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Para Irie Isaacs

SUMÁRIO

FOLHA DE ROSTO

DEDICATÓRIA

SUMÁRIO

I. METAMORFOSE

II. EXÍLIO

III. IMAGO

IV. QUESTÕES PARA DISCUSSÃO

SOBRE A AUTORA

PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS


1

E ntrei em minha primeira metamorfose tão discretamente que ninguém


percebeu. Metamorfoses não deveriam começar daquele jeito. Para a
maioria das pessoas, começam com alterações físicas pequenas e óbvias: a
perda dos dedos das mãos e dos pés, por exemplo, ou a eclosão de novos
dedos com uma estrutura diferente.
Eu gostaria que a minha experiência tivesse sido assim tão normal, tão
segura.
Por vários dias, mudei sem chamar atenção. Em geral, as mudanças
iniciais da metamorfose não se estendem por muitos dias sem causar um
sono profundo, mas no meu caso foi assim. Minhas primeiras mudanças
foram sensoriais. De uma hora para outra, os sabores, os aromas e todas as
sensações se tornaram complexos e confusos, ainda que tentadores de
maneira inesperada.
Tive de reaprender tudo. A água do rio, por exemplo: quando nadava
ali, eu percebia dois sabores principais (hidrogênio e oxigênio?) e muitos
sabores secundários. Conseguia separá-los e sentir cada um deles
isoladamente. Na verdade, não conseguia deixar de separá-los. Mas os
descobri depressa e os aceitei em sua nova complexidade de modo que
apenas alterações ocasionais nos sabores secundários requeriam minha
atenção.
Em Lo, a água do rio sempre chegava carregada de sedimentos. “Rica”,
como os Oankali a chamavam. “Lamacenta”, diziam os Humanos, que a
filtravam ou deixavam os sedimentos decantarem antes de bebê-la. “Só
água”, nós, constructos, dizíamos e dávamos de ombros. Nunca
conhecemos nenhuma outra.
Aprendi o mais depressa que pude a compreender e aceitar minhas
impressões sensoriais sobre as pessoas e as coisas ao meu redor. A
experiência absorvia tanto de minha atenção que eu não entendia como
minha família não conseguia ver a estranheza do que estava acontecendo
comigo. Mas, fora alguns comentários de que eu estava sonhando acordado
em excesso, nem meus pais perceberam os indícios.
Afinal, aqueles eram os indícios errados. Ninguém estava esperando por
eles, por isso ninguém os percebeu quando apareceram.
Todos os meus cinco progenitores eram idosos quando nasci. Não
pareciam nem um pouco mais velhos do que minhas irmãs e meus irmãos
adultos, mas tinham ajudado na fundação de Lo. Tinham netos que eram
idosos. Acho que eu nunca os tinha surpreendido antes. Não tinha certeza se
gostava de surpreendê-los agora. Não queria contar a eles. Em especial, não
queria contar a Tino, meu pai Humano. Ele deveria ficar comigo durante
minha metamorfose, já que era meu progenitor do mesmo sexo. Mas eu não
me sentia ligado a ele como deveria – nem a Lilith, minha mãe hospedeira.
Ela também é Humana e o que estava acontecendo comigo definitivamente
não era algo humano. Por mais estranho que pareça, eu também não queria
ficar com Dichaan, meu pai Oankali: ele seria minha escolha lógica depois
de Tino. Minha mãe Oankali, Ahajas, teria conversado com um dos meus
pais em meu lugar. Ela tinha feito isso para dois de meus irmãos que tinham
ficado com medo da metamorfose – medo de que mudariam demais e
perderiam os sinais de sua Humanidade. Poderia acontecer comigo, embora
eu nunca tivesse me preocupado com isso. Ahajas teria conversado comigo
e falado por mim, qualquer que fosse meu problema. De todos os meus
progenitores, ela era a mais fácil de conversar. Eu teria falado com ela se a
ideia tivesse sido mais convidativa, ou se eu tivesse compreendido por que
era tão pouco convidativa. O que havia de errado comigo? Eu não era
tímido ou medroso, mas quando pensei em abordá-la, primeiro me senti
inclinado, depois… quase repugnado.
Por fim, havia Nikanj, minha matriz ooloi.
Era alguém que iria me dizer para ficar com um de meus progenitores
do mesmo sexo, um dos meus pais. O que mais poderia dizer? Eu sabia
muito bem que estava em metamorfose e essa era uma das poucas coisas
com as quais matrizes ooloi não podiam ajudar. Ainda havia alguns
Humanos que insistiam em enxergar ooloi como um tipo de combinação
macho-fêmea, mas as criaturas ooloi não são assim. São elas mesmas, um
sexo completamente diferente.
Por isso fui até Nikanj na esperança de desfrutar de sua companhia por
um tempo: acabaria percebendo o que estava acontecendo comigo e me
mandaria até um de meus pais. Até isso acontecer, eu ficaria por perto. Eu
estava cansado, com sono. A metamorfose consistia, principalmente, em
dormir.
Encontrei Nikanj na casa da família, falando com um casal de Humanos
desconhecidos. Os Humanos estavam se afastando de Nikanj. A fêmea
estava quase se escondendo atrás do macho e este estava fazendo um
esforço atroz para demonstrar coragem. Ambos pareceram assustados
quando abri uma parede e a atravessei para entrar no quarto. Então, quando
me viram, deram a impressão de relaxar um pouco. Eu parecia Humano
demais, especialmente em comparação com Nikanj, que não era nada
Humano.
O cheiro mais notório dos Humanos era de suor e adrenalina, comida e
sexo. Eu me sentei no chão e me permiti discernir aquela complexa
combinação de odores. Minha nova consciência não me deixaria fazer
qualquer outra coisa. Quando terminei, pensei que seria capaz de farejar
aqueles dois Humanos em qualquer lugar.
Nikanj não prestou atenção em mim, exceto quando notou minha
entrada. Tinha o costume de ver sua prole entrar e sair à vontade, então
aproveitar de sua companhia e aprender o que tivesse disposição para nos
ensinar.
Por ser ooloi, seu odor era de uma complexidade incrível. Tinha
acumulado em si não apenas o material reprodutivo de outros membros da
família, mas células de outras espécies de plantas e animais com as quais
tinha lidado recentemente. Iria estudá-las, memorizá-las e, então, consumi-
las ou armazená-las. Consumia aquelas que sabia ser capaz de recriar a
partir da memória, usando o próprio dna, e mantinha as demais vivas em
uma espécie de estase até serem necessárias.
Seu odor subjacente mais perceptível era de Kaal, o grupo familiar em
que nasceu. Nunca conheci seus progenitores, mas conhecia o odor de Kaal
por meio de outros membros do grupo. Porém, de alguma maneira, nunca o
tinha percebido em Nikanj, isolado-o daquele jeito.
O odor principal era de Lo, obviamente. Nikanj tinha se acasalado com
Oankali desse grupo de parentesco e, ao fazer isso, alterado o próprio odor,
como ooloi devem fazer.
A palavra “ooloi” não podia ser diretamente traduzida para o inglês
porque o significado dela era tão complexo quanto o odor de Nikanj.
“Estimado estranho.” “Ponte.” “Negociante de vida.” “Pessoa que tece.”
“Ímã.”
Ímã, diz minha mãe hospedeira. As pessoas são atraídas pelas criaturas
ooloi e não conseguem fugir. Ela, com certeza, não conseguiu. Por outro
lado, Nikanj também não conseguiu escapar dela ou de qualquer um de seus
parceiros. Os Oankali diziam que os laços químicos do acasalamento eram
tão difíceis de romper quanto o hábito de respirar.
Odores… Os dois Humanos de visita eram parceiros havia muito tempo
e um tinha o cheiro do outro.
— Ainda não sabemos se queremos emigrar — a fêmea estava dizendo.
— Viemos para ver por nós mesmos e pelas outras pessoas.
— Tudo será mostrado a vocês — Nikanj lhes disse. — Não há
segredos a respeito da colônia em Marte ou da viagem até lá. Mas, neste
exato momento, todos os ônibus destinados à emigração estão em uso.
Temos uma área de hóspedes onde Humanos podem aguardar.
Os dois Humanos se entreolharam. Ainda tinham cheiro de medo, mas
agora ambos estavam se esforçando para parecer corajosos. Os rostos deles
eram quase inexpressivos.
— Não queremos ficar aqui — disse o macho. — Voltaremos quando
houver uma nave.
Nikanj se levantou – se desdobrou, como os Humanos diziam.
— Não sei quando haverá uma nave — falou. — Elas chegam quando
chegam. Deixem que eu mostre a vocês a área de hóspedes. Não é como
esta casa. Os Humanos a construíram com madeira.
O casal se afastou cambaleando..
Os tentáculos sensoriais se achataram contra o corpo de Nikanj,
expressando divertimento. Nikanj sentou-se outra vez.
— Há outros Humanos aguardando na área de hóspedes — disse a eles,
em tom gentil. — São como vocês. Querem o próprio mundo
completamente Humano. Viajarão juntos quando partirem. — Fez uma
pausa e olhou para mim. — Eka, por que não mostra a eles?
Agora, mais do que nunca, eu queria ficar em sua companhia, mas pude
perceber que os dois Humanos ficaram aliviados de terem sido entregues a
alguém que ao menos parecia da espécie deles.
— Este é Jodahs — Nikanj lhes disse —, uma das minhas crianças mais
novas.
A fêmea me lançou um olhar que eu já tinha visto vezes demais para
deixar de reconhecer.
— Mas pensei…
— Não — eu disse a ela, sorrindo. — Não sou Humano. Sou um
constructo nascido Humano. Venham por aqui. A área dos hóspedes não
fica longe.
Eles não quiseram me seguir através da parede que abri enquanto ela
não estivesse toda aberta, como se achassem que pudesse se fechar sobre
eles e fosse machucá-los se fizesse isso.
— Seria como ser gentilmente agarrado por uma grande mão — eu
disse a eles quando estavam do lado de fora.
— O quê? — perguntou o macho.
— Se a parede se fechasse sobre vocês, não os machucaria, porque
estão vivos. Mas poderia comer suas roupas.
— Não, obrigado!
Eu ri.
— Nunca vi acontecer, mas ouvi dizer que é possível.
— Qual é seu nome? — perguntou a fêmea.
— Completo? — Ela parecia interessada em mim, cheirando a atração
sexual, o que a tornou interessante. Eu costumava atrair fêmeas Humanas
desde que mantivesse os poucos tentáculos de meu corpo cobertos por
roupas e os de minha cabeça escondidos entre os cabelos. As zonas
sensoriais em meu rosto e meus braços pareciam pele normal, embora
transmitissem outras sensações quando tocadas.
— Seu nome Humano — a fêmea disse. — Já sei… Eka e Jodahs, mas
não estou certa de qual usar para chamar você.
— “Eka” é só um termo carinhoso para descendentes jovens —
expliquei —, como “lelka” para descendentes que se casaram e “chka”
entre parceiros. Jodahs é meu nome. A versão humana de meu nome
completo é Jodahs Iyapo Leal Kaalnikanjlo. É meu nome, os sobrenomes da
minha mãe hospedeira e do meu pai Humano e o nome de Nikanj,
começando com o nome do grupo familiar de seu nascimento e terminando
com o nome do grupo familiar de seus parceiros. Se eu tivesse nascido
Oankali ou lhes desse a versão Oankali do meu nome, ele seria bem mais
longo e complicado.
— Já ouvi alguns deles — a fêmea disse. — É provável que acabem por
abandoná-los.
— Não. Vamos alterá-los para atender a nossas necessidades, mas não
vamos abandoná-los. Eles dão informações muito úteis, especialmente
quando as pessoas estão em busca de parceiros.
— Jodahs não se parece com nenhum nome que eu já ouvi — disse o
macho.
— É um nome oankali. Um Oankali chamado Jodahs morreu ajudando
na emigração. Minha mãe hospedeira disse que ele deveria ser lembrado.
Os Oankali não têm uma tradição de se lembrar das pessoas dando o nome
delas às crianças, mas minha mãe hospedeira insistiu. Ela faz isso às vezes,
insiste em manter costumes humanos.
— Você parece bem Humano — a fêmea disse baixinho.
Sorri.
— Sou uma criança. Só pareço inacabado.
— Qual a sua idade?
— Vinte e nove.
— Meu Deus! Quando você será considerado adulto?
— Depois da metamorfose. — Sorri para mim mesmo. Logo. — Tenho
um irmão que passou por ela aos 21 e uma irmã que não a começou antes
dos 33. As pessoas se transformam quando os corpos estão prontos, não em
uma idade determinada.
Ela ficou calada por algum tempo. Chegamos à última das verdadeiras
casas de Lo, as que tinham crescido a partir da substância viva do ente Lo.
Humanos que não tinham parceiros Oankali não conseguiam abrir paredes
ou criar plataformas de mesa, cama ou cadeira naquelas casas. Se fossem
deixados sozinhos em nossas casas, seriam prisioneiros até que algum
constructo, Oankali ou Humano acasalado os libertasse. Por isso, primeiro
ganharam uma hospedaria, depois uma área inteira. Tinham construído suas
casas mortas, de toras de madeira e palha entrelaçada, por ali. Usavam fogo
para a iluminação e o preparo de alimentos e, uma vez ou outra,
incendiavam uma delas. As que não eram queimadas ficavam infestadas de
roedores e insetos que comiam a comida humana e mordiam ou ferroavam
os próprios Humanos. De tempos em tempos, Oankali entravam e
expulsavam as formas de vida não Humanas. Elas sempre voltavam.
Alimentavam-se dos Humanos, comendo a comida deles e morando em
suas construções, desde muito antes da chegada de Oankali. Ainda assim,
aquela área oferecia um conforto razoável. Os hóspedes se alimentavam de
suas árvores e plantas, que não eram o que aparentavam ser, e sim extensões
do ente Lo. Tinham sido induzidas a sintetizar frutas e vegetais com
formatos, florescências e texturas que os Humanos reconheciam. Os
alimentos se desenvolviam do que pareciam ser suas árvores e plantas. Lo
se encarregava dos resíduos humanos, mantendo a área limpa, embora eles
tivessem a tendência de ser pouco cuidadosos com o local em que atiravam
ou depositavam as coisas naquele espaço temporário.
— Existe uma casa desocupada ali — indiquei.
A fêmea fixou o olhar na minha mão e não no lugar para onde apontei.
Da perspectiva humana, eu tinha dedos demais nas mãos e nos pés. Sete em
cada. Como eram partes de aparência nitidamente semelhante às deles, em
geral Humanos não os percebiam imediatamente.
Mantive minha mão aberta, com a palma para cima, de forma que a
mulher pudesse vê-la, e sua expressão oscilou da curiosidade e da surpresa
para o constrangimento, voltando para a curiosidade.
— Você vai mudar demais na metamorfose? — ela perguntou.
— É provável. Quem nasce Humano se torna mais Oankali e quem
nasce Oankali fica mais Humano. Sou da primeira geração. Se quiser
vislumbrar o futuro, dê uma olhada em alguns constructos da terceira e da
quarta gerações. São bem mais uniformes, do início ao fim.
— Esse não é nosso futuro — disse o macho.
— Por escolha de vocês — respondi.
Ele se afastou, caminhando em direção à casa vazia. A fêmea hesitou.
— O que você acha da emigração? — perguntou.
Olhei-a, gostando dela, sem querer responder. Mas tais perguntas
deveriam ser respondidas. Entretanto, por que as fêmeas Humanas que
insistiam em fazê-las eram quase sempre pessoas tão pequenas e fracas? O
meio ambiente marciano para onde se dirigiam era mais hostil do que
qualquer outro que tivessem conhecido. Garantiríamos que tivessem a
máxima possibilidade de sobrevivência. Muitas sobreviveriam para gerar
crianças no novo mundo, mas sofreriam por isso. E, ao final, seria tudo em
vão. O próprio conflito genético delas as tinha traído e destruído uma vez. E
faria isso novamente.
— Vocês deveriam ficar — eu disse à fêmea. — Deveriam se juntar a
nós.
— Por quê?
Eu queria muito não olhar para ela, desviar os olhos. Em vez disso,
continuei a encará-la.
— Compreendo que os Humanos devem ser livres para partir — falei
em voz baixa. — Sou Humano o suficiente para que meu corpo compreenda
isso. Mas sou Oankali o bastante para saber que vocês acabarão se
autodestruindo outra vez.
Ela franziu as sobrancelhas, desfigurando a testa lisa.
— Você se refere a outra guerra?
— Talvez. Ou talvez encontrem alguma outra forma de fazer isso. Vocês
estavam desenvolvendo várias delas antes da guerra.
— Você não sabe nada a respeito disso. É muito novo.
— Deveriam ficar e acasalar com constructos ou com Oankali — falei.
— As crianças que concebemos são livres de defeitos inatos. O que
concebermos vai perdurar.
— Você é só uma criança repetindo o que lhe disseram!
Balancei a cabeça.
— É minha percepção. Ninguém precisou me dizer como usar meus
sentidos, assim como não precisaram dizer a você como ver ou ouvir. Existe
um conflito genético letal na Humanidade e vocês sabem disso.
— Só sabemos o que os Oankali nos disseram. — O macho tinha
voltado. Colocou o braço em volta da fêmea, afastando-a de mim como se
eu oferecesse algum perigo. — Eles podem estar mentindo em causa
própria.
Voltei minha atenção a ele.
— Você sabe que não estão — falei, com brandura. — A história de
vocês lhes diz isso. Seu povo é inteligente e isso é bom. Os Oankali dizem
que vocês são possivelmente uma das espécies mais inteligentes que já
encontraram. Mas também são hierárquicos, vocês e seus ascendentes
animais mais próximos e seus ancestrais animais mais distantes. A
inteligência é relativamente nova para as formas de vida da Terra, mas suas
tendências hierárquicas são antigas. E o novo foi colocado a serviço do
antigo vezes demais. E será outra vez. Vocês são perspicazes o suficiente
para aprender a viver em seu novo mundo, mas são tão hierárquicos que
vão se destruir tentando dominá-lo e uns aos outros. Podem sobreviver por
muito tempo, mas no fim vão se destruir.
— Poderíamos sobreviver mil anos — disse o macho. — Estávamos
bem na Terra até a guerra.
— Poderiam. Seu novo mundo será difícil. Vai exigir grande parte da
atenção de vocês e talvez mantenha suas tendências hierárquicas ocupadas
por algum tempo.
— Seremos livres: nós, nossos filhos e os filhos deles.
— Talvez.
— Seremos Humanos e livres. Isso basta. Um dia, talvez poderemos até
viajar pelo espaço outra vez, por conta própria. Seu povo pode estar
completamente errado a nosso respeito.
— Não. — Ele não conseguia interpretar as combinações de genes
como eu. Era como se estivesse prestes a cair de um despenhadeiro pelo
simples fato de não conseguir enxergá-lo… ou porque ele, ou melhor, seus
descendentes, fossem demorar para bater contra as rochas lá embaixo. E o
que nós, que sabíamos a verdade, estávamos fazendo? Ajudando-o a chegar
ao abismo. Levando-o até lá.
— Poderemos sobreviver mais tempo do que seu povo aqui na Terra —
falou o macho.
— Espero que sim — respondi-lhe. A expressão dele dizia que não
acreditava em mim, mas eu falei sério. Não estaríamos por aqui. A Terra
que ele conhecia não existiria por mais do que alguns séculos. Nós, Oankali
e constructos, éramos viajantes espaciais, tão curiosos quanto a outras
formas de vida e tão famintos por elas quanto os Humanos eram
hierárquicos. Acabaríamos tendo de iniciar a demorada busca por uma nova
espécie com a qual nos unir para compor novas formas de vida. Grande
parte da existência Oankali era dedicada a tais buscas. Talvez, em três
séculos, deixaríamos este sistema. Eu viveria para ver a despedida. E nós,
quando exploramos e nos dispersamos, deixamos para trás um bloco de
rocha nua mais parecido com a Lua do que com a Terra azul dele. O macho
não sabia disso. Nunca saberia. Contar a ele seria crueldade.
— Você chega a pensar em si mesmo ou em sua espécie como seres
Humanos? — a fêmea perguntou. — Alguns de vocês parecem tão
Humanos.
— Sentimos nossa Humanidade. Ela nos ajuda a compreender tanto
vocês quanto os Oankali. Por si só, os Oankali nunca os teriam deixado
terem sua colônia em Marte.
— Ouvi dizer que eles estão ajudando! — exclamou o macho. — Sua…
seu progenitor disse que estavam ajudando!
— Ajudam por causa daquilo que nós, constructos, contamos a eles: que
vocês deveriam ter permissão para ir mesmo que acabem se autodestruindo.
Os Oankali acreditam… os Oankali sabem, lá no fundo, que é errado ajudar
a espécie humana a regenerar sem mudanças porque ela irá se autodestruir
outra vez. Para eles, é como provocar deliberadamente a concepção de uma
criança tão anômala que morrerá ainda bebê.
— Eles estão errados. Um dia, mostraremos a eles o quanto estão
errados.
Aquilo era uma ameaça. Sem sentido, mas dava a ele uma satisfação
mínima.
— Os outros Humanos vão lhes mostrar onde pegar comida — falei. —
Se precisarem de alguma outra coisa, peçam a um de nós. — Eu me virei
para ir embora.
— Tão arrogante — resmungou o macho.
Eu me voltei para ele outra vez, sem pensar.
— Sou mesmo?
O macho franziu o rosto, resmungou um xingamento e voltou para
dentro da casa. Compreendi, então, que ele só estava bravo. O fato de às
vezes deixá-los bravos me incomodava. Nunca tinha essa intenção.
A fêmea veio até mim, tocou meu rosto e examinou uma mecha do meu
cabelo. Humanos que não tinham acasalado conosco nunca aprendiam
realmente a nos tocar. Na melhor das hipóteses, nos irritavam esfregando as
mãos sobre nossos pontos sensoriais e, assim que suas mãos encontravam
esses pontos, nunca gostavam deles.
A fêmea puxou a mão quando os dedos dela descobriram um desses
pontos sob minha orelha esquerda.
— São um pouco como pequenos olhos que não podem se fechar para
se proteger — eu disse. — Não nos causa exatamente dor quando vocês os
tocam, mas não gostamos que façam isso.
— Então precisam ensinar as pessoas a tocarem em vocês?
Sorri e segurei a mão dela entre as minhas.
— As mãos são sempre uma região segura — falei. Deixei-a ali, em pé,
me observando. Podia vê-la pelos tentáculos sensoriais entre meus cabelos.
Ela ficou ali até o macho sair e puxá-la para dentro.
2

V oltei e me sentei perto de Nikanj, que se ocupava de assuntos


familiares, se reunia com pessoas da nave-sede (Chkahichdahk, que
circundava a Terra além da órbita lunar), trocava conhecimento com outras
criaturas ooloi ou retirava informações biológicas de meus irmãos e minhas
irmãs. Todos trazíamos a Nikanj fragmentos de pelo, carne, pólen, folhas,
sementes, esporos e outras células vivas ou mortas de plantas e animais
sobre os quais tínhamos perguntas ou que eram novos para nós.
Ninguém prestava atenção em mim. Havia um estranho conforto nisso.
Eu podia analisar a todos com meus sentidos recentemente aguçados, ver o
que nunca tinha visto antes, sentir o que nunca havia notado. Imagino que
fosse um pouco como cochilar. Por algum tempo, Aaor, minha irmã mais
próxima, nascida Oankali, veio se sentar a meu lado. Ela era filha de minha
progenitora Oankali e não era exatamente fêmea, mas eu sempre pensei
nela como irmã. Aaor se parecia muito com uma fêmea – ou parecia fêmea
antes que eu começasse a mudar. Agora ela… agora a criatura parecia
como sempre deveria ter parecido, eka no verdadeiro sentido da palavra:
uma criança nova demais para ter um sexo desenvolvido. Era isso que nós
dois éramos – até o momento. Aaor tinha cheiro de eka. Podia literalmente
ir por qualquer um dos dois caminhos: se tornar macho ou fêmea. Eu
sempre soube disso, é claro, a respeito de nós dois. Mas agora, de repente,
não conseguia mais sequer pensar em Aaor como “ela”. É provável que
viesse a ser fêmea algum dia; assim como eu, em breve, provavelmente me
tornaria o macho que parecia ser. Era raro alguém que nascia Humano
mudar seu sexo aparente. Em minha família, apenas um constructo nascido
Humano mudou de fêmea aparente para macho efetivo. Vários constructos
nascidos Oankali tinham mudado, mas a maioria sabia, bem antes da
metamorfose, que se sentia mais impelida a se tornar o oposto do que
parecia.
Aaor se aproximou e me observou com alguns tentáculos da cabeça e do
corpo.
— Acho que você está perto da metamorfose — falou, mas não em voz
alta. As crianças aprendiam cedo que era grosseiro falar em voz alta entre si
se pessoas ao seu redor estivessem conversando. Falávamos por meio de
toques, sinais e ilusões multissensoriais transmitidas por tentáculos da
cabeça ou do corpo: estimulação neural direta.
— Estou — respondi em silêncio. — Mas me sinto… diferente.
— Mostre para mim.
Tentei recriar minha consciência sensorial intensificada para lhe
mostrar, mas Aaor se afastou.
Depois de algum tempo, me tocou outra vez, com leveza. Usando
apenas sinais táteis, disse:
— Não gosto disso. Tem alguma coisa errada. Você deveria mostrar a
Dichaan.
Eu não queria mostrar a Dichaan, o que era estranho. Não me importei
em mostrar a Aaor. Não sentia aversão em mostrar a Nikanj, exceto pelo
fato de que era provável que me mandasse para meus pais.
— O que em mim incomoda você? — perguntei a Aaor.
— Não sei — respondeu. — Mas não gosto disso. Nunca senti algo
assim antes. Alguma coisa está errada. — Estava com medo, o que era
estranho. Fatos novos normalmente atraíam sua atenção. Aquele a repelia.
— Não é nada que vá machucar você — eu disse. — Não se preocupe.
Aaor se levantou e se afastou. Não disse nada. Apenas foi embora, o
que não era característico. Sempre tivemos uma relação próxima. Aaor
tinha apenas três meses menos do que eu e, desde seu nascimento,
estávamos sempre juntos. Nunca tinha se afastado de mim antes. Você só se
afasta de pessoas com as quais não pode mais se comunicar.
Fui até Nikanj, que agora estava só. Um de nossos vizinhos tinha
acabado de sair. Nikanj voltou um cone de seus longos tentáculos de cabeça
para mim, finalmente percebendo que havia algo diferente.
— Metamorfose, Eka?
— Acho que sim.
— Vou verificar. Seu cheiro é… estranho.
O tom de sua voz é que era estranho. Eu estivera por perto quando
alguns de meus irmãos e minhas irmãs passaram pela metamorfose e nunca
tinha ouvido algo assim.
Nikanj envolveu a ponta de um braço sensorial em volta do meu braço e
prolongou sua mão sensorial. As mãos sensoriais eram apêndices ooloi.
Normalmente, Nikanj não as usava para verificar metamorfoses. Podia ter
usado seus tentáculos da cabeça e do corpo, como qualquer um faria, mas
sua inquietação foi suficiente para querer ter maior precisão, maior certeza.
Tentei sentir os filamentos da mão sensorial enquanto percorriam minha
carne. Nunca tinha sido capaz de fazer isso, mas agora os sentia com
clareza. Não houve dor, óbvio. Nem comunicação. Mas senti como se
tivesse encontrado o que vinha procurando. Um toque profundo da mão
sensorial era o ar depois de um nado longo, desatinado, embaixo d’água.
Sem pensar, agarrei seu segundo braço sensorial entre minhas mãos.
Então, algo saiu errado. Nikanj não me ferroou. Não faria isso. Mas
algo aconteceu. Um susto. Não, causei-lhe um choque… e todo impacto
deste me foi transmitido. Suas ilusões multissensoriais pareceram mais reais
do que coisas que de fato aconteceram e isso era pior do que uma ilusão.
Foi um ciclo repentino e rápido de sua surpresa e de seu medo intensos. De
mim para Nikanj e de volta para mim. Circuito fechado.
Perdi a concentração em todo o resto. Não fiquei consciente de
desmoronar ou ser pego pelos dois braços de aparência e força quase
humana de Nikanj. Depois, analisei minhas memórias latentes daquele
momento e soube que, por vários segundos, fui simplesmente amparado
pelos quatro braços de Nikanj, que tinha permanecido inerte por completo,
imóvel em decorrência do choque e do medo.
Por fim, com seu choque minguando e seu medo crescendo, me colocou
sobre uma plataforma ampla. Voltou um cone pontiagudo de tentáculo da
cabeça para mim e ficou estático como rocha outra vez, observando.
Passado algum tempo, se deitou ao meu lado e me ajudou a entender o
porquê de sua inquietação.
Mas, a essa altura, eu já sabia.
— Você está se tornando ooloi — falou, sem emitir som.
Comecei a ficar com medo. Nikanj permanecia a meu lado. Os
tentáculos de sua cabeça e de seu corpo não me tocavam. Não me oferecia
nenhum conforto ou apoio, nenhum movimento, nenhum sinal de que
estivesse sequer consciente.
— Ooan? — disse eu. Não chamava Nikanj assim havia anos. Meus
irmãos e minhas irmãs mais velhos chamavam nossos progenitores por seus
nomes e comecei a imitá-los desde cedo. Agora, no entanto, eu estava com
medo. Não queria “Nikanj”. Queria “Ooan”, a matriz a qual eu tinha
procurado com mais frequência ou que tinha me carregado para me curar ou
me ensinar. — Ooan, pode reverter minha mudança? Ainda pareço macho.
— Você sabe que não — Nikanj disse em voz alta.
— Mas…
— Você nunca foi macho, não importa sua aparência. Você era eka.
Sabe disso.
Eu não disse nada. Por toda minha vida, tinha sido considerado “ele” e
tratado como macho por meu pai e minha mãe Humanos, por todos os
Humanos em Lo. Até os Oankali diziam “ele”, às vezes. E todos
imaginavam que Dichaan e Tino seriam meus progenitores do mesmo sexo.
As pessoas deveriam se sentir dessa maneira para que eu me preparasse
para a mudança que viria a acontecer.
Mas a mudança tinha dado errado. Até agora, nenhum constructo havia
se tornado ooloi. Quando as pessoas chegavam à fase adulta e estavam
prontas para acasalar, iam para a nave e encontravam um indivíduo Oankali
do sexo ooloi ou avisavam a nave, que enviava um indivíduo Oankali ooloi.
Machos nascidos Humanos ainda eram considerados experimentais e
potencialmente perigosos. Alguns machos de outras cidades tinham sido
esterilizados e exilados na nave. Ninguém estava preparado para um
constructo ooloi. Com certeza, ninguém estava pronto para um constructo
ooloi nascido Humano. Poderia haver uma criatura mais potencialmente
fatal?
— Ooan! — eu disse, com desespero.
Nikanj me puxou para perto de si, seus tentáculos da cabeça e do corpo
me tocando e depois penetrando minha carne. Seu braço sensorial estava
enrolado em mim de modo que sua mão sensorial pudesse repousar na parte
de trás de meu pescoço. Esse era o modo como ooloi preferiam segurar
Humanos e vários constructos. O cérebro e a medula espinhal ficavam
ambos facilmente acessíveis aos finíssimos filamentos da mão sensorial.
Pela primeira vez desde que parei de mamar, Nikanj me drogou – me
imobilizou – como se não pudesse confiar que eu ficaria imóvel. Eu estava
com medo demais para me ofender. Talvez Nikanj tivesse razão em não
confiar em mim.
Imóvel, Nikanj não me machucou. Nem me acalmou. Por que deveria
me acalmar? Eu tinha um bom motivo para estar com medo.
— Eu deveria ter percebido antes — Nikanj disse em voz alta. — Eu
deveria… Concebi você para parecer muito masculino… tão masculino que
as fêmeas ficariam atraídas e ajudariam a convencê-lo de que era macho.
Até hoje, achei que tinham convencido. Agora sei que era eu quem tinha me
convencido. Eu enganei a mim mesmo por negligência e cegueira.
— Sempre me senti macho — falei. — Nunca pensei em ser qualquer
outra coisa.
— Eu deveria ter mandado você ficar mais tempo com Tino e Dichaan.
— Parou de falar por um instante e agitou os tentáculos desocupados. Fazia
isso quando estava pensando. Mais ou menos uma dúzia de seus tentáculos,
friccionados, soavam como o vento soprando entre as árvores. — Eu
gostava tanto de ter você por perto — disse. — Toda minha prole cresceu e
se afastou de mim, voltando para seus progenitores do mesmo sexo. Pensei
que, quando chegasse a época, você também faria isso.
— Foi o que pensei. Mas nunca quis fazer isso.
— Você não queria ficar com seus pais?
— Não. Só deixava você quando percebia que estava atrapalhando.
— Nunca senti que você estivesse atrapalhando.
— Tentei ter cuidado.
Nikanj agitou novamente os tentáculos e repetiu:
— Eu deveria ter percebido…
— Você estava sempre só — eu disse. — Tinha parceiros e crianças,
mas para mim, você sempre tinha um sabor… vazio, de alguma forma…
como se estivesse com fome… quase faminto.
Por um tempo, Nikanj não disse nada. Não se moveu, mas eu me sentia
em segurança circundado por seu corpo. Alguns Humanos tentavam
transmitir essa sensação quando abraçavam você, mas acabavam irritando
os pontos sensoriais e apertando os tentáculos. Apenas os Oankali podiam
transmitir aquilo, na verdade. E naquele exato momento, apenas Nikanj
poderia fazê-lo. Em sua longa vida, nunca teve um descendente do mesmo
sexo. Tinha usado todos os seus truques para nos proteger de nos tornarmos
ooloi. Tinha usado todos eles para continuar agonizando só.
Acho que sempre soube da solidão de Nikanj. Com certeza, de minhas
cinco matrizes, sempre foi a quem mais amei. Ao que parecia, meu corpo
reagia ao seu da forma que os descendentes Oankali reagiam. Eu estava
assumindo o sexo da matriz que me despertava maior atração.
— O que vai acontecer comigo? — perguntei, depois de um longo
silêncio.
— Você é saudável — disse Nikanj. — Seu desenvolvimento está
absolutamente correto. Não consigo encontrar nenhum defeito em você.
E isso significava que não havia nada de errado. Nikanj era eficiente
como ooloi. Outros indivíduos ooloi vinham até Nikanj quando tinham
problemas que iam além de sua percepção ou compreensão.
— O que vai acontecer? — repeti.
— Você ficará conosco.
Nenhuma qualificação. Nikanj não permitiria que me mandassem
embora. Ainda assim, tinha concordado com outros Oankali, um século
antes, que qualquer constructo ooloi deveria ir para a nave. Lá, ficaria sob
observação e qualquer dano que causasse seria apontado e corrigido
depressa. Na nave, qualquer movimento seu poderia ser monitorado. Na
Terra, poderia causar grandes danos antes que qualquer pessoa percebesse.
Mas Nikanj não permitiria que me mandassem embora. Tinha dito isso.
3

N ikanj prontamente chamou todos os meus progenitores. Em breve,


eu dormiria. A metamorfose é, principalmente, dormir enquanto seu
corpo muda e amadurece. Nikanj quis contar a eles enquanto eu ainda
estava alerta.
Minha mãe Humana entrou e olhou para nós dois, depois caminhou até
mim e segurou minhas mãos. Ninguém tinha dito nada em voz alta, mas ela
sabia que alguma coisa estava errada. Com certeza sabia que eu estava em
metamorfose, tinha testemunhado aquilo com frequência suficiente.
Olhou-me com atenção, mantendo o rosto perto do meu, porque os
olhos eram os únicos órgãos de visão dela. Então, voltou-se para Nikanj.
— O que tem de errado com ele? Não é só a metamorfose.
Pelas mãos dela comecei a analisar sua carne de uma forma que nunca
tinha feito antes. Conhecia a carne dela melhor do que a de qualquer outra
pessoa, mas agora havia algo… um sabor, uma textura, que eu nunca tinha
percebido.
Ela puxou a mão de um jeito brusco e se afastou.
— Ah, meu De…
Até então, ninguém tinha lhe dito nada. Ainda assim, ela compreendeu.
— O que é? — perguntou meu pai Humano.
Minha mãe olhou para Nikanj. Como Nikanj não respondeu, ela disse:
— Jodahs… Jodahs está se tornando ooloi.
Meu pai Humano franziu a testa.
— Mas isso é impo… — Ele parou, acompanhando o olhar de minha
mãe para Nikanj. — É impossível, não é?
— Não — Nikanj disse baixinho.
Ele foi até Nikanj, chegou bem perto. Parecia mais assustado do que
furioso.
— Como pôde deixar isso acontecer? — exigiu saber. — Exílio… pelo
amor de Deus! Exílio, para seu próprio filho!
— Não, Chka — murmurou Nikanj.
— Exílio! É a lei de vocês, vocês, ooloi!
— Não. — Nikanj voltou um cone de seus tentáculos da cabeça para
seus parceiros Oankali. — A criança é perfeita. Minha negligência permitiu
que se tornasse ooloi, mas não fui negligente de nenhuma outra maneira. —
Hesitou. — Venham. Certifiquem-se. Certifiquem-se pela população.
Meu pai e minha mãe Oankali se juntaram a Nikanj em um emaranhado
de tentáculos de cabeça e corpo. Nikanj não os tocou com seus braços
sensoriais, sequer os estendeu, até que Dichaan segurou um deles e Ahajas,
o outro. Então, ao mesmo tempo, os três voltaram cones de tentáculos da
cabeça para meus dois progenitores Humanos. Os dois os fuzilaram com os
olhos. Depois de algum tempo, Lilith foi até os Oankali, mas não tocou
neles. Ela se virou e estendeu um braço para Tino. Ele não se mexeu.
— A lei de vocês! — ele repetiu para Nikanj.
Mas foi Lilith quem respondeu.
— Não é lei. É consenso. Eles concordaram em mandar ooloi não
intencionais para a nave. Nika acredita que pode mudar o acordo.
— Agora, no meio da coisa toda?
— Sim.
— E se não conseguir?
Lilith engoliu em seco. Consegui ouvir o movimento de sua garganta.
— Então, talvez tenhamos que deixar Lo por um tempo… viver
isolados na floresta.
Ele foi até ela e a olhou do jeito que fazia, às vezes, quando queria tocá-
la, talvez para abraçá-la como os Humanos se abraçam na área dos
hóspedes. Mas Humanos que aceitavam ter parceiros Oankali renunciavam
àquele tipo de toque. Não renunciavam ao desejo de fazer aquilo, mas, uma
vez que acasalavam com Oankali, consideravam o toque do outro repulsivo.
Tino voltou a atenção para Nikanj.
— Por que você não fala comigo? Por que deixa que ela me diga o que
está acontecendo? — Nikanj estendeu um braço sensorial na direção dele.
— Não! Maldição, fale comigo! Fale em voz alta!
— Certo… — sussurrou Nikanj, seu corpo arqueado em uma postura de
profunda humilhação.
Tino olhava Nikanj com ódio.
— Não posso lhe devolver… sua criança do mesmo sexo que o seu —
falou.
— Por que você fez isso? Como pôde fazer isso?
— Cometi um erro. Só hoje, há pouco, percebi o que permiti que
acontecesse. Eu… não teria feito isso de propósito, Chka. Nada me teria
obrigado a fazê-lo. Aconteceu porque, depois de tantos anos, comecei a
relaxar em relação às crianças. As coisas sempre deram certo. Fui
negligente.
Meu pai Humano olhou para mim. Foi como se olhasse de muito longe.
As mãos dele se moviam, e soube que também queria tocar em mim. Mas,
se fizesse isso, daria errado, como tinha dado com minha mãe havia pouco.
Eles não podiam mais tocar em mim. Nas famílias, as pessoas podiam tocar
crianças do mesmo sexo que o seu, crianças sem sexo definido, seus
parceiros do mesmo sexo e seus parceiros ooloi.
Então, meu pai Humano se virou de repente e agarrou o braço sensorial
que Nikanj lhe ofereceu. O braço era um órgão forte, musculoso, que existia
para conter e proteger os órgãos sensoriais e reprodutivos fundamentais dos
indivíduos ooloi. Provavelmente não podia ser machucado por mãos
humanas vazias, mas acho que Tino tentou. Ele estava furioso e magoado, e
isso fez com que quisesse ferir alguém. Entre meu pai e minha mãe
Humanos, apenas ele tinha a tendência de reagir dessa maneira. E agora o
único ser a quem podia recorrer para confortá-lo era aquele que tinha
provocado todo seu transtorno. Um Oankali teria aberto uma parede e
partido por algum tempo. Até mesmo Lilith teria feito isso. Tino tentava
causar dor. Pagar dor com dor.
Nikanj o puxou para junto de seu corpo e o segurou, imóvel, enquanto o
reconfortava e falava em sussurros com ele. Segurou-o por tanto tempo que
meus pais Oankali ergueram plataformas e se sentaram nelas para aguardar.
Lilith veio compartilhar a minha, embora pudesse ter erguido uma para si.
Meu cheiro devia incomodá-la, mas ela se sentou perto de mim e me
observou.
— Você se sente bem? — ela perguntou.
— Sim. Acho que logo vou cair no sono.
— Parece prestes a dormir. Minha presença aqui incomoda você?
— Ainda não. Mas deve incomodar você.
— Consigo aguentar.
Ela ficou onde estava. Eu podia me lembrar de estar dentro dela. Podia
me lembrar de quando não havia nada para mim no universo além dela. Vi-
me desejando tocá-la. Nunca tinha sentido isso antes. Nunca fui incapaz de
fazê-lo. Entendia agora um pouco da avidez humana para tocar o que não
podia.
— Você está com medo? — Lilith perguntou.
— Eu estava. Mas não estou mais, agora que tenho certeza de que estou
bem e vocês vão me manter aqui.
Ela deu um sorriso mínimo.
— A primeira criança do mesmo sexo de Nika, que tem estado tão só.
— Eu sei.
— Todo mundo sabia — disse Dichaan, de sua plataforma. — Todas as
criaturas ooloi da Terra devem estar sentindo o desespero que Nikanj sentia.
As pessoas vão ter de mudar o acordo antigo antes que outros acidentes
aconteçam. O próximo pode ser uma criatura ooloi com falhas.
Um indivíduo especializado em engenharia genética naturalmente
imperfeito – uma criatura que pudesse distorcer ou destruir com um toque.
Nada poderia salvar essa criatura do confinamento na nave. Talvez tivesse
até de ser alterada fisicamente para evitar que fosse funcional como ooloi.
Talvez fosse tão perigosa que teria de passar sua existência em animação
suspensa, com seu corpo usado por outras pessoas para experimentos
indolores, sua consciência permanentemente desativada.
Dei de ombros e me deitei outra vez. De imediato, Nikanj e Tino vieram
para meu lado; pelo visto, tinham se reconciliado por sua preocupação
comigo. Nikanj tocou meu braço sensorial, mas não expôs a mão sensorial.
— Escute, Jodahs. — Prestei atenção, abrindo os olhos. — Você ficará
bem aqui. Vou ficar com você. Conversarei com as pessoas e, quando você
chegar ao fim da primeira metamorfose, vai se lembrar de tudo que eu disse
a elas… e tudo que elas disseram. — Nikanj deslizou um braço sensorial
em volta de meu pescoço e isso me reconfortou. — Vamos cuidar de você
— falou.
Depois, Nikanj me despiu de minhas roupas enquanto eu flutuava no
sono, como um pedaço de palha em um lago tranquilo. Eu ainda não era
capaz de deslizar para baixo da superfície.
Algo foi colocado em minha boca. Tinha o gosto e a textura de fatias de
abacaxi, mas eu soube pelas diminutas diferenças de cheiro que era uma
criação de Lo. Era praticamente proteína pura – exatamente o que meu
corpo precisava. Depois de ter comido vários pedaços, eu seria capaz de
deslizar para as profundezas do sono.
4

M etamorfose é sono. Dias, semanas, meses de sono interrompido


aqui e ali por algumas horas de vigília, alimentação e conversa.
Machos e fêmeas dormiam mais ainda, mas passavam por apenas uma
metamorfose. Ooloi passam por isso duas vezes.
Houve momentos em que estive consciente o bastante para observar
meu corpo se desenvolvendo. Um orifício chamado sair estava se abrindo
em minha garganta e permitiria que eu respirasse com tanta facilidade
embaixo d’água quanto no ar. Meu nariz não foi absorvido para o interior
do rosto, mas se tornou praticamente um enfeite.
Não perdi cabelo, mas desenvolvi muito mais tentáculos na cabeça e no
corpo. E não desenvolveria braços sensoriais até minha segunda
metamorfose, mas minha sensibilidade já estava mais aguçada: logo eu
seria capaz de transmitir e receber ilusões multissensoriais mais complexas
e lidar com elas de forma mais rápida.
Além disso, algo estava crescendo entre meus corações.
Como eu tinha nascido Humano, minha estrutura interna era
basicamente humana. Ooloi têm a cautela de não conceber crianças que
provoquem reações imunológicas incontroláveis nas mães hospedeiras. Até
ter dois corações parece algo radical para alguns Humanos. Às vezes,
atiram em nós onde acreditam que deve haver um coração – onde fica o
próprio coração deles – e depois fogem, em pânico, porque esse tipo de
coisa não nos detém. Acho que muitos Humanos nunca viram como os
Oankali são por dentro, ou como nós constructos, somos. Dois corações são
o dobro do quinhão humano. Mas o órgão que agora crescia entre os meus
não era nada Humano.
Todo constructo tinha alguma versão dele. Machos e fêmeas o usavam
para armazenar e preservar células viáveis de seres vivos desconhecidos,
que selecionavam e levavam para ooloi com quem acasalavam ou que os
tinham concebido. Em indivíduos ooloi, o órgão era maior e mais
complexo. Em seu interior, ooloi manipulavam moléculas de dna com mais
habilidade do que as mulheres manipulavam os pedaços de linha que
usavam para costurar suas roupas. Minha concepção aconteceu dentro de
um desses órgãos, a partir de contribuições genéticas de minhas duas mães
e meus dois pais. A concepção em si e uma única organela oankali foram as
únicas contribuições ooloi para minha existência. A organela se dividira no
interior de cada uma de minhas células à medida que estas se multiplicavam
e tornou-se uma parte essencial de meu corpo. Éramos o que éramos devido
a essa organela. Ela nos tornava coletores e negociantes de vida, sempre
aprendendo, sempre mudando em todos os aspectos, exceto ela mesma.
Ooloi diziam que éramos essa organela; que os primeiros Oankali tinham
evoluído pela invasão, aquisição, duplicação e simbiose dela. Às vezes, em
mundos que não tinham vida inteligente baseada em carbono com a qual
fazer permutas, os Oankali deixavam atrás de si, deliberadamente, uma
grande quantidade dessa organela. Abandonada, ela buscaria refúgio nas
mais improváveis formas de vida nativas e desencadearia mudanças, jatos
de evolução. Centenas de milhões de anos depois, alguma população
Oankali talvez perambulasse e encontrasse à sua espera interessantes
parceiros de permuta. A organela criava ou descobria a compatibilidade
com formas de vida tão diferentes que eram incapazes de perceber umas às
outras como vivas.
No passado, eu tinha estado dentro de Nikanj em uma versão madura do
órgão que estava desenvolvendo entre meus corações. Disso eu não me
lembrava. Adquiri consciência dentro do útero de minha mãe Humana.
Yashi era como ooloi chamavam seu órgão de manipulação genética. Às
vezes, falavam sobre ele como se fosse outra pessoa.
— Vou sair para degustar o rio e a floresta. Yashi está faminto e se
contorcendo por algo novo.
Será que ele se contorcia mesmo? Eu provavelmente não descobriria
antes de minha segunda metamorfose, quando meus braços sensoriais
cresceriam. Até lá, yashi iria crescer e se desenvolver, mas permaneceria só
um pouco mais útil do que o de um macho ou uma fêmea.
Outros órgãos oankali começariam a se desenvolver agora, à medida
que genes adormecidos desde minha concepção se tornassem ativos e
estimulassem o crescimento de tecidos novos, altamente especializados.
Ooloi adultos eram mais diversos do que a maioria dos Humanos percebia.
Além da inserção da organela oankali, ooloi não faziam nenhuma
contribuição genética para sua prole. Deixavam as famílias em que nasciam
e acasalavam com estranhos para não se confrontar com um excesso de
familiaridade. Humanos diziam que a familiaridade produzia desrespeito.
Entre ooloi, produzia erros. Irmãos e irmãs podiam acasalar com segurança,
contanto que com ooloi de grupos de parentesco totalmente diferente.
Assim, para uma criatura ooloi, um descendente do mesmo sexo era o
mais próximo que havia de enxergar-se em sua prole.
Por esse, entre outros motivos, Nikanj me protegeu.
Eu sentia que Nikanj se colocava entre mim e as pessoas para que elas
não conseguissem me alcançar e me levar embora.
Eu assimilava tudo que acontecia comigo no quarto e tudo que chegava
a mim vindo de Lo pela plataforma.
— Como podemos confiar em você? — as pessoas queriam saber de
Nikanj. As mensagens delas chegavam a nós através de Lo e chegavam a
Lo diretamente de nossos vizinhos ou por meio de sinais de rádio de outras
cidades retransmitidas a Lo pela nave. E tínhamos notícias das pessoas que
moravam na nave. Algumas mensagens vinham de cidades dos arredores,
que conseguiam fazer contato com Lo sob a superfície. Essas mensagens
eram essencialmente as mesmas.
— Como podemos confiar em você? Ninguém mais cometeu um erro
perigoso como esse.
Através de Lo, Nikanj convidou as pessoas a analisar seu interior e seus
achados como se fosse alguma espécie recém-descoberta. Convidou-as a
conhecer tudo que sabia sobre mim. Suportou todos os exames que as
pessoas conseguiram imaginar e com os quais concordaram. Mas as
impediu de me tocar.
Apesar de seus erros, era minha matriz do mesmo sexo. Já que dizia que
as pessoas não deveriam me incomodar durante a metamorfose e elas ainda
não estavam convencidas da perda de sua competência, não iriam me
incomodar. Seres Humanos achavam que esse tipo de coisa era questão de
autoridade – de quem tinha autoridade sobre a criança. Constructos e
Oankali sabiam que era questão de fisiologia. O corpo de Nikanj
“compreendia” o que o meu estava passando, do que precisava e não
precisava. Nikanj me certificou de que eu estava bem e me garantiu que eu
não estava só. Como os progenitores de mesmo sexo Oankali e constructos,
Nikanj atravessou a metamorfose comigo. Sabia exatamente o que me
incomodaria e o que era seguro. Seu corpo tinha esse conhecimento e
ninguém podia discutir com isso. Até progenitores Humanos do mesmo
sexo pareciam desenvolver uma identificação com sua prole que as pessoas
respeitavam. Sem ela, alguns machos e fêmeas em desenvolvimento tinham
passado por uma metamorfose estranha. Um de meus irmãos foi
completamente isolado da família e da companhia de Oankali e constructos
durante sua metamorfose. Ele reagiu à companhia exclusiva de Humanos
que não eram parentes ocultando todos os traços visíveis da própria herança
humana. Sobreviveu bem. Os Humanos tinham cuidado dele da melhor
maneira possível. Mas, depois da metamorfose, ele teve de aceitar que as
pessoas o tratassem como alguém totalmente diferente. Ele tinha nascido
Humano, mas nosso pai e nossa mãe Humanos não o reconheceram quando
ele voltou para casa.
— Não quero forçar você ao extremo Humano ou Oankali — disse
Nikanj uma vez, quando as pessoas lhe deram algumas horas de paz.
Sempre conversava comigo sabendo que, estivesse eu consciente ou não,
ouviria e me lembraria. Sua presença e voz me reconfortavam. — Quero
que você se desenvolva como deve em todos os aspectos. Quanto mais
normais forem suas transformações, mais cedo as pessoas vão aceitar você
como normal.
Nikanj ainda não tinha convencido as pessoas a aceitar nada a meu
respeito. Nem mesmo que eu deveria ter permissão para permanecer na
Terra e viver em Lo durante minha fase subadulta e a segunda metamorfose.
O consenso, agora, era de que deveriam me levar para a nave assim que eu
tivesse completado a primeira metamorfose. Subadultos podiam não apenas
curar ou causar doenças, mas também realizar mudanças genéticas,
mutações, em plantas e animais. Podiam ser intencionalmente fatais,
alterando insetos e micro-organismos de jeitos inesperados.
— Não quero prejudicar nada — disse eu quase no fim dos meses de
mudança, quando consegui voltar a falar. — Não me deixe causar nenhum
dano.
— Sem danos, Oeka — Nikanj disse baixinho. Tinha deitado ao meu
lado como sempre, para poder estar comigo enquanto eu dormia e, ao
mesmo tempo, mergulhar seus tentáculos da cabeça e do corpo na
plataforma, a carne de Lo, e se comunicar com as pessoas. — Não há falhas
em você — continuou. — Você deve ter consciência de tudo que fizer.
Poderá cometer erros, mas também percebê-los. E poderá corrigi-los. Vou
ajudar você.
Suas palavras transmitiram uma segurança que nada mais poderia. Eu
tinha começado a me sentir como um dos vulcões inativos no alto das
montanhas, além da floresta – como uma criatura que poderia explodir a
qualquer momento, destruindo qualquer coisa que, por acaso, estivesse por
perto.
— Mas há algo de que você precisa estar ciente — disse Nikanj.
— Sim?
— Você será completo de uma maneira que constructos masculinos e
femininos não foram. Por fim, você e outras criaturas como você
despertarão habilidades adormecidas em machos e fêmeas. Mas você, como
ooloi, não poderá ter habilidades adormecidas.
— O que significa isso... ser completo?
— Você será capaz de se transformar. O que podemos fazer de uma
geração a outra, alterar nossa forma, retornar a formas anteriores ou a
combinações de formas… você será capaz de fazer em si. Superficialmente,
pode até ser capaz de criar formas novas, carapaças novas como
camuflagem. Era o que pretendíamos.
— Se eu puder alterar minha forma — fixei minha atenção em Nikanj
—, poderei me tornar macho?
Nikanj hesitou.
— Você ainda quer ser do sexo masculino?
Será que algum dia eu quis ser do sexo masculino? Eu tinha
simplesmente partido do princípio de que eu era macho e não teria escolha
nessa questão.
— As pessoas não seriam tão duras com você se eu fosse macho. —
Nikanj não disse nada. — Elas ainda não me aceitaram — argumentei. —
Podem continuar me rejeitando a ponto de a família ter de deixar Lo… tudo
por minha causa.
Nikanj continuou em silêncio, com a atenção concentrada em mim.
Havia momentos em que eu invejava nos Humanos a habilidade de
bloquear a visão fechando os olhos, bloqueando a compreensão por meio de
algum ato consciente de recusa que estava além do meu alcance.
Fechei minha garganta, depois puxei e liberei um sopro ruidoso,
humano, pela boca. Não era necessário agora que eu não estava falando,
mas preencheu o tempo.
— Tenho sentimentos demais — disse eu. — Quero ser seu descendente
do mesmo sexo, mas não quero causar problemas para a família.
— O que você quer para si?
Agora eu não conseguia falar. Iria ferir Nikanj, não importava o que eu
dissesse.
— Oeka, preciso saber o que você quer, o que sente, e, para o seu bem,
precisa me dizer. Será melhor se as pessoas só enxergarem você através de
mim até que sua metamorfose esteja completa.
Nikanj tinha razão. A ideia de várias outras pessoas interferindo agora
era assustadora, apavorante. Eu não tinha pensado que seria, mas era.
— Não gostaria de deixar de ser o que sou — falei. — Eu…. quero ser
ooloi. Quero, de verdade. E gostaria de não querer. Como posso querer
causar tantos problemas para a família?
— Você quer ser o que é. Isso é saudável e correto para você. O que
faremos quanto a isso é decisão nossa, responsabilidade nossa. Não sua.
Eu talvez não acreditasse se um Humano tivesse dito aquilo. Humanos
diziam uma coisa com o corpo e outra com a boca e todo mundo precisava
gastar tempo e energia para descobrir o que realmente queriam dizer. E,
uma vez que os compreendêssemos, os Humanos ficavam furiosos e agiam
como se tivéssemos roubado os pensamentos de suas mentes.
Nikanj, pelo contrário, dizia o que queria dizer. Sua boca e os tentáculos
de seu corpo diziam as mesmas coisas. E acreditava que eu deveria querer
ser o que eu era. Mas…
— Ooan, eu poderia mudar, se quisesse?
Nikanj alisou os tentáculos do corpo e da cabeça contra a própria pele,
aceitando minha curiosidade, divertindo-se.
— Agora, não. Mas, quando amadurecer, será capaz de provocar em si
uma aparência masculina. Mas não se satisfará com o papel sexual
masculino nem será capaz de fazer a contribuição masculina na reprodução.
Tentei me mexer e me esticar em sua direção, mas ainda não tinha
forças. Conversar era exaustivo e a maioria dos outros movimentos,
impossível. Os tentáculos da minha cabeça se estenderam em sua direção.
Nikanj se aproximou e deixou que eu tocasse seu corpo, examinando
sua carne para que conseguisse começar a compreender a diferença entre a
sua e a minha. Eu seria a versão extrema de um constructo, não apenas uma
mistura de características Humanas e Oankali, mas capaz de utilizar meu
corpo de formas que nem Humanos nem Oankali podiam. Sinergia.
Analisei uma única célula do braço de Nikanj, comparando-a com as
células do meu. Além da minha miscigenação com Humanos, a principal
diferença parecia ser que certos genes meus tinham ativado e provocado
minha metamorfose. Eu me perguntei o que poderia acontecer se esses
genes fossem ativados em Nikanj, que já tinha amadurecido. Será que
Nikanj poderia sofrer outras mudanças?
— Pare — disse Nikanj, sem sons. Fez gestos silenciosos e falou em
voz alta. Os gestos pareciam urgentes. O que eu estava fazendo? — Olhe o
que você fez. — Agora, Nikanj tinha falado apenas por gestos.
Examinei novamente a célula que havia tocado e percebi que, de
alguma forma, tinha localizado e ativado os genes sobre os quais tinha
curiosidade. Esses genes estavam tentando reativar outros semelhantes em
outras células, tentando fazer o corpo de Nikanj secretar hormônios
inapropriados que causariam um crescimento indevido.
O que iria crescer?
— Nada cresceria em mim — Nikanj disse, e percebi que compreendia
minha curiosidade. — A célula vai morrer. Vê? — A célula morreu
enquanto eu a observava. — Eu poderia mantê-la viva — falou. — Por
meio de uma ação consciente, poderia evitar que meu corpo a rejeitasse.
Mas, sem você, eu não poderia ativar genes adormecidos. Meu corpo rejeita
esse tipo de comportamento como sendo… muito autodestrutivo.
— Mas não parecia errado ou perigoso — disse eu. — Parecia apenas…
fora de lugar.
— Fora de lugar, fora de hora. Em Humanos, seria o suficiente para
matar.
Eu não conseguia pensar em nada para dizer. Minha curiosidade foi
consumida pelo medo.
— Quando você os tocar, nunca recue do toque sem conferir se causou
algum dano.
— Não vou tocá-los.
— Você não será capaz de resistir a eles.
Nikanj não duvidava, adivinhava ou desconfiava. Nikanj sabia.
— O que devo fazer? — murmurei. Nikanj não podia errar nessas
coisas. Tinha vivido demais.
— Por enquanto, você só pode tomar cuidado. Depois da sua segunda
metamorfose, vai acasalar e não terá tanto interesse em inspecionar pessoas
que não sejam suas parceiras.
— Mas isso será daqui dois ou três anos.
— Menos, eu acho. Parece que seu corpo vai se desenvolver depressa,
agora. Até lá, você sabe o quanto precisa ter cuidado.
— Não sei se consigo fazer isso. Ter tanto cuidado em cada toque…
— Apenas os toques profundos. — Toques que penetrassem a carne
com tentáculos sensoriais ou, depois, braços sensoriais. Apenas Humanos
podiam se satisfazer com toques mais superficiais.
— Não sei como posso ter tanto cuidado — respondi. — Mas tenho que
ter.
— Sim.
— Então, vou fazer isso.
Nikanj tocou os tentáculos da minha cabeça com vários dos seus,
concordando. Depois, examinou o resto do meu corpo com atenção,
recolhendo informações para o povo. Relaxei e deixei que trabalhasse. No
mesmo instante, Nikanj exclamou:
— Não!
— O quê? — perguntei. Eu realmente não tinha feito nada dessa vez.
Sabia que não.
— Até que você se conheça muito melhor, não pode se permitir relaxar
desse jeito enquanto estiver em contato com outra pessoa. Nunca, nem
comigo. Você é muito competente, é bem capaz de fazer mudanças
minúsculas, mas com potencial mortal nos genes, nas células, nos órgãos. O
que machos, fêmeas e até alguns indivíduos ooloi precisam lutar para
perceber, você não pode deixar de notar, em um ou outro nível. O que é
preciso ensinar a eles, o que precisam se esforçar para fazer, você consegue
fazer quase sem pensar. Tem toda a sensibilidade que eu poderia lhe dar, e é
muita. E tem as habilidades latentes de seus ancestrais Humanos, que já não
estão mais adormecidas em você. Por isso foi capaz de ativar em mim genes
que nem eu posso despertar outra vez. Por isso os Humanos são um tesouro.
Eles nos deram habilidades regenerativas que nunca fomos capazes de obter
em uma permuta antes, mesmo que tenhamos encontrado outras espécies
com elas. Estou aqui porque um Humano foi capaz de compartilhar tal
habilidade comigo.
Nikanj se referia a Lilith, minha mãe hospedeira. Toda criança da
família tinha ouvido aquela história. Um de seus braços sensoriais quase
tinha sido decepado, mas Lilith permitiu que Nikanj se vinculasse ao corpo
dela e ativasse alguns de seus genes altamente especializados, usando o que
tinha aprendido com eles para estimular as próprias células a crescer e
restabelecer as estruturas complexas do braço. Não conseguiria ter feito isso
sem o efeito desencadeador da ajuda genética de Lilith.
A habilidade estava presente em sua família, mas nem ela nem suas
ancestrais tinham sido capazes de controlá-la. Ela tinha ou permanecido
inativa ou ganhado vida de modo insano, casual, desencadeando o
crescimento de tecidos inúteis. Novos tecidos que funcionavam
completamente errado.
Os Humanos chamavam essa condição de câncer. Para eles, era uma
doença detestada. Para os Oankali, era um tesouro. Uma beleza além da
compreensão humana.
Nikanj poderia ter morrido sem a ajuda de Lilith. Se tivesse
sobrevivido, com a mutilação, não poderia ser útil como ooloi. Seus
parceiros teriam de encontrar outra criatura ooloi. Na época, eram jovens.
Poderiam sobreviver ao rompimento e encontrar outra pessoa. Mas, daí, nós
não existiríamos – a prole que Nikanj criou gene por gene, cromossomo por
cromossomo. Uma criatura ooloi diferente teria escolhido uma combinação
diferente, produzido uma série distinta de genes para remendar o conjunto
criado e torná-lo viável. Toda nossa singularidade como constructos era
trabalho de nossa matriz ooloi. Até errar comigo, Nikanj tinha fama pela
beleza de seus filhos e suas filhas. Tinha compartilhado tudo que sabia
sobre a combinação de crianças constructos e, provavelmente, poupado
outras pessoas de dor, dificuldades e erros fatais. Tinha sido capaz de fazer
tudo isso porque, graças a Lilith, tinha dois braços sensoriais funcionais.
— Você poderia devolver os cânceres aos Humanos — Nikanj disse,
despertando-me de meus pensamentos. — Ou poderia afetá-los
geneticamente. Poderia danificar o sistema imunológico deles, provocar
distúrbios neurológicos, problemas glandulares… poderia lhes causar
doenças para as quais não têm nomes. Poderia fazer tudo isso em um único
minuto de desatenção. — Nikanj parou de falar, focando por completo em
mim. — Humanos vão atrair e seduzir você sem perceber o que estão
fazendo, mas não terão defesas contra você. E é bem provável que seja tão
precoce sexualmente quanto qualquer constructo nascido Humano.
— Eu não tenho braços sensoriais — disse eu. — O que posso fazer, em
termos sexuais, até que eles cresçam? — Eu não tinha mais nada entre
minhas pernas. Ninguém poderia me ver nu e me confundir com um
macho… ou uma fêmea. Eu era um subadulto do sexo ooloi e seria assim
por anos, ou talvez apenas meses, se Nikanj tivesse razão a respeito da
velocidade de meu amadurecimento.
— Você será capaz de obter prazer de uma nova sensação — disse
Nikanj. — Em especial, do sabor complexo, assustador e promissor dos
Humanos. Eu não gostava muito deles quando estava na fase subadulta
porque podia dar pouco em troca. Sentia o sabor de Lilith quando podia
curá-la ou fazer alterações necessárias. Mas não podia dar prazer até chegar
à idade adulta. Você pode ser capaz disso agora, com seus tentáculos
sensoriais.
Eu retraí meus tentáculos sensoriais, apertando-os contra meu corpo.
Pensei naquele casal Humano que conhecera um pouco antes de cair no
sono, meses antes. A essa altura, eles estavam a caminho de Marte. Mas que
sabor teriam? A fêmea poderia ter me permitido descobrir. Mas o macho…?
Como ooloi seduziam machos Humanos? Machos eram desconfiados,
hostis, perigosos. De repente, desejei muito experimentar o sabor de um. Eu
já havia tocado meu pai Humano e outros machos acasalados antes da
minha mudança, mas na época não tinha tanta percepção. Eu queria tocar
um desconhecido não acasalado, talvez um potencial parceiro.
— Precoce — disse Nikanj, categórico. — Atenha-se aos constructos
por um tempo. Eles não são indefesos. Mas até eles podem ser feridos. Você
pode prejudicá-los com tanta sutileza que ninguém perceberá o problema
até se tornar sério. Tenha mais cuidado do que jamais teve.
— Vão permitir que eu os toque?
— Não sei. As pessoas não decidiram ainda.
Pensei em como seria passar minha idade subadulta na floresta, só,
tendo como companhia apenas minhas matrizes, e meus irmãos e minhas
irmãs que ainda não tinham acasalado. Um calafrio percorreu meu corpo e
Nikanj encostou seus tentáculos sensoriais nos meus, com preocupação.
— Quero que me aceitem — disse eu, sem necessidade.
— Sim. Posso perceber que qualquer exílio seria difícil e ruim para
você. Mas… talvez um exílio em Chkahichdahk fosse menos difícil. Meus
progenitores ainda estão lá. Receberiam você.
Exílio na nave.
— Você disse que não deixaria que me levassem!
Nikanj queria dizer: contanto que eu não ficasse mais infeliz só, apenas
com a família, do que acreditava que ficaria se me separassem dela e me
enviassem para a nave. Humanos tinham a tendência de não entender ooloi
que diziam coisas como aquela. Achavam que ooloi estavam prometendo
que não fariam nada até que os Humanos dissessem que tinham mudado de
ideia – até que falassem isso a uma criatura ooloi com a boca, em palavras.
Mas ooloi percebiam tudo que um ser vivo dizia, todas as palavras, todos os
gestos, e uma série extensa de outras reações corporais internas e externas.
Ooloi absorviam tudo e agiam de acordo com qualquer consenso que
descobrissem. Por isso, ooloi tratavam um indivíduo como tratavam grupos
de indivíduos. Buscavam consenso. Se não houvesse nenhum, isso
significava que aquele ser estava confuso, não sabia ou temia algo, ou que,
de alguma outra maneira, ainda não era capaz de enxergar os próprios
interesses. Ooloi transmitiam informações e talvez tranquilidade até
conseguirem perceber um consenso. Então, agiam.
Se Nikanj algum dia percebesse que eu precisava mais de parceiros do
que da minha família, me mandaria para a nave, não importando o que eu
dissesse.
5

À medida que os dias passavam, eu me tornava mais forte. Esperava,


desejava, implorava intimamente que Nikanj nunca tivesse um
motivo para procurar por consenso em mim. Se ao menos a população
confiasse, percebesse que eu tinha tanto interesse em usar minhas novas
habilidades para ferir outras criaturas vivas quanto para me ferir…
Infelizmente, muitas vezes eu fazia as duas coisas. Todos os dias,
Nikanj tinha de corrigir algum dano que eu havia causado a Lo – à
plataforma na qual me deitava. A cor natural de Lo era marrom-
acinzentado. Abaixo de mim, se tornou amarela. Criou intumescências.
Apareceram manchas endurecidas, doentias. Seu odor mudou e se tornou
repugnante. Algumas partes se soltaram. Às vezes, apresentava feridas
profundas.
E tudo isso que eu fazia a Lo, fazia a mim. Mas era por Lo que eu sentia
culpa. Lo era matriz, figura fraterna, casa. Era o mundo em que eu nascera.
Como ooloi, eu teria de deixar Lo quando acasalasse, mas entrelaçado com
sua estrutura genética e a minha estava a assinatura inconfundível do grupo
de parentesco Lo. Eu teria feito de tudo para não lhe causar dor.
Levantei de minha plataforma assim que consegui e recolhi galhos
mortos para fazer de cama.
Lo comeu os galhos. Não era inteligente o suficiente para que eu
apresentasse argumentos – e não seria por uma centena de anos, talvez. Mas
era autoconsciente. Sabia o que era e o que não era parte de seu ser. Eu era
parte de Lo, uma de suas muitas partes. Mas não seria se ficasse distante, se
uma quantidade tão grande de matéria morta nos separasse. Lo preferia
qualquer dor que eu lhe causasse à ânsia nada natural de uma aparente
rejeição.
Então, continuei lhe causando dor até me recuperar por completo. A
essa altura, eu já sabia, tão bem quanto qualquer outra pessoa, que teria de
partir. A população ainda queria que eu fosse para Chkahichdahk porque a
nave era um organismo muito mais velho e resistente. Podia, como a
maioria das criaturas ooloi, se proteger e se autocurar. Lo seria igualmente
resistente um dia, mas ainda levaria mais de um século. E, na nave, eu
poderia ficar sob a observação de muitos outros ooloi que já tinham
amadurecido.
Ou poderia ficar em exílio na Terra, antes de causar mais danos a Lo ou
a alguém em Lo. Essas eram as minhas opções. Através de Lo, Nikanj tinha
controlado o ar em meu quarto. Tinha visto que eu não havia alterado os
micro-organismos com os quais entrara em contato. E, do lado de fora, os
insetos me evitavam como evitavam todos os Oankali e constructos. Então,
a população permitiria que eu me exilasse na Terra.
Sem uma conversa franca, nos preparamos para partir. Meu pai e minha
mãe Humanos empacotaram as coisas com tecidos das redes de Lo: livros
de antes da guerra, ferramentas, roupas extras e alimentos do jardim de
Lilith, cultivados em solo terrestre, não na substância de Lo. Tanto Lilith
quanto Tino sabiam que seus parceiros Oankali supririam todas suas
necessidades físicas, embora não conseguissem aceitar com facilidade essa
dependência completa. Essa era uma característica dos adultos Humanos
que os Oankali nunca compreenderam. Os Oankali apenas a aceitavam da
melhor maneira que podiam e ficavam satisfeitos em ver que nós,
constructos, compreendíamos.
Fui até minha mãe Humana e a observei empacotando suas coisas. Não
toquei nela – não tocava nenhum Humano desde que minha metamorfose
havia acabado. Como lembrete de minha condição instável, eu tinha
desenvolvido uma protuberância dura, áspera, na mão direita. Eu a tinha
reabsorvido, deliberadamente, duas vezes, mas todas as noites ela voltava a
crescer. Vi Lilith olhando para aquilo.
— Vai sarar — eu disse a ela. — Nikanj vai me ajudar com isso.
— Dói? — ela perguntou.
— Não. Só parece… errado. Como um peso amarrado onde não deveria
estar.
— Por que isso é errado?
Olhei para a protuberância. Era vermelha e irregular em alguns pontos,
áspera devido a carne desfigurada e sangue seco. Sempre parecia sangrar
um pouco.
— Eu a provoquei — disse eu —, mas não sei como fiz isso. Resolvi
alguns problemas óbvios, mas a protuberância continua voltando.
— Como você está, fora isso?
— Bem, eu acho. E, quando Ooan me mostrar como resolver isso, vou
me lembrar.
Acho que meu cheiro estava começando a incomodar. Ela se afastou,
mas olhou para mim como se quisesse me tocar.
— Como posso ajudar você? — ela perguntou.
— Empacote as coisas para mim.
Ela pareceu surpresa.
— O que devo colocar?
Hesitei, com medo de que minha resposta pudesse feri-la. Mas eu queria
uma mochila e apenas ela podia fazê-la de forma satisfatória.
— Talvez eu não volte a morar aqui — disse eu.
Ela piscou, olhando para mim com o sofrimento que eu tinha esperado
não ver.
— Quero coisas humanas — falei. — Coisinhas humanas que você e
Tino abandonariam. E quero inhame da sua horta… e mandioca e frutas e
sementes. Amostras de todas as sementes ou o que for necessário para
plantar suas plantas.
— Nikanj pode dar células amostrais para você.
— Eu sei… mas você pode?
— Sim.
Hesitei de novo.
— Eu teria que ir embora de Lo de qualquer forma, você sabe. Mesmo
sem esse exílio, não poderia acasalar aqui, onde tenho parentesco com
quase todo mundo.
— Eu sei. Mas vai demorar um pouco até você acasalar. E se estivesse
indo embora para isso, veríamos você outra vez. Se você tiver de ir para a
nave… talvez não.
— Eu pertenço a este mundo — falei. — Pretendo ficar. Mesmo assim,
quero algo seu e de Tino.
— Tudo bem.
Nós nos entreolhamos como se já estivéssemos nos despedindo – como
se apenas eu estivesse partindo. Então eu a deixei, para fazer uma última
caminhada por Lo e me despedir das pessoas com quem tinha passado a
vida. Lo era mais do que uma cidade. Era um grupo familiar. Todos os
Oankali machos e fêmeas eram, de alguma forma, aparentados. Todos os
constructos também, exceto alguns machos que vieram de outras cidades.
Os Oankali de sexo ooloi tinham se tornado parte de Lo quando acasalaram
ali. E qualquer Humano que permanecesse em um relacionamento com uma
família Oankali era um parente mais próximo do que a maioria dos
Humanos percebia.
Foi difícil dizer adeus a essas pessoas, saber que talvez não as visse
nunca mais. Foi difícil não tocar nelas e não permitir que me tocassem. Mas
eu certamente faria a algumas delas o que continuava fazendo a Lo – as
mudaria, prejudicando-as enquanto continuasse mudando e me
prejudicando. Por ser ooloi e constructo, em teoria, eu conseguiria
sobreviver a mais danos do que elas. Teria de informar Nikanj caso tocasse
em alguém.
Em todos os lugares aonde ia, ooloi me observavam com uma mistura
de suspeita e esperança, medo e carência. Se eu não aprendesse a ter
controle, quanto tempo demoraria até que pudessem ter uma criança do seu
sexo? Eu podia prejudicá-las mais do que qualquer outra pessoa que
conheciam. Os cones de tentáculos de suas cabeças, pontiagudos e atentos,
me seguiam por toda parte e pesavam sobre mim como toras. Se alguma
coisa pudesse me alegrar quanto ao afastamento, seria distância dessa
atenção intensa e constante.
Fui até Tehkorahs, ooloi da nossa vizinhança cujos parceiros Humanos
eram particularmente próximos de meus progenitores Humanos.
— Você acha que eu deveria ir para o exílio na nave? — perguntei.
— Sim. — Sua voz era mais suave do que a maioria das vozes ooloi.
Por isso, preferia nunca falar em voz alta. Mas os gestos eram estéreis sem
o toque para suplementá-los e nem mesmo Tehkorahs tocaria em mim.
Aquilo doeu porque Tehkorahs era ooloi e estava a salvo de qualquer coisa
que eu poderia fazer. — Sim — repetiu de modo inusitado.
— Por quê? Você me conhece. Não vou tocar nas pessoas. Vou aprender
a ter controle.
— Se conseguir.
— Sim...
— Há rebeldes na floresta. Se ficar ali por tempo suficiente, encontrarão
você.
— A maioria deles emigrou.
— Muitos. Não a maioria.
— Não vou tocar neles.
— Claro que vai.
Abri minha boca, depois a fechei diante da certeza de Tehkorahs, que
não tinha reservas, nada a esconder. Falava o que acreditava ser a verdade.
Depois de algum tempo, Tehkorahs disse:
— Qual o tamanho da sua fome?
Não respondi. Não estava perguntando o quanto eu queria comida, mas
quando tinha sido tocado pela última vez. Quando eu estava prestes a ir
embora, Tehkorahs me ofereceu os quatro braços. Hesitei, então me envolvi
em seu abraço.
Não estava com medo de mim. Era um incêndio florestal de
curiosidade, anseio e terror, e se manteve confortável e confiante enquanto
me examinava com cada tentáculo que me alcançasse e os dois braços
sensoriais.
Nutrimo-nos. Minha ânsia era pelo toque e a de Tehkorahs era por saber
e compreender tudo por experiência própria. Observando Tehkorahs,
compreendi que sua busca era, principalmente, por autoafirmação. Queria
vislumbrar, pela compreensão do meu corpo, que eu iria obter o controle.
Queria que eu fosse um sucesso nítido, para saber que teria permissão de ter
crianças de seu sexo. Em breve.
Quando me soltou, ainda não compreendia.
— Você estava com muita fome — falou. — E isso com as pessoas
evitando você há apenas um ou dois dias. — Tehkorahs enrolou seus
tentáculos da cabeça e do corpo em nódulos bem apertados contra sua
carne. — Você sabia algumas coisas sobre o que nós, ooloi, podemos fazer,
mas acho que não tinha ideia de quanto precisamos do contato com outras
pessoas. E parece precisar disso mais do que nós. Passe mais tempo com
seu par fraterno ou pode se tornar perigoso.
— Não quero prejudicar Aaor.
— Nikanj irá curar Aaor até que você aprenda a fazer isso. Se é que vai
aprender.
— Ainda assim, não quero causar-lhe danos.
— Acho que você não pode causar-lhe muitos danos. Mas não ter
ninguém que ofereça conforto pode tornar você igual a um raio: negligente
e, talvez, fatal.
Olhei para Tehkorahs, com os tentáculos de minha cabeça estendidos
para a frente, concentrados.
— O que você descobriu quando me examinou? Você não se satisfez.
Acha que não consigo aprender a ter controle?
— Não sei se consegue ou não. Não conseguiria dizer. Nikanj diz que
você consegue, mas que será difícil. Não sei o que viu para chegar a essa
conclusão. Talvez só enxergue a primeira criança que terá o mesmo sexo
que o seu.
— Ainda acha que eu devo ir para a nave?
— Sim. Para o seu bem. Para o bem de todo mundo. — Esfregou a mão
direita e vi que tinha desenvolvido uma cópia de meu tumor recorrente,
áspero.
— Desculpe — disse eu. — Você sabe o que eu fiz de errado para
causar isso?
— Uma combinação de coisas. Ainda não compreendo todas elas. Você
deveria mostrar isso a Nikanj, agora.
— Você vai ficar bem?
— Sim.
Olhei para Tehkorahs, já sentindo sua falta: era uma criatura ooloi
menor do que a média, de cor cinza pálido, do grupo de parentesco Jah.
Desenrolou um braço sensorial e tocou um ponto sensorial em meu rosto.
Conseguia enxergar os pontos, assim como eu conseguia agora. A textura
deles era ligeiramente mais áspera do que a da pele à sua volta. Tehkorahs
fez daquele contato um choque de prazer, doce e sutil, que me inundou
como uma chuva repentina e fria.
Afastou-se devagar. Um adeus.
6

C hovia quando partimos. Temporal. Uma cachoeira intermitente do


céu. Lilith disse que chuvas como aquela aconteciam para nos
lembrar de que vivíamos na floresta tropical. Ela tinha nascido em um lugar
deserto chamado Los Angeles. Amava as chuvas torrenciais, repentinas.
Éramos onze. Meus cinco progenitores. Aaor e eu, Oni e Hozh, Ayodele
e Yedik. Os quatro últimos eram meus irmãos e minhas irmãs mais novos.
Podiam ter ficado com alguns de nossos irmãos e irmãs adultos, mas não
quiseram. Não os culpo. Naquela fase anterior à metamorfose, eu também
não teria gostado de me separar das pessoas que nos criavam. Mesmo
agora, entre metamorfoses, precisava delas. E a família teria se sentido mal
sem os mais novos. Agora, meus progenitores só tinham um par de crianças
por década. Normalmente, já teriam começado o novo par. Mas durante os
meses de minha metamorfose, decidiram esperar até poder retornar a Lo…
com ou sem mim.
Primeiro, nos dirigimos à horta de Lilith para colher mais algumas
frutas e vegetais frescos. Acho que ela e Tino só queriam ver o lugar outra
vez.
— De qualquer forma, está na hora de dar descanso ao solo — disse
Lilith enquanto caminhávamos. Ela mudava a localização da horta de
poucos em poucos anos e deixava o solo da floresta se recuperar. Com essas
mudanças e seu costume de usar fertilizantes e lama do rio, ela tinha usado
e reusado a terra além de Lo por um século. Abandonava as hortas apenas
quando Lo crescia e chegava muito perto delas.
Mas aquela horta tinha sido destruída.
Não tinha sido apenas invadida. Invasões aconteciam, às vezes.
Rebeldes temiam invadir as cidades oankali – tinham medo de que os
Oankali começassem a enxergá-los como ameaça e os enviassem
permanentemente para a nave. Mas era nítido que as hortas de Lilith não
eram oankali. Os rebeldes sabiam disso e pareciam se sentir livres para
roubar frutas ou plantas inteiras. Lilith nunca pareceu se importar. Ela sabia
que os rebeldes pensavam nela, em qualquer Humano que se acasalava,
como alguém que traíra a Humanidade, mas nunca pareceu se ressentir
deles.
Dessa vez, quase tudo que não fora roubado acabara destruído. Melões
tinham sido pisoteados ou esmagados contra o solo e as árvores. A fileira de
mamoeiros no meio da horta tinha sido derrubada. Os pés de feijão, ervilha,
milho, inhame, mandioca e abacaxi tinham sido arrancados e pisoteados. Os
castanheiros, figueiras e pés de fruta-pão que tinham quase um século de
existência haviam sido destroçados com picaretas e queimados, embora o
fogo não tivesse destruído a maior parte deles. As bananeiras tinham sido
tombadas.
— Merda! — murmurou Lilith. Ela observou a destruição por um
instante e então se virou e foi até a beira da horta. Ficou ali, de costas para
nós, com o corpo muito reto. Pensei que Nikanj iria até ela para oferecer
conforto. Em vez disso, começou a colher e podar os últimos talos de
mandioca. Aqueles poderiam ser replantados. Ahajas encontrou um pé
intacto de bananas em maturação e Dichaan achou vários inhames
desenterrados, embora as partes das plantas que ficavam acima do solo
estivessem quebradas e espalhadas. Oankali e constructos podiam encontrar
raízes e tubérculos comestíveis com facilidade ao se sentarem no chão e
escavá-lo com os tentáculos sensoriais em suas pernas. Esses tentáculos
corporais curtos podiam se esticar muito além de seu comprimento de
repouso.
Foi Tino quem se aproximou de Lilith. Ele parou à frente dela e disse:
— Que diabos? Você sabe que terá outras hortas.
Ela assentiu.
A voz dele ficou mais branda.
— Acho que nos conhecemos nesta. Lembra?
Ela assentiu outra vez e parte da rigidez desapareceu de sua postura.
— Quantas crianças vieram depois disso? — ela perguntou, com
brandura. O humor em sua voz me surpreendeu.
— Mais do que eu jamais esperei ter — disse ele. — Mas talvez não o
suficiente.
Ela riu. Tocou-lhe os cabelos, que ele usava compridos e presos com um
cordão de relva em um longo rabo de cavalo que descia por suas costas. Ele
tocou os cabelos dela, uma nuvem negra macia em volta de seu rosto. Eles
podiam tocar os cabelos um do outro sem dificuldade porque cabelos eram,
por essência, tecido morto. Eu já tinha visto os dois se tocarem daquela
maneira antes. Era a única que lhes restava.
— Por mais que eu amasse minhas hortas — disse ela —, nunca as
cultivei apenas para mim ou para nós. Queria que os rebeldes pegassem o
que precisassem.
Tino desviou o olhar, percebeu que estava encarando os mamoeiros
derrubados e virou a cabeça outra vez. Ele tinha sido um rebelde, passara
grande parte da vida entre pessoas que acreditavam que Humanos que
acasalavam com Oankali eram traidores e que qualquer coisa que pudesse
ser feita para prejudicá-los era boa. Tinha abandonado seu povo porque
queria ser pai. A colônia em Marte não existia na época. Ou os Humanos
viviam com os Oankali ou passavam a vida sem procriar. Uma vez, Lilith
me contou que Tino não abdicou de verdade das crenças rebeldes dele até
que a colônia em Marte foi fundada e seu povo conseguiu escapar dos
Oankali. Ela nunca foi rebelde. Foi colocada junto com Nikanj, que tinha
mais ou menos a minha idade. Na época, não entendeu o que aquilo
significava e ninguém explicou. Nikanj disse que ela não parou de tentar
escapar até que um de meus irmãos convenceu a população Oankali a
permitir que os Humanos da resistência se estabelecessem em Marte.
Por um lado, a colônia em Marte libertou meu pai e minha mãe
Humanos para encontrar o prazer que podiam em suas vidas. Mas, por
outro, não ajudou em nada. Ainda sentiam culpa, como se tivessem
desertado o próprio povo pelos alienígenas, como se ainda desconfiassem
de que eram os traidores que os rebeldes os acusavam de ser. Nenhuma
criatura Humana conseguia enxergar o conflito genético que tornava sua
espécie tão vulcânica, tão determinada a destruir a si mesma. Por isso,
talvez, nenhum ser Humano acreditasse completamente nesse conflito.
— Sempre fiquei feliz quando pegavam plantas inteiras — Lilith estava
falando. — Algo para se alimentarem no momento e algo para transplantar
depois.
— Alguns amendoins sobreviveram — disse Tino. — Você quer? —
Ele se abaixou para arrancar alguns dos pés pequenos em meio ao solo fofo
que eu vira Lilith preparar.
— Deixe-os — ela falou. — Tenho um pouco. — Então se virou para a
horta e viu os membros Oankali da família colocando o que tinham
recolhido em um forro feito com folhas de bananeira sobrepostas. Ahajas
impediu Oni de comer um mamão recuperado e mandou-a contar a Lo o
que havia acontecido e a comida que estava sendo deixada. Oni nasceu
Humana e com uma aparência tão enganosa que eu continuava pensando
nela como mulher, mas ainda demoraria mais de dez anos para que ela
tivesse algum sexo.
— Espere — disse Lilith.
Oni parou perto dela, olhando-a de baixo para cima.
Lilith foi até Dichaan.
— Você pode ir? — Ela perguntou.
— As pessoas que fizeram isso se foram, Lilith — ele respondeu. —
Desapareceram há mais de um dia. Não há som deles, nem odor recente…
— Eu sei. Mas… só para eu ficar tranquila, você vai?
— Sim. — Ele se virou e se foi. Só iria até a beirada de Lo, onde
algumas das árvores e plantas menores não eram o que pareciam ser.
Lá, poderia sinalizar a Lo, por meio de toques, e Lo transmitiria a
mensagem exata para as próximas pessoas que abrissem uma parede,
pedissem comida ou, de alguma forma, entrassem em contato direto com o
ente. Transmitiria a mensagem de oito a dez vezes, depois pararia e a
arquivaria. Não poderia esquecê-la, assim como nós não podíamos, mas, a
menos que alguém solicitasse a lembrança, Lo nunca mais incomodaria
ninguém com ela. Os Humanos não podiam nem deixar nem receber tais
mensagens. Mesmo que Lilith e alguns outros tivessem aprendido um
pouco do que chamavam de códigos oankali, seus dedos não eram sensíveis
o bastante para receber mensagens, nem finos e penetrantes o suficiente
para enviá-las.
Oni observou Dichaan partir e depois voltou até Hozh, que havia
terminado de comer o mamão. Ficou perto dele. Ele não era mais masculino
do que ela era feminina, mas era mais fácil continuar pensando neles como
eu sempre pensara. Os dois passaram, de forma automática, à comunicação
silenciosa. Sempre que ficavam próximos daquele jeito, os tentáculos
sensoriais de Hozh encontravam imediatamente os pontos sensoriais de Oni
(ela tinha poucos tentáculos sensoriais próprios) e estabelecia a
comunicação. Eram um par fraterno.
Observá-los fez eu me sentir só e olhei em volta procurando Aaor. Vi
que estava olhando para mim. Vinha me evitando, com cuidado, desde que
me levantara após a metamorfose. Deixei que mantivesse distância, apesar
do que Tehkorahs me disse, porque Aaor obviamente não queria contato.
Não parecia precisar de mim tanto quanto eu precisava de sua companhia.
Enquanto eu observava, afastou-se de mim e concentrou sua atenção em um
grande besouro.
Lilith e Tino se juntaram ao grupo que esperava Dichaan.
— Isso é só o começo — avisou Lilith, sem se dirigir a ninguém em
particular. — Conheceremos pessoas como as que destruíram esta horta.
Mais cedo ou mais tarde elas nos encontrarão e virão atrás de nós.
— Você tem seu facão — comentou Nikanj. Não conseguiria obter mais
atenção se tivesse gritado. Eu me concentrei em Nikanj a ponto de eliminar
todo o resto, sentindo como se algo me puxasse a olhar de frente. O povo
Oankali não apregoava a violência. Os Humanos diziam que ela era contra
as crenças oankali. Na verdade, era contra sua constituição, contra todas as
células deles. Os seres Humanos evoluíram da vida hierárquica, dominando
e, muitas vezes, eliminando outras formas de vida. Os Oankali evoluíram da
vida aquisitiva, se reunindo e se misturando com outras formas de vida.
Matar não era simplesmente um desperdício para os Oankali – era tão
inaceitável quanto extirpar os próprios membros saudáveis. Eles só lutavam
a fim de salvar suas vidas e as vidas dos outros. Mesmo assim, lutavam para
subjugar, não para matar. Se fossem obrigados a matar, recorriam a armas
biológicas coletadas geneticamente em milhares de mundos. Podiam ser
incrivelmente mortíferos, mas pagariam por isso mais tarde. A violência
lhes custava tão caro que não tinham nenhum histórico de atacarem por
raiva, frustração, ciúme ou qualquer outra emoção, não importando a
intensidade com a qual a sentissem. Quando matavam, mesmo para salvar
vidas, eles mesmos morriam um pouco.
Eu sabia de tudo isso porque era algo que fazia parte de mim tanto
quanto deles. A vida era um tesouro. O único tesouro. Fora Nikanj quem
tornara aquilo parte de mim. Como poderia ser Nikanj a sugerir que alguém
matasse?
— Nika? — sussurrou Ahajas, soando como eu me sentia. Sem
entender, sem acreditar.
— Eles têm que proteger suas vidas e a família — murmurou Nikanj. —
Se isto fosse apenas uma jornada, poderíamos protegê-los. Nós os
protegemos antes. Mas estamos saindo de casa. Vamos viver isolados dos
outros por… não sei, talvez por muito tempo. Haverá momentos em que
não estaremos com eles. E há rebeldes que os matariam assim que os
vissem.
— Não quero que ninguém morra por minha causa — disse eu. —
Pensei que estivéssemos indo embora para salvar vidas.
Nikanj concentrou-se em mim, estendeu um braço sensorial e me puxou
para perto de si.
— Estamos saindo porque a floresta é o único lugar onde podemos
viver juntos como uma família — falou. — Ninguém vai morrer por sua
causa.
— Mas…
— Se morrerem, será apenas porque se esforçaram muito para nos fazer
matá-los.
Meus irmãos, minhas irmãs e meus outros progenitores começaram a
desviar a atenção de Nikanj, que nunca tinha dito esse tipo de coisa antes.
Fixei meus olhos em Nikanj e enxerguei o que eles haviam perdido. Estava
quase adoecendo com aquela conversa. Estaria mais feliz colocando a mão
no fogo.
— Existem maneiras mais fáceis de dizer essas coisas — admitiu. —
Mas algumas coisas não devem ser ditas com facilidade. — Hesitou quando
Dichaan se juntou a nós. — Só nos afastaremos do grupo em pares. Não
sairemos se não for necessário. Vocês, crianças, devem cuidar umas das
outras. Haverá coisas novas para provar e entender por toda parte. Se seu
irmão ou sua irmã estiver provando algo, fiquem de guarda. Se enxergarem
ou sentirem o cheiro de seres Humanos, se escondam. Se pegarem vocês ao
ar livre, corram, mesmo que signifique levar um tiro. Se derrubarem vocês,
gritem. Façam o máximo de barulho possível. Não deixem que levem você
embora. Lutem. Tornem inconveniente reter vocês. Se eles parecerem ter a
intenção de matar, deem uma ferroada.
Os tentáculos de cabeça e do corpo de meus irmãos e minhas irmãs
pendiam sem direcionamento. As ferroadas de machos, fêmeas e crianças
eram letais.
— Quando estiverem livres, venham até mim ou me chamem. Talvez eu
consiga salvar a pessoa que vocês feriram. — Nikanj parou de falar. —
Essas são coisas terríveis. Se ficarem com o grupo e permanecerem alertas,
não precisarão fazê-las.
Todos começaram a ganhar vida novamente, concentrando alguns
tentáculos em Nikanj e compreendendo por que falava tão francamente.
Éramos todos difíceis de matar. Até nossos progenitores Humanos foram
modificados, fortalecidos, e se tornaram mais capazes de sobreviver a
ferimentos. O principal perigo era ser dominado ou sequestrado. Uma vez
que nos levassem para longe da família, qualquer coisa poderia ser feita
conosco. Talvez, por um tempo, Humanos desesperados por crianças
adotassem Oni e Hozh. O resto de nós parecia muito com seres Humanos
ou Oankali adultos. As pessoas que pareciam do sexo feminino seriam
estupradas. Aquelas que pareciam do sexo masculino seriam mortas. Os
Humanos teriam todo o tempo de que precisassem para nos bater, cortar e
atirar em nós até morrermos. A menos que nós os matássemos.
Melhor nunca ficar naquela posição.
Nikanj se concentrou em Lilith e Tino por vários segundos, mas não
disse nada. Já os conhecia. Sabia que fariam o máximo possível para não
matar o próprio povo – e sabia que se ressentiriam de ordens para ter
cuidado. Eu tinha visto Oankali cometerem o erro de tratar os Humanos
como crianças. Era um erro fácil de cometer. A maioria dos Humanos era
mais vulnerável do que suas próprias crianças, ainda não completamente
crescidas. Os Oankali tentaram cuidar deles. Os Humanos reagiram com
raiva, ressentimento e retraimento. A maneira de Nikanj era melhor.
Por um instante, Nikanj voltou sua atenção para mim. Eu ainda estava
ao seu lado, com um caracol de seu braço sensorial direito em volta do meu
pescoço. Com o braço sensorial esquerdo, gesticulou para Aaor.
— Não! — sussurrei.
Nikanj me ignorou. Aaor veio em nossa direção, devagar, todo o seu
corpo ecoando o meu “não”. Tinha medo de mim. Medo de se machucar?
— Você entende o que está sentindo? — Nikanj lhe perguntou quando
chegou perto o suficiente para que seu braço sensorial envolvesse o pescoço
de Aaor.
Aaor balançou a cabeça do modo humano.
— Não. Não quero evitar Jodahs. Não sei por que faço isso.
— Eu entendo — Nikanj falou. — Mas não sei se posso ajudar você.
Isso é algo novo.
Aquilo chamou a atenção de Aaor. Qualquer coisa nova era interessante.
— Pense, Eka. Quando foi que alguma criança ooloi já formou uma
dupla com um irmão ou uma irmã?
Eu quase não vi a surpresa de Aaor, de tão envolvido com a minha
própria. É claro que ooloi não formavam duplas com irmãs ou irmãos no
sentido usual. No interior das famílias oankali, as fêmeas tinham três
crianças, uma logo após a outra. Uma se tornava do sexo masculino, uma
do sexo feminino e uma do sexo ooloi. Suas inclinações decidiriam quem se
tornava o quê. Macho e fêmea metamorfoseavam e encontravam um
parceiro ooloi não aparentado para acasalar. Cada ooloi tinha sua fase
subadulta para amadurecer completamente. Ainda era considerada criança,
a única criança que conhecia seu sexo. E ficava sozinha até se aproximar da
segunda metamorfose e encontrar parceiros. Eu deveria ter apenas meus
pais ao meu redor agora. Mas onde ficaria Aaor?
— Parem de fugir um do outro — disse Nikanj. — Descubram o que é
mais confortável para vocês. Façam o que seus corpos dizem que está certo.
Esta é uma relação nova. Vocês encontrarão o caminho para os outros e para
si.
— Se Aaor me tocar, a cura caberá a você — falei.
— Eu sei. — Nikanj alisou os tentáculos de cabeça e corpo em uma
reação que não era divertida. — Ao menos, acho que sei. Isso também é
novo para mim. Aaor, venha a mim todos os dias para exame e cura. Venha
mesmo se acreditar que não há nada errado. Jodahs pode fazer mudanças
muito sutis e importantes. Venha imediatamente se sentir dor ou se notar
algo errado.
— Ooan, me ajude a entender — pediu Aaor. — Deixe-me chegar a
Jodahs através de você.
— Devo? — Nikanj me perguntou em silêncio.
— Sim — respondi da mesma maneira.
Nikanj nos entrelaçou em uma união neurossensorial ininterrupta.
E foi como estivéssemos nos tocando novamente, sem nada entre nós.
Senti o sabor único de Aaor. Era como uma parte de mim, entorpecida, com
a qual não fazia contato havia muito tempo, mas tão incrivelmente bem-
vinda que eu só podia me afundar nela.
Aaor não me disse nada. Só queria me reconhecer, me conhecer como
ooloi. Queria entender o mais profundamente possível as mudanças que
tinham acontecido em mim. E Aaor me fez entender, sem palavras, como
tinha ficado só, como me desejava de volta. Era completamente antinatural
um par fraterno estar próximo e evitar se tocar.
Sem usar palavras, Aaor pediu a soltura de nós dois e Nikanj aquiesceu.
Por um segundo, fiquei ciente apenas dos sons de sapos e insetos, da chuva
caindo das árvores, do sol atravessando as nuvens. Ninguém na família se
moveu ou falou. Eu não tinha percebido que estavam todos focados em nós.
Comecei a olhar ao redor, então Aaor se aproximou de mim e me tocou.
Estendi-lhe todos os meus tentáculos sensoriais e os seus, mais numerosos,
se esticaram na minha direção. Isso era normal. Era isso que pares fraternos
deveriam poder fazer quando quisessem.
Por um momento, o alívio me dominou de novo. Minhas axilas
coçavam exatamente onde meus braços sensoriais cresceriam algum dia. Se
eu já tivesse esses braços, não teria conseguido mantê-los longe de Aaor.
— Já não era sem tempo — disse Ahajas. — Vocês dois, cuidem um do
outro.
— Vamos — chamou Tino.
Nós o seguimos para fora da horta em ruínas, movendo-nos em fila pela
floresta. Ele sabia de um lugar que, ao que parecia, seria um bom terreno
para acampamento, com bastante espaço e longe de outros assentamentos
de qualquer tipo. Todo mundo temia que eu provocasse alterações na vida
vegetal e animal.
Essas mudanças poderiam se espalhar como doenças; na verdade,
poderiam ser doenças. Os adultos da família não sabiam se poderiam
detectar e desativar cada alteração. Cedo ou tarde, outras pessoas teriam de
lidar com algumas delas. A ideia era nos isolarmos a fim de minimizar e
localizar qualquer limpeza que precisasse ser feita posteriormente. O lugar
que Tino havia encontrado anos antes era uma ilha, uma grande ilha com
uma nova vegetação de embaúbas em uma extremidade e uma mistura de
vegetações antigas no resto. Ela estava descendo o rio com a lentidão das
ilhas fluviais – a lama retirada de uma extremidade era depositada mais à
frente, na outra. Todos os adultos se lembraram de um lugar como aquele
criado a bordo da nave e usado para treinar seres Humanos para viver na
floresta. Nenhum deles gostou dali. Agora, estavam sendo levados ao lugar
de verdade, por minha causa.
Em certo momento, no meio da tarde, as axilas de Aaor começaram a
coçar e doer. Quando foi procurar Nikanj para proceder à cura, inchaços
tinham começado a aparecer. Ao que parecia, eu tinha levado o corpo
imaturo e sem sexo de Aaor a tentar desenvolver braços sensoriais. Em vez
disso, estava desenvolvendo tumores potencialmente perigosos.
— Sinto muito — falei quando Nikanj terminou.
— Apenas descubra o que você fez de errado — Nikanj me respondeu,
em tom triste. — Descubra como evitar fazer isso outra vez.
Esse era o problema. Eu não tinha consciência de ter feito nada a Aaor.
Se tivesse sentido que estava fazendo algo, teria parado. Pensei que tinha
agido com cuidado. Eu era como um Humano cego, pisando no que não
podia enxergar. Mas a visão de um Humano cego podia ser restaurada. O
que eu estava deixando passar era algo que nunca tivera ou, pelo menos,
algo que nunca havia descoberto.
— Descubra o mais rápido possível para que possamos ir para casa —
disse Aaor.
Eu me concentrei na trilha à frente, em cheirar ou ouvir estranhos. Não
consegui pensar em nada para dizer.
7

A ilha deveria estar a três dias de caminhada rio acima. Pensamos que
conseguiríamos chegar em cinco, já que tínhamos de desviar de
Pascual, um assentamento rebelde ribeirinho hostil ao extremo. Fora
provavelmente o povo de lá que destruíra a horta de Lilith. Agora iríamos
nos afastar muito de nosso caminho para evitar retaliá-los. Muitas daquelas
pessoas talvez não sobrevivessem ao contato comigo.
Nunca pensamos que estávamos em perigo por causa de Pascual porque
o povo de lá sabia melhor do que a maioria dos rebeldes o que acontecia a
quem nos atacava. A aldeia deles, já minguada pela emigração, seria
atingida por gás – e os agressores, caçados pelo cheiro, encontrados e
exilados na nave. Lá, se tivessem cometido assassinatos, seriam mantidos
inconscientes ou drogados para sentir prazer e satisfação. Nunca teriam
permissão para despertar por completo. Seriam usados como material para
estudos, sujeitos de experimentos biológicos ou reserva de material
genético humano. A população de Pascual sabia disso e, por essa razão,
cometia o que Lilith chamava de “crimes contra a propriedade”. Roubavam,
incendiavam, vandalizavam. Nunca tinham chegado tão perto de Lo como
quando estiveram na horta. Tinham convergido sua atenção a viajantes.
Até conhecermos alguns deles em nossa primeira noite longe de Lo, não
compreendíamos o quanto seu comportamento havia se radicalizado.
Paramos de caminhar ao entardecer, cozinhamos e comemos um pouco da
comida que Lilith e Tino haviam trazido, então penduramos nossas redes
entre as árvores. Não nos preocupamos em erguer um abrigo, já que os
adultos concordaram que não iria chover.
Apenas Nikanj limpou um pedaço do chão e estendeu sua rede na terra
nua. Por causa das conexões que tinha de fazer com os braços e tentáculos
sensoriais, não ficava confortável compartilhando uma rede pendurada com
mais ninguém. Queria que nos sentíssemos à vontade para nos
aproximarmos com qualquer ferida, sofrimento ou dor que tivéssemos
adquirido. Fez um gesto para mim primeiro, embora eu não pretendesse me
aproximar.
— Venha todas as noites até aprender a controlar suas habilidades —
falou. — Observe o que eu faço com você. Não cochile.
— Certo.
Nikanj não poderia curar sem dar prazer. As pessoas tendiam
simplesmente a relaxar e apreciar o momento. Mas dessa vez observei,
como era seu desejo, e vi que me investigou quase célula por célula,
corrigindo as falhas encontradas – falhas que eu não havia notado. Era
como se eu tivesse entendido a complexidade do mundo exterior e perdido
até mesmo minha compreensão infantil de meu ser interior. Costumava
perceber logo quando algo estava errado. Agora, meu maior problema era a
divisão celular descontrolada, desnecessária. Cânceres. Eles começaram a
crescer muito depressa, muitas vezes mais rápido do que poderiam ter
crescido em um Humano. Eu deveria ser capaz de controlar e usá-los em
mim e nos outros. Em vez disso, sequer conseguia identificar quando
começavam a crescer. E isso acontecia sem qualquer incentivo consciente
de minha parte.
— Percebe? — perguntou Nikanj.
— Sim. Mas não antes de você me mostrar.
— Deixei um.
Procurei-o e, depois de algum tempo, encontrei-o crescendo em minha
garganta, onde com certeza me mataria se lhe fosse permitido continuar.
Não corrigi a mensagem genética das células nem desativei a parte que
continha o erro. Isso foi o que Nikanj fez aos outros, mas eu não confiava
na minha capacidade de seguir seu exemplo. Poderia reprogramar
acidentalmente outros genes. Em vez disso, destruí as poucas células
malignas.
Então, encostei minha cabeça em Nikanj e deixei que meus tentáculos
tentassem se conectar com os seus. Falei-lhe em silêncio:
— Não estou aprendendo. Não sei o que fazer.
— Espere.
— Não quero continuar sendo um perigo, machucando Aaor, tendo
medo de mim.
— Dê tempo a si mesmo. Você é um novo tipo de ser. Nunca houve
alguém igual antes. Mas não há falhas em você. Só precisa de tempo para
descobrir mais a seu respeito.
Sua certeza me satisfez. Descansei me recostando em seu corpo por um
tempo, desfrutando do contato fácil e seguro, o único que eu tinha agora.
Nikanj me deu uma cotovelada depois de algum tempo e voltei para minha
rede. Lilith estava deitada com Nikanj quando os rebeldes se revelaram para
nós.
Primeiro, eles gritaram. Uma fêmea Humana gritou várias vezes, a
princípio xingando alguém, depois implorando e, então, fazendo ruídos
roucos e sem palavras. Também havia vozes masculinas, pelo menos três
delas gritando, rindo, xingando.
— Real e irreal — disse Dichaan quando os gritos começaram.
— O que está acontecendo? — Oni quis saber.
— Agora a fêmea está sendo machucada — disse Nikanj. — E ela está
com medo. Mas há algo errado. Os primeiros gritos dela foram falsos. Não
estava com medo naquele momento.
— Se ela está sendo machucada, basta! — exclamou Tino. Ele estava de
pé, olhando para Nikanj, em uma postura de total urgência e raiva.
— Fique aqui — disse Nikanj. Levantou-se e agarrou Tino com os
quatro braços. — Proteja as crianças. — Sacudiu-o uma vez para enfatizar,
depois correu para a floresta. Ahajas e Dichaan foram logo atrás. Os
Oankali tinham bem menos chances de serem mortos, mesmo se os
Humanos que estavam gritando se esforçassem muito.
Nossos progenitores Humanos nos reuniram e nos levaram para um
trecho de floresta mais denso, onde conseguíamos enxergar e os rebeldes
não. Lilith e Tino foram modificados para que, como nós, enxergassem por
luz infravermelha, pelo calor. Para todos nós, a floresta viva era repleta de
luz.
E o ar era cheio de aromas. Humanos estavam chegando. Ainda não
estavam perto, mas se aproximavam. Vários. Oito, nove. Do sexo
masculino.
Lilith e Tino pegaram seus facões e nos deram cobertura ao entrarmos
na floresta.
— Não façam nada, a menos que venham atrás de nós — Lilith
ordenou. — Se vierem, corram. Se pegarem vocês, matem.
Ela parecia Nikanj. Mas, vindas de Nikanj, as palavras soaram como
gritos de dor. Vindas dela, eram gritos de medo. Ela temia por nós. Eu não
conseguia me lembrar de já tê-la visto com medo por si mesma. Anos antes,
de um esconderijo no alto de uma árvore, eu a vi lutar contra três rebeldes
do sexo masculino que queriam estuprá-la. Assim que percebeu que eles
não estavam cientes de minha presença, ela não teve medo. Conseguiu até
não os machucar muito. E eles fugiram, acreditando que ela era um
constructo.
Os rebeldes que estavam atrás de nós agora não fugiriam e Lilith e Tino
sabiam disso. Eles observaram quando os rebeldes descobriram o
acampamento e tentaram derrubar e queimar as redes. Mas o tecido de Lo
não queimava e nenhum Humano normal poderia cortá-lo ou rasgá-lo.
Eles roubaram as mochilas de Lilith e Tino, cortaram os troncos
menores nos quais amarramos nossas redes, trituraram os alimentos
expostos na terra e atearam fogo às árvores. Sob a luz do incêndio, nos
procuraram, mas temiam se aventurar no interior da floresta, receando se
dispersar demais e, ao mesmo tempo, parecer amontoados. Talvez
soubessem o que lhes aconteceria se nos encontrassem. Talvez destruir
nossos pertences fosse suficiente, embora tivessem armas de fogo.
Eles não tinham pegado a mochila que Lilith fizera para mim. Enquanto
ela e Tino estavam reunindo meus irmãos e minhas irmãs, peguei a mochila
e corri com ela. Eu pretendia ajudar se houvesse brigas. Não fugiria com
meus irmãos e minhas irmãs mais novos, mas também pretendia preservar o
que poderia ser meu último resquício de Lo. Ninguém iria roubá-lo.
O fogo se espalhou devagar e os rebeldes tiveram de abandonar nosso
acampamento. Eles voltaram pelo meio das árvores, como vieram. Nós
ficamos onde estávamos, sabendo que o rio estava perto. Correríamos para
lá se precisássemos.
Mas o fogo não se alastrou muito. Chamuscou algumas árvores que
estavam em pé e consumiu as poucas que haviam sido cortadas. Meus
progenitores Oankali retornaram feridos, mas já se curando, carregando um
fardo vivo.
O perigo parecia ter passado. Não sentíamos cheiro de nada além de
fumaça, não ouvíamos nada exceto o crepitar do fogo que se apagava e os
sons da natureza. Fomos encontrar os três Oankali.
Quando saí ao ar livre, à luz do fogo, estava na frente de meus pais
humanos e de meus irmãos e minhas irmãs. Isso foi bom porque, como
ooloi, eu era teoricamente mais capaz de sobreviver a ferimentos de bala do
que qualquer um deles. Agora eu descobriria se isso era verdade.
Fui baleado três vezes. Os dois primeiros tiros vieram de direções
ligeiramente diferentes, quase no mesmo instante. Para mim, foram um
golpe único que me atingiu e me fez dar um giro completo. Os dois tiros me
acertaram no ombro esquerdo e na parte inferior esquerda das costas. O
terceiro me atingiu no peito enquanto eu girava – e me derrubou.
Rolei e fiquei de pé bem a tempo de ver meus pais Oankali irem atrás
dos atiradores. De repente, os rebeldes pararam de atirar e se dispersaram.
Conseguia ouvi-los, nove homens fugindo em nove direções diferentes,
sabendo que três Oankali não podiam capturar todos eles.
Nikanj e Dichaan pegaram um cada. Ahajas, maior e aparentemente
sem ferimentos, pegou dois. Cada um dos apanhados tinha disparado sua
espingarda. Tinham o cheiro do pó que usavam para atirar. Também tinham
cheiro de pavor. Estavam sendo pegos pelas pessoas que mais temiam.
Lutaram com desespero. Um deles chorou e amaldiçoou, e fedia mais que
os outros. Era um dos que foram capturados por Ahajas.
Em silêncio, Nikanj o tomou de Ahajas e passou às mãos dela o que
havia capturado. O homem que fora entregue a Nikanj começou a gritar.
Sangue escorria de seu nariz, embora ninguém tivesse encostado no rosto
dele.
Nikanj tocou seu pescoço com um tentáculo sensorial e injetou calma.
O homem gritou:
— Não, não, não, não. — Mas o último “não” foi um gemido. Ele
respirou fundo, se engasgou com o próprio sangue e tossiu várias vezes.
Depois de certo tempo, ficou quieto e calmo. Nikanj permitiu que ele
esfregasse o nariz no ombro da própria camisa. Então, tocou o pescoço dele
mais uma vez e o homem sorriu. Levou-o para uma grande árvore e o
sentou encostado nela.
— Fique aí — ordenou.
O homem olhou para Nikanj, sorriu e concordou com um movimento de
cabeça. Mesmo sob as sombras inquietas do fogo, ele parecia calmo e
relaxado.
— Corra! — um dos companheiros gritou para ele.
O homem encostou a cabeça na árvore e fechou os olhos. Não estava
inconsciente. Só confortável demais, relaxado demais, para se preocupar
com algo.
Nikanj foi até cada um dos prisioneiros e transmitiu-lhes conforto e
calma. Quando não havia mais necessidade de ninguém para segurá-los,
veio me examinar.
Eu tinha me sentado com as costas apoiadas contra uma árvore, feliz
pelo apoio. Estava com muita dor, mas já havia expulsado as duas balas que
não tinham me penetrado e havia estancado o sangramento. Quando Nikanj
me alcançou, eu estava incentivando meu corpo a se curar com lentidão e
cuidado. Nunca tinha me machucado tanto assim, mas meu corpo parecia
estar lidando com isso. Ali estava sua chance de desenvolver tecidos para
atender depressa às necessidades e não para causar problemas.
— Ótimo — disse Nikanj. — Você não precisa de mim agora. — E se
afastou. — Alguém mais está machucado?
Ninguém estava, exceto uma mulher Humana que meus pais Oankali
haviam resgatado. Eu teria aceitado um pouco de ajuda com a minha dor,
mas Nikanj tinha percebido e ignorado isso. Queria ver o que eu poderia
fazer só.
Nikanj foi até mulher Humana que sangrava, inconsciente, e se deitou
ao lado dela.
O rosto dela havia sido todo espancado e, pelo seu cheiro, dois homens
tinham feito sexo com ela havia pouco tempo. Mas me envolvi demais em
minha própria cura para detectar qualquer outra coisa.
Aaor veio se sentar ao meu lado. Não me tocou, mas fiquei feliz por sua
companhia. Meus outros irmãos e irmãs e Dichaan ficaram de olho nos
rebeldes.
Ahajas falou com um dos prisioneiros, aquele que estava mais
assustado.
— Por que vocês nos atacaram? — ela perguntou, sentando-se diante
dele.
O macho a encarou, parecendo analisá-la atentamente com os olhos. Por
fim, estendeu a mão e tocou um tentáculo sensorial no braço dela.
Ahajas permitiu. Ele não tinha sido capaz de machucá-la quando ela o
capturara. Agora que estava drogado, não era provável que tentasse.
Depois de um tempo, ele soltou o tentáculo como se não gostasse. Os
Humanos comparavam os braços sensoriais ooloi com os apêndices de
animais extintos, trombas de elefante, e comparavam os tentáculos
sensoriais a grandes vermes ou cobras, talvez como as delgadas cobras de
videiras da floresta, embora os tentáculos sensoriais pudessem ser muito
mais flexíveis e sensíveis do que as cobras de videira e não fossem nada
independentes.
— Vocês estavam vindo nos atacar — disse o macho. — Um de nossos
caçadores viu vocês e nos avisou.
— Não teríamos atacado vocês — protestou Ahajas. — Nunca fizemos
uma coisa dessas.
— Teriam, sim. Fomos avisados. Uma gangue de Oankali e meio-
Oankali estaria vindo para se vingar pela horta.
— Vocês destruíram a horta?
— Alguns de nós. Não eu. — Aquilo era verdade. Pessoas drogadas
como ele não se davam ao trabalho de mentir. Isso não lhes ocorria. —
Achamos que seus animais não deveriam receber comida humana de
verdade.
— Animais…?
— Aqueles! — Ele fez um gesto com a mão na direção de Lilith e Tino.
Ahajas já sabia, só queria ver se o homem falaria. Ele olhou com
interesse para Oni e Ayodele. Desde a minha metamorfose, elas eram os
membros da família mais parecidos com Humanos. Crianças nascidas de
Lilith, o animal.
Aaor e eu nos levantamos em sincronia e passamos para o outro lado da
árvore em que estávamos apoiados. Eu ainda estava com dor e tinha de
observar com atenção minha carne que cicatrizava, para garantir que nada
desse errado – e algo poderia dar muito errado se eu continuasse atento ao
prisioneiro e a suas ofensas absurdas.
8

A lgum tempo depois, a fêmea resgatada emitiu um pequeno ruído,


sem palavras, e eu, sem pensar, deixei Aaor e fui até onde ela estava
deitada no chão, ao lado de Nikanj. Fiquei em pé, olhando para eles. A
fêmea estava completamente inconsciente e Nikanj se ocupava em curá-la.
Quase me deitei do outro lado, mas Lilith chamou meu nome e me detive.
Fiquei parado, sem saber o que pensar, sem saber por que estava ali, mas
sem querer ir embora.
Alguns dos tentáculos do corpo de Nikanj se ergueram em minha
direção. Nikanj se separou da fêmea de forma gradual e se concentrou em
mim. Sentou-se e estendeu seus tentáculos sensoriais em minha direção.
— Deixe-me ver o que você fez por si — falou.
Contornei a fêmea, que ainda estava inconsciente, e deixei Nikanj me
examinar.
— Ótimo — afirmou, depois de um instante. — Perfeito. — Sua
surpresa era evidente.
— Deixe-me tocá-la — eu disse.
— Não terminei com ela. — Nikanj alisou seus tentáculos junto ao
corpo. — Há trabalho para você fazer, se quiser.
Eu queria. Era exatamente o que eu queria. No entanto, sabia que não
deveria tocá-la. Hesitei, concentrando-me com todas as forças em Nikanj.
— Vou ter que verificá-la depois — falou.— Você vai descobrir que não
vai gostar disso. Mas, pelo bem da saúde dela, tenho que fazê-lo. Agora vá
em frente. Ajude-a.
Deitei-me ao lado da fêmea. Acho que não poderia ter recusado a oferta
de Nikanj. A atração exercida pela mulher ferida, sozinha e não aparentada
a mim de maneira alguma, era esmagadora.
Talvez eu ainda fosse jovem demais para lhe dar prazer. Isso me
perturbou, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Quando tivesse
algo com que trabalhar além dos tentáculos sensoriais, eu poderia dar muito
prazer. Agora, poderia ao menos aliviar a dor dela.
O rosto, a cabeça, os seios e o abdome da mulher estavam machucados
pelos golpes e seria doloroso se eu a acordasse. Não encontrei nenhum
outro ferimento. Nikanj não deixou nada sério para mim. Trabalhei nas
contusões.
Segurei a fêmea perto de mim e penetrei nela o maior número possível
de tentáculos do meu corpo e de minha cabeça, mas não consegui superar a
sensação de que, de alguma forma, não estava perto o bastante, de que não
me ligava com profundidade suficiente ao sistema nervoso dela, de que algo
estava faltando.
Claro que estava e faltaria até minha segunda metamorfose.
Compreendi a sensação, mas não consegui fazê-la desaparecer. Tinha de ter
um cuidado especial para não a segurar com muita força, para não interferir
em sua respiração.
A beleza de sua carne foi minha recompensa. Uma criatura humana
desconhecida tão incrivelmente complexa, com tantos conflitos, perigosos,
assustadores e intrigantes, quanto qualquer Humano. Ela era como o fogo,
desejável e perigosa, bonita e letal. Os Humanos nunca compreenderam por
que Oankali os consideravam tão interessantes.
Não tive pressa em terminar com a mulher. Ninguém me apressou. Foi
um esforço real me afastar e deixar que Nikanj a examinasse. Eu não queria
que ela fosse tocada, não queria que a compartilhássemos. Nunca me senti
assim antes.
Fiquei de pé, com os braços cruzados bem apertados e a atenção voltada
aos agora silenciosos prisioneiros do sexo masculino. Acho que Nikanj
trabalhou rápido por minha causa. Depois de pouquíssimo tempo, levantou-
se e disse:
— Acho que ela inspirou você a controlar suas habilidades. Fique aqui
até que acorde. Não me chame, a menos que pareça que ela está causando
mal a si mesma ou que vai fugir.
— Ela estava colaborando com eles? — perguntei, gesticulando com os
tentáculos da cabeça em direção aos machos.
— Ela era cativa dos amigos deles. Acho que não sabia o que iria lhe
acontecer. — Nikanj hesitou. — Eles aprenderam que gritos falsos não vão
nos atrair. Os primeiros gritos soaram simulados porque ela ainda não
estava assustada. Provavelmente eles disseram para ela gritar. Então,
começaram a bater nela.
A fêmea gemeu. Nikanj virou-se e foi ajudar Lilith e Tino, que
começaram a puxar as redes feitas do tecido de Lo intactas e os pedaços de
roupas do meio das cinzas. O fogo não se apagara por completo, mas estava
enfraquecendo em vez de se alastrar. Não parecíamos estar em perigo. Fui
até eles e peguei emprestada uma das camisas resgatadas de Tino. Ele
raramente as usava, mas agora, por um tempo, elas esconderiam parte dos
tentáculos do meu novo corpo. Quanto mais familiar parecesse à fêmea,
menor a probabilidade de ela entrar em pânico. Agora, eu era marrom-
acinzentado. Ela saberia que eu era um constructo. Mas não um constructo
tão assustador.
Ela acordou, se sentou com um movimento brusco, e olhou ao redor,
quase em pânico.
— Você está em segurança — eu lhe disse. — Não está ferida e
ninguém aqui vai machucá-la.
Ela se afastou de mim, se arrastando para trás, e congelou quando viu
meus pais, minhas irmãs e meus irmãos.
— Você está segura — repeti. — As pessoas que machucaram você não
estão aqui.
Aquilo pareceu chamar sua atenção. Afinal, Humanos a machucaram,
não Oankali. Ela olhou em volta com mais cuidado e se sobressaltou ao ver
os machos Humanos sentados ali perto.
— Eles não podem machucá-la — eu disse. — Mesmo que tenham
machucado você antes, não podem mais. — Ela olhou fixo para mim e
observou minha boca enquanto eu falava. — Qual o seu nome? —
perguntei.
Ela não respondeu.
Dei um suspiro e a observei por algum tempo, sem falar. Ela me
compreendia, mas foi como se, de repente, lhe ocorresse fingir que não. Eu
tinha falado com ela em inglês e suas reações me mostraram que tinha
entendido. Ela tinha cabelos muito pretos que me lembraram os de Tino,
mas os dela estavam soltos e despenteados, pendendo em volta do rosto
estreito e anguloso. Ela não comia o suficiente havia muitos dias; seu corpo
me mostrou isso. Mas, durante a maior parte de sua vida, esteve
confortavelmente bem nutrida. O corpo dela era pequeno, ágil, mais
musculoso do que a maioria dos corpos humanos femininos. Não tinha
apenas executado trabalhos árduos, mas não tinha problemas executando-
os. Era um corpo que gostava de se mover depressa e comer com frequência
– e que estava com fome agora.
Fui até a árvore em que havia me recostado enquanto estava me
recuperando. Tinha deixado minha mochila lá. Encontrei-a e a trouxe de
volta para onde a fêmea estava sentada sobre os calcanhares, me olhando.
Dei a ela duas bananas e um punhado de nozes sem casca. Ela nem fingiu
que não queria.
Observei-a comendo e me perguntei como seria entrar em contato com
ela enquanto comia. Que sabor tinha a comida para ela e que sensação
dava?
— Por que está me encarando? — ela quis saber. Falou em inglês
rápido, entrecortado, as palavras como disparos de armas.
— Meu nome é Jodahs — informei. — Qual o seu?
— Marina Rivas. Quero ir para Marte.
Desviei os olhos, sentindo um cansaço repentino. Mais uma mulher,
pequena e de ossos frágeis, a ser sacrificada pela teimosia humana.
Lembrei-me, graças ao exame que fizera, que ela nunca deu à luz. Isso era
bom porque seus quadris estreitos não eram adequados para parir. Se sua
fertilidade fosse restaurada e nada mais mudasse, certamente morreria
tentando dar à luz pela primeira vez. Ela poderia ser alterada, remodelada.
Eu não confiaria em mim para fazer um trabalho tão substancial, mas ela
deveria passar por ele.
— Você estava a caminho de Lo? — perguntei.
— Sim. As naves partem de lá, não?
— Sim.
— Você é de lá?
— Sim.
— Posso voltar com você?
— Vamos garantir que você chegue lá. Seu povo a machucou porque
você queria ir a Marte? — Coisas assim já tinham acontecido. Alguns
rebeldes matavam os “desertores”, como chamavam aqueles que queriam
emigrar.
— Eles parecem ser meu povo?! — questionou a fêmea, em tom firme.
— Eu estava a caminho de Lo. Quando passei pela aldeia deles, me tiraram
da minha canoa, me estupraram, me xingaram e me fizeram ficar na pocilga
de vilarejo deles. Os homens me mantiveram amordaçada em um curral de
animais e me estupraram. As mulheres cuspiram em mim e colocaram lama
ou merda na minha comida porque os homens me estupraram.
Havia tanto ódio e tanta raiva em seu rosto e sua voz que recuei.
— Sei que Humanos fazem essas coisas — eu disse. — Entendo as
razões biológicas pelas quais fazem isso, mas… nunca as vi serem feitas.
— Ótimo. E por que deveria? Você tem mais alguma coisa para comer?
Dei a ela o que tinha. Ela precisava daquilo.
— Onde você morava antes da guerra? — perguntei. Ela tinha pele
marrom e olhos estreitos, e seu inglês era acentuado de uma maneira que eu
nunca tinha ouvido antes. Tive irmãos e irmãs que se pareciam um pouco
com ela – filhos que Lilith teve com seu primeiro companheiro do pós-
guerra, que veio da China. Ele foi morto por pessoas como os rebeldes que
tinham atirado em mim.
Aaor se aproximou e ficou perto para poder se conectar comigo. Sentia
uma curiosidade intensa em relação à fêmea. Ela olhou para Aaor
igualmente curiosa, mas falou apenas comigo.
— Sou de Manila. — A voz dela ficou firme mais uma vez, como se as
palavras a machucassem. — O que isso pode significar para você?
— Nas Filipinas? — perguntei.
Ela pareceu surpresa.
— O que você sabe sobre o meu país?
Pensei por um momento, recordando.
— Que era composto de ilhas quentes e verdes, algumas delas parecidas
com isso, acho. — Apontei para a floresta. — Que poderia ter alimentado
todo mundo com facilidade, mas não o fez porque alguns Humanos levaram
mais do que precisavam. Que não participou da última guerra, mas mesmo
assim morreu.
— Tudo morreu — retrucou a fêmea, com amargor. — Mas como você
sabe isso? Já conheceu outra filipina?
— Não, mas algumas pessoas das Filipinas passaram por Lo. Alguns de
meus irmãos e minhas irmãs adultos me falaram sobre elas.
— Você conhece algum nome?
— Não.
Ela suspirou.
— Talvez eu os veja em Marte. Quem é? — Ela olhou para Aaor.
— Aaor, a pessoa mais próxima de mim. Temos as mesmas matrizes.
Ela olhou para nós dois e balançou a cabeça.
— Eu até poderia ficar — disse ela. — Não parece tão ruim quanto
antes: os Oankali, a ideia de… ter crianças diferentes…
— Então fique — falei para ela. — Marte pode não chegar a ser verde
enquanto você viver. Não poderá sair desprotegida dos abrigos. Marte é frio
e seco.
— Marte é humano. Agora.
Eu não respondi.
— Estou cansada — disse ela depois de algum tempo. — Alguém se
importa se eu dormir?
Limpei uma porção do terreno e estendi um pedaço do tecido de Lo
sobre ele.
— Vocês dois são crianças, não são? — ela perguntou a Aaor.
— Sim — respondeu Aaor.
— Então, um dia você será mulher?
— Não sei.
— Não entendo. E isso me incomoda mais do que a maioria das coisas
sobre vocês. Venha deitar aqui. Sei que gostam de tocar em todo mundo. Se
quiser, pode me tocar.
Presumi que isso também me incluía e encostei dois pedaços de tecido
de Lo de ponta a ponta para termos uma esteira mais ampla.
— Não convidei você — ela me disse. — Você se parece muito com um
homem.
— Eu não sou homem — falei.
— Não ligo. Você parece macho.
— Deixe que Jodahs durma aqui — disse Aaor. — Os insetos não
chegarão perto de você com um de nós de cada lado.
Ela olhou para mim.
— É verdade? Vocês afastam os insetos?
— Nosso cheiro os repele.
Ela tentou nos farejar. E, de fato, conseguiu – inconscientemente. Eu
tinha cheiro ooloi. Interessante, talvez atraente para uma pessoa não
acasalada.
— Tudo bem — disse ela. — Nunca peguei um Oankali ou um
constructo mentindo. Venha dormir aqui. É verdade que você não é
homem?
— É verdade.
— Venha manter os insetos longe, então.
Mantivemos os insetos longe, a mantivemos aquecida e a investigamos
minuciosamente, com o cuidado de não tocar nela de maneira que pudesse
alarmá-la. Pensei que mãos a alarmariam, então a toquei apenas com meus
tentáculos sensoriais mais longos. Isso a assustou no início, mas quando
percebeu que não a machucava, ela tolerou nossa curiosidade. Nunca ficou
sabendo que a ajudei a adormecer.
E nunca fiquei sabendo como foi que, durante a noite, ela desfez por
completo o contato com Aaor e se encostou em mim de modo que eu
pudesse alcançá-la com a maioria dos meus tentáculos da cabeça e do
corpo.
Descobri que eu tinha alterado levemente a estrutura da pélvis dela
durante a noite. Não tivera a intenção de tentar uma coisa dessas. Não teria
me ocorrido fazer isso. No entanto, foi feito. A fêmea, agora, poderia ter
filhos.
Eu me separei dela e me sentei, sentindo sua falta no mesmo instante.
Era madrugada e meus pais já estavam acordados. Nikanj e Ahajas estavam
cozinhando algo em uma panela pendurada, feita de camadas de tecido de
Lo. Lilith estava olhando através das cinzas da fogueira noturna. Tino e
Dichaan estavam fora de vista, mas eu podia ouvi-los e sentir seu cheiro por
perto. Na noite anterior, quando minha atenção estava em Marina Rivas,
quase parei de percebê-los. Naquele momento, eu não tinha entendido que
ela absorvera minha atenção por completo.
Nikanj deixou o bojo de tecido e sua comida em cozimento, mingau de
castanhas. Os Humanos não iriam querer comer até provarem. Então, não
seriam capazes de parar. A refeição até podia conter algumas castanhas de
árvores silvestres. Lilith ou Tino poderiam ter colhido algumas. Porém, o
mais provável era que as castanhas tivessem sido sintetizadas por Nikanj e
Ahajas a partir da substância do corpo de Ahajas. Podíamos comer muitas
coisas que os Humanos não podiam ou não queriam tocar. Depois,
podíamos usar o que tínhamos comido para produzir algo mais palatável
para eles. Meus progenitores Humanos davam de ombros e diziam que
aquilo não era nada além do que Lo fazia todos os dias, o que era verdade.
Mas os rebeldes sempre ficavam repugnados quando sabiam. Então, não
dizíamos a eles, a menos que fizessem uma pergunta direta.
Nikanj veio até mim e me examinou cuidadosamente.
— Você está bem — falou. — Está se saindo bem. A fêmea é boa para
você.
— Ela está indo para Marte.
— Eu ouvi.
— Gostaria de mantê-la aqui.
— Ela é muito forte. Acho que sobreviverá a Marte.
— Eu a alterei um pouco. Não quis, mas…
— Eu sei. Vou verificar todos os detalhes antes que a deixemos, mas
pelo que vi em você, seu trabalho foi bem feito. Gostaria que ela não fosse
tão velha. Se fosse mais jovem, ajudaria você a convencê-la a ficar.
Ela tinha a mesma idade que minha mãe Humana. Talvez vivesse mais
um século aqui na Terra, onde havia muito o que comer, beber e respirar, e
onde havia Oankali para curar seus ferimentos. Eu poderia viver cinco
vezes mais, a menos que acasalasse com alguém como Marina. Nesse caso,
viveria apenas enquanto pudesse mantê-la viva.
— Se ela fosse mais jovem, eu a convenceria sem ajuda — respondi.
Nikanj enrolou um braço sensorial em volta do meu pescoço por um
breve momento, depois foi dar aos prisioneiros suas drogas matinais.
Melhor fazer isso antes que acordassem. Marina já estava acordada e
olhando para mim.
— Tem comida — eu disse. — Não parece muito tentador, mas é
gostoso.
Ela estendeu a mão e eu a puxei de pé. Quatro tigelas de Lo foram
resgatadas do fogo. Levamos duas delas até o rio e as lavamos, tomamos
banho e nadamos um pouco. Aquela foi minha primeira experiência com a
respiração subaquática. Caí na água de forma tão natural e confortável que
mal percebi que estava fazendo algo novo.
Ouvi a voz de Marina me chamando e percebi que me deixara levar
uma boa distância rio abaixo. Virei-me e nadei de volta para a margem. Ela
ainda estava vestida: calças curtas, que já tinham sido mais compridas, e
uma camisa esfarrapada, grande demais para o seu tamanho.
Eu havia tirado as minhas roupas. Quando fizera isso, ela tinha
encarado. Agora, fixou os olhos em mim outra vez. Nenhum órgão genital
visível. Na verdade, absolutamente nenhum órgão reprodutivo.
— Não entendo — disse ela enquanto eu saía da água. — Você não
deve se importar que eu veja ou não teria se despido. Não entendo como
você pode não ter… nada.
— Eu não sou adulto.
— Mas…
Coloquei meu short e a camiseta de Tino.
— Por que você veste roupas?
— Para os Humanos. Você não se sente mais confortável agora?
Ela riu. Nunca a tinha ouvido rir antes. Foi um grito agudo e brusco de
alegria.
— Eu me sinto mais confortável! — disse ela. — Mas tire a roupa, se
quiser. Que diferença faz?
Minhas axilas coçavam dolorosamente. Como não havia mais nada para
fazer, peguei a mão dela e as tigelas e voltei em direção ao acampamento e
ao café da manhã.
Ela caminhou ao meu lado e não se afastou dos meus tentáculos
sensoriais.
— Acho que você não precisa se preocupar em se tornar uma mulher —
ela falou.
— Não.
— Você é quase um homem agora.
Virei-me e parei diante dela. Ela se deteve também e olhou para mim,
esperando.
— Não sou homem. Nunca serei. Sou ooloi.
Ela quase pulou para longe de mim. Em seus músculos, vi a sombra de
um movimento brusco, que não se completou totalmente.
— Como pode? — ela quis saber. — Você tem dois braços, não quatro.
— Por enquanto — falei.
Ela olhou para eles.
— Você… é ooloi de verdade?
— Sim.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não é de admirar que eu tenha tido sonhos com você ontem à noite.
— Ah, é? E gostou deles?
— Claro que gostei. Gostei de você. E não deveria. Você parece muito
masculino. Nada do sexo masculino deveria ter me atraído ontem à noite,
depois do que aqueles canalhas fizeram comigo. Nenhum homem deveria
me atrair por muito, muito tempo.
— Você está curada.
— Sim. Você fez isso?
— Em parte.
— A cura é mais do que apenas fechar feridas.
— Você está curada.
Ela me encarou por um tempo, depois desviou o olhar para as árvores.
— Devo estar — ela respondeu.
— Mais do que curada.
Ela inclinou a cabeça.
— O quê?
— Quando sua fertilidade for restaurada, você poderá dar à luz sem
dificuldades. Antes, não poderia ter feito isso.
Sua expressão mudou para algo que lembrava dor.
— Minha mãe morreu quando eu nasci. As pessoas disseram que ela
deveria ter feito uma cesariana. Sabe o que é?
— Sim.
— Ela não fez. Não sei por quê.
— Você precisa de uma pequena alteração genética para que suas filhas
possam dar à luz com segurança.
— Você pode fazer isso?
— Não terei tempo. Vamos escoltar você e os prisioneiros até Lo hoje.
De qualquer forma, não tenho experiência suficiente para fazer esse tipo de
trabalho.
— Quem o fará?
— Uma pessoa de sexo ooloi adulta.
— Não!
— Sim — eu disse, pegando-a pelos braços. — Sim. Você não pode
condenar suas filhas a morrer como sua mãe. Por que ooloi adultos
assustam você?
— Não me assustam. Minha reação a ooloi me assusta. Eu sinto…
como se não estivesse mais no controle. Como se estivesse sob o efeito de
drogas, e pudessem me obrigar a fazer qualquer coisa.
— Você não será prisioneira. E não vai lidar com ooloi que não tiverem
acasalado. A pessoa que a alterar não vai querer nada de você.
— Prefiro que você faça isso, ou alguém como você.
— Sou um constructo ooloi. O primeiro. Não há mais ninguém como
eu.
Ela olhou para mim por mais algum tempo, depois me puxou mais para
perto e respirou fundo, cansada.
— Você tem uma beleza, sabe? Não deveria, mas tem. Me lembra um
homem que conheci uma vez. — Ela suspirou novamente. — Droga.
9

D e volta a Lo.
Entregamos os prisioneiros drogados ao povo. Uma casa seria
erguida para eles a partir da substância de Lo e não teriam permissão para
sair até que um ônibus espacial viesse buscá-los. Então, seriam transferidos
para a nave. Eles compreenderam o que estava para acontecer e, mesmo
drogados, pediram para serem poupados e libertados. O que chamou Lilith e
Tino de animais começou a chorar. Nikanj o drogou um pouco mais e ele
pareceu esquecer por que estava chateado. Aquela seria a vida dele agora.
Uma vez a bordo da nave, seria drogado regularmente por ooloi. Ficaria
ansioso por isso e não se importaria com mais nada que fosse feito com ele.
Levei Marina para a área de hóspedes antes que Nikanj estivesse livre
para examiná-la. Não queria ver isso. Tive a impressão de que sua
predisposição era não tocar nela. Devia haver tanto do meu cheiro que já
não parecia sozinha e não aparentada.
Ela me beijou antes de eu partir. Acho que foi um teste para ela. Para
mim, foi um prazer. Permitiu que eu a tocasse mais um pouco, penetrasse
filamentos de tentáculos sensoriais nela ao longo de nossos corpos. Ela
gostou disso. Não deveria. Eu era jovem demais para oferecer prazer.
De qualquer forma, ela gostou.
— Vou enviar alguém para alterá-la geneticamente — falei depois de
algum tempo. — Não tenha medo. Deixe que sua prole tenha a mesma
chance que você.
— Tudo bem.
Segurei-a um pouco mais e depois a deixei. Pedi a Tehkorahs para
examiná-la e fazer os ajustes necessários.
Tehkorahs estava com Wray Ordway, seu companheiro Humano, e
Wray sorriu e me deu um olhar de compreensão e divertimento. Ele foi uma
das poucas pessoas em Lo que falaram a meu favor quando a decisão do
exílio estava sendo tomada.
— Uma criança é uma criança — dissera ele, através de Tehkorahs. —
Quanto mais você a trata como uma aberração, mais ela se comportará
como uma. — Acho que outros como ele facilitaram as coisas para mim.
Fizeram o exílio da Terra parecer menos inadmissível para as pessoas que
estavam de fato com medo e queriam me prender na nave de maneira
segura.
— Você sabe que vou cuidar da fêmea — falou Tehkorahs. — Ela
pareceu gostar muito de você.
Senti os tentáculos de minha cabeça e meu corpo se achatarem junto à
minha pele em rememoração do prazer.
— Muito mesmo.
Wray riu.
— Eu disse a você que seria sexualmente precoce, assim como os
constructos machos e fêmeas.
Tehkorahs colocou um tentáculo sensorial em volta do pescoço dele.
— Não me surpreende. Toda permuta de genes traz mudanças. Jodahs,
deixe-me verificar você. A fêmea não vai querer me ver por um tempo.
Você deixou muito de si com ela.
Eu me aproximei e Tehkorahs liberou Wray e me examinou depressa,
por completo. Senti sua surpresa antes de me soltar.
— Você tem muito mais controle agora — disse. — Não consigo
encontrar nada de errado com você. E se suas lembranças da fêmea são
corretas…
— Claro que são!
— Então, é provável que eu também não vá encontrar nada de errado
com ela. Exceto pelo problema genético.
— Ela cooperará quando você for corrigir isso.
— Ótimo. Você se parece com ela, sabe.
— O quê?
— Seu corpo tem se esforçado para agradá-la. Você está mais marrom
agora, menos cinza. Seu rosto sofreu uma mudança sutil.
— Você parece uma versão masculina dela — disse Wray. — Ela
provavelmente pensou que você tem uma aparência muito bonita.
— Ela disse isso — admiti entre as risadas de Wray. — Não sabia que
estava mudando.
— Todo mundo de sexo ooloi muda um pouco quando acasala — disse
Tehkorahs. — Nossos cheiros mudam. Nós nos encaixamos no grupo de
parentesco de nossos parceiros. Talvez você se encaixe melhor do que a
maioria de nós, assim como seus descendentes vão se encaixar com mais
facilidade quando encontrarem uma nova espécie para a permuta genética.
Se um dia eu tivesse descendentes.
No dia seguinte, nós recolhemos novos suprimentos e deixamos Lo pela
segunda vez. Tive mais uma noite para dormir na casa da família. Dormi
com Aaor, como sempre fazia antes da minha metamorfose. Acho que fiz
Aaor sentir-se tão só quanto eu me sentia agora que Marina tinha partido. E,
naquela noite, causei em Aaor, em Lo e em mim grandes feridas fétidas.
1

N ão paramos na ilha onde pretendíamos morar. Era perto demais de


Pascual. Viver ali nos tornaria alvos de mais medo e frustração dos
Humanos. Seguimos o rio na direção oeste, depois sul, viajando quando
queríamos e descansando quando cansados – caminhando sem rumo, na
verdade. Eu estava impaciente e caminhar a esmo me convinha. Os outros
simplesmente não pareciam satisfeitos com qualquer possível assentamento
que encontrávamos. Suspeitei que não se contentariam até retornarem a Lo
de vez.
Desviamos das habitações humanas com muito cuidado. Os Humanos
que nos avistavam nos encaravam à distância ou nos seguiam até deixarmos
seu território. Ninguém se aproximou de nós.
A doze dias de Lo, ainda estávamos sem rumo. O rio era longo, com
muitos afluentes, muitas curvas e voltas. Foi bom caminhar ao longo do
chão sombreado da floresta, seguindo o som e o cheiro do rio, sem pensar
em nada. Os dedos das minhas mãos e dos meus pés criaram membranas no
terceiro dia e não me preocupei em corrigi-los. Meu corpo ficava quase
tanto tempo molhado quanto seco. Meu cabelo caiu e desenvolvi mais
alguns tentáculos sensoriais. Parei de vestir roupas e minha coloração
mudou para verde-acinzentado.
— O que está fazendo? — perguntou minha mãe Humana. — Deixando
seu corpo fazer o que bem entender? — Sua voz e postura expressavam
uma dura desaprovação.
— Desde que eu não desenvolva uma doença — respondi.
Ela fez uma careta.
— Gostaria que você pudesse se ver através dos meus olhos. A
deformidade é tão ruim quanto a doença.
Eu me afastei dela. Nunca tinha feito isso antes.
A quinze dias de Lo, alguém atirou flechas contra nós. Só Lilith foi
atingida. Nikanj pegou o arqueiro, drogou-o até a inconsciência, destruiu
todas as armas e mudou a cor dos cabelos dele, que tinham sido de um
marrom profundo. A partir de agora não teriam cor. Ficariam todos brancos.
Por fim, Nikanj estimulou o rosto a se rachar nas rugas permanentes que o
comportamento e a herança genética do homem haviam determinado para
sua velhice. Ele pareceria muito mais velho. Não ficaria mais fraco nem
enfermo, de maneira alguma, mas as aparências eram importantes para os
Humanos. Quando aquele macho acordasse, em algum momento do dia
seguinte, seus olhos e dedos lhe diriam que ele pagou um preço terrível por
nos atacar. E, mais importante, seu povo veria isso. As pessoas entenderiam
errado o que estavam vendo e isso as assustaria a ponto de nos deixarem em
paz.
Lilith não teve nenhum problema especial por causa da flecha. A arma
danificou um de seus rins e lhe causou muita dor, mas sua vida não estava
em perigo. O corpo aprimorado dela teria sarado rápido, mesmo sem a
ajuda de Nikanj, já que a flecha não estava envenenada. Mas Nikanj não
deixou que ela se curasse sozinha. Deitou-se ao lado dela e a curou por
completo antes de voltar para embranquecer os cabelos do arqueiro drogado
e enrugar o rosto dele. Parceiros cuidavam uns dos outros.
Observei os dois, imaginando de quem eu cuidaria. Quem cuidaria de
mim?
Passados vinte e um dias, o leito de nosso rio virou para o sul e nós
viramos com ele. Dichaan desviou-se da trilha e nos deixou por algum
tempo: voltou com um Humano do sexo masculino que havia quebrado a
perna. Ela estava grotesca, inchada, desbotada e cheia de bolhas. O cheiro
fez com que Nikanj e eu nos entreolhássemos.
Acampamos e fizemos um colchão de palha para o Humano ferido.
Nikanj falou comigo antes de se dirigir a ele.
— Livre-se de suas membranas — falou. — Tente se parecer menos
com um sapo ou vai assustá-lo.
— Você vai permitir que eu o cure?
— Sim. E você vai levar um tempo para acertar. É sua primeira
regeneração. Vá comer alguma coisa enquanto alivio a dor dele.
— Deixe-me fazer isso — pedi. Mas Nikanj já tinha se virado para o
homem. A perna dele estava mais do que inútil e envenenava seu corpo.
Partes dela já estavam mortas. No entanto, a ideia de tirá-la me incomodou.
Ahajas e Aaor me trouxeram comida antes que eu pudesse ir atrás dela e
Aaor se sentou comigo enquanto eu comia.
— Por que você está com medo? — perguntou.
— Não exatamente com medo, mas… tirar a perna…
— Sim. Isso lhe dará a chance de desenvolver algo diferente de
membranas e tentáculos sensoriais.
— Não quero fazer isso. Ele é velho, como Marina. Você não sabe
como odiei deixá-la ir.
— Não sei?
Prestei atenção a isso.
— Achei que não soubesse. Você não disse nada.
— Você não queria que eu dissesse… Deveria comer.
Como não comi, Aaor se aproximou e se recostou em mim, ligando-se
confortavelmente ao meu sistema nervoso. Não fazia isso havia certo
tempo. Não tinha mais medo de mim. Não havia me abandonado de
verdade. Permitira meu isolamento, já que parecia ser o que eu queria. E
agora deixou que eu entendesse isso por meio de impressões
neurossensoriais simples.
— Eu estava só — reclamei em voz alta.
— Eu sei. Mas não era minha falta que sentia — falou com uma
confiança e satisfação que me confundiram.
— Você está mudando — afirmei.
— Ainda não. Mas acho que logo.
— Metamorfose? Vamos nos perder quando você mudar.
— Eu sei. Compartilhe o Humano comigo. Isso nos dará mais tempo.
— Está bem.
Então, tive de ir para junto do Humano. Tinha de curá-lo só. Depois
disso, Aaor e eu poderíamos compartilhá-lo.
As pessoas se lembravam da criança da família que se tornava ooloi. Eu
tinha ouvido Ahajas e Dichaan comentarem a respeito da sua, mas não se
encontravam havia décadas. Ooloi pertenciam ao grupo de parentesco das
pessoas com quem acasalavam. Perdiam seus irmãos e suas irmãs.
O macho Humano havia perdido a consciência quando me deitei a seu
lado. No momento em que o toquei, soube que devia ter quebrado a perna
em uma queda, mais provável de uma árvore. Tinha perfurações e
contusões profundas no lado esquerdo do corpo. A perna esquerda estava,
como eu esperava, totalmente inútil, suja e venenosa. Separei-a do resto do
corpo acima do tecido danificado. Primeiro, estanquei a circulação de
fluidos corporais e venenos que entravam e saíam da perna. Depois,
estimulei o crescimento de uma barreira cutânea no quadril. Por fim, ajudei
o corpo a se desfazer do membro apodrecido.
Quando a perna foi separada, tirei minha atenção do macho por tempo
suficiente para pedir à família que se livrasse dela. Não queria que ele a
visse.
Então, decidi curar os muitos ferimentos menores e neutralizar os
venenos que já haviam começado a destruir a saúde de seu corpo. Passei
boa parte da noite curando-o. Por fim, me concentrei outra vez na perna e
comecei a reprogramar certas células. Genes que estavam inativos bem
antes de o macho nascer tinham de ser despertados e começar a trabalhar,
dizendo ao corpo como fazer uma perna crescer. Uma perna, não um câncer.
A regeneração levaria muitos dias e precisaria ser monitorada.
Acamparíamos ali e manteríamos o homem conosco até o processo estar
completo.
Já estava escuro havia algum tempo quando me afastei do macho. Meus
pais Humanos, meus irmãos e minhas irmãs estavam dormindo ali perto.
Ahajas e Dichaan sentavam-se lado a lado, vigiando o acampamento e
conversando em um tom de voz tão suave que nem eu conseguia ouvir tudo
o que diziam. Um invasor Humano não ouviria nada. A audição de Oankali
e constructos era tão aguçada que alguns rebeldes imaginavam que
podíamos ler seus pensamentos. Como eu gostaria que pudéssemos – assim
poderia ter alguma ideia de como aquele macho que eu havia curado
reagiria a mim. Teria de passar tanto tempo com ele quanto companheiros
recém-acasalados passavam juntos. Se ele me odiasse ou tivesse medo de
mim, isso seria difícil.
— Você gosta dele, Oeka? — perguntou Nikanj, em tom brando.
Eu sabia que estava atrás de mim; tinha se sentado e esperado para
verificar meu trabalho. Agora, havia aparecido ao meu lado e colocado um
braço sensorial em volta do meu pescoço. Eu ainda gostava do seu toque,
mas resisti a ele com firmeza, pois pensei que Nikanj tocaria o macho em
seguida.
— Criança ooloi complicada e possessiva — falou, me puxando contra
si, apesar da minha rigidez. — Preciso examinar o homem desta vez. Mas,
se o que você me disser e mostrar for condizente com o que eu encontrar
nele, não o tocarei mais até a hora de ele ir embora, a menos que algo dê
errado.
— Não vai dar nada errado!
— Ótimo. Mostre-me tudo.
Obedeci, tropeçando de vez em quando porque entendia melhor o
funcionamento do corpo do homem do que possuía o vocabulário,
silencioso ou vocal, para discuti-lo. Mas, com ilusões neurossensoriais, eu
poderia mostrar exatamente o que queria dizer.
— Para algumas coisas, não existem palavras — disse Nikanj, quando
terminei. — Você e seus descendentes as criarão, caso precisem delas. Nós
nunca precisamos.
— Eu fiz tudo certo com ele?
— Vá embora. Vou descobrir.
Fui me sentar com Ahajas e Dichaan, que me deram alguns dos figos e
nozes selvagens que estavam comendo. A comida não desviou meu
pensamento de Nikanj tocando o Humano, mas comi mesmo assim e
escutei quando Ahajas me contou como foi difícil para Nikanj quando
Kahguyaht, ooan de Nikanj, examinou Lilith.
— Kahguyaht disse que a possessividade ooloi durante a fase subadulta
é uma ponte que ajuda ooloi a entenderem os Humanos — ela falou. — É
como se as emoções humanas estivessem permanentemente bloqueadas na
fase subadulta ooloi. Os Humanos são possessivos com seus parceiros, seus
parceiros em potencial e suas propriedades, porque essas coisas podem ser
tiradas deles.
— Podem ser tiradas de qualquer pessoa — afirmei. — Os seres vivos
podem morrer. Coisas não vivas podem ser destruídas.
— Mas parceiros Humanos podem abandonar uns aos outros — disse
Dichaan. — Eles nunca perdem a capacidade de fazer isso. Podem
abandonar o outro para sempre e encontrar novos parceiros. Os Humanos
podem tirar os parceiros de outros Humanos. Não há vínculo físico. Nem
segurança. E, como Humanos são hierárquicos, tendem a competir por
companheiros e propriedades.
— Mas isso é construído na genética deles — falei. — Não está inserido
em mim.
— Não — concordou Ahajas. — Mas, Oeka, você não poderá se
relacionar com um companheiro, Humano, constructo ou Oankali, até ser
adulto. Pode sentir necessidades e apegar-se a pessoas. Sei que, nesta fase,
sente isso mais do que um Oankali. Mas, até que amadureça, não poderá
formar um vínculo verdadeiro. Outras pessoas ooloi podem atrair seus
parceiros em potencial para longe de você. Por isso, outras pessoas ooloi
são suspeitas.
Aquilo pareceu certo, ou melhor, pareceu verdadeiro. Isso não fez com
que eu me sentisse melhor, mas me ajudou a entender por que senti vontade
de puxar Nikanj para longe daquele macho e garantir que não se
aproximasse dele outra vez.
Nikanj veio até mim depois de um tempo. Tinha o cheiro do macho, o
gosto dele, quando tocou em mim. Recuei por ressentimento.
— Você fez um bom trabalho — falou. — Como consegue fazer um
trabalho tão bom com Humanos e tão ruim com você e Aaor?
— Não sei — respondi com frieza. — Mas os Humanos, de alguma
maneira, me dão estabilidade. Talvez seja só porque Marina e esse macho
estejam sozinhos, sem parceiros.
— Vá descansar ao lado dele. Se quiser dormir, durma interligado para
que não acorde antes de você.
Eu me levantei.
— Oeka. — Prestei atenção em Nikanj sem me virar. — Tino fez
muletas para ele usar nos próximos dias. Estão perto do pé do homem.
— Certo. — Eu nunca tinha visto uma muleta, mas ouvira os Humanos
de Lo falarem a respeito delas.
— Há roupas junto com as muletas. Lilith disse para você vestir
algumas e dar as outras para ele.
Com isso, me virei para encarar Nikanj.
— Vista as roupas, Jodahs. Ele é um macho rebelde. Vai ser difícil
aceitar você.
Nikanj tinha razão, é claro. Eu nem tinha certeza por que tinha parado
de usar roupas, exceto, talvez, por não ter ninguém para quem usá-las.
Vesti-me e me deitei junto ao macho.
2

O homem e eu acordamos ao mesmo tempo. Ele me viu e tentou fugir


de mim no mesmo instante. Eu o detive e conversei com ele
serenamente.
— Você está seguro — falei. — Ninguém aqui vai machucá-lo. Você
está recebendo ajuda.
Ele franziu a testa e observou minha boca. Consegui ler a ausência de
entendimento em sua expressão, embora a suavidade de minha voz
parecesse acalmá-lo.
— Español? — perguntei.
— Português? — replicou ele, esperançoso.
Alívio.
— Sim, senhor. Falo português.
Ele suspirou, também aliviado.
— Onde estou? O que aconteceu comigo?
Ergui o corpo para me sentar, mas, com uma mão no ombro dele,
encorajei-o a continuar deitado.
— Encontramos você gravemente ferido, sozinho na floresta. Acho que
caiu de uma árvore.
— Eu me lembro… minha perna. Tentei chegar em casa.
— Vai poder voltar para lá em alguns dias. Ainda está se recuperando.
— Fiz uma pausa. — Você causou um grande estrago em si mesmo, mas
podemos corrigir tudo.
— Quem é você?
— Jodahs Iyapo Leal Kaalnikanjlo. Sou eu quem devo garantir que
você volte caminhando para casa com as duas pernas aptas.
— Minha perna… ela estava quebrada. Vai ficar torta?
— Não. Vai ficar recuperada e reta. Qual o seu nome?
— Desculpe. Sou João. João Eduardo Villas da Silva.
— João, sua perna estava ferida demais para ser salva. Mas a nova
perna já começou a crescer.
Ele tateou em busca da perna perdida. Olhou fixo para mim. De repente,
tentou fugir outra vez.
Agarrei seus braços e o mantive imóvel, segurando-o até que ele parasse
de se debater.
— Você está bem e saudável — eu disse, em voz baixa. — Em alguns
dias terá uma nova perna. Não se prejudique ainda mais. Você está bem.
Ele encarou meu rosto, sacudiu a cabeça, então encarou outra vez.
— É verdade — falei. — Alguns dias de muletas e depois uma perna
completa outra vez. Olhe para ela.
Ele olhou, se contorcendo de modo que eu não pudesse ver, como se
achasse que seu corpo ainda guardasse segredos para mim.
— Não parece uma perna nova — disse ele.
— Só existe há algumas horas. Dê-lhe tempo para crescer.
Ele se sentou e olhou o resto da família à sua volta.
— Quem são todos vocês? Por que estão aqui?
— Somos viajantes. Uma família de Lo seguindo para o sul.
— Minha casa é para o oeste, nas montanhas.
— Não vamos deixar você até que possa ir para lá.
— Obrigado. — Ele olhou para mim por um longo momento. — Sem
ofensa, mas… encontrei pouquíssimas pessoas do seu povo… Humanos e
não Humanos.
— Constructos.
— Sim, mas não sei… Você é homem ou mulher?
— Ainda não cheguei à idade adulta.
— Não? Parece um adulto. Parece uma mulher jovem… magra demais,
talvez, mas muito bonita.
Dessa vez, não me surpreendi. Meu corpo o desejava e tentou agradá-lo.
O que aconteceria comigo quando eu tivesse dois ou mais parceiros? Seria
como o céu, mudando constantemente, nublado, desanuviado, nublado,
desanuviado? Teria de ser cruel com um parceiro para satisfazer outro?
Nikanj tinha a mesma aparência o tempo todo e, ainda assim, todos meus
outros progenitores davam-lhe imenso valor. Como minha aparência
poderia agradar alguém quando eu tivesse quatro braços em vez de dois?
— Nenhum macho e nenhuma fêmea poderiam restaurar sua perna —
expliquei a João. — Sou ooloi.
Foi como se o ar entre nós se tornasse uma parede cristalina:
transparente, mas muito sólida. Atrás dela, não conseguiríamos mais entrar
em contato. Ele tinha se refugiado do outro lado e, mesmo que eu o tocasse,
não o alcançaria.
— Você não precisa ter nenhum medo de nós — falei, querendo dizer
que ele não precisava ter medo de mim. — E, mesmo não estando na idade
adulta, posso concluir sua recuperação.
— Obrigado — disse ele, por detrás de seu novo escudo de frieza. —
Estou muito grato. — Ele não estava. Não acreditava em mim.
Os tentáculos de minha cabeça e de meu corpo se recolheram em
apertados caracóis, como antes de um ataque, e me afastei de João. Teria
sido mais fácil se ele tivesse fugido, como Marina quase tinha feito. Era
mais fácil lidar com o medo do que com aquela… aquela rejeição gélida.
Aquela repulsa.
— Por que você me odeia? — sussurrei. — Teria morrido sem alguém
do sexo ooloi para salvar sua vida. Por que me odeia por isso?
O rosto de João passou por várias transformações. Surpresa,
arrependimento, vergonha, raiva, um ódio renovado e repulsa.
— Não pedi para você me salvar.
— Por que você me odeia?
— Eu sei o que vocês fazem, sua espécie. Ficam com os homens como
se fossem mulheres!
— Não! Nós…
— Sim! Sua espécie e seus Humanos pervertidos são a causa de todo o
nosso transtorno! Vocês tratam a Humanidade inteira como mulher de
vocês!
— Foi assim que tratei você?
Ele ficou ressentido.
— Não sei o que você fez.
— Seu corpo conta a você o que fiz. — Eu me sentei por algum tempo e
examinei-o com os olhos. Quando ele desviou o olhar, eu disse: — Aquele
homem ali é meu pai Humano. A mulher é minha mãe Humana. Saí do
corpo dela. Não curei você para que insultasse essas pessoas.
Ele só me encarou. Mas agora estava em dúvida. Lilith estava
colocando alguma coisa em uma vasilha feita do tecido de Lo que ela tinha
pendurado entre duas árvores. Ainda não tinha acendido o fogo embaixo da
vasilha. Tino estava um pouco mais distante, cortando ramos de palmeira.
Construiríamos um abrigo com árvores jovens, tecido de Lo e esses ramos,
e penduraríamos nossas redes ali. Não fazíamos isso havia tempo.
Meus progenitores Humanos deviam ter parecido muito semelhantes às
pessoas da aldeia de João. Quando rebeldes solitários tinham de viver entre
nós, geralmente desenvolviam uma identificação com Humanos acasalados
e escolhiam um Oankali ou um constructo como “protetor”, de quem se
tornavam parceiros ou, então, irmãos ou irmãs adotivos temporários.
Marina tinha escolhido uma espécie de condição de acasalamento
temporária ao ficar comigo e não conversara com ninguém exceto Aaor. Era
o que eu queria de João também. Mas teria de encorajá-lo um pouco mais e,
ao mesmo tempo, convencê-lo de que a masculinidade dele não estava
ameaçada. Já tinha ouvido falar que homens muitas vezes se sentiam assim
em relação a ooloi. Eu teria de conversar com Tino. Ele poderia me ajudar a
compreender o medo e apaziguá-lo. A racionalidade, evidentemente, não
bastaria.
— Ninguém vai vigiar você — eu disse a João. — Não é um
prisioneiro. Mas tenho de monitorar sua perna. Se for embora antes que a
regeneração esteja completa, antes que eu garanta que o processo de
crescimento tenha sido interrompido, pode terminar com um tumor
monstruoso. E isso acabaria matando você. Mesmo se alguém o extirpasse,
ele só cresceria outra vez.
Ele não queria acreditar em mim, mas o assustei. Tive essa intenção.
Tudo o que disse era verdade.
Levantei e apontei.
— Suas muletas estão ali. E minha mãe Humana deixou roupas limpas
para você. — Fiz uma pausa. — Qualquer pessoa aqui o ajudará com o que
precisar, contanto que não a insulte.
Quis estender a mão para ele, mas toda sua linguagem corporal dizia
que não a aceitaria como Marina aceitara. Ele permaneceu sentado, olhando
para o lugar onde tinha estado sua perna. Não fez nenhum esforço para se
levantar.
Levei-lhe uma tigela de mingau de frutas e nozes, e ele apenas
continuou sentado, olhando para a comida. Sentei-me perto e comi da
minha tigela, mas ele nem se mexeu. Ou melhor, se mexeu uma vez.
Quando encostei nele, se encolheu e virou para me encarar. Não havia nada
além de ódio em sua expressão.
Saí dali e me banhei no rio. Aaor estava com ele quando voltei ao
acampamento. Estavam conversando, mas a rigidez das costas de João tinha
se dissipado. Talvez só estivesse cansado.
Vi Aaor empurrar a tigela de mingau para ele, que a pegou e comeu.
Quando Aaor encostou nele, João não se encolheu.
3

J oão escolheu Aaor. Aceitou sua ajuda, falou-lhe e acariciou seus seios
assim que percebeu que ninguém mais se importava com isso. Os seios
não representavam glândulas mamárias reais. Era provável que Aaor os
perdesse quando se metamorfoseasse. Muitos constructos os perdiam,
mesmo quando se tornavam fêmeas. Mas João gostava deles. Aaor só
gostava do contato.
À noite, João me aturava. Acho que a maior vergonha dele era que seu
corpo não me considerava tão repugnante quanto ele desejava acreditar que
eu era. Isso o assustava tanto quanto o envergonhava. Talvez mostrasse a
ele o que eu já tinha percebido: que, com o tempo, aprenderia a me aceitar e
até a gostar muito de mim. Acho que me odiava mais por isso do que por
qualquer outra coisa.
A perna de João cresceu em vinte e um dias. Eu o fiz comer quantidades
enormes de comida, estimulando seu apetite para que ele não conseguisse
recusar alimentos por teimosia. Além disso, estimulei-o quimicamente a ser
sedentário. Ele precisava de toda a energia que tinha para desenvolver a
perna.
Já eu desenvolvi seios e uma aparência de fêmea Humana ainda mais
evidente. Não orientei nem tentei controlar meu corpo, que não produziu
doenças, protuberâncias nem mudanças anormais. Parecia totalmente
concentrado em João, que o ignorava durante o dia, mas o acariciava e
investigava à noite, antes que eu o colocasse para dormir.
Mantive-o comigo por três dias a mais, para ajudá-lo a recuperar as
forças e me certificar de que a perna tinha parado de crescer e funcionava
tão bem quanto a antiga. Ela tinha uma pele lisa e macia e era muito pálida.
O pé era tão delicado que dobrei pedaços de tecido de Lo e os imprensei
para fazer sandálias.
— Não calço nada nos pés desde antes de você nascer — ele me disse.
— Calce esses no seu retorno para casa ou seu pé novo vai ficar muito
machucado.
— Você vai me deixar ir, de verdade?
— Amanhã. — Era nossa vigésima quinta noite juntos. Ele ainda fingia
me ignorar durante o dia, mas aparentemente produzir ódio contra mim à
noite tinha se tornado um problema. Aceitava o que eu fazia por ele e não
me ofendia. Não ofendia ninguém. Uma vez, encontrei-o contando a Aaor,
Lilith e Tino sobre São Paulo, onde ele nasceu. Tinha só dezenove anos
quando a guerra começou. Era estudante. Iria se tornar médico como o pai.
— No início, as pessoas rejeitaram a guerra — contou-lhes. —
Disseram que ela dizimaria o norte: Europa, Ásia, América do Norte.
Disseram que a população do norte tinha perdido a cabeça. Ninguém
percebeu que sofreríamos com doença, fome, cegueira…
Ele sabia que eu estava ouvindo. Não se importou, mas não teria me
contado nada sobre seu passado por vontade própria. Ele respondia às
minhas perguntas, mas não oferecia nada voluntariamente.
O nome da aldeia rebelde em que vivia era São Paulo, em memória de
sua cidade natal, que no passado ficava no extremo leste. Ele tinha acabado
de voltar ao lugar onde ficava a cidade, passando por florestas fechadas e
povos hostis e atravessando vários rios. Antes da guerra e da chegada dos
Oankali, São Paulo era uma cidade de milhões de Humanos e florestas de
prédios, grandes e pequenos. Mas o que a guerra e seus efeitos não
destruíram, os Oankali deram para seus ônibus espaciais consumirem. Eles
comiam qualquer coisa sobre a qual pousassem. Poucas ruínas restaram,
mas agora a floresta cobria grande parte do que tinha sido a cidade.
João também tinha contado seu passado a Ahajas e Dichaan. Ao menos,
evitou Nikanj. Eu conseguiria aceitar qualquer coisa que ele fizesse, desde
que evitasse Nikanj.
— Amanhã — repetiu, deitado ao meu lado. Ele se moveu para me dar
um aviso, então se sentou. Eu tinha lhe dito para sempre se mover um
pouco para me avisar de que pretendia mudar de posição ou levantar, caso
eu tivesse tentáculos sensoriais ligados a ele. Uma vez, ele me ignorou. A
dor o fez gritar e se curvar em um nó apertado, na posição fetal, suando e
respirando com dificuldade por um bom tempo. E me feriu tanto quanto,
embora eu não tenha reagido na mesma medida. Eu nunca disse nada, mas,
depois disso, ele sempre fazia um pequeno movimento de alerta.
Ele olhou para baixo, para mim.
— Não acreditei em você.
— Sua perna está íntegra e forte. Ainda está sensível e você precisa
protegê-la. Mas está completo. Por que não deveria ir embora?
Sua boca não disse nada. Seu rosto disse que ele não estava certo de
querer partir. Não estava certo nem mesmo de gostar que eu dissesse que
ele poderia partir. Mas o orgulho o manteve calado.
— Tudo bem! — disse ele, por fim. — Vou amanhã. Amanhã de manhã.
Eu o puxei para o colchão e beijei seu rosto, depois sua boca.
— Não vou ficar feliz em vê-lo partir — falei. — Se você fosse mais
jovem… — Acariciei a parte de trás do pescoço dele. Minhas axilas não
coçaram. Doeram.
— Não sabia que minha idade era importante — falou ele, então deu um
suspiro. — Eu não deveria me importar. Deveria ficar agradecido. Não
mudei de opinião… sobre ooloi.
— Acho que mudou sim.
— Não. Só mudei meus sentimentos por você. Não acreditava que
poderia fazer nem mesmo isso.
— Antes de ir embora, vá até Nikanj. Faça com que examine você para
ter certeza de que não deixei passar nada.
— Não!
— Nikanj só vai tocar em você por um instante. Um instante. Depois
disso, venha até mim… para se despedir.
— Não. Não posso deixar aquela coisa tocar em mim. Prefiro confiar
em você.
— É um de meus progenitores.
— Eu sei. Não quis ofender. Mas não consigo fazer isso.
— Não vou mandar você embora para morrer por algum erro meu que
possa ser corrigido. Vai deixar Nikanj tocar em você.
Silêncio.
— Faça isso por mim, João. Não deixe que eu fique imaginando se
matei você.
Ele suspirou. Depois de um tempo, concordou com a cabeça.
Coloquei-o para dormir. Ele não sabia, mas eu era responsável por
reforçar sua aversão por Nikanj. Nenhum macho ou fêmea que passasse
tanto tempo com alguém do sexo ooloi, como ele passou comigo, se sentiria
confortável com outro indivíduo ooloi. João e eu não estávamos ligados,
mas ele estava quimicamente direcionado a mim e afastado das outras
pessoas. Uma pessoa ooloi adulta poderia seduzi-lo e afastá-lo se eu
realmente o desagradasse e ele estivesse interessado em encontrar outra
companhia ooloi. Caso contrário, ficaria comigo. Lilith tinha começado
assim com Nikanj.
Na manhã seguinte, levei João até Nikanj. Como prometi, Nikanj o
tocou por um breve momento, então o liberou.
— Você não fez nada de errado — me disse. — Queria que ele pudesse
ficar e evitar que você se torne um sapo outra vez. — Agradeci por Nikanj
falar em inglês e João não entender.
Dei comida, uma rede e meu facão a João. Ele tinha perdido todos os
apetrechos que trazia consigo quando caiu.
— Existem Oankali mais velhos que gostariam de acasalar com você —
expliquei a ele. — Poderiam lhe dar prazer. Você poderia ter crianças.
— Qual deles se pareceria com a pessoa com que sonhei quando era
jovem? — ele perguntou.
— Eu não tenho essa aparência de fato, João. Você sabe que não. Não
tinha essa aparência quando nos conhecemos.
— Você tem essa aparência para mim — disse ele. — Diga-me quem
mais poderia fazer isso.
Balancei a cabeça.
— Ninguém.
— Percebe?
— Então, vá para Marte. Encontre alguém que realmente tenha essa
aparência. Tenha crianças Humanas.
— Já pensei sobre Marte. Mas pareceu uma fantasia. Viver em outro
mundo…
— Os Oankali já viveram em muitos outros mundos. Por que os
Humanos não deveriam viver ao menos em um outro?
— Por que os Oankali deveriam ficar com o único mundo que é nosso?
— Eles já ficaram. E vocês não podem pegá-lo de volta. Podem ficar
aqui e morrer de forma inútil, resistindo. Podem ir para Marte e ajudar a
fundar uma nova sociedade humana. Ou podem se juntar a nós em uma
permuta. Uma hora, iremos para o espaço. Se você se juntar a nós, seus
descendentes irão conosco.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Já estive entre os Oankali antes. Todos nós, rebeldes, já
estivemos. Os Oankali nunca me deixaram ter dúvidas sobre o que eu
deveria fazer. — Ele sorriu. — Antes de conhecer você, Jodahs, eu me
conhecia muito melhor. — Ele se afastou, hesitante. — Nem sei o que
quero de você — disse quando estava indo embora. — Não é o normal, com
certeza, mas não quero deixar você.
Mas, é claro, ele deixou.
4

D ois dias depois da partida de João, Aaor entrou em metamorfose.


Não parecia avançar com tanta lentidão quanto eu, embora eu
estivesse me preocupando tanto com João que poderia apenas não ter
percebido os sinais. Aaor apenas foi até seu colchão e dormiu. Fui eu quem
toquei em seu corpo e percebi que estava em metamorfose – e que estava se
tornando ooloi.
Então, haveria dois de nós. Duas incertezas perigosas. Talvez jamais
tivéssemos permissão para acasalar normalmente e passaríamos o resto de
nossas vidas em algum tipo de exílio.
Não recomeçamos a viajar no dia em que João nos deixou. Agora, não
podíamos. Não havia nenhum motivo razoável para carregar Aaor pela
floresta, exigindo que assimilasse novas sensações, quando deveria se isolar
e se concentrar no desenvolvimento e reajuste do próprio corpo.
Poderíamos ter montado uma jangada e viajado rio abaixo até Lo em
uma fração do tempo que levamos para chegar àquele ponto. Em uma
emergência, Nikanj poderia enviar sinais pedindo ajuda. Mas que ajuda?
Um ônibus espacial para nos levar a Lo, onde não poderíamos ficar? Ou um
para nos levar a Chkahichdahk, para onde não queríamos ir?
Nós nos reunimos em volta de Aaor, que dormia, e concordamos em
fazer a única coisa que de fato podíamos fazer: nos mudar para um terreno
mais elevado a fim de evitar as cheias da estação chuvosa e construir uma
casa permanente. Minha mãe Humana disse que era hora de plantar uma
horta.
Nikanj e eu ficamos com Aaor enquanto os demais foram procurar o
lugar para a nova casa.
— Você percebe que já perdeu a maior parte de seu cabelo? — Nikanj
me perguntou quando nos sentamos em lados opostos do corpo adormecido
de Aaor.
Toquei minha cabeça. Ainda tinha uma camada muito fina de fios, mas,
como Nikanj disse, eu estava quase careca. De novo. Não tinha percebido.
Agora, conseguia ver que minha pele também estava mudando, perdendo a
maciez que tinha adquirido para João e até sua coloração marrom. Ainda
não conseguia dizer se voltaria ao meu marrom-acinzentado natural ou
assumiria a coloração esverdeada que eu tinha antes de o encontrarmos.
— Você deveria ser, no mínimo, tão capaz de monitorar o próprio corpo
quanto de monitorar um Humano — acrescentou Nikanj.
— Aaor será como eu? — perguntei.
Nikanj deixou seus tentáculos sensoriais penderem frouxos.
— Temo que talvez seja. — Ficou em silêncio por algum tempo. —
Sim, acredito que será — disse, por fim.
— Então, agora, terá duas crias do mesmo sexo precisando de você… e
ressentidas com você.
Nikanj concentrou a atenção em mim por muito tempo, com uma
intensidade que, no início, me intrigou, depois começou a me assustar.
Pousou um braço sensorial sobre o peito de Aaor, examinando, verificando.
— Aaor está bem? — perguntei.
— Tanto quanto você. — Nikanj agitou seus tentáculos. — Perfeição,
mas imperfeição. Tem tudo o que deveria ter. Pode fazer tudo que deveria
ser capaz de fazer. Mas isso não será suficiente. Você terá de ir para a nave,
Oeka. Você e Aaor.
— Não! — Eu me sentia como da vez que um Humano aparentemente
amigável me atingiu no rosto.
— Vocês precisam de parceiros — disse Nikanj, com delicadeza. —
Ninguém vai acasalar com vocês aqui, exceto Humanos idosos que
roubariam talvez 4/5 da sua vida. Na nave, talvez consigam encontrar
parceiros jovens, quem sabe até Humanos jovens.
— E trazê-los de volta à Terra?
— Não sei.
— Então, não vou. Não arriscarei que me detenham lá. Acho que Aaor
também não vai.
— Aaor vai. Vocês irão quando Aaor completar a metamorfose.
— Não!
— Oeka, você sabe que é preciso. Com um parceiro em potencial,
mesmo um parceiro muito inadequado, seu controle é impecável. Sem um
potencial parceiro, você fica descontrolado. Surpreendeu-se quando eu
disse que estava perdendo seus cabelos. Tem se surpreendido com seu corpo
várias vezes. E ele não deveria surpreender você. Nada que seu corpo faz
deveria estar além de seu controle.
— Mas eu sequer desenvolvi aquele cabelo por vontade própria.
Simplesmente… em algum nível, percebi que João gostaria disso. Acho que
me tornei todas as coisas que o agradavam, embora ele nunca tenha dito
quais eram.
— O corpo dele disse. Cada olhar, reação, toque, cheiro. Ele nunca
deixou de dizer a você o que queria. E como era o único alvo da sua
atenção, você lhe deu tudo que ele pediu. — Nikanj se deitou ao lado de
Aaor. — Fazemos isso, Jodahs. Nós os agradamos para que fiquem e nos
satisfaçam. Você é melhor nisso com os Humanos do que eu jamais fui.
Minha concepção visava essa permuta, mas você… você é parte da
permuta. Consegue compreender tanto os Humanos como os Oankali
apenas olhando dentro de si. — Nikanj fez uma pausa e agitou os
tentáculos. — Acredito que não teríamos tantos rebeldes se tivéssemos
criado constructos ooloi antes.
— Acha isso e ainda assim quer me mandar embora?
— Acredito nisso, sim. Mas ninguém mais acredita. Nós temos de
ensinar a eles.
— Não quero ensinar… Nós? Nós, Ooan?
— Por um tempo, todos nós vamos nos transferir para a nave.
Quase disse “não” outra vez, mas Nikanj não teria prestado atenção em
mim. Quando começou a dizer o que eu iria fazer, já havia se decidido.
Nossos interesses – meus e de Aaor – e nossas necessidades seriam mais
bem atendidos em Chkahichdahk, mesmo se nunca tivéssemos permissão
de voltar para casa. A família ficaria conosco até entrarmos na fase adulta,
mas depois nos deixaria na nave. Florestas e rios, nunca mais. Vida
selvagem repleta de criaturas que eu ainda não tinha provado, nunca mais.
O planeta, em si, era como um de meus progenitores. Eu iria embora e não
ganharia nada.
Não, isso não era verdade. Eu ganharia parceiros. Um dia. Quem sabe.
Nikanj faria tudo que pudesse para arranjá-los. Havia Humanos jovens
nascidos e criados na nave, porque eram muito poucos os Humanos
recuperáveis que restaram após a guerra, com as doenças e os distúrbios
atmosféricos resultantes. Não o suficiente para uma permuta adequada.
Além disso, a maioria dos que quiseram retornar à Terra tiveram permissão
para fazer isso, o que deixou pouquíssimos parceiros Humanos para os
Oankali Toaht, aqueles que quiseram fazer a permuta e partir com a nave.
Eles estavam criando mais Humanos assim, bem como aceitando os que
eram violentos e estavam na Terra. Apesar disso, não havia o suficiente para
todos que queriam. Ainda não. Qual seria a probabilidade de que os Toaht
me deixassem acasalar com pelo menos um?
Balancei a cabeça.
— Não me abandone, Ooan.
Nikanj concentrou sua atenção em mim, a postura questionadora.
— Você sabe que não irei.
— Não vou a Chkahichdahk. Não vou aceitar o que eles decidirem me
dar nem vou ficar se decidirem me manter lá. Prefiro ficar aqui e acasalar
com Humanos idosos.
Nikanj não gritou comigo, como meus pais Humanos teriam feito. Não
me disse o que eu já sabia. Nem sequer se afastou de mim.
— Deite-se aqui comigo — falou com brandura.
Fui me deitar ao seu lado e senti que se ligava a mim com mais
tentáculos sensoriais do que eu tinha por todo o corpo. Enrolou um braço
sensorial ao redor do meu pescoço.
— Há tanto desespero em você — disse sem usar a voz. — Você não
poderia jogar tanta vida fora.
— A sua vida será mais curta por causa de Tino e Lilith — falei. —
Você sente que está jogando algo fora?
— Em Chkahichdahk, há Humanos que vão viver tanto quanto você
viveria em condições normais.
— Tantos que um casal teria permissão de vir até mim? E quanto a
Aaor?
Nikanj começou a sentir o próprio desespero.
— Não sei.
— Mas você acha que não. Eu também acho.
— Você sabe que vou falar a seu favor.
— Ooan…
— Sim. Eu sei. Duas das crianças que fiz são constructos ooloi.
Ninguém mais fez isso. Quem vai me ouvir?
— Alguém vai?
— Muitos, não.
— Por que você ameaçou me mandar para Chkahichdahk, então?
— Você irá, Oeka. Não há lugar para você aqui, sabe disso.
— Não!
— Lá há uma vida para você. Vida! — Nikanj fez uma pausa. — Você é
mais adaptável do que pensa. Eu fiz você. Eu sei. Poderia morar lá. Poderia
encontrar parceiros constructos ou Oankali e aprender a se contentar com a
vida a bordo da nave.
Em voz alta, eu disse:
— Você provavelmente tem razão. Antes havia Humanos que se
adaptavam para não serem capazes de enxergar, ouvir, andar ou se mover.
Eles se adaptaram. Mas acho que nenhum deles escolheu ficar tão restrito.
— Mas pense! — Segurou-me mais apertado. — Onde você vai morar
com parceiros Humanos idosos? Os rebeldes vão permitir que você se junte
a eles em uma de suas aldeias? Quantos ataques serão necessários para
forçar uma reação letal de sua parte? O que acontecerá então? E, Jodahs, o
que acontecerá com seus descendentes, suas crianças Humanas? Você as
tornará estéreis ou permitirá que acasalem entre si, sem ooloi, e causem
deformidades e doenças? Vai tentar forçá-las a ir a uma de nossas aldeias?
Elas podem não querer se juntar a nós mais do que você deseja ir para
Chkahichdahk. Vão preferir o lugar e as pessoas que conhecem. E se você
fizer um bom trabalho ao concebê-las, poderiam viver mais do que todos os
outros rebeldes. Poderiam sobreviver a este mundo. Se conseguirem nos
evadir, podem morrer quando destruirmos a Terra e seguirmos nosso
caminho.
Afastei-me de Nikanj, indicando que se distanciasse de mim. Quando a
Terra fosse dividida e os nove entes-naves se espalhassem pelo espaço
sideral, Nikanj teria morrido haveria muito tempo. Se acasalasse com um
Humano idoso, eu também teria. Não seria capaz de proteger minhas
crianças, mesmo que estivessem dispostas, quando adultas, a serem
orientadas por um de seus progenitores.
Distanciei-me de Nikanj e entrei na floresta. Não fui longe. Aaor não
tinha proteção e Nikanj podia precisar de ajuda para dar-lhe amparo. Mais
do que nunca, Aaor era meu par fraterno. Será que sabia o que estava
acontecendo consigo? Queria ser ooloi? Teria disposição a viver em
Chkahichdahk, uma vez que nasceu Oankali?
Que diferença faria o que Aaor queria – ou o que eu queria? Iríamos
para Chkahichdahk. E, provavelmente, não teríamos permissão para voltar
para casa.
Quando meus progenitores, meus irmãos e minhas irmãs voltaram para
transferir Aaor para o novo local escolhido, eu desci para o rio, mergulhei e
o atravessei.
Vaguei por três dias, meu corpo verde, escamoso e estranho. Ninguém
chegou perto de mim. Eu vivia das plantas que encontrava, coletando e
escolhendo de acordo com as necessidades do meu corpo. Comi tudo cru.
Os Humanos gostavam de fogo. Valorizavam os alimentos cozidos muito
mais do que nós. Além disso, eram menos capazes de obter a nutrição
necessária das folhas, gramíneas, sementes e fungos que eram tão
abundantes na floresta. Nós podíamos digerir aquilo de que precisávamos
da madeira, se necessário.
Vaguei, sentindo o sabor da floresta, da Terra, de onde logo me
arrancariam.
Três dias depois, voltei para a família. Sentei-me ao lado de Aaor, onde
passei alguns dias, depois parti outra vez.
Esse foi meu padrão durante o restante da metamorfose de Aaor. Às
vezes, eu levava a Nikanj algumas células de uma planta ou um animal com
que me deparara pela primeira vez. Todos fazíamos isso, levávamos
amostras vivas do que quer que encontrássemos ao membro ooloi adulto da
família. Ooloi no geral aprendiam muito com o que seus companheiros e
descendentes lhes traziam. E o que quer que déssemos a Nikanj ficava em
sua memória, tanto que ainda conseguia recuperar e recriar uma planta rara
das montanhas que lhe foi apresentada por um de meus irmãos mais de
cinquenta anos antes. Um dia, deveria duplicar as células de seu vasto
estoque de informações biológicas e passar as cópias para os descendentes
de seu sexo. Deveríamos recebê-las quando fôssemos totalmente adultos e
tivéssemos acasalado. O que significaria isso, de fato, para mim e Aaor?
Algum dia em Chkahichdahk? Nunca?
Eu sempre gostei de trazer coisas para Nikanj. Gostava de compartilhar
o prazer que sentia com novos sabores, novas sensações. Agora, mais do
que nunca, precisava do contato com Nikanj. Mas já não gostava disso. Não
considerava sua culpa ter apontado o óbvio: que Aaor e eu tínhamos de ir
para a nave. Era nossa matriz do mesmo sexo cumprindo seu dever. Mas,
sempre que Nikanj tocava em mim, eu só conseguia sentir tensão. Aflição.
A sua e a minha. Eu trazia à tona o que Nikanj tinha de pior.
Comecei a ficar ainda mais distante.
Às vezes, encontrava rebeldes, mas eu parecia uma criatura tão não
Humana e tão não Oankali que, na maioria das vezes, eles fugiam. Duas
vezes atiraram em mim e depois escaparam. Mas, por mais que meu corpo
se deformasse, eu sempre conseguia curar as feridas.
Minha família nunca tentou controlar minhas idas e vindas. Aceitavam
meus sentimentos, quer os compreendessem ou não. Queriam me ajudar e
sofriam por não conseguir. Quando eu estava em casa, às vezes me sentava,
à noite, com Ayodele e Yedik, quando estavam de vigia. Montávamos
guarda em pares, exceto por Nikanj, que ficava com Aaor, e Oni e Hozh,
que eram jovens demais para isso.
Mas eu podia tocar em Oni e Hozh. Podia tocar em Ayodele e Yedik.
Ainda eram crianças, com odor neutro, e ainda não eram proibidos para
mim. Quando eu saía da floresta, sem parecer com nada que alguém na
Terra reconhecesse, um par ou outro me carregava, colocando-me no meio,
e me fazia companhia até que eu me parecesse comigo outra vez. Se eu
tocasse em apenas um deles, transformaria essa criança, tornando-a igual a
mim. Mas, se as duas ficassem comigo, eram elas que me transformavam.
— Não deveríamos ser capazes de fazer isso com você — disse Yedik
uma noite, enquanto estávamos de vigia.
— Vocês tornam mais fácil para mim não ficar perambulando — falei.
— Meu corpo perambula. Mesmo quando chego em casa, ele quer
continuar vagando.
— Não deveríamos ser capazes de impedir isso — insistiu Yedik. —
Não deveríamos influenciar você. Somos jovens demais.
— Quero que vocês me influenciem. — Olhei de um para o outro.
Ayodele parecia fêmea e Yedik parecia macho. Eu tinha a esperança de que
fossem mais fortemente influenciados por sua aparência do que eu fui. Os
Humanos diziam que eles eram bonitos.
— Posso me transformar — expliquei a eles. — Mas é um esforço. E
não dura. É mais fácil fazer como a água: permitir que me contenham e
assumir a forma de meus receptáculos.
— Não compreendo — disse Ayodele.
— Vocês me ajudam a fazer o que quero fazer.
— O que os Humanos fazem?
— Eles me moldam de acordo com suas lembranças e fantasias.
— Mas… — Os dois falaram ao mesmo tempo. Depois, por
consentimento mútuo, Ayodele continuou. — Então, ou você fica fora de
controle ou nós contemos você ou, de maneira forçada, assume uma
configuração humana falsa?
— De maneira forçada, não.
— Quando você pode ser você?
Pensei naquilo. Compreendi a pergunta porque me lembrava de ter a
idade deles e possuir uma forte consciência sobre a aparência do meu rosto,
do meu corpo, e de ser aquela aparência. Na verdade, nunca fui.
— Mudar não me incomoda mais — expliquei. — Não esse tipo de
mudança deliberada e controlada, pelo menos. Eu gostaria que não
incomodasse outras pessoas. Nunca deformei plantas ou animais da maneira
como temiam que eu talvez fizesse.
— Só pessoas — disse Yedik, sem usar a voz. — Pessoas e Lo.
— Lo quase não se incomodou. Teria sobrevivido à guerra na qual os
Humanos mataram uns aos outros.
— Lo é parte de você e vulnerável a você. Você lhe fez mal.
— Eu sei. E confundi Lo. Mas acho que, mesmo se eu tentasse, não lhe
causaria nenhum dano sério, e eu jamais tentaria. Quanto às pessoas, você
notou que os Humanos, as pessoas para quem sou, supostamente, o maior
perigo, são aquelas que nunca machuquei?
Silêncio.
— Vocês se incomodam que eu fique aqui com vocês?
— Costumava incomodar — disse Ayodele. — Achávamos que sua
vida devia ser terrível. Podemos sentir sua aflição quando nos ligamos a
você.
— Este é o meu lugar — expliquei. — Este mundo. Não pertenço à
nave, exceto, talvez, para uma visita. Às vezes, as pessoas vão para lá para
assimilar mais do nosso passado. Eu não me importaria com isso. Mas não
posso morar lá. Não importa o que Ooan diga, não posso morar lá. É um
lugar que está terminado. As pessoas ainda estão se reproduzindo, mas o
lugar…
— Ainda está se dividindo em dois para fazer uma nave para os Toaht e
uma para os Akjai.
— E as duas metades serão lugares menores que estarão terminados.
Sem vida selvagem. Sem novidade. Sou Dinso como vocês, não Toaht ou
Akjai.
Mais uma vez, ficaram em silêncio.
— Sentem-se juntos. — Desliguei-me deles e comecei a me levantar.
Observaram-me com os olhos e os poucos tentáculos sensoriais. Em
silêncio, pegaram minhas mãos e me puxaram para que me sentasse outra
vez. Agiram em uníssono perfeito, mais do que quaisquer de meus outros
irmãos e irmãs. Ahajas disse que com certeza se tornariam parceiros caso se
tornassem macho e fêmea.
Não me queriam entre eles. Eu os deixava desconfortáveis, pois
queriam me ajudar e não podiam fazer grande coisa. Por outro lado,
realmente me queriam entre eles, porque seriam capazes de ajudar um
pouco, sabiam que em breve me perderiam e gostavam do que eu fazia seus
corpos sentirem. Eu não era capaz de fazer as pessoas se sentirem bem
como Nikanj, mas podia lhes dar algo. E tinha idade suficiente para ler sua
linguagem corporal interna e externa e compreender melhor o que estavam
sentindo.
Eu gostava daquilo. Gostava muito do que era capaz de fazer nos
últimos tempos. Era apenas a ideia de me mandarem para Chkahichdahk, de
me manterem lá, como em uma jaula, que me enfurecia.
Na manhã seguinte, esse pensamento me conduziu novamente rumo à
floresta.
5

A aor passou por uma longa metamorfose – onze meses. Sempre que
eu voltava para casa, tinha medo de que Aaor tivesse despertado e a
família estivesse construindo uma jangada.
Comecei a procurar Humanos. Evitava bandos muito grandes, mas foi
fácil encontrar indivíduos e pequenos grupos.
Eu os seguia em silêncio, isolava e apreciava seus aromas, ouvia suas
conversas. Às vezes, percebiam que estavam sendo seguidos, embora nunca
me vissem. Minha coloração escureceu e eu me escondia com facilidade
nas sombras. A vegetação rasteira da floresta quase sempre estava molhada,
ou ao menos úmida, e era fácil me deslocar em silêncio. Os Humanos que
eu seguia costumavam fazer muito mais barulho do que eu. Observei um
caçador Humano fazendo um alvoroço tão grande que o porco-do-mato que
ele estava perseguindo o escutou e fugiu. O Humano foi ao local onde o
bicho estivera, amaldiçoando-o, e chutou a fruta que o animal estivera
comendo. Nunca lhe ocorreu comê-la ou colher algumas para o seu povo.
Comi algumas quando ele foi embora.
Uma vez, três pessoas me perseguiram. Cogitei permitir que me
pegassem. Mas, primeiro, dei a volta para dar uma olhada neles e os ouvi
conversando sobre me abrir e ver como eu era por dentro. Como todos
tinham armas e facões, decidi evitá-los. Era demais, para um subadulto,
dominar três deles com segurança.
Eu estava me deslocando rio acima, mais acima do que jamais tinha
estado antes, bem em meio às colinas. Ali, a floresta era menos
diversificada, mas não tive problemas para encontrar comida suficiente,
além de eventuais plantas e animais que eram novos para mim. Entretanto,
encontrei poucas pessoas por lá. Durante vários dias, não me deparei com
ninguém. Nenhuma brisa me trouxe um cheiro humano.
Comecei a sentir a solidão como uma dor quase física. Não tinha
percebido como era significativo para mim ver alguns seres Humanos de
poucos em poucos dias.
Agora, eu precisava ir para casa. Mas não queria. Desta vez, Aaor
certamente já teria acordado. Esse pensamento me causou pânico, evocando
com tanta força o sentimento de que eu estava em uma jaula que mal
consegui pensar.
Fiquei onde estava por um tempo, limpei um pedaço de terra e fiz uma
fogueira, embora não precisasse de uma. Isso me reconfortou e me fez
lembrar dos Humanos. Deixei o fogo se extinguir e assei vários tubérculos
selvagens nas brasas. O cheiro da comida não foi suficiente para mascarar o
odor de dois Humanos quando se aproximaram – sem dúvida, atraídos pela
refeição.
Eram um homem e uma mulher e tinham um odor… muito estranho.
Incoerente. Estavam feridos, talvez. E armados. Eu conseguia sentir o
cheiro de pólvora. Poderiam atirar em mim, mas decidi arriscar. Não quis
me mexer. Deixaria que me surpreendessem.
Meu corpo estava coberto de escamas sobrepostas do tamanho de
unhas. Além disso, tendia a se tornar quadrúpede, mas resisti a isso. Mãos
eram muito mais úteis do que patas dianteiras com garras.
Enquanto os Humanos se aproximavam com muito cuidado e em
silêncio, eu me preparava para eles. Minha cabeça calva e meu rosto
escamoso tinham de parecer mais humanos. Não tive tempo de mudar o
resto de mim. Podia, talvez, parecer que estava vestindo roupas incomuns.
Na verdade, eu não usava roupa alguma naquelas viagens. Elas só
atrapalhavam.
Os Humanos limitaram-se a disfarçar e andar ao meu redor, me
observando. Queriam ficar atrás de mim. Decidi me fingir de morto caso
atirassem. Melhor atraí-los mais para perto e desarmá-los o mais rápido
possível.
Mas talvez não atirassem em mim. Usei um graveto para revelar um dos
tubérculos e tirá-lo dos carvões. Estava quente demais para comer, mas o
limpei e o abri. Estava bem cozido, quente, apimentado e doce. Não existia
antes dos Humanos fazerem sua guerra. Lilith disse que era uma das poucas
mutações gostosas que tinha comido. Ela a chamava de “fruta de compota
de maçã”. A maçã era uma fruta extinta da qual ela gostava. O sabor dos
tubérculos crus não a agradava, mas, às vezes, quando assava um, ela se
afastava para comê-lo sozinha e rememorar uma outra época.
Atrás de mim, um dos Humanos fez um barulhinho, um gemido.
Passei a mão pelo rosto. A mão se parecia mais com uma garra do que
eu gostaria, mas o rosto estava limpo e macio agora. Se não fosse bonito,
pelo menos não era aterrorizante.
— Juntem-se a mim — eu disse alto. Não era natural falar em voz alta.
Eu não falava havia uns trinta dias. — Tem mais comida. São bem-vindos
para comê-la. — Repeti as palavras em espanhol, português e suaíli. Esses,
junto com o francês e o inglês, eram os idiomas mais conhecidos. A maioria
das pessoas era fluente em pelo menos um deles. A maior parte dos
sobreviventes era da África, Austrália e América do Sul.
Os dois Humanos não responderam e não se mexeram, mas seus
batimentos cardíacos aceleraram. Eles me ouviram e, provavelmente,
entenderam que eu estava falando com eles. Quando os batimentos
cardíacos aumentaram? Eu me concentrei em minha memória por um
instante. Minha fala os tinha assustado, mas meu espanhol havia despertado
mais sentimentos. As outras línguas não provocaram nenhuma reação
adicional. Espanhol, então. Repeti meu convite em espanhol.
Eles não vieram. Pensei que compreendiam, mas não responderam e
permaneceram escondidos.
Tirei o resto dos tubérculos das brasas e os coloquei em uma bandeja de
folhas grandes.
— São seus, se quiserem — falei. Limpei um lugar bem longe da
comida e me deitei para descansar. Não dormia havia dois dias. Os
Humanos gostavam de períodos regulares de sono, de preferência à noite.
Os Oankali dormiam quando precisavam descansar. Eu precisava agora,
mas não dormiria enquanto os Humanos não tomassem alguma decisão: ir
embora ou saciar sua fome e curiosidade. Mas eu podia ficar imóvel, à
maneira oankali. Podia permanecer em vigília usando a menor quantidade
possível de energia e, como Lilith e Tino disseram, parecendo sem vida. Eu
conseguia fazer aquilo, com conforto, por muito mais tempo do que a
maioria dos Humanos estaria disposta a ficar sentada observando.
O macho saiu do esconderijo primeiro. Observei-o com alguns dos
meus tentáculos sensoriais. Toda a linguagem corporal dele me dizia que
pretendia pegar a comida e correr. Eu me preparei para deixá-lo fazer isso,
mas então o examinei melhor.
Ele estava doente. Metade do rosto estava encoberta por uma grande
protuberância. Ele não usava camisa e pude ver que suas costas e seu peito
estavam cobertos de grandes e pequenas protuberâncias tumorosas. Um de
seus olhos estava completamente encoberto. O outro parecia ameaçado. Se
o tumor facial continuasse a crescer, ele logo seria incapaz de enxergar.
Eu não poderia deixá-lo ir. Acho que nenhuma pessoa ooloi poderia.
Nenhum ser vivo nas condições dele deveria ser deixado vagando sem
cuidados.
Esperei até que sua atenção estivesse voltada por completo para a
comida. No começo, ele pareceu hesitar entre mim e ela. Entretanto, logo a
comida estava ao seu alcance. Ele estendeu as mãos para pegá-la.
Agarrei-o antes que ele percebesse que eu estava em vigília. Virei-o no
mesmo instante para ficar de frente para a mulher, que agora eu conseguia
ver. Ela apontava um rifle para mim. Fiz com que mirasse nele.
Ele lutou, primeiro em pânico, depois de forma calculada, com o
objetivo de me machucar e ficar livre. Eu o mantive imóvel e o investiguei
rápido.
Tinha um distúrbio genético. Os efeitos estavam piorando pouco a
pouco. Como eu suspeitava, ficaria cego se aquilo continuasse. A doença
deformara até os ossos do rosto. Estava surdo de um ouvido e, com o
tempo, ficaria surdo do outro. A coluna estava ficando comprometida. Já
não conseguia virar a cabeça com liberdade. Um ombro estava coberto de
protuberâncias carnudas. O braço ainda era funcional, mas não o seria por
muito tempo. E havia mais alguma coisa errada. Algo que eu não
compreendia. Este homem já estava morrendo. Estava consumindo a
própria vida como faziam os ratos, sorvendo-a em goles rápidos e depois
morrendo. A doença ameaçava invadir seu cérebro e sua coluna. Mas,
mesmo sem o crescimento contínuo do tumor, ele morreria em apenas
algumas décadas. Foi geneticamente programado para se consumir com
uma rapidez obscena.
Como podia ter uma doença daquelas? Um indivíduo ooloi o examinara
antes de o libertar. Ooloi examinaram todos os humanos, sanando os
defeitos, retardando o envelhecimento, fortalecendo a resistência a
enfermidades. Mas, talvez, tivessem apenas controlado-a de modo
imperfeito, sem corrigi-la.
Ooloi tinham feito isso com algumas doenças genéticas. Eram
complicadas e era melhor que fossem sanadas por parceiros de
acasalamento. Os rebeldes foram alterados para que não pudessem ter filhos
sem acasalarem com ooloi e, portanto, não transmitissem sua doença.
Controlá-la deveria ter bastado.
Falei no único ouvido bom do macho enquanto o segurava.
— Você estará completamente cego em breve. Depois disso, ficará
surdo. Com o tempo, não poderá mais usar seu braço direito e esse é o
braço que prefere. E isso não é o pior. Você me entende?
Ele parou de se debater. Agora se afastava, tentando me olhar, apesar de
seu pescoço não cooperativo.
— Eu posso ajudá-lo — falei. — Vou ajudá-lo, se permitir. E se sua
amiga não atirar em mim. — Eu o ajudaria quer a fêmea atirasse em mim
ou não, mas preferiria evitar um tiro. Os ferimentos a bala doíam mais do
que eu queria imaginar e ainda não era tão eficiente em controlar minha dor.
O homem estava mais calmo agora. Não me atrevi a drogá-lo muito.
Conseguia dar-lhe algum prazer, relaxá-lo um pouco, mas não colocá-lo
para dormir. Se ele perdesse a consciência em meus braços, a fêmea
certamente entenderia mal e atiraria em mim.
— Posso ajudar — repeti. — Tudo o que peço em troca é que vocês não
tentem me matar.
— Por que você faria algo assim? — ele quis saber. — Apenas me
solte!
Segurei-o de modo mais confortável.
— Por que você precisaria ficar cada vez mais incapacitado? —
perguntei. — Por que precisaria morrer se pode viver e ficar bem? Deixe-
me ajudá-lo.
— Solte-me!
— Você vai ficar e ao menos me ouvir?
Ele hesitou.
— Sim. Tudo bem. — Seu corpo estava tenso, pronto para correr.
Soltei um suspiro para que ele o ouvisse.
— Se mentir para mim, não tenho como não perceber.
Aquilo o deixou assustado e muito desconfiado da minha percepção,
mas não disse nada.
A fêmea saiu do esconderijo e nos encarou. Mantive o macho entre o
meu corpo e o rifle dela. Observando-a, não tive nenhuma dúvida de que ela
atiraria. Mas eu precisava de mais alguns minutos com o homem antes que
pudesse ter algo significativo para mostrar a eles. A fêmea também tinha
tumores, mas os dela não eram tão grandes quanto os dele. Seu rosto, seus
braços e suas pernas, tudo que fosse visível, estava coberto com pequenas
protuberâncias distribuídas de forma irregular.
— Solte-o — ela disse baixinho. — Não vou atirar em você se o soltar.
Isso ao menos era verdade. Ela estava com medo, mas era sincera.
Assenti com a cabeça, depois falei com o macho.
— Não machuquei você. O que fará se for solto?
Agora o homem deu um suspiro verdadeiro.
— Vou embora.
— Você está com fome. Leve a comida com você.
— Não quero. — Ele não confiava mais naqueles alimentos,
provavelmente porque eu queria que ele os levasse.
— Faça só uma coisa por mim antes de eu soltar você.
— O quê?
— Mova seu pescoço.
Eu o segurei com firmeza, mas recuei um pouco para deixá-lo virar e
torcer o pescoço que estivera praticamente congelado antes que eu tocasse
nele. Ele xingou em voz baixa.
— Tomás? — chamou a fêmea, em um tom cheio de dúvida.
— Consigo mexê-lo — disse ele, sem necessidade. E não parou de
movê-lo.
— Dói?
— Não. Parece só… normal. Eu tinha esquecido como era mexê-lo
assim.
Eu o soltei e falei em tom tranquilo.
— Talvez, quando estiver cego há algum tempo, se esqueça como era
enxergar.
Ele quase caiu ao se virar para me encarar. Depois de dar uma boa
olhada, deu um passo para trás.
— Você não vai encostar em mim de novo até que eu veja você se curar
— ele disse. — O que… quem é você?
— Jodahs — falei. — Sou um constructo, Humano e Oankali.
Ele pareceu assustado, depois deu uma volta ao meu redor para poder
me ver por todos os lados.
— Nunca ouvi falar que tinham escamas. — Ele balançou a cabeça. —
Meu Deus, cara, você deve assustar mais as pessoas do que nós!
Eu ri. Consegui sentir meus tentáculos sensoriais se alisando contra
minhas escamas.
— Nem sempre tenho essa aparência — eu disse. — Se você ficar até
ser curado, vamos ficar mais parecidos. Vou assumir a aparência que você
terá quando estiver curado.
— Não podemos ser curados — disse a fêmea. — Os tumores podem
ser cortados, mas voltam a crescer. A doença… nós nascemos com ela.
Ninguém pode curá-la.
— Sei que nasceram com ela. E vão transmiti-la a algumas de seus
filhos, no mínimo, caso decidam ir para onde possam tê-los. Posso sanar o
problema.
Eles se entreolharam.
— Não é possível — disse o macho.
Voltei minha atenção a ele. Tinha sido um prazer tocá-lo. Agora, não
havia mais necessidade de voltar correndo para casa. Não havia necessidade
de me apressar para nada. Havia dois deles. Um tesouro.
— Mexa seu pescoço — ordenei outra vez.
O homem o moveu, balançando a cabeça deformada.
— Não entendo — falou. — Como você disse que se chama?
— Jodahs.
— Sou Tomás. Esta é Jesusa. — Nenhum outro nome. Muito
deliberadamente, nenhum outro nome. — Explique para nós como fez isso.
Peguei alguns gravetos da pilha em que os juntei e acendi a fogueira.
Complacentes, os dois Humanos se sentaram em volta dela. O macho pegou
um tubérculo assado. A fêmea segurou o braço dele e o encarou. Ele apenas
deu um sorriso, abriu o tubérculo e o mordeu. Seu único olho visível ficou
arregalado de surpresa e prazer. O tubérculo era uma novidade. Comeu um
pouco mais e depois deu um pedaço para a fêmea. Ela pegou um pouco com
um dedo e provou. Não exibiu o mesmo olhar de prazer surpreso, mas
comeu, depois examinou com cuidado as cascas à luz do fogo. Já estava
escuro para os rebeldes. O sol tinha se posto.
— Nunca comi isso antes. É uma planta que só nasce na planície?
— Nasce aqui. Amanhã de manhã vou mostrar a vocês.
Eles ficaram em silêncio. É claro que passariam a noite naquele lugar.
Onde mais conseguiriam ir no escuro?
— Vocês vêm das montanhas? — perguntei, em voz baixa.
Mais silêncio.
— Não vou às montanhas. Gostaria de poder.
Os dois estavam comendo tubérculos agora e pareciam satisfeitos em
ficar calados. Isso era surpreendente. O nervosismo, por si só, deveria ter
feito com que ao menos um deles falasse bastante. Quantas vezes já tinham
se sentado sozinhos, à noite, no meio da floresta, com um constructo
coberto de escamas?
— Você vai permitir que eu comece a curá-lo hoje à noite? — perguntei
a Tomás.
— Obrigado por curar meu pescoço — ele disse em voz alta enquanto
seu corpo inteiro se afastava de mim, com movimentos mínimos.
— Ele pode travar de novo, se sua doença não for curada.
Ele deu de ombros.
— Não era tão ruim. Jesusa diz que me obrigava a trabalhar em vez de
ficar olhando em volta, sonhando acordado.
Jesusa tocou no antebraço dele e sorriu.
— Nada impediria você de sonhar acordado, meu irmão.
Irmão? Não era um companheiro, ou marido, como diziam os Humanos.
— A cegueira será ruim — falei. — A surdez será ainda pior.
— Por que diz que ele vai ficar cego ou surdo? — quis saber Jesusa. —
Talvez não fique. Você não sabe.
— É claro que sei. Não poderia tocá-lo e não perceber. Sei que houve
um tempo em que ele podia ver com o olho direito e ouvir com o ouvido
direito. Houve um tempo em que a massa no ombro era menor e o braço
não estava comprometido. Ele ficará cego, surdo e sem o uso do braço
direito, e sabe disso. Você também sabe.
Fez-se um silêncio muito longo. Deitei-me no chão limpo e fechei os
olhos. Eu ainda conseguia enxergar muito bem e a maioria dos Humanos
sabia disso. Porém, de alguma maneira, eles se sentiam mais à vontade
quando estavam sendo observados apenas pelos tentáculos sensoriais.
Sentiam que não eram observados.
— Por que você quer nos curar? — perguntou Jesusa. — Você nos
detém, nos alimenta e quer nos curar. Por quê?
Abri os olhos.
— Eu estava me sentindo muito só — falei. — Teria ficado feliz em
ver… praticamente qualquer pessoa. Mas, quando percebi que tinha algo de
errado com vocês, quis ajudar. Preciso ajudar. Ainda não estou na idade
adulta, mas não posso ignorar doenças. Sou ooloi.
A reação moderada deles me surpreendeu. Eu esperava qualquer coisa,
desde uma rejeição preconceituosa como a de João até uma fuga em
velocidade para dentro da floresta. Apenas ooloi interagiam diretamente
com os Humanos e concebiam crianças. Apenas ooloi interagiam
diretamente com os Humanos de uma maneira nada humana.
E apenas ooloi precisavam curar. Machos e fêmeas podiam aprender a
fazer isso, se quisessem, mas ooloi não tinham escolha. Existíamos para
conceber pessoas, uni-las e mantê-las vivas.
Jesusa agarrou a mão de Tomás e me encarou, aterrorizada. Tomás a
fitou e tocou o próprio pescoço, pensativo, depois olhou para ela outra vez.
— Então, não é verdade o que dizem — ele murmurou.
Ela lhe lançou um olhar mais contundente do que um grito.
Ele recuou um pouco, tocou o pescoço mais uma vez e não disse mais
nada.
— Eu pensei… — A voz de Jesusa estava trêmula e ela parou de falar
por um instante. Quando recomeçou, o tremor havia sumido. — Pensei que
todos os indivíduos ooloi tinham quatro braços, dois com ossos e dois sem.
— Braços de força e sensoriais — expliquei. — Os braços sensoriais
vêm com a maturidade. Ainda não tenho idade para os possuir.
— Você é uma criança? Uma criança do tamanho de um adulto?
— Estou no meu tamanho máximo, exceto pelos braços sensoriais. Mas
ainda tenho que me desenvolver de outras maneiras. Não sou exatamente
uma criança. As crianças mais novas não têm sexo. Podem vir a ser de
qualquer um deles. Eu sou com certeza ooloi, na fase subadulta ou, como
meus progenitores diriam, uma criança ooloi.
— Adolescente — concluiu Jesusa.
— Não. Adolescentes humanos são maduros sexualmente. Podem se
reproduzir. Eu não posso — falei aquilo para tranquilizá-los, mas não
pareceram ficar mais tranquilos.
— Como pode nos curar se é só uma criança? — perguntou Tomás.
Sorri.
— Tenho idade suficiente para fazer isso. — Meu olhar pareceu deixá-
lo confuso, mas Jesusa só ficou irritada e fez uma careta para mim. Ela seria
a mais difícil. Eu ansiava por tocá-la e aprender sobre seu corpo, curando o
distúrbio que nunca deveria ter existido. Alguns indivíduos ooloi haviam
causado mais mal a ela e a Tomás do que imaginei ser possível.
Mudei de assunto bruscamente.
— Amanhã vou mostrar algumas coisas que vocês podem comer aqui
na floresta. O tubérculo é um de muitos. Se continuarem andando, a floresta
os sustentará com muita facilidade. — Fiz uma pausa. — Vocês conseguem
enxergar bem o suficiente para fazer colchões de palha ou vão dormir no
chão descoberto?
Tomás deu um suspiro e olhou ao redor.
— No chão descoberto, suponho. Faremos um grande favor aos insetos
locais. — A pupila do olho dele estava dilatada, mas eu duvidava que
conseguisse enxergar além da luz da fogueira. A lua ainda não havia
aparecido e as estrelas só eram úteis aos Humanos em canoas nos rios. O
brilho delas quase não alcançava o chão da floresta.
Levantei-me e caminhei contornando a fogueira para me aproximar
deles.
— Deixe que eu fique com seu facão por uns minutos.
Jesusa agarrou o braço de Tomás para detê-lo, mas ele simplesmente me
entregou o facão. Peguei-o e fui para a floresta. Bambu era abundante na
área, então cortei-os junto com alguns talos de mudas. Eu os cobriria com
folhas de palmeiras e de bananeiras selvagens. Também peguei um cacho de
bananas. Elas poderiam ser cozidas para a refeição da manhã. Não estavam
maduras o suficiente para que os Humanos as comessem cruas. E havia uma
nogueira por perto, sem falar em mais tubérculos. Tudo isso ao redor e,
ainda assim, Tomás estivera faminto quando toquei nele.
— Você não colheu nada para você — disse Jesusa quando devolvi o
facão. Foi muito importante para ela recuperar a arma e conseguir um
colchão confortável para dormir. Ainda estava cautelosa, mas a tensão era
menos evidente.
— Eu me acostumei com o chão — falei. — Nenhum inseto vai me
incomodar.
— Por quê?
— Para eles, meu cheiro não é bom. E eu teria um gosto ainda pior.
Ela refletiu por um instante.
— Isso protegeria você de insetos que picam, mas e aqueles que
ferroam?
— Esses também. Tenho um cheiro repulsivo e perigoso. Os Humanos
não o percebem de maneira negativa, mas os insetos sim. Sempre.
— Ah, eu estaria disposto a feder caso isso os afastasse de mim — disse
Tomás. — Você pode me tornar imune a eles?
Jesusa o olhou feio.
Eu sorri intimamente.
— Não, não posso ajudá-lo com isso. — Não até que me deixassem
dormir entre eles. Mas, enquanto os curasse, os insetos os incomodariam
menos. Se algum dia acasalassem com um adulto ooloi, seria difícil que os
incomodassem de novo. Haveria tempo suficiente para que descobrissem
isso. Eu me deitei ao lado da fogueira que se apagava.
Jesusa e Tomás se deitaram em silêncio, primeiro ficando acordados,
depois caindo no sono. Não dormi, mas fiquei imóvel, descansando. O
cheiro dos Humanos era um leve tormento porque eu não podia tocá-los –
não os tocaria até que aprendessem a confiar em mim. Havia algo de
estranho neles – bem, ao menos em Tomás –, que eu ainda não
compreendia. E minha incapacidade de compreender era incomum.
Normalmente, se eu tocasse em alguém para corrigir uma falha, entendia
por completo o corpo daquela pessoa. Tinha de colocar as mãos em Tomás
outra vez. E tinha de tocar em Jesusa. Mas queria que me deixassem fazer
isso. Por maior que fosse minha imaturidade, meu cheiro deveria
influenciá-los. E o pescoço recuperado de Tomás deveria influenciá-lo. Não
era possível que ele gostasse de desenvolver aquelas protuberâncias
incapacitantes, e com certeza outros Humanos não gostavam da aparência
dele. Os Humanos se importavam demais com a aparência uns dos outros.
Até Jesusa deveria parecer grotesca para eles, embora ambos agissem como
se a aparência deles não os preocupasse. Muito estranho. Talvez por serem
dois. Se fossem irmãos, teriam passado a maior parte da vida juntos. Talvez
um apoiasse o outro.
6

N a manhã seguinte, eles acordaram pouco antes do nascer do sol.


Jesusa primeiro. Chacoalhou Tomás para acordá-lo, cobrindo a boca
dele para que não falasse. Ele afastou a mão dela e se sentou. Quanto eles
conseguiam ver? Ainda estava bastante escuro.
Jesusa apontou para a floresta, rio abaixo.
Tomás balançou a cabeça, depois olhou para mim e balançou a cabeça
novamente.
Jesusa o puxou, o rosto e a linguagem corporal comunicando súplica e
terror.
Ele balançou a cabeça mais uma vez, tentando segurar os braços dela. O
comportamento dele era tranquilizador, mas ela o evadiu, se levantou e
olhou-o de cima. Ele não queria se levantar.
Ela se sentou outra vez, tocando-o e levando a boca perto do ouvido
dele. Era como se soprasse as palavras. Eu as ouvi, mas talvez não ouvisse
se não estivesse prestando atenção.
— Pelos outros! — ela sussurrou. — Por todos os outros, temos que ir!
Tomás fechou os olhos por um instante, como se a suavidade das
palavras o machucasse.
— Sinto muito — ela suspirou. — Sinto muito mesmo.
Ele se levantou e a seguiu até a floresta. Não olhou para mim
novamente. Quando não consegui mais enxergá-los, me levantei. Tinha
descansado bastante e me preparei para segui-los, para ficar fora de vista,
escutar e aprender. Eles prosseguiram rio abaixo, como eu deveria fazer
para chegar em casa. Isso era conveniente, mas a verdade era que eu os teria
seguido para qualquer lugar. E quando falasse com eles outra vez, saberia
de coisas que não deveria.
Segui-os pela maior parte do dia. O que quer que os impelisse, também
os impedia de parar por mais de alguns minutos para descansar. Não
comeram quase nada até entardecer, quando, com ganchos de metal que não
haviam me mostrado, conseguiram pescar alguns peixes pequenos. O cheiro
do cozimento era nojento, mas a conversa, pelo menos, era interessante.
— Devíamos voltar — falou Tomás. — Devíamos atravessar o rio para
evitar Jodahs, depois devíamos voltar.
— Eu sei — concordou Jesusa. — Você quer fazer isso?
— Não.
— Logo vai chover. Vamos fazer um abrigo.
— Quando estivermos em casa, nunca mais seremos livres — ele falou.
— Seremos vigiados o tempo todo, provavelmente amordaçados por um
tempo.
— Eu sei. Corte as folhas dessa planta e daquela. São grandes o
suficiente para uma boa cobertura.
Silêncio. Sons de facão cortando. E, algum tempo depois, a voz de
Tomás:
— Prefiro ficar aqui, tomar chuva e passar fome todos os dias. —
Houve uma pausa. — Prefiro cortar minha garganta a voltar.
— Nós vamos voltar — disse Jesusa em voz baixa.
— Eu sei — suspirou Tomás. — Quem mais nos acolheria, a não ser o
povo de Jodahs?
Jesusa não tinha nada a dizer sobre esse assunto. Eles trabalharam
calados por um tempo, provavelmente erguendo o abrigo. Eu não me
importava em tomar chuva, então me espreguicei em silêncio e me deitei
com a atenção quase toda voltada para os dois Humanos. Se alguém se
aproximasse de uma direção diferente, eu perceberia, mas se pessoas ou
animais estivessem apenas passando por perto, sem vir até mim, eu não os
perceberia de maneira consciente.
— Devíamos ter deixado Jodahs nos ensinar sobre as plantas seguras —
Tomás falou enfim. — Provavelmente há comida à nossa volta, mas não a
reconhecemos. Estou com tanta fome que comeria aquele inseto enorme ali.
Com um tom de brincadeira, Jesusa disse:
— Aquela é uma barata vermelha muito bonita, meu irmão. Acho que
eu não comeria.
— Pelo menos haverá menos insetos quando chegarmos em casa.
— Eles vão nos separar. — Jesusa ficou séria outra vez. — Vão me
obrigar a casar com Dario. Ele tem o rosto liso. Talvez a maioria de nossas
crianças também tenha. — Ela suspirou. — Você escolherá entre Virida e
Alma.
— Alma — disse ele, cansado. — Ela me quer. Você acha que ela vai
gostar de me guiar? E como vamos falar um com o outro quando eu estiver
surdo?
— Calma, meu irmãozinho. Por que pensar nisso?
— Não precisa pensar nisso. Não vai acontecer com você. — Ele fez
uma pausa e continuou, com ironia triste: — Isso deixa você livre para parir
uma criança depois da outra, vendo a maioria delas morrer e recebendo, de
alguma anciã de rosto liso que parece mais nova do que você, a informação
de que está pronta para fazer tudo de novo, quando ela mesma nunca passou
por isso.
Silêncio.
— Jesusita…
— Sim?
— Sinto muito.
— Por quê? É a verdade. Aconteceu com a mamãe. Vai acontecer
comigo.
— Pode não ser tão ruim. Agora há mais de nós.
Em um tom que transformava em mentira cada palavra que dizia, Jesusa
concordou:
— Sim, meu irmãozinho. Talvez seja melhor na nossa geração.
Eles ficaram em silêncio por tanto tempo que pensei que não voltariam
a falar, mas Tomás disse:
— Estou feliz por ter visto a floresta da planície. Apesar de todos os
insetos e outros desconfortos, é um bom lugar, cheio de vida, inebriado
dela.
— Acho melhor nas montanhas — ela respondeu. — O ar não é tão
carregado nem tão úmido. A casa da gente é sempre melhor.
— Se você não consegue nem ver nem ouvir, talvez não seja. Não quero
essa vida, Jesusa. Acho que não aguento mais. De qualquer forma, por que
tenho que ajudar a dar ao povo mais pessoas feias e com deficiência? Será
que meus filhos vão me agradecer? Acho que não.
Jesusa não fez nenhum comentário.
— Vou garantir que você volte — disse ele. — Prometo.
— Nós dois voltaremos — ela respondeu, com uma dureza incomum.
— Você sabe qual é seu dever, assim como sei o meu.
Não houve mais conversa.
Não havia mais necessidade de conversar. Eles eram férteis! Os dois.
Foi o que vi em Tomás; vi, mas não identifiquei. Ele era fértil e jovem.
Jovem! Eu nunca havia tocado em um Humano como ele antes, e ele nunca
havia tocado em alguém do sexo ooloi. Cheguei a pensar que seu
envelhecimento rápido fazia parte do distúrbio genético, mas agora
conseguia entender que ele estava envelhecendo da mesma maneira que os
Humanos antes da guerra… antes de os Oankali chegarem para resgatar os
sobreviventes e prolongar suas vidas.
Tomás era, provavelmente, mais novo do que eu. Era provável que os
dois fossem. Eu poderia acasalar com eles!
Jovens Humanos, nascidos na Terra, férteis entre si. Uma colônia deles,
doentes e deformados, mas reprodutores!
Vida.
Fiquei completamente imóvel. Precisei me esforçar para não me erguer
e ir até lá naquele instante. Queria uni-los a mim de forma definitiva,
permanente. Queria me deitar entre eles. Agora. No entanto, se eu não
tomasse cuidado, eles me rejeitariam, fugiriam de mim. Pior, seu povo
escondido teria de ser encontrado. Eu teria de revelá-los a minha família, e
minha família teria de contar aos outros. O assentamento de Humanos
férteis seria achado e o povo deles, recolhido. Poderiam escolher entre
Marte, a união conosco ou a esterilidade na Terra. Não poderiam continuar
a se reproduzir aqui e, depois, morrer quando nos dispersássemos e
deixássemos uma rocha inabitável para trás.
Nenhum Humano que decidiu não acasalar conosco foi informado sobre
esse último ponto. Ficaram sabendo suas opções, mas não o porquê delas.
O que podia ser dito a Tomás e Jesusa? O que deveria ser dito a eles
para suavizar a informação de que seu povo não poderia permanecer como
estava?
Obviamente Jesusa, em particular, se importava de verdade com aquelas
pessoas. Estava prestes a se sacrificar por elas. Tomás se importava o
suficiente para recusar uma cura garantida sendo que a desejava
desesperadamente. Era evidente que, agora, ele estava pensando na morte.
Não queria voltar para casa.
Como qualquer um dos dois conseguiria acasalar comigo sabendo o que
meu povo faria com o deles?
E como eu deveria abordá-los? Se não fossem nada além de parceiros
em potencial, iria até eles agora. Mas, assim que Jesusa deduzisse que eu
conhecia o segredo que guardavam, sua primeira pergunta seria: “O que
acontecerá ao nosso povo?”. Ela não aceitaria repostas evasivas. Acabaria
descobrindo a verdade cedo ou tarde e acho que não me perdoaria pelas
mentiras. Será que me perdoaria pela verdade?
Quando ela e Tomás percebessem que tinham traído seu povo,
decidiriam matar, morrer ou ambos?
7

N o dia seguinte, Jesusa e Tomás atravessaram o rio e iniciaram sua


jornada de volta para casa. Eu fui atrás. Deixei que atravessassem,
esperei até não poder mais vê-los ou ouvi-los, depois atravessei o rio a
nado. Nadei por um tempo, aproveitando a água rica e fresca. Por fim, subi
na margem e isolei, entre muitos, o cheiro deles.
Segui-os em silêncio, descansando quando descansavam e lambiscando
qualquer coisa que crescesse por perto. Não tinha decidido o que faria, mas
era reconfortante estar ao alcance do cheiro deles.
Talvez eu devesse segui-los até a casa onde moravam, descobrir a
localização e levar as informações à minha família. Então, outras pessoas,
Oankali e constructo, fariam o que fosse necessário, sem que eu tivesse
relação com isso. Mas talvez eu também não tivesse permissão de acasalar
com Jesusa e Tomás. Talvez me enviassem para a nave, apesar de tudo. Os
dois poderiam escolher Marte quando fossem curados e soubessem suas
opções. Ou talvez acasalassem com outras pessoas…
Quanto mais os seguia, mais os desejava e mais improvável me parecia
a possibilidade de acasalar com eles.
Depois de quatro dias, não aguentei mais. Acabei por me juntar a eles.
Se não pudesse tê-los como companheiros permanentes, poderia desfrutar
da companhia por algum tempo.
Eles não pegaram nenhum peixe naquela noite. Encontraram figos
selvagens para comer, mas duvidei que estivessem satisfeitos com isso.
Encontrei nozes e frutas além de tubérculos que poderiam ser assados.
Enrolei tudo em uma cesta rústica que trancei com cipós finos e forrei com
folhas grandes. Só consegui fazê-la mordendo as lianas de uma maneira que
teria perturbado os rebeldes, por isso, fiquei feliz por não poderem me ver.
Um rebelde havia me dito, anos antes, que nós, constructos e Oankali,
deveríamos ser seres superiores, mas insistíamos em agir como animais.
Estranhamente, as duas ideias pareciam perturbá-lo.
Peguei minha cesta de comida e, em silêncio, me dirigi ao
acampamento de Jesusa e Tomás. Estava escuro, e eles tinham construído
um pequeno abrigo e acendido uma fogueira, que ainda queimava, mas os
dois estavam deitados em seus colchões. A respiração de Jesusa dizia que
ela estava dormindo, mas Tomás permanecia acordado. Seus olhos estavam
abertos, mas ele não me enxergou até que eu estivesse a seu lado.
Então, antes que pudesse se levantar, ou sequer gritar, eu havia me
deitado ao lado dele, com uma mão sobre sua boca e a outra imobilizando
sua mão que segurava o facão.
— Jodahs — sussurrei, e ele parou de se debater e olhou para mim.
— Não pode ser você! — ele sussurrou quando permiti que falasse.
Lembrava-se de um Jodahs escamoso como um réptil humanoide. Mas eu
não poderia ficar quatro dias no campo de ação do cheiro deles e
permanecer com aquela aparência. Agora eu tinha a pele marrom e cabelos
pretos e achei provável que tivesse a aparência de Tomás quando fosse
curado. Foi ele quem eu tinha tocado e examinado.
Tomás permitiu que eu pegasse o facão e o colocasse de lado. Eu já
tinha vários tentáculos do corpo ligados ao seu sistema nervoso. Coloquei-o
para dormir para que pudesse cuidar de Jesusa antes que ela acordasse.
A partir do instante em que disse meu nome, ele não teve mais medo.
— Você vai me curar? — ele sussurrou em seus últimos momentos de
consciência.
— Vou — respondi. — Completamente.
Ele fechou os olhos, confiando em mim de uma maneira que dificultava
me desligar dele e me virar para cuidar de Jesusa.
Quando o fiz, já era quase tarde demais. Ela estava acordada, com os
olhos cheios de confusão e terror. Encolheu-se quando me virei e quase
puxou o gatilho do rifle que estava segurando.
— Sou eu, Jodahs — avisei.
Ela atirou em mim.
A bala atravessou um dos meus corações e fiz tudo o que pude para
evitar o reflexo de atacá-la e ferroá-la letalmente. Tirei a arma dela e a atirei
contra uma árvore próxima. O rifle se partiu em dois; a madeira se
estilhaçou e se separou do metal, que dobrou no meio.
Agarrei os pulsos dela para que não conseguisse fugir. Eu não teria
autoconfiança para fazê-la dormir até que meu problema estivesse sob
controle.
Ela se debateu e gritou para que Tomás acordasse e a ajudasse.
Conseguiu me morder duas vezes e me chutar entre as pernas, então parou
de se debater por um instante enquanto assimilava a realidade de que eu só
tinha pele lisa ali no meio e seus chutes não me incomodavam.
Ela se contorceu freneticamente e tentou arrancar meus olhos. Aguentei
firme. Tive de abraçá-la. Ela não conseguia enxergar no escuro. Talvez
corresse para dentro da floresta ao nosso redor e se machucasse, ou seguisse
na direção do rio e caísse do alto do penhasco íngreme que havia ali. Ou,
ainda, poderia tentar atirar outra vez com o que restou da arma ou usar o
facão contra mim. Eu não podia deixar que se ferisse ou me ferisse outra
vez, quem sabe me obrigando a matá-la. Nada seria mais irracional do que
isso.
De repente, ela parou de lutar e olhou fixo para um dos ferimentos que
havia provocado em meu braço esquerdo. À luz do fogo, até olhos humanos
podiam enxergá-lo. Estava cicatrizando, o que pareceu fasciná-la. Ela
observou até que não houvesse mais sinal visível de ferimento, apenas uma
mancha de sangue e saliva.
— Você está fazendo isso por dentro — falou. — Curando seu
machucado.
Eu me deitei, puxando-a comigo. Ela se deitou de frente para mim, me
olhando com medo e desconfiança.
— Posso me curar, assim como a maioria dos adultos — eu disse. —
Mas não sou muito competente para controlar minha dor.
Ela pareceu preocupada, depois endureceu a expressão de propósito.
— O que você fez com Tomás?
— Ele só está dormindo.
— Não! Ele teria acordado.
— Eu o droguei um pouco. Ele não se importou. Prometi curá-lo.
— Não queremos sua cura!
O pior da dor passou. Relaxei de alívio e respirei fundo. Soltei as mãos
dela, que as puxou e as encarou, então olhou para mim outra vez.
Dei-lhe um sorriso.
— Você não está com medo de mim agora. E não quer me machucar de
novo.
Consegui sentir seu rosto se tornar mais amistoso. Ela se sentou com
um movimento brusco, bastante contrariada. Meu cheiro a estava
influenciando. É provável que tivesse dificuldade em resistir, porque não
tinha consciência dele.
— Nós não queremos mesmo sua cura — repetiu. — Mas… me
desculpe por atirar em você. — Ela ficou parada, olhando para mim. —
Você se parece com Tomás, sabe? Tem a aparência que ele deveria ter.
Poderia ser nosso irmão… ou, talvez, nossa irmã.
— Nenhum dos dois.
— Eu sei. Por que você nos seguiu?
— Por que vocês fugiram de mim?
Ela olhou para o facão. Teria de passar por cima de mim e de Tomás ou
nos contornar para pegá-lo.
— Não, Jesusa — falei. — Fique aqui. Deixe-me conversar com você.
— Você sabe, não é? — ela perguntou.
— Sim.
— Eu sabia que descobriria assim que tocasse nós dois.
— Eu deveria ter descoberto apenas por seu cheiro. Deixei que a doença
de vocês e minha inexperiência me confundissem. Mas, não. Não foi
tocando-os agora que descobri o que sei. Foi seguindo vocês e ouvindo suas
conversas.
O rosto dela se encheu de indignação.
— Você ouviu? Você se escondeu nos arbustos e ouviu o que eu disse
ao meu irmão!
— Sim. Sinto muito. Em geral não fazemos essas coisas, mas eu
precisava saber sobre vocês. Precisava entendê-los.
— Você não precisava de coisa nenhuma!
— Vocês eram novidade para mim. Novos, diferentes, precisando de
ajuda com seu distúrbio genético e sozinhos. Sabiam que eu poderia ajudá-
los, mas mesmo assim fugiram. Quando nos conhecerem melhor,
conseguirão entender que foi como se estivessem me puxando por várias
cordas. A questão não era se eu os seguiria, mas quanto tempo poderia
seguir antes de me juntar a vocês de novo.
Ela balançou a cabeça.
— Se vocês são todos obrigados a fazer esse tipo de coisa, acho que não
gosto do seu povo.
— Faz um século que alguém da minha família encontrou alguém como
vocês. E… talvez não precisem se preocupar em atrair a atenção de outras
pessoas do meu povo.
— O que fará agora que sabe sobre nós? O que você quer?
— Precisamos conversar sobre isso — falei. — Você, Tomás e eu. Mas
queria falar com você primeiro.
— É mesmo? — ela respondeu.
Encarei-a por algum tempo, apenas apreciando seu olhar e cheiro.
Talvez ela ainda me abandonasse. Já não queria, mas era capaz de causar
dor a si mesma se achasse que era a coisa certa a fazer.
— Deite aqui comigo — eu disse, sabendo que ela não queria. Ainda
não.
— Por quê? — ela perguntou, franzindo a testa.
— Nós somos muito táteis. Não só gostamos do contato como
precisamos dele.
— Comigo, não.
Pelo menos ela não se afastou de mim. Meu coração esquerdo ainda não
estava curado, então não me levantei. Peguei a mão dela e a segurei por um
tempo, examinando-a com tentáculos corporais. Isso a assustou, mas não
trouxe à tona o terror fóbico ao qual alguns Humanos estão sujeitos quando
os tocamos dessa maneira. Em vez disso, ela se inclinou para observar
melhor os tentáculos do meu corpo. Eles estavam amplamente espalhados
agora e tinham a mesma tonalidade marrom do resto da minha pele. Os
tentáculos da minha cabeça se escondiam entre os cabelos e eram tão pretos
quanto eles.
— Você pode mover todos à vontade? — ela perguntou.
— Sim. Com tanta facilidade quanto você move seus dedos. Nunca os
viu antes, viu?
— Ouvi falar deles. Durante toda a minha vida, ouvi dizer que eram
como cobras e os Oankali eram cobertos deles.
— Alguns são. Nenhum Oankali tem poucos tentáculos como eu, mas
tenho o potencial de desenvolver muitos mais.
Ela olhou para o próprio braço e suas dezenas de pequenos tumores.
— Na verdade, acho que os meus são mais feios — falou.
Eu ri e, com grande alívio, puxei-a para o meu lado de novo. Ela
realmente não se importava. Era cautelosa, mas não tinha medo.
— Você tem que me dizer o que vai acontecer — disse ela. — Tenho
medo por meu povo. Precisa me dizer.
Apoiei sua cabeça em meu ombro para que pudesse alcançá-la com
tentáculos da cabeça e do corpo. Jesusa permitiu que eu a posicionasse,
depois ficou recostada em mim, relaxada e alerta. Aliviei seu cansaço, mas
não a deixei sonolenta. Ela era mais jovem do que eu pensava. Nunca teve
um companheiro, no sentido humano. E nunca mais teria. Senti como se
pudesse absorvê-la em mim. Ainda assim, ela parecia muito distante. Se
apenas pudesse trazê-la para mais perto, tocá-la com mais tentáculos
sensoriais, tocá-la… com o que eu ainda não possuía.
— Isso é maravilhoso — disse ela. — Mas não sei por que deveria ser.
— Não disse mais nada por algum tempo. Descobriu sozinha que, se me
tocasse com a mão, sentiria o prazer ou o desconforto que me fazia sentir.
— Toque-me — ela pediu.
Toquei sua coxa e seu corpo se incendiou com sensações sexuais. Isso a
surpreendeu e assustou, e ela segurou minha mão livre na sua.
— Você não me explicou nada — falou.
— De certa forma, expliquei tudo — respondi —, e sem palavras.
Ela soltou minha mão e me tocou novamente, deixando que a sensação
que compartilhamos a guiasse: as pontas dos dedos dela deslizaram em
torno das bases de alguns de meus tentáculos sensoriais. Ela parou um
instante antes que eu a interrompesse. A sensação era intensa demais.
Ela pegou minha mão e a colocou em seus seios, e me lembrei da
sensação de ter seios para João e de me alimentar nos de Lilith. Os de
Jesusa, cobertos por um pano áspero que arranhava a parte superior de
minha mão, eram pequenos e admiravelmente sensíveis. Como ela havia se
acostumado com o pano áspero? É provável que nunca tinha vestido nada
além disso.
Ela gemeu e compartilhou comigo o prazer de seu corpo até que puxei
minha mão e, relutando, me desliguei dela.
— Não! — ela protestou.
— Eu sei. Vamos dormir juntos hoje à noite. Mas tenho que falar com
você e queria que experimentasse um pouco disso primeiro. Que estivesse
na minha pele por algum tempo.
Ela se sentou e olhou para Tomás, que dormia.
— É isso que você faz? — perguntou. Queria saber se aquilo era tudo o
que eu fazia.
— Por enquanto. Quando for adulto, poderei fazer mais. Além disso…
mesmo agora, se eu passar muito tempo com vocês, vou curá-los. Não
posso evitar.
— Não posso ir para casa se você me curar.
— Jesusa… isso não importa de fato.
— Meu povo é importante. Eles são muito importantes para mim.
— Seu povo está se atormentando sem necessidade. Eles nem sabem
sobre a colônia de Marte, sabem?
— A… o quê?
— Imaginei que não soubessem. E, com a experiência deles em viver
em altas altitudes, podem ser mais adequados para ela do que a maioria dos
Humanos. A colônia de Marte é exatamente o que parece: uma colônia de
seres Humanos vivendo e se reproduzindo no planeta Marte. Nós os
transportamos e lhes demos as ferramentas para torná-lo habitável.
— Por quê?
— Não há Oankali vivendo em Marte. É um mundo humano.
— Este deveria ser o mundo humano!
— Não é mais. Nunca mais será.
Silêncio.
— É difícil de pensar, mas é verdade. Os Humanos que são enviados
para Marte são curados por completo de qualquer doença ou defeito.
Transmitirão apenas saúde perfeita às suas crianças.
— O que mais foi feito com eles?
— Nada. Nem mesmo o que já fiz com você. A cura deles não será feita
por uma criança ooloi faminta, mas por pessoas adultas e acasaladas que
não estão particularmente interessadas neles. Isso é bom, caso queiram ir
para Marte. É seguro.
— E imagino que isso que fizemos não é seguro.
— Nem um pouco.
— Então você tem de me dizer o que quer de mim… e do Tomás?
Virei o rosto para o outro lado por um minuto. Ainda poderia perdê-la.
Tinha uma boa chance de perdê-la.
— Você sabe o que quero de vocês. Seu povo deve tê-los alertado.
Quero acasalar com vocês. Com os dois. Quero que fiquem comigo.
— Para… casar? Mas você é… somos diferentes.
— Somos? Na verdade, não. Não depois do que compartilhamos. Não
acho que um dos sacerdotes de vocês faria uma cerimônia de casamento
para nós, mas para Oankali e constructos não têm muita cerimônia. Para
nós, o acasalamento é biológico… neuroquímico.
— Não entendo.
— Nossos corpos satisfazem um ao outro e dependem um do outro. Nós
nos fazemos bem e criamos nossas crianças juntos. Nós…
— Ter crianças com meu irmão!
— Jesusa… — Balancei a cabeça. — A carne de vocês é tão parecida
que eu poderia transplantar parte da sua no corpo dele e, com um ajuste
pequeno, ela estaria viva e se desenvolveria nele da mesma forma que em
você. Seu povo tem cruzado irmão com irmã e progenitores com sua prole
por gerações.
— Não mais! Não precisamos mais fazer isso!
— Porque agora vocês são mais numerosos, todos intimamente
aparentados. Não é mesmo? — Ela não disse nada. — E, por uma
infelicidade, houve uma mutação. Ou talvez um dos seus progenitores
iniciais tivesse um sério defeito genético que foi controlado, mas não
corrigido. Isso não teria importância se tivessem um indivíduo ooloi para
eliminar o problema, mas não tinham. — Toquei no rosto dela. — Agora
você tem, então por que deveria se separar de Tomás?
Ela se afastou de mim.
— Nunca nos tocamos dessa maneira!
— Eu sei.
— As pessoas precisaram fazer o que fizeram no passado. Como a prole
de Adão e Eva. Não havia mais ninguém.
— Em Marte, já existem muitos outros. Por que seu povo quer ficar
aqui e gerar crianças mortas ou com deficiências? Eles deveriam ir para
Marte ou vir até nós. Nós os receberíamos.
Ela balançou a cabeça devagar.
— Eles nos disseram que vocês eram demoníacos.
Agora era minha vez de ficar quieto. Ela não acreditava em demônios.
Apesar de seu nome, é provável que nem acreditassem de verdade em
deuses. Acreditava em seu povo e no que seus sentidos lhe diziam.
— Não serão feridos — assegurei a ela. — Pessoas que passam tanto
tempo quanto nós vivendo na pele umas das outras hesitam muito antes de
matar. E se ferimos uma pessoa, nós a curamos.
— Vocês deveriam deixá-los em paz.
— Não. Não deveríamos.
— Eles são donos de si mesmos. Não pertencem a vocês.
— Eles não podem sobreviver como estão. Seu acervo genético é
pequeno demais. É só uma questão de tempo até que alguma doença ou
deficiência os elimine. — Parei de falar por um instante, pensando. — Sou
Humano o suficiente para entender o que estão tentando fazer. Um dos
meus irmãos iniciou a colônia de Marte porque compreendeu a necessidade
que os Humanos tinham de viver como Humanos, sem se misturarem por
completo com os Oankali.
— Você tem irmãos? — Ela franziu a testa para mim como se nunca
tivesse lhe ocorrido que tínhamos algo em comum.
— Tenho, machos e fêmeas. E ooloi. — Será que Aaor já tinha
completado sua metamorfose? Será que a família estava me esperando
voltar para que Aaor e eu começássemos nosso exílio extraterrestre? Eles
que esperassem. Concentrei-me em Jesusa. Eu não podia mentir, mas
também não podia contar-lhe tudo. Estava desesperado para manter Tomás
e ela comigo. Era quase certo que não me permitiriam encontrar parceiros
Humanos na nave, mas não me afastariam de parceiros que eu encontrasse
por conta própria. E talvez não me exilassem se percebessem que, com
esses dois seres Humanos, eu ficava estável, sem mudar os outros e sem me
mudar, exceto de forma deliberada e controlada. E Aaor poderia ter
companheiros entre o povo de Jesusa. Iria desejá-los. Eu não tinha dúvidas.
Então, o que fazer?
— Meu povo vai resistir — disse Jesusa.
— Eles serão intoxicados com gás e levados — falei. — Meu povo
gosta de acabar rápido com esse tipo de coisa, para não machucar ninguém.
Ela olhou para mim com raiva, quase com ódio.
— Não vou contar a você onde meu povo está. Eu me afogaria antes
disso.
— Eu não perguntaria.
— Por quê? Como você vai descobrir?
— Não vou. Meu povo vai. Quando souberem que o seu existe, o
encontrarão.
Ela não olhou para a arma quebrada. Provavelmente não conseguiria
enxergá-la agora que estava escuro, mas seu corpo queria se virar e olhar.
As mãos dela queriam a arma. Os músculos se contraíam. Se ela me
matasse, ninguém descobriria o que eu sabia. Ninguém procuraria por seu
povo escondido.
Tomei uma decisão repentina. Ela precisava saber de tudo ou poderia
morrer defendendo seu povo. Provavelmente não conseguiria me matar,
mas poderia me forçar a agir por reflexo e matá-la.
— Jesusa — falei —, venha aqui.
Ela olhou para mim com hostilidade.
— Venha. Vou lhe contar uma coisa que minha mãe Humana só
descobriu ao dar à luz as duas primeiras crianças constructo. Geralmente,
isso não é dito ao seu povo. Eu… não deveria contar a você, mas acho que
preciso fazer isso. Venha.
Os músculos dela queriam vir em minha direção. Meu cheiro e a
memória que tinha de conforto e prazer a atraíam, mas ela se afastou
deliberadamente.
— Diga — disse ela. — Apenas me diga. Não toque em mim outra vez.
Eu não falei nada por um instante. Seria mais fácil para ela acreditar no
que eu diria se estivéssemos em contato. Os Humanos no geral não
entendiam por que sentiam a verdade do que dizíamos quando estavam
conectados ao nosso sistema nervoso, mas sentiam. Agora ela não sentiria.
Toda sua linguagem corporal me dizia que não ficaria convencida.
Ela ainda tinha de ser avisada?
Tinha.
Falei em tom muito brando.
— Você e seu irmão significam vida para mim. — Fiz uma pausa. — E,
de uma maneira diferente, também significo vida para o seu povo. Eles vão
morrer se ficarem onde estão. Todos vão morrer.
— Alguns de nós morrem. Alguns vivem. — Ela balançou a cabeça. —
Não me importa o que você diga. Nada nos matará se seu povo nos deixar
em paz. Somos fortes o suficiente para suportar qualquer outra coisa.
— Não.
— Você não sabe…
— Jesusa! Escute. — Quando ela se acomodou em um silêncio furioso,
lhe contei o que aconteceria com a Terra, o que restaria do planeta quando
partíssemos. — Nada poderá viver com o que deixarmos — falei. — Se o
seu povo permanecer onde está e continuar se reproduzindo, todos serão
destruídos. Há vida para eles em Marte e aqui conosco. Mas se insistirem
em ficar onde estão… não poderão continuar se reproduzindo. Quando nos
afastarmos da Terra, terão morrido devido à idade.
Ela balançava a cabeça devagar enquanto eu falava.
— Não acredito em você. Nem mesmo seu povo pode destruir toda a
Terra.
— Todo ela, não. É como… quando você come um pedaço de fruta que
tem um núcleo ou sementes não comestíveis. Restará um núcleo rochoso da
Terra… uma grande massa de matéria, útil para a mineração, mas não para
a sobrevivência. Estaremos espalhados em várias naves. Cada uma delas
terá de ser autossustentável no espaço interestelar, talvez por milhares de
anos.
— Autossustentável no…?
— Apenas imagine que estarão além de qualquer ajuda possível ou
reabastecimento confiável.
— No espaço… entre as estrelas. É isso que você quer dizer. Sem sol.
Quase nada.
— Sim.
— As anciãs que nos criaram quando nossa mãe morreu… sabiam
dessas coisas. Uma delas costumava escrever sobre isso antes da guerra
para ajudar os demais a compreenderem.
Eu não disse nada. Deixei-a pensar por um tempo.
Ela ficou em silêncio, franzindo as sobrancelhas e balançando a cabeça
de vez em quando. Depois de um tempo, esfregou o rosto com as mãos e se
sentou ao lado de Tomás.
— Devo acordá-lo? — perguntei.
Ela negou com a cabeça.
Entrei na floresta e trouxe alguns gravetos de madeira seca. A chuva
começou assim que voltei. Jesusa estava sentada onde eu a tinha deixado,
balançando um pouco para a frente e para trás. Pendurei a cesta de
alimentos que havia trazido em um galho que tinha sido deixado em uma
das árvores de sustentação do abrigo. Jesusa estava com fome, mas não
queria comer agora. Eu poderia satisfazer as necessidades de seu corpo sem
obrigá-la a comer. Ligando-me a ela, poderia transferir-lhe os nutrientes.
Abasteci a fogueira, depois fui me sentar com ela, com Tomás deitado
entre nós.
— Não sei o que pensar — ela disse baixinho. — Meu irmão ia morrer,
sabe. — Ela acariciou os cabelos pretos dele. — Tem sempre alguém que
vai morrer. — Ela fez uma pausa. — Ele ia se matar assim que me levasse
até perto de casa. Não sei se conseguiria impedi-lo dessa vez.
— Ele já tinha tentado? — perguntei.
Ela assentiu.
— Foi por isso que partimos nessa viagem. Para mantê-lo vivo por mais
algum tempo. — Ela olhou para mim com uma expressão solene. — Não
precisávamos de você para nos dizer que ele estava desenvolvendo
deficiências. Vimos isso acontecer com muitas pessoas. E… elas continuam
tendo filhos até morrerem ou até isso se tornar fisicamente impossível. —
Ela tocou o rosto deformado dele. — No ano passado, ele quebrou a perna e
teve que ficar deitado de costas por semanas, com a perna esticada e ligada
a pesos. Falou aos anciãos que não se lembrava do que aconteceu. Eu lhes
disse que ele caiu. Do contrário, iriam trancafiá-lo. Ambos sabíamos que
ele tinha pulado. Quis morrer. Aquela longa queda no rio deveria tê-lo
matado. Graças a Deus, isso não aconteceu. Prometi que faríamos esta
viagem antes que eles nos casassem com alguém. Eu disse que, quando a
perna dele estivesse boa, fugiríamos. Ele queria fazer isso há anos. Só eu
sabia. Era proibido, é claro. Jovens férteis se aventurando nas florestas das
terras baixas, arriscando o bem-estar de todos… Fiz isso por ele. Eu nem
queria vir para cá. — Lágrimas escorriam por seu rosto, mas ela não fez
som de choro, nem qualquer movimento para limpá-las.
Estendi a mão sobre Tomás, peguei-a pela cintura e a levantei. Ela não
era pesada. Coloquei-a ao meu lado para que eu ficasse entre os dois, o
lugar ao qual pertencia.
— Você o salvou — falei. — Salvou a vida dele e a de seu povo. E se
salvou de uma vida de infelicidade desnecessária.
— Fiz tanto bem assim? Então, por que meu povo me mataria se
descobrisse?
Ela acreditava em mim. Isso não a fazia se sentir melhor, mas
acreditava.
— Não podemos ir para casa — disse ela. — Os anciãos sempre nos
diziam que, se uma só pessoa de seu povo descobrisse a verdade sobre nós,
vocês nos encontrariam, e aquilo que vínhamos tentando reconstruir seria
destruído.
— Talvez aquilo que estão tentando construir seja apenas tratado e
transferido para Marte. Todos que quiserem ir serão enviados.
— Eles não acreditariam em você. Nem em mim. Ainda que eu fosse
para casa agora, quando seu povo viesse nos buscar, o meu saberia quem os
havia traído.
— Não foi isso que você fez. De qualquer forma, quero que fique
comigo.
Ela me analisou; rugas verticais se formaram entre os olhos, onde havia
uma pequena extensão de pele saudável.
— Não sei se consigo fazer isso — falou.
— Você está comigo agora. — Deitei-me e me aproximei de Tomás
para que todos os meus tentáculos sensoriais que estavam ao lado dele
pudessem alcançá-lo. Ligar-me a ele foi um choque tão vigoroso e
agradável que, por um instante, eu não consegui enxergar. Quando a
sensação percorreu meu corpo, tomei consciência de que Jesusa estava
observando. Estendi a mão e a puxei para se deitar conosco. Ela respirou
fundo quando o contato se consumou. Então, gemeu e se contorceu para
que seu corpo ficasse ainda mais em contato comigo. Tomás, que ainda
estava um pouco adormecido, fez o mesmo e ficamos completamente
imersos uns nos outros.
8

N a manhã seguinte, a maioria dos tumores de Jesusa havia


desaparecido, sendo reabsorvidos pelo corpo. Ainda não estava
realmente curada, mas, pela primeira vez desde a infância, a pele dela
estava macia e lisa. Ela chorou enquanto comia a refeição da manhã, que
preparei com ingredientes da minha cesta, e examinou a si mesma várias
vezes.
Os tumores de Tomás eram maiores e seria mais demorado se livrar
deles, mas tinham começado a encolher a olhos vistos.
Acordamos todos juntos, o que significava que eles despertaram quando
eu despertei. Não queria que Jesusa racionalizasse e fugisse outra vez, ou
pior, decidisse tentar me matar de novo.
Eles acordaram contentes, descansados e em sua melhor forma física
em anos. Ficaram fascinados com as mudanças óbvias em Jesusa.
Deitei-me entre eles, sentindo um cansaço confortável, de um tipo
totalmente novo. Meu corpo trabalhou muito a noite toda em duas pessoas.
No entanto, nunca senti tamanho bem-estar, tamanha plenitude.
Depois de tocar o próprio rosto, braços e pernas, encontrando apenas
pele lisa e começando a chorar, Jesusa se inclinou e me beijou.
— Eu tenho uma compulsão muito estranha de fazer isso também —
disse Tomás. — Ele manteve a entonação leve, mas havia verdadeira
confusão por trás de suas palavras.
Sentei-me e beijei-o, saboreando a cura que havia acontecido até agora
– cura invisível, bem como o encolhimento dos tumores visíveis. O nervo
óptico dele estava sendo restaurado, contra a orientação genética original de
seu corpo. De forma anormal, uma fração de informação genética dizia que
o nervo estava completo e os genes que controlavam seu desenvolvimento
não voltariam a ser ativados. No entanto, o distúrbio continuava causando o
crescimento contínuo de tecidos perigosos e inúteis em órgãos completos
como aquele, impedindo-os de desempenhar suas funções.
Tomás tinha desenvolvido tufos de cabelo no rosto durante a noite.
Quando toquei um deles, ele sorriu.
— Preciso me barbear — falou. — Deixaria a barba crescer, se pudesse,
mas, quando tentei, Jesusa disse que eu parecia uma alpaca tosquiada por
uma criança de cinco anos.
Fiz uma careta.
— Alpaca?
— Um animal das montanhas. Criamos para obter lã e fazer roupas.
— Ah. — Sorri. — Acho que sua barba vai crescer mais uniforme
quando eu terminar de cuidar de você — falei.
— Acha que algum dia fará isso? — ele perguntou. — Terminar
conosco?
Os tentáculos livres do meu corpo e de minha cabeça se comprimiram
contra minha pele em uma agradável tensão sexual.
— Não — eu disse baixinho. — Acho que não.
Ele tinha de ser informado sobre tudo. Tomás, Jesusa e eu conversamos
e descansamos o dia todo, depois deitamos juntos para compartilhar a noite.
Na manhã seguinte, iniciamos uma caminhada – uma perambulação, na
verdade – de vários dias rumo ao acampamento da minha família. Não
estávamos com pressa. Ensinei-os a encontrar e fazer uso seguro dos
alimentos silvestres da floresta. Eles falaram sobre seu povo e se
preocuparam com ele. Jesusa falou com verdadeiro horror sobre a
dissolução do planeta, mas Tomás parecia menos preocupado.
— Isso não é real para mim — disse ele, simplesmente. — Vai
acontecer muito depois de minha morte. E se está nos dizendo a verdade,
Jodahs, não há nada que possamos fazer para impedir.
— Vocês vão ficar comigo? — perguntei.
Ele se voltou para Jesusa, que desviou o olhar.
— Não sei — disse ele, com serenidade.
— Se ficarem, é quase certo que viverão para além do momento da
separação.
Tomás me encarou, franzindo a testa, pensativo. Ambos tiveram
momentos de silêncio e reflexão.
Vagamos rio abaixo, caminhando, descansando e desfrutando uns do
outros por sete dias. Sete dias muito bons. Os tumores de Tomás
desapareceram e a visão do olho dele foi recuperada. Sua audição
melhorou. Ele se viu na água de um pequeno lago e disse:
— Não sei como vou me acostumar a ser tão bonito.
Jesusa jogou um punhado de lama nele.
Na manhã do nosso oitavo dia juntos, senti um cansaço maior do que
deveria. Não entendi o porquê até perceber que a carne sob meus braços
coçava mais do que o normal e estava um pouco inchada. Só um pouco.
Eu estava começando minha segunda metamorfose. Logo cairia em um
sono tão profundo no meio da floresta, distante até de nosso lar temporário,
que Tomás e Jesusa não seriam capazes de me acordar.
9

— V ocês vão ficar comigo? — perguntei a Tomás e Jesusa naquela


manhã, enquanto comíamos. Eu não fazia essa pergunta a nenhum deles
desde que começamos a viajar juntos. Todas as noites, eu dormia em um
casulo formado por seus corpos. Talvez isso tivesse ajudado a provocar as
mudanças. Ooloi Oankali costumavam passar pelas transformações finais
depois de terem encontrado parceiros. Davam-lhes segurança para mudar –
cuidariam deles enquanto estavam desamparados e estariam por perto
quando acordassem. Mas agora, olhando para Jesusa e Tomás, senti medo.
Desespero. Eles não tinham ideia do quanto eu precisava deles.
Jesusa olhou para Tomás, que respondeu:
— Quero ficar com você. Não sei realmente o que isso significa, mas
quero. Não há outro lugar para mim. Mas você quer os dois, não é?
— Querer? — sussurrei, balançando a cabeça. — Eu preciso muito de
ambos.
Acho que isso os surpreendeu. Jesusa se inclinou para mim.
— Você conheceu Humanos por toda sua vida — disse ela. — Mas nós
nunca conhecemos alguém como você. E… quer que eu tenha filhos com
meu irmão.
Ah.
— Toque nele.
— O quê?
Esperei. Eles não tocavam um no outro desde a primeira noite comigo.
Não estavam cientes disso, mas evitavam contato.
Tomás estendeu a mão para o braço de Jesusa. Ela se encolheu e ficou
imóvel. A mão de Tomás não a alcançou. Ele franziu a testa, depois recuou
e se virou para mim.
— O que é isso?
— Nada prejudicial. Você pode tocá-la. Não vai gostar de fazer isso,
mas pode fazê-lo. Se ela estivesse se afogando, poderia salvá-la.
Jesusa estendeu a mão de forma brusca e agarrou o pulso dele.
Aguentou por um instante, ambos petrificados por uma repulsa que talvez
não quisessem admitir. Tomás se obrigou a cobrir a mão repugnante dela
com a própria.
Separaram-se do mesmo modo abrupto com que se uniram. Jesusa
conseguiu evitar limpar a mão contra as roupas. Tomás, não.
— Oh, Deus — disse ela. — O que você fez conosco?
Levantei-me e contornei-a para me sentar entre eles. Eu ainda conseguia
andar com naturalidade, mas mesmo aqueles poucos passos foram
cansativos.
Peguei as mãos deles e apoiei cada uma em minhas coxas, para que eu
não tivesse de segurá-las. Liguei-me a seus sistemas nervosos e os uni como
se estivessem se tocando. Não era ilusão. Eles estavam em contato através
de mim. Então, lhes dei um pouco dela. “Desapareci.” Por um momento,
eles ficaram juntos, abraçados. Não havia ninguém entre os dois.
Quando Jesusa terminou o grito de surpresa, eu estava “de volta” e meu
cansaço era maior do que nunca. Desliguei-me deles e me deitei.
— Se vocês ficarem — falei —, o que fizerem será feito através de
mim. Vocês literalmente não vão se tocar.
— Qual é o seu problema? — perguntou Tomás. — Agora há pouco, a
sensação não foi de tocar a mesma pessoa.
— Ah, não sou a mesma pessoa. Estou mudando. Amadurecendo agora.
Eles não entenderam. Detectei preocupação e dúvida em seus rostos,
mas nenhum alarme. Ainda não.
— Minha metamorfose final está começando — expliquei. — Vai durar
vários meses.
Agora eles pareciam alarmados.
— O que vai acontecer com você? — perguntou Jesusa. — O que
devemos fazer?
— Sinto muito — falei para ela —, eu não fazia ideia de que estava tão
perto. Na primeira vez, tive vários dias de aviso. Se tivesse sido assim de
novo, eu teria sido capaz de entrar no rio e voltar para casa sem a ajuda de
vocês. Agora, não posso mais fazer isso.
— Achou que abandonaríamos você? — ela questionou. — É por isso
que nos pediu outra vez para ficar?
— Não pensei que fossem me abandonar aqui, não. Mas que… vocês
não esperariam.
— Alguns meses?
— Um ano, até.
— Temos que levá-lo de volta para seu povo. Não vamos conseguir
encontrar comida suficiente…
— Esperem. Vocês podem… querem fazer uma jangada? Há embaúbas
jovens logo depois do banco de areia. Mais para o interior, existem muitos
cipós. Se conseguirem montar algo enquanto eu estiver acordado, podemos
descer o rio até o acampamento da minha família. Não vou deixá-los passar
por ele. Então… se quiserem me deixar, minha família não vai tentar deter
vocês.
Jesusa mudou de lugar, sentando-se perto da minha cabeça.
— Você vai ficar bem se formos embora?
Encarei-a por um longo tempo antes de conseguir responder.
— Óbvio que não.
Ela se levantou e se distanciou um pouco, mantendo-se de costas para
mim. Tomás ocupou o lugar dela e pegou minha mão.
— Vamos construir a jangada — falou. — Vamos levar você para casa.
— Ele refletiu por um instante. — Não vejo por que não podemos ficar até
você terminar sua metamorfose.
Fechei os olhos e não disse nada. Teria sido assim com Nikanj um
século antes? Lilith estivera ao seu lado quando sua segunda metamorfose
começou. Será que Nikanj teve a tentação de dizer: “se ficar comigo agora,
nunca mais vai partir”? Ou jamais pensou em dizer coisa alguma? Nikanj
era Oankali. É provável que isso sequer tenha lhe ocorrido. Àquela altura,
não estava guardando nenhum sentimento sexual por ela. Apreciava-a
porque Lilith não tinha nada dos Oankali: era diferente, perigosa e
fascinante.
Eu sentia as mesmas coisas em relação aos dois, mas outras também.
Como Nikanj havia dito, eu era precoce.
Não disse nada a Tomás. Algum dia, ele me amaldiçoaria pelo meu
silêncio.
Ele foi até Jesusa e falou:
— Se ficarmos, teremos chance de ver como as famílias deles
funcionam.
— Tenho medo de ficar — ela falou.
— Medo?
Ela pegou o facão.
— Precisamos começar a jangada.
— Jesusita, por que você está com medo?
— Por que você não está? — ela perguntou. Olhou para mim, depois
para ele. — Isso de Jodahs nos querer é coisa de alienígena. Com certeza,
não é algo cristão, nem humano. É algo contra o qual nos ensinaram nossa
vida inteira. Como podemos aceitá-lo ou mesmo considerá-lo com tanta
facilidade?
— Você está considerando? — ele perguntou, calmo.
— Óbvio que estou. Você também. Disse que quer ficar.
— Sim, mas…
— Alguma coisa não está certa. Jodahs dorme conosco, nos cura e nos
dá prazer… e pede apenas a oportunidade de continuar fazendo essas
coisas. — Ela fez uma pausa e balançou a cabeça. — Quando penso em
deixar Jodahs, encontrar outros Humanos ou até ir para a colônia em Marte,
meu estômago embrulha. Ele quer que fiquemos, eu quero ficar e você
também, e não devemos! Algo está errado.
Nesse instante, adormeci. Não foi algo deliberado, mas não poderia ter
sido mais oportuno. A segunda metamorfose, me disseram, não era um sono
longo como a primeira. Era uma série de sonos mais curtos, que duravam
vários dias.
Eu os assustei. Primeiro, Jesusa pensou que eu estava fingindo. Depois,
que eu tinha morrido. Só decidiram que eu vivia e provavelmente estava
bem quando conseguiram obter alguma reação dos meus tentáculos
corporais. Carregaram-me até o rio e me deixaram embaixo de uma árvore
enquanto encontravam troncos pequenos o suficiente para derrubar com o
facão. Era um trabalho árduo e vagaroso. Eu percebi e guardei tudo em
minhas memórias latentes, armazenadas para consideração posterior,
quando eu voltasse à consciência.
Eles cuidaram bem de mim, me levando quando mudavam de lugar e
me mantendo por perto. Sem perceber, se tornaram um tormento quando me
tocavam, quando eu podia sentir o cheiro deles – mas eram uma tortura
muito pior quando se afastavam demais. Minha única salvação era a certeza
de que não me abandonariam e o conhecimento de que isso, por mais
desconfortável que fosse, era normal. Seria a mesma coisa se um par de
Oankali ou um par de constructos estivesse cuidando de mim. Nikanj tinha
me avisado: uma luxúria irremediável e uma ansiedade irracional eram
apenas parte do crescimento.
Aguentei, grato a Jesusa e Tomás por sua lealdade.
A jangada levou quatro dias para ficar pronta. Não só porque o facão
não era a melhor ferramenta para o trabalho, mas porque Jesusa e Tomás
nunca haviam construído uma coisa parecida antes. Não tinham certeza do
que funcionaria e não me carregariam em uma embarcação que se
desintegrasse na água ou não pudessem controlar. Eles passaram um tempo
aprendendo a manejá-la com longas varas e remos. Temiam que, em alguns
pontos, o rio fosse profundo demais para as varas. Também se preocupavam
com pessoas hostis. No rio, ficaríamos muito visíveis. Humanos com armas
de fogo poderiam nos alvejar, se quisessem. O que poderíamos fazer quanto
a isso?
Acordei quando estavam me carregando e levando cestas de comida
para a jangada – figos, nozes, vagens de feijão com polpa comestível e
vários tubérculos de compota de maçã cozida.
— Você está bem? — Tomás perguntou quando viu meus olhos se
abrirem. Ele estava me levando em direção à jangada. Senti que poderia
afundar nele, fundir-me com ele, tornar-me ele. Ao mesmo tempo, foi como
se ele estivesse distante de mim havia dias e completamente fora de meu
alcance.
— Não se preocupe — disse ele. — Não vou abandonar você. Jesusa
pode fazer isso, mas eu não.
— Não diga isso! — exclamou Jesusa. — Jodahs pode não saber que
você está brincando.
Tomás me colocou na jangada. Fizeram um colchão para mim com
folhas grandes sobre capim macio. Obriguei-me a relaxar e não me agarrar
a Tomás quando me colocou no chão.
Ele se sentou ao meu lado por um instante.
— Precisa de algo? Há dias que você não come.
— Não comemos muito durante a metamorfose — expliquei. — Por
outro lado, comer pode distrair minha mente de… outras coisas. Está vendo
aquele arbusto ali com folhas verde-escuras?
Ele olhou em volta, depois apontou.
— Isso, aquele. Arranque vários galhos de folhas novas. Eu como as
folhas.
— Sério? Elas são boas para você?
— Sim, mas não para você, então nunca as coma. Consigo digeri-las e
usar os nutrientes.
— Coma algumas nozes.
— Não. Comam vocês as nozes. Traga-me as folhas.
Ele obedeceu, mas foi lento.
Comi as primeiras folhas enquanto ele observava, incrédulo.
— Eu não entendo você muito bem — falou.
— Por eu comer folhas? Posso comer quase tudo. Algumas coisas
valem mais a pena do que outras.
— É mais do que isso. Algo que tenho tentado descobrir. Como…? Não
quero ofender, mas não consegui entender sozinho. — Tomás hesitou,
olhando em volta à procura de Jesusa. Ela estava fora do campo de visão,
entre as árvores. — Como você defeca? — ele perguntou. — Como urina?
Seu corpo é completamente fechado.
Ri alto. Minha mãe Humana já estava com Nikanj havia quase um ano
quando fez essa pergunta.
— Somos muito minuciosos — eu disse. — O que deixamos para trás
daria péssimos fertilizantes, exceto para nossas naves. Perdemos aquilo de
que não precisamos.
— Da mesma maneira que perdemos cabelos ou pele morta?
— Sim. No lugar de onde viemos, a nave ou a cidade absorveriam tudo
assim que caísse. Aqui, é poeira, que cai de mim quando durmo… pelo
menos quando durmo em condições normais. As pessoas em metamorfose
não deixam quase nada para trás.
— Eu nunca vi nada.
— Poeira.
— E água?
Sorri.
— É mais fácil perdê-la quando estou dentro dela, embora eu possa
suar, como você.
— E?
— Só isso. Pense, Tomás. Quando me viu beber água pela última vez?
Posso fazer isso, claro, mas em geral tiro toda a umidade de que preciso
daquilo que como. Usamos tudo que comemos de forma muito mais
completa do que vocês.
— Por que nunca tem poeira em você?
— Faço uma coisa de cada vez.
— E… nossas crianças seriam como você?
— Não no começo. As crianças nascidas Humanas parecem muito
Humanas, no início. Evacuam da maneira humana até a metamorfose. —
Mudei de assunto de repente. — Tomás, vou ficar alerta durante o maior
tempo possível da viagem. Preciso ser capaz de avisá-los quando
estivermos perto de pessoas para podermos ao menos permanecer próximos
da margem oposta. E preciso fazer vocês pararem no acampamento da
minha família. Não conseguirão vê-lo do rio.
— Tudo bem — disse ele.
— Se eu cair no sono, acampem. Esperem que eu acorde. Este rio é
muito extenso e não pretendo voltar o caminho.
— Tudo bem — ele repetiu.
Então, Jesusa chegou. Ela havia encontrado um cacaueiro na noite
anterior e o tinha escalado de novo para uma última colheita. Eu tinha lhe
mostrado uma dessas árvores enquanto viajávamos e ela descobriu que
gostava em especial da polpa das frutas. Agora colocou uma cesta
abarrotada na jangada e depois ajudou Tomás a desatracar. Eles nos
empurraram em meio à correnteza, não muito longe da costa.
— Escutem — eu disse a eles quando a jangada estava se deslocando
com facilidade. Ambos olharam em volta para mostrar que estavam
ouvindo. — Se formos atacados ou tivermos que abandonar a jangada por
algum motivo, me empurrem no rio, mesmo se eu não estiver acordado.
Consigo respirar na água e nenhuma criatura que vive ali estará interessada
em me comer. Depois, vocês me tiram de lá, se conseguirem. Se não
conseguirem, não se preocupem comigo. Caiam fora e garantam a
segurança um do outro. Sou muito mais difícil de matar do que vocês.
Eles não discutiram. Jesusa lançou um olhar estranho em minha direção
e me lembrei de quando ela atirou em mim. A arma tinha ficado
irrecuperável – as peças de metal se danificaram demais. Será que estava se
lembrando de como era difícil me matar ou como eu tinha destruído a arma
mais poderosa que tinham? Depois de algum tempo, ela deixou que Tomás
empurrasse a jangada com as varas. Ele parecia não ter problemas em
deixar a correnteza nos levar e impedir que chegássemos muito perto de
uma das margens, onde árvores caídas e bancos de areia tornavam o avanço
lento e perigoso.
Jesusa se sentou ao meu lado e me alimentou com polpa de cacau, sem
dizer absolutamente nada.
10

N avegamos pelo rio durante dias.


Não consegui ajudar com os remos ou as varas. Usei toda a
energia que tinha para me manter alerta. Eu era capaz de me sentar, indicar-
lhes os bancos de areia quase submersos e mantê-los cientes da
profundidade geral da água. Fiquei em silêncio quanto aos animais que
podia ver no rio. Os Humanos não conseguiam enxergar quase nada através
da lama marrom, mas passamos várias vezes por animais que comeriam
carne humana se conseguissem obtê-la. Por sorte, o pior dos peixes
carnívoros preferia águas lentas e silenciosas e não representava perigo para
nós.
O perigo eram as pessoas.
Por duas vezes, direcionei Jesusa e Tomás para longe de grupos com
potencial hostil, em um ou outro lado do rio. Os rebeldes ainda lutavam
entre si e, às vezes, assaltavam e assassinavam estranhos.
Não farejei o terceiro grupo de Humanos a tempo. E, ao contrário dos
dois primeiros, este nos viu.
Houve um tiro, um estalo alto como se fosse a primeira sílaba da frase
de um trovão. Todos deitamos sobre os troncos da jangada; Jesusa perdeu a
vara ao cair.
Estava ferida. Pude sentir o cheiro do sangue saindo dela.
Foi então que me perdi. Já não estava mais totalmente consciente, mas
minhas memórias latentes me disseram depois que me arrastei em direção a
ela, com todo meu corpo achatado contra os troncos. Da costa, os Humanos
dispararam várias vezes e Tomás, sem saber do ferimento de Jesusa, os
amaldiçoou, então amaldiçoou a correnteza, que não nos afastava do
alcance deles rápido o suficiente, e por fim amaldiçoou o próprio rifle
quebrado…
Alcancei Jesusa, já inconsciente e sangrando pelo abdome, e me
vinculei a ela.
Agora eu estava literalmente inconsciente. Não havia nada funcionando,
exceto a percepção que meu corpo tinha de precisar de Jesusa e de que ela
morreria se ele não a ajudasse. Tentou fazer por ela o que teria feito por si.
Mesmo se eu estivesse desperto e fosse capaz de escolha, não poderia ter
feito nada a mais. O rim direito e os grandes vasos sanguíneos que levavam
a ele haviam sido severamente prejudicados. O cólon tinha sido lesionado.
Ela sangrava internamente, envenenando-se com resíduos corporais. Por
sorte, estava inconsciente – caso contrário, sua dor poderia tê-la feito recuar
antes que eu conseguisse me unir a ela. Mas, uma vez que estávamos
conectados, nada poderia ter me afastado.
Ficamos fora do alcance e, ao que parecia, do interesse dos rebeldes. Eu
já estava recuperando a consciência quando Tomás rastejou até nós.
Vi-o ficar paralisado quando percebeu o sangue, vi quando olhou para
nós, vi quando se aproximou balançando a jangada e, então, quando se
deteve pouco antes de nos alcançar.
— Ela está viva? — sussurrou.
Foi um custo falar.
— Sim — respondi, depois de um tempo. Não consegui dizer mais
nada.
— O que posso fazer para ajudar?
Mais uma palavra.
— Casa.
Não tive mais utilidade para ele depois disso. Despendi toda minha
força para manter Jesusa inconsciente e viva enquanto meu corpo insistia
em continuar seu desenvolvimento e sua transformação. Eu não conseguiria
curar Jesusa com rapidez. Não tinha certeza se poderia curá-la. Estanquei a
perda de sangue e impedi que os resíduos de seu corpo a envenenassem.
Entretanto, pareceu se passar muito tempo até que eu conseguisse fechar o
orifício do cólon e começasse o complicado processo de formar um novo
rim. O rim ferido não era recuperável. Usei-o para nutri-la, o que envolveu
a decomposição do rim até seus componentes úteis e o provimento deles
por via intravenosa. Foi a refeição mais nutritiva que ela teve em dias. Isso
fazia parte do problema – nem eu nem ela estávamos em boas condições.
Minha preocupação era que meus esforços de regeneração desencadeassem
o distúrbio genético e tentei prestar atenção nisso. Pensei que poderia deixá-
la com um rim até concluir minha metamorfose e poder cuidar dela de
maneira adequada. Era o que eu deveria ter feito.
Não fiz isso porque, em algum nível, eu temia que Nikanj cuidasse dela
se eu não o fizesse. Não suportava pensar em Nikanj tocando nela ou em
Tomás.
Esse pensamento me impeliu com mais força do que qualquer outra
coisa e quase me fez deixar passar o local onde minha família vivia.
O cheiro de casa e dos parentes chegou até mim de alguma forma.
— Tomás! — chamei com voz rouca. Quando vi que tinha a atenção
dele, apontei. — Casa.
Ele conseguiu nos levar até a margem a uma certa distância da cabana
de minha família. Foi até a praia e puxou a jangada o mais perto possível da
terra.
— Não há ninguém por perto — falou. — E nenhuma casa que eu possa
ver.
— Eles não queriam ser avistados do rio — expliquei. Separei-me de
Jesusa e a examinei visualmente. Sem novos tumores. Pele lisa como suas
roupas esfarrapadas, ensanguentadas e imundas. Pele lisa no abdome.
— Ela está bem? — perguntou Tomás.
— Sim. Está só dormindo agora. Perdi a noção do tempo. Quanto se
passou desde que ela foi baleada?
— Dois dias.
— Tudo isso? — Foquei os tentáculos sensoriais nele e percebi indícios
da carga de preocupação e trabalho que ele havia suportado. Não consegui
pensar em nada satisfatório para lhe dizer. — Agradeço por cuidar de nós.
Ele sorriu, cansado.
— Vou procurar alguém.
— Não, eles notarão meu cheiro, se é que ainda não notaram. E virão.
Ajude Jesusa a descer, depois volte para me buscar. Ela consegue andar.
Eu a sacudi e ela despertou, ou quase. Encolheu-se quando Tomás
entrou na água rasa e esticou o braço para ela. Ele recuou. Depois de um
tempo, ela se levantou devagar, cambaleou e seguiu os acenos de Tomás.
— Vamos, Jesusita — ele sussurrou. — Desça da jangada. — Tomás
caminhou ao lado dela pela água, subindo na margem onde o chão estava
seco o suficiente para dar firmeza. Lá, ela se sentou e pareceu cochilar de
novo.
Quando ele voltou para me buscar, segurava algo entre os dedos, que
ergueu para que eu visse. Um pedaço de metal de formato irregular, menor
do que a ponta de seu dedo mínimo. Era a bala que forcei o corpo de Jesusa
a expulsar.
— Jogue fora — falei. — Isso quase a tirou de nós.
Ele a atirou para longe, dentro do rio.
11

— P arte da minha família já está chegando — falei. Tomás tinha me


deitado na margem, próximo a Jesusa, e se sentado ao meu lado para
descansar. Agora, ficou alerta outra vez. — Tomás — chamei em tom
tranquilo. Ele olhou para mim. — Você não se sentirá confortável deixando
que se aproximem de você ou fiquem por perto. Jesusa também não. Minha
família vai entender isso. E ninguém vai encostar em você, exceto as
crianças. Não vai se importar com o toque delas.
Ele franziu a testa e me lançou um olhar mais demorado.
— Não entendo.
— Eu sei. Tem a ver com você estar comigo, me deixar curá-lo e
dormirmos juntos. Vai se sentir… disposto a ficar com Jesusa e comigo, e
fortemente repugnado pelos outros. É normal, então não se preocupe com
isso.
Lilith, Nikanj e Aaor saíram das árvores. Aaor. Estava forte e alerta. A
família devia estar apenas esperando que eu chegasse em casa. O exílio, o
verdadeiro exílio, estava muito próximo…
Os três ficaram perto o bastante para conversar normalmente, mas não
tão perto a ponto de deixar Tomás desconfortável.
— Vou ter que aprender a não me preocupar com você — disse Lilith,
sorrindo. — É bom ter você de volta. — Ela tinha falado em Oankali.
Depois mudou para o espanhol, o que significava que tinha escutado minha
conversa com Tomás. — Bem-vindo — falou para ele. — Obrigado por
cuidar de nossa criança e trazer it de volta. — Ela inseriu o “it” em inglês
porque, nessa língua, tratava-se de uma palavra verdadeiramente neutra. O
espanhol não tinha uma palavra que a traduzisse com exatidão. Falantes de
língua espanhola em geral lidavam com o gênero ooloi ignorando-o.
Quando precisavam usar alguma coisa, empregavam masculino ou
feminino, o que lhes parecesse adequado.
Peguei a mão de Tomás e o senti agarrando a minha de modo
desesperado, quase doloroso, mas seu rosto não exibia nenhum sinal de
emoção.
— Estes são dois de meus progenitores — expliquei a ele, gesticulando
com a mão livre. — Lilith é minha mãe hospedeira e Nikanj é minha matriz
do mesmo sexo que eu. A terceira pessoa é Aaor, meu par fraterno. —
Apreciei a visão por um momento. Aaor tinha pelo cinza agora, o que,
estranhamente, não parecia incomum. Talvez os outros irmãos e irmãs
tivessem ajudado para que sua aparência permanecesse quase normal. —
Em alguns momentos, Aaor esteve mais perto de mim do que minha própria
pele — falei. — Acho que acabou se parecendo mais comigo do que
desejaria.
Aaor, que estava fazendo um esforço evidente para se controlar, disse:
— Quando eu tocar em você, Jodahs, não largarei pelo menos por um
dia.
Eu ri, me lembrando de seu toque e percebendo que também ansiava
por tocar em Aaor e compreender como tinha mudado. Não seríamos mais
como antes, uma pessoa que nasceu Humana e outra que nasceu Oankali.
Examinar Aaor me ensinaria mais a meu respeito, por semelhança e
contraste. E sua urgência maior seria saber onde eu havia encontrado Jesusa
e Tomás. Caso o próprio olfato não os reconhecesse como jovens e férteis,
como o meu não havia feito quando os encontrei, Nikanj faria com que
soubesse.
— Vou contar tudo — falei. — Mas, primeiro, nos levem a algum lugar
seco e nos alimentem. — Eu queria dizer, e os três sabiam, que Tomás e
Jesusa precisavam de um lugar seco e de comida.
Nikanj apoiou um braço sensorial nos ombros de Aaor, cuja ansiedade
em parte se dissipou.
— Como você se chama? — Nikanj perguntou a Tomás. Falou muito
baixinho, mas sua voz suave foi ouvida com clareza. Será que a minha
soava daquele jeito?
Tomás se inclinou para a frente, respondendo à voz, então mal
conseguindo não recuar. Nunca tinha visto um Oankali antes, e Nikanj, uma
criatura ooloi e adulta, era particularmente impressionante. Tomás encarou,
depois ficou envergonhado e desviou o olhar. Então, olhou mais uma vez.
— Como você se chama? — repetiu Nikanj.
— Tomás — ele respondeu, por fim. — Tomás Serrano e Martín. — Ele
nunca tinha me dito tanto assim. Fez uma pausa e acrescentou: — Esta é
Jesusa, minha irmã. — E tocou os cabelos dela do modo como meus
progenitores Humanos tocavam os cabelos um do outro. — Ela foi baleada.
Nikanj voltou-se imediatamente para mim.
— Ela está bem — informei. — Está exausta porque não come bem há
um tempo e você sabe como precisei fazer o corpo dela se esforçar. — Eu
me virei e a sacudi. — Jesusa — sussurrei. — Você está bem. Acorde.
Encontramos minha família. — Mantive a mão no ombro dela e a sacudi
outra vez, com delicadeza, desejando poder lhe dar o tipo de conforto de
que teria sido capaz poucos dias antes. Mas eu tinha feito tudo o que podia
para salvar sua vida.
Ela abriu os olhos, observou as redondezas e viu Nikanj. Então virou o
rosto e choramingou, um som que eu nunca tinha ouvido partir dela.
— Você está segura — falei-lhe. — Essas pessoas estão aqui para nos
ajudar. Você está bem. Ninguém lhe fará mal.
Ela por fim entendeu o que eu estava dizendo. Calou-se e ficou quase
imóvel. Não conseguia parar de tremer, mas olhou para mim e depois para
Lilith, Aaor e Nikanj. Forçou-se a olhar por mais tempo para Nikanj.
— Desculpe-me — ela disse depois de um instante. — Eu… nunca vi
ninguém como você antes.
Os muitos tentáculos sensoriais de Nikanj achataram-se contra seu
corpo.
— E eu não vejo ninguém como você há um século — falou.
Ao ouvir a voz de Nikanj, Jesusa pareceu assustada. Ela se virou para
mim, depois olhou para Nikanj, que apresentei a ela, junto com Lilith e
Aaor.
— Prazer em conhecer vocês — mentiu Jesusa, com educação.
Fascinada, observou Nikanj, que, embora ela não soubesse, adotou sua
postura de relaxamento por mais tempo do que o normal, para tranquilizá-
la. Eu ficava com os tentáculos lisos sempre que ria, mas os meus eram
poucos e não tão visíveis, mesmo quando não estavam achatados. E eu ria.
Nikanj, não.
— É uma surpresa e um prazer — disse Nikanj. E para mim, em
Oankali, falou: — De onde eles são?
— Depois — eu disse.
— Eles vão ficar, Oeka?
— Sim.
Nikanj concentrou-se em mim, parecendo esperar que eu dissesse mais.
Permaneci calado.
Aaor quebrou o silêncio.
— Não consegue andar, consegue? — falou em espanhol. — Vamos ter
que carregar você.
Tomás se levantou depressa.
— Se me mostrar o caminho — disse ele —, eu carrego Jodahs. —
Hesitou por um instante ao lado de Jesusa. — Irmã, você consegue andar?
— Sim. — Ela se levantou devagar, ajeitando as roupas esfarrapadas e
ensanguentadas. Deu um passo titubeante. — Eu me sinto bem — ela disse
—, mas… há tanto sangue.
Aaor se virou para mostrar o caminho de volta para a cabana. Tomás me
levantou e Jesusa se aproximou de nós. Nos braços dele, eu disse a ela:
— Aqui você terá boa comida — expliquei. — Provavelmente ficará
um pouco mais faminta do que o normal por um tempo, porque ainda está
se recuperando. Fora isso, você está bem.
Ela segurou minha mão pendurada e a beijou.
Tomás sorriu.
— Se realmente se sente bem, Jesusa, dê mais um beijo por mim. Você
não imagina o que Jodahs fez para salvá-la.
Ela olhou para a frente, para Nikanj.
— Não sei o que Jodahs vai fazer para me salvar agora — ela sussurrou.
— Ninguém vai machucá-la aqui — eu disse a ela mais uma vez. —
Ninguém vai tocá-la, nem chegar perto de você. Ninguém impedirá que
venha até mim quando quiser.
— Eles vão me deixar ir embora? — ela perguntou.
Virei a cabeça para olhá-la diretamente.
— Não me abandone — falei baixinho.
— Estou com medo. Não sei se posso ficar aqui com sua… família.
— Fique comigo.
— Seu progenitor Oankali…
— Nikanj. Minha matriz ooloi. Nunca tocará em você. — Eu faria com
que Nikanj me prometesse isso antes de dormir outra vez.
— É… ooloi, como você.
Ah.
— Não, não como eu. É Oankali. Nenhuma mistura Humana. Jesusa,
minha mãe hospedeira é tão Humana quanto você. Meu pai Humano tem a
aparência de um parente seu. Mesmo quando eu chegar à idade adulta, não
me parecerei com Nikanj. Você nunca terá motivos para ter medo de mim.
— Tenho medo de você agora, porque ainda não entendo o que está
acontecendo.
Tomás falou.
— Jesusa, Jodahs salvou você. Mal podia se mover, mas salvou você.
— Eu sei — ela respondeu. — Sou grata. Mais grata do que consigo
colocar em palavras. — Ela tocou meu rosto, depois levou a mão aos meus
cabelos e deixou os dedos deslizarem com desenvoltura pela base de um
feixe de tentáculos sensoriais. Estremeci de prazer repentino e necessidade
frustrada.
— Vou tentar ficar até sua metamorfose terminar — falou. — Devo isso
a você e muito mais. Prometo ficar por todo esse tempo.
Minha mãe virou a cabeça e olhou para Jesusa, depois para mim,
observando-me por um longo momento. Retribuí seu olhar, mas não disse
nada.
Depois de algum tempo, ela retomou o caminho. Quando o cheiro dela
me alcançou, eu soube que estava contrariada e muito angustiada. Mas,
assim como eu, não falou absolutamente nada.
12

E les nos deram comida. Ao contrário do esperado, eu realmente


precisava comer. Curar Jesusa havia esgotado meus recursos. Eu não
tinha nenhuma força e Jesusa me alimentou ao mesmo tempo que comia.
Parecia tirar algum conforto disso.
Jesusa e Tomás receberam roupas limpas e secas. Foram ao rio lavar-se
e voltaram limpos e contentes. Comeram castanhas torradas e repousaram
com minha família.
— Contem-nos sobre o seu povo — pediu Aaor quando o sol se pôs e
Dichaan colocou mais lenha na fogueira. — Sei que não querem nos dizer
certas coisas… mas contem como seu povo passou a existir. Como seus
ancestrais férteis se encontraram?
Jesusa e Tomás se entreolharam. Jesusa parecia apreensiva, mas Tomás
sorriu. Era um sorriso cansado e triste.
— Nossos primeiros ancestrais do pós-guerra nunca se encontraram —
ele falou. — Vou lhe contar, se quiser.
— Sim!
— Nossos anciãos se juntaram porque conseguiam se comunicar —
disse ele. — Todos falavam espanhol. Vieram do México, Peru, Espanha,
Chile e outros países. A Primeira Mãe era do México. Tinha quinze anos e
estava viajando com os pais. Havia outras pessoas com eles, que conheciam
este país e disseram que seria melhor viver nas montanhas mais altas.
Estavam subindo quando a Primeira Mãe e a mãe dela foram atacadas. Elas
tinham se afastado do grupo para tomar banho. A Mãe nunca viu seus
agressores. Foi atingida por trás e estuprada, bem provável que várias
vezes.
“Quando recuperou a consciência, estava sozinha. A mãe dela estava lá,
mas morta. A Primeira Mãe ficou gravemente ferida. Precisou rastejar e se
arrastar de volta a seu povo. As pessoas cuidaram dela da melhor forma
possível. O pai não pôde ajudá-la. Deixou-a com os outros. Estava com
tanta raiva pelo que tinha sido feito com ela e a mãe que acabou deixando o
grupo. A Mãe acordou uma manhã e ele tinha partido. Ela nunca mais o viu.
As pessoas já tinham começado a construir suas casas no local escolhido
quando perceberam que a Mãe teria um bebê. Ninguém imaginou que isso
fosse possível. As pessoas tentavam aceitar sua esterilidade. Diziam que era
melhor não ter filhos do que… ter crianças não Humanas.”
Tomás olhou para as próprias mãos. Quando levantou a cabeça,
percebeu que olhava diretamente para Tino.
— Meu povo dizia a mesma coisa antes de eu sair de lá — disse Tino.
— As pessoas acreditavam nisso. Mas é mentira.
Tomás voltou-se para Lilith com um olhar questionador.
— Você sabe que é mentira — Lilith disse baixinho.
Tomás olhou para mim e continuou sua história.
— As pessoas temiam que o bebê da Mãe não fosse Humano. Ninguém
viu os agressores. Ninguém sabia quem, ou o que, a havia atacado.
Nikanj falou:
— Não podiam acreditar que as mandaríamos embora estéreis e depois
mudaríamos de ideia e fecundaríamos uma delas enquanto matávamos
outra. — Mesmo com sua voz suave de ooloi na fase madura, Nikanj
conseguiu demonstrar indignação.
Tomás já era capaz de olhar e falar com Nikanj, que tivera o cuidado de
não reparar quando Tomás observou suas ações enquanto comia. Então, ele
disse:
— Elas diziam que vocês poderiam fazer praticamente qualquer coisa.
Algumas diziam que seus poderes vinham do diabo. Outras que vocês eram
demônios. Algumas ficavam revoltadas com esse tipo de conversa. Para
elas, vocês eram apenas inimigos. Não acreditavam que tivessem estuprado
a Mãe, mas que ela poderia ser o instrumento para derrotar vocês. Elas a
acolheram, cuidaram dela e a alimentaram mesmo quando não tinham o
suficiente para comer. Quando o filho dela nasceu, ajudaram a cuidar dele e
o mostraram a todo mundo, para que as pessoas pudessem ver que ele era
perfeito e Humano. Deram a ele o nome de Adan. O nome da Mãe era
María de la Luz. Quando Adan foi desmamado, cuidaram dele. E
incentivaram a mãe dele a trabalhar nas hortas, ajudar na construção e se
afastar do filho. Dessa forma, quando chegou a hora, quando Adan tinha 13
anos, as pessoas puderam unir os dois. A essa altura, ambos haviam
aprendido seu dever. E todo mundo já tinha percebido que a Mãe não só era
fértil, mas mortal, como elas não pareciam ser. Quando a primeira filha dela
nasceu, a Mãe parecia mais velha do que algumas das pessoas que a
ajudaram a criar o menino.
“Com o tempo, a Mãe deu à luz três filhas. Morreu no nascimento de
seu segundo filho. Aquele filho era… seriamente deformado. Tinha uma
abertura nas costas. As pessoas disseram que era possível ver a coluna. E
tinha outras coisas erradas com ele. Morreu e foi sepultado com a Mãe em
um lugar que… é sagrado para nós. As pessoas construíram um santuário.
Algumas viram a Mãe quando foram até lá para refletir ou orar. Viram o
espírito dela.”
Tomás parou e olhou para os três Oankali.
— Vocês acreditam em espíritos?
— Acreditamos na vida — respondeu Ahajas.
— Vida após a morte?
Ahajas alisou os tentáculos por um breve instante, em concordância.
— Quando eu morrer — disse ela —, vou nutrir outra vida.
— Mas eu me refiro a…
— Se eu morresse em um mundo sem vida, um mundo capaz de
sustentar alguma forma dela obstinada o suficiente, organelas dentro de
cada célula do meu corpo sobreviveriam e evoluiriam. Talvez, em um
bilhão de anos, tal mundo estivesse tão cheio de vida quanto este.
— Será?
— Sim. Nossos ancestrais semearam muitos mundos estéreis dessa
maneira. Nada é mais obstinado do que a vida de que somos feitos. Um
mundo de vida nascida da morte aparente, da dissolução. É nisso que
acreditamos.
— Nada mais?
Divertindo-se, Ahajas alisou os tentáculos o suficiente para refletir a luz
do fogo.
— Não, Lelka. Nada mais.
Ele não perguntou o que “Lelka” significava, embora não pudesse saber.
Significava “descendente acasalado” e era o modo como os progenitores
chamavam seus descendentes adultos e os parceiros deles. Eu teria de pedir
para ela não chamá-lo assim. Ainda não.
— Quando eu era pequeno — Tomás falou —, plantei uma árvore no
santuário da Mãe. — Ele sorriu, aparentemente recordando. — Algumas
pessoas quiseram arrancá-la, mas ela cresceu tão bem que ninguém a tocou.
As pessoas diziam que a Mãe devia gostar de tê-la ali. — Ele parou e olhou
para Ahajas.
Ela assentiu em um gesto humano e o observou com interesse e
aprovação.
— A Mãe teve 23 netos — continuou. — Quinze sobreviveram. Entre
eles, vários tinham deformidades ou as desenvolveram. Eram férteis e nem
todos os seus descendentes as possuíam. As pessoas com deformidades não
podiam ser poupadas. Às vezes, crianças de pele lisa, com apenas algumas
manchas escuras, desenvolviam deformidades quando jovens. Um de
nossos anciãos disse que era um distúrbio conhecido antes da guerra. Ele já
vira uma mulher que o possuía e tinha uma aparência muito semelhante à
minha antes de Jodahs me curar.
Todo mundo se virou e se concentrou em mim no mesmo instante.
— Perguntem-me quando a história dele acabar — falei. — De qualquer
maneira, não sei o nome da doença. Posso apenas descrevê-la.
— Descreva-a — disse Lilith.
Olhei-a e compreendi que estava me pedindo mais do que uma
descrição da doença. O rosto dela estava endurecido e austero, como ficara
desde que Jesusa prometera não me deixar durante a metamorfose. Ela
queria saber que motivo poderia haver, além do amor que sentia por mim,
para não dizer aos Humanos o quanto estavam ficando presos à minha
pessoa. Queria saber por que deveria trair a própria espécie em silêncio.
— Era um distúrbio genético — contei. — Afetava a pele, os ossos, os
músculos e o sistema nervoso. Produzia tumores grandes no rosto e na parte
superior do corpo de Tomás. Seu nervo óptico foi afetado. Os ossos do
pescoço e um braço foram afetados. Sua audição foi afetada. Jesusa estava
coberta da cabeça aos pés por pequenos tumores bastante visíveis, mas não
prejudicavam sua capacidade de se mover ou de usar os sentidos.
— Tive muita sorte — Jesusa disse, em voz baixa. — Eu era feia, mas
as pessoas não se importavam, porque eu poderia ter filhos. Não sofri como
Tomás.
Tomás a encarou. O olhar disse mais do que um grito de protesto teria
feito.
— Você sofreu — falou. — E se não fosse por Jodahs, teria se forçado a
voltar e sofrer mais. Pelo resto da vida.
Ela olhou para o chão e depois para o fogo. Não era timidez – apenas
não concordava com ele. Os cantos de sua boca se voltaram para baixo com
sutileza. Quando o irmão começou a falar de novo, peguei a mão dela. Ela
deu um salto e olhou para mim como se eu fosse uma pessoa desconhecida.
Então, segurou minha mão entre as suas. Achei que não tinha notado que,
do outro lado do cômodo, Tino estava segurando um dos braços sensoriais
de Nikanj da mesma maneira.
— Às vezes — Tomás estava explicando —, as pessoas têm apenas
manchas marrons, sem tumores. Às vezes, têm os dois. E, às vezes, suas
mentes são afetadas. Podem surgir outros problemas e elas morrem.
Crianças morrem. — Ele deixou sua voz se esvair.
— Não mais! — disse Lilith. — O sofrimento delas logo terá fim.
Tomás virou-se para encará-la.
— Você deve saber que elas não vão agradecer a mim ou Jesusa por
isso. Vão nos odiar como se fôssemos traidores.
— Eu sei.
— Foi assim com você?
Lilith olhou para baixo por um momento, movendo apenas os olhos.
— Jodahs lhes falou sobre a colônia em Marte?
— Sim.
— Essa alternativa não existia para mim.
— Meu povo pode não ver isso como uma alternativa.
— Se forem pessoas sensatas, verão. — Ela olhou para Nikanj. — A
doença deles parece mesmo com algo que existia antes da guerra, se é que
isso importa. Nos Estados Unidos, as pessoas a chamavam de
neurofibromatose. Não sei o nome em espanhol. Pode ter ocorrido como
uma mutação em uma ou mais crianças da Mãe, se ninguém a teve até a
terceira geração. Lembro-me de ler sobre alguns casos horríveis do pré-
guerra. Às vezes, os tumores se tornam malignos. Acho que isso seria um
atrativo especial para Jodahs. Ooloi podem ver um grande potencial não
utilizado nesse tipo de coisa.
— Ver, cheirar e provar — disse Aaor. Todo mundo se virou em sua
direção. — Posso me transformar para me parecer com Jodahs — falou. —
Deve haver pelo menos mais um ou dois Humanos doentes entre o povo da
Mãe que se juntariam a mim.
Silêncio. Jesusa e Tomás pareciam assustados.
— Vocês não entendem como é forte a educação que recebemos contra
vocês — disse Tomás. — E a maioria de nós acredita no que contam. Jesusa
e eu descemos para as planícies para ver um pouco do mundo antes que ela
começasse a ter bebês um atrás do outro, e antes que eu ficasse debilitado
demais. Ninguém que conhecemos fez algo assim. Acho que ninguém faria.
— Se eu pudesse chegar até essas pessoas — disse Aaor —, poderia
convencê-las.
Eu podia perceber sua fome, seu desespero. Ayodele e Yedik se
sentaram um de cada lado de Aaor e aliviaram seu desconforto da melhor
maneira possível. Pareciam fazer aquilo de forma automática, como se
tivessem por fim se adaptado a ter ooloi entre seus irmãos e suas irmãs.
Mas isso não reconfortou Aaor.
— Sou mais um erro! — falou. — Mais um indivíduo ooloi que não
deveria existir. Não há nenhum outro lugar na Terra onde possa encontrar
parceiros. E se o povo deles for reunido e as pessoas tiverem escolha entre
Marte, a união conosco ou a esterilidade no local em que estão, eu nunca
chegarei perto delas! Mesmo aquelas que escolherem a união conosco serão
encaminhadas a outros parceiros. Parceiros que não foram acidentes.
— Nenhuma delas aceitará a união — falou Jesusa. — Eu as conheço.
Sei em que acreditam.
— Mas você ainda não nos conhece o suficiente — respondeu Aaor. —
Sabia o que iria fazer… antes de Jodahs encontrar vocês?
— Sei que não vou levar você ou qualquer outra pessoa até meu povo
— disse ela. — Se seu povo pode encontrar o meu sem nossa colaboração,
como Jodahs falou, não podemos impedi-lo. Mas nada que vocês possam
dizer nos fará ajudá-los.
— Você não entende! — exclamou Aaor, inclinando-se para ela.
— Eu sei disso — admitiu ela — e sinto muito.
Falaram mais coisas enquanto eu dormia, mas não encontraram um
denominador comum. Ao longo da discussão, Jesusa nunca soltou minha
mão. Quando Nikanj viu que eu tinha adormecido, disse que deveriam me
levar ao quarto pequeno que fora reservado para a metamorfose de Aaor.
— Existem muitas distrações para Jodahs aqui — explicou para Jesusa
e Tomás. — Muitos estímulos. Jodahs deve ficar só para voltar sua atenção
para dentro, para as mudanças que seu corpo deve fazer.
— Precisa ficar afastado de nós? — perguntou Tomás.
— Claro que não. O espaço é grande o suficiente para três pessoas, e
Jodahs sempre precisará da companhia de pelo menos uma. Se vocês dois
tiverem que deixar Jodahs por um tempo, falem para Aaor ou para mim. O
quarto é ali. — Apontou com uma mão de força.
Tomás levantou meu corpo inconsciente, ajudado por Jesusa agora que
eu era peso morto. Tenho uma lembrança clara e preciosa dos dois me
carregando para o quarto. Eles não sabiam que minha memória continuava
gravando tudo que meus sentidos percebiam, mesmo quando eu estava
inconsciente. No entanto, me trataram com muita gentileza e cuidado, como
haviam feito desde o início da minha transformação. Não sabiam que aquilo
era exatamente o que os parceiros Oankali faziam em momentos como
aquele – e não viram Aaor observando-os com uma fome tão intensa que
seu rosto estava distorcido e os tentáculos de sua cabeça e de seu corpo se
alongavam em nossa direção.
1

D urante minha metamorfose, Aaor perdeu a pelagem cinza. Sua pele


ficou do mesmo marrom claro e vivo que a de Jesusa, a de Tomás e
a minha. Seu cabelo cresceu e ficou parecendo humano: comprido e preto.
Era mantido como Tino mantinha o dele, amarrado com um cordão de relva
em um longo rabo de cavalo que descia pelas costas. Eu usava o meu solto.
— Fora isso — Jesusa me disse em um dos meus momentos de vigília
—, vocês poderiam ser gêmeos.
Mesmo assim, ela evitava Aaor. Tomás fazia o mesmo. Aaor tinha um
cheiro mais parecido com o meu do que qualquer pessoa viva, mas não era
exatamente igual. Seus narizes humanos não tinham dificuldade em
perceber a diferença. Não sabiam o que estavam percebendo, mas evitavam
sua companhia.
Aaor não aceitava bem essa rejeição.
Quando tocou em mim, achei sua solidão e sua necessidade
angustiantes. Aaor me despertou várias vezes enquanto eu passava pelas
transformações. Não era sua intenção, mas meu corpo percebia sua
presença como uma ferida não cicatrizada, e eu não podia descansar até ter
eliminado sua dor e oferecido… não a cura, mas um alívio momentâneo.
Era insuficiente e efêmero, mas Aaor continuava voltando em busca dele.
Uma vez, deitado enquanto se ligava a mim, me perguntou se eu
poderia lhe dar um dos jovens Humanos. Causei-lhe dor. Não pretendia,
mas suas palavras provocaram a reação antes que eu conseguisse me
controlar. Estimulação neural direta. Dor pura. Tão pura quanto qualquer
sensação pode ser. Consegui não deixar a dor circular entre nós e continuar
ferindo. Mesmo assim, Aaor precisou ainda mais de uma cura depois. Fiz
com que ficasse comigo para lhe dar conforto e aliviar sua solidão. Ficou
até eu adormecer.
Nunca dei a Aaor uma resposta verbal à sua pergunta – e Aaor nunca a
repetiu. Pareceu compreender que eu não podia mais me separar
deliberadamente de Tomás e Jesusa. Eles ainda poderiam me deixar, mas
não o fariam. Jesusa levava as promessas dela muito a sério. Não tentaria
partir até que eu me restabelecesse. E Tomás não partiria sem ela. Quando
estivessem preparados para ir, seria tarde demais.
Meu único medo era de que alguém da família contasse a eles. Minha
mãe Humana acreditava que era seu dever, mas ainda não tinha agido. Ela
me amava. No entanto, até agora, não tinha sido capaz de fazer nada para
me ajudar – nem de se forçar a destruir minha única chance de ter os
parceiros de que precisava.
No entanto, a culpa a oprimia. Mais uma traição à espécie humana a
favor de pessoas que não eram Humanas, ou não totalmente. Ela conversava
com Jesusa como uma irmã muito mais velha, ou como uma mãe com sua
filha. Aconselhava-a.
— Ouça Jodahs — ouvi-a dizer em certa ocasião. — Ouça com atenção.
Jodahs lhe dirá o que quer que você saiba. Não vai mentir para você. Mas
vai omitir informações. Depois de ouvir o que tem a dizer, afaste-se. Saia da
casa. Vá para o rio ou faça um curto percurso por dentro da floresta. Reflita
sobre o que foi dito e decida para quais perguntas ainda precisa de
respostas. Então, volte para casa e pergunte.
— Casa? — Jesusa sussurrou tão baixinho que quase não consegui
ouvir. Estavam do lado de fora, substituindo o telhado de palha. Não era
perto do meu quarto, mas minha mãe provavelmente sabia que eu podia
ouvi-las.
— Você mora aqui — disse minha mãe. — Isso faz desta a sua casa.
Não é um lar permanente para nenhum de nós. — Ela também era boa em
evasivas e omissão de informações.
— Você iria a Marte se pudesse? — perguntou Jesusa.
— E deixar minha família?
— Se você fosse como eu sou. Se não tivesse família.
Minha mãe não falou durante muito tempo. Por fim, suspirou.
— Não sei como responder a isso. Estou contente com essas pessoas.
Mais do que contente. Perdi meu marido e meu filho antes da guerra,
mortos em um acidente. Quando a guerra eclodiu, perdi todo o resto. Todos
nós, anciãos, como vocês nos chamam, perdemos. Não pude desistir e
morrer, mas não esperava quase nada. Comida e abrigo, talvez. Ausência de
dor. Nikanj disse saber que eu precisava de crianças, por isso, pegou o
esperma do homem com quem eu estava na época e me engravidou. Nunca
imaginei que perdoaria Nikanj por isso.
— Mas… perdoou?
— Eu compreendi. Aceitei. Não acreditava que poderia fazer nem isso.
Quando encontrei Kahguyaht, a primeira pessoa ooloi madura que conheci,
progenitor de Nikanj, achei que era um ser estranho, arrogante e
aterrorizante. Odiei Kahguyaht. E pensei que odiava todas as criaturas
ooloi. — Ela fez uma pausa. — Agora sinto que amei Nikanj a vida toda.
Ooloi são perigosamente fáceis de amar, nos absorvem e nós não nos
importamos.
— Sim — Jesusa concordou, e eu sorri. — Mas tenho medo, porque não
compreendo esses seres. Irei a Marte se não ficar com Jodahs. Consigo
compreender a colonização de um lugar novo. Sei o que esperar de um
marido Humano.
— Olhe para minha família, Jesusa, e perceba que está vendo apenas
seis de nossos filhos. É isso que pode esperar se acasalar com Jodahs. Há
uma intimidade aqui que eu não tinha nem com a família em que nasci, nem
com meu marido e meu filho.
— Mas você tem parceiros Oankali além de Nikanj.
— Você também terá. Com Jodahs, quero dizer. E as crianças de vocês
se parecerão muito com as minhas. E metade delas nascerão de uma fêmea
Oankali, mas serão herdeiras dos cinco.
Depois de algum tempo, Jesusa disse:
— Ahajas e Dichaan não são tão ruins. Eles parecem… muito gentis.
— Bons parceiros. Eu estava com Nikanj antes deles, como você com
Jodahs. Assim é melhor, eu acho. Uma pessoa ooloi é, provavelmente, a
criatura mais estranha com a qual qualquer Humano jamais entrará em
contato. Precisamos de um tempo a sós com ela para perceber que
provavelmente é também a melhor dentre todas.
— Onde moraríamos?
— Você e sua nova família? Em uma de nossas cidades. Acho que
qualquer uma delas acabaria acolhendo vocês três. Seriam uma novidade, o
centro de muita atenção. Oankali e constructos amam novidades.
— Jodahs diz que tinha de ir para o exílio porque era uma novidade.
— Foi isso mesmo que disse?
Silêncio. O que Jesusa estava fazendo? Procurando na memória
exatamente o que eu tinha dito?
— Disse que era a primeira pessoa de seu tipo — ela respondeu, por
fim. — O primeiro constructo ooloi.
— Sim.
— Disse que não deveria haver nenhum constructo ooloi ainda, por isso
não tinha a confiança das pessoas. Elas temiam que Jodahs não fosse capaz
de se controlar como um indivíduo ooloi deve fazer. Temiam que as ferisse.
— Jodahs feriu algumas pessoas, Jesusa. Mas nunca feriu Humanos. E
nunca feriu pessoas quando havia seres Humanos a seu lado.
— Jodahs me explicou isso.
— Ótimo. Porque, se não tivesse explicado, eu explicaria. Jodahs
precisa de você mais do que Nikanj jamais precisou de mim.
— Você quer que eu fique com Jodahs.
— Muito.
— Estou com medo. Tudo isso é tão diferente… Como você…? Quer
dizer… com Nikanj… Como você decidiu?
Minha mãe não disse nada.
— Você não teve escolha, teve?
— Ah, eu tive. Escolhi viver.
— Isso não é escolha. É apenas seguir, deixando-se levar pelo que quer
que aconteça.
— Você não sabe o que está dizendo — falou minha mãe.
Depois disso, não houve conversa por um tempo. Minha mãe não tinha
gritado essas últimas palavras, como alguns Humanos teriam feito. Ela
quase as sussurrou. No entanto, elas carregavam tanto sentimento que
também teriam me silenciado, e eu sabia muitas das coisas a que minha mãe
hospedeira havia sobrevivido. E havia tantas além das que contou que
Jesusa não gostaria de ouvir. No entanto, de certa forma, ela as ouviu, pelo
tom de voz de minha mãe. As duas só falaram outra vez quando eu estava
quase adormecendo de novo. Jesusa começou.
— É lisonjeiro pensar que Jodahs precisa de nós. Parece ser alguém tão
firme, capaz de suportar qualquer coisa. No começo, eu não conseguia
entender por que nos desejava. Desconfiei.
— Jodahs pode suportar muito sofrimento físico. E terá de suportar, se
você partir.
— Existem outros Humanos com quem acasalar.
— Não, não existem. Agora existe Marte. Os rebeldes escolhem ir para
lá. Os rebeldes comuns estão velhos demais para Jodahs e os poucos jovens
Humanos nascidos na nave são comprometidos.
— Então… o que acontecerá com Jodahs se formos embora?
— Não sei. Assim como não sei o que vai acontecer com Aaor. É com
Aaor que estou mais preocupada agora.
— Aaor me perguntou se eu contaria onde está meu povo, em segredo,
para que pudesse ir até lá tentar convencer dois deles a serem seus
parceiros.
— O que você respondeu?
— Que matariam Aaor assim que percebessem o que é.
— E?
— Respondeu que não se importava. Disse que Jodahs tinha a nós, mas
sua situação era de fome.
— Você disse o que Aaor queria saber?
— Não consegui. Mesmo que não soubesse como meu povo agiria, não
poderia traí-los dessa maneira. Eles já vão pensar em mim como uma
traidora quando os Oankali forem buscá-los.
— Eu sei. Aaor também sabe, na verdade. Mas está em desespero.
— Tomás diz que Aaor também perguntou a ele.
— Isso não é normal. Perguntou a você mais de uma vez?
— Três vezes.
— Não é normal. Vou conversar com Nikanj sobre isso.
— Não pretendo criar problemas para Aaor. Gostaria de poder ajudar.
— Aaor já está com problemas e, no momento, Nikanj é provavelmente
a única pessoa que pode ajudar.
Parei de lutar contra o sono e me permiti adormecer. Conversaria com
Aaor quando acordasse outra vez. Eu não sabia o que poderia fazer a
respeito de sua fome, mas tinha de haver algo.
2

P orém, não tive chance de conversar com Aaor antes de minha


segunda metamorfose terminar. Como eu, Aaor saiu de casa. Vagou,
talvez procurando algum sinal do povo de Jesusa e Tomás.
Encontrou apenas rebeldes idosos, hostis e inférteis que não tinham
nada a oferecer exceto balas e flechas.
Sofreu mudanças radicais: ganhou pelos outra vez e os perdeu;
desenvolveu escamas e as perdeu; desenvolveu algo parecido com cortiça
de árvore e perdeu isso também; por fim, mudou completamente, perdeu
seus membros e entrou em um afluente do nosso rio.
Quando percebeu que não conseguia voltar a uma forma Humana ou
Oankali, nem se tornar uma criatura terrestre de novo, nadou para casa.
Ficou no rio perto de nossa cabana por três dias antes que alguém
descobrisse quem era. Até o seu cheiro tinha mudado.
Eu havia despertado, mas ainda não estava forte o suficiente para me
levantar. Meus braços sensoriais tinham se desenvolvido por completo, mas
eu ainda não os havia usado. Quando Oni e Hozh encontraram Aaor no rio,
eu estava aprendendo a coordená-los como membros de levantamento e
manuseio.
Hozh me mostrou o que Aaor havia se tornado: quase uma espécie de
molusco, uma criatura sem ossos. Seus tentáculos sensoriais estavam
intactos, mas Aaor já não tinha olhos ou outros órgãos sensoriais humanos.
Sua pele, muito lisa, estava protegida por uma camada de lodo. Não
conseguia falar nem inspirar o ar ou emitir qualquer som. Atraiu a atenção
de Hozh subindo na margem e forçando parte do corpo a sair da água. Foi
um grande esforço. Doloroso. Sua carne alterada era muito sensível à luz
solar.
— Nunca teria reconhecido Aaor se não tivesse tocado em seu corpo —
disse Hozh. — Nem o cheiro era o mesmo. Na verdade, mal tinha cheiro.
— Não compreendo — falei. — Ainda não está na fase adulta. Como
pode alterar seu odor?
— Suprimiu-o. Acho que não pretendia fazer isso.
— Não parece que pretendia se tornar o que se tornou. Quando for
possível trazer Aaor para casa, diga a Ooan que venha até mim.
— Ooan levou Aaor de volta para a água a fim de ajudar a reverter a
transformação. Diz que Aaor quase se perdeu. Estava se tornando cada vez
mais aquilo que aparentava ser.
— Hozh, Jesusa e Tomás estão em casa?
— Estão no rio. Todo mundo está.
— Peça que venham até mim.
— Você pode ajudar Aaor?
— Acho que sim.
Hozh foi embora. Pouco tempo depois, Jesusa e Tomás vieram até mim
e se sentaram ao meu lado. Pensei em me sentar para lhes dizer o que
precisava, mas isso teria sido exaustivo, e queria reservar minha energia
para outras coisas.
— Vocês viram Aaor? — perguntei a eles.
Tomás assentiu. Jesusa estremeceu e disse:
— Era uma… grande lesma.
— Acho que podemos ajudar — falei. — Gostaria que Aaor tivesse
vindo até mim antes de desaparecer. Acho que na época nós já poderíamos
ter ajudado.
— Nós? — perguntou Tomás.
— Um de vocês ao meu lado e Aaor do outro. Acho que posso uni-los a
Aaor o suficiente para satisfazer sua necessidade. Acho que posso fazer isso
sem causar desconforto a vocês. — Toquei cada um deles com um braço
sensorial. — Na verdade, espero poder tratar a coisa de modo que gostem.
Tomás examinou meu braço sensorial esquerdo, dando-lhe vida com seu
toque como nada mais poderia fazer.
— Então você vai dar um pouco de prazer a Aaor — disse ele. — Qual
a utilidade disso?
— Aaor quer parceiros Humanos. Precisa de parceiros de alguma
espécie. Até que possa obtê-los, vocês compartilhariam o que temos?
Jesusa pegou meu braço sensorial direito e apenas o segurou.
— Eu não poderia tocar em Aaor — falou.
— Não há necessidade. Eu vou tocar. Você vai tocar em mim.
— Aaor vai se transformar no que era? Nikanj vai terminar a
transformação antes de trazer Aaor até nós?
— Não será uma lesma sem membros quando chegar até nós. Mas
também não será o que era quando nos deixou. Nikanj transformará Aaor
em uma criatura terrestre de novo. Isso levará dias. Sequer tirará Aaor do
rio até que tenha desenvolvido ossos de novo e possa se manter em pé.
Quando chegar até nós, estaremos prontos.
Jesusa soltou meu braço sensorial.
— Não sei se estarei pronta para isso. Você não viu, Jodahs. Não sabe a
aparência que tinha.
— Hozh me mostrou. Péssima, eu sei. Mas é meu par fraterno. É
também o único outro ser existente que é como eu. Não sei o que vai
acontecer se eu não ajudar Aaor.
— Mas Nikanj poderia…
— Nikanj é nosso progenitor. Fará tudo o que puder. Fez tudo o que
pôde por mim. — Fiz uma pausa, observando-a. — Jesusa, compreende que
isso, quando vocês me encontraram, o que aconteceu a Aaor era o mesmo
que estava acontecendo comigo?
Tomás se afastou um pouco de mim.
— Você ainda estava no controle de si mesmo — disse ele. — Foi capaz
de nos ajudar.
— Nunca fiquei tanto tempo longe de casa quanto Aaor ficou. Mesmo
assim, acho que não teria voltado sem vocês. Teria entrado na água ou
afundado no chão para minha segunda metamorfose. Nossas transformações
não acabam bem quando estamos sós. Não sei o que eu teria me tornado.
— Você acha que Aaor está em sua segunda metamorfose? —
perguntou Jesusa.
— Provavelmente.
— Ninguém disse isso.
— Teriam dito se vocês tivessem perguntado. Para eles, é óbvio. Assim
que estabilizarmos Aaor, sua transformação poderá ser concluída aqui.
Logo estarei de pé.
— Onde vamos dormir? — perguntou Jesusa.
Comigo!, pensei imediatamente. Mas disse:
— Na sala principal. Podemos construir uma divisória, se vocês
quiserem.
— Sim.
— E teremos que passar algum tempo com Aaor. Se não, sua
transformação dará errado outra vez.
— Oh, Deus — sussurrou Jesusa.
— Vocês dois comeram há pouco tempo?
— Sim — respondeu Tomás. — Estávamos jantando com seu pai e sua
mãe Humanos quando Oni e Hozh encontraram Aaor.
— Ótimo. — Eles poderiam compartilhar sua refeição e me poupar o
esforço de comer. — Deitem-se comigo.
Eles fizeram isso de bom grado. Jesusa se encolheu um pouco quando,
pela primeira vez, passei um braço sensorial ao redor de seu pescoço.
Quando ela ficou parada, ajustei-me com cada um dos tentáculos sensoriais
daquele lado do corpo. Não podia deixar que se movesse de novo por um
tempo.
Então, com um alívio que estava além de qualquer coisa que eu já tinha
sentido com ela, estendi minha mão sensorial, segurei sua nuca e afundei os
filamentos em sua carne, sem causar sangramento.
Pela primeira vez, injetei nela – não pude evitar – minha substância de
ooloi adulto.
Pelas mensagens neurais que interceptei, soube que ela teria
convulsionado se tivesse conseguido se mexer. Jesusa gritou e, por um
instante, o cheiro repentino de adrenalina vindo de Tomás me distraiu.
Com o braço sensorial livre, toquei o rosto dele.
— Ela está bem — forcei-me a dizer. — Espere.
Talvez ele tivesse acreditado em mim. Talvez a expressão no rosto de
Jesusa o tivesse tranquilizado. Qualquer que fosse o motivo, Tomás ficou
calmo e me concentrei por completo em Jesusa. Eu deveria ter me
conectado aos dois ao mesmo tempo, mas, pela primeira vez, como adulto,
queria saborear suas essências individuais separadamente.
A consciência adulta me pareceu mais aguçada e refinada, diferente de
uma maneira que eu ainda não conseguiria definir. O cheiro, o gosto e o
toque de Jesusa, o ritmo de seus batimentos cardíacos, a circulação de seu
sangue, a textura de sua carne, o funcionamento simples, correto e vital de
seus órgãos, suas células e as menores organelas no interior delas – tudo
isso era de uma complexidade vasta e apaixonante. O erro genético que
causara tanto sofrimento a ela e a seu povo era tão evidente quanto uma
nuvem solitária em um céu claro. Minha tentação era começar a fazer as
correções de imediato. As células corporais seriam fáceis de alterar, embora
isso fosse levar tempo. No entanto, as células sexuais, os óvulos, teriam de
ser substituídos. Seus progenitores tinham o distúrbio e cerca de ¾ dos
próprios óvulos eram anômalos. Eu teria que fazer com que partes do corpo
dela funcionassem como nunca desde seu nascimento. Melhor deixar aquele
tipo de trabalho para mais tarde. Melhor simplesmente desfrutar de Jesusa
agora, de suas complexas harmonias, do perigo embutido em seu conflito
humano geneticamente inevitável: inteligência versus comportamento
hierárquico. Houve um tempo em que esse conflito ou contradição (tinha os
dois nomes) assustava tanto alguns Oankali que eles desistiram do contato
com seres Humanos. Tornaram-se Akjai e acabaram abandonando os
arredores da Terra sem se misturar com eles.
Para mim, o conflito era uma especiaria. Era mortal para a espécie
humana, mas não o seria para Jesusa ou Tomás mais do que fora para os
meus progenitores. Minhas crianças não o herdariam.
Jesusa, solene e questionadora, bonita em níveis que ela provavelmente
nunca entenderia, com certeza seria uma das mães dessas crianças.
Apreciei-a por mais alguns instantes, muito pelo prazer que ela tirava de
mim. Pude ver como minha substância ooloi estimulava o centro de prazer
de seu cérebro.
— Monitore-os com muito cuidado — Nikanj havia me dito. — Dê a
eles o máximo que puderem suportar e nada mais. Não os machuque, não os
assuste, não os estimule em excesso. Comece devagar e, em pouco tempo,
estarão mais dispostos a desistir de comer do que a desistir de você.
Jesusa tinha apenas começado a sentir meu sabor de adulto, e pude ver
que isso era verdade. Ela gostava muito de mim como subadulto. Mas o que
sentia agora ia além de gostar ou amar, enveredando pelo apego biológico
profundo da maturidade. Lilith chamava isso de dependência literal, física,
de outra pessoa. Eu não conseguia pensar tão friamente. Para mim,
significava que logo Jesusa não iria querer me deixar – que não seria capaz
de me deixar por mais que alguns dias de cada vez.
Isso funcionava nos dois sentidos, é óbvio. Logo eu não seria capaz de
suportar uma longa separação dela. E ela poderia me machucar de propósito
se me evitasse. Pelo que eu conhecia dela, estaria disposta a fazer isso se
pensasse que tinha um motivo, mesmo que infligisse tanta dor a si mesma
quanto a mim. Lilith havia feito isso com Nikanj muitas vezes antes de a
colônia de Marte ser estabelecida.
Machos Humanos podem ser perigosos e fêmeas Humanas, frustrantes.
No entanto, eu sentia o impulso de ter os dois. Aaor também, sem dúvida.
Se Jesusa e Tomás algum dia voltassem suas piores características humanas
contra mim, é provável que o fizessem por causa de Aaor. Eu não tinha
escolha exceto tentar ajudar meu par fraterno, e Jesusa e Tomás tinham de
me auxiliar com isso. Eu não sabia se poderia facilitar a experiência para
eles.
Mais um motivo para garantir que gostassem dessa de agora.
Jesusa começou a sentir um cansaço prazeroso à medida que eu a
explorava e curava as poucas contusões e os pequenos ferimentos que ela
havia adquirido. Desfrutaria ainda mais quando eu a unisse a Tomás e
compartilhasse o prazer que cada um sentia com o outro, misturando a isso
o meu. Quando eu pudesse criar um circuito contínuo, mergulharíamos uns
nos outros.
Mas isso ocorreria mais tarde. Agora, sem movimento aparente,
acariciei e embalei Jesusa até um sono profundo.
— Eles nunca entenderão o tesouro que são — Nikanj me disse uma
vez, sentando-se ao meu lado. — Veem como somos diferentes, inclusive
você, Lelka, e se perguntam por que os desejamos.
Eu me afastei de Jesusa, demorando-me por um momento no sabor
salgado de sua pele. Certa vez, ouvi minha mãe dizer a Nikanj:
— É bom que seu povo não coma carne. Se comessem, pela maneira
como falam sobre nós, nossos sabores, sua fome e sua necessidade de nos
saborear, acho que nos comeriam em vez de manipular nossos genes. — E,
depois de um momento de silêncio: — Talvez isso fosse até melhor. Seria
algo que poderíamos entender e combater.
Nikanj não tinha dito nada. Talvez estivesse se alimentando dela
naquele exato momento, compartilhando de sua refeição mais recente,
recebendo células mortas ou malformadas de sua carne, até mesmo
colhendo um óvulo maduro antes que ele pudesse começar sua jornada
pelas trompas de falópio até o útero. Armazenava alguns dos óvulos e
consumia o resto. Eu teria pegado um óvulo de Jesusa se houvesse algum
maduro.
— Nós nos alimentamos de nossos parceiros todos os dias — Nikanj
havia me dito. — E, no processo, os mantemos saudáveis e concebemos
crianças para eles. Mas nem sempre precisam saber o que estamos fazendo.
Eu me virei para encarar Tomás e, sem dizer uma palavra, ele se deitou
ao meu lado e usou os braços para me trazer para perto. Após me dar um
longo beijo, disse:
— Sempre terei que esperar?
— Ah, não — respondi, posicionando-o para que ficasse confortável. —
Depois de provar você dessa maneira, duvido que seja capaz de mantê-lo
esperando outra vez.
Passei um braço sensorial em volta do pescoço dele e expus minha mão
sensorial. Paralisei-o, como fiz com Jesusa, mas dei-lhe uma ilusão de
movimento.
— Os homens, em particular, precisam sentir que estão se movendo —
Nikanj tinha me dito. — Você apreciará mais se lhes der a ilusão de que
estão escalando todo seu corpo.
Era verdade. E, apesar de não ter conseguido coletar um óvulo de
Jesusa, coletei uma quantidade considerável de esperma de Tomás. Grande
parte dele carregava o gene anômalo e era inútil para procriação. Proteína.
Armazenei o restante para uso futuro.
Tomás era mais forte que Jesusa. Levou mais tempo para se cansar.
Pouco antes de colocá-lo para dormir, ele disse:
— Nunca pretendi deixar você fugir de mim. Agora sei que nunca
fugirá.
Usei os músculos dele para nos aproximarmos de Jesusa. Assim,
encaixando-me entre eles, os dois poderiam dormir e eu poderia descansar e
obter um pouco mais de seu jantar. Eles não sentiriam isso. Podiam
dispensar aquilo de que eu precisava para ganhar força com rapidez, por
Aaor.
3

A aor estava em sua segunda metamorfose. Depois de vários dias de


reabilitação, quando Nikanj trouxe Aaor para mim, ainda não era
uma criatura reconhecível – nem como Humano, nem como Oankali, nem
como qualquer outro constructo que eu já tivesse visto.
Sua pele era de um cinza profundo, onde ainda cintilavam manchas
cobertas de lodo. Aaor não conseguia andar direito. Voltou a ser bípede,
mas sentia muita fraqueza e sua coordenação não havia retornado ao que
deveria ser.
Estava sem pelos.
Não conseguia falar em voz alta.
Suas mãos eram nadadeiras com membranas.
— Continua escapando — disse Nikanj. — Fiz com que voltasse ao
normal, mas já não tem controle. No momento em que deixo Aaor livre,
logo retorna a uma forma menos complexa.
Nikanj colocou Aaor no colchão que havíamos preparado. Tomás
também havia entrado no quarto e observava enquanto o corpo de Aaor
regredia, ficando cada vez mais distante do que deveria ter sido. Jesusa
ainda não havia entrado.
— Você pode ajudar? — Tomás me perguntou.
— Não sei — respondi. Deitei-me ao lado de Aaor e vi que estava me
observando. Seus olhos reconstruídos também não eram o que deveriam ser.
Estavam pequenos demais. Muito esbugalhados. Mas, com eles, Aaor
conseguia enxergar. Estava encarando meus braços sensoriais. Enrolei os
dois ao seu redor, também envolvendo meus braços de força em torno de
seu corpo.
Aaor sentia um medo profundo, doloroso, uma solidão desesperadora e
fome por um toque que não podia ter.
— Deite-se atrás de mim, Tomás — falei, e vi com meus tentáculos
sensoriais como ele hesitou, sua garganta se movendo quando engoliu. No
entanto, fez o que pedi, aproximando-se e deixando que o compartilhasse
com Aaor, como já o havia compartilhado com Jesusa.
Apesar dos meus esforços, não houve prazer no experimento. Algo
muito grave acontecera com o corpo de Aaor, como Nikanj havia dito. Seu
corpo continuava escapando de mim, perdendo sua complexidade. Não
tinha controle sobre si mesmo e, como uma rocha rolando ladeira abaixo,
estava em inércia. “Queria” ser menor e menos complexo. Se tivesse ficado
sem vigilância na água por muito mais tempo, teria começado a se
decompor por completo em células únicas, cada uma com a própria semente
da vida, a própria organela oankali. Elas poderiam viver por algum tempo
como organismos unicelulares ou invadir corpos de criaturas maiores de
uma só vez, mas, como indivíduo, Aaor desapareceria. De certa forma,
então, o corpo de Aaor estava tentando cometer suicídio. Eu nunca tinha
ouvido falar de nenhum portador da organela oankali fazendo uma coisa
dessas. Nós valorizávamos a vida. Mesmo em meus piores momentos, antes
de encontrar Jesusa e Tomás, essa dissolução nunca me ocorreu. Não
duvido que acabasse acontecendo – não como algo desejável, mas
inescapável, inevitável. Chamávamos nossa necessidade de contato com
outras pessoas e parceiros de fome. A palavra não fora escolhida à toa.
Alguém que pudesse sentir fome poderia morrer disso.
As pessoas que queriam me trancar em segurança em Chkahichdahk
tinham medo não apenas do que minha instabilidade poderia me levar a
fazer, mas também minha fome. A dissolução tinha sido uma possibilidade
tácita. Ocorrendo dentro do rio provavelmente afetaria – infectaria – plantas
e animais. Os animais infectados seriam atraídos para áreas como Lo, onde
os organismos da nave estavam crescendo. Da mesma forma, as células
autônomas seriam atraídas para esses lugares. Bastavam poucas para acabar
causando problemas, como doenças e mutações nas plantas.
Aaor queria continuar vivendo como Aaor. Tentou me ajudar a
recuperar sua metamorfose normal, mas, sem usar palavras, desencorajei
seus esforços. Não tinha controle suficiente para ajudar a própria
recuperação.
Tomás estava desesperado para se afastar de mim e Aaor. Coloquei-o
para dormir e o mantive comigo. A presença dele ajudaria Aaor, estando ele
consciente ou não.
Por um dia e meio, nós três ficamos juntos, forçando o corpo de Aaor a
fazer o que não mais queria. No momento em que Tomás e eu nos
levantamos para tomar banho e comer, Aaor quase tinha a aparência de
quando partiu: pele macia e marrom, rebentos de braços sensoriais sob cada
braço de força, tufos de cabelo preto na cabeça, dedos sem membranas,
fala.
— O que eu vou fazer? — perguntou antes de deixarmos que ficasse
com Nikanj.
— Cuidaremos de você — prometi.
Sem trocar uma palavra, Tomás e eu fomos para o rio e nos lavamos.
— Nunca mais quero fazer isso — falou Tomás enquanto saíamos da
água.
Eu não respondi. No dia seguinte, quando o corpo de Aaor começou a
mudar de novo, Tomás e eu o ajudamos outra vez. Ele não queria, mas
olhou para mim e Aaor e, relutante, se deitou ao meu lado.
Quando aconteceu de novo, chamei Jesusa. Depois, no rio, ela disse:
— Eu me sinto como se lesmas tivessem rastejado por cima de mim!
O corpo de Aaor não aprendeu a se manter estável. Teve de ser
resgatado várias vezes enquanto se arrastava para a dissolução. Trabalhando
com Jesusa e Tomás, eu sempre conseguia trazê-lo de volta, mas não
conseguia mantê-lo. Nosso trabalho nunca terminava.
— Por que parece sempre tão repulsivo? — Jesusa quis saber depois de
uma longa sessão. Tínhamos nos lavado. Agora, nós três fazíamos a
refeição juntos, coisa que não ocorria com muita frequência.
— Por dois motivos — expliquei. — Primeiro, Aaor não sou eu.
Pessoas acasaladas não querem esse tipo de contato com ooloi que não
sejam seus parceiros. As razões são bioquímicas. — Interrompi minha fala.
— Aaor cheira mal e tem um sabor ruim para vocês. Eu gostaria de poder
mascarar isso, mas não consigo.
— Nunca tocamos em Aaor, mas sinto como se tivéssemos — disse
Jesusa.
— Porque Aaor precisa senti-los. Faço vocês dormirem porque Aaor
não precisa sentir sua repulsa. Não conseguem parar de senti-la, eu sei, mas
Aaor não precisa compartilhá-la.
— Qual é o segundo motivo? — perguntou Tomás.
Envolvi meu corpo com os braços de força.
— Aaor está doente. Não deveria ficar escapando de nós como faz.
Deveria se estabilizar, da maneira como meus irmãos e minhas irmãs
costumavam me ajudar a fazer. Mas não consegue. — Olhei para o rosto de
Tomás, mais magro do que deveria estar, embora ele tivesse muito o que
comer. Os efeitos das sessões com Aaor estavam começando a ficar
visíveis. E Jesusa parecia mais velha do que deveria. As linhas verticais
entre os olhos dela se aprofundaram e se tornaram permanentes. Quando
tudo aquilo acabasse, eu as apagaria.
Os dois se entreolharam com tristeza.
— O que foi? — perguntei.
Jesusa se mexeu, incomodada.
— O que vai acontecer com Aaor? — perguntou. — Por quanto tempo
temos que continuar ajudando? — Ela se recostou na parede da cabana. —
Não sei quanto mais eu aguento.
— Se conseguirmos fazer Aaor passar pela metamorfose — falei —,
poderá ficar estável pelo simples fato de que o corpo estará maduro.
— Acha que conseguiria sem nós? — perguntou Jesusa.
Não respondi. Depois de um instante, nenhuma resposta foi necessária.
— O que vai acontecer com Aaor? — ela insistiu.
— Exílio, provavelmente. Levaremos Aaor de volta a Lo e, depois,
embarcará para a nave. Lá, poderá encontrar parceiros Oankali ou
constructos que possam ajudar a manter a estabilidade. Ou, talvez, por
fim… tenha permissão para se dissolver. Sua vida neste momento é terrível.
Se não puder esperar por nada melhor…
Os dois se viraram ao mesmo tempo e se entreolharam outra vez.
Afinal, eram um par fraterno, embora não pensassem nesses termos. Eram
como Aaor e eu. Entre eles, um olhar dizia muito. Esse mesmo olhar me
excluía.
Jesusa pegou um dos meus braços sensoriais entre as mãos e puxou a
mão sensorial. Ela parecia fazer isso com tanta naturalidade quanto o meu
pai e minha mãe faziam com Nikanj. Era raro que tocasse meus braços de
força agora que os braços sensoriais haviam crescido.
— Nikanj conversou conosco sobre Aaor — ela disse com gentileza.
Eu me concentrei apenas nela.
— Nikanj?
— Falou o que você acaba de nos dizer. Disse que há grandes chances
de que Aaor se dissolva. Morra.
— Não vai, exatamente, morrer.
— Vai, sim! Não será mais Aaor, não importa quantas células
sobrevivam. Aaor desaparecerá!
Sua veemência repentina me surpreendeu. Resisti ao impulso de
acalmá-la quimicamente porque ela não queria ser acalmada.
— Sabemos mais sobre a morte do que você — disse ela, em tom
amargo. — E, vou lhe dizer, reconheço a morte quando a vejo.
Coloquei meu braço de força em volta dela, mas não consegui pensar
em nada para dizer.
Após um momento, Tomás falou:
— Em casa, ela foi criada para ajudar os doentes e moribundos. Odiava
isso, mas as pessoas confiavam nela. Sabiam que faria o que fosse
necessário, não importando como se sentisse. — Ele suspirou. — Como
você, imagino. Deve haver algo errado comigo, por amar apenas pessoas
sérias e comprometidas com seus deveres.
Sorri e estendi meu braço sensorial livre para ele.
Tomás veio se sentar conosco e aceitou o braço. Não houve nenhuma
intensidade no contato, apenas o conforto de estarmos juntos. Nos últimos
tempos, havíamos tido poucos momentos assim.
— Se Aaor tivesse a chance de acasalar com um par de Humanos —
perguntou Jesusa —, sobreviveria?
Ela se sentia assustada e enjoada. Falou como se as palavras tivessem
sido tiradas dela à força. Tomás e eu a encaramos.
— Então, Jodahs? Sobreviveria?
— Sim — respondi. — É quase certo.
Ela assentiu.
— O que eu estava pensando é, se você deixasse nossos rostos do jeito
que eram, poderíamos ir para casa. Consigo pensar em pessoas que estariam
dispostas a se juntar a nós quando souberem o que descobrimos… o que
aprendemos.
— Seríamos trancafiados e forçados a procriar! — protestou Tomás.
— Acho que nenhum ancião ou progenitor precisaria nos ver. Você
sempre foi bom em ir e vir sem ser visto desde que pensou que poderia ser
colocado para trabalhar.
— Aquilo não era nada. Isso é sério. — Ele fez uma pausa. — Com um
nome como o seu, minha irmã, este não é um papel que você deveria
representar.
Ela desviou o rosto e apoiou a cabeça no meu ombro.
— Não quero fazer isso — falou. — Mas por que Aaor deveria morrer?
Nós sabemos que nosso povo será levado, deslocado, absorvido ou
esterilizado. É tarde demais para evitar isso. Como podemos assistir ao
sofrimento de Aaor, sabendo que provavelmente morrerá, e não fazer nada?
É verdade que nosso povo pensará mal de nós quando descobrir que nos
juntamos aos Oankali. Mas eles vão descobrir, mais cedo ou mais tarde,
aconteça o que acontecer.
— Eles vão nos matar, se tiverem a oportunidade — disse Tomás.
Jesusa balançou a cabeça.
— Não se tivermos a aparência que tínhamos. Jodahs terá que nos
alterar de volta em todos os sentidos. Até seu pescoço deve ficar rígido de
novo. Isso nos dará a chance de ir embora outra vez, mais cedo ou mais
tarde, mesmo se formos pegos. — Ela pensou por um momento. — Talvez
eles ainda não saibam o que fizemos, não é?
— É possível — admiti. — Nikanj evitou enviar mensagens para a nave
ou qualquer cidade.
— Porque esperava que fizéssemos exatamente o que estamos fazendo.
Assenti.
— Nikanj não pediria isso a nenhum de vocês. Só tinha esperanças.
— E você?
— Eu também não. Vocês já tinham recusado. Entendemos sua recusa.
Por certo tempo, ela não disse nada. Ficou em silêncio, olhando para o
chão. A adrenalina circulou em seu sistema e então começou a tremer.
— Jesusa? — chamei.
— Não sei se posso fazer isso — disse ela. — Você acha que
compreende, mas não consegue. Não pode.
Abracei-a e a acariciei até que parou de tremer. Tomás tocou o cabelo
dela, estendendo a mão à minha frente e fazendo com que eu quisesse
agarrá-la para impedi-lo. Parceiros Oankali dos sexos masculino e feminino
não tinham necessidade de fazer isso. Eu precisava aprender a suportar tais
gestos nos parceiros Humanos.
— Vamos fazer isso? — perguntou ela de repente.
Ele recuou e nos encarou, um depois o outro, então desviou o olhar.
Jesusa olhou para mim.
— Vamos? — perguntou.
Abri a boca para dizer que sim, que ela deveria, é óbvio. Então, me
calei.
— Não quero que você se destrua — falei depois de algum tempo. —
Não quero que troque a vida de meu par fraterno pela sua. — Eu sentia o
mesmo que ela. Jesusa não podia me transmitir ilusões multissensoriais;
Humanos não tinham esse tipo de controle. Mas eu podia sentir a força com
a qual se controlava, como o estômago lhe causava sofrimento e os
músculos doíam. Tive de me conter para não a aliviar. Ela não precisava
nem queria isso de mim agora. Tanto minha mãe quanto Nikanj haviam me
avisado que nem toda dor deveria ser curada de imediato. A linguagem
corporal dela me diria quando quisesse alívio.
— Não vou morrer — ela murmurou. — Não sou tão frágil. Ou
talvez… não tenha tanta sorte. Se eu puder salvar seu par fraterno, farei
isso. Mas acho que seria mais fácil para mim quebrar vários ossos do meu
corpo.
Agora nós dois olhávamos para Tomás.
Ele balançou a cabeça.
— Odeio aquele lugar — ele disse baixinho. — Cheio de dor, doença,
dever e falsas esperanças. Eu gostaria de morrer sem vê-lo outra vez. Vocês
sabem disso.
Assenti. Jesusa não fez nenhum movimento. Só o observou.
— No entanto, amo aquelas pessoas — ele continuou. — Não quero
fazer isso com elas. Não existe outro jeito?
— Nada que alguém não tenha pensado — respondi. — Se vocês
puderem fazer isso, salvarão Aaor. Se não puderem, levaremos Aaor para a
nave e… esperaremos pelo melhor.
— Já traímos o nosso povo — Jesusa falou baixinho. — Fizemos isso
com você, Jodahs. Tudo o que estamos fazendo agora é discutir se devemos
trazer mais duas pessoas primeiro ou deixá-las esperar até que os Oankali
cheguem.
— Só isso? — Tomás falou com amarga ironia.
— Você vai comigo? — ela perguntou.
Ele suspirou.
— Não prometi que levaria você de volta? — Ele passou a mão pelo
próprio cabelo. Depois de um instante, se levantou e saiu.
4

A s coisas se complicaram.
Não podíamos partir até que a metamorfose de Aaor terminasse.
Jesusa e Tomás pensaram que eu devolveria a deformação deles e voltariam
sozinhos para as montanhas. Não poderiam ter feito isso, mesmo que eu
permitisse que tentassem. Já não podiam me deixar.
Nunca lhes disse que não poderiam ir embora. Descobriram da mesma
forma que Lilith. Quando suportaram tudo que conseguiam de Aaor e
perceberam que não podiam me convencer a não ir com eles para a aldeia
na montanha, partiram por conta própria. Foram juntos para a floresta e
ficaram ali por vários dias. Para mim, foi uma amostra do que eu sofreria
quando morressem.
Entrei em pânico quando percebi que tinham partido. Tomás deveria
passar a noite comigo e com Aaor. No entanto, assim que pensei nele,
percebi que não estava no acampamento. Jesusa também não. O cheiro
deles estava começando a desaparecer.
Por quê? Para onde tinham ido? Para que lado? Voltei toda minha
atenção para o rastro, descobrindo onde o odor era mais forte e fresco.
Quando descobrisse o caminho que fizeram dentro da floresta, eu os
seguiria.
Ahajas me deteve.
Ela era grande e calma, e estar perto dela era confortável demais. As
fêmeas Oankali tendiam a ser assim. Eu sabia que, às vezes, depois de uma
sessão com Aaor, Nikanj ia vê-la e literalmente parecia crescer dentro do
seu corpo. Ahajas era tão grande que Nikanj parecia uma criança perto dela.
Agora ela bloqueava meu caminho.
— Deixe que voltem para você — ela disse, tranquila.
Encarei-a com os olhos enquanto meus tentáculos sensoriais estavam
todos concentrados no caminho que Jesusa e Tomás haviam seguido.
— Eu os vi sair — disse ela. — Pegaram mochilas e facões. Ficarão
bem e, em alguns dias, estarão de volta.
— Os rebeldes podem capturá-los! — falei.
— Sim — rebateu. — Mas é pouco provável. Eles ficaram sozinhos por
muito tempo antes de conhecerem você.
— Mas eles…
— São tão capazes quanto qualquer Humano de cuidar de si mesmos.
Lelka, você deveria ter dito a eles como estavam ligados a você.
— Fiquei com medo. Medo de que fizessem isso.
— Provavelmente fariam. Mas agora, quando começarem a precisar de
você e a se sentirem desesperados e com medo, não saberão por quê.
— É por isso que quero ir atrás deles.
— Primeiro, converse com Lilith. Ela costumava fazer isso, sabe.
Nikanj teve que aprender, muito jovem, que ela esticaria o cordão até que
quase a estrangulasse. E teria amaldiçoado e odiado Nikanj se a seguisse.
Eu sabia disso sobre Lilith. Fui até ela e fiquei por perto durante algum
tempo. Ela estava desenhando com tinta ou corante preto em tecido de
casca de árvore. Em Lo, os outros Humanos valorizavam os desenhos dela:
cenas da Terra antes da guerra, animais extintos, lugares distantes, cidades,
o mar… Às vezes, também fazia pinturas com corantes de plantas. Fez
poucas durante nosso exílio. Agora, estava retomando a prática, arrancando
a casca de uma figueira das redondezas e a usando para preparar corantes,
pincéis e gravetos afiados. Ela me disse uma vez que era algo que fazia para
se acalmar. Algo que fazia para se sentir Humana.
Lilith bateu no chão a seu lado e fui até lá, abri um espaço e me sentei.
— Eles foram embora — falei.
— Eu sei — ela respondeu. Estava desenhando uma refeição em família
ao ar livre, com todos nós reunidos e comendo em cabaças e tigelas de Lo.
Todos. Meus progenitores, meus irmãos e minhas irmãs (até Aaor, com a
aparência que tinha quando entrou na floresta), Jesusa e Tomás. Todas as
pessoas eram perfeitamente reconhecíveis, embora me parecesse que não
deveria ser assim. Eram compostos apenas por alguns traços pretos.
— Seus parceiros nunca mais confiarão em mim ou em Tino — ela
falou. — Essa será nossa recompensa por ficarmos calados sobre o que
estava acontecendo com eles.
— Devo segui-los?
— Agora não. Em alguns dias. Vá quando seus sentimentos lhe
disserem que estão sofrendo, talvez voltando. Encontre-os em algum lugar
no meio do caminho entre onde estamos e aonde quer que tenham ido.
Consegue rastreá-los bem o suficiente para fazer isso?
— Sim.
— Então, faça. E não espere que se comportem como se estivessem
felizes em ver você por qualquer motivo exceto a óbvia necessidade
biológica.
— Eu sei.
— Eles não vão amar você, nem mesmo gostar de você, por um bom
tempo.
— Nem confiar em mim — falei, sofrendo.
— Isso não vai durar. É de nós que vão desconfiar e se ressentir.
Eu me desloquei, para olhá-la de frente.
— Eles saberão que ficaram em silêncio por mim.
Ela deu um sorriso amargo.
— Feromônios, Lelka. Seu cheiro não deixará que odeiem você por
muito tempo. No entanto, a nós eles podem odiar. Lamento por isso. Gosto
deles. Você tem muita sorte em tê-los.
Fiz o que Lilith disse. E quando levei para casa meus parceiros calados
e ressentidos, eles fizeram o que ela disse que fariam. Tino e Tomás
pareceram encontrar algum ponto em comum quando Aaor completou sua
metamorfose, mas Jesusa tinha um rancor inflexível. Mal falou com minha
mãe a partir desse momento. E quando chegou a hora de irmos embora e ela
descobriu que Aaor tinha de ir conosco, quase parou de falar comigo.
Aquela foi outra batalha. Aaor tinha de ir. Se deixássemos que ficasse,
apenas com Nikanj para ajudar, não sobreviveria. Eu desconfiava que Aaor
só estava sobrevivendo agora graças aos nossos esforços combinados e à
sua esperança renovada em ter parceiros Humanos com quem se relacionar.
Também desconfiava que Jesusa entendia isso. Ela nunca ameaçou mudar
de ideia, nos rechaçar e abandonar Aaor à própria sorte. Era mais gentil do
que comigo. O contato com Aaor através de mim ainda era atormentador,
mas a doença de meu par fraterno atingiu alguma parte dela que talvez nada
mais pudesse alcançar. Eu, por outro lado, era ao mesmo tempo seu
conforto e tormento. Ela parou de me tocar. Aceitava meu toque, até
gostava dele tanto quanto já havia gostado, mas parou de me procurar.
— Você errou — Tomás me disse depois de nos observar por bastante
tempo. — Se ela não fosse tão boa em punir você, eu teria que pensar em
alguma maneira de fazer isso eu mesmo.
— Mas você não se importa — falei. Ele sentiu apenas alívio quando os
encontrei na floresta e os trouxe para casa. Jesusa estava cheia de
ressentimento e raiva.
— Ela, sim — ele respondeu. — Sente que caiu em uma armadilha e foi
traída. Eu me importo com isso.
— Eu sei. Sinto muito. Eu tinha mais medo de perder vocês do que
pode imaginar.
— Eu consigo ver Aaor — disse ele. — Não preciso imaginar.
— Não. Eram vocês dois que eu queria. Não apenas para evitar a dor.
Tomás olhou para mim por um momento e depois sorriu.
— Sabe que ela vai acabar perdoando você. E vai ficar muito
desconfiada do motivo. E vai estar certa. Não vai?
Passei um braço sensorial em volta do pescoço dele e não me dei ao
trabalho de responder.
A estação das chuvas estava quase acabando quando nós quatro nos
preparamos para deixar o acampamento. Aaor estava forte de novo, era
capaz de andar o dia todo e se alimentar de qualquer coisa. E, se
dormíssemos juntos a cada duas ou três noites, se manteria em forma. No
entanto, com todos nós à sua volta, sentia uma solidão terrível, um vazio,
quase uma paralisia. Poderia nos seguir e cuidar de si, mas só o suficiente.
Às vezes, eu precisava tocar em seu corpo para que despertasse. Era como
se tivesse se perdido dentro de si e só viesse à superfície quando estávamos
em contato. Raramente falava.
Quando estávamos prontos para partir, Nikanj ficou no meio de meus
progenitores Oankali para me dar um conselho final e dizer adeus.
— Não volte para este lugar — recomendou. — Em alguns meses,
retornaremos a Lo. Daremos bastante tempo a vocês, mas precisamos ir
para casa. Quando chegarmos lá, todos terão que saber sobre seus parceiros
e a aldeia deles. Lo transmitirá sinais à nave e os Humanos serão
resgatados. Se vocês quatro tiverem sucesso, estarão em seis a essa altura e
talvez tenham voltado a Lo. — Nikanj voltou sua atenção para mim por
algum tempo, sem falar, e me ocorreu que, se não tomássemos cuidado,
poderíamos não viver para voltar a Lo. Talvez eu nunca mais visse meus
progenitores. Nikanj deve ter pensado a mesma coisa. — Lelka, tenho
memórias para lhe dar. Deixe-me passá-las para você agora. Acho que já é
hora.
Memórias genéticas. Cópias viáveis de células que Nikanj havia
recebido de sua matriz ooloi ou que havia coletado ou recebido de seus
parceiros e sua prole. Nikanj duplicara tudo o que possuía e agora passaria
toda a herança para mim. Já era tempo. Eu era um indivíduo adulto
acasalado. No entanto, quando Nikanj se afastou de Ahajas e Dichaan e
estendeu para mim seus quatro braços, eu não me senti uma pessoa adulta.
Estava com medo desse passo final, desse último toque. Era como se Nikanj
estivesse dizendo: “Aqui está o seu direito de nascença, meu
presente/dever/prazer final para você.” Final.
Mas Nikanj ficou em silêncio completo. Quando me tocou, eu me
encolhi, resistindo. Simplesmente esperou até que eu me acalmasse. Então,
falou:
— Você deve recebê-las antes de ir, Lelka. — Fez uma pausa. — E deve
repassá-las assim que Aaor acasalar e estiver estável. Quem sabe quando
vocês dois me verão de novo?
Eu me forcei a entrar em seus braços e no mesmo instante senti Nikanj
me abraçar e penetrar minha pele; me manteve imóvel, mas não me
paralisou. Nikanj tinha um toque mais gentil do que eu jamais tivera. E
ainda dava prazer. Até mesmo para mim. Até mesmo agora.
Então, o mundo ao meu redor pareceu explodir em um branco
cintilante. Eu não enxergava nada além de mim. Todos os meus sentidos se
voltaram para dentro enquanto Nikanj usava as duas mãos sensoriais para
injetar um jato de células independentes, cada uma delas um plano a partir
do qual um ente vivo completo poderia ser estruturado. As células foram
direto para meu yashi recém-amadurecido. O órgão parecia engolir e sugar
como eu havia feito no passado, no peito de minha mãe.
Era uma renovação imensa. A vida em uma variedade maior do que eu
poderia imaginar – unidades singulares, muitas nunca vistas na Terra.
Gerações de memórias a serem examinadas, retidas e preservadas vivas em
estase ou a viverem pelo tempo natural e morrer. Aquelas que eu pudesse
recriar a partir de meu material genético não precisaria manter vivas.
No início, a enxurrada de informações foi incompreensível. Recebi-a e a
armazenei, apenas alguns fragmentos chamando minha atenção. Haveria
tempo de sobra para examinar o resto. Eu não perderia nada e, uma vez que
compreendesse, não esqueceria mais.
Quando o dilúvio terminou e Nikanj teve certeza de que eu poderia
permanecer em pé sem apoio, me deixou partir.
— Agora — falou —, exceto pela falta de parceiros Oankali ou
constructos, você é uma pessoa adulta.
Senti uma confusão, um excesso de informações, uma sobrecarga de
novas sensações, um entorpecimento, uma incapacidade de fazer muito
mais do que me manter em pé. Ouvi o que Nikanj disse, mas o significado
das palavras não me atingiu pelo que pareceu ser um longo tempo. Senti
Nikanj me tocar mais uma vez com um braço sensorial, depois me puxar
para si e me levar até Tomás, que estava fazendo um pacote com a rede de
tecido de Lo e as outras coisas que meus progenitores haviam me dado.
Tomás se levantou no mesmo instante e me tirou de Nikanj. Lembrei
mais tarde que ele teve o cuidado de não tocar em Nikanj, mas não estava
mais preocupado com a sua proximidade. Os adultos acasalados se
comportavam dessa maneira: à vontade uns com os outros, porque
entendiam a que lugar pertenciam e o que deveriam ou não fazer.
— O que você fez com Jodahs? — perguntou Tomás.
— Transmiti as informações necessárias para esta viagem perigosa com
vocês. Está como um Humano que se embriagou, mas vai ficar tudo bem
em poucos minutos.
Tomás olhou para mim com dúvida.
— Tem certeza? Estávamos prestes a partir.
— Vai tudo ficar bem.
Lembrei-me de tudo isso mais tarde, da maneira como me lembrava de
coisas que percebia no sono. Tomás me fez sentar ao lado dele, terminou de
encher seu pacote e o enrolou. Então, pegou um dos meus braços sensoriais
entre as mãos e disse:
— Se não acordar, vamos deixar você aqui e pode correr atrás de nós
quando recuperar a sobriedade.
Ele estava achando divertido, mas não estava brincando. Iria embora
sem Aaor e mim e nos deixaria alcançá-los da melhor forma que
pudéssemos. Jesusa com certeza iria junto com ele.
Busquei-o, farejando-o em vez de vê-lo, quase incapaz de me
concentrar nele. De pronto, Tomás me estendeu a mão e a segurei,
concentrando-me com tanta atenção que comecei a vê-lo e a ouvi-lo
normalmente em meio à confusão inacreditável de informações que Nikanj
havia me transmitido. A enxurrada era um peso que exigia minha atenção e
não se tornaria mais “leve” enquanto eu não começasse a compreendê-la.
Compreender tudo aquilo poderia levar anos, mas eu precisava ao menos
começar.
— Na verdade, não é como se embriagar — eu disse quando pude falar.
— É mais como ter bilhões de estranhos gritando dentro de você para obter
sua atenção exclusiva. Incompreensível… avassalador… nenhuma palavra
é grande o suficiente. Deixe-me ficar perto de você por algum tempo.
— Nikanj disse que só lhe transmitiu informações — ele protestou.
— Sim. E se eu começasse agora e continuasse pelo resto de nossas
vidas, só poderia explicar uma pequena fração delas em voz alta para você.
Ooan deveria ter esperado até voltarmos.
— Você consegue viajar? — ele perguntou.
— Sim. Apenas deixe-me ficar perto de você.
— Pensei que isso estava resolvido. Você nunca vai se afastar de mim.
5

A floresta não tinha fim. As árvores e plantas menores mudaram.


Algumas variedades desapareceram, mas a floresta continuou. Era
um pesado sobretudo de pelo verde sobre as colinas e, depois, sobre os
despenhadeiros quase verticais das montanhas. Havia lugares onde não
teríamos conseguido atravessar sem facões.
Encontramos trilhas antigas e saliências ao longo dos despenhadeiros
que talvez remontassem a antes da guerra. Abaixo de nós, um braço do rio
atravessava um desfiladeiro profundo e estreito. Acima, as montanhas eram
verdes e íngremes, fazendo fronteira com uma faixa azul e branca de céu
que se alargava à nossa frente. A água corria abundante abaixo, verde e
branca, quebrando sobre rochas enormes. Eu talvez sobrevivesse a uma
queda, mas era improvável que pudesse dizer o mesmo de qualquer um dos
outros.
Mas meus parceiros Humanos estavam no próprio país, com os pés
firmes e confiantes. Eu me perguntava se eles seriam capazes de encontrar o
caminho para casa. Tinham percorrido essa rota apenas uma vez, quase dois
anos antes. Mas Jesusa, em particular, ficou à vontade assim que a paisagem
se tornou mais vertical que horizontal. Na maioria das vezes, ela abria
caminho apenas porque era óbvio que adorava esse trabalho e era melhor
nele do que qualquer um de nós poderia ser. Quando nossa trilha estreita
desaparecia, geralmente era a primeira a localizá-la acima ou abaixo ou a
recomeçá-la a certa distância. E se a visse, liderava a subida em direção a
ela. Nunca esperava para ver o que o resto de nós queria fazer – apenas
encontrava a melhor maneira de seguir em frente. A primeira vez que a vi
estendida contra a montanha, encontrando pequenos apoios de mão e pé na
vegetação e na rocha, abrindo caminho para cima como uma aranha,
congelei em pânico absoluto.
— Ela é metade lagarto — disse Tomás, sorrindo. — É nojento. Eu
também não sou desajeitado, mas nunca a vi cair.
— Ela sempre fez isso? — perguntou Aaor.
— Eu já a vi escalar rochas nuas — respondeu Tomás.
Olhei para Aaor e vi que também tinha reagido com medo. Aquela
viagem tinha começado a lhe fazer bem: forçava Aaor a usar o corpo e
concentrar a atenção em algo além do próprio sofrimento. Tornou a
segurança dos dois Humanos sua principal preocupação. Entendeu o
sacrifício que estavam fazendo em seu benefício e aquele que já haviam
feito.
Foi a última pessoa a atravessar o golfo, segurando com os dois pés e os
quatro braços.
— Sou um inseto melhor do que você — disse a Tomás ao alcançar o
resto nós em segurança.
Tomás riu tanto de surpresa quanto de prazer. Acho que nunca tinha
ouvido Aaor sequer tentar fazer uma piada antes.
Houve momentos em que pudemos descer ao rio e caminhar nas
margens ou nos banharmos. Às vezes, Jesusa e Tomás pegavam peixes, que
cozinhavam e comiam enquanto Aaor e eu íamos o mais longe possível e
nos concentrávamos em outras criaturas.
— Por que você os deixa fazer isso? — Aaor exigiu saber na segunda
vez que isso aconteceu. — Eles não deviam estar com fome.
— Não estão — concordei. — Jesusa me disse que eles perderam a
maior parte dos suprimentos saindo das montanhas. Caíram por acidente
naquelas corredeiras pelas quais passamos dois dias atrás.
— Isso foi antes! Eles não precisam matar animais e comê-los agora! —
Aaor parecia petulante e infeliz. Afastou meu braço sensorial quando o
estendi, depois mudou de ideia e o segurou em suas mãos de força.
Estendi minha mão sensorial e penetrei seu corpo para entender o que
havia de errado. Como sempre, era como tocar uma versão um pouco
diferente de mim. Estava sentindo enjoo – náusea, nojo, de um modo
estranhamente humano, mas incapaz de lidar com a Humanidade de Jesusa
e Tomás.
— Quando se tem parceiros Humanos — expliquei —, é preciso
permitir que sejam Humanos. Eles mataram peixes e os comeram a vida
toda. Sabem que odiamos isso, mas precisam fazer mesmo assim, por
razões que não têm muito a ver com nutrição.
Aaor permitiu que eu apaziguasse seus sentimentos, mas ainda disse:
— Quais razões?
— Às vezes, precisam provar a si mesmos que ainda são donos de si,
que ainda podem cuidar de si, que têm coisas, costumes, que são deles.
— Parece uma expressão do conflito humano — disse Aaor.
— E é — concordei. — Estão provando sua independência em um
momento em que não são mais independentes. Mas, se isso for a pior coisa
que fizerem, vou agradecer.
— Vão dormir juntos hoje à noite?
— Não. E eles sabem disso.
— Eles… — Aaor parou, ficando completamente imóvel, e me
transmitiu um alerta silencioso. — Há outros humanos por perto!
— Onde? — perguntei, em silêncio, e congelei, tentando captar a visão
ou o cheiro deles.
— Adiante. Não consegue sentir? — Aaor me transmitiu a ilusão de um
cheiro fraco, estranho e perigoso. Mesmo com seu aviso, não senti o cheiro
de novos Humanos por minha conta, mas Aaor concentrava-se por
completo neles. — Machos — disse. — Três, eu acho. Talvez quatro.
Afastando-se de nós. Sem fêmeas.
— Pelo menos estão se distanciando — falei em voz alta. — Algum
deles têm o cheiro parecido com o de Tomás? Não consigo saber pelo que
você me contou.
— Todos cheiram muito parecido com Tomás. É por isso que não sei
dizer quantos são. Cheiram parecido, mas com a adição de certo elemento
estranho. O distúrbio genético, suponho. Você não consegue mesmo sentir?
— Agora, consigo. Mas eles estão tão distantes, acho que não os teria
notado por conta própria. Eles têm um animal morto, você percebeu?
Aaor assentiu, com tristeza.
— Andaram caçando — falei. — Agora, é provável que estejam
voltando para casa. Embora eu não sinta o cheiro de nada que possa ser a
casa deles. Você sente?
— Não — respondeu Aaor. — Estava tentando. Talvez estejam apenas
procurando um lugar para acampar, cozinhar e comer o animal.
— Quaisquer que sejam as intenções deles, teremos que tomar cuidado
amanhã. — Eu voltei minha atenção para Aaor. — Você nunca levou um
tiro, levou?
— Nunca. As pessoas sempre miram em você por algum motivo.
Balancei a cabeça.
— Você está pegando o senso de humor de Tomás. Não sei o que seus
novos parceiros pensarão disso. — Fiz uma pausa. — Ser baleado dói mais
do que prefiro lhe mostrar. Acho que eu lidaria melhor com a dor agora,
mas não gostaria. Nem gostaria que você tivesse de lidar com isso.
Aaor se aproximou e se ligou a mim com seus tentáculos sensoriais.
— Não tenho certeza se poderia sobreviver a um tiro — falou. — Acho
que parte de mim consegue, mas não eu, como indivíduo.
— Você não pode ter certeza disso.
Aaor não respondeu, mas não demonstrava tenacidade, nenhum
sentimento de que pudesse suportar choque e dor abruptos. Pensava que se
dissolveria. E provavelmente tinha razão.
— Eles terminaram de comer o peixe — avisei. — Vamos voltar.
Nós nos separamos e Aaor se virou para me seguir, demonstrando
cansaço.
— Você sabia que — falou —, antes de partirmos, Ooan ainda não
conseguia encontrar a falha que há em nós para entender por que
precisamos de parceiros tão cedo? Precisamos, não apenas desejamos? E
por que voltamos tanto de nossa atenção aos Humanos? — E, depois de
uma pausa: — Você deseja outros parceiros?
— Parceiros Oankali — respondi. — Constructos, não.
— Por quê?
— Acho… sinto que isso equilibrará minhas duas partes, a Humana e a
Oankali. Mas não sei o que os Oankali vão pensar sobre isso.
— Se eles nos aceitarem e se você encontrar dois de quem goste, não
deixe que decidam à distância.
Eu sorri.
— E você? Humanos e Oankali?
Aaor descansou um braço de força em volta dos meus ombros. Quase
nunca me tocava com seus braços sensoriais, embora aceitasse o toque dos
meus com prazer. Comportava-se como se ainda não tivesse amadurecido.
— E eu? — repetiu. — Não posso planejar nada. Para mim, já é difícil
acreditar que vou sobreviver de um dia até o seguinte. — Com a mão de
força livre, Aaor fechou um punho e depois relaxou. — Na maioria das
vezes, sinto que poderia só entregar os pontos e dissolver. Às vezes, sinto
que deveria fazer isso.
Dormi com Aaor naquela noite. Sozinho, não podia fazer muito para
ajudar, mas Aaor não poderia tolerar Jesusa ou Tomás até que digerissem a
refeição. Eu não conseguia imaginar que Aaor pudesse não existir mais, que
realmente desaparecesse e nunca mais fosse tocado: seria como nunca mais
tocar meu rosto.
Dois dias depois, Jesusa e Tomás me disseram para devolver as marcas
de seu distúrbio genético. Tínhamos rastejado por um caminho quase
inexistente para subir a montanha e voltado ao rio, cruzando a trilha dos
caçadores que farejamos antes. Eram quatro e ainda estavam à nossa frente.
E agora, como o vento estava favorável, eu conseguia sentir o cheiro de
mais Humanos. Muitos mais. Os tentáculos da cabeça e do corpo de Aaor se
mantinham estendidos à frente, controlados pelo cheiro tentador.
— Quanto mais Humanos vocês puderem parecer, menor a
probabilidade de levarem um tiro se forem vistos — disse Tomás. Ele
estava olhando para Aaor enquanto falava. Depois, virou o rosto para mim.
— Vi vocês mudarem por acidente. Por que não podem mudar por vontade
própria?
— Eu posso — respondi. — Mas o controle de Aaor não é firme o
suficiente. Aaor tem uma aparência tão Humana quanto consegue ter.
Ele respirou fundo.
— Então, aqui é o mais próximo que deveria chegar. Você deveria nos
alterar e acampar aqui.
— Não podemos nem ver sua cidade daqui — protestou Aaor.
— E eles não podem ver vocês. Se fizerem a próxima curva, parte de
nosso assentamento será visível. Mas o caminho é vigiado. Atirariam contra
vocês. — Aaor pareceu afundar em si. Tínhamos feito um acampamento
sem fogueira. Meus parceiros estavam ao meu lado, ligados a mim. Aaor
estava só.
— Altere sua aparência e vá com eles — disse a mim. — Eles vão agir
melhor se não estiverem separados de você. Posso sobreviver só por alguns
dias.
— Se formos pegos, seremos separados — falou Jesusa. — Seremos
presos em locais diferentes e interrogados. É provável que eu seja obrigada
a me casar muito depressa. — Ela parou de falar. — Jodahs, o que
acontecerá se alguém tentar fazer sexo comigo?
Sacudi a cabeça.
— Você vai se defender. Não vai conseguir evitar. Vai se defender com
tanta força que vai vencer mesmo que o macho seja muito mais forte. Ou
talvez apenas o faça machucar e matar você.
— Então, ela não pode ir — disse Tomás. — Vou ter que fazer isso
sozinho.
— Nenhum de vocês deve ir — falei. — Se os caçadores chegam até
aqui, devemos esperar. Temos tempo.
— Isso vai dar a você um homem. — disse Jesusa. — Vários homens,
talvez. Mas as mulheres não caçam.
— O que as fêmeas fazem? — perguntei. — O que as levaria para longe
da proteção do acampamento?
Jesusa e Tomás se entreolharam, e Tomás sorriu.
— As pessoas se encontram — falou.
— Encontram? — repeti, sem entender.
— Os anciãos nos dizem com quem devemos nos casar — ele contou.
— Mas não podem nos dizer quem devemos amar.
Eu sabia que os Humanos faziam essas coisas: casar aqui e acasalar lá e
ali e acolá. Não havia nada na biologia humana que impedisse isso. Na
verdade, a biologia humana incentivava os Humanos do sexo masculino a
terem ligações com mais de uma fêmea. O investimento de tempo e energia
do macho no cuidado parental das crianças era muito menor do que o das
fêmeas. Ainda assim, o conceito parecia estranho para mim – ter um
acasalamento e, de alguma maneira, abandoná-lo. Por outro lado, a maioria
dos constructos machos nunca teriam verdadeiros parceiros. Iam para onde
se sentiam bem-vindos e todos sabiam disso. Não havia vínculo
permanente, nem traição, nem erro biológico para enfrentar.
— Seu povo se encontra assim porque gostaria de acasalar? —
perguntei.
— Algumas pessoas — respondeu Tomás. — Outras apenas sentem
uma atração temporária.
— Seria bom conseguir para Aaor um casal que já se importa um com o
outro.
— Também pensamos nisso — disse Jesusa. — Pretendíamos ir à aldeia
e trazer as pessoas com as quais teríamos nos casado. Mas elas não viriam
aqui para ficar juntas. Também são irmão e irmã. Um irmão e duas irmãs,
na verdade.
— Seria melhor, mais seguro, ir atrás de pessoas que já escaparam da
aldeia. Existe um lugar onde elas geralmente se encontram?
Tomás suspirou.
— Transforme-nos de novo hoje à noite e nos deixe tão feios quanto
éramos, por precaução. Amanhã à noite, mostraremos alguns dos lugares
onde os amantes se encontram. Se você for até lá, terá que ser de noite.
Mas, na noite seguinte, fomos descobertos.
6

N ão sabíamos que tínhamos sido vistos. Ao fazer a curva final antes


da aldeia do povo da montanha, nos escondemos nas árvores e nos
arbustos. Tudo o que podíamos ver da aldeia eram patamares esporádicos,
com contenção de pedras, incrustrados nas encostas das montanhas cobertas
pela floresta. Plantações cresciam neles: uma grande quantidade de milho,
alguns melões grandes, mais de uma espécie de batata e outras coisas que
eu não reconhecia, alimentos que nem eu nem Nikanj jamais coletamos e
dos quais não armazenávamos memórias. Isso era perturbador e
surpreendente: coisas novas e inertes apenas esperando para serem
degustadas e lembradas. Entre meus corações, e agora protegido por uma
larga e plana placa óssea que nenhum Humano reconheceria como esterno,
yashi se revirou – ou melhor, contraiu-se como um estômago humano há
muito vazio. Qualquer percepção de novos seres vivos o atraía e me
distraía. Olhei para Aaor e vi que se concentrava por completo na própria
aldeia, nas pessoas.
Seu desespero se tornou mais agudo e dominou suas percepções.
Os Humanos tinham construído a aldeia bem acima do rio, ao longo de
uma ampla crista aplainada que se prolongava entre duas montanhas. Não
podíamos vê-la de onde estávamos, mas víamos sinais dela: vários outros
patamares elevados. Essas áreas não podiam ser alcançadas da nossa
localização, mas é provável que houvesse um caminho nas proximidades.
Tudo o que podíamos ver entre o fundo do desfiladeiro e os patamares eram
rochas íngremes, grande parte coberta de vegetação. Nada que eu teria
escolhido escalar.
O cheiro dos Humanos estava forte agora. Aaor, talvez perdendo-se
nele, tropeçou e pisou em um galho seco enquanto recuperava o equilíbrio.
Na noite silenciosa, o som foi assustador. Congelamos. Nossos
perseguidores não fizeram o mesmo – ao menos não com rapidez suficiente.
— Humanos atrás de nós! — sussurrei.
— Estão vindo? — Tomás quis saber.
— Sim. Vários deles.
— A guarda — avisou Tomás. — Estarão armados.
— Vocês dois: sumam! — disse Jesusa. — Teremos mais chance
sozinhos. Esperem por nós na caverna pela qual passamos dois dias atrás.
Vão!
A guarda pretendia nos encurralar nas montanhas. Agora, estávamos
realmente sem saída. Se corrêssemos para o rio, teríamos que contorná-los
ou passar entre eles, provavelmente sendo baleados no caminho. Não havia
opção exceto escalar o penhasco. Ou descê-lo, como insetos, para nos
escondermos na vegetação mais densa.
Não podíamos sumir, mas podíamos nos esconder. E se a guarda
encontrasse Jesusa e Tomás, talvez não nos procurasse.
Puxei Aaor comigo, temendo por sua vida mais do que pela de qualquer
um de nós. É provável que tivesse razão em suspeitar que não sobreviveria
a um tiro.
Na escuridão, os Humanos passaram de ambos os lados de onde Aaor e
eu estávamos escondidos. Conheciam o terreno, mas não enxergavam muito
bem à noite.
Jesusa e Tomás os levaram para um lugar a pouca distância de nós.
Fizeram isso simplesmente descendo a encosta em direção ao rio até caírem
nos braços de seus captores.
Então, ouviram-se gritos: Jesusa gritando o próprio nome, Tomás
exigindo que ambos fossem soltos, vigias gritando que tinham capturado os
intrusos.
— Onde estão os outros? — perguntou uma voz masculina. — Havia
mais de dois.
— Traga luz, Luis — falou Jesusa, com indignação deliberada. — Olhe
para nós e depois me diga quando houve mais de uma Jesusa e mais de um
Tomás.
Ficaram em silêncio por um tempo. Jesusa e Tomás se distanciaram
mais de nós, talvez levados para onde o luar mostrasse melhor seus rostos.
Os tumores estavam como quando os conheci, então não me preocupei com
o fato de não serem reconhecidos. Ainda assim, eles tinham dito que seriam
separados, presos e interrogados.
Por quanto tempo ficariam presos? Se fossem separados, não poderiam
ajudar um ao outro a se libertar. E o que seria feito com eles se dessem
respostas nas quais seu povo não acreditava? Com aversão óbvia a
mentiras, tinham inventado uma história de que foram capturados por um
pequeno grupo de rebeldes e mantidos em famílias separadas, de modo que
um não soubesse os detalhes do cativeiro do outro. Os rebeldes de fato
faziam coisas assim, embora em geral seus cativos fossem do sexo
feminino. Tomás diria que foi obrigado a trabalhar para seus captores. Tinha
plantado, colhido, carregado, construído, cortado madeira, o que fosse
necessário. Como ele realmente fez essas coisas enquanto estava conosco,
poderia dar descrições corretas sobre elas. Diria que a irmã foi mantida
refém para garantir seu bom comportamento, ao mesmo tempo que a prisão
dele a mantinha na linha. Por fim, os dois tinham conseguido se juntar e
escapar.
Isso poderia ter acontecido. Se Jesusa e Tomás apresentassem a história
de forma convincente, talvez não ficassem presos por muito tempo.
Agora, os dois haviam sido reconhecidos. Não houve mais gritos hostis,
apenas a angústia de Jesusa:
— Hugo, por favor, me solte. Por favor! Não vou fugir. Acabei de
correr o caminho inteiro de volta para casa. Hugo!
A última palavra foi um grito. Ele estava tocando nela, esse Hugo. Ela
sabia que fariam isso, mas não soubera até então como seria difícil suportar
o toque deles. Jesusa podia tocar outras fêmeas sem problemas. Tomás
podia tocar em machos. Eles teriam de proteger um ao outro o melhor que
pudessem.
— Deixe-a em paz! — disse Tomás. — Você não sabe pelo que ela
passou. — A voz dele indicava que ela já tinha sido solta. Era apenas um
aviso.
— Todo mundo disse que vocês dois estavam mortos — disse um dos
vigias.
— Algumas pessoas esperavam que estivessem mortos — disse outra
voz, em tom baixo. — Antes eles do que todos nós.
— Ninguém vai morrer por nossa causa — falou Tomás.
— Nós não voltamos para casa para morrer — disse Jesusa. — Estamos
cansados. Levem-nos lá para cima.
— Todos os reconhecem? — perguntou a voz mais baixa. Parecia quase
uma voz ooloi. — Alguém contesta a identidade deles?
— Podíamos tirar as roupas deles aqui — alguém disse. — Só para ter
certeza.
Tomás respondeu:
—Traga sua irmã, Hugo. Também vamos tirar as roupas dela.
— Minha irmã fica em casa, onde é o lugar dela!
— E se ela não ficasse, como você gostaria que fosse tratada? Com
justiça e decência? Ou deveria ser despida por sete homens?
Silêncio.
— Vamos subir — disse Jesusa. — Hugo, você se lembra do grande
vaso amarelo de água em que costumávamos nos esconder?
Mais silêncio.
— Você me conhece — ela disse. — Tínhamos dez anos quando
quebramos o vaso, eu fui pega e você não, e eu nunca contei. Você me
conhece.
Houve uma pausa. Hugo disse:
— Vamos levá-los. É provável que alguém tenha restos do jantar.
Eles foram levados embora.
Aaor e eu seguimos para ver o caminho que pegariam e espiar o
máximo que pudéssemos dos vigias.
Dos sete, quatro estavam nitidamente desfigurados pela doença
genética. Tinham grandes tumores na cabeça ou nos braços, uma aparência
diferente o bastante para serem alvejados no mesmo instante por rebeldes
das terras baixas.
Nós os seguimos enquanto havia cobertura florestal, depois observamos
enquanto eles subiam por um caminho que era, em resumo, uma escadaria
de pedra bruta que serpenteava pela encosta íngreme até a aldeia.
Quando não conseguimos mais ouvi-los, Aaor me puxou para perto e
avisou, em silêncio:
— Não podemos apenas esperar na caverna. Temos que tirá-los de lá!
— Dê algum tempo a eles — falei. — Tentarão encontrar um par
Humano para você.
— Como vão fazer isso? Serão amordaçados, vigiados.
— A maioria desses vigias é jovem e fértil. E talvez Jesusa tenha
fêmeas para vigiá-la. O que são os vigias, além de habitantes da aldeia
realizando uma tarefa exaustiva e temporária?
Aaor tentou relaxar, mas seu corpo ainda estava tenso contra o meu.
— Vê-los partir foi como começar a me dissolver. Sinto como se parte
de mim tivesse ido embora com eles.
Eu não respondi. Parte de mim fora embora com eles. Eles e eu
sabíamos como seria ficar separados por um tempo e, pior, ser mantidos
afastados por outras pessoas, que fariam de tudo para ficar entre nós. Eu só
começaria a sentir a ausência deles fisicamente em alguns dias, mas com a
incerteza – a possibilidade de que poderia não os ter de volta – foi difícil me
controlar. Sentei-me no chão. Meu corpo tremia.
Aaor sentou-se ao meu lado e tentou me acalmar, mas não podia dar o
que não sentia em si. Humanos poderiam ter nos capturado com facilidade
nesse momento: duas criaturas ooloi sentadas no chão, trêmulas e
impotentes.
Nós nos recuperamos devagar. Estávamos no controle de nossos corpos
de novo quando Aaor disse, em silêncio:
— Não podemos dar a eles mais de dois dias para agir e isso pode não
ser tempo suficiente para que façam alguma coisa.
Eu podia aguentar mais de dois dias, mas Aaor não.
— Vamos lhes dar tempo — falei. — Chegaremos o mais perto possível
e ficaremos em alerta por dois dias.
— Se não conseguirem escapar por conta própria nesse tempo, teremos
de resgatá-los.
— Não quero fazer isso — expliquei. — Tomás estava falando tanto
conosco quanto com seu povo quando disse que ninguém morreria por
causa dele e de Jesusa. Se tentarmos resgatá-los, poderemos ter de matar
aldeões.
— É por isso que é melhor agir enquanto ainda temos controle. Você
sabe disso, Jodahs.
— Eu sei — respondi em voz baixa.
7

S ubimos uma encosta íngreme, coberta de vegetação, rastejando e


aderindo ao chão como lagartas. Ter seis membros nunca foi tão
conveniente.
Subimos ao nível dos patamares e nos deitamos perto deles, ficando
escondidos durante o dia seguinte. Quando a noite chegou, os exploramos e
provamos, de maneira compulsiva, os novos alimentos que encontramos
plantados ali. A essa altura, nossas peles estavam mais escuras e era mais
difícil para os Humanos nos enxergar, enquanto nós conseguíamos ver tudo.
Subimos uma das montanhas que formava uma aresta do assentamento.
Pouco depois da metade do caminho, chegamos ao vilarejo humano com
suas casas de pedra, madeira e palha. Era uma localidade anterior à guerra.
Tinha de ser. Partes dela pareciam antigas, mas não eram ruínas. Todas as
construções estavam bem cuidadas e havia patamares por toda parte, a
maioria deles cheia de plantas. Longe da aldeia, havia um recinto contendo
vários animais grandes de um tipo que eu nunca tinha visto antes: criaturas
desgrenhadas, de pescoço comprido e cabeça pequena, que estavam em pé
ou deitadas à vontade pelo curral. Alpacas?
Podíamos sentir o cheiro de animais menores engaiolados em volta da
aldeia e jovens Humanos férteis por toda parte. Mesmo na montanha, acima
de nós, eram reconhecíveis. O que estariam fazendo lá em cima?
E quantos haveria? Três, meu nariz me disse. Uma fêmea e dois
machos, todos jovens, todos férteis, dois afetados pela doença genética. Por
que não podiam ser apenas esses dois, para Aaor? O que faríamos com o
terceiro, caso subíssemos? Por que Jesusa e Tomás não nos falaram sobre
pessoas vivendo em tamanho isolamento? Exceto por haver um a mais,
eram perfeitos.
— Subimos? — perguntei.
Aaor assentiu.
— Mas há um homem extra. O que faremos com ele?
— Ainda não sei. Vamos tentar avistá-los antes que nos vejam. Separá-
los pode ser mais fácil do que imaginamos.
Subimos a encosta – notando, mas na maior parte do tempo deixando de
usar, o longo caminho sinuoso que os Humanos criaram. Havia seres
Humanos ali naquele dia. Talvez houvesse outros no dia seguinte. Talvez o
caminho levasse a um posto de vigilância e a guarda mudasse todos os dias.
Qualquer pessoa no topo teria uma bela vista de todos os acessos pelas
montanhas ou do cânion abaixo. Talvez as pessoas ficassem mais de um dia
ali e recebessem suprimentos de baixo a intervalos regulares, embora
houvesse alguns patamares perto do topo.
Subimos em silêncio, depressa, comendo o que encontrávamos de mais
nutritivo ao longo do caminho. Quando chegamos aos patamares, paramos
até nos saciar. Tínhamos de estar em nossa melhor forma.
Em uma larga plataforma perto do topo, encontramos uma cabana de
pedra. Mais acima, havia uma cisterna e mais alguns patamares. Dentro da
cabana, duas pessoas dormiam.
Onde estava a terceira? Não ousamos entrar até saber onde estavam
todos.
Liguei-me a Aaor e perguntei por sinais silenciosos:
— Você viu o terceiro?
— No alto — falou. — Há outra cabana ou, pelo menos, outra moradia.
Vá até ela. Quero estes dois. — Aaor se concentrava por completo naquele
par de Humanos.
— Aaor?
Com um movimento surpreendentemente rápido, Aaor se concentrou
em mim. Sua rigidez era tão grande quanto um punho fechado.
— Aaor, existem centenas de outros Humanos lá embaixo. Você terá
uma vida. Tenha cuidado com as pessoas para quem vai entregá-la. Eu tive
muita sorte com Jesusa e Tomás.
— Suba e não deixe que o terceiro Humano me atrapalhe.
Eu me afastei e fui procurar a segunda cabana. Naquele momento, Aaor
não queria ouvir nada do que eu tinha a dizer, assim como eu não teria
ouvido ninguém que me dissesse para tomar cuidado com Jesusa e Tomás.
Se os Humanos fossem jovens o suficiente, é provável que pudessem
acasalar de forma bem-sucedida com qualquer ooloi saudável. Se ao menos
Aaor estivesse saudável. Não estava. Aaor e os Humanos que escolheu
teriam de curar uns aos outros. Se não, talvez nenhum deles sobrevivesse.
Não encontrei uma cabana mais alta na montanha, mas uma caverna
muito pequena perto do topo. Os Humanos haviam construído um muro de
pedra, envolvendo parte dela. Havia sinais de que eles a tinham ampliado
de um dos lados. Por fim, pesadas colunas de madeira haviam sido erguidas
contra a pedra e uma porta também de madeira tinha sido fixada a elas. A
porta parecia mais uma barreira contra o clima do que contra as pessoas.
Naquela noite, o tempo estava seco e quente, e a porta não estava bem
fixada. Ela se abriu quando encostei nela.
O homem que estava lá dentro despertou quando tropecei para dentro de
sua caverna minúscula. O calor do corpo dele o tornava um raio de luz
infravermelha na escuridão. Foi fácil, para mim, alcançá-lo e impedir que
suas mãos encontrassem o que quer que estivessem procurando.
Segurando as mãos dele, me deitei ao seu lado na cama curta e estreita e
o encostei na parede de pedra. Examinei-o com vários tentáculos sensoriais,
analisando-o, mas sem o controlar. Interrompi os gritos roucos passando um
braço sensorial em volta de seu pescoço e movendo a espiral para cima,
para cobrir sua boca. Ele me mordeu, mas seus dentes humanos sem corte
não causaram nenhum dano sério. Meus braços sensoriais existiam para
proteger os órgãos reprodutivos sensíveis em seu interior. A carne que os
cobria era a mais dura em meu corpo.
O macho que eu segurava devia estar mais à vontade em sua caverna do
que a maioria das pessoas estaria. Ele era pequeno, com metade do tamanho
da maior parte dos Humanos do sexo masculino. Além disso, tinha uma
doença de pele que arruinara o rosto, as mãos e grande parte do resto do
corpo dele. Não tinha pelos. Sua pele era tão escamosa quanto a de alguns
peixes que eu já tinha visto. O nariz estava deformado, achatado após ter
sido quebrado várias vezes, e isso acentuava sua aparência de peixe.
Estranhamente, ele estava livre do distúrbio genético que Jesusa, Tomás e
tantas outras pessoas da aldeia tinham. Era grotesco sem a doença.
Eu o examinei por completo, aproveitando a novidade que era. Quando
terminei, ele havia parado de se debater e estava deitado com tranquilidade
em meus braços. Tirei meu braço sensorial da boca dele e o homem não
gritou.
— Você mora aqui por causa da sua aparência? — perguntei.
Ele me amaldiçoou por um longo tempo. Apesar do tamanho, tinha uma
voz profunda, rouca e desagradável.
Eu não disse nada. Tínhamos a noite toda.
Depois de muito tempo, o homem disse:
— Tudo bem. Sim, estou aqui por causa da minha aparência. Tem mais
alguma pergunta idiota?
— Não tenho tempo para ajudá-lo a crescer. Mas, se quiser, posso curar
sua doença de pele.
Silêncio.
— Meu Deus — ele sussurrou, enfim.
— Não vai doer — eu disse. — E isso pode ser feito de manhã. Se tiver
medo de ficar aqui depois de curado, pode vir conosco quando partirmos.
Então, terei tempo para ajudá-lo a crescer. Se quiser isso.
— As pessoas da minha idade não crescem — ele respondeu.
Tirei pedaços de pele escamosa de seu rosto.
— Ah, sim — eu disse. — Podemos ajudar pessoas da sua idade a
crescer.
Depois de outra longa pausa, ele falou:
— Tudo bem na aldeia?
— Sim.
— O que vai acontecer com ela?
— Mais cedo ou mais tarde, meu povo chegará e dirá ao seu povo que
as pessoas não precisam viver isoladas, com medo, em corpos deformados.
Seu povo ficou isolado por muito tempo. Eles não sabem que há uma
colônia maior de Humanos saudáveis e férteis vivendo e se desenvolvendo
sem os Oankali.
— Não acredito em você!
— Eu sei. Mas é verdade. Devo curá-lo?
— Posso ver você?
— Quando o sol nascer.
— Eu poderia fazer uma fogueira.
— Não.
Ele balançou a cabeça para mim.
— Eu deveria estar com mais medo do que estou. Meu Deus, eu deveria
estar me mijando. Que diabos você é, exatamente?
— Constructo. Mistura Oankali-Humana. Ooloi.
— Ooloi… os que misturam macho e fêmea em um corpo.
— Não somos machos nem fêmeas.
— É o que você diz. — Ele suspirou. — Você vai me manter aqui a
noite toda?
— Se for curar você, terei que fazer isso.
— Por que está aqui? Disse que seu povo viria mais cedo ou mais tarde.
O que você está fazendo aqui agora?
— Nada prejudicial. Você quer cabelo?
— O quê?
Eu esperei. Ele ouviu a pergunta. Agora deixei-o absorvê-la. O cabelo
era fácil. Poderia começá-lo como algo secundário.
Ele colocou a cabeça em meu peito.
— Não entendo — falou. — Não entendo sequer… meus sentimentos.
— Muito depois, ele disse: — Claro que eu quero cabelo. E quero pele, não
escamas. Quero cabelo e altura. Eu quero ser um homem!
Meu primeiro impulso foi observar que ele era homem. Os órgãos
masculinos dele estavam bem desenvolvidos. Mas eu o compreendi.
— Vamos levá-lo conosco quando partirmos — falei.
E ele ficou satisfeito. Depois de um tempo, dormiu. Nunca o droguei da
maneira que ooloi costumavam drogar rebeldes. Assim que superou sua
surpresa e seu medo iniciais, me aceitou muito mais rápido do que Jesusa e
Tomás – mas eu era apenas um subadulto quando os conheci. Adultos ooloi,
constructos ooloi, deviam ser capazes de lidar melhor com os Humanos. Ou
talvez aquele homem (eu nem tinha perguntado o nome dele, nem ele o
meu) fosse particularmente suscetível à substância ooloi que eu não pude
deixar de injetar. À sua maneira humana, ele estava com muita fome,
faminto, ávido por qualquer toque. Quanto tempo fazia desde que alguém
esteve disposto a tocá-lo, exceto, talvez, para lhe quebrar o nariz outra vez?
Ele precisaria de uma criatura ooloi para impedi-lo de quebrar alguns
narizes quando fosse alto o suficiente para alcançá-los. É provável que
tenha sido maltratado. Não se desviou da norma humana da mesma maneira
que outras pessoas da aldeia, e os Humanos eram geneticamente inclinados
a serem intolerantes com a diferença. Podiam superar a inclinação, mas esta
era uma realidade do conflito humano: na maioria das vezes, não o faziam.
Era significativo que aquele homem estivesse tão preparado para abandonar
sua casa com alguém que ele havia aprendido a considerar como um
demônio, alguém que sequer tinha visto.
8

D e manhã, eu já tinha dado ao Humano da caverna uma pele nova e


macia e o princípio de uma vasta cabeleira.
— Vou levar mais tempo para reparar seu nariz — expliquei. — Mas
quando fizer isso, você poderá respirar melhor com a boca fechada.
Ele respirou fundo pela boca e olhou para mim, depois para si mesmo,
depois para mim de novo. Passou a mão pela penugem em sua cabeça,
então segurou a mão à sua frente e a examinou. Eu não tinha permitido que
acordasse até me levantar, abrir a porta para o nascer do sol e encontrar o
revólver curto e grosso que ele tinha procurado na noite anterior. Eu o
descarreguei e o joguei pela montanha. Então acordei o homem.
Ver-me o amedrontou, mas ele nunca procurou o esconderijo da arma.
— Qual o seu nome? — perguntei.
— Santos. — Sua voz, agora, era um sussurro áspero, não um rosnado.
— Santos Ibarra Ruiz. Como você fez isso? Como é possível? — Ele
esfregou os dedos da mão direita sobre o braço esquerdo e pareceu deliciar-
se com a sensação.
— Você pensou que havia sonhado ontem à noite? — perguntei.
— Não tive tempo de pensar.
— Quem virá aqui hoje?
Ele piscou.
— Aqui? Ninguém.
— Quem visitará a cabana lá de baixo?
— Não sei. Eu perco a conta com eles. Você vai lá embaixo?
— Em algum momento. Tome seu café da manhã, se quiser.
— Como você se chama?
— Jodahs.
Ele assentiu.
— Ouvi dizer que algumas criaturas de sua espécie tinham quatro
braços. Não acreditei.
— Ooloi têm quatro braços.
Ele olhou por algum tempo para os meus braços sensoriais, depois
perguntou:
— Você vai mesmo me levar embora e me fazer crescer?
— Sim.
Ele sorriu, mostrando vários dentes ruins. Eu também os consertaria,
fazendo com que caíssem e nascessem outros.
Mais tarde, naquela manhã, descemos para a cabana de pedra. O homem
e a mulher estavam dividindo a refeição com Aaor. Santos e eu os
assustamos, mas eles pareciam confortáveis com Aaor. E Aaor parecia
melhor do que estava desde sua primeira metamorfose. Parecia estável,
autoconfiante. Aparentava satisfação.
— Eles virão conosco? — perguntei em Oankali.
— Virão — respondeu em espanhol. — Comecei a curá-los. Contei a
eles sobre você.
Os dois humanos me encararam com curiosidade.
— Jodahs, meu par fraterno — disse Aaor. — Sem Jodahs, eu teria
morrido. — Na verdade, Aaor disse: “minha irmã-irmão mais próximo”,
pois era o melhor que conseguíamos fazer em espanhol. Não é de admirar
que pessoas como Santos pensassem que éramos hermafroditas.
— Estes são Javier e Paz — disse Aaor. — Eles já são parceiros.
Era óbvio que também eram parentes próximos. Tão parecidos quanto
Jesusa e Tomás um com o outro, e se pareciam com eles: pessoas fortes, de
pele marrom, cabelos pretos e peito largo. Santos e eu ganhamos frutas
secas, chá e pão. Javier e Paz pareciam mais interessados em Santos, que
também era parente deles, claro.
— Está se sentindo bem, Santos? — perguntou Paz.
— É da sua conta? — ele questionou.
Paz olhou para mim.
— Por que você o quer? Deseje-lhe um bom dia e cuspirá em você.
— Ele precisa de mais cuidados do que posso lhe dar aqui — falei.
Virei a cabeça para que Santos soubesse que eu o estava olhando. — E terá
menos motivos para cuspir quando eu terminar meu trabalho, então, talvez,
cuspa menos. Depois, quem sabe, encontrarei parceiros para ele.
Santos me observou enquanto eu falava, então deixou os olhos
deslizarem para longe de mim. Olhou, sem ver, eu acho, a mesa de madeira
rústica.
— Outras pessoas virão aqui hoje? — perguntei a Paz.
— Não — disse ela. — Hoje a guarda ainda é nossa. Juana e Santiago
virão amanhã para nos ajudar.
Santos falou de súbito, com urgência.
— Você realmente vai com essas pessoas?
— Claro — disse Paz.
— Por quê? Você deveria ter medo delas. Deveria estar aterrorizada.
Quando éramos crianças, nos disseram que o diabo tinha quatro braços.
— Não somos mais crianças — falou Javier. — Olhe para a minha mão
direita. — Ele a ergueu: marrom clara e lisa. — Tenho uma mão de novo.
Foi uma garra congelada por anos e agora…
— Não é suficiente!
Javier abriu a boca de repente, com uma expressão zangada. Então, sem
falar, ele a fechou.
— Eu quero ir — disse Paz, com a voz calma. — Estou cansada de
contar mentiras a mim mesma sobre esse lugar e ver meus filhos morrerem.
— Afastou uma mecha de cabelo preto muito longa do rosto. Enquanto
estava sentada à mesa, a maior parte dos cabelos descia até o chão atrás
dela. — Santos, se tivesse visto nosso último bebê antes que ele morresse,
agradeceria a Deus pela beleza que você tinha antes de sua cura.
Santos desviou o olhar dela, envergonhado, mas teimoso.
— Sei de tudo isso — falou. — Não quero ser cruel. Eu sei. Mas… nós
fomos ensinados durante a vida toda que os alienígenas nos destruiriam se
nos encontrassem. Por que nossa crença e nosso medo desapareceram tão
rápido?
Javier suspirou.
— Eu não sei. — Ele olhou para Aaor. — Eles não são tão assustadores,
são? E são… muito interessantes. Não sei por quê. — Ele olhou para cima.
— Santos, você acredita que estamos construindo um novo povo aqui?
Santos balançou a cabeça.
— Nunca acreditei. Tenho olhos. Mas isso não é motivo para
concordarmos em partir com as pessoas que nos ensinaram que são más.
— Você concordou? — perguntou Paz.
— Sim.
— Então, qual é o problema?
— Por que eles estão aqui?! — Ele se virou para mim. — Por que vocês
estão aqui?
— Para conseguir parceiros Humanos para Aaor — falei. — E agora
preciso recuperar os meus Humanos. São…
— Jesusa e Tomás, nós sabemos — falou Paz. — Aaor disse que eles
foram capturados lá embaixo. Podemos mostrar onde é provável que
estejam sendo mantidos, mas não sei como vocês podem tirá-los de lá.
— Mostre-nos — pedi.
Fomos para o lado de fora. A aldeia de pedra se estendia abaixo de nós,
espalhada como um mapa feito por Humanos. As construções pareciam
minúsculas ao longe, mas todas podiam ser avistadas. Todo o cume
achatado estava visível.
— Estão vendo aquela construção redonda ali? — perguntou Javier,
apontando.
No início, não vi. Eram tantas construções cinza com telhados de palha
marrom-acinzentados, todas minúsculas vistas de longe. Depois, ficou claro
para mim: um meio cilindro de pedra construído contra um muro.
— Há quartos no interior e embaixo dela — disse Paz. — Os
prisioneiros são mantidos lá. Os anciãos acreditam que os viajantes devem
ser obrigados a passar um tempo sozinhos para serem interrogados e provar
que são quem dizem ser e que não traíram o povo. — Ela parou de falar e
olhou para Javier. — Eles diriam que traímos o povo.
— Nós não trouxemos os alienígenas para cá — disse ele. — E por que
o povo precisa que tenhamos mais crianças mortas?
— Eles não dirão isso se nos pegarem.
— O que farão com vocês? — perguntei.
— Vão nos matar — sussurrou Paz.
Aaor se postou entre eles, passando um braço sensorial em torno de
cada um.
— Jodahs, podemos levá-los embora e depois voltar para buscar Jesusa
e Tomás?
Olhei para a aldeia lá embaixo, com centenas de patamares verdes.
— Temo por eles. Quanto mais tempo ficarmos separados, maior a
probabilidade de se denunciarem. Se ao menos tivessem nos contado… Paz,
as pessoas vigiavam o desfiladeiro daqui de cima antes de Jesusa e Tomás
irem embora?
— Não — ela respondeu. — Fazemos isso agora porque eles foram
embora. Os anciãos temiam que fôssemos invadidos. Fizemos mais armas e
munições e designamos novos vigias. Muitos deles.
— Na verdade, esse não é um bom lugar de onde fazer a vigilância —
disse Javier. — Estamos muito no alto e o desfiladeiro tem árvores demais.
Os invasores teriam que fazer um esforço para atrair nossa atenção.
Acender uma fogueira ou algo assim.
Assenti. Acampamos no frio por dias antes de chegarmos à aldeia. No
entanto, fomos vistos. Novos vigias. Mais vigilância.
— Vocês precisam nos ajudar a tirá-los daqui — falei. — Sabem onde
ficam os guardas. Não queremos machucá-los, mas temos que afastá-los e
tenho que resgatar Jesusa e Tomás.
— Podemos ajudar vocês a fugirem — disse Paz. — Mas não podemos
ajudar você a chegar a Tomás e Jesusa. Viu que eles estão vigiados e no
meio do vilarejo.
— Se estão onde você diz, posso chegar até lá subindo a encosta. Parece
íngreme, mas há uma boa cobertura.
— Mas você não pode tirar Jesusa e Tomás desse jeito.
Eu olhei para ela, gostando do jeito como ficava perto de Aaor e
segurava o braço sensorial que circundava sua garganta com uma das mãos.
Embora fosse alguns anos mais velha, era dolorosamente parecida com
Jesusa.
Falei em Oankali com Aaor.
— Hoje à noite, pegue seus parceiros e saia deste lugar. Espere na
caverna do desfiladeiro.
— Você não me abandonou — Aaor disse, teimando, em espanhol.
— Posso alcançá-los — falei. — Só e usando minha concentração,
posso subir pelos patamares e evitar os vigias… ou surpreendê-los e ferroá-
los para ficarem inconscientes. E nenhuma porta vai me separar de Jesusa e
Tomás. Posso levá-los, descendo a encosta, até o desfiladeiro. Você os viu
subir. Especialmente Jesusa. Vou levar Tomás nas costas, se for preciso, ele
querendo ou não. Então, hoje à noite, leve seus parceiros a um lugar seguro.
E leve Santos para mim. Eu pretendo manter minha promessa a ele.
Depois de um tempo, Aaor assentiu.
— Voltarei para buscar você se não nos encontrarem.
— Talvez seja melhor se não voltar — eu disse.
— Não me peça o impossível — falou Aaor, então conduziu seus
parceiros de volta à cabana de pedra.
9

P retendíamos partir tarde da noite: Aaor com os Humanos pelo


caminho de entrada e saída e, depois, descendo os patamares e uma
trilha íngreme e negligenciada coberta de vegetação até o fundo do
desfiladeiro. Eu pretendia descer pelo outro lado da montanha e abrir
passagem para chegar o mais próximo possível do lugar onde Jesusa e
Tomás estavam detidos.
Teria funcionado. A aldeia da montanha ficaria livre de nós e seria
capaz de continuar isolada até Nikanj enviar um ônibus espacial para
dispersar gás e recolher as pessoas.
Mas, naquela tarde, um grupo de homens armados subiu a trilha até a
cabana de pedra.
Nós os ouvimos e farejamos suor e pólvora muito antes de vê-los. Não
havia tempo para Aaor devolver a Javier e Paz suas deformidades.
— Os rostos deles estavam deformados? — perguntei a Aaor.
Aaor assentiu.
— Pequenos tumores. Muito visíveis.
E nenhum lugar para se esconder. Podíamos subir para a caverna de
Santos, mas de que adiantaria? Se os aldeões não encontrassem ninguém na
cabana, teriam a obrigação de verificar a caverna. Se começássemos a
descer pelo outro lado da montanha, poderíamos ser apanhados. Não havia
nada a fazer senão esperar.
— Quatro deles? — perguntei a Aaor.
— Sinto o cheiro de quatro.
— Nós os deixamos entrar e os ferroamos.
— Nunca ferroei ninguém.
Eu olhei para seus parceiros.
— Você não deixou pelo menos um deles inconsciente ontem à noite?
Seus tentáculos sensoriais se enrolaram em seu corpo, com vergonha, e
seus parceiros se entreolharam e sorriram.
— Você pode ferroar — falei. — E espero que possa suportar levar um
tiro. Talvez leve.
— Sinto que posso suportar. Sinto que posso sobreviver a quase tudo
agora.
Então, Aaor estava saudável. Se pudéssemos manter seus Humanos
vivos, permaneceria assim.
— Existe algum sinal que você deveria fazer? — perguntei a Javier.
— Um de nós deveria estar lá fora, vigiando — ele respondeu. — Eles
não ficarão surpresos por não estarmos. Acho que apenas os idosos vigiam
tanto quanto deveriam. Quer dizer, Jesusa e Tomás foram embora há dois
anos e não houve problemas. Até agora.
Negligência. Ótimo.
A cabana era pequena e não havia lugar para se esconder. Mandei os
três Humanos para cima pelo tortuoso caminho até a caverna de Santos. A
vegetação era densa mesmo ali, tão perto do cume. Uma vez que
completassem uma das voltas, não poderiam ser vistos da cabana de pedra.
Não seriam encontrados, a menos que alguém subisse atrás deles. Aaor e eu
tínhamos de garantir que ninguém subiria. Esperamos dentro da cabana. Se
pudéssemos receber os recém-chegados, haveria menos chance de matar
por acidente um deles fazendo com que caísse pela encosta.
Toquei Aaor quando ouvi os homens chegarem ao nosso nível.
— Pelo bem de Jesusa e Tomás — comuniquei, em silêncio —, não
podemos deixar nenhum deles escapar.
Aaor transmitiu sua concordância sem palavras.
— Javier! — chamou um dos recém-chegados antes de alcançar a porta
da cabana. — Ei, Javier, cadê você?
As janelas eram altas e pequenas e as paredes, grossas. Não seria fácil
olhar para dentro e ver se alguém estava lá, então não ficamos surpresos
quando um dos Humanos abriu a porta.
Olhos humanos se ajustam devagar à escuridão repentina. Ficamos atrás
da porta e esperamos, na expectativa de que pelo menos dois homens
entrassem, meio cegos. Apenas um entrou. Ferroei-o antes que gritasse.
Para seus amigos, ele pareceu desmoronar sem motivo. Dois deles o
chamaram e avançaram para ajudá-lo. Aaor pegou um. Eu deixei o outro
escapar, ataquei de novo e o peguei do lado de fora da porta.
O quarto estava apontando o rifle para mim. Eu me enfiei por baixo da
arma quando ele atirou. A bala riscou o chão ao lado do rosto de um de seus
amigos caídos.
Segurei-o com minhas mãos de força, peguei a arma dele com meus
braços sensoriais, descarreguei-a e joguei-a longe, de modo que saltasse a
encosta e caísse no fundo do desfiladeiro. Aaor estava se livrando das
outras armas da mesma maneira.
O homem em meus braços de força lutou como louco, gritando e me
xingando, mas não o ferroei. Ele era um macho alto, extraordinariamente
forte, de cabelos grisalhos e ossudo. Era um dos Humanos mais velhos e
estéreis, um daqueles que as pessoas ali chamavam de anciãos. Eu queria
ver como reagiria ao nosso cheiro quando superasse o medo inicial. Queria
descobrir por que ele e os três jovens machos férteis tinham subido. Queria
descobrir o que ele sabia sobre Jesusa e Tomás.
Arrastei-o para dentro e fiz com que se sentasse ao meu lado na cama.
Quando parou de se debater, eu o soltei.
A repentina liberdade pareceu confundi-lo. Ele olhou para mim, depois
para Aaor, que estava arrastando um dos colegas dele para a cabana.
Depois, ficou de pé e tentou correr.
Eu o capturei, o ergui e o sentei na cama de novo. Desta vez, ele ficou.
— Então aqueles malditos Judas nos traíram — falou. — Vão levar um
tiro! Se não voltarmos, serão baleados!
Levantei-me e fechei a porta, depois toquei em Aaor para dar um aviso
em silêncio.
— Vamos deixar o nosso cheiro agir neles por um tempo.
Aaor concordou, embora não visse motivo para isso. Virou um dos
machos e tirou a camisa dele. O corpo e o rosto do homem estavam
deformados por tumores. A boca dele estava tão distorcida que parecia
improvável que pudesse falar com normalidade.
— Temos tempo — Aaor disse em voz alta. — Não quero deixá-los
dessa maneira.
— Se você os curar, não poderão voltar para casa — lembrei. — O
próprio povo pode matá-los.
— Então, deixe que venham conosco! — Aaor deitou-se ao lado do
macho com a boca distorcida e afundou uma mão sensorial e muitos
tentáculos nele.
O ancião olhou, então se levantou e caminhou em direção a Aaor. A
linguagem corporal dele dizia que estava confuso, com medo, hostil. Mas o
homem apenas assistiu.
Depois de um tempo, alguns dos tumores começaram a encolher, e o
ancião deu um passo para trás e fez o sinal da cruz.
— Devemos levá-los conosco depois de curá-los? — perguntei a ele. —
Seu povo os mataria?
Ele me encarou.
— Onde estão as pessoas que estavam nesta casa?
— Com Santos. Tínhamos medo de que levassem um tiro por acidente.
— Vocês as curaram?
— E ao Santos.
Ele balançou a cabeça.
— E qual será o preço de toda essa gentileza? Esterilidade? Morte longa
e lenta? Isso é o que sua espécie me deu.
— Não estamos fazendo com que fiquem estéreis.
— É o que você diz!
— Nosso povo estará aqui em breve. Vocês terão que decidir se querem
acasalar conosco, se juntar à colônia humana em Marte ou ficar aqui,
estéreis. Se estes machos escolherem acasalar conosco ou ir para Marte, por
que deveriam ser esterilizados? Se decidirem ficar aqui, outros podem fazer
isso. Não é uma tarefa que eu gostaria de realizar.
— Colônia em Marte? Você quer dizer que Humanos estão vivendo em
Marte sem Oankali? O planeta Marte?
— Sim. Qualquer Humano que queira ir. A colônia tem cerca de
cinquenta anos agora. Se você for, devolveremos sua fertilidade e
garantiremos que seja capaz de ter crianças saudáveis.
— Não!
Ignorei-o.
— Este é nosso mundo. Seu povo pode ir a Marte.
— Você sabe que não iremos.
Silêncio.
Ele olhou de novo para ver o que Aaor estava fazendo. Vários dos
tumores menores já haviam desaparecido. A expressão e linguagem
corporal dele eram estranhamente falsos. Estava fascinado. E não queria
estar. Queria estar enojado. Fingiu estar enojado.
Estava mais do que fascinado – estava com inveja. Devia ter
experimentado o toque de ooloi no passado, antes de ser libertado para se
tornar um rebelde. Todos os Humanos de sua idade foram tratados por
ooloi. Ele se lembrou e desejou aquilo de novo, ou seria apenas o nosso
cheiro agindo sobre ele? Oankali ooloi assustavam os Humanos porque
tinham uma aparência muito diferente. Aaor e eu éramos bem menos
assustadores. Talvez isso tenha permitido que os Humanos respondessem
com mais liberdade ao nosso odor. Ou, talvez, sendo em parte seres
Humanos, tivéssemos um cheiro mais atraente.
Depois de verificar que os dois Humanos no chão estavam de fato
inconscientes e provavelmente permaneceriam assim por um tempo,
carreguei o ancião no ombro e o levei de volta para a cama.
— Mais confortável que o chão — falei.
— O que você vai fazer? — ele perguntou.
— Só vou dar uma olhada em você, verificar se é tão saudável quanto
parece.
Ele vinha resistindo havia um século. Estava ensinando às crianças que
pessoas como eu eram demônios, monstros, que era melhor padecer de um
distúrbio genético que as desfigurasse e incapacitasse do que descer das
montanhas e encontrar os Oankali.
Ele se deitou na cama, mais ansioso do que com medo. Quando me
deitei ao seu lado, estendeu a mão e me puxou para si, muito provável que
do mesmo jeito que procurava sua parceira humana quando estava
especialmente ávido por ela.
10

Q uando começou a escurecer, nossos cativos tinham se tornado


aliados. Eles eram Rafael, cujos tumores e cuja boca Aaor curou, e
Ramón, irmão de Rafael. Ramón era corcunda, mas agora sabia que não
precisava mais ser. Mesmo que não tivéssemos nem perto do tempo
suficiente para transformá-lo por completo, já o havíamos endireitado um
pouco. Havia também Natal, que era surdo havia anos. Agora não era mais.
E havia o mais velho, Francisco, que ainda estava confuso como Santos
estivera. Assustava-o o fato de nos aceitar tão depressa, mas ele aceitou.
Não queria descer a montanha e voltar para seu povo. Queria ficar conosco.
Mandei-o subir, para chamar Santos, Paz e Javier de volta. Ele suspirou e
foi, pensando que era um teste de sua recente lealdade. Afinal, era o único
que não precisava da nossa cura.
Só depois que os trouxe de volta, perguntei se ele poderia soltar Jesusa e
Tomás.
— Eu poderia falar com eles — respondeu. — Mas os vigias não me
deixariam tirá-los de lá. Todo mundo está muito nervoso. Ontem à noite,
dois dos guardas juraram ter visto quatro pessoas, não duas. Por isso fomos
enviados para cá. Alguns acharam que Paz e Javier poderiam ter visto
alguma coisa, ou pior, talvez estar com problemas. — Ele olhou para os
dois. Tinham entrado e seguido direto até Aaor, que enrolou um tentáculo
sensorial ao redor do pescoço de cada um e os acolheu como se estivessem
ausentes por dias.
Jesusa e Tomás estavam longe de mim havia dois dias. Eu ainda não
havia entrado em desespero, mas poderia, caso não conseguisse tirá-los em
mais dois. Saber disso me deixou desconfortável, impaciente para começar
o resgate. Saí da cabana lotada e me sentei na pedra nua da plataforma, do
lado de fora. Anoitecia e os dois irmãos, Rafael e Ramón, tinham entrado
na despensa da cabana e começado a preparar uma refeição.
Francisco e Santos saíram comigo e se acomodaram perto de mim, um
de cada lado. Podíamos avistar a aldeia logo abaixo, através da fumaça das
fogueiras nas quais os alimentos eram assados.
— Quando você vai partir? — perguntou Santos.
— Depois do anoitecer, antes do nascer da lua.
— Você vai ajudar? — ele perguntou a Francisco, que franziu a testa.
— Estou tentando pensar no que eu poderia fazer. Acho que vou descer
e esperar. Se Jodahs precisar de ajuda, se precisar se defender, talvez eu
possa lhe dar o tempo necessário para provar que não é um animal perigoso.
Santos sorriu.
— Mas Jodahs é um animal perigoso. — Francisco olhou para ele com
aversão. — Vocês deviam olhar para Jodahs assim. O povo de Jodahs virá e
destruirá tudo que vocês passaram a vida construindo.
— Volte para a sua caverna, Santos. Apodreça lá.
— Vou acompanhar Jodahs — respondeu Santos. — Não me importo.
Na verdade, é um prazer. Mas não estou dormindo. É provável que essas
pessoas não nos matem, mas vão engolir todos nós.
Francisco balançou a cabeça.
— Como está sua respiração agora, Santos? Quantas vezes você já teve
esse seu nariz quebrado? E o que aprendeu com isso?
Santos o encarou por um momento, depois soltou uma gargalhada.
Passei um braço sensorial ao redor do pescoço dele e o puxei para perto.
Santos não tentou dizer mais nada. Realmente não parecia querer
prejudicar. Apenas gostava de estar em vantagem, de saber algo que um
ancião de um século não sabia, que eu também havia negligenciado. Ele
estava rindo de nós dois. Ficou quieto e parado enquanto eu recuperava seu
nariz. No curto espaço de tempo que tive, não consegui lhe dar uma
aparência muito melhor. Isso exigiria alterar ossos e cartilagem. Fiz
algumas mudanças, para que ele pudesse respirar com a boca fechada, se
quisesse. Mas o que fiz de mais importante foi reparar danos nos nervos.
Santos não tinha sido atingido apenas no nariz, mas espancado na cabeça
toda. O corpo dele podia “apreciar” e desfrutar da substância ooloi que eu
não conseguia deixar de injetar quando penetrava sua pele – o que o
conquistou para o meu lado –, mas não podia sentir o cheiro de quase nada.
— O que está fazendo com ele? — Francisco perguntou sem nenhuma
preocupação específica. Seu olfato era excelente.
— Reparando-o um pouco mais — respondi. — Isso o mantém calado e
prometi a ele que o faria. Mais cedo ou mais tarde, será quase tão alto
quanto você.
— Feche a boca dele quando consertá-la — disse Francisco. — Agora,
vou descer.
— Ainda quer vir conosco?
— Claro.
Sorri. Eu gostava dele. Parecia que não era capaz de deixar de gostar
das pessoas que eu seduzia. Até de Santos.
— Você vai para Marte, não é?
— Sim. — Ele fez uma pausa. — Acho que sim. Talvez não fosse, se
você estivesse procurando parceiros. Queria que estivesse.
— Obrigado — eu disse. — Se mudar de ideia, posso ajudá-lo a
encontrar parceiros Oankali ou constructos.
— Como você?
— Seu parceiro ooloi seria Oankali.
Ele balançou sua cabeça.
— Marte, então. Com minha fertilidade restaurada.
— Com certeza.
— Onde devo encontrá-lo depois de você resgatar Tomás e Jesusa?
— Siga a trilha rio abaixo. Venha o mais rápido possível, mas com
cuidado. Se não conseguir fugir, lembre-se de que meu povo estará aqui em
pouco tempo. Eles não vão machucá-lo e o enviarão a Marte, se ainda
quiser ir.
— Prefiro ir com você.
— Você é bem-vindo para nos acompanhar. Só não seja morto tentando
fazer isso. É muito mais velho do que eu. Já deveria ter aprendido a ter
paciência.
Ele riu sem humor.
— Eu não aprendi, meu jovem ooloi. Provavelmente nunca vou
aprender. Fique de olho em mim na trilha do rio.
Francisco nos deixou e fiquei recuperando Santos até chegar minha hora
de partir. Deixei-o com um bom olfato.
— Não crie problemas — falei para ele. — Use essa sua mente esperta
para ajudar essas pessoas a fugir.
— Francisco não se importaria com o que você está fazendo conosco —
disse ele. — Eu percebi e não me importo.
— Farei experimentos quando a vida de meus parceiros não estiver em
risco. Até estarmos longe deste lugar, Santos, tente ficar calado, a menos
que tenha algo útil dizer.
Entrei na cabana e avisei Aaor que eu estava partindo.
Aaor deixou seus parceiros e a refeição que estava comendo. Usou mais
energia do que eu na cura de Humanos e provavelmente precisava de
comida.
Então, colocou os quatro braços em volta de mim e estabeleceu uma
ligação.
— Voltarei, se você não nos seguir — falou, em silêncio.
— Vou segui-los. Francisco vai me ajudar, se necessário.
— Eu sei. Eu escutei. E ainda vou herdar o Santos.
— Use a mente dele e force bastante seu corpo. Esta viagem deve fazer
isso. Você também deveria começar a descer agora.
— Certo.
Deixei Aaor e desci a montanha, usando o caminho existente quando
me convinha e ignorando-o caso contrário. Os Humanos que estavam com
Aaor achariam a trilha escura e teriam de ter cuidado. Para mim, estava bem
iluminada com o calor de todas as plantas em crescimento. Precisei descer
além da crista achatada na qual a aldeia tinha sido construída e me deslocar
ao longo da parte larga e plana abaixo do nível de visão de qualquer vigia
que estivesse fiscalizando. Então subi até onde os patamares cheios de
plantas em crescimento me esconderiam pelo maior tempo possível.
11

Q uando cheguei à aldeia, deitei-me em um patamar até que os sons


das conversas e do movimento das pessoas praticamente cessasse.
Pela audição e pelo olfato, calculei onde os vigias faziam a patrulha. Tentei
ouvir Jesusa ou Tomás, ou o povo falando sobre eles, mas não se escutava
quase nada. Dois homens estavam se perguntando o que tinham visto em
suas andanças. Uma mulher estava explicando a uma criança sonolenta que
Jesusa e Tomás tinham sido “muito, muito maus” e, como punição, foram
trancafiados. E, em algum lugar distante de onde eu estava, Francisco
explicava a alguém que cinco vigias na montanha eram o bastante e ele
queria dormir na própria cama, não no chão de pedra.
Ele não foi mais interrogado. Sem dúvida, ser ancião lhe dava alguns
privilégios. Gostaria de saber quanto tempo minha influência sobre ele
duraria e como reagiria quando ela acabasse. Melhor não descobrir. De
propósito, não lhe contei sobre a caverna onde deveríamos nos encontrar.
Querendo ou não, ele poderia levar outras pessoas até lá.
Houve um grito repentino e o som de um golpe. Congelei por algum
tempo antes de perceber que não tinha nada a ver conosco. Ali perto, um
macho e uma fêmea estavam discutindo, xingando-se. O macho bateu na
fêmea. Fez isso de novo várias vezes e ela continuou gritando. Até os
ouvidos humanos deviam estar cheios daquele som terrível.
Saí dos patamares e entrei na aldeia.
Eu estava perto de Jesusa e Tomás, perto da construção que me fora
mostrada da montanha. Não podia ir para lá direto. Havia casas no caminho
e mais dois degraus altos de pedra que elevavam o nível do solo. O cume
achatado não era tão plano quanto parecia. Paredes de pedra tinham sido
erguidas aqui e ali para conter o solo e criar as plataformas niveladas nas
quais as casas foram construídas. Dessa forma, tanto elas quanto as
plantações ficavam em patamares.
Havia caminhos e escadas para facilitar o movimento, mas eram
patrulhados. Eu os evitei.
Agachando-me sob um desses pavimentos, senti o odor de Jesusa. Ela
estava logo à frente, logo acima. Havia um leve cheiro de Tomás também.
Mas havia outras duas pessoas: machos armados.
Levantei-me com cuidado e espiei por cima do muro do pavimento. De
onde eu estava, tudo que conseguia ver eram mais paredes de construções.
Não havia pessoas do lado de fora.
Subi devagar, olhando para todos os lados. Alguém saiu abruptamente
de uma porta e se afastou de mim pelo caminho. Aplainei meu corpo contra
uma parede de pedras grandes e lisas.
Ao meu redor, as pessoas dormiam com respiração lenta e uniforme. O
macho irritado, ainda a alguma distância de mim, parou de bater em sua
companheira. Não me afastei da parede até que a pessoa da porta, uma
mulher grávida, cruzou a trilha e desceu as escadas para um nível mais
baixo.
Mais à frente, ao longo do caminho que me restringia, reconheci a
construção redonda, um meio cilindro de rocha cinza suave. Jesusa e Tomás
estavam lá dentro, embora eu achasse que não estivessem juntos. Andei em
direção à construção, com todos os tentáculos sensoriais enrolados em nós
de preparação para o ataque e os braços sensoriais enrolados contra o corpo.
Se eu conseguisse fazer aquilo sem barulho, poderíamos fugir e nossa
ausência só seria notada pela manhã.
A construção tinha pesadas portas de madeira. No momento certo, eu
poderia arrebentá-las, mas faria um estardalhaço. Alguém atiraria em mim
muito antes de eu terminar.
Desenrolei um braço sensorial e examinei a porta. Filamentos da minha
mão sensorial podiam penetrá-la com tanta facilidade quanto carne. Uma
porta de madeira fixada em um batente, mantida fechada por uma enorme
barra, também de madeira, que repousava em um gancho de ferro. Muito
simples. O gancho consistia em quatro pontas achatadas e viradas para
cima, duas presas à porta com vários parafusos de metal e duas presas ao
batente.
Depressa e com cuidado, apodreci a madeira que segurava os parafusos.
Com a mão sensorial, injetei um corrosivo e a madeira começou a se
desintegrar no mesmo instante. Eu não poderia ter destruído a porta dessa
forma, mas me livrar das pequenas partes de madeira que seguravam os
parafusos não era uma tarefa difícil. Na verdade, eu as digeri.
Depois de um tempo, a pesada trava deslizou para o chão.
Os dois homens do lado de dentro gritaram de surpresa, depois
xingaram e fizeram vários movimentos rápidos e barulhentos. Foram juntos
examinar o que aconteceu e perguntaram um ao outro o que poderia ter
causado o desmoronamento.
Quando bati na porta, eles estavam exatamente onde eu queria que
estivessem. A porta os derrubou antes que pudessem levantar seus rifles. Eu
os ferroei, primeiro um e depois o outro, com chicotadas dos braços
sensoriais. Ambos desmaiaram, inconscientes. Só pode ter sido reflexo o
que fez um deles disparar a arma.
A bala ricocheteou em uma parede de pedra e por fim acertou outra.
E, de repente, por toda parte, havia vozes.
Jesusa estava tão perto... mas não havia tempo.
Saí pela porta, pretendendo desaparecer e tentar outra vez mais tarde.
Do lado de fora, havia uma floresta de longos rifles de madeira e metal.
As pessoas tinham saltado do sono para o caminho, algumas nuas, mas
todas armadas.
Voltei para trás da pesada porta com um pulo e a fechei quando
dispararam contra ela. Peguei a barra, chutei-a e a prendi como uma escora.
Aquilo não resistiria muito tempo às armas e aos corpos deles, mas me
daria um minuto.
O que fazer? Eu seria morto antes que pudesse falar. Seria morto assim
que pusessem as mãos em mim. Se eu fosse para a área onde Jesusa estava
confinada, poderiam matá-la também.
Estiquei as mãos para pegar os dois vigias e os forcei a recobrar a
consciência. Eu os arrastei e pus de pé, ficando no meio com um de cada
lado e fazendo com que inalassem o máximo que podiam de meu cheiro.
Eles se debateram um pouco no começo. Então, enrolei os braços
sensoriais ao redor deles e injetei minha substância ooloi. Tive de silenciá-
los antes que a porta cedesse.
— Salvem suas vidas — eu disse baixinho. — Não deixem seu povo
atirar em vocês. Façam com que escutem!
Nesse momento, a porta cedeu.
As pessoas entraram na sala, prontas para atirar. Eu segurei os dois
vigias na minha frente, com apenas minhas mãos de força visíveis. Quanto
menos alienígena eu parecesse agora, maior a probabilidade de viver por
mais alguns instantes.
— Não atirem em nós! — gritou o vigia que estava sob minha mão
direita.
— Não atirem! — ecoou o outro. — A criatura não está nos
machucando.
— É um alienígena — alguém gritou.
— Oankali!
— Quatro braços!
— Matem!
— Não! — meus prisioneiros gritaram juntos.
— Essa coisa pode ferroar as pessoas até a morte! Matem-na!
— Não há necessidade de me matar! — eu disse. Tentei de propósito
soar como Nikanj quando não só assustava os Humanos como também os
fazia cooperar. — Não quero machucá-los, mas, se atirarem em mim, posso
perder o controle e matar vários de vocês antes de morrer.
Silêncio.
— Não pretendo causar mal algum.
Mais uma vez, o xingamento, e se tratava inconfundivelmente de um
xingamento:
— Quatro braços!
E outra pessoa:
— Essas coisas atacam como cobras!
— Não vim atacar ninguém — repeti. — Não pretendo causar mal
algum a vocês.
— O que você quer aqui? — exigiu um deles.
Hesitei, e outra pessoa respondeu.
— Não é óbvio o que essa coisa quer? Os prisioneiros, é isso! Veio
buscá-los!
— Vim buscá-los — concordei, em tom brando.
As pessoas começaram a parecer em dúvida. Eu as estava atingindo,
provavelmente mais com o meu cheiro do que com qualquer coisa que
estivesse dizendo. Tudo que eu tinha de fazer era mantê-las aqui um pouco
mais. Poderiam entrar e trazer Jesusa e Tomás para mim. Os dois que
estavam em minhas mãos provavelmente fariam isso agora, se eu lhes
pedisse.
Mas eu ainda precisava deles por mais um tempo.
— Se vocês me matarem — falei —, meu povo descobrirá. E aqueles
que atirarem em mim nunca viverão em um planeta ou conhecerão a
liberdade de novo. Perguntem aos anciãos. Eles lembram.
As pessoas começaram a se entreolhar, desconfiadas. Algumas delas
abaixaram as armas, sem saber o que fazer. Entre os Humanos, sempre
houve o medo de que podíamos ler seus pensamentos. Era por isso, sem
dúvida, que temiam deixar qualquer um descer até a parte baixa da floresta.
A maioria nunca havia entendido que eram seus corpos que líamos, por
dentro e por fora. E se fôssemos atentos e competentes, mais do que eu
tinha sido com Santos, eles nos guardavam poucos segredos.
— Quem falará por vocês? — perguntei ao grupo. Se fossem Oankali
ou constructos, eu nunca teria feito essa pergunta. Teria apresentado meus
argumentos a qualquer um e as pessoas se uniriam umas às outras pelos
organismos vivos da cidade e chegariam a um consenso.
Mas aqueles indivíduos eram Humanos. Eu tinha que encontrar seus
líderes.
Dois homens saíram da multidão.
— Anciãos? — perguntei.
Um deles assentiu. O outro apenas me encarou com nítida aversão.
— Não pretendo causar mal algum — repeti. — O mal só será feito se
vocês atirarem em mim. Aceitam isso?
— Talvez — disse aquele que assentiu.
Dei de ombros.
— Analisem suas memórias. — E me calei, deixando-os com suas
lembranças. Enquanto isso, sem chamar a atenção para o gesto, tirei as
mãos dos dois homens à minha frente. Eles não se mexeram.
— Por que você quer Jesusa e Tomás? — questionou o ancião enojado.
— São meus parceiros.
Houve uma onda repentina de murmúrios surpresos na multidão. Ouvi
descrença e questionamentos, ameaças e xingamentos, honra e nojo.
— Por que ficaram surpresos? — perguntei. — Por que achavam que eu
os queria? Por qual outro motivo eu me disporia a arriscar ser morto? — Fiz
uma pausa, mas ninguém falou. — Nós cuidamos de nossos parceiros tanto
quanto vocês dos seus — falei.
— Seria melhor para eles serem mortos do que dados a você — disse o
ancião enojado.
— Seu povo quase se destruiu — afirmei —, e vocês ainda não
mataram o suficiente?
— Seu povo quer nos matar! — gritou alguém no meio da multidão.
Falei em meio a novos murmúrios:
— Meu povo está vindo para cá, mas não vai matar. Não mataram seus
anciãos. Eles os arrancaram das cinzas da guerra, os curaram, acasalaram-se
com aqueles que estavam dispostos e deixaram os outros irem embora. Se
meu povo fosse assassino, vocês não estariam aqui. — Fiz uma pausa para
deixar que refletissem, então continuei. — E não haveria uma colônia
humana no planeta Marte, onde os Humanos vivem e se reproduzem livres
de nós. Os que estão lá vivem saudáveis e prósperos. Qualquer Humano que
quiser se juntar a eles receberá cura, recuperará a fertilidade, se necessário,
e será transportado.
O que aconteceu em seguida foi totalmente irracional, mas, por algum
motivo, mais tarde senti que deveria ter previsto aquilo.
O rosto do ancião enojado se contorceu de raiva e repulsa. Ele me
amaldiçoou e invocou seu deus para me condenar. Então, disparou sua
arma.
Um dos dois vigias Humanos que eu havia segurado e depois libertado
saltou entre a arma do ancião e eu.
Um instante depois, o vigia estava morrendo e os dois anciãos lutavam
pela posse do rifle do ancião enojado.
Vi o ancião assassino ser dominado por seu companheiro e duas pessoas
jovens e desfiguradas. Então, caí ao chão ao lado do homem ferido.
— Mantenha-os longe de mim — falei para o outro vigia. — O coração
dele foi ferido. Posso salvá-lo, mas somente se eles me deixarem em paz.
Não prestei mais atenção ao que eles fizeram – o vigia ferido precisava
de toda a minha concentração. Segundo a definição da maioria dos
Humanos, ele já estava morto.
A bala de grande calibre disparada à queima-roupa atravessara o
coração e saíra pelas costas, quase atingindo a coluna. Eu precisava fazer
tudo que pudesse para mantê-lo vivo enquanto recuperava o coração. Os
Humanos não me matariam. A oportunidade para isso tinha sido perdida.
12

Q uando terminei a cura, estava com fome e quase sem forças por
causa disso. O cheiro de Jesusa e Tomás tão próximos era
atormentador. Eu não podia deixar que os Humanos os mantivessem longe
de mim por muito mais tempo.
Comecei a prestar atenção ao ambiente ao meu redor e me vi encarando
os olhos do homem que acabara de curar.
— Fui baleado — disse ele. — Eu me lembro… mas não dói.
— Você está curado — eu disse, abraçando-o. — Obrigado por me
proteger.
Ele não disse nada. Sentou-se quando me sentei e olhou ao redor para as
pessoas sentadas à nossa volta. Éramos o centro de um círculo de anciãos e
pessoas férteis envelhecidas – pessoas que pareciam velhas, mas não tanto
quanto os idosos de aparência juvenil. Não havia fêmeas presentes.
— Deem-me algo para comer — pedi a eles. — Matéria vegetal. Sem
carne.
Ninguém se mexeu ou falou.
Olhei para o vigia que acabara de curar.
— Por favor, me traga alguma coisa.
Ele assentiu. Ninguém o impediu de sair, embora todos estivessem
armados.
Calei-me e esperei. Mais cedo ou mais tarde, os Humanos começariam
a falar comigo. Eles estavam jogando, tentando me deixar desconfortável e
me colocar em uma desvantagem maior do que a que eu estava. Um
joguinho humano e hierárquico. Talvez não deixassem meu vigia voltar.
Bem, eu sentia uma fome incômoda, mas não desesperadora. Não conhecia
o jogo deles o suficiente para jogá-lo. Em algum momento, é provável que
sentissem prazer em me dizer o que pretendiam fazer comigo. Eu não tinha
pressa em ouvir o que era. Não esperava gostar do que fosse.
Quase dormi. Meu vigia voltou com um prato de feijão cozido e alguns
grãos e frutas que não reconheci. Uma boa refeição. Agradeci a ele e o
dispensei, porque tinha medo de que falasse por mim e se metesse em
encrenca.
Algum tempo depois, Francisco entrou. Estava acompanhado de três
anciãos. Pela aparência deles, deviam ser os machos mais velhos da aldeia.
Tinham cabelos grisalhos e seus rostos traziam rugas profundas. Um deles
mancava pesadamente. Os outros dois eram magros e encurvados. O mais
provável é que já eram idosos antes da guerra.
Esses quatro se sentaram de frente para mim, e Francisco falou em voz
baixa.
— Você está bem?
Eu olhei para ele, tentando adivinhar qual era sua situação. Por que
veio? Era tarde demais para desempenhar o papel que prometera. Estava se
esforçando muito para se controlar, mas tentando parecer relaxado. Decidi
não o reconhecer, por enquanto.
— Meus parceiros ainda estão presos — eu disse.
— Vamos deixar que os veja em breve. Primeiro, queremos que saiba o
que decidimos.
Eu esperei.
— Você disse que seu povo virá para cá.
— Sim.
— Você vai esperar por eles aqui. — O corpo dele se inclinou em minha
direção, cheio de tensão reprimida. Era importante que eu aceitasse o que
ele estava dizendo.
Calei-me, desviando o olhar do rosto de Francisco para poder observá-
lo sem fazer com que se sentisse vigiado. Não havia triunfo em sua
expressão, nenhuma dissimulação, nenhum sinal de que estava fazendo algo
além de me dizer o que seu povo havia decidido – e, talvez, esperando que
eu não o denunciasse.
— Os vigias capturaram a pessoa que acompanhava você — falou da
mesma maneira discreta. — Será trazida aqui em breve.
— Aaor? — perguntei. — Feriram Aaor? Alguém mais?
— Nada sério. Levou um tiro na perna, mas parece ter se curado. Uma
das pessoas que você adulterou teve ferimentos leves.
— Quem? Qual?
— Santos Ibarra Ruiz.
Óbvio. Balancei a cabeça. Alguém no grupo de anciãos gemeu.
— Ele está bem? — perguntei.
— Nossos vigias o ouviram discutindo com alguém do grupo da pessoa
que acompanhava você — disse Francisco. — Quando investigaram e
fizeram prisioneiros, Santos mordeu um deles. Apanhou. Está bem, exceto
por alguns machucados e uma dor de cabeça.
Santos havia entregado Aaor. Quem senão ele faria isso? Quantas vidas
havia ameaçado ou destruído?
— O que vai acontecer com os Humanos que nós… adulteramos? —
perguntei.
— Ainda não decidimos — disse Francisco. — Provavelmente nada.
— Eles deveriam ser enforcados — alguém resmungou. — Deveriam
estar de vigia…
— Foram pegos de surpresa — falou Francisco. — Se eu não tivesse
decidido descer e dormir na minha cama, eu mesmo poderia ter sido levado.
Então era por isso que ainda estava livre. Convencera seu povo de que
havíamos chegado depois que partiu. Essa história podia protegê-lo e
permitir que ajudasse os outros. Seu corpo expressou desconforto com a
mentira, mas ele a contou bem.
— Vocês também vão manter Aaor aqui? — perguntei.
— Sim. Não sofrerá nenhum ferimento, a menos que tente escapar. Nem
você. Nosso povo sente que ter ambos aqui garantirá nossa segurança
quando seu povo chegar.
Concordei com um movimento de cabeça.
— Foi ideia sua?
O ancião manco falou.
— Não é da sua conta de quem foi a ideia! Você ficará aqui. E se o seu
povo não vier… talvez sejamos capazes de pensar em algo para fazer com
vocês.
Eu me virei para encará-lo.
— Use-me para curar sua perna — falei com calma. — Ela deve doer.
— Você nunca colocará suas mãos venenosas em mim.
Colocaria. Evidente que colocaria. Se eles mantivessem Aaor e a mim
ali, nada os impediria de nos usar para livrá-los de seus muitos problemas
físicos.
— Não foi ideia minha — continuou Francisco. — Minha única ideia
foi que não deveria levar um tiro. Sabe, muitas pessoas aqui gostariam de
atirar em você.
— Isso seria um grave erro.
— Eu sei. — Ele fez uma pausa. — Foi Santos quem sugeriu mantê-lo
aqui.
Não ri alto. O riso teria deixado os anciãos ainda mais desconfiados do
que já estavam. Mas, por dentro, eu gargalhei. Santos estava compensando
o próprio erro. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. Sabia que seu
povo usaria a mim e a Aaor por nossa capacidade de cura, inalaria nossos
cheiros e, por fim, quando nosso povo chegasse, o dele encontraria o meu
sem agir com hostilidade. Dessa maneira, como Francisco havia dito, eu
garantiria a segurança das pessoas da montanha. Quem não lutasse não
correria nenhum risco, nem seria intoxicado com gás quando o ônibus
espacial captasse meu cheiro e o de Aaor.
— Tragam Aaor — eu disse.
— Aaor está vindo. — Francisco fez uma pausa. — Se tentar qualquer
coisa, se amedrontar essas pessoas, elas vão atirar. E não vão parar até não
sobrar mais nada de você.
Assenti.
Havia muita coisa que sobraria de mim, viva, mas com certeza não
como o indivíduo que eu era. E o que sobrasse talvez causasse danos ali,
como uma doença. Era melhor morrermos em uma nave ou em uma de
nossas cidades. Nossa substância seria absorvida com segurança pelo
organismo maior. Se isso não acontecesse, as organelas oankali
encontrariam coisas para fazer por conta própria.
Dois jovens vigias trouxeram Aaor. Olhei para suas pernas procurando
traços de um ferimento de bala, mas não consegui ver nenhum. Os
Humanos deixaram que se curasse completamente.
Aaor se aproximou e se sentou ao meu lado no chão de pedra. Não
tocou em mim.
— Eles querem que fiquemos aqui — disse em espanhol.
— Eu sei.
— Vamos?
— Sim, claro.
Aaor assentiu.
— Foi o que pensei, também. — Esticou a boca em algo menor que um
sorriso. — Você tinha razão sobre levar um tiro. Não quero passar por isso
outra vez.
— Onde estão seus parceiros?
— Na casa deles, não muito longe daqui, sob vigilância.
Virei-me para Francisco outra vez.
— Concordamos em ficar aqui até nosso povo chegar, mas Aaor deve
viver com seus parceiros. E eu com os meus.
— Você ficará preso aqui nesta torre! — disse um dos anciãos
esqueléticos. — Ambos ficarão aqui sob vigilância. E não terão parceiros!
— Vamos morar em casas, como as pessoas devem morar — falei em
voz baixa.
Alguém cuspiu as palavras “Quatro braços!” e outra pessoa resmungou
“Animais!”.
— Vamos viver com as pessoas que são nossos parceiros, e vocês
sabem disso — continuei. — Se não, nos tornaremos… um grande perigo,
para nós e para vocês.
Silêncio.
Meu cheiro e o de Aaor provavelmente não poderiam converter aquelas
pessoas com rapidez sem contato direto, mas poderiam tornar todos mais
propensos a acreditar no que disséssemos. Poderíamos convencê-los a fazer
o que sabiam que deveriam fazer.
— Vocês vão morar com seus parceiros — anunciou Francisco, mais
alto do que os muitos resmungos. — Muitos de nós aceitamos isso. Mas,
onde quer que vivam, ficarão sob vigilância. Precisam ficar.
Olhei para Aaor.
— Tudo bem — falei. — Vigiem-nos. Não há necessidade, mas, se isso
os conforta, vamos suportar.
— Vigias para impedir que as pessoas aceitem seu veneno! —
murmurou o ancião manco.
— Dê-me meus parceiros agora — sussurrei. As pessoas se inclinaram
para ouvir. — Preciso deles e eles precisam de mim. Nós nos mantemos
saudáveis.
— Deixem que fique com eles — complementou Aaor. — Deixem que
confortem uns aos outros. Já estão separados há dias.
Eles discutiram por um tempo, mas sua hostilidade diminuía pouco a
pouco, como uma ferida em cicatrização. No final, o próprio Francisco
libertou Jesusa e Tomás. Eles saíram de suas celas e me levaram entre eles,
enquanto os anciãos e os idosos férteis observaram com emoções
conflitantes: medo, raiva, inveja e fascínio.
13

N ós ficamos.
Curamos as pessoas, apesar da vigilância. Curamos nossos
vigias.
Os jovens vieram até nós primeiro e foram embora sem tumores, perdas
sensoriais, pernas mancas, paralisias… As pessoas trouxeram suas crianças
até nós.
Jesusa, Tomás e eu dividimos uma casa de pedra com Aaor, Javier e
Paz. Uma vez instalados, Jesusa saiu e encontrou todas as pessoas que
lembrava terem crianças com deformidades ou deficiências. Ela as atazanou
até começarem a trazer seus filhos para nós. A casa pequena estava o tempo
todo cheia de crianças em recuperação.
E Santos começou a crescer. Dei-lhe um nariz novo e bonito, e ele
continuou falando demais e arriscando quebrá-lo de novo. Mas as pessoas
pareciam menos inclinadas a bater nele.
A primeira pessoa do grupo dos anciãos que veio a nós era do sexo
feminino, com apenas uma perna. O toco restante da amputação doía e ela
esperava que eu pudesse acabar com a dor. Enviei-a para Aaor, porque eu
tinha mais pessoas para curar do que conseguia. Ao longo de semanas, Aaor
fez com que uma perna e um pé novos crescessem nela.
Depois disso, todos vieram até nós. Até os anciãos mais teimosos
esqueciam o quanto nos odiavam quando tocávamos neles. Não passaram a
nos amar de uma hora para outra, mas pararam de cuspir quando
passávamos, murmurar maldições ou ameaças para nós, apontar suas armas
para nos lembrar de seu poder e medo. Eles nos deixaram em paz. Era o
suficiente.
Seu povo, no entanto, começou a nos amar, acreditar no que lhes
dissemos e a conversar conosco sobre parceiros Oankali e constructos.
14

Q uando o ônibus espacial chegou, aterrissou no desfiladeiro. Lá,


poderia beber do rio e comer algo diferente das plantações do povo
das montanhas. Ninguém foi intoxicado com gás. Não houve pânico por
parte dos Humanos. O fato de permitirem que Aaor, eu e nossos parceiros
descêssemos para encontrar os recém-chegados indicava a confiança deles.
No último instante, Francisco decidiu vir conosco, mas apenas porque,
como ele havia admitido, seus muitos anos não lhe ensinaram a ter
paciência.
Sete famílias chegaram no ônibus. A maioria era de Chkahichdahk, pois
era lá que os ônibus moravam quando não estavam em uso. No entanto, eles
tinham parado em Lo para buscar meus progenitores. A primeira pessoa que
vi na pequena multidão foi Tino, e cheguei mais perto do que deveria de
agarrá-lo e abraçá-lo. Uma reação humana demais. Como alternativa,
abracei Nikanj, embora Nikanj não quisesse exatamente um abraço. Tolerou
o gesto e o usou como uma oportunidade de afundar seus tentáculos
sensoriais em mim e me examinar por completo. Quando terminou, sem
dizer uma palavra, estendeu a mão para Aaor, a quem fez o mesmo.
Segurou Aaor por mais tempo, depois se concentrou em Javier e Paz. Eles
estavam observando com óbvia curiosidade, mas sem alarde. Já haviam
passado pelo estágio de evitar todos ao extremo com exceção de Aaor.
Agora, como Jesusa e Tomás, eram apenas cuidadosos.
Nem Javier nem Paz tinham visto um Oankali antes. Estavam
fascinados, mas não tinham medo.
Nikanj achatou seus tentáculos sensoriais até aquela suavidade
resplandecente que podia alcançar quando estava imensamente feliz.
— Lelka — falou —, se quiser, nos apresente a seus parceiros e
podemos começar a perdoar você por ficar aqui e não nos deixar saber que
estava bem.
— Não estou certa de que vou perdoar — falou Lilith. Mas ela estava
sorrindo e, por um tempo, todo o resto teve de esperar até que Javier e Paz
fossem recebidos na família e o resto de nós, acolhidos e perdoados de
novo. Vi Jesusa estender a mão para minha mãe pela primeira vez desde seu
rompimento. As duas se abraçaram e senti os meus tentáculos sensoriais se
alisarem de contentamento.
— Os Humanos da montanha decidiram nos deter — Aaor estava
explicando para o resto da família. — Como eles achavam que sua única
alternativa era nos matar, estávamos dispostos a ficar.
— Este é um deles? — perguntou Ahajas, olhando para Francisco.
Eu o apresentei e ele também a cumprimentou com curiosidade, mas
sem medo.
— Você os mataria? — ela perguntou, divertindo-se de forma estranha.
Francisco sorriu, mostrando dentes muito brancos.
— Claro que não. Jodahs me capturou muito antes de capturar a maioria
do meu povo.
Ahajas focou em mim.
— Capturou?
— Ninguém o capturou — falei. — Ele quer ir para a colônia de Marte.
Ahajas alisou muito os tentáculos.
— Você quer?
— Eu queria. — Francisco balançou a cabeça. — Talvez ainda queira.
Olhei para ele, surpreso. Tinha sido um dos mais decididos. Agora que
o ônibus estava ali, estava mais incerto.
— Devemos encontrar parceiros para você? — perguntei.
Ele olhou para mim, depois fez algo muito Oankali: virou-se e foi
embora. Andou depressa e teria voltado para a trilha íngreme e até a aldeia
se Ahajas não tivesse falado.
— Ele tem uma companheira, Lelka? — ela me perguntou.
Assenti.
— Inez. Ela é uma idosa fértil. — Ela se juntara a Francisco depois de
dar à luz nove crianças. Agora, tinha passado da idade de procriar. Ele a
tinha trazido para mim uma vez e pedido que eu verificasse sua saúde. Ela
se revelou uma das pessoas idosas e férteis mais saudáveis que eu já havia
tocado, mas entendi que o verdadeiro objetivo de Francisco era
compartilhá-la comigo, e a mim com ela. No entanto, ele realmente queria
emigrar. Até agora.
— Jodahs — disse Ahajas —, acho que há parceiros para ele aqui,
agora. Traga-o de volta.
Fui atrás de Francisco e o puxei pelos braços.
— Minha mãe Oankali diz que há pessoas aqui, agora, que podem
acasalar com você.
Ele ficou parado por um momento, depois tentou se soltar
abruptamente. Eu o segurei porque sua linguagem corporal me dizia que
preferia ser segurado a ser libertado. Estava com medo, confuso,
envergonhado e bastante atraído pela ideia de ter potenciais parceiros
Oankali.
Depois do primeiro esforço, ele não se envergonharia continuando a se
debater. Soltei-o quando ele quis de fato. Então, peguei a mão direita dele
sem fazer força e o levei de volta a Ahajas, que esperava com um grupo de
estranhos acasalados: três Oankali. Francisco começou a suar.
— Eu daria tudo para ter você em vez disso — ele me disse.
— Você já tem tudo o que posso lhe dar — falei. — Se gostar dessas
novas pessoas, o parceiro ooloi deles pode lhe oferecer muito mais. — Eu
parei. — Acha que Inez vai consentir em ter a fertilidade restaurada? Talvez
ela esteja cansada de ter crianças.
Ele riu, diminuindo o nível de sua tensão por um momento.
— Ela está atrás de mim para ver se eu poderia convencer você a fazer
alterações em nós. Quer ter pelo menos uma criança comigo.
— Uma criança constructo?
— Não sei, embora eu esteja disposto, depois de resistir por um
século…
— Leve essas pessoas para vê-la. Fale com ela e com eles.
Ele me interrompeu, virando-me de frente para si.
— Você fez isso comigo — falou. — Eu teria ido para Marte.
Eu não disse nada.
— Eu nem posso odiar você — sussurrou. — Meu Deus, se houvesse
pessoas assim há cerca de cem anos, eu não teria me tornado um rebelde.
Acho que não haveria rebeldes. — Ele me olhou por mais um momento. —
Maldição — disse devagar, com tristeza. — Você é uma maldição. — Ele
passou por mim e foi até Ahajas e a família Oankali que esperava.
— Eles são parentes de Ooan — disse Lilith e a encarei com espanto.
De alguma forma, ela conseguira se aproximar de mim sem eu perceber. —
Você tinha tantas preocupações — falou. Queria muito tocar em mim e não
fez nenhum esforço para esconder isso. Seu olhar transmitia fome. — Você
e Aaor têm tanta beleza. Realmente estão bem?
— Estamos. Precisamos de parceiros Oankali, mas, fora isso, estamos
bem.
— Aquele homem, Francisco, é um típico habitante daqui?
— Ele é um dos antigos. O primeiro que conheci.
— E ele ama você.
— Como você disse uma vez: feromônios.
— No início, sem dúvida. Agora, ele ama você.
— Sim.
— Como João. Como Marina. Você tem um dom estranho, Lelka.
Mudei de assunto bruscamente.
— Você disse que aquelas pessoas com Francisco eram parentes de
Ooan? Parentes de Nikanj?
— Progenitores de Nikanj.
Eu me virei para observá-los, lembrando seus nomes. Eu os ouvira a
vida toda. Kahguyaht era ooloi, grande para alguém do seu sexo, do
tamanho de Lilith, que era grande para uma fêmea Humana. Kahguyaht não
dera um tamanho tão grande a Nikanj. Seu parceiro, Jdahya, era de tamanho
comum. A disposição de seus tentáculos sensoriais dava-lhe uma aparência
estranhamente humana. Os tentáculos pendiam de sua cabeça como cabelos
e estavam dispostos pelo rosto de uma maneira que poderiam ser
confundidos com olhos, ouvidos e nariz humanos. Foi o primeiro Oankali
que Lilith conheceu. Ela estava olhando para ele agora e sorrindo.
— Francisco vai gostar dele — falou.
Francisco gostaria de todos, caso se permitisse. Ele estava conversando
agora com Tediin, a enorme parceira de Kahguyaht, também maior do que a
média. Ela não parecia nem um pouco Humana. Ele estava rindo de algo
que ela havia dito.
— Há pessoas esperando para conhecer você, Jodahs — falou Lilith.
Ah, sim. Estavam esperando para me conhecer, me examinar e decidir
se eu deveria continuar livre. Já estavam conhecendo meu par fraterno.
Três ooloi estavam investigando Aaor. Outras duas pessoas ooloi
esperavam por mim. Os progenitores de Ooan ficariam ocupados por algum
tempo com Francisco, mas essas outras precisavam ser satisfeitas. Eu fui até
elas, sentindo um grande cansaço.
15

N ão foi ruim ter tantas pessoas me examinando. Não foi


desconfortável. Depois de um tempo, até a família de Ooan deixou
Francisco para nos cutucar e nos investigar. Levaram-nos para dentro do
ônibus. Através dele, Oankali e constructos de todos os sexos poderiam
fazer contato fácil, rápido e não verbal conosco e uns com os outros. O
grupo fez o ônibus voar para fora do desfiladeiro e subir tão alto quanto
necessário para se comunicar com a nave. Essa, por sua vez, transmitiu
nossas mensagens e as de seus habitantes para as cidades das terras baixas e
as mensagens dessas cidades para nós. Dessa forma, as pessoas se juntaram
pela segunda vez para compartilhar informações sobre constructos ooloi
que não deveriam existir e decidir o que fazer conosco.
O ônibus deixou as crianças e a maioria dos Humanos no desfiladeiro
de novo. Ambos poderiam ter vindo e participado através de ooloi, mas
para eles a experiência seria chocante e desorientadora. Tudo era muito
intenso, acontecia muito rápido e, para os Humanos, era muito alienígena.
Ligar-se ao sistema nervoso de um ônibus, um navio ou uma cidade, mesmo
através de uma criatura ooloi, era, segundo Lilith, uma das piores
experiências de sua vida. No entanto, ela e Tino foram conosco e
absorveram o que puderam da complexa troca.
Para mim, as demandas dos habitantes das terras baixas e das pessoas
da nave eram surpreendentemente fáceis de absorver e entender. Eu
conseguia lidar com a intensidade e a complexidade. Só não sabia se
conseguiria lidar com o resultado. A negociação toda era como a nuvem
negra e arredondada, como os cabelos de Lilith. Cada fio parecia seguir o
próprio caminho, dobrando, torcendo, espiralando, se contorcendo. No
entanto, juntos, formavam uma forma simétrica e reconhecível, e todos
estavam presos à mesma cabeça.
A opinião de Oankali e constructos também assumia uma forma
reconhecível a partir do caos aparente. A cabeça a que estavam ligados era,
em geral, a aceitação da crença de que Aaor e eu éramos seres que
representavam perigo em potencial e deveríamos ir para a nave ou
permanecer onde estávamos. As cidades das terras baixas se desculpavam,
mas ainda se sentiam inseguras e com medo de nós. Representávamos a
prematura idade adulta de uma nova espécie. A verdadeira independência,
independência reprodutiva, para essa espécie, e isso assustava Oankali e
constructos. Éramos, como um mensageiro observou, ooloi tão competentes
que assustava. Deveríamos ser vigiados e compreendidos antes que mais de
nós fossem criados e de termos permissão para nos estabelecer em uma
cidade das terras baixas.
Exílio continuado, portanto. As montanhas. Não iríamos para
Chkahichdahk. As pessoas sabiam disso. Nós as informamos outra vez,
Aaor e eu, juntos.
— Haverá mais duas pessoas como vocês — alguém anunciou de longe.
Separei o sinal em minha memória e percebi que ele tinha vindo dos
extremos leste e sul, do outro lado do continente. Lá, uma matriz ooloi em
uma aldeia de Jah que falava mandarim estava relatando seu erro
vergonhoso, suas crianças que deram errado. Ambas estavam em
metamorfose agora. Ambas seriam ooloi.
— Traga-as aqui assim que puderem viajar — sinalizei. — Precisarão
de parceiros rapidamente. Seria melhor se já tivessem escolhido uns.
— Esta é a primeira metamorfose — anunciou o mensageiro.
— E eles são constructos! Traga-as aqui ou morrerão. Coloque-as em
um ônibus o mais rápido possível. Por enquanto, devem saber que existem
parceiros para elas aqui.
Depois de um tempo, a pessoa que enviou a mensagem concordou.
Isso produziu confusão. Um erro apenas voltava as atenções para a
criatura ooloi responsável. Dois erros desconectados, mas tão próximo no
tempo após um século de perfeição, poderia indicar algo diferente de
incompetência ooloi.
Houve muita comunicação sobre isso, mas nenhuma conclusão. Por fim,
Aaor interrompeu:
— Isso provavelmente acontecerá de novo — afirmou. — Um
subadulto ooloi que não queira ir para a nave deve ser enviado para cá. Os
Humanos que queiram ficar aqui devem ser deixados em paz. Querem
parceiros e acho que existem Oankali e constructos que estão dispostos a vir
para cá para acasalar com eles.
— Acredito que vamos ficar — informou Kahguyaht. — Encontramos
rebeldes que podem acasalar conosco. — Pausa. — Não acredito que sequer
nos considerariam se não tivessem passado os últimos meses morando perto
de Jodahs e Aaor.
— Descendentes de seu ooan — alguém sinalizou.
Kahguyaht transmitiu com muita lentidão:
— Onde está a falha no que eu disse?
Sem resposta. Eu duvidava que alguém de fato acreditasse que
Kahguyaht estivesse expressando um orgulho familiar equivocado.
Simplesmente estava dizendo a verdade.
— Aaor e eu queremos parceiros Oankali — sinalizei. — Queremos
começar a ter crianças. Acho que, depois de fazer isso, e depois que vocês
as examinarem, saberão que não representamos perigo.
— Vocês representam perigo — várias pessoas indicaram. — Não há
maneira segura de começar uma nova espécie.
— Então nos ajudem. Enviem-nos parceiros e jovens constructos ooloi.
Vigiem todos nós, se quiserem, mas não nos atrapalhem.
— Vocês fundaram uma cidade? — perguntou alguém em
Chkahichdahk.
Eu sinalizei negativamente.
— Não sabíamos que ficaríamos aqui… de forma permanente.
— Fundem uma cidade — várias pessoas sinalizaram. — Como podem
pensar em ter crianças sem uma cidade para acolhê-las?
Hesitei, concentrando-me em Kahguyaht, que falou em voz alta dentro
do ônibus espacial.
— Funde uma cidade, Lelka. Em menos de cem anos, meus parceiros e
eu estaremos mortos. Deve fundar a cidade em que você e seus parceiros e
suas crianças deixarão este mundo.
— Se eu fundar uma cidade — transmiti ao povo —, Aaor e eu teremos
permissão de ter parceiros Oankali? Parceiros Oankali e constructos serão
enviados aos Humanos daqui?
Houve um longo período de discussão. Algumas pessoas estavam mais
preocupadas conosco do que outras. Era óbvio que outras não queriam ter
nada a ver conosco até que estivéssemos estáveis por mais alguns anos, sem
causar dano. Estavam em minoria. A maioria decidiu que, já que ficaríamos
onde estávamos, quem quisesse se juntar a nós poderia fazê-lo.
— Fundem uma cidade — disseram-nos. — Preparem um lugar. As
pessoas virão.
Algumas delas transmitiram tanta ansiedade que tive certeza de que
estariam conosco assim que pudessem pegar um ônibus espacial. Os
Humanos que queriam parceiros eram raros e desejáveis o suficiente para
fazer as pessoas enfrentarem qualquer perigo que Aaor e eu pudéssemos
representar. E nós éramos interessantes o bastante por sermos novidade,
seduzindo Oankali que precisassem de parceiros ooloi. Pessoas em busca de
parceiros eram mais vulneráveis à sedução do que seriam em qualquer outro
momento de suas vidas. Elas viriam.
16

A lgum tempo depois, quando as famílias visitantes e os Humanos da


montanha começaram a se reunir e curiosamente examinar uns aos
outros, eu me preparei para fundar a nova cidade.
Analisei a vasta memória genética que Nikanj tinha me dado. Havia
uma única célula dentro desse grande estoque: uma que poderia ser
“despertada” de sua estase dentro de yashi e estimulada a se dividir e
desenvolver como uma espécie de semente. Esta semente poderia se tornar
uma cidade ou um ônibus ou uma grande nave como Chkahichdahk. Na
verdade, começaria como uma cidade e, um dia, deixaria a Terra como uma
grande nave. Nunca seria um ônibus, mas se tornaria progenitora de muitos.
Nos dias seguintes, encontrei a célula, a despertei, a nutri e a encorajei a
se dividir. Depois que ela se dividiu várias vezes, eu parei, separei uma
célula da massa e a coloquei em estase mais uma vez. Este era um trabalho
que apenas ooloi adultos poderiam fazer, e descobri que gostava dele
imensamente.
Levei a massa restante, a semente, ainda dentro do meu corpo para o
lugar que os Humanos e as famílias visitantes concordaram que seria bom
para pessoas e cidades. Vários visitantes e Humanos viajaram comigo de
ônibus espacial, pois o local escolhido ficava rio acima, muito além da
aldeia da montanha. Havia ruínas de pedra espalhadas no novo local, onde o
desfiladeiro se alargava em um grande vale. Muita terra, água, fácil acesso a
muitos minerais necessários. Acesso menos fácil a outras pessoas, de
acordo com o que os sentidos do ônibus nos disseram quando ele pousou e
provou o novo lugar. Mas quer a cidade precisasse ou não desenvolver um
sistema radicular mais longo e complexo do que o da maioria das cidades,
tudo de que precisasse estaria dentro de seu alcance. Incluindo pessoas. Ali
poderia crescer e ter sempre companhia. Precisaria disso tanto quanto nós
durante nossas metamorfoses. No entanto, estávamos fundando-a longe
demais das plantações do povo da montanha para que tentasse alcançá-las e
comê-las antes que fosse grande o suficiente para alimentar o próprio povo.
Enquanto fosse jovem, seria particularmente voraz. E precisaria do espaço
que o vale pudesse lhe suprir para crescer e amadurecer antes de lidar com
as montanhas.
— Este poderia ser um bom lugar para morar — comentou uma das
anciãs quando saiu do ônibus e olhou em volta. Era a mulher cuja perna
Aaor regenerou. Ela havia decidido, como a maioria de seu povo,
permanecer na Terra.
— Há espaço aqui para muitas pessoas — disse Jesusa, olhando para
mim. Ela queria uma criança ainda mais do que eu. Era difícil para ela
esperar parceiros Oankali, mas pelo menos agora sabíamos que havia
parceiros em potencial.
Escolhi um lugar perto do rio e preparei a semente para ir ao chão. Dei a
ela um revestimento espesso e nutritivo e tirei-a do meu corpo através de
minha mão sensorial direita. Plantei-a fundo no solo rico da margem do rio.
Segundos depois de expulsá-la, senti o início dos minúsculos movimentos
de posicionamento de uma vida independente.
1. Jodahs foi criado a infância toda acreditando que seria macho após a
metamorfose, assim como é narrado na página 45: “Será que algum dia
eu quis ser do sexo masculino? Eu tinha simplesmente partido do
princípio de que eu era macho e não teria escolha nessa questão.”.
Porém, no segundo capítulo do livro, é revelado que ele se tornará
ooloi. A quebra de expectativa é tanto de Jodahs quanto de sua família.
Os papéis de gênero na sociedade Oankali são bem definidos? De que
forma eles se assemelham e/ou se diferem em relação à sociedade
Humana?
2. Mesmo depois de um século de permuta, os Oankali seguem fazendo
experimentos e usando seres humanos – ainda que apenas os hostis –
como cobaias vivas. O fato de essas pessoas serem criminosas justifica
o uso de seus corpos para tais experimentos?
3. No capítulo 7 é explicitado como as cobaias humanas são tratadas:
[…] se tivessem cometido assassinatos, seriam mantidos
inconscientes ou drogados para sentir prazer e satisfação. Nunca
teriam permissão para despertar completamente. Seriam usados
como material para estudos, sujeitos de experimentos biológicos ou
reserva de material genético humano.
Mesmo que elas não sofram nem sintam dor, essa prática pode ser
considerada um tipo de punição? De que outras maneiras os Oankali
poderiam lidar com os rebeldes assassinos e hostis, que não os
transformando em cobaias?
4. Lilith se enxerga em Jesusa e Tomás, principalmente em relação à
maneira como foram seduzidos e enganados por Jodahs durante sua
fase subadulta para que acasalassem. Você acha que Jodahs, como
constructo, ouve mais sua herança oankali em relação ao
consentimento da relação com seus parceiros? No lugar de Lilith, você
contaria a Jesusa e a Tomás a verdade por trás do relacionamento com
Jodahs durante sua segunda metamorfose?
5. Como os Oankali lidam com o luto? Na página 195, Ahajas disserta
sobre o conceito de “vida após a morte” que os Oankali têm. De que
modo ele se difere do conceito de pós-morte acreditado por grande
parte da população humana, em especial, a ocidental? É possível julgar
se um ou outro conceito é certo ou errado?
6. Em muitos momentos, Jodahs descreve o relacionamento com seus
parceiros como codependente química e biologicamente. Ele poderia
ser enquadrado como uma relação parasitária? Por quê? Existem
relações biológicas entre os seres vivos parecidas com a que ooloi têm
com seus parceiros?
7. Quando Jodahs atinge a maturidade, após sua segunda metamorfose,
Nikanj lhe entrega toda a informação biológica armazenada em seu
yashi, em uma forma de rito de passagem para sua criança do mesmo
sexo. Que importância os Oankali dão para ritos como esse? De que
maneira eles se diferem e/ou se assemelham dos ritos humanos?
8. Quando Jodahs encontra Tomás e Jesusa, e mais tarde o povo da
montanha, a resistência humana aos Oankali logo é dissolvida pelas
suas habilidades de cura. Há diversos relatos ao longo do livro de
dolorosa convivência com as doenças genéticas não tratadas, além de
obrigações sociais autoinfligidas aos moradores da comunidade e
sofridas por gerações. Nesse sentido, os Oankali demonstram mais
compaixão e empatia com os seus e os outros do que a Humanidade?
Justifique.
SOBRE A AUTORA

Nascida em 1947, é uma das mais aclamadas autoras de ficção científica e


desde 1976 surpreende o mundo com seus romances de ambientações
impactantes, personagens densos e dinâmicas que refletem os nossos
problemas sociais mais intrincados. Apesar de enfrentar muito preconceito
em uma área dominada por homens brancos, foi a autora que abriu caminho
para que outras prosperassem na ficção especulativa e é um dos nomes mais
fortes quando se fala em afrofuturismo.
Ao longo de sua carreira, recebeu prêmios como o Hugo, o Nebula e o
Locus, além da honrosa MacArthur Fellowship, concedida a americanos
que tenham realizações excepcionais em suas áreas. Em 2010, quatro anos
após sua morte, entrou para o Hall da Fama da ficção científica, em Seattle.
Copyright © 1989 Octavia E. Butler
Publicado em comum acordo com © Estate of Octavia E. Butler, e Ernestine Walker-Zadnick, c/o
Writers House LLC.

Título original em inglês: IMAGO

Direção editorial: VICTOR GOMES


Acompanhamento editorial: ALINE GRAÇA
Tradução: HECI REGINA CANDIANI
Preparação: ISADORA PROSPERO
Revisão e elaboração das questões para discussão: CINTIA OLIVEIRA
Design de capa: MECOB
Imagem de capa: © SHUTTERSTOCK
Adaptação da capa original e diagramação: EDUARDO KENJI IHA E BEATRIZ BORGES
Projeto gráfico: PEDRO FRACCHETTA
Adaptação de projeto gráfico: EDUARDO KENJI IHA E BEATRIZ BORGES
Imagens de miolo: © UNSPLASH

ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO. NOMES, PERSONAGENS, LUGARES, ORGANIZAÇÕES E


SITUAÇÕES SÃO PRODUTOS DA IMAGINAÇÃO DO AUTOR OU USADOS COMO FICÇÃO.
QUALQUER SEMELHANÇA COM FATOS REAIS É MERA COINCIDÊNCIA.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. PROIBIDA A REPRODUÇÃO, NO TODO OU EM


PARTES, ATRAVÉS DE QUAISQUER MEIOS. OS DIREITOS MORAIS DO AUTOR FORAM
CONTEMPLADOS.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


B985i Butler, Octavia Estelle
Imago/ Octavia E. Butler; Tradução Heci Regina Candiani. – São Paulo: Editora Morro
Branco, 2021.
ISBN: 978-65-86015-17-1
1. Literatura americana – Romance. 2. Ficção científica. I. Candiani, Heci Regina. II.
Título.
CDD 813
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