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SUMÁRIO
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
SUMÁRIO
I. METAMORFOSE
II. EXÍLIO
III. IMAGO
SOBRE A AUTORA
A ilha deveria estar a três dias de caminhada rio acima. Pensamos que
conseguiríamos chegar em cinco, já que tínhamos de desviar de
Pascual, um assentamento rebelde ribeirinho hostil ao extremo. Fora
provavelmente o povo de lá que destruíra a horta de Lilith. Agora iríamos
nos afastar muito de nosso caminho para evitar retaliá-los. Muitas daquelas
pessoas talvez não sobrevivessem ao contato comigo.
Nunca pensamos que estávamos em perigo por causa de Pascual porque
o povo de lá sabia melhor do que a maioria dos rebeldes o que acontecia a
quem nos atacava. A aldeia deles, já minguada pela emigração, seria
atingida por gás – e os agressores, caçados pelo cheiro, encontrados e
exilados na nave. Lá, se tivessem cometido assassinatos, seriam mantidos
inconscientes ou drogados para sentir prazer e satisfação. Nunca teriam
permissão para despertar por completo. Seriam usados como material para
estudos, sujeitos de experimentos biológicos ou reserva de material
genético humano. A população de Pascual sabia disso e, por essa razão,
cometia o que Lilith chamava de “crimes contra a propriedade”. Roubavam,
incendiavam, vandalizavam. Nunca tinham chegado tão perto de Lo como
quando estiveram na horta. Tinham convergido sua atenção a viajantes.
Até conhecermos alguns deles em nossa primeira noite longe de Lo, não
compreendíamos o quanto seu comportamento havia se radicalizado.
Paramos de caminhar ao entardecer, cozinhamos e comemos um pouco da
comida que Lilith e Tino haviam trazido, então penduramos nossas redes
entre as árvores. Não nos preocupamos em erguer um abrigo, já que os
adultos concordaram que não iria chover.
Apenas Nikanj limpou um pedaço do chão e estendeu sua rede na terra
nua. Por causa das conexões que tinha de fazer com os braços e tentáculos
sensoriais, não ficava confortável compartilhando uma rede pendurada com
mais ninguém. Queria que nos sentíssemos à vontade para nos
aproximarmos com qualquer ferida, sofrimento ou dor que tivéssemos
adquirido. Fez um gesto para mim primeiro, embora eu não pretendesse me
aproximar.
— Venha todas as noites até aprender a controlar suas habilidades —
falou. — Observe o que eu faço com você. Não cochile.
— Certo.
Nikanj não poderia curar sem dar prazer. As pessoas tendiam
simplesmente a relaxar e apreciar o momento. Mas dessa vez observei,
como era seu desejo, e vi que me investigou quase célula por célula,
corrigindo as falhas encontradas – falhas que eu não havia notado. Era
como se eu tivesse entendido a complexidade do mundo exterior e perdido
até mesmo minha compreensão infantil de meu ser interior. Costumava
perceber logo quando algo estava errado. Agora, meu maior problema era a
divisão celular descontrolada, desnecessária. Cânceres. Eles começaram a
crescer muito depressa, muitas vezes mais rápido do que poderiam ter
crescido em um Humano. Eu deveria ser capaz de controlar e usá-los em
mim e nos outros. Em vez disso, sequer conseguia identificar quando
começavam a crescer. E isso acontecia sem qualquer incentivo consciente
de minha parte.
— Percebe? — perguntou Nikanj.
— Sim. Mas não antes de você me mostrar.
— Deixei um.
Procurei-o e, depois de algum tempo, encontrei-o crescendo em minha
garganta, onde com certeza me mataria se lhe fosse permitido continuar.
Não corrigi a mensagem genética das células nem desativei a parte que
continha o erro. Isso foi o que Nikanj fez aos outros, mas eu não confiava
na minha capacidade de seguir seu exemplo. Poderia reprogramar
acidentalmente outros genes. Em vez disso, destruí as poucas células
malignas.
Então, encostei minha cabeça em Nikanj e deixei que meus tentáculos
tentassem se conectar com os seus. Falei-lhe em silêncio:
— Não estou aprendendo. Não sei o que fazer.
— Espere.
— Não quero continuar sendo um perigo, machucando Aaor, tendo
medo de mim.
— Dê tempo a si mesmo. Você é um novo tipo de ser. Nunca houve
alguém igual antes. Mas não há falhas em você. Só precisa de tempo para
descobrir mais a seu respeito.
Sua certeza me satisfez. Descansei me recostando em seu corpo por um
tempo, desfrutando do contato fácil e seguro, o único que eu tinha agora.
Nikanj me deu uma cotovelada depois de algum tempo e voltei para minha
rede. Lilith estava deitada com Nikanj quando os rebeldes se revelaram para
nós.
Primeiro, eles gritaram. Uma fêmea Humana gritou várias vezes, a
princípio xingando alguém, depois implorando e, então, fazendo ruídos
roucos e sem palavras. Também havia vozes masculinas, pelo menos três
delas gritando, rindo, xingando.
— Real e irreal — disse Dichaan quando os gritos começaram.
— O que está acontecendo? — Oni quis saber.
— Agora a fêmea está sendo machucada — disse Nikanj. — E ela está
com medo. Mas há algo errado. Os primeiros gritos dela foram falsos. Não
estava com medo naquele momento.
— Se ela está sendo machucada, basta! — exclamou Tino. Ele estava de
pé, olhando para Nikanj, em uma postura de total urgência e raiva.
— Fique aqui — disse Nikanj. Levantou-se e agarrou Tino com os
quatro braços. — Proteja as crianças. — Sacudiu-o uma vez para enfatizar,
depois correu para a floresta. Ahajas e Dichaan foram logo atrás. Os
Oankali tinham bem menos chances de serem mortos, mesmo se os
Humanos que estavam gritando se esforçassem muito.
Nossos progenitores Humanos nos reuniram e nos levaram para um
trecho de floresta mais denso, onde conseguíamos enxergar e os rebeldes
não. Lilith e Tino foram modificados para que, como nós, enxergassem por
luz infravermelha, pelo calor. Para todos nós, a floresta viva era repleta de
luz.
E o ar era cheio de aromas. Humanos estavam chegando. Ainda não
estavam perto, mas se aproximavam. Vários. Oito, nove. Do sexo
masculino.
Lilith e Tino pegaram seus facões e nos deram cobertura ao entrarmos
na floresta.
— Não façam nada, a menos que venham atrás de nós — Lilith
ordenou. — Se vierem, corram. Se pegarem vocês, matem.
Ela parecia Nikanj. Mas, vindas de Nikanj, as palavras soaram como
gritos de dor. Vindas dela, eram gritos de medo. Ela temia por nós. Eu não
conseguia me lembrar de já tê-la visto com medo por si mesma. Anos antes,
de um esconderijo no alto de uma árvore, eu a vi lutar contra três rebeldes
do sexo masculino que queriam estuprá-la. Assim que percebeu que eles
não estavam cientes de minha presença, ela não teve medo. Conseguiu até
não os machucar muito. E eles fugiram, acreditando que ela era um
constructo.
Os rebeldes que estavam atrás de nós agora não fugiriam e Lilith e Tino
sabiam disso. Eles observaram quando os rebeldes descobriram o
acampamento e tentaram derrubar e queimar as redes. Mas o tecido de Lo
não queimava e nenhum Humano normal poderia cortá-lo ou rasgá-lo.
Eles roubaram as mochilas de Lilith e Tino, cortaram os troncos
menores nos quais amarramos nossas redes, trituraram os alimentos
expostos na terra e atearam fogo às árvores. Sob a luz do incêndio, nos
procuraram, mas temiam se aventurar no interior da floresta, receando se
dispersar demais e, ao mesmo tempo, parecer amontoados. Talvez
soubessem o que lhes aconteceria se nos encontrassem. Talvez destruir
nossos pertences fosse suficiente, embora tivessem armas de fogo.
Eles não tinham pegado a mochila que Lilith fizera para mim. Enquanto
ela e Tino estavam reunindo meus irmãos e minhas irmãs, peguei a mochila
e corri com ela. Eu pretendia ajudar se houvesse brigas. Não fugiria com
meus irmãos e minhas irmãs mais novos, mas também pretendia preservar o
que poderia ser meu último resquício de Lo. Ninguém iria roubá-lo.
O fogo se espalhou devagar e os rebeldes tiveram de abandonar nosso
acampamento. Eles voltaram pelo meio das árvores, como vieram. Nós
ficamos onde estávamos, sabendo que o rio estava perto. Correríamos para
lá se precisássemos.
Mas o fogo não se alastrou muito. Chamuscou algumas árvores que
estavam em pé e consumiu as poucas que haviam sido cortadas. Meus
progenitores Oankali retornaram feridos, mas já se curando, carregando um
fardo vivo.
O perigo parecia ter passado. Não sentíamos cheiro de nada além de
fumaça, não ouvíamos nada exceto o crepitar do fogo que se apagava e os
sons da natureza. Fomos encontrar os três Oankali.
Quando saí ao ar livre, à luz do fogo, estava na frente de meus pais
humanos e de meus irmãos e minhas irmãs. Isso foi bom porque, como
ooloi, eu era teoricamente mais capaz de sobreviver a ferimentos de bala do
que qualquer um deles. Agora eu descobriria se isso era verdade.
Fui baleado três vezes. Os dois primeiros tiros vieram de direções
ligeiramente diferentes, quase no mesmo instante. Para mim, foram um
golpe único que me atingiu e me fez dar um giro completo. Os dois tiros me
acertaram no ombro esquerdo e na parte inferior esquerda das costas. O
terceiro me atingiu no peito enquanto eu girava – e me derrubou.
Rolei e fiquei de pé bem a tempo de ver meus pais Oankali irem atrás
dos atiradores. De repente, os rebeldes pararam de atirar e se dispersaram.
Conseguia ouvi-los, nove homens fugindo em nove direções diferentes,
sabendo que três Oankali não podiam capturar todos eles.
Nikanj e Dichaan pegaram um cada. Ahajas, maior e aparentemente
sem ferimentos, pegou dois. Cada um dos apanhados tinha disparado sua
espingarda. Tinham o cheiro do pó que usavam para atirar. Também tinham
cheiro de pavor. Estavam sendo pegos pelas pessoas que mais temiam.
Lutaram com desespero. Um deles chorou e amaldiçoou, e fedia mais que
os outros. Era um dos que foram capturados por Ahajas.
Em silêncio, Nikanj o tomou de Ahajas e passou às mãos dela o que
havia capturado. O homem que fora entregue a Nikanj começou a gritar.
Sangue escorria de seu nariz, embora ninguém tivesse encostado no rosto
dele.
Nikanj tocou seu pescoço com um tentáculo sensorial e injetou calma.
O homem gritou:
— Não, não, não, não. — Mas o último “não” foi um gemido. Ele
respirou fundo, se engasgou com o próprio sangue e tossiu várias vezes.
Depois de certo tempo, ficou quieto e calmo. Nikanj permitiu que ele
esfregasse o nariz no ombro da própria camisa. Então, tocou o pescoço dele
mais uma vez e o homem sorriu. Levou-o para uma grande árvore e o
sentou encostado nela.
— Fique aí — ordenou.
O homem olhou para Nikanj, sorriu e concordou com um movimento de
cabeça. Mesmo sob as sombras inquietas do fogo, ele parecia calmo e
relaxado.
— Corra! — um dos companheiros gritou para ele.
O homem encostou a cabeça na árvore e fechou os olhos. Não estava
inconsciente. Só confortável demais, relaxado demais, para se preocupar
com algo.
Nikanj foi até cada um dos prisioneiros e transmitiu-lhes conforto e
calma. Quando não havia mais necessidade de ninguém para segurá-los,
veio me examinar.
Eu tinha me sentado com as costas apoiadas contra uma árvore, feliz
pelo apoio. Estava com muita dor, mas já havia expulsado as duas balas que
não tinham me penetrado e havia estancado o sangramento. Quando Nikanj
me alcançou, eu estava incentivando meu corpo a se curar com lentidão e
cuidado. Nunca tinha me machucado tanto assim, mas meu corpo parecia
estar lidando com isso. Ali estava sua chance de desenvolver tecidos para
atender depressa às necessidades e não para causar problemas.
— Ótimo — disse Nikanj. — Você não precisa de mim agora. — E se
afastou. — Alguém mais está machucado?
Ninguém estava, exceto uma mulher Humana que meus pais Oankali
haviam resgatado. Eu teria aceitado um pouco de ajuda com a minha dor,
mas Nikanj tinha percebido e ignorado isso. Queria ver o que eu poderia
fazer só.
Nikanj foi até mulher Humana que sangrava, inconsciente, e se deitou
ao lado dela.
O rosto dela havia sido todo espancado e, pelo seu cheiro, dois homens
tinham feito sexo com ela havia pouco tempo. Mas me envolvi demais em
minha própria cura para detectar qualquer outra coisa.
Aaor veio se sentar ao meu lado. Não me tocou, mas fiquei feliz por sua
companhia. Meus outros irmãos e irmãs e Dichaan ficaram de olho nos
rebeldes.
Ahajas falou com um dos prisioneiros, aquele que estava mais
assustado.
— Por que vocês nos atacaram? — ela perguntou, sentando-se diante
dele.
O macho a encarou, parecendo analisá-la atentamente com os olhos. Por
fim, estendeu a mão e tocou um tentáculo sensorial no braço dela.
Ahajas permitiu. Ele não tinha sido capaz de machucá-la quando ela o
capturara. Agora que estava drogado, não era provável que tentasse.
Depois de um tempo, ele soltou o tentáculo como se não gostasse. Os
Humanos comparavam os braços sensoriais ooloi com os apêndices de
animais extintos, trombas de elefante, e comparavam os tentáculos
sensoriais a grandes vermes ou cobras, talvez como as delgadas cobras de
videiras da floresta, embora os tentáculos sensoriais pudessem ser muito
mais flexíveis e sensíveis do que as cobras de videira e não fossem nada
independentes.
— Vocês estavam vindo nos atacar — disse o macho. — Um de nossos
caçadores viu vocês e nos avisou.
— Não teríamos atacado vocês — protestou Ahajas. — Nunca fizemos
uma coisa dessas.
— Teriam, sim. Fomos avisados. Uma gangue de Oankali e meio-
Oankali estaria vindo para se vingar pela horta.
— Vocês destruíram a horta?
— Alguns de nós. Não eu. — Aquilo era verdade. Pessoas drogadas
como ele não se davam ao trabalho de mentir. Isso não lhes ocorria. —
Achamos que seus animais não deveriam receber comida humana de
verdade.
— Animais…?
— Aqueles! — Ele fez um gesto com a mão na direção de Lilith e Tino.
Ahajas já sabia, só queria ver se o homem falaria. Ele olhou com
interesse para Oni e Ayodele. Desde a minha metamorfose, elas eram os
membros da família mais parecidos com Humanos. Crianças nascidas de
Lilith, o animal.
Aaor e eu nos levantamos em sincronia e passamos para o outro lado da
árvore em que estávamos apoiados. Eu ainda estava com dor e tinha de
observar com atenção minha carne que cicatrizava, para garantir que nada
desse errado – e algo poderia dar muito errado se eu continuasse atento ao
prisioneiro e a suas ofensas absurdas.
8
D e volta a Lo.
Entregamos os prisioneiros drogados ao povo. Uma casa seria
erguida para eles a partir da substância de Lo e não teriam permissão para
sair até que um ônibus espacial viesse buscá-los. Então, seriam transferidos
para a nave. Eles compreenderam o que estava para acontecer e, mesmo
drogados, pediram para serem poupados e libertados. O que chamou Lilith e
Tino de animais começou a chorar. Nikanj o drogou um pouco mais e ele
pareceu esquecer por que estava chateado. Aquela seria a vida dele agora.
Uma vez a bordo da nave, seria drogado regularmente por ooloi. Ficaria
ansioso por isso e não se importaria com mais nada que fosse feito com ele.
Levei Marina para a área de hóspedes antes que Nikanj estivesse livre
para examiná-la. Não queria ver isso. Tive a impressão de que sua
predisposição era não tocar nela. Devia haver tanto do meu cheiro que já
não parecia sozinha e não aparentada.
Ela me beijou antes de eu partir. Acho que foi um teste para ela. Para
mim, foi um prazer. Permitiu que eu a tocasse mais um pouco, penetrasse
filamentos de tentáculos sensoriais nela ao longo de nossos corpos. Ela
gostou disso. Não deveria. Eu era jovem demais para oferecer prazer.
De qualquer forma, ela gostou.
— Vou enviar alguém para alterá-la geneticamente — falei depois de
algum tempo. — Não tenha medo. Deixe que sua prole tenha a mesma
chance que você.
— Tudo bem.
Segurei-a um pouco mais e depois a deixei. Pedi a Tehkorahs para
examiná-la e fazer os ajustes necessários.
Tehkorahs estava com Wray Ordway, seu companheiro Humano, e
Wray sorriu e me deu um olhar de compreensão e divertimento. Ele foi uma
das poucas pessoas em Lo que falaram a meu favor quando a decisão do
exílio estava sendo tomada.
— Uma criança é uma criança — dissera ele, através de Tehkorahs. —
Quanto mais você a trata como uma aberração, mais ela se comportará
como uma. — Acho que outros como ele facilitaram as coisas para mim.
Fizeram o exílio da Terra parecer menos inadmissível para as pessoas que
estavam de fato com medo e queriam me prender na nave de maneira
segura.
— Você sabe que vou cuidar da fêmea — falou Tehkorahs. — Ela
pareceu gostar muito de você.
Senti os tentáculos de minha cabeça e meu corpo se achatarem junto à
minha pele em rememoração do prazer.
— Muito mesmo.
Wray riu.
— Eu disse a você que seria sexualmente precoce, assim como os
constructos machos e fêmeas.
Tehkorahs colocou um tentáculo sensorial em volta do pescoço dele.
— Não me surpreende. Toda permuta de genes traz mudanças. Jodahs,
deixe-me verificar você. A fêmea não vai querer me ver por um tempo.
Você deixou muito de si com ela.
Eu me aproximei e Tehkorahs liberou Wray e me examinou depressa,
por completo. Senti sua surpresa antes de me soltar.
— Você tem muito mais controle agora — disse. — Não consigo
encontrar nada de errado com você. E se suas lembranças da fêmea são
corretas…
— Claro que são!
— Então, é provável que eu também não vá encontrar nada de errado
com ela. Exceto pelo problema genético.
— Ela cooperará quando você for corrigir isso.
— Ótimo. Você se parece com ela, sabe.
— O quê?
— Seu corpo tem se esforçado para agradá-la. Você está mais marrom
agora, menos cinza. Seu rosto sofreu uma mudança sutil.
— Você parece uma versão masculina dela — disse Wray. — Ela
provavelmente pensou que você tem uma aparência muito bonita.
— Ela disse isso — admiti entre as risadas de Wray. — Não sabia que
estava mudando.
— Todo mundo de sexo ooloi muda um pouco quando acasala — disse
Tehkorahs. — Nossos cheiros mudam. Nós nos encaixamos no grupo de
parentesco de nossos parceiros. Talvez você se encaixe melhor do que a
maioria de nós, assim como seus descendentes vão se encaixar com mais
facilidade quando encontrarem uma nova espécie para a permuta genética.
Se um dia eu tivesse descendentes.
No dia seguinte, nós recolhemos novos suprimentos e deixamos Lo pela
segunda vez. Tive mais uma noite para dormir na casa da família. Dormi
com Aaor, como sempre fazia antes da minha metamorfose. Acho que fiz
Aaor sentir-se tão só quanto eu me sentia agora que Marina tinha partido. E,
naquela noite, causei em Aaor, em Lo e em mim grandes feridas fétidas.
1
J oão escolheu Aaor. Aceitou sua ajuda, falou-lhe e acariciou seus seios
assim que percebeu que ninguém mais se importava com isso. Os seios
não representavam glândulas mamárias reais. Era provável que Aaor os
perdesse quando se metamorfoseasse. Muitos constructos os perdiam,
mesmo quando se tornavam fêmeas. Mas João gostava deles. Aaor só
gostava do contato.
À noite, João me aturava. Acho que a maior vergonha dele era que seu
corpo não me considerava tão repugnante quanto ele desejava acreditar que
eu era. Isso o assustava tanto quanto o envergonhava. Talvez mostrasse a
ele o que eu já tinha percebido: que, com o tempo, aprenderia a me aceitar e
até a gostar muito de mim. Acho que me odiava mais por isso do que por
qualquer outra coisa.
A perna de João cresceu em vinte e um dias. Eu o fiz comer quantidades
enormes de comida, estimulando seu apetite para que ele não conseguisse
recusar alimentos por teimosia. Além disso, estimulei-o quimicamente a ser
sedentário. Ele precisava de toda a energia que tinha para desenvolver a
perna.
Já eu desenvolvi seios e uma aparência de fêmea Humana ainda mais
evidente. Não orientei nem tentei controlar meu corpo, que não produziu
doenças, protuberâncias nem mudanças anormais. Parecia totalmente
concentrado em João, que o ignorava durante o dia, mas o acariciava e
investigava à noite, antes que eu o colocasse para dormir.
Mantive-o comigo por três dias a mais, para ajudá-lo a recuperar as
forças e me certificar de que a perna tinha parado de crescer e funcionava
tão bem quanto a antiga. Ela tinha uma pele lisa e macia e era muito pálida.
O pé era tão delicado que dobrei pedaços de tecido de Lo e os imprensei
para fazer sandálias.
— Não calço nada nos pés desde antes de você nascer — ele me disse.
— Calce esses no seu retorno para casa ou seu pé novo vai ficar muito
machucado.
— Você vai me deixar ir, de verdade?
— Amanhã. — Era nossa vigésima quinta noite juntos. Ele ainda fingia
me ignorar durante o dia, mas aparentemente produzir ódio contra mim à
noite tinha se tornado um problema. Aceitava o que eu fazia por ele e não
me ofendia. Não ofendia ninguém. Uma vez, encontrei-o contando a Aaor,
Lilith e Tino sobre São Paulo, onde ele nasceu. Tinha só dezenove anos
quando a guerra começou. Era estudante. Iria se tornar médico como o pai.
— No início, as pessoas rejeitaram a guerra — contou-lhes. —
Disseram que ela dizimaria o norte: Europa, Ásia, América do Norte.
Disseram que a população do norte tinha perdido a cabeça. Ninguém
percebeu que sofreríamos com doença, fome, cegueira…
Ele sabia que eu estava ouvindo. Não se importou, mas não teria me
contado nada sobre seu passado por vontade própria. Ele respondia às
minhas perguntas, mas não oferecia nada voluntariamente.
O nome da aldeia rebelde em que vivia era São Paulo, em memória de
sua cidade natal, que no passado ficava no extremo leste. Ele tinha acabado
de voltar ao lugar onde ficava a cidade, passando por florestas fechadas e
povos hostis e atravessando vários rios. Antes da guerra e da chegada dos
Oankali, São Paulo era uma cidade de milhões de Humanos e florestas de
prédios, grandes e pequenos. Mas o que a guerra e seus efeitos não
destruíram, os Oankali deram para seus ônibus espaciais consumirem. Eles
comiam qualquer coisa sobre a qual pousassem. Poucas ruínas restaram,
mas agora a floresta cobria grande parte do que tinha sido a cidade.
João também tinha contado seu passado a Ahajas e Dichaan. Ao menos,
evitou Nikanj. Eu conseguiria aceitar qualquer coisa que ele fizesse, desde
que evitasse Nikanj.
— Amanhã — repetiu, deitado ao meu lado. Ele se moveu para me dar
um aviso, então se sentou. Eu tinha lhe dito para sempre se mover um
pouco para me avisar de que pretendia mudar de posição ou levantar, caso
eu tivesse tentáculos sensoriais ligados a ele. Uma vez, ele me ignorou. A
dor o fez gritar e se curvar em um nó apertado, na posição fetal, suando e
respirando com dificuldade por um bom tempo. E me feriu tanto quanto,
embora eu não tenha reagido na mesma medida. Eu nunca disse nada, mas,
depois disso, ele sempre fazia um pequeno movimento de alerta.
Ele olhou para baixo, para mim.
— Não acreditei em você.
— Sua perna está íntegra e forte. Ainda está sensível e você precisa
protegê-la. Mas está completo. Por que não deveria ir embora?
Sua boca não disse nada. Seu rosto disse que ele não estava certo de
querer partir. Não estava certo nem mesmo de gostar que eu dissesse que
ele poderia partir. Mas o orgulho o manteve calado.
— Tudo bem! — disse ele, por fim. — Vou amanhã. Amanhã de manhã.
Eu o puxei para o colchão e beijei seu rosto, depois sua boca.
— Não vou ficar feliz em vê-lo partir — falei. — Se você fosse mais
jovem… — Acariciei a parte de trás do pescoço dele. Minhas axilas não
coçaram. Doeram.
— Não sabia que minha idade era importante — falou ele, então deu um
suspiro. — Eu não deveria me importar. Deveria ficar agradecido. Não
mudei de opinião… sobre ooloi.
— Acho que mudou sim.
— Não. Só mudei meus sentimentos por você. Não acreditava que
poderia fazer nem mesmo isso.
— Antes de ir embora, vá até Nikanj. Faça com que examine você para
ter certeza de que não deixei passar nada.
— Não!
— Nikanj só vai tocar em você por um instante. Um instante. Depois
disso, venha até mim… para se despedir.
— Não. Não posso deixar aquela coisa tocar em mim. Prefiro confiar
em você.
— É um de meus progenitores.
— Eu sei. Não quis ofender. Mas não consigo fazer isso.
— Não vou mandar você embora para morrer por algum erro meu que
possa ser corrigido. Vai deixar Nikanj tocar em você.
Silêncio.
— Faça isso por mim, João. Não deixe que eu fique imaginando se
matei você.
Ele suspirou. Depois de um tempo, concordou com a cabeça.
Coloquei-o para dormir. Ele não sabia, mas eu era responsável por
reforçar sua aversão por Nikanj. Nenhum macho ou fêmea que passasse
tanto tempo com alguém do sexo ooloi, como ele passou comigo, se sentiria
confortável com outro indivíduo ooloi. João e eu não estávamos ligados,
mas ele estava quimicamente direcionado a mim e afastado das outras
pessoas. Uma pessoa ooloi adulta poderia seduzi-lo e afastá-lo se eu
realmente o desagradasse e ele estivesse interessado em encontrar outra
companhia ooloi. Caso contrário, ficaria comigo. Lilith tinha começado
assim com Nikanj.
Na manhã seguinte, levei João até Nikanj. Como prometi, Nikanj o
tocou por um breve momento, então o liberou.
— Você não fez nada de errado — me disse. — Queria que ele pudesse
ficar e evitar que você se torne um sapo outra vez. — Agradeci por Nikanj
falar em inglês e João não entender.
Dei comida, uma rede e meu facão a João. Ele tinha perdido todos os
apetrechos que trazia consigo quando caiu.
— Existem Oankali mais velhos que gostariam de acasalar com você —
expliquei a ele. — Poderiam lhe dar prazer. Você poderia ter crianças.
— Qual deles se pareceria com a pessoa com que sonhei quando era
jovem? — ele perguntou.
— Eu não tenho essa aparência de fato, João. Você sabe que não. Não
tinha essa aparência quando nos conhecemos.
— Você tem essa aparência para mim — disse ele. — Diga-me quem
mais poderia fazer isso.
Balancei a cabeça.
— Ninguém.
— Percebe?
— Então, vá para Marte. Encontre alguém que realmente tenha essa
aparência. Tenha crianças Humanas.
— Já pensei sobre Marte. Mas pareceu uma fantasia. Viver em outro
mundo…
— Os Oankali já viveram em muitos outros mundos. Por que os
Humanos não deveriam viver ao menos em um outro?
— Por que os Oankali deveriam ficar com o único mundo que é nosso?
— Eles já ficaram. E vocês não podem pegá-lo de volta. Podem ficar
aqui e morrer de forma inútil, resistindo. Podem ir para Marte e ajudar a
fundar uma nova sociedade humana. Ou podem se juntar a nós em uma
permuta. Uma hora, iremos para o espaço. Se você se juntar a nós, seus
descendentes irão conosco.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Já estive entre os Oankali antes. Todos nós, rebeldes, já
estivemos. Os Oankali nunca me deixaram ter dúvidas sobre o que eu
deveria fazer. — Ele sorriu. — Antes de conhecer você, Jodahs, eu me
conhecia muito melhor. — Ele se afastou, hesitante. — Nem sei o que
quero de você — disse quando estava indo embora. — Não é o normal, com
certeza, mas não quero deixar você.
Mas, é claro, ele deixou.
4
A aor passou por uma longa metamorfose – onze meses. Sempre que
eu voltava para casa, tinha medo de que Aaor tivesse despertado e a
família estivesse construindo uma jangada.
Comecei a procurar Humanos. Evitava bandos muito grandes, mas foi
fácil encontrar indivíduos e pequenos grupos.
Eu os seguia em silêncio, isolava e apreciava seus aromas, ouvia suas
conversas. Às vezes, percebiam que estavam sendo seguidos, embora nunca
me vissem. Minha coloração escureceu e eu me escondia com facilidade
nas sombras. A vegetação rasteira da floresta quase sempre estava molhada,
ou ao menos úmida, e era fácil me deslocar em silêncio. Os Humanos que
eu seguia costumavam fazer muito mais barulho do que eu. Observei um
caçador Humano fazendo um alvoroço tão grande que o porco-do-mato que
ele estava perseguindo o escutou e fugiu. O Humano foi ao local onde o
bicho estivera, amaldiçoando-o, e chutou a fruta que o animal estivera
comendo. Nunca lhe ocorreu comê-la ou colher algumas para o seu povo.
Comi algumas quando ele foi embora.
Uma vez, três pessoas me perseguiram. Cogitei permitir que me
pegassem. Mas, primeiro, dei a volta para dar uma olhada neles e os ouvi
conversando sobre me abrir e ver como eu era por dentro. Como todos
tinham armas e facões, decidi evitá-los. Era demais, para um subadulto,
dominar três deles com segurança.
Eu estava me deslocando rio acima, mais acima do que jamais tinha
estado antes, bem em meio às colinas. Ali, a floresta era menos
diversificada, mas não tive problemas para encontrar comida suficiente,
além de eventuais plantas e animais que eram novos para mim. Entretanto,
encontrei poucas pessoas por lá. Durante vários dias, não me deparei com
ninguém. Nenhuma brisa me trouxe um cheiro humano.
Comecei a sentir a solidão como uma dor quase física. Não tinha
percebido como era significativo para mim ver alguns seres Humanos de
poucos em poucos dias.
Agora, eu precisava ir para casa. Mas não queria. Desta vez, Aaor
certamente já teria acordado. Esse pensamento me causou pânico, evocando
com tanta força o sentimento de que eu estava em uma jaula que mal
consegui pensar.
Fiquei onde estava por um tempo, limpei um pedaço de terra e fiz uma
fogueira, embora não precisasse de uma. Isso me reconfortou e me fez
lembrar dos Humanos. Deixei o fogo se extinguir e assei vários tubérculos
selvagens nas brasas. O cheiro da comida não foi suficiente para mascarar o
odor de dois Humanos quando se aproximaram – sem dúvida, atraídos pela
refeição.
Eram um homem e uma mulher e tinham um odor… muito estranho.
Incoerente. Estavam feridos, talvez. E armados. Eu conseguia sentir o
cheiro de pólvora. Poderiam atirar em mim, mas decidi arriscar. Não quis
me mexer. Deixaria que me surpreendessem.
Meu corpo estava coberto de escamas sobrepostas do tamanho de
unhas. Além disso, tendia a se tornar quadrúpede, mas resisti a isso. Mãos
eram muito mais úteis do que patas dianteiras com garras.
Enquanto os Humanos se aproximavam com muito cuidado e em
silêncio, eu me preparava para eles. Minha cabeça calva e meu rosto
escamoso tinham de parecer mais humanos. Não tive tempo de mudar o
resto de mim. Podia, talvez, parecer que estava vestindo roupas incomuns.
Na verdade, eu não usava roupa alguma naquelas viagens. Elas só
atrapalhavam.
Os Humanos limitaram-se a disfarçar e andar ao meu redor, me
observando. Queriam ficar atrás de mim. Decidi me fingir de morto caso
atirassem. Melhor atraí-los mais para perto e desarmá-los o mais rápido
possível.
Mas talvez não atirassem em mim. Usei um graveto para revelar um dos
tubérculos e tirá-lo dos carvões. Estava quente demais para comer, mas o
limpei e o abri. Estava bem cozido, quente, apimentado e doce. Não existia
antes dos Humanos fazerem sua guerra. Lilith disse que era uma das poucas
mutações gostosas que tinha comido. Ela a chamava de “fruta de compota
de maçã”. A maçã era uma fruta extinta da qual ela gostava. O sabor dos
tubérculos crus não a agradava, mas, às vezes, quando assava um, ela se
afastava para comê-lo sozinha e rememorar uma outra época.
Atrás de mim, um dos Humanos fez um barulhinho, um gemido.
Passei a mão pelo rosto. A mão se parecia mais com uma garra do que
eu gostaria, mas o rosto estava limpo e macio agora. Se não fosse bonito,
pelo menos não era aterrorizante.
— Juntem-se a mim — eu disse alto. Não era natural falar em voz alta.
Eu não falava havia uns trinta dias. — Tem mais comida. São bem-vindos
para comê-la. — Repeti as palavras em espanhol, português e suaíli. Esses,
junto com o francês e o inglês, eram os idiomas mais conhecidos. A maioria
das pessoas era fluente em pelo menos um deles. A maior parte dos
sobreviventes era da África, Austrália e América do Sul.
Os dois Humanos não responderam e não se mexeram, mas seus
batimentos cardíacos aceleraram. Eles me ouviram e, provavelmente,
entenderam que eu estava falando com eles. Quando os batimentos
cardíacos aumentaram? Eu me concentrei em minha memória por um
instante. Minha fala os tinha assustado, mas meu espanhol havia despertado
mais sentimentos. As outras línguas não provocaram nenhuma reação
adicional. Espanhol, então. Repeti meu convite em espanhol.
Eles não vieram. Pensei que compreendiam, mas não responderam e
permaneceram escondidos.
Tirei o resto dos tubérculos das brasas e os coloquei em uma bandeja de
folhas grandes.
— São seus, se quiserem — falei. Limpei um lugar bem longe da
comida e me deitei para descansar. Não dormia havia dois dias. Os
Humanos gostavam de períodos regulares de sono, de preferência à noite.
Os Oankali dormiam quando precisavam descansar. Eu precisava agora,
mas não dormiria enquanto os Humanos não tomassem alguma decisão: ir
embora ou saciar sua fome e curiosidade. Mas eu podia ficar imóvel, à
maneira oankali. Podia permanecer em vigília usando a menor quantidade
possível de energia e, como Lilith e Tino disseram, parecendo sem vida. Eu
conseguia fazer aquilo, com conforto, por muito mais tempo do que a
maioria dos Humanos estaria disposta a ficar sentada observando.
O macho saiu do esconderijo primeiro. Observei-o com alguns dos
meus tentáculos sensoriais. Toda a linguagem corporal dele me dizia que
pretendia pegar a comida e correr. Eu me preparei para deixá-lo fazer isso,
mas então o examinei melhor.
Ele estava doente. Metade do rosto estava encoberta por uma grande
protuberância. Ele não usava camisa e pude ver que suas costas e seu peito
estavam cobertos de grandes e pequenas protuberâncias tumorosas. Um de
seus olhos estava completamente encoberto. O outro parecia ameaçado. Se
o tumor facial continuasse a crescer, ele logo seria incapaz de enxergar.
Eu não poderia deixá-lo ir. Acho que nenhuma pessoa ooloi poderia.
Nenhum ser vivo nas condições dele deveria ser deixado vagando sem
cuidados.
Esperei até que sua atenção estivesse voltada por completo para a
comida. No começo, ele pareceu hesitar entre mim e ela. Entretanto, logo a
comida estava ao seu alcance. Ele estendeu as mãos para pegá-la.
Agarrei-o antes que ele percebesse que eu estava em vigília. Virei-o no
mesmo instante para ficar de frente para a mulher, que agora eu conseguia
ver. Ela apontava um rifle para mim. Fiz com que mirasse nele.
Ele lutou, primeiro em pânico, depois de forma calculada, com o
objetivo de me machucar e ficar livre. Eu o mantive imóvel e o investiguei
rápido.
Tinha um distúrbio genético. Os efeitos estavam piorando pouco a
pouco. Como eu suspeitava, ficaria cego se aquilo continuasse. A doença
deformara até os ossos do rosto. Estava surdo de um ouvido e, com o
tempo, ficaria surdo do outro. A coluna estava ficando comprometida. Já
não conseguia virar a cabeça com liberdade. Um ombro estava coberto de
protuberâncias carnudas. O braço ainda era funcional, mas não o seria por
muito tempo. E havia mais alguma coisa errada. Algo que eu não
compreendia. Este homem já estava morrendo. Estava consumindo a
própria vida como faziam os ratos, sorvendo-a em goles rápidos e depois
morrendo. A doença ameaçava invadir seu cérebro e sua coluna. Mas,
mesmo sem o crescimento contínuo do tumor, ele morreria em apenas
algumas décadas. Foi geneticamente programado para se consumir com
uma rapidez obscena.
Como podia ter uma doença daquelas? Um indivíduo ooloi o examinara
antes de o libertar. Ooloi examinaram todos os humanos, sanando os
defeitos, retardando o envelhecimento, fortalecendo a resistência a
enfermidades. Mas, talvez, tivessem apenas controlado-a de modo
imperfeito, sem corrigi-la.
Ooloi tinham feito isso com algumas doenças genéticas. Eram
complicadas e era melhor que fossem sanadas por parceiros de
acasalamento. Os rebeldes foram alterados para que não pudessem ter filhos
sem acasalarem com ooloi e, portanto, não transmitissem sua doença.
Controlá-la deveria ter bastado.
Falei no único ouvido bom do macho enquanto o segurava.
— Você estará completamente cego em breve. Depois disso, ficará
surdo. Com o tempo, não poderá mais usar seu braço direito e esse é o
braço que prefere. E isso não é o pior. Você me entende?
Ele parou de se debater. Agora se afastava, tentando me olhar, apesar de
seu pescoço não cooperativo.
— Eu posso ajudá-lo — falei. — Vou ajudá-lo, se permitir. E se sua
amiga não atirar em mim. — Eu o ajudaria quer a fêmea atirasse em mim
ou não, mas preferiria evitar um tiro. Os ferimentos a bala doíam mais do
que eu queria imaginar e ainda não era tão eficiente em controlar minha dor.
O homem estava mais calmo agora. Não me atrevi a drogá-lo muito.
Conseguia dar-lhe algum prazer, relaxá-lo um pouco, mas não colocá-lo
para dormir. Se ele perdesse a consciência em meus braços, a fêmea
certamente entenderia mal e atiraria em mim.
— Posso ajudar — repeti. — Tudo o que peço em troca é que vocês não
tentem me matar.
— Por que você faria algo assim? — ele quis saber. — Apenas me
solte!
Segurei-o de modo mais confortável.
— Por que você precisaria ficar cada vez mais incapacitado? —
perguntei. — Por que precisaria morrer se pode viver e ficar bem? Deixe-
me ajudá-lo.
— Solte-me!
— Você vai ficar e ao menos me ouvir?
Ele hesitou.
— Sim. Tudo bem. — Seu corpo estava tenso, pronto para correr.
Soltei um suspiro para que ele o ouvisse.
— Se mentir para mim, não tenho como não perceber.
Aquilo o deixou assustado e muito desconfiado da minha percepção,
mas não disse nada.
A fêmea saiu do esconderijo e nos encarou. Mantive o macho entre o
meu corpo e o rifle dela. Observando-a, não tive nenhuma dúvida de que ela
atiraria. Mas eu precisava de mais alguns minutos com o homem antes que
pudesse ter algo significativo para mostrar a eles. A fêmea também tinha
tumores, mas os dela não eram tão grandes quanto os dele. Seu rosto, seus
braços e suas pernas, tudo que fosse visível, estava coberto com pequenas
protuberâncias distribuídas de forma irregular.
— Solte-o — ela disse baixinho. — Não vou atirar em você se o soltar.
Isso ao menos era verdade. Ela estava com medo, mas era sincera.
Assenti com a cabeça, depois falei com o macho.
— Não machuquei você. O que fará se for solto?
Agora o homem deu um suspiro verdadeiro.
— Vou embora.
— Você está com fome. Leve a comida com você.
— Não quero. — Ele não confiava mais naqueles alimentos,
provavelmente porque eu queria que ele os levasse.
— Faça só uma coisa por mim antes de eu soltar você.
— O quê?
— Mova seu pescoço.
Eu o segurei com firmeza, mas recuei um pouco para deixá-lo virar e
torcer o pescoço que estivera praticamente congelado antes que eu tocasse
nele. Ele xingou em voz baixa.
— Tomás? — chamou a fêmea, em um tom cheio de dúvida.
— Consigo mexê-lo — disse ele, sem necessidade. E não parou de
movê-lo.
— Dói?
— Não. Parece só… normal. Eu tinha esquecido como era mexê-lo
assim.
Eu o soltei e falei em tom tranquilo.
— Talvez, quando estiver cego há algum tempo, se esqueça como era
enxergar.
Ele quase caiu ao se virar para me encarar. Depois de dar uma boa
olhada, deu um passo para trás.
— Você não vai encostar em mim de novo até que eu veja você se curar
— ele disse. — O que… quem é você?
— Jodahs — falei. — Sou um constructo, Humano e Oankali.
Ele pareceu assustado, depois deu uma volta ao meu redor para poder
me ver por todos os lados.
— Nunca ouvi falar que tinham escamas. — Ele balançou a cabeça. —
Meu Deus, cara, você deve assustar mais as pessoas do que nós!
Eu ri. Consegui sentir meus tentáculos sensoriais se alisando contra
minhas escamas.
— Nem sempre tenho essa aparência — eu disse. — Se você ficar até
ser curado, vamos ficar mais parecidos. Vou assumir a aparência que você
terá quando estiver curado.
— Não podemos ser curados — disse a fêmea. — Os tumores podem
ser cortados, mas voltam a crescer. A doença… nós nascemos com ela.
Ninguém pode curá-la.
— Sei que nasceram com ela. E vão transmiti-la a algumas de seus
filhos, no mínimo, caso decidam ir para onde possam tê-los. Posso sanar o
problema.
Eles se entreolharam.
— Não é possível — disse o macho.
Voltei minha atenção a ele. Tinha sido um prazer tocá-lo. Agora, não
havia mais necessidade de voltar correndo para casa. Não havia necessidade
de me apressar para nada. Havia dois deles. Um tesouro.
— Mexa seu pescoço — ordenei outra vez.
O homem o moveu, balançando a cabeça deformada.
— Não entendo — falou. — Como você disse que se chama?
— Jodahs.
— Sou Tomás. Esta é Jesusa. — Nenhum outro nome. Muito
deliberadamente, nenhum outro nome. — Explique para nós como fez isso.
Peguei alguns gravetos da pilha em que os juntei e acendi a fogueira.
Complacentes, os dois Humanos se sentaram em volta dela. O macho pegou
um tubérculo assado. A fêmea segurou o braço dele e o encarou. Ele apenas
deu um sorriso, abriu o tubérculo e o mordeu. Seu único olho visível ficou
arregalado de surpresa e prazer. O tubérculo era uma novidade. Comeu um
pouco mais e depois deu um pedaço para a fêmea. Ela pegou um pouco com
um dedo e provou. Não exibiu o mesmo olhar de prazer surpreso, mas
comeu, depois examinou com cuidado as cascas à luz do fogo. Já estava
escuro para os rebeldes. O sol tinha se posto.
— Nunca comi isso antes. É uma planta que só nasce na planície?
— Nasce aqui. Amanhã de manhã vou mostrar a vocês.
Eles ficaram em silêncio. É claro que passariam a noite naquele lugar.
Onde mais conseguiriam ir no escuro?
— Vocês vêm das montanhas? — perguntei, em voz baixa.
Mais silêncio.
— Não vou às montanhas. Gostaria de poder.
Os dois estavam comendo tubérculos agora e pareciam satisfeitos em
ficar calados. Isso era surpreendente. O nervosismo, por si só, deveria ter
feito com que ao menos um deles falasse bastante. Quantas vezes já tinham
se sentado sozinhos, à noite, no meio da floresta, com um constructo
coberto de escamas?
— Você vai permitir que eu comece a curá-lo hoje à noite? — perguntei
a Tomás.
— Obrigado por curar meu pescoço — ele disse em voz alta enquanto
seu corpo inteiro se afastava de mim, com movimentos mínimos.
— Ele pode travar de novo, se sua doença não for curada.
Ele deu de ombros.
— Não era tão ruim. Jesusa diz que me obrigava a trabalhar em vez de
ficar olhando em volta, sonhando acordado.
Jesusa tocou no antebraço dele e sorriu.
— Nada impediria você de sonhar acordado, meu irmão.
Irmão? Não era um companheiro, ou marido, como diziam os Humanos.
— A cegueira será ruim — falei. — A surdez será ainda pior.
— Por que diz que ele vai ficar cego ou surdo? — quis saber Jesusa. —
Talvez não fique. Você não sabe.
— É claro que sei. Não poderia tocá-lo e não perceber. Sei que houve
um tempo em que ele podia ver com o olho direito e ouvir com o ouvido
direito. Houve um tempo em que a massa no ombro era menor e o braço
não estava comprometido. Ele ficará cego, surdo e sem o uso do braço
direito, e sabe disso. Você também sabe.
Fez-se um silêncio muito longo. Deitei-me no chão limpo e fechei os
olhos. Eu ainda conseguia enxergar muito bem e a maioria dos Humanos
sabia disso. Porém, de alguma maneira, eles se sentiam mais à vontade
quando estavam sendo observados apenas pelos tentáculos sensoriais.
Sentiam que não eram observados.
— Por que você quer nos curar? — perguntou Jesusa. — Você nos
detém, nos alimenta e quer nos curar. Por quê?
Abri os olhos.
— Eu estava me sentindo muito só — falei. — Teria ficado feliz em
ver… praticamente qualquer pessoa. Mas, quando percebi que tinha algo de
errado com vocês, quis ajudar. Preciso ajudar. Ainda não estou na idade
adulta, mas não posso ignorar doenças. Sou ooloi.
A reação moderada deles me surpreendeu. Eu esperava qualquer coisa,
desde uma rejeição preconceituosa como a de João até uma fuga em
velocidade para dentro da floresta. Apenas ooloi interagiam diretamente
com os Humanos e concebiam crianças. Apenas ooloi interagiam
diretamente com os Humanos de uma maneira nada humana.
E apenas ooloi precisavam curar. Machos e fêmeas podiam aprender a
fazer isso, se quisessem, mas ooloi não tinham escolha. Existíamos para
conceber pessoas, uni-las e mantê-las vivas.
Jesusa agarrou a mão de Tomás e me encarou, aterrorizada. Tomás a
fitou e tocou o próprio pescoço, pensativo, depois olhou para ela outra vez.
— Então, não é verdade o que dizem — ele murmurou.
Ela lhe lançou um olhar mais contundente do que um grito.
Ele recuou um pouco, tocou o pescoço mais uma vez e não disse mais
nada.
— Eu pensei… — A voz de Jesusa estava trêmula e ela parou de falar
por um instante. Quando recomeçou, o tremor havia sumido. — Pensei que
todos os indivíduos ooloi tinham quatro braços, dois com ossos e dois sem.
— Braços de força e sensoriais — expliquei. — Os braços sensoriais
vêm com a maturidade. Ainda não tenho idade para os possuir.
— Você é uma criança? Uma criança do tamanho de um adulto?
— Estou no meu tamanho máximo, exceto pelos braços sensoriais. Mas
ainda tenho que me desenvolver de outras maneiras. Não sou exatamente
uma criança. As crianças mais novas não têm sexo. Podem vir a ser de
qualquer um deles. Eu sou com certeza ooloi, na fase subadulta ou, como
meus progenitores diriam, uma criança ooloi.
— Adolescente — concluiu Jesusa.
— Não. Adolescentes humanos são maduros sexualmente. Podem se
reproduzir. Eu não posso — falei aquilo para tranquilizá-los, mas não
pareceram ficar mais tranquilos.
— Como pode nos curar se é só uma criança? — perguntou Tomás.
Sorri.
— Tenho idade suficiente para fazer isso. — Meu olhar pareceu deixá-
lo confuso, mas Jesusa só ficou irritada e fez uma careta para mim. Ela seria
a mais difícil. Eu ansiava por tocá-la e aprender sobre seu corpo, curando o
distúrbio que nunca deveria ter existido. Alguns indivíduos ooloi haviam
causado mais mal a ela e a Tomás do que imaginei ser possível.
Mudei de assunto bruscamente.
— Amanhã vou mostrar algumas coisas que vocês podem comer aqui
na floresta. O tubérculo é um de muitos. Se continuarem andando, a floresta
os sustentará com muita facilidade. — Fiz uma pausa. — Vocês conseguem
enxergar bem o suficiente para fazer colchões de palha ou vão dormir no
chão descoberto?
Tomás deu um suspiro e olhou ao redor.
— No chão descoberto, suponho. Faremos um grande favor aos insetos
locais. — A pupila do olho dele estava dilatada, mas eu duvidava que
conseguisse enxergar além da luz da fogueira. A lua ainda não havia
aparecido e as estrelas só eram úteis aos Humanos em canoas nos rios. O
brilho delas quase não alcançava o chão da floresta.
Levantei-me e caminhei contornando a fogueira para me aproximar
deles.
— Deixe que eu fique com seu facão por uns minutos.
Jesusa agarrou o braço de Tomás para detê-lo, mas ele simplesmente me
entregou o facão. Peguei-o e fui para a floresta. Bambu era abundante na
área, então cortei-os junto com alguns talos de mudas. Eu os cobriria com
folhas de palmeiras e de bananeiras selvagens. Também peguei um cacho de
bananas. Elas poderiam ser cozidas para a refeição da manhã. Não estavam
maduras o suficiente para que os Humanos as comessem cruas. E havia uma
nogueira por perto, sem falar em mais tubérculos. Tudo isso ao redor e,
ainda assim, Tomás estivera faminto quando toquei nele.
— Você não colheu nada para você — disse Jesusa quando devolvi o
facão. Foi muito importante para ela recuperar a arma e conseguir um
colchão confortável para dormir. Ainda estava cautelosa, mas a tensão era
menos evidente.
— Eu me acostumei com o chão — falei. — Nenhum inseto vai me
incomodar.
— Por quê?
— Para eles, meu cheiro não é bom. E eu teria um gosto ainda pior.
Ela refletiu por um instante.
— Isso protegeria você de insetos que picam, mas e aqueles que
ferroam?
— Esses também. Tenho um cheiro repulsivo e perigoso. Os Humanos
não o percebem de maneira negativa, mas os insetos sim. Sempre.
— Ah, eu estaria disposto a feder caso isso os afastasse de mim — disse
Tomás. — Você pode me tornar imune a eles?
Jesusa o olhou feio.
Eu sorri intimamente.
— Não, não posso ajudá-lo com isso. — Não até que me deixassem
dormir entre eles. Mas, enquanto os curasse, os insetos os incomodariam
menos. Se algum dia acasalassem com um adulto ooloi, seria difícil que os
incomodassem de novo. Haveria tempo suficiente para que descobrissem
isso. Eu me deitei ao lado da fogueira que se apagava.
Jesusa e Tomás se deitaram em silêncio, primeiro ficando acordados,
depois caindo no sono. Não dormi, mas fiquei imóvel, descansando. O
cheiro dos Humanos era um leve tormento porque eu não podia tocá-los –
não os tocaria até que aprendessem a confiar em mim. Havia algo de
estranho neles – bem, ao menos em Tomás –, que eu ainda não
compreendia. E minha incapacidade de compreender era incomum.
Normalmente, se eu tocasse em alguém para corrigir uma falha, entendia
por completo o corpo daquela pessoa. Tinha de colocar as mãos em Tomás
outra vez. E tinha de tocar em Jesusa. Mas queria que me deixassem fazer
isso. Por maior que fosse minha imaturidade, meu cheiro deveria
influenciá-los. E o pescoço recuperado de Tomás deveria influenciá-lo. Não
era possível que ele gostasse de desenvolver aquelas protuberâncias
incapacitantes, e com certeza outros Humanos não gostavam da aparência
dele. Os Humanos se importavam demais com a aparência uns dos outros.
Até Jesusa deveria parecer grotesca para eles, embora ambos agissem como
se a aparência deles não os preocupasse. Muito estranho. Talvez por serem
dois. Se fossem irmãos, teriam passado a maior parte da vida juntos. Talvez
um apoiasse o outro.
6
A s coisas se complicaram.
Não podíamos partir até que a metamorfose de Aaor terminasse.
Jesusa e Tomás pensaram que eu devolveria a deformação deles e voltariam
sozinhos para as montanhas. Não poderiam ter feito isso, mesmo que eu
permitisse que tentassem. Já não podiam me deixar.
Nunca lhes disse que não poderiam ir embora. Descobriram da mesma
forma que Lilith. Quando suportaram tudo que conseguiam de Aaor e
perceberam que não podiam me convencer a não ir com eles para a aldeia
na montanha, partiram por conta própria. Foram juntos para a floresta e
ficaram ali por vários dias. Para mim, foi uma amostra do que eu sofreria
quando morressem.
Entrei em pânico quando percebi que tinham partido. Tomás deveria
passar a noite comigo e com Aaor. No entanto, assim que pensei nele,
percebi que não estava no acampamento. Jesusa também não. O cheiro
deles estava começando a desaparecer.
Por quê? Para onde tinham ido? Para que lado? Voltei toda minha
atenção para o rastro, descobrindo onde o odor era mais forte e fresco.
Quando descobrisse o caminho que fizeram dentro da floresta, eu os
seguiria.
Ahajas me deteve.
Ela era grande e calma, e estar perto dela era confortável demais. As
fêmeas Oankali tendiam a ser assim. Eu sabia que, às vezes, depois de uma
sessão com Aaor, Nikanj ia vê-la e literalmente parecia crescer dentro do
seu corpo. Ahajas era tão grande que Nikanj parecia uma criança perto dela.
Agora ela bloqueava meu caminho.
— Deixe que voltem para você — ela disse, tranquila.
Encarei-a com os olhos enquanto meus tentáculos sensoriais estavam
todos concentrados no caminho que Jesusa e Tomás haviam seguido.
— Eu os vi sair — disse ela. — Pegaram mochilas e facões. Ficarão
bem e, em alguns dias, estarão de volta.
— Os rebeldes podem capturá-los! — falei.
— Sim — rebateu. — Mas é pouco provável. Eles ficaram sozinhos por
muito tempo antes de conhecerem você.
— Mas eles…
— São tão capazes quanto qualquer Humano de cuidar de si mesmos.
Lelka, você deveria ter dito a eles como estavam ligados a você.
— Fiquei com medo. Medo de que fizessem isso.
— Provavelmente fariam. Mas agora, quando começarem a precisar de
você e a se sentirem desesperados e com medo, não saberão por quê.
— É por isso que quero ir atrás deles.
— Primeiro, converse com Lilith. Ela costumava fazer isso, sabe.
Nikanj teve que aprender, muito jovem, que ela esticaria o cordão até que
quase a estrangulasse. E teria amaldiçoado e odiado Nikanj se a seguisse.
Eu sabia disso sobre Lilith. Fui até ela e fiquei por perto durante algum
tempo. Ela estava desenhando com tinta ou corante preto em tecido de
casca de árvore. Em Lo, os outros Humanos valorizavam os desenhos dela:
cenas da Terra antes da guerra, animais extintos, lugares distantes, cidades,
o mar… Às vezes, também fazia pinturas com corantes de plantas. Fez
poucas durante nosso exílio. Agora, estava retomando a prática, arrancando
a casca de uma figueira das redondezas e a usando para preparar corantes,
pincéis e gravetos afiados. Ela me disse uma vez que era algo que fazia para
se acalmar. Algo que fazia para se sentir Humana.
Lilith bateu no chão a seu lado e fui até lá, abri um espaço e me sentei.
— Eles foram embora — falei.
— Eu sei — ela respondeu. Estava desenhando uma refeição em família
ao ar livre, com todos nós reunidos e comendo em cabaças e tigelas de Lo.
Todos. Meus progenitores, meus irmãos e minhas irmãs (até Aaor, com a
aparência que tinha quando entrou na floresta), Jesusa e Tomás. Todas as
pessoas eram perfeitamente reconhecíveis, embora me parecesse que não
deveria ser assim. Eram compostos apenas por alguns traços pretos.
— Seus parceiros nunca mais confiarão em mim ou em Tino — ela
falou. — Essa será nossa recompensa por ficarmos calados sobre o que
estava acontecendo com eles.
— Devo segui-los?
— Agora não. Em alguns dias. Vá quando seus sentimentos lhe
disserem que estão sofrendo, talvez voltando. Encontre-os em algum lugar
no meio do caminho entre onde estamos e aonde quer que tenham ido.
Consegue rastreá-los bem o suficiente para fazer isso?
— Sim.
— Então, faça. E não espere que se comportem como se estivessem
felizes em ver você por qualquer motivo exceto a óbvia necessidade
biológica.
— Eu sei.
— Eles não vão amar você, nem mesmo gostar de você, por um bom
tempo.
— Nem confiar em mim — falei, sofrendo.
— Isso não vai durar. É de nós que vão desconfiar e se ressentir.
Eu me desloquei, para olhá-la de frente.
— Eles saberão que ficaram em silêncio por mim.
Ela deu um sorriso amargo.
— Feromônios, Lelka. Seu cheiro não deixará que odeiem você por
muito tempo. No entanto, a nós eles podem odiar. Lamento por isso. Gosto
deles. Você tem muita sorte em tê-los.
Fiz o que Lilith disse. E quando levei para casa meus parceiros calados
e ressentidos, eles fizeram o que ela disse que fariam. Tino e Tomás
pareceram encontrar algum ponto em comum quando Aaor completou sua
metamorfose, mas Jesusa tinha um rancor inflexível. Mal falou com minha
mãe a partir desse momento. E quando chegou a hora de irmos embora e ela
descobriu que Aaor tinha de ir conosco, quase parou de falar comigo.
Aquela foi outra batalha. Aaor tinha de ir. Se deixássemos que ficasse,
apenas com Nikanj para ajudar, não sobreviveria. Eu desconfiava que Aaor
só estava sobrevivendo agora graças aos nossos esforços combinados e à
sua esperança renovada em ter parceiros Humanos com quem se relacionar.
Também desconfiava que Jesusa entendia isso. Ela nunca ameaçou mudar
de ideia, nos rechaçar e abandonar Aaor à própria sorte. Era mais gentil do
que comigo. O contato com Aaor através de mim ainda era atormentador,
mas a doença de meu par fraterno atingiu alguma parte dela que talvez nada
mais pudesse alcançar. Eu, por outro lado, era ao mesmo tempo seu
conforto e tormento. Ela parou de me tocar. Aceitava meu toque, até
gostava dele tanto quanto já havia gostado, mas parou de me procurar.
— Você errou — Tomás me disse depois de nos observar por bastante
tempo. — Se ela não fosse tão boa em punir você, eu teria que pensar em
alguma maneira de fazer isso eu mesmo.
— Mas você não se importa — falei. Ele sentiu apenas alívio quando os
encontrei na floresta e os trouxe para casa. Jesusa estava cheia de
ressentimento e raiva.
— Ela, sim — ele respondeu. — Sente que caiu em uma armadilha e foi
traída. Eu me importo com isso.
— Eu sei. Sinto muito. Eu tinha mais medo de perder vocês do que
pode imaginar.
— Eu consigo ver Aaor — disse ele. — Não preciso imaginar.
— Não. Eram vocês dois que eu queria. Não apenas para evitar a dor.
Tomás olhou para mim por um momento e depois sorriu.
— Sabe que ela vai acabar perdoando você. E vai ficar muito
desconfiada do motivo. E vai estar certa. Não vai?
Passei um braço sensorial em volta do pescoço dele e não me dei ao
trabalho de responder.
A estação das chuvas estava quase acabando quando nós quatro nos
preparamos para deixar o acampamento. Aaor estava forte de novo, era
capaz de andar o dia todo e se alimentar de qualquer coisa. E, se
dormíssemos juntos a cada duas ou três noites, se manteria em forma. No
entanto, com todos nós à sua volta, sentia uma solidão terrível, um vazio,
quase uma paralisia. Poderia nos seguir e cuidar de si, mas só o suficiente.
Às vezes, eu precisava tocar em seu corpo para que despertasse. Era como
se tivesse se perdido dentro de si e só viesse à superfície quando estávamos
em contato. Raramente falava.
Quando estávamos prontos para partir, Nikanj ficou no meio de meus
progenitores Oankali para me dar um conselho final e dizer adeus.
— Não volte para este lugar — recomendou. — Em alguns meses,
retornaremos a Lo. Daremos bastante tempo a vocês, mas precisamos ir
para casa. Quando chegarmos lá, todos terão que saber sobre seus parceiros
e a aldeia deles. Lo transmitirá sinais à nave e os Humanos serão
resgatados. Se vocês quatro tiverem sucesso, estarão em seis a essa altura e
talvez tenham voltado a Lo. — Nikanj voltou sua atenção para mim por
algum tempo, sem falar, e me ocorreu que, se não tomássemos cuidado,
poderíamos não viver para voltar a Lo. Talvez eu nunca mais visse meus
progenitores. Nikanj deve ter pensado a mesma coisa. — Lelka, tenho
memórias para lhe dar. Deixe-me passá-las para você agora. Acho que já é
hora.
Memórias genéticas. Cópias viáveis de células que Nikanj havia
recebido de sua matriz ooloi ou que havia coletado ou recebido de seus
parceiros e sua prole. Nikanj duplicara tudo o que possuía e agora passaria
toda a herança para mim. Já era tempo. Eu era um indivíduo adulto
acasalado. No entanto, quando Nikanj se afastou de Ahajas e Dichaan e
estendeu para mim seus quatro braços, eu não me senti uma pessoa adulta.
Estava com medo desse passo final, desse último toque. Era como se Nikanj
estivesse dizendo: “Aqui está o seu direito de nascença, meu
presente/dever/prazer final para você.” Final.
Mas Nikanj ficou em silêncio completo. Quando me tocou, eu me
encolhi, resistindo. Simplesmente esperou até que eu me acalmasse. Então,
falou:
— Você deve recebê-las antes de ir, Lelka. — Fez uma pausa. — E deve
repassá-las assim que Aaor acasalar e estiver estável. Quem sabe quando
vocês dois me verão de novo?
Eu me forcei a entrar em seus braços e no mesmo instante senti Nikanj
me abraçar e penetrar minha pele; me manteve imóvel, mas não me
paralisou. Nikanj tinha um toque mais gentil do que eu jamais tivera. E
ainda dava prazer. Até mesmo para mim. Até mesmo agora.
Então, o mundo ao meu redor pareceu explodir em um branco
cintilante. Eu não enxergava nada além de mim. Todos os meus sentidos se
voltaram para dentro enquanto Nikanj usava as duas mãos sensoriais para
injetar um jato de células independentes, cada uma delas um plano a partir
do qual um ente vivo completo poderia ser estruturado. As células foram
direto para meu yashi recém-amadurecido. O órgão parecia engolir e sugar
como eu havia feito no passado, no peito de minha mãe.
Era uma renovação imensa. A vida em uma variedade maior do que eu
poderia imaginar – unidades singulares, muitas nunca vistas na Terra.
Gerações de memórias a serem examinadas, retidas e preservadas vivas em
estase ou a viverem pelo tempo natural e morrer. Aquelas que eu pudesse
recriar a partir de meu material genético não precisaria manter vivas.
No início, a enxurrada de informações foi incompreensível. Recebi-a e a
armazenei, apenas alguns fragmentos chamando minha atenção. Haveria
tempo de sobra para examinar o resto. Eu não perderia nada e, uma vez que
compreendesse, não esqueceria mais.
Quando o dilúvio terminou e Nikanj teve certeza de que eu poderia
permanecer em pé sem apoio, me deixou partir.
— Agora — falou —, exceto pela falta de parceiros Oankali ou
constructos, você é uma pessoa adulta.
Senti uma confusão, um excesso de informações, uma sobrecarga de
novas sensações, um entorpecimento, uma incapacidade de fazer muito
mais do que me manter em pé. Ouvi o que Nikanj disse, mas o significado
das palavras não me atingiu pelo que pareceu ser um longo tempo. Senti
Nikanj me tocar mais uma vez com um braço sensorial, depois me puxar
para si e me levar até Tomás, que estava fazendo um pacote com a rede de
tecido de Lo e as outras coisas que meus progenitores haviam me dado.
Tomás se levantou no mesmo instante e me tirou de Nikanj. Lembrei
mais tarde que ele teve o cuidado de não tocar em Nikanj, mas não estava
mais preocupado com a sua proximidade. Os adultos acasalados se
comportavam dessa maneira: à vontade uns com os outros, porque
entendiam a que lugar pertenciam e o que deveriam ou não fazer.
— O que você fez com Jodahs? — perguntou Tomás.
— Transmiti as informações necessárias para esta viagem perigosa com
vocês. Está como um Humano que se embriagou, mas vai ficar tudo bem
em poucos minutos.
Tomás olhou para mim com dúvida.
— Tem certeza? Estávamos prestes a partir.
— Vai tudo ficar bem.
Lembrei-me de tudo isso mais tarde, da maneira como me lembrava de
coisas que percebia no sono. Tomás me fez sentar ao lado dele, terminou de
encher seu pacote e o enrolou. Então, pegou um dos meus braços sensoriais
entre as mãos e disse:
— Se não acordar, vamos deixar você aqui e pode correr atrás de nós
quando recuperar a sobriedade.
Ele estava achando divertido, mas não estava brincando. Iria embora
sem Aaor e mim e nos deixaria alcançá-los da melhor forma que
pudéssemos. Jesusa com certeza iria junto com ele.
Busquei-o, farejando-o em vez de vê-lo, quase incapaz de me
concentrar nele. De pronto, Tomás me estendeu a mão e a segurei,
concentrando-me com tanta atenção que comecei a vê-lo e a ouvi-lo
normalmente em meio à confusão inacreditável de informações que Nikanj
havia me transmitido. A enxurrada era um peso que exigia minha atenção e
não se tornaria mais “leve” enquanto eu não começasse a compreendê-la.
Compreender tudo aquilo poderia levar anos, mas eu precisava ao menos
começar.
— Na verdade, não é como se embriagar — eu disse quando pude falar.
— É mais como ter bilhões de estranhos gritando dentro de você para obter
sua atenção exclusiva. Incompreensível… avassalador… nenhuma palavra
é grande o suficiente. Deixe-me ficar perto de você por algum tempo.
— Nikanj disse que só lhe transmitiu informações — ele protestou.
— Sim. E se eu começasse agora e continuasse pelo resto de nossas
vidas, só poderia explicar uma pequena fração delas em voz alta para você.
Ooan deveria ter esperado até voltarmos.
— Você consegue viajar? — ele perguntou.
— Sim. Apenas deixe-me ficar perto de você.
— Pensei que isso estava resolvido. Você nunca vai se afastar de mim.
5
Q uando terminei a cura, estava com fome e quase sem forças por
causa disso. O cheiro de Jesusa e Tomás tão próximos era
atormentador. Eu não podia deixar que os Humanos os mantivessem longe
de mim por muito mais tempo.
Comecei a prestar atenção ao ambiente ao meu redor e me vi encarando
os olhos do homem que acabara de curar.
— Fui baleado — disse ele. — Eu me lembro… mas não dói.
— Você está curado — eu disse, abraçando-o. — Obrigado por me
proteger.
Ele não disse nada. Sentou-se quando me sentei e olhou ao redor para as
pessoas sentadas à nossa volta. Éramos o centro de um círculo de anciãos e
pessoas férteis envelhecidas – pessoas que pareciam velhas, mas não tanto
quanto os idosos de aparência juvenil. Não havia fêmeas presentes.
— Deem-me algo para comer — pedi a eles. — Matéria vegetal. Sem
carne.
Ninguém se mexeu ou falou.
Olhei para o vigia que acabara de curar.
— Por favor, me traga alguma coisa.
Ele assentiu. Ninguém o impediu de sair, embora todos estivessem
armados.
Calei-me e esperei. Mais cedo ou mais tarde, os Humanos começariam
a falar comigo. Eles estavam jogando, tentando me deixar desconfortável e
me colocar em uma desvantagem maior do que a que eu estava. Um
joguinho humano e hierárquico. Talvez não deixassem meu vigia voltar.
Bem, eu sentia uma fome incômoda, mas não desesperadora. Não conhecia
o jogo deles o suficiente para jogá-lo. Em algum momento, é provável que
sentissem prazer em me dizer o que pretendiam fazer comigo. Eu não tinha
pressa em ouvir o que era. Não esperava gostar do que fosse.
Quase dormi. Meu vigia voltou com um prato de feijão cozido e alguns
grãos e frutas que não reconheci. Uma boa refeição. Agradeci a ele e o
dispensei, porque tinha medo de que falasse por mim e se metesse em
encrenca.
Algum tempo depois, Francisco entrou. Estava acompanhado de três
anciãos. Pela aparência deles, deviam ser os machos mais velhos da aldeia.
Tinham cabelos grisalhos e seus rostos traziam rugas profundas. Um deles
mancava pesadamente. Os outros dois eram magros e encurvados. O mais
provável é que já eram idosos antes da guerra.
Esses quatro se sentaram de frente para mim, e Francisco falou em voz
baixa.
— Você está bem?
Eu olhei para ele, tentando adivinhar qual era sua situação. Por que
veio? Era tarde demais para desempenhar o papel que prometera. Estava se
esforçando muito para se controlar, mas tentando parecer relaxado. Decidi
não o reconhecer, por enquanto.
— Meus parceiros ainda estão presos — eu disse.
— Vamos deixar que os veja em breve. Primeiro, queremos que saiba o
que decidimos.
Eu esperei.
— Você disse que seu povo virá para cá.
— Sim.
— Você vai esperar por eles aqui. — O corpo dele se inclinou em minha
direção, cheio de tensão reprimida. Era importante que eu aceitasse o que
ele estava dizendo.
Calei-me, desviando o olhar do rosto de Francisco para poder observá-
lo sem fazer com que se sentisse vigiado. Não havia triunfo em sua
expressão, nenhuma dissimulação, nenhum sinal de que estava fazendo algo
além de me dizer o que seu povo havia decidido – e, talvez, esperando que
eu não o denunciasse.
— Os vigias capturaram a pessoa que acompanhava você — falou da
mesma maneira discreta. — Será trazida aqui em breve.
— Aaor? — perguntei. — Feriram Aaor? Alguém mais?
— Nada sério. Levou um tiro na perna, mas parece ter se curado. Uma
das pessoas que você adulterou teve ferimentos leves.
— Quem? Qual?
— Santos Ibarra Ruiz.
Óbvio. Balancei a cabeça. Alguém no grupo de anciãos gemeu.
— Ele está bem? — perguntei.
— Nossos vigias o ouviram discutindo com alguém do grupo da pessoa
que acompanhava você — disse Francisco. — Quando investigaram e
fizeram prisioneiros, Santos mordeu um deles. Apanhou. Está bem, exceto
por alguns machucados e uma dor de cabeça.
Santos havia entregado Aaor. Quem senão ele faria isso? Quantas vidas
havia ameaçado ou destruído?
— O que vai acontecer com os Humanos que nós… adulteramos? —
perguntei.
— Ainda não decidimos — disse Francisco. — Provavelmente nada.
— Eles deveriam ser enforcados — alguém resmungou. — Deveriam
estar de vigia…
— Foram pegos de surpresa — falou Francisco. — Se eu não tivesse
decidido descer e dormir na minha cama, eu mesmo poderia ter sido levado.
Então era por isso que ainda estava livre. Convencera seu povo de que
havíamos chegado depois que partiu. Essa história podia protegê-lo e
permitir que ajudasse os outros. Seu corpo expressou desconforto com a
mentira, mas ele a contou bem.
— Vocês também vão manter Aaor aqui? — perguntei.
— Sim. Não sofrerá nenhum ferimento, a menos que tente escapar. Nem
você. Nosso povo sente que ter ambos aqui garantirá nossa segurança
quando seu povo chegar.
Concordei com um movimento de cabeça.
— Foi ideia sua?
O ancião manco falou.
— Não é da sua conta de quem foi a ideia! Você ficará aqui. E se o seu
povo não vier… talvez sejamos capazes de pensar em algo para fazer com
vocês.
Eu me virei para encará-lo.
— Use-me para curar sua perna — falei com calma. — Ela deve doer.
— Você nunca colocará suas mãos venenosas em mim.
Colocaria. Evidente que colocaria. Se eles mantivessem Aaor e a mim
ali, nada os impediria de nos usar para livrá-los de seus muitos problemas
físicos.
— Não foi ideia minha — continuou Francisco. — Minha única ideia
foi que não deveria levar um tiro. Sabe, muitas pessoas aqui gostariam de
atirar em você.
— Isso seria um grave erro.
— Eu sei. — Ele fez uma pausa. — Foi Santos quem sugeriu mantê-lo
aqui.
Não ri alto. O riso teria deixado os anciãos ainda mais desconfiados do
que já estavam. Mas, por dentro, eu gargalhei. Santos estava compensando
o próprio erro. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. Sabia que seu
povo usaria a mim e a Aaor por nossa capacidade de cura, inalaria nossos
cheiros e, por fim, quando nosso povo chegasse, o dele encontraria o meu
sem agir com hostilidade. Dessa maneira, como Francisco havia dito, eu
garantiria a segurança das pessoas da montanha. Quem não lutasse não
correria nenhum risco, nem seria intoxicado com gás quando o ônibus
espacial captasse meu cheiro e o de Aaor.
— Tragam Aaor — eu disse.
— Aaor está vindo. — Francisco fez uma pausa. — Se tentar qualquer
coisa, se amedrontar essas pessoas, elas vão atirar. E não vão parar até não
sobrar mais nada de você.
Assenti.
Havia muita coisa que sobraria de mim, viva, mas com certeza não
como o indivíduo que eu era. E o que sobrasse talvez causasse danos ali,
como uma doença. Era melhor morrermos em uma nave ou em uma de
nossas cidades. Nossa substância seria absorvida com segurança pelo
organismo maior. Se isso não acontecesse, as organelas oankali
encontrariam coisas para fazer por conta própria.
Dois jovens vigias trouxeram Aaor. Olhei para suas pernas procurando
traços de um ferimento de bala, mas não consegui ver nenhum. Os
Humanos deixaram que se curasse completamente.
Aaor se aproximou e se sentou ao meu lado no chão de pedra. Não
tocou em mim.
— Eles querem que fiquemos aqui — disse em espanhol.
— Eu sei.
— Vamos?
— Sim, claro.
Aaor assentiu.
— Foi o que pensei, também. — Esticou a boca em algo menor que um
sorriso. — Você tinha razão sobre levar um tiro. Não quero passar por isso
outra vez.
— Onde estão seus parceiros?
— Na casa deles, não muito longe daqui, sob vigilância.
Virei-me para Francisco outra vez.
— Concordamos em ficar aqui até nosso povo chegar, mas Aaor deve
viver com seus parceiros. E eu com os meus.
— Você ficará preso aqui nesta torre! — disse um dos anciãos
esqueléticos. — Ambos ficarão aqui sob vigilância. E não terão parceiros!
— Vamos morar em casas, como as pessoas devem morar — falei em
voz baixa.
Alguém cuspiu as palavras “Quatro braços!” e outra pessoa resmungou
“Animais!”.
— Vamos viver com as pessoas que são nossos parceiros, e vocês
sabem disso — continuei. — Se não, nos tornaremos… um grande perigo,
para nós e para vocês.
Silêncio.
Meu cheiro e o de Aaor provavelmente não poderiam converter aquelas
pessoas com rapidez sem contato direto, mas poderiam tornar todos mais
propensos a acreditar no que disséssemos. Poderíamos convencê-los a fazer
o que sabiam que deveriam fazer.
— Vocês vão morar com seus parceiros — anunciou Francisco, mais
alto do que os muitos resmungos. — Muitos de nós aceitamos isso. Mas,
onde quer que vivam, ficarão sob vigilância. Precisam ficar.
Olhei para Aaor.
— Tudo bem — falei. — Vigiem-nos. Não há necessidade, mas, se isso
os conforta, vamos suportar.
— Vigias para impedir que as pessoas aceitem seu veneno! —
murmurou o ancião manco.
— Dê-me meus parceiros agora — sussurrei. As pessoas se inclinaram
para ouvir. — Preciso deles e eles precisam de mim. Nós nos mantemos
saudáveis.
— Deixem que fique com eles — complementou Aaor. — Deixem que
confortem uns aos outros. Já estão separados há dias.
Eles discutiram por um tempo, mas sua hostilidade diminuía pouco a
pouco, como uma ferida em cicatrização. No final, o próprio Francisco
libertou Jesusa e Tomás. Eles saíram de suas celas e me levaram entre eles,
enquanto os anciãos e os idosos férteis observaram com emoções
conflitantes: medo, raiva, inveja e fascínio.
13
N ós ficamos.
Curamos as pessoas, apesar da vigilância. Curamos nossos
vigias.
Os jovens vieram até nós primeiro e foram embora sem tumores, perdas
sensoriais, pernas mancas, paralisias… As pessoas trouxeram suas crianças
até nós.
Jesusa, Tomás e eu dividimos uma casa de pedra com Aaor, Javier e
Paz. Uma vez instalados, Jesusa saiu e encontrou todas as pessoas que
lembrava terem crianças com deformidades ou deficiências. Ela as atazanou
até começarem a trazer seus filhos para nós. A casa pequena estava o tempo
todo cheia de crianças em recuperação.
E Santos começou a crescer. Dei-lhe um nariz novo e bonito, e ele
continuou falando demais e arriscando quebrá-lo de novo. Mas as pessoas
pareciam menos inclinadas a bater nele.
A primeira pessoa do grupo dos anciãos que veio a nós era do sexo
feminino, com apenas uma perna. O toco restante da amputação doía e ela
esperava que eu pudesse acabar com a dor. Enviei-a para Aaor, porque eu
tinha mais pessoas para curar do que conseguia. Ao longo de semanas, Aaor
fez com que uma perna e um pé novos crescessem nela.
Depois disso, todos vieram até nós. Até os anciãos mais teimosos
esqueciam o quanto nos odiavam quando tocávamos neles. Não passaram a
nos amar de uma hora para outra, mas pararam de cuspir quando
passávamos, murmurar maldições ou ameaças para nós, apontar suas armas
para nos lembrar de seu poder e medo. Eles nos deixaram em paz. Era o
suficiente.
Seu povo, no entanto, começou a nos amar, acreditar no que lhes
dissemos e a conversar conosco sobre parceiros Oankali e constructos.
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