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Horizontes Antropológicos

39 | 2013
Antropologia e Trabalho
Cornelia Eckert, Ana Luiza Carvalho da Rocha e José Sergio Leite Lopes
(dir.)

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/horizontes/109
ISSN: 1806-9983

Editora
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Edição impressa
Data de publição: 20 junho 2013
ISSN: 0104-7183

Refêrencia eletrónica
Cornelia Eckert, Ana Luiza Carvalho da Rocha e José Sergio Leite Lopes (dir.), Horizontes
Antropológicos, 39 | 2013, « Antropologia e Trabalho » [Online], posto online no dia 15 outubro 2013,
consultado o 01 fevereiro 2020. URL : http://journals.openedition.org/horizontes/109

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© PPGAS
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Apresentação
Cornelia Eckert, Ana Luiza Carvalho da Rocha e José Sergio Leite Lopes

1 Se o século XIX foi embalado sobremaneira por um tempo de emergência do processo


de industrialização no contexto ocidental moderno e marcado pela acirrada divisão
internacional das lógicas de produção do capital, o século XX nos empresta a dimensão
de um tempo de consolidação do capitalismo como ordem mundial dos fatores
ideológicos e políticos que dinamizaram as lógicas desenvolvimentistas e determinaram
as formas da vida social nos Estados-nação.
2 O valor-trabalho foi, nessas conjunturas, o sistema de disposição de valores
predominante na materialização do trajeto humano, orientando os modos de
organizações econômicas, de instituições de mercado e de comportamentos de
consumo de impacto mundial. Realidade social esta construtora de uma cultura do
trabalho no movimento de processos que se radicaram: a industrialização, a
proletarização, a mecanização, a urbanização e, no rastro, o que o sociólogo alemão
George Simmel definiu por tragédia da cultura, para sintetizar as complexidades que
essa estrutura econômica – que perpassou os tempos modernos aos tempos
contemporâneos – nos revela: contradições, paradoxos, conflitos e injustiças, muitas
injustiças. Não nos surpreende, portanto, que uma especialidade no campo de estudos
sociais definida por antropologia do trabalho e dos trabalhadores, e de forma bastante
participativa no Brasil, se tornou uma área de reflexão de enorme responsabilidade
científica e política de interpretação das complexidades que encerram os fenômenos
relacionados à cultura do trabalho, das práticas e dos saberes de ofícios, dos
agenciamentos profissionais, das trajetórias laborais, das redes de trocas sociais, e, em
seu bojo, o compromisso de compreender os impactos gerados por estruturas
econômicas contraditórias, modos de dominação econômicas opressivos,
gerenciamentos do trabalho assimétricos, distribuição da produção de forma desigual e
discriminatória seja no mundo rural, seja no mundo urbano.
3 Marshall Sahlins, um eminente antropólogo americano que nos legou uma emérita
reflexão crítica sobre o reducionismo utilitário da cultura, qualificando a razão
simbólica ou significativa do empreendimento humano, nos lançou um desafio analítico
sobre as complexidades das estruturas de longa duração e, não raro, idealizadas por
instituições de poder e de interesse de exploração econômica naturalizadas como

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permanentes. Assim, a naturalização do capitalismo em suas múltiplas faces de


dominação (liberal, neoliberal, etc.) se dispõe como sistêmica e normatizada.
Justamente para desvendar essa trama, importa reconhecer as estruturas das
conjunturas trazendo a indagação sobre “como as categorias culturais se atualizam
num contexto específico por meio da ação interessada dos agentes históricos e da
pragmática de sua interação”.1 Podemos então, à luz deste desafio, perguntar sobre a
pluralidade e multiplicidade de formas e lógicas que o trabalho, como ação da vida
humana, opera no século XXI. Podemos sugerir que as dialéticas dos eventos em torno
do valor-trabalho, simbolicamente constituídas e concretamente vividas pelos
trabalhadores, nos entusiasma a conjugar estudos antropológicos com potencial para
interpretar essas inteligibilidades históricas, sociais e culturais em suas disposições
éticas e morais.
4 Estamos convencidos que os estudos etnográficos no campo interpretativo da teoria
antropológica têm justamente este potencial de desnaturalizar a cultura do trabalho
como uma determinação estrutural presa às amarras do capitalismo mundial, de
programas globais e desenvolvimentista, liberais e neoliberais. Quais são as
descontinuidades lógicas, as inteligibilidades práticas, as microações criativas em cada
ato de trabalho nas diversas esferas da vida social? A pergunta é pretensiosa e é
justamente dessas armadilhas semânticas que queremos nos afastar, não por temer a
simplificação e a generalização, mas porque almejamos construir um debate aberto, não
conclusivo, mas sem dúvida crítico das experiências plurais que colocam a categoria
trabalho em alto relevo.
5 Para compor um estado da arte de estudos recentes trazemos 14 artigos que aspiramos
representativos das dinâmicas temporais em diversos contextos “periféricos” das
estruturas dominantes, como no Brasil, no Chile, na Argentina e no México.
6 Iniciamos nosso dossiê com o estudo de Areli Escobar Salazar que tem por título “Las
fábricas de la charla en Chile: apuntes preliminares sobre la materialidade y la
subjetividad del trabajo en los call centers”. A partir de questões-chave como a nova
divisão global do trabalho, mudanças no processo produtivo, especializações nas
atividades profissionais, a autora vislumbra a organização do trabalho e da
subjetividade laboral dos trabalhadores de call centers, empresas de serviços que surgem
nos anos 1990 no Chile. Assinala aos leitores tratar-se de um processo estrutural em
crise, quando mais não seja da crise dos modelos de exploração econômica do fordismo
e do taylorismo, modelos dominantes de organização do trabalho, aspectos
problematizados a partir do estudo de caso junto a trabalhadores nesse contexto.
7 O próximo artigo é intitulado “Fazer a feira e ser feirante: a construção cotidiana do
trabalho em mercados de rua no contexto urbano”, da antropóloga Viviane Vedana. Na
perspectiva de uma antropologia dos e com os trabalhadores a autora interpreta as
narrativas e ações laborais de uma central de abastecimento em uma capital brasileira
do Sul do país, Porto Alegre. Tomando essa cidade como objeto temporal a autora nos
apresenta, a partir de um exercício etnográfico, as práticas cotidianas como o resultado
da sistematização de um conjunto de saberes e experiências construídas no dia a dia do
mercado pelos trabalhadores entrevistados.
8 Maria Leticia Mazzucchi Ferreira, historiadora e antropóloga, é a autora do próximo
artigo, intitulado “Os fios da memória: Fábrica Rheingantz entre passado, presente e
patrimônio”. Dessa vez somos convidados a compartilhar do trabalho da tessitura da
memória em um cenário fabril. Ambientado na cidade de Rio Grande (RS), a empresa de

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vocação fabril é mote de tempos de produção industrial e de criação de uma


comunidade identificada com essa atividade. Crises econômicas, entre outras questões,
levam ao fechamento da indústria, e a autora estuda junto a ex-trabalhadores os
processos de mudança que os impactaram com conflitos e embaraços na vida cotidiana:
o desemprego, a dívida, a ameaça da perda da habitação operária e mais, as démarches
de transformação do espaço fabril em patrimônio industrial.
9 Na esteira de reflexão das transformações de indústrias tradicionais como a de
exploração mineral, segue o artigo de María Fernanda Hughes, intitulado “Re-
estructuración capitalista: precariedad laboral y resistencia. La protesta de los mineros
del cobre en Chile”. Após os anos de chumbo que determinaram transformações na
estrutura econômica dos países latino-americanos, a autora relata essa realidade para o
caso chileno, organizando essa notícia em termos históricos e sociológicos. Transmite,
em seguida, a sua experiência de campo junto a trabalhadores chilenos do cobre em El
Teniente, submetidos na atualidade organizacional aos processos de subcontratação ou
terceirização, bem como às novas formas de estruturas sindicais.
10 É também dedicado à relação sindical de trabalhadores de atividades tradicionais o
próximo artigo. Em “Trabalho e ação coletiva: memória, espaço e identidades sociais na
Cidade do Aço”, Marco Aurélio Santana e Massimiliano Mollona analisam as formas
pelas quais militantes dos movimentos sindical e popular constroem suas memórias
acerca das mobilizações experimentadas no município de Volta Redonda (RJ) nas
décadas de 1980 e 1990, verificando as representações de cidade que perpassam esse
trabalho de memória.
11 Lenin Pires nos traz em seguida o artigo sob o título “Entre notas e moedas: trocas e
circulação de valores entre negociantes em Constitución”. O estudo antropológico sobre
as práticas comerciais se desenrola em um bairro situado ao sul da cidade de Buenos
Aires. Em sua reflexão sobre a articulação entre distintos valores – materiais, morais,
éticos e estéticos – na construção de lógicas intrínsecas à circulação de bens e pessoas,
não está ausente o reconhecimento do processo de produção etnográfica,
contextualizando o campo interpretativo desse processo de circulação de práticas e
valores monetários. É também de Buenos Aires que advém o próximo relato etnográfico
sobre os trabalhadores. Mariano D. Perelman nos apresenta o artigo “Trabajar en los
trenes. La venta ambulante en la ciudad de Buenos Aires”, que trata da atividade de
trabalhadores informais, em que desvenda um mundo econômico singular de regras e
lógicas próprias apreendidas na representação desses trabalhadores.
12 É do México que lemos o próximo relato de pesquisa. Alejandra Navarro Smith
contribui com o trabalho intitulado “Pescadores cucapá contemporáneos: investigación
y video colaborativo en un escenario de conflicto”. Adentramos agora a perspectiva da
ambientalização dos conflitos e da pesquisa com imagens, tão cara aos organizadores
deste dossiê. Trata-se de uma investigação levada a termo junto aos pescadores
indígenas cucapá que clamam pelo direito a essa atividade tradicional em reserva
protegida. Conhecemos no artigo a organização operada pela comunidade por seus
direitos de trabalho bem como a atuação da antropóloga visual em um projeto de
colaboração educacional.
13 O mundo rural brasileiro, em especial os trabalhadores em contextos rurais e
moradores seja no campo, seja em cidades de pequeno porte de vocação rural, é
representado neste número pelo artigo de Verena Sevá Nogueira, intitulado “Trabalho
assalariado e campesinato: uma etnografia com famílias camponesas”. O trabalho

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sazonal ritma a vida de trabalhadores no município de Aracatu (BA). É em torno da


cultura do café que homens e mulheres se deslocam em condições migratórias
investigadas etnograficamente pela autora, que investe nas condições de trabalho, na
organização familiar, nas dinâmicas produtivas e reprodutivas desses trabalhadores
mantendo um atento diálogo com a bibliografia privilegiadamente brasileira que
construiu escola interpretativa sobre o tema.
14 Margarete Fagundes Nunes, Magna Lima Magalhães e Ana Luiza Carvalho da Rocha são
as autoras do próximo artigo apresentado intitulado “Trabalho negro, memória negra
no Vale do Sinos (RS): narrativa etnobiográfica de Vó Nair”. É na voz desta trabalhadora
negra do alto dos seus 94 anos, que partilhamos o relato de sua trajetória de “escrava de
estimação” à benzedeira, configurando seu processo vivido no mundo do trabalho livre
ao longo de sua vida de mulher adulta e casada. As autoras traçam os paradoxos e
dilemas dessa trajetória em uma ambiência citadina de imigração alemã, em Novo
Hamburgo, cidade gaúcha brasileira que se consolidou na economia do couro e
calçados.
15 O trabalho da memória dos antigos habitantes da região missioneira gaúcha também é o
legado que testemunha o artigo “Memórias de trabalho nas paisagens missioneiras do
‘antes-tempo’”, do antropólogo Flávio Leonel Abreu da Silveira. Fruto de um trabalho
etnográfico nas paisagens de São Miguel (RS), as ações técnico-culturais relacionadas ao
universo do trabalho são narradas pelos interlocutores mergulhados em
inteligibilidades imaginárias e cosmográficas.
16 Os grandes projetos desenvolvimentistas promovem a construção de infraestruturas de
toda ordem, novas estradas, novas casas, novas instituições, e no Brasil, como mostra o
romance Jorge, um brasileiro, escrito pelo mineiro Oswaldo França Jr. e publicado em
1967, essas travessias e esforços nômades conformam os arranjos da vida social de uma
importante parcela de trabalhadores do país. Tendo como metanarrativa o citado
romance, André Dumans Guedes compõe em “Na estrada e na lama com Jorge, um
brasileiro. Trabalho e moradia nas fronteiras do desenvolvimento”, um diálogo por um
lado com sua pesquisa etnográfica desenvolvida no norte de Goiás junto a garimpeiros
atingidos por barragens e junto a trabalhadores de hidrelétricas, mineradoras e
empreiteiras e, por outro lado, com os estudos sociais que analisam e interpretam a
condição de trabalho na construção de grandes projetos desenvolvimentistas em que se
movem peões, corridos e paus-de-arara: deslocamentos de trabalhadores, fluxo de
experiências, encruzilhada de múltiplos sentidos.
17 Coletores de lixo atuam em diversos níveis de tarefas, práticas e saberes. Nessa
complexidade de atuação como tratar de um conceito que marcou de forma
contundente a teoria histórico-estrutural, a alienação? Santiago Bachiller desconstrói
esse conceito em “El verdadero fantasma es el trabajo no cuestionado. Analizando
etnográficamente al concepto de alienación”, partilhando de sua experiência de campo
que teve lugar em Comodoro Rivadavia, uma cidade na Patagônia argentina.
18 Finalizamos nosso dossiê com o artigo de Luciana Gonçalves de Carvalho, intitulado
“Relações de trabalho nos balatais do Pará”, estado ao norte do Brasil. Parte de um
estudo etnográfico empreendido junto a trabalhadores extrativistas do látex, uma
atividade em desuso pelo desvalor do produto-base. Mas velhos balateiros de Monte
Alegre, Almeirim e Alenquer são no presente motivados a narrar essas trajetórias
laborais estetizando em suas memórias as experiências vividas desse saber-fazer.

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19 O Espaço Aberto dá continuidade ao reconhecimento de uma produção intelectual no


campo antropológico frutífero tendo as condições de vida da classe trabalhadora como
foco interpretativo de fundação. A antropóloga argentina Andrea Roca revisita o livro O
vapor do diabo, publicado originalmente em 1976 como resultado da dissertação de
mestrado do professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro o
antropólogo brasileiro José Sergio Leite Lopes. Em artigo intitulado “A tradução de uma
etnografia por uma antropóloga. O caso de O vapor do diabo”, a autora homenageia essa
obra central na formação de aprendizes e pesquisadores de antropologia motivados ao
estudo sobre o trabalho, da cultura operária e da reprodução da classe trabalhadora,
temas que consolidaram a linha de pesquisa dos estudos antropológicos da classe
trabalhadora no Brasil.
20 Em seguida trazemos neste Espaço privilegiado de divulgação de trajetórias intelectuais
a entrevista de José Sergio Leite Lopes com Moacir Palmeira, professor de antropologia
no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesclando a linha de
pesquisa da antropologia dos trabalhadores rurais com a linha de antropologia política,
o protagonista dos estudos dos “tempos da política” recebe este oportuno tributo que
coloca em destaque, em seu depoimento, os seus estudos que trataram das
transformações contemporâneas da plantation açucareira no Nordeste brasileiro e das
mobilizações camponesas na segunda metade do século XX e, mais recentemente, seus
estudos antropológicos sobre os assentamentos de reforma agrária no Brasil.
21 Para a capa deste número ousamos repetir uma das imagens mais recorrentes ao longo
do século XX para representar uma crítica ao capitalismo, ao individualismo moderno,
à alienação no trabalho. Charles Chaplin em Tempos modernos se confunde com as
engrenagens que simbolizam as formas de dominação nos processos produtivos da
classe proletária. A força dessas alegorias, desse filme clássico, da atuação de Chaplin,
dessas engrenagens que rodam sem parar dramatizam os ritmos temporais que
repercutem nos tempos contemporâneos grávidos de novas questões, novos problemas,
novos dilemas, mas, da mesma forma, encompassados de paradoxos, contradições e
conflitos que ambientalizam a vida de trabalhadores na condição presente em suas
crises e tragédias. Problemas sociais que seguem a nos desafiar, a cada exercício
etnográfico, ao relato franco e ao debate aberto.

NOTAS
1. Marshall Sahlins, Cultura na prática, Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p. 366.

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Artigos

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Las fábricas de la charla en Chile


apuntes preliminares sobre la materialidad y la subjetividad del trabajo
en los call centers

Areli Escobar Salazar

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

1 Este artículo expone los resultados preliminares de la investigación de tesis doctoral en


Antropología social y cultural orientada a conocer la organización del trabajo y la
subjetividad laboral de los trabajadores/as de los call centers subcontratistas en Chile.
2 En las últimas décadas, la crisis del fordismo taylorismo como modelo dominante de
organización del trabajo y la instalación de formas diversas de postfordismo, han
generado profundos cambios en las modos de producir y de organizar el trabajo a nivel
mundial. Si bien se observan procesos diversos y heterogéneos en el mundo del trabajo
contemporáneo, es posible mencionar algunas tendencias globales relevantes para este
estudio. Por una parte, se evidencia una nueva división global del trabajo, que
reorganiza la producción a nivel mundial fragmentando la producción en circuitos
transnacionalizados,1 y por otra, se incorporan de manera creciente a los procesos
productivos capacidades humanas subjetivas que no fueron centrales en los periodos
anteriores de desarrollo capitalista (Antunes, 2002; Gounet, 1999; Virno, 2003). Se
observa también la creciente disminución de la población activa ocupada en actividades
productivas industriales2 y el aumento de la población ocupada en actividades de
servicios, señalada por la OIT (Tendencias del trabajo mundial, 1999) como una de las
principales tendencias mundiales del trabajo.
3 En este contexto global, la fragmentación productiva y la flexibilización de la
producción y del trabajo, unida a la desregulación jurídica del trabajo y a una regresión
en los derechos sociales y laborales, se asocian en gran parte del mundo occidental,
especialmente en América Latina y particularmente en Chile, a una amplia

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precarización del trabajo (Antunes, 2002; De la Garza, 2000; Todaro; Yañez, 2004, entre
otros).
4 En el escenario de las tendencias globales mencionadas y de la revolución de las
tecnologías de la información (Castells, 1996), comienzan a instalarse los call centers o
fábricas de la charla3 en la década de los 90’, entendidos como empresas basadas en
plataformas telefónicas asociadas principalmente a empresas de servicios. 4 A mediados
de la década del 2000 los call centers empleaban a cerca de 8 millones de trabajadores/
as en el mundo, concentrados fundamentalmente en EEUU –que representa cerca del
55% de las fuentes laborales de los call centers a nivel mundial–, Inglaterra, Alemania y
Francia. Como parte de los procesos de deslocalización, las empresas de call centers de
estos países trasladan sus centros de llamados a países de América Latina, Asia y África,
que cuentan con la infraestructura tecnológica necesaria y menores costos laborales
(Kremerman, 2005). Así, en la década del 90’ los call centers se instalan en diversos
países de América Latina y el Caribe empleando a más de 330 mil trabajadores/as en el
año 2005, especialmente en México, Brasil –que concentran más del 85% de la fuentes
laborales de los call centers en Latinoamérica– y Argentina (Kremerman, 2005).
También en países como India, Marruecos y crecientemente en Filipinas, 5 se observa
una importante actividad de estas fábricas de la charla.
5 A diferencia de Estados Unidos donde los call centers se encuentran en un periodo de
desarrollo maduro y de países como México o Argentina donde se encuentran en etapa
de crecimiento, en Chile estas empresas comienzan a instalarse a fines de la década del
90’ y ya en el año 2005 se registraron entre 14 y 15 mil puestos de trabajo (Kremerman,
2005). Algunas grandes empresas en Chile incorporan call centers como parte de sus
procesos productivos6 y otras son empresas subcontratadas orientadas exclusivamente
a la atención telefónica de otras empresas, fenómeno conocido como “outsourcing”. En
algunos casos los call centers subcontratistas cuentan a su vez con trabajadores/as
suministrados por otras empresas, en una extensa cadena de subcontratación.
6 Los call centers como empresas que forman parte de los circuitos de
transnacionalización y deslocalización de la producción, que incorporan
fundamentalmente a mujeres jóvenes como trabajadoras e incluyen las capacidades
subjetivas y de comunicación como eje central de su actividad, implican una profunda
precarización del empleo y son un claro ejemplo de las nuevas formas que asume la
organización del trabajo. Así, el habla puesto a trabajar en las fábricas de la charla –la
identidad entre trabajo y comunicación verbal–, se posiciona como uno de los núcleos
centrales del postfordismo en el mundo del trabajo actual (Virno, 2003).
7 Esta nueva realidad de los call centers en Chile me motivó a integrar el estudio de las
condiciones materiales del trabajo, la subjetividad laboral y las relaciones sociales de
género de estas empresas, en un análisis que pretende dar cuenta de la complejidad de
la realidad laboral y social contemporánea. Por materialidad del trabajo entiendo las
condiciones laborales de inserción de los trabajadores/as y los modos de producir y de
organizar el trabajo de los call centers en el marco del capitalismo global, y por
subjetividad laboral las formas de extrañamiento o enajenación, 7 es decir, la relación de
los trabajadores y trabajadoras de los call centers con la producción inmaterial de su
trabajo, la relación de los sujetos con el trabajo y la relación entre los sujetos en el
mundo laboral. La noción de extrañamiento que se utiliza en este estudio da cuenta
también de la captura de las capacidades humanas subjetivas 8 por el capital en las
nuevas formas postfordistas de organización del trabajo.

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8 Como procedimiento metodológico general utilicé, por una parte, un enfoque histórico
que permitió comprender la instalación y desarrollo de los call centers en el marco de
las dinámicas económico sociales de las últimas décadas en América Latina y Chile; y
por otra, una perspectiva que vincula lo general y lo particular, enfatizando en la
relación entre el contexto global de organización del trabajo en que se insertan las
empresas estudiadas y la perspectiva de los/as propios/as sujetos/as respecto a su
trabajo.
9 Desarrollé el trabajo etnográfico a través de la observación directa en las fábricas de la
charla, la revisión de documentos y de entrevistas en profundidad realizadas a 40
trabajadores/as de 12 call centers de la región metropolitana de Chile, tanto
teleoperadores/as como supervisores/as y a dirigentas sindicales de la Federación
Nacional de Trabajadoras de Call Centers FETRACALL.

Una mirada inicial a las trayectorias laborales


10 A pesar de ser en su mayoría personas jóvenes,9 casi la totalidad de los sujetos de
investigación tienen una trayectoria laboral compleja, de largos años de trabajo en
empleos parciales, vinculados en la mayor parte de los casos a trabajos del sector
servicios en labores de administración, secretariado, ventas, promoción, cobro, entre
otros. Las ocupaciones a las que acceden los sujetos entrevistados son trabajos
precarizados, muchos de ellos sin contrato de trabajo, por tiempos parciales, con bajos
salarios y extensas jornadas de trabajo. En el contexto general de precarización del
trabajo, las condiciones laborales en los call centers resultan más atractivas para los
trabajadores/as, como lo demuestra esta cita de una joven supervisora de Atento,
[…] me vieran como yo trabajaba antes, tenía aquí marcada la blusa, me vestía de
señorita, andaba en la calle, pedirle al chofer que me llevara por 100 pesos, comía
en una plaza. Caminar un montón para vender… Entonces yo llegué aquí, me
entregaron una cartera de clientes, había aire acondicionado, me pagaban mi
sueldo como correspondía. Cuando yo entré como operadora, el primer mes saqué
cuatrocientas lucas, yo nunca en mi vida había visto tanta plata […] (Marisela).
11 Es evidente que tanto la formación como la experiencia laboral anterior de los sujetos
de investigación se vinculan estrechamente al tipo de actividades que se desarrollan en
los call centers. Las habilidades necesarias para las diversas labores que se realizan en
estos centros son similares a las aprendidas en los estudios técnicos y en las diversas
actividades remuneradas de los trabajadores/as. Si bien los call centers se caracterizan
por no exigir formación ni experiencia laboral previa, las habilidades requeridas para
este tipo de trabajo forman parte de los aprendizajes insertos en los estudios y empleos
masivos en esta etapa de ampliación de las actividades llamadas terciarias.

Apuntes sobre condiciones laborales: contratos y


salarios en los call centers10
12 En el periodo de recopilación de la información, la mayoría de los sujetos entrevistados
desarrolla sus labores de teleoperadores/as y supervisores/as con un contrato de
trabajo indefinido. Sin embargo, en varios casos los trabajadores/as iniciaron sus
trabajos en call centers con contratos a plazo fijo por tres o seis meses y posteriormente
fueron traspasados a contratos indefinidos. Este formato, que se observa en las

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empresas suministradoras de trabajadoras/es y en un call center, permite a las


empresas definir el no traspaso a contrato indefinido según las evaluaciones del
rendimiento de los teleoperadores/as. En estos casos los trabajadores/as son
“desvinculados” de la empresa, figura que desdibuja la noción de “despido”.
13 Los contratos de los trabajadores/as de call centers se modifican cuando las campañas
de las empresas específicas a las cuales presta servicios el call center terminan o según
las “necesidades de la empresa”. En estos casos habitualmente se establecen “anexos” o
“adjuntos” a los contratos de trabajo, mediante los cuales se modifican las jornadas de
trabajo – ampliándose o restringiéndose de 31 a 45 horas de trabajo de acuerdo a las
necesidades de cada campaña– y especialmente las tablas de comisiones por ventas o
los requerimientos necesarios para alcanzar el bono de calidad 11 de la campaña
específica, que constituye la parte variable del salario de los teleoperadores/as. Si bien
algunos de los sujetos entrevistados señalan que los “anexos” al contrato sólo pueden
establecer iguales o mejores condiciones de trabajo, en muchos casos las modificaciones
de las condiciones para alcanzar el bono de calidad generan mayores exigencias en el
cumplimiento de metas, disminución del tiempo ocupado en la atención de cada
llamada Tiempo Medio de Operación TMO, restricciones en las ausencias del trabajo,
etc. Como lo refleja el testimonio de Mariana, teleoperadora de Atento, el aumento
sistemático de las exigencias para obtener el bono de calidad, que constituye en algunos
casos la mitad del salario de los teleoperadores/as, se sitúa progresivamente en límites
difícilmente alcanzables por los trabajadores/as, lo que provoca la paulatina
disminución de los salarios, que se restringen cada vez más a la parte fija del salario,
[…] el TMO es el tiempo que uno demora con el cliente en línea y ellos ponen un
tiempo, que tiene que ser… generalmente ponen minuto y medio, minuto… sí más
menos un minuto… un minuto 70 segundos, una cosa así. Porque todo es plata para
ellos, entonces entre más se demore uno con el cliente más plata pierden ellos,
entonces el TMO es para fijar un tiempo, si te pasas del tiempo no te ganas el bono;
si tú llegas atrasado no te ganas el bono; si tú faltas o tienes muchas licencias en el
mes no te ganas el bono. Los que estaban en ventas era comisión por ventas,
nosotros en atención al cliente si teníamos bajo el TMO, bajo el tiempo que ellos
decían, no nos ganábamos el bono […] (Mariana, teleoperadora Atento).
14 Si bien algunos de los entrevistados señalan el logro de ciertos niveles de negociación
en las condiciones establecidas en los “anexos” de los contratos, en otros casos –como
menciona Marina, teleoperadora de Sermec–, existen presiones y amenazas de despido
para lograr la aceptación de los cambios en las condiciones contractuales.
[…] nos hacen firmar un documento donde aceptamos la baja de la tabla de
comisiones y si no aceptas te despiden. Despidieron a unos compañeros el año
pasado, por necesidades de la empresa, dijeron que no les convenían porque tenían
más de un año, pero todos sabemos que fue porque no quisieron firmar la baja de
comisiones […]
15 Al parecer, la experiencia laboral anterior, el manejo de los procedimientos de los call
centers, la participación en sindicatos, entre otros factores, junto a la flexibilidad
empresarial en el establecimiento de contratos de trabajo “individualizados”, generan
ciertos niveles de negociación diferenciados con cada trabajador/a.
16 Los salarios de los teleoperadores/as de call centers se componen de una parte fija y
una parte variable: la parte fija del salario está estipulada en el contrato de trabajo y
definida por el sueldo mínimo que cada año se establece en la negociación entre
sindicatos, empresarios y el Estado; y la parte variable del salario se menciona en el
“anexo” del contrato de trabajo e indica, según la campaña específica en que labora

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cada teleoperador/a, la tabla de comisiones por venta o los requerimientos para


acceder al bono de calidad.
17 Los teleoperadores/as con mayor experiencia laboral en el sector y las dirigentes
sindicales de la FETRACALL señalan que los salarios han disminuido progresiva y
sistemáticamente a partir de la utilización del TMO a principios del 2000 y asimismo
con el progresivo aumento en las exigencias para la obtención del bono de calidad como
lo señala Francisca, teleoperadora de Sermec.
[…] al principio igual se ganaban buenas lucas [pesos chilenos], daban ganas de
venir no faltar porque daban bonos por no faltar ni un día, daban otros bonos por
nota y después empezaron a bajar los bonos, si antes ganabas 350 mil pesos y ahora
ganas con suerte 250… y más o menos esa es la relación… ellos te ofrecieron tanta
plata y después fueron cambiando las reglas del juego […]
18 El aumento progresivo de los requerimientos para acceder al bono de calidad –que lo
sitúa en lugares cada vez más inalcanzables– y los masivos errores en los cálculos
salariales de los teleoperadores/as, generan incertidumbre e inseguridad en la mayoría
de los entrevistados/as e implican la sistemática disminución de los salarios de los
teleoperadores/as, el aumento de la productividad y de las ganancias del capital, y la
emergencia de nuevas formas de explotación de la fuerza de trabajo.
19 Si bien los salarios de los teleoperadores/as han disminuido sostenidamente en los
últimos años, la mayoría de los sujetos entrevistados coincide en señalar que los
salarios de los call centers son comparativamente más altos que los obtenidos en otros
ámbitos laborales. Los salarios más bajos obtenidos por Isabel y Claudia en diversos
trabajos del sector servicios, dan cuenta de esta realidad,
[…] lo que pasa es que yo estudié turismo, trabajé en agencias de viajes también en
venta de intangibles y de vendedora, pero en cuanto al sueldo, yo primera vez que
ganó máximo 300 […] (Isabel, teleoperadora de Sermec).
[…] en el fondo tú ves el mercado y más que eso una no gana, las pegas están entre
350 y 400 lucas máximo, yo estuve trabajando siete años en un supermercado y lo
más que puede ganar son 180, igual te mata lo de los supermercados y tienes que
trabajar los domingos (Claudia, teleoperadora Multivoice).
20 Efectivamente, los salarios de los trabajadores/as de call centers son superiores al
salario mínimo en Chile, inclusive en el caso de más baja remuneración que
corresponde a una jornada parcial de 18 horas semanales. Sin embargo, la dinámica
salarial de los call centers forma parte de las tendencias generales del país que indican
una distribución funcional del salario que se invierte desde la década del 70’ –cuando el
63% de las ganancias iba al trabajo y el 37% al capital– hasta la década del 2000 cuando
sólo el 40% de las ganancias va al trabajo y el 60% al capital. 12 Es decir, si bien los
salarios de los trabajadores/as de las fábricas de la charla son comparativamente más
altos que en otros empleos precarizados del sector servicios, siguen formando parte de
una dinámica general de explotación de la fuerza de trabajo y de aumento de las
ganancias del capital.
21 Según los datos obtenidos, y en concordancia con lo señalado por los sujetos
entrevistados y las dirigentes sindicales del sector, no se observan diferencias entre los
salarios de hombres y de mujeres, tanto en el caso de los teleoperadores/as como de los
supervisores/as.

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Inestabilidad e incertidumbre en las fábricas de la


charla
22 Una de las características principales de los call centers estudiados en otros países del
capitalismo periférico es la alta rotación de los teleoperadores/as. La gran mayoría de
los sujetos entrevistados reconoce esta dimensión y asevera que los ejecutivos no
laboran habitualmente más de seis meses en un mismo call center. La rotación masiva
de los teleoperadores/as se generaría por la no renovación de contrato ante el
incumplimiento de las requerimientos de la organización del trabajo –bajas
evaluaciones en los bonos de calidad, incumplimiento en las metas de ventas, etc.–, y
también por la deserción de los propios teleoperadores/as ante la insatisfacción por las
jornadas de trabajo o los bajos salarios generados por la imposibilidad de cumplir las
metas impuestas.
[…] hay mucha rotación, mucha, mucha gente se va o la echan. Han echado a harta
gente por disponibilidad, puntualidad, el tiempo que deberían estar conectados, que
sacan la vuelta, y por calidad –a nosotros nos hacen creo que son como 8 o 7
grabaciones en escucha y ponen nota, si tienes malas notas durante tres meses te
pueden despedir. En este tiempo han echado a hartas personas por esa razón […]
(Marina, teleoperadora Sermec).
23 Los supervisores/as entrevistados en este estudio tienen una antigüedad laboral entre
los 4 y 9 años en las empresas que trabajan actualmente, sin embargo, algunos
trabajadores/as, como Mariana teleoperadora de Atento, señalan que la rotación
también ocurre en este nivel de trabajadores/as de call centers, al parecer de manera
menos masiva.
[…] me asignaron un supervisor, no habían pasado ni cuatro meses y nos cambiaron
el supervisor entonces uno no alcanzaba a conocer a su supervisor, a tenerle
confianza cuando ya ¡pum! le cambiaban supervisor, en menos de un año tuve como
cinco supervisores […]
24 La rotación de los trabajadores/as se explica también por los despidos masivos que
implica la dinámica de deslocalización de los call centers. Las empresas que requieren
los servicios de call centers movilizan sus campañas y capitales hacia los países que les
aseguren menores costos y mayor acumulación de ganancias, lo que se observa –como
señalan las dirigentes sindicales de FETRACALL–, en el movimiento de campañas desde
call centers instalados en Chile hacia empresas ubicadas en otros países de la región,
especialmente en Perú y Ecuador.
25 Si bien los antecedentes de los call centers y la percepción de los sujetos entrevistados/
as coinciden en señalar una amplia y masiva rotación de trabajadores/as en estas
empresas, en los casos estudiados no se observa esta tendencia, con un promedio de
tres años en el trabajo actual en el caso de los teleoperadores/as y de cuatro años en el
caso de los supervisores/as. De los cuarenta sujetos entrevistados sólo la mitad cuenta
con experiencia laboral en call centers, en la mayoría de los casos en una empresa. Sólo
en algunos pocos casos los teleoperadores/as trabajaron en tres o cuatro empresas de
call centers con anterioridad a sus empleos actuales, en un movimiento de búsqueda de
mejores condiciones laborales. No se dispone en Chile de datos concretos que permitan
conocer las tendencias de las fábricas del habla en las últimas décadas, sin embargo, es
posible sostener inicialmente que la tendencia que durante los primeros años
identificaba a los call centers en el país como nichos de trabajo parcial e inestable y de
ocupación fundamentalmente de estudiantes, se transforma progresivamente. Se

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observa una nueva y compleja dinámica que reúne por una parte a trabajadores/as de
call centers que son incorporados y expulsados del mercado de trabajo, y por otra, a
trabajadores/as que al “adaptarse” a los procedimientos y requerimientos de las fábrica
del habla, logran mantener una antigüedad laboral y salarios más altos que en otros
empleos del sector servicios. Desde la perspectiva de las dirigentes sindicales de
FETRACALL, el perfil del teleoperador/a de call centers se modificó en los últimos años
del estudiante que buscaba un empleo parcial y de bajo salario, a mujeres –
habitualmente jefas de hogar–, que requieren estabilidad laboral y salarios para
mantener la economía de su unidad doméstica.
[…] se van de una empresa a otra porque los echan… o se aburren con los horarios
de noche o la mala onda con los supervisores, como son tan rotativos hay
estudiantes que trabajan uno o dos meses en cada call center… pero ahora se
quedan varios años. Nosotros tenemos trabajadoras de 4, 5 años, nosotras mismas
ya cumplimos los tres. Yo creo que después de la negociación colectiva el trabajo se
volvió más estable porque antes se veía más deserción […] (dirigenta sindical
Multivoice).
26 Los datos disponibles de la muestra del estudio avalan esta tendencia: sólo tres sujetos
son estudiantes y la gran mayoría mantiene el trabajo en los call centers como su
actividad asalariada principal.

Nuevas formas de precariedad laboral: maltrato y


“cansancio de nuevo tipo” en los call centers
27 La mayoría de los teleoperadores/as, especialmente los que se ocupan en plataformas
de atención al cliente –segunda atención a los clientes en caso de reclamo por un
servicio–, señalan sufrir maltrato en el trabajo por parte de los clientes tanto de
campañas que prestan servicios en Chile como en otros países. Al parecer, los procesos
de deslocalización de las fábricas del habla –que sitúan a trabajadores/as en la atención
de servicios en otras localidades y culturas– generan tensiones en las relaciones entre
los teleoperadores/as y los clientes de las empresas contratantes de los servicios de call
centers. Como ejemplifica el testimonio de Javier, teleoperador de Teleperformance, los
trabajadores/as entrevistados mencionan discriminación por parte de los clientes no
nacionales.
[…] en atención al cliente donde estoy yo, nos dicen “sudaca no quiero nada con
ustedes, son inoperantes…” inmediatamente un choque frontal con el cliente, por
ser nosotros extranjeros, el cliente español nos trata muy mal, depende del estado
de ánimo, yo regularmente no estoi’ ni ahí, no pesco ahora [no le da importancia].
28 Considerando que el maltrato ocurre generalmente por el reclamo en la calidad de los
servicios de las empresas, es posible sostener que los trabajadores/as asumen frente a
los clientes la identidad empresarial, sufren en la vida laboral cotidiana el impacto de la
agresividad generada por la disconformidad de los clientes y enfrentan con recursos y
habilidades personales el maltrato. Los sujetos entrevistados sostienen que logran
controlar estas situaciones, sin embargo, su ocurrencia en la vida laboral cotidiana es
uno de los factores que incide en el cansancio de nuevo tipo que se evidencia en los
trabajadores/as del sector.
29 En muchos casos las relaciones laborales entre teleoperadores/as y supervisores/as se
caracterizan también por el abuso de autoridad y el maltrato. Estas condiciones del
ambiente laboral se sitúan como parte de las malas condiciones laborales de los

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trabajadores/as de call centers y de las nuevas dimensiones y formatos que asume la


precariedad laboral actual.
30 La mayoría de los sujetos entrevistados –tanto teleoperadores/as como supervisores/
as– señala que el trabajo en los call centers no genera problemas relevantes de salud
física. Sin embargo, la mayoría de ellos señala el cansancio, los trastornos del sueño y el
stress como los principales problemas de salud laboral. La intensidad del trabajo –
especialmente en las plataformas de entrada de llamados–, el escaso descanso durante
la jornada laboral, la tensión permanente que genera el conflicto con los usuarios, la
dinámica repetitiva del trabajo, la presión de los supervisores/as, la urgencia de
resultados para obtener el salario esperado, y en algunos casos la sobrecarga de trabajo
y estudios, son mencionados como los principales factores que generan stress,
cansancio y agotamiento mental en los teleoperadores/as de call centers.
[…] físicamente es lo más liviano que hay. Pero el tiempo que estuve en la parte
comercial, mentalmente estaba agotado. Estresa bastante. En algunos momentos me
sentía bastante cansado. Y la mayoría tenía la misma sensación. Quedaba cansado,
quedaba agotado. Lidiar con los conflictos de otras personas o escuchar algo por
obligación que no quieres escuchar, eso es lo que te agota […] (Juan, teleoperador
Emergia).
31 La doble jornada de trabajo productivo y reproductivo13 de la mayoría de las mujeres
entrevistadas es también un factor que incide en el cansancio de las trabajadoras. Si
bien las trabajadoras cuentan con un soporte familiar importante en el desarrollo del
trabajo doméstico y de cuidado de los hijos/as, le agrega un factor más de sobrecarga a
la fuerza de trabajo femenina. A pesar de que algunas investigaciones sostienen que los
sectores juveniles en Chile son más proclives a realizar cambios en los roles
socialmente asignados a hombres y mujeres (Gutiérrez; Osorio, 2008; Instituto Nacional
de la Juventud, 2010), en el caso de los trabajadores/as de call centers que forman parte
de una fuerza de trabajo juvenil, no se observa esta tendencia, posiblemente por su
convivencia con las familias nucleares en la mayoría de los casos.
32 Casi todas las personas entrevistadas señalan el cansancio y el agotamiento como
característica del trabajo de las fábricas de la charla, pero mencionan también periodos
de mayor o menor intensidad del trabajo y la posibilidad de moverse al interior del call
center en diferentes plataformas que les permitan una dinámica laboral menos
estresante.
33 En los periodos de mayor intensidad del trabajo, el cansancio y el stress laboral tienen
un impacto negativo en la vida doméstica y familiar. La irritabilidad, el desánimo, la
pérdida de paciencia, entre otros, afectan la vida personal de los/as ejecutivos/as y las
relaciones con sus hijos/as.
34 Ese agotamiento que los sujetos mencionan parece ser un “cansancio de nuevo tipo”
que se vincula a la utilización intensiva de las capacidades humanas subjetivas. A
diferencia del fordismo clásico, en que el agotamiento obedecía más bien a un
cansancio físico generado por la explotación de las capacidades y habilidades manuales,
en las fábricas de la charla se explotan capacidades humanas vinculadas a la
comunicación y a las capacidades emocionales. Las necesidades de prestar atención,
comprender problemas, resolver conflictos, mediar, seducir, negociar soluciones,
convencer, contener, realizar tareas múltiples, etc., bajo un control rígido del tiempo,
genera en los trabajadores/as de call centers un cansancio de más bien de tipo mental y
emocional, que afecta también su vida doméstica.

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Unidad doméstica y trabajo reproductivo


35 Considerando que la fuerza de trabajo de los call centers es fundamentalmente
población joven y que habitualmente los/as jóvenes se independizan tardíamente de su
familia en Chile, es comprensible que la gran mayoría de los sujetos de la investigación
constituya su unidad doméstica en convivencia con su familia de origen, habitualmente
las madres, padres, hermanos/as y abuelos/as. La convivencia con la familia de origen
es un soporte relevante para la vida cotidiana de los trabajadores/as en cuanto permite
compartir el trabajo doméstico, la crianza de los hijos/as, y también los costos de la
economía doméstica.
36 En casi todos los casos las mujeres asumen la crianza de los hijos/as con el apoyo de sus
madres, abuelas, y en algunos casos, de hermanos/as mayores. Sólo en algunos casos de
trabajadoras con una relación de pareja estable se observa la participación de los
hombres en el trabajo doméstico y de cuidado de los hijos/as. En los casos de
trabajadoras con pareja estable o sin ella se evidencia que los padres de los hijos/as de
las trabajadoras tienen un rol mínimo o nulo tanto en el mantenimiento económico
como en el cuidado y crianza de los niños/as.
37 La mayoría de las trabajadoras asume las tareas de trabajo doméstico y de crianza de los
hijos/as como parte de sus roles centrales, sin embargo asumen una actitud crítica
frente a la escasa o nula responsabilidad de los hombres en estos trabajos.
38 El cumplimiento de los derechos maternales que se constata en las fábricas del habla a
través de la financiación de salas cunas o cuidadoras para los/as menores, permite
también un soporte en el cuidado de los hijos/as. A diferencia de muchas empresas en
Chile que utilizan estrategias para evitar cumplir los derechos maternales, todas las
trabajadoras entrevistadas señalan que en los call centers se respetan los periodos de
pre y posnatal y se financian los costos de salas cunas o cuidadoras para sus hijos/as.
39 Se observa entonces una co-responsabilidad en el trabajo y economía doméstica y
también en la crianza de los hijos/as, lo que en estricto rigor no sitúa a las mujeres
entrevistadas como “jefas de hogar”, sino más bien como partes de una densa red de
colaboración familiar que se instala como un soporte importante ante los salarios
variables de los trabajadores/as de call centers.
40 Uno de los atractivos mencionados por las trabajadoras entrevistadas para buscar
empleo y mantenerse en las empresas de call centers es la posibilidad de conciliar el
trabajo doméstico con el trabajo remunerado. Las jornadas de trabajo parciales, la
posibilidad de modificar el contrato laboral y disminuir la jornada de 45 horas
semanales, la flexibilidad horaria en algunas empresas, son destacadas como factores
fundamentales para conciliar el trabajo asalariado con el cuidado y crianza de los hijos/
as.
[…] yo creo que es igual para la mayoría de las mujeres… yo por lo menos busco este
trabajo porque uno no quiere dejar de lado la familia tampoco y trata de aportar en
algo para la casa, si hubiera sido de otra forma busco un trabajo de lunes a viernes
con un horario más largo, pero al final tampoco es tanta la plata que uno gana.
(Edith, teleoperadora Sermec).
41 La constatación de que la gran mayoría de las trabajadoras entrevistadas realiza el
trabajo asalariado en los call centers junto al trabajo doméstico y de crianza de los
hijos/as, permitiría sostener que se observa en las fábricas de la charla una doble

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extracción del valor del trabajo productivo y reproductivo de las mujeres trabajadoras.
Sin embargo, la participación central de la familia en el trabajo reproductivo incorpora
una nueva dimensión a la explotación de la fuerza de trabajo. En estos casos, el capital
no sólo utiliza el trabajo reproductivo de las trabajadoras de los call centers, sino
también el de otras mujeres14 que componen la unidad doméstica. La explotación de la
fuerza de trabajo se extiende por lo tanto a la unidad doméstica a través de los roles de
género socialmente asignados a las mujeres en las sociedades occidentales.

Habilidades y capacidades humanas explotadas en las


fábricas de la charla
42 Las diferentes funciones que cumplen los teleoperadores/as y los supervisores/as en las
fábricas de la charla establecen diferencias en las habilidades y capacidades necesarias
para sus respectivos trabajos. Se observan habilidades comunes en el caso de los
teleoperadores/as, pero también énfasis diversos dependiendo de las plataformas y
tareas específicas que estos/as deben desarrollar.
43 En los trabajos vinculados a la atención directa de los clientes, se exige de los
teleoperadores/as la capacidad de comprender las necesidades del usuario de los
servicios y de resolver los problemas identificados en el menor tiempo posible. Como se
evidencia en la entrevista a Juan, teleoperador de Emergia, la capacidad de interpretar
los requerimientos, identificar y dar rápida solución a los problemas planteados,
requiere la atención permanente y agilidad mental de los trabajadores/as de estas
plataformas.
[…] si es atención con personas en el momento, necesitas comprensión o hacer una
síntesis de lo que necesitan. Porque si uno habla con una persona, algunos van
directo al grano a lo que necesitan, son directos. Con otras personas uno puede
estar hablando media hora y no sabes que es lo que necesitan. Y tienes que ser
capaz de sintetizar lo que te está pidiendo y darle una respuesta […]
44 En las plataformas de recepción y atención de reclamos, los ejecutivos/as sufren
constantemente agresiones y malos tratos. En estos casos los trabajadores/as
desarrollan las capacidades de contención de la agresividad, de mediación entre los
requerimientos de los usuarios y las normativas empresariales y de negociación en la
resolución de conflictos.
45 En las plataformas orientadas a las ventas y a la contención 15 de los clientes en las
empresas se utilizan fundamentalmente las capacidades de convencimiento y de
seducción. Por una parte los teleoperadores/as utilizan su propia experiencia como
consumidores/as para enfatizar las características de los productos que los
transforman en algo “deseable”. La búsqueda de argumentos creíbles y la propia
convicción sobre la calidad del producto, se mencionan en estos casos como habilidades
básicas para el logro de buenos resultados. Por otra parte, los teleoperadores/as
intentan establecer una relación de cercanía personal con los clientes que les facilite el
logro de las ventas. La cordialidad, la simpatía, e incluso la coquetería, son mencionadas
como estrategias habituales para establecer en corto tiempo una relación distendida
con los clientes. Como señala Edith, teleoperada de Sermec,
[…] tenemos que generar la instancia de tratar de hacer la conversación agradable
con el cliente, porque toda negociación es fría, entonces uno obviamente tiene que
romper esos esquemas con quién está hablando, ser simpática, dulce.

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46 En estos casos, descubrir los dispositivos que gatillan el deseo de consumo augura
resultados positivos para trabajadores/as que se desenvuelven personal y laboralmente
en el contexto de una sociedad de masificación del consumo que opera con la lógica del
deseo. La empatía y la capacidad de contención emocional con los clientes son
mencionadas en algunos casos como habilidades centrales especialmente para el
trabajo en campañas de asistencia.
47 A nivel general, los trabajadores/as requieren ciertas habilidades transversales,
comunes a todos los teleoperadores/as de call centers. Las capacidades de
comunicación, el manejo a nivel de usuario de las plataformas computacionales, y
especialmente la “sonrisa telefónica” –como símbolo de la obligatoria atención amable
y cordial con los usuarios–, son mencionadas por la gran mayoría de los sujetos
entrevistados como habilidades básicas para desempeñarse en las fábricas de la charla.
Necesitas cosas super básicas: hablar bien, manejar el computador, ser constante…
No es un trabajo muy difícil ¡para nada, para nada! Un niño chico de 15 años podría
trabajar perfectamente en un call center, sin ningún problema. (Mario,
teleoperador Spa).
48 Muchas de las habilidades requeridas por los teleoperadores/as de los call centers –
tales como la capacidad de convencimiento, la seducción, la mediación, la empatía,
entre otras–, son reconocidas socialmente como características asociadas al género
femenino en las sociedades occidentales de las cuales forma parte Chile. La utilización
masiva de fuerza de trabajo femenina en los call centers –en Chile así como en la
mayoría de los países con presencia de estas empresas– podría entonces vincularse con
la explotación de las habilidades reconocidas socialmente como “propiamente
femeninas”.
49 Además, las capacidades requeridas para el trabajo de los teleoperadores/as en los call
centers, tanto a nivel transversal como en las plataformas específicas, son, en la
mayoría de los casos, habilidades humanas básicas, que no requieren una calificación
especializada. Por una parte, las capacidades de comunicación, de comprensión, de
resolución de problemas, de síntesis, de convencimiento, etc., son habilidades
habitualmente utilizadas en los empleos vinculados al sector servicios. La
particularidad de las fábricas de la charla pareciera estar en la explotación intensiva de
estas capacidades cognitivas y en la comunicación a distancia, que le otorgan una
dinámica diferente de otros empleos del sector servicios. Por otra parte, en una
sociedad de gran impacto de las tecnologías de la información y de considerable
alfabetización digital como es Chile, el conocimiento computacional básico es de amplio
manejo, especialmente en la población más joven del país.
50 El requerimiento de habilidades humanas básicas que no implican especialización
específica pero si de habilidades socialmente reconocidas como “femeninas”, podría
explicar en parte el ingreso masivo de fuerza de trabajo femenina, juvenil y con escasa
capacitación a los call centers en Chile.
51 Los supervisores/as de los call centers, como trabajadores/as responsables de un grupo
de teleoperadores/as de una plataforma16 y campaña específica, requieren habilidades
diferentes a los ejecutivos/as. La mayoría de ellos/as menciona la capacidad de
liderazgo, la motivación en el manejo del grupo y el relacionamiento personal y
afectivo con cada uno de los teleoperadores/as a su cargo, como las habilidades
centrales utilizadas en su trabajo.

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52 Todos los supervisores/as entrevistados coinciden en señalar la capacidad de liderazgo


como la principal habilidad necesaria para desempeñar su labor. Un liderazgo que
controla pero que no asume un perfil autoritario, que genera confianza y motivación
grupal para el logro de las metas es, según los sujetos entrevistados, el tipo de liderazgo
necesario para el manejo de grupos en las fábricas de la charla.
53 Otra característica central en el trabajo de los supervisores/as es la relación personal y
afectiva establecida con cada uno de los ejecutivos/as a su cargo. La lógica de
flexibilidad que se impone en la dinámica de trabajo en cuanto a horarios, organización
de las jornadas, evaluación, entre otros, otorga a los supervisores/as amplios ámbitos
de decisión y poder. Para el manejo de estas normas, los supervisores/as utilizan el
conocimiento de la vida personal de los trabajadores/as a su cargo y establecen una
relación de carácter personal y afectivo. Como señala Marisela, supervisora de Atento,
un supervisor no cumple solamente la labor de administrador, hay que ser duro con
las metas y blando con las personas y eso requiere la habilidad de trabajar
sicológicamente con una persona, uno termina convirtiéndose en padre, en
maestro, párroco, sicólogo, médico… Porque se trabaja con una persona que
depende de uno para muchos factores, para retirarse antes, para poder estudiar…
entonces uno necesita conocerlos muy bien, saber qué les pasa cada día.
54 Todos los supervisores/as entrevistados/as coinciden en señalar el conocimiento de la
vida privada y la cercania personal con los trabajadores/as a su cargo como un ámbito
fundamental de su trabajo que se utiliza más bien como una iniciativa personal que
como orientación o normativa empresarial. En este sentido, los sujetos señalan que el
aprendizaje de este procedimiento no se genera a través de los canales formales de
capacitación institucional sino como parte de la misma experiencia laboral en el sector.
55 Si se evidencia una alta rotación de teleoperadores/as en las fábricas de la charla es
posible preguntarse cómo logran establecerse las relaciones personales necesarias para
organizar el trabajo de los supervisores/as. Más aún, algunos supervisores/as incluso
mencionan estas relaciones personales y afectivas como mecanismo para impedir la
rotación de los ejecutivos/as. Es posible que la tesis de la progresiva disminución de la
rotación laboral y el aumento de trabajadores/as relativamente estables en los call
centers, permita comprender esta paradoja.

Identificaciones en las empresas de call centers


56 Si bien casi la totalidad de los entrevistados/as –tanto teleoperadores/as como
supervisores/as– se identifica de manera espontánea con los perfiles que señalan sus
contratos de trabajo –ejecutivos telefónicos, teleoperadores, operadores, entre otros–
se reconocen a sí mismos como trabajadores. El cumplimiento de un horario de trabajo,
el cansancio que genera, el funcionamiento jerárquico de la empresa, son señalados por
los sujetos entrevistados/as como factores que los identifica claramente como
trabajadores/as.
57 La amplia y diversa trayectoria laboral de la mayoría de los sujetos entrevistados no
genera la identificación con un oficio o ámbito laboral específico sino con la identidad
general de “trabajadores/as”. Si bien se reconocen como individuos que viven del
trabajo e identifican las condiciones de precariedad del trabajo en los call centers, no se
evidencia una identificación común como seres sociales que viven del trabajo. Se otorga

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mayor relevancia a un perfil individual vinculado con los procesos generales de


individualización que se observan a nivel societal.
58 El trabajo en las fábricas de la charla se caracteriza por formar parte de una red de
subcontratación que genera la vinculación directa de los trabajadores/as por lo menos
con dos empresas diferentes: la empresa de call centers que contrata a los
trabajadores/as y organiza el trabajo y la empresa para la cual prestan sus servicios.
Estas complejas cadenas de subcontratación son conocidas por la gran mayoría de los
trabajadores/as entrevistados. Al parecer, las dinámicas de subcontratación extendidas
hace décadas en el mundo laboral chileno y las amplias trayectorias laborales de los
entrevistados, les permite reconocer estas dinámicas del trabajo. A pesar de la
vinculación directa con diversas empresas en el mundo de las fábricas de la charla, la
mayoría de los trabajadores/as entrevistados se identifica con la empresa de call center
y no con la empresa para la cual prestan servicios.
59 La mayoría de los teleoperadores/as entrevistados señala no sentirse parte de la
empresa de call center en que labora. La precariedad de las condiciones laborales y
especialmente la inestabilidad e inseguridad laboral que constatan en las fábricas del
habla son mencionadas como los principales factores que generan una identificación
más cercana a los trabajadores/as que con la empresa.
60 A diferencia de los teleoperadores/as, entre los supervisores/as se observa una
identificación más bien ambigua con la empresa. Si bien la mayoría de los supervisores/
as se reconoce a sí mismo como trabajador/a, se evidencian posicionamientos diversos
en torno a la empresa: algunos de ellos señalan sentirse parte importante de la
empresa, otros se sitúan en un espacio de intermediación entre la empresa y los
teleoperadores/as, y otros aseveran no sentirse identificados con la empresa por las
precarias condiciones laborales.
61 La mayoría de los entrevistados/as no se siente parte de la empresa en la que trabajan.
Si bien no se observa una identificación ni individual ni colectiva con los objetivos
empresariales, tampoco se evidencia una clara noción de las contradicciones entre
capital y trabajo.
62 A diferencia de otros sectores laborales en Chile en los que se evidencian estrategias
empresariales orientadas a lograr la identificación de los trabajadores/as con la
empresa (Escobar Salazar, 2004), en los call centers no se observa la implementación de
políticas o iniciativas en esta dirección. Al parecer, la lógica de aumento de las
ganancias del capital no opera a través de la mayor explotación de una fuerza de
trabajo “comprometida” con los objetivos del capital sino a través de otros
mecanismos, como la explotación intensiva de las capacidades humanas subjetivas y la
utilización de las habilidades reconocidas como “femeninas”.
63 Estos resultados preliminares sobre los call centers en Chile permiten evidenciar
nuevas formas de precarización del trabajo en el sector servicio, la explotación del
trabajo productivo y reproductivo de no sólo de las trabajadoras sino también de las
mujeres de su red familiar, y la utilización de las capacidades humanas más básicas y de
los afectos que se instalan como nuevos mecanismos de explotación de la fuerza de
trabajo y de aumento de las ganancias del capital.

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NOTAS
1. En las últimas décadas el capital ha desconcentrado territorialmente el capital productivo
logrando que las secciones nacionales se ocupen sólo de una parte del proceso productivo total.
En la búsqueda de menores costos de producción, el capital se instala en países con escasas
regulaciones en las condiciones ambientales y en la explotación de la fuerza de trabajo.
2. Si bien esta tendencia se observa a nivel mundial, es mayor en los países industrializados de
Europa occidental, donde la ocupación en la industria bajó desde un 40% en la década del 40’ a un
20-25% a comienzos del año 2000 (Gorz, 1997).

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3. En el análisis de los call centers en Argentina (Colectivo Situaciones, 2006) Paolo Virno
denomina a los call centers fábricas de la charla.
4. “Un call center, principalmente se basa en la utilización de plataformas telefónicas y equipos
conexos para mantener negocios y fortalecer la relación entre una empresa y sus clientes…
consiste en una serie de operadores –humanos o automáticos– que reciben o emiten llamados
telefónicos, apoyados en un software que permite realizar seguimiento de esas comunicaciones
cuyo objetivo central puede ser la venta, la atención de reclamos, la cobranza, entre otros.”
(Kremerman, 2005, p. 26).
5. Según los datos de Datamonitor report (2005), India concentra la mayor actividad de call
centers en Asia pero Filipinas muestra un aumento creciente. Para el año 2009 se proyectaba que
casi un cuarto de millón de nuevos puestos de agentes se incorporarían en ambos países.
6. Son aquellas empresas que necesitan e instalan un centro de llamados para vender productos,
realizar encuestas, responder a las necesidades de sus clientes, entre otros objetivos.
7. Los conceptos de extrañamiento y enajenación son diferentes en términos filosóficos, sin
embargo, para los fines de este estudio serán utilizados indistintamente. Estas nociones serán
desarrolladas en el informe final de investigación.
8. Capacidades humanas subjetivas como la disponibilidad a prestar atención, a preguntar, a
gestionar los afectos, la facultad de producir imágenes y relaciones, de producir organización y
lectura de información y especialmente las capacidades de comunicación y uso del habla
(Colectivo Situaciones, 2006).
9. La edad de los sujetos entrevistados, tanto teleoperadores/as como supervisores/as, fluctúa
entre los 22 y los 35 años, con un promedio de 28 años. Excepcionalmente, en uno de los casos, la
teleoperadora tiene más de 50 años de edad. Considerando que en Chile se reconoce formalmente
como población joven a las personas entre 15 y 29 años de edad, es posible señalar que la fuerza
de trabajo de los call centers está constituida por trabajadores/as jóvenes.
10. Los antecedentes sobre la organización del trabajo en los call centers serán integrados en los
resultados finales del estudio.
11. El bono de calidad constituye la parte variable del salario de los teleoperadores/as y
determina las condiciones requeridas para su obtención. Habitualmente considera la asistencia,
puntualidad, el Tiempo Medio de Operación TMO, la utilización de palabras no aceptadas, los
errores en el procedimiento formal, entre otros.
12. En entrevista a Hugo Fazio citada en Escobar Salazar y Kries (2005).
13. Trabajo asalariado en los call centers y trabajo doméstico en su unidad doméstica.
14. Si bien en algunos casos, se menciona el trabajo de abuelos y hermanos mayores de las
ejecutivas de call centers en el trabajo doméstico y de cuidado y crianza de los hijos/as,
habitualmente lo realizan las madres y abuelas de éstas.
15. La organización de los call centers habitualmente cuenta con varias plataformas o espacios de
trabajo diferenciados por funciones específicas. En la mayoría de los call centers se observan
plataformas de ventas, cobranzas, de contención (evitar que los usuarios terminen los contratos
de servicios), de atención al cliente o reclamo, entre otros.
16. La organización de los call centers habitualmente cuenta con varias plataformas o espacios de
trabajo diferenciados por funciones específicas. En la mayoría de los call centers se observan
plataformas de ventas, cobranzas, de contención (evitar que los usuarios terminen los contratos
de servicios), de atención al cliente o reclamo, entre otros.

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RESÚMENES
Este artículo expone los resultados preliminares de la investigación doctoral en Antropología,
orientada a conocer la materialidad y la subjetividad del trabajo de los call centers en Chile. Un
salario definido por metas inalcanzables, el maltrato, el cansancio de nuevo tipo, la doble
extracción del valor productivo y reproductivo de las mujeres trabajadoras y su entorno familiar,
la explotación de las capacidades subjetivas, entre otros aspectos, dan cuenta de las nuevas
formas que asume la precarización del trabajo. Las fábricas de la charla en Chile son un claro
ejemplo de las formas que asume la organización del trabajo en el escenario laboral
contemporáneo.

This article presents the preliminary results of PhD’s research aimed at discovering the
subjetivity and materiality of the work in the Call Centers focus in Chile. A salary defined with
unattainable goals, abuse, and exhaustion of a new type of double extraction: productive and
reproductive value as women’s workers and their families. Also the exploitation of subjective
capacities, among other things, show new forms that asssumes job’s insecurity and
precariousness. The talking factories as a clear example of the forms which take place by the
organization of work in the contemporary labor conditions scene.

ÍNDICE
Keywords: call centers, labor reproduction, materiality of the work, work’s subjetivity
Palabras claves: call centers, materialidad del trabajo, reproducción, subjetividad laboral

AUTOR
ARELI ESCOBAR SALAZAR
Universidad Autonóma de Barcelona – España
Doctoranda en Investigación Social y Cultural

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Fazer a feira e ser feirante


a construção cotidiana do trabalho em mercados de rua no contexto
urbano

Viviane Vedana

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

NOTA DO AUTOR
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Capes, entidade do governo brasileiro
voltada para a formação de recursos humanos.

1 As práticas cotidianas de trabalhadores do comércio de alimentos em feiras livres


foram parte significativa de meus estudos de doutorado, 1 que contou com pesquisa de
campo em mercados de rua das cidades de Porto Alegre e São Paulo, no Brasil, bem
como em marchés de Paris, na França. Em Porto Alegre as feiras livres organizadas pela
Associação dos Usuários do Mercadão nos bairros Cidade Baixa e Medianeira ganharam
especial atenção durante o trabalho de campo. No caso de São Paulo, a pesquisa se
desenrolou na feira livre da rua Mourato Coelho, organizada pela prefeitura da cidade.
O Marché Maubert, no 5e arrondissement e o Marché de Belleville, no 20e arrondissement
foram os principais locais da pesquisa de campo realizada em Paris.
2 Embora a delimitação do objeto que configurava a pesquisa de doutorado, naquele
momento, não se relacionasse diretamente ao tema do trabalho ou à escolha da
ocupação de feirante, suas práticas sociais eram fundamentais para a compreensão do
que me inquietava: os laços sociais tecidos entre feirantes e fregueses que produziam a
duração (Bachelard, 1988) do mercado de rua como forma social (Simmel, 1981)
particular na cidade moderno-contemporânea. Tratava-se principalmente de pensar
essas práticas cotidianas sob a perspectiva da antropologia urbana e do cotidiano como

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configuradoras de uma poética urbana (Sansot, 2004). Assim, boa parte das narrativas
desses interlocutores de pesquisa dizia respeito às suas escolhas de trabalho (colocando
a feira como uma opção entre outras possibilidades), às suas artes de fazer (Certeau,
1994) nesse métier, às suas aprendizagens e heranças, culminando, em geral, numa
reflexão sobre essa escolha como a melhor possível, expressa em frases como “a feira é
meu chão”, “a feira é a base de tudo”, “les marchés sont mes amours”.
3 Debruço-me novamente sobre essas narrativas a partir de uma perspectiva um pouco
diferente. A atenção desloca-se para o trabalho desses sujeitos numa tentativa de
compreender essas práticas cotidianas como o resultado da sistematização de um
conjunto de saberes e experiências que foram construídas no dia a dia do mercado.
Pretendo argumentar, a partir do que pude aprender com essa revisita a entrevistas e
diários de campo, que fazer a feira é também “fazer” o feirante à medida que escuto no
espaço da feira livre suas interpretações sobre como aprenderam e como ensinaram
esse métier, e como ele necessariamente depende dessa relação com o outro (o freguês,
o colega, os fornecedores, etc.), ou seja, depende dos laços que são tecidos e
reafirmados a cada dia de feira.
4 Esse olhar que se desloca é construído também a partir de uma experiência de trabalho
– o trabalho da pesquisa – que segue do doutorado para o pós-doutorado. Como os
feirantes que, a cada dia de mercado, reelaboram saberes e sistematizam experiências
para prosseguirem em seu trabalho (e assim se especializarem), a pesquisa
antropológica constantemente nos desafia a repensar categorias e interpretações, seja
através do trabalho de campo, seja através de novas perspectivas teórico-conceituais.
No caso da narrativa etnográfica a ser elaborada neste texto, os dois processos fazem-se
presentes. Inicialmente, engajo-me como bolsista de pós-doutorado no projeto de
pesquisa “Trabalho e cidade: antropologia da memória do trabalho na cidade moderno-
contemporânea”, coordenado pela professora Cornelia Eckert, no Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGAS/UFRGS) e sediado no Banco de Imagens e Efeitos Visuais (Biev), e a partir dele
inicio um novo trabalho de campo, na Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul
(Ceasa/RS).2 É a partir desse projeto que tomo contato mais profundo com o campo de
pesquisa da antropologia do trabalho e que me permito repensar as análises
anteriormente elaboradas sobre as práticas cotidianas dos feirantes com os quais tive
contato em termos de práticas de trabalho e trajetórias, principalmente. Por sua vez, o
trabalho de campo na Ceasa/RS possibilita-me relativizar essas formas de vender o
alimento no meio urbano e compreender melhor as diferenças entre comerciantes e
produtores que compõem a feira livre,3 suscitando novos questionamentos a respeito
dos sentidos do trabalho no comércio de hortifrutigranjeiros.
5 Tomando o título do projeto ao qual faço parte, “Trabalho e cidade”, como referência
para colocar em diálogo as reflexões elaboradas na tese – que enfatizam as
transformações urbanas sob a perspectiva de uma etnografia da duração (Eckert,
Rocha, 2005) – com as interpretações atuais sobre o trabalho de comerciantes e
produtores no abastecimento urbano de alimentos, busco situar o trabalho do feirante
como um trabalho urbano. Essa definição não pretende partir de uma separação entre
dois domínios supostamente opostos (o rural e o urbano) apenas para delimitar o
trabalho do feirante num contexto específico.4 Minhas próprias experiências
etnográficas nas feiras livres de Porto Alegre e atualmente na Ceasa/RS, com
produtores agrícolas (que são também comerciantes), cujas propriedades estão situadas

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em Porto Alegre (no que poderíamos, não sem muito cuidado, chamar de zona rural
urbana5), já demonstram a necessidade de borrar essas fronteiras.
6 O que me parece estar em jogo é a possibilidade de construir um debate a partir da
antropologia urbana com o campo de estudos da antropologia do trabalho, 6
classicamente voltado para as classes de trabalhadores da fábrica ou da indústria, para
os operários, suas lutas e movimentos sociais, para suas relações de trabalho, para os
processos de dominação e a exploração de sua força de trabalho, etc. Os feirantes com
os quais tomei contato não se enquadram nessa categoria de trabalhadores operários de
fábricas (e também não passaram por essa experiência em sua trajetória). Tampouco
podem ser vistos como produtores rurais, ou agricultores (e que, portanto, teriam como
seu “trabalho principal” as lidas na terra), pois escolhi tratar aqui daqueles que são
apenas comerciantes, classificação que me foi apresentada por eles mesmos.
Certamente, são parte de uma classe trabalhadora urbana (Duarte, 1986) tomada de
uma perspectiva mais geral se levarmos em conta a heterogeneidade presente nessa
categoria de análise. Mas, ainda assim, não se constituem como sujeitos alienados de
sua força de trabalho ou explorados, na medida em que são seus próprios patrões e
donos do seu negócio – e aqui já entramos em uma outra ordem de problemas, pois não
são também micro ou pequenos empresários.
7 Assim, tratar o feirante como um trabalhador urbano pode parecer uma afirmação
óbvia num primeiro momento, mas permite-me refletir sobre as complexidades que
produzem a emergência dessa figura: o feirante, o comerciante e o mercador.
Poderíamos nos remeter a Max Weber (1979), que descreve a cidade – ou uma das
categorias de cidade – como um local de mercado. Nesse caso, o comerciante constitui-
se nesse personagem responsável pelo trânsito de mercadorias entre diferentes
localidades. A pergunta que se coloca no entanto é: qual é, ou como é o seu trabalho?
Trata-se apenas de um mediador de trocas sociais e econômicas? Um “atravessador”,
que compra a mercadoria de um lado para revender em outro? Voltando para os
mercados de rua e observando esse feirante em suas práticas de trabalho, evidenciam-
se pouco a pouco estas múltiplas camadas: é proprietário de seu negócio – que se torna
um negócio da família –, mas não exatamente um micro ou pequeno empresário, não
opera apenas na administração ou gestão, embora também o faça. Ainda que
proprietário e consciente de sua hierarquia frente a outros colegas de banca que podem
ser seus empregados ou familiares, engaja-se nas tarefas mais básicas de seu processo
de trabalho, como montar e desmontar a banca, varrer o chão, etc. de forma que,
apenas observando as atividades e os gestos de trabalho de maneira superficial, não
acedemos a essa hierarquia. Ao mesmo tempo, sistematiza uma série de conhecimentos
sobre economia, agricultura, alimentos, importações, etc. que extrapola muito o
contexto circunscrito do mercado (ou, enfim, acabam engajando o próprio mercado de
rua em uma dimensão mais ampla e global), colocando esse trabalhador em sintonia
com os processos de globalização e transformações sociais, econômicas e urbanas, ainda
que, em alguns casos, não se expressem nesses termos.
8 Mas, de todos esses saberes e experiências que conformam o trabalhado do feirante, um
deles é visto como fundamental por todos os interlocutores desta pesquisa: a
capacidade de interação com o outro e o jogo social com fregueses e mesmo outros
feirantes, a maestria de instaurar as jocosidades e consolidar vínculos com fregueses
(Vedana, 2008). A sociabilidade, portanto, é o elo fundamental de minha argumentação
sobre o feirante como um trabalhador urbano. No decorrer de suas atividades é preciso

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dominar esse jogo, colocar a palavra em circulação no mercado e construir laços de


reciprocidade com seus fregueses, produzindo o sucesso do seu negócio. De um lado
temos a sociabilidade como instrumento de trabalho – que precisa ser desenvolvida e
também ensinada aos sucessores –; e, de outro, temos o espaço da rua, da calçada, como
local de trabalho. Proponho que estes sejam os elementos principais para
reconhecermos que trabalho é esse. Como afirmei em precedência, não se trata de
operários, mas podemos aproximar suas artes de fazer (Certeau, 1994) àquelas do
trabalho dos artistas descritos por J. S. Leite Lopes (1976) em O vapor do diabo, que se
diferenciavam dos profissionistas na medida em que não estavam subordinados às
máquinas e, com o tempo de trabalho, poderiam especializar suas técnicas de produção
e usá-las inclusive como moeda de troca. Esse trabalhador do mercado, da mesma
forma, usa suas habilidades de conversação (Simmel, 1983), ao longo dos dias de feira,
para se especializar e construir sua clientela, intensificando sua experiência urbana de
trabalho na rua.
9 É importante considerar que o feirante participa das dinâmicas urbanas, seja na
elaboração do mercado como um espaço de trocas e de sociabilidades, que são
fundamentais para a vida citadina (Vedana, 2008), seja em suas táticas de reelaborar seu
trabalho, tendo em vista as mudanças que o crescimento das cidades impõe às suas
práticas. Ao mesmo tempo é esse trabalhador que trará para o espaço urbano os
produtos do mundo rural, seja ele um produtor agrícola ou não. Podemos argumentar
que esses mesmos produtos podem ser vistos e adquiridos em supermercados, que
prescindem da atuação desse trabalhador. Refiro-me, todavia, mais às representações
simbólicas que a feira livre enseja, devido à forma como esses produtos são
apresentados e comercializados, do que à dimensão de uma razão prática (Sahlins,
2003), relacionada à aquisição de alimentos hortifrutigranjeiros. Se feiras livres e
mercados de rua ainda fazem parte da paisagem urbana é porque essa forma de
comercializar alimentos permanece plena de sentido para seus habitués, trabalhadores
ou fregueses.
10 Relembrando as análises de Eunice Durham (1978) a respeito das migrações campo –
cidade e o trabalho, vemos que o comércio, mesmo informal ou ambulante, era uma
atividade privilegiada nas escolhas dos migrantes estudados pela autora, na década de
1950, em São Paulo, em função de uma relativa autonomia no que concerne aos
horários de trabalho, à relação patrão-empregado e aos circuitos que poderiam ser
traçados pelas ruas da cidade, em detrimento de um esquema mais rígido de relações de
trabalho e horários, como era o caso da fábrica. Durante as pesquisas que realizei com
imagens de acervo de mercados de rua e feiras livres, observei que essa é uma escolha
recorrente na dinâmica da vida urbana: o mercado como um lugar onde é possível
arranjar trabalho e iniciar uma trajetória7 na cidade. Max Weber (1979, p. 69) afirma
que a cidade se constitui a partir do “intercâmbio regular e não ocasional de
mercadorias como elemento essencial da atividade lucrativa e do abastecimento de seus
habitantes”. Combinando essas perspectivas – sobre o trabalho, o mercado e a cidade –,
podemos dimensionar a importância do comércio para a construção da cidade como
objeto de conhecimento. Nesse caso, o trabalho do comércio, mais especificamente
neste artigo os feirantes e suas práticas de trabalho, podem ser uma chave importante
de interpretação dessa conexão proposta pelo projeto referido sobre o trabalho e a
cidade.

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11 Arrisco a falar aqui de feirante como uma profissão – e não meramente uma ocupação
momentânea, um “biscate” – na medida em que essa atividade parte de uma decisão, de
uma escolha realizada em determinado momento de suas trajetórias; foi esse caminho o
que cada um deles decidiu seguir e para tanto aprendeu, especializou-se, estabeleceu
formas de trabalhar e relações de trabalho com colegas, partilhou redes, ensinou e
construiu uma trajetória. Nesse sentido, não irei abordar neste texto uma outra
dimensão do trabalho no mercado de rua que relaciona-se à informalidade, à quase
inexistência, para o caso do Brasil, de contratos formais de trabalho entre donos de
banca e seus empregados, bem como as implicações – positivas ou negativas – dessas
formas de organizar o trabalho na feira livre.8 O tema do trabalho informal em feiras
livres mereceria um artigo à parte, devido à grande complexidade das relações de
trabalho que ali se configuram: as redes familiares e de amizades que permitem que um
trabalhador circule em diferentes bancas, com combinações particulares sobre o
trabalho e o que vai receber por ele; os contratos por dia de feira e biscates, bem como
os arranjos para atividades específicas, como carregar mercadorias ou limpar o espaço
depois da feira. Neste artigo, por hora, procuro enfatizar essa dimensão da escolha do
metiér bem como da construção de um saber relacionado a ele que por sua vez conforma
o próprio trabalhador.
12 Poderíamos considerar que o “fazer-se feirante” constitui parte de um projeto
individual e coletivo de um trabalho autônomo, ou por conta própria, presente no
campo de possibilidades (Velho, 1999) desses interlocutores em determinado momento
de suas vidas. Devemos, no entanto, tomar cuidado com a dimensão racional dessa
escolha, segundo aponta Gilberto Velho (1999), conforme ela aparece na fala desses
sujeitos imbuída de uma dimensão afetiva não racionalizada e elaborada como uma
atração, uma paixão pelo mercado e pelo comércio. Ainda assim, do ponto de vista das
heranças e das aprendizagens nesse métier, das idas e vindas desses interlocutores em
outros empregos (como assalariados, conforme afirmam alguns), podemos perceber
essa projeção de si como trabalhadores do comércio. Parto, então, da afirmação de uma
complexidade nessa atividade de trabalho que pode não ser evidente numa primeira
apreciação.
13 Neste artigo apoio-me sobre dados etnográficos produzidos entre os anos de 2004 e
2008, durante o período em que desenvolvi o doutorado em antropologia social, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As descrições das formas da vida social
(Simmel, 1981) nas feiras livres presentes neste artigo expressam imagens de todos os
mercados pesquisados, conforme a opção epistemológica adotada na tese de
compreender a homologia das formas e dos gestos (Vedana, 2008) que configuram o
mercado como um arranjo social particular no contexto urbano. As narrativas de
feirantes aqui presentes dizem respeito a entrevistas realizadas com interlocutores de
Porto Alegre e de Paris.9

O trabalho no mercado: práticas, experiências e


saberes
14 Robert Cabanes (2000, p. 80), ao refletir sobre a antropologia do trabalho no século XXI,
convoca a ultrapassar as formas clássicas de interpretar o desenvolvimento do
capitalismo e sua relação com o mundo do trabalho, partindo dos trabalhadores e de

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uma nova compreensão do ato de trabalhar, não apenas restrita ao chão da fábrica, mas
compreendendo esse sujeito em outras dimensões da sua vida:
La tâche d’une anthropologie qui voudrait rendre compte de l’évolution du
capitalisme contemporain ne peut plus se limiter, dans le cadre de la
mondialisation, à une anthropologie classique du travail; elle doit s’élargir à une
anthropologie des travailleurs.
15 Essa antropologia dos trabalhadores proposta por Cabanes está muito próxima do
“estudo monográfico” (Palmeira, 1976) desenvolvido por J. S. Leite Lopes (1976), em O
vapor do diabo, sobre os trabalhadores de uma usina de açúcar em Pernambuco e a lógica
de suas relações de trabalho, as diferenças internas de uma categoria ampla de
“operários”. Da mesma forma, o trabalho de Cornelia Eckert (2012) sobre a construção
da identidade social e a memória de mineiros de carvão em La Grand-Combe, na França,
vai nos conferir um olhar “de dentro” da vida social desses trabalhadores. Conforme
aponta a autora:
Nesta pesquisa, coloquei em alto relevo a vida e trabalho dos mineiros grand-
combianos e de suas famílias não somente em relação à sua inserção no mundo
plural, do mercado moderno (com o qual eles estão confrontados), mas também a
outras totalizações que compartilham sensibilidades e projetos de vida com que
reconfiguram valores e lógicas de reinvenção do cotidiano. (Eckert, 2012, p. 23).
16 Seguindo a perspectiva de uma antropologia dos trabalhadores, elegi alguns
interlocutores e suas trajetórias para tentar compreender não a totalidade do que seria
o trabalho no mercado, mas algumas de suas facetas. As narrativas de Henrique e
Saionara, Akli e Andromeide, Fonseca e Karim vão nos guiar nessa descoberta do que é
esse trabalho do comércio de alimentos na dinâmica da vida urbana. É importante
considerar que são feirantes donos de suas bancas – à exceção de Karim – aos quais
podemos atribuir uma trajetória de sucesso: diversos clientes fiéis frequentam suas
bancas semanalmente; Fonseca era, até o final da pesquisa, presidente da Associação
dos Usuários do Mercadão10 há quase 20 anos; Akli triplicou o negócio que herdou do
pai, da mesma forma que Henrique e Saionara. Devemos, no entanto, relativizar os
sentidos da palavra “sucesso” e principalmente as imagens que dela decorrem. Não se
trata de grandes empreendedores na linha de um self-made man, que ultrapassam todos
os obstáculos e constroem uma carreira de êxitos. O sucesso aqui referido
evidentemente tem correspondência com a dimensão da vida prática de “seus
negócios”; afinal de contas, ampliaram seus locais de venda e possuem inúmeros
fregueses assíduos, mas diz respeito principalmente ao seu investimento em um
trabalho que consideram prazeroso (mesmo que fatigante), assentado nas formas de
sociabilidade e nos laços afetivos que tecem ao longo dos anos.
17 Essa dimensão do prazer do trabalho, associada às brincadeiras e às jocosidades que
configuram as relações entre feirante e freguês, não exclui um conjunto de esforços
físicos e subjetivos que ocorrem antes, durante e depois das situações de interação com
o freguês. Os homens e mulheres que trabalham no mercado levantam cedo, em torno
das 5 horas da manhã: em Paris, para fazer suas compras em Rungis 11 e depois montar o
mercado nas ruas da cidade; no Brasil, como em geral o abastecimento é feito na
véspera ou em dias anteriores, os feirantes seguem para as ruas e praças onde montar
suas bancas.
18 Saionara, que é feirante desde criança, como ela mesma afirma, comenta sobre o
trabalho:

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A feira é a prioridade nossa. Eu já tenho a semana prontinha… quarta-feira venho


aqui na Restinga, quinta tem Ceasa… de segunda-feira a sexta-feira faço as entregas
na rua, nos mercados, e sábado e domingo a feira de novo… é uma rotina, nossa
função é essa. Eu já iniciei magistério e parei, já tentei enfermagem e parei… meu
negócio é exatamente este, é venda, é o público… é o público que eu gosto… Eu
tenho paixão pelo que eu faço, paixão mesmo… eu poderia muito bem cursar uma
faculdade, mas não me chama a atenção, eu poderia fazer outras coisas… Eu gosto
desta função, mesmo quando está chovendo, quando está aquele calor, tem vento…
não interessa. A gente sai… eu acordo na realidade 4 horas da manhã, né… 10 pras 4
e a gente sai de casa 4 e 15 para 5 e meia mais ou menos estar na feira, né. […] Lá no
Grêmio são 13 bancas, 14 com a minha, 14 bancas ao total lá no Grêmio. Lá tem a
caixaria que se diz, né… que é o tomate, berinjela, pimentão, tem a fruta e tem mais
a minha banca de alho. Lá é complicado, tu perde muito tempo, mais de 1 hora só
pra montar e depois toda a função da mercadoria, né… é bastante complicado.
(Saionara, Mercadão do Produtor, 2005).
19 Saionara é casada com Henrique, ambos feirantes do Mercadão do Produtor,
vendedores de alhos e temperos. Se conheceram ainda na adolescência, quando
Henrique era cobrador de ônibus da linha utilizada por Saionara. Ambos nasceram em
Porto Alegre, oriundos de famílias já inseridas no circuito do comércio de alimentos: o
pai de Saionara era feirante antes dela e o pai e o avô de Henrique vendiam na região
central da cidade a produção de sua chácara, situada num bairro mais distante.
Provenientes, portando, de classes trabalhadoras no setor de serviços da cidade, como
pequenos comerciantes, hoje se poderia afirmar que pertencem às camadas medias
urbanas (Velho, 1981) no que se refere a seus padrões de moradia e consumo e também
à ampliação do negócio herdado do pai de Saionara.
20 Não fazem a feira juntos, pois o Mercadão ocorre simultaneamente em dois locais de
Porto Alegre, aos sábados e domingos. Henrique trabalha em uma banca no largo Zumbi
dos Palmares, bairro Cidade Baixa, com um empregado, e Saionara trabalha junto com
seu irmão e alguns empregados em uma enorme banca (ou melhor, 14 bancas reunidas,
como ela descreve), no estacionamento do estádio Olímpico do Grêmio Futebol Clube,
bairro Medianeira. Ela começou a trabalhar na feira acompanhando o pai ainda menina
e, quando conheceu Henrique e se casaram, levou-o para a feira também. Hoje, seus
dois filhos acompanham o trabalho na feira livre aos sábados e domingos. Sua reflexão
sobre o trabalho apresenta-nos a combinação entre estes dois lados da moeda: o esforço
constante e a satisfação de executá-lo. Ao mesmo tempo, aponta para as idas e vindas
em outras profissões que acabaram não a satisfazendo da mesma forma que as
condições do trabalho na rua, com o público. A dimensão de uma paixão pelo trabalho
coloca-se fundamental para ela nessa escolha.
21 Akli, um feirante argelino que é dono de uma banca no Marché Maubert, 12 em Paris,
tem uma visão muito próxima à de Saionara. Ele também começou a trabalhar no
mercado com o pai, quando tinha em torno de 7 anos de idade, 13 durante os finais de
semana ou férias escolares. Chegou a trabalhar em escritórios, como assalariado, mas,
depois de um período, retornou para o mercado. Conhecemo-nos através de sua esposa,
Andromeide, uma brasileira que resolveu, um dia, morar em Paris e foi acolhida por ele
para trabalhar na feira (depois de passar muitos percalços nas tentativas de trabalhar
como garçonete sem conhecer a língua). Alguns anos depois, casaram-se, e hoje
trabalham juntos, com dois colegas mais jovens, também argelinos, Karim e Hakim.
22 Akli e Andromeide falam pouco de suas famílias de origem, embora façam visitas
regulares a ambas – conforme me contaram – e procuraram delicadamente desviar do

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assunto “estrangeiros em Paris” quando este era mencionado. Em 2006, no entanto, ano
da Copa do Mundo de Futebol, Akli fez questão de enfeitar sua banca com as cores do
Brasil e a torcer pela seleção brasileira, defendendo-a mesmo depois da derrota para a
França (quando então passou a torcer para a Itália, seleção vencedora do mundial). Não
entrarei aqui em uma discussão sobre sua condição de imigrantes e a construção de
uma identidade relacionada a ela, mas essa parece ser uma pista das ambiguidades
vividas pelo casal nesse contexto.14 Aparentemente, em comparação a Henrique e
Saionara, estão em uma posição mais favorável economicamente, na medida em que
atendem um público de camadas médias e altas nos mercados em que trabalham. Na
sua banca podemos encontrar frutas, legumes e verduras esteticamente organizados em
cestos de vime.
É um trabalho muito dinâmico, começa todo dia por volta das 4 ou 5 da manhã, e
paramos ali pelas 15 horas. Então é um trabalho muito intenso, com uma relação
constante com o freguês, isso não para e é excepcional… Houve um período, quando
terminei meus estudos, em que comecei a trabalhar em um escritório de… enfim,
como um assalariado, mas rapidamente eu voltei, eu voltei para os meus amores!
(Akli, Marché Maubert, 2006).
23 Como podemos depreender desses relatos, a jornada de trabalho é longa, em torno de
10 horas por dia. Ela compreende, além de montar a estrutura do mercado (e a
desmontar ao final), manter a banca atrativa para seus fregueses, fazer as vendas e
fornecer informações específicas sobre os alimentos que são vendidos (e mesmo
algumas receitas), receber bem os clientes, reconhecer os fregueses habituais e suas
preferências (muitas vezes escolhendo as compras destes), calcular as perdas e ganhos
do dia, gritar e anunciar seus produtos.15 Tudo isso em pé, deslocando-se de um lado a
outro no interior da banca. Para que tudo funcione há todo um processo anterior de
relação e negociação com fornecedores da Ceasa ou Rungis, com os quais estes feirantes
estabelecem redes e laços.
Em Rungis tem de tudo, nós podemos encontrar a 10 centavos de euro ou a 3 euros o
mesmo produto! Bom, o mesmo produto, mas não a mesma qualidade, então trata-
se de uma escolha, depende do que decidimos levar para nossa clientela. O
problema que se coloca é de criar relações. Rungis é enorme, existem facilmente 30
mil pessoas que trabalham lá, reunindo os setores de frutas, legumes, aves, peixes…
no setor de frutas e legumes isso representa em torno de 5 mil sociedades. Então
temos que tecer uma rede e cada um tem o seu método, existem aqueles que vão
fazer de tudo para adquirir um produto barato. Eu optei por um outro método que é
o de tecer um laço com um grupo restrito… Bom, eu vou a Rungis todas as manhãs.
Eu venho aqui [no mercado], eu instalo, vou a Rungis e volto com a mercadoria. Não
tenho tempo de ver o preço por tudo, então eu vou me concentrar nessa rede e eles
sabem o produto que eu quero, posso encomendar antes, por telefone, ou podemos
fazer a negociação no dia mesmo e esta negociação está relacionada à quantidade
que eles sabem que eu compro. É aí que eu vou intervir nessa negociação, porque a
maioria vai negociar em relação à quantidade do dia e eu vou negociar em relação à
quantidade global que eu vou comprar no ano. Se eu não estou satisfeito eu não
compro mais. (Akli, Marché Maubert, 2005).
24 Henrique e Saionara também mencionaram inúmeras vezes, em nossas conversas, as
negociações e redes que constituíam com fornecedores da Ceasa/RS para a aquisição
dos diferentes tipos de alho que vendem na feira. Esses processos nos ajudam a
compreender que o trabalho desse comerciante envolve uma sistematização de suas
experiências cotidianas na feira livre relacionadas aos seus fregueses e a suas
demandas, que os ajudam a definir em que produtos investir para satisfazer esses
clientes. A banca de Henrique não é a única que vende alhos no Mercadão do Produtor,

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da mesma forma que a banca de Akli também divide o espaço de vendas de frutas e
legumes com outras bancas. Garantir a relação preço-qualidade, nesse caso, não é algo
homogêneo para todos os feirantes, vai depender muito mais da ligação que eles
conseguem fazer entre seus fregueses e seus fornecedores. E aqui não se está falando
apenas da circulação de um produto, mas sim de estilos de vida e dos simbolismos que
são atribuídos aos alimentos comprados na feira.
25 É claro que esta forma de fazer está relacionada a um determinado tipo de feirante, pois
os trabalhadores do mercado de rua são numerosos e pertencem a categorias
diferentes. Em uma banca16 podemos encontrar o dono da banca, 17 algumas pessoas de
sua família – como esposa e filhos – e alguns empregados, no caso de bancas grandes. O
dono da banca pode ser produtor rural que vende sua produção nos mercados de rua,
ou um comerciante que revende produtos comprados nas centrais de abastecimento.
Existem aqueles que “se criaram” – como Akli e Saionara – nessa profissão e os que
aderiram a ela em momentos determinados de suas trajetórias – caso de Henrique,
Fonseca, Karim e Andromeide. Além disso, muitos feirantes fazem parte das comissões
ou associações de gestão dos mercados de rua, cumprindo, portanto, um papel político
na administração do mesmo.
26 Fonseca é o presidente da Associação dos Usuários do Mercadão, entidade que organiza
as feiras livres do Mercadão do Produtor. É também feirante, tem uma banca onde
vende pães e bolachas com sua esposa, mas, em geral, ele é encontrado perambulando
pela feira, observando o movimento, discutindo as “questões políticas” que envolvem o
Mercadão e a prefeitura de Porto Alegre, cuidando do bom andamento do espetáculo.
Durante o período da minha pesquisa ele sempre se colocou no papel de explicar o
funcionamento administrativo do mercado, as diferenças entre produtores e
comerciantes, entre os tipos de mercadorias que podem ser comercializadas ali e, mais
do que tudo, de afirmar a importância desse mercado para o abastecimento urbano de
Porto Alegre.
O que ele produz ele pode vender, cada um aqui tem uma linha de produtos
entendeu? Vai do um ao seis, mas tu não sabe nada do que é isso, né? A linha um, o
ramo um é o ramo da laranja, dos cítricos, o dois tem um lá adiante, que só vende
banana. Esse aqui [aponta para uma banca de verduras] vende também, mas porque
ele é produtor. [Eu pergunto: “Ele produz a verdura e a banana?]. Isso, a linha dele é
verdura, então para vender banana, que está fora da linha dele, tem que ter uma
autorização. Entendeu? Como é que funciona, cada um tem um alvará aqui para
trabalhar, não é assim, chega e monta… Caixaria é aquele lá da ponta, porque aquilo
ali é produto que produtor não tem, então ele completa para não faltar na praça.
Agora não é época de tomate aqui, está vindo de São Paulo, então tem que comprar
onde? Compra na Ceasa, é o chamado comerciante. (Fonseca, Mercadão do
Produtor, 2005).
27 Cada um desses vários papéis diz respeito também a uma responsabilidade distinta no
que concerne às relações de trabalho em cada banca, diferenças que somente aparecem
através de uma observação atenta do cotidiano do mercado. Essas relações de trabalho
obedecem a uma hierarquia sutil onde habitualmente o dono da banca conduz e
organiza o trabalho de seus empregados e dos membros da família. Ele decide a
organização dos produtos na banca e demanda a seus colegas a reposição dos alimentos
sempre que necessário. É ele também que determina os preços e as promoções. Ao
mesmo tempo, todos esses trabalhadores seguem um determinado ritmo de trabalho
durante a jornada, todos devem atender clientes, mas dependendo das dimensões da
banca e dos produtos que vendem, cada um fica responsável por um setor.

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28 Considerando as diferenças que perpassam essa categoria de trabalho – incluindo-se aí


também as diversidades socioculturais relacionadas às diferentes cidades pesquisadas –
observei, no trabalho de campo, que esses sujeitos compartilham saberes e artes de
fazer (Certeau, 1994) que guardam suas especificidades no que tange às profissões
urbanas. Para Certeau (1994), as artes de fazer seriam um conjunto de procedimentos
ou “maneiras de fazer” que compõem a vida ordinária e que “inventam o cotidiano”.
“Essas maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os usuários se
reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural.” (Certeau,
1994, p. 41). Os feirantes com os quais estou em interlocução neste texto tiveram outras
experiências de trabalho além do mercado, mas acabaram optando por este.
29 Essa opção, parece-me, resultou em um saber sobre o comércio que se acumula na
rítmica do mercado, ou seja, nas repetições e recomeços a cada nova jornada. A escolha
dos produtos, o trato com os clientes e os cálculos e táticas de venda fazem parte desse
saber construído nas interações da feira livre e nessa experiência do comércio.
Às vezes, as pessoas perguntam: “Mas por que tu não produz?” O alho, ele dá uma
vez por ano… novembro, dezembro é época de colheita, então chega por março,
abril, termina a safra nossa, né. Aí o que acontece, tu tem que buscar alho fora, esse
alho aqui é argentino, este vem da Argentina… Aquele lá da ponta ó… é chinês! A
China incentiva muito, eles têm subsidio deles lá que diminui um monte, se tu
analisar na ponta do lápis pelo… a carga tributária nossa aqui é vantagem… Tu vê,
este alho aqui vem da China ao mesmo preço do alho nosso que vem de 30 km
daqui… Ele vem do outro lado do mundo… Aí tu bota as despesas… de lá para cá vem
de navio… aí desce em Santos, de Santos até aqui é carreta, né, então tu bota dois
fretes em cima, bota mais a comissão, mais os impostos que eles pagam… (Henrique,
Mercadão do Produtor, 2005).
30 A reflexão de Henrique não se refere apenas a preços, qualidades e vantagens;
concerne, principalmente, a essa possibilidade de termos um alho da China mais barato
do que aquele produzido no Rio Grande do Sul, em feiras livres de Porto Alegre, e
aponta para as formas como se expressa essa mundialização do capitalismo, que
Cabanes (2000) analisa, particularmente no que tange à circulação de mercadorias em
termos globais. Essas transformações atingem diretamente o trabalho no comércio de
alimentos, e para que Henrique e Saionara possam garantir sua trajetória como
feirantes vendendo alhos e temperos na feira livre é importante que sistematizem esses
conhecimentos e os atualizem em suas práticas no mercado. Essa mesma reflexão faz
parte das preocupações de Akli:
E as pessoas mudam também. O mercado é pela manhã, nós trabalhamos muito bem
no final de semana, sábado e domingo, e durante a semana nós trabalhamos mais
com uma clientela habitual [do bairro]. E o ritmo das pessoas muda, elas trabalham
de manhã e não vão mais ao mercado, elas não podem estar ao mesmo tempo no
trabalho e no mercado, então… Sobretudo depois que a mulher trabalha, depois dos
anos 1970, quanto mais a mulher trabalha, mais ela reserva o mercado para o final
de semana. Então é uma atividade que funciona bem no final de semana, mas é
preciso ser um bom gestor para que se continue durante a semana. Se você olhar ao
redor existem muitos comerciantes de roupas que não são os comerciantes
habituais deste mercado, mas estão substituindo comerciantes titulares, um titular
é necessariamente um comerciante de alimentos. Mas eles não souberam captar sua
clientela e então vêm apenas no final de semana. (Akli, Marché Maubert, 2006).
31 A construção dessa trajetória de trabalho está aliada a essa observação do mundo e suas
transformações, que precisam ser elaboradas nas práticas cotidianas no interior do
mercado, na negociação com fornecedores, na troca social com os fregueses. Recorro

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mais uma vez a R. Cabanes para refletir sobre o ato de trabalhar como “transformação
do mundo, objetivação da inteligência e produção de subjetividade” (Dejours, 1998 apud
Cabanes, 2000, p. 80, tradução minha), pois são essas aprendizagens e experiências que
vão possibilitar a esses sujeitos o fazer-se feirante.
32 O tempo do trabalho, nesse sentido, é elaborado como tempos superpostos (Eckert,
2012): o dia de feira, que é o momento de colocar em prática esses saberes, de
transformá-los em gestos e jocosidades; o ciclo da semana, que viabiliza as negociações,
as análises de preços e qualidades dos produtos, a organização da rotina; e o
transcorrer dos anos, em que acumulam experiências e compõem trajetórias. A
pesquisa de campo nesses mercados e a escuta da narrativa desses feirantes
transformou-se em pretexto para a exposição dessas considerações sobre o tempo e as
aprendizagens que decorrem dessas diferentes temporalidades. Não só reflexões sobre
as dificuldades impostas pelo “avanço do capitalismo contemporâneo” (Cabanes, 2000,
p. 80), que vai possibilitar a flexibilização das fronteiras entre países no que tange à
circulação dos alimentos, mas quanto ao espaço cada vez maior no interior das cidades
para comércios como o de supermercados e todas as suas vantagens sobre comércios
tradicionais, como o da feira livre. Essa escuta também motivou reflexões positivas
pertinentes às experiências de trabalho, até em maior intensidade do que essas
avaliações sobre as transformações sociais vividas por esses trabalhadores. E aqui
entramos no domínio das sociabilidades.
33 Saionara em sua entrevista avalia que, com o tempo, muitos clientes tornam-se amigos,
e que ela própria mudou. Essa mudança relaciona-se de forma direta com o tratamento
dado aos fregueses. Com o tempo, tornou-se mais tolerante e receptiva com os clientes,
compreendendo dessa forma as “regras do jogo” do mercado. Reverter a situação de
conflito ou “não escutar” uma demanda mais ríspida constitui parte de suas práticas de
trabalho, não como forma de subordinação à frase “o cliente sempre tem razão”, mas
como maestria de construir relações.
Tem amizade que tu vai fazendo no decorrer, isso é bem bacana… A gente tem um
cliente que compra… ele mora do lado do Zaffari [supermercado tradicional de
Porto Alegre], do lado… e ele se tornou um amigo, fazem uns 20 [anos] que ele vai
na feira… eu digo: “Vem cá, tu é louco, tu vem aqui dia de chuva, vento…” E ele diz:
“Eu gosto de vir porque pra mim se torna uma terapia.” Ele chega na nossa banca e
a gente mexe com ele: “Tu pesa, tu escolhe, tu faz o troco né, que a gente não vai te
atender.” Ele se tornou tão amigo que ele tem uma corretora de seguros, faz o
seguro do meu carro… ele se tornou praticamente da família, é só vivenciando pra ti
ver o quanto é bacana esse contato. (Saionara, Mercadão do Produtor, 2005).
34 Henrique, que em geral é muito bem-humorado, também constrói suas estratégias de
vínculos com os fregueses. Vendendo alhos e temperos, procura sempre brincar, contar
histórias e rir com colegas e clientes, troca receitas e aposta que sua banca de temperos
já “salvou até casamentos”.
A diferença da feira para o supermercado além do preço né… aqui na feira é a
pessoalidade, coisa que tu não vê em supermercado o freguês chegar, conversar,
brincar, nós temos fregueses que vêm aqui na feira por terapia, sabia, vem pra
conversar contigo, se dá bem e conversa, tira aquele estresse, ele não se sente bem
se não vem na feira, conversou contigo eles voltam pra casa tranquilos. E
supermercado não tem isso, tu vai lá pagou, passou o cartão, deu… tem só um
cliente pra eles né? (Henrique, Mercadão do Produtor, 2007).
35 Dessa forma, lidar com possíveis conflitos que aparecem diante da banca é, para esses
feirantes, parte de suas atribuições, é uma das facetas de seu trabalho. Manter o bom

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humor é fundamental, pois seu métier depende de uma certa habilidade para fazer
circular a palavra e desenrolar as situações de sociabilidade. Com isso, essas relações de
amizade revertem-se positivamente também para os feirantes, não simplesmente para
vender mais, mas para tecer e preservar esses laços, tornando esse trabalho intenso
também prazeroso. Para Akli, trata-se de um sentido que se compartilha a partir dessa
experiência rápida e cotidiana do mercado, o que torna esse trabalho agradável é
justamente esse contato.
Nós nos conhecemos, nós nos conhecemos… Mesmo que seja rápido, é cotidiano e
regular, há um laço que é tecido. Então é isso que é prazeroso neste métier, é um
contato rápido, mas não é superficial. Nós não conhecemos as pessoas muito bem…
eu não sei quem você é, e você não sabe quem eu sou, mas apenas pelo humor, é
isso! Há um contato pelo humor, eles se lembram e é por isso que eu os faço [os
clientes] provarem [as frutas], há esta atração pela degustação, tudo isso é uma
parte do laço, porque é verdade que existe um sentido de partilha, eu compartilho
muito! (Akli, Marché Maubert, 2006).
36 Karim, que trabalha com Akli, segue na mesma argumentação:
A troca com os cliente é formidável! Os clientes, quando eles te pedem alguma coisa
não é simplesmente… eles procuram uma troca, na realidade. Sobretudo em Paris,
que é uma grande cidade, as pessoas são um pouco mais reservadas, elas podem
comprar em qualquer lugar, mas as que vêm ao mercado, elas procuram também
um contato. Então é preciso ser atencioso, dar uma palavrinha, falar de futebol,
perguntar se está bem… e aí você desenvolve uma verdadeira relação. (Karim,
Marché Maubert, 2006).
37 Essas narrativas apontam para o trabalho na feira em sua dimensão lúdica, recorrendo
às trocas sociais com clientes e mesmo com colegas como um aspecto que “humaniza o
métier” (conforme Karim), e não apenas como uma ferramenta para melhor vender. É
interessante considerar, ao mesmo tempo, que todos citaram o trabalho de feirante
como um trabalho duro, que exige bastante em termos do corpo e do espírito, uma
“dureza” amenizada pela sociabilidade e interação. Os conflitos, tensões e discordâncias
parecem ser aqui resolvidos pela via da jocosidade, das piadas e das inversões de
hierarquias próprias do humor da praça pública, conforme apresenta Bakhtin (1996).
Penso que essa habilidade de construir relações e promover sociabilidades é uma das
características a ser desenvolvida pelo feirante. Por sua vez, em se tratando de uma
troca, essa habilidade precisa do outro, do freguês para ser desenvolvida, ela depende
da resposta desse interlocutor que está do outro lado da banca e que vai circular em
várias delas, não só possibilitando que essa palavra repasse entre freguês e feirantes,
mas entre as diferentes bancas do mercado. Da mesma forma que nem todos os
feirantes acionam essas mesmas táticas de trabalho, não são todos os clientes dessas
bancas que aderem à interação proposta pelo feirante, muitos passam por ali sem
participar das brincadeiras e jocosidades próprias do mercado. No entanto, durante os
longos períodos que compartilhei com esses fregueses em suas bancas, pude presenciar
como alguns deles são elos fundamentais nesse jogo social, até mesmo com o papel de
incluir outros fregueses ou mesmo feirantes nesse processo.
38 Todos esses aspectos do trabalho do feirante fazem parte de um longo processo de
aprendizagem, construído no mercado, e, na maioria das vezes, transmitido do pai ao
filho; ou do empregador ao empregado. Sempre ouvi de feirantes que se aprende ali na
banca, “fazendo” e observando. Um de meus interlocutores de pesquisa, durante o
mestrado, o Cláudio,18 ao ouvir-me perguntar sobre seu trabalho, respondeu-me: “Quer
saber do nosso trabalho? Então vem trabalhar!”, desafio que resultou concretamente

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em uma experiência de aprendizado sobre como vender laranjas, como fazer troco,
como atender os clientes em sua banca, durante alguns dias de feira (Vedana, 2004).
Podemos dizer que as práticas de trabalho no comércio de alimentos nas feiras livres se
caracterizam pela construção de uma relação de trabalho entre mestre e aprendiz.
Como venho afirmando, essa aprendizagem depende da interação e da relação com o
outro: seja com os colegas que ensinam e aprendem num mesmo contexto, com os
fornecedores de entrepostos comerciais onde compram seus produtos, seja com os
fregueses e suas demandas não só relacionadas aos alimentos, mas aos laços sociais que
se tecem na feira.

O cotidiano de trabalho e a construção da profissão


39 Em suas artes de fazer (Certeau, 1994), Akli arruma constantemente a banca enquanto
anuncia seus produtos. Preenche os espaços vazios com outras frutas ou legumes que
ainda não foram expostos, e, se os alimentos já estão acabando, vai rearranjando as
caixas e cestos, organizando-os de forma que a banca esteja sempre bonita, recheada de
cores e formas, para que agrade o freguês. A visão, segundo ele, é a primeira forma de
relação com o alimento que se vai consumir, há uma atração por eles, por isso precisam
estar bem apresentados aos olhos do freguês, e cada feirante vai achar a sua maneira de
oferecer isso a seus clientes.
Este é um pouco o meu sistema, a ideia é que, a partir do momento que estão bem
apresentados, isso já atrai o olhar, se colocamos pilhas assim, não vemos muito, não
é bom. Primeiro somos atraídos pelos olhos e depois… [a banca] é como um pequeno
quadro. (Akli, Marché Maubert, 2006).
40 A sequência de gestos que desenvolve para essa atividade é homóloga à sequência de
gestos de Henrique na organização de seus temperos. Os alhos soltos e suas variedades,
bem como as pimentas, são remexidos para ganharem volume sobre a banca e se
destacarem. Todas as variedades de temperos que estão em pacotes também passam
por revisão e rearranjos, de forma que a banca fique sempre pronta para o freguês. É
apenas no fim da feira que percebemos uma diminuição da quantidade de produtos, da
mesma forma que começam algumas promoções para que realmente as mercadorias
sejam todas vendidas. Há uma rítmica do mercado que se expressa nos alimentos, pois
estes acompanham a passagem do tempo, mudando de qualidade, amadurecendo. Por
isso também acabam custando menos ao final.
41 No Marché Maubert, Akli e Andromeide ensinam Karim sobre o trabalho na feira. Ele
foi a Paris para fazer seus estudos em economia e, para financiá-los, trabalha no
mercado de rua. Karim apresentou-se como um apaixonado pelo mercado, enfatizando
tudo que era possível aprender – sobre agronomia, agricultura, geografia, economia e
mesmo gastronomia – apenas trabalhando como feirante. No momento de sua
entrevista ele estava em pleno processo de aprendizagem do métier, pois começara
havia três meses. Karim aparece, neste artigo, como interlocutor de Akli, na medida em
que este fala como ensina, e Karim explica como aprende.
Sim, eu aprendo. Quer dizer, no começo, eu não sabia nada e Akli, Andromeide e
Hakim me ensinaram. Eles têm muita experiência, eles conhecem muitas coisas e eu
aprendo à medida que… Bom, num primeiro momento, quando a gente aprende,
você sabe que somos um pouco rígidos, mas depois… os meus colegas tiveram um
papel muito importante, eles me deixaram à vontade e me disseram: “Vá com
calma, você pode errar…” e ao mesmo tempo me aconselhavam todo o tempo,

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estavam muito atentos ao que eu fazia e também me diziam: “Atenção, é preciso


fazer isso antes, é preciso corrigir isso” e pouco a pouco eu me corrijo. (Karim,
Marché Maubert, 2006).
42 A essa interpretação de Karim sobre sua aprendizagem, devemos também somar a
intensidade do trabalho no mercado. É claro que, nesse processo, eles vão contar com
dias mais calmos que outros, mas, de forma geral, um dia de mercado é “uma correria”,
na qual se atende mais de um freguês simultaneamente, com suas demandas
diversificadas: de onde vem o produto, está maduro ou não, a pechinha e,
principalmente, a conversação (Simmel, 1983) pelo simples prazer de estar ali. E lidar
com isso é uma aprendizagem que se desenvolve à medida que se trabalha.
É preciso, inicialmente, que eles façam da mesma maneira que eu. Isso parece
simples, mas não é. Para formar essa equipe eu já passei por dez pessoas, então isso
depende do comportamento de uns em relação aos outros porque é um contato
muito rápido e… bom, são muitos produtos para se memorizar, há um trabalho
físico, existe… Como eu digo, tem o trabalho de memorização, o contato, a
gentileza… para formar uma equipe não é evidente. Na verdade, para que isso possa
funcionar bem é preciso que seja a mesma coisa que eu, uma cópia de mim mesmo,
o método que eu aplico é este. Porque o cliente, ele repara e é preciso que seja
sempre a mesma coisa. Todas as pessoas que trabalham comigo, é preciso que
tenham o mesmo comportamento que eu, com o cliente, com a mercadoria, com o
método de trabalho em geral… (Akli, Marché Maubert, 2006).
43 Essa demanda de Akli que parece rígida – formar cópias de si mesmo – em um primeiro
momento, ganha sentido se avaliarmos isso sob a perspectiva do que está sendo trocado
entre ele e seus aprendizes. Akli, e outros feirantes que passam pela mesma situação de
ensinar, confia a seus aprendizes todo um conjunto de laços que estabeleceu no
mercado, ao longo dos anos. Não necessariamente Karim será sucessor de Akli no seu
negócio, ou em sua banca (embora Akli afirme de forma veemente que não gostaria de
ver seus filhos nesse mesmo métier, em função das transformações ocorridas no
mesmo), mas, conforme participa da banca, Karim “ganha” alguns desses fregueses,
possivelmente, aqueles que também já viraram amigos de Akli. Retomando o que Akli
afirmava no tocante à partilha do mercado, o que vai se compartilhar com colegas de
banca são essas relações. Essas relações compartilhadas também fazem parte de sua
experiência de aprendiz e da forma como sistematizou, em sua trajetória, todos os
conhecimentos que hoje troca com Karim.
Eu nasci no mercado, meu pai trabalhava no mercado e eu trabalhei com ele no
mercado quando era bem pequeno. Pouco a pouco nós aprendemos um métier
juntos, eu tinha 7 anos quando comecei aos finais de semana, quando não tinha
escola… e mesmo quando eu terminei meus estudos eu continuei, era um job, um
pequeno trabalho de aprendiz… No dia em que meu pai se aposentou, isso se tornou
uma sucessão. (Akli, Marché Maubert, 2006).
44 Nascer no mercado ou “ter a feira no sangue”, como afirma Saionara, representa a
afirmação de uma identidade apoiada nas experiências de trabalho que viveram, ao
longo desses anos, como feirantes. Mesmo essas afirmações, que podem evocar a ideia
de um destino, não naturalizam para eles o processo de tornarem-se feirantes conforme
narram não só suas aprendizagens, como também as mudanças pelas quais passaram.
Saionara e Henrique, diferentemente de Akli, transmitem essa herança também para
seus filhos, que fazem a feira com eles, mesmo que essa escolha seja questionada, de
tempos em tempos, por Saionara. Sua avaliação final, no entanto, é positiva, pois os
filhos aprendem um trabalho com ela e, assim, podem ter “um entendimento” mais

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concreto sobre a economia doméstica de um lado; e sobre as formas de sociabilidade, de


outro.
Comecei a trabalhar em feira com uns 11 anos e… Eu estudei e a gente sempre
acompanhou o meu pai, eu e minha irmã, mas quem sempre teve o sangue de
feirante fui eu, sempre gostei mais de participar e estou até hoje… Meu pai sempre
trabalhou por conta. Sempre comprou para revender… Até que ele faleceu e a
família assumiu… Comecei vendendo pacotinho de alho em cima da banca dele,
emprestado, depois a gente casou e continuou sempre, né, já faz anos que a gente
trabalha só vendendo alho… Quem começou primeiro a levar os filhos fui eu… O
mais velho na época eu fazia a caminha dele embaixo da banca, trazia sopinha,
aquilo tudo pra esquentar, deixava onde o pessoal trabalha com frios, depois eu ia lá
pegava, tinha liquinho, aquecia… O menorzinho, a mesma história… O pequeninho
hoje vende na feira, ele tem 7 anos… ele sabe direitinho, ele grita, é um feirante! O
mais velho também é bom vendedor, ele é muito maduro para idade dele, até às
vezes eu me arrependo e penso que deveria ter deixado eles… mas a gente nunca
acerta, e no fundo no fundo, com tudo, eu ainda prefiro assim, prefiro porque… eles
poderiam estar em casa, curtindo uma televisão, mas e daí? Hoje eles sabem de onde
vêm as coisas… (Saionara, Mercadão do Produtor, 2005).
45 Como vimos, a transmissão desses saberes deu-se a cada dia de feira. Henrique
aprendeu com o sogro e a esposa, quando deixou de ser cobrador de ônibus e passou a
trabalhar na feira livre; Fonseca aprendeu com um tio, na década de 1960, quando ainda
garoto, iniciava sua trajetória das feiras livres de Porto Alegre (como ele diz, “nas mais
antigas, muito antes do Mercadão existir”). Andromeide aprendeu com Akli, e o desafio
de vender alimentos ajudou-lhe a aprender francês para se comunicar com seus
clientes. Todos aprenderam a partir de processo de interação com colegas e fregueses,
todos também foram construindo um saber não só sobre o dia a dia do mercado, mas
também no tocante às transformações urbanas – que, em muitos casos, deslocaram as
feiras em que trabalhavam de seus espaços – sobre a transformação nas formas de
circulação do alimento no interior da cidade, entre diferentes cidades e também entre
países. Saberes esses que, pouco a pouco, vão narrando em suas convivências e
experiências no mercado, não só para a pesquisadora que, com sua curiosidade, coloca-
lhes uma série de perguntas relativas às suas vidas, mas também entre si, com colegas e
fregueses.

Considerações finais
46 Parece-me importante finalizar este texto ponderando que essas trajetórias narradas
expressam experiências particulares. Não foi por acaso que esses feirantes se tornaram
os interlocutores principais de minha pesquisa de doutorado sobre o tema da duração
dos laços sociais nos mercados de rua. Esses sujeitos não só investem nesses vínculos e
trocas com o outro – colegas, fregueses, a pesquisadora – como também refletem sobre
sua importância em seu cotidiano de trabalho. Nem todos os feirantes em mercados de
rua fazem o mesmo investimento, ou se veem construindo o mercado e projetando-se
como feirante, comerciante autônomo, vinculado ao outro que atende a cada dia de
trabalho. Como todas as categorias de trabalhadores, essa também está longe de ser
homogênea. Porém a convivência compartilhada com esses sujeitos me faz refletir se
essas sistematizações de saberes e reflexões sobre a sociabilidade não tornam esse
feirante um técnico, no sentido do uso de suas habilidades para construir essa
“trajetória de sucesso” à qual me referi anteriormente.

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47 Um dado importante relacionado às narrativas cujos fragmentos fazem parte deste


texto é o de que todas elas foram construídas no espaço do mercado, por escolha dos
feirantes. Nenhum deles escolheu sua casa ou qualquer outro lugar “mais calmo” para
contar sua trajetória. O que, num primeiro momento, pareceu-me um constrangimento
para a pesquisa – visto que buscava acessar, com eles, outras temporalidades e,
portanto, imaginava a construção de um contexto de entrevista mais reservado, em que
não fôssemos interrompidos – revelou-se posteriormente como um elemento
fundamental para o entendimento das sociabilidades do mercado. Ao contarem suas
histórias e refletirem sobre suas trajetórias, eram constantemente interrompidos por
seu trabalho, ou permaneciam com uma “atenção flutuante” em relação ao que estava
acontecendo na banca. Essas interrupções, no entanto, não os retirava da condição de
narradores, pelo contrário, muitas vezes, eram justamente tomadas como ponto de
ancoragem sobre o que estavam avaliando em suas trajetórias, como exemplos das
relações que se tecem, dos tipos de demandas que costumam ouvir de seus clientes, ou
mesmo oportunidades para que essa performance da sociabilidade viesse à tona.
48 São essas imagens de um trabalho intenso de relação com o outro que me levaram a
indagar a importância da sociabilidade no trabalho desses feirantes. A habilidade de
conduzir o diálogo com fregueses muito diferentes – em termos de valores, estilos de
vida ou discursos – que passam por suas bancas em um dia de feira tem relações diretas
com a experiência urbana desses sujeitos, seja em termos de suas trajetórias de
trabalho que culminaram no mercado, seja nas negociações e percursos seguidos para
viabilizar o abastecimento da cidade de alimentos hortifrutigranjeiros. Mais ainda, o
estar na rua e fazer dela um outro lugar durante um determinado período do dia,
ocupar esse espaço de circulação anônima dos habitantes da cidade e transformá-lo em
um espaço de intimidade e sociabilidade, de encontros e de trocas, configura esse fazer-
se feirante que procurei discutir neste texto.
49 Um fazer-se feirante que depende de seus conhecimentos sobre os alimentos: suas
origens, o tempo de maturação, como usá-los na cozinha (como observei muitas vezes
no mercado e como todos narraram em determinado momento); sobre economia e
como fazer circular a moeda no mercado – os preços e cotações, a diferença com os
supermercados (quanto aos quais apresentam interpretações muito importantes, mas
que infelizmente não puderam ser tratadas neste artigo), mas principalmente sobre
vínculos e laços, sobre amizade e partilha, sobre jocosidades e interações.

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NOTAS
1. As análises aqui expostas derivam de minha tese de doutorado (Vedana, 2008).
2. Conforme a descrição do site da instituição: “A Centrais de Abastecimento do Estado do Rio
Grande do Sul S/A – Ceasa/RS é uma sociedade por ações de economia mista, tendo capital do
Governo do Estado do Rio Grande do Sul (a quem cabe a gestão, através da Secretaria da
Agricultura) e Prefeitura Municipal de Porto Alegre.” Trata-se de um grande centro distribuidor
de hortifrutigranjeiros do estado e foi fundada no final da década de 1960, como parte de uma
política pública de abastecimento de alimentos no país. Para maiores detalhes ver a tese de
Márcia da Silva Mazon (2010).
3. Infelizmente não poderei aprofundar aqui a análise dos dados de pesquisa relacionados ao
trabalho de campo na Ceasa/RS. Desenvolvo essa análise em outro texto, ainda em andamento, a
ser publicado nos Anais da 36a Anpocs.
4. Aqui seria interessante debruçarmo-nos sobre as reflexões de Michel Agier (2011) atinentes a
uma antropologia da cidade desvinculada de sua referência ao mundo rural (ou seja, um campo
de estudos construído em oposição a outro), uma abordagem da “cidade em si mesma” para
entendê-la a partir de relações e não somente como o lugar de emergência do individualismo – e,
é claro, do indivíduo como categoria principal de análise. Essa característica interacional da
cidade (Agier, 2011) é um nexo importante para a argumentação deste artigo.
5. Segundo dados da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, a cidade é a segunda capital do Brasil
em produção de alimentos, contando com uma vasta área de propriedades rurais com produção
agrícola. A esta região, que ocupa cerca de 60% do território da cidade, atribuem a denominação
de Cidade Rururbana (http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/default.php?reg=9&p_secao=193).
6. Mais uma vez, não considero que as fronteiras entre esses dois campos de estudo sejam rígidas,
poderíamos até conceber que são bastante próximos quando percebemos uma bibliografia que
transita entre essas áreas. No entanto, cada um desses campos de pesquisa acaba por estabelecer
determinados temas e recortes conceituais específicos sobre os fenômenos sociais analisados,
enfatizando, de um lado, a cidade, e, de outro, o trabalho, como num jogo de figura e fundo. Nesse
sentido, busco neste texto um caminho entre esses dois campos para situar a categoria de
trabalhadores com a qual me deparo nesse momento. Para esse percurso, situaria algumas
bibliografias que são referências fundamentais para esta análise: as pesquisas de José Sergio Leite
Lopes (1976, 1988) sobre a lógica das relações de trabalho e as representações de trabalhadores, a
pesquisa de Cornelia Eckert (2012) sobre as temporalidades de uma mina de carvão desativada e a
memória dos trabalhadores, e as pesquisas de Gilberto Velho (1981, 1999) sobre o fenômeno
urbano.
7. Durante o período em que realizei estágio de doutorado em Paris, tive oportunidade de assistir
a inúmeros documentários sobre o mercado central da cidade, chamado Les Halles. Em todos eles,
evidenciou-se que o mercado seria a porta de entrada na cidade de migrantes do campo, lugar
onde encontrariam seu primeiro trabalho. Entre esses documentários, podemos citar: Le dernier
cri des halles, de Monique Aubert (1973); Memoires d’un vieux quartier, de Gérard Chouchan (1969); À
demain les halles, de Jean Lassave (2005). Em Porto Alegre, essa mesma afirmação surge nas

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narrativas de antigos trabalhadores do Mercado Público Municipal, entrevistados para o


documentário Arquelogias urbanas – memórias do mundo, de Maria Henriqueta Satt e Ana Luiza
Carvalho da Rocha (1997).
8. Para reflexões nesta área, ver Noronha (2003), que problematiza a questão dos contratos de
trabalho, Telles (2006), que apresenta uma análise sobre as transformações do trabalho e a vida
urbana.
9. As narrativas de interlocutores em Paris, que estão originalmente em francês serão traduzidas
por mim no contexto deste artigo. Trata-se portanto de uma tradução livre.
10. Na cidade de Porto Alegre, existem diferentes organizações de feiras livres. As principais são
as feiras-modelo, organizadas e mantidas pela Prefeitura Municipal desde o início da década de
1990, e o Mercadão do Produtor, onde realizei minhas pesquisas. Esse Mercadão é organizado por
uma associação de feirantes (produtores e comerciantes) desde a década de 1980 e graças ao
trabalho político de Fonseca tem conseguido se manter independente. O Mercadão acontece às
quartas-feiras à tarde, e aos sábados e domingos pela manhã, reunindo em torno de 100 feirantes.
11. O Mercado Internacional de Rungis é um entreposto comercial situado a 7 km de Paris, com
mais de 200 ha de superfície. Ele foi criado para substituir o mercado central da cidade, Les
Halles, considerado insalubre e sem condições de crescimento, justamente por se localizar no
centro urbano. É um dos maiores mercados de produtos frescos do mundo, local onde os feirantes
vão se aprovisionar para vender no mercado de rua (como o caso da Ceasa no Brasil), destinado
apenas a atacadistas.
12. O Marché Maubert situa-se em um local próximo a importantes pontos turísticos da região
central da cidade, com habitantes de elevado poder aquisitivo. Akli afirmou que sempre escolheu
esse tipo de bairro para instalar-se como feirante (seu pai tinha banca nesse mercado, e Akli
ampliou o negócio para mais dois outros, em bairros similares), o que define também suas
escolhas de o que comprar em Rungis e o que vender em suas bancas. O caso de Saionara e
Henrique é um pouco diferente, pois ambos trabalham em bairros de camadas médias aos
sábados e camadas mais populares aos domingos, o que influencia diretamente as formas de
venda. Segundo Saionara, no domingo, “é tudo no grito mesmo, para vender tudo”.
13. Akli, Andromeide, Henrique e Saionara estavam na faixa dos 30 a 40 anos no momento de suas
entrevistas, entre 2005 e 2006. Fonseca beirava os 60 anos e Karim era o mais jovem, na faixa dos
25 anos.
14. Para uma análise mais aprofundada sobre esse tema, ver Feldman-Bianco (2009) e Bastos
(2009).
15. No caso do Brasil, a ocupação de feirante está listada na Classificação Brasileira de Ocupações,
onde podemos encontrar a descrição das características desse trabalho e as competências
profissionais do trabalhador, além de outras informações mais delimitadas. Ver http://
www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf.
16. A banca (ou stand na França) é uma estrutura de madeira ou metal que delimita o espaço de
vendas de cada feirante no interior do mercado. É também o local onde são organizados os
produtos, apresentando tamanhos diversos, conforme o alvará de venda de cada feirante. Em
Paris, essa estrutura é fornecida e montada pela Prefeitura; em Porto Alegre, ela fica a cargo dos
próprios feirantes; nos dois casos, são padronizadas.
17. Na maioria dos casos eram homens, mas conheci, ao longo do doutorado, uma mulher
proprietária de banca, que havia herdado a mesma de seu marido quando esse faleceu.
18. Cláudio também era feirante do Mercadão do Produtor até o ano de 2004. Possuía a maior
banca da feira livre e vendia laranjas, bergamotas e melancias, entre outros alimentos, todos
produzidos por ele. Não tive oportunidade de encontrá-lo durante a pesquisa de doutorado pois,
segundo o que Henrique me informou, ele desistiu de fazer a feira – no caso, deixou de ser
feirante – para se dedicar apenas às vendas em grandes quantidades, já acertadas com empresas e
distribuidoras. Cláudio e seus colegas de trabalho eram mestres na arte da jocosidade e da piada.

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RESUMOS
Neste artigo procuro argumentar, a partir das narrativas de alguns interlocutores de pesquisa,
bem como de observações participantes realizadas em mercados de rua entre os anos de 2004 e
2008, que o trabalho do feirante está fundamentalmente amparado em suas habilidades de
construir laços sociais e promover sociabilidades. As reflexões que esses trabalhadores elaboram
sobre seu trabalho no dia a dia do mercado evocam os saberes e fazeres que sistematizam nessa
trajetória: as formas de tratar os fregueses, o conhecimentos sobre os alimentos, suas origens,
circulação e distribuição, as redes de fornecedores que tecem, etc. A ênfase depositada na
construção do laço social com seus fregueses (e também fornecedores e colegas) relacionada com
a repetição cíclica dos gestos e práticas no mercado, nos revelam que fazer a feira é também fazer
o feirante, no sentido de um métier construído cotidianamente a partir de uma experiência
compartilhada.

This article presents narratives of merchants and participant observation in street markets made
between 2004 and 2008. His central argument is that the work of merchants is fundamentally
sustained in their ability to establish social ties and to promote sociability. The reflections that
these workers draw about their work indicate the knowledges and practices that they
systematize in this trajectory: ways to serve customers, knowledge about food, its origins,
circulation and distribution, the networks of suppliers that they lay down, etc. The emphasis
placed on social ties with their customers, suppliers and colleagues reveals that this metier is
configured from a shared experience in everyday practices of the market.

ÍNDICE
Keywords: city, forms of sociability, street market, work
Palavras-chave: cidade, formas de sociabilidade, mercados de rua, trabalho

AUTOR
VIVIANE VEDANA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Em pós-doutorado

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Os fios da memória
Fábrica Rheingantz entre passado, presente e patrimônio

Maria Leticia Mazzucchi Ferreira

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

1 Este artigo foi elaborado a partir de pesquisa realizada sobre a Fábrica Rheingantz,
localizada na cidade de Rio Grande, sul do Brasil. Essa investigação ocorreu em dois
momentos distintos: o primeiro deles entre 1998 e 2002 1 e o segundo entre os anos 2009
e 2012. Podemos considerar um terceiro momento, que inicia por ocasião do anúncio
formal do tombamento do complexo Rheingantz pelo Instituto do Patrimônio Histórico
do Estado (Iphae), em julho de 2012,2 cujos efeitos e ressonâncias serão objeto de
investigação e análise futuras.
2 O período entre 1998 e 2002 foi caracterizado pelo contato mais direto e sistemático
com a Fábrica Rheingantz, entendida aqui como um conjunto composto pelo prédio
fabril propriamente dito e suas extensões, como o local onde funcionaram a Sociedade
Mutualidade,3 o ambulatório médico, o Clube União Fabril, o Grupo Escolar Comendador
Rheingantz, as chamadas “casas da fábrica” e a Vila São Paulo, na qual se localizam
também as casas de operários. A pesquisa realizada teve por objetivo recuperar a
trajetória da empresa a partir de relatos orais e de outras fontes, bem como fazer um
registro do que ainda permanecia no local, como edificações, maquinário, mobiliário e
acervo documental.4
3 A Fábrica Rheingantz ou União Fabril, como também é conhecida, foi uma das maiores
fábricas têxteis do sul do Brasil surgidas no século XIX. A partir dela a cidade avançou
em processos de urbanização com a introdução de sistemas de transporte urbano, tais
como o bonde, a implantação de serviços públicos no bairro Cidade Nova, reduto da
população imigrante e operária e a dinamização de setores como o ferroviário e o
portuário, tendo em vista o fluxo de produção e de matérias-primas. Igualmente, a

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afirmação de um setor industrial composto por diferentes empreendimentos, aliado ao


setor de transportes, como a Viação Férrea e o Porto, consolidou uma classe operária
protagonista de vários movimentos políticos e reivindicatórios na cidade de Rio Grande.
4 O segundo momento de pesquisa tem como referência a audiência pública realizada na
Câmara de Vereadores da cidade de Rio Grande em 9 de julho de 2009. Tendo sido
convidada a participar dessa audiência, como pesquisadora da Rheingantz, pude
observar alguns movimentos que me pareceram, naquele momento, a demonstração de
uma expressão de resistência diante do desaparecimento dos traços memoriais e do
direito ao que consideram uma dívida da empresa: a regularização da posse das casas
que pertencem à massa falida União Fabril. A audiência pública foi marcada pela
intervenção de representantes do poder público, legislativo e judiciário, o que foi
importante para acelerar o processo de patrimonialização do complexo Rheingantz,
inaugurando, simbolicamente, o tempo do patrimônio em contraposição ao tempo da
memória, que parece ter caracterizado o período anterior.
5 Entre esses dois tempos, busco analisar como operam conceitos como o de memória
coletiva, trabalho e patrimônio, tendo como referência relatos orais e fontes
documentais, traçando aquilo que denominei como uma etnografia da perda.
6 A metodologia utilizada na primeira fase da pesquisa baseou-se principalmente na
observação de encontros promovidos por antigos trabalhadores da empresa e as formas
de ocupação do espaço da fábrica; no registro de histórias de vida de pessoas que
compuseram o quadro funcional da Rheingantz no período 1950-1970,5 na pesquisa em
acervos documentais da empresa, em arquivos públicos e em acervos que se encontram
em posse dos ex-funcionários.
7 Esse universo de análise composto pelos ex-trabalhadores foi se revelando como
extremamente complexo, pois a forma nostálgica como se referiam ao passado, “os
bons tempos da Rheingantz”, ao mesmo tempo em que ocultava as fissuras sociais,
homogeneizando e contemporizando os conflitos, revelava estratégias e dispositivos
engendrados para afirmar identidades num contexto – o do presente – no qual as
circunstâncias de vida no plano pessoal e o cenário econômico apontavam para quadros
de penúria, desemprego e perda da crença numa recuperação do potencial fabril da
cidade. Entre 1997 e 1998, período em que comecei a pesquisa, outro problema se
colocava no plano local: as casas ocupadas por grande parte dos entrevistados, as quais
pertenciam originalmente à Fábrica Rheingantz, estavam sendo requisitadas pela
direção da Inca Têxtil, nome que assumiu a fábrica depois de ter sido vendida em 1970.
Num processo extremamente conturbado, a Inca Têxtil propunha aos moradores das
casas que as adquirissem no valor de mercado, o que gerou protestos fundamentados,
de acordo com os moradores, no princípio da justiça: as casas, segundo eles, deveriam
fazer parte de um ajuste de contas que nunca foi feito entre a empresa e aqueles que em
1968 ficaram sem salário por seis meses e, posteriormente, sem emprego.
8 O processo de declínio e obsolescência que marcou a trajetória dessa fábrica pode ser
compreendido num contexto de crise geral de um modelo empresarial familiar, que,
sobretudo na área têxtil, trouxe profundas desarticulações na organização e relação dos
sujeitos com o trabalho.
9 As narrativas desses sujeitos, cujas trajetórias estiveram entrecruzadas pelo trabalho na
fábrica, apontam para uma identidade associada ao espaço fabril, o qual, destituído de
suas características como um lugar de trabalho e sofrimento, opera no presente como
um lugar de memória no sentido atribuído por Pierre Nora (1984): uma condensação e

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cristalização de memória levando em consideração congregar as dimensões material,


simbólica e funcional.
10 Tensionadas entre aquilo que se deve ou não recordar e o que se deve ou não esquecer,
a memória e a narrativa do trabalho são produzidas no contexto das condições sociais,
individuais e coletivas, contexto no qual as interpretações, as reapropriações e os usos
do passado permitem reconstruí-lo da forma como melhor responde às incertezas do
presente (Luca, 2011).

Uma fábrica oitocentista: a Rheingantz dos “bons


tempos”
11 A Fábrica Rheingantz foi oficialmente inaugurada pelo empreendedor de origem
renana Carlos Guilherme Rheingantz em sociedade com o sogro, Miguel Tito de Sá, e
com o empresário alemão Hermann Vater, no prédio que ocupa, na Avenida Rheingantz
nº 210, no ano de 1873, sob o nome de Fábrica Nacional de Tecidos e Panos de
Rheingantz & Vater, em forma de sociedade comanditária. 6 A fábrica entrou em
operação efetiva no ano seguinte e trabalhou prioritariamente com o processamento da
lã, cuja procedência era das propriedades rurais nas regiões de Bagé, Livramento,
Uruguaiana e Santa Vitória do Palmar, no sul do Rio Grande do Sul.
12 Impondo-se como pioneira no setor têxtil no sul do Brasil, a Rheingantz ocupou o lugar
de uma grande empresa nos finais do século XIX, configurando-se num nível produtivo
que abarcava um mercado consumidor de grandes proporções, extrapolando as
fronteiras regionais (Hardman; Leonardi, 1982, p. 173). As primeiras mudanças na
organização da empresa ocorreram em 1891, quando a sociedade que dera origem à
Rheingantz & Vater foi desfeita, transformando-se em Sociedade Anônima União Fabril
e elegendo sua primeira diretoria, composta por Carlos Guilherme Rheingantz com o
controle acionário.

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Figura 1. Fábrica Rheingantz década de 1950 (acervo Fototeca Municipal de Rio Grande).

13 O projeto fabril do fundador é apresentado nos relatos de seus descendentes como


resultante de sua experiência na Alemanha e em viagens que realizou à Inglaterra para
conhecer fábricas têxteis. No Rio Grande do Sul, terra onde vivia seu grupo familiar,
buscou encontrar um local propício à instalação de uma indústria nos moldes das que
havia conhecido na Europa. E a cidade de Rio Grande foi assim escolhida
principalmente por já possuir um porto capaz de receber embarcações comerciais, o
que facilitava a importação de equipamentos necessários à produção têxtil. 7 Durante as
primeiras três décadas do século XX, a empresa ampliou e aprimorou o processo de
fabrico de tecidos de lã e para tanto incentivou a vinda de estrangeiros, predominando
os alemães nos setores técnicos da empresa. Em outros setores, como carpintaria,
marcenaria e tapeçaria, os mestres eram igualmente de origem europeia, tais como
italianos, poloneses e portugueses.
14 Não contrariando o modelo oitocentista de indústria, no qual o fundador centraliza
consigo a direção do empreendimento, bem como estabelece uma relação muito
estreita com a política local, veem-se exemplos dessa relação na presença de Carlos
Guilherme Rheingantz na comissão provisória instaurada para a administração do
município por ocasião da proclamação da República, em 1889. Entretanto, foi no campo
das iniciativas sociais que a Fábrica Rheingantz mais se destacou, criando dispositivos
de implantação e regulamentação de benefícios, como a Sociedade Mutualidade,
mantida por contribuições dos empregados da empresa e atuando no atendimento
médico, na concessão do auxílio pecuniário aos sócios temporariamente impedidos de
trabalhar e no auxílio-funeral. O surgimento do “Fundo de Auxílios Carlos G.
Rheingantz” foi responsável pela implantação de benefícios, como aqueles concedidos
em razão da viuvez feminina, do amparo concedido aos filhos menores, da invalidez
resultante de algum acidente na fábrica e do casamento de operárias, este desde que
formalmente consentido pelos pais. A organização de uma biblioteca e de aulas
direcionadas aos empregados são reflexos desse perfil do fundador, representado nas

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narrativas dos trabalhadores e nos textos produzidos sobre a fábrica como um erudito.
A biblioteca foi organizada no prédio que abrigava o Cassino dos Mestres e estava entre
os fins aos quais se destinava a Sociedade de Mutualidade. Manter uma biblioteca
cumpriria a função de “desenvolver a cultura dos sócios”, conforme artigo do Estatuto
da Sociedade de Mutualidade.8
15 A representação do fundador como um homem culto, justo, oscilando entre uma figura
paternal e um patrão punitivo, é recorrente nas memórias vinculadas a lugares de
trabalho, demonstrando como as lembranças constituem-se numa distensão de tempo,
na qual o passado, momento em que afloravam os sentimentos de animosidade e
revolta, é retrabalhado pelo presente, já liberado dessas contraturas (Lasmènes, 2011).
16 Entre os anos 1920 e 1940, a indústria têxtil como um todo sofreu os reveses de crises
internacionais, ainda que, em alguns setores e pontualmente, tenha sido beneficiada
por uma situação de guerra. Dos finais da década de 1940 até meados dos anos 1950 foi
possível manter um nível de produção que possibilitava à empresa funcionar em todos
os setores, garantindo ao menos uma relativa estabilidade que escondia, de fato, os
processos conturbados nos quais se desenvolvia a administração do último
representante da família Rheingantz. O período entre 1960 e 1970 foi marcado por
várias crises, que acarretaram no término de um ciclo na história da empresa, cujo
ápice foi a decretação da falência da mesma em 1968, sendo reaberta em 1970 com
outro nome social, Companhia Inca Têxtil, e outro corpo administrativo, sem o controle
acionário da família Rheingantz. Os processos indenizatórios impetrados contra a
empresa, ainda no período anterior ao fechamento, nunca foram resolvidos em sua
totalidade e as estratégias utilizadas para ressarcir os funcionários, tais como converter
a dívida em debêntures e conferir a eles parte do lucro, rapidamente mostraram-se
ineficazes, pois não contiveram o descontentamento nem impediram o crescente
número de causas trabalhistas que incidiam sobre a empresa. Além disso, o
endividamento da Rheingantz com a Previdência Social resultou na penhora de grande
parte de seus bens, impedindo que eles fossem vendidos para amortização das dívidas
trabalhistas.
17 Mergulhada em dívidas e sentenças judiciais, a Inca Têxtil manteve-se funcionando
parcialmente até o final da década de 1980. A partir dos anos 1990, em face do
agravamento das condições financeiras e à impossibilidade de investir na manutenção
básica dos prédios, a Inca Têxtil foi sendo abandonada, o que se torna visível tanto pela
situação de comprometimento estrutural do edifício, como pelo desânimo e fim das
expectativas de retorno aos velhos tempos.

Do trabalho à memória: as metamorfoses do espaço


18 No primeiro momento da pesquisa, entre os anos 1997 e 1998, o ingresso no universo da
Rheingantz ocorreu através de um grupo de antigos trabalhadores que frequentavam o
espaço da fábrica em alguns dias da semana. Esse grupo dividia-se em dois: um
composto por mulheres e outro, por homens. O grupo feminino reunia-se uma vez por
semana na sala da costuraria, e a costura era, na verdade, um mote para o encontro
semanal no qual falavam de suas vidas, trocavam receitas de tricô e culinária e,
invariavelmente, conversavam sobre o passado. Já os homens ficavam na antiga
portaria, configurando um grupo numericamente irregular. À frente de todos,
cumprindo a função de vigilante da fábrica, estava seu Hilso, autodefinido como “o

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guarda da Rheingantz”. Era ele quem cotidianamente abria o prédio às 7h30min,


fechava às 11h30min, reabria às 13h30min e tornava a fechar às 17h30min. Abrindo e
fechando uma fábrica vazia, já completamente deteriorada pelo tempo, percorrendo
pavilhões silenciosos que em nada lembravam os ruídos dos teares e filatórios, esse
homem mantinha ainda um vínculo com a administração da fábrica, localizada na
cidade de Pelotas, em função do qual recebia uma pequena remuneração. Seu Hilso,
forma pela qual era comumente tratado, definia seu papel como o de um guardião, o
representante do tempo da fábrica, o tempo da memória, que para ele era o da negação
do presente. Ao falar sobre o que o motivava a permanecer numa fábrica já desativada e
sem um futuro possível, dizia seu Hilso:
Eu morava lá fora, no Povo Novo. Vim para cá para trabalhar na estrada [Rede
Ferroviária], mas como a estrada atrasava os pagamentos, vim para Rheingantz,
aqui era melhor, pagava em dia e eu vim para cá, passou bastante tempo, e estou até
hoje aqui. Peguei amor por essa casa aqui e passo dia e noite nessa fábrica. Cuido
todo esse patrimônio, sábado, domingo, qualquer barulho […] O Dr. Paulo [Diretor
da Inca Têxtil] uma vez me perguntou porque eu estava aqui se quase nem
pagamento eu tinha. Eu disse que é porque eu gosto daqui, vivi uma vida aqui
dentro, eu e muitos viveram uma vida aqui, tem muitos que qualquer coisa estão
aqui dentro. (Hilso Gonçalves Magalhães, entrevista em 05/06/1998).
19 Ocupar os lugares que no passado abrigavam as atividades do trabalho parecia revelar
uma reivindicação de pertencimento ao território local, espécie de apropriação
simbólica do passado que ali se depositava. Essa relação entre um universo identificado
pela mesma trajetória profissional e a memória que compartilham remete à noção de
memória coletiva de Maurice Halbwachs (1994), no sentido de compreendê-la como
representações e imagens do passado operando sobre o presente. Para Halbwachs, o
espaço faz parte daquilo que ele traduziu como sendo os quadros sociais da memória,
ou seja, suas condições sociais de produção. As transformações desse espaço
desestabilizam a memória que ali se projeta, fazendo com que os sujeitos abstraiam-se
da realidade contemporânea, significada pela ausência e esvaziamento, e recuperem do
passado imagens de uma fábrica idealizada, na qual os conflitos e as divergências ficam
secundarizados.
20 As primeiras reflexões emitidas pelos ex-trabalhadores entrevistados, fossem aqueles
pertencentes ao grupo que ainda frequentava a fábrica ou aqueles que não mais
mantinham contato com ela, circunscreviam-se em pares de oposição entre passado e
presente, nos quais o passado expressava qualidades e valores que no presente eram
negados. Expressões como: “antes a gente trabalhava o tempo todo, ia trabalhar doente,
do jeito que fosse […] hoje, essa juventude é toda fraca, qualquer gripe já entram com
atestado, faltam o serviço, ninguém quer mais nada com nada” e “se vivia como numa
família, a gente se entendia ali dentro e tinha respeito pelos mestres… hoje não se
respeita mais nada, é cada um por si, ninguém tem mais amor ao trabalho” são algumas
dessas oposições que se manifestam nas evocações do passado, quando são forjadas
imagens nostálgicas do trabalho fabril em informações que muitas vezes se
apresentaram contraditadas pela documentação oficial da empresa, tal como as fichas
da vida funcional dos trabalhadores arquivadas no departamento pessoal.
21 Contando com 155.000 m² de superfície e 45.000 m² de área coberta, o espaço fabril
estendia-se do interior da fábrica, nos locais destinados ao trabalho propriamente dito,
ao exterior, em prolongamentos diretos da própria empresa, como a Sociedade
Mutualidade, o ambulatório médico, o Grupo Escolar e a creche, assim como no

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conjunto formado por todos esses prédios e pelas casas dos mestres, contramestres e
trabalhadores da fábrica.

Figura 2. Corredor de entrada (acervo pessoal).

22 No plano interno, a referência a alguns espaços eram recorrentes nas narrativas, como,
por exemplo, a portaria, local de ingresso na fábrica e onde ficavam as placas de
identificação de cada operário, as quais eram entregues no momento da entrada e
devolvidas no final do expediente; por vezes o tempo era escasso e, sobretudo para as
mulheres que tinham filhos, via de regra era preciso contar com a conivência do
porteiro para minimizar o atraso no serviço; o pátio interno, no qual a direção da
empresa fazia-se presente em comunicados e congraçamentos, sendo referência no
período dos seis meses que seguiram à suspensão do trabalho e fechamento definitivo
da fábrica, era sempre mencionado, pois ali ocorriam as reuniões entre todo o grupo de
funcionários, tendo sido construído um pequeno santuário à frente do qual eram
dispostas velas e realizadas missas em prol de uma recuperação da empresa. No andar
superior do prédio de entrada da fábrica estavam concentrados os setores financeiro e
administrativo, sendo a gerência um lugar inacessível para a maior parte dos
funcionários. A sala da gerência era cuidadosamente limpa pela única funcionária que,
nos últimos anos, ocupava esse andar e que periodicamente arejava a sala, limpava os
móveis, lustrava o assoalho. Dessa sala e de todo o chamado setor administrativo, as
aberturas proporcionavam uma visão ampla do pátio central e do corredor que levava
até as seções posteriores da fábrica. Subir a escada que conduzia ao andar superior
remetia, nas narrativas, a uma ordem disciplinar e hierárquica que previa o acesso a
esse pavimento em casos de punições, demissões ou, mais raramente, alguma
solicitação de caráter pessoal.

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As casas da fábrica
23 No espaço externo à fábrica, o conjunto de moradias que compunham as chamadas
“casas da fábrica” divide-se em dois: o primeiro deles é composto por moradias
dispostas ao lado do edifício fabril; e o segundo, inaugurado na década de 1950, localiza-
se nas imediações da fábrica, na chamada Vila São Paulo.
24 Foi do primeiro conjunto de habitações que um maior número de referências foi obtido
na documentação da empresa. Nesse local, cujas primeiras edificações começaram em
conjunto com a fundação da fábrica em 1873, é possível, através da disposição dos
imóveis, traçar um mapa social desse universo. No lado oposto ao prédio fabril
encontram-se edifícios que eram segmentos da fábrica: o prédio da Sociedade de
Mutualidade; a creche, sob a direção das religiosas da Ordem de São José; o Grupo
Escolar Comendador Rheingantz, o qual os filhos dos operários podiam frequentar até o
4º ano do ensino fundamental. Na sequência, havia construções nas quais moravam os
mestres da fábrica, que, pelo menos até 1950, eram de nacionalidade alemã. Essas casas
apresentavam-se com dois andares, porão, sótão e jardim, seguindo o padrão
construtivo de influência germânica. No lado oposto da rua vê-se ainda o que foi a casa
de um dos diretores da empresa, membro da família Rheingantz: uma construção
grande no meio de um jardim, garagem para carros, elemento de distinção num
conjunto social no qual ter um automóvel foi, por muito tempo, exclusividade dos
Rheingantz.

Figura 3. Casas dos mestres (acervo Fototeca Municipal de Rio Grande).

25 Ao lado desse grande imóvel inicia-se uma sequência de casas caracterizadas por
fachada austera de porta, janela e, em algumas delas, um pequeno jardim. Imóveis que
eram entregues aos contramestres. Um terceiro lote de casas está na parte interna e
paralela à Avenida Rheingantz, num conjunto arquitetônico de casas em fita, ou, na
linguagem local, “o corredor”. Essas eram casas originalmente cedidas a operários com

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família pequena ou solteiros. São residências geminadas compartilhando espaços como


o pátio de distribuição interna.
26 Esses espaços revelavam as estratificações e os processos de discriminação étnico-
social, regidos por uma ordem baseada nas distinções e nos papéis sociais que se
estabeleciam como um prolongamento do que ocorria no interior da fábrica.
27 Essas hierarquizações ficam evidenciadas no padrão construtivo das casas que, como
signos visuais, informam sobre o sistema de relações pessoais que ali se interpunham.
Sobre essas relações, algumas entrevistas foram balizadoras, como aquela obtida junto
à filha de um dos mestres alemães. Pautando sua narrativa na trajetória percorrida pelo
pai desde sua vinda da Alemanha até tornar-se o último dos mestres de etnia germânica
a deixar a fábrica, depois de se tornar Inca Têxtil, Heldwig Ellen Bersch recompôs dados
de sua infância e juventude ambientados no cenário desses arredores da fábrica. O
espaço que se delineava através de sua narrativa estava marcado pela posição assumida
no interior da empresa, a divisão entre o trabalho operário e o trabalho técnico, que era
atributo quase exclusivo dos alemães. Assim, Heldwig dizia que “a convivência com o
grupo dos técnicos, que moravam do lado direito, era diferente dos que moravam no
lado esquerdo”. A disposição das moradias em lados opostos correspondia ao
seccionamento que caracterizou esse conjunto social, numa interação que, no caso dos
alemães, era interna aos limites do grupo, bastante fechada, tal como coloca Heldwig:
Se formou um grupo fechado… até esses dias eu falei com uma outra senhora que
era filha de um empregado da Poock, e ela me disse uma coisa que, claro, a gente
não sabia, “o pessoal da Rheingantz era muito cheio…” nós nos dávamos com os
filhos do Hulverscheit, que eram da nossa idade… as outras eram mais velhas do que
nós… mas existia uma distinção, tanto é que depois que começamos a estudar no
colégio, o caminho era o mesmo e nós começamos a nos dar com a filha do mestre
carpinteiro, vamos dizer assim… porque tinha carpintaria…. ele era polonês e isso
não foi visto com bons olhos pela chefia, que mandou chamar meu pai. (Heldwig
Ellen Bersch, entrevista em 23/09/1998).
28 Essas interdições baseariam-se, de acordo com Heldwig, em uma lógica interna da
empresa que preconizava a harmonização dos segmentos superiores com os demais,
sem que houvesse trocas mais próximas entre eles, resguardando-se assim as
diferenciações, compreendidas como sendo a base dessa comunidade.
29 Essas clivagens sociais eram introjetadas, no caso da comunidade de origem alemã,
como uma realidade inquestionável, construída já na infância quando aos filhos dos
mestres era prescrita uma socialização interna ao pequeno grupo. Sob normas
comportamentais rígidas, impossibilitando a interação com os filhos dos funcionários
subalternos, o que era diversão e aventura para estes, como visitar a fábrica e
frequentá-la eventualmente, era vetado aos jovens descendentes de alemães, que
deveriam manter uma relação muito distanciada com a fábrica e seus espaços
funcionais.
30 A demarcação das diferenças e posições hierárquicas tinha no idioma seu principal
agente. Mesmo que soubessem falar português, tal como afirma Heldwig, era indicado
aos mestres que se comunicassem entre si em alemão, numa evidente estratégia de
afirmação de poder sobre os demais segmentos sociais da fábrica.
31 A proeminência do elemento germânico fazia com que raramente outros grupos étnicos
fizessem-se representar nos cargos de mais alto escalão. A partir de 1955, período em
que começaram a ser implantadas medidas de modernização da empresa, a incidência
de brasileiros nos cargos de comando aumentou consideravelmente. Entretanto, as

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narrativas evidenciam que, mais do que uma interdição às trocas culturais


propriamente ditas, o que ocorria era a afirmação de estratégias de controle no meio
operário.
32 Os casos em que, pelo compartilhamento de vizinhança, foram geradas formas de
proximidade são abordados pelas narrativas como raros e excepcionais. É o que relata
Sueli Botelho (1981), ex-tecelã, ao dizer:
Eu morei trinta e um anos ali na Avenida Rheingantz e morava ali o doutor Alfredo
Rheingantz, que era primo do doutor João [o último descendente do fundador
Carlos Guilherme Rheingantz a assumir a direção da fábrica]. Ele era casado com a
Dona Dóris, e tinha três filhos… e nós brincávamos com eles, apesar de nossa família
ser muito pobre, mas a mulher dele era uma santa porque não fazia distinção, eles
tinham um quartinho nos fundos que era só de brinquedos, ela abria o portão do
jardim e botava toda aquela criançada pobre para brincar com os filhos dela.
33 Essa proximidade afirmava-se como uma concessão manifesta na expressão “era uma
santa”, utilizada pela informante para caracterizar a esposa do chefe. Em outros
momentos, esses gestos de aproximação são traduzidos como formas de generosidade e
reconhecimento. É o que aparece na fala de seu Hilso ao comentar sobre a doação feita a
ele, por um dos mestres, de uma bicicleta que havia sido trazida da Alemanha para a
filha e que havia deixado de ser utilizada com o tempo.
34 Dentro do universo social dos operários havia, igualmente, expressões de
seccionamento e diferenciação social. O uso da expressão “gente do corredor” como
elemento classificatório, referindo-se aos operários que moravam nas casas em fita, é
um desses exemplos mais evidentes. Essas casas eram entregues aos operários de menor
qualificação e com famílias pequenas. Entretanto, as fichas funcionais do período
posterior a 1945 revelaram outra possibilidade de concessão, que se dirigia aos
estrangeiros vindos da Alemanha e de outros países europeus, em geral solteiros cujo
tempo de permanência na cidade não ultrapassava 12 meses.
35 As “casas da fábrica” estavam inscritas em contrato de obrigações operário-empresa,
sendo exemplar disso o corpo de bombeiros da fábrica, composto essencialmente pelos
que nelas habitavam. Além disso, cabia aos moradores zelar pela conservação dos
imóveis e manterem-se dentro dos padrões comportamentais considerados aceitáveis
pela empresa. Nesse sentido, o sistema de vizinhança atuava no controle de atitudes
consideradas desviantes. E os relatos contidos nos documentos funcionais dos
trabalhadores são evidências dessas redes formadas entre funcionários e empresa.
Casos de desavenças familiares envolvendo agressões e embriaguez ou brigas entre
moradores eram comunicados aos mestres pelos vizinhos e logo medidas punitivas
eram acionadas, podendo ocorrer, em casos extremos, a retomada da casa pela direção
da empresa. Da mesma forma, os vizinhos eram fundamentais para comprovar
eventuais tentativas de burlar o serviço, tal como pode ser visto no seguinte relato: “o
funcionário mandou o colega avisar que estava enfermo e quando o enfermeiro esteve
em sua casa, havendo batido e ninguém tendo aparecido, foi informado pelo vizinho
que o morador tinha saído”.9
36 A vizinhança aparece também como um lugar da ajuda mútua e de conivências que se
instauravam entre os moradores. No tempo da recordação são esses valores, e não as
intrigas e os conflitos, que são postos em ação para caracterizar esses espaços. O
lamento pela perda da convivialidade e da solidariedade entre vizinhos é evocado no
tempo da memória e relaciona-se mais às condições do sujeito no presente do que
propriamente ao passado (Mathieu; Gorgeu, 2011), ou seja, a deterioração dos lugares, a

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ocupação das casas por locatários que não fazem parte do grupo de antigos
trabalhadores da Rheingantz, a descaracterização de alguns prédios, como o da antiga
creche que entre os anos 1997 e 1999 sediou uma casa noturna, a substituição do
movimento de trabalhadores cruzando as ruas pelo silêncio da fábrica, a incorporação
de novos atores sociais, dentre outras alterações importantes.
37 A questão do reconhecimento do passado compartilhado colocava-se como um
elemento de diferenciação e distanciamento entre moradores recentes e antigos,
aproximando estes últimos em torno da questão da regularização dos títulos de
propriedade das casas.

“Ali ficou minha infância”


38 A fábrica aparecia representada sob diferentes construções narrativas. Para alguns era
o lugar onde a infância ficou depositada, para outros era denotada como o tempo da
libertação do jugo familiar. Nas narrativas, sobretudo femininas, dois momentos da
vida aparecem bem delimitados: o primeiro representa a passagem da infância ao
tempo do trabalho; o segundo, o término da juventude com o casamento e o nascimento
dos filhos. Essa transição vinha acompanhada pela perda da sociabilidade que
caracterizava as moças solteiras, e as responsabilidades domésticas ocupavam, então,
todo o tempo que antes era dedicado ao lazer. No relato de Elza, uma antiga tapeceira,
essa ruptura aparecia como uma demarcação forte de idades da vida:
Depois que eu casei eu nunca mais pude sair, pois todo o dinheiro que se juntava era
para poder comprar uma casa para a família. Então, sempre nas segundas-feiras, eu
só ficava ouvindo as outras moças contando das festas que tinham ido no final de
semana, elas se emprestavam roupas e devolviam tudo na segunda-feira. Eu nunca
podia ir, pois, com três filhos, eu só tinha três mudas de roupa, duas para o trabalho
e uma para a igreja. (Elza Padilha, entrevista em 13/11/1999).
39 O casamento demarcava o começo de um tempo no qual o trabalho passava a significar
a manutenção da vida familiar com progressos atestados pela aquisição de bens, como a
casa própria e investimentos no conforto doméstico. Assim, o recurso aos serões
passava a ser uma forma de aumento da renda, e a possibilidade de fazê-los aparece nos
relatos como uma concessão feita por alguns mestres nas seções que funcionavam no
período noturno, como a tecelagem e a fiação.
40 Já as referências à infância perdida, quando aparecem, não se caracterizam como uma
forma de lamento, mas como condição de sobrevivência num contexto familiar que
obrigava o ingresso muito cedo no mundo do trabalho. Em virtude da proibição de
contratação de menores abaixo de 14 anos, algumas estratégias para burlar a lei foram
postas em ação, como, por exemplo, registros de certidões falsas. Entretanto, em que
pese o limite de idade, a infância mantinha-se como um comportamento residual,
manifesto em atitudes de brincadeiras que eram consideradas, quando flagradas,
motivo para severas punições.
41 Nesse universo fabril, a observação de uma sucessão familiar na composição da mão de
obra aparecia nos registros oficiais da empresa, revelando que, tanto entre homens
quanto entre mulheres, o ingresso na fábrica foi resultante de um encadeamento
geracional através do qual os pais ou parentes próximos introduziam os filhos no
trabalho. As referências à filiação nas fichas de pessoal era acompanhada pela
identificação do setor no qual trabalhavam os familiares, pais ou tios. Dar sequência à

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trajetória aberta pelos parentes era um dado que se confirmava continuamente pela
documentação; além disso, prosseguir no ofício dos pais ou parentes era, em alguns
casos, discursivamente apresentado pela ideia da distinção e honra em dar
continuidade ao nome familiar na empresa. Em outros casos, o ingresso no mundo do
trabalho aparecia como contingenciado pelas necessidades econômicas da família,
evocando o lamento pelo estudo interrompido ainda na infância. É importante observar
também que a transmissão aos filhos do cargo ocupado pelos pais era igualmente
garantia de continuar morando na casa cedida pela fábrica (Lopes, 2011), o que aparecia
então como uma economia doméstica importante.
42 Ao mesmo tempo, aprender um ofício era possibilitado por uma rede de cooperação
estabelecida no interior de cada seção, sendo fundamental a figura dos funcionários
antigos no serviço que cumpriam um papel de instrutores. Da relação com os
instrutores dependia uma série de conhecimentos e vantagens secundárias, pois além
de conhecer o processo de produção, através da experiência transmitida, o novato
entenderia melhor o funcionamento das redes estabelecidas dentro da seção, assim
como as práticas solidárias e as formas de cooperação que amenizavam as condições
difíceis com que se desenvolvia o dia a dia no trabalho.
43 A categoria trabalho aparece como fundamental nas narrativas, numa amplitude a
partir da qual é possível compreender todos os âmbitos da vida nos quais a experiência
da fábrica aparece circunscrita. A condição de trabalhador é uma lente pela qual se
pode observar a história de toda uma vida, da infância até a senilidade, num percurso
não linear e nem sempre bem delimitado. Em algumas entrevistas, ingressar na fábrica
como funcionário assumia a ideia de liberdade, pois possibilitava ao sujeito o convívio
com pessoas externas ao ciclo familiar e a participação em uma sociabilidade
instaurada dentro dos grupos formados nas seções de trabalho.
44 Essa liberdade, no entanto, era condicionada e vigiada, sobretudo para aqueles que
tinham familiares trabalhando na fábrica, pois todos os comportamentos considerados
desviantes pela empresa eram transmitidos aos familiares, sendo igualmente possível
que as sanções fossem a eles imputadas.
45 No contato com essa comunidade de informantes foi possível observar que a maior
parte das narrativas convergia para uma relativização dos esforços físicos, ainda que
deles decorressem patologias ou deformações permanentes. O reconhecimento dessas
marcas no próprio corpo remete às condições nas quais o trabalho era executado, sendo
que a introdução sistemática de normas de segurança só ocorreu a partir de 1956, num
processo de modernização da produção que culminou com a contratação de uma
empresa americana – Wernertex, a qual permaneceu na Rheingantz de 1956 a 1958.
Pressionado pela necessidade de acompanhar o que já ocorria em outras empresas
têxteis do Rio Grande do Sul, no que se refere à modernização do maquinário e à
introdução de novos métodos de trabalho para lidar com as fibras sintéticas, o então
diretor da empresa, João de Miranda Rheingantz, autorizou o contrato dessa empresa
de engenharia industrial.
46 O trabalho desenvolvido pela Wernertex foi marcado por conflitos e discordâncias que
se tornaram problemas graves na gestão da empresa. O grupo de técnicos americanos
foi instalado em um escritório adaptado para recebê-los no centro da fábrica, em local
que passou a ser conhecido como “a gaiola de ouro”. Desse lugar, as representações que
são feitas pelos entrevistados evocam isolamento, um enclave do moderno num
conjunto já bastante antigo.

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47 Na “gaiola de ouro”, os técnicos americanos, aplicando a engenharia industrial, faziam


incidir modificações na organização espacial da fábrica e na relação empregado/
máquina no que se refere ao número e desempenho de produção. O remanejamento e
consequente diminuição de pessoal ativo, as mudanças nas relações de trabalho e as
alterações na estrutura do prédio fabril foram os elementos que as memórias desse
período mais evocaram, como forma de uma desordem trazida de fora para dentro,
num estranhamento constante entre os trabalhadores, os mestres de origem alemã e os
técnicos americanos. Nas falas dos antigos trabalhadores, esse período foi marcado pelo
afloramento de conflitos de ordem hierárquica, uma vez que o comando da empresa
passou a ser regido por sujeitos externos a ela, o que foi agravado pelo fato de que para
os mestres era uma afronta terem que se submeter a um saber de cuja constituição
estavam excluídos, devido à falta de formação técnica específica.

As máquinas: memória de gestos, saberes e técnicas


48 A relação estabelecida com as máquinas e o valor simbólico conferido a elas, como
elementos de identidade, é um dos eixos sobre os quais se articularam as narrativas. A
prática cotidiana do trabalho, associada à curiosidade e à observação, conferia um
conhecimento que era manejado e utilizado como forma de distinção dentro da fábrica.
Entender o funcionamento da máquina era fundamental para solucionar problemas
cotidianos e demonstrar autonomia frente aos conhecimentos de técnicos
especializados. É essa aptidão para conhecer materiais e dominar as formas como as
máquinas operavam que, na memória, atuava como o diferencial entre o operário do
passado e aquele do presente.
49 O saber-fazer é, no que tange às atividades que não passam por uma formação
profissional estritamente técnica, a capacidade de compreender seu ofício como uma
extensão da experiência, o que confere à capacidade de prever problemas e antecipar
soluções sem que esse conhecimento passe, necessariamente, pelo aprendizado formal.
Jean-Louis Tornatore (1991), em seu estudo sobre os operários da construção naval em
Marselha, aponta para a competência profissional construída por meio da experiência,
o que o autor denomina de vice, demarcando a diferença entre um operário passivo e
aquele que consegue se desvencilhar dos problemas, encontrar soluções e formas de
resolução dos mesmos. É, portanto, o desenvolvimento de um esquema cognitivo
especializado, de tarefas aplicadas de maneira sistemática, mas não exatamente
definidas pela linguagem, que confere a habilidade de fazer bem, dito de outra forma, o
saber-fazer (Descola, 2006).
50 Se a aquisição de um saber-fazer não dependia unicamente do aprendizado técnico, é
preciso que isso seja atribuído a certos elementos que atuavam em conjunto. Na fábrica
têxtil esse saber-fazer construía-se pelo domínio do conhecimento sobre as máquinas,
seus processos de funcionamento e materiais utilizados, como a lã e o fio obtido pelo
estiramento da mesma. Em todos os setores da Rheingantz, da lavagem e banho
químico até a tecelagem e tapeçaria, o fundamental, de acordo com os informantes, era
reconhecer se o fio era resistente ou não, do que dependeria um maior ou menor
volume de produção ao final do período. Esse conhecimento advinha do toque para que
fosse possível saber a densidade, identificando a composição do fio pela viscosidade,
odor e coloração. Tal como afirma Sueli, uma antiga fiandeira: “teve um contramestre,
seu Jaime, ele pegava as maçarocas [cilindro em torno do qual era enrolado o fio] que

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estavam caídas no chão e dizia: esse é tal fio, tal partida, tal cor… ele sabia, e hoje a
maior parte não conhece nada” (Botelho, 1981).
51 A descrição do processo de transmissão desse saber-fazer não possibilita compreender
como efetivamente isso ocorria (Rasse, 1991). O caráter quase sempre minimalista dessa
descrição aponta para um conhecimento intuitivo confirmado pela repetição.
Entretanto, deter esse conhecimento poderia ser a forma de impor-se numa estrutura
hierárquica fundada sobre a competência técnica formal.
52 O declínio da empresa é representado pela desagregação desse universo constituído
pelo tênue equilíbrio entre os dois campos de conhecimento: o técnico e o empírico,
desencadeado pela missão modernizadora imposta pelos técnicos americanos. A
introdução de novos métodos, equipamentos e formas de racionalização da produção
era recuperada como a desestabilização de um sistema que permitia a sincronização de
práticas técnicas e práticas sociais.
53 A ruptura com esse sistema anterior, o das “velhas paredes”, era apontada pelos relatos
memoriais como um dos grandes fatores que levaram à falência da empresa,
sobrepondo-se a outros, como a incapacidade de acompanhar as novas tecnologias
aplicadas ao setor têxtil e o mau gerenciamento interno da fábrica.

O tempo do luto
54 É possível afirmar que há um consenso memorial sobre esse período anterior, no qual
as representações sobre a fábrica giram em torno da “grande família”, dos chefes como
rigorosos e justos, dos conflitos como apaziguados ou inexistentes e de acordos
possíveis numa ordem que vai perdendo a rigidez frente à necessidade de aumento da
produção. A fábrica torna-se o centro de uma vida desejável, e dessa narrativa constrói-
se o mito da Idade de Ouro, uma remodelação do passado cuja finalidade é possibilitar a
continuidade da existência no presente. No plano discursivo vê-se que o momento que
se aproxima da ruptura (o fechamento da empresa) é abordado de maneira
fragmentada, instável e controversa (Goux, 2002, p. 102). Tudo parece se desordenar
quando entra no período que antecedeu ao fechamento, período no qual a
desestabilização, a insegurança e o sofrimento impõem-se como sentimentos e
representações possíveis.
55 Nas fichas de registro do departamento pessoal há um considerável aumento de
licenças e punições por infrações cometidas pelos operários no período que vai de 1955
até 1968. Essas infrações repetem-se em várias fichas sob o título de atos de sabotagem,
dentre os quais os mais recorrentes são: ter “calçado maldosamente” os limpadores de
fios da máquina; deixar enrolar a lã até quebrar a máquina; fazer torção contrária no
fio; estragar tapetes; rasgar o couro da máquina; rasgar a andadeira da máquina;
desperdiçar tapume; quebrar lançadeiras; colocar ferro sob a roda do caminhão. Tais
atitudes ficavam atestadas pelos documentos e demonstravam um descontentamento
crescente dos trabalhadores frente ao atraso de salários e à “política de degola”, como
era apresentado o sistema de redução de pessoal, e à suspensão de algumas vantagens
como as horas extras, frutos da reforma administrativa proposta pela equipe da
Wernertex.
56 Dentre essas práticas de sabotagem, as mais impactantes foram as empreendidas pelos
antigos mestres, contrariados pelo sombreamento causado pelos técnicos americanos.

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A estratégia usada pelos mestres foi a de omitir conhecimentos e pedir a aposentadoria,


nos casos em que era possível. “Os velhos alemães foram se aposentando e levaram as
fórmulas boas, só deixaram as ruins… então se fazia os cobertores, mas vinha tudo de
volta com reclamações” (Botelho, 1981), ou ainda “o alemão dos tapetes não quis deixar
a receita dos tapetes para ninguém, ele sempre dizia que não ia deixar, deixou algumas
coisas que dava para se orientar somente, uns desenhos, mas a receita mesmo, isso ele
levou com ele” (Honorina Britto, entrevista em 24/09/1998).
57 O ano de 1969 foi marcado por um desmonte gradativo da estrutura produtiva da
empresa, o que repercutiu nos demais setores, como o social e o assistencial, os quais
recebiam diretamente as influências das oscilações econômicas pelas quais passava a
fábrica. Em 1961, é feita a transferência, mediante venda do controle acionário, para
um grupo paulista, Irmãos Abdalla, que era, na verdade, um conglomerado de empresas
de diferentes ramos. O interesse na aquisição de uma empresa do porte da Rheingantz,
com problemas de funcionamento, gerou suspeita entre os trabalhadores sobre as reais
intenções desses empresários e deu-se início a um movimento de resistência,
constituído de atos de sabotagem contra o que os informantes definem como uma
“sangria” na Rheingantz: o envio para São Paulo dos produtos contidos no estoque.
58 Os problemas na administração da empresa começaram a se avolumar. O pagamento
dos salários foi mantido com regularidade apenas nos quatro primeiros anos, porém as
dívidas contraídas com os fornecedores dos insumos básicos ao funcionamento da
produção foram sendo postergadas, bem como as obrigações previdenciárias. O
fechamento da creche em 1962 e a desativação da Sociedade de Mutualidade em 1967
foram os dois maiores golpes na comunidade fabril, de acordo com os informantes.
59 Os anos que seguem são marcados por confrontos dentro do grupo de acionistas e por
acusações de má versação do orçamento da fábrica por parte da administração central.
60 Em 1963, apesar do desencanto e da falta de perspectiva no futuro, a Rheingantz
comemorava 90 anos. Um almoço coletivo no pátio da fábrica e uma pequena
solenidade religiosa pareciam marcar simbolicamente o final de uma era, e os relatos
avançavam para cenas de sofrimento e revolta, assim como de fé e crenças, como é o
caso da construção do altar que abriga até hoje a estátua de Nossa Senhora de Fátima
no pátio central.
61 As atitudes da administração eram interpretadas como um descompromisso absoluto
com os funcionários e, embora as reclamações trabalhistas começassem a se avolumar,
a empresa não cumpria as sentenças ditadas pela justiça. O Sindicato dos Trabalhadores
em Fiação e Tecelagem, cuja diretoria à época era composta por operários da
Rheingantz, mobilizou-se por tornar pública a situação da fábrica e levou à justiça uma
série de reclamatórias trabalhistas. Esse movimento reivindicatório foi interpelado pela
instauração do regime militar, a partir de 1964, tendo sido a direção do sindicato
destituída e nomeado um interventor, Helio Lewis da Silveira, que narra o momento em
que foi abordado pela polícia militar:
Acho que eles fizeram uma pesquisa na vida de todas as pessoas que trabalhavam
aqui… porque quando encostou aqui a caminhonete da Marinha e nos procurou um
sargento, pedindo que fôssemos com ele até a Capitania dos Portos, eu pensei que ia
ser preso, porque levavam muita gente lá para o navio Canopus, que ficava lá na
Barra. Eu perguntei aos outros dois companheiros se eles tinham alguma implicação
política e eles também não tinham, e aí quando chegamos lá na Capitania, o Capitão
dos Portos nos pediu para colaborar com eles, eu procurei sair fora, mas já não dava
mais. (Helio Lewis da Silveira, entrevista em 06/02/1999).

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62 Foram intensificadas as ações de sabotagem contra os caminhões que levavam o


estoque para São Paulo, porém com uma motivação política, almejando enfraquecer o
diretor do Grupo Abdalla, opositor ao regime.
63 A partir de ações comprometidas com o abrandamento e o afastamento de lideranças
com posições de esquerda, o sindicato foi perdendo a credibilidade e a força de
representação dentro do movimento dos trabalhadores da Rheingantz. Em janeiro de
1968, a fábrica amanheceu ocupada por contingentes da Brigada Militar, sob ordens do
Departamento Federal de Segurança Pública, cujo objetivo era o de impedir atos de
protesto no interior da mesma, e ali permaneceram por uma semana (Jornal Rio
Grande, 1968).
64 Com salários atrasados e perda de muitos direitos, alguns operários deixaram a
empresa e foram buscar outras alternativas de emprego. Outros, entretanto,
permaneciam na esperança de que a fábrica voltasse a se recuperar, o que se tornava
cada dia mais distante, pois, impossibilitada de produzir em razão da escassez de
matéria-prima e com dívidas trabalhistas gigantescas, o colapso da Rheingantz tornou-
se irreversível. Em 15 de março de 1968 foi, então, decretada a falência da fábrica que,
pela primeira vez em 90 anos, fechava as portas.
65 As representações de morte aparecem nas falas referentes a essa fase em que, pouco
antes de decretada a falência oficial da firma, os funcionários foram alertados pelo
sindicato de que deveriam continuar indo na empresa, pois em caso contrário poderia
ser configurado abandono de emprego, o que resultaria na perda dos direitos legais a
indenizações pleiteadas contra a fábrica. Assim, por seis longos meses, aqueles que
ainda suportavam cumpriam parcialmente o horário de trabalho, sentados nas seções,
sem trabalhar porque não havia matéria-prima e também em razão do processo
embargatório infringido contra a fábrica, que colocou o maquinário sob custódia da
justiça. Da morte simbólica, decorrente do estancamento do barulho dos teares e dos
filatórios, a morte física veio ocupar um espaço no interior da comunidade, como
afirma seu Hilso, dizendo que no ano em que fechou a Rheingantz foram registradas 16
mortes de funcionários da empresa, seja por suicídio ou “paixão”, tal como afirma o
informante.
66 O desaparecimento de um mundo do trabalho idealizado e representado através de
categorias, como família, dignidade e juventude, deixou sentimentos de indignação e
revolta, substituídos no presente por decepção e silêncio. Falar desse período terminal
da fábrica foi motivo de evitação e tristeza, uma memória impedida, indisponível e, pela
força da melancolia, difícil de esquecer (Ricoeur, 2007, p. 423).
67 Esse esquecimento estratégico e voluntário permitiu, paradoxalmente, a constituição
de uma nova identidade e de um novo tempo para a Fábrica Rheingantz, o tempo da
patrimonialização ou, usando a expressão de Gaetano Ciarcia (2006), a “perda durável”,
no sentido da construção de uma nova temporalidade, não mais somente a da memória
e suas evocações, não apenas o presente com suas contradições, mas a do passado
expandido e ressignificado em risco de desaparecimento.

O tempo do patrimônio
68 Os esforços por manter a fábrica aberta, simulando existir alguma atividade produtiva
em seu interior, mantiveram-se até o falecimento de seu Hilso, o “guardião da

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Rheingantz”. Sem alguém que se dispusesse a cumprir esse papel e com o avanço da
idade dos antigos trabalhadores, a antiga fábrica fechou-se definitivamente ao mundo
exterior em 2001. A partir desse momento acelerou-se o processo de degradação com
registro de casos de vandalismos e roubos de materiais, como tubulações em bronze.
69 A audiência pública de julho de 2009 foi um marco no processo de conversão da
memória sobre a fábrica em um processo de conscientização patrimonial sobre ela.
Recuperar e impedir o desaparecimento dos traços desse passado foi a ênfase desse ato
que reuniu atores sociais, tais como vereadores municipais, Judiciário e Ministério
Público federais, universidades, ex-funcionários da Rheingantz. Atitudes emocionadas
surgiram de vários membros do poder público e da plateia, como o relator da audiência
que se remeteu à sua infância e à necessária recuperação do passado numa cidade que
agora olha para seu futuro (Rio Grande, 2009).
70 Sem desconsiderar que anterior a esse ato público já tivessem acontecido outros de
igual natureza, bem como manifestações dessa comunidade de ex-trabalhadores em
prol da patrimonialização do complexo fabril, passa-se a observar as repercussões desse
evento nas mídias e nos discursos locais, que com mais ênfase apontavam para a fábrica
como patrimônio da cidade, tudo como se de fato a emoção patrimonial tivesse sido
ativada pelos discursos e ações do poder público, tal como a aplicação do princípio da
adjudicação (entrega do bem pelo devedor) ao antigo prédio que abrigou o Cassino dos
Mestres e Sociedade de Mutualidade, repassado à administração municipal para que
fosse efetivado seu restauro (Rio Grande, 2009). Outras reações, algumas de caráter
contrário ao tombamento das casas da Vila Operária,10 foram observadas num
movimento que evidencia essa ativação patrimonial mobilizada no interior da
comunidade. O sentido de ativação patrimonial elaborado por Llorenç Prats (1998),
referindo-se à ideia de que elementos que integram os repertórios culturais, para que
adquiram autoridade e representatividade, devem ser previamente legitimados como
construção social, adquire nesse caso um sentido bastante profundo. Segundo Prats
(2005, p. 20), a ativação, mais do que a valorização, tem a ver com o discurso “mais ou
menos explícito, mais ou menos consciente, mais ou menos polissêmico, mas
absolutamente real” baseado na seleção de elementos integrantes da ativação, na
ordenação e na interpretação dos mesmos, construindo assim um “caráter sagrado e
imutável” (Hernández Ramírez, 2007, p. 7) de objetos a serem elevados à categoria de
símbolo coletivo, podendo, portanto, representar um vestígio de passado que une os
sujeitos no presente.
71 O tempo da memória, que para fins dessa pesquisa foi considerado como esse anterior à
criação dos discursos e de dispositivos patrimoniais, fazia-se observar na relação dos
sujeitos com os evocadores da recordação, justificando assim os acervos pessoais
formados por objetos industriais, fotografias, periódicos publicados pela empresa,
documentos de trabalho, cadernos de anotações, etc. Nesse tempo da recordação, os
sentidos são individualmente construídos e participam dessa modulação do tempo da
vida, pautados pelo trabalho: reconstrói-se a própria trajetória a partir de uma
ordenação demarcada pelo tempo do trabalho “no tempo da Rheingantz” (Eckert,
2012). Nesse sentido a memória como representação presente de uma coisa ausente
(Ricoeur, 2007) remete à ideia de traços e vestígios presentes na duração.

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Figura 4. Seu Hilso e a bicicleta alemã (acervo pessoal).

72 A dimensão espacial adquire então um sentido mais profundo, pois tenderia a assegurar
o sentimento de continuidade dos grupos de acordo com Maurice Halbwachs (1990,
p. 20). Os traços inscritos no espaço são constantemente reapropriados e funcionam
como marcas implicadas no processo de apropriação simbólica do mesmo (Veschambre,
2008, p. 14). A transposição desse espaço-memória para espaço-patrimonial resulta da
consciência de um sentimento de pertencimento e, ao mesmo tempo, o reconhecimento
desse conjunto como patrimônio reafirma e sela em definitivo o processo de
desindustrialização (Di Méo, 2007).
73 O processo de patrimonialização da Rheingantz vem sendo marcado por ações externas
– poder público e experts – que por vezes desconsideram os lugares nos quais a
sedimentação do passado parece ser mais evidente aos atores locais. O descompasso
entre as decisões sobre os objetos patrimonializáveis eleitos e mediados pelo poder
público e os atores locais (a escolha do Cassino dos Mestres como prédio a ser
restaurado em detrimento de outros igualmente importantes e que apareciam em
maior destaque nas entrevistas, como o do Grupo Escolar Comendador Rheingantz,
pensado por alguns moradores para sediar um museu da Rheingantz e atualmente
destinado a ser um restaurante) são reveladores da dificuldade de fazer operar a noção
de transmissão, o que, de acordo com Dominique Poulot (1998, p. 10), é condição
essencial para que se estabeleça o futuro do passado. Há que se considerar, no entanto,
a ideia de que o patrimônio é construído sobre a perda, o desaparecimento, e,
especificamente nesse caso, a desagregação de uma atividade industrial e sua
transformação em lugar para a memória da atividade industrial. Nesse sentido, o
patrimônio é sempre associado a algo que se perdeu, uma ruptura entre o que foi e o
que se reinventa, o intransmissível, portanto.
74 Espaço entre dois mundos, o do trabalho e o do patrimônio, esse conjunto fabril
possibilita que se interrogue sobre as mutações sofridas pelo espaço urbano e as
transformações que ocorreram na cidade, que se abre, simbolicamente, pelo signo
visual da indústria têxtil.11

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75 A vontade política de preservar os restos, expressa pelo tombamento do conjunto


fabril, levada a termo pelo Iphae, não poderá prescindir de compreender que nesse
lugar subsiste, pela força de uma representação compartilhada de passado, uma
identidade que a ele se vincula e uma paisagem composta pela materialidade e
imaterialidade da memória.

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NOTAS
1. Ver Ferreira (2002).
2. Ver Rio Grande do Sul (2012).
3. A Sociedade Mutualidade dos operários da Companhia União Fabril (CUF) foi fundada em 10 de
março de 1881 e tinha, dentre suas atribuições, gerir fundos de auxílio aos trabalhadores. A partir
dos anos 1950, passou a funcionar também como cooperativa, na qual os funcionários da empresa
podiam adquirir produtos como botijões de gás, tecidos, calçados, etc. Todas as compras eram
repassadas ao setor de departamento pessoal da empresa para que fosse feito o devido desconto
na folha de pagamento do trabalhador.
4. No período em que estive pesquisando a fábrica, tive acesso a diversos fundos documentais,
tais como as fichas do departamento pessoal que remontavam a 1937, prontuários do ambulatório
médico da empresa, documentos gerais relativos ao fluxo de produção, documentos técnicos, atas
das reuniões da diretoria da Fábrica Rheingantz, cartas do comendador Carlos Guilherme
Rheingantz quando no exercício da direção, dentre outros. Ressalte-se que já naquele momento
uma grande parte dessa documentação estava armazenada em ambientes totalmente insalubres,
estando sujeita a ataques biológicos, umidade, contato com materiais corrosivos e outros fatores
de degradação.

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5. O período entre 1950 e 1970 foi tomado levando-se em consideração que no começo dos anos
1950 a fábrica ainda apresentava índices de crescimento, os quais iniciam um processo de
declínio a partir do final dessa década, culminando com seu fechamento em 1968.
6. Conforme dados apresentados no Relatório da Associação Comercial publicado no jornal Diario
de Rio Grande (1887).
7. O período que vai de 1870 a 1920 caracterizou-se pelo desenvolvimento de setores
fundamentais que impulsionaram a cidade de Rio Grande. Durante o século XIX, a cidade exerceu
papel fundamental no contexto regional, principalmente no que se refere a configurar-se como
entreposto comercial sul-rio-grandense.
8. A constituição da biblioteca fazia parte de um projeto maior no qual classes noturnas eram
ministradas aos trabalhadores, “uma educação do espírito” como definiu o médico Augusto
Duprat, que atuava como colaborador na fábrica, em sua argumentação frente à diretoria da
empresa.
9. Ficha funcional n. 1024, Departamento Pessoal da Fábrica Rheingantz, 1953.
10. No dia 20 de dezembro de 2010 foi consumido pelo fogo o sobrado de traços enxaimel onde
havia sido a residência dos mestres. A tese de incêndio criminoso, buscando resguardar o valor
do terreno, começa a ganhar espaço dentro da cidade sem que, no entanto, tenha sido
comprovada.
11. O pórtico de entrada na cidade de Rio Grande, pela chamada Avenida Presidente Vargas, é a
estilização de uma máquina de costura em alusão às fábricas têxteis da cidade na década de 1950,
quando foi erigido.

RESUMOS
Este artigo pretende discutir as dimensões que assumem as noções de trabalho, memória e
patrimônio nas narrativas de antigos trabalhadores da Fábrica Rheingantz, localizada em Rio
Grande (RS). Essa fábrica, fundada no final do século XIX, foi uma das bases sobre a qual se
articulou a economia e urbanização dessa cidade, constituindo-se em referência e marco
simbólico da Rio Grande moderna. Os remanescentes do complexo fabril figuram hoje como
restos de passado num presente tensionado entre as reivindicações patrimoniais e a lógica do
mercado imobiliário numa cidade que vivencia um novo ciclo de crescimento econômico.

This article intends to discuss the dimensions that work impressions, memory and heritage can
assume through the narratives of the former workers of the Rheingantz Factory, sited in Rio
Grande, RS. This plant, founded in the late 19th century, was a foundation for the economy and
the urbanization of this city, as well as a reference and simbolic landmark of the modern Rio
Grande. Today, the remainders of that plant are the remains of a past whithin a present
tensioned between heritage reivindications and the logic behind the real estate market, in a city
that experiences a new cicle of economic growth.

ÍNDICE
Keywords: heritage, memory, Rheingantz Factory, work
Palavras-chave: Fábrica Rheingantz, memória, patrimônio, trabalho

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AUTOR
MARIA LETICIA MAZZUCCHI FERREIRA
Universidade Federal de Pelotas – Brasil

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Re-estructuración capitalista
precariedad laboral y resistencia. La protesta de los mineros del cobre en
Chile

María Fernanda Hughes

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

Introducción
1 Con el inicio de la dictadura en Chile la política económica experimenta una profunda
transformación. Desde ese momento, funcionarios de gobiernos, tanto dictatoriales
como democráticos, repitieron de manera insistente una serie de propuestas que se
presentaban como las grandes verdades para obtener el éxito económico: el mercado lo
resolvería todo de la mejor forma posible; el estado es esencialmente inepto e
ineficiente y debe retirarse de la actividad económica. Los costos sociales que
provocarían las reformas, se suponía, serían transitorios y breves, ya que,
teóricamente, las reformas estructurales darían lugar a una expansión significativa de
la inversión, el crecimiento económico, el empleo y las remuneraciones. Se sostuvo con
mucha frecuencia, que antes de distribuir la riqueza (antes de mejorar la distribución),
se debía producir el crecimiento económico.
2 Desde fines de los ‘60 y comienzos de los ‘70, se había producido una disminución de la
tasa de ganancia.1 Recomponer a esta última requería transferir el poder acumulado en
el campo del trabajo al campo del capital. Es entonces que se desata la ofensiva contra
los trabajadores y sus salarios, contra el gasto estatal en tanto restaba a los ingresos de
los empresarios, y contra las formas de gobierno que limitaban la acumulación. Se
imponía para el Capital el establecimiento de un nuevo orden. La Dictadura Militar se
constituyó en la primera estrategia de disciplinamiento social para poder aplicar

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“exitosamente” las reformas. De esta forma, se silenció el conflicto social por la


redistribución de la renta en Chile.
La recuperación de la crisis significa para el capital, sobre todo, la reafirmación de
su autoridad, su derecho a administrar y a mandar. Es dentro de este contexto –en
el contexto de la crisis y no debido a elecciones o a alguna batalla de ideas
autónoma– que hay un viraje de la estrategia capitalista hacia ideas más
autoritarias, hacia una dirección empresarial más autoritaria. El creciente
autoritarismo no resulta de los éxitos de la Nueva Derecha: al contrario, su éxito es
el resultado de las presiones hacia un mayor autoritarismo. Para el capital, la
reafirmación de la autoridad es la precondición de todo lo demás. (Holloway, 1987,
p. 52).
3 Las políticas puestas en práctica, deterioraron la situación social. Si observamos la
situación laboral, constatamos un drástico deterioro de su calidad: se incrementaron la
informalidad y la precariedad laboral. La desigual distribución de los ingresos sigue
siendo un rasgo sobresaliente de la estructura económica y social, reflejándose en los
altos niveles de desigualdad social y el abismal distanciamiento entre ricos y pobres. 2
4 La precarización del trabajo se ha ido produciendo a partir de las profundas
transformaciones impuestas por la Dictadura Militar. Para ello, fueron determinantes la
liberalización de las normas de contratación laboral3 como así también el proceso de
fragmentación vertical de las empresas en unidades económicas más pequeñas y
eslabonadas horizontalmente. Los cambios en la organización y funcionamiento, que
fraccionan la producción y a las empresas en múltiples unidades económicas, que
gracias a la innovación tecnológica, permite que se articulen sólidamente y organicen
en un centro sin importar dónde esas unidades estén operando materialmente.
5 En un contexto de elevadas tasas de desempleo,4 estas modificaciones facilitaron al
capital óptimas condiciones para atomizar a los trabajadores y para reducir a su
mínima expresión la organización sindical. La externalización, la fragmentación de las
empresas y la creación de nuevas articulaciones entre ellas, respondería
principalmente a la “inserción” de Chile en la “economía global”. Pero no hay que
desconocer o subestimar el atractivo de debilitar a las organizaciones sindicales al
disgregar a los trabajadores como así también la facilitación de violar las conquistas
sindicales. De esta forma se reducen costos al pagar salarios inferiores, desatendiendo
el cumplimiento con los beneficios sociales y/o los aportes a la seguridad social. En este
marco, se dificulta la existencia de una organización sindical fuerte, ya que al reducir al
mínimo posible el número de trabajadores permanentes y los subcontratados y/o
temporarios estar en una situación de inestabilidad constante, la organización se torna
mucho más difícil.
6 La desregulación fue impuesta poco después del Golpe de Estado de 1973. 5 El trabajo no
regulado (“flexibilizado”) posibilita la incorporación laboral al proceso productivo sin
compromisos para el Capital, descargando en el trabajador la responsabilidad de su
reproducción permanente.
La tendencia a la subcontratación y a la informalización del empleo se ha hecho
manifiesta en todos los sectores productivos, pero sobre todo en los más
directamente ligados a los éxitos del modelo: la minería, la pesca, la industria
forestal y la fruticultura. (Salazar; Pinto, 1999, p. 185).
7 Ante el fenómeno del desempleo o de la reducción del personal, los trabajadores
pierden su capacidad de respuesta y negociación de manera brutal. Dichos fenómenos
violentan la vida de los sujetos, quienes se ven obligados a aceptar cualquier trabajo, sin

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importar las condiciones, al dejar de funcionar los mecanismos de regulación laboral: es


la vivencia cotidiana, continua, de la amenaza del despido. Es la absoluta subordinación
del trabajador, ya que la pérdida de la capacidad de negociar colectivamente lo deja en
una absoluta indefensión, aceptando peores condiciones de trabajo para no quedar
desempleado. Es en ese momento cuando emerge silenciosamente la figura del
“subcontratista” en Chile.

El terrorismo de Estado: condición necesaria para la


transformación
De Chile a Irak, la tortura ha sido el socio silencioso de
la cruzada por la libertad del mercado global.
Klein (2007, p. 39).
8 Con la dictadura pinochetista, se inicia un período que ha sido llamado como
“contrarrevolución neoliberal” (Agacino, 2008), Chile se transforma rápidamente en
una suerte de “laboratorio mundial” del llamado neoliberalismo, varios años antes que
la Gran Bretaña de Margareth Thatcher o que los EEUU de Ronald Reagan.
9 Milton Friedman (1966), el San Juan Bautista del llamado neoliberalismo, proponía
reducir las funciones del Estado a proteger nuestras libertades de los enemigos del
exterior y del interior, defender la ley y el orden y garantizar los contratos privados.
10 La doctrina del Shock, tal como la nomina Klein (2007, p. 27), consiste según Friedman
que “sólo una crisis –real o percibida– da lugar a un cambio verdadero”, adjudicándole
al gurú de Chicago la función básica que debía desarrollar con sus seguidores; políticas
alternativas hasta que “lo políticamente imposible se vuelva políticamente inevitable”.
11 El llamado neoliberalismo había devenido en sentido común de la época. Junto a la
acelerada acumulación y concentración de la riqueza, monopoliza el poder político,
económico y comunicacional, controlando también la orientación y gestión del
conocimiento para reproducir la hegemonía. Holloway (1987, p. 50) refiriéndose a la
posición que adoptaron muchos intelectuales ante el triunfo del capital representado
en el neoliberalismo:
En apariencia, la nueva realidad no consiste en el conflicto permanente entre
capital y trabajo. Es una realidad que emerge y no confronta clases, sino “gente”.
Las clases no tienen lugar en este mundo: el cambio no se produce a través de la
incesante lucha de clases sino a través de la democracia y ganando el apoyo de la
opinión pública. […] La gente de esta nueva realidad es toda gente razonable y
gentil.
12 El terrorismo de Estado se constituyó en la condición indispensable para lograr el
disciplinamiento social e inducir el camino de las reformas estructurales. Desde inicios
de la década del ’70, por medio de la Dictadura Militar, la sociedad chilena –que parte
de una matriz comparativamente más clasista y polarizada que la argentina– ha sufrido
duros procesos de disciplinamiento para ser sometida al régimen del orden. Dicho
disciplinamiento se asienta sobre la derrota previa de la clase obrera y los sectores
populares. El Terrorismo de Estado que se instauró gracias a la colaboración activa de la
CIA, permitió imponer los planes económicos del gran capital y el imperialismo. Ya en
1974 la dictadura promulga el Estatuto del Inversionista Extranjero, iniciando la
transformación de la estructura de la propiedad a favor del capital foráneo. La
eliminación de las conquistas laborales, la proscripción de la CUT (Central Única de

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Trabajadores) y el aparato represivo actuando constantemente serán las bases del


disciplinamiento y la derrota. Los sucesivos gobiernos de la Concertación (Concertación
de Partidos por la Democracia) no sólo no cuestionaron las reformas establecidas por la
dictadura, sino que las mantuvieron y profundizaron, consolidando el orden económico
“neoliberal”, borrando, anulando o clausurando del horizonte de los trabajadores la
perspectiva de cambio alternativo y la idea de revolución (Hughes, 2012). Petras (1988,
p. 82) se refiere a los intelectuales que conformaron la Concertación, muchos de ellos
exiliados que habían estado en estrecha relación con las corrientes liberales y social-
demócratas vigentes, que, en relación a los estudios e investigaciones sobre la dictadura
encararon sus rasgos políticamente represivos y no sus vínculos económicos y
militares con las élites de Europa Occidental y Estados Unidos; la violencia de Estado
se analizó en términos de violaciones a los derechos humanos, no como expresión
de dominio de clase, de la lucha de clases, de la violencia de clase; la base política
que surgió de esos estudios planteó el tema como concepciones políticas
enfrentadas, como conflicto entre la democracia liberal y la dictadura militar, la
disociación deliberada de la estructura de clase del poder estatal fue justificada por
la idea de que la esfera política era “autónoma” de la sociedad civil.
13 En todo este proceso, iniciado en los años de dictadura, lo que más nos interesa trabajar
y destacar es lo que se refiere a los efectos que el mismo tuvo con respecto a los
trabajadores. La maximización de las utilidades primó por sobre cualquier
consideración de tipo social. Así, el sector laboral, que en los primeros años de la
imposición del nuevo régimen económico fue arbitrariamente reprimido, luego fue
disciplinado en los esquemas de la economía social de mercado, que a través del Código
de Trabajo, institucionaliza la atomización de los trabajadores, permitiendo de esta
manera la despiadada explotación de la mano de obra a través del régimen de
tercerización que se origina a partir de 1978, provocando un fuerte deterioro en las
condiciones de trabajo y en la calidad de vida de los obreros y de sus familias.
14 Con la llegada de la democracia, el nuevo gobierno de la Concertación, consolidó una
política de Estado que otorga al llamado mercado la función principal en la asignación
de los recursos productivos y al sector privado la propiedad de la mayoría de las
empresas y servicios públicos, a la vez que se acentúa el modelo exportador de recursos
naturales.
15 Recordemos que es en la década de los ‘90, cuando se presenta a Chile, dados sus logros
macroeconómicos y sociales,6 como el ejemplo a seguir por los países de la región,
imponiéndose la frase al hacer referencia al país de el milagro chileno.
16 Buscado como objetivo tanto por la gestión de Aylwin como por la de Frei, recién en
2003, durante la presidencia de Lagos, se firmó el Tratado de Libre Comercio entre Chile
y Estados Unidos, entrando en vigencia el 1º de enero de 2004. El TLC estableció algunas
obligaciones recíprocas para ambos Estados, entre otras, se adoptaron compromisos
recíprocos de reconocimiento, protección y difusión de derechos laborales
considerados indispensables para que el libre comercio beneficiara también a los
trabajadores y trabajadoras. Se acordó el compromiso recíproco de normar, fiscalizar y
difundir algunos derechos laborales de amplio reconocimiento internacional: derecho a
la asociación, derechos a organizarse y negociar colectivamente, prohibición de uso de
trabajo forzoso, prohibición y eliminación de las peores formas de trabajo infantil y
condiciones de trabajo aceptables relativos a salarios mínimos, horas de trabajo,
seguridad y salud ocupacional. Estas no fueron más que formalidades asentadas en un
papel, a las que la mayoría de los trabajadores nunca accedió (Hughes; Lischetti, 2012).

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17 La forma adquirida por el proceso de apertura de la economía chilena condujo a una


profunda modificación de su estructura productiva. Crece un sector exportador, basado
en recursos primarios o de bajo valor agregado, mientras paralelamente la producción
orientada al mercado interno es crecientemente reemplazada por productos
importados. Los tratados de libre comercio tienden a acentuar esta tendencia, al igual
que la disminución en el papel del Estado (Fazio; Parada, 2010, p. 97).

La subcontratación: precarización del trabajo en Chile


18 En Chile, la contratación de servicios con terceros y de mano de obra para actividades
menores a través de un intermediario, no es una práctica reciente. Ya desde fines del
siglo XIX, trabajadores del centro y del sur del país eran “enganchados” para
trasladarlos al norte, donde se incorporaban al trabajo en las salitreras. Los
intermediarios, conocidos como “enganchadores”, terminaban su actividad una vez que
los trabajadores ingresaban al mundo del salitre. Durante gran parte del siglo XX, la
intermediación fue una práctica marginal y reducida a unas pocas ramas de actividad.
Sin embargo, en la actualidad, lo extraordinario de este fenómeno es su extensión y
generalización a todas las ramas. La externalización de la producción y del trabajo en
forma sistemática se habría producido desde mediados de los años ‘70.
19 Estas formas de trabajo, que algunos autores agrupan bajo la denominación de
“atípicas” quedan por fuera de los marcos que caracterizaban al asalariado “clásico”:
estabilidad laboral, acceso a la seguridad social y jornada laboral continua. Según Castel
(1997), la sociedad salarial es aquella cuya forma de organización social se sustenta en
la adquisición de los derechos sociales a través del trabajo en su forma de relación
salarial. Esta implica el establecimiento de un contrato entre el empleador y el
individuo en tanto fuerza de trabajo, siendo el Estado el garante de lo pactado a través
de la negociación colectiva realizada entre el empleador y los trabajadores
sindicalizados. Los atributos que caracterizaban al estatuto del trabajador asalariado
ubicaban y clasificaban al individuo en la sociedad, en detrimento de los otros sostenes
de identidad. De modo tal que vemos que el trabajo capitalista se erige en principio
organizador de nuestras vidas. La sociedad salarial aseguraba derechos, daba acceso a
prestaciones fuera del trabajo y posibilitaba una participación ampliada en la vida
social: consumo, vivienda, educación, ocio (Castel, 1997). Las organizaciones sindicales
habían logrado obtener leyes que protegían a los trabajadores, asegurándoles el
derecho a la estabilidad en el empleo y niveles salariales relativamente altos al
compararlos con etapas anteriores. La precarización laboral sería una respuesta del
capital ante la crisis de acumulación del capitalismo en la década del ‘70.
20 La relación salarial implicaba un empleador y su contracara, el empleado: uno no existe
sin el otro. Esta relación se rompe al intervenir terceras y cuartas personas y dificulta
establecer cuáles son las partes de la relación.
21 Asimismo, la externalización debilita y divide a las organizaciones sindicales: por un
lado, las relaciones se atomizan y se dispersan; por otro, se hace cada vez más difusa y
confusa la figura del empleador. Los trabajadores se dividen en un “nosotros”, “los
internos”, “los de planta”, y los “otros”, “los de afuera”, “los subcontratados”. A esto, se
debe sumar que resulta sumamente difícil construir vínculos con y entre trabajadores
transitorios, y en muchos casos, la administración de la empresa coloca todos los
obstáculos posibles para impedir que se produzcan.

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22 Como ya mencionamos, la extensión, generalización y adquisición de la externalización


o tercerización,7 se ha ido produciendo a partir de las profundas transformaciones
impuestas durante el gobierno de la Dictadura Militar.
La “nueva organización industrial” se concretó desde muy temprano a través de
una centralización horizontal del capital y de la fragmentación productiva. La
centralización horizontal, como forma de control conglomerante de la propiedad,
reconfiguró al segmento dominante del empresariado dando paso a “grupos
económicos” con inversiones transversales, es decir, interesados cada vez más en la
“acumulación en general” y menos en un “valor de uso” o rama específicos. La
fragmentación productiva, por su parte, bajo la forma de externalización de
funciones o subcontratación, modificó la demografía empresarial generando una
estructura muy heterogénea que vinculó orgánicamente a firmas medianas y
pequeñas –e incluso micro-empresas y trabajadores a domicilio– con los grandes
conglomerados controladores de los procesos de acumulación. (Agacino, 2008).
23 La externalización adquiere diferentes modalidades. Puede ser geográfica, realizándose
las actividades fuera del espacio de la empresa contratante, o sólo jurídica, como
cuando las actividades se realizan dentro del recinto de la empresa contratante pero
está a cargo de otra entidad jurídica. Los trabajadores subcontratados pueden prestar
sus servicios dentro o fuera de las instalaciones de la empresa contratante (o usuaria).
24 Por lo general, tienden a externalizarse procesos que implican un alto contenido
manual, que requieren un gran esfuerzo físico, que conllevan una acción repetitiva, o
aquellas labores que exponen a los trabajadores a un mayor riesgo.
25 De acuerdo al objeto de subcontratación se puede distinguir entre dos ejemplos básicos;
a) cuando se transfiere a un tercero la producción de bienes o la prestación de servicios
o bien b) cuando se le encarga la provisión de trabajo, concretamente, trabajadores. A
esta última forma se la ha denominado “suministro de personal”.
26 En el caso a) la subcontratación refiere a las relaciones que se establecen entre una
empresa mandante o principal que encarga a otra la producción de partes, etapas o
partidas completas de bienes o la prestación de un servicio que puede ser parte central,
anexa o complementaria del proceso productivo. O sea, una empresa, dueña de una
obra o faena, contrata a otra empresa para que realice a su cuenta y riesgo, con sus
propios trabajadores, un determinado trabajo o servicio. Las relaciones que se
establecen son comerciales, entre empresas, donde una vende y la otra compra
servicios o etapas completas del proceso productivo. La relación laboral se establece
entre la empresa contratista y sus trabajadores, a quienes se los suele nominar
trabajadores de contratistas, subcontratados o contratistas. La compañía mandante no
forma parte de la relación. La figura del empleador es una: aquel con quien el
trabajador suscribe un contrato y de quien pasa a estar bajo subordinación y
dependencia.
27 Distintas son las relaciones que se establecen en el caso b); esto es, cuando se produce la
subcontratación de trabajo, de personas, o “suministro de personal”. Bajo esta
modalidad, se relaciona la empresa usuaria con una empresa suministradora, la que
presta el servicio de suministrar trabajadores. Si la empresa contratista no se limita
sólo a la colocación de trabajadores en puestos de trabajo desentendiéndose a partir de
ese momento de la relación laboral, como ocurría en el caso de los “enganchadores”,
sino que mantiene con ellos la relación, cuestiona la forma clásica entre trabajador y
empleador ya que intervienen tres partes, dando lugar a relaciones triangulares de
trabajo: por un lado los trabajadores suministrados; por otro el suministrador y

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finalmente el usuario que es quien define los contenidos del trabajo, dirige y supervisa
su ejecución. En esta relación triangular, la empresa contratista mantiene todas las
obligaciones laborales legales con el trabajador, pero es la empresa usuaria la que
conserva el poder de ordenar y organizar el modo, tiempo y lugar en que se realizará el
trabajo. El trabajador desempeña sus tareas en las instalaciones de la empresa usuaria,
quien además le proporciona los medios de trabajo.
28 El usuario en este caso no sólo compra trabajo sino que también produce el
desdibujamiento del trabajador como sujeto de relación laboral. El usuario o
contratante se sirve del trabajo concreto y el contratista se hace cargo de darle forma a
la relación. Los trabajadores pasan a estar bajo la dependencia del contratante, la
relación entre ambos es la de la actividad material e intelectual, producto del quehacer
(trabajo) concreto; es el contratante quien fija el contenido y la dirección del trabajo. El
contratista (suministrador de trabajadores) es quien fija y paga los salarios, las horas
extras, las cotizaciones previsionales, las indemnizaciones, el seguro contra riesgo de
accidente y/o enfermedades laborales. Por estos servicios, arregla un precio con el
contratante y su ganancia es la diferencia entre ese precio y el total de los costos de los
servicios señalados. El contratista queda a cargo de los aspectos formales de la relación.
La relación de subordinación y dependencia con la empresa usuaria se puede visualizar
en indicadores tales como las instrucciones y controles, la vigilancia del desempeño de
las funciones, el control de la asistencia. Estos trabajadores, ajenos a la empresa usuaria
o contratante, reciben salarios diferentes y tienen derechos diferentes a los de los
trabajadores de la empresa usuaria, aunque realicen las mismas tareas y trabajen unos
junto a los otros. Los convenios que rigen para los trabajadores de la empresa, no
tienen vigencia para los trabajadores temporarios (Cueva; Hughes, 2009).
29 De esta forma, las empresas reducen sus costos. Y sustituyen una relación laboral (y los
conflictos que ella implica) por una relación comercial con otra empresa que se hará
cargo de los problemas de la relación laboral. La empresa usuaria reduce los costos
laborales, ya que al abastecerse de personal a través de la intermediación de un tercero,
puede disponer y prescindir de él según sus necesidades. La tercerización precariza el
empleo, ya que lo hace altamente inestable, reduce el nivel de remuneraciones y de la
protección de la seguridad social y laboral. La subcontratación torna más frágiles las
relaciones laborales individuales y colectivas, tanto en la empresa principal como en la
subcontratista. Y produce una división entre los trabajadores “internos y externos”. Se
produce una dispersión del colectivo laboral (o conjunto de trabajadores) que trabajan
para la misma empresa usuaria. Cabe señalar que en la práctica, estas formas de
subcontratación no se presentan en formas puras sino en modalidades híbridas.
30 En la década del ‘80, la dictadura otorgó al sector privado un rol preponderante para
liderar el desarrollo nacional. Durante la etapa privatizadora y en lo que se ha dado en
llamar la “revolución empresaria” desarrollada en los ‘80 y ‘90, las empresas
trasnacionales tuvieron un rol decisivo en la promoción y generalización de las
modalidades antes descriptas. En 1984 sólo existían tres (3) empresas de servicios
temporarios; en 1986: 79; y a fines del años ‘90 habían aumentado a 150 empresas.
31 Estas modificaciones estructurales se profundizaron y consolidaron bajo los regímenes
constitucionales que se sucedieron a partir de 1989.
32 Ante las constantes denuncias de los abusos laborales y la presión ejercida por las
organizaciones sindicales, en el año 2002, el gobierno de la Concertación se vio forzado
a presentar un proyecto de ley en el Parlamento que buscaba regular las formas de

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empleo “atípicas”. En enero de 2007, entró en vigencia la Ley sobre Subcontratación y


Suministro de Personal, la que regula las “relaciones laborales triangulares”, relaciones
que responden a las estrategias del capital: algunas actividades son desplazadas hacia
fuera de la empresa y son realizadas por otra empresa (distinta y ajena) que asumirá la
ejecución de la tarea desplazada utilizando a sus propios trabajadores. A este fenómeno
se lo conoce como triangulación laboral, en el que participan: 1– la empresa que
externaliza, 2– la empresa que asume la actividad productiva externalizada y 3– los
trabajadores de la última empresa pero que de hecho prestan servicios para ambas
empresas.
33 Sin embargo, esta Ley no sólo elude la raíz del problema: la expansión del subcontrato
en las áreas propias del quehacer de la empresa, sino que ¡legaliza el suministro temporal
de trabajadores! O, lo que es lo mismo, legaliza la precarización laboral al crear empresas de
servicios transitorios y contratos de trabajo de servicios temporales.
34 Las denuncias y protestas de los trabajadores plantean que la Ley no supera problemas
que aún hay en la subcontratación. Por un lado destacan las discriminatorias
condiciones de trabajo y salariales que se distinguen entre los trabajadores
subcontratados y los trabajadores de la empresa principal o usuaria, pese a que realizan
el mismo trabajo. Es habitual que trabajadores propios y subcontratados compartan los
mismos lugares de trabajo, horarios, las mismas faenas y las mismas condiciones de
higiene y salud, pero los subcontratados perciben remuneraciones más bajas y no
acceden a los beneficios establecidos en los contratos colectivos ya que no pertenecen a
la empresa mandante en que se pautaron. Por otro, destacan la irrelevancia de negociar
colectivamente con la empresa contratista ya que las decisiones económicas
importantes las toma la empresa principal.
35 Las prácticas de subcontratación han ido acompañadas por nuevas formas de
organización del proceso de trabajo y de utilización de la fuerza de trabajo, siendo uno
de los fenómenos emergentes en el mundo laboral la aparición del “suministro de
trabajadores”. Como plantea Silva (2007, p. 8), el suministro de trabajadores
“representa la expresión más clara de la cosificación de la fuerza de trabajo, reducida
simplemente a un factor más de producción”.
36 La práctica de la subcontratación se da principalmente en las Grandes Empresas, lo que
hace de esta modalidad una estrategia productiva y laboral, pero que inunda
progresivamente a toda la sociedad chilena.

Transformaciones en la subcontratación
37 Una de las características que fue adquiriendo la subcontratación es que va creciendo
en las actividades principales de de las empresas. Pero, ¿cómo se define? Son aquellas
que tareas, procesos o funciones cuya realización es consustancial o contribuye de
forma decisiva a la producción de los bienes o la prestación de servicios que la empresa
realiza y sin cuya realización se vería afectado el normal desarrollo de sus actividades.
38 Sintetizando, la subcontratación se aplica en las empresas de todos los tamaños y en
todas las ramas de actividad. Pero es en la Gran Empresa donde se encuentra más
extendida y es una estrategia fundamental de su organización productiva; así como
también está mucho más generalizada en la construcción, la minería y el suministro de
electricidad, gas y agua.

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39 Es en el escenario de los primeros años del siglo actual, que emerge un nuevo actor: el
trabajador subcontratista. Sus luchas y reivindicaciones ponen en evidencia a la vez
que protagonizan los conflictos más importantes de la década que terminó.

Los trabajadores de segunda

40 Esta clasificación entre trabajadores no es una nimiedad. Las diferencias y


desigualdades en las condiciones de trabajo y salariales, son cotidianamente
vivenciadas. Recordemos que uno de los vacíos de la ley de subcontratación refiere a la
igualación de salarios entre trabajadores que desempeñan tareas similares o iguales. A
través de la tercerización laboral, se ha incrementado la desprotección del trabajador,
quebrándose la forma tradicional de trabajo, basada en un empleo de tiempo completo,
tareas ocupacionales bien definidas y la posibilidad de una carrera laboral a lo largo del
ciclo vital.
41 “Subcontratación, por tanto, es sinónimo de flexibilidad para las empresas, e
inestabilidad para los trabajadores” (Contreras; Torres Cierpes, 2009, p. 77).
42 La sindicalización de trabajadores temporales es sumamente difícil, dado que su
prioridad es mantener el trabajo, y saben que en las empresas no son bien vistos los
trabajadores afiliados a un sindicato.
43 Además de esas condiciones de vida tienen que moverse entre las relaciones entre
trabajadores que crea la política empresarial, que promueve la estratificación de la
mano de obra en las propias unidades productivas, generando diferencias artificiales
entre los trabajadores para que se produzcan conflictos entre ellos: ante las mismas
faenas, y realizando la misma labor, los contratados reciben salarios mucho más bajos
que los de planta y están sometidos a la inestabilidad laboral permanente. La empresa
también promueve la existencia de sindicatos paralelos, a cuyos agremiados los
beneficia con mejores condiciones.

La Importancia del cobre en Chile


Al presentar al Congreso Nacional esta reforma constitucional, estamos afirmando
que no estamos dispuestos a tolerar más esta situación y que de ahora en adelante
en nuestra propia Carta Fundamental, quedará establecida nuestra decisión de que
las riquezas chilenas sean de los chilenos y para los chilenos, que basados en ella
construirán una nueva vida y una nueva sociedad. Sabemos que todos los pueblos
libres del mundo nos acompañarán en esta tarea. (Salvador Allende). 8
44 La principal riqueza natural y recurso de exportación de Chile en el siglo XX y lo que va
del XXI es el cobre. Esta explotación tiene una fuerte impronta neocolonial, ya que
desde el inicio del siglo pasado los principales yacimientos cupríferos eran explotados –
en una suerte de sistema de enclave– por capitales norteamericanos. La relación
histórica entre el Estado chileno y los capitales extranjeros ha estado determinada por
el usufructo asimétrico de su riqueza mineral. Esta relación de expoliación tuvo
empero, su etapa reivindicativa a mediados del siglo XX, cuando comienzan a
cristalizar en la opinión pública las ideas de soberanía de su principal riqueza mineral.
En 1964, con la presidencia de Eduardo Frei Montalva se lleva adelante una política
reformista, cuya línea económica incluye una política cuprífera conocida como
“chilenización del cobre”.9 Se pone en marcha la “nacionalización pactada”: la

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adquisición del 51% de las acciones de los yacimientos, primer paso a la nacionalización
integral de la extracción de cobre. Al finalizar el gobierno de Frei Montalva, dos
candidatos que compiten por la presidencia impulsan en sus respectivas campañas la
estatización de la producción: Radomiro Tomic y Salvador Allende. El triunfo de la
Unidad Popular hizo posible que el 11 de julio de 1971 se aprobase en el Congreso
Nacional, y por voto unánime, la enmienda constitucional que nacionalizaba totalmente
el cobre (Ley Nº 17.450) que se convertía así –en palabras del propio Allende– en “el
sueldo de Chile”,10 una suerte de “segunda independencia”. En ese pequeño territorio se
encuentran Chuquicamata, el yacimiento más grande del mundo a tajo abierto, y El
Teniente, que con sus 2400 kilómetros de galerías es la mina subterránea más grande
del mundo. Las exportaciones mineras representan un 61% de las exportaciones totales
chilenas,11 y dentro de este sector de la economía, el 86,6% corresponde al cobre
(Servicio Nacional de Geología y Minería, 2012) generando cuantiosos recursos para el
país, que también resultaron fundamentales para el funcionamiento de la economía
durante la dictadura militar pese a que, como señala Borón (2000, p. 149-183), en los
documentos del Banco Mundial, en los que se elevaba el caso chileno a la categoría de
“modelo” a imitar, se pasaba por alto este dato.12
45 En 1976, la dictadura crea un subterfugio13 –mediante una simple ley– para entregar en
dominio privado las minas de cobre de todo el país a capitales privados extranjeros: la
figura de “concesión plena”. A pesar que la Constitución estipulaba que el Estado tiene
el “dominio absoluto, exclusivo, inalienable e imprescriptible de todas las minas”, la
“Concesión Plena” garantiza a estos capitales un usufructo en mejores condiciones aún
que la propiedad privada. La concesión plena privilegia, garantiza y mejora los
derechos al titular del dominio privado,
sin plazo de término, irrevocable, inmodificable, y en caso de expropiación, con
pago del valor comercial del yacimiento, no sólo de las inversiones, sino también el
pago de los flujos futuros. O sea, Chile tendría que pagar los yacimientos de cobre,
incluyendo los subproductos, hasta el momento en que se agoten. (Caputo, 2008a).
46 Esta operación se realiza mediante la empresa estatal Corporación Nacional del Cobre
de Chile (CODELCO), quien se reserva un 30% del total de las explotaciones para
propiedad del Estado y un 70% pasa a virtual propiedad de compañías extranjeras. 14
Más tarde, la dictadura garantiza el presupuesto de las Fuerzas Armadas de Chile
mediante la normativa que establece que el 10% de las ventas de CODELCO al exterior
deben ser depositadas en dólares en el Banco Central de Chile, con el objeto de financiar
sus compras militares.15
47 Las grandes inversiones extranjeras se produjeron durante los gobiernos de la
Concertación siendo el sector minero el que concentra la mayoría de ellas,
concretándose de esta forma el proceso de “desnacionalización del cobre”, perdiendo
Chile autonomía y soberanía incluso para decidir qué cantidad de cobre producir. Y se
ha apoyado y fortalecido desde el gobierno a las grandes empresas mineras mundiales
que compiten con CODELCO en el mercado mundial. La participación de la cuprífera
estatal en el mercado mundial de cobre aumentó de 8,2% en 1973 a 13,4% en 1990,
disminuyendo a partir de ese año. La participación de las empresas privadas, aumentó
del 1,6% en 1973 a 24, 2% en 2006: es decir, CODELCO pierde participación en el mercado
mundial del cobre y la gana las empresas privadas, particularmente extranjeras. 16 En el
año 2010, CODELCO produce excedentes de 5.799 millones de dólares, casi un 47% más
respecto de los 3.948 millones obtenidos en el 2009. Los excedentes corresponden a los
resultados antes de impuestos a la renta y de la Ley 13.196, que grava con el 10% al

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retorno por la venta en el exterior de cobre y subproductos propios. Este monto sólo es
superado por los registrados en 2006 y 2007. Los resultados del 2010, estuvieron
influidos, principalmente por la fuerte alza del precio internacional del cobre y del
molibdeno (Corporación Nacional del Cobre, 2010).
48 En 2011, Chile seguía siendo el primer productor mundial de cobre.
49 La “desnacionalización del cobre” ha sido un proceso que se dio en forma paralela al
fraccionamiento de los procesos de trabajo en empresas contratistas y subcontratistas.
17

La precariedad laboral en el sector minero


50 La medición de la subcontratación en la actualidad es difícil de estimar, por la
complejidad del fenómeno. La excepción está dada por la minería, ya que por
disposición del Servicio Nacional de Geología y Minería, lleva un registro completo de la
cantidad de empresas como de trabajadores ocupados de empresas contratistas y
mandantes.
51 La serie de Encuestas Laborales de la Dirección del Trabajo muestra cómo ha crecido la
subcontratación laboral en el sector minero: en 1999 el 37% de las empresas del sector
subcontrataban, en 2002 y 2004 el porcentaje de empresas ascendía a más del 63%.
52 En 2011, había 707 empresas mandantes, y 3235 contratistas: el 82% de las empresas del
sector eran contratistas.
53 La minería, particularmente las estatales CODELCO y ENAP, son de las primeras
promotoras de la subcontratación; y en la actualidad, este sector muestra los mayores
niveles tanto respecto a la cantidad de empresas que utilizan esta modalidad de empleo
como de empresas contratistas que operan para ellas. En 1997, se contaban 403
empresas mandantes y 919 contratistas en el sector minero. Una década después, las
empresas mandantes existentes eran 471 mientras que las contratistas habían
aumentado a 3628.
54 Las labores que realizan los trabajadores tercerizados incluyen desde actividades
secundarias o anexas de casinos, seguridad, transporte, hasta operaciones estratégicas,
como las faenas de extracción y procesamiento de la roca. Si consideramos el número
de trabajadores, observamos que mientras el número de trabajadores subcontratados
crece sostenida y rápidamente, los trabajadores de empresas mandantes disminuyen
lentamente.
55 En 1982, la relación era de 187 trabajadores de planta por cada tercerizado, en 2006 había
casi 2 tercerizados por cada trabajador de planta.

Subcontratación en la Corporación Nacional del Cobre


56 Un fenómeno digno de destacar en el mundo de la subcontratación es el papel jugado
por CODELCO. Desde principios de los años ‘80, la subcontratación ha mostrado un
sostenido crecimiento. La subcontratación, a partir de los gobiernos de la Concertación,
mantuvo una tendencia alcista, inversamente proporcional a la dotación de
trabajadores propios, la que muestra una importante reducción.

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57 Durante la década pasada, el aumento significativo de la dotación de trabajadores


subcontratados encontraría una de sus causas en la decisión de aumentar en
aproximadamente un 30% la producción de El Teniente, lo que llevó a incrementar
especialmente la cantidad de “contratistas de operación”, que son aquellos que realizan
actividades propias del núcleo principal de la empresa: la extracción y procesamiento
del cobre.

Los trabajadores subcontratistas


58 La historia de los trabajadores de El Teniente, como así también la tradición sindical
que construyeron, ha cambiado conjuntamente con los cambios que ha sufrido Chile. El
sindicalismo actual, presenta grandes diferencias con el de hace 50 años.
59 CODELCO no fue ajena a la subcontratación que a partir de los años ochenta, se
implementaba en Chile, cuando se crea el Plan Laboral:
El año ‘80, cuando se crea el Plan Laboral, junto a eso se eliminan varias leyes; dos
leyes que te regulaban el acceso de los contratistas al área productiva. Ahí se abre el
giro o sea las empresas pueden hacer cualquier trabajo. (Ex dirigente sindical
subcontratista).18
60 Como explicamos anteriormente, lo relevante de este proceso es que las empresas
podían externalizar labores que le eran o son propias a la empresa. Decimos relevante
ya que es esta situación, “trabajadores de 2ª” la que nos permite comprender las luchas y
movilizaciones de los trabajadores subcontratistas en la última década, ya que una de
sus demandas principales era la búsqueda de reconocimiento como trabajadores de la
empresa para la cual trabajaban: CODELCO.
En el año ‘87 se hace la huelga. Esa es una huelga que yo creo que marcó. Tomaron
detenidos a los dirigentes, se amplia mucho más la lista negra y fue la primera
manifestación pública en la ciudad de Rancagua. Estamos hablando de 400
trabajadores. Fue la primera vez que se vieron tanquetas en Rancagua, en la
carretera del cobre nos disolvieron […] los viejos nos bajamos en Nogales y de ahí
marchamos hasta Rancagua. Eso fue lo más fuerte que se hizo en ese período, que
fue una huelga ilegal contra el consorcio. (Ex dirigente sindical subcontratista). 19
61 En 2003, se produce una huelga que denuncia las condiciones de trabajo en el sector
cuprífero: son despedidos 200 trabajadores. En diciembre de 2003, los trabajadores
agrupados en SITECO, hacen visible la magnitud del proceso que estaban gestando, al
entregar un pliego de peticiones a la Empresa CODELCO, acompañado de un paro de
“brazos caídos”.
62 La feroz represión tuvo una consecuencia no deseada por parte del Capital: los
trabajadores tomaron conciencia sobre la necesidad de una organización nacional. Así,
en 2004 se crea en Caldera, la Coordinadora Nacional de Trabajadores Contratistas.
63 El 4 de enero de 2006, los trabajadores subcontratistas de Andina, El Teniente, Norte y
Ventana, ante la negativa de la empresa a pagar un bono por el alto precio que había
tenido el cobre, inician una huelga de carácter indefinido.
64 Dada la magnitud de trabajadores subcontratistas, la presión a la empresa se hace
sentir ya que comenzó a tener mermas en la producción y los ingresos.
65 El gobierno del entonces presidente Lagos, convoca a una mesa de negociación, donde
están representados CODELCO, las empresas contratistas y los trabajadores
tercerizados.

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66 El logro de esta movilización fue la promulgación de la ley que regula los aspectos de la
subcontratación, la que se pone en marcha en enero de 2007.
67 En mayo del 2007, la Coordinadora anuncia posibles medidas de fuerza ya que la Ley de
Subcontratación no se estaba cumpliendo. Uno de los hechos más significativos y de
mayor trascendencia, ocurrió en el mes de junio, cuando la Coordinadora Nacional de
Trabajadores Subcontratistas, reunida en Machalí, se convierte el 8 de junio en la
Confederación de Trabajadores del Cobre (CTC). Una vez constituida, los trabajadores
deciden iniciar una huelga ante el incumplimiento de los acuerdos alcanzados, acción
de lucha que será nominada y recordada con posterioridad como “la huelga histórica”
de 37 días. Entre el 25 de junio y el 31 de julio, la paralización de las tareas fue
generalizada. Las demandas incluían beneficios en salud, educación, vivienda y
compensaciones económicas, además del cumplimiento de la ley.
68 La mediación del obispo de Rancagua, Alejandro Goic, no sólo fue importante para
lograr un acuerdo, sino que puso en 1er. plano a nivel nacional, el debate sobre el
sueldo ético.
69 En esta ola de protestas, se sucederá el conflicto, cuyo origen se encuentra en la
negativa de CODELCO a internalizar como trabajadores de planta a 5000 trabajadores
subcontratistas. Desde enero del 2008, se producen una serie de huelgas aisladas
convocadas por la CTC, hasta que a partir del 16 de abril y hasta el 6 de mayo, se
iniciaron una serie de protestas nacionales, provocando el otro gran conflicto que
protagonizó el sector cuprífero en la década. El mismo llega a su fin cuando los
trabajadores aceptan un bono de 500.000 pesos y un plazo de 6 meses para que
CODELCO cumpliera con la Ley. Esta vez, la mediación estuvo a cargo del entonces
Ministro del Interior, E. Perez Yoma; del Ministro de Trabajo, Osvaldo Andrade y del
Presidente de la Central Unitaria de Trabajadores, Arturo Martínez.
70 La historia de los trabajadores subcontratistas de El Teniente, puso de manifiesto a
nivel nacional, la precariedad e inseguridad a la que están sometidos los trabajadores
tercerizados en general, siendo los mineros unos de los protagonistas más importantes
de las luchas sociales de la última década y haciendo visible la profundización y
agudización de la desigualdad estructural que implicó la restructuración capitalista en
Chile, a partir de la Dictadura Pinochetista.
71 No es casual que sea en la Gran Minería dónde encontramos a los protagonistas de las
luchas sindicales en Chile. Estas prácticas constituyen, forman parte, y/o son herederas
de una importante tradición construida por los trabajadores del cobre, al mismo tiempo
que se renuevan en sus prácticas de organización y acción. Los trabajadores
tercerizados se organizan y actúan a nivel interempresa, adquiriendo rápidamente
formas organizativas a nivel nacional. Sus reclamos, superan la simple reivindicación
salarial dando paso a la demanda se ser respetados como trabajadores, la que incluye
estabilidad en el trabajo, igualdad de salarios ante el mismo trabajo e igualdad de trato:
dejar de ser “trabajadores de segunda”. Sus demandas y reclamos se realizan en espacios
públicos, siendo característico el interrumpir, el lograr detener la producción a través
de bloqueos de caminos: modalidad para lograr hacer visible la explotación y
discriminación a la que son sometidos.
72 La organización sindical minera refleja desde hace décadas la importancia que tiene la
explotación del cobre para el Chile, “el sueldo de Chile”. Es por ello que las prácticas y
organización sindical de los trabajadores cupríferos, son parte de una larga historia que

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muchos tratan de olvidar u ocultar, para así naturalizar las deshumanizadas


condiciones de trabajo y la explotación a la que aún hoy, son sometidos los trabajadores
mineros. Una de las últimas lamentables muestras de esta situación, falta de seguridad
y de fiscalización, se evidenció en el “accidente” que mantuvo a 33 mineros durante 70
días atrapados bajo tierra en la mina San José de Copiapó, en la región de Atacama. Pese
a ese llamado de atención, que dio la vuelta al mundo, y que del éxito del rescate se
quiso apropiar el gobierno para mostrar el cuidado que tiene por la vida de los
trabajadores, a los pocos días, una explosión en el yacimiento Los Reyes, cercano a
Copiapó, causó la muerte de dos trabajadores. Javier Castillo, presidente del sindicato
San Esteban, declaró:
Pensamos que habría un antes y un después del accidente de los 33, pero esto está
igual, no existe fiscalización y hay empresarios que operan fuera de la ley, matan a
trabajadores y toman un avión como si nada.
73 Las huelgas que han protagonizado en los últimos años los trabajadores subcontratados
de la gran minería revelan que la Ley de Subcontratación no ha cumplido el objetivo de
disminuir el conflicto entre trabajadores subcontratados, empresas subcontratistas y
grandes empresas mineras.
74 Destacamos nuevamente que, a pesar de las dificultades de sindicalización que la
reestructuración capitalista instituyó en Chile, desde finales de los años ochenta y
primera mitad de los años noventa, diversas franjas de trabajadores, comenzaron a
organizarse, aunque sea en forma embrionaria, para resistir a las nuevas embestidas del
Capital.
75 La emergencia de un polo de resistencia en la minería se da desde un núcleo de lucha
inesperado por el Capital: los sindicatos de obreros tercerizados, periféricos respecto a
los agrupamientos históricos de la clase obrera chilena (Cueva; Hughes, 2009).
76 Pese a todos los intentos por desplazar el conflicto capital-trabajo al conflicto trabajo-
trabajo (nos referimos al supuesto conflicto entre trabajadores de adentro y
trabajadores de afuera), la contradicción principal, por más que se la quiere disfrazar,
continua siendo capital-trabajo.

A modo de cierre
77 La clase trabajadora chilena tiene claro, y ese es el mayor legado histórico de la misma,
que los avances económicos y sociales de los sectores populares han sido conquistados
y defendidos por los propios trabajadores, en este sentido, podemos hablar de una clase
autónoma. Coincidimos con Salazar y Pinto (1999) cuando dicen que los sectores
populares en Chile han organizado un proyecto histórico de largo plazo, contra
hegemónico del proyecto oligárquico y en los márgenes del poder, en ese proyecto el
pueblo habría buscado oponerse activa y prácticamente, a las tendencias marginadoras
de la élite. Salazar y Pinto se atreven a ir más lejos cuando sugieren que en las “etapas
formativas” del bajo pueblo se evidenciaría la existencia de un proyecto histórico de
acumulación productivista, marginal, llevado a cabo por “empresarios populares” y
legitimado éticamente por su carácter solidario y humanitario.
78 En estos momentos la clase trabajadora chilena tiene que enfrentarse con las distintas
estrategias de la hegemonía para reproducirse con el menor costo posible, con la
renovación engañosa de la misma y con su propio estado de desarrollo, que la ubica

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utilizando métodos que fueron pensados para otros momentos históricos. Pensamos
que en este marco debemos entender a los acontecimientos que se producen en el
campo de la conflictividad laboral, como rebeliones antes que como trabajo sistemático
de una clase que procede acumulando poder.20 Pero, también pensamos que se están
abriendo nuevos espacios de ejercicio político dentro de la izquierda chilena, espacios
de necesario debate, a partir de los cuales, seguramente se van a empezar a dar las
condiciones que permitan la constitución de sujetos emancipados.

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NOTAS
1. Expresión porcentual de la relación entre las ganancias y los capitales invertidos.
2. Según informe de abril de 2011 de la OCDE, del que Chile es miembro, el 18,9% de la población
es pobre; y el coeficiente de Gini es de 0,50. Hace por lo menos 25 años se mantiene este nivel de
desigualdad, lo que lo transforma en un problema estructural y no en parte de un ciclo.
3. Nos referimos al Plan Laboral de 1979 y al Código del Trabajo. La subcontratación fue aún más
estimulada con la derogación de la Ley Nº 16.757 de 1979, ampliando las funciones de los
subcontratistas a todas las áreas de las empresas, incluyendo las labores inherentes a la
producción principal y permanente de la empresa como también a las labores de reparación o
manutención habituales.
4. En 1982, la tasa de desempleo habría llegado al 30%. (Cortés Morales, 2009). Chile según
estudios de la CEPAL, fue el país de América Latina más afectado en la crisis de inicios de los años

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80. El PIB cayó en 14%, la producción industrial en 23% y la desocupación, según CIEPLAN,
alcanzó el 30%. Esta crisis ha sido caracterizada como ‘el colapso económico y financiero de 1982
y 1983’ por académicos chilenos (Caputo, 2008b).
5. Recordemos que fueron eliminadas las negociaciones colectivas, suspendido el derecho a la
huelga, prohibida la actividad sindical y abandonado el sistema de negociación salarial vigente
hasta ese momento.
6. En 1990, el 38,6% de la población, eran pobres no indigentes e indigentes (25,7% y 12,9%
respectivamente). En 1998, esas cifras habían descendido a 21,7% (16,1% y 5,6%). Fuente:
Ministerio de Planificación y Cooperación (1999, p. 7). Sin embargo, la distribución del ingreso no
había variado sustancialmente.
7. Tercerización alude al proceso por el cual una determinada actividad deja de ser desarrollada
por los trabajadores de una empresa y es transferida a otra empresa, a una “tercera”. La actividad
que antes se desarrollaba internamente, dentro de la empresa, pasa a realizarse en el exterior de
la misma, se “externaliza”.
8. Mensaje al Congreso Nacional al presentar el Proyecto de Reforma Constitucional para la
nacionalización del Cobre.
9. En 1967 se dictó la Ley Nº 16.425, que autorizó la creación de sociedades mixtas entre el Estado
de Chile y las compañías extranjeras productoras de cobre.
10. El caso excepcional de la riqueza cuprífera chilena reside en que, si bien Chile tiene sólo el
0,5% del territorio mundial, allí se localiza el 40% de las reservas mundiales de cobre. Salvador
Allende llamó al cobre “el Sueldo de Chile”, ya que planteaba financiar con él gran parte del gasto
social, por lo que denominó al día 11 de julio de 1971 como ‘Día de la Dignidad y de la Solidaridad
Nacional’.
11. El economista Orlando Caputo establece una comparación reveladora de la importancia
estratégica de este mineral para Chile: en términos mundiales Chile es al cobre lo que la OPEP al
petróleo. Sólo que la OPEP está conformada por 11 países (Caputo; Galarce, 2007b).
12. Según Naomi Klein (2007), Chile evitó el colapso económico en los años ’80 gracias a que la
dictadura no privatizó CODELCO, empresa que le continuó generando el 85% de los ingresos por
exportaciones.
13. Radomiro Tomic dijo que la concesión plena fue tramitada y aprobada en secreto (Caputo,
2008a).
14. La Dictadura hace desconocer así a la propia Constitución de Chile. Los sucesivos gobiernos
democráticos, desde 1990 hasta el presente, han continuado con esa inconstitucionalidad.
15. Analistas calculan que, entre 1990 y 2007, CODELCO ha entregado a las FFAA más de 7.500
millones de dólares, lo cual estaría representando casi el 70% de todas las inversiones que esa
compañía estatal ha realizado durante ese periodo.
16. Para dimensionar la importancia de la minería cuprífera y las elevadas ganancias que
obtienen las empresas extranjeras, mencionemos que por ejemplo, en el año 2005, las 10 grandes
empresas mineras privadas obtuvieron ganancias equivalentes a la suma del presupuesto de dos
ministerios: el de Salud y el de Educación (Caputo; Galarce, 2006, 2007c).
17. Muchos políticos participan en la propiedad de estas empresas (Caputo; Galarce, 2007a).
18. Citado en Torres Cierpe et al. (2010, p. 120).
19. Citado en Torres Cierpe et al. (2010, p. 121).
20. Esto es parte del debate actual: Entrevista con Manuel Acuña Asenjo. Registro de campo,
Santiago, noviembre, 2010.

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RESÚMENES
El artículo presenta una investigación de campo acerca de la protesta laboral de los trabajadores
del cobre, sector de la producción fundamental para la economía chilena. Una de las formas que
la gestión neoliberal ha aplicado al trabajo es la subcontratación o “tercerización”. A pesar de
toda una batería de obstáculos objetivos y subjetivos para organizarse, una parte de los
trabajadores se han sindicalizado por fuera y paralelamente a las estructuras sindicales
tradicionales. No sólo lo han hecho, sino que hicieron visible la conflictividad inherente al
modelo neoliberal que Chile ha presentado como la experiencia “más exitosa”.

This article presents a field research about the work protest of the copper industry workers,
which is a fundamental productive sector in the Chilean economy. One of the forms the
neoliberal management has applied to the work structure is subcontracting or outsourcing. In
spite of a great number of objectives and subjectives obstacles, part of the workers subcontracted
has unionized in a parallel way, outside the traditional union structures. Not only they did so, but
became in one of the protagonists of the social protest in Chile, making visible the social unrest
inherent in the neoliberal model, from which the Chilean Case has been presented as its “most
successful” experience.

ÍNDICE
Keywords: mining, subcontracting, work, work protest
Palabras claves: minería cobre, protesta laboral, subcontratación, trabajo

AUTOR
MARÍA FERNANDA HUGHES
Universidad de Buenos Aires – Argentina

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Trabalho e ação coletiva


memória, espaço e identidades sociais na Cidade do Aço

Marco Aurélio Santana e Massimiliano Mollona

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

Introdução
1 O presente trabalho analisa as formas pelas quais militantes dos movimentos sindical e
popular constroem suas memórias acerca das mobilizações experimentadas no
município de Volta Redonda nas décadas de 1980 e 1990, verificando as representações
de cidade que perpassam esse trabalho de memória. Situada na região sul fluminense,
esta cidade siderúrgica, conhecida internacionalmente, tem um longo histórico de
organização e mobilização operária, que se desdobra em termos de seus movimentos
populares. Interessa-nos pensar, a partir deste caso, o imbricamento entre memória,
espaço e identidades sociais.
2 Orientado por questões emanadas da antropologia do trabalho, o material empírico é
resultado de observações em campo e do uso da história oral, desenvolvida através de
entrevistas com militantes e outros atores sociais participantes daqueles movimentos. 1
Dados os limites do artigo, optamos por selecionar extratos de maior significância de
depoimentos, que não poderão aqui ser trabalhados em toda sua amplitude e riqueza.
Além disso, nos centramos nos dois períodos – décadas de 1980 e 1990 – que, durante os
depoimentos, apareciam frequentemente em forte contraste no que diz respeito, entre
outros pontos, às representações da cidade. Deve-se dizer que, sempre que possível, e
buscando uma visão mas dinâmica, apresentamos elementos mais recentes, matizando
algumas posições. A ideia é analisarmos como as representações de cidade são
construídas, disputadas e reelaboradas por grupos sociais, através da memória.

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3 Uma linhagem já bem estabelecida da antropologia do trabalho (Kasmir; Carbonella,


2012; Mollona; De Neve; Parry, 2009) é aquela que, partindo das abordagens clássicas da
organização do trabalho no interior das empresas (Braverman, 1974; Burawoy, 1985),
enfatiza como as relações de classe estão inscritas no espaço (Herod, 2011), na
comunidade (Yaganisako, 2002), na etnia (Lee, 1998), no gênero (Milkman, 1987), bem
como na relação rural/urbano (Lee, 2007). Acompanhando de perto tal tradição, nos
interessa perceber como a experiência política, em uma localidade operária, é vivida de
formas diferentes nas memórias de gerações de trabalhadores, e em relação a uma
sempre cambiante geografia do trabalho e da cidade. É preciso assinalar, contudo, que
seguindo a perspectiva dos estudos comparativos acerca do ativismo de classe nos
hemisférios norte e sul (Carrier; Kalb, 2012; Harvey, 2012), poderíamos nos indagar
também como essas memórias são parte integrante do que se pode chamar de uma
memória global, vinculada a uma herança de classe, sendo ao mesmo tempo um ponto
de partida para possíveis e renovados ativismos da classe trabalhadora, principalmente
aquele voltado ao espaço urbano.
4 Halbwachs (1990) apontou de forma decisiva a relação constitutiva entre memória e
espaço. O autor assinala as formas pelas quais um determinado espaço é representado
pelas vias da memória, e ao mesmo tempo as maneiras pelas quais a memória está
vinculada, lastreada e delimitada por um determinado espaço. De seu ponto de vista,
“há tantas maneiras de representar o espaço quantos sejam os grupos”, assim como
“cada sociedade recorta o espaço a seu modo […] de modo a constituir um quadro fixo
onde encerra e localiza suas lembranças” (Halbwachs, 1990, p. 159 e seg.).
5 Calvino (2003, p. 11), ainda que na forma literária, segue na mesma linha marcando não
só as articulações entre memória e espaço, no caso, a cidade, mas também das
operações de redundância, fixação e atribuição de sentido, ao afirmar que “a cidade é
redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente. […] A memória é
redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir.”
6 Nos mesmos termos daqueles de Halbwachs (1990), Pollak (1989, 1992) indicou a
vinculação entre memória e identidade. Assim, memória e identidade estão vinculadas
e associadas em sua construção, como apontado por Rousso (1996), no sentido em que a
memória pode costurar rupturas temporais e espaciais, servindo também como
resistência à alteridade. Nos dizeres de Pomian (2000), ela seria uma forma particular
de vinculação entre passado e presente. Mas ela também aponta futuros. Ela, como
assinalado por Lovisolo (1989, p. 16), funcionaria ao mesmo tempo como âncora e
plataforma; para o autor,
enquanto âncora, possibilita que, diante do turbilhão da modernidade, não nos
desmanchemos no ar. Enquanto plataforma, permite que nos lancemos para o
futuro com os pés solidamente plantados no passado criado, recriado ou inventado
como tradição. Esta, por sua vez, toma o sentido de resistência e transformação.
7 O processo de construção da memória e da identidade se faz sempre de maneira
conflituosa e disputada, cheio de “lembranças”, mas também de “esquecimentos” e
“silêncios” (Pollak, 1989). Assim sendo, não se trata aqui de sinalizar com um processo
de construção que se faça de forma lisa, sem conflitos e disputas. Ele tem presença
constitutiva na relação entre a construção da ordem social e de seus conflitos.
8 Deve-se dizer que isso tem seus rebatimentos na construção espacial. Como bem lembra
Bourdieu (1989), o espaço tem muito mais que aspectos físicos e materiais. Ele é, e deve
ser assim também pensado, social e simbólico, motor e fruto de representações. É um

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espaço que se torna lugar antropológico ao incorporar práticas, afetos, sentimentos


(Augé, 2001). Um “espaço vivido” (Bachelet, 1998). Sendo também um locus de
engendramento e conformação de práticas, como sugerido por Foucault (1979), de
poder e contrapoder.
9 Pensando a partir da démarche marxista de Henri Lefebvre (1968), para quem as
relações de classe são sempre reproduzidas como relações espaciais, David Harvey
(2012) dá ênfase a como a acumulação capitalista e a luta de classes estão imbricadas,
historicamente, no espaço da cidade. Por seu turno, bebendo da mesma fonte, Herod
(2011) enfatiza como o conflito capital/trabalho se amplificariam em cidades
siderúrgicas devido, exatamente, à sua estrutura espacial, que lhes particularizaria.
10 As alterações em qualquer das partes que articulam memória, espaço e identidade
acabam por repercutir nas demais. É exatamente o que podemos perceber ao longo da
análise. Na década de 1980, no bojo do processo de redemocratização, as articulações
entre o sindicalismo e os movimentos sociais empreendidas na cidade marcam um
período de grande mobilização e associação desses movimentos levados a cabo por
trabalhadores, dentro e fora das fábricas, com o apoio da Igreja católica. Tudo isso lhes
dava uma grande visibilidade. O ponto culminante das mobilizações na cidade teve
lugar na greve dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), de 1988.
Durante o movimento o exército ocupa a cidade e a usina, o que gerou vários
confrontos que resultaram na morte de três operários. Contudo, também
acompanhando a conjuntura política mais geral da chamada “década neoliberal”, nos
anos 1990, houve uma forte retração das mobilizações experimentadas anteriormente.
Isso impôs aos movimentos uma sentida ausência do cenário político e social da cidade.
11 Dessa forma, na memória dos agentes, os anos 1980 são anos caracterizados como de
“força”, “vitoriosos” e “gloriosos”, criando uma representação do espaço em uma chave
positiva e ascendente. No que concerne aos anos 1990, estes são marcados pelas
lembranças, com forte carga de emoção, como de “fragilidade”, “derrotas” e
“dispersão”, assumindo o espaço um registro negativo e descendente. Isso leva a uma
visão com marcas diferentes sobre a própria cidade. Antes vista como “combativa” e
“engajada”, de “vida”, ela passa a ser vista como “alienada” e “desmobilizada”, de
“morte”. Mas, obviamente, observando-se os desenvolvimentos posteriores, vamos
perceber a reapropriação de certas representações no sentido de manter a disputa pela
memória, pelo espaço e pela identidade dos movimentos em tela.

Do ouro ao aço
12 Localizada na região do Médio Vale do Paraíba, a cidade de Volta Redonda ganhou seu
nome dos garimpeiros que, no século XVIII, foram atraídos pela busca de ouro e pedras
preciosas. Foram eles quem, primeiro, denominaram a curva do rio Paraíba do Sul de
“Volta Redonda”. No início do século XIX, foram ali instaladas grandes fazendas de café,
tendo escravos como mão de obra. Tanto o desenvolvimento econômico quanto o
aumento populacional da região serão determinados por essa estrutura inicial. A
navegação pelo rio Paraíba do Sul e a chegada da linha férrea da Central do Brasil, no
ano de 1871, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, impulsionaram esse desenvolvimento,
propiciando a criação de núcleos urbanos. Surge daí o povoado de Santo Antônio de
Volta Redonda, o qual, em 1926, ganharia o título de distrito de Barra Mansa. A
emancipação só viria em 1954.

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13 A decadência do Vale do Paraíba tornou-se visível com a crise do café e a abolição,


desestruturando a agricultura e estagnando a região. Assim, no início dos anos 1940, o
espaço urbano local em pouco diferia daquele surgido no século XIX. Nesse período se
instalará ali a CSN. Volta Redonda seria, daí por diante, a “Cidade do Aço”.
14 Tornando-se mais intenso na década de 1930, com o aumento da expansão industrial e
as modificações no Estado brasileiro, o debate sobre a criação no Brasil de uma usina
siderúrgica já vinha desde os anos 1920. O Estado Novo procurava reforçar a ação
econômica estatal, pautada pela criação de uma infraestrutura para a industrialização –
associada então ao “progresso”. Para isso, era indispensável uma siderurgia, área
estratégica tanto no setor industrial quanto no militar (Morel, 2001).
15 Contudo, a CSN representava mais do que um grande impulso para a industrialização do
país. Em primeiro lugar, ela foi pensada como um modelo, uma empresa exemplar.
Representava, além disso, uma nova concepção da relação entre o Estado e a classe
trabalhadora e de organização do trabalho (Morel, 2001). Esses ideais foram
incorporados no processo de criação e elaboração da CSN, que, portanto, refletiu os
caminhos tomados pelo Estado brasileiro depois de 1937.
16 Tendo início em 1941, a construção da usina mudaria a vida do antigo povoado de Volta
Redonda de forma definitiva. A chegada de uma enorme quantidade de trabalhadores,
de diversos lugares do país, para o empreendimento, marcaria esse processo. A cidade e
a usina se desenvolvem juntas. Mais do que isso, se pode dizer que a construção da
usina determinaria o desenvolvimento da cidade dali para frente.
17 A presença da CSN se fazia sentir em quase todas as esferas da vida de seus operários.
Suas casas pertenciam à estatal, suas vidas eram investigadas por agentes, boa parte da
cidade era gerida pela empresa. Dentro da empresa, existia um regulamento interno,
conjunto de regras e de incentivos para garantir a cooperação do trabalhador (Veiga;
Fonseca, 1989). Porém, deve-se notar que seus trabalhadores, junto a outros da região,
não deixavam de desenvolver práticas que garantissem e ampliassem seus direitos.
18 A hierarquia social da usina está ainda refletida nos espaços da cidade, com a vila dos
gerentes disposta no topo da montanha e os subúrbios operários – com seus nomes
afirmativos Conforto, Villa Rica e Jardim Primavera – imersos na fumaça negra e nos
altos ruídos. Nos limites da cidade trabalhadores temporários, rurais e desempregados
invadem terras de posse das elites locais. Correia Lima, o planejador de Volta Redonda,
inspirou-se no modelo de cidade proletária desenvolvido pelo arquiteto francês Tony
Garnier, com extensos espaços de lazer e sociabilidade para os trabalhadores e suas
famílias. Mas esse modelo de cidade proletária chocou-se com o estilo de planejamento
baseado na company-town americana defendido pela CSN, no qual a cidade era concebida
como uma extensão da fábrica e com distritos anônimos de subúrbio distribuídos a
partir de linhas radiais saídas do centro da cidade.
19 De fato, Volta Redonda desenvolveu-se como uma extensão da usina. Novos subúrbios
operários foram construídos paralelamente à introdução de novos maquinários no chão
de fábrica. Hospitais públicos, escolas e clubes operaram as funções de welfare
emanadas a partir da “Companhia”. Além disso, a segurança da empresa encarregava-se
da segurança da cidade. Como a cidade era considerada “área de segurança nacional”,
seu prefeito era indicado diretamente pelo presidente e escolhido de nomes que
compunham o círculo de diretores da CSN.

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20 Se a criação de Brasília no início dos anos 1960 refletia a ideologia desenvolvimentista


do governo de Juscelino Kubitschek, a fundação de Volta Redonda espelhava a ditadura
do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma combinação de paternalismo estatal, extração
de mais valia absoluta e “coronelismo” – e a interpenetração da cidade, da companhia e
da nação como partes da “família siderúrgica” (Morel, 2001), atravessando as divisas
entre o público e o privado. A CSN aparecia como a “mãe” de Volta Redonda. O poder da
“mãe” emanava da autoridade do presidente Vargas, o “pai”, que elegia pessoalmente o
presidente e a direção da usina que levava o seu nome.
21 Tudo isso produzia ainda mais confusão na percepção das relações entre o público e o
privado. A maioria dos espaços públicos da cidade era de propriedade da empresa,
ainda que controlados pelo Estado. A cidade era, como já dissemos, uma extensão da
CSN; assim como a CSN poderia ser considerada um microcosmos da cidade. Não havia
como os conflitos relativos à usina deixarem de se tornar conflitos sociais mais amplos,
impactando o espaço público urbano; nem como os conflitos sociais urbanos deixarem
de impactar a vida da “Companhia”.

Uma cidade em movimento, uma cidade e seus


movimentos
22 De forma geral, observados em termos de seus movimentos, os trabalhadores
metalúrgicos de Volta Redonda acompanharam muito de perto os passos da conjuntura
sindical nacional, seguindo caminhos assemelhados. No final da década de 1970, eles
começam a buscar o rompimento com uma prática sindical de corte passivo,
caracterizada pela liderança de setores conservadores, chamados “pelegos”, de há
muito na frente de sua entidade, e com as políticas da CSN que em muito prejudicava os
trabalhadores, sujeitando-os a condições de trabalho indignas. Na década de 1980,
setores progressistas ganham a eleição sindical, modificando a trajetória seguida pela
entidade ao longo do pós-1964.
23 Como uma das fortes caraterísticas desse processo temos a “abertura” e a aproximação
do sindicato em direção aos demais movimentos sociais que foram se desenvolvendo na
cidade. Muitos destes movimentos surgiram sob a chancela da Igreja católica local, que
então tinha à frente o bispo progressista Dom Waldyr Calheiros. O importante papel
assumido pela Igreja, no agenciamento e na articulação dos movimentos, é indicado no
relato de um sindicalista da época:
É indiscutível naquele período o esforço que a Igreja fez pra envolver as
comunidades nas mobilizações. Então, o bispo tinha uma coordenação que
incentivava muito nesse sentido e a todo tempo procurava trabalhar integrado com
o sindicato, com as associações de moradores, incentivando a mobilização, a
participação, apoiando inclusive materialmente, né? E principalmente
politicamente. (Militante sindical I).
24 No rol desses movimentos encontramos um amplo repertório, entre os quais se
poderiam nominar: o pelos direitos humanos, o de posseiros urbanos, as associações de
moradores, etc. De clara força política e econômica frente aos demais movimentos
populares, bem como de forte presença na cidade, logo o Sindicato dos Metalúrgicos
assumiu proeminência e centralidade em termos dos movimentos sociais locais. A
própria conquista do sindicato por setores progressistas já aparecia como uma
ferramenta importante para fazer avançar ainda mais as movimentações. Segundo a

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visão de uma militante dos movimentos sociais, acerca da vitória da oposição sindical,
ela deveu-se exatamente ao engajamento da cidade, através destes movimentos.
Nós ganhamos ele, nós mesmo, não foi os sindicalistas, fomos nós, o povo de Volta
Redonda… que ganhou, e, assim, claro, junto com aqueles que são sindicalistas. Mas
a gente precisava de derrubar o peleguismo… Todos nós na cidade sabíamos disso…
E ganhamos, e durante um tempo o sindicato foi uma grande alavanca pra gente,
porque a década de 1980 o sindicato foi a grande sustentação pra gente no
movimento, porque a convocação dele era prontamente atendida, né? Não só do
ponto de vista de quando ele nos chamava, nós militantes, como quando nós todos
chamávamos a população em nome do sindicato, entendeu? Então, era, porque essa
legitimidade era mão dupla, a gente legitimava o sindicato e ele legitimava o
movimento popular. (Militante do movimento pela moradia).
25 Formando uma grande rede, articulados, os movimentos sociais de Volta Redonda
passam a ter uma penetração cada vez maior e mais profunda na cidade. Os
metalúrgicos usavam sua capacidade e poderio em termos de espaços para reuniões,
recursos para mobilização e divulgação, etc. Na via de mão dupla, recebiam o apoio dos
movimentos populares em termos de logística para suas operações específicas, como as
sucessivas greves que marcaram a cidade na época e mesmo o país, como a histórica
greve de 1988.
26 A articulação deu passos largos e chegou a tal ponto que, na década de 1980, formou-se
um fórum permanente que agregava todos os movimentos da cidade, com reunião na
cúria metropolitana. O relato de uma militante da época dá conta de que a associação
entre eles era frequente. Segundo ela,
a gente fazia junto… qualquer coisa. Se fosse ocupar uma terra, lá tinha movimento
sindical… Tinha a Igreja e tinha as associações de moradores, a comissão de
posseiros, a comissão de direitos humanos, sabe? […] As organizações pipocavam
em todos os lados, cada provocação, cada semente que você jogava era um monte de
coletivos que surgiam. (Militante do movimento pela moradia).
27 Era inegável o ascenso sindical e popular dos anos 1980. Ele pode ser representado de
diversas maneiras tanto nas sucessivas greves de metalúrgicos quanto na vitória de
Juarez Antunes, que fora presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e deputado federal,
para a prefeitura da cidade. Um dos sindicalista da época lembra de forma bastante
clara do alcance atingido pelas mobilizações. Em sua visão,
elas influíram de modo decisivo em todo o contexto da cidade, desde eleições para
as associações de moradores… na organização dos camelôs, comerciários,
construção civil, motoristas, trabalhadores de ônibus. É claro, onde que teve com
mais profundidade foi nos metalúrgicos […] E, finalmente, a própria eleição do
Juarez para a prefeitura refletiu essa mobilização e a amplitude dela, e foi um dos
candidatos mais votados em toda a história da cidade. […] Quer dizer, então todo o
tecido social, estudantes, professores, todo o tecido social estava envolvido naquela
mobilização. (Militante sindical I).
28 Pode-se perceber como toda a cidade acabou sendo tocada pelos efeitos das
mobilizações. Não foi diferente no caso da famosa e trágica greve de 1988 (Graciolli,
2009; Santana, 2003). A lembrança dos entrevistados indica as ligações entre o
movimento no interior da empresa e o apoio extrafábrica que garantia vitalidade e
força aos trabalhadores. Como já se constituíra uma tradição na cidade daqueles anos,
outros movimentos sociais acorreriam para dar seu apoio aos operários em sua
mobilização. Isso ficou patente quando, ao longo do movimento, não só as associações
de moradores se empenharam, como também as mulheres dos trabalhadores, levando
comida aos portões da fábrica para garantir alimentação aos trabalhadores grevistas.

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29 Assim, não só o espaço da fábrica, mas o espaço da cidade virou campo de ação e
disputa. A intervenção das tropas do exército na cidade durante a greve é bastante
sintomática da aspereza tomada por essa disputa. A entrada das forças militares em
Volta Redonda foi sentida como uma verdadeira “invasão” e “humilhação”, que era
experimentada não só por aqueles que “lutavam”, mas pelos demais moradores,
solidários aos movimentos.
A cidade foi invadida. Nós encaramos o exército na rua. Na cidade toda foi
vilipendiada naquele dia. Todo mundo, não tinha uma pessoa, mesmo os que não
estavam na rua, os que estavam em casa, estavam se sentido humilhados, entendeu,
violentados e solidários com os que estavam na rua lutando… né, com a invasão do
exército, o exército chegando, marchando na rua, jogando bomba, né? (Militante do
movimento pela moradia).
30 Não ficou sem resposta a referida “invasão” ou “ataque”, como construído pela
memória. Ela foi respondida por novas formas de enfrentamento levada a cabo pelos
movimentos articulados. Em contrapartida, o exército as tratou de maneira ainda mais
brutal, buscando ocupar cada um dos poros da cidade por onde pudesse aflorar
qualquer tipo de resistência. Segundo lembra um dos atores envolvidos,
e o exército atacou a cidade, então nós estávamos no enfrentamento fora… Os
conflitos tiveram reflexos por toda a cidade. A memória da força bruta utilizada
pelos militares é muito vívida. [O exército…] Nossa! Espancou brutalmente a
população. Por exemplo, meu carro foi perfurado de bala, eles tentaram nos acertar.
Nós tivemos que sair correndo, tacando pedra e correndo… Eles enfrentaram em
duas frentes. Lá dentro [da usina], né, mas lá dentro, no primeiro momento, lá
dentro basicamente não houve enfrentamento. Houve assim, os trabalhadores
entravam na aciaria eles não entravam lá. Aí o enfrentamento houve na rua, porque
eles tentaram isolar a população pra não dar apoio, certamente pensando que fosse
desocupar fácil. Não conseguiram, porque a greve durou 17 dias. (Militante sindical
I).
31 O depoimento é interessante no sentido de mapear, entre outras coisas, como a ação
militar teve de lidar com os movimentos organizados. Como a organização não se
esgotava, mesmo em uma greve sindical, ao espaço fabril, as forças militares tiveram de
lutar no espaço da cidade, tentando cortar os fios de articulação e retroalimentação
entre cidade e fábrica. Por isso, de forma intensa, a memória da ação militar pelos
atores sociais combina o ataque à fábrica ao ataque à cidade.
32 Ao identificarmos uma articulação tão virtuosa entre os movimentos sociais da época,
em Volta Redonda, não podemos correr o risco de não percebermos também os seus
limites. Cabe assinalar que esse processo de aproximação e articulação dos movimentos
foi marcado por tensões, marchas e contramarchas cuja análise escaparia dos marcos
deste trabalho. Todavia, como forma de registro, podemos assinalar relatos que
apontam tal ocorrência. Nessa linha, segundo uma entrevistada,
nunca foi muito tranquilo, porque o movimento sindical nunca teve entendimento
estratégico… Pra que serve o movimento popular. Ele sempre achou que o
movimento popular existe pra dar sustentação às decisões deles… (Militante do
movimento pela moradia).
33 Caminhando na mesma direção, temos um outro militante que, identificando as
positividades da relação, também aponta o peso do poderio econômico do sindicato, o
qual acabava influenciando na relação entre atores e nas suas atividades, produzindo
certa assimetria.
Não foi tudo positivo… Eles eram o poder… Eles tinham o poder econômico… Nos
éramos o suporte… Existiam problemas… Mas existia a relação… Com os outros

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anteriores não tinha nem relação… (Militante do movimento das associações de


moradores).
34 O clima de sucesso conquistado pelos movimentos sociais produzia a clara impressão de
plenitude e alcance. Segundo um depoimento, na década de 1980,
a gente tinha vida, sabe, podia não ter comida, mas tinha vida, sabe, a gente tinha
vontade, a gente acreditava, a gente tinha proposta, a gente tinha projeto, tinha
coragem de correr atrás, sabe, de juntar. (Militante do movimento pela moradia).
35 Os avanços políticos dos movimentos sociais produziam uma nova representação do
espaço. O espaço da cidade, antes “do aço”, se torna um jardim de terra fértil para os
movimentos sociais. Em se plantando tudo dava, bastava jogar a “semente”. A “vida”,
ter “vida”, ainda que sem “comida”, se definia por “correr atrás”, ter “vontade”,
“crença” e “projeto”. Não são raros os depoimentos que também identificam aqueles
anos na cidade como de “força”, “vitória” e “glória”. O que obviamente atraía a atenção
de seus “inimigos”. Segundo a definição de uma militante dos movimentos sociais,
Eu acho que essa cidade, governo nenhum gosta dela, nem o governo popular.
Porque é uma cidade que se você puser o fósforo faz fogo, entendeu? Sempre foi
assim… […] Então, era uma coisa muito pesada pro sistema… juntando esse povo
todo é muito pesado pra eles aguentarem. (Militante do movimento pela moradia).
36 Olhados em seu conjunto, portanto, os anos 1980 foram experimentados em Volta
Redonda como de retomada das lutas sociais. Com apoio da Igreja católica, os
movimentos sindicais e sociais produziram uma forte articulação. Ela deu uma base
sólida de apoio para que as mobilizações no espaço fabril e no espaço urbano
formassem uma só e única trama. Isto produziu um impacto político, chegando a ter
reverberações nas eleições aos parlamentos local e nacional, mas, sobretudo, ao
executivo local. Foram vividos e são lembrados nas memórias como anos gloriosos, que
pareciam inquebrantáveis.

Privatização, divisão, fragmentação


37 Dado o acúmulo de forças obtido pelos movimentos sociais e sindicais ao longo dos anos
1980, considerada uma década vitoriosa nesses termos, muitos esperavam que isso
transbordasse para a década que se abria. Todavia, a década de 1990 trouxe uma série
de profundas e rápidas mudanças para a sociedade brasileira em geral e para os
movimentos sociais em particular, estando muito longe de ser uma mera continuidade
dos anos que lhe precederam.
38 A dieta proposta pela agenda do chamado neoliberalismo ia sendo implantada. A junção
entre abertura comercial, privatização, estabilidade econômica e desregulamentação
dos mercados de trabalho impactou a vida industrial brasileira e, por conseguinte, seus
trabalhadores e suas entidades representativas. Se comparamos as décadas de 1980 e
1990, pode-se perceber claramente que os trabalhadores brasileiros experimentaram
dois períodos bastante distintos (Santana, 2003). Se a primeira pode ser considerada um
período de mobilização e conquistas, a segunda deve ser caracterizada como de
descenso e reorganização de práticas e estratégias, bem como de perdas de algumas
conquistas.
39 Ainda que a cidade tenha vivido tal experiência de forma especificada, à sua própria
maneira, em Volta Redonda não se trilharia um percurso distinto. Conforme já
indicamos, as mobilizações dos anos 1980 chegaram mesmo a estar representadas na

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vitória de Juarez Antunes nas eleições para a prefeitura da cidade, em 1988. Porém,
pouco depois de assumir o cargo, a sua morte em acidente automobilístico, considerado
por muitos uma ocorrência “suspeita”, vai marcar um ponto de inflexão em termos
políticos na cidade. Quem assume a prefeitura é seu vice, de fora das searas dos
movimentos sociais, vinculado ao que seria a política mais “tradicional” e “negocista”
da cidade.
40 O desapontamento com a perda abrupta de Juarez Antunes, que, eleito, representava
um projeto que vinha sendo construído há tempos, bem como com o fato de que quem
assume é seu vice, sem vínculos com este projeto, produziu efeitos imediatos. Isso dará
aos movimentos, aproveitando a força acumulada ao longo dos anos, novo ânimo de
luta para verem sua agenda na pauta do governo.
Ele fez um governo de quase quatro anos de oposição ferrenha nessa cidade. A gente
chegou a ocupar a prefeitura, expulsar ele da prefeitura, ele ficou mais de 48 horas
sem poder entrar na prefeitura. A gente obrigou o procurador-geral de justiça e o
vice-governador, o Nilo Batista, vir na cidade, a gente exigia intervenção, nós fomos
foi pro Rio, nós fizemos passeata, a gente exigia intervenção na prefeitura, a gente
invadia a câmara, entendeu? Mas porque já era um movimento que já tava vindo de
trás. (Militante do movimento pela moradia).
41 Com quatro anos de pressão intensa dos movimentos sociais sobre a administração
municipal, que impuseram forte restrições ao prefeito, um novo caminho à prefeitura
foi pavimentado. Tudo parecia indicar que a nova década seria tão auspiciosa quanto a
anterior. Uma “aliança progressista” ganha as eleições seguintes e, aparentemente, isso
daria ao movimento mais esperanças de ver suas demandas reconhecidas e efetivadas
no executivo municipal. Porém, o que se viu foi um sem número de divisões e conflitos,
entre aqueles que acusavam o governo de promover a “cooptação” dos movimentos
sociais e aqueles que, ainda que egressos dos movimentos, mas agora operando no
interior da prefeitura, acusavam os primeiros de “radicais”. No decorrer do processo, o
movimento popular vai sofrer seguidos e profundos “rachas”. Como disse uma
entrevistada, “assim, os nossos amigos viraram inimigos”.
42 Este tipo de perspectiva atravessava todo o campo político ocupado pelos movimentos.
No que tange especificamente ao meio sindical, o clima não era dos mais alvissareiros. A
partir de fins da década de 1980, intensifica-se a tentativa de privatização da CSN
(Graciolli, 2007; Pereira, 2012). Já no início da década de 1990 isso passa a ser uma
política ostensiva e bem organizada, que, buscando a conquista de corações e mentes,
efetivou-se a partir do tripé formado por práticas como a enxurrada de propaganda, a
perseguição aos opositores e a concessão de benesses. Todo esse processo foi percebido
de forma “dolorosa” por aqueles que perfilavam com os movimentos sociais. O
depoimento de uma entrevistada deixa isso explícito.
Eu vou te dizer uma coisa, eu nunca vi, eu não consigo entender como um país pode
deixar uma empresa determinar o nascimento, o crescimento e a morte, digamos
assim, nós não morremos, mas vamos colocar nesses termos. Porque o sofrimento
que eu vi nessa cidade aqui, cara, eu fiquei horrorizado, eu fiquei horrorizado com o
sofrimento que eu vi e fiquei horrorizado com a omissão daqueles que não podiam
ter se omitido, sabe, como se omitiram. Pelo menos falar eles tinham que ter falado,
não falaram nada. Eu não me conformo até hoje das lideranças de esquerda do
Brasil. (Militante do movimento das associações de moradores).
43 Com o advento da privatização, o cenário de mudanças foi assumindo seus contornos.
Ato contínuo da privatização foi a demissão no atacado de trabalhadores. A

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“Companhia” que se julgava, e era julgada por muitos, a “mãe” do trabalhador, passava
a ser sua “madrasta”. Na memória dos entrevistados, o operário da CSN,
foi colocado na rua de uma hora pra outra quase que sem mais nem menos…
milhares de pais de família e que sofreram horrores, pessoas que trabalhavam na
usina 15 ou 20 anos e que não sabiam fazer outra coisa. Os caras tão acostumados, o
cara cresceu profissionalmente mexendo com negócio de aço. De repente, ele é
despejado aqui fora e sem contar com um salário bem acima da média aqui fora, um
cara que tem uma casa boa, num dos bairros melhores, acostumado a ter um carro
bom, né? Alguns trocavam de carro todo ano, outros não trocavam todo ano, mas
sempre podiam ter um carro bom, manter a família no padrão… Então, quando
muitos metalúrgicos se viram assim sem aquele emprego que garantia pra ele uma
condição de vida acima da média muitas vezes, muitos não suportaram, muitos não
tiveram condição psicológica de superar aquilo, muitos, eu conheço vários casos,
entende? Então aquilo gerou, eu vi aquilo com muita indignação, sabe, eu,
sinceramente, eu fiquei decepcionado demais com aquilo. (Militante do movimento
das associações de moradores).
44 O quadro traçado acima no depoimento do militante define a situação geral
experimentada pelo operários da CSN. Mas, deve-se dizer, situação tão ou mais aguda
vivenciaram aqueles militantes sindicais que, por suas posturas, sofreram perseguição
por parte da empresa, dentro e fora de seus muros, o que lhes dificultava outros acessos
no mercado de trabalho local, demonstrando o controle da “Companhia” sobre o espaço
da cidade. Segundo um deles assinala em seu depoimento,
a gente ficava, vamos dizer assim, sem emprego, não conseguia emprego em lugar
nenhum […] não tinha nenhum meio de subsistência […] e uma crise dentro da
família terrível porque você não tem como sustentar mulher e filho… não tem
nada… A gente vivia esse dilema, a gente queria levar a luta adiante, mas não tinha
gás. Então, falando assim francamente, né?, chegou um ponto que nós fomos
derrotados pela falta de condição de subsistir. (Militante sindical II).
45 Diante do mar de dificuldades produzidas no contexto da pós-privatização, aquelas
vividas pelos militantes produziam um cenário desolador. A adversidade econômica
trazida pelo afastamento do trabalho na empresa repercute em todas as esferas da vida
social dos indivíduos, atingindo mesmo o nível da saúde e existência das pessoas. Nesse
sentido, o militante prossegue no relato de suas dificuldades, representando a trajetória
narrada como um processo de “quebra” física e política, que coroa a derrota “pela falta
de condição de subsistir”.
No meu caso aí eu cheguei num limite… que eu estava num estresse total, eu tomava
remédio, só dormia tomando remédio, né? Foi um estresse. Hoje nem eu mesmo
mais consigo ter a dimensão daquele estresse que a gente viveu. Mas foi uma coisa
assim que… eu tive uma hemorragia digestiva quase que fui para o tombo, fiquei
quase precisando de transfusão de sangue. O outro companheiro teve enfarto. Aí
chega uma hora eu não suportei mais, não tinha mais como eu caminhar. Então eu
fui derrotado, minha política foi derrotada ali naquele momento. Vamos falar
assim, no popular, eu quebrei mesmo.
46 A vitória da campanha de privatização, portanto, altera fortemente os rumos da gestão
da companhia, tendo impactos na empresa (ao, por exemplo, reduzir drasticamente o
número de funcionários) e na cidade (via desemprego e mudança de eixo de atuação
estatal para privada no que tange aos espaços públicos sob posse da CSN). Deixando o
quadro ainda mais complexo e desolador para muitos militantes, o Sindicato dos
Metalúrgicos, antigo bastião de resistência, acabou por ter participação importante,
mas ao lado da privatização. Isso porque, na virada das décadas de 1980 e 1990, um
grupo de militantes se afasta das searas da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e vai

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para a Força Sindical, disputa e ganha a eleição sindical, em 1991, mudando o eixo
seguido pelo sindicato até ali, defendendo uma política menos aguerrida, de parceria
com a empresa e sem vínculos com os demais movimentos. O sindicato passaria mais de
uma década associado às orientações dessa central sindical.
47 Instala-se um período muito duro, prenhe de adversidades, para os movimentos sociais
na cidade. É assim que os anos 1990 são trabalhados pela memória dos atores sociais
que participavam daqueles movimentos no período. A virada em termos das
representações é nítida. O jardim fértil vira um deserto. A participação de outrora,
vazio e ausência no cenário político. A política, despolitização. A “vida”, “morte”. Um
dos relatos pinta com cores fortes estas imagens,
Agora [é] tábua arrasada mesmo… hoje é a morte da cidadania, esses últimos oito
anos foi a pá de cal, entendeu… Não tem cidadania, nem a vontade de participar,
sabe, de discutir, de disputar as ideias… É a paz do túmulo… (Militante do
movimento pela moradia).
48 A representação das articulações entre política e espaço é reelaborada. Antes fonte da
“vida”, o que se veria na década de 1990 era a “completa despolitização… Completa. É,
agora há pouco tempo o sindicato chama assembleias, mas as assembleias na verdade
não são assembleias.” (Militante sindical I). Ideia de vazio abraça outras frentes, que se
agravaram com a crise advinda da privatização e do desemprego. Segundo um
sindicalista dos anos 1980 entrevistado: “Hoje a cidade não tem mais emprego.” Assim,
sem emprego, sem movimento e sem participação, a cidade se tornou uma estranha aos
olhos daqueles que com ela tanto se identificaram. Segundo um dos relatos, “a gente
diminuindo cada vez mais o número de pessoas na resistência… Gente que se cansava,
gente que foi embora da cidade, entendeu? Gente desempregada que se entregava.”
(Militante do movimento pela moradia).

Disputando memória, espaço e vida


49 O centrar nossa atenção em duas décadas de experiências de movimentos na cidade de
Volta Redonda, serviu, obviamente, de recorte para uma mirada analítica sobre pontos
específicos. Para o escopo deste trabalho, seria muito difícil cobrir conjunturas
seguintes. Contudo, na tentativa de apontar alguns outros elementos já indicados na
argumentação até aqui, mas referindo-os, ainda que de forma rápida, a períodos
recentes, tomaremos o exemplo do que chamaríamos de luta espacial, ora mais velada,
ora mais aberta, que ainda ocorre na cidade, tendo o sindicalismo metalúrgico como um
de seus protagonistas.2 O espaço da praça Juarez Antunes nos servirá de base dados os
imbricamentos entre cidade, empresa, prefeitura, sindicato, trabalhadores, memoria,
espaço e identidades sociais, em um feixe extremamente interessante.
50 Ainda hoje os espaços públicos da cidade acolhem múltiplas formas de autoridade – do
“pai”, do capitalista e do presidente. Mas, o que pode se perceber em certas ações em
Volta Redonda é que se aproximam da sugestão de Harvey (2012) de que as lutas
anticapitalistas requerem a reapropriação, tanto simbólica quanto material, dos
espaços públicos urbanos e sua transformação no que se poderia chamar de “bens
políticos comuns”.
51 Um desses sítios de ativismo sindical é a praça Juarez Antunes. Ela é um local prenhe de
memórias políticas. Em 1989 inaugurou-se ali um monumento, realizado pelo arquiteto
Oscar Niemeyer, em homenagem aos três operários mortos pelo exército na greve de

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1988. O memorial foi destruído na madrugada após sua inauguração por componentes
de grupos paramilitares, vinculados aos setores extremistas das forças armadas. Após
muitas discussões, a comunidade local decidiu deixar o monumento como ele ficara
após a explosão. Assim, o ato violento ficaria gravado na memória espacial do lugar.
52 A praça tem sido alvo e fonte de inúmeros debates, bem como de tentativas de
remodelação entre os trabalhadores, a empresa e os poderes locais. Até a privatização
nos anos 1990, e apesar do controle da CSN sobre a cidade, a praça era comumente
considerada como um espaço operário. Após a privatização, a prefeitura retomou o
espaço dos trabalhadores, a partir de uma série de intervenções e planejamentos
urbanos. Hoje, tráfego intenso, paradas de ônibus, posto de gasolina e uma passarela
que leva à entrada principal da CSN escondem o memorial de 1989, apartando-o da
avenida principal da cidade. Atravessada pelo ruidoso tráfego e por pedestres
apressados, a praça perdeu seu poder de evocação, de lugar de memória. Por muito
tempo foi considerada mesmo como “abandonada” por todos, que não os transeuntes
apressados.
53 Mas, em 2006, uma nova chapa, sob a liderança de Renato Soares, eleito presidente,
assume o Sindicato dos Metalúrgicos e tenta, como uma de suas estratégias, retomar a
praça como um espaço dos trabalhadores. Ali vem buscando organizar eventos políticos
e sindicais, campanhas, votações, etc. De fato, processos de votação são eventos
públicos de grande relevância simbólica, já que, através deles, como performances
públicas, o próprio sindicato visa restabelecer sua visibilidade junto à comunidade.
Visibilidade que, nos anos 1980, aliás, era elemento marcante da prática da entidade.
Através desses eventos, percebe-se uma forte reapropriação simbólica do local.
54 Em 21 de maio de 2009, por exemplo, uma votação sobre a redução do turno de trabalho
de oito para seis horas tomou a praça Juarez Antunes, durante todo o dia.
Trabalhadores se inscreviam em tendas e votavam em cabines de madeira localizadas
no memorial aos operários mortos em 1988. Ao longo de todo o tempo, diretores do
sindicato faziam intervenções em carro de som da entidade. De forma enérgica eles
mencionavam os benefícios físicos e psíquicos da redução do turno de trabalho, e a
importância do preenchimento de suas vidas com mais horas de atividades de lazer. A
frequência de trabalhadores flutuou ao longo do dia de acordo com turnos, horas de
almoço, etc.
55 A votação terminou às seis da tarde, na hora da saída do segundo turno da empresa.
Quatro representantes do sindicato e quatro da CSN entraram em um local reservado
na praça e começaram a efetuar a contagem as caixas contendo os votos dos
trabalhadores. Uma multidão agrupou-se ao redor da área para acompanhar a apuração
dos votos. Tanto os representantes do sindicato quanto os da empresa se comunicavam
através de gestos com seus colegas situados do lado de fora. Os votos apurados eram
separados em blocos de cem e amarrados com elástico. Depois de amarrados, os votos
eram colocados à disposição da recontagem dos representantes que a quisessem fazer.
56 Quanto mais resultados informais circulavam entre os presentes, mais a tensão subia
entre eles. Os representantes da CSN olhavam com ansiedade e expressões beirando o
ameaçador. O sr. Campanário, advogado do sindicato, exultava: “Isto é a democracia
direta em ação, um triunfo!” Após o pôr do sol, centenas de trabalhadores
permaneciam na praça escura celebrando, brincando e falando animadamente.
57 Ao final da apuração, o resultado indicava que dois terços dos votantes se decidiram
pela redução do turno para seis horas. A CSN teve de se curvar diante do desejo da

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maioria, mas travou contato astuto com o sindicato no sentido de negociarem um


regime de turno mais curto. Poucos dias depois surgiu a informação de que os
trabalhadores mantiveram o turno de seis horas e se recusaram a qualquer tentativa de
redução proporcional de seus salários. A negociação que se seguiu foi um fiasco e após
um breve período de implantação do turno de seis horas, o turno de oito horas voltou a
prevalecer.
58 De todo modo, apesar dessa perda, o movimento dos trabalhadores voltava ao local e
ganhava a credibilidade pública ocupando a praça dos trabalhadores. Visando o
reconhecimento de seus direitos a céu aberto, parecia que estavam preenchendo não só
a praça, mas a sensação de vazio experimentada ao longo de todo o período que se
seguiu à derrota no processo de privatização.

Considerações finais
59 Para que atingíssemos as representações acerca do espaço em que atuaram, as falas e as
práticas dos entrevistados foram fundamentais, nos servindo como vias de acesso.
Percorrendo esse caminho, sente-se não só a diferenciação que buscam evidenciar
entre os dois períodos, mas também a dor e o vazio trazidos pela derrota de um projeto
– individual e coletivo –, de um empenho e entrega de vida, da sensação de falta de
espaço, de ausência de participação.
60 A construção da memória dos dois momentos remete a tipos distintos de representação
do espaço, a diferentes momentos de identidade sociais entre os agentes, bem como às
variadas vinculações entre eles e o espaço. A cidade, pensada como campo fértil na
década de 1980, espaço de plenitude, política e existencial, deixa de sê-lo, para ser
pensada enquanto um vazio, uma “tábua arrasada” no dizer de uma entrevistada.
61 A intensidade e o tom das vozes oscilam de acordo com a cidade que desenham nas
falas. Outros, talvez, desenhassem outra cidade, mas nossos entrevistados a
representaram assim nas suas falas, dando-lhe essas tonalidades. A força da
comparação entre os períodos por eles realizada pode dificultar a abertura de janelas
para a percepção de novas apropriações, práticas, leituras e identidades que podem
aparecer nos poros da cidade, as quais, pela força e peso das “derrotas”, custam em
indicar e aceitar. Mas tal perspectiva lá está. A cidade, que já foi “combativa” e “metida
a besta”; depois “despolitizada” e “apolítica”, pode nos dar ainda, em seus anos por vir,
outras experiências a serem vividas e analisadas, com outros contornos e intensidades.
62 Por isso, mesmo que involucrada pela moldura pessimista, na fala dos entrevistados
cabe ainda a ideia de que
cientificamente a gente não tem muita esperança pro ano que vem, não, tamo
perdendo, perdemos o sindicato, perdemos a prefeitura, perdemos tudo, né?
Perdemos tudo, mas assim, pela fé, que move a gente… essa tesão de que, se não for
pra mudar então não adianta viver, e como eu quero viver, vamos ter que mudar.
(Militante do movimento pela moradia).
63 Assim, a memória serve uma vez mais para a ligação entre passado e presente,
apontando para o futuro, ela é construída nesse jogo. Nos casos em questão, é ela quem
indica e mostra um passado de “conquistas” e um presente de “derrotas”, e, ao fazer
isso, é ela ainda quem sinaliza o que seriam os passos a seguir. Como bem nos lembra
Calvino (2003), na descoberta de quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar
o olhar nas luzes fracas e distantes.

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64 Alinhado ao que vêm acontecendo ao redor do globo, o povo de Volta Redonda continua
engajado em atos de ativismo urbano. Ele reclama as terras que a CSN mantém de forma
improdutiva desde a privatização – através de campanhas contra a dengue, de
ocupações, de loteamentos, etc. Mas enquanto tais formas de resistência espacial
apresentam uma dimensão estratégica importante, elas têm tido um impacto simbólico
limitado na imaginação coletiva, principalmente por conta de sua estrutura de ação
indireta e fechada.
65 Por outro lado, a performance de manifestações políticas e sindicais na praça Juarez
Antunes funciona tanto nos níveis estratégicos e simbólicos, transformando a memória
coletiva do movimento dos trabalhadores em prática ativista compartilhada, e dando
novo significado a uma memória aparentemente congelada do passado. A nova
estratégia do Sindicato dos Metalúrgicos de ocupar espaços públicos, de “reclamá-los” e
“retomá-los”, é importante não apenas à luz dos movimentos da chamada “Primavera
Árabe” ou do “Ocupe” de Londres e Nova York – que retomam o ativismo em termos de
formas variadas de ocupação espacial – mas, também, considerando como os espaços
públicos de Volta Redonda são histórica e regularmente monopolizados pelas igrejas e
pelos poderes públicos em seus eventos – encontros evangélicos, concertos,
comemorações e feiras – os quais, de forma crescente, têm menos relação com a classe
trabalhadora e seus movimentos, e mais com o que poderíamos chamar de sujeitos
públicos anônimos.
66 A privatização dos anos 1990 e a derrota na luta pelo turno de seis horas produziram
um forte esvaziamento no movimento e na luta coletiva dos trabalhadores. Mas quando
tais derrotas aproximam as pessoas e criam áreas públicas de associação e debate,
buscando transformá-las em “espaços comuns”, a lógica de privatização e divisão
produzida pelo capitalismo pode vir a ser desafiada. Algumas vezes, de forma bastante
radical.

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NOTAS
1. As entrevistas foram realizadas no âmbito de projetos de pesquisas que contaram, ao longo dos
anos 2000, em termos de auxílios de pesquisa e bolsas, com o apoio do CNPq e da Faperj, a quem
somos gratos. Optamos aqui por não incluir os nomes dos entrevistados. O depoimento do
militante sindical I foi concedido a Marco Aurélio Santana, Cristiane Muniz Thiago e Fernando
Pozzobon. O depoimento do militante sindical II foi concedido a Marco Aurélio Santana. O
depoimento da militante do movimento pela moradia foi concedido a Marco Aurélio Santana e
Fernando Pozzobon. Já o depoimento do militante do movimento das associações de moradores
foi concedido a Marco Aurélio Santana, Fernando Pozzobon, Lurian Endo e Aroldo Bezerra da
Silva.
2. Um olhar mais detido, ainda que levando em conta a visão dos agentes entrevistados, mas,
para além deles, também, indica que ao longo de todos os anos 1990 e 2000, apesar do peso
sentido nos anos 1990, muitos movimentos agenciaram questões importantes. Entre eles
indicaríamos o movimento pela ética na política (Lima, 2010) e o ligado a questões ambientais
(Leite Lopes, 2006; Leite Lopes et al., 2000). Sem sombra de dúvida, estes e outros movimentos,
serviram de fios condutores para a apresentação na esfera pública de temas fundamentais.

RESUMOS
Situada na região sul fluminense, a cidade siderúrgica de Volta Redonda, conhecida
internacionalmente, tem um longo histórico de organização e mobilização operária, que se
desdobra em termos de seus movimentos populares. O presente trabalho analisa as formas pelas
quais militantes dos movimentos sindical e popular constroem suas memórias acerca das
mobilizações experimentadas nesse município nas décadas de 1980 e 1990, verificando as
representações de cidade que atravessam esse trabalho de memória. Interessa-nos pensar, a
partir deste caso, o imbricamento entre memória, espaço e identidades sociais.

This article analyses the ways in which labour and social movement activists accounts for the
mobilisations experienced in the Volta Redonda city, during the decades 1980 and 1990. We
verify the city’s social representation presented in these accounts. Situated in the Southern
region of the Rio de Janeiro State, this internationally known steel city has got a enduring history
of labour organisation and collective action. Focusing in that case one can deal with the memory,
space and social identities embeddedness. Guided by labour anthropology issues, the empirical
data resulted from field observation and oral history methodology.

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ÍNDICE
Keywords: city, labour, memory, militancy
Palavras-chave: cidade, memória, militância, trabalhadores

AUTORES
MARCO AURÉLIO SANTANA
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil

MASSIMILIANO MOLLONA
University of London – Reino Unido

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Entre notas e moedas


trocas e circulação de valores entre negociantes em Constitución

Lenin Pires

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 25/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

1 O presente artigo apresenta uma etnografia de práticas comerciais em uma loja de


atacado2 localizada no bairro Constitución, ao sul da cidade de Buenos Aires, a qual
fundamenta minhas reflexões sobre a possibilidade de articulação entre distintos
valores – materiais, morais, éticos e estéticos – na construção de lógicas intrínsecas à
circulação de bens e pessoas. Realizando trabalho de campo naquele estabelecimento
comercial fiquei atento às formas como, a partir das trocas produzidas em seu interior,
se podiam veicular informações, opiniões e perspectivas sobre a vida em Buenos Aires e
de que maneira se podiam conjugar bens materiais, enquanto diacríticos, trajetórias
sociais e reputações. As operações realizadas promoviam a circulação de mercadorias e,
concomitantemente, contribuíam para que as pessoas se deslocassem de um lugar para
outro, entre a capital federal argentina e outras localidades da chamada Grande Buenos
Aires. Na minha perspectiva, tais mobilizações estimulavam a circulação de valores
sociais que, cotidianamente, se atualizavam e eram contabilizados em um processo
onde os valores das notas, o estado físico das mesmas, maiores ou menores quantidades
de moedas, a presença ou não de crédito, entre outros elementos, faziam desses
momentos muito mais que uma mera relação de compra e venda, mas de afirmação ou
ocultação de relações e identidades.
2 Ora, é recorrente, nas ciências sociais, a abordagem sobre as possíveis relações entre
padrões monetários e formas de organização social. Marx, por exemplo, visualizava na
utilização de recursos financeiros um progressivo insulamento dos sujeitos nas relações
de troca, levando à representação do dinheiro enquanto a mercadoria-mor, capaz de
obscurecer (quando não obliterar) as relações sociais.3 Weber, por sua vez, sugeriu que
a acumulação monetária poderia ser reflexo, no desenvolvimento do que chamou de

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“espírito capitalista”, de uma busca individual por sinais distintivos da salvação,


advindos do desenvolvimento de uma ética religiosa calcada no ascetismo de inspiração
calvinista. Dessa forma, não retrata um mero apego a um ícone da apostasia refletindo a
assunção de valores da modernidade.4 Mas foi Simmel, a partir da sua proposta de
estudar as relações sociais tomando por base as formas sociais nas quais se expressam os
interesses e vontades individuais (Teixeira, 2000, p. 21), quem propôs focalizar o
dinheiro enquanto objeto para reflexão, no período clássico do desenvolvimento da
sociologia alemã. Para ele, a divisão social do trabalho no Ocidente tinha alcançado um
encadeamento intrínseco em função das propriedades inerentes ao dinheiro. Este
último, entre outras coisas, adquiria cada vez mais a característica de valorar a tudo e,
por isso mesmo, adsorver as características dos objetos, incluindo aí a força de trabalho.
Assim, na sua vulgaridade, se tornava o equivalente para todas as coisas, humano ou não
humano, simbolizando em si mesmo o ideal do individualismo igualitário. Em outras
palavras, aquilo que poderia corresponder a muitas coisas corresponderia ao mais baixo
entre elas e reduziria também o mais alto para o nível do mais baixo (Simmel, 1998).
Seja como for, tais abordagens têm em comum considerar as relações sociais em escala
macrossociológica nas sociedades ocidentais, alternando maior ou menor profundidade
histórica.
3 Contudo, são as considerações dos detalhes inerentes ao plano subjetivo das relações
que podem contribuir para afinar a percepção sobre os dados construídos pela
etnografia. Abordagens como a de Albert Hirschman (1979), o qual, partindo de um
exercício especulativo, de caráter filosófico, esgrimiu argumentos bastante instigantes
na tentativa de produzir um entendimento acerca da questão proposta originalmente
por Weber: o que teria feito com que o capitalismo se desenvolvesse no Ocidente, tendo
como base a acumulação monetária, prática representada enquanto negativa no
período histórico anterior? A proposta de Hirschman coloca o dinheiro como
instrumento privilegiado num longo processo onde as sociabilidades construídas em
torno das ideias de coragem e honra, típicas do período áureo do chamado Antigo
Regime, são gradativamente substituídas pela noção de interesse. Nesse diapasão, a
acumulação de capital, mais do que proporcionar poder por proporcionar melhores
condições materiais para manipular nobres, constituir exércitos ou comprar lealdades
(entre tantos outros negócios possíveis), pareceu ao autor possibilitar a expressão de
subjetividades, inseridas em um jogo cujas regras foram sendo constituídas
paulatinamente, contribuindo, ao fim e ao cabo, com o refreamento das paixões. Em
outras palavras, a acumulação de capital proporcionou a substituição dos impulsos
violentos, testemunhos de valores tais como a valentia e a coragem, pela paixão pelo
acúmulo de dinheiro, sinalizando destreza, inteligência e, numa última palavra, a
inclinação pela racionalidade moderna.
4 Na antropologia o diálogo com essas e tantas outras perspectivas teóricas podem ser
significativamente rentáveis, uma vez que o etnógrafo tende a assumir como premissa
fundamental a proeminência do estudo empírico para a análise e construção do
conhecimento. Logo, a possibilidade que se coloca é de ampliação do entendimento e
renovação da teoria. É o que faz Strathern (1998), por exemplo, quando, em diálogo com
a perspectiva de Simmel, chama a atenção para o fato de que na Papua-Nova Guiné, na
década de 1960, em um contexto de aceleradas mudanças nos planos políticos e
econômicos, a utilização de dinheiro estabeleceu novas relações entre as trocas

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materiais e relações entre os gêneros. A antropóloga adverte, portanto, para


modificações estruturais significativas nas expectativas e perspectivas dos ilhéus.
A discussão começa com uma observação que também é familiar: o dinheiro é
divisível, multifuncional e uma medida de valor, bem como um meio de troca.
Acontece, porém, que esta é uma observação nova e, pelo menos para a pessoa que a
faz, não familiar. Não estou me referindo a notas para uma conferência sobre
Malinowski ou Firth, mas àquilo que disse o irmão da mãe de Sharleen, Manga [uma
das interlocutoras da autora, durante seu trabalho de campo], no decorrer de várias
conversas sobre mudança social. No passado, observou Manga, as pessoas tinham
conchas de cauri ou de madrepérola e não hesitavam: se um homem chegasse e
solicitasse uma concha de madrepérola esta era dada a ele; ou, em caso de divórcio,
tratando-se de uma devolução do preço da noiva, conchas e porcos eram reunidos e
entregues a ele. Não havia nenhum outro uso para essas coisas. Cada item era um
todo. Era tanto uma coisa única como tinha uma única finalidade – ninguém
pensava na possibilidade de reter parte de uma concha. Mas dinheiro é diferente.
Há muitas coisas para se fazer com o dinheiro. Pode-se pensar em comprar comida,
ou uma passagem de ônibus, ou em contribuir para um pagamento de reparação.
Quando se trata de dar dinheiro a alguém, deseja-se ficar com uma parte. “Ele pediu
20 kinas, eu darei 10 kinas porque tenho outro uso para as outras 10 kinas”. Do
mesmo modo, o dinheiro pode ser dividido em pequenas quantias. Um homem tem
100 kinas, mas aí uma parte vai para isso, outra para aquilo, e a soma total já não
existe mais. Idéias demais, disse Manga, acompanham seu uso. A utilidade do
dinheiro encoraja as pessoas a se agarrarem às suas migalhas. E se o dinheiro pode
ser gasto em numerosas coisas, então numerosas coisas também têm um preço. Um
homem olha para uma casuarina seca e pensa: “Oh, posso vendê-la para alguém que
não tenha lenha”. Um homem com uma roça abandonada olha para o mato
crescendo e pensa que alguém pode querê-lo como palha. No passado,
simplesmente pegávamos o capim – agora temos de comprar. (Strathern, 1998,
p. 116).
5 A etnografia tem essa característica de possibilitar a emissão de mensagens breves,
porém densas, sobre as possibilidades culturais de realização da vida humana, dando
relevo aos arranjos cognitivos particulares que vinculam os homens às instituições que
criam. É nessa direção que pretendo veicular minha etnografia, acerca das relações
comerciais em uma sociedade do Ocidente periférico, que é como me ocorre chamar
países como Argentina, Brasil, entre outros. Estados-nação que construíram suas
instituições formais, e seu Direito, tomando como base valores de um liberalismo
tardio, incapaz de se refletir com densidade análoga às observadas em contextos nos
quais se originaram os ideais liberais. Assim, ideais de liberdade e, sobretudo, de
igualdade, são enunciados nas leis, refletindo interpretações diversas e, portanto, tendo
maior ou menor reflexo nas relações entre o Estado e a sociedade. Por conseguinte, os
sujeitos de direito, capazes de estabelecer contratos, são diferentes. Dependendo da
representação que é feita deles por parte dos atores que se ocupam das funções de
Estado, ou da própria maneira como cada indivíduo se vê em relação aos demais, tais
contratos se estabelecem de maneira mais ou menos simétrica.
6 A questão fundamental, de acordo com os dados que construí e que veiculo a seguir, é
que as relações pecuniárias nesses contextos fazem com que, a exemplo do que
observou Strathern (1998) na Papua-Nova Guiné, o dinheiro retribua valores diferentes,
assim como faça circular valores distintos, em função dos contextos nos quais se
manifestam tais contratos. E a mobilização de recursos financeiros, no exato momento
em que cumpre os acordos preestabelecidos, em relações de maior ou menor simetria
no plano social, pode ser empregada também para sancionar negativamente

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determinadas práticas, transmitindo mensagens que não podem ser enunciadas em


público.
7 Durante dois períodos, nos anos de 2007 e 2009, fiz trabalho de campo na cidade de
Buenos Aires. Do total de 12 meses investidos nesse empreendimento, eu passei pelo
menos três deles acompanhando as atividades na loja de Jorgito. Foi logo no início da
primeira temporada. Eu estava interessado em fazer contato com vendedores
ambulantes e, dessa maneira, construir dados que me possibilitassem estabelecer
comparações com os ambientes que pesquiso no Rio de Janeiro, cidade onde vivo e
trabalho. Eu estava aprendendo castelhano e a frequência com que fui àquela loja
contribuiu para que se acelerasse meu aprendizado. As conversas com Jorgito, com as
pessoas que trabalhavam para ele, assim como com seus clientes, me possibilitaram
conhecer aquele mundo onde, tal como em tantos outros, nem tudo pode ser escrito ou
verbalizado. Dessa forma, a observação direta e atenta desses movimentos, dessas idas e
vindas de sujeitos, das trocas realizadas, ocuparam um posicionamento central para o
entendimento dos valores que correspondiam aos momentos em que se engajavam os
sujeitos naquelas relações.
8 Penso naqueles momentos enquanto econômicos, no sentido antropológico do termo.
Isso quer dizer que eu concebo a distribuição de mercadorias não como uma
característica isolada de uma dimensão em si mesma, mas, como sugeriu Godelier
([s.d.]), enquanto a combinação de aspectos inerentes também às dimensões da
produção e do consumo. Portanto, enquanto os bens produzidos para o consumo na
sociedade circulavam, neles se imbricavam processos complexos, nos quais se
produziam valores, significados (Geertz, 1989, 2002), os quais enunciavam sujeitos
sociais variados, que os “consumiam”. Assim, as mercadorias produzidas previamente,
seja em fábricas nativas ou estrangeiras, ao circularem e propiciarem o encontro de
pessoas naquele ambiente ao sul de Buenos Aires, pareciam produzir lógicas e
identidades que, por sua vez, engendravam procedimentos que promoviam o
tangenciamento de distintas perspectivas do que seria adequado nas interações naquele
contexto.
9 Essas éticas, no meu modo de entender, podiam ser percebidas ou mais bem
identificadas na observação dos processos de circulação de uma mercadoria particular:
o dinheiro. Ali, naquele pequeno negócio de Constitución, me pareceu que para mais
além de seu valor de uso, indivisível e de caráter universal, o dinheiro era manipulado,
guardado e consumido a partir do que se pode chamar de valores de troca locais e
específicos. E isso se dava, penso, em função das perspectivas estéticas compartilhadas
por aqueles que o manipulavam, em função de um conjunto de valores partilhados
pelos atores. Tudo em concomitância com os papéis sociais que desempenhavam, mas
também em decorrência dos valores particulares com os quais o dono da loja onde fiz
trabalho de campo resguardava e com os quais dirigia seu empreendimento.

Uma loja em Constitución


10 A loja de Jorgito, como referi, estava localizada no bairro Constitución, em uma das ruas
próximas ao terminal ferroviário General Roca. Ela tinha, com boa vontade, 3 m de
frente e 8 m de fundo, pelo menos até uma prateleira que ficava logo após um balcão
em “L”, o qual dividia o recinto. Dois terços do espaço visível, assim, eram reservados
para o dono e outras quatro pessoas que lá trabalhavam. O espaço que utilizavam era,

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portanto, exíguo. Circulavam todo o tempo restringidos entre inúmeras caixas de


papelão nas quais se armazenavam mercadorias, como também por estantes e
prateleiras que acondicionavam os produtos para venda. Mais diminuta, porém, era a
área reservada ao público a ser atendido: este não dispunha de mais do que 6 m 2. As
esperas por atendimento eram grandes e muitas vezes se formavam filas que ocupavam
a área externa à loja.
11 Eu me dirigi àquele estabelecimento por indicação de Hector, um amigo que era
estudante de antropologia, o qual me auxiliou nos meus primeiros movimentos na
cidade de Buenos Aires. Meu amigo também trabalhava no ramo de compra e venda,
sendo responsável pela distribuição de biscoitos e doces naquela região ao sul da
cidade. Ele tinha 45 anos à época e era de origem uruguaia. Ganhava a vida havia pelo
menos 15 anos vendendo biscoitos para comerciantes que eram donos de lojas de
atacado, como Jorgito.
12 Este último, por sua vez, era argentino, proveniente da província de San Juan. Era
casado com uma paraguaia e pai de três filhos. Morador de Lanús, na província de
Buenos Aires, ele abria sua loja todos os dias, às 7h, fechando por volta das 18h.
Desenvolvendo uma dinâmica de negócios surpreendente, para uma loja de tão
modestas dimensões, ele me ensinou bastante coisa sobre produção e circulação de
valores no bairro Constitución.
13 Na primeira vez em que estive na loja de Jorgito, estava acompanhado de Hector.
Tivemos que esperar um tempo significativo até que o proprietário pudesse vir para
onde estávamos. Alternando o olhar para mim e para Hector, saudou a este último com
um “Hola, como te va?”, encostando sua bochecha na de Hector, simulando um beijo.
Apertou minha mão em seguida, enquanto Hector me apresentava. Nas palavras de meu
amigo, eu estudava antropologia no Brasil e queria escrever sobre os buscas. Foi a
primeira vez que escutei esse termo. Jorgito franziu a testa e sorriu ligeiramente. Em
castelhano, me perguntou o que eu queria. Em um portunhol sofrível, lhe expliquei que
fazia um trabalho sobre o comércio ambulante nos trens do Rio de Janeiro e que queria
entender como se organizavam contextos análogos em Buenos Aires. 5 Expliquei que
meu estudo tinha por objetivo construir dados para uma tese de doutorado em
antropologia. Franziu a testa novamente e, me olhando atentamente, perguntou o que
tinha a ver os buscas com o “estudo dos ossos”. 6 Sem entender a pergunta, fiquei
assistindo os dois fazerem comentários sobre minha pesquisa ainda mais herméticos.
14 Jorgito tinha cerca de 40 anos, era de altura mediana, magro, cabelos lisos, negros e
aparados. Tinha algo em seus traços que remetia a um tipo indígena. Hector o
apresentou para mim, em contrapartida, como um ex-busca, que chegou a dono daquele
negócio atacadista depois de um significativo período no qual trabalhou para um ex-
cliente de Hector. Um assunto que foi objeto de uma conversa elucidativa, tempos
depois.
15 Após conversarmos alguns minutos, ficou acertado que eu poderia voltar em outra
oportunidade. Quando eu ia me despedir, retribuindo a saudação final de Jorgito, este
último passou a dar atenção a um rapaz que tentava comprar doces, biscoitos e alguns
refrigerantes para pagar depois. Era um ambulante. Jorgito ouvia os argumentos do
rapaz com certa indiferença. Disse ao jovem que ele sabia muito bem que crédito ali não
tinha pra ninguém. Este, porém, insistia. Em uma certa altura da conversa, o
comerciante perguntou quanto de dinheiro ele tinha. O rapaz abriu a mão e mostrou
um conjunto de notas amassadas, o qual Jorgito lhe tirou num piscar de olhos. Atônito,

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este parecia só se dar conta do que havia passado quando o comerciante já lhe
entregava as mercadorias correspondentes ao dinheiro que tinha. O rapaz pegou suas
coisas e saiu, dando lugar para o cliente seguinte. Jorgito voltou a se despedir de mim e
caminhou para o fundo da loja, deixando que um de seus assistentes assumisse o
atendimento. O rapaz, por sua vez, tomou o sentido de Plaza Constitución, que distava
cerca de 300 metros. Pode ser que tenha ido tomar um ônibus, o metrô, o trem, ou até
mesmo se dirigir a uma das muitas ruas que se entrecruzavam na direção do
microcentro.

Intensificando as relações no campo


16 Nos períodos seguintes, passei a comparecer a loja de Jorgito pelo menos dois dias por
semana. Aos poucos fui me tornando familiar aos olhos dos clientes e, sobretudo, para
os colaboradores de Jorgito. Como Vera, uma jovem de 20 anos, de pele morena, cujos
cabelos negros estava sempre presos na forma de rabo de cavalo. Nas primeiras vezes
que lá chegava, era ela quem levantava os olhos do que estava fazendo e, ao identificar-
me, meio que gritava para Jorgito: “El brasilero.” Numa única expressão ela deixava
claro que eu era objeto de conversas entre eles. Em certa medida, já tinha sido
identificado, ainda que não se soubesse claramente o que queria. E não me faltaram
disposição e interesse para explicar.
17 Logo na primeira vez que compareci à loja sozinho, me lembro que Jorgito veio em
minha direção, distendido e com um meio sorriso. Era o período da tarde. Nos
saudamos com o tradicional beijo no ar como fazem os argentinos e ele pediu para que
eu passasse para o espaço interior da loja. Desviando de algumas caixas de alfajores, 7
procurei um lugar onde eu pudesse conversar com ele sem atrapalhar a moça e o outro
funcionário que atendiam as pessoas naquele momento. Expliquei-lhe que tinha vindo
pela manhã, mas que não me foi possível entrar. Ele pediu desculpas, dizendo que a
manhã tinha sido muito complicada, pois era uma terça e havia faltado gente para
trabalhar.
18 Sem meandros, e me olhando fixamente, Jorgito me perguntou: “Como posso ajudá-lo?”
Contei-lhe que meu interesse era comparar o comércio ambulante nos trens do Rio de
Janeiro e de Buenos Aires. Ele coçou a cabeça. Disse-me, na sequência, que não sabia que
interesse podia ter a universidade em um mundo tão aborrecedor 8 como o mundo dos
buscas. Expliquei-lhe que foi pesquisando camelôs, no Rio de Janeiro, que eu escrevi
uma dissertação de mestrado, levantando questões que me estimularam a estudar
comparativamente contextos parecidos em Buenos Aires. Em referência ao meu
trabalho disse que pensava o universo do chamado comércio informal não desprovido
de dimensões importantes como a economia e o direito. E disse que,
fundamentalmente, o que me interessava era investigar, comparativamente, como se
construía um direito que não está escrito; o direito que não tem a ver com a lei, mas
com as normas construídas socialmente e que legitimam a ocupação de determinados
espaços na cidade e, dessa forma, uma atividade que possibilita a circulação de
mercadorias.
19 Jorgito respirou fundo e, enquanto pensava, desviou um instante o olhar para a jovem
que manipulava o dinheiro na caixa registradora. Parecia impaciente. Voltando os olhos
para mim, sugeriu que eu sentasse e se pôs a falar com seus empregados, ao mesmo
tempo em que começava a pedir uma pizza por telefone. Passaram-se alguns minutos,

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até que Jorgito se aproximou de mim, tomou uma caixa de chocolates que tinha em uma
prateleira e começou a dizer que, em geral, “um busca começa com uma coisa pequena
assim”. O primeiro lugar que lhes ocorria, segundo ele, são os sinais de trânsito, onde é
grande a circulação de pessoas e se pode também ter acesso àqueles que estão nos
carros e nas janelas dos ônibus. Jorgito disse que naquele lugar se deve falar muito
rapidamente o nome do produto e o preço. Não há tempo para maiores apresentações,
nem para “seduzir” os clientes falando dos benefícios e vantagens que podem conferir a
aquisição da mercadoria. Isso só se torna possível caso um cliente o chame pela janela
de um carro. Mesmo assim, tem que ser rápido para aproveitar ao máximo o sinal
fechado. Fazendo caretas, levantando os olhos, mostrava-me como tinha sido sua
técnica quando atuava nesses espaços.
20 Segundo meu interlocutor, os lugares onde mais trabalhou foram os semáforos, ônibus
e, por pouco tempo, o metrô. Nunca tinha comercializado nos trens. “Que azar”, pensei.
Os ônibus apresentavam como vantajoso o fato de o público encontrar-se imóvel,
passivo, o que contribuía para uma melhor explanação daquilo que era vendido. Sua
técnica, como me demonstrou, consistia em distribuir os chocolates entre o público que
estava sentado e, a uma certa altura da performance, olhar para trás do coletivo, fazendo
de conta que havia interessados a chamá-lo. “Já vou, só um minutinho…”, representava
para mim. Essa técnica era bastante similar àquela identificada por Ostrower (2007),
como também por Silva (2008), entre os ambulantes que comercializavam nos ônibus do
Rio de Janeiro. Consistia, por assim dizer, na expressão do que os interlocutores das
pesquisadoras brasileiras denominavam de talento, a qual configurava um elemento
distintivo da identidade daqueles camelôs em relação aos demais que se distribuíam por
minha cidade. Em Buenos Aires, pelo que Jorgito me falava, não era diferente a
observância de técnicas específicas para lidar ora com um tipo de público consumidor,
ora com outro.
21 Conversamos bastante sobre esse período da vida de Jorgito. Período de muitas
dificuldades, segundo ele, mas que foi vivido dia a dia, sempre com o propósito de
cuidar da família e fazer alguma poupança. Sua expectativa era de que, em algum
momento, sua sorte pudesse mudar. Nunca teve como propósito trabalhar em outra
coisa que não fosse o comércio. A educação formal, segundo ele, não era suficiente para
que postulasse outras atividades na cidade para a qual mudara há pouco mais de 20
anos. Cidade na qual conhecera sua mulher, com quem teve três filhos, dois dos quais
trabalhavam com ele na loja.
22 Naquele dia Jorgito estava bastante chateado, pois os filhos haviam faltado ao trabalho.
Teriam ficado até tarde da noite na rua,9 não reunindo forças para irem à loja. “E que
pensam eles da vida?”, murmurava entre os dentes. Irritado, dizia que dava de tudo a
eles. Pagava-lhes a faculdade, para que não tivessem que viver a vida inteira nos
“confins de Constitución”. Também lhes havia dado uma casa a cada um, no mesmo
bairro em que vivia na cidade de Lanús, no conurbano bonaerense. Tudo o que ele
esperava em troca é que cumprissem com correção aquilo que lhes permitia ter essa
vida, que incluía ainda carros para que se deslocassem com comodidade e, claro, algum
pagamento pelos serviços que prestavam na pequena loja de atacado.
23 Um dos filhos, porém, teria reunido forças e comparecera na parte da tarde. Mostrava-
se resignado, enquanto ouvia a queixa do pai, ajudando na embalagem das muitas
caixas de pedidos dos clientes que ali estavam. Eram buscas, em sua maioria, mas
também tinham donos de kioscos, de pequenos armazéns, cafés do bairro, entre outros

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tipos de comerciantes que constituíam a clientela de Jorgito. Gente que, segundo ele,
estava sempre à sua porta, mas também flutuando em torno a muitos negócios
atacadistas, à procura de oportunidades e melhores preços para as mercadorias
oferecidas.
24 Passou-se mais um tempo e passamos a comer as pizzas que chegaram por volta das
16h30. A essa altura Hector havia se unido a nós, pois passara pelo bairro para fazer
algumas cobranças a clientes. Enquanto comíamos pizza e tomávamos mate quente, eu
observava os poucos clientes que acessavam a loja naquele horário. Pelo que pude
entender do que falavam entre eles àquela altura, alguns compravam mercadorias para
o dia seguinte; outros, para melhor proverem as demandas próprias do horário do rush
nos trens. Perguntei a Jorgito se ele conhecia um dos buscas que trabalhava no trem. Ele
disse que não, mas que tinha curiosidade de saber como era a venda lá. E agregou que
caso eu conseguisse acompanhar a dinâmica, gostaria que eu contasse para ele.

Mercadorias e mercadores: algumas formas de


classificação
25 Nas conversas com Jorgito, das quais muitas vezes participava também Hector, falei
sobre o que tinha percebido em minhas observações pela cidade de Buenos Aires.
Comentei que me parecia haver diferentes tipos de vendedores ambulantes. Hector, a
esse respeito, tinha um próprio sistema classificatório que, uma vez exposto, parecia
corresponder às minhas observações. Começando por aqueles vendedores que
ambulavam, utilizando os próprios corpos para comercializar nos semáforos, nas
calçadas, nos ônibus, nas composições de metrô e de trens. Estes anunciavam os preços,
faziam propaganda das qualidades do produto e se moviam em direção à clientela. Mas
havia também aqueles que se estabeleciam mais fixamente. E estes se subdividiam em
pelo menos duas categorias: os fijos e os puesteros.10 Os primeiros, em geral,
acondicionavam suas mercadorias em tabuleiros, carrinhos, carrocinhas, os quais eram
removidos no final do dia; os outros utilizavam grandes estruturas de madeira ou de
metal, que eram fechadas e deixadas no local onde funcionavam. O que era comum a
ambos é que se esperava que contassem, para se estabelecerem no espaço público, de
uma licença do Governo Autônomo da Cidade de Buenos Aires. Os fijos para se
estabelecerem, sobretudo nas ruas e praças, embora pudessem também ocupar
determinadas localidades próximas aos pontos de ônibus. Os puesteros, basicamente,
para se fixar nos pontos de maior confluência de pessoas no cruzamento entre trens,
ônibus e metrôs, como acontecia em Plaza Constitución.
26 Como demonstrei em outros textos (Pires, 2010, 2011a, 2011b), e baseado no
conhecimento construído pelo trabalho de campo que desenvolvi nos meses
subsequentes ao período relatado neste paper, o mais comum era que fijos e puesteros
não tivessem licença. Nesse caso, a alternativa palpável era que negociassem com os
policiais federais para que pudessem se estabelecer nas ruas, contrariando o Código de
Convivência Urbana da Cidade de Buenos Aires. Tal negociação dá origem à prática do
arreglo, cuja contrapartida se constitui em pagamento de coima. O arreglo é uma
categoria que se refere a uma relação entre o policial e um comerciante, na qual, para
não aplicar a lei, o policial estabelece com a outra parte o valor a ser pago em
contrapartida.11 Em meu trabalho de campo eu busquei focalizar tais relações
envolvendo a venda ambulante, mas o fato é que ela pode envolver também os

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chamados comerciantes estabelecidos, como era o caso de Jorgito. Particularmente em


Constitución, onde os policiais arreglaban primeiramente com os comerciantes para não
incidirem sobre os vendedores ambulantes logo na saída das lojas. Com isso se permitia,
pelo menos, que as mercadorias chegassem até outros bairros, onde seriam vendidas,
com base dessa vez nos arreglos feitos diretamente entre policiais e vendedores
ambulantes.
27 Em todo caso, somente meses mais tarde eu concluiria, baseado em minhas próprias
experiências, observações e entrevistas,12 as distinções entre ambulantes e buscas. Um
ambulante, por exemplo, pode vir a trabalhar para alguém, como as famosas máfias de
que me falavam e preocupavam a membros do Ministério Público Fiscal da Cidade de
Buenos Aires, em entrevistas que realizei em meu trabalho de campo. 13 Um busca,
distintamente, trabalha por conta própria. Por outro lado, um ambulante pode
submeter-se sem maiores contrariedades ao esquema de arreglo que, como referi, é
capitaneado pela polícia. Já um busca, via de regra, só o fará se não houver alternativa.
Esse vendedor ambulante, que além de vender, partilha de um complexo código de
comportamento, além de um vocabulário significativamente particular, 14 um dia sem
coimear é motivo de orgulho e comemoração. Mas talvez o que melhor defina o busca é
uma lógica que eu testemunhei pessoalmente, na convivência com um busca cantante 15
nos trens de Constitución: a racionalidade que procura trabalhar cada vez menos
tempo, em prol da manutenção de uma meta de ganhos que garanta o cotidiano.
28 Voltando, porém, ao período o qual informa a presente etnografia, Jorgito certa vez me
disse que tinha sido um busca, mas que justamente tinha deixado de sê-lo em função da
difícil relação com a Polícia Federal na cidade. “As coisas iam bem até o momento em
que se encontrava um policial”, me disse certa vez. Tais encontros sempre causavam
constrangimentos, e como eles eram “os donos da rua”, o busca só tinha duas
alternativas: ou mudava constantemente de lugar, abrindo mão da clientela que se
podia fazer, ou participava do arreglo com a polícia, abrindo mão de parte do dinheiro
que se arrecadava. E o problema, segundo Jorgito, era que quando percebiam que o
busca melhorava um pouco, eles queriam aumentar o valor da coima. “Um inferno”,
sentenciou.
29 Hector opinava, com as informações de que dispunha, que entre os ambulantes aqueles
que comercializavam nos trens eram os mais prósperos. Particularmente se já tinham
uma clientela habitual, em função dos trajetos nos quais estavam habituados a
comercializar. Trajetos estes que, segundo tinha conhecimento, eram definidos a partir
de negociações prévias envolvendo os próprios vendedores. Mas lhe faltava, assim
como a Jorgito, uma maior vivência entre os ambulantes nos trens para melhor definir
uma opinião.

Gerenciamento e representações
30 Um fato que me pareceu relevante ao longo das semanas em que compareci ao negócio
de Jorgito é que seu gerenciamento era feito com observância a duas regras
fundamentais. Em primeiro lugar, o dono tinha que estar sempre presente,
acompanhando as operações de venda; em segundo lugar, as mercadorias deveriam ser
entregues somente mediante o pagamento em dinheiro. Caso Jorgito tivesse que se
ausentar para algum compromisso, seu filho mais velho era o encarregado de conduzir
o gerenciamento. Isso significava basicamente gerir o caixa. Compras não agendadas

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com fornecedores era decisão exclusiva de Jorgito. Caso ele não estivesse, os
interessados em vender suas mercadorias ao atacadista deviam passar em outro
momento ou esperar. Outra coisa importante: não estava autorizada, sob nenhuma
hipótese, a operação de vendas a crédito para quem quer que fosse.
31 Como referi, acorriam àquela pequena loja comerciantes de diferentes tipos: donos de
armazéns, kioscos, maxikioscos, minimercados, entre outros estabelecimentos, e,
principalmente, vendedores ambulantes. Como já frisei, assim como existiam
estabelecimentos de diferentes tipos, em função do tamanho dos mesmos, ou da área da
cidade em que estavam instalados, igualmente existiam ambulantes de diferentes
envergaduras. O que era significativo, porém, é que em função dessas distinções se
podiam operar, a partir da perspectiva de Jorgito, formas diferenciadas de
reconhecimento dessas condições ou, melhor dizendo, status. Uma das maneiras de se
verificar isso se dava através da observação das negociações que tinham seus cursos nas
possíveis localidades na loja de Jorgito, o balcão de vendas e o interior da loja, como
também na calçada em frente a mesma.
32 O balcão de vendas era o ponto de recepção de todos os interessados em adquirir ou
fornecer mercadorias. Fossem conhecidos ou não, o primeiro contato era sempre ali,
onde não havia mais que 6 m2 de espaço para transitar. Um fornecedor contumaz, em
geral, não demorava mais que cinco minutos para tomar o pedido e combinar a entrega.
Às vezes, quando os preços se alteravam, essa conversa poderia durar um pouco mais,
pois poderia levar à reformulação das quantidades demandadas pelo dono da loja. Já um
comprador, via de regra, apresentava sua solicitação de mercadorias e quantidades, se
certificando, ao final da apresentação de sua lista, se os preços continuavam sendo
aqueles observados na vez anterior. A dinâmica dos negócios, em termos dos valores
materiais e contábeis, era essa. O que podia alterar, porém, eram as conversas em
função de uma maior ou menor proximidade pessoal de Jorgito para com aqueles que
adentravam seu negócio.
33 Como referi, os atendimentos eram feitos, via de regra, pelos dois filhos de Jorgito –
Acevedo e Rolando – e os dois funcionários. Salvo, evidentemente, os fornecedores, que
negociavam diretamente com o dono da loja. Havia, porém, situações onde Jorgito
atendia diretamente um cliente, particularmente os donos de armazéns e kioscos. Os
ambulantes, ou buscas, em geral, não eram atendidos diretamente pelo comerciante.
Havia em Jorgito uma espécie de evitação do contato com estes últimos. Mas havia
alguns poucos para com os quais tinha apreço e, nesses casos, como mínimo, os saudava
quando se dirigiam à caixa registradora e aí se demorava um pouco mais para
perguntar como andavam as coisas nos negócios e na família.
34 Assim, o balcão não era lugar para negociações de crédito a possíveis compradores. Seja
um busca, ambulante ou dono de algum estabelecimento comercial, embora isso fosse
tentado por vários compradores, particularmente os mais antigos. Como demonstrei
mais acima, o usual era que fosse vendida a mercadoria na quantidade que o dinheiro
existente alcançava para comprar. No entanto, para determinados buscas, era possível
sugerir a aquisição de mercadorias outras, por preços diferenciados.
35 Por exemplo, um busca que costumasse vender biscoitos de uma determinada marca, e
que quisesse comprar uma caixa da mercadoria por um preço mais baixo, poderia ser
convencido a adquirir maior quantidade de uma outra, similar. Essa possibilidade era
oferecida em função da quantidade de mercadoria no estoque da loja, confrontado com
a data de validade da mesma. Afinal, se a mercadoria estava por vencer, se priorizava a

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possibilidade de sua rápida venda, e quem melhor podia fazer isso, na visão de Jorgito,
eram os vendedores ambulantes em suas incursões pelas ruas. No entanto, essa
oportunidade16 não era dada a qualquer um, mas a determinados ambulantes ou buscas
que Jorgito entendia partilhar de algum compromisso com o trabalho.
36 Em geral, Jorgito caracterizava um busca como um tipo avesso ao trabalho. Para ele, os
buscas eram pessoas que viviam de acordo com uma lógica imprevidente. Saíam de suas
casas com o propósito único de dobrar o capital investido em uma compra, no menor
prazo de tempo possível. “Eu sei por que vivi aí”, costumava me dizer. Um busca,
segundo Jorgito, começava o dia vendendo biscoitos, balas, doces, refrigerantes, ou o
que fosse, pelo dobro do preço que pagava pela aquisição. Assim, se tivesse comprado
20 pesos em mercadoria, a meta era chegar a 40 pesos. Feito isso, retornava à sua casa,
ou para o bairro. Poderia reservar os 20 pesos para o dia seguinte e gastar o excedente.
Caso fosse casado, poderia dar um dinheiro para a mulher comprar um bife à milanesa
ou fazer um puchero.17 O restante gastaria com os amigos, tomando cerveja ou
consumindo outra sorte de coisas. Os solteiros, segundo ele, gastariam diretamente
todo o dinheiro e, muitas vezes, ficariam mesmo sem recursos para adquirir novas
mercadorias e voltar para as ruas. Isso, normalmente, gerava pedido de empréstimo a
terceiros, os quais nem sempre eram honrados no devido tempo.
37 Jorgito, assim, parecia dispensar, em relação a esse público que constituía parte de sua
clientela, um juízo particular sobre os valores que pareciam estruturar suas vidas.
Elementos e conceitos que se opunham àqueles que estruturavam sua visão de mundo e
que podiam ser sintetizados em uma palavra: trabalho. E o que seria trabalho para
Jorgito? Na minha maneira de ver, se expressava na disposição de um indivíduo em
manejar seu trajeto de vida, combinando os esforços de produção e reprodução da vida
material em um mosaico de dimensões onde variáveis como espaço e tempo eram
pontos que coordenavam as possibilidades de trânsito social. Em outras palavras, o
comparecimento diário a um mesmo local, por um horário prolongado, construindo
uma previsibilidade de sua localização no tempo e no espaço. Contrariamente, um
busca, na representação de meu interlocutor, era potencialmente um ser errático,
incógnito em termos físicos – pois nunca se sabia ao certo onde comercializava suas
coisas – mas também em termos sociais. Estava sempre à margem, consequência da
inaptidão para o trabalho e inclinação para escolhas equivocadas.
38 Resgato, assim, o prólogo a esse texto, no qual o jovem busca faz lembrar a Acevedo qual
o lugar que pessoas como ele ocupam naquela rede de relações. Relações tensas, onde se
sistematizam conjuntos de interdependências inexoráveis, numa intrincada rede na
qual se entremeiam quantidades de mercadorias, oscilação de preços, valores morais,
fazendo com que representações e performances detenham a capacidade de marcar
distanciamentos sociais, mas não possibilitam um grau de alienação onde as
identidades vividas nessas tramas, e nesses dramas, sejam borradas em função da
perspectiva de uma moral específica.
39 Lembro-me de uma outra tarde, quando um outro busca era igualmente atendido por
um dos filhos de Jorgito. Na minha maneira de ver, aparentava uns 30 anos, embora só
tivesse 23, como me dissera momentos depois, numa conversa na calçada. O rapaz
comprava uma quantidade considerável de mercadorias, o que obrigava Rolando a
organizar e amarrar vários conjuntos de caixas. Jorgito o olhava de longe, queixo
inclinado, como se olhasse por cima de óculos imaginários. Ficou um tempo
significativo naquela posição, até que o rapaz perguntou o que olhava. Dirigindo-se

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para mim, como se ignorasse a pessoa à sua frente, disse que não tinha dúvida que era
capaz de vender aquilo tudo no dia seguinte ou até naquele dia mesmo. O problema,
segundo Jorgito, é que ele ia gastar boa parte do seu lucro com cocaína, fazendo com
que nunca deixasse de se dirigir à sua loja na condição de um busca e não de um
kiosquero, por exemplo.
40 Meu interlocutor era implacável em suas análises. Para ele, desejos e divertimentos
tinham momentos certos. Citou, por exemplo, que suas férias eram muito curtas, e
sempre aconteciam acompanhando os momentos em que a cidade se esvaziava em
função das férias de fim de ano, quando muita gente ia para a costa, ou em meados de
julho. Nessas ocasiões, agarrava a família e ia por alguns dias a localidades como Mar
del Plata, Villa Gesel ou, no período de inverno, a Bariloche. Também conhecera
localidades no Brasil, como Camboriú, Búzios e mesmo o Rio de Janeiro que, segundo
ele, não pôde conhecer muito, pois o tema da insegurança o obrigou a andar na van do
hotel ou em táxi. E tudo isso tinha que ver com os ingressos obtidos com o trabalho em
sua loja. Algo inconcebível nos tempos em que era busca, onde eram escassos os
recursos. Período, porém, em que não cedeu às “falsas ilusões” e aos “vícios”.
41 Um exemplo mais pode contribuir para demonstrar o quanto Jorgito era crítico dos
comportamentos possíveis desse segmento de sua clientela. Um homem que tinha um
ponto fixo em frente à estação de Retiro era um cliente contumaz. Tinha
aproximadamente 50 anos e pelo menos duas vezes na semana ia até sua loja para repor
mercadorias. Este trabalhava com sua mulher e eu mesmo, inúmeras vezes, o encontrei
em frente ao terminal Mitre, em Retiro, do outro lado da cidade. Era, segundo o
negociante sanjuanino, um fijo que sabia ganhar dinheiro. Seu lucro líquido,
diariamente, seria algo em torno de 500 pesos. Uma quantia considerável, à época, se
considerarmos o valor da cesta básica de alimentos, divulgada pelo governo argentino
para aquele período: 850 pesos por mês. No entanto, segundo Jorgito, o homem tinha
um incorrigível vício pelo jogo, o que fazia com que perdesse, diariamente, somas e
somas em um cassino que estava situado em um barco, nos arredores do bairro La Boca.
Com isso, o homem jamais ascendia de sua condição de vendedor das mercadorias que
adquiria na loja de Jorgito, sendo prisioneiro, por um lado, dos arreglos com os
funcionários da prefeitura e da polícia e, por outro, das roletas do chamado Casino
Flotante.
42 Em função de histórias como essa, Jorgito tinha uma certa reserva quando o assunto era
busca ou vendedor ambulante em geral, como demonstrou logo no primeiro momento
em que nos conhecemos. Parecia inconcebível que um pesquisador de uma
universidade brasileira tivesse interesse em um universo tão problemático, segundo seu
ponto de vista. A mesma atitude, no entanto, não tinha com relação aos donos de
estabelecimentos com quem igualmente negociava. E isso fazia com que os demais
espaços da loja tivessem uma outra configuração, em termos materiais e simbólicos.

O interior da loja e a calçada


43 Um outro espaço para negociações era o interior da loja. Mais especificamente na
pequena sala de Jorgito, nos fundos da mesma. Era lá onde tinha uma pequena mesa,
com duas cadeiras e um telefone. Também tinha um arquivo com fichas dos clientes,
onde constavam endereços e mercadorias mais requisitadas. Nesse espaço, também
exíguo, eram recepcionados novos fornecedores e compradores mais antigos,

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particularmente donos de armazéns e minimercados da região. Nesse lugar se


discutiam valores para novos produtos, redefinição de preços das mercadorias,
quantidades, promoções e particularidades acerca dos bens comercializáveis, entre
outros aspectos relacionados às operações de compra e venda que se davam ali. Mas
também se falava de questões relacionadas à política, à economia, às famílias, à cidade e
ao bairro de Constitución.
44 A calçada em frente à loja se constituía em um espaço também importante para discutir
aspectos análogos à compra e venda das mercadorias, como também para a
manutenção dos negócios. Particularmente, no que se relacionava ao atendimento de
kiosqueros e donos de pequenos armazéns, muitas vezes ávidos por novidades rentáveis.
Essa localidade era destinada também ao pagamento dos arreglos que eram pagos pelos
comerciantes da zona. Geralmente, um outro comerciante ia até a porta da loja com um
policial e coletava o valor que cabia à loja de Jorgito para que a polícia deixasse a
mercadoria escoar de Constitución até outra parte da cidade – o arreglo, de caráter
ilegal – ou simplesmente para se pagar a cota do chamado serviço adicional, um serviço
previsto legalmente.18
45 A entrada da loja era, assim, um lugar que podia ser considerado discreto porque,
geralmente, havia uma grande mobilização de caixas e embalagens, que eram
embarcadas desde a loja de Jorgito para o porta-malas de carros, para o baú de
pequenos furgões ou caminhões, triciclos, entre outras formas de locomoção utilizadas
pelos clientes. Mas havia situações em que Jorgito se prostrava para observar o
movimento e conversar com um cliente. Nessas conversas, em algumas ocasiões, se
negociavam os preços de algum produto em função da quantidade pedida. Eram raras
as situações em que era concedido algum crédito, mas podia acontecer, dependendo do
tempo que se conheciam e a credibilidade do cliente frente a Jorgito. Tratava-se de uma
decisão exclusiva do titular da loja e tomada em contextos que não podiam, de forma
nenhuma, tornar-se públicos, ou seja, reverberar para o pequeno espaço à frente do
balcão.
46 A partir das negociações comerciais na loja de Jorgito, se podia perceber a veiculação de
estratégias de negócio, para as quais correspondiam diferentes táticas no inter-
relacionamento com clientes e fornecedores. No interior da loja, particularmente no
espaço à frente do balcão, a circulação de palavras, gestos, como também a imposição
dos insistentes silêncios, eram capazes de veicular as representações do dono da loja –
conhecida de seus funcionários e de parte dos clientes – acerca da estratificação da
clientela que buscava o atendimento de suas demandas por mercadorias naquela loja.
Em outras palavras, isso resultava no compartilhamento de determinados códigos que
atualizavam a valoração – a princípio, por Jorgito – destes muitos sujeitos que se
dedicavam, em diferentes formas, ao comércio de biscoitos, doces, balas, refrigerantes,
refrescos, cervejas, entre outros produtos ali comercializados. A promoção de distintas
formas de tratamento comercial nesses distintos espaços, por parte do dono da loja, se
dava em função não só de uma amizade ou conhecimento mais longevo, mas
fundamentalmente em relação ao tipo de estabelecimento que o interlocutor
representava.
47 Essa prática, por fim, alterava lógicas supostamente naturalizadas como, por exemplo,
as configurações entre o que podia ser considerado espaço público e privado. O interior
da loja tinha uma maior dimensão pública, onde se tornavam conhecidos e praticados
os códigos – sociais ou não – que orientavam as transações. Em algumas situações,

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porém, o espaço da rua, protegido pelo ruído dos ônibus e automóveis que passavam
intermitentemente, podia transformar-se em ambiente de privacidade, ainda que
episodicamente. Nele a particularização das regras poderia ser exercitada por Jorgito,
não comprometendo a manutenção de sua estratégia comercial.
48 Em meu trabalho de campo na loja de Jorgito, não fui muito feliz em fazer contatos
significativos, que viessem a permitir minha inserção entre os ambulantes ou buscas.
Isso eu só consegui fazer utilizando uma outra rede. No entanto, me foi possível
acompanhar a relação entre o dono da loja e os mais variados clientes que buscavam
prover-se de mercadorias para seus negócios Nessas observações, me foi possível
conhecer o temperamento do comerciante e parte de sua percepção sobre as coisas. E se
a forma como a loja se dividia permitia vislumbrar alguns aspectos dessa percepção, do
mesmo modo a análise das técnicas de gerenciamento podia revelar não apenas as
lógicas imanentes à sua visão de mundo, mas mesmo alguns dos valores que circulavam
naquele meio como um todo.

O valor que o dinheiro tem


49 Como frisei anteriormente, Jorgito mantinha-se muito atento à caixa registradora de
sua loja. Na maior parte do tempo, era ele quem a manipulava. Mas havia situações em
que seus filhos ou mesmo um funcionário se punham a receber os valores, como
também providenciavam o troco para valores pagos a maior, em função do preço das
mercadorias. Todas essas operações com dinheiro eram supervisionadas atentamente
por ele, que também controlava os estoques, cuidava do fluxo de pedidos dos
estabelecimentos, negociava com fornecedores, entre outras atividades que tinham que
ver direta ou indiretamente com o desembolso de recursos financeiros. Logo, eram de
sua responsabilidade as orientações de como se devia atuar com a manipulação daquilo
que era o principal objetivo em torno das trocas que se produziam naquele
estabelecimento.
50 Uma das orientações de Jorgito é que a caixa registradora fosse mantida todo tempo
fechada e com as notas de pesos arrumadas. Ao longo do dia ele ia recolhendo os valores
e guardando no fundo da loja, até que por volta das três da tarde pudesse ser
depositado. Havia dias em que, dependendo do movimento, ele dispensava o depósito.
Nesse caso, as somas eram reunidas e levadas para sua casa. Como é regra na maioria
dos estabelecimentos comerciais, não se deixava dinheiro no interior da loja de um dia
para o outro.
51 O dinheiro era arrumado na caixa registradora de maneira que as notas ficassem
separadas por valor. Igualmente, essa é a forma de se arrumar o dinheiro na maioria
dos estabelecimentos comerciais, assim como nos bancos. Assim, as notas de 2, 5, 10, 20,
50 e 100 pesos eram arrumadas em pilhas e acondicionadas no interior da caixa
registradora. Com o passar do dia as notas de 10, 20 e 50 podiam ser combinadas a
formarem montes no valor de 100 pesos. As de 100 eram empilhadas e caso somassem
500 ou 1000 pesos eram retiradas da caixa registradora. As que ficavam a maior parte
do tempo soltas nos estribos correspondentes eram as notas de 2, 5 e 10 pesos, as quais,
junto com as moedas, tinham maior circulação em virtude de serem bastante
requisitadas como troco. Contudo, havia uma lógica para arrumação dessas e outras
notas que chamou minha atenção.

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52 À medida que as notas iam sendo entregues, Jorgito ou outra pessoa que operava a
caixa registradora observava se a nota não era falsa e, em seguida, em lugar de
depositá-la diretamente sobre a pilha já arrumada, buscava arrumá-la como se estivesse
embaralhando cartas. Na verdade, o que se procurava fazer era colocar em ordem
decrescente de qualidade. Dessa forma, as notas mais gastas e usadas ficavam por cima
e as notas mais novas por baixo. Acevedo me disse uma vez que dessa forma o dinheiro
rasgado, amassado, sujo ou rabiscado era posto em circulação, evitando problemas de
recusa para possíveis pagamentos de fatura ou quaisquer outros que tivessem que ser
feitos na loja. Eu mesmo experimentei inúmeras vezes, durante o período que vivi em
Buenos Aires, ocasiões em que os estabelecimentos recusavam notas em mau estado.
53 Esse era o modus operandi de todos os donos de estabelecimentos. A orientação em geral
era que o dinheiro velho era pra ser posto rapidamente em circulação. Dessa forma, os
donos de mercados, supermercados, kioscos, cafés, entre outros estabelecimentos
buscavam, tanto quanto possível, repassar rapidamente para o público usuário esses
bilhetes indesejados. Nem falar das chamadas notas falsas, que eram odiadas e que
podiam significar prejuízo certo para um funcionário mais incauto que as recebesse.
Aquelas notas que sobrassem em mau estado poderiam ser depositadas no final do dia
e, dessa maneira, seriam substituídas pelo banco quando fossem retiradas
posteriormente.
54 Da mesma forma, os transeuntes que compravam com ambulantes e buscas, caso
tivessem uma dessas notas indesejadas, sobretudo as de 2 e 5 pesos, passavam-na sem
cerimônia. Era possível que um kiosco, mercearia, locutório ou qualquer outro
estabelecimento criasse caso com uma nota amassada ou rasgada. Um ambulante ou
busca dificilmente o fazia, pois ele tinha seus canais de troca: os atacadistas que
queriam mais era vender e caso não conseguissem passar esses bilhetes adiante, sempre
podiam depositar no banco e terem seu dinheiro assim renovado. Todavia, segundo o
discurso nativo, o dinheiro que chegava amassado, sujo, rabiscado ou mesmo rasgado
era qualificado como dinheiro de busca ou de mendigo.
55 Analisando esse movimento até aqui, o que me parece estar subjacente é que para além
do valor monetário que poderia ter determinada nota, na prática havia bilhetes que
tinham mais valor que outros no curso diário. Em função das interlocuções dos
comerciantes, dos vínculos que queriam manter ou da forma como gostariam de se
representar, a utilização de dinheiro velho ou novo fazia certa diferença. Lembro-me que
o pagamento das faturas de determinadas aquisições feitas por Jorgito junto a
fornecedores, como Hector, eram feitas com maços de dinheiro previamente reservado,
cujas notas eram majoritariamente de 20, 50 e 100 pesos. Quando não tinham sido
retiradas do banco, eram cuidadosamente escolhidas entre as notas recolhidas ao longo
de um ou dois dias. Diferentemente, o dinheiro que Jorgito reservava para pagamento
dos policiais era constituído de muitas notas em más condições, além de serem
majoritariamente notas de 5 e 10 pesos, ainda que as somas a serem repassadas
pudessem ser superiores a 100 ou 200 pesos. Assim, ainda que se repassasse uma grande
soma de dinheiro para um pagamento indesejado – mas inexorável, dentro da lógica de
funcionamento dos negócios em Constitución – se procurava informar um certo perfil
baixo em termos das vendas realizadas no estabelecimento.
56 O resultado de toda essa operação, de forma resumida, é que pelo menos na loja de
Jorgito o dinheiro que era aplicado para o pagamento do arreglo dos policiais era o
dinheiro de busca. Para mim, parecia que a operação que Jorgito desenvolvia era utilizar

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o dinheiro e seus sinais exteriores como símbolo para, em um só movimento, rechaçar


duas identidades que ele considerava poluidoras – o busca e o policial. Fazia com que os
mesmos circulassem em uma esfera externa à sua vida, bem representada pela calçada
em frente à sua loja, lugar de subversão das regras e das representações que ele
cultivava em sua identidade enquanto comerciante que experimentara certo sucesso, se
comparado com o início de sua trajetória. Diferentemente, mas de acordo com a mesma
lógica, o dinheiro dos kioscos era utilizado para pagar certos fornecedores, como também
o era o dinheiro do banco. No entanto, este último, constituído em sua maioria de notas
novas e seminovas, era utilizado não só para saldar compromissos com fornecedores,
como também com os gastos cotidianos da família de Jorgito: universidades, prestações,
crediários, entre outros. O dinheiro do banco, assim, transformava-se em dinheiro da
família.
57 Essas relações podem ser pensadas, guardadas as devidas proporções, em relação
àquelas observadas por Hutchinson (1998) entre os nuer, em um período compreendido
entre 1930 e 1983. A antropóloga, instruída por outras etnografias, como também pelos
dados construídos em seu trabalho de campo, analisa os processos de vinculação dos
nuer à chamada economia de mercado; particularmente a partir do final da década de
1940, com a introdução das feiras de gados, nas quais passaram a se utilizar moedas de
origem britânica.19 Processos esses onde, gradativamente, o dinheiro passou a fazer
parte das trocas, mas sem assumir definitivamente a capacidade de “estender e
diversificar a interdependência humana, ao mesmo tempo em que excluir todo o
pessoal e específico” (Simmel, 1978 apud Hutchinson, 1998, p. 122, tradução minha).
58 Nos contextos analisados pela autora, entre 1930 e 1983, o dinheiro britânico passou a ser
ressignificado de acordo com a lógica nuer. Em outras palavras, passou a ser
contraposto ao gado, que era o que tinha valor transcendental para aquele povo nilota;
afinal, era através do crescimento dos seus rebanhos que homens e mulheres
construíam suas relações e manifestavam seus desejos de possuir. Esse processo foi
sistematizado em três períodos distintos,20 tendo como síntese a percepção de que gado
e dinheiro nunca chegaram a ser bens totalmente intercambiáveis. Ainda que essas
formas de intercâmbio tenham adquirido, com o passar do tempo, maior dinamismo,
em função da forma como tais processos foram outorgando distintos valores ao gado,
ao dinheiro e à relação entre estes. O dinheiro, nesses contextos, não era um objeto que
podia ser utilizado universalmente para o intercâmbio, e o gado, por sua vez, nem
sempre podia ser alienável. Fazia-se necessário, portanto, estar atento às distintas
categorias de riqueza: o gado das mulheres, o gado do trabalho, o dinheiro do trabalho,
o dinheiro do gado e o dinheiro de merda.21 Em outras palavras, à maneira como os
nuer concebiam a ideia de dinheiro ou, melhor, como concebiam as relações sociais e os
valores que circulavam nas transações que envolviam o dinheiro.
59 Eu acredito que é possível pensar que também Jorgito tinha uma forma de utilizar o
dinheiro que, ainda que não fosse calcado em uma lógica socialmente instituída, não
deixava de reverberar acúmulos e conhecimentos para mais além de suas concepções
individuais. Como disse, não é de todo um equívoco pensar na possibilidade de que
utilizar o dinheiro de busca para meu interlocutor podia ter, como lógica, a conjuração
das identidades busca e policial. Sendo que o distanciamento social com relação a esta
última identidade não é algo partilhado apenas por buscas, mas por muitos e distintos
segmentos sociais.

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60 Entretanto, considerando a hipótese para este último caso, penso se Jorgito também
não acionava um pouco de seu conhecimento enquanto busca ao qual, avesso ao
pagamento da coima, recorria para expressar, com a entrega das notas em mau estado, a
contrariedade com aquelas regras que, afinal, eram impostas pelas agências policiais
para permitir que os negócios fluíssem. Tratar-se-ia, assim, de utilizar dinheiro para
realizar uma troca originada em contextos de relações assimétricas, em função da
posição social dos sujeitos. A entrega daquelas notas, assim, teria como sentido não se
submeter à lógica policial e, desse modo, não praticar a reciprocidade.
61 Basta pensar uma possível cena na qual um policial, com um volume considerado de
notas nessas condições,22 se dirija a um negócio para consumir, ou mesmo a um banco
para trocá-los por notas em melhores condições. É possível que seu interlocutor,
observando o estado precário dos bilhetes, faça conexão com a representação social
negativada da corporação policial, conforme pude testemunhar em diferentes
contextos, em Buenos Aires. Nesse caso, o que percebi como uma certa intenção de
Jorgito, em termos de comunicação, pode obter algum êxito.

Conclusão
62 A loja de Jorgito, bem sei, era um lugar muito particular. E isso tinha que ver com sua
origem social, sua história, que envolvia um passado como busca e a superação dessa
identidade pela de um comerciante que assumiu os valores da classe média portenha.
Movimento esse que ele dizia ser compensador do ponto de vista financeiro, mas que
significava também, como afirmava, “a escravidão do dono pelo seu negócio”. Para
Jorgito, sua vida tinha mudado muito nos últimos anos e as pessoas só viam alguns
aspectos disso: o carro importado que usava, as casas dele e de seus filhos, suas
matrículas universitárias, entre outras coisas. No entanto, sua vida também havia
mudado em termos da liberdade.23 Ele se via como um homem aprisionado entre
aquelas paredes, atento ao movimento de cada moeda, cada nota, cada mercadoria, em
prol do progresso da família.
63 Caso eu tivesse feito trabalho de campo em outros estabelecimentos em Constitución,
provavelmente teria tido a possibilidade de visualizar outras formas de processar os
negócios, combinando de maneiras diferenciadas aspectos comuns, como o tratamento
aos clientes, o uso dos espaços da loja, entre outros elementos. No entanto, o que mais
me chamou a atenção em relação à circulação de determinados valores naquela loja
correspondia ao que eu identifiquei como sendo próprio a uma certa classe média
portenha. O que foi observado não só na loja de Jorgito, mas em variados contextos da
vida em Buenos Aires: a conquista de uma vida melhor mediante o trabalho; o
compartilhamento de metas e objetivos em família; a formação escolar,
particularmente universitária, como forma de engajamento a valores sociais mais
amplos; a casa própria – logo, a propriedade – como base de inserção do indivíduo na
sociedade, entre outros. Em outras palavras, a opção por uma vida calcada em
requisitos que dotassem os percursos de alguma previsibilidade, ainda que combinados
com o gosto por certos riscos.
64 Nesse fluxo onde discursos, contas, pesos e centavos iam e viam, me parecia que a partir
da loja de Jorgito as pessoas (e ele, particularmente) se apresentavam e se
representavam, fazendo circular mercadorias e, com elas, seus valores. O conjunto de
situações vividas e também as histórias ouvidas naquele estabelecimento me

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permitiram um conhecimento sobre a organização daquele negócio em particular. No


entanto, possibilitaram também, em certa medida, transcender para um conhecimento
sobre a maneira como podem se organizar e se relacionar os distintos estabelecimentos
responsáveis pela circulação de mercadorias, do atacado ao varejo, e as relações entre
os indivíduos nesses contextos. E, mais intensamente, que valores podem circular
juntamente com as mercadorias, a partir das distintas perspectivas que possuem os
sujeitos responsáveis pelo mundo dos negócios em lugares como Constitución.
65 Pareceu-me também, e finalmente, que em Constitución, a exemplo do que pôde ser
observado por Hutchinson em um momento entre os nuer, nem todo o dinheiro que
circulava era para ser utilizado em todas as transações. Pelo menos nas situações que
testemunhei, havia distintos dinheiros para diferentes trocas, acionando o desejo de
manifestar maior ou menor reciprocidade.

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WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Barcarena: Editorial Presença, 2005.

NOTAS
2. Na Argentina é chamado de negocio mayorista.
3. Ver Marx (2009).
4. Em uma passagem ilustrativa dessa construção Weber esgrime argumentos para fundamentar
a diferença entre o ascetismo de base luterana e calvinista. Advogando em favor desta última
uma maior influência na constituição das características dos espaços públicos e suas
sociabilidades que contribuíram para o florescimento do capitalismo, ele afirma que “a tendência
de perseguir o contentamento presente, de retardar a organização racional da vida econômica,
dependendo de certa previsão do futuro, tem em certo sentido um paralelo no campo da vida
religiosa” (Weber, 2005, p. 62).
5. Pelo menos essa era a minha expectativa nos primeiros meses de trabalho de campo.
6. Lembrei-me que já havia algum tempo que tinha percebido ser essa a representação dominante
sobre a antropologia, na Argentina. Em distintos lugares onde me apresentei como antropólogo,
as pessoas faziam referência ao trabalho que, geralmente, é desenvolvido por arqueólogos.
Ademais, no caso da Argentina, há o ramo da chamada antropologia forense, muito conhecido
por abrigar àqueles que se dedicam à identificação de ossos de pessoas que desapareceram
durante a ditadura militar argentina. De fato, ao longo de minha estada no campo, o
desaparecimento de 30 mil pessoas durante o período de 1976 a 1983 foi um tema recorrente em,
praticamente, todos os lugares em que fui. Com exceção, justamente, naquela que era a loja de
Jorgito.
7. Uma espécie de biscoitos doces, muito populares na Argentina.
8. A palavra utilizada por Jorgito foi “aburrido”, a qual, nesse contexto, pode ter o significado de
“sem graça”.
9. Na ocasião Jorgito me disse que seus filhos cometeram “boludezes”. Essa palavra deriva do
termo castelhano boludo. Este signo, de caráter polissêmico, pode se referir a alguém que seja
considerado bobo, otário, tonto, engraçado. Em outros contextos, um boludo pode ser alguém
sacana: “Que boludo que es.” Ficar de “boludez”, nesse caso, me soou como “ficar de sacanagem”
– sendo “sacanagem” um termo que, entre os cariocas, tem distintos significados – como falamos
no Rio de Janeiro, em alusão a alguém que não cumpre um compromisso agendado.
10. Correspondentes a vendedores que utilizavam bancas “fixas” numa localidade e “postos” de
venda, também fixados no espaço público.
11. Em outro lugar enfatizo as diferenças com práticas análogas que observei no Rio de Janeiro.
Resumidamente, estas me pareceram apontar para um quadro de menor assimetria nas relações
entre policiais e vendedores ambulantes. O arreglo me pareceu resultar de um padrão de

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negociação entre as partes, a qual tomava como referência a existência de uma lei existente sobre
convivência urbana, com artigos voltados para uma regulação detalhada da venda ambulante. A
coima, inclusive, guardava certa correspondência com o valor das multas. No Rio de Janeiro,
diferentemente, a exigência de pagamento me pareceu resultar do estabelecimento unilateral por
parte dos agentes policiais, sem tomar como referência um padrão socialmente conhecido, seja
por lei, seja por um decreto governamental. Essa prática é conhecida enquanto a exigência do
arrego. Logo, não é uma coisa que duas partes contratem, mas que uma parte impõe a outra.
Sobre o assunto ver Pires (2010, 2011b).
12. Que incluíram, principalmente, a interlocução prolongada com Victor, um busca que atuava
como músico nos trens que ligavam a capital federal argentina às cidades ao sul do chamado
conurbano bonaerense. Sobre esta experiência ver Pires (2010), especialmente o capítulo 5.
13. O Ministério Público da Cidade Autônoma de Buenos Aires é uma instituição criada em
meados dos anos 1990 e tem como objetivo atuar na prevenção e sanção das práticas classificadas
como contravencionais e de falta. Ele se ocupa, por exemplo, de fiscalizar as atividades não
legalizadas envolvendo a venda ambulante, sendo auxiliado pela polícia. Estas instituições, em
suas atividades, volta e meia se deparavam com as chamadas máfias, ou seja, redes de atores que
envolviam comerciantes formais, agenciadores de imigrantes ilegais, representantes de comércio
varejista, atravessadores e contrabandistas, entre vários outros, que se consorciavam na
estruturação de determinados aspectos relacionados a venda ambulante. Em outro texto (Pires,
2011b) eu explico com maior detalhamento essas relações.
14. Nesse aspecto, trata-se de um ator similar ao hobo, do qual nos deu testemunho Nels
Anderson (1923) em uma das mais representativas etnografias da chamada Escola de Chicago.
15. Um busca cantante é um músico que desenvolve suas habilidades nas composições dos trens de
Buenos Aires, solicitando contribuições após executar algumas canções em cada um dos vagões.
Pelas regras estabelecidas entre os buscas, naquele contexto, ao mesmo tempo em que só é
admitido um busca por vez, comercializando em cada vagão, igualmente só é possível um busca
cantante por trem. Ou seja, para que um segundo busca cantante possa executar suas musicas, é
necessário que outro se dirija a outra composição, e não outro vagão. Esse acordo entre os buscas
– ou arreglo – se deve ao tempo que um músico se demora em um vagão, superior a outros buscas
que vendem mercadorias.
16. Era como Jorgito representava, em lugar de uma mera possibilidade. Para ele, conforme
anotei em meu caderno de campo, era um tipo de negociação que interessava à sua loja, mas que
deveria, ao mesmo tempo, ter como contrapartida a capacidade de trabalho do ambulante para
não prejudicar a si mesmo, “empacando” mercadoria, como também em não lesar o consumidor
vendendo mercadoria com data vencida.
17. Uma espécie de cozido que é feito com legumes e carnes de vaca de segunda linha.
18. Trata-se de uma modalidade de contratação de serviço policial que donos de estabelecimentos
comerciais, industriais, representantes de clubes de futebol, entre outros possíveis
empreendedores, podem recorrer conforme dispõe a lei em Buenos Aires. Isso significa que, a
rigor, um policial pode fazer horas extras, patrulhando particularmente uma determinada área
ou guardando uma propriedade. Nesse caso, o contrato é feito entre a comisaria em que o policial
está lotado e o requerente, ficando o pagamento sob a responsabilidade da iniciativa privada.
19. Segundo Hutchinson (1998), até meados da década de 1960 os nuer não aceitavam fazer suas
transações em papel moeda. Isso tinha que ver, por um lado, com a percepção nuer de que o
metal seria dotado de maior materialidade. Por outro lado, “a vida ordinária” nuer fazia com que
não se pudesse guardar as notas com segurança, pois podiam queimar-se, voar com o vento, ser
comidas por formigas ou dissolvidas pelas chuvas.
20. Com o fim do colonialismo e o isolamento dos nuer em relação aos dinka, dos quais
saqueavam constantemente novos exemplares de gado, além de lhes roubar as mulheres e
crianças, os mercadores de origem árabe passaram a querer comprar com dinheiro o gado dos

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nuer. Como esses não aceitavam dinheiro, a saída foi comprar vacas dos dinkas para serem
oferecidas em troca pelos bois dos primeiros. Os nuer valorizavam as vacas, porque com elas
poderiam multiplicar as cabeças de gado que possuíam. O dinheiro, com essa operação, não
entrava no círculo nuer. Por isso a autora definiu essa primeira fase pela equação G-D-G (Gado-
Dinheiro-Gado). As experiências vividas pelos nuer mais jovens, a partir de meados da década de
1950, faz com que o trabalho em plantações, mediante o pagamento de salários, insiram novos
sujeitos naquele mercado consumidor de gado, alterando em parte sua lógica de funcionamento:
“[…] se establecía una nueva relación entre ganado y dinero: ya no era necesario que un hombre
entregara una vaca para obtener otra. El dinero podía dar de sí, directamente, ganado: D-G […]”
(Hutchinson, 1998, p. 137). Com o recrudescimento da guerra civil no Sudão, a partir de 1963, a
atividade econômica na região ocupada pelo povo nuer sofreu forte redução, só se estabilizando a
situação em 1972 com o tratado de Addis Abeba. O conflito deixou como saldo a redução dos
rebanhos de gado e fome. Com a reestruturação da sociedade nuer, baseado em novas regras de
convivência, centenas de nuer foram incorporados em postos civis, na polícia e, dessa forma,
injetou-se mais dinheiro, retomando o comércio entre dinheiro e gado. Por outro lado, as
mulheres nuer obtiveram maior independência e, ao começar a trabalhar, também passaram a
formar seu próprio gado, sendo mais um elemento para distanciar os contratos de casamento das
regras impostas pelas tradições familiares. Assim, o gado é valorizado como capital e o dinheiro
como intercâmbio.
21. Era assim classificado pelos nuer o dinheiro ganho por aqueles que viviam de lavar as latrinas
de determinados estabelecimentos e moradias. Não podia ser utilizada para a compra de gado ou,
no caso dos homens, para compra do dote de uma noiva. Era dinheiro de merda, de forte
potencial poluidor, sendo utilizado especificamente para o consumo de bebidas, segundo
Hutchinson (1998).
22. Como aprendi em meu trabalho de campo, o dinheiro arrecadado com o chamado arreglo é
encaminhado à sede policial de uma região – a comisaria – e lá ele é acumulado para ser destinado
a diferentes operações. Desde a compra de utensílios, pagamento de informantes, até a remessa
de quantia significativa para os escalões superiores. Ver Pires (2011b).
23. Em 2009, quando retornei à cidade de Buenos Aires por três meses, para dar continuidade ao
meu trabalho de campo, tomei conhecimento por Hector que Jorgito estava frequentando, havia
algum tempo, sessões de psicanálise. Segundo a percepção de meu interlocutor, que era íntimo de
Jorgito, essa iniciativa buscava interagir com suas dificuldades de assumir definitivamente as
mudanças de base identitária, produzidas nos últimos 15 anos de sua vida.

RESUMOS
O artigo explora dados construídos em uma etnografia de uma loja de atacado, no bairro
portenho de Constitución, buscando focalizar e discutir a articulação entre distintos valores –
materiais, morais, éticos e estéticos – adjacentes à circulação de bens e pessoas. Tomando como
referência a literatura clássica da antropologia econômica, a narrativa busca mostrar como as
operações comerciais realizadas, muitas vezes em contextos conflituosos, promovem a circulação
de valores sociais, os quais, cotidianamente, se atualizam e são contabilizados em um processo
onde os valores das notas, as quantidades de moedas, a presença ou não de crédito, entre outros
elementos, informam muito mais do que simples intercâmbios de compra e venda.

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The article explores some information that had been built on an ethnography of a wholesale shop
in the neighborhood of Constitución, where it seeks to both focus and to discuss the relationship
between different values – material, moral, ethical and aesthetic – adjacent to the movement of
goods and people. Taking as reference the economic anthropology literature, the narrative aims
to show how the business operations undertaken, many times in contexts of conflict, promoting
the circulation of social values, in which on a daily basis are updated and recorded in a process
where the monetary values, the quantities of the coins, the presence or the absence of credit,
among others, tell much more than simple exchanges of sale.

ÍNDICE
Keywords: informality, moralities, values, work
Palavras-chave: informalidade, moralidade, trabalho, valores

AUTOR
LENIN PIRES
Universidade Federal Fluminense – Brasil

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Trabajar en los trenes. La venta


ambulante en la ciudad de Buenos
Aires
Mariano D. Perelman

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 18/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

NOTA DEL AUTOR


Una primera versión fue presentada en la 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, del 2
al 5 de julio de 2012, en São Paulo, Brasil.

Introducción
1 Los trenes son un medio de transporte así como el lugar de trabajo de cientos de
personas que, aprovechando la circulación de miles de pasajeros, se dedican a vender
productos tan variados como CD de música, DVD, medias, cubiertos, baterías, gaseosas o
golosinas; a tocar algún instrumento a cambio de dinero o a mendigar. Gran parte de
los vendedores llevan muchos años trabajando en los trenes, cumpliendo un horario,
vendiendo la misma mercadería en los mismos lugares.
2 Centrado en un grupo de ellos, los buscas,1 este artículo indaga en el modo en que se
estructura el circuito de compra y venta ambulante en una de las líneas de trenes de la
ciudad de Buenos Aires y los modos en que los vendedores se configuran como
trabajadores. El escrito aborda el modo en que se ponen en juego las nociones de
“trabajador” entre los vendedores para posicionarse y justificar la realización de la

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tarea. El presente texto no sólo se centra en los grandes relatos en torno a lo que
significa ser trabajador en Argentina –y quiénes deben ganarse la vida en un mercado
de trabajo– sino también en cuenta las diferenciaciones internas de la configuración de
la venta en trenes. El escrito también avanza en las maneras en que los buscas generan,
mantienen y configuran relaciones y obligaciones recíprocas entre ellos y con otros
actores. Sin bien muchas de estas relaciones parecen exceder lo “económico”, el
argumento que el artículo sostiene es que son éstas las que van posibilitando el
establecimiento de los agentes en los circuitos de trabajo.
3 Al pensar que las prácticas, los sentimientos, los discursos, los comportamientos van
moldeando los modos de trabajo, el escrito indagar en la actividad laboral no sólo a
nivel de las relaciones de producción y reproducción, de los modos de dominación y de
la producción de desigualdad social sino también buceando en la manera en que estos
procesos son vividos por las personas de carne y hueso. En este sentido, busca abordar
la agencia de los sectores subalternos a partir de las experiencias que unifican y
diferencian. Esto no quiere decir que haya homogeneidad hacia el interior de los grupos
pero sí condiciones que van construyendo moralidades y modos de comprender la
realidad. Como marcaba Fonseca (2005) en relación a los habitantes de barrios pobres
en Brasil. Si bien reciben muchas de las mismas influencias que los moradores de los
barrios de clase media, ambos grupos no cuentan con los mismos recursos ni se
relacionan de la misma forma entre ellos ni con otros actores. Estas “experiencias
cotidianas” son las que permiten construir un análisis interpretativo que privilegia la
óptica de clase (Fonseca, 2005, p. 133)2 en procesos específicos y en contextos
determinados.
4 Como la construcción del mundo de los buscas puede entenderse a partir de las
interacciones y de las fronteras con otros actores sociales que también se ganan la vida
en los trenes en el marco de relaciones de poder más amplias, en la primera parte del
escrito abordo la cómo la presencia de personas pidiendo posibilita una diferenciación
entre actores que permite constituirse a los buscas como vendedores. Luego el trabajo
se centra en las relaciones que los buscas entablan y mantienen entre ellos y con otros
actores que van estructurando y posibilitando la venta ambulante como trabajo.

Construyendo grupos
5 Los buscas se diferencian de otros actores no sólo por lo que venden sino también por el
modo en que se presentan y se reconocen. Es por ello que comenzaré dando cuenta de
otro de los actores presentes, los mangueros –modo en que los buscas llaman a los que
mendigan– ya que sin esta contraposición no es posible tener una idea acabada del
modo en que los vendedores se construyen qua trabajadores.
6 En todo universo de sentidos, los conceptos son relativos a otros y se definen por todo
lo que no son. Como ha sido ampliamente analizado por la antropología, los modos y
sistemas clasificatorios dan sentido a la vida de las personas, organizan el universo
simbólico y de acción, incluyen y excluyen. Esto no quiere decir que los actores se
muevan solamente dentro del universo simbólico creado por ellos. Antes bien, esté
dialoga, se constituye con y contra otros discursos sociales.
7 Y lo mismo ocurre con la diferenciación y categorización de los grupos y sus
integrantes. Antes que en sí mismos, los grupos y las identificaciones pueden sólo
comprenderse en un entramado de relaciones de contactos. A partir de éstos se van

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generando categorizaciones –sustentadas en valores morales– que producen


identificaciones hacia adentro y diferenciaciones hacia afuera. Las categorías (que
suelen estar constantemente siendo resinificadas por los actores) se van
institucionalizando y van contribuyendo a la desigualdad social (Reygadas, 2008).
8 Ser trabajador, busca o manguero, tiene implicancias tanto hacía adentro como hacia
fuera. Lo que hacia afuera puede ser visto como un no trabajo (ser vendedor
ambulante), hacia adentro es una reivindicación de una categoría laboral (ser busca que
se opone a ser manguero). Esto no implica desconocer las condiciones de desigualdad
que ser busca tiene ni que los valores morales no se construyan con y contra un
contexto más amplio. Pero ello tampoco debe negar la posibilidad de comprender los
argumentos que los actores esgrimen, sus particularidades y su historicidad.

Mangueros

9 Mientras que en los buscas existe un esfuerzo por configurarse como buenos
vendedores, en los que piden –a los que como dije los buscas llaman genéricamente
mangueros– la puesta en escena sobre una “condición habilitante” para no estar
trabajando es central. Ésta opera sobre, al mismo tiempo que construye, los imaginarios
en torno a la pobreza legítima (o desempleado legítimo). En Argentina la noción de
asistido estuvo históricamente construida por una serie de figuras a los que había que
ayudar o tutelar por, supuestamente, no tener la posibilidad de ingresar al mercado de
trabajo (viudas, inválidos, viejos, madres solteras) (Grassi; Hintze; Neufeld, 1994). A
estas figuras se opuso el pobre por desocupación como sujeto “vergonzante” ya que la
falta de empleo era vista como causada por una situación personal (Alvarez
Leguizamón, 2008; Grassi; Hintze; Neufeld, 1994).3 En los que piden en los trenes pueden
observarse ciertos estereotipos sociales que para los vendedores, para los que mangueros
y para los pasajeros habilitan a “pedir”: suelen ser personas con alguna discapacidad
(sordos, ciegos, rengos, mancos, etc.) ancianos o “personas enfermas” (portadoras de
HIV) o portadoras de algún estigma social (drogadictos en recuperación, ex presos).
10 “El pedir”, sin embargo, no es un acto pasivo. Es posible pensar que existen diferencias
entre las nociones de mendigar y manguear. En las actividades que se encuentran en
una zona gris entre el trabajo y el no trabajo, los actores suelen configurarse como
sujetos útiles y parte de ello es cuestionar la pasividad que implicaría la mendicidad.
11 En Buenos Aires, por ejemplo, los recolectores informales de residuos (cirujas)
significan a la tarea como un modo legítimo y digno de ganarse la vida. Ello se produce
intentando mostrarla como una actividad laboral y contraponiéndola a “modos
ilegítimos” de ganarse la vida como la mendicidad o el robo (Perelman, 2011a). Según
Suárez (2001) que los cirujas hablen de clientes (personas que regularmente les guardan
residuos) nutre a la actitud de “mendigar de un componente competitivo” “como quien
sale a vender algo y recorre la ciudad, tal vez el producto sea la propia pobreza,
escenificada” (Suárez, 2001, p. 80).4 Wilkis (2006, p. 113) analizando el circuito de
donaciones surgido a partir de las “publicaciones de la calle” en Buenos Aires marca
que
[…] si buscamos el significado que le atribuyen los vendedores a su actividad, en
todos los casos ella aparece interpretada como un trabajo que de ninguna manera
puede ser confundido con una especie de mendicidad encubierta o explícita. La
principal razón que ellos exponen es que ‘están ofreciendo un producto’ a cambio

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de dinero, lo que excluye pensar que su actividad sea sólo “pedir” dinero. Algunos
asocian esto último a una actitud vergonzante que la venta de la revista no tendría.
12 Estudiando el caso de los las políticas sobre los pobres y sobre los inmigrantes en
Francia, Fassin (2000) da cuenta de cómo las políticas estatales requieren de la súplica y
de la manifestación del sufrimiento para acceder a ciertos programas. En este proceso
se van moldeando cuerpos y que si bien esta puesta es parte de la retórica va
construyendo cuerpos políticos e identidades.5
13 Si en el caso analizado por Fassin el lugar para demostrar el sufrimiento es una carta y
la institución a la que se le suplica es al Estado (imponiendo una “confesión laica”) en el
tren los tiempos son más cortos y el pedido está dirigido a un pasajero que “selecciona”
el dar monedas. En los trenes el dinero no se pide sin más. Y, así como en el caso del
cirujeo o la venta de revistas en la calle, los actores no solo buscan escapar de esa
mirada “vergonzante” que su actividad implica sino que, mientras otras personas sí lo
hacen, no la perciben como mendicidad o como una forma ilegítima de ganarse la vida.
En el caso de las personas que piden dinero en los trenes existe una puesta en escena de
la necesidad y a la vez se otorga, de modo similar al “dar una revista”, algo a cambio. La
mayoría a esa mendicidad la acompañan de ya sea un producto (como puede ser dar
una tarjeta) o de la demostración de una habilidad (como tocar un instrumento).

Buscas

14 Si en los que piden, mendigar es justificada por su condición de “carencia” y pueden ser
considerados “pobres legítimos”, en los buscas existe una apelación al hombre
trabajador. Esta búsqueda sólo se entiende al apreciar la importancia que ha tenido la
construcción de hombre trabajador y la construcción social de ciertas actividades como
trabajo en una sociedad “salarial” en Argentina (Perelman, 2011c) pero también a las
propias trayectorias de los vendedores. Intentan escapar a la etiqueta de pobre
vergonzante. Los buscas suelen ser hombres que se dedican a una actividad vista como
“informal” o de “rebusque” y deberían, según los discursos hegemónicos, acceder a la
reproducción social a partir a forma legítima: el mercado formal de trabajo (Danani;
Grassi, 2008).6 Sin embargo, ser busca se articula de manera contradictoria con nociones
“hegemónicas” de trabajo que sólo puede comprenderse en relación a la configuración
en la que se desarrolla la tarea y a partir de las trayectorias laborales, muchas de las
cuales muestran las complejas imbricaciones que existen en la realización de distintas
tareas formales e informales y legales e ilegales.
15 Para muchos buscas la venta ambulante ha sido un camino natural dentro de las
actividades realizadas por sus familiares. Para muchos ha sido una elección y para otros
su único trabajo. Me refiero a una “elección” en un contexto y a partir de un repertorio
de posibilidades acotado en un campo en el que están en juego las historias personales
como el mercado de trabajo. Las elecciones no sólo remiten sin embargo a una cuestión
meramente económica. Las trayectorias laborales y de vida de los vendedores dejan ver
que han realizando diferentes actividades tanto ligadas a “lo informal”, a lo “ilegal” así
como al mercado formal. Más aún, sus prácticas laborales muestran la existencia de una
superposición de actividades o el paso itinerante por diferentes actividades.
16 Pensar en esferas separadas (al estilo trabajo formal/ venta ambulante) no posibilita
comprender la complejidad de relaciones que se establecen a la hora de vivir y de dotar
de sentido a la tarea ni los modos en que las personas de carne y hueso fueron

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conceptualizando qué significa ser trabajador. Sin desconocer los procesos de


desigualdad social, de explotación, de acceso a bienes colectivos y derechos sociales
diferentes que implican ser trabajador o ser busca me interesa marcar el modo en que
estos últimos se configuran como trabajadores y la justifican. La búsqueda de
posicionarse como trabajadores no sólo da cuenta de la importancia que la visión de ser
trabajador tiene sino también posibilita comprender el modo en que los discursos
hegemónicos en torno a la construcción de imaginarios sobre el trabajo producen
pugnas –y resistencias– en las que se disputan modos de vida naturalizados.
17 Ahora bien, la construcción de hombre en condiciones de trabajar restringe formas de
presentarse en el tren y a su vez delimitan los sentidos posibles de las tareas en un
doble sentido interrelacionado: por un lado, los propios buscas intentan diferenciarse y
mostrarse como hombres trabajadores; por el otro lado, las prácticas de los pasajeros
legitiman (dando monedas) a los que piden pero no harían lo mismo con “un hombre en
condición de trabajar”.
18 Si bien las relaciones entre buscas y las personas que piden suele ser cordial, en
diferentes ocasiones me encontré escuchando que los “mangueros” en poco tiempo
ganan mucha plata sin hacer nada, sólo pidiendo. Ante mi pregunta de por qué ellos no
pedían, escuchaba respuestas tales como “¿y a mí quién me va a dar? Me van a decir ‘andá a
comprar una caja de alfajores y ponete a vender’” o “yo me gano la plata laburando”. Estas
frases remiten a los imaginarios sobre a quiénes les es posible pedir y quienes deben
“trabajar”.
19 A la vez, además de las trayectorias propias que posibilitan la realización de la actividad
dentro del universo moral de lo “legítimo”, los vendedores están atentos al imaginario
de trabajador que tienen los pasajeros.7 En las respuestas de los pasajeros a por qué le
dan monedas a los que piden también es posible aislar los argumentos morales en torno
a quiénes son legítimamente merecedores de la limosna. Suelen decir que las personas
ciegas o rengas dan pena y más aún los viejos y por ello “está bien darles”. Los buscas en
cambio no son vistos como merecedores de monedas.
20 De esta forma, la presencia de personas pidiendo produce un efecto de diferenciación y
marca límites al modo en que los buscas se construyen y presentan como trabajadores.
Estos límites no sólo remiten a lo que se vende y la manera en que se realiza. Existen
relaciones hacia el interior de los grupos que producen que ciertos modos de
identificación se vayan sedimentando, que posibilitan la confección de territorios,
lealtades (y reconocimientos) hacia el interior de cada uno de los grupos y que
contribuye a la estabilización de las personas en la actividad.
21 En las secciones siguientes daré cuenta de estas relaciones interpersonales. Muchas de
ellas suelen “exceder” lo económico y son las que permiten comprender cómo los
procesos de trabajo están enraizados en relaciones personales, en elecciones morales,
en lealtades y en enemistades. Los procesos económicos no sólo no se entienden sin
estas relaciones sino que éstas son parte de la construcción de los procesos de trabajo.
22 A modo argumentativo he decidido iluminar estos procesos a partir de las relaciones
que genera un busca, Cacho. La elección de centrarme en una persona se deba a que a
partir de ella es posible comprender una configuración de sentidos que, más allá de las
particularidades de cada vida, da cuenta de los procesos que se generan durante la
venta en los trenes.

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Pensando el trabajo, más allá del trabajo


23 Quedamos en encontrarnos en el Kiosco que está a la “derecha del Hall”. No nos
conocemos y cada vez que una formación llega trato de adivinar, entre la marea de
gente que sale apurada, quién es. Al rato de estar parado recibo un mensajito de texto
en el celular. Está atrasado. Llegará en media hora. Aprovecho para caminar por el hall
y las adyacencias de Constitución. Está lleno de gente. Salgo a la Av. Brasil. Es difícil
caminar. Hay un puesto al lado de otro. Venden pilas, despertadores, zapatillas, ojotas,
cinturones, golosinas, ‘snacks’, juguetes, etc. Las personas desfilan mirando las cosas,
otras caminan apresuradas para tomarse alguna de las decenas de líneas de colectivos
que pasan por allí. Bordeo la estación y vuelvo a entrar por la calle Lima. Espero unos
minutos y, entre la gente, aparece Cacho. Me sorprende verlo sin nada. Sé que viene de
su casa ¿dónde tiene sus productos para vender? Nos presentamos y me pregunta si
quiero ir a tomar un café “para charlar más tranquilos”. Pronto noto que caminar con él
lleva tiempo, saluda a vendedores callejeros, otros buscas, trabajadores de los locales y
de la empresa concesionaria de trenes y pasajeros. Suele llegar un tiempo antes de
comenzar la jornada de trabajo. A veces tiene que adquirir lo que va a vender,
especialmente las gaseosas. Mientras los trenes están parados Cacho vende golosinas en
los vagones de las formaciones del ramal Constitución –Alejandro Korn. Luego, a partir
de las 21.30, ofrece gaseosas en los trenes en movimiento. Para proveerse de
mercadería va al mayorista ubicado a dos cuadras de la Estación. Cuando no puede
hacerlo allí, ya sea porque el local está cerrado (a veces se le hace tarde) o porque el
local se ha quedado sin mercadería, acude al hipermercado que también queda a un par
de cuadras. El precio no es el mismo y revender lo adquirido en éste último le reditúa
menos dinero.
24 Vamos a un café frente a la estación. Llegamos y el mozo lo saluda efusivamente. Se
escuchan los gritos de cuatro hombres sentados en una mesa al fondo del local, son
saludos. Todos parecen conocerlo. Nos sentamos y, antes de que termine de
acomodarme, se acerca un vendedor senegalés con una portafolio lleno de pulseras,
relojes y cadenas. Se saludan. Cacho le pregunta cómo anda el laburo y recibe un meneo
de cabeza como respuesta. El vendedor se aleja y su cabeza gira hacia mí: “Bueno ahora
sí, contame”.
25 En ese primer encuentro me contó sobre su relación con los vendedores y con los
pasajeros, sobre la afinidad y enemistad que existe entre los buscas, lo que me dio
ciertas pistas de esa configuración y me permitió tener un mejor acceso a otros actores.
A diferencia de otros buscas que contacté en el tren, con él charlamos con una confianza
poco habitual para los primeros momentos del trabajo de campo. Me llamó
particularmente la atención que se considerase un eslabón necesario del viaje de los
pasajeros8 y parte de una suerte de familia formada por vendedores que vienen
desarrollando la tarea desde hace varios años. Estas mismas posiciones surgieron
recurrentemente durante el trabajo de campo.
26 Opté por pensar a las “virtudes” que los buscas expresaban, la importancia que le
otorgaban a su tarea (“prestamos un servicio importante”, “los pasajeros dependen de mí para
no morir de sed” y toda otra serie de frases similares) y sus visiones de ser una familia no
como si fuera mera retórica. Como dice Balbi (2007, p. 37) refiriéndose al modo en que
“los peronistas” entienden la lealtad “toda vez que nos encontramos con un tipo de
explicación recurrente ofrecida por determinados actores para determinada clase de

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eventos debemos prestarle una atención desprejuiciada e intentar explicarla”. Las


explicaciones recurrentes podrían hablar de la confianza entre los actores y el
etnógrafo. Las “manipulaciones” situacionales, las formas de presentarse –aun cuando
sepamos que no son del todo ciertas– son también fructíferas y deben ser tenidas en
cuenta. Las interacciones pueden decir mucho sobre las expectativas que los actores
tienen sobre los investigadores, y el modo de mostrarse puede abrirnos las puertas a
modos que los actores consideran “deseables” o más confortables. Así, antes que pensar
que los actores “mienten” es preciso analizar esas situaciones. Claro está que no sólo es
posible quedarse con lo que se dice sino también con lo que se hace.
27 Los comentarios de Cacho, fueron un punto de partida para comenzar a indagar el
modo en que los buscas construyen relaciones con compañeros, proveedores, personal
del tren y pasajeros.
28 Ya en aquella primera caminata comprendí que era necesario indagar en cómo las
personas de carne y hueso entablaban relaciones en una configuración determinada.
Asir una serie de relaciones me permitiría entender el modo en que los vínculos
personales –en esta configuración específica– construían ‘lo económico’ y que ‘lo
económico’ abarcaba mucho más que el intercambio de bienes por dinero.
29 Durante el trabajo de campo fui comprendiendo la particular topografía del mundo de
los trenes conformada por esas relaciones, sus moralidades y su historia. Todo ello ha
ido configurando modos posibles de actuar que no son un epifenómeno del circuito de
venta sino que son constitutivos de éste.
30 Los procesos de trabajo, entendidos de esta forma, no comienzan entones, al momento
de subirse al tren a vender. Son una serie de relaciones –a las que se puede apelar y las
que se deben mantener– las que van posibilitando la realización y el mantenimiento en
la actividad.

Relaciones entre buscas


31 Cacho no sólo llegó “temprano” la tarde de mi encuentro. Como pude apreciar tantas
otras veces (tanto mientras acompañaba a él como a otros busca), el “trabajo” empieza
mucho antes que el ir a comprar la mercadería o empezar a ofrecer en el andén y en los
trenes. Charlar con el resto de las personas que se dedican a la venta así como con
mozos, guardas y personal de seguridad es parte de la actividad laboral.
32 Las conversaciones también se dan durante los momentos de venta, entre un tren y
otro, en alguna estación donde los buscas comen juntos o toman café. Allí se ponen de
acuerdo sobre los precios de venta, se prestan mercadería, intercambian información,
se cuentan sobre ofertas, lugares de compra, se informan de si es un buen día o no para
la venta y si hubo algún problema con los guardas o con la policía. También son
momentos para juntarse y charlar sobre cosas que podrían considerarse que no tienen
que ver con la venta: hablar de la Quiniela o detenerse a charlar de los problemas
propios. Las charlas en los cafés de las estaciones o en los bancos a veces se llevan la
mayor parte de la jornada de trabajo y es dónde las relaciones de afinidad se van
afincando y a la vez son los espacios que los buscas reivindican sobre la actividad a la
que ven como que cuenta con ciertas libertades.

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Relaciones que constituyen la venta

33 Ponerse de acuerdo, dividirse los recorridos y productos es posible –e imperioso–


debido al modo en que se configura la venta ambulante en la línea. Parte de la
necesidad de mantener relaciones estableces remite a hacer cerrado un lugar abierto. El
mantener las relaciones requiere generar ciertas lealtades basadas en comportamientos
mutuos. Los buscas construyen el territorio de manera colectiva. Se dividen por
horarios, por ramales, por tareas/ productos y se organizan para que nuevas personas
puedan o no trabajar en los trenes. Si bien cada uno tiene su recorrido (algunos suelen
superponerse), ellos son del grupo y, por ende, existen compromisos para con los otros
vendedores.
34 La palabra códigos engloba una serie de actitudes que hacen que un busca sea un buen
busca y que pueda desarrollar la tarea. Durante mis observaciones en la estación de
Constitución pude notar la buena relación que existe entre los buscas y el modo en que
se están dando muestras de confianza. Ellas no se basan en grandes gestos o actos
excepcionales sino, sobre todo, en pequeños y cotidianos. La confianza –que como
recuerda Lomnitz (2004) es un concepto cultural que debe ser etnográficamente
descrito9– habilita en diferentes configuraciones distintas posibilidades. Es importante
no sólo indagar en cómo la confianza se construye y qué significa sino también qué
posibilita, cómo se mantiene y los límites que establece. En el caso de la venta
ambulante, una relación de confianza basada en el saber que la otra persona tiene
códigos es central para poder participar en la venta. Y ello es así no sólo porque llegado
un punto los buscas puedan expulsar a una persona, sino porque son los pequeños
gestos los que posibilitan el “normal” desempeño de la actividad y el sentirse cómodos
mientras la realizan.
35 Si algún busca va a comprar más mercadería (generalmente lo hacen en los mayoristas
cercanos a la estación) o tiene que salir del andén, le piden a otro que le cuide la
mercadería; se pasan datos (“fijas”) de las carreras de caballo; se prestan o se cambian
dinero; se invitan a tomar una cerveza o a comer una porción de pizza, etc. lo que hace
que el devenir cotidiano se desarrolle de una manera armónica.
36 La afinidad entre los buscas –no todos son amigos– se expresa, también, en actos que
exceden los momento relativos a la venta. Así, por ejemplo, si alguno de los vendedores
tiene algún problema suelen hacer colectas para ayudarlo.10 Los préstamos de dinero y
mercadería también son usuales entre los vendedores. Ello al mismo tiempo los acerca
y los aleja estableciendo deudas morales entre ellos (cf. Bourdieu, 1996; Godelier, 1998;
Mauss, 1979).
37 Parte del código es que los vendedores de una línea (ramal) no vendan en otra. En
Constitución los ramales salen de andenes contiguos por lo que pasarse de línea es muy
sencillo en términos espaciales. Los límites, sin embargo, no están configurados por
barreras físicas sino morales. Como ha planteado Sigaud (1996) en su etnografía sobre
los trabajadores de los ingenios en Pernambuco (Brasil) es el interés de los actores en
activar y mantener las relaciones lo que funciona como garantía de continuidad de las
mismas. Esto no quiere decir que no haya formas “incorrectas de actuar”, pero ello
tiene sus costos, pudiendo llegar a la ruptura de la relación y a la imposibilidad de
seguir trabajando normalmente.
38 Así, para trabajar sin problemas y que otros vendedores respeten el territorio ganado y
reconocido, los buscas deben abocarse a trabajar en su espacio y ser confiables. “No

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meterse con los otros” es parte del modo en que se gana el reconocimiento y se mantiene
la confianza entre los conocidos.
39 Las fronteras grupales a las que me referí en el apartado anterior también pueden
apreciarse en función de a quiénes se respeta y a quiénes no, a quiénes alcanzan los
códigos.
40 Malinowski (1969) había advertido que es en la ruptura de las normas (y en su castigo)
dónde puede apreciarse con mayor claridad las moralidades presentes. En esta misma
línea Pita (2010) (recuperando a Pitt-Rivers [1979, p. 131] “la mejor forma de examinar
valores morales es mediante las sanciones que funcionan contra su violación”) dice que
“es claro que no sólo la colaboración y la ayuda –o el interés en ello, aunque sea sólo
por una de las partes– hablan del compromiso moral en virtud del cual actúan las
personas. También, aquellas actitudes y comportamientos que son consideradas
contrarias a lo que se debería, en tanto se están confrontando con una valoración moral
de lo esperado, hablan, sin duda, de aquellos compromisos y obligaciones morales que
no se están cumpliendo y, por tanto, son también valiosas para el análisis (Pita, 2010,
p. 78).
41 Los buscas que venden golosinas, por ejemplo, no sólo compiten entre ellos, sino
también con los vendedores concesionados de las estaciones. El pacto es que primero
pasa el vendedor concesionado y luego el busca. Si bien suelen decir que existen códigos
entre ellos, cuando pueden los buscas le cortan un vagón a otro. Esta práctica, que
significa meterse en el vagón a ofrecer antes que a la persona que le corresponde,
parece tener cierta legitimidad cuando se le hace al vendedor que representa a alguno
de los puestos y es considerado ilegítimo cuando se lo realiza a algún otro busca. En
estos últimos casos suelen ocurrir conflictos.

“Acá el negocio es vender mucho”

42 En un territorio cerrado a la entrada de vendedores externos, ponerse de acuerdo en el


precio de venta posible e importante ya que descarta un elemento de competencia. El
negocio versa en vender lo comprado (en general al por mayor) a un precio más alto.
Buscas y pasajeros saben cuánto cuesta lo que venden en los comercios. La lógica es
poder vender el producto aproximadamente al doble del precio de compra y también
tener un margen para presentar “ofertas”. Las explicaciones suelen basarse en
ejemplos. Una tarde, conversando con Julio me dijo: “este chocolate vale cuatro pesos, lo
tengo que vender a diez”. Cacho me explicó que “si la caja vale cincuenta pesos y vienen 50
bombones, tengo que vender uno por tres pesos o dos por cinco”. Puede ocurrir que alguno no
esté vendiendo al precio pactado, pero al ser un espacio chico y por el que circulan
distintos buscas existe un control que hace que esta diferencia dure poco. Con respecto
a las gaseosas y la cerveza, el precio está signado, en gran medida, por el valor que pone
la concesión del andén. En general los compradores no tienen la capacidad de negociar.
Los buscas de bolso11 tienen una lógica similar respecto al modo de fijar los precios que
parece tener los límites mínimos en la ganancia querida y los máximos en un cierto
consenso social.

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Amistad, afinidad y relaciones con otros actores


Una tarde en el andén

43 Los vendedores suelen dejar en puestos conocidos parte de la mercadería en kioscos de


diarios, bares de la zona y otros comercios que estén en las estaciones que forman parte
de la ruta. Para que ello sea posible los buscas generan relaciones de afinidad con el
personal de los comercios. Si bien la venta puede realizarse sin contar con el apoyo de
un empleado del comercio, pero la actividad se vuelve más difícil.
44 Estoy parado en el andén. Luego de mirar un rato largo los movimientos de los buscas y
otros vendedores me acerco a Jorge, el kiosquero de diarios. Mientras charlamos se
aproxima Cacho para buscar más golosinas. Agarra una caja y vuelve rápidamente a los
trenes. Apenas sale del rango auditivo me dice “sabés hace cuánto conozco a este sujeto. Es
un personaje de aquellos. [Hace una mueca con la boca y luego dice] es un buen tipo,
laburador”. Le pregunto cómo lo conoció y me cuenta que él trabaja desde hace más de
cuarenta años en la estación, tiempo en el que estuvo en diferentes puestos de diarios.
Cacho, me dice, era amigo del viejo kiosquero y cuando tomo Jorge su lugar no se
llevaron bien. Sin embargo, la cotidianeidad les fue dando una amistad particular en la
que mucho tuvo que ver el predecesor de Jorge. Cacho hoy tiene la llave no sólo de su
armario sino la del kiosquero. Cuando llega a la estación, suele abrir ese
compartimiento y leer el Diario para luego colocarlo lo más prolijamente posible donde
lo encontró.
45 Los años que lleva Cacho vendiendo en la estación no sólo le han conferido un lugar
entre los buscas sino también con otras personas que trabajan en la estación y con los
pasajeros. Durante varios años, llevó y trajo desde su casa dos heladeras (una para
cerveza y otra para gaseosas). Las complicaciones que ello implicaba no sólo referían a
la molestia de cargar todos los días los elementos de trabajo sino también a la
imposibilidad de preparar heladeras para poder vender más y tener que cargarlas
completamente llenas todo el tiempo durante el viaje.
46 Hoy Cacho llega a la estación unas horas antes, tal como el primer día que lo vi, sin nada
más que una riñonera donde tiene su billetera y las llaves del candado del armario. La
amistad con el kiosquero le permite no tener que cargar todos los días desde su casa las
golosinas y gaseosas que le sobran. Como una de las puntas de su ruta de trabajo es
Constitución, esta relación también le posibilita reponer durante su horario de venta
sin tener que cargar una gran cantidad de gaseosas de un lado a otro.

La salida y entrada a los lugares de trabajo

47 Como dije, cuando los buscas salen de los andenes apelan a que otras personas les
cuiden la mercadería. Los que venden cosas pesadas o de gran tamaño suelen buscar
dejar en algún comercio de los andenes para no tener que cargar toda la mercadería
durante la jornada de trabajo. Muchas veces me he cruzado con algún busca que iba en
el tren yendo a reponer mercadería a alguna estación. Otros, van comprando en
comercios aledaños a las estaciones conforme lo van necesitando.
48 La libre circulación no depende sólo de esta capacidad de conseguir un cuidador. Para
poder trabajar en los trenes es necesario conocer y tener buena relación con el personal
de seguridad, los policías y con otros trabajadores. Durante una jornada, los buscas

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suelen entrar y salir del andén por lo que tener ese libre acceso es necesario. Pires
(2005) analiza las relaciones entre camelos (vendedores ambulantes), operadores de
seguridad pública y otros usuarios de los trenes de la Central de Brasil, en Rio de
Janeiro. En esa ciudad, la venta es perseguida por lo que los vendedores deben
rebuscárselas para ingresar la mercadería. Dice Pires (2005, p. 156) “en un primer viaje,
cualquier pasajero puede sorprenderse cuando, como por un pase de magia, cajas
enormes del telgopor cargadas con gaseosas y cervezas o de barrales con decenas de
productos surgen no se sabe bien de dónde”. El “misterio” se soluciona si se presta
atención a los momentos que anteceden la partida del tren y a los de inspección cuando
se activan una serie de procesos rituales para pasar desapercibidos, con la complicidad
de los vigilantes. Una de las diferencias que más llamó la atención a Pires (2010,
p. 95-96) respecto a la venta ambulante en Buenos Aires y en Rio de Janeiro es que en la
primara de las ciudades los vendedores ambulantes (a diferencia de los camelos) “en el
espacio público urbano son siempre los mismos, casi siempre en los mismos lugares” y
lo mismo ocurre con los agentes policiales que “controlan aquel interminable flujo”. En
Rio de janeiro –en la que la lógica de la organización del trabajo policial es diferente a la
de la Federal– con la circulación de los policías se busca que un agente no se
“familiarice con las personas de un local”. A diferencia de lo que ocurre en Rio de
Janeiro o en los subterráneos de la ciudad en el que los que piden pagan el boleto y
entran como cualquier otro pasajero (Cf. Graziano; Lajarraga; Grillo, 2007) los
inspectores y los que controlan la entrada de pasajeros a los andenes de Constitución
son los que posibilitan que los vendedores entren y salgan sin problemas a la vista de
todos. Esta estabilidad de ambos actores, tanto de los buscas como del personal de
seguridad contribuye a la estabilización de personas en la tarea y a la rutinización de
las prácticas que se basan en conocimientos personales tanto en el caso de la policía
como el de otras personas encargadas del control de los pasajeros.
49 Una tarde, mientras salía junto a Cacho del andén rumbo al hall, un hombre intentó
pasar sin boleto. El encargado del control lo detuvo. El pasajero comenzó a insultarlo y
el encuentro casi termina a las piñas. No pude contraponer esa imagen con el recuerdo
de los que nos había ocurrido unos minutos antes a Cacho y a mí cuando entramos al
andén. Él venía delante, saludó al inspector y luego se dio vuelta y dijo “él [por mi] está
conmigo”. Fue así que recibí un saludo. Son el conocimiento y reconocimiento personal
los que le posibilitan a los buscas transitar libremente por las estaciones, así como
entrar y sacar productos sin problemas.12

De buscas y mayoristas. Las relaciones y sus límites

50 La construcción de un capital de confianza con los mayoristas también es parte del


trabajo que los buscas realizan. Los vendedores suelen ir siempre al mismo mayorista, o
sea a un establecimiento que vende por mercadería por mayor. En parte existe una
conveniencia instrumental: no tener que trastocar sus territorios para reponer la
mercadería a un precio conveniente. Pero también los buscas van estableciendo una
relación personal que les posibilita acceder a otros beneficios y ser reconocidos en un
rol de vendedores.
51 Durante varios años Cacho compró siempre en el mismo mayorista – lo de Carlos– que
tiene su negocio en las cercanías de la Estación. Carlos no era su proveedor exclusivo, a
veces conseguía ofertas (en especial golosinas).

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52 Aunque es común que todos compren lo mismo y en el mismo establecimiento, lo que


facilita el ponerse de acuerdo con el precio y dividirse los productos, suelen aprovechar
esas ofertas. “El otro día en el mayorista de Lomas de Zamora la caja de Rodesia estaba veinte
pesos y acá [por lo de Carlos] veintiséis. Son seis mangos [pesos] más por caja, en doce cajas son
setenta mangos” me dijo una tarde. Los buscas también aprovechan ofertas que otros
golosineros de confianza les comentan. La circulación de noticias entre vendedores
amigos posibilita el acceso a productos. Es un intercambio que se produce entre
conocidos que respetan códigos comunes.
53 Retornando la relación de Cacho con los mayoristas de bebidas y golosinas. Dije que no
le compraba todo a Carlos pero siempre le compraba algo. Esta prolongada
cotidianeidad y la muestra de confianza (expresada en la continuidad de la relación de
compra– venta y en el cumplimiento en los pagos) le permitió obtener beneficios como
que le fíen o guarden mercadería.
54 Hasta hace poco tiempo Cacho estuvo interesado en mantener esa relación. Una tarde
al llegar al andén, lo veo preparando sus heladeras con las gaseosas y las cervezas. Le
pregunto si hoy vino más temprano para comprarle a Carlos y para mi sorpresa me
respondió que unos días atrás había cambiado de mayorista. Recordé algunas frases que
me había dicho en charlas anteriores y busqué en mis notas de campo. En un trabajo
anterior había escrito sobre la relación entre ambos que si bien a veces Carlos no le
guardaba mercadería o Cacho sentía que lo trataban mal, este último estaba interesado
en mantener la relación. En aquel trabajo describía cómo, pese al “des trato”, el
mantener la relación le permitía que le guardasen o fiasen mercadería, y que también
estaba presente el recuerdo –como coerción moral– de las épocas en que los vendedores
eran perseguidos. Si bien hoy la venta es permitida, varios vendedores de la línea
recuerdan los momentos de persecución policial sobre ellos y la confiscación de la
mercadería. En esos momentos recuerda Cacho que “venía la policía. Entonces te
levantaban todo, te llevaban a la comisaría, acá en la estación […] Nos confiscaron toda la
mercadería […] No tenía qué vender. Y se compra con lo que se vende. Así que como no había
vendido nada no tenía un mango [dinero] para comprar mercadería. Pero le pedía a Carlos y me
fiaba, una caja de gaseosas, sabía que después, cuando vendía se la pagaba”.
55 Varias veces le había preguntado por qué seguía comprando en lo de Carlos. Entre las
causas me nombró la cercanía a la estación, la conveniencia del precio y solía repetir
que “eran muchos años ya” los que allí compraba. La ayuda que había recibido en
momentos difíciles (como en el caso de las confiscaciones policiales y el adelanto de
mercadería) había quedo en el imaginario de Cacho, como en el de muchos otros, y
funcionaba como un elemento poderoso de deuda con el local.
56 Pocos días antes que lo encontrase rompiendo hielo y preparando las heladeras una
acalorada tarde de enero, Cacho decidió cambiar de proveedor. Me dijo que Carlos “se
había enojado” porque ahora le compraba al Ruso y que le había dicho “mirá que yo te
banqué cuando estabas mal” marcándole la deuda moral que habían contraído. La no
retribución de una deuda (el devolver) –como ha sido ampliamente analizado
(Bourdieu, 1991, 1996; Godelier, 1998; Mauss, 1979; Sigaud, 1996)– puede llegar a la
ruptura de la relación y ello fue lo que ocurrió. Cacho, también esgrimía razones que
consideraba legítimas para el fin de la relación: “si pero ahora no me respetas” fue su
respuesta. Cacho también esgrimía que a los puesteros (los vendedores que tienen
puestos fijos en la estación o en las calles aledañas) les fiaba la carga completa mientras
que a él sólo le adelantaba uno o dos packs de latas. Para Cacho este era un acto que

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hablaba de cierta falta de confianza y un des respeto a alguien que siempre ha tenido
códigos. “Ahora no me va a fiar más” me dijo entre risas para luego largar un insulto hacía
Carlos. Haber decidido cesar la relación probablemente no le cierre las puertas al local
pero si a los beneficios personales adquiridos durante años.
57 Este tipo de intercambios que está en basado en relaciones personales exige
comportamientos valorados por las dos partes. No basta sólo con fundar una relación
en una deuda o generar confianza, sino que también es necesario actualizarlas en actos
cotidianos que permitan mantener la legitimidad de la deuda y de la confianza.
58 El nuevo proveedor es un ex trabajador de un mayorista de la zona que logró juntar
dinero y poner su negocio. Por las trayectorias laborales, se conocen y tanto el Ruso
como Cacho están buscando establecer una relación comercial, dando ambos muestras
de confianza mutua. Cacho ahora le compra todo al Ruso que, si bien trabaja hasta las
18 hrs., lo espera para llevarle la mercadería al andén (cosa que le soluciona la compra
porque no tiene que salir de la estación), se manejan por celular (Cacho le avisa por
teléfono a qué hora llegará para no hacer esperar ni al dueño del local ni a sus
empleados) y le trae también hielo. Al preguntar sobre estas otras cosas relacionadas
con la confianza, como comprar fiado y me dijo que “lo había tanteado” y que la
respuesta había sido que “Cachito no te preocupes, que con vos no hay problema”. Todavía
no ha surgido la posibilidad de poner a prueba la palabra dada.
59 El precio de los productos si bien es importante no es determinante (“Carlos me dijo que
me iguala el precio [que por cierto difería por muy pocos] que me hace el Ruso, pero se lo
tengo que pedir”) ya que ello debe venir acompañado de otros gestos. Cacho valora que lo
respeten, lo que tiene es central para él que es busca reconocido. El “con vos no hay
problema” le otorga a Cacho un reconocimiento y una importancia a la palabra.
60 Las relaciones entre vendedores y compradores no sólo se fundan en una relación
comercial ni sólo tienen un carácter económico. Para los buscas es significativo ser
reconocido, tener un nombre, pertenecer a un grupo y tener un nombre dentro de éste.
Boissevain (1987 apud Garriga Zucal, 2007) plantea que los motivos que llevan a los
sujetos a trabar interrelaciones e intercambios no sólo tienen que ver con la búsqueda
de un beneficio pragmático, sino que también juegan un papel importante los valores
morales del grupo. Qué está bien, qué está mal, la imagen y el lugar que la otra persona
le otorgan a los actores también forma parte de las motivaciones para entablar,
mantener o romper una relación.

De buscas y pasajeros

61 El reconocimiento de los otros buscas, de los trabajadores de la empresa, de la policía y


de los mayoristas también se da con algunos pasajeros.
62 Ello es posible porque no sólo los vendedores suelen trabajar diariamente cumpliendo
un horario similar y vendiendo el mismo producto sino también porque muchos
pasajeros utilizan rutinariamente el tren como medio de transporte.
63 Al hacer siempre los mismos trenes, Cacho pudo hacerse de una clientela relativamente
fija. En diferentes observaciones lo he visto charlar con ellos y notaba que existía un
conocimiento mutuo. La primera vez que nos vimos me dijo, “el otro día no vine y al otro
día [se refiere al día posterior] un cliente me dijo ‘¿qué te pasó ayer que no viniste? Me morí
de sed todo el viaje’”. Cuando me contó esta anécdota pensé que más allá de la veracidad

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de esta frase era importante rescatar la idea de que cree tener clientes a quién debe
cumplirles. Varias veces me había dicho que dependen de él para tomar algo, que lo
esperan para comprarle una gaseosa mientras vuelven a sus casas. Lo cierto es que los
clientes lo esperan, le compran y a algunos de ellos, si es necesario, Cacho les fía. Esto le
permite, en parte, tener una previsibilidad sobre la cantidad de bebidas que va a vender
y poder calcular los ingresos diarios.13 Para que esto ocurra es necesario que Cacho esté
allí. Fiar, tratar bien a la gente, hacerse conocer forman parte del repertorio de
prácticas que hace que Cacho sea una persona conocida por los pasajeros, más aún en
los horarios nocturnos donde el flujo va mermando. Una tarde hablando sobre el
trabajo de los buscas me dijo que él no podía venir cuando quisiera sino que debía
hacerlo todos los días. Le pregunté por qué y el orden de los argumentos comenzó con
la necesidad cumplirle a los clientes; me dijo “yo hoy vengo, después tres días no, después
dos días si, el tipo no me compra más, yo le tengo que cumplir”. El otro argumento era
económico “acá si no trabajás no llevas la plata a tu casa, yo se que laburando hoy tengo la
plata para el día de mañana”. Probablemente las dos cosas tengan importancia para
Cacho y, de hecho, están relacionadas: para mantener el circuito es necesario
construirlo con todos los actores y los pasajeros son clientes potenciales.
64 Las múltiples interrelaciones hacen que ser un busca (vida) no sea pura libertad (como
reivindican los actores).14 Es generar formas de relación, de ganarse la vida, de transitar
la ciudad de una manera determinada.

Palabras finales
65 La construcción de mercados laborales, de formas de trabajo y de sujetos como
trabajadores se va produciendo en relación a la constitución de ideas en torno al modo
de producción y reproducción del capital. A la vez, los grupos se re apropian de las
categorizaciones y las resignifican para pensarse como sujetos trabajadores. Ese es el
caso de los buscas.
66 Los actores saben que la actividad puede ser vista como un modo cuestionable de
ganarse la vida, ligado a la “vagancia” o a lo “marginal”. Es por ello que los actores
necesitan justificar la realización de las tareas y dotarlas de elementos ligados al
trabajo. Es en el juego de equilibrios entre los discursos en torno a la pobreza legítima,
las trayectorias y los modos en que todo ello es puesto en práctica en los rituales
cotidianos de interacción lo que va generando la posibilidad de acceder a la
reproducción. A su vez en este proceso se van diferenciando grupos que tienen sus
propios códigos y sus modos de presentarse.
67 La venta ambulante posibilita complejizar las dicotomías entre acceso a la vida desde lo
“informal” o “marginal” y lo “formal” así como pensar en términos de lo que los
actores consideran legítimo. Es por ello que la construcción de los buscas como
trabajadores no se comprende cabalmente apelando a los macro procesos relativos a la
construcción de un tipo de trabajador. Si bien no escapan a los estereotipos sociales y
los actores son conscientes de ello (a los que apelan y manipulan) es la configuración
interna y la diferenciación con otros actores presentes (los mangueros) los que
posibilitan a los buscas posicionarse como trabajadores.
68 Los actores cuando realizan actividades laborales van configurando relaciones que les
permite construir predictibilidad y qué estas requieren de un trabajo cotidiano de
mantenimiento de lazos personales. En el escrito he abordado una serie de relaciones

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que los diferentes actores presentes están constantemente activando y que van
produciendo interdependencias entre los diferentes actores. Conviene recordar que los
actores implicados en estas relaciones no hablarían de predictibilidad ni de
estructuración de las relaciones ni de argumentos morales. Estas son construcciones
realizadas por el investigador. Son estas relaciones las que posibilitan –o que van
dotando de sentido, estructurando de una forma determinada– un mercado de
circulación, de consumo de bienes y un circuito de comercio. Son estas relaciones las
que van produciendo “derechos” mutuos investidos de moralidad que contribuyen a la
estabilización de los mercados de producción y consumo. Son las prácticas de los
actores las que explican la estructuración.
69 Los buscas pueden acceder a los trenes sin problemas gracias a la relación personal que
tienen con los guardas, personal de seguridad, con la policía 15 y con los otros guardas.
Tener códigos, respetar la territorialidad, el producto, el precio se van configurando
como elementos necesarios que hacen a la práctica económica y que no pueden
escindirse de la venta en sí. El trabajo de los buscas no comienza y termina arriba del
tren sino que es diario y múltiple. Son esa serie de actividades cotidianas las que
permiten estar en el tren, vender y resignificar una historia de exclusión.
70 Por último me gustaría marcar que la estructuración de la actividad no implica pensar
que la reivindicación de los buscas (“busca vidas”) en tanto modo de acceso a recursos
como un “modo de vida” relativamente libre sea falsa. No sólo porque además de
generar relaciones y dedicarse a la venta pasan tiempo en bares, charlando o dedicando
tiempo a actividades que para ellos no forman parte de la venta en sí (pero que como
marqué la posibilitan) sino porque la subjetividad se construye de manera que a los ojos
de otro puede parecer extraño y contradictoria. Más allá de poder ver en ella una
fetichización de relaciones de producción, las personas de carne y hueso no se
comportan ni son coherentes en su vida y las forman en que son vividas las prácticas
laborales pueden ser estructuradas y libres a la vez.

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NOTAS
1. Las categorías nativas aparecen en cursiva así como las citas de los informantes que, además,
figuran entre comillas.
2. Ver también Fonseca (2000); Ortner (2006); Ginzburg (2008), entre otros.
3. Los rituales de interacción posibilitan ver no sólo la vigencia de las construcciones en torno a
los pobres merecedores de asistencia sino también cómo este imaginario se reactualiza
cotidianamente en el nivel de las interacciones (Cf. Perelman, 2012).
4. A su vez reconoce que “Esta estrategia de generar clientes, es algo distinta de la tradicional
estrategia de mendigar que se asocia con una actitud pasiva y humillante. Esta actitud trata de
generar una red privada de asistencia” (Suárez, 2001, p. 80). Sobre otras interpretaciones sobre la
noción de cliente ver Perelman (2011b).
5. Al analizar las cartas enviadas por los posibles beneficiaros a un plan social, Fassin (2000)
encuentra que existen estrategias retóricas para hacer más convincentes las solicitudes. Los
elementos principales son cuatro: la necesidad, la compasión, la justicia y los méritos.
6. La relación trabajo/ dignidad/ modo legítimo de ganarse la vida fue trabajada en Perelman
(2011a, 2011c).
7. Las nociones legitimantes se juegan a nivel individual y también en la esfera pública. Es,
entonces, importante tener en cuenta el factor dialógico que tiene el reconocimiento (cf. Cardoso
de Oliveira, 2004; Cardoso de Oliveira; Cardoso de Oliveira, 1996; Taylor, 1993) y por ende, la
forma de posicionarse públicamente.

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8. Esta visión también era compartida por su esposa quien solía decirme que Cacho era un gran
vendedor, que lo conocían todos, que tenía “clientes importantes”.
9. En una versión previa de este trabajo Wilkis marcó el peligro de pensar en la confianza como
algo que se tiene o no se tiene.
10. Si bien cuentan con formas de ahorro (como comprar mercadería de más, guardar dinero,
mantener relaciones personales, etc.) dependen en gran medida de lo que pueden obtener
mientras venden. Apelar a la amistad es una forma de garantizar cierta previsibilidad.
11. Los buscas suelen diferenciar entre buscas de alimentos, de golosinas y de bolso. Bajo esta última
denominación se agrupan a los vendedores que ofrecen todo tipo de productos no comestible.
12. Las relaciones entre personal del tren y buscas suele transcender el ámbito de trabajo y
extenderse a los barrios o a los bares. Se debe aclarar que si bien los vendedores tienen su propio
sistema de regulación, durante los viajes los guardas pueden hacer que algún vendedor deje de
trabajar o que no entre más a las estaciones.
13. Además del fiar existen otras formas de hacerse de una clientela como regalar a los
compradores alguna golosina o prenda (por ejemplo el que vende medias puede regalar un par) o
hacer un precio especial a los asiduos compradores. Estos mecanismos no sólo otorgan una
dependencia y un conocimiento personal entre pasajeros sino también permiten a los vendedores
posicionarse como buenos vendedores.
14. Resulta interesante y necesario continuar indagando en esa visión sobre la tarea. Karsenti
(2009) reflexiona sobre ello en relación a los escritos de Durkheim y Mauss y la visión sobre cómo
a los ojos de los sujetos los hechos sociales aparecen como autónomos y libres (el suicidio por
ejemplo). Plantea que los hechos sociales más allá de que aparezcan como libres en la consciencia
individual tienen algunas causas sociales que deben ser develadas.
15. Incluso cuando existen arreglos entre policía y buscas esta es una práctica aceptada como
parte del trabajo. Esto es, en algunas ocasiones y en espacial sobre algunos productos (como la
pirotecnia en las semanas previas a navidad y a fin de año) la policía exige un monto monetario
semanal para poder trabajar.

RESÚMENES
El artículo indaga en el modo en que se estructura el circuito de compra y venta ambulante en
una de las líneas de trenes de Buenos Aires y los modos en que los vendedores se configuran
como trabajadores. Aborda el modo en que se ponen en juego las nociones de “trabajador” entre
los vendedores para posicionarse y justificar la realización de la tarea. Avanza en las maneras en
que los actores generan y mantienen relaciones y obligaciones recíprocas que bien parecen
exceder lo “económico”, son las que van posibilitando el establecimiento de los agentes en los
circuitos de trabajo. Al pensar que las prácticas, los sentimientos, las moralidades, los discursos,
los comportamientos van moldeando los modos de trabajo, el escrito indagar en la actividad
laboral no sólo a nivel de las relaciones de producción sino también en la manera en que estos
procesos son vividos por las personas de carne y hueso.

The article explores how the ambulant vending circuit of one of the train lines of Buenos Aires is
structure and the ways in which vendors present themselves as workers. The article discusses the
notions that vendors use to position and justify the performance of the activity. The article
advances on the ways in which actors create and maintain relationships and reciprocal

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obligations that exceed the economic sphere. These relations are those that enable the
development of the activity and settle agents on the working circuits. As I believe that practices,
feelings, morality, discourses, behaviors shape the working process, the article investigates
working activities not only at the level of the relations of production but also in the way these
processes are experienced by people of flesh and blood.

ÍNDICE
Keywords: ambulant vending, Buenos Aires, buscas, work
Palabras claves: Buenos Aires, buscas, trabajo, venta ambulante

AUTOR
MARIANO D. PERELMAN
Universidad de Buenos Aires – Argentina

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Pescadores cucapá contemporáneos


investigación y video colaborativo en un escenario de conflicto

Alejandra Navarro Smith

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 13/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

Introducción
1 Los pescadores indígenas cucapá defienden su derecho a pescar en su territorio
ancestral incluso en contra de las normatividades de la Reserva de la Biósfera del Alto
Golfo y Delta del Río Colorado que se creó hace 20 años en el mismo lugar en donde
realizan esta actividad. Las mujeres cucapá tienen un rol predominante en la
organización política de la defensa de sus derechos, y también, en este proyecto de
investigación. Desde 2009, la investigadora y los pescadores cucapá hemos conversado
sobre las maneras de construir relaciones de colaboración con un objetivo común:
generar el conocimiento necesario para que ningún pescador cucapá vuelva a ser
encarcelado por ejercer su derecho a pescar libremente en el Delta del Río Colorado,
territorio reclamado como propio.1
2 En 2007 el proyecto arranca con el uso del video como apoyo para la documentación de
actos de autoridad (ver clip de video de retén en Navarro Smith, 2008a); en 2009 se
integra el apoyo de abogados especialistas en derechos medioambientales de los
pueblos indígenas; y en 2011 se empezó a colaborar también con biólogos que han
aportado información sobre la forma de vida y reproducción de la curvina golfina
(Cynoscion othonopterus)– especie que ellos pescan para autoconsumo, trueque y
comercialización–. Este conocimiento generado en la interacción con los biólogos
permite comprender cómo su pesquería puede afectar a la especie, y así, plantear

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formas de pesca sustentable al mismo tiempo que defienden el acceso que por derecho
tienen a su territorio.
3 En este artículo se explica también el uso del video en el proyecto y cómo ha
contribuido a la construcción de conocimiento académico de modo colaborativo, que se
usa al analizar algunas situaciones cotidianas a las que se enfrentan los miembros de
este pueblo indígena cuando negocian el reconocimiento legal de sus derechos. En el
curso del proyecto también se está documentando en video la forma de vida de los
pescadores cucapá contemporáneos, los retos que enfrentan al reivindicar su derecho a
la pesca y sus estrategias de sobrevivencia en el complejo sistema de pesca en el delta
del Río Colorado.

Del video a la investigación colaborativa


4 La relación de colaboración que actualmente tenemos cucapás, investigadores y
asesores se ha ido construyendo desde 2007, cuando llegué por primera vez al tema de
la pesca cucapá con el interés de producir video colaborativo. 2 Desde entonces, y
orientada por las reflexiones de producción de cine colaborativo propuestas por Elder
(1995), la práctica de una antropología compartida (Flores Arenales, 2007), y
entendiendo que en la grabación de dentro del trabajo etnográfico se puede potenciar
el encuentro de las subjetividades de quienes graban y quienes son grabados
(MacDougall, 1998), mi interés se ha centrado en generar espacios que permitan colocar
al centro del proyecto los problemas que los cucapás quieren resolver porque
amenazan su forma de organización social, su continuidad cultural e incluso la
seguridad de sus familias. Pink (2007) sugiere que casos como el anterior, en el que los
problemas identificados por los sujetos son retomados como objeto de estudio por
académicos, configuran un campo emergente dentro de la antropología que ella
identifica como una antropología visual aplicada. Por su parte Jhala (2007, p. 183)
sugiere que el objetivo principal de este tipo de investigación es aprender lo más que se
pueda sobre la sociedad en la que se está trabajando para que –en la práctica de una
antropología visual aplicada–, pueda ayudar a producir el cambio deseado por las
comunidades de estudio. Comparto con los planteamientos anteriores que el marco
conceptual y metodológico incluya la etapa de socialización del conocimiento que se
construye muchas veces en colectivo, y que da prioridad a los espacios de reflexión de
los hallazgos de la investigación en donde participan todos los colaboradores –
investigadores, sujetos, asesores, aliados, etc–. Sugiero que estos ejercicios en campo
son potencialmente transformadores de las subjetividades de quienes participamos en
ellos.
5 Considero que el principal logro de este trabajo ha sido el de abrir espacios a los
colaboradores para intervenir las preguntas y los planteamientos del proyecto (Navarro
Smith, 2012, p. 6). En el momento en el que este manuscrito se publica estamos ya
trabajando en extender el trabajo conjunto al diseño y recogida de información en la
siguiente etapa de trabajo de campo, e incluso a la elaboración conjunta de algunos de
los productos que son resultados del estudio. Hemos logrado poner en contacto los
diferentes saberes, intereses y perspectivas de los colaboradores –sujetos que forman
parte de los temas investigados, académicos y asesores–. Esta dinámica de trabajo fue
visualizada como estrategia de investigación desde 2007, pero se trabajó de manera más
intencionada y explícita a partir de 2009, fecha en la que obtuvimos el financiamiento

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de la convocatoria de investigación Otros Saberes II para la producción de


conocimiento colaborativo, que promueve la Asociación de Estudios Latinoamericanos
(LASA por sus siglas en inglés).3
6 La dinámica de trabajo que hemos generado ha permitido que se identifiquen los temas
sobre los que es necesario producir algún tipo de información, 4 y los sujetos para
hacerlo. En algunos casos, incluso se han repartido tareas de acuerdo con los tiempos,
intereses y posibilidades de los participantes en las reuniones para ir generando la
información y compartiendo los hallazgos. Como se explica más adelante, en el
arranque del proyecto financiado por Otros Saberes II, estos espacios de producción de
conocimiento colaborativo estuvieron situados principalmente en las reuniones
dominicales entre 2009 y 2011, donde las conversaciones ocurrieron en reuniones bajo
la ramada de la casa de Hilda, con el encuentro de familias y compartiendo la comida.
En conjunto, las conversaciones, los apuntes del rotafolio, los documentos, las
fotografías y los registros de video que se compartieron en estas reuniones familiares
fueron las principales formas de comunicación que generaron estos diálogos para
compartir nuestros saberes.

Antecedentes de los pescadores cucapá y su “defensa


jurídica” por la pesca
7 El pueblo cucapá depende del Río Colorado para su sobrevivencia. La forma de vida de
este pueblo indígena se organizaba alrededor del agua más que de la tierra, de modo
que cuando cambió su acceso al agua del río, se modificaron también algunos aspectos
de su forma de organización social: los hombres se vieron obligados a dejar sus hogares
por las dificultades que se enfrentaron para reproducir su forma de vida en un
escenario de sequías (Gómez Estrada, 2000); también cambiaron los lugares de pesca y
las especies que se podían encontrar dado el cambio de la temperatura y volumen de
agua en los cauces del río (Tapia 2006, p. 212). Incluso se ha llegado a afirmar que los
cambios del delta del Río Colorado parece ser el elemento más importante en la
transformación del modo de vida entre los cucapá (Gómez Estrada, 2000, p. 149-150).
8 Históricamente, la pesca ha sido una de las actividades que caracteriza a este grupo
étnico, y el pescado y las almejas continúan siendo hasta la fecha una importante
fuente de proteínas en la dieta cotidiana y el ingreso de las familias cucapá (Navarro
Smith, 2013). Pese a lo anterior, las autoridades mexicanas no reconocen los derechos
que este pueblo originario tiene de pescar y de permanecer en su territorio. Esta falta
de reconocimiento ha generado un conflicto entre cucapás y autoridades que reproduce
la lógica del despojo y de invisibilización que los grupos indígenas han experimentando
en el Norte de México desde la llegada de los “mexicanos” a la región. 5 En 2012, los
cucapá siguen siendo objeto de las mismas acciones de subordinación y asimilación de
su cultura a las dinámicas y los intereses “de la nación” (Navarro Smith, 2008a, 2011;
Navarro Smith; Tapia; Garduño, 2010), aunque el marco legal les garatice derechos
diferenciados a los pueblos indígenas.
9 En el presente, las consecuencias de la relación de dominio entre las autoridades y la
población indígena en México se hacen aún más críticas con la tendencia neoliberal –de
apertura comercial al libre mercado– que modela la política pública y ajusta los marcos
legales que regulan las relaciones entre pescadores, empresarios que comercializan el
pescado y que tienen una relación de confianza con los cucapá, intermediarios

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oportunistas y mercado; y entre los pescadores y las instituciones encargadas de


administrar los recursos pesqueros o las áreas naturales protegidas. En ambos casos,
estas interacciones dan cuenta de la formación de un tipo de sociedad orientada al
mercado, del papel que juegan los pescadores indígenas en ésta, y el papel del Estado
como administrador de los recursos naturales en este contexto de libre mercado.
10 En la práctica, en el contexto anteriormente descrito, las poblaciones más
desfavorecidas ven amenazada su sobrevivencia y no han logrado que se pongan en
práctica los marcos legales existentes en materia de derechos indígenas, 6 que
garantizarían sus derechos básicos de bienestar social y protección a las actividades que
reproducen aspectos fundamentales de sus identidades colectivas. Para el caso de los
cucapá, los problemas que enfrentan a partir de 1993 con la creación de la Reserva de la
Biosfera del Alto Golfo y Delta del Río Colorado (RBAGDRC) ponen en riesgo la
continuidad de su forma de vida alrededor de la pesca, actividad fundamental para su
sobrevivencia y constitutiva en su identidad como pueblo indígena.
11 Además, la creación de la reserva introduce el acoso a su experiencia de pesca. Desde
1993 los pescadores se han acostumbrado a que ser vigilados y perseguidos sea parte de
la vida cotidiana durante la temporada de pesca: se les trata como delincuentes
medioambientales y las autoridades justifican sus acciones criminalizantes con
argumentos de protección a las especies que los cucapá pescan. Con la creación de la
RBAGDRC, los cucapá pasaron a ser pescadores “ilegales” dentro de su propio territorio.
Es a partir de entonces que aquellos que siguen pescando, 7 ahora agrupados por
cooperativas, han confrontado a las autoridades demandando el respeto a sus derechos
de 1) ser consultados previa implementación de cualquier política pública o proyecto
productivo que pueda afectar su forma de vida; 2) su derecho a permanecer en su
territorio, explotando de modo sustentable sus recursos –en particular los recursos
pesqueros– y 3) a trabajar libres de ataduras burocráticas; en otras palabras: exigen un
trato diferenciado por su condición de pueblo indígena, sin tener que acatar las reglas
que se aplican al resto de los pescadores no indígenas que también trabajan en la zona:
en particular la que los expulsa de su territorio –el Delta del Río Colorado– al ser
declarado zona núcleo de la reserva8 (Navarro Smith; Tapia; Garduño, 2010). Sin
embargo, en los 20 años de lucha de los cucapá –en lugar de revisar las leyes que los han
vuelto pescadores ilegales– las normatividades9 y penalidades han aumentado hacen
cada vez más difícil pescar en la zona de la RBAGDRC, en particular en su zona núcleo.
12 Para los cucapá, las restricciones legales hacia la pesca han incidido en la manera de
experimentar esta actividad: en las últimas tres décadas la pesca cucapá ha pasado de
ser una actividad que se realizaba en familia –de dos en dos o entre padres e hijos– a
una actividad productiva orientada al mercado, y cada vez más regulada por “el
gobierno”,10 En palabras de los cucapás, la pesca ya no es como antes pues no se le tenía
que andar rindiendo cuentas a nadie de lo que se pescaba. 11 Ahora si se quiere pescar, es
necesario agruparse en cooperativas. Además, ya no se puede pescar y vender el
producto de este trabajo si no se cuenta con un permiso de pesca. El permiso de pesca
sólo es expedido por la Comisión Nacional de Pesca (CONAPESCA) a través de las
cooperativas o sociedades de producción rural. Actualmente, ya todos los permisos para
pescar curvina fueron otorgados. Esto significa que si los niños de las familias
pescadoras desean seguir pescando, ya no podrán hacerlo legalmente debido al
“reordenamiento pesquero” que en este momento determinó que ya no se pueden
otorgar más permisos de pesca dado que el número de esfuerzos pesqueros debe

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calcularse con relación a la explotación sustentable de la biomasa de las especies que


viven en este ecosistema. Según las autoridades, por la relación entre pescadores y
biomasa de la curvina golfina ya no pueden otorgarse más permisos de pesca para
evitar el riesgo de sobre-explotar el recurso pesquero.
13 Además de este tipo de regulaciones que se han impuesto sobre los pescadores cucapá –
integrándolos a un sistema productivo pesquero en donde sus ingresos dependen del
precio que los intermediarios quieran pagar por kilo de pescado– la pesca ya no es una
actividad que se realice con tranquilidad. Para Inés, la llegada de la temporada de pesca
ya no le da gusto. Ella explica que “pescamos con angustia de que alguno de nosotros
vaya a ser aprehendido (encarcelado)”. Desafortunadamente ya hay antecedentes de
ello: en 2002 al esposo de Lucía lo detuvieron los marinos. Se lo llevaron con todo y
panga, motor y redes. Lo retuvieron en el campamento militar. Cuando Lucía, sus
hermanos, sus padres y todos los parientes fueron demandarle a los marinos que lo
liberaran, un hombre uniformado le encañonó el vientre. Lucía tenía siete meses de
embarazo. “A mi no me vas a intimidar”, le dijo Lucía al marino que le apuntaba con el
arma. Relata que retiró el arma con su mano “y fui a ver a dónde tenían a mi marido…
en ese momento no me dio miedo, yo lo que quería era ver que estuviera bien él”. Al
contar lo sucedido, Lucía levanta la cara, orgullosa de no dejarse intimidar y de no dejar
que se pusiera en riesgo su vida familiar inmediata. Ahora la niña que Lucía tiene ahora
siete años y la acompaña a pescar.
14 Incidentes como este, que ponen en riesgo la integridad física y mental de los cucapás
dio origen a la recomendación de la Procuraduría de Derechos Humanos de Baja
California (expediente 8/2002). La demanda contra la violación de los derechos del
pueblo cucapá fue recibida por la SEMARNAT. Sin embargo, las condiciones de
inseguridad no mejoraron desde entonces. Al contrario. En mayo de 2010, en medio del
proyecto de investigación-colaboración que aquí se relata, dos pescadores cucapá
fueron encarcelados porque una totoaba12 se enredó de manera incidental y los
pescadores decidieron no devolverla al mar porque ya estaba muerta cuando la
encontraron en la red. Por transportarla, los procesaron por un delito federal contra la
biodiversidad sin posibilidad de libertad bajo fianza.

La cámara de video en manos cucapá durante las


interacciones de conflicto
15 Las primeras interacciones de conflicto entre cucapás y autoridades –como el caso de
Lucía descrito más arriba– se difundieron a través de los medios de comunicación
impresos de la región. Sólo una cucapá usaba una cámara de video Hi8 para “dejar
constancia” de lo que había sucedido. La portadora de la cámara explicaba que sus
grabaciones eran las evidencias de una versión propia de los sucesos, porque
normalmente las autoridades daban a conocer sólo lo que a ellos les interesaba. A partir
de 2007, mi actividad de investigación como antropóloga visual trabajando temas de
antropología política, me lleva la zona de pesca, desembarque y carga del pescado con
una cámara de video más grande que las suyas.13 La cámara de video en manos de
observadores –incluída la mía– es vista por los cucapá como un elemento estratégico
para documentar los eventos, pero sobre todo, para hacer notas a las autoridades que
los cucapá tenían a “alguien externo” haciendo un registro gráfico de las violaciones a
sus derechos y de los abusos de autoridad de que son objeto. Según relatan los cucapá,

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cuando estas cámaras se encuentran presentes, ni los inspectores de la RBAGDRC ni los


de CONAPESCA agreden verbalmente a los cucapá en el río, y las interacciones son
menos riesgosas que cuando se encuentran solos. A partir de estos relatos pregunté a
los cucapá si creían que la presencia de las cámaras podrían hacer una diferencia en
cómo son tratados por las autoridades durante la temporada de pesca. Ante la
respuesta afirmativa, decidimos incluir la compra de cámaras como parte del proyecto
de investigación en 2009. Desde entonces los cucapás han aprendido a operar las
cámaras y las usan para registrar tensiones con inspectores o marinos durante la pesca,
reuniones de negociación con autoridades, durante operativos administrativos, en
marchas y plantones, y en situaciones similares. Algunos de estos registros han sido
donados como material de archivo para programas que han salido al aire en la
televisión nacional,14 o son distribuidos por ellos mismos entre los periodistas que
asisten a las ruedas de prensa a las que los convocan para dar a conocer a la opinión
pública su versión en alguna coyuntura importante.

Vínculos entre investigación y necesidades de


generación de conocimiento sobre la vida cotidiana
para el pueblo cucapá
16 A pesar de que los cucapá agrupados en la SCPIC se han organizado para hacer valer sus
derechos, los problemas cuando van a pescar continúan, cada vez con mayores
penalidades. Ellos identifican que las leyes parecen estar hechas para negarles su
derecho a la pesca. “Nosotros no vemos el sustento legal de la veda, por ejemplo”,
reiteradamente comentan Hilda, Inés y Mónica. Indican que se necesita un estudio para
conocer la población natural de la curvina para sustentar la veda, pero “nosotros
hemos solicitado esos estudios al gobierno y nunca nos los han mostrado”. La reiterada
negativa que reciben los cucapás como respuesta a su petición de revisar la información
con base en la que se toman las decisiones de las autoridades, reafirman relaciones de
poder en las que pareciera que los indígenas no son sujetos calificados para la
interlocución con las autoridades (ver Navarro Smith, 2007). La dinámica de no hacer
pública la información con base en la que se toman las decisiones sobre la
administración de los recursos pesqueros, genera en los cucapá desconfianza y los hace
sentirse menospreciados porque ven que las autoridades les están negando el acceso al
conocimiento que sustenta la veda, e incluso sospechan que las autoridades no tengan
los estudios técnicos necesarios para conocer la población natural de la especie, que no
se derive de la información pesquera sino de estudios biológicos. Esta desconfianza se
funda porque saben que actualmente existe información sobre la curvina golfina
derivada de modelos que infieren la biomasa de la especie según información pesquera,
y piden se haga más investigación que produzca información sobre el ciclo
reproductivo y otros aspectos de la especie que son importantes para que la
información sobre la que se legisla sea más precisa. 15
17 Las preguntas que los cucapás piden a las autoridades que respondan significan el
principio de una relación democrática entre autoridades y ciudadanos, en dónde los
últimos a) solicitan a las autoridades la información que les interesa, b) la analizan
críticamente y c) demandan espacios para participar y poder influir en los acuerdos
cuando se toman decisiones administrativas o legales que inciden directamente en su
vida cotidiana. Pese a que los cucapá han sido muy activos en estas tres actividades, las

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autoridades no han dado a conocer la información que los cucapá solicitan: los estudios
técnicos sobre la población natural de la curvina golfina.
18 Si los cucapá tuvieran razón cuando sospechan que las autoridades no han realizado
dichos estudios, las autoridades de pesca estarían legislando para “proteger” la
población de una especie sobre la que se desconoce su población natural. En este
escenario, las legislaciones que restringen la pesca de los cucapás estarían
fundamentadas principalmente con argumentos ideológicos, por ejemplo al enfatizar el
efecto de las legislaciones existentes en la protección de las especies únicamente a
partir de la información sobre la especie que se infiera a partir de su captura, pero que
no retoma más información biológica para revisar con mayor precisión su pertinencia.
19 Paradójicamente, el argumento moral de la protección a las especies ha sido usado para
descalificar a los indígenas a quienes se construye como depredadores del medio
ambiente cuando piden a las autoridades que armonicen ambos discursos –el de la
conservación de los ecosistemas– y el de los derechos de los pueblos indígenas a su
territorio y al uso sustentable de los recursos pesqueros. Cuando los cucapá –denuncian
el trato criminalizante que reciben al reclamar el reconocimiento de sus derechos al
territorio y a la pesca– se les presenta ante la opinión pública como los enemigos de la
conservación de este recurso natural. Esta descalificación contra el indígena-cucapá-
pescador-depredador se refuerza con frases como “a los cucapá sólo les interesa el
dinero”. “Están acabando con la especie”. “Pescan cuando todavía no desova la curvina,
así se van a acabar las nuevas generaciones”, e incluso “son irracionales y conflictivos”
y por lo tanto “no se puede hablar con ellos”, frases que he escuchado de boca de
investigadores que participaron en la elaboración del programa de manejo de la
RAGDRC, administradores de la reserva y en los discursos cotidianos que evidencian el
sentido común que se está construyendo sobre el tema en la región. 16
20 En contraste con las puertas cerradas con las que los cucapá se han encontrado en
México para hacer valer sus derechos como población indígena que reclama su derecho
al territorio y a los recursos naturales que sobre éste se encuentran, éstos han logrado
que se les reciba en audiciencias en escenarios internacionales de alto perfil. Hasta
2007, ninguno de los recursos legales interpuestos ante las instancias nacionales de
justicia lograron detener la escalada del acoso que los cucapás experimentan durante la
temporada de pesca. Esta situación llevó a los cucapá y a sus defensores hasta la
Comisión Interamericana de Derechos Humanos en octubre de 2008 en Washington
para demandar al Estado Mexicano por violar su derecho al uso y aprovechamiento de
los recursos naturales y consulta previa.17 En dicha reunión, las autoridades encaradas
frente a los cucapá, se comprometieron a realizar acciones encaminadas a resolver el
conflicto de la pesca cucapá, garantizando el respeto de sus derechos como pueblo
indígena. A la fecha de la publicación de este manuscrito, los cucapá afirman que todas
las acciones que las autoridades mexicanas han realizado siguen afectándolos, y que
sólo en el discurso respetan sus derechos, nunca en la práctica.

El inicio de una relación de colaboración


21 Ante la negativa de las autoridades para buscar soluciones que pudieran permitir
pescar a los cucapá en la zona que se delimitó como zona núcleo, bajo los criterios del
reconocimiento de sus derechos territoriales, en 2009 se intensificaron las labores para
fortalecer esta demanda que surge del pueblo indígena, produciendo información

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académica pertinente y de modo colaborativo. Ese año identificamos tres grandes


temas sobre los que era necesario producir información: 1) sobre las formas de vida del
pueblo cucapá contemporáneo y las dinámicas de su integración a la cultura nacional,
2) sobre los argumentos con los que las autoridades han respondido los actos legales
interpuestos por los cucapá y sus defensores cuando reclaman su derecho a pescar
conforme a las normas jurídicas en materia de derechos de los pueblos indígenas 18 y 3)
estudios sobre la biología de la curvina golfina y el impacto de las pesquerías sobre su
ciclo reproductivo, información que los cucapás necesitan para poder planear un
aprovechamiento sustentable de las especies que capturan.
22 A finales de 2010 –después de que los cucapás lograran la exoneración de dos cucapás
que permanecieron un mes en la cárcel, acusados de delitos contra el medio ambiente
por habérseles encontrado en posesión de una totoaba– en una de nuestras sesiones de
trabajo se identificó el eje de interés común para todos los participantes y acordamos que
ese único objetivo nos reuniría en la colaboración. El tema fue colocado por Lucía.
Alejandra lo ajustó, como se muestra a continuación: “[Lucía: Queremos que el objetivo
sea] “que se reconozca el derecho a la pesca como cucapás para que dejen de
molestarnos”. Alejandra lo apuntó en el rotafolio y dijo: “para que no vuelvan a
encarcelar a nadie por ese motivo”. Los asistentes a la reunión acordamos este fuera el
objetivo alrededor del cuál giraran los esfuerzos de trabajo de todos los participantes
en el proyecto que permitiera producir información para sustentar el derecho de los
cucapás al uso sustentable de los recursos sobre su territorio y la importancia de la
pesca en la identidad de los cucapás contemporáneos.
23 Necesitabamos producir información para poder explicar –en términos antropológicos–
por qué la pesca es importante para los cucapá, incluso si la forma de pescar en la
actualidad ha cambiado y no se hace de la misma manera que como se realizaba a
principios del siglo XX.19 En la metodología colaborativa que ha surgido en este
proyecto, el primer paso fue documentar lo que los cucapás mencionaron sobre este
tema en una de nuestras reuniones dominicales. Entre las ideas que se generaron de
esta forma están las siguientes: “la pesca es parte de nuestras costumbres, así como la
artesanía, el idioma20 cucapá, el derecho al territorio”. “La pesca nos permite reunirnos
y convivir.21 Cuando hay convivencia, hay comunicación, organización para ayudarse. Es
una convivencia cara a cara. Pero también una comunicación por teléfono celular
cuando está alguien en la panga en medio de El Zanjón y otros se quedaron en el
campamento en tierra”. “La pesca nos ha unido para la defensa de nuestros derechos –
entre ellos el de la pesca–”. En opinión de Hilda eso ha fortalecido también su cultura.
Su esfuerzo por conseguir a un maestro cucapá que pueda darles clases a los niños para
que se revitalice su lengua materna es uno de estos ejemplos. 22 Otro ejemplo que se
menciona como parte del proceso de fortalecimiento de su cultura es la ceremonia que
se realizó al inicio de la temporada de pesca organizada por su tío Onésimo en 2008,
mismo año en que murió.
24 En términos prácticos, la pesca les permite a los cucapá generar los recursos
económicos para pagar deudas que deben contraer para poder comenzar a trabajar la
temporada de pesca de la curvina, y cuyas ganancias permiten el sostenimiento de las
familias indígenas el resto del año. Esta forma de subsistencia gusta a los cucapá por la
convivencia que les permite tener entre ellos y por la libertad con la que se realiza este
trabajo, en contraste con el que se puede obtener en las fábricas –maquiladoras–, en la

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recolección de hortalizas o en su empaque; en los trabajos temporales de construcción


de carreteras, o en la reconstrucción de infraestructura.23
25 En términos simbólicos y culturales, la pesca permite a los cucapás construir un vínculo
con los cucapás históricos que conocen a través de los libros de historia, las fotografías
etnográficas y los relatos de familiares que todavía recuerdan. De este modo, legitiman
su actividad de pesca como uno de los elementos que le dan continuidad a la dimension
étnica de su identidad en el presente, misma que se fortalece y cuando se articula a la
memoria del grupo como un elemento en la continuidad de las actividades que como
niños vivieron dentro de sus familias y grupos de referencia. Es precisamente a través
de ejemplos como el anterior que los cucapás construyen el vínculo entre el presente y
el pasado de su pueblo, fenómeno que hace posible la reproducción de uno de los
elementos de identidad más fuertes para definirse como pueblo indígena: la pesca.

Administración del agua y de los recursos pesqueros:


políticas públicas e integración de la organización
social de los cucapá a las dinámicas regionales
26 En un ejercicio de recuperación y puesta en común de recuerdos de familia se
documentaron fragmentos de la memoria que los cucapás tienen sobre sus padres,
abuelos o bisabuelos cuando pescaban. Los relatos que a continuación se presentan dan
cuenta de cómo la pesca se ha realizado de manera cotidiana entre los cucapás
contemporáneos. En los últimos cincuenta años, estos recuerdos revelan
transformaciones importantes que incluso han incidido en la forma en que los cucapás
se organizaban para la pesca. Estos cambios coinciden con la implementación de leyes –
y de políticas públicas derivadas de estos marcos jurídicos– que regulan la
administración de la tierra, del agua y de los recursos naturales en la región donde los
cucapás habitan. Por cuestiones de espacio, aquí sólo se hace referencia a dos tipos de
política pública que transformaron la organización social de los cucapás: la
administración del agua del Río Colorado –única fuente de agua para la región–, y las
que administran los recursos pesqueros en el Alto Golfo de California y Alto Delta del
Río Colorado.

El agua del río en un ecosistema desértico

27 El Río Colorado fue para los cucapás24 como la tierra para los pueblos mesoamericanos
en México y Guatemala. Del agua dependía su sobrevivencia en un ecosistema desértico.
Los ríos Hardy y Colorado fueron fuertemente afectados por las políticas de dotación y
canalización del agua que elaboraron las autoridades mexicanas, y que garantizaban su
uso para el consumo doméstico, los servicios públicos de las poblaciones; la industria, y
el riego (Ley de aguas de propiedad nacional de 1934). En la visión de la administración
del agua –incluso hasta el presente– nunca se consideró que un porcentaje de agua
siguiera su curso en el cauces del río con el fin de mantener el equilibrio del ecosistema
de la región.
28 Actualmente el 8.9% del agua del Río Colorado que entra a México 25 se destina al
consumo humano, agrícola o industrial. Como resultado de este tipo de administración
del agua, el cauce del Río Colorado es ahora una cama arenosa que ya no conduce agua

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al mar. Esta transformación del río ha afectado el delicado equilibrio de un ecosistema


que históricamente permitió a los cucapás sobrevivir en el Noroeste desértico. Los
cucapás que dependían del ecosistema del río para su alimentación y –de manera
subsecuente– para el mantenimiento de su forma de vida y relación con el territorio, se
adaptan a las nuevas circunstancias. Pero la escacez de agua y de alimentos no les deja
otra opción que su incorporación a un modelo de sociedad que los emplea como
vaqueros y trabajadores agrícolas, que además estigmatiza sus conocimientos y sus
formas de vida.26 A partir de entonces, su entorno se degrada, sus conocimientos dejan
de transmitirse y su calidad de vida disminuye.27

Las políticas de administración de recursos


pesqueros, la más reciente de las políticas
integracionistas
29 A pesar de que en 2001, México reforma su artículo 2ndo constitucional para reconocer
el carácter pluricultural de su población, las políticas públicas siguen diseñándose sin
tomar en cuenta las especificidades culturales de los pueblos indígenas. Hasta este
momento, al legislar, no se les reconoce a las poblaciones indígenas sus derechos
diferenciados28 de modo que se les permita fortalecer sus identidades y sus formas de
vida vinculadas sus territorios. El ejemplo más reciente del carácter integracionista de
la política pública –que afecta y pone en riesgo la continuidad cultural de los cucapás–
son las políticas de administración de los recursos pesqueros y de protección a los
ecosistemas y las especies.
30 Como se indicó anteriormente, los cucapás fueron afectados con la política de
administración del río. Por ejemplo, por efecto de la reducción del volumen del agua, el
Río Hardy dejó de fluir hasta el Delta del Río Colorado, interrumpiendo con ello la
entrada de peces que llegaban desde el delta hasta El Mayor Cucapá por este cauce. Con
esto, al no poder pescar en los lugares donde tradicionalmente se capturaba el pescado,
los cucapás debieron seguir el curso del agua cada vez más al sur. Esto explica la
instalación de campamentos de pesca cucapás en El Zanjón.
31 La reducción del volumen del agua del río trajo como consecuencia el traslado de los
campamentos de pesca de los cucapás a la desembocadura del Río Colorado en el Alto
Golfo de California. En 1993, la misma zona donde los cucapás establecieron sus
campamentos de pesca se declara zona núcleo de la Reserva de la Biósfera del Alto
Goldo y Delta del Río Colorado, con lo que inmediatamente se les convierte ante la ley
en pescadores ilegales. Los cucapás inician desde entonces acciones de resistencia a los
marcos legislativos que les prohiben permanecer en su territorio, y a usar los recursos
que sobre éste se encuentran. Este fenómeno puede ser analizado, sin duda, como la
incidencia de una política pública en la transformación de las formas de sobrevivencia y
organización de una población indígena (Navarro Smith, 2011, p. 231-246). Por lo
mismo se insiste que al redactar leyes –en este caso de protección a los ecosistemas y a
las especies– no se consideran las necesidades y particularidades culturales de una
población indígena que depende de ciertos recursos para su sobrevivencia. De este
modo la política pública y marcos legislativos afectan directamente la organización
social y la reproducción cultural de las poblaciones indígenas, de por sí ya fuertemente
impactadas en su relación con las instituciones del Estado.

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32 Con el objetivo de apuntar algunos de los cambios que los cucapás identifican en su
forma de pescar en las últimas cinco décadas, a continuación se ofrecen algunos relatos
que incluyen recuerdos, prácticas y experiencias de cuatro generaciones de pescadores
cucapá. El más antiguo de los recuerdos habla de la construcción de balsas con la que
todavía pescaban principios del siglo XX. Se construían balsas usando varas amarradas
entre sí, recubiertas con lodo. Este relato ha quedado inscrito en la memoria de la
familia de Don Onésimo , quien relató que sus padres Doña Teodora Saíz y su esposo “El
F0
55

Tacón”, las elaboraban y las usaban para pescar. Hacia 1960, Hilda e Inés recuerdan que
la pesca se hacía “en familia”, a la orilla del Río Colorado. En sus diferentes modalidades
de trabajo familiar, recuerdan a veces su papá iba ellas y el resto de sus hermanos; otras
veces iban con su madre y con su tía: Hilda recuerda que cuando era pequeña su madre
Mercedes y su tía Inocencia la metían en una ollita de barro al lado del río. La dejaban
cubierta de agua para que no se acalorara mientras ellas pescaban.
33 Para finales de los setentas, con las fuertes nevadas que azotaron la región de las
montañas del Colorado, el exceso de agua que ingresó a México amenazaba con inundar
el Valle de Mexicali. El gobierno bajacaliforniano tuvo que construir canales para guiar
el excedente de agua a la Laguna Salada. Los cucapá –que obtuvieron la restitución de
sus bienes comunales sobre el fondo seco de dicha laguna– aprovecharon la vida que
brotó en aquél desierto cuando se llenó de agua, y con ello, de carpas y camarones.
Inocencia Sáiz se llevó a sus hijos a vivir con ella en campamentos improvisados al pie
de la Sierra Cucapá frente a la laguna. “Allá vivimos mucho tiempo, como diez años. Así,
a la intemperie. Así le gustaba vivir a mi mamá”, recuerda Toña, la hija de Inocencia
que compartió con ella esta experiencia.
34 Fue en ese momento que se hizo necesario sacar el primer permiso de pesca. La primera
organización con permiso de pesca se llamó “Jawimak” que significa “agua del otro lado
del cerro”. Ahí fue donde por primera vez Onésimo fue a preguntar a las autoridades de
SEMARNAT que por qué se extendían permisos a los demás pesadores que no eran
cucapás, si ese territorio se había concedido a su pueblo. En respuesta, las autoridades
le dijeron que no podían negarle el permiso de pesca a nadie porque se trataban de
“aguas nacionales”. Onésimo preguntó nuevamente: ¿por qué cuando sólo hay arenas
es tierra de los cucapá, y cuando hay agua [y recursos explotables] es de todos los
mexicanos?29
35 En 1990 llegó el primer apoyo para la adquisición de pangas. Fue el Instituto Nacional
Indigenista quien apoyó a los cucapá y de ahí se compraron las primeras 8 pangas que
se tuvieron. “Eran pangas 6 pangas de aluminio, de las chiquitas, y 2 pangas de madera.
También nos apoyaron con un troque para enhielar el pescado. Nos tocaba de a 3
familias por embarcación”. Cuando el agua dejó de fluir a La Laguna Salada y ésta
nuevamente volvió a ser desierto, los cucapá trasladaron sus campamentos de pesca a
la desembocadura del Río Colorado. Así llegaron a la zona conocida como El Zanjón.
36 En 1993 se decreta la creación de la Zona de Reserva del Alto Golfo y Delta del Río
Colorado, y con ello se vuelve delito federal la actividad de pesca de los cucapá en esa
zona. Ese mismo año se les levanta la primer acta administrativa. Es el comienzo de la
lucha jurídica por la pesca.

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La encrucijada del reconocimiento de los derechos


diferenciados para los pueblos indígenas y la
colaboración entre los diferentes saberes
37 Mientras que para las autoridades, la pesca es una actividad que debe regularse para
garantizar la continuidad de los recursos pesqueros, para los cucapá la experiencia de
la pesca ha sido una forma de vida y de renovación de lazos familiares entre miembros
de las familias extensas. Estas dos maneras de concebir a la pesca ejemplifican también
el tipo de argumentos que cada parte en este conflicto busca para explicar por qué es
necesario que se reconozcan los marcos legales que cada uno usa para lograr sus
objetivos.
38 Aquí se identifican al menos tres problemas: 1) limitaciones de las estructuras
institucionales en México: la comprensión disciplinaria del tema de la pesca –que
cuando se trata de la Comisión Nacional de Pesca, por ejemplo, limita su comprensión a
los aspectos biológico-pesqueros sin poder tomar en cuenta los particularidades
socioculturales de un pueblo indígena que pesca y que es afectado para la elaboración
de políticas públicas y acciones con relación a la administración de territorio y recursos
pesqueros. 2) Concepciones estereotipadas de lo que significa “ser indígena”; los
estereotipos funcionan como filtros de descalificación de las demandas de sujetos que
se presentan como indígenas, pero que ante los ojos de las autoridades “ya no parecen”
indígenas. Y 3) un acelerado proceso de asimilación de la cultura cucapá –y de la
práctica de la pesca– a las lógicas impuestas por a) las dinámicas de colonización del
territorio Norte, b) las políticas de reorganización de la pesca en el Golfo de California, c)
la creación de la Reserva de la Biósfera del Alto Golfo de California y Delta del Río
Colorado y a partir de 2011 d) el proceso de implementación de topes de captura para la
pesca de la curvina golfina.

Los sujetos y sus trayectorias en la colaboración


39 Entre 1993 y 2007 muchos actores solidarios han estado en contacto con los cucapá en
la formación de lo que en este momento ellos mismos definen como su “lucha jurídica”
por la pesca. Incluso la primera instancia en llegar a apoyarlos cuando se denunciaron
los primeros actos de autoridad cometidos en contra de los cucapá fue el Instituto
Nacional Indígenista (ahora CDI) que a través de su ex Dirección de Derechos Indígenas
les impartió cursos sobre los derechos contenidos en el Convenio 169 de la OIT
ratificado por México en 1990. Con esta primera información sobre sus derechos, los
cucapá continuaron buscando de apoyo en Baja California. Ahí encontraron el apoyo de
la Lic. Lorena Rosas, defensora de los derechos humanos y periodista radicada en
Mexicali. Lorena Rosas, contactó a Raquel Avilés y juntas fueron a buscar la ayuda del
Lic. Rivera de la Torre en 2002; aunque Rivera primero acompañó a los cucapás con su
problema agrario, desde ese año también los asesoró en diferentes acciones de defensa
jurídica, interponiendo amparos ante medidas como la veda de la curvina golfina.
40 Por su parte, Raúl Ramírez Baena, exombudsman de la Procuraduría de Derechos
Humanos en Baja California, se involucró en el caso en 2000. La denuncia que dio origen
a la recomendación 8/2002 fue iniciada por otro abogado solidario, de apellido Magaña.
El fue quien mandó los primeros informes a la Suprema Corte de Justicia. Su trabajo fue

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retomado después por Ramírez Baena y por Rivera. Ambos, junto con Mónica, María
Inés e Hilda, acompañados de un representante de la Comisión Mexicana para la
defensa y Promoción de los Derechos Humanos, se sentaron en la sesión de octubre
para presentar el caso de la pesca cucapá en contra del Estado Mexicano en audiencia
en la Comisión Interamericana de Derechos Humanos en Washington, en 2008.
41 Ante todos estos esfuerzos de defensa y organización de un pueblo indígena al ver
amenazada su forma de vida por efecto de marcos legislativos que restringen su acceso
al territorio y al uso de los recursos naturales, fue para mi una sorpresa que no
existiera ninguna referencia académica que estudiara alguno de todos los fenómenos
sociales antes descritos al momento de mi llegada a Baja California.

El trabajo académico de construcción y sistematización de


conocimiento colaborativo

42 Así, a partir de 2006, trabajé sistematizando las continuas referencias que los diarios
impresos hacían al “problema de la pesca cucapá”. Desarrollé una investigación
documental en ese año y en 2007 inicié el trabajo de campo. Fue entonces que conocí a
Hilda, a Inés y a Mónica. Expliqué mi interés en hacer uso de la cámara de video para
registrar las interacciones de conflicto entre pescadores y autoridades. Les pareció bien
la idea y comencé a acompañarlos durante las jornadas de pesca. No era la primera que
subía a las pangas con una cámara de video. A mi llegada ya se habían producido un
documental francés (que pasó al aire en el canal ARTE de ese país); un documental
alemán, y un documental local que grabó el Mtro. Salvador León Guridi del Centro de
Enseñanza y Producción Audiovisual (CEPA) de la Universidad Autónoma de Baja
California. La presencia de las cámaras no era nuevo, y sí de mucha utilidad. Cuando las
autoridades de PROFEPA notaban la presencia de una cámara a bordo, las interacciones
tomaban la forma de monólogos paralelos donde se exponían los referentes legales de
unos y otros para pescar o para impedir hacerlo (ver Navarro Smith, 2008a, p. 190). La
tensión era evidente, pero no se registraban interacciones como las que los cucapás
recuerdan cuando no había videocámaras presentes: PROFEPAS rompiendo redes con
las manos, agresiones verbales haciendo alusión a la identidad de “indios”,
detonaciones de cartuchos, entre otros actos de acoso físico y psicológico.

Una metodología de colaboración usando


videocámaras
43 Antes de iniciar la investigación con los cucapás, una experiencia previa en Chiapas me
permitió producir una película etnográfica (Navarro Smith, 2000) y usar la videocámara
durante el trabajo de campo como herramienta para grabar y editar secuencias que
serían reveladoras durante la redacción de mi tesis de doctorado (Navarro Smith, 2005).
Ello me permitió reflexionar sobre los debates en torno a la colaboración en
antropología visual, el tipo de relaciones que los investigadores establecemos con los
colaboradores durante el trabajo de campo y sobre la función social del conocimiento
que producimos desde la academia (ver Navarro Smith, 2012).
44 Las preguntas anteriores siguieron resonando al llegar a Baja California. Me di cuenta
de dos aspectos importantes en el nuevo contexto de investigación: a) que la presencia

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de la investigadora/académica y su registro en video era útil para los objetivos de la


lucha jurídica de la pesca que los cucapás realizaban desde 1993. Y que b) las
videocámaras eran usadas por diferentes actores, incluyendo una cucapá. Siguiendo la
recomendación de Sarah Pink (2001) que sugiere observar las maneras en que las
tecnologías visuales están integradas en las relaciones sociales del lugar en donde el
antropólogo visual pretende trabajar, caí en cuenta de que la presencia de las
videocámaras era común en los escenarios de pesca e interacciones de tensión y
conflicto. Sin embargo, dado que también me interesaba desarrollar una investigación
colaborativa, me enfrentaba al reto de generar una relación de este tipo con los cucapá,
incluso frente las dificultades que planteaban las dinámicas internas de liderazgo (ver
infra). Además, dado que los cucapá no habían participado en ningún proyecto de
manera colaborativa, había que proponerles y desarrollar este tipo de relación de
trabajo, lo que implicaba negociar de modo cotidiano sus significados y alcances.
45 En las siguientes líneas se presentan algunos de los momentos de interacción entre
investigadora, cucapás y otros actores involucrados en los escenario de negociación y
conflicto en torno a la defensa que los cucapás hacen de su derecho a pescar. En el
curso de los últimos tres años, se ha trabajado cercanamente para generar espacios de
encuentro e intercambio de saberes entre cucapás e investigadores (antropólogos,
abogados y biólogos) y colaboradores (defensores de derechos humanos) que han dado
forma a la manera en que este equipo ha construido relaciones de colaboración para la
investigación de los cucapás, la pesca y los derechos indígenas al territorio y al uso
sustentable de los recursos naturales. Algunas de las siguientes notas son reflexiones
que surgen a partir del tipo de interacciones que establecimos durante el tiempo del
trabajo en la pesca en El Zanjón, elementos de conversaciones, necesidades que
expresaron directamente los pescadores cucapá, o simplemente ideas que ellos o la
investigadora propusimos como temas de plática durante nuestros encuentros.

Las etapas de la colaboración


De la observación a la colaboración

46 Los primeros momentos del trabajo de observación en el proyecto me permitieron


aprender sobre los lugares, sujetos, procesos de la pesca en tierra y en agua. Durante las
primeras visitas al Zanjón decidí que la cámara de video sería parte “del cuerpo de la
investigadora” y el registro en video fue mi actividad principal. Por momentos dejaba
de grabar y conversaba con los pescadores. Estaba interesada en iniciar mi trabajo de
campo descubriendo el entorno a través de la lente.
47 Una tarde, ya de regreso en casa de Hilda después de una jornada de trabajo en la pesca,
grabé la primera interacción, a petición de Inés. Le llegó la noticia de que los
inspectores de CONAPESCA se encontraban hablando con los compradores a unos
metros de donde nos encontrábamos. Me dijo, “acompáname y graba por favor”. Las
autoridades estaban notificando a los conductores de los trailers que al día siguiente
entraba la veda de la curvina, al tiempo que les entregaban unas hojas donde se
indicaban las sanciones por pescar, transportar y comercializar una especie en veda.
Esa misma noche, también a petición de las pescadoras cucapá, observé y registré un
operativo administrativo en el que los mismos agentes de CONAPESCA, apoyados por
marinos que instalaron un retén en el paso de Baja California a Sonora, hicieron firmar

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a las cucapás una hoja en donde se prohibía que el pescado ya cargado en el trailer
siguiera su camino rumbo al mercado en la Ciudad de México donde se comercializaría.
Durante el operativo que duró más de dos horas, entre las 2 y 4 de la mañana, los
agentes de CONAPESCA insistieron que firmar el documento no interferiría con el
traslado del pescado. El engaño se confirmó cuando, al retirarse los inspectores, pedí a
las cucapá que leyeran en voz alta el documento que habían firmado. Los rostros de
Mónica e Inés se descompusieron cuando se dieron cuenta de que lo que los inspectores
habían dicho no era verdad y aún así las convencieron de firmar el documento con
engaños. A pesar de que todos –incluida yo– habíamos leído el documento de manera
individual y en silencio durante el operativo, ninguno nos percatamos del sentido del
texto antes de firmarlo. En ese momento, al mirar los rostros indignados y tristes de las
pescadoras, me di cuenta de la potencial eficacia de una lectura grupal y en voz alta de
los documentos legales. Ahí decidí compartir mi reflexión sobre lo que había sucedido,
y cruzar la línea entre la observación y la colaboración. Les dije: “¿Se dieron cuenta que
todos leímos el documento en silencio, y sólo cuando se leyó en voz alta nos dimos
cuenta de que ustedes al firmar aceptan que el pescado queda bajo su resguardo en lo
que se investiga su procedencia, y que por lo tanto no se puede comercializar? Para que
no les vuelva a pasar eso –continué– pueden leer los documentos en voz alta y discutir
entre ustedes lo que ahí se dice. Parece que esa dinámica permite una mejor
comprensión del texto”. En un contexto donde la cultura oral predomina, me pareció
lógico sugerir que el texto legal –de por sí complejo– se trasladara de la lectura
individual y en silencio, al dominio del discurso oral y colectivo, con el que todos los
cucapás están familiarizados. Ese comentario, que surge de intentar comprender el
papel del documento legal en una interacción de conflicto, en medio de dinámicas de
poder y con objetivos que persiguen cada uno de los actores que participaron en ellas,
es uno de los productos del análisis que desde mi trabajo de etnografía podía ofrecerles
en espera de pudiera serles de utilidad en futuras interacciones donde un documento
estuviera presente. Unas semanas después, llegué a una oficina donde ya se
encontraban negociando autoridad y cucapás. Al llegar, escuché la voz de Mónica. Leía
en voz alta un documento, sus compañeros de pesca la escuchaban atentamente.

Del formato del taller al de reunión dominical

48 El ejemplo anterior da cuenta de cómo un saber especializado –el que se produce desde
la mirada antropológica– puede ser integrado por vía de las dinámicas conversacionales
en las interacciones cotidianas. En este contexto es que se vuelve relevante la discusión
del formato para poner en interacción los diferentes saberes que se producen en el
curso de la investigación. Uno de los primeros ejercicios que realizamos para socializar
el conocimiento experto sobre temas que podrían fortalecer la organización de los
cucapás fue un taller sobre los procedimientos de la consulta previa. Noté que el
formato “taller” colocaba al saber experto literalmente al frente, reproduciendo con ello
un tipo de dinámica ya conocido por los cucapás en donde el invitado experto tiene el
papel principal. En determinado momento uno de los cucapás intervino para hacer
notar que a ellos les parece bien que se hagan los talleres, pero que en sí la información
que ahí se estaba vertiendo ellos ya la conocían. “Lo que sería importante es que estos
talleres se les dieran a las autoridades porque pareciera que ellos son los que no
comprenden la necesidad de realizar las consultas”. De esa primera experiencia, se
acordó que las siguientes reuniones se realizaran ya no en la escuela donde estábamos,

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sino en la casa de una de las cucapás, y en días no laborales para que pudiera asistir un
mayor número de pescadores. La idea de trasladar las discusiones a las “reuniones
dominicales” y cambiar el formato de “taller” por el de “reunión” me pareció
interesante porque reproducía una situación de interacción conocida en la forma de
organización de los cucapás. En principio, el espacio era el de los propios sujetos y la
disposición de las sillas en círculo permitía que ningún saber estuviera al frente, sino al
lado de los demás. En las reuniones también noté que se generó un ambiente propicio
para que surgieran relatos de una historia compartida que raras veces se platicaban en
público; de estas actividades se discutieron las relaciones entre el contexto que estaban
viviendo y la historia de sus familias.

Los significados y niveles de la colaboración

49 Durante el desarrollo del proyecto con Otros Saberes contamos con el apoyo de la Dra.
María Teresa Sierra, quien fungió como asesora metodológica en el desarrollo de la
investigación colaborativa. Nuestras conversaciones me permitieron darme cuenta –
mientras buscaba las respuesta a las preguntas que me planteaba sobre lo que
significaba y cómo tenía lugar la colaboración en nuestro proyecto– que ésta había sido
hasta su llegada una relación intencionada desde mi práctica de investigación, pero que
necesitaba estar más presente y renovarse cotidianamente en las interacciones con los
pescadores cucapá y con todos los interesados en colaborar (otros actores solidarios). A
partir de entonces la colaboración fue explicitándose cada vez con mayor detalle en las
reuniones, de manera que cada miembro del equipo tuviera claro su papel –y sus
responsabilidades– dentro del proyecto según sus intereses, tiempo, rol desempeñado y
habilidades.

Encuentro de saberes

50 También se invitaron a algunas “voces expertas” que aceptaron participar en las


reuniones dominicales. Ejemplo de estos casos fueron los del arqueólogo Porcayo,
empleado del Instituto Nacional de Arqueología e Historia (INAH) que a partir de dicha
convocatoria organizó en noviembre de 2010 un recorrido de superficie en la Sierra
Cucapá y en 2011 los primeros trabajos de excavación arqueológica realizados en ese
territorio. Ambos eventos tenían el objetivo de documentar los sitios arqueológicos en
la zona y con ello contribuir al conocimiento que pudiera indicar con más precisión la
antigüedad de la presencia de este pueblo indígena en la región, los límites de su
territorio, su patrón de asentamiento y su relación con la caza, la recolección, la
agricultura y la pesca. Como resultado de este trabajo se ha documentado que la pesca
de la curvina y de la totoaba es una pesca histórica entre los cucapá con una antigüedad
de al menos de 1000 años (Porcayo Michelini; Rojas Chávez, 2009, 2010; Porcayo
Michelini et al., 2013)
51 Otro caso de la participación de voces expertas fue la de uno de los abogados solidarios
y la de su esposa, vínculo con movimientos sociales de resistencia regional y nacional.
Su esposa, muy acertadamente preguntó durante una de las reuniones ¿y cómo van a
garantizar que se cumpla el objetivo de defender su derecho a la pesca si no atacan el
problema de raíz, que regresa año con año? “El problema de raíz” se relacionó al
decreto de creación de la Reserva. Ahí se discutió que para solucionar de raíz el

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problema jurídico de la pesca hay que incidir en la modificación legal de ese decreto
presidencial.
52 Finalmente, la presencia de otra abogada solidaria, marcó el inicio del plan para diseñar
la ruta del litigio estratégico en el rumbo deseado por los cucapás. Entre octubre y
noviembre de 2010 se involucra la Licenciada en Derecho, y especialista en derechos
medioambientales de los pueblos indígenas, Yacotzin Bravo, quien sigue colaborando
en el proyecto al lado de los cucapá, otros abogados solidarios, los defensores de los
derechos humanos, los académicos y estudiantes que acompañan y dinamizan el
proceso de construcción colaborativa de conocimiento. En 2011 también se integra al
proyecto del equipo de asesores de confianza de los cucapás, la bióloga Catalina López-
Sagástegui, quien ha trabajado para poder socializar el trabajo que sobre la biología de
la curvina golfina realiza un equipo de investigadores con los que trabaja, de manera
que con esa información los cucapás puedan tomar mejores decisiones para un manejo
sustentable del recurso pesquero.

Transferir el uso de la videocámara a las manos de cucapás

53 El financiamiento de Otros Saberes II hizo posible poner en manos de 10 pescadores


cucapá el mismo número de videocámaras. Si bien en un inicio fue difícil que los
pescadores se atrevieran a manejar los equipos, sí se animaron a hacerlo una vez que
uno de ellos se acercó a grabar en el momento que un inspector de la PROFEPA
intentaba abordar la panga de otro compañero de pesca, y el inspector reaccionó a la
presencia de la cámara desistiéndose de su intención inicial. Las cámaras de los cucapás
también fueron muy visibles en otro momento importante: desde la detención de
Emilio y Juan en San Felipe antes de ser trasladados al penal en Mexicali, y durante el
mes que duró el plantón hasta que lograron la liberación de los dos pescadores cucapá
en 2010. Un área de investigación pendiente a explorar es saber cómo la presencia de
las cámaras en manos de los propios cucapás ha influido en sus interacciones con
autoridades cuando se encuentran pescando. También queda mucho trabajo por hacer
en materia de capacitación sobre cómo usar las tencnologías de almacenamiento y
edición de video. Por lo pronto, todos los cucapás comparten la consciencia del valor de
la videocámara como herramienta para su propia defensa. En cuanto a la producción de
conocimiento, el uso de las videocámaras hizo surgir conversaciones sobre los eventos
que estábamos grabando, dando pie a que los involucrados en las acciones de defensa
pudieran reflexionar sobre los temas que estaban presentes en su grabación.

Dinámicas internas y externas en el proceso de


investigación colaborativa: liderazgo, organización,
acuerdos, tensiones e imprevistos
54 Los esfuerzos de los cucapá por defenderse contra los actos de autoridad y su esfuerzo
por mantenerse al margen de los procesos administrativos que los integran cada vez
más a las dinámicas del mercado han generado procesos organizativos importantes. Sin
embargo, las de tensiones y conflictos están siempre presentes. A partir de 2010 he
observado que las presiones externas han generado unión entre los cucapás en
momentos importantes. Un ejemplo fue el campamento en el que se mantuvieron
juntos frente a la oficina del gobernador del estado de Baja California demandando la

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liberación de los cucapás detenidos (19-mayo al 19 de junio). Sin embargo, cuando las
presiones externas disminuyen, las tensiones internas se manifiestan. Como trataré de
argumentar más adelante, los conflictos internos por el liderazgo dentro de la SCPIC –
que recae en figuras femeninas desde su fundación– responden a dinámicas del
reconocimiento de dicho liderazgo que se logra articulándose a redes externas,
generalmente con instituciones del Estado, y con todo tipo de actores externos.
55 Sobre el tema de los liderazgos, y sobre lo que desde fuera del grupo se percibe como
“conflictos internos”, una de las cucapá lo explica así: “[l]os cucapás estamos peleando
porque no se nos consulta y se está viendo que las dependencias que supuestamente
apoyan a los indígenas [se refiere a la Comisión Nacional para el Desarrollo de los
pueblos indígenas (CDI)] tampoco nos consultan. No se está bajando la información, y
eso está generando conflictos internos”. Un ejemplo de lo anterior es la designación
que la CDI hizo del representante de los cucapá ante su Consejo Consultivo. Los cucapá
manifiestan que este proceso de elección del representante cucapá no fue puesto a
consulta. El hecho se complica aún más porque para la representación del “pueblo
cucapá” participan una vez un habitante de el poblado El Mayor (de Baja California) y
otra vez un habitante de Pozas de Arvizu (de Sonora).30 Ante esta decisión, los cucapá
cuestionan “¿[p]ero quién es la CDI para elegir a un representante entre los cucapás?
Nosotros somos los que debemos elegir, no ellos”. Este hecho, aunado a que los
“representantes” no informan a “los representados” qué acuerdos se toman en ese
órgano de representación de los pueblos indígenas hace que el resto de los cucapás no
tengan conocimiento de qué es lo que se discute en esas instancias. Este tipo de
dinámicas genera desconfianza cuando uno de sus miembros se vincula con las
instituciones del estado y con redes externas. Así, se puede identificar la repetición de
patrones de interacción que en muchos casos han modelado una relación de
desconfianza –por el efecto de co-optación que producen– en las interacciones entre las
instituciones del Estado y los pueblos indígenas (Navarro Smith, 2005, 2008b). A partir
de esta experiencia con los liderazgos “visibles” y legitimados por las instituciones, la
pregunta que emerge entre los cucapá sobre el tipo de liderazgo realmente “cucapá” es
si “¿se debe trabaja para el bienestar propio? o ¿se debería buscar el bienestar para
todos los cucapás?”
56 Otro tema de discusión entre los colaboradores del equipo de investigación evidenció
las tensiones que generan las relaciones de poder entre quienes históricamente han
controlado la producción de conocimiento sobre los grupo indígenas: se trata de la
relación entre investigadores (antropólogos en particular) y miembros del pueblo
cucapá en este caso. Implícito en este cuestionamiento se encuentra el uso de la
información que se produce. Por ejemplo, durante el inicio del proyecto se me planteó
la siguiente pregunta en público, delante de 30 cucapás “¿Cómo vamos a saber nosotros
que lo que tu vas a escribir sobre lo que estamos haciendo no nos va a afectar? Ya ha
habido otros antropólogos que se han acercado y luego se van y sacan cosas que nos
afectan”. Aunque haría falta identificar los casos concretos y los significados de “las
afectaciones”, sin duda existe la tendencia de “entrar” y “salir” del campo como si
fueran espacios separados (Stephen, 2005). Así planteado, este proyecto sugiere que es
posible establecer una la relación en la que el investigador identifique los problemas
que caracterizan las interacciones interétnicas, de poder, de género –de las que el
investigador forma parte– así como los problemas específicos que interesan a los
sujetos que participan en el proyecto. Este proceso de discusión implica ciertos

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compromisos que es posible acordar en el desarrollo de la relación de trabajo dentro


del proyecto de investigación. La metodología de colaboración que aquí se plantea
identifica la necesidad de construir objetos de investigación que integren a la discusión
académica las necesidades de producción de conocimiento que los sujetos que
participan en el estudio señalan como importantes dentro de las dinámicas de su vida
cotidiana (ver Navarro Smith, 2012). En este contexto y a partir de la pregunta
planteada por los cucapá, se hizo el compromiso de que la información que se generara
en el curso del proyecto sería platicada con ellos de modo previo a cualquier tipo de
difusión. También acordamos trabajar de manera conjunta para seleccionar la
información que fuera pertinente circular. “Hay información que no puede salir, tal vez
porque no sea el momento correcto. Hay mucha gente esperando cómo taparnos el
camino”, indicaba una de las cucapá. Este clima de desconfianza –en el que cualquier
persona puede estar actuando en contra sus objetivos– es también una constante para
decidir con quién se conversa y sobre qué temas. Otra cucapá reconoce “esa
desconfianza de que alguien nos puede obstaculizar es lo que hace que no nos
platiquemos entre nosotros lo que cada quién está haciendo”. Pero esta forma de actuar
tampoco ayuda para la generación de los acuerdos entre los miembros del grupo
cucapá. Harían falta reuniones periódicas en donde los diferentes líderes de grupo se
reúnan para platicar sobre lo que cada quién está haciendo, pues en realidad lo que
cada grupo hace, en su conjunto puede ser para el beneficio del pueblo en su conjunto.
57 Un tercer tema de reflexión sobre dinámicas que generan desconfianza, discusiones
internas y posiblemente las tensiones más fuertes entre cucapás es el de la recepción de
fondos económicos a través de todo tipo de proyectos. Desde el punto de vista de los cucapá,
los proyectos productivos, han sido el origen de la división de su gente. “Fue a partir
del proyecto de la pedrera –una inversión de cuatro millones y medio de pesos en 1992–
que se crearon los problemas que tenemos hoy”, dice una tercera cucapá. En concreto,
se identificó que los proyectos productivos pueden ser un obstáculo para que los
indígenas trabajen juntos como colectivo. Por ejemplo, mencionan que hay proyectos
de la Reserva de la Biosfera del Alto Golfo y Delta del Río Colorado que se están bajando
a la comunidad:
Se ha hecho una “ramada” y un cuarto frío. Se apoya al mismo grupo cada vez. Pero,
¿por qué si hubo un apoyo este año para una familia, por qué el siguiente año se
sigue apoyando a la misma familia en lugar de a otra? Eso de que se apoye siempre a
la misma familia crea conflictos hacia adentro. ¿Por qué no se hace una
convocatoria para reunirse e informar a todos? ¿Qué le cuesta a la comunidad hacer
una reunión para explicar por qué se apoya, o por qué no salieron los apoyos? Así
no se generarían los malentendidos, no se crearía tanto problema. (Conversación
con dos miembros de la SCPIC).
58 Sin embargo, ¿cuál de los cucapá puede convocar al resto? En este momento, los
liderazgos internos convocan parcialmente. En reiteradas ocasiones, quienes han
ocupado el cargo de la presidencia de bienes comunales –autoridad agraria– excluyen
de las asambleas a quienes no están de acuerdo con su agenda. Los que participan en
este espacio son generalmente quienes tienen un certificado de bienes comunales. Por otro
lado, si la convocatoria proviene del grupo de cucapás asociados con organizaciones
pro-zapatistas, algunos cucapá deciden no asistir argumentando que no están de
acuerdo con actuar “al margen de la legalidad”. Por su parte, la mesa directiva de la
SCPIC –órgano que reúne a los pescadores como socios de la cooperativa– reúne a sus

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miembros durante sus asambleas, por lo que en estos espacios participan los cucapás
que pescan.
59 Todos los ejemplos anteriores permiten reconocer una tendencia de los cucapá para
trabajar en pequeños grupos, y que éstos grupos se forman o se excluyen por motivos
de vínculos familiares, vínculos con las instituciones, o por la actividad que se realiza
para la subsistencia. En estos diferentes espacios se han producido liderazgos que son
reconocidos por sus propios grupos y que sirven para representarlos hacia fuera frente
a las instituciones del Estado y organizaciones de la sociedad civil. Sin embargo, en
algunos casos esos liderazgos se han fortalecido sin procesos de consulta o consenso
hacia dentro del grupo. En este momento no existe un liderazgo cucapá que sea
reconocido por todos los miembros de este grupo indígena”. Este “vacío” de liderazgo
más amplio que se ha denominado “tradicional”–que nadie ha ocupado desde la muerte
de Don Onésimo González– a veces es aprovechado desde fuera para deslegitimar
acciones de los grupos que reclaman el cumplimiento de derechos indígenas.
60 Los escenarios anteriormente expuestos componen el complejo mosaico de la
formación de liderazgos cucapá en el marco de la organización de este pueblo por la
lucha del reconocimiento de sus derechos sobre el territorio y el aprovechamiento de
sus recursos.

Conclusiones
61 Este artículo presenta una síntesis de un proceso de investigación colaborativa en curso
sobre el proceso de defensa de los derechos de un pueblo indígena que lucha por
reproducir su identidad étnica defendiendo su modo de vida y de trabajo. A tres años de
iniciado el trabajo de investigación colaborativa se ha logrado: 1) el establecimiento de
redes de colaboración hacia adentro entre los mismos cucapá, y hacia afuera al
formarse una red de académicos interesados en temas relacionados con el patrimonio y
la forma de vida de los cucapá, los derechos de los pueblos indígenas, la biología, la
pesca, los derechos económicos, sociales, culturales de la población. 2) Se ha iniciado la
vinculación de los académicos que participan en este proyecto de investigación con las
autoridades estatales involucradas en el sector pesca y pueblos indígenas. La intención
de dicha vinculación es producir junto con las autoridades la información que permita
dimensionar el impacto de la pesca cucapá en la población de la curvina golfina, sin
perder de vista la situación socioeconómica y cultural, y el marco de derechos para los
pueblos indígenas. Y 3) se ha usado el video como una herramienta de registro en
situaciones de tensión entre cucapás y autoridades que ponen en evidencia las
contradicciones entre el reconocimiento discursivo de los derechos indígenas, los
impedimentos legales para lograrlo, y el trato criminalizante que reciben cuando
entran a pescar al delta del Río Colorado.

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PORCAYO MICHELINI, A.; ROJAS CHÁVEZ, J. M. Informe de la Cuarta Temporada de Campo del Proyecto
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PORCAYO MICHELINI, A. et al. Sobre la pesca, la caza, la recolección y el patrón de asentamiento entre
los antiguos cucapá: datos arqueológicos, arqueofaunísticos y etnográficos para la descripción de
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Horizontes Antropológicos, 39 | 2013


163

NOTAS
1. Entre los estudios académicos que identifican este territorio como históricamente cucapá se
incluyen los arqueológicos (Ortega Esquinca, 2004; Porcayo Michelini; Rojas Chávez, 2009, 2010), y
los reportes de restos aqueofaunísticos dentro de los anteriores (Guía, 2007; 2008). Existen
también estudios históricos (Gómez Estrada, 2000) y etnográficos (Álvárez, 2004; Gifford 1933;
Kelly, 1973; Navarro Smith, 2013) que documentan la presencia histórica de los cucapás como
habitantes de lo que actualmente se conoce como el Valle de Mexicali.
2. La dimensión que me interesa explorar en la práctica del video colaborativo es su potencial
para generar espacios de discusión donde se identifiquen los temas de interés común tanto para
investigador(es) como para quienes experimentan de manera cotidiana los temas que se
investigan. El lector interesado en este tema puede encontrar en la revisión que Sarah Elder
(1995) hace de su propia práctica de producción de cine entre indígenas Inupiaq y Yup’ik en
Alaska, la dimensión de relaciones de poder que se establecen entre miembros del equipo de
grabación y lugareños a través de rutinas de grabación. Elder analiza la diferencia entre querer
controlar estas dinámicas desde el punto de vista de una dirección cinematográfica –que genera
la imposición de una agenda e irrumpe y trastoca los tiempos de la vida cotidiana de la población
a la que llega, rompiendo todas las reglas de las relaciones sociales que ahí existen–, y una
relación de producción de video colaborativa, en la que los temas a grabar, los tiempos, los
lugares e incluso la decisión de quiénes pueden participar, se acuerdan en reuniones organizadas
según las formas y los tiempos del grupo al que se llega a trabajar.
3. Ver más información sobre la convocatoria de Otros Saberes para la producción de investigación
y conocimiento colaborativo en http://lasa.international.pitt.edu/members/news/
otrossaberes2.asp
4. La dinámica de la colaboración en este proyecto se explica más adelante.
5. La colonización del “Territorio Norte”, como se denominó a Baja California hasta su
reconocimiento como Estado de la Federación Mexicana, comienza con el aprovechamiento de las
tierras deltáicas para la siembra del algodón. Esta industria se establece en México en las dos
últimas décadas de XIX y tiene su auge en las primeras tres décadas del siglo XX, ver más detalles
en Gómez Estrada (2000).
6. Estos derechos se enmarcan en los instrumentos internacionales de derechos humanos como el
Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, el Pacto Internacional de
Derechos Civiles y Políticos de 1966, y el Convenio 169 de la OIT sobre Pueblos Indígenas y
Tribales de 1989, los cuales, se constituyen como parte de la normatividad del país a partir de su
ratificación por México: los primeros se ratifican en 1981 y el segundo en 1990. Este marco
normativo reconoce derechos como el derecho a la libredeterminación, el derecho al desarrollo
propio, el derecho a la consulta, entre otros, que permite a los pueblos indígenas tener lógicas
propias de desarrollo independientes a las lógicas del mercado y de las políticas de desarrollo
gubernamental si ellos así lo deciden en caso de ser afectados en sus formas de vida, como se
indica enseguida. Con la reforma constitucional de 2011 en México, estos pactos internacionales
que las autoridades mexicanas han ratificado, deben ser tomadas como marco de referencia al
mismo nivel que lo establecido en la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos.
7. Antes de la colonización de sus territorios, los cucapá se dedicaban a la pesca, la caza y la
recolección, caminando en un solo día hasta 30 kilómetros entre el punto de recolección del
alimento y el lugar donde se consumía (Porcayo Michelini, comunicación personal).
8. Las demandas concretas que los cucapás hacen a cada uno de estos puntos son: la revocación
del decreto presidencial que da origen a la reserva, en el entendido de que es ilegal al no
consultar a los pueblos indígenas que viven en ese territorio desde al menos 1000 años (Porcayo
Michelini et al., 2013); el reconocimiento del trato diferenciado por adscripción étnica al que
tienen derecho los pueblos originarios, a través de la creación de un área de pesca exclusiva de

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pesca dentro de lo que ahora es la zona núcleo de la reserva, la zona de –El Zanjón–, donde
pescan los cucapá todavía resguardados de las corrientes de mar abierto.
9. Se trata de normas bajo la responsabilidad de la Secretaría de Medio Ambiente y Recursos
Naturales (SEMARNAT) que se operan a través de la Reserva de la Biosfera del Alto Golfo y Delta
del Río Colorado y que se hacen cumplir con el apoyo de la Procuraduría General de Protección al
Ambiente (PROFEPA) y de la Secretaría de la Marina Armada de México.
10. La Comisión Nacional de Pesca (CONAPESCA) regula todas las actividades pesqueras en el país.
En Mayo de 2012 este organismo se descentralizó de la Secretaría de Agricultura, Ganadería,
Desarrollo Rural, Pesca y Alimentación (SAGARPA). Sin embargo, las normas de pesca no son las
únicas que los cucapá deben obedecer ya que sus campamentos de pesca se encuentran en la zona
núcleo de la reserva de la biósfera administrada por SEMARNAT. A los cucapás les ha tocado
negociar con ambos tipos de autoridades (de pesca –CONAPESCA– y de protección a los
ecosistemas –SEMARNAT–) pero ninguna ha podido resolver los retos que les plantea el
reconocimiento de derechos diferenciados para los pueblos indígenas, en los que los cucapá se
basan para pedir a ambas autoridades que se abra un espacio de pesca exclusivo para el pueblo
cucapá en la desembocadura del Río Colorado. En conversación con autoridades de SEMARNAT y
de CONAPESCA, me han hecho notar que los marcos normativos de ambas instituciones no
contienen el aspecto de derechos indígenas, sino únicamente el enfoque de biología y
administración de los recursos naturales, por lo que no pueden resolver el problema que les
plantea el caso cucapá por estar fuera de su marco de referencia institucional.
11. Más adelante se ofrecen testimonios donde los cucapás hablan de cómo su forma de vida –y
por lo tanto su organización social– ha ido cambiando con las diferentes dinámicas introducidas
por las políticas públicas y el marco legal que poco a poco ha restringido la práctica de su cultura
como lo hacían sus ancestros.
12. La totoaba ( Totoaba macdonaldi) es una especie de pez endémico del Golfo de California,
protegido por la norma 063 para las especies en peligro de extinción. También es un pez que
arqueológicamente se ha documentado pescaban los indígenas de la región desde tiempos
históricos (Porcayo Michelini et al., 2013), pero que a partir de la pesca comercial y deportiva se
hizo cada vez más escasa. Actualmente la Universidad Autónoma de California, a través de su
departamento de Oceanología, ha logrado cultivar los huevos de totoaba con éxito, devolviendo
al mar especímenes que en este momento pueden estar manteniendo la población deseable para
que se vuelva a reproducir con éxito en su entorno natural.
13. Se trata de una SONY PD-150 con microfono unidireccional que va protegido por un protector
contra el viento.
14. Ver http://tvolucion. esmas.com/noticieros/punto-de-partida/200612/gente-agua/.
15. El Center for Marine Biodiversity and Conservation (CMBC), del Scripps Institution of Oceanography
de la Universidad de California San Diego (UCSD), realiza el único estudio de investigación sobre
la biología de la curvina golfina y el impacto de la pesca en su reproducción. Para resultado
parciales de este proyecto ver Paredes et al. (2010).
16. Sobre la construcción del indígena como sujeto no deseable en la ideología del mestizaje, ver
Navarro (2013); Castellanos Guerrero (1994); Urías Horcasitas (2007).
17. El audio completo de la audiencia pública con los cucapás en el 133 Periodo de Sesiones que
tuvo lugar en la Comisión Interamericana de Derechos Humanos el 22 de octubre de 2008 en
Washington, titulada “Derecho al uso y aprovechamiento de los recursos naturales y consulta
previa respecto al pueblo indígena Cucapá en México”, se puede descargar del sitio (Comisión
Interamericana de Derechos Humanos, 2008).
18. Subtemas críticos relacionados que también es necesario estudiar son: a) Mecanismos de
representación de miembros de comunidades indígenas ante el Estado Mexicano –más allá de las
figuras agrarias que son las únicas reconocidas legalmente hasta el momento. 2) Instrumentos de
defensa de los derechos de quienes son y no son reconocidos como indígenas. 3) Argumentos a

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favor del trato diferenciado que podrían recibir los pueblos indígenas en México según se
establece en las normativas internacionales de derecho indígena ratificados por el gobierno
Mexicano. Y 4) sistematizar las acciones de defensa que han realizado los cucapás organizados en
al SCPIC a lo largo de su “lucha jurídica” por la pesca para analizar el tipo de respuestas que han
dado las autoridades a sus acciones legales en defensa de su derecho de pescar.
19. Considero que la falta de información sobre la asimilación de la cultura cucapá –que explica la
transformación de aspectos de su cultura, incluyendo su forma de pescar– ha jugado un papel
muy importante en el tipo de descalificaciones que he escuchado que autoridades y académicos
hacen sobre la demanda del derecho que los cucapás reclaman sobre la actividad pesquera.
20. En una de las sesiones de trabajo, y a partir del comentario de la Dra. María Teresa Sierra
señalando que el estatus dialecto no es correcto para referirse al cucapá, porque éste no es
variación de ninguna otra lengua, sino un idioma en sí mismo, los cucapás debaten entre ellos si
le llaman idioma o le llaman dialecto, como acostumbran llamar al cucapá.
21. Los cucapá que se reunen en el campamento de pesca de la SCPIC provienen de al menos 9
poblaciones diferentes, algunas de ellas recorren entre 2 y 4 horas de camino por carretera para
reunirse en El Zanjón, donde se encuentran sus campamentos de pesca. Las familias se desplazan
desde el ejido Kiliwas, Mexicali, El Mayor Cucapá, la colonia Carranza, el ejido Leona Vicario, el
Sombrerete, Kilómetro 57, Encinas Johnson, y el Indiviso.
22. El cucapá dejó de hablarse de manera cotidiana entre los cucapás de Baja California. No existe
información que dé cuenta de cuándo y cómo ocurrió este fenómeno. En otro manuscrito exploro
el impacto de las políticas públicas en la transformación de la cultura cucapá. El desuso de la
lengua materna y las restricciones al territorio son dos de las dimensiones más visibles de estas
afectaciones.
23. En 2011 y 2012, algunos cucapás encontraron empleo temporal como trabajadores en la
reconstrucción de las redes de canales que se destruyeron con el terremoto de 7.2 grados en la
escala de Richter que sacudió a Mexicali y a su Valle el 4 de abril de 2010
24. Los cucapás históricos han sido caracterizados como pueblo seminómada, cazador, recolector
y agrícola en zonas de inundación del río, según evidencias arqueológicas (Porcayo Michelini et
al., 2013).
25. Esta cuota se instala en 1944 con la firma del Tratado sobre Distribución de Aguas Internacionales
entre Estados Unidos Mexicanos y Estados Unidos de América.
26. Me refiero a la ideología del mestizaje que produce asociaciones negativas entre los aspectos
étnicos de las identidades indígenas y que está en la base del pensamiento de la relación del
Estado con los pueblos indígenas en México y que es la base del pensamiento para la elaboración
de políticas públicas a partir de la Revolución Mexicana (ver Castellanos Guerrero, 1994; Navarro
Smith, 2013; Urías Horcasitas, 2007).
27. Para más detalles del impacto de las políticas públicas en la transformación de la cultura
cucapá durante los últimos setenta años ver Navarro Smith (2013).
28. Para una discusión jurídica de la legitimidad de la aplicación de derechos diferenciados para
resolver problemas como el caso que los cucapás plantean, ver Angles Hernández (2011).
29. En la conversación se recuerda que un señor de apellido “Castro” estaba de delegado de la
oficina de pesca.
30. El pueblo cucapá ha quedado divido por las fronteras políticas, incluso internacionales. Hoy
en día, este pueblo se ubica “oficialmente” en tres centros de población: Comunidad Indígena
Cucapá el Mayor [Ejido el Mayor] en Baja California, México; Pozas de Arvizu en Sonora, México;
y la reservación Cucapá (Cocopah) en Somerton, Arizona, Estados Unidos. Es importante señalar
que a pesar de que el modo de vida cucapá se caracterizaba por su intensa movilidad y dispersión
por grupos de familia, los gobiernos en ambos países les reconocieron tierras en las modalidades
de tierra comunal y reservaciones indígenas respectivamente, asumiendo con esta política
gubernamental que deberían vivir concentrados en un solo espacio de población. Sin embargo,

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retomando información proporcionada por el Instituto Nacional de Lenguas Indígenas (INALI), se


puede establecer que los cucapá continúan reproduciendo un patrón de vida disperso, pues se
han censado familias cucapá que radican fuera de estos tres centros de población oficialmente
reconocidos como cucapá. Familias cucapá viven en ejidos del Valle de Mexicali como El ejido
Alberto Oviedo Mota (El Indiviso), en la Colonia La Puerta, en el Ejido Cucapá Mestizo, en el Ejido
Durango, en el Ejido México, en el Ejido Sonora, en los campos Flores, Sonora, Camerina, El prado,
e incluso, muchos de ellos, radican y trabajan en Mexicali.

RESÚMENES
Los pescadores indígenas cucapá defienden su derecho a pescar en su territorio ancestral incluso
en contra de las normatividades de la Reserva de la Biósfera del Alto Golfo y Delta del Río
Colorado que se creó hace 20 años en el mismo lugar en donde realizan esta actividad. Las
mujeres cucapá tienen un rol predominante en la organización política de la defensa de sus
derechos, incluyendo el derecho al trabajo de la pesca como forma de subsistencia. En este
artículo se ofrece información sobre el trabajo de pesca de los cucapá, sus restricciones, y el
proyecto de investigación colaborativo del que se desprende la información presentada.

Cocopah fishermen struggle to defend their right to fish in their historic territory. Against them,
environmental laws –including the creation of a Biosphere Reserve– have restricted their right to
exploit resources in their territory since 1993. Cocopah women play an important role in
organizing and leading the cocopah movement that reclaim the recognition of their rights,
including their right fish as an activity for survival for contemporary Cocopah families. Here I
describe the Cocopah fishing practice, the restrictions imposed to it, and a general overview
about the collaborative research that has generated the information that is presented in the
following pages.

ÍNDICE
Keywords: Cocopah, collaborative filmmaking, collaborative research, fishing
Palabras claves: cucapá, investigación-colaborativa, pesca, video-colaborativo

AUTOR
ALEJANDRA NAVARRO SMITH
Universidad Autónoma de Baja California – México

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Trabalho assalariado e campesinato


uma etnografia com famílias camponesas

Verena Sevá Nogueira

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 30/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

NOTA DO AUTOR
Uma versão anterior deste artigo foi publicada nos anais eletrônicos do congresso da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), realizado em julho de 2012, na cidade de
São Paulo, Brasil.

Introdução
1 Num debate clássico da antropologia rural, a começar com Kroeber (1948) nos anos
1940, seguido por Robert Redfield (1949, 1960) e Eric Wolf (2003) nas décadas seguintes,
o tema da interconexão entre as sociedades camponesas e um mundo moderno,
industrial e capitalista vem a contrapor uma assertiva acadêmica que defendia um
pretenso isolamento social e geográfico dessas sociedades em relação a um mundo
social mais amplo.
2 Opondo-se a um primeiro trabalho publicado em 1949, Redfield, em posterior
publicação, passa a partilhar das ideias de Kroeber, de que sociedades camponesas não
seriam nem “primitivas”, nem tampouco sistemas simples e autocontidos, mas parcelas
de uma sociedade mais ampla, denominadas como part-societies ou part-cultures
(Redfield, 1960). Nesse raciocínio, os camponeses migrantes figuram como elos entre
esse mundo urbano “moderno” e o mundo rural “atrasado”. Mas um mundo urbano e
“moderno” que se impõe tenazmente a um mundo e a um modo de vida camponês. Na

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tentativa de entender as consequências desse embate, surge no meio acadêmico um


amplo debate sobre o advento das relações capitalistas no campo, e, no seu bojo,
diferentes interpretações sobre o tema do trabalho assalariado em famílias
camponesas.
3 Numa das pontas argumentativas desse debate encontram-se as análises de inspiração
leninista que defendem o processo de diferenciação do campesinato frente a uma lógica
econômica capitalista, resultando na transformação inevitável dos camponeses em
proletários rurais ou em capitalistas do campo.1 Outra é a vertente interpretativa que
predominou nos estudos rurais brasileiros nos anos 1970, segundo a qual o campesinato
não desaparece no embate com a sociedade capitalista, urbana e industrial nascente no
Brasil a partir da década de 1950,2 mas passa a ser funcional a essa nova ordem social,
nela se integrando como fornecedor de produtos agrícolas e mão de obra a baixo custo
(Fernandes, 1973; Martins, 1975; Oliveira, 1972). Numa outra ponta argumentativa,
situo as análises de cunho mais propriamente antropológico, às quais se filiam as
assertivas deste texto, que procuram pensar o campesinato mais amplamente que um
modo de produção ou uma lógica econômica, sobretudo como um modo de vida, ou
mesmo como uma ordem moral, uma subjetividade (Garcia Júnior, 1983, 1989; Velho,
1983; Wanderley, 2003; Woortmann, E, 1995; Woortmann, K., 1990).
4 Nestes estudos do campesinato3 brasileiro, o tema do trabalho assalariado está
presente, e interpretado segundo uma lógica camponesa. Nesse sentido, ao pensarmos a
relação entre trabalho assalariado e famílias camponesas, devemos atentar para a
existência de um fenômeno complexo e atual no campo brasileiro, que engloba desde
situações de contratação temporária de mão de obra de terceiros (trabalhadores
assalariados), em momentos em que a mão de obra familiar não é suficiente para o
trabalho, como situações em que são os próprios membros da família camponesa que se
assalariam fora de casa. Estratégias de vida que não se opõem, mas se completam
dentro de uma lógica camponesa, e que permitem aos camponeses o trânsito entre as
posições de contratantes e contratados, sem maiores rupturas ou estranhamento,
diversamente do que se passaria na lógica capitalista, assentada sobre duas classes
antagônicas, os capitalistas e os trabalhadores.
5 Neste texto analiso um processo de assalariamento temporário em famílias camponesas
e migrantes, buscando compreender como essa prática adentra a dinâmica produtiva e
reprodutiva desses grupos. Meu ponto de partida empírico é uma etnografia realizada
nos anos 2007, 2008 e 2009, com famílias camponesas de Aracatu, município localizado
no sertão4 do estado da Bahia, para as quais os deslocamentos migratórios e o
assalariamento fora da terra familiar compõem um antigo, organizado e complexo
processo de reprodução social.

A gente fica nove meses aqui, três, quatro lá no café


6 Aracatu é como muitos outros municípios do Nordeste brasileiro para os quais os
deslocamentos migratórios de seus habitantes são práticas históricas e recorrentes. Ao
chegar pela primeira vez5 nessa pequena cidade localizada no sertão nordestino, minha
ânsia por encontrar pessoas que tivessem uma experiência migratória durou pouco. Ter
saído6 (e voltado) alguma vez de Aracatu, ter alguém na família que já saiu, ou mesmo
ter algum parente ou conhecido que vive fora dali é lugar-comum. São Paulo, 7 como
genericamente é denominado qualquer lugar ao sul da Bahia, mostrou-se um lugar

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conhecido e familiar. Um destino que embora distante geograficamente de Aracatu, a


ela encontra-se ligado simbolicamente por meio das redes tecidas no ir e vir dos
migrantes. Redes que se formam e se atualizam, ademais, não somente pela circulação
de pessoas, mas de bens materiais (dinheiro, presentes, encomendas) e imateriais
(informações, notícias, fofocas), levados, trazidos, enviados e recebidos.
7 Há uma importante literatura sobre campesinato no Brasil que analisa processos
migratórios que têm o Nordeste como “lugar de partida”, seja em direção à região
Sudeste do país (Durham, 1978; Garcia Júnior, 1989; Menezes, 1985, 2002; Scott, 2009;
Woortmann, K., 2009), seja com destino à região Norte (Velho, 1983). Processos
migratórios nada recentes na história nordestina, como assinala Manoel Correa de
Andrade (1980) em seu livro A terra e o homem no Nordeste.
8 Arriscando-me numa generalização nem sempre fiel à heterogeneidade e vivacidade
dos processos sociais, embora importante na composição de um quadro interpretativo
da mobilidade nordestina brasileira, pontuo que até as primeiras décadas do século XX
os movimentos migratórios de nordestinos se dirigiam precipuamente para lugares
mais próximos de casa, figurando o retorno como parte constitutiva desses
deslocamentos. Com a intensificação das migrações internas no Brasil a partir dos anos
1930, os trajetos migratórios de nordestinos galgaram lugares mais distantes, com
destaque para as regiões Sudeste e Norte do país. Era o período das grandes levas
migratórias em direção ao ABC paulista, para o trabalho operário nas indústrias que ali
se instalavam (Martins, 1986; Menezes, 1985; Silva, M., 1999; Singer, 1976), e dos
deslocamentos dirigidos para a região Norte, impulsionados pelos projetos de
colonização do governo federal (Velho, 1983). Processos migratórios que coincidem,
ademais, com as transformações pelas quais vinha passando a própria região Nordeste,
com especial destaque para as alterações nas relações de trabalho e de “morada” no
interior dos engenhos e das usinas de cana-de-açúcar8 (Garcia Júnior, 1989; Palmeira;
Almeida, 1977; Sigaud, 1979).
9 Para as famílias camponesas de Aracatu e arredores, as práticas migratórias conformam
um processo migratório antigo e em constante transformação. Afora as saídas para
trabalhar em fazendas e sítios da região, que aparecem nos relatos dos habitantes mais
idosos, descritos como práticas constitutivas do modo de vida das famílias camponesas
do lugar pelo menos desde a primeira metade do século XX, a partir dos anos 1950 os
migrantes passaram a embarcar em caminhões “pau de arara” 9 até a capital paulista,
onde tomavam o “trem da Migração” em direção ao oeste do estado ou ao norte do
Paraná, onde se empregavam em atividades agrícolas. Nos anos 1980 as famílias de
Aracatu passaram a se deslocar massivamente para o sul da Bahia, região de Guanambi,
para o trabalho na colheita do algodão, fase que durou até o declínio dessa lavoura no
local, na década seguinte. Atualmente duas são as principais formas de mobilidade no
espaço: os deslocamentos para alguns municípios do estado de São Paulo, o que na
linguagem local é expresso como sair pelo mundo ou sair para São Paulo – modalidade
praticada desde a década de 1980, quando as primeiras famílias fixaram residência em
Artur Nogueira –, e deslocamentos temporários para o trabalho assalariado em
fazendas de café do Sudeste do Brasil, denominados sair para o café. Duas formas atuais
de mobilidade imbricadas dentro de um mesmo processo migratório, como momentos
que se mesclam e se sucedem de forma não linear ou necessária nas trajetórias de vida
dessas famílias.10

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10 Sair pelo o mundo significa deixar o local de onde se é, e ir viver em outro lugar, em um
mundo conhecido e familiar, diverso do “meio do mundo” descrito por Parry Scott
(2009) como um lugar desconhecido, novo e temido. Um mundo onde vivem parentes e
conterrâneos, que intermedeiam a vinda dos novos migrantes, dando-lhes uma
primeira morada, arrumando-lhes trabalho e, não menos importante, dando-lhes um
suporte afetivo para enfrentarem o novo lugar. Um mundo que se concentra em dois ou
três bairros da periferia de Campinas, e principalmente no município de Artur
Nogueira, localidades vizinhas no interior paulista.11
11 Sair para o café, especificamente, nomeia a modalidade migratória em que as famílias
fecham suas casas na roça ou na rua12 durante três a quatro meses, embarcam em ônibus
fretados até fazendas e sítios da região Sudeste do Brasil, 13 ali permanecem por esse
período a trabalhar na colheita do café, e ao final regressam para suas casas no sertão.
Uma vida camponesa dividida em dois tempos e em dois lugares, assim como expresso
na fala de uma entrevistada quando explica que: a gente fica nove meses aqui, três, quatro
lá no café. Porém um tempo marcado não apenas pelo calendário e relógio oficiais, mas
pelo período que dura o trabalho no café.
12 Sair para o café, trabalhar durante três a quatro meses na colheita, e voltar para Aracatu
tornou-se, na última década, a principal modalidade migratória para os habitantes do
lugar. Um processo migratório no qual se envolvem não apenas aqueles que partem
rumo ao café, mas toda a população de Aracatu, que passa a ter sua temporalidade
marcada por esse “tempo do café”.14 O comércio, as festas, as escolas, as lavouras, os
encontros sociais, enfim, praticamente toda a vida no sertão transita entre o “tempo do
café” e o “tempo em casa”, seu oposto.
13 Durante o “tempo do café”, e nos meses que o antecedem,15 o movimento no comércio é
reduzido de forma acentuada, sendo reavivado apenas com o retorno dos migrantes.
Com o dinheiro ganho no trabalho no café as famílias garantem a feira 16 até o ano
seguinte,17 quando novamente seguem para o café.
14 Mas conquanto ocorra uma diminuição sensível nas vendas, nas casas comerciais da
sede urbana do município, durante o “tempo do café”, em alguns mercadinhos
localizados na zona rural as vendas não caem, ou caem muito pouco. Um fato,
aparentemente paradoxal, que deve ser compreendido dentro da totalidade da vida
social, que obedece a essas duas temporalidades marcadas pelo “tempo do café”.
15 Durante o “tempo em casa” existe uma regularidade semanal das famílias rurais em ir à
feira18 na sede urbana do município, regularidade que cessa durante o “tempo do café”.
Poucas são as famílias que dispõem de carro pequeno, 19 sendo que a maioria necessita dos
carros que fazem linha20 ou do ônibus do seu Pedro para ir à rua, visto que transporte
público inexiste no município.21 Esses meios de locomoção funcionam regularmente
durante o “tempo em casa”, mas cessam ou quase desaparecem durante o “tempo do
café”, deixando as famílias rurais (os membros destas que ficaram), especialmente as
das áreas mais distantes do município, numa situação de isolamento. Dessa forma, sem
meio de locomoção entre suas fazendas e a rua, os que ficam passam a depender quase
que exclusivamente dos mercadinhos da zona rural, que transmudam de um comércio
subsidiário que são durante o “tempo em casa” para o lugar principal das compras,
durante o “tempo do café”.
16 O calendário escolar do município é outro aspecto social regulado pelo “tempo do café”.
Para o café saem não somente homens e mulheres adultas, mas também jovens 22 e

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crianças em idade escolar.23 As crianças viajam para acompanhar os pais, que muitas
vezes não têm com quem deixá-los, ou simplesmente preferem tê-los consigo. Os que
têm 14 anos ou mais já saem para trabalhar nos cafezais.
17 Em algumas escolas da zona rural, onde há maior afluxo de estudantes migrantes, as
aulas restam suspensas durante o “tempo do café”, sendo reiniciadas quando do
retorno dos estudantes. Há uma espécie de antecipação das férias de verão, que nas
escolas brasileiras oficialmente acontecem nos meses de dezembro de um ano a janeiro
e fevereiro do ano seguinte. Já na sede urbana do município, a adaptação dos
calendários escolares24 mostrou-se um pouco diferente, havendo basicamente dois
calendários, um especial para os estudantes migrantes, grande parte deles moradores da
zona rural,25 e outro para os que ficam.
18 Ademais, nos últimos cinco anos verificou-se uma diminuição significativa do número
de crianças que acompanham os pais nos deslocamentos para o café, fato atribuído em
grande medida à implantação pelo governo federal do programa Bolsa Família, que
prevê o pagamento de um benefício financeiro mensal para famílias carentes, exigindo
em contrapartida que as famílias garantam uma frequência mínima das crianças à
escola,26 o que resta inviabilizado quando as mesmas acompanham os pais no café.
19 Mas é no campo que o “tempo do café” define com mais força a temporalidade da vida.
Dali sai a maior parcela dos migrantes em direção às fazendas de café do Sudeste. É
onde as casas são literalmente fechadas, as rotinas, mudadas e a vida, suspensa. Um
“tempo”, ademais, que proponho seja desmembrado em quatro “subtempos do café”: o
dos preparativos para sair, o do trabalho no café propriamente dito, o das visitas aos
parentes, e o da volta para casa. Tempos e “subtempos” que adentram a dinâmica
produtiva e reprodutiva dessas famílias, reorganizando-as enquanto grupos de parentes
ligados a uma terra familiar.
20 Portanto, é para o campo de Aracatu, e para as famílias camponesas que ali têm sua
casa e sua vida, que conduzo a análise que se segue. Primeiro apresento as fazendas 27
Martim e Baixa Escura, e as famílias desses lugares, para, em seguida, retomar a
discussão central sobre os “tempos do café” e o assalariamento em famílias
camponesas.

Aqui ninguém vende terra não


21 A fazenda Martim pertence ao Velho Zora, que ali chegou em 1970. Comprou-a com o
dinheiro obtido na venda de parcela da terra que herdara dos pais, onde vivera até se
casar. Trata-se de uma área de 100 hectares de terra titulada em nome de dois de seus
filhos, que continuam a viver no local com o patriarca e com alguns de seus
descendentes. A outra parte da parentela do Velho Zora não vive mais na fazenda
Martim, mas em São Paulo.
22 A fazenda Baixa Escura, contígua à Martim, possui uma área de pouco mais de 100
hectares de terra, e é de propriedade de Zé Mascate, que, assim como o vizinho,
comprou-a com o dinheiro da venda de outra área próxima, recebida por herança do
pai. Embora tenha vivido muitos anos na Baixa Escura, Zé Mascate atualmente mora no
município paulista de Artur Nogueira, ficando a cargo de seus três filhos homens o
cuidado da fazenda.

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23 Nas fazendas Martim e Baixa Escura o trabalho concentra-se basicamente na produção


de gêneros agrícolas destinados ao consumo interno da família e à troca e excedentes
com vizinhos. Os principais produtos cultivados são: palma para ração do gado, feijão,
milho, andu (guandu), melancia, fava, abóbora, maxixe, quiabo e alguns temperos. Há
ainda a criação de pequenos animais como porcos e galinhas, e a criação de gado.
24 A divisão do trabalho familiar guarda relação direta com um padrão de moradia,
segundo o qual cada família nuclear, composta pelos pais, filhos solteiros e,
eventualmente, algum parente idoso, tem sua própria casa, sua própria roça, sua
própria horta, seu próprio mangueiro.28 Exceção à regra recai na lida com os animais nas
áreas de manga,29 onde pais e filhos, inclusive os casados que moram em casas
separadas, permanecem trabalhando conjuntamente.
25 Concomitantemente ao trabalho realizado pelos familiares de cada casa, há um sistema
de ajudas mútuas entre parentes que moram em distintas casas de uma mesma fazenda,
assim como entre vizinhos de fazenda que mantêm entre si relações de proximidade e/
ou de parentesco. Por meio do convite, as pessoas ficam sabendo que uma família
precisa de ajuda para um plantio, para uma colheita, ou mesmo em alguma obra na
fazenda. São convites e ajudas que não podem ser negados, pois corporificam um sistema
de trocas obrigatórias por meio do qual as famílias operam visando à sua reprodução,
ou imbuídas do propósito de continuar a fazer parte de um grupo de parentesco ou de
vizinhança. São trocas que se mostram aparentemente facultativas, mas com cunho
obrigatório para aqueles que estão inseridos numa mesma rede familiar ou de
vizinhança, e que desejam continuar a fazer parte da mesma. Redes, ademais, que
existem não somente num contexto local, nas fazendas do sertão, mas que conectam os
moradores do sertão com seus parentes que estão a viver fora, em São Paulo. 30
26 Afora os casos de ajudas, há situações de contratação de mão de obra de parentes e de
vizinhos com retribuição em dinheiro. É o que se denomina localmente por serviço. 31 De
forma semelhante às ajudas, o serviço possui um caráter temporário e se dirige a uma
tarefa específica, diferenciando-se do trabalho permanente e contínuo dos membros de
um grupo familiar camponês. Uma modalidade de trabalho assalariado e temporário
que, segundo Klass Woortmann (1990), viabiliza a produção camponesa das famílias
que, por algum motivo, não têm braços suficientes para realizar o serviço contratado.
Isso ocorre, por exemplo, em grupos familiares em momentos de ciclo de vida com
poucos adultos, em fases da produção com maior demanda de mão de obra, como nas
colheitas, ou mesmo em casos de tarefas específicas ou especializadas, como construção
de casas ou derrubada de mata. O mais importante a reter, nesse ponto, é que são
serviços que não operam dentro de uma relação de oposição, mas de
complementariedade com o trabalho da família camponesa.
27 A contratação do serviço de pessoas de fora do grupo familiar denota, em algumas
situações, sinal de prosperidade da família contratante, na medida em que permite o
direcionamento do trabalho de seus membros para atividades consideradas mais nobres
ou menos penosas, como, por exemplo, as colheitas. Por outro lado, é uma maneira de o
“pai de família” afirmar sua posição de controle dentro do próprio grupo, podendo (ou
não) isentar os familiares dos trabalhos mais penosos e, especificamente no caso das
mulheres,32 retirá-las do trabalho considerado penoso da roça, circunscrevendo-as ao
espaço da “casa-quintal” (Carneiro, 1996; Garcia Júnior, 1983; Woortmann, K., 1990).
28 A casa de moradia é um dos elementos centrais da organização espacial nas fazendas
estudadas no sertão. Uma marcação (e distinção) física da família nuclear (casal e filhos

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solteiros) no interior da família extensa e do espaço indiviso da fazenda. Uma forma de


moradia e de divisão fundiária que aparece com frequência em certa literatura sobre
sociedades camponesas, nas quais o padrão do domínio e de transmissão da terra se
baseia no regime de pró-indiviso, ou seja, em domínios de terra sem demarcação
interna, apossados por vários donos, normalmente aparentados entre si (Godoi, 1998;
Woortmann, E., 1995).
29 O casamento entre vizinhos, com gente daqui mesmo, aparece como prática recorrente e
antiga nas famílias analisadas. São os “casamentos em casa”, que resultam da união
entre primos33 (que são também vizinhos), da união entre vizinhos sem laços de
consanguinidade, ou da união entre vizinhos, consanguíneos ou não, que estão a viver
em São Paulo. Os “casamentos em casa” reúnem parentes e vizinhos numa espécie de
“família ampliada”, onde os que são parentes entre si confirmam seu pertencimento à
família e à terra familiar, e os de fora passam a integrá-las, chegando ao ponto de não
mais ser possível pensar uma separação de fato entre parentes e vizinhos, entre
parentes e não parentes, entre os da família e os de fora.
30 A prática matrimonial é uma importante e antiga estratégia de reprodução em famílias
camponesas, guardando relação direta com a perpetuação do domínio do grupo
(sucessão fundiária) sobre uma parcela de terra, o patrimônio maior para essas famílias
(Bourdieu, 2004; Garcia Júnior, 1983; Godoi, 1998, 1999; Moura, 1978; Woortmann, E.,
1995; Woortmann, K., 2009). Segundo Bourdieu (2004), os casamentos camponeses têm
como primeira função dar continuidade a uma parentela, sem o comprometimento da
integridade do seu patrimônio. Nesse sentido, uma reprodução/preservação da
integridade do patrimônio camponês que se destina a “preservar uma unidade de
parentesco e os circuitos de reciprocidade que nela e por ela operavam, assim como
uma concepção moral da relação com a terra” (Woortmann, E.,1995, p. 225).
31 Em Aracatu, os casamentos com gente daqui vêm funcionando como estratégia para
manter ou até mesmo ampliar o patrimônio territorial familiar, impedindo que as
terras familiares passem para o domínio de famílias de fora. É a partir do esquema:
“casamento em casa”, “família ampliada” e território familiar que se configuram as
relações de parentesco nas famílias do local. Relações expressas por um aqui é tudo
família, remetendo a uma grande família (“família ampliada”) com seus membros
morando (ou com origem) num mesmo território (fazendas avizinhadas em Aracatu),
que se perpetua através dos casamentos realizados no seu interior (“casamentos em
casa”).
32 A interdição de venda de terra para pessoas de fora é mostrada na literatura como uma
importante estratégia de manutenção do patrimônio fundiário em famílias camponesas
da região Nordeste brasileira. (Garcia Júnior, 1983; Godoi, 1998, Woortmann, E., 1995).
Nesses contextos, assim como observado nas famílias das fazendas Martim e Baixa
Escura, quando as pessoas dizem que aqui ninguém vende terra não, isso não indica a
inexistência de comércio de terras no local, mas sim que tais transações ocorrem
majoritariamente no interior dessas “famílias ampliadas”.

Os “tempos” do café
33 Mas não é da produção agrícola, nem tampouco da criação de animais que as famílias
camponesas de Aracatu vêm obtendo, na última década e meia, suas principais fontes
de renda. Essas vêm de fora, dos benefícios da previdência social – com destaque para

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as aposentadorias rurais34 – e, sobretudo, do dinheiro auferido pelos migrantes no


trabalho realizado nas fazendas de café da região Sudeste do Brasil. Um trabalho
assalariado e temporário, realizado durante três a quatro meses no ano, que pressupõe
um movimento de ir e vir das famílias entre suas fazendas do sertão e as fazendas de
café.
34 Um movimento migratório que, além de implicar uma mudança temporária do local de
moradia dos trabalhadores migrantes, altera suas relações de trabalho e propriedade.
Enquanto nas fazendas do sertão suas famílias são proprietárias da terra onde moram e
trabalham em regime de produção familiar, nas fazendas de café do Sudeste os
migrantes se transmudam em trabalhadores assalariados na propriedade rural de um
fazendeiro do café, com quem não mantêm qualquer relação de proximidade ou
intimidade, mas apenas um contrato de trabalho impessoal.
35 Porém, sair para o café é um movimento migratório que, se de um lado é definido pelo
tempo da colheita do café, de outro atua na marcação temporal das relações e da vida
no sertão. Uma temporalidade assentada, dessa forma, no ritmo dado pela combinação
entre o “tempo do café” e o “tempo de casa”, anteriormente mencionados, ou mais
especificamente, uma temporalidade moldada pelos “subtempos do café”.
36 O primeiro desses “subtempos” é o dos preparativos para sair, momento em que
algumas providências devem ser tomadas pelos migrantes. A primeira coisa a se fazer é
arrumar um lugar numa turma35 de migrantes que seguirá para o café. É o momento de
procurar um arregimentador,36 e saber se há lugar em sua turma.
37 O arregimentador é sempre um conterrâneo dos migrantes, um parente, um vizinho ou
um amigo que age como intermediário entre eles e os fazendeiros do café. Sua função é
reunir trabalhadores e levá-los para os cafezais, com os quais permanece durante todo
o tempo da colheita, como o responsável e chefe da turma. Assim como seus 37
trabalhadores, o arregimentador é também um migrante temporário, embora ocupando
posição hierárquica superior e recebendo um salário mais elevado que o dos demais,
por ser ele o chefe e o responsável pela turma.
38 Cabe aos arregimentadores escolher quem comporá sua turma. Ter uma boa relação
familiar, de vizinhança ou de trabalho com um arregimentador é condição primeira
para poder estar em sua turma. Ter trabalhado em anos anteriores com um dado
arregimentador, tendo cumprido diligentemente as obrigações de um bom funcionário,
é também condição para a renovação da sua vaga na turma do ano seguinte. Aliás, a
regra é a permanência, em anos seguidos, em turmas de um mesmo chefe,
configurando-se uma espécie de fidelidade recíproca.
39 Inspirada nas análises de Lygia Sigaud (2004) acerca das relações entre os “moradores”
dos engenhos e seus patrões, sugiro pensarmos a existência de uma forma aproximada
da “dominação tradicional”38 weberiana entre os arregimentadores e os migrantes que
este leva para o café. Uma modalidade de dominação exercida em virtude do prestígio
do arregimentador, reiterada pela tradição, e pela fidelidade dos migrantes em relação
a ele. Um tipo de dominação influenciada diretamente por valores morais e éticos, 39 e
não por algum tipo de ordenamento legal ou burocrático que caracterizaria a
“dominação legal”. Uma relação de domínio que não é percebida como tal pelos
migrantes, seja porque o arregimentador é alguém que lhes é próximo, a quem chamam
pelo nome, alguém do grupo de parentes ou da vizinhança, seja por ele ser alguém que
lhes proporciona uma vida melhor, na medida em que lhes arruma trabalho. Os

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trabalhadores migrantes sentem-se endividados em relação à ajuda que recebem dos


“generosos” arregimentadores. Ajudas que não são vistas como obrigações, mas como
dons, que por sua vez (re)dimensionam o prestígio e o poder dos arregimentadores
perante os migrantes, seus familiares e toda uma população que deles dependem para
ganhar a vida fora.
40 De forma análoga ao tratado pela literatura em outros cenários migratórios brasileiros
(Machado, 1992; Silva, M., 1999; Silva, V., 2005), os arregimentadores de migrantes têm
uma trajetória de vida pregressa associada ao trabalho na roça. Ser chefe de turma é
tornar-se chefe de turma, é deixar de ser um “mero” trabalhador agenciado por outrem,
e tornar-se aquele que leva os seus próprios trabalhadores.
41 Os arregimentadores de migrantes começam trabalhando para outros
arregimentadores, e depois mudam de status. Passam da posição de trabalhadores a de
chefe de turma (ou de arregimentador de migrantes). Uma passagem de status nem
sempre fácil para todos, ou ao menos mais fácil para uns que para outros. Arregimentar
trabalhadores é um ofício aprendido na prática com outros arregimentadores. Um
ofício que não raro é um “negócio de família”, passado de pai para filho.
42 Zé Mascate, da fazenda Baixa Escura, é um dos mais antigos e prestigiados
arregimentadores de migrantes de Aracatu e região. Hoje está aposentado 40 do ofício,
atuando somente nos bastidores do processo migratório, cultivando os contatos
comerciais que possui com os fazendeiros do café e os transmitindo para os novos
arregimentadores de sua família. Chegado o “tempo do café” Zé Mascate, que
atualmente vive em Artur Nogueira com a esposa e uma filha casada, se muda de sua
casa no interior de São Paulo para sua casa na Baixa Escura, onde substitui os filhos e
netos, que agora são os que exercem o ofício de arregimentação de migrantes.
43 Na família de Zé Mascate o ofício de levar aracatuenses para trabalhar fora da Bahia é
uma herança familiar, uma atividade aprendida com o pai, com o avô ou mesmo com
outro parente próximo, que além de atuarem como professores transmitem o prestígio
e o respeito que detêm junto às famílias camponesas de Aracatu, e aos fazendeiros
contratantes dos migrantes. Um prestígio que está associado ao poder dos
arregimentadores, distinguindo-os do restante da população, e que, não raro, funciona
como um trampolim para o ingresso em cargos eletivos, 41 assim como em outras
instâncias do poder local.
44 Já para os “novatos”, aqueles que não possuem pai ou parente próximo para lhes
transmitir o ofício, a passagem de trabalhador a chefe de turma é bem mais difícil e
demorada. Para ser um arregimentador é necessário ter uma relação direta com o
proprietário da fazenda (ou seu gerente) para onde se pretende levar os migrantes. São
relações que chegam a durar vários anos, sendo responsáveis pelos sucessivos retornos
de “sua” turma para as mesmas fazendas de café, criando-se uma espécie de
exclusividade de mercado para os que já são chefes de turma em relação aos “novatos”.
Dessa forma, observa-se que o ingresso dos “novatos” no ofício exige a inserção dos
mesmos nas redes de relação existentes entre os “veteranos” no ofício e os fazendeiros
do café, ou, ao menos, a tessitura de novas redes, caminho bem mais difícil que os
trilhados por aqueles que herdam o ofício.
45 Dialeticamente relacionado à posição social dos arregimentadores de migrantes, há o
prestígio daquele que nesse ofício é investido. Por um lado é preciso ter prestígio
perante um grupo de migrantes (uma turma) para se tornar seu chefe; por outro, e uma
vez investido e atuante no ofício, seu prestígio precisa ser perpetuado. Prestígio e poder

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que permeiam praticamente todas as esferas da vida das famílias de Aracatu. O


arregimentador de migrantes não é somente aquele que leva a gente para o café, mas o
parente ou vizinho mais abastado que pode emprestar dinheiro, aquele que explora a
linha entre as fazendas e o centro urbano de Aracatu, aquele que consegue se eleger
vereador, seja na Bahia ou em Artur Nogueira, onde mora um grupo grande de
aracatuenses, ou simplesmente aquele que é conhecido e respeitado como um “bom
baiano”.
46 A segunda providência a ser tomada antes de sair para o café é ajeitar as coisas na
fazenda do sertão. É o momento de finalizar o trabalho na terra ou de buscar ajuda com
parentes e vizinhos para as tarefas que não podem ser interrompidas durante sua
ausência, assim como para o cuidado dos idosos, dos inválidos e das crianças pequenas
que ficam.
47 A vida doméstica resta organizada em função das saídas para o café, sendo várias as
“combinações de estratégias de uso diversificado da mão-de-obra familiar” (Scott, 2009,
p. 245). Um exemplo disso é exatamente o acionamento das redes familiares e de
vizinhança visando encontrar pessoas para cuidar do que fica e dos que ficam. Os
arranjos observados são os mais variados. Há circulação temporária de crianças entre
casas de parentes e de vizinhos, mudando-se as mesmas para a casa dos que vão delas
cuidar durante o “tempo do café”; há adultos que se mudam de uma fazenda a outra
para cuidar das terras, de parentes mais velhos e de crianças; assim como há familiares
que se mudam de São Paulo para a fazenda de Aracatu, como relatado acima no exemplo
de Zé Mascate.
48 O segundo subtempo é o do trabalho no café propriamente dito. É quando os
trabalhadores migrantes estão na lida do café. É o período no qual a vida social e a
sociabilidade mudam majoritariamente para as fazendas de café do Sudeste. Nas
fazendas do sertão ficam poucos, fica a espera, a tristeza e a solidão. Os jovens não
querem ficar, as mulheres também não. O sertão se resume a um lugar de crianças
pequenas, de velhos e daqueles que não podem ou “não têm coragem de sair”. Por
contraparte, ficar no sertão requer também coragem, para enfrentar as ausências, a
saudade e a solidão.42
49 O trabalho no café revelou-se uma labuta sofrida para muitas famílias camponesas de
Aracatu que deixam suas casas do sertão, mudam-se temporariamente para
alojamentos frios43 e impessoais das fazendas de café do Sudeste, e passam a trabalhar
no ritmo de uma empresa capitalista. De segunda a sábado os migrantes acordam por
volta das seis horas da manhã.44 Por volta das seis e meia, seguem num caminhão até os
cafezais mais distantes, ou a pé para os mais próximos. Praticamente todos da turma
trabalham juntos num mesmo cafezal, nas ruas de café 45 indicadas pelo fiscal da fazenda.
Apenas quatro ou cinco homens da turma são contratados para as tarefas exclusivas de
secagem dos grãos e outros tipos de processamento pós-colheita. 46
50 A “migração para o café” é realizada normalmente em grupos de parentes, o que
permite, de forma aproximada, a reprodução da organização espacial da fazenda e da
casa de moradia sertaneja. O espaço de moradia no alojamento dos migrantes, sempre
que possível, obedece ao critério familiar, assim como as refeições são preparadas e
depois comidas em grupos de parentes.
51 Na fazenda Monte D’Este, localizada em Campinas, local para onde um dos filhos de Zé
Mascate, há 18 anos, traz de Aracatu uma turma de cerca de 50 trabalhadores, o
alojamento localiza-se no interior da própria fazenda, em antigas casas de colonos. Em

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cada casa, ou em cada quarto no interior dessas casas são agrupados, na medida do
possível, membros de uma mesma família extensa (parentes até segundo grau, em linha
descendente ou colateral, por consanguinidade ou afinidade). Outrossim, ser de uma
fazenda específica de Aracatu é outro critério que pode definir a casa e os companheiros
de alojamento, sendo comum a coincidência entre um mesmo grupo familiar e uma
mesma fazenda de origem.
52 Cada alojamento possui sua própria cozinha, que é partilhada pelos grupos familiares
que nela se alojam. Cabe às mulheres o preparo da comida, acumulando uma dupla
jornada de trabalho, pois além do trabalho da casa, também labutam com seus maridos,
irmãos e filhos nos cafezais. As mulheres acordam mais cedo, ou retornam da roça mais
cedo que os homens, para preparar a comida, lavar as roupas e arrumar a casa, numa
reprodução dos seus afazeres do sertão.47
53 Porém, a vida no café não se resume à labuta no café, sendo ainda um momento de
encontro com parentes e conterrâneos que vivem em Campinas e Artur Nogueira. Para
muitos migrantes sair para o café é a única forma de encontrar parentes, vizinhos e
amigos que vivem em São Paulo, um lugar tão distante e custoso para chegar. Dessa
forma, ir para o café é ainda a possibilidade do encontro com parentes de longe.
54 No caso dos migrantes que trabalham na fazenda de café de Campinas, o domingo 48 é o
dia da semana em que os parentes de Campinas e de Artur Nogueira vêm ao alojamento
visitá-los. São encontros que acontecem semanalmente, transmudando as fazendas de
café de um lugar de labuta, durante a semana, em lugar de visitas, de encontros
familiares e de festas. No caso das fazendas de café ao sul de Minas Gerais, os migrantes
também recebem visitas de parentes, vizinhos e amigos, embora isso ocorra com menor
frequência por causa da maior distância entre Campinas e a região, cerca de três horas
de viagem rodoviária. Em ambos os casos, há os encontros com parentes no final da
colheita, quando, antes de regressarem ao sertão, os migrantes do café fazem visita a
seus parentes de Artur Nogueira e de Campinas.
55 Esse seria o terceiro “subtempo do café”, o das visitas aos parentes. Um período
aproveitado pelos migrantes, ademais, para realizar compras de itens para casa, roupas,
de aparelhos eletrônicos (com destaque para os celulares) e até de motos, transportadas
no bagageiro dos ônibus até suas fazendas.
56 O quarto subtempo do café é o da volta, quando termina a colheita, e os migrantes
regressam para casa e a vida do sertão fica em suspenso, em festa. A rotina ordinária ali
se suspende por alguns dias, dando lugar ao encontro dos “viajantes” com os que
ficaram. É o momento de presentear, de dar as notícias de São Paulo, de pagar as dívidas
com o dinheiro do café, enfim, é o momento por todos esperado.

Sair para comer no mesmo lugar


57 Sair para comer no mesmo lugar é uma expressão ouvida em Aracatu, que explica uma
antiga estratégia de reprodução das famílias camponesas do lugar. Significa sair da
terra natal, ir buscar recursos em outro lugar, e depois voltar, ou ter intenção de um dia
voltar, para comer no mesmo lugar. Uma expressão que explica tanto os deslocamentos
temporários para o trabalho no café como aqueles em que as famílias mudam sua
moradia para São Paulo.49

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58 Sair é sair fisicamente da fazenda, é ausentar-se da terra familiar, é migrar no sentido de


mudar o lugar da moradia, mesmo que temporariamente. Comer indica uma ação
necessária para a continuidade da vida, seja numa acepção fisiológica, em que o
alimento ingerido é um requisito indispensável ao funcionamento do corpo humano
biológico, seja numa acepção mais ampla de necessidades vitais, englobando demandas
materiais e simbólicas, carnais ou do espírito. No mesmo lugar expressa uma
continuidade do local do comer/viver, a fazenda no sertão.
59 A fazenda do sertão continua a ser a casa, o lugar de onde se é, um dos elementos
centrais de uma ordem moral camponesa que (ainda) regula essas famílias a despeito do
lugar onde seguem vivendo. Zé de Zora, da fazenda Martim, é enfático quando afirma
que seus filhos não moram em São Paulo, estão ali a trabalhar por um tempo, pois morar
é no lugar certo, onde você é dono.
Os meus filhos é o seguinte, eles num mora lá, eles tão trabalhando lá há muito
tempo. Que vai chegar um dia deles vim procurar um lugar certo, igual todos tão
procurando. Às vezes vai para São Paulo, fica uma temporada lá, fica, fica, fica,
depois vai caindo pra idade, caindo pra idade, num aguenta trabalhar mais e o que
tem que fazer, tem que procurar… Sempre tem o lugar certo, e o lugar certo onde é
que é, é onde você é dono. Então é o seguinte, eles tá lá, tá vivendo lá, mas morar
mesmo eles num tão morando lá. (Entrevista realizada com Zé de Zora, Aracatu, em
abril de 2007).
60 Os deslocamentos para trabalhar fora da fazenda do sertão configuram-se como práticas
antigas das famílias camponesas de Aracatu e arredores. Práticas que, ao longo do
tempo e das gerações, vêm adquirindo diferentes formatos e alcançando diferentes
destinos, embora continuem a pautar a vida naquele cantão. Tomando como base as
últimas três décadas, verificou-se um importante movimento migratório em direção
aos municípios paulistas, para onde famílias inteiras se mudam para tentar uma vida
fora do sertão. A partir dos anos 1990, esse sair pelo mundo ganha mais uma modalidade,
a “migração para o café”, que, diferentemente da anterior, permite aos migrantes o
retorno cadenciado para a casa e para a vida no sertão.
61 Especialmente para os jovens, sair para colher café vem se configurando a principal
alternativa de trabalho e renda. O dinheiro que auferem no café é investido tanto na
construção da casa de moradia e na compra de terra para o roçado – elementos
necessários dentro do grupo, para poder se casar e constituírem seu próprio núcleo
familiar fora da casa dos pais –, como na compra de bens de consumo, que antes tinham
acesso somente os que se aventuravam pelo mundo, ou seja, que deixavam a terra
familiar para viver alhures.50 Observam-se situações de migrantes que, a despeito de já
terem anteriormente morado em São Paulo, voltam a viver nas fazendas de Aracatu, e a
sair, ano após ano, para o café. Um retorno, portanto, condicionado à certeza de que
voltando a viver no sertão, poderiam continuar a ganhar a vida temporariamente fora
dali, no café. Enfim, uma volta para casa possível por causa do café.
62 Um “migração para o café” que, além de papel estratégico na reprodução de uma
“condição camponesa” (Garcia Junior, 1983), atua na reprodução de uma subjetividade e
de uma lógica camponesa, que continua a regular uma vida dividida entre o “tempo do
café” e o “tempo de casa”. Estou a me referir à noção de campesinidade defendida por
Klass Woortmann (1990) em seu clássico ensaio intitulado Com parente não se neguceia,
que pretende explicar não somente um modo de produção camponês, objetivado no
tripé terra, família e trabalho, mas uma ordem moral na qual os grupos camponeses,

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das mais diferentes maneiras, se inserem, produzem e se reproduzem como grupos de


parentes atados a uma terra.
63 Um viver na fazenda do sertão que significa mais do que viver daquela terra, já que a
parte majoritária do comer é buscada em outras terras, nas fazendas de café de São
Paulo. As fazendas do sertão, mais do que lugares do trabalho agrícola, que de alguma
forma continua a ser realizado durante o “tempo em casa”, são lugares de moradia. O
lugar de onde se é, para onde se quer voltar e, principalmente, um lugar que continua a
regular a vida dessas famílias.

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NOTAS
1. Cf. Abramovay (1991).
2. Cf. Wanderley (2011).
3. Ao nos referirmos ao campesinato brasileiro, devemos pontuar, por um lado, que se trata de
uma categoria histórica-social particular e ao mesmo tempo heterogênea, distinta de outras
formas de campesinato encontradas mundo afora, não obstante entre elas haver “princípios
mínimos” que permitem sua aproximação e diálogo. No Brasil, a categoria do campesinato
emerge na cena social na primeira metade do século XX, em grande medida influenciada por
doutrinas revolucionárias de cunho leninista, imersa no propósito de unificar e fortalecer a luta
de inúmeras e heterogêneas categorias rurais oprimidas. Passado mais de meio século da atuação
das Ligas Camponesas, um dos principais movimentos de organização e luta camponesa ocorrida
no Nordeste brasileiro, nos anos 1950 e 1960 (Andrade, 2009), a cena rural brasileira é tomada por
novos processos de identificação social e política, através dos quais os camponeses se
transmudam em vaqueiros, ribeirinhos, seringueiros, “sem-terra”, quebradeiras de coco,
faxinais, ou mesmo agricultores familiares, dentro de um contínuo processo de afirmação política
e resistência dessas populações. Por outro lado, ao tomamos o campesinato como categoria
analítica, deparamos com uma categoria que continua a desempenhar papel central na
compreensão dos processos sociais no campo, especialmente quando protagonizados por
populações rurais que se organizam e se reproduzem imersas num modo de vida camponês,
pautado por relações de proximidade, interconhecimento, certa autonomia em relação ao
mercado e relações personalizadas de poder local. Sobre a relevância do campesinato como uma
categoria social e analítica nos estudos rurais brasileiros, ver Almeida (2007) e Welch et al. (2009).
4. Sertão é uma grande paisagem geográfica localizada em estados da região Nordeste do Brasil
que convivem com baixa incidência de chuvas. Trata-se da parcela mais seca da região Nordeste,
definida pela geografia como região semiárida ou mesmo sertão, em oposição a outras três
paisagens naturais nordestinas: o Meio-Norte, prolongamento da Amazônia na região, o Agreste,
zona de transição entre o sertão e a Zona da Mata, a área mais úmida, já próxima ao litoral. Desde
o início do século passado, o termo “sertão” ocupa um lugar importante no imaginário nacional
brasileiro. Uma forma de designar um território desconhecido, pobre e de clima seco, que se
localiza no interior do país, numa oposição ao litoral, um lugar conhecido, que simboliza a
riqueza. Desse período cito o livro Os sertões, publicado em 1902 por Euclides da Cunha.
5. A pesquisa teve início na periferia de Campinas (SP), onde conheci algumas famílias
provenientes de Aracatu. De Campinas, e através de minha inserção nas redes que conectam essas
famílias à sua terra natal, cheguei a Aracatu.
6. “Sair” é uma expressão verbal corriqueira em Aracatu para descrever o ato de se ausentar da
terra familiar do sertão e ir buscar trabalho fora. Não utilizam o vocábulo “migrar”. “Migração”
tem algum significado apenas para os habitantes mais idosos, referindo-se a um prédio localizado
na capital paulista, por eles chamado de “Migração”. Por esse prédio, um entreposto do governo,
os migrantes passavam em suas andanças nos idos anos 1940, 1950. Ali eram vacinados, podiam
banhar-se, eventualmente pernoitavam, e obtinham bilhetes de trem para chegarem ao oeste de
São Paulo e ao norte do Paraná. Utilizarei a grafia desse verbo em itálico toda vez que tiver o
significado referido.
7. Ao grafar “São Paulo” em itálico, estou a utilizá-lo no sentido local conferido a esse vocábulo,
aludindo a alguns municípios do interior do estado de São Paulo, especialmente Campinas e Artur
Nogueira , assim como a municípios do sul do estado de Minas Gerais. O termo “São Paulo” tem
um significado análogo ao termo “Sul” trazido por Afrânio Garcia Júnior (1989) em sua pesquisa
realizada com migrantes paraibanos, significando um lugar fora de casa para onde se sai para
trabalhar e melhorar de vida.

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8. Segundo Lygia Sigaud (1979, p. 11), “na década de 50 inicia-se um processo, que se prolonga até
hoje, de transferência de força de trabalho de dentro para fora dos engenhos, com os moradores
abandonando as propriedades e se instalando nas cidades da região, transformadas em grandes
concentrações de trabalhadores”.
9. Pau de arara é o apelido que recebem os caminhões garnidos de bancos de madeira que outrora
transportavam migrantes. Atualmente os migrantes não viajam mais nesses caminhões, mas em
ônibus fretados.
10. Nesse sentido, diferenciam-se de outros processos migratórios descritos na literatura, como a
pesquisa de Marilda Menezes (2002) com camponeses migrantes paraibanos, onde os
deslocamentos obedecem a uma sequência, passando pelos campos pernambucanos numa etapa
inicial e somente depois atingindo os centros urbanos do Sudeste brasileiro. A primeira etapa
temporária em Pernambuco aparece como um estágio de trabalho comumente utilizado, e
necessário, para financiar os deslocamentos mais longínquos para a região Sudeste.
11. Enquanto em Artur Nogueira os primeiros aracatuenses se fixaram nos anos 1980, em
Campinas eles chegaram somente na década seguinte.
12. “Roça” é a forma como os aracatuenses se referem ao meio rural e “rua”, o nome dado à sede
urbana do município.
13. Os principais destinos desses migrantes são sítios e fazendas de café localizados em Campinas
e, em Minas Gerais, em Machado, Paraguaçú e Ibiraci.
14. Trato aqui de uma noção de tempo que dialoga com outros tempos analisados pela literatura
antropológica desde o clássico Os nuer, onde Evans-Pritchard (2002) nos remete a temporalidades
nativas como o “tempo ecológico” e o “tempo estrutural”. O primeiro decorre das relações do
grupo com o meio ambiente, e o segundo das próprias relações dos indivíduos entre si. Um tempo
que Marcel Mauss define como marcador da vida social. Em seu ensaio Sur les variations saisonières
des societés Eskimós, Mauss (2003) identifica formas de sociabilidade relacionadas basicamente com
duas estações do ano: “verão” e “inverno”, duas estações que se relacionam e marcam distinções
em aspectos fundamentais da vida social, como na vida moral, jurídica, religiosa e na doméstica.
Ainda, um tempo social que Norbert Elias (1998) tem como desvinculado de um dado da natureza
independente do ser humano, o significando como um quadro de referência que organiza os
acontecimentos, as fases e os fluxos nos grupos humanos. Já numa literatura nacional mais
recente, há o “tempo da política”, categoria que Moacir Palmeira (2002) identificou como nativa
entre populações camponesas do Nordeste brasileiro, e que nomeia um período de subversão no
cotidiano dessas populações, onde se observa um rearranjo nas posições sociais.
15. Observa-se, contudo, que nas semanas que antecedem as saídas para o café, o comércio tem um
pequeno aumento nas vendas, que é quando os migrantes fazem a feira para a viagem.
16. Garantir a feira do ano é ter dinheiro para viver durante o ano, para comer, vestir-se, ter o
básico para continuar a vida.
17. Contudo, é frequente a venda fiada de mercadorias, principalmente no período que antecede
o “tempo do café” , seja porque o dinheiro ganho no café no ano anterior não foi suficiente para
as necessidades da família durante o ano, seja para a aquisição de mercadorias para a viagem até
o café, para os alojamentos ou para presentearem os parentes que encontrarão em São Paulo.
18. Ir à feira ou fazer feira é mais do que comprar ou vender alguma coisa na feira. É o dia em que
os moradores da zona rural vão à sede urbana do município para resolver os mais diversos
assuntos, como ir ao banco, ao sindicato, ao médico, ou simplesmente encontrar conhecidos e
palestrar (conversar).
19. Forma como se referem os aracatuenses aos carros de passeio particulares.
20. Fazer a linha é uma expressão comumente ouvida em Aracatu, e significa transportar pessoas
no interior do município. Trata-se de um negócio privado operado por pessoas que possuem um
caminhão pequeno.

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21. Exceção são os ônibus e as peruas escolares, onde dificilmente há possibilidade de “pegar
carona”.
22. Por jovens em idade escolar refiro-me a pessoas entre 14 e 18/19 anos, que na etapa da
pesquisa de campo na Bahia – anos de 2008 e 2009 – cursavam o segundo ciclo do ensino
fundamental ou o ensino médio.
23. Classifico como crianças em idade escolar as que têm até 13 anos de idade, e que cursavam,
em 2008 e 2009, as séries que iam até o fim do primeiro ciclo do ensino fundamental (antigo
primário). Note-se que nas escolas de Aracatu, principalmente as da zona rural, os estudantes são
normalmente mais velhos por séries que o previsto na legislação escolar brasileira. Por isso, no
segundo ciclo do ensino fundamental, destinado a crianças entre 11 e 14 anos, há muito jovens
com idade superior, bem como há crianças com mais de 10 anos no primeiro ciclo do ensino
fundamental. Dito isto, esclareço que a distinção aqui aposta, entre crianças e jovens em idade
escolar, toma preferencialmente como parâmetro a idade e não a série que a criança ou o jovem
estuda.
24. Na sede urbana, as mudanças ocorrem somente nas séries a partir do segundo ciclo do ensino
fundamental (a partir da quinta série ou sexto ano do ensino fundamental), em classes onde
estudam crianças a partir de 11 anos de idade e moradoras da zona rural. Abaixo dessa idade, são
crianças que moram da sede urbana, praticamente inexistindo a prática migratória nesse grupo,
não se justificando, dessa forma, uma modificação no calendário das aulas.
25. São poucas as escolas de ensino médio localizadas na zona rural de Aracatu (elas existem
somente nos povoados distantes do centro urbano, como na Piabanha e na Várzea da Pedra). Os
jovens rurais, para prosseguirem nos estudos nas séries do ensino médio (antigo segundo grau),
deslocam-se diariamente de suas fazendas para a sede do município.
26. Segundo as regras do programa Bolsa Família, para gozar o direito de receber o benefício,
além da comprovação da situação de carência econômica familiar, são exigidos alguns outros
requisitos como, por exemplo, a obrigação de levar regularmente as crianças nos postos de saúde
para acompanhamento, por um profissional de saúde, do seu desenvolvimento físico e
nutricional, e a obrigação dos pais em assegurar uma frequência mínima dos filhos às escolas. No
caso da ida para o café, o período que os aracatuenses se ausentam da Bahia pode chegar a quatro
meses nos anos bons, o que ultrapassa o número de dias de ausências escolares permitido a uma
criança, para que sua família não perca o direito ao referido benefício governamental.
27. “Fazenda” é a denominação êmica para as propriedades de terra em Aracatu,
independentemente da dimensão da propriedade. Passo a grava-las em itálico para diferencia-las
das fazendas de café do Sudeste, que assim são chamadas porque representam grandes extensões
de terra.
28. “Mangueiro” é uma área cercada, normalmente próxima à casa de moradia e, se possível, de
um corpo d’água, reservado para pequenos animais, ou para animais maiores que precisam de
cuidado especial.
29. “Mangas” são áreas de pastagens cercadas onde se criam bovinos e equinos. É conhecida em
outras regiões brasileiras por “pasto”.
30. O tema das redes de relacionamento, tecidas e constantemente atualizadas dentro do
processo migratório do qual participam as famílias em estudo, e do qual apenas brevemente me
refiro neste texto, encontra-se melhor desenvolvido em Nogueira (2010, 2011).
31. Nas relações de ajuda ou serviço, o dono da roça oferece aos trabalhadores a boia, que é como se
referem à comida. Note-se, contudo, que a prática de oferecer a boia possui diferentes
significados conforme o tipo de contratação. Nos casos de ajuda, a boia é uma retribuição
obrigatória dentro da relação de favor instaurada. Já no serviço, é um meramente um
complemento do pagamento em dinheiro.
32. Nessa reorganização do trabalho em famílias camponesas, possível em razão da contratação
de mão de obra externa, as mulheres são, comumente, as primeiras que param de trabalhar na

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roça, ficando restritas à lida da casa e do quintal, esses lugares femininos por excelência.
Contudo, para além de uma mera divisão sexual do trabalho, esse reordenamento familiar
reafirma diferenças hierárquicas entre o mais valorizado trabalho dos homens e o inferior
trabalho das mulheres.
33. “Primo” é provavelmente a categoria que agrupa a maior diversidade das situações de
parentesco no eixo colateral, consanguíneos ou não, desde relações entre os filhos de irmãos (os
primos em primeiro grau), como entre filhos de primos, e assim por diante. Fora desse grupo
estão somente os parentes em linha descendente: pais e filhos, avós e netos e, eventualmente,
bisavôs e bisnetos, e alguns poucos parentes colaterais que não podem ser considerados primos:
filhos de mesmo pai e/ou de mesma mãe (irmãos) e a relação entre tios e sobrinhos. Nesse
esquema os “casáveis” são os primos entre si e os tios com sobrinhos.
34. A previdência social é o programa federal de transferência de renda com maior número de
benefícios pagos e com o maior volume de recursos despendidos. Em uma abrangente pesquisa
sobre a previdência rural brasileira, Delgado e Cardoso Jr. (2000) nos mostram que na região
Sudeste os benefícios urbanos são em maior número (56,7% do total), porém é na região Nordeste
onde se encontra o maior número de benefícios pagos pela previdência rural no ano de 1998
(45,5% do total). Entretanto, a história da previdência social, em especial da previdência rural, é
bastante recente em nosso país. A Lei Eloi Chaves, em 1923, criou as Caixas de Aposentadorias e
Pensões, mas apenas em benefício de trabalhadores urbanos. Somente com a promulgação da lei
complementar n. 11, de 1971, que criou o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural/Fundo
de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Prorural/Funrural), é que os trabalhadores
rurais, os pescadores (a partir de 1972) e garimpeiros (a partir de 1975) passaram a ser atendidos
pela Previdência, mas de forma limitada, pois o programa previa tão somente aposentadoria por
idade aos 65 anos, limitada ao cabeça do casal, e tendo meio salário mínimo como teto. Quase 20
anos depois, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, é que finalmente houve a
implantação do regime de universalização de atendimento aos idosos e inválidos do meio rural.
35. “Turma” é a forma pela qual se denomina um grupo de pessoas que saem juntas para
trabalharem juntas num mesmo lugar e, sobretudo, que têm uma mesma pessoa que as
arregimenta e como chefe durante todo o trabalho alhures. Será grafada em itálico, pois para
além de representar uma categoria classificatória em diferentes contextos migratórios, é também
hoje uma categoria social encontrada no local da pesquisa.
36. O termo “gato” que aparece com certa frequência na literatura sobre migração temporária
não figura no linguajar dos aracatuenses, embora quase todos conheçam seu significado, que
dizem ter aprendido em suas andanças pelo mundo. Utilizam preferencialmente em seu lugar o
próprio nome da pessoa que os leva para o café, sendo comuns expressões como: “eu vou com
fulano para o café”; ou “não sei se tem lugar pra mim na turma do beltrano; ou ainda, “este ano
quero ir com sicrano”, e assim por diante. No texto me refiro indistintamente a essas pessoas
como arregimentadores de migrantes ou chefes de turma.
37. O pronome possessivo “seu” refere-se à relação existente entre os arregimentadores e os
trabalhadores que este leva para o café. Uma relação pessoal, de ajuda, amizade, respeito e
dominação pessoal que existe entre esses chefes de turma e seus trabalhadores.
38. Cf. Max Weber (1964) a respeito dos três tipos de dominação: legal, tradicional e carismática.
39. Sobre o tema da autoridade moral dos arregimentadores de migrantes, ver também Menezes
(1998).
40. “Estar aposentado” significa, no dizer local, estar numa fase da vida de término da vida
laboral, depois de muitos anos de lida, não implicando necessariamente o gozo do benefício da
aposentadoria concedido pela previdência social, que pode estar presente ou não, a depender do
êxito do pleito junto ao governo. Receber o benefício da aposentadoria, por sua vez, é expresso
como “ser aposentado”.

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41. Nas trajetórias de vida de Zé Mascate e de um filho seu, da fazenda Baixa Escura, assim como
na de Alceu, um dos filhos de Velho Zora, da fazenda Martim, convivem não por acaso o ofício de
arregimentação de migrantes e o cargo de vereador por Aracatu.
42. Embora não adentre aqui numa discussão acerca da coragem daqueles que vão para o café e
daqueles que ficam à espera no sertão, observo que a coragem é um elemento central a esse
fenômeno, que atua muitas vezes na decisão de sair ou de ficar. Aliada à necessidade objetiva de
sair para trabalhar no café, que é ganhar dinheiro para continuar a viver num sertão carente de
tudo, essa prática é rodeada de simbologias e finalidades advindas de uma ordem moral na qual
se insere (Cf. Woortmann, K., 1990).
43. Note-se que o período da colheita do café coincide, nos estados da região Sudeste ao do
inverno, e mais do que isso, a um inverno com temperaturas mais baixas e desconhecidas pelas
famílias migrantes da Bahia, que conhecem apenas o tempo das chuvas (mais frio) e o tempo das
secas (mais quente).
44. Esses dados etnográficos resultam de pesquisa realizada na fazenda Monte D’Este, em
Campinas durante a colheita do café de 2007 e 2008.
45. “Rua de café” são as fileiras de pés de café dentro de um cafezal. São limitadas, de um lado ao
outro, pelas carreiras, ruas mais largas onde trafegam veículos de transporte de pessoas e de
cargas.
46. Há algumas situações em que alguns rapazes, que já trabalham na colheita de segunda a
sábado, são contratados para trabalhar nos terreiros de secagem aos sábados à tarde e aos
domingos e feriados, recebendo um adicional de hora extra por tais funções.
47. Sobre o tema do trabalho da mulher rural, ver Woortmann, E. (1995), Sachs (1991), Carneiro
(1996), Brumer (2000), Nogueira (2004).
48. A folga dos trabalhadores do café tem início ao meio-dia do sábado. O sábado é dedicado às
compras quando preciso e à arrumação da casa, normalmente pelas mulheres.
49. Embora não haja neste texto uma análise sobre os deslocamentos de famílias camponesas
para São Paulo, assinalo que tanto esses trajetos como a “migração para o café” são modalidades
migratórias imbricadas dentro de um mesmo processo migratório protagonizado pelas famílias
camponesas estudadas.
50. Advirto que embora a título explicativo, e de forma simplificada, mostre uma contraposição
entre a modalidade “migração para o café”, caracterizando-a como um deslocamento temporário,
a outra modalidade migratória, de cunho mais definitivo, que seriam as mudanças de residência
para São Paulo, o retorno para a casa do sertão é verificado em ambas.

RESUMOS
Partindo de uma pesquisa etnográfica com famílias camponesas que saem de suas terras para
trabalhar em diferentes lugares do Brasil, o objetivo deste texto é pensar a relação entre trabalho
assalariado e campesinato. O recorte analítico privilegia a modalidade migratória atualmente
mais significativa no município de Aracatu (BA), a “migração para o café”, na qual, durante
quatro meses ao ano, homens e mulheres fecham suas casas no sertão e se deslocam para
trabalhar em lavouras de café da região Sudeste. Finalizado o trabalho, retornam para casa e ali
permanecem até a colheita do próximo ano. O dinheiro ganho no café garante a “feira” do ano e a
continuidade do “negócio” familiar. Um trabalho assalariado que se insere nas dinâmicas

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produtiva e reprodutiva dessas famílias camponesas, e possibilita a reprodução de uma ordem


moral camponesa, no sentido proposto por Klaas Woortmann.

Each year men and women from Aracatu, a small city in northeast of Brazil, close their homes
and move over thousand miles south to harvest coffee in Minas Gerais and São Paulo States. As
soon as coffee harvest finishes four months later they go back home and resume work in their
own gardens. The money earned in the coffee harvest provides assurance consumption
throughout the year, allowing devote to their activities on the family farm. This paper seeks to
show how the wage labor done by those families reflects into their productive and reproductive
dynamics, including acting in strengthening peasant character, in the sense of a peasant
subjectivity, as was proposed by Klaas Woortmann.

ÍNDICE
Keywords: ethnographic, migration, peasant families, wage labor
Palavras-chave: etnografia, famílias camponesas, migração, trabalho assalariado

AUTOR
VERENA SEVÁ NOGUEIRA
Universidade Federal de Campina Grande – Brasil

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Trabalho negro, memória negra no


Vale do Sinos (RS)
narrativa etnobiográfica de Vó Nair

Margarete Fagundes Nunes, Magna Lima Magalhães e Ana Luiza Carvalho


da Rocha

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

Introdução
1 Tendo como desafio o registro da presença da mão de obra de mulheres negras na
composição de uma memória coletiva do mundo do trabalho no Vale do Rio dos Sinos,
região historicamente importante para o estudo da contribuição dos imigrantes
alemães para o processo de industrialização do Rio Grande do Sul, este artigo nasce do
registro audiovisual da narrativa etnobiográfica de Nair Leopoldina de Oliveira, 94
anos, chamada por todos de Vó Nair, moradora do bairro Operário, em Novo Hamburgo. 1
Vó Nair é reconhecida pela comunidade urbana local como uma benzedeira com poderes
especiais; um poder que foi herdado da mãe após a sua morte e que lhe foi repassado
em razão de sua posição como mulher negra, filha e neta de escravas vivendo entre as
famílias alemãs na região do Vale do Sinos.
2 Sem abandonar a precisão do tratamento histórico ou do rigor sociológico do fenômeno
da memória coletiva, nem mesmo a intransitividade de sua dimensão interior, iremos
apresentar o que desponta no relato de Vó Nair acerca de seu ofício de benzedeira, isto
é, os caminhos complexos que a conduziram a narrar-se a si mesma a partir das
experiências de trabalho de sua avó e de sua mãe como escravas de famílias alemãs no
Vale do Sinos.

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Remontando os fragmentos das imagens do trabalho


das mulheres negras na cultura germânica no Vale do
Sinos
Esta é uma história. A minha mãe benzia. Mas benzia assim. Era nenê com
costelinha pegada, era erisipela, passava a mão uma vez, duas. […] Então a mãe foi,
muita gente… Além do que ela fazia tudo. Ela benzia. Depois eu vim morar aqui. Aí
eu ia de manhã trabalhar no João Hennemann, e de tarde voltava para casa. Aí a
minha mãe benzia coisa pequena. Eu nem queria ver, nem queria saber. Eu passava
na área a mãe tava sempre benzendo e eu nem olhava. E quando eu passava, eu via
que ela passava a mão nos nenês, mas eu nem entendia o que ela dizia, não sabia
reza, não sabia nada. Daqui a pouco minha mãe faleceu, com 105 anos, benzedeira,
cozinheira, lavadeira, a mais procurada da cidade por toda a alemoada. Brigavam
pela mãe. […] Quando ela faleceu, mas antes de falecer, ela dizia pra mim “benze,
benze”, falava já só com os olhos, e eu nada. Aí eu pensei: “Meu Deus, a mãe tá
morrendo e me pedindo isto. Eu vou dizer que sim pra ela descansar, mas não vou
fazer.” Mas nem conto pra vocês, quando eu disse “tá mãe, eu vou benzer”, ela se
foi. Até hoje eu lembro. Mas eu pensei, vou dizer que sim, ela descansa e eu não vou
fazer. Eu não lembro ao certo quanto tempo levou, mas foi pouco. Me chega uma
pessoa com uma criança, pra morrer em casa. E veio aqui. Lá pelas tantas, de noite,
chega aqui. Meu Deus, o que é isto? “Eu trouxe porque ele tá morrendo e a senhora
vai ter que benzer o meu filho.” “Mas eu não sei!” “Tem que saber, porque sua mãe
sabia.” […] Mas eu não sabia, porque eu não escutava as rezas que a mãe fazia. Me
atirou ele nos braços. Aí eu pensei: “O que eu vou fazer com esta criança?” Eu ali e a
criança mal. Minha mãe tem um lavatório, uma bacia com uma jarra, e eu peguei
um pano, botei em cima do lavatório e botei a criança ali. Eu sei lá, minha filha,
palavra eu não tinha. Mas eu fazia assim com a mão, como a mãe fazia. Não é que a
criança fez um vômito, que voou uma tira comprida, da grossura de um dedo,
aquele fio comprido saindo da boquinha da criança. Salvei a criança. Botou aquilo e
meu Deus do céu, o que é isto? E todo mundo ficou apavorado com aquilo. E veio pra
fora. Minha mãe deve ter ajudado, não disse palavra nenhuma. E lá veio aquilo pra
fora. Fui pra cozinha, fiz um chazinho ligeiro, demos de colherinha. Passamos a
noite dando chazinho e no outro dia tinha salvado aquela criança, rindo, brincando.
Hoje é um homem. Hoje deve estar com uns 40, 45 anos. Assim foi como começou.
3 No começo era apenas o relato da iniciação no ofício de benzedeira. Depois, lentamente,
as estórias sobre seu oficio de benzedeira foram sendo progressivamente substituídas
por recordações do trabalho de sua mãe, como escrava das principais famílias de Novo
Hamburgo, e algumas passagens do que essa lhe relatara sobre sua avó, também escrava
na região do Vale do Sinos. Nas idas e vindas de suas memórias sobre o trabalho das
mulheres negras no interior das elites brancas locais, Vó Nair nos fez pensar acerca do
que Florestan Fernandes (2007) classificou de dilema racial brasileiro. Um dilema que
ainda habita as lembranças de Vó Nair sobre o processo de passagem da sua condição de
escrava de estimação, na infância, para a sua condição de trabalhadora livre, na fase
adulta, quando ela passou a desempenhar as funções de cozinheira, lavadeira,
passadeira, além de ama-de-leite.
4 Afastando-nos, assim, da nossa proposta original de registro audiovisual de sua
narrativa etnobiográfica, Vó Nair, em sua sabedoria, provoca-nos a pensar as condições
concretas de emergência do trabalho livre no sul do Brasil, sob o enfoque das relações
interétnicas que presidiram o processo de transformação das relações de produção na
economia colonial, principalmente. Por um lado, os relatos sobre as formas de trabalho

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que ela desempenhava no âmbito das principais famílias alemãs do Vale do Sinos nos
permitem compreender como o trabalho agregado e as afiliações acabaram por
preservar, no interior da cultura germânica da região, os privilégios que conformavam
a antiga sociedade escravocrata e patriarcal gaúcha.
5 Em particular, uma pesquisa histórico-antropológica que tenha como objeto o trabalho
de gerações de mulheres negras no cotidiano das famílias alemãs revela o lugar
estratégico que a mão de obra de “escravas de estimação” 2 ocupava na manutenção do
estilo de vida e visão de mundo das elites locais, como nos informam as primeiras
palavras de Vó Nair:
Ela trouxe o sobrenome… O nome era Sade Hoffmann Schmidt. Isto. O nome dos
senhores, Hoffmann e Schmidt. […] Escrava para tudo, com 6, 7 anos fazia tudo. Era
mandada pra cá, pra lá, era função e laço [surra] daqui, laço dali, não fazia as coisas
direito, era laço. Eu também comecei com 5, 6 aninhos. E a mãe era mandada pra
tudo que era canto. […] Naquele tempo tinha… Vocês conhecem o urinol, penico,
que ficava embaixo da cama? Minha mãe tinha todo dia de manhã de recolher de
todas as camas, limpar, lavar e botar no lugar, com 6, 7 aninhos. Tudo era Sade,
Sade pra cá, Sade pra lá, não chamavam ela de Sara, chamavam de Sade […].
6 Por outro lado, através das lembranças da passagem da infância à vida adulta,
compartilhamos com Vó Nair o mundo alemão como um fenômeno plural, cultural e
etnicamente multideterminado. Atentas à organicidade das camadas de duração que
configuram o fenômeno temporal em detrimento de uma visão absoluta ou exclusiva –
a de um tempo histórico da colonização alemã no Vale do Sinos e o tempo vivido por
ela, por sua avó e sua mãe ao longo deste processo – percebemos o esforço de Vó Nair
em atribuir a si mesma um valor para a sua condição social, étnica e de gênero na
tradição da cultura alemã da região do Vale do Sinos.
7 Ao agrupar seletivamente fragmentos de suas memórias como “escrava de estimação”,
nos espaços privados da cultura alemã de Novo Hamburgo, em comparação a sua
posterior condição de mulher negra nos espaços públicos citadinos, Vó Nair é
ambivalente, pois ao mesmo tempo em que afirma que “o negro só era bom
antigamente pra cozinhar, pra lavar… aí eles queriam negro”, pondera que “já bem
passada a escravatura, nós já éramos bem melhor tratados pelos patrões, já não
apanhava, não acontecia mais”.
8 Dessa forma, as memórias de Vó Nair apontam ora para o reconhecimento do trabalho
de sua mãe e de sua avó, tanto quanto do seu, junto às famílias alemãs na região dos
Sinos; ora para as tensões e conflitos vividos por ela e sua comunidade de origem nos
espaços públicos de Novo Hamburgo, tais como os clubes, o cinema e as festas, as ruas e
as praças. Seu relato sobre a presença de alguns segmentos das populações negras da
cidade em espaços de sociabilidade reservados às elites locais é, nesse caso, exemplar:
E de fato, naquele tempo era um racismo que vocês nem fazem ideia. Se eu contar
que eu passei partes aí do racismo, quando a gente estava mocinha, aí a gente ia ao
cinema. Nós queríamos ir ao cinema, né. Nós íamos toda arrumadinha, de tope, de
fita, de tênis. Quando nós chegávamos ao cinema era barrado. A gente não sentava
onde os brancos sentavam. Tinha que sentar lá em cima no poleiro. Se a gente
teimava em sentar, eles levavam alfinete, palito e espetavam a gente no bumbum
pra gente levantar e ir lá pro poleiro. Eu passei isto. Eu cheguei a passar este tempo.
Isto foi um racismo muito grande. Nós já estávamos com 15, 16 anos.
9 As lembranças das situações de constante discriminação étnico-racial nos espaços
públicos da cidade são apaziguadas pelas lembranças da forte sociabilidade e
solidariedade no interior de sua comunidade de origem, em especial, na referência às

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diferenças entre as territorialidades negras e alemãs em Novo Hamburgo. Uma


diferença que se dilui, ao longo dos seus relatos, no momento das recordações de certas
datas comemorativas, em particular aquelas cultuadas pela população negra local.
Espaço e tempo singulares na vida da comunidade urbana de Novo Hamburgo, em que a
“alemoada” se permitia viver no espaço público uma estratégica “mistura” étnico-
racial.
É, tinha o bairro África, no Guarani, mas nós nos conhecíamos só de festa, baile, só
íamos passear lá. Tudo que era negro morava lá, nós não morávamos lá. Pro lado do
Mistura… Quase não tinha brasileiro até o bairro Rio Branco, era tudo alemão. Lá
em cima, no Oswaldo Cruz é que começava a ter brasileiro. Rico era só no centro e
eu tava no meio. […] Nos momentos de festa a gente era unido. A gente só tinha esta
separação. Tanto o bairro África quanto o centro nós éramos muito unidos. A minha
mãe dava festa de 13 de maio. Que saudade. Era a coisa mais linda. Treze de maio
não tinha separação. Os brancos festejavam com a gente o 13 de maio. Minha mãe
fazia no centro. Era tudo no Rio Branco. Um lugar eu me lembro. Pra quem sai da
Padaria Brasil tem um lugar que é uma casa de tapete, acho. Ali minha mãe fazia a
festa. A gente de manhã acordava com foguete de 13 de maio, era dia de
escravatura. Era foguete que até os brancos atiravam foguete. Os brancos faziam
questão de se misturar com nós. Faziam festa até amanhecer o dia, com nós. Íamos
para o centro com bandeirinhas, parecia criança [risos]. Ia a pé cantando, pulando,
sambando, “Viva o 13!”, até a igreja. E o padre já estava esperando. Aí depois a
negrada tava pronta pra fazer o que quisesse. As festas eram tudo ao ar livre. As
melhores cozinheiras.
10 Momentos de celebração, quando a “negrada” – nas palavras de Vó Nair – liberta de suas
funções nas casas de seus patrões invadia as ruas e praças e, em comparação às
tradições das festas alemãs na região dos Sinos subvertia a ordem local, reinventando
suas marcas étnicas na memória da comunidade urbana de Novo Hamburgo:
O nosso 13 era igual ao Kerb. E era respeitado. Todos os patrões liberavam as
empregadas. […] Em 13 de maio o padre abria as portas e nós entrávamos. E tinha a
banda 7 de setembro, vinha tocando os hinos até chegar na igreja. Todo mundo com
fita verde-amarela, vestido com babado. E nós voltávamos para o Rio Branco onde a
mãe tinha o salão. E todos vinham comer. E tinha branco tirando lugar de negro pra
comer. A mãe fazia aquelas mesas grandes de tábua, botava papel e aquela
alemoada brigava pra ter os primeiros lugares. Aí era galinhada de um jeito ou de
outro, feito pelas cozinheiras negras. Ali tinha massa feita em casa, arroz branco,
cuca e pão de tarde, tudo feito pela negrada. Negrada que depois cuidava da casa
deles [risos]. Era bonito ver aquela gente rica misturada com a gente. Antes era
aquele racismo. Tinha racismo pra ir numa praça sentar num banco.
11 No caso específico do relato etnobiográfico3 de Vó Nair, a integração da força de
trabalho escrava de mulheres negras (escravas africanas e suas filhas e netas “mulatas”
ou “pardas”) não decorre da simples valoração negativa dos ofícios manuais e braçais
desempenhados por elas, mas pela quase ausência de referência a essa mão de obra no
mundo do trabalho do Vale do Sinos, em especial, no interior das elites locais.
Quando me lembro, parece mentira que a gente fazia isto. Lembro mas parece
mentira, nossa! Era nossa vida, sempre lavando roupa. A mãe tinha o São Jacó e o
Santa Catarina [colégios]. Então, pra todas estas internadas a mãe é que lavava. Aí a
gente morava ali, no meio dos alemães. Era só nós que ficava ali, anos e anos no
meio dos alemães. Mas porque a gente falava alemão, a gente se dava bem.
12 É evidente, portanto, que a referência das rememorações do mundo do trabalho em
Novo Hamburgo e do processo migratório dos alemães para a região do Vale do Sinos
traz a singularidade das relações entre brancos e negros na cidade de Novo Hamburgo.

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A separação rígida do mundo dos brancos e dos negros não ocorria apenas às portas
fechadas dos estabelecimentos e instituições, ampliava-se para as formas de ocupação
dos espaços públicos de Novo Hamburgo e se diluía em complexas relações no interior
da vida cotidiana das famílias das aristocracias locais.
A gente só era bem aceito, bem recebido, dentro dos bares e nestes lugares assim
quando era carnaval. Aí eles queriam ver os negros. Aí eles davam cerveja, bebida,
davam tudo pra gente fazer o carnaval lá na frente deles. Ali no centro, onde hoje é
a Rainha das Noivas, ali na frente da Rainha das Noivas era o bar do Paulo
Hoffmeister, parece. Ali eles chamavam a gente, lá pra dentro pra servir bebida e
tudo, só por causa do carnaval. A gente sambando, pulando, eles adoravam isto. Mas
era só. Dali por diante a gente era a negrada de novo. […] Uma ocasião nós fomos
pra praça e sentamos no banco da praça. Acredita que eles fizeram a gente levantar.
Se havia um alemão sentado e a gente sentava, ou ele não deixava ou ele levantava e
ia embora, saía dali.
13 Para se compreender a força simbólica que subjaz no relato de Vó Nair acerca da
presença da mão de obra escrava de mulheres negras na memória coletiva da cultura
germânica (aqui, no caso, de escrava de estimação à benzedeira), vale a pena uma visita
às diferentes narrativas historiográficas que sustentam o mito fundacional da
imigração alemã no Vale do Sinos e sua associação à inserção da mão de obra livre no
Rio Grande do Sul. Um mito de origem relacionado às formas de violência que
compuseram a organização do trabalho dos imigrantes no interior do modus vivendi da
sociedade escravocrata e patriarcal do Brasil Império.
14 Acompanhar os jogos da memória de Vó Nair significa, portanto, reconhecer a
inteligência narrativa (Eckert; Rocha, 2005) por meio da qual ela acomoda as
rememorações do seu atual ofício de bendezeira, em alusão à ancestralidade dos
trabalhos de sua mãe como escrava na região do Vale do Sinos, assim como a
aprendizagem do dialeto alemão com o qual ela se comunicava fluentemente com seus
patrões, passando pelo legado que deixa para as famílias alemãs mais tradicionais de
Novo Hamburgo, no exercício de seu ofício de empregada doméstica.
15 Segundo apontam alguns autores (Tramontini, 1997; Zubaran, 1994), os ideólogos da
identidade étnica dos imigrantes teutos no sul do Brasil insistem em afirmar que os
imigrantes/colonos não tinham escravos uma vez que a cultura germânica valorizava,
desde suas origens, o trabalho livre, distanciando-se, assim, os imigrantes/colonos da
bárbara prática luso-brasileira (Müller, 1998), a do trabalho escravo.
16 As razões para esse mito fundacional do imigrante alemão são muitas, mas poderiam
ser condensadas em duas perspectivas. A primeira considera a inexistência de escravos
entre os teuto-brasileiros por serem eles pequenos proprietários de uma agricultura de
policultura, tendo por base uma economia familiar que prescindiria, portanto, da mão
de obra escrava. A segunda sustenta que a cultura germânica se caracterizaria por uma
ética do trabalho que, por suas origens, contrastaria com a mentalidade luso-
colonialista e escravista. Maria Angélica Zubaran (1994) reconhece uma terceira
perspectiva com a qual as duas outras travam um diálogo constante, ou seja, as leis
provinciais e imperiais impediriam aos teuto-rio-grandenses o uso da mão de obra
escrava.
17 Mais precisamente, sob a ótica do mito do progresso derivado do mito histórico, a força
moral do trabalho livre do colono alemão que se implantava no sul do Brasil, durante o
governo imperial, teria sido capaz de apagar, finalmente, os vestígios da presença da
mão de obra negra, escrava, pelo governo imperial na região. 4 O trabalho livre

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enquanto valor não apenas revelaria a identidade étnica no Vale do Sinos, por oposição
ao trabalho escravo da cultura luso-brasileira, mas se articularia a outro mito
fundacional da presença dos alemães na região do Rio dos Sinos, o mito da abundância,
em contraste com as imagens da ruína e da escassez associadas à presença do complexo
cultural dos latifúndios e das fazendas no sul do Brasil.
18 Sob a perspectiva das memórias do cotidiano que configuram a etnobiografia do
trabalho de Vó Nair, e que remontam à geração de sua avó e de sua mãe, a prática da
escravidão acompanhou as formas de organização da produção no interior das colônias
alemãs na região dos Sinos, indicando que os teutos e seus descendentes conviviam com
um sistema escravocrata e patriarcal sendo, entretanto, quando no caso do uso da mão
de obra escrava, “bons senhores, sem infligir-lhes maus tratos” (Zubaran, 1994).
19 Um fenômeno visível na composição da trajetória social de Vó Nair na sua referência às
estórias de violência sofridas por sua mãe na condição de escrava de estimação:
Ela contou muitas histórias, muitas mesmo, onde ela contou uma que era pra
apanhar e ela se escondeu embaixo da cama. E não achavam ela. Aí disseram:
“Vamos pegar o relho, quando ela chegar vamos dar de relho nela.” Ela ouviu e saiu
ligeiro gritando “eu tô aqui, eu tô aqui” [fala em alemão]. E ela dizia tô aqui, já
venho, e dentro de casa. Aí eles pegaram o relho e deram nela. Acertaram na
cabeça. Ficou um vinco da grossura de um dedo, aquele vinco da argola. Ela contou
muitas coisas que ela passou. Aquilo tudo em alemão. […] E assim foi indo a vida
dela, apanhando, fazendo serviço. Outro dia ela cansou e disse, eu vou me atirar
aqui dentro. Tinha uma cisterna, um lugar onde se guarda água da chuva. E aquilo
era do tamanho de uma peça de uma casa. Até aqui na esquina tinha uma cisterna
de água, a CEE puxava água do arroio pra cá. E assim a mãe disse, eu vou me atirar
aqui dentro. Quando ela foi pra se atirar, ela vê lá dentro, no fundo, a imagem dela.
Sabe que ela voltou pra trás. Diz que deu um pavor nela, voltou pra trás correndo.
Não se lembrou mais nem do relho, da surra que tinha que levar. “Onde é que tu
tava Sade?”, perguntaram. Ela tava perto da casa, mas não viram ela porque não
foram para aquele lado.
20 Segundo Tramontini (1997), não se pode refletir sobre o trabalho livre dos imigrantes
alemães, em suas articulações com o trabalho escravo na região dos Sinos, sem abordar
as dificuldades do sistema econômico e político imperial escravista do sul do Brasil,
especialmente, em absorver esta população livre, pobre e estrangeira, considerando-se
sua grande capacidade de organização social para ocupar espaços na estrutura social e
política brasileira.
21 As relações de poder unindo “negros” e “brancos”, alemães e “brasileiros” ao mundo da
produção de Novo Hamburgo, destacam-se em outras narrativas que explicitam a
continuidade dos valores da “velha ordem social” escravocrata e racista no interior do
mundo do trabalho livre (Fernandes, 2007). E, nestes termos, a forma de organização
social e política que orientou o mundo do trabalho dos imigrantes alemães no Vale do
Sinos implicou a articulação das famílias com as facções sociais e políticas locais, além
da rápida incorporação de práticas locais tais como o apossamento de terras e a
escravidão (Tramontini, 1997).

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Restaurando imagens da escravidão nas origens da


moderna cultura germânica
22 É evidente que as famílias alemãs se depararam com a presença negra e a escravidão,
marcas fundamentais da dinâmica histórica do processo civilizacional no sul do Brasil,
desde o início da ocupação do território, assim como em outras regiões, seja como mão
de obra nas fazendas e nas milícias das oligarquias pecuaristas, seja na produção
agrícola implantada pelas famílias açorianas ao longo de todo o século XIX, ou ainda,
nas charqueadas.5 Em todo o caso, é relevante para este artigo pensar o contato da
cultura alemã com as práticas locais da escravidão na região dos Sinos, não apenas
como resultado da experiência da migração europeia no sul do Brasil, como assinalado
anteriormente, mas também como parte de uma relação arcaica dos imigrantes com o
tema do negro e da escravidão na sua cultura de origem.
23 Ao contrário do que se poderia pensar, o confronto da cultura germânica com o
processo de escravidão não deriva do contato dos imigrantes alemães em terras
brasileiras, mas conforma parte da memória coletiva que orienta a formação dos
próprios estados alemães nos primórdios dos tempos modernos. Não apenas nos países
de cultura germânica, mas em muitos outros países europeus no início da era moderna,
inúmeros africanos e ex-escravos oriundos das Américas conviviam com famílias
aristocráticas ou com ricas famílias burguesas, na condição de empregados domésticos,
e cuja forma elaborada de seus modos de vestir expressavam a importância e a riqueza
das pessoas para as quais eles trabalhavam. Negros igualmente submetidos a relações
de propriedade, os quais, diferentemente do que ocorria no mundo colonial, podiam se
movimentar com certa autonomia dentro da sociedade branca (Lind, 2001). A conversão
dos escravos à fé cristã desempenhava, por sua vez, um papel fundamental na
integração dos negros na sociedade alemã, os quais adotavam, após o rito de passagem,
o nome de seus padrinhos, geralmente duques, aristocratas, altos oficiais militares etc.
(Lind, 2001). Por outro lado, na sociedade altamente estratificada e hierárquica que
configurava a Alemanha dos primórdios da era moderna, assim como nas colônias de
outros países europeus, os casamentos entre negros e brancos eram geralmente
indesejáveis.
24 Apesar da presença inexpressiva dos alemães no tráfico mundial de escravos e das raras
expedições científicas em terras estrangeiras subsidiadas por estados alemães, a
convivialidade da cultura germânica com o tema da escravidão transparece na arte, na
literatura e no debate público (Lind, 2001).6 É na ótica da “pedagogia das imagens”
(Durand, 1984) que se configura a cultura germânica dos primórdios da modernidade, e
não é raro o culto ao exotismo do negro africano e a aceitação de sua condição de
dependência privilegiada, aparecendo a figura do escravo com relativa frequência
sempre posicionada como mão de obra no interior das famílias aristocráticas da época.
25 Da mesma forma, o tema da escravidão (Lind, 2001) aparece nas reflexões dos
pensadores iluministas alemães (cientistas e filósofos), os quais vão seguir de perto o
desenvolvimento do debate sobre a definição da natureza e da história dos seres
humanos, na intenção de definir e classificar as diferenças entre sociedades patriarcais
e escravocratas em outros países europeus e no exterior.7
26 Em decorrência destes breves apontamentos, poderíamos supor que a ausência da mão
de obra escrava nas colônias alemãs no Vale do Sinos, como parte da tradição

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germânica do trabalho livre na região, resultaria num arranjo específico das formas de
organizações do mundo do trabalho das famílias negras entre os colonos alemães em
contraposição às dos “brasileiros”. Um fenômeno que acompanharia a configuração do
mito fundacional do homem livre pobre “nacional” como parte dos esforços das
famílias alemãs para conquistar espaços no interior das oligarquias locais (o direito de
posse da terra, de votar e ser votado, de possuir escravos, etc.). Entretanto, os relatos de
Vó Nair e as lembranças das estórias contadas por sua mãe, dela e de sua avó, ambas
como “escravas de estimação”, nos conduzem a explorar muitas outras fontes
documentais históricas que evidenciam o emprego da mão de obra escrava entre os
colonos alemães.
Minha história veio da minha mãe. A minha mãe era da serra, Dois Irmãos. Ela era
filha de escravo, então quando a minha avó foi mandada para Porto Alegre por um
dos filhos dos senhores dela, foi mandada para Porto Alegre com um filho que
casou, e minha mãe com 5 ou 6 aninhos, e arrancaram dos braços da minha avó e
ficaram com a negrinha, lá, os velhos, os senhores. E a minha avó foi com o filho dos
senhores para Porto Alegre e ali ela ficou escravinha. Ela veio morar ali nos Zott.
Eles foram donos dos primeiros ônibus e caminhões de Novo Hamburgo. Era
Hamburgo Velho, na Vila Nova. Ali, eles foram morar. A mãe e o pai. Ali eles foram…
Depois que o pai morreu a minha mãe veio para Novo Hamburgo.
27 Em particular, aparece o emprego da mão de obra escrava nas mais diversas atividades
artesanais, além de uma variação considerável de tipos de vínculos de trabalho como
domésticas no interior das famílias, como agregadas, sendo, entretanto, essa mão de
obra regulada, em sua maioria, pelo uso de castigos físicos, 8 na linha dos relatos de Vó
Nair e de suas memórias de família, ao invés de pretensa “escravidão respeitosa”. 9

Os vestígios do mundo escravo na inserção da mulher


negra no mercado de trabalho livre
28 Considerando a evidência do trabalho escravo como integrante da cultura germânica
no Vale do Sinos, prosseguimos nos relatos de Vó Nair sobre sua trajetória de escrava de
estimação à empregada doméstica e, logo após, com a morte de sua mãe, como
benzedeira, indagando-nos sobre o processo de inserção social vivido por ela no mundo
do trabalho livre em Novo Hamburgo. Nesse ponto, torna-se relevante compreender, na
linha de outros estudos (Giacomini, 1988; Souza, 1982, Vieira, 1987), como as memórias
do trabalho de Vó Nair nos possibilitam pensar a forma que as mulheres negras,
nascidas de mães escravas, realizaram a passagem à condição de empregada doméstica,
cujas atividades, ao longo do século XX, vão sendo progressivamente reguladas e
formalizadas.
29 No caso do relato de Vó Nair notamos que o mundo do trabalho da doméstica, antes de
ser visto na perspectiva de um sistema de transmissão de saberes e fazeres entre
gerações de mulheres trabalhadoras, carrega consigo a marca do poder e da exploração
de uma sociedade patriarcal, obviamente segundo suas transformações ao longo de
tempos e espaços determinados. Um fenômeno que não é singular, uma vez que
encontra ressonância em outros estudos sobre a travessia realizada pela mulher negra
até o emprego doméstico ao longo do século XX (Lima Ribeiro, 1943; Pinto, 2012;
Saffioti, 1978).
30 As marcas do poder escravocrata e patriarcal revelam-se, no caso de Vó Nair, em certo
apagamento da violência que presidiu a sua vida de trabalho na região dos Sinos. Foram

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poucos os momentos em que Vó Nair explicitou a dura experiência vivida pelas


mulheres de sua família entre as famílias alemãs de Novo Hamburgo.
Dava mais ou menos, o ponto mais ou menos onde tem aquele negócio de comer
frios, passava a ponte, do lado esquerdo tem um xis, onde fica cheio de carro, tem o
colégio Pio XII, tem o Pica-Pau. Então naquele rio a gente vinha lavar roupa. A mãe
lavava, nós já ajudávamos. Tirava a roupa que era pra quarar, era tudo grama,
atirava pra cima, nós já ia estendendo no quadro. Nós já estendíamos o que era pra
torcer ela atirava pra cima, o arroio lá no fundo. Quando a gente tinha uma
folguinha, a gente pegava o anzol, uma varinha, botava o anzol, ali se lavava roupa,
ali se pescava, ali se fritava e comia. A mãe torcia roupa, tinha assim uns tijolos e
minha mãe levava umas latas para ferver a roupa, naquele tempo se fervia a roupa,
atirava tudo pra cima, e ela lá, no fundo, lavando e atirando o que era pra quarar, o
que era pra ferver, o que era pra estender. E nós fizemos aquele trabalho lá em
cima, né. E quando a gente tinha uma folguinha a gente ia e pescava ali. A gente
pescava lambari.
31 No momento de atribuir a sua competência nos afazeres domésticos, tais como limpar a
casa, cozinhar, lavar e passar roupa, etc. é constante a referência de Vó Nair à sua
atuação como doméstica associada à formação obtida junto à sua patroa. Raros foram os
momentos em que ela atribuiu suas competências no exercício dos ofícios do trabalho
doméstico como parte do legado de trabalho de sua mãe:
E então a minha mãe, na época, ela começou a ser e era, já veio de lá dos primeiros
donos dela né, ela já veio sabendo cozinhar, sabendo lavar, sabendo fazer tudo. E
assim ela começou a trabalhar para criar a negradinha toda. Era uma família grande
a da mãe. Eram uns 10 filhos. E aí fomos morar ali numa casa. Ficava ali naquele
triângulo que tem no bairro Rio Branco, depois da Padaria Brasil. Tem um triângulo
de motorista, ali era a nossa casa. A primeira casa bem no meio da alemoada toda
[risos]. E não tinha diferença porque nós falávamos tudo alemão. Aí a gente foi
morar ali. Ela lavava roupa, ela passava roupa, era cozinheira, era arrumadeira, ela
era lavadeira de roupa no arroio. Lavava roupas para os colégios. Antigamente, o
São Jacó tinha criança hospedada, como se dizia, internos, lá no colégio São Jacó.
Esta gurizada interna vinha de todo lugar, eram internados ali. Era a minha mãe
que lavava as roupas. Então vinha tudo em saquinhos. E nós já ajudávamos a mãe a
trazer roupa pra lavar aqui neste arroio onde vão mexer agora, vai passar ali o
negócio do Trensurb. Então ali na ponte. Ali a gente lavava roupa. Água limpinha.
Ali se lavava roupa o dia todo, né.
32 Logo, é importante ressaltar que a compreensão dos processos de exploração da mão de
obra das populações negras no mercado de trabalho da sociedade brasileira não se
situa, simplesmente, no sistema escravocrata, mas acompanha a transição do trabalho
escravo para o trabalho livre. Nas palavras de Vó Nair, essa transição aparece associada
a novas formas de arranjo de sua mão de obra no interior da organização do mundo do
trabalho em Novo Hamburgo e às alterações nos estilos de vida das famílias alemãs:
Mas eu passei uma época de racismo muito grande. Interessante foi quando eu fui
trabalhar. Eu estava com 6 anos. Eu fui trabalhar no Alvício Klaser, Foi o maior
industrialista de Novo Hamburgo. Na época, eram três irmãos, aí eu fui trabalhar
ali, de babá. Comecei a trabalhar ali. Nós morávamos do outro lado da rua e eles na
esquina da mesma rua. Era mais ou menos meia quadra que a mãe morava da casa
do Alvício. E, naquele tempo, a sogra do Alvício fazia pão pra Novo Hamburgo. Fazia
pão pra uma imensidade de gente, a sogra do Alvício Klaser.
33 Da mesma forma, fica evidente que a passagem do trabalho escravo para o livre e
assalariado incorpora as bases racistas da antiga ordem patriarcal da sociedade
brasileira, através da construção de narrativas sobre a inferioridade do negro para
justificar a sua exclusão do mercado de trabalho (Azevedo, 1985). Uma condição visível

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na forma como aparece no relato de Vó Nair o ordenamento das lembranças de sua vida
de trabalho em Novo Hamburgo, antes de sua ocupação de benzedeira no interior das
famílias locais.
Foi assim, uma vida muito gozada a nossa. E depois foi assim, ficamos muito tempo
conhecidos, Novo Hamburgo era os Lara pra tudo, pra tudo, pra tudo era os Lara né.
A gente ficou conhecida, conhecidíssima. Dar de mamar, a minha mãe deu de
mamar. Três eu ainda lembro, ela deu de mamar pra três prefeitos de Novo
Hamburgo. Ela deu mama pro Koch, tem outro, ela deu mama pra cada alemãozinho
que nascia, que a mãe tinha um negrinho junto, tudo mamou na mãe. Sei que
naquele tempo as mães brancas não tinham leite, não ganhavam leite, sei lá.
34 Interessante perceber que, na época, a passagem de Sade, mãe de Vó Nair, da condição
de “escrava de estimação” para a de ama de leite e de empregada doméstica,
assalariada, dedicada à criação dos filhos das elites locais, confrontava claramente o
próprio código de posturas vigente em fins do século XIX, em Novo Hamburgo. Tal
código de posturas – fortemente influenciado pela propagação do eugenismo na
sociedade brasileira – orientava as famílias no sentido de abandonar os antigos hábitos
de uma sociedade patriarcal e escravocrata que conformavam o trabalho dos criados de
servir e das amas de leite. Além disso, segundo as práticas da medicina, as famílias eram
aconselhadas a não manterem em suas casas, sob o mesmo teto, as escravas domésticas
e a não deixarem a essas os cuidados das amas de leite, em especial, a amamentação de
seus filhos. No entanto, a lista de nomes citados por Vó Nair é extensa e precisa:
Então tem muito alemão que mamou na minha mãe, junto com cada negrinho que
ela tinha. Tinha os Scherer, tinha o Armando Koch que foi prefeito, um Adams
mamou na minha mãe. Tinha mais um que era meio brasileiro. Mas a maioria
naquela época a mãe tinha um filho, sempre tinha um alemãozinho junto. E tinha
um alemãozinho que era o Scherer, o Scherer ficou tão agarrado com a mãe que
quando ela colocava meu irmãozinho pra mamar junto com ele, ele empurrava o
negrinho. A mãe passava um trabalho na hora que botava o Scherer com um dos
meus irmãos que era uma barbaridade.
35 Portanto, ao nos determos na vida cotidiana das populações negras no interior das
famílias alemãs, percebemos que o código de posturas de Novo Hamburgo não era
seguido à risca, uma vez que ele previa que todo indivíduo que quisesse exercer o
trabalho dos criados de servir e das amas de leite deveria inscrever-se no Livro de
Registros da Secretaria da Polícia, atestando ser a pessoa abonada e livre, estando
sujeita, em caso contrário, a pena de multa ou prisão. 10
36 No caso de Vó Nair, fica evidente que sua entrada no mercado de trabalho livre como
doméstica, no interior das famílias das classes mais abonadas e brancas da cidade, foi
diferenciada em relação à trajetória social de sua mãe, Sade, e à de sua avó.
Eu nasci em Hamburgo Velho, vim parar aqui. […] Depois do Alvício Klaser, que eu
fiquei seis anos, […] a mãe foi convidada a trabalhar em uma chácara em Porto
Alegre, chácara dos… não lembro o nome. Sei que esta chácara era lá onde passa o
rio, Pedras Brancas, não, era Tristeza. Ali tinha uma chácara de um senhor que
agora não me lembro do nome, e ali a mãe foi morar. Nós fomos juntos, nós éramos
quatro negrinhos, eu, uma sobrinha, outro sobrinho e mais uma sobrinha. A mãe
tava criando três netos e eu junto. E aí fomos pra lá. Mal nós estávamos lá, uma
semana ou duas, a minha tia de Porto Alegre, tios por parte de pai moravam tudo
em POA. Eles arrumaram serviço pra mim, e neste serviço eu fui pra casa do senhor
Raul Bitencourt. Esse doutor Raul Bitencourt, ele era médico do hospício São Pedro.
Ele era deputado estadual, e eu fiquei na casa deles, daquela idade em diante. Eu fui
até pro Rio de Janeiro com esta gente.[…] Eu sou de 1918. Foi a Revolução de 30
acho. E com aquilo o meu patrão Raul teve que ir para o Rio. Chegou lá, mandou

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chamar a família com os dois filhos, eu era a babá dos dois filhos. A senhora nem
imagina, a vida que eu tinha com esta família no Rio de Janeiro. E a minha mãe
disse, vocês levem esta negrinha e me tragam ela de volta, não me deixem esta
negrinha por lá. E fizeram. Me cuidaram direitinho. Eu fui ama-seca, e eles podre de
rico. Ali tinha lavadeira, passadeira, cozinheira, tinha arrumadeira, empregada pra
tudo. Não precisei mais do banquinho. Andava toda engomadinha, de topinho,
rendinha, vinha tudo prontinho pra mim. Nós acordávamos de manhã, se arrumava
e bum pra rua.
37 Podemos pensar que a trajetória dessas gerações de mulheres negras é diferenciada em
relação a de outras mulheres de sua comunidade de origem em razão do domínio que
tinham do dialeto alemão, que permitia maior diálogo com suas patroas e com suas
proles. Em especial, a etnobiografia de Vó Nair nos apresenta o domínio do dialeto
alemão como elemento estrutural da inserção das mulheres de sua família, pela
linhagem de sua avó escrava, ao longo de gerações, como agregados das famílias
tradicionais do Vale do Sinos. Nas palavras de Vó Nair:
Novo Hamburgo, naquele tempo, era… Onde a mãe foi morar chamava-se Mistura.
Da ponte pra lá era Mistura, o nome que deram assim. E ali era tudo quase só
alemão. E nós fomos de muda pra ali, no meio daquela alemoada toda. […] Mas a
minha mãe já falava alemão. Nós já falávamos alemão. Depois que a mãe casou com
pai, todos nós falávamos alemão. E aí fomos morar ali. Então aquela gente dali,
reparava, olhava.[…] A minha mãe foi a única que se tornou conhecidíssima dentro
de Novo Hamburgo, de preta, era minha mãe. Ela fazia todo este serviço, ela
cozinhava pra fora, ela cozinhava nos Kerb, ela cozinhava nas festas dos alemães
tudo. Era casamento era tudo. Ela foi dos Mosmman, ela foi cozinheira dos velhos
Mosmman. Dali em diante a mãe fazia todos os batizados, as festas de batizado, de
comunhão. Ela fez a festa de todos os Mosmman. Agora faz uma ideia, era uns cinco
ou seis, ainda tem aí os das construtoras, tem aquele que tem a Macosan. Isto tudo é
como filho da mãe. São todos assim, se tem como filhos.
38 Entretanto, ainda que diferenciada, nas palavras de Vó Nair permanece a referência à
situação de discriminação racial vivida de forma similar a outras tantas mulheres
negras no Brasil (Barros, 1985):
Ali na casa do Alvício tinha que fazer mamadeira pras crianças, tinha que lavar
roupinha, tinha que passar. Tudo isso eu fazia. Mas eu não tinha assim é tempo pra
nada. Até mesmo pra estudar, porque o colégio também era na mesma rua. Essa rua
que passa atrás da Cavasotto, que só vai pra cima, ali na Padaria Brasil. Então lavar
louça, tudo isto, eu já tava ali com meus 8 [anos] e até então a gente passava, fazia
tudo o que tinha que fazer lá embaixo e aí subia. Tinha uns degrauzinhos pra subir
[…].
39 Diante dos processos de discriminação vividos na relação entre empregadas e patrões, a
expectativa era que a passagem da condição de escrava de estimação para a de
empregada doméstica se configurasse na possibilidade de encontrar bons patrões, ou
seja, que se lhe fizessem concessões e a tratassem como “pessoa”.
[…] o Alvício chegava em casa tava eu fazendo mamadeira ou passando roupa,
fazendo servicinho, né. […] Ele disse: “Mas esta criança, isto é uma criança. Eu vou
fazer um banquinho pra ela andar com este banquinho.” Aí ele fez um banquinho
pra mim poder passar roupa, pra mim poder ir pro tanque lavar roupa. Eu tinha um
banquinho de dois pés, mas era pé firme. Uma tábua em cima desta alturinha pra
mim carregar aonde eu ia. Pro tanque eu carregava o banquinho, pra poder lavar
roupa eu levava o banquinho, pra poder passar roupa eu levava o banquinho, levava
o banquinho e fazendo as mamadeiras e as crianças eu carregava […]. Aqui, eu sou
um pouco torta de carregar eles enganchando assim [mostra a cintura] […].

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40 Ao pensarmos as relações de trabalho que uniam as gerações de mulheres da família de


Vó Nair ao percurso de inúmeras famílias alemãs, pertencentes à aristocracia local,
percebemos a condição de agregada que ela veio a ocupar na estrutura familiar das suas
patroas, nos moldes descritos por José de Souza Martins (1979) em seus estudos:
Como nós morávamos perto, e eu empregadinha na casa do Alvício, eu saía de
manhã cedo de casa, passava na velha sogra, a velha sogra fazia pão pra fora. Ali
tinha umas 20, 30, 40 latinhas de pão. Era tudo como hoje, tem as garrafinhas de
azeite, as latinhas de azeite. Então era um forno enorme, mas os fornos estavam em
cima de uma mesa, numa prateleira, e ela botava dentro das latinhas banha pra
passar nas forminhas pra untar pão. […] Imagina, eu saía dali de casa, passava na
casa da velha, passava azeite naquelas latinhas tudo, e já atravessava a rua pra ir
cuidar dos filhos do Alvício que eram netinhos dela. Imagina, 6, 7, 8 anos, né. E aí
fazia tudo aquilo tudo e ia pra casa do Alvício.

A presença do cativeiro na passagem de “escrava de


estimação” a de empregada doméstica: à guisa de
conclusão
41 Um aspecto visível no relato etnográfico de Vó Nair diz respeito às formas das trocas
sociais que ela estabelecia com seus patrões, regidas basicamente na aceitação e
reconhecimento da autoridade dos valores ético-morais característicos da antiga
sociedade patriarcal e escravocrata.
Sei lá. Dava tempo pra tudo. Aí nós morávamos atrás da igreja. Tinha uma casinha
pequeninha, uma maloquinha, que depois de casada eu fui pra ali, fui morar ali
atrás da igreja, onde hoje tem aquelas butiques da Magda. Ali onde é aquelas lojas
era a casa da minha mãe. E a minha mãe trabalhava para os Becker. Nós e os Becker
moramos ali onde hoje tem as lojas. […] Que história que eu estou contando para
vocês. Tô começando a me recordar. Aí os Becker foram vendendo onde está as lojas
hoje. A Magda é como filha pra mim e eu como mãe pra ela. […] Ali eu casei. Ali que
eu fui morar. Sabe que ficamos muitos anos ali. Pois é. Era eu, a mãe, um irmão meu,
o Chimia, o maior motorista de Novo Hamburgo. Ficou trabalhando no João
Hennemann. Foi o primeiro que ensinou as mulheres brancas. Ficou Chimia por
causa daquela alemoada toda. Dali eu saí casada.
42 Sob esse aspecto, o local de residência estrategicamente próximo ao local de moradia
das famílias nas quais ela trabalhava, desde a tenra idade, vai se perpetuar ao longo de
toda a sua vida como doméstica, acompanhando por gerações e gerações os seus
descendentes. Uma forma dos seus patrões permitirem a essas mulheres, seus filhos e
maridos a produção direta dos meios de vida necessários à reprodução da sua força de
trabalho.
Ali onde é o restaurante foi onde me empreguei na casa do Hennemann. […] Aí eu
fui passando de um irmão para o outro dos Hennemann. […] Ali tinha gêmeos. Ali eu
fiquei muito tempo. Quando os gêmeos vieram, eu já estava lá há tempo. Eu fiquei
27 anos na casa do João Hennemann. […] Sei lá se é dizer que passei trabalho. […] Vi
os filhos dele crescer, casar. O último que eu vi foi o da Marta que casou com o filho
do Klaser.
43 Para a Vó Nair, em sua condição de empregada doméstica, a autoridade dos patrões
brancos relacionava-se ao nível educacional, econômico e social que lhes auferia um
poder irreal, forte o suficiente para interferir na sua privacidade e intimidade:
E aí então a gente morava naquela rua. Nós, o Alvício Klaser… A professora também
era daquela rua. E aí então, de tarde, eu ia pro colégio. Pensa que eu ficava uma

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200

hora inteira? Os alemãezinhos tudo na mesma rua […]. A professora tinha que me
largar pra eu ir brincar com eles, podia estudar? De maneira nenhuma. Ela me
largava pra eu ir brincar com as crianças, fechava a porta e eu ficava brincando na
rua. Olha, não estudei nada, nem sei que livro que eu fiz, sei lá. Acho que só o
primeiro livro. Tabuada a gente lia, escrever, isto aí eu aprendi muito pouco no
colégio, porque as crianças não me deixavam.
44 Nesses termos, o trabalho livre na condição de agregado das famílias alemãs, que era o
caso de Vó Nair e de sua mãe Sade, diferia do trabalho escravo exercido por sua mãe e
avó “na medida em que se baseava na separação do trabalhador de sua força de
trabalho e nela se fundava a sujeição ao capital personificado pela propriedade
fundiária”, aqui no caso das famílias alemãs (Souza Martins, 1979, p. 12).
Fui pra casa do Klaser, mas viúva, mas eu fiquei pouco tempo. Aí quem me pegou foi
o João Hennemann. Ali onde é o edifício da Livraria Flama, era a casa do João
Hennemann. Aquele edifício todo, até o outro edifício, aquela era a casa do João
Hennemann. Aí eu fui pra ali empregada. Ali eu já fazia outros serviços. Foi o
primeiro dono da Ford. João Wendelino Hennemann. Hoje, o Flávio ainda tá casado
com uma filha do Arnoldo Hennemann, que era filho do João Wendelino
Hennemann, dono da Ford. Aí eu fui passando de um irmão para o outro dos
Hennemann.
45 “Ir passando”, “ser pega” – expressões recorrentes de Vó Nair para falar de sua relação
de trabalho no interior de uma mesma família – comunicam a forma como o agregado
circulava entre as gerações de uma mesma família, numa sujeição das mulheres negras
ao personificado nas aristocracias de origem alemã em Novo Hamburgo, lembrando o
que José de Souza Martins (1979, p. 15) aponta para a presença do passado de trabalho
escravo na sua condição de trabalho livre. As repercussões disso aparecem na forma
como Vó Nair agrupa seletivamente os rastros de suas memórias como “escrava de
estimação” à sua condição de mulher negra liberta, concluindo: “eu passei tudo isto aí,
mas eu tinha boas lembranças da minha infância, porque no fundo eu era bem tratada”.
46 Contrastando com a dimensão do trabalho livremente vendido no mercado, as
lembranças de Vó Nair nos sugerem uma vida de cativeiro (Souza Martins, 1979), uma
vez que ao longo de seus 94 anos sua vida esteve de certa forma aprisionada ao
monopólio das vontades das famílias abastadas do Vale do Sinos, seguindo uma
linhagem de vida dedicada aos outros que foi inaugurada por sua avó e mãe no interior
da comunidade alemã de Novo Hamburgo.
47 O reconhecimento da condição sociológica de cativeiro, entretanto, não reduz a
complexidade dos jogos da memória que acompanham a narrativa biográfica de Vó Nair.
No espaço fantástico da memória, o tempo presente, associado ao mundo do trabalho
livre não se apresenta em oposição ao tempo passado, quase sempre relacionado ao
mundo da escravidão. Sob a ótica da consolidação de uma identidade narrativa, Vó Nair
não apresenta uma oposição irreconciliável entre as formas de vida dos alemães e a dos
negros em Novo Hamburgo. Ao contrário, a afiliação da família de origem de Vó Nair à
cultura germânica, o domínio do dialeto alemão transmitido de geração a geração em
sua família, o lugar de residência próximo às famílias brancas da aristocracia local se
entrelaçam dramaticamente com as lembranças da violência física, do abuso e da
exploração sofridas por essas gerações de mulheres negras.
48 Acompanhar, portanto, as transformações do mundo do trabalho na região do Vale do
Sinos pelo viés da memória de três gerações de mulheres negras nos permite pensar o
mundo alemão como uma unidade simbólica plural, cultural e etnicamente
multideterminada. Trazendo à tona a organicidade das camadas de duração que

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configuram o fenômeno temporal da memória coletiva negra na região em detrimento


de uma visão absoluta ou exclusiva do mundo do branco, o do colono alemão. Um
fenômeno que não seria possível caso não nos detivéssemos na riqueza dos laços
através dos quais Vó Nair, a personagem dessa história, tece, no plano da
intratemporalidade (Ricoeur, 1994) e nas diferentes passagens de seu excurso
etnobiográfico, o tempo histórico da colonização alemã no Vale do Sinos e o tempo
vivido por ela, sua avó e sua mãe ao longo desse processo.

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NOTAS
1. A produção desta etnobiografia é parte do material etnográfico sobre memória do trabalho de
dois projetos de pesquisa em andamento: “Etnografias dos fluxos urbanos de grupos étnico-
raciais em bairros de Novo Hamburgo/RS” (Universidade Feevale) e “As comunidades negras do
Vale do Sinos e a memória do trabalho” (Universidade Feevale/Fapergs).
2. Conforme expressão da baronesa E. de Langsdorff (1848 apud Moreira Leite, 1984).
3. A respeito do termo “etnobiográfico” seguimos a proposta conceitual que orienta o cinema
documental de Jorge Prelorán (1987).
4. Para o aprofundamento dessa discussão, ver a tese de doutorado de Nunes (2009).
5. Conforme apontam estudos clássicos do trabalho escravo nas charqueadas (Cardoso, 1977)
como parte do processo de implantação de uma civilização urbana no Brasil meridional, em
especial, a produção do charque promoveu a formação de fortunas e a prosperidade de algumas
cidades, sendo a responsável pelo incremento do uso da mão de obra escrava tanto para trabalhos
domésticos quanto artesanais e “serviços”, com a cidade de Rio Grande destacando-se, em
meados do século XIX, como um dos principais polos do comércio negreiro do Império Brasileiro.
6. Em seu estudo Vera Lind (2001) ressalta que a figura do negro africano despontava, na época,
como um dos motivos favoritos para decorar porcelanas, relógios e pinturas, e que as silhuetas de
africanos apareciam nos brasões de várias cidades alemãs, sendo os negros personagens
populares em romances, poemas e peças teatrais.
7. Conforme Vera Lind (2001), muitas pinturas do século XVIII são retratos de grupo de uma
família ou filhos, ou retratos de aristocratas, imperadores, duques, duquesas, e assim por diante,
acompanhados por um empregado negro. Por um lado, as pessoas negras são partes de cenas
quase íntimas, mostrando a sua proximidade com o patrocinador e a estima em que são
realizadas. Por outro lado, a pessoa preta é usada como um exótico símbolo de riqueza. Algumas
pinturas, em particular as que retratam aristocráticas mulheres brancas com seus empregados

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negros, claramente envolvem conotações sexuais. Em outras, o esquema de cores da pintura


enfatiza o contraste entre cor de pele preta e branca no encontro entre africanos e alemães,
claramente desenvolvido ao longo de linhas diferentes do que em outros países dentro do sistema
Atlântico.
8. Conforme Tramontini (1997), os colonos alemães aparecem com bastante frequência como
compradores ou locatários de negros para auxiliar na agricultura. Segundo o autor, o primeiro
código de postura de São Leopoldo (1848) incluía uma cláusula, por exemplo, que proibia aos
senhores castigarem seus escravos após as 20 horas, no inverno, e 21 horas, no verão, para não
incomodar a vizinhança com os barulhos. Logo após, em 1850, o Dr. João Daniel Hillebrand,
comandante da povoação de São Leopoldo, líder dos colonos alinhados com as forças liberais,
comunica ao presidente da província, após o fim da Revolução Farroupilha, que a escravatura
“teve pouco aumento, constando apenas na região 229 escravos”.
9. Segundo depoimento de Von Hoffman (1934 apud Tramontini, 2000, p. 1), retirado do livro
Nach Brasilien und zurück in die Heimat, de 1878, no trecho em que afirma que os negros eram bem
tratados pelos alemães, que podiam no seu tempo livre vender doces, água ou bananas nas ruas.
Tinham também o direito a um baile de negros de vez em quando. E, aos domingos, se viam
muitas escravas passeando “tão bem arrumadas que nem pareciam sê-lo”, com vestidos de seda,
colares de pérola, brincos, cabelos repartidos e arrumados e sombrinhas. Acrescentando que boa
parte dos negros falava o dialeto alemão da família onde trabalhava.
10. Conforme os relatos apresentados por Giacomini (1988, p. 22): “Como amigo dos nossos
patrícios e interessado na paz das famílias da nossa terra, não devemos deixar de aconselhar-lhes
que substituam, ou ao menos que diminuam o número desses muitos inimigos que se nutrem em
nosso seio. Criados livres, morigerados e bons, como os que podemos encontrar entre as famílias
alemãs que emigram para as nossas praias, são os que ora nos convém para, não só
resguardarmos do perigo que nos está eminente, como também nos fora da influência danosa que
sobre nós tem produzido os escravos.”

RESUMOS
A partir da restauração da narrativa etnobiográfica de Vó Nair, 94 anos, benzedeira, que mora na
cidade de Novo Hamburgo (RS), o artigo aponta para as estratégias de inserção adotadas por
algumas famílias negras no mundo do trabalho na região do Vale do Rio dos Sinos. Tendo como
inspiração os procedimentos de uma etnografia da duração acoplados às técnicas da etnografia
sonora e visual, procuramos compreender a dinâmica da cultura urbana local e as formas de
ocupação da mão de obra negra e as relações étnico-raciais presentes no interior da rítmica do
mundo do trabalho na região do Vale do Sinos, situando-nos no plano da palavra viva de uma de
suas principais personagens.

Throughout the restorations of the Vó Nair, 94 years old, ethno-biografical narrative, folk-healer,
who lives at Novo Hamburgo (RS) the article points out the insertion strategies that were used by
some black families in the outskirts of the Sinos Valley. Inspired by the proceedings of an
duration ethnography coupled with the sound and visual ethnographic technique, we look for
the understanding of the local urban culture dynamics and the ways of employment of the black
labour and the ethnic-racial relations that are presented within the rhythmic of the labor world

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in the Sinos Valley, and situating this work in a field of live testimony of one of the main
characters.

ÍNDICE
Keywords: blacks, ethno-biografical narrative, labour, memory
Palavras-chave: memória, narrativa etnobiográfica, negros, trabalho

AUTORES
MARGARETE FAGUNDES NUNES
Universidade Feevale– Brasil

MAGNA LIMA MAGALHÃES


Universidade Feevale– Brasil

ANA LUIZA CARVALHO DA ROCHA


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

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Memórias de trabalho nas paisagens


missioneiras do “antes-tempo”
Flávio Leonel Abreu da Silveira

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 02/06/2012
Aprovado em: 17/01/2013

Introdução
1 A partir da experiência etnográfica nas Missões gaúchas, 1 o artigo em questão busca
estabelecer uma reflexão em torno do tema do trabalho entre camponeses no noroeste
do estado, de forma a refletir sobre os saberes e os fazeres relacionados a determinadas
práticas de labuta que configuram um saber-viver por parte de seus habitantes junto às
suas paisagens de pertença.
2 A experiência civilizacional das reduções jesuítico-guaranis de matriz hispânica
engendrou o ethos do trabalho na região como um valor, exercendo a partir do processo
da “conquista espiritual” uma série de ações técnico-culturais de manejo das paisagens
sob influência de uma moral cristã associada à vassalagem dos súditos ameríndios a
Castela na porção austral do Mundus Novus.
3 A experiência missioneira no século XXI é herdeira de práticas reducionais
transformadas com o passar dos séculos na região, diante das vicissitudes e
turbulências do tempo missioneiro, relacionada à ação humana de ocupar os espaços e
de instaurar naquela zona de fronteira um processo civilizacional que possibilitou
integrar a região ao processo colonialista português e, posteriormente, à moderna
nação brasileira.

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A perspectiva da unicidade
4 “A nossa mãe é a terra!… A terra, é bem certo, é nossa mãe legítima. Ela que nos dá a
matéria!”, exclamou seu Antônio Furtado do alto de seus 83 anos de sabedoria, sentado
em seu banquinho e com os pés descalços. Disse tais palavras para logo depois sorrir
deixando à mostra a gengiva nua e rósea. O senhor vivia à época em São José, no
interior de São Miguel das Missões, lugar do qual saiu poucas vezes. O seu apego ao
lugar remete à ligação com o corpo-mãe da terra. Mas o “sacrifício”, o esforço de lidar
com a matéria terrestre advém do pecado e da expulsão do Paraíso, pois de acordo com
as suas palavras “o próprio hôme que desmontô o mundo, faz passá trabaio!”
5 Com essa frase seu Antonio lembra que as imagens bíblicas são recorrentes no mundo
missioneiro, evocadas pelo “homem da tradição” (Durand, 1979) como referência à
imagem poderosa da queda do Paraíso, porque introduz o ser humano no mundo do
trabalho e ao sofrimento decorrente do esforço físico pela sobrevivência mediante o
domínio da matéria terrestre. Nessa cosmovisão, o dilema vivido pelo humano é
inerente à mitologia judaico-cristã. Seu Emílio, por sua vez, compartilha a visão bíblica
com o tio: “O primeiro hôme teve que trabaiá, tirá o pão do suor de seu rosto!”,
indicando que a imagem do “suor” escorrendo na face evoca a simbólica da labuta como
destino e dilema humano no mundo.
6 Antes de adentrar na discussão relativa ao trabalho realizado sobre o corpo terrestre
missioneiro, é preciso deixar claro que a visão de alguns de meus interlocutores aponta
para o fato de que os processos ecossistêmicos e os cosmológicos são inseparáveis,
quando as imagens convergentes de terra-mãe e da terra-organismo conformam uma
unicidade, uma manifestação para além da dinâmica biofísica porque sensível e mental.
7 Pensando com Gregory Bateson (1986, 1990), sigo seus trilhos quando se trata de
considerar a separação entre mente e matéria como algo que não é mais válido, daí a
importância de encontrar “os padrões que unem” ambas. Para o autor, a natureza
procede mediante processos mentais, fazendo as suas escolhas. A complexidade da
matéria, nesse caso, é oriunda da realização de processos mentais ecossistêmicos nos
quais a mente humana é uma de suas manifestações mais acabadas. O universo
simbólico surge como um poderoso meio de onde aflora um mundo imaginal singular,
proliferando metáforas. Estamos, portanto, na esfera de uma “ecologia mental” ou das
ideias.
8 É nesse contexto que a terra é uma paisagem onde o homem se percebe como agente. A
sua riqueza enquanto imagem geradora de sentidos é imensa. Expressão metafórica de
tudo o que significa apego ao lugar e força cósmica que une o humano ao meio.
Paisagens: a terra é dádiva e pertença, imagem de tudo o que é humano em sua
aventura pelo mundo. A sua poética é a própria manifestação do ser. As paisagens falam
do humano como seu Emílio parece sugerir: “Tá vendo aquela árvore ali! É que nem o
hôme: nasce, cresce, morre pra dá lugar pras outras!” Afirmou isso, apontando para um
capão de mato quando passávamos de carro, enquanto refletíamos sobre a questão da
morte.
9 É por isso que a reflexão acerca das práticas de trabalho no espaço missioneiro remete a
uma tentativa de compreensão da dinâmica do espaço-tempo vividos na relação
sensível e proxêmica entre sujeitos e ambientes.2 Todavia implica em considerar a
lógica contraditorial que emerge das pulsões humanas que oscilam entre construção e

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destruição, perdurância e ruptura, localismo e diáspora na conformação de paisagens


sobre as quais a memória dos sujeitos deita suas franjas. A movência e a elasticidade da
memória trazem à tona imagens do que, no universo missioneiro, representaria o
“tempo das antiguidade”, ou ainda, aquele que denominam de “antes-tempo”.

A domesticação das paisagens: o “antes-tempo” e a


pregnância da memória coletiva
10 Havia um tempo outro. Uma época em que, tudo indica, o ritmo do mundo missioneiro
vibrava de maneira diferente. Não havia máquinas agrícolas e ainda existiam matas em
abundância. Reinava o “clima florestal subtropical” (Rambo, 1994, p. 409). O veado
branco pastava junto ao gado nos campos e ocorriam animais na região dos quais já não
se sabe o paradeiro. O trabalho era duro e os “rigores” da labuta – como vários idosos
argumentaram – não impediam que as pessoas se visitassem com frequência. Num
trecho do diálogo travado entre dona Cica e dona Geci isso parece ficar claro: “Era
sacrificado!” (dona Geci); “Era dura a vida!” (dona Cica); “Era divertido, a gente tinha
tempo de passeá!” (dona Geci), pois o tempo dos afazeres não era ditado pelo relógio.
11 As construções barrocas do período jesuítico-guarani estavam entregues à sua sorte,
seguindo ritmos nativos de interação com as paisagens de ruínas do período jesuítico-
guarani. É a esse tempo datado, por vezes, mas na maioria dos casos impreciso porque
borrado pelo esquecimento e repleto de imagens dispersas – e interpretações diferentes
– na memória coletiva dos moradores do lugar que se refere o “antes-tempo”.
12 Trata-se de um tempo de labuta e, dessa forma, de ação modeladora do meio biofísico
que é possível acessar apenas através do “trabalho da memória” (Bosi, 1994) dos
sujeitos que rememoram. Esse tempo deriva da experiência jesuítico-guarani, quando
as paisagens passaram a ser domesticadas naquela região como uma das expressões do
colonialismo hispânico na porção austral americana.
13 Naquele tempo as casas eram diferentes. Os latifúndios, herança da tomada de posse
portuguesa3 via distribuição de sesmarias,4 com os seus enormes sobrados reinavam nas
fazendas missioneiras. Gilberto Freyre (1973, p. 84-85) analisou a presença do sobrado
no Rio Grande do Sul enquanto um dos “elementos da paisagem cultural brasileira”.
Longe da “aparência de uniformidade absoluta”, tais construções revelariam nas
paisagens subtropicais uma “variação regional nos tipos de sobrados de origem
portuguesa das várias regiões brasileiras”. Na verdade, era o complexo sobrado-senzala
que compunha a “geografia do poder” nas terras missioneiras.
14 O cotidiano de trabalho dos escravos poderia ser controlado sem maior esforço pelo
senhor a partir da janela de sua casa, de onde lançava seu olhar “superior” para a
senzala, tamanha era a proximidade entre as duas esferas do vivido, os dois mundos
que compunham o universo social da fazenda/estância, como foi possível observar na
antiga Fazenda do Sobrado, localizada no município de Bossoroca. Portanto, dada a
proximidade-distância tão tênue entre ambos os domínios é possível compreender o
processo de miscigenação que ocorreu na região.
15 No “antes-tempo” não havia cercas. “No tempo do campo aberto tudo criava junto”,
referindo-se aos animais, ponderou seu Pedro Tufão. O máximo que poderia existir
eram valas separando as propriedades. Também existiam taipas – enormes muros que
cortam os campos – com seu intrincado corpo longilíneo de pedras encaixadas umas às

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outras, recortando as paisagens missioneiras. Memória petrificada e engendrada pelo


trabalho humano; em alguns casos, pela mão guarani, noutras, pela negra.
16 Técnica herdada que os missioneiros souberam aproveitar para delimitar as suas
propriedades, bem como para facilitar o manejo do gado. A “cerca de pedra” ou taipa
que existe na propriedade de seu Neto, morador do Campestre “tem uns quantos dias!
Meu bisavô construiu naquele tempo que não tinha arame!… Depois apareceu os
primeiro arame pra fazê cerca.” Ao tocar no assunto, levantou e seguiu em busca de um
pedaço de arame liso e bastante velho, para mostrar-me como eram os primeiros tipos
que surgiram na região, antes da figura ofensiva do arame farpado assumir o seu lugar
na fragmentação do espaço agropecuário regional.
17 “Não tinha cerca. Cerca que eu conheci era a taipa de pedra dos Morais [na propriedade
de seu Neto] e o valo!”, colocou seu Antônio Furtado. Nesse tempo, “o arame não
existia” como algo que recortava a paisagem, por isso, para seu Dorcino “não é como
dantes que podia cruzá [atravessar] por campo alheio… não tinha cerca!”
18 Lourenço Prunes (1969) ao falar da “humanização das paisagens” gaúchas aponta para o
processo de modelamento técnico-cultural dos ambientes, demonstrando a experiência
ecoantropológica que foi a estância. Ela surge enquanto atividade econômica ligada à
pecuária – mas também é preciso considerar a presença do “estancieiro-agricultor” –
nas paisagens rio-grandenses.
19 Paulo Xavier (1969), por sua vez, elucida aspectos da transformação da estância em
fazenda, com as consequentes mudanças nas relações de trabalho no campo (e de
compadrio, envolvendo a família patriarcal, os peões e os agregados) movidas pelo
deslocamento paulatino da família patriarcal em direção aos centros urbanos. Assim, a
estância torna-se “uma colmeia de trabalho voltada a economia mercantil” (Xavier,
1969, p. 83). Os dois autores fazem referência ao aramado, mas é Prunes (1969) quem
descreve a “lenta estilização” definidora das mudanças na “paisagem sentimental” que
era a estância. Segundo o autor,
muito mais tarde surgiram os aramados; a terra cinturou-se toda de arames
sustentados em postes e tramas, e subdividiu-se em invernadas, potreiros e
piquetes, enquanto que os limites dominais e as carreteiras também são balizados
pelos moirões que seguram os tapumes de fios lisos e farpados. Com o carrapato
apareceram os banheiros para os vacuns e novas configurações nas mangueiras,
com a sarna multiplicaria os destinados a lavar as ovelhas e geraria bretes para
melhor tratá-las. Plantaram-se tufos de árvores, quebrando a monotonia da
paisagem, os quais tanto servem para abrigar os animais, quanto fornecem frutos.
Mas essas estilizações apenas tocam a superfície do ambiente rústico… A
disseminação da gente e o seu gênero de vida, o seu comportamento familiar, social
e político, harmonizam-se com o ambiente e têm fundas marcas telúricas. (Prunes,
1969, p. 21-22).
20 Apesar da assimetria social inerente à relação entre sobrado e senzala, nos campos
recheados de capões nativos da região missioneira, eram as taperas [pequenas casas ou
ranchos de moradia] que reinavam. Singelas, manifestavam o caráter telúrico do
“homem da tradição”. Eram elementos inseridos nas paisagens evidenciando o
bucolismo das formas de vida campeira diante do trabalho cotidiano.
21 Robert Avé-Lallemant (1980, p. 302) ao descrever a morada do naturalista francês Aimé
Bonpland oferece uma imagem da casa na região platina:
Avistamos, afinal, diante de um vergel, uma pequena granja. “Ali mora Dom
Amado” – disse meu peão – e poucos minutos depois parávamos diante da casa.

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Todavia a palavra casa deve ser tomada em sentido eufemístico. A morada do velho
Aimé Bonpland perto de Restauración, em Corrientes, consistia em duas grandes
cabanas que se encontram em ângulo reto do lado da entrada, cujas paredes de
barro são sustentadas por varas de bambu e algumas traves. O teto de palha
repousava sobre bambus. Ao lado dessas duas grandes cabanas, uma espécie de
choça, tendo no chão pedras reunidas: cozinha e fogão de célebre homem. Ao lado
do conjunto, uma carreta velha e algumas estacas para secar a carne e amarrar os
cavalos.
22 Nas casas modestas do gaúcho missioneiro existe desde longa data um despojamento
que engendrou raízes, permanecendo até os dias de hoje como uma manifestação
estética marcada pelo desapego. Mais do que pobreza relativa, parece ser signo da
valorização de questões diversas ao mero acúmulo de bens. É por isso que no meu ponto
de vista algumas casas recentemente construídas na paisagem urbana miguelina 5
destoam do conjunto singelo das moradias dos habitantes locais, mesmo daquelas das
sedes das fazendas no interior do município, tomando os fazendeiros como aquele
estrato social considerado como “apoderado”6 pelos moradores locais. A casa cumpre o
papel de ninho (Bachelard, 1988), representando a “morada”, e não há interesse nas
aparências como signo ostentatório de riqueza mesmo entre alguns fazendeiros.
23 Seu Dorcino, numa das tantas visitas que fiz à sua casa, falou sobre como “os antigo”
construíam as suas moradias. Para edificá-las, contou, utilizavam ripas envoltas por
barro, usando capim santa-fé para cobri-las, mas depois passaram a fazer o telhado com
ripas de guajuvira e guabiroba. Eram de chão batido. Tais casas foram comuns até cerca
de 60 anos atrás, segundo o idoso. A arquitetura rústica dessas moradias das
comunidades caboclas era uma derivação das técnicas de habitação herdadas dos
indígenas que, com o passar do tempo, foi alterando-se em função da incorporação de
novas tecnologias no trabalho de construção.
24 Dona Cica afirmou que elas eram construídas de “taquara bem juntinha e rebocavam
com barro”. Esclareceu que para a construção do piso “juntava barro com esterco de
gado”. Além disso, “as casas não eram com telhado assim; os bem pobrezinhos, era
coberta de capim!” Dona Narcisa, por sua vez, mencionou o fato de as casas terem as
suas telhas “com tabuinha”, quando não, “de macega”.
25 Seu Emílio – que morou numa casa desse tipo com dona Cleni, sua esposa – comentou
que o ripado das paredes era rebocado utilizando-se na tarefa uma massa de “barro e
esterco de vaca”. Segundo ele, “fazia uma grade e atava com cipó”, e concluiu que “no
inverno é bem quente e no verão era frio”. Engenhoso, sentenciou: “quase ninguém
sabe fazê, eu sei fazê!”
26 A proximidade com “as criação” [gado bovino; equino; ovino; suíno; galináceos] é um
aspecto interessante da forma de viver do “homem missioneiro” (Freyre, 1973), em que
a presença constante dos animais no entorno ou, por vezes, no interior das moradias é
algo corriqueiro – especialmente galinhas; filhotes de ovelhas –, compondo as paisagens
domésticas. Há uma convivência pacífica e fundamental entre elementos da paisagem
na dinâmica ecoantropológica que constitui a variedade de sistemas complexos do tipo
moradia-pátio-roça na zona rural.
27 A casa missioneira (e seu entorno) está integrada às paisagens nativas, consorciada com
espécies animais e vegetais exóticos. Ela liga-se ao eixo mangueira-potreiro quando
aparecem (o que é frequente), gerando mosaicos de ambiências que definem desenhos
singulares nos espaços e marcas diversas nos lugares de convívio e trabalho. Uma

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propriedade é um universo de possibilidades engendradas pela ação transformadora,


delineando formas distintas pela ação modeladora do gesto humano através da labuta.
28 A roça7 é um lugar de trabalho que representa o espaço humanizado, cujo manejo
incorre no domínio de certas técnicas reveladoras da ação transformadora do homem
sobre o meio, imprimindo sua vontade em rearranjá-lo de acordo com determinadas
necessidades e ordens simbólicas de interação com o cosmos, dentro de uma lógica de
produção voltada para a subsistência familiar. Nesse sentido, o método tradicional
denominado de coivara8 apresenta-se como uma prática técnico-cultural importante no
contexto missioneiro.
29 Por certo, nessa forma de manejo dos ambientes os lugares intrincados da arquitetura
botânica são reordenados, os espaços ampliados a partir de uma intervenção técnica de
“descoivará”, bem como na “limpeza do mato” para o cultivo das roças, sugerindo
cosmologias agrárias: ao derrubar o capão funda-se um mundo, uma nova ordem
cósmica em que o trabalho na roça domestica o caótico polimorfismo do mato. A
transformação diz respeito às imagens e às categorias de pensamento ligadas ao
trabalho e ao cultivo de vegetais, colocando uma nova ordem de organização no espaço
praticado (Certeau, 1994) e, em última instância, referindo-se ao mundo da casa
enquanto outro centro sagrado.
30 A coivara é um sistema de cultivo guarani que foi assimilado pelas comunidades rurais
e mestiças, assim como pelos “de origem” (ítalo e teuto-brasileiros, principalmente).
Trata-se de uma atividade na qual as pessoas realizam o sistema de “derrubadas” –
“atorá madera”, segundo seu Dorcino –, onde uma porção da mata é colocada abaixo,
servindo, inicialmente como uma espécie de cerca, pois ao mesmo tempo em que
paulatinamente se decompõe permite que a mata rebrote, impedindo, assim, que o gado
saia da propriedade. Seu Emílio comentou sobre o caso do feijão preto que não suporta
o vento sul, portanto tal técnica beneficia o seu cultivo, pois o mato serve como
proteção devido ao fato de que “o tempo varia muito”. Essa técnica, por vezes, poderia
estar associada ao sistema de valas como forma de impedir a dispersão do gado pelo
local.
31 O médico alemão Robert Avé-Lallemant (1980, p. 217-218) descreve uma paisagem de
coivara em 1858, surpreso pelo aspecto de ruína que presencia:
Em toda a parte encontramos culturas iniciadas e o começo de uma bem feita
estrada carroçável que daqui, de regiões solitárias, das antigas Missões, vai até ao
Uruguai. Decerto passa ela, a princípio, através de um terrível campo de batalha!
Aqui a floresta sofreu desesperadamente do ferro e do fogo. De pé ou caídos se
vêem, à esquerda e à direita, troncos carbonizados, horrível quadro da feroz
destruição com que, quase em toda parte, começa a agricultura no Brasil. Consola
ver, imediatamente ao lado, o verde jovem que, como bem cuidadas plantas de
cultura, brota entre os montes de cinza e montanhas de carvão.
32 Nem sempre a madeira era aproveitada para o consumo, podendo ser assimilada pelo
sistema de reciclagem inerente ao ecossistema manejado. O ato de descoivarar, ou seja,
de derrubar a mata ateando fogo para após destocar a área era uma prática comum
dentro de um sistema brando de produção agrícola. A derrubada e a consequente
queima do seu produto eram realizadas dentro de um sistema de “pousio”. Após os
sucessivos cultivos a terra era abandonada à sua sorte para que a mata fosse
reconstituída. Em relação ao cultivo do “fumo de folha pra fazê rolo” – no sistema
tradicional do cultivo da espécie –, seu Emílio ensina que “planta direto depois da

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queima”, ou seja, faz-se a queima no meio do mato, pois o seu cultivo ocorre junto às
cinzas.
33 As comunidades missioneiras faziam rodízios de culturas. 9 Da mesma forma que os
grupos indígenas abandonavam as roças ao seu destino, permitindo que ocorresse um
processo de sucessão ecológica na qual as espécies nativas recolonizavam a área em
repouso, ou seja, as plantas cresciam “guaxas” (“que nasce por conta”) reconstituindo a
vida do solo e permitindo que sua biodiversidade edáfica se recuperasse associada à
diversidade vegetal que nele aflorava, de maneira a possibilitar o retorno dos bichos ao
mato.
34 As falas dos interlocutores deixaram claro que até a segunda metade do século XX, as
comunidades missioneiras cultivavam as roças mediante a prática da coivara, pois
plantavam em terras de matas aproveitando a riqueza mineral oriunda das cinzas para
ativar a produção agrícola, que nos primeiros anos de cultivo era significativa. José
Herter recorda que cultivavam em “terra nova, terra de mato” em Caibaté, ou ainda,
conforme seu Emílio, “antes do trator o pessoal plantava em terra de mato, não de
campo!”
35 Em São Miguel, de acordo com as rememorações de seu Emílio, havia “fartura”, pois
plantavam inúmeros vegetais: “feijão preto, lentilha, milho, rama [de mandioca], cana-
de-açúcar, batata-doce, arroz, amendoim… e não tinha o que não criasse, as criação,
tudo o que era quinta… bastante erval”. Logo, antes do advento da mecanização
intensiva, as pessoas trabalhavam nas roças familiares a partir da derrubada e da
queima da vegetação florestal. Dona Cleni, certa vez, contou que quando veio morar na
cidade com sua família, sentia vergonha em comprar alimentos no supermercado, pois
outrora produziam tudo o que necessitavam para a alimentação.
36 A coivara não representava a destruição dos ecossistemas nativos, pelo contrário, o
manejo realizado pelas comunidades missioneiras introduzia uma dinâmica
transformadora das paisagens, modelando-as e não aniquilando seus componentes. Tal
ação modificadora, mediante a abertura de clareiras no mato, fazia com que as espécies
nativas ocupassem nichos ecológicos diversos, dispersando sementes, havendo troca
genética e convivência de espécies num espaço novo.
37 A partir do momento que essas áreas eram recolonizadas espontaneamente pela
floresta, davam origem a formações vegetais novas. Além disso, tudo indica que as
comunidades missioneiras realizavam formas nativas de melhoramentos genéticos das
espécies vegetais autóctones, como o milho, a batata e a mandioca, por exemplo. “Era
fartura. Dava pra escolhê! O pessoal era menos e ninguém tinha destruído com as mata
ainda”, afirmou seu Emílio, relembrando a sua infância e adolescência.
38 Havia, portanto, a produção de espaços humanizados – as roças – que consorciavam as
espécies nativas com as exóticas, de forma branda e não aniquiladora da biodiversidade
local. As pessoas estavam inseridas de maneira outra à bioetnodiversidade (Rocha,
2000) regional, mediante dispositivos culturais junto ao meio que acionavam dinâmicas
de interações ecoantropológicas, onde a cultura e a natureza não conheciam a cisão
dada pela intervenção das práticas técnico-culturais duras nas paisagens através da
mecanização. Os impactos sobre as paisagens eram de outra ordem, assim como suas
consequências sociais.
39 No entanto, com o processo de introdução do sistema capitalista de produção no meio
rural missioneiro, com maior intensidade a partir da segunda metade do século XX,

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essa prática tornou-se danosa pela falta de critérios na sua execução ante a demanda de
lavouras extensivas e o crescimento das agriculturas mecanizadas, nas quais reina a
pobreza vegetal da monocultura. A associação, num primeiro momento, com
instrumentos como a serra, introduzida pelos “de origem”, segundo ouvi de algumas
pessoas, parece ter iniciado um processo de devastação que culminou com a entrada de
trator de esteira como elemento arrasador de extensas áreas florestadas da região
noroeste do estado gaúcho.
40 Certo dia quando retornava da casa de seu Dorcino na Vila da Alegria, encontrei seu
Juca Tigre que vinha em direção à sua morada. Resolvi acompanhá-lo até a sua casa. No
caminho contou-me que cultivava uma roça – numa área de 20 x 50 m – na horta
comunitária, área cedida a ele pela prefeitura municipal por tempo indeterminado, a
qual viria conhecer posteriormente, e onde trabalham diversas pessoas da comunidade
que, como ele, necessitam de terrenos para seus cultivos. Seu Juca, naqueles dias de
intenso calor e pouquíssimas chuvas, habituou-se a trabalhar na roça das seis às nove
horas da manhã, como forma de evitar os rigores do sol.
41 O idoso contou que planta milho, rama [mandioca], mogango, abóbora, feijão graúdo e
arroz. Comentou que trouxe sementes de mogango de Porto Alegre para cultivar na
área. Queixa-se de jovens ladrões que roubam o fruto de seu trabalho. Logo depois,
quando conversávamos na varanda de sua moradia, seu Juca Tigre falou animadamente
sobre os progressos de sua roça, mas reclamou novamente da “ladroage” realizada pela
“rafoage” que vive na vila. Por vezes, quando falava, tinha a impressão de que a
qualquer momento perderia a sua dentadura, pois me pareceu meio solta, sendo visível
a falta de um dente. Dias depois diria que estava indo a Porto Alegre visitar sua filha e
“pra arrumá a chapa que tá floxa!” No entanto, seguia viagem preocupado com os
possíveis furtos sobre o seu trabalho.
42 “A pranta toda vida eu gostei… eu gosto de prantá, toda a vida eu gostei!”, refletiu
quando conversava comigo sobre a sua roça. Mas sentenciou: “Na lavora o pobre não
tem mais chance de ganhá!”, pois é necessário trabalhar muito para ganhar pouco.
43 Nota-se que o trabalho na roça representa a luta incessante das pessoas contra e a favor
da matéria, porque a ambivalência está em negá-la a fim de aderir à sua modelagem,
construindo ambientes nos quais as imagens idealizadas florescem e os sentimentos se
infiltram, adentrando a sua organização e engendrando formas por intermédio de uma
construção humana. Edificar, domesticar, cultivar equivale a ações que consubstanciam
formas plurais a partir do gênio humano. As paisagens missioneiras nativas são reflexos
dessas pulsões primevas que dinamizam o espaço e perduram no tempo. 10
44 O domínio de algumas técnicas e instrumentos desde longa data mostrou-se necessário
para a produção alimentar, mediante os resultados dos cultivos nas roças, bem como do
extrativismo realizado no mato, visando à subsistência dos grupos familiares. O uso do
pilão, técnica guarani que “o gaúcho usava até pra socá charque, milho, arroz, tudo o
que é semente”, explicou seu Emílio, aparecia como fundamental dentro do sistema de
produção nativo. Dona Cica, ao recordar as suas atividades domésticas falou do tempo
em que “socá canjica e arroz no pilão” era uma atividade que executava dentro da
divisão do trabalho familiar.
45 A “era” consistia em um pano sobre o qual batiam o feijão, mas “só depois se usou o
pano”, considerou seu Emílio. Ele recordou que “de primeiro, quando era gurizote”
usava-se esterco batido, se tratando de “um quadro grande, 30x40 m”, no qual “se
reunia a paia [palha] pra batê, debuiá: feijão, araruta, linhaça”. Dona Cica mencionou o

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uso do “manguá”,11 que é um instrumento agrícola utilizado sobre “a era de batê


feijão”. A senhora também comentou que antes misturavam barro com esterco para
bater a vagem em cima. Seu Neto, por sua vez, mencionou a “era” como um pano de
algodão de bater feijão onde se batia com o manguá.
46 O gadanho é outro instrumento agrícola citado pelas pessoas, cuja lâmina apresenta
cerca de 60 cm de comprimento por 10 cm de largura, apresentando um cabo longo. Seu
uso estava associado ao corte de alfafa, por exemplo.

As máquinas tradicionais e as formas de trabalho nas


Missões
47 Na região missioneira, no “antes-tempo”, coexistiam pelos menos quatro tipos de
“maquinários” nativos utilizados para a execução de diferentes trabalhos nas
comunidades locais. O trabalho, nesse caso, correspondia à ação das tecnologias nativas
adaptadas às formas de vida do “homem da tradição” e, portanto, inseridas nas
paisagens manejadas pelas comunidades: o “manjolo” (monjolo), a atafona, o engenho
de cana e o alambique de cachaça.
48 No interior de São Miguel das Missões existe uma região denominada de Manjolo –
também ouvi referências ao Forno Velho –, pois existiria no local um “forno véio”.
Nessa região estariam presentes ainda as atafonas. Segundo seu Emílio o manjolo e a
atafona “foram muito usados por aqui”. Seu Frutuoso afirmou que em Palmeira das
Missões até bem pouco tempo atrás, em torno de 25 anos, os “manjolos” estavam em
atividade.
49 O “manjolo” era uma estrutura movida pela força d’água que acionava um dispositivo
que fazia cair uma madeira pesada sobre o milho, o arroz e a erva-mate, a fim de
produzir farinha (e fazer canjica), descascar e socar tais produtos, oriundos do trabalho
de cultivo nas roças e nos ervais. Tanto seu Emílio quanto seu João Mosquito fizeram
referência a ele. Maximiliano Beschoren (1989, p. 26) descreveu o mesmo em 1874,
durante as suas andanças pela região noroeste do estado:
Permanecemos dois dias na casa de João Castelhano. Apesar de estar há quatro anos
no país, vi aqui, pela primeira vez, uma “Máquina” brasileira, que não se encontra
nas colônias alemãs: o monjolo. É um triturador que substitui o nosso moinho. A
disposição interna e externa lembra uma rústica habitação. É constituído por uma
alavanca. Numa extremidade, há um moedor pontudo, feito da mais resistente
madeira. Na outra extremidade, mais larga, há uma escavação, uma espécie de
gamela. Esta alavanca está colocada entre dois postes eretos, de tal modo que, a
gamela quando está cheia, pela água represada, a extremidade afunda e o moedor se
ergue. Quando a água escorre da gamela, o moedor cai de volta com toda a força
sobre a selha de madeira. Este monjolo realmente não falta em nenhuma casa de
família, nos distritos florestais. Serve para triturar o milho, fazer canjica e farinha.
Para obter a farinha de milho, deve-se deixar o milho na água durante uns dias.
Depois é batido no monjolo até se transformar em papa que, em pequenas porções,
é colocada para secar numa frigideira bem quente, formando o beiju. Nos distritos
da floresta materia, o monjolo é especialmente usado para bater e triturar a erva-
mate.
50 A atafona, por sua vez, era um tipo de engenho utilizado para a produção de farinha de
mandioca a partir da moagem da “rama” [mandioca]. O instrumento era movido por
tração animal, da mesma forma que o engenho de cana-de-açúcar, cuja atividade

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produtiva estava associada ao alambique de cachaça. Vi um desses em ruínas na


propriedade de seu Alfredo, que foi alambiqueiro por muito tempo no Rincão dos
Ataídes, no interior de São Miguel. A sua família quando chegou ao Brasil substituiu a
produção de bebidas fermentadas à base de beterraba, como estavam acostumados na
Hungria, pela de cana-de-açúcar. Na propriedade de seu Maneco vi uma pequena roda-
d’água desativada.
51 Numa conversa com seu Juca Tigre em sua casa, o senhor afirmou que “naquele tempo
eu trabaiava no engenho, de gurizote… de doce, de cana, né!”. Contou que trabalhava
muito a ponto de seus pés sangrarem. Em certos dias o sangue escorria pelos seus pés
de tal maneira que “colava nos tamanco”. Por vezes, trabalhava embaixo de geada,
comentou.
52 Esses engenhos agrícolas, heranças do sistema colonial, praticamente desapareceram
das paisagens missioneiras. Em algumas localidades talvez seja possível encontrar
algum deles ainda em funcionamento. Há uma retomada da produção de cachaça em
alambiques na região, voltada para o consumo do “tradicional” pelo turismo. As
máquinas nativas aparecem, na sua maior parte, enquanto resquícios dispersos pelas
fazendas, ou em ruínas, sem a importância que detiveram no passado.
53 O carijo era uma construção utilizada para a produção de erva-mate. Nele os feixes de
erva-mate depositados sobre jiraus12 secavam pela ação do vapor que era conduzido até
o local pelo barbaquá, constituindo-se, esse, numa parte do carijo na qual se fazia “uma
barroca” [buraco] com uma “esteira de madeira”, ou ainda, “uma valeta no chão, uma
cova lá na frente. Ali arrumava bem pra botá terra em cima da valeta que foi feita.
Botava fogo na entrada da valeta e saía o vapor no carijo!”, ensinou seu Emílio.
54 Ele faria referência ao uso de certas espécies vegetais na queima da erva-mate para dar-
lhe um sabor agradável. As três primeiras espécies citadas por Maximiliano Beschoren
também são mencionadas por ele. Confirmaria, ainda, as considerações do viajante
alemão no que se refere à perda da produção de erva-mate devido ao descuido com o
manejo do fogo, durante a secagem dos feixes da planta, como aquele presenciara no
século XIX.
55 Numa visita que realizei à casa de seu João Mosquito e dona Nena, perguntei ao senhor
se ele lidara muito com carijo. A sua resposta foi um sonoro “bá!”. A partir desse
momento, o tom de sua narrativa tem algo de evidente empolgação, ficando claro que a
labuta no carijo desempenhou um papel importante em sua trajetória de vida, no que
tange a um amplo conjunto de significados e sentimentos relacionados ao trabalho –
mas, também, ao hábito de preparar a erva para tomar chimarrão – que subitamente
emergem dos fluxos de sua memória.
56 Contou, ainda, que certo Vardo Castanha era dono de um erval na região. Segundo ele,
tratava-se de um “erval de duas hectaria povoado de erva” no qual trabalhou durante
certo tempo – “era um mês, dois, desgaiando erva” –, para logo após iniciar o processo
de produção do mate. Seu João Mosquito referiu-se ao barbaquá como um “cano” que
veicula o calor para secar a erva. De acordo com o idoso “entrava o calor ali e saia lá”,
secando a erva. “Era tudo de tijolo”, esclareceu.

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Labuta e ludismo nas paisagens missioneiras


57 Pelo que tudo indica é nesse contexto de produção agrícola e de manejo das paisagens
missioneiras que o “puxirão” deve ter existido enquanto prática social, pelo menos até
cerca de 20 ou 25 anos atrás na “terra miguelina”. Tratava-se de uma atividade de
trabalho coletivo dentro do caráter cíclico do calendário agrícola, representando uma
forma de coesão social que reafirmava os laços de solidariedade entre os grupos, de
maneira a fortalecer as práticas culturais ligadas à labuta e ao lúdico. Era, portanto,
uma “ordem de significação” posta em prática na ação coletiva aderida a uma simbólica
específica. “Se tivesse um serviço que visse que tu não ia terminá no tempo certo que tu
percisasse, convidava a vizinhança: quem ganhava convite era difícil faiá uma pessoa”, 13
esclareceu seu Emílio.
58 Isso acontecia, em parte, porque “amontoava serviço”, tornando difícil para o
“colonho” trabalhar na sua roça e gerir a espacialidade do lugar para a sua produção
agrícola. Portanto, necessitava de auxílio do “próximo” para executar as tarefas que
giravam em torno de “ará terra, capiná, prantá com saraquá”, especialmente “pra
prantá o milho”.
59 O saraquá consistia numa madeira de cerca de dois metros de comprimento com a
ponta afilada com a qual perfuravam o solo, para daí lançarem as sementes e cobri-las
em seguida com a terra. Segundo seu Emílio, teria sido “o primeiro prantio que
aconteceu!”. No cultivo as pessoas traziam consigo, durante a semeadura, “uma sacola
de pano com semente, cravava o saraquá, abria a terra e largava a semente a um passo
de distância de cada cova”, isso equivalia a “um metro de distância de uma linha à
outra”, onde cultivavam especialmente o milho.
60 Esse instrumento agrícola tradicional foi substituído pela máquina de soco, por vezes
denominada de saraquá. Na verdade, ela “veio fazê a veiz do saraquá”, explicou o
senhor. A sua presença escasseou nas paisagens agrícolas missioneiras, mas
ocasionalmente, ainda pode ser visto algum trabalhador utilizando-a no cultivo de sua
roça. Observei algumas vezes pessoas trabalhando com este instrumento agrícola em
São Miguel. As técnicas nativas de cultivo estavam inseridas no trabalho coletivo que
era o puxirão.
61 É preciso deixar claro que o sistema de puxirão era circular, pois mal terminava um e
“já saía convite pra outro”. O puxirão “circulô muito aqui antes de vir esses
maquinário”, recordou seu Emílio. Comentaria que “dispois do puxirão, à noite, saía um
bailezinho… vortava com a família pra se diverti!”. Então: “Carneava porco, ovelha, as
veiz vaca, galinha”. “Isso era uma festa, pode dizê, uma festa!… Pra ti vê como o povo
era unido!” Mencionou que “hoje em dia se chegasse a fazê isso aí, sabe o que ia
acontecê?… Io chamá os otro de vagabundo… uma palavra que não era de dizê!”
62 Seu Pedro Tufão falou com nostalgia dos tempos em que se realizavam puxirões “pra
quarqué serviço… tem amizade bastante. Tem puxirão pago!” Mas também menciona o
“puxirão de carinho!” Ou seja, havia diferentes modalidades de puxirões dentro de uma
comunidade.
63 Existiu também uma prática de trabalho denominada de “quarteada”. “Tu sabe o que
qué dizê?”, perguntou seu Emílio. “É troca de serviço… trabaia tantas hora pro otro, aí
fica devendo, depois vem pagá!”, esclareceu. A quarteada, no entanto, é diferente do
puxirão, mas não deixa de ser uma troca de prestações de serviços entre os moradores

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da zona rural missioneira. Os tropeiros, quando se revezavam nos cuidados com o gado,
executavam a prática de “quarteá”, por exemplo.
64 Seu Dorcino mencionaria o “puxirão pra derrubá mato” como um exercício coletivo de
manejo das florestas subtropicais pelas comunidades missioneiras. Já seu Pedro Cigano,
frente às mudanças do espaço miguelino e às transformações das práticas sociais
oriundas do processo de ocupação das áreas que compõem a zona urbana, bem como a
redefinição de comportamentos em função do “progresso”,14 diria que “lá onde tem o
hospital eu carpi… Fiz um puxirão!… Nem se fala mais! … Não tem no que fazê puxirão,
ninguém planta mais!”
65 Numa tarde em que conversamos sentados na varanda acolhedora de sua morada, seu
Juca Tigre mencionou o puxirão, quando “juntava vinte e poucos hôme, na enxada!”.
Era “um ajutório!”. Mas “terminô, ninguém ajuda mais o otro”, pois agora “o pessoal
qué tirá um do outro… Agora ninguém mais se importa, ninguém mais dá mão pra
ninguém!” O idoso refletiu acerca do tempo e as relações sociais imersas no seu fluir: “É
o tempo que mudô, qué dizê, o tempo é o mesmo, mas o pessoal!”
66 No tempo em que ocorriam puxirões as pessoas iam de roça em roça auxiliando as
demais. “Ia recorrendo”, nas palavras de seu Juca. “Limpava um mundo de roça!”
Demonstrou que foi solidário com as pessoas de sua comunidade: “Eu fui muito!”
Confirmou que após o puxirão “as veiz tinha um baile”, porém, “não faiz mais”, “acabô
tudo!”
67 Havia “brinquedo de faca” contou seu Juca, mas nunca episódios de violência. O
comensalismo era parte importante do ritual: “Aquilo era leitão assado, rêis assada,
galinha assada, peru assado.” O signo da fartura e a experiência da dádiva
compartilhada periodicamente eram festejados através de um ludismo ritual, pois “de
noite roncava um baita baile!” Mencionou uma determinada localidade como um lugar
no qual “dançavo quase todo o final de semana”.
68 Nesse tempo “era a coisa mais linda! Tudo se dava!” Os bailes que se seguiam
atravessavam a noite. “Depois saía o sol, fechava a porta. Levantava o pó, não tinha
soalho!”… “A coisa de primeiro era muito delicada, coisa de respeito!”, rememorou seu
Pedro Tufão.
69 Mara Morais, proprietária de terras no Campestre e ex-moradora da Esquina Mosquier
em Entre-Ijuís, comentaria que nessa última localidade, “faz bem pouco tempo”,
ocorriam puxirões na propriedade em que morou, mais especificamente durante a
colheita do trigo. Acredita que tais associações ainda ocorram em determinados locais
da região missioneira.
70 Por mais que os fazendeiros tenham incorporado esta prática tradicional de trabalho
coletivo em suas tarefas nas lavouras mecanizadas, o puxirão enquanto atividade social
está relacionado ao “antes-tempo”, exatamente por estar ligado a um período no qual
os implementos agrícolas mecanizados não faziam parte das paisagens missioneiras.
Época em que as pessoas se solidarizavam umas às outras de forma intensa, ao mesmo
tempo em que buscavam, a partir do estar-junto de caráter afetivo e ritual (Maffesoli,
1987), experimentar formas de sociabilidade15 em que a vivência lúdica era a
culminância do dia de labuta.
71 A “surpresa”16 também poderia acompanhar o puxirão. Tratava-se de um tipo de
sociabilidade que parecia misturar jocosidade com comunhão de abundâncias, na qual

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se compartilhavam riquezas num ritual lúdico, quando labuta e festividade se


entrelaçavam, emergindo como expressão da vida missioneira.
72 O acontecimento inusitado tomava corpo quando um grupo de brincalhões chegava à
casa de determinada pessoa em meio a grande algazarra, tocando gaitas e dando tiros
para o alto. As pessoas chegavam “desnucando as galinhas” e jogando-as para os donos
prepará-las. Carneavam porcos e dançavam. Era um rito sacrificial, uma festa dionisíaca
marcada pelo querer estar-junto como potência de interação e compartilhamento de
imagens e sentimentos ligados à fartura sazonal das colheitas, e à reprodução da vida
numa referência ao mito do eterno retorno (Eliade, 1992).
73 “Tinha a tal de surpresa”, quando chegavam pessoas na propriedade, por vezes, uma
“carreta cheinha de gente” e “acordava a tiro” o anfitrião, contou seu Juca Tigre.
“Como usavo fazê baile; surpresa, antes-tempo!” Chegavam carneando porcos, mas
também “abriam conta no comércio” no nome do anfitrião para que bancasse a festa.
74 A surpresa era aplicada em tempos de bonança. Portanto, no interior dos grupos existia
uma observação recíproca dos ritmos produtivos dos seus integrantes a fim de
planejarem as investidas nas propriedades alheias, dentro de um clima de diversão.
Havia um plano no rodízio, uma intencionalidade em aplicar a surpresa ao outro. Por
isso a existência de um clima de vingança – não rancorosa, mas de malandragem
cabocla –, pois um “se vingava no otro” fazendo com que os sujeitos agissem por uma
perspectiva semelhante à de seu Juca Tigre, ou seja, de que “o dia que eu botá uma
surpresa em vocês eu levo tudo!”
75 Nas festas dançava-se o xote laranjeira, entre outras coreografias. Também poderiam
bailar uma “vanera de dama”, quando “elas é que tirava o par, os rapaiz… e a moça
tinha que cantá um verso, e depois o rapaiz”. Nesse momento de sua narrativa seu Juca
recitou um verso:
Se eu errá contra a razão
Muito tenho que senti
Tanto bem que vós eu quero
Nada posso consegui!
76 Em relação ao verso explicou: “Tá se queixando, né!”
77 Lembra dos bailes na casa de “Picucha Marque” quando “à noite, a gente ia longe só à
base de verso… um cantava um, otro cantava otro!” Mencionou que a realização do
baile dependia de alguns critérios, pois “tinha que tê licença da prefeitura”. Para tanto,
pagava-se um imposto mediante “um talãozinho”, ensinou seu Juca.
78 Nas narrativas das pessoas muitas vezes acontecimentos como puxirões, surpresas,
bailes e festas se misturam. Na realidade, dentro do sistema agrícola missioneiro, tais
eventos lúdicos só poderiam efetivar-se em períodos de boa colheita ou de abundância
nas criações de animais domésticos.
79 Seu Pedro Tufão contou que certa vez fizeram surpresa durante “uma semana toda. Em
todas as casa: uma vaca e um barril de vinho!… Eu dançava a noite intera e de dia
trabaiava o dia intero! De primero se dançava, se divertia. Não havia nada!”
80 Mencionou ainda o episódio em que participou de um baile onde cantou muito, pois
gostava de música. As pessoas, naquela noite, apreciaram a sua performance. Ele,
entretanto, bebeu demais – também gostava de “tomar” – e acabou sendo levado à casa
do delegado completamente embriagado. No outro dia, sem saber como teria chegado
naquele local, perguntou ao homem como fora parar ali. Ele respondeu que tinha

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gostado muito de sua “cantoria”, por isso resolvera dar-lhe pouso naquela noite. Dona
Josefina, por sua vez, conta que “tocava gaita em baile” em Giruá, onde morava. Já dona
Cleni lembrou que “era dançadera em quantia!” Ambas referem-se a um tempo anterior
à sua conversão ao pentecostalismo, pois tais atividades lúdicas são consideradas
interditas.
81 Seu Milton, quando conversávamos em sua casa no centro de São Miguel, rememorou
dois episódios. Primeiro, o casamento dos pais de Mara que me acompanhara até a sua
casa: “Tem coisa que a gente grava na ideia. Parece que eu tô vendo o movimento da
festa!” Segundo, as festas na casa de Pedro Mandioca: “Aquelas festas eram lindas…
faziam linguiça em quantidade!”
82 Os bailes e as surpresas, ao combinarem comensalismo, danças e cantorias,
representavam um “divertimento”, pois conforme seu Emílio, no caso do puxirão,
“depois do trabaio iam se diverti”. Dona Cleni diz que era “uma brincadeira bonita”,
concluindo, “a gente tem saudade desse tempo bonito que não volta mais!”
83 Mas havia a possibilidade de “furar a surpresa”, explicaram. Quando alguém suspeitava
que receberia a visita de pessoas, deveria ficar “cuidando”, pois caso não quisesse ser
premiado, antes da chegada dos foliões deveria disparar alguns tiros para cima,
sinalizando assim que estava furando a surpresa. Segundo o casal “não é que nem hoje”
quando, seguidamente, ocorrem brigas nas festas.
84 Seu Milton, ex-subprefeito de São Miguel, e sua esposa, dona Zeza, disseram que a
surpresa também ocorria no aniversário de uma pessoa. Novamente o evento está
relacionado a datas cíclicas. Da mesma forma, um grupo de pessoas irrompia na casa do
aniversariante. Alguns deles em meio a toques de gaitas, cantorias e danças,
“carneavam” um animal que pertencia ao aniversariante e assim sucedia-se a festa.
Ressaltam que tudo envolvia um clima de “brincadeira”, pois “ninguém se ofendia” com
a surpresa. Além disso, “do jeito que começava, terminava!”
85 Perguntei a seu Pedro Tufão se ele tem saudade desse tempo e ele respondeu: “Muita,
muita, mas esse tempo não vem mais. O modernismo, os grande tomaro conta!”
86 “Ôla tempo bom!”, exclamou seu Milton.

Considerações finais
87 O paulatino desaparecimento das atividades mistas de trabalho e de experiência lúdica
aponta para o fato de que as práticas capitalistas, ligadas à monocultura extensiva e à
utilização das máquinas agrícolas nas atividades de trabalho na zona rural gaúcha,
engendraram um duplo impacto sobre as paisagens missioneiras. Primeiro, porque tais
práticas estabeleceram rupturas nos laços de solidariedade presentes nas diversas
comunidades que eram tradicionalmente cultivados e que revelavam a dimensão
sensível do “homem missioneiro” no que tange aos ritmos temporais, envolvendo o
cuidado com os ciclos das estações, as lunações e o calendário do catolicismo popular
nas localidades. Segundo, porque tais práticas aceleraram os processos de degradação
física das paisagens devido ao empobrecimento da biodiversidade – com o
desaparecimento de espécies animais e vegetais que compunham as paisagens
praticadas pelos missioneiros –, fenômeno provocado pela introdução sem critérios de
tecnologias duras no campo voltadas à monocultura extensiva, substituindo técnicas
mais suaves de manejo dos ambientes mantidas de forma tradicional e inserindo a

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lógica da lavoura mecanizada, dependente de insumos agrícolas na região missioneira.


A perda da diversidade ecossistêmica, portanto só pode ser pensada na sua relação
direta com a perda da diversidade cultural que, todavia, emerge como “potência
subterrânea” através da sutileza do “trabalho da memória” entre os narradores
missioneiros.

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NOTAS
1. Realizei pesquisa etnográfica na região noroeste do Rio Grande do Sul entre os anos de 2001 e
2002, que resultou em minha tese de doutorado Silveira (2004). Aqui faço uma observação
necessária: mantenho a linguagem vernácula dos interlocutores da pesquisa a fim de conservar a
fala corrente das pessoas, conforme a transcrição das entrevistas.
2. Os efeitos do modelamento de uma paisagem pelo grupo social implicam a manifestação de um
onirismo, ou ainda, daquelas “forças oníricas que se extravasam sem cessar na vida consciente”,

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oriundas do devaneio do repouso (e que se ligam aos devaneios da vontade), revelando o vínculo
entre imagem e arquétipo, bem como a anterioridade da primeira em relação à percepção; além
disso, a imagem abarca um caráter prospectivo que faz com que o homem que trabalha a matéria
deva sonhá-la anteriormente: ele sonha as “imagens materiais” para que “a mão que trabalha”
ponha “o objeto numa ordem nova, na emergência de sua existência dinamizada” (Bachelard,
1991, p. 3, 21, grifo do autor). Para Leroi-Ghouran (2002), imagem e gesto são inseparáveis na
intenção inteligente de agir sobre a matéria e transformá-la.
3. O açoriano a partir do “hábito da lavoura”, como elucida Sérgio Buarque de Holanda (1978, p.
89), “tendia a formar no extremo sul uma casta de gente estável e sedentária”.
4. As sesmarias aparecem como uma das formas de ocupação lusa do espaço missioneiro, ou seja,
de “fracionamento do território”, pois “é justamente nessa área missioneira que vai surgir a
estância como centro de atividade econômica da pecuária. Constitui a estância a unidade social
da organização regional; do ponto de vista econômico é um latifúndio, pela extensão que abarca,
pelo tipo de atividade que desenvolve; nela assenta, por outro lado, a formação social, como
célula de onde atuam os chefes e os líderes.” (Diegues Jr., 1960, p. 313). “A formação social do
povo do Rio Grande do Sul assenta-se sobre o primitivo núcleo de produção rural a que se
chamou ESTÂNCIA. Trata-se de um complexo familiar e comunal aplicado à criação, que se
constituiu em linha mestra do desenvolvimento econômico desta região; uma sucessão de nexos
ecológicos que criou um tipo de vida, característico linguajar e um sem-número de hábitos e
atitudes.” (Xavier, 1969, p. 75).
5. Referência à “terra miguelina”, como dizem os moradores de São Miguel das Missões.
6. O mesmo que “empoderado”; rico.
7. Sobre a questão da importância da roça nos modos de vida caipira, por exemplo, ver o trabalho
clássico de Antonio Candido (1964).
8. Sobre o sistema de coivara entre os Guarani, ver Brochado (1975), Inácio Schmitz (1979),
Haubert (1998) e Kern (1982, 1985, 1998). Entre os Caiapó, ver Anderson e Posey (1987); no que
tange às comunidades caiçaras do litoral paulista, ver o trabalho de Oliveira et al. (1994).
9. A “existência de todo grupo social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo entre as suas
necessidades e os recursos do meio físico, requerendo, da parte do grupo, soluções mais ou menos
adequadas e completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza daquele equilíbrio. As
soluções, por sua vez, dependem da quantidade e qualidade nas necessidades a serem satisfeitas.”
(Candido, 1964, p. 9).
10. A importância das reflexões de Marshal Sahlins (1990, p. 9) para o tema reside “na existência
e na interação dual entre a ordem cultural enquanto constituída na sociedade e enquanto
vivenciada pelas pessoas: a estrutura na convenção e na ação, enquanto virtualidade e enquanto
realidade. Os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos sociais, informados por
significados de coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empíricos. Na
medida em que o simbólico é, deste modo, pragmático, o sistema é, no tempo, a síntese da
reprodução e da variação.”
11. Trata-se de um “equipamento usado na trilha (debulha) de grãos” (Silva, 2000, p. 56).
12. “Estrado de madeira ou de varas onde são guardados os produtos de colheitas ou fenos.”
(Silva, 2000, p. 51).
13. Antonio Candido cita a fala de um caipira que menciona o “tempo de caridade”, referindo-se
ao mutirão. Antes, menciona, para o contexto paulista, a referência feita pelo viajante
D’Alincourt (1818) do “muchiron”, assim como Ayrosa (1934) do “muchirão” que, segundo este
último “não é propriamente um socorro, um ato de salvação ou movimento piedoso; é antes um
gesto de amizade, um motivo para folgança, uma forma sedutora para executar rapidamente um
trabalho agrícola” (Candido, 1964, p. 48-49). Rosane Rubert (1999) menciona o “puxiron” como
uma atividade de trabalho coletivo solidário para a região nordeste do Rio Grande do Sul.

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14. Marshal Sahlins (1990, p. 174), discutindo acerca de sua “teoria da história”, afirma que a
“relação entre estrutura e evento, que se inicia com a proposição de que a transformação de uma
cultura também é um modo de sua reprodução”. Mais adiante o autor coloca que “no mundo ou
na ação – tecnicamente, em atos de referência – categorias culturais adquirem novos valores
funcionais. Os significados culturais, sobrecarregados pelo mundo, são assim alterados. Segue-se
então que, se as relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada.”
15. Utilizo o conceito a partir de Georg Simmel (1983) como um tipo de sociação no qual as
pessoas se entregam por livre e espontânea vontade.
16. Luciana Hartmann (2000) faz referência à surpresa como uma prática de sociabilidade
presente na região sudeste do estado gaúcho.

RESUMOS
O artigo em questão estabelece reflexões em torno do tema do trabalho na região missioneira
gaúcha, tomando como referência o legado das missões jesuítico-guaranis e seus desdobramentos
no contemporâneo, a partir das memórias das pessoas que vivem naquela porção do Estado. Para
tanto, o artigo se baseia numa pesquisa de campo de cerca de um ano, que teve como um dos
interesses etnográficos a tentativa de compreender os processos de transformação das paisagens
na região através das ações técnico-culturais relacionadas ao universo do trabalho.

The present article raises reflections on the thematic of work in the região missioneira gaúcha, a
colonial missionary region in the extreme south of Brazil. The study uses as reference the legacy
of the jesuítico-guaranis missions and their unfolding today, through the memories of the people
who live in that portion of the Rio Grande do Sul State. For this, the article bases itself on field
research conducted over approximately one year, which had as one of its ethnographic interests
the attempt to understand the processes of landscape transformation in the region through
technical-cultural actions related to the work universe.

ÍNDICE
Palavras-chave: memória, paisagens, sociabilidade, trabalho
Keywords: landscapes, memory, sociability, work

AUTOR
FLÁVIO LEONEL ABREU DA SILVEIRA
Universidade Federal do Pará – Brasil

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Na estrada e na lama com Jorge, um


brasileiro. Trabalho e moradia nas
fronteiras do desenvolvimento
André Dumans Guedes

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013
Chuva e sol, poeira e carvão
Longe de casa, sigo o roteiro mais uma estação
Minha vida é andar por esse país
Pra ver se um dia descanso feliz
Luiz Gonzaga, Vida de viajante
1 Neste artigo realizo uma leitura do romance Jorge, um brasileiro (França Jr., 1983), escrito
pelo mineiro Oswaldo França Jr. e publicado em 1967. Tal leitura será orientada por
pesquisas que venho realizando nos últimos anos em torno dos efeitos e sentidos de
grandes projetos de desenvolvimento, destacando-se aí minha tese de doutorado
(Guedes, 2011). Centrada na questão da mobilidade tal como ela é vivida e pensada por
certos grupos “sertanejos” do centro-norte do país, essa tese foi escrita a partir de um
trabalho de campo realizado no norte de Goiás, junto a garimpeiros atingidos por
barragens e trabalhadores de hidrelétricas, mineradoras e empreiteiras.
2 Já o romance em questão tem como cenário aquele interior do país que, no início da
década de 1960, também vivencia as transformações desencadeadas por uma série de
grandes obras. Tal realidade nos é apresentada de um ponto de vista privilegiado: Jorge
é um caminhoneiro experimentado que, refletindo sobre sua vida e trabalho nesse tipo
de empreendimento, descreve suas experiências nos mais distantes rincões do país.
Nessas fronteiras e limites, a “ocupação” e “modernização” dessas áreas têm como
condição e ponto de partida esse tipo de serviço ao qual ele tanto se dedicou: a

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construção de estradas. Adiante ficará evidente a importância dessa atividade para


meus interesses de pesquisa. Por ora adianto que Jorge me é um documento precioso
por ser o único material que conheço a tratar com detalhes de tal universo; além disso,
ao mesmo tempo em que me permite testar o alcance de certas hipóteses e conclusões
delineadas em Guedes (2011), essa obra facilita a exposição delas no espaço restrito de
um artigo. Nesse sentido, eu poderia dizer que é “através” desse romance que
apresento os dados de minha pesquisa.1
3 Se eu considero esses grandes projetos sob essa perspectiva, é também com a intenção
deliberada de passar ao largo daqueles referenciais teóricos e políticos que têm
orientado o grosso da produção voltada à sua análise neste Brasil contemporâneo e
“neodesenvolvimentista”. Procedendo assim, busco chamar a atenção para a relevância
dos significados nativos atrelados ao trabalho naqueles universos “populares” que – na
literatura contemporânea posicionada criticamente diante desses projetos – vêm sendo
analisados primordialmente a partir de outras chaves (por exemplo, pela consideração
de sua dimensão “étnica” ou “identitária”, ou via a ênfase nos impactos
“modernizantes” sobre “modos de vida tradicionais”). Meu objetivo aqui é também
sugerir o quão produtivo pode ser, nas pesquisas sobre esses universos, investir na
análise específica de determinadas experiências do trabalho – inclusive para a
investigação de outros temas. Mais do que questões de ordem teórica ou disciplinar, é a
própria centralidade “cosmológica” do trabalho para as pessoas que estudamos – o
trabalho enquanto valor, matriz de outros significados ou mecanismo de integração de
experiências aparentemente díspares – o que me parece tornar prementes os
investimentos antropológicos sobre esse tema.

Na estrada
4 Funcionário dedicado, Jorge se vê em apuros diante da tarefa de levar a tempo, de
Caratinga até Belo Horizonte, aquele carregamento de milho. E eu tendo que pensar em
como ia descobrir uma estrada para passar com as oito carretas, cada uma com um peso que era
capaz de afundar muita estrada boa. E com aquela chuva não havia estrada boa em lugar
nenhum (29). 2 Quase no fim da jornada, com o prazo se esgotando e as rodovias
intrafegáveis, Jorge não vê saída a não ser ele próprio abrir um caminho (136), em
pequenas estradas abandonadas ou sobre o mato, por onde as carretas passarão.
5 Cortar um pedaço do barranco (128); alargar um pouco a estrada (131); arranjar pedras para
forrar o chão (134); criar um desvio por dentro do rio (136); arrancar os tocos de árvores dos
lugares onde iam passar as rodas (137); abrir a cerca de arame farpado que acompanhava a
margem da estrada (168): por dias e dias, é a essas atividades que se dedicam Jorge e os
motoristas que o acompanham. Munido de pá, enxada e machado, Jorge não é mais
apenas um caminhoneiro: mas novamente um construtor de caminhos, ironicamente se
vendo obrigado a ajudar bastante o Departamento de Estradas (132) até chegar a Belo
Horizonte.
6 As agruras enfrentadas por ele para fazer o carregamento chegar ao seu destino sob
condições tão adversas são o grande mote de sua narrativa. Esse feito heroico, por outro
lado, só adquire plenamente sentido à luz de outros serviços e viagens, relembrados por
Jorge e por ele intercalados ao cerne de seu relato. Não deixa de ser sugestivo, assim,
que alguns desses caminhos que estão agora afundando tenham surgido com a
contribuição do próprio Jorge que, num passado não muito distante, manejando

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veículos com caçamba em vez de carroceria (77), trabalhou nestes serviços de terra e de
companhias grandes que mexem com estradas e construções (70): naquela mesma Rio-Bahia
agora interditada; e também na rodovia Brasília-Acre, num trecho da Belo Horizonte-
Vitória, ou em Brasília, empregado por firmas contratadas pela Novacap – a Companhia
Urbanizadora da Nova Capital.
7 Tratando dos trabalhadores atuando na construção de Brasília, Lins Ribeiro (2006, p. 52,
tradução minha) apresenta o depoimento de um carpinteiro acerca de “sua experiência
de viagem por precários caminhos […] até o território da construção, no princípio de
1957: […] ‘Demoramos cinco dias de Goiânia até aqui para vir com o caminhão. Não
havia estradas, não havia nada. Era uma questão meio complicada vir para cá.” Sendo o
isolamento decorrente de sua localização em lugares distantes um traço recorrente dos
projetos de grande escala, uma das condições concretas para a sua realização é
justamente a construção de estradas que viabilizem ou barateiem a chegada daqueles
fluxos humanos e materiais necessários para o prosseguimento da obra. Os
trabalhadores “pioneiros” – os que “acampavam em barracas de lona e comiam a céu
aberto com a tarefa de construir os primeiros barracões” (Lins Ribeiro, 2006, p. 82,
tradução minha) – vivenciam de forma particularmente aguda, nesses momentos
iniciais, as agruras decorrentes do isolamento e da distância: medo de levar flechada de
índio ou a necessidade de levar até comida se não quisesse caçar pelo caminho (55) – tudo
quanto era peça ou coisa que você precisasse comprar, tinha que encomendar aos pilotos dos três
aviões da Companhia (71).
8 Aquilo que em Brasília aparece como uma condição necessária para a realização da obra
principal, em outros casos constitui o próprio projeto a ser executado. Levando adiante
o programa da Marcha para o Oeste iniciada no primeiro governo Vargas, a construção
dessa cidade pretendia estimular a interiorização do desenvolvimento não apenas do
Centro-Oeste como também da Amazônia. Nesse sentido, a ela se vincula – antecedendo
e induzindo empreendimentos posteriores – a criação ou prolongamento de grandes
rodovias como a Belém-Brasília, a Brasília-Acre, a Transamazônica e a Cuiabá-
Santarém.
9 Jorge nos lembra que, nesses confins ou na Novacap, o serviço de construção era sem parar
(56). Jornadas intensas e longas, precárias condições de trabalho, dias e dias
trabalhando na chuva, sem camisa e com calos de sangue aparecendo na mão (130): em tal
contexto, não surpreende que a rotatividade da mão de obra seja alta. Ele chega mesmo
a subornar soldados para que os pau-de-arara trazidos do Nordeste permaneçam
trabalhando. A gente os levava nos caminhões e eles trabalhavam, e não deixávamos que
saíssem da pedreira para não ficarem espertos e começarem a fugir. Mas sempre fugiam (143).
10 Em situações como essa, fica evidente no relato de Jorge aquela “mais fundamental
distinção” (Lins Ribeiro, 2006, p. 95, tradução minha) orientando o trabalho e as
relações num canteiro de obra: a que se estabelece entre “profissionais” e “peões”.
Nessas obras, a oposição remete acima de tudo ao grau de qualificação e especialização
profissional, e às suas implicações sobre a hierarquia dos cargos. Mas para
compreender o que está em jogo nas experiências desses pau-de-arara, convém
acompanhar a circulação de peões como eles para além dos limites desses canteiros.
11 Mello e Souza (2004, p. 85, grifo do autor) nos lembra, em primeiro lugar, que as
referências aos peões são bastante antigas:
Já em pleno desenvolvimento do Império Colonial português, o alvará de 1570,
expedido sob o reinado de D. Sebastião, estabelecia a diferença entre a pena

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administrada aos peões, que se caracterizava pelo fato de poderem ser açoitados, e a
destinada às pessoas de mor qualidade, castigadas muito freqüentemente com o
degredo. Isso não quer dizer que os peões não fossem afetados pelo degredo, mas a
recíproca não era verdadeira: uma pessoa de mor qualidade nunca seria açoitada.
12 Na literatura, o termo peão costuma aparecer vinculado apenas ao universo considerado
pelo pesquisador, sem que os diversos contextos em que ele se faz presente sejam
relacionados entre si. Por outro lado, um “peão do ABC” paulista apresenta-nos uma
bela (in)definição do termo:
Peão dá muito sentido. Porque… tem lugar que falam peão quem amansa animal
bravo. Tem lugar que quando fala peão, quer dizer, já todo mundo entende que é
peão de boiadeiro. Pessoa que trabalha prum boiadeiro tocando boiada que hoje
num tá tendo mais. Otros fala peão a pessoa que pega… que sai da família pra vivê
em outro lugar e… levando só a mala. Chega lá arruma um serviço vai trabalhá. Lá o
fulano manda embora, ele vai pra outro lugar e assim pur diante. Quer dizer que
anda circulando e trabaiando pra um e pra outro. Agora, peão, aquele brinquedo… e
aqui em São Paulo chamam de peão todo aquele que tem salário baixo. (Rainho,
1980, p. 11).
13 A coerência e continuidade entre situações aparentemente díspares são delineadas
pelas próprias trajetórias individuais, sendo comum uma mesma pessoa desempenhar
diversas das atividades acima destacadas (Guedes, 2011; Minayo, 1985). A própria
persistência do termo, histórica e situacionalmente, vincula-se a traços que respondem
pela associação entre essas diversas situações: o peão está invariavelmente relacionado
e contraposto às “pessoas de mor qualidade”; e a “mobilidade ocupacional”
característica deles está intrinsecamente vinculada à “mobilidade espacial” do que “sai
da família pra vive em outro lugar […] circulando e trabaiando pra um e pra outro”.
14 Essa persistência do termo e das vivências associadas a ele pode ser ilustrada pela
história deste senhor a quem Jorge oferece carona, nas proximidades de Ipatinga.
Antigo empregado do melhor fazendeiro por ali, homem que cuidava muito “das criação
dele”, o senhor largou esse emprego para trabalhar fazendo carvão, para a Acesita colocar
nos fornos (161). Jorge compreende então a razão dessas plantações de eucalipto que
vem encontrando por todo canto em Minas Gerais. A proliferação de firmas como essa,
enquanto “patrões” alternativos àqueles fazendeiros, e a consequente ampliação do
“espaço para organizações estranhas ao sistema tradicional de dominação”, não
implicaram necessariamente a dissolução de “padrões” (Palmeira, 1989, p. 100) de
relacionamento já há muito tempo existentes. Estes últimos se atualizam, nas Minas
Gerais dos anos 1960 para cá, em novos contextos: mais nas firmas, companhias e
plantações no “cerrado”, menos nas velhas fazendas voltadas à criação (Dainese, 2012).
15 Conversando com o senhor, Jorge percebe que aquele era um serviço que ele mesmo não
gostaria de fazer. O primeiro comentara que só os de pulmões fortes é que aguentavam, sem
ficar doentes. Os outros, os de “peito fraco”, não podiam fazer aquele serviço porque ficavam
tossindo e tinham febre; disse também que na época da chuva era um serviço bom, porque não
deixava sentir frio, mas que no calor fazia suar sem parar; e mencionou ainda que de tanto
pisarem no barro quente, a pele do pé ficava grossa e que depois não sentiam mais queimar
(162). Trabalho e serviços brutos, evocados pela referência às intempéries climáticas –
chuva, frio, calor: o significado da recorrência de tais imagens, nos relatos dos peões
acerca de suas próprias vidas, é um dos meus focos aqui. E não são também comuns e
significativas as referências a pés duros como o desse senhor, literal e figuradamente
calejados (Guedes, 2011, p. 218-220)? Esterci (1985, p. 237) nos lembra da etimologia do
termo peão, que “foi construído sobre a raiz latina pes-pedis (pé) e remete ‘àquele que

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anda a pé’” – movimentando-se, portanto, em condições precárias: sem ser a cavalo, no


Portugal dos seiscentos ou no Brasil colonial; descalço ou calçando aquela botina de couro
cru, com o solado de pneu, único sapato que aguenta o batente dos canteiros de obra (78);
realizando serviços grosseiros e perigosos, desde sempre: na fazenda, na firma, na
estrada e na lama…
16 Mas por que tanta atenção concedida aqui ao termo peão? Jorge, afinal de contas, deixa
claro que é uma espécie de encarregado ou gerente – que não tem escrúpulos em
relatar as frequentemente violentas artimanhas de que lançou mão para controlar seus
subordinados, estes sim trabalhadores desqualificados e braçais, gente sem profissão.
Situado “entre” o patrão e o peão, dependendo das circunstâncias Jorge oscila ora numa
direção, ora noutra. Justamente em função dessa posição ambígua, ele demora a se dar
conta de alguns dos sentidos do seu laço com seu patrão, e do que ele compartilha com
os peões. Veremos adiante algumas das implicações decorrentes da dura e tardia
constatação dessa realidade, um dos temas centrais do livro.
17 A importância assumida por estes que constroem os caminhos, bem como pelo próprio
ato de construí-los, fica evidente quando nos lembramos da provável origem do termo
trecho, categoria em torno da qual se organizou, nas últimas décadas e por áreas
diversas do centro-norte do país, todo um conjunto de valores, práticas e sentidos
referentes às diversas modalidades “populares” da experiência da mobilidade (Guedes,
2011). Na literatura, esse termo começa a aparecer nos anos 1980 numa série de
trabalhos acadêmicos voltados para o estudo de trabalhadores “migrantes”, na
discussão do que seus autores vão chamar frequentemente de “grandes projetos”:
empreendimentos agropecuários, mineradoras, siderúrgicas, usinas hidrelétricas, obras
de infraestrutura (ver, dentre outros, Antonaz, 1995; Esterci, 1985; Figueira, 2004;
Magalhães, 1983; Martins, 1998; Rumstain, 2009). Eu mesmo mostrei (Guedes, 2011)
como tal categoria era central para a descrição das vivências de jovens que, nos dias de
hoje, rodam o trecho atuando na construção de usinas hidrelétricas, implantando torres
de transmissão de energia ou trabalhando para grandes mineradoras. Na sua
autobiografia – sintomaticamente intitulada Urrando no trecho. Recordações de um
engenheiro de obras – Corrêa (2007, p. 11) apresenta a única explicação que conheço para
o surgimento do termo trecho, que viria
das grandes e lineares obras de estrada onde é prática comum dividir-se o volume
global de serviço em lotes, entregando-os a várias empreiteiras […] [que ficam
responsáveis por diferentes] frentes, ou trechos, da obra. É comum, num casual
encontro entre operários que constroem uma mesma rodovia, a pergunta: “Em que
trecho você está?”, seguindo-se a resposta que identifica a empreiteira responsável
pelo mesmo e os quilômetros que limitam sua faixa de atuação. O termo Trecho
extrapolou suas iniciais fronteiras e como se todo o Brasil fosse um imenso canteiro
de serviços, passou a designar todas as grandes obras e os homens que as executam,
os peões do Trecho, nômades por excelência e necessidade.
18 Como se todo o Brasil fosse um imenso canteiro de serviços… Ainda mais do que
supunha Corrêa (2007), essa categoria parece ter se expandido também em outras
direções. Como sugerido acima, o termo trecho passou a ser utilizado não apenas pelos
que trabalham em grandes obras, mas também para designar aquelas experiências
evocadas – no passado, pelas gerações anteriores ou em outras circunstâncias – pela
categoria mundo.
19 Frequentes em inúmeras etnografias, as referências a esse mundo raramente merecem
atenção mais detida por parte dos analistas – o que não é o caso de Woortmann (2009) e

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Scott (2009). Ambos mostram que tal categoria se refere a vivências, por vezes
desejadas, de situações contrapostas à familiaridade do lar ou da terra de origem: o
mundo é, assim, um “espaço simbólico de uma liberdade que se apresenta a todos como
uma maneira de aproveitar recursos em locais mais distantes” (Scott, 2009, p. 266)
como também um universo marcado pela “incerteza, o desconhecido, o perigo”
(Woortmann, 2009, p. 218). A “migração” camponesa no Nordeste não decorre então
apenas de necessidades de ordem socioeconômica, possuindo também sua dimensão
ritual e de formação da pessoa:
Para tornar-se homem é preciso enfrentar o mundo […] Os filhos de todas as
categorias sociais devem “conhecer o mundo”. Vários sitiantes referiam-se com
evidente orgulho às suas viagens; aos lugares “adiantados” que conheceram,
cidades ou regiões agrícolas; à intimidade adquirida com implementos agrícolas
modernos; a tipos de alimentação distintos daqueles habituais na região. Ter
viajado torna as pessoas superiores a quem nunca saiu do lugar. A migração marca,
sobretudo, a superioridade dos que agora são homens com relação aos que ainda são
rapazes. (Woortmann, 2009, p. 219, grifo do autor).
20 Não por acaso, a maioria das locuções verbais nas quais o termo trecho se faz presente
são variações de expressões populares bem mais antigas, aí o mundo aparecendo no
lugar daquela categoria. O trecho passou a ser, assim, a feição assumida por ele nos
canteiros de obras, usinas e alojamentos espalhados por todo o país. Mas não é somente
isso, na medida em que, extrapolando esses espaços e situações, retorna ao “mundo”
mais amplo para, aí, vitalizar e ressignificar toda uma tradição de mobilidade popular
(sobretudo “sertaneja”) bastante antiga – o que Vieira (2001) chama de “cultura da
andança”. As referências ao trecho assinalam assim as novas condições e contextos com
que se defrontariam os que se pusessem a andar pelo país; o surgimento e difusão do
termo assinalando ao mesmo tempo uma ruptura – referente a transformações sociais e
econômicas aceleradas a partir dos anos 1960 – e uma continuidade – justamente com a
experiência das gerações anteriores que, elas também e de maneira privilegiada no
centro-norte do país, correram e conheceram o mundo (Guedes 2011).

Na lama
21 Preocupado em encontrar uma estrada para passar as carretas, Jorge se aborrece ainda
mais ao perceber que estragou sua calça. E digo para você que quem mexe com esse negócio
de carro, principalmente caminhões, nem sempre sabe se vai acontecer alguma coisa que o force
a se sujar. Mas digo que, quando a roupa não é para sujar, não sujo, e sou capaz de trocar um
pneu interno traseiro de uma carreta e não me sujar nem um pingo em lugar nenhum (35). Só
que, viajando naquela estrada, nem a alma você conseguia manter limpa… (170). Frustrado e
cansado, com as mãos […] sujas e os pés cheios de barro, com os sapatos pesando mais de dez
quilos (170), por alguns instantes Jorge se permite divagar, sonhando com o conforto e
as facilidades de outro tipo de vida, espécie de contraponto a tudo que vinha
enfrentado naqueles dias na estrada e na lama.
22 E eu pensando comigo que eu nunca tinha tido uma casa minha mesmo para morar. E que se
fosse contar, ia ver que depois que comecei a trabalhar para o senhor Mário, tinha morado mais
tempo em barraca e cabina de caminhão, do que em casa, ou barracão, ou garagem, ou
escritório. E que nunca também tive lugar certo para morar muito tempo. Sempre foi aquilo de
mudar de um lugar para outro. De ir trabalhar num lugar e depois ir para outro, e depois outro.
Fiquei pensando que se eu trabalhasse muito tempo num lugar só, e tivesse uma casa, e chegasse

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e estivesse chovendo, eu iria tirar o sapato antes de entrar e, lá dentro, poderia estar a Sandra. E
na hora que eu entrasse, ela poderia estar costurando, ou lendo uma revista, ou fazendo qualquer
coisa, e isso seria bom. Seria bom a casa ser minha e ela estar lá dentro (53).
23 Referindo-se ao que Marx chama de “proletariado nômade”, Leite Lopes (1979, p. 92)
ressalta seu “caráter celibatário”, consequência direta da natureza de suas atividades e
da impossibilidade de suas famílias os acompanharem em seus deslocamentos.
Seguindo as trilhas abertas por este autor, Lins Ribeiro (2006, p. 93-44, tradução minha)
mostra que essa ausência das famílias estava na origem de boa parte dos conflitos
surgidos entre candangos e firmas na construção de Brasília:
Os operários, sobretudo os que eram casados e se encontravam sem suas famílias, se
contrariavam por não poder contar, por exemplo, com alguém para lavar sua roupa,
o que os obrigava a gastar parte do pouco tempo livre ou do salário com essa
atividade. Se considerarmos que era comum não haver uniformes de trabalho,
ficando esse tipo de gasto sob a responsabilidade do próprio operário, e também
que o material com o qual se trabalhava (cimento, areia, tábuas com farpas e pregos
expostos, etc.), assim como o modo como as condições naturais do trabalho (sol,
chuva) destruíam ou expunham as vestimentas a um desgaste rápido, podemos
avaliar melhor o que significava para um operário não contar com os serviços de
conservação e manutenção de sua roupa.
24 Nos depoimentos desses mesmos trabalhadores, essas “condições naturais do trabalho”
se fazem frequentes: “a gente sofria de todo mundo ficar doente […] aqui foi aquela
chuva, chovia a noite inteira, caindo água, e a gente com aquela capa de lona
martelando a laje, para fazer aquele túnel da estação…” (Lins Ribeiro, 2006, p. 145,
tradução minha). De forma análoga, os engenheiros e políticos envolvidos com a
construção da nova capital insistiam no fato de que todos ali, eles inclusos, estavam
“submetidos a precariedades e incômodos”; para que aquela grandiosa obra fosse
levada a cabo, “era preciso então que não fossem levados em consideração o pó, o
barro, o frio, o calor, a intempérie, a fadiga ou o mal-estar” (Lins Ribeiro, 2006, p. 163,
173, tradução minha).
25 Chuva e lama, sol e poeira: aqueles que trabalham nessas grandes obras parecem assim
particularmente expostos ao que há de agressivo na exposição ao clima, e fazem
questão de expressar isso para descrever suas condições de trabalho. Mas essa
exposição não seria, por outro lado, particularmente propícia para a reflexão e
expressão de experiências mais gerais? Como Jorge afirmou acima, se ele trabalhasse
muito tempo num lugar só, e tivesse uma casa, e chegasse e estivesse chovendo, ele iria tirar o
sapato antes de entrar para encontrar-se, lá dentro, com a Sandra. Tirar o sapato antes de
entrar, estabelecer uma fronteira a partir da qual a lama e a sujeira não são mais bem-
vindas: ritual que assegura que o “dentro da casa”, por mais simples que ela seja,
oferece um contraponto a um “lá fora” diante do qual se deseja – no final de um dia de
trabalho, no fim de uma jornada, no final da vida – algum resguardo e sossego (Guedes,
2011, p. 414-420).
26 Para quem está acostumado com essa vida de trabalhar num lugar e depois ir para outro, e
depois outro, o contraponto oferecido por uma casa própria – de preferência onde há
uma mulher esperando – parece ser significativo. Precisando sair de Governador
Valadares, Jorge recorre à ajuda de Altair, antigo subordinado seu que se estabelecera
aí. Ele logo descobre que Altair virou dono de uma oficina, muito arrumada e limpa e bem
montada; e que ele havia não apenas se casado como também havia escorado os irmãos
(67) dela, arrumando emprego para eles. Bem tratado e paparicado naquela casa alegre,

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Jorge se dá conta do quão feliz está Altair, o que o faz ficar pensando […] porque o Altair
tinha sido meu empregado na estrada […] e ele não tinha nada naquela época e depois aquela
casa e tudo ali era dele. E ele fazia as coisas que queria, e a mulher olhava para ele, eles eram
casados e era uma coisa que eu fiquei pensando ali naquele silêncio, dentro da sala que era dele.
(91).
27 Mas até mesmo os que se encontram mergulhados na agitação da estrada e da lama
recorrem a práticas e artimanhas que, na ausência da tranquilidade conspicuamente
expressa pela casa, matizam as agruras dos movimentos e mantêm em funcionamento
sua oposição àquilo que, nesta casa, é vivido de maneira particularmente intensa. Não
viria daí também o cuidado manifesto por Jorge e Cia. pelos seus caminhões? Habituado
a morar mais tempo em barraca e cabina de caminhão do que em lugares relativamente
mais estáveis e “domésticos” (casa, ou barracão, ou garagem, ou escritório), Jorge está
sempre preocupado em melhorar a aparência (100) dos veículos que maneja, e fica
satisfeito ao descobrir que um de seus motoristas tem uma cabine que parecia quarto de
moça, tão limpa e arrumada que tive até a impressão de que ele jogava perfume lá dentro (109).
28 Tema persistente no livro: naquela chuva e com todo aquele barro, Jorge está sempre a
apontar o que consegue resistir à “contaminação” ocasionada por estas coisas: aquele
velho muito limpo e bem uniformizado na estação de trem de Valadares (110); as duas
camisas de presente para cada motorista (73) que o patrão levou até a Brasília-Acre; o bar
acolhedor em Dionísio onde não estava frio como lá fora (178) e onde, sugestivamente, ele
conhece aquela garçonete quentinha, os dentes com aquele perfume (181); vestido com a
roupa mais limpa que tinha (180), na cabine dele a moça lhe fez esquecer a agitação, a
preocupação, o movimento e o clima lá fora: eu nunca tinha ficado quieto daquele jeito, e ela
tinha falado para eu ficar quieto, e eu fiquei, e senti aquele calor subindo (182).
29 À beira da estrada, Jorge foi tratado como se fosse […] um menino que precisasse de cuidados
(86) nesse prostíbulo – espaço que, para alguns, explicita a vida anômica e “sem eira
nem beira” dos peões do trecho (Martins, 1998, p. 705), essa gente desligada “das suas
antigas relações familiares sem construir novas” (Figueira, 2004, p. 18). Se para estes
autores os prostíbulos são como a antítese do lar e da família, para aquele que morava,
comia e dormia ao lado (122) de outros homens meses a fio, as coisas parecem diferentes.
Entre a casa da Dona Olga e a “verdadeira” casa, há sim diferenças importantes; mas elas
parecem subordinadas a uma oposição mais relevante: novamente, é o aconchego do
“lar”, real ou metafórico, o contraponto ao movimento das estradas. Dona Olga olhando
para ele como se ele fosse um namorado que tivesse viajado há muito tempo e voltado naquele
dia… (89).
30 Olhe como a gente está. Barro puro (146). O manter-se limpo, ou a busca de pequenas doses
de conforto e calma, parecem assim remeter antes a uma necessidade de equilibrar
“cosmologicamente” forças ou vetores presentes no mundo do que a práticas estrita ou
funcionalmente higiênicas. De um lado, teríamos a estrada, lama, o movimento, a
agitação, com sua perpétua ameaça de a tudo englobar; de outro, como produtos de
esforço e trabalho, estariam o conforto, o sossego, a limpeza, a tranquilidade.
31 A contraposição dessa turbulência do mundo ao sossego e à tranquilidade propiciadas por
uma “casa minha mesmo para morar” (ou por outras coisas próprias, como um negócio)
é banal apenas na aparência. Pois ela remete a uma espécie de pilar cosmológico do
catolicismo rústico ou popular (Guedes, 2011; Pompa, 1995; Vieira, 2001), e pode ser
explicitada de maneira nítida pelos movimentos messiânicos que, nos anos 1950 e 1960,
buscavam fugir do “desenvolvimento” naquele Centro-Oeste então transformado por

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rodovias como a Belém-Brasília. Tais movimentos eram orientados por um “projeto de


autonomia […] entendido, por vezes, como a proposta de uma vida de sossego diante das
pressões externas, que permita viver com mais tranqüilidade” (Vieira, 2001, p. 119, grifo
da autora). Essas “pressões externas” – firmas, estradas, grilagem – antes de implicarem
a extinção de uma bucólica e pacata existência “pré-moderna”, anteriormente imune
ao turbilhão do desenvolvimento, aparecem para tais romeiros como uma comprovação
de que, nesta vida e conforme o dizer de um deles, “a jornada do pobre é mudança. O
pobre não tem sossego. Sempre a gente é tocado pela situação, procura lugar mais
novo. […] E essa jornada da gente só termina quando a gente morre. Você fica no meio
da viagem, os filho segue a jornada.” (Vieira, 2009, p. 109). Levando ao extremo o
reconhecimento do que há desde sempre de movimentado no mundo, a andança dos
posseiros não terá fim; e o sossego será postergado para um “final”: o fim da vida (a
morte, não a velhice), o fim do mundo milenarista ou o fim da jornada – no ponto final
onde estão as Bandeiras Verdes anunciadas pelo Padre Cícero.
32 Tratando dessa mesma área, Velho (2007, p. 122-123) destaca que “o chamado
milenarismo parece ser apenas a ponta do iceberg de uma concepção do mundo bem
mais disseminada”; o que nos leva à sugestão de que esta vida associada “à
impermanência” e “concebida como viagem” (Vieira, 2001, p. 117) não é privilégio dos
que trespassam os longínquos sertões. Tal vivência do mundo como movimento pode ser
levada ao seu limite pelos peões do trecho ou pelos que buscam as Bandeiras Verdes, 3
mas ela não é de todo estranha aos moradores das periferias das grandes cidades que
lutam por um lugar para residir – também aí estamos nos limites ou fronteiras do
desenvolvimento, materializados por essa ou aquela cidade de barracas, acompanhando a
ponta da estrada (71), onde tantos descrevem suas vidas como sendo desde sempre
movimentadas (Dainese, 2012; Guedes, 2011).
33 Vidas movimentadas, como essas comuns no Recanto das Emas – cidade-satélite de
Brasília estudada por Borges (2003, p. 50):4 aí, “tudo parece conspirar para que o
movimento não cesse e todos almejem, com frequência, ‘se mudar’”. Um dos
interlocutores desta mesma autora afirma que, nesse local, nada consegue aquele que
“fica parado”: “A realidade de vida aqui é o dia-a-dia. Aqui é uma vida sem sonho, é
realidade. Quem mora no Plano Piloto leva uma vida na sombra, acorda a hora que
quer. Tá entendendo? Só na hora que quer. Não precisa nem se esforçar muito que o
dinheiro está vindo na porta. Aqui é preciso correr atrás.” (Borges, 2003, p. 40, grifo do
autor). Correr atrás, não ficar parado, movimentar-se; e aprender a conviver com a lama,
é claro. Tratando dos esforços dessas pessoas para melhorarem suas condições
habitacionais, Borges (2003, p. 43) destaca a oposição entre as “casas ‘na cerâmica’” e o
“mundo do chão batido”; apresenta-nos essa senhora que “engoliu poeira à sua
maneira”, e que “se lembra do primeiro lugar onde morou na capital federal: ‘era barro
mesmo, aquela W3, aquela terra. Não tinha essa pista principal asfaltadinha não. Era
terra…’” Borges, 2003, p. 70); e ela também elenca, dentre “os tormentos de quem
ganha um lote”, “a poeira nos dias secos; a lama na estação chuvosa”, contrapondo tudo
isso ao que se passa nas “cidades vizinhas, já formadas” (Borges, 2003, p. 72). “Essa
nuvem vermelha perseguindo os moradores talvez seja a imagem que melhor sintetize
as agruras por que passa quem vive em uma cidade sem pavimentação […] ‘Olha o
poeirão! Tá vindo pra cá!’” (Borges, 2003, p. 103).
34 Já numa “comunidade” no subúrbio do Rio de Janeiro, Aguião (2009, p. 47-50) nos
mostra que a

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distinção mais significante no cotidiano local é a que separa seus territórios em


“com lama” e “sem lama” […] Com lama ou sem lama, a poeira é onipresente já que
as obras são onipresentes. Há sempre algum monte de tijolo, areia, terra, pedras ou
entulho. É impressionante a velocidade com que a paisagem muda.
35 Se a lama oferece a “distinção mais significante no cotidiano local”, é justamente na
medida em que assinala a distinção entre o que está “pronto” e o que não está; mas é
também por ela destacar a maneira através da qual se dá a passagem de um polo a
outro, assim como o próprio caráter dinâmico e reversível dessa oposição. Nada está de
fato “pronto”, tudo sempre parece estar em construção. (Não seria essa a grande ironia
da situação enfrentada por Jorge? Ele, um construtor de estradas sempre em movimento,
se encontra imobilizado e em apuros porque as coisas todas estavam estragando e caindo e
afundando. E mesmo as coisas que já haviam sido consertadas, já estavam outra vez estragando
[20]. Perante a força e a perenidade da lama, até o asfalto parece render-se e explicitar-
se enquanto solução meramente provisória.)
36 É assim que Borges (2003, p. 113) chama a atenção para uma ambivalência que é
fundamental para meu argumento. Tratando daqueles moradores e do “inelutável
caráter incompleto de suas obras”, dentro ou fora de suas casas, ela salienta, em
primeiro lugar, a compreensão deles a respeito de como funciona o poder público local:
disseminando a “legítima crença na imprescindibilidade do asfalto para que a vida siga
adiante” e apresentando então o asfalto como “realização” de um político particular
(Borges, 2003, p. 89); ao mesmo tempo, tais promessas não são nunca cumpridas “por
completo”, sua “perenidade” sinalizando que o “comprometimento constante do
governador com a realização de obras” e a “não-observância de algo prometido” é
inerente ao tipo de relação que une e afasta eleitores e políticos (Borges, 2003, p. 110).
Por outro lado, ela argumenta que, “no Recanto das Emas, não conheci ninguém que
vivesse em uma casa que estivesse aos seus olhos pronta, acabada, concluída” (Borges,
2003, p. 111). Dadas essas constatações, ela se pergunta: a ênfase desses moradores na
incompletude de todas essas obras se justifica “porque os espaços sociais por onde
circulam têm essa forma ou, pelo contrário, os espaços teriam essa forma porque é
assim que as pessoas concebem o mundo” (Borges, 2003, p. 113)? Poderíamos grafar em
itálico esse último termo, e evocar novamente aquele mundo enquanto categoria nativa,
explicitando uma visão do “mundo” marcado pela instabilidade, pelos movimentos, pela
precariedade.
37 A construção da casa parece oferecer um modelo privilegiado para as práticas genéricas
de criação (Guedes, 2011, p. 230-234) – se com “criação” entendemos estes esforços para
a obtenção de coisas próprias, elas se definindo justamente pela sua estabilidade relativa
perante o que há de movimentado e precário no mundo. Mas o trecho não é o lócus por
excelência dessa turbulência mundana? A estrada, a lama e a construção, além de
remeterem às adversidades “objetivamente” vividas por essas pessoas, parecem ser
boas para pensar: evocando-as, essas pessoas podem falar e refletir sobre coisas
importantes tais como a vida, a realidade, o mundo. Talvez por isso, e por remeter à
tarefa dos que, na lama, constroem estradas, a categoria trecho tenha ela mesma se
movimentado em tantas direções, dando conta das experiências de mobilidade,
instabilidade, precariedade e aventura que são enfrentadas não apenas por certos
trabalhadores mas pelos “pobres” de uma maneira geral. A esse respeito, lembremos
que os peões – como “aquele brinquedo” (Rainho, 1980, p. 11) – estão sempre a rodar,
transbordando também os limites estritos do “trabalho”: peão pode designar, no norte

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de Goiás, um sujeito qualquer, desde que pobre. Lá e em outros cantos, todo pobre tem
um quê de peão…

Na firma e na casa do patrão


38 Tendo trazido de maneira heroica as carretas até Belo Horizonte, Jorge está feliz e
orgulhoso. Ao entrar no escritório da firma, porém, ele descobre que fora demitido – o
carregamento de milho, de fato, deveria ter sido entregue alguns dias antes. Ele sai
então em busca de seu patrão, mas encontra apenas sua refinada mulher na residência
do casal. E eu quieto e vendo a Dona Helena ali, na minha frente, dentro daquela sala onde as
cortinas não deixavam o sol entrar. […] E eu gostando de estar naquela poltrona macia e
pensando naqueles dias todos naquela estrada, naquele barro e com aquela chuva. E sem ter tido
um minuto para ficar sentado, quieto e sem pensar em nada. E pensando nisso eu ficava
querendo ficar mais quieto ainda. E gostava e achava bom ficar ali na sombra… (19-20). Após
alguns minutos de espera, ele a toma em seus braços e lhe dá um beijo – para então
partir, encerrando assim a história.
39 Se mais uma vez estamos ante a tensão entre a “vida na sombra” e as experiências de
quem tem que incessantemente “correr atrás” sem poder “ficar parado” (cf. Borges,
2003, p. 40), agora o que está em jogo é a contraposição das vidas de Jorge e de seu
patrão. É com esse encontro com Dona Helena que Jorge inicia e encerra seu relato.
Todas as peripécias vividas por ele parecem se orientar, na economia mais geral de sua
narrativa, para atribuir sentido aos acontecimentos ocorridos nesse dia, sinalizando
igualmente como tudo isso introduziu uma ruptura que o transformou, fazendo-o
perceber que estava diferente, com aquilo de ficar pensando tanto. Antes eu não pensava (91).
40 Começar a pensar, coisa perigosa. Antes mesmo de fazê-lo por si próprio, Jorge
pressentira as implicações dessa prática. Em Brasília, ele fora apanhar dois homens que
tinham fugido da pedreira, dois daqueles pau-de-arara (117) sob sua responsabilidade. O
contrato que a gente fazia com eles, era de três meses, mas sempre, antes de completar esse
tempo, eles iam ficando sabidos e começavam a fugir. E quando um fugia, e a gente não o
apanhava logo de volta, os outros começavam a pensar e isso era muito ruim (117). Pensar, para
Jorge ou para estes nordestinos, é pensar a respeito do sentido do trabalho e de suas
relações com seus patrões.
41 O Jorge que nos é apresentado ao longo do livro é um funcionário ideal, ao menos do
ponto de vista de um empregador: ele trabalha duro e faz questão de um serviço bem
feito, e ajuda o patrão a se safar de toda sorte de dificuldades; sua lealdade e submissão
dão a tônica do relacionamento entre os dois. Em mais de um momento, ele relembra
com carinho as experiências vividas na estrada junto com seu patrão, num passado não
muito distante. Naquele tempo, o senhor Mário era homem para pegar um caminhão em Belo
Horizonte e levá-lo, ele mesmo dirigindo, até aquele mato da Brasília-Acre. […] E era com
satisfação que a gente trabalhava para um homem daqueles (72).
42 A importância assumida pela presença desse patrão nos canteiros de obra fica evidente
ao lembrarmo-nos daquela “ideologia da grande obra” identificada por Lins Ribeiro
(2006) na construção de Brasília. Através da ideia de “democracia da fronteira”, o
Estado e as companhias difundiam a crença de que, ali e de maneira equivalente, “eram
todos pioneiros, candangos, que participavam contribuindo cada um com seus
trabalhos específicos para a realização da grande obra” (Lins Ribeiro, 2006, p. 162,
tradução minha); e, como já vimos, todos – “nos sujos e apertados alojamentos coletivos

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dos peões” ou na “luxuosa e espaçosa casa do proprietário da companhia” – estariam


também igualmente sujeitos “aos incômodos causados pelo pó e pela lama” (Lins
Ribeiro, 2006, p. 119, 163, tradução minha).
43 Tal “democracia” ofereceria a todos, também, possibilidades de melhorar de vida ou
enriquecer. O patrão de Jorge, sempre evocando tal ou qual negócio que era coisa pra
ficar rico em pouco tempo, argumentava que o próprio Jorge ia acabar um homem cheio de
dinheiro (58), e ele acreditava: me parecia que eu tinha que trabalhar até tarde da noite e me
levantar cedo, e que se não fosse assim, estaria perdendo tempo e deixando outros passarem à
minha frente (58). Seu patrão, como tantos outros empresários do período, soube sim
encontrar maneiras de expandir e variar seus negócios, investindo neste posto de
gasolina ou naquela fábrica de camisas. Em virtude disso mesmo, Jorge vai se dando
conta de que ele vai deixando de se preocupar (112) com a transportadora, passando a não
levar as coisas mais a sério como devia (105) – ou como o próprio Jorge o fazia.
44 É somente ao ser demitido que Jorge finalmente se vê obrigado a reconhecer a lógica
que agora orienta as ações de seu patrão. Orgulhoso de ter sido capaz de trazer as
carretas, Jorge quer narrar-lhe suas proezas, e mostrar que a despeito de tudo
conseguira realizar um serviço bem feito; mas se dá conta de que tudo o que lhe
importa são os prazos. No escritório da firma, onde recebe a notícia de sua demissão,
Jorge desconta sua frustração no contador: com sua flacidez e seu paletó – ele só
trabalhava de paletó (187) – esse último parece corporificar os parâmetros escriturais e
financeiros que não só norteiam de fato o funcionamento da firma como também
tornam irrisórios os esforços e habilidades de Jorge. E fui e joguei no rosto dele o que fui
encontrando nos bolsos. E eram papéis e dinheiro (187). O que é vivido na estrada e na lama,
novamente, se contrapõe ao que impera num espaço resguardado e seguro: o escritório.
Nesse momento de crise, tal contraposição se manifesta através de lógicas e práticas
que são complementares e antagônicas, as primeiras sendo hierarquizadas e
colonizadas pelas segundas.
45 Como os engenheiros e políticos citados por Lins Ribeiro (2006) e o próprio Corrêa
(2007) citado acima, o patrão de Jorge também conheceu, em canteiros e acampamentos
por esse país, as vicissitudes da estrada e da lama. Se nesse sentido elas são também
“democráticas”, todos podendo vir a experimentá-las, na prática a distinção entre sua
vivência contingente ou sua experiência cotidiana faz toda a diferença, e respondem
pelas distâncias objetivas que Jorge enfim percebe existir entre ele e seu patrão.
46 Ainda no que se refere à expressividade das intempéries climáticas, Sigaud (2000, p. 40,
grifo da autora) assinala que, nos acampamentos de sem-terra em Pernambuco, para
aqueles que buscam justificar sua pretensão a um lote (algo próprio como uma casa ou
um negócio) a “forma adequada de ‘dizê-lo’ tem sido o ‘socar-se debaixo da lona preta’
e compartilhar com os demais os sofrimentos causados pela chuva, pelo calor da lona, os
despejos, a alimentação precária e a incerteza em relação ao futuro”, conforme uma
“ética do sofrimento […] [que] dá sentido à sua ação”. Se não há dúvidas de que a estrada
e a lama expressam sim algo da ordem desta “ética do sofrimento”, o sentido delas não
se esgota aí, vinculando-se também a outras – e menos penosas – dimensões.
47 Como Woortmann (2009, p. 118) sugeriu, aquele mundo marcado pela incerteza e pelo
perigo é também um “lugar de riqueza”. Se aquela ideia de “democracia da fronteira”
obscurece o fato de que as possibilidades de enriquecer são desigualmente distribuídas,
não há razão, por outro lado, para supor que a eficácia “ideológica” de tal tipo discurso
tenha sido capaz de manter “iludidos” trabalhadores como Jorge. A despeito dessa

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desigualdade, há sim a possibilidade, nos grandes projetos, de se obter ganhos acima do


usual – por exemplo, via uma infinidade de horas extras (Lins Ribeiro, 1988, 2006).
Lembremo-nos assim do feliz destino de Altair, o antigo colega de Jorge morando em
Valadares, que, trabalhando para empreiteiras, criou condições para, posteriormente,
construir um negócio próprio: estabilizado e estável, ele estava casado e fazia o que queria
(68), tendo alcançado a privilegiada autonomia de quem pode ir pra frente (90) sem
patrão.
48 Além disso, argumentei que a estrada e a lama são boas para pensar. Mais importante
ainda, e como o exemplo de Jorge e dos paus-de-arara mostra, elas são também boas
para começar a pensar. Foi Rumstain (2009), tratando dos trabalhadores maranhenses
nas plantações de soja do Mato Grosso, quem primeiro destacou quão significativas são
as afirmações de que “o trecho ensina” – ideia coerente com aquele papel do mundo na
formação da pessoa. É no mundo – longe de casa, no trecho – que o mundo – a vida, a
realidade – se revela em toda a sua plenitude. É o trecho, portanto, um espaço
privilegiado para a apreensão e aprendizado do que há de atribulado, cruel, injusto (e
fabuloso) no mundo. A transformação sofrida por Jorge remete justamente a um
aprendizado dessa ordem. Seu patrão não se deu sequer ao trabalho de ouvir-lhe a
respeito do atraso na entrega e, demitido, não há mais como ele ignorar isso que a vida
na estrada lhe vem fazendo pensar.
49 Agora ele percebe claramente não apenas a distância entre seu universo e o de seu
patrão, como também descobre que a realidade de quem tem que “correr atrás” pouco
ou nada interessa a quem vive parado – que também por isso a conhece tão pouco.
Familiarizada com essas assimetrias, a informante de Borges (2003, p. 40) é didática,
explicando para essa antropóloga (que certamente veio do lado de lá) como são as
coisas na realidade: “Aqui é uma vida sem sonho, é realidade. Quem mora no Plano
Piloto leva uma vida na sombra, acorda a hora que quer. Tá entendendo?” Do ponto de
vista de quem vive e aprende no mundo, a ignorância “patronal” de sua realidade (sonho,
sombra) é como que a contrapartida dessas vidas paradas – afinal de contas e dado o que
o mundo é, faz-se necessário movimento para que haja conhecimento e pensamento.
Poderíamos sugerir então, grosseiramente e de acordo com essa perspectiva, a
existência de algo como um “cosmopolitismo popular”, acionado por uma visão do
mundo que se constitui na medida em que este último é percorrido, corrido, enfrentado
e conhecido, preferencialmente na estrada e na lama; como contraponto, estaríamos
perante o “paroquialismo” desses patrões que, ao que parece, estão demasiado voltados
para si próprios e para suas vidinhas desequilibradamente confortáveis e tranquilas,
pouco se importando com o que se passa além delas.
50 Jorge agora não para de pensar, e o resultado disso, na catarse das linhas finais do
romance, não é outro senão o meter novamente o pé na estrada. A mesma atitude que
ele buscava reprimir entre os peões que se subordinavam a ele é o que lhe resta: E fui na
garagem dos concreteiros, e peguei minhas coisas que eram poucas, e coloquei tudo dentro das
minhas duas bolsas, e saí dali (189).

Conclusão
51 Se a crítica pós-moderna explicitou os processos ficcionais através dos quais as
etnografias são construídas, isso não implica que as fronteiras entre elas e as obras
assumidamente literárias tenham sido inteiramente borradas. Jorge, um brasileiro é sem

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dúvida um romance. E é também por isso que sua leitura realizada à luz de uma
pesquisa antropológica pode enriquecer a nossa compreensão de certas formas através
das quais este último tipo de procedimento intelectual é levado a cabo. Pois num caso
como no outro a produção de um material escrito foi viabilizada por certo tipo de
encontro que, do ponto de vista dos que são “representados” nesses textos, é
basicamente o mesmo. Tomando esses termos num sentido ampliado, mais uma vez nos
deparamos com as relações entre peões e patrões, expressas agora via o que no norte de
Goiás se conhece como a oposição entre corridos e lidos. Não tenho, aqui, condições para
explicitar o alcance e importância dessa oposição (Guedes, 2011, p. 245-339). Destaco
apenas que, através dela, esses corridos ou peões atribuem sentido ao trabalho do
etnógrafo, situando-o no interior de um conjunto de práticas com as quais eles estão há
muito familiarizados: aquelas típicas do homem lido e estudado, vindo dos grandes
centros, do “sul” ou do exterior, e que se dedica a registrar as histórias “do povo”,
sempre tendo em mente a realização de uma pesquisa (Velho, 2007, p. 109). Tratamos
aqui não apenas do naturalista do século XIX, do folclorista, do romancista ou do
cientista social; mas também do geólogo, do funcionário do Estado, do sanitarista, do
indigenista, dos engenheiros militares e civis, do militante.
52 Tal pesquisa, de acordo com esse ponto de vista, surge também em decorrência daquele
“paroquialismo patronal” acima evocado, e com frequência se faz acompanhar de
suspeitas: por que diabos, e logo agora, essa gente se pôs em movimento e vem se
interessar por nossas vidas? Essas desconfianças, porém, não são suficientes para
turvar o encanto potencial dessa ocasião, e do que ela pode propiciar: a oportunidade
para que o corrido mais uma vez descreva o que viu e viveu no mundo, dessa vez para um
respeitável homem lido. Certamente uma grande influência para França Jr., o Grande
sertão: veredas de Guimarães Rosa se organiza explicitamente a partir dessa modalidade
de encontro: o jagunço Riobaldo narra suas aventuras nos confins de Minas Gerais para
este ilustre visitante que o ouve com devoção enquanto toma notas em sua caderneta. O
mesmo formato narrativo estrutura Jorge, um brasileiro.
53 Em ambas as obras, a frequentemente incômoda distância “social” separando o “patrão
lido” do “peão corrido” é reconhecida, a existência dessa diferença tornando mesmo
possível – e legítimo, para o segundo – o surgimento do texto escrito. Tratamos aqui
também de um processo educativo, as hierarquias vigentes tensionadas sem que as
diferenças sejam apagadas: escute minhas histórias, você que tanto estudou; eu também
sei das coisas, que aprendi na estrada e no mundo, escolas da vida; ouça-me com
atenção, anote e publique um livro, você pouco conhece desse mundo em que vivo!
54 Retomemos aquela ambivalência evocada por Borges (2003, p. 113), referente à
incompletude das obras na vida dos moradores do Recanto das Emas: ela seria atributo
dos “espaços sociais por onde [eles] circulam […] ou, pelo contrário, os espaços teriam
essa forma porque é assim que as pessoas concebem o mundo”? Estranha coincidência
entre, por um lado, a dinâmica de constrangimentos estruturais relativamente externos
às pessoas em questão (por exemplo, a articulação da política de obras e da política
eleitoral no Distrito Federal); e, por outro, as próprias concepções cosmológicas dessas
pessoas, internalizadas e relativamente independentes daqueles contextos. Ao discutir
o trecho, busquei mostrar como algo análogo se passava aí: pois tal categoria remetia
tanto a essa “central especificity of the engineering industry […] the rotation of the
labor force” (Lins Ribeiro, 1988, p. 211) quanto às inflexões e transformações que
asseguravam a persistência mundana da “cultura da andança” de que fala Vieira (2001).

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Argumentei anteriormente (Guedes, 2011) que tais “coincidências” poderiam ser


pensadas à luz da sugestão de Sahlins (1997, p. 53), considerando então a realidade dos
“que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas […] condições de existência”. Se
desde sempre tais pessoas têm enfrentado adversidades que as fazem andar pelo mundo,
lutando bravamente para conseguir, nesses contextos delineados pela estrada e pela
lama, algum sossego, elas puderam ao menos fazer da necessidade virtude. Longe de
apenas sobreviver, ou de reagir mecânica ou instrumentalmente às adversidades que
lhes foram impostas, elas as reconheceram e articularam a uma visão do mundo onde
essas adversidades adquirem sentido e são “produtivamente” utilizadas: na criação de
pessoas vividas e experimentadas, ou através da experiência do que há de inusitado,
rico e fabuloso neste mundo. Foi em função de tudo isso que argumentei que, no norte
de Goiás que estudei, a mobilidade – ou melhor, o movimento – aparece como uma
espécie de metáfora básica da vida social.
55 Não deixa de ser curioso, a esse respeito, comparar tais formulações com alguns dos
pressupostos que, ao longo das últimas décadas, têm norteado o grosso da produção
acadêmica centrada na questão dos grandes projetos de desenvolvimento. No momento
em que as políticas “desenvolvimentistas” voltaram à ordem do dia, centenas de
estudos, nos mais diversos campos disciplinares, vêm chamando atenção para os
impactos induzidos por elas sobre a vida de grupos “subalternos”: anteriormente os
camponeses, e cada vez mais quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais. Nos
estudos sobre os atingidos por barragens iniciados na década de 1980, de certa forma
pioneiros nesse campo, foi a noção de “deslocamento compulsório” o que melhor
evidenciou, do ponto de vista dos analistas, os efeitos danosos desses grandes projetos.
Já hoje parece que é a ideia de “desterritorialização” o que com mais nitidez exprime a
violência dessas iniciativas, explicitando então os dramas vividos pelos que têm seus
“territórios” ameaçados pela expansão das fronteiras de acumulação capitalista. Bem
antes disso, na segunda metade do século passado o conceito de “migração” se vinculou
fortemente à problemática da “modernização” do campo, com a consequente
“expulsão” do homem rural para as grandes cidades.
56 Certamente não é minha intenção minimizar as adversidades decorrentes da existência
desses grandes projetos ou do modelo econômico a eles vinculado sobre a vida destas
pessoas. Gostaria apenas de sugerir que, na análise desses fenômenos, temos
privilegiado ferramentas analíticas que parecem se assentar em pressupostos não
problematizados, e que remetem a ideias que nos são bastante caras a respeito do que é
– ou deve ser – a “modernidade”. Tenho em mente, em especial, aquela “specific
emphasis on rupture” que, conforme Englund e Leach (2000, p. 227), “organizes, as ever
in the discourse of modernity, the ways in which relevant research questions are
identified and their potential answers circumscribed”. Essa ênfase na ruptura poderia
ser exemplificada pela referência a uma emblemática, difundida e popular passagem de
O manifesto comunista: “Esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação
permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as
precedentes […] Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar.” (Marx; Engels, 1998,
p. 2).
57 Na medida em que identificamos a instabilidade e a agitação a essa modernidade, e
estamos convictos de que sua chegada implica necessariamente uma ruptura, tendemos
automaticamente a projetar, naqueles universos subitamente violentados por ela, os
atributos diametralmente opostos àqueles que usamos para defini-la: enraizamos um

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“campesinato”, encontramos já prontas comunidades tradicionais e territorializadas


(ameaçadas, portanto, de “desterritorialização”), subsumimos todos os deslocamentos e
andanças do homem “rural” a uma epifenomenal “migração”. Frequentemente
vinculado ao propósito de ressaltar situações efetivamente dramáticas e revoltantes, o
apelo a tais pressupostos implica uma oposição simplista entre o positivo da
estabilidade (terra, território, comunidade) e o negativo dos deslocamentos (migração,
desterritorialização, expulsão). Mesmo considerando a perspectiva aqui apresentada
como um caso-limite, dela emerge a sugestão de que, de maneira mais geral, os
movimentos são vivenciados de maneira menos maniqueísta – e mais interessante – por
diversos segmentos das “camadas populares”. (E reitero então a relevância heurística
do trabalho para a compreensão destes movimentos, dada a expansão “metafórica” de
sentidos associados a ele para outros contextos.)
58 A ênfase unilateral dos analistas na ruptura desencadeada pelos empreendimentos
modernos faz de sua “chegada” uma espécie de ponto zero da história, naturalizando a
própria estabilidade – que costuma ser pensada, por gente como Jorge, mais como o
construído do que como o dado; os próprios saberes, práticas e esforços destinados à sua
consecução e manutenção são deixados de lado. Tornando secundária a identificação
das pessoas com o campo ou a cidade e privilegiando as passagens, movimentos e
alternâncias, as ideias aqui associadas à categoria peão parecem contradizer
pressupostos como esses: não por negarem a opressão produzida por esses projetos,
mas por lembrarem que violências dessa ordem são sim e por demasiado conhecidas;
não por acaso, há séculos a formação das novas gerações privilegia a experiência da
estrada e da lama, e a importância de pés velozes e calejados, para o aprendizado de
como, “velhacamente”, lidar com elas.
59 Nesse sentido, nós que lutamos contra os grandes projetos corremos sempre o risco de
nos confinarmos no nosso próprio “paroquialismo patronal”. Assumindo a ruptura
moderna como um dado (ou o dado), somos nós mesmos, os “modernos”, quem mais
capacitado está para falar dela com aqueles a quem estamos “aliados”. Preocupados em
ressaltar e sedimentar essa “aliança”, esquecemos que ela não é suficiente para
dissolver as distâncias – por exemplo, patrão/peão, lido/corrido – que são também
constitutivas dela. E perdemos a oportunidade de escutar com atenção o que estes
peões “cosmopolitas” fazem questão de nos ensinar – para, dentre outras coisas, tornar
pensáveis e criticáveis outros efeitos nocivos desses grandes projetos. Imperativos
éticos à parte e como bem sabem esses peões, essa escuta pode destinar-se ao nosso
próprio aprendizado, e à capacidade de usarmos o que não sabemos para tensionar,
transformar e tornar mais vigoroso – política, intelectual e vitalmente – nosso próprio
saber.

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NOTAS
1. E se eu recorro com tanta confiança a Jorge, um brasileiro para tal procedimento é também
porque eu já havia me assombrado com a qualidade e potencial heurístico das descrições de
França Jr. (1989) a respeito do universo do garimpo em De ouro e de Amazônia.
2. Os trechos em itálico seguidos de um número entre parênteses são citações do livro aqui
analisado, acompanhadas da página em que aparecem. Termos em itálico isolados são categorias
nativas tomadas de Guedes (2011) ou de outras etnografias.
3. Se nos movimentos milenaristas essa vivência do movimento enquanto traço definidor do
mundo é exacerbada por essas peregrinações sem fim, em outros contextos do catolicismo
popular essa mesma lógica se manifesta com mais discrição, contida pelos limites do ritual. Ainda

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assim, o privilégio cosmológico do movimento permanece – orientando, por exemplo, a realização


das folias de reis em Minas Gerais, os giros implicando a “renúncia temporária da casa em troca
de um longo período de viagem pelo ‘mundo’” (Pereira, 2012, p. 129).
4. Lins Ribeiro (2006) mostrou como o surgimento dessas cidades-satélite se articula à própria
forma como se deu a construção de Brasília, se relacionando diretamente às agruras vividas nos
acampamentos, que estimularam os trabalhadores a buscar informalmente terrenos destinados a
outros usos.

RESUMOS
Através de uma leitura do romance Jorge, um brasileiro e me servindo do material produzido em
outras pesquisas, busco aqui pensar a relação entre os grandes projetos de desenvolvimento, o
trabalho e a mobilidade popular. Discuto inicialmente a atividade dos peões construtores de
estradas, articulando-a depois às questões da moradia e do relacionamento empregado-patrão.
Argumento que as experiências destes peões, expressas de maneira emblemática por certas ideias
associadas à estrada e à lama, oferecem uma entrada privilegiada para se pensar alguns dos
sentidos assumidos pelo trabalho nas “camadas populares” de uma maneira mais geral. Ao
mesmo tempo, tais ideias articulam temas e contextos aparentemente díspares, determinados
significados e práticas comuns relacionando o trabalho, a mobilidade, a moradia, a formação da
pessoa e concepções sobre a desigualdade social.

Analyzing the novel Jorge, um brasileiro and considering the data produced in other researches, I
consider here the relation between large development projects, labor and popular mobility. In
the first place, I describe the activities of workers responsible for building roads; later I relate
this topic to the issues of housing and of the relationship between workers and bosses. I argue
that the experiences of these road building workers, conspicuously expressed through certain
ideas related to the “road” and the “mud”, offer a privileged perspective to think about some
more general meanings related to labor among the popular classes considered in a broader sense.
At the same time, these ideas articulate disparate themes and contexts, certain common
meanings and practices relating labor, mobility, housing, person formation and conceptions
about inequality.

ÍNDICE
Keywords: development, housing, road building, work
Palavras-chave: construção de estradas, desenvolvimento, moradia, trabalho

AUTOR
ANDRÉ DUMANS GUEDES
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil
Em pós-doutorado

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El verdadero fantasma es el trabajo


no cuestionado. Analizando
etnográficamente al concepto de
alienación
Santiago Bachiller

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 15/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

1 El origen de la noción de alienación remite al proceso de modernización, a la transición


histórica hacia el capitalismo, el desarrollo urbano, la industrialización e
individualización. Los padres de la sociología ligaron a dicho concepto con las
consecuencias negativas propias del proceso de racionalización, la inversión de medios
y fines y el consecuente advenimiento de la razón instrumental, la especialización, así
como con la fragmentación y pérdida del sentido de totalidad. Asimismo, en los
estudios clásicos sobre la alienación, esta categoría ha sido asociada con cuestiones
como la sociabilidad, la ideología, la producción y circulación de mercancías. No
obstante, el trabajo ha sido la dimensión más destacada por la literatura sociológica
tradicional sobre la enajenación.1
2 El artículo se basa en un trabajo de campo etnográfico realizado entre el 2008 y el 2011
con quienes apelan al basural municipal de Comodoro Rivadavia –una de las principales
ciudades de la Patagonia Argentina– como forma de lograr su subsistencia cotidiana.
Circunscribiendo la atención en la esfera del trabajo, el objetivo del texto consiste en
considerar las posibilidades y límites de la noción de alienación en el análisis de los
procesos de precariedad laboral que afectan a los recolectores informales de residuos.
Como ocurre con cualquier otra noción, la alienación debe ser definida histórica y

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contextualmente, pues sus significados emergen en función de problemas, espacios de


relaciones sociales y conflictos concretos (De la Garza, 2010).
3 El objetivo del artículo remite a una serie de interrogantes; en primer lugar, ¿es
pertinente la noción de alienación a la hora de analizar la experiencia que los
recolectores han tenido en el mercado de empleo? Por otra parte, la alienación es una
categoría que ha sido definida en función de la explotación en el marco laboral. De tal
modo y paradójicamente, una interpretación literal de esta categoría llevaría a afirmar
que quienes han sido expulsados del mercado de empleo no se verían afectados por los
procesos de alienación. ¿Cómo se reconfiguran los procesos de alienación ante la
situación de desempleo?; ¿cómo deberíamos ampliar dicha noción para abordar
satisfactoriamente los fenómenos asociados con el desempleo? Por último, estas
personas subsisten gracias a una modalidad específica de economía informal: la
recuperación de residuos. Más aún, la recuperación de residuos es tan importante en
sus vidas, que suele ser definida como equivalente a un trabajo, lo cual lleva a
preguntarnos cómo conciliar las nociones de enajenación y economía informal.
4 En definitiva, el artículo supone poner en tensión la noción de alienación, dilucidando
hasta qué punto dicha categoría es pertinente para explicar una historia laboral
marcada por la permanente alternancia entre períodos de empleo, desempleo y
subsistencia mediante prácticas de economía informal. ¿Resulta indispensable redefinir
y ampliar el concepto para lograr abarcar las diferentes etapas laborales en la vida de
los recolectores informales de residuos?

Contextualizando al trabajo de campo


5 Intentando desentrañar cuánta gente subsiste mediante la recolección informal de
residuos, la municipalidad de Comodoro Rivadavia realizó diversos informes. El
primero fue llevado a cabo en el 2000, arrojando el número de 221 recuperadores; en la
encuesta del 2007 se contabilizaron 63 recolectores; mientras que el último censo se
ejecutó en el 2010, dando por resultado la presencia de 119 personas (Comodoro
Rivadavia, 2010). La disparidad de las estadísticas responde a varios factores: los
diversos métodos de registro implementados por la municipalidad local en cada
ocasión, la evolución del precio de los materiales a reciclar, los cambios en las tasas de
empleo, el nivel de cobertura de las necesidades básicas, los patrones migratorios en la
ciudad y, por sobre todo, las irrupción de crisis económicas y sociales.
6 Quienes llevan décadas en el basural destacan como, con la hiperinflación de 1989 o la
devaluación del 2002, las cifras de recolectores informales se incrementaron
drásticamente. No obstante, la región posee sus particularidades, ya que el petróleo es
el principal motor que mueve la economía de la ciudad. Así, a las crisis que azotaron al
país, en Comodoro Rivadavia es necesario añadir aquellas asociadas con la evolución de
los precios y la extracción de dicha materia prima. La ciudad padeció una depresión
especialmente significativa entre mediados y fines de los 1990 como consecuencia de la
privatización de Yacimientos Petrolíferos Fiscales [YPF] (Salvia, 1999). El desarrollo de
la ciudad estuvo estrechamente ligado con la empresa estatal petrolífera, por lo cual la
reestructuración del mercado de trabajo impactó negativamente en los indicadores de
empleo. Asimismo, en el 2000 el país vivió una crisis donde las tasas de desempleo
treparon a un 14,7%; en tal año, la región presentó uno de los índices más elevados en
dicho rubro –13,3%; mientras que la subocupación se situaba en el 13% (Comodoro

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Rivadavia, 2010). Es de suponer que la mayor cantidad de recolectores detectada en el


año 2000 respondería a dicho contexto social. A partir del 2004 las cifras de empleo y
pobreza mejoraron a nivel nacional y regional. Actualmente Comodoro Rivadavia posee
uno de los mejores indicadores en estos rubros –4,4% de pobreza; 3,6% de desempleo y
1,5% de subocupación (Comodoro Rivadavia, 2010).2 No obstante, en una ciudad donde
la economía local gira en torno a la producción de petróleo, incluso en las etapas de
bonanza se verifica una tendencia en el mercado de empleo: la escisión entre un
segmento de trabajadores reducido que accede a un nivel de vida muy elevado gracias a
su conexión de forma directa o indirecta con el mundo del petróleo, y otro sector
distante de dicho mercado laboral que, consecuentemente, padece la precariedad
laboral (Salvia, 1999). Es este último sector el que, en ocasiones amenazado por el
desempleo y permanentemente diezmado por la inestabilidad laboral, nutre al basural
de recolectores informales.
7 En cuanto a los antecedentes laborales de los recuperadores, lo más frecuente son las
ocupaciones informales con características de inestabilidad y precariedad: las tareas
asociadas con la construcción, como la albañilería, son las más citadas. No es casual que
el segundo lugar lo ocupen quienes afirman no tener experiencia laboral –allí se
posicionan los menores de edad y quienes toda su vida subsistieron mediante la
economía informal. Luego se mencionan actividades que coinciden en la falta de
cualificación, tales como pintores o peones de campo; en el caso de las mujeres, el
empleo doméstico es la respuesta más frecuente (Comodoro Rivadavia, 2010). En
definitiva, y como luego se tematizará, los empleos no cualificados han sido el
denominador común en la vida laboral de estas personas.

La alienación en la teoría sociológica


8 La alienación es una noción compleja, en la cual es posible distinguir distintas
dimensiones. La primera de ellas alude a la relación tensa entre estructura e individuo,
producto del proceso de modernización. La alienación surge como un concepto clave en
el análisis de la transición hacia el capitalismo, con el consiguiente advenimiento de los
procesos de urbanización, industrialización e individualización. Los cambios en los
modos de producción y en la organización del trabajo, la ruptura de los lazos de
pertenencia comunitaria tradicionales ligadas a un mundo rural que se desvanece,
trastocan las mentalidades y posibilitan el tránsito hacia una cosmovisión burguesa del
mundo (Hopenhayn, 2001; Weber, 2006).
9 En segunda instancia, la alienación se asocia con los efectos más perversos del proceso
de racionalización. En tanto sinónimo de cálculo y cuantificación, la racionalidad, se
erige en el cimiento de la sociedad burguesa. Los excesos inherentes a la glorificación
de la racionalidad se evidencian al constatar cómo los diversos ámbitos sociales son
sujetos a medición; las dimensiones propias del ser humano, los elementos más
cualitativos de su existencia, se convierten en un número, tornándose en posibles de
ser monetarizadas. De tal forma, la exacerbación de la racionalidad conduce a uno de
los sinsentidos más característicos de la modernidad: la deshumanización de los sujetos
(Lukács, 1983). En el ámbito del trabajo, la racionalización en tanto cuantificación nos
retrotrae a Adam Smith y sus intentos por develar el fundamento del intercambio. ¿Qué
es lo que permite la conmensurabilidad y el intercambio de cosas tan diferentes entre
sí? Smith localiza la respuesta en el trabajo: este sería la medición de la energía y del

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tiempo que quedaron incorporados en el objeto creado, aumentando su valor, el cual a


su vez se expresa en términos monetarios. Smith no pretende reflexionar sobre el
trabajo concreto, sobre las tareas de un obrero o un campesino, sino sobre la esencia
que reduce toda cosa a su elemento mínimo, posibilitando el intercambio. A partir de
entonces, la importancia del trabajo consiste en ser un instrumento de cálculo que
permite el intercambio y la medición de la producción y riqueza. Con la economía
política clásica, el trabajo es concebido de manera instrumental y abstracta; es
mercantilizado, ya que una parte de la actividad realizada se desprende del hombre,
deja de serle consustancial, puede venderse o alquilarse (Méda, 1995).
10 En estrecha vinculación con el punto anterior, la enajenación implica una inversión de
medios y fines (Marx, 1992, 2004; Weber, 2006). La racionalización supone la
maximización de la relación entre medios y fines; no obstante, cuando los medios o
procedimientos para llegar a un fin terminan siendo priorizados, se corre el riesgo de
perder de vista el objetivo superior. En los padres de la sociología, el dinero, el trabajo o
las burocracias son tomados como ejemplos de esta inversión de medios y fines; a partir
de entonces, la razón pasa a ser un instrumento, un medio que incluso puede conducir
a fines aborrecibles. Así, el sujeto pierde la posibilidad de decidir su propia historia, de
controlar los aspectos más elementales de su propio destino. Es entonces cuando “el
sentirse fuera de sí”, característico de la noción de enajenación, adquiere todo su peso.
En el caso del trabajo, la inversión de medios y fines se asocia con que la sociedad
capitalista y la economía política no tienen como finalidad fomentar el desarrollo del
hombre mediante el trabajo, sino el enriquecimiento. Por un lado, el hombre hace de su
actividad vital un simple medio para su existencia; por el otro, al concebir al trabajo
como un simple medio para adquirir riquezas, este nace alienado (Méda, 1995).
11 La especialización, otro elemento típico de los fenómenos de alienación, es definida
como una serie de sistemas parciales racionalizados cuya unidad está determinada por
el puro cálculo (Lukács, 1983, p. 115). La especialización se identifica con la división
capitalista del trabajo, la cual disloca a todo proceso orgánicamente unitario de la vida
y del trabajo, descomponiéndolo en sus partículas más elementales. Consecuentemente,
tales funciones parciales y racionalmente aisladas se tornan autónomas, se convierten
en compartimientos que adquieren vida propia y dejan de ser coherentes en función de
una totalidad en la cual estuvieron anteriormente integrados. La especialización
desdibuja cualquier concepción holística de la realidad social, obturando la posibilidad
de captar un sentido de integralidad. Las situaciones de extrañamiento, el sentimiento
de “no pertenencia” que experimenta el sujeto, guardan relación con un sentido que se
disuelve al descomponerse los fenómenos sociales en múltiples compartimentos
estancos.
12 Al revisar el modo en que los fundadores de la sociología reflexionaron en torno a la
categoría de alienación, parecería posible identificar tres vectores especialmente
relevantes: mercancía, socialización y trabajo. Debido a que este artículo se centra en la
enajenación en el ámbito del trabajo, no es posible desarrollar los otros dos ítems. De
todas formas cabe aclarar sucintamente que en tales situaciones los fenómenos de
alienación se ligan a cómo los vínculos entre los hombres se encuentran mediados por
las mercancías –y en particular por el dinero. Así, la naturaleza de la estructura
mercantil consiste en que una relación entre personas toma el carácter de una cosa que
“por su sistema de leyes propio, riguroso, enteramente cerrado y racional en
apariencia, disimula toda huella de su esencia fundamental: la relación entre hombres”

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(Lukács, 1983, p. 111). En una sociedad capitalista, las personas no pueden evitar el
filtro de la mercancía a la hora de conectarse entre sí. Debido a la propiedad privada y a
la equiparación del trabajo con una mercancía, las relaciones humanas quedan
desvirtuadas (Hopenhayn, 2001). Es entonces cuando las nociones de cosificación e
ideología adquieren relevancia. La cosificación alude a la forma “fantasmagórica” de la
mercancía (Marx, 2004): la relación entre las personas toma el carácter de una cosa,
parece materializarse en una mercancía. Pero dicha apariencia supone una
representación errónea de la realidad que oculta relaciones de poder; la alienación, en
definitiva, es sinónimo de una falsa conciencia de lo real y por consiguiente es
funcional al orden dominante.
13 En Marx (1992) el trabajo posee una naturaleza positiva, conlleva un aspecto creativo
que permite la realización de las personas. Así, el trabajo es toda actividad humana que
facilita la expresión; los hombres se comprenden y reconocen recíprocamente a través
de sus obras. Por otra parte, el trabajo implica la organización y coordinación de los
sujetos, la posibilidad de desarrollar la dimensión creativa del ser. Más aún, mediante la
cooperación, el trabajo supone la mediación entre el hombre y la naturaleza (Antunes,
2005). En resumen, el trabajo implica una relación con la naturaleza y una relación
social, así como representa tres cualidades: descubrirse a uno mismo, descubrir mi
sociabilidad y transformar el mundo.
14 Sin embargo, Marx (1992) denuncia que en la sociedad capitalista la esencia
trascendental propia del trabajo es negada. La mayoría de la población ha sido
desposeída de los medios de producción por lo cual, para subsistir, no le queda otra
opción que vender su fuerza de trabajo. Mediante la noción de plusvalía, Marx analiza
cómo los propietarios de los medios de producción se apropian de una parte
significativa del trabajo de sus empleados, a quienes se limita a pagar un salario que
sólo alcanza para lograr la reproducción social. De tal manera, la alienación comienza a
adquirir forma a partir de la separación entre el capital y el trabajo, es consecuencia de
concebir al trabajo –y al trabajador– como una cosa, como una de las tantas mercancías
que inundan el mercado. Así, en la sociología clásica, la alienación es un concepto que
surgió ligado a la explotación en el ámbito del trabajo (Hopenhayn, 2001). No obstante,
en Marx se distinguen tres momentos relacionados con el trabajo: su glorificación, la
crítica al trabajo real y la configuración de un esquema utópico. Por consiguiente, pese
a los cuestionamientos a cómo el trabajo se expresa en el capitalismo, este continúa
ocupando un rol central en su programa emancipatorio. Es decir, la anhelada sociedad
comunista del futuro necesariamente conlleva distanciarse de la alienación; entonces,
el trabajo pasará a ser expresión del yo, mientras que la producción se convertirá en el
principal acto social (Méda, 1995).
15 Por otra parte, la relación entre alienación y trabajo posee varios niveles de análisis. En
primer lugar, refiere a una relación conflictiva entre el trabajador y el producto de su
trabajo. El producto de la actividad creativa del trabajador se convierte en un objeto
que le es desconocido, en una mercancía que no le pertenece. Dicha situación
desencadena una sensación de extrañamiento respecto de lo que ha creado. De tal
modo, la alienación supone “la desvalorización del mundo humano en relación directa
con la valorización del mundo de las cosas” (Marx, 2004, p. 136). Es decir, el trabajo
produce mercancías, pero también se produce a sí mismo y al obrero como mercancía;
el trabajo se convierte en objeto para el obrero, iniciando la relación de servidumbre a
la mercancía por parte del trabajador.

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16 En segunda instancia, la alienación se expresa como un proceso de extrañamiento en el


acto de la producción. Ya no sólo el objeto, sino incluso la actividad que realiza el
trabajador pertenecen a otro; dentro de la esfera laboral, toda su fuerza, toda su
creatividad, toda su agencia ha sido cedida a cambio de un salario. Al respecto, Lukács
(1983) define a la alienación como la oposición del hombre con su propia actividad; su
propio trabajo pasa a ser algo objetivo, independiente de él, algo que lo domina en
virtud de leyes propias y ajenas al hombre. La alienación es la distancia del hombre
respecto de su creatividad y de su creación, de su trabajo. Asimismo, el trabajador es
rebajado a la condición de máquina, e incluso es un esclavo de la misma; se dedica a
tareas rutinarias y monótonas que se limitan a supervisar que la maquinaria de la
fábrica funcione correctamente. Se verifica entonces un proceso de deshumanización,
el cual niega aquellas esferas del ser que trascienden las necesidades básicas de
subsistencia del trabajador, impidiendo su realización personal.
17 En tercer término, la alienación atenta contra el ser genérico en tanto naturaleza
humana: el trabajo supone la apropiación, transformación y elaboración de la
naturaleza, eso es lo distintivo del hombre respecto de los animales (Antunes, 2005). Al
respecto Méda (1995, p. 83) sostiene que, en Marx, el verdadero trabajo “no está ligado
a la necesidad, sino que es aquella actividad que conscientemente se acomete con el
propósito de humanizar la natural. La noción de ser genérico implica una relación
armoniosa, donde el hombre hace uso de la naturaleza en beneficio de la comunidad en
su conjunto; se define en oposición a los particularismos, primando lo comunitario y
esencial que constituyen a los hombres. Por el contrario, en las formas de producción
capitalistas predomina la apropiación individual y egoísta de la naturaleza.
18 Por último, la alienación equivale a la enajenación del hombre respecto del hombre
(Marx, 1992, 2004). El vínculo social se establece gracias a la compra y venta de esa
sustancia individual llamada trabajo; es decir, el dinero y la mercancía funcionan como
intermediarios en las relaciones entre los hombres. A su vez, al interior de la división
social del trabajo capitalista, la competencia es feroz: los trabajadores compiten entre
sí, pero también compiten con unas máquinas que tienden a desplazarlos de sus puestos
de trabajo. A partir de entonces, la relación con la naturaleza, el vínculo con la
sociedad, el contacto entre los hombres está mediada por la mercancía.

Alienación y mercado de empleo


19 ¿Qué relación podemos establecer entre la noción de alienación y la experiencia en el
mercado de empleo de los recolectores informales de residuos? Para responder dicho
interrogante, es preciso dejar constancia que los problemas laborales son tan
significativos que constituyen el primer factor señalado por estas personas como
motivo de sus prácticas de subsistencia ligadas a la recuperación de basura.
20 Por sobre todas las cosas, en la historia laboral de los recolectores la alienación se liga
con un proceso de deshumanización. Aquí se confirma plenamente la máxima según la
cual la alienación conlleva que el producto del trabajo le es ajeno a quien lo ha creado.
Lo mismo puede afirmarse en cuanto a la enajenación como un proceso de
extrañamiento de la actividad laboral. Los empleos destinados para esta gente no dejan
resquicios en lo que respecta a la creatividad, al tiempo y la capacidad monetaria de
disfrutar del ocio o la sociabilidad. Los lamentos de un informante que trabajó como
empleado de seguridad nocturna, en donde las horas resultaban “interminables” pues

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“no había nada para hacer”, denotan como la rutina aplasta cualquier posibilidad de
creatividad personal en este tipo de empleo. En tal sentido, vale la pena retrotraerse a
la afirmación de Marx (2004), según la cual el trabajador sólo se siente en sí en espacios
de ocio y socialización distintos al trabajo –considerando que hoy en día la capacidad de
consumo es un requisito fundamental para disfrutar del ocio y del tiempo libre, incluso
esta afirmación amerita ser relativizada.
21 Al recordar las antiguas experiencias en el mercado de empleo, frecuentemente surgen
relatos que destacan la sensación de humillación. Los lamentos ligados a la explotación
suelen expresarse en términos de un salario denigrante. La primera secuela de dicha
situación consiste en que, si en una sociedad capitalista el propio trabajo se convierte
en una mercancía, en estos grupos sociales se trata incluso de una mercancía
desvalorizada, lo cual refleja el desprecio hacia su actividad. La segunda consecuencia
se asocia con verse forzado a vender la propia fuerza de trabajo a cambio de un salario
que no alcanza para mantener a la familia en condiciones dignas, que apenas garantiza
la reproducción del núcleo doméstico. De tal modo, se verifica otro axioma inherente a
la alienación: el trabajo se limita a lo más básico, a la mera subsistencia. Como se verá
luego, los relatos de humillación también giran en torno al mal trato y las
arbitrariedades de un jefe déspota.
22 La sensación de explotación y humillación guarda relación con los empleos disponibles
para estos grupos sociales. Vale la pena reiterar que el común denominador en la
historia laboral de esta gente es haber contado con empleos no cualificados. Es entre
tales tipos de trabajos que se dan las tasas más altas de precariedad en lo que se refiere
al nivel de salarios, la estacionalidad y el carácter cíclico de los empleos, la falta de un
contrato que garantiza los derechos o los niveles de accidentes laborales (Beccaria;
López, 1996; Neffa, 2009). Así, cuando la persona consigue un empleo, la empresa cierra,
reduce su plantilla, o el contrato es temporal y acaba a los pocos meses; como sostiene
Kessler (1996), cuando la tasa de ganancia empresarial desciende, los trabajadores no
cualificados son los primeros en ser despedidos.
23 Esta historia de vulnerabilidad laboral implica que dichas personas entran y salen
constantemente del mercado de empleo; la inestabilidad laboral, sumada a la
insuficiencia de los sistemas estatales de ayuda, conduce a frecuentes recaídas en las
modalidades más extremas de pobreza. Como consecuencia de ello, en sus discursos no
siempre distinguen claramente un trabajo formal de otro informal e incluso, como
consideraremos luego, no siempre diferencian entre un trabajo y la recolección de
residuos. En definitiva, el tipo de inserción laboral profundiza otro de los aspectos
ligados con la alienación: tener un trabajo no mitiga la sensación de controlar
mínimamente el propio destino. Las afirmaciones de Wacquant (2001, p. 174) respecto
de los trabajos no cualificados son aplicables a estos grupos sociales: “el carácter mismo
de la relación salarial cambió en las dos últimas décadas de una manera tal que ya no
otorga una protección a toda prueba contra la amenaza de pobreza”. 3
24 Sin embargo y aunque en menor medida, en el trabajo de campo también surgieron
discursos donde los recolectores valoran positivamente al empleo formal tras
compararlo con la recuperación de residuos. Entonces, los informantes reconocen que
el salario que perciben es mínimo, pero simultáneamente priorizan dos factores
imposibles de obtener a partir de la economía informal: la previsibilidad monetaria y la
cobertura de seguridad social para el conjunto familiar. Tengamos presente que
previsibilidad no significa estabilidad. El trabajo estable, abstracción cuya definición

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más próxima se traduce en un contrato indefinido, es algo que pocas de estas personas
creen posible obtener. Así y todo, por más precario e inestable que sea el empleo, la
previsibilidad representa la posibilidad de calcular cuánto dinero se dispondrá a fin de
mes, poder planificar mínimamente las propias acciones, así como la tranquilidad de
saber que lo indispensable para sobrevivir está asegurado. Por el contrario, los
recolectores señalan la imprevisibilidad como un elemento característico del basural:
determinados días pueden obtener sumas que no ganarían en el mismo período de
tiempo en un empleo formal, pero en otras ocasiones pueden volver a sus hogares sin
dinero en el bolsillo. La sensación de una vida regida por el azar es el factor que esta
gente pretende exorcizar cuando reivindican los empleos precarios pero formales. 4
25 Si en el presente estas personas se encuentran distanciadas del mercado formal de
empleo, y si la noción de alienación está fuertemente ligada con la explotación en el
ámbito laboral, ¿qué valor posee dicha categoría en un contexto de desempleo?

Alienación y desempleo
26 Los desempleados, ¿están alienados? En caso afirmativo, ¿en qué consiste dicho proceso
de enajenación? Tomando en sentido estricto la categoría deberíamos responder que,
paradójicamente, al no ser explotado en el ámbito laboral un desempleado no padecería
los efectos nocivos de la alienación. Sin embargo, si entendemos a dicho concepto en un
sentido más amplio, la enajenación comienza a adquirir nuevas formas.
27 En este punto resaltan las diferencias entre aquellos recolectores que tuvieron un
empleo y lo perdieron, de quienes nunca estuvieron conectados con el mercado de
empleo. Para este último grupo, el basural representa el modo clásico de satisfacer la
subsistencia; como veremos en el próximo apartado, en estos casos la recolección de
residuos tiende a ser concebida como un trabajo. Por el contrario, el primer grupo
ingresó por primera vez al basural tras una crisis de desempleo. Así, en quienes
tuvieron una conexión con el mercado de empleo, la alienación y el desempleo se
asocian con la sensación de lo perdido, con la añoranza de inserción laboral. Aquí se
constata un contrasentido: a pesar de que los antiguos trabajos implicaron la
explotación laboral, en la fase de desempleo la sensación de “extrañamiento” se
identifica con la ausencia de un trabajo en tanto marco que estructura la cotidianidad
(Wilson, 1987).
28 Analizando la ética protestante, Weber (2006) sostiene que la voluntad de Dios consiste
en aumentar su gloria no a través del ocio o del goce, sino mediante el obrar. De tal
modo, la dilapidación del tiempo pasa a ser sinónimo de pecado. Tal precepto fue
fundamental para la posterior conformación de la mentalidad burguesa, pues supuso
una exaltación de la acción en sí misma, la cual conlleva a la moderna descalificación de
la pasividad. La contemplación, la inacción son asociados con el pecado, y ello tiene
consecuencias nefastas para quienes se encuentran en una situación de desempleo. A su
vez, el dolor de carecer de un empleo remite a la noción de estigma, la cual se define
como atributos socialmente desacreditantes, manchas en la propia identidad que
descalifican a los sujetos e impiden una plena aceptación (Goffman, 2001, p. 13). Todo
estigma equivale a un conjunto de percepciones negativas que generan rechazo y
distancia social, deshumanizando a las víctimas. El desempleo conlleva una forma
particular de estigma: la que identifica a los sujetos con la pasividad. 5 Según dichas
explicaciones, el desempleo sería consecuencia de la vagancia de determinadas

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personas. A partir de entonces, el desempleado queda marcado por la inutilidad social:


no contribuye sino que es un lastre para la sociedad, y dicha situación respondería a sus
propios defectos personales. En definitiva, en las fases de desempleado, la enajenación
se asocia con quedar encerrado en las identidades negativas socialmente atribuidas.
29 Al indagar sobre las consecuencias del desempleo desde el punto de vista de los actores,
queda claro que esta gente comparte los valores sociales dominantes. Así, uno de los
elementos más destacados como fuente de pesar consiste en carecer de ingresos. La
angustia del desempleo se expresa en la incertidumbre de cómo sostener la economía
familiar, en la sensación de que la persona no es capaz de controlar mínimamente su
propio destino. Por otra parte, según Bauman (2003) en el presente asistimos a un
cambio de época donde, de una ética del trabajo típica de la sociedad de productores,
estaríamos desplazándonos a otra sociedad donde los patrones que guían a las personas
serían primordialmente estéticos y se ligarían con el consumo. No casualmente,
muchos de los lamentos de los desempleados apuntan a sentirse distantes de una
supuesta “normalidad” que se construye a partir de una serie de imágenes sociales
ligadas con el consumo. Sin embargo, debido a que los salarios propios de los trabajos
no cualificados son tan bajos, lo dicho anteriormente es extensible a las fases de
empleo.
30 El modo en que las personas padecen el desempleo da cuenta de que el trabajo es
mucho más que poseer un ingreso. De tal manera, un elemento destacado por algunos
informantes reside en la sensación de vacío: el trabajo hace sentir útil a la persona. El
desempleo conlleva el trastocamiento de fundamentos básicos que en nuestra sociedad
son el cimiento a partir del cual se erige la dignidad personal (Antunes, 2005; Castel,
1997). Por último, y al igual que observamos en el apartado dedicado a los empleos no
cualificados, el desempleo equivale a la ausencia de creación en tanto dimensión
trascendental propia del trabajo y del ser humano.
31 Pretendiendo ampliar la noción de alienación, en el trabajo de campo se observó que el
desempleo genera una serie de dilemas morales frente a los cuales el sujeto se ve
inmerso en una nebulosa de confusión. La sociedad se rige por ciertos preceptos –el
esfuerzo, la disciplina, la dedicación– que el desempleado puede compartir pero no se
encuentra en condiciones de cumplir, provocando una sensación de extrañamiento. En
primer lugar, dichos mandatos implican la contradicción entre una visión idílica del
trabajo –que se aproxima a la definición hegemónica del mismo– y la experiencias
laborales realmente vividas. De tal modo, en los períodos de desempleo en ocasiones los
informantes retratan bucólicamente al trabajo, refiriéndose con dolor al mundo laboral
perdido; por el contrario, cuando se conectan nuevamente con el mercado de empleo,
esta perspectiva se desmorona. El punto en común de ambas fases es el malestar: ni uno
ni otro aportan alivio y felicidad. En segundo término, la alienación apunta a un sujeto
integrado y a la vez explotado en el trabajo; extendiendo su significado, la enajenación
se identificaría con situaciones de exclusión tan extremas, que la falta de sentido de
pertenencia que aporta el empleo llevaría a que la persona anhele poder reproducir los
mandatos sociales que tradicionalmente lo explotan pero que a la vez “lo insertan” en
las instituciones clásicas. Estas formas de alienación guardarían relación con un
sentimiento de inutilidad social, con una desacreditación que impide cierto grado de
aceptación social. Serían consecuencia de mandatos sociales hegemónicos que
prescriben comportamientos, sin generan las condiciones necesarias para que
determinados grupos se encuentren en condiciones de acatarlos.

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32 No obstante, es preciso realizar dos aclaraciones. En primer lugar, lo expuesto en este


punto debe ser relativizado. Los argumentos esgrimidos desde la sociología del trabajo
al analizar el desempleo no surgen en los relatos de todos los recolectores –se
encuentran ausentes en quienes nunca tuvieron un empleo, pues toda su vida laboral se
estructuró en torno al basural–, e incluso en ocasiones afloran sólo como consecuencia
de las preguntas directas formuladas por el investigador. En segundo término, en
segmentos poblacionales que están tan acostumbrados a la precariedad, las fases de
empleo, desempleo y economía informal no son claramente identificables. La vida de
esta gente suele oscilar entre tales opciones. Al instaurarse una etapa de desempleo, lo
más común es que estas personas inmediatamente busquen alternativas en la
recolección de residuos. Por consiguiente, el desempleo es mitigado mediante la
economía informal, no necesariamente supone un factor tan desestructurante para la
identidad.

Alienación y economía informal


33 Ante la situación de desempleo y precariedad generalizada, el basural municipal pasa a
representar un espacio que permite la subsistencia familiar. Cientos de personas
organizan su cotidianidad en base a la economía informal en general, y a las prácticas
de recolección de desechos en particular. ¿Es aplicable la noción de alienación en estos
casos? ¿Cómo vincular los conceptos de alienación y de economía informal?
34 La asociación entre desempleo y pasividad remite a una concepción restringida del
empleo que cierra los ojos ante las formas de trabajo no reconocidas por los niveles
normativos. Solemos pensar que el trabajo equivale a un intercambio reglamentado, a
un empleo remunerado donde el salario, el tiempo y el lugar se estipulan de antemano
a partir de un contrato legal. Cientos de actividades productivas no se ajustan a la
acepción ortodoxa de empleo remunerado; así, la economía formal no logra captar la
realidad social que cae fuera del sistema de mercado formador de precios (Portes,
1995). Teniendo presente el contexto estrecho característico de las situaciones de
exclusión social, se comprende por qué muchas de estas personas afirman preferir las
actividades de recolección antes que los empleos para ellos disponibles. La racionalidad
de tal elección responde a un cálculo donde se combinan variables de muy diverso
talante: los ingresos, costos y beneficios materiales y emocionales, asociados con las
múltiples maneras de ganarse la vida (Castells; Portes, 1990). Lo más común es que la
persona no se incline por una única opción, sino que alterne diferentes tácticas en
función de la coyuntura. Así, el trabajo temporal y/o en negro suele complementarse
con alguna modalidad de ayuda social oficial, las changas ocasionales con la recolección
de residuos. Además, la economía informal representa diversas ventajas para los
recolectores respecto de los empleos precarios: obtener dinero en efectivo y en el día
en vez de un pago en diferido; a diferencia de un empleo formal, es compatible con las
ayudas sociales; para quienes padecen altas tasas de ingesta alcohólica, la recolección
no supone la dificultad de adaptarse a una disciplina laboral, pues permite beber
mientras se realizan las actividades de subsistencia, etc. A su vez, la recuperación
supone el inicio de distintas redes económicas, las cuales exceden el límite territorial
del vertedero –por ejemplo, la venta a los vecinos de los barrios donde habitan los
recolectores de comida y ropa recuperada. Pese a la falta de reconocimiento oficial, la
recolección informal de residuos se constituye en la actividad a partir de la cual estas

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poblaciones logran su subsistencia cotidiana, por lo cual tiende a ser descrita en


términos similares a un trabajo. Esto es así no sólo por el beneficio económico que
obtienen, sino también por emular el tipo de relaciones sociales que se generan en los
ámbitos laborales (Rowe; Wolch, 1990).6
35 Por otra parte, la alienación en la esfera del trabajo consiste en vender la propia
humanidad a cambio de un salario que se limita a la subsistencia. En tal sentido, existen
similitudes y diferencias entre el trabajo y la economía informal de recuperación de
residuos. En ambos casos, se destaca la obtención de un ingreso que apenas alcanza
para garantizar la reproducción familiar –muchos informantes incluso afirman que
logran una mayor ganancia monetaria gracias a la recolección de residuos que
mediante un empleo convencional.7 Pero en las prácticas de recuperación, el proceso de
deshumanización no se liga con la venta de la propia fuerza de trabajo a un propietario
de los medios de producción, y ello tiene consecuencias valoradas positivamente por los
recolectores.
36 Como se sostuvo anteriormente, los recolectores evocan pasados de desempleo y de
explotación en el marco del trabajo; paradójicamente, estos recuerdos suelen ser
mitigados en un presente caracterizado por la subsistencia en un basural. Si el
desempleo supone la descalificación social de ser asociado con la pasividad, la
recuperación de residuos implica una forma de revertir dicho estigma. Cuando los
informantes mencionan la importancia de sentirse útil, las formas de alienación y
deshumanización propias del desempleo comienzan a difuminarse, mientras que la
propia agencia y el orgullo de ser autónomos son exaltados en sus relatos. Pese a las
enormes adversidades, el sujeto destaca que la subsistencia familiar es mérito de su
esfuerzo personal; son seres independientes que no esperan pasivamente la asistencia
social.8 A su vez, la autonomía refiere a la ausencia de un “jefe que da órdenes”. Es
entonces cuando en los discursos se concatenan frases como “yo me las arreglo sólo, no
dependo de nadie”, con otras donde se recuerda que “a mí nadie me dice lo que tengo
que hacer”. En el basural, el recolector depende de sí mismo, toma las decisiones
respecto a cómo desempeñar sus tareas. Que no exista la figura del jefe da cuenta de
una ventaja respecto de un trabajo convencional: la sensación de subordinación es
atenuada, no hay sujeción ni formas convencionales de explotación.
37 Los informantes coinciden en destacar otro factor clave en el proceso de valorización
de las prácticas de recuperación de residuos: administrar el propio tiempo.
Previamente, se asoció a la alienación con un proceso de deshumanización donde la
persona no dispone ni de tiempo ni de dinero para disfrutar del ocio y la sociabilidad
que permiten desarrollar los aspectos más creativos del ser. En el caso de la
recolección, el dinero escasea, pero en cambio el tiempo es una dimensión que el sujeto
siente que ha logrado dominar. El recolector “es dueño” de su propio tiempo, decide las
horas que trabajará, los días que asistirá al basural, a qué hora se despertará, e incluso
el propio ritmo e intensidad del trabajo. La ausencia de un jefe y de un horario rígido
laboral genera una sensación de libertad que contrasta con los empleos convencionales
caracterizados por la disciplina laboral.
38 Tras permanecer horas en el vertedero, el investigador observa cómo las prácticas de
recolección alternan una intensa actividad laboral en cortos períodos de tiempo –por
ejemplo cuando llegan camiones a descargar metales– con otras largas fases de
inacción. En las etapas de ocio, los recolectores se agrupan en sus campamentos y
conversan entre sí. Es decir, el vertedero representa un espacio de sociabilidad, un sitio

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de encuentro entre conocidos, e incluso para muchos un ámbito familiar. Estas


cuestiones refuerzan la valorización positiva de las prácticas de recolección; en
contraposición a sus experiencias en el mercado laboral, el basural entonces es
representado como un espacio “más humano”.
39 El concepto de alienación guarda relación con la búsqueda egoísta del interés
particular, con una competencia que atenta contra el ser genérico del hombre, que
contradice la naturaleza del trabajo en tanto esfera de cooperación. A pesar de lo
escrito en el párrafo precedente, cuando a los recuperadores se les pregunta si han
hecho amistades en el vertedero, las respuestas coinciden en destacar que “al basural
yo voy a trabajar, no a hacer amigos”. Las tareas de subsistencia suelen practicarse de
forma solitaria, no fomentan la cooperación –a lo sumo se organizan familiarmente. Sin
embargo, es posible observar la conformación de grupos en función de ciertas
afinidades –edad común, criterios familiares, etc. Es definitiva, tal como ocurre en la
mayoría de los ámbitos laborales, cooperación y actitudes individualistas son lógicas
contradictorias que se encuentran presentes en un mismo espacio.
40 Asimismo, y con relación a la alienación como enajenación del hombre respecto del
hombre, más allá de las tensiones con los capataces u ocasionales “patrones”, la
competencia entre los hombres y con las máquinas no es un tema que haya surgido en
los relatos sobre las antiguas conexiones con el mercado de empleo. Por el contrario, si
bien los recolectores suelen coincidir que en el basural existen códigos por lo cual
“todos respetan el trabajo del otro”, surgieron relatos que refieren a la competencia
por apropiarse de determinados objetos o espacios estratégicos. Incluso es posible
mencionar una modalidad de competencia con las máquinas: los recolectores aducen
un cambio en las prácticas de la empresa que gestiona el vertedero, según el cual
quienes conducen las excavadoras tienen la directiva de enterrar inmediatamente los
residuos que acaban de ser depositados en el predio municipal. Así, los tiempos de
búsqueda se acortan, lo cual fuerza a los recolectores a apurarse ante la llegada de un
camión con residuos, e interponerse en el camino de estas máquinas.
41 La noción de alienación plantea que los esfuerzos por subsistir y la rutina aniquilan la
creatividad de las personas. En los empleos no cualificados destinados a estas
poblaciones dicha máxima es perfectamente aplicable; por el contrario, al resaltar los
aspectos positivos de la recuperación de residuos, en sus discursos se percibe cierta
dosis de creación en sus actividades. Es común que improvisen herramientas con los
materiales que recuperan, las cuales posteriormente utilizan para, por ejemplo,
rescatar cobre del interior de un antiguo electrodoméstico. A su vez, han construido
buena parte de sus hogares moldeando los materiales que recuperaron de la basura. Si
los relatos de algunos informantes describen a los antiguos empleos en términos de
aburrimiento, en los mismos se destacan mayores sorpresas y desafíos en el día laboral
en el basural. Entonces, citan actividades como caminar sobre una montaña de
escombros y la consiguiente satisfacción al encontrar improvistamente un objeto de
valor, o colgarse de un camión en movimiento para recuperar una bolsa repleta de
alimentos; una vez más, tales prácticas adquieren una dimensión positiva en
contraposición a un pasado laboral dominado por el tedio y la rutina.
42 En Marx (2004), la enajenación se identifica con perder la noción de totalidad del
proceso productivo, con limitarse a un estadio específico de la cadena productiva. En el
caso de los recuperadores, esta afirmación es pertinente tanto a nivel de los empleos
que tuvieron como de las prácticas de recolección. En lo que refiere a la recuperación

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de objetos en el basural, ellos conforman el eslabón más elemental de la cadena


productiva del reciclado, el cual no supone valor agregado; las etapas productivas en las
que no participan, son justamente las que implican una mayor cuota de poder y de
ganancia monetaria (Schamber; Suárez, 2007).
43 Finalmente, en el proceso etnográfico se indagó en las expectativas de futuro laboral;
uno de los ejes abordados fue su visión de un empleo ideal. En concreto, en las
entrevistas se formulaba el siguiente interrogante: “si pudiese elegir, ¿qué tipo de
trabajo le gustaría tener?”. Significativamente, las respuestas fueron unánimes y se
articularon en torno a frases del tipo “desearía un trabajo donde gane bien” o “un
laburo con un sueldo digno”. Parecería que, en quienes padecen el peso de la exclusión
social, la alienación se expresa minimizando las expectativas, impide soñar con un
trabajo que trascienda la dimensión monetaria y se ligue con aspectos creativos y
reconfortantes. Las respuestas apuntan a satisfacer las necesidades más acuciantes; no
hay espacio para fantasear, pues la realidad siempre contradice los deseos.

La necesidad de desencatar al trabajo


44 Circunscribiendo la atención en la esfera del trabajo, el objetivo del artículo consistió
en indagar etnográficamente la pertinencia del concepto de alienación en el análisis de
los procesos de precariedad laboral que afectan a quienes subsisten mediante la
recolección informal de residuos.
45 La noción de alienación ha mostrado ser pertinente a la hora de dilucidar la experiencia
que los recolectores han tenido en el mercado de trabajo. La enajenación supone un
proceso de deshumanización cuyo origen remite a verse forzado a vender la propia
fuerza de trabajo a cambio de un salario que apenas alcanza para la reproducción
familiar. A su vez, al evocar el pasado laboral, en el discurso de los informantes afloran
sensaciones de explotación y humillación, ligadas con la falta de poder y la
subordinación. También se ha verificado que la alienación supone que el producto del
trabajo e incluso la actividad realizada son ajenos al trabajador. Por otra parte, la
alienación específica que afecta a estos grupos se liga con el tipo de empleo para ellos
reservado. Se trata de trabajos no cualificados, los cuales se caracterizan por ser los
más precarios en cuanto a condiciones laborales y sueldos, inestabilidad y
temporalidad, falta de reconocimiento legal y peores tasas de siniestralidad. La
inserción laboral precaria genera límites muy difusos a la hora de distinguir entre el
trabajo y la economía informal. Ello es así pues, en poblaciones tan relegadas, no hay
grandes diferencias entre tener o no tener un trabajo –siempre y cuando exista la
posibilidad de subsistir mediante la economía informal–; en última instancia, ambos
casos suponen verse limitado a lo más básico. Hasta tal punto que, cuando se consulta al
informante por un empleo ideal, indefectiblemente las respuestas apuntan a “uno
donde gane bien”. Así, la alienación minimiza las expectativas de esta gente, reduce la
capacidad de imaginar un futuro promisorio.
46 Por otra parte, si entendemos de manera literal al concepto de la alienación,
llegaríamos a la conclusión de que no puede estar alienado quien no es explotado en el
marco del trabajo. Ampliando el sentido, la enajenación propia del desempleo
comenzaría a ligarse con la añoranza de lo perdido. El desempleado puede recordar con
nostalgia una etapa de su vida que supuso la integración a partir de la explotación
laboral. Ello es así pues, en la elaboración del propio pasado desde un presente marcado

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por el desempleo, la inserción laboral es el elemento destacado por sobre la


subordinación. De tal forma, este tipo de relatos denota cómo los recolectores
comparten los valores sociales dominantes, definiendo idealmente al trabajo como una
modalidad básica de pertenencia social. Claro que tales perspectivas idílicas del trabajo
se desmoronan cuando nuevamente consiguen un empleo. Esta serie de afirmaciones
son válidas para un sector de los recolectores, no así para quienes la subsistencia
siempre estuvo asociada con el basural pues nunca contaron con un empleo. No
obstante, más allá de las diferencias entre uno y otro grupo, en todos se verifica cómo el
malestar propio del desempleo en gran medida es conjurado a partir de las prácticas de
recuperación de residuos.
47 En cuanto a la relación entre alienación y economía informal, el primer punto a
destacar consiste en la valoración positiva de la propia agencia. Con la recuperación de
residuos, estas personas consiguen los recursos indispensables para la subsistencia
familiar, así como generan redes de sociabilidad basadas en el contacto cotidiano en el
vertedero, motivo por el cual suelen definir a la recolección como un trabajo. En
contraste con su experiencia en el mercado de empleo y con las etapas de desempleo, la
economía informal implica revertir ciertos aspectos del proceso de alienación. Como
ocurre con los empleos no cualificados, el ingreso percibido se circunscribe a lo mínimo
indispensable; no obstante, al no vender su fuerza de trabajo a un propietario de los
medios de producción, dimensiones como la subordinación a las arbitrariedades de un
jefe déspota son mitigadas. La sensación de autonomía, el orgullo de no depender de
nadie, la libertad de disponer del propio tiempo, son cuestiones subrayadas como
elementos positivos en sus discursos. En definitiva, la economía informal disminuye la
sensación de no controlar el propio destino; sólo es posible entender dicha cuestión en
contraposición a la alienación propia de los trabajos no cualificados destinados a estos
grupos.
48 Algunos ítems inherentes a la alienación laboral prácticamente no han surgido en los
discursos de estas personas. Tal es el caso de la competencia entre los hombres y de los
hombres con las máquinas, la cual no fue mencionada al referirse a la experiencia
vinculada al mercado de trabajo, mientras que sí hubo alusiones a la misma respecto de
la cantidad de personas que se aproximan al basural en búsqueda de materiales. Otros
puntos básicos en la definición de enajenación laboral se encuentran presentes tanto en
las etapas de acceso al empleo como de subsistencia mediante la economía informal. Es
lo que ocurre con la alienación como la disolución del ser genérico, los particularismos
primando sobre el sentido comunitario, la apropiación individual y egoísta de la
naturaleza.
49 Al ampliar los sentidos de la alienación, el proceso de deshumanización ha sido el factor
más destacable. La deshumanización es un elemento que se encuentra presente en los
trabajos no cualificados que implican explotación y humillación, en un desempleo que
estigmatiza y rodea de vacío la existencia del sujeto. En el caso de la economía informal,
el proceso de deshumanización se vincula con otras formas de precariedad social que
superan el marco analítico propuesto en este artículo. En una población que logra su
manutención gracias a lo que obtienen de un vertedero, cabe destacar la relación entre
subsistencia y salud en un espacio altamente contaminado; lo mismo ocurre con la
noción de estigma, ya no asociada con la pasividad del desempleo, sino con relacionarse
con aquello que la sociedad califica como “inmundicia”.

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50 En última instancia, la alienación que padecen estas personas guarda relación con un
hecho: el trabajo se encuentra dominado por sentidos contradictorios, por dilemas
imposibles de resolver que impactan negativamente en sus orientaciones cognitivas. Es
decir, los preceptos sociales dominantes son aceptados por los recolectores, pero
entran en contradicción con sus posibilidades laborales y con los espacios donde logran
la subsistencia. Las tácticas de subsistencia asociadas a la recuperación de objetos en el
basural ayudan a sobrellevar las dificultades materiales y el estigma de ser un
desempleado, pero nunca son plenamente satisfactorias. Ningún recolector imagina
escapar de la pobreza mediante dichas actividades, sino tan sólo sortear el presente de
la mejor manera posible. Dichas contradicciones son insalvables y representan una
fuente inagotable de malestar. En lo que al trabajo se refiere, tales contradicciones son
consecuencia de dos factores: a) el lugar que el mercado de trabajo otorga a los empleos
no cualificados; b) las formas de subsistir a las que apelan estas personas son
estigmatizadas. El mercado de trabajo no deja resquicios para esta gente, y los espacios
disponibles son tan denigrantes que no permiten una subsistencia digna. La
contradicción que deben afrontar reside en que la antigua ética del trabajo continúa
vigente, pero sus cualidades ya no encuentran expresión en la vida laboral (Sennett,
2000).
51 A partir de los 1970´ las tasas de desempleo se dispararon y, entonces, la pregunta
central para la sociología del trabajo fue cómo generar más empleo. Sin detenerse a
considerar en las características de los mismos, se propusieron soluciones que en
décadas anteriores hubiesen sido calificadas como alienantes. A modo de cierre, aquí se
sostiene la importancia de recuperar la categoría de alienación, pues esta supuso un
motor para la sociología clásica que permitió formular lecturas críticas de la realidad
social –especialmente en lo que refiere a la tensión inherente al trabajo entre los
principios de libertad y necesidad. Pero ello no debe conducirnos a repetir errores: las
críticas que la noción recibió por ser esencialista y utópica deben ser tenidas en cuenta.
Si la enajenación se inscribe en la historia, entonces nada nos permite afirmar que el
trabajo constituye una categoría antropológica, una invariante de la naturaleza
humana que propicia la realización personal; menos aún que el trabajo representa la
posibilidad de convertir a la producción en el principal acto social (Méda, 1995). En
cuanto al horizonte utópico, tras sostener la necesidad de contextualizar
históricamente a esta categoría, resulta imposible continuar percibiendo al trabajo
como el ámbito de liberación. Aquí no se propone descartar toda forma de propuesta
emancipatoria; lo que se cuestiona son los argumentos que circunscriben la utopía al
ámbito del trabajo (Gorz, 1995). Como sostiene Méda (1995), el trabajo se ha convertido
en “nuestro hecho social total”, es la relación social fundamental, y ello conlleva la
naturalización de presupuestos que deberían ser revisados: la abundancia como fin y
fundamento del productivismo; pensar en el trabajo como el epicentro de nuestra vida
social e individual –como mecanismo de distribución de la riqueza social, como el
ámbito primordial de la integración social y de la autorrealización personal, etc. Por
consiguiente, se torna preciso “desencantar al trabajo” (Méda, 1995, p. 238). Ello supone
desmarcarlo de las exageradas expectativas que le fueron atribuidas, e imaginar formas
alternativas de sociabilidad, de utilidad social, de integración y de desarrollo del sujeto
que escapan al marco del trabajo.

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BIBLIOGRAFÍA
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NOTAS
1. En las obras de Marx (1992, 2004) y Lukács (1983), la noción de enajenación es entendida como
sinónimo de alienación. Aquí continuamos con dicha propuesta, tratando a ambos términos como
equivalentes.
2. Es preciso aclarar que las cifras de pobreza y desempleo han sido generadas por el Instituto
Nacional de Estadísticas [INDEC], entidad cuestionada de haber manipulado políticamente las
estadísticas en los últimos años.
3. Incluso cuando se encuentran insertos en el mercado de empleo es común que los fines de
semana y de mes, cuando el salario se está agotando, busquen en el basural un ingreso extra.
4. En cuanto a la seguridad social, si bien los empleos no cualificados a los que acceden en
coyunturas favorables suponen un alto índice de siniestralidad, los mismos son insignificantes
respecto de los problemas para la salud inherentes al basural. Asimismo y por sobre todas las
cosas, cuando se valora la seguridad social propia de un empleo formal, el elemento priorizado es
el acceso a un sistema de salud para los hijos.
5. A lo largo de la historia los gobiernos condicionaron el socorro en función de “la capacidad de
trabajar”, diseccionando así a las poblaciones más desfavorecidas según un criterio de “pobres
dignos o indignos”. Los primeros eran aquellos que merecían ayuda, pues problemas de salud les
impedía ganarse el sustento por sus propios medios. Por el contrario, los pobres indignos eran
considerados como pícaros alérgicos al esfuerzo que optaban por subsistir mediante la caridad,
mereciendo el repudio social en vez del auxilio (Geremek, 1991).
6. El trabajo ordena y estructura la cotidianidad, arraiga al sujeto en un espacio social concreto
(Wilson, 1987). Buena parte de la sociabilidad diaria se desarrolla en donde las personas pasan la
mayor parte de su tiempo, en el ámbito laboral; lo mismo sucede con el vertedero en el caso de
los recolectores. Además, si la recolección suele ser identificadas como un trabajo por parte de
los recolectores, ello es consecuencia de la repetición de las prácticas en un mismo espacio: la
rutina en el basural limita la interacción social a dicho escenario, así como moldea la percepción
generando una sensación de continuidad espacio-temporal en los recorridos cotidianos (Rowe;
Wolch, 1990).
7. A su vez, en la recuperación de residuos el proceso de deshumanización responde a otras
dimensiones que, por motivos de espacio, no son tratadas en este texto –el estigma asociado con
el contacto corporal con aquellos objetos que la sociedad califica como “inmundicia”, los
problemas relacionados con la salud, etc.

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8. Cuando estas personas resaltan su agencia menospreciando la asistencia estatal, su discurso se


construye con relación a un otro identificado con “los piqueteros” –movimientos de
desempleados que realizan “piquetes”; es decir, cortan la circulación de las rutas reclamando por
empleos, mejoras laborales o planes de asistencia social. Es común que los recolectores busquen
legitimidad alegando no estar dispuestos a ganarse la vida reclamando la asistencia del gobierno
de turno. Pero el trabajo de campo detecta las contradicciones entre lo dicho y lo hecho –las
cuales guardan relación con un sentido de dignidad que se articula en torno al principio de
autonomía, distanciándose de la asistencia social–, pues la mayoría de los recolectores tiene
acceso a planes sociales.

RESÚMENES
A partir de una etnografía realizada con quienes subsisten mediante la recuperación informal de
residuos en el basural de Comodoro Rivadavia –ciudad de la Patagonia Argentina–, el objetivo del
artículo consiste en poner en tensión al concepto de alienación. Así, se examinan las virtudes y
límites de la noción de alienación en el análisis de la precariedad laboral que afecta a los
recolectores. Dado que las biografías laborales de estas personas suponen la recurrente
alternancia entre períodos de inserción en el mercado de empleo, desempleo, y subsistencia
mediante la economía informal, el artículo supone dilucidar los siguientes interrogantes: ¿cómo
se dimensiona la noción de alienación en cada una de estas etapas? Habiendo sido definida en
función de la explotación laboral, ¿cómo se reconfiguran los procesos de alienación ante el
desempleo?; ¿cómo interpretar dichos procesos con relación a una subsistencia que se articula en
torno a la economía informal?

Starting with an ethnography conducted with informal garbage collectors in Comodoro


Rivadavia’s dump in Argentina, the objective of the paper is to analyse the concept of alienation.
It examines the strengths and limits of the concept of alienation in the analysis of job insecurity
affecting these people. Their labor biographies involve alternating periods of insertion in the
labor market, periods of unemployment, and periods of subsisting in the informal economy.
Thus, the article pretends to answer the following questions: how does the notion of alienation
work in each of these stages? Having been defined in terms of labor exploitation, how do we
understand the processes of alienation when faced with unemployment?, and how do we
understand the processes of alienation in relation to a subsistence that revolves around informal
economy?

ÍNDICE
Keywords: alienation, informal economy, unemployment, work
Palabras claves: alienación, desempleo, economía informal, trabajo

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AUTOR
SANTIAGO BACHILLER
Concejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONICET) – Argentina

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Relações de trabalho nos balatais do


Pará
Luciana Gonçalves de Carvalho

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

NOTA DO AUTOR
Artigo resultante de ações de pesquisa e extensão realizadas no âmbito do Programa de
Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia (Ufopa; Proext/MEC 2010-2011), do qual faz
parte o projeto Memórias de Balateiros de Monte Alegre, ao qual está vinculado o
bolsista Marcelo Araújo da Silva (Pibic/CNPq).

1 No dia 4 de dezembro de 2005 o caminho de volta para a sede municipal de Monte


Alegre, no Pará, parecia menos árduo do que se afigurara na ida, talvez mais pela
satisfação da curiosidade antropológica em relação ao ambiente e contexto do trabalho
executado, num passado não muito distante, por centenas de homens daquela
localidade, do que pelas condições objetivas das estradas e dos ramais que tínhamos
que vencer em cerca de dez horas de viagem. Elas se mostravam tão ruins quanto na
ida, embora o motorista já lhes conhecesse melhor os percalços. A carroceria da Toyota,
adaptada com bancos de madeira e espaços calculados para acondicionar caixas de
isopor com alimentos e bebidas que seriam consumidas na expedição, levava também,
além dos participantes da empreitada: um cão de caça que se juntara ao grupo depois
de perseguir incansavelmente o veículo num ramal, um útil e comprido pedaço de pau,
que fora retirado da floresta com o fim de ajudar a desatolar o carro em muitas
passagens, e grandes cachos de bananas verdes. Apesar da agrura da viagem, dos
choques dos bancos e demais objetos em nossas pernas quando o carro literalmente

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pulava nos buracos do caminho, fazendo que fosse virar, aquela carroceria se tornara
um lugar de festa e júbilo. As conversas eram embaladas por sonoras risadas e doses de
cachaça, em comemoração ao grande feito do grupo: a expedição bem sucedida ao
balatal Água Azul, ao norte de Monte Alegre.
2 O grupo era formado por um balateiro (extrativista), um mateiro (bom conhecedor da
floresta), um artesão que confecciona objetos de balata (látex da árvore popularmente
chamada balateira), um motorista, um engenheiro florestal, um fotógrafo e eu. 1 Com
exceção do experiente balateiro Pedro Ferreira Rodrigues, unicamente conhecido como
Pão, todos eram “marinheiros de primeira viagem” ao Água Azul. O balatal (local na
floresta onde há significativa ocorrência de balateiras) parecia um lugar quase mítico:
em Pão despertava lembranças de glória, saúde e conquistas; nos demais, uma
curiosidade sem igual. O deslumbramento diante das histórias narradas pelo balateiro
nos dias anteriores à viagem, os rememorados mistérios e perigos da mata, os
encontros com os índios apalai, o fascínio exercido pelo sinuoso curso do rio Maicuru,
por onde os homens subiam e “varavam” para as Guianas, tudo isso formava no grupo
um clima de ansiedade, excitação e solidariedade, que marcaria toda a viagem. Pão
estimulava a imaginação: “Certa vez, vivi nove meses numa aldeia, porque os índios me
agarraram. Eu sentia saudade de vir embora, mas não tinha chance. Uma noite, eu fugi
deles e ganhei o mato. Eu levo na gíria dos índios…” (Carvalho, 2011, p. 170).
3 Pão, durante décadas, havia extraído – “tirado” ou “cortado”, como se diz entre os
envolvidos no ofício – toneladas de balata para grandes patrões de Monte Alegre. Ao
longo das muitas safras em que trabalhou, amealhou poucos ganhos e não chegou a
constituir patrimônio. Também não fez família, morava com a irmã e contava 66 anos à
época da expedição. Com aparência debilitada, às vezes ainda subia o Maicuru para
cortar balata para o artesão que nos acompanhara em viagem, o qual tomara o lugar
dos antigos patrões depois que o negócio da balata declinou, a partir da década de 1970,
quando o produto perdeu espaço e preço no mercado internacional e passou a ser
explorado exclusivamente para a confecção de um tipo de artesanato (de figuras
moldadas com o látex, em forma de animais e tipos humanos amazônicos) que é
encontrado em Monte Alegre, Santarém e Belém (Carvalho, 2006; Simonian, 2006).
4 O esquema de trabalho era tão duro em 2005 quanto nas áureas épocas em que essa
matéria-prima constituiu um dos principais produtos de exportação do Pará, entre os
1950 e 1970. Baseado no aviamento (Aramburu, 1994; Buclet, 2008), o sistema de
trabalho que imperou nos balatais desse estado assemelhou-se àqueles que regeram a
exploração de outros recursos naturais da Amazônia brasileira, em especial a seringa,
que em outros aspectos também lhe é comparável. O modelo analítico do “seringal do
apogeu”, cunhado por João Pacheco de Oliveira Filho (1979, p. 126) em contraste com o
do “seringal caboclo”, ilustra bem as características do trabalho nos balatais paraenses:
privilegiamento do uso da mão de obra do trabalhador isolado, 2 elevando-se sua
produtividade e especializando-o na função extrativista, muito embora nos balatais a
grande maioria dos exploradores fosse nativa, ao contrário do que se passara no
empreendimento descrito pelo autor como sendo baseado em mão de obra “quase
totalmente importada”.
5 Não se sabe ao certo quantos homens trabalharam nos balatais do Pará, mas não é
demais cogitar que seu número tenha alçado a casa do milhar: Lins (2001) menciona
cerca de 500 atuando entre os anos 1940 e 1960 em Almeirim; a missionária Sally Koehn
estimara 100, no Paru, em 1989 (Lopes, 1994); em Monte Alegre, desde 2005 já

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identificamos uma centena deles, ainda vivos, que relembram um sem número de
companheiros que partiram. Em Alenquer também se encontram facilmente, e houve
outros, em menor número, em Óbidos (Simonian, 2001) e Abaetetuba (Instituto do
Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986).
6 São poucas as fontes disponíveis para uma reconstituição segura de fatos expressivos da
exploração de balata no Brasil, destacando-se entre elas análises botânicas e
econômicas (Brannt, 1900; Hubert, 1907; Instituto do Desenvolvimento Econômico-
Social do Pará, 1986; Le Cointe, 1947), e alguns relatos históricos e literários (Almeida,
1979; Brilhante, 1998; Lins, 2001; Meira, 1984; Reis, 1999). Estudos sobre os Yanomami e
os Wayana-Aparai indicam os balateiros como precursores dos contatos desses
indígenas com a população cabocla ou não índia da Amazônia, mas não revelam muito
sobre o cotidiano dos intercursos mantidos por esses diferentes grupos. Lopes (1994)
menciona núcleos regionalistas constituídos por barracões de balateiros, com os quais
os Wayana-Aparai mantiveram contatos na década de 1960, no baixo Paru. Simonian
(2001, 2006), por sua vez, tem se dedicado a investigações sobre relações de trabalho e
gênero nos balatais, insistindo em fazer notar a importância da mulher nesse universo
indiscutivelmente masculino, em que a participação feminina é recorrentemente
omitida por estudos científicos, textos literários e narrativas de homens.
7 Diante da escassez de fontes sobre o tema, o registro de memórias e relatos orais de
extrativistas, iniciado em fins de 2005, na expedição ao Água Azul, tem se revelado um
método privilegiado para a reconstituição e compreensão dos contextos, processos,
laços e sentidos do trabalho realizado nos balatais do Pará. Numerosos e acessíveis,
ainda atuantes ou não, os balateiros são facilmente identificáveis nessas localidades:
nas biroscas, nas feiras e nos bares, ou nas beiradas de rio, logo são indicados quando
procurados. Dispostos a falar, oferecem muitas lembranças para registro sistemático, e
não se inibem diante de aparelhos como gravadores e câmeras fotográficas ou
filmadoras. Ao contrário, gostam de se arrumar para receber e encontrar os
pesquisadores; vestem calças, camisas de abotoar e chapéu, e, de preferência calçam
sapatos ou sandálias fechadas, evitando chinelos. Rapidamente põem-se a narrar
viagens difíceis, ataques de onças, alagamentos nas corredeiras dos rios, quedas
sofridas ao escalarem as árvores para corte, aparecimento de visagens, 3 e assim vão
tecendo lembranças de um trabalho duro, arriscado e sofrido, mas igualmente saudoso.
Adelson Braga conta:
Certa vez peguei uma catapora. O mais complicado no balatal é que, quando a gente
adoece, não tem como voltar. Também era ruim levantar de madrugada e enfrentar
a ianga que aparecia por lá assoviando. A ianga é um bicho invisível, que fica
assoviando. Ela bate no cachorro, dá pisa em cachorro e a gente não vê. (Carvalho,
2011, p. 47).
8 Ao mesmo tempo, relatam a fartura das florestas traduzida em muitos tipos de caças,
peixes e frutas, a coragem empenhada no desbravamento de áreas indômitas, o
companheirismo nas formas de controlar ou burlar a vigilância, a severidade e a
desconfiança dos patrões, a saúde física e mental que só o balatal lhes dava. Eloi
Balateiro explica:
No acampamento, a gente fazia uma barraca de palha, o tapiri. Nossa alimentação
era café com leite, quando tinha. E o rio era tão farto na baixada que, quando
terminava o fogo, o outro peixe já estava fisgado. Tínhamos muitas frutas,
tirávamos para manutenção do tapiri. E caça também, de todo tipo. Peixe, então…
essa era a boia. Também existiam bichos perigosos, como cobra e onça. (Carvalho,
2011, p. 70).

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9 Emocionam-se e confessam mortificante saudade dos balatais, que relembram como


uma espécie de “terra sem males” onde sofrimento se concilia com prazer: “as pessoas
nesse lugar não envelhecem e nem morrem, e lá não há sofrimento” (Santos, A., 2012).
Não raro, afirmam que gostariam de voltar a eles, mesmo que não possam mais com a
lida extrativista por causa das debilidades provocadas pelo avanço da idade e – em
alguns casos – mutilações adquiridas nos próprios balatais. Se já não podem ir, desejam
ao menos contar como o faziam em outros tempos.
10 Ouvi-los e registrar seus relatos tem sido a prática da investigação desenvolvida em
Monte Alegre, Almeirim e Alenquer a fim de compreender as relações de trabalho nos
balatais do Pará. Cerca de 70 balateiros já foram consultados nesta pesquisa, e a seus
relatos somam-se levantamentos bibliográficos e documentais realizados em
bibliotecas, arquivos públicos e particulares, fóruns de justiça e outros órgãos públicos
daqueles municípios.
11 Neste artigo apresentam-se reflexões sobre as relações sociais que sustentavam a
hierarquia da cadeia produtiva da balata e organizavam a estada dos homens no
território continuamente explorado dos balatais. As reflexões organizam-se em dois
eixos fundamentais das experiências vividas e narradas por esses homens – contextos e
processos de extração, e laços e sentidos do trabalho nos balatais – conforme se pode
reconstitui-los com o concurso de suas memórias, eventualmente complementadas por
documentos. O exercício ilumina aspectos da existência social de trabalhadores pouco
conhecidos na literatura antropológica brasileira e aponta possibilidades de uso de
relatos orais e biográficos para a compreensão de contextos sociais mais abrangentes, já
ponderadas por outros autores (Bertaux, 1980; Bosi, 1999; Bourdieu, 2002; Nogueira,
1952; Queiroz, 1988). Com Halbwachs (1990, p. 45), buscam-se memórias individuais no
plano em que
[…] se destacam as lembranças dos acontecimentos e das experiências que
concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria
vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos, mais frequentemente em
contato com ele.
12 A maioria dos entrevistados está na faixa dos 60 a 80 anos de idade. Residindo em áreas
urbanas ou rurais, ainda mantêm alguma atividade produtiva (na roça e em alguns
biscates) ou recebem algum valor a título de aposentadoria ou benefício, mas são raros
os contemplados com a pensão vitalícia garantida pela Constituição Federal de 1988 aos
“soldados da borracha”, categoria na qual se enquadrariam pelo tipo de trabalho
executado. Ressentem-se do esquecimento a que foram relegados na velhice, após o fim
do negócio da balata, e de não terem constituído riquezas ou relacionamentos mais
duradouros por conta dos grandes deslocamentos nas safras anuais. Entre
esquecimentos e lembranças, se busca compreender experiências desses sujeitos a
partir do lugar ocupado pelo ofício de balateiro em suas vidas.

Contextos e processos da extração de balata no Pará


13 A extração gomífera na Amazônia, dentro e fora do Brasil, é uma atividade econômica
estudada desde pelo menos o século XIX, praticada por indígenas mesmo antes da
grande exploração das árvores de látex visando ao mercado internacional. Segundo
Marcoy (2006, p. 70), “devemos aos Omaguas a descoberta do preparo da seiva da
figueira e da Hevea, que eles chamam cahechu, donde o nosso termo caucho. Com esse

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sumo viscoso eles fazem seringas em forma de pera, tubos, sandálias, braceletes e
outros objetos.”
14 Dentre as diferentes espécies cortadas ou “sangradas” para retirada de látex foi a Hevea
brasiliensis, popularmente conhecida como seringueira, a que mais recebeu atenção de
pesquisadores (botânicos, biólogos, economistas, historiadores, antropólogos e outros),
literatos e governos.4 Também foi em torno dela que se articularam as maiores e mais
densas redes de exploração de recursos naturais e do trabalho humano na Amazônia
brasileira, tendo o estado do Pará movimentado significativas quantias em pelo menos
dois momentos históricos, recorrentemente designados como o primeiro e o segundo
ciclo da borracha – compreendidos de fins do século XIX à primeira década do seguinte
e de 1942 a 1945, respectivamente. A noção de ciclo, apesar de ter obtido “consagração
científica no plano nacional que garantia estatuto teórico às historiografias que dela se
servissem”, foi criticada por Oliveira, na medida em que “impôs-se como modelo de
organização dos fatos históricos ligados à produção da borracha na Amazônia”,
funcionando como um “mecanismo de filtragem e incorporação de fatos a uma forma
pré-definida, excluindo sistematicamente aqueles fenômenos que pudessem refutar ou
relativizar seu valor heurístico” (Oliveira Filho, 1979, p. 102).
15 Com menos ímpeto e abrangência que a da borracha, a exploração da balata também
teve sua importância no Brasil, sobretudo no Pará,5 assim como na Venezuela, Costa
Rica e nas Antilhas (Brannt, 1900; Hubert, 1907) e, ainda, nas Guianas, 6 onde Simonian
(2006) refere ter sido feita por presidiários em Caiena e por populações arawak e karib,
que a usavam na produção de ornamentos. Segundo Brannt (1900), essa matéria-prima
se tornou conhecida no meio científico por intermédio de um artigo e de uma
comunicação apresentada pelo professor Bleekrode em 1857, na Sociedade das Artes,
em Londres. Nos anos seguintes, amostras do leite vegetal colhido na América do Sul
foram enviadas para o Kew Bridge Steam Museum, naquela mesma cidade. Logo, antes
de findarem os 1800, aplicações industriais na Europa passaram a demandar crescente
volume do leite beneficiado para uso na construção civil e naval, em correias de
transmissão, materiais telefônicos, odontológicos, telegráficos, isolantes, eletrônicos e
de iluminação, além de solas, polias, bolas de golfe e outros artigos impermeáveis que
dispensassem vulcanização (Hubert, 1907; Le Cointe, 1947). Até os anos 1970, a
exploração da balata seria vultosa na região equatorial, mobilizando populações
amazônicas para sangrar árvores e saciar os mercados europeu e norte-americano.
Referindo-se à forma de coleta praticada na Venezuela – a balateira era derrubada e seu
leite escorria dentro de vasilhas, através de cortes feitos no tronco posto em posição
horizontal – Hubert, em 1907, já demonstra preocupação com medidas
conservacionistas e de replantio.
16 A espécie de balateira mais explorada no Brasil foi a Manilkara bidentata, uma árvore da
família das sapotáceas cujo tronco atinge entre 30 e 40 metros de altura e seis de
circunferência (Lins, 2001). Paul Le Cointe (1947 apud Instituto do Desenvolvimento
Econômico-Social do Pará, 1986, p. 1) a descreveu como uma “madeira vermelha, quase
roxa, muito compacta e resistente, de primeira qualidade”, dotada de alto poder
calorífico. Sobre seu látex branco, informa produzi-lo “à razão de 1 kg por árvore
sangrada em 1/3 de sua circunferência, de três em três anos”. Sua composição, em que
entram 42% a 48% de guta, 37% a 44% de resina, 2% a 14% de impurezas e 1% a 8% de
água (Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986), lhe garante
atributos como ductilidade e elasticidade.

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17 A principal área de ocorrência e exploração da balateira no Pará corresponde às


florestas circunscritas pelos rios Curuá, Maicuru, Paru e Jari. No mapa que fazem os
balateiros, a árvore só aparece na “região da linha”, isto é, do Equador, e é mais
frequente “nos altos”, ou seja, no alto curso das águas encachoeiradas daqueles rios, em
territórios pertencentes aos municípios de Alenquer, Monte Alegre e Almeirim,
situados na margem esquerda do Amazonas. Por isso as expedições de corte tinham que
ser feitas no período chuvoso do chamado inverno amazônico, a fim de aproveitar as
enchentes e tornar menos árdua a transposição das corredeiras e cachoeiras. Mesmo,
assim, em vários trechos de viagem era preciso carregar a canoa por terra, rio acima,
para evitar choques fatais com as pedras do caminho. A sazonalidade e a regência das
águas são fatos da “morfologia social”7 da população regional, em especial dos grupos
extrativistas. Segundo Benedito Monteiro (1995, p. 104): “Enchente e vazante
comandavam toda a vida. Precisava saber, porque – no princípio da enchente – é que se
faz muitas coisas.” Sobre o ritmo dos trabalhos extrativistas em Alenquer, ele
acrescenta:
A turma de balateiros do Mundico Santiago já subiu bem pro alto. Só vão puxar
canoa mesmo na praia grande da volta do Igarapé do Inferno. Nas cachoeiras tem
que subir por terra e levar a mercadoria no ombro. Subiram também os
castanheiros do velho Miléo: quando o velho Miléo sobe com os castanheiros é
porque tudo que é Igarapé está dando água. (Monteiro, 1995, p. 104).
18 Outro motivo para limitar o corte das árvores à época das chuvas é o fato de que, na
seca, o látex fica muito concentrado e não escorre, dificultando o trabalho e diminuindo
a produtividade do balateiro (Lins, 2001). A produtividade era preocupação central do
extrativista e dos agenciadores de seu trabalho. Os ganhos dos balateiros, assim como
de todos os elementos da cadeia produtiva, eram calculados com base na quantidade de
látex extraído, beneficiado e efetivamente vendido, não se levando em conta o volume
de trabalho dispensado pelos homens na obtenção e no transporte da matéria-prima
até os galpões onde ela era pesada e repassada aos patrões. Considerando-se as
distâncias e dificuldades do percurso rio acima e floresta adentro, que podia durar até
um mês em embarcação a remo, e os riscos de perda de matéria-prima no retorno,
também pelo rio encachoeirado, os balateiros praticavam expedições com duração de
seis meses em média, por ano. Pelo menos quatro deles eram passados na floresta.
Deixavam a canoa em algum esconderijo e adentravam a floresta, para ficarem mais
perto dos balatais.
19 O tempo nos balatais era principalmente dedicado ao corte das árvores e
beneficiamento do látex, mas também era preciso caçar, pescar, colher frutos e
preparar refeições. Alguns balateiros plantavam frutíferas e delas se serviam em safras
seguintes. Para habitar construíam barracas com paus sustentados em forquilhas feitas
deles próprios, num arranjo angular que se equilibra com o peso dos homens nas redes
de dormir. Como cobertura usavam encerados, e essa era toda a estrutura das moradas
na mata, chamadas tapiris. A sobrevivência em tais condições resultava de bons
instrumentos de trabalho, armas e munição, linhas de pesca, muito esforço físico e
alguma sorte. Também era necessário levar consigo alimentos enlatados, farinha, arroz,
sal, açúcar, café e medicamentos como analgésico, antiácidos, antibióticos, anti-
inflamatórios e contravenenos, a exemplo do sempre lembrado Específico Pessoa. Todo o
mantimento era para uso comum dos homens que dividiam um tapiri; da mesma forma,
eram coletivizadas as tarefas de obtenção e/ou preparação dos alimentos. Os

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instrumentos de trabalho, no entanto, eram individuais, assim como as atividades de


extração e beneficiamento dos blocos, e os respectivos ganhos.
20 O corte da balateira se faz com terçado, em formato de “espinha de peixe”, no tronco e,
às vezes, nos galhos mais grossos, sempre de baixo para cima. Quando a balateira é
“boa”, o leite escorre pelos sulcos para um saco fixado ao pé da árvore, o embutidor,
que é feito de tecido grosso e impermeabilizado por dentro com a própria balata. O
extrativista, vestido com calça e blusão de mescla, de caneleiras e botas com esporas
presas por francaletes, e portando um cinturão regulado por chavetas, vai escalando a
árvore com auxílio de um cabo de aço, que joga para cima à medida dos cortes. As
roupas (fardas) e os equipamentos eram feitos em pequenas oficinas domésticas 8 e
somavam mais de 20 quilos, que o balateiro suportava durante oito, dez horas de
trabalho. Fadiga, dores musculares, ardência e inchaços nas pernas eram males
diariamente experimentados.
21 As áreas preferenciais de corte eram as “reboladas” ou “reboleiras”, onde as árvores se
concentravam. Antes de clarear o dia cada homem rumava para esses locais, não raro
distantes de sua pousada, e retornava para o tapiri pela tarde. Nesse ínterim, a água
para beber era a que se levava em vasilhames, e o alimento era o que se podia
conseguir. Segundo Lins (2001), 12 era o número médio de árvores cortadas
diariamente por um balateiro. Quando os embutidores estavam cheios, seu conteúdo
era transferido para um saco maior, igualmente feito de tecido grosso e
impermeabilizado com balata, o “carregador”. Cada balateiro trazia nas costas seu
carregador e, então, o látex coletado era despejado numa espécie de tanque cavado no
chão, que é revestido com balata para impermeabilizar. Numa bacia ao fogo o leite era
cozido em torno de duas horas, mexendo-se a massa fina e pegajosa com uma pá de
madeira, para não pegar no fundo. Chegada ao ponto, a massa era retirada e jogada no
“puxador”, uma trave de pau roliço posta acima de um jirau: enquanto é sovada pelo
balateiro com as próprias mãos, ela “vem distendendo até o jirau, onde é novamente
repetida a operação” (Lins, 2001, p. 127). Segue-se uma lavagem com água para retirar
impurezas (gravetos, palhas, areia) que tenham resistido ao “puxador”. Com a frieza da
água a massa começa a endurecer, então urge tratá-la para a forma final como é
comercializada. Lâminas da massa são superpostas em espécies de tanques de madeira
atravessados por um pedaço de pau e forrados com folhas verdes, para impedir que a
balata grude no recipiente, onde ela enfim endurece formando blocos de 50 quilos em
média. O dono ferra nos blocos as iniciais de seu nome, para identificar sua produção.
Em contato com água a balata mantém-se hidratada, evitando rachar ou quebrar. Por
isso, os blocos podem ser armazenados em igarapés.
22 Ao fim da safra os blocos eram levados nas costas até o ponto de embarque de volta
para casa. Cedendo ao esforço, os balateiros arriavam a carga por vezes ao longo da
caminhada: eram os chamados “tombos” ou “estações”, unidades de medida da
distância do acampamento até o rio.
O trabalho era muito arrebentado. Subindo serra grande, com a balata nas costas. A
gente tinha que carregar toda a balata. Tinha trecho com 30, 40, 60 estações. A
estação era o seguinte: carregava os blocos daqui até ali, baixava tudo. Era uma
estação. Dali continuava a viagem, do mesmo modo, com quantas estações fossem,
até chegar na beira do rio. [Depoimento de Manoel Cristo (Luci).] (Carvalho, 2011,
p. 138-139).
23 Como os blocos eram vazados (por causa do pau em torno do qual endureciam), era
possível atá-los uns aos outros através cabos de arame. Cerca de 10 blocos enfileirados

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constituíam um “lingada”, e algumas destas, presas a uma estrutura de aço,


compunham um “matulão”. Remando canoas rio abaixo, os homens traziam-nos “de
bubuia”, isto é, boiando. Tinha-se que aproveitar ainda as “águas grandes”, antes de a
vazante comprometer a navegabilidade. O maior risco era perder a carga em choques
nas corredeiras e cachoeiras: “a gente era feliz de tirar a balata quando ela não
engatava na cachoeira. Aí era bom! Mas quando os blocos engatavam, só no verão é que
a gente tirava a balata de dentro d’água” – explica Luci. Se fosse preciso sair da água e
levar a canoa por terra, repetiam-se os “tombos” no transporte dos blocos até o ponto
de reembarque. Assim, os balateiros seguiam viagem até a cidade, onde a balata seria
entregue nos galpões dos patrões.

Laços e sentidos do trabalho nos balatais


24 Com intuito de não serem trapaceados pelos patrões na pesagem dos blocos de balata,
pelos quais recebiam pagamento em dinheiro, alguns balateiros, desprovidos de
equipamentos próprios para conferência do peso da mercadoria, lançavam mão de
expedientes na floresta para calcularem o peso médio de sua produção. Outros, por sua
vez, trapaceavam os patrões, misturando à balata outros leites vegetais de menor
qualidade9 ou até mesmo pedaços de paus, terra, pedras, para aumentar o peso dos
blocos. Quando descobertas, essas trapaças eram punidas com descontos e o balateiro
era rejeitado nas safras seguintes.
25 O contingente de homens em busca de trabalho era muito grande, mas os bons
extrativistas eram especialmente procurados pelos patrões, que com eles costumavam
estabelecer relações de trabalho relativamente duradouras, dentro do limite do
interesse do mercado internacional no produto daquela mão de obra. Tais relações,
entretanto, eram geralmente intermediadas pelo “encarregado” ou pelo “chefe de
turma”, que desempenhavam papeis centrais no sistema de aviamento que
movimentava toda a cadeia produtiva da balata no oeste do Pará. Como explica um
balateiro:
Antes da gente ir pro balatal, tratava com o patrão as mercadorias pra ficar pra
mulher, deixava a conta aberta pra todo mês ela tirar a mercadoria, e eu tirava a
mercadoria pra levar pro balatal: espingarda, cartucho, terçado, munição completa,
sal, sabão, querosene. [Depoimento de João Ferreira da Silva.] (Carvalho, 2011,
p. 99).
26 Aramburu (1994, p. 1) define o aviamento como “um sistema de adiantamento de
mercadorias a crédito” que se desenvolveu na Amazônia desde a época colonial e se
consolidou no chamado ciclo da borracha, tornando-se modelo estruturante das
relações sociais, e não só de trabalho e comércio na região. Miyazaki e Ono (1958,
p. 269) registraram não haver “nenhuma produção no Amazonas que não tenha alguma
relação com o sistema de aviamento”, enquanto Wagley (1977, p. 108) tratou esse
último como o padrão de “relações tradicionais entre comerciantes e fregueses,
constituindo um forte elo social e econômico”. Esse elo baseava-se simultaneamente em
dependência material e num senso de lealdade entre as partes.
O grande enigma que a maioria dos autores encontrava no aviamento era a
formação de uma moralidade especial, aquela que liga o patrão ao freguês mediante
poderosos laços de fidelidade e deveres morais mútuos. A fidelidade comercial do
freguês é um termo de uma relação cujo outro termo são as obrigações morais que
os patrões têm para com seus clientes em casos de dificuldade. A relação entre o

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comerciante e o freguês é uma relação social central na vida do interior amazônico,


pois não só possibilita a existência de produção mercantil mas constitui relação de
poder sujeita a uma moralidade que dispõe prescrições morais de ajuda aos
fregueses em casos de perigo (doenças, carestias etc.) em troca de uma relação
comercial monopolista. (Aramburu, 1994, p. 2).
27 É importante salientar que, na economia e na hierarquia da balata, diferentes funções
específicas podiam ser designadas pelo termo “patrão”, havendo diferenças sutis de
acordo com os postos ocupadas na cadeia estratificada do aviamento.
Não, o meu irmão foi patrão; o meu pai foi balateiro, um aviado. Já o meu irmão foi
balateiro e depois foi patrão, que chamavam de aviador, porque na época era da
seguinte maneira: o Ib Sabá era a firma que financiava, uma firma reconhecida na
região aqui. Ele financiava um cidadão por nome Tote Brito, Antonio Brito, então
esse Tote Brito fazia a distribuição. Ele aviava os patrões, os chefes de turma, aqui
pela região, então eram vários aqui. Então esse pessoal aviava os balateiros. Era a
aviação: aviação é aquilo que fornece, o balateiro pegava dinheiro, o abono pra
deixar pra família, tirava todo o mantimento pra passar cinco, seis, sete meses no
balatal pra fazer a extração. (Bernaldino Elias, entrevista concedida a Marcelo
Araújo da Silva).
28 No topo estavam os patrões estrangeiros, isto é, investidores externos que compravam
o produto final e forneciam, para sustentação da cadeia produtiva, itens como tecidos,
alimentos industrializados, calçados e outros que não se confeccionavam na região.
Esses patrões ficavam em Belém ou Manaus, cuidando das exportações de balata para a
Europa e os Estados Unidos, e raramente visitavam as cidades onde mantinham
negócios. Mandavam representantes comerciais para o Baixo Amazonas em grandes
embarcações chamadas batelões, para negociarem em seu nome, cobrarem dívidas,
entregarem mercadorias e recolherem pagamentos dos patrões locais – em blocos de
balata. Com as mercadorias recebidas, os patrões locais podiam aviar homens para nova
safra, e nesse mister também contavam com intermediários.
29 A distância mantida pelos patrões estrangeiros em relação a seus subalternos
amazônidas era reproduzida pelos patrões locais para com aqueles que estavam na base
da hierarquia. A serviço dos patrões locais, o “encarregado” era o responsável pela
arregimentação de extrativistas na cidade e nos povoados rurais. Sua tarefa se
assemelha em certos aspectos à dos “gatos” contratados por empresários e fazendeiros
para aliciar homens para posições de trabalho em regime análogo ao escravo,
caracterizado como escravidão por dívida (Esterci; Rezende, 2001; Rezende, 2004; Silva,
J., 2008).10 No caso da balata, o encarregado era frequentemente um pequeno produtor
ou comerciante de itens da economia rural e extrativista da localidade, conhecido e
relativamente próximo de seus recrutas, dos quais se diferenciava por deter posses
suficientes para mandar um explorador à floresta a fim de identificar balatais bons para
corte e contratar número adequado de homens para tal serviço.
30 Em regra, a exploração ficava a cargo de mateiros, gateiros (caçadores de felinos que
comercializavam peles) ou balateiros experientes que, trabalhando ou não na safra em
questão, faziam reconhecimento das árvores e, abrindo aceiros (caminhos, picos) com
terçado, demarcavam o território a ser explorado por tal patrão. Essa demarcação era
reconhecida e respeitada pelos demais, de um modo geral. Na volta da mata, o
explorador aproveitava para coletar castanha, andiroba e outros produtos vegetais que
lhe complementavam os ganhos (Silva, M., 2012). Calculado o número de extrativistas
suportado pelo território, o “encarregado” passava à contratação de um “chefe de
turma” – em caso de não pretender ele próprio partir no comando dos homens para o

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balatal, o que era muito comum. Vale ressaltar que, na prática, essas duas funções
coincidem com frequência, sendo desempenhadas pelos mesmos sujeitos, e os termos
“encarregado” e “chefe de turma” acabam recorrentemente intercambiados no
discurso dos trabalhadores da balata, muito embora no balatal o chefe tivesse funções
práticas bem definidas e distintas da de um provedor.
31 Os contratos intermediados pelos encarregados eram informais, mas em relação aos
patrões esses empreendedores nativos logo se tornavam presos por dívidas e
comprometidos por fidelização. Isso porque, para arregimentarem balateiros,
precisavam de dinheiro e gêneros variados à sua disposição, que o patrão adiantava em
confiança na palavra do homem e na safra vindoura. Caso algo saísse mal na expedição
de coleta, era o encarregado que precisava honrar o compromisso com o patrão. Em
relação aos extrativistas, os acordos de trabalho eram verbais, mas sacramentados por
dois tipos de papel: papel moeda para pagamento de um “abono” em espécie – em geral
para pagar contas ou prover itens que precisavam ser pagos em dinheiro, ou, como
muitos contam, “só para beber cachaça” – e folhas de caderno para anotação das
dívidas que o balateiro logo começava a fazer, adquirindo alimentos, medicamentos,
roupas, calçados e equipamentos dos quais necessitaria nos meses seguintes, no balatal.
Nessas folhas também seria aberta uma conta da família do trabalhador, que ao
superior recorreria para obter provisões e auxílio emergencial. Dessa maneira,
intermediando a circulação de contatos, dinheiro, serviços e mercadorias, o
encarregado frequentemente era visto pelos balateiros como o próprio patrão.
Eu trabalhei cinco anos com um velho por nome Memório. Esse velho era o chefe de
turma, era ele quem levava a gente pro balatal. Quando chegamos aqui de barco, era
100 mil réis a passagem. Eu soube desse velho, fui lá com mais outros que vieram no
barco. Ele recebeu todos que foram falar com ele; quando acabou de atender o
pessoal eu fui falar com o homem, expliquei que tinha vindo de Santarém, queria
trabalhar, se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que estava subindo com
uma turma pro balatal, perguntou logo se eu já tinha cortado balata. Eu disse que
não, mas que era acostumado com trabalho, perguntei se ele pagava minha
passagem do barco. Eu vim de passagem fiada, e o capitão do barco ficou muito
brabo quando eu disse que não tinha com que pagar a passagem, quis até me jogar
n’água. Aí o outo rapaz que trabalhava com ele disse: “Para com isso, tu vai te sujar
por causa de uma passagem? Depois ele vem e paga.” Quando terminei de contar
pro velho essas coisas ele tirou 500 réis do bolso e me deu, disse que eu não me
preocupasse que já ia mandar pagar a passagem. Aí ele disse: “Tu tem roupa boa?
Hoje tem uma festa, se tu quiser ir e não tiver roupa, bora ali no compadre que já
resolvemos isso.” Fui pra lá com ele, comprou logo calça, camisa e sapato social. Era
caro, mas ele ia descontar na produção eu não paguei na hora. Numa terça-feira,
uns dois dias depois da festa, a turma subiu. Foi assim que eu fui a primeira vez, foi
esse velho Memório que me levou.
32 No balatal o desempenho da função de chefe de turma exigia mais que recursos
materiais: conhecimento, experiência, rigor, praticidade e liderança eram pré-
requisitos. Embora também pudesse extrair balata, sua principal função era manter a
turma ativa e produtiva durante a safra: organizar os homens, conduzi-los até o balatal,
cuidar para que permanecessem sãos, manter a paz entre eles, zelar pela qualidade e
quantidade da produção. Esta última era fundamental para manutenção da cadeia
produtiva da balata, baseada na extrema dependência entre os elos, e a produtividade
era o cerne do sistema de aviamento: o balateiro só conseguiria quitar dívidas para com
o encarregado e ainda obter algum saldo financeiro se apresentasse uma boa produção;
o encarregado só honraria os compromissos adquiridos junto ao patrão local se os

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“seus” balateiros tivessem produzido saldo em balata; o patrão local, por sua vez,
somente com essa matéria-prima pagaria os adiantamentos tomados ao patrão
estrangeiro, habilitando-se a novas aquisições de material fiado.
33 Todo o negócio, portanto, tinha riscos que eram partilhados, em diferentes proporções,
por todos os sujeitos envolvidos na rede de prestações e contraprestações. Certamente
uma safra ruim causava prejuízos em sequência. Porém, na realidade, a maior cobrança
recaía sobre o trabalho dos balateiros, verdadeiro sustentáculo da cadeia produtiva e da
hierarquia da balata. Era seu esforço que pagava os riscos assumidos pelos demais. A
crônica de J. Santos (1980, p. 80-81) é esclarecedora:
Quando deixava Monte Alegre rumo ao balatal, o balateiro era devedor de uma
imensa conta ao patrão que deveria ser paga com a produção e tinha deixado
firmado o preço a ser pago pelo seu produto. Ora, o preço fechado nessa ocasião era
muito aquém do que seria cotado o produto quando ocorresse a safra. Na ocasião
em que o preço era fixado, balata estava sem cotação porque não tinha produção,
produto a venda no mercado. Tomando por base o ano de 1948, o preço na pauta
alcançou a quantia de Cr$ 19,69. Mas o balateiro deve ter recebido o máximo de Cr$
10,00, preço que na ocasião de negociar com o patrão era vigente. Para saldar seus
compromissos o balateiro deveria produzir de 800 a 1000 quilos, do contrário não
teria saldo. Mesmo sem saldar o seu débito, o patrão continua a “aviar” o balateiro.
Era evidente que a conta teria sido paga, no lucro da mercadoria fornecida, nos
juros do dinheiro adiantado e na diferença do preço pago pelo produto.
34 O mesmo autor compara os preços locais de alguns produtos com os valores debitados
pelos patrões aos balateiros em 1948. Apresenta, respectivamente, as seguintes cifras
para: açúcar, 4 e 10 cruzeiros; café, 8 e 20 cruzeiros; feijão, 4 e 10 cruzeiros; farinha de
mandioca, 2 cruzeiros e 50 centavos, e 6 cruzeiros; sal, 2 e 5 cruzeiros; carne charque,
18 e 45 cruzeiros. Os preços mais que dobram, conforme os produtos transitam para o
elo mais vulnerável da cadeia. Pode-se compreender, assim, como o aviamento “une o
mundo do caboclo, por mais isolado que esteja, à sociedade regional e nacional, e em
última instância ao mercado mundial”, introduzindo “o caboclo na divisão
internacional do trabalho” e constituindo-se como “barreira ao desenvolvimento e à
modernização da vida e das relações sociais na Amazônia” Aramburu (1994, p. 2). Enfim,
além da provisão material, os patrões – categoria ampla em que cabem todos os sujeitos
dos quais os balateiros dependem e aos quais respeitam como autoridades – aliciam os
extrativistas com bebidas, festas, foguetes e socorros em situações emergenciais como
casos de doenças. O balateiro Manoel Braga Costa sabe bem como funcionava a
exploração:
O patrão fornecia a mercadoria para a gente poder viajar. Dava espora, cinturão
grosso, arame, roupas leves e outras que eram de mescla, esporas, barras de ferro
(chaveta). Mas era ele quem dava seu preço assim que a gente chegava. De um valor,
eles cobravam quatro, cinco vezes mais para a gente. Assim: se um objeto custava 10
reais, então, para nós levarmos, eles cobravam 45 reais. (Carvalho, 2011, p. 129).
35 Irmanados no objetivo de “tirar balata para tirar um saldo” com o patrão, os balateiros
se empenhavam com afinco no trabalho dentro da floresta, por meses seguidos. As
turmas se compunham de cinco homens, em média, e todos eram responsáveis pela
viagem até os balatais. Nas canoas e por terra dividiam-se de acordo com suas
qualidades: habilidade na navegação em corredeiras, tenacidade para remar, força para
transportar cargas, conhecimento dos rios e do mato. Ademais, cada um deles, além de
“tirar balata”, devia ajudar na manutenção diária dos locais de trabalho e morada. As
tarefas se dividiam conforme vocações pessoais para caça, pesca, cozinha, coleta de

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outros produtos extrativistas. A relação dos sujeitos com o território ia se ordenando,


por conseguinte: rio, mato, campo, castanhal, barracão, tapiri, esses eram os lugares
privilegiados onde as experiências individuais se organizavam em torno do balatal, de
acordo com os perfis. Um fator crucial nesse ordenamento era, evidentemente, a
habilidade na lida com a balata: subir na balateira, cortar apropriadamente (não fundo
demais, para não matar a árvore), cozinhar e puxar o látex, formar os blocos. Em função
dessas habilidades os balateiros se distinguiam em duas categorias básicas: “mansos”
(experientes) e “brabos” (iniciantes). A esses os primeiros deixavam funções
consideradas menores e mais restritas ao espaço do tapiri, como preparar refeições,
embora também se dedicassem a ensiná-los as etapas do ofício. À medida que
ganhavam domínio sobre o meio e ampliavam seu raio de ação no território, os “brabos
se amansavam”. O balateiro Triste relata:
Comecei a trabalhar com 17 anos, em 1958. Já iniciei como balateiro. Trabalhei no
Maicuru. Ainda tem muita balata por lá. Aprendi a trabalhar com meu finado pai.
No primeiro ano meu patrão foi o Jorge Sadala e o agora finado Cravo. Meus
companheiros de turma eram meu pai, Rosa, e o Manoel José. Cheguei a ensinar o
corte da balata a um brabo, que atendia por nome de Luiz Franco. Esse eu amansei!
(Carvalho, 2011, p. 164).
36 À metáfora algo animalesca correspondem imagens corriqueiras veiculadas por
comentadores, que representam os balateiros como perigosos, destemidos, brutos: “O
balateiro era um aventureiro, um perdulário. Em princípio, desperdiçava a sua própria
saúde. […] Não possuía a menor noção do sacrifício que fazia para garantir sua
tumultuada sobrevivência.” (Santos, J., 1980, p. 81). A despeito da tipificação, os
relacionamentos entre os homens são normalmente descritos por eles próprios como
sendo baseados em solidariedade, companheirismo, cuidado mútuo. Considerando que
a composição das “turmas” tendia a se repetir ano a ano, a intensidade e a duração das
vivências compartilhadas por seus integrantes, é compreensível que esses
agrupamentos se tornassem unidades sociais básicas no balatal, embora se desfizessem
após a volta para casa. Dentro da “turma” se estabeleciam ou se reforçavam não só
laços de trabalho, mas também de sociabilidade, amizade, afinidade ou parentesco.
No acampamento, o dia que tinha folga era o dia que chovia. Saía 5h do barraco e só
chegava 17h da tarde. No dia que tinha comida, comia. No dia que não tinha, bebia
água, chibé. Diversão era o cigarro e ouvir o macaco gritar. Conflito não tinha, nós
éramos o mesmo que irmãos. [Pão, entrevista concedida em 2010.] (Carvalho, 2011,
p. 169).
37 Vivendo isolados de seus grupos de origem, cozinhando uns para os outros, apoiando-se
diante dos perigos da mata, divertindo-se juntos com o que podiam (cantorias, jogos,
pescarias) e trocando cuidados em casos de doença, os homens de uma turma
geralmente cultivavam uma relação de cumplicidade reforçada pelo senso de
dependência mútua. Há relatos de brigas e até assassinatos, sem dúvida, mas em regra
se adotavam mecanismos aparentemente bem sucedidos de evitação e controle de
desentendimentos. Francisco Braga conta que “no balatal ninguém brigava, éramos
todos amigos. Nosso lazer eram as festas que os índios faziam. A gente ficava só
olhando. Não tínhamos medo, porque eram índios mansos. Eles faziam comida assada
pra gente, e comíamos com eles.” (Carvalho, 2011, p. 75).
38 A presença de mulheres no balatal, oculta segundo Simonian (2006), é mencionada
como um fator de risco de desagregação da unidade social constituída pela turma.
Embora na pesquisa tenham sido identificadas mulheres que foram para os balatais do

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Baixo Amazonas, quer como acompanhantes do marido ou como balateiras, algumas até
levando consigo filhos pequenos, seu número é significativamente reduzido. A maioria
dos homens explica que manter uma mulher entre eles poderia atrair problemas e até
crimes dentro da turma, e raros se mostraram seguros diante da perspectiva de levar
esposa ou outra mulher da família para o balatal. Além disso, quando os homens
deixavam suas casas rumo à floresta, a economia doméstica recaía em grande parte
sobre o trabalho das mulheres, crianças e jovens, tanto no meio rural (nas roças e casas
de farinha) quanto no meio urbano (em casas de família, venda de refeições, lavagem e
costura de roupas).
39 São raras as menções a práticas sexuais no espaço do balatal, à exceção de intercursos
esporádicos com algumas indígenas apalai e outras poucas referências a prostitutas
encontradas “no trecho”.11 Porém, os homens são unânimes ao afirmar que “quando os
balateiros voltavam, não ficava puta pobre”. Para Francisco Pereira: “Na volta, a gente
já sentia o cheiro da mulherada. Aí não tinha tempo ruim, a gente viajava dia e noite até
chegar e festejar.” (Carvalho, 2011, p. 87).
40 Narram que, depois de meses fora de casa, voltavam desfigurados, com barbas imensas
por fazer, cabeleira sem corte, com as roupas sujas e rasgadas pelo mato. Assim mesmo,
eram esperados nos portos e recebidos com fogos de artifício e muita festa. Ancoravam
na cidade, pesavam a balata produzida e, se houvesse saldo, pegavam o dinheiro que
lhes cabia, já descontados os itens aviados pelo patrão. Então iam comemorar, procurar
o barbeiro, beber cachaça nos bares, buscar prostitutas. Para muitos, passavam-se dias
até que de fato regressassem à casa – às vezes, já sem nenhum dinheiro, tendo tudo
gasto ou perdido com mulheres e bebidas. Mesmo que “tivessem juízo”, como dizem, o
dinheiro não durava muito, era como “dinheiro amaldiçoado do garimpo, que vem e vai
fácil”. Mas, na verdade, o que lhes parecia muito e fácil correspondia a meses de
trabalho duro e, frequentemente, à carestia e ao endividamento de membros da família
com itens pegos junto ao patrão, pelos quais o balateiro devia pagar ao retornar. Logo
recomeçavam a se endividar e, assim, perdurava o ciclo de dependência em relação ao
patrão, e o balateiro já ficava comprometido por dívidas para a próxima safra de balata.
Pão explica que “quando chegava aqui em casa, não fazia mais nada. Mas, assim que
acabava o dinheiro da balata, apertava o patrão. Aí então tinha que explorar, voltar pro
balatal de novo.” (Carvalho, 2011, p. 170).
41 É preciso observar que esse esquema, embora apresentasse as características básicas da
“escravidão por dívida”, se sustentava contraditoriamente num forte senso de
liberdade e autonomia cultivado pelos balateiros como elementos constituintes de sua
identidade masculina e profissional. Era decisão do homem não estar preso à casa ou à
roça, que podia ou não render bons frutos de acordo com fatores como chuvas,
estiagens, pragas. Esse tipo de risco que lhes parecia incontrolável era deixado às
mulheres, idosos e crianças. O balateiro preferia correr outros riscos, nos quais sua
força, astúcia, habilidade e coragem seriam determinantes da qualidade de seu
desempenho no balatal e, por conseguinte, de seus ganhos financeiros. Assim, extrair
balata para um patrão era percebido como uma escolha do homem livre, autônomo e
altivo, e não como um trabalho forçado. Ainda que fosse reconhecida a superexploração
de sua mão de obra, o balateiro sempre vislumbrava formas de se precaver e até de
burlar a ganância do patrão. O balatal, por fim, era visto como lugar de afirmação da
masculinidade do indivíduo, entendida como qualidade relativa à capacidade de

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controlar simultaneamente a si e ao meio, o que se pode resumir na expressão local


“amansar-se”.

Memórias do trabalho e trabalho com memórias


42 À decadência da exploração de balata para o mercado internacional, a partir da década
de 1970, corresponderam processos de desagregação social em cidades que tiveram suas
economias sustentadas por essa matéria-prima. Centenas de balateiros viram-se
repentinamente sem função e, pior, sem liberdade de escolher o trabalho que os
mantinha longe dos constrangimentos da casa, da carestia da roça e da pescaria incerta.
Como explica Manezinho, “não tínhamos mais serviço. Naquela época era muito ruim
de emprego. A gente ia pescar pra sustentar a família.” (Carvalho, 2011, p. 136). Outro
balateiro, de apelido Se Quiser, comenta: “A gente ia trabalhar na colônia, pescar. Assim
a gente levava a vida.” (Carvalho, 2011, p. 64).
43 Enquanto toneladas de blocos de balata apodreciam nos portos de Belém e Manaus,
patrões (sobretudo os pequenos) faliam em “efeito dominó” e os extrativistas viam suas
redes sociais se desmantelarem: não eram mais procurados pelos patrões, nem podiam
fiar mercadorias em troca da promessa de tirar balata; não encontravam mais suas
“turmas”, nem eram festejados na cidade; se não tivessem mulher e filhos, as
prostitutas também não estavam mais ao seu dispor. Restavam-lhes os riscos inglórios
das atividades cotidianas da lavoura, da pesca, dos biscates. Alguns passaram a fazer
bichinhos com a balata que haviam tirado e não encontrara comprador. Solidão,
degradação e pobreza, frequentemente acompanhadas pelo alcoolismo, passaram a
marcar suas vidas. A dimensão sacrificante do trabalho sobressaiu: “Em tudo havia
dificuldade. O serviço era duro e pesado. Não tinha nada de vantagem.” [Depoimento de
Pão.] (Carvalho, 2011, p. 169).
44 O artigo 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias renovou-lhes as
esperanças, reconhecendo direitos aos “soldados da borracha”, ou seja, àqueles que
trabalharam nos seringais da Amazônia, contribuindo para os esforços de guerra. A lei
nº 7.986 de 1989 estipulou o pagamento de benefício a esses trabalhadores, inclusive
àqueles que extraíam materiais similares à seringa, a exemplo da balata. Os balateiros
contam que, malgrado as determinações legais, o benefício lhes foi praticamente
inatingível. Contudo, apontam patrões que “nunca pisaram no balatal, nunca cortaram
uma balateira”, mas conseguiram se “aposentar como balateiro” graças a articulações
com políticos locais. A “aposentadoria”, na verdade uma pensão vitalícia, tornou-se
ainda mais difícil em 1998, quando a lei nº 9.711 passou a exigir a apresentação de prova
documental para a concessão do benefício. Ora, em primeiro lugar, os balateiros foram,
na maioria, recrutados entre nativos – não têm, portanto, carteira emitida pela
Comissão Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia
(Caeta); em segundo lugar, os contratos de trabalho com os patrões eram informais,
verbais, e só ficavam subliminarmente registrados em notas de mercadorias aviadas.
Nenhuma prova documental, nenhuma perspectiva de reconhecimento ou mérito pelo
que fizeram.
45 Com o passar do tempo cresceu entre balateiros a sensação de esquecimento,
silenciamento, invisibilidade (Pollak, 1989). A desvalorização de sua identidade
profissional, de par com o envelhecimento biológico (Elias, 2001), contribuiu para a
desarticulação da identidade masculina – centrada em ideais próprios de autonomia e

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275

altivez que se relacionavam à “liberdade de escolher o balatal”. O impedimento de ser


balateiro soa como negação de sua existência social, joga a identidade desses homens
para um tempo pretérito, imputando-lhe tamanha dor, que Eloi Balateiro assim
expressa: “A partir de 1975, nunca mais fui a nenhuma expedição. Infelizmente, não
consegui me aposentar como balateiro. Hoje, sou aposentado por idade. A dor de
balateiro é a mesma dor de mulher esquecida.” (Carvalho, 2011, p. 71). Eloi fala por si e
por todos, no mais perfeito sentido coletivo que Halbwachs (1990, p. 36) identificou nas
memórias individuais: pode-se, sem dúvida, afirmar que seus sentimentos e
pensamentos “mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais
definidas”.
46 Nesse contexto de desarticulação de identidades duramente construídas na lida no
balatal, o registro de relatos orais dos balateiros entreabre um universo de práticas e
sentidos ainda por revelar e investigar. Vivências, experiências, sentimentos, sonhos,
frustrações, noções de tempo e espaço muito particulares, um mapa único do alto dos
rios Maicuru, Paru e Jari, um território de encontros e desencontros entre grupos
étnicos e culturais tão distintos, enfim, um inestimável material etnográfico está em
jogo quando se trata de lhes adentrar o universo de memórias e trajetórias. Como em
outras experiências de pesquisa social (Eckert, 1993; Eckert; Rocha, 2005, Leite Lopes,
2004; Nash; Rojas, 1976; Prado, 2008), este trabalho tem revelado universos sociais para
além daquele dos indivíduos que rememoram. Remete, assim, ao plano da memória
coletiva que “tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de
homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do
grupo” (Halbwachs, 1990, p. 51).
47 Os relatos orais de balateiros revelam aspectos do Norte, dos Campos Gerais, da
ocupação da Amazônia brasileira, das fronteiras com as Guianas, de contatos
interétnicos, para muito além das próprias relações de trabalho aqui enfocadas,
iluminando uma rede de trocas e intercâmbios socioculturais ainda pouco conhecida. O
trabalho foi uma dimensão essencial, organizadora da existência social desses homens,
e, portanto, se mostra como ponto de partida para a reconstituição de suas memórias.
Ademais, trabalhar sobre o seu trabalho é uma forma de não esquecê-los e de, assim,
abrir-lhes outros planos possíveis de reconstrução de identidades atualizadas.

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NOTAS
1. A expedição teve o objetivo de produzir documentação para a elaboração de um catálogo
etnográfico e uma exposição de peças de artesanato de balata no Museu de Folclore Edison
Carneiro, ocorrida em 2006 no Rio de Janeiro (Carvalho, 2006).
2. Registram-se casos de casais e de pais e filhos que seguiram juntos para os balatais, mas, de
praxe, o homem subia sozinho, deixando à mulher e aos filhos, quando os tinha, a tarefa de
cuidar da lavoura de subsistência da família.
3. Seres sobrenaturais que, na crença regional, povoam florestas, rios, igarapés, cachoeiras,
pedreiras, pontas de praias, etc. Podem tomar forma de animais, emitir sons como assovios,
gritos ou urros, e dar tapas ou pancadas em pessoas, animais de estimação ou objetos. Geralmente
vivem no “fundo” (das águas) ou nas matas, e aparecem para assustar ou afastar os humanos dos
lugares dos quais “tomam conta”. Clássico da antropologia sobre o tema é o estudo de Galvão
(1976) na fictícia comunidade de Itá.
4. Muitas obras foram produzidas sobre o assunto, e não é o momento de discorrer sobre elas. À
guisa de referência, consultar Ferreira Reis (1931, 1953), Araújo Lima (1970), Castro (1972) e
Tavares Bastos (1975) sobre a economia gomífera no norte do Brasil. Sobre a experiência
pretensamente controlada de exploração da borracha no Oeste do Pará, ver recente estudo de
Grandin (2010) sobre Fordlândia.
5. Simonian menciona a ocorrência da extração de balata em Roraima, no Acre e no Amazonas,
onde remete a Curt Nimuendaju, para quem: “a riqueza do rio Negro não são para os seus
balataes e seringaes; a verdadeira, e única riqueza desta zona são, nas atuaes circunstâncias, estos
mesmos índios julgados apenas prestáveis para serem sacrificados até o último, se preciso for,
para o bom êxito da próxima safra” (Nimuendaju, 1982 apud Simonian, 2006, p. 203-204).
6. Coudreau (1886) apresentou a balata da Guiana como árvore que dava fruto semelhante à
ameixa, na forma, e ao pêssego, no sabor, porém de difícil acesso, posto que aparecia em galhos
muito altos.
7. Toma-se a expressão no sentido que Mauss (1995, p. 389, tradução minha), em estudo sobre as
variações sazonais das sociedades esquimós, atribuiu à “ciência que estuda, não só para
descrever, mas também para explicar o substrato material das sociedades, ou seja, a forma que
elas tomam ao se estabelecerem sobre a terra, o volume de densidade da população, a maneira
como se distribui, bem como o conjunto das coisas que servem de sede à vida coletiva”.
8. Para confecção das “fardas” dos balateiros, os patrões locais contratavam costureiras a quem
forneciam todos os insumos, desde linhas a peças de tecidos grossos como mescla e brim,
geralmente compradas dos patrões nas capitais, que, por sua vez as compravam do estrangeiro.
Para produção dos apetrechos de ferro e aço, contratavam ferreiros e soldadores específicos,
habituados à confecção de peças customizadas. Esses profissionais faziam parte das redes
comerciais estáveis dos patrões e, invariavelmente, no segundo semestre do ano, antes das águas

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subirem, empenhavam-se em preparar suas encomendas, as quais, nas melhores safras, deveriam
atender a até mais de cem balateiros.
9. Muitas vezes a balata foi misturada a outros tipos de leite, como o da maçaranduba (Manilkara
huberi), que não escorre e fica quebradiço após o beneficiamento, ou do amapazeiro (Hancornia
amapa), que origina blocos duros e também quebradiços, ou, ainda, ao do garroteiro (Bagassa
guianiensis), porque os blocos ficam moles e se rasgam facilmente (Lins, 2001).
10. A expressão “escravidão por dívida” traduz relações de trabalho baseadas no endividamento
compulsório de trabalhadores que dependem dos próprios patrões para aquisição, a preços bem
acima do mercado, de bens e serviços indispensáveis à sobrevivência, além de transporte para e
moradia no local de execução do trabalho. Tal sistema tem sido encontrado em fazendas do
estado do Pará, denunciado por defensores de direitos humanos, criminalizado no sistema
judicial e estudado por sociólogos e outros pesquisadores.
11. A expressão “de trecho” é usada para designar trabalhadores que estão sempre se deslocando,
de um trabalho a outro.

RESUMOS
Este artigo resulta de pesquisa etnográfica empreendida no Pará junto a dezenas de homens que,
nos anos 1940 a 1970, extraíram sistematicamente o látex conhecido como balata. Seu trabalho
era fundado em relações altamente hierarquizadas numa cadeia produtiva que os atava a patrões
locais e comerciantes estrangeiros, e baseava-se no sistema de aviamento que caracteriza o
extrativismo em larga escala na Amazônia brasileira. Os balatais eram seus ambientes de trabalho
e morada durante cerca de seis meses por ano, até que seu ofício perdeu interesse no mercado
internacional e esses homens viram-se destituídos de profissão e, em muitos casos, de família e
patrimônio, já que haviam dedicado longos períodos da vida à estada na floresta. Busca-se, por
meio do registro de memórias e narrativas biográficas de balateiros, hoje idosos, reconstituir os
contextos, processos, laços e sentidos que o trabalho nos balatais assumiu na experiência social
desses homens.

This article results from an ethnographic research implemented in Pará, which involved dozens
of men who, from 1940 to 1970, systematically extracted the latex known as balata. Their work,
established on highly hierarchical relations, in a productive chain which attached them to local
employers and foreign traders, was based on delivery system, which characterized large scale
extractivism in the Brazilian Amazon. The balatais were these men’s workplace and home for
about six months a year, until the moment that their trade was no longer of interest to the
international market. Then they found themselves devoid of work and, in many cases, of family
and patrimony, as they had spent long periods of their lives in the forest. Recording
reminiscences of those extractivists, elderly citizens now, and their biographical narratives, aim
at reconstructing the contexts, processes, relations and meanings of the work in the balatais in
their social experience.

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ÍNDICE
Keywords: balata, Pará, reminiscences, work
Palavras-chave: balata, memória, Pará, trabalho

AUTOR
LUCIANA GONÇALVES DE CARVALHO
Universidade Federal do Oeste do Pará – Brasil

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Espaço aberto

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A tradução de uma etnografia por


uma antropóloga. O caso de O vapor
do diabo
Andrea Roca

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2012
Aprovado em: 17/01/2013

NOTA DO AUTOR
Palestra proferida em 7 de dezembro de 2011 no PPGAS-MN/UFRJ, no contexto do curso
Antropologia do Trabalho, ministrado por Marta Cioccari e José Sergio Leite Lopes.

Introdução
1 A motivação para escrever este artigo tem suas origens na confluência de uma
circunstância e uma ideia, ambas muito localizadas e definidas.
2 A circunstância pode se resumir da maneira seguinte: quando em dezembro de 2010
comecei a tradução para o espanhol do livro O vapor do diabo: o trabalho dos operários do
açúcar, de José Sergio Leite Lopes (1976), pensei que ia concluir meu trabalho em três
meses; no entanto – e por motivos que explicarei neste artigo –, só pude chegar à versão
definitiva em junho de 2011, isto é, no dobro do tempo que eu tinha calculado. Durante
esses meses, tinha utilizado um caderno no qual registrei, em ordem cronológica, as
questões que foram se levantando ao longo do texto, junto com seus problemas e suas
soluções. Estavam lá minhas listas classificatórias, agrupando os atores sociais
mencionados no livro, suas tarefas e seus lugares de trabalho; algumas categorias

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nativas e palavras com definições problemáticas, junto com uma listagem de conceitos
que pareciam pedir, desde o começo, um glossário; havia quadros explicativos meus e
algumas breves resenhas sobre certos conteúdos do texto, com suas referências
temporais; explicações sobre maquinaria e/ou circuitos de maquinaria; apontamentos
sobre aspectos a serem considerados nas notas de rodapé, e outros que deviam ser
explicados em uma Nota da Tradutora inicial; dúvidas a respeito da tipografia e outras
questões organizativas para serem faladas, mais tarde, com a editora. Principalmente,
lá estavam registradas as longas e numerosas sessões de trabalho on-line que tinha tido
com o próprio autor do livro, assim como as entrevistas com engenheiros agrônomos
argentinos e com pesquisadores da área da antropologia do trabalho, registrando-se, ao
longo do caderno, o caráter progressivo da tarefa da tradução. Uma vez finalizado o
trabalho, e sem ter me proposto isso de maneira consciente, tinha comigo uma espécie
de “caderno de campo” que concentrava uma experiência particular de tradução. Isso
por um lado.
3 Por outro lado, está a ideia que veio ao encontro dessa circunstância particular. Por
puro acaso, enquanto trabalhava na tradução do Vapor estava lendo Experiências com a
verdade, do escritor norte-americano Paul Auster (2003). Um dos ensaios desse livro se
referia ao longo processo de seleção, tradução e edição de uma antologia sobre poesia
francesa do século XX, coletânea elaborada e traduzida por Auster. À maneira de uma
revelação, assim concluía o cuidadoso ensaio:
A experiência de um poema reside não só em cada uma das suas palavras, mas
também nas interacções entre essas palavras – na música, nos silêncios, nas formas;
e se não damos de algum modo ao leitor a possibilidade de aceder à totalidade dessa
experiência, ele ficará totalmente à margem do espírito do original. É por esta
razão, parece-me, que os poemas devem ser traduzidos por poetas. (Auster, 2003,
p. 73).
4 Levando a reflexão de Auster para o terreno da nossa disciplina, os tradutores de
etnografias teriam, então, a difícil tarefa de repassar aos leitores a possibilidade de
aceder às experiências da investigação e da escrita etnográfica – experiências
organizadas em palavras1–, para assim não deixá-los à margem e transmitir-lhes o
“espírito do original” da pesquisa etnográfica, resultado de um trabalho de campo cuja
base foram relações e interações humanas. Parafraseando Auster, atrever-me-ia a dizer
que as etnografias deveriam ser traduzidas por antropólogos.
5 É essa a ideia que – a partir da experiência de tradução do Vapor, e utilizando meu
particular caderno de campo – orientará esta descrição etnográfica, acerca do processo
particular do meu trabalho como tradutora dessa obra. Parte dessa descrição encontra-
se na Nota da Tradutora inicial (doravante, NTI) realizada por mim para a edição em
espanhol (Roca, 2011, p. 21-25). Com o intuito de ampliar esses primeiros
apontamentos, o percurso deste artigo estará dividido em duas seções: na primeira
delas, apresentarei ao leitor uma resenha dos conteúdos do Vapor, para, na segunda
parte, descrever alguns dos procedimentos adotados na tradução, refletindo sobre as
decisões tomadas nesses procedimentos, e tentando demonstrar a conveniência das
etnografias serem traduzidas por antropólogos. Trata-se, por enquanto, de um trabalho
em andamento, através do qual espero levantar reflexões e boas perguntas em torno da
tradução de etnografias.

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Uma etnografia para traduzir


6 O livro O vapor do diabo foi apresentado originalmente como dissertação de mestrado no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ), em maio de 1975, sob orientação de
Moacir Palmeira; foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1976 pela Editora Paz
e Terra no Rio de Janeiro, e, através dela, foi lançada uma segunda edição em 1978.
Idêntica à primeira, eu tenho trabalhado sobre essa segunda edição. Os conteúdos dessa
etnografia serão progressivamente ampliados ao longo da minha análise, mas, por
enquanto, interessa-me situar o leitor perante uma ideia geral da obra que ia ser
reescrita em espanhol.
7 O título “sobrenatural” do trabalho de Leite Lopes – O vapor do diabo – é uma expressão
metafórica surgida em uma entrevista realizada pelo pesquisador com um operário ex-
turbineiro da Usina Catende; abrindo a leitura do livro, ela consegue condensar com
precisão o duro trabalho nas usinas.
8 Sabendo então que nos dirigimos para um lugar “onde só pode trabalhar o diabo”, é que
lemos o Prefácio elaborado por Moacir Palmeira por ocasião da primeira edição (1976).
Estabelecendo uma ampla distância com anteriores métodos generalizantes –
provenientes da sociologia e de certa tradição marxista –, Palmeira se empenhava em
destacar as particularidades metodológicas e teóricas do Vapor, valorizando a fecunda
ruptura da etnografia de Leite Lopes com aqueles procedimentos prévios. Assim,
apresenta-o como um estudo de caso que, longe de propor uma teoria, analisa uma
situação operária concreta, com operários também concretos – “de carne e osso”. Eles
não ficam à margem dos problemas teóricos que, ao longo da etnografia, vão se
impondo nessa situação concreta e nas relações sociais que a constroem; são os
operários do açúcar e o antropólogo Leite Lopes os que vão construindo os dados dos
trabalhadores que habitam essa etnografia.
9 Os Agradecimentos que se seguem (correspondentes à primeira edição, de 1976)
permitem-nos acompanhar a rede de relações sociais do autor em torno de sua
pesquisa, assim como interpretar com maior clareza o contexto de aparecimento do
Vapor como livro.
10 Essas primeiras referências serão ampliadas na Introdução: nela, penetramos no
contexto de uma pesquisa desenvolvida na região canavieira do estado de Pernambuco,
que aborda, de um ponto de vista antropológico, os operários da parte industrial das
usinas de açúcar – até esse momento, pouco mencionados na literatura sobre a
plantation. O trabalho de campo foi realizado em janeiro/fevereiro de 1972; o autor
permaneceu quase um mês morando dentro do território da usina, visitando mais tarde
outras duas. Se comparada com a importância numérica dos trabalhadores ligados à
parte agrícola da plantation, essa (quase estranha) mão de obra industrial das usinas,
determinada ruralmente, é bem menor, e compreende os operários da fábrica de açúcar
e os trabalhadores do sistema de transportes. Tomando conta dessa lacuna, e
demonstrando a importância desses operários no processo de produção do açúcar,
através dos discursos desse grupo específico o autor analisará as representações e os
comportamentos relativos a seu trabalho e sua prática econômica, privilegiando as
diferenças internas entre eles e as relações que sustentam essas diferenças. Isso lhe
permitirá dar conta das concepções diferenciais que esses operários têm sobre as
relações sociais que subjazem à produção, e dos modelos de comportamento coerentes

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285

com essas concepções; também lhe permitirá apresentar as diferentes contradições


vividas por eles, e as tentativas da usina para controlar essas contradições. Através
dessa Introdução conhecemos também as redes intelectuais do autor na época, o
surgimento do seu objeto de estudo, o contexto específico de produção da pesquisa,
suas motivações e interrogantes, as dificuldades para ingressar no campo, os primeiros
contatos com operários e sindicatos, a metodologia aplicada durante e depois do
trabalho de campo, as ênfases sobre alguns aspectos da análise e aquilo que não foi
possível incluir.
11 Os quatro capítulos do livro vão organizando progressivamente as classificações
internas desses operários, com suas características e suas posições dentro da fábrica,
suas visões e suas lógicas. No primeiro deles – A diferenciação interna dos operários do
açúcar: o código da arte –, o autor nos apresenta as categorias classificatórias utilizadas
pelos operários na produção, e o eixo que articula as hierarquias das suas ocupações, o
“código da arte”, explicando-nos como, em função desse eixo, definem-se todos os
operários das usinas de açúcar, essa grande indústria (de características quase urbanas)
inserida em um meio rural. Descrevendo a rígida divisão do trabalho que existe entre a
parte agrícola e a parte industrial da plantation, e o convívio permanente entre ambos
os grupos de trabalhadores, Leite Lopes nos introduz dentro da fábrica, para assim
conhecermos seus dois espaços principais: 1) as oficinas de manutenção (da
maquinaria, e das instalações da usina em geral), onde trabalham uma série de
operários com ofícios industriais; 2) o setor de fabricação do açúcar propriamente dito,
no qual se encontram os trabalhadores que operam as máquinas encadeadas que
processarão a matéria-prima (desde o ingresso da cana pela esteira rolante, até a
embalagem do açúcar nos sacos, prontos para serem distribuídos). É da maior
importância apontarmos também que, dentro dos territórios das fábricas de açúcar,
existem “bairros operários” com casas disponíveis para os trabalhadores, cedidas a eles
pela administração da usina para seu usufruto temporário.
12 Os operários que trabalham nas oficinas são chamados artistas, pelo fato de possuírem a
“arte” de saber fazer peças e/ou reparações; são considerados imprescindíveis porque
mantêm a infraestrutura da fábrica de forma permanente, constituindo assim o
contingente fixo desses trabalhadores. Enquanto isso, os operários do setor da
fabricação se autoclassificam como profissionistas; estes têm que operar as máquinas
parcelares e cuidar do funcionamento ininterrompido de cada um dos aparelhos,
assumindo a responsabilidade de tomar conta do material do homem – isto é, do usineiro.
13 A classificação destes dois grandes grupos de trabalhadores não tem a ver unicamente
com uma localização espacial dentro da usina: também se relaciona com os dois
importantes períodos que regem a produção de açúcar. Todos os trabalhadores vivem,
sem exceção, sob um regime de trabalho sujeito à maneira com que as usinas
administram o caráter sazonal da matéria-prima, a cana-de-açúcar. Sendo uma das
principais características dessa grande indústria agrícola, essa sazonalidade divide o
período anual em duas temporadas de trabalho bem diferentes: à safra do açúcar
corresponde a moagem na fábrica, e, para dar conta da totalidade da cana recolhida, a
usina contrata uma quantidade de operários que, entretanto, não manterá durante o
período da entressafra; diferentemente, neste período, chamado apontamento, a usina
conservará unicamente os operários necessários para a manutenção das suas máquinas
e instalações (deixando-as prontas para a próxima moagem), lançando fora dela um

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importante contingente de trabalhadores. Valendo-se desse ciclo “natural” de colheita


da cana, os usineiros justificam e/ou naturalizam suas próprias políticas trabalhistas.
14 A organização dos operários é diferente nesses dois períodos, que repercutem
diretamente sobre sua própria diferenciação interna. Devido a seu caráter
imprescindível, os artistas formam um grupo de trabalhadores fixos; possuem um saber
qualificado dentro da fábrica e são os únicos que nunca mudam de status; aliás, a posse
da sua arte habilita, neles, um certo controle do processo produtivo. Contando com
uma posição mais honrosa dentro da corrente de produção, têm a possibilidade de
conseguir empreitadas, isto é, trabalhos “extras” determinados pela usina para os quais
são contratados como serviço terceirizado, podendo assim melhorar seus baixos
ingressos.
15 Os profissionistas também fazem parte, relativamente, do conjunto de operários fixos das
usinas; entretanto, seu trabalho não é “tangível” como o dos artistas: eles ficam presos a
uma corrente de máquinas parcelares que precisam da atenção constante dos seus
operadores humanos (impondo-lhes um ritmo determinado de trabalho que, de certa
forma, acaba vigiando-os), e, aliás, mudarão de status durante o apontamento,
transformando-se em meros ajudantes dos artistas. No entanto, o fato de trabalhar perto
de um artista pode favorecer o aprendizado de um ofício, isto é, a aquisição de uma
“arte”, e assim passar para a escala máxima dentro da ordem da produção da fábrica.
No degrau mais baixo dessa hierarquia estão os chamados serventes, aqueles que
trabalham unicamente durante o acelerado período produtivo da moagem, para serem
expulsos na entressafra seguinte.
16 A partir do discurso desses operários, Leite Lopes consegue explicar como essa
autoclassificação implica, ao mesmo tempo, uma visão determinada sobre seus lugares
no processo de produção, e sobre a forma de cooperação que lhes é imposta pelas
autoridades da usina. Os profissionistas parecem omitir o lugar deles dentro daquele
processo, e, para descrevê-lo, baseiam-se somente no percurso das máquinas parcelares
encadeadas, refletindo, nessa descrição, o tipo de cooperação específica própria à
grande indústria. Diferentemente, os artistas descrevem o processo produtivo
mencionando todas as categorias de operários, apresentando o quadro de cooperação
simples onde estão inseridos (em suas várias inter-relações) e distinguindo, aliás, o
lugar de “elite operária” que eles próprios ocupam no processo produtivo das oficinas,
graças à sua arte e seu saber fazer.
17 Essas diferenciações internas e hierárquicas entre os operários funcionam também
como um elemento de dominação por parte da administração da usina, encarnada na
figura dos empregados. Através da chamada investigação, estes vigiam e controlam a
execução dos trabalhos; todos os trabalhadores ficam presos daqueles olhares
disciplinares que, no entanto, não participam da produção. Desfrutando de altos
salários e boas condições de vida, os empregados também têm o poder de administrar as
obtenções de lugares de trabalho e/ou as transferências entre diferentes ocupações
dentro da fábrica, assim como de distribuir as concessões extramonetárias oferecidas
pela usina (tais como uma casa dentro do seu bairro operário, um roçado para cultivos
de subsistência; água, luz, lenha, etc.). Ao longo da etnografia, o autor demonstrará
também como o caráter personalizado dessas obtenções amarra os operários dentro de
uma rede de “favores” que impede qualquer associação horizontal. Mas, além dos
operários se diferenciarem entre eles próprios conforme suas ocupações e lugares de
trabalho, criando um sistema de hierarquias e possuindo diferentes perspectivas sobre

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o processo produtivo, todos eles, como uma unidade, confrontam-se com a


exterioridade e hostilidade dos empregados e usineiros como um todo, isto é, com o grupo
dos não trabalhadores.
18 O Capítulo II – “A carne e os ossos”: os limites da jornada de trabalho – apresenta um dos
aspectos que contribui para reforçar essas diferenciações: as diferentes visões dos
operários sobre as jornadas de trabalho às quais estão submetidos e as descrições das
consequências que essas jornadas têm para eles.
19 No período da moagem, os profissionistas são cominados a cumprir jornadas de 12 horas;
entretanto, e devido ao ritmo frenético da safra, eles aproveitam a “urgência” dessa
fase do processo produtivo para trabalhar muitas horas a mais, interpretando que esse
aumento horário incrementa progressivamente seu salário. Além de serem exigidas
pela febre produtiva da usina durante a safra, essas longas jornadas são “desejadas”
pelos profissionistas, que as consideram como uma possibilidade concreta para aumentar
seus magros ingressos. O período da moagem passa então a ser visto como uma
temporada quase que privilegiada, já que durante o apontamento eles poderão trabalhar
unicamente oito horas, reduzindo-se, drasticamente, seu nível de subsistência. As
longas jornadas da safra provocam um constante cansaço nesses operários e um
desgaste acelerado dos seus corpos; entretanto, a usina não para de consumir
constantemente sua força de trabalho. Para garantir o cumprimento desses extensos
horários, os empregados enviam “chamadores” às casas dos operários, tirando-os do seu
descanso e levando-os para a fábrica; uma vez nela, esses representantes da hierarquia
da usina vigiarão o trabalho dos exaustos profissionistas através da investigação,
impedindo que eles durmam no trabalho ou que façam suas tarefas com lentidão.
20 Por sua vez, os artistas têm que trabalhar 12 horas ou mais durante o período do
apontamento: deverão cuidar da manutenção e reparação das máquinas sob o regime de
“urgência” que esse período impõe nas oficinas, deixando todos os aparelhos prontos
para a próxima safra. E, uma vez dentro do ritmo desenfreado da moagem, os artistas
também estarão sujeitos a “chamados”: toda vez que quebrar uma máquina e/ou uma
peça, eles serão convocados para consertá-las, sendo procurados em suas próprias casas
pelos empregados. Sem poderem recusar esses chamados, referem-se a eles como uma
situação de cativeiro dentro da usina.
21 Artistas e profissionistas vivem uma invasão constante da esfera do trabalho em suas
vidas privadas, e vice-versa: a administração da usina penetra na esfera do seu
cotidiano, e acaba por lhes impor toda uma maneira de viver, até nos mínimos detalhes.
Não obstante, os diferentes grupos reinterpretam criativamente essas categorias e
práticas impostas pela usina na interpenetração de ambas as esferas, implementando,
algumas vezes, estratégias para driblar as imposições dos empregados e seu controle
permanente. Mas, apesar de conseguirem minimizar os prejuízos provocados pela
exploração das longas jornadas de trabalho, essas estratégias não quebram a vertigem
do processo ininterrompido da produção do açúcar – o qual imprime, de forma violenta
e prematura, o esgotamento da força de trabalho dos operários. Aliás, essa exploração
se desenvolve em condições de trabalho insalubres e perigosas que provocam, com
muita frequência, tanto doenças quanto acidentes de trabalho. Às vezes, a situação
insalubre de um trabalhador pode mudar através dos “favores” dos empregados, pedindo
a transferência para uma área melhor – e ficando, portanto, prisioneiro de um
compromisso de lealdade com esse funcionário. Dependendo da fábrica de açúcar para
sobreviverem, e sem poderem fugir da sua dominação, os operários recorrem a uma

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expressão antropofágica para se referirem àquilo que a usina faz com cada um deles:
“come-lhes a carne, e depois joga fora os ossos”.
22 No Capítulo III – O “fetichismo” do salário e suas revelações – Leite Lopes analisa as
percepções desses operários sobre seus salários. Essas percepções abrangem a relação
que esses trabalhadores fazem entre seu salário e seu tempo de trabalho, assim como as
práticas da administração da usina relativas ao pagamento desses salários. Dessa forma,
o autor apresenta as perspectivas diferenciais de artistas e profissionistas. Os primeiros
gozam de um salário-hora mais elevado, o qual atribuem às virtudes das suas “artes”.
Como operários mais qualificados, eles teriam direito a esse benefício que reconhece
seu “saber fazer”, podendo, aliás, “mostrar” os produtos do seu trabalho de forma
visível e concreta, dado que estão incorporados nas partes da fábrica. Diferentemente –
e apesar de eles também produzirem o “ouro branco” do usineiro –, os profissionistas
concebem seu próprio trabalho como uma simples prolongação das máquinas que
operam e vigiam: sem possuir nem a arte nem as características visíveis do fazer do
artista, participam de forma anônima no processo de produção. Apesar de se sentirem
exauridos pelas longas jornadas de trabalho próprias da moagem – de 12 horas ou mais
–, eles preferem cumprir esses longos horários antes que se defrontar com os ingressos
mais reduzidos da época do apontamento, baseados em jornadas de oito horas. Embora
sabendo os acumulativos e irreversíveis prejuízos que essas longas jornadas provocam
na sua saúde, eles percebem essas condições de trabalho como constitutivas a sua
própria categoria. A ânsia por um salário mais alto gira, então, em torno da maior
quantidade de horas que eles são capazes de cumprir, sem colocar, no entanto, a
possibilidade de um aumento do valor da hora de trabalho. A vivência e interiorização
dessas condições permite assim que os profissionistas se transformem em “contadores de
horas”: perante o “saber fazer” do artista, eles “fazem” horas de trabalho para garantir
sua subsistência. Por outro lado, eles agem conforme um “medo internalizado” que
sentem perante a ameaça do desemprego: os profissionistas percebem que a organização
de três turnos de oito horas permitiria que fossem contratadas mais pessoas durante a
moagem, e que mais tarde, durante a época do apontamento, um terço desses
profissionistas tivesse o mesmo destino que o dos serventes, isto é, seriam “cortados”
(demitidos) pela usina, para assim não ter que conservá-los de maneira “improdutiva”.
Leite Lopes mostra, então, como esse “fetichismo do salário por hora” – a noção opaca
de um pagamento que corresponderia ao trabalho pela totalidade das horas
trabalhadas, transformando as horas em unidade de medida do salário, e não de tempo,
fazendo do salário uma categoria independente dos operários – provém não somente
das condições de trabalho internas à usina, mas também da situação desse particular
mercado de trabalho – sujeito à administração que a usina faz da sazonalidade de sua
produção, e do caráter perecível de sua matéria-prima. Outras percepções dos
operários sobre o salário aparecem quando eles se referem às armadilhas da usina a
respeito de mudanças de categoria não registradas (que implicariam salários mais
altos), assim como às burlas na contabilidade e/ou pagamento das horas extras. Os
discursos operários sobre as concessões extramonetárias oferecidas pela usina
evidenciam a insuficiência daquilo que ganham, e o caráter compensatório – embora
também insuficiente – dessas concessões.
23 Se por um lado artistas e profissionistas parecem, às vezes, carregar o prazer da
responsabilidade atribuída e o orgulho pelo trabalho bem feito, por outro lado esses
operários carregam também seu cansaço e, perante seus baixos salários, um sentimento
de escancarada exploração. Porque esta se torna ainda mais evidente quando ambos os

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grupos comparam seus escassos ingressos com aqueles dos empregados: além de
ganharem salários muito mais altos, estes não possuem arte nenhuma e, ainda por
cima, não fazem parte da produção do açúcar. Nem as concepções dos profissionistas
sobre o salário – como “fazedores de horas” – nem as dos artistas – com o “saber fazer”
da sua “arte” – conseguem explicar os altos salários dos empregados. Mas, se o
“fetichismo do salário” dos artistas serve para legitimar as hierarquias e os salários
diferenciais entre todos os operários, também serve para, através do “código da arte”,
evidenciar a ilegitimidade daqueles altos pagamentos. É graças à ideologia dos artistas
que os trabalhadores da fábrica encontram, então, um ponto de vista unificado para
ilegitimar a ordem social subjacente à usina, estabelecendo uma clara oposição: por um
lado, estão os próprios operários e seus “fazeres” dentro da produção; por outro lado,
está o “não fazer” dos empregados, assim como a injusta remuneração que eles recebem
por atividades improdutivas.
24 As dificuldades de reivindicação coletiva desses operários também estão condicionadas
pela situação do particular mercado de trabalho onde eles estão inseridos. Assim, no
Capítulo IV – O “mercado de trabalho” dos operários do açúcar: superpopulação e “cativeiro” –
Leite Lopes descreve e analisa os procedimentos e práticas relativos à venda da força de
trabalho desses operários. O autor apresenta então suas diferentes trajetórias sociais
em direção à usina, cuja grande maioria provém dos trabalhadores rurais dos engenhos.
Dado que as usinas se amparam nas flutuações sazonais da produção do açúcar para
absorver grandes contingentes de trabalhadores que, mais tarde, serão expulsos, elas
colocam, vivamente, a ameaça interiorizada do desemprego entre todos esses
trabalhadores. Assim, a superpopulação da parte agrícola da plantation se concentra em
torno da usina para, em um primeiro passo, entrar nela como serventes, mas, de todos
estes, só alguns conseguirão obter um lugar de trabalho como operários fixos. Nesse
caso, existe a possibilidade de eles receberem uma casa no bairro operário da usina,
compreendida como um privilégio outorgado aos trabalhadores permanentes; não
obstante, eles também sabem que a proximidade com seus lugares de trabalho facilita
os “chamados de emergência” da usina durante seu escasso tempo livre. Além de não
poderem fugir à coerção desses chamados – referindo-se a essas instâncias como um
“cativeiro” –, a usina também estabelece outros “cativeiros” para controlar a vida dos
seus operários: as possibilidades destes para trabalharem em usinas diferentes (ou em
outras atividades) também são administradas pelos empregados, imobilizando sua força
de trabalho através da moradia. Leite Lopes explica como, a partir da concessão de uma
casa (muitas vezes, acompanhada de um roçado), as condições materiais de existência
dos operários passam a depender absolutamente dessas concessões. Eles ficam
absolutamente ligados ao tecido desses “favores extramonetários”, e, pouco tempo
depois – e de forma gradual –, a fábrica de açúcar vai “tirando com uma mão o que deu
com a outra”: demonstrando quem é que manda dentro das usinas, os empregados vão
recortando gradualmente aqueles benefícios, sublinhando assim a situação despossuída
e absolutamente instável desses trabalhadores. Perante o medo internalizado de perder
tanto os “privilégios” obtidos quanto o próprio trabalho (este último implicando, aliás,
o desalojamento), a usina acaba condicionando qualquer tipo de reivindicação: a posse
de uma dessas casas não só os obriga a aceitarem qualquer tipo de diminuição em sua
subsistência, mas, principalmente, impede que eles possam sair à procura de outro
emprego melhor, imobilizando sua força de trabalho através dessa inescapável
dependência que liga, de maneira indissolúvel, a esfera do trabalho à esfera doméstica.
Isso permite que a usina explore mais facilmente os melhores anos úteis dos seus

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operários, expulsando-os unicamente quando for conveniente pra ela. Esse controle da
reprodução dos seus trabalhadores tem repercussões imediatas no mercado de trabalho
dos operários do açúcar, sendo essa imobilidade outra das principais características
dessa grande indústria agrícola.
25 Por último, na Conclusão o autor recupera os pontos principais de cada capítulo
articulando os elementos destacados por sua leitura, profundamente política,
demonstrando como a resistência dos operários ainda luta contra o despotismo e a
ilegitimidade da ordem social da usina – a qual opera seu domínio valendo-se, entre
outras coisas, da administração das contradições que ela mesma provoca.
26 E este era o livro que eu devia traduzir. Como um todo, em nível lexical, o relato de
Leite Lopes parecia se mostrar de maneira “transparente”, isto é: eu, como leitora-
antropóloga cuja língua nativa é o espanhol, mas que domina o português, podia
afirmar que compreendia tudo o que estava lá escrito. Mas a tarefa de possibilitar essa
compreensão em outra língua era algo completamente diferente; aliás, ao longo do
processo de tradução essa suposta compreensão minha se revelou, certas vezes,
limitada. Ao mesmo tempo era consciente de que, para o público argentino, eu ia ser a
“primeira leitora” (Tavares de Lyra, 1998): a partir da minha própria leitura, eu iria
avaliar a futura recepção que eles teriam do Vapor, apresentando-lhes uma versão
diferente.

Quatro aspectos simultâneos do longo processo de


tradução do Vapor
Um trabalho solitário?

27 Houve uma particular condição de trabalho que, a meu ver, definiria toda uma maneira
de recorrer às palavras em outro idioma. Poder-se-ia dizer que uma das principais
características do trabalho de tradução é sua condição absolutamente solitária; de fato,
o “padroeiro” dos tradutores é São Jerônimo, aquele eremita que passou 30 anos da sua
vida fechado sozinho numa cela, traduzindo a Bíblia (Kalinowski, 2002/4). A solidão
aparece não somente como uma das condições que seriam próprias a esse trabalho, mas
também como requisito de uma boa tradução, isto é, como uma espécie de garantia de
concentração, de trabalho bem feito. Geralmente, o tradutor defronta-se com a unidade
de uma obra que, durante aquele processo de transformação linguística, muito
provavelmente constituir-se-á como sua única interlocução. O tradutor dialoga então
com esse primeiro texto original para, assim, criar o segundo; rapidamente, torna-se
uma espécie de “mediador” entre ambas as versões, mantendo, então, um diálogo entre
elas. Sem escapar à regra, a tradução do Vapor também reproduziu esse esquema de
funcionamento; entretanto, ao longo de todo o processo houve mais uma interlocução
fundamental, que permitiria deslocar o Vapor do quadro das condições supostamente
típicas desse trabalho intelectual: refiro-me à minha interlocução com o autor.
28 Quando começamos a falar sobre a tradução do Vapor, eu expliquei a Leite Lopes que eu
ia precisar me reunir com ele para discutirmos tudo aquilo que não estivesse
suficientemente claro; na época pensei, basicamente, nos dois grandes grupos de
problemas que – eu imaginava – a tradução iria levantar: as dúvidas em torno de
escolhas terminológicas, e os possíveis interrogantes acerca de formas de redação,
ambos os grupos com suas criações de sentido diferenciais. Estando ele no Rio de

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Janeiro e eu em Coimbra (Portugal), as nossas futuras “reuniões” iam ser on-line, através
do programa Skype.
29 Assim que acabei uma primeira versão dos textos introdutórios do livro (Sumário,
Prefácio, Agradecimentos e Introdução), pedi ao autor uma reunião on-line, que seria a
primeira de muitas. Apresentando problemas que excediam questões terminológicas ou
gramaticais, cada capítulo precisou, na média, de umas oito horas de trabalho.
Chegamos a ter sessões de até quatro horas de duração, e, sem terminarmos de avaliar o
capítulo em questão, marcávamos mais uma conversa no dia seguinte ou durante a
semana, mas nunca muito longe uma da outra.
30 Apesar de eu própria ter proposto essa dinâmica de trabalho, nunca imaginei que fosse
adquirir esse ritmo e essa intensidade, imprimindo outro tipo de marcas no texto. A
presença permanente de Leite Lopes apontou uma diferença qualitativa fundamental ao
longo do esforçado processo, tão árduo quanto fascinante. O autor que eu estava
traduzindo “estava vivo” e falava comigo praticamente todas as semanas; em vez de ser
eu sozinha a me defrontar com escolhas de palavras, estruturas, significados e sentidos,
guiando-me através das minhas intuições e “sacando” algumas expressões pelo fato de
colocá-las em contexto, eu contava com a presença dele, não só para ser um ótimo
interlocutor dessas escolhas, mas também, e principalmente, para me introduzir no
coração da sua pesquisa, oferecendo-me outras informações que iam muito além
daquelas que tinham aparecido em sua versão escrita. Aquilo que o autor me
apresentava era “o” contexto, e eu o visitava com ele, meu informante nessa pesquisa.

Contextos anteriores, mas simultâneos, a essa tradução

31 As minhas experiências prévias como tradutora2 me ensinaram que não somente devia
dar a entender, através das palavras, os significados e o tom de certas vozes, mas que a
minha escrita também devia constituir e transmitir o “clima” dos contextos dessas
vozes. Tendo morado seis anos no Brasil, realizando meu mestrado e meu doutorado no
PPGAS-MN/UFRJ, e tendo sido aluna dos professores José Sergio Leite Lopes e Moacir
Palmeira, assim como da falecida professora Lygia Sigaud, a compreensão e o
conhecimento de contextos tais como o da produção intelectual brasileira da década de
1970, ou o cenário canavieiro pernambucano dessa época, tornavam-se, para mim, mais
acessíveis do que poderiam ser para a maioria dos futuros leitores argentinos. As aulas
que tive com cada um desses antropólogos tinham me aproximado de suas trajetórias
intelectuais, conhecendo dessa forma aquelas pesquisas pioneiras na área do Nordeste;
também soube dos particulares caminhos que adotaram os objetos de estudo de cada
um deles, assim como das referências que os influenciaram intelectualmente.
32 Por sua vez, esses conhecimentos se inseriam em um contexto muito mais abrangente,
e que apresentava diferenças radicalmente significativas em relação à Argentina:
refiro-me ao próprio mundo da cana-de-açúcar. Que o Brasil é atualmente o maior
produtor de açúcar do mundo é um dado mais ou menos generalizado, mas os leitores
argentinos mal conhecem a história dessa indústria (menos ainda no Nordeste), como
também desconhecem a presença e o peso dessa história no imaginário nacional, e seu
alcance em diferentes áreas da vida social. No Brasil, tanto a dinâmica daqueles
engenhos (instalados praticamente desde o começo da colônia) quanto a importância
econômica da indústria canavieira na história do país são dados de certo conhecimento
público, indissoluvelmente associados ao longo período da escravidão indígena e negra,

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em níveis de exploração muito maiores daqueles da indústria do café ou da mineração.


Não é acaso os operários do Vapor falarem em cativeiro; também cabe prestar atenção à
expressão fomos cortados (isto é, cortados como a cana-de-açúcar, mutilados como os
escravos). Poder-se-ia dizer que a história envolvida na produção desse ouro branco faz
parte dos mitos fundadores do Brasil; há toda uma “cultura” em torno do açúcar que,
no entanto, teve/tem maiores proporções no Nordeste do que no resto do país.
Expressões tais como casa-grande, apontamento, cassacos ou senhor de engenho fazem parte
de um vocabulário brasileiro baseado nos engenhos de açúcar, sem fazer sentido em
espanhol. Também se deve considerar – especialmente no Nordeste – a popularidade
das obras do romancista paraibano José Lins do Rego (1901-1957) no chamado “Ciclo de
cana-de-açúcar”,3 assim como a grande repercussão da obra de Gilberto Freyre, Casa-
grande e senzala (1933). Na hora de traduzir o Vapor, todos esses conhecimentos prévios
pareciam representar grandes vantagens; no entanto, tais vantagens resultariam
insuficientes.
33 O livro apresentava-me também uma espécie de dilema inicial que haveria de definir
toda uma estratégia de trabalho, do princípio até o fim. Produto intelectual da década
de 1970, tanto a metodologia do Vapor quanto o diálogo entre o campo e a teoria
questionavam – como indicava Moacir Palmeira no Prefácio – o caráter e os
procedimentos generalizantes de prévios trabalhos oriundos da sociologia (com suas
tendências estatísticas), assim como aqueles provindos dos absolutismos conceituais
marxistas. Diferentemente, o Vapor privilegiava, de modo relacional, as variações
internas de um grupo concreto de trabalhadores, com suas próprias representações
acerca da sua prática econômica em usinas de açúcar também concretas; eles faziam
parte da chamada classe operária, que também era assumida de forma relacional. Essa
perspectiva estava muito influenciada pelas leituras etnográficas e históricas de O
capital (leituras que, naquela época, foram analisadas e discutidas em conjunto com os
outros pesquisadores do grupo), assim como por alguns trabalhos recentes de Pierre
Bourdieu (Leite Lopes, 2011, p. 30). Se as influências destes dois autores na elaboração
do Vapor foram fundamentais, tanto do ponto de vista teórico quanto do político,
existia, a meu ver, um outro tipo de influência a mais: em certo modo, poder-se-ia dizer
que muitas partes do Vapor estavam escritas “à la Bourdieu”. O que eu quero dizer com
isso? Encontrava-me, muitas vezes, com frases muito densas conceitualmente,
extensíssimas (de até 13 linhas), construídas através de frases subordinadas que, por
sua vez, estavam dentro de outras tantas subordinadas. Como acontece com a leitura do
próprio Bourdieu, essas frases longas, se lidas em voz alta, deixam o leitor sem fôlego!
Esse tipo de escrita – densa, rigorosa e muito complexa – também estava presente no
Prefácio de Moacir Palmeira, embora de uma maneira ainda mais contundente.
34 O dilema inicial apresentava-se, então, em torno da escolha seguinte: devia traduzir o
Vapor cuidando dessa forma de redação, e refletindo assim, fielmente, o clima daquele
contexto intelectual? Ou devia sacrificar aquele clima, aquelas características originais
da produção do texto, e privilegiar a compreensão de leitores que, quase 40 anos depois
dessa pesquisa, interessar-se-iam mais pelos conteúdos da etnografia do que pela forma
em que ela foi escrita? Acho que não se trata de uma mera questão de estilo: do meu
ponto de vista, essa maneira complexa e “bourdieusiana” de construir, organizar e
redigir o conhecimento sobre a realidade social permite que nós, leitores, reflitamos
sobre a própria complexidade da realidade social que tentamos conhecer. Para dizê-lo
em termos mais simples, acho que é verdade que Bourdieu escrevia “difícil”, mas o que

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era difícil mesmo era colocar em palavras a fecunda complexidade de sua própria
análise. E, a meu ver, esta era uma qualidade compartilhada pelo Vapor.
35 A solução para tal dilema foi traçada junto com o autor, caso por caso. Algumas dessas
longas frases resultaram em duas, três e até quatro em espanhol; outras foram passíveis
de tradução, e puderam conservar sua integridade. Privilegiamos a compreensão dos
novos leitores em espanhol, mas, ao mesmo tempo, também quisemos conservar aquela
maneira de construir o universo social das usinas de açúcar, aquele clima de produção
original que contém, em seu tom quase militante, o espírito e a marca de uma época de
uma boa parte da produção acadêmica brasileira.

Tradução versus equivalências

36 As questões terminológicas surgiram logo no início, a partir dos textos introdutórios.


Em primeiro lugar, estavam os protagonistas principais: artistas, profissionistas, serventes
e ajudantes. É a própria etnografia que descreve e explica os usos, significados e valores
dessas categorias operárias; elas estão descritas principalmente no Capítulo I,
assumindo todo seu significado ao longo do livro. Apesar das semelhanças desses
termos em ambas as línguas, suas passagens para o espanhol resultaram, em alguns
casos, problemáticas.
37 Por exemplo, no contexto argentino das fábricas de açúcar, a posição, o valor e as
funções dos serventes se aproximavam àquelas dos chamados “peones” ( peões) ou
“trabajadores golondrina” (trabalhadores andorinha); não obstante, a categoria servente
(“sirviente”), genérica na indústria brasileira, indicava com maior ênfase a ação
atribuída a esse grupo – servir – e a sua posição historicamente subordinada no universo
canavieiro – servidão (“servidumbre”). Assim sendo, a escolha por “sirviente” em
espanhol acompanhava muito melhor o lugar desses operários “descartáveis”, que
seriam expulsos só depois de “servir”.
38 Um caso diferente foi o dos profissionistas; o termo não existe em português, sendo um
derivado de profissão e profissional. O acréscimo do sufixo ista reflete o desejo de
aproximação desses operários com os artistas, o “modelo” de todos os trabalhadores das
usinas. A palavra profissionista seria, então, uma espécie de empoderamento em nível
terminológico, tanto pelo empréstimo que tomam da palavra artista quanto pelo
próprio uso do termo profissão para se referir às ocupações que só existem no âmbito
das usinas. Nesse caso, a proximidade dos termos em espanhol – “profesión” e
“profesional” – permitiu-me utilizar o mesmo jogo de palavras e construir, então, outra
palavra que não existe: “profesionista”.
39 Junto com os protagonistas da etnografia estava, nem mais nem menos, o próprio
cenário da pesquisa: as usinas. Na Argentina, as fábricas de açúcar recebem o nome de
“ingenios” (engenhos). Embora significassem o mesmo, havia não obstante um problema
fundamental: no Vapor apareciam tanto a usina quanto o engenho, e nomeando coisas
bem diferentes. No contexto nordestino (e, aproximadamente, desde o começo do
século XX), o termo engenho designa unicamente a parte agrícola da plantation, mas não
a totalidade do conjunto agroindustrial – isto é, a usina. Dessa forma, a diferença entre
ambos os termos não era uma simples questão terminológica: eles carregavam uma
temporalidade própria à historicidade da industrialização do açúcar no Brasil,
principalmente no Nordeste; eu devia passar essa temporalidade para a língua
espanhola. Nesta, o termo “usina” é vinculado às especialidades industriais de grandes

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proporções (energia, siderurgia, refinarias de petróleo, hidroelétricas etc.); de tal


forma, poderia utilizá-lo, mas devia precaver os leitores sobre a particular apropriação
que ele tinha nas páginas do Vapor. Quem acabou fazendo isso foi o próprio autor, nas
páginas do Glossário (Leite Lopes, 2011, p. 306-307).
40 Havia também outras séries de termos que não admitiam nenhum tipo de passagem
para o espanhol. As mesorregiões pernambucanas do Agreste e da Zona da Mata foram
mencionadas sempre em sua língua original; quase que absolutamente desconhecidas
para um leitor argentino, eu ofereço uma primeira explicação delas em uma nota de
rodapé (Leite Lopes, 2011, p. 99), e há também uma definição mais exaustiva no Glossário
, realizada pelo autor (Leite Lopes, 2011, p. 303, 307).
41 Também foram transcritas identicamente as categorias Estado Novo e getulismo. Menos
alheias para o público argentino que as anteriores, estas também precisavam de uma
contextualização histórica e política muito precisa, que pudesse dar conta
principalmente da importância da implementação das leis trabalhistas, assim como das
representações dos trabalhadores em torno da figura – quase que redentora – de
Getúlio Vargas (veja-se Glossário, Leite Lopes, 2011, p. 303-304).
42 Outra série de termos que, a meu ver, precisaram conservar sua forma original, foram
as classificações entre corumbas, foreiros e moradores; estes termos não só fazem
referência a classes de trabalhadores, mas também a distintos tipos de vínculos com o
usineiro e/ou a administração da usina, que implicam, por sua vez, diferentes redes e
níveis de dependência (veja-se Glossário, Leite Lopes, 2011, p. 303-305).
43 Por sua vez, as descrições do espaço físico das usinas levantaram vários tipos de
problemas. Como já foi apontado, a planta fabril das usinas está dividida, grosso modo,
em dois grandes locais: por um lado está o setor de fabricação do açúcar (que contém o
setor da moenda), e por outro lado está a seção das oficinas de manutenção das máquinas
da usina. Lembremos que o período anual da produção do açúcar também é dividido em
dois grandes ciclos: a moagem, durante a época da safra, e o apontamento, durante os
intervalos da entressafra – isto é, o preparo da usina para a próxima moagem.
44 Em espanhol, os termos moenda (espaço onde moer; moinho) e moagem (ato de moer) só
podem ser traduzidos sob uma única palavra, “molienda”, que também faz referência à
moagem enquanto temporada, período. Assim, o termo “molienda” teve que ser
utilizado tanto no lugar da moenda quanto da moagem. Não obstante, toda vez que ele
fazia referência ao período da moagem foi colocado em letra itálica, como categoria
nativa: no discurso dos operários, as referências aos períodos de moagem e de
apontamento são cruciais para definirem não só suas posições dentro do processo de
produção e/ou suas possíveis transferências de uma ocupação a outra, mas também
para classificar as flutuações dos seus níveis de subsistência, e até para organizar as
descrições de suas histórias de vida (por exemplo, “eu fiz ‘x’ apontamentos nessa
usina…”).
45 Os termos manutenção e apontamento também tiveram que ser unificados sob um mesmo
termo. A expressão manutenção existe em espanhol como “manutención”, mas ela
indica preferencialmente a ação de sustentar alguém no sentido material (por exemplo,
dos pais depende a “manutención” dos filhos); diferentemente, para referir ao conjunto
de consertos, controles e reparos que permitem manter máquinas, aparelhos e/ou
fábricas em bom estado, usa-se “mantenimiento”. E quanto à expressão apontamento…
bom, isso já apresentava outras margens, bem mais interessantes. Como mencionei
antes, a palavra apontamento só existe no Brasil, e não tinha tradução possível. Dado que

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ela se refere àquele tempo de preparo da usina para a próxima moagem, quer dizer,
àquele período no qual se levavam a cabo os trabalhos de “mantenimiento”, com o
autor decidimos, então, que aqueles períodos haveriam de se chamar da mesma
maneira – “períodos de mantenimiento” –, e que só nestes últimos casos seriam
colocados em itálico.
46 O espaço físico da seção de fabricação tem, por sua vez, uma série de subseções que,
através das suas máquinas e funções, definem os nomes das “profissões” dos
profissionistas. Para conhecer, identificar e poder traduzir esses espaços e ocupações de
uma língua para outra, tive que procurar informação sobre a infraestrutura dos
“ingenios” argentinos e a organização do seu pessoal. Um primeiro passo foi procurar
informação via internet, orientando-me principalmente a partir das informações sobre
a maior dessas indústrias na Argentina,4 também solicitei ao autor o texto sobre a
produção açucareira nesse país, que ele próprio tinha utilizado no percurso de sua
pesquisa (Murmis; Waisman, 1969). As informações que ia encontrando resultavam
insuficientes, basicamente porque precisava de alguém que – como Leite Lopes naquela
época – conhecesse por dentro aquele “vapor” das usinas. Através de uma das editoras,
por um lado, e através de uma colega em Buenos Aires, por outro, 5 é que consegui
estabelecer contato com os engenheiros agrônomos argentinos citados no livro (Roca,
2011, p. 24), todos eles vinculados ao Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria
(INTA). Expliquei-lhes então, por e-mail, as dificuldades que surgiam no Vapor: a maior
parte das minhas dúvidas giravam em torno das palavras passíveis de serem traduzidas
para o espanhol, mas que não sabia se eram usadas, ou se faziam sentido, no contexto
dos “ingenios” argentinos; por outro lado, precisava lhes consultar a respeito de
algumas dinâmicas e/ou procedimentos característicos dos “ingenios”, para assim
confirmar algumas das minhas interpretações.
47 As comunicações via e-mail se transformaram, rapidamente, em uma série de ligações
telefônicas ou por Skype. Valendo-me de uma ilustração do processo produtivo da
cana-de-açúcar (encontrada no sítio web citado anteriormente, e que não mencionava
um único operário, como se a produção do açúcar se limitasse a uma participação de
máquinas), eu utilizava esse desenho para que Leite Lopes “colocasse os operários”
dentro dele, explicando-me suas funções; a partir dessas colocações e descrições, eu
falava depois com os engenheiros agrônomos para eles recolocarem aqueles
trabalhadores no contexto argentino de produção; por último, eu conferia essas novas
informações com o autor, para assim avaliarmos e decidirmos os termos definitivos.
Alguns dos nomes de certos ofícios contavam com termos equivalentes em espanhol:
era o caso de soldador (“soldador”), pintor (“pintor”), ferreiro (“herrero”) e torneiro
(“tornero”). Mas também havia todas aquelas ocupações cujos nomes em português
derivam da área de trabalho onde se desenvolvem. Dessa forma, os que trabalham na
manutenção das caldeiras são os caldereiros; os que cuidam da evaporação do caldo da
cana, evaporadores ou esquenta-caldo; os que fornecem a lenha para alimentar o fogo das
locomotivas, foguistas; os que tomam conta dos vagões do ferrocarril, guarda-freios ou
brequistas. Falando com os engenheiros agrônomos, no contexto dos “ingenios”
argentinos os operários que realizam essas ocupações recebem o nome de encarregados
(“encargados”) de tal ou qual seção; por exemplo, “encargado de las calderas”. Apesar
disso, com o autor decidimos adaptar as formas substantivadas utilizadas no Nordeste,
ficando então “calderero”, “evaporador”, “fueguista” e “guardafrenos”. Esses termos
expressavam com maior fidelidade as categorias nativas, e, por outro lado, a brevidade

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de seus nomes (se comparados com “encargado de las calderas”, “encargado de las
turbinas”, etc.) permitiria oferecer uma leitura mais fluida.
48 O caso dos turbineiros apresentava um problema diferente. O termo turbinas quase não é
utilizado no contexto dos “ingenios” argentinos; em geral, são nomeadas como
“centrífugas”, e seus trabalhadores são os “encargados de las centrífugas”. Conforme o
procedimento anterior, devíamos chamá-los “centrifugueros”; entretanto e devido à
existência da palavra turbina em espanhol, preferimos conservar o termo original e a
ocupação dele derivada, “turbinero” (turbineiro). Com os serralheiros (“carpinteros
metálicos”) aconteceu algo similar. Segundo me informaram, no contexto das usinas
argentinas é raro encontrar operários sob essa nomeação; de acordo com suas tarefas,
são classificados mais especificamente como “herreros” (ferreiros), “torneros” (torneiros)
ou “soldadores” (soldadores). Não obstante, com o autor decidimos manter a clara
diferenciação utilizada nas usinas do Nordeste, e considerar a cada um desses ofícios de
forma separada. Sob o mesmo critério, também adaptei para o espanhol o nome
daquele operário que cozinha o açúcar: diferenciando-o de um cozinheiro comum, os
operários chamam-lhe cozinhador, termo inventado que não existe em português. A
proximidade dos termos cozinheiro e “cocinero” entre ambas as línguas me permitiu
realizar o mesmo jogo de palavras, e inventar também “cocinador” em espanhol.
49 Há, no entanto, um aspecto da dinâmica da tradução que pode resultar obscurecido:
não se trata de palavras que estiveram à procura do seu “equivalente” e que, uma vez
identificado, sumiram do cenário de diálogo entre elas. Pelo contrário, ao longo de todo
o processo de tradução, palavras e línguas comunicaram-se coisas constantemente, e os
capítulos do Vapor levaram muito tempo até ganhar sua forma final. O próprio
desenvolvimento da etnografia me obrigou a aceitar o caráter transitório de certas
“soluções” terminológicas que, apesar de não terem sido definitivas, levaram-me
entretanto a melhores aproximações.
50 Houve um caso que parece acompanhar bastante bem essa dinâmica. Fora do mundo
das usinas, o significado mais geral do termo ferragem é similar àquele do seu próximo
espanhol, “herraje”. Mas, de forma genérica, os operários se referem à categoria
ferragens para nomear o conjunto total da estrutura da fábrica da usina, isto é: as
máquinas, as ferramentas de trabalho, os prédios cobertos (com suas armações,
escadas, corredores, colunas, níveis, tetos metálicos e o resto das instalações). Depois de
muitas dúvidas, e de ter deixado o termo “de molho” até encontrar uma solução, esta
pareceu chegar: traduziria ferragens pela gíria argentina “chatarras”. Essa palavra
passava muito bem a ideia de um conglomerado de ferros, de estruturas frias e barulhos
metálicos ensurdecedores. No entanto, quando já estava quase chegando ao final do
livro, apareceu mais uma vez o termo ferragem e, para minha surpresa, aquele
pequeníssimo contexto me fez rever os usos dessa palavra na tradução inteira: o autor
fazia referência a um operário que “… observando minha dentição e comparando com a
dele, exclamou: ‘Mas a sua ferragem é completa!’” (Leite Lopes, 1978, p. 204). Foi então
que percebi que, na gíria argentina, “chatarra” tem também uma conotação de “ferro
velho”, e se aquele operário estava fazendo semelhante comparação, não era para se
referir aos “ferros velhos” da boca do jovem autor: era exatamente o contrário, e ele
estava se referindo à solidez da sua “máquina de moer”… Decidi-me então pela palavra
“fierros”: além de condensar os sentidos anteriores, os argentinos costumam chamar de
“fierros” os carros bons, transmitindo também uma ideia de potência e de estrutura
sólida, forte, poderosa.

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51 Vários desses termos traduzidos precisaram de algumas explicações sob a forma “N. da
T.”. Foi o caso, por exemplo, do termo investigação, o qual conta com um equivalente em
espanhol (“investigación”). Sob essa categoria, os trabalhadores se referem
recorrentemente ao controle exercido sobre eles pelos representantes da hierarquia da
usina, observando de perto seu desempenho no trabalho. Poderia ter sido traduzida
como “controle” e/ou “vigilância”; entretanto, essas duas últimas palavras aparecem ao
longo do texto com outras funções, distintas dessa rotina disciplinária específica da
usina – disciplina que, aliás, é nomeada pelos operários como investigação, razão pela
qual conservamos o termo original. Também foi necessário esclarecer as características
da carteira assinada: era necessário estabelecer os pontos de contato com a “libreta de
trabajo” utilizada somente em alguns âmbitos laborais da Argentina, mas marcando, ao
mesmo tempo, o contexto histórico e as especificidades desse documento pessoal
obrigatório no Brasil.
52 Palavras como carrancismo ou expressões tais como bom carreiro aparecem idênticas na
versão argentina, explicando seus significados e usos através das “N. da T.”. O
substantivo obsolescência, inexistente em espanhol, podia ser compreendido a partir do
adjetivo comum às duas línguas, obsoleto; quis que aquele substantivo aparecesse em
português, mas foi necessário esclarecer essa derivação. Expressões e termos tais como
ABC paulista, contos de réis, feijão, morro e manguezal ficaram propositadamente sem
tradução, explicando seus (brasileiríssimos) significados em outras “N. da T.”.
53 Um caso diferente (e até engraçado) foi o da palavra rede, mencionada por um operário
no contexto de uma entrevista. Os argentinos chamam-na “hamaca paraguaya”.
Enquanto na vida cotidiana de muitos brasileiros a rede é quase uma extensão da
pessoa, acompanhando-a onde for, na Argentina aparece como um objeto alheio e
exótico, sendo necessário se remeter a outro país para nomeá-la. Não achei nada
conveniente colocar a expressão “hamaca paraguaya” na boca de um operário do
Nordeste, e, portanto, o termo ficou em português.
54 Para o final do livro, o autor faz um jogo de palavras entre o “vapor do diabo” e o título
do filme A classe operária vai ao Paraíso (Elio Petri, Itália, 1971): passando ao leitor a ideia
de que a resistência dos trabalhadores luta permanentemente contra o despotismo da
usina, Leite Lopes acaba dizendo que, sob esse domínio, “a classe operária vai para o
inferno”. Na versão original, esse trocadilho não está explicitado: o filme era de 1971,
tinha tido um grande sucesso e, portanto, não era necessário oferecer maiores
esclarecimentos em torno da muito oportuna associação. Com o passar do tempo, esse
filme se tornou famoso – quase que um clássico do cinema italiano –, mas como peça de
culto para um público restringido. Muitos dos futuros leitores do Vapor iam ser alunos
de graduação da carreira de antropologia – isto é, moços e moças entre 20 e 25 anos –, e
o jogo de palavras realizado 40 anos atrás podia não ser tão evidente para essas novas
gerações. Aliás, seria necessário esclarecê-lo devido a um segundo risco: sem a
referência do filme, a proximidade das expressões “vapor do diabo” com “inferno”
podia gerar equívocos e transmitir ideias muito distantes daquelas que o autor queria
efetivamente passar. Imprimindo uma clara marca de temporalidade em relação à
edição original, uma “N. da T.” esclarece aquele jogo de palavras.
55 Um caso diferente foi o dos versos recitados pelo operário foguista-repentista Zé Izidro.
Algumas vezes, consegui traduzir de alguma forma mais ou menos similar o conteúdo
desses versos tão especiais, mas houve outros que decidi deixar em português; sem
tirar-lhes a musicalidade original, junto com esses versos repletos de gírias optei por

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descrever aos leitores argentinos a ironia daquele repentista. Esse tipo de conflito
apareceu com as entrevistas em geral: traduzi-las significava prescindir daquela
especial sonoridade da linguagem falada, apagar as marcas de certas ênfases, limitar
algumas efervescências e emoções, cortar determinados ritmos narrativos. Na tarefa de
encontrar palavras (quase que) “performativas”, capazes de realizar a singularidade das
experiências relatadas pelos operários, a ajuda do autor foi fundamental: ele me situava
no próprio contexto da entrevista, recriando esse clima para que eu o recuperasse nas
palavras.
56 Em outro nível, estavam também as expressões idiomáticas em português. Organizando
as experiências desses atores sociais, elas funcionavam como uma unidade, e
demandavam esse mesmo grau de solidez. A expressão utilizada pelos profesionistas para
valorizar o lugar de suas tarefas, “hacer servicio” (fazer serviço) não existe em espanhol.
O verbo fazer é um empréstimo que eles tomam dos artistas, aqueles que efetivamente
fazem peças mecânicas e/ou consertos visíveis, detendo o poder do saber fazer dentro
das usinas. Enquanto os artistas sabem “hacer piezas”, os profesionistas reivindicam seu
“hacer servicio” ou seu “hacer horas”. As expressões “tener conocimiento” (ter
conhecimento), “tener entendimiento” (ter entendimento) ou “tener juicio” (ter juízo)
também apareciam no jogo de valores do “saber hacer” peças e/ou operar as máquinas
da fábrica, indicando, ao mesmo tempo, uma série de normas de socialização no
trabalho fabril. Como explico na NTI, essa ênfase no verbo ter apontava, implicitamente,
um não ter, destacando o conflito cotidiano e permanente daqueles – despossuídos –
operários do açúcar.
57 A tradução do Vapor também requereu novos espaços dentro do livro. Com o autor
acrescentamos um Glossário para aqueles termos que iam ser alheios às experiências e
conhecimentos do público argentino (embora também tenhamos colocado lá siglas de
leis e instituições, contextualizando-as historicamente e descrevendo algumas das suas
características). Um caso engraçado foi a expressão casa-grande: apesar de aparecer com
a maior das transparências, sendo idêntica em espanhol, sabemos que ela está muito
longe de querer significar, simplesmente, “uma casa de grande tamanho”; por outro
lado, tampouco podíamos nos apoiar na ideia de que os futuros leitores argentinos do
Vapor quiçá conhecessem essa expressão através da obra de Gilberto Freyre. Portanto,
essa (brasileiríssima) locução devia fazer parte do Glossário. Por iniciativa do autor,
elaboramos também um Índice remissivo (“Índice temático y de autores”), entendendo
que essa ferramenta de trabalho permite gerar uma comunicação mais interativa entre
as diferentes partes do livro.
58 Na tarefa de inventariar, classificar e explicar todo esse vocabulário, tanto o autor
quanto eu sentíamos uma profunda satisfação: estávamos enriquecendo a edição em
espanhol, aproximando os leitores à precisão dessas referências. No empenho dessa
tarefa, abriam-se outros contextos e quadros interpretativos, que permitiam integrar
melhor a diversidade de dados presentes na etnografia; percebíamos o valor desses
acréscimos, e nos sentíamos muito bem gerindo esses procedimentos. Yvette Delsaut
(2005b) comenta que Bourdieu sempre revisava e aumentava as novas edições das suas
obras; nunca eram iguais, sempre havia algo para corrigir e melhorar. Continuando
com a “tradição bourdieusiana” do livro, acho que tanto o autor quanto eu fomos pelo
mesmo caminho, tentando melhorar progressivamente a qualidade do Vapor.

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As novas marcas na “vida social” do Vapor

59 Uma tradução é, sem dúvida, uma autêntica criação intelectual, mas que está
absolutamente baseada em outra criação intelectual prévia – a obra original –, a partir
da qual se realizam constantes escolhas. A tarefa de traduzir é inseparável da ação de
escolher. Se eu não tivesse traduzido a expressão fazer serviço como “hacer servicio”, os
leitores argentinos não iam entender a “lógica do fazer” dos profissionistas. E se eu
tivesse deixado de explicar o porquê dessa locução errada em espanhol, os leitores
poderiam pensar, simplesmente, que eu escrevo mal. Eu devia justificar a opção por tal
ou qual escolha dentro dos parâmetros gramaticais da língua espanhola, não só para
não correr o risco de ser mal compreendida, mas também para dar conta da minha
“intimidade” e ligação com o texto original (Spivak, 1992, p. 181).
60 Além da minha própria responsabilidade de fazer escolhas, estava, também, a
responsabilidade de explicar ao leitor o porquê delas, e a de facilitar a sua identificação,
deixando nítidas marcas do meu trabalho como tradutora. Essa posição ao longo do
texto estabeleceria tanto um lugar diferente quanto uma clara distância entre os
tradutores de etnografia e os de ficção literária. Estes últimos tentam evitar a
“presença” do tradutor, apagando qualquer rasto de intervenção para, assim, criar uma
intimidade entre autor e leitor, sem mediações,6 trata-se de manter a ilusão de uma
comunicação imediata – e exclusiva – entre autor e leitor. Encontramos o ideal dessa
metodologia na Bíblia: originalmente, ela não devia possuir nenhuma das marcas dos
seus tradutores, garantindo assim a privacidade do contato direto com “o divino”
(Tavares de Lyra, 1998, p. 76).
61 No entanto, os procedimentos da tradução do Vapor enveredaram por um caminho
muito diferente. Eu estava traduzindo não só um produto de conhecimento, mas
também uma atividade de representação cultural publicada por Leite Lopes 35 anos
antes. A tradução do Vapor me levava, necessariamente, a uma reflexão sobre essa
representação, e, nessa tarefa, o autor era meu “informante”. Dado que muitas das
opções e soluções foram decididas junto com ele, interpretamos que seria bom que o
leitor estivesse ciente desse trabalho conjunto. Além de questões terminológicas ou
gramaticais, atrás dessas formas estavam os seus usos, o emprego cotidiano que os
operários faziam com elas. A procura dos termos que pudessem cumprir a função dos
originais implicou diferentes instâncias de pesquisa, e, sumamente localizados, na
precisão dos seus significados encontrava-se a definição do próprio sentido da
etnografia. Essa definição era atualizada por mim, mas sempre com a ajuda do autor.
Por isso, diferentemente da posição dos tradutores de ficção literária (que optam por
desaparecer da interação e intimidade com a narrativa), a minha presença no texto,
junto com as marcas de assessoramento do autor, pretendiam pelo contrário explicitar
uma “tradução antropológica” que garantia a qualidade reflexiva investida no
desvelamento dessas traduções culturais. Longe de ter se tratado de uma tarefa de
ordem técnica, realizada por um “funcionário-tradutor” no âmbito de um corpo
editorial (cumprindo um encargo pontual da empresa, tendo o livro original como
único interlocutor, e respondendo a tempos de trabalho e datas de entrega marcadas), 7
essa tradução do Vapor era realizada por uma antropóloga ex-aluna do autor,
conhecedora do seu trabalho, em contato permanente com ele, e com prazos que foram
se esticando em função das demandas exigidas pela própria tradução. Resumindo: não
era uma tradução habitual, o que justificava deixar de lado certos aspectos normativos

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para, pelo contrário, enfatizar a singularidade do trabalho realizado conjuntamente,


sem deixar os leitores à margem de tudo o que tinha sido investido nele.
62 De fato, as particularidades de certos trabalhos de tradução são capazes de criar outros
tipos de vínculos e modalidades de apresentação, conhecimento, apropriação e
divulgação das obras traduzidas. Exemplo disso é o caso de Isabelle Kalinowski:
socióloga francesa pesquisadora do CNRS, tem traduzido várias obras de Max Weber, 8 e
aquilo que no começo tinha aparecido como simples “N. da T.”, acabou tomando a
forma de notas da especialista na sociologia religiosa do autor alemão. Mas, salvo raras
exceções, não costuma haver, nos textos, marcas de intervenção dos tradutores. Existe
um certo consenso quanto a esse passo atrás imposto pelas supostas boas práticas de
tradução; isso cria as condições de possibilidade para que esses trabalhos – complexos,
esforçados e duradouros – vivam, na maioria das vezes, no total anonimato, sem serem
reconhecidos como objetos de autoria específica, e invisibilizando o papel do tradutor
como legítimo autor da versão traduzida. Embora partindo de diferentes perspectivas,
Delsaut (2005a, 2005b), Kalinowski (2002/4), Tavares de Lyra (1998) – e acredito que
muitos outros – parecem apontar para essas injustas condições de trabalho, e suas
consequências. Apesar de desconhecermos os nomes daqueles intérpretes, todos nós
temos assistido, alguma vez, à sugestão de ler determinada tradução, e não outra: já faz
parte de certa mitologia sobre Marx o fato de a versão francesa ter sido muito melhor
que o original alemão; Delsaut (2005a, p. 225) valoriza o lugar dos tradutores contando-
nos como, quando Bourdieu achava um bom tradutor em outra língua, tentava
trabalhar sempre com essa pessoa.9
63 Ao mesmo tempo, às vantagens do trabalho conjunto articulavam-se outros ganhos,
que introduziam outras marcas e consequências. Em certo modo, Leite Lopes foi
obrigado a revisitar e/ou a se envolver novamente com seu material de campo, a
repensar suas análises, e a revisar suas interpretações, reelaborando seus enunciados a
partir das propostas e/ou reformulações (sintáticas, semânticas, culturais) que eu lhe
apresentava. Quase 40 anos depois daquele trabalho de campo, à trajetória intelectual
do autor também tinham se incorporado uma pluralidade de leituras, devoluções,
críticas e/ou comentários que acompanharam o Vapor desde aquela primeira edição, em
1976.
64 Prova dessa trajetória enriquecida foi a necessidade de Leite Lopes de elaborar um novo
Prefácio. Nele, o autor olha retrospectivamente para os contextos que acompanharam o
aparecimento de sua obra, e também coloca, em uma perspectiva histórica, os
percursos intelectuais dos integrantes daquele projeto coletivo sobre a plantation, as
mudanças registradas na indústria açucareira e do álcool de cana, as variações na
existência estatística dos operários dessa indústria rural, e as repercussões sindicais de
tais mudanças e variações. Também apresenta seu próprio percurso como pesquisador,
e suas posteriores escolhas: a abordagem dos trabalhadores têxteis de Pernambuco, as
histórias de vida de operários jogadores de futebol, os vínculos das indústrias com o
meio ambiente. Essas três áreas de pesquisa lhe permitiram continuar trabalhando
sobre a interpenetração das esferas do trabalho e da vida privada, indagando na
dimensão de dominação exercida sobre os operários através dessa interpenetração.
65 Também ficamos sabendo que em 1976 Pierre Bourdieu ofereceu a Leite Lopes a
oportunidade de publicar seu trabalho sob a forma de um extenso artigo, nas Actes de la
Recherche en Sciences Sociales; outras urgências determinaram que decidisse adiar esse
convite, que, finalmente, nunca se concretizou. Em 1977, Howard Becker lhe propôs

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publicar o Vapor como livro, mas não houve recursos para financiar a tradução para o
inglês. Em 1982, Leite Lopes deu uma palestra de abertura na “1ª Conferência Nacional
dos Trabalhadores da Indústria do Açúcar”, no Departamento Intersindical de Estudos
Estatísticos e Sócio-Econômicos (Dieese): sob o sugestivo título “Açúcar amargo”; essa
palestra foi publicada em 1985 pela revista Ciência Hoje (Leite Lopes, 1985) (e, em 1992,
também no México10). O retorno mais significativo dessa etnografia talvez tenha sido a
publicação do livro Usina Catende: para além dos vapores do diabo (Melo Neto; Lima, 2010):
nele se relatam as experiências de dirigentes, assessores e representantes da parte
agrícola e industrial da Cooperativa Catende Harmonia, uma usina ocupada por seus
trabalhadores como resultado de uma greve em 1995. O autor tinha visitado essa usina
em 2006, conhecendo pessoalmente os protagonistas dessa fábrica de açúcar
recuperada; quatro anos mais tarde, os organizadores do livro tomaram como
referência não só o título do Vapor, mas também seus conteúdos, afirmando que
naquela usina-cooperativa “o trabalho não é um inferno e o diabo não mais existe”
(Leite Lopes, 1978, p. 8); cabe lembrar, aliás, que a Usina Catende tinha sido o lugar do
“vapor do diabo” que deu título ao livro. Usando a expressão cunhada por Arjun
Appadurai (1986), toda essa circulação valorizada, todos esses dados biográficos da
“vida social” do Vapor teriam definido a relação atual do autor com sua própria obra, e,
inescapavelmente, o processo de tradução também teria estado acompanhado por essas
ressignificações.
66 Por minha vez, era consciente de que eu própria estava traçando mais uma nova etapa
na vida social dessa etnografia. E não era através de um mero envolvimento técnico,
mas também emocional, antropológico e político: eu “entrei” nas usinas através dos
relatos do autor; me aprofundei nas maneiras de falar de tal ou qual informante,
conhecendo seus nomes verdadeiros e obtendo outras informações sobre eles, que não
estavam no livro; tive acesso aos bastidores daquela pesquisa, às anedotas do autor, à
sua maneira de lembrar e avaliar uma pesquisa desenvolvida quase 40 anos antes.
Nesses envolvimentos todos, trabalhei com palavras: palavras que permitissem
constituir e manifestar ideias e conceitos ao longo de uma etnografia. Mas, longe de
querer estabelecer aqui fundamentos teóricos para uma demonstração, este trabalho,
como disse no começo, é só uma descrição etnográfica do processo particular de
tradução do Vapor para o espanhol. Segundo o antropólogo Ruy Duarte de Carvalho
(2009, p. 45), “[…] jamais haverá obra bem escrita se ela não for bem lida”. Mas eu
acrescentaria: para ser bem lida, ela precisa ser bem traduzida.

BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
1. Segundo James Clifford (1995, p. 43), devido à necessidade de “traduzir a experiência sob uma
forma textual”, qualquer etnografia está “desde o começo até o fim, capturada nas redes da
escrita”.
2. As referências a anteriores trabalhos por mim traduzidos podem ser consultadas no meu
currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/1365798325660078). Concordo com o apontado por
Kalinowski (2002/4, p. 49) quando afirma que a experiência de um tradutor não tem a ver com a
quantidade de obras traduzidas; de fato, o Vapor me colocaria outros desafios, para os quais não
tinha experiência nenhuma.
3. Com as obras Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935) e
Usina (1936).
4. Refiro-me ao Ingenio Ledesma (http://www.ledesma.com.ar/).
5. Respectivamente, Julia Soul e Marina Guastavino; agradeço a ambas a gentileza de ter me
facilitado esses contatos.

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6. Refletindo sobre o papel das notas de tradutor dentro dos textos de ficção literária, Regina
Maria de Oliveira Tavares de Lyra (1998, p. 81) argumenta que “o bom senso indica que ela [a nota
do tradutor] deverá ser concisa, de modo a afastar o leitor o mínimo possível da leitura do texto
principal, objetiva e principalmente destinada a informar ao leitor sobre o texto e não sobre os
conhecimentos do tradutor, ou seu esforço de pesquisa”.
7. Veja-se Kalinowski (2002/4), chamando a atenção para as “fábricas” de tradutores no mercado
editorial francês e suas condições de trabalho, puramente técnicas.
8. Entre elas, Hindouisme et bouddhisme (2003), Sociologie de la religion (2006) e L’éthique protestante et
l’esprit du capitalisme (2008), publicadas pela editora Flammarion.
9. Também estão os equívocos criados pelo estatuto confuso do tradutor como trabalhador; veja-
se Kalinowski, (2002/4).
10. Ver Leite Lopes (1992).

RESUMOS
Este artigo apresenta uma descrição do processo de tradução, realizada por uma antropóloga, da
etnografia O Vapor do Diabo: o trabalho dos operários do açúcar, de José Sergio Leite Lopes
(1976). Sublinhando-se o trabalho de pesquisa requerido para esta tradução particular, e a
participação do autor nesse processo, expõem-se os procedimentos, decisões e intervenções
adotados, sugerindo-se a conveniência das etnografias serem traduzidas por antropólogos.

This text is about the process of translation. The text is an anthropology text and the translator
is an anthropologist. The ethnography O Vapor do Diabo: o trabalho dos operários do açúcar (The
Devil’s Steam: work in a sugar factory) was written by José Sergio Leite Lopes in 1976. The
research required to undertake this particular translation is underlined and the author’s
participation in this process is made central. By describing key decisions in the process it is
argued that ethnographies should be translated by anthropologists.

ÍNDICE
Keywords: author, ethnography, translation, translator
Palavras-chave: autor, etnografia, tradução, tradutor

AUTOR
ANDREA ROCA
Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil
Pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Laced)

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Entrevista com Moacir Palmeira


José Sergio Leite Lopes

Introdução
1 Esta entrevista com Moacir Palmeira foi editada a partir de um depoimento em uma
sessão do curso “Etnografias em situação de dominação social”, ministrado por mim no
primeiro semestre de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ). No dia 17
de maio de 2012 Moacir Palmeira, Beatriz Heredia e eu demos um depoimento para uma
turma de estudantes de pós-graduação sobre nossa participação nos projetos de
pesquisa relativos à plantation canavieira no Nordeste, e seus desdobramentos. Aqui foi
mantido o depoimento de Moacir Palmeira para efeitos desta edição.
2 A entrevista-depoimento abrange as pesquisas iniciais de Moacir Palmeira partindo do
projeto sobre os processos de transformação social da plantation canavieira na Zona da
Mata de Pernambuco e chegando aos desdobramentos realizados através do projeto
“Emprego e mudança social do Nordeste” que continuaram tendo efeitos muitos anos
após o seu término. Coordenador das pesquisas coletivas que tiveram lugar durante
esses projetos, as dissertações e teses que dali resultaram produziram efeitos
inovadores em várias frentes do campo antropológico e das ciências sociais.
3 Em particular, a consideração desta linha de pesquisa e seus desenvolvimentos ao longo
do tempo trouxe contribuições nos últimos anos para a área do que chamamos
“antropologia do trabalho” em alguns GTs da Associação Brasileira de antropologia
(ABA) e da Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM) que têm atraído trabalhos de
várias partes do sistema universitário de pós-graduação em ciências sociais, e que têm
também expressado, em particular, uma colaboração entre as linhas de pesquisa sobre
trabalho e cidade existentes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS), no interior do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais (Biev), bem como no PPGAS-MN/UFRJ, colaboração esta que
também se corporifica neste número de Horizontes Antropológicos. De fato, o
ressurgimento dessa temática se dá num período de fortes transformações econômicas
e sociais fazendo dispersar as configurações sociais que envolviam os trabalhadores e

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suas famílias: a reunião de novos estudos sob o recorte do trabalho e seus efeitos sobre
a constituição da sociabilidade pode ser interessante para o mapeamento de mudanças
e permanências. Tais transformações nos levaram a procurar desconstruir e
dessubstancializar categorias tão carregadas de significados, como as de “classe
trabalhadora”, através da análise da sua construção social, histórica e intelectual,
dando-se importância também à análise dos mediadores associados àquelas classes. Por
outro lado o próprio obscurecimento das faces públicas dos trabalhadores, através de
renomeações e reclassificações nas empresas que procuram atingir suas anteriores
identidades, pode ser um estímulo adicional para essa reunião de estudos em
andamento. De certa forma o trabalho pode ser visto, assim, de forma mais ampla,
desde as fronteiras da informalidade urbana até novas formas de profissionalização de
atividades anteriormente vistas como de “lazer”. As relações entre família e trabalho
podem se constituir em outro eixo de reunião de resultados de pesquisa; assim como a
relação com o “lazer”, que vai desde o trabalho subsidiário ou a bricolagem e o trabalho
doméstico até atividades religiosas, esportivas ou de cultura popular. Assim como da
relação do trabalho com a educação ou com a relativamente nova temática do meio
ambiente, do risco industrial e da saúde do trabalhador. Além disso, as transformações
na agricultura e a teia social que se arma por baixo do agronegócio levam os estudiosos
do campesinato a se reaproximarem da temática do trabalho e a trocarem experiências
com pesquisadores de outros setores econômicos e sociais. E a marca do trabalho na
paisagem e na memória social nas grandes cidades, antes mais direta, apresenta novas
características que vêm sendo estudadas.
4 Parece-me que a recuperação da experiência de pesquisa que Moacir Palmeira
promoveu desde o início dos anos 1970 é sugestivamente inspiradora dessa retomada
de novos estudos. A entrevista a seguir procura dar elementos para contextualizar tal
experiência. O universo da plantation açucareira, com sua dinâmica envolvendo
trabalho e instabilidade do trabalho; dominação pessoal e idealização do passado;
imobilização da força de trabalho e novas mobilidades; barracão e feira; produção e
mercado; família e terra de trabalho; migração sazonal, migração de longa distância e
volta à origem e acesso ao roçado; direitos e conflitos, é um universo de transformações
paradigmático dessa imersão do trabalho na teia da vida social. Também sua extensão
posterior, por meio de projetos maiores envolvendo áreas mais amplas do Nordeste, do
Norte e das grandes cidades, estenderam espacialmente os estudos iniciados na área da
plantation. Depois, em período mais recente não coberto pelo presente depoimento,
Moacir Palmeira e Beatriz Heredia promoveram pesquisas sobre a chamada
antropologia da política, com ênfase na etnografia das concepções nativas da política
em populações rurais e urbanas. E voltaram ao universo do trabalho pela via do estudo
dos assentamentos rurais, por um lado, e pelo estudo da sociedade que subjaz ao
agronegócio, por outro.
5 É a experiência inicial dessa trajetória e sua contextualização que esta entrevista-
depoimento nos traz.
6 Esta entrevista contou, para a sua edição, com a colaboração de Anelise Gutterres,
doutoranda do PPGAS-UFRGS.

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Entrevista
7 Antes de o gravador ser ligado, sugeri que Moacir Palmeira iniciasse seu relato desde o
contexto de seu contato inicial com as ciências sociais no curso de graduação da Escola
de Sociologia e Política da PUC-RJ, onde tinha por colegas de turma, entre outros,
Otávio Velho e Luiz Antonio Machado da Silva.
8 Moacir Palmeira: Nós vínhamos da Escola de Sociologia e Política da PUC-RJ, do curso
de sociologia de lá. Para mim e alguns colegas meus, isso foi intercalado com um curso
na Bahia, na época um curso de especialização de ciências sociais dirigido pelo Thales
de Azevedo, e que devia ser uma experiência de vanguarda. Na época a Cepal, Comissão
Econômica para a América Latina, estava dando curso de economia, no Chile, e, depois,
começou a implementá-lo, junto com a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste], no Brasil. Tratava-se de tentar fazer nas ciências humanas e sociais o que
vinha sendo feito pela Cepal e Sudene. Na época Celso Furtado e Oswaldo Sunkel
queriam renovar os cursos de especialização para a economia. Os cursos na
universidade tinham predominância dos neoclássicos e não serviam para os
desenvolvimentistas. E no curso de ciências sociais a ideia era fugir dos moldes
tradicionais.
9 Para vocês terem uma ideia eu entrei na PUC-RJ e eu tive no meu primeiro ano 12
matérias, tinha tudo o que se possa imaginar. Já nesse período de faculdade havia as
lutas políticas, o movimento estudantil. Tínhamos interesse, na época, na militância
estudantil, essa coisa toda, e o acompanhamento da situação nacional. Todo esse grupo
que hoje está aí, o Otávio Velho foi meu colega, o Luiz Antônio Machado da Silva foi
meu colega de curso, depois outros, de outras turmas, um pouco acima, um pouco
abaixo. A Lygia Sigaud (também professora do Museu) estava fazendo o primeiro ano,
enquanto eu, Otávio, Machado, estávamos fazendo o último ano da faculdade, e uma
série de pessoas.1 Então havia, digamos, de um lado a preocupação teórica, marcada
pela teoria marxista, e por outro lado uma atitude dessa nossa turma, que logo no inicio
da escola assumiu muito a postura profissionalizante. Tanto que nós pressionamos a
direção (e tivemos sucesso) da Escola de Sociologia a adotar o sistema de créditos, para
liquidar com essa historia de 12 cursos. Éramos desde o início muito ligados a essa ideia
da pesquisa científica, preocupados em saber como iríamos casar a pesquisa empírica
com as grandes elaborações teóricas do marxismo e de outras teorias, falando assim
grosseiramente para não perder tempo.
10 Logo nos primeiros anos da Escola de Sociologia e Política partimos para o trabalho de
campo, para uma pesquisa sobre o retorno de migrantes nordestinos para os seus locais
de origem, pesquisa do padre Fernando Bastos de Ávila. Ficamos um mês, Sergio Lemos,
que tinha uma liderança intelectual sobre o grupo, Otávio Velho, Machado da Silva,
Francisco Paiva Chaves e eu, rodando pelo interior de Alagoas. Foi uma experiência
muito interessante.
11 Esse interesse pela pesquisa nos levou a trabalhar em várias outras pesquisas quando
voltamos ao Rio de Janeiro, depois dessa primeira viagem a campo.
12 Para ganhar experiência aplicamos os questionários do Ibope [Instituto Brasileiro de
Opinião Pública e Estatística]. Por outro lado, fizemos pesquisas aqui em várias favelas
do Rio com Gláucio Ary Dillon Soares e Geraldo Semenzato (Guararapes, no Cosme
Velho, Rocinha, Praia do Pinto, Parque Proletário da Gávea). Gláucio, que estava

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voltando dos EUA onde tinha trabalhado com Seymour Lipset, era tido como
empiricista. Mas ele foi realmente decisivo para nós; muito disciplinado, dava
seminários à noite nas nossas casas, na casa de um, na casa de outro, nós aprendemos
com ele técnicas avançadas e métodos quantitativos e coisas dessa ordem. E o Geraldo
Semenzato, que tinha acabado de deixar a direção da Revista de Sociologia ligada à Escola
de Sociologia e Política de São Paulo e que entre outras coisas tinha sido assistente do
Alceu Maynard Araújo naquela pesquisa do Donald Pierson, sobre o Vale do São
Francisco.
13 Foi Semenzato quem nos motivou para o curso de treinamento básico em ciências
sociais na Bahia. Sergio Lemos, Otávio, Machado e eu fizemos o concurso de seleção e
passamos todos, embora Otávio tenha preferido ficar no Rio. O curso era uma espécie de
mestrado concentrado, mas como eles não conseguiram gente já formada, abriram para
quem estava fazendo a graduação. Ficamos então entre julho de 1962 e julho de 1963 em
Salvador, vindo ao Rio fazer as provas em segunda chamada na PUC-RJ. O curso na
Bahia exigia dedicação plena, das oito da manhã às seis da tarde. No final do curso
tínhamos que apresentar uma monografia. Escrevi a monografia “Banditismo político e
estrutura social”, sobre banditismo político no Nordeste, em Alagoas. Eu não entendia
por que as Ligas Camponesas nunca haviam entrado em Alagoas. As Ligas tinham se
espalhado pelo Nordeste todo. Em Pernambuco, na Paraíba eram fortíssimas, na Bahia e
Sergipe já estavam começando. No meu estado [Moacir é originário de Alagoas] a
violência política a serviço de chefes políticos então era regra. Na base desse trabalho
havia portanto uma preocupação com o movimento camponês.2
14 Na Bahia nós tivemos oportunidade também de fazer trabalho de campo. Participamos
de uma pesquisa para o Cida, Comitê Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, e
eles faziam estudos de comunidade em vários países; no Brasil acho que foram feitos 11
estudos, e na Bahia ia se estudar a área do cacau e o Recôncavo Baiano. No Recôncavo
ainda estava começando a ser instalado o polo de Camaçari, que virou um dos grandes
centros industriais do país. Então eu fui para essa área de Camaçari. Ficamos cerca de
um mês em campo, seguimos lá dormindo na casa de um camponês, eu e o Machado. O
Sergio Lemos foi para o sul, para o cacau com o Semezato, e nós fomos com a Maria
Brandão para Camaçari.
15 De volta ao Rio, depois vivíamos aí pegando bicos, para trabalhar em pesquisas que
duravam três, quatro meses, com o Candido Mendes. Ele tinha sido nosso professor, e
foi importante para nós. Participamos de uma pesquisa sobre a mão de obra na
indústria química. Mas, sobretudo no caso meu e do Otávio, lá no Centro
Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais (Clapcs), instituição que fazia parte
de um trio com a Flacso do Chile, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, e
com o Conselho Latino Americano de Ciências Sociais, em Buenos Aires… ensino no
Chile, pesquisa aqui e coordenação em Buenos Aires. Que era um acordo da Unesco
[Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] com os
governos latino-americanos. Era o Manuel Diégues Junior que dirigia o Clapcs (depois
do mandato de Luiz Costa Pinto). Diegues foi nosso professor na PUC-RJ, então, nós
começamos a trabalhar em pesquisa naquele centro.
16 E no Centro Latino-Americano apareceu um convite para participar de um projeto de
pesquisa no exterior. Aí nos candidatamos eu e o Otávio Velho, assim como Rosa Maria
Ribeiro da Silva, que era também colega de faculdade, e com quem depois eu fui casado,
e daí ganhamos essas bolsas. O Otávio preferiu não ir.

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17 Na mesma época estávamos tentando ir para a Flacso, no Chile; passamos, mas eu optei
pela França, para fazer uma pesquisa. Não queria ficar mais de um ano fora em hipótese
alguma porque estava ligado nas coisas políticas daqui. E lá, no primeiro contato que
tive com a figura que depois foi ser meu orientador [François Bourricaud], constatei
que ele nada sabia disso: “que pesquisa?”. Era uma pesquisa inexistente. Eu falei com o
Pierre Monbeig que era o presidente do Instituto da América Latina [da Universidade de
Paris]. Ele pediu desculpas e disse que não havia a linha de pesquisa anunciada, o
projeto não tinha sido implementado.
18 O Pierre Monbeig, que era uma figura realmente extraordinária – eu me arrependo de
não ter aproveitado mais a convivência com ele – insistiu para que eu fizesse o
doutorado. Era um período longo, de modo que, enquanto decidia eu preferi ficar
fazendo seminários – na École Pratique des Hautes Études e no próprio Instituto da
América Latina – até decidir me inscrever para o doutorado. Bom, o projeto que eu
tinha apresentado, “Implicações políticas do desenvolvimento do capitalismo no
campo”, estava de acordo com as preocupações da época. Havia uma grande discussão
em torno disso, e tentei começar a trabalhar o tema, através de um trabalho sobre as
condições emergentes da vida camponesa. Acontece que uma colega, Aspásia Camargo,
tinha também uma pesquisa nessa direção e estava mais adiantada, já tinha feito
entrevistas com lideranças que haviam atuado no movimento camponês e que estavam
no exílio, no exterior. Preferi então tentar dar conta do debate em torno da natureza
das relações sociais no campo no Brasil desde o período colonial; sobre as relações
feudais, semifeudais, escravistas, capitalistas, que teriam existido ou continuariam
existindo no Brasil. Então eu comecei a mexer com isso, já tinha um investimento
anterior e passei a explorar essa via. Logo depois, percebendo que não era possível fazer
pesquisa empírica no Brasil, aquele debate foi tomado como o próprio objeto da tese.
Acho que foi uma boa coisa: os trabalhos sobre produção intelectual, as análises
semiológicas estavam no ar em Paris. Mas eu fui me aproximando muito das
formulações do Bourdieu e algumas do Althusser, que acabaram sendo as principais
referências teóricas de minha tese.
19 Eu voltei para o Brasil em 1969 com a tese entregue, mas ela só pôde ser defendida em
1971.3 Na tese eu estava questionando uma coisa que me incomodava, os argumentos no
fundo eram os mesmos dos dois lados. Eu havia notado que um dos autores
argumentava em favor da existência do capitalismo escravista no Brasil. Mas depois,
numa nova edição do livro, o partido que apoiava, havendo mudado de posição, ele
passara a defender a tese do feudalismo, mantendo a mesma argumentação anterior.
Havia evidentemente um jogo político envolvendo o exercício da argumentação. Sem
prejuízo do trabalho de pesquisa e dos argumentos interessantes com os quais os
autores produziam.
20 Então, lendo isso, me apropriando desse material, me pareceu que a noção de plantation
poderia contribuir nesse debate. Porque ao mesmo tempo em que se falava de
capitalismo, modernização, nas áreas de cana-de-açúcar no Nordeste, era também
sobre essas áreas que mais incidia essa ideia de um semifeudalismo, de restos feudais. O
barracão, o uso de vales na remuneração dos trabalhadores rurais, os dias de trabalho
gratuito eram vistos por alguns como eventuais resíduos feudais, enquanto outros
diziam que se tratava de um capitalismo escravista, ou algo do gênero. Lendo esse
material, me pareceu que havia uma certa sistematicidade nesses elementos e então
apostei na especificidade da plantation. O que aconteceria se nós considerássemos a

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plantation como um modo de produção específico, ainda que subordinado. Então a tese
ia por aí, mas a minha ideia era ver empiricamente como isso se dava.
21 Havia indicações no trabalho de um geógrafo francês, Patrick Calamart du Genestoux, 4
que fez um belo trabalho sobre a Zona da Mata de Pernambuco, que apontava o
crescimento das feiras na área canavieira; e eu associei isso a um trabalho de Sidney
Mintz que eu havia lido sobre praças de mercado na Jamaica – essas feiras que teriam
surgido com a venda de produtos por escravos fugidos e que ajudaram a minar o centro
escravista naquele país. Pareceu-me que a competição das feiras com os barracões fosse
um bom caminho para pensar as transformações na plantation tradicional. Percebi nas
informações que eram dadas no trabalho de Genestoux, e em outros trabalhos, que não
teria havido simplesmente uma proletarização dos moradores. Ao lado desse processo de
proletarização havia também moradores que tinham virado pequenos produtores. O
antigo morador teria dado lugar de um lado ao proletário rural; mas também a um
camponês, no sentido de um pequeno produtor com alguma autonomia, de outro.
22 Eram questões desse tipo que estavam na minha cabeça quando Roberto Cardoso de
Oliveira me convidou, por sugestão de Otávio Velho, para participar do projeto “Estudo
comparativo do desenvolvimento regional”. Cardoso me chamou para ser uma espécie
de coordenador de campo do Nordeste. A Francisca Vieira Keller era quem coordenava
as pesquisas do Brasil Central. Vários dos pesquisadores no Nordeste, como Neuma
Aguiar, Roger Walker (ambos estudavam o sertão cearense; ela estudava o projeto
Asimov; ele, preocupado com relações de arrendamento e parceria) e Stela Amorim
(que estudava a nova elite burocrática do Nordeste, surgida a partir da Sudene), tinham
mais experiência de pesquisa do que eu. Então não tinha muito o que coordenar. Mas eu
senti que o Roberto queria que eu tentasse discernir uma problemática comum e criasse
um polo de pesquisa que atraísse mais estudantes. Então terminou sendo um
gerenciamento burocrático dos pesquisadores no período que o Roberto Cardoso esteve
nos Estados Unidos; mas comecei ao mesmo tempo a montar um grupo para estudar a
zona canavieira. Eu percebi que algumas pessoas, como a Lygia Sigaud, por exemplo,
tinham se interessado pela área canavieira assim como Andrea Loyola (mas que logo
depois passou a estudar a indústria têxtil em Juiz de Fora, MG). Começando eu a dar
aulas no PPGAS-MN/UFRJ, outros alunos mostraram-se interessados em fazer pesquisa
na região. Era a oportunidade de pensar a plantation e suas transformações levando em
consideração, nos termos de Bourdieu, todo o conjunto de posições e oposições sociais
ali presentes.
23 Já tinha percebido que não se podia pensar a plantation apenas pelo seu lado agrícola.
Nas primeiras idas ao campo percebi também que não podia pensar o lado agrícola
apenas com o senhor de engenho e os moradores. Havia outras figuras, como os
trabalhadores corumbas, que vinham do Agreste para trabalharem na safra, até os
trabalhadores da rua. Esta última figura, o trabalhador da rua, era o trabalhador expulso
ou o morador entre uma morada e outra, residindo naquelas pequenas cidades do
interior. Já estavam surgindo algumas vilas só de trabalhadores da rua. Além deles
existia a figura do usineiro, proprietário das usinas, a quem estava subordinado esse
senhor de engenho, como fornecedor de cana. Se contrapondo aos usineiros havia os
operários da parte industrial da usina. E, entre usineiros e operários, tal como senhores de
engenho e moradores, havia os empregados, que eram os funcionários da usina e dos
engenhos que de fato eram responsáveis pela organização do trabalho. Entre os
engenhos e os seus trabalhadores da rua era cada vez mais presente a figura do

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empreiteiro, que arregimentava a mão de obra temporária. Mas havia mais: havia os
antigos lavradores, àquela altura uma minoria, que eram pequenos produtores de cana
que forneciam para a usina e trabalhavam com a família, às vezes passando pela
mediação do senhor de engenho. Dentro dos engenhos, ao lado do morador comum,
havia a figura do morador foreiro, que explorava o seu sítio com alguma autonomia,
pagando um foro anual. E num passado ainda recente, os dias de cambão. O processo de
afirmação das usinas e de decadência dos antigos engenhos de açúcar tinha levado os
antigos senhores de engenho a venderem ou a arrendarem as suas terras em parcelas. O
que abriu para os moradores expulsos, em alguns casos, uma alternativa à ida para a
rua, surgindo algum espaço para pequenos proprietários e arrendatários.
24 Considerando a complexidade desse quadro, estabelecemos uma divisão do trabalho no
grupo que criamos. José Sergio Leite Lopes assumiu a tarefa de estudar a parte
industrial das usinas, tendo feito pesquisa em duas unidades em áreas diferentes do
estado. Lygia Sigaud, orientada de David Maybury-Lewis, interessada naquele momento
por representações e classificações, centrou seu trabalho sobre moradores e
trabalhadores da rua.5 Beatriz Heredia, na Mata Norte, e Afrânio Garcia Jr., na Mata Sul,
centrariam suas pesquisas nos pequenos proprietários e arrendatários. E Roberto
Ringuelet ocupou-se do estudo dos corumbas.6
25 Como as tensões sociais entre, de um lado, usineiros e senhores de engenho, e, de outro,
os trabalhadores em geral, eram muito fortes, ficava impossível trabalhar nas duas
frentes ao mesmo tempo. Ficou acertado que David Maybury-Lewis, que tinha uma
pesquisa com as elites pernambucanas, cobriria usineiros e senhores de engenho. O
David, junto com Roberto Cardoso, dirigia o projeto “Desenvolvimento regional
comparado”. Se esse projeto cobria todas as posições sociais conhecidas, nossa
preocupação também era sobre as oposições.
26 Em 1971, com Shelton Davis, que havia feito sua tese de doutorado na Guatemala, 7
demos um curso no Programa sobre a problemática da resolução de conflitos, sobre a
qual tanto ele quanto eu estávamos interessados. Uma das alunas, Vera Echenique,
decidiu trabalhar sobre as tensões e conflitos (trabalhistas ou em torno da terra) que
ocorriam na Zona da Mata pernambucana. Concentrou sua atenção sobre os foreiros,
que sofriam um processo massivo de expulsão. Um colega seu, Luiz Maria Gatti, se
propôs estudar os sindicatos que continuavam atuantes apesar da atuação repressiva do
governo e dos proprietários. Infelizmente esse trabalho foi interrompido nesse
momento.8 Mas a problemática do conflito continuou sendo tocada por todos os
pesquisadores citados, assim como por pesquisadores que mais adiante se juntariam ao
grupo, como Moema Marques, orientada por Lygia Sigaud, que pesquisou as Juntas de
Conciliação e Julgamento na Mata Sul de Pernambuco, no que diz respeito aos processos
trabalhistas.
27 Por outro lado, o meu próprio subprojeto estava voltado para a oposição e competição
entre os barracões de engenho – esse sistema de distribuição interno aos engenhos – e
as feiras livres. Chegando a campo vi que a coisa era mais complicada. As usinas tinham
não só um barracão, mas um sistema de barracões: um barracão central que vendia
para os operários e distribuía para os barracões dos engenhos da usina. Esse sistema de
barracões usava mais os vales do que os engenhos particulares, e o dinheiro pouco
circulava. Surpresa maior ainda, nós encontramos também feiras dentro de usinas,
conhecidas como bacurau. Os barracões de usinas foram incorporados na pesquisa de
Sergio Leite Lopes sobre os operários das usinas e sobretudo no meu projeto sobre os

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barracões e feiras. O bacurau tornou-se objeto de estudo de Marie-France Garcia. O


bacurau, feira que começava à noite e cuja designação está associada ao pássaro
noturno, mostrou-se o momento que não só os moradores e o usineiro se encontravam
mas vinham também os pequenos produtores autônomos do Agreste e também os
intermediários.9 O que sugeria que a forma de dominação com a qual estávamos lidando
era muito mais complexa.
28 Uma surpresa equivalente foi descobrir vilas, vilas no sentido oficial, cabeças de
distrito, dentro de fazendas. Primeiro, um caso curiosíssimo, um lugar chamado Bem-
Te-Vi, onde a usina comprou todas as terras em torno, derrubou as casas particulares
que existiam e plantou tudo de cana: então ficaram os cinco prédios públicos
obrigatórios (cartório, escola pública, de três a cinco instituições públicas no meio do
canavial), como uma vila-fantasma no meio do canavial. Ainda na área perto de
Palmares, que era o centro maior da Mata Sul, e vizinho a uma pequena área de
pequenos produtores, nós encontramos uma vila, com cartório, escola e com feira
semanal dentro do engenho. Essa vila seria estudada, já numa segunda etapa do projeto,
por Doris Rinaldi.
29 Pegamos esse conjunto de exceções e paradoxos e incentivávamos pesquisadores a
trabalharem esses casos, muitos deles tendo por efeito complexificar aquilo a que já me
referi como a história da suposta passagem dos barracões às feiras. Doris Rinaldi iria
fazer um estudo de comunidade nessa vila que mencionamos e outras dimensões
apareceram: a terra da vila era terra de santo, e era objeto de disputa entre seus
habitantes e o dono do engenho onde estava situada.10
30 Ainda na esfera da distribuição nos deparamos com iniciativas dos sindicatos que,
buscando oferecer aos trabalhadores alternativas aos barracões, haviam criado
cooperativas de consumo. De fato, além da competição intencional com os barracões
aparecia uma competição destas cooperativas com as feiras. Para dar conta dessas
questões, Leilah Landim investiu sobre o tema e produziu uma interessante dissertação
de mestrado.11
31 Esse projeto inicial não acabou, foram sendo abertas novas frentes, novas dissertações
foram sendo defendidas e fomos consolidando uma equipe. Fomos fortalecendo os
contatos, no próprio PPGAS-MN/UFRJ, com o grupo de pesquisadores em torno de
Otávio Velho, equipe que depois participou do projeto sobre hábitos alimentares no
Norte do país. E também com um grupo de ex-alunos que foram chamados para
colaborar com o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] que então
constituía um grupo de indicadores sociais.
32 Depois houve um período em que tivemos um debate intenso com o pessoal do Cebrap
[Centro Brasileiro de Análise e Planejamento] de São Paulo, que foi criado em 1969 e
estava no auge em meados dos anos 1970. Tivemos uma série de debates com eles;
naquele momento seus pesquisadores contribuíam com pesquisas originais e na
militância política.12 E no exterior ampliamos em meados dos anos 1970 a relação que
eu havia estabelecido com os pesquisadores coordenados, no Centre de Sociologie
Européenne, por Pierre Bourdieu, quando assistia seus seminários no meu período de
doutoramento na França.
33 Começaram aí os trabalhos a terem uma certa divulgação. Teve a dissertação da Lygia
que de algum modo era bem anterior [defendida em 1971; publicada em 1978] a esta
leva seguinte, mas depois veio a dissertação do José Sergio, depois Beatriz, Afrânio, 13

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depois essa geração mais nova e o grupo foi crescendo, né, alguns não necessariamente
orientados por mim, mas pela Lygia.
34 Mas antes desse crescimento houve períodos de crise. Num determinado momento
houve uma crise muito grande no PPGAS [MN/UFRJ]. O PPGAS esteve para fechar,
porque foi encerrado o financiamento da Fundação Ford que deu partida ao Programa e
que foi de agosto de 1968 até 1973. Naquele momento cogitamos de ir para outras
universidades. O Programa entrou num regime de contenção. Alguns de nós davam aula
também em outras universidades, a Lygia dava aula na PUC-RJ, eu dei aula na UFMG
[Universidade Federal de Minas Gerais]. José Sergio trabalhava como economista na
Finep, assim como o Afrânio. Mas nós continuamos com as nossas discussões e lutamos
para obter meios para continuar nossas pesquisas. Então eu consegui um projeto
individual pela Fundação Ford, “Sistemas de distribuição e estruturas de poder”, o que
me permitiu incorporar mais alguns alunos à equipe. Ao mesmo tempo o núcleo mais
antigo da equipe elaborou um projeto maior que submetemos ao Social Science
Research Council (SSRC) que tinha aberto um edital. Então na época se fez um projeto, e
esse projeto dava continuidade exatamente à pesquisa sobre as transformações da
plantation canavieira.
35 O projeto foi aprovado no mérito e alguns técnicos manifestaram um grande
entusiasmo. Mas consideraram que eu não tinha então currículo para dirigir um projeto
daquelas dimensões. Sugeriram que o projeto fosse diminuído e que eu o coordenasse,
mas associado a um pesquisador americano que estava interessado no Brasil. Nós
recusamos. O mesmo projeto foi apresentado ao Banco Mundial e teve parecer
favorável nas instâncias técnicas. Mas para ser implementado o projeto precisava do
aval de autoridades do Ministério do Planejamento e uma autoridade abaixo do
ministro o vetou. Essa discussão foi levada ao conhecimento do presidente da Finep de
então, José Pelúcio Ferreira, instituição onde Sergio Leite Lopes e Afrânio Garcia
trabalhavam. Pelúcio se interessou em financiar o projeto. Ele estimulou então uma
articulação entre Finep, Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] e IBGE (onde o
Isaac Kerstenetsky nos dava também um grande apoio), e deles conosco. Depois de uma
série de conversas com técnicos dessas instituições, vimos que eles tinham críticas ao
próprio governo e estavam preocupados com as questões de emprego, distribuição de
renda e migrações. Entramos nessas discussões mais macrossociais procurando fazer
uma ligação entre essas questões e o que poderíamos oferecer como pesquisa, para
podermos continuar aquilo que já vínhamos desenvolvendo. E para essa discussão com
esses economistas críticos às políticas econômicas tínhamos a oferecer a reflexão da
antropologia econômica, que então estava em pleno desenvolvimento, com as
contribuições da escola de Karl Polanyi, com a divulgação dos manuscritos de Marx
sobre as formações pré-capitalistas, com a literatura sobre sociedades camponesas, com
a crítica ao esmagamento do campesinato nos países do socialismo real feitas por
Chayanov e Tepicht então publicadas, com a discussão entre formalistas e
substantivistas na antropologia econômica anglo-saxônica, com reflexos na
antropologia francesa… Então, tínhamos contribuições a dar nessa discussão. Foi uma
negociação relativamente lenta, mas interessante, fizemos contato com um grupo de
economistas, o Cláudio Salm, o Luiz Carlos Silva, então no Ipea, enfim outros
apareceram em determinado momento, então foi se delineando a efetivação do projeto.
36 O vínculo de Sergio Leite Lopes e Afrânio Garcia com a Finep, o seu acesso a José Pelúcio
Fereira, que apoiou o projeto, foi a ponte para que Roberto DaMatta, então coordenador

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do Programa buscasse o apoio institucional da Finep ao PPGAS, que, com modificações,


perdura até hoje. A Finep então já financiava alguns programas na área de ciências
físicas e biológicas, se interessou em financiar algo na área de ciências sociais. Foi por
aí, através dessa discussão sobre o Projeto Emprego, que surgiu essa ligação da Finep
com o Programa. O financiamento ao Programa saiu. Assim como houve uma pressão da
Finep sobre o MEC e a reitoria da UFRJ para que fossem efetivados os professores que
eram do corpo do PPGAS mas eram pagos com o financiamento da Ford e não eram
efetivos na UFRJ. Assim entraram para a UFRJ, em 1975, Otávio, Lygia, Francisca Keller,
Tony Seeger e eu. E logo depois pudemos ter o nosso projeto aprovado, ainda em 1975. 14
37 Se o nosso principal interesse com o projeto era dar continuidade aos estudos
etnográficos que vínhamos realizando, aceitamos dialogar com os técnicos das
entidades financiadoras sobre os temas macrossociais “emprego” e “migração”. O que
nos levou a abrir uma outra frente de pesquisa. Formamos uma equipe formada por
mestres e mestrandos do PPGAS-MN/UFRJ (e alguns do Iuperj [Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro]), que fez um levantamento extensivo e com
profundidade sobre os temas emprego e migração em varias bibliotecas do Rio de
Janeiro.
38 Minha ideia era conduzir essa investigação como eu tinha realizado com a minha tese
de doutorado. Só que você realizar isso coletivamente era complicado. Elaboramos um
conjunto de fichas que ia do simples registro catalográfico até uma ficha analítica de
textos selecionados. O que seria uma pesquisa bibliográfica convencional se
transformou numa pesquisa etnográfica sui generis. Então sobretudo o José Sergio e o
Alfredo Wagner logo perceberam que esse não era um trabalho de você ir lá e pegar a
referencia do livro e estava resolvido. Logo perceberam que havia períodos em que o
tema da migração desaparecia ao lado de períodos de grande concentração de artigos e
livros sobre o tema. Partiram então para entrevistar os bibliotecários e fazer um
trabalho de reflexão sobre o próprio esquema de catalogação dos fichamentos.
Tomamos então conhecimento de que havia certas normas bibliográficas, mas havia
mudanças de critérios que operavam por força da demanda sobre certos temas. Por
exemplo os temas migração e migração interna classificavam um grande número de
trabalhos até meados dos anos 1950, e pouco se encontrava nesse período relativo a
questão agrária e reforma agrária; já entre 1955 e 1964 há uma espécie de inversão e o
que antes se encontrava em migração se encontra em questão (e reforma) agrária. Isso
foi objeto de uma reflexão de Alfredo Wagner e Zé Sergio.15 Outro resultado desse
trabalho nas bibliotecas foi o que Alfredo e eu produzimos sobre a gênese ideal do
conceito de migração.16 Enfim, esse projeto, que chegou a contar com cerca de 20
pesquisadores, deu muitos frutos, teses, dissertações que depois foram publicadas, e
muitos manuscritos que estão aí nos arquivos, alguns dos quais a serem recuperados e
publicados. O próprio Afrânio vem pesquisando esses arquivos para fazer uma avaliação
desses trabalhos; e jovens pesquisadores podem encontrar matéria-prima para seus
trabalhos, etnográficos ou de história social da ciência social…
39 O lado propriamente etnográfico do projeto representou uma extensão do que já
vínhamos fazendo na região canavieira de Pernambuco, para as áreas de cana dos
estados vizinhos de Alagoas e Paraíba. Nesses estados os tabuleiros, antes considerados
imprestáveis para o cultivo da cana, estavam sendo cobertos por esse cultivo devido a
novos usos de adubos, fertilizantes e irrigação. A exemplo de Pernambuco isso
significava a expulsão de moradores e pequenos agricultores. Ao lado disso investimos

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também no conhecimento da pequena agricultura no Agreste e das grandes fazendas de


gado e algodão que continuavam existindo no sertão desses três estados. Por outro
lado, a preocupação com a indústria e com as cidades em crescimento nos levaram a
tentar confrontar essas experiências – baseadas em trabalhos como o de Sergio Leite
Lopes sobre operários das usinas açucareiras e o de Rosilene Alvim 17 sobre o artesanato
do ouro no Cariri cearense – com investigações em outros tipos de indústria e o
chamado mercado informal em áreas metropolitanas, onde a presença de trabalhadores
de origem rural era significativa. Após dois surveys, o primeiro dos quais cobrindo além
de Pernambuco, Alagoas e Paraíba também o Cariri cearense e o sul do Piauí,
escolhemos as áreas a serem trabalhadas.
40 Do lado urbano-industrial Sergio Leite Lopes e Rosilene Alvim partiram para o estudo
da indústria têxtil de Paulista, que apresentava características de uma cidade-fábrica
numa área semirrural que fazia parte de um império industrial com extensões
comerciais em todo o país. O primeiro com a história do trabalho industrial, a segunda
com as características das famílias operárias provenientes de uma migração de origem
rural. Luiz Antonio Machado da Silva, então no Iuperj, deu continuidade aos seus
trabalhos anteriores concentrando-se no estudo do mercado informal de trabalho em
Recife. E um grupo de alunos mestrandos da equipe, trabalhando em torno dos mesmos
temas, dividiu-se entre Recife e Campina Grande.18
41 No que diz respeito à área rural, enquanto em Pernambuco eu mesmo e Lygia Sigaud
(agora voltada para o estudo dos trabalhadores da rua) demos sequência aos projetos
anteriores, e novos alunos eram incorporados ao projeto,19 Beatriz Heredia partia para
o estudo das transformações socioespaciais da plantation canavieira em Alagoas,
enquanto Afrânio e Marie-France Garcia investiram no brejo paraibano. Afrânio
ocupou-se sobretudo das migrações para o Sudeste do país e suas repercussões na área
estudada, enquanto Marie-France desdobrava seu trabalho sobre o bacurau para as
feiras da região. Na frente sertaneja, Eliane Cantarino, Alfredo Wagner e Neide Esterci
estudaram fazendas de gado e algodão, a primeira no sertão paraibano e os dois últimos
no Ceará.20
42 O que dissemos acima já dá uma ideia da maneira como esses trabalhos foram
conduzidos. Acho que está claro que em todas essas experiências trabalhamos em
grupo, quer nas nossas discussões teóricas, quer em campo. Se houve momentos em que
pesquisadores estiveram sozinhos em campo, na maior parte das vezes trabalhamos em
locais diferentes, com uma certa proximidade, nos mesmos períodos. E sempre
procuramos nos manter em contato. Em algumas das idas a campo nos reuníamos a
cada 15 dias em Recife, para sabermos do andamento da pesquisa de cada um,
trocarmos informações e nos ajudarmos no enfrentamento das dificuldades e dos
imprevistos da vida real. Algumas vezes chegamos mesmo a nos dar umas “férias”, onde
combinávamos algum lazer com a discussão de resultados de campo (como por exemplo
um carnaval na Ilha de Itamaracá em fevereiro de 1972). Além disso houve certas
ocasiões concentradas trabalho coletivo simultâneo, quando da aplicação de
questionários nas feiras, ou quando de visitas coletivas a usinas. Por outro lado todo
esse esforço de pesquisa se passou numa época de forte repressão no país, e mais do que
nunca se colocava para os pesquisadores a preocupação de não serem atingidos pela
repressão, mas sobretudo que aqueles que estavam sendo estudados não o fossem.
43 A primeira vez que eu entrei em Pernambuco, no dia 2 de novembro de 1969, nós
atravessamos a fronteira, fomos de carro eu e a Lygia numa Rural Willys aqui do

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Programa (o PPGAS tinha uma Rural com tração nas quatro rodas). Quando
atravessamos a divisa de Alagoas com Pernambuco ouvimos pelo rádio que tinha sido
assassinado o Carlos Marighela. Isso foi um choque; e havia barreiras policiais nas
estradas, uma coisa pesadíssima. O clima geral do país já era pesado. Aqui no Rio, então,
para a gente conversar até sobre assuntos meramente intelectuais você tinha que
tomar cuidado porque qualquer reunião podia ser denunciada e coisas desse tipo.
Quando planejávamos essa ida ao interior de Pernambuco em 1969 todo mundo dizia:
“Não, você não vai encontrar nada, você vai ser preso, os sindicatos ficaram todos
pelegos, não tem mais nada e tal.” E quando eu chego no interior de Pernambuco eu
encontro manifestações em massa, 200, 300 trabalhadores na porta de juntas
trabalhistas exigindo seus direitos. Várias usinas tinham falido. A federação dos
trabalhadores rurais (Fetape [Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de
Pernambuco]) estava caindo em cima dos proprietários exigindo que em 1969 fosse
depositada a parte do INPS das usinas, que tinha sido recentemente estendida aos
trabalhadores canavieiros, que elas não estavam efetuando; a federação foi atrás desses
direitos. Antes que acusada de subversiva, a federação acusava ao contrário os patrões
por estarem desrespeitando a lei. A luta de classe continuava acesa, com paradas de
trabalho quase todo dia, alguns sindicatos muito atuantes. A repressão pesada lá não
veio logo com o AI-5, viria em 1971 e 72, aí começaram intervenções em massa nos
sindicatos.
44 Mas a essa altura, o esquema era um pouco esse, você tinha certos lugares onde a
comunidade era de fato uma base muito sólida do sindicato local. Lá onde a Beatriz
trabalhou, em Carpina, e onde eu trabalhei também parte do meu tempo, havia uma
comunidade dessas, que era a base do sindicato. O Ministério do Trabalho fechou os
sindicatos em 1964, na primeira folga que deu o pessoal reorganizou o sindicato.
Fecharam de novo em 1971, mas rapidamente o sindicato foi reorganizado. Então cada
vez que dava a coisa ressurgia porque o sindicato estava basicamente ligado a uma
comunidade. Não foi por acaso que alguns de nós nos vinculamos ao movimento
sindical. Eu pessoalmente fiquei muitos anos como assessor da Contag [Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], porque em plena ditadura abria uma
perspectiva de luta de massa.
45 Então, como ia dizendo, logo num primeiro momento uma coisa fundamental era a
segurança da pesquisa, o problema de segurança era seríssimo, se aparecesse qualquer
pessoa de fora nas áreas que frequentávamos, ela era vista como se fosse alguém da
guerrilha querendo se estabelecer. Logo que entrei em Palmares acabava de ser preso
uma pessoa que diziam ser da AP [Ação Popular], que estava vivendo como camponês
para fazer um trabalho político. Essa ação repressiva atingiu também alguns
trabalhadores rurais. Então nós, como pessoas de fora, tínhamos que ser extremamente
cuidadosos. Carregávamos uma credencial pomposa que o Roberto Cardoso inventou,
dirigida “Às autoridades brasileiras”. Então chegávamos na cidade e a primeira coisa
era ir falar com o prefeito, e depois saíamos procurando as organizações formais
existentes, patronais, religiosas, etc.; para depois colarmos nos sindicatos de
trabalhadores rurais. Muitos prefeitos sugeriam que nos apresentássemos à delegacia
de polícia e nós nos recusávamos, não queríamos assunto com eles. Numa das cidades
tinha um delegado que todos diziam que esteve envolvido na repressão, que seria um
torturador (depois foi eleito deputado), então a gente não queria assunto com esse cara.

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46 Nas visitas às organizações patronais, abrimos a possibilidade de termos algum contato


com os proprietários. Pedíamos que nos indicassem com quem conversar. O que nos
abria a possibilidade, mesmo que formal, de acesso à classe patronal. Dizia-se em
Pernambuco que os engenhos tinham a porteira fechada. O acesso direto aos moradores
era impraticável. Mas se aos moradores era possível ter acesso nas sedes dos sindicatos,
com os barracões, meu objeto de pesquisa, a coisa era mais complicada. Como eu vou
estudar o barracão de fora do engenho? A solução que encontramos foi elaborar um
questionário com muitas perguntas quantitativas e com códigos nas margens, dando
impressão de grande cientificidade. Uma amostra a ser selecionada a partir do registro
de estabelecimentos que forneciam cana às usinas obtido no Instituto do Açúcar e do
Álcool. Mais do que a preocupação quantitativa, o que estava em jogo era “atravessar a
porteira dos engenhos” e ter um acesso direto aos barracões. A estratégia era fazer com
que enquanto um pesquisador entrevistava o barraqueiro o outro conversava com os
trabalhadores. Estes costumavam se reunir no final da tarde depois do dia de trabalho,
na porta dos barracões. Mas mesmo esses artifícios não resolviam todos esses
problemas. A nossa amostra teve que ser ajustada várias vezes. 21 Havia usinas que não
abriam a porteira em hipótese alguma. Era o caso da Usina Estreliana, onde um pouco
antes do golpe havia ocorrido um massacre de trabalhadores. 22
47 No caso dos engenhos particulares nossa entrada passava por uma conversa prévia com
o senhor de engenho. No caso das usinas o contato era feito com o gerente geral ou em
alguns casos com os próprios usineiros, que designavam um funcionário para nos
acompanhar. Houve situações mais ou menos tensas: numa usina em Goiana [Mata
Norte de Pernambuco], havia um funcionário truculento e foi difícil lidar com isso. Mas
em geral, chegando ao barracão, gerávamos uma certa alegria entre os trabalhadores
porque achavam que se tratava de uma fiscalização em cima do barracão. Os
barraqueiros admitiam que seus preços eram 20% maiores do que na cidade, mas os
trabalhadores sabiam que eram muito maiores do que isso. Então vinha aquela
curiosidade e outros trabalhadores iam espontaneamente se aproximando. Às vezes
quando eu estava entrevistando o barraqueiro um dos trabalhadores se aproximava
criando a situação de que ele pudesse contar a sua própria história. Eram situações que
obrigavam o barraqueiro, por uma espécie de competição implícita que se estabelecia
na hora, a falar de sua própria história. Havia situações em que o barraqueiro suspendia
a entrevista para abrir uma nova conta para o trabalhador endividado. E aí, a gente ia
etnografando toda a situação. Mais do que as respostas às questões formais, as
observações que fazíamos no verso desses formulários eram o principal.
48 A grande questão era que fazer pesquisa no momento em que o Brasil se encontrava,
você corria um perigo muito grande – não só o pesquisador, que algumas pessoas
sofreram interpelações, o Gatti foi um – mas você podia criar problemas para seus
informantes, para o grupo com que você estava lidando. Então tinha que ter um
cuidado permanente. Por exemplo, depois de um longo período em que estivemos Vera
Echenique e eu numa hospedaria das irmãs do Sagrado Coração na Mata Norte de
Pernambuco, já no Rio, de volta, recebi um telefonema tenso do presidente do sindicato
pedindo para enviar uma cópia da nossa credencial de pesquisa porque o Dops
[Departamento de Ordem Política e Social] tinha ido tomar satisfações com as irmãs a
nosso respeito. Era preciso ter um cuidado permanente. Era indispensável, quando em
campo, exportar o material coletado o mais rápido possível. Precisávamos estar atentos
para não colocarmos no caderno de campo informações que pudessem ser

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comprometedoras para informantes e pesquisadores. Era comum usarmos nos diários


alusões indiretas pois o material representava perigo. Lygia Sigaud e eu por exemplo
íamos a Recife com alguma frequência para passarmos os cadernos a uma parente dela
que morava nessa cidade, e ela enviava pelo correio para o Rio. Era comum entre os
pesquisadores procedimentos equivalentes para a preservação do material e dos
informantes. O que significava mais trabalho de reconstituição no Rio.
49 Mas acho que valeu a pena.

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NOTAS
1. Para outros depoimentos sobre essa mesma turma de colegas, ver “Entrevista com Luiz
Antonio Machado da Silva” (2010); ver também Palmeira (2006).
2. Essas preocupações estão presentes no seu primeiro artigo publicado; ver Palmeira (1966).
3. Ver Palmeira (1971).
4. Ver Genestoux (1967).
5. Ver Sigaud (1979a, 1979b).
6. Ver Ringuelet (1977).
7. Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Shelton_H._Davis. Sua tese de doutorado defendida em 1970
foi publicada em 1997 como La tierra de nuestros antepasados: estudio de la herencia y la tenencia de la
tierra en el altiplano de Guatemala (Davis, 1997).

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8. O que não impediu que os dois pesquisadores tivessem contribuído para o projeto. Conferir
Gatti e Echenique (1974).
9. Ver Garcia (1977).
10. Ver Rinaldi (1978).
11. Ver Landim (1978).
12. Essas discussões entre pesquisadores do PPGAS-MN/UFRJ e do Cebrap ocorreram em 1974 e
1975. Em 1974 Otávio Velho apresentou sua tese de doutorado, defendida na Universidade de
Manchester em 1973, no Cebrap. Graças a essa discussão (e a uma outra na Unicamp), Otávio
Velho foi convidado a publicar sua tese na coleção “Corpo e alma do Brasil” então dirigida por
Fernando Henrique Cardoso na Difel, Capitalismo autoritário e campesinato (Velho, 1976). Em 1975
José Sergio apresentou sua dissertação para discussão no Cebrap. Tais discussões em São Paulo
eram acompanhadas por delegações de pesquisadores do PPGAS-MN/UFRJ. Sua dissertação “O
vapor do diabo”, depois de renhido debate, foi indicada para publicação por Juarez Brandão
Lopes, integrante de coleção na Editora Paz e Terra. Houve uma apresentação do artigo “Os ardis
do trabalho” de José Arthur Gianotti no Museu Nacional, acompanhado de Eunice Durham e F. H.
Cardoso em 1975 como parte dessas discussões.
13. Ver Leite Lopes (1976), Heredia (1979), Garcia Jr. (1983).
14. O texto desse projeto foi publicado em Palmeira et al. (1977).
15. Ver Almeida e Leite Lopes (1977).
16. Ver Almeida e Palmeira (1977).
17. Ver Alvim (1979).
18. Ver Leite Lopes et al. (1979).
19. Além de Leilah Landim e Doris Rinaldi, já mencionadas, Regina Novaes estudou pequenos
agricultores do Agreste, explorando sua filiação religiosa evangélica até então pouco estudada;
ver Novaes (1978).
20. Ver “Relatório final do projeto emprego e mudança sócio-econômica no Nordeste” (1977). Os
estudos mencionados de Alfredo Wagner e Neide Esterci no Ceará se desdobraram depois em
áreas do Maranhão.
21. Essas alterações foram registradas em cadernos de procedimentos, explicitando todas as
pequenas decisões tomadas e por quê, que ainda pretendo editar para uso dos estudantes.
22. Conferir Carneiro e Cioccari (2011, p. 67-69).

AUTOR
JOSÉ SERGIO LEITE LOPES
Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil

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Resenhas

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ECKERT, Cornelia. Memória e


trabalho: etnografia da duração de
uma comunidade de mineiros de
carvão (La Grand-Combe, França)
Flávio Leonel Abreu da Silveira

REFERÊNCIA
ECKERT, Cornelia. Memória e trabalho: etnografia da duração de uma comunidade de
mineiros de carvão (La Grand-Combe, França). Curitiba: Appris, 2012. 280 p.

1 É em boa hora que Cornelia Eckert lança em português uma parcela importante de sua
tese de doutorado, defendida em Paris nos idos de 1992. Salvo engano meu, à exceção
de Memória e identidade. Ritmos e ressonâncias da duração de uma comunidade de trabalho:
mineiros do carvão (La Grand-Combe, França), lançado em 1993, a autora ainda não
publicara outra parte substancial de seu trabalho em nossa língua.
2 Obviamente que as reflexões gestadas por Cornelia na tese emergem como elementos
importantes na sua significativa produção acerca do tema da memória e as interfaces
com o trabalho e o imaginário no mundo urbano porto-alegrense – o que se reflete na
sua atuação junto ao Navisual e ao Biev no âmbito da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, este último uma pareceria profícua com a antropóloga Ana Luiza
Carvalho da Rocha. No entanto, felizmente, Cornelia decidiu publicar na forma de livro
a sua etnografia em terras francesas.
3 Penso que a edição deste excerto – obviamente, retrabalhado para assumir as feições de
um livro – de sua volumosa tese de doutorado é importante para a comunidade
antropológica brasileira pelos seguintes motivos: 1) pelo fato de tratar-se de etnografia
produzida por uma antropóloga com sólida formação e cujo trabalho acadêmico tem
reconhecida importância para a antropologia produzida em nosso país; 2) por agregar-

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se ao trabalho de outros autores, mas, também, por suprir uma lacuna nos estudos
relativos às relações entre memória e trabalho e, nesse sentido, deverá contribuir para
o incremento da discussão sobre tais temas; 3) por auxiliar a compreensão do fenômeno
na França – é preciso destacar o pioneirismo da autora que à época realizou pesquisa
etnográfica fora do contexto nacional, pois estamos falando de década de 1980 –, fato
que somente agora parece tornar-se uma prática corrente entre os antropólogos
brasileiros; 4) e, finalmente, por aliar uma densa etnografia enquanto texto e por
imagens à instigante reflexão teórico-conceitual.
4 O livro intitulado Memória e trabalho: etnografia da duração de uma comunidade de mineiros
de carvão (La Grand-Combe, França) revela-se uma obra bem escrita e de leitura aprazível
aliada a reflexões teórico-conceituais relevantes para o entendimento da memória
junto a uma comunidade de trabalho, o que lhe confere as qualidades necessárias para
tornar-se uma obra de referência para as pesquisas sobre o tema da memória e do
trabalho no contexto brasileiro, contribuindo para o avanço nas discussões relativas a
tais temas.
5 Por outro lado, no meu ponto de vista, trata-se de um texto oportuno para aqueles que
ministram disciplinas acadêmicas, onde as discussões acerca do método etnográfico são
importantes para a formação dos estudantes de graduação e pós-graduação,
contribuindo com questões passíveis de serem discutidas em sala de aula no que tange à
constituição de novas gerações de antropólogos, pois o texto cumpre um papel
fundamental no que se refere às discussões teórico-metodológicas relacionadas ao
ofício do etnógrafo, especialmente aquele que se depara com as questões da memória.
6 Nota-se que a autora, mediante uma longa pesquisa de campo, busca compreender os
processos pelos quais os mineiros de carvão da localidade francesa de La Grand-Combe
experienciam e significam a perda de seu mundo de referência, estando o mesmo ligado
ao trabalho nas minas. Os complexos processos desenvolvimentistas, ancorados na
busca de novas fontes energéticas deslocariam os interesses do país – novos impulsos
diante do petróleo e da energia nuclear, por exemplo – tornando a extração do carvão
uma prática econômica obsoleta frente às novas exigências industriais e de mercado.
7 Ora, uma redefinição desse nível na ordem dos fatos, como estavam colocados à época,
redireciona o “mundo da mina”, deslocando o personagem central dessa paisagem
altamente transformada pelas ações humanas – o mineiro de carvão – para uma posição
secundária. Tal obsolescência, se não planejada, pelo menos orquestrada por novas
ordens do capitalismo, instauraria a desordem daquele mundo do trabalho, vivido e
praticado por pessoas de diferentes origens nacionais e étnico-culturais (franceses,
espanhóis, portugueses, poloneses, africanos) que ali construíram uma comunidade de
trabalho.
8 O paulatino processo de desindustrialização lança os mineiros e suas famílias num
“tempo de crise”, prenúncio do arruinamento como corolário da melancolia, quando
passam a reinar os sentimentos de perda e de ruptura de um mundo, onde, outrora, as
coisas pareciam estar em seus respectivos lugares.
9 A vila operária com suas casas-jardins aliada às políticas de seguridade social gerou
pelo menos dois grandes problemas: o primeiro, ligado ao excessivo controle social e a
uma tendência à homogeneização das relações sociais e das condições de vida dos
mineiros, colocava os modelos da Companhia de Minas como o paradigma a ser seguido
por todos, portanto, não havia como escapar do mundo da mina como projeto
trabalhista e seus valores de família patriarcal; segundo, a política impetrada pela

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companhia não impedia a exclusão dos não europeus – ainda que existisse a preferência
da empresa por determinados grupos entre os de origem europeia –, jogando-os à
periferia da cidade, especialmente os africanos, que abandonaram seus países para
auxiliarem na construção da economia mineira em terras francesas.
10 Tais situações cooperaram para a formação de uma unidade identitária pautada na
árdua labuta nas minas, pois a comunidade de trabalho, para além da oposição entre
católicos e protestantes, ou mesmo entre aqueles de tendências políticas conservadoras
ou de esquerda, organizava-se produzindo táticas e formas de resistência ao jugo da
companhia sobre o “país mineiro”. Seja porque o movimento sindicalista ganhava
força, ou devido ao fato de que diante da heterogeneidade cultural existente no
contexto grand-combiano, os mineiros encontraram no domínio da língua occitan a
possibilidade de construir tal devir identitário frente às imposições da empresa que
escapava ao seu controle.
11 O tempo da crise, ao tensionar dramaticamente, lembranças e esquecimentos, diante do
colapso de uma época – com suas formas próprias de viver e sentir, suas expressões de
pertencimento a uma dada comunidade – e o arruinamento das paisagens enquanto
dimensão material do mundo praticado fazem com que as famílias que permaneceram
no local tenham que lutar constantemente contra o luto, persistindo, assim, como
herdeiras da memória do grupo e do lugar de pertença. Trata-se de um esforço por
durar no tempo, de lutar contra o perecimento das imagens acerca do mundo da mina
ante a perda de referenciais e às transformações em seu cotidiano.
12 Portanto, a experiência paternalista vivenciada pelas pessoas durante longa data,
referida ao “tempo da Companhia”, período em que a empresa definia os rumos da
comunidade de trabalho, é evocada pelas famílias residentes no local, detentoras de um
“tempo coletivo” evocador de imagens do passado, as quais contrastam com aquelas do
presente desolador aos olhos de quem o vive e o compara aos tempos idos. Os
aposentados da mina percebem o esvaziamento da cidade – os jovens em debandada
desaparecem da cidade em busca de novos rumos, de projetos possíveis noutras
paragens – e buscam, a partir de formas de sociabilidade que os retira do isolamento
doméstico, reagir ao excesso de tempo que pode sufocá-los pela lembrança de um
tempo no qual a cidade estava plena de vida, distante de certo ar moribundo que os
perturba.
13 A busca pelo triunfo sobre o caos por parte dos idosos impele-os à sociabilidade através
dos jogos, mediante os encontros para conversas ou pelas festas, às diversas formas de
associações. A luta contra o perecimento de um mundo reflete a própria luta contra o
perecimento do ser: a sociabilidade festiva, o ludismo e as conversas, como formas de
escapar ao tempo letárgico, vibram como aposta e possibilidade de permanecerem no
mundo a partir do sentimento comum de lidar contra a morte.
14 Se a rítmica do tempo da mina não pode ser recuperada senão pelo trabalho da
memória – portanto, borrada, mais ou menos vívida, com lapsos –, torna-se necessário
aos idosos uma imersão noutra rítmica, qual seja, aquela de uma sociabilidade que os
une por um querer viver que, se não restitui o tempo de outrora, pelo menos assegura a
duração de um tempo vivido como devir, onde o passado segue junto como
possibilidade de existência futura enquanto a vida dure.

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AUTORES
FLÁVIO LEONEL ABREU DA SILVEIRA
Universidade Federal do Pará – Brasil

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FINE, Agnès; ADELL, Nicolas (Dir.).


Histoire et anthropologie de la parenté:
autour de Paul Lacombe (1834-1919)
Fabiela Bigossi

REFERÊNCIA
FINE, Agnès; ADELL, Nicolas (Dir.). Histoire et anthropologie de la parenté: autour de Paul
Lacombe (1834-1919). Paris: Éditions du CTHS, 2012. 401 p.

1 A obra1 é resultado da colaboração de pesquisadores reunidos em um colóquio em


setembro de 2009 em torno da trajetória de Paul Lacombe, suas obras e seu
esquecimento no meio acadêmico, possibilitando a reflexão não apenas sobre a
contribuição do autor, mas também sobre a construção das ciências sociais.
2 Le mariage libre (1867), La famille dans la société romaine (1889) e De l’histoire considérée
comme science (1894) são as principais obras de Paul Lacombe e, segundo os
organizadores, figuram entre as primeiras obras francesas em que o casamento e o
parentesco são analisados em uma perspectiva antropológica moderna. Outras
contribuições de Paul Lacombe tratam das discussões sobre o racismo, a propriedade e
a educação.
3 A trajetória intelectual de Paul Lacombe e seu pertencimento a revistas e espaços de
discussão, poucos deles restritos às universidades ou écoles, diferentemente de seu
contemporâneo mais ilustre, Émile Durkheim, assim como sua trajetória pessoal, é
considerada pelos autores na apresentação do livro. A obra é dividida em duas partes,
com cinco capítulos e vinte autores. A primeira parte é sobre a implicância histórica da
obra de Paul Lacombe, enquanto na segunda parte os autores buscam o diálogo entre as
obras do autor e suas próprias pesquisas.
4 A primeira parte, “Le savant et le politique”, traz a trajetória familiar, militância e
engajamento de Paul Lacombe. Guy Astoul, historiador, em “Du Quercy à Paris. Jeunesse

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et premiers engagements de Paul Lacombe” mostra que a Revolução tem papel


importante na construção do pensamento de Lacombe, que lembra que o combate deve
ser antes de tudo anticlerical e libertário, e depois, político. Para Lacombe a
colaboração em jornais e revistas era um espaço para se engajar na busca de liberdade e
tolerância, enfrentando o fanatismo religioso, que acusa de invadir a vida das pessoas e
proclamar as regras morais, que segundo ele, não deveriam absolutamente depender da
religião.
5 Nesse entusiasmo sua primeira obra é lançada: Le mariage libre, denunciando a exclusão
das crianças nascidas fora do casamento, questionando o casamento tradicional e
propondo um contrato privado de associação conjugal que permitiria proteger as
crianças e garantir dignidade às mulheres. Nessa obra, figuravam críticas à dominação
masculina e sua contestação sobre o que chamava de hipocrisia encorajada pela
tradição patriarcal das religiões cristãs.
6 “Paul Lacombe à la fin du second Empire. Un libre penseur, défenseur de la liberté de
pensée”, do historiador Didier Foucault, mostra que Lacombe opõe-se frontalmente aos
católicos defendendo concepções abertamente laicas no que diz respeito a relações
sexuais e de uniões amorosas, apontando a religião e a Igreja como fatores de alienação
das consciências, e na defesa da liberdade de imprensa como garantia de luta do povo e
de reivindicações em face dos governantes.
7 O sociólogo Hervé Terral, no artigo intitulado “Paul Lacombe, un projet de reforme
pédagogique”, traz a obra L’Esquisse d’un Enseignement basé sur la Psychologie de l’enfant
(1899) onde Lacombe evoca a tríade professor-aluno-conhecimento que fora retomada
pelos especialistas em educação apenas nos anos 1980 e 1990 sob a nominação de
triângulo pedagógico ou triângulo didático.
8 No artigo “Paul Lacombe entre laïcisation des mœurs et féminisme” a historiadora
Florence Rochefort apresenta o autor na luta pelos direitos das mulheres, sendo
reconhecido, ao lado de sua esposa, como parte importante da história do feminismo,
mesmo que ideias como a mudança do casamento por uma associação ou contrato de
associação tenham sido dificilmente aceitáveis para as feministas da época.
9 Em “‘Le mariage libre’ au miroir du vaudeville”, a socióloga Martine Segalen escreve
sobre as fragilidades dos sistemas de filiação. Na época de Lacombe a problemática
envolvia os filhos nascidos fora do casamento, e hoje, segundo a autora, a temática se
reatualiza com os filhos de pais divorciados e de famílias recompostas. Lacombe foi
além da análise da filiação e questionou o papel dos homens e das mulheres enquanto
casal, e pronunciou-se contrário ao casamento forçado e ao divórcio, pois uma lei sobre
o divórcio fortaleceria o casamento enquanto contrato solene e público.
10 A definição de casamento para Lacombe, enquanto toda forma de relação sexual entre
homem e mulher, definição bastante ampla, está presente no artigo “Du féminisme à
l’anthropologie de la parenté. L’originalité de Paul Lacombe”, da antropóloga Agnès
Fine. Para Fine, a grande revolução no olhar sobre o casamento e as regras sociais é que
o autor não parte do ponto de vista universal masculino, como fazem seus
contemporâneos, inclusive Durkheim, mas sim do ponto de vista feminino. Ainda
segundo o autor, a exogamia é uma instituição política e não religiosa. A hipótese de
Lacombe, da troca de mulheres enquanto instituição criadora de alianças foi
desenvolvida mais tarde por Claude Lévi-Strauss e hoje é admitida pela maior parte dos
antropólogos.

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11 O historiador Philippe Moreau, em “Paul Lacombe et la famille romaine, la pratique de


la théorie”, escreve que sob a etiqueta de “estudo de moralidade” Lacombe propõe na
verdade um estudo das interações sociais e mostra a prevalência do interesse
econômico sobre a moralidade do casamento. No artigo “P. Lacombe, ‘La famille dans la
société romaine’, étude de moralité comparée’, Paris 1889. Notes d’une lectrice venue
d’ailleurs”, a historiadora Claudine Leduc aproxima seus estudos sobre o casamento
grego com o estudo de Lacombe na sociedade romana e na possível ligação entre os
dois, e assinala, através da discussão sobre o dote, que o sistema matrimonial romano é
um conflito de interesse entre dois homens, o marido e o pai da esposa, na disputa de
quem tem o direito sobre a mulher.
12 Em “De l’Histoire considérée comme science ou la tentation de la modernité?” a
historiadora Danielle Rives mostra como Lacombe defendia a pluridisciplinaridade para
elucidar o passado e a observação e criação de hipóteses enquanto método de pesquisa.
Na mesma linha de exposição da preocupação metodológica de Lacombe, o antropólogo
Nicolas Adell, em “Paul Lacombe, d’une histoire l’autre. Fondations d’une
anthropologie historique”, expõe a ideia do autor sobre a necessidade de abandonar a
concepção de história puramente acidental, que tende a ocultar a importância dos
indivíduos e de suas ações.
13 O historiador André Burguière, em “De la psychologie des peuples à l’histoire des
mentalités La controverse de Paul Lacombe et d’Alexandre Xenopol”, expõe a crítica de
Lacombe a Xenopol e seu conceito, falsamente científico, de “psicologia dos povos”.
Lacombe critica a utilização vulgar da “biologização antropológica” na excessiva
importância atribuída às características raciais, sem considerar o papel do social na
construção do indivíduo. O antropólogo François Sigaut, em “Lacombe, Taine et le
racisme”, também analisa como Lacombe mostra a inconsistência das teorias raciais e
as discussões entre a superioridade dos povos europeus entre eles.
14 O artigo seguinte é do sociólogo Massimo Borlandi, que faz as relações de proximidade
e de oposição entre Lacombe e Durkheim em “Lacombe, Durkheim et le groupe de
L’Année sociologique” no que diz respeito às representações coletivas e às leis de
imitação.
15 A conclusão da primeira parte é de Nicolas Adell e Sylvie Sagnes, sob o título “Essai
d’anthropologie de l’oubli. Le cas de Paul Lacombe”, em que associam o esquecimento
de Lacombe ao choque que suas ideias causavam nos intelectuais da época, por
exemplo, a prostituição como um progresso do ponto de vista feminino e a defesa dos
direitos individuais contra o interesse público. A fluidez de seus posicionamentos
teóricos, a oscilação de suas obras entre história, antropologia, sociologia, filosofia e
psicologia, sua produção literária, militância e engajamento foram fatores que
contribuíram amplamente para a exclusão de Lacombe na academia.
16 Na segunda parte do livro, “Actualité de Paul Lacombe”, o artigo “Découvrir ‘Le
Mariage libre’ au temps du démariage. Réflexions sur l’utopie d’un féminisme
visionnaire”, da socióloga Irène Théry, analisa as proposições de Lacombe no que diz
respeito a leis de proteção das crianças nascidas fora do casamento, e as aproxima de
suas pesquisas sobre a busca de paternidade juridicamente. Com uma investigação
sobre a mesma temática, a antropóloga Agnès Martial, em seu artigo “La paternité chez
Paul Lacombe”, analisa os modelos de paternidade em Lacombe e faz uma ligação com a
reformulação atual dos direitos e deveres dos homens enquanto pais, e da redefiniçao
da paternidade e da identidade masculina.

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17 Em “Propriété foncière, héritage et rapports de genre” o antropólogo Thiphaine


Barthélemy trata sobre os direitos de patrimônio no casal: quanto mais importante
forem as heranças, mais a situação entre homens e mulheres é desigual. No mesmo
sentido, o antropólogo Bernard Vernier, em “Paul Lacombe, une anthropologie de
l’intérêt et des rapports de force”, analisa o emprego da palavra “economia” nas teorias
sobre a relação de força entre homens e mulheres na família.
18 Em “Le comparatisme de Paul Lacombe”, o antropólogo Joan Bestard mostra que o
método comparativo de Lacombe residia na sua tentativa de aproximar o trabalho dos
sociólogos e dos historiadores e, assim, possibilitar que a história tivesse um caráter
científico. E ainda, através do método comparativo seria possível chegar ao nível de
generalização necessário para a produção da verdade.
19 A conclusão da segunda parte é da antropóloga Sylvie Sagnes e mostra que a dispersão
temática e disciplinar da obra de Lacombe longe de ser a sobrevivência de antigas
maneiras de fazer ciência, exprime na verdade a grande modernidade de sua postura de
transpassar fronteiras, mostrando-se jamais satisfeito com o recurso de uma só
disciplina para elucidar a complexidade social. Da mesma maneira, acredito que essa é a
grande contribuição do livro organizado por Fine e Adell: proporcionar o amplo diálogo
entre disciplinas e autores.

NOTAS
1. O livro não tem tradução em português.

AUTORES
FABIELA BIGOSSI
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Em pós-doutorado

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BENZECRY, Claudio E. El fanático de


la Ópera: etnografía de una obsesión
Victoria Irisarri

REFERÊNCIA
BENZECRY, Claudio E. El fanático de la Ópera: etnografía de una obsesión. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2012. 320 p.

1 O livro El fanático de la Ópera: etnografía de una obsesión, escrito por Claudio E. Benzecry
nos mergulha no mundo do emblemático Teatro Colón da cidade de Buenos Aires. No
imaginário social, o teatro foi associado historicamente à ideia de um reduto de acesso
e circulação exclusivos das elites portenhas. Entretanto, a narrativa do autor se dirige
aos balcões superiores do teatro para encontrar os seus protagonistas: os fãs da ópera.
Afastados das características que distinguem as elites, estes fãs conformam um tipo
particular de público que é central na vida social do teatro. De forma sistemática,
assistem a espetáculos de ópera entre três e quatro vezes na semana em diversos
teatros da cidade de Buenos Aires (ou perto dela). Essas atividades tornam-se um modo
de busca de autotranscedência e é através delas que as vidas dessas pessoas adquirem
sentido. Mas para chegar a essa conclusão, o autor nos coloca várias questões para
compreender esse processo de transformação: quais são os mecanismos de iniciação
para entrar no mundo da ópera e então se tornar um devoto seguidor, com disposição e
vontade de fazer diversos sacrifícios pela música amada?
2 Através de uma minuciosa etnografia desenvolvida entre os anos 2002 e 2005, o autor
acompanhou esses fãs pelo circuito da ópera local colocando o Teatro Colón como a
casa central desse universo, mas também ultrapassando as fronteiras geográficas do
teatro e da capital portenha para compartilhar as experiências dos fãs no circuito
conhecido como off-Colón. Durante 18 meses o pesquisador percorreu os andares
superiores do Colón reservados quase em sua totalidade para o público que assiste às
récitas em pé; fez fila para comprar ingressos; compartilhou algumas viagens de ônibus
para teatros afastados de Buenos Aires; e assistiu até seis vezes em um mês à mesma

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apresentação de uma obra. A abordagem completa-se com uma série de entrevistas com
esses fãs sobre as suas trajetórias, educação e histórias pessoais; assim como críticos
musicais, produtores e organizadores-chave. Mas a riqueza do trabalho emerge ao não
reduzir o foco da análise à palavra falada: a descrição detalhada das disposições
corporais na escuta de uma ópera ao vivo; dos modos de aguardar e conversar na fila
para comprar um ingresso; ou do momento de correr escada acima e acotovelar-se com
velhinhos fanáticos disputando os melhores lugares são alguns eventos que alimentam
a compreensão das práticas daqueles que se apaixonam pela ópera.
3 Filho de um regente do próprio Teatro Colón e autodefinido como músico amador,
Benzecry percorre o mundo da ópera com familiaridade e enfrenta a necessidade de
desnaturalizá-lo. Longe de ser uma autoetnografia, o autor desenvolve diversas
estratégias que mostram um mapa de relações nas quais predomina a empatia com seus
interlocutores, que abrem as portas de suas casas; revelam e exibem com orgulho suas
coleções mais prezadas de discos, fotos, notas de jornais e partituras; e compartilham as
suas lembranças musicais marcadas na memória e no corpo. Assim, o autor dá voz e
acredita na crença dos fãs e suas narrativas. Como assinala uma das fãs no final da sua
entrevista, narrar a sua paixão pela ópera é narrar a sua vida.
4 Este livro, produto da tese do doutorado em sociologia desenvolvida na New York
University, nos Estados Unidos, parte de uma discussão central da teoria social: a
relação atribuída entre gosto – nesse caso musical, especificamente da ópera – e a
posição dos sujeitos na estrutura social. O argumento desafia a obra seminal do
sociólogo francês Pierre Bourdieu, A distinção. No seu texto, Bourdieu afirma que
enquanto práticas, os gostos e estilos de vida reproduzem preferências e habilidades
éticas e estéticas associadas a uma determinada classe, e por intermédio dessas práticas
fazem evidentes as distinções sociais classificando os sujeitos em uma determinada
posição social. Com um trabalho meticuloso, Benzecry desmonta a tese do sociólogo
francês e se afasta da teoria social consolidada para abranger as diversas questões que
seus interlocutores provocam através de suas experiências. A sociologia do gosto
aparece como insuficiente para dar conta das escolhas e sacrifícios daqueles que
assistem de forma sistemática à ópera. Se na teoria bourdieusiana o gosto opera como
uma moeda de troca pelo status, os fãs da ópera que são apresentados ocultam seus
consumos assíduos, sua paixão para evitar ser estigmatizados como “estranhos”,
“veados”, no caso dos homens, ou “solteironas”, para as mulheres. A devoção pela
ópera exige sacrifícios em que o status não opera como uma moeda de troca possível.
Partindo das teorias da música-em-ação desenvolvidas por Tia de Nora e Antoine
Hennion, e acrescentando sua própria contribuição, a análise estende-se de uma
sociologia do gosto para uma da paixão, uma paixão entendida como atividade e que no
seu fazer gera agência nos sujeitos.
5 Na estrutura social, o público a que Benzecry faz referência pode ser definido como de
classe média, com seus respectivos desvios para cima ou para baixo, dependendo da
profissão, títulos adquiridos e possíveis heranças ou linhagens familiares. Enquanto a
variabilidade das trajetórias e posições sociais dos entrevistados é alta, elas têm como
denominador comum o imaginário de pertença a essa classe média argentina, um
imaginário construído historicamente com base em três pilares institucionais: o acesso
ao sistema de saúde e à educação (ambos públicos e universais) e a promessa de
mobilidade social ascendente. A história do Teatro Colón está marcada pelo caráter
civilizador que as elites argentinas procuraram imprimir na construção da nação. Os

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balcões superiores (chamados tertúlia e paraíso em pé) têm os ingressos mais baratos,
que compreendem quase 20% do auditório.1 As preocupações que consolidaram a
construção do Teatro Colón, antes de estarem vinculadas a questões de classe,
estiveram ligadas à busca de representar o país em sua totalidade. Ao longo do tempo as
políticas públicas acompanharam esses ideais civilizatórios e mantiveram a
estratificação dos preços dos ingressos para garantir o acesso de setores heterogêneos
da sociedade. Como assinala o autor, desde suas origens a ópera em Buenos Aires,
diferentemente do que ocorre em cidades europeias, tem mantido viva a tensão entre o
seu caráter exclusivo e seu caráter democrático (p. 66), tensão reforçada e resguardada
na estratificação de sua própria arquitetura: o desenho não permite que os públicos
considerados de elite tenham possibilidade de se encontrar e sociabilizar com os
públicos mais plebeus. Com entradas e corredores diferenciados, os diferentes públicos
não têm espaços comuns de circulação. Mas os balcões superiores do teatro possuem a
melhor acústica, tornando-se um espaço privilegiado no ethos desses fãs: a ópera se
escuta com olhos fechados, se experimenta no corpo, e a visão do palco fica em segundo
plano.
6 No livro – dividido em três seções com um total de sete capítulos – o autor nos convida
a seguir as práticas dos fãs da ópera que desenham diversos percursos, alternando
entre o Teatro Colón e o circuito off. Além do grande número de espetáculos – a cidade
de Buenos Aires oferece cerca de duzentas noites com récitas de ópera por ano – os
interlocutores de Benzecry desenvolvem diversas atividades na procura de sua
formação: assistem a peças de teatro, frequentam cursos de formação de plateia, ou
veem DVDs em grupo. Dessa perspectiva o autor desenvolve uma etnografia
multissituada – seguindo a proposta de George Marcus –, na qual a vida social do Teatro
Colón é compreendida para além de suas fronteiras físicas.. Na primeira parte,
composta pelos capítulos 1 e 2, o autor apresenta uma breve história do Teatro Colón e
das suas relações com o público que não pertence às elites. Desse modo, é possível
compreender as bases da estrutura social do teatro que possibilita a existência dos fãs
da ópera que ocupam os balcões superiores, cujas trajetórias são apresentadas no
segundo capítulo. A segunda parte abarca os capítulos 3, 4 e 5, os quais focam nos
modos como as pessoas aprendem a escutar e amar a ópera através de instituições
formais e informais; como os fãs da ópera se diferenciam de outros públicos e como se
vinculam de um modo particular com seu objeto de afeto. Esta segunda parte é central
para compreender como o amor pela ópera não é útil como capital cultural para gerar
status, mas sim para entender como os fãs se modelam a si mesmos mediante a paixão
pela ópera, quais são os resultados de sua relação afetiva com a música e os efeitos que
ela tem sobre o eu. Os capítulos 6 e 7 compõem a terceira e última seção, a qual põe em
tensão a relação entre o que acontece no Teatro Colón e o mundo exterior. Se no início
do livro a proposta é nos mover de uma teoria do gosto para uma da paixão, no final
essa teoria se imbrica com uma perspectiva política das relações dos fãs com o Colón.
Este é percebido por eles como o último reduto moral que ainda mantém seu caráter
extraordinário frente a uma visão de degradação do país; o teatro ainda opera para os
fãs como um lugar que permite sustentar um modelo idealizado de nação. A
constatação dessa percepção tem consequências interessantes nos modo de conceber
essa etnografia e problematizar as discordâncias entre o pesquisador e seus
interlocutores.

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7 Inscrita na compreensão dos regimes afetivos, essa etnografia resgata a sensualidade da


experiência para entender por que o público se apaixona pela ópera, e como essa paixão
os coloca para além das coisas mundanas.

NOTAS
1. No posfácio, que não consta na primeira edição, publicada em inglês, Benzecry dá conta da
mudança política no modo de perceber o papel do teatro e do acesso à ópera pelas novas
autoridades do governo da cidade de Buenos Aires. Até 2006, os ingressos mais baratos do teatro
Colón custavam menos que um ingresso com desconto para um cinema. Em 2007, o teatro foi
fechado para ser restaurado. Reabriu em 2010 com aumentos dos preços dos ingressos em
proporções desiguais: o ingresso para o paraíso em pé (o mais barato) aumentou em 733%, entanto
o grande abono da ópera (o ingresso mais caro) sofreu um aumento de 144% (p. 285).

AUTORES
VICTORIA IRISARRI
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Doutoranda em Antropologia Social

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MARQUES, Emília Margarida. Os


operários e as suas máquinas: usos
sociais da técnica no trabalho
vidreiro
Ronaldo de Oliveira Corrêa

REFERÊNCIA
MARQUES, Emília Margarida. Os operários e as suas máquinas: usos sociais da técnica no
trabalho vidreiro. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian: Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, 2009. (Coleção Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas). 452 p.

1 O livro é a publicação atualizada e corrigida da tese de doutorado da autora, defendida


em 2003. O doutorado foi realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade de Lisboa, orientado pelo Prof. Dr. Jorge Crespo, que escreveu o prefácio.
Antropóloga vinculada ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA),
Emília Margarida Marques dedica-se aos temas da técnica e trabalho industrial, da
materialidade e dos consumos, da memória social e da história da indústria vidreira da
Marinha Grande, em Portugal. Seu estudo a respeito do patrimônio documental da
Marinha Grande retoma sua participação na investigação coletiva e comparativa
“Memória e identidades profissionais”, desenvolvida no Centro de Estudos de Etnologia
Portuguesa (FCSH-UNL).
2 O estudo toma como unidade de análise o trabalho na Indústria de Vidro da Marinha
Grande. A partir de tal unidade, revela as condições que a indústria de vidro engendra
na cultura, nos modos de vida e nas sensibilidades daquela sociedade operária. Por meio
da pesquisa sobre o trabalho, os meios de produção vidreira e as narrativas dos
operários, a antropologia reivindicada pela autora recai não na ontologia das coisas,
mas nos usos sociais e na elaboração da ação, na constituição dos discursos e das
relações que facilitam a construção de uma humanidade.

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3 Marques situa sua questão na problematização da categoria trabalho, a partir da


perspectiva de Marx – para quem o trabalho é elemento decisivo na constituição
humana. Ela filia-se às pesquisas que tomam como tema a “tecnologia cultural” e, com
isso, apropria-se da categoria de “meios elementares de ação sobre a matéria”, para
assim estabelecer o diálogo entre a ação humana e o mundo físico. Em função de suas
solidariedades teóricas, a autora propõe uma hipótese em movimento, esta em
consonância com a duração do tempo de mudança em que vivem os sujeitos sociais e
suas ações no mundo físico via seu trabalho. Com tal estratégia, pretende deslocar a
ideia de condicionamento – resíduo de uma perspectiva determinista – e problematizar
a influência multiforme de um complexo de técnicas na vida dos operários de Marinha
Grande. Isso mediado pela mudança e provisoriedade dos sentidos, que continuamente
se modificam, principalmente, em face da automatização dos meios de produção e da
transformação das cidades industriais.
4 Em meio a esse panorama a autora formula as seguintes questões:
[…] o que é conduzir uma máquina de produção? Entre a sofisticação da máquina e a
sua dependência de um trabalho humano particular, como se constrói o lugar social
dos condutores na fábrica? Que coisas sociais fazem os condutores com as suas
máquinas? (p. 28).
5 O livro é dividido em sete capítulos; somados a esses, quatro anexos e um caderno de
documentação fotográfica. No primeiro capítulo, “A máquina das perguntas”, a autora
expõe a problematização do tema. Sua estratégia toma por base a retomada do projeto
de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa (FCSH-UNL) e a
revisão bibliográfica sobre antropologia da técnica, em especial, aquela industrial. Seu
interesse recai nos instrumentos de descrição e interpretação elaborados por autores
como Mauss, sobre as técnicas corporais, e Lefebvre, sobre a reconstrução de cadeias
operatórias. De forma geral, foi nos processos de aprendizagem e na produção
simbólica/identitária associada ao trabalho que Marques detém sua atenção, ou, como
ela mesma afirma, “nas máquinas e nos gestos” (p. 39). Suas aproximações com os
estudos sobre as dimensões culturais contidas/incorporadas/desenvolvidas no âmbito
do trabalho industrial e dos processos de industrialização têm como objetivo configurar
de forma mais complexa o fenômeno industrial, isso a partir de suas generalidades e
concretizações. Para isso, acompanha teórica e empiricamente os estudos sobre um tipo
de etnotécnica em contextos interculturais.
6 O capítulo seguinte, “Matérias da antropologia”, é dedicado ao mapeamento de uma
teoria da cultura material, com particular atenção à industrial. Na problematização,
através da teoria antropológica, da noção de material e materialidade, artefato e
sentido, a autora recorre à argumentação informada por vários autores do campo da
antropologia. Inicia ponderando sobre a perspectiva de autores que advogam pela
impossibilidade de o artefato ser considerado documento. A partir das discussões sobre
evolução/progresso, difusão e invenção, a autora nos familiariza com a perspectiva dos
artefatos como dado e não como processo. Segue problematizando a necessidade, por
parte de um tipo de ciência social, de negar a matéria para construir o social e retoma a
presença dos artefatos como uma forma de chamar a atenção para a presença da “vida
material”. De certo modo, ao trazer para o texto a forma, o som e os cheiros dos lugares
vividos e os processos de fazer Marques nos evidencia que os artefatos e as técnicas,
suas presenças sociais, possuem um percurso tenso no âmbito da disciplina
antropológica.

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7 Encerra esse capítulo com o propósito de retomar os ensinamentos sobre o material e


os processos de fazer que ficaram em segundo plano na teoria antropológica. A autora
nos chama de volta a uma antropologia econômica, que relê Os argonautas do Pacífico
Ocidental, e a um materialismo cultural que pretende não ignorar as dimensões sociais
da técnica. Nesse percurso que “reabilita” a teoria da cultura material, Marques
problematiza a tecnologia cultural como uma forma de pensar uma articulação entre a
concepção processual da técnica e a concepção relacional da sociedade. Isso, por ter em
Mauss a base que fundamenta a ideia de técnica como algo realizado na relação e na
prática cotidiana. Nesse conjunto de questões os usos (consumos) das técnicas e
artefatos passam a ser outro tema que se incorpora à ideia de uma antropologia da
técnica.
8 O terceiro capítulo, “Interrogações para uma antropologia das técnicas”, é dedicado à
problematização da questão de pesquisa à luz dos pressupostos de uma antropologia da
técnica. Para isso, a autora formaliza os conceitos de técnica, sistemas sociotécnicos,
redes sociotécnicas, entre outros, e os converte em categorias de análise. Somado a isso,
retoma conceitos como trabalho e poder, em um diálogo com os textos de Marx.
9 No capítulo “Na fábrica da Etnografia”, a autora apresenta o projeto de pesquisa.
Reelabora teoricamente o campo a partir de sua entrada e chegada na fábrica, o
trabalho dos operários e o seu trabalho, o espaço da fábrica em relação à Marinha
Grande e o tempo de pesquisa e o de memória do trabalho e da vida. Conclui com uma
proposta de modelo de análise que pretende estruturar ao longo dos demais capítulos e
utilizar como estratégia interpretativa.
10 O capítulo “Do manual ao automático no vidro da Marinha Grande” caracteriza-se por
ser aquele que informa ao leitor a localização no tempo e espaço da pesquisa. Aqui as
temporalidades que constituem as histórias são narradas via revisão da literatura
etnográfica e histórica sobre a Marinha Grande e sobre as fábricas de vidro. Ao modo de
inserir o leitor no ambiente da fábrica, a autora apresenta as formas de fazer e
aprender o trabalho, as estratégias para estabelecer as hierarquias e as mudanças que
passaram a acontecer com a introdução de máquinas semiautomáticas na produção de
vidro.
11 O “Caderno de documentação fotográfica” é encartado antes do capítulo “Conduzir a
máquina, construir o trabalho”. Essa estratégia da autora tem por propósito trazer para
o leitor as visualidades dos gestos e corpos, espaços e tempos narrados até aqui. A
presença de imagens não é exclusiva desse capítulo; contudo, uma narrativa
exclusivamente visual é apresentada ao leitor nesse momento. O capítulo que segue
toma partido de diferentes estratégias narrativas, a saber: as imagens, os esquemas de
operações, os manuais de equipamentos, os documentos administrativos e jurídicos de
empresas, entre outros. Todavia, as narrativas dos operários tomam o capitulo e
evidenciam o diálogo destes com a autora. Ainda, discute-se a consolidação de outra
sensibilidade mais racionalizada e de acordo com os movimentos de automatização do
trabalho. Por outro lado, evidenciam-se as escolhas que os operários demandam em
função de suas representações sobre o trabalho, a técnica e os artefatos.
12 O último capítulo, de título “Usos sociais da matéria”, é o mais curto, e nele a autora
reapresenta seu argumento. À luz de sua abordagem teórica e de seu campo ela retoma
a ideia de coisas tangíveis para nos falar que a técnica e os artefatos de forma alguma
estão dissociados de sua conflitiva interpretação. E finaliza ao afirmar que nesse
contínuo movimento dos processos de fabrico o social é (re)construído.

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AUTORES
RONALDO DE OLIVEIRA CORRÊA
Universidade Federal do Paraná – Brasil

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BARBOSA DE OLIVEIRA, Frederico


César. Quando resistir é habitar: lutas
pela afirmação territorial dos Kaiabi
no baixo Teles Pires
Anelise dos Santos Gutterres

REFERÊNCIA
BARBOSA DE OLIVEIRA, Frederico César. Quando resistir é habitar: lutas pela afirmação
territorial dos Kaiabi no baixo Teles Pires. Brasília: Paralelo 15, 2012. 386 p.

1 O livro é resultado da tese de doutorado do autor, que recebeu o 2º lugar nessa


categoria de pesquisa da segunda edição do Prêmio ABA-GIZ 1 – 2010/2011 – para Povos
Indígenas na Amazônia: Diálogos sobre Territorialidades e Gestão Territorial. A obra é
dividida em cinco capítulos, nos quais o antropólogo descreve as diferentes relações
que os Kaiabi vêm constituindo com uma parcela específica do ambiente (p. 363) no
qual vivem por pelo menos dois séculos: a extensão do rio Teles Pires, localizado entre
os estados do Pará e Mato Grosso.
2 As relações dos Kaiabi com seu ambiente são aduzidas por intermédio dos conflitos
socioambientais e dos conflitos de percepção, tendo como perspectiva de trabalho a
noção de dwelling (Ingold, 2000) e a percepção direta do ambiente como base para a
produção de conhecimento sobre o mundo. De acordo com o autor, essa seria uma saída
razoável aos embaraços causados pelas dualidades natureza-cultura e mente-corpo
(p. 155), não operativas para o caso desse grupo. Recuperando o campo da antropologia
das emoções – como saída para as chamadas oposições modernas (p. 156) – o autor
percorre um caminho de análise que busca compreender o ambiente que os Kaiabi
estabelecem, juntamente com o ambiente circundante do rio Teles Pires. Um ambiente
que se constituiria entre as ligações afetivas do grupo com o rio e as relações de dwelling

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(p. 157), sobrepostas a diferentes cenários espaçotemporais os quais definiu como


cosmografias.
3 No primeiro capítulo o autor apresenta o grupo através da historiografia – advinda de
relatos históricos, missões, documentos oficiais – narrativas míticas e outras
etnografias sobre povos habitantes da região, destacando a cosmovisão e a origem
mítica dos Kaiabi. Os locais e os percursos citados no mito de origem correspondem a
um tempo primordial e a um momento onde é feita a diferenciação entre humanos e
não humanos (p. 55) para os Kaiabi. Alguns locais e percursos descritos nesse mito são
retomados pelo autor – a partir de narrativas dos Kaiabi sobre sua percepção do
ambiente em tempos vividos – como peças importantes no processo de resistência e
luta pela Terra Indígena Kaiabi. Diferente do que ocorreria no século seguinte, os
embates com outras etnias, em particular com os Munduruku, configurou no século
XVIII (p. 299) o principal motivo de deslocamento dos Kaiabi na direção das cabeceiras
do rio Teles Pires. O autor destaca que até o final do século XIX e meados do século XX
os Kaiabi habitaram praticamente toda a extensão do vale do médio Teles Pires, no
centro do estado de Mato Grosso. Com o estabelecimento das frentes econômicas
dedicadas à expansão nacional, especialmente com a chegada de seringueiros e a
implantação de projetos de colonização do Brasil Central, parte do grupo teria se
deslocado em direção ao extremo norte do estado, na divisa com o Pará, dando início à
ocupação da Terra Indígena Kaiabi, localizada nos municípios de Jacareacanga (PA) e
Apiacás (MT), no baixo curso do rio Teles Pires.
4 Tendo em vista que diferentes ambientes provocam percepções distintas, é destacado
que além das ocupações no Teles Pires, ainda haveria grupos de Kaiabi habitando o rio
dos Peixes e o Parque do Xingu. Ao longo da pesquisa o autor se dedica a descrever
como essas diferentes percepções operam no campo dos conflitos. Um campo que
envolve apropriações e identificações com o ambiente onde são sobrepostas: origens
míticas, deslocamentos forçados, conflitos com garimpeiros, e diferentes momentos do
projeto de desenvolvimento nacional – conjunturas que o autor conceitua como
cosmografias. O tema do terceiro capítulo são as diferentes narrativas que constituem
as regiões habitadas pelos Kaiabi ao longo dos diferentes tempos e entre as distintas
cosmografias.
5 A demarcação formal da Terra Indígena Kaiabi pelo Estado brasileiro é um processo que
envolve: ações da Funai em diferentes décadas, a expedição dos irmãos Villas-Boas, as
relações com grupos de garimpeiros e empresas exploradoras da região – como ocorre
na historiografia da maior parte de diferentes grupos indígenas no Brasil. O processo de
resistência, no entanto, pode ser distinto para cada grupo. No caso dos Kaiabi, a
autodeclaração “somos Kaiabi porque vivemos nessa terra” (p. 148) parece sintetizar as
bases naturais dos comportamentos dos Kaiabi, expressando o que poderia ser chamado
de memória coletiva do grupo. A afirmação de que “o Teles Pires é a única região que
nos resta” aponta para as formas de constituição social e cultural do sentimento de
pertencimento e habitação (p. 365) desses povos ao ambiente, e que ultrapassa a
definição de território somente como base física.
6 As transferências, migrações, regressos e ocupações nos e dos ambientes: do alto, médio
e baixo Teles Pires; do rio dos Peixes – o mítico Batelão; da alternativa do Parque
Nacional do Xingu; da ida para o rio Arraias estão presentes em diferentes
cosmografias. Provocadas direta ou indiretamente pela exploração econômica da região
e ação dos projetos nacionais de desenvolvimento e, em razão deles, pela agressiva

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chegada de garimpeiros na região, esses deslocamentos não formam uma constante na


trajetória de um grupo de Kaiabi, mas uma constante na trajetória de distintos grupos
kaiabi em diferentes tempos de percepção desses ambientes. Descrita nos capítulos
quatro e cinco através de uma análise dos conflitos e da proposta de uma cartografia
dos mundos vividos, a transformação desses ambientes foi promovendo esses
deslocamentos e provocando novas percepções.
7 No quinto capítulo é destacada a perspectiva de “conflito intratável” (p. 304) para dar
conta da disputa central em evidência no livro: pela Terra Indígena Kaiabi. A pesquisa
evidencia que essa disputa não é uma disputa só por recursos naturais – água, madeira,
minerais, terra –, é uma luta pela legitimação da percepção territorial dos Kaiabi e, em
suas diferentes escalas, pela afirmação dessas percepções. O componente socionatural
seria o ponto-chave e unificador para o estudo do conflito na Terra Indígena Kaiabi.
8 Destacando a relevância do estudo etnográfico, o autor ressalta:
A pesquisa etnográfica dos conflitos socioambientais, ancorada nos fundamentos da
ecologia política, não apenas contribui para sua compreensão, mas “visibiliza”
atores marginalizados e revela controvérsias, conexões e relações de poder até
então desconhecidas. (p. 305).
9 Aliada à perspectiva das cosmografias – do período da borracha, da pacificação, da
transposição das Sete Quedas, do desenvolvimento econômico –, às quais o autor se
dedica no capítulo dois, a noção de frame é destacada como parte da metodologia usada
para “etnografar” o campo do conflito. O termo frame (p. 306) circunscreveria um
processo pelo qual as pessoas, inseridas em seus grupos de interesse, constituem e
representam as interpretações sobre o mundo; uma espécie de moldura que serve para
compor um campo de ideias e práticas (p. 307).
10 O desenho das emoções, através do aporte do mapeamento participativo, resulta em
mapas (p. 180) que proporcionam ao leitor a possibilidade de ingressar em diferentes
realidades territoriais vivenciadas pelos Kaiabi em seu ambiente natural. Os distintos
ambientes do curso do rio Teles Pires – alto, médio e baixo; do rio dos Peixes e as
diferenças com o ambiente do Xingu são destacados pela etnografia realizada pelo
autor, na prática da descrição verbal e perceptiva. A partir dela o antropólogo
apresenta o conflito socioambiental (p. 365) como o cerne da disputa pela Terra
Indígena Kaiabi, construindo a resistência como uma luta pela legitimidade das
percepções do grupo sobre seu ambiente.
11 A pesquisa traz um importante debate ao campo das ciências humanas, pois provoca
que contemplemos a territorialidade como tendo um papel fundamental na
constituição dos grupos humanos. Ela mostra que o território é mais do que uma base
física para o desenvolvimento de significações (p. 366), ele oferece significados que são
trabalhados pelos grupos de acordo com as capacidades de cada ambiente e a partir das
maneiras como os sujeitos as incorporam em suas atividades diárias.

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BIBLIOGRAFIA
INGOLD, T. The perception of environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London:
Routledge, 2000.

NOTAS
1. Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH.

AUTORES
ANELISE DOS SANTOS GUTTERRES
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Doutoranda em Antropologia Social

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