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Souza-Quo VadisTecnociencia
Souza-Quo VadisTecnociencia
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Versão ampliada do capítulo convidado para a segunda edição do livro Ciência, Tecnologia e Sociedade:
o desafio da interação, 2002, pp. 275-328, em Lucy Woellner dos SANTOS, Elisa Eoshie ICHIKAWA, Paulo
Varela SENDIN e Doralice de Fátima CARGANO (Organizadores), publicado em 2004 pelo Instituto
Agronômico do Paraná (IAPAR), Brasil.
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Engenheiro Agrônomo brasileiro com Mestrado em Sociologia da Agricultura e Ph.D. em Sociologia da
Ciência e Tecnologia, ex-Chefe da Secretaria de Administração Estratégica da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), ex-Oficial Superior da FAO, e atual Gerente da Rede Novo Paradigma
para a inovação institucional na América Latina, do International Service for National Agricultural Research
(ISNAR). São José, Costa Rica, Maio de 2003.
Introdução
“Tudo que é sólido se dissolve no ar, tudo que é sagrado é profanado”.
Karl Marx e Frederick Engels, Manifesto Comunista, 1848.
Separadas por cento e cinqüenta anos, estas citações encerram um profundo conteúdo filosófico:
o significado de uma mudança de época histórica . Marx e Engels se referem à fragmentação
social, econômica, política, institucional, técnica, epistemológica, ética e espiritual gerada pela
mudança do feudalismo agrário ao capitalismo industrial. O Manifesto Comunista sintetizou em
1848 os devastadores impactos da sociedade capitalista industrial, que fragmentou o sistema de
idéias, sistema de técnicas e institucionalidade dominantes da época do agrarianismo. Em 1998,
a perplexidade dos Aymara emana do fenômeno que transforma a natureza de nossas perguntas
e respostas, problemas e soluções. As rupturas epistemológicas da mudança de época geram
uma crise de percepção ao fraturar a relevância de modos de interpretação e intervenção. A crise
de percepção dos Aymara resulta da fragmentação do sistema de idéias, sistema de técnicas e
institucionalidade da época do industrialismo. Eles assistem ao ocaso de uma época histórica e ao
alvorecer de outra que ainda não podem compreender.
Para representar a mudança de época iniciada no século XVIII, o título do livro do britânico
Christopher Hill é The World Up Side Down (O mundo de cabeça para baixo). O livro do uruguaio
Eduardo Galenano, que aborda a mudança de época iniciada na segunda metade do século XX,
se chama Patas Arriba (Pés para o ar). Ambos denunciam um mundo ao contrário do que era ou
do que deveria ser, revelando a crise de legitimidade — perda de vigência dos valores, princípios,
premissas e promessas — que caracteriza o ocaso de uma época. Estes livros descrevem a
fragmentação da coerência interna de famílias, grupos sociais, comunidades e sociedades, bem
como a perda de correspondência entre estes atores e seus respectivos contextos relevantes.
Durante a mudança de época a que se referem o Manifesto Comunista e o livro de Hill, a ciência
moderna ganhou legitimidade como uma ciência para a sociedade , uma ciência sem consciência
em correspondência com a indiferença do industrialismo emergente. Durante a atual mudança de
época a que se referem os Aymara e o livro de Galeano, a sociedade civil exige uma ciência da
sociedade, uma ciência com consciência em correspondência com a sustentabilidade do Planeta e
de “mundos” menos desiguais e mais justos e felizes. Este capítulo: (i) sintetiza um marco para
compreender a atual mudança de época; (ii) contrasta o modo clássico e o modo emergente de
geração de conhecimento; e, (iii) analisa mudanças nas relações ciência-tecnologia-sociedade. O
trabalho conclui sugerindo três cenários possíveis para a tecnociência da época emergente.
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Uma Época de Mudança ou uma Mudança de Época?
A busca permanente por coerência e correspondência
Há duzentos e cinqüenta anos, uma mudança de época gerou a sociedade industrial; hoje, uma
nova mudança de época condiciona o seu ocaso. Uma vez mais, tudo que é sólido se dissolve no
ar e tudo que é sagrado é profanado. A humanidade está experimentando uma mudança de
época desde os anos 60 (De Souza Silva et al. 2001). Segundo a Rede Novo Paradigma, do
Serviço Internacional para a Pesquisa Agrícola Nacional (ISNAR, International Service for National
Agricultural Research), numa mudança de época, a história se renova radicalmente, exigindo
novas respostas construídas com novas perguntas para problemas antigos e emergentes (Castro
et al. 2001; Lima et al. 2001; Mato et al. 2001; Salazar et al 2001;). Turbulência, instabilidade,
incerteza, fragmentação, descontinuidade, desorientação, insegurança, angústia, perplexidade e
vulnerabilidade são marcas registradas de uma mudança de época em qualquer tempo. Tudo isso
significa a fragmentação de coerências e correspondências.
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Compartilhamos a seguir o conceito de época histórica, a gênese da mudança de época atual, as
visões de mundo em conflito que condicionam o fenômeno histórico atual e algumas evidências
das mudanças qualitativas e simultâneas que forjam a época emergente.
A identidade de uma época histórica emerge da interação entre o sistema de idéias, sistema de
técnicas e institucionalidade (um discurso hegemônico e um conjunto de regras do jogo, práticas
sociais, relações de poder e configurações institucionais) dominantes dentro do referido período.
Tudo isso forja a natureza das relações de produção, relações de poder, formas de viver a
experiência humana e a cultura no mesmo período. Por isso, uma época histórica muda quando
se transformam de forma qualitativa e simultânea estas quatro dimensões (Castells 1996). Estas
mudanças transformam o sistema de idéias, sistema de técnicas e institucionalidade, dominantes
previamente, forjando novas formas de ser, sentir, pensar, decidir e atuar.
Toda época histórica constrói uma espécie de lentes culturais através das quais os atores sociais
interpretam a realidade para compreendê-la e transformá-la. Neste sentido, nossa forma de ver o
mundo — visão de mundo — condiciona nossa forma de atuar sobre ele. Mas as lentes (espécie
de óculos culturais) não determinam tudo que pode ser visto. Os diferentes contextos sociais,
históricos e materiais dos usuários desta visão de mundo se combinam e definem a textura final
das lentes individuais e coletivas. As premissas — crenças, ou verdades, que não necessitam ser
demonstradas — que articulam os ingredientes das lentes influenciam onde olhar, o que indagar,
como buscar, o que valorizar, com que comprometer-se, etc. O resultado é uma visão de mundo
dominante, que prevalece entre à maioria dos indivíduos, grupos sociais e sociedades.
Metaforicamente, a época histórica que constrói as lentes culturais dominantes também provê
uma caixa de artefatos intelectuais — valores, crenças, conceitos, teorias, modelos, paradigmas,
etc. — para “limpar” as lentes quando algumas “manchas” (dúvidas, problemas, desafios, etc.)
limitam a compreensão da realidade. Numa mudança de época histórica, estes artefatos perdem
a capacidade de limpar as “manchas emergentes”, que se acumulam até impedir uma leitura
satisfatória da realidade cambiante. Por isso, muitos atores sociais continuam tentando “limpar as
lentes” com os artefatos intelectuais da época histórica do industrialismo, quando o momento
requer “mudar” de lentes; ou, idealmente, “construir” novas lentes (De Souza Silva 2003).
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A gênese da mudança de época atual
Cerca de 10-12 mil anos atrás, os modos de interpretação e intervenção da época histórica do
extrativismo dos caçadores e coletores foram desafiados e depois superados pela lógica da época
histórica do agrarianismo. A revolução neolítica — a invenção da agricultura — gerou excedentes
agrícolas que viabilizaram a vida sedentária e a criação de cidades, revolucionando as antigas
formas de ser, sentir, pensar e atuar (Bernal 1971). A partir do fim do século XVIII, o sistema de
idéias, sistema de técnicas e institucionalidade da época histórica do agrarianismo feudal foram
fragmentados e subordinados por seus equivalentes da época histórica do industrialismo (Hill
1969) A Revolução Industrial — descobrimento e uso de fontes de energia diferentes da energia
humana e animal — viabilizou a invenção e uso de máquinas no processo produtivo de geração
de riqueza e poder (Hobsbawm 1969). Um fenômeno semelhante sucede desde a década de 60.
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• Revolução tecnológica 3 . A partir dos anos 50, estão em marcha várias revoluções
técnico-científicas, como a biotecnologia, nanotecnologia e tecnologia da informação.
Algumas características comuns unem estas três revoluções: (i) são reducionistas; (ii)
estudam o “objeto” de seu interesse como se este fosse (ou funcionasse como) uma
máquina; e, (iii) são dependentes da contribuição teórica da ciência moderna para seus
avanços (Busch 2001). Mas, a revolução ao redor da tecnologia da informação difere das
demais de duas formas. Primeiro, as outras revoluções técnico-científicas dependem
desta para seus avanços. Finalmente, a lógica digital da tecnologia da informação
penetra e transforma todos os meios e formas de comunicação e, por isso, seus impactos
afetarão todas as esferas da existência humana, seja pelo acesso a esta revolução
cibernética ou pela falta de acesso a seus produtos e serviços. Portanto, quando falamos
de redes e de mudanças com o apelido de virtual, digital, eletrônico ou imaterial, nós
estamos falando de mudanças que não pertencem à época histórica do industrialismo;
elas estão forjando uma nova época. Sob uma racionalidade instrumental, esta revolução
assume a premissa de que os problemas da humanidade e do Planeta são problemas de
informação, a ser resolvidos com mais informação, novas técnicas e mais tecnologias.
• Revolução econômica 4. Depois dos dois choques no preço do petróleo, ao final da década
de 70, muitos passaram a falar de uma crise econômica de proporções globais, sem
perceber que esta era um indicador da crise do regime de acumulação de capital da
época do industrialismo. Por isso, está em marcha uma iniciativa planetária para
implementar um novo regime de acumulação de capital, com seu respectivo sistema de
idéias, sistema de técnicas e institucionalidade. As mudanças associadas à privatização,
desregulamentação, liberalização, revisão do papel do Estado, modernização do setor
público, criação de fundos competitivos e outras que integram o menu do Fundo
Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio e de outros
agentes internacionais das mudanças nacionais, são mudanças que não pertencem à
época do industrialismo; elas forjam uma nova época. Esta revolução ocorre sob a
influência de uma racionalidade econômica onde se assume a premissa de que todos os
problemas complexos da humanidade e do Planeta podem ser resolvidos através do
mercado, que é percebido como a fonte de todas as soluções.
3
Ver Castells (1996), Cebrián (1998), McChesnee et al. (1998), Joe (2000), Grupo ETC (2002).
4
Ver Mander e Goldsmith (1996), Held et al. (1999), Dupas (2000), Schiller (2000), Grupo ETC (2002).
5
Ver Featherstone (1990), Ewen (1998), Maea (2000), Rifkin (2000), Warnier (2000).
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Nem todas as mudanças que emanam destas revoluções são compatíveis entre si. Por exemplo,
os Estados Unidos querem apresentar-se como campeões do desenvolvimento sustentável, paz e
democracia no mundo, mas não ratificaram a convenção da biodiversidade, Protocolo de Kioto,
Corte Internacional de Justiça, etc. Estas propostas emanam da revolução sociocultural; daí seu
compromisso com as dimensões humana, social e ecológica. A posição do Governo dos Estados
Unidos é condicionada por interesses egoístas de suas corporações transnacionais que, na ordem
mundial emergente, querem acesso ilimitado a recursos naturais, mão de obra barata e mentes
dóceis, sem nenhuma responsabilidade humana, social ou ecológica. Não sendo mais respeitado
pela força do argumento, mas querendo manter sua já precária hegemonia, o império decadente
tem que usar o argumento da força , invadindo ilegalmente a outros países onde violam direitos
humanos, mas sem querer ser julgado por crimes de guerra fora do seu território.
Na atual mudança de época, cada uma das revoluções tem sua coerência interna construída ao
redor de certos valores, premissas e compromissos. Articulados entre si, estes elementos moldam
uma forma de ver o mundo, que emerge para criar uma realidade no imaginário social, que pode
condicionar a forma de ser, sentir, pensar e atuar de indivíduos, grupos e sociedades. Esta visão
de mundo assume um poder extraordinário, estimulando nossa imaginação, atitudes e aspirações.
À revolução tecnológica corresponde uma visão cibernética de mundo; à revolução econômica
corresponde uma visão mercadológica de mundo; e, à revolução sociocultural corresponde uma
visão contextual de mundo (De Souza Silva 2002a). Nenhuma destas visões existe de forma pura,
isolada das demais. Todas coexistem, mas uma delas prevalece sobre as outras, estabelecendo
uma hierarquia de valores e objetivos que subordinam as contribuições das demais.
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ser chamados de clientes. O reinado da razão quer terminar sua missão de moldar um
mundo sem lugar para a emoção, imaginação, intuição ou sentimentos.
• Visão contextual de mundo. Assumindo o mundo como uma trama de relações dinâmicas
entre as formas de vida do Planeta, esta visão constrói um discurso cuja racionalidade
comunicativa privilegia a interação negociada e a aprendizagem social como forma de
resolver problemas antropogênicos—construídos pela ação humana. A metáfora da trama
de relações evidencia potencialidades, limitações, interdependências e contradições das
formas de vida que interagem para construir relevância no domínio da existência. Sob
esta visão, os termos recursos e capital não traduzem o significado simbólico construído
para expressar o conteúdo cultural atribuído às coisas e às pessoas em contextos sociais,
históricos e materiais diferentes. Fala-se de potencial natural e não de recursos naturais,
e de talentos humanos em vez de recursos humanos, capital humano e capital intelectual
que ignoram nossa imaginação, que nos permite propor além do conhecimento e da
experiência prévia. Esta visão privilegia a construção de Ágoras — a forma mais antiga
de assembléia Grega para o debate democrático — como um espaço para a interpretação
e gestão de desafios antropogênicos que ameaçam a humanidade e o Planeta. Sob o
conceito de sustentabilidade e do critério do bem-estar inclusivo (prevalece a opção que
beneficia o maior número de indivíduos, grupos sociais, comunidades, sociedades e
formas de vida), esta visão aspira a outro mundo possível: a sociedade civil prevalece
sobre o Estado e o mercado, para superar contradições criadas por relações assimétricas
de poder, como a fome num mundo de abundância, a pobreza num mundo de opulência,
a escassez do Sul para o desperdício do Norte, a pobreza das nações para a riqueza das
corporações, a ascensão da autocracia corporativa transnacional — onde os que decidem
não são eleitos — versus o declínio da democracia representativa — onde os eleitos não
decidem —, e a privatização dos benefícios da globalização versus a socialização de suas
crises. No Foro Social de Porto Alegre, os guardiões desta visão propõem uma economia
com mercado, onde este seja regulado para servir à sociedade e não o contrário.
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Evidências da mudança de época
Muitas são as evidências. A falta de espaço nos permite apenas articular algumas evidências de
referência. Em seguida, compartilhamos algumas mudanças qualitativas que estão ocorrendo
simultaneamente nas relações de produção, relações de poder, experiência humana e cultura:
6
Ver Castells (1996, 1998), Rifkin (1996, 1999), Grupo ETC (2002).
7
Ver Barnet e Cavanagh (1994), Horseman e Marshall (1995), Korten (1996), Grupo ETC (2002).
9
são redes da indiferença ao sofrimento humano, às desigualdades sociais e ao desafio
ecológico que ameaça o futuro de todas as formas de vida no Planeta.
8
Ver Boff (1996), De Sousa Santos (1998), Bauman (1999), Walzer (2000).
9
Ver Castells (1997), Rifkin (2000), Warnier (2000).
10
Estas transformações ocorrem através de processos globais, alguns dos quais merecem atenção
especial que este trabalho não pode dedicar por questão de espaço10: (i) a formação do novo
regime de acumulação do capital corporativo transnacional; (ii) a criação da institucionalidade
para a gestão da nova ordem econômica e política global; (iii) o esforço para o desenvolvimento
sustentável; (iv) a formação de uma sociedade civil global para monitorar a ordem capitalista,
corporativa e transnacional emergente; (v) a criação de blocos econômicos regionais para
competir nas arenas planetárias; (vi) a regionalização da institucionalidade transnacional; (vii) a
revisão do papel do Estado e a modernização do setor público para sua adaptação à nova ordem
capitalista, corporativa e transnacional emergente; (viii) a “reengenharia” do Estado para
desmoralizar o setor público, debilitar a tecno-burocracia, justificar a privatização e facilitar a
penetração de interesses privados na esfera pública; (ix) o esforço de mobilização global de
diferentes movimentos, iniciativas e grupos de atores sociais para questionar a atual globalização
e propor outra para a construção de outro mundo possível; e, (x) o fim do monopólio do
Positivismo e a construção de outros modos de geração e apropriação de conhecimento. Alguns
aspectos do último processo são sintetizados a seguir, por estar associado ao tema do livro.
Os desejos, as emoções, as paixões… são as únicas causas possíveis da ação. A razão não é a causa
da ação, senão só um regulador. Bertrand Russel, Sociedade Humana (2002:10 [1954])
Uma época histórica estabelece um sistema de idéias e um sistema de técnicas que privilegiam
certos modos de interpretação e intervenção, inclusive para a geração de conhecimento. Sob
uma visão mecânica de mundo, o sistema de idéias e o sistema de técnicas do industrialismo
consolidaram o modo clássico de geração de conhecimento. As características do modo clássico e
as conseqüências do desenvolvimento praticado sob sua influência estão sob questionamento
generalizado11 desde os anos 60. Isso ocorre a partir da revolução sociocultural que questiona as
formas dominantes de geração, distribuição e apropriação de informação, poder e riqueza. Nesta
reflexão crítica, a ciência moderna emerge como uma atividade transformadora que contribui
simultaneamente para avanços relevantes da experiência humana, desigualdades dentro e entre
sociedades e vulnerabilidade das formas de vida no Planeta. O exame crítico das características,
contribuições e impactos do modo clássico revelou seus limites, distorções e contradições.
10
Ver Ianni (1992), Mires (1996), Hopkins e Wallerstein (1998), Held et al. (1999).
11
Ver Sachs (1992), Hoogvelt (1997), Wallerstein (1998), Walsh et al. (2002).
11
em premissas ontológicas, epistemológicas, metodológicas e axiológicas comprometidas com a
diversidade de contextos sociais, materiais e históricos, dos quais emergem diferentes sociedades,
que coexistem com outras formas de vida. O Planeta é um, mas são muitos os “mundos” que não
podemos compreender com o modo clássico, que assume uma homogeneidade que não encontra
correspondência na complexidade da realidade nem na diversidade dos contextos. Isso explica a
efervescência criativa das últimas décadas cujo esforço é centrado na construção de novos
modos de interpretação e intervenção para a geração e apropriação de conhecimento12.
Como conseqüência, o monopólio da ciência praticada sob a tradição filosófica conhecida como
Positivismo terminou irreversivelmente, abrindo espaço para o surgimento de novas premissas
ontológicas (sobre a natureza da realidade), epistemológicas (sobre a natureza do conhecimento
e do processo para sua geração), metodológica (sobre o método e a natureza do indagar) e
axiológicas (sobre os valores éticos e estéticos e a natureza da intervenção). Entre outras opções
emergentes, o Construtivismo ganha legitimidade por seu compromisso com as múltiplas
dimensões e contradições do contexto, e com seus atores sociais. O construtivismo assume que a
inovação emerge de processos de interação social, e apresenta-se como uma ciência da
sociedade, que influencia e é influenciada no processo de interpretar e mudar a realidade.
Ironicamente, o construtivismo não parece surgir para substituir o positivismo senão para ocupar
espaços onde as características deste limitam ou impedem sua contribuição, e para pressioná-lo
a limitar sua contribuição somente ao que suas características lhe permitem. O positivismo é
indispensável para identificar, descrever e alterar processos de natureza exclusivamente física,
química e biológica cuja dinâmica independa da percepção e da ação humana. É óbvio que não
se pode voar no alto dos céus nem mergulhar na profundidade dos oceanos sem positivismo.
Mas não é possível mudar as realidades produtivas, sociais, ecológicas, econômicas, políticas,
institucionais, históricas, etc., sem construtivismo, porque estas dependem da percepção e da
intervenção humana. A sociedade necessita de ambos. Suas diferenças e complementaridades
podem ser compreendidas através do contraste de suas premissas e características13.
Em sua dimensão ontológica , o modo clássico — positivista — assume que a realidade existe de
forma objetiva, independente de nossa percepção, e que a ciência deve descobrir esta realidade
12
Ver Kloppenburg (1991), Jasanoff et al. (1995), Harding (1998), Escobar (1998), Bawden (2002), Busch (2002), Capra
(2002), Mires (2002), Röling (2002).
12
como ela “realmente” é, descrevendo-a com precisão, em seus mínimos detalhes, para que seja
possível predizê-la, controlá-la e explorá-la eficientemente em benefício da espécie humana. Sob
estas premissas, a realidade relevante é o que pode ser apreendido com os cinco sentidos, para
que seja pesado, medido e contado. O que não pode ser traduzido para a linguagem matemática
não existe, não é verdade ou não é relevante para a ciência, nem deveria ser para a sociedade.
Em sua dimensão epistemológica, o modo clássico assume que o mais importante é conhecer as
“leis naturais” que regem o funcionamento da realidade, tanto natural quanto social. Também
assume que o todo é constituído de partes, e que este está nelas contido. Sendo igual à soma de
suas partes, o todo deve ser dividido em suas partes constituintes, para ser entendido a partir do
conhecimento detalhado de cada uma delas, principalmente a partir do conhecimento da menor
13
Ver, por exemplo, Morin (1984), Restivo (1988), Guba e Lincoln (1994), Bentz e Shapiro (1998), Harding (1998),
13
de suas partes. No passado, os Físicos prometeram explicar o universo a partir do conhecimento
do átomo; hoje, os biólogos moleculares prometem explicar a vida a partir do conhecimento do
DNA (um esforço que liberta a humanidade da ditadura reducionista da Física, mas submete-a à
ditadura reducionista da biologia). Nesta dimensão, o modo clássico determina que o pesquisador
deve atuar de forma objetiva; isto é, distante do chamado “objeto” da pesquisa, para evitar que
os resultados de suas observações sejam distorcidos por valores e interesses humanos. Além
disso, o “objeto” da pesquisa deve ser isolado da complexidade do seu contexto, para assegurar
o controle sobre as variáveis que interessam ao pesquisador ou aos que influenciam a pesquisa.
Resumindo, o modo clássico é imprescindível para gerar conhecimento especializado sobre partes
específicas da realidade; o modo contexto-cêntrico é essencial para gerar conhecimento sobre a
trama das relações responsáveis tanto pela coerência e dinâmica quanto por eventuais paradoxos
e contradições do todo. O modo clássico “produz” análises especializadas sobre partes específicas
da realidade que se deseja conhecer; o modo contexto-cêntrico “constrói” sínteses sobre a
dinâmica e sobre coerência ou incoerência do todo, e sobre sua correspondência ou falta de
correspondência com seu contexto mais amplo.
Biagioli (1999), Gibbons (2000), Watson (2000), Woolgar (2000), Röling (2002).
14
Metodologias: positivismo e construtivismo
Em sua dimensão metodológica , o modo clássico assume que o único método apropriado é o que
realiza uma assepsia política e ideológica dos valores, interesses e compromissos do pesquisador
e dos atores do contexto da pesquisa. Assim, o método experimental, as técnicas estatísticas e
qualquer estratégia metodológica que permita traduzir a realidade para a linguagem matemática
são ideais para gerar “conhecimento objetivo” e, portanto, “fatos” e “verdades” científicas válidas.
Para ser considerado científico, o método deve afastar o pesquisador do “objeto” de pesquisa,
para evitar a interferência de sua percepção pessoal, e afastar o “objeto” de pesquisa da
complexidade do seu contexto, para eliminar a intervenção de variáveis que não interessam ao
pesquisador ou aos que financiam diretamente ou influenciam indiretamente a pesquisa.
Em síntese, o modo clássico emerge como imprescindível para atuar na “dimensão dura” dos
fenômenos físicos, químicos e biológicos, que independem da história ou do contexto, onde sua
contribuição não exige interpretações associadas à percepção ou à intervenção humana. O modo
contexto-cêntrico emerge como indispensável para penetrar o mundo dos fenômenos, produtivos
ou não, que envolvem gente, onde a interação do pesquisador com os atores do contexto da
pesquisa-ação é obrigatória para a participação destes na interpretação e transformação de sua
realidade. Enquanto a metodologia positivista é comprometida com o propósito de conhecer para
controlar, a metodologia construtivista é comprometida com o propósito de compreender para
transformar. Por isso, no positivismo a interação é desnecessária, enquanto no construtivismo a
interação é a chave de todo o processo de geração e apropriação de conhecimento.
15
Axiologias: neutralidade e comprometimento
Em sua dimensão axiológica , o modo clássico assume a neutralidade da prática científica. Sob
esta premissa, o método científico (positivista) é suficiente para impedir a penetração de valores
e interesses humanos, do pesquisador e dos atores do contexto; nada nem ninguém consegue
romper sua barreira de imunidade ideológica. Não existe necessidade de negociação de valores
éticos e estéticos na intervenção para a geração de conhecimento. Só o “uso” dos resultados
científicos pode ser manipulado de forma ideológica, mas não a “prática” científica, que está
metodologicamente protegida desta manipulação.
Resumindo, o modo clássico emerge como mais adequado para intervenções em fenômenos e
processos físicos, químicos e biológicos onde os humanos não participam, enquanto o modo
contexto-cêntrico emerge como crítico em todos os fenômenos e processos onde os valores e
interesses humanos estão necessariamente presentes, porque são intrínsecos à sua dinâmica. O
modo contexto-cêntrico de geração e apropriação de conhecimento assume um novo contrato
social para a ciência , tentando ser uma ciência comprometida com as dimensões humana, social
e ecológica que subordinam o crescimento econômico e o desenvolvimento tecnológico — como
objetivos-meios — a uma hierarquia (previamente negociada) de valores e objetivos-fins.
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numa ciência sem consciência que anunciou uma relação com a sociedade intermediada pela
tecnologia, promovida como a aplicação prática do conhecimento científico. Esta separação entre
ciência e tecnologia como práticas independentes consolidou o mito da neutralidade científica,
sob o qual os cientistas não eram condenados pelos impactos negativos da tecnologia moderna,
mas reivindicavam o crédito pelos sucessos tecnológicos derivados da ciência moderna.
14
Ver Morin (1984), Kloppenburg (1991), Bentz e Shapiro (1998), Baldwin (2000), Bawden (2000), Gibbons (2000),
Watson (2000), Woolgar (2000), Nowotne (2001), Capra (2002), González (2002), Walsh et al. (2002), Röling (2003).
15
Latour (1987) chama de tecnociência ao resultado da fusão da ciência moderna com a ciência moderna, o que será
melhor explicado na próxima parte deste capítulo.
17
tecnociência, nem consegue refletir a complexidade da situação contextual que o gerou.
Ao trabalhar com problemas simples de pesquisa, o modo clássico contribui através de
esforços disciplinares; aí reside a fortaleza conferida por suas características particulares.
O modo contexto-cêntrico se interessa primeiro pela trama de relações que gera o
problema complexo para a tecnociência, substituindo a mono-causalidade, a linearidade
e o mecanicismo do modo clássico pela complexidade, diversidade, multi-causalidade e
não-linearidade que são próprias dos problemas do contexto para a tecnociência. Busca
as razões humanas envolvidas nos problemas antropogênicos, ao invés de restringir-se a
buscar as relações de causa-efeito neste tipo de problema. Abraçar a complexidade dos
problemas contextuais para a tecnociência é aceitar a incapacidade de evitar a incerteza
de sua dinâmica, construída por processos de ordem e desordem, de caos e harmonia,
desafiando o sistema lógico do racionalismo da ciência moderna, que é insuficiente para
lidar com a diversidade e as diferenças dentro do complexo. A complexidade é a chave.
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(adoção). O modo emergente assume que o desenvolvimento é um espaço onde se
encontram, de formas convergentes, divergentes e contraditórias, mas indissociável,
sociedade-cultura-natureza. O modo emergente assume que conhecimento deve ser
gerado no contexto de sua aplicação e implicações, com a participação dos atores do
contexto interessados em sua contribuição. A interação é a chave.
• Conhecimento ético. Auto-suficiente, o modo clássico não faz autocrítica porque se crê
neutro e, portanto, isento de pecados. Nesta tecnociência para a sociedade , a
comunidade científica assume o direito de decidir o que deve ser feito, só porque sabe
como fazer, sem a avaliação crítica da sociedade que será afetada por suas contribuições.
O modo contexto-cêntrico se auto-analisa e exige de seus atores o esforço de “colocar-se
nos sapatos dos outros” para entender melhor suas razões, temores e aspirações. Nesta
tecnociência da sociedade , a premissa essencial é que o conhecimento é comprometido
com o contexto de sua aplicação (dimensão prática) e implicações (dimensão ética). Isso
significa que sob o modo emergente, os cientistas são proativos, tomando a iniciativa de
convidar os atores do contexto para participar do planejamento, acompanhamento e
avaliação — da gestão — da prática científica. Nesta tecnociência com consciência ,
participar significa poder para influenciar a natureza, rumo e prioridades da tecnociência,
para que os atores do contexto influenciem o processo de geração de conhecimento,
desde a seleção dos problemas para a tecnociência. Os inocentes úteis serão condenados
pela sociedade, por sua ingenuidade irresponsável, quando se submetem a interesses
indiferentes à exclusão social, ou à ambição egoísta e à arrogância dos mais fortes. Uma
ciência descomprometida é uma ciência sem consciência. O compromisso é a chave.
Em conclusão, o fenômeno histórico de uma mudança de época, que está em marcha desde o
início da segunda metade do século XX, está criando rupturas de diferentes ordens, inclusive de
natureza epistemológica. Insatisfeita com as conseqüências negativas de um desenvolvimento
praticado sob a influência de uma ciência para a sociedade, a sociedade civil decretou o fim do
monopólio do modo clássico de geração de conhecimento e apoiou o desenvolvimento de novas
opções paradigmáticas mais além da opção positivista. Entre as opções emergentes, o paradigma
construtivista está ganhando muita legitimidade, principalmente em sua versão mais crítica, que
avança como uma ciência da sociedade comprometida com o critério do bem-estar inclusivo, sob
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o qual se decide sempre pela opção que beneficia o maior número de indivíduos, grupos sociais,
sociedades e formas de vida, e para o qual a inovação emerge de processos de interação social.
Sob o impacto da atual mudança de época, todos estamos vulneráveis: do cidadão ao Planeta. O
que varia é o grau de vulnerabilidade e a forma e a intensidade como esta se manifesta em
diferentes contextos. Não existe surpresa no fato de que tudo esteja mudando qualitativamente,
inclusive as relações ciência-tecnologia-sociedade (C-T-S) 16 . As relações C-T-S associadas à
ciência para a sociedade da época do industrialismo estão perdendo (total ou parcialmente) seu
brilho sob a influência de múltiplos eclipses, enquanto novas relaciones C-T-S associadas à
ciência da sociedade ganham brilho próprio à medida que sua coerência se legitima em
correspondência com a relevância das dimensões humana, social e ecológica da existência.
Historicamente, a tecnologia surgiu muito antes da ciência, quando nossos ancestrais criaram os
primeiros instrumentos e ferramentas — de pau e, depois, de pedra e ferro — para pescar, caçar,
defender-se, cultivar plantas alimentares, enfim, transformar sua realidade material. Muito mais
tarde os Gregos inventaram a Teoria, e a ciência nasceu e criou uma trajetória paralela à
trajetória da tecnologia, permitindo que inventos tecnológicos ocorressem sem sua contribuição
teórica. Mas, a partir principalmente da Revolução Industrial, as trajetórias paradigmáticas de
ambas deram sinais de convergência para logo depois se fundirem de forma irreversível.
Já não se consegue distinguir quando termina a ciência e quando começa a tecnologia. A partir
da segunda metade do século XX, a ciência moderna já não avança sem a contribuição
instrumental da tecnologia moderna, e a tecnologia moderna já não avança sem a contribuição
teórica da ciência moderna. A interpenetração de ambas já não permite dissociar uma da outra.
Ao resultado desta fusão entre a ciência moderna e tecnologia moderna, Bruno Latour chama
tecnociência. Eclipsou a dicotomia “ciência-tecnologia”.
Antes, a tecnologia era percebida como a simples aplicação do conhecimento científico. Agora, a
emergência da tecnociência não admite esta separação, porque ambas se influenciam, mudando
a dinâmica do processo que integra concepção-desenvolvimento-aplicação. A separação entre
16
Busch (2002), De Souza Silva (2002a).
20
pesquisa básica ou fundamental e a pesquisa aplicada ou estratégica já não se justifica, mudando
profundamente as relações da tecnociência dentro da sociedade da qual é parte integral. O
antigo processo linear — da ciência para a tecnologia, e da tecnologia para a sociedade — está
sendo substituído por complexos processos de interação social, sem divisões claras entre os
diferentes momentos de construção, fragmentação e reconstrução de suas múltiplas atividades.
Sem a tecnologia como intermediária entre a ciência e a sociedade, a tecnociência emerge como
parte integral do desenvolvimento; não como um fator exógeno senão como um fator intrínseco
ao próprio desenvolvimento, influenciando e sendo influenciado no processo de interação para a
construção de um determinado tipo de desenvolvimento, no qual a tecnociência não é neutra.
Embora a sociedade civil pode beneficiar-se muito desta fusão da ciência moderna com a ciência
moderna, influenciando-a com sua participação crítica, é o setor privado quem está levando a
maior vantagem no momento. Através das chamadas alianças estratégicas entre o setor público
e o privado, o que está sendo institucionalizado é uma estratégia elegante para a penetração
firme de interesses privados na esfera pública, como ficou claro no melhor exemplo do gênero no
caso da aliança entre a corporação transnacional Monsanto e o Serviço Federal de Pesquisa
Agropecuário (ARS, Agricultural Research Service), nos Estados Unidos. Numa aliança estratégica
entre ambos, a Monsanto levou o ARS a desenvolver uma tecnologia genética, conhecida entre
os críticos como “gene exterminador” (ETC Group 2003), que elimina a capacidade reprodutiva
dos grãos, para obrigar os agricultores a comprar as sementes da Monsanto todos os anos, sem
melhorar a agricultura nem a existência dos agricultores. Apenas assegura o lucro e uma maior
riqueza para a Monsanto. Tudo isso a partir da socialização da infra-estrutura pública construída
com recursos financeiros públicos, e dos talentos profissionais do ARS formados com dinheiro da
sociedade, e da apropriação privada dos benefícios econômicos pela Monsanto.
Sob uma visão mecânica de mundo, a ciência moderna — positivista — exige a separação entre o
pesquisador e o chamado objeto da pesquisa, para evitar a contaminação dos resultados por
valores e interesses humanos, e entre o objeto da pesquisa e o contexto de sua existência, para
21
permitir o máximo de controle sobre as variáveis selecionadas para observação. Em síntese, para
o modo clássico, a interação era desnecessária, indesejada e até proibida. A partir da crítica ao
desenvolvimento da época do industrialismo, cujas conseqüências negativas são questionadas
desde os anos 60, cresce o número de grupos de atores sociais que pressionam aos cientistas
para que estes atuem em interação deliberada com os demais sujeitos da pesquisa, e com o
contexto da pesquisa, para superar os limites e evitar os problemas da pesquisa não-participativa
e descontextualizada. Para o modo contexto-cêntrico de geração e apropriação de conhecimento,
a interação é necessária, desejada e obrigatória. A interação é a chave.
Mas, outra vez, é o setor privado quem está se beneficiando mais da dimensão interativa do
modo contexto-cêntrico emergente. A estratégica que facilita está vantagem tem duas dimensões.
Na primeira, os governos reduzem os orçamentos das universidades e de outras organizações
públicas, de tal forma que estas são pressionadas para interagir com os atores que têm dinheiro,
que são obviamente do setor privado. Na segunda, os atores privados incorporam a relevância da
interação nos seus discursos, que são reproduzidos por gerentes e cientistas ávidos por recursos
financeiros. As chamadas alianças estratégicas representam o espaço onde as duas dimensões
dessa estratégica se encontram. A debilidade destas alianças reside na ausência da sociedade.
Estão juntos o Estado e o mercado, o setor público e o privado, mas a sociedade civil não está
presente, o que deixa o setor público em desvantagem, pois o declínio de seu orçamento é parte
da estratégia para fazê-lo dócil por sua dependência. Esta relação desigual deve romper-se, com
a presença da sociedade civil, que deve exigir a institucionalização de critérios que preservem os
interesses públicos. Por exemplo, se o princípio do bem-estar inclusivo — que opta pela proposta
que beneficia o maior número de indivíduos, grupos sociais, comunidades, sociedades e formas
de vida — fosse vigente, a aliança entre o ARS e a Monsanto para criar o “gene exterminador”
(ETC Group 2003) [ver o eclipse da dicotomia ciência e tecnologia] jamais teria acontecido.
Já não existe unanimidade sobre a “neutralidade científica”, que hoje é percebida como um mito
por um número crescente de grupos de atores sociais dentro da maioria das sociedades. Estes
grupos descobriram que a ciência há sido, historicamente, fator tanto de desenvolvimento como
de desigualdade e vulnerabilidade. Depois de experiências como o Holocausto e Hiroshima, o
discurso positivista da neutralidade da prática científica já não convence a muitas sociedades, as
quais começam a perceber a prática científica como uma construção social, como uma atividade
humana que constrói mudanças para todas as esferas da existência, ao mesmo tempo que está
sujeita à penetração de valores, interesses e compromissos humanos.
22
Muitos dos movimentos sociais e culturais em marcha questionam a neutralidade da ciência ao
questionar as conseqüências negativas do desenvolvimento praticado com a contribuição direta
da ciência moderna. A contribuição da ciência ao extermínio racial dos judeus no Holocausto, à
fabricação da bomba atômica com fim de dominação pela potência hegemônica emergente, e aos
desastres ambientais, sociais e econômicos gerados pela Revolução Verde na agricultura, são
apenas alguns exemplos que fazem diferentes grupos sociais suspeitar da suposta neutralidade
da ciência. A ciência para a sociedade nos ajudou a ser tecnologicamente mais inteligentes, mas
não a ser eticamente mais sábios como espécie. A concepção de mundo da sociedade industrial
nos transformou na única espécie que destrói as condições para sua própria existência. A ciência
moderna nos mudou numa direção que nos faz parecer uma espécie alienígena neste Planeta.
Tecnologicamente, aprendemos a voar como os pássaros no céu, mas utilizamos esta tecnologia
para matar das alturas (aviões fabricados para a indústria da guerra). Aprendemos a nadar como
os peixes do fundo dos oceanos, mas aplicamos esta tecnologia para matar das profundezas dos
mares (submarinos construídos para a indústria da guerra). Aprendemos a curar doenças a partir
de princípios bioquímicos, mas utilizamos esta tecnologia para matar a partir do interior dos
organismos (armas químicas e biológicas fabricadas para a indústria da guerra). Aprendemos a
construir casas submarinas e estações espaciais, mas não somos capazes de abrigar aos milhões
de meninos e meninas das ruas do mundo. Aprendemos coisas complexas, como alunissar e, em
breve, visitar outros planetas, mas não aprendemos o mais simples para a nossa existência em
sociedade neste Planeta: não aprendemos a ser humanos. Os governos que dispõem da
tecnologia para destruir a humanidade e o Planeta — os senhores da guerra — são os mesmos
que se autoproclamam missionários da paz e da democracia no mundo, são os que privilegiam o
desenvolvimento tecnológico em detrimento do desenvolvimento humano. Esta indiferença, para
com as dimensões humana, social e ecológica da existência, exige o eclipse da moralidade, para
que seus seguidores e promotores — incluindo cientistas — possam atuar sem escrúpulos.
São realidades como estas que desmascaram o mito da neutralidade científica. Destas realidades
emerge a consciência de que os cientistas não devem decidir o que deve ser feito apenas porque
sabem como fazê-lo; nem os doadores apenas porque financiam a pesquisa. A natureza, rumo e
prioridades da ciência não devem ser definidas longe do escrutínio público e da participação
cidadã. A sociedade civil organizada não necessita entender de metodologia científica para opinar
sobre a relevância do que deve ser pesquisado e com que finalidade. A sociedade civil organizada
está cada vez mais exigindo um alto conteúdo ético na prática científica.
23
A diversidade cognitiva: o eclipse do monopólio do conhecimento científico
O questionamento da ciência moderna, por causa de sua associação com os impactos negativos
do desenvolvimento praticado sob sua influência, gerou uma (re)valorização dos “conhecimentos”
ignorados ou desqualificados pela ciência positivista. Por exemplo, a homeopatia, a acumputura,
a sabedoria dos curandeiros, o conhecimento milenar dos povos indígenas e das comunidades
rurais sobre as plantas medicinais estão ganhando uma importância renovada. Pela mesma razão,
os paradigmas científicos emergentes estão sob pressão para incorporar o conhecimento tácito,
inspiracional e intuitivo dos atores locais como forma de aumentar a relevância dos impactos de
suas contribuições, por aumentar o grau de correspondência entre a pesquisa e o contexto da
aplicação e implicações de seus resultados.
Não são apenas os cientistas que aprendem. Em A Árvore do Conhecimento, Humberto Maturana
e Francisco Varela explicam que, a atividade cognitiva é a única característica comum aos seres
24
vivos, que aprendem em interação com seu contexto, porque esta é a única forma de viver no
domínio de sua existência. Assim, viver é aprender e aprender é mudar. O ser humano é um
pesquisador nato, apesar de não ser um cientista, porque observa, interpreta e atua a partir de
sua compreensão, apenas não aplica métodos científicos. Isso não diminui a relevância do
conhecimento científico, mas exige intercâmbio de “conhecimentos” e diálogo de “saberes”.
A ciência moderna criou a (falsa) impressão de que a realidade é relativamente estável, pode ser
conhecida com precisão em sua totalidade e, portanto, seu funcionamento pode ser previsto e
controlado com um alto grau de certeza. O maior grau de controle sobre a natureza representou
um maior grau de certeza sobre as possibilidades da humanidade. A estabilidade era a regra, a
mudança era a exceção. A certeza baseada na estabilidade do contexto foi a premissa essencial
do planejamento, da gestão, da pesquisa e de outras práticas sociais. A maioria dos gerentes se
dedicou à gerência da eficiência , já que eles não precisavam preocupar-se com a história nem
com o contexto. Isso aconteceu até que a invenção da estatística revelou que a certeza era um
mito; a ciência positivista só podia falar de probabilidade e, em muitos casos, de possibilidade.
Se a ciência para a sociedade se legitimou prometendo certezas que não conheciam dúvidas, a
ciência da sociedade se legitimará com a modesta promessa de ajudar a sociedade compreender
suas fontes de incerteza, instabilidade, vulnerabilidade, dúvida, erosão e extinção, sem poder
nunca eliminá-las, porque a dinâmica da própria realidade não lhe permite. Não existe uma
senão muitas certezas, todas elas dependentes da percepção e do grau de compromisso dos que
as constroem e sustentam. Por exemplo, os que percebem que a vulnerabilidade da humanidade
e do Planeta emerge de problemas de natureza antropogênica — construídos por humanos —,
assumem que a sustentabilidade da humanidade e do Planeta só pode emergir da interação
humana, através da aprendizagem social, que exige um esforço de facilitação para a interação de
múltiplos atores que, tendo conflito de interesses em torno a um determinado problema, devem
25
realizar uma ação concertada, sob regras previamente negociadas e através de um esforço de
aprendizagem por descobrimento. Os humanos podem aprender a superar sua falta de sabedoria.
Junto com a idéia de progresso, promoveu-se também a idéia de que tudo que é desenvolvido
pela ciência é necessariamente bom para todos na sociedade. Associada ao mito da neutralidade
científica, esta idéia ganhou força a ponto de deixar cega a sociedade quanto à associação entre
saber e poder e, portanto, entre ciência e poder. Mas agora a sociedade entende melhor que, por
sua dependência de financiamento, e por ser uma atividade humana desenvolvida por humanos
de carne e osso, a ciência é vulnerável à influência dos que a financiam ou ao poder dos atores
que são representados pelos que financiam o desenvolvimento da tecnociência e/ou dos que têm
o poder de definir e ou influenciar a natureza, rumo e prioridades de suas práticas.
Michel Foucault foi quem melhor estudou a relação incestuosa entre saber científico e poder,
revelando porque as sociedades modernas são fraturadas pelo exercício de um “poder invisível”
que nos classifica, categoriza e divide: bons e maus, civilizados e bárbaros, modernos e
tradicionais, desenvolvidos e subdesenvolvidos, normais e anormais, sãos e doentes, cidadãos e
delinqüentes, ocidentais e orientais, especialistas e leigos, capitalistas e socialistas, comandantes
e comandados, inteligentes e ignorantes, profissionais e amadores, democratas e “terroristas”,
etc., geralmente numa divisão artificial que sugere uma separação clara e precisa entre
superiores e inferiores, onde todos são classificados sob etiquetas, que são definidas por
“expertos” que estão legitimados como conhecedores da “verdade” sobre o certo e o errado.
Esta assimetria criada pelos mais fortes para a dominação dos mais débeis exige a legitimação do
sistema desigual de poder e das práticas de controle do comportamento da maioria dominada.
Esta exigência é incorporada pelos discursos hegemônicos que justificam a racionalidade da
forma desigual de organização social, econômica e política que geram as regras do jogo, práticas
sociais e configurações sociais — institucionalidade — que tentam ocultar a presença do poder,
ao mesmo tempo em que asseguram seus efeitos.
26
teorias sobre a sociedade, modelos de desenvolvimento, configurações institucionais, princípios
pedagógicos, padrões para o comportamento geral, etc., que as impõem e as mantêm.
Foucault nos revela que o poder gera conhecimento, que o conhecimento gera poder, que não
existe relação de poder sem a correspondente constituição de um campo de conhecimento, nem
existe conhecimento especializado que não pressuponha e constitua simultaneamente relações
de poder. Como nos revela Bruno Latour, a ciência moderna se transformou, também, em
política por outros meios. Por isso, assim como a palavra do político é sempre uma palavra sob
suspeita, a palavra do cientista já não é aceita a priori apenas porque é avalizada pela ciência.
No século XXI, quando se acentuarão os conflitos dentro e entre sociedades, pela sobrevivência
frente à escassez dos recursos materiais — entre estes, a água será o mais crítico — para a
existência humana e de outras formas de vida no Planeta, antigas e novas relações assimétricas
de poder se acentuarão. Mas estas serão mais sutis na sua forma de apresenta-se para camuflar-
se melhor, sem deixar de ser mais efetivas em seus efeitos. Infelizmente, em busca de fama e
dinheiro, muitos cientistas não terão escrúpulos em colocar sua capacidade a serviço dos mais
fortes, por convicção ou por conveniência, nos vários campos do conhecimento. Mas a sociedade
já não os perdoará como antes. Inclusive, a ciência perderá muito de sua legitimidade por causa
desse tipo de cientista que faz uma opção pela subserviência ao mais forte, ainda quando isso
signifique um aumento da vulnerabilidade humana, social e ecológica.
Em seu discurso de neutralidade, a ciência moderna anuncia que sua principal contribuição é
realizada para o avanço desinteressado do próprio conhecimento científico, porque a sede de
conhecimento é intrínseca à espécie humana. Depois dos inúmeros desastres humanos, sociais e
ecológicos construídos com a participação direta da ciência positivista, cada vez mais a sociedade
deixa de tolerar este aura sagrada da ciência, porque isso desviou a atenção da sociedade sobre
27
sua proximidade excessiva com os mais fortes, e moldou uma ciência indiferente à maioria dos
antigos e novos problemas complexos associados às desigualdades sociais, econômicas, políticas,
militares e institucionais, e às diferentes formas de vulnerabilidade do Planeta.
Em A Sociedade do Risco, Ulrick Beck explica que a sociedade emergente é consciente de que a
ciência tanto resolve quanto cria problemas. Na sociedade do risco revelada por Beck, a ciência
deve submeter-se a um maior controle social sobre a natureza, rumo e prioridades do seu
desenvolvimento, e gerar contribuições para ajudar a sociedade a regular as atividades que
afetam o seu futuro. Por causa da vulnerabilidade crescente, existe ultimamente uma maior
consciência de que o futuro está emergindo repleto de problemas, onde o risco passa a ser a
regra e não a exceção. Na ausência de uma utopia para os excluídos, a ideologia dos mais fortes
já não promete benefícios para a maioria no futuro, apenas promete proteção contra os riscos
futuros, mas anuncia que os custos dessa proteção devem ser compartilhados entre todos.
Já não é o passado que determina o presente senão a percepção dos riscos futuros que serve de
fonte de critérios para orientar políticas, decisões e ações hoje. Portanto, grande parte do esforço
de pesquisa atual está fazendo surgir uma ciência regulatória e prospectiva, para apoiar a
sociedade em suas preocupações futuras e no monitoramento e interpretação da implementação
de políticas e de atividades de caráter estratégico para a sociedade. Essa ciência emergente é
uma ciência da sociedade ; não uma ciência para a ciência, sem compromisso com as realidades e
necessidades atuais, e com as aspirações futuras da maioria da sociedade.
Os seres humanos têm motivos que a razão mecânica e a razão econômica desconhecem. Como
seres sociais, os humanos interagem para construir a possibilidade da vida social organizada, em
um processo influenciado por valores éticos e estéticos, crenças, tradições, aspirações, interesses
e compromissos que muitas vezes transcendem a racionalização obsessiva imposta pela visão
mecânica de mundo e o egoísmo utilitário imposto pela visão mercadológica de mundo. Nossas
emoções emergem da interação entre nossos valores, crenças, tradições, aspirações, interesses e
compromissos que influenciam nossos modos de ser, sentir, observar, interpretar e intervir.
Os sonhos individuais e coletivos são fontes impressionantes de emoção, paixão e inspiração; sua
energia motivadora alimenta nossa imaginação e aspirações mais além da lógica formal e da
utilidade econômica. A expressão razão social traduz todos os motivos que integram a dinâmica
28
das sociedades. Mas tudo isso é ignorado pela ciência moderna, que prefere nutrir-se apenas da
relação “natural” causa-efeito para explicar todos os tipos de fenômenos, naturais e sociais.
A ciência moderna reivindica a existência de “causas naturais” para os efeitos que necessita
traduzir na forma de “leis naturais”. Para estabelecer sua hegemonia ainda precária, a ciência
moderna emergente fez algumas concessões à Igreja, admitindo, por exemplo, que a natureza
revela a obra de Deus. Tudo está escrito no “livro da natureza” na forma de “leis” a ser
descobertas para permitir previsão e controle sobre a natureza. Assim, os positivistas assumem a
existência de “leis naturais” para o mundo natural, para o mundo social e até para o mercado.
Os movimentos sociais e culturais iniciados nos anos 60 questionaram este determinismo natural,
e reivindicaram motivos humanos, sociais e ecológicos, tanto para explicar a experiência humana
quanto para influenciar o futuro das sociedades e das demais formas de vida no Planeta. Agora,
a sociedade civil exige a consolidação e institucionalização de uma ciência com consciência , que
seja interativa para compreender os motivos humanos, sociais e ecológicos que podem ajudar-
nos a interpretar e superar os problemas antropogênicos que ameaçam nossa própria existência
e de todo o Planeta. Esta tecnociência é uma ciência da sociedade , que reivindica razão social
para suas contribuições à sustentabilidade da espécie humana e de outras formas de vida.
A ciência positivista há sido desafiada inclusive dentro da mesa comunidade científica, por atores
como Karl Popper com sua tese da falibilidade das teorias científicas, Thomas Khun com sua
teoria sobre a ascensão e declínio dos paradigmas científicos, Paul Feeerabend com sua
problematização do método, Sandra Hardin e Donna Harawae com seus desafios epistemológicos
de uma perspectiva feminista da ciência, e Bruno Latour com sua demonstração de que os
“fatos” científicos são instrumentalmente construídos, e seus resultados não emergem de forma
“natural” senão de maneira negociada no processo de pesquisa através de práticas discursivas.
29
Como conseqüência, já se observa a reação de positivistas, que estão construindo um paradigma
neo- ou pos- positivista. Também ocorre a construção de paradigmas alternativos para orientar
novas formas científicas de geração e apropriação de conhecimento, como o paradigma
construtivista, cuja sensibilidade ética, teórica e metodológica está contribuindo à consolidação
de uma ciência da sociedade . Esta ciência contexto-cêntrica legitima-se rapidamente entre atores
da comunidade científica e principalmente fora dela, no seio da sociedade que a necessita e que
se identifica com uma ciência que lhe pertence e reage às necessidades, realidades e aspirações
da maioria e não apenas de poucos grupos poderosos, elitistas, minoritários e egoístas. O
contexto e os atores que o constroem estão vencendo uma longa luta com a ciência para a
sociedade, que os ignorou ou que foi indiferente às dimensões humana, social e ecológica da
existência. Sua relevância está sendo resgatada pela ciência emergente, uma ciência da
sociedade. A sociedade ganha com isso, porque seu desenvolvimento é contextual.
Obviamente, as mudanças nas relações CTS sintetizadas aqui são apenas algumas selecionadas
para o curto espaço deste capítulo. Estas mudanças também não indicam que a ciência moderna
já está morta ou será necessariamente extinguida. Por um lado, a ciência positivista está sendo
renovada por seus seguidores mais insistentes e consistentes, para superar algumas de suas
limitações e contradições. A ciência para a sociedade continuará oferecendo as contribuições que
suas características permitem, de forma mais limitada e menos arrogante, para recuperar parte
de sua legitimidade perdida. Por outro lado, a ciência da sociedade, a ciência contexto-cêntrica
emergente, não será suficiente para resolver todos os problemas complexos da sociedade e do
Planeta, senão aumentará e melhorará as possibilidades da sociedade formular de maneira mais
30
apropriada tanto as novas perguntas e respostas quanto os novos problemas e soluções que os
desafios antropogênicos — construídos pelos humanos — representam.
Conclusão
Máquina, Arena ou Ágora?
Indiferença, egoísmo ou solidariedade ? Estas são as principais opções futuras para a tecnociência
da época histórica emergente. Tudo dependerá da consolidação de certas tendências e
contradições atuais (De Souza Silva 2001), cujo compromisso com uma certa visão de mundo
condicionará a hierarquia de valores e objetivos a prevalecer na organização e funcionamento
das sociedades durante e mais além do século XXI.
São três os principais cenários emergentes para o futuro da tecnociência, todos eles dependentes
da coerência entre as concepções de mundo, desenvolvimento, sociedade e organização, como
podemos deduzir a partir das premissas selecionadas para representar cada um dos três cenários
emergentes, correspondentes às três visões de mundo — cibernética, mercadológica e contextual
— em conflito na mudança de época atual. Os cenários não são desenvolvidos aqui; este é um
exercício coletivo a ser realizado por grupos interessados na construção do futuro da humanidade
e do Planeta, para que seus participantes experimentem o impacto de suas descobertas dentro
do processo de construção dos cenários e da compreensão e apropriação de suas conseqüências.
31
Estado, os cientistas desta ciência para a eficiência reivindicarão neutralidade para a
prática científica, porque continuarão percebendo a ciência como “algo” separado da
sociedade e da natureza, cuja autonomia e objetividade devem ser protegidas a todo
custo, porque disso depende sua contribuição positiva à solução de todos os problemas
complexos. Esta racionalidade instrumental não exige a interação entre a tecnociência e
os atores do contexto; seus motivos humanos, sociais e ecológicos são irrelevantes.
32
relações, onde os excluídos sociais emergem de assimetrias de poder no processo
desigual de criação-distribuição-apropriação de informação-riqueza-poder. A ordem social
deve ser uma responsabilidade compartilhada entre a sociedade e os indivíduos, através
de redes de democracia participativa para complementar a democracia representativa. A
organização de desenvolvimento é percebida como um facilitador de mudanças
comprometidas com as dimensões humana, social e ecológica, que subordinam e
orientam as contribuições centradas nos critérios de eficiência, competitividade e
qualidade. Sob os conceitos de equidade, sustentabilidade e bem-estar inclusivo, os fins
— melhores condições, nível e qualidade de vida — são negociados como critérios para
criar uma hierarquia de valores superiores para subordinar os objetivos-meios, como
crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico. Os cientistas deste cenário,
reconhecendo a complexidade, interdependência e contradições da realidade e, sob uma
racionalidade comunicativa, assumem que a inovação emerge da interação, e que
conhecimento válido é gerado e apropriado no contexto da aplicação de seus resultados
e das implicações de seus impactos. Conscientes de sua não-neutralidade e de sua
condição de intérpretes-conceitualizadores da realidade, os cientistas “solidários” deste
cenário se preocupam eticamente com os valores e a natureza de sua intervenção,
interagindo com os demais “sujeitos” do contexto da pesquisa para negociar a relevância
da pesquisa, compreender a percepção destes atores sobre a realidade local e os temas
da pesquisa, incluir seu conhecimento tácito do contexto, construir compromisso em
torno às mudanças que podem emergir da pesquisa, etc. Neste contexto, a realidade
inclui, mas transcende o mercado com seus clientes e demandas, para incorporar outras
dimensões e aspectos da existência que não se expressam através de demandas
econômicas nem podem ser traduzidas à linguagem matemática. A tecnociência deste
cenário contribui a uma economia com mercado, onde o mercado é regulado para servir
a sociedade, e não o contrário, como está ocorrendo na institucionalidade dominante da
atual globalização. Outra institucionalidade é possível.
E agora, José? Qual das metáforas em conflito na mudança de época é relevante para construir
uma tecnociência melhor para a humanidade e o Planeta — máquina, arena ou ágora —? Qual
destes espaços é mais apropriado para a sustentabilidade de todas as formas de vida na Terra?
Obviamente, não haverá um futuro onde um destes cenários existirá de forma pura. Todavia, nos
interessa estabelecer um destes cenários como normativo; o que deve prevalecer sobre outros,
que coexistirão de forma complementar e subordinada à hierarquia de valores e objetivos deste,
que deve ser o mais aceitado eticamente pela maioria da sociedade.
A máquina é um espaço sem emoção que opera sob a ditadura da razão, cuja racionalidade
instrumental constrói indiferença, com respeito às dimensões humana, social e ecológica, entre
os que atuam sob os ditames da racionalização. A arena é um espaço que funciona sob a lógica
da acumulação e do critério do lucro, cuja racionalidade econômica cria egoísmo entre os que
atuam sob a prevalência do argumento da poder. A ágora é um espaço para a interação, cuja
racionalidade comunicativa exige diálogo democrático e critérios éticos, para a negociação entre
os que atuam sob a prevalência do poder do argumento.
33
Sob um enfoque ético, a ágora é o único espaço onde a sociedade pode participar com o poder
de influenciar a natureza, rumo e prioridades da tecnociência que lhe interessa. Na perspectiva
deste capítulo, uma tecnociência da sociedade deve caminhar na direção indicada pelo cenário
em que a sociedade está no comando. Não faz sentido que a tecnociência esteja sob o comando
indiferente das máquinas desumanas, nem sob o comando egoísta dos gladiadores implacáveis
que atuam nos mercados excludentes do modelo de crescimento econômico com exclusão social.
Uma tecnociência da sociedade transcenderá a ciência positivista cuja relevância declina com o
peso de sua própria indiferença, e evitará a cobiça da ciência comercial transnacional emergente
cuja relevância está sob suspeita pelo egoísmo individualista e interesse expansionista de atores
corporativos que a financiam ou influenciam de forma crescente.
Os protagonistas do Foro Social de Porto Alegre, Brasil, aspiram uma tecnociência da sociedade
— ciência com consciência —, porque querem viabilizar uma economia com mercado, onde este
é regulado para servir a sociedade. Porém, os protagonistas do Foro Econômico de Davos, Suíça,
promovem uma tecnociência para a sociedade — ciência sem consciência —, pois viabilizam uma
economia de mercado, onde as sociedades são reguladas para servir ao “livre” mercado.
Salve-se o mais competitivo: cada um por si, Deus por ninguém e o Diabo contra todos, com o
apoio da tecnociência comercial transnacional — apátrida. Por causa desta tendência, que já
predomina em muitos países, mas que não é relevante para a felicidade da humanidade nem
para a sustentabilidade do Planeta, tudo que é sólido está sendo dissolvido no ar, e tudo que é
sagrado está sendo profanado. Outra vez. Até quando? A que custo?
34
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