito — declarou
ela, enquanto caminhava nos rodeando e velas do tamanho de um punho
brotavam do chão a cada pisar de Irene.
Eu contei sete no total.
— Eu não vou. — Estreitei meus olhos e a mirei atravessado,
acabando por falar a verdade. — Você sabe que eu vou fugir e matar você.
Não terei piedade dessa vez.
— Alguma vez você teve? — Foi a resposta dela seguida de um
doloroso raio que me era um velho conhecido, os poderes de sua mãe. Ela
os tinha adquirido ao portar aquele colar.
Me contorci de dor sobre o corpo de Andrew, que parecia ter
desmaiado apesar de manter sua boca espremida em uma linha fina. Eu
esperava que ele pudesse suportar aquele ataque.
Mas o pior viera depois, as velas se acenderam todas de uma vez
com a descarga que ela lançara contra nós.
Ergui minha cabeça para Irene e aqueles lábios curvados me diziam
que esse era o seu verdadeiro plano.
— Essa é uma noite para que sofra Livia e ele precisa ficar aqui.
Quem sabe assim você purgue seu crime de ir contra suas irmãs.
— Não faça isso, Irene. Eu imploro a você — murmurei, abaixando
minha cabeça em submissão como ficaria diante da matriarca, até porque
era isso que ela parecia ser, controlando o poder de todas que vieram antes
de mim.
Irene representava tudo que eu temia e pretendia me fazer sofrer
tanto quanto sua mãe o fizera.
E tal como antes, fui ignorada e minhas súplicas nunca foram
ouvidas.
Ela avançou, entrando no círculo e segurou meu queixo com força,
engoli em seco pelo temor com sua proximidade e apertei Andrew em meus
braços, tentando protegê-lo. Contudo, foi ele que estapeou a mão de Irene
que largou meu queixo e se afastou urrando não de dor, mas de raiva.
— Tudo que merece é sofrer e ele merece você, uma maldição.
Irene estendeu os braços e um forte vento vindo direto de seu colar
começou a rodar em torno de nossos corpos, atiçando o fogo das velas até
que as chamas alcançaram o teto. Meus cabelos foram agitados como se
uma tempestade tomasse o lugar, nos envolvesse e arrancasse o ar de nossos
pulmões.
Eu precisava parar aquilo, mas era forte demais.
Fitei a Andrew em meus braços e ele estava muito vermelho, não
respirava e seus cílios não paravam de tremer, dessa vez estava mesmo
inconsciente e o pânico por sua vida fora deixado para mim. Envolvi seu
tórax mais apertado e deitei minha cabeça em seu peito.
Fechei meus olhos e orei a deusa que acabasse logo, era tudo que eu
podia fazer no momento.
Abri meus olhos e me vi numa cela.
A umidade em todo o lugar, a cama de palha e a janela pequena com
grades que me permitiria avistar o pátio, mas tão alta ficava que eu só
conseguia enxergar o céu lá fora.
— O que eu fiz, senhora? Por que não posso brincar com as outras
crianças?
Respirei fundo ao ouvir aquela voz trêmula e fina seguida de um
molho de chaves que girou na pesada fechadura. Controlei a inércia que
dominou meus membros e movi meu corpo em busca de um abrigo. Pensei
que poderiam me ver ali e procurei um lugar que eu pudesse me esconder,
mas não havia tal coisa.
Não havia nada naquele quarto.
Então, fiquei ali parada e observei aquela cena toda acontecer.
Engoli em seco ao ver a portadora daquela voz insegura e frágil,
uma menina, vestida em trapos e tão suja como uma mãe nunca deixaria seu
filho estar, choramingava a uma mulher de postura rude que a deixasse sair,
mas isso não aconteceria. Por aquela idade ela não era confiável, então
ficaria ali.
Ela aprendera a fingir com o tempo. Para que confiassem nela e
pudesse ter um gosto de liberdade.
A menina fora jogada dentro daquele cômodo e caíra de joelhos, que
foram ralados pelo chão áspero de pedras e a ferida tingiu seu vestido com
um pouco mais de sangue, mais do que já haviam tirado dela naquele dia.
Não fez caso do golpe, estava acostumada a suportar pancadas mais fortes.
Ela viu a porta se fechar extinguido toda a luz que pudesse entrar ali
vinda das tochas daquele corredor tão vazio quanto o cômodo que estava,
não havia nem mesmo uma abertura na porta para que pudesse ver as
pessoas passarem.
A menina levou a testa ao joelho, chorando como aprendera desde
cedo, sem fazer barulho, deixando só as lágrimas caírem por sua face, assim
ninguém gritaria ou bateria nela. Não sabia quem poderia estar a vigiando
do lado de fora.
Não era muito mais velha que Scarlet o era quando cheguei à sua
casa, mas já havia vivido mais horrores do que minha irmã passara com
Irene.
Era uma lembrança amarga. Sempre sozinha, sempre chorando
escondida.
Eu era aquela menina. Era Livia.
Naquele dia vestia só um vestido puído e encardido que deixara de
ser branco há tempos e pertencera a filha da mulher que me arremessara.
Coberta de lama e sangue como uma prova de que sobrevivera a mais um
dia de treinamento rigoroso. Eu me encolhia em meu canto costumeiro à
espera de um resgate que nunca veio.
Quem iria fazê-lo? Eu não me lembrava de ter ninguém.
Observei meu antigo dormitório, só havia uma cama de colchão
duro de feno que começava a cheirar mal, o mofo o tomara e ninguém se
importara em trocar. Não merecia tal regalia, tudo que me era direito era a
treinar para servir ao coven.
Disseram que eu era uma entidade poderosa que devia ficar
guardada. Uma dádiva dos deuses que deveria ser conservada. Aos poucos
percebi o que isso significada, a resposta não era protegida e querida.
Era ser usada.
Eu não tinha brinquedos, eu era o brinquedo.
Disponível para ser consumida quando chegasse a hora.
Fora duro suportar, mas me ver novamente naquele estado. A
estampa de sofrimento no meu rosto infantil fora pior do que passar por
aquilo.
E eu só queria ampará-la, enquanto me via esfregar as mãos tão
pequenas no rosto a ponto de ficar um vermelho esfolado com o atrito
daqueles maus-tratos que eu mesma me causava.
O nariz escorrendo e o pranto que derramava de meus olhos pelo
tanto que me martirizava por ter um destino como aquele.
Eu só queria proteger a mim mesma. Antes e nesse momento. Me
livrar de tudo que me afligia, mas aquilo estava no passado e eu não poderia
fazer nada para me salvar. Eu ainda seria aquela menina assustada por mais
tempo que pensei que poderia aguentar.
Livia se sentara no seu cantinho especial, o que tinha o melhor
ângulo para olhar a lua pela janela com a esperança de que assim pudesse
falar com a deusa que tinha criado seu povo. Suas mãos apertando seus
joelhos dobrados em dúvida se devia pedir de novo, ela conversava com a
deusa todos os dias, mas nunca obtinha resposta.
Ela só falava sozinha.
— Senhora Artêmis[33], disseram que não posso estar com os outros,
devo ficar trancada ou podem me levar embora — ela falava baixinho para
que ninguém ouvisse até que desabou sobre seus joelhos mordendo os
lábios para conter seus murmúrios. — Eu só não queria ficar sozinha aqui.
A deusa não a ouvira naquele dia, assim como não ouvira nos
anteriores. Livia nem se lembrava desde quando estivera presa naquele
lugar. Não se recordava se tinha uma família, ela vira crianças sendo bem-
cuidadas por adultos e a própria matriarca tinha uma filha.
Por que só eu não tinha?
Eu convocava ajuda acreditando, fielmente, que a deusa não
estivesse de acordo com o tratamento que eu recebia. Não sabia de onde
vinha, se havia tido uma mãe de quem fora retirada à força ou se
simplesmente fui uma rejeitada, mas sabia que era invejada e odiada ali.
Podia sentir desde bem pequena e dormia com medo todas as noites que
tentassem me alcançar com seus atos da mesma forma que seus sentimentos
me afligiam.
Ser empata era mesmo uma merda. Até mesmo o ódio deles me
feria. Eu o sentia mais espesso do que o ar.
Eu era o que precisavam para seguir vivendo. Mas me viam como
uma maldição que cairia sobre elas com o abandono dos deuses.
Por que eu nascera com mais força do que corria nelas?
Por que as submeteram a isso?
Eu era mesmo filha dos deuses?
Era atormentada por essas perguntas que flutuavam de suas mentes
para a minha como se fossem meus próprios pensamentos.
Eu me questionei muitas vezes se eram meus, até que aprendi a
separar minha mente da delas. Me deixei ouvir e aprender tudo que podia e
mais do que me ensinavam.
Só me treinavam para aumentar a energia que corria por mim, minha
aura. As práticas físicas eram necessárias para que atingisse meu potencial
máximo, mesmo que não soubesse usá-lo.
Mesmo sem saber como enfrentá-las, me viam como perigosa só por
aquilo que me ensinavam. Temiam exatamente aquilo que eu dormia e
acordava pensando, como escapar? Eu precisei fuçar suas mentes e depois
seus livros escondidos, assim que consegui um tempo fora da minha cela
para aprender mais.
Descobrir como eu poderia fugir. Ou matá-las.
Mas o último eu ainda não pensava naquele momento. Veio um
pouco depois, quanto eu mais descobria, mais queria destroçá-las.
A jovem Livia choramingado a uma deusa lunar só queria ter com
quem conversar. Só queria ter alguém que a abraçasse. Se eu não fingisse
tanto que não ligava para nada, talvez eu admitisse que a Emma não era tão
diferente da menina Livia presa naquela cela.
Eu só queria um abrigo, o estômago cheio e um pouco de calor
humano.
Fugir. Sim, eu o queria, mas não sabia exatamente como ou para
onde. Amenizar a dor já era bom o suficiente.
Era estranho para uma garota espancada todos os dias temer que
viessem por mais. Bem, naquela época o meu normal era apanhar e isso era
tudo que eu conhecia. Então, só podia temer abusos maiores, negarem meu
mingau de aveia, me jogarem aos animais e mesmo não ter mais o teto que
eu era louca para deixar. Medo de ser enxotada, pois não teria para onde ir e
não imaginava naquela idade qual caminho eu poderia tomar.
Não conhecia nada que fosse muito além dos muros daquele castelo.
Eu nem ao menos vira muita coisa fora daquela cela. Me levavam por
passagens secretas até fora dos muros para que me treinassem sem que os
habitantes da vila soubessem muito sobre mim.
Eles não sabiam que bruxas viviam no castelo sobre a proteção, eu
diria julgo, do senhor dali. Se eles soubessem, haveria uma invasão de
monges armando fogueiras para purificar os espíritos malignos, assim
garantindo a própria vaga no inferno. Eu esperava que tivessem alcançado
tal castigo. Embora, se eles realmente tivessem vindo pelas bruxas, até que
me fariam o favor se purificassem aquelas mulheres, embora provavelmente
eu acabaria junto com elas.
Infelizmente, o coven tinha um acordo por regalias concedidas por
magia ao bom homem que controlava aquelas terras, o que garantia que a
identidade de sua irmandade ficasse em sigilo.
Mas permanecerem ocultas seria difícil se uma criança
descontrolada causasse algum problema e, assim, me mantinham escondida,
acreditando que logo eu aceitaria minha função nesse mundo. É, o nível de
loucura era grande.
Um voto para elas, tem gente que compraria essa verdade. Não, eu.
Tenho má personalidade, um tanto revoltada demais talvez.
Os dias passavam rápidos, embora não o suficiente para que fossem
indolores. Eu descia do castelo para treinar todos os dias na floresta, espada,
bastões e luta corporal. Diziam que um corpo forte suportaria seus poderes
melhor, no entanto um corpo desses era feito a pauladas.
Eu apanhava todos os dias, até meus sussurros eram penalizados a
ponto que eu tinha medo de levantar a cabeça. Nem ao menos tremia mais
ou apanharia por ser fraca e chorosa demais.
No fim de cada dia, eu voltava para aquela cela escura.
O treinamento era exaustivo, mas chegara o tempo que eu já não
fazia mais nenhuma queixa. Embora continuasse a me jogar todo dia no
cantinho que podia ver a lua e orar a deusa. A minha prece não falhava um
dia, nem mesmo quando a dor era tanta que mesmo me arremessar no chão
me parecia difícil de fazê-lo.
Mas a cada dia eu tolerava mais a dor, embora uma amargura
começasse a brotar em meu peito, o que refletia no desprezo que tinha pelo
coven. Era tudo que aquela gente conseguia de mim.
E tudo que eu recebera em minha vida até então. Não conhecera
mais nada.
Quando era menor batia à porta, implorando que a abrissem e que
me fizessem companhia. Mas o tempo cobrara um pouco de minha alma, e
eu passara a olhar aquelas trancas com indiferença aguardando o dia que
pudesse derrubá-las.
Como cheguei a desejar o abraço de meus captores? Somente uma
criança poderia sentir tal coisa. Eu já estava deixando a infância e não
sentia mais nada.
Mirei a minha imagem naquela menina que se encolhia no canto, já
não tão menina assim. Fazia frio naquela noite e ela esfregava seus braços,
numa tentativa de se aquecer em vão, até que atraiu para si a coberta da
cama comandando as massas de ar e se envolveu em sua manta.
Livia ficava cada vez melhor em usar seus talentos.
Talvez não precisasse mais rezar a deusa, pude ver esse
conhecimento em seu rosto jovem e lembrei os rumos que meus
pensamentos tomavam naquele dia. Mesmo com a descrença em divindades
tomando seu coração e a segurança em si mesma crescendo em sua mente,
ela rezou mais uma vez.
Eu rezei mais uma vez.
E não teve um dia que eu me arrependesse disso, apesar de tudo que
se passou depois.
Naquele dia quando abri meus olhos, eu o encontrei me fitando bem
perto de minha face. Agachado e um pouco desorientado, movendo a
cabeça para todos os lados tentando entender onde estava.
— Como eu vim parar aqui? — Um menino falou numa voz
desafinada própria de um garoto que começava a crescer.
Seu cabelo era tão claro como o trigo do campo que a menina Livia
desejou que tivesse um igual. Ele parecia ter minha idade e franzia as
grossas sobrancelhas, num tom bem mais escuro que seu cabelo, esperando
por sua resposta à aparição em minha cela. Já eu só reparava nos brilhantes
olhos verdes como as florestas que costumava treinar emolduradas por
aquelas sobrancelhas que eu gostaria de tocar.
— Você está só? — perguntei, à medida que me aproximava dele,
que se esquivou com uns passos para trás, o medo e a incerteza vibrando em
seus olhos.
— Sempre estive.
— Eu também. Está machucado? — sondei, embora fosse uma
pergunta tola. Os cortes abertos por todo o seu magro corpo denunciavam o
quanto ele estava ferido.
Ele acenou com a cabeça, confirmando seu estado, mas não fizera
alarde.
Apesar do quanto aquelas feridas deviam estar queimando como fogo em
sua pele.
Eu me vi correndo para ele e abraçando meu mais novo amigo.
Eu tinha companhia nesse momento em diante.
A menina Livia não estava mais sozinha e depois de muito tempo
deixei que caíssem umas poucas lágrimas em seu ombro. Não sentia mais
frio, apesar de que seus braços não se ergueram para me envolver naquele
dia. No entanto, ele tornou a voltar dia após dia que eu o convocava.
Inacreditável que um mestiço de demônio era o único ser tão
solitário quanto eu. Eu, uma suposta bruxa descendente de deuses, que não
conseguia nem mesmo escapar de uma prisão. Um encontro de seres raros
que a matriarca não previu, mas que acontecera mesmo dentro daquelas
paredes de pedra que eu era mantida.
Artêmis devia ter ouvido meu pedido enfim, e o enviara para que
curássemos nossas feridas. Foi isso que pensei, enquanto o envolvia em
meus braços e desejei que ele não fosse embora alguma vez.
Darío, o nome que perturbava meus sonhos de maneira ininterrupta.
Alguém tão sozinho como eu, mandado pela deusa, quando eu já
não acreditava nela.
— O que estou fazendo aqui? — Uma mão apertava meu ombro,
movi minha cabeça seguindo o som daquela voz rouca, que me afastou da
cena da minha versão adolescente dependurada no garoto magro naquela
cela.
Não pude evitar de chorar ao ver o doce rosto de Andrew.
Ele viera comigo para esse lugar e sobrevivera a passagem, quando
temi que não respirasse mais. Esfreguei minhas mãos nos olhos que
choravam por Livia, mas que nesse instante estavam inconsoláveis por
Andrew.
Uma vela apareceu entre nós e a luz se apagou, nos deixando na
escuridão por alguns segundos, não antes que um brilho cegante agredisse
meus olhos e eu erguesse as mãos para protegê-lo.
— Emmie, o que está acontecendo? Quem é aquela mulher? E a
menina naquela cela? Estamos tendo alguma alucinação? Eu não uso
drogas, então como estou num sonho alucinógeno? Eu mal bebo!
Andrew me olhava confuso e desorientado, do jeito que coçava a
cabeça com força e sacudia as mãos enquanto falava, até pensei se ele seria
um descendente de italiano, mas ele parecia muito loiro para isso. Embora
estivesse tão agitado que me lembrava os que vi nos filmes, os italianos-
americanos que eu vira em Miami já estavam entrosados na cultura local e
em nada me lembravam os estereótipos do cinema.
Uma coisa era certa, o cinema mentia muito ou o histérico
americano se sacudindo e tendo uma crise de pânico na minha frente,
enquanto tentava obter respostas que eu precisava pensar um pouco em
como fornecer, seria qualquer coisa, menos um americano controlado e frio.
— Emma! — gritou ele.
— O quê?! — perguntei, sobressaltada e olhando ao redor
acreditando que Irene tivesse invadido aquele cenário, mas não vi nada
além de uma colina onde nos sentávamos e um pouco de mato.
— O que ela fez? Ela usou alguma coisa em nós?
— Andy, não estamos drogados. — Ele deveria se acalmar. Me
trouxera dos meus devaneios aos gritos. Não iríamos a lugar nenhum em
pânico e, realmente, não iríamos para qualquer lugar por ora.
— Então estamos onde? E o que foi tudo aquilo? — Sua voz saiu
mais alta do que o de costume.
Relaxei os ombros e pisquei pronta para tentar contar verdades,
talvez essa fosse a primeira vez na vida que o fazia.
— Andy, eu sou velha. — Resolvi começar por quem eu era.
— Você não pode estar tendo uma alucinação pela idade, e isso não
explicaria o meu caso. E é velha quanto? Uns dois anos? No máximo cinco
a mais do que eu. Mais do que isso é impossível.
— Está mais para mais seiscentos e tantos.
Vi seu rosto mudar de nervoso para incrédulo, para nervoso de novo
e até que alcançou o choque total e ele ficou tão pálido quanto as velas que
estavam nos prendendo aqui e nos cercando lá fora.
— Emmie, você deve ter batido a cabeça com o ataque daquela
mulher. Ou eu bati — constatou, achando ter achado a resposta correta
diante do que ele julgara como absurdo em minha fala. — Logo um dos
dois vai acordar e vamos estar na sua casa com a polícia já chegando.
Ele começara a se mover demais novamente e não achava que ele
tivesse percebido, mas estávamos sentados numa encosta. Uma das muitas
que cerceavam o Monte Moncayo onde meu vilarejo ficava. O feitiço nos
trouxera para algum lugar de meu passado e havia ocorrido uma multidão
de momentos naquele local e eu não sabia ao certo em qual estávamos.
— Andrew, fique calmo — falei numa voz modulada pronta para
acalmar alguém a beira de um ataque dos nervos ou enfeitiçar. Dependia de
interpretação.
Só que infelizmente nunca funcionara muito bem nele e não podia
esperar que fizesse efeito dessa vez.
— Eu estou calmo, totalmente e muito em paz. E... Oh, Deus!
Andy se erguera rápido demais em seu surto e tropeçara, eu avancei
para pegá-lo e rolamos morro abaixo. Minhas mãos firmes em suas costas,
mantendo-o agarrado ao meu corpo e as suas em minhas cabeça
provavelmente temendo que alguma pedra a atingisse e eu ficasse ainda
mais louca do que ele estava considerando que era.
Rolamos um bom tempo até que acabou, comigo em cima de seu
corpo, meu rosto enfiado em seu pescoço sentindo sua pulsação agitada por
muitos motivos, o confronto com Irene, seu choque com a minha idade,
descer o morro abaixo, a ereção cutucando entre minhas pernas.
Bem, todas essas coisas. Embora não imaginei que uma descida
morro abaixo fosse deixá-lo assim.
Claro que sua demonstração de afeto apesar de ter revelado a minha
tão alta idade não me amoleceu. Ele fizera um escândalo, um
compreensível, não nego. Mas não havia lugar para algo assim quando uma
bruxa louca nos trancara em outra dimensão e tentava nos matar. Não
mesmo.
— Olha só, abaixe o mastro e contenha seus impulsos,
principalmente, o que nos fez rolar morro abaixo. Eu quero sair viva dessa
— sussurrei em seu ouvido.
— Emmie, você não pode estar falando sério? — Ele arfou sua
pergunta com meu peso ainda sobre seu corpo.
— Sobre abaixar seu mastro? — Eu ri contra seu peito.
— Pare de brincadeiras.
Aquela cara dele se zangava fácil com pouca coisa. Ele precisa se
acostumar já que caíra no meio de um mundo mágico que tentei poupá-lo,
mas ele praticamente implorou para entrar andando atrás de mim.
Ele que lidasse com a sua intromissão.
— Quem ficou animado em rolar morro abaixo não fui eu.
— Emmie, você não pode ter mais de seiscentos anos. — Seus olhos
ainda esperavam uma negativa minha.
— Andy, eu sou uma bruxa.
— Você fala como aquelas mulheres que adoram deuses gregos?
— Não, a do tipo que tem poderes mesmo e não as que seguem uma
religião tipo a Wicca[34] — falei, dobrando um joelho, apoiando-me em seu
peito e o fitei enquanto me levantava com a incredulidade ainda vibrando
em seu rosto. — Mas sim, adoramos deuses antigos.
— Tá certo. E aquela mulher é um desafeto de séculos.
— Exatamente.
— Que quer te matar?
— Não estou certa que ela queira isso, mas me torturar está em sua
lista.
— E estou nessa por que...
— Me deu uma carona.
— Pelo visto essa carona foi direto para o inferno — concluiu ele e
não estava de todo errado, mas ali não era o inferno.
— Não, quem foi para o inferno foi ela. Eu a mandei quando
sequestrou minha irmã adotiva há quatro anos para tentar conseguir um
pouco da minha atenção.
— Bem, a parte que ela é louca, eu já entendi. — Ele esfregava a
cara com tanta força que temi novamente que ficasse com rugas, ele não
deveria fazê-lo, nem sorrir com tanta vontade como era seu costume ou
fatalmente acabaria com elas.
Ironicamente, Andrew não estava sorrindo agora.
— Agora acreditar que é uma bruxa...
— Andy, estou falando sério.
— Prove, então.
Suspirei cansada, ele devia ter ficado em casa. Essa noite seria mais
fácil se não tivesse que tomar conta dele, mas não, ele tinha que vir e, nesse
momento, eu teria que cuidar de sua integridade física, pois pelo visto a
psicológica já era.
E acumulando em minhas atividades, eu teria que arrumar um jeito
de nos tirar daqui onde quer que isso fosse.
Mas tudo bem. Ele queria provas, então as teria.
Convoquei que o ar envolvesse seu corpo num forte abraço e o ergui
a uns bons dois metros do chão e ele deu um gritinho de desespero pouco
másculo que me fez rir, antes da incredulidade tomar seu semblante mais
uma vez e ser seguida logo depois pela admiração.
— Deus, eu conheço uma super-heroína.
— Ah, não! Nada disso. Nem comece.
— Eu me deitei na cama de uma super-heroína.
— Pare agora mesmo! — ordenei já me desesperando com seu
fanatismo. Em minhas experiências anteriores, gente assim eram as piores.
— Agora entendo por que gostei de você à primeira vista. — Seu
sorriso era escancarado e emocionado. Imaginava se ele já estava me
imaginando vestindo collant e botas de salto fino com cano até as coxas
para combater Irene. — Por que não me contou antes?
— Talvez fosse por que era um segredo? Ou só para você não ficar
excitado como agora?
— Com certeza, estou excitado e em muitos sentidos. Ainda mais
pela ansiedade por partilhar dos seus segredos.
— Eu preferia que não fosse em tantos assim nem que eu tivesse
que revelar nada de minha vida. — Sinceridade era tudo em um
relacionamento diziam os terapeutas na TV, mas talvez a minha o tivesse
aborrecido um pouco.
Não podia culpar a Andrew por sua fascinação. Não quando em meu
poucos anos no mundo humano moderno, eu virara cinéfila. Não era
exatamente fã dos mesmos filmes que ele gostava, afinal, no que me
constava ele só via blockbuster[35] de super-heróis, apesar de que eu via
muitos desses também.
Mas agora gostaria de culpá-lo uma vez que via aquela mente
trabalhando em coisas perturbadoras se eu considerasse o sorriso
escancarado que estava se formando em seu rosto e levando embora a cara
aborrecida pelo fora que eu dei.
— Eu posso ser seu ajudante!
— Eu não preciso de nada do tipo.
— Todo super-herói precisa! Até o Batman[36]!
— Eu sou mais soturna do que ele.
— Percebi pelas roupas pretas, o que há com elas? É para esconder
o sangue dos mortos? — Ele levantara uma sobrancelha e cruzara os braços
meio emburrado, novamente, com as minhas negativas.
Eu girei minha mão, virando-o de ponta a cabeça e o sacudi umas
cinco vezes. Só o voltei à posição normal quando vi que sua camisa tinha
caído para a cabeça e eu podia ver seu abdômen trincado. Nada mal, era
digno de nota. Algumas que eu não podia pensar no momento, uma vez que
não tínhamos tempo para isso.
— Eu não saio matando gente por aí — reclamei, irritada. — Bote
isso em sua cabeça.
Esse era um dos pontos negativos do cinema, deixara uma imagem
ruim sobre muita gente, e em especial sobre as bruxas, embora fosse um
pouco de verdade. Isso se eu considerasse as bruxas do coven que me
sequestrara e eram as únicas que eu conhecia. E ainda tinha o fato de que eu
torcia que Taylor tivesse algum fim do tipo, encontrar sua tumba num
momento próximo. Mas não era como se eu tivesse ido lá no hospital e
puxado os fios dos aparelhos dele. Isso devia contar alguma coisa a meu
favor, ao menos eu esperava isso.
— Vou me lembrar disso no futuro. — Ele tocou o estômago
parecendo mal e seu rosto tomara uma cor meio vermelha pelo sangue ter
subido para a cabeça. — Pensei que fosse uma boa justificativa, não vai se
repetir.
— Ah, desculpe. — Eu o coloquei no chão com cuidado e me senti
meio arrependida. — Acho que eu passei dos limites.
— Um pouco, mas vou relevar dessa vez, eu também passei. — Ele
mordeu os lábios voltando a ter aquele brilho zombeteiro que dizia que
queria me ver numa fantasia com urgência e me preparei para o que vinha
dessa vez. — Então, aquilo foi telecinesia[37]?
Bom, era só isso. Era melhor que não pensasse nas fantasias.
— Não, meu coven é mais do tipo magia dos elementos. Eu posso
controlar as massas de ar.
— Você controla o vento! Nossa! Nunca esperei por isso. — Um
sorriso alegre com a descoberta se fechou assim que dera uma olhada ao
redor.
Seus olhos se fixaram mais ao horizonte atrás de mim, o sol já se
pondo, girou o pescoço para os lados antes de mirar em mim novamente.
— Alguma ideia de onde estamos e como saímos daqui?
— Aquela que você viu na cela era eu há uns séculos, então creio
que Irene queira me fazer relembrar os bons momentos.
Puxei uma profunda respiração, isso tudo seria um pé no saco se eu
tivesse um, já podia prever a iminência da perturbação só pela pequena
amostra.
— Não eram bons momentos. Fiquei angustiado ao ver as crianças e
você deprimida presenciando aquela cena também, mas eu não conseguia ir
até você. — Ele assoprou antes de continuar, o rosto mudando do alegre e
sorridente para o abatido.
— Fiquei aliviada que chegou bem aqui, embora preferisse ter lhe
poupado disso.
— Eu me senti um fantasma que só se tornou material quando o
garoto apareceu e eu me movi para você. Hummm, quem era o seu amigo?
Abri a boca para responder, mas vozes ao longe me calaram. A
seguir arremessei Andrew ao chão e me joguei sobre ele, espremendo meus
seios em suas costas e sua cara no chão. Eu o ouvi resmungar que comera
grama antes que erguesse a cabeça e olhasse na mesma direção do que eu.
— O que houve?
— Eu de novo. Aqui era uma área de treinamento das bruxas da
minha vila.
— Elas podem nos ver?
— Eu acho que não, mas faça silêncio.
Eu andava cabisbaixa novamente, já era uma moça mais velha do
que a que deixei naquela cela, embora um pouco mais livre, ainda
continuava sob o julgo da matriarca, além de Irene que fazia o possível para
manter seus olhos sobre mim o tempo todo como sua mãe a mandara.
Apesar de que eu não acreditasse que fosse de fato um esforço para ela.
Eu já usava os vestidos rodados com espartilhos e fitas me atando.
Um dia o velho senhor do castelo que servíamos pusera os olhos em mim
quando eu era levada para minha cela e dissera que ficaria bela se bem-
vestida e, a contragosto, a matriarca me dera roupas melhores ainda que não
fossem tão boas quanto as de sua filha.
Naquele dia, eu ganhara um novo temor que se resumia nos olhos
daquele homem sobre meus seios naquela camisola transparente e úmida
que eu vestia quando ganhei sua atenção.
Eu preferia ter ficado com minhas velhas roupas e puídas, mas me
via caminhando com um vestido de algodão lilás com Irene em meu
encalço por aquelas colinas, enquanto ela exibia um ostentoso traje de seda
vermelha como a prova de quem tinha as benesses naquela casa.
Os recursos dados pelo senhor eram gastos todos com Irene, a mim
restavam as sobras dela e das outras mulheres. Além dos olhos constantes
sobre mim, mesmo que eu não ficasse mais presa o tempo todo.
E, talvez, isso não fosse algo a se comemorar pelas condições em
que ocorrera como uma exigência do velho senhor Fernandez. O homem
parecia um rato a rastejar pelo castelo sempre me cercando e exigindo
minha presença.
Eu poderia matá-lo. Sim, de fato. Mas acabaria morta.
Não havia chances de cavar minha saída do lugar. Centenas de
guardas e pelo menos uma dezena de bruxas viviam no castelo sendo
sustentadas por ele, o dono do lugar.
Num acordo por boas colheitas e todas as benesses que as bruxas
concediam ao vilarejo, nós podíamos viver dentro do castelo e era comum
que alguma fosse entregue para a diversão do nobre da vez. Em alguns
casos, até mesmo já houvera casamento com uma de nós. Acontecera com
uma igual a mim que o coven encontrara pouco depois que chegara à
região.
Os boatos que corriam entre as bruxas diziam que ela dominava o
elemento terra como nenhuma outra antes o fez e, dessa forma, erguera
aquele castelo em uma noite há mais anos do que a maioria das bruxas ali
tinha de vida. E algumas tinham centenas, todas sustentadas pelas almas de
bruxas como eu presas no colar da matriarca. Isso dizia quão velho era
aquele lugar e há quanto tempo estávamos na região.
Mas o casamento não durara muito, logo o coven a requisitou para
integrar o colar da matriarca e o senhor dali não pensara duas vezes em
entregá-la.
Uma só bruxa não valia um coven, mesmo que ela fosse acima da
média.
Ele já havia apreciado o suficiente da companhia de uma virgem de
Artêmis e ela já não tinha mais tal estado, perdera a graça e seu valor. O
senhor já tinha um castelo onde se abrigar erguido pela mulher que ele
enviara a matriarca em troca da proteção de outras mulheres que o serviam
dispostas a tudo para manter uma posição naquela casa.
Era esse o valor que eu tinha, o mesmo que a aquela que erguera um
castelo, nenhum.
— Livia, você é tão bonita por isso o senhor te quer tanto — Uma
Irene com a mente tão perturbada como a atual me olhava com adoração.
Ela realmente não mudara nada.
— Ah, sim. Eu não podia ser mais grata. — Meu sorriso era amplo,
porém, não podia ser mais falso.
E mesmo assim garantia a imagem que era obediente e podia andar
livremente pela região ao contrário dos anos que passei presa na minha cela
todos os dias após ser levada ao limite no campo de treinamento.
Um brilho animado piscou em seus olhos e ela abaixou para pegar
alguns bastões no chão não muito longe de nós e estendeu dois a mim.
— Acho que podemos treinar mais um pouco — questionou Irene
com uma sobrancelha franzida.
— Sim, claro. — Eu não tinha escolha, ao menos ela se cansaria e
iria embora, depois poderia me encontrar com Darío.
Eu a ataquei assim que terminei minha fala, não media a força que
chocava meu bastão no dela. Minha vontade era de partir os ossos de seus
braços com eles, mas por ora só podia fazê-la regredir seus passos naquela
campina.
Irene parecia ter sua mente presa no instinto de batalha e mirou meu
rosto com uma tentativa de me deter, minha cabeça girou junto com meu
corpo para trás com o golpe que me levou a cambalear, mas não aplacara
minha raiva.
— Perdão, minha rainha.
Sua voz chegou aos meus ouvidos quando eu já dobrava minha
perna totalmente contra meu peito e chutava sua cabeça na altura de meu
ombro com toda minha força. Minhas saias flutuaram e senti o espartilho
apertar meu abdômen com uma intensidade que tive ânsia de rasgá-lo, mas
derrubara Irene.
Fingir que acreditava nelas por tantos anos havia sido exaustivo para
conseguir alguma liberdade. Mas meu esforço era tolhido com a vaca que
sangrava pela testa nesse momento me perseguindo como um cão.
— Livia, acho que minha cabeça foi partida? — ela disse meio
abobada, enquanto estava caída no chão sob suas pernas e com um fio de
sangue escorrendo desde seu couro cabeludo passando por seu nariz e
lábios, até que alcançava o queixo e terminava por pingar ao chão.
Ela achava? Felizmente eu tinha certeza e tinha aplicado meu
esforço nisso.
— Ah, sinto muito. Eu não tive intenção. — Era verdade, minha
meta era deixá-la inconsciente e falhei.
Na verdade, era morta mesmo. Mas tal ato ainda não seria possível
sem que eu tivesse que dar grandes e impossíveis explicações.
Estendi minha mão para ajudá-la a se levantar, enquanto dava minha
melhor cara de tristeza, Irene a pegou e se pôs apressada em pé apesar de
cambalear um pouco. Ela tocara meu ombro numa tentativa de equilibrar e
se demorara tocando-o, aquilo custara muito dos meus nervos para suportar.
— Acho que preciso voltar.
— Ah, sim. Cuide-se — consegui dizer com uma voz neutra.
— Você vem? — ela questionou, com o rosto esperançoso.
— Não. Vou treinar um pouco mais.
Irene acenou, deu-me as costas e, finalmente, se foi. Fiquei ainda
por um tempo cuidando que ela realmente estava longe demais para retornar
com alguma indulgência desagradável. Assim que suas costas
desapareceram atrás de uma colina, fechei meus olhos convocando as forças
do ar até que envolveram meu corpo e flutuei para longe daquele lugar para
um fim de tarde mais agradável nos braços de Darío.
— Uau, você sempre a odiou — disse Andrew, virando-se embaixo
de mim enquanto me amparava pela cintura.
— Cada dia que passei do lado dela.
— Eu vi a cela, mas não entendi por que te prenderam nela.
— É complicado.
— Estou pronto para ouvir.
— Depois, o sol já está indo embora. — No momento que falei a
noite chegou de repente como se as trevas avançassem com fúria e
cobrissem tudo. Andrew me fitou com olhos arregalados e eu apertei seus
ombros com força, ele iria onde eu fosse.
— Acalme-se. O cenário só vai mudar para algum outro dos meus
pesadelos.
— O que aconteceu, Emma?
— Uma vela se apagou, Irene está controlando essa dimensão com
as velas que nos rodearam na casa dos Davis.
— Aqui é muito diferente de onde estávamos.
Andrew caminhava por aquele que fora um dos meus piores
pesadelos, onde não pude salvar de todo uma alma.
— É horrível caminhar por aqui. O que há com aquela bruxa que
gosta tanto de arrancar o piso aonde quer que vá?
— Ela consegue obter força da natureza assim. Aqui temos todos os
elementos, terra, o ar está em todo lugar e as chamas estão nos circulando
fora daqui.
Ele assentiu e sua curiosidade o fez alcançar a estante que eu já
tocara no passado com desespero.
— Você está esquecendo um, a água.
— Ah, essas serão das nossas lágrimas — brinquei com um sorriso
provocante que foi recepcionado por um estreitar de olhos fuzilante.
— Sem graça, Emmie. Uma péssima piada.
Achei que não devia contar para Andrew que havia mais seriedade
nessa frase do que meu tom divertido parecia fazer crer. Vê-lo revirando a
estante e não dando mais tanto atenção ao nosso diálogo anterior, tive a
certeza de que devia encerrar tal linha de conversa.
Não queria aquele mocinho em pânico de novo. A deusa era
testemunha que eu estava tentando ser boa, ao menos com as pessoas que
eu gostava.
— Acho que estão em latim e tem desenhos estanhos aqui. Bem-
feitos, mas um tanto macabros. Opinião de um especialista em arte — disse
um Andrew orgulhoso de seu talento em desenho ao estender a mão para
que eu pegasse o livro, mas sacudi minha cabeça, recusando-me a apanhá-
lo.
Já sabia o que estava ali.
— Eu não posso ler latim.
Ele sorriu de lado de um jeito charmoso que me fez querer terminar
nossos assuntos ali para que pudéssemos tratar de outros no mundo real.
— Que tipo de bruxa não fala latim? — brincou e mordeu os lábios
em provocação.
Então era para isso o charme todo? Eu devia saber. Agora fiquei
com vontade de mostrar mais um pouco do meu talento de sacudi-lo de
cabeça para baixo.
— Uma que sabe que isso é só enfeite de filme — retruquei com os
lábios franzidos, a contragosto.
Andrew deixou que sua cabeça caísse para trás e deu uma
gargalhada que tive vontade de cutucar suas costelas com meu cotovelo.
Estava ficando corajoso? Parecia. Até esquecera que estávamos numa
enrascada com uma mulher perturbada em nossa caça.
— Andy, pare com isso. Pode atrair Irene.
— Não dá. — Ele jogou a cabeça para frente e limpou as lágrimas
que saíam de seus olhos com seu ataque de risos. — Só você para mexer
comigo num lugar como esse. Uma casa velha, com chão de terra e papéis
de parede rasgados.
— Não se esqueça dos livros com sacrifícios.
— Sim. É isso que parece ter neles e pelo visto você já teve o
desprazer de folheá-los. Entendo sua recusa em tocá-los.
Andrew passara as mãos nos cabelos pondo em ordem aqueles fios
revoltosos, mas eu esperava que não viesse a se tornar um hábito vindo do
estresse, já que ele teria muito dele comigo. Então havia um perigo real de
que os belos fios loiros o abandonassem e ele ficasse com uma linda careca
brilhante em pouco tempo ao meu lado.
— Sempre achei que usar latim em feitiços talvez fosse como a
igreja fazia antigamente com as missas realizadas só nessa língua, uma
forma de restringir o conhecimento a elite.
— Pois é, acertou em cheio. Feitiços são uma forma de expressar
sua intenção, você coloca seu desejo em voz alta e a energia que envolve
seu corpo como um envelope apertado entende sua intenção e trabalha para
você.
— Energia que envolve? Então, aura existe mesmo? — Ele sorriu
como um bobo. — Eu sei que estamos em perigo, mas não sabe como um
cara como eu que adora assistir todas essas coisas sobrenaturais se sente ao
descobrir que é tudo real.
— Sei, melhor do que sair com uma garota, né? — Pisquei para ele
e comecei a andar em busca do que já sabia que encontraria ali.
— Melhor ainda que tem uma garota nessa história toda e uma que
parece uma super-heroína — murmurou, acompanhando-me na escuridão e
voltando ao tema super-heroína quando eu estava mais para supervilã.
Por ora, deixaria que pensasse assim. Não quebraria suas doces
ilusões, porque revelar a verdade me machucaria mais do que feriria a ele.
— Emmie, você sabe o que aconteceu aqui? — perguntou, enquanto
examinava uma cômoda que encontrara, mas eu sabia que não haveria nada
de útil ali.
— Foi aqui que perdi Scarlet há quatro anos.
— Foi culpa de Irene também? Você falou que ela a sequestrou.
Assenti com pesar.
— Ela pensava que eu ficaria do lado dela.
— A mulher é totalmente louca. Toda a sua linguagem corporal e
como se afastava dizia o quanto você a detestava naquela outra lembrança
de onde viemos.
— É, mas ela achava que seria uma grande honra pra mim servir ao
coven e desaparecer o fazendo.
Andy franziu a testa como de costume quando as coisas ficavam
complicadas demais.
— Não sei como tudo isso começou, mas bruxas reais, com poderes
de verdade, não usam caldeirões e ervas. Elas têm poder próprio, mas se o
fizeram alguma vez para amplificá-lo, pararam quando descobriram que
podiam obter mais poder consumindo uma delas. Há sim objetos sagrados,
mas não são qualquer coisa tão fácil de se achar ou produzir.
— Mas por que você? Por que tinha que ser você a ser sacrificada?
— Acredita-se que algumas nascem com mais poder e essa seria a
sua função.
— Eu pensaria que gente assim deveria ser protegida.
— E elas me protegiam, me escondiam para que ninguém me
roubasse e tomassem minha força vital primeiro — debochei.
— Amaldiçoaria as bruxas se você não fosse uma delas — Sua voz
soou bem dura ao tentar entender os motivos a que meus inimigos se
apegavam.
— Achei a porta, Andy, vamos. Scarlet não está no porão dessa vez.
— Desloquei o ar arrebentando a mesma entrada que Livia passara para
bagunçar com a vida que eu estava construindo para mim há quatro anos e
me botando novamente nessa confusão toda.
— UAU! Eu adoro ver como você faz as coisas voarem.
— Eu só fiz você voar.
— E eu gostei até o momento que você me virou de cabeça para
baixo.
Não pude evitar de sorrir diante de sua fala e entrei na sala com
Andrew em minhas costas.
Estava tudo como antes, folhas pelo chão, móveis cobertos e janelas
batendo. Aquilo não me assustava mais. Só aterrorizara a Emma que
acreditava ser uma garota comum e não uma bruxa centenária.
— Essas janelas batendo foram feitas para assustar crianças. Sua
irmã deve estar com a mente muito abalada numa casa dessas.
— Pensei que minha criança grande tremeria diante delas —
debochei e vi sua boca abrir em surpresa e se fechar tomando ar para
resmungar.
— Eu? — Sua voz parecia chocada. — Eu vejo filmes de terror.
Fiquei perturbado mais cedo, mas seus pais virando bonecos fora um show
e tanto. Irene devia entrar para o show business.
— Não eram bonecos, Andy. Estão mortos. Irene os matou, sugou-
os até que só sobrou as cascas.
Eu o vi perder o tom dourado de sua pele e ganhar o branco dos
fantasmas que pensei que residissem nessa casa na primeira vez que estive
aqui ou ao menos na versão original dela, não essa ilusão feita por Irene.
— E-eu sinto muito — disse, num tom triste e realmente sentido.
— Não sinta. Não significavam nada para mim. Eles não eram meus
pais de verdade e nunca se esforçaram o mínimo para ser — falei e
continuei minha busca, averiguando o piso inferior, numa tentativa de
encontrar quem realmente significava alguma coisa pra mim, embora eu já
nem saiba mais o quanto disso era verdade.
Scarlet não parecia muito dada a ter qualquer sentimento por mim
mais.
— Sabe, tem uma coisa que não entendo. Você disse que elas
absorviam outras bruxas, mas ela atacou humanos.
— Na falta do alimento adequado, se mata a fome com o que se tem
a disposição. Aparentemente é assim que tem se mantido viva, consumindo
almas humanas mesmo que não funcionem tão bem. Ela me pareceu abatida
por um momento em nosso combate há quatro anos.
— Uma notícia bem perturbadora.
— Imaginei que diria isso, mas não se preocupe. A sua alma sairá
ilesa daqui — afirmei antes de voltar minha atenção aquela casa que tanto
me atormentara há alguns anos. Ela era só uma lembrança, uma ilusão, mas
parecia muito real ao percorrer seus cômodos.
Observei aquelas janelas e seu showzinho barato e murmurei um
Caladas! que foi o suficiente para deter aquela cantoria de casa fantasma
dessa vez. Da última vez, requereu um pouco mais de esforço da minha
parte.
Custou despertar meus poderes e minha consciência.
Tudo o que Irene mais queria, era me forçar a voltar a ser Livia. Só
que acabou tendo que apertar minha mente um pouco mais no fim para que
eu despertasse de vez e duvidava que ela gostara do resultado.
A inocente realmente não contava que eu a odiasse tanto. Isso que
era viver em negação.
Mas se um lapso de consciência não tivesse despertado antes que
voltasse a ser quem eu era de todo e tomado o controle da situação, não
haveria ninguém que pudesse quebrar o feitiço daquela casa abandonada e
muito provavelmente, minha cabeça estaria ornamentando o ambiente e se
afundando na lama.
Ou mesmo eu poderia ter acabado louca e chorando num cantinho
para sempre se aquela farsa que criei de ser Emma, a filha de gente simples
do interior e com uma irmã pequena, não tivesse sido subjugada pelo meu
verdadeiro eu e ordenado que aquelas janelas no piso superior cessassem
seus movimentos fantasmagóricos.
Exatamente assim que devia estar Scarlet nesse instante e aquilo
doera meu peito. Desejei que nunca tivesse sido resgatada por Rick Davis
naquela estrada, mas daí teria sido meu fim. Machucada e cansada como
estava eu não conseguiria continuar a fugir.
— Emma... — Andy me chamou com uma voz trêmula que
provocou um espasmo em meu corpo. A compreensão do que ele via, veio a
mim de forma instantânea, e eu nem precisei fitar seu rosto ainda mais
pálido para isso, embora o tenha feito.
No topo da escada estava Scarlet.
Com seus cabelos tão loiros, sujos e revoltados, que não deviam ver
água há muitas semanas.
Todas aquelas mensagens esperançosas que recebi me questionando
se eu viria em seu aniversário, era Irene que me as enviara para que me
pegasse em sua armadilha.
O rosto magro e cadavérico mostrava o quanto fora mal alimentada
e suas mãos tinham restos de cordas e profundas marcas vermelhas, ela
estivera atada esse tempo todo.
Minha irmã fora torturada. Uma menina que não tinha nada a ver
com meu mundo e meus problemas.
Presa logo aqui. Uma cópia da casa que lhe rendeu pesadelos por
anos.
Pensei que eu tivesse fungado, ouvi o barulho, toquei meu rosto,
mas não tinham lágrimas o banhando. Virei minha cabeça por um segundo
ao lado e era Andrew que chorava. Ele era mais sensível do que eu.
Tudo que eu pensava era em como estripar uma bruxa, ainda viva.
Andrew deu um passo à frente querendo alcançar Scarlet e eu
agarrei seu pulso com força detendo sua caminhada.
— Emmie, ela é a sua irmã, não é? Temos que tirá-la daqui.
— Não se aproxime dela, sua mente não está bem.
No instante seguinte, ouvi um grito angustiado vindo das entranhas
de Scarlet que duelaria com o de um animal ferido.
Ela fora tomada por uma raiva tão densa que pesava no ar e contraía
meu estômago ao pensar que era eu que fizera isso a ela.
Sua agonia era minha culpa.
Eu merecia ser o alvo de sua angústia e foi isso que ela fez ao
correr pela escada numa agilidade que ia além do que a de qualquer jovem,
eu só vira um vulto em trapos se aproximar, até que esteve sobre mim.
Scarlet me derrubou sobre o piso e me castigou com arranhões e
mordidas.
Eu era o alvo de todo o seu ódio.
E fiquei inerte, recebendo seus golpes. Eu merecia isso, pois
trouxera dor e terror para sua casa.
— Menina, não faça isso com sua irmã — Andrew gritou e arrancou
Scarlet de cima de mim, prendendo-a pela cintura.
Minha irmã se debatia e fincava suas unhas em seus braços,
enquanto impulsionava seu corpo tentando me alcançar, lutando para se
soltar e me atacar.
Scarlet tinha um pouco da aura de Irene nela, dando-lhe mais força
do que o normal e ela a usava para espernear e gritar obscenidades que não
deviam estar na boca de uma garota de quatorze anos.
Eu fiquei travada, caída no chão ao ver no que eu transformara a
menina que uma vez eu quis que fosse minha irmã.
— Emma, se levante — vociferou ele.
Mirei ao rosto preocupado de Andrew e, enfim, não resisti a dor.
Uma lágrima desceu pela minha bochecha e eu afastei com as mãos tão
trêmulas de quando entrei naquela casa na primeira vez.
Me ergui do chão e a cada passo que dei, eu me despedi da vida que
tivera ao lado de Scarlet e agradeci por ela ter me ajudado a me reerguer.
Eu a alcancei em três passos curtos que desejava que tivessem sido
maiores, quando coloquei minhas mãos em seu rosto num toque delicado,
porém firme.
— Minha irmã, me ouça— ordenei a menina, mas recebi uma
mordida em meus dedos em retribuição. — Olhe para mim, Scarlet.
Ela se virou ao som da minha voz como se tivesse perdido toda a
capacidade de raciocínio, Scarlet se guiava somente pelo instinto.
Parecia que eu conseguira alcançá-la, mas seus olhos só tinham ódio
e desprezo. Eu temia que Scarlet não tivesse mais nenhum sentimento em
relação a mim, mas ela os tinha bem firmes em seu coração e eram os
piores que poderiam ter se fincado ali.
— Matou meus pais, você... sua culpa! — Scarlet estava tão
agoniada e minha alma se contorcia em dor por ela.
Vê-la assim me causara o mesmo ódio por Irene que Scarlet tinha
por mim e esse já havia sido enorme antes. Mas agir de forma correta como
eu deveria com minha irmã era o que partiria meu coração.
Toquei em seu cabelo com carinho. Scarlet era o único motivo pelo
qual eu vim para aquela cidade novamente e ela sairia ilesa dali.
— Eu estou morta. Bandidos invadiram a casa e mataram a mim e a
seus pais um pouco depois do Halloween quando vim visitá-los. Você
entrou em choque e ficou uns dias sem deixar o lugar.
— Não, ela os matou...
— Foram os bandidos. Feche os olhos agora e antes que a escuridão
chegue você vai sair daqui correr até a igreja e pedir que liguem para seus
tios.
— Os bandidos? — Ela virou o rosto de lado absorvendo o que eu
empurrava em sua mente como uma verdade que deveria ser aceita.
— Sim, vieram pela noite. Você chorou muito, mas não o fará mais.
Vai ter uma vida boa, me prometa.
— Sim, eu vou — a menina aquiesceu.
— Fique bem, Scarlet.
Onde já havia só trevas, caminhava o negro mais profundo, quando
ergui minhas mãos e quebrei as sombras que avançavam sobre nós naquela
sala que já era escura de más recordações.
— A cada luz que se apaga outra nasce e empurra as trevas. A cada
vela que se apaga, outra se acende para mostrar o caminho a uma inocente
que aqui não pode ficar.
Uma luminescência surgiu no meio da escuridão e tomou a forma de
uma porta com uma maçaneta esférica e brilhante como o loiro dos cabelos
de Scarlet.
Virei-me para a menina e apertei suas mãos, Andrew a soltou e ela
pôs seus pés no chão.
— Scarlet, você caminha sozinha agora, mas está livre de todo o
mal. — Engoli em seco antes de continuar. — Eu prometo a você.
Tudo que consegui foi jurar isso a ela, pedir que me desculpasse era
algo que eu não poderia fazer. Não era digna de tal coisa e não merecia seu
perdão.
Ela andou em direção a saída que eu criara para ela sem olhar para
trás e ao girar a maçaneta, eu vi a rua da frente de sua casa. Scarlet correu
por ela, a porta trancou-se novamente em suas costas, e nos deixou sermos
tomados pela escuridão.
Me encontrava deitada sobre um colchão duro, mas os lençóis
pareciam suaves como seda. Eu não sabia exatamente o que era, mas algo
me incomodava, passeando em meu rosto e provocando cócegas sem cessar.
Tentei trocar de lado, mas a perturbação não tinha fim. Minhas pestanas
pesadas demais para serem levantadas, tão pouco queria erguer minha mão
para afugentar o inseto inconveniente que rastejava pelo meu rosto, então
abri minha boca e dei um fim ao meu incômodo.
— Cacete, Emma! Não precisa morder!
Arregalei meus olhos para encontrar o rosto de Andrew sobre o
meu.
Era ele que me atormentava deslizando seus dedos por minha face e
o colchão duro eram suas pernas, eu me deitava em seu colo. Tão exausta
para me mover, eu queria ficar ali descansando sobre Andrew. Mas achei
que devia me levantar, era o comportamento normal e no fim deixei seu
corpo à contragosto.
— Gente normal estapeia, Emma. Por que você morde?
— Porque estava cansada demais para erguer meu braço. — Passei
minhas mãos pelo meu rosto ainda muito tonta pelo gasto de energia que
tive para abrir aquela pequena passagem para Scarlet. — Tirar a menina
daqui levou minhas forças. Eu só queria dormir um pouquinho mais.
— Já está assim há algumas horas, eu acho. Não tenho meu celular
comigo para saber quanto exatamente se passou, ele ficou no piso da casa
de seus pais, despedaçado e provavelmente engolido pela lama. Mas creio
que já tenha se passado um bom tempo que chegamos aqui.
Avaliei o lugar que fomos parar dessa vez e parecia a casa dos
Davis, mas claro que não era. Teria sido muito fácil escapar e tudo que
Irene não faria por mim seria facilitar essa noite.
— Não é o mundo humano.
— Desconfiei já que as portas não se abrem e o telefone não
funciona. É isso, não tive coragem de checar o resto das coisas por aí.
— Deixe-me descansar um pouco mais e saímos daqui.
— Deite-se no sofá, então.
— Acho melhor ficarmos por aqui mesmo. — Preferia não me
mover por um tempo, podia ter mais armadilhas e gatilhos preparados para
atormentar minha mente espalhados pela casa.
— A casa está silenciosa desde que chegamos, há alguma chance
que tenhamos parado em outro lugar e não esteja sob influência daquela
mulher?
— Não mesmo. Sinto muito, ainda estamos presos no feitiço.
Preciso só de um pouco mais de descanso para o próximo round.
— Volte para o meu colo, então, e descanse sua cabeça.
— Eu não devia.
— Deve sim e já fizemos coisa pior do que você deitar sua cabeça
em meu colo. Não admito essa recusa. Encerrado, venha sobre mim.
Fiquei parada ali olhando aquele rosto que parecia disposto a me dar
ordens de uma hora para outra e eu não estava de todo contra isso.
Francamente, ouvir Venha sobre mim era algo que eu esperava que ele
dissesse há algum tempo, mas em outro contexto.
Eu não negaria que aquela frase em especial mexia comigo.
— O chão é muito duro e vai machucar suas costas. Ao menos
descanse sua cabeça. Entendido? — ordenou, já me puxando para seu
regaço e me mantendo acomodada ali com aquelas mãos que eu não
percebera que eram tão grandes antes.
Mas era impossível não o fazer nessa situação, ainda mais ao vê-las
me mantendo segura em seu colo, enquanto repousavam firmemente em
meus braços.
Eu tinha vontade de tocá-las e deixar que seus dedos se deslizassem
entre os meus e ali ficassem, sua mão nunca soltaria a minha e ele ficaria
comigo para sempre.
Ninguém nunca mais me abandonaria.
— Foi doloroso, né?
— O quê? — me fiz de desentendida. Eu não queria falar sobre isso.
— Expulsar Scarlet de sua vida.
— Não é como se ela estivesse nela, não falava com Scarlet tinham
muitos meses, talvez um ano, e mesmo antes não era muito.
— Não minta. Você veio aqui só por ela.
Apertei sua coxa para não desmoronar. Sim, doera, no entanto, tinha
sido melhor assim.
— Ela vai ficar melhor longe de mim. Seus tios cuidarão dela, assim
como nossos vizinhos, eles também nunca tiveram uma palavra boa pra
mim. Eu os vi só um par de vezes e foram ríspidos, mas com Scarlet eram
amorosos.
Andrew alcançou minha mão em sua coxa, acariciou-a com o
polegar antes de segurá-la firme e eu acabei incentivada a continuar a falar.
— Sabe, ela e os Davis foram só um sonho. Uma família que eu
queria pra mim, mas, aparentemente, nunca mereci uma.
— Você tem a mim. Eu ofereço a minha para você, acredito que
mesmo que você se mude lá para casa meus pais não vão falar nada. Bem,
talvez meu pai fale Graças a Deus.
Ele deixara a cabeça cair um pouco para frente rindo da piada que
fizera, seus ombros se sacudindo e seus fios dourados quase roçando meu
rosto, ele precisava apará-lo um pouco. Se crescesse demais poderia lhe dar
um visual de surfista demais e eu poderia não resistir em enfiar meus dedos
nele.
Andrew se recompusera e encarava meus olhos como se precisasse
me fazer uma promessa.
— Mas não se preocupe, a expressão é só um costume, eles não são
religiosos nem vão tentar machucar você por ser uma bruxa.
Sua mão soltou a minha, enquanto ele alisava seu cabelo para trás
removendo-os dos olhos num gesto nervoso.
— Vão ficar aliviados de fato se levar uma garota para casa. Já me
abordaram antes querendo saber se eu precisava contar alguma coisa e que
eles aceitariam se eu gostasse de caras. Não sou popular com as garotas,
embora goste delas.
— Andy, eles te criaram bem, né? — Minha voz falhou em tocar no
assunto família, era algo sensível para mim. Em contrapartida, estava
contente por ele ter crescido numa boa.
— Bem, minha mãe diria que fui mimado mais do que devia e mais
do que qualquer outro filho único já foi e isso era muito. Ela te mimaria
muito também. Mamãe queria uma menina, mas eu nasci e estraguei tudo.
Virei-me em seu colo e toquei seu rosto com o mesmo carinho que
flutuava em suas palavras.
— Agradeço muito mesmo, mas tudo que passo meus dedos queima
e tudo que eu não gostaria de queimar é você.
— Então é tarde, Emmie. Eu queimo por você desde que lhe joguei
uma olhada no primeiro dia da faculdade e o fogo nunca apagou. Nunca
pensei que fosse possível amor à primeira vista, não quando eu não amava
ou queria tocar em ninguém nem em uma segunda vista.
Ele deu um sorriso de lado e eu mordi meus lábios com sua
declaração, tudo que queria era fazer aquela chama arder mais forte e nunca
apagar, mas não podia almejar essas coisas. Não quando loucos perigosos
me perseguiam e atingiam as pessoas ao meu redor para me pegar.
Uma pessoa íntegra não se envolveria com ninguém nessas
condições, mas era mais fácil falar do que fazer quando tinha um cara
bonito abaixando sua cabeça em direção ao meu rosto.
Bem, nunca fui uma mulher decente mesmo. As bruxas mortas
concordariam comigo.
Então, fechei meus olhos na expectativa do beijo. Eu precisava
mesmo de um, mas do que necessitei alguma vez. Desejava fazer parte de
algo e ter quem me abraçasse e me mimasse.
Alguém que me quisesse em seu mundo e dissesse que tudo ficaria
bem.
Apertei meus olhos, ansiando pelo beijo que não chegava. Por que
sua boca não estava colada na minha? Estava ali parada oferecendo meus
lábios e não recebia nada. Era ciente da estranheza de nosso
relacionamento, mas eu queria uma pausa da confusão e um pouco de
atenção.
Desejei que tivéssemos um romance normal, no qual eu não
precisasse me preocupar com inimigos e as crueldades deles. Se eu fosse o
tipo de mulher que não carregasse essa bagagem, Andrew já teria coberto
meus lábios com os dele pelo tempo que os mantinha abertos. Mas o nosso
relacionamento passava longe de atingir qualquer ponto na escala de
simples, natural ou trivial. E como não o era, estava aqui esperando um
beijo que não chegava. Será que tinham insetos aqui? Daqui a pouco não
seriam seus dedos que eu acabaria por morder, mas sim a eles.
Acabei por mordiscar meus lábios insegura pelo que viria a seguir e
essa demora toda, talvez eu tivesse que tomar as rédeas da situação.
Sentia a respiração de Andrew paralisada a centímetros do meu
rosto, esperei mais um pouco até que abri os olhos e me deparei com ele
mordendo a boca como eu o fazia há pouco. Ele parecia acanhado diante do
que queria dizer, ou com medo de mim. Natural, eu inspirava isso nas
pessoas.
— Você nunca quis me beijar. Era só o que pensava, mas só me
ignorava, nunca me quis. — Ele se afastou um pouco antes de sussurrar por
fim, carregando na palavra beijar a mesma dor que eu sentia ao vê-lo com
mais frequência que fosse a minha vontade. — Exceto ontem no hotel e,
mesmo assim, eu não tenho certeza de que era aquilo que queria.
Seus olhos falavam a verdade, receio e medo estavam neles, eu o
entendia por que carregava os mesmos sentimentos nos meus.
Muitas pessoas e coisas estavam envolvidas, mas eu as afastaria por
um momento.
Ergui minhas mãos ao seu rosto e o acariciei um pouco com a
pontas dos dedos antes de atrai-lo para o meu.
— Tenha certeza de uma coisa, nunca quis nada tanto nessa vida
quanto enfiar minha língua na sua boca. Ainda mais nesse exato momento.
Terminei por puxá-lo, firmemente, para mim e dizer com atos o que
eu já havia mostrado com palavras.
Enquanto para feitiços expressar por meio da fala era importante
para a materialização do desejo, no amor os atos valiam mais, até porque
toda a minha audácia acabaria por se perder numa voz trêmula se eu
tentasse por mais do que o pouco que fiz mantê-la, e jamais conseguiria
transformar em verbo como me sentia nesse instante ou o desejo que eu
guardei para mim por tanto tempo.
Tomei seus lábios com a fome que me consumiu em cada noite
solitária pelos séculos que vivi só para sobreviver e Andrew me aceitou sem
hesitação, envolvendo seus braços em minha cintura e me pressionando
contra ele. Eu o beijei e o deixei me beijar me deleitando em seu sabor
como eu deveria ter feito naquele primeiro dia que o vi no campus tão
jovem, usando suas roupinhas de maníaco por super-heróis e congelado me
olhando como se estivesse vendo uma miragem que andava, algo como as
heroínas que ele tanto gostava.
Sim, me olhava igual.
E eu de fato o era, mas faltava a moralidade, eu não poderia dar isso
a ele. Estava mais para a garota má a tentar o herói.
Mas eu não queria saber quão errada eu era ao fazer isso.
Tudo que eu ansiava era continuar beijando-o como se não
estivéssemos condenados ao fracasso. Apertei seus ombros carente de mais
contato, e colhi em minha boca um gemido baixo que provava que o desejo
que ardia em meu corpo era o mesmo que desprendia do dele.
Sua mão me erguendo e ajeitando em seu colo para que minha
intimidade roçasse a dele provava que não estava enganada nesse quesito.
Seus dentes passando pelos meus lábios numa doce fricção, quando parara
o beijo para tomar um pouco de ar, fez com que me contorcesse contra ele,
ávida para que pudéssemos ir além do que a situação nos permitia.
Mas Andrew não retornou por minha boca, estava ocupado demais
para isso espalhando beijos de meu queixo até a minha orelha, fazendo-me
esquecer totalmente onde eu estava quando gemi alto ao sentir sua língua
circulando minha orelha e sua boca sugando meu lóbulo.
— Aaah, Andy.
Pensei em detê-lo quando ouvi minha voz ressoar pela sala dos
Davis, da família que eu sonhei ter, mas ao lembrar do dia que deixei o
lugar não me senti culpada de meio que profanar aquela casa, eles nunca me
deram uma chance de me explicar.
Andrew não precisara de muitas explicações para se pôr ao meu
lado. Entre uma aula e outra, eu tinha convivido mais com ele do que com
as pessoas daquela casa.
Fui retirada de minhas divagações com sua mão erguendo minha
blusa, revelando meus seios livres de qualquer proteção e senti seu dedo
testando o toque, contornando-os mamilos que se enrijeciam com o contato,
tornando-se duros e doloridos.
Eu o encarei no momento em que ele levantou a cabeça e aqueles
olhos verdes e profundos me fitaram de volta com promessas que
cumpriríamos se escapássemos daquele lugar. Só aquele olhar já teria me
colocado rendida, era demais para resistir, mas o que veio a seguir fora o
que faltara para me pôr louca de vez.
Andrew tomou o bico ereto de meu seio com a boca que substituiu
seus dedos na brincadeira de me deixar louca, a suave sucção aumentando o
ritmo até que suas chupadas me fizeram jogar minha cabeça para trás
suspirando seu nome mais uma vez.
Sua boca abandonou meu mamilo tomando meus lábios novamente,
sufocando meus gemidos enquanto eu o agarrava pelos cabelos querendo o
mais perto e seu corpo sobre o meu.
Infelizmente, aqueles instantes preciosos em seus braços duraram
menos do que eu gostaria, logo ouvimos passos e sua boca descolou da
minha enquanto suas mãos puxavam minha blusa e tampavam meus seios
às pressas.
— Vejo que respeita tanto esse lugar como o fazia com sua antiga
casa.
— Tanto quanto eu recebia em troca — retruquei a Irene que por
fim resolvera nos fazer uma visita no pequeno inferno que nos enviara.
— Uma cortesã, não passa disso. Não é à toa que o senhor do
castelo se interessara tanto em você.
— Não fale com ela desse jeito! — rosnou Andrew que se levantara,
dando um passo em direção a Irene, coisa que acelerou mais meu coração
do que o nosso pequeno interlúdio anterior.
Tentei puxá-lo para trás de mim, mas já era tarde quando meus
dedos tocaram seu braço.
— E você, cale a boca — disse Irene antes de erguer sua mão
lançando-a contra o peito dele e o arrancando de mim.
Andrew foi arremessado por uma onda de ar no outro da sala e eu
me levantei correndo para ele, saltando sobre os móveis para alcançá-lo,
quando a sala tremeu antes de escurecer e mudar novamente de lugar para
um que eu não queria reviver de forma alguma, mas nada poderia fazer para
impedir Irene de me lançar naquele pesadelo de novo.
Entre todos os séculos que passei no inferno, nada se comparava
àquele último dia na Espanha.
Era espancada naquele salão de pedra.
Acabara de chegar dos campos do meu encontro com Darío e fui
cercada e enforcada pelos soldados, arrastada por aquelas portas de ferro
negras como o coração daquela gente que gritava: Queimem a bruxa do
demônio, até que fui jogada no chão duro aos pés do senhor daquele castelo.
Eu não revidara, eu nunca o fizera. Sentia que seria morta no
instante que o fizesse.
Mas eu devia tê-lo feito, devia ter fugido.
Alguém entregara a minha identidade a população local. Só a
minha. Ironicamente, a única que era obrigada a viver ali. Armaram para
que eu fosse capturada de surpresa e temesse reagir pensando que seria pior.
Não. O pior viera depois.
Meu destino fora posto em rota, mas o deles eu me encarreguei de
selar.
A abadia vizinha jurava que eu tinha parte com o demônio e exigira
que fosse entregue a eles para que me libertassem de meus pecados. Sabia
que fim teria se acatassem suas exigências. Eu somente não entendia por
que o coven não impedira que os boatos chegassem aos monges.
Morta não teria utilidade a elas.
Como uma senhora daquela casa poderia ter vínculo com tal vil
criatura?, disseram os monges antes de deixar o lugar com a promessa de
que voltariam no dia seguinte.
Os únicos monstros que eu conhecia era os que me criaram sobre
aquelas paredes e se prostravam ao lado daquele velho sentado em sua
cadeira, como todos os que vieram antes dele.
Eu não sabia ao certo porque tinham me escolhido, disseram que
podiam sentir a força dos deuses mais forte em mim. Crianças assim eram
especiais e deviam ser bem-criadas, o que significava ser aprisionada e
torturada.
As bruxas estavam todas ali, cercando o lugar, eu nunca as tinha
visto juntas. Mulheres de faixas etárias diferentes se reuniam em torno de
mim com olhares que variavam de repulsa a ânsia por me ver logo morta e
minha alma dividida entre o coven.
Eu tinha pena de todas as crianças que vieram antes de mim, porque
se eu sobrevivesse àquela noite, nenhuma passaria por isso mais. Não,
enquanto eu respirasse.
Cravei minhas unhas nas palhas e pétalas de rosas espalhadas
naquele piso no salão, estava imundo. Mal os servos trocaram o material
que forrava o chão e aqueles porcos que cercavam o velho já sujavam tudo,
atiravam comida para os cães sem se importar com o estado que ficaria o
lugar.
A sujeira estava impregnada no ar misturada ao cheiro das rosas, a
matriarca sempre ordenava que essa fosse a flor utilizada para atenuar o
odor do salão, uma vez que era a que usava em seus feitiços. As malditas
pétalas se faziam mais presentes do que qualquer outra coisa ali e me
sufocaram até que tentei puxar o ar por arcadas.
Aquelas malditas bruxas deviam estar absorvendo a energia das
flores, logo a usariam contra mim, e o pouco vento que entrava pelas
estreitas janelas não era suficiente para afastar o fedor. Ali eu aprendi a
odiar rosas.
Mas nada era mais sujo do que o homem que me cobiçava naquela
cadeira, ele emitia uma aura de proteção alimentada pelas bruxas e eu
sentiria o peso de sua mão fortalecida por aquelas mulheres.
Eu o encarei com desprezo quando ele se agigantou sobre mim e me
mirou com a conhecida fome que exalava toda vez que punha seus olhos
mesquinhos em cima de meu corpo. Então, ele enterrara aquelas unhas sujas
no meu couro cabeludo como gostaria de se enterrar nas minhas pernas.
Eu preferia morrer antes.
Mas fora forçada a me levantar, tendo minha cabeça puxada para
trás pelos cabelos, e tolerara a adaga que passava pela minha face e
brincava com meu decote apontando para o meu coração. Tive ganas que o
transpassasse. Estava tentada a me lançar sobre ela, mas aguardaria até que
fosse a última opção.
Mirei ao rosto daquele bastardo descendente daqueles que as bruxas
do meu coven se curvavam há tantos séculos desde que a primeira ergueu
aquelas paredes.
— Fale-me, bruxa, sabemos que se vinculou a um demônio. Traga-
o aqui. Quero vê-lo um pouco antes que você se perca de uma vez.
— Nem em seus sonhos.
Minha resposta malcriada foi respondia com um soco na cara, que
partira meus lábios e me derrubara ao piso. Ele guardara a adaga e nenhuma
bruxa ali fez nada para me ajudar. Como fariam, se fortaleciam seus golpes
com sua magia. Algumas riam, a matriarca exibia um sorriso discreto.
Ela me odiava por eu ser quem era, a descendente bastarda de algum
deus. Mas no momento era só a mulher que era espancada e tinha suas
costelas chutadas, enquanto segurava o choro.
A que não tinha forças para se defender e estava de joelhos diante
dela algo comum em minha infância. Mas não parecia suficiente tal
indignidade, me vi tombar naquele piso imundo sem forças para revidar.
Não conseguiria enfrentar todos os soldados, morreria se tentasse.
Eu só poderia ficar rodando no feno com seus chutes e maculando meu
vestido azul-céu na comida lançada e na merda dos cachorros espalhada
pelo chão.
Sofria mais golpes do que pensei que teria que aguentar.
Eu não queria, tentei evitar, mas a agonia sobrepôs meu juramento e
acabei por sussurrar seu nome quando a dor explodira com seus chutes em
meu estômago.
Vi as sombras de suas asas sobre mim contra a luz que entrava pelas
janelas e seu rosto curvado em agonia ao me encontrar naquele estado. Fora
tudo tão rápido, fitei seus olhos e Darío caíra na minha frente, eletrocutado
pela matriarca que lançara raios do colar em seu pescoço, o mesmo que
Irene exibia no presente.
E a cantoria.
As malditas vozes que se uniam, desejando todos os tipos de
maldições e me deixando tão mais inerte do que os golpes o tinham feito.
Fiquei parada ali, caída sobre a lateral de meu corpo com meus membros
dormentes e deixando as lágrimas fruírem como o sangue que escorria de
minha boca quando o vi tentando se rastejar para mim.
Darío resistia ao feitiço das bruxas e tentava me alcançar, sua mão
estendida tentando me tocar sem conseguir, então Laura o atingiu
novamente e vi o brilho deixar seus olhos. A inconsciência o apanhou antes
que afundasse seu rosto na pedra dura do piso.
Mirei minha mão trêmula, contudo, não consegui estendê-la para
tocar a dele, logo eu também não via mais nada com a bota que atingira a
minha cara sem piedade.
Todos eles, dos soldados aos aldeões, que vieram assistir à execução
do demônio. Nenhum sentia horror a imagem que me assombraria pelos
séculos que vieram.
Darío tinha a cabeça pendendo no peito e fora despojado de suas
vestes. Sua virilidade ausente, os monges o castraram, era isso que ele me
escondera. Tão ferido, tão humilhado e ainda preocupado por meu estado.
Eles o torturaram e o abusaram, enquanto eu dormia.
Eu só não caí de joelhos diante do horror que me consumiu porque
precisava soltá-lo, cuidar dele e livrá-lo dessas memórias terríveis.
Ele ficaria bom, eu cuidaria dele, o protegeria para sempre.
Vi alguns homens da abadia sorrindo para as chamas se tornando
altas e para o corpo mutilado de Darío. Desejava arrancar o pau daqueles
monges devassos e enfiá-los em suas gargantas, mas deixaria que o
fizessem no inferno.
Nenhum sinal de Laura, o senhor ou suas bruxas.
Independente de que não estivessem presentes, não sobraria
ninguém vivo naquele castelo depois de tudo que eu planejava tenha sido
feito.
Todos ali iriam residir na casa de Damián, os monges, soldados,
servos e os malditos do povo que se alegravam vendo meu homem queimar.
Era esse o acordo, a alma deles pela de Darío. Com o acréscimo de
meus poderes amplificados para salvá-lo.
Corria para ele com lágrimas queimando meus olhos, me enfiei na
multidão tentando alcançá-lo. Por um momento, esqueci que o vento era
meu aliado quando o desespero me tomou.
Tentava tocá-lo, mas não o alcancei.
A fumaça já começava a subir por suas pernas, logo o fogo chegaria.
Eu precisava apagá-lo, mas a burrice me tomou, enquanto eu tremia diante
de tudo ali. Aquela gente suja me empurrando, até que fui arrastada e
jogada no chão por Irene.
Sua versão daquela época me olhava como se eu fosse o único
monstro ali.
— Um demônio, Livia? Quão bárbara você é?
— Não te diz respeito. — Tentei me erguer e me vi arremessada
pelos ombros ao chão novamente.
Desabei com meus braços me amparando e meus joelhos prendendo
um pouco do velho vestido azul-céu, arrebentando suas costuras ao redor de
meus quadris.
Claro que, coincidentemente, a peça pertencera a Irene, isso quase
me fizera querer lutar contra ela nua diante de toda aquela gente. Eu não
queria nada dela, nada dali. Mas já passara por humilhação demais,
xingada, coberta de sujeira e sangue.
Não precisava expor minha pele diante de gente que cuspia sobre
mim. Os gritos de queimem o demônio se dividiam com os de matem a
bruxa, os humanos nos cercando e ansiosos para ver mulheres se
digladiando. A maioria eram homens ali, todos uns selvagens.
Tranquei minha mandíbula e cravei meus dedos na terra para conter
o ódio por toda aquela gente. A areia se infiltrando por minhas unhas, o
incômodo aliviando meus nervos tensos e mantendo algum controle em
minha mente.
Eles mereciam seu destino e eu seria a portadora dele.
Movi minha cabeça para Irene e observei seu perfil. Ela era fraca na
época, mas eu estava muito perturbada para enfrentá-la. Minha mente
estava fixa na fumaça subindo por Darío, em seu corpo machucado e
inalcançável.
— Pelo amor da deusa, me deixe em paz — murmurei em minha
dor.
Irene apertou minha bochecha, forçando-me a me levantar.
— Nossas ancestrais voltariam dos mortos com você tomando um
demônio como consorte.
— Não, elas se revirariam no túmulo com a prostituta de sua mãe.
O tapa veio quente e rápido, tirando sangue de meus lábios e
arremessando a minha cabeça para trás.
Voltei-me para Irene com o ódio me consumindo e avancei sobre
ela, derrubando-a no chão, prendendo-a com as pernas e socando sua face
seguidas vezes, até que desmaiou. Então, fiquei ali de joelhos sobre ela,
observando seu rosto ensanguentado e arroxeado, presa no que eu fizera, até
que mirei a minha mão coberta de sangue. Não era suposto nos livros
antigos que brigássemos entre nós, mas não era eu que tinha começado isso.
Eu só iria acabar.
Para que a deusa nunca me julgasse tão sem alma e me acusasse de
matar um inocente, decidi poupá-la desde que não se metesse mais em meu
caminho. Talvez ela só fosse vítima de sua mãe como eu, uma tola
doutrinada com os miolos fodidos e que se achava minha amiga.
Acreditei que Irene fosse só uma ingênua com a mente perturbada
pelas anciãs e não a entregaria a Damián. Mas ela precisava deixar o lugar,
a envolvi com meu poder e a arremessei pelos muros do castelo o mais
longe que pude lançá-la.
Eu iria poupá-la, não disse que não iria machucá-la. Alguns ossos
quebrados não a matariam.
Quando me ergui novamente, era cercada por guardas e a matriarca
atirava raios em minhas costas, erguendo-me ao alto e tirando qualquer
controle que eu tivesse sobre meus membros. Pude ver que os humanos
começavam a correr e a fugir do castelo. Pelo visto não estavam esperando
que aqui fosse um ninho de bruxas. Pobre coitados, sonharam em ver uma
queimar, mas não desejavam fazer parte de uma guerra entre elas.
O quê? Acharam que eu era a única?
Eu era só uma massa trêmula que rangia os dentes tentando sobrepor
a dor, enquanto Laura me rodeava com um sorriso maníaco em seus lábios e
seu poder que me fazia definhar diante dela.
Ela sim era uma mulher cruel. Uma verdadeira bruxa se nossas
origens fossem um xingamento.
— Livia, achou mesmo que não sabíamos que se encontrava com a
criatura?
Aquilo me bateu forte, mas do que as ondas de choque que tomavam
meu corpo sofrendo com sua agressão, me sentia destroçada por dentro e
por fora. Mas minha mente quebrada por Darío era a pior parte.
E vê-la tripudiar em cima da minha inocência machucara ainda mais
outra parte de meu ser já muito abalado pelos anos de cativeiro, meu ego
fora estrangulado por sua fala.
Como eu pude ser tão tola ao imaginar que ela não tinha
conhecimento dele?
— Sabe, crianças como você são raras. Tem mais poder da deusa
correndo por suas veias e da luz original do que todas nós unidas.
Laura me puxara para si e erguera meu queixo, me forçando a
encará-la. Seus raios que me envolviam e partiam meus nervos em
fragalhos não tinham nenhum efeito sobre ela.
— A fundadora dessa cidade profetizou que uma garota assim viria
e tomaria os poderes de um demônio os incorporando por uma união.
Desconhecia essa lenda, mas tentei fazer o que ela contava mais de
uma vez e falhei. Precisei de um contrato com o inferno para me libertar de
minha cela.
— Então, quando o sentimos em nossa casa, afrouxamos suas rédeas
para que roubasse sua força vital o quanto pudesse, mas lhe usar seria
perigoso se ele viesse a se revoltar.
— E você armou em me entregar aos monges para que ele viesse
por mim e pudessem capturá-lo — choraminguei.
— Nunca pensei que daria tão certo. Requereu um esforço
gigantesco de todo o coven subjugá-lo, mas funcionou. Pena que todas
tiveram que se juntar ao meu colar depois, fracas demais para seguir
vivendo em seus próprios corpos.
— Você matou a todas, decretou a morte de todas elas para derrotá-
lo.
— Por que o choque Livia? Tudo que eu faço é para preservar nossa
raça. Mesmo que seja só eu e minha filha que seguiremos vivendo pelos
séculos com a ajuda de seus poderes e de seu demônio, é claro.
Matar a mim, uma criança de fora, eu entendia. Mas todas as bruxas
nascidas naquele coven, eu nunca pensei que fosse capaz de chegar a tanto.
Nunca pensei que pudesse ser tão impiedosa, forcei meu corpo,
tentando me livrar de seu aperto, mas acabei por arfar com Laura
apanhando meu pescoço com a mesma pressão que um calvário o faria.
Engoli minhas maldições, minha boca seca como se mastigasse terra
e uma dor sobre meus olhos que parecia que iriam saltar de suas órbitas.
Ela resolvera me drenar ali mesmo. Sem ritual, sem nada.
Só consumiria minha vida de qualquer jeito.
Darío morreria.
Pensar nas chamas o envolvendo em uma pira viva fora suficiente
para que libertasse minhas mãos de seu domínio e cravasse minhas unhas
em sua pele.
Laura balançara, mas virara sua cabeça de lado em descaso.
— Desista, Livia. Acabou.
Eu não a soltei, não podia fazê-lo. Não podia desistir. Sentia o gosto
salgado das lágrimas deixando meus olhos e alcançando minha boca.
Nunca poderia fazê-lo.
Minha mão se moveu por seu braço apanhando seu pulso, enquanto
a outra alcançava seu antebraço na altura do cotovelo, e pus mais força que
eu já reunira alguma vez sobre meus punhos em sua pele.
Pude ouvir seu ombro se deslocando, mas ela não me soltara. Meus
olhos eram fixos nela, mas podia ver em minha lateral uma tempestade se
formando em torno de nossos corpos.
Meu vento e seus raios em choque, como a guerra que travávamos
da qual só uma sobreviveria.
Eu queria poder jogar toda a fúria que me consumia sobre Laura.
Precisava alcançar mais força, mais poder, necessitava de mais.
— Seus olhos. — As palavras se desprenderam de seus lábios como
um assombro. — Brilham como a prata derretida, então é verdade. Gente
como você são mesmo filhas dos deuses.
Não tive tempo de assimilar o que ela dissera, vi por cima de seus
ombros a sombra dele através de minha vista embaçada em lágrimas.
Darío se soltara, corria para mim com o pânico em seus olhos ao me
ver sendo estrangulada por aquela maldita.
Sua pele carbonizada, seu corpo coberto de feridas se movendo
contra Laura e a acertando com tanta brutalidade, que ela perdeu o controle
sobre seu aperto em meu pescoço.
Eu vi a oportunidade, retesei meus músculos e empunhei mais força
em meu aperto sobre seu braço, puxando para o lado contrário ao golpe de
Darío, assim terminando por arrancá-lo.
O sangue jorrara ao céu e eu esperei que talvez os deuses
apreciassem a oferenda pelo apoio mais do que inesperado.
Eu caíra sobre a areia, um joelho apoiado no chão e seu braço
asqueroso em minhas mãos. Piscara, algumas vezes, descrente do que fizera
com minha respiração irregular tentando tomar algum fôlego depois do
esforço empreendido.
A bruxa maldita não gritava. Devia ter desmaiado com o dano que
lhe causamos.
Arremessei seu braço sobre seu corpo e me ergui, correndo até
Darío. A poucos metros de mim, ele fora afastado pelos soldados e
enfrentava suas lanças. Ouvia a voz do senhor do castelo que parecia ter
decidido se juntar a batalha, ao menos comandá-la.
O homem gritava ordens de uma janela um pouco mais acima do
pátio. Perdera todas suas bruxas e temia por sua vida, por isso resolveu
empreender algum esforço contra nós, mas sua alma nem valia tanto assim
para que se preocupasse tanto. Agitei meus braços no ar, comandando uma
forte ventania e vi o nobre se equilibrando da janela onde acenara para que
espetassem meu homem.
Eu o encarei e ele voara para o chão logo depois, com seu crânio
partido vazando a vida por ele, não tornando-se muito diferente do que era
antes, uma massa desforme e enegrecida pela queda tal como sua alma.
Mantive minha corrida para Darío quando três lanças perfuraram
suas costas. Ouvi seu grito em minha mente, nenhum som saiu de sua boca
aberta antes de que tombasse ao chão, sua língua havia sido cortada. Não
podia suportar toda a dor que lhe causaram, era demais. Só queria chorar e
castigar aquela gente.
Meu lamento ecoou pelo pátio tremendo as pedras do castelo e
amedrontou os soldados que se juntaram aos bons cidadãos que há pouco
gritavam para que um rapaz fosse queimado, mas nesse momento corriam
em fuga pelas portas de ferro negro.
Ninguém mais iria a lugar nenhum.
As portas que davam acesso à vilarejo se bateram em um estrondo,
partindo os corpos de alguns dos assustados fugitivos ao meio e não se
abriram mais. Cambaleei até Darío, agachei-me ao seu lado e o puxei para o
meu colo.
Eu o abracei enquanto sacudia meu corpo, tentando acalmar o terror
que me consumia por vê-lo naquele estado. Tudo que eu queria era fugir
dali para longe com ele, e era isso que vinha planejando, mas ele não
sobreviveria.
Desatei a chorar e apoiei minha testa na dele, minhas lágrimas
pingando em seu rosto. A dor me corroendo por dentro.
— Livia.
Eu o ouvi me chamar em minha mente e fitei aqueles olhos verdes
que lacrimejavam, por conta do meu sofrimento.
— Não chore. Nem faça essa troca.
Esfreguei o torso da minha mão em meus olhos e acabei por
perceber o sangue que escorria pelo meu braço. Não era dos meus inimigos,
era meu. Meu pulso voltara a sangrar pelo corte que eu fizera para convocar
ao demônio na noite anterior. Ironicamente era quase como uma lembrança
de que tinha chegado a hora de pagar por seu apoio.
Não havia mais coven. Não havia mais o senhor do castelo.
Mas eu não salvara a Darío. Não de todo.
Seus olhos quase sem vida lamentando não por suas feridas, mas por
mim. Preocupado comigo mesmo prestes a deixar esse mundo, eu o apertei
com força contra meu peito.
— Me perdoe por tudo que passou, na próxima vida será feliz. —
Encostei minha testa na sua e esfreguei minha bochecha em seu rosto. —
Sua alma está livre do inferno, nunca pisará lá novamente, não importa o
que faça. Tudo que eu desejo é que tenha uma boa e abençoada vida, vá em
paz e seja feliz.
Eu me despedi. Mas quando senti que parara de respirar, a dor me
consumiu de tal forma que me vi gritando, até que minha garganta
queimava e não saía nenhuma voz.
Não via mais nada. Tudo que eu sentia era dor e o quanto minha
vida era miserável.
Cobri meu rosto com minhas mãos e quando consegui removê-las, o
fogo envolvia meu corpo e se alastrava pelo pátio e tomava o castelo. Todos
queimavam e eu abracei meus joelhos e me deixei apreciar o espetáculo.
Enfim, o presente de nosso vínculo aparecera.
Com o último sopro de sua vida, eu incendiei o castelo de Trasmoz.
Nem mesmo as pedras resistiram as chamas e quando acabou, o
corpo de Darío tinha se esvaído junto com os outros e naquele chão
queimado no meio da cinza dos mortos luziam a cor do fogo duas pedras
tão lisas e arredondadas que pareciam rubis lapidados por um bom
joalheiro.
Eu tinha dois colares com as almas dos presentes como havia
previsto meu pacto.
A alma de Darío seguiu adiante, já os humanos residiam no colar
que atei ao meu pescoço rapidamente, logo Damián chegaria, e eu precisava
escondê-lo, desejei que se tornasse invisível aos olhos de todos.
Estava prestes a trapacear um demônio.
O outro continha as almas que habitaram ao colar de Laura e a da
própria matriarca, então o deixei descansar à minha frente, até que seu dono
veio buscá-lo pouco depois.
— Boa garota, essas almas valem muito. Foi um prazer fazer um
acordo com você, Livia. Aguente firme a estada no inferno, uma hora se
livrará de lá — disse o demônio.
— É vidente? — questionei, preocupada com o que viria depois.
— Sim.
— Ele vai ficar bem?
— O garoto? Sim, está livre — assentiu. — Mas sinto muito por
você.
— Nada mais me importa.
A cena se desmanchou e a dor foi varrida com ela, tudo que eu
sentia era a satisfação de ver aquelas almas queimarem num momento,
seguido do prazer de sentir o calor de Andrew em meus braços.
Mas não pude conter minha vergonha percebendo que ele me
encarava, apesar de seu cenho que não me mostrava nada, nem mesmo o
reflexo em seus olhos revelava alguma emoção, mas sabia que não podia
esperar aplausos.
Ele vira o que eu fizera.
Sabia do que eu era capaz, de até onde cheguei em vingança pelo
que fizeram ao homem que era tudo para mim e me tiraram.
Temi que ele me odiasse, mas não teria feito nada diferente. Eu não
era boa o suficiente para me sentir culpada.
Eu só temia ver a repulsa em seus olhos.
— Eu, ah... Emmie...— Sua voz saiu entrecortada e Andrew desviou
os olhos dos meus, as sobrancelhas franzidas e mirando Irene.
A compulsão de chorar me consumiu como na visão, seu desprezo
doera tanto quanto a morte de Darío.
Eu fiz o que aquela gente merecera, elas o torturaram e acabaram
por matá-lo antes que eu pudesse alcançá-lo. Não era justo que seguissem
vivendo. Certo, eu fizera um acordo com Damián acreditando, firmemente,
que eu conseguiria impedir sua morte e vendera a alma de todos por ele.
E ainda escondera as almas dos humanos comigo, mas qualquer um
faria isso no meu lugar. Mordi meus lábios e engoli meus soluços. Não,
nem todos fariam, só alguém como eu dissera que era ao guarda naquela
cela: Eu era uma vadia e uma maligna.
Me levantei e me afastei de Andrew que seguia observando a Irene
que levava um sorriso de escárnio nos lábios. Ela realmente era uma bruxa
horrenda com a alma podre. Queria me fazer sofrer, porque descobriu o que
eu fiz a sua mãe.
Pois, bem. Eu era tão má quanto ela.
Dei as costas para eles e caminhei até o sofá capitonê de veludo
vermelho dos Davis, algo tão antiquado e cheio de frescura que Sarah Davis
chamava de charme retrô. Fitei a outra monstruosidade que ficava na parede
atrás dele, um grande espelho retangular de moldura dourada formada por
arabescos. A sala já começava a ficar escura, parecia que a vela se demorara
mais dessa vez para extinguir sua chama, mas deixara o ambiente tão
sombrio que jurava que as paredes foram tingidas de negro.
Mas ainda havia luz o suficiente para fitá-las naquela sala e pude ver
minha face convertida numa careta de rancor no espelho, que só se enrugou
mais ao ver as rosas vermelhas no sofá. Não as havia percebido quando
entrei na casa, no mundo real, no entanto se Irene estivesse orgulhosa do
intento de me fazer notá-las sob essa iluminação sinistra justo nesse
momento que revivi o dia mais mórbido de minha vida, ela acabaria por
amargar o resultado de seu jogo macabro.
A mulher criara uma ilusão dentro de outra, sua presença fortalecera
o feitiço. Da casa dos Davis para o dia mais sofrido de minha vida.
Ela queria brincar? Eu também sabia jogar esse jogo.
— Você sabia, não é? — indaguei, enquanto me abaixava e pegava
algumas das rosas no sofá. — Me trouxe aqui para colocá-lo contra mim?
— Creio que pela expressão do rapaz com esses olhos paralisados
que eu consegui — debochei.
— Sabe, eu odeio rosas. Seu coven me fez odiá-las tanto que tudo
que penso é despedaçá-las todas as vezes que as vejo. Eu te congratulo por
deixá-las espalhadas pelo meu alojamento na faculdade, querida colega de
quarto.
— Vejo que descobriu. — Ela deu um sorriso cheio de prazer e
bateu palmas me congratulando.
Até mesmo seu rosto se iluminara ao confirmar que estivera me
atormentando, espalhando rosas por meu dormitório, à medida que
espionava minha vida.
— Você parecia tão sozinha, só quis te fazer companhia.
— Sabe, não precisava nem se esconder atrás desse colar, não teria
reparado em você mesmo que não utilizasse mágica e ilusões para que eu
nunca lembrasse seu rosto. Para mim, você não é nada.
— Acredito que sou muita coisa ou não teria conseguido te trazer de
volta a essa cidade.
— Matou o demônio Damián na sua breve passada no inferno?
Acha-se poderosa pelo feito?
A menção de que eu não dava a mínima para ela pareceu ter
atingido seu objetivo, Irene tinha a face convertida em uma grande massa
escarlate. Nada como machucar o coração de gente que nos ama, eu era
mestre nisso. A diferença nesse caso era que nunca amei de volta.
— Oh, pobrezinha não consegue falar mais? Estava toda falante há
pouco — exprimi em minha voz cada gota de sarcasmo que habitava meu
corpo. — Tem todos os poderes de sua mãe e das outras. Mas será que sabe
usá-los?
Sentei-me no belo sofá antiquado e cruzei minhas pernas, enquanto
o fogo uma hora perdido pulsava em mim como uma pequena chama que
subia pelo meu corpo e tocava o sofá com gentileza, poupando do dano
como um bom fogo mágico que não tomaria o assento de sua senhora.
Os restos das rosas espalhadas ao meu redor, enquanto fazia meus
truques e encarava Irene com o desprezo que sempre senti e continha no
passado para me manter a salvo.
— Curve-se. Não me chamava de rainha? Então, quero que se curve
e rasteje.
Irene caiu de joelhos, o ar lhe faltando enquanto concentrava toda a
raiva que eu sentia no desejo que os ossos de seu tórax pressionassem seu
pulmão, até que os perfurassem e a sufocasse.
E ela rastejou.
Engatinhou até minhas pernas e tocara meus joelhos angustiada que
estivesse no fim depois de ter chegado até aqui, a bruxa fizera acordos com
demônios, tais como eu fiz para cavar minha escapada do inferno. Será que
havia feito os acordos certos? Esperava que não ficassem chateados que eu
a devolveria tão cedo.
Peguei os restos das flores e as lancei sobre ela, atingindo seu rosto,
mas seus olhos não se moveram, tão fixos em mim com a ânsia de se vingar
e libertar seu coven tão vivo como o medo do que viria por ela em breve.
Um fio de sangue escorreu por sua bochecha, infelizmente não era
das feridas internas que lhe causei, mas sim dos espinhos das rosas que seu
povo tanto amava.
— Não fez bons acordos, verdade? Vão vir por você em breve —
sussurrei perto de seus ouvidos. — Eu te poupei no passado, mas isso
acabou.
Irene gritou de dor enquanto seus pulsos se uniam em suas costas
com seu corpo se dobrando para trás em agonia enquanto todos seus ossos
eram quebrados.
Era uma bela visão. Talvez eu devesse acrescentar o fogo agora.
— Sabe, Irene... uma volta ao passado é tudo que precisamos para
nos perder. Fico meio dividida em agradecer pela gentileza de você sempre
se esforçar tanto para esfregar a minha triste vida na minha cara e a vontade
que tenho de arrastar a sua no chão por fazê-lo.
Dei de ombros, não faria diferença qual fosse a minha decisão.
— Não importa minha escolha, o resultado vai ser o mesmo.
Girei minha mão no ar e minha adorável perseguidora tinha sua testa
nas tábuas velhas do piso. Teria sido melhor se fossem cascalhos, eles
seriam mais eficientes na reforma que eu pretendia fazer em seu rosto, mas
tábuas velhas deveriam bastar por ora.
Elas tinham farpas, certo?
Eu a forcei contra o piso uma e outra vez até que minha consciência
exterior resolveu me deter. Meus mais profundos desejos envolviam pintar
aquele piso todo de carmim com o adorável líquido vermelho que pingava
do nariz de Irene e escorria por sua boca, mas, infelizmente, ele me trouxera
de volta dos sonhos de arrancar toda a pele do rosto daquela vaca.
O toque que me detivera era mais gentil do que eu esperava pelo
estado que me encontrava, era certo que esperava um tapa pelo que eu
fizera e por minha total falta de vontade de mudar meus maus modos. Uma
vez que era claro que estava determinada em transformar Irene numa
panqueca das mais finas e macias, já que não sobraria ao menos um osso se
continuasse a batê-la contra o piso.
Mas Andrew segurara meu ombro e eu senti todo meu corpo
trêmulo. Então, pude perceber o quanto estava tensa, não a palavra era
transtornada. E não era por provocar dor na maluca a minha frente.
Eram as lembranças do passado. Era ele.
— Emmie, pare. Essa não é você.
Sua voz suave, embora firme, quando eu esperava ofensas me doeu
mais do que se estivesse me xingando. Por um minuto, olhando aqueles
olhos verdes sem julgamento, me senti culpada e suja.
Durou pouco, pois as trevas novamente cobriram tudo com mais
uma vela se apagando.
[1]
Festa que surgiu com os celtas, povo que era politeísta e acreditava em diversos deuses
relacionados com os animais e as forças da natureza. Fantasias e festas eram feitas para afastar os
espíritos do mal.
[2]
Referência a Mulher-Maravilha, uma personagem fictícia de histórias em quadrinhos publicadas
pela editora americana DC Comics, sendo uma super-heroína grega cuja identidade secreta é a
princesa amazona de Themyscira, Diana Prince.
[3]
O nome da Emma foi inspirado no clássico Emma de Jane Austen. A fala da Emma desse livro se
refere ao comentário de Jane Austen referente a sua própria personagem que Emma é o tipo de
"heroína que ninguém além dela própria iria gostar muito". Entretanto, ela é irresistível, dona de uma
personalidade singular e capaz de despertar no leitor o amor e ódio ao mesmo tempo.
[4]
Agregação ou reunião de bruxos para a realização de rituais religiosos e ritos.
[5]
Emma se refere ao clássico da literatura de Jane Austen, nomeado Emma. O livro foi a inspiração
da autora para o nome da protagonista .
[6]
Perseguidor obsessivo
[7]
Festival em que se comemora a passagem do ano celta as boas colheitas e o início do inverno.
Coincidindo com o Halloween no hemisfério norte e sendo a origem da comemoração que também
era conhecida pela crença de que nessa data as almas dos mortos voltavam para visitar os parentes.
[8]
Personagem fictícia de histórias em quadrinhos publicadas pela editora americana DC Comics,
sendo uma super-heroína grega cuja identidade secreta é a princesa amazona de Themyscira, Diana
Prince.
[9]
Nação de mulheres guerreiras da mitologia grega. Referência a camiseta da Mulher-Maravilha por
ela ser uma amazona.
[10]
Como são chamadas as histórias em quadrinhos americanas.
[11]
Time de futebol da universidade de Miami.
[12]
Quando ocorre a pressão da defesa em cima do quarterback do time adversário que acaba por
derrubá-lo.
[13]
Estádio localizado em Tampa, Flórida. Lar da equipe de futebol americano Tampa Bay
Buccaneers e da equipe de futebol americano da Universidade do Sul da Flórida.
[14]
Liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos.
[15]
Fenômeno paranormal no qual a pessoa projeta seu eu em uma localidade distante do seu corpo
que permanece imóvel. Há relatos de ocorrer durante o sono, traumas e através de meditação.
[16]
A endzone é a área que se marca o touchdown no futebol americano.
[17]
Touchdown é a principal pontuação do futebol americano e consiste no atleta alcançar a endzone
do time adversário ainda com a posse da bola.
[18]
Termo comumente usado para pessoas muito dedicadas aos estudos, contudo pode ser
considerado pejorativo.
[19]
Referência a velocidade do Flash, um personagem fictício de histórias em quadrinhos publicadas
pela editora americana DC Comics. Possui poderes relacionados a super velocidade.
[20]
Termo mais usado hoje para fãs de tecnologia, eletrônica, jogos eletrônicos ou de tabuleiro,
histórias em quadrinhos, mangás, animes, livros, filmes e séries.
[21]
Frase do filme Coringa, 2019.
[22]
Aura é um campo de energia eletromagnética que envolve o corpo humano e todos organismos e
objetos físicos e etéricos do Universo.
[23]
Data que se origina das comemorações da fartura das colheitas. Feriado móvel nos EUA que
reúne a família na comemoração. Comemorado na quarta quinta-feira do mês de novembro, em 2022
aconteceu em 24/11.
[24]
Pessoa capaz de perceber e ser afetado pela energia de outras pessoas e podendo ter uma grande
variação de humor. Podem ser influenciados por sons, cheiros, lugares, animais, aspectos climáticos.
[25]
Cigarro do tipo kumbaya feito de camomila, rosas e menta. Alguns não carregam nicotina e são
menos nocivos que o tabaco, embora também causem danos ao corpo.
[26]
Identidade secreta do Super-Homem.
[27]
Personagem fictício de histórias em quadrinhos publicadas pela editora americana DC Comics,
sendo um alienígena com superpoderes.
[28]
Apelido dado a Miami pelo seu crescimento exponencial de mil habitantes para quase cinco
milhões e meio de habitantes ocorrido em 110 anos (1896-2006)
[29]
Estrada americana que liga Miami a Atlanta.
[30]
Técnica de costura que une diversos retalhos de tecido para formar um objeto maior. Levada para
a América durante as navegações se expandiu devido o quão raro e caros eram os tecidos. A técnica é
utilizada em todo o mundo, mas muito popular nos EUA.
[31]
Motel nos EUA é um hotel comum de beira de estrada, não um local propriamente para encontros
amorosos como funciona no Brasil.
[32]
Referência ao mito de Odisseu onde ele teve que buscar três de seus homens numa ilha ao norte
da África que não retornaram de sua missão de reconhecimento por terem perdido a memória ao
consumir a flor de lótus que era um alimento na ilha, mas apagava as lembranças.
[33]
Ártemis era uma deusa da mitologia grega relacionada a lua sendo conhecida como uma deusa
da caça, da vida selvagem, protetora das mulheres em trabalho de parto, da castidade e protetora das
meninas. Por seus feitos, é considerada a protetora das guerreiras antigas denominadas Amazonas.
[34]
Wicca é uma religião neopagã com práticas ritualísticas anteriores a era cristã com idolatria a
deuses antigos, crença no sobrenatural e nos princípios físicos e espirituais do feminino e dos
masculinos presentes na natureza.
[35]
Filmes e outras expressões culturais de grande popularidade.
[36]
Batman é um personagem fictício encapuzado de histórias em quadrinhos publicadas pela editora
americana DC Comics, sendo um super-herói cuja identidade secreta é o empresário Bruce Wayne.
[37]
Telecinesia é a capacidade de uma pessoa movimentar e manipular objetos ou pessoas a distância.
Considerado um fenômeno paranormal.
[38]
Referência A Bruxa Má do Oeste do livro O mágico de Oz, com nome de Theodora, em sua
encarnação boa era uma bruxa bela e bondosa que vivia sobre a proteção de sua irmã mais velha
Evanora (A Bruxa má do Leste). Originalmente, Theodora era boa, mas acaba corrompida por sua
irmã. Uma coisa que não muda nela é a intensidade de seus sentimentos seja movida por esperança
ou pelo ódio.
[39]
A Bruxa Má usa um campo de papoulas para fazer que Dorothy pegasse no sono com seus
amigos e não chegasse na Cidade das Esmeraldas no livro do O Mágico de Oz.
[40]
Referência aos sapatos vermelhos de Dorothy em O mágico de Oz.
[41]
Tipo de cinema que se assiste ao filme dentro do carro ao ar livre.
[42]
Filmes trash são considerados pelos críticos como filmes sem qualidade técnica ou visual.
[43]
Filmes sucesso de bilheteria e cheio de efeitos especiais. Intelectuais costumam criticar essas
produções considerando-as de menor valor cultural e mera distração.
[44]
A origem do termo é a nação de mulheres guerreiras da mitologia grega. Elas cultuavam os
deuses gregos e acreditasse que Artêmis possa ser sua protetora.
[45]
Carinho em espanhol.
[46]
Coração em espanhol.
[47]
Meu amor em espanhol.
[48]
Te quiero significa te amo em espanhol.
[49]
Comédia adolescente com vampiros estreada em 1985 por Jim Carrey na qual o protagonista é
caçado por uma vampira que precisa dele para conservar a juventude já que ele é o último rapaz
virgem na cidade.
[50]
Comédia trash de humor ácido de 1988. Elvira é apresentadora de programas de terror e deseja
trabalhar em Las Vegas, mas não tem dinheiro para a empreitada. A oportunidade surge com a
herança de sua tia-avó desconhecida, moradora de uma cidade no interior e também uma bruxa.
[51]
Fortuna versão romana da deusa Tique era deusa do acaso, da sorte, do destino e da esperança.
[52]
Referência ao filme Abracadabra da Disney de 1993 por ter uma bruxa voando atrás dela.
[53]
Referência a série de filmes Velozes e furiosos por estar metida numa corrida de rua.
[54]
Personagem fictício e vilão dos quadrinhos publicados pela editora americana DC Comics.
[55]
Cruella é a personagem do livro 101 Dálmatas adaptado pela Disney e recentemente adaptado
com o próprio nome da vilã numa história de origem. Andrew fez uma brincadeira por Emma estar
utilizando as cores da Cruella e não ser exatamente boazinha como a personagem.
[56]
Deus grego do sonho.
[57]
Deus grego do sono.
[58]
Deusa da magia.
[59]
Estatuetas de personagens famosos.
[60]
Magnum 357 é o calibre de revólver desenvolvido pela empresa armeira Smith & Wesson em
1935. Muito utilizado pela polícia americana e caçadores.
[61]
Coringa, filme de 2019
[62]
Quadrinhos que são publicados exclusivamente na internet.