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Numa noite que era para ser só de pesadelos e dores vindas do passado,

um romance cheio de química toma forma no meio da ação eletrizante


nesse primeiro volume de Doces Vilãs.

Emma lutará para sobreviver e proteger os que ama, mesmo que talvez até
os deuses resolvam se meter nessa história.

Emma cursa Design na Universidade Miami e tenta ser uma jovem normal,
embora não esteja muito satisfeita com o curso e com a vida universitária.
Entre festas que ela não deseja ir e um rapaz que ela tenta evitar, Emma
esconde um segredo revelado há uns anos numa noite que tivera que lutar
para salvar a vida de sua irmã, ela é uma bruxa e talvez uma má.

Com as repercussões daquela noite, Emma deixara sua cidade, mas sua irmã
a chama de volta para seu aniversário e ela não consegue se negar a ir.

Sem dinheiro para a viagem, Emma acaba aceitando uma carona justo de
Andrew, um cara doido por super-heróis e o rapaz que ela tenta evitar, e
aquele que ficará com ela mesmo que seu passado a atinja com força e
respingue nele.

Aprisionados numa dimensão criada por uma inimiga do passado para


torturá-la, Emma deverá proteger Andrew e tentar deixar o passado de uma
vez, mesmo que ele continue a bater em sua porta sob o manto de lendas
antigas.

Uma noite amarga aguarda Emma ou talvez ela consiga alguma doçura
dessa história toda.

Aprisionada pelas Trevas é o livro número um da série Doces Vilās.

ATENÇÃO! Esse livro tem cenas de violência gráfica, conteúdo adulto e


personagens com moral questionável. +18.
Copyright © 2023 por Cristiane Dias
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida em qualquer forma
ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, incluindo sistemas de
armazenamento e recuperação de informações, sem a permissão por escrito
do autor, exceto para o uso de breves citações em uma resenha de livro.
Essa é uma obra de ficção. Nomes de pessoas, acontecimentos, e
locais que existam ou verdadeiramente tenham existido foram utilizados
para ambientar o enredo. Qualquer semelhança com a realidade terá sido
mera coincidência.
Capa: Gialui Design
Revisão: PatSue Revisões
Ilustradora: Nay Poluca

Possíveis gatilhos: violência descritiva, tentativa de estupro, agressão


física e psicológica a menores, mutilação, luto, tortura, ideação suicida
e violência contra a mulher.
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Você pode se vingar do mal,
sem se tornar parte dele?
Coringa, filme de 2019
Para todas que me pediram a continuação do conto Emma versus a Bruxa
do livro de contos Garotas e Lendas. A história do conto anterior foi
modificada e cresceu aqui para um romance no qual você saberá a
verdadeira história de Emma,
uma banhada em sangue.
Querida leitora,
Esse primeiro volume Aprisionada pelas Trevas abre a série Doces Vilãs e
cada livro contará com uma protagonista diferente, mas com similar
sarcasmo, boca suja e moral duvidosa. Bem, não temos mocinhas indefesas
aqui, no entanto talvez seja recomendável que prepare seus lenços para
chorar. Afinal, elas podem ser vilãs, mas ainda conservam alguma doçura.
Recordo que esse livro é uma ficção com inspiração em mitologia e outros
pontos históricos, mas não tem a menor intenção de atuar como um manual
de história, sendo assim não apresenta em seu texto nenhum fato que possa
ser creditado como realidade. Além disso, toda a mitologia utilizada nessa
série será uma adaptação com a alteração do contexto original apresentado
por estudiosos da temática.
Essa história originalmente foi publicada no livro de contos Garotas e
Lendas como um conto curto Young Adult e sem romance, no entanto ele foi
reescrito para se tornar um romance sobrenatural adulto, contendo cenas +18
e de violência que podem incomodar a um leitor mais sensível.
Estando pronta para Doces Vilãs, boa leitura!
Acesse a playlist de Aprisionada pelas Trevas no Spotify para entrar na
história de nossa bruxa.
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Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Epílogo
Por que as coisas tinham que caminhar para isso? Por que eu tinha
que seguir Scarlet para aquela casa e acabar desse jeito de novo? Não era
para eu estar aqui e não devia ter ido atrás dele também depois de tudo.
Foi aí que tudo desabou.
O Halloween[1] em Cartersville parecia algo que se podia ver na TV,
uma profusão de crianças em suas fantasias de fantasmas e vampiros, em
sua maioria, pedindo doces em troca de poupar os vizinhos de travessuras,
embora eles me parecessem incapazes de algo do tipo. Aquelas crianças
eram mais como anjinhos escondidos em roupas assustadoras do que
malvadas, apesar de serem do tipo um pouco barulhento.
E isso não era muito agradável.
Mas me encontrava no meio daquela algazarra numa ruazinha de
subúrbio, cheia de casas grandes e coloridas com amplos jardins bem
tratados, com a missão de levar minha irmã caçula para pegar doces na
vizinhança, e eu odiava estar no meio de tanta gente. Ainda bem que a
maioria eram crianças, o sufocamento era menor ao andar por ali, pois
podia ver por cima de suas cabeças e respirar um pouco.
Ao ver a quantidade daqueles seres pequenos correndo pela rua,
achei que eu fosse velha demais para estar ali. Eu deveria estar com gente
da minha idade, a verdade era que eu deveria sair com meus amigos e curtir
por aí.
Isso seria o certo, se eu tivesse algum amigo para sair. Bem, poderia
contar nos dedos quantos eu tinha e a resposta era um punho fechado,
nenhum.
Mesmo assim, não devia estar ali.
Mas os Davis insistiram dia após dia que eu viesse, saísse mais de
casa e que participar das festividades seria bom pra mim. Acreditei que eles
só queriam outra pessoa para cuidar de Scarlet, entretanto, acabei por
aceitar a tarefa. De fato, não me restara muitas escolhas, não quando eles
disseram que era algo que uma irmã mais velha deveria fazer, então me vi
pressionada a cuidar de Scarlet.
Era ridículo uma garota de dezessete anos pegando doces no
Halloween, mas paciência. Era o que eu me dissera diante do espelho do
banheiro antes de sair.
Nesse momento, minha jovem irmã, de apenas dez anos e pouca
noção de perigo, corria de casa em casa em busca de doces. Ela não cuidava
de seus passos, não tinha atenção aos estranhos. Não havia medo nela ou
mesmo a simples cautela.
Inocente demais.
A vizinhança era tranquila, dado que morávamos em uma
cidadezinha, mas gente ruim se encontrava em todos os lugares, dispostos a
machucar pessoas indefesas ou simpáticas demais.
Scarlet era mais falante do que eu considerava seguro para qualquer
um, mesmo para uma criança. Cumprimentava estranhos quando eu os
olharia atravessado fazendo-os correr.
Impor respeito era algo que ela precisava aprender, tanto quanto
manter a cabeça abaixada se fosse a mais fraca. Um pouco de desconfiança
e senso de autopreservação não faria mal a ela. Tudo isso poderia lhe fazer
falta um dia.
Mas ao vê-la saltitar pela rua com sua sacola de doces, eu esperava
que não. Scarlet não precisaria de nada disso e poderia manter esse ar de
menina bem tratada que vivia num castelo feliz.
Minha irmã vestia uma roupa rodada e cheia de babados, que só
contribuíam para aumentar a aura de princesa que ela emitia, emergindo de
um bufante vestido cor de rosa mais puro que havia.
Scarlet se parecia com algodão-doce, por seu vestido e pelo excesso
de doçura que mostrava ao mundo.
Eu preferia algo menos delicado e nada doce, como minhas roupas
básicas e pretas de sempre como as que eu usava, um moletom preto solto
no corpo, umas calças igualmente escuras combinando ao tênis da All Star
de napa mais básico que existia e eu estava sempre pronta para correr.
Desconfiada e prática, não sabia por que eu agia assim, ainda mais
quando nunca saía de casa e não corria nenhum risco, mas era como me
comportava. Não podia ser mais diferente de Scarlet.
Ela fora uma criança amada.
Sacudi a cabeça para afastar aquele pensamento. Era como se
houvesse outra voz em minha mente, uma coisa estranha que me
incomodava de vez em quando e parecia querer se fazer mais presente a
cada vez. Soava mais alto entre meus pensamentos a cada dia que passava.
E era algo que eu escondia.
Eu nunca contara sobre ela para a psicóloga que costumava me
visitar, nem para os meus pais. Eu já era tão pouco sociável que os Davis
preferiram me ensinar em casa, interagir com estranhos não era fácil e a
escola seria um ambiente hostil. Não havia motivos para que eu levantasse
os temores deles sobre uma possível loucura. Eu só tinha a personalidade
mais fechada, era só isso.
Comentar sobre uma vozinha que tecia pensamentos dentro da
minha cabeça, mas que não pareciam ser meus não ajudaria a manter a
fachada de só antissocial num nível normal de sociopatia. Se existia tal
coisa.
A psicóloga sugerira algo assim, e eu tive que morder minha
bochecha por dentro para me manter sob controle e não provar o quão certa
ela estava.
Se havia mesmo tal tipo de coisa comigo, eu não gostaria de me
tornar um alvo de insultos maiores do que já recebia ou coisa pior.
Não poderia permitir que me machucassem.
Não. Nunca devia deixar que me ferissem.
Talvez fosse só meu cérebro agitado demais, devia ser isso. Eu
pensava rápido demais e no fim tinha a impressão de que conversava
comigo mesma. Sim, era isso. Mas o medo de que me trancassem num
sanatório ou qualquer outro lugar era grande.
Com minha aura tão diferente de Scarlet, tão menos brilhante, e com
essa cara de poucos amigos e ainda dizendo que ouvia vozes, não duvidava
que me colocariam para fora de casa. Esse medo era uma constante que não
me deixava.
Não! O senhor e a senhora Davis não podem me mandar embora!
Era estanho que pensasse nos meus pais como os Davis ou que
pudessem fazer algo assim, mas costumava falar pais só em público e na
minha mente eram os Davis. Era uma de minhas tantas bizarrices.
Quem chamava os pais nesse século de senhor e senhora? Ninguém.
Havia pais ruins no mundo, mas eu não podia dizer que eles eram assim. Os
Davis eram gentis, não eram? Em alguns momentos, eu sentia algo estranho
neles. Eu já fora maltratada? Não me lembrava. Por que eu agia assim?
Eu era mesmo uma coisa estranha com pensamentos esquisitos.
Era isso. Comparada a Scarlet, eu era a esquisita. Eu me sentia
diferente dela, como alguém que não fora uma criança desejada e não se
imaginara fantasiada no Halloween saltitando com uma sacola de doces por
aí, será que eu o fizera alguma vez?
Não havia fotos minhas nessas datas.
Os Davis disseram que as perderam quando se mudaram para
Cartersville. Eu gostaria de saber se já fui uma menina adorável que usara
vestidos rosas como Scarlet. Eles disseram que sim, mas não senti a
verdade em suas palavras.
Bem, caso eu vestisse alguma dessas coisas algum dia, talvez
escolhesse alguma fantasia dos super-heróis que Scarlet tanto me fazia
assistir pelas noites quando ela voltava da escola. Sim, eu ficaria feliz
vestida daquela amazona que ela gostava tanto também, como era o nome
dela? Acho que era algo com Maravilha[2], ela era famosa, mas eu tinha
dificuldade de guardar essas coisas.
Eram tantas coisas para guardar, muitas coisas para lembrar.
Não importava. Eu gostava de passar os dias assistindo a filmes com
Scarlet, os dos anos oitenta eram bons também. Em alguns momentos, eu
achava que Scarlet sabia mais coisas do que eu, como se ela tivesse visto
mais desse mundo. Mas como poderia ser isso? Pela minha idade eu devia
saber mais do que ela e deveria ter visto mais filmes também, mas eu não
parecia me apegar a eles o suficiente como Scarlet o fazia. Devia ser esse o
motivo por que não guardava muito do que eu já assisti.
Toda vez que eu os via, parecia ser a primeira vez, enquanto ela
tinha memorizado mesmo o nome dos personagens. Os Davis deviam
reduzir a quantidade de tempo que ela passava assistindo a TV, certamente
estava sendo mais do que devia. Mas eles não se importavam muito com
isso, nem mesmo com os de ação que julguei violentos para sua idade,
então virávamos as noites assistindo a filmes.
E no fim, Scarlet continuava sempre a mesma menina doce e falante
demais, até mais do que devia.
Uma princesa inocente com cabelos loiros platinados e olhos
caramelos mesmo que passasse o tempo todo assistindo a tanta porcaria. Eu
não conseguia ver dissimulação nela, nunca contava mentiras e não saberia
se defender sozinha mesmo ficando vidrada diante daqueles programas
duvidosos.
Ela era mesmo como uma princesa, uma que eu deveria escoltar de
volta para casa em uma hora.
— Scarlett, cuidado! Vai cair! — Minha irmã era delicada e frágil,
nem um pouco corajosa e resistente como seu nome parecia sugerir o que só
aumentava minhas preocupações por sua segurança.
— Emma, estou bem. Eu sou forte.
Aquele rostinho parecia tão inocente sorrindo para mim.
E não, ela não era forte, eu o era.
Personalidade e aparência agressivas, algumas pessoas diriam, em
especial meus vizinhos e os tios por parte de pai que nos visitavam de vez
em quando. Todos faziam questão de ressaltar como éramos diferentes e
como eu era inadequada. Embora meus pais talvez tivessem achado
divertido me nomear como uma heroína de um livro de época, Emma de
Jane Austen. Talvez fosse adequado, uma garota como eu que ninguém
gosta muito como a própria Emma famosa, mas com uma diferença,
enquanto o ódio e o amor parecem se dividir por ela, por mim o ódio me
parecia pesar mais.[3]
Meus cabelos caíam roçando meus ombros cortados de forma
rebelde tal como se fosse feito a navalhadas e tinham um tom de loiro tão
escuro que mais parecia preto, embora brilhassem dourados sob o sol.
Somados as roupas pretas que eu tendia a preferir todos os dias e aos olhos
azuis de formato amendoado que muitas vezes foram chamados pelos
mesmos vizinhos de sagazes entre risinhos, eu parecia ameaçadora e nada
doce.
Algo como uma garota problemática que as pessoas criticavam
pelos cantos, mas não tinham coragem de encarar, sempre mudos e
engolindo em seco quando eu retribuía seus olhares tão gentis. Não tinha
problema, eu nunca me enquadraria no papel da princesa que precisava ser
resgatada, esse ficaria para a beleza delicada e angelical de minha irmã.
— Cuidado, Scarlett — alertei mais uma vez.
— Emmie, eu não vou cair. Não se preocupe — afirmou ela e voltou
a correr, levando-me a me apressar atrás dela.
— Scarlett, não vamos sair da vizinhança. Já temos que voltar.
— Só mais algumas casas, Emmie, por favor — disse Scarlet com
os olhos brilhantes. Não lhe poderia negar mais alguns minutos de alegria,
não quando a menina me fazia me sentir feliz por ela se divertir tanto.
— Ah, tudo bem. — Suspirei e a segui por mais uma busca por
doces.
Uma hora mais tarde e já havíamos nos afastado muito de casa, eu
não percebera que nos distanciávamos. A alegria de Scarlet me contagiara
tanto que fiquei cega a todo resto e isso era um problema que sempre se
repetia. Era como se eu fosse tomada por seus sentimentos e me via fazendo
suas vontades, mesmo que fossem contra meus próprios desejos.
Parecia que estávamos numa parte mais antiga da cidade, uma bem
abandonada e sinistra, eu diria. Seria uma região cara e disputada pelos
ricos da cidade, já que dali dava para ter uma boa vista da montanha ao
longe e a floresta estava próxima, no entanto com poucas casas
malcuidadas, que remontavam ao século XVIII, e cercada por boatos
obscuros, ninguém queria morar ali.
A senhora Smith dissera que, a despeito da existência do cemitério
oficial dos veteranos da Guerra Civil, boa parte dos moradores acreditava
que naquela região tinham sido enterrados em vala comum um número
considerável dos mortos durante a guerra. Com o tanto de gente que me
falaram que morrera na Geórgia nessa guerra, os boatos deviam ser
verdadeiros e ninguém iria querer viver em cima de um cemitério se
pudesse evitar.
Então estávamos muito longe da cidade e isso não era nada bom. As
construções eram muito espaçadas e quase não havia gente pelas ruas, olhei
ao meu celular e já passava das oito. Como andamos para tão longe? Eu já
devia ter levado Scarlet para casa.
Não me lembrava de ter estado ali muitas vezes, talvez entre uma
consulta médica ou outra, deslocando-me sempre de carro. Eu me
questionava tentando buscar memórias que não vinham, franzindo as
sobrancelhas na tentativa de tentar entender por que não conseguia alcançá-
las.
Eu vivi aqui minha vida toda?
Passei uma mão pelos cabelos, sentindo aquele desespero tomando
de novo meu corpo, como acontecera mais cedo quando eu visualizara meu
rosto no espelho e questionara se eu deveria ir a festividades de um feriado
para crianças. Uma mão se juntou a outra enfiando as unhas em meu couro
cabeludo até que fui trazida de volta pelo puxão de Scarlet em meu
moletom. Ela o fizera com tamanha força e seus olhos estavam tão
lacrimosos que eu a fitei confusa, levando alguns minutos para que meus
ouvidos tomassem ciência dos sons ao redor, cães uivavam ao longe. Esse
era o motivo da agonia de Scarlet, e apesar da tortura que vi em seus olhos,
eu fiquei grata que me tirou da minha própria perturbação.
Segurei sua mão e ela apertou a minha, enquanto engolia seus
soluços.
— Está tudo bem, Scarlet. São só cães.
— Emmie, eles parecem assustadores.
— Não temos nada a temer. Mas nossos pais vão ficar preocupados
se demorarmos mais para voltar. Então, vamos dar como encerrado esse
Halloween, okay? — falei, ao me ajoelhar perto de Scarlet e tocar o seu
queixo com a ponta dos dedos levemente para que ela erguesse a cabeça e
mirasse meus olhos.
Crianças podiam ser criaturas teimosas. Mesmo que eu desse o meu
melhor para convencê-la, Scarlet não parecia aceitar ideias que fossem
contrárias aos seus desejos com facilidade. Nisso os adultos eram melhores,
mas cordatos diante de coisas que soassem como lógicas.
Mesmo com medo a menina não obedecia ao sentido comum já que
ia contra os seus interesses imediatos. A vi resistir antes de suspirar
parecendo um pouco chateada e concordar, enfim, sacudindo a cabeça
contrariada.
— Tudo bem.
Sorri diante de minha vitória só para a seguir acompanhar os olhos
perdidos de Scarlet que encontraram algo melhor do que minha sugestão
para irmos embora. Por mais que ela gostasse de passar seu tempo livre
comigo, eu não podia concorrer com aquilo. Um cachorro peludo, branco e
marrom que parecia um Shih-tzu estava parado no meio da rua deserta nos
olhando com mais interesse do que eu poderia jurar que um animal de porte
tão pequeno poderia ter, seus olhos pareciam acompanhar a conversa.
Amarrei a minha cara diante da criatura, mas percebi na minha visão
lateral o brilho do sorriso de Scarlet antes que o cachorro fizesse seu show
latindo e se pondo a correr naquela rua esquisita e vazia com Scarlet a sua
cola.
— Scarlet, pare. — Ela fingia não ouvir meus chamados.
Minha irmã amava cães e ainda mais os peludos e fofos como
aquele. Não voltaria sem que eu fosse buscá-la. Não tive nada mais a fazer
do que correr atrás dela só para alcançá-la quando já dobrava a esquina e
entrava na casa mais estranha da vizinhança.
Dei um passo para trás reticente de entrar naquele lugar e cruzei os
braços no peito, insegura se deveria ir atrás de Scarlet. Talvez eu devesse
chamar aos Davis, eles deveriam se responsabilizar por sua filha. Eu nem
deveria estar ali cuidando dela, visto que tomar conta da menina deveria ser
um dever dos pais.
Scarlet me desobedecera e eu não tinha obrigação com ela. Era o
que o medo gritava em minha cabeça e travava minhas pernas.
O pensamento egoísta era como uma âncora em minha mente. A
culpa era dela e estava por sua conta. Aquela casa não era normal. Eu não
entraria ali. Minha mente gritava em repulsa pelo lugar e me mandava fugir.
Poderia ser só uma mansão abandonada qualquer do interior se não tivesse
aquela aparência de casa feita para se criar um ninho de fantasmas. Tão
apodrecida e gigante que pareciam que todos os tipos de acidentes poderiam
ocorrer dentro daquela monstruosidade. Além de todos aqueles boatos sobre
cemitério de soldados, só me levavam a pensar que poderia ser ali que eles
estavam descansando.
Como aquela bosta não havia sido demolida pelas autoridades?
Era tão tenebroso que pude sentir arrepios que me fizeram torcer o
nariz com raiva só de pensar que teria que entrar naquele lugar assustador,
porque Scarlet me desobedecera mais uma vez. Não correr, não se afastar e
voltar logo para casa, era tudo que eu pedira. Para no fim, um cachorro ter
mais apelo do que eu.
— Merda de vida — xinguei porque sabia que por mais que eu
dissesse que não iria atrás dela, já caminhava em direção àquela porta
escancarada como um convite que eu preferia não aceitar.
Gostaria que meus sentimentos pelo lugar se dessem pelo mofo que
cobria a pintura descascada, ou até mesmo pelo teto curvado, acusando que
a madeira estava podre e o piso poderia se romper sob meus pés, quebrar
uma perna ou mesmo não acordar mais.
Mas não era só essa a sensação. A voz em minha cabeça trincara os
dentes assim que eu pusera meus olhos no local e ordenara para que eu
corresse dali.
Scarlet corria perigo e eu caminhei, a contragosto, pisando duro nos
degraus que me levariam para a escuridão que eu tentara fugir, só para a
porta se bater as minhas costas e não se abrir novamente quando testei a
maçaneta uma e outra vez com a brutalidade que me era imputada por meus
vizinhos e parentes como um de meus melhores destaques.
Ao ver aquela porta inerte independente a todo esforço que eu fazia
para abri-la, mordi os lábios e me virei para encarar a sala que fazia jus aos
filmes de terror que eu tanto gostava, mas não acreditava que viveria um
dia. Meu sangue explosivo arrastou as palavras de minha boca numa
ameaça onde outros permaneceriam silenciosos e contidos.
— Não esperava menos, mas tudo bem. Sobraram as janelas,
fantasmas. — falei alto não demonstrando o medo que eu sentia e num
desafio que só encorajaria as almas penadas.
Como a estranha que eu era, não duvidava da existência das almas
penadas, eu as reconhecia como seres viventes, ou melhor, pós-viventes, e
isso era o que me fizera travar na porta daquela casa. Era estranho, mas
podia senti-los ali. Energia ruim. Casa ruim. Eles deviam ter pegado a
mesma sensação quando atravessei o umbral ou mesmo quando admirava a
bela fachada de sua especular residência.
Energia ruim. Garota ruim. É como nós. Talvez ela queira ficar.
Oh, droga! Esperava que essa ideia não tivesse rondado em suas
mentes assombradas.
— Talvez não fossem fantasmas — tentei me consolar, mas
infelizmente a perspectiva de um humano morando num lugar desses não
era boa.
As chances de que um maníaco vivesse ali eram grandes e eu,
sinceramente, não sabia qual era a melhor opção para se lidar, ou se havia
alguma mais fácil. Só que a sensação ruim continuava a me causar arrepios
e só piorara quando a porta se fechara.
— É só tensão pelo desconhecido.
Esse peso em meu peito que oprimia meus pulmões era só isso,
estranhamento por um lugar abandonado, medo de escuro, era isso. Eu só
precisava fixar tal coisa em minha mente para forçar meus pés a se
moverem pelo lugar, encontrar Scarlet e arrancá-la dali a força com ou sem
o cachorro.
Caminhei pelo térreo determinada a fazê-lo tão rápido quanto
conseguisse encontrá-la.
— Scarlet, onde você está? — clamei por minha irmã naquele lugar
macabro, mas não houve resposta.
As janelas batiam sem parar na lateral da sala como se fosse uma
ameaça por eu ter dito que elas ainda restavam para a minha fuga. Eu falava
para mim mesma que era o vento e ele não me causava nenhum temor.
Precisava ser o vento, as correntes de ar tocando minha pele sempre
foram a única coisa que me fazia ter vontade de deixar um pouco meu
quarto na casa dos Davis. Nem mesmo as tempestades me assustavam, eu
me sentiria segura se fosse só o vento e contava que fosse só ele que agitava
aquelas janelas.
Só que não ventava nada quando entrei naquela casa, mas eu tentava
ignorar esse fato, enquanto continuava a chamar por Scarlet. Não havia
resposta da menina e não a via em nenhum lugar o que só intensificava meu
temor pelo que poderia acontecer a ela ali.
Andei por todo o térreo entre móveis cobertos com panos brancos e
lixo por toda parte. Alguns dos vidros das janelas se encontravam
quebrados e folhas secas invadiram e tomaram posse do piso, cobrindo-o
por completo. Toda vez que pisava naquele manto, eu me assustava com
meus próprios passos. Não ajudava o zumbido que assoprava pela casa
dando ainda mais a sensação de que estava em um pesadelo.
— Scarlet, você vai me pagar por isso — falei enquanto levava a
mão ao coração que parecia descontrolado tentando superar o aperto que o
esmagava. — Vou ter que subir as escadas. Ela não está aqui.
Observei aqueles degraus carcomidos que levavam ao piso superior
com nenhuma vontade de subir e com menos vontade ainda de encarar o
total breu na parte de cima da casa. Eu não veria muita coisa além dos meus
passos no segundo andar.
Inspirei e expirei, então estreitei meus olhos para encontrar a
coragem que me tiraria dali com Scarlet quando comecei a subir as escadas,
pisando com cuidado, mas sem conseguir evitar que a cada passo que eu
dava, um degrau rangesse e acrescentasse um novo grau de assombração as
janelas batendo lá embaixo.
Não sabia se devia ter mais medo dos barulhos da casa, de meus
passos ou do piso podre se partir sob meus pés. Era uma difícil escolha.
Mas escolhi engolir o medo e segui adiante. Se eu estava assustada, Scarlet
deveria estar encolhida de medo em algum canto quando percebeu onde se
enfiara e diferente do meu caso, por vontade própria.
— Maldição. — Suspirei, mordendo os lábios e tremendo um pouco
pelo que meus olhos me mostravam. Era melhor o breu que eu pensara que
encontraria naquele andar do que aquilo, mas quem disse que eu tinha
escolha?
Ali também havia janelas com cortinas meio esgaçadas em um véu
amarelado, mas que impediam que boa parte da luz da lua encontrasse seu
caminho pelo vidro, no entanto, foi pisar no último degrau que as cortinas
se abriram como num teatro fantasmagórico revelando os atores em
questão, as janelas de madeira, tão deterioradas quanto o resto da casa,
começaram a bater como no andar de baixo.
Eram como guilhotinas que se erguiam e abaixavam num ritmo
cadenciado destinado a produzir uma harmonia sombria que aterrorizava
meus nervos.
Aquela casa estava decidida a me atormentar.
Segurei o corrimão com força e estreitei os olhos, tentando enxergar
melhor o salão sem paredes que era o piso superior. A única coisa que havia
ali eram as janelas que tomavam todas as paredes e não mais só a lateral da
sala como no hall.
E batiam e batiam.
Elas seguiam num movimento ritmado de ponta a ponta, rodeando
toda a sala em sequência. A primeira descia, e a outra a seguir, até que
completava todo o salão. Se eu queria dizer que era o vento, aquelas
malditas acabaram de comprovar que o não era.
— Okay, chega de gracinhas. Eu já entendi.
O barulho era mais alto do que minha voz, ocupando todo o
ambiente e já tornava meus nervos abalados em frangalhos, embora
estivesse fazendo o meu melhor para não aparentar isso. Mas se olhasse os
nós dos meus dedos que seguravam o corrimão, eles estariam brancos da
cor que eu supunha que seriam os fantasmas pela força que eu fazia para me
controlar diante do show sombrio que tentava me impor medo ali.
Não. Isso não é nada. Não tenho nada a temer aqui.
Eu me esforçava para acreditar nisso, mas o ritmo das batidas
aumentara, parecia que eu tinha encorajado os fantasmas. Minha postura
encolhida sem coragem de ir adiante e deixar aquele corrimão os dera poder
sobre mim.
Pensei mais cedo que Scarlet carecia de aprender a mostrar força,
mas não conseguia encontrar nenhuma em mim naquele momento.
As janelas batiam em fileiras como uma sinfonia feita de golpes que
me levavam a crer que eu estava em meu próprio cadafalso.
Nesse momento, todas desciam e subiam juntas, impedindo-me de
me concentrar em meus pensamentos. Outras vozes pareciam me convidar a
acabar com meu sofrimento deixando que minha cabeça se deitasse sob o
peitoril e encerrando assim todo o ruído.
Me livrando daquela casa e dos meus problemas. Eu tinha muitos
deles, mas do que podia ou queria lidar.
Não teria que procurar Scarlet mais, não precisaria voltar para a casa
dos Davis. Eu não teria mais que lidar com nada.
Os murmúrios em meus ouvidos sugeriam o batente como solução.
Sem responsabilidades. Era isso que eu queria.
Esquecer tudo.
A vista seria boa lá fora, eu estava cansada.
Meus dedos escorregaram pelo corrimão e comecei uma demorada
caminhada com destino ao outro lado do salão, andava com passos pesados,
até que alcancei a janela do centro da parede que tinha a melhor vista da
montanha e apoiei ambas as mãos nas cortinas rasgadas em torno dela. As
batidas deveriam me assustar, mas eu não tremia mais, elas pareciam
destinadas a me dar algum alívio.
Eu olharia para fora, veria a vista das montanhas dali e tudo
acabaria.
Dor. Angustiante. Insuportável.
Minhas mãos trêmulas se agarraram às cortinas na confusão que me
tomou. Senti minhas unhas se cravando em minha pele e provocando cortes
até a carne através do tecido fino que eu torcia entre meus dedos.
Mas não era o suficiente para deter as facadas que eu sentia em
minha testa, forcei tanto o varão que sustentava as cortinas que o arranquei
e me vi caindo para trás no meio do salão com aquele véu cobrindo meu
corpo e longe o suficiente das janelas para que não ficasse tentada a saltar
por elas com a intenção de findar aquele sofrimento.
Ainda assim a dor não cessou.
Um pulsar constante, suas pontadas rivalizando com as pancadas
das janelas. A coisa mais dolorosa que eu senti alguma vez, era como se
esfaqueassem minha cabeça com uma faca pequena e cega, então insistiam,
seguidas vezes, tentando se afundar mais, porém, sem sucesso e provocando
mais danos na carne do que se estivesse bem afiada.
Fiquei ali encolhida, embaixo daquele pano sujo com as mãos
tampando meu rosto, cobrindo meus olhos e pressionando fortemente
minhas têmporas numa tentativa de afastar aquele mal-estar, mas nada
conseguiria aplacar tal sofrimento.
Levei um tempo assim, até que a dor cessou, a faca havia alcançado
seu objetivo e abri meus olhos vagarosamente, minha cabeça latejando um
pouco, sofrendo dos efeitos daquele tormento.
Afastei a cortina de meu rosto, descobri um olho e encarei as janelas
que continuavam a sua melodia perturbadora.
Eu me sentei e observei aquele movimento alucinado tentando me
iludir que desistir de tudo era o melhor para mim.
A proposta da casa era tentadora, os sussurros se intensificaram até
que soavam como berros nos meus ouvidos, vangloriando-me pela minha
coragem em acabar com tudo.
Eu quase o fiz. Tudo acabaria logo.
Me incentivavam a me levantar, retornar aquela parede e escolher
uma janela. A que tivesse a melhor vista.
Sim, eu só precisava escolher uma janela e a casa faria o resto.
Mas eu não queria nada daquilo e permaneci parada no meio do
salão com os olhos estreitados e a cabeça erguida, como se os desafiassem.
— Parem com isso.
O som da minha voz me pareceu um murmúrio com todas aquelas
vozes me guiando a deixar que meu belo pescoço fosse atingido, mas eu
gostava muito dele. Era fino e pálido, talvez devesse pensar em ornamentá-
lo com colares, algo não muito chamativo e que combinasse com preto.
Bem, tudo combinava com a ausência de cor. Então, isso não seria um
problema a se pensar.
Humm, eu ainda tinha o problema de encontrar Scarlet e sair dali.
Como eu conseguia ser cínica numa situação dessas, enquanto
estava tremendo há pouco? Bom, ao menos eu recuperei o controle dos
meus pensamentos, embora eles parecessem um pouco diferentes. Era como
se a voz que costumava me responder de vez em quando estivesse no
comando.
Ela não tinha medo daquela casa e daria um jeito para que cessasse
essa merda de gritaria em meus ouvidos.
As batidas adquiriram uma nova velocidade ensurdecedora como se
a casa percebesse que já não me tinha sob seu julgo, mesmo que não
estivesse disposta a perder e tentassem me colocar novamente sob seu
encanto descendo todas as janelas daquele andar e do inferior num ritmo
enlouquecido, unidas na mesma sinfonia.
Os vidros começaram a rachar e alguns se partiam com o impacto,
atingindo o chão, apesar de que eu sentia que eles tentavam me atacar ao se
romperem, mas ao perder a conexão com a madeira acabavam perdendo a
vontade de me atingir.
Aquilo precisava acabar.
— Eu mandei parar, obedeça — rosnei uma ordem que me fez
ranger os dentes, senti todo meu corpo se sacudir a cada sílaba que
pronunciei.
As janelas caíram pesadas numa última batida, todos os vidros
estouraram e se projetaram numa tentativa desesperada de me alcançar, mas
falharam em seu intento. Eu me permiti erguer um leve sorriso que não
chegou aos meus olhos, apesar daquela pequena vitória.
Não havia mais sussurros em meus ouvidos nem o escândalo das
janelas carentes de atenção, podia ouvir minha própria respiração com o
silêncio que se fez, contudo eu ouvi mais.
— Emmie...
— Scarlet? — A voz fraca da menina abalara minha confiança
adquirida ao enfrentar aquela casa. — Scarlet, não brinque. Onde você está?
Apareça! Esse lugar me dá arrepios. — acrescentei um por favor, apareça
em meus pensamentos.
— Emmie — Ouvi a voz de Scarlet clamar por mim.
Seu chamado era como uma súplica e o som vinha do andar
debaixo.
— Scarlet! — Alarmada, me ergui e me pus a correr.
Minha irmã parecia muito angustiada. Eu precisava chegar a ela.
Scarlet podia ter se ferido, eu precisava alcançá-la. Eu me senti fraca e
desorientada por um segundo e esse foi o suficiente.
Corria escada abaixo sem observar os degraus, na agonia que
aqueles gritos me causavam, pisei em falso numa tábua solta e rolei do
meio da escada até o chão. Meu último pensamento foi em minha irmã
gritando mais uma vez quando bati a cabeça e perdi a consciência.
Um som insistente alcançava meus ouvidos e, lentamente, me
retirou do torpor que me encontrava. Numa tentativa de evitá-lo, tentei me
virar para o lado a fim de fugir daquele incômodo, mas espasmos de dor
pulsaram por meus membros culminando por um forte aperto no peito que
me roubou o ar.
Eu devia ter machucado minhas costelas na queda.
A consciência de quão fodida eu estava me atingiu com força e
arregalei meus olhos, ao me deparar com a causa do meu aborrecimento,
uma mísera goteira que pingava do teto baixo bem em cima da minha testa
e uma penumbra que não me permitia ver mais muita coisa além disso
— Bem, não era o que esperava.
Enxuguei minha testa com o dorso da mão e comecei a tatear na
escuridão, buscando um apoio para me erguer sem que meus pulmões
fossem oprimidos demais pelo esforço. Mas não parecia uma tarefa fácil, já
que minha mão se afundava em algo que parecia terra úmida e mesmo
qualquer movimento parecia roubar a minha capacidade de respirar.
Afinal, onde eu estava? E como eu vim parar aqui? Só lembrava de
ouvir a voz chorosa de Scarlet e de rolar escada abaixo. Não estava mais
naquela casa?
Parei um segundo, tentando buscar respostas que eu não encontraria
deitada ali.
Não importava onde estivesse, Scarlet precisava de mim e eu tinha
que encontrar um meio de alcançá-la.
— Eu não posso ficar aqui. — Mordi meus lábios enquanto me
apoiava com o cotovelo no chão e me forçava a me sentar, a fim de analisar
um pouco o local, estreitando os olhos numa tentativa de focar a visão e me
acostumar a escuridão.
— Como é possível? — Meus olhos percorreram aquele ambiente
com uma ansiedade crescente.
Parecia que eu me encontrava num porão, mas faltava o piso do
lugar o que era bem estranho, mas talvez ele tivesse cedido com a
infiltração. Esperava que nem tudo ali fosse só lama, não queria escorregar
e acabar por quebrar mais algumas costelas. Não quando já tinha algumas
incomodamente arrebentadas.
Um chão de terra e um teto com goteiras parecia uma mensagem
clara: Emma você está mais fodida do que pensava há pouco, bem era isso
sem que eu contasse a iluminação precária e a ausência de portas. Precário
era um eufemismo, a única fonte de luz parecia ser uma pequena janela no
limite do nível da rua com o subsolo por onde entrava um pouco do brilho
da lua.
— Lamentar não vai me ajudar, melhor me levantar de uma vez —
falei, esfregando minhas mãos na testa sem me importar que a sujava de
terra. Estava preocupada demais em respirar sem que minhas costelas
esmagassem meu pulmão para dar atenção a tais bobagens.
— Oh, céus! — Arfei enquanto cambaleava em direção a uma
parede próxima, apoiando minha palma aberta na madeira podre, sentia
todo meu corpo trêmulo pelo esforço de me manter em pé.
Do jeito que doía meu tornozelo direito, não me surpreenderia se
estivesse torcido. Eu teria que me apoiar sobre a outra perna e seguir meu
caminho para fora dali.
Considerando que a tentativa a seguir me levou a tombar meio de
lado e bater com o ombro num armário, que nem tinha percebido antes
naquela escuridão, não seria tão fácil assim.
Fiquei um tempo ali, ensaiando como deveria pisar para me mover
em segurança, não diria que era só porque estava travada pela perna e pelo
medo do que encontraria andando a esmo por ali. O último, com certeza,
não seria muito corajoso de minha parte.
O porão parecia gigantesco, talvez um pouco demais, a escuridão
não me permitia ver onde ele terminava e se eu fosse sincera não parecia ter
fim, mas seria melhor não deixar que meus pensamentos vagassem por aí.
Ou essa minha perna ficaria travada mesmo por mais que uma torsão, então
ignorei essas ideias perturbadoras e me concentrei em tentar avaliar o lugar,
o tanto quanto a pouca luz me permitia.
Todos os tipos de quinquilharias estavam ali, sofás antigos que
lembravam a casa de uma avó e muitas cadeiras com o estofamento
exposto. Armários de madeira tortos com as portas dependuradas pelo
tempo, havia mesmo uma cama desarrumada e estantes com mais livros que
uma pessoa poderia ler numa vida.
Me encontrava encostada numa estante também e não num armário
como eu pensava, dei a volta nela, escorando-me, afastei a poeira com a
palma da mão de uma prateleira que se encontravam na altura de meus
olhos e estranhei as capas bolorentas de couro. Quem fazia livros de couro
hoje em dia? Não me lembrava de ter visto nenhum livro assim na casa dos
Davis ou na velha biblioteca do centro da cidade quando eles me levavam
para escolher algum livro para os meus estudos em casa.
Peguei um exemplar que estranhei a aparência, parecia mais velho
do que aquela casa, era o que a capa de couro coberta por mofo me dizia:
Senhorita, eu vi a imprensa ser inventada e ainda vou durar mais do que
você.
Eu temia que ele durasse mesmo.
Olhei ao redor ponderando a minha situação, presa no subsolo de
uma casa esquisita e havia a possibilidade que aqui fosse meu novo lar.
Apesar de um pouco assustada, era até estranho que não estivesse encolhida
e chorando. Eu me achava forte e mal-encarada, mas nunca pensei que
tivesse tanto controle mental assim para não surtar e continuar
raciocinando.
Senti uma ponta de orgulho como se tudo aquilo não fosse um
obstáculo tão grande e, por fim, por mais que eu estivesse com aquela
sensação esquisita de que o lugar fosse ser minha cova, mas quem não
sentiria isso num lugar desses?
Abri o livro e o folheei com a descrença e uma irritação crescente
quanto ao que via a cada página que meus olhos percorriam. Passava
bruscamente as páginas amareladas sem me importar se as arrancaria, até
que o lancei no chão estupefata com as imagens contidas ali.
— Só pode ser brincadeira. É Halloween, mas isso é demais.
Retirei mais livros da estante como se meu coração já antecipasse o
que encontraria neles, no entanto, todos pareciam mostrar a mesma coisa,
algo que apertou mais meu peito do que as minhas costelas quebradas.
Fechei o último volume com minhas mãos trêmulas e o depositei na
estante, ainda meio descrente, mas com a vontade de deixar o local de
imediato queimando em meu corpo como uma nova urgência.
Parecia ridículo pensar que entrei na casa de uma bruxa má e ainda
num dia como esse. Isso dava um outro ar de terror aos filmes infantis de
Halloween que eu assistira com Scarlet pela manhã, enquanto ela
comentava alegre sobre a fantasia que usaria pela noite nem dando bola
para as cenas que eram reproduzidas na TV.
Me virei para encarar aquela escuridão e me pus a mancar numa
velocidade que eu não imaginei que pudesse fazê-lo, ao me erguer da terra
naquele porão há pouco, eu precisava sair dali e encontrar minha irmã, visto
que aqueles livros me deram um novo tom de urgência.
Eu não entendi as palavras que aquele livro nojento guardava,
parecia latim ou qualquer maldita outra língua morta que eu não conhecia,
nem fazia questão, mas havia desenhos que mostravam mulheres dançando
em torno de fogueiras com a lua alta no céu num transe que me parecia
sugerir consumo de alguma droga psicotrópica.
Algumas páginas retratavam algum tipo bizarro de ritual com
meninas postas em altares, enquanto mulheres a rodeavam esmagando as
rosas vermelhas que circulavam o altar com seus pés, ao mesmo tempo em
que estendiam suas mãos como se pudessem extrair a vida das garotas pelas
pontas de seus dedos.
Tochas, enterradas num chão de pedras, fechavam um outro círculo
envolvendo as mulheres e as lágrimas haviam sido desenhadas com grande
destaque nas faces das garotas como se o choro delas fosse importante o
que me lembrara os gritos de Scarlet.
Ela chorava.
Não se fazia uma criança chorar facilmente atualmente e ela chorara
há pouco.
Eu me recusava acreditar que tinha caído num ninho de bruxas,
naquela casa até fantasmas seriam preferíveis. Sei lá, me pareciam menos
intimidadores nos filmes, e mais fáceis de expulsar.
Não poderia me deixar levar por esses pensamentos esquisitos.
Avaliei os objetos que me cercavam, era só uma casa abandonada,
era isso. Queria acreditar nisso, mas não podia negar quão absurdo era que
eu não me lembrava como chegara àquele porão e ainda tinha uma coleção
de livros interessantes com mulheres assustadoras ali. Sem contar que eu
não podia ver os limites das paredes à minha frente. Era uma casa grande,
mas o normal não seria que o espaço embaixo dela fosse mais limitado?
Talvez eu só tivesse sido arrastada até ali por alguém.
Bem, podia ser só um psicopata com interesses por satanismo. Seria
mais fácil lidar com isso do que com coisas sobrenaturais. O que eu estava
falando? Não queria lidar com nenhum dos dois. Um humano doentio nem
uma mulher com superpoderes.
Não nada disso estava acontecendo.
Provável que só houvesse partido o piso da sala e o atravessado com
minha queda, acabando por cair no porão. Era isso, a madeira estava tão
podre naquela casa que, praticamente, se desintegrara com o baque do meu
corpo rolando pelas escadas. Esse era motivo das minhas costelas
quebradas, devia ter caído de uma boa altura até alcançar a terra do porão.
Ao menos dava para pensar que fora isso, dado que naquela parte da casa já
nem havia piso, a umidade já tinha consumido a madeira ali. Estava muito
escuro para verificar algum buraco no teto, então eu não podia comprovar
minha teoria.
Scarlet devia ter se machucado também, e por isso chorara. Era isso.
Eu só precisava encontrá-la e logo sairíamos dali.
Minha explicação lógica não se justificava com meus passos
apressados, eu mancava mais rápido, era quase uma corrida arrastando
minha perna por todo o local, enquanto procurava com desespero uma saída
no meio daquela escuridão de objetos mofados, mas não a encontrava.
Eu tateava as paredes e não havia nada. Nenhuma maçaneta,
fechadura ou saída. Meu peito apertou mais e eu julguei que era pelas
costelas quebradas somadas a minha corrida desatinada pelo lugar como um
rato tentando achar sua toca, mas invertido, eu não queria entrar e sim sair
dali.
Eu não poderia ficar ali. Trancada naquela casa para sempre. Não,
eu tinha que fugir.
Eu quero sair! Me deixem sair! Por favor, me deixe sair! Eu não
aguento mais.
Me recostei numa parede com a respiração acelerada. O pânico não
deixando que meu cérebro trabalhasse num meio de fugir daquele cômodo.
Eu precisava achar um jeito. Tinha que sair dali.
Puxava o ar entredentes, mas ele não parecia vir. Ouvia o som da
minha respiração desesperada como se tivesse corrido alguns bons
quilômetros e me faltasse o fôlego. Minhas pernas tremiam e julguei que
não poderia dar mais nenhum passo. Minha visão estava embaçada, eu
temia por Scarlet, mas a escuridão parecia que, finalmente, me fizera
sucumbir.
Eu tinha claustrofobia? Não me lembrava de ter ficado nesse estado
antes, nem de temer ficar num cômodo sozinha. Eu ficava o tempo todo em
casa, janelas fechadas e cortinas cerradas. Nunca me senti tão mal assim,
mesmo que ali não fosse como estar largada confortavelmente numa cama
macia na casa dos Davis.
As paredes eram úmidas e meus pés estavam afundados na lama.
Tudo estava quebrado, velho e sujo. E eu temia que tivessem ratos ali, por
que eu temeria esses bichos? Não eram os mais fofos do mundo, na verdade
eram bem nojentos. Mas quando pensei que eu era como eles correndo por
todo lugar, o asco revirou meu estômago. Não vi nenhum por ali, então por
que eles passaram pela minha cabeça? Ah, lugares assim tinham ratos.
Era só isso? Não era? Sim, só isso.
Finquei minhas unhas em meu couro cabelo, arrastando minhas
mãos por toda a extensão da minha cabeça e acabei puxando os fios com
toda a força tentando ganhar algum controle sobre a minha agonia. Trocar
aflição que eu sentia por dor física para que pudesse voltar a puxar o ar para
meus pulmões.
Eu não estava respirando direito, meu coração socava meu peito, eu
precisava me acalmar.
Escorreguei até o chão com a dor me derrubando quando dei uma
profunda arcada desesperada por ar e senti todo meu peito se contrair em
dor. Apertei meus olhos com força e tentei lembrar de meus pais, mas só vi
tudo preto. Por que os Davis não vinham a minha mente com facilidade?
Por que pensar neles doía ainda mais meu peito? O que era isso que eu
sentia, o que era aquela desolação me consumindo? Já estive naquela
situação antes? No escuro, sozinha e desesperada por alguém.
A sensação me parecia familiar. Um velho e doloroso sentimento.
Era estranho, eu não me lembrava de ter ficado presa assim antes.
Controle-se!
Ouvi a vozinha que conversava comigo gritar na minha mente tão
alta, seu berro tão fino provocando agulhadas em meus tímpanos que
tampei meus ouvidos com força tentando afastá-la. Aquele som não parecia
estar lá dentro da minha cabeça como um grilo falante dos desenhos
animados.
Ela parecia que estava ao lado de fora gritando bem a minha frente e
eu agradeci aos céus que se abrandou depois de um tempo e passou para um
tom bruxuleante por mais que a mudança tivesse me causado arrepios.
— Emma, respira. Acalme-se. Você vai sair dessa. Algum maluco
colecionava livros com sacrifícios humanos e se mudou ou morreu. Sei lá.
— Puxei o ar com força pouco me importando com minhas costelas
doloridas, me acalmar era uma prioridade. — Ele não está aqui. Sua irmã só
deve estar brincando com o cachorrinho. Você vai encontrá-la e vão voltar
para casa.
Repeti essas palavras como uma oração até que normalizou meu
coração, ergui-me e andei decidida a sair dali de qualquer forma. Iria sair.
Eu sou forte e vou escapar.
Usando a voz em minha cabeça como um escudo, eu tornei a
vasculhar o lugar.
Não sabia quanto tempo andava e tateava com a intenção de achar
uma alavanca ou cordinha para achar a saída do porão. Não encontrava
nada. Mas achei novas janelas embaçadas por uma poeira grossa ou seriam
as mesmas? Eu não saberia dizer. Empilhei uma cadeira rangente em cima
de uma cômoda caindo aos pedaços para tentar alcançá-las, mas meu
esforço fora inútil. Eu quase caíra tentando me equilibrar no topo de tudo só
para forçar o trinco e descobrir que eu era grande demais para passar por
ali.
A altura da lua indicava que era tarde e já não havia ninguém
passando na rua para pedir ajuda, sendo que mais cedo aquela região já
tinha me parecido não ser do tipo que passava muita gente, pelo avançar da
noite não haveria ninguém por ela mesmo. Fora que todas as crianças já
haviam retornado às suas casas escoltadas por seus acompanhantes, menos
Scarlet.
Os Davis ficariam preocupados.
Desci desanimada e me sentei sobre a cômoda. Minhas pernas
estavam doloridas muito além da torsão na minha perna direita, mas
imaginava que aquele cansaço todo devia ser psicológico. Embora aquele
porão fosse estranho demais, como podia ser tão grande? Me parecia maior
do que a casa na verdade quando a vi de fora analisando as possibilidades
sinistras que poderiam me achar aqui dentro e eu nem contei com as que
realmente encontrei.
Essa noite estava se provando um teste de nervos, um que falhei
algumas vezes. Bem, não havia problemas em reprovar em algumas coisas,
o importante era passar por tudo com o menor dano possível.
Eu ainda podia andar, então estava tudo bem. Apesar da tensão que
percorria meu corpo desde que botei os pés aqui, como se eu antecipasse a
desgraça e visse minha irmã caída numa poça de sangue toda vez que dava
um passo e uma fresta de luz que pouco fazia para iluminar o caminho
surgia diante de mim.
Então, não estava tudo bem. Estava tudo, aterrorizantemente,
péssimo.
Ao menos pelo tempo que andei já devia estar chegando ao outro
lado da casa, assim eu esperava.
Saltei da cômoda com o cuidado de me apoiar na minha perna boa e
dei mais algumas voltas pelo porão.
Murmurava o nome de Scarlet como uma oração, mas do que como
um chamado em voz alta. Eu o fiz por mais tempo do que pude contar até
que o alívio veio até mim. Uma luz brilhou num cantinho e meus olhos
caíram sobre uma bolinha de organza rosa e o sorriso alcançou minha face
novamente.
— Scarlet! — gritei, correndo até ela e a envolvi em meus braços,
soltando-a somente quando sua voz murmurou meu nome.
—Emmie... — Minha bolinha rosa ergueu a cabeça e pude ver seus
olhos marejados e a voz tão assustada, que me senti destruída por dentro.
Ela me lembrou a mim mesma no escuro chorando por um socorro
que nunca vinha. Eu me vi num quarto não muito diferente desse com uma
janela de arco que eu ficava nas pontas dos pés olhando para a lua
implorando que me salvasse.
Essas lembranças não eram minhas, não podiam ser minhas.
Senti minha irmã convulsionar em meus braços, pisquei várias
vezes, até que afastei aquelas imagens que se formavam diante de mim, era
Scarlet que precisava de apoio nesse momento, não eu.
— Scarlet, por que está chorando? Ficou com medo do escuro? Eu
te encontrei agora. Vamos sair daqui. Não se preocupe.
Acariciei seus cabelos com a intenção de trazer conforto e
segurança, mas a menina só ficou mais agitada e se afundou ainda mais em
meus braços com um choro alto que parecia vir do fundo de suas entranhas.
— Emmie...
— Calma, já passou. Você se perdeu? Achou o cachorrinho? —
questionei, tentando distrai-la.
— Não era um cachorrinho — murmurou ela.
Minha mão congelou em seus cabelos temendo o que ela diria a
seguir.
— Como assim? Não vimos um cachorrinho na rua?
— Ele é ela — sussurrou Scarlet agarrando minhas roupas,
esfregando seu rosto em meu moletom antes que erguesse sua cabeça e
encarasse meus olhos com os seus enevoados de lágrimas. — E ela quer
você.
Não era isso que eu esperava ouvir de Scarlet. Queria que ela
dissesse que não achava a saída e se desesperou. Esse deveria ser o motivo
de seu choro e não que o cachorro não era um animal fofo, mas alguém
querendo me pegar. Talvez ela tivesse tido um pesadelo, só podia ser isso.
Era a única explicação ou fizera uma brincadeira sem graça. Normalmente,
ela era uma menina boazinha que não contava mentiras. Mas não estava
falando coisa com coisa.
Eu paralisei com sua resposta e ergui meus olhos para a parede
escura atrás dela, enquanto os eventos desde que entramos naquela casa
corriam pela minha mente.
Eu ainda não sei como as janelas pararam de bater. Tudo entre
soltar aquele corrimão e minha queda na escada parece embaçado demais.
Tornei a olhar o rosto de Scarlet e ela estava tão pálida que parecia
um dos fantasmas que julguei estarem pela casa, apertei tanto meus braços
ao redor dela que temi ter lhe causado algum hematoma.
Os livros tinham desenhos de bruxas. Minha irmã falava que o
cachorro não era um animal, mas uma outra coisa. Mordi meus lábios com
medo de que Scarlet estivesse dizendo a verdade. Tudo me parecia confuso
e estranho desde que eu entrara ali e muito mais do que considerava normal
em minha vida.
Estreitei meus olhos de repente, algo os machucara. Um clarão
atingira a sala, o que fez que eu levasse minhas mãos ao rosto perturbada
por estar há um bom tempo sem ver qualquer luz. Ficou um pouco mais
claro e eu, finalmente, podia enxergar a entrada do porão aberta.
Embora fosse uma coisa bizarra, eu parecia já ter passado por ali e
tocado aquelas paredes, mas não encontrei nenhuma rachadura que
sugerisse uma porta nem mesmo a entrada de uma fechadura.
Scarlet também me pareceu ter surgido do nada, eu andei por todo
lugar e não a havia encontrado antes. Como era possível? Alguém entrava
na sala e eu teria que deixar meus questionamentos para depois.
Me apressei a me erguer e forcei minha irmã a se levantar.
Tínhamos que ficar preparadas para correr e a menina tinha se encolhido
mais ao ouvir a porta se abrindo. Meu coração martelava em meu peito e a
adrenalina ocupara o lugar da dor pelo meu corpo ferido, eu teria que lutar
para nos salvar. Bruxa, fantasma, algum louco, não importava. Eu sairia dali
e levaria Scarlet comigo.
Firmei meus pés no chão e segurei mais firme a mão de Scarlet.
Estávamos preparadas para correr.
— Vejo que acordou — declarou uma mulher na casa dos trinta
anos, mas que ainda conservava os traços da juventude e carregava longos
cabelos castanhos que não combinava com o vestido preto antiquado e
rodado que trajava.
Eu pensava que as pessoas só se vestissem assim nos livros de
história e tivesse aqueles olhares perdidos e loucos também só neles, mas
era assim que a mulher me fitava.
Senti a mão de Scarlet tremendo dentro da minha e a apertei com
mais firmeza, tentando transmitir segurança para ela, uma que eu não
sentia, mas Scarlet não precisava saber disso.
— Quem é você? — indaguei.
— Minha rainha, não devia falar assim com quem te salvou —
respondeu a mulher com o sarcasmo transbordando de sua voz.
— Salvou? — respondi, confusa.
— Bem, ainda não salvei. Não dessa vez. — Riu a mulher levando
as suas mãos ao rosto de um jeito tão delicado que não parecia ser capaz de
assustar uma criança como o fizera com Scarlet.
— Quem é você?
— Uma amiga — afirmou. — Uma amiga do passado, minha
rainha.
— Mas eu nunca vi você! — Arregalei meus olhos e levei uma mão
a minha testa, buscando me recordar do rosto dela. Se ela fosse importante,
eu me lembraria, certo? — E por que fica me chamando de rainha?
— Oh, querida! Você não se recorda, verdade.
A mulher se aproximou de nós tão rápido que eu não enxerguei seu
movimento e tampouco tive tempo de correr. Contraí meu corpo com medo
e antes que eu pudesse me afastar, fui puxada pelos cabelos e sua testa
estava colada na minha, abrindo minha mente e me fazendo ver o que eu
tanto quisera ocultar.
— Hora de se lembrar, minha rainha.
Por isso os vizinhos cochichavam tanto e meus tios não me
amavam, os Davis nunca tiveram outra filha além de Scarlet.
Presa naquelas imagens distantes eu só conseguia pensar nisso, a
menina que eu amava não era minha irmã e eu nunca tivera pais.
Me vi treinando combate corporal com alguma espécie de espada
medieval, parecia tão pesada e eu era tão pequena ainda, devia ser ainda
mais jovem do que Scarlet. Não parecia querer estar ali. Havia uma mulher
com o rosto severo sempre me dando ordens, eu a desprezava. Eu podia
sentir o ódio por ela no amargor em minha boca, eu sempre mordia meus
lábios para superar a dor que me causava, além de conter a vontade que eu
tinha de esfaqueá-la.
Não sobreviveria se o fizesse, então seguia sentindo o gosto do meu
próprio sangue quando tudo que eu queria era vê-la sufocar no dela.
Eu aprendi a odiar muito cedo, na mesma que época em que fui
levada para aquele castelo, não sabia de onde vim nem se tinha alguém que
se importasse comigo fora dali, eu só sabia que ali absolutamente ninguém
me amava.
Eu seria o sacrifício daquela geração. Era isso que ser a rainha
significava, alguém que nasceu mais forte do que todas e deveria servir para
mantê-las vivas. Quando atingisse a maturidade de meus poderes, eu seria
drenada até que desaparecesse. Nem mesmo minha alma sobraria, tudo faria
parte do coven[4] e as ajudaria a se sustentar, pelo menos até que outra como
eu fosse encontrada.
Uma garota um tanto perturbada que parecia se achar minha amiga
me perseguia por todos os lugares, ela dizia que era uma honra servir a
salvadora de nosso povo, a próxima rainha, que eu deveria ser grata por tal
honra assim como era feliz em me acompanhar. Se deveria agradecer pela
vida que me roubavam, pela prisão que me mantinham, eu gostaria da
minha gratidão enterrada profundamente em suas barrigas.
A louca era a mesma mulher que me mantinha segura pelos cabelos
enquanto forçava lembranças que eu não queria em minha mente, seu nome
era Irene.
Eu era chamada de Livia, a rainha das bruxas, o que não era mais
do que a otária da vez.
A cena mudou.
Me jogaram numa cela pior do que a que de costume, havia ratos
demais e muitos gritos. Não eram meus. Eu precisava salvá-lo, eles iriam
matá-lo. A fogueira. A deusa me abandonou, maldita seja.
Eles precisavam pagar.
Tudo que eu senti foi a força do meu grito e as consequências que
vieram.
— Não! Pare! — Empurrei a mulher para longe de mim e caí de
joelhos. As mãos em meu rosto, tentando afastar as lágrimas.
Quanta dor, eu sofrera muito. Não queria reviver isso. Não queria de
volta essas memórias que queimavam em meu cérebro como a prova do
meu fracasso.
Desejei esquecer o quanto eu faltei com ele, comigo, com tudo. O
pior era como vinha falhando nesse momento, presa num delírio que eu
mesma me causei quando a dor me bateu mais forte do que pensei ser
possível.
Acabou que a voz em minha cabeça que eu temia ser a prova da
minha loucura era o meu eu verdadeiro, tentando vir a superfície e foi ela
que me salvou de ser degolada pelas janelas no topo da casa.
Também foi ela que pensei gritar em meus ouvidos até que temi que
ficaria surda, mas aquele som que se acalmara depois viera de minha
própria boca.
No fim, eu era mesmo louca.
— Não chore! Livia, agora você reencarnou! E podemos trazer
nossas irmãs de volta. Elas não voltaram como você — lamentou Irene, ela
se abaixou e tentou me abraçar.
Eu me afastei, me jogando para trás a fim de evitar o seu contato.
Como se eu chorasse por elas, minhas lágrimas eram devidas ao que
fizeram comigo. Irene não podia ver o que eu vi ou senti, mas mesmo que
pudesse, não acredito que entenderia. Como poderia fazê-lo, uma pessoa
que sequestrara uma menina humana para aterrorizar sua irmã falsa a fim de
despertar suas memórias que Irene nem sabia ao certo quais eram. Se
soubesse quais eram os meus verdadeiros sentimentos, não o teria feito.
Ao ver aquele rosto esperançoso me mirando, eu só queria gritar,
elas nunca vão voltar. Eu nunca vou deixar.
Confiava que se manteriam presas e teriam suas almas drenadas pela
eternidade como tentaram fazer comigo. A deusa não me ajudou naquele
dia, mas se ela fosse justa realizaria esse meu desejo.
Irene me despertara de uma mentira, eu não tinha os dezessete anos
que pensava, eu não havia reencarnado como ela deduzira. Eu nunca morri
para que pudesse renascer em um novo corpo, e com certeza, não eram os
planos que fizeram para mim reencarnar ou continuar viva.
Eu seguia sendo Livia sob uma farsa que criei para proteger minha
mente torturada. Emma era uma identidade criada durante um surto ao ser
resgatada pelo pai de Scarlet numa estrada onde eu corria por minha vida.
Diante do espelho do banheiro dos Davis, depois de ver aquela
família feliz, a dor de todos os anos que suportei caiu sobre mim e eu
desejei esquecer. Cortei meus longos cabelos até que ficaram na altura dos
ombros com a navalha de barbear que encontrei sobre a pia.
A cada movimento da lâmina apaguei uma parte da minha mente
dolorida, e, aos poucos, enterrei Livia tão no fundo da minha inconsciência
que ela passou a ser uma voz fraca que de vez em quando se fazia ouvir
quando eu fraquejava.
Minha aparência era tão jovial que nem mesmo me olhando tantas
vezes no espelho eu duvidei que tivesse centenas de anos a mais do que eu
falei para aquela família. Scarlet gostou de mim e eles acabaram me
permitindo ficar até então, mas minha alma seguia viva nesse corpo há
muito mais tempo do que eu contei a eles e era bobo que até mesmo Irene
pensasse que eu tivesse retornado a esse mundo como uma reencarnação.
Esse nome, Emma[5], era só um livro em cima da mesa da sala dos
Davis quando deixei o banheiro deles e me sentei em seu sofá ao lado de
Scarlet, mas foi o nome que escolhi pra mim.
Minha vida era uma farsa e eu mesma me enganara.
Enterrei minhas mãos na terra ao meu redor tentando conter a raiva
que inundava meu corpo por tudo que me passara, enquanto mirava a Irene
como o resquício do que sobrara daquele maldito coven, seu semblante era
uma versão mais jovem e um pouco mais desequilibrada da mulher que me
espancava quando menina, afinal era sua mãe e ela teria a quem puxar.
Irene devia ter tido o mesmo fim que ela. Talvez ainda houvesse
tempo para isso.
Deixei minha cabeça cair de lado sobre meu ombro, enquanto
analisava Irene e amargava que não estivesse a sete palmos do chão.
Corrigindo, estávamos mais fundos do que isso, num porão, no que me
convinha ela poderia ser desmembrada e deixada ali. O tempo faria o resto,
apagando qualquer traço do que fora, deixando-a esquecida naquela casa
podre para sempre.
Pisquei meus olhos e abandonei meus planos por um minuto ao
sentir as mãos de Scarlet agarradas a meu corpo, ela me chamava e se
encolhia ao meu lado. Eu não poderia fazer algo assim na frente dela.
Ergui o queixo e encarei Irene.
— Elas ficarão onde estão.
— São nossas irmãs! Mortas por um monstro! — exclamou,
descontrolando-se e avançando contra mim e eu senti a cabeça de Scarlet se
afundando contra minhas costelas tentando se proteger. —Você deveria nos
dar continuidade! Por que fica contra nós?
Sua voz era irritantemente esganiçada e seus olhos esbugalhados
sugeriam uma loucura maior do que a minha.
— Alguma vez estive ao seu lado? Essa é a pergunta que deveria
fazer — sussurrei tão perto de seu rosto que pude ver cada movimento dos
músculos de sua face, que logo mudaram e revelaram um lado ainda mais
sombrio e parecido com sua mãe do que eu imaginei que pudesse ficar.
Ela fixou seu olhar sobre Scarlet antes de voltar a me encarar, ela
insistiria em jogar com a menina para me afetar. Entretanto, eu não estava
sob julgo do coven como antes para viver temendo por minha vida.
Fora que só havia uma delas ali. Uma ameaça, mas uma bem menor.
— Sempre se distraindo com coisas sem importância. — Irene
avançou em direção de Scarlet, suas unhas compridas quase arranhando o
rosto da menina, detida somente por meu antebraço que foi ao encontro da
sua garganta no instante seguinte.
A mulher arregalou os olhos, enquanto tomava distância e se
engasgava com o golpe. Ela ainda acreditava que eu fosse a favor do coven.
Não era tão louca assim de querer oferecer minha vida numa bandeja, eu só
mentia bem.
Irene piscou e me alcançou novamente, tocando meu rosto enquanto
mantinha o seu próximo mais do que devia do meu, me olhara vibrando um
amor doentio que eu nunca compartilhei, um misto de choque ao ser ferida,
uma vontade de me levar para o seu lado e outra parte que adoraria me
sugar de canudinho, até que eu deixasse esse mundo.
Praticamente uma canibal com fome.
Ela parecia mais velha uma vez que a descrença a alcançara ou
talvez só agora eu estivesse percebendo seu estado, enquanto eu não
envelheci um dia que fosse desde aquele tempo, mesmo com os maus-tratos
que vieram. Não era uma vida muito diferente da que eu tivera na casa de
Irene a que veio depois e eu superei as duas mesmo que em alguns
momentos eu tivesse me abatido e desejado não emitir mais um suspiro.
Seus dedos seguiam deslizando por meu rosto quando tentaram
descer para meu pescoço, agarrei seu pulso, torcendo-o e detendo seu
contato repugnante.
Essa era minha resposta para suas invertidas e a dela foi tocar a
cabeça de Scarlet.
— Não se atreva a encostar nela — rosnei, arrancando sua mão da
menina, e chutando a lateral de seu corpo com a intenção de partir suas
costelas, como as minhas se fraturaram por culpa dela, seu corpo girou com
o golpe e a empurrei contra a parede, afastando-a de Scarlet — Não vou
permitir.
— Livia, elas morreram. Queimadas vivas. Minha mãe morreu!
Posso senti-las no inferno me chamando! — gritou Irene. — Você é a
abençoada, Livia! Devia ter cedido seus poderes a nós... sim, devia. Você
deve!
— Eu não devo nada.
Avancei contra ela, segurando-a pelos braços, batendo-a contra a
parede, e percebi que Irene tentou devolver meu chute, só que me atingiria
direto no estômago. Então saltei para trás, tornando a tomar distância dela, e
mantendo-me ao lado de Scarlet, que ficara muda ainda mais assustada ao
me ver combatendo Irene.
A menina tinha medo de mim.
E aquilo doera mais do que devia. Scarlet não era nada minha, então
por que eu queria chorar? Não, eu não podia desviar minha atenção para tal
coisa. Não com aquela mulher ainda respirando e nos mirando na sala.
— Eu me chamo Emma agora. — Estreitei olhos atenta a todos os
seus movimentos. — Elas se foram, Irene. Deixe-as descansar. — Meneei a
cabeça fingindo pena e tentado dissuadi-la.
— Se chama Emma, e não se importa com seu povo. — Irene estava
meio curvada contra a parede dado o meu tratamento gentil anterior, mas se
levantou e começou a nos rodear como um animal selvagem vigiando sua
presa. Não devia ser muito difícil para ela agir assim, ela sempre careceu
mesmo de raciocínio lógico.
— Se importa mais com essa coisinha do que comigo. — Ela
apontou a menina ao meu lado.
— Sabe, eu fiquei aqui. Viva todos esses anos. Esperando. Eu a
encontrei, mas não achei mais ninguém como você. — Sacudiu as mãos
abertas como se eu deveria ficar feliz por ter ganhado uma stalker[6].
Estalei minha língua diante disso. Ela não pode me encontrar antes,
porque eu simplesmente não estava nesse plano e mesmo ao retornar estive
oculta, a droga que mesmo assim a mulher me rastreou.
— Foi muito bom achar essa casa com um cemitério antigo embaixo
dela e ainda tão perto de você. Será um ótimo ponto energético para você
canalizar e trazê-las de volta, e hoje sendo Samhaim[7], o dia que a fronteira
do mundo dos mortos e dos vivos se estreita, seria perfeito para arrancá-las
do inferno.
— Não me ouviu antes? Não vou trazer ninguém de volta. — Elas
pagaram o preço dos seus atos e eu não sofreria em suas mãos de novo.
— Não me importa!
Irene ergueu suas mãos até a cabeça e puxou os cabelos para trás
com violência. O visual careca combinaria com ela, seria bom se Irene os
arrancasse todos de uma vez. Dado a brutalidade que sua mão passara por
eles, poderia ter acontecido ou talvez fosse só meu desejo mesmo, claro que
não me importaria de ajudá-la com isso, mas com suas irmãs bruxas eu não
moveria um dedo.
— Você pode, eu sei que consegue!
— Eu não atuarei ou falarei um feitiço para ajudar a seu coven.
— Por quê? Elas te resgataram!
— Não, elas me sequestraram.
A expressão de Irene tomara um novo nuance, seu cérebro
parecendo começar a fazer conexões que ela não imaginara. Acabou por
estreitar seus olhos para mim e mover sua cabeça para Scarlet, claramente
pensando em me forçar mais uma vez através dela.
Hora de me livrar de Irene.
Arremessei uma cadeira na parede e peguei uma das pernas
quebradas apontando para a bruxa com meu braço flexionado na altura de
meu rosto e o outro protegendo meu peito, eu precisava me cuidar e
necessitava daquela arma. Estava muito fraca para convocar qualquer força
que pudesse me ajudar naquela batalha.
— Um pedaço de pau? — Riu a bruxa com um sorriso sádico
brilhando sobre seus dentes. — É com isso que pretende proteger essa
menina?
— Vai ter que servir. Não tenho nenhum poder comigo — dei de
ombros e acrescentei —, ainda. Mas também não te sobrou muito depois de
enfeitiçar essa casa ou estou enganada?
Ela prendeu a respiração e eu tinha razão. Irene nunca fora
extremamente forte, manipular sua imagem para que se parecesse a um cão,
controlar aquela casa, esconder Scarlet nas sombras e estender o tamanho
do porão fora demais para ela. Essas coisas tinham um preço e não devia ter
sobrado muito poder nela para que me enfrentasse com magia.
Minha chance de vencer e o sorriso desafiante que dei a ela diante
de sua mudez seriam as únicas coisas que teria de mim.
Irene me olhou com desdém e avançou contra mim colocando toda a
sua raiva e ressentimento em seus golpes. Ela avançava com a ferocidade
que se negara a usar antes para se defender quando a ataquei.
Irene começava a perder sua crença cega que eu a seguiria de
maneira obediente.
Ela não usou nenhum feitiço, exatamente como eu imaginava. Com
tão poucos poderes, mesmo enfeitiçar aquele porão não devia ter sido uma
tarefa fácil. Criara uma dimensão a parte, como se eu andasse num looping
infinito esse tempo todo, por isso não encontrava a saída.
Só achei Scarlet quando comecei a rezar por ela, fiz um feitiço por
extinto.
Mas mesmo sem grandes poderes, ela sempre fora feroz no combate
corpo a corpo, sua velocidade era como a de um gato, muito ágil. Eu mal
tinha recuperado algumas lembranças embaralhadas e confusas.
Quanto dano eu fizera a minha cabeça quando já chegara a esse
mundo totalmente exaurida. Tinha vontade de me amaldiçoar, mas já o
tinha feito o bastante por uma vida. Nunca mais eu fugiria de meus
problemas, estava decidido. Embora parecesse meio difícil lidar com meu
contratempo atual, derrotar Irene.
O resultado de minha auto lobotomia custara um preço alto, estava
muito frágil. Acabei sendo agarrada pelos ombros e arremessada contra a
parede quando tentei atacá-la.
Escorreguei até o chão, deixando um rastro de sangue na madeira
velha da parede, podia senti-lo escorrendo entre os fios do meu cabelo e
pingando em minha face, o impacto me deixara um pouco tonta, mas não
havia tempo para fraquejar. Sacudi a cabeça, me levantei e me arremessei
contra Irene que ia em direção à Scarlet com seus dedos longos mirando o
pescoço da menina. Rolei no chão com ela, porém Irene conseguiu escapar
e correu agachada em direção de Scarlet novamente que arfou apavorada.
— Não vai machucá-la — bradei.
Ela parou a centímetros do rosto de Scarlet e tocou a barriga da
menina levemente com a ponta de suas unhas compridas, instantes antes de
cuspir sangue no rosto dela, que após seu silêncio no início da batalha
gritara com o mesmo terror que a encontrei encolhida no escuro, mas nesse
momento ela era aterrorizada por outra bruxa, por mim.
Eu atravessara o estômago de Irene com a perna da cadeira e a
madeira parara a milímetros do rosto de Scarlet.
Me movi para frente de minha inimiga que caíra de joelhos
enquanto me encarava, parecendo ter encontrado respostas para tudo que
ocorrera no passado.
— O que está esperando? Acabe comigo! — vociferou Irene. — Até
segundos atrás, eu pensei tanto que você fosse a vítima, uma mulher iludida
por uma besta. Eu não podia estar mais enganada.
Cravei minhas unhas em minhas palmas, até que o sangue vertesse e
a rodeei um pouco como ela fizera mais cedo, analisando-me e a encarando
com um sorriso cortante. Então me aproximei mais do que eu gostaria de
estar perto dela e mirei bem dentro daqueles olhos alucinados com verdades
que não poderiam ser mais falsas.
— Você deixou que ele matasse a todos. — Seu rosto tão perturbado
quanto sua mente sempre fora. — Ele se pôs contra você e te matou? Foi
isso? Você ainda pode se livrar da culpa pelo que fez e reverter o dano que
causou. Livia me ajude a salvá-las.
Irene gritou suas palavras finais e eu me abaixei até seus ouvidos,
fingindo que iria abraçá-la e ela pareceu se acalmar, seus olhos se
suavizaram quando viu minha aproximação. A tola até mesmo estendera os
braços pensando que eu iria levantá-la.
— Eu nunca morri, eu matei todas elas — sussurrei em seus
ouvidos. — Mas não se preocupe, vai se juntar a puta da sua mãe, logo.
Suas mãos agarraram meus braços, levantei seus dedos um por vez
de meu corpo, terminando por segurar sua palma e pressionei meu polegar
com firmeza, até que minhas unhas fincassem em sua pele, fazendo-a
trincar os dentes. Meus lábios se curvaram em prazer ao causar-lhe dor.
Satisfeita, eu me levantei.
— Damián, a última vai agora. Faça bom proveito. Está aqui o que
eu te devia. Estamos quites agora.
Irene ficou tão abalada que não emitiu um silvo, quando me afastei e
o círculo que fiz com meu sangue no chão ardeu em chamas negras
tragando-a para as profundezas do inferno como eu deveria ter feito no
passado.
Limpei o sangue de minhas mãos em minhas roupas, caminhei até
Scarlet e tomei sua mão, ela tentou se soltar receosa comigo. Mas a segurei,
firmemente, andei até a porta que Irene havia passado e comecei a subir
pelas escadas do porão levando a menina comigo. Um sentimento estranho
me fez olhar pelos meus ombros e observar com cuidado a terra enegrecida
pelo fogo onde esteve Irene há pouco. Eu esperava não vê-la mais, contudo
a angústia em meu peito parecia dizer que isso ainda não tinha acabado.
— Emmie... — chamou Scarlet quando chegávamos a piso superior
da casa.
Eu sorri para a menina, já sabendo que me conhecia há menos de
um ano e que eu mesma não era nenhuma jovem garota, mas uma bruxa
com alguns séculos de traumas nas costas.
— Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. — Agachei-me, me
colocando de joelhos e a abracei com a esperança de que seu rosto ganhasse
um pouco de cor e saísse daquele estado petrificado. Ela não devia ter visto
as coisas que viu. — Eu estou aqui.
Podia não ser a irmã dela de verdade e acabei a induzindo a pensar
assim no dia que cheguei à casa dos Davis, mas eu amava aquela menina.
Não era grata àquelas bruxas por supostamente terem me criado, mas era
grata a Scarlet por ter me ajudado a me adequar a esse mundo quando
regressei a ele tão perdida e atormentada.
Cada tarde que passei ao seu lado diante da TV me ajudaram a
deixar Livia para trás e me tornar Emma, a irmã de Scarlet. Eu nunca
deixaria nada acontecer a ela, mesmo que talvez estivesse chegando a hora
de deixá-la seguir sua vida sem mim.
Quatro anos depois, Universidade de Miami
— Emmie, você vai passar no vestiário do time de futebol
americano mais tarde? — questionou Isabella com mais interesse do que
devia. — De repente terminar o que começou com Taylor Jones.
A insinuação de minha amiga me fez revirar os olhos, não podia
suportar aquela ideia idiota. Isabella passava dos limites em comentar a
respeito, no entanto não fazia por mal. Estava risonha enquanto brincava
sobre a noite anterior.
— Não, acredito que não.
— Mas vocês pareceram ficar tão bem juntos na última festa da
Alpha Delta Pi.
— Não há essa coisa de nós dois juntos. — Bufei diante de sua
insistência e acelerei meus passos, embora não tinha a ilusão que isso a
calaria.
Ela era mais alta do que eu e adoraria dar passadas mais largas, não
se sentindo nenhum pouco incomodada em me acompanhar em minha
pequena corrida. Eu não era baixa, mas Isabella era como um poste modelo.
Tão alta como um poste e tão fixa em suas ideias como um mastro
que não se movia. Tudo isso combinado a uma beleza loira platinada que
uma modelo invejaria e qualquer um julgaria que seu rosto fora um bom
trabalho de um cirurgião de Hollywood. Mas independentemente do farto
dinheiro de sua família, ela era uma beleza natural e uma das poucas
pessoas que eu consideraria minha amiga.
E com Isabella, eu só tinha duas.
A outra me ensinou inglês antes que eu soubesse que seria útil um
dia e me salvou da tortura diária e de padecer pela loucura da solidão
mesmo com minha recusa em colaborar.
Já Isabella era a que insistia para que eu vivesse loucamente, tudo
que eu não queria. Sempre eufórica e de olho na próxima festa, mas não
havia dúvidas de que era uma boa amiga. Só uma que não se importava
muito com a minha opinião. Não quando ela podia me vencer pelo cansaço,
coisa que fazia constantemente. Me incomodar para que eu a acompanhasse
no lugar da moda mais recentemente aberto em Miami era seu mantra e
minha perturbação.
Bem, minha mente estava em problemas práticos nesse momento.
Uma crise pequena se fosse comparar meu passado nem um pouco
encantador, mas mesmo se a vida fosse boa, eu não imaginava ou desejava
caras em meu futuro.
Abracei forte o meu livro de História da Arte contra o peito, e, em
seguida, apoiei meu queixo naquele calhamaço antes de soltar um suspiro
cansado. Teria provas no próximo mês e uma imensa quantidade de matéria
para assimilar até lá. Decorar nomes e mais nomes de escolas de artes e
seus artistas, não era isso que eu imaginei ao entrar na faculdade de Design.
Esperava computadores e programas gráficos, não livros de arte. Não fazia
Belas Artes, afinal. Não que eu entendesse de computadores também, mas
me parecia que seria menos chato.
Eu não devia ter me matriculado nesse curso ou em nenhum outro.
Era cansativo e chato demais. Fora que eu não tinha ideia de como daria
conta disso sendo que ainda estava tentada em ir ao aniversário de Scarlet
na casa de seus pais.
Já havia muito tempo que não a via e as ligações de Scarlet cada vez
mais se escasseavam, por isso não podia faltar. Meu coração saltara quando
ouvira sua voz há dois dias pedindo para que eu fosse a sua festa, ela não
ligara nos anos anteriores. Minha irmã parecia ansiosa e sua voz tremia ao
telefone. Eu quase dissera naquele momento mesmo que iria, mas eu
precisava ponderar se deveria me reaproximar dela ou não.
Só mesmo ela parecia se importar comigo, mesmo que pouco.
Depois do ocorrido há quatro anos, o senhor e a senhora Davis só
fizeram se afastar. Eu não podia culpá-los. Não depois do perigo que Scarlet
correra. Mordi os lábios aflita, pois não demoraria muito para que mesmo
minha irmã não tivesse muito mais interesse em mim. Já era uma
adolescente e logo não sobraria muito mais de seu tempo para uma irmã
mais velha falsa e tão diferente dela.
Eu deveria ter apagado a memória dela sobre aquela noite de
Halloween, mas estava fraca demais após banir Irene para o inferno e mal
tinha recobrado a consciência sobre quem eu era. O medo de danificá-la de
um jeito irreversível era um risco que eu não correria para me proteger.
A droga foi que ela contara aos seus pais e como eu nunca os fizera
acreditar que eu era sua filha de fato, eles logo impuseram uma distância
física de mim, já que psicológica nunca foi um problema para eles. Mesmo
aquela família tendo me ajudado quando o senhor Davis me encontrara
voltando de suas entregas em sua viagem de caminhão, tão perdida e
desprotegida na estrada próxima à sua casa.
Devia ter brincado com suas mentes um pouco antes que fritasse a
minha, só que eu não estava pensando friamente quando os conheci, me
encontrava arrebentada por fora e destroçada por dentro. Mentes instáveis
fazem merda e fiz uma imensa naquela noite ao decidir esquecer quem eu
era e recomeçar.
Acabara de fugir de meu cativeiro com um monstro em minha cola e
corria por um milharal com minhas saias se prendendo nas plantas e com o
medo percorrendo minhas veias que se eu tropeçasse, ele me alcançaria e eu
estaria em minha cela novamente antes que eu pudesse ver o sol do mundo
humano depois de tanto tempo. O senhor Davis não o viu na estrada, ele
fora só um vulto que passara a sua frente, mas me fizera um favor ao
atropelá-lo quando corri em direção ao caminhão e ele o pegou em cheio.
Só por esse feito, eu era grata. Embora o senhor Davis nunca soubesse o
que tinha feito.
Eu o agradecia ainda mais por ter descido do caminhão e checado a
estrada ao estranhar o tranco que o carro recebeu como se tivesse atingido
alguma coisa. Ele me encontrara ali e me levara para sua casa.
Era doloroso que eu não teria lugar naquela família e havia sido só
um sonho tolo que me tomou por um tempo, poderia suportar passar por
isso, não era como se fosse a primeira vez que seria abandonada e no fim
estava acostumada a solidão, mas não doía menos por isso.
Embora nesse exato momento com Isabella me atormentando,
desejei um pouco de solidão.
— Sério que não vai dar uma chance para Taylor? Ele é um cara e
tanto, qualquer garota do campus gostaria de estar em seu lugar se
agarrando com um quarterback como ele.
— Ele não me interessa.
— Se você não der, eu dou hein? — Simpatizava que ela se
preocupasse em não roubar o homem da amiga, embora não fosse
necessário. Eu não queria esse homem em questão.
— Por mim você pode dar o que quiser — falei com pouco caso e
dei de ombros.
— Não nego, isso me alegra — Isabella afirmou, mordendo os
lábios e olhando para o lado, já pensando o que faria com aquele jogador,
provavelmente.
Ela não se mostrou nenhum pouco ofendida por meu comentário
grosseiro, eu julgaria que se sentira incentivada. Fiquei aliviada. As
palavras saíram de minha boca sem pensar, mas não gostaria de ofendê-la.
Por vezes esquecia que Isabella era uma jovem garota e se comportava de
acordo com sua idade. Eu não o era, então tudo aquilo só me aborrecia.
Ainda mais que estava aqui só para me formar e tomar conta de outros
assuntos que me trouxeram a essa faculdade específica.
Taylor Jones já havia servido ao meu objetivo de ontem à noite e
não tinha mais utilidade para mim. Ele valera o meu aborrecimento de me
esgueirar de penetra naquela festa idiota de irmandade. Ao menos eu
esperava que tivesse surtido efeito no meu probleminha pessoal e a ceninha
interpretada exorcizasse de uma vez por todas a assombração que insistia
em ficar sobre mim.
Então sem mais festas para mim. Não entendia por que Isabella
gostava dessas coisas. Se não fosse sua embalagem bonita e seus interesses
festeiros, ela seria exatamente como os geeks da TV numa versão voltada
para o mundo dos negócios. Minha amiga cursava administração e suas
notas eram altas sem que gastasse muito tempo estudando, no que me
constava ela não gastava era tempo nenhum, enquanto eu tinha que fazer
um esforço tremendo só para conseguir me manter na universidade.
Mas isso devia ser mais uma das coisas da juventude que eu não
entendia, ainda mais que nunca tive a oportunidade ser uma garota normal e
agora já era tarde para isso. No entanto, minha amiga fazia questão de tentar
me arrastar para essas coisas, e isso era algo que eu também não entendia,
mas considerei que ela só me quisesse fazer feliz.
Observei o perfil de minha amiga, ela ostentava bobos olhos
sonhadores no rosto e eu acabei deixando escapar um sorriso matreiro.
Certamente, a figura musculosa Taylor com sua cabeleira morena e cheia de
si deveria combinar bem com a figura curvilínea e loira de Isabella, ambos
fariam um bom casal e eu os desejava sorte, se durassem, é claro.
Eu estava fora dessa equação e não era nem por causa de Isabella,
embora teria saído de cena só para deixá-la contente.
Não possuía nenhum interesse em Taylor e mesmo que eu tivesse,
eu o cederia a Isabella. Ela era minha amiga e não era como se eu quisesse
atrair homens. Tentei me livrar de um através de Taylor e não conquistar o
quarterback.
— Conhecendo o padrão desses caras, Taylor Jones vai pegar
alguma outra garota enquanto sai com você, e em retribuição você estará na
cama de algum amigo dele na semana seguinte.
— Bem, ao menos tento achar o cara certo — Ela riu da minha
implicância e mordeu os lábios mostrando divertimento. — Melhor do que
você que nem tenta, estranhei que se jogou nos braços de nada menos do
que do quarterback da universidade e numa festa que nunca quis ir antes.
Causando ciúme em alguém?
A curiosidade brilhava em sua face, mas ela nunca saberia a
verdade.
— Estava bêbada. — Menti para encerrar o assunto.
— Ah, deveria ter me avisado. Pensei que estivesse bem — Seus
olhos se apertaram contrariados diante da minha história fajuta. Eu nem ao
menos bebia e certamente ela nunca me vira derramando álcool. — Mas te
conhecendo bem, aposto que prefere aquele cara esquisito que está sempre
te mirando pelos cantos.
— Não sei do que você está falando — desconversei, não queria que
ela fosse por esse tema específico, a assombração que eu tentava afastar.
— Não minta, é óbvio que ele gosta de você. — Isabella mordeu os
lábios e balançou a cabeça um pouco pensativa antes de continuar. — Ele
até que é bem bonito, claro, se ignorarmos as roupas sem graça, o
comportamento antissocial e o fato de que corre das garotas.
Ela parou de falar e me deu uma olhada que eu já imaginava que
estava julgando as minhas roupas sem graça e meu comportamento
antissocial semelhante ao do cara que comentava.
— Ele combina com você. — Um sorriso irônico brotou em sua face
e eu revirei meus olhos. — Não me entenda mal. Enquanto as garotas
fogem dele tanto quanto ele corre delas, você, minha cara amiga, está nas
listas de caras bem atraentes e doidos para te levar para cama.
— Pare com isso. — Tomei distância de Isabella sem resultado, ela
já me alcançava e agarrava um dos meus braços me impedindo de escapar
dela e daquela conversa.
— É verdade. Não estou brincando. — Uma risada fina e divertida
vibrava entre seus lábios só para aumentar a minha indignação. — Todos os
dias me procuram querendo que eu ajeite um encontro com você.
— Não estou interessada.
— Bem, se ficar, me fale que eu marco com o mais bonito e forte
dos que me procuram. — Ela fez uma pausa e apertou meu braço, detendo-
me quando eu já tentava me afastar novamente. — Mas se o seu negócio for
garotas, eu sou só sua amiga, tá? Mas posso arrumar algumas garotas
também.
— Isabella! — Tenho certeza de que minha voz saíra mais fina.
— É só para deixar clara nossa situação, somos apenas amigas. —
Ela parou e deu uma nova olhada de cima a baixo em mim antes de
continuar. — Até que curto góticos, mas só se forem caras.
Ela piscava sendo encantadora mesmo enquanto falava mal de
minhas roupas e sugeria marcar encontros que eu não queria ir. Não deveria
estranhar que ela sugerisse que eu tinha interesse nela diante das minhas
negativas em ir a encontros, Isabella cogitou tal coisa.
Suspirei cansada, deixando meus ombros caírem já farta daquela
conversa.
Por vezes era esgotante viver nesse mundo. Ao menos antes eu não
precisava lidar com gente e não imaginava que isso seria tão desafiador.
Todo dia era uma batalha que eu preferia não entrar.
— Eu gosto de homens — afirmei, eu só não queria um.
— Ah, então vamos reduzir a lista de pretendentes a metade.
Dei um suspiro cansado, cada vez mais exausta, não exatamente de
Isabella, mas daquele ambiente todo.
— Não desejo sair com ninguém, Isabella.
— Nem mesmo com aquele esquisito? Ele parece meio geek.
Góticos parecem se dar bem com geeks. — Seu rosto se franzia em dúvida
enquanto ela mordia a ponta da unha rosa choque muito bem-cuidada de
seu indicador e tramava encontros que eu não iria não importava o quanto
insistisse. — Não, creio que queira nem mesmo ele.
— Você está certa, não tenho interesse em ninguém.
— Bem, não desistirei. Encontrarei alguém para você.
— Isabella, já disse que não quero.
— Olha, eu sei que você é autossuficiente e já provou isso da vez
que me ajudou — Ela torceu a boca num bico descrente, enquanto analisava
minha estrutura.
Meu corpo parecia mais definido do que de uma americana comum,
bem eu não era dali afinal. Mas não justificava como eu conseguira salvá-
la.
— Até hoje não sei como conseguiu me tirar daquele bar inteira, eu
estava muito bêbada. Mas todo mundo precisa de alguém, até você.
— Garanto que não preciso — afirmei, apesar de que sabia que ela
não desistiria.
Isabella franziu as sobrancelhas bem-feitas não acreditando que eu
pudesse estar falando a sério, e talvez pensando se deveria me levar para
repaginar meu visual.
Bem, eu não importava se ela acreditasse ou não em mim e
certamente não via problemas em minha aparência.
Ela me chamara de gótica e eu já tinha percebido que se referiam a
mim assim na faculdade, mas acabei não me importando muito com isso.
Eu aprendera que gótico era um estilo de vida e estética sombria, e poderia
até ser relacionado a gente como eu, uma bruxa, pelo menos considerando
as crenças humanas. Mas meu visual não tinha nada haver com isso, era só
a mistura de falta de dinheiro, praticidade e a necessidade de não chamar a
atenção para seguir viva.
Estar sempre coberta de preto atendia ao último propósito, as roupas
simples e confortáveis também. Não me destacar, manter meu humor sob
controle e evitar dar mostras de magia por aí.
Manteria meu couro a salvo, fora que a cor negra servia de escudo
para manter a energia dos outros longe de mim, protegia meu campo
energético bloqueando em parte a influência de energias externas.
Quanto ao resto, não via sentido em gastar tempo e não tinha muito
dinheiro para acessórios. Nem maquiagem eu usava, não via motivos para
isso. Mirei aos meus velhos tênis All Star de napa preta e depois ergui meus
olhos para a cintilante Isabella, em seu vestido rosa-bebê tão curto e
brilhoso como só ela poderia ostentar num dia comum na universidade.
Andando com Isabella por aí, em comparação a ela eu deveria
parecer uma gótica básica ou talvez uma gótica pobre sem os penduricalhos
que me caracterizassem definitivamente assim na opinião do pessoal ali.
Mas nunca pretendi me enquadrar aquele lugar. Eu só era eu, não estava
pretendendo seguir nenhuma moda seja qual fosse ou me ver forçada a me
envolver com um homem qualquer só porque os anos passavam e a
sociedade continuava a exigir que todos obrigatoriamente tivessem alguém,
parecia que a Idade Média não havia passado de todo.
Então que me chamasse de gótica ou gótica-caipira como eu já
ouvira por aí algumas vezes. Aquela gente não me causava nenhuma
inquietação a respeito disso ou qualquer outra coisa.
Minha preocupação residia na ligação tão incomum de minha irmã
praticamente exigindo que eu voltasse para a comemoração de seu
aniversário, quando não me mandara nem mesmo uma mensagem por
meses e quando eu não a via há mais de três anos.
Faltavam duas semanas para a comemoração, eu pensaria a respeito
antes de voltar para Cartersville novamente, não tinha muito interesse em
reviver os acontecimentos que me levaram a deixar aquela cidade.

Me dirigia à sala da próxima aula do outro lado do campus,


deixando Isabella sozinha para correr atrás do jogador no campo de futebol.
Eu tinha aula daqui a poucos minutos de Gestão de Marketing em Design e
não tinha a menor vontade de aguardar por ela, enquanto aqueles dois
provavelmente trocariam amassos embaixo da arquibancada ou mesmo
fluidos.
Era bom ter uma colega com quem circular, isso fazia com que eu
me destacasse menos do que se me isolasse totalmente, mesmo com os
problemas de me compararem a ela. Fora que abria portas como fora o caso
de Isabella.
Ainda mais quando a amizade em questão era uma garota rica e
cheia de contatos com um pai dono de boa parte dos hotéis de luxo entre a
Flórida e Nova Iorque, nunca se sabia quando se precisaria de favores.
Mas eu não fazia questão de estar grudada com ela todo o tempo, e
muito menos ao seu lado, enquanto ela experimentava o tipo de aventura
envolvendo bolas que vivenciava nesse exato momento.
Mesmo que nossas aulas fossem no mesmo local, o prédio de
Ciências Humanas do outro lado do campus, eu preferia me adiantar e ir na
frente do que ficar a esperando até que ela terminasse com Taylor.
Eu tive sorte de conhecê-la a caminho de Miami, embora acreditasse
que outra pessoa pensaria que a sorte fora dela ou teria sido carregada
totalmente bêbada por alguns motoqueiros com idade para serem avôs dela.
Isabella e suas aventuras, um quarterback não era nada perto de estar num
bar na estrada sozinha e muito longe de completar vinte e um ainda. Nem
era para ela estar num bar. Pelo que eu vi, nesse país não se bebia até essa
idade e Isabella nem tinha dezenove na época, mas eu que não era besta de
discutir isso com ela. Ela me ignoraria, só me restava cuidar de suas costas
e garantir sua segurança mesmo hoje e ela nem percebia, entretanto notara
na época.
Esbarrar com Isabella, acabou por resolver os meus problemas e os
dela também, eu precisava de dinheiro e ela de proteção.
Uma surra nos caras, uma garota agradecida e um pouco de magia
foi tudo que precisei para cair em suas graças. Depois disso um pouco de
convencimento e sugestão regada a encantamento e capturei sua amizade,
ela me queria ao seu lado e eu ganhei a minha entrada garantida para a
Universidade de Miami.
Não que eu gostasse muito daqui, mas sim porque eu precisava estar
aqui.
O melhor de tudo foi a bolsa de estudos que Isabella conseguiu para
mim já que não haveria dinheiro que me bancasse no lugar. Algo de bom
em ser uma bruxa centenária, era um tanto fácil forçar algumas mentes,
ainda mais tão fracas como a de minha amiga. Eu gostava de Isabella, mas
não podia negar que não fora difícil convencê-la.
Em troca dos favores que me fez, ela teria minha eterna proteção e
que no caso não seria necessária para se esfregar num cara qualquer.
Não acreditava em caridade, tudo tinha um preço e eu sempre
retribuía por auxílios passados. Me ajudar era um bom negócio. Se algum
dia ela precisasse de mim, eu estaria lá.
Embora não achasse que ela precisaria de ajuda de alguém ao menos
que resolvesse se meter em confusão de novo, tão bem-nascida como era,
bem, talvez ela precisasse de ajuda para esfregar a cara de um atleta no
chão. Podia não ser a de Taylor Jones, poderia ser de outro. E isso não seria
algo que eu negaria a ela, desde que ninguém visse o corpo, não faria caso
de massacrá-lo por Isabella. No fim do dia, minha lealdade era dela.
Eu sempre pagava pelo que faziam a mim, de bom ou ruim. Isso era
certo.
Lealdade, uma palavra muito forte e indigna de boa parte dos seres
viventes que a proferem. Algo que deveria ser inerente a pessoas que te
ajudam, embora quase todos agissem mais como os senadores de César e
uma faca nas costas era tudo que você poderia receber no fim dos seus dias
de governo.
No entanto, a maioria merecia essa faca.
Era assim que se deixava um trono, destruído pelos próprios
seguidores e assim eu fizera com a mãe de Irene e todos os seus, mas ela
merecera. Eu acreditava que sim, que me fizessem a bruxa má dessa
história. Eu não importava, não que eu fosse tanto, mesmo que eu tivesse
me regozijado no final. Sim, o tinha feito. Talvez não devesse ter ficado tão
feliz com o fato.
— No fim, eu não era uma seguidora dela, encarcerados não devem
lealdade.
Apesar das minhas más ações eventuais, eu ainda era digna o
suficiente para cuidar de quem já me estendeu a mão quando não tinha nada
além de raiva, bem essa última sempre fora uma constante.
Não dava para negar.
Embora a vingança não fora tudo que me manteve respirando esse
tempo todo. Eu detestava que minhas memórias tivessem retornado, boa
parte delas, porque me dava mal em quase todas. Mas algumas eram as
doces lembranças da retribuição e outras as doces vivências do que perdi.
Um vento forte vindo de lugar nenhum ergueu meus cabelos que
estavam longos novamente depois de quatro anos que os cortara num
ímpeto de fúria pelos anos de agonia que me foram presenteados. Era
melhor não pensar nisso, não podia me dar ao luxo de me abater em
prostração de novo.
Afastei os fios que cismavam em colar no meu rosto e os ajeitei
atrás da orelha.
Me concentrei na sensação do vento tocando meu corpo com força,
era reconfortante, recordava-me do deleite que o toque de meu amado Darío
me proporcionava, tudo que eu tivera de bom em minha vida viera dele.
Todas as minhas boas lembranças. Mas ele estava longe dos meus dedos e
não retornaria.
Até isso aquele coven havia me roubado. Elas me tiraram ele.
Apertei meus braços ao redor do meu corpo, mas eles não
substituiriam as mãos dele sobre mim. Nada o faria. Uma profunda
respiração de desalento e o cheiro do mar invadiu meus sentidos, mais forte
do que o normal para aquela cidade, talvez estivesse vindo uma tempestade.
Um vendaval seria bom para recarregar minhas forças, era tudo que
eu mais ansiei por anos em meu cativeiro, além da companhia de outra
pessoa. Não temia o vento por mais que ele se esforçasse em sacudir as
palmeiras que ladeavam meu caminho pelo campus.
Passava pela área do prédio principal da universidade e parei na
murada que dava vista para um exagerado lago artificial com um chafariz
jorrando água no centro. Embora fosse muito pretencioso, eu não negava
que era bonito. Todo o complexo era uma maravilha arquitetônica moderna
ao mesmo tempo em que contava com gramados verdes e uma boa fonte de
água.
A agitação das palmeiras piorara mais ao longe, eu esperava que
fosse um evento comum meteorológico, um furacão talvez. Sim, isso seria
bom. Não que a população local fosse concordar comigo, mas eu preferia
algo assim a um aviso de que logo eu teria que me alongar para esfregar a
cara de alguém no chão.
Corri meus olhos por todo o lugar, podia extrair a força da natureza
aqui embora estivesse numa região urbanizada. Sim, eu não temeria os
ventos ruins que pudesse me alcançar, os bons sempre estariam ao meu
lado.
Eu tinha minha própria força e onde alcançar mais se necessário.
Esperava que me deixassem em paz, já se alegraram muito com minha ruína
por um longo tempo, eu ansiava que tivesse sido o suficiente. Mas era
sensata o suficiente para saber que não podia contar com essa sorte.
Mirei as horas no visor do celular e não pude evitar de franzir os
lábios aborrecida, eu já estava atrasada para a aula. Dei de ombros
conformada, não era como se eu amasse essa aula mesmo ou qualquer
outra, não teria problemas em matá-la dessa vez.
Embora desejasse era que essa fase de estudante universitária
acabasse. Já estava saturada de assistir a aulas e fazer provas.
Contemplei com tédio o caminho que percorria antes até o prédio de
Ciências Humanas e ainda estava muito distante, entrar atrasada na sala
seria pior do que não dar as caras. Então, era melhor ficar por aqui.
Contornei a murada por um tempo, até que alcancei o gramado e me
deixei deitar naquela profusão de vida que cobria o lugar. Me lembrava de
como era me afundar no meio das flores em minha outra vida, um dos meus
poucos momentos de felicidade longe daqueles olhos vigilantes.
Era fim do dia e a despeito da ventania, o céu era bonito. O sol o
tingia num misto de púrpura e mandarina que levou minha mente longe
para os tempos que eu sempre podia apreciar um horizonte assim, na
pequena Trasmoz. Não que fosse muito frio ou feia a região da Geórgia
onde me abriguei por um tempo na casa dos Davis, mas nada se comparava
ao calor e os céus claros da Espanha, embora o céu de Miami se
assemelhasse um pouco ao do meu antigo lar.
Em alguns dias essa semelhança era uma benção e em outros uma
maldição que eu somente gostaria de esquecer, infelizmente as lembranças
não puderam ser mantidas longe por muito tempo.
Fiquei ali pelo que me parecia uma eternidade repensando meus
passos no passado e onde eu errara, se tudo podia ter saído diferente. Mas
depois de um tempo me martirizando, percebi que nada mudaria, não
importava que passo eu tivesse tomado. Estava feito e em alguns momentos
eu desejava não ter recordado de tudo e em outros, desejava não ter
apagado até mesmo minhas lembranças sobre Darío.
Aquele pôr do sol me lembrava mais do que de casa, transportava
minha mente e meu coração para os tempos que ansiava por um homem que
pouco eu podia ver e tocar. Era assim mesmo nossos encontros, sempre ao
ar livre e sob os últimos raios solares.
Ele era tão belo e eu me sentia aquecida, do rosto ao peito, e mesmo
em algumas partes mais íntimas, só de ver seu rosto sendo beijado pelo sol,
corando como se o astro nunca o tivesse banhando. Mas era certo que não o
tinha tocado com muita frequência, talvez ainda menos do que eu. Não era
só seu rosto que se tingia num vermelho quente, suas asas adquiriam
alguma cor e brilho sobre o toque suave do sol do fim da tarde, era entre
elas e seus braços que eu me afundava sempre que ele vinha ao meu
chamado.
Se eu fechasse meus olhos bem apertados era quase como sentir sua
presença, Darío era a minha melhor e pior lembrança. Certo era a que me
causava mais dor e, por isso, lutava para manter longe, o que era
impossível. Ele atormentara minhas noites pelos últimos seiscentos anos e
me dera uma trégua só pelo ano que apaguei toda minha vida de mim e
inventei novas memórias.
Irene também não me facilitara as coisas ao planejar aquela
armadilha e acabar por trazer à tona tudo que me esforcei para esquecer. Me
perguntava onde no inferno aquela maldita estava depois de aterrorizar
minha mente, levantando todos os panos que eu me esforçara tanto em
espalhar para cobrir tudo.
Por mais que eu tentasse esquecer meu passado e a memória do
homem que amei me causasse agonia por não mais sentir seu toque, eu não
resistia em voltar e voltar para ela, para ele.
Melhor era o tempo que eu fritara meu cérebro, não carecia de
esforço para mantê-lo longe. Essa era a verdade, mas custara caro.
Cerrei meus olhos e inalei o ar do lugar, deixando o cheiro fresco da
grama recém cortada fundido com a vivacidade atrevida do mar mais
distante adentrar os meus pulmões e recarregar minhas forças.
Estendi meus braços e pernas tentando absorver o máximo da
energia que aquele solo emanava e como de costume, voltei meus
pensamentos para aqueles momentos que eu tocava o corpo de meu amado
Darío, as reentrâncias de suas costas, a envergadura de suas asas e
ahh...também tinha aquela envergadura um pouco mais abaixo próximo à
sua cintura, mordi meus lábios recordando como era apertá-lo ali.
Meus pensamentos foram tão longe dessa vez que eu podia não só
sentir sua presença costumeira, quanto seu cheiro, um toque de almíscar que
se sobrepunha a grama e ao mar. Sua essência confundia meus sentidos,
embriagando-me, enquanto sua sombra me cobria como eu desejava que
seu corpo o fizesse tão logo, mas levava seu tempo me observando e
escondendo o sol que teimava em não ir embora só para estender seu abraço
sobre ele como eu tanto desejava fazer.
— Emma, o que faz aqui? O tempo está virando.
Arregalei meus olhos assustados com a voz que me chamava e me
deparei com outro homem que não estava só me cobrindo com sua sombra,
mas que se tornara a minha própria, Andrew Williams, o loiro alto de
profundos olhos verdes que pareciam a cor da menta só que não eram
refrescantes aos meus, mas sim sempre um encargo a suportar.
Embora um peso em minhas costas que sempre sorria para mim
como se eu fosse o seu sol. Mas eu não estava em condições de iluminar
ninguém, nem antes e menos ainda nesse momento. Eu ficaria feliz se ele,
graciosamente, saísse da minha órbita e colidisse com a de outra pessoa.
Fazíamos algumas aulas juntos desde o primeiro ano, e,
infelizmente, ele não parecia ter interesse em sair vagando pelo espaço.
Ficava mais do que feliz com nossa amizade esquisita e não declarada.
— Só descansando antes da próxima aula, Andy — optei por uma
resposta educada e não sugeri sua colisão com outra estrela.
— Senti sua falta em Gestão de Marketing — ele disse e me
surpreendi que o tempo tivesse passado tão rápido.
Como eu não pude perceber que uma hora passara tão rápido?
Decerto meu ímpeto de me reabastecer um pouco com a vibração da
natureza e lembranças um bocado indecentes de Darío possam ter
contribuído para tanto. E desse jeito, a aula simplesmente acabou, durante o
tempo que eu estivera aqui deitada na grama com pensamentos um pouco
quentes demais pulsando dentro de mim assim como a energia que eu
extraíra do lugar.
Mas por que justamente tinha que ser Andrew a passar por ali? Com
sua eterna carência moldada num olhar de cachorro pidão vestido com uma
camiseta de estampa colorida de super-herói como uma boa mascote.
Daria um desconto para ele, pois estava vestido com a da Mulher-
maravilha[8], sinal de que ele tinha bom gosto e eu, finalmente, aprendi o
nome da personagem, nesse momento, consegui entender minha dificuldade
de decorar essas coisas. Aprender tanto em tão pouco tempo sobre o mundo
moderno era difícil, mas eu o fizera assistindo a TV com Scarlet.
No entanto, ainda era muita coisa para assimilar tão rápido.
— Bem, eu estava bem aqui. — Me sentei e ergui meus braços
como num show de mágica quando a ajudante faz sua grande entrada, vindo
de algum compartimento secreto.
Só que meu esconderijo ali era nítido a todos, mas distante do
mundo. Ao menos até ser encontrada para mais um discurso de: Como era
perigoso estar sempre sozinha; Andrew diria, além de sempre repetir que
eu deveria andar com outras garotas ou ele faria a minha segurança. Bem,
era mais provável que eu guardasse suas costas atualmente. E eu não estava
sozinha o tempo todo, muitas vezes, estava com Isabella, somente ficava só
quando fugia dela, mas no caso eu que cuidava dela.
— Não tem ninguém nos arredores — alertou ele.
— Sim, e isso é bom — falei, chateada pela minha paz ter acabado.
— Bom? Você poderia ser atacada! — exclamou com o cenho
franzido, um sinal de que não aprovava muito meu adorável isolamento.
— Num campus universitário? — questionei e apontei sua roupa. —
Vestindo a camiseta de uma amazona[9], mas sem qualquer fé nas garotas.
Algo lamentável de sua parte.
Bem, no que se referia a mim não havia qualquer necessidade de
preocupação. Era perfeitamente apta em me manter segura, ao menos
naquele mundo e contra um moleque qualquer.
— Não sabe a quantidade de tarados que tem por aí. Vem, estava
indo mesmo para a aula de Desenho Técnico e Aplicado. — Ele me
ofereceu sua mão e eu paralisei, observando-a estendida para mim um
pouco antes de recusar sua ajuda e me levantar sozinha.
— Está bem, já estou indo — anunciei. — Fique feliz e volte a seu
caminho agora.
E esqueça o meu, eu tive de vontade de acrescentar.
— Acompanho você. Estou indo para o mesmo lugar de qualquer
forma.
Eu não tinha argumentos contra isso, só que eu preferia ir para outro
lugar. Mas seria muito grosseiro de minha parte falar tal coisa e eu
definitivamente não o diria a ele. Então, só me restava seguir ao seu lado
para a aula.
Caminhava ao lado dele, mantendo alguma distância de seu corpo e
com um silêncio incômodo, até que resolvi quebrá-lo com meus
comentários exagerados.
— Acho que vou pular essa também. Não entendo nada nas aulas
mesmo. — Odiava aquela matéria mais do que todas as outras e era uma
boa desculpa para recusar sua companhia. — Aquilo nem é desenho, é
geometria.
— Por isso é chamado de desenho técnico. — Ele resolveu esboçar
um sorriso sarcástico que arrancou uma careta minha, não consegui evitar
de mostrar a língua.
— E por isso eu chamo de chato. Não há nada de interessante ou
criativo.
Ele deu de ombros, parecendo conformado com a chatice da vida.
— E o que há de interessante na faculdade? Eu queria desenhar
HQs . Mas depois de três anos sem um emprego decente depois de me
[10]

formar no colégio, fui delicadamente induzido por minha mãe a vir para cá.
— Ela não deixa de ter a razão. A vida é difícil lá fora. — Eu bem o
sabia. — Fez bem em ouvi-la.
— Eu sempre ouço, mesmo quando não gosto do que ela diz.
Não pude impedir de mover meus olhos para ele com uma ternura
que me era incomum. Andrew me tirava do sério, mas não podia negar que
era um bom homem e me deixava feliz que ele tinha uma boa mãe.
— Então, escolhi o que me pareceu mais fácil e próximo ao trabalho
que queria fazer e nunca errei tanto. — Andrew completou, sorrindo e
coçando a cabeça sem graça. — Mas estou aqui, resistindo. Falta pouco
para acabarmos o curso. Então, só aguente firme também.
Realmente, ser um design e ser um artista eram coisas que pareciam
alinhadas, mas estavam bem mais distantes uma das outras do que alguém
fora da área poderia imaginar.
— Está cada vez mais difícil e essa matéria em específico parece
que é capaz de sugar toda a vida das pinturas. Se os grandes artistas
trabalhavam assim, creio que aquela coisa de colocar a alma no trabalho era
meio equivocada. Elas não tinham era nenhuma.
— São os superpoderes do Desenho Técnico, acho que ninguém
descreveria tão bem como é cursá-la como você o fez — brincou ele,
virando seu rosto em direção ao meu. — Mas por que você entrou nesse
curso afinal?
Fiquei muda diante de sua pergunta e isso não era nada bom, ele não
desistiria até que me cansasse e desse uma resposta convincente.
— Eu te falei minha história, sua vez de contar a sua — insistiu ele.
Conviver nesse mundo de fato era exaustivo. Andrew se pusera na
minha frente, braços cruzados e detendo meus passos, imóvel com uma
pedra inconveniente no meu caminho e aguardando uma resposta que não
poderia dar a ele. Então optei pela mentira, apesar de que não deixava de
ser verdade.
— Eu não tinha nota para mais nada nem atividades
extracurriculares para tentar qualquer outra coisa. Não tinha nada para me
levar a lugar nenhum, então aceitei o que me ofereceram.
De fato, era o que eu fizera a vida toda. Não me restava outra coisa
que aceitar qualquer coisa que me dessem.
— O que fez durante o colégio todo? — brincou ele, não
percebendo o quanto suas perguntas me abalaram ao me recordar de minha
situação.
Ir para a faculdade naquele país era um projeto que se trabalhava
desde cedo para fazê-lo, como explicar que nunca fui a uma escola? Que
nem ao menos eu era desse século? Como dizer que eu tinha nascido em
mil e trezentos e alguma coisa?
Ou ainda melhor? Onde eu estava quando deveria estar na escola?
Ah, Andy você não gostaria de saber onde eu estive esse tempo
todo. Seu aborrecimento comigo exposta a garotos aqui não seria nada perto
do seu estado de ânimo se soubesse as coisas pelas quais eu passei.
Era melhor que continuasse sem saber.
— Vai no jogo amanhã da nossa universidade? Vai ser um bom
amistoso entre o Hurricanes[11] contra o time da Universidade do Sul da
Flórida? Encontrar seu jogador? — questionou, mudando do tom alegre e
divertido para o amargo que secou até as palavras em minha boca.
Queria lamentar por ele ter mudado de assunto tão de repente para
um ainda pior que eu preferia evitar a dizer a verdade, mas acabei optando
por ela.
— Ele não é meu. Isabella tem interesse nele.
Vi o alívio em seu rosto e resolvi que ele não poderia permanecer
com aquela boca boba exibindo um sorriso mais do que animado. Eu devia
ter mentido antes ou melhor continuado com a mentira que comecei na festa
da irmandade.
— Mas, sim, irei a partida, quem sabe não arrumo outro jogador? —
brinquei, virando-me com a intenção de me afastar logo dele e me vi não
tão surpresa com sua mão em meu pulso detendo meu afastamento.
Ele exibia um cenho franzido contrariado tão comum a ele quando
eu passava do limite em minhas provocações.
— Mais alguma coisa, Andrew? — questionei, num aviso que não
havia motivos para me reter ali.
— Não, nada. — Sua voz não podia esconder o desgosto expresso
em seu rosto e vi a frustração faiscar em seus olhos um segundo antes que
sua mão caísse pesada ao seu lado e eu continuasse meu caminho sem olhar
para trás.
Havia algo de bom nessa história toda, bastava uma palavra minha e
conseguia impor minha vontade sobre ele sem usar magia alguma.
Isabella quicava na arquibancada torcendo pelo seu cara que corria
pelo campo, como se fosse um herói nacional, indiferente a uma multidão
tentava detê-lo, bem ele era, ao menos daquele povo alucinado que gritava
palavras de incentivo da arquibancada.
A torcida vibrava em êxtase, já eu olhava para o campo e só via um
monte de homens brincando com uma bola. Nenhum herói entre eles. Eu
merecia aquela tortura autoimposta por meu comentário desnecessário na
minha conversa com Andrew.
E eu aqui vim, uma vez que a mentira deveria ser tornar uma
verdade ou ele acabaria por descobrir que eu não estivera aqui. Não teve
outro jeito a não ser pegar uma carona com Isabella numa viagem de
quatros horas até Tampa para assistir a essa coisa chata. Se eu ficasse no
meu alojamento e dormisse o dia inteiro, seria mais proveitoso. Já estava
quase dormindo mesmo.
Tão cansada disso, do jogo, verdade. Obviamente da faculdade e de
evitar Andrew também. Ele poderia simplesmente entender que eu não
tinha interesse nenhum nele, mas não. Ele não conseguiria desistir, então só
me restava deslizar para longe de seu alcance toda vez.
O jeito era aguentar que logo o jogo acabaria, aquele que acontecia
no gramado e o que rolava comigo e Andrew. Só que meu jogo particular
necessitaria de tempo e distância, já a brincadeira naquele estádio encerraria
em poucos minutos e ao menos eu poderia ir para casa.
Deixei meus ombros caírem em resignação e revirei meus olhos por
um instante com desgosto daquela euforia toda daquela gente, quando senti
o clima mudar muito antes que os gritos tomassem uma intensidade
diferente.
— Emmie... — Isabella murmurou, angustiada, segurando meu
braço de repente, enquanto a torcida convulsionava em urros
ensurdecedores.
Eu voltei meus olhos para ela e depois para o campo.
Quatro caras gigantescos se jogaram sobre o corpo de Taylor e o
imobilizaram. Ele estava fora de ação e a expressão em sua face não parecia
nada boa. Eu também não estaria se tivesse homens daquele tamanho,
pesados e fortes em minhas costas me forçando no chão. Bem, não havia
heróis ali, mas ainda era uma brincadeira violenta para humanos frágeis.
“O quarteback foi pego numa blitz[12] faltando poucos minutos para
o fim do jogo do amistoso estudantil aqui no Raymond James Stadium [13]. A
torcida chora em desespero pelo seu jogador que foi carregado para o
banco e parece que irá ser substituído por seu colega de time Brandon.
Taylor Jones pareceu ter machucado feio as costelas, aqueles jogadores o
acertaram em cheio com os capacetes. É uma pena que o astro da
Universidade de Miami talvez não possa brilhar hoje. Só vamos ter a
certeza quando voltarem do tempo solicitado pelo treinador. Todos os
torcedores do Hurricanes têm suas mãos juntas rezando pelo seu
campeão.”
Isabella chorava e apertava meu braço com mais força, que já
deixava minha pele avermelhada.
— Ele vai ficar bem, não se preocupe tanto. — O rosto dela se
tornou rubro e me olhou com ultraje como nunca tinha visto antes. — É só
um jogo — falei, tentando acalmá-la.
— Nunca é só um jogo, Emma, e hoje ainda parece que tem
olheiros. — Ela quase gritava para ser ouvida entre as lamentações da
torcida. — É um jogo importante contra o Notre Dame.
— É o que eu disse, um jogo. Não é vida ou morte — insisti.
— Taylor vem treinando pra isso. Ele esperava fazer o ponto
decisivo e isso seria a chance dele para ir para a NFL[14]. — Ela arfou,
angustiada e eu estava era consternada que ela já soubesse tanto sobre ele.
— Ele perdeu a chance dele, Emma. — Isabella cobriu seu rosto com as
mãos e eu ergui as minhas com a intenção de tranquilizá-la, mas acabei foi
concentrando minha atenção na partida.
Aquilo tudo era tão importante assim?
Não era uma guerra, não iria fazer muita diferença para o mundo
uma partida de futebol americano. Não tinha valor algum para mim, mas
era importante para minha amiga. Achei a reação dela um pouco exagerada
para quem tinha começado a sair há pouco com o cara. Mas ao ver aquele
choro todo, ela devia estar saindo com ele já há um tempo, e meu estômago
revirou por tê-lo beijado naquela festa.
Eu não tinha ideia de que ela estava com ele, Taylor estava sempre
cercado de garotas.
Isabella não comentara nada, mesmo que eu a tenha machucado.
Certo. Talvez eu pudesse fazer algo por ela.
Fechei minhas pálpebras e minha forma astral [15]deixou meu corpo
naquele banco, guiando-se para o vestiário masculino do time de futebol
para avaliar o estado do cara que estava fazendo Isabella chorar.
Encontrei Taylor cercado por seus colegas de time no vestiário com
rostos preocupados e já descrentes de que ganhariam essa partida. O
jogador estava deitado no banco, com uma perna caída para fora dele, sem
camisa e tinha o antebraço cobrindo seus olhos. Ele parecia soluçar pelo dor
da perda do jogo, mas o treinador não parecia se importar muito com o
estado perturbado que se encontrava e continuava a passar orientações
duras para os demais jogadores que não o incluíam.
Havia sido culpa dele, eu podia vê-lo se lamentando em sua mente.
Sua ganância em ser relevante nesse jogo e se exibir para qualquer olheiro
que estivesse ali o fizera não passar a bola, rapidamente, e os caras o
pegaram.
Agora ele estava fora do jogo.
Certo, não negava que esse era um esporte muito violento para os
humanos com todos aqueles empurrões e choques corporais, era óbvio o
motivo de que só os maiores brutamontes estavam aptos a brincar num
campo desses. Um homem mais fraco teria mais contusões do que os roxos
e inchaços que eu podia ver por toda parte na pele de Taylor que estava à
mostra. Ele era um desses caras musculosos prontos para aguentar as
porradas do futebol, mas não era invencível, como boa parte dos homens
gostava de pensar, era só um sujeito como todos os outros.
Cruzei os braços no peito, decidindo se valia a pena uma
intervenção, quando vi Taylor contrair o corpo e tentar levantar do banco
com seus colegas o detendo, sendo que o treinador o mandara ficar ali.
— Cara, você não pode entrar assim.
— Cale a boca, Brandon! É do meu futuro que estamos falando... —
rosnou ele. — Você só quer ocupar o meu lugar.
— Então termine por se arrebentar sozinho e arque com as
consequências, seu babaca.
O colega deu um empurrão em seu peito que fez Taylor cambalear
um pouco antes de tornar a se sentar no banco meio de lado como se mesmo
ficar em pé por aquele pouco tempo tivesse sido esgotante.
Futuro.
Isabella parecia muito interessada nele e ela era rica. Precisaria de
alguém no mesmo nível, embora o rapaz não fosse exatamente pobre, não
se comparava a riqueza dela, então tomei minha decisão. Afastei seus
colegas com uma ordem mental e toquei o abdômen dele para transferir
parte da minha força.
Suas costelas doeriam mais tarde, por ora ele estava empoderado
com uma bomba diferente do que esses caras costumavam tomar, uma feita
da minha própria energia fluindo por seu corpo.
— Eu vou voltar para o campo — afirmou ele, determinado,
levantando-se e encorajado pela minha energia correndo nele.
O treinador tentou impedir colocando suas mãos em seu peito, mas
sussurrei em seu ouvido que Taylor estava bem e ele acatou minha ordem.
Eu sorri e voltei ao meu corpo num impacto que me curvou para a
frente, a perda repentina de uma boa quantidade da minha energia vital
transferida para Taylor contribuiu para meu abatimento, enquanto ele
apareceu logo depois bem e corado cruzando o campo e se posicionando
para o término da partida sob o uivo da plateia.
— Você está bem, Emmie? — Isabella questionou, enquanto me
amparava com um braço sob meus ombros.
Ela assentiu, aliviada, e me ajudou a me sentar, mas logo depois já
se concentrou na partida e deu gritinhos de alegria por Taylor estar
novamente em campo e parecendo perfeitamente bem.

“Taylor voltou com tudo no campo! Uma amostra de como ele


encara o esporte com seriedade. Aparentemente, a Universidade de Miami
vai continuar mantendo o nível nessa temporada. Nossa, eu ficaria com
medo de estar no lugar daqueles caras. Taylor Jones corre com a bola no
peito derrubando todos pelo caminho. Nem dá para acreditar como o
quarterback se reergueu e botou para quebrar, está ultrapassando os
jogadores da Universidade do Sul da Florida como uma máquina de
destruição.”
— Você está vendo, Emmie! Ele é incrível!
— Sim, Isabella.
Fingi concordar com Isabella, e observei o que um cara podia fazer
com os poderes de uma bruxa fluindo em seu corpo.
“O quarterback corre pelo meio, segurando a bola junto ao peito
com tanta força que parece um só com ela. Ninguém pode detê-lo. A defesa
está em sua cola, mas Taylor é imbatível! Ele finge que vai passar a bola e
só deixa o time rival ainda mais confuso com seu ritmo enquanto avança
sobre a endzone[16] e o touchdown[17] decisivo da partida é feito nos últimos
segundos! Taylor jogou como um campeão hoje e, com certeza, merece a
aclamação da torcida!”
Isabella ergueu seus braços, comemorando com euforia a vitória
dele e fiquei feliz por dar essa alegria a ela.

Me torturava em mais uma festa, mas dessa vez na casa de Taylor


Jones que comemorava a vitória no jogo e convidou a todos para que
passassem em sua casa mais tarde. E como eu esperava, ele vivia numa
residência em South Beach de dois andares com a frente coberta por janelas
em forma de arco que davam vista para um gramado verde decorado por
palmeiras e ciprestes, além de uma piscina com borda infinita, exalando
riqueza naqueles jardins bem cuidados.
Definitivamente aquele jogador não era miserável como eu já sabia,
embora não desse para comparar com a riqueza da família de Isabella. Eu
me perguntava onde ela estava nesse momento, já que insistiu que eu viesse
e eu concordei em passar uns poucos minutos aqui, mas não a via em lugar
nenhum.
Dei de ombros, não importava. Eu acabara de chegar, no entanto, já
estava de partida.
Bem, eu estaria de saída se um amplo peito não estivesse detendo a
minha saída do banheiro. Ergui minha cabeça para uns olhos azuis que
pareciam sangrar de tão avermelhados e que para minha surpresa eram de
Taylor. O cara estava completamente bêbado, e resolvera se meter comigo.
Não entendia o que levava jovens a terem tantos problemas com
bebida, ainda mais os bem-nascidos como ele, sem motivos que
justificassem um problema com o álcool que, por falar nisso, corria solto
naquela festa. Havia até mesmo barris de cerveja instalados nos jardins e os
convidados todos altos até demais. Eu nunca bebia, já era difícil manter o
controle da minha vida sem isso, então por que iria querer atrair mais
problemas sobre mim? Fora que não suportava o gosto do álcool e o bafo
daquele cara em meu rosto me dava náuseas.
Enfim, o que era cerveja para alguém que provavelmente tomava
coisa pior para manter aquele corpo que, nesse momento, me cercava contra
a parede. Ele não sabia com quem estava se metendo e descobrir poderia ser
a justificativa que ele precisava para beber mais no futuro.
— Curti muito nosso flerte no outro dia. — Ele me prensou contra a
parede do corredor, mantendo uma mão nela e outra em meu quadril. Eu
podia sentir seu pau pressionando minha barriga. — O que você acha de
continuarmos lá em cima?
Eu só achava que se ele continuasse se esfregando em mim desse
jeito, garantiria que pesadelos seriam tudo que ele teria em tempos
vindouros.
Eu o encarei e tinha certeza de que meus olhos assustariam uma
criança como ele, mas estava bêbado demais para ver o brilho platinado de
Vou te matar e vai ser com crueldade. Ergui minha mão pronta para lhe dar
a correção merecida, mas a noite começava a ficar mais complicada do que
imaginei que seria.
— Ei, solta ela! — Andrew apareceu na virada do corredor como
meu bom segurança sempre à espreita, mas que só me fez amaldiçoá-lo.
Oh, droga! Andrew tinha que estar aqui, né? Sempre estava por toda
parte me cercando. Não poderia arrebentar Taylor com ele aqui.
Definitivamente, era uma merda.
— Que coisa estranha, não permito gente como você aqui. — Taylor
o olhou de cima a abaixo, o corte de cabelo bagunçado e as roupas simples
de Andy tão diferentes das caras que ele usava. — Melhor ir embora, tenho
negócios a tratar com essa garota aqui.
— Andrew, vá embora — ordenei, mas ele era imune a qualquer
ordem mental que eu desse e essa era a coisa mais frustrante em lidar com
ele, obedecia quando queria, não porque eu mandava.
Ele não acataria meu pedido numa situação como essas.
Foi quando me distrai com Andrew que Taylor desceu suas mãos
para os meus seios e os apertou com força. Só vi a seguir o punho de
Andrew vindo para Taylor e sendo empurrado com força para o chão.
Ele o machucou usando a minha própria força. Babaca nojento.
A raiva me consumiu, empurrei seu peito com força me colocando
entre ele e Andrew e tomei de volta meu pequeno presente, além de um
pouco mais de sua força vital. Aquele jogador ganhou a partida mais cedo,
mas se arrependeria quando acordasse, ele sentiria mais do que umas
costelas quebradas.
Quando retirei minhas mãos dele e o vi caindo aos meus pés, eu
desejei bons sonhos enquanto ficaria uns dias queimando de febre e preso à
cama. Mesmo que tentasse andar, suas pernas não obedeceriam, eu absorvi
muito dele. Até mesmo seu rosto parecia um pouco envelhecido. Sorri
diante disso e fui para Andrew que tinha as mãos na cabeça. Ele a bateu na
queda e devia estar dolorida.
— Está bem Andy? — perguntei, preocupada.
— Eu que pergunto isso a você, ele te machucou? — Ele virou a
cabeça para Taylor e viu o jogador largado no chão. — E o que deu nele?
Desmaiou do nada?
— Está bêbado e caiu, só isso. Eu vou para casa agora.
— Eu te acompanho. — Assentiu ele, e sua costumeira sobrancelha
loira franzida não aceitaria um não de minha parte essa noite.

A casa de Taylor ficava bem próxima à areia da praia e me vi


andando por ali num cenário estranhamente romântico sob um céu estrelado
e uma lua cheia brilhante, então eu dei graças a deusa que o brilho dos
prédios de Miami ofuscava um pouco a luz daquelas estrelas e reduzia um
pouco o ar de noite apaixonante.
Afinal, eu saí de um atacante para um protetor apaixonado e estava
um tanto interessada para colocar fim nessa noite antes que piorasse no meu
ponto de vista.
Como eu vim parar numa caminhada sob luar com meus sapatos em
uma mão e a minha outra mão apanhada na dele? E justamente hoje eu não
tinha meus velhos tênis em meus pés, mas sapatos de salto de verniz preto
que pareciam muito com os dos poucos filmes românticos que eu já vi.
Havia um motivo para que eu visse mais os de ação, romance era mais
doloroso do que pancadas. Eu já tivera a prova disso e preferia evitar essa
dor.
Ah, eu acabei aqui, quando minha assombração metida a segurança
me apanhara pela mão ao deixarmos a casa de Taylor e me arrastara pela
areia, assim que avistara uma confusão com direito a gritaria na entrada de
uma boate que tivera gente barrada, por não se parecerem com o público
adequado ao lugar, detidos por seguranças bem mais carrancudos do que o
meu.
Com minhas roupas padrões, calças jeans escuras e camiseta preta
apertada era capaz de que apanhássemos dos seguranças também se
ficássemos perto demais do lugar. A única coisa que eu mudara no visual
eram os sapatos mesmo. Andrew não estava muito diferente de mim com a
diferença de que a camiseta dele era branca sem desenhos essa noite.
Então aqui estávamos com o detalhe perturbador de que a mão dele
não parecia muito a fim de abandonar a minha e eu pensava em alguma
desculpa boa para soltá-la sem assustá-lo. Mas não estava encontrando
nenhuma nem muito certa se eu o queria fazê-lo.
— Você vai ficar bem? — Andrew cessou seus passos na praia do
nada e me encarava a espera de uma resposta.
Eu não ficaria e não era pelo que acontecera com Taylor.
Isabella ficaria abalada se soubesse o que aconteceu, talvez. Mas eu
não, estava bem. Só um tanto preocupada por ela, caso minha amiga
resolvesse chegar na festa depois que deixamos a casa de Taylor. Até o
momento que saímos, não vira nem mesmo um sinal dela na casa.
Ótimo! Eu tinha uma justificativa perfeita para me libertar e ainda
fugir do assunto. Soltei a mão de Andrew e saquei meu celular do bolso da
calça para digitar uma rápida mensagem sob os olhos atentos dele.
— Esqueci de checar Isabella. Um minuto ou dois Andy, eu preciso
falar com ela.
Eu esperava ganhar algum tempo respondendo a mensagem de
Isabella, ela costumava mandar textos longos, um monte de risinhos e
coraçõezinhos, fora as mensagens de áudio. A deusa deveria estar ciente de
como eu odiava as longas mensagens de áudio. Isabella fazia verdadeiros
podcasts, coisa que eu não gostava ou estava a fim de me acostumar com a
modernidade, as mensagens de áudio e os podcasts, não necessariamente
nessa ordem.
Mas nesse momento eu gostaria que Isabella se demorasse um
pouco mais e exigisse minha atenção, mas, infelizmente, ela fora seca e
rápida em sua resposta. Sua gata vomitava bolas de pelo e Isabella ficara
preocupada que ela estivesse doente. Perdeu a hora e esqueceu de me avisar
que não iria à festa.
Descansei o celular contra o peito, ao menos ela estava segura.
Longe de ficar chateada por ela não ter me dado notícias, na
verdade, estava aliviada. Isabella não fora ali aquela noite nem teria que
lidar com seu namorado meio traidor, meio bêbado e que ela idolatrava.
Estaria ainda mais satisfeita se ela tivesse conversado um pouco
mais comigo ou mesmo me ligasse, assim poderia dispensar Andrew, dizer
que eu demoraria um pouco ali e pegaria um táxi depois para casa. Sozinha.
Será que funcionaria? Talvez não. Mas valia a tentativa. Contudo, meu
intento falhou totalmente antes de começar, já que minha amiga me
dispensou sem demora.
Fechei os olhos e inspirei profundamente antes de acompanhar os
olhos de Andrew que fitavam ao céu com redobrado interesse.
Ele era bom em dar alguma privacidade. Quando queria. Na maioria
das vezes era pior do que uma matrona vigiante.
Acompanhei seu olhar e fiquei ali apreciando o ar mais fresco da
noite que já começava a esfriar com a proximidade do inverno.
— Então, Emma...tudo bem com Isabella? — Admirei seu rosto ali
iluminado por aquela parca luz e ele parecia tão sério quanto sua voz, ele
ficara mesmo preocupado e eu me senti meio culpada por isso.
— Ela está bem. A gata dela está meio doente. — Falar que soltava
bolas de pelo iria parecer meio bobo, mas Isabella era assim, preocupava-se
muito com pouco.
— E você?
— O que tem eu? — indaguei, meio desconcertada desviando meus
olhos de seu rosto ao mesmo tempo em que guardava meu celular no bolso
detrás da calça.
— Você acabou de ser atacada Emma — Sua voz era tão preocupada
que doeu um pouco meu peito.
Mantive meus olhos longe dos dele e tratei de mirar a paisagem da
cidade mais adiante.
— Não dê muita importância a isso, eu sei lidar com caras assim —
falei querendo parecer o mais serena que uma garota poderia parecer numa
situação assim.
Ele correndo ainda mais atrás de mim, pensando que estava
traumatizada e assustada porque dei essa impressão e ainda poderia ser pior,
ele poderia achar que eu precisava dele. Não, eu evitaria qualquer uma das
opções anteriores de qualquer forma.
Andrew me segurou pelos ombros, apertando-os gentilmente e me
virou para si num sinal de apoio e conforto que eu era grata, embora não
fosse necessário. Eu não queria mirar seus olhos, mas acabei o fazendo e
meu coração pulou uma batida quando vi seus sentimentos brilhando neles.
— Acho que agora estou preocupado com o que aconteceu com
você para que fique tão calma assim, mas me chame por qualquer coisa que
precisar.
— Não é necessário. — Tentei recusar a oferta. Não era uma que eu
queria pegar.
— Me prometa — insistiu ele, dando um leve aperto em meus
braços mais uma vez.
— Está bem. — Eu queria tranquilizá-lo, então afirmei algo que eu
nunca faria, pois jamais iria procurá-lo.
Andrew não iria querer saber as coisas que precisei enfrentar para
que não me abalasse com um moleque inoportuno daqueles, como Taylor
Jones. Aquele nem mesmo seria um adversário digno. E eu, com certeza,
não queria vê-lo envolvido com essas coisas.
Desenho Técnico era uma coisa mesmo aborrecida. Provável que eu
precisasse colar nessa prova. Talvez um feitiço de memorização? Sim, seria
perfeito. Uma ou outra trapaça que mal tinha? Eu já tinha armado para
entrar naquela faculdade mesmo e meu objetivo nunca foi ter aquelas aulas,
embora um diploma viria a calar uma vez que eu teria que viver nesse
mundo com suas novas regras.
Mas burlá-las de vez em quando fazia parte.
Afinal, se você possuía poderes, devia usá-los em seu próprio
benefício. Gente direita não diria isso, nenhum herói dos filmes que eu
assistira com Scarlet o faria.
Mas eram as minhas regras.
Ainda mais numa matéria que mais parecia geometria a desenho,
com todos aqueles ângulos, tangências e circunferências.
E ódio! De minha parte, é claro.
Diferentes perspectivas era o título que constava na página do livro
com diversos modelos que se esforçavam em apontar as partezinhas do
desenho para que entrasse em nossas cabeças as diferenças de modo de
visualizar uma ilustração.
Pena que não estava funcionando pra mim.
Pelas deusas antigas, alguém devia simplesmente se sentar e
desenhar, sem a porra da geometria. Ah, okay! Elas diriam que nossos
templos não haviam sido feitos assim, cálculos complexos teriam sido
usados.
Só que eu não planejava construir templos. Na verdade, me passou
na cabeça derrubar alguns, pois nunca nenhuma deusa aparecia. Não
importava o quanto eu as chamasse.
Pois bem, me inscrevi em Design Gráfico, então acreditava que eu
deveria estudar editoração e quem sabe as maravilhas do Photoshop para
tirar rugas das caras de artistas em capas de revistas. Mas não, me
arremessaram em geometria, como se fosse estudante de arquitetura.
Era melhor ter entrado nessa de uma vez então, ou mesmo a boa e
velha chata engenharia. Com certeza, pagaria mais.
Soltei meu livro sobre a mesa da biblioteca com a raiva de quem
começara aquela bosta e teria que terminar. Infelizmente, olhares
reprovadores me miraram pelo meu excesso de emoção só encontrado em
pessoas que realmente amam o que fazem. Sim, eu estava saturada e em boa
parte era também por causa daqueles olhares.
— Deveria fazer silêncio, caipira-gótica — resmungou um babaca
que eu já tinha visto nas minhas aulas, sempre sentado na frente e puxando
o saco dos professores. Não recordava seu nome, quem se importaria com
um metido a inteligente.
— Sinto muito — murmurei, mas não sentia nada. Ainda mais por
um camarada bronzeado que se achava o tal por nascer num lugar bacana
como Miami, enquanto eu, supostamente, vinha de uma cidadezinha.
Entretanto, tal tratamento me fazia desconfiar se eu tinha tantos
pretendentes como Isabella sugeriu, era provável que ela só quisesse me ver
feliz. Talvez subornasse alguns amigos para sair comigo. Sim, seria típico
dela.
Afinal, do jeito que aquele cara empregou o termo caipira-gótica, o
desprezo por mim era evidente. Não acreditava que boa parte daqueles
estudantes discordasse dele. Não que a opinião deles valesse alguma coisa
para mim.
Ainda me pareciam estranhas essas classificações todas, na minha
época os ricos eram os que viviam no interior com grandes propriedades e
atualmente virou sinônimo de pobre coitado.
Andava ouvindo esse palavreado educado demais esses dias, já que
andava mais barulhenta do que me era comum, como minha pequena
demonstração de raiva pelo meu livro. Era só a pressão das provas
incrementada com a indecisão por visitar Scarlet. Sim, era isso.
Aquilo tudo vinha me estressando e parecia inevitável que meu
gênio ruim se manifestasse, mas acabava por me colocar como alvo da
atenção de idiotas como aquele nerd[18] bronzeado.
Inspirei e soltei minha respiração devagar.
Não me importava muito com o que ele achava de mim, mas ainda
me surpreendia como os geeks da TV pareciam mais educados, mas fora
dela eles eram feitos de todos os tipos e formatos, aquele me olhando feio
poderia passar por um atleta pela embalagem.
— Eu prefiro os geeks da TV — resmunguei.
Voltei minha atenção para o belo desenho de perspectiva explodida
de um parafuso encaixado em alguma coisa numa forma que mostrava parte
por parte desse encaixe todo. Uma delícia de tarde! Isso não era nada
inspirador ou colorido como pensei ao me matricular nessa bosta.
Talvez fosse a hora de decorar os nomes das escolas de arte e seus
ilustres representantes para a prova de História da Arte.
Pensava se memorizaria da forma tradicional ou com um pouco de
magia, quando o vi sorrindo para mim da porta da biblioteca.
O geek mais parecido com os da TV, mas que eu admitia que parecia
mais bonito em suas camisetas enfeitadas do que qualquer outro, a que
usava nessa manhã era vermelha com um grande raio amarelo. Eu só
esperava que ele não resolvesse bancar o Flash[19] no quesito questionário
sobre minha vida.
— O bom desenho técnico que você fugiu no outro dia — disse ele
ampliando ainda mais o sorriso.
— E que você fez questão de tentar me levar à força para a aula.
— Eu não usei força, só queria te acompanhar por segurança. E
você acabou matando a aula de qualquer forma.
— Tão cavalheiro — debochei e, mesmo assim, o complexo de
príncipe encantado de camiseta de mangas curtas se sentou ao meu lado e
abriu seu livro na mesma página que o meu.
Eu queria expulsá-lo, mas dei uma olhada ao redor e o nerd que eu
não gostava resmungava do nerd que eu gostava, talvez com receio de
reclamar diretamente com Andrew. Ele podia ter esse jeitão esquisito, mas
ainda era um homem grande e bem maior do que aquele chato. Embora não
tenha sido, perfeitamente, desagradável como antes, o garoto não estava
muito feliz com a nossa conversa animada.
Era melhor que eu me concentrasse no livro, ignorasse Andrew e o
resto da população nerd local.
Peguei uma caneta e comecei a rabiscar pelas páginas do meu livro.
Escrevi pequenas notas nos cantos em branco que eu não sabia se realmente
me ajudariam a assimilar melhor aquela coisa toda ou não.
Estudei em silêncio, não poderia ser expulsa da biblioteca e
precisava aproveitar o tempo que estivesse aberta.
Meu alojamento era apertado e a menina nova que chegara há três
meses, para dividir o quarto, vivia trazendo caras. Então, era um péssimo
lugar para estudar. Qual era mesmo o nome dela? Nem me lembrava. Não
tinha muitos motivos para falar com a garota mesmo, embora algumas
vezes imaginei enforcá-la por encher o lugar de rosas, por vezes as
encontrava até pela minha cama.
Eu odiava rosas.
Elas sempre eram usadas nos feitiços da matriarca e minha estúpida
colega de quarto fazia questão de deixar as que seus homens lhe davam por
todo o lugar. Se ela soubesse quantas vezes pensei em enfiá-las em sua
garganta, até que sufocasse com seu perfume fedido e os espinhos
rasgassem sua traqueia por dentro, ela teria mais respeito pelo meu espaço.
A mulher parecia fazer de propósito. Revirei meus olhos e apertei a
caneta a ponto de parti-la ao me lembrar de que teria que voltar para aquele
dormitório mais tarde.
Ela atrapalhava mesmo meus sonhos e o fez ontem, eu tive outro
sonho com Darío, eu o beijava como se quisesse consumi-lo, fundir nossas
almas e não só nossos corpos. Suas asas me envolviam, seus braços me
mantinham junto ao seu corpo, enquanto eu o montava, estava perto do
ápice quando o cheiro de rosas invadiu meu sonho e despertei sobressaltada
para encontrá-las na minha mesinha de cabeceira, um maço delas.
Esperava que a desprezível garota tenha ficado feliz ao encontrá-las
no pátio, já que eu as atirei pela janela.
E, nesse momento, eu sentia o cheiro de rosas novamente, levantei
meus olhos do livro para verificar quem era a causa do meu aborrecimento
e me deparei com uma rosa estendida para mim e quase tocando meu rosto
com aquelas pétalas sangrentas.
— Achei que estava linda, não resisti em comprar. — Andrew
mordia os lábios, enquanto empurrava a flor para mim. — Você gostaria de
ficar com ela?
Uma forma insegura de dizer que comprou para mim e uma boa
oportunidade de dispensá-lo que eu não poderia perdê-la.
Ao menos eu não precisaria mentir dessa vez.
— Eu não gosto de rosas. Se não a quiser, pode jogar fora.
Vi seu rosto murchar como se ele fosse um cãozinho pequeno e eu
tivesse acabado de chutá-lo. Ah, isso doeu mais em mim do que nele.
— Eu prefiro papoulas — disse, a contragosto.
Ele pegou o comentário como uma sugestão e tornou a brilhar em
volta de mim, os dentes tão alvos que me perguntava se tivesse feito
clareamento dental. Passei a língua nos meus, talvez eu devesse fazê-lo, era
uma bruxa já com alguns séculos nas costas e poderia vir a calhar. Mas
pareciam brancos o suficiente pra mim e o tratamento era caro.
— Gosto estranho para uma garota.
— O quê? — De repente me preocupei que tivesse falado em voz
alta sobre o clareamento dental ou da minha idade.
— As papoulas. Nunca ouvi uma garota que quisesse recebê-las e
tampouco vejo nas lojas, mas acho que farei uma busca na internet.
— São bonitas e não tem o cheiro enjoado das rosas. Não têm
perfume nenhum na verdade e ainda crescem em qualquer lugar sem
nenhum cuidado.
— E são usadas como drogas. Emma, você não é chegada a essas
coisas, né? — brincou, ele dando um sorriso de lado.
— Só porque estou sempre de preto sou uma drogada?
— Não é isso — Ele falou baixinho, curvando a cabeça e
aparentando estar envergonhado. — Só lembrei disso, pode se transformar
em ópio, fez mal a muita gente.
— As pessoas o fizeram, não a planta. Para mim ela representa a
sobrevivência. É a única coisa que crescia nos campos de batalha após um
massacre que até pensavam que tinha uma ligação com o céu — Parei um
minuto e encarei aqueles olhos verdes atentos a mim como sempre —, ou o
inferno.
— Ao menos são vermelhas como as rosas. — Ele mordeu os lábios
antes de jogar a rosa na lixeira embaixo da mesa. — Prefiro pensar que
ainda tenham algum romantismo para você do que só a morte como parece.
Sua fala despertou uma lembrança que aqueceu meu corpo e senti
que meu rosto se tornou tão escarlate quanto a rosa que ele jogou fora.
— Não é a morte. Eu me identifico com sua resiliência. — Apoiei
minha mão no queixo e dei a triste notícia de que as flores não significavam
amor, pelo menos não todas elas. — E elas vêm em todas as cores. Esqueça
seus planos românticos, então.
Ele riu da minha fala tão direta e se aproximou de meu rosto, até que
eu pude sentir seu hálito quente tocando meus lábios. Não movi meu corpo
nem um milímetro que fosse, mas não pude deter o movimento de meus
olhos que foram para os seus lábios cheios.
Engolir em seco foi só uma consequência esperada, eu devia ter
mais controle mental, mas eu o perdia totalmente quando ele me cercava
assim. Seria muito mais fácil se Andrew decidisse correr atrás de uma
garota comum e me deixassem em paz.
— Não sei por que, mas acredito que prefira as vermelhas —
sussurrou ele, tornando tudo pior. — Faço questão de encontrar algumas
para você, seja que representem amor ou flores brotando do sangue dos
mortos, desde que goste delas.
Movi, finalmente, meu rosto para longe e estapeei seu braço para
que parasse com essas brincadeiras.
— Muito engraçado, Andy. Mas são proibidas nos EUA justamente
pelas drogas que os humanos criaram. Então, oficialmente, não gosto de
nenhuma flor. — Me ajeitei na cadeira e a arrastei pondo um pouco de
distância entre nós. Não que isso adiantasse muito, vivíamos nesse jogo de
empurra e puxa há três anos já.
Eu o empurrava com força e ele voltava como um ioiô que eu
tivesse lançado longe, mas ainda permanecia segurando fio, então ele
regressava para mim, até que eu não sabia mais se estava empurrando-o ou
puxando-o.
— Eu não fiz nada.
— Sim, você nunca faz. Agora me deixe estudar antes que sejamos
expulsos.
— Está bem, eu também preciso assimilar algumas coisas, —
Esperava que ele falasse dos livros e não de mim, mas parecia de mim
mesmo.
O sorriso amplo estava em seus lábios novamente e aquilo só
conseguia me aborrecer.
Era mesmo de mim que falava.
Ele não desistiria tão fácil. Não o fez esse tempo todo e não o faria
agora.
Se eu tinha alguma dúvida de que ele cansaria de mim depois de um
show fingindo estar bêbada e me atracando com um jogador de futebol
americano qualquer, estava enganada. Ele continuava me seguindo por aí e
agora queria me dar flores.
Eu era um fracasso em afugentar homens, teria mais sucesso
matando-os. Eu o fitei de esguelha, e ao vê-lo se concentrando no próprio
livro como um bom rapaz eu tinha certeza de que nunca tocaria num fio de
cabelo dele.
Eu machuquei gente por ele. Como eu poderia feri-lo? Não fazia
sentido. Me enfiei numa enrascada.
— Mas que merda! — Meio que gritei na biblioteca e conseguira
que todas aquelas cabeças pensantes virassem para mim, inclusive a de
Andrew com aquele cenho franzido numa dúvida constante sobre tudo que
me envolvia.
Que beleza! Talvez acabasse expulsa mesmo, só esperava que fosse
só da biblioteca. Se alguém percebesse como feri Taylor por ter derrubado
Andrew, eu estaria expulsa era da faculdade.
Não podia correr o risco de ter que deixar aquela instituição, então
precisava manter distância de Andrew e no momento eu precisaria ir
embora dali.
Caprichei tanto na minha apresentação na festa daquela irmandade e
não adiantou de nada. Andrew era como um cão policial, sempre farejando
por onde eu estivesse, um que tentei me livrar brincando de desentupidor de
pia com o astro do futebol americano local.
Ele era a origem do meu desejo de me agarrar a jogadores,
machucá-lo para fazê-lo correr para longe. Mas pelo visto meu esforço com
o camarada do Hurricanes não machucarou os sentimentos de Andrew, ao
menos não o suficiente para que me deixasse ter uma vida universitária
tranquila e solitária.
Segui olhando Andrew que voltara a se concentrar em sua leitura, os
dedos longos passando pelas páginas do livro e me dando ideias
inadequadas não só para o lugar, mas para minha vida como um todo.
Eu devia estar virando uma safada. Era isso ou eram os anos de
celibato pesando.
Agarrando um jogador do nada, mesmo que para idealizar um teatro
bobo fora meio além dos meus limites. Contudo não era nada comparado a
seguir sonhando com Darío e vendo Andrew todos os dias, essas coisas me
faziam ter vontade de cruzar minhas pernas bem apertado e só aliviar meus
nervos um pouco. Absolutamente, isso seria tudo que eu continuaria
fazendo.
Uma garota precisava de uma válvula de escape, afinal.
Ainda mais quando ficava a um triz de beijar um rapaz de lábios
grossos que vivia se oferecendo para te resgatar quando você não precisava
de nenhuma ajuda absolutamente.
Meus olhos ficaram presos naqueles lábios por mais tempo do que o
adequado, desejando coisas que não deveria estar pensando. Exalei um
profundo suspiro, aquilo podia ser uma forma de tortura. Não era suposto
que loiros tinham lábios finos? Por que os deles tinham que ser grossos
assim?
Devia ser só uma brincadeira do universo para me aborrecer, assim
como sua constante perseguição.
Eu devia ter imaginado que ele comparecia a festa da vitória dos
Hurricanes na casa de Taylor. Da mesma forma que sabia que ele invadiria a
daquela irmandade atrás de mim quando dei meu show com Taylor. Andrew
estava sempre em todos os lugares que eu ia desde que me vira no primeiro
dia de aula do nosso curso há três anos.
Se eu não entendesse seus sentimentos, o consideraria um
perseguidor. Bem, ele era um bom cão farejador, combinava mais com a
polícia do que com a bandidagem. Com certeza, não faria bom par com uma
bruxa má como eu e isso era uma pena. Ele precisava desistir, mas era
teimoso exatamente como um cachorro burro.
Mirei aquela cabeça loira que parecia ainda mais imersa naquele
livro gigantesco, provavelmente, tentando decorar toda aquela baboseira
que dava nós na minha cabeça, assim como ele o fazia sempre também.
Como Andrew conseguia sempre estar em todos os lugares? Eu não
conseguia imaginar como o fazia, mas parecia que estava sendo rastreada,
embora ele não me parecesse do tipo de nerd que entendia de tecnologia,
um geek[20] no caso, só do tipo com mau gosto para roupa e aficionado por
super-heróis e revistinhas.
E isso não explicava também como ele conseguira entrar na festa,
aquelas garotas metidas da irmandade só liberaram a minha entrada porque
estava com Isabella, seu pai era um grande apoiador da universidade e isso
era uma das coisas que comprou a minha própria entrada ali.
Andrew aparecera lá, me vira com o quarterback e saíra correndo
com cara de choro. Infelizmente ele vinha ignorando o ocorrido e voltara a
andar atrás de mim. Eu devia ter saído mais algumas vezes com aquele
jogador, talvez assim meu colega desistisse e não seria o meu problema
ambulante, que caminhava para mim sorrindo como sempre, e me fazia
querer que seu entusiasmo não fosse um contratempo.
Mas tinha Isabella na história e eu não chegaria mais perto dele, ela
também era o motivo de não a contar que Taylor me assediara na última
festa. Não queria chateá-la e depois ele poderia ainda estar sob o efeito do
feitiço que eu usei na festa da irmandade para que me notasse. Ao menos eu
não poderia afirmar que estava limpo dele.
Suspirei pesadamente ao observar aquele cabelo loiro meio curvado
sobre a mesa fazendo alguma espécie de mapa mental todo colorido sobre a
matéria. Não importava o que eu desejasse, havia mais barreiras entre mim
e Andrew do que ele seria capaz de remover para que pudesse acampar na
minha vida como um bom escoteiro.
Talvez um não tão bom que largara suas anotações e, nesse
momento, mexia no celular a procura por lojas com papoulas em toda a
grande Miami quando eu dissera que eram proibidas.
Eu teria que planejar algo para tirá-lo de minha órbita, mas nem
mesmo arrumar outro homem funcionara e ele era a prova de grosserias.
Nada parecia ser capaz de magoá-lo o suficiente.
As ideias estavam acabando.
Seria bom se pudesse enfeitiçá-lo como fizera com Taylor, mas ao
contrário, para que ele me esquecesse de uma vez, mas não funcionava nele.
Infelizmente, teria que afastá-lo de outro jeito.
— Acho que também preciso estudar a respeito disso, — disse ele
largando o celular, apontando para o meu livro e me tirando das minhas
lamúrias —, Talvez eu faça algumas anotações e resumos. Se quiser, pode
copiar.
— Não, obrigada — murmurei decidindo começar por agora a
manter distância de Andrew. Chega de ficar tentada a flertar com ele e
mesmo conversar, Andy precisava ficar longe de mim. — Eu já estava de
saída.
— Mas...
Me levantei, reunindo meus livros e deixei a mesa sem olhar a cara
de tristeza que aquela voz estrangulada devia estar refletindo. Não podia
ficar dando papo para ele, não sem que Andrew ficasse mais apegado a
mim.
Era doloroso para ele, mas Andrew nem mesmo poderia imaginar o
quanto aquela situação toda me causava angústia. Ele não entenderia, não
sem que eu tivesse que explicar detalhes que deveriam permanecer ocultos.

Andei sem rumo e um pouco abatida pelas palavras duras que eu


vivia tendo que despachar a todos e não só para Andrew. Porém, quanto
mais as pessoas tentavam se aproximar de mim, mais eu me esforçava em
afastá-las. Era como o senhor e a senhora Davis falaram quando voltei com
Scarlet aterrorizada naquela noite há quatro anos, eu era uma praga e um
ímã de problemas, mas eles não poderiam se arrepender mais que eu por ter
atrapalhado suas vidas.
O mal me perseguia e eles tinham razão, ninguém merecia me ter
por perto. A constatação desse fato foi tão forte e doera tanto no meu peito
que me vi agarrando meus livros com força e derrubando algumas lágrimas.
Eu gritara e esperneara quando Livia me encontrara, mas nem mesmo
naquele momento com a vida de Scarlet em risco eu me senti tão derrotada.
Eu me fiz de forte por tanto tempo.
Não me imaginei derrubada depois de tudo, sobreviver ao inferno
parecia mais fácil do que aguentar todos os dias o que eu vinha suportando.
Mas cá estava eu chorando por tentar afastar um cara que eu queria manter
perto e parecia que ficaria feliz se eu abaixasse a guarda, mas ela
continuaria erguida pelo meu bem e o dele.
Sim, os séculos que eu passara no inferno pareciam tranquilos e
menos dolorosos do que isso.

Acabei perdendo o lugar confortável e refrigerado da biblioteca,


mas ganhei o sossego que precisava para tentar entender essas malditas
perspectivas nesses desenhos bobos. Mesmo assim não compreendia
absolutamente nada, talvez um pouco da perspectiva militar eu tenha
assimilado, era como ver Trasmoz de cima quando flutuava pela cidade
chegando, sorrateiramente, ao castelo que eu não devia ter saído ou ficado
tanto tempo fora.
Os desenhos ilustravam com exatidão o mesmo ângulo que eu
costumava observar a cidade, tantas vezes, do alto envolvida pelas nuvens.
Mesmo que eu estivesse acima dela, eu tremia ao pensar que precisaria
descer e naquele chão eu era indefesa.
O temor por aquelas torres de pedra só cessou no dia que não
sobrara nada dela, na data que a fizera arder queimando do solo até aquelas
altas muradas que pareciam tão intimidadoras que meu pavor por elas tinha
me acompanhado da infância a vida adulta. Não restara nem mesmo cinzas,
mesmo as pedras do castelo tinham derretido quando os apresentei ao ódio
enraizado no meu peito.
Eles mereceram, mas ainda que estivesse tomada pela raiva me doeu
queimar todo o lugar, era uma prisioneira crescendo sob medo constante,
mas ali era tudo que eu conhecia.
Eu ainda sentia falta do sol da Espanha.
Constatei observando o horizonte que não parecia muito bonito em
Miami como esteve no outro dia, a despeito do vento que vinha do oceano.
Aquele dia o clima estava bom, mas parecia tudo tão feio, talvez fosse meu
humor.
Sentia falta da minha casa de séculos atrás e, ao mesmo tempo, não
sentia falta nenhuma, amor e ódio era isso que me moviam todo o tempo e o
que eu sentia pela minha terra natal. Seu sol fazia com que me sentisse
aquecida, mas seu idioma enterrei em minha mente e não fazia questão de
recordar assim como não usava mais meu antigo nome.
Minha vida encurralada e medrosa ficaria na Espanha. Eu era Emma
desde que me nomeei assim e se o mal viesse atrás de mim, seria recebido
da mesma forma que os bons cidadãos de Trasmoz no dia que me libertei
deles.
Olhei com cuidado aos desenhos vistos de cima e vislumbrei as
lembranças do castelo e suas muradas, era assim mesmo que eu vira ao
vilarejo pelo véu de lágrimas que embaçavam meus olhos, quando flutuei
até aos céus e tomei conhecimento da devastação que eu causara.
Eu desencadeara o mesmo terror que me fizeram passar por anos.
Ah, eu era uma pecadora e deveria sofrer, bem na concepção deles
eu o era, mas eu só me tornei uma verdadeira puta assassina naquele dia
quando os apresentei a face do verdadeiro demônio que tanto se
acovardavam.
Mas sim, esse de tipo de perspectiva era meu velho conhecido, olhar
de cima para baixo me deu um certo poder naquela ocasião e me fez me
sentir maior do que o castelo que tanto me intimidou. As portas imensas
que passei quando era arrastada para meu martírio se tornaram só uma
massa incandescente que já não prenderia ninguém. O tremor em minhas
pernas com toda aquela gente recriminando quem eu era cessara e meu
coração estava pronto para enfrentar o resultado de meus atos.
Eu não tinha culpa de ser quem eu era, e desafiaria que alguém
numa situação que se espelhasse a minha não tombasse como eu o fizera
naquela noite que roubaram tudo de mim.
Meu crime fora bombardeá-los um pouco depois, mas a dividia com
os herdeiros daqueles que construíram seu poder com o sangue de bruxas
como eu.
Meu povo já estava ali antes deles e até mesmo seu castelo fora
construído sobre nosso cemitério num arrombo de loucura de um senhor
ansioso para absorver a nossa força, só para nos condenar a servidão mesmo
que ferisse as suas próprias crenças e chamasse a atenção dos representantes
de sua própria fé.
Bombardear aquela construção fora divertido, embora eu só tenha
sorrido após recordar cada lágrima que me tiraram e cada momento de total
desilusão e desespero que eu fui submetida. Mesmo que tenha sido
reconstruído depois, eu amaldiçoei tanto aquela terra que nunca alcançaria o
auge novamente.
Se olhasse meu rosto nesse momento, eu teria um sorriso sádico
plantado nele, mas nada se comparava ao que fizeram comigo com a
autorização do maldito senhor daquele castelo. Homens não eram
confiáveis. Uma hora nos iludiam com promessas de segurança e um lugar
para viver, só para depois nos acusarem de profanidades para que pudessem
nos pisotear como insetos e roubar tudo que somos.
O coven deixou de ser o que era destinado pelo abandono dos
deuses, mas a sedução dos homens teve sua quota de culpa.
— Só esqueciam de uma coisa, alguns insetos têm veneno e um
homem maldito seria picado essa noite.
Eu podia ouvir Isabella gritando na minha mente e implorando para
que a soltasse, enquanto sua cara era forçada contra os armários do vestiário
do time de futebol americano da universidade e um ogro esfregava seu pau
em sua bunda.
Pensei que não precisaria pagar minhas dívidas surrando a Taylor,
acreditei que seu comportamento comigo fosse fruto da bebida e do meu
feitiço, mas estava enganada.
Havia me esquecido de que Isabella teria um encontro com ele hoje,
e eu não a contei a respeito do que o jogador fizera ou tentara fazer comigo
há alguns dias.
Nem que ele ficou doente por minha causa, embora parecia que ele
pedia uma nova dose.
Ela gostava dele e acreditei que o cara devia ter me interpretado
errado pelo beijo do outro dia, fora que eu já havia a alertado sobre homens
do tipo, mas ela não se importou em me ouvir.
No entanto, não imaginei que ele fosse do tipo que forçava
mulheres. Com sua boa aparência e dinheiro devia ser fácil conseguir meia
dúzia para a semana e não se sentiria motivado a agressão. Mas quem disse
que homens eram racionais? Eram só animais e esse, sim, seria corrigido.
Levantei-me, abandonando meus livros no gramado, enquanto corria
para alcançar Isabella antes que ele a machucasse ainda mais. Podia sentir
seu desespero sufocando meu próprio coração, apertei minhas mãos até que
senti minhas unhas romperem a pele e o cheiro do sangue no ar.
Talvez eu deixasse um rastro de sangue e não seria o que pingava de
minhas mãos naquele gramado enquanto corria a ponto de minhas
panturrilhas queimarem. Isabella não era má pessoa e não merecia ser
maltratada desse jeito, nenhuma mulher deveria ser tratada com tanta
crueldade.
Gostaria de projetar meu corpo no vestiário como eu o fizera no
jogo, mas não tinha certeza se conseguiria lidar com Taylor nesse estado e
ainda teria que cuidar de Isabella depois, então só me restava correr até ela.
O estrume musculoso se arrependeria de seus atos, eu só precisava
alcançá-los rápido.
Cobri minha mão com a barra da minha camiseta e movi a maçaneta
da porta do vestiário com brutalidade. Ela não se movera, estava trancada.
O imbecil escolhera um ótimo horário para atacá-la.
Não havia uma alma naquele corredor.
Fora premeditado que a chamasse ali, eu não poderia chegar a outra
conclusão. E ele nem mesmo percebera meu movimento na porta de tão
entretido que o via em minha mente pelos olhos de Isabella, lambia seus
seios enquanto imobilizava suas mãos acima da cabeça, a blusa dela
totalmente aberta e o sutiã rasgado. Podia ouvi-la choramingando em minha
mente e com meus próprios ouvidos numa voz cautelosa pedindo que
parasse que eles poderiam recomeçar outro dia, devagar.
— Está me assustando — murmurou Isabella. — Pare, por favor...
— Bella, você dá para todos, não vejo motivo de tanto doce agora.
— Sua voz chegou a mim com seu sorriso sádico em minha mente. —
Entenda, não tem para onde correr, relaxa e goza.
Não tem para onde correr...
Aquela frase, aquelas malditas palavras, senti meu corpo queimar e
minha cabeça explodir em dor, enquanto meu coração dava um golpe no
peito, como se reunisse mais do que uma necessidade de salvá-la ou de
pagar seu apoio a mim com todas as coisas da faculdade.
Eu queria vingança.
Removi minha mão do peito e a lancei contra a porta, colocando
toda a minha raiva, dor e ressentimento nesse golpe.
Ouvi o zumbido do vento percorrendo os corredores daquele prédio
num desejo intenso de me alcançar e lutar por mim, o senti em minhas
costas num toque rápido e forte que quase me lançara à frente, mas que
acabou abraçando meu corpo até alcançar à ponta dos meus dedos e acertar
aquela porta de ferro com tanta ferocidade que era possível imaginar que
gigantes invadiam o lugar.
O estrondo das portas duplas tendo sua fechadura arrebentada e se
chocando contra a parede fez com que Taylor levantasse sua cabeça dos
seios de Isabella. Os mamilos arroxeados pela sua agressão, os olhos
fechados de minha amiga com suas pálpebras trêmulas e seus lábios
sangrando, como uma prova do terror que a percorria e tentou contê-lo,
mordendo-os displicentemente. Constatar isso, alimentara ainda mais minha
fúria.
O filho da puta se mantinha junto a ela, aprisionando-a junto a seu
corpo maldito com aquela ereção nojenta se esfregando contra a barriga
desnuda de Isabella, que tinha seu zíper abaixado revelando parte de sua
calcinha.
Ele já a maltratara tanto, seu corpo emitia pequenas convulsões
contidas, ela tentava controlar o pânico para que tudo acabasse rápido e não
a espancasse.
Eu podia ouvir seus pensamentos antecipando o que viria e ela não
poderia evitar.
Taylor é forte demais, ele pode me ferir de verdade. Ninguém virá
por mim. Quem se importaria comigo? Acreditarão nele, já que saí com
tantos caras. Se ele não parar, eu terei que aguentar.
— Minha amiga, você não terá que suportar mais nada.
Eu que não me garantia de que aguentaria o suficiente para que ele
permanecesse vivo.
Meus olhos buscaram algo que pudesse fazer um serviço limpo, eu
não tinha intenção de deixar nenhum rastro da minha presença no bastardo.
Nada que me identificasse e uma bola de futebol largada sob o banco do
vestiário foi uma alegria irônica. Ele apanharia com aquilo que esses
neandertais gostavam tanto de brincar.
Meus lábios se curvaram diante dos planos que eu tinha para ele.
Talvez ele ficasse meio abobalhado quando eu acabasse, talvez nem
acordasse, mas a certeza era de que Taylor teria o suficiente. Olhei para
aquele pau que continuava ereto mesmo com o estardalhaço que eu fizera
na minha entrada. Meu desejo era de bater suas próprias bolas em sua
cabeça e seu pau ficaria bom em sua garganta, mas isso seria dramático
demais e chamaria muita atenção.
A bola de futebol serviria ao meu propósito, envolvi o vento em
torno daquele brinquedo, erguendo-a no alto e mirei naquele rosto jovem,
porém, devasso que me olhava com espanto, enquanto eu avaliava a melhor
forma que ele poderia pagar por seus atos.
Taylor não percebeu quando aquela bola veio por trás de sua cabeça,
golpeando-o sem piedade, infelizmente não pareceu que foi suficiente
acertá-lo uma única vez. Seus olhos só se apertaram, mas suas mãos não se
moveram de cima de Isabella.
Lancei a bola com mais força contra sua cabeça e ele se encolhera,
apoiando-se ainda mais no corpo de Isabella.
Bastardo, solte-a de uma vez.
Na terceira vez, a bola já estava tingida com o sangue do babaca,
que contra minhas expectativas, durara mais do que o esperado para alguém
como ele. Na quarta vez, a comandei com tanta força que a explodi em sua
cabeça e o estrume se derramou no chão como a boa bosta de cavalo que
era.
Os pulsos de Isabella foram liberados de suas garras e se mostravam
com marcas profundas, dada a força que ele se jogara sobre ela a retendo
por tanto tempo.
Ela percebeu que estava livre de seu aperto e abriu seus olhos, mas
acabou por se encolher mais, ao passo que fechava sua blusa com os dedos
trêmulos e a respiração ainda irregular, mas se podia perceber o alívio em
sua face. Seu olhar varreu o lugar e me encontrou parada a poucos metros
dela observando o corpo caindo no chão.
— Emmie, o que aconteceu? — Seus olhos arregalados divididos
entre me olhar e o seu atacante caído numa poça de sangue.
Isabella tentou verificar o corpo, mas fui até ela e a puxei, detendo
seu movimento. Minha amiga me olhou num misto de susto e alívio.
— Emmie, há muito sangue...
Suas pernas chacoalhavam com aquela visão, uma menina nascida
em tão boa família nunca devia ter visto nada do tipo. Sentia muito que ela
tivesse sido submetida a isso, mas era melhor do que a deixasse ser
agredida. Dessa vez fora pior do que no bar, e ele tinha ido ainda mais longe
com ela do que aqueles caras e para piorar, era uma pessoa próxima.
Se Taylor se recuperasse da minha pequena repreensão, ela deveria
ficar longe dele.
Eu poderia não estar a uma corrida curta dela de novo.
Fora que Isabella precisava de alguma paz, não queria que a alegria
dela murchasse por causa de um cara errado. Seria melhor que ela
esquecesse de tudo e era isso que eu faria por ela, apagaria suas memórias
daquele dia. Completaria com algum incentivo para que não voltasse a
ansiar a nadar em estrume de novo.
Segurei seu rosto, conquistando sua atenção e me assustei com o
que vi. Havia muito medo e incerteza em seus olhos, lembrava a mim um
pouco antes de me pôr em movimento para castigar a todos que se
atreveram a me machucar tanto a ponto de que quisesse recompensá-los
pelo feito.
Isabella não precisava se pôr nesse caminho, fizera a amiga certa e
poderia deixar comigo a sua vingança. Ela poderia esquecer o que
aconteceu ali, assim continuando a viver no seu mundo perfeito e tranquilo.
Eu garantiria isso.
— Ele tentou me forçar, mas está sangrando... precisa de cuidados,
Emmie —murmurou, tentando olhar o corpo, mas eu não deixei, detendo
seu movimento e mantendo seu rosto focado no meu.
— Calma, olhe para mim. Vai ficar tudo bem.
— Precisamos chamar alguém! Ele pode morrer — choramingou
com os olhos lacrimosos, a tensão daquela noite fazendo com que seus
joelhos começassem a se dobrar. Aquela garota feliz que só pensava em
festas e rapazes começava a se quebrar.
— Isso não é problema seu.
— Não é problema meu? — perguntou, consternada, depois moveu
a cabeça meio perdida.
— Não, é só culpa dele — afirmei. — Taylor é um idiota e você não
quer sair mais com ele.
— Não, eu não quero mais saber dele — concordou, finalmente,
Isabella.
A tranquilizei fazendo com que esquecesse aos poucos os eventos
daquela tarde.
— Vai ficar tudo bem, você nunca esteve aqui. Ficou sabendo que
ele escorregou no vestiário bêbado e bateu a cabeça algumas vezes, já que
não conseguia se manter de pé.
— Ele vai ficar bem, Emmie?
— Eu espero que não — afirmei com convicção.
Eram meus sinceros votos.
— Que isso, Emmie! O cara é um idiota, mas ninguém devia ficar
no hospital para sempre.
— Alguns merecem sim, querida.
Isabella riu alto da minha opinião sobre os babacas desse mundo já
se esquecendo da agressão que sofrera, mas enxergando a Taylor com olhos
mais críticos desse momento em diante. Ela não se aproximaria mais dele.
— Taylor me dá arrepios e pensar que fui a alguns encontros com
ele. Eu quero distância dele, mas espero que se recupere.
Dei uma olhada por sobre meu ombro, à medida que deixávamos o
vestiário masculino, vi aquele moleque ainda caído e muito inconsciente
também. Talvez eu não precisasse me preocupar que ele voltasse atrás dela.
Taylor não parecia que iria sobreviver e mesmo que o fizesse, com
sorte ficaria babando até o fim dos seus dias.
Passei pela porta, deixando um sorriso numa última olhada no
imbecil, enquanto ordenava que o vento trancasse as portas com suavidade
dessa vez.
Pensei se a deusa estaria de acordo com o que eu fiz àquele cara, ou
quem sabe, achasse que eu tinha ultrapassado meus limites. Bom que os
tinha bem flexíveis.
Poderiam dizer que eu cruzara a linha, mas as pessoas que viviam a
cruzando, portanto, só as recepcionava como mereciam. Se isso me fazia
má, estava bem com isso.
Mesmo quando deixei Cartersville, continuei com o passatempo que
compartilhava com Scarlet das maratonas de filmes. Era divertido e eles me
ajudavam a entender melhor todas as coisas do mundo atual que perdi
durante meu cárcere. Eu assistia os de todos os tipos e uma vez assisti a um
que soltaram uma frase que vinha e ia muitas vezes na minha cabeça: Você
pode se vingar do mal, sem se tornar parte dele? [21], dissera um palhaço
perturbado e eu respondera sim na hora. Conceito moral dependia de
interpretação, afinal.
Alguns me julgariam má, mas eu não achava que fazia parte dele.
Não de todo ao menos.
Gente como Taylor só entenderia se recebesse na pele a mesma
violência que aplicava, as autoridades só iriam paparicá-lo se o entregasse a
eles. Eu não era má por fazê-lo compreender seus erros.
Eu seria má se não viesse pela garota desorientada que eu guiava
pelos corredores.
Ela mirava ao corredor parecendo um pouco incerta do que fazia ali.
— Ai, minha boca dói. — Isabella mordeu os lábios e levara as
mãos a eles. Eu podia ver sua expressão mudando, à medida que os
apalpava. Ela percebia a prova de que algo estava errado.
Sua boca estava cortada, não era só sua mordida que fizera dano.
Ele devia tê-la estapeado e seu rosto parecia um pouco roxo. Certeza, ele
bateu nela.
Quase voltei para garantir que Taylor, realmente, não acordasse
mais.
— O que aconteceu, Emmie? — Isabella me olhou com aqueles
mesmo olhos arregalados de quando percebera o corpo de Taylor no chão.
Ela estava resistindo ao feitiço que lancei sobre ela, porque as coisas
não estavam se encaixando em sua mente bem o suficiente para fazerem
sentido.
Os ferimentos precisavam deixá-la.
Toquei em seu rosto e fechei meus olhos convocando o mesmo
vento que arrebentara aquelas portas, mas, dessa vez, num doce chamado.
Ele envolveu meu corpo com o alento que eu precisava e o deixou, entrando
a seguir no de Isabella. Senti sua pele aquecer sob o meu toque, um pouco
antes que eu pudesse ver todas as suas feridas se fechando e o brilho
assustado de seus olhos a deixando, para que um sorriso tomasse seus
lábios.
— Emmie, o que você acha de irmos ao Donna? Podemos comer
alguma coisa e depois podemos ir a alguma boate na cidade. — Ela mordeu
os lábios e já não reclamou de dor. — Eu sei que você não gosta de sair
para dançar, mas vamos só hoje. Por mim. Sim? Diz que vem! Eu pago
tudo.
— Está bem. Só dessa vez.
Era um bom álibi que nos vissem em público e eu trabalharia mais
um pouco na mente de Isabella para que ela ficasse tão bem quanto eu
pudesse fazê-lo. Mas ao ver seu sorriso se ampliando com a minha resposta
positiva em sair numa balada com ela, coisa que eu nunca fazia, achei que
tudo ficaria bem. Minha amiga feliz continuaria assim, alegre como devia
ser.
Nenhuma escuridão a tomaria, não como me levara no passado.
Isabella estava salva já eu estava além de qualquer resgate, mas não queria
ou estava em busca de qualquer redenção mesmo.
Isso que era levar a sério ser underground.
A alcunha parecia se encaixar perfeitamente aquela boate. Para
Miami o local que Isabella escolheu para requebrar, como ela diria, carecia
de sofisticação, não havia as luzes e lustres caros ostentados no teto das
casas mais badaladas da cidade.
Havia somente guarda-chuvas transparentes invertidos presos ao
teto e alguma folhagem verde dependurada nas paredes que parecia
combinar com um DJ não muito bom e um sistema de som um pouco
ultrapassado. Bem, a falta de luxo não parecia importar àquele ninho de
jovens suados que moviam seus corpos na batida da música e se esfregavam
uns nos outros com tesão.
Do mezanino de onde eu vigiava se Isabella ficaria bem após minha
pequena lavagem cerebral, sentia que aquele espaço que deveria ser o local
chique dos VIPS, no entanto, mais parecia um poleiro do que qualquer
outra coisa.
Eu era uma mulher magra com uma estatura razoável, mas não
exageradamente alta, o que tornava muito estranho que eu me sentisse
numa caixa de sapatos presa numa mesa que mais parecia uma bandeja
pequena pressionada contra meu estômago e um teto que talvez eu pudesse
alcançar se me esticasse um pouco.
Fazia um pouco de frio lá fora, já estávamos quase no inverno. Mas
ali dentro era tão abafado que meu casaco ficou no encosto da cadeira.
Imaginava como seria aquela boate no verão, sufocante era a única palavra
que vinha à minha mente. Não parecia que aquele calor todo vinha do
sistema de aquecimento, o teto que era baixo demais e não devia ser um
prédio bem planejado para se adequar às estações.
A entrada do lugar me assustou um pouco, na verdade, pareceu
muito com o velho quintal da casa dos Davis em Cartersville, o que me
lembrou das mensagens exigentes de Scarlet. Ainda não sabia se eu deveria
visitá-la ou não, e seu aniversário já era nesse fim de semana.
Um monte de matérias para decorar me esperavam aqui, prontas
para me destruir no fim do semestre se eu continuasse estudando tão
levianamente, fora que toda vez que pensava em voltar naquela cidade eu
tinha ânsias.
Os meses que se passaram logo após o incidente com Irene não
foram nada agradáveis, isso era um eufemismo para o inferno que se tornou
minha vida. Um dia simplesmente deixei a casa e consegui meu diploma
um tempo depois em Atlanta.
As coisas começaram a melhorar quando encontrei com Isabella no
caminho para Miami e consegui a vaga na universidade, mas não
significava que estavam boas de todo.
Mas eu estive muito sozinha até então, foi uma bênção tê-la
encontrado.
Joguei uma olhada em minha amiga na pista de dança e ela agitava
seu corpo no meio de dois rapazes. Aparentemente, meu feitiço dera certo e
sua mente voltou a caminhar de maneira ordenada. Não parecia abatida nem
atormentada e isso me era um alívio.
Analisei aos homens que a cercavam, não só gestos, mas suas
auras estavam excitadas com ela, então invadi um pouco suas mentes e
[22]

ambos desejavam levá-la para cama. Eles se perguntavam com qual dos
dois ela iria sair dali e cogitavam se ela aceitaria a acompanhar ambos.
Modernidades. Eu não me intrometeria. Nenhum dos dois pretendia
machucá-la, suas auras estavam num frenesi sexual, mas não tinham
intenções malignas. Cabia a ela aceitá-los ou não.
Voltei a minha atenção para minhas mensagens antigas de Scarlet.
Ela vinha silenciosa até esses dias que cismou em me convencer a retornar
para casa. Seu aniversário seria daqui a três dias e não me sobrava tempo
para decidir. Lembrei-me como ela me abraçou feliz pensando que eu era
sua irmã de verdade, presa a falsas lembranças, isso aconteceu uns dias
depois que eu cheguei a sua casa.
Scarlet fazia aniversário dia vinte e um de novembro, eu cheguei em
sua casa poucos dias antes da comemoração, ela pensara que havia ganhado
uma irmã de presente e logo depois acabei enfeitiçando a mim mesma e a
ela fazendo-a crer que eu sempre estivera ali.
Acreditamos realmente nessa mentira, menos seus pais que não
estavam presentes quando decidi que faria parte da família e acabei me
lobotomizando. Eu nunca esqueceria seus olhos perplexos quando os
chamei de pais segundos depois que vieram falar que o jantar estava pronto.
O pesar pela pobre garota perdida não superava a irritação que
sentiram naquele momento e em tantos outros.
Ignorei qualquer desprezo que sentissem por mim, meu peito doía
de aflição. Mas naquele momento eu só queria um pouco de amor, o mesmo
que eu via darem a Scarlet e eu nunca tive uma prova disso.
A droga que foi tão pouco tempo para cavar um pouco em seus
corações, no ano seguinte o clima já era ruim graças a aparição de Irene no
Halloween.
Bem, era só mais um pesadelo para minha cota infinita deles.
Iria sobreviver, eu o vinha fazendo há um longo tempo.
Fiquei pensando esses dias se seus pais gostariam de me ver em sua
casa e cheguei à conclusão de que não era a resposta, mas não poderia
negar o pedido de Scarlet.
Talvez ainda houvesse alguma chance de ser aceita numa família de
verdade. Uma composta somente por eu e Scarlet, mas uma irmã era mais
do que eu tive alguma vez.
Então, estava decidido. Eu iria enfrentar parte de meus fantasmas na
pequena Cartersville.
Senti meu rosto se curvando num sorriso ao me lembrar de como
Scarlet ficara bonita vestida de princesa no Halloween, eu queria que ela
fosse minha irmã de verdade. Mas não tive sorte nem que fosse sua irmã
adotiva por muito tempo, nem mesmo um ano inteiro.
Levei minhas mãos aos olhos, costumava aguentar mais fácil a dor
antes que voltasse a esse mundo. Conhecer os Davis foi como me mostrar
uma face diferente do que era sofrimento. Família, eu nunca tive nenhuma.
Antes de Scarlet o mais próximo que eu tive como família fora
Darío, nem mesmo os Davis me fizeram me sentir tão acolhida como ele.
No entanto, por mais que o amasse, era uma noção diferente de família, um
homem que eu desejava e não um núcleo familiar que me quisesse como
uma querida integrante.
Não era como ter pais e irmãos. Eu queria isso.
Achei que ele seria o suficiente para mim, mais lá no fundo, eu
queria ter parentes para amar nos bons momentos e brigar quando as coisas
estivessem ruins. Era isso que as famílias faziam e me vi tentada ao
encontrar os Davis.
Eu devia ter ido embora logo, mas não pude.
Me deixei afundar em autopiedade e fiquei ali na casa deles até que
Irene quebrou minha ilusão e com ela as minhas esperanças.
Algo que o seu coven tinha por hábito de fazer, me destruir. De
múltiplas formas.
Então recolhi os pedaços de minha mente fragmentada e os colei aos
poucos nos anos que se seguiram e achei um cantinho para mim nesse
mundo tão diferente do que eu deixei quando fui tragada pelas trevas. Um
que eu ainda me escondia embora seguisse de encontro ao motivo que me
fizera encarar os demônios e abrir meu caminho do inferno para o mundo
dos humanos novamente.
Inferno. Um tempo difícil. Assim eu poderia descrever meu período
de cativeiro por lá onde tudo que tive para me amparar foi meu apego as
memórias de Darío, assim como fizera depois que deixei os Davis.
Eu devia visitar menos essas memórias. Elas me sustentavam, mas
me machucavam. A deusa sabia que eu precisava delas para viver, mas era
difícil seguir em frente, pois me apegara nelas.
Apagá-las era algo que eu não faria mais, eram meu passado e quem
eu era. Embora, eu tivesse uma nova identidade, não sendo mais a mesma
Livia.
Meu novo eu, Emma não era tão diferente dela. Eu só precisava
caminhar para o futuro não mantendo as lembranças e velhos sentimentos
tão vivos dentro de mim.
Porém, era difícil manter a mente nisso quando meus pensamentos
só caminhavam pelo passado e tudo que eu via me levava a ele. Nesse
momento, mesmo na boate, o cheiro que flutuava no ar misturado com
perfume caro era tão almiscarado como o cheiro natural de Darío e isso era
torturante demais.
Particularmente, era mais difícil de superá-lo a perca da família que
eu nem cheguei a ter.
Porque Darío me amou e os Davis não.
Nem mesmo Scarlet o fez, eu era algo como uma estranha divertida
que ela gostava de passar tempo e adotou como uma falsa irmã sem
perceber. Mas atualmente, já não queria saber de mim, enquanto eu ansiava
por manter qualquer vínculo que pudesse.
Era doloroso desejar migalhas de afeto, mas não havia muita gente
aí fora que me quisesse por perto e eu aceitaria as dela se ela quisesse me
oferecer.
— Uma bebida por seus pensamentos.
Ergui minha cabeça e fechei minha cara de imediato.
Andrew me encontrou novamente e eu não imaginava como ele
conseguia fazer isso. Nesse momento, ele estava parado ali com aquele
olhar de cachorrinho pidão após depositar uma taça de algum coquetel
vermelho sobre a mesinha à minha frente numa oferenda para que o
convidasse a se sentar.
Como se ele não fosse fazê-lo, eu o convidando ou não.
Eu não podia negar, não havia muita gente querendo a minha
companhia, com exceção dele. E bem, de Isabella também. Eu era grata por
sua companhia, ela era uma amiga gentil, embora fosse tão cansativa em
suas demandas quanto Andrew. Só que com ela era mais de querer me fazer
aproveitar a vida e me arrastar por todo lado. Minha amiga não achava que
eu me divertia o suficiente, mas eu não tinha vontade de agitar por aí, eu
quase poderia ouvi-la falando algo assim.
Não estava acostumada com essas coisas, não houve muito espaço
para elas na minha longa vida. Se ela soubesse o quanto eu vivera sem elas,
estaria decretado que seria arrastada para cada festa que ela encontrasse na
cidade, até mesmo para os velórios. Me obrigaria a qualquer contato social
que ela conseguisse para mim, inclusive e, principalmente, com os caras
que eu fazia questão de rejeitar.
Caras, eu tentava evitá-los, em especial, o sorridente à minha frente
sempre que eu podia, mas essa não parecia ser a noite que eu conseguiria
fazê-lo.
Alguns dias era bem difíceis lidar com Andrew, ele sabia ser
irritante com aqueles olhos que pareciam cavar tanto na minha alma que era
capaz de encontrar meus segredinhos.
Mas não, nada de tentar invadir minha privacidade, mocinho. Só eu
devia fazer tal coisa. Joguei meu celular na mesa e percebi que ele esticara
o pescoço numa falha tentativa de checar minhas mensagens.
Estreitei meus olhos diante de sua curiosidade tola e parti para o
ataque.
— Oi, Andy. Você aqui? Não sabia que frequentasse tais lugares.
— Só porque sou meio nerd, não quer dizer que de vez em quando
eu não me misture com outras tribos.
— Na verdade, quer dizer exatamente isso. Devia estar em sua cama
entre as cobertas em segurança, lendo revistinhas e brincando com os
bonequinhos
— São HQs e figuras de ação. Só para constar.
— Está bem, estou ciente dos termos técnicos.
— Você é terrível! — Ele riu diante da minha implicância, mas não
era esse o meu objetivo. Cruzei meus braços emburrada com sua alegria, ele
fazia com que me sentisse uma mulher frustrada em muitos termos. —
Emma, seus olhos estão mais bonitos hoje.
— Só os olhos? — provoquei, não resisti.
— Toda você, mas eles estão especialmente brilhantes. — Percebi
que ele moveu as mãos embaixo da mesa. — Não leve a mal, parecem íris
de gatos bem cristalinas. Só vi olhos assim na gatinha da minha avó que
faleceu.
Canalizei mais poder do que eu fizera há muito tempo, naturalmente
minha pele devia estar mais viçosa e meus olhos azuis deviam estar
resplandecentes. Muita energia fluíra por mim, embora por dentro eu
estivesse um pouco cansada.
— A gata ou sua avó?
— As duas faleceram. Mas seus olhos se parecem como de Diana, a
gata.
— Sinto por sua avó.
— Faz tempo. Eu era criança ainda. Está tudo bem agora, estou
bem.
Ele não parecia muito bem, seus olhos estavam mais caídos do que
se eu tivesse dado um fora nele. A morte de sua avó ainda doía.
Era melhor mudar de assunto, não gostava de vê-lo abatido desse
jeito. Preferia ele alegrinho me cercando pelos cantos, essa sempre seria
uma visão agradável, embora eu nunca fosse admitir.
— Não compare garotas a animais, não é legal. Faz parecer que
somos selvagens — brinquei com ele pensando que o tiraria daquela tristeza
toda.
— Ah, não foi minha intenção — disse num muxoxo enquanto se
acomodava de forma ainda mais desconfortável do que eu, naquela cadeira
pequena o que me fez pensar que não era só a mobília que causou o
incômodo. Minha tentativa de animá-lo teve o efeito reverso, ele acreditou
que eu o repreendi.
Provavelmente, era o resultado das minhas constantes indiretas
malcriadas e necessárias. Se fosse amigável demais, aí que ele fincaria
residência perseguindo a minha sombra.
Mas aquela amargura toda não era o que eu planejava.
— Pode fazer com que me sinta um pouco selvagem demais —
ronronei, enquanto descalçava meus sapatos e deslizava meu pé por sua
perna, talvez isso ajudasse a melhorar o ânimo.
Um pouco de flerte nesse momento não faria mal, eu tive um dia
estressante, talvez até fizesse bem. Pensaria assim, ele viera atrás de mim de
novo, não tinha jeito mesmo de mandá-lo para casa. Só um pouco de
conforto para nós dois, depois eu daria um jeito de mantê-lo sob controle,
sim, eu pensaria nisso mais tarde.
Mordi minha língua para conter um gemido ao constatar em minha
pele todo o poder que eu possuía sobre Andrew, seus músculos ficavam
mais tensos por onde meu pé passava. Até mesmo a parte que não tinha
nenhum músculo, essa parecia maior e mais dura do que eu já havia notado
antes.
Não pude evitar de sorrir ou tocá-lo ali com mais intensidade.
Ergui meus olhos para ele e Andrew tinha um punho apertado com
força sobre a mesa e os olhos firmemente fechados, tão firme quanto o que
eu tocava nesse momento com movimentos insistentes com a sola do meu
pé.
Retirei-me dele e o vi arfar tentando se recompor.
— Qual é o problema desse lugar? Por que é tudo tão pequeno e
espremido?
— Talvez eles achem aconchegante assim, mais íntimo —
provoquei, debruçando-me sobre a mesa e deixando que ele desse uma boa
olhada nos meus seios à mostra naquela camiseta preta e colante.
Uma coisa eu tinha a certeza, as calças de Andy deviam estar mais
apertadas do que o espaço reduzido entre nossos corpos. Antes as coisas já
estavam bem sem espaço lá embaixo, mas com ele tendo uma visão perfeita
dos meus seios saltando da camiseta, as coisas deviam estar mais intensas
considerando seus olhos fixos neles.
Não que eu fosse bem favorecida nesse quesito, eu sempre os
julguei pequenos. Ainda mais para os padrões americanos, mas uma coisa
era certa, o tamanho não importava tanto assim para um homem. Seios
eram seios e os homens gostavam deles.
E não via outra garota oferecendo os seus ao seu olhar assim, na
verdade, nunca via nenhuma oferecendo qualquer coisa a ele. Nem mesmo
uma conversa à toa sobre a faculdade. Qual era o problema daquelas
mulheres? Ele era meio esquisito, mas ainda assim lindo. Definitivamente,
havia algum problema com elas.
Deve ter sido por esse motivo que ele cismara comigo. Eu dera
atenção a ele, mas do que eu planejara alguma vez.
E no momento estava dando mais do que isso, uma boa visão do
meu decote era o que recebia e, pelo visto, ele gostou da vista. Até eu
apreciei meus peitos, estavam mais bonitos e altos, destacados com uma
camiseta preta de um tecido bem firme que os sustentava juntos num amplo
decote que devia estar surtindo um efeito interessante num cara como
Andrew. Já que a única garota que eu o via atrás era a que exibia os peitos
em questão. As garotas não corriam atrás dele, mas eu também não o via se
esforçando para ganhar a atenção de nenhuma delas.
Com olhos tão vidrados como estavam, imaginei que já tivesse
percebido que eu não usava sutiã e que ele adoraria se eu fosse mais amável
no futuro.
Depois de anos usando espartilho e uma vida de reclusão, eu me
manteria o mais longe possível de qualquer prisão e isso incluía qualquer
roupa íntima. Se estivesse à solta nos anos sessenta, eu estaria nas fileiras
de garotas louca para acender um isqueiro e tacar fogo nos meus sutiãs.
Tudo pela liberação feminina, é claro, não porque não gosto da peça
mesmo.
— Ah, Emma, eu... — Andy engoliu em seco.
Eu sabia, desconcertei o bom moço.
— Sim?
— Você está muito linda.
— Você já disse isso hoje e deveria ver essa cara, tire os olhos dos
meios peitos. — Torci os lábios fingindo estar contrariada.
Até me arrumei um pouquinho para vir a boate, embora mantivesse
minhas roupas negras padrão uniforme de todo dia. Me adequei bem à
moda casual atual, e fiquei feliz de não ter que estar sempre num vestido
como no passado. Mas quando estava me aprontando mais cedo decidi
escolher uma roupa mais bonita, embora tão simples como todas as outras.
Eu não costumava me enfeitar muito, Andrew menos ainda. Nesse
momento que eu notara finalmente as roupas que ele vestia.
— Até numa boate, Andy?
— Eu não esperava reagir assim, me perdoe. — Ele abaixou a
cabeça, rubro como a fogueira que eu queria tacar meus sutiãs, crente que
eu estava falando de sua reação ao meu pé que eu esfreguei nele ou do
decote que botei embaixo de seu nariz.
— Falo da camiseta de super-heróis sob essa jaqueta que é bem
bonita por sinal. — Eu ri de seu constrangimento. — Embora verde
combine com você, podia escolher um monstro mais bonitinho para vestir
ou aboli-las uma noite que seja.
— Ah, eu decidi vir de repente. — Coçou a cabeça sem graça. — Já
estava indo para cama, na verdade, e ler...
Sorri mediante sua fala.
— Ler revistinhas — completei.
— Você deve pensar que sou uma criança grande — disse,
esfregando a testa.
Mesmo para um cara sem traquejo social, como ele, que passava
mais tempo vendo filmes de super-herói do que devia para a sua idade,
enquanto deveria estar pegando garotas em festas, aquilo fora cruel.
Minhas diretas maldosas às vezes eram diretas demais. Eu precisava
corrigir isso.
Me levantei da minha cadeira, peguei meu casaco no encosto da
cadeira e me aproximei de sua orelha devagar antes de murmurar em seus
ouvidos.
— Penso, mas eu prefiro você assim.
Ele saltou na cadeira numa empolgação misturada com susto o que
levou que batesse seus joelhos na mesa entornando a bebida que trouxera
em mim, um pouco na mesa e muito em suas calças.
— Droga, sua bebida — falou, chateado enquanto olhava ao estrago
que fizera.
— Eu não bebo nada alcoólico, não se preocupe. Peça outra para
você e vá para casa.
— Eu te acompanho — ele se ofereceu, já se levantando e meio que
derrapando na bebida que escorrera pelo piso.
Eu o vi se curvar para trás e o medo que ele se machucasse gritou
alto no meu peito, quando percebi já estava segurando-o pela cintura e o
encarando, assustada demais, para um simples flerte.
Andrew não podia perceber isso.
Graças a deusa as reações de seu corpo ao meu eram mais
energéticas e perfeitas do que minha capacidade de fingimento, me dando
um assunto ótimo para que eu fugisse de explicações sobre qualquer
sentimento que estivesse escancarado em meu rosto. Era isso que dizia seu
pau me espetando um pouco mais abaixo. Dei uma espiada, afastando um
pouco meu corpo do dele e não pude impedir o sorriso de lado que brotou
na minha face ao encará-lo, novamente, só para vê-lo desviar os olhos para
o teto, sem ter como disfarçar algo tão óbvio e que eu já sentira há pouco.
Ele ficara mesmo animado com meu pequeno entretenimento.
— Acho que você devia ir imediatamente para casa e ler algo mais
adulto que HQs de super-heróis. Vai te acalmar um pouco — fiz uma pausa
e mordi meus lábios —, ou animar mais, vai saber.
— Emma, pare — suplicou, já muito torturado para um dia só.
— Parei! — Estendi as mãos ao alto para assegurar que já o toquei
demais por hoje. — Vá brincar com suas garotas de papel agora.
— Você não iria imaginar os milagres que super-heroínas fazem na
vida de um cara solitário.
— Arrume uma garota de verdade, super-heroínas são muito
problemáticas.
— Você está disponível para ser essa garota?
Andy estava ficando ousado graças ao meu excesso de incentivos
essa noite. Infelizmente, era mais problemática do que mulheres fictícias de
HQs. Afinal, eu era real e carregada de arqui-inimigos de verdade.
— O único encontro que eu quero é com a minha cama agora.
Eu dei pequenos tapinhas em seu peito na intenção de pontuar
minhas palavras e acabei por me surpreender o quanto aquele peito era duro
para um cara que não se exercitava, a menos que levantar copos de
refrigerante contasse como atividade física. Isso eu o via entornar entre uma
aula e outra somado a meia dúzia de donuts. Devia ser daí que estava vindo
essa energia toda para me perseguir.
— Vá para casa — reforcei, virando-me em direção à porta.
Isabella teria diversão essa noite, Andrew se divertiria sozinho e eu
iria para casa dormir.
— Você quer vir para minha casa no feriado?
O convite veio de surpresa, ele devia estar se referindo ao Ação de
Graças daqui a poucos dias. Eu não devia ter mexido com ele, devia ser o
cansaço, fora um dia complicado, mas não resisti a provocá-lo.
Meu corpo tomara decisões sozinho e se movera para ele, mas nesse
momento Andy esperava que eu passasse o Ação de Graças [23]em sua casa.
Era tão óbvio que eu nunca ia para casa, todas as pessoas próximas sabiam
e isso me chateava.
Eu era a única que não tinha uma família querida para voltar.
Ninguém que se importasse comigo para dividir a refeição, não que ligasse
para a parte religiosa da coisa, eu não tinha essas crenças. Mas a data era
um costume local, para ficar com os que te amavam, mas ninguém nutria
tais coisas por mim.
Ele estava se oferecendo para me emprestar a família dele, mas isso
estava fora de cogitação.
Bem, eu não podia dizer que não havia ninguém absolutamente na
minha vida. Tinha uma irmã me chamando para casa, teria que bastar. Era
isso, eu iria para Cartersville no aniversário de Scarlet e talvez estendesse
minha visita até o feriado.
— Sinto muito, não vai dar. Eu vou para casa — falei, deixando a
boate e Andrew com um palavrão que escapou de seus lábios junto com um
Você estragou tudo se referindo a ele mesmo.
Mas ele não havia estragado nada.
Eu sim cometera um erro terrível essa noite, eu o deixei se
aproximar mais do que devia. Até parecia que eu tinha bebido algo forte
quando não entornara uma gota de álcool. Não contava o que fiz Andrew
derrubar em suas calças e acabara tendo efeitos adversos.
Precisava calcular melhor meus movimentos no futuro, estar numa
boate que emanava desejo sexual naqueles corpos suados não era uma coisa
boa para uma bruxa com a sensibilidade aflorada. Nem mesmo toda de
preto a cor me protegeu de ser preenchida por toda a luxúria que reinava ali.
Mas a chegada de Andy fora o pior, o próprio desejo dele pulsou em
mim.
Essa era a parte da magia que eu mais detestava, ser empata[24]. Uma
luta constante para saber se o que eu sentia era real ou se estava canalizando
os sentimentos de outras pessoas como, aparentemente, fizera, absorvi toda
aquela energia sexual que reinava ao meu redor.
Odiava boates.
O som era detestável e eu mal podia me concentrar em meus
próprios pensamentos. Fiz um esforço para checar os novos amigos de
Isabela e acabei fragilizada. Daí Andrew apareceu com seus próprios
pensamentos impuros que se acumularam com os demais pervertidos locais,
e eu virei uma máquina de sedução. Fora que ainda havia aquele cheiro de
suor misturado ao almíscar pelo ar, perdi a cabeça e era culpa deles.
Não minha de forma alguma, claro que não. Toda deles.
Mas desse momento em diante eu que teria que lidar com as
consequências. Paciência. Nunca imaginei que Andrew iria num lugar
daqueles.
Aula de empreendedorismo, uma lição de como ganhar dinheiro se
você tem zero centavos. Boa aula e uma total mentira. Grana sempre
chamava mais grana, a menos que a pessoa fosse ruim o suficiente para
falir. Mas a ausência dela só chamava uma coisa se você fosse burro para
tentar ganhá-la, dívidas.
Uma tonelada delas, na verdade.
Universidade, a terra das ilusões, bufei enquanto batia minha caneta
num movimento ritmado sobre a mesa e dava uma olhada nos colegas ao
meu lado. Todos tinham olhos de esperança e, provavelmente, pensavam o
que podiam fazer com suas habilidades. Mas acabariam como a maioria,
queimando a vista diante de um computador num escritório apertado em
algum centro comercial e perdendo o cabelo antes dos trinta.
Ainda bem que aparentemente eu era imortal, ou ao menos viveria
mais algumas centenas de anos pelo simples fato, da sorte ou azar, de meu
nascimento especial, abençoada pelos deuses ou a descendente bastarda de
algum deles. Essa última parte carecia de interpretação, mas não me parecia
uma benção. Bem, ao menos não precisaria me preocupar em perder cabelo
e nunca teria miopia num trabalho desses.
Era uma droga que eu acabaria tendo que arrumar algo do tipo a
menos que eu resolvesse mendigar pelas ruas, pena que meu senso de certo
e errado, apesar de falho, ainda dizia que eu não devia brincar com a mente
das pessoas para que me dessem toda a grana delas.
Bem, de vez em quando ele dizia. Mas na maioria das vezes eu o
ignorava e tentava ser tão boa quanto uma bruxa má era capaz de ser.
Boa...
Havia alguém de fato bom nesse mundo? Eu duvidava.
Mordi a ponta da caneta e tentei prestar atenção a projeção naquele
grande telão, enquanto o professor Smith fazia o melhor para nos convencer
do quanto a vida seria fácil se o ouvíssemos com afinco.
Eu poderia gritar naquela sala que a vida era uma merda, mas eles
descobririam sozinhos cedo ou tarde.
Nesse momento, o professor batia na tecla de como o marketing
digital era importante para desenvolver a consciência de marca nas mentes
dos possíveis clientes, ou melhor, fãs. Assim, eles se identificariam com o
que éramos e com nossos valores.
No fim, a aula era de vilania.
Não pude conter um sorriso com a constatação disso, tive que
abaixar minha cabeça, encostando meu queixo no peito na tentativa de
escondê-lo. Ele nos ensinava a manipular da melhor maneira as pobres
mentes indefesas, eu retirava o que disse a ser um fracasso. Talvez eu
conseguisse me dar bem na área, afinal, eu era boa nisso.
Tirando a parte de mostrar sua verdadeira identidade, bem eu era de
uma época que mostrar quem você era poderia levar a uma sessão de
tortura, exílio e com um pouco mais de azar a fogueira. Não
necessariamente nessa ordem, você também tinha a opção de não
sobreviver a tortura.
De todo, era melhor fingir e se juntar a manada. Dizer o que os
outros queriam ouvir, mas fazer o que te convir. A única coisa que ninguém
podia mandar era nos seus pensamentos, a menos que desse de cara com
alguém, como eu, que podia lê-los. Bem, se encontrasse alguém como eu,
devia cuidar mesmo da aura que exalava, porque nem seus sentimentos ali
gravados me escapariam.
A droga era que havia outros assim como eu no mundo e com
intenções piores. Ao menos também existia mais gente para me deter caso
eu resolvesse brincar de marketing, numa versão de puro feitiço.
Sacudi minha cabeça afastando as malvadezas dela e dei de cara
com aqueles bons olhos fixos em meu rosto. Eu atiçara Andrew mais do
que devia ontem.
Sr. Smith, vire-se.
Enviei uma ordem mental ao professor com um comando direto e
ele chamou a atenção de Andrew, que se voltou novamente para frente,
deixando-me menos tensa sem sua vigília sufocante. Revirei meus olhos,
recordando-me de que além dos problemas que eu teria após a formatura, eu
precisava lidar com outros imediatos e um homem apaixonado só me
atrapalharia.
E ainda tinha o problema que decidi voltar à cidade que me acolheu
e me chutou logo a seguir, a repercussão disso me assustava um pouco. A
recepção dos Davis era um problema maior a se lidar, mas por Scarlet achei
que valia a pena. Embora o dinheiro estivesse curto para visitá-la, assim tão
de repente.
A bolsa da faculdade não era muita e comprar uma passagem de
avião estava fora de cogitação, então achataria minha bunda num ônibus de
Miami até a pequena cidade de Cartersville por longas dezessete horas, isso
se eu conseguisse passagens tão em cima da hora.
A aula terminou e eu mordi os lábios insegura, ainda mais depois do
que aconteceria nesse fim de semana. Fiquei um tempo olhando as
mensagens de minha irmã até que todos os alunos deixaram a sala e eu me
levantei, torcendo que fosse um dia de sorte, apesar de que essa não era
uma palavra que podia ser atribuída muito a mim.
Ainda mais quando podia sentir os olhos de Andrew me
perseguindo no meu caminho pelo corredor até a saída do prédio.
E meu medo se manifestou numa forma real, nas palavras ingratas
da funcionária da estação de ônibus.
Não há mais passagens daqui até o Dia de Ação de Graças. A
atendente dissera sem piedade, enquanto assoprava uma fumaça em minha
cara que cheirava a rosas.
Tive um ataque de tosse que me levou a me sentar nas escadas da
estação sem achar nenhuma solução. Quem fumava cigarros de rosas[25]? Eu
era a favor do Você quer se matar, faça-o direito com a velha e péssima
nicotina. Ambos fediam de qualquer jeito. Dado meu verdadeiro desprezo
por rosas, acreditava que elas fediam até mais.
Eu apertara a alça da sacola de viagem com força entre meus dedos,
enquanto insistia se não havia uma passagem sobrando nem mesmo em
outro horário. Mas não havia nenhuma opção disponível, segundo a mulher.
Não podia pedir que Isabella me levasse como fizera no jogo de
futebol, na ocasião ela já estava mesmo indo para lá. Tampouco pediria
dinheiro emprestado, seria abuso demais.
— Como que não sobrou nada? Nem uma passagem para Atlanta?
Seria ruim fazer uma baldeação, mas eu aceitaria qualquer coisa no
momento.
Me questionava desanimada ainda sentada nas escadarias da porta
da estação de ônibus com meus cotovelos apoiados em minhas coxas e
minhas mãos em meu rosto num momento de abatimento quando senti meu
celular vibrar novamente. Já era a terceira mensagem hoje e ainda não
passava das onze da manhã.

Emmie, segunda é meu aniversário. Você vem, né? Eu espero


você.

— Ah, Scarlet eu queria tanto ir antes que até você me rejeite


também, mas não acho que consigo...
— Oi, Emma. Tudo bem? — Acenou o cara que era meu
desassossego por um longo tempo.
E lá vinha ele de novo e sua insistência incômoda. Como poderia me
livrar dele era algo que me perguntava todos os dias.
Andrew se vestia como de costume com aquelas calças largas
demais para ele e alguma camiseta de super-herói que eu desconhecia. Ele
tinha muitas delas, já era sua marca registrada. Tantas que eu jurava que era
tudo que ele possuía em seu guarda-roupa. Ele era um nerd total se olhasse
por esse lado.
Embora eu não pudesse reclamar muito, não era a senhorita
popularidade. Bem, na verdade, nunca fora. Eu vivia para me esconder de
outras pessoas, antes e agora. E bem, mirando a Andrew eu podia ver o
Clark Kent[26] escondendo o Super-Homem[27].
Enfim, ele não precisava se vestir assim o tempo todo, mas resolvi
não mexer com ele. Deprimida demais para brincar com ele e eu ainda
estava na minha fase de me vestir toda de preto e eu nem era a gótica que as
pessoas no campus pensavam. Era a coisa de bruxa mesmo e uma que vivia
sendo caçada, uma cor protetora num mundo que tinha gente à minha
procura.
Ao menos minha aura estava protegida me vestindo desse jeito,
olhando para ele poderia ser que era assim que as camisetas funcionavam
pra ele, um símbolo de força.
Cada um que se segurasse em seus próprios símbolos protetores.
— Andy, me seguiu até aqui? — De novo. Acrescentei em minha
mente.
— Não, claro que não. Emma, eu só vim...
Alarguei meu sorriso enquanto o via alisar os cabelos e puxar
discretamente a gola da camiseta tentando se lembrar de sua nova desculpa
ensaiada para estar atrás de mim mais uma vez.
— Comprar passagens? — ajudei, ao ver o seu constrangimento.
— Sim, passagens! Isso mesmo! O que mais eu faria numa
rodoviária? — Ri alto como se a resposta estivesse à sua frente o tempo
todo, mas ele não visse. Metaforicamente falando, porque a resposta real
era eu à sua frente o motivo de ele estar ali.
E outra vez estávamos num encontro ocasional que me levava a
pensar que eu era uma flor que tinha uma abelha insistente me cercando,
mas essa flor não facilitava nada na vida de Andrew. Coisa que sempre o
levava a fazer um bico a cada rechaço até que estava em meu encalço
novamente.
Faltava-lhe vergonha ou estava cheio de coragem, um dos dois. Sua
obsessão não tinha fim, e eu deveria ter imaginado isso. Mas não considerei
esses pormenores, quando o encontrei ou toda vez que caía na tentação e
me via brincando com ele.
— E você? Por que está aqui sentada sob o sol? Você nunca gostou
muito dele, né?
— Verdade, não gosto de me queimar. E isso é uma coisa que me
faz pensar o que ainda faço em Miami.
— Pensa em se mudar? — perguntou numa voz tão frágil que quase
pude ouvir seu cérebro choramingando que não poderia ficar sem me ver
todos os dias.
Não podia ler sua mente, mas não precisava fazê-lo para saber que
se eu fosse embora para longe, seria doloroso para ele.
— Não é algo em meus planos, terminarei a faculdade aqui — Dei
um sorriso brincalhão numa tentativa de confortá-lo. E voltamos ao
empurrar e puxar. Eu o estava empurrando, por que comecei a puxar de
novo? — Não sou fã do sol escaldante, mas aprecio os dias bonitos e o pôr
do sol. Você ainda terá muito tempo para correr atrás de mim.
Ele tentou manter a expressão neutra, mas vi como ficou
constrangido com a menção da sua perseguição constante. Mesmo que eu
não tivesse a intenção de ser má, dessa vez.
Ele não devia forçar tanto as coisas como vinha fazendo, entretanto,
eu sabia que não sobrava mais nada que Andrew pudesse fazer. Eu nunca
lhe dava uma chance de verdade e sua atitude era compreensível.
Meu celular vibrou, fitei a tela com preocupação e resmunguei ao
ver mais uma mensagem de Scarlet.
— O que foi? — perguntou ele.
— Minha irmã.
— Ela está bem? — O tom dele mudou para um ar de preocupação.
— Eu espero que sim. Não temos nos falado muito. — Dei um
suspiro chateado. — Mas me pediu para ir para casa no próximo fim de
semana, é seu aniversário. Pensei em ir e ficar até o Ação de Graças.
— Então, você devia ir.
— Não tem mais passagens, assim não vai dar dessa vez —
lamentei, abraçando minhas pernas.
Ele se sentou no banco ao meu lado e ficou ali um tempo,
contemplando o sol já se aproximando do meio do céu, fazia um dia bom
em Miami, claro e sem nuvens. Observava seu rosto e quanto era
bronzeado, entregando que sempre vivera em Miami, carregava na pele a
adoração pelas praias da região. Até que eu vi o exato momento que uma
ideia diabólica cruzou sua mente, estava em seu rosto claro como o céu
daquele dia.
— Eu posso pegar o carro de meu pai.
Eu o olhei meio desconfiada, mas ele tinha minha atenção e eu
podia ver como a expressão em seus olhos mudara, olhos afiados como de
um gato esperto e já imaginei quais eram os próximos passos desse felino
que tentava encurralar uma gata mais astuta do que ele. Embora ela não
tivesse muitas opções e pensava em considerar a proposta.
— Está sugerindo uma viagem que gastaríamos o quê? Doze horas
na estrada de carro? — Seria terrível, ele me encheria de perguntas.
— Sim. E você gastaria mais tempo de ônibus.
— Só eu e você?
Ele sorria como se a ideia fosse esplêndida, mas era uma péssima,
pelo menos para mim.
— Sim.
— Sozinhos?
O sorriso dele se alargou mais, já o meu murchou.
— Sim. E você está ficando repetitiva.
Ótimo! Nesse momento ele exibia até os dentes. Ficaria com rugas
se continuasse sorrindo desse jeito. Eu deveria lembrá-lo de que ele era só
um humano? Não, melhor não. Ficaria ofendido se eu o fizesse.
— Esqueça — falei, ao me levantar e correr já com minha sacola em
direção ao metrô na tentativa de voltar para o meu dormitório na faculdade.
Mas Andrew fora mais rápido e tomara minha sacola de minhas
mãos para minha surpresa e, nesse momento, a escondia em suas costas.
Quase o amaldiçoei enquanto tentava tomá-la de volta. Não era como se eu
pudesse fazê-lo se curvar diante de mim aqui e deveria segurar minhas
pragas, eu não podia chamar a atenção para minha nova identidade.
Não gostaria de ser ameaçada com uma fogueira de novo, a primeira
vez não acabara bem para ninguém. Apesar de que era mais provável que
eu fosse parar num laboratório do governo em algum ponto perdido no
deserto. Talvez a tortura fosse maior, se bem que os antigos homens já eram
criativos demais. Coisas que preferia não ter me lembrado.
Fora que não me agradava a ideia de machucá-lo. Jamais tocaria
nele.
Suspirei cansada, só me restava brincar de tentar recuperar minha
bolsa, enquanto ele fazia questão de não me devolver. E, estranhamente,
Andrew estava se esquivando bem quando não deveria ser capaz de desviar
tão bem assim.
— Pare com isso, Andy — rosnei, enquanto corria à sua volta em
vão. Droga de homem alto, com membros compridos. Estava me dando
uma canseira.
Parei, encarando-o e pensei que eu escolhi as palavras erradas, me
fazia ter vontade de checar outro membro que me pareceu bem longo e cair
exausta na sequência.
— Vai estar segura comigo. Eu prometo que a levarei em segurança
até aquela cidadezinha...como mesmo se chama?
— Cartersville.
— Isso! Cartersville! — exclamou, animado, e exibindo outro
sorriso imenso.
— Eu não vou a lugar nenhum com você — repliquei, emburrando a
cara numa tentativa de reduzir toda aquela alegria que emanava dele.
Ou em mim.
— Vamos! Estará segura comigo. Sou um pobre nerd que usa
camisetas de super-heróis. Sou confiável!
— Homens não são confiáveis — assegurei. — Mas não temo
absolutamente nada em você.
Pude ver como retraíra o corpo. Aquelas palavras doeram nele,
mesmo tendo brincado assim antes.
Sua expressão dizia: Sou tão pouca coisa que não sou um homem
para ela, certeza de que era esse pensamento que corria veloz por sua
mente. Duvido que quisesse ser uma ameaça a qualquer garota, não era de
sua natureza. Mas minha fala soou como se eu não visse como um homem
absolutamente, e nesse instante eu tinha um com o ego ferido.
Marquei um ponto para afastá-lo. Mas não gostei do resultado.
— Então, não vejo problemas em ficar umas horas comigo na
estrada.
Cheguei a sorrir contente que talvez, assim ele recuasse de uma vez
por todas para longe de mim. Tolo engano meu, ele se contraíra ainda mais
diante dos meus lábios curvados, mas não desistira. Homem teimoso.
Ficou chateado, era visível, mas era a oportunidade que ele tinha e a
pegaria. Para o meu azar. Droga.
— A visitarei em outra ocasião.
— Você disse que ela é uma adolescente, pode ser que ela prefira os
amigos da próxima vez.
Ele me pegou em um ponto fraco.
Isso seria mais difícil do que eu pensava, envolvi os braços ao meu
redor com força enquanto pensava em algo para afugentá-lo, vinha nada à
minha mente no momento, então me virei para ele e encontrei aquele
sorriso ainda estampado em seu rosto.
— Está bem, eu aceito a carona. Satisfeito?
— Muito.
Eu gostava de Andrew, mais do que devia ter gostado alguma vez e
guardaria esse segredo. Ele não deveria tomar conhecimento disso. Nunca.
Com certeza, não ajudaria no meu intento que ele estivesse sorrindo para
mim e eu sorrindo de volta. Não, uma viagem com ele não daria em boa
coisa, mas queria ver minha irmã e ela era tudo que eu tinha. E ele naquele
momento fora minha única opção.
Só que parecia que seria muito difícil a resistir a cair exausta nessa
viagem.
Como eu esperava, viajar com Andrew era uma dor no traseiro e não
uma boa, presa por cinco horas dentro de um carro com ele e ainda faltava
um bocado até Cartersville. Tempo esse que ele tentava puxar todo tipo de
conversa com os assuntos mais proibidos e impossíveis que incluíam até
mesmo detalhes da minha infância, ocorrida há muitos séculos e que eu não
poderia contar a ninguém.
Nesse momento estava ali agarrado ao volante com a cara trancada
numa carranca permanente enquanto eu rezava a qualquer deusa que nos
ajudasse a chegar logo ao nosso destino, mas nenhuma parecia disposta em
me ajudar, não naquele momento.
De fato, em nenhum outro dia. Por que eu rezava ainda, afinal?
E ainda havia mais umas sete horas de viagem para o meu terror ao
lado do senhor tagarela. Como ele havia ficado assim? Imaginava que teria
uma personalidade mais calma. Ele era gentil, mas passava longe de ser
tranquilo. Andrew parecia mais a um cãozinho excitado com um osso de
gigante, um de dinossauro talvez. Lamentável que eu era o osso em questão
que meu amigo queria morder.
Ruim para ele que não teria uma boa digestão se conseguisse seu
intento.
Suspirei, cansada, e dei uma olhada pela janela, não havia nada para
ver. Há muito já havíamos deixado Miami e não havia nada de interessante
lá fora. Nunca curti muito A Cidade Mágica [28]e tampouco vi muita magia
nela para atrair tanta gente. Embora a vista de suas águas calmas e
cristalinas com aquela areia fofa e branca na praia parecia melhor do que
ficar presa nessa estrada cercada de terra amarela que se eu abrisse a janela
teria a merda da poeira cobrindo meus cabelos.
Tentei ligar o ar-condicionado do carro e me frustrei quando não vi
um vento sair pelas ventoinhas.
— Está quebrado — murmurou Andy sem tirar os olhos da estrada.
— Sério, Andy?
— É um carro de cinquenta e nove. — Pude vê-lo deixar cair um
pouco os ombros como se fosse algo normal.
Eu era de mil e trezentos, mais ou menos, não me recordava direito,
e estava em perfeitas condições. Era esperado que essa lata velha estivesse
aposentada, já que não funcionava bem.
— Como você achou que isso deveria estar na estrada?
— Ele está na estrada, não está? — Andy sorriu um pouco e com
confiança demais, não era nada bom. Era melhor voltar ao estado
carrancudo com as sobrancelhas franzidas, ficara muito animado para o
meu gosto. — Acho que nunca tive a oportunidade de contar que meu pai é
mecânico de carros antigos e como um apreciador do Cadillac, ele só
poderia ter um carro assim também.
— E eu acho que você podia ter contado esse detalhe antes de
insistir que me levaria numa viagem longa dessas.
Não que eu fosse reclamar do favor que ele estava me fazendo, mas
eu esperava que esse carro não resolvesse se aposentar no meio da estrada.
Afinal, era um senhor idoso já. Ele devia fazê-lo, mas depois que chegasse
nos Davis. Então, era mais do que justo que Andrew tivesse revelado esse
pequeno detalhe antes que eu concordasse com a viagem.
— Não fique chateada, cuidamos bem dele. Está bem conservado —
afirmou.
— Olhando pelo painel sim, mas e por dentro? — Cruzei meus
braços e encostei a cabeça na janela.
Ele riu e meneou a cabeça.
— Fique tranquila, só o ar-condicionado que está com defeito. E
olha, devia estar contente de estar sentada na história americana, o Cadillac
Eldorado era um carro de luxo sabia?
— Sim, estou muito impressionada. Só não sou muito fã de história
ou de me sentar nela — debochei.
— Emma, não seja assim. Até mesmo presidentes já se sentaram em
seus bancos para a posse de seus mandatos.
— Ah, me desculpe se não estou muito interessada de fazer parte da
história americana. — Bufei, contrariada, encostando-me na janela para
continuar a observar a paisagem entediante.
— Falando assim nem parece americana — comentou numa voz
sussurrada que eu ignorei.
Eu não era mesmo.
Embora, estivesse me sentindo mais americana do que eu queria.
Parecia até mesmo que eu estava num daqueles filmes antigos dos anos
oitenta ou noventa que assisti tantas vezes com Scarlet. Foi bom que
aprendi muita coisa, mas dispensava a ideia de fazer parte da história.
Sim, era exatamente como os filmes, um do tipo com longos
passeios de carro por uma estrada deserta sem uma alma viva para contar a
história se nossos corpos fossem jogados numa ribanceira.
— Eu só não quero que encontrem nossos corpos num rio. Ah, não!
Espera! Precisa ter um rio para ser jogado num lugar desses e aqui não há
nem isso, só poeira.
— Verdade, ao menos vão encontrar mais fácil nossos corpos —
brincou ele e eu dei a língua.
Não queria ser injusta com aquela estrada, havia alguma vida sim.
Podíamos considerar algumas moitas espalhadas, incluir umas árvores secas
ainda mais escassas e bons pedregulhos para decorar o caminho que eu
esperava que nenhum vento os levasse para a estrada.
Isso tudo emitia energia, então estavam vivos na visão de uma
bruxa. Embora não fossem muito energéticos ou saltitassem por aí.
No entanto, esse era o retrato tedioso da I-75N [29]o que só me
restava olhar ao meu animado acompanhante e pensar em algo ameno que
pudéssemos nos entreter em alguma conversa superficial e não
comprometedora.
Embora eu tivesse certeza de que ele ansiasse por algo íntimo e
intensamente perigoso, no entanto, dado a última noite que nos
encontramos eu tivesse dúvidas quem corria perigo ali.
— O tempo está bom — falei.
— Sim — resmungou ele, não gostando que eu mudara o assunto
para algo tão trivial e pouco pessoal.
Ora, não queria falar sobre o tempo? Quer falar sobre o quê? Como
entrar nas minhas calcinhas? Sinto muito, não iria acontecer, mocinho. Nem
lembrava de ter posto uma mesmo. Então, nada de calcinhas para você.
Cruzei meus braços e deixei o silêncio perturbador reinar.
Foda-se e sozinho.
O único a se oferecer para me trazer aqui foi ele.
Se eu não estava colaborando com Andrew em suas perguntas
invasivas, ele já deveria ter imaginado que seria assim a viagem.
Eu não iria colaborar não importava quantas carrancas ele exibisse.
Eu de fato até bateria uma foto de recordação de cada uma delas se não
achasse que a situação poderia piorar. Seria interessante guardá-las como a
lembrança mais frustrada de Andrew. Eu olharia daqui a alguns anos e diria
até que ficava bonitinho fazendo beicinho.
Seria divertido para passar o tempo quando estivesse longe dele. Eu
não iria ficar na faculdade para sempre e esses três anos correram tão
rápido.
Observei, discretamente, seu perfil, ele era mais magro quando o vi
pela primeira vez, era só isso que mudara, ganhara um bom corpo. Mas
tinha os mesmos olhos que pareciam carregar o brilho das esmeraldas numa
face de mandíbulas bem definidas e queixo afiado com um belo cabelo
loiro-claro emoldurando tudo.
Estava o olhando e pensando nele como uma boba apaixonada.
Retire esses pensamentos de sua cabeça, Emma.
Algum desavisado poderia pensar que Andrew era um anjo por ser
tão lindo e teria certeza ao notar que era tão solteiro como um santo.
— De novo? Afasta de ti esses pensamentos, já que não o pode
afastar.
— O quê? — questionou ele.
— Nada. Pensei alto. Sobre minhas provas.
— Ah, sim.
Esperava que ele tivesse engolido essa ou ao menos fingisse que o
fez.
Talvez tivesse ignorado ou não entendido meu comentário. Não
mostrava nada em seu rosto, sua expressão nesse instante parecia bem
neutra, enquanto mantinha a atenção na pista mesmo sob meu olhar de
escrutínio.
Não me sobrava nada para fazer, além de observar seu perfil e
pensar sobre ele, já estava entediada de olhar aquela estrada empoeirada.
Entretanto, estava incerta como meus pensamentos saltaram para ele nessa
facilidade toda, embora não negasse que ele me atraísse mais do que a
paisagem árida lá fora.
Havia um homem alto e atraente oculto atrás de camisetas largas de
super-herói e um cabelo bagunçado loiro dourado.
Encantador.
E não estava nem pensando na pele bronzeada de quem passou mais
tempo na praia do que um médico recomendaria. Havia tantas propagandas
de protetor solar na TV que eu ficava pensando se até eu poderia
desenvolver câncer. Mas não, eu não ficava doente.
Compraria um lote de protetores solares para Andrew em
pagamento pela viagem. Aprovava aquele dourado todo, mas não as
consequências possíveis dele. Sim, ele ganharia protetores solares de
presente.
Mais uma boa secada nele e, definitivamente, era uma droga que eu
tivesse bons olhos, diferentes das demais garotas que o ignoravam por
completo.
Talvez se ele fizesse um pouco de esforço, elas o notariam. Mas não
seria do feitio dele, infelizmente.
Ou felizmente. Por mais que desejasse afastá-lo, talvez eu ficasse
chateada se eu o visse cercando outra.
Não gostaria de pensar em meus sentimentos ruins se ele
encontrasse outra mulher para se apaixonar, mas não tinha interesse em
incentivar sentimentos por mim, embora sempre esquecesse disso,
completamente.
Não tinha conhecimento de que tivesse alguma atividade esportiva
no currículo e se via tão longe dos holofotes como possível, escondido
melhor do que eu. Não havia dúvidas de que fizera um bom trabalho nesse
quesito.
Eu não iria negar, estava satisfeita que ele escolheu uma graduação
que só o fazia viver em seu próprio mundo e num quartinho trabalhando.
Aulas de desenho e sessões de computador, isso soava tão tranquilizador.
Não era um exercício com testosterona o suficiente para atrair mulheres, a
menos que ficasse famoso e rico. Daí elas saltariam sobre ele como abelhas
no mel. Eu queria que continuasse pobre.
Observei-o, novamente, aquelas mandíbulas bonitas e desejei que
ficasse pobre para sempre.
— Quantas pessoas têm mesmo na cidade?
Dei um pequeno salto no meu banco ao escutar sua voz um pouco
arrastada pelo tempo que ficara quieto, tão distraída como estava pensei que
tivesse proferido aquelas palavras em voz alta e ele tivesse ouvido.
Imagina? Desejar que ele permanecesse pobre. Como eu pudera falar isso?
Ouviria muitas reclamações a respeito, mas não mais como eu deveria me
recriminar por isso.
Palavras soltas ao vento viravam feitiços, mas pensamentos também
eram perigosos na mente de uma bruxa. E eu desejara desgraça para ele por
me roer de ciúme, um sentimento tão egoísta, embora uma verdade
escondida.
— Então, Emma?
— Sim? — Fiquei meio desorientada com o rumo que tomaram
meus pensamentos. Sempre desejava que ele saísse da minha órbita. Eu
queria isso mesmo? E o que ele falou agora? Não tinha a menor ideia.
— Emma, quantas pessoas? — insistiu ele.
— O que? — perguntei, mordendo meus lábios, não muito certa do
que ele estava falando.
— Quantos moram em Cartersville? — Andrew deixou escapar um
sorriso bobo de seus lábios pelo tanto que eu estava perdida naquela
conversa e, provavelmente, ele percebera que meus olhos estiveram sobre
ele por um bom tempo.
Ao menos estava satisfeita pelo rumo que ele levara as coisas. Ah,
isso era ainda mais tranquilizador do que a escolha dele de atividades longe
de garotas, já que começara por um tema neutro e despreocupado para
nossa conversa, dados demográficos. Algo que eu queria antes iniciar e ele
não tinha colaborado. Uma coisa tediosa e nada emocionante, bem diferente
do meu pé acariciando sua virilha. Minha ação aquele dia devia ter sido
uma bela diversão para ele, ao menos foi para mim, mesmo que eu não
estivesse em meu juízo perfeito. Provável, que eu não estivesse
raciocinando bem agora de novo, uma vez que minha mente foi para esse
momento.
— Um pouco mais de vinte mil só — respondi, séria, e já pensando
em todos os dados estatísticos desinteressantes que poderia comentar e
tentando esquecer meus últimos devaneios.
Cheguei a cogitar se deveria checar rapidamente o meu celular dado
que não me lembrava de muitos. É, talvez tivéssemos um pequeno
problema. Eu não sabia muita coisa sobre a cidade que, supostamente, eu
cresci.
Era melhor eu dar mesmo uma olhada no celular e averiguar o que
poderíamos conversar para fugir de assuntos mais pessoas. Eu poderia
pensar em tratarmos de temas mais entretidos do que minha vida, como a
taxa de desemprego e a expectativa de vida das pequenas cidades. Seria
enfadonho o suficiente para ele me detestar e querer manter distância, mas
não para me odiar. Finalmente, Andrew começava a colaborar.
Só que ao vê-lo me olhar de lado, enquanto dirigia, deixando aquela
boca se curvar uma e outra vez formando sorrisos tentadores, eu já não
estava tão certa se queria afastá-lo.
— Bem típico do interior, né?
— Sim, embora não seja lá tão longe de Atlanta.
— Gostou de crescer lá? — questionou ele, tirando os olhos da
estrada por um minuto que deve ter sido o suficiente para perceber minha
cara emburrada por ele ter ido por um assunto pessoal de novo.
Embora duvide que tivesse visto meu rosto mudar para assustado no
segundo seguinte que o carro derrapou pela pista.
Andrew perdera o controle do carro ao tentar desviar de alguma
coisa e minha mão buscou, automaticamente, a alça de segurança no teto e
não a encontrei.
Droga de carro velho!, pensei segundos antes que ele forçasse o
volante com brutalidade para direita nos levando para fora da pista e
arrebentando uma cerca de madeira, mas, enfim, freou o carro num tranco
que senti o cinto de segurança queimar a minha pele.
— Emma, você se machucou? Por favor, diga que está bem!
Ouvi a voz dele apavorada enquanto suas mãos tocavam a minha
cabeça com suavidade, eu segurava minha nuca e pude sentir no momento
que seus dedos trêmulos tocaram os meus e nossos olhos se encontraram.
— Tudo bem. Foi só um susto. — Um que me deixou sem reação.
Ainda bem que ele parara o maldito carro.
Andrew desceu suas mãos para o meu rosto e ficou ali por um
momento antes de erguê-lo e murmurar com uma voz entrecortada.
— Eu não posso perder você de novo.
Ele parecia em transe com os olhos vidrados nos meus e um temor
tão grande que deixou seu belo rosto com uma feição esquisita.
Sustentei seu olhar e toquei de leve em suas mãos, afastando-as de
meu rosto com gentileza ao mesmo tempo em que deixava meu polegar
deslizar por sua palma num gesto de conforto.
— Fique calmo, já passou. Está tudo bem. Verifique o carro agora,
sim?
— Ah, o carro! — Andrew pegou minha leve sugestão e mudou seu
foco de atenção para o carro. Então, ele me obedeceria se estivesse em
choque, era bom saber disso.
Andrew abriu a porta ao seu lado no automático e desceu
esbaforido, logo levantou o capô do carro para checar o motor. Ele
praguejou antes de esfregar os cabelos exibindo uma cara, terrivelmente,
frustrada que só podia significar que estávamos numa enrascada.
Desci do carro só nesse momento notando a uns cem metros atrás o
culpado do nosso pequeno incidente, um cavalo preto reluzente estava bem
parado no meio da estrada e acabara pelo visto piorando meu dia, que já não
ia muito bem.
Fui até o animal e acariciei sua crina com cuidado.
— Fugiu de uma fazenda aqui perto, não é? Sabia que me meteu em
mais confusões do que eu já estava?
O cavalo relinchou sacudindo a cabeça negando que fosse sua
intenção me deixar em apuros.
— Ah, não? Está bem, volte para sua casa agora.
O garanhão correu em direção ao carro no mesmo instante em que
eu mandei e pulou o que restara da cerca de madeira na beira da estrada
depois que Andrew resolvera redecorar passando com o carro por cima
dela.
Fiz meu caminho de volta e me preparei para encarar o outro
garanhão que tinha seus olhos fixos no motor soltando fumaça preta e com
uma cara de estávamos terrivelmente fodidos.
— Não preciso nem perguntar, mas já sei que estamos em maus
lençóis.
— Acertou em cheio — disse ele, batendo o capô do carro. — O
motor queimou.
— Sabia que tinha sido uma péssima ideia assim que vi essa lata
velha. Ou melhor, no momento em que se ofereceu para me trazer aqui.
— Não fale mal do carro de meu pai, sabia que só foram produzidas
umas poucas unidades dele? O Cadillac Eldorado é um clássico.
— Devia estar num museu.
— É um ícone dos Anos Dourados, Emma! — falou como se eu
fosse uma verdadeira idiota.
— Não retiro o que disse, uma ótima peça para um museu —
Apertei minhas têmporas. — Como eu nunca soube que seu pai era um
mecânico especialista em carros antigos?
— Talvez porque você sempre se esforçou para se manter a um
passo de distância de mim — resmungou, enquanto pegava sua mochila no
banco de trás.
— Gostaria de colocar alguns passos de distância agora — lamentei
sem me preocupar em estar sendo desagradável.
— Sinto muito, mas uma longa caminhada nos aguarda até o pôr do
sol e terá que caminhar ao meu lado, pegue o essencial e vamos. Vi um
motel há alguns quilômetros. Aqui não tem sinal de celular, então é isso.
— Você acha que alguém lá pode consertá-lo? — falei, enquanto
pegava minha bolsa.
Ele riu da minha cara, trancou a porta e começou a caminhar pela
aquela estrada empoeirada.
— Você está brincando, né? Esse carro tem mais de sessenta anos,
só para conseguir as peças vão levar meses. Vamos passar a noite e vou
avisar meu pai do acidente para que mande rebocá-lo até em casa.
Murchei na mesma hora diante das notícias.
— Não fique assim sempre tem um carro velho nesses lugares,
assim que aceitam trocar por uns poucos dólares.
— Então?
— Falei que iria te levar até em casa. Eu cumpro minhas promessas,
mas é melhor nos apressarmos. O céu já está alaranjado demais e logo
ficará tudo preto e não vejo um poste de luz. Você não vai querer ficar numa
estrada deserta no escuro.
— Não mesmo. — E me pus a andar um pouco mais a frente dele.
Acrescentei em minha mente que não gostaria de ficar numa estrada
deserta no escuro com ele, especialmente.
— Minha senhora, como que só tem um quarto? — berrei, já que me
parecia que o pesadelo estava ficando pior.
Cheguei a bater na mesa da lanchonete e a cuspir um pouco dos
meus ovos mexidos no balcão enquanto gritava para a senhorinha que
acabara de colocar um copo de Coca-Cola à minha frente.
— Muitos jovens estão viajando para visitar os pais no feriado vindo
das faculdades em Miami e parando aqui para passar a noite.
— Mesmo assim devia ter mais de um quarto. Vocês têm dois
andares aqui — constatei sem acreditar.
— Menina, não sabe a sorte que você tem de ter um teto hoje, então
não vejo por que não pode dividir com seu namorado. Fez voto de
virgindade por acaso?
— Não, quer dizer ele não é meu namorado — respondi, nervosa.
Eu tinha feito mesmo há muito tempo e não cumpri com ele, mas isso era
outra história.
Ela olhou para Andy e viu o que todo mundo vê, seus ombros
arqueados e camisetas infantis somados ao sorriso inocente nos lábios, ela
até deixou escapar uma risadinha, antes de olhar para mim com uma cara de
que: É sério que você está com medo mesmo dele? Justo você?
Eu não parecia a garota em perigo, talvez aquela que o estava
sequestrando. De preto total, tênis All Star e uma blusa preta de mangas ¾
justas combinando.
Aquela mulher provavelmente era de uma cidade tão pequena
quanto Cartersville, mesmo atualmente se esperaria um ar mais feminino
numa garota nesses lugares, algo como cores alegres e talvez um vestido
florido. Para ela, eu deveria parecer a garota que portava drogas e teria
arrastado um garoto bobinho para uma aventura.
— Olhando para os dois, temo pela inocência do rapaz — ela
confirmou o que eu imaginara antes de se dirigir ao balcão e eu mover meu
olhar para Andy, que mantinha um sorriso amarelo.
— Por favor, não tire minha inocência — brincou ele.
Apertei meus olhos com força a fim de manter o controle da minha
mente e não o acertar com a louça da mesa ou com meus próprios punhos.

Deitada na cama, observava o quarto daquele motel e até que não


era muito ruim, o banheiro tinha um problema com a água do boxe que não
descia para o ralo sem a ajuda de uma vassoura, dado que algum doido
deixara o piso desnivelado no sentido contrário. O teto do quarto também
não estava em bom estado, parecia um pouco mofado e o papel de parede
meio descascado nas paredes, mas nada que me assustasse. Passei uma
eternidade em um lugar bem menos agradável, então aquele quarto me
parecia bem cômodo.
Um abajur com um brilho fraco e amarelado iluminava numa meia-
luz, uma escrivaninha de madeira gasta e escurecida que ficava na parede
oposta à cama e um pouco acima dela, tinha um espelho oval numa moldura
formada por flores de latão. Num canto mais afastado da cama, havia um
pequeno sofá de dois lugares com braços de madeira e uma mesinha de café
à sua frente que foi onde depositei minha mochila.
A cama não possuía cabeceira e o colchão era meio duro e bem
diferente do que me fora dado na casa dos Davis ou mesmo no alojamento
da faculdade, mas para quem dormira sobre pedras por anos era como se
deitar sobre nuvens.
Eu caíra na cama depois de tomar um banho rápido, enquanto
Andrew falava ao telefone com o pai sobre o carro ainda na lanchonete, e
me refugiara debaixo das cobertas, então ele chegara e se dirigira ao
banheiro com seus olhos evitando a cama.
Andrew tomava banho e eu esperava que ele se comportasse quando
retornasse, eu de fato não gostaria de machucá-lo. Tampouco gostaria que
ele viesse com um mar de perguntas quase como um interrogatório toda vez
que botava os olhos sobre mim.
Apertei o edredom feito de patchwork[30] sobre meu corpo, buscando
um pouco mais de proteção para evitar seus olhos quando ele deixasse
aquele banheiro. A única coisa que nos separava era uma fina parede que
me permitia ouvir a água escorrendo lá dentro. Andrew estava demorando
mais do que eu no banho, acreditava que escolhera me dar um tempo de
solidão para assimilar que dividiríamos o quarto essa noite e me acalmar,
embora não estivesse funcionando muito.
O efeito foi o contrário, ele estava conseguindo deixar meus nervos
à flor da pele e isso era uma crueldade que aquela garçonete com seus
julgamentos equivocados não deveria ter suposto.
Ele sempre fora uma ameaça para a minha paz de espírito.
Embora eu só fosse admiti-lo em pensamento e nunca num café de
motel de beira de estrada mesmo ele estando as moscas como quando nós
[31]

chegamos, o que me fazia pensar Como que não podia ter mais de um
quarto vago no lugar? Num lugar daqueles sem nem uma TV nos quartos,
era de se esperar que as pessoas ficassem na lanchonete, bebendo e
comendo. Só que não tinha ninguém ali, o que era muito estranho.
— Não há o que fazer — lamentei de como andava a minha sorte.
— Por que tinha que ser tão complicado lidar com Andrew?
Observei o tamanho do quarto, era muito bom, certeza de que era
maior do que aquele que eu dividia na faculdade com aquela menina que eu
nunca me recordava o nome, mas eu também só a via embaixo de um cara
toda vez que eu tinha o azar de encontrá-la no alojamento, na verdade, acho
que nem a reconheceria se a visse por aí. Toda vez que a pegava lá dentro
com alguém, eu saía e ficava vagando pelos corredores até que voltava e ela
estava dormindo.
Estalei a língua em revolta com a gerência daquele motel.
— Num espaço desses era só botar duas camas e quem quisesse que
juntasse as duas.
— Acredito que a maior parte dos casais não gostariam dessa sua
ideia.
Me encolhi ao ouvir a voz de Andrew, jurava que ele estivesse ainda
sob a água do chuveiro e não falando essas provocações num tom,
perigosamente, baixo demais. Fiquei tão entretida analisando o quarto que
não me dei conta de que ele desligara o chuveiro. Desde quando que ele
estava ali?
Ele falara parado ainda em frente à porta do banheiro e eu não podia
vê-lo diretamente, uma parede nos separava, mas seu reflexo no espelho
sobre a escrivaninha era claro e seus olhos estavam mais amorosos do que o
normal e me analisavam com um cuidado redobrado.
Essa seria uma longa noite.
— Eu acredito que talvez os quartos sejam melhor aproveitados e
atenderiam uma gama maior de visitantes.
— É uma noite num motel na estrada, Emma — suspirou ele,
cansado. — Me recordo de uma pessoa que disse que o espaço reduzido
entre a mesinha de uma boate e os assentos era aconchegante, então não
faça tanto caso agora.
— Passei um par de horas naquele lugar, não esperava me deitar ali
para dormir.
— Ainda bem, né? — Um sorriso abusado se exibiu em seu rosto e
resmunguei em pensamento.
Estávamos numa situação que poderia acontecer muito mais do que
meu pé em sua virilha como fora na boate.
Ele não precisava ter me recordado dessa cena e em minha defesa,
eu tinha o dito só para provocá-lo. Fora só isso e eu ainda estava sob o
efeito de toda a luxúria que aqueles jovens exalavam.
Talvez eu estivesse sob o efeito da luxúria novamente, o pensamento
picou em meu cérebro quando ele veio em minha direção andando descalço
pelo cômodo usando um moletom preto e uma camiseta branca que se
agarrara ao seu peito perfeitamente, mais do que devia, na verdade.
Fechei olhos puxando mais as cobertas até meu pescoço e me
embalei como uma múmia na expectativa que se deitasse na cama,
entretanto, um tempo depois ouvi sua respiração pesada se afastando e abri
os olhos, pude vê-lo deitado naquele sofá minúsculo com o travesseiro que
estivera ao meu lado sob sua cabeça.
Não sei se me preocupei com seu desconforto ou com a frustração
que brotara no meu ventre, mas me ergui na cama e deixei que o edredom
escorregasse até a minha cintura.
— Suas pernas estão penduradas fora do sofá.
— É o que acontece quando um homem de um metro e noventa se
deita num sofá de dois lugares.
— Não está desconfortável.
— É só uma noite, vou sobreviver.
— Não tem uma coberta.
— Não tem mais nenhuma que eu possa usar, só a sua.
A tensão do silêncio era tudo que pairava entre nós à espera da
minha resposta àquela pergunta indireta se ele poderia se juntar a minha
cama. Me deitei mais uma vez e me virei de lado com as cobertas até a
cabeça.
— Andy, já é novembro e as noites são mais frias. Deite-se na cama,
mas se comporte.
— Tem certeza? — Ouvi seu sorriso satisfeito em sua voz.
— Deite-se de uma vez.
Poucos passos pelo quarto depois e prendi a respiração ao sentir o
colchão se afundando com seu peso, as cobertas sendo puxadas com ele, à
medida que se colocava embaixo delas e próximo demais do meu corpo a
ponto que eu podia sentir seu calor ao espaço de um toque. Só de imaginar
a sensação, meus seios ficaram turgidos o que me recordou que não havia
muito o que os cobrisse, eu só vestia uma camiseta branca me fazendo
repensar aquela história de não gostar de sutiãs, eu queria um nesse
momento.
Agradeci a deusa por ter levado algumas calcinhas na mochila, não
tinha o hábito de usar, mas iria dormir na casa do Davis e separei algumas.
Se não fosse isso só haveria a camisa baby look entre mim e
Andrew. Obrigada deusa que ainda havia uma calcinha e era tipo boxer.
Ao contrário dele que devia ter mais roupas na mochila enorme que
carregara, até pensei em nossa caminhada até o motel que ele planejava
acampar. Já eu só tinha o que vestia na minha mochila que mais parecia
uma bolsa de passeio e minha sacola de viagem ficara no carro.
Sem problemas, eu só precisava dormir dura como uma estátua,
acordar antes dele amanhã e vestir as mesmas calças empoeiradas da
estrada.
Bem, esse era o plano até sentir seu calor tão perto do meu corpo.
Nesse momento, eu esperava me conter e manter minhas mãos longe dele
para o bem de nós dois.
— Emmie...
Me movi ligeiramente para ele e o vi apoiando a cabeça em sua mão
enquanto o cotovelo descansava sobre o travesseiro. Uma forma
interessante de ficar mirando minha cara, enquanto eu tinha pensamentos
esquisitos.
E, ainda por cima, ele tinha começado a me chamar de Emmie.
Andrew nunca usara o diminutivo de meu nome e era uma péssima hora
para começar. Eu já o chamava sempre de Andy e ele parecia não ligar, mas
fazer o mesmo por mim me dava uma sensação de intimidade que eu não
queria sonhar.
— Sim? — respondi, engolindo em seco.
— Obrigado por me deixar deitar ao seu lado.
— É o mínimo — murmurei, encolhendo-me mais nas cobertas e
me virando para o lado. — Se ficasse resfriado, seria minha culpa.
O silêncio foi nossa única companhia por um tempo até que senti o
colchão afundar mais com ele se remexendo sem parar. Andrew devia ter se
cansado de ficar me olhando e se deitado. Deusa, faça-o dormir logo, por
favor.
— Emmie, você está saindo com aquele jogador?
— Não, não estou. — Bufei, já que estava negando algo que eu fiz
com a única intenção de que ele acreditasse. — E você já havia me
perguntado isso.
Eu devia falar que sim, tinha me esforçado tanto para que ele
acreditasse nisso. Não entendia por que a primeira chance que eu tivera de
afirmar que sim, eu negava.
Havia sido um movimento totalmente errado.
— Eu vi você deixando o vestiário com Isabella.
O sangue no meu corpo gelou. Será que ele me vira atacando
Taylor? E pior, de um jeito violento. Eu não planejara isso. O beijo sim, a
surra não. Ferrou. Não conseguiria brincar com a mente dele como fizera
com Isabella para que esquecesse que passei dos limites ao agredir o
quarterback.
— Acreditei que as duas estivessem se encontrando com ele ao
mesmo tempo. — Ele soltara um suspiro frustrado e eu um aliviado. Ele
não me vira machucando Taylor ou sua fala iria por outro caminho.
— Não curto essas coisas — fiz uma pequena pausa, bolando uma
desculpa —, ela marcou comigo ali, saímos para comemorar numa boate, a
mesma que você me encontrou mais tarde, após ela terminar sua relação
com Taylor.
— Ele deve ter ficado muito magoado para beber a ponto de
desmaiar e fraturar a cabeça. Alguém chamou uma ambulância e foi tão
grave que o cara está em coma.
Que maravilha! Limpar o lugar e esconder a bola destroçada fora
uma boa ideia. Isabella fora para casa e demorara tanto se trocando para sair
que se eu quisesse poderia ter ido e voltado duas vezes no vestiário para
arrumar tudo, até mesmo tive tempo de buscar meus livros que haviam
ficado no gramado ao correr para salvá-la.
— Ah, ele é um babaca, mas espero que fique bem — Bem mal,
seria a resposta completa.
— Sim.
— Ah, cheguei a pensar que tivesse ficado chateada com ele saindo
com Isabella, vocês são próximas e tudo mais. Mas depois do jeito que
Taylor te tratou na festa, fico aliviado que ele a tenha deixado por ela.
Ele pensava que eu tinha sido largada? Isabella era linda e isso era
um fato, mas eu poderia ter o cara que quisesse e isso sem nenhum pingo de
magia. Apesar de ter usado um pouco com aquele jogador, mas esse não era
o ponto da questão aqui.
— Eu que o deixei. — Me virei para Andrew, apoiando minha
cabeça em minha mão como ele fizera a pouco e deixando que a coberta
caísse um pouco até a minha cintura.
— Sério?
Eu vi seus olhos se moverem rapidamente, Andrew parecia
espantado com aqueles olhos verdes enormes e isso só fez aumentar minha
vontade de mostrar para ele o que Emma Davis era capaz.
— Por que não poderia ser eu a deixá-lo?
— Bem, ele tem grana e as garotas gostam disso.
Ele tinha os olhos fixos no teto, parecia mais pensativo do que outra
coisa e eu acreditando a pouco que Andrew estivesse me julgando por
tentar roubar o homem da minha amiga e ter perdido a batalha. Não
aconteceu nada assim, mas outros poderiam acreditar que as coisas
ocorreram desse jeito. Vê-lo tão pensativo, desanimado, me pareceu que ele
estivesse fazendo uma lista mental das coisas que Taylor tinha e ele não.
— E o que tem demais nisso?
— Fora que tem todo aquele porte de atleta e deve ter um futuro
bom como jogador também. Então que garota não iria querer agarrar um
cara assim?
— Bem, eu não ligo para nada disso.
— Não acredito. — Seus olhos deixaram o teto e miraram meu rosto
com uma sobrancelha arqueada. — Então, o que fazia com um cara como
ele, afinal?
Afastando você da melhor forma que eu podia. Mas eu nunca
poderia dizer isso e desviei meus olhos para a parede do outro lado do
quarto.
— Ah, eu tinha razão — resmungou ele, virando-se para o lado que
eu olhava e me dando as costas.
Não, ele não tinha. Senti a necessidade de dar uma prova disso a
Andrew e colei meu corpo as suas costas deixando que sentisse meus peitos
se pressionando contra ele, minhas pernas entre as suas e minha virilha em
sua bunda.
— Você já se olhou no espelho? É belo, só se esconde bem.
Andando sempre curvado, com roupas dois números maiores do que
deveria vestir e tão inseguro de si que transmite isso para os outros.
Andrew não moveu um músculo, então me pressionei contra ele
com mais força e deixei que meus dedos percorressem seu antebraço, num
toque calculado para gerar arrepios em seu corpo o que foi um verdadeiro
sucesso, o senti trêmulo no casulo que eu o abrigara envolvendo-o por
inteiro.
Como recompensa por sua resposta intensa, beijei de leve a pele de
seu pescoço permitindo que meus dentes roçassem um pouco nele e eu
sentisse em meu ventre a vibração que percorreu sua espinha.
Não imaginava que passaria disso, e foi só um engano dentre os
muitos que já cometi.
Andy se virara do nada, rolando na cama e me levando junto com
ele. Acabei presa embaixo de seu corpo, minhas mãos no alto de minha
cabeça foram seguradas firmemente pelas suas e com seu pau duro
pressionando contra o meu centro, permiti que um gemido escapasse de
meus lábios. Era um pequeno gosto da sensação que seria tê-lo se
movimentando dentro de mim.
Ele se deitara por completo sobre meu corpo e sua essência inundou
meus sentidos, o cheiro de sua pele me afetaria mesmo a distância. Excitado
e sobre mim, era como enfeitiçar uma bruxa. Fiquei perdida por alguns
segundos saboreando a maravilha de ter seu corpo colado ao meu, seu calor
e peso eram a coisa mais aconchegante que eu experimentara em séculos.
Poderia passar alguns anos assim, sem pedir que se levantasse alguma vez.
Foi quando tentei abraçá-lo que notei que ele não liberaria minhas
mãos seguras sobre os travesseiros, enquanto ele me olhava com a mesma
fome que eu vivia para esconder. Embora essa noite não estivesse fazendo
um bom trabalho nesse quesito.
— Emmie, eu gosto de você e não espero nada em retorno — falou
num tom sussurrado tão próximo de meu rosto, que fui capaz de sentir seu
hálito quente aquecendo mais partes do que só minha boca que ansiava pelo
gosto da sua. — Mas me magoam essas brincadeiras de me tocar e fugir, só
para ver minha reação uma vez que, é claro, sabe o que eu sinto por você.
Mas era por saber que eu sempre fugia e nunca foi para ver sua
reação. Era por gostar de tocar e nos últimos meses eu não conseguia mais
resistir.
— Tem sido um tormento desde que pus os olhos sobre você, não
entendo por que, mas tudo que eu queria era te tocar e não podia. — Seu
quadril se chocou levemente contra o meu e ele fechou os olhos por um
segundo, parecendo sentir dor ao se conter. — Foi difícil ficar perto de
você, mas quando vi, três anos se passaram nesse tormento.
— Andy, acho que devemos parar aqui.
— Você deve achar estranho eu sempre te cercando — Ele apertou
os lábios antes de continuar. — Não é como se eu fizesse de propósito,
sempre que me aparece o desejo de estar em algum lugar de qualquer jeito,
eu encontro você nele.
— Eu sei que não é.
— Sabe, eu respondo até ao seu cheiro, sempre me põe em alerta
toda vez que vejo você passar. O bobo aqui até foi numa loja de perfumes
tentando achar algo parecido sem sucesso.
Ele não acharia, eu não usava perfume.
Me disseram uma vez que eu cheirava a lótus branca, o cheiro dos
esquecidos[32]. Combinava comigo, não sabia de onde vim, então nunca
liguei, apesar de até meu perfume natural sugerir abandono. Era realmente
bom, agradável e limpo.
Me movi tentando me soltar, mas estava sob seu julgo. Não me
soltaria sem bater nele ou levantar alguma suspeita que não era normal. Eu
não queria fazer nenhum dos dois, mas essa conversa estava indo para um
rumo perigoso.
— Eu sei que você não gosta nem um pouco de mim, mas se diverte
por achar engraçado minhas roupas e meu jeito. Eu não ofereço um perigo a
uma garota como você mesma já disse e acredito que seja por isso que tem
se aproximado mais.
— Andy, não estou brincando com você.
— Não? Eu gostaria que brincasse comigo, Emmie. — Meu corpo
tremeu diante da possibilidade, uma tão errada que eu deveria refutar. —
Espero que goste de fazê-lo, pelo menos uma vez nos dê essa chance.
— Andy, não posso...
— Por quê? Você não está com Taylor — murmurou, meio perdido
e irritado. — Há outro homem?
— Sim...não! — Eu amava outro, mas Darío não existia mais.
— Entendo — assentiu.
— Não, você não entende — choraminguei, colando meu queixo no
peito.
— Estar aqui deitado ao seu lado com tão poucas roupas não é a
coisa certa a se fazer quando eu só penso em tocá-la e não ajuda que me
provoque só porque sabe o que eu sinto.
— Nunca foi minha intenção.
— Está bem. Não o faça mais, só porque se sente segura comigo. Eu
ofereço minha amizade, mas não para me tratar como lixo.
Nunca quis que pensasse assim. Aquilo me deu um leve desespero,
não era a minha intenção que ele se sentisse tão mal.
Comecei a respirar com dificuldade não sei se pelo desejo, pelo seu
peso sobre meu corpo ou pelo desespero que suas palavras me causavam.
Mas vi quando ele ficou parado por um tempo preso na visão de meus seios
subindo e descendo em busca de ar.
Sempre soube que essa viagem não daria certo. Minha respiração
acelerada e aqueles olhos cobiçosos eram a prova disso.
Fora que tudo que eu queria era que minhas mãos estivesse livres
para que pudesse tocar as reentrâncias dos músculos em seu peito e permitir
que minha boca seguisse o mesmo caminho.
Acabei por abandonar esses pensamentos ao perceber que baixava
seus lábios vagarosamente sobre os meus, nossas respirações se misturando,
enquanto nossas bocas se aproximavam, ansiosas para se tocarem.
Nem acreditava que depois de tantos flertes e brincadeiras, um beijo
finalmente aconteceria, quando ele deveria ter vindo bem antes de tudo
aquilo.
Seus lábios pousados nos meus e a corrente de excitação que
percorreu meu corpo fez aquilo parecer tão certo que me esqueci por um
momento de que não deveria me aproximar dele.
Eu deveria ser fria e distante, mas nesse instante estava próxima e
quente. Então me deixei levar pelo calor que me aquecia abrindo minha
boca para receber seu beijo. Sua língua se encontrou com a minha,
movendo-se como se quisesse memorizar todos os detalhes com precisão e
reconhecer os pontos que faziam meu corpo pulsar em direção ao dele.
Me vi abrindo minhas pernas para que ele se acomodasse melhor
entre elas e se friccionasse em meu centro, o que ele começou com
movimentos ligeiros e repetidos, fazendo-me gemer dentro de sua boca.
Aquilo era tão certo que eu queria chorar com aquele pequeno contato e
impulsei minha língua em direção à sua boca, numa singela indicação do
que eu queria que ele fizesse com meu corpo.
Andrew deixou meus lábios concentrado em manter o ritmo que me
fazia estremecer contra seu corpo ao mesmo tempo em que ansiava por
tocá-lo e ter sua boca de novo em seu lugar, sobre a minha.
Eu tenho certeza de que se ele estivesse em meu interior eu já teria
gozado nesse momento, mas Andrew só seguia numa doce tortura com seu
pau se esfregando contra mim sem piedade sobre aquela calcinha maldita
que eu desejava ter deixado em casa. Sim, mudei de opinião quanto a peça
que agora era uma barreira incômoda ao seu contato.
Excitada ao limite e ansiando por um alívio que nunca veio, me
empurrei contra ele para aumentar o contato entre nossos corpos.
— Emmie, me põe louco quando me provoca desse jeito.
Andrew sussurrou em meus ouvidos, ele pareceu notar só nesse
instante o que estava fazendo e, por isso, se jogou ao meu lado na cama.
Estremeci com o abandono prematuro enquanto o vi saltar da cama
logo a seguir e voltar a se deitar no sofá, dessa vez, mesmo sem travesseiro.
— Ficarei melhor por aqui. Não estou muito a fim de cair nas
brincadeiras tipo como na boate, você me provoca e depois me trata como
se eu fosse um inseto.
— Andy...
— Por vezes, pensei que iria me acertar com um jornal ou algum
spray contra insetos.
— Eu sinto muito, eu nunca quis...
— Brincar comigo a ponto de que eu quisesse tocá-la?
— Não é isso — murmurei, sentida. — Você não entende.
— Não entendo mesmo. Espero que sinta um pouco do que eu passo
toda vez que me escorraça. Boa noite, Emma.
Eu sempre sentia o mesmo que ele. Andrew não precisava me
amaldiçoar. Era suposto que eu o fizesse, eu era a bruxa, afinal.
E como raios eu teria uma boa noite depois dessa apresentação? Se
o astro deixou o palco antes do encerramento? Soquei o travesseiro e me
revirei embaixo dos lençóis angustiada com a minha incapacidade de forçá-
lo a voltar para cama com nenhuma espécie de feitiço. Tirando aquele
instante momentâneo no carro, ele nunca me obedecia.
Pude ouvir um risinho baixo por sua pequena vitória em alterar
meus nervos, quando só quis ser gentil com ele. Não, nunca passou pela
minha cabeça ser montada até desmaiar em um quarto de motel barato.
Nunca fora minha intenção, não mesmo.
Embora, nesse segundo fosse. Ódio.
Soquei mais uma vez o travesseiro e me virei para o canto
determinada em pegar no sono logo, assim as horas passariam mais rápido e
eu chegaria àquela cidade dos infernos.
Por essa noite, eu era uma mulher amaldiçoada e dormiria numa
cama sozinha após provar o calor do inferno mais uma vez.
Cartersville continuava exatamente como eu a deixei há três anos,
sem graça. Um punhado de casas germinadas de cores pastéis sem vida ou
brilho, assim como a minha luz fora roubada mais uma vez no dia em que
abandonei aquela cidade.
Não havia lugar para mim ali, e isso ficara claro quando Rick Davis
avançara com os olhos esbugalhados e a testa franzida numa carranca
permanente atingindo a minha cara com seu punho fechado.
Eu nem revidei. Mereci aquele soco.
Ele nem parecia o homem gentil que me socorrera na estrada, mas
eu não o culpava.
Scarlet sofria há meses graças a Irene. Era uma menina aterrorizada
e perdera sua aura de princesa feliz.
Ela revivia quase todos os dias o pesadelo de ficar perdida numa
casa velha por algumas horas, atormentada por uma bruxa que queria sua
irmã. Ela nunca superara o ocorrido e os Davis nunca puderam me perdoar.
Sarah Davis não olhara na minha cara por uma vez que fosse desde
que Scarlet retornara a casa com seu vestido de princesa coberto de lama e
Rick parecia querer me esmurrar só porque eu respirava.
Eu era a culpada. Era uma praga e trouxera a agonia para suas vidas.
Tudo que eu queria era uma família e inventei uma farsa.
A esperança de receber migalhas de afeto deles foi o que me fez
ficar ali por semanas após o incidente, até que desisti. Não havia nada ali
para mim.
Ainda mais depois de torcer o braço de Rick até que ele se quebrou.
Eu lhe permiti um soco, mas ele insistira em três. No terceiro, ele ganhara
uma fratura. Então, deixei a casa com rumo à Miami e encontrara Isabella
no caminho.
Sentada ao lado de Andy naquele Sedan velho que ele comprara do
dono do motel, eu senti o pânico me tomar, à medida que avançávamos para
a casa dos Davis.
— O que estou fazendo aqui? — Juntei minhas trêmulas no colo e
prendi a respiração enquanto via aquele mar de casas beges e rosas passar,
um posto de gasolina, uma igreja, uma casa verde e uma amarela até uma
pequena casa branca com cerca tão branca como ela e um telhado azul.
Estava em casa. A única que eu conhecia e a que não devia ter
voltado.
Andrew parou o carro e ficou me encarando um tempo, o cenho
franzido, uma mão segurando o volante e a outra cobrira a minha no meu
colo.
— Nunca te vi tão assustada. Você quer mesmo visitar a sua irmã?
Não, me leve embora. Eu tive vontade de dizer. Mas a imagem de
Scarlet assustada e me abraçando no chão naquela noite de Halloween
piscou na minha mente.
— Eu quero vê-la, mas não vou ficar para o Dia de Ação de Graças.
Podemos voltar para Miami hoje? — Minha voz saiu mais fina do que
pensei que sairia e ele concordou com a cabeça.
— Vou só dar um oi e sairei em uns minutos. Me espere aqui.
Abri a porta com um pouco de dificuldade, ela parecia mais pesada
do que devia sob o olhar atento de Andrew em minhas costas e aquelas
cercas brancas a serem atravessadas parecendo intimidadoras demais, só
seria pior se eu voltasse para a Espanha e passasse novamente pelas portas
negras do castelo de Trasmoz.
Parei em frente à porta da casa e não encontrei a campainha, parecia
que tinha sido substituída por uma aldrava. Era uma coisa esquisita, algo
velho demais. Fiquei encarando a peça insegura se devia mesmo bater,
estava prestes a tocá-la quando vi a mão de Andy batê-la duas vezes e uma
sorridente senhora Davis abrir a porta.
Eu odiei essa parte minha que teve vontade de chorar quando a viu.
A Emma totalmente fragilizada, me lembrava a Livia chorando no quarto
de um castelo apavorada e sem expectativas de escapar. A menina que não
tinha uma mãe era a mesma que olhava aquela mulher tão loira quanto
Scarlet usando um vestido alinhado, perfeitamente, como a filha costumava
usar.
E ela sorria pra mim, mas nem me olhava mais quando fugi dali.
— Olá, Emma. Esperava por você — disse Sarah, a mãe de Scarlet.
— Filha, você voltou! Entre, quero te ver — Ouvi o senhor Davis
exclamar de dentro de casa numa voz tão doce que soou irreal, no entanto
eu não podia negar que aquele tom me convidava a entrar e esquecer o que
se passara entre nós.
Eu nunca ouvira nada como isso antes, nem mesmo quando ele não
me odiava. Era um homem bruto que dirigia caminhões e me encontrara
caída na estrada que ligava Atlanta a Miami. Não era um cara que carregava
ternura em sua voz.
Apertei minhas mãos até sentir as unhas cravarem na pele.
— Por aqui, querido. É o namorado de Emma? — A senhora Davis
tocou os ombros de Andrew ainda na entrada da porta, levando-o para
dentro e encaminhando-o a sala de estar.
Eu os acompanhei não deixando que ele se afastasse muito de mim
com aquela mulher.
— Não, senhora — ele respondeu, sem graça, coçando a cabeça. —
Só a trouxe para a casa, sou um colega da faculdade.
— Ora, minha filha não é boa suficiente para você?
— Não, quero dizer, ela é ótima. Mas temos sido só amigos. — Os
olhos de Andrew encontraram os meus antes que ele continuasse num tom
amargo. — Ela não me quer.
— Ah, não foi isso que ouvi dizer. — O sorriso tomou um brilho
diferente, um que fez minhas mãos suarem.
Eles não sabiam nada de mim por anos e não poderiam saber sobre
Andrew.
— Onde ela está? — rosnei baixo e Andrew me olhou sem entender
por que era tão áspera com a minha mãe. — Eu mandei dizer onde ela está!
Minha voz ecoara pela casa e sacudira o lustre de cristal da sala, até
que as luzes começaram a piscar num balançar que refletia sombras escuras
no rosto de Sarah Davis. Um brilho, rosto perfeito. Uma sombra, um rosto
seco e olhos afundados em formas negras.
— Filha, depois do jantar. Faz muito tempo que não te vejo.
Avancei para mulher, puxando-a pela gola do vestido e encarando
seus olhos sem vida até que ela começara a gargalhar toda torta em meus
braços.
— Emma, não faça isso! — Andrew gritou, avançou para nós e
segurou meus dedos, tentando afastá-los da minha suposta mãe.
Mas logo recuou, horrorizado e se engasgando com a própria voz.
Sarah Davis tombou para trás em meus braços com membros finos
caídos de qualquer jeito e tão finos como o cabo de uma vassoura cobertos
por uma pele ressecada e quebradiça que se tornara translúcida.
Eu estrangulava uma boneca.
Um fantoche bem empalhado. Morta por inanição. Bem, talvez essa
última parte fosse sua culpa. Sarah estava sempre de dieta e era uma coisa
que tentava incorporar na vida de Scarlet. Ela vivia para tentar transformar
a filha em uma pequena miss mirim e alcançar algum status com o sucesso
dela.
Ela própria já trabalhara como modelo, então era normal passar
fome a fim de conservar a beleza de outrora, embora tenha se casado com
um homem simples e sem glórias como Rick.
Me perguntava se ela estaria feliz se vendo tão magra, suas
bochechas cavadas formavam um bom par com o queixo quebrado de onde
saía uma risada fina que irritaria um monge e incomodou um de fato.
— Que isso! O que está acontecendo? — Andrew falou, alarmado.
Ele nunca vira um fantoche de cadáver antes. Eu podia entender.
Andrew colocara as mãos nos ouvidos tentando bloquear o barulho
perturbador, enquanto meus olhos buscavam por todos os cantos tentando
achar aquela que me trouxera ali.
Larguei o saco de ossos no chão, enquanto recitava uma prece a
deusa para que minha menina não tivesse se juntado aos seus pais.
Scarlet, onde você está?
— Sabe, é bom que seu ponto fraco ainda seja o mesmo. — A coisa
que se passava pelo Rick Davis se materializou na sala com sua aparência e
começou a falar com uma voz ainda mais grossa do que o pai de Scarlet
jamais usou, não mais ensaiando o som caloroso que me chamou de dentro
da casa.
A barba e as sobrancelhas grossas eram as mesmas. Mas a atitude
era pior, seus olhos eram mais cruéis e sua boca se curvou num sorriso
estranho, um dos poucos que eu já vira naquele homem de bochechas
fundas, bigode de morsa e o humor de uma bigorna.
— Emmie, o que está acontecendo?
— Logo saberá, rapaz. Seu destino logo chegará.
Sombras abandonaram o corpo de Rick Davis que tombou de
joelhos diante da figura que ressurgiu no meio da fumaça negra. O vulto de
uma mulher envolvida em sombras com só um sorriso satisfeito brilhando
entre elas.
— Andy, sai daqui!
— Emmie, quem é ela?
— Só uma amiga do passado. — As palavras proferidas num tom
aspirado deixaram a garganta de Rick Davis e pesaram no ambiente mais do
que a fumaça que começava a se tornar sufocante.
Uma amiga do passado, algo que nunca tive, mas que tornaria a
insistir em me incomodar.
O corpo do homem cedera ao chão e a fumaça se dissipara uma
pouco, revelando mais da forma da mulher que me atormentara, eu
precisava retirar Andrew dali. Peguei sua mão e o forcei a correr para a
porta da casa, eram só dois metros, duas passadas ou um pouco mais seriam
suficientes, mas não foram.
A porta batera e desaparecera.
O chão que pisávamos tremera e começara a ficar mole.
Virei-me e meus pés afundaram onde devia estar o piso, mas não
havia mais tábuas no lugar, a terra molhada o tomara.
E era nessa lama que o corpo do senhor Davis se afundava aos pés
de Irene, liberto da influência dela só para que se enterrasse na casa que me
escorraçou. Algo que já devia ter sido feito há um bom tempo, a julgar
pelos vermes passeando por sua barba rala, nadando na pele rasgada e no
sangue seco para alcançar o buraco onde devia estar seus olhos e num
instante depois encontrar a saída por sua boca aberta.
A luz vacilava continuamente, num piscar incessante. Mas que não
poderia esconder o estado de putrefação do corpo do pai de Scarlet. Sim,
sua condição indicava que seu funeral estava atrasado, mas não seria mais
evitado.
Ele e sua esposa não seriam os únicos a serem enterrados naquela
casa. A mulher à minha frente logo os faria companhia.
Fechei meus olhos e enviei um chamado silencioso, quando os abri
mais uma vez, correntes de ar vindas de lugar nenhum me circularam e se
lançaram contra Irene rasgando o papel de parede em suas costas, como se
animais o tivesse feito com suas garras.
O impacto foi tanto que atingiu a base de madeira da parede e a
poeira cobriu tudo, as janelas bateram num estrondo como se trovões
tivessem atingindo a casa, tanto que pensei que os vidros iriam se partir,
mas eu me enganei.
Não estava tão forte assim.
Mas minha decepção de fato não foram as janelas que se
mantiveram inteiras, mas que a onda de choque que rasgou as paredes nem
ao menos arranhou a pele da minha inimiga que tinha os olhos vidrados em
mim.
Irene estava de volta do inferno.
Ela me tinha em choque que só foi incrementado, quando notei,
finalmente, que ela continuava a se vestir como nos tempos de nossa vida
naquele pequeno vilarejo na Espanha, um vestido com espartilho num tom
de azul-cobalto que parecia indicar a sua inclinação para viver no passado.
Nenhuma rebeldia contra o coven corria em seu corpo, contudo ela
nunca sentira o mesmo terror com o que eu cresci. Era natural que só
habitasse em si a serena aceitação de que eu não compartilhava, mas eu era
a parte que sempre esteve em perigo naquele jogo de mentiras que eu me
enredei.
Minha vida, minha liberdade e a segurança dos que eu amava. Tudo
dependia de que eu fosse mesmo a abençoada com superpoderes para
derrotar a bruxa que fugira do inferno. Só temia que me faltassem nesse
momento, ainda mais agora que eu percebia o que ela carregava consigo.
Maldição.
Uma peça especial brilhava em seu pescoço e isso colocava mais
pressão em meus ombros.
Carecia de força e ela ostentava aquele maldito colar.
Eu estava muito ferrada. Não havia outro termo para descrever
minha situação.
— Achei que você gostou tanto de brincar comigo há quatro anos
que resolvi redecorar esse lugar como a outra casa — Ela abriu os braços
mostrando a sala e rodopiando entre os móveis. — Estou mais forte, vamos
poder brincar até que você volte para o meu lado!
Ela avançou deslizando no meio da fumaça que restou em torno de
seu corpo e eu retesei o meu tentando evitar o contato, mas ela apanhou
minhas mãos entre as suas, ao passo que me olhava como se eu nunca a
tivesse banido para o inferno, mas tinha certeza de que se lembrava. Era
louca, nunca tive dúvidas.
— Emmie, não estamos no Halloween, mas por que parece que
estamos? É uma pegadinha com fantasmas? Acho que já deu, podemos
parar.
— Andy, fique quieto — falei, rispidamente, concentrada em qual
seria o próximo passo da minha velha inimiga.
Andrew, finalmente, recuperara a fala e resolvera absorver tudo
aquilo como uma mentira, eu queria que fosse mesmo. Mas não era e dado
a beleza louca à minha frente, eu sentia que essa noite seria muito longa.
— Rapaz, hoje você vai mesmo se encontrar com fantasmas —
Irene o mirou com ódio não contido, e no segundo seguinte alcançou seu
queixo fincando suas unhas nele e o fitou bem nos olhos antes de soltá-lo de
maneira bruta lançando ao lado.
Os olhos de Andrew se arregalaram com o pânico que o tomou.
Ela agira mais rápido do que eu pudesse detê-la ainda com minhas
mãos seguras pela sua mão livre e depois se afastara a tropeços para trás
com a cara enojada sem me dar tempo de revidar por tê-lo tocado.
— Irene, devia estar no inferno — intervi, atraindo a atenção da
mulher. Talvez isso despertasse sua raiva por mim e assim acabaríamos logo
com isso.
— Inferno?! — Eu pude sentir a revolta em sua voz. Ela,
definitivamente, se recordava de tudo.
— Você não é a única capaz de fazer amizades, Livia. — Seu olhar
se tornou tão maldoso quanto quando possuía o pai de Scarlet.
— Emmie, o que está acontecendo? — A voz dele tomava um tom
mais amedrontado a cada vez que falava, ganhando a aceitação dos fatos
apesar da persistência de seu questionamento.
Desejei que se calasse para que Irene não se fixasse nele.
— Emmie? Ele a chama igual àquela pequena garota pela qual você
me trocou. Por que você gosta tanto de me trocar? — Sua voz foi tão
desgostosa a falar de Scarlet que me preocupei que minha menina não
estivesse mais nesse plano.
Eu não podia demonstrar fraqueza. Me ensinaram assim, mas meus
olhos estavam molhados e minha visão já embaçava.
— Ah, não chore, minha adorada rainha. Você terá a chance de se
encontrar com ela em breve.
Andrew apanhou minha mão e entrelaçou seus dedos, firmemente,
nos meus, enquanto mantinha os olhos fixos em Irene. A mulher nos
encarava de volta e segurava um riso entre seus lábios, até que não se
conteve mais e deixou que sua mão cobrisse sua boca numa tentativa de ser
coquete, mas que mal podia cobrir sua risada esganiçada.
— Só me deixe vê-la, por favor — clamei, preferindo tentar outro
caminho que não a irritasse e me permitisse retirar Andrew e Scarlet dali
em segurança.
Nossa briga ficaria para depois.
— Emma, vamos chamar a polícia. — Olhei, rapidamente, em
direção ao Andrew e ele parecia que, apesar de tudo, estava querendo negar
as coisas que vira.
Mas se tocara que não era uma pegadinha, lidávamos com uma
psicopata em sua concepção e de fato era verdade.
— Eles não podem ajudar, Andy.
— Como não? — ele perguntou, atônito, e apanhou o celular do
bolso da calça.
Um instante depois, uma cadeira fora lançada contra seu braço,
levando-o ao piso com o rosto contraído de dor.
— Não! — gritei, e corri para ele, amparando-o em meus braços. —
Deixe-o ir.
Me dava ânsia fazer qualquer pedido a ela, mas Andrew não podia
ficar. Não sabia o que Irene planejava para mim e não queria que ele fosse
outra vítima dela. Ainda mais que não sabia qual era extensão de sua magia.
Irene nunca tivera esses poderes.
Ela nunca controlara o vento ou qualquer outro elemento. Produzir
ilusões através de feitiços era seu talento, mas não conseguia tão facilmente.
Em nosso último encontro, Irene canalizara um cemitério para fazê-lo. O
colar preso em seu pescoço era o que estava empoderando seu corpo.
Haveria pouco que ela não pudesse fazer com ele e eu estava
exausta.
Devia ter dormido mais ontem à noite, mas não esperava que a
vinda a essa cidade seria esse tipo de batalha. Não que eu esperasse uma
boa recepção dos Davis, no entanto não imaginava que rolaria sangue.
Fiquei com vontade de enfiar minhas unhas no mocinho que gemia em
meus braços justo porque ele não me permitiu essa opção na noite anterior.
Eu o olhei feio e ele me encarou de volta, levantando uma
sobrancelha sem entender o porquê da minha cara.
— Ele fica, Livia.
Mordi os lábios e encarei Irene, que me retirara do meu jogo de
provocação com Andrew.
— Ele não tem nada a ver com isso. Eu fico aqui com você.
— Não vejo assim e você ficará aqui de qualquer jeito — declarou
ela, enquanto caminhava nos rodeando e velas do tamanho de um punho
brotavam do chão a cada pisar de Irene.
Eu contei sete no total.
— Eu não vou. — Estreitei meus olhos e a mirei atravessado,
acabando por falar a verdade. — Você sabe que eu vou fugir e matar você.
Não terei piedade dessa vez.
— Alguma vez você teve? — Foi a resposta dela seguida de um
doloroso raio que me era um velho conhecido, os poderes de sua mãe. Ela
os tinha adquirido ao portar aquele colar.
Me contorci de dor sobre o corpo de Andrew, que parecia ter
desmaiado apesar de manter sua boca espremida em uma linha fina. Eu
esperava que ele pudesse suportar aquele ataque.
Mas o pior viera depois, as velas se acenderam todas de uma vez
com a descarga que ela lançara contra nós.
Ergui minha cabeça para Irene e aqueles lábios curvados me diziam
que esse era o seu verdadeiro plano.
— Essa é uma noite para que sofra Livia e ele precisa ficar aqui.
Quem sabe assim você purgue seu crime de ir contra suas irmãs.
— Não faça isso, Irene. Eu imploro a você — murmurei, abaixando
minha cabeça em submissão como ficaria diante da matriarca, até porque
era isso que ela parecia ser, controlando o poder de todas que vieram antes
de mim.
Irene representava tudo que eu temia e pretendia me fazer sofrer
tanto quanto sua mãe o fizera.
E tal como antes, fui ignorada e minhas súplicas nunca foram
ouvidas.
Ela avançou, entrando no círculo e segurou meu queixo com força,
engoli em seco pelo temor com sua proximidade e apertei Andrew em meus
braços, tentando protegê-lo. Contudo, foi ele que estapeou a mão de Irene
que largou meu queixo e se afastou urrando não de dor, mas de raiva.
— Tudo que merece é sofrer e ele merece você, uma maldição.
Irene estendeu os braços e um forte vento vindo direto de seu colar
começou a rodar em torno de nossos corpos, atiçando o fogo das velas até
que as chamas alcançaram o teto. Meus cabelos foram agitados como se
uma tempestade tomasse o lugar, nos envolvesse e arrancasse o ar de nossos
pulmões.
Eu precisava parar aquilo, mas era forte demais.
Fitei a Andrew em meus braços e ele estava muito vermelho, não
respirava e seus cílios não paravam de tremer, dessa vez estava mesmo
inconsciente e o pânico por sua vida fora deixado para mim. Envolvi seu
tórax mais apertado e deitei minha cabeça em seu peito.
Fechei meus olhos e orei a deusa que acabasse logo, era tudo que eu
podia fazer no momento.
Abri meus olhos e me vi numa cela.
A umidade em todo o lugar, a cama de palha e a janela pequena com
grades que me permitiria avistar o pátio, mas tão alta ficava que eu só
conseguia enxergar o céu lá fora.
— O que eu fiz, senhora? Por que não posso brincar com as outras
crianças?
Respirei fundo ao ouvir aquela voz trêmula e fina seguida de um
molho de chaves que girou na pesada fechadura. Controlei a inércia que
dominou meus membros e movi meu corpo em busca de um abrigo. Pensei
que poderiam me ver ali e procurei um lugar que eu pudesse me esconder,
mas não havia tal coisa.
Não havia nada naquele quarto.
Então, fiquei ali parada e observei aquela cena toda acontecer.
Engoli em seco ao ver a portadora daquela voz insegura e frágil,
uma menina, vestida em trapos e tão suja como uma mãe nunca deixaria seu
filho estar, choramingava a uma mulher de postura rude que a deixasse sair,
mas isso não aconteceria. Por aquela idade ela não era confiável, então
ficaria ali.
Ela aprendera a fingir com o tempo. Para que confiassem nela e
pudesse ter um gosto de liberdade.
A menina fora jogada dentro daquele cômodo e caíra de joelhos, que
foram ralados pelo chão áspero de pedras e a ferida tingiu seu vestido com
um pouco mais de sangue, mais do que já haviam tirado dela naquele dia.
Não fez caso do golpe, estava acostumada a suportar pancadas mais fortes.
Ela viu a porta se fechar extinguido toda a luz que pudesse entrar ali
vinda das tochas daquele corredor tão vazio quanto o cômodo que estava,
não havia nem mesmo uma abertura na porta para que pudesse ver as
pessoas passarem.
A menina levou a testa ao joelho, chorando como aprendera desde
cedo, sem fazer barulho, deixando só as lágrimas caírem por sua face, assim
ninguém gritaria ou bateria nela. Não sabia quem poderia estar a vigiando
do lado de fora.
Não era muito mais velha que Scarlet o era quando cheguei à sua
casa, mas já havia vivido mais horrores do que minha irmã passara com
Irene.
Era uma lembrança amarga. Sempre sozinha, sempre chorando
escondida.
Eu era aquela menina. Era Livia.
Naquele dia vestia só um vestido puído e encardido que deixara de
ser branco há tempos e pertencera a filha da mulher que me arremessara.
Coberta de lama e sangue como uma prova de que sobrevivera a mais um
dia de treinamento rigoroso. Eu me encolhia em meu canto costumeiro à
espera de um resgate que nunca veio.
Quem iria fazê-lo? Eu não me lembrava de ter ninguém.
Observei meu antigo dormitório, só havia uma cama de colchão
duro de feno que começava a cheirar mal, o mofo o tomara e ninguém se
importara em trocar. Não merecia tal regalia, tudo que me era direito era a
treinar para servir ao coven.
Disseram que eu era uma entidade poderosa que devia ficar
guardada. Uma dádiva dos deuses que deveria ser conservada. Aos poucos
percebi o que isso significada, a resposta não era protegida e querida.
Era ser usada.
Eu não tinha brinquedos, eu era o brinquedo.
Disponível para ser consumida quando chegasse a hora.
Fora duro suportar, mas me ver novamente naquele estado. A
estampa de sofrimento no meu rosto infantil fora pior do que passar por
aquilo.
E eu só queria ampará-la, enquanto me via esfregar as mãos tão
pequenas no rosto a ponto de ficar um vermelho esfolado com o atrito
daqueles maus-tratos que eu mesma me causava.
O nariz escorrendo e o pranto que derramava de meus olhos pelo
tanto que me martirizava por ter um destino como aquele.
Eu só queria proteger a mim mesma. Antes e nesse momento. Me
livrar de tudo que me afligia, mas aquilo estava no passado e eu não poderia
fazer nada para me salvar. Eu ainda seria aquela menina assustada por mais
tempo que pensei que poderia aguentar.
Livia se sentara no seu cantinho especial, o que tinha o melhor
ângulo para olhar a lua pela janela com a esperança de que assim pudesse
falar com a deusa que tinha criado seu povo. Suas mãos apertando seus
joelhos dobrados em dúvida se devia pedir de novo, ela conversava com a
deusa todos os dias, mas nunca obtinha resposta.
Ela só falava sozinha.
— Senhora Artêmis[33], disseram que não posso estar com os outros,
devo ficar trancada ou podem me levar embora — ela falava baixinho para
que ninguém ouvisse até que desabou sobre seus joelhos mordendo os
lábios para conter seus murmúrios. — Eu só não queria ficar sozinha aqui.
A deusa não a ouvira naquele dia, assim como não ouvira nos
anteriores. Livia nem se lembrava desde quando estivera presa naquele
lugar. Não se recordava se tinha uma família, ela vira crianças sendo bem-
cuidadas por adultos e a própria matriarca tinha uma filha.
Por que só eu não tinha?
Eu convocava ajuda acreditando, fielmente, que a deusa não
estivesse de acordo com o tratamento que eu recebia. Não sabia de onde
vinha, se havia tido uma mãe de quem fora retirada à força ou se
simplesmente fui uma rejeitada, mas sabia que era invejada e odiada ali.
Podia sentir desde bem pequena e dormia com medo todas as noites que
tentassem me alcançar com seus atos da mesma forma que seus sentimentos
me afligiam.
Ser empata era mesmo uma merda. Até mesmo o ódio deles me
feria. Eu o sentia mais espesso do que o ar.
Eu era o que precisavam para seguir vivendo. Mas me viam como
uma maldição que cairia sobre elas com o abandono dos deuses.
Por que eu nascera com mais força do que corria nelas?
Por que as submeteram a isso?
Eu era mesmo filha dos deuses?
Era atormentada por essas perguntas que flutuavam de suas mentes
para a minha como se fossem meus próprios pensamentos.
Eu me questionei muitas vezes se eram meus, até que aprendi a
separar minha mente da delas. Me deixei ouvir e aprender tudo que podia e
mais do que me ensinavam.
Só me treinavam para aumentar a energia que corria por mim, minha
aura. As práticas físicas eram necessárias para que atingisse meu potencial
máximo, mesmo que não soubesse usá-lo.
Mesmo sem saber como enfrentá-las, me viam como perigosa só por
aquilo que me ensinavam. Temiam exatamente aquilo que eu dormia e
acordava pensando, como escapar? Eu precisei fuçar suas mentes e depois
seus livros escondidos, assim que consegui um tempo fora da minha cela
para aprender mais.
Descobrir como eu poderia fugir. Ou matá-las.
Mas o último eu ainda não pensava naquele momento. Veio um
pouco depois, quanto eu mais descobria, mais queria destroçá-las.
A jovem Livia choramingado a uma deusa lunar só queria ter com
quem conversar. Só queria ter alguém que a abraçasse. Se eu não fingisse
tanto que não ligava para nada, talvez eu admitisse que a Emma não era tão
diferente da menina Livia presa naquela cela.
Eu só queria um abrigo, o estômago cheio e um pouco de calor
humano.
Fugir. Sim, eu o queria, mas não sabia exatamente como ou para
onde. Amenizar a dor já era bom o suficiente.
Era estranho para uma garota espancada todos os dias temer que
viessem por mais. Bem, naquela época o meu normal era apanhar e isso era
tudo que eu conhecia. Então, só podia temer abusos maiores, negarem meu
mingau de aveia, me jogarem aos animais e mesmo não ter mais o teto que
eu era louca para deixar. Medo de ser enxotada, pois não teria para onde ir e
não imaginava naquela idade qual caminho eu poderia tomar.
Não conhecia nada que fosse muito além dos muros daquele castelo.
Eu nem ao menos vira muita coisa fora daquela cela. Me levavam por
passagens secretas até fora dos muros para que me treinassem sem que os
habitantes da vila soubessem muito sobre mim.
Eles não sabiam que bruxas viviam no castelo sobre a proteção, eu
diria julgo, do senhor dali. Se eles soubessem, haveria uma invasão de
monges armando fogueiras para purificar os espíritos malignos, assim
garantindo a própria vaga no inferno. Eu esperava que tivessem alcançado
tal castigo. Embora, se eles realmente tivessem vindo pelas bruxas, até que
me fariam o favor se purificassem aquelas mulheres, embora provavelmente
eu acabaria junto com elas.
Infelizmente, o coven tinha um acordo por regalias concedidas por
magia ao bom homem que controlava aquelas terras, o que garantia que a
identidade de sua irmandade ficasse em sigilo.
Mas permanecerem ocultas seria difícil se uma criança
descontrolada causasse algum problema e, assim, me mantinham escondida,
acreditando que logo eu aceitaria minha função nesse mundo. É, o nível de
loucura era grande.
Um voto para elas, tem gente que compraria essa verdade. Não, eu.
Tenho má personalidade, um tanto revoltada demais talvez.
Os dias passavam rápidos, embora não o suficiente para que fossem
indolores. Eu descia do castelo para treinar todos os dias na floresta, espada,
bastões e luta corporal. Diziam que um corpo forte suportaria seus poderes
melhor, no entanto um corpo desses era feito a pauladas.
Eu apanhava todos os dias, até meus sussurros eram penalizados a
ponto que eu tinha medo de levantar a cabeça. Nem ao menos tremia mais
ou apanharia por ser fraca e chorosa demais.
No fim de cada dia, eu voltava para aquela cela escura.
O treinamento era exaustivo, mas chegara o tempo que eu já não
fazia mais nenhuma queixa. Embora continuasse a me jogar todo dia no
cantinho que podia ver a lua e orar a deusa. A minha prece não falhava um
dia, nem mesmo quando a dor era tanta que mesmo me arremessar no chão
me parecia difícil de fazê-lo.
Mas a cada dia eu tolerava mais a dor, embora uma amargura
começasse a brotar em meu peito, o que refletia no desprezo que tinha pelo
coven. Era tudo que aquela gente conseguia de mim.
E tudo que eu recebera em minha vida até então. Não conhecera
mais nada.
Quando era menor batia à porta, implorando que a abrissem e que
me fizessem companhia. Mas o tempo cobrara um pouco de minha alma, e
eu passara a olhar aquelas trancas com indiferença aguardando o dia que
pudesse derrubá-las.
Como cheguei a desejar o abraço de meus captores? Somente uma
criança poderia sentir tal coisa. Eu já estava deixando a infância e não
sentia mais nada.
Mirei a minha imagem naquela menina que se encolhia no canto, já
não tão menina assim. Fazia frio naquela noite e ela esfregava seus braços,
numa tentativa de se aquecer em vão, até que atraiu para si a coberta da
cama comandando as massas de ar e se envolveu em sua manta.
Livia ficava cada vez melhor em usar seus talentos.
Talvez não precisasse mais rezar a deusa, pude ver esse
conhecimento em seu rosto jovem e lembrei os rumos que meus
pensamentos tomavam naquele dia. Mesmo com a descrença em divindades
tomando seu coração e a segurança em si mesma crescendo em sua mente,
ela rezou mais uma vez.
Eu rezei mais uma vez.
E não teve um dia que eu me arrependesse disso, apesar de tudo que
se passou depois.
Naquele dia quando abri meus olhos, eu o encontrei me fitando bem
perto de minha face. Agachado e um pouco desorientado, movendo a
cabeça para todos os lados tentando entender onde estava.
— Como eu vim parar aqui? — Um menino falou numa voz
desafinada própria de um garoto que começava a crescer.
Seu cabelo era tão claro como o trigo do campo que a menina Livia
desejou que tivesse um igual. Ele parecia ter minha idade e franzia as
grossas sobrancelhas, num tom bem mais escuro que seu cabelo, esperando
por sua resposta à aparição em minha cela. Já eu só reparava nos brilhantes
olhos verdes como as florestas que costumava treinar emolduradas por
aquelas sobrancelhas que eu gostaria de tocar.
— Você está só? — perguntei, à medida que me aproximava dele,
que se esquivou com uns passos para trás, o medo e a incerteza vibrando em
seus olhos.
— Sempre estive.
— Eu também. Está machucado? — sondei, embora fosse uma
pergunta tola. Os cortes abertos por todo o seu magro corpo denunciavam o
quanto ele estava ferido.
Ele acenou com a cabeça, confirmando seu estado, mas não fizera
alarde.
Apesar do quanto aquelas feridas deviam estar queimando como fogo em
sua pele.
Eu me vi correndo para ele e abraçando meu mais novo amigo.
Eu tinha companhia nesse momento em diante.
A menina Livia não estava mais sozinha e depois de muito tempo
deixei que caíssem umas poucas lágrimas em seu ombro. Não sentia mais
frio, apesar de que seus braços não se ergueram para me envolver naquele
dia. No entanto, ele tornou a voltar dia após dia que eu o convocava.
Inacreditável que um mestiço de demônio era o único ser tão
solitário quanto eu. Eu, uma suposta bruxa descendente de deuses, que não
conseguia nem mesmo escapar de uma prisão. Um encontro de seres raros
que a matriarca não previu, mas que acontecera mesmo dentro daquelas
paredes de pedra que eu era mantida.
Artêmis devia ter ouvido meu pedido enfim, e o enviara para que
curássemos nossas feridas. Foi isso que pensei, enquanto o envolvia em
meus braços e desejei que ele não fosse embora alguma vez.
Darío, o nome que perturbava meus sonhos de maneira ininterrupta.
Alguém tão sozinho como eu, mandado pela deusa, quando eu já
não acreditava nela.
— O que estou fazendo aqui? — Uma mão apertava meu ombro,
movi minha cabeça seguindo o som daquela voz rouca, que me afastou da
cena da minha versão adolescente dependurada no garoto magro naquela
cela.
Não pude evitar de chorar ao ver o doce rosto de Andrew.
Ele viera comigo para esse lugar e sobrevivera a passagem, quando
temi que não respirasse mais. Esfreguei minhas mãos nos olhos que
choravam por Livia, mas que nesse instante estavam inconsoláveis por
Andrew.
Uma vela apareceu entre nós e a luz se apagou, nos deixando na
escuridão por alguns segundos, não antes que um brilho cegante agredisse
meus olhos e eu erguesse as mãos para protegê-lo.
— Emmie, o que está acontecendo? Quem é aquela mulher? E a
menina naquela cela? Estamos tendo alguma alucinação? Eu não uso
drogas, então como estou num sonho alucinógeno? Eu mal bebo!
Andrew me olhava confuso e desorientado, do jeito que coçava a
cabeça com força e sacudia as mãos enquanto falava, até pensei se ele seria
um descendente de italiano, mas ele parecia muito loiro para isso. Embora
estivesse tão agitado que me lembrava os que vi nos filmes, os italianos-
americanos que eu vira em Miami já estavam entrosados na cultura local e
em nada me lembravam os estereótipos do cinema.
Uma coisa era certa, o cinema mentia muito ou o histérico
americano se sacudindo e tendo uma crise de pânico na minha frente,
enquanto tentava obter respostas que eu precisava pensar um pouco em
como fornecer, seria qualquer coisa, menos um americano controlado e frio.
— Emma! — gritou ele.
— O quê?! — perguntei, sobressaltada e olhando ao redor
acreditando que Irene tivesse invadido aquele cenário, mas não vi nada
além de uma colina onde nos sentávamos e um pouco de mato.
— O que ela fez? Ela usou alguma coisa em nós?
— Andy, não estamos drogados. — Ele deveria se acalmar. Me
trouxera dos meus devaneios aos gritos. Não iríamos a lugar nenhum em
pânico e, realmente, não iríamos para qualquer lugar por ora.
— Então estamos onde? E o que foi tudo aquilo? — Sua voz saiu
mais alta do que o de costume.
Relaxei os ombros e pisquei pronta para tentar contar verdades,
talvez essa fosse a primeira vez na vida que o fazia.
— Andy, eu sou velha. — Resolvi começar por quem eu era.
— Você não pode estar tendo uma alucinação pela idade, e isso não
explicaria o meu caso. E é velha quanto? Uns dois anos? No máximo cinco
a mais do que eu. Mais do que isso é impossível.
— Está mais para mais seiscentos e tantos.
Vi seu rosto mudar de nervoso para incrédulo, para nervoso de novo
e até que alcançou o choque total e ele ficou tão pálido quanto as velas que
estavam nos prendendo aqui e nos cercando lá fora.
— Emmie, você deve ter batido a cabeça com o ataque daquela
mulher. Ou eu bati — constatou, achando ter achado a resposta correta
diante do que ele julgara como absurdo em minha fala. — Logo um dos
dois vai acordar e vamos estar na sua casa com a polícia já chegando.
Ele começara a se mover demais novamente e não achava que ele
tivesse percebido, mas estávamos sentados numa encosta. Uma das muitas
que cerceavam o Monte Moncayo onde meu vilarejo ficava. O feitiço nos
trouxera para algum lugar de meu passado e havia ocorrido uma multidão
de momentos naquele local e eu não sabia ao certo em qual estávamos.
— Andrew, fique calmo — falei numa voz modulada pronta para
acalmar alguém a beira de um ataque dos nervos ou enfeitiçar. Dependia de
interpretação.
Só que infelizmente nunca funcionara muito bem nele e não podia
esperar que fizesse efeito dessa vez.
— Eu estou calmo, totalmente e muito em paz. E... Oh, Deus!
Andy se erguera rápido demais em seu surto e tropeçara, eu avancei
para pegá-lo e rolamos morro abaixo. Minhas mãos firmes em suas costas,
mantendo-o agarrado ao meu corpo e as suas em minhas cabeça
provavelmente temendo que alguma pedra a atingisse e eu ficasse ainda
mais louca do que ele estava considerando que era.
Rolamos um bom tempo até que acabou, comigo em cima de seu
corpo, meu rosto enfiado em seu pescoço sentindo sua pulsação agitada por
muitos motivos, o confronto com Irene, seu choque com a minha idade,
descer o morro abaixo, a ereção cutucando entre minhas pernas.
Bem, todas essas coisas. Embora não imaginei que uma descida
morro abaixo fosse deixá-lo assim.
Claro que sua demonstração de afeto apesar de ter revelado a minha
tão alta idade não me amoleceu. Ele fizera um escândalo, um
compreensível, não nego. Mas não havia lugar para algo assim quando uma
bruxa louca nos trancara em outra dimensão e tentava nos matar. Não
mesmo.
— Olha só, abaixe o mastro e contenha seus impulsos,
principalmente, o que nos fez rolar morro abaixo. Eu quero sair viva dessa
— sussurrei em seu ouvido.
— Emmie, você não pode estar falando sério? — Ele arfou sua
pergunta com meu peso ainda sobre seu corpo.
— Sobre abaixar seu mastro? — Eu ri contra seu peito.
— Pare de brincadeiras.
Aquela cara dele se zangava fácil com pouca coisa. Ele precisa se
acostumar já que caíra no meio de um mundo mágico que tentei poupá-lo,
mas ele praticamente implorou para entrar andando atrás de mim.
Ele que lidasse com a sua intromissão.
— Quem ficou animado em rolar morro abaixo não fui eu.
— Emmie, você não pode ter mais de seiscentos anos. — Seus olhos
ainda esperavam uma negativa minha.
— Andy, eu sou uma bruxa.
— Você fala como aquelas mulheres que adoram deuses gregos?
— Não, a do tipo que tem poderes mesmo e não as que seguem uma
religião tipo a Wicca[34] — falei, dobrando um joelho, apoiando-me em seu
peito e o fitei enquanto me levantava com a incredulidade ainda vibrando
em seu rosto. — Mas sim, adoramos deuses antigos.
— Tá certo. E aquela mulher é um desafeto de séculos.
— Exatamente.
— Que quer te matar?
— Não estou certa que ela queira isso, mas me torturar está em sua
lista.
— E estou nessa por que...
— Me deu uma carona.
— Pelo visto essa carona foi direto para o inferno — concluiu ele e
não estava de todo errado, mas ali não era o inferno.
— Não, quem foi para o inferno foi ela. Eu a mandei quando
sequestrou minha irmã adotiva há quatro anos para tentar conseguir um
pouco da minha atenção.
— Bem, a parte que ela é louca, eu já entendi. — Ele esfregava a
cara com tanta força que temi novamente que ficasse com rugas, ele não
deveria fazê-lo, nem sorrir com tanta vontade como era seu costume ou
fatalmente acabaria com elas.
Ironicamente, Andrew não estava sorrindo agora.
— Agora acreditar que é uma bruxa...
— Andy, estou falando sério.
— Prove, então.
Suspirei cansada, ele devia ter ficado em casa. Essa noite seria mais
fácil se não tivesse que tomar conta dele, mas não, ele tinha que vir e, nesse
momento, eu teria que cuidar de sua integridade física, pois pelo visto a
psicológica já era.
E acumulando em minhas atividades, eu teria que arrumar um jeito
de nos tirar daqui onde quer que isso fosse.
Mas tudo bem. Ele queria provas, então as teria.
Convoquei que o ar envolvesse seu corpo num forte abraço e o ergui
a uns bons dois metros do chão e ele deu um gritinho de desespero pouco
másculo que me fez rir, antes da incredulidade tomar seu semblante mais
uma vez e ser seguida logo depois pela admiração.
— Deus, eu conheço uma super-heroína.
— Ah, não! Nada disso. Nem comece.
— Eu me deitei na cama de uma super-heroína.
— Pare agora mesmo! — ordenei já me desesperando com seu
fanatismo. Em minhas experiências anteriores, gente assim eram as piores.
— Agora entendo por que gostei de você à primeira vista. — Seu
sorriso era escancarado e emocionado. Imaginava se ele já estava me
imaginando vestindo collant e botas de salto fino com cano até as coxas
para combater Irene. — Por que não me contou antes?
— Talvez fosse por que era um segredo? Ou só para você não ficar
excitado como agora?
— Com certeza, estou excitado e em muitos sentidos. Ainda mais
pela ansiedade por partilhar dos seus segredos.
— Eu preferia que não fosse em tantos assim nem que eu tivesse
que revelar nada de minha vida. — Sinceridade era tudo em um
relacionamento diziam os terapeutas na TV, mas talvez a minha o tivesse
aborrecido um pouco.
Não podia culpar a Andrew por sua fascinação. Não quando em meu
poucos anos no mundo humano moderno, eu virara cinéfila. Não era
exatamente fã dos mesmos filmes que ele gostava, afinal, no que me
constava ele só via blockbuster[35] de super-heróis, apesar de que eu via
muitos desses também.
Mas agora gostaria de culpá-lo uma vez que via aquela mente
trabalhando em coisas perturbadoras se eu considerasse o sorriso
escancarado que estava se formando em seu rosto e levando embora a cara
aborrecida pelo fora que eu dei.
— Eu posso ser seu ajudante!
— Eu não preciso de nada do tipo.
— Todo super-herói precisa! Até o Batman[36]!
— Eu sou mais soturna do que ele.
— Percebi pelas roupas pretas, o que há com elas? É para esconder
o sangue dos mortos? — Ele levantara uma sobrancelha e cruzara os braços
meio emburrado, novamente, com as minhas negativas.
Eu girei minha mão, virando-o de ponta a cabeça e o sacudi umas
cinco vezes. Só o voltei à posição normal quando vi que sua camisa tinha
caído para a cabeça e eu podia ver seu abdômen trincado. Nada mal, era
digno de nota. Algumas que eu não podia pensar no momento, uma vez que
não tínhamos tempo para isso.
— Eu não saio matando gente por aí — reclamei, irritada. — Bote
isso em sua cabeça.
Esse era um dos pontos negativos do cinema, deixara uma imagem
ruim sobre muita gente, e em especial sobre as bruxas, embora fosse um
pouco de verdade. Isso se eu considerasse as bruxas do coven que me
sequestrara e eram as únicas que eu conhecia. E ainda tinha o fato de que eu
torcia que Taylor tivesse algum fim do tipo, encontrar sua tumba num
momento próximo. Mas não era como se eu tivesse ido lá no hospital e
puxado os fios dos aparelhos dele. Isso devia contar alguma coisa a meu
favor, ao menos eu esperava isso.
— Vou me lembrar disso no futuro. — Ele tocou o estômago
parecendo mal e seu rosto tomara uma cor meio vermelha pelo sangue ter
subido para a cabeça. — Pensei que fosse uma boa justificativa, não vai se
repetir.
— Ah, desculpe. — Eu o coloquei no chão com cuidado e me senti
meio arrependida. — Acho que eu passei dos limites.
— Um pouco, mas vou relevar dessa vez, eu também passei. — Ele
mordeu os lábios voltando a ter aquele brilho zombeteiro que dizia que
queria me ver numa fantasia com urgência e me preparei para o que vinha
dessa vez. — Então, aquilo foi telecinesia[37]?
Bom, era só isso. Era melhor que não pensasse nas fantasias.
— Não, meu coven é mais do tipo magia dos elementos. Eu posso
controlar as massas de ar.
— Você controla o vento! Nossa! Nunca esperei por isso. — Um
sorriso alegre com a descoberta se fechou assim que dera uma olhada ao
redor.
Seus olhos se fixaram mais ao horizonte atrás de mim, o sol já se
pondo, girou o pescoço para os lados antes de mirar em mim novamente.
— Alguma ideia de onde estamos e como saímos daqui?
— Aquela que você viu na cela era eu há uns séculos, então creio
que Irene queira me fazer relembrar os bons momentos.
Puxei uma profunda respiração, isso tudo seria um pé no saco se eu
tivesse um, já podia prever a iminência da perturbação só pela pequena
amostra.
— Não eram bons momentos. Fiquei angustiado ao ver as crianças e
você deprimida presenciando aquela cena também, mas eu não conseguia ir
até você. — Ele assoprou antes de continuar, o rosto mudando do alegre e
sorridente para o abatido.
— Fiquei aliviada que chegou bem aqui, embora preferisse ter lhe
poupado disso.
— Eu me senti um fantasma que só se tornou material quando o
garoto apareceu e eu me movi para você. Hummm, quem era o seu amigo?
Abri a boca para responder, mas vozes ao longe me calaram. A
seguir arremessei Andrew ao chão e me joguei sobre ele, espremendo meus
seios em suas costas e sua cara no chão. Eu o ouvi resmungar que comera
grama antes que erguesse a cabeça e olhasse na mesma direção do que eu.
— O que houve?
— Eu de novo. Aqui era uma área de treinamento das bruxas da
minha vila.
— Elas podem nos ver?
— Eu acho que não, mas faça silêncio.
Eu andava cabisbaixa novamente, já era uma moça mais velha do
que a que deixei naquela cela, embora um pouco mais livre, ainda
continuava sob o julgo da matriarca, além de Irene que fazia o possível para
manter seus olhos sobre mim o tempo todo como sua mãe a mandara.
Apesar de que eu não acreditasse que fosse de fato um esforço para ela.
Eu já usava os vestidos rodados com espartilhos e fitas me atando.
Um dia o velho senhor do castelo que servíamos pusera os olhos em mim
quando eu era levada para minha cela e dissera que ficaria bela se bem-
vestida e, a contragosto, a matriarca me dera roupas melhores ainda que não
fossem tão boas quanto as de sua filha.
Naquele dia, eu ganhara um novo temor que se resumia nos olhos
daquele homem sobre meus seios naquela camisola transparente e úmida
que eu vestia quando ganhei sua atenção.
Eu preferia ter ficado com minhas velhas roupas e puídas, mas me
via caminhando com um vestido de algodão lilás com Irene em meu
encalço por aquelas colinas, enquanto ela exibia um ostentoso traje de seda
vermelha como a prova de quem tinha as benesses naquela casa.
Os recursos dados pelo senhor eram gastos todos com Irene, a mim
restavam as sobras dela e das outras mulheres. Além dos olhos constantes
sobre mim, mesmo que eu não ficasse mais presa o tempo todo.
E, talvez, isso não fosse algo a se comemorar pelas condições em
que ocorrera como uma exigência do velho senhor Fernandez. O homem
parecia um rato a rastejar pelo castelo sempre me cercando e exigindo
minha presença.
Eu poderia matá-lo. Sim, de fato. Mas acabaria morta.
Não havia chances de cavar minha saída do lugar. Centenas de
guardas e pelo menos uma dezena de bruxas viviam no castelo sendo
sustentadas por ele, o dono do lugar.
Num acordo por boas colheitas e todas as benesses que as bruxas
concediam ao vilarejo, nós podíamos viver dentro do castelo e era comum
que alguma fosse entregue para a diversão do nobre da vez. Em alguns
casos, até mesmo já houvera casamento com uma de nós. Acontecera com
uma igual a mim que o coven encontrara pouco depois que chegara à
região.
Os boatos que corriam entre as bruxas diziam que ela dominava o
elemento terra como nenhuma outra antes o fez e, dessa forma, erguera
aquele castelo em uma noite há mais anos do que a maioria das bruxas ali
tinha de vida. E algumas tinham centenas, todas sustentadas pelas almas de
bruxas como eu presas no colar da matriarca. Isso dizia quão velho era
aquele lugar e há quanto tempo estávamos na região.
Mas o casamento não durara muito, logo o coven a requisitou para
integrar o colar da matriarca e o senhor dali não pensara duas vezes em
entregá-la.
Uma só bruxa não valia um coven, mesmo que ela fosse acima da
média.
Ele já havia apreciado o suficiente da companhia de uma virgem de
Artêmis e ela já não tinha mais tal estado, perdera a graça e seu valor. O
senhor já tinha um castelo onde se abrigar erguido pela mulher que ele
enviara a matriarca em troca da proteção de outras mulheres que o serviam
dispostas a tudo para manter uma posição naquela casa.
Era esse o valor que eu tinha, o mesmo que a aquela que erguera um
castelo, nenhum.
— Livia, você é tão bonita por isso o senhor te quer tanto — Uma
Irene com a mente tão perturbada como a atual me olhava com adoração.
Ela realmente não mudara nada.
— Ah, sim. Eu não podia ser mais grata. — Meu sorriso era amplo,
porém, não podia ser mais falso.
E mesmo assim garantia a imagem que era obediente e podia andar
livremente pela região ao contrário dos anos que passei presa na minha cela
todos os dias após ser levada ao limite no campo de treinamento.
Um brilho animado piscou em seus olhos e ela abaixou para pegar
alguns bastões no chão não muito longe de nós e estendeu dois a mim.
— Acho que podemos treinar mais um pouco — questionou Irene
com uma sobrancelha franzida.
— Sim, claro. — Eu não tinha escolha, ao menos ela se cansaria e
iria embora, depois poderia me encontrar com Darío.
Eu a ataquei assim que terminei minha fala, não media a força que
chocava meu bastão no dela. Minha vontade era de partir os ossos de seus
braços com eles, mas por ora só podia fazê-la regredir seus passos naquela
campina.
Irene parecia ter sua mente presa no instinto de batalha e mirou meu
rosto com uma tentativa de me deter, minha cabeça girou junto com meu
corpo para trás com o golpe que me levou a cambalear, mas não aplacara
minha raiva.
— Perdão, minha rainha.
Sua voz chegou aos meus ouvidos quando eu já dobrava minha
perna totalmente contra meu peito e chutava sua cabeça na altura de meu
ombro com toda minha força. Minhas saias flutuaram e senti o espartilho
apertar meu abdômen com uma intensidade que tive ânsia de rasgá-lo, mas
derrubara Irene.
Fingir que acreditava nelas por tantos anos havia sido exaustivo para
conseguir alguma liberdade. Mas meu esforço era tolhido com a vaca que
sangrava pela testa nesse momento me perseguindo como um cão.
— Livia, acho que minha cabeça foi partida? — ela disse meio
abobada, enquanto estava caída no chão sob suas pernas e com um fio de
sangue escorrendo desde seu couro cabeludo passando por seu nariz e
lábios, até que alcançava o queixo e terminava por pingar ao chão.
Ela achava? Felizmente eu tinha certeza e tinha aplicado meu
esforço nisso.
— Ah, sinto muito. Eu não tive intenção. — Era verdade, minha
meta era deixá-la inconsciente e falhei.
Na verdade, era morta mesmo. Mas tal ato ainda não seria possível
sem que eu tivesse que dar grandes e impossíveis explicações.
Estendi minha mão para ajudá-la a se levantar, enquanto dava minha
melhor cara de tristeza, Irene a pegou e se pôs apressada em pé apesar de
cambalear um pouco. Ela tocara meu ombro numa tentativa de equilibrar e
se demorara tocando-o, aquilo custara muito dos meus nervos para suportar.
— Acho que preciso voltar.
— Ah, sim. Cuide-se — consegui dizer com uma voz neutra.
— Você vem? — ela questionou, com o rosto esperançoso.
— Não. Vou treinar um pouco mais.
Irene acenou, deu-me as costas e, finalmente, se foi. Fiquei ainda
por um tempo cuidando que ela realmente estava longe demais para retornar
com alguma indulgência desagradável. Assim que suas costas
desapareceram atrás de uma colina, fechei meus olhos convocando as forças
do ar até que envolveram meu corpo e flutuei para longe daquele lugar para
um fim de tarde mais agradável nos braços de Darío.
— Uau, você sempre a odiou — disse Andrew, virando-se embaixo
de mim enquanto me amparava pela cintura.
— Cada dia que passei do lado dela.
— Eu vi a cela, mas não entendi por que te prenderam nela.
— É complicado.
— Estou pronto para ouvir.
— Depois, o sol já está indo embora. — No momento que falei a
noite chegou de repente como se as trevas avançassem com fúria e
cobrissem tudo. Andrew me fitou com olhos arregalados e eu apertei seus
ombros com força, ele iria onde eu fosse.
— Acalme-se. O cenário só vai mudar para algum outro dos meus
pesadelos.
— O que aconteceu, Emma?
— Uma vela se apagou, Irene está controlando essa dimensão com
as velas que nos rodearam na casa dos Davis.
— Aqui é muito diferente de onde estávamos.
Andrew caminhava por aquele que fora um dos meus piores
pesadelos, onde não pude salvar de todo uma alma.
— É horrível caminhar por aqui. O que há com aquela bruxa que
gosta tanto de arrancar o piso aonde quer que vá?
— Ela consegue obter força da natureza assim. Aqui temos todos os
elementos, terra, o ar está em todo lugar e as chamas estão nos circulando
fora daqui.
Ele assentiu e sua curiosidade o fez alcançar a estante que eu já
tocara no passado com desespero.
— Você está esquecendo um, a água.
— Ah, essas serão das nossas lágrimas — brinquei com um sorriso
provocante que foi recepcionado por um estreitar de olhos fuzilante.
— Sem graça, Emmie. Uma péssima piada.
Achei que não devia contar para Andrew que havia mais seriedade
nessa frase do que meu tom divertido parecia fazer crer. Vê-lo revirando a
estante e não dando mais tanto atenção ao nosso diálogo anterior, tive a
certeza de que devia encerrar tal linha de conversa.
Não queria aquele mocinho em pânico de novo. A deusa era
testemunha que eu estava tentando ser boa, ao menos com as pessoas que
eu gostava.
— Acho que estão em latim e tem desenhos estanhos aqui. Bem-
feitos, mas um tanto macabros. Opinião de um especialista em arte — disse
um Andrew orgulhoso de seu talento em desenho ao estender a mão para
que eu pegasse o livro, mas sacudi minha cabeça, recusando-me a apanhá-
lo.
Já sabia o que estava ali.
— Eu não posso ler latim.
Ele sorriu de lado de um jeito charmoso que me fez querer terminar
nossos assuntos ali para que pudéssemos tratar de outros no mundo real.
— Que tipo de bruxa não fala latim? — brincou e mordeu os lábios
em provocação.
Então era para isso o charme todo? Eu devia saber. Agora fiquei
com vontade de mostrar mais um pouco do meu talento de sacudi-lo de
cabeça para baixo.
— Uma que sabe que isso é só enfeite de filme — retruquei com os
lábios franzidos, a contragosto.
Andrew deixou que sua cabeça caísse para trás e deu uma
gargalhada que tive vontade de cutucar suas costelas com meu cotovelo.
Estava ficando corajoso? Parecia. Até esquecera que estávamos numa
enrascada com uma mulher perturbada em nossa caça.
— Andy, pare com isso. Pode atrair Irene.
— Não dá. — Ele jogou a cabeça para frente e limpou as lágrimas
que saíam de seus olhos com seu ataque de risos. — Só você para mexer
comigo num lugar como esse. Uma casa velha, com chão de terra e papéis
de parede rasgados.
— Não se esqueça dos livros com sacrifícios.
— Sim. É isso que parece ter neles e pelo visto você já teve o
desprazer de folheá-los. Entendo sua recusa em tocá-los.
Andrew passara as mãos nos cabelos pondo em ordem aqueles fios
revoltosos, mas eu esperava que não viesse a se tornar um hábito vindo do
estresse, já que ele teria muito dele comigo. Então havia um perigo real de
que os belos fios loiros o abandonassem e ele ficasse com uma linda careca
brilhante em pouco tempo ao meu lado.
— Sempre achei que usar latim em feitiços talvez fosse como a
igreja fazia antigamente com as missas realizadas só nessa língua, uma
forma de restringir o conhecimento a elite.
— Pois é, acertou em cheio. Feitiços são uma forma de expressar
sua intenção, você coloca seu desejo em voz alta e a energia que envolve
seu corpo como um envelope apertado entende sua intenção e trabalha para
você.
— Energia que envolve? Então, aura existe mesmo? — Ele sorriu
como um bobo. — Eu sei que estamos em perigo, mas não sabe como um
cara como eu que adora assistir todas essas coisas sobrenaturais se sente ao
descobrir que é tudo real.
— Sei, melhor do que sair com uma garota, né? — Pisquei para ele
e comecei a andar em busca do que já sabia que encontraria ali.
— Melhor ainda que tem uma garota nessa história toda e uma que
parece uma super-heroína — murmurou, acompanhando-me na escuridão e
voltando ao tema super-heroína quando eu estava mais para supervilã.
Por ora, deixaria que pensasse assim. Não quebraria suas doces
ilusões, porque revelar a verdade me machucaria mais do que feriria a ele.
— Emmie, você sabe o que aconteceu aqui? — perguntou, enquanto
examinava uma cômoda que encontrara, mas eu sabia que não haveria nada
de útil ali.
— Foi aqui que perdi Scarlet há quatro anos.
— Foi culpa de Irene também? Você falou que ela a sequestrou.
Assenti com pesar.
— Ela pensava que eu ficaria do lado dela.
— A mulher é totalmente louca. Toda a sua linguagem corporal e
como se afastava dizia o quanto você a detestava naquela outra lembrança
de onde viemos.
— É, mas ela achava que seria uma grande honra pra mim servir ao
coven e desaparecer o fazendo.
Andy franziu a testa como de costume quando as coisas ficavam
complicadas demais.
— Não sei como tudo isso começou, mas bruxas reais, com poderes
de verdade, não usam caldeirões e ervas. Elas têm poder próprio, mas se o
fizeram alguma vez para amplificá-lo, pararam quando descobriram que
podiam obter mais poder consumindo uma delas. Há sim objetos sagrados,
mas não são qualquer coisa tão fácil de se achar ou produzir.
— Mas por que você? Por que tinha que ser você a ser sacrificada?
— Acredita-se que algumas nascem com mais poder e essa seria a
sua função.
— Eu pensaria que gente assim deveria ser protegida.
— E elas me protegiam, me escondiam para que ninguém me
roubasse e tomassem minha força vital primeiro — debochei.
— Amaldiçoaria as bruxas se você não fosse uma delas — Sua voz
soou bem dura ao tentar entender os motivos a que meus inimigos se
apegavam.
— Achei a porta, Andy, vamos. Scarlet não está no porão dessa vez.
— Desloquei o ar arrebentando a mesma entrada que Livia passara para
bagunçar com a vida que eu estava construindo para mim há quatro anos e
me botando novamente nessa confusão toda.
— UAU! Eu adoro ver como você faz as coisas voarem.
— Eu só fiz você voar.
— E eu gostei até o momento que você me virou de cabeça para
baixo.
Não pude evitar de sorrir diante de sua fala e entrei na sala com
Andrew em minhas costas.
Estava tudo como antes, folhas pelo chão, móveis cobertos e janelas
batendo. Aquilo não me assustava mais. Só aterrorizara a Emma que
acreditava ser uma garota comum e não uma bruxa centenária.
— Essas janelas batendo foram feitas para assustar crianças. Sua
irmã deve estar com a mente muito abalada numa casa dessas.
— Pensei que minha criança grande tremeria diante delas —
debochei e vi sua boca abrir em surpresa e se fechar tomando ar para
resmungar.
— Eu? — Sua voz parecia chocada. — Eu vejo filmes de terror.
Fiquei perturbado mais cedo, mas seus pais virando bonecos fora um show
e tanto. Irene devia entrar para o show business.
— Não eram bonecos, Andy. Estão mortos. Irene os matou, sugou-
os até que só sobrou as cascas.
Eu o vi perder o tom dourado de sua pele e ganhar o branco dos
fantasmas que pensei que residissem nessa casa na primeira vez que estive
aqui ou ao menos na versão original dela, não essa ilusão feita por Irene.
— E-eu sinto muito — disse, num tom triste e realmente sentido.
— Não sinta. Não significavam nada para mim. Eles não eram meus
pais de verdade e nunca se esforçaram o mínimo para ser — falei e
continuei minha busca, averiguando o piso inferior, numa tentativa de
encontrar quem realmente significava alguma coisa pra mim, embora eu já
nem saiba mais o quanto disso era verdade.
Scarlet não parecia muito dada a ter qualquer sentimento por mim
mais.
— Sabe, tem uma coisa que não entendo. Você disse que elas
absorviam outras bruxas, mas ela atacou humanos.
— Na falta do alimento adequado, se mata a fome com o que se tem
a disposição. Aparentemente é assim que tem se mantido viva, consumindo
almas humanas mesmo que não funcionem tão bem. Ela me pareceu abatida
por um momento em nosso combate há quatro anos.
— Uma notícia bem perturbadora.
— Imaginei que diria isso, mas não se preocupe. A sua alma sairá
ilesa daqui — afirmei antes de voltar minha atenção aquela casa que tanto
me atormentara há alguns anos. Ela era só uma lembrança, uma ilusão, mas
parecia muito real ao percorrer seus cômodos.
Observei aquelas janelas e seu showzinho barato e murmurei um
Caladas! que foi o suficiente para deter aquela cantoria de casa fantasma
dessa vez. Da última vez, requereu um pouco mais de esforço da minha
parte.
Custou despertar meus poderes e minha consciência.
Tudo o que Irene mais queria, era me forçar a voltar a ser Livia. Só
que acabou tendo que apertar minha mente um pouco mais no fim para que
eu despertasse de vez e duvidava que ela gostara do resultado.
A inocente realmente não contava que eu a odiasse tanto. Isso que
era viver em negação.
Mas se um lapso de consciência não tivesse despertado antes que
voltasse a ser quem eu era de todo e tomado o controle da situação, não
haveria ninguém que pudesse quebrar o feitiço daquela casa abandonada e
muito provavelmente, minha cabeça estaria ornamentando o ambiente e se
afundando na lama.
Ou mesmo eu poderia ter acabado louca e chorando num cantinho
para sempre se aquela farsa que criei de ser Emma, a filha de gente simples
do interior e com uma irmã pequena, não tivesse sido subjugada pelo meu
verdadeiro eu e ordenado que aquelas janelas no piso superior cessassem
seus movimentos fantasmagóricos.
Exatamente assim que devia estar Scarlet nesse instante e aquilo
doera meu peito. Desejei que nunca tivesse sido resgatada por Rick Davis
naquela estrada, mas daí teria sido meu fim. Machucada e cansada como
estava eu não conseguiria continuar a fugir.
— Emma... — Andy me chamou com uma voz trêmula que
provocou um espasmo em meu corpo. A compreensão do que ele via, veio a
mim de forma instantânea, e eu nem precisei fitar seu rosto ainda mais
pálido para isso, embora o tenha feito.
No topo da escada estava Scarlet.
Com seus cabelos tão loiros, sujos e revoltados, que não deviam ver
água há muitas semanas.
Todas aquelas mensagens esperançosas que recebi me questionando
se eu viria em seu aniversário, era Irene que me as enviara para que me
pegasse em sua armadilha.
O rosto magro e cadavérico mostrava o quanto fora mal alimentada
e suas mãos tinham restos de cordas e profundas marcas vermelhas, ela
estivera atada esse tempo todo.
Minha irmã fora torturada. Uma menina que não tinha nada a ver
com meu mundo e meus problemas.
Presa logo aqui. Uma cópia da casa que lhe rendeu pesadelos por
anos.
Pensei que eu tivesse fungado, ouvi o barulho, toquei meu rosto,
mas não tinham lágrimas o banhando. Virei minha cabeça por um segundo
ao lado e era Andrew que chorava. Ele era mais sensível do que eu.
Tudo que eu pensava era em como estripar uma bruxa, ainda viva.
Andrew deu um passo à frente querendo alcançar Scarlet e eu
agarrei seu pulso com força detendo sua caminhada.
— Emmie, ela é a sua irmã, não é? Temos que tirá-la daqui.
— Não se aproxime dela, sua mente não está bem.
No instante seguinte, ouvi um grito angustiado vindo das entranhas
de Scarlet que duelaria com o de um animal ferido.
Ela fora tomada por uma raiva tão densa que pesava no ar e contraía
meu estômago ao pensar que era eu que fizera isso a ela.
Sua agonia era minha culpa.
Eu merecia ser o alvo de sua angústia e foi isso que ela fez ao
correr pela escada numa agilidade que ia além do que a de qualquer jovem,
eu só vira um vulto em trapos se aproximar, até que esteve sobre mim.
Scarlet me derrubou sobre o piso e me castigou com arranhões e
mordidas.
Eu era o alvo de todo o seu ódio.
E fiquei inerte, recebendo seus golpes. Eu merecia isso, pois
trouxera dor e terror para sua casa.
— Menina, não faça isso com sua irmã — Andrew gritou e arrancou
Scarlet de cima de mim, prendendo-a pela cintura.
Minha irmã se debatia e fincava suas unhas em seus braços,
enquanto impulsionava seu corpo tentando me alcançar, lutando para se
soltar e me atacar.
Scarlet tinha um pouco da aura de Irene nela, dando-lhe mais força
do que o normal e ela a usava para espernear e gritar obscenidades que não
deviam estar na boca de uma garota de quatorze anos.
Eu fiquei travada, caída no chão ao ver no que eu transformara a
menina que uma vez eu quis que fosse minha irmã.
— Emma, se levante — vociferou ele.
Mirei ao rosto preocupado de Andrew e, enfim, não resisti a dor.
Uma lágrima desceu pela minha bochecha e eu afastei com as mãos tão
trêmulas de quando entrei naquela casa na primeira vez.
Me ergui do chão e a cada passo que dei, eu me despedi da vida que
tivera ao lado de Scarlet e agradeci por ela ter me ajudado a me reerguer.
Eu a alcancei em três passos curtos que desejava que tivessem sido
maiores, quando coloquei minhas mãos em seu rosto num toque delicado,
porém firme.
— Minha irmã, me ouça— ordenei a menina, mas recebi uma
mordida em meus dedos em retribuição. — Olhe para mim, Scarlet.
Ela se virou ao som da minha voz como se tivesse perdido toda a
capacidade de raciocínio, Scarlet se guiava somente pelo instinto.
Parecia que eu conseguira alcançá-la, mas seus olhos só tinham ódio
e desprezo. Eu temia que Scarlet não tivesse mais nenhum sentimento em
relação a mim, mas ela os tinha bem firmes em seu coração e eram os
piores que poderiam ter se fincado ali.
— Matou meus pais, você... sua culpa! — Scarlet estava tão
agoniada e minha alma se contorcia em dor por ela.
Vê-la assim me causara o mesmo ódio por Irene que Scarlet tinha
por mim e esse já havia sido enorme antes. Mas agir de forma correta como
eu deveria com minha irmã era o que partiria meu coração.
Toquei em seu cabelo com carinho. Scarlet era o único motivo pelo
qual eu vim para aquela cidade novamente e ela sairia ilesa dali.
— Eu estou morta. Bandidos invadiram a casa e mataram a mim e a
seus pais um pouco depois do Halloween quando vim visitá-los. Você
entrou em choque e ficou uns dias sem deixar o lugar.
— Não, ela os matou...
— Foram os bandidos. Feche os olhos agora e antes que a escuridão
chegue você vai sair daqui correr até a igreja e pedir que liguem para seus
tios.
— Os bandidos? — Ela virou o rosto de lado absorvendo o que eu
empurrava em sua mente como uma verdade que deveria ser aceita.
— Sim, vieram pela noite. Você chorou muito, mas não o fará mais.
Vai ter uma vida boa, me prometa.
— Sim, eu vou — a menina aquiesceu.
— Fique bem, Scarlet.
Onde já havia só trevas, caminhava o negro mais profundo, quando
ergui minhas mãos e quebrei as sombras que avançavam sobre nós naquela
sala que já era escura de más recordações.
— A cada luz que se apaga outra nasce e empurra as trevas. A cada
vela que se apaga, outra se acende para mostrar o caminho a uma inocente
que aqui não pode ficar.
Uma luminescência surgiu no meio da escuridão e tomou a forma de
uma porta com uma maçaneta esférica e brilhante como o loiro dos cabelos
de Scarlet.
Virei-me para a menina e apertei suas mãos, Andrew a soltou e ela
pôs seus pés no chão.
— Scarlet, você caminha sozinha agora, mas está livre de todo o
mal. — Engoli em seco antes de continuar. — Eu prometo a você.
Tudo que consegui foi jurar isso a ela, pedir que me desculpasse era
algo que eu não poderia fazer. Não era digna de tal coisa e não merecia seu
perdão.
Ela andou em direção a saída que eu criara para ela sem olhar para
trás e ao girar a maçaneta, eu vi a rua da frente de sua casa. Scarlet correu
por ela, a porta trancou-se novamente em suas costas, e nos deixou sermos
tomados pela escuridão.
Me encontrava deitada sobre um colchão duro, mas os lençóis
pareciam suaves como seda. Eu não sabia exatamente o que era, mas algo
me incomodava, passeando em meu rosto e provocando cócegas sem cessar.
Tentei trocar de lado, mas a perturbação não tinha fim. Minhas pestanas
pesadas demais para serem levantadas, tão pouco queria erguer minha mão
para afugentar o inseto inconveniente que rastejava pelo meu rosto, então
abri minha boca e dei um fim ao meu incômodo.
— Cacete, Emma! Não precisa morder!
Arregalei meus olhos para encontrar o rosto de Andrew sobre o
meu.
Era ele que me atormentava deslizando seus dedos por minha face e
o colchão duro eram suas pernas, eu me deitava em seu colo. Tão exausta
para me mover, eu queria ficar ali descansando sobre Andrew. Mas achei
que devia me levantar, era o comportamento normal e no fim deixei seu
corpo à contragosto.
— Gente normal estapeia, Emma. Por que você morde?
— Porque estava cansada demais para erguer meu braço. — Passei
minhas mãos pelo meu rosto ainda muito tonta pelo gasto de energia que
tive para abrir aquela pequena passagem para Scarlet. — Tirar a menina
daqui levou minhas forças. Eu só queria dormir um pouquinho mais.
— Já está assim há algumas horas, eu acho. Não tenho meu celular
comigo para saber quanto exatamente se passou, ele ficou no piso da casa
de seus pais, despedaçado e provavelmente engolido pela lama. Mas creio
que já tenha se passado um bom tempo que chegamos aqui.
Avaliei o lugar que fomos parar dessa vez e parecia a casa dos
Davis, mas claro que não era. Teria sido muito fácil escapar e tudo que
Irene não faria por mim seria facilitar essa noite.
— Não é o mundo humano.
— Desconfiei já que as portas não se abrem e o telefone não
funciona. É isso, não tive coragem de checar o resto das coisas por aí.
— Deixe-me descansar um pouco mais e saímos daqui.
— Deite-se no sofá, então.
— Acho melhor ficarmos por aqui mesmo. — Preferia não me
mover por um tempo, podia ter mais armadilhas e gatilhos preparados para
atormentar minha mente espalhados pela casa.
— A casa está silenciosa desde que chegamos, há alguma chance
que tenhamos parado em outro lugar e não esteja sob influência daquela
mulher?
— Não mesmo. Sinto muito, ainda estamos presos no feitiço.
Preciso só de um pouco mais de descanso para o próximo round.
— Volte para o meu colo, então, e descanse sua cabeça.
— Eu não devia.
— Deve sim e já fizemos coisa pior do que você deitar sua cabeça
em meu colo. Não admito essa recusa. Encerrado, venha sobre mim.
Fiquei parada ali olhando aquele rosto que parecia disposto a me dar
ordens de uma hora para outra e eu não estava de todo contra isso.
Francamente, ouvir Venha sobre mim era algo que eu esperava que ele
dissesse há algum tempo, mas em outro contexto.
Eu não negaria que aquela frase em especial mexia comigo.
— O chão é muito duro e vai machucar suas costas. Ao menos
descanse sua cabeça. Entendido? — ordenou, já me puxando para seu
regaço e me mantendo acomodada ali com aquelas mãos que eu não
percebera que eram tão grandes antes.
Mas era impossível não o fazer nessa situação, ainda mais ao vê-las
me mantendo segura em seu colo, enquanto repousavam firmemente em
meus braços.
Eu tinha vontade de tocá-las e deixar que seus dedos se deslizassem
entre os meus e ali ficassem, sua mão nunca soltaria a minha e ele ficaria
comigo para sempre.
Ninguém nunca mais me abandonaria.
— Foi doloroso, né?
— O quê? — me fiz de desentendida. Eu não queria falar sobre isso.
— Expulsar Scarlet de sua vida.
— Não é como se ela estivesse nela, não falava com Scarlet tinham
muitos meses, talvez um ano, e mesmo antes não era muito.
— Não minta. Você veio aqui só por ela.
Apertei sua coxa para não desmoronar. Sim, doera, no entanto, tinha
sido melhor assim.
— Ela vai ficar melhor longe de mim. Seus tios cuidarão dela, assim
como nossos vizinhos, eles também nunca tiveram uma palavra boa pra
mim. Eu os vi só um par de vezes e foram ríspidos, mas com Scarlet eram
amorosos.
Andrew alcançou minha mão em sua coxa, acariciou-a com o
polegar antes de segurá-la firme e eu acabei incentivada a continuar a falar.
— Sabe, ela e os Davis foram só um sonho. Uma família que eu
queria pra mim, mas, aparentemente, nunca mereci uma.
— Você tem a mim. Eu ofereço a minha para você, acredito que
mesmo que você se mude lá para casa meus pais não vão falar nada. Bem,
talvez meu pai fale Graças a Deus.
Ele deixara a cabeça cair um pouco para frente rindo da piada que
fizera, seus ombros se sacudindo e seus fios dourados quase roçando meu
rosto, ele precisava apará-lo um pouco. Se crescesse demais poderia lhe dar
um visual de surfista demais e eu poderia não resistir em enfiar meus dedos
nele.
Andrew se recompusera e encarava meus olhos como se precisasse
me fazer uma promessa.
— Mas não se preocupe, a expressão é só um costume, eles não são
religiosos nem vão tentar machucar você por ser uma bruxa.
Sua mão soltou a minha, enquanto ele alisava seu cabelo para trás
removendo-os dos olhos num gesto nervoso.
— Vão ficar aliviados de fato se levar uma garota para casa. Já me
abordaram antes querendo saber se eu precisava contar alguma coisa e que
eles aceitariam se eu gostasse de caras. Não sou popular com as garotas,
embora goste delas.
— Andy, eles te criaram bem, né? — Minha voz falhou em tocar no
assunto família, era algo sensível para mim. Em contrapartida, estava
contente por ele ter crescido numa boa.
— Bem, minha mãe diria que fui mimado mais do que devia e mais
do que qualquer outro filho único já foi e isso era muito. Ela te mimaria
muito também. Mamãe queria uma menina, mas eu nasci e estraguei tudo.
Virei-me em seu colo e toquei seu rosto com o mesmo carinho que
flutuava em suas palavras.
— Agradeço muito mesmo, mas tudo que passo meus dedos queima
e tudo que eu não gostaria de queimar é você.
— Então é tarde, Emmie. Eu queimo por você desde que lhe joguei
uma olhada no primeiro dia da faculdade e o fogo nunca apagou. Nunca
pensei que fosse possível amor à primeira vista, não quando eu não amava
ou queria tocar em ninguém nem em uma segunda vista.
Ele deu um sorriso de lado e eu mordi meus lábios com sua
declaração, tudo que queria era fazer aquela chama arder mais forte e nunca
apagar, mas não podia almejar essas coisas. Não quando loucos perigosos
me perseguiam e atingiam as pessoas ao meu redor para me pegar.
Uma pessoa íntegra não se envolveria com ninguém nessas
condições, mas era mais fácil falar do que fazer quando tinha um cara
bonito abaixando sua cabeça em direção ao meu rosto.
Bem, nunca fui uma mulher decente mesmo. As bruxas mortas
concordariam comigo.
Então, fechei meus olhos na expectativa do beijo. Eu precisava
mesmo de um, mas do que necessitei alguma vez. Desejava fazer parte de
algo e ter quem me abraçasse e me mimasse.
Alguém que me quisesse em seu mundo e dissesse que tudo ficaria
bem.
Apertei meus olhos, ansiando pelo beijo que não chegava. Por que
sua boca não estava colada na minha? Estava ali parada oferecendo meus
lábios e não recebia nada. Era ciente da estranheza de nosso
relacionamento, mas eu queria uma pausa da confusão e um pouco de
atenção.
Desejei que tivéssemos um romance normal, no qual eu não
precisasse me preocupar com inimigos e as crueldades deles. Se eu fosse o
tipo de mulher que não carregasse essa bagagem, Andrew já teria coberto
meus lábios com os dele pelo tempo que os mantinha abertos. Mas o nosso
relacionamento passava longe de atingir qualquer ponto na escala de
simples, natural ou trivial. E como não o era, estava aqui esperando um
beijo que não chegava. Será que tinham insetos aqui? Daqui a pouco não
seriam seus dedos que eu acabaria por morder, mas sim a eles.
Acabei por mordiscar meus lábios insegura pelo que viria a seguir e
essa demora toda, talvez eu tivesse que tomar as rédeas da situação.
Sentia a respiração de Andrew paralisada a centímetros do meu
rosto, esperei mais um pouco até que abri os olhos e me deparei com ele
mordendo a boca como eu o fazia há pouco. Ele parecia acanhado diante do
que queria dizer, ou com medo de mim. Natural, eu inspirava isso nas
pessoas.
— Você nunca quis me beijar. Era só o que pensava, mas só me
ignorava, nunca me quis. — Ele se afastou um pouco antes de sussurrar por
fim, carregando na palavra beijar a mesma dor que eu sentia ao vê-lo com
mais frequência que fosse a minha vontade. — Exceto ontem no hotel e,
mesmo assim, eu não tenho certeza de que era aquilo que queria.
Seus olhos falavam a verdade, receio e medo estavam neles, eu o
entendia por que carregava os mesmos sentimentos nos meus.
Muitas pessoas e coisas estavam envolvidas, mas eu as afastaria por
um momento.
Ergui minhas mãos ao seu rosto e o acariciei um pouco com a
pontas dos dedos antes de atrai-lo para o meu.
— Tenha certeza de uma coisa, nunca quis nada tanto nessa vida
quanto enfiar minha língua na sua boca. Ainda mais nesse exato momento.
Terminei por puxá-lo, firmemente, para mim e dizer com atos o que
eu já havia mostrado com palavras.
Enquanto para feitiços expressar por meio da fala era importante
para a materialização do desejo, no amor os atos valiam mais, até porque
toda a minha audácia acabaria por se perder numa voz trêmula se eu
tentasse por mais do que o pouco que fiz mantê-la, e jamais conseguiria
transformar em verbo como me sentia nesse instante ou o desejo que eu
guardei para mim por tanto tempo.
Tomei seus lábios com a fome que me consumiu em cada noite
solitária pelos séculos que vivi só para sobreviver e Andrew me aceitou sem
hesitação, envolvendo seus braços em minha cintura e me pressionando
contra ele. Eu o beijei e o deixei me beijar me deleitando em seu sabor
como eu deveria ter feito naquele primeiro dia que o vi no campus tão
jovem, usando suas roupinhas de maníaco por super-heróis e congelado me
olhando como se estivesse vendo uma miragem que andava, algo como as
heroínas que ele tanto gostava.
Sim, me olhava igual.
E eu de fato o era, mas faltava a moralidade, eu não poderia dar isso
a ele. Estava mais para a garota má a tentar o herói.
Mas eu não queria saber quão errada eu era ao fazer isso.
Tudo que eu ansiava era continuar beijando-o como se não
estivéssemos condenados ao fracasso. Apertei seus ombros carente de mais
contato, e colhi em minha boca um gemido baixo que provava que o desejo
que ardia em meu corpo era o mesmo que desprendia do dele.
Sua mão me erguendo e ajeitando em seu colo para que minha
intimidade roçasse a dele provava que não estava enganada nesse quesito.
Seus dentes passando pelos meus lábios numa doce fricção, quando parara
o beijo para tomar um pouco de ar, fez com que me contorcesse contra ele,
ávida para que pudéssemos ir além do que a situação nos permitia.
Mas Andrew não retornou por minha boca, estava ocupado demais
para isso espalhando beijos de meu queixo até a minha orelha, fazendo-me
esquecer totalmente onde eu estava quando gemi alto ao sentir sua língua
circulando minha orelha e sua boca sugando meu lóbulo.
— Aaah, Andy.
Pensei em detê-lo quando ouvi minha voz ressoar pela sala dos
Davis, da família que eu sonhei ter, mas ao lembrar do dia que deixei o
lugar não me senti culpada de meio que profanar aquela casa, eles nunca me
deram uma chance de me explicar.
Andrew não precisara de muitas explicações para se pôr ao meu
lado. Entre uma aula e outra, eu tinha convivido mais com ele do que com
as pessoas daquela casa.
Fui retirada de minhas divagações com sua mão erguendo minha
blusa, revelando meus seios livres de qualquer proteção e senti seu dedo
testando o toque, contornando-os mamilos que se enrijeciam com o contato,
tornando-se duros e doloridos.
Eu o encarei no momento em que ele levantou a cabeça e aqueles
olhos verdes e profundos me fitaram de volta com promessas que
cumpriríamos se escapássemos daquele lugar. Só aquele olhar já teria me
colocado rendida, era demais para resistir, mas o que veio a seguir fora o
que faltara para me pôr louca de vez.
Andrew tomou o bico ereto de meu seio com a boca que substituiu
seus dedos na brincadeira de me deixar louca, a suave sucção aumentando o
ritmo até que suas chupadas me fizeram jogar minha cabeça para trás
suspirando seu nome mais uma vez.
Sua boca abandonou meu mamilo tomando meus lábios novamente,
sufocando meus gemidos enquanto eu o agarrava pelos cabelos querendo o
mais perto e seu corpo sobre o meu.
Infelizmente, aqueles instantes preciosos em seus braços duraram
menos do que eu gostaria, logo ouvimos passos e sua boca descolou da
minha enquanto suas mãos puxavam minha blusa e tampavam meus seios
às pressas.
— Vejo que respeita tanto esse lugar como o fazia com sua antiga
casa.
— Tanto quanto eu recebia em troca — retruquei a Irene que por
fim resolvera nos fazer uma visita no pequeno inferno que nos enviara.
— Uma cortesã, não passa disso. Não é à toa que o senhor do
castelo se interessara tanto em você.
— Não fale com ela desse jeito! — rosnou Andrew que se levantara,
dando um passo em direção a Irene, coisa que acelerou mais meu coração
do que o nosso pequeno interlúdio anterior.
Tentei puxá-lo para trás de mim, mas já era tarde quando meus
dedos tocaram seu braço.
— E você, cale a boca — disse Irene antes de erguer sua mão
lançando-a contra o peito dele e o arrancando de mim.
Andrew foi arremessado por uma onda de ar no outro da sala e eu
me levantei correndo para ele, saltando sobre os móveis para alcançá-lo,
quando a sala tremeu antes de escurecer e mudar novamente de lugar para
um que eu não queria reviver de forma alguma, mas nada poderia fazer para
impedir Irene de me lançar naquele pesadelo de novo.
Entre todos os séculos que passei no inferno, nada se comparava
àquele último dia na Espanha.
Era espancada naquele salão de pedra.
Acabara de chegar dos campos do meu encontro com Darío e fui
cercada e enforcada pelos soldados, arrastada por aquelas portas de ferro
negras como o coração daquela gente que gritava: Queimem a bruxa do
demônio, até que fui jogada no chão duro aos pés do senhor daquele castelo.
Eu não revidara, eu nunca o fizera. Sentia que seria morta no
instante que o fizesse.
Mas eu devia tê-lo feito, devia ter fugido.
Alguém entregara a minha identidade a população local. Só a
minha. Ironicamente, a única que era obrigada a viver ali. Armaram para
que eu fosse capturada de surpresa e temesse reagir pensando que seria pior.
Não. O pior viera depois.
Meu destino fora posto em rota, mas o deles eu me encarreguei de
selar.
A abadia vizinha jurava que eu tinha parte com o demônio e exigira
que fosse entregue a eles para que me libertassem de meus pecados. Sabia
que fim teria se acatassem suas exigências. Eu somente não entendia por
que o coven não impedira que os boatos chegassem aos monges.
Morta não teria utilidade a elas.
Como uma senhora daquela casa poderia ter vínculo com tal vil
criatura?, disseram os monges antes de deixar o lugar com a promessa de
que voltariam no dia seguinte.
Os únicos monstros que eu conhecia era os que me criaram sobre
aquelas paredes e se prostravam ao lado daquele velho sentado em sua
cadeira, como todos os que vieram antes dele.
Eu não sabia ao certo porque tinham me escolhido, disseram que
podiam sentir a força dos deuses mais forte em mim. Crianças assim eram
especiais e deviam ser bem-criadas, o que significava ser aprisionada e
torturada.
As bruxas estavam todas ali, cercando o lugar, eu nunca as tinha
visto juntas. Mulheres de faixas etárias diferentes se reuniam em torno de
mim com olhares que variavam de repulsa a ânsia por me ver logo morta e
minha alma dividida entre o coven.
Eu tinha pena de todas as crianças que vieram antes de mim, porque
se eu sobrevivesse àquela noite, nenhuma passaria por isso mais. Não,
enquanto eu respirasse.
Cravei minhas unhas nas palhas e pétalas de rosas espalhadas
naquele piso no salão, estava imundo. Mal os servos trocaram o material
que forrava o chão e aqueles porcos que cercavam o velho já sujavam tudo,
atiravam comida para os cães sem se importar com o estado que ficaria o
lugar.
A sujeira estava impregnada no ar misturada ao cheiro das rosas, a
matriarca sempre ordenava que essa fosse a flor utilizada para atenuar o
odor do salão, uma vez que era a que usava em seus feitiços. As malditas
pétalas se faziam mais presentes do que qualquer outra coisa ali e me
sufocaram até que tentei puxar o ar por arcadas.
Aquelas malditas bruxas deviam estar absorvendo a energia das
flores, logo a usariam contra mim, e o pouco vento que entrava pelas
estreitas janelas não era suficiente para afastar o fedor. Ali eu aprendi a
odiar rosas.
Mas nada era mais sujo do que o homem que me cobiçava naquela
cadeira, ele emitia uma aura de proteção alimentada pelas bruxas e eu
sentiria o peso de sua mão fortalecida por aquelas mulheres.
Eu o encarei com desprezo quando ele se agigantou sobre mim e me
mirou com a conhecida fome que exalava toda vez que punha seus olhos
mesquinhos em cima de meu corpo. Então, ele enterrara aquelas unhas sujas
no meu couro cabeludo como gostaria de se enterrar nas minhas pernas.
Eu preferia morrer antes.
Mas fora forçada a me levantar, tendo minha cabeça puxada para
trás pelos cabelos, e tolerara a adaga que passava pela minha face e
brincava com meu decote apontando para o meu coração. Tive ganas que o
transpassasse. Estava tentada a me lançar sobre ela, mas aguardaria até que
fosse a última opção.
Mirei ao rosto daquele bastardo descendente daqueles que as bruxas
do meu coven se curvavam há tantos séculos desde que a primeira ergueu
aquelas paredes.
— Fale-me, bruxa, sabemos que se vinculou a um demônio. Traga-
o aqui. Quero vê-lo um pouco antes que você se perca de uma vez.
— Nem em seus sonhos.
Minha resposta malcriada foi respondia com um soco na cara, que
partira meus lábios e me derrubara ao piso. Ele guardara a adaga e nenhuma
bruxa ali fez nada para me ajudar. Como fariam, se fortaleciam seus golpes
com sua magia. Algumas riam, a matriarca exibia um sorriso discreto.
Ela me odiava por eu ser quem era, a descendente bastarda de algum
deus. Mas no momento era só a mulher que era espancada e tinha suas
costelas chutadas, enquanto segurava o choro.
A que não tinha forças para se defender e estava de joelhos diante
dela algo comum em minha infância. Mas não parecia suficiente tal
indignidade, me vi tombar naquele piso imundo sem forças para revidar.
Não conseguiria enfrentar todos os soldados, morreria se tentasse.
Eu só poderia ficar rodando no feno com seus chutes e maculando meu
vestido azul-céu na comida lançada e na merda dos cachorros espalhada
pelo chão.
Sofria mais golpes do que pensei que teria que aguentar.
Eu não queria, tentei evitar, mas a agonia sobrepôs meu juramento e
acabei por sussurrar seu nome quando a dor explodira com seus chutes em
meu estômago.
Vi as sombras de suas asas sobre mim contra a luz que entrava pelas
janelas e seu rosto curvado em agonia ao me encontrar naquele estado. Fora
tudo tão rápido, fitei seus olhos e Darío caíra na minha frente, eletrocutado
pela matriarca que lançara raios do colar em seu pescoço, o mesmo que
Irene exibia no presente.
E a cantoria.
As malditas vozes que se uniam, desejando todos os tipos de
maldições e me deixando tão mais inerte do que os golpes o tinham feito.
Fiquei parada ali, caída sobre a lateral de meu corpo com meus membros
dormentes e deixando as lágrimas fruírem como o sangue que escorria de
minha boca quando o vi tentando se rastejar para mim.
Darío resistia ao feitiço das bruxas e tentava me alcançar, sua mão
estendida tentando me tocar sem conseguir, então Laura o atingiu
novamente e vi o brilho deixar seus olhos. A inconsciência o apanhou antes
que afundasse seu rosto na pedra dura do piso.
Mirei minha mão trêmula, contudo, não consegui estendê-la para
tocar a dele, logo eu também não via mais nada com a bota que atingira a
minha cara sem piedade.

Um pingo insistente tocava minha face, forcei minhas pestanas


trêmulas a se abrirem e me retesei assustada ao notar onde estava, uma
outra cela não muito diferente do meu quarto, um pouco mais mofada e
com roedores subindo em minhas pernas.
Encolhi os joelhos com medo, bati minhas costas na parede e foi aí
que o ouvi o sussurro que parecia vindo da cela ao lado, mas estava só em
minha cabeça.
Sua respiração fraca chamando por mim em meus pensamentos.
— Livia, você está bem?
— Estou — menti, encontrava-me aterrorizada e mais preocupada
com o que aqueles monges fariam com ele do que o que eu imaginava que
aquele senhor faria comigo.
Se a abadia queria minha cabeça, era provável que as bruxas
entregariam só meu corpo inerte sem alma e o senhor do castelo se
divertiria antes comigo. Morta ou viva, não creia que importava.
— E você? — murmurei, tentando esconder os pensamentos
anteriores de nossa conversa.
A responda não veio. Cravei minhas unhas com força em meus
joelhos temendo seu silêncio.
— Responda, Darío — supliquei, com voz a chorosa e falha. — Me
responda, por favor.
— Eu... ah, Livia. Não chore, por favor. Arrancaram minhas asas a
machadadas.
Meu corpo se convulsionou com a dor que lhe fora imposta e me vi
vomitando naquela cela maldita.
Os roedores correram para consumir os restos dos alimentos. Não
tive forças para afastá-los. Controlei a ânsia, apertando firmemente meu
estômago e meus lábios, tentando controlar meu pranto para averiguar seu
estado.
— Sangra muito? — gemi, mordendo meus lábios com força e me
encolhendo na espera de sua resposta.
— Já está passando.
Ele mentia, não poderia ter regenerado assim.
— Eu vou matar a todos.
— Livia, não! Seja boa com eles, como antes. E fuja assim que
puder. Vá embora, por favor...vá para longe daqui. — Sua voz era só um
lamento e logo cessou.
Encostei minha cabeça com força na parede e tampei meus olhos
com minhas mãos e me deixei chorar até que tive certeza de que ele não
estava mais sussurrando em minha mente.
Eu não rezei a nenhum deus.
Foi a primeira vez que não chamei a deusa em tantos anos que eu
descobrira sua existência.
Não queria uma divindade que me deixara crescer nessa podridão,
sendo criada para ser usada. Nesse momento, pensara se Artêmis brincara
comigo me enviando Darío para sofrer ao meu lado, quando ele já era
vítima de mais maus-tratos do que eu.
E mesmo assim, eu tive que rezar tantas vezes para que ela o
trouxesse e me desse um consolo nessa vida desgraçada que fui lançada. Ela
me fizera implorar. E eu agradeci todas as noites que vieram depois por sua
misericórdia, por não estar mais sozinha em meu suplício. Tantas e tantas
vezes lhe fui grata e enalteci para que chegasse a esse momento e ela me
largasse nessa imundice.
Não. Ela me abandonara antes, muito antes, desde que eu nasci.
Deuses não eram bons, eles não se importavam comigo.
Eu não precisava de um deus, precisava de gente que honrasse a
acordos. E havia mais de um senhor no inferno para fazê-lo. Eu nunca
pensara em convocar demônios. Darío era diferente e eu não havia rezado a
deusa pedindo por ele, a princípio.
Embora não hesitei nenhuma vez depois, e não o faria agora.
Rasguei meu pulso contra as pedras na parede e com o sangue que
escorreu pelo meu antebraço eu lambuzei meu indicador e risquei um
círculo que os roedores se apressaram a tentar lamber.
Bichos nojentos, imundos como todos nesse lugar. Todos devem
encontrar sua cova.
— Fora! — gritei, deslocando o ar e batendo-os contra a parede.
Os guinchos pararam, seus corpos caíram inertes no chão. Ao menos
não me incomodariam mais, eu teria uma boa noite de sono e amanhã esse
lugar iria cair.
Sentei-me no círculo e deixei o ar entrar e sair de meus pulmões,
concentrei-me em todo o ódio que corroía minha alma e chamei a qualquer
um que estivesse disposto a ter um pouco do sangue que eu queria me
banhar.
— Garota, tem certeza de que é isso que deseja? — Um homem
com o rosto parcialmente encoberto pela escuridão surgiu na minha cela,
trajando calças de couro mais largas nos quadris do que Darío costumava
usar e uma camisa de seda negra com os cordões frouxos no peito que
revelavam o porte de um guerreiro.
Me preocupei que tivesse convocado novos problemas e retesei meu
corpo contra as pedras atrás de minhas costas.
— Quem é você? — murmurei, incerta do que eu trouxera.
— Alguém que ouviu seu chamado, mas pode me chamar de
Damián. Mas responda à minha pergunta, está disposta a pagar o preço?
— Nada mais me satisfará.
— O meio demônio preso do outro lado não aprovaria.
— Não importa o que ele pensa, por ele que peço sua ajuda e só isso
que me interessa.
— O pai dele vai dar falta da perda do garoto. Ele já o procura por
todo o inferno, Darío nunca ficou tanto tempo fora para que sua ausência
fosse notada.
— Creio que você notou. Estava vigiando seus passos?
— Não vigiava os dele. — Um sorriso cínico moveu suas
mandíbulas em uma expressão estranha e quase desisti, ele sugeria que
vigiava os meus.
Mas me faltavam opções e aceitaria qualquer apoio que obtivesse.
— Não me importam suas considerações. Acredito que viu em
minha mente meu desejo, será atendido?
— Temos um acordo.
O demônio se desfez em fumaça negra, deixando-me sua promessa
que aliviou meu coração, mesmo que minha alma nunca mais estivesse
limpa de novo. Já havia flutuado sobre a sujeira por tanto tempo, que desse
momento em diante eu me afundaria nela.
Recostei na parede fria, apoiei meu cotovelo em minha coxa e fiquei
olhando, por um longo tempo, ao fio de sangue que escorria de meu pulso
pelo meu antebraço, até que alcançava meu cotovelo e pingava no chão. Em
algum momento da noite peguei num sono tranquilo com a certeza de que
logo tudo estaria acabado e não precisava mais me preocupar com os ratos
me devorando viva aquela noite. Não se ouvia nenhum guincho, não se
ouvia nada.
Algum alívio uma mulher merecia ter.
Abri meus olhos com o meu coração em descompasso no peito em
consonância ao som dos gritos que podiam ser ouvidos mesmo das
masmorras, uma multidão lá fora gritava para que queimassem o demônio.
Me torci no chão em dor, meus dentes batendo, minhas pernas dormentes,
eu mal podia respirar. Me mantive abatida por um tempo, minha mente
desnorteada com a dor que me transpassava, despertando somente quando o
ouvi urrar experimentando o ferro das lanças em seu peito.
Foi quando notei que os gritos estavam em minha mente, não
vinham do lado de fora.
Eu vivenciava a tortura que Darío passava, nossa conexão forte
demais e sem nenhum bloqueio de sua parte.
— Ele não está em condições de me isolar de sua mente.
O canal estava aberto, deixando tudo passar. Nunca senti seu
sofrimento no inferno, ele o escondia de mim. Mas nesse momento, eu não
podia vê-lo sofrendo, mas sentia tudo. Amarrado a um tronco áspero que
lancinava suas costas que sofriam com as feridas abertas de suas asas
arrancadas.
Espetado por lanças, xingado e cuspido.
E temendo o fogo que atiraram as toras em seus pés. Iriam queimá-
lo vivo.
— Malditos sejam — urrei naquela cela, curvando meu corpo para
trás com a fúria que me consumia. — Vão pagar, vão todos pagar.
Empurrei a dor para longe, fechei minha mente da forma que pude,
nossa conexão só me debilitaria no momento. No instante seguinte, eu
ordenava que meus membros me erguessem e me movessem. Fora estranho,
meus braços pareciam quebrados.
Levantei-me dura e torta do chão, mas estava de pé. Eu só precisava
chegar até ele.
— Venha a mim, meu amado presente, aquele que me sustenta e
protege. Venha de todas as direções e tomem meu corpo como seu. Que os
quatro ventos se unam e me envolvam com seu toque protetor.
Tomei uma profunda respiração, o ar parecia mais limpo naquela
cela, massas de ar traziam um frescor do campo pelas grades da porta e
envolviam meu corpo me erguendo do chão, meu cabelo flutuava ao meu
redor como um manto.
— Vento do oeste, me cubra com sua proteção e leve embora
minhas feridas. Vento do leste abra os caminhos que me levem ao meu
destino para que o vento do sul possa me levar ao meu amor.
— Cale-se, vadia! Seu demônio já queima lá fora — gritou um
soldado a porta, sua cabeça perigosamente perto das grades.
Virei-me para ele ainda flutuando no ar e com um sorriso que não
chegava aos meus olhos.
— Acho que quem devia se calar é você, afinal, mortos não falam.
Ao menos não normalmente.
O temor em seus olhos chegou muito depois quando eu já avançava
sobre as grades e o puxava pelo pescoço, arrebentando-o contra a porta. Ele
quase cuspira sangue em meu rosto, mas eu já me afastava das grades,
mantendo-o preso a porta, erguendo-o somente pelo meu poder que o
envolvia.
Não resisti a satisfação de ver seu rosto em choque exprimido contra
as grades. Aquilo era tão prazeroso. Eu não poderia esperar para que o
coven tivesse os mesmos olhos temerosos como um veado prestes a receber
uma flecha em seu olho.
— Você é do mau como os monges disseram — gemeu ele.
— E não somos todos? Mas, sim, sou uma vadia e uma maligna. —
Me permiti me regozijar num riso fácil que brotara em meus lábios antes
que lhe desse o final que homens como ele mereciam. — Vento do norte
traga a morte sobre os meus inimigos.
Ergui minha mão e o puxei em direção à porta uma e outra vez, até
que finalmente ela caiu dentro da cela coberta de uma pintura mais
encantadora do que o ferro negro padrão.
Vermelho-sangue, com certeza, era uma coloração mais interessante.
Passei por cima do guarda. Ele não falava mais, nunca mais
pronunciaria uma palavra.
Visualizei as mesmas paredes de pedras acinzentadas que eu via
sempre na minha cela desde sempre no corredor, ele não se diferia muito do
meu cárcere atual ou da alcova que passei minha infância. Faltava cor e
emoção. Ficaria muito melhor tingido da mesma cor que eu banhara a porta
de minha cela, mais vivo e alegre. Eu deveria? Sim, claro! Eu começaria a
redecoração daquele castelo, o escarlate lhe cairia bem.
Talvez devesse espalhar algumas sementes de papoulas depois,
seriam a única coisa que cresceria aqui de qualquer forma no futuro. Ainda
bem que eram belas apesar de não se importarem se o solo estava coberto
do sangue dos mortos ou não.
— Sim, elas são perfeitas e combinaram bem com o lugar.
Dei uma olhada ao guarda e seus ossos fraturados expostos contra a
porta de minha cela e não senti nada. Era a minha primeira morte e não
havia nenhum arrependimento em meu peito. Ele não fora educado, e eu
não estava de bom humor. Toda aquela gente malvada que gostava de
brincar de me aprisionar e me torturar iria fazer parte da decoração.
— Vai ficar tudo tão lindo — cantarolei, saltitando pelo corredor e
começando a bater a merda fora dos que corriam tentando me pegar.
— Bruxa, volte para a sua cela — berrou um velho babaca.
— Acho que você pode voltar para ela.
Dei um tapa no ar e o bati na parede.
— Vadia, vai pagar por isso.
— Pagar o quê? Eu não posso ouvir sua voz com sua boca tão
encostada na parede, mas seus murmúrios estão me incomodando.
O arremessei com mais força, seu crânio partiu e eu dei um saltinho
para comemorar. Uma pequena vitória, mais um morto.
— É, acho que você não vai conseguir chegar na minha cela.
Uma multidão de guardas corria para mim num corredor estreito tão
escuro que mesmo de dia precisava de tochas na parede para dar alguma
iluminação ao lugar.
Aqueles guardas e o corredor eram tudo que me separavam de
Darío. Ao pensar nele, minha mente foi para ele e vi o que meu amado via.
Os rostos das pessoas se contorcendo em insultos e as labaredas se
espalhando ao seu redor.
Iriam queimá-lo, eu precisava chegar até ele mais rápido.
Me apoiei na parede, o temor e a dor dele me consumiu. Só
despertei com um homem socando meu estômago repetidamente.
Maníaco depravado.
Mirei a tocha sobre minha cabeça e a envolvi com meus poderes,
lançando sobre seu rosto.
Ele gritou uma vez e depois o terror deve ter sido demais para
pronunciar qualquer gemido.
Deixei a bola de fogo fulminante dançando pelo corredor e olhei aos
demais guardas que assistiam a tudo impassíveis. Corri para eles e estendi
meu braço, lançando uma rajada de vento cortante contra os homens que se
bateram nas paredes antes de caírem inconscientes como animais abatidos.
Passei correndo e pisando em seus corpos como se fossem sacos de
batata, alguns pareciam bem mortos, graças ao inferno, e outros ainda
gemiam enquanto pisava sobre eles. Gostaria de ter tempo de chutar suas
cabeças até que o sangue espalhasse pelo chão e garantir que de fato
deixassem esse mundo.
Mas não havia mais nenhum tempo que me sobrasse para tal feito.
Voei pelos degraus da escada que levava da masmorra até a
superfície, só para derrubar a porta da frente num estrondo e ver todos
comemorando no pátio externo a fadada morte do homem que eu amava.
Mãos ao alto, urros, alegria, eles estavam contentes.

Todos eles, dos soldados aos aldeões, que vieram assistir à execução
do demônio. Nenhum sentia horror a imagem que me assombraria pelos
séculos que vieram.
Darío tinha a cabeça pendendo no peito e fora despojado de suas
vestes. Sua virilidade ausente, os monges o castraram, era isso que ele me
escondera. Tão ferido, tão humilhado e ainda preocupado por meu estado.
Eles o torturaram e o abusaram, enquanto eu dormia.
Eu só não caí de joelhos diante do horror que me consumiu porque
precisava soltá-lo, cuidar dele e livrá-lo dessas memórias terríveis.
Ele ficaria bom, eu cuidaria dele, o protegeria para sempre.
Vi alguns homens da abadia sorrindo para as chamas se tornando
altas e para o corpo mutilado de Darío. Desejava arrancar o pau daqueles
monges devassos e enfiá-los em suas gargantas, mas deixaria que o
fizessem no inferno.
Nenhum sinal de Laura, o senhor ou suas bruxas.
Independente de que não estivessem presentes, não sobraria
ninguém vivo naquele castelo depois de tudo que eu planejava tenha sido
feito.
Todos ali iriam residir na casa de Damián, os monges, soldados,
servos e os malditos do povo que se alegravam vendo meu homem queimar.
Era esse o acordo, a alma deles pela de Darío. Com o acréscimo de
meus poderes amplificados para salvá-lo.
Corria para ele com lágrimas queimando meus olhos, me enfiei na
multidão tentando alcançá-lo. Por um momento, esqueci que o vento era
meu aliado quando o desespero me tomou.
Tentava tocá-lo, mas não o alcancei.
A fumaça já começava a subir por suas pernas, logo o fogo chegaria.
Eu precisava apagá-lo, mas a burrice me tomou, enquanto eu tremia diante
de tudo ali. Aquela gente suja me empurrando, até que fui arrastada e
jogada no chão por Irene.
Sua versão daquela época me olhava como se eu fosse o único
monstro ali.
— Um demônio, Livia? Quão bárbara você é?
— Não te diz respeito. — Tentei me erguer e me vi arremessada
pelos ombros ao chão novamente.
Desabei com meus braços me amparando e meus joelhos prendendo
um pouco do velho vestido azul-céu, arrebentando suas costuras ao redor de
meus quadris.
Claro que, coincidentemente, a peça pertencera a Irene, isso quase
me fizera querer lutar contra ela nua diante de toda aquela gente. Eu não
queria nada dela, nada dali. Mas já passara por humilhação demais,
xingada, coberta de sujeira e sangue.
Não precisava expor minha pele diante de gente que cuspia sobre
mim. Os gritos de queimem o demônio se dividiam com os de matem a
bruxa, os humanos nos cercando e ansiosos para ver mulheres se
digladiando. A maioria eram homens ali, todos uns selvagens.
Tranquei minha mandíbula e cravei meus dedos na terra para conter
o ódio por toda aquela gente. A areia se infiltrando por minhas unhas, o
incômodo aliviando meus nervos tensos e mantendo algum controle em
minha mente.
Eles mereciam seu destino e eu seria a portadora dele.
Movi minha cabeça para Irene e observei seu perfil. Ela era fraca na
época, mas eu estava muito perturbada para enfrentá-la. Minha mente
estava fixa na fumaça subindo por Darío, em seu corpo machucado e
inalcançável.
— Pelo amor da deusa, me deixe em paz — murmurei em minha
dor.
Irene apertou minha bochecha, forçando-me a me levantar.
— Nossas ancestrais voltariam dos mortos com você tomando um
demônio como consorte.
— Não, elas se revirariam no túmulo com a prostituta de sua mãe.
O tapa veio quente e rápido, tirando sangue de meus lábios e
arremessando a minha cabeça para trás.
Voltei-me para Irene com o ódio me consumindo e avancei sobre
ela, derrubando-a no chão, prendendo-a com as pernas e socando sua face
seguidas vezes, até que desmaiou. Então, fiquei ali de joelhos sobre ela,
observando seu rosto ensanguentado e arroxeado, presa no que eu fizera, até
que mirei a minha mão coberta de sangue. Não era suposto nos livros
antigos que brigássemos entre nós, mas não era eu que tinha começado isso.
Eu só iria acabar.
Para que a deusa nunca me julgasse tão sem alma e me acusasse de
matar um inocente, decidi poupá-la desde que não se metesse mais em meu
caminho. Talvez ela só fosse vítima de sua mãe como eu, uma tola
doutrinada com os miolos fodidos e que se achava minha amiga.
Acreditei que Irene fosse só uma ingênua com a mente perturbada
pelas anciãs e não a entregaria a Damián. Mas ela precisava deixar o lugar,
a envolvi com meu poder e a arremessei pelos muros do castelo o mais
longe que pude lançá-la.
Eu iria poupá-la, não disse que não iria machucá-la. Alguns ossos
quebrados não a matariam.
Quando me ergui novamente, era cercada por guardas e a matriarca
atirava raios em minhas costas, erguendo-me ao alto e tirando qualquer
controle que eu tivesse sobre meus membros. Pude ver que os humanos
começavam a correr e a fugir do castelo. Pelo visto não estavam esperando
que aqui fosse um ninho de bruxas. Pobre coitados, sonharam em ver uma
queimar, mas não desejavam fazer parte de uma guerra entre elas.
O quê? Acharam que eu era a única?
Eu era só uma massa trêmula que rangia os dentes tentando sobrepor
a dor, enquanto Laura me rodeava com um sorriso maníaco em seus lábios e
seu poder que me fazia definhar diante dela.
Ela sim era uma mulher cruel. Uma verdadeira bruxa se nossas
origens fossem um xingamento.
— Livia, achou mesmo que não sabíamos que se encontrava com a
criatura?
Aquilo me bateu forte, mas do que as ondas de choque que tomavam
meu corpo sofrendo com sua agressão, me sentia destroçada por dentro e
por fora. Mas minha mente quebrada por Darío era a pior parte.
E vê-la tripudiar em cima da minha inocência machucara ainda mais
outra parte de meu ser já muito abalado pelos anos de cativeiro, meu ego
fora estrangulado por sua fala.
Como eu pude ser tão tola ao imaginar que ela não tinha
conhecimento dele?
— Sabe, crianças como você são raras. Tem mais poder da deusa
correndo por suas veias e da luz original do que todas nós unidas.
Laura me puxara para si e erguera meu queixo, me forçando a
encará-la. Seus raios que me envolviam e partiam meus nervos em
fragalhos não tinham nenhum efeito sobre ela.
— A fundadora dessa cidade profetizou que uma garota assim viria
e tomaria os poderes de um demônio os incorporando por uma união.
Desconhecia essa lenda, mas tentei fazer o que ela contava mais de
uma vez e falhei. Precisei de um contrato com o inferno para me libertar de
minha cela.
— Então, quando o sentimos em nossa casa, afrouxamos suas rédeas
para que roubasse sua força vital o quanto pudesse, mas lhe usar seria
perigoso se ele viesse a se revoltar.
— E você armou em me entregar aos monges para que ele viesse
por mim e pudessem capturá-lo — choraminguei.
— Nunca pensei que daria tão certo. Requereu um esforço
gigantesco de todo o coven subjugá-lo, mas funcionou. Pena que todas
tiveram que se juntar ao meu colar depois, fracas demais para seguir
vivendo em seus próprios corpos.
— Você matou a todas, decretou a morte de todas elas para derrotá-
lo.
— Por que o choque Livia? Tudo que eu faço é para preservar nossa
raça. Mesmo que seja só eu e minha filha que seguiremos vivendo pelos
séculos com a ajuda de seus poderes e de seu demônio, é claro.
Matar a mim, uma criança de fora, eu entendia. Mas todas as bruxas
nascidas naquele coven, eu nunca pensei que fosse capaz de chegar a tanto.
Nunca pensei que pudesse ser tão impiedosa, forcei meu corpo,
tentando me livrar de seu aperto, mas acabei por arfar com Laura
apanhando meu pescoço com a mesma pressão que um calvário o faria.
Engoli minhas maldições, minha boca seca como se mastigasse terra
e uma dor sobre meus olhos que parecia que iriam saltar de suas órbitas.
Ela resolvera me drenar ali mesmo. Sem ritual, sem nada.
Só consumiria minha vida de qualquer jeito.
Darío morreria.
Pensar nas chamas o envolvendo em uma pira viva fora suficiente
para que libertasse minhas mãos de seu domínio e cravasse minhas unhas
em sua pele.
Laura balançara, mas virara sua cabeça de lado em descaso.
— Desista, Livia. Acabou.
Eu não a soltei, não podia fazê-lo. Não podia desistir. Sentia o gosto
salgado das lágrimas deixando meus olhos e alcançando minha boca.
Nunca poderia fazê-lo.
Minha mão se moveu por seu braço apanhando seu pulso, enquanto
a outra alcançava seu antebraço na altura do cotovelo, e pus mais força que
eu já reunira alguma vez sobre meus punhos em sua pele.
Pude ouvir seu ombro se deslocando, mas ela não me soltara. Meus
olhos eram fixos nela, mas podia ver em minha lateral uma tempestade se
formando em torno de nossos corpos.
Meu vento e seus raios em choque, como a guerra que travávamos
da qual só uma sobreviveria.
Eu queria poder jogar toda a fúria que me consumia sobre Laura.
Precisava alcançar mais força, mais poder, necessitava de mais.
— Seus olhos. — As palavras se desprenderam de seus lábios como
um assombro. — Brilham como a prata derretida, então é verdade. Gente
como você são mesmo filhas dos deuses.
Não tive tempo de assimilar o que ela dissera, vi por cima de seus
ombros a sombra dele através de minha vista embaçada em lágrimas.
Darío se soltara, corria para mim com o pânico em seus olhos ao me
ver sendo estrangulada por aquela maldita.
Sua pele carbonizada, seu corpo coberto de feridas se movendo
contra Laura e a acertando com tanta brutalidade, que ela perdeu o controle
sobre seu aperto em meu pescoço.
Eu vi a oportunidade, retesei meus músculos e empunhei mais força
em meu aperto sobre seu braço, puxando para o lado contrário ao golpe de
Darío, assim terminando por arrancá-lo.
O sangue jorrara ao céu e eu esperei que talvez os deuses
apreciassem a oferenda pelo apoio mais do que inesperado.
Eu caíra sobre a areia, um joelho apoiado no chão e seu braço
asqueroso em minhas mãos. Piscara, algumas vezes, descrente do que fizera
com minha respiração irregular tentando tomar algum fôlego depois do
esforço empreendido.
A bruxa maldita não gritava. Devia ter desmaiado com o dano que
lhe causamos.
Arremessei seu braço sobre seu corpo e me ergui, correndo até
Darío. A poucos metros de mim, ele fora afastado pelos soldados e
enfrentava suas lanças. Ouvia a voz do senhor do castelo que parecia ter
decidido se juntar a batalha, ao menos comandá-la.
O homem gritava ordens de uma janela um pouco mais acima do
pátio. Perdera todas suas bruxas e temia por sua vida, por isso resolveu
empreender algum esforço contra nós, mas sua alma nem valia tanto assim
para que se preocupasse tanto. Agitei meus braços no ar, comandando uma
forte ventania e vi o nobre se equilibrando da janela onde acenara para que
espetassem meu homem.
Eu o encarei e ele voara para o chão logo depois, com seu crânio
partido vazando a vida por ele, não tornando-se muito diferente do que era
antes, uma massa desforme e enegrecida pela queda tal como sua alma.
Mantive minha corrida para Darío quando três lanças perfuraram
suas costas. Ouvi seu grito em minha mente, nenhum som saiu de sua boca
aberta antes de que tombasse ao chão, sua língua havia sido cortada. Não
podia suportar toda a dor que lhe causaram, era demais. Só queria chorar e
castigar aquela gente.
Meu lamento ecoou pelo pátio tremendo as pedras do castelo e
amedrontou os soldados que se juntaram aos bons cidadãos que há pouco
gritavam para que um rapaz fosse queimado, mas nesse momento corriam
em fuga pelas portas de ferro negro.
Ninguém mais iria a lugar nenhum.
As portas que davam acesso à vilarejo se bateram em um estrondo,
partindo os corpos de alguns dos assustados fugitivos ao meio e não se
abriram mais. Cambaleei até Darío, agachei-me ao seu lado e o puxei para o
meu colo.
Eu o abracei enquanto sacudia meu corpo, tentando acalmar o terror
que me consumia por vê-lo naquele estado. Tudo que eu queria era fugir
dali para longe com ele, e era isso que vinha planejando, mas ele não
sobreviveria.
Desatei a chorar e apoiei minha testa na dele, minhas lágrimas
pingando em seu rosto. A dor me corroendo por dentro.
— Livia.
Eu o ouvi me chamar em minha mente e fitei aqueles olhos verdes
que lacrimejavam, por conta do meu sofrimento.
— Não chore. Nem faça essa troca.
Esfreguei o torso da minha mão em meus olhos e acabei por
perceber o sangue que escorria pelo meu braço. Não era dos meus inimigos,
era meu. Meu pulso voltara a sangrar pelo corte que eu fizera para convocar
ao demônio na noite anterior. Ironicamente era quase como uma lembrança
de que tinha chegado a hora de pagar por seu apoio.
Não havia mais coven. Não havia mais o senhor do castelo.
Mas eu não salvara a Darío. Não de todo.
Seus olhos quase sem vida lamentando não por suas feridas, mas por
mim. Preocupado comigo mesmo prestes a deixar esse mundo, eu o apertei
com força contra meu peito.
— Me perdoe por tudo que passou, na próxima vida será feliz. —
Encostei minha testa na sua e esfreguei minha bochecha em seu rosto. —
Sua alma está livre do inferno, nunca pisará lá novamente, não importa o
que faça. Tudo que eu desejo é que tenha uma boa e abençoada vida, vá em
paz e seja feliz.
Eu me despedi. Mas quando senti que parara de respirar, a dor me
consumiu de tal forma que me vi gritando, até que minha garganta
queimava e não saía nenhuma voz.
Não via mais nada. Tudo que eu sentia era dor e o quanto minha
vida era miserável.
Cobri meu rosto com minhas mãos e quando consegui removê-las, o
fogo envolvia meu corpo e se alastrava pelo pátio e tomava o castelo. Todos
queimavam e eu abracei meus joelhos e me deixei apreciar o espetáculo.
Enfim, o presente de nosso vínculo aparecera.
Com o último sopro de sua vida, eu incendiei o castelo de Trasmoz.
Nem mesmo as pedras resistiram as chamas e quando acabou, o
corpo de Darío tinha se esvaído junto com os outros e naquele chão
queimado no meio da cinza dos mortos luziam a cor do fogo duas pedras
tão lisas e arredondadas que pareciam rubis lapidados por um bom
joalheiro.
Eu tinha dois colares com as almas dos presentes como havia
previsto meu pacto.
A alma de Darío seguiu adiante, já os humanos residiam no colar
que atei ao meu pescoço rapidamente, logo Damián chegaria, e eu precisava
escondê-lo, desejei que se tornasse invisível aos olhos de todos.
Estava prestes a trapacear um demônio.
O outro continha as almas que habitaram ao colar de Laura e a da
própria matriarca, então o deixei descansar à minha frente, até que seu dono
veio buscá-lo pouco depois.
— Boa garota, essas almas valem muito. Foi um prazer fazer um
acordo com você, Livia. Aguente firme a estada no inferno, uma hora se
livrará de lá — disse o demônio.
— É vidente? — questionei, preocupada com o que viria depois.
— Sim.
— Ele vai ficar bem?
— O garoto? Sim, está livre — assentiu. — Mas sinto muito por
você.
— Nada mais me importa.
A cena se desmanchou e a dor foi varrida com ela, tudo que eu
sentia era a satisfação de ver aquelas almas queimarem num momento,
seguido do prazer de sentir o calor de Andrew em meus braços.
Mas não pude conter minha vergonha percebendo que ele me
encarava, apesar de seu cenho que não me mostrava nada, nem mesmo o
reflexo em seus olhos revelava alguma emoção, mas sabia que não podia
esperar aplausos.
Ele vira o que eu fizera.
Sabia do que eu era capaz, de até onde cheguei em vingança pelo
que fizeram ao homem que era tudo para mim e me tiraram.
Temi que ele me odiasse, mas não teria feito nada diferente. Eu não
era boa o suficiente para me sentir culpada.
Eu só temia ver a repulsa em seus olhos.
— Eu, ah... Emmie...— Sua voz saiu entrecortada e Andrew desviou
os olhos dos meus, as sobrancelhas franzidas e mirando Irene.
A compulsão de chorar me consumiu como na visão, seu desprezo
doera tanto quanto a morte de Darío.
Eu fiz o que aquela gente merecera, elas o torturaram e acabaram
por matá-lo antes que eu pudesse alcançá-lo. Não era justo que seguissem
vivendo. Certo, eu fizera um acordo com Damián acreditando, firmemente,
que eu conseguiria impedir sua morte e vendera a alma de todos por ele.
E ainda escondera as almas dos humanos comigo, mas qualquer um
faria isso no meu lugar. Mordi meus lábios e engoli meus soluços. Não,
nem todos fariam, só alguém como eu dissera que era ao guarda naquela
cela: Eu era uma vadia e uma maligna.
Me levantei e me afastei de Andrew que seguia observando a Irene
que levava um sorriso de escárnio nos lábios. Ela realmente era uma bruxa
horrenda com a alma podre. Queria me fazer sofrer, porque descobriu o que
eu fiz a sua mãe.
Pois, bem. Eu era tão má quanto ela.
Dei as costas para eles e caminhei até o sofá capitonê de veludo
vermelho dos Davis, algo tão antiquado e cheio de frescura que Sarah Davis
chamava de charme retrô. Fitei a outra monstruosidade que ficava na parede
atrás dele, um grande espelho retangular de moldura dourada formada por
arabescos. A sala já começava a ficar escura, parecia que a vela se demorara
mais dessa vez para extinguir sua chama, mas deixara o ambiente tão
sombrio que jurava que as paredes foram tingidas de negro.
Mas ainda havia luz o suficiente para fitá-las naquela sala e pude ver
minha face convertida numa careta de rancor no espelho, que só se enrugou
mais ao ver as rosas vermelhas no sofá. Não as havia percebido quando
entrei na casa, no mundo real, no entanto se Irene estivesse orgulhosa do
intento de me fazer notá-las sob essa iluminação sinistra justo nesse
momento que revivi o dia mais mórbido de minha vida, ela acabaria por
amargar o resultado de seu jogo macabro.
A mulher criara uma ilusão dentro de outra, sua presença fortalecera
o feitiço. Da casa dos Davis para o dia mais sofrido de minha vida.
Ela queria brincar? Eu também sabia jogar esse jogo.
— Você sabia, não é? — indaguei, enquanto me abaixava e pegava
algumas das rosas no sofá. — Me trouxe aqui para colocá-lo contra mim?
— Creio que pela expressão do rapaz com esses olhos paralisados
que eu consegui — debochei.
— Sabe, eu odeio rosas. Seu coven me fez odiá-las tanto que tudo
que penso é despedaçá-las todas as vezes que as vejo. Eu te congratulo por
deixá-las espalhadas pelo meu alojamento na faculdade, querida colega de
quarto.
— Vejo que descobriu. — Ela deu um sorriso cheio de prazer e
bateu palmas me congratulando.
Até mesmo seu rosto se iluminara ao confirmar que estivera me
atormentando, espalhando rosas por meu dormitório, à medida que
espionava minha vida.
— Você parecia tão sozinha, só quis te fazer companhia.
— Sabe, não precisava nem se esconder atrás desse colar, não teria
reparado em você mesmo que não utilizasse mágica e ilusões para que eu
nunca lembrasse seu rosto. Para mim, você não é nada.
— Acredito que sou muita coisa ou não teria conseguido te trazer de
volta a essa cidade.
— Matou o demônio Damián na sua breve passada no inferno?
Acha-se poderosa pelo feito?
A menção de que eu não dava a mínima para ela pareceu ter
atingido seu objetivo, Irene tinha a face convertida em uma grande massa
escarlate. Nada como machucar o coração de gente que nos ama, eu era
mestre nisso. A diferença nesse caso era que nunca amei de volta.
— Oh, pobrezinha não consegue falar mais? Estava toda falante há
pouco — exprimi em minha voz cada gota de sarcasmo que habitava meu
corpo. — Tem todos os poderes de sua mãe e das outras. Mas será que sabe
usá-los?
Sentei-me no belo sofá antiquado e cruzei minhas pernas, enquanto
o fogo uma hora perdido pulsava em mim como uma pequena chama que
subia pelo meu corpo e tocava o sofá com gentileza, poupando do dano
como um bom fogo mágico que não tomaria o assento de sua senhora.
Os restos das rosas espalhadas ao meu redor, enquanto fazia meus
truques e encarava Irene com o desprezo que sempre senti e continha no
passado para me manter a salvo.
— Curve-se. Não me chamava de rainha? Então, quero que se curve
e rasteje.
Irene caiu de joelhos, o ar lhe faltando enquanto concentrava toda a
raiva que eu sentia no desejo que os ossos de seu tórax pressionassem seu
pulmão, até que os perfurassem e a sufocasse.
E ela rastejou.
Engatinhou até minhas pernas e tocara meus joelhos angustiada que
estivesse no fim depois de ter chegado até aqui, a bruxa fizera acordos com
demônios, tais como eu fiz para cavar minha escapada do inferno. Será que
havia feito os acordos certos? Esperava que não ficassem chateados que eu
a devolveria tão cedo.
Peguei os restos das flores e as lancei sobre ela, atingindo seu rosto,
mas seus olhos não se moveram, tão fixos em mim com a ânsia de se vingar
e libertar seu coven tão vivo como o medo do que viria por ela em breve.
Um fio de sangue escorreu por sua bochecha, infelizmente não era
das feridas internas que lhe causei, mas sim dos espinhos das rosas que seu
povo tanto amava.
— Não fez bons acordos, verdade? Vão vir por você em breve —
sussurrei perto de seus ouvidos. — Eu te poupei no passado, mas isso
acabou.
Irene gritou de dor enquanto seus pulsos se uniam em suas costas
com seu corpo se dobrando para trás em agonia enquanto todos seus ossos
eram quebrados.
Era uma bela visão. Talvez eu devesse acrescentar o fogo agora.
— Sabe, Irene... uma volta ao passado é tudo que precisamos para
nos perder. Fico meio dividida em agradecer pela gentileza de você sempre
se esforçar tanto para esfregar a minha triste vida na minha cara e a vontade
que tenho de arrastar a sua no chão por fazê-lo.
Dei de ombros, não faria diferença qual fosse a minha decisão.
— Não importa minha escolha, o resultado vai ser o mesmo.
Girei minha mão no ar e minha adorável perseguidora tinha sua testa
nas tábuas velhas do piso. Teria sido melhor se fossem cascalhos, eles
seriam mais eficientes na reforma que eu pretendia fazer em seu rosto, mas
tábuas velhas deveriam bastar por ora.
Elas tinham farpas, certo?
Eu a forcei contra o piso uma e outra vez até que minha consciência
exterior resolveu me deter. Meus mais profundos desejos envolviam pintar
aquele piso todo de carmim com o adorável líquido vermelho que pingava
do nariz de Irene e escorria por sua boca, mas, infelizmente, ele me trouxera
de volta dos sonhos de arrancar toda a pele do rosto daquela vaca.
O toque que me detivera era mais gentil do que eu esperava pelo
estado que me encontrava, era certo que esperava um tapa pelo que eu
fizera e por minha total falta de vontade de mudar meus maus modos. Uma
vez que era claro que estava determinada em transformar Irene numa
panqueca das mais finas e macias, já que não sobraria ao menos um osso se
continuasse a batê-la contra o piso.
Mas Andrew segurara meu ombro e eu senti todo meu corpo
trêmulo. Então, pude perceber o quanto estava tensa, não a palavra era
transtornada. E não era por provocar dor na maluca a minha frente.
Eram as lembranças do passado. Era ele.
— Emmie, pare. Essa não é você.
Sua voz suave, embora firme, quando eu esperava ofensas me doeu
mais do que se estivesse me xingando. Por um minuto, olhando aqueles
olhos verdes sem julgamento, me senti culpada e suja.
Durou pouco, pois as trevas novamente cobriram tudo com mais
uma vela se apagando.

— Okay, depois de você tentar bancar A Bruxa Má do Oeste[38] toda


ardendo em chamas, literalmente devo acrescentar, enquanto partia a cara
da verdadeira bruxa malvada, o que vem agora? — Andrew falou num tom
amigável, alisando seus cabelos e puxando conversa como se tentasse
aliviar o clima.
— Você não está com medo de mim? — Voltei a minha atenção para
ele perplexa. Esperava ao menos um discurso de: Você devia se arrepender
por seus pecados!
Minha atenção era dele, embora eu devesse avaliar o novo cenário
onde caímos. Aparecemos dentro de um carro que nunca esteve em minhas
memórias e isso era algo novo do que aquele lugar vinha nos mostrando até
então.
— De você perder a cabeça pelo cara que gostava, e ainda parecia
muito mais bonito e másculo do que eu? — Eu ergui uma sobrancelha e ele
continuou sua fala. — Sim, eu prestei a atenção nesse detalhe.
— Era o que eu esperava — falei, apoiando minhas mãos em meus
joelhos e tremendo diante das lembranças que ele me invocava, ainda
estava muito abalada com aquela visão.
— O cara foi morto depois de ser torturado. Se eu fosse como você,
faria o mesmo.
— Aquilo me destruiu, Andy.
— Eu entendo, então, não estou te julgando. É compreensível.
Alguns vilões nos quadrinhos perderam a cabeça por menos. Você não é
boazinha, e eu já sabia disso pelo tratamento frio que vem me dando por
anos. — Ele mordeu os lábios e ergueu as sobrancelhas antes de continuar.
— Mas está mais para uma anti-heroína do que para uma bruxa comedora
de criancinhas.
Não esperava a compreensão que eu via no seu tom de voz ou nos
olhos piedosos que me fitavam. Queimei meu vilarejo. Cara, arranquei o
braço de uma mulher!
Imaginava que seria condenada por ele.
Eu queria me arrepender? Não. Iria pedir desculpas? Reparar meus
atos? As respostas eram a mesma, não. Mas o bom rapaz ao meu lado não
me recriminar? Nunca imaginei. Estava pronta para um bom discurso
— Pela deusa, pare de brincar, Andy. Como pode não se importar?
— Me movi para frente em meu banco, afastando meus olhos dos dele. Não
era possível que me amasse tanto assim para ignorar meus delitos.
— Emmie, você pode ser malvada, mas você salvou Isabella. Eu vi
você atacando a Taylor no banheiro.
Devia estar olhando para ele com os olhos escancarados, enquanto
seu rosto não era outro se não gentil, mais do que eu acreditei ser possível.
Mas meu maior choque vinha do fato que eu havia sido pega, ficara mais
perturbada naquele dia do que eu afirmaria se me perguntasse, tanto que
não o sentira por perto. Me concentrara somente em afastar aquele cara de
Isabella e cuidar de sua mente que não percebi Andrew no meu rastro.
Aquilo não era comum de me acontecer. Ficar tão exposta assim, era
uma coisa perigosa. Sempre o pressentia por perto, sua aura era
reconhecível, embora não conseguisse invadir sua mente.
Andando sempre atrás de mim, eu devia ter imaginado que ele
pudesse estar por ali.
Droga!
O medo tomara um outro nível de profundidade em meu peito, um
no qual eu poderia ter problemas com a lei humana. E se mais alguém
tivesse se aproximado e me visto?
Não usava tanto poder desde que fugira do inferno, exceto por agora
enfrentando Irene a pouco, eu ficara fraca antes e acabara de ficar
novamente.
Eu o encarava, imaginando o que mais ele poderia saber, o que eu
mais falhara em esconder. Andrew me fitava de volta sem demonstrar
nenhuma emoção contraditória. Ele gostava de mim e me aceitava mesmo
sendo um pouco psicopata. Era isso? Encarei aquele sorriso amistoso
pensando que talvez algumas consultas com um médico o fizessem bem,
um psiquiatra no caso.
— Estava atrás de você naquele dia. Pensei que tivesse algo de
paranormal contigo, mas minha mente não foi para o termo bruxa. Tal coisa
não passou por minha cabeça.
— Por que não chamou a polícia para mim? — questionei ainda
aturdida.
— Incriminá-la? Eu nunca faria isso.
— Era o certo. Não percebeu que eu queria matá-lo?
— Sim e isso me assustou um pouco, mas o medo de que te
machucassem foi maior. Você voltou pouco depois que tirou Isabella dali e
vi que retirava os restos da bola que usou para feri-lo, então chamei a
ambulância.
— Andrew, eu...
— Apesar de saber que havia algo estranho com você, não posso
negar que me assustei muito quando chegamos à casa dos seus pais. Mas
não se preocupe, não vou falar para ninguém o que vi naquele dia. Só de
pensar que podia ser você na situação de Isabella, eu mesmo gostaria de ter
agredido a Taylor.
— Vai esconder meus crimes agora?
— Só não os faça com frequência. Não quero ser obrigado a ir
contra meus princípios morais toda semana. — Sua voz atingiu um tom
ainda mais suave do que eu poderia acreditar que sairia de seus lábios. —
Não pense tão mal de você, teve seus motivos e eu não sou tão bom assim.
Ele se curvara um pouco para frente e abaixara a cabeça,
constrangido, escondendo os olhos sobre a franja.
— Lembra da garçonete no restaurante do motel na estrada?
— Sim, me lembro. Fazia as vezes de reservar os quartos também.
Me recordo, principalmente, como ela olhou para mim e me julgou como
uma bruxa sem saber.
Queria saber era o que dera nele para falar disso.
— Bem, ela me julgou tão bom garoto que nos deu só um quarto
quando pedi. — Ele mordeu a boca com um sorriso tão zombeteiro,
declarando o que aprontara, mas não estava de todo surpresa.
— O lugar parecia vazio, mas ela dissera que todos os quartos
estavam ocupados. Eu deveria ter imaginado. Me surpreende só que quis
ficar trancado comigo mesmo tendo visto eu mandar um homem para o
hospital.
Ele deu uma risada baixinha.
— Bem, sua beleza me tem cativo, então vai ter que se esforçar mais
para me afugentar. Mas não sei como não fiz a conexão antes...
— Do que você está falando?
— Eu deveria ter percebido seu gosto por papoulas[39], A Bruxa Má
também gostava. Só não me enfeitice com elas, sim? E me lembre de te
comprar sapatos de salto vermelhos[40] quando sairmos daqui?
— Para quê? — perguntei, aturdida.
— Acho que combinam com você, ao menos irei rir sempre quando
me lembrar de Oz e que tenho uma bruxa de verdade comigo.
Andy não se conteve e se pôs a rir ali mesmo dando tapinhas no
volante, mesmo no espaço espremido que nos encontrávamos, enquanto eu
revirava meus olhos, fingindo-me de ofendida pela brincadeira de mau
gosto. Mas com a alegria contida de que ele não estava zangado, afinal, e
isso ia contra todas as minhas expectativas.
Comprar sapatos para mim e antes me oferecera sua casa, ele o
fizera duas vezes. Quando pensara que eu ficaria sozinha no feriado de
Ação de Graças e ele acertara.
Eu sempre estava sozinha.
Depois o tornara a fazê-lo quando vira que não poderia nem ficar
mesmo com a irmã que eu alegara ter, pois era só uma farsa. Nunca fiz parte
da família de Scarlet, não de verdade.
Andrew ainda fazia planos como certo que ficaríamos juntos no
futuro, apesar de me comparar a uma bruxa má e ele não se importava nem
um pouco com isso.
Outro homem estaria gritando e correndo agora.
Aquilo parecia muito além do que eu esperava, ainda mais que eu
nem me imagina na estrada com ele há dois dias.
Ele piscou, enquanto tamborilava seus dedos contra a coxa, e me
tirou de meus devaneios, sua agitação parecendo mudar para outras ideias.
— Bem, será que você só pode me dizer onde estamos agora?
Olhei ao redor e a pergunta dele me parecera meio óbvia, mas me
atentei aos detalhes, estávamos num carro com o painel tão antigo quanto o
Cadillac do pai de Andrew, mas isso ele já sabia. Em que ponto da minha
vida estávamos presos era a incógnita dele.
Virei-me para frente, me ajeitei melhor no banco e observei bem o
lugar. Não tinha dado uma boa olhada desde que aparecemos aqui, estava
totalmente focada na minha dor e em assimilar o fato de que Andrew não
estava nenhum pouco chocado de me ver matar a todos.
E depois ainda tive que lidar com suas gracinhas. Ele estava sendo
uma chateação com elas.
Eu precisava aprender a dirigir, era uma das poucas coisas que não
tinha me adaptado ao mundo atual e o preço pago foi estar presa com
Andrew aqui. Ainda não estava certa se o queria em minha vida, minha
bagagem era pesada e só minha para carregar.
Daria tudo para não o envolver nisso, mas Andrew se enfiara na
minha vida e conhecia mais dela do que qualquer um sobre meu passado.
Era uma droga e a culpa era da minha inabilidade de dirigir.
Embora, não tivesse grana nem para alugar um carro se ele não
tivesse oferecido uma carona. E aqui estava Andrew saltando comigo por
pesadelos que eu preferia manter enterrados bem fundo.
Ao menos o atual pesadelo estava mais para um sonho bom, dessa
vez só podia ter sido produzido pela minha cabeça. Bem, os outros também,
Irene estava espelhando todo tipo de lembrança ruim que eu tinha naquele
mundo doido dela.
Mas dessa vez aquele lugar não me trazia desesperança e dor.
Aparentemente, o tempo que levasse para que Irene colasse seus ossos
quebrados, eu mandava ali e nos trouxera não para algo que eu vivera, mas
para algo que apreciava.
Através do para-brisa do carro, podia avistar uma enorme tela no
fundo de um parque exibindo algum filme de terror em preto em branco
cheio de chuvisco e um som baixo com tanto ruído que era um pouco difícil
de compreender o filme de todo, mas não havia muito para se entender
numa mulher correndo de um monstro com antenas e uma pele grossa de
réptil.
— Monstro e donzela em perigo — murmurou Andrew. — Um
clássico do cinema e não sou muito fã de clássicos. Prefiro o cinema dos
anos oitenta para cá.
— Esse roteiro já era velho na época dos trovadores, mas ainda é
instigante. Mesmo para as garotas que sabem socar, o fascínio pelo moreno
sarcástico ao resgate bate forte em filmes assim.
— Pare com isso Emma, nada de morenos sarcásticos para você.
Creio que esse seja outro clássico do cinema que particularmente começo a
odiar.
— Por que não?
— Eu sou loiro.
Ele tinha um ponto, um que me calou por um momento presa em
fitá-lo e sua declaração abusada de que deveria gostar de loiros porque um
loiro gostava de mim.
Ele ficaria surpreso se eu dissesse que já gostava?
Era melhor ficar quieta, embora talvez sua fala ajudasse no que teria
que pedir a ele. Algo tipo o que estava acontecendo em volta do carro em
que estávamos. Exatamente como nos filmes, os casais se agarravam como
se fosse um grande motel ao ar livre e pelas suas roupas coloridas e
brilhosas, era um filme dos anos oitenta.
— Creio que estamos num Cinema Drive-in [41]tirado de um filme
dos anos oitenta que eu vi. Ainda bem que gosta deles — brinquei, e vi seus
lábios grossos formarem um bico de desagrado.
Sabia que não era seu tipo de filme, estávamos em um romance
quando ele iria preferir ação, só que talvez se ele cumprisse com sua parte
também teríamos um pouco disso em breve.
— As coisas estão ficando cada vez mais complicadas — ele
constatou.
— Sinto muito, tomei o controle temporário desse lugar quando feri
a Irene.
— Quase feriu mortalmente, seria bom você acrescentar. — Ele
mordeu o nó do dedo indicador dobrado, esperando o restante da minha
resposta que de repente eu não estava muito a fim de dar. — Mas por que
ainda estamos aqui?
— Não consigo romper o feitiço. — Dei de ombros, era a verdade.
— Só manipulá-lo. O feitiço só acaba quando a última vela do círculo
apagar lá fora.
— Que beleza! E posso perguntar, por que um Cinema Drive-in de
algum filme velho e trash?
Era melhor amaciá-lo para o que vinha pela frente, então exibi meu
melhor sorriso, no entanto, seu rosto se contraíra numa careta mostrando
sua total incompreensão dos meus pensamentos perturbados. Ele estava tão
alegre antes, porque Andrew tinha que ter mudanças tão bruscas de humor.
— Filmes trash [42]são os melhores! — falei, animada.
Ele franziu ainda mais a cara. O que havia com ele? Virara crítico de
cinema agora? Justo ele que adorava um blockbuster[43]?
— Ora, eu assistia muitos com Scarlet. Eles me ensinaram muita
coisa sobre a América.
— Ensinaram as piores coisas, disso eu tenho certeza.
— Você fica com seus super-heróis e eu fico com meus filmes. E o
cenário é bem propício ao que precisamos fazer uma vez que Irene tem
acordos com o inferno.
— E o que seria?
— Tirar sua virgindade.
— O-o quê? — A voz dele saiu tão fina e engasgada que eu dei uns
tapinhas gentis em suas costas para ajudá-lo ou animá-lo. Cabia
interpretação no ato. — Emmaaaa!
Era uma coisa boa que as pessoas dessa ilusão não conseguissem
nos ver e ouvir, pois o grito de Andrew fora tão estridente como a de uma
jovem garota recebendo uma proposta indecente do namorado cedo demais.
Mas ele teria que entender que era isso ou o inferno e fazer sua melhor
escolha.
Eu também não estava muito no ânimo da coisa, mas há épocas que
não se tem muitas escolhas, era dormir comigo ou morrer. Esperava que ele
escolhesse bem, porque de fato eu não queria morrer e já estava saturada
desse lugar.
— Por que você supõe que eu seja virgem?
Arqueei uma sobrancelha e cruzei meus braços, enquanto via o
abatimento cobrir seu rosto e sua boca se franzir num arco de desagrado.
— É tão óbvio assim? — questionou, cabisbaixo, já que minha
expressão dizia tudo.
— Você só passa seu tempo entre revistinhas, filmes e a faculdade.
E, bem, andando atrás de mim e dado que eu não toquei em você, ficou
meio óbvio.
— Você tocou em mim, algumas vezes — resmungou, cruzando os
braços e se virando para frente. De repente, parecia que tinha se interessado
em assistir a mocinha loira correndo desesperadamente pela tela e em
ignorar a nada mocinha ao seu lado.
— Aquilo não conta. — Descruzei meus braços e dei o suspiro mais
ruidoso que eu já emiti numa tola tentativa de chamar a atenção. — Você
precisa se unir a mim para que Irene não tenha controle sobre você.
Andrew permanecia virado para frente e segurava ao volante com
mais força, imaginei se ele pudesse arrancá-lo o colocaria entre nós para me
manter distante.
— A questão é, demônios adoram receber virgens como presentes,
há algo de bom de receber almas não corrompidas, embora hoje em dia não
acredito que as duas coisas andem juntas.
— E sua amiga pretende me jogar num buraco de sacrifício para
abrir uma passagem para o inferno em troca de que libertem seu coven.
Havia coisas boas de andar com um nerd, ele entendia rápido as
coisas, mesmo que não gostasse delas. Andrew já tinha mais do que lido e
assistido histórias assim, ótimo que colocava palavras em minha boca e me
poupava de elaborar explicações.
— Sim, e talvez me jogar nele a seguir, deve ter sido esse o preço
solicitado de sua passagem para esse mundo. Só está se divertindo me
torturando um pouco até que se decida por pagar suas dívidas com o
inferno.
— Você sacrificou alguém para mandá-la da primeira vez?
— Claro que não! Meu contato no inferno já esperava recebê-la
algum dia, deve ter percebido que não cumpri de todo nosso acordo, tudo
que precisei fazer foi chamá-lo pelo nome.
— Ótimo que tenha contatos no inferno. Entendo a situação, mas eu
não quero.
Achei que minha cara de descrença devia pedir uma foto no
momento. O cara ficou na minha cola por três anos e não estava a fim de ir
para cama comigo sendo que eu o alertara que ele seria jogado num buraco
direto para o inferno se não o fizesse.
É sério isso?
Realmente, estávamos em outra dimensão e uma que já devia estar
afetando seu cérebro.
— Eu não quero que a nossa primeira vez seja num carro, mesmo
que isso dependa que a gente saia daqui vivos.
Bem, eu tinha um problema em minhas mãos, um que incluía a alma
de Andrew indo para o inferno e não era algo que eu pretendia deixar que
acontecesse. Então, só me restava pegar pesado.
Estendi minha mão e cobri sua boca com a ponta do meu dedo
indicador para silenciar aquele falatório de uma vez por todas. Ele me
encarou desnorteado, bem, não mais surpreso do que ficou com meu
movimento seguinte.
— Acredito que eu possa fazê-lo mudar de ideia — falei num tom
sussurrado, inclinando-me para ele e o agarrando pela camiseta, segurando-
o com firmeza enquanto me movia para o banco do motorista e, em seguida,
me sentei em seu colo e enfiei minha língua em sua garganta.
Boa sorte, cara. Gostaria de vê-lo me rejeitar agora.
Bem, sua boca estava selada na minha e só um murmúrio de
reclamação foi ouvido e durou só o tempo de suas mãos subirem por
minhas costas, aproximando-me mais dele.
Logo suas mãos trocaram para os meus seios, enquanto seus lábios
respondiam aos meus com o desejo que eu sabia que habitava nele. Ele
deslizava uma mão por baixo da minha camiseta, mimando o bico do meu
peito num toque insistente que vibrava indo direto para a minha boceta. Dei
um profundo suspiro de deleite, e levei minhas pernas até as laterais de seus
quadris e meu centro se esfregou em seu pau desejoso de algum alívio.
Andrew deslizou seus lábios por meu queixo e gastou um tempo
chupando o ponto que ligava meu pescoço aos meus ombros, emiti um som
que me pareceu de mais abandono do que deveria ter feito.
Dormir com ele era uma necessidade. Em contrapartida, não era um
esforço de maneira alguma, embora não podia me deixar levar tanto assim.
Não naquele lugar, num mundo que eu tinha parco controle e com uma
inimiga doida para nos fazer em pedacinhos depois de brincar com nossas
mentes.
Mas fale isso para o pulsar entre minhas pernas que me deixa
louca.
Bom, as coisas pareciam tranquilas. Eu podia aproveitar um pouco e
estariam resolvidas no momento que Andrew se enterrasse dentro de mim e
depois de seu discurso ridículo, ele estava a fim de colaborar.
Ao menos era isso que parecia estar acontecendo, já que ele me
incentivava a voltar para o meu banco e cobria meu corpo parcialmente,
enquanto abaixava o assento o máximo que aquele carro velho permitia.
Agradeci que os americanos sempre gostaram de carros enormes e
havia bastante espaço para que Andrew se colocasse entre minhas pernas.
O olha lascivo que caiu sobre mim ao pôr suas mãos grandes no cós
do meu jeans atingira minhas entranhas e causara um novo puxão em meu
ventre. Tentei fechar minhas pernas um pouco e acalmar meus sentidos,
dando-me algum conforto, mas ele as segurara no lugar me mantendo
aberta.
Bom, eu imaginava que essa posição lhe devia ser uma bela visão,
assim como a que eu tinha de meu assento com seu corpo forte entre
minhas pernas.
Eu não tive mais tempo para pensar a respeito, Andrew deitara todo
seu corpo sob o meu me prendendo na poltrona, assim permitindo que eu
sentisse seu pau pressionando contra minha boceta, enquanto sua língua
deslizava contornando meus lábios em provocação.
Ele nem parecia meu Andy. Estava todo sexy e seguro.
Arrepios percorriam minha pele e meus quadris empurraram contra
ele, que entendeu que eu precisava de mais atenção de sua parte um pouco
mais abaixo. O sorriso que veio dele aqueceu meu corpo mais do que pensei
que pudesse ficar quente e me vi mordendo meus lábios, no momento em
que seu peso deslizou pelo meu corpo e o vi se colocar de joelhos no chão
do carro e mover seus dedos para o fecho da minha calça.
Ergui meus quadris para que ele as tirasse fora de uma vez. Senti a
peça negra e apertada me abandonando, enquanto arrepios me tomavam que
não tinha certeza se eram de frio ou da adoração que eu via em seus olhos,
ao pousá-los nas minhas pernas libertas e meio que flexionadas naquele
espaço apertado.
— Suas pernas são bonitas, longas e torneadas.
Suas mãos deslizavam por minhas coxas, tocando-as com as pontas
dos dedos me fazendo ter certeza de que os arrepios não eram de frio pela
falta de roupa. Nessa altura eu não poderia alegar tal coisa.
— Eu me exercito bastante, herança dos treinos constantes pelo
coven que me mantinha presa ser descendente de amazonas[44].
Orar a deusa, elas não o faziam mais. No entanto, me obrigar a
treinar até que não pudesse me sustentar em pé, sim, essa era uma
constante.
Ele deslizava um indicador pela minha panturrilha quando sua mão
congelou e seus olhos me encararam com uma expressão divertida.
— Amazona? Sério? — Seu sorriso se alargou mais quando movi
minha cabeça afirmando. — Creio que você seja meu sonho mais nerd que
se realizou depois de tantas revistinhas da Mulher-Maravilha. Ou, talvez, eu
esteja dormindo e logo acordarei com o pau duro de mais um sonho louco
com você.
Andrew estava mais animado que o normal. Seu vocabulário
digamos um pouco não convencional para ele era a prova disso, mas só me
fixei na parte que ele sonhava comigo.
— Eu estou em seus sonhos?
— Sim, desde que a conheço só você faz parte deles. Mas nem
sempre são sexuais.
Ele me mostrou a língua quando olhei para o seu pau apontando
para mim, meio que contradizendo seu dono pela velocidade que ficara
assim.
— Eu não sou um tarado. Geralmente, estamos na faculdade e
quando os monstros apontam no horizonte, você me abraça e eles vão
embora.
— Fico feliz de te trazer alguma paz. E alguma perturbação também
— brinquei, recostando minha cabeça na poltrona do carro e o brindando
com um sorriso de quem passara muito tempo no inferno.
Ele apertara minha coxa com firmeza em resposta e deixei escapar
um gemido sofrido com o contato.
— Ah, você me traz é muita frustração também, sempre
desaparecendo dos meus braços quando a prendo neles, nos sonhos e na
vida real. — Ele soltou um sorriso suave da dualidade que eram seus
sentimentos, eu o fazia feliz e o irritava ao mesmo tempo.
— Sou um pacote complicado.
Suas mãos deixaram minha perna e apertaram a própria coxa como
se lembrar algumas coisas fossem dolorosas demais.
— Sabe, eu costumava sonhar com monstros e de ser torturado
todas as noites, acordava suado e tremendo, até que meu pai comprou uma
fantasia do Super-Homem e disse que ele afastaria todos os monstros.
— A deusa te abençoou, seu pai parece um amor.
— Ele é. Me transformou num super-herói e nada poderia me atacar,
eu andava direto com a fantasia, com capa e tudo. Eu até ia para o colégio
com ela, meu pai encheu meu armário com elas.
— Você devia ficar bonitinho vestido com capa correndo pela casa.
— Acho que as fotos que mamãe tem podem comprovar isso e são
centenas, mas eu cresci e tive que deixar as fantasias de lado.
— E os pesadelos voltaram e você passou a andar com camisetas
estampadas de super-heróis por todos os lados, uma jogada esperta para
manter sua mente sob controle.
Ergui minhas costas da poltrona e me movi para ele, envolvi seus
ombros com meus braços e repousei minha cabeça em seu peito, ele não
precisaria de camisetas mais. Poderia andar até pelado se quisesse, nada
tocaria nele.
— Eu recomendaria terapia, mas do seu jeito funcionou também.
— Ah, meus pais me levaram, cansei. Não funcionou muito bem.
— Bem, eu gostaria de ser mais do que uma fantasia para você —
falei entre risos e ele sorriu de volta, incapaz de ignorar o duplo sentido da
coisa —, mas me use como seu escudo agora. Afastarei todos os monstros e
te protegerei de qualquer coisa que tentar te pegar.
— Por que será que eu acho que você vai acabar é atraindo mais
monstros?
Andrew desfez da minha oferta, apesar de manter uma sombra de
riso em seus lábios ao envolver minhas costas e me apertar contra seu
corpo.
Entendi com a sua ação que ele tinha aceitado a minha proposta,
então movi meus braços até suas mãos e as afastei de meu corpo
provocando um franzir de sobrancelhas confuso pelo meu rechaço.
Dei um sorriso tranquilizador antes de mover minhas mãos para a
barra de sua camisa e começar a subi-la devagar.
— Acho que podemos reduzir essas camisetas agora, já que estou
aqui para sua proteção.
Sua resposta fora um sorriso de lado e erguer seus braços,
alegremente, para que eu terminasse por arrancar a peça por sua cabeça.
Livre da roupa, tornei a abraçá-lo e me movi para trás, trazendo-o comigo
para que nos acomodássemos no banco do carro.
No segundo seguinte em que minha cabeça tocou o encosto de couro
macio, ele capturou meus lábios num beijo doce que selava nossa promessa.
Eu o protegeria e afastaria os monstros desse momento em diante.
Me encontrava desesperada por sentir novamente o peso de seu
corpo sobre o meu, a suavidade de sua pele e o instigante cheiro de seu
corpo que parecia intensificado ao tocar o meu. Meus seios nus
pressionados contra seu peito, sua respiração em meu pescoço, seu pau
apertando-se contra a minha entrada e aquele cheiro inebriando meus
sentidos.
Era tudo tão forte e urgente demais, queria vinculá-lo e que ele
fizesse parte de mim, me vi agarrando seus cabelos e pressionando seu rosto
contra o meu como se assim nos tornássemos um de uma vez.
Suas mãos massageando meus seios em movimentos vagarosos não
pareciam querer contribuir para o meu autocontrole, elas realizavam
movimentos circulares acompanhando o ritmo dos meus quadris roçando
nos dele.
Essa deliciosa carícia durou até o momento em que senti uma de
suas mãos descendo pela lateral do meu corpo e parando nos limites da
calcinha. Ele já teria alcançado seu objetivo se fosse um dia comum que eu
não vestisse nada, no entanto, não custou muito para que eu sentisse seu
dedo ensaiar sua entrada ali. Então, afastei mais minhas pernas, permitindo
que ele se acomodasse melhor entre elas.
Senti seu dedo afastando o tecido por fim e me tocando num
movimento suave, testando o que eu gostava até que mais um dedo se
juntou ao outro me abrindo um pouco mais e alcançando o clitóris.
Tentei fechar minhas pernas num reflexo diante da invasão, mas sua
mão segurara firmemente minha coxa impedindo o movimento e seus olhos
me encararam numa verificação silenciosa, eu mordi meus lábios diante
daquele olhar inquisidor e ele se deslizou entre minhas pernas, suas mãos
indo para os elásticos da peça com a intenção de arrancá-lo fora.
— O que há com você e a cor preta? — Ele disse observando o
tecido da minha calcinha. — Está sempre coberta com ela.
— O mesmo que você e suas camisetas, proteção.
— Entendo, podemos nos livrar dela por hora — Ele disse pondo
seus dedos no cós da peça e parando ali um momento, talvez só para me
torturar, até que sacudiu a cabeça e pareceu decidido a continuar
deslizando-a por minhas pernas abaixo.
— Nossa! É melhor do que em meus sonhos!
— Você disse que não eram pornográficos.
— Eu disse que não todos. — Ele inclinou a cabeça acanhado por
afirmar que eu também habitava seus sonhos indecentes. — Alguns
envolviam você e grama.
Eu quase saltei em torno desse comentário, meu coração errando
uma batida e o ar me faltando que temi que ele tivesse notado, mas mantive
minha compostura. Sonhos intensos esses, era melhor não comentarmos
sobre eles. Focaria no presente e naquela ereção tão dura que parecia que
iria explodir a qualquer momento e eu precisava que estivéssemos
vinculados quando acontecesse.
Devia estar sendo doloroso para ele, seu pau apontava para mim
como se quisesse me alcançar a todo custo. Ergui minhas mãos na intenção
de dar-lhe algum alívio, mas ele as moveu para longe, e acabou por prendê-
las contra o estofado.
— Não, primeiro você. — Ele disse isso e seu rosto se tingira de
vermelho e eu não pude conter uma gargalhada.
— Não ria.
— Como não? Mesmo para um cara sem experiência prática, você
tem estado muito bem, mas agora ficou envergonhado de repente.
— Fiquei um pouco verdade, mas acho que sua risada deveria ser
punida.
— Como? — perguntei, soando mais inocente do que eu imaginava
que sairia.
Ele se inclinou sobre mim novamente e seus dedos voltaram para
aquele lugar delicioso, ele testou mais um dedo o enfiando profundamente
em meu corpo quase me levando ao limite.
— Está quente e bem molhada, minha doce vilã — Ele disse
chupando o dedo que retirara de mim e eu não pude evitar o gemido que
escapou dos meus lábios vendo sua cara de apreciação pelo meu sabor.
— Ao menos sou doce, apesar de minha maldade enrustida.
Ele sorriu e aproximou seu rosto de meu corpo, beijando e sugando
onde seus dedos estiveram a pouco. Andrew se demorava no ponto onde eu
era mais sensível e o pressionara com a língua me fazendo agarrar seus
cabelos com força. Ao fazê-lo, ouvi sua risada baixa satisfeita pelo efeito
que causava em meu corpo.
Eu estava num transe perdida na vontade de tê-lo dentro de mim,
mas não querendo que ele parasse de me chupar.
— Nem que eu o enfeitiçasse isso seria tão bom — Deixei escapar
essas palavras num sussurro de prazer sem imaginar as consequências.
Andrew cessou bruscamente os movimentos de sua boca sobre mim
e o olhar que me dirigia não era nada bom.
— Você me enfeitiçou, Emma? Agora me recordo que falei que não
faríamos isso num carro.
Revirei meus olhos e a ladainha recomeçou, Andrew daria mais
trabalho do que eu pensava.
— Andy, está louco? Você entende o que significa sair vivos daqui?
— Ele se punha irredutível em continuar de onde tínhamos parado.
— Eu entendo que é meio ridículo essa coisa de sacrifício de virgem
para rituais. Estamos o que? Num filme dos anos oitenta?
— Andy, olhe ao redor, é exatamente esse o cenário no qual
estamos.
— Mas essa coisa toda, realmente, é real? E não sei por que não
estou negando o fato de ainda ser virgem. Por que não estou?
Ele se virou totalmente aturdido com as sobrancelhas erguidas e
querendo mais respostas do que eu podia dar para aceitação da sua como eu
poderia dizer condição e menos respostas ainda para a situação ruim que
estávamos.
— A resposta é choque — Dei de ombros, iria por aí. Nada de ir por
caminhos complicados. — Um diferente do que te deixou paralisado
quando Irene mostrou meu dia mais escuro, um que te deixou falante. Isso
mesmo! E quanto a ser real, sacrifícios sempre foram feitos em diversas
religiões.
— E você os fazia? — Pronto, pelo arregalar de seus olhos, agora
ele realmente estava chocado.
— Não desse jeito. — Era melhor negar, mas ele já tinha visto.
Sacrifiquei meu vilarejo inteiro.
— Emmie...
— Eu nunca disse que era boa. Só que eu o manteria vivo, não
importava o que tivesse que fazer.
— E se unir a mim é algo tão penoso assim para se enquadrar no eu
o manteria vivo não importava o que tivesse que fazer?
— Ah, me poupe! Não vai querer criar uma confusão em cima de
uma coisa dessas quando estamos sabe-se lá onde com uma louca em nosso
encalce.
— Só achemos um jeito de sair daqui — disse ele.
— Não tem outro jeito. Logo ela vai nos caçar por aqui de novo e
vou ter que derrotá-la e ainda vou ter que cuidar de você para que ela não te
pegue. Então pergunto de novo, vai continuar se negando?
— Talvez, eu vá — resmungou ele. — Mas ficarei longe dela, não
vou te atrapalhar.
Ele só podia estar de brincadeira! Cravei minhas unhas em meus
braços, temi ter cortado o tecido da minha blusa que os cobriam até um
pouco abaixo do cotovelo. Entretanto pelo tanto que doeu, era provável que
o tivesse feito.
— Você pode até agir desse jeito, saltando do ódio fervente de um
combate para paixão ardente, mas eu não funciono assim — Ele disse só
para me deixar saltando era de raiva.
— Você estava chupando meus seios antes da Irene chegar na falsa
casa dos Davis e agora pouco se não me engano tinha sua cabeça entre
minhas pernas e não fui eu que mandei que a colocasse ali.
Se eu não estivesse furiosa, iria rir da cara de tacho que ele fizera.
Eu tinha um ponto e um bem abalador do seu mundinho certinho e
controlado. Era isso que ele merecia por desejar entrar na minha vida. A
deusa sabia que eu tentara mantê-lo afastado.
— Foi o calor do momento.
— Então pode acender esse fogo e aumentar esse calor aí se não
quiser virar sacrifício de ritual — Cutuquei o peito dele com o indicador e
sua cara só mudou para indignada.
— Não é assim que as coisas funcionam.
— E como deveriam funcionar?
— Nós nem nunca saímos juntos, um jantar, uma festa...coisas
normais de um casal antes disso.
Recostei minha cabeça no banco do carro e apertei meus olhos com
força para conter a vontade de estrangulá-lo. Pelo que eu entendia dos
jovens de hoje bastava trocar umas palavras e uns beijos, e a cama era o
passo seguinte. Era assim para Isabella e eu queria que Andrew também
pensasse assim. Seria tudo tão mais fácil!
Por que ele tinha que ser tão teimoso? Inferno! Sim, eu devia deixar
que o levassem. Minha vida seria mais fácil. Sozinha. Eu sempre deveria ter
ficado sozinha, antes e agora.
— Pela deusa, eu não sei o que acontece que sempre acabo presa
com gente que só sabe me colocar encrenca, desde que voltei a esse mundo.
Primeiro Scarlet e agora você. Eu só queria ficar sozinha, tudo seria mais
fácil assim.
Abri meus olhos e fitei a tela que mostrava a loira bonitona gritando
horrores quando o monstro estava com as patas a centímetros de seu rosto.
Aí a imagem se cortou no meio como se o rolo do filme tivesse arrebentado.
Olhei aos casais se pegando nos carros ao lado, não havia mais
nenhum deles e uma escuridão caminhava lentamente em direção ao nosso
carro.
— Emma, o que está acontecendo? Está um pouco diferente das
vezes anteriores.
— Eu não sei. Fique perto de mim — clamei e tentei apanhar sua
mão, mas só alcancei o ar. Andrew, não estava mais ali. — Minha deusa, o
que eu fiz?
Eu não devia ter desejado estar só. Não era uma coisa que já quis
alguma vez, tudo que eu sempre quis fora acabar com minha solidão e
isolamento, pensei segundos antes de toda a cor dos anos oitenta
desaparecer.

A sombra não havia se aproximado, nenhuma vela havia se


apagado. Eu só trocara novamente para um cenário do meu passado,
perdendo o controle que eu ganhara para onde seguíamos. Acabara voltando
de novo ao tempo que eu vivia na Espanha e isso era uma grande merda de
fato. Fui tola o suficiente para pensar que estaria controlando tudo a ponto
que esses passeios pelo meu passado não se repetiriam, mas aquele lugar
tinha vida própria.
Não fora obra de Irene, Andrew foi removido porque desejei a
solidão e agora o lugar me mostrava o momento que desejei acabar com ela
de uma vez. As visões podiam ser manipuladas mesmo sem que as velas se
apagassem lá fora, como Irene fizera e me mostrara incendiando meu
vilarejo para convencer a Andrew quão cruel eu era.
Eu já sabia onde estava, mas não importava muito. Ainda estávamos
presos e eu temia o que teria que enfrentar ao sair daqui.
O pequeno alívio que me tomara de que poderíamos ficar meio que
tranquilos em algum ponto suave dos filmes, que eu aprendera a gostar de
assistir com Scarlet, esfumaçou assim como Andrew o fizera na minha
frente. Ainda tinha isso como meu pesadelo supremo, eu o perdera mais
uma vez.
— Não o vejo em nenhum lugar — Movi minha cabeça por aquela
paisagem e não havia sinal dele.
Esperava não ter lhe causado nenhum dano. Só fiquei com um
pouco de raiva e não controlei minha maldita boca.
Era como a primeira vez que ficamos presos no meu passado ou na
morte de Darío, eu não o via por perto até que ele tocara meu ombro.
Nada disso estaria acontecendo se ele tivesse colaborado, mas não,
tinha que ser cabeça dura, deveria ser outra parte dele que deveria conservar
esse estado de rigidez para que completássemos o ritual de uma vez. Mas as
coisas não pareciam que caminhariam tão fáceis. Não, claro que não. E isso
me irritara a ponto de querer fazê-lo desaparecer da minha frente.
Palavras tinham poder, e em especial para uma bruxa acima da
média como eu, e a garota burra aqui praticamente desejara que ele sumisse
ao querer ficar sozinha.
Custava que fosse um cara obediente? Aquele geek bobo e
conservador. Bem, outro estivera disposto a colaborar mesmo sem saber
muito bem o que fazia naquele dia há tantos séculos que eu fugira mais uma
vez para encontrá-lo.
Lamentei não ter deixado minha boca fechada, sabia que rompantes
de raiva não eram algo que eu deveria ter como rotina, embora eu não
negasse que faziam parte da minha vida.
Mas dando uma boa olhada no meu entorno e deixando um sorriso
mais atrevido que eu não admitiria ter escapado de meus lábios, o lugar que
me encontrava era mais familiar do que minha cela no inferno.
Andrew evaporar como fumaça tinha sido até que uma boa ideia não
planejada no final. Só considerando a inevitabilidade que acabássemos
nesse lugar que não tinha nada haver com meus pesadelos.
Nos tempos que eu me intitulava Livia, eu já estivera muitas vezes
por ali. E, certamente, seria melhor que Andrew não visse o que aconteceria
a seguir. É, não foi de todo ruim que ele tivesse desaparecido.
Podia ser que eu o tivesse mandado embora para casa e com um
golpe de sorte, talvez ele possa ter esquecido que alguma vez fixara seus
olhos na minha cara e nunca mais tirara. Não seria mau, me pouparia de
muitos problemas sem dúvidas.
O que estava dizendo? Não poderia ser uma benção parar justo
aqui.
Eu era uma mulher adulta naquele cenário, as ilusões resolveram ir
para o meu ponto fraco, sinal que logo o pior aconteceria. Ao menos as
velas deviam estar se acabando lá fora e logo eu teria um novo confronto
com Irene e de preferência no mundo real e não num lugar que eu duvidava
se falava com um fantasma ou não.
Lá estava eu, andando pelos campos com minha ingenuidade,
pensando que enganava Laura e que ela desconhecia minhas escapadas do
vilarejo. Por vezes, eu saía acreditando que confiavam em mim e que eu era
fiel a elas. Tantas outras vezes acreditei que era furtiva o suficiente para que
meus poderes disfarçassem minhas escapadas, enganando a mente de todos,
guardas e bruxas.
Eu nunca enganara Laura. Ela sempre soubera o que andara
fazendo.
E eu acreditando que projetara bem a ideia de que estava em meu
quarto, vivendo uma vida de clausura que me fora imputada desde a
infância.
Eu era uma mulher tola.
Mas havia valido cada momento e cada fuga.
Assim eu pensava, enquanto observava o sol se pôr mais a frente
numa campina coberta de flores de papoulas, sentada na grama verde e
sentindo-a sob meus pés descalços, a liberdade parecia a um passo de
distância e eu fingia que era forte o suficiente para consegui-la.
Mas eu não o era.
A angústia de ser obediente e cordata sabendo o que planejavam tão
logo achassem que eu estivesse pronta, eximia minhas forças, mais do que
um feitiço poderia roubar do meu poder alguma vez.
Ali naquele pedacinho de terra, eu poderia pensar que era isolado o
suficiente para que os moradores do castelo de Trasmoz não pudessem me
alcançar. No entanto, se eu me levantasse agora e começasse a correr ou
mesmo flutuasse pelo ar, seria capturada antes que o sol tornasse a nascer e
talvez meu futuro ingrato se apressasse em me tocar.
Laura não permitiria que eu fugisse, a matriarca do coven era
implacável. Lamentava desde que tomei consciência de meu destino que ela
tivesse me encontrado e não a outra menina que tivesse o mesmo poder que
pudesse ter penado no meu lugar. Contudo éramos tão raras quanto os
deuses que as amazonas uma vez serviram e herdaram seus poderes, antes
que ganhassem o novo nome que a sociedade as insultasse chamando-as de
bruxas.
Escondidas, sem grandes poderes, sem a proteção dos deuses, sem
reino e vagando por cidades a esmo até se assentarem em alguns poucos
lugares que eram bem-vindas em qualquer lugar do velho continente ou
além, desde que fossem aceitas.
O preço não importava.
Pouco da cultura fora mantida, o treinamento de combate e rituais
mágicos para alcançar outros planos. Ou mesmo, bem, não poderia de
esquecer que sugar almas das mais especiais e escolhidas pelos deuses, eu
no caso, que nasciam com uma aura maior. Eu era uma fonte de energia,
interessantemente, deliciosa que trazia boas perspectivas, nunca se sabia se
ao me consumir o coven estaria a um passo de alcançar a imortalidade dos
antigos.
— Quantas iguais a mim Laura absorvera para que se fortalecesse a
ponto de que ninguém pudesse derrotá-la? — Mordi minha boca com a
resposta morrendo no gosto ácido que provei de meu sangue.
Eu nunca saberia, a única coisa certa era que logo habitaria seu
corpo sem consciência e sem vontade própria como todas as outras que
vieram antes de mim para que ela e o coven viessem a viver mais alguns
anos com a juventude preservada.
Ao menos se não encontrasse um jeito de driblar esse destino,
considerando os livros que li às escondidas sobre a origem dos deuses eu
poderia ter uma chance.
Não eram pensamentos cheios de compaixão e auto sacrifício que
percorriam minha cabeça todos os dias, mas quem os teria quando o tempo
corria contra mim e tão logo eu desaparecia desse mundo para sempre.
Só amargurava ter caído nas garras da matriarca e planejava um
jeito de deslizar entre seus dedos para longe dali o mais longe que eu
pudesse, qualquer lugar serviria.
— Como se alguma vez aquelas bruxas tivessem tido consideração
comigo. — Agarrei um pouco da grama ao redor e arranquei com a raiva
que me tomava toda vez que pensava no coven.
— Eu não sou nada mais do que um maldito reservatório de energia
divina que elas estão loucas para sugar, como se fosse um favo de mel
suculento, mas que precisaram esperar que crescesse o suficiente para a
colheita.
Descontei nas plantas minha frustração e indignação, até que me
acalmei o suficiente para chamá-lo. Não gostava que me visse desse jeito.
Eu não o contara sobre todos os meus problemas.
— Eu convoco você, meu Darío.
Deixei minha voz abandonar meu corpo como um apelo sentido
pelo pouco tempo que teríamos antes que eu voltasse ao castelo, do que
uma exigência feita por um chamado mágico.
Abracei meus joelhos junto ao peito e aguardei sua chegada, até que
percebi minhas saias balançarem um pouco por uma suave brisa que
sacudiu as flores antes que uma luz negra tomasse forma e seus pés
tocassem as papoulas com cuidado, temendo quebrar seus delicados galhos.
Ele era tão cuidadoso, muito mais do que eu. Não que eu ligasse tanto para
plantas assim ou para qualquer outra coisa.
Me espantei que trouxesse suas asas negras abertas, ele as ganhara
há pouco, sinal de que ficava mais forte, mas em boa parte das vezes que o
vi, ele as tinha escondidas. Algumas vezes, Darío demorava um pouco para
atender meu chamado, mas ele sempre vinha a mim e isso me acalentava.
Ele viera mais rápido dessa vez, talvez fosse por isso que tinha as asas
abertas. Correra para me alcançar sem se preocupar com elas, ansioso por
me rever.
Eu esperava por um salvador quando menina, mas Darío acabou por
preencher as partes doloridas e carentes de afeto que eu escondia sob um
manto de frieza, e o desejei para mim, não mais pelos poucos minutos que
conseguia roubá-lo do inferno, mas para sempre.
— Num campo de flores, Livia? E se eu trouxesse alguma chama do
inferno comigo e queimasse tudo? — brincou ele, girando no ar em torno
de seu corpo, enquanto analisava o lugar que eu o chamei com redobrada
atenção.
— Não seria justo com as flores, mas eu queria vê-lo aqui hoje.
Mais uma vez ele me retirara do transe que me tomava todas as
vezes que minha mente buscava uma forma de salvá-lo, de nos salvar.
Se meu rosto estivesse franzido numa carranca em busca de uma
solução que me fugia, sua voz a desfizera totalmente. Tudo que eu ansiava
era sorrir para ele tocá-lo e mimá-lo.
Sua atenção estava sobre as flores, já meus olhos cobriam toda a
extensão de seu corpo, o peito amplo desprovido de qualquer pano que
escondesse aqueles músculos saltados e cheios cicatrizes novas e velhas.
Detestáveis cortes fundos cruzavam seu peito com o sangue guerreando
com o brilho do suor por tocar todas as reentrâncias dos músculos de seu
estômago, até que alcançavam os cordões finos que mantinham a calça de
couro agarrada àqueles quadris estreitos.
Deslizei meus olhos por aquelas pernas torneadas ressaltadas pelo
couro agarrado aos seus músculos, até que meus olhos se detiveram
naquelas botas pesadas enterradas no meio das flores e tive que conter um
gemido ao desejar que ele já estivesse sobre meu corpo.
Apertei minhas pernas unidas para conter a necessidade que
pressionava meu ventre de atraí-lo para mim e desfazer aqueles cordões
num único puxar, fixei meus olhos no sangue que derramava, a necessidade
amainou um pouco e se deteve quando meus olhos alcançaram os seus de
novo.
Seus olhos absortos em absorver tudo que podia desse mundo antes
que tivesse que retornar aquele maldito lugar entre o plano dos anjos e o
mundo humano, pairei meu olhar em seus lábios grossos apertados numa
linha fina que eram a prova da ansiedade que percorria seu corpo por
explorar aquele mundo, mas que nunca o faria.
Ele mirava o céu que já perdera muito da monotonia do azul e
vibrava no vermelho incandescente para tão logo alcançar o preto infinito
pontuado por luzes distantes. Como seria o firmamento no inferno, haveria
tal coisa? Ou era uma esteira negra por todo o tempo? Não que ele fosse me
dar alguma resposta. Ele nunca dava.
— Gostaria de dar uma volta? — ofereci. Tinha certeza de que ele
gostaria, mas não aceitaria. Isso não me impedia de insistir sempre que ele
vinha até mim.
Ganhara sua atenção e cheguei a ver o brilho de seus olhos
mudarem antes de sua costumeira resposta.
— Não.
— Tem certeza? Eu apreciaria um passeio com você.
— Não há nada que me agradaria mais, cariño[45]. Mas sabe tanto
quanto eu como é perigoso que me vejam por aí.
— É como qualquer outro homem, tirando essas asas passaria
despercebido.
Ele negou com a cabeça. Seu rosto mostrando a resignação que eu
detestava.
— Deixe disso, só as esconda e vamos.
— Encontra-se comigo às escondidas. Como poderia arriscar que a
vissem comigo? Poderiam te machucar e não suportaria nem mesmo que
lhe causassem um pequeno arranhão.
— Você sempre pensando em mim. Deveria pensar um pouco em
seus próprios desejos.
— Meus desejos estão reunidos à minha frente.
— E os meus envolvem estar para sempre ao seu lado.
— Sabe que não é possível, por mais que eu anseie o mesmo.
— Talvez fosse possível, em sua casa.
Suas asas retesaram junto aos seus ombros e toda sua postura me
dizia um grande não. Jamais permitiria que eu pisasse no inferno.
— Não diga tal coisa. Eu preferia morrer mil vez do que te ver me
seguindo até lá.
Puxei uma profunda respiração, também não me agradaria ir para o
inferno. Ainda mais como eu via seu corpo com constantes cortes e
contusões. Mas meu desespero só aumentava a cada dia que acabava por
permitir que ideias loucas corressem pela minha cabeça.
Apesar de ter ciência que o lugar não poderia ser outra coisa que
terrível, eu não sabia exatamente como era o inferno. Mesmo pelos anos
que me encontrara com Darío, ele se mostrava tão fechado sobre como era
seu lar, se assim eu poderia me referir ao plano dos demônios, e o que se
passava lá que não obtive muito mais informações do que eu já tinha lido
nos livros esquecidos por Laura em seu quarto.
Não era muito. Uma ou outra vez eu invadia o lugar em busca de
respostas. Mas eu tinha perguntas demais sobre tantas coisas, muitas além
do território de Darío, e pouco tempo para obtê-las.
Ele poderia esclarecer minhas dúvidas ao menos sobre o local que
morava, mas não o fazia.
Não podia culpá-lo, eu também escondia informações sobre o coven
de Laura. Darío só pensava que eram rígidas comigo, não tinha a menor
ideia do dano que me causavam ou que tão logo tomariam minha vida.
Eu só tinha uma certeza queimando em meu peito, Darío detestava o
inferno e eu só queria poder libertá-lo de lá, mas pouco podia fazer pela
minha própria liberdade que cheguei a pensar em me juntar a ele. Não me
importava com muita coisa nessa vida, contudo, me apegara a ele desde que
ainda menino eu o conjurara em minha cela. Enviado pela deusa para
aplacar meu ódio? Talvez.
Mas observando-o tão encantado por tudo que o cercava, Darío
poderia ser a única razão que faria me importar o suficiente para lutar a fim
de que nós dois fôssemos libertados de nossas prisões. Ele do inferno, e eu
daquele castelo que me parecia tão ruim quanto a prisão eterna das almas
podres. Havia muitas delas me cercando todos os dias naquele antro,
começando pela louca da Irene, passando por sua mãe e o senhor do castelo
com seus sentimentos perturbadores por mim.
— Tem estado bem? — Ele tinha seus olhos fixos em meu rosto
como se pudesse ver os segredos que escondia.
— Sim, estou sempre bem — menti. Meus segredos ficariam
guardados.
— Me parece um pouco abatida, cariño.
— É só impressão sua.
— Está bem — concordou, a contragosto. — Me conte quando
quiser, eu sei que seu coven exige muito de você, mas não aceitaria que te
causasse algum dano real.
— Não escondo nada — respondi um tanto perturbada que me
pegasse em minha mentira.
Mas acabei perdida em seus olhos que me alcançaram um instante
antes que seus lábios exibisse o sorriso que me tinha rendida, aquele mesmo
que me fazia desejar montá-lo mesmo que estivesse coberto de sangue e
suor.
Como eu podia ficar tão balançada assim?
Um simples conjunto de expressões faciais acusando os anseios de
um homem, algo que eu já vira tantas vezes lançados pelo senhor do castelo
e seus homens. Mas somente Darío tinha poder sobre mim, enquanto os
demais só me causavam repulsa.
Certamente nunca tive nenhuma reação por seus sapatos pontudos,
pescoços cobertos de babados enfeitados que quase os enforcava nem pela
aquela barba escura que parecia que um bicho peludo se assentara em suas
faces, padecera e ali descansava pela eternidade.
Engraçado era que Darío tinha uma permanente barba loira por fazer
tingindo sua face que nunca me causou repulsa e sendo franca me levava a
picos de excitação quando ele roçava seu rosto em meus seios durante o
sexo. Geralmente, era uma forma rápida de me ter rendida mais rápido.
Sim, aqueles pelinhos dourados nunca me causaram nenhuma aversão.
Bem, nem mesmo os pelinhos mais abaixo geravam qualquer
desamor de minha parte, a recordação de como ele era nu fazia minhas
mãos coçarem para alcançar aqueles cordões de suas calças e tê-las em seus
tornozelos em um rápido movimento.
Nunca havia tempo suficiente para embromações, não quando
podiam me alcançar a qualquer momento me perdendo nos braços de um
demônio que, ainda por cima, ganhara asas recentemente. Aquelas asas
eram um perigo, ainda viviam expostas quando se excitava, ele não as
conseguia fazer desaparecer nesse momento.
Poderiam vê-lo a uma boa distância se déssemos esse azar.
Certamente, ele estava dificultando as coisas com elas, mas eu não
reclamaria, era um sinal de que se tornava mais forte.
Voltei meu olhar para aqueles cordões tentadores, num movimento
de meu dedo e minhas mãos se enfiariam no cós de sua calça, roçando a
pele suave e quente, livrando-o da peça num gesto tão ágil como eu já o
fizera tantas vezes.
Sacudi minha cabeça numa tola tentativa de ordenar meus
pensamentos, quando o peguei parado um pouco acima de mim, as asas um
pouco arqueadas e me mirando como se eu fosse algo mais raro do que
qualquer coisa que houvesse nesse reino.
Minhas mãos se moveram para o meu cabelo o alisando e
enrolando, mostrando uma delicadeza e fragilidade que evitava a todo custo
com os outros. De fato, eu encenava a atitude algumas vezes no castelo,
mas aqui com ele, o farfalhar em meu peito guiava minhas reações e não era
algo que pudesse ou quisesse impedir.
— Me diga como é sua casa? Muito diferente daqui?
— É o inferno, Livia. Há fogo — foi sua resposta desavergonhada.
Ele brincava comigo. Homem mau. Será que não poderia me
conceder uma informação útil?
— Me lembro bem da vez que você afirmou que o inferno não é
como a religião humana prega, não há fogo e enxofre por todo lugar.
— Está bem, você está certa. Só é feio e sujo como sua própria
Trasmoz com gente com modos tão perversos quanto alguns que rodam por
aqui livremente.
— Acho que me sentiria em casa, então. — Sacudi meus ombros,
não me parecia fazer diferença uma troca de habitação.
— Livia, nunca fale uma coisa dessas.
Ele caminhara até mim com olhos angustiados e tocara minha
bochecha com uma mão trêmula, alisando-a com os nós de seus dedos e me
fazendo suspirar com o calor de sua pele, que causava fagulhas em minha
face e desciam pelo meu corpo.
Apanhei sua mão e a levei até meus lábios para um singelo beijo em
seus dedos e, em seguida, os introduzi em minha boca, sugando-os a ponto
que Darío deixou escapar um suspiro sôfrego. Ri com meus lábios ainda
pousados em seus dedos, aquele gemido sugeria que ele ansiava que eu
chupasse algo mais interessante, e eu ficaria feliz em fazê-lo.
Embora a tensão que emanava dele já me fazia lamentar que meu
homem não me daria essa chance essa noite, embora não podia estar mais
enganada.
Mas o que eu poderia pensar quando ele já brincava com os cordões
do meu corselete após tomar o controle da situação, ajoelhando-se diante de
mim, tomando meus lábios com força e enfiando sua língua em minha boca
sem me permitir uma réplica por seu avanço.
Bem, era uma resposta mais do que esperada e mesmo desejada
após minha pequena provocação.
Darío sugava meu lábio inferior, enquanto puxava meu decote com
força arrebentando um pouco as mangas do vestido e não pude conter um
pequeno grunhido de satisfação ao sentir o vento tocando meus seios livres.
Não era muito comum que eu tivesse essa oportunidade, dormindo num
quarto que se assemelhava mais a uma alcova e para piorar, sem nenhuma
ventilação.
Aproveitei pouco a sensação do vento brincando em minha pele, já
que quem o fazia agora era meu Darío, apertando meus seios com a pressão
correta que o arrepio nos montes se replicava diretamente em minha
intimidade. Precisava de algum alívio e me vi forçando-o que se sentasse,
pois assim eu poderia me apoiar em sua perna em busca de acalmar o
incômodo em minha virilha.
Mas isso só tornara a pressão maior, Darío se encontrava numa
posição confortável para que trabalhasse em meus seios, até que eu
implorasse por algum alento.
— Cariño, aguente mais um pouco, eu gostaria de chupar esses
peitos brancos como fez com os meus dedos antes de tomá-la.
Ronronei diante disso e movi meus olhos até os seus, sentindo o
rosto quente e o entorpecimento gerado por suas carícias, depois ganhei o
consolo de que logo o teria empurrando dentro de meu corpo.
— Me agradaria que me chupasse como fez ao meu dedo, mas só se
o desejar — sussurrou, não dando tempo para minha resposta e já tomando
um mamilo entre o céu de sua boca e sua língua, apertando e o lambendo
até que consegui articular meus pensamentos.
— Era tudo que eu queria — gemi alto em resposta.
Ele deslizou seu rosto por meu corpo, seus lábios sedosos em
contraste com a sua barba em meus seios provocando os arrepios já
conhecidos, fazendo-me ofegar e enfiar minhas unhas em seus ombros
quando sua boca alcançou seu destino, o seio que ele ainda não tomara.
Ele se demorou ali só para minha agonia, os movimentos rítmicos
aumentavam a intensidade vagarosamente até que pensei se poderia
suportar a tensão que se acumulava para agradá-lo antes de tê-lo por
completo profundamente enterrado em meu corpo.
Suas mãos passeavam pela minha pele queimando onde tocavam,
enquanto atormentava meus mamilos com suas carícias indulgentes, até que
suas mãos alcançaram minha bunda espalmando-as nela, sentindo as formas
redondas por um tempo em que seus olhos se estreitaram, parecendo gostar
muito da carne que apertava antes de me erguer e me posicionar melhor em
seu corpo.
Minhas saias erguidas até minhas coxas, meu corselete aberto por
completo e meus seios turgidos apontando para seu peito como se
quisessem tocá-lo e seu pau em minha entrada ansioso para me tomar.
Um sorriso satisfeito veio depois de um arfar de seu peito, Darío
devia ser percorrido pelas mesmas sensações que atravessavam meu corpo,
mas eu queria que ele sentisse mais e estourasse em desespero além dos
limites sob meu comando.
Só havia um empecilho para isso, eu já estava nos meus limites e
necessitava de algum alívio por menor que fosse. Darío percebeu isso e me
mimou com algum consolo ao meu corpo dolorido.
Podia sentir suas mãos brincando em minhas pernas por baixo das
saias, tocando-as delicadamente com as pontas dos dedos, até que chegou
ao ápice entre minhas coxas, afastando o tecido ali e invadindo com um
dedo sem cerimônia. Tentei fechar minhas coxas em torno desse dedo e
tomar tudo dele, mas ele me manteve no lugar.
Seu dedo me torturava com um lento movimento de vai e vem, me
sentia cada vez mais molhada e necessitada de mais pressão, mais urgência
e mais fundo. Mas Darío não parecia fazer caso de me dar o que eu
precisava e insistia em acariciar minhas dobras com movimentos delicados.
Ele alcançou meu clitóris e gastou seu tempo ali, deslizando por ele
sem pressa, enquanto sua boca voltara para meu seio a fim de igualar os
movimentos que fazia na minha boceta com o chupar lento de sua boca nos
meus mamilos.
Eu era uma massa trêmula que precisava da liberação, mas Darío me
negava, então lutei por ela, agitando-me contra ele, o movimento de meus
quadris se chocando contra o dedo dele a fim de cessar o pulsar entre
minhas pernas que só parecia crescer com suas provocações.
A aflição devia tomar meu semblante já que ele me imobilizara em
seu colo com apenas uma mão, repousara seu queixo em meu ombro e
mordiscara minha orelha antes de depositar beijos que viraram lambidas.
Eu não sabia se aquilo tinha a função de me tranquilizar ou
adicionar mais tensão, mas a resposta dele não tardou.
— Calma, corazón[46]. — Suspirou ele em meu ouvido, mas a calma
que pediu parecia ausente de sua voz entrecortada.
— Então, movimente-se — resmunguei, encarando-o e pressionei
sua mão por baixo de minhas saias contra meu centro.
— Como queira, mi amor[47]. Sabe que é minha dona.
Soltei uma risada cristalina com seu gracejo, lançando minha cabeça
para trás ao sentir minha entrada se contrair com mais um dedo que
avançara contra meu calor e se juntando ao outro na brincadeira de
escorregar dentro e fora de mim.
Aquela deliciosa provocação durou, até que finquei minhas mãos
em seus ombros e movi meus quadris, fodendo seus dedos com força e
tomando meu prazer de suas mãos, encerrando nosso entrave com um grito
alto que correu todo aquele campo.
Então me coloquei mais uma vez ereta em seu colo e sorri,
extasiada, alisando seus ombros que antes eu machucara num arrombo de
paixão não me preocupando que o deixaria marcado, mas o faria perfeito e
livre de qualquer dano que o causara.
— E você tem razão — sussurrei. — Eu te convoquei e uma bruxa
tem direito sobre tudo que traz a esse mundo.
Ele deu um sorriso de lado com a minha declaração.
— Sabe que também tem obrigação, correto?
— De mantê-lo sob minha proteção? Não há nada que eu queira
mais. — Alisei seu peito e me permiti apreciar aquelas formas perfeitas sob
minhas palmas. — Mas creio que esteja falando da obrigação de manter
suas necessidades plenamente atendidas e nada me faz mais feliz.
Minhas mãos deslizaram de seu peito até seu abdômen e,
finalmente, desamarrei suas calças, vi seu pau saltar para fora alcançando o
umbigo, mal podia me conter de tocá-lo. Adorava tudo que fazia parte de
Darío, mas a visão daquela ereção grossa com a ponta de seu pau rosado já
brilhando com um pouco de sua semente que escapava, me tinha rendida.
Ele bombeou seu membro entre seus dedos longos, até que capturou
minha mão e a envolveu nele, fazendo-me tomá-lo entre meus dedos, meu
toque em sua pele arrancou um gemido rouco de Darío, que se seguiu para
mais um quando desci minha boca sobre seu pau e toquei a ponta num beijo
suave em sua pele sensível.
Afastei minha cabeça e apreciei que ele crescia mais entre aqueles
pelos loiros, meus velhos conhecidos, então tornei a tocá-lo em sua base e
dando uma pequena lambida em sua cabeça, segui contornando-o lambendo
suas veias e ao perceber alegremente o tremer de suas coxas e o empurrar
de seus quadris involuntariamente em minha direção comecei a chupá-lo
mais rápido.
Seu corpo estava tão necessitado como o meu estivera e eu
precisava cumprir com os cuidados que eram justos ao meu demônio
convocado, então o tomei em minha boca e o envolvi com os meus lábios,
aumentando a pressão lentamente, enquanto minha mão acariciava sua
ereção e brincava com suas bolas uma ou outra vez.
Seu pau estava maior em minha boca, eu me esforçava para tomá-lo
sem que me faltasse o ar, quando senti suas mãos acariciando meus cabelos.
— Se não quiser que goze em sua boca, você tem que se retirar
agora.
Na falta de uma resposta minha, senti suas mãos apertando meus
cabelos com mais urgência e me mantendo no lugar, enquanto empurrava
seus quadris contra mim, seu pau encheu minha boca e foi cada vez mais
fundo em minha garganta.
Amava agradá-lo e não tinha intenção de parar de tomá-lo, então
aumentei a velocidade, até que se derramou em minha boca e engoli tudo
apreciando seu sabor.
Ouvi um grunhido escapando de seus lábios e sua mão nesse
momento passeava preguiçosa em meus cabelos mostrando o quanto ele
estava satisfeito e eu feliz que estava em dia com meus direitos e obrigações
de dona dele, assim me permiti um risinho brincalhão quando mirei aqueles
olhos carinhosos fitando meu rosto.
Um tempo depois já com a capa negra tomando o céu, eu me
encontrava sentada ao lado de Darío, enquanto apoiava minha cabeça em
seu ombro, tendo minhas costas acariciadas num deslizar constante de
movimentos sinuosos e uma mão apoiada em minha coxa.
Era aconchegante. Era a minha casa.
Deixei escapar um suspiro de contentamento e me aninhei mais ao
seu corpo, sentindo a suavidade das penugens de sua asa sobre meu ombro
num toque protetor.
Seus olhos fixos no horizonte e seus pensamentos pareciam ainda
mais longe, eu gostaria de invadi-los para que somente eu tomasse vida
neles, até que seus olhos me vissem mesmo quando eu não existisse mais
nesse mundo, uma marca permanente e inapagável.
Tomei a mão que repousava em minha coxa e a levei aos lábios,
tocando-a num beijo carinhoso. Meus olhos tomaram seu tempo nas linhas
finas avermelhadas e brancas que cruzavam seu dorso, ela estava tão
retalhada como seu peito.
Seu maldito pai se esmerava em espancá-lo no inferno.
Toquei sua palma, os calos altos de tanto erguer uma espada não
eram muito diferentes de minhas próprias mãos que ficaram maltratadas
com o treinamento exigente herdado das antigas amazonas.
— Esteve em um embate? — indaguei, enquanto massageava suas
palmas com meu polegar.
Ele gastou seu tempo em apreciar o gesto, seus olhos se fecharam e
se concentrou em meus cuidados com uma parte tão machucada sua, não sei
se era mais suas mãos ou sua mente.
— Creio que ambos estivemos em um há pouco. — Ele abriu os
olhos e sorriu me lembrando nosso interlúdio logo após sua chegada.
Eu dei um pequeno sorriso, diante de seu flerte, que se expandiu em
um amplo ao vê-lo virar minhas palmas e as levar a boca, beijando ambas.
Era sempre assim já há alguns anos, Darío chegava e eu me lançava
sobre ele querendo aproveitar cada segundo que tínhamos juntos, unindo
nossos corpos numa ânsia que parecia que restaurávamos nossas almas
partidas em pedaços por nossos carcereiros antes que precisássemos voltar
às nossas realidades despedaçadas.
Libertei uma de minhas mãos e alisei aquele cabelo loiro rebelde
cheio de nós, seu dia devia ter sido atribulado num esforço para não virar
uma massa de carne nas mãos de seu pai.
— Pareço muito destroçado hoje para que te cause tamanha
preocupação? — Ele ergueu minha mão até sua bochecha onde a manteve
ali segura como se aquele simples contato fosse todo o consolo do mundo
que precisava.
— Sinto dizer que sim. Me parece mais quebrado do que em
qualquer outro dia.
Cortes decoravam sua pele, o brilho do suor cobria seu peito,
misturava-se ao sangue e ambos evaporavam de sua pele, parecendo exalar
mais tensão do que já via alguma vez nele. Sua aura vibrava em tons da cor
da lava dos vulcões, parecia a ponto de explodir a qualquer momento.
Se eu pudesse canalizar essa fúria toda que corria pelo seu corpo,
alcançaria a cidade mais próxima em poucos minutos. Não compreendia
como ele podia ser tão doce comigo com sua aura tão perturbada e em
revoltada como se encontrava.
Toquei gentilmente seu peito e a resposta que recebi, foi um gemido
de dor o que me levava a culpa de tê-lo usado tão vigorosamente sem me
atentar que ele poderia estar com dificuldade mesmo de respirar.
Virei-me para seu rosto e quis chorar, aqueles olhos sempre me
fitando com mais amor do que eu esperava receber de qualquer pessoa, eu
não sabia como poderia reconhecer tal sentimento, visto que só me
recordava de tê-lo visto em sua face.
— Você me chamou num mau momento, acabara de receber minha
dose de correção diária, ou como meu pai diria: O treinamento que me fará
reinar no fogo, na terra e no ar.
— Levaria séculos ou milênios para que sua alma concentre tanto
poder a ponto de tomar seu reino. Precisaria se sobrepor a todos os
demônios, esse reino ou o dos anjos, mesmo sendo mestiço e carregando a
força de mais de uma raça em si não é algo que me pareça mais do que o
delírio de um demônio.
Observei suas feridas e ansiei que o vento levasse embora a sua dor,
senti-o tocar minha pele sob meu chamado, brincando com meus cabelos e
dançando em torno de mim, até que o apanhei e concentrei sua energia na
ponta de meus dedos e a transferi para o corpo de Darío a fim de fechar
imediatamente suas feridas.
Ele fez uma cara de dor ao ter seu corpo reparado, uma coisa que
revelava o quanto está ferido ou simplesmente nem sentiria minha magia
trabalhando nele.
— Fale isso para Baltasar — resmungou. — Vive dentro de um
delírio que teria uma cria mais poderosa do que qualquer outra criatura que
habitasse o inferno, se misturasse seu sangue ao de uma bruxa como minha
genitora.
Tomei seu rosto entre minhas mãos e senti sua barba picar minha
pele, segurei aquele olhar deprimido que ele sempre tinha quando falava de
sua mãe e dos planos de seu pai. Eu queria apagar toda aquela dor, mas
como não podia, ao menos queria substituir essas memórias pelas minhas,
que se fixasse em meus olhos e alcançasse o conforto que precisava.
— Criar a arma perfeita para alcançar os céus e transitar livremente
entre os humanos com esse rosto bonito que sua mãe te deu com perfeitas
dimensões. — Já ouvira esse amargor tantas vezes que o sabia salteado. —
És tão belo que me parece com as estátuas gregas que vi dos deuses antigos
nos livros da matriarca.
— Estou abaixo dos deuses, cariño.
— A mim me parece melhor do que eles — fiz uma pausa em que
pensei nas possibilidades —, você vai fazê-lo?
— O quê? Continuar sendo espancado ou vir aqui sempre que
consigo obedecer à sua ordem? — flertou ele, ansioso para mudar de
assunto.
— Dominar tudo? Algum dia?
— Eu espero que ele morra antes. — Bufou, chateado. — Talvez
isso aconteça, ele diz que me falta muito mesmo para alcançá-lo, então só
torço que a profecia de minha genitora seja só uma lorota que contou para
tentar evitar sua morte.
— Eu sinto muito.
— Não mais do que eu, Livia. — Suspirou. — Mas no fim acho que
isso tudo seja uma tolice, não me parece que eu seja grande coisa assim.
Nem mesmo consigo sumir com essas asas com facilidade.
Ele arqueou suas asas em frustração.
— Não diga uma coisa dessas a ele, nunca! Ouviu bem? — Agarrei
sua mão sobre a grama e a apertei tão forte entre as minhas que temi reabrir
seus cortes.
— Não direi, Livia. Ainda tenho senso de autopreservação.
— Eu não poderia suportar que o matasse por falta de serventia.
Continue vivo, é tudo que peço.
— É o que eu tenho feito todos os dias desde que tomei minha
primeira respiração naquele mundo.
— Encontrarei um jeito para que seja liberto do inferno.
— Prefiro que não se meta nisso e permaneça segura. — Darío me
puxou para seus braços, mantendo-me agarrada a ele num carinho apertado.
— Está na minha lista de tarefas.
— Pare com isso, mulher. Não te quero metida com demônios.
— Mas eu adoro me meter com demônios. — Estalei um beijo em
sua boca e só consegui uma cara contorcida em preocupação.
Ele apoiou seu queixo em minha cabeça e ficou assim por um
momento.
— Não entendo o que um cara do meu tamanho poderia ser útil a
um demônio de pele escamosa e brilhosa como o fogo que os humanos
julgam ter no inferno.
— É agora que você diz: Seu corpo é tão grande e largo, tem mais
músculos em um braço do que tenho em todo meu corpo. Ele precisaria se
abaixar para passar numa porta em seu vilarejo, então fique longe dele —
imitei a voz de Darío e seus alertas sobre o monstro que era seu pai na
tentativa de me afastar de meus planos.
— Exatamente. — Beijou minha testa como se eu fosse uma criança
com uma boa atuação ao imitá-lo.
— Estou farta disso. — Apoiei minhas mãos em seu peito e o
afastei, mas acabei por mantê-las repousadas nele.
— Não me importo que se chateie. Desde que fique segura.
Mirei ao dorso da minha mão em seu peito, minha pele tão fina e
clara diante da sua um pouco mais dourada e curtida pela brutalidade
imposta.
Me sentia fraca.
Ele me considerava assim e Laura também. A matriarca poderia me
exaurir se o quisesse, mas por ora se contentava em me torturar. Eu só
estava viva porque uma pessoa morta não poderia ser consumida e eu teria
que alcançar tal destino sumindo aos poucos enquanto todo o coven
roubaria minha força vital para se fortalecer.
E eu querendo me oferecer para enfrentar seu pai, sendo que não
podia lidar nem com os meus próprios problemas. Mas aquilo não podia
continuar, não podia permanecer assistindo-o sendo retalhado desse jeito
sem fazer nada.
— É como me sinto aqui, me chamam de rainha, mas meus poderes
não se comparam aos da matriarca.
— Ao menos lhe tratam como família, apesar de que me dói que sua
proteção necessitou de tanto isolamento a ponto de você conjurar um
demônio para te fazer companhia.
Darío lamentava pelas falsas palavras que contei, estava ali refletido
não só em sua voz trêmula que se desfazia do valor de sua companhia, não
quando ele foi o responsável por manter minha sanidade por anos e no seu
rosto contraído sofrendo pela minha dor.
Infelizmente, essa era maior do que ele imaginava.
Ele não sabia exatamente a situação que me encontrava, até porque
nunca contei. Darío desconhecia que aquele coven que eu imaginava ter me
roubado de algum lugar, era doente e tão diabólico como seu próprio pai.
Eu devia ter falado a verdade, mas me calara.
Como poderia fazê-lo quando ele vivia um inferno ainda maior do
que o meu? Literalmente, ele estava no inferno e sendo torturado pelo
próprio pai. Ao menos Laura não era minha mãe, apesar de que nos meus
momentos mais frágeis eu cogitei tal horrenda coisa, pois só queria me
sentir pertencendo a algo. Essa vontade cessou, enfim, quando Darío
adentrou minha vida, ele bastava e não necessitava de mais nada.
— Você sabe como os três mundos foram criados, não somos tão
diferentes como pensa. Humanos, demônios, bruxas, os anjos e mesmo os
deuses viemos da mesma luz inicial que dividiu os reinos...
— Somos todos feitos da mesma coisa, apesar de que devem ficar
separadas — completou ele a minha fala. — Separados. Me pergunto se
seria válido para nós.
— Nunca para nós, eu não poderia viver sem você. — Depositei
minha cabeça em seu peito e ele envolveu minha cintura com seus braços,
suas asas me cobriam como num casulo quente e íntimo.
— Nunca a nossa união.
Ele encostou sua testa na minha e eu deslizei minha mão por seu
pescoço, até tocar seu queixo com cuidado, virando seu rosto para mim para
que eu focasse aqueles belos olhos cor de oliva, tristes e embaçados por um
véu de lágrimas que Darío nunca derramava.
— Você tem razão, há motivos para que cada coisa fique em seu
lugar — disse, já visualizando que um dia acabaríamos por nos separar não
importava o que falássemos aqui, como de fato aconteceu.
— Não se engane, mesmo que acredite na divisão dos mundos, eu
pretendo trazê-lo para cá um dia, em definitivo.
— Sabe que não deve.
— Eu o farei, não tenho certeza de como ainda, mas me livrar de um
certo demônio é tudo que penso — afirmei, convicta. Eu o faria antes que
não estivesse mais aqui. — Você desejaria vê-lo cair e tudo que desejo é
que possa ajudá-lo a apressar o destino de Baltasar.
— Livia, me emociona que se ofereça para matar meu genitor, mas
ele ainda é meu pai.
Abaixei minha cabeça, era demais pedir que ele cometesse
parricídio, por mais que o outro fosse só um monstro que não lhe
demonstrava nenhum amor, só a dor.
— Garantirei que não precise se envolver nessa parte.
— Livia! Não faça algo assim... você não deve sujar suas mãos —
disse, sua voz num tom duro. — Ele é forte demais, acabaria morta.
— Não há nada que você diga que possa mudar minha cabeça e
crescendo no inferno, não pode me negar que a violência seja a única saída.
— A violência é a única resposta. — Sorri para ele, acreditando que
chegamos a um consenso, enquanto Darío me encarava com olhos estreitos.
— Mas eu não quero isso para você.
— Ainda bem que convoquei um dos bons. Onde está o suposto
demônio mau que deveria me corromper? Não é isso que a religião humana
diz? — brinquei, aproveitando para mudar de assunto.
Embora minha indagação não fosse nada mais que verdadeira, ele
era um meio demônio, mas havia mais bondade nele do que em mim. Em
seu lugar, eu pediria que matasse a todos, sem exceção. Mais de uma vez
me vi tentada em requerer seu apoio para que eu pudesse deixar aquelas
bruxas e aquele castelo, mas não colocaria aquele peso em seus ombros.
Até porque, Darío já tinha problemas demais para carregar, omitir algumas
coisas dele fora o melhor que pude fazer.
Suportaria mais um pouco até que eu mesma pudesse conquistar
nossa liberdade.
— Tire esses pensamentos de sua cabeça — ele me recriminava por
meus planos.
Estavam feitos, eu não planejava mudar minha mente, então afastei
meu corpo dele ressentida, pois era nítido que ele não aceitava meu apoio.
Mas fui puxada e espremida contra seu peito, enquanto ele massageava
minhas costas como se tentasse acalmar a um animal selvagem pronto para
atacar as ameaças contra seu dono.
E ele dissera que era o contrário, ele que me pertencia. Mas Darío
estava enganado, ou talvez pertencêssemos um ao outro.
Eu apreciei a massagem, mas minha mente continuava a trabalhar de
maneira frenética em pensamentos sobre minhas últimas leituras.
—Você não gostará de perseguir esse caminho. Eu já estou muito
nele e sei do que falo.
— Não estou pensando em nada — menti.
— Sei...
— É verdade, mas sim penso em uma coisa. — Mordisquei meus
lábios e me inclinei para Darío num mudo convite que foi aceito
prontamente por ele.
Meu amado cobrira minha boca com a sua em um beijo profundo
que me roubou um suspiro de contentamento.
Senti sua língua invadindo minha boca, exigindo tudo que era dele
para tomar, sem resistência alguma de minha parte. Amava aquele demônio
desde sempre, embora só há pouco tínhamos avançado em nosso
relacionamento. Caminhando do jeito bom, com sua boca lambendo minha
garganta e causando arrepios em minha espinha.
— Ah, Darío...
Ao meu chamado, ele me puxou para mais perto dele, colando
nossos corpos, uma de suas mãos em meu cabelo e a outra apertava minha
bunda por baixo da saia, meu corpo estava totalmente envolvido pelo dele.
Podia sentir suas asas em torno de nossos corpos como um abrigo
onde gostaria de me esconder para sempre.
Ele precisava ser meu, não só nesse momento, mas todos os dias que
viessem depois.
Esse anseio piscou na minha mente quando senti seu quadril
pressionando contra o meu e sua ereção evidente tensionando contra minha
entrada sobre as camadas de tecido. Ofeguei com sua presença intrusa e me
esfreguei um pouco contra ele, permitindo que o calor da fricção entre
nossos corpos queimasse ainda mais a ansiedade que ardia em meu ventre.
Atingira o clímax há pouco, mas não o tivera dentro de mim e isso
devia ser remediado. Ele não poderia ir embora sem que me desse esse
prazer. Não quando eu nunca sabia se poderia encontrá-lo no dia seguinte
ou no outro. Era sempre incerto conseguir ou não escapar do castelo. Havia
sido uma semana boa, essa já era a terceira vez que o convocava, mas não
podia continuar nesse ritmo sem levantar suspeitas.
Um suspiro chateado escapara dos meus lábios ao me relembrar de
que não poderia trazê-lo até mim no dia seguinte. Mas não havia nada que
eu pudesse fazer, além de aproveitar o momento como pudesse e eu o faria.
Arrepios tomavam meu corpo e eu mantinha meus olhos fechados,
minhas mãos pousadas em suas costas, a sensação de seu toque percorrendo
todo meu ser e a de seus lábios pousando sobre os meus de novo, sua língua
mergulhando em minha boca antecipando o que ele faria entre minhas
pernas.
Aquela imagem flutuando em minha mente me arrancou um gemido
e parecia que a ideia também se fez presente em Darío, já que no segundo
seguinte me vi curvada sobre as flores, suas hastes incomodavam minhas
costas, mas não me importei, pois naquele ângulo eu devia ser uma bela
visão aos seus olhos.
Era isso que eu via em sua face, arrebatamento.
Ele trabalhava com agilidade nas fitas do meu espartilho,
terminando por afastar a peça e desnudar meus seios que se viram mais uma
vez libertos de qualquer cobertura, mas não ficaram assim por muito tempo.
Tão logo a boca de Darío substituiu o tecido, chupando-os até que os bicos
ficaram eriçados e eu à beira do meu limite, esfregando-me nele, enquanto
empurrava sua cabeça firmemente contra meus seios.
Darío afastou um pouco minhas mãos e encarou primeiro meus
peitos que se erguiam para ele, acompanhando minha respiração acelerada e
depois meu rosto que devia estar em brasas considerando a quentura que eu
sentia em minha face.
— Mais do que o dia que eu possa deixar o inferno, eu gostaria que
chegasse o dia que eu a tome em uma cama macia.
— As flores estão boas para mim.
— Não para mim, machucam suas costas. Suba em mim hoje.
— Ah, eu gosto de sentir o peso de seu corpo sobre o meu.
— Já o fizemos assim ontem e há muitas pedras aqui, você iria se
machucar — comentou depois que seus olhos percorreram o campo
analisando o terreno e já me erguendo sobre ele, mantendo-me cativa. —
Venha para o meu colo.
Acomodei-me, a contragosto, com minhas pernas escarranchadas
sobre ele.
— Tão teimosa, minha Livia — sussurrou em meu ouvido e estalei a
língua em revolta. Seria mais divertido tê-lo se eu pudesse sentir toda a
extensão de seu corpo sobre o meu. — Não faça essa cara, não é
confortável no chão.
Ele me acomodou melhor em seu colo e removeu por completo a
parte de cima do meu vestido, apalpando meus seios com cuidado, mas
vendo que eu não desfazia a carranca em minha face, tomou-os com a boca
e os sugou com vontade, e cada provocação de sua língua em meus seios
inchados desmanchava um pouco da minha tola resistência me deixando no
mesmo estado de abandono de antes que ele me mandasse me erguer sobre
ele.
Apoiando-me em seus bíceps, joguei minha cabeça para trás,
permitindo-lhe amplo acesso ao meu corpo, oferecendo não só meus seios
como minha garganta ao seu prazer. Sua boca se tornou ainda mais audaz
em suas carícias, explorando meu corpo sem descanso. Seus dedos
começaram sua busca por baixo das rendas de minha saia alcançando,
enfim, seu objetivo e puxando todo o pano que impedia a sua entrada.
Dei um gritinho quando senti que me penetrava com um de seus
dedos e me agarrei em seus ombros, determinada a me manter sentada em
seu regaço permitindo sua exploração.
— Dói?
— Um pouco, mas o prazer é maior — gemi a resposta. —
Continue, por favor.
Mais um dedo se juntara ao primeiro deslizando em meu interior,
Darío levou seu tempo em me agradar com seu toque tomando cada vez
mais profundidade em suas investidas, até que o prazer fora tão imenso que
cheguei a soltar seus ombros e tombar um pouco para trás, mas fui
amparada por sua mão em minhas costas me segurando com cuidado.
— Está muito molhada e não posso esperar mais.
Ele se retirou da minha intimidade, deixando-me com a insatisfação
do abandono, só para que meu ventre se contraísse em antecipação ao vê-lo
chupar seus dedos molhados e me excitar mais do que pensava que seria
possível.
— Preciso tomá-la agora.
Minha resposta foi um gemido ansioso que se seguiu de um arfar ao
sentir que ele me levantava e me descia sobre seu membro ereto,
preenchendo-me por completo.
Darío começou me abaixando e descendo sobre ele com leves
invertidas de seu quadril, mas a velocidade aumentara num ímpeto
crescente, até que eu saltava sobre seu membro e me agarrava com força em
seus ombros para que não caísse com as vigorosas estocadas que me
erguiam de seu colo.
— Darío, por favor — balbuciei incapaz de formar uma frase
lógica.
— Por favor, mais?
Não consegui responder, me manter respirando já estava sendo um
esforço tremendo, mas ele entendeu meu silêncio como um muito mais e foi
isso que ele me deu.
Seus quadris ganharam um ritmo louco que me marcaria para
sempre, eu nunca esqueceria aquela noite.
— Oh, céus! — murmurei, à medida que estava presa no delírio do
orgasmo avassalador que tomou meu corpo me levando a enfiar minhas
unhas em seus ombros desnudos.
Caí sobre ele, pressionando minha cabeça em seu peito na tentativa
de recuperar o fôlego. Percebi que seu coração batia tão acelerado como o
meu, apesar do aparente controle que ele colocara em sua voz durante todo
o ato.
— Eu não pertenço aos céus, Livia.
Eu tive a certeza disso quando o senti voltando a se movimentar
ainda dentro de mim, dessa vez cruzei minhas pernas, fortemente, em torno
de seus quadris na tentativa de manter o controle da situação, mas fora
inútil.
Darío continuava a ditar os movimentos que, dessa vez, foram
calmos e doces, acompanhados por beijos delicados em minha boca.
Estocadas profundas e lentas substituíram a loucura anterior, mas
abalaram meu corpo com a mesma intensidade que os movimentos
frenéticos tinham nublado meus pensamentos.
Ele nunca me tomara com tanta vontade, parecia que sentia que
nossa separação se aproximava com o andar da noite.
— Te quiero[48], Livia. — Ele me amava, sua declaração fez lágrimas
brotarem dos meus olhos.
Eu não podia desabar assim, o amava tanto que estava desesperada
que meus planos dessem certo.
A satisfação veio lenta dessa vez, meu corpo debilitado, pelos
excessos da anterior, recebeu seu gozo quando eu estava prestes a perder os
sentidos. Tão saciada me encontrava que desabei contra seu peito mais uma
vez, apoiando-me nele como se fosse minha âncora no mar de abandono
que ele me deixou.
Minhas pernas ficaram ligeiramente doloridas no esforço de me
manter posicionada sobre ele.
Caímos exaustos sobre aquela cama de flores com a respiração
acelerada e o cheiro do sexo que inundava meus sentidos. Ansiava por
repetir nosso enlace, mas sabendo que não haveria tempo, deixei que minha
cabeça descansasse em seu peito e minha mão acariciasse seu estômago.
— Promete que vai ser só meu? Me assegure que será somente meu.
Farei que dê certo. Só mantenha seus olhos só para mim e me ame para
sempre.
— Isso é um feitiço? — Ele erguera uma sobrancelha loira e muito
desconfiada.
— Nunca vai saber se eu não disser — brinquei, dedilhando meus
dedos em seu peito.
— Não precisa usar dessas estratégias comigo, como poderia haver
outra? Mesmo que nossas condições não sejam boas, eu te amo desde que
éramos meninos. Só você, Livia, e para sempre.
— Não sou tão forte para induzir seus pensamentos — lamentei,
enquanto fazia um beicinho e encarava seus olhos. — Embora nada me
agradaria mais — desconversei, não queria enfatizar a parte de ser um
feitiço, porque de fato o era.
— Eu prometo.
Dei um amplo sorriso com isso, logo em seguida tomei seus lábios
em um beijo voluptuoso decretando minha posse sobre o único que desejei
entre todos os machos humanos ou demônios.
O beijo terminou num abraço que se desfez quando ele se levantou e
vestiu suas calças. Eu subia meu vestido, exibindo um sorriso matreiro nos
lábios e ideias conspiratórias rondando minha mente.
— Sabia, fez um feitiço.
— É certo que saiba, embora não consiga forçá-lo a muitas coisas,
você aceitou de bom grado a sugestão, então está feito. Não é um feitiço
qualquer, marido. — Gargalhei segurando meu espartilho, enquanto
escondia meus seios de seu olhar sabendo que ele adoraria remover a peça
novamente, mas deveria regressar ao seu reino.
— Estamos casados? — A pergunta foi mais por curiosidade do que
por qualquer outra coisa, seu semblante mostrava surpresa e não aversão ao
nosso enlace.
— Você prometeu me amar para sempre, e para sempre será. Nunca
terá ganas de tocar em outra. Considere isso como um cinto de castidade,
um bem preso. — Mordi meus lábios com a satisfação preenchendo todo
meu ser, nunca outra poderia tê-lo.
Ele meneou a cabeça enquanto terminava de ajustar suas calças em
seus quadris e dera um sorriso de lado, diante das minhas exigências
ciumentas, mas não me detive.
— Se sentirá mal e a culpa o consumirá a ponto que tudo que veja
seja o meu rosto, caso se atreva a tocar os lábios de outra mulher, então o
advirto, mantenha-se na linha — terminei minha fala, erguendo meu
queixo. Eu, uma jovem bruxa, ambicionando intimidar um meio demônio
alado filho de um dos senhores do inferno.
Eu tinha coragem, não havia dúvidas.
— Não era necessário. Livia, nunca te trairia. Mas que assim seja,
esposa. Só espero poder viver contigo um dia.
Ele caminhou até mim e aproximou sua boca de meus lábios
voluptuosos, o encontro de nossas línguas renovou o desejo que não havia
sido saciado por completo e teria que aguardar outro momento.
Toquei seu estômago e removi a energia que depositara em seu
corpo, os cortes em seu peito tornaram a abrir e Darío se levantou para
regressar ao inferno, assim como viera, machucado, sangrando e um pouco
mais suado do que chegara.
Ele não poderia aparentar ter se curado tão rápido ou suspeitariam
que ele tivesse alguém que cuidasse dele e viriam atrás de mim. Não que eu
temesse o que viesse, porque enquanto ele voltava para sua prisão, eu
voltava para a minha.
Naquele dia mais tarde, eu era espancada no salão do castelo, até
que queimei o vilarejo inteiro.
E minha vida havia sido uma grande merda com alguns momentos
de respiro, só que o cenário começava a perder a cor novamente e outra
mão de longos dedos apertava meus ombros. Não pude deixar de morder
meus lábios ou deixar que meu coração pulasse no peito ao me virar e dar
de cara com aquelas sobrancelhas loiras franzidas e aqueles olhos de menta
estreitados. Sua mão em meu ombro parecia muito pesada e apertava um
pouco demais como se quisesse reforçar sua posse.
Não havia dúvidas, Andrew vira todo meu interlúdio com meu amor
do passado e era óbvio que não gostara nada disso.
E isso era uma merda.
Me encontrava de novo em um carro e o pior, era eu que dirigia,
freando e acelerando, sem saber exatamente muito bem como fazê-lo.
Talvez nunca aprendesse a dirigir. Não houvera tempo para isso antes, com
tantas coisas que eu tinha que aprender nesse mundo que se tornara tão
diferente de quando o deixara. Sorte a minha que aprendi inglês ainda no
inferno com a minha carcereira ou teria sido mais uma coisa que teria que
lidar.
É a língua dos negócios, minha amiga. Se um dia escapar, vai
precisar dela.
Camilla estava certa.
A vida teria sido ainda mais dura se eu tivesse chegado a esse país
sem nem mesmo falar inglês. Infelizmente, não tive tempo de aprender a
dirigir, bem era impossível numa cela e aqui não tivera ninguém que me
ajudasse com isso. O carro dava trancos que me assustavam e o volante era
duro de girar, mas medo mesmo eu tinha do pisar duro de Andrew pela
calçada que eu perseguia ao seu lado.
— Entre no carro — falei, ele me ignorou e o carro deu um tranco
perigoso, e me vi contraindo o corpo com medo que subisse pela calçada e
o machucasse. — Andy, entre no maldito carro!
— Por que eu deveria? Está interessada em me pegar com falsos
pretextos ou em mostrar alguma cena pornográfica com algum dos seus ex?
Só para que eu fique sabendo o que esperar.
Ótimo! Sacudia as mãos ao falar e estava a ponto de me mandar à
merda. Sabia que ficaria estressado, mas o que eu poderia fazer se caí justo
naquela lembrança.
— Não, tem outro ex. Darío foi o único — falei, e o vi apertar sua
boca até formar uma linha fina. Que beleza! Ficara mais zangado. Estava
agindo como um animal irracional.
— Um amor insuperável, né? Eu percebi só pelo quanto você se
animou em montá-lo.
Ele tinha um ponto. Um muito bom. Eu não diria isso em voz alta,
mas Darío não era só um cara.
— Andy, foi há seiscentos anos, não seja infantil! Nenhum cara hoje
reclamaria da existência de ex-namorados.
Eu gritava com Andrew, mantendo um olho nele e um na rua, já
acreditando que bateria aquela droga a qualquer momento. Aparecemos
dentro desse carro em outra cena do nada e ele descera de imediato.
E começara o show! Com um carro em movimento e eu no volante,
uma combinação um bocado estranha. Ainda bem que estava devagarzinho
ou teria amaldiçoado Andrew por ter descido assim. Não, eu não devia
jogar pragas nele, porque pegavam de verdade. Mas ele poderia ter se
machucado, droga!
Acabou que não tive outra escolha do que tentar dirigir, tentei
desligar a chave, mas não funcionara. Eu não estava sob o comando ali,
pelo menos não consciente, e aquilo não era uma lembrança minha.
Definitivamente, não teria recordações dirigindo, mas parecia outro filme
que eu já assistira. Mirando aquelas construções sem graça, o visual da
cidade parecia a Cartersville, uma versão antiquada dela se ela já não era
bastante assim.
— É, mas não precisava vê-los no ato! — berrou ele e eu mordi meu
lábio inferior. Era compreensível sua reação, mas não era hora para surtos.
— Me acusar de ser machista é fácil, mas homem nenhum iria adorar
assistir à namorada trepando com outro cara.
Alguns gostariam, mas se eu falasse isso para ele, era capaz de
nunca mais olhar na minha cara, então optei por morder minha língua e
mantê-la bem segura. Não gostaria de provocar tanto assim ao meu puritano
acompanhante.
— Bom saber que sou sua namorada, pois só me lembro de
trocarmos flertes até agora. Mas acredito que não terá problemas de
corresponder com sua a parte no ritual de abaixar as calças para a sua
salvação.
— Emma, você não existe. — Andrew levara a mão à fronte numa
tentativa de aliviar a dor de cabeça que eu, certamente, estava lhe causando.
— Tanto existo que tem uma maluca obcecada atrás de mim
dedicada a me torturar. — Bufei. — Você devia entender que tudo que
acontece nesse lugar tem a função de me machucar.
— Eu até entendi isso, mas...
— Todas as ilusões que ela mostra, nossos sentimentos e todas as
cenas que participamos só tem uma função: me destruir — murmurei a
última parte, eu já estava destruída.
— Eu sei. Entenda que sou louco por você e dói. E aquela criatura
alada não é qualquer cara, né? Você matou seu vilarejo inteiro por ele —
resmungou.
— Darío morreu, então deixe-o em paz. Você viu o que fizeram com
ele. — Trinquei os dentes relembrando o pior dia da minha vida, aquele que
despertei tarde demais e o deixei queimar. — Achou que eu teria piedade?
Pensou errado.
— Mas não precisava matar a todos.
— Antes você não se importou tanto e até me justificou. Mudou de
ideia, só porque está chateado e eu virei a vadia malvada, é isso?
— Não ponha palavras em minha boca, Emma.
— Você está colocando-as sozinho.
Ele me encarou feio e parou de andar. E graças a deusa, o carro
também. Pena que a porta se recusava a abrir do meu lado.
— Entenda uma coisa, todos estavam numa torcida para que o
demônio queimasse! Uma multidão inteira! Tinham mais euforia dos que os
torcedores de futebol da Universidade de Miami e isso é muito — rosnei,
sentindo a repugnância queimar em meu estômago.
— Emmie... — Ele voltou a mostrar um rosto piedoso de bom
rapaz, melhor assim.
— Eles não o conheciam. Não sabiam nada dele, mas urraram
pedindo sua morte com ele todo maltratado do jeito que estava.
Andrew suspirou e pareceu se condoer ainda mais pela minha dor,
pelo menos foi isso que senti quando esfreguei o dorso da minha em meus
olhos tentando afastar as lágrimas. Eu não podia desabar, quem nos tiraria
dali se eu o fizesse? Ninguém.
Ele precisava de mim e eu tinha que ficar inteira de novo.
— Gente que acreditava em monges... esses mais interessados em
meter medo e cobrar mais impostos quando desconfiavam de pagãos numa
vilazinha. Não, meu coven não era boa coisa, mas todo aquele povo
também não.
— Emmie...
— Meu coven se aproveitou da situação, foram eles mesmos, os
pagãos, que denunciaram a mim e Darío, uma forma de se livrarem de
muitos problemas. — Desviei meus olhos para o teto do carro e bufei ao me
lembrar como tolas foram. — O erro delas foi achar que meu vínculo com
ele me permitiria manter seu poder pra mim ou até mesmo canalizar o
inferno após sua morte.
— Emma... alguma vez se arrependeu?
— Se me arrependo? Eu não sou boa o suficiente para isso. — Dei
de ombros antes de continuar. — Minto, eu me arrependi que Trasmoz
queimou rápido demais.
— Não creio que seja tão má quanto diz.
— Não crie falsas ilusões, você mesmo me comparou A Bruxa Má
de Oz e de fato eu sou como ela, e queimarei Irene na próxima
oportunidade.
Ele franziu suas sobrancelhas e eu percebi que errei no meu roteiro.
— Lembro de vê-la com chamas subindo por suas pernas quando
caímos naquela versão da casa de sua irmã. Mas você diz que não tem mais
esse poder.
Eu não precisei responder e foi um alívio, concedido pelo meu
pesadelo ambulante, mas que me dera um susto de morte. Um raio cruzara a
cidade e acertara o prédio um pouco atrás de Andrew. Apertei o volante
com o pavor que me tomou, pensei que tivesse sido atingido antes de olhar
a traseira do carro pelo retrovisor e perceber minha detestável inimiga
flutuado numa nuvem de raios e avançando rapidamente atrás de nós.
— Andy, entra no carro agora! — exclamei e não admitiria um não
como resposta.
Se ele se recusasse, eu o puxaria e o ataria ao banco à força, mas não
fora necessário, Andrew se sentou resmungando como um péssimo menino
malcriado, mas ao menos estava adquirindo uma qualidade positiva, a
obediência.
Pisei no acelerador e orei a deusa que eu não enfiasse aquele
maldito carro na parede mais próxima. Cantei pneus e voei pelas ruas da
cópia de Cartersville com uma bruxa má no volante e outra ainda pior atrás,
numa caçada impiedosa.

Estava a 120 km por hora numa rua de 40 km no meio de uma


cidadezinha empoeirada, teria sido melhor que essa nova ilusão fosse fruto
de algum filme antigo de cidade grande que eu tivesse adorado. Ah! Acho
que Procura-se um rapaz virgem [49]seria adequando a história que eu
contara a Andrew. E o melhor! Boa parte se passava em Los Angeles, ótima
cidade para se passar despercebido e com um mar de carros para que
pudéssemos nos esconder no trânsito.
Mas não, pelo capô do carro, estávamos sentados numa aberração
vermelha circulando numa cidade que mais parecia com a Fallwell onde a
Elvira[50] fora parar. Coisa que parecia uma maldição das bruxas.
Sempre presas em cidades pequenas onde ninguém as entende!
Prédios de variações de bege e rosa corriam como vultos por nós e
éramos um perfeito alvo chamativo! E claro, éramos o único na mira
daquela vaca já que não havia mais ninguém a vista.
Pelo menos, eu não precisava me preocupar em atropelar ninguém.
Embora eles não eram reais mesmo, só ilusões. Mas o pessoal parecia tão
verdadeiro que eu temia que pisasse no freio se avistasse algum bom
morador de cidadezinha atravessando a rua sem qualquer cuidado e a vaca
nos pegasse.
— Ai, o chafariz! Droga! — gritei.
Virei o volante com violência, batendo meu corpo na lateral do carro
e o raspando no cimento da construção a ponto de sair fagulhas.
— Emma, firme a droga do volante! — berrara Andrew ao se ajeitar
no banco após ter se chocado contra mim. — Assim vai nos matar!
— Se eu pudesse fazê-lo, eu o faria — retruquei, tirando os olhos da
pista e o carro deslizou um pouco arrancando um grito tão fino da boca de
Andrew que eu não pensei que fosse possível, mesmo com esse jeitão meio
geek dele.
Sorte que minha distração e má condução evitou um raio de Irene,
dei uma olhada de esguelha no retrovisor, fiquei satisfeita que não éramos
nós a cratera que ela abrira na estrada.
— Você não sabe dirigir — constatou, parecendo atônito. — Eu
devia ter imaginado que por isso não tinha alugado um carro para voltar
para casa.
Agora que ele percebeu? Era óbvio que eu não sabia. Qualquer um
perceberia já pelo jeito que eu o acompanhei pela calçada.
— Surpresa! — Arregalei os olhos para ele e bufei antes de virar o
carro com toda minha força numa esquina. — Bruxa velha aqui com muito
a aprender.
— Só nos mantenha vivos e eu te ensino a dirigir — murmurou ele,
segurando a porta do carro com tanta força que os nós dos seus dedos se
tornariam brancos desse jeito.
Sua outra mão agarrada ao painel do carro me lembrou do nosso
acidente na estrada antes de chegarmos à verdadeira Cartersville.
Acelerei o carro, visando nos manter vivos para que ele cumprisse
sua promessa. Parecia bobo que me deixasse empolgar por Andrew estar
fazendo planos para nós depois daqui, até porque há pouco ele tinha
discutido comigo. Ele nem imaginava como estivera fazendo papel de bobo.
— Oh, deusa! — O para-brisa do carro fora atingido por
pedregulhos e o vidro se rachara, senti o volante escapando de minhas mãos
com o susto e bem diante de outra cratera que se formara com os raios de
Irene na frente do carro.
Iríamos para o buraco, literalmente, com o carro derrapando daquele
jeito. Minhas mãos tentaram pegar o volante, mas as de Andrew foram mais
rápidas, virando-o para a direita com tanta força que subimos o meio-fio
numa curva tão fechada que por pouco não batemos numa padaria na
esquina.
— Falei para segurar firme o volante, essa deveria ser sua primeira
lição ao dirigir — Andrew retrucou, mas eu estava grata que ele tomara o
controle da situação, dessa vez ao menos.
Eu realmente precisava aprender a dirigir, mas preferia que minhas
lições se dessem num tráfego intenso a uma ruazinha perdida numa
dimensão paralela com uma bruxa voando atrás de mim. Mas não podíamos
ter tudo e eu, com certeza, sabia que não podia desejar nada assim.
A deusa da sorte não abençoara meu nascimento. Era certo que
Fortuna[51] não cruzara meu caminho.
— Por que mandou ela para o inferno, afinal?
— Eu ia mandá-la para onde? Para o céu? Eu teria anjos vindo atrás
de mim.
— Anjos não seriam melhor do que ela retornando do inferno mais
forte? Não passou pela sua cabeça que ela poderia pegar o colar com a alma
das bruxas?
— Não mesmo, como eu poderia imaginar que ela derrotaria um
demônio como Damián? — resmunguei. — Você não sabe nada desse
mundo, devia se ater às suas revistinhas infantis e, a propósito, os anjos não
são como você pensa.
— Minhas revistinhas são +14, não são infantis.
— Ah, está certo! Agora entendo por que ficou tão revoltado em
assistir uma cena +18. Nunca viu um pornô antes?
Virei o carro bruscamente em mais uma curva, estávamos andando
em círculos pela cidade. Isso não acabaria nunca, não enquanto a vela em
torno da gente lá fora não se apagasse. Ela vinha se mantendo acesa desde
que brigamos no outro carro, minha pequena passagem pelos gramados da
Espanha com Darío fora só por estar zangada com Andrew.
Uma forma de me recordar o que já perdera uma vez e poderia se
repetir.
— Cacete, Emma! Eu fiquei revoltado da mulher que eu amo estar
nela.
— Ama? — Me virei para ele com olhos arregalados e me
distraindo de todo o cenário de Abracadabra[52] com Velozes e Furiosos
[53]
que estávamos.
— Desde que pus meus olhos em você no campus no primeiro dia e
eu sei, isso é estranho.
Ele me mostrara a língua diante de sua fala que parecia tão bizarra,
mas meu coração estava doendo tanto que ele nunca poderia imaginar
quanto.
Eu vou tirar Andy dessa. Eu juro pela deusa.
Mas com um pouco de sorte terminaríamos o que começamos
naquele motel barato de estrada aqui mesmo, nessa dimensão esquisita. Eu
só precisava despistar Irene.
Merda! Era só pensar na mulher que ela melhorava seus tiros, um
raio atingira a traseira do carro, o que nos empurrou para frente e Andy
batera o rosto no painel. Sangue escorria pelo seu rosto, seu supercílio
estava cortado e eu estava de saco cheio.
Freei o carro, bruscamente, abri minha porta e a bati de volta com
fúria sobre os gritos de Andrew que eu voltasse para o carro. Que
maravilha! Nesse momento eu que não queria entrar naquela merda e ele
que gritasse quanto quisesse. Melhor ainda que parecia que estávamos indo
para o ápice dessa ilusão, já que o carro me obedecera, parara e me deixara
descer, finalmente.
Lancei meu braço em direção ao veículo e o envolvi com uma
redoma feita de ar circulando numa velocidade tamanha que repeliria boa
parte dos ataques de Irene. Não duvidava que ela o tentasse acertar só para
me atingir. Não o fizera com Scarlet e sua família? Matara os pais da garota
e a traumatizara de tal maneira que eu nunca mais poderia chegar perto
dela.
A vadia nem se importara em tentar me deter de libertar a menina.
Irene já conseguira o que quisera, tirar a família que eu pensei ter e me
fazer afundar em culpa.
Eu amava Scarlet e adorava o desobediente dentro do carro, ela não
o tocaria. Mas pagaria pelo que fizera a minha irmã.
Irene ficara paralisada no meio da rua flutuando no meio da névoa,
dedilhando seus dedos pela parte baixa do seu queixo com unhas tão
enormes que mais pareciam garras negras. Ela precisava de uma manicure
urgente, Isabella diria e eu teria que concordar, embora não curtisse tantos
cuidados estéticos como minha amiga.
A lembrança da delicada e ingênua Isabella veio a minha mente e
mordi os lábios de preocupação. Se eu não detivesse Irene aqui, ela seria o
próximo alvo da fúria da bruxa.
Eu não podia falhar. Isabella e Andrew era tudo que me restava.
Eu não podia perder mais ninguém.
Corri pela rua mirando a cabeça de Irene, enquanto deslizava e
saltava entre os raios que ela tentava me acertar. Andrew devia estar tendo
um bom show de dentro do carro, algo que, provavelmente, ele sonhara ao
ler suas revistinhas no escuro em seu quarto, enquanto se entretinha de
outra forma, uma bem masculina.
Eu só esperava que apreciasse o evento e não estivesse chorando
apavorado. Ele já tivera muita emoção e parecia que estava longe de a noite
terminar.
Não pude evitar de dar um meio-sorriso sobre isso quando saltei
para o lado a fim de escapar de um raio, girando todo meu corpo como uma
estrela flutuando no ar e desviando do ataque seguinte para mirá-la bem
naqueles olhos algozes numa provocação direta.
Tente me pegar se é tão boa assim, afinal, você tem um colar cheio
de bruxas e eu minhas mãos vazias.
Corri ao encontro de Irene, saltando com meu braço flexionado
protegendo meu rosto, mas mirando no dela.
Eu gastara um bocado da minha energia quebrando seus ossos no
último confronto, eu não podia gastar mais numa batalha aérea, tão pouco
poderia usar muito aqui de qualquer forma. Mas não a venceria usando
aquele colar no meu estado, mas poderia aguentar até a vela se apagar lá
fora. Então, a bruxa precisava vir ao chão para ser abatida e nesse momento
ela estava nele.
— Ora, levante-se logo, Irene. Vamos brincar, minha querida
perseguidora lunática — falei enquanto pousava diante dela com minhas
pernas flexionadas para aplacar o choque contra o concreto. Nesse instante,
vi Irene caindo de costas batendo a cabeça no asfalto.
Irene se levantou em um único movimento, sentada com as pernas
abertas em um ângulo estreito e o vestido rodado tão velho como nossa
antiga vida, erguido até seus joelhos, expondo suas meias e sapatos de bico
fino, verniz noite. Ela tinha um sorriso forçado em sua cara tão maníaco
quanto do Coringa[54] e eu temia que a doida tivesse atingido novos níveis
de loucura perseguidora.
Coisa que eu tive certeza quando ela começara a gargalhar,
histericamente, com uma voz tão desafinada como as crianças poderiam
imaginar que era uma bruxa de contos de fadas, algo bem mais fácil de
lidar, mas Irene era o meu pesadelo e de fada ali não havia nada.
A mulher parara de rir de repente e me encarara, como se ela que
tivesse toda a razão ali e eu fosse a grande malvada da história. Eu queimei
uma cidade até derreter as rochas do castelo com a murada e tudo, sim. Eu
matei todos os cidadãos de bem, humanos ou não, também. Tinha
arrependimentos? Claro que não, pois tive meus motivos. Me forçaram
aquilo no dia em que me levaram para aquele lugar e fizeram planos para
mim.
Encerraram seu destino no dia que mataram a Darío.
Ah, mas heróis não fariam aquilo.
Então que seja, não estava pedindo as honras por meus feitos. Só
escapar de tudo e seguir vivendo.
Então se eu estivesse em uma jornada para ser uma vilã, foda-se. Eu
não dava a mínima para isso. Ela podia me ver como quisesse.
— Livia, eu sempre a via mexendo nos livros de minha mãe e
murmurando sobre os deuses e que eles te ajudariam. Você era especial para
nós, sabia? A última luz dos deuses para o sustento do seu povo, mas nos
virou as costas por um homem.
— Sustento? Você fala de me consumir? Os deuses não criaram
gente como eu para ser abusada e perder a vida para que outras possam
seguir vivendo.
— Você tem certeza? — Nunca a vi sorrir tão sádica como naquele
breve momento. — Tem certeza de que leu os contos nos livros antigos?
Faziam barbaridades, mas você ainda rezava para eles.
— Eu rezava para a protetora das amazonas.
— Artêmis não era tão boa assim, quase que nos leva a extinção,
desaparecendo e não nos liberando do voto de castidade. É impossível que
possamos nos reproduzir sem sua permissão, mesmo que quebremos com
nossa promessa. — Seu rosto formou uma carranca enquanto se levantava
do chão. — Todos desapareceram e só nos mantemos vivas graças as
migalhas de poder que continuam nascendo por aí como você.
— Se desapareceram, vocês deviam ter aceitado seu destino e
partido com eles.
— Somos o que restou deles, devemos manter as tradições.
— Para que assegurar o legado dos deuses se os odeia por terem
desaparecido? Não faz sentido, só queriam era manter suas vidas egoístas a
qualquer preço. Mas talvez não precise manter nada, alegre-se, Artêmis está
viva ou ao menos estava quando permitiu que sua mãe te tivesse.
— Ela não pode estar viva, não nos responde — murmurou, a
descrente Irene, padecendo por não querer aceitar essa verdade.
— Como você poderia ter nascido se ela não tivesse liberado sua
mãe? Ela te teve muito depois que os deuses deixaram de ouvir a seu povo.
Mas a deusa deve seguir aceitando juramentos e nos liberando deles, apesar
de não dar muita importância a nossas vidas miseráveis.
— Ela tem que estar morta! — rosnou Irene.
— Entendo o ressentimento do coven, eu tenho a minha própria
raiva guardada, mas ainda acredito que não desejariam o mal que me
alcançou.
Podia ser que alguns deuses estivessem mortos, mas boa parte deles
deviam estar ignorando nossos chamados. Olhei de relance ao carro,
Artêmis tivera piedade algumas vezes de mim e deixara Laura parir essa
coisa à minha frente quando nenhuma amazona engravidava. E pensar que a
vida de Irene foi para mim como uma garantia de que os deuses estavam
por aí e uma das coisas que me deteve de matá-la, tive receio se eles
aprovariam que eu tenha espancado a única criança que nascera em seu
povo. Então, ao menos decidi poupá-la no passado.
A deusa estava viva em algum lugar e podia haver outros por aí, e
eu não queria maldições sobre mim, se tivessem algum carinho por aquela
coisa que me atormentava. Ainda éramos criaturas dos deuses, apesar de
termos trocando de nome com o tempo, de amazonas, guerreiras gregas,
relegadas a palavra bruxa que não passou de uma ofensa ao poder que os
homens não desejavam ver em mulheres, mas não puderam fazer nada para
nos destruir por completo. Tentaram nos matar, no entanto só conseguiram
nos difamar até que aceitamos o cargo da palavra e nos tornamos o que eles
temiam, o nome que nos amaldiçoaram, bruxas.
— Eles eram maus — murmurou Irene. — Não, eles são maus,
doentes, perversos, são monstros! Ou não nos abandonariam, somos suas
crias.
— Você é má, eu só má... somos todos maus! — exclamei, ao girar
no lugar e dar vazão a minha própria dose de loucura —, porque somos
humanos. Mas não sou feita de pura crueldade e não acredito que todos os
deuses sejam assim.
Se desaprovariam minhas ações como ela me acusou, não fazia
diferença para mim.
Virei minha cabeça de lado e espalmei minhas palmas para cima,
depois ergui meus ombros em sinal de que não estava nem aí mesmo.
— Não, eles não são confiáveis. Como pode acreditar neles e ir
contra nós? Cuidamos de você?
— Não esbarrei com eles por aí para julgá-los, mas encontrei seu
coven, ou melhor, fui capturada e torturada desde pequena. Está enganada
se pensa que tenho uma fé cega, não confio em ninguém. — Apertei meus
punhos ao relembrar minhas orações não atendidas. — Só tentei a sorte e
busquei qualquer ajuda que pudessem me dar para destruir você, sua mãe e
todas aquelas bruxas.
— Eles abandonaram você! Para que qualquer um se aproveitasse!
Seu discurso faz tão sentido como o meu, nenhum!
Irene se levantou aos tropeços, pisando na saia e caindo para frente.
Corri até ela puxando-a pelos cabelos, afinal, ela precisava de ajuda para se
levantar. Devia estar com um pouco de dor de cabeça pela queda e decerto
precisava de um pouco de ajuda para piorar.
— Verdade, mas eu sobrevivi, estou aqui. Alguém deve gostar de
mim por aí e está ao meu lado, mas se não estiver, tudo bem. Eu posso
ajudá-los a extinção de vez.
Irene tentou se afastar assustada que eu ameaçara mesmo a vida dos
deuses, mas eu a mantivera firme em meu aperto. Pensando bem, não
estaria muito longe de um feito desses, com um pouquinho de poder do
inferno talvez fosse possível. Ninguém mandou que me dessem a
capacidade de canalizar energia, qualquer que fosse, e ainda me deixassem
a solta por aí sem nenhum cuidado para que não perdesse a cabeça.
Não os amaldiçoava, mas os abandonei algumas vezes. No dia que
fiz o contrato com Damián, virei as costas para eles.
Se eu tive uma vida de merda, foi também pelo pouco apoio em me
proteger de gente louca como o coven da Laura. Eles foram como se
poderia dizer pais relapsos que seriam castigados se resolvessem atravessar
meu caminho do nada.
É, seriam penalizados sim. Por mim.
Minha mão abriu contra minha vontade libertando Irene, o soco que
recebi na bochecha esquerda fora o culpado, enquanto delirava com a
possibilidade de matar alguns deuses. Aparentemente, cheguei à conclusão
de que eles eram meio que culpados da minha desgraça. Eu precisaria de
explicações para isso ou distribuiria punições, talvez fosse de bom-tom
caçá-los quando eu tivesse um tempinho livre.
— Sabe, você não deixa de ter razão. Onde se escondera Artêmis,
afinal? Não viu no que suas amazonas se transformaram?
— Vejo que começa a pensar — comentou Irene, afastando-se
cuidadosamente.
— E os outros deuses? Maldosos ou não. Algum deus da magia
devia se responsabilizar pelas bruxas, independentemente de nascerem
numa tribo de amazonas ou não? Não acha? — disse, aproximando-me a
cada passo que Irene se afastava.
— Não ligam para nós.
— Verdade. — Assenti, ao abaixar minha cabeça e relaxar meus
ombros. — Mas isso não te dá o direito de me caçar, né?
Ergui a minha cabeça e sustentei seu olhar, firmemente.
Certeza de que a deusa estava viva em algum lugar. Como pudera
permitir que a irmandade que constava nos livros e a proteção contra a
maldade dos homens se convertesse no que encontrei com o grupo de
Laura.
Trocamos de nome, de amazonas a bruxas. Mas não deveríamos ter
trocado de pele também.
Não era certo que caíssemos no mesmo nível daqueles que tentaram
nos destruir, nos rebaixamos a atuar como os homens e não podíamos mais
ser consideradas amazonas, ainda que orássemos aos mesmos deuses. Nossa
independência cerceada por acordos com homens que não nos davam valor,
isso era contra tudo o que nosso povo foi no passado, mas a perda dos
deuses levara meu povo a esse fim.
Elas mesmo praticavam as crueldades e se alinharam a qualquer um
que lhes desse um teto. Eu nem mesmo nascera ali, mas ainda assim sofrera
por ter cruzado o caminho delas. Se meus poderes foram mesmo
concedidos pelos deuses, eu não devia estar sob a responsabilidade deles?
Esses delírios ficariam para depois. Precisava cuidar das
perturbações imediatas como Irene me apanhando pelos quadris numa
tentativa de me arremessar contra um dos prédios mais bregas da cidade
todo em rosé. Eram iguaizinhos aos de Cartersville real e sempre me deram
vontade de vomitar.
Não curtia nem mesmo a cor rosa, se tivessem dado outro nome,
mas não, tinha que ser o mesmo da maldita flor. Seria um péssimo final
acabar esmagada contra uma construção assim e lançada por uma mulher
que fedia a rosas, como sua mãe e todo o coven, uma cabeçada bem dada e
eu estava solta.
Irene lançou um raio em direção ao carro de Andy em retaliação,
mas esse foi repelido pela barreira que eu deixara e arremetido ao céu. Eu
não deixara barato, acertei um soco em seus estômago e ela caíra de
joelhos. Mas a maluca era tão insistente que se reerguera no instante
seguinte, já me pegando novamente. Nesse momento, temendo pela vida de
Andrew voltara meus olhos rapidamente para o carro o que lhe deu a
oportunidade de envolver seus dois braços em minha cintura e me remover
do chão. Ela corria me carregando com destino a mesma parede que eu me
esquivara antes.
Ah, mas ela não me arrebentaria mesmo, aquela vaca. Bati várias
vezes com meu cotovelo contra sua clavícula, mas fora inútil para afrouxar
seu aperto, então meti meu pé na parede assim que a alcançamos e a usei
como uma alavanca, impulsionando meu corpo, girando minhas pernas no
ar sobre a cabeça de Irene e atingindo o solo do outro lado.
Avancei para cima da maluca, querendo quebrar aquele maldito
rosto, mas ela pôs uma mão sobre o colar em seu pescoço absorvendo a
energia das bruxas de seu coven e com a outra deteve meu punho com
facilidade, apertando-o tanto que pude ouvir os ossos ameaçando se partir, a
dor era tamanha que pisquei por um segundo.
Ao reabrir meus olhos, pude ver a tempestade dos meus nos dela.
Eles haviam se convertido em prata luminescente e meus cabelos formavam
uma cortina agitada ao meu redor.
Não tinha jeito, eu precisaria usar um pouco de magia.
Não podia mover os dedos da minha mão dolorida, o inchaço não
permitia, a pressão a que fora submetida foi demais, eu certamente quebrara
alguns dedos ou todos. Ela os apertou mais quando mirou meus olhos e os
viu se enchendo da força que eu precisava para aquela batalha.
— Correntes dos quatros ventos me alcancem com a força da
tempestade — ordenei que se unisse ao meu punho livre que lancei contra
Irene, o estrondo que se fez a seguir me arrancou do aperto que me impunha
e a arremessou longe.
Levei minha mão até a outra machucada e a envolvi, concentrando
somente as energias curativas do vento de oeste, senti-a queimando a seguir
com a velocidade que fora curada. Não havia sido agradável, mas eu podia
mover meus dedos novamente.
Meus olhos se mantiveram sobre Irene mesmo, enquanto me curava
temendo o contra-ataque. Ela se ergueu sobre suas mãos, mas permaneceu
sentada, a maldita parecia ter dificuldade de se pôr em pé, seus braços
tremiam e ela escorregou algumas vezes retornando seu rosto ao chão.
Sua roupa se rasgou no abdômen deixando a saia ampla pendurada
por tiras finas do que sobrara da parte de cima do vestido que mais parecia
um top. Seu vestido estava em frangalhos, que não podiam agora tampar os
cortes profundos e sangrentos que meu ataque causara em seu corpo.
— Resolveu parar de brincar, Livia? — Ela me encarou com um
deboche que não podia esconder sua debilidade pelo meu ataque. Era só
bravata.
— Nunca estive brincando. A gente só brinca com quem gosta.
Seu abdômen não parecia tão definido como no passado, uma pele
enrugada cobria sua barriga. Ela devia usar algum feitiço na face para
esconder sua idade, mas seja lá o que fez para sobreviver pelos séculos,
consumindo almas humanas talvez, não funcionou muito bem. Esse era o
motivo pelo qual estava usando pouca magia nessa batalha, ela já tinha
usado muita em sua perseguição e a consumiria mais do que golpes físicos
se persistisse nesse caminho.
Fitei a mão que eu curara, lisa e sem machas, entendi o porquê
caçavam gente como eu. Eu tinha o colar dos humanos comigo no inferno,
mas não o usei para me manter jovem. Havia algo na minha descendência,
realmente, abençoado pelos deuses.
Eu conservei minha aparência jovem, mesmo tendo passado
centenas de anos numa cela podre.
Talvez eu fosse a única como eu que tivesse vivido tanto, sendo
caçada pelo coven de Laura, e provavelmente por outros, muitas não
deviam ter tido a oportunidade de viver tanto. Sim, deveria ser a que
sobreviveu por mais séculos.
E devia prestar a atenção na luta se quisesse continuar assim, Irene
me alcançara e chutara meu estômago, me curvei em dor e ela socou meu
queixo. Não me detive pelos golpes seguidos e avancei, alcançando e
apertando seu ombro, detendo-a. Logo virei seu braço para trás com força e
a puxei, até que ela estivesse de costas à minha frente, envolvi meu braço
em seu pescoço e ela esganiçou pela falta de ar dado o aperto, mas eu só
apertava mais e mais.
Ela fincava aquelas garras em meu braço, tentando se soltar, o
sangue vazava de minha pele cobrindo a frente de seu vestido, mas não a
libertava. Uma cotovelada em minhas costelas foi sua tentativa desesperada
de escapar.
E eu a arremessei no meio da estrada.
Reuni em meus dedos meu poder e lancei uma forte corrente de ar
que a lançou ao alto, atingindo um outdoor com a propaganda de uma
garrafa de Coca-Cola retornável de vidro.
Bem típico dos anos oitenta e aquele filme se encerrava.
Irene não fora derrotada, mas devia ficar inconsciente por um
tempo. Eu contara sete velas lá fora e a luz se apagou junto com a última
delas.
Logo estaríamos em outro cenário, um não mais controlado por
Irene.
Depois de tudo, era hora para contar a Andrew onde estávamos de
fato. Eu descobrira assim que ele desaparecera do carro na primeira vez.
Mas depois que o reencontrei, ele não me dera nem uma chance de falar a
respeito e ele precisava saber. Afinal, Andrew dissera que me amava e
estava junto comigo nessa coisa toda.
— Como você consegue comer depois de sair no pau com aquela
mulher? — Andy me olhava, embasbacado, e eu continuava a encher minha
boca de canapés.
— Eu preciso nos tirar daqui e preciso de forças, embora isso tudo
não faça muito sentido dado onde estamos. — Dei de ombros e abocanhei
mais alguns folhados em uma mordida. — Mas estou cansada e com fome,
então pela minha tranquilidade mental me deixe comer.
Ele coçou a cabeça, contrariado, e franziu a testa em desgosto.
— Eu ia ter perguntar exatamente isso, onde estamos? — disse num
tom alarmado que era uma sorte que o povo ali continuava nos ignorando.
Suspirei e minha mão alcançou a concha do Ponche, eu precisava de
uma bebida. Claro que aquela gente continuava nos ignorando, revirei meus
olhos ao relembrar da minha descoberta. Deveria contar a ele sobre isso,
mas ao menos eu queria uma dança antes.
Não fiquei muito surpresa, eu devia ter imaginado que Irene não
manteria um lugar como esse sozinha, mesmo com o colar das bruxas ela
não teria habilidade para tanto.
Estava tranquila que poderia sair daqui, até que a minha confiança
me deixara. Minha mão tremia ao ouvir um som metálico ao longe, era
como se estivessem estapeando uma lataria. Estranho. Irene já estava de
volta? Não era possível, mal a tinha expulsado daqui. No estado em que se
encontrava, ela necessitaria ao menos de um pouco mais de tempo até voltar
a atacar.
Mirei a Andrew, mas ele permanecia parado aguardando minha
resposta com os braços cruzados no peito. Ele não parecia ter ouvido nada.
Não devia ser grande coisa. Talvez só um defeito naquela dimensão.
No entanto, fora uma perturbação que me fez derrubar um pouco do
ponche que enchia minha taça e acabei por melecar minha mão toda.
Nenhum guardanapo por perto, ah, não teria problema em limpar na minha
saia por mais bonita que fosse. Nunca usara nada igual aquilo, um vestido
que a parte debaixo abria numa grande roda e cheio de pregas, feito do
tecido mais brilhoso e macio que eu já usara.
— Mais tarde te conto, mas agora vamos dançar.
Eu o arrastei para a pista e um globo espelhado começou a girar bem
no centro refletindo uma luz dourada nos casais sem rostos que rodavam e
agitavam seus braços no ritmo de Holiday da Madonna que vibrava pelo
salão.
— Emma, não é hora para isso.
Ele tentou escapar, mas o peguei pelo braço, o girei e o posicionei à
minha frente, me colando junto a suas costas e o apertei tanto como se
nunca mais fosse soltá-lo. Movi seus quadris com as palmas de minhas
mãos para que ele pegasse o ritmo da coisa antes de saltar à sua frente
pronta para guiá-lo pela pista.
— Não tem melhor hora. Você queria um encontro e está num baile
escolar típico dos filmes velhos que eu gosto, então vamos agitar na pista e
depois o fazê-lo em outro lugar.
— Você é incorrigível e assisti a mais filmes do que eu.
Eu o puxei pela mão e o joguei para o lado, Andrew rodou até que
diminuí a distância entre nós até alcançar meus braços, então o lancei longe
novamente, afastando-o do meu corpo, só para trazê-lo pra mim de novo.
Logo o curvei para trás, segurando-o no maior estilo comédia romântica,
mas aqui eu fazia o papel do cara e a expressão de Andrew não parecia mais
do que chocada.
— E forte — ele murmurou.
— Amazona lembra? E cheia de ponche e aquele estava batizado.
— Ri pondo-o em pé de novo e suas mãos foram para minha cintura.
— E isso é tão estranho! — Suspirou ele. — Me conte um pouco
mais sobre essa história toda, já que estamos fazendo uma pausa.
— É simples, Andy. Você viu sobre a divisão dos reinos.
— Vi e preferia desver. Foi quando você estava com seu amor do
passado e eu novamente como um fantasma preso naquela cena, resignado a
assistir.
— Não vamos começar com isso de novo.
— Não estou começando nada, mas é detestável que toda vez que
você o encontra, eu desapareço.
— Andy, por favor...
— Está bem, serei razoável.
Respirei fundo e resumi a criação do universo.
— No início de tudo, não havia nada, só o caos. Um dia, ele se
agitou e o brilho que subiu criou o reino dos anjos, o fogo que desceu deu
vida ao inferno e o que ficou aqui no caos brotou os humanos.
— E os deuses?
— Eles vieram depois e criaram todo o resto.
— E você? É o quê? O que te difere das outras?
— A mais forte das bruxas em carreira solo. — Gargalhei, jogando
meu corpo para trás, debruçando-me em seus braços que me seguravam
apertados.
— É mesmo a mais forte?
— Creio que sim, talvez a mais velha, e a que luta sem amparo de
nenhum artifício mágico, como o colar que Irene usa. Se não fosse ele ou se
eu pudesse ter acesso a alguma outra fonte de poder, estaríamos em Miami
assistindo um filme velho e comendo pipocas.
— E não dentro de um. Seria uma bênção — completou ele.
— Sim, disso eu tenho certeza.
Acariciei sua mandíbula com a ponta dos meus dedos e ele segurou
minha palma e apoiou seu rosto nela.
— Você disse que seu coven veio das amazonas. Todas a bruxas
provêm dele?
— Não, há muitas formas de magia no mundo. O coven de Laura foi
só uma fração de amazonas abençoadas por deuses gregos que se
espalharam pelo mundo e foram mudando suas práticas.
— Elas só trocaram de nome com o tempo, então.
Assenti, exibindo um sorriso cheio de dentes e deixando minha
cabeça cair de lado.
— Tem batom nos dentes — comentou ele, sem graça.
— Ah, obrigada. Não estou acostumada a usar uma cor tão berrante
ou cor alguma.
— Deveria usar mais, embora corra o risco de causar uma comoção
por onde passar e isso é, exatamente, como me sinto.
Ele me estreitou em seus braços e meus seios foram exprimidos
contra aquele peito duro, o que acendeu a vontade de fazer o que teríamos
que acabar realizando de qualquer forma.
— Se você me avisar sempre que meus dentes estiverem sujos, eu
posso usar.
— E se minha boca estiver suja?
— Daí eu pretendo sujar mais.
Resolvi que devia começar a sujá-lo e minha boca ganhou vida
própria e, em seguida, foi para ele com a intenção de cobri-lo de vermelho,
marcá-lo como meu como devia ser desde sempre.
Mas Andrew me deteve com dois dedos em meus lábios tirando a
graça da coisa. Chato. Um grande chato.
— Me diga a verdade, eu entendi a parte que achavam que sua alma
alimentaria seu clã de bruxas malucas, mas qual é a origem disso tudo?
Ele queria uma resposta, mas como eu poderia falar com seus dedos
selando meus lábios? Algo devia ser feito. E eu o fiz, cobri seus dedos com
minha boca chupando como o faria se ele fosse um doce longo e duro.
Mirei seu rosto e a boca de Andrew estava entreaberta, seus olhos
pareciam dizer que ele havia esquecido o que tanto queria saber há pouco,
mas eu daria sua resposta. Lambi a ponta dos dedos e suspirei, deixando
meus ombros se erguerem e meus olhos parecerem sonhadores.
— Não se sabe ao certo, minha aura é mais forte. Poucas pessoas
nascem assim, mas acreditam que seja uma bênção de um deus ou no caso a
descendência de um.
— Mas as bruxas, sendo descendentes das amazonas já não são
criações dos deuses?
— Elas possuem a chama deles dentro delas, embora algumas
pareçam mais abençoadas, mas se me perguntar, eu diria que é uma
maldição.
— Creio que talvez seja uma semideusa, então? É isso que quer
dizer? — Ele ergueu as sobrancelhas, parecendo encantado e, ao mesmo
tempo, assustado.
— Talvez sim, talvez não. Creio que nunca saberemos, os deuses
desapareceram e não podem tirar nossas dúvidas. A última como eu que
caiu nas garras de Laura foi a que ergueu o castelo que cresci. Ela tinha
poder sobre a terra, mas teve o mesmo fim que todas as outras, acabou
tendo sua alma absorvida pelo colar de Laura.
— Ironias da vida, ela teve o mesmo fim daquelas que matou —
murmurou ele.
— Eu chamo de justiça poética. — Ri ao lembrar de seu fim. —
Aquele colar está cheio de almas como eu e seus poderes elementais. Só
não tem o fogo e era o que ela mais queria, mas ninguém nasce com ele.
— Por que não?
— Os outros elementos existem na natureza, fogo é uma criação.
Exceto o que queima nas almas. — Estalei minha língua chateada. — Mas
almas humanas não duram muito, almas que vieram do fogo original são
outra história.
— Seu namorado demoníaco. — Andrew prendeu a respiração. —
Você o canalizou em seu último suspiro e matou a todos.
— É, eu não sabia controlar. Confesso que nem tentei, só queria
queimar a todos.
— Compreensível. A outras podem fazer o mesmo?
— Um pouco, não muito bem. E no caso de canalizar almas
demoníacas que são o próprio fogo do inferno, é melhor que controle o ar
como eu.
— Por quê?
— O fogo é mais volátil que o vento, mas igualmente destruidor,
sabe uma bruxa do ar tem um talento natural com as chamas.
— E qual seria?
Apertei-o mais em meus braços e cada palavra seguia um puxão de
seu corpo contra o meu que parecia acender mais do que o conhecimento
em sua mente.
— Uma bruxa do ar só faz o fogo queimar mais. Ardente. Quente.
Abrasador. — Parei um segundo para rir de lado, ao ver sua face meio
quente também. — Um verdadeiro incêndio ou uma explosão vulcânica.
— Acho que entendi a explicação.
— Mesmo? Sabe aquela coisa expelindo e jorrando...
— Emmie, pelo amor da sua deusa... já entendi, então pare.
— Se derramando... — Tentei mais uma vez e contive um sorriso
matreiro ao ver sua expressão zangada. — Está bem, você que quis saber.
Vem vamos dançar. — Girei meus indicadores no ar, fazendo um charme e
a voz da Madonna retrocedeu em seu tom fino e delicado para o início da
música.

Joguei meus braços em torno do pescoço de Andrew, forçando que


abaixasse a cabeça e deixasse sua boca num espaço de um beijo, mas não o
toquei, ao menos não com a pele, mas com palavras sussurradas que
carregavam promessas.
Eu ansiava por lhe dar alguma alegria antes do final que talvez não
fosse tão belo. Faria o meu melhor, mas gente como eu não tinha bons
finais.
— Aproveite o momento, esse pequeno espaço para celebrar. —
Apontei meu indicador para o alto, querendo que sua atenção fosse para
aquela música antiga que nos rodeava. — Essa música pede para tirarmos
um tempo para celebrar e a deusa sabe que precisamos de um momento.
— Celebrar o quê? Caçados por uma bruxa e presos em lugar
nenhum?
— Estamos presos em um lugar sim e creio que não vai gostar muito
de saber onde. — Mordi meus lábios e logo parei, pois temi que meus
dentes se tingissem de vermelho novamente. Não estava muito acostumada
a usar batom ainda mais naquela cor. — Mas eu tenho motivos para
celebrar.
Eu parei a música com um estalo de meus dedos e o mirei, fazendo
beicinho e piscando minhas longas pestanas cheias de rímel.
— Você está aqui comigo.
— Emmie...
— A música é curta, me dê a honra dessa dança e eu te conto onde
estamos no final. — Estendi minha mão como se eu fosse o cavalheiro e ele
pegou como uma doce senhorita.
— Então, vamos.
— Melhor assim ou eu trocaria a música para a Like a Virgin e, com
certeza, iria quebrar esse clichê ainda mais — completei, levando minhas
mãos à boca e rindo pelas recordações que me despertavam.
— Louca e adorável.
— Como? — Pisquei para ele, fazendo charme novamente. Era bom
ser chamada de adorável. O louca eu já estava acostumada.
— É assim que te vejo — murmurou. —E isso foi um elogio. Sim, é
o melhor que vai tirar de mim até sairmos daqui.
— Se engana se pensa que eu não gostei. — Sorri, mostrando meus
dentes e o puxando tão forte para mim que nossos peitos se encontraram e
tomaram um pouco da nossa respiração, enquanto nossos olhos se perdiam
um no outro nesse pequeno momento roubado.
— Acho que vou acrescentar que nunca te vi tão bela também nem
maquiada ou num vestido. Não que eu não goste de suas calças justas pretas
ou de suas camisetas igualmente pretas colantes...
Eu o interrompi dando tapinhas nos braços e me sacudi, balançando
os peitos para ressaltar a parte que ele não comentou, meu decote em
formato de coração igualmente profundo.
Logo o rodeei, sacudindo minhas mãos para um lado e para o outro
em movimentos ondulantes, para logo em seguida lançar minhas mãos ao
alto e descê-las pelo meu corpo, deslizando-as da minha cabeça as coxas,
demorando-me preguiçosamente nos seios e enviando um olhar convidativo
para Andrew.
Ele se juntou a mim, suas mãos sobre as minhas que massageavam
meus seios e acompanhou o deslizar pela minha cintura, alcançando meus
quadris, que se moviam no ritmo da música.
Eu vencera. Andrew não se recusaria mais, a despeito de qualquer
coisa ele era meu.
— Eu vou me poupar de perguntar mais uma vez se está me
enfeitiçando, não me importo mais — sussurrou em meu ouvido e seguiu
falando coisas fofas que não dei muita atenção.
Eu só ouvi minha risada baixinha de vitória e vi o movimento de sua
garganta de engolir a seco com o tesão que tinha por mim, alimentado com
eficiência e uma precisão que eu diria demoníaca, mas eu era uma bruxa,
então iríamos de mágica.
— Isso é uma coisa má de se dizer, eu não controlo seus
sentimentos. — Pisquei para ele e vi a languidez de seu rosto alcançar um
novo nível de excitação. — Pelo menos, não como você imagina.
— Acho que acredito e seus deuses, com certeza, sabem o quanto eu
gosto de tudo isso. — Seus olhos percorreram meu corpo e travaram nos
meus peitos que estavam inchados com o mesmo desejo que armava uma
tenda em suas calças. — Mas está especialmente bonita de vestido curto
com essas coxas grossas à mostra.
— Humm, acredito que devo dizer que você ficou muito bonito
nessa camisa preta de botões e nessas calças apertadinhas pretas que deixam
em evidência algo do meu interesse.
E pronto! Apesar de tudo que fizemos, Andrew estava vermelho.
— Espero que tenha gostado das roupas que escolhi para nós nesse
novo cenário, mas não importa que esteja tão belo, não pode estar mais do
que eu, olha. — Dei uma rodadinha e exibi minha roupa feliz por me sentir
bonita e delicada como há muito tempo não o fazia.
— Não sou um espelho mágico, mas afirmo que não há ninguém
mais bela do que você — brincou ele. — Embora pareça cruel demais para
minha saúde, com esse branco todo e bolinhas pretas, de fato é uma
Cruella[55].
— Não seja bobo, cismou que sou uma vilã malvada, bem, talvez eu
seja. Mas sou boa para os meus favoritos e sabe o que significa a cor branca
na magia?
— Não. Acho que preciso me atualizar em nerdice mágica.
Eu sorri com isso e me dependurei em seus ombros, para sussurrar
em seu ouvido.
— Significa que estou totalmente aberta a tudo. — Eu o ouvi perder
o ar e engolir em seco. — Uma leveza e uma troca de energia que eu não
me permito normalmente.
— E isso seria comigo? — brincou ele.
— Tem mais alguém aqui? — Beijei seu pescoço e ele fechou os
olhos antes de abri-los mais uma vez e varrer a multidão dançante em torno
do salão em dúvida.
A música ficara suspensa no ar e os personagens nos cercaram, seus
rostos sem face presos em nós como se uma pausa fosse necessária uma vez
que a dramaticidade aumentara e eles, finalmente, tivessem nos notado. Nos
buracos que deveriam haver olhos, nos fitavam luzes tão brilhantes como
faróis.
Isso significava que eu elucidara tudo e trouxera luz às minhas
trevas internas.
— Andy, eles não são reais.
Encarei aquele rosto assustado e toquei seu queixo para que ele
fixasse sua atenção em mim e não naquela iluminação cegante, que parecia
ter se tornado mais interessante do que eu.
— Eles até mesmo nos veem agora, Emma — murmurou ele. —
Como não são reais?
— Sinto muito, seu vínculo comigo te prendeu no pior lugar que
Irene poderia usar para me torturar, na minha cabeça e eu sou a minha pior
inimiga.
As luzes sobre nós se apagaram e levaram toda cor de Andrew com
elas.
Eu mudara o cenário para um ambiente onde ele reconhecia, a sua
universidade em Miami, achei que aqui ele se sentiria à vontade o suficiente
para ficar confortável comigo. Sentados na grama, observando a fonte nos
jardins de palmeiras, ele parecia relaxado e calmo, entrelacei meus dedos
nos deles e aguardei que falasse.
— Não vamos sair daqui fácil, né?
— Não podemos sair — concordei. — Terei que confrontar Irene e
ela vai te pegar assim que botar os olhos em você. Eu não posso lutar
pensando nisso.
— Estamos mesmo na sua mente? Em um sonho?
— As ilusões vêm dela, mas acredito que estejamos no mundo dos
sonhos. A última vela se apagou e continuamos aqui, porque desejei que
fôssemos para uma cena de baile, assim como antes saltamos para lugares
mais felizes como o Cinema Drive-in.
— As coisas não mudam só buscando desgraças, né? — concluiu
ele.
— Acredito que Irene esteja conjurando maldições lá fora para que
eu caminhe por meus pesadelos, mas não é seu território, então pode ser
manipulável mesmo que o feitiço seja dela.
— Isso explica onde achou Scarlet, no mesmo lugar da primeira vez.
Sua mente organizou assim, agora eu a vi enviar a menina para o mundo
real. Não foi como o despertar de um sonho. — Andrew não conseguia
compreender essa parte, mas era clara para mim.
— Ela não estava só sonhando, Scarlet estava aqui de verdade. A
razão dela não ter morrido de fome é que esse lugar não é normal, mas
estava abatida.
— Aquela bruxa prendeu até mesmo o corpo da garota aqui? Esse
tempo todo? — ele perguntou, o choque em seu rosto presente em sua voz.
— Scarlet deve estar aqui desde que começou a me enviar
mensagens há algumas semanas ou talvez antes, Irene estava se passando
por minha colega de quarto há três meses.
Ele abaixara a cabeça e a franja escondera seus olhos, logo erguendo
a cabeça me apresentando um olhar diferente do que era comum a Andrew.
— Mate-a, Emma. Ela não merece piedade.
— É o item número um da minha lista.
— Agora por que eu? — Ele tinha a dúvida em seus olhos, ainda
incerto que aquilo tudo era real. — Por que cismaria de me sacrificar?
— Talvez porque entre nós, você seja o único virgem para ela
oferecer ao inferno em sacrifício em troca da libertação da alma de suas
irmãs? Um homem na sua idade, então?
— Emma... — Bufou, irritado.
— Ela tem o colar, mas não tem poder para libertar as almas dele e a
pedra nele foi oferecida ao inferno. Quem entregou não deve ter vontade de
se desfazer dela. Fora que sua própria alma deve estar em jogo, tipo retornar
à sua cela, então incluir você junto comigo, é uma boa oferenda por sua
liberdade.
— Você fala como se eu fosse um grande prêmio.
— É algo tão raro que o inferno trocaria por uma dezena de bruxas
fácil. Como conseguiu ficar assim tanto tempo? — completei só para testar
seus nervos.
Mas acabei vendo-o me dar respostas sentimentais, quando eu só
estava fazendo graça, na verdade, provocando-o.
— Nos últimos três anos foi difícil, eu só pensava em tê-la embaixo
de mim e te ver em todos os lugares que eu ia não era fácil para me manter,
digamos, calmo.
Retirei minhas mãos das dele, era difícil lidar com um homem
apaixonado e ainda mais na situação que me encontrava. Não quando só
queria tirá-lo em segurança desse lugar, da minha cabeça. E isso seria de
forma literal, quebrando o feitiço de Irene e depois da minha vida lá fora.
Esses eram os meus únicos desejos, mas, infelizmente, dependia de
fazê-lo abaixar as calças e eu nunca pensei que isso seria tão difícil.
— Andy, não seja sentimental. Eu sou só uma garota qualquer.
— Então, por que nunca tive interesse por outras mulheres? Me
enojava beijá-las a ponto que eu desistia, mas tive vontade de jogá-la nas
costas e levá-la para cama no segundo que botei os olhos em cima de você.
— Talvez você goste de caras? Não acha que seja isso? — Valia a
tentativa. Por mais tola que fosse. — E só adquiriu uma pequena fixação
por mim. É, foi isso, com certeza.
Ele apertou a fronte, parecendo indignado com a minha pequena
maldade que, na verdade, era uma distração para essa linha de pensamento
perigosa que ele tentava engatinhar.
— Por três anos!? Vidrado em você esse tempo todo — exclamou e
franzira a boca, um pouco revoltado. — Além disso, saiba, Emma, que
nunca olhei para caras. Não tenho interesse em homens.
— Talvez seja só negação.
— Emma, pare.
— Já parei. — Estendi minhas mãos abertas em sinal de que me
rendia.
— E agora continue.
— A te perturbar? — Agora fiquei confusa.
— Não, Emma! Explique o que começou a contar no baile direito.
— Ele parecia bem alterado, mais do que o normal para Andrew. — Onde
exatamente estamos? Quão real são as coisas aqui?
— Mesmo sendo um sonho é tão real quanto o seu rosto sangrando
da batida ao sermos perseguidos por Irene naquele carro. — Suspirei,
cansada. Era tão difícil de entender assim? Ele era um fã de quadrinhos e
pelo que eu sabia isso era só um dia normal neles. — Mesmo não tendo
matéria física aqui, estamos sendo feridos lá fora.
Ele coçou a cabeça tão forte que temi que arrancasse os cabelos.
— Então, acredito que deveríamos começar a rezar pelos deuses dos
sonhos Morpheus[56], ou o próprio Hypnos[57] talvez?
Sacudi minha cabeça em negativa enquanto revirava meus olhos,
Andrew ainda não tinha entendido a gravidade de nossa situação.
— Andy, os deuses estão inacessíveis há um longo tempo. Ninguém
vai vir se você chamar, ninguém vai vir mesmo que eu chame. Como acha
que Irene teve tanto acesso ao mundo dos sonhos? Está abandonado.
— Você conseguiu invocar aquele seu amigo bonitão chamando por
Artêmis. — Ele cruzou os braços voltando ao assunto Darío, um tema que
eu gostaria de evitar nesse momento.
— Andy, eu era uma menina esperançosa e rezei por um longo
tempo. Você está disposto a esperar na crença que a deusa vá responder?
Então, tá! — Cruzei meus braços irritada. — Vamos nos esconder num
cantinho e aguardar a boa vontade divina.
— Tem certeza de que eles não vêm? Você sempre chama por eles,
mas pela deusa, na verdade.
— É a força do hábito. As amazonas sempre falam pela deusa, mas
pode ser qualquer uma, embora originalmente para nosso povo seja Artêmis
e para outras bruxas por aí, Hécate[58].
— Pensei que tivesse esperança de ser ouvida. — Ele massageou a
nunca meio que embaraçado por estar se metendo num assunto complicado.
— A esperança que eu tenho agora é só sair viva. — Estiquei
minhas pernas na grama, observando com cuidado a ponta dos meus tênis
All Star.
Eu mantivera as roupas sociais que colocara em Andy, pois ele
ficava melhor assim, mas desejei mudar as minhas novamente para as que
cheguei aqui, era mais confortável assim.
— Emmie...
— Mas não se preocupe que sua vida eu garanto.
Me virei para ele, dedilhando em seu peito até alcançar seu queixo e
virá-lo para mim. Seus olhos não estavam brincalhões como os meus,
Andrew estava apavorado.
— Pense um pouco em você também, eu escolhi vir atrás de você.
Então, pare de tomar responsabilidade sobre mim como seu eu fosse uma
criança que tenha que tomar conta.
— Eu lhe garanto que não é assim que te vejo — sussurrei tão
próxima de sua boca que compartilhávamos a mesma respiração.
— Você entendeu o que quis dizer — ele me repreendeu, chateado,
quando eu só queria brincar. As coisas estavam pesadas demais. — Não
pense em nada louco, nem me trancar dentro de um carro de novo,
desperdiçando forças, quando poderia usá-las contra aquela bruxa.
Andrew voltou a agarrar minha mão e a segurou com força, mais
dramático do que acreditei que seria. Ele me virara para sua frente, tinha os
olhos fixos nos meus e eu mentia sem dó, como uma verdadeira sem-
vergonha, mas era melhor assim.
— Há algo muito errado nessa história toda. Alguma chance de sua
deusa ter algum envolvimento nisso?
— Nós, bruxas cultuamos mais de um deus. Mas se fala da senhora
Artêmis, ela não tem assuntos a tratar com os homens.
— Está dizendo a verdade?
— Claro. — Em parte.
Ele suspirou cansado.
— Emma, você sabe o quanto isso me parece ridículo, ainda mais
nos tempos de hoje. Sacrifícios de virgens! Parece brincadeira!
— Mas não é. Entenda que sexo é uma troca de energia, uma
conexão com outra pessoa. Você não sai limpo depois disso, sua alma é
tocada pela de outra pessoa gerando um vínculo. Então, uma pura como a
sua que nunca encontrou outra é algo valioso no inferno.
— Inacreditável.
— Se alegre, será bem cotado no mercado infernal.
— Me sinto como um gado, e não um touro reprodutor para me dar
orgulho. — Ele enfiou os dedos no cabelo com tanta força que novamente
temi que ficasse careca, então resolvi que gracejar seria uma boa opção.
— Ah, bem, seu desempenho talvez salve o dia e você ganhe o
posto de touro reprodutor. Bem, aqui ou lá embaixo.
— Emma, por que você tem que ser assim?
— Eu prefiro rir a chorar, viver uma comédia é mais divertido do
que uma tragédia. — Apertei meus lábios, formando um bico contrariado.
— Andy, você viu meu passado, não foi um mar de rosas e talvez tenha sido
melhor assim. Você sabe, odeio rosas — gracejei no fim, tentando aliviar
um clima.
— Eu sinto muito por Darío. Não gostei de te assistir com ele, mas
eu sinto muito pelo que você passou. — Ele mordeu a boca constrangido e
depois fitou o horizonte que parecia bem interessante por cima da minha
cabeça. — Está bem, prefiro você ao mercado infernal.
Ele falava como se estivesse indo para a forca e até pareceu
engraçado, eu me senti levemente culpada por isso.
— Não tinha dúvidas que você encontraria a iluminação. Espero que
seus dias não sejam mais tão obscuros que não possa decidir entre pegar
uma garota e virar brinquedo no inferno.
— Emma, só pare... por favor, só pare. Isso é constrangedor.
Ri alto e o cenário se desmanchava e moldava mais uma vez num
quarto estranho que eu não conhecia. Havia prateleiras lotadas de
bonequinhos cobrindo paredes imaculadas tingidas de branco, uma TV
gigantesca com sei lá quantas polegadas, uma escrivaninha com um
Andrew sentado à mesa que se concentrava em intercalar entre desenhar no
Ipad e a ler a matéria da faculdade no notebook da maçã.
Uma cama de solteiro ficava ao lado, encostada na parede toda
bagunçada com os travesseiros largados de qualquer jeito e o lençol
amarrotado.
— Andy... — Um senhor bateu à porta antes de colocar a cabeça
dentro do quarto. Ele guardava alguma semelhança com Andrew.
— Fala, pai.
— Trancado nesse quarto escuro de novo? E sem comer até agora,
não te vi descer. — Ele entrou no quarto e empurrou um prato de cookies de
chocolate para Andrew e um copo de leite. — Coma um pouco e depois
desça. Sua mãe já reclama que não sai daqui desde ontem.
— Não estava com fome.
— Pensando naquela gótica de novo? Pelos seus lençóis
amarrotados deve ter sonhado com ela a noite toda. Não sei se devo ficar
feliz ou preocupado... você sabe que não tenho preconceitos, mas nunca te
vi com nenhuma garota e...
— Pai! — Andrew gritou e, dessa vez, olhou para o lado,
percebendo que eu estava ali no quarto. Ele estava revivendo aquela
memória dentro de suas lembranças, e o rubor cobrira seu rosto ao me notar
ali.
— Ah, está bem, filho. Agora que despertou seu desejo por garotas,
talvez deva procurar outra que te queira. Fora que aquela me parece
perigosa.
É, o senhor não sabe como tem razão. Muito mais perigosa que
imagina para ele.
Seu pai terminou seus conselhos, deu uns tapinhas em suas costas e
saiu do quarto, não sem antes fechar a porta e ficamos a sós. Não me
importava que ele quisesse seu filho longe de mim. Tudo ali naquele quarto
expirava amor, Andrew fora uma criança amada. E eu senti meu peito se
apertar com isso, estava tão feliz por ele que tive que me controlar muito
para não cair chorando. Tudo que mostrei a ele foi o mesmo sorriso devasso
que eu vivia jogando para Andrew desde chegamos aqui.
Não deixaria cair uma lágrima ali.
— Bem, nesse momento não precisa procurar outra — falei,
atravessando o quarto, sentando-me em sua cama e alisando a fronha do
travesseiro.
— Desculpe, Emmie — murmurou ele. — Acho que precisei me
sentir seguro. Estranho que viemos parar aqui.
— E seu desejo te trouxe para seu quarto e para um pai adorável. —
Olhei aos Funko[59] dos Vingadores na parede e não resisti a brincar com
ele. — Imagino que essas paredes já devem ter visto muito do pequeno
Andy.
Ele se sentou ao meu lado, um pouco constrangido.
— Bem, ao menos aqui não é um carro — comentou.
— Seguro suficiente, considerando que sou uma bruxa prestes a
fazer um ritual com você.
— Fale fazer amor, Emmie, fale assim. — pediu ele.
— É um ritual mesmo — insisti, sorridente. — Mas vou te poupar
de cravar um punhal no peito, só não posso garantir que não vou te devorar,
mas garanto que não vai ser nada parecido com a bruxa de João e Maria.
— Emmie, por Deus...
— Ao menos eu sou mais bonita do que as bruxas más dos contos
de fadas.
Colei minha boca a dele sem permitir que continuasse com aquela
ladainha e absorvi seu gemido de protesto, enquanto empurrava seu peito,
forçando-o a se deitar na cama. Cobri seu corpo com o meu, aprofundando
o beijo, e ouvindo um gemido de prazer que agradou meus ouvidos.
Ergui meu rosto, abandonando seus lábios, um pouco para que visse
aqueles olhos verdes adorados, sempre os mesmos, mas, nesse momento,
com as pupilas dilatadas pelo desejo e sua boca inchada de meus beijos.
Andrew me encarava, parecendo também enxergar alguma coisa em
meu rosto, mas ele não encontraria nada, ao menos não a resposta que ele
queria ouvir, tampouco nenhum eu te amo. Só o mesmo desejo que ardia em
seus olhos e um juramento, eu o protegeria de qualquer besta do inferno.
— Prometo que vou te tirar daqui.
Era tudo que eu poderia dizer.
Suas mãos tocaram meu rosto, puxando-me para mais um beijo e
desceram para se espalmar em minhas costas, acariciando-a em
movimentos circulares que eram muito aconchegantes e deveras
tranquilizante para o que eu pretendia fazer com ele.
Andrew era gentil e carinhoso, até mais do que eu merecia.
Eu devia a ele mais do que podia dar.
Bem, eu planejava dá-lo uma boa foda mesmo que apressada e,
bem, parecia que eu não era a única que parecia estar em uma corrida de
curta distância, podia sentir seu pau inchado cutucando meu ventre dentro
daquelas calças justas, enquanto o curvava sobre a cama.
Juntei minha boca novamente àqueles lábios macios e aprofundei o
beijo, nossas línguas duelavam numa batalha que não teria vencedor, minha
respiração acelerada no mesmo ritmo da sua e minha mão tocando a barra
de sua camisa, numa tentativa de levantá-la, mas se infiltrando por baixo
para tocar seu abdômen, arrancando gemidos baixos de sua garganta.
— Dessa vez, tenho você e não vai fugir.
— Você poderia me ter quando quisesse — Ele me encarava
descrente. — Bem antes de vir para sua cidade e dessa loucura toda.
Mas não era minha intenção antes, agora era uma necessidade. Eu
não o queria em meu mundo sendo alvo de uma bruxa maluca. Só que ele já
estava enterrado nele e com Irene em nossa cola. Desviei meus olhos para a
cabeceira de sua cama, era tão alva quanto as paredes daquele quarto.
Infelizmente, um suspiro de aborrecimento escapou de meus lábios.
— Vamos ter que esperar mais um pouco — falei, percebendo que
ele já notava o mesmo que eu, não só a cabeceira, mas todas as paredes
estavam tomadas por profundas rachaduras que não pareciam estar ali há
um minuto antes.
Parecia que Irene invadia esse pedaço de meus sonhos como ela
fizera antes.
Não havia sinal dela, mas eu só podia pensar que era isso. O som
metálico que ouvira no baile reiniciara e tomara um novo vigor, de tapas
distantes pareciam que estrondos estavam a tentar derrubar aquelas paredes.
Revirei os olhos, já cansada daquele jogo de saltar de dimensão em
dimensão, memória a memória, por causa daquela mulher obcecada por
mim. Não, não era cansaço, eu estava era puta.
Tornei a olhar a Andrew e ele estava embaixo de mim suas pernas
trançadas as minhas, mas com o terror habitando seus olhos, meu amor, não
tema. Eu não deixarei que te levem para o inferno, eu queria dizer.
— Não tenha medo, Andy — falei um segundo antes de me erguer
sobre seu corpo, colocar uma perna de cada lado de seus quadris e levantar
meus braços quando nosso pequeno refúgio se explodiu como se fosse de
vidro e não de ilusões.
Andrew fechou os olhos assustado pela tempestade de fragmentos
de memórias que voara pelo cômodo, rodopiando como se fossem lascas de
um espelho quebrado em torno daquela cama que flutuava no vazio.
Só a escuridão nos cercava, não havia mais nada.
Mas aquelas lascas do meu passado não nos alcançariam, ao menos
não fisicamente.
Seus cortes se manteriam longe de nossas peles.
Eu vi uma ou outra memória ruim da minha vida amaldiçoada neles,
mas escolhi desviar meus olhos deles. Não havia lugar para momentos
tristes do passado em minha vida, até porque precisava seguir em frente.
Mirei aos olhos de Andrew que me fitava encantado pelo que via,
era eu que os fazia girar em torno de nossos corpos, mantendo-os longes,
protegendo-nos dos cortes e da dor dos traumas que insistiam nos alcançar.
Uma barreira de vento nos envolvia, mas não nos protegeria para
sempre se a bruxa nos alcançasse. Eu procurei um cantinho escondido que
ela desconhecesse e não encontrei, mesmo as lembranças de Andrew
haviam sido violadas.
Só me restava nos isolar até que tudo acabasse.
Desejei uma roupa adequada para o momento, um vestido de seda
negra que abraçava minhas curvas e possuía fendas estratégicas para revelar
pele suficiente para tentar um santo, braços e costas desnudos, uma abertura
na coxa que valorizava minhas pernas e eu estava pronta.
O bom homem em questão não tirava os olhos da minha coxa à
mostra e fiz questão de lacrar a porta, ordenei que os móveis do quarto
fossem todos se aglomerar para obstruir a passagem. Ninguém me
impediria de me unir a ele, pelo menos não nesse momento.
Havia mesmo avisos de Cuidado, nos deixe transar sobre móveis e
algumas faixas polícias espalhadas pelo lugar. Meu humor ácido nunca me
decepcionava.
Eu me esmerara.
Ficava besta como conservara esse meu jeitinho peculiar intacto
apesar das condições não muito propícias. Bem, não importava os gritos de
Irene lá fora, iríamos berrar aqui dentro em breve também.
Nos encontrávamos ilhados naquele pequenino pedaço da minha
consciência e eu manteria o controle até que estivesse feito e Andrew me
pertencesse.
Só faltava um detalhe, me virei para Andrew no clima vamos acabar
com isso antes que acabem comigo.
Ele estava logo atrás de mim, conferindo meu bom trabalho e ao
encontrar seus olhos, eu o arremessei com um leve deslocamento do ar
sobre o colchão com um simples acenar de minha mão e ergui meu vestido
para subir sobre ele.
Eu lhe dei um olhar de quem já não admitiria mais fugas, e o prendi
com firmeza entre minhas coxas, antes que puxasse sua camisa, abrindo-a
com ferocidade e os botões voassem pelo quarto.
Fiquei apreciando a visão de seu peito nu, que como pensei estava
em forma demais para um sedentário, eu não o tinha visto com claridade
suficiente antes. Meus olhos passearam sobre ele até que subiram para seu
rosto.
Ele era realmente bonito.
Traços delicados e lábios cheios emoldurados por uma juba loira. Só
eu sabia como fora difícil para que controlasse as batidas de meu coração
por tanto tempo. Mas não nesse instante, estávamos juntos finalmente.
— Emmie — murmurou ele.
— Assustado já que está prestes a descobrir do que sou capaz? Aqui
e quando eu deixar essa sala, é claro.
— Confesso que um pouco, mas não tanto quanto venho sendo
aterrorizado pela noite. — Ele franziu a testa, aborrecido. — Embora nada
se compare a ver você realizando esse mesmo show com outro, então acho
que estou bem.
Andrew era um tolinho, inocente mesmo. Eu esperava que ele
continuasse assim, por ora. Esse foi meu desejo, enquanto abria sua calça e
a descia o suficiente para que eu pudesse me acomodar sobre ele.
— Esqueça isso. Agora chega de gracinhas, escolha: vai ser eu ou o
fogo eterno com aquela bruxa maníaca lá fora?
— Tantas escolhas. — Andrew colocou as mãos em minha cintura.
— Acho que eu prefiro a maníaca que eu já conheço.
— Se foi sua intenção me ofender, saiba que não me afetou. —
Esfreguei minhas unhas em seu peito e me inclinei sobre o seu corpo.
— Eu sei — murmurou ele um pouco antes de que minha boca
deslizasse por seu pescoço. — Oh, céus! Emmie...
— Teremos que ser rápidos, mas se você falar meu nome de novo
acho que terminaremos isso em um minuto e não em dois como eu esperava
— murmurei em seu ouvido, o que provocou um riso alto dele.
Eu tive que morder meus lábios para conter minha própria
satisfação.
— Eu preferia que fosse devagar, essa cama é verdadeiramente
confortável, ainda mais depois de toda a emoção dessa noite. — Ele sorriu
de forma cálida tentando aliviar a tensão.
— Fico feliz de te dar uma cama macia.
Sorri com minha tentativa de brincar num momento como esse,
alegrias viriam no futuro. Eu devia isso depois dele ter visto o meu pior.
Levei meus lábios aos seus e sua língua entrou em minha boca,
roçando como se ensaiasse os movimentos que seu pau faria entre minhas
pernas, suas mãos foram para minha nuca, puxando-me ao encontro do seu
corpo até que me vi colada por completo nele e suas mãos trabalharam
arduamente em reconhecer todos os pontos sensíveis ao seu toque.
Afastei minha cabeça um pouco para distribuir beijos por toda a
lateral de seu rosto e percebi que ele se inclinou em busca de mais carícias.
— Ah, Emmie.
— Eu o avisei. — Eu me ergui completamente e empurrei seu peito,
montando seus quadris e comecei a descer meu vestido pelas minhas costas.
— Só mais um pouco, por favor.
— Andy, não temos tempo...quando sairmos daqui, eu te tratarei
melhor. Prometo.
Terminei de remover meu vestido e o vi devorando meus seios com
seu olhar para logo depois arquear uma sobrancelha ao descer os olhos para
a calcinha de renda preta minúscula que cobria o v entre minhas pernas.
— Coisa interessante, você disse que não gostava de usar, mas
apareceu muito coberta também na outra vez que tive oportunidade de
olhar.
— De fato, não gosto. Mas dado o lugar que estamos, acho que meu
inconsciente desejou um pouco mais de proteção.
— Algo ainda mais interessante quando se está tentando me levar
para a cama por boa parte da noite.
— Você sabe que acabando aqui, vou ter uma bandida para matar do
outro lado daquela porta. Isolei esse quarto temporariamente da influência
de Irene.
— Ah, Emmie... eu gostaria de esquecer essa parte. Você sabe como
colocar pressão sobre um cara, sabia? — brincou ele, assobiando.
— Não acredito que precise se preocupar muito com o desempenho.
Está animado desde o baile — digo, apontando para o seu pau pulsando
entre suas pernas.
Ele riu desconcertado.
— Emmie, se me falassem que nossa viagem acabaria assim, eu
jamais acreditaria.
— Nem eu — respondi, e falava a verdade. Eu não teria aceitado a
carona até Cartersville.
Mas não dava mais para voltar atrás, abaixei minha cabeça e
distribuí beijos em seu peito, enquanto esfregava meus mamilos pelo seu
abdômen, ouvindo não mais reclamações e só gemidos de Andrew.
Levei minha boca até seu pau e beijei a cabeça com delicadeza, e
seu abdômen retesou em antecipação, logo todo seu corpo se contraiu
quando passei minha língua por toda a extensão de seu membro,
provocando desde a glande até suas bolas. Eu o chupei até que ele parecia
perdido e longe demais para desistir.
— Caramba, Emmie!
Era bom que eu ainda soubesse fazer isso, apesar de não ter tocado
em ninguém pelos séculos. Considerando que Andrew se agarrara aos
lençóis e estava mesmo praguejando, eu ainda entendia muito bem da coisa
toda.
O desejo acumulado que pairava no ar era tão palpável que se
tivesse uma faca eu poderia cortá-lo, dei uma boa olhada além do que a
visão humana poderia alcançar e vi que a aura de Andrew continuava
vermelha. Ela estivera assim desde a dança no baile. Excitado e pronto,
porém, ela tremeluzia dado o tanto de insegurança sobre si e nós ele tinha.
Eu não podia resolver isso, pelo menos não nesse momento, mas
trataríamos disso no futuro. Só precisávamos deixar esse lugar de uma vez e
eu esperava que fosse logo dado que ele cessara sua resistência de se
vincular a mim.
Não deixaria que ele caísse ao inferno. Isso nunca seria uma opção.
Ele ficaria aqui comigo no mundo humano por quantos anos vivêssemos e
eu esperava que fossem muitos.
Isso se a deusa tivesse, enfim, piedade de mim. Eu não deixara de
acreditar nela, mesmo com minhas explosões de raiva. Eu queria acreditar
que ela se importava.
Era uma boa hora para mostrar isso, quando saíssemos dessa sala.
Me ajeitei sobre Andrew, sentando-me sobre suas pernas.
— Andy, você me aceita?
— Qualquer coisa que você quiser — gemeu ele.
— Bem, isso é um sim.
Eu o posicionei em minha entrada e me encaixei nele, tremendo um
pouco, desacostumada a receber um homem em meu corpo, mesmo que
estivesse molhada por ele. Fitei a Andrew e ele tinha os olhos fechados,
meio que em transe. Me perguntei se devido ao prazer do sexo ou do
primeiro feitiço que consegui jogar nele nessa vida.
Era uma união que ia além do carnal, mas não contaria esse pequeno
segredo. Não quando nossas vidas dependeriam que Andrew colaborasse.
Estava preso, não só em meu corpo, mas vinculado a mim e
ninguém poderia usá-lo para mais nada. Ele me pertencia e ao ver aquele
rosto doce meio perdido, eu jurei que o trataria melhor dele dessa vez.
— Eu cuidarei bem de você — afirmei, ao começar o movimento de
vai e vem, sabendo que logo estaria acabado, assim que me encaixei nele já
senti minhas paredes se contraindo ao seu redor quase a ponto de gozar.
Estar sempre perto dele esses anos todos e controlar meus instintos
que me mandavam me jogar sobre ele não fora fácil, constantemente
excitada só de olhá-lo e terrivelmente frustrada em afastá-lo. Ele reclamara
que sentira o mesmo, mas eu tinha certeza de que para mim fora pior e
Andrew não tinha a menor ideia disso.
Abaixei para beijar seu peito e ouvi meu velho nome sussurrado
entre seus lábios numa voz rouca e trêmula de desejo.
Sorri diante disso, eu pretendia mantê-lo no escuro, mas talvez não
estivesse mais com tal coisa em minhas mãos.
Me ergui para montá-lo com mais força e apoiei minhas mãos em
seu peito, à medida que suas pálpebras se abriram com um brilho diferente
em suas íris. Andrew apoiara suas mãos em meus quadris, oferecendo-me
apoio, enquanto eu intensificava a pressão sobre seu corpo.
— Fique comigo — ele gemeu antes de senti-lo gozar em meu
interior e acompanhei sua explosão, depois só pude jogar minha cabeça
para trás tamanho o êxtase.
— Eu não pretendo ir a lugar nenhum — falei um segundo antes que
ouvisse um estrondo na porta.
Era tão forte que parecia que disparavam nela com raios e temi que
Irene já tivesse nos encontrado, então saltei de Andrew e me vesti com
pressa, momentos depois a porta era derrubada e os móveis lançados na
parede mais distante.
Eu me pusera na frente de Andrew, eles não o levariam. Eu não
permitiria.
Um clarão dourado invadiu nosso pequeno refúgio, antes que
revelasse o agressor que causara tanto alvoroço que atrapalhou meu
pequeno momento de paz no meio de nossa fuga pela gaiola da minha
mente.
Fuga que não havia.
Não se ficássemos a correr de canto a canto com meus pesadelos
todos saltando à nossa frente. Era uma péssima perspectiva ficar aqui com
meu inconsciente numa tentativa louca de achar momentos felizes para me
acalmar e Irene momentos ruins para me destroçar.
No meio de tudo estava eu fazendo as burradas de sempre e
desejando todos os tipos de coisas erradas quando sabia que uma bruxa
devia tomar cuidado com as palavras.
Até pedir ajuda a deusa eu fiz. Repetidamente. Mesmo que negasse
a Andrew.
Eu gostaria de retirar esse pedido no momento.
Era o certo se arrepender quando uma Magnum 357[60] foi
engatilhada e apontada para minha cabeça como se tivéssemos saído do
filme mágico direto para o policial. Eu devia parar de assistir filmes e de
invocar gente também.
— Emmie, quem é ela? Mais uma inimiga sua? — Andrew
cambaleou um pouco para fora da cama, ao tentar puxar as calças por suas
pernas e sua voz pareceu um pouco desequilibrada depois de tudo.
— Victoria Miller, rapaz. Até que você é bonito, essa bruxa tem
bom gosto. — Lábios finos se cruzaram num sorriso irônico e, em seguida,
saltei da cama, parei em frente a ela e firmei meus pés no chão.
— E alguém que corre risco de morrer, Andy — ameacei a mulher
de jaqueta, calças e botas de couro. Parecia até que pertencia a uma gangue,
aquele visual não combinava com a emissária de um deus.
— E a propósito, obrigada por rezar aos deuses, rapaz. Eu procurava
essa aí, mas ela tem um jeito todo especial de ocultar a própria aura. — A
mulher continuou se dirigindo a Andrew e me ignorando.
Ela apontava a arma para a porta que provavelmente tinha
derrubado a bala, deduzi pela trovoada que eu ouvira. Que tipo de pessoa
derrubava uma tranca mística no mundo dos sonhos a bala? O normal
passava longe daquela louca armada e coberta de couro.
— Andy, ela está possuída por alguma coisa. Fique na cama —
alertei com voz meio rosnada demais.
Mas não podia esconder meu humor por ele tê-la convocado,
embora não contaria que eu também estivesse rezando.
— Certo — ele acatou sem protestar.
Eu precisava saber exatamente sua posição em caso de um conflito,
um que parecia iminente.
— Nossa! Você é esperta — comentou Victoria. — Confesso que
não gosto muito disso tanto quanto você, mas foi necessário.
Não gostei dela. Nenhum pouco. O único deboche que eu gostava
era o meu.
— Foi você nos seguindo desde o baile e explodindo tudo há pouco,
né?
— Sabe, como foi difícil arrombar essa merda? Localizar você? —
Ela voltou apontar a arma para mim. — E ainda ter que abrir caminho até
aqui, tudo porque meu coração pesou por causa de uma diaba apavorada.
Ela coçara a cabeça com a arma, não parecendo entender muito
bem, afinal, por que estava aqui. Mas foi a menção a uma diaba que
comprimiu meu peito numa agonia preocupada e levou meu coração direto
a Camilla.
Eu esperava que não a tivessem descoberto. Ela não merecia pagar
por mim.
— Não tenho tratos com nenhuma diaba. — Era uma mentira, mas
por mais que me preocupasse com Camilla, estava afundada em meus
próprios problemas nesse exato momento.
Fora que aquela mulher com uma camiseta branca justa que lhe
saltavam os peitos, e eu esperava que Andrew não tivesse reparado neles,
carregava um crucifixo entre eles.
Mas cheirava a outra coisa muito diferente, algo muito parecido com
meu próprio cheiro, a pureza dos lótus ao fundo estava embebida com algo
a mais, alguma nota profana, eu tinha certeza. Olhei com cuidado a sua pele
e ela brilhava como o mel, como se algo a envolvesse e ela cheirava ao fim
das dietas, Victoria exalava chocolate.
Algum deus a acompanhava, um nada confiável que cheirava a
chocolate.
Confiança nela? Eu tinha era nenhuma.
— Ah, claro que não se lembra. — Ela deixou escapar uma risada
fina e arregalou os olhos me mirando. — Acredito que prefira rolar na
grama só com os demônios do sexo masculino. Esse, com certeza, você se
lembra.
Ela piscou pra mim e me subiu uma vontade de presenteá-la com
um olho roxo. Definitivamente, eu não gostava nada dela.
— Ah, só cale a boca — cuspi essas palavras, enquanto revirava
meus olhos. Só faltava ouvir censuras de uma vadia qualquer que saíra sei
lá de onde para me encher o saco que eu não tinha.
— Ela dissera que você é forte. Eu gostaria de tirar uma prova.
Victoria apontou novamente a arma para a própria cabeça e depois a
desceu numa velocidade assombrosa em direção a Andrew que olhava
nossa conversa mais confuso do que estivera nessa viagem toda.
Um brilho dourado, um estouro, balas voando e um vento chegando.
Balas ao chão.
— Sua puta! Faça isso de novo e eu as desviou pra sua cara! —
berrei entredentes e encontrei seus olhos e boca arregalados.
Ela atirara não acreditando muito que eu conseguiria desviar seu
ataque. Eu a mataria, com prazer. Estava decidido.
— Muito bem, Emma. — Ela batia palmas satisfeita com o escárnio
ressoando em sua voz. — Você não só se esconde bem, como tem mais
poder do que eu pensava. Justamente como Camilla falou.
Era mesmo Camilla que a enviara. O que havia com ela? Eu não a
via desde o inferno.
— O que você quer?
— Oras, eu vim em nome de sua amiga e só quero que vá ajudá-la.
— Você me parece mais uma caçadora de demônios do que a babá
deles.
— Eu deixo o cargo de babá deles para você. — Eu gostaria de
partir o rosto dela em dois, não pude evitar varrer meus olhos pelo quarto
buscando uma espada para fazê-lo. — Agora acho que você precisa sair
daqui para que possa ir até Camilla, né? Emma, é assim que você se chama
agora, né?
— Tanto faz como me chama. Não vamos nos ver de novo. — O
sorriso que chegou aos meus lábios devia ser o mais enojado que eu já dera
alguma vez, mas representava meus votos sinceros.
— Tão malcriada, não é à toa que conseguiu sua liberdade não uma,
mas duas vezes. — Ela olhou do meu rosto aos meus pés e desejei estar
vestida mais adequadamente para uma briga. — Uma mulher selvagem
assim não se prende para sempre, mas aquele demônio pensou que podia.
— Você não sabe o que ela passou — murmurou Andrew da cama e
desejei que ele ficasse calado e não chamasse a atenção para si mesmo, mas
ele o fizera? Claro que não.
— E ele ganhou voz de novo. — Victoria se virou bruscamente para
Andrew e meus instintos saltaram em antecipação. — Pensei que fosse um
cão obediente e sem muita voz, mas devia fechar as calças antes de falar
comigo.
O sorriso abusado que eu exibia há pouco morreu quando me movi
para detê-la, ela avançara num estalar de dedos para Andrew. Eu me impus
na frente dele, só para se lançada contra a cama com sua mão apertada,
firmemente, em meu pescoço num aperto estrangulador.
Eu não tive tempo de atacar, nem de gritar.
Movi minha cabeça com dificuldade para Andrew e ele já havia
apagado com a mão de minha mais nova inimiga em sua cabeça, logo foi
minha vez quando me virei para ela e vi seus olhos emitindo mais luz do
que o próprio o sol.
Eu cometi um erro ao deixar essa conversa ir longe demais e acabei
por permitir que brincassem com minha cabeça mais uma vez, quando já o
fizeram demais por uma noite. Mas nada fora pior do que o engano que eu
cometera ao julgar Victoria, não era o mel que tocava sua pele, era o
próprio sol.
— Fale, bruxa, onde escondeu meu filho? — rosnou Baltasar,
enquanto brincava de amaciar a carne que há mais dias que eu lembrava de
contar havia se tornado a minha cara, um bife bem batido sob uma chuva de
ameaças.
Eu escorreguei pela parede até alcançar o chão com uma mão
cobrindo meu rosto inchado.
— Eu já disse mais de uma vez, centenas talvez, que está morto —
gemi sua resposta. Era assim que acontecia desde que eu fora capturada por
ele instantes depois que Damián desapareceu com o colar das bruxas.
Baltasar sentira a morte do filho e me encontrara ali nas cinzas de
Trasmoz pronta para ser abatida. E pensar que meu Darío recebia esse
tratamento todos os dias desde menino, sem ninguém que curasse suas
feridas, fazia parecer que as surras que eu recebia de Laura fossem a
repreensão de uma mãe.
— Mente, bruxa — cuspira ele antes de atingir minha cabeça num
soco vertical, que me fizera trincar os dentes e me encolher numa tentativa
que o fizesse acreditar que já havia sido o suficiente.
Ele morreu, Baltasar acreditasse ou não.
Darío se foi e estava livre de Baltasar para sempre.
Já eu assumi seu lugar como Damián me alertara que aconteceria,
assim que seu pai percebesse sua morte e com a lareira que acendi lá em
cima foi praticamente um sinal Venha me pegar, e nesse momento o animal
vivia para acreditar que escondia seu filho sobre minhas saias.
O demônio seguia nessa ladainha todo dia, mesmo que
provavelmente lá fora já houvesse passado alguns séculos, ele não desistia
de tentar encontrar sua preciosa arma em potencial.
A dor pela morte de seu filho nunca o alcançara, só a raiva por mim
por arrancar seu brinquedo. Já eu ainda chorava ao lembrar o estado de seu
corpo em meus braços quando partiu por minha culpa.
Fiz o meu melhor para salvá-lo e falhei.
O demônio poderia me torturar por mais quantos séculos fossem,
Baltasar não o encontraria. Darío não existia aqui ou no plano humano.
Sua alma se foi, por mais doloroso que fosse admitir, ele se
desmanchou em meus braços e não descera para cá graças ao meu acordo
com Damián.
Ele devia estar com os anjos. E eu estava aqui no inferno.
Mas não me arrependia do contrato que selara. Eu só havia pedido
poder para salvá-lo e eu esperava que fosse com vida, mas ao menos eu o
libertei de seu pai.
Não podia reclamar do contrato com aquele diabo, eu que fracassei
em salvar a Darío. Não fui forte ou rápida o suficiente. Mas Damián
cumpriu com sua palavra, minhas surras diárias eram a prova disso, a alma
de meu amado não retornou ao inferno.
A troca de sua liberdade pelas almas das bruxas foi aceita e eu ainda
tinha adquirido um pequeno berloque que repousava em meu pescoço,
todos as pessoas de minha vila, nesse momento, descansavam nele. Eu
devia tê-los entregado também, acreditei que Damián pensara que essas
almas estavam no colar que eu entreguei.
Não pude conter o pequeno sorriso arrogante que tomara meus
lábios. Aquela foi uma boa vingança contra aquela gente má.
— Vadia, como se atreve a sorrir? — Recebi um chute de suas botas
pesadas na lateral de meu rosto e cheguei a pensar que havia deslocado a
mandíbula.
Mas estava bem, até porque eu podia abrir e fechar meus lábios,
então ela estava no lugar. Foi só a onda de choque que me fez ter essa
sensação de boca torta.
— Rostos sorriem, é o que fazem — murmurei enquanto encostava
minha cabeça na parede para me recuperar da tontura causada pelo seu
golpe.
— Eu deveria rasgar sua cara, assim não teria mais um rosto para
nada — rosnou, à medida que me puxava pelos ombros e me batia contra a
parede.
Escolheu poupar meu rosto, mas enfiou suas garras negras em meu
ombro, a primeira picada queimou como se uma navalha fosse passada no
fogo, eu me contorci de dor contra sua mão e tentei alcançá-la para detê-lo.
Um erro de minha parte, Baltasar virou meu pulso para trás e quebrou assim
que eu toquei em seus dedos.
Deixei meus braços caírem ao meu lado e me resignei ao sentir sua
mão se fechar sobre meu ombro e suas unhas cravarem em minha pele até
que meu corpo ficou mole, devia ser a perda de sangue, então eu tombei de
lado atingindo aquele chão imundo e ele me deixou ali.
Estava tudo como sempre e era uma vida bela, ou previsível, ao
menos não tinha a ameaça de ser consumida até desaparecer aqui. Eu seguia
viva e era o que importava no momento, mas viva do que pensei. Não sabia
ao certo quantos anos se passaram, parara de contar no primeiro século
naquela cela.
Então, não sabia quanto tempo eu havia gozado de minha vida feliz,
embora não tivesse usufruído muito dela. Eu poderia viver depois, algum
dia talvez eu estivesse, enfim, livre, esse momento era o de sobreviver.
Nada muito diferente do que eu sempre fizera sem o acréscimo de ter que
fingir que concordava com tudo e eu confessava, essa parte era um alívio.
Pela manhã, ou o que eu acreditava ser manhã, iniciava com uma
boa sessão de socos e chutes de Baltasar, um demônio corpulento com uma
cara tão marcada por cicatrizes de batalha que não dava nem para
reconhecer algum traço semelhante a Darío. Certamente, seus cabelos e a
cor de sua pele puxaram da mãe, onde os fios de seu filho eram pálidos
como a palha, os de Baltasar eram negros como a escuridão daquela cela e
sua pele mais parecia que tinha sido mergulhada num caldeirão quente de
tão rubro que era.
Cuspes na cara e me arremessar contra a parede seguiam depois,
mas paravam por aí. Algumas vezes suas unhas eram envolvidas no jogo
como mais cedo acontecera, mas ele sempre me largava no piso antes que
terminasse por me matar.
Não era sua intenção que eu escapasse dali pela morte, não era certo
que minha alma ficasse ali mesmo com as vidas que eu tomei. Poderia
escapar se morresse e Baltasar não permitiria isso, me aterrorizar era o
bastante para ele, então seguíamos nesse jogo que eu esperava que durasse
tempo suficiente para que encontrasse uma saída.
Uma hora ele se cansava de me arrebentar, aí era a vez de enviar
seus demônios inferiores e suas tentativas ousadas de se enfiar entre minhas
pernas, um pouco de luta e alguns corpos no chão, até que alguém
resolvesse buscá-los. Não que eu não tivesse ficado assustada da primeira
vez, eu fiquei, mas acabou se tornando parte da rotina.
Eu, infelizmente, não revidava os ataques de Baltasar. Ele era velho
e poderoso, um dos senhores do inferno que poderia se orgulhar em ser um
brutamontes frio. Asqueroso. Porco. Um filho da puta que eu um dia
gostaria de arrancar a cabeça.
Deixei escapar um gemido de dor enquanto me arrastava naquele
piso úmido e fétido, tentando não prejudicar ainda mais meu ombro e meu
punho. O desgraçado acabara por imobilizar ambos os lados de meu corpo,
assim não conseguia erguer o braço de um lado e curar a mão do outro.
Eu não devia ter sorrido àquela hora.
Só que existiam coisas que não se podia conter e uma delas era a
minha alegria toda vez que me recordava de que Darío já não suportava
mais aquela brutalidade e que todos que o condenaram estavam mortos.
Era difícil controlar tal emoção mesmo que eu tivesse tido uma vida
de treinamento em contar mentiras. Só que sentimentos exacerbados tinham
consequências e as minhas sempre acabavam com meu sangue sendo
derramado.
Mas tudo bem, não tinha problema.
Eu podia curar os machucados que ele me presenteava com a joia
recheada das almas humanas que eu colhera, a pequena pedra tão invisível
aos seus olhos, mas tão bem pendurada em meu pescoço.
Mesmo não tendo poder no inferno, não alcançando o vento aqui.
Eu ainda tinha a joia para me regenerar.
Morta eu não poderia me salvar.
Devia ter isso em mente no futuro e tomar conta de minha língua
para que não o irritasse a esse ponto.
Gemi de dor ao tocar com a ponta dos dedos de minha mão
quebrada o colar em meu pescoço, ela estava tão machucada que a pele alva
dera lugar a tons de roxo e negro. O babaca havia partido todos os ossos ali,
lamentei o acontecido antes de sentir a energia da joia fluir pelo meu corpo
com mais violência do que os golpes que o demônio me atingira.
O poder queimava em minha carne, à medida que fechava as feridas,
recuperando nervos, sumindo com os hematomas e restaurando meu pulso e
ombro.
Era uma dor agonizante me curar por completo e assim tão rápido,
era como se o fogo percorresse minhas veias, uma sensação bem parecida
com o que foi manipular a energia de Darío em meu corpo, roubada de seu
último fôlego.
Não, aquilo fora pior.
Era como canalizar o próprio inferno e eu recebera um bocado
mesmo da carga daqui, dado sua conexão a esse lugar. Embora não
soubesse ainda usá-lo com muita maestria, Darío tinha mais poder em sua
alma do que todas as almas humanas reunidas na pedra em meu pescoço,
em contrapartida, eu não tinha nenhuma prática em canalizar qualquer
pessoa antes dele, nesse momento era um pouco mais fácil dado aos anos
brincando com essa pedrinha.
A joia deslizou entre meus dedos e seu cordão até que ouvi a porta
se abrindo novamente num ruído cheio de ferrugem e a escondi fazendo que
se tornasse invisível de novo. Ela ficaria aqui segura entre meus seios e
logo se encheria de mais almas.
Os servos de Baltasar chegaram e estavam se regozijando do outro
lado da porta, porque lhes fora permitido brincar com a bruxa do chefe. Os
miseráveis achavam que seria divertido me violar, como se fossem
sobreviver para fazer algo assim.
Me ergui do solo, apoiando-me na parede, e me preparei para
combatê-los assim que pisassem naquela cela. Toda minha raiva ia para eles
e pensar que eu gritara para que me tirassem dali e implorei que não me
tocasse uma ou duas vezes antes de revidar na primeira rodada, enquanto
me defendia numa cela no inferno.
Nojo eu sempre tinha e vinham muitos de uma vez só. Difícil
quebrar o pescoço de um, o braço do outro até que todos não se movessem
mais, sem que suas mãos nojentas passassem por todo meu corpo, mas
nenhum sobreviveria depois de tê-lo feito.
Só eu. Eu ficaria viva, mesmo que fosse sofrido, até que deixasse
essa merda.
Naquele dia, não poderia vencer a Baltasar. Um dia, quem sabe, eu o
faria, bem as almas dos humanos estavam ganhando companhia das almas
demoníacas dentro do colar e logo ganhariam mais, com o ânimo que ele
aquele demônio possuía para mandar seus vassalos para a morte a pedra
ficaria mais forte.
Um dia eu veria a cabeça de Baltasar fora de seu corpo e eu estava
ansiosa por isso, mas esse dia ainda não tinha chegado e lá vinham os
demônios.
— Ela é tão bonita como comentam, por isso o filho do chefe se
encantou tanto — salivou um diabo tão pequeno, coberto por escamas e
com as pernas tão tortas que eu tinha dúvidas se ele nascera ali assim
mesmo ou fora um lagarto malvado em sua vida humana.
— Cuidado, os últimos não acabaram tão bem. Na verdade, sempre
acabam mortos — cuspi minha ameaça, literalmente, em seus corpos.
Terminaríamos logo com isso e eu poderia descansar um pouco.
Era o que os grunhidos e sibilos que vieram à minha provocação
queriam dizer.
Não seria um problema espancá-los, eu o fazia sem fraquejar. Suas
formas eram tão grotescas e animalescas que tinha que segurar a bile,
enquanto tentavam me tocar. Não havia tempo para vomitar no meio de
uma batalha, eu precisava aguentar a ânsia que me causavam. Cascos de
boi, escamas, plumas, alguns chifrudos, alguns não. Tudo unido em formas
humanoides que gritavam obscenidades. Baltasar fazia de propósito,
mandava os demônios sem forma humana para me atormentar, mas isso só
me ajudava a partir seus pescoços sem pestanejar.
Isso perdia o propósito de suas atitudes.
— Segurem-na! Vamos ver o que tem embaixo dessas saias —
gritou o asqueroso lagarto.
Um homem com cara de veado, seguido de um sapo foram por meus
braços, tocando as feridas recém-cicatrizadas com brutalidade, aquilo me
abalou um pouco.
Me jogaram contra a parede com tanta força que um pouco do
reboco se soltou e cobrira minha cabeça, um tanto de poeira entrara em
meus olhos, dificultando que eu pudesse ver meus agressores.
Sacudi minha cabeça com violência e tentei focar melhor minha
visão, enquanto todas aquelas mãos deslizavam pelo meu corpo, apalpando
lugares que somente Darío havia tocado.
— Vão todos morrer — esbravejei, e me impulsionei na parede
contra eles, numa tentativa de me soltar.
— Não tem para onde correr, bruxa — ouvi um deles sussurrar em
meu ouvido elevando minha fúria.
— Nem vocês — sussurrei de volta.
Apoiei meus braços feridos no veado e no sapo, ergui minhas pernas
e envolvi a cabeça do lagarto com minhas coxas torcendo seu pescoço que
se partira fácil e rápido.
Logo expeli uma onda de choque do poder da joia, lançando os que
me seguravam contra a parede do outro lado da cela.
Parei um instante olhando ao meu pulso, ele não parecia ter curado
muito bem, o dano havia sido profundo, mas não havia só isso de estranho
em meu corpo, a energia que fluía da ponta dos meus dedos parecia cada
vez mais consistente e escura, num tom escarlate que beirava a cor do
sangue que derramei dos aldeões naquela noite. Antes tinha sido tão rala e
clara que se assemelhava à tinta diluída na água, era um sinal que meu
vínculo com a pedra se intensificara.
Encarei aos meus inimigos me fitando com ódio em seus olhos e
bocarras, e exibi um sorriso satisfeito em meus lábios, mas eles não
pareceram entender que isso significava zero chances de que escapariam
ilesos.
Na verdade, eles não iriam escapar e logo perceberiam isso.
Corri visando a garganta de um e a apanhei, derretendo até que o
pescoço tombara. Dei a volta em outro, agarrando pelas costas um veado
que teve sua cabeça partida ao meio pelas minhas mãos.
O sapo pegou o molho de chaves da cintura do lagarto, tentou
escapar pela porta, mas suas mãos escorregadias e trêmulas não
conseguiram abrir a tranca que o separava de sua salvação, sua última
chance acabou escorregando entre seus dedos no fim.
Ao som do metal tilintando pelo chão, ele foi derretido contra a
porta até que só sobrou uma gosma meio verde com muito do sangue preto
demoníaco no entorno.
Eu estava certa, aqueles não me dariam muito trabalho.
Virei-me apontando uma mão erguida acima de minha cabeça e
avancei para os demônios que restavam, uma boa meia dúzia se encolhia
num canto da cela que eu, particularmente, gostava de ficar. Era o local
mais limpo e era uma pena que ficaria mais sujo depois dessa luta.
Impulsionei meu corpo avançando contra eles e tudo que se ouviu
daquela cela era o esperado, o grito dos demônios morrendo, ou melhor,
sendo derretidos, mas acreditava que essa noite atenderia as expectativas de
Baltasar ou ele não os teria enviado para a morte.
Deslumbrei o monte de mortos empilhados a espera de serem
recolhidos. Ao menos os que sobrou alguma coisa, era o que acontecia
todas as vezes, parte da minha rotina comum, mas, dessa vez, eu fora mais
eficiente. Vinha reduzindo o tempo que gastava para me livrar deles a cada
dia.
Satisfeita, arranquei o colar de meu pescoço e o ergui em direção
aos corpos e suas almas deixaram aquelas cascas se juntando a pedra sem
reclamações. Ali seria o lar delas e eu poderia descansar um pouco.
Me dirigi à parede oposta aos corpos e me sentei numa posição que
me era muito comum na infância, contra a parede num canto e aguardando
uma ajuda que não viria, mas aqui não havia janela para observar a lua. Não
que eu soubesse se havia algo assim aqui, até porque estava aqui nessa cela
desde que fora capturada por Baltasar. Havia tão pouca luz que eu nem
podia observar minha aparência, mas pela pouca iluminação que vinha das
tochas no corredor por trás das estreitas grades da porta eu podia notar meu
estado esfarrapado e sujo.
Tudo bem, tudo isso iria passar um dia.
Eu fechava meus olhos e me visualizava nos campos de papoula nos
arredores de Trasmoz e foi a única coisa que me apeguei, até que uma
amiga entrou em minha vida, a primeira que eu tive e a que mais devia
agradecer, embora nossas vidas tivessem se cruzado de um jeito estranho,
mas que não me causou espanto.
Nada mais do que o incomum entrou na minha vida naquele tempo.
— Ei, você dorme muito para quem devia estar cuidando das
próprias costas no inferno, não?
— Você... — A mirei com olhos embaçados e não acreditei no que
estava vendo ali.
— Eu?
Uma moça de rosto sorridente e de longos cabelos loiros que caíam
em cachos por seus ombros, encarava-me ajoelhada ao meu lado, enquanto
cutucava meu ombro dolorido onde Baltasar enfiara suas garras. Eu
trinquei os dentes em uma atitude ameaçadora, entretanto, ela só fizera
franzir o nariz.
— Quanto tempo não toma um banho? Seu estado está péssimo!
Fiquei muda diante disso, eu devia estar coberta de sangue negro de
demônio. A única água que eu ganhava era para beber e me davam tão
raramente que se quisesse me limpar, tinha que escolher ficar com sede.
No entanto, ela não podia ver como sua fala me abalou, então lancei
uma ameaça.
— Veio recolher os corpos? Talvez precise chamar alguém agora
para buscar o seu. — Encarei-a firmemente, enquanto falava, mas seu rosto
não mudou para o terror que eu pensava que veria estampado nele.
Nem mesmo indignação pude ver em sua face e isso me chateou
mais do que tudo.
— Acredito que não esteja muito acostumada a receber ajuda e não
deveria imaginar algum apoio aqui, mas independentemente do que me
mandaram fazer com você, acredite que estou aqui com a intenção de cuidá-
la.
— Mandaram uma humana como minha carcereira? — indaguei,
não acreditando que aquilo fizesse sentido, mas era o que parecia estar
acontecendo.
A moça bonita pestanejou algumas vezes, parecendo incrédula com
a minha pergunta que cheguei a pensar que fosse uma prisioneira recém-
chegada, mas meus pensamentos logo se desfizeram quando ela me lançou
um sorriso cheio de veneno revelando uma lábia que o rosto inocente podia
esconder.
— Não, eu sou uma diaba mesmo — disse, ao piscar e até perplexa,
por não ter notado sua essência.
Eu deveria esperar por isso, mas não contava mesmo que aquela
mulher fosse algo além de humana.
— Mas não se preocupe, o meu chefe só cansou dos métodos
antigos e espera que algum dia retribua a minha bondade com você me
contando onde escondeu o filho dele.
— Era suposto que me contasse isso? — resmunguei diante de sua
confissão.
Ela tombou a cabeça um pouco de lado e fez um beicinho, levando o
indicador a boca, como se analisasse suas ordens.
— Acredito que meus métodos pouco importem a ele e, devo-lhe
congratular, você é digna do título de inquebrável que te nomeiam fora
dessas paredes. O senhor dessa divisão do inferno simplesmente cansou de
você.
— Ele desistiu? — Depois desse tempo todo, não conseguia
acreditar naquilo.
Não era como se eu estivesse liberta, mas parecia algum alento. Sem
mais espancamentos? Ou demônios me atacando? Seria deixada quieta no
meu canto?
A moça segurou minhas mãos unidas e continuou a sorrir como se
estivesse feliz por mim.
— Quem é você? — sussurrei. — E o que quer de mim?
— Querida, inquebrável — ela murmurou como se me idolatrasse,
movendo a cabeça num ângulo estranho como ela. — Eu sou Camilla, uma
mulher quebrada.
Seu brilho pareceu desaparecer um pouco quando ela cerrou seus
olhos e eu movi os meus sobre ela, notando as mãos bem tratadas que
seguravam as minhas estropiadas, o alinhamento de seu vestido azul-royal
cheio de laços e bordados.
Essas coisas pareciam mostrar uma mulher em perfeito estado.
O que aconteceu para que ela estivesse ali? Não parecia muito
malvada também, talvez um pouco cínica e só.
— Não se preocupe, querida Livia — sussurrou com uma voz calma
que convenceria qualquer um a acreditar nela, havia feitiço em suas
palavras. — Eu não estou aqui para lhe fazer nenhum dano, só mantê-la
viva para que algum dia me conte de bom grado sobre Darío.
— Eu nunca vou contar.
— Certo, então sabe de algo.
Eu me mantive muda diante de sua conclusão e Camilla apertou
minhas mãos com mais força que supunha habitar em uma senhorita como
ela. Encará-la revelou um sorriso sádico em sua face, uma amostra de quem
a moça, aparentemente, indefesa era. Se isso não fosse o bastante, seus
olhos da cor do céu ganhavam a névoa daqueles que se afundaram na
depravação para sobreviver e entregava um diabo afundado no corpo de um
anjo.
Eu nunca perceberia a perversidade nela, se Camilla conseguisse
manter seu rosto neutro, contudo, não era algo que ela parecia conseguir
fazer ao menos não por muito tempo.
— Está bem. — Seu sorriso mudou para um encantador tão
diferente do anterior como se ela tivesse uma gêmea do mau. — Não
precisa falar agora e, bem, fique feliz que eu já estive em seu lugar antes e
me saí bem pior.
— Não terá uma resposta de mim.
Um pinçar fino em minha fronte começou o seu tormentoso trabalho
de devastar minha mente. Toquei minha cabeça e afastei meus olhos dela,
tentando conter sua influência, sua voz doce me fazia querer contar minhas
dores mais profundas.
— Está bem, não pedi nada. Um dia você vai falar, juro que serei
sua maior confidente. — Ela deixou escapar um risinho tampando os lábios
com uma das mãos. — Mas o que acha de um banho e umas melhorias
nessa cela?
Ela deixou o lugar com essa pergunta suspensa no ar e voltou mais
tarde com outros demônios carregando as coisas que prometera.
Camilla de fato nunca me machucou, bem se não contássemos a
tentativa de induzir minha a mente a revelar todos os meus segredos para
ela. Eu desconsiderei essa parte, porque num mundo que se esforçava para
me destruir, esse foi o menor dano que já tinha recebido.
Não sabia que uma diaba de contrato pudesse ter tal poder, mas
certeza de que era assim que fechava os melhores contratos de almas, com a
posse dos desejos mais íntimos se podia fazer a proposta mais sedutora.
Eu não sabia se ganhei resistência ou se Camilla passou a me ver
como uma amiga, mas um dia o feitiço em minha cabeça que me mandava
derramar tudo que eu sabia sobre Darío cessou. Um bocado de tempo
depois disso chegou o dia que desejei fugir e ela deixou a porta aberta.
— Livia, essas paredes absorvem magia e não há feitiço que te leve
daqui até o mundo humano. Está certa que consegue correr até lá fora? —
Camilla me olhou com a preocupação tomando sua voz e o movimento
incessante de sua perna que tremia no ritmo que meu cérebro fazia planos.
— Não, mas não posso mais ficar aqui. Eu tenho um lugar para ir —
afirmei, sentada no chão com minhas pernas esticadas como se já as
alongasse para a batalha, apertei meus joelhos, ao passo que me preparava
para o pior.
Uma corrida das masmorras do inferno até a superfície não se
compararia a que eu empreendi em meu vilarejo e, mesmo assim, eu perdi.
Darío morreu porque eu não bati a merda fora daqueles soldados
rápido o suficiente e seriam demônios lá fora, uma legião.
Respirei fundo, eu não podia perder de novo.
— Vai para onde? Quando sair daqui? Quero saber.
— Miami. Esse é o lugar que veio em minha mente. Não fica na
Europa, né? — perguntei, arrependendo-me de como a incerteza se fizera
presente em minha voz.
— Não, querida. Fica na América e ainda bem que te ensinei inglês.
— O sorriso de Camilla foi caloroso e amigável, mas um tanto preocupado
e eu não sabia se pela minha fuga ou por minha vida lá fora. — Deixarei a
porta de sua cela aberta.
— Certo. — Ela já estava saindo quando a chamei. — Camilla,
fique com isso.
Arremessei meu colar no ar e ela fechou sua mão sobre a pedra dos
humanos.
— Está enfeitiçado para encobrir qualquer mentira que contar. Por
mais culpada que seja, Baltasar nunca desconfiará que me libertou.
— Agradeço sua preocupação, Livia. Mas considerando quantos
terá que abater ao pisar fora dessas paredes, acredito que precisará mais
dessa pedra do que eu. Isso se ela for tão poderosa assim.
— Ela é, mas guarde-a com você. Eu já sou poderosa.
— Ah, a humildade! Que bom que a possui num nível tão alto. —
Ela revirou os olhos, irritada com minha teimosia como sempre.
— E quero que fique viva e ele vai te matar sem isso.
— Não matou até hoje e não permitirei que o faça justo agora.
Camilla apertou as mãos em torno da pedra antes de colocá-la nos
bolsos de calças azuladas bem estranhas e incomuns para as mulheres na
época que eu nasci, mas que pareciam ser a moda atual. Embora ela sempre
me trouxesse vestidos confortáveis para que eu me trocasse.
— Aceito o presente e me procure em Chicago se precisar de mim.
A pesada porta de metal rangera um pouco quando Camilla a
encostou, sem que eu ouvisse o som tilintante das chaves girando na
fechadura.
Aquela diaba cumprira sua promessa, ela me ajudara quando eu
precisei e agora clamara por mim.
Eu não podia faltar com ela. Eu nunca deixei de pagar minhas
dívidas.
Finos raios dourados brotaram daquelas paredes escuras, cruzando-
se em ângulos formando prismas que deram luz a todas as coisas bonitas
que Camilla trouxera para mim. Havia almofadas, uma cama e mesmo
livros espalhados por todo o lugar.
Nenhuma mancha no chão. Tudo tão limpo como ela fazia questão
já que não podia fazer mais, só eu podia me salvar dali. Eu não tive vontade
de fazê-lo até então.
Mas, nesse momento, eu precisava me salvar, tinha que sobreviver.
Foi isso que eu pensei na época, agora eu precisava ver em que
enrascada aquela diaba se meteu.
Aquelas centelhas de luz se combinaram até atravessarem meu peito
e banharem a fechadura. Senti meus membros tão aquecidos que comecei a
chorar como eu fiz tantas vezes nos dias que se sucederam em meu
cativeiro, até que tive coragem de voltar a viver de novo.
Enfrentaria meus temores para cumprir minha promessa. Dei uma
última olhada ao redor, pensando que encontraria Andrew em algum lugar
me observando reviver meus pesadelos como das outras vezes, uma vez que
ele sempre estava comigo assistindo ou surgia do nada quando acabava.
Mas aquela não era uma ilusão provocada por Irene. Não tinha
função de me machucar, mas de me lembrar.
Victoria não queria me destroçar. Ela só queria me recordar a quem
eu devia e fizera um bom trabalho.
Mas era um sonho forçado de qualquer forma e eu tinha certeza de
que Victoria o tinha mostrado a ele, mas me poupou de vê-lo aqui.
Escorei minha cabeça na parede atrás de mim, respirei fundo, me
ergui e caminhei acompanhando os raios de luz até que alcancei a porta e
abri meus olhos. Ainda estava naquele cantinho do mundo dos sonhos que
me refugiei com Andrew para nos esconder dos olhos de farol de Irene.
Victoria sentava-se ao meu lado da cama, olhando ao relógio de
pulso como se eu tivesse demorado demais e ela tivesse mais coisas para
fazer.
Me virei para Andrew e ele esfregava os olhos com força, eu me via
quebrada ao vê-lo desse jeito. Toquei em seu ombro querendo dizer que
aquilo acabara, eu estava aqui e tudo ficaria bem.
Fora difícil no inferno e o havia sido antes dele, mas acabara.
— Não querendo quebrar esse clima romântico todo aí. — Ela
pigarreou. — Embora creia que interrompi coisa pior antes, você não quer
sair daqui não?
— A pergunta mais idiota que já ouvi — resmunguei, erguendo-me
e me sentando na beira da cama acompanhada de Andrew, uma mão no
colchão e outra na coxa dele.
— Eu não acho, uma vez que já devia ter saltado e quebrado esse
quarto. Lugarzinho mais sem nada — reclamou Victoria fitando as paredes
vazias que eu erguera para nos proteger.
— Desculpe interromper, mas, Emma, não consegue — Andrew
respondeu por mim.
— Como não? Depois do que ela fez com você acredito que parta
essa dimensão em duas. Mas talvez não precise, se demorar muito a bruxa
os alcance e traga amigos.
— Ela só... — Andrew engoliu em seco um segundo e passou a
língua nos lábios secos, meio sem jeito de explicar o que fazíamos naquele
quarto. — Impedindo que eu seja sacrificado para abrir as portas do inferno.
Ele soltou de uma vez seu possível destino contado por mim e
Victoria mordeu os lábios inferiores, sacudindo a cabeça no processo antes
de iluminar as ideias de Andrew como fizera comigo naquela cela.
Infelizmente.
— Rapaz, que tipos de mentiras essa bruxa anda te contando? — Ela
alisou a testa com um dedo antes de mirar aos olhos chocados de Andrew,
depois acenando para mim como se me congratulasse pelo bom trabalho de
ser uma mentirosa. — Essa prisão já está sendo mantida pelas chamas do
inferno para ser bem clássica em minha explicação.
— Não entendo — Ele virou-se para Victoria e depois voltou-se
para mim com as sobrancelhas formando uma curva muito ansiosa e
acompanhava sua boca formando um círculo perfeito de choque. — Emma,
o que está acontecendo?
Foi Victoria que respondeu.
— A casa que seus corpos estão lá fora, já está sob um portal para o
inferno — Victoria falou pausadamente e vi o rosto de Andrew se tornar tão
pálido que perdera todo o bronzeado dos anos de sol de Miami.
— Eu posso explicar — sussurrei, sem encará-lo —, mas vai ficar
para depois.
Saltei da cama, mas não antes de lançar um olhar mal-encarado para
Victoria, que só fez me devolver um estreitar de olhos ainda pior e mostrar
sua arma em uma ameaça nada velada. Ela pagaria por ter a língua tão solta
um dia e, sim, era uma maldição que eu lançara.
Victoria Miller desejo ótimos pesadelos para você. Divirta-se com
essa coisa em seu corpo, essa certamente é sua pior maldição.
Mulher desagradável.
Eu desejei que os deuses olhassem por mim e acabara por receber
uma enviada deles. De repente, eu tinha novos desejos, eles podiam estar
todos extintos que não fariam diferença.
Me movi para o centro do cômodo, ergui meus braços e uma energia
similar, contudo, diferente do colar das almas humanas passara a circular
pelo meu corpo.
Mais furiosa e quente.
Apesar do mesmo tom avermelhado que eu vira naquela memória
do inferno ser emitida pela joia dos humanos.
Só que eu exalava, nesse instante, era o próprio fogo do inferno.
Evitei aos olhos de Andrew quando deixei que o poder me
envolvesse por completo e rodei pelo cômodo, saltando e queimando
aquelas paredes, fulminando aquele pequeno circo de terror que Irene criara
para me tombar.
Mas surpresa! Fiquei mais forte em sua brincadeira tola de me ferir.
— Emma, pegue! — gritou Victoria quando a realidade começava a
se desmanchar e a sala girava em torno de nós, como se correntes elétricas
vibrassem no meio do fogo que lancei, desfazendo aquele plano e nos
libertando do mundo dos sonhos em definitivo.
Eu apanhei no ar o que ela me lançara e senti minha velha amiga
pulsar na palma da minha mão, fechei meus dedos em torno da joia e senti
seu poder emanar pelo meu corpo sem acreditar que ela estava comigo
novamente. Ergui minha cabeça e encarei Victoria, segundos antes de ver
seu sorriso desaparecer num ponto de luz dourada e sua voz ressonar um:
Lembre-se de suas dívidas antes que se fosse por completo.
E a insolente foi embora.
Retirava o que disse que não estivera ali para me destroçar, duvido
que ela não tivesse encontrado um passatempo divertido em rir da minha
cara.
Eu sempre pagava minhas dívidas. Não precisava de servas de
deuses para me recordar delas. Victoria invadira aquele lugar, no entanto
seu corpo não estava na casa de Scarlet para onde voltávamos e não nos
daria nenhuma ajuda.
Eu também não iria querer a ajuda daquela mulher. Nós nos
encontraríamos em outro momento e eu esperava me divertir da mesma
forma que ela fizera.
Abri minha mão e vi o colar que entregara a Camilla, estava grata
por tê-lo, mas não consegui sorrir com isso. O colar era para protegê-la e a
mulher se desfizera dele, ficara louca ou algo muito ruim perseguia aquela
diaba que preferiu trocá-lo por minha ajuda.
Ela a teria, mas antes eu precisava sobreviver.
Atei o cordão com a pedra dos humanos em meu pescoço e ergui
minha cabeça, percebi que estava mais uma vez na casa dos pais de Scarlet
cercada por velas já sem chamas, mas ainda exalando o forte odor de rosas
comum aos feitiços do coven de Irene e a escuridão que inundou a casa pelo
breu da madrugada.
Andrew se apoiava em meus ombros, um pouco tonto pela
passagem entre os dois mundos e mais confuso do que quando tudo
começou. Ele precisava de respostas que eu não queria nem poderia dar,
pelo menos não nesse minuto.
— Emma, voltamos? Essa é mesmo a casa de sua irmã? Não é como
a ilusão que estivemos antes? É a real? — soltou Andrew como uma
metralhadora logo atrás de mim, incerto de que ainda estávamos no mundo
dos sonhos. Mas guardou a pergunta mais perigosa para o final. — Do que
aquela mulher falava?
Meu amado tinha os olhos perturbados e parecia meio confuso, ele
mirava meu rosto pensando em perguntas que não diria, tentou algumas
vezes, mas acabou escolhendo palavras seguras e me deu a chance de
escolher as respostas que até mesmo essas eu evitei.
Dei uma boa olhada na ampla sala, os sofás de mogno, a arquitetura
antiga, o sofá caro e vermelho que eu me sentei em sua cópia no mundo dos
sonhos e o desejo de ter acabado com minha inimiga ainda mesmo naquela
dimensão pulsou no meu peito. Infelizmente, Andrew me impediu, mas
desse minuto em diante eu não permitiria que ele desse uma palavra a
respeito.
— É o mundo real e depois falamos sobre isso — murmurei, dando
um passo à frente. — E você, não saia desse círculo.
— Emma, que círculo? — Ele tentou me seguir, mas foi detido pelas
chamas que se ergueram em torno de seu corpo até quase o teto.
— Não faça isso — murmurou ele.
— Eu já fiz — sussurrei, à medida que me afastava dele e
caminhava para encarar minha nêmesis.
Não ouvi seus gritos que se sucederam em reclamação quando dei
uma olhada de esguelha em sua direção, nem meu nome mais em sua boca,
uma vez que ergui um segundo escudo como uma cortina de vento para
isolá-lo e protegê-lo até mesmo dos grunhidos que eu trocaria com Irene.
Fora eu que deixara assuntos inacabados com ela e era eu que teria
que resolvê-los, ou melhor, eliminar o problema.
Chega de causar danos a ele. Não mais iria por esse caminho.
Irene surgiu à minha frente num piscar tremeluzente que ganhou
forma aos poucos, ganhando consistência e se tornando tangível.
— Teve uma boa noite, Livia? — indagou a bruxa que eu devia ter
matado duas vezes, falhei e precisava arcar com as consequências.
— Teria sido perfeita, mas você apareceu várias vezes para
incomodar.
— Sempre desagradável.
— Faço o possível — repliquei, sacudindo minha mão em pouco
caso e deixando que algumas fagulhas brilhassem nas pontas de meus dedos
como uma ameaça que Irene comprou como: Comecemos a guerra.
Irene se ergueu do chão numa nuvem negra com raios platinados
cruzando seu interior como se ela montasse uma tempestade que inundou a
casa de fumaça negra, quase alcançando o teto, eu me engasguei um pouco
e tive que exercer um esforço extra para respirar com calma sem deixar de
mirar minha inimiga.
Seus olhos pareciam tão negros e fundos como duas covas, as
bochechas cavadas e o corpo magro sobre o vestido como se um cabide
fosse o que flutuasse pelo lugar.
Eu enviara Irene com vida para Damián, a menos que a tivessem
esfolado viva no inferno, aquela mulher que eu observava estava fraca
demais comparada a que eu enfrentara há quatro anos naquela casa
assombrada. Mesmo que já estivesse debilitada ali por não consumir
nenhuma criatura saborosa de aura premiada, como a minha por um longo
tempo, não era para ser o cadáver que flutuava por aquela sala.
Fixei meu olhar na joia das bruxas em seu pescoço o que elucidou
meus pensamentos, ela não era forte o suficiente para usá-la. Criei aquela
pedra somando a alma de Laura as que seu coven consumiu pelos séculos.
Bruxas que iam além das probabilidades que talvez tivessem sangue de
deuses, enquanto Irene nunca tivera muito talento ou poder.
Ela estava se matando e nenhum feitiço parecia mais capaz de
esconder a velha moribunda que tinha se tornado.
A mulher que nos recebeu e nos ameaçou naquela casa devia ser só
um feitiço de ilusão que não mais podia ser mantido depois de nossos
confrontos no mundo dos sonhos e com toda a força que ela estava gastando
no momento para me impor algum medo.
Mesmo que ela parecesse tão debilitada, não poderia desdenhar
tanto sua capacidade como eu fizera em minha vida como Livia. Cometi um
engano ao subestimá-la e poupá-la acreditando que fosse só uma mulher
tola que ouviu mentiras demais ao crescer no meio daquele coven, mas não.
Os pensamentos de Laura estavam profundamente enterrados no
coração de sua filha.
— Vejo que tem um amuleto também — indagou Irene.
Toquei a joia que repousava entre meus seios sobre o decote do
vestido.
— Pena que são só de almas humanas, não pode crer que seja tão
poderoso quanto almas de bruxas.
— Centenas de humanos não valem uma bruxa, é verdade. Que bom
que eu queimei uns milhares aquela noite.
Irene recuou assustada com meu feito.
Eu não queimara só meu vilarejo, o fogo se estendera por toda a
região, varrera os campos e quando chamei, as almas vieram até mim. Não
fora intencional, eu só queria eliminar aqueles que nos agrediram, até
porque esse foi meu acordo com Damián, as almas de todos para que ele
quebrasse o vínculo de Darío com o inferno.
Era certo que uma pessoa boa não o teria feito.
Embora não pretendesse ceifar tantas vidas, me faltava vontade de
libertá-las. Não quando me mantiveram segura no inferno por todos aqueles
anos macabros e eu ainda não sabia quanta merda mais cairia sobre mim.
— Podia ter sido tudo tão diferente se soubesse o seu lugar. — Ela
me olhou como se eu fosse digna de pena e eu o era, quando me rebaixava
para suportá-la, e tinha certeza de que essa mesma face cobrira meu rosto
quando a poupei no passado.
Para que ela viesse mais uma vez e me atingisse, torturasse Scarlet e
matasse seus pais. Eu não senti nada quando vi os Davis mortos, mas ver a
menina que passara meses ao meu lado me ajudando e ensinando sobre esse
mundo daquele jeito, me deixou transtornada a ponto de deixá-la ir. Minha
presença não traria nada de bom a ela, só meus inimigos bateriam à sua
porta.
Eu sabia qual era meu lugar, me mantendo longe de todos que eu
queria perto, já que se chegassem perto demais virariam um alvo para os
meus inimigos.
— Meu lugar? Qual seria? — debochei de sua loucura, enquanto
corria ao encontro de Irene, clamando pelo vento e deixando que me
envolvesse com ansiedade.
Encarei Irene em uma ameaça.
— Servindo a sua mãe até que me juntasse ao corpo dela como
todas as iguais a mim que vieram antes? Não, obrigada.
Meus longos cabelos flutuando como um véu de seda em minhas
costas, conduzidos pela magia do vento que me foi agraciada. As janelas se
partindo na aflição que as correntes de ar atendiam meu chamado e
avançavam ao encontro do meu corpo numa promessa de poder, o vidro
quebrado unindo-se à minha pele e provocando rasgos, enquanto eu era
erguida pelo vento até meu objetivo, o rosto de Irene.
O fogo crepitava ao meu redor e se alastrava pelos meus membros,
num estalar que ameaçava abandonar meu corpo a qualquer momento,
quando alcancei minha inimiga perdida em descrença ao ver as chamas que
me envolviam. Acertei-a com as pontas dos meus dedos que brilhavam a
união das labaredas do inferno ao brilho escarlate das almas aprisionadas,
marcando aquela pele com lacerações ferventes, tornando-a ainda mais
desforme do que sua própria falta de habilidade fizera a ela.
O poder que eu roubei fazia com que me sentisse tão forte quanto a
noite que queimei Trasmoz. Era quente e avassalador. A única bruxa
controladora de fogo que existira acabara de renascer.
Irene gritou e eu sorri, flutuando até o chão, abandonei o vento e
liberei o vidro que colara em meu corpo, deixando que ele caísse no piso,
cobrindo o ambiente com seu som agudo e levando uma boa quantidade de
sangue, o meu. Haveria tempo de me curar mais tarde, por ora eu me
cobriria de vermelho com o líquido escorrendo pelas feridas em minha pele.
Mas valera o instante de satisfação pelo grito daquela vaca em meus
ouvidos. Irene desabou ao chão e mantinha uma mão em seu rosto enquanto
agonizava de dor. Mas ao me ver andando até ela, o ódio cravou em seus
olhos como uma adaga certeira e a mulher resolveu fincar alguma coisa em
mim também, no caso um show de raios por aquela não muito apertada,
mas também não muito espaçosa sala.
Agradeci mentalmente por ter envolvido a Andrew com duas
barreiras protetoras, ele estava seguro apesar de andar de um lado para o
outro por sua prisão bem elaborada. Sorri ao vê-lo tentando gritar ordens
para que eu o soltasse, provavelmente, mas não ouvia nada e mesmo que o
fizesse, ele seria ignorado sem pestanejar.
Tudo que eu precisava era me controlar em saltar e flutuar no meio
do show pirotécnico de Irene e o maior evento da noite seria encerrado, ela
voltaria para o inferno onde era seu lugar e eu teria uma conversa
complicada com Andrew.
Eu devia me concentrar mais na luta, me distraíra, e Irene avançara
contra mim, se encontrava com aquela face medonha colada em meu rosto,
e eu tentei queimar só um pouco mais sua face, movendo meus dedos
ansiosos até ela. Talvez o fogo purificasse sua alma como aquele povo
sugeriu que seria feito por Darío, mas ela apanhou minha mão e a girou
para trás, terminando por chutar minhas costas e me levar ao chão.
— Por que nos traiu? Por que as matou? — esbravejou ela.
— Por quê? Talvez por não querer morrer para sustentar a juventude
de seu coven?
— Não sabe o que diz, iria cumprir sua função de nascença e fazer
parte de todas nós.
A bruxa se ajoelhou às minhas costas e eu senti a fisgada em minhas
costelas sendo partidas por seu joelho e trinquei meus dentes para abafar
um gemido de dor, mas me vi arfar quando sua palma tocou minhas costas e
eu soube o que ela faria.
Um raio cruzara meu corpo e eu gritei erguendo minha cabeça do
piso, contraindo meus músculos pela dor, antes que minha testa atingisse o
chão com força sobre as tábuas de madeira lisa e ouvisse Irene rindo às
minhas costas pelo sofrimento que me causou.
Eu não devia ter achado que isso seria fácil, minhas feridas eram
culpa de minha falta de cuidado. Ela estava usando energia do inferno tanto
quanto eu. Alguém a estava ajudando, a libertara do inferno e esse alguém,
definitivamente, me odiava.
Arrastei minha mão para o colar entre meus seios e me concentrei
num feitiço silencioso que exigia sua força e cura, o poder emanava da
pedra das almas e percorria meu corpo em ondas. A pedra parecia gostar do
tempo que passou no inferno, eu a sentia atraindo a energia das chamas
infernais para si e a incrementando antes que a enviasse para percorrer
meus membros, concentrando-se nas áreas feridas até que acabava fluindo
de volta para meu peito.
Eu sentia meu corpo latejando, porém, forte o suficiente para fazer
frente a Irene.
— Sabe como isso soa louco? Não sabe, né? — Me virei,
empurrando-a para longe de meu corpo, a dor da cura acelerada da joia e o
ganho de força extra cobrando uma agonia excruciante em meus nervos e
músculos. — Porque é mais louca do que eu.
Me arrastei de costas para longe dela, enquanto terminava de curar
minhas feridas. Irene caíra sobre a lateral de seu corpo com o empurrão,
mas já se erguia e me perseguia pelo piso, atirando seus raios pela ponta de
um único dedo em torno de meu corpo como se fossem as balas de um
revólver.
Não negava, era irritante.
Eu me movia e ela atirava. A sensação era de que se não me
movesse um segundo antes, ela me pegaria em cheio.
— É o que os deuses queriam, por isso deixaram gente como você
ao desaparecerem.
— Ah, sim. Claro que foi isso. — Deixei que escapasse de meus
lábios um riso irônico.
A joia pulsou em meu peito e a senti mais forte, alimentando-se com
minhas palavras dura, almas malignas gostavam de fúria e a deusa sabia que
não havia nada mais nefasto do que os aldeões que formaram aquela pedra,
talvez só mesmo os demônios que se juntaram a eles depois.
— Só me perdoe por preferir a versão de que sou fruto de alguma
trepada inconsequente com amazonas, sacerdotisas ou sei lá quem sejam
minhas ancestrais. — Dei de um sorriso cínico.
Não fazia caso de conhecer a meus ancestrais. Eles eram os
culpados de meus problemas e mereciam um soco na cara ou um punhal em
suas barrigas.
O segundo me parecia mais eficiente e adequado.
Não me importava de onde vim nem de onde provinha a magia para
derrotar Irene, de fato não tinha remorsos de ter criado a pedra em meu
pescoço matando todos do meu vilarejo, e não me causava nenhuma
angústia usá-los. Poder era poder, não importava a origem.
Então, deixei que me enchessem e tomasse seu espaço em meu
corpo e visualizei que sua força se concentrava em minhas mãos, eu podia
sentir o calor, as almas entre meus dedos, as obscenidades que gritaram
pouco antes de suas mortes, a raiva, o rancor e deixei que fluísse, como se
transpassassem minhas mãos.
— Uma mulher vulgar — lamentou Irene, olhando-me com asco.
— Não passa disso.
— Melhor do que pensar em ser criada com o fim de ser uma bateria
para que bruxas loucas recarreguem suas forças.
— Tão suja, a puta do demônio — cuspiu como se fosse uma
ofensa, mas Darío havia sido minha única alegria, na verdade, tinha sido
minha vida.
Suja era sua mãe que sabia de meus encontros e planejava roubar
qualquer poder que conseguisse dele.
Eu as desprezava mais do que tudo.
A amargura e o rancor ergueram meu braço contra Irene e só desejei
que ela queimasse, quando lancei uma rajada de fogo e vento que a cobriu,
levando os móveis com ela e destruindo boa parte da sala. Estava sendo
humilde, Irene atravessara as paredes de madeira girando no ar e deveria
estar na cozinha nesse momento.
Ou no vizinho. Pobres vizinhos fofoqueiros, talvez tivessem
recebido uma visita inesperada.
— E sim, sou uma vadia — rosnei em resposta —, e uma
verdadeira bruxa.
Impulsionei meu corpo sobre minhas mãos, erguendo-me rápido e
me preparando para os golpes que viriam. Felizmente, eu controlava melhor
os poderes e não queimara a casa inteira de uma vez como eu fizera quando
canalizara a energia do inferno da primeira vez. Naquela época só deixei
que meu vínculo com Darío permitisse que sua alma passasse pelo meu
corpo como uma explosão que mais parecia que eu havia aberto um portal
para o inferno.
Nenhum controle, zero direcionamento. Só a dor de vê-lo ir
tomando conta de meus sentimentos.
O treinamento forçado para me curar das surras de Baltasar no
inferno acabaram servindo para alguma coisa, sabia o quanto de energia eu
precisava para cada golpe.
Mas chamuscara um pouco demais os móveis mesmo assim, o papel
de parede parecia derreter e havia mais fogo pela casa do que eu poderia
imaginar com um golpe tão pequeno. Malditas casa modernas feitas de
madeira, se fosse de pedra não queimaria tão rápido quanto parecia que
estava acontecendo aqui.
Talvez devêssemos sair antes que uma viga caísse ou coisa do tipo.
Eu corria até Andy preso naquele círculo de fogo protetor e bem
diferente daquele que começava a consumir aquela casa, quando a poucos
passos dele uma pilastra realmente caiu ao meu lado. Eu sorri para Andrew
ciente da situação que nos encontrávamos e ele fechou a cara, apertando os
braços cruzados ainda mais fortes em torno de seu corpo.
O homem estava chateado, paciência. Eu tive problemas a resolver.
Ainda não muito solucionados, mas era melhor sairmos dali.
Abaixei a barreira e sorri para ele num acordo de paz a fim de
acalmar seus nervos, mas meu sorriso morreu quando seus olhos se
arregalaram e sua boca se abriu sem chance de me avisar a tempo.
Eu tombei entre seus braços mesmo tentando deter meus pés de
fazê-lo, o golpe foi forte demais. Eu não consegui evitar, mas devia tê-lo
feito.
Um raio que parecia ter se condensado em forma física atravessou
meu estômago e me fincou junto a Andrew, unidos pelo poder do colar de
Irene.
Não era essa ideia que eu tinha do início de um relacionamento, não
pretendia ficar colada a ele mesmo que tivesse unido nossas almas.
— Emmie, você está bem?
Eu me afastei um pouco dele, seu rosto franzido em dor e
perguntando por mim. Por que ele tinha que ser assim? Por que sempre
assim? Sangue escorria por seu queixo em uma linha fina, meus dedos
apertaram suas costas com mais força do que desejaria colocar neles.
Eu não estava bem, estava bem puta.
O ar ao nosso redor pareceu estalar com tanta violência que
consumiu todo o oxigênio e as chamas se apagaram pela casa. Meus cabelos
cobriram seu corpo com a fúria que tomou minha alma e vi toda a minha
raiva refletida nos olhos do meu amado.
O raio que nos perfurava desaparecera, o fogo parara de chiar pela
casa, mas uma coisa não cessara, o desprezo e a cólera que amargavam em
meu peito por tantos séculos.
— Hora de se limpar, Livia, já brincou demais com essas coisas
sujas quando fez voto de virgindade.
Castidade para acabar na cama do senhor do castelo como um
sacrifício antes do castigo final, sendo tragada nas mãos do coven dela.
Tantas requisições sobre mim, pena que nunca fui uma menina obediente.
— Andy, fique aqui — falei enquanto o deitava no chão, seu rosto
contraído em dor e sua mão em seu estômago. — Você vai ficar bem, vou te
levar para casa. Só fique aqui.
Me virei para Irene sob o comando da raiva, avancei sobre seu corpo
tão rápido que a assustei quando ela viu meu rosto tão próximo do seu. A
maldita dera um passo para trás com a intenção de escapar, mas eu a
apanhara pelo pescoço num aperto tão firme que minhas unhas faziam
vincos em sua pele.
Ela parecia sentir que seu fim havia chegado. Seus olhos
esbugalhados e suas mãos sobre as minhas tentando liberar meus dedos de
seu corpo que só faziam espremer sua vida entre eles.
— Vai me matar como fez com as outras? — Sua voz rouca se
fazendo ser ouvida num som engasgado. — É mesmo uma amaldiçoada.
Ela cuspira em minha cara com o nojo que sentira por mim, mas
esse não era o maior do que eu sentia por ela.
— Amaldiçoada? Acredito que vocês foram as únicas a sofrerem tal
destino. Tentando viver tanto quanto deuses, consumindo a todas que
pudessem chegar perto disso.
— Cale-se — ela ordenou, sufocando em suas palavras.
— Eu o fiz por muito tempo. Mas acabou.
Suas mãos agarraram meu rosto apertando minhas bochechas com
força, cravando suas unhas em minha pele, até que senti o sangue escorrer
por minha face, mas eu não a soltei de meu aperto.
— Acha que acabou. Você acha que eu o trouxe aqui por quê? —
Ela tentava rir, mas se engasgava com a saliva com a pressão que eu fazia
em sua garganta. — Você não me percebeu deitada na cama ao lado da sua
por tantos meses, como não me percebeu aquele dia na estação.
Não havia passagens.
Me sentia forçada a vir, mas não havia passagens.
E ela me espionava por meses.
A casa estava sob um portal para o inferno.
Alguém de lá a libertara.
Eu a encarei antes de estreitar meus olhos e deixei que o fogo
percorresse todo o caminho da pedra das almas pelo meu ombro, braço,
mão e terminando numa Irene em chamas que ria como uma louca pelos
seus feitos.
Se eu voltasse para o inferno essa noite, eu não me importava como,
mas me divertiria brincando de incendiá-la todas as vezes que colocasse
minhas mãos sobre ela.
As chamas brilharam tão alto e desceram queimando em fogo negro
e a levando para seu lugar devido de residência, o inferno. Eu esperava que
com um senhor que fizesse bom proveito e a mantivesse entretida pela
eternidade.
Você pode ser vingar do mau, sem se tornar parte dele?[61]
Aquela velha frase vinda de um filme que nunca me deixou e me
marcou tanto, saída da boca de um lunático, continha toda a verdade.
Eu pensei que sim, e que eu não era de todo má. Mas a resposta era
não. Eu me sujei. Me afundei em sangue até aqui.
Essas coisas nunca seriam mudadas mesmo que falasse que eu não
tivera escolha, porque eu tive. Eu poderia ter me conformado aos desejos do
coven, poderia ter aceitado minha prisão no inferno e o tormento que viera.
Eu não aceitei, mas sim revidei. Não era melhor do que eles, era
parte deles.
Mas não mudaria nada.
Agachei-me para pegar o colar com as almas das bruxas, era tudo
que sobrara de Irene, quando senti que o ar ficara mais pesado, meu corpo
travara naquela posição curvada e a centímetros do colar que talvez pudesse
me salvar.
Outra pessoa queria revidar e eu seria o alvo de sua vingança.
Eu sabia que se tocasse naquela pedra, a coisa em minhas costas me
mataria no ato.
Nesse momento, era como uma presa assustada sabendo estar na
mira de um predador.
O medo de ser atacada se me movesse vibrava pelo meu corpo e
travava minhas mãos que não apanhavam a maldita pedra, eu mandava que
meus pés se movessem e corressem dali, mas eles não se moviam.
Maldição! Meus membros pareciam congelados me impedindo de
botar uma distância segura entre mim e aquele animal.
De todos meus inimigos, a besta atrás de mim era o único que não
tinha certeza de ser capaz de vencer, mesmo com meus novos recursos.
Devia ter imaginado que era ele que ajudara a Irene, ninguém me odiava
mais.
Por que as coisas tinham que caminhar para isso? Por que eu tinha
que seguir Scarlet para aquela casa e acabar desse jeito de novo? Não era
para eu estar aqui e não devia ter ido atrás dele também depois de tudo.
Foi aí que tudo desabou.
Lutei contra o formigamento que tomava meus membros, erguendo
meu corpo, um pequeno respirar de alívio, havia sido só isso que eu tivera
tempo de sentir ao ver Irene queimar e descer até a sua definitiva morada.
Algo pior chegara e eu temia não ser capaz de combatê-lo assim como na
última vez que eu não consegui.
Ferida e exausta.
E ele estava mais próximo, respirava em minha nuca.
Eu não conseguiria lidar com ele, suspirei apreensiva, tocando ao
colar em meu peito com mãos inseguras tentando buscar alguma força ali
para lidar com esse novo e velho problema.
Virei-me aflita para combatê-lo e recebi o punho de Baltasar em
meu rosto, levando-me a inconsciência.

Acordei ouvindo gemidos sufocados pelo som de golpes sendo


desferidos com tanta voracidade que um bastaria para partir um fêmur e as
lágrimas vieram aos meus olhos, ao perceber que não era eu que emitia
aquele som angustiado. Eu queria que fossem meus todos aqueles
murmúrios de dor, não deviam ser dele, mas eram. Abri meus olhos para
ver Andrew ser batido como se fosse uma peça de carne, contraí meu corpo
com o terror que a cena me causava.
Havia tanto sangue, escorria de seu corpo pelo piso tingindo a
madeira clara até que ficasse rubra.
Minhas mãos foram para meu colar no pescoço, contudo, não o
encontrei.
Seu rosto em carne viva era tudo que eu via, um olho tão inchado
que quase não se abria. Como pude permitir que fizesse isso a ele? Era
minha culpa, só minha. Eu me ergui sobre a lateral de meu corpo
tensionando em saltar sobre Baltasar que o espancava sem piedade quando
vi aqueles lábios partidos formando palavras que eu não obedeceria.
Corra, Emma. Andrew dizia.
E a resposta era nunca.
Fitei aos olhos assustados de Andrew e me recusei a correr por mais
medo que percorresse meu corpo ao ter que enfrentar a Baltasar e sua
enorme massa muscular. Lembrei-me de como ele correra atrás de mim
quando abri meu caminho fugindo do inferno e só parara quando atravessei
a frente do caminhão do pai de Scarlet.
Ele se machucara um pouco ali.
Um sorriso cruzou meus lábios ao lembrar de como ele batera contra
aquele aço.
A satisfação durou pouco, logo Baltasar avançou contra mim,
espremendo-me na parede. Um choque tão grande que minha visão falhou,
eu vira tudo tão escuro como minha cela no inferno fora, quando o ar
deixou meu peito pelo impacto.
Implorei a deusa que Victoria tivesse a mesma pena que a fez me
procurar por Camilla e enviasse alguma ajuda para Andrew se eu caísse no
final dessa noite.
Eu dava a maldição que joguei sobre ela como retirada se o fizesse.
— Saudades, bruxa? — disse, cínico, tão perto de meu rosto que me
deu asco.
— De você? Nunca — rosnei, impulsionando meu corpo contra o
dele, tentando afrouxar seu aperto sobre mim sem sucesso.
— Eu te deixei quieta e até mesmo enviei Camilla para te amainar.
Achei que um dia devolveria meu filho de bom grado.
— Nunca o terá de volta — bradei pondo toda a minha fúria em
minha voz.
— Mas o que fez? Fugiu. E ainda me fez correr atrás de você.
— Gostou do caminhão? — murmurei, permitindo-me uma risada
que teria consequências, ele odiava que eu risse dele.
Um passatempo que eu amava e me garantira boas surras.
Baltasar me atirara ao chão como se eu fosse só um trapo.
Ah, a doce loucura que por vezes me tomava e me fazia dizer essas
provocações, quando não tinha um pingo de força em meu corpo para
disparar bravatas.
— Só uma coisa me conteve de parti-la em duas quando esteve sob
meus cuidados, eu queria que gerasse uma criança com Darío. Uma
descendência que passasse pelo ventre de alguém em que a energia dos
antigos deuses fluísse.
Parecia que todos tinham grandes planos intensos para nós. Éramos
o quê? Ah, sim. Fantoches.
Avaliava minhas possibilidades e engatinhava pelo chão à procura
dos colares com a alma dos humanos e das bruxas, enquanto ele continuava
seu discurso de como aprimorar sua linhagem se infiltrando na família dos
outros.
— Fui eu que enviei a você como menino. Sua deusa nunca ouviu
você.
Novamente, me via congelada.
Essa noite eu vira a serva de um deus. Eles estavam vivos. Passei
anos clamando por Artêmis e ela nunca me ouvira? Era isso aquele
demônio estava dizendo?
Eu reclamara que os deuses deviam pagar por nos abandonar, mas
estava errada. Eles deviam sentir um pouco que fosse do sofrimento pelo
que eu passei. Tomar ciência de que ainda estavam vivos por aí e nunca
fizeram nada por mim diante de minhas preces, eu implorei e só recebi
desprezo.
Só o asco e a repulsa poderiam descrever o que eu sentia.
Eu passara a maior parte da minha vida em celas. Vigiada,
espancada e temendo pela maldita vida que me deram.
— Pensei que assim seria mais fácil. Talvez esperar fosse melhor e
você pudesse produzir um exército com ele de bom grado. Ao contrário da
mãe dele, uma mulher tão fraca que se matou quando ele nasceu.
— Mas vendo o que ele se tornou por sua causa, fraco e inútil. Darío
não tem mais utilidade. — Ele fez uma pausa que me aterrizou como nada o
conseguira antes. — Voltarei ao início então.
Ele me usaria como fizera com a bruxa que dera à luz a Darío.
Inconscientemente, levei minhas mãos até onde devia estar o colar
dos humanos e seu peso quente era tão ausente quanto antes. Meus olhos
agoniados varreram a dimensão das pernas de Baltasar trajadas em couro e
tão largas como toras de árvores até que os vi ali, os colares presos entre o
cós de sua calça e sua blusa de seda negra.
Ergui minha mão convocando que retornassem a mim, mas eles nem
mesmo se moveram. A aura do demônio mais forte que a minha impedindo
que pudessem obedecer ao meu chamado.
Cerrei minhas mãos com a raiva que me tomava e senti a dor de
minhas unhas penetrando em minha pele, eu não conseguiria ganhar assim.
Eu precisava dos colares e eles não me obedeciam.
Um aperto no ombro, suas garras sobre minha pele, exatamente
como ele costumava me subjugar no inferno, o sangue escorrendo por meu
braço e sobre aquela roupa ridícula, tão desnuda e me expondo toda a ele.
Por que não desejei antes de voltar aqui a me vestir com minhas calças e
blusas de mangas? Não, estava com o mesmo vestido de pouco pano que
usara para seduzir a Andrew.
Oh, eu esperava que Andrew estivesse inconsciente e não visse isso.
— Você servirá a mim e me dará um herdeiro melhor do que ele —
Baltasar esbravejou, forçando-me contra o piso.
Eu nunca pensei que eu tivesse tido tanta sorte antes, acreditava que
minha vida fosse coberta de pesadelos e maldições. Mas eu sobrevivera ao
inferno sem nunca ter ouvido tal ameaça. Baltasar nunca se interessara em
me tocar. Sua corja era inferior e eu lidei com eles.
Estava fraca, sem nenhum amparo e sofria uma ameaça que soara
como um decreto. Eu preferia ouvir que ele quebraria meu pescoço, mas
não era esse o plano.
A bílis ameaçou deixar minha garganta. Não poderia trazer ao
mundo uma criança para sofrer como Darío o fizera.
Eu precisava matar a Baltasar, mas as ideias me fugiam.
Talvez o culpado fosse o terror que petrificava meus membros, eu
não podia fazer mais nada além de retesar meu corpo tentando fugir de seu
toque, quando sua mão avançara para o meu pescoço e colocara tanta
pressão que eu rezei que o quebrasse. Parecia que eu voltara ao inferno
novamente, quando me encolhia e aguardava que sua mão em meu rosto
cessasse e os xingamentos parassem.
Eu não podia resgatar esses momentos que me senti tão débil.
Precisava da mesma fúria que me tomou quando pisei fora daquela
cela que foi minha morada por tantos anos, quase sem luz, só lutar contra a
escuridão que me ameaçava me tomar por completo.
Não, a escuridão já me tomara muito antes. Já havia sido
aprisionada pelas trevas no primeiro dia em que desejei que o coven
padecesse sobre minhas mãos.
O inferno foi só onde me senti mais subjugada e humilhada, onde
quase toda a esperança me deixou.
Presa, torturada, lutando pela minha vida, enquanto a minha mente
se perdia a cada vez que a cela se abria.
Camilla aplacou a tortura, mas ainda foram tantos anos presa e
tantos que ela não esteve ali afastando as criaturas.
E eu continuei presa apesar de sua proteção.
A onda de raiva percorreu meu corpo por tudo que eu passara, pude
senti-la em meus poros e no sangue de cada demônio que derramei naquele
dia. Eu precisava desse mesmo combustível, foi ele que me guiara para
abrir meu caminho para fora dali, mas, nesse minuto, não vinha nada.
Eu só sentia o medo me abatendo, aquele eu sentia na infância sem
ninguém que me abraçasse e dissesse que tudo iria passar, ele só se
intensificara com o tempo, e era o mesmo que eu sentira na frente de
Baltasar.
Eu sempre tive um fim, ser usada. Pelas bruxas ou pelo inferno.
Qual seria a diferença?
E essa notícia espetacular, orei a uma deusa e fui atendida por um
senhor do inferno interessado em criar uma prole excepcional.
Ser usada e descartada.
Esses eram todos os planos que fizeram para mim. Escapei de um,
mas temia que dessa vez eu não pudesse fazê-lo. Por que eu deveria tentá-
lo? Não havia ninguém aí para mim lá fora.
Eu perdera Scarlet.
Eu perdera Darío.
Não conseguia manter ninguém ao meu lado, logo perderia Andrew
também.
Eu só queria perder minha vida enfim, mas não havia misericórdia
nesse mundo.
Baltasar se sentara sobre mim, prendendo-me no chão com seus
quadris, seu peso era demais sobre meu corpo, eu não conseguia me mover,
uma mão unia meus braços acima da cabeça e a outra permanecia em meu
pescoço, imobilizando-me tanto que eu respirava por arcadas. A exaustão
de lutar contra Irene cobrava seu preço, não tinha meu colar nem mais força
para fazer frente aquele monstro.
Eu só queria que me matasse, mas ele não o faria.
Desejava plantar uma criança em mim e me subjugaria na frente de
Andrew. Ele não poderia me engravidar sem a permissão de Artêmis, não
no território dos deuses, com o voto que eu fizera a deusa.
Mas ele me humilharia aqui.
Eu não queria que Andrew visse isso.
Gritei em minha mente e apertei meus olhos, numa tentativa de
segurar minhas lágrimas para não dar essa satisfação ao demônio, quando
senti o fogo crepitar ao redor de nossos corpos.
Não era eu. Não vinha de mim.
Os meus temores tomaram uma nova nuance, eu não queria o que se
seguiu. Meu pescoço sofrera um tranco quando Baltasar foi arrancado
brutalmente de cima de meu corpo e aquele por quem eu fizera acordos
escusos rompera com meus tratos.
O motivo de ter me mantido distante por tanto tempo, ele tinha asas
negras.
E envolveu um braço em torno do pescoço do demônio enquanto
voava, e o mantinha longe do chão, assegurando que não escapasse e
tivesse a chance de revidar. Baltasar se debatia, os dois batiam contra as
paredes, parte do teto caíra bem próximo de mim com os choques de seus
corpos contra a construção.
Eu nem me mexera.
Meus olhos cravados em suas asas que eu tanto amei e as queria fora
agora. A vida era injusta.
O demônio socava seus punhos contra suas costas tentando acertar a
cabeça de seu atacante, no entanto, o antebraço dele permanecia firmemente
pressionado contra a garganta do demônio e agitava suas asas travando uma
batalha de forças que impedia Baltasar de se libertar.
Um baque surdo, Baltasar caiu ao chão.
Sem a cabeça.
Eu me encolhi de tristeza pelo que ele fez, não pude evitar.
Estava feito e Baltasar estava morto.
Ele se virou, buscando-me com a preocupação brilhando em seus
olhos e me encontrou, assim como me vira da última vez. Ali naquele piso
ele via a mesma bruxa que chamara de amor e matara aqueles que lhe
fizeram mal, assim como ele acabara de fazer.
Darío matou o pai.
— Emmie, ele te machucou muito? — A dor em seus olhos
machucou meu peito.
— Estou bem, e-eu não queria que fizesse isso — choraminguei,
levando meu antebraço ao rosto a fim de cobrir meus olhos. Era muito triste
pelo que ele tivera que passar, por toda sua vida. — Eu não queria que
fosse assim. Nunca foi seu desejo tirar a vida dele.
— Sua vida é a única que me importa. — Darío ergueu a cabeça e
seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Tudo que passou, enquanto eu
estava ausente. Tudo que fez por mim, me salvou do inferno e foi
condenada a ele. Não podia suportar que Baltasar te machucasse mais.
— Eu escapei e o faria de novo. Sou sua doce vilã, lembra? Eu falei
que o mataria para você. — Deixei meus braços caírem ao meu lado,
desolada não pelo meu passado, mas pelo dele.
Darío largou a cabeça do demônio e ela rolou pelo chão, até que
alcançou seu corpo inerte e ali ficou. Meu amado tentou levar a mão ao
rosto e afastar a franja que cobria sua testa, mas viu o sangue e congelou.
Eu andei até ele, minhas pernas trêmulas pela mistura da angústia
que aquela batalha me causou e o alívio, pois poderia tocá-lo novamente
sem medo de trazer à tona esse lado dele que tentei manter oculto.
Mas não havia mais necessidade, ele estava aqui e de volta comigo.
Depois de tanto tempo, ele voltara.
Minhas mãos hesitaram antes de tocar as deles, ele me puxou
primeiro levando meus dedos ao seu peito e vi a tensão de seus ombros
relaxarem ao fazê-lo. Ele era meu sonho materializado diante de mim, mas
parecia que eu era a bênção que ele esperava.
Fiz o sangue que o marcava evaporar com o pouco do poder que
residia em mim, levantando uma pequena fagulha, limpando-o da sujeira e
o liberando do asco que o sangue de Baltasar em suas roupas e corpo
causava.
Joguei uma olhada ao que sobrara do demônio e o incendiei da
mesma forma, o fogo se extinguindo tão rápido quanto pude fazer
desaparecer aquela besta de uma vez. Nenhuma marca negra ficara no chão
com sua descida ao inferno. Isso era estranho, pensaria a respeito depois.
Nesse momento, estava atormentada com o fato de que tudo que eu
queria era que Darío nunca recuperasse suas memórias daquela vida e
vivesse como um humano feliz. No entanto, aparentemente ele vivera até o
momento com o medo guardado em sua alma de tal forma que só fazia se
esconder pelos cantos não sabendo exatamente o que tanto tinha que temer.
Darío ergueu sua cabeça e vi seus olhos verdes menta que pareciam
refrescantes para mim, aquelas íris aqueceram minha alma e eu empurrei
para longe de minha mente toda a dor que passei até esse dia.
Lembrei-me de nossos encontros escondidos nos campos de
papoulas e como eu me sentia pertencendo a alguém que me amava. Eu
podia visualizá-lo ali sob o pôr do sol, suas asas abertas, sua pele brilhando
e sua beleza se destacando mais do que as flores.
Laura e seu coven não tiveram minha alma, o inferno me quebrara
um pouco, mas por ele eu encararia o que mais que viesse atrás de nós.
Aquele rosto doce e delicado, um pouco diferente do passado, mas
tão belo quanto antes me faria enfrentar um exército se fosse necessário e
eu já o fizera uma vez, e não temeria fazê-lo quantas vezes fossem
necessárias.
Nada seria penoso o suficiente para me deter se eu pudesse protegê-
lo.
Eu só queria ter cuidado melhor de sua mente.
Ele tentou me abraçar e eu encolhi meus ombros, a culpa tomava
meu peito.
— Andy, eu sinto muito por você ter passado por isso — engoli em
seco —, matar a seu pai, eu não queria isso.
Meus ombros se encolheram mais ao pronunciar tais terríveis
palavras e ele os segurou com o mesmo carinho que eu reconhecia de antes.
— Emma, ele não é meu pai. Que pai se alegraria de contar ao filho
como sua mãe chorava por estar carregando um demônio em seu ventre e
como ficara acorrentada desde que fora capturada, até o dia do meu
nascimento que caí no chão duro das pedras de sua cela.
— Eu sinto tanto...
— Aquela bruxa tentara me alcançar de toda as formas com suas
pernas para me enforcar e não permitir que uma atrocidade como eu
pudesse viver. Foram com essas palavras vibrando em meus ouvidos que eu
crescera.
Ele pestanejou um pouco, olhando ao longe por cima de meus
ombros.
— Eu só queria que ficasse seguro.
— É tudo para mim, Emma. Eu desejei não ter nascido até o dia que
você me invocou em seu quarto e me deu um motivo para viver.
— Eu devia ter te protegido melhor.
— Emma, você mudou meu destino, negociou a liberdade da minha
alma e que eu nascesse numa família feliz. — Seus olhos se estreitaram.
— Me encheu de alegria ver que era amado. — Esfreguei minhas
mãos em meu rosto e o senti massagear meus ombros para me consolar.
Eu quis chorar mais, ele não merecia tal tratamento que tivera no
passado e eu não queria que essas lembranças o atormentassem.
— Meu pai não é o monstro que tentou violar a mulher que eu amo
na minha frente. Meu pai é o cara que colocava biscoitos e um copo de leite
do lado do meu computador quando eu era um menino e o continua
fazendo.
— Andy, eu me sacrificaria mil vezes para te dar essa vida, foi tudo
que pensei, desde que te conheci, te libertar... e me libertar no processo. —
Colei meu queixo no peito. — Não sou boa, eu falei.
— Nunca conheci ninguém melhor que você. — Movi meus olhos
para ele, meus lábios trêmulos.
Por que eu queria acreditar naquilo quando era uma mentira?
Aqueles olhos de menta amados tinham a resposta, eu queria ser boa para
ele.
— Me perdoe por não contar minha real situação, eu não tive
coragem de dizer que estava tão presa como você quando nos
encontrávamos no passado.
— Presa... Emma, você, sua mente e seu corpo foram torturados. E
me libertar, só fez seu tormento aumentar, trocou uma cela por outra pior,
por mim.
Suas mãos me apertaram com mais força, a tensão em seu corpo que
eu queria apagar de sua existência. Só o queria tranquilo e feliz, sem
nenhuma preocupação correndo em sua alma, mas não havia feitiços no
mundo que pudessem fazê-lo. Nossos nascimentos nos destinaram a
tragédia, mas tudo que eu queria era encontrar nossa felicidade.
— Não nego, o inferno não foi uma estadia tranquila. Mas eu estaria
morta se não o tivesse encontrado. — Guiei uma de minhas mãos ao seu
queixo, tocando-o com gestos delicados. — Então, não sofra tanto por meu
passado. O inferno foi fácil comparado a crescer pensando que tão logo
fosse forte o suficiente, eu estaria extinta. Não morta, extinta, porque até a
minha alma seria consumida.
— Emma...
— Não foi por sua culpa que tive pensamentos ruins, não foi por sua
culpa que fui para o inferno, algo de mau sempre rondou minha mente e
tramei muitos modos de fuga e de como poderia torturar o coven mesmo
antes que aparecesse.
Ele tentou me interromper, mas não permiti. Andrew precisava
ouvir essas verdades, mas do que eu precisava aceitá-las.
— Se pensa que me corrompeu, está enganado. Minha alma já
estava aprisionada pelas trevas muito antes de que eu sonhasse encontrar
você. — Mirei ao chão, evitando seus olhos. — Talvez se você não tivesse
vindo a mim, eu seria ainda mais cruel.
— Você não precisava de um encontro com um demônio para tornar
tudo pior...
— Aí que você se engana, você disse que me encontrar te fez querer
viver, pois bem, amar você me fez sobreviver a Laura, ao Baltasar e a toda
merda que tentou me derrubar. Eu teria me deixado afundar se te encontrar
e te proteger não estivesse na minha agenda.
Desejei que tivesse resistido ao meu desejo de vê-lo de novo, tivesse
me mantido longe de Miami, mas como poderia tê-lo feito? Quando tudo
que me moveu até então havia sido ver seu sorriso novamente e me garantir
que era feliz.
Ao menos eu devia ter mantido minhas mãos para mim mesma e o
vigiado a distância, permitindo que Andrew tivesse a vida que eu me
sacrifiquei para lhe dar, mas me perdi no dia que ele me encarou naquele
campus tão chocado e exalou um suspiro de alívio como se sua alma
reconhecesse a pessoa que ele esperava.
Só desejava que ele não temesse mais nada no futuro. Não fugiria
mais do que eu fiz, nem tentaria afastá-lo mais. Não quando tudo que eu
quis desde aquele dia que o vi nos jardins de palmeiras da universidade foi
me jogar em seus braços.
Eu o faria desse momento em diante.
Não me seguraria por mais nenhum segundo.
Decidi já me atirando em seus braços e saltando sobre seu corpo,
envolvendo seu pescoço num toque protetor e cruzando minhas pernas
firmemente em seus quadris, em troca recebi suas mãos em um aperto
necessitado que me afundava mais em seus braços como se eu fosse um
presente precioso que demorou a chegar. Ergui meus olhos e vi aquelas asas
negras nos cobrindo como se pudessem criar um muro entre nós e os que
viriam nos caçar.
Encostei minha testa na dele, pensando em conter minhas lágrimas,
mas aquilo que ouvia não era eu, era o choro baixinho de Andrew deixando
que suas lágrimas banhassem sua face.
Levei minhas mãos até seu rosto e o amparei, fazendo que me
olhasse nos olhos e pudesse confirmar algo que sabia que não era verdade,
mas que eu lutaria para que fosse.
— Acabou.
— Não minta, Emmie — ele murmurou antes de dar um sorriso de
lado. — No fim, estavam mesmo planejando me levar para o inferno e vão
vir mais no meu encalço. Sua brincadeira sobre sacrifícios de virgens não
era de todo mentira.
— Sinto muito sobre isso, Irene esteve me vigiando em Miami e
descobriu sobre você. — Mordi meu lábio inferior, envergonhada de
confessar minha traquinagem sobre sua virgindade e sua possível ida ao
inferno. — Mas eu não imaginei que você era o alvo e ela estivesse sob
ordens de Baltasar.
— Você me fez passar um mau bocado.
— Precisava de livre acesso para canalizá-lo e ter mais forças para
enfrentar a Irene, então só me restou vincular nossas almas novamente.
Consegui um pouco do fogo de sua aura e quebrei os ossos dela no mundo
dos sonhos por te estado te tocando antes, mas não seria o suficiente com
ela usando aquela joia.
— Podia ter me falado.
— Como? Se eu não estava pretendendo contar absolutamente nada
do passado? — respondi, consternada. Aquilo nunca passou por minha
cabeça.
Um tapa na bunda foi uma correção merecida por tudo que aprontei
ultimamente.
— Não faça mais nada assim. O que vamos fazer contra as bestas
que vierem? — questionou, seu semblante preocupado.
— Daremos um jeito. Somos dois azarados fugitivos do inferno,
mas vamos ficar bem.
— Certo, só me prometa que nunca mais vai me afastar.
— Acho que não tenho mais escolha. Você descobriu tudo! A menos
que eu apague suas memórias — Não era uma má ideia. Me peguei
observando a penugem negra de suas asas e tratando de pensar num meio de
fazê-las desaparecer junto com suas lembranças.
Outro tapa na bunda e suas sobrancelhas loiras franzidas.
— Ah, está bem. Vou riscar essas coisas da minha cabeça. Ficarei ao
seu lado mesmo que sejamos cobertos pelas chamas do inferno e acho que
posso pôr a prova essa promessa. Satisfeito?
— Intensamente — murmurou Andrew.
— Se é assim, acho que podemos intensificar mais.
Uni meus lábios aos seus com a sede contida pelos anos que só a
lembrança daquele amor proibido me mantinha viva naquela cela, enquanto
aguentava a solidão, os espancamentos e as ameaças constantes exigindo
por seu paradeiro.
Eu nunca teria colaborado para encontrá-lo. Nenhuma atrocidade
fora o suficiente para que eu o entregasse a eles, meus lábios ficaram
selados, até que não resisti por buscar os dele novamente.
Aquele doce roçar que vinha antes que sua língua encontrasse a
minha, suavemente num movimento demorado e insistente, fazendo-me
abrir mais meus lábios para recebê-lo.
Eu senti tanta falta dele. Andrew não era uma besta do inferno, ele
nunca foi.
Ele era só um anjo nascido no lugar errado e que eu resolvi capturar
para mim e ficaria cativo enquanto a luz brilhasse em sua alma.
Com essa decisão permiti que o fogo emanasse por meus poros, um
presente de nossa união, que destruiria aquela maldita casa de uma vez por
todas. Aquele lugar não tinha uma energia boa, marcada por tanta energia
demoníaca aquela noite. Era melhor que viesse abaixo.
Perdida nos lábios de Andrew, encontrei forças para dar uma
espiada no cômodo, observei o fogo envolvendo tudo e tragando aquelas
paredes de madeira, enquanto eu era consumida por outras chamas que me
sustentavam em seus braços.
Logo teríamos que procurar outro local para terminar nosso pequeno
ato amoroso, mas, por ora, eu não queria me mover muito.
Avistando as colunas enegrecidas daquela maldita casa que se
recusaram a se curvar mesmo debaixo das chamas do inferno, eu franzi as
sobrancelhas esperando por algum passe de mágica que faria a construção
brotar novamente como uma afronta. Felizmente, os destroços carbonizados
permaneceram inertes, a magia que brincou com minha mente a noite
inteira parecia morta e isso era um alívio.
Irene se foi e eu era a última bruxa descendente das antigas
amazonas, talvez a única descendente dos deuses que sobreviveu e apesar
de ameaças sobre punir os deuses pelo meu sofrimento, eu esperava não
encontrar nenhum deles por aí.
Andrew abraçou minhas costas e mordi meus lábios diante da minha
hipocrisia, eu gostaria de me ver o mais longe de problemas que pudesse e
já teria muito trabalho me mantendo longe do inferno.
Quem iria querer mais problemas te perseguindo? Imaginava que
ninguém.
Já bastava ter visto a emissária de um, Victoria era insuportável. Ela
se parecia comigo, uma versão pior, talvez. Não pude deixar de sorrir com
isso, apesar de ser mais detestável do que uma bruxa, estava me incluindo
nisso, ela me ajudou. Mas se pudesse evitar, preferia que se mantivesse
longe, o máximo de distância que pudesse colocar entre nós.
Me virei nos braços de Andrew e ofereci meus lábios que ele se
apressou em beijar. Esperava que fosse assim desse segundo em diante, eu
oferecesse minha boca e ele cumprisse com a sua obrigação de me mimar.
— Emmie, você acha que vamos ver aquela mulher de novo?
— Fala de Victoria?
— Ela mesmo, uma mulher muito esquisita. — Ele fez uma careta.
— Me dá medo.
Afundei meu rosto em seu peito, eu era mais parecida com Victoria
do que gostaria de admitir, mas a mim ele nunca temera.
— E você tem dúvidas? — debochei, deixando escapar uma
pequena risada. — Rezo para que nunca mais cruzemos o caminho dela,
mas não sou tola para pensar que isso irá acontecer.
— Apesar de tudo, ela ajudou um bocado te entregando seu colar.
— E encheu minha cabeça de aborrecimentos no processo. — Me
afastei dele, cruzei os braços o que acabou destacando meus seios e percebi
que Andrew acompanhara o movimento. — Mas tudo bem, ela tem razão,
sou uma pessoa vil e só me importo com meus próprios interesses e não vou
negar fingindo ser uma alma doce.
— Fico feliz de ser um dos seus interesses — disse, puxando-me
para os seus braços e beijando o topo da minha cabeça. — Ela sugeriu que
rolávamos na grama e realmente o fizemos várias vezes no passado. Acho
que podemos providenciar que isso se torne algo comum. Vejo grama verde
ali na frente, tem até umas florezinhas.
— E eu acho que lembrar do passado te deixou muito abusado.
— Não, só recuperou uma parte minha que fazia falta.
Ele tocou minha cabeça com aquele queixo pontudo.
— E qual seria essa? — perguntei, beijando seu peito.
— Você, a parte mais importante — Andrew afirmou, estreitando-
me mais em seus braços, suas asas cobrindo minhas costas.
Isso era tão deliciosamente bom. Podia ficar assim para sempre, mas
tínhamos que nos colocar em movimento em breve.
— Ah, por um segundo pensei que a parte mais importante fossem
suas asas.
Virei minha cabeça e encontrei seus olhos sorridentes.
— Claro que não, mas estou contente de tê-las de volta. Assim,
posso me proteger sozinho e dar algum apoio a amazona lutadora aqui. —
Ele apalpou minha bunda e era esse o único suporte que eu gostaria dele. —
Isso é estranho, ao mesmo tempo em que lembro ser Darío, ainda fico
excitado em pensar que estou namorando uma amazona.
— Você é Andrew agora, mesmo que se lembre do passado.
— Devo continuar te chamando de Emma, então? Me afeiçoei a
esse nome depois dele rolar em minha língua em tantas noites nesses três
anos, enquanto demorava a dormir pensando em você.
Dei um salto dando um beijo leve nos seus lábios.
— É exatamente assim que eu quero ser chamada, um nome que eu
mesma me dei.
— Não sabe como me sinto ridículo de sentir ciúme com você
dando um show comigo no passado — comentou e seu rosto corou
constrangido.
— Foi a mesma coisa que pensei quando você começou aquele surto
todo, sendo que estávamos com problemas maiores.
— Isso não aconteceria se você falasse a verdade.
Emiti um pequeno gritinho quando ele me apanhou pela bunda e me
ergueu sobre seu corpo, apoiando-me sobre seus quadris. Ele deveria parar
com isso ou estaríamos mesmo rolando pela grama em breve.
— Acho que podemos começar de onde paramos antes de vir para
essa cidadezinha — afirmou ele.
— E isso seria onde?
— Minhas tentativas persistentes de te chamar para sair? Que tal um
cinema? Aceito ver os filmes trash que você gosta tanto — brincou ele,
beijando meu pescoço e se demorando num ponto que me colocava
particularmente sensível.
— Está ótimo pra mim. Acho que te devo isso.
— Ah, você me deve muito mais, Emma. Acabo de compreender a
origem dos meus problemas com garotas, você me amaldiçoou em nossa
primeira união, mulher.
Ele fingia um falso olhar irritado.
— Confesso que fiquei surpresa o quanto esse feitiço perdurou. —
Não resisti em jogar minha cabeça para trás, rindo em seus braços e ele
beijou meu pescoço em um adorável castigo. — Mas não pedirei desculpas.
Esfreguei meu rosto em seu peito apreciando seu cheiro que eu era
livre para absorver agora, o mais profundo almíscar que não o abandonou
nem mesmo em outra vida e vivia exalando ao meu redor onde quer que me
perseguisse.
— Sem desculpas, só pague pelos seus crimes contra a minha
pessoa.
— Acho que posso começar a pagar indo ver um dos filmes de
super-heróis que você gosta tanto. A propósito, eu só brincava com você em
relação às camisetas. — Parei e dei uma bela olhada na camisa preta de
seda que se esfregava em meu peito.
Ela não desapareceu até o momento, apesar dos cortes em suas
costas por onde suas asas brotaram num facho de luz, mesmo que eu esteja
sem forças para manter essa magia e o máximo que pude fazer foi curar
nossas feridas, enquanto meu vestido se foi e eu voltei a usar as calças e
blusa negras de quando chegamos. Talvez ela tivesse permanecido dado a
minha vontade de vê-la nele, lembrava-me um pouco as roupas que ele
usava no passado.
— Sério? — O sorriso de Andrew se expandiu com minha oferta e
minha confissão.
— Sim para o filme e as camisetas. Eu tinha a minha cota delas aqui
na cidade também, mas acabei deixando-as quando fui expulsa da casa dos
Davis.
Senti seus braços se apertarem em minhas costas.
— Comprarei novas para você — ele assobiou alto. — Acho que
vou começar a publicar alguns Webcomics[62] que venho trabalhando e
tentar a sorte. Mais fácil do que tentar emprego diretamente nas grandes
editoras de HQs. Vai que dá certo?
— Tenho certeza de que será um sucesso.

Ficamos um tempo sentados no carro observando as cores um pouco


mais frias do que as de Miami tingindo o horizonte, enquanto pensávamos
no que faríamos dali para frente. Bem, Andrew devia pensar isso, eu já
sabia o que teria que fazer.
Porém, uma coisa me perturbava no colar que Victoria me entregou.
Eu olhava para a esfera, que recolhi do incêndio com atenção, e percebi que
o objeto guardava diferenças da que pertenceu à Irene e repousava em meu
pescoço.
No que Victoria me deu faltavam lascas, a esfera já não era mais
perfeita. Senti meus lábios se curvando num sorriso zombeteiro.
Diaba, danada. Ficou com pedacinhos da joia para ela. Boa garota,
espero que tenham sido úteis.
— Então, voltamos para a universidade? — Andy questionou com
sua sobrancelha curvada, como se ele não soubesse a resposta.
— Sinto que por ora não posso voltar — Apertei meus lábios com
força. — Preciso ajudar minha amiga, Camilla, sem ela eu não estaria aqui
e, ironicamente, talvez não tivéssemos sobrevivido se ela não enviasse meu
colar. Não que seja um sacrifício abandonar o curso, só me matriculei
porque você estava lá. — completei, amarrando a joia junto a das bruxas em
meu pescoço.
— Então é isso. — Ele suspirou conformado e relaxou os braços ao
volante. — Já sabe para onde vamos?
— Andy, não precisar ir comigo. Pode terminar as suas aulas e se
formar.
— Emmie, olhe para mim. Não tirarei minha vista mais de você, irei
onde você for, entendeu? Não poderá mais me afastar nessa vida, não
importa quantos feitiços faça.
Me senti iluminar com sua declaração, eu decerto não pretendia me
livrar dele nunca mais. Mas eu precisava mesmo ir até Camilla e quanto a
faculdade, ainda tinha o pequeno problema da mentira que inventara para
Scarlet, eu me dei como morta.
Talvez não pudesse regressar a Miami ou não o poderia fazê-lo
como Emma Davis, mas deixaria isso para depois.
Toquei aos meus colares e senti a presença de Camilla vindo mais ao
norte dali, exatamente onde ela me disse que estaria. Teríamos uma longa
viagem pela frente e eu esperava que aquela diaba aguentasse tempo
suficiente até que chegássemos lá.
— Então, pegue a estrada, garanhão, os ventos nos levarão para
Chicago.
— Certo, estamos a caminho para mais muitas horas de viagem.
Espero que o carro não quebre dessa vez.
— Bem, sempre podemos parar em um motel na estrada e talvez
tenhamos um pouco diversão dessa vez.
— Sabe, acho que precisamos de uma parada até lá com o carro
quebrando ou não, são o quê? Mais doze horas até Chicago?
Apertei sua coxa num incentivo que temi que suas asas saíssem
dentro do carro, o que não impediu que eu desse uma leve gargalhada, ao
perceber que outra coisa havia tomado vida. Mas não me movi, deixei
minha mão repousar ali.
A falta que eu senti dele foi além de uma ferida emocional, chegou
bem perto de ser uma dor física, e foi uma grande tortura vê-lo todos os dias
na faculdade e não poder tocá-lo. Havia sido quase tão ruim quanto o
inferno. Porém, permaneci rígida em me manter afastada até que as
circunstâncias estragaram tudo e as coisas ruins o alcançaram novamente.
Mas mesmo naquele tempo eu não podia me impedir de ter meus
sentimentos balançados toda vez que ele me cercava pelos cantos.
Eu falhava completamente de manter a vigília distante e fria em
relação a ele.
— Eu retiro o que disse antes naquele carro no Cinema Drive-in, eu
nunca quis estar sozinha. Os anos foram tão difíceis sem você.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas e elas ameaçaram a cair
quando sua mão cobriu a minha, mas me mantive firme, encarando-o,
sustentando seu olhar que parecia que iria desabar primeiro do que eu. Era
quase uma aposta, quem chorasse primeiro perderia.
— Se você não me enxotar, eu não pretendo ir a lugar nenhum.
Limpei minhas lágrimas com as pontas dos dedos e virei para frente
empinando meu queixo para cima antes de voltar a fitar seus olhos exibindo
meu melhor sorriso.
— Como não pretende ir a lugar nenhum? Temos uma diaba para
salvar! — Dei uns tapinhas de incentivo em sua coxa. — Vamos, você
dirige e eu faço mágica.
— O que você acha de comprarmos umas flores no caminho?
— Espero que não seja para o funeral de Camilla, pretendo salvar
aquela diaba.
— Claro que não. Pensei em dar um fim nessa história de papoulas e
eu te devo flores. O que acha de mudar o nosso símbolo de amor de uma
flor associada à morte e coisas ruins para algo mais doce? Que tal
orquídeas? Pesquisei no caminho para cá e indicam força. Combinam com
você.
— E significam também pureza espiritual e delicadeza, então não.
De forma alguma combinam comigo.
— Humm, deixe-me ver vamos de gérberas, então?
— Não estou certa, elas significam a alegria da vida. — Fiz um
beicinho, enquanto pensava. — Não tive muita felicidade até então, mas é
algo que eu quero. E elas vem em todas cores também.
— Está decidido! Comprarei gérberas. E como uma boa flor-do-
campo, não posso negar que me passam desejos de rolar por cima delas.
— Andrew, não acredito em você!
— Não há muito o que posso fazer se me trazem lembranças. — Ele
deu de ombros e exibiu aquele sorriso safado que parecia que seria
permanente desse momente em diante.
— Vou ficar feliz de provocar mais recordações mais tarde, além de
criar novas. — Pisquei para ele, fazendo charme. — Mas creio que chegou
a hora de pegar a estrada.
— Certo, conte comigo para cuidar de suas costas e de todas as
outras partes que você desejar.
— Sempre contarei. — Dei um aperto mais forte em sua coxa para
confirmar. — E sabe, até que essa noite não foi tão ruim. Tivemos um
pouco de doçura no meio antes de um fim de pesadelos.
— Por mais doçuras no futuro, minha doce vilã. — Andrew
acariciou minha bochecha com os nós de seus dedos e em sua face eu vi a
sombra de uma promessa.
— Andy, a propósito, como recuperou suas forças e memória para
me salvar?
— Creio que andei rezando demais, sinto muito. Não atraí só
Victoria. Ouvi em minha cabeça um: Vai deixar sua garota sofrer mais?
Não acha que está na hora de acordar? Ela adora rezar para nós. Resolvi
ouvir.
Estava muito ferrada. Nós estávamos.
— Então foi isso, uma luz dourada me cegou e senti meu peito
aquecendo. Depois só vi o que tinha feito quando você me encarou no chão
com aqueles olhos tristes e eu percebi o que fiz.
— Depois de todo esse tempo, eles resolveram ouvir. Isso me faz
querer me vingar. — Emburrei minha cara, esses deuses eram tão egoístas
como nos mitos. — Sabe, creio que teremos muitos problemas com quem
está aprontando conosco.
— Não seja assim, talvez seja uma amostra que não podemos perder
a esperança. — Ele deu sorriso que me lembrou ao rapaz geek fã de super-
heróis de novo. — Mas alguma ideia de quem seja?
— Infelizmente, eu tenho, mas trataremos disso depois. Um
problema por vez e agora resolveremos o de Camilla. — Suspirei. — Acho
que vou sentir falta da universidade. Eu reclamava, mas a vida era mais
fácil.
— É, acho que também sentirei um pouco de falta daquela rotina,
mas estou mais feliz agora que tenho você. — Ele acariciou minha mão em
sua coxa, apertando-me mais contra ele. — Mesmo que tenhamos que lidar
com bruxas, deuses e demônios loucos. Só espero que tenhamos alguma
pausa entre um tormento e outro — brincou.
— Sempre teremos, nem que eu tenha que nos prender num
quartinho de novo.
Andrew sorriu, apreciando minha ideia e ligou a ignição do carro,
nos levando para longe daquela cidade que eu esperava nunca mais voltar.
O carro passou na frente da igreja que eu mandei Scarlet correr e
pude ver a menina abraçada aos seus tios, eles não moravam na cidade. Mas
como eu pensava, vieram por ela. Cuidariam bem dela e isso me deixou
tranquila para buscar algo de bom para minha vida também.
Era uma pena não ter dado certo a minha vida como uma humana
comum em Cartersville, mas não condenava os Davis. Eles me ajudaram
num momento difícil e não tinham culpa de serem humanos medrosos,
talvez se não tivesse me afugentado, eu pudesse tê-los salvado. Mas já não
importava mais, só desejava que Scarlet tivesse uma vida tranquila longe de
mim e seus pais encontrassem no além a mesma paz que eu alcancei ao
recuperar minha memória e reencontrar meu amado, independentemente
das batalhas que enfrentaríamos no futuro.

[1]
Festa que surgiu com os celtas, povo que era politeísta e acreditava em diversos deuses
relacionados com os animais e as forças da natureza. Fantasias e festas eram feitas para afastar os
espíritos do mal.
[2]
Referência a Mulher-Maravilha, uma personagem fictícia de histórias em quadrinhos publicadas
pela editora americana DC Comics, sendo uma super-heroína grega cuja identidade secreta é a
princesa amazona de Themyscira, Diana Prince.
[3]
O nome da Emma foi inspirado no clássico Emma de Jane Austen. A fala da Emma desse livro se
refere ao comentário de Jane Austen referente a sua própria personagem que Emma é o tipo de
"heroína que ninguém além dela própria iria gostar muito". Entretanto, ela é irresistível, dona de uma
personalidade singular e capaz de despertar no leitor o amor e ódio ao mesmo tempo.
[4]
Agregação ou reunião de bruxos para a realização de rituais religiosos e ritos.
[5]
Emma se refere ao clássico da literatura de Jane Austen, nomeado Emma. O livro foi a inspiração
da autora para o nome da protagonista .
[6]
Perseguidor obsessivo
[7]
Festival em que se comemora a passagem do ano celta as boas colheitas e o início do inverno.
Coincidindo com o Halloween no hemisfério norte e sendo a origem da comemoração que também
era conhecida pela crença de que nessa data as almas dos mortos voltavam para visitar os parentes.
[8]
Personagem fictícia de histórias em quadrinhos publicadas pela editora americana DC Comics,
sendo uma super-heroína grega cuja identidade secreta é a princesa amazona de Themyscira, Diana
Prince.

[9]
Nação de mulheres guerreiras da mitologia grega. Referência a camiseta da Mulher-Maravilha por
ela ser uma amazona.
[10]
Como são chamadas as histórias em quadrinhos americanas.
[11]
Time de futebol da universidade de Miami.
[12]
Quando ocorre a pressão da defesa em cima do quarterback do time adversário que acaba por
derrubá-lo.
[13]
Estádio localizado em Tampa, Flórida. Lar da equipe de futebol americano Tampa Bay
Buccaneers e da equipe de futebol americano da Universidade do Sul da Flórida.
[14]
Liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos.
[15]
Fenômeno paranormal no qual a pessoa projeta seu eu em uma localidade distante do seu corpo
que permanece imóvel. Há relatos de ocorrer durante o sono, traumas e através de meditação.
[16]
A endzone é a área que se marca o touchdown no futebol americano.
[17]
Touchdown é a principal pontuação do futebol americano e consiste no atleta alcançar a endzone
do time adversário ainda com a posse da bola.
[18]
Termo comumente usado para pessoas muito dedicadas aos estudos, contudo pode ser
considerado pejorativo.
[19]
Referência a velocidade do Flash, um personagem fictício de histórias em quadrinhos publicadas
pela editora americana DC Comics. Possui poderes relacionados a super velocidade.
[20]
Termo mais usado hoje para fãs de tecnologia, eletrônica, jogos eletrônicos ou de tabuleiro,
histórias em quadrinhos, mangás, animes, livros, filmes e séries.
[21]
Frase do filme Coringa, 2019.
[22]
Aura é um campo de energia eletromagnética que envolve o corpo humano e todos organismos e
objetos físicos e etéricos do Universo.
[23]
Data que se origina das comemorações da fartura das colheitas. Feriado móvel nos EUA que
reúne a família na comemoração. Comemorado na quarta quinta-feira do mês de novembro, em 2022
aconteceu em 24/11.
[24]
Pessoa capaz de perceber e ser afetado pela energia de outras pessoas e podendo ter uma grande
variação de humor. Podem ser influenciados por sons, cheiros, lugares, animais, aspectos climáticos.
[25]
Cigarro do tipo kumbaya feito de camomila, rosas e menta. Alguns não carregam nicotina e são
menos nocivos que o tabaco, embora também causem danos ao corpo.
[26]
Identidade secreta do Super-Homem.
[27]
Personagem fictício de histórias em quadrinhos publicadas pela editora americana DC Comics,
sendo um alienígena com superpoderes.
[28]
Apelido dado a Miami pelo seu crescimento exponencial de mil habitantes para quase cinco
milhões e meio de habitantes ocorrido em 110 anos (1896-2006)
[29]
Estrada americana que liga Miami a Atlanta.
[30]
Técnica de costura que une diversos retalhos de tecido para formar um objeto maior. Levada para
a América durante as navegações se expandiu devido o quão raro e caros eram os tecidos. A técnica é
utilizada em todo o mundo, mas muito popular nos EUA.
[31]
Motel nos EUA é um hotel comum de beira de estrada, não um local propriamente para encontros
amorosos como funciona no Brasil.
[32]
Referência ao mito de Odisseu onde ele teve que buscar três de seus homens numa ilha ao norte
da África que não retornaram de sua missão de reconhecimento por terem perdido a memória ao
consumir a flor de lótus que era um alimento na ilha, mas apagava as lembranças.
[33]
Ártemis era uma deusa da mitologia grega relacionada a lua sendo conhecida como uma deusa
da caça, da vida selvagem, protetora das mulheres em trabalho de parto, da castidade e protetora das
meninas. Por seus feitos, é considerada a protetora das guerreiras antigas denominadas Amazonas.
[34]
Wicca é uma religião neopagã com práticas ritualísticas anteriores a era cristã com idolatria a
deuses antigos, crença no sobrenatural e nos princípios físicos e espirituais do feminino e dos
masculinos presentes na natureza.
[35]
Filmes e outras expressões culturais de grande popularidade.
[36]
Batman é um personagem fictício encapuzado de histórias em quadrinhos publicadas pela editora
americana DC Comics, sendo um super-herói cuja identidade secreta é o empresário Bruce Wayne.

[37]
Telecinesia é a capacidade de uma pessoa movimentar e manipular objetos ou pessoas a distância.
Considerado um fenômeno paranormal.
[38]
Referência A Bruxa Má do Oeste do livro O mágico de Oz, com nome de Theodora, em sua
encarnação boa era uma bruxa bela e bondosa que vivia sobre a proteção de sua irmã mais velha
Evanora (A Bruxa má do Leste). Originalmente, Theodora era boa, mas acaba corrompida por sua
irmã. Uma coisa que não muda nela é a intensidade de seus sentimentos seja movida por esperança
ou pelo ódio.
[39]
A Bruxa Má usa um campo de papoulas para fazer que Dorothy pegasse no sono com seus
amigos e não chegasse na Cidade das Esmeraldas no livro do O Mágico de Oz.
[40]
Referência aos sapatos vermelhos de Dorothy em O mágico de Oz.
[41]
Tipo de cinema que se assiste ao filme dentro do carro ao ar livre.
[42]
Filmes trash são considerados pelos críticos como filmes sem qualidade técnica ou visual.
[43]
Filmes sucesso de bilheteria e cheio de efeitos especiais. Intelectuais costumam criticar essas
produções considerando-as de menor valor cultural e mera distração.
[44]
A origem do termo é a nação de mulheres guerreiras da mitologia grega. Elas cultuavam os
deuses gregos e acreditasse que Artêmis possa ser sua protetora.
[45]
Carinho em espanhol.
[46]
Coração em espanhol.
[47]
Meu amor em espanhol.
[48]
Te quiero significa te amo em espanhol.
[49]
Comédia adolescente com vampiros estreada em 1985 por Jim Carrey na qual o protagonista é
caçado por uma vampira que precisa dele para conservar a juventude já que ele é o último rapaz
virgem na cidade.
[50]
Comédia trash de humor ácido de 1988. Elvira é apresentadora de programas de terror e deseja
trabalhar em Las Vegas, mas não tem dinheiro para a empreitada. A oportunidade surge com a
herança de sua tia-avó desconhecida, moradora de uma cidade no interior e também uma bruxa.
[51]
Fortuna versão romana da deusa Tique era deusa do acaso, da sorte, do destino e da esperança.
[52]
Referência ao filme Abracadabra da Disney de 1993 por ter uma bruxa voando atrás dela.
[53]
Referência a série de filmes Velozes e furiosos por estar metida numa corrida de rua.
[54]
Personagem fictício e vilão dos quadrinhos publicados pela editora americana DC Comics.
[55]
Cruella é a personagem do livro 101 Dálmatas adaptado pela Disney e recentemente adaptado
com o próprio nome da vilã numa história de origem. Andrew fez uma brincadeira por Emma estar
utilizando as cores da Cruella e não ser exatamente boazinha como a personagem.
[56]
Deus grego do sonho.
[57]
Deus grego do sono.
[58]
Deusa da magia.
[59]
Estatuetas de personagens famosos.
[60]
Magnum 357 é o calibre de revólver desenvolvido pela empresa armeira Smith & Wesson em
1935. Muito utilizado pela polícia americana e caçadores.
[61]
Coringa, filme de 2019

[62]
Quadrinhos que são publicados exclusivamente na internet.

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