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Paulo H.

Yamaguti

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“Os pássaros olharam para a porta da gaiola. Não entendiam,
mas ao mesmo tempo entendiam. Eu podia aperceber-lhes as
pequeninas mentes tentando funcionar. Tinham comida e água
bem ali, o que significava aquele espaço aberto?”
— Charles Bukowski

Para todos aqueles que são hipócritas e para os que acham que
são honestos. Para todos aqueles que de alguma forma estão em
minha vida, já estiveram, ou ainda vão estar.
E, especialmente, para Sabrina.
Paulo H. Yamaguti
Paulo H. Yamaguti
Prólogo

Eu já estive em lugares que as mentes mundanas diriam não


existir. Terras tão vastas quanto os pés conseguem caminhar em uma
vida, e talvez mais. Oceanos tão fundos quanto às mentes que não os
concebem, ricos em vida e cores, sensações e histórias. Cada lugar no
universo tem seu toque único. Cada floresta que se levanta a altura de
montanhas com suas enormes árvores com folhas de todas as formas e
flores de todos os tons. Meus pés foram rachados por desertos secos
cheios de vida e cortados pelos galhos em pântanos úmidos e mortos,
até eu aprender que meus pés não importam, assim como meu corpo. E
cada ano que se passava eu buscava um novo mundo para explorar
durante a longa espera pela natureza e seu ofício vagaroso.
Eu vi espécies beirarem a inteligência e sucumbirem para o am-
biente, e vi o ambiente sucumbir para espécies burras. No final de cada
vida eu podia ver o sopro de uma alma, amorfa e incompleta, se esva-
necer, moldada para seu corpo “físico”, como diziam os antigos. Eu fui
mais longe que qualquer um já imaginou, e vivi mais tempo do que
qualquer vida. Eu estou aqui a tempo suficiente para que o tempo em si
perca seu significado, um instante é uma eternidade assim como um
segundo é um milênio. Os anos passam devagar em cada mundo em
que visitei, mas sempre os contei de acordo com o meu. O ano sempre
foi e sempre será uma volta em torno da estrela mais medíocre do uni-
verso, o sol. Eu cheguei até o final e experimentei a compreensão do
que é incogitável. Estendi meus sentidos por dimensões jamais imagi-
nadas e vivi o que meu povo teorizaria, mas nunca poderia comprovar.
O final de tudo é o começo do nada, o tempo e o espaço são
uma roda que gira infindavelmente até que a entropia seja o único es-
tado e a partir dele se faça o começo, novamente. O fim não é um lugar
e nem um quando, e sim uma ideia, que perdura até que seja esquecida,
e se torna um fato irrefutável.
Tudo finda. Mas quando? Onde? Simplesmente na ideia de fin-
dar. Eu digo isso por falta de flexibilidade da linguagem criada pelo
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
meu povo, pois o fim em si existe, mas não pode ser transmitidos atra-
vés de palavras ou mesmo de imagens, muito menos sons. Eu estive no
fim por algumas vezes até entendê-lo, e estive no começo.
Desde o dia em que minha mãe decidiu que minha vida, e as dos
meus irmãos, valiam mais do que aquele conceito que regrava as ou-
tras vidas, eu fui condenado. Fui condenado a ser o alfa e o ômega, o
criador, o destruidor. Eu me tornei aquele que foi meu molde, segundo
as antigas escrituras que a muito se perderam. E tudo por causa de
uma ideia, ou talvez, por causa dele ter realmente existido. Eu não sei
dizer, tudo é possível uma vez que se entenda como as coisas funcio-
nam. Todos somos feitos da mesma carne e mesmo barro. Somos, em
suma, a mesma porcaria. Se quebrados em pequenas partes, somos
todos iguais, um amontoado de nadas com algumas partículas entre
eles. Somos ligados por energias que nunca foram compreendidas to-
talmente e em seu âmago são simplesmente energia.
Por ironia do destino, uma de minhas mais odiosas criações
criou a teorização, em algum instante no tempo futuro ou passado, as-
sim como meu povo havia o feito. Dela surgiram às ciências, e em suas
profundezas, algum masoquista teorizou que a matéria e a energia são
pares, e não ímpares. Tudo que existe é simplesmente a mesma coisa.
Você, eu, pedras, luz e, claro, as ideias. E agora eu me pergunto, o que
somos nós se somos apenas pedras, luz? O que nos difere de animais?
Eu não sei dizer. Mas sei o que nos faz acreditar que somos diferentes.
Um conceito que minhas criações chamaram, ou chamarão, de alma.
Algo que até o menor dos insetos possui, junto das pedras e líquidos
carregando ínfimas parcelas, algo que minhas criações acreditam se-
rem os únicos a possuírem.
A maldita alma é o que nos torna ímpares. Imagine que seu
mundo fosse reduzido a uma folha de papel, e você fosse um simples
desenho nessa folha, um homem de palito, como diriam as crianças.
Você só vê alturas e larguras, mas nunca profundidade, não me per-
gunte como. Agora se alguém dobra essa folha e enfia um graveto atra-
vés dela, existirão dois buracos. Se sua perspectiva for tão ingênua
para achar que o buraco é um só, seu raciocínio já foi perdido. Mas ao
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que diz respeito ao seu mundo bilateral, cada vez em que o graveto
atravessa um dos buracos, ele irá parecer como um novo graveto. Pois
sua mente não conseguiria enxergar a dobra no papel. E isso é o que
chamamos de alma, o graveto enfiado em dois buracos e visto como
dois gravetos. A alma é seu corpo, não o “físico”, mas o todo. A parte
que se vê e a parte que se sente. E por um infeliz acaso a expressão se
perdeu através do instantâneo e infindável tempo em que minhas cria-
ções viveram. O que se chama alma é a parte que se sente, se é que
podemos nos referir a ela dessa maneira. E o que se sente é o que meu
povo acreditava ser nosso lado divino. Uma equívoca tão antiga quanto
o tempo.
O divino é o que minha esquecida mãe tentou sacrificar. Ela
matou a ideia, ou o ser, que era chamado Deus. E pelo que eu entendo
sobre tudo, ele poderia existir, assim como eu existo. Sabe-se lá quan-
tas vezes uma existência como a minha pode ter se repetido? Quem
sabe ele não deu o poder de findá-lo a mulher que me pariu? Eu penso
que se a eternidade que existia antes da minha for ambiguamente e
extraordinariamente maior, o desejo pelo fim se torna real. Eu não o
culpo, se ele existiu, assim como eu existo. Ele foi o responsável pela
minha maldição, se ele de fato existiu. Hoje eu sei que ao matar uma
ideia, você leva as almas que estavam atravessando-a, assim como um
graveto em uma folha de papel.
Meu povo, em sua maior parte, sucumbiu a sua crença, e o res-
to, ao que eu os ensinei sobre tudo ser a mesma porcaria. E no final eu
me deparo novamente com esse mundo, alguns ciclos depois. O fim já
havia chego algumas vezes desde que meus irmãos se foram, mas o fim
é sempre um novo começo, e novos começos pedem novas regras. E me
enganando dessa maneira, eu quebro minha regra fundamental. Eu vou
interferir uma última vez, só por um instante. Das essências dos meus
irmãos, ou almas, ou seja lá o que forem, eu crio meus filhos. Descre-
vendo “fisicamente”, simplesmente pego os “frascos”, que guardei na
“dobra da folha de papel”, e “moldo” seus corpos “físicos”. E tão
rápido quanto isso possa ser, eles existem, por um instante, por uma
eternidade. Eu aprendi com meus erros, não vou ensiná-los sobre como
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
tudo é feito da mesma porcaria. Simplesmente os farei como lembro de
como eu era nos tempos em que eu não entendia o que é o tempo. Darei
um presente a cada um e a imortalidade a todos, para que possam me
perceber. Como tudo é feito da mesma porcaria, minhas intenções não
importam, eu simplesmente posso e faço.
E estou cansado do monólogo paradoxal e solitário.
— Bem vindos. — Eu digo uma última vez, pela primeira vez.
Não existem vantagens em se saber de tudo que aconteceu ou
que vai acontecer então eu simplesmente esqueço, pois posso me dar ao
luxo, e observo. Como se essa fosse a primeira vez, como se fosse a
última, não sei quantas vezes já vi essa história. Talvez isso nunca te-
nha ocorrido antes, mas eu não saberia dizer, pois eu não quero saber.
E por mais um instante eu me entretenho com as almas condenadas que
vivem nesse mundo.

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Capítulo 1 — Tabaco e Pólvora

Sempre soube que cigarros estragam o fôlego de um jovem,


mancham seus dentes e abrem covas sob os olhos, por isso os vejo co-
mo algo a ser usado em ocasiões comemorativas, ou quando se precisa
apaziguar a alma. De quanto menos, melhor. Hoje faz exatos três anos
que moro nessa mansão e que me deparei com meus pais pendurados
pelos pescoços com suas almas apaziguadas, em minha antiga moradia.
Não vejo motivos para não acender um.

Abro o baú ao pé da cama e enfio meu braço por entre as tran-


queiras adquiridas e, desnecessariamente, guardadas. Em sua maioria,
aparatos que não valem a pena serem descritos. Em um dos cantos,
agarro uma pequena caixa com alguns frascos, um pouco de tabaco e
papel de ceda. Enrolo o cigarro e o lacro com um pouco do líquido
branco dos frascos, feito para propósitos mais sedativos e recreacionais.
Preciso me acalmar e dormir. Deposito, gentilmente, minha válvula de
escape entre os lábios, de forma que o alivio começa antes mesmo da
fumaça intoxicar meus pulmões. Aproximo o rosto da lamparina que
fraqueja em seus últimos minutos de vida, acendendo meu alivio rápido
enquanto sinto o cheiro da fuligem.
Caminho alguns passos até a pequena sacada, destranco e abro a
porta. A noite está quente como se algo queimasse no ar, constantemen-
te. Uma das últimas noites de verão. Deixo uma abertura para que o ar
suportável de fora adentre meu quarto e não me faça suar no sono.
Penso em como o dia havia sido uma terrível mistura de fingi-
mentos, conforto e aprendizados. Muito diferente do que eu costumava
ter antes de ser acolhida nessa mansão. A moradia do Vendedor de Es-
perança, como é chamado meu padrasto, é tudo menos um lar. Gosto de
pensar sobre esse lugar como um monumento à divisão de classes, uma
droga de lembrete de como os desagraçados e bonevitos são a escória,
se comparados aos nobres. O que me traz a mente todas as vezes que vi
os homens de olhos anis escolhendo mulheres para suas camas em dis-
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
tritos menores, sem possibilidade de recusa que não acarrete numa en-
trada forçada em detrimento de uma não desejada, por vezes, isso trazia
a saída fácil, a morte, após uma penitente noite. Não que isso seja tão
desumano quanto a caça humana de desagraçados, como se fossem con-
siderados seres análogos a lebres ou javalis, prontos para receberem
uma boa flechada e acabarem servindo de entretenimento para os sádi-
cos nobres. Mas a primeira situação sempre me causou mais repúdio.
De qualquer maneira, os anilianos da nobreza são como deuses entre os
mortais, são tratados como se fossem Weh ou um de seus irmãos, e os
tolos restantes continuam a respeitar o fato, como seres não pensantes.
Por acaso, eu acabei sendo posta em algum lugar entre a escória e a nata
da sociedade, e sou tratada como tal, de maneira ímpar.

Quando o império tykeram caiu, os olhos anis não passavam de


boas almas, libertando povos de sua escravidão. Receberam o comando
do que hoje é o reino de Raffilaproa e o poder fez seu trabalho, infec-
tando lentamente as mentes, ao longo das gerações. Separando o joio do
trigo, como os mesmos gostam de dizer. — Os nobres estão doentes na
alma. — Dizia meu pai. O bel-prazer dos que me acolheram é a lei aci-
ma da lei. E em sua grande maioria, os anilianos nobres são megaloma-
níacos desenfreados, fazendo com que o número restrito de pessoas
nesse grupo seja uma benção ao restante da população.
Tenho certa sorte, pois, Larry, meu padrasto, é uma das raras
exceções. Desde que me acolheu, ele se mostra um ser humano decente,
na medida em que a decência pode ser medida nesse reino. Após me
salvar dos assassinos dos meus pais, ele me deu de comer, um pouco de
sua gorzalka, para a embriaguez adormecer a tristeza, e uma cama limpa
e confortável. Me lembro que ele se sentou ao meu lado, esperando que
eu dormisse, me dizendo palavras bonitas, do tipo que se quer ouvir
quando não se quer ouvir nenhuma.
Por outro lado, Marie, a Duquesa Richeist, como é chamada, en-
carna o estereótipo aniliano nobre magistralmente. Com sua voz irritan-
te e suas atitudes demasiada burras para a cor de seus olhos, ela conse-
gue transformar o clima quase aceitável que paira dentro da mansão em
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algo que, em outros termos, me cheira a merda. Seria, realmente, uma
pena se as piadas que as serventes contam escondidas, sobre a morte da
Duquesa, não se tornassem realidade algum dia. Já desejei mata-la mais
vezes do que posso me lembrar, Larry também, e qualquer um dos ou-
tros tykerans que trabalham, indignamente, aqui, com toda a certeza, já
cogitou a vontade como uma opção. Mas sua propensão maléfica só é
equiparada por sua falta de empatia. Um lençol mal arrumado, um prato
quebrado, ou até mesmo uma formiga andando no lugar errado, são
motivos suficientes para que ela pegasse um dos arcabuzes emprestados
de algum dos guardas e pintasse uma das paredes de vermelho, com o
sangue do tykeram mais próximo. De certa forma, todos a respeitam,
por fora. Sinto que, caso eu mesma cometa algum deslize muito grave,
ela ignorará as ordens de seu marido sobre minha integridade física e
dará cabo de minha vida. Não que eu me importe em estar viva, mas
não quero morrer pelas mãos dela, nem fodendo.
E quando penso sobre os nobres e seus vários exemplares a meu
vislumbre e análise, não posso deixar de dedicar alguns de meus pen-
samentos ao Conde de Lushburg. Nunca o vi diretamente, que não fosse
uma espiada por entre o batente e a porta, ou um breve relance. Larry
me mantém longe dos olhos dos outros nobres, ou, pelo menos, o mais
longe possível. Ele é velho e alto, anda com uma bengala e se veste
sempre com roupas claras, mas isso é tudo que sei sobre sua aparência.
O que me intriga sobre ele e meu padrasto são os negócios. Eles possu-
em contatos em todas as partes do reino, de todo o tipo. Já ouvi escon-
dida sobre assassinatos e sobre o mercado de brisa mar. Também ouvi
sobre algumas outras coisas que me fazem duvidar da sanidade mental
dos dois. Tudo isso me faz lembrar sobre o maldito brilho de sangue
que reluz na prataria da mansão.

Marie está dormindo, com seu marido, ao lado, tentando mata-la


aos roncos. Ambos com sua dose noturna de brisa mar para sonharem
acordados e, por fim, caírem no sono profundo que a dosagem certa
traz. Desse modo não precisam se sentir mal por verem um ao outro
antes de apagarem. É claro que os dois, com seus amantes e escapadas,
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
teoricamente, escondidas, não se importam com seu matrimônio. Mas
os benefícios que um casamento bem arranjado traz valem mais do que
a felicidade conjugal. Quem, em sã consciência, trocaria dinheiro por
amor hoje em dia, não é mesmo?
De qualquer maneira, o pensamento sobre o casal infiel e infeliz
me faz desistir de terminar o cigarro. Já devem passar das duas ou três
da manhã, e minha querida madrasta irá me acordar cedo, como sempre
faz. Dou uma última e profunda tragada e sinto aquelas gotas de brisa
mar, que selaram a seda, palpitando em minha garganta. Seguro a fu-
maça miraculosa em minhas entranhas por alguns instantes para ampli-
ficar o efeito e, logo após, faço anéis dançantes com alguns sopros. Jo-
go o restante daquele tabaco importado de Kalafia da sacada do segun-
do andar, e vejo as ratazanas correndo, curiosas, na esperança de que
aquele bocado de alivio em brasa fosse comestível. Me viro, apoio os
cotovelos na bancada de mármore branco e olho para o céu, de maneira
que minha mente tenta dar um último empurrão para me derrubar.
— Vou fumar aquele cigarro. — Ouço um sussurro masculino,
como se viesse do interior do meu crânio.
Dou de ombros, é tarde, tenho alucinógenos nos pulmões e meu
sono tenta dar o empurrão que minha mente não teve coragem para
completar. De qualquer maneira, o que caracteriza a loucura já faz parte
de mim a três anos, na forma de uma memória mórbida e vívida. Os pés
deles ainda tinham certo movimento, um balanço leve, quase impercep-
tível, que teimava em parar. Seus olhos estavam avermelhados e san-
gravam, estavam vazios e desesperados. O cheiro de urina e fezes infes-
tava minhas narinas de tal modo que nunca mais conseguirei cumprir
minhas necessidades básicas sem que a memória olfativa não me faça
entristecer. Eu não me lembro dos assassinos, meus olhos estavam en-
charcados com o pânico salgado que escorria pelas maçãs do meu rosto,
me impedindo de distinguir detalhes.
— Vou matar a garota. — Ouço a mesma voz masculina, dentro
da minha cabeça, me salvando de minhas trágicas lembranças. E junto
do timbre familiar, sinto a sensação do dedo no gatilho, o cheiro de pól-
vora queimada, a respiração presa e a ansiedade pela morte.
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Sei que a voz é de um dos guardas, mas não há tempo para me
lembrar de qual. Pulo para dentro do quarto pela porta semiaberta. Não
costumo deixar o cheiro do cigarro entrar no quarto e impregnar as cor-
tinas, mas, por sorte, hoje é uma exceção. Um tiro, vindo da escuridão
dos jardins, e um buraco recém aberto no teto de gesso do meu quarto.
Quincci deve saber quem foi o responsável pelo disparo, se ele estiver
acordado, é claro. Mas, ainda assim, o cego nunca viria cuidar da minha
segurança em detrimento da de Larry. Alias, levando o pensamento um
pouco mais a fundo, ele nunca moveria um dedo se quer em protesto ao
que houve.
Devo dizer que essa é uma boa noite. Ser quase morta não deve-
ria me causar tal impressão, mas fato é que meu dom, finalmente, des-
pertou. Meu pai ficaria orgulhoso, se estivesse vivo, mas ele não está.
Suspiro em desânimo pela memória ter, novamente, me arrebatado.
Logo penso em tentar voltar até a sacada, tentar enxergar quem era, mas
o tempo de recarga de um arcabuz não é tão demorado a ponto de me
manter segura em minha busca falha por entre a escuridão da noite.
Simplesmente, me levanto e fecho a porta da sacada com cuidado, então
passo a tranca na porta do meu quarto e resolvo que é hora de dormir.
Sempre pensei que o despertar de um dom tykeram fosse algo
mais significativo e teatral, mas a realidade nunca é tão emocionante
quanto a expectativa. A vida, simplesmente, acontece, sem mais nem
menos, como um jogo de dados viciados para perderem. Ao menos me
sinto grata pelos olhos castanhos que me amaldiçoam desde o nasci-
mento.
Resolvo abrir a janela, pois as noites ainda estão, insuportavel-
mente, abafadas. Me surpreendo com meu descaso ao ficar parada na
frente da abertura por alguns segundos. A morte não me causa medo, de
onde eu vim, ela é comum, banal. Já passei por coisas piores e tive sono
ao fim do dia, e o mesmo continua tentando me derrubar. Estalo o pes-
coço enquanto ando até a cama e solto as tranças do meu cabelo, feitas
pela minha única alma quase amiga na mansão, Lyade.
Ela é uma tykeram interessante, não me olha com a inveja pul-
sante que as outras serventes possuem com relação a mim. Nunca en-
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
tendi o motivo e nunca irei procurar entender, as pessoas são imprevisí-
veis, e é nesse ponto onde a graça de conhece-las se encontra. Minha
servente pessoal sempre deixa meus lençóis arrumados, com os montes
de almofadas meramente ilustrativas amontoadas sobre a cama. Eu
odeio a falta de praticidade em se arrumar a cama todas as manhãs, mas
pelo meu apreço por Lyade, nunca pedi para que ela parasse de o fazer.
A Duquesa já matou outras por menos, o que me leva a crer que uma
tentativa de assassinato dentro dessa casa não é algo totalmente inco-
mum. Apenas o fato de que a tentativa foi direcionada a mim.
Como as únicas pessoas a possuírem arcabuzes no condado são
os nobres e seus guardas, imagino que alguém de dentro tentou me ma-
tar, provavelmente um dos homens que vestem uniformes azuis sob as
armaduras pesadas. Lyade conversa muito com o chefe da guarda da
mansão, o que me traz a ideia de que eu deveria perguntar a ela sobre o
buraco no teto do meu quarto pela manhã. É claro, se o sono me permi-
tir lembrar da ideia quando eu acordar.
Encosto a cabeça no travesseiro macio e as dúvidas são suficien-
tes para me manter consciente por mais alguns breves minutos. Minha
desconfiança sobre todos me faz duvidar dos sorrisos de Lyade, me
pergunto se é seguro compartilhar o ocorrido com ela. Eu odiaria des-
cobrir que ela faz parte do complô paranoico para me matar, e, ainda
que ela tente a proeza, tenho um truque ou outro sobre como tirar vidas
em minha manga, uma aprendizagem necessária para uma garota de
Dirty Town.
Logo, o sono vence os pensamentos depressivos e a fração de
brisa mar em meu sistema dá conta de impedir que eles voltem. Mas,
minha maior dúvida dá as caras em um último devaneio sóbrio. — Por
que ele me acolheu nesse lar como uma filha? — Eu sou uma tykeram
órfã, por Weh! E não uma garota delicada e fútil de olhos anis.
De qualquer maneira, dane-se.

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Capítulo 2 — A Sola dos Sapatos

Meu sono é leve, mas dessa vez a Duquesa teve de invadir meu
quarto com sua chave mestra. Não é todo dia que comemoro o aniversá-
rio de morte dos meus pais, me deixei passar do horário na noite anteri-
or. Os gritos nervosos dela são quase tão ruins quanto a luz entrando
pela janela. Aquele projeto de mulher berrando sobre o umbral já estaria
morta se isso não fosse uma passagem para a minha própria morte.
— Molly! Molly! Acorde logo, sua… Acorde, filha.
Seus cabelos estão alisados pelo ritual com pedras quentes que
ela pratica todas as manhãs. Não que aquilo fosse suficiente para que
ela ficasse bonita, mas é o suficiente para que eu não vire o rosto en-
quanto olho em sua direção. A maquiagem até certo ponto ajudava, mas
aparentemente ela desconhecia onde tal ponto ficava. Ela é uma mulher
ou um boneco mal feito de farinha? Não sei. O que sei é que é magra
demais para as roupas que usa, e sua idade avançada demais para que
ela se sinta a vontade de ser o que é. Basicamente, um esqueleto coberto
de pó e tinta com pelos lambidos no topo, uma voz que traz pensamen-
tos homicidas envolvendo uma personalidade tão amável quanto a de
um carrasco de mal humor. Eis a Duquesa Richeist.
— Já vou me levantar, mãe. — Eu odeio o termo e ela também.
O Vendedor de Esperança acha apropriado, e o dinheiro dele dita o que
é e o que não é dentro de sua casa.
— Ande logo, sua… Filha. — Eu já deixei de me incomodar
com as provocações e ela deixou de achar graça, mas o costume se
mantém.
— Pode sair do quarto, eu já vou me trocar e me maquiar. Meu
cabelo não precisa ser alisado, não vai demorar. — Bem onde dói, Du-
quesa de merda.
Ela levanta seu nariz mais alto do que seu ego e se vira sem di-
zer nada. Seus quilos de saia balançavam de um lado para o outro. Sua
falta de curvas deve ser uma dor para meu padrasto, que foi obrigado a
se casar quando ainda eram jovens. Talvez seja esse o motivo da falta
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
de filhos, falta de motivação. Ao sair ela fecha a porta com uma força
desnecessária. Dou uma inaudível risada e me levanto da cama.
— Mais um dia no paraíso! — Digo, como se alguém fosse rir
ao meu lado.
Tiro toda a roupa e abro a porta da sacada. Não há ninguém nos
jardins para me espiar. E mesmo que houvesse, o idiota que olhasse a
filha dos Richeist se trocar teria os olhos arrancados da cara. Em todo o
caso, não dou chances ao azar alheio, só queria uma brisa mais forte
para acalmar o calor que as camadas de roupa me fariam sentir no final
do verão. Peça após peça vou me vestindo, se os garotos de Dirty Town
pudessem me ver agora, eu perderia todo o respeito que ganhei que-
brando seus narizes. A temida Molly vestida igual uma nobre aniliana,
isso era uma piada que perdeu a graça ao longo dos últimos três anos. A
maquiagem era sempre pouca. Eu odeio o modo como todas as garotas
se fazem parecer bonecas com seus rostos pintados. Um soco de cada
lado surtiria exatamente o mesmo efeito. E o cabelo era meu único trun-
fo. Comprido e levemente ondulado, sempre, sem a necessidade de cui-
dados. Espero que além dos olhos, o cabelo seja a única coisa que her-
dei de minha finada mãe.

O Vendedor sempre me tratou bem, quase que como um pai.


Naquela primeira noite dormiu ao meu lado, me acalmando com pala-
vras ternas e falsas, ainda que benéficas. Aos poucos ele foi se afastan-
do de mim, mas não tanto. Ele sabe lidar com a adolescência, apesar da
maneira burra que costuma articular as palavras. Tudo naquele homem
é aparentemente perfeito, salvo a sua aparência, que complementa bem
a de sua mulher. Toda massa que ela não tem, ele tem. Mas é claro, ele
é um nobre como todos os outros, e eu vejo por trás de suas máscaras e
pelancas de gordura. Os negócios que ele comanda são sujos, eu tenho
certeza, mas seus disfarces são bons. Enquanto ele continuar me tratan-
do bem, eu não me importo muito em como ele trata qualquer outra
pessoa. Sejamos honestos, todos somos hipócritas.
Nós trocávamos palavras nos cafés da manhã todos os dias, mas
hoje me atrasei, e ele já deve ter ido para sua fábrica. A Duquesa, devi-
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do a seus rituais matinais demorados, comia depois. Para minha total
infelicidade, agora é o depois. Calço meus sapatos e abro a porta, waf-
fles seriam bem vindos no meu estômago. Eu estava pensando com a
fome, o tipo estranho de quando se dorme mal, mas, assim que saí para
o corredor, encontro minha querida servente, o café teria de esperar.
— Lyade! — Eu a puxo pelo braço para dentro do quarto. —
Bom dia, senhorita. — Ela diz enquanto percebe o puxão, e complemen-
ta assim que fecho a porta. — O que a senhorita está fazendo?
— Ninguém está olhando, me chame de Molly, por favor. —
Sempre digo isso, ela sempre ignora.
— Senhorita Molly, qual é o problema? — Ela não olha em
meus olhos, estranho.
— Lyade, eu gosto muito de você.
— Eu também prezo muito pela senhorita. — Isso já está irritan-
do, como sempre.
— Então… — Ela está de costas para a porta e se afasta um pas-
so. Eu chego mais perto e continuo minha fala. — Alguém tentou me
matar com um tiro de arcabuz durante a madrugada, você sabe de algo?
— Por quê eu saberia? — Ela age de forma estranha e gotículas
de suor nasciam em sua testa. — Vou matar a garota. — Seus lábios não
se moveram, mas eu ouvi sua voz ressoar. Senti o cabo da adaga, ouvi o
silvo que a lâmina faz ao cortar o ar e a sensação morna do sangue na
pele. Ela quer me matar e sabe que morrerá logo após. Ela terá de se
contentar com a segunda parte.
Eu ouvi sua intenção, assim como meu pai fazia. Ela puxa uma
faca de sua manga esquerda e desfere um arco com sua mão direita se-
gurando a lâmina. Movo minha cabeça o suficiente para que ela erre e
seguro seu braço com as duas mãos. O impulso do golpe errante seria
suficiente para que ela caísse sozinha, mas com minha força ela não tem
tempo de se apoiar. Enquanto ela temia quebrar o nariz no chão eu já
havia saltado no ar, quando seus lábios beijam o tapete eu sinto seu crâ-
nio quebrar sob meus pés. Eu gosto desses sapatos e também gosto de
Lyade. Pena que vou ter que trocá-los agora que tenho miolos em mi-
nhas solas.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Eu já havia matado homens em minha vivência, mas nunca al-
guém em que eu confiasse. Lyade foi a primeira mulher que tive de tirar
a vida. Quando se trata da morte, de onde venho é algo cotidiano, banal,
já presenciei mortes suficientes para que elas percam seu significado.
Ainda assim, estou fitando essa massa disforme que a pouco era o mais
próximo de uma amiga que eu possuía. Sinto uma culpa nova, algo que
me cutuca nos confins da alma e precisa ser ignorado. Devo ter amole-
cido nesses três anos. O sangue, de cheiro doce e ferroso, se mistura à
massa encefálica amarelada que vagarosamente escorre para fora do
crânio quebrado.
Não sei ao certo se foram segundos ou minutos, mas a porta se
abre, e junto dela um pouco de bile é adicionada a mistura mórbida no
chão do quarto. A Duquesa estava vomitando. — Fraca. — Penso. Tal-
vez ela tenha gritado algo, mas demorei até perceber que ela estava ali
parada, estendendo sua mão por cima do corpo com uma expressão im-
pagável de nojo e repúdio.
— Molly! Filha! Venha logo.
Sem pensar duas vezes e sem mais palavras eu seguro sua mão
tão firmemente quanto uma filha buscando proteção em sua mãe. Dou
um pequeno salto e me ponho no corredor. Marie me puxa em direção a
seu quarto e meu sapato deixa pegadas avermelhadas pelo caminho.
Royal estava de guarda na porta do quarto principal. Ele é um homem
alto e musculoso, o suficiente para por medo em um scarlam muito fra-
co, e isso é muito para um aniliano, ou qualquer outra raça. Ele veste
um uniforme azul por baixo da armadura inteiriça que cobria seu tron-
co. No lado esquerdo da cintura carregava um coltiller, uma arma de
fogo como um arcabuz, mas muito menor e de extremo curto alcance.
Do lado direito repousa seu enorme florete, grande demais para qual-
quer pessoa de porte normal, mas perfeito para ele. Suas medalhas fa-
zem barulho ao rasparem na parte interior do metal de sua armadura,
mais ornamental do que funcional, e seu chapéu pequeno faz uma som-
bra que tem o propósito de esconder a cicatriz no rosto. Seja quem for
que conseguiu deixar tal marca nesse homem merece ser temido. Da
base de sua orelha esquerda passando sob seu olho e atravessando seu
14
Paulo H. Yamaguti
nariz para finalmente dividir sua sobrancelha direita em duas, lá estava
sua característica mais marcante. Seu nariz é visivelmente grande,
mesmo que todas suas outras feições também fossem. Orelhas enormes,
boca enorme, queixo protuberante, tudo se encaixa e compõe o sem-
blante de um soldado real, sempre sério. Há quem diga, o melhor solda-
do da guarda real de Lushburg.
Ele não deveria estar aqui, e nem deveria mostrar tanto interesse,
com seu olhar, no que fiz com os pés. Mas quem sou eu para questioná-
lo? A Duquesa nunca perceberia tais falhas, e ainda seria grata por ele
estar tão perto do incidente. Assim que nós nos aproximamos do quarto,
o chefe de guarda da casa desvia seu olhar de mim e abre a porta. Tan-
tos detalhes entalhados por mãos tão habilidosas, essa porta, dentre os
tesouros dessa casa, é o meu preferido. Possuía tantos entalhos peque-
nos que duvido alguém já ter notado o par de adagas cruzadas que adi-
cionei em um dos cantos. Pena que passamos rápidas demais para que
pudéssemos apreciar a peça.
A Duquesa logo bate a porta e a tranca.

Existem alguns protocolos de segurança em casas de nobres de


grande importância, devido ao fato de existirem tantos tykerans que
podem tentar fazer algo contra seus patrões, e por vezes, fazem. Em sua
maioria, tais protocolos são lembrados apenas pelos chefes de guarda,
mas existia um em especial que possuía um nome bem simples, e que os
nobres secretamente anseiam por ordenar, e desse, nunca se esquecem.
— Roy, execute a limpeza de segurança! — Ela berra.
— É claro, senhora. — Sua voz era algo entre gutural e áspera,
com um leve toque de cansaço. A vida lhe foi dura, sua voz me revela.
Por um momento sinto uma intenção além do simples obedecer.
Meu dom ainda é uma novidade e não entendo totalmente o que ele me
diz. É como se eu estivesse a dezenove anos sem nunca ter ouvido, e de
um segundo para o outro, eu ouvisse. Seria difícil distinguir palavras do
som d’água ou um trovão de uma canção. Com o tempo eu poderia dis-
tinguir de que rio a água corre e que canção está sendo cantada. Mas

15
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
agora, obedecer e seja lá qual é a outra intenção de Royal, me parecem
quase a mesma coisa.
Ficamos sentadas na cama, imóveis, correndo os olhos pelas pa-
redes, teto, taças de vinho e marcas apressadas de passos no carpete.
Esse seria um dos momentos desconfortáveis, preenchidos por silêncio
e falta de assuntos. Mas a cada segundo eu agradecia mentalmente a
Weh por não haver uma tentativa de conversa. Após alguns poucos mi-
nutos de silêncio sinto a intenção de Marie de defecar palavras.
— Molly. — Ela está tremendo e eu quase acertei, meu nome
não se enquadra em fezes. — Seu dom… Ele despertou, não é?
— Sim. Mas como você sabe sobre isso? — Talvez eu entenda o
motivo de ter sido acolhida na mansão Richeist.
— Todos sabem sobre isso.
— Como nunca ninguém me disse nada?
— Não queríamos que você pensasse nada de errado.
— Como por exemplo?
— O importante é que você está a salvo. — Defletindo, como de
praxe.
— Como minha servente sabia disso?
— Talvez ela já soubesse disso quando começou trabalhar aqui.
Talvez ela não gostasse de seu pai traficante.
— Não fale assim dele! — Eu levanto minha mão, mas logo a
abaixo. — Qualquer tykeram de Dirty Town gostava dele.
— Talvez… — Ela pensa sozinha por um instante. — Mas isso
não poderia ser. — Ela diz a si mesma.
— Não poderia ser o que?
A porta do quarto é escancarada por um chute. Só Royal teria
tamanha força. E era Royal quem havia desferido o golpe, eu suponho.
A porta se abre até o máximo e com a força do impulso volta a quase se
fechar. Por alguns segundos apenas o silêncio existiu. Foi tempo sufi-
ciente para a poeira levantada pela violência se abaixa-se. A Duquesa
segura minha mão direita como se eu fosse a proteger enquanto coloca
seu corpo atrás do meu. Eu estou de pé, de frente para a porta, esperan-
do algo acontecer.
16
Paulo H. Yamaguti
— Tem alguém aí? — Marie grita. — Royal? É você?
— Robert Gabard Royale, Duquesa. Esse é o nome do homem
que irá te matar. — A mesma voz gutural e áspera ressoa atrás do belo
pedaço de madeira.
— Royal, qual o significado disso?
A porta se abre, e por ela, Royal entra no quarto. Grande, forte e
manchado com o sangue dos serventes e guardas da casa, exceto o de
seus dois subordinados diretos, Royal nunca os mataria. Ele limpa a
lâmina de sua espada com um lenço branco e a descansa em sua cintura
após uma prazerosa carnificina. Seguido dele, um homem vestido com
um sobretudo marrom e um chapéu caído sobre o rosto, entra. Seus pas-
sos são pesados e ele carrega uma corrente. Eu nunca antes mirei al-
guém tão imponente quanto ele, sua presença me causa calafrios e ta-
quicardia. Talvez a demora entre cada passo fosse levemente desneces-
sária, mas a cena se torna muito mais dramática por esse motivo. Talvez
se não fosse por meu medo, isso seria engraçado. Mas no momento não
é.
— Esse é Gewir, Líder da Contra União e meu verdadeiro chefe.
— Royal diz.
— Obrigado, Roy. E muito prazer, madames. — Sua voz é doce
e suave tanto quanto grave e experiente.
O homem abaixa sua cabeça e estica um braço para nos saudar.
Eu senti sua intenção, ele iria jogar aquela corrente em mim. Senti os
elos fortes e pesados atravessando o ar, senti a lâmina na ponta fincar
em minha perna direita e senti a dor, ao mesmo tempo em que ouvi a
intenção. Ele é rápido. Caio no chão sobre a Duquesa, que balbucia al-
guma coisa desimportante, minha perna dói e não me dou o trabalho de
entender. Algumas lágrimas descem carregando o pó em meu rosto e
borram a maquiagem. Olho para minha perna, o corte foi muito mais
fundo do que eu gostaria. A ponta da lâmina se fincou no fêmur, eu
podia sentir. Visualizar um ferimento traz uma dor lancinante, mais
lágrimas alcançavam meu queixo. Olho para cima e o homem está a
alguns passos de mim. O movimento para arremessar a corrente fez
com que seu chapéu caísse no chão. Seu rosto é bonito e, por alguma
17
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
razão, me transmite a sensação de segurança. Sua boca é grande, seu
nariz também, e seus olhos, em covas profundas cobertos por uma so-
brancelha espessa, são castanhos como a terra. O queixo é coberto por
uma barba bem feita, talvez de uma maneira exageradamente meticulo-
sa, e seu pelo facial contrasta com sua careca lisa. Ele possui uma tatua-
gem no topo da cabeça, duas adagas cruzadas.
— Por Weh, por quê esse símbolo? — Digo e percebo que meu
fôlego me trai.
— Olá, garotinha. Nós vamos dar uma volta. — As intenções de-
le vem junto com suas ações. Ele sabe como lidar comigo. Cuspo nos
sapatos dele e o mesmo parece não se importar. O meu ódio nasce natu-
ralmente, como se eu precisasse odiá-lo, desde sempre.
Sem dificuldade alguma ele enrola minhas mãos com a mesma
corrente que está fincada em minha perna. Logo após prende minhas
pernas e meu tronco. A outra extremidade dos elos também termina em
uma lâmina, que está pendente logo atrás da minha cabeça, por onde eu
assumo que ele vá me puxar. Eu tentei me desvencilhar de suas mãos e
amarras, mas ele é rápido demais. Eu não consigo ler suas intenções
antes que ele aja. Resolvo não dizer mais nada, o sangue perdido faz
minha consciência fraquejar.
A Duquesa Richeist se encontra chorando, ainda em balbucias,
seus soluços disfarçados de palavras dão leves socos de voz. Ela inter-
cala a ação de proteger o rosto com as mãos e a de desviar a cara de
algo. Uma mulher desesperada, eis a Duquesa Richeist.
— Marie Diye Richeist, se levante. — Royal diz.
Ela está com medo, e continua no chão. Dessa vez, seus movi-
mentos se fazem mais velozes e trepidantes, braços vibrantes que não
tem serventia na situação.
— Receba sua sentença da forma que desejar. Eu, Royal, em
nome da Contra União e todos nessa droga de casa, lhe dou a sentença
de morte. — Ele olha para Gewir e da um sorriso. Eu nunca o vi sorrir
antes.
— Nós não estamos mais no império tyke para você falar desse
modo. E você nunca teria tido a oportunidade de falar assim, naquela
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Paulo H. Yamaguti
época. Teria morrido nas cidades do oeste. — Ele da uma risada amigá-
vel — Só mate-a. — Gewir diz.
— Por favor, não. Nós temos dinheiro, temos joias. Pode levar
essa desagraçada. Leve o que quiser, mas não me mate.
— Há homens que gostam de riquezas, outros gostam da luxúria
e outros gostam de poder. A maioria gosta das três coisas em igual in-
tensidade. — Ele agacha seu corpo enorme para chegar perto da Duque-
sa e fala em voz baixa, quase inaudível. — Não ligo para essas futilida-
des. Eu gosto da morte.
Ele segura a Duquesa pelo pescoço, agora sem uma passagem de
ar para continuar suas súplicas. Com uma única mão ele a levanta o
máximo possível e fica em pé. Marie tenta chutar seu peito e seu rosto,
mas ele é forte demais. Com um estalo ela se despede do mundo. Seus
braços e pernas ficam moles e dão um último espasmo. O som de seu
pescoço quebrando foi mais educado do que qualquer palavra que já
havia saído de sua boca. Um male que se despede do mundo.
— Vamos embora agora? — Diz Gewir enquanto recupera seu
chapéu e o coloca de volta, cobrindo a tatuagem.
— Vamos. — Ele solta o corpo morto que faz um baque seco no
chão.
Eu preciso gritar, talvez até agradecer por matar a Duquesa, mas
as palavras não saem. Eu luto para me manter acordada. Estou sendo
arrastada para fora do quarto, posso ver mais uma vez o que restou de
Lyade e todo o sangue dos serventes mortos. Ninguém escapou.
— Você matou todos eles?
— Foi a limpeza de segurança. Matei quase todos, menos aque-
la. — Ele aponta para meu quarto. — Aquilo foi obra dessa aqui.
— Você tinha razão. — Diz em tom sarcástico. — Ela não é uma
nobre. Mas matar todos, isso foi desnecessário. Bom, pelo menos nin-
guém vai abrir a boca sobre você quando você voltar.
— Eu sei o que faço. — Sua voz tenta esconder um leve orgulho.
— Chame Boris e Tyler e vamos embora.
Gewir me coloca em seu ombro com extrema facilidade, para
descer as escadas. Eu perco a consciência por um breve segundo até ele
19
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
me jogar no chão de volta, para continuar me arrastando. Eu estou to-
talmente indefesa. Minha vontade de dizer algo já havia sumido e mi-
nhas últimas forças se esgotam aos poucos. Fecho os olhos vendo o
chão da cozinha passar, e, de repente, lá se vai minha consciência.

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Paulo H. Yamaguti
Capítulo 3 — Ouroboros

O som do cascalho mexendo sob as minhas nádegas conseguiu


me acordar, o atrito teve igual importância. As primeiras camadas de
tecido deviam estar rasgadas a essa altura, mas isso não importa. Quem
se importava com esse tipo de coisa era a Duquesa, e os mortos, estão
mortos. Eu ainda estou sendo puxada, e minha perna já não dói mais.
Tyler e Boris perceberam que eu havia acordado, me olharam, e volta-
ram a andar como se isso tivesse a mesma importância dos meus tecidos
rasgados. O primeiro comendo uma maçã verde era mais magro, carre-
ga sua arma pendurada nas costas e uma espada curta na cintura. Seus
passos são largos pela sua altura e as pernas compridas. De onde eu
estou, aparentavam ainda maiores. Descansando sobre sua cabeça uma
espécie de chapéu de marinheiro jogado, e seu rosto parecia um esque-
leto de olhos anis. Apesar de sua aparência flertar com a morte, é um
rosto muito sincero e pacífico com a pele ardida pelo sol. Boris, por
outro lado, tem um nariz gordo e bochechas rosadas grandes. Seus
olhos são, talvez, mais claros que os olhos da maioria dos anilianos.
Talvez seja filho de um safírio. Ele não carrega uma arma de fogo, ape-
nas um florete convencional e bombas de pólvora prensada que servem
de lembrança de seu antigo posto ao lado de Tyler. Apesar de ter o do-
bro de barriga que seu companheiro, ele tem quase a mesma altura. É o
tipo de cara que ganha uma briga com um abraço e um tombo, não com
socos.

Esse caminho de terra por onde sou arrastada é bem conhecido


por mim e por todos da mansão Richeist. Afinal de contas, ela começa
no final do jardim, no canto mais afastado do terreno, em uma porta de
ferro muito velha, aberta a tempos, no muro. O modo como a ferrugem
havia marcado a porta lembra o sorriso de uma garota sem olhos, e nós
a chamávamos de Marta Morta. Ao longe ainda podia se enxergar a cor
branca da parede, visível apenas pela existência de uma clareira enorme
que deixava o muro totalmente a mostra. A estreita via passa por dentro
21
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
de uma área de florestas com várias pequenas casas e um templo flage-
ísta, e chega ao condado de Harmeburg, se passos suficientes forem
dados. — É um ótimo lugar para se caçar ou acabar morto. — Meu pa-
drasto diz, mas nunca visitei o lugar e nunca quis saber nada além.
Após alguns quilômetros de caminhada em silêncio, nós encon-
tramos uma placa com o desenho de um açoite, o símbolo do flageísmo,
a religião mais seguida em Suntria, e ainda assim, extremamente impo-
pular. Nós saímos da estrada e começamos a descer um pequeno cami-
nho marcado pelas solas dos pés dos flageístas, que trilhavam-no todos
os dias para realizarem suas preces a Weh. Sem demoras, chegamos até
o templo. Um enorme palco de pedra branca, em uma gigantesca clarei-
ra, onde facilmente caberiam duzentas pessoas ajoelhadas, pedras
enormes com intervalos de quatro ou cinco metros entre cada uma cer-
cavam todo o local. Na extremidade mais afastada, uma estátua enorme
de pedra cinza representando um homem nu com o seu sexo a mostra.
Era Eleuthery flagelado por seu pai, o grande mago Weh. Seu corpo é
sempre simbolizado com ferimentos letais, que supostamente termina-
ram com a vida do primogênito imortal do deus mago. Os flageístas
marcam seus corpos com o que eles chamam de estigmas da pureza, ou
algo parecido, que nada mais são do que representações não letais dos
ferimentos de Eleuthery. Os tolos acreditam que abrindo as mesmas
feridas, seriam perdoados pelos pecados fundamentais, a ganância e a
ira, que causaram a traição do primeiro filho e que corrompem os seres
humanos. Ver tantos corpos sangrando ajoelhados enquanto estão em
seu transe por falta de sangue me faz entender o motivo dessa religião
ter caído em decadência. Não precisamos pedir a Weh por um lugar
melhor, livre dos males e dos pecados. Todos temos um lugar na morte,
a vala comum ou o fundo do rio Vulgro.
Alguns poucos fiéis que ainda estão sóbrios o suficiente nos ve-
em chegar e, antes que pudessem começar a utilizar seus instrumentos
de auto flagelação com tanto fervor, se levantam para ir embora. Os que
já sangravam os seguiram. Pude sentir a urgência nas intenções de sair
de perto de Gewir, e também ouvi sussurros sobre a união das quatro
pontas. Baboseiras religiosas é claro. Nenhum deles fazia questão de
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Paulo H. Yamaguti
disfarçar o motivo de irem embora, e se por acaso Gewir se ofendesse,
eles ficariam gratos em apanhar um pouco, dar a outra face e o braço a
torcer, literalmente. Após alguns minutos todos haviam se recolhido
para suas casas nas florestas. Os fiéis aqui são extremamente radicais, e
vivem separados do resto da sociedade. A maioria dos flageístas apenas
tenta ir aos templos aos domingos e finge que segue a risca os dogmas
da religião, praticando o que lhes convém e ignorando cegamente o
resto. Mas como gosto de dizer, os seres humanos, acima de tudo, são
hipócritas.
As únicas almas vivas no templo, agora, somos nós cinco. Gewir
resolve que é hora de me libertar das correntes. Um puxão forte e eu
rodopio como um peão e a faca, novamente, ao sair, abre meu ferimen-
to. Mais lágrimas, mais sangue. O corte irá me matar se eu não cuidar
dele logo.
— Roy, faça um torniquete na perna dela! Você é bom com pes-
soas machucadas, não é? — Gewir fala e da risadas, os dois soldados
rasos abaixam suas cabeças e Royal ensaia um sorriso forçado. O hu-
mor do careca era, certamente, descompassado.
— É claro.
Ele rasga uma de suas mangas e começa à enrolar em minha co-
xa sobre a altura do corte. Eu quero gritar, mas estou sem forças. Tento
conter minhas lágrimas e parecer um pouco mais forte. Eu nasci em
Dirty Town, isso deveria ser sentido como um arranhão. Minhas tenta-
tivas funcionam parcialmente. Quando o aniliano brutamontes terminou
de fazer o curativo, a dor já havia diminuído e eu havia parado de cho-
rar.
— Espero que a perna não precise ser amputada. — Gewir diz
com os dentes a mostra. Me pergunto se isso foi uma piada.
— Eu não sei. — Royal responde.
— Eu conheço alguém que pode manter sua perna no lugar! —
Novamente, Gewir, com seu tom arrogante.
— Eu… — Eu não consigo dizer nada, e nem me levantar.

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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
O Líder da Contra União olha para mim como se acabasse de
lembrar de algo, com uma cara de surpresa. Como se algo houvesse
sussurrado em seu ouvido palavras importantes.
— Garota, me diga o seu nome!
— Molly… — Falo com dificuldade.
— O nome inteiro. — Ele me olha como se a minha vida depen-
desse da resposta, e sua intenção de me matar, caso eu errasse, é clara.
— Molly… Bla… — Respiro fundo e sinto as forças voltando
aos poucos. — Molly… Molly… Greenlay! — Meu nome verdadeiro,
não o que haviam me ensinado a usar. Me sinto feliz e levemente eufó-
rica, a adrenalina faz meus músculos receberem um choque e começo
voltar a plena consciência. Posso perceber no rosto de Gewir que a res-
posta esperada foi dada, ele sorri.
— Se você tivesse dito Richeist, eu teria que te matar.
— Eu sei.
— Sabe de tudo, exatamente igual Gareth. — Meu sorriso au-
menta novamente, o nome do meu pai. A primeira impressão que tive
sobre Gewir desaparece por um breve instante, a raiva dá lugar a curio-
sidade.
— Você conhece meu pai?
— Um velho amigo. — Ele desvia seu olhar e metade de seu
sorriso se vai. — Um cigarro?
— Por favor.
— Ficou educada depois de morar entre os nobres? — E a pri-
meira impressão volta, um desgraçado arrogante que enfiou uma faca
em minha perna. Ele merece morrer.
— Me dá a droga do cigarro. — Gewir da uma risada, inocente,
na medida do possível.
— Aqui está, senhorita. — Ele enfia uma mão em um bolso in-
terno de seu sobretudo e me passa um. Por um momento houve a espera
por um agradecimento que não veio, então outra risada curta, mais rís-
pida e forçada.
— Você roubou isso da mansão. — Nenhuma resposta além da
fumaça em meu rosto, como um rebate pela minha última atitude.
24
Paulo H. Yamaguti
Eu me sento sobre um degrau que dava acesso ao enorme palco
e nós conversamos por alguns minutos. Gewir e Royal me contam tudo
o que aconteceu nesses três anos. A versão real.

Larry Hobery Richeist, o bem visto Vendedor de Esperança,


mandou matar meus pais. Gewir não sabe dizer como isso foi possível
de ser realizado, e eu nunca entendi como isso, de fato, aconteceu. Ga-
reth era um homem habilidoso com as mãos, ninguém conseguiria tocar
em um fio de cabelo dele sem que ele próprio permitisse. Ou seja, ele
permitiu ser morto. As noites em que deixei de dormir tentando achar
uma resposta clara para isso já me bastam, a vida é como é e não nos dá
respostas, apenas fatos. A única cena que consegue me roubar, ainda
mais intensamente, o sono, é a visão dos quatro pés que pendiam inertes
na altura do meu umbigo quando abri aquela porta, a exatos três anos e
um dia atrás. Meu teto foi feito de patíbulo, e as cordas eram curtas de-
mais. Um enforcamento limpo matava quase imediatamente, mas meus
pais sofreram. Eu soube disso não imediatamente, mas cerca de um ano
depois, em alguma aula de história, pouco depois de Royal começar a
trabalhar na mansão. Urina e fezes são um sinal de que morreram asfi-
xiados pela corda, o chamado enforcamento sujo, que demora a matar.
Eu não conseguia acreditar no que via, meus pais, mortos. A
princípio eu senti como se aquilo fosse um pesadelo, lutei para acordar,
e então chorei. Esse tipo de coisa faz sua vida parecer tão surreal quanto
o barato da mortília. Gritei parada, sem conseguir me mover, as lágri-
mas borraram minha visão e eu estava com medo. Dezesseis anos e tu-
do que eu conseguia fazer era chorar. Então vieram as vozes, uma de
dentro da casa e outra do meu lado direito. — Mate-a! — Disse o pri-
meiro, seguido pelo segundo. — Não deixe ela fugir! — Eu me virei
sem nem ao menos ver o rosto dos assassinos. Naquele momento, eu
simplesmente corri, não queria morrer, apesar de querer. A morte é fá-
cil, o medo dela é o que nos assombra. Sem rumo eu trombava contra as
pessoas que me olhavam com descaso. Por vezes um dos dois chegava
bem ao meu lado, me forçando a mudar de direção, a virar esquinas. Fui
uma completa idiota, me deixei ser guiada até aquele beco. Uma ovelha
25
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
que se separou do rebanho sendo dirigida até seu cárcere coletivo por
cães adestrados. No caso, até a armadilha de Larry. Eu olhei para a pa-
rede e meu coração parou por um segundo. — Eu vou morrer. — Disse
a mim mesma em voz baixa. E do mesmo modo que aconteceu na pri-
meira vez em que fui sequestrada, fui levada à certeza. Meu corpo pa-
rou de tremer e meu coração desacelerou, eu estava dominada pelos
instintos puros. Eu iria morrer, mas, pelo menos um deles iria comigo.
Os homens andavam lentamente até mim enquanto eu esperava o mo-
mento certo para quebrar um dos pescoços. E tão friamente quanto
meus pais foram assassinados, eles também foram. Lá estava Quincci,
com um golpe apenas, arrancando duas cabeças, e na entrada do beco,
Larry. O aniliano me disse para ficar calma, que tudo iria dar certo. Me
ofereceu um lar e usou de exemplo seu guarda costas para me provar
que simpatizava com os tykerans. Eu ainda tinha Jennifer em Dirty
Town, mas meu medo de vê-la morta, me fez aceitar a proposta. Eu
neguei minha preocupação para não sofrer mais. Foi difícil da mesma
maneira que foi fácil, eu não tinha muitas escolhas, de todo modo. Fiz
isso por três anos, ignorei os problemas.
Em alguns momentos enquanto eu ouvia a verdade sobre esse
tempo, quis voltar até a mansão e matar o desgraçado. Eu queria tortu-
rá-lo, e fazê-lo comer suas próprias bolas temperadas com as solas do
meu sapato. Chorei e sequei minhas lágrimas. Mas o pior de tudo, dor-
mi sob o teto do verdadeiro assassino por três anos, e ainda por cima,
me sentia agradecida, de certo modo.
Quando Royal finalmente conseguiu um modo de substituir o
antigo chefe da guarda, já fazia um ano que eu morava com os nobres.
Meus costumes e crenças haviam dado lugar à mascara que garantia
meu conforto. O soldado me observou por dois anos até ter certeza de
que eu havia me tornado uma marionete de Larry, e então comunicou a
Gewir, que decidiu que meu dom não poderia estar do lado errado. O
Vendedor de Esperança sabia quem era meu pai, e sabia que ele era a
centelha da concorrência contra sua fábrica secreta de Brisa Mar. Ga-
reth Greenlay foi o primeiro tykeram a conseguir produzir em escala
grande suficiente e com qualidade melhor do que um produtor aniliano.
26
Paulo H. Yamaguti
A droga em Dirty Town tinha outro nome: Mortília. Ela é, em muitos
aspectos, semelhante a Brisa Mar dos nobres, de maneira simples, é
mais concentrada, não causa o sono pesado que sua prima fraca e trás
alucinações muito mais longas e coloridas. É claro que com a quantida-
de certa, podia se fazer um scarlam forte desmaiar em um minuto, só é
preciso alguém entendido para dosar corretamente. Mas se isso fosse
tudo, eu nunca estaria viva. Gareth podia ouvir as intenções das pesso-
as, e qualquer um com um bom informante em Dirty Town sabia a ex-
tensão de tal dom. Larry sabia que um dia isso despertaria em mim, e se
ele me conquistasse, eu iria ajudá-lo a prosperar. Eu seria seu soro da
verdade, sua garantia de confiança. Ninguém enganava meu pai, assim
como ninguém pode me enganar. Larry destruiu uma ameaça enquanto
criava uma oportunidade. Eu havia me tornado uma peça muito impor-
tante no jogo de poderes.
Aquele tiro foi a primeira tentativa, e por ter sido falha, Royal
suspeitou que eu havia despertado. Lyade foi sua certeza, mas pelo mo-
do como eu reagi as agressões, ele repensou sobre minha conversão de
desagraçada a nobre tykeram, uma ideia demasiadamente romântica
para se concretizar. — Que raio de garota aguenta olhar para uma cabe-
ça aberta? — Ele disse durante sua narrativa. Resolveu que iria pedir
para Gewir me testar antes de me matar. Gewir, como sempre, disse ele
mesmo, sabia onde deveria estar. Ao matar o último servente da man-
são, que estava, coincidentemente, ao lado da Marta Morta, Royal ouviu
duas batidas rápidas, e então mais três e depois outras três. Era o código
para que os soldados da Contra União se identificassem. Rapidamente
abrindo a porta, encontrou seu chefe, e tentou explicar que eu não era
uma nobre como ele havia pensado. E o que se segue me trouxe até on-
de estou, fumando um cigarro com meu sequestrador.
— Você sabe que eu já te odeio. — Digo enquanto jogo a bituca
fora.
— Eu sei.
— Isso não foi uma pergunta. — Apesar de tudo, algo me fazia
sentir segura ao lado dele. E ele riu.
— Acho que já é hora de irmos, antes que você perca sua perna.
27
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Gewir se levanta seguido de Royal, que, por sua vez, me ajuda a
ficar em pé. Nós descemos cerca de cem metros até a margem do rio
Vulgro, que corta Lushburg e deságua nos mares longínquos do leste. O
caminho é difícil para minha perna dormente, mas Royal foi minha mu-
leta até o destino. O rio é de uma cor marrom, creio que antes de toda a
bosta do condado acabar aqui a cor era a mesma, mas o cheiro não. Em
minha infância eu e as outras crianças jogávamos pedras para que rico-
cheteassem enquanto torcíamos para ver um corpo descer o rio boiando.
Essa era a antiga capital tykeram, mas com o domínio anil, o gigantesco
castelo foi destruído e a cidade engoliu todas as suas vizinhas. Um novo
castelo foi construído quando a família Mandatori tomou posse do con-
dado. E de semana em semana algum corpo descia o rio vindo do novo
castelo. O condado é o mais próspero do reino, até mais do que a capital
Milliapra, onde as fezes são cheirosas e o sangue corre azul. Lushburg é
grande, talvez trinta mil moradores, apostando baixo. Pelo menos um
terço se encontrava no distrito de Dirty Town, onde eu nasci e cresci,
nosso destino de hoje, eu presumo.

Pode-se pensar que pela supremacia aniliana nos dias de hoje,


não existam guerras, mas como existem certos grupos consideráveis
tentando retomar as terras, que em histórias antigas lhes pertenciam, as
guerras nunca pararam. Pelo leste, os reinos leonios travam uma batalha
de trincheiras defendendo as terras que duramente conseguiram após a
União subir ao poder. Os reinos sanguilhos, que formando uma aliança
com os grafans, tentavam, por ataques guerrilheiros, retomar terras no
norte de Raffilaproa. Haviam certos grupos tykerans que, raramente,
cometiam algum ato terrorista em memória a traição aniliana. E por
último e mais importante, a coroa precisava de soldados no oeste e no
extremo sul do reino, bem perto dos condes locais que a muito ansia-
vam conseguir a independência de Raffilaproa. Sem a supervisão de
braços fortes, já teriam conseguido o que queriam de um jeito ou de
outro. O reino tem uma aparência robusta, mas é muito frágil, um ca-
nhão de vidro.

28
Paulo H. Yamaguti
Quase todos os soldados eram anilianos bonevitos, que são obri-
gados a se “voluntariarem” no serviço militar, que visava defender os
“interesses maiores”, como assim eram chamados. Ao meu ver, não
passam de uma forma amena de garantir que quem está no poder, conti-
nue no poder.
Entre os jovens de hoje em dia pode-se perceber um crescente
desinteresse nesses tais interesses maiores e um maior foco em ser soci-
almente aceito, o que significa que quase todos os jovens anilianos
agem de uma maneira unidirecional e medíocre. Mesmas roupas, mes-
mas gírias, mesmas vontades e mesmos cortes de cabelo, o tempo onde
jovens eram rebeldes já está esquecido, dizia meu finado pai. É o preço
do desenvolvimento, dizia minha mãe. Isso tudo nos leva ao principal
problema enfrentado pelas forças militares do reino, os novos recrutas
estão cada vez mais moles e fracos. Os muitos grafans, leonios, safírios,
scarlans e sanguilhos que aderiram a vida de bonevitos não possuem o
mesmo empenho em defender uma falsa pátria, mas tem menos empe-
nho ainda em tentar fazer algo contra a sociedade que lhes garante um
estilo de vida quase fácil. E para não dar mais motivos para revoltas, os
anilianos não obrigam os que não possuem olhos anis a fazerem parte
de sua força armada.
Royal é um soldado de uma geração anterior, que ainda era en-
sinada sobre a história do primeiro livro de Saphila, o que, geralmente,
causava certo patriotismo. Geralmente. O homem com a cicatriz no
rosto não acreditava em patriotismo, ele acreditava na morte e em como
ela poderia ser uma arte, se bem executada. Nunca compreendi como
Larry se sente a vontade com uma mentalidade desse tipo cuidando da
segurança de sua casa.

Um pequeno bote com dois remos está amarrado em uma árvore


próxima a margem do rio. Gewir me estende uma mão depois de subir a
bordo.
— Eu não preciso de sua ajuda. — Digo por desnecessária pirra-
ça.
— Está bem então.
29
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Demoro mais tempo do que gostaria para conseguir entrar no
barco com minha perna naquele estado. Os dois guardas riram e Royal
se manteve quieto por respeito a mim, ou por não compreender o humor
na cena. Talvez por, simplesmente, não compreender o humor, de forma
geral.
— Só nós iremos? —Pergunto quando vejo Royal empurrando o
barco para longe da margem.
— Sim, e temos tempo para conversar.
— É. — Minha voz mostra o desânimo.
O cheiro do rio intoxica minhas narinas me fazendo tentar respi-
rar pela boca, até que eu sinto nojo suficiente daquele odor em minha
língua e volto a respirar pelo nariz. O barco é pequeno e frágil. Possui
duas tábuas que servem de assentos, eu estava na parte traseira e Gewir
remava na dianteira. Ele mantém seu olhar fixado em minha direção, e
se eu não soubesse exatamente quais são suas intenções, me sentiria
com medo. Ele é um homem bom, apesar de não medir esforços, como
pude perceber. Sempre pensei que todos os tykerans possuem certo or-
gulho e respeito pelos seus iguais, mas o líder da Contra União, não.
Após um breve tempo Gewir quebra o silêncio.
— Você está bem? — Ele soa sincero.
— Não.
— Não se sinta culpada por ter vivido com ele por esse tempo.
— Fácil falar.
— Vou te ensinar uma coisa.
— Tanto faz. — Me sinto cansada, não quero ouvir mais nada
do homem que enfiou uma faca em mim.
— Você sabe o que é o arrependimento?
— Eu sei o que é arrependimento. — Penso em terminar minha
fala, mas algo no castanho dos olhos de um tykeram me fazia sentir
certa nostalgia, certa segurança. A fala continuou sozinha. — Esse sen-
timento de culpa por ter feito a coisa errada.
— O arrependimento é a dor que nós sentimos quando ouvimos
um fato que mudaria nossa escolha. Não se culpe, você não sabia de
nada. Você fez a melhor escolha possível. — Talvez eu tenha sentido
30
Paulo H. Yamaguti
uma leve gratidão em sua voz, por eu ter abaixado a guarda, mas talvez
seja impressão.
— Talvez. — É um homem sábio, mas não quero que perceba
minha opinião.
Ele se mantém quieto por alguns segundos. E então, novamente,
abriu a boca.
— Você tem os olhos da sua mãe. — Um sorriso inocente.
— Cale a boca. Eu estou cansada.
— A língua afiada também. — E nada mais foi dito durante o
percurso.

31
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 4 — A Dança dos Dados

Dois tykerans dos mais temidos se embriagavam com hidromel


durante a madrugada. Talvez em duas ou três horas o sol fosse cumpri-
mentá-los mas Gewir não tinha a intenção de se demorar mais. Sempre
foi mais forte para bebidas e sempre soube a hora de ir embora, assim
como a hora de chegar. Uma mulher também estava presente na casa,
ela havia se limitado ao primeiro quarto do pequeno barril, era a mais
sensata mas não a mais sortuda. Gewir pega seu chapéu do chão ao lado
de sua cadeira e engole o que sobrou de seu copo mais limpo do que
sujo. Gareth enche mais um para cada. — O último, pelos velhos tem-
pos. — Eles esvaziam o conteúdo e dão as últimas risadas.
— Ei, Gew, porquê a pressa? Tem alguma reunião importante
com os seus revolucionários? — Uma risada ressoou, tão doce quanto
uma última risada poderia. Ela era uma mulher de olhos castanhos e
cabelos ruivos, de uma língua afiadíssima e um senso fora do comum
com mentirosos.
— Na verdade não, Cecille. Só estou cansado, preciso ir dormir.
— Respondeu Gewir, que por algum motivo passou a ultima noite
acordado, e a mentira necessária era uma verdade.
— Gewir, você sabe que pode sempre dormir na casa de um
Greenlay quando precisar. Afinal, você é nosso irmão. — Um homem
aparentemente fraco, de estatura média falou, com sua boca coberta
pela barba. — Eu sei que você tem a intenção de ir embora. Pode ir. Só
estou brincando. — Esse homem mandava em uma considerável área de
Dirty Town, era conhecido como Gareth, Mãos de Relâmpago, e apesar
de ser aparentemente fraco, era um dos únicos capazes de acertar um
soco em Gewir.
Os dois homens deram um abraço, como se fossem verdadeiros
irmãos de sangue. Gewir pensava — Me desculpe. — E Gareth podia
sentir o ressentimento naquele abraço. Infelizmente estava bêbado de-
mais para tirar qualquer conclusão sólida sobre o que sentia. Simples-
mente ignorou seu instinto e viu seu meio amigo, meio irmão, colocar
32
Paulo H. Yamaguti
aquele velho e conhecido chapéu, que deixava uma sombra impenetrá-
vel em sua face, e assistiu-o enquanto sumia na madrugada do distrito
mais perigoso da cidade mais decadente do reino. — Ele sabe se cuidar,
melhor que qualquer um. — Pensou.
— Cecille, é quase de manhã, vou dormir aqui na sala até por
algumas horas, tudo bem? — Disse Gareth, com uma voz sonolenta,
para aquela mulher tão bela quanto a lua cheia em uma das raras ocasi-
ões em que se tornava avermelhada. — Acho que eu estou muito bêba-
do para andar um metro. — Ele da risadas embriagadas.
— Tudo bem, eu vou dormir só quando o sol se por novamente,
tenho muito o que fazer por aqui. — Sua voz, cansada e forte, desce até
o porão onde Mortília era produzida.

A família Greenlay era renomada nos tempos dos tykes, antes da


liga pré União ser formada e derrubar o reinado dos castanhos. Os tyke-
rans eram tiranos assim como os nobres anilianos viriam a se tornar,
porém, possuíam uma maneira de se manter no poder muito diferente e
quase tão eficaz. Os dons que possuíam os tornavam invencíveis em
guerras e debates políticos, até mesmo em lutas corpo-a-corpo. Nada
era páreo para os tiranos castanhos, que escravizavam outros povos. Até
que os anilianos, respeitados pelos tykes por uma trégua antiga e por
possuírem uma tecnologia avançada para o tempo, criaram a pólvora.
Os anis, cansados de verem tykes se aproveitando de outras raças, deci-
diram promover uma campanha contra o grande império. Uma liga de
povos foi criada tão secretamente que nem mesmo seus principais líde-
res consentiam sua existência e participação. A Pré União, como é cha-
mada pelos historiadores anilianos, foi formada. Em muitos reinos pe-
quenos, reis foram tirados do poder por golpes de estado, os generais
acenderam, junto da guerra. Os olhos anis armaram os desprezados e
oprimidos com canhões, e não havia combatente castanho que ganhasse
da pólvora. Não havia um ego tão grande que não pudesse cair, derrota-
do pelo erro de subestimar os não livres.
Em algumas semanas, todos os grandes líderes guerreiros tykes
foram mortos por generais reis dos poucos reinos não dominados. E o
33
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
imperador foi enforcado em seu castelo, que mais tarde foi destruído.
Traídos pelos anilianos, não tiveram forças para se reerguerem, e caí-
ram na marginalização. Foi lançada uma caçada aos tykerans nascidos
com dons. Apenas muito poucos sobreviveram escondidos nos cantos
mais fétidos do reino. O império, que um dia foi o maior no mundo, se
tornou uma história antiga. Os escravos de outrora passaram a viver
uma duvidável paz. Um estado, de certo modo, melhor do que a escra-
vidão.
Todos os povos se sentiram, obrigatoriamente, gratos aos anilia-
nos, e confiaram a eles o posto de líderes da União dos não livres. To-
dos os pequenos reinos que ajudaram a derrubar os tykerans se viram
obrigados a se juntarem ao recém fundado reino de Raffilaproa, pois
perderam muitas vidas e recursos com a guerra. A raça que um dia foi a
salvadora de todas as pátrias, passou a liderar o novo reino, controlando
a população com os entorpecentes e impostos. E assim como os antigos
barões tykerans, os nobres de Raffilaproa abusam do poder, tratam a
periferia social como se fossem animais. Uma história de cinco séculos
que tenta se repetir, disfarçada por baixo das leis e da ordem, por entre
todas as mortes, direta ou indiretamente, causadas pelos anis, sem que
os culpados possam, de fato, ter culpa.

Dois homens armados com facas entram na casa e passam direto


por Gareth, que se encontrava desacordado pela bebida e sono, e vão
em direção a sala de produção da mortília. Cecille não sabia o que a
viria pelas costas. Naquela noite os negócios trouxeram prejuízo. A
mulher tykeram estava concentrada no que fazia, não percebeu nada até
que fosse tarde demais. Enquanto um homem segurava sua boca o outro
esfaqueava seu peito diversas vezes. Ela estava morta, com seus gritos
abafados.
Quando foram embora, os homens passaram direto por Gareth.
Queriam matá-lo, mas sabiam do que ele era capaz. Sabiam que conse-
guiriam, mas também estavam certos de que morreriam junto. O Mãos
de Relâmpago, era um ser imbatível. Eles ainda iriam voltar, mas preci-
savam de algo para fazê-lo se render. Os assassinos acreditavam que
34
Paulo H. Yamaguti
esse homem podia ver o futuro, e por mais que a certeza não fosse tão
certa, o medo não lhes dava o benefício da dúvida.

Um homem com seu chapéu surrado senta-se em uma viela sem


saída onde ninguém o veria, no chão sujo de Dirty Town, sob a luz fa-
lha da lua.
— Me desculpe, Cecille, Gareth. Me desculpe, Lucy. Jennifer,
me desculpe. E Molly... — Limpa as lágrimas e o nariz que escorria
com as costas de sua mão. — Me desculpe! — Ele socou o chão forte o
suficiente para quebrar alguns ossos da mão. — Existem coisas maiores
que a família. Maiores que nós… — Gewir, chorou e tentou falar como
se alguém pudesse ouvi-lo. Por mais que os fins justificassem os meios,
a culpa será sempre uma constante.
A alma desse homem aos poucos cedia à tristeza. Se existisse
alguém capaz de enxergá-la, intuitivamente esperaria ver algo cinza e
desgastado, se esvanecendo entre as partículas de poeira no ar. A alma
penitente estaria tentando, de todas as maneiras, se ejetar daquele corpo,
daquelas ações que trouxeram tanto sofrimento àqueles que amava.
Como não havia ninguém capaz de tal observação, disposto a fazê-la, é
impossível que alguém saiba o real formato dessa alma atormentada.
Um enorme emaranhado de fios, como a teia de uma aranha, que envol-
via como núcleo o seu próprio corpo, e se prendia a tudo no mundo.
Esse homem podia sentir cada canto do que existe, ele sabia o que cada
movimento iria acarretar, mesmo sem realmente sentir ou entender.
Tudo o que ele possuía era sua intuição infalível. Caso o bater das asas
de uma borboleta no jardim de um safírio gerasse um tufão na capital de
Kalafia, Gewir seria a única pessoa capaz de arrancar as asas do ingê-
nuo inseto como vingança pelas vidas dos scarlans. Isso é claro, se ele
pudesse ver a pequena borboleta no ato, e se o fato fosse de alguma
relevância em sua vida.
Um aniliano muito famoso pela inteligência, Pierre Laplace, cer-
ta vez declarou que se alguém conhecesse todos os movimentos do uni-
verso em um determinado instante, seria possível criar uma fórmula
para prever o futuro. Isso faria com que jogar dados ao ar em um jogo
35
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
de azar fosse, aparentemente, desnecessário. Por outro lado, e o que
segue foge ao raciocínio do aniliano, o não jogar de dados já seria pre-
visto, e logo, não se saberia os resultados de antemão, eliminando qual-
quer possibilidade de existir um ganhador e tornando o jogar de dados
inevitavelmente necessário.
O dom de se ouvir o caos, dá a Gewir meia fórmula para o futu-
ro. Ele não sabe o que irá acontecer até que todas as causas do aconte-
cimento estejam agindo. Feita tal observação, na vida de Gewir, existe
um vencedor, mesmo que ele próprio duvide muito de que conseguir
proteger o futuro que ele sentiu, seria, em sua totalidade, uma vitória.
Entregar todas os fatos de uma história antes que eles se desen-
rolem é o que os críticos de teatro anis chamariam de anticlímax. Por-
tanto o futuro que Gewir viu e tenta proteger é limitado a permanecer
unicamente dentro de sua mente até que de fato aconteça ou seja modi-
ficado. E o mesmo sabe que a partir do momento que alguém toma co-
nhecimento das causas, elas podem muito facilmente serem sabotadas, e
assim, modificando os fins. A única maneira de ganhar é jogando, ainda
que sem conhecer as regras ou entender o que significa se tornar o ven-
cedor.

O homem, que pouco tempo antes chorava, se levantou, lutando


para esquecer os pensamentos de remorso. Ele sempre soube quais fins
veria, mas nunca esteve preparado para os meios.
— Irmão, os dados foram jogados e minhas apostas estão feitas.
Com a frase sussurrada ao vento em uma madrugada fria, o ho-
mem, com seu chapéu surrado e um sobretudo negro, acendeu um cigar-
ro com dificuldade e se colocou a caminhar. Se sua alma pudesse cho-
rar, todas as chuvas seriam maresias e todos os rios teriam gosto de
mar. Mas esse gosto estava nas mangas de seu sobretudo, esquecido e
úmido, sem ninguém para prová-lo, como a água que torna terra em
lama é negada por um moribundo sedento.
Ele não voltaria ao condado por pouco mais de dez anos. Seu
exército de idealistas, formado em outra noite em que Lushburg ficava
para trás, iria voltar a ativa. E com o passar dos dias a dor só aumenta-
36
Paulo H. Yamaguti
ria, os anos trariam alívio mas nunca redenção. A mortília e o hidromel
ganhavam amarguras maiores do que o gosto e não serviriam mais para
remediar a culpa. Ele deu as costas a Lushburg, meio embriagado, sem
forças ou vontades, deixando sua família para trás sem ao menos uma
despedida. As pernas não queriam o levar nem mais um metro a frente,
mas ele tinha de encontrar Zhukov. — Nós ainda temos uma causa. —
Ele pensava e amava sua causa como um pai ama sua filha. Ele sabia
que mesmo após abandonar seu velho amigo scarlam no comando de
um exército guerrilheiro sem instruções, nada teria mudado. Afinal de
contas, ele era Gewir, o primeiro a unir as quatro pontas, o apostador de
vidas e o criador e líder da Contra União.

Em um breve instante antes de pegar no sono, gastando suas so-


las em uma andança forçada na beira da estrada após quase um dia in-
teiro de caminhada, teve um último pensamento. — A dança dos dados
é uma tragédia. — E então beijou a terra, sem consciência, deixando no
leito dos bêbados qualquer resquício de insegurança. A felicidade foi
amputada de sua alma e o homem que ele era se tornou um mero invó-
lucro para seus objetivos, seu dom e seu propósito desconhecido.

37
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 5 — Negócio de Família

O trajeto pelo rio foi curto, nenhum corpo nos acompanhou,


mesmo que por alguns breves momentos eu ansiasse por isso. Nunca
pensei que a nostalgia poderia ser tão mórbida. De quanto mais nos
aproximamos do porto de Dirty Town, mais meu estômago dava novas
e exaustivas voltas, eu temo colocar para fora tudo o que eu não havia
comido. Os poucos metros de tábuas sobrepostas e pregadas de qual-
quer maneira não merecem ser chamados de porto, mas é ali onde todo
tipo de mercadoria ilícita chega do oeste. O lugar havia mudado desde a
última vez que eu o vi, o musgo está mais avançado e por algum motivo
existem mais deformidades de madeira para que os barcos sejam amar-
rados, mas não mais bonitas e muito menos bem cuidadas.
Minhas mãos tremem, eu não sei dizer se é o frio quase morno
daquela manhã me tocando na neblina ou se a falta de sangue me rouba
a firmeza. Minha perna esquerda dói muito, e a direita está dormente,
começando a ganhar uma cor preocupante. Espero que essa pessoa que
Gewir conhece possa fazer algo a respeito.
Quando o pequeno barco bate contra um tronco que serviria para
amarrá-lo, a mão de Gewir se coloca em meu ombro, exatamente no
momento em que perco meu equilíbrio. Ele é preciso, mas um aviso
teria surtido o mesmo efeito. Suas mãos dão um nó forte e rápido como
as de um marinheiro. Sua postura e balanço enquanto passa para a mar-
gem em um rápido pulo, me dão a certeza de que ele já passou algum
tempo no mar. Segurou a embarcação e esperou que eu saísse, sem me
oferecer ajuda. Eu precisei de mais tempo para sair do que levei para
entrar, e isso me envergonha levemente, mas Gewir não se importa. Ele
pega sua corrente no fundo do barco e começa a andar. Piso no barro
com minha perna boa e percebo que a dor retorna a outra perna, eu que-
ro derramar lágrimas, mas estamos em Dirty Town, engulo a dor. Meu
sapatos se encharcam enquanto eu ando pela praia mais suja em que já
pisei. A única praia em que eu pisei. Todo o sangue que ainda havia
neles, agora está limpo e deu o lugar ao barro. Gewir sobe o pequeno
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Paulo H. Yamaguti
barranco, que meus sentidos transformam em uma montanha, antes de
mim e me esperava no topo. Cada passo é um desafio e cada desafio é
menos difícil que o anterior, negligenciar dores é rotina em minha vida.
Em pouco mais de um minuto eu caminho, cambaleante, os dez metros
de subida.
— Esse lugar é nostálgico, não? — Ele me diz.
— Eu não sei. É? — Eu não estou interessada em conversas e
ele entende.
O desgraçado fica parado, com seu sobretudo e um chapéu ve-
lho, enquanto o encaro, esperando que ele lidere a caminhada. Sinto
certa vontade de levar meus passos tortos até minha casa, minha verda-
deira casa, sem esperar por uma decisão do tykeram ao meu lado. Ele
acende um cigarro e continua sua perplexa inércia, enquanto dança seu
olhar por entre as inúmeras caixas de madeira empilhadas, todos os res-
tos de barcos e outras tranqueiras inúteis. Ouço uma voz, de dentro da
minha cabeça, uma intenção. — Vou roubá-los. — Uma voz infantil, de
um garoto.
— Nós te vimos. — Gewir fala como se aquela voz ressoasse
também em seus tímpanos.
Nada além do som distante das vozes na feira de Dirty Town
são ouvidas.
— Eu te dou dinheiro, se sair. — O garoto pula imediatamente
em nossa frente.
— Muito prazer, senhor, senhorita. Em que posso ser útil? —
Ele não tem mais de dez anos, mas seus olhos diziam trinta, talvez qua-
renta. Talvez eu esteja exagerando, é apenas um garoto com a mesma
voz que ouvi em minha mente.
— Me arranje uma bengala em menos de cinco minutos e te dou
um hílio.
— Dois minutos. — E o garoto sai correndo.
— Obrigada. — Eu digo e logo posso sentir uma intenção de ca-
çoar de minha cordialidade. — E cale a boca. — Gewir ri inocentemen-
te, quase que como se aquilo fosse uma memória distante e feliz.

39
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Após pouco tempo o garoto volta correndo com um pedaço de
madeira lixado e bem cuidado, não foi simplesmente pego do chão. Mas
surrado demais para que eu chamasse aquilo de bengala. Os nobres fize-
ram meus padrões se tornarem altos demais. Dei de ombros e estendi a
mão.
— O dinheiro, primeiro.
Gewir, em uma velocidade incrível, agarra a bengala da mão do
garoto e me entrega.
— Aprenda a confiar um pouco mais. — Ele joga uma moeda
que gira por um piscar de olhos até ser pega com ferocidade pelo garo-
to.
— Isso é só uma moeda de bronze, mentiroso. — Para sua ida-
de, aquilo foi um insulto.
— Aprenda a confiar um pouco mais e talvez vai acabar morto.
Desrespeite quem é mais forte e você certamente vai acabar morto.
Ele cospe no chão e sai correndo. Vestido com uma calça suja e
uma camisa rasgada, seus pés descalços tinham calos como se fossem
escamas, que só não eram mais pedra do que seu cabelo. Ele tem os
olhos castanhos de um tykeram e resolve gritar uma última frase, ao
longe.
— Vão se ferrar, garota mimada!
Só então percebi que minhas vestimentas são demasiadamente
requintadas para andar por essa parte do condado. Eu sinto a ânsia de
rasgar as roupas e por algo mais adequado, mas tudo que eu possuo para
vestir são elas. Gewir deixa que sua intenção de andar me avise sobre
nosso movimento. Com a bengala, eu consigo me locomover quase que
como um daqueles safírios idosos e sábios de duzentos anos de idade.
Gewir anda devagar, me esperando.

Tão rápido quanto podíamos, alcançamos a feira de Dirty Town.


Famosa por vender todo tipo de quinquilharias e bugigangas, comidas
das mais baratas até as mais fáceis de serem roubadas em outras partes
da cidade, ouro falso e soluções alquímicas, roupas feias e sapatos bara-
tos, utensílios de limpeza, cozinha e tortura. A única coisa, de proce-
40
Paulo H. Yamaguti
dência duvidosa, que não se vendia por aqui eram os entorpecentes.
Nenhum produtor de Mortília permite que seu produto estivesse tão a
mostra, os becos escuros e sujos são mais propícios para tais mercados.
Sobre a Brisa Mar dos nobres? Nunca tomaria o lugar de sua prima
mais forte.
Reconheço muitos dos rostos, que envelheceram e esqueceram o
meu. Mas todos os olhos se fixam em mim, uma tykeram vestida como
nobre. Alguns trombadinhas cumprem suas tentativas de esbarrar em
mim, mas Gewir, de algum modo, os repele com seus movimentos rápi-
dos e imperceptíveis. De qualquer modo, eles são os menores dos meus
temores. Dirty Town é povoada por todo tipo de gente perigosa: vicia-
dos, apostadores, caçadores de recompensa, assassinos e estupradores.
E nesse ponto, qualquer um aparenta querer um pedaço de mim. Em
contra partida, todos parecem temer Gewir como se ele fosse um exérci-
to de um homem só. As pessoas desviam o olhar e fingem estarem cui-
dando de suas próprias vidas, como geralmente não fazem. Novamente,
me sinto segura com ele.
Apesar do tempo que estive fora, a cada metro que ando, perce-
bo o quanto a cidade é estática. O chão sujo com entranhas de peixes e
dejetos humanos e animais é pintada sempre das mesmas cores, cinzas
meio marrons meio verdes. As tendas e barracas estão quase todas nas
mesmas posições onde sempre estiveram. Todas montadas com madeira
de barcos quebrados ou de restos de outras partes da cidade, tudo que
funcionava devia o mérito às gambiarras, e o que era feito propriamente
era tão raro quanto um aniliano desagraçado. Conforme andávamos
para dentro do mercado, a concentração de pessoas e produtos aumen-
tava, tornando-o o coração pulsante do distrito, um claustrofóbico am-
biente cheirando a peixe morto e barrigada. Os vendedores são tão la-
drões quanto eu já fui, e tão bons de negócio quanto um enfermo pai de
família barganhando com a morte. Me olham enquanto imaginam o
dinheiro que poderiam fazer com minhas roupas e meu corpo, e isso é
algo que suas intenções me gritam além do que eu gostaria de ouvir.
Depois de atravessarmos a enorme feira que se estendia por mais passos
do que eu gostaria de contar, nós chegamos na parte onde haviam casas,
41
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
por assim dizer. Todas aquelas em que a água das chuvas não molhava
a mobília, quando existente, eram certamente dos produtores, que não
são poucos, mas também não muitos. Dois quarteirões de dores e mi-
nhas pernas travam.
— O que foi?
— Minha casa. — Eu digo ao passo que sinto a taquicardia.
— Sim, sua casa. Ande logo, tem alguém lhe esperando lá den-
tro.
Alguém me esperando. Lágrimas escorrem novamente, mas des-
sa vez, de felicidade. Solto a bengala e começo a correr os metros que
faltavam, como se minha perna estivesse melhor do que nunca. O telha-
do que pendia para o corredor entre duas casas era o mesmo, a porta de
madeira com duas adagas entalhadas estava bem cuidada e as janelas
fechadas como deviam sempre estar. As paredes são marrons, como eu
me lembro, mas o tamanho me parecia menor, ainda assim, maior do
que qualquer outra no distrito. Eu piso no esgoto jogado dos baldes pe-
las janelas, mas não me importo. De perto eu diminuo o passo. — E se
esse alguém não fosse ela? — Minha ansiedade em abrir aquela porta é
rebatida pelo medo em descobrir que minhas esperanças são falsas. A
rachadura no canto direito da porta havia se desenvolvido. Mais uma
vez, minhas mãos tremem enquanto eu as levo até a maçaneta. Fico
parada, esperando para girar meu pulso como se aquilo fosse o final da
história onde todos ficam felizes. Eu sabia que não era, mas sentia como
se fosse.
— Abra a porta, garota. — Gewir já está ao meu lado. Fiquei pa-
rada por tempo demais.
Eu fecho meus olhos e me preparo para abrir. Uma intenção abre
meus olhos e a maçaneta se gira sozinha, a porta se abre quase me ti-
rando o equilíbrio.
— Mas que droga é essa? — A voz de Jennifer. Pelo ódio de
Weh! A voz de Jennifer.
— Irmã! — Eu a abraço. Se ela não fosse tão rápida quanto é, eu
levaria um soco. Mas ela me reconheceu a tempo de me acolher.

42
Paulo H. Yamaguti
Jennifer fica sem palavras. Ela me envolve em seu morno abraço
de mãos geladas em uma manhã de outono ímpar. Eu estou em casa,
após de três anos. Esse abraço é minha casa. Estamos juntas finalmente,
por um tempo que parece ser menor a cada segundo, um tempo que
tenta me fazer tirar o atraso pelos anos perdidos.
— Me desculpe, eu não voltei… — Minhas lágrimas escorrem
como cachoeiras e eu me desprendo de seus braços para me recompor.
— Tudo bem, tudo bem. — Ela limpa os próprios olhos e reco-
bra sua postura.
Seus cabelos ruivos e encaracolados pendem até o meio de suas
costas como cipós das árvores anciãs de Evergreen ao mesmo tempo
que escondem suas orelhas e os cantos da testa. Seu busto ficou grande
e seu quadril largo. Ela havia crescido tarde, pois sua altura era a mes-
ma que a minha a três anos atrás. Agora ela estava um palmo mais alta.
Seus músculos são protuberantes, o suficiente para que ela colocasse
medo na maioria das pessoas do distrito, estava forte. Sua calça de cou-
ro de bisão marrom possui um apoio para uma faca que pende leve em
sua coxa esquerda e suas botas estão tão gastas quanto se podia gastá-
las antes que elas perdessem seu uso. Ela usa uma camisa larga com um
decote provocativo, com as mangas rasgadas. Sua boca é grande e de
beiços finos. — Idêntica a de Cecille. — Dizia meu pai quando éramos
crianças. Seu nariz ficou maior, mas ele era pequeno demais, hoje fica
perfeito em seu rosto. E os olhos, castanhos como a terra molhada e
grandes como cerejas. Suas mãos estão calejadas e ela as estende, me
convidando a mais um abraço. Eu aceito.
Logo, Jennifer percebe quem me acompanhava.
— Que droga você faz aqui? — Ela se solta de mim dominada
pela ira.
— Eu salvei Molly dos Richeist. — Gewir diz sem a menor pre-
ocupação. Sem querer se gabar, soando como se quisesse.
— Eu só não te mato, porque ninguém tem força para isso no
reino.
— Jennifer, uma vez um velho amigo me disse: quando sua vida
é salva por alguém a divida só é paga quando a morte está satisfeita.
43
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Você e seus amigos nobres com dizeres anis. Vá embora lo-
go.
— Eu vou, trate bem da perna dela. — Ele desvia seu olhar para
mim. — Mais tarde eu volto para conversarmos, Molly.
Jennifer bufa, mas fica quieta. Eu levanto a barra da saia, cober-
ta de terra, para que ela visse o ferimento. Minha meia irmã olha para a
perna e arregala os olhos. A pele que cercava o ferimento está pálida,
com rachaduras roxas correndo em todas as direções, logo abaixo do
torniquete feito por Royal. Pus escorria, sangue também, algumas pe-
quenas moscas voavam em torno da carne aberta querendo por seus
ovos. Eu não sinto mais nada e espero que ela possa fazer algo a respei-
to. Afinal, eu gosto da minha perna, e gostaria de chutar certas pessoas
em minha vida.
— Molly! Venha cá!
Ela me pega no colo antes que eu pudesse protestar e me leva
para dentro da casa. O interior está diferente, talvez para que ela esque-
cesse os corpos pendurados. Funcionou.
Fui colocada em uma cama em nosso antigo quarto e ela voltou
para trancar a porta. A casa estava mais limpa e mais bem cuidada. As
paredes de tijolos resistiram bem ao tempo e se mantiveram firmes. Os
lençóis são finos demais para essa parte da cidade, mas se os negócios
fossem os mesmos e fossem bem, ela conseguiria comprá-los. Há um
baú no pé da cama, talvez meus antigos pertences, mesmo que poucos,
estão a salvo no interior. As paredes do quarto são próximas o suficien-
te para que nada mais caiba de maneira adequada. Jennifer logo volta ao
meu lado trazendo um frasco com um líquido viscoso avermelhado,
parecendo um sangue espesso e outro menor com uma dose grande de
mortília.
— Sem perguntas, beba! — Ela enfia todo o líquido branco em
minha boca, que era salgado ao mesmo tempo que doce, e de um amar-
go característico.
— Você está me desmaiando.
— Sim.

44
Paulo H. Yamaguti
Ela remove a rolha que tampava o frasco maior e derrama um
pouco daquilo sobre meu ferimento. Sinto uma leve queimação enquan-
to ela desamarra o torniquete, o sangue correndo livre arde. Eu posso
ver o líquido vermelho dançar sobre meu ferimento, e finalmente pular
inteiramente para dentro. O rosto de minha irmã começa a se distorcer,
hora mais bela, hora medonha. O teto se despedaçou e vi as estrelas
caírem sobre minha cabeça como meteoritos, cada um com uma cor
nova, diferente das que eu já havia visto antes. Começo a cair, e vejo
um fundo negro que me atraía como um ímã atraí o ferro da areia. Cada
pequena parte de mim se gruda ao fundo que não acaba e continua va-
zio. Meu tato aos poucos dá lugar a algum tipo novo de sensação e meu
sangue borbulha como água fervente. A dor em minha perna é lancinan-
te, me trazendo a sensação de estar pegando fogo. Eu adormeço, inerte,
enquanto sinto minha alma queimar.

***

A feira de Dirty Town era muito movimentada e perigosa, ficava


próxima a minha casa. Todos os comerciantes sabem quem sou, mas os
compradores não, eram alvos fáceis. Meu corpo de treze anos de idade
era fraco pela alimentação rala, porém, nunca obstante. Viver nesse
distrito, ou melhor, nesse mundo, faz uma criança crescer antes da hora.
Aprendemos a aceitar a morte muito cedo, ela vem boiando no rio, ela
aparece em cantos escuros onde não se deve bisbilhotar e para quase
todos, aparece em casa. No meu caso, as únicas mortes que eu havia
presenciado eram de idiotas que desafiavam meu pai. E os corpos des-
cendo o rio, mas isso é corriqueiro demais para contar.
O chão, com aquele cheiro de peixe morto e saudade de limpeza,
estava molhado, por um breve instante senti uma pitada de náusea, que
logo deu lugar a fome constante. Um homem andava entre as barracas
que vendiam frutas, com certeza ele tinha algum dinheiro, por estar
comprando algo. Eu espero ele escolher a maçã certa, polir e repolir
todas suas faces e finalmente ter certeza que aquela fruta vermelha só
tinha um buraco de verme. — Uma ótima peça! — Disse o homem ves-
45
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
tido com uma túnica cinza. Meu corpo ainda era pequeno suficiente
para que eu conseguisse me esconder atrás de algumas caixas do peque-
no estoque de alguém. O homem olhou para todos os lados, e enfiou a
mão por baixo de suas roupas. Aquilo seria obsceno se a cena houvesse
começado naquele instante, mas ele estava tateando seu bolso escondi-
do. Obrigada, por me mostrar onde procurar. Sua túnica estava proposi-
talmente furada na altura do umbigo e lá dentro estava meu prêmio,
uma bolsa de moedas ou uma carteira. Provavelmente o homem carre-
gava uma simples bolsa de moedas. Carteiras eram algo que só os bem
nascidos ou os ladrões possuíam. Ela servia para guardar o dinheiro em
papel, algo que eu não entendo muito bem. Por que eu trocaria algo por
simples papel? Meu pai dizia que um tal de “banco” trocava aquelas
folhas por moedas de ouro, prata e bronze. O homem estava demorando
demais com suas mãos próximas a virilha. Havia deixado a maçã nas
mãos do vendedor sob o cuidadoso olhar desconfiado enquanto enfiava
a outra mão para ajudar em sua busca infindável por uma simples moe-
da de prata. Finalmente ele consegue retirar algo, era um papel. O des-
graçado tem dinheiro! Provavelmente deve ser algum imbecil que vende
para algum produtor de outra área onde meu pai não comandava. Todas
as ruas, das docas até o bar do Murphy, eram do meu pai. Ele era seu
único vendedor, um homem sozinho que controlava metade de Dirty
Town. É claro, a feira se estendia pela área de talvez três ou quatro pro-
dutores, e eu estava no território do velho Jesse dos Dentes, ou talvez
do Palhaço, não me importo. Ninguém iria levantar um dedo contra a
filha do temido Mãos de Relâmpago.
O homem de cinza cumprimentou o vendedor com um sorriso
amarelo e falso e colocou-se a andar. Rapidamente eu saio de trás das
caixas e passo correndo a sua frente.
— Me dá uma mordida? — Digo enquanto caminho para trás.
— A filha dele. Saia daqui. — Ele diz, com escárnio.
— Só uma? — Continuo andando. fingindo não ver uma gaiola
com um frango khor no chão a alguns passos de mim.
Ele não responde, só me olha com reprovação e certo desejo dis-
farçado e continua a andar. Eu tropeço e ele segura meu braço me pu-
46
Paulo H. Yamaguti
xando para perto de si, enquanto o cacarejo estridente chama a atenção
das pessoas ao redor.
— Olhe por onde anda. — Seus olhos castanhos e velhos anda-
ram dos meus pés até minha cabeça, parando tempo demais em meu
busto pequeno. Logo após, seu olhar encara as pessoas, que voltam a
cuidar de seus próprios afazeres. Ele me empurra para o caminho opos-
to ao que seguia. — E fique longe daqui, seu pai não vai chegar antes de
alguém menos controlado acabar com você.
— Está bem, tio. — Uma carteira de couro de porco. Eu sumo
entre as lojas antes que ele desse uns cinco ou seis passos e sentisse
falta de algo.
Eu corri para longe dele, em direção a outra área mais distante.
Sempre de olho naqueles que já roubei. Se eu fizesse isso todos os dias,
já estaria morta, independente de quem é meu pai. Faço isso o suficiente
para nunca perder o jeito. Após vários passos, nem me preocupava mais
com o homem de cinza, nem sobre quem poderia ser. Sei fazer meu
caminho sem ser seguida, afinal, essa era minha cidade.
O homem carregava uma carteira com moedas, ainda haviam
duas de prata e três de bronze, fora alguns papéis. Muito pouco para um
traficantezinho, mas ele havia acabado de sair às ruas para seu desje-
jum. Agora eu estava próxima de casa, examinando todos os três com-
partimentos e todos os poucos detalhes daquela peça mal feita. Uma
pequena marca em um dos cantos, um sorriso macabro, a marca do Pa-
lhaço. Eu levanto meus olhos para checar se alguém me observava,
aquela marca me deu certo medo que logo foi reprimido pela segurança
da visão. Assim que volto meus olhos para minhas mãos, a carteira ha-
via sumido e no lugar uma pedra. Meu pai.
— Oi, filha. Você estava roubando gente perigosa de novo. —
Não pude entender se foi uma pergunta ou uma afirmação.
— É. Me desculpe. — Eu fico vermelha.
— Tudo bem, mas tome cuidado. Acabei de ver um homem do
Palhaço rondando a área. Achou que vou ficar com isso e prestar uma
visitinha.

47
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Me desculpe, ele devia estar atrás de mim. — Meu pai não
estava bravo, e sim orgulhoso. Mas sempre preocupado.
— Não se preocupe, não era o homem de cinza que você rou-
bou.
— Você… — Ele sabia tudo sem precisar de palavras.
— Sim. — Ele me interrompe. — Agora vá para casa. E leve o
dinheiro para sua mãe. Eu te amo, Molly. Até a janta.
— Até.
Eu me viro para ir embora, e em uma última olhada para trás, ele
não estava mais lá. O chão sob meus pés começava a sumir e aos pou-
cos uma queimação em minha perna direita.

***

Meus olhos se abrem com algum vestígio de dor em meu corpo,


como se eu tivesse sido triturada por um daqueles moinhos de grãos,
movidos pelo vento. Por um segundo eu sinto como se alguém me ob-
servasse de dentro, uma sensação que só pode ser causada pela mortília.
Talvez eu tenha ouvido uma intenção, algo que quer falar, mas eu estou
só meio acordada. Jennifer está com a cabeça baixa em uma cadeira
exprimida entre a parede e a cama, bem ao meu lado. Ela percebe meus
olhos e minha respiração e direciona sua visão a minha perna, depois,
ao meu rosto. Por uma fração de segundo eu pude ver minha mãe, en-
quanto os cabelos subiam revelando o rosto em um instante duradouro.
Sua orelha também me pareceu machucada, mas eu não podia confiar
no que vi. Afinal, eu não sinto mais machucado algum em mim, apenas
uma coceira insuportável na coxa direita. Devo estar delirando. Instinti-
vamente levo minha mão até o ferimento e quando minhas unhas iriam
abrir o corte, nada. Apenas uma cicatriz.
— Mas que… O que houve? — Eu tive um sonho sobre o pas-
sado, muito real. Estava desnorteada com Jennifer ao meu lado fitando
meu rosto com um olhar preocupado. Não entendo nada do que ocorre.
— Você apagou por umas duas horas. — Diz Jennifer.
— O que você fez? Minha perna está boa de novo.
48
Paulo H. Yamaguti
— Eu tive de passar erva de sangue. Ela cura qualquer coisa,
mas não pode ser usada mais de duas vezes. Você poderia ter ficado
perneta, Molly.
— Me lembro de Gareth falando sobre essa erva. — Digo e per-
cebo que a reação causada é triste. — Eu ainda tenho uma dose. — Re-
bato meu deslize com uma frase positiva e um sorriso.
— Eu estava com medo. Se a mortília passasse antes da erva,
você iria sofrer. — Seu olhar era vazio, como se ela entendesse sobre o
que ela está falando muito além do que ela gostaria.
— Não passou, fique tranquila. — Eu seguro sua mão que pende
apoiada em um dos braços da cadeira.
— Molly. Nunca use a terceira vez. Quase ninguém sobrevive.
A segunda já é difícil o suficiente.
— Tudo bem. — Meu estômago ronca alto. E Jennifer não con-
trola sua risada.
— Pode pegar algumas frutas sobre a mesa quando levantar para
testar a perna, você precisa comer.
— Obrigada, irmã.
— A Castanha vai sempre estar aqui, irmãzinha. — Ela sorri. —
É assim que eles me chamam. Quase todo o território de Gareth, agora é
meu.
— Ele ficaria feliz em saber disso.
— Ficaria. — Diz, ainda sorrindo, como se os anos regredissem
em sua expressão. — Bom, eu tenho coisas a fazer. Fique a vontade, a
casa é sua. Vou sair por um par de horas. Quando eu voltar, quero saber
sobre tudo. — Agora seu olhar é sério e me interroga brevemente, sem
palavras.
— Tudo bem, obrigada. — Minha voz sai levemente submissa,
como se eu estivesse me dirigindo a minha mãe.
Ela se levanta tomando cuidado para não bater a cadeira com
muita força na parede, e a leva junto para fora do quarto. Com um ace-
no ela sai pela porta da frente.
Esse é meu antigo quarto. Nós duas costumávamos dormir aqui,
juntas. O colchão improvisado era maior e pior do que esse, e ficava no
49
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
chão sem lençóis baratos. Só de pensar sobre o passado, me faz querer
chorar. Esses três anos foram como um sonho, ou talvez um pesadelo.
Mas eles não pareceram reais., e agora eu havia acordado, uma hiberna-
ção árdua e confortável. Aprendi muitas coisas, como por exemplo,
ignorar minhas dores mentais. E havia perdido outras várias, como parte
de minha sanidade e uma enorme quantia de benevolência, que juntas
levaram embora alguns aspectos morais importantes. Vez ou outra eu
me pegava abusando da paciência de algum servente da mansão, e me
divertia, infelizmente.
Reúno minhas forças e me levanto, o sangue seco faz com que o
pano fique duro. Removo as primeiras camadas de saias com bons pu-
xões. Meus sapatos estão limpos ao lado da cama, Jennifer cuidou de
tudo.
A única companhia no momento é o silêncio interno e os passos
apressados e palavras ofensivas do lado de fora de minha antiga casa,
calço os calçados e me ponho em pé. Meu corpo está fraco, como se eu
não comesse nada a dias. Pego uma limoneira suculenta e a mordo, eu
adoro o azedo da casca junto das gomas doces. Essa fruta é considerada
desagraçada na mansão, mas por Weh, é a melhor fruta de todas. Essa
em especial, a melhor das melhores, meu desjejum dos pratos caros e
pomposos. Frescurentos, eu diria, se é que o termo existe.
Resolvo me sentar na poltrona colocada racionalmente de frente
para a porta, de guarda. Uma espada pequena repousa ao alcance de
minha mão esquerda, escondida no chão fora da vista de quem entra.
Sinto uma leve ânsia em agarrar a lâmina e correr até a mansão, como
se a ideia fosse sensata. Matar Larry de uma vez. Se as limoneiras não
estivessem tão palatáveis e meu corpo tão abatido, eu descobriria que
forma minha alma tomou. Desejo a morte e a abraço, me aconchego em
seus prazeres carnais. Sinto sede e desejo tomar da taça da vingança,
um copo com o sangue do assassino que matou meus pais.
— Molly, você não é assim. — Digo a mim mesma. — Você
não é assim.

50
Paulo H. Yamaguti
Capítulo 6 — O Rei do Caos

Boris foi até a fábrica de Larry e o avisou de que havia uma


emergência, e que ele precisaria voltar até a mansão, imediatamente. —
Você precisa perder essa barriga se ainda quer voar como nos velhos
tempos. — Disse Tyler para convencer seu amigo a ser o portador das
más notícias. A caminhada era o de menos, Boris não queria ter de vol-
tar o caminho inteiro ao lado de Quincci. Por outro lado, não teria de
começar a limpar os corpos decapitados na mansão tão cedo. Na volta
ele parou por um minuto para virar uma caneca de hidromel e reerguer
sua coragem um pouco. O homem odiava ver pessoas mortas, apesar de
ter matado dezenas em seu tempo de serviço. Aquela bebida também
serviu de uma boa desculpa para andar separado do monstro cego.
Larry voltou preocupado, com Quincci o seguindo como uma
sombra. A caminhada levava cerca de vinte minutos, mas em cerca de
dezessete ou dezesseis aqueles portões brancos e grades altas deram
suas boas vindas rangidas ao se abrirem e deixarem a barriga e, imedia-
tamente depois, Larry entrarem, seguido por sua sombra e aquele que
anda como uma. O jardim era grande, ele diminuiu o passo até perto da
porta, onde viu Royal carregando dois corpos, um em cada ombro. Reti-
rou seu chapéu da cabeça e abanou-o, simbolicamente, como se o cheiro
do início da putrefação fosse sumir com o gesto.
— Royal! É… O que houve aqui? — Ele diz por entre seu bigo-
de que lembrava uma morsa, assim que coloca os pés dentro de casa.
Seu rosto era de espanto e nojo. Sua voz era aguda demais para seu pe-
so, mas há quem diga que as características se casavam.
— O líder da Contra União entrou na casa, matou sua mulher e
sequestrou Molly. — Royal diz enquanto solta os corpos que fazem um
baque seco no chão de mármore branco.
— O que houve com ela? — Sua voz fina soa preocupada.
— Teve seu pescoço quebrado.
— Eu estava falando de Molly. — Larry corrige o chefe da
guarda, como se o engano fosse óbvio.
51
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Bom, uma empregada tentou matá-la. — Ele para um instante
para não deixar escapar uma risada. — Ela de algum modo a matou
antes.
— Então ela despertou?
— Sim.
— Prossiga.
— Sua mulher abriu a porta do quarto e encontrou a cena, Molly
estava olhando para a servente morta no chão. Ambas correram até o
quarto do senhor e se trancaram dentro. Marie ordenou a limpeza de
segurança, e eu a cumpri.
— Por quê Tyler e Boris ainda estão vivos?
— Eu confio neles, os escolhi a dedo. E o senhor confia em
mim, não é?
— É… É claro, Roy, continue.
— Enquanto eu matava os últimos serventes perto da Marta
Morta, nos fundos, Gewir entrou na casa, matou Marie, e sequestrou
sua filha.
— Como você sabe que era Gewir? — Diz com um tom incré-
dulo.
— Quando eu estava voltando para checar as duas e ver se esta-
vam bem, ouvi a velha Marta Morta sendo destrancada, me virei, o vi, e
comecei a correr. Ele estava com Molly amarrada e sendo puxada,
quando cheguei na porta, já estava trancada. Provavelmente ele roubou
a chave mestra da Duquesa, tive de correr até a mansão, pegar minha
chave e continuar a perseguição.
— Pelo visto você demorou muito.
— Eu segui o rastro de Molly sendo arrastada até o templo fla-
geísta. — Royal ignorou o tom reprobatório de seu falso chefe. —
Quando cheguei, estava completamente vazio, eu desci até o rio e fi-
nalmente vi Gewir e Molly em um barco, provavelmente, rumo a Dirty
Town.
— Você, pegue Tyler e vá buscá-la na antiga casa dos Greenlay,
se ele não estiver lá, existe um albergue abandonado no limite entre
Dirty Town e Delekor, eles estarão lá. Você e Molly desperta serão su-
52
Paulo H. Yamaguti
ficientes para lidar com Gewir. — Ele claramente não conhecia, em
nenhum aspecto, o líder da Contra União.
— A caminho, senhor.
— Quincci, vamos voltar para a fábrica. — Ele se vira para a
porta. — E Royal, descubra o que o idiota queria com minha filha. —
Ele coloca seu chapéu de volta sobre a cabeça e começa a andar.
Por uma desventura, Boris estava chegando na mansão, um pou-
co mais alegre devido ao álcool, mas logo teve seu sorriso removido do
rosto. Larry explicou que seus dois amigos iriam buscar Molly e que ele
sozinho deveria pegar os vinte e tantos serventes mortos pela casa e os
queimar antes da hora em que ele chegasse em casa para comer e dor-
mir. O guarda real se sentia a pessoa mais azarada de Suntria, até que
viu os corpos decapitados. — Talvez não tão azarado assim. — Pensou,
e se pôs ao trabalho.
O Vendedor de Esperanças estava crente de que o melhor solda-
do aniliano que conhecia poderia matar Gewir. Aquele florete pesado e
um corpo quase tão grande quanto o de um meio scarlam, mas com a
inteligência aniliana, era imbatível, Larry pensava. Ele havia cogitado a
possibilidade do demônio que já havia matado muitos de seus homens,
possuir algum dom, mas ele nunca ouviu nada de seus informantes em
Dirty Town sobre isso. — Gewir não tinha chances. — Larry pensava.
Também sabia claramente do que o pai de Molly era capaz. Pensava
que se ela fizesse um décimo do que o pai fazia, mataria qualquer um
que ele conhecesse. Ou quase todos.
Quincci e Benny eram exceções. Ninguém podia ter uma habili-
dade mais mortal do que a que aqueles dois possuíam. Eles eram co-
nhecidos como os irmãos Mockblue, os maiores assassinos que Lush-
burg já viu. Até maiores que o grande Mãos de Relâmpago, pois aceita-
vam qualquer tipo de trabalho. Qualquer. Eles possuem o dom de ver o
movimento, como se tivessem olhos ao seu redor, em todos os lugares.
Qualquer coisa que se movia em seu raio de ação era visto. Por isso
ambos usavam fitas de pano cobrindo seus olhos, a visão era limitada e
enganava os sentidos tykerans. Quincci Mockblue, na verdade, havia
perdido seu olho esquerdo a vários anos, quando ainda esboçava algum
53
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
tipo de sentimento. Benny, por outro lado, é quem havia descoberto
como a cegueira podia tornar seu dom muito mais preciso.

A muitos invernos atrás havia um homem, um assassino para ser


mais preciso, fundou uma certa irmandade. Eles não eram conhecidos
por alma alguma além de seus próprios membros. Todos assassinos de
aluguel, que haviam se juntado para distribuir serviços mais fáceis para
os menos experientes e serviços mais difíceis para os mais. No começo
eram alguns poucos tykerans com dons e um fundador sem nenhum,
que logo deixou o grupo dizendo que um dia a marca de sua família
voltaria para liderar. No final, esse homem, um tykeram sem um dom,
acabou morto em um incêndio em sua própria casa.
O incêndio se espalhou por algumas casas vizinhas, e uma delas
era a dos Mockblue. O casal morreu o mais rápido que o fogo permitia.
Pode se dizer do fogo o mesmo que se diz da justiça, falha mas não tar-
da. Um dos irmãos, Quincci, despertou com o calor percebeu o incên-
dio. Ele poderia ter tentado acordar seu irmão Benny, mas um enorme
pedaço de madeira caiu sobre aquele rosto adormecido, o acordado e o
cegando. Queimaram as mãos e levantaram a madeira, o primeiro segu-
rou as mãos de seu irmão em prantos secos e o levou para fora, e de lá
foram acolhidos por alguns amigos de seus pais. A amizade era mais
rara do que a dignidade em Dirty Town, mas raridades são possíveis.
Tudo o que se seguiu foram dias de dor, até que a tristeza fosse
um estado constante e a dor estivesse marcada tão fundo em suas almas,
que eles não mais a sentissem. Ao longo dos anos, tudo aquilo que po-
dia ser chamado de sentimento, morreu. Para Benny, algo além disso.
As duas crianças se tornaram adolescentes e depois adultos, e quando
nada de melhor poderia surgir, se tornaram monstros. Mas mesmos
monstros possuem fraquezas, havia algo no fogo que os lembrava da-
quela fatídica noite em que perderam os pais, uma fraqueza que conse-
guiam esconder muito bem. A tristeza nunca se enterrava tão fundo a
ponto de nunca achar seu caminho para a superfície.
Em algum momento eles foram convocados a fazerem parte da
irmandade, mas não aceitaram. Além disso, escaparam de todas as ten-
54
Paulo H. Yamaguti
tativas de assassinato vindas dos assassinos. Continuaram a viver das
mortes até que um dia o Conde e o Vendedor de Esperanças lhes fize-
ram uma proposta inegável. Todo o dinheiro que quisessem, todas as
armas que precisassem, todas as mulheres que conseguissem satisfazer
e muitas execuções a serem praticadas. E, claro, todo o conforto que
eles nunca tiveram.
O que um bocado de ouro e um título não fazem? Rixas raciais
não eram nada perto de um bom negócio. Como dizia um velho ditado
aniliano nobre: “Se não pode com eles, compre-os.”. E então, os irmãos
Mockblue se tornaram os guarda costas pessoais dos dois mais podero-
sos do condado, e talvez, alguns dos homens mais poderosos do reino
inteiro.

Royal chama Tyler com um grito rasgado e se põe em pé na por-


ta da mansão. Ao longe ele avista Quincci e seu falso chefe. Aquele
chapéu com uma pena e abas curtas não combinava com o corpo gordo
de Larry, muito menos aquela camisa cheia de detalhes em várias ca-
madas de tons azuis e sua calça larga e marrom. Aquela aparência nobre
contrastava com a sombra ao seu lado. Uma tira de pano cobrindo os
olhos e cabelos negros caídos sobre os ombros, ele usava uma camisa
negra que sobrava, e calças grandes de mesma cor. Seu corpo possuía
inúmeras cicatrizes, mas nenhuma visível, ele era um homem, quase
livre de medos.
O chefe da guarda treme e Quincci, a pouco menos de duzentos
metros de distância, vira seu rosto sobre o ombro e esboça um sorriso.
— Ele me assombra. — Pensa Royal.
Tyler, com passos rápidos chega a seu encalço e ambos tomam a
direção de Dirty Town. Haviam muitos que matariam anilianos de nari-
zes empinados, sem pensar duas vezes, naquele distrito. Mas Royal ti-
nha em seu semblante uma marca deixada pela violência, ele carregava
em sua face a identidade de um soldado, ou melhor, um guerreiro. Sua
sede por uma boa briga pulsava a cada batida em seu coração, suas vei-
as quase gritavam através de suas rugas. Ao ver dos tolos, ele era o filho
de um scarlam com olhos anis, mas o que o tornou tão duro foram as
55
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
guerras. Esteve em todas desde que teve idade para tal. Matou mais
homens do que possui anos de vida. É um homem temível.
Tyler não passava uma imagem menos ameaçadora, apesar de
parecer um bebê perto de seu superior. Seus olhos cansados eram dife-
rentes dos de Roy, não mostravam uma vontade incontrolável de matar,
e sim, experiência. Quando mirava suas íris no fundo de outros olhos, a
alma amedrontada saberia que aquelas mãos eram rápidas e cortavam
carne como as mãos de um açougueiro. Mas sua bondade o impedia de
praticar a violência em corpos alheios.
— Sabe, nós estamos seguindo o homem certo. — Diz Tyler.
— Eu sei. — Royal sorri, da mesma maneira que uma pedra sor-
riria.
— Ele sabia que Larry iria nos mandar aqui, né mesmo?
— Desde o princípio. Acredito que ele nunca quis que Molly
morresse.
— Pois é, chefe.
— Nós estamos seguindo o homem certo. O Rei do Caos. —
Agora seu sorriso era um pouco mais sincero, talvez como o de um ga-
roto que admira outro, ao mesmo tempo em que sente uma saudável
inveja.
Apesar das instruções de Larry, os dois sabiam onde Molly esta-
ria. Na casa da castanha, a irmã de Molly, como gostavam de pensar,
mesmo que fossem primas. Eles nunca haviam se encontrado antes, mas
qualquer um que Gewir respeita, merece respeito, os filhos dessas pes-
soas também. Gewir possuía mais do que o simples respeito por qual-
quer Greenlay. A caminhada era longa, porém, melhor do que queimar
corpos no fundo da mansão.
— Ei, chefe, você acha que ela vai aceitar?
— É o plano de Gewir, sempre foi plano dele. Cada erro come-
tido e cada pequena decisão, ele, de algum modo, sabia de tudo. Desde
sempre, Tyler, desde antes da garota ser salva por vocês e morta por
mim, se lembra? — Ele espera um segundo para que seu subordinado
pudesse buscar a memória antiga. — Você já viu ele errar?
— Nunca.
56
Paulo H. Yamaguti
E o assunto havia acabado.

57
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 7 — Marionete

Duas batidas na porta, depois mais três e outras três logo em se-
guida. Eu me assusto a princípio, mas então me lembro do que Royal e
Gewir me contaram mais cedo. É o código da Contra União. Simples
demais, na minha opinião.
— Quem é? — Pergunto, mesmo tendo certeza de quem era.
— O seu sequestrador. — Ouço sua voz abafada e humorada.
Me levanto com a espada em mãos e me dirijo até a porta. Havia
uma chave na tranca. Eu a giro e pulo para trás, pronta para qualquer
coisa.
— Entre.
A porta se abre lentamente, como se fosse o vento fraco que leva
nuvens claras embora. Ele está parado, com o mesmo gesto da primeira
vez em que o vi, curvando-se diante de mim.
— Olá, senhorita.
— Entre logo.
Com um sorriso falso, ele entra, seguido do som da corrente ar-
rastada.
— O que você quer?
— Comer algo. — Ele anda em direção a mesa enquanto eu
tranco a porta novamente.
Gewir pega uma fruta na mão, a olha com uma cara de desgosto
e a põe de volta. Um rápido olhar em meus olhos e novamente mira a
mesa. Haviam algumas folhas razoavelmente grossas, de papel, ao lado
das limoneiras, quase que amarelas, em branco.
— Você sabe o que são?
— Papel.
— Não. Na realidade, quase. Isso é papel de mel. Não sei aonde
sua irmã conseguiu isso, mas vou pegar um.
— Faça como quiser, ela não vai ficar feliz em te ver aqui de
qualquer maneira.

58
Paulo H. Yamaguti
— Sabe. — Ele ignora completamente o que eu havia acabado
de dizer. — Isso vem de Nipporia. Só é feito por lá, experimente um.
— Você ouviu o que eu disse? — Ele segura uma daquelas fo-
lhas grossas e rasga ao meio. A borda começa a se liquefazer.
— Coma as bordas, rápido, antes que escorram. — Ele não ou-
viu e começou a rir.
Eu mordo toda a borda rapidamente e, surpreendentemente, as
partes que encostaram em minha saliva não estão mais derretendo. Sin-
to como se isso fosse a obra de algum mago idiota em um momento de
tédio. Gewir fez o mesmo.
— Tem gosto de mel, ou caramelo. Não sei. — Entro no jogo
dele.
— Sim, doce como a vingança, não é? — Ele tinha um ponto em
tudo isso, me lembrar de Larry.
— Não tanto. — Eu senti meus poros suando frio e meus dentes
rangendo, sendo apertados uns contra os outros inconscientemente. —
Eu vou matar aquele gordo, hipócrita, desgraçado…
Ele interrompe meus insultos e continua a falar.
— Mas, para tal, você precisa entrar na mansão mais uma vez,
como uma filha, como fingia ser até essa manhã. E precisa continuar o
bom trabalho com sua atuação.
— Talvez.
— Você precisa estar do lado de Larry sem que Quincci esteja
presente.
— O que você pretende? — Ele estava certo, Quincci era uma
aberração e eu nunca conseguiria matar o Vendedor com ele o seguindo
como uma sombra. Pelo menos, não sem morrer no ato.
— Você entende rápido como funciona o jogo, igualzinha seu
pai.
— Eu ouço a droga das suas intenções. — Explico, com raiva.
— Então?
— Não vou mentir, nem omitir. Eu quero que você não só mate
Larry, mas também mate o Conde. — Rio forçadamente ao ouvir aque-
las palavras.
59
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Nunca ouvi nada tão absurdo na vida. Sério, o que você quer?
— Pergunto, mesmo sabendo que ele nunca teve a intenção de mentir.
— Você terá uma oportunidade, sem aqueles dois assassinos por
perto. — Talvez essa não fosse uma piada fora de hora.
— Explique.
— Eu posso te colocar de volta na mansão, sem suspeitas de que
você tomou o meu partido. Mas você precisará ganhar a confiança dele.
Consegue?
— Eu não tomei o seu partido de merda. Você é idiota? — Eu
estou exaltada, mas ele merece ouvir os xingamentos.
— Consegue! — Me ignora enquanto sorri.
— É claro que sim. — De qualquer maneira, eu não iria ganhar
da imbecilidade e ignorância em um diálogo.
— Você não vai poder matá-lo antes da hora certa, quando os
dois estiverem lado a lado. Entende?
— Vai ser difícil aguentar.
— Você não conseguiria, de qualquer maneira. Quando foi que
viu Larry sem Quincci ao seu lado nesses anos?
— Nunca. — Eu tenho de admitir, ele está certo.
— Você vai ter sua chance, eu sei que vai. E quando eu sei, você
pode confiar.
— Difícil confiar no idiota que enfiou uma faca na minha perna.
— Fácil confiar no homem que já salvou a vida do seu pai. —
Ele fala a verdade, não ouvi a intenção de mentir. — E você sabe que eu
falo sério.
— Eu confio em você. — Minto parcialmente. — Mas quando
será essa chance?
— Assim que você conseguir a confiança dele.
— Eu te odeio, já te disse isso?
— Hoje de manhã.
— Depois dos dois, eu vou atrás da sua cabeça. — E minha fala
desperta uma gargalhada.

60
Paulo H. Yamaguti
— Essa foi a coisa mais absurda que eu já ouvi. — Ele não po-
dia ser tão forte assim. Mas estava confiante no que dizia, assim como
toda vez que abria a boca.
— Como você vai me por de volta?
— Última coisa. Não tente matar ele antes da sua oportunidade,
está bem? — Ignorando o que eu digo novamente. — Royal vai te dizer
o que fazer.
— Sim. Mas… — Ele vira as costas, abre a porta e se mescla ao
movimento de pessoas nas ruas.

Por quê eu confio nele? Sei que não mente, sei que é forte, sei
que poderia ter me ferrado, se quisesse, mas ainda assim, não sei dizer o
motivo. Enfim, tudo o que quero no momento é matar Larry. Se preciso
matar o Conde e conseguir a confiança do assassino dos meus pais, não
importa. No final ele vai morrer confiando em mim. Isso é o suficiente
para que eu espere. Isso e minha vontade de manter a cabeça grudada
no pescoço. Além do que, negligenciar dores é um dos meus pontos
fortes. Pelo menos é o que me manteve sã nos últimos anos. Era como
se eu não sentisse grande parte dos meus sentimentos, como se eles fos-
sem faíscas tentando acender palha molhada.
Quase que um minuto após Gewir sair, a porta se abre. Eu ainda
estou em pé com a espada em mãos. Assim que vejo a forma de uma
pessoa na porta, levanto a lâmina. Apenas Jennifer. Abaixo a arma e a
coloco de volta em seu lugar.
— Eu deixei a porta aberta?
— Não, eu abri ela.
— Por quê? — Ela está realmente curiosa, apesar de sua voz so-
ar reprobatória o suficiente para esconder a curiosidade. Suas intenções
de saber o motivo são maiores do que as de me confrontar.
— Gewir veio aqui, eu abri a porta. Me desculpe. — Me sinto
mal por isso.
— Tudo bem, você não sabe o que ele fez.
— O que ele fez?

61
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Alias, você tem visitas. — Até ela ignorando o que eu digo,
ótimo! — E eles estão apressados.
Royal e Tyler entram. Estão com rostos e roupas sujas, como se
tivessem brigado com alguém.
— Vamos voltar para mansão. — A voz gutural diz.
— Você encontrou com ele agora?
— Ele? Gewir? Não. — O desgraçado tinha tanta certeza de que
eu iria concordar com o plano, que isso já fazia parte do total.
— Tudo bem, vamos. Só me dê um minuto com minha irmã.
— Não temos tempo. Larry pode suspeitar de algo, vamos logo.
— Suas palavras soariam insensíveis vindas da boca de outra pessoa,
mas Royal demonstrava tanto sentimentalismo quanto um galho que-
brado. Soaram simplesmente factíveis.
Eu suspiro, olho para Jennifer, olho para o baú ao lado da cama
pelo canto do olho. Tudo estaria aqui, assim que eu terminasse o que
tenho de fazer. Se eu sobreviver de alguma maneira ao que está por vir,
é claro. Três anos como uma marionete de Larry, agora sou uma mario-
nete de Gewir. Ótimo. Se eu não estivesse acostumada a ficar quieta,
devido aos três últimos anos, eu estaria gritando agora. Por sorte, o
tempo me mudou. O dia de hoje, no entanto, foi o ápice, abracei a vin-
gança. Esse sentimento me tomou, colocando fogo na palha molhada.
Como se fosse o calor da manhã em uma noite fria, alcançando cada
músculo de meu corpo e me deixando pronta para levantar me sentindo
nova. Tudo o que eu precisava era de uma morte. Uma única morte.
— Jenny. Me desculpe, mas eu tenho de ir. Quando eu resolver
meus problemas, volto para casa, com você. — Eu dou um abraço nela.
— Eu nunca me intrometeria na vida da minha irmãzinha. Você
sabe se cuidar. Só não demore mais três anos.
— Eu volto o quanto antes. Se cuide.
— Você também.
Nós duas estamos tristes e felizes, em igual intensidade, mesmo
que não demonstrássemos. As sobrancelhas apontam para o centro e
para cima, enquanto as bocas sorriem. As lágrimas estão sendo barradas
pela esperança de que logo eu voltaria e pelo clima duro de Dirty Town.
62
Paulo H. Yamaguti
Eu me sinto feliz, e pelo contraste com os sentimentos ruins, era como
se fosse a maior felicidade de minha vida. Minha irmã estava viva e
bem e, por hora, isso bastava.
Conforme ando, olho para trás. Ela está lá, olhando para minhas
costas, pronta para correr e me trazer de volta. Eu estou pronta para
voltar correndo e desistir de dar o troco, mas algo dentro de mim preci-
sa ser saciado. Há uma fome diferente, que os waffles no café da manhã
não saciariam, nem mesmo uma limoneira ou qualquer outro tipo de
comida. Eu preciso da cabeça de Larry rolando no chão. Após alguns
metros, resolvo parar de me virar para olhar Jennifer. Isso não é defini-
tivo. Só preciso resolver uma última coisa, e sentimentos me atrapalha-
rão. Meus pais não se orgulhariam do que eu decidi, muito menos Jen-
nifer, se soubessem meus motivos para voltar até a mansão. Mas ética
não é algo que mantém gargantas intactas, e nunca será.
A vingança, muito menos.

63
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 8 — Blackard

— Dessa vez vai dar certo, sim, sim, sim. Dessa vez eu vou te
ajudar. — Dizia uma voz fina e macabra em um beco de Wealthill vin-
da de um rapaz de aparentes vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.
Talvez menos ou mais, não havia como saber. Ele trajava vestes negras
e rasgadas, disformes, que cobriam seu corpo como se tivessem sido
jogadas sobre ele. Sem cerimônias, apenas jogadas. Seu nome era Rohe
Blackard, de uma família que surgiu a partir da união de duas tradicio-
nais famílias tykerans, cujos nomes não são importantes nos dias de
hoje. Com o passar dos anos, muitas crianças dessa família começaram
a nascer sempre com o mesmo dom, o de ouvir o silêncio. Tudo que não
pode ser falado ou que simplesmente é omitido pode ser desvendado
por essas pessoas, mas nada muito certo se sabe sobre, além de que to-
dos nascidos com tal poder acabavam tendo uma morte trágica. Ele ain-
da não era um alvo eminente do último sono, mas o destino costuma
não errar, principalmente se tratando de um espécime como esse.
Não muito distante dali, Larry estava indo em direção a sua fá-
brica, não queria ficar em casa enquanto corpos eram movidos e quei-
mados. Ele possuía uma destilaria, de onde vinha todo suprimento de
gorzalka do condado, daí vem seu título de Vendedor de Esperança. A
única coisa que traz esperança as pessoas é o álcool.
— Eu posso ouvir ele chegar, sim, sim, sim. Eles estão me con-
tando. Eles estão na rua de traz. — Com um pulo, que mais parecia um
gato se debatendo enquanto tem uma convulsão, Rohe sai debaixo de
sua pilha de lixo, que o manteve aquecido durante a noite que passou.
Diga-se de passagem, aquecido e alimentado. — É hoje que Senhor
Esperança vai morrer! — Sua voz ficou grossa de repente, como se a
voz fina fosse mera atuação digna de um ator quadjuvante em decadên-
cia no decadente e monótono cenário teatral anil.
Ele retira um arcabuz, sabe-se Weh onde ele o conseguiu, de sua
cama em decomposição. — Três, dois, um. Morre! — Um disparo se
ouve e um vulto sai correndo dando piruetas e se contorcendo em dire-
64
Paulo H. Yamaguti
ção a floresta, onde era sua casa. Um disparo de precisão duvidável,
visto que a duzentos metros de distância seria difícil acertar um elefante
com aquela arma.
No exato instante que Larry vira a esquina aquela bala estava na
metade do caminho, indo diretamente em direção de seu nariz empina-
do. Quincci já possuía conhecimento sobre a bala, com um impulso
sobre humano, vira a esquina e com sua wakizashi desembainhada ele
desvia a bala com um corte extremamente preciso. Sua habilidade per-
mitia que ele tivesse conhecimento sobre tudo a sua volta. Mas ele não
poderia perseguir seu alvo deixando Larry desprotegido.
A arma preferida de Quincci era a espada oriental wakizashi,
curta e precisa. Um dos motivos de seu apreço por Larry é que o mesmo
podia sustentar sua obsessão pelas espadas, pois seu custo de importa-
ção era alto demais, e ele precisava de armas feitas por verdadeiros
mestres safírios para poder apresentar a luz no fim do túnel de maneira
apropriada aos seus alvos. Benny, por outro lado, gostava de Chakrans,
uma arma extremamente difícil de ser usada de maneira correta, que nas
mãos desse guerreiro tyke eram extremamente perigosas. Os discos de
madeira, revestidos com metal para dar a lâmina, ricocheteiam nas pa-
redes de maneira imprevisível. Apenas com o dom dos gêmeos pode-se
utiliza-los sem perder um dedo, na melhor das hipóteses, tentando agar-
rá-los em voo.
— O que aconteceu, Quincci? — Assustado, Larry pergunta a
seu guarda costas depois de pular para trás como um rato pula ao ver
um felino. Por pouco não caiu para trás, mas seu centro de gravidade foi
fiel.
— Rohe tentou te matar outra vez. Ele está correndo em direção
a floresta. — A voz de Quincci era uma raridade. Era rouca como se
viesse de uma pessoa morta tentando dar seu último suspiro. Um som
que não deveria ser escutado.
— Tudo bem, enquanto você estiver como meu guarda costas
nada nessa cidade consegue me atingir. — Quincci toma isso como um
elogio e concorda com a cabeça. — Comprarei outra espada como um

65
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
símbolo da gratidão por ter me salvo. — Era o que ele esperava. Ganhar
um novo brinquedo a cada simples desviar de bala que realizava.
— Obrigado.
— É… Sabe de uma coisa? Preciso contratar mais pessoas para
cuidar da mansão. — Ele diz e coloca as mãos na cintura por um mo-
mento como se aquilo fosse uma conclusão sábia, como se sua pose
significasse algo.
Quincci não diz nada, apenas faz um leve gesto com a cabeça,
concordando com seu chefe. Eles começam a andar para outra direção,
o Centro de Lushburg. Lá ficava o maior comércio do condado, onde a
maior parte dos bonevitos faziam suas compras, e alguns poucos desa-
graçados também.
Diferente da feira de Dirty Town, lá havia todo tipo de coisa útil
e bem feita. Mas principalmente, comida e roupas. No entanto, o que
Larry procurava naquele lugar eram novos serventes e talvez alguns
guardas. Mas para os homens armados, ele teria de passar no castelo de
Lushburg.
Em meio as barracas de comidas exóticas e tecidos de todas as
cores e texturas, haviam muitos tykerans trabalhando, com salários mui-
to baixos. Para serem fisgados pelo gordo de olhos anis não levava nem
o vislumbre do dinheiro, apenas ouvir os números já os deixavam ani-
mados.
— É… Você, tykeram, não é mesmo? Venha cá! — Ele chama-
va um homem de cerca de trinta anos de idade, que estava removendo
as penas de uma galinha com o pescoço recém quebrado.
— Senhor? — Os tykerans temiam os anis, ainda mais os no-
bres. Sua cabeça estava baixa, e sua voz era tremula.
— Quanto você ganha aqui?
— O dinheiro para dar pão aos meus filhos e leite algumas ve-
zes, senhor. — Todas as palavras saiam de sua boca sem desviar o olhar
do chão.
— Você já viu um hílio? — Os olhos do tyke brilharam para o
cascalho.
— Nunca, senhor.
66
Paulo H. Yamaguti
— Pegue esse, você vai trabalhar para mim, a partir de amanhã.
E consiga mais três homens e cinco mulheres de confiança. — Larry
sorri enquanto fala, e o enganado tykeram se sente em um dia de sorte.
Ele nem se dá ao luxo de perguntar quanto iria ganhar, muito prova-
velmente por medo de insultar e acabar morto.
— Muito obrigado! Muito obrigado! — O tykeram diz. Larry
responde com um abano de seu chapéu, sem palavras, como se o gesto
tentasse fazer o tyke parar de sorrir.
— Você sabe onde fica a entrada de Wealthill partindo daqui?
— É claro!
— Esteja lá, as seis da tarde, amanhã, com os outros. Combina-
do?
— É claro, senhor!
Larry pensa. — Mais fácil do que deveria ser. — E então anda
mais vários metros até avistar uma minúscula casa sem paredes, com
várias mesas de madeira e cinco mulheres tykes cozinhando e cuidando
do negócio. Larry caminha, lentamente, até uma das mesas e senta-se.
Logo uma delas aparece para atendê-lo. Ela possuía um lenço azul no
pescoço, e tinha um rosto muito bonito, apesar de sua adolescência ter
acabado a anos. Usava um espartilho meia boca marrom e uma camisa
branca por baixo, e por fim, uma saia rodada que tampava seus pés e se
arrastava pelo chão. E assim como as outras, olhos castanhos.
— Posso ajudá-lo? — Ela sorri, quase que sem medo do nobre a
sua frente. Uma mulher forte e decidida. Burra, porém, forte e decidida.
— Qual o seu nome?
— Judith, meu senhor.
— Você sabe cozinhar, Judith?
— Sim, e muito bem, senhor.
— E suas colegas ali no fundo?
— Qualquer coisa que quiser, sabemos fazer.
— Ótimo, eu estou contratando todas vocês para trabalharem em
minha mansão.

67
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Mas nós… — E três hílios rolam sobre a mesa. A mulher pa-
ra sua frase, mesmo sem o dinheiro seria mais seguro parar a frase. Ju-
dith gostava da própria vida. — Quando começamos?
— Amanhã, as seis horas da tarde, na entrada de Wealthill mais
próxima daqui.
— Estaremos lá, senhor.
— E por favor, a melhor bebida que tiverem.
Aquela cerveja avermelhada era realmente boa. — Nada como
os vinhos e a gorzalka, mas, legitimamente, uma ótima bebida. — Foi o
que ele pensou enquanto Judith pegou as três minúsculas moedas de
ouro depois de lhe trazer aquela caneca de madeira. O homem gordo e
nobre foi deixado sozinho, para apreciar a bebida, enquanto as mulheres
se deliciavam com o toque raro do ouro.
Larry terminou de beber todo o conteúdo e se levantou, seguido
por Quincci, que estava sentado ao seu lado, se passando por um estra-
nho, mas vigilante. Ele saiu daquela casa aberta e começou a andar em
direção ao castelo. O sol dizia que eram duas e meia, talvez três da tar-
de, com a distância do verão aumentando, os dias estavam diminuindo,
talvez fosse mais cedo. Por mais uma hora ele andou até chegar no cas-
telo, onde era recebido como um morador. O Conde não estava, mas
seus assuntos eram com o representante da guarda real em Lushburg,
Bartolomeu Latrocci. Um aniliano de cabelos grisalhos, sua idade esta-
va na casa dos sessenta anos, metade do que um aniliano costuma viver.
Sua armadura repousava em um manequim no canto da sala e sua espa-
da estava sobre sua mesa, uma lâmina que nunca provou o gosto do
sangue. Um mero adorno afiado, mais bonito do que útil. Trajava vestes
azuladas e nobres e um bigode ralo o qual costumava passar a mão en-
quanto se concentrava. Ele estava assinando documentos coçando seu
buço quando Larry entra.
— Bartolomeu. — Larry faz um gesto com a cabeça cumpri-
mentando o homem. — A quanto tempo não venho falar com você, não
é mesmo?
— Desde que você estava bêbado a uns meses atrás. — Ele co-
loca seus afazeres de lado.
68
Paulo H. Yamaguti
— Eu não me lembro disso. — Eles falavam como verdadeiros
amigos. — Como anda a vida?
— O de sempre, o trabalho aqui é sempre fácil. Só peço mais
guardas para a capital quando algum aqui morre. — Uma breve risada,
meio falsa, meio forçada. — E você, Vendedor de Esperança?
— Consegui me livrar de Marie, finalmente!
— Até que enfim! O que você fez?
— É… Dei um jeito dela ir embora, nada que valha muito a pe-
na contar. — Um sorriso que tenta mudar de assunto se forma e é se-
guido por um projeto de risada mesclado a um engasgo.
— Agora vai por uma pele mais macia na sua cama?
— Acho que já está na hora de eu levar Amélia para casa.
— Ainda com essa? Você deve amar ela mesmo.
— Algo assim. — Arqueia a boca rapidamente, como um sorriso
falso que findava o assunto.
— Mas o que te traz aqui para falar comigo? Você nunca vem
até o fundo do castelo.
— Eu preciso de guardas novos. Limpeza de segurança, sabe?
— Royal está matando meus guardas? — Ele joga um rápido
olhar reprobatório a seu amigo.
— Apenas quatro, aqueles dois, Tyler e Boris, estão vivos.
— Eles são bons amigos de Royal. O homem salvou a pele da-
queles dois mais vezes do que eu tenho dedos na mão. — Bartolomeu
levanta sua mão direita, onde faltavam seu mindinho e o anular. Ele dá
uma pequena risada. Larry também ri.
— Mande-me quatro soldados, amanhã.
— Às seis da tarde.
— Você me conhece.
— Você é previsível. — Bartolomeu ri.
— Bom te ver, Bart. — Ele da um toque em seu chapéu e inclina
a cabeça, como um sinal de despedida.
— Apareça mais vezes, temos muito o que conversar.
— Pode deixar. — Mente e se vira, anda em direção a porta on-
de Quincci o esperava.
69
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Larry caminhou de volta para sua mansão com passos lentos, a
tarde já chegava e junto dela uma das últimas noites realmente quentes
antes da chegada do inverno. O condado estava velho e decaído. A po-
pulação havia aumentado nas últimas décadas. Larry estava com seus
cinquenta e tantos anos de vida e já havia visto várias faces dessas ter-
ras. Alguns fios de cabelo começavam a ficar brancos, mas ele se sentia
orgulhoso do que havia conseguido, mesmo que desonestamente. — Se
tudo der certo, e tudo vai dar, eu vou ser o homem mais rico do reino.
— Pensa enquanto entra em Wealthill. Ele avista uma casa de muros
negros e altos, que lembravam um pequeno forte abandonado. Ao pas-
sar em frente aos portões, diz em voz baixa. — Desgraçado. Logo vou
te ferrar. — E contínua sua caminhada até seu lar.
— Quincci.
— Sim?
— É… O que você pensa sobre mim?
— Você me paga, eu mato e te protejo. Não há muito o que pen-
sar.
— Ótimo! — Ele sorri, como se essa fosse a resposta que ele
precisava. — Ótimo, mesmo!

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Paulo H. Yamaguti
Capítulo 9 — De Volta Para Casa

Enquanto saíamos de Dirty Town, vimos um homem correndo,


marchando, andando e se debatendo em um único deslocamento absur-
do e inapropriado. Royal me disse que ele era louco e que tentava matar
Larry de tempos em tempos, sem nunca conseguir. E por ironia, sem
nunca dar a chance de ser pego, como um infindável jogo de gato e rato.
Seu nome era Rohe, Tyler disse. E Royal complementou dizendo que
para que eu conseguisse a confiança de Larry, matar Rohe poderia ser
de grande ajuda, mas que isso seria algo difícil de ser realizado. — Não
que eu ache que você não seja capaz, mas ele é problemático. — Disse
o chefe da guarda dos Richeist. — E isso pode servir de treino para o
que está por vir. — Disse após, sem realmente esclarecer que droga está
por vir.
Desde meu café da manhã mal sucedido, tudo que está presente
em minha vida é a morte. E por Weh, como um café da manhã poderia
ser mal sucedido? O sol me diz que o outono está acordando, sereno e
sorrateiro, como que preparando o caminho para algo pior. Talvez já
sejam quatro ou cinco da tarde, talvez duas ou três. Eu sinto como se
essa manhã houvesse ocorrido a uma semana atrás. A morte de Marie,
uma facada em minha perna, meu sequestro, a descoberta do verdadeiro
assassino dos meus pais, um contrato verbal com Gewir, descobrir que
minha irmã ainda estava viva, tudo isso é demais, para um dia apenas.

Meus pés estão cansados e, finalmente, avisto aqueles portões


brancos. Esse momento é algo raro para mim, vê-los de fora. Todas as
vezes em que isso acontecia, eu me lembrava daquele primeiro dia, da
primeira vez que entrei aqui. Mas dessa vez é diferente, eu quero estar
aqui. Comer da comida dele, usar as roupas que ele me deu, chamá-lo
de pai e vê-lo sorrir. Quero que ele me ame como uma filha e quero
matá-lo quando ele me amar.
Nos tempos antigos, quando as quatro grandes raças ainda vivi-
am separadas e reinadas pelos filhos de Weh, existia um termo que des-
71
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
crevia a vida pela virtude, sem a busca por riqueza, poder, luxúria e
renome. O termo era “cinismo”. Uma enorme parte da população tyke-
ram adotava tal termo como filosofia de vida, mas por algum motivo,
essa filosofia não perdurou. Quando as guerras primordiais começaram,
o termo perdeu seu significado. As outras raças distorceram o que os
tykes chamavam de “cinismo”, e o termo ganhou um novo significado.
Como os olhos castanhos escravizaram o povo de Brumalius e de Ama-
thius, o cinismo se tornou um sinônimo de descaso com a sociedade e
de distorção moral.
Por sorte, eu sou cínica o suficiente para conseguir me manter
equilibrada até minha melhor chance de rasgar a garganta de Larry. Eu
quero ver ele se perguntar o motivo disso com seus olhos perdidos em
sua própria falha.
Atravesso os portões depois que Royal os abre. Vejo uma fuma-
ça vinda do fundo da mansão, provavelmente originada dos corpos sen-
do queimados. O cheiro me traz a mente o de carne cozinhando com um
toque de cinzas, o que chamam de churrasco, não me agrada muito, mas
eu ainda estou com fome. Por mais estranho que isso possa parecer,
meu estômago roncou em protesto. A erva de sangue, além de consumir
muitas energias do corpo, deve levar embora uma pequena porção de
sensatez.
Eu sinto pressa para enfiar algo goela a baixo, mas estou cansa-
da demais para correr. Ando devagar pelo jardim. Muitas flores, verme-
lhas, amarelas e roxas, em padrões nada criativos e decisivamente mo-
nótonos. Ao meu lado direito existe um quiosque, o qual tinha o propó-
sito de ser um local para os homens beberem e prosearem, mas que
nunca foi utilizado. A esquerda, uma mesa de chá sob um enorme guar-
da sol branco, feito com algum tecido caro demais para tal fim. Nunca
entendi como algo que sai do cu de uma lagarta pode ser considerado
nobre. Logo em frente a porta, três degraus semicirculares, cada um
com o raio menor que o anterior, e finalmente a porta, feita de alguma
madeira que desconheço o nome. Mas que não chegava nem perto da
beleza daquela entalhada no quarto de Larry.

72
Paulo H. Yamaguti
A mansão se encontra aberta, e o cheiro que faz seu caminho pa-
ra fora é mórbido. Dou alguns passos até me acostumar e logo não per-
cebo nada além das listras de sangue que convergiam para os fundos,
todas pintadas pelos corpos arrastados com desdém. Boris voltava pela
cozinha, que dá acesso aos fundos.
— Vocês voltaram. — Ele olha para Royal com uma expressão
cansada. — A parte divertida já acabou, chefe.
— Muito bem. — Boris se dirige para frente, aos portões junto
de Tyler, que havia ficado de guarda quando chegamos.

Royal havia conseguido a confiança de muitas pessoas no exér-


cito real, mas seus dois seguidores eram especiais. Eles faziam parte da
divisão dos stukas, eram bombardeiros arremessados por catapultas
equipados com bombas de pólvora prensada, pseudo asas que garantiam
que planassem e um pedaço de pano resistente amarrado com cordas
que tornava possível ter uma queda não fatal e mais lenta. O batalhão
sempre chegava junto da linha de frente, e pegava o inimigo por trás,
uma vez que estariam debilitados devido as bombas que choviam e sol-
dados com canhões vindos da frente de batalha. Nenhuma parede de
escudos tykeran conseguiu resistir às táticas de guerra anilianas. Tyler e
Boris eram os melhores stukas do exército, até serem acusados de trai-
ção por ajudarem uma criança de olhos castanhos inocente. Ela estava
dentro de sua casa em uma área de guerra das trincheiras ao leste. Os
dois soldados anis a protegeram e a levaram até um dos hospitais de
guerra. Eles receberiam a desumana pena de morte herdada dos casta-
nhos se não fosse por Royal, o general responsável pelos stukas e algu-
mas outras unidades não menos importantes. Roy, teve um momento
muito breve de compaixão pela garotinha arrancando sua cabeça rápido
demais para que ela sofresse, enquanto ela ainda estava deitada em uma
cama sendo tratada no dia seguinte de sua chegada ao campo aniliano.
Ele também anunciou que isso foi um pedido de desculpas pelo engano
de seus soldados e que o assunto havia morrido, junto com a pequena
tykeram. Não houveram mais acusações contra os dois e Royal havia
conseguido dois soldados para a Contra União. E sobre o médico que
73
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
aceitou cuidar da garota? Acabou como a maioria dos homens acaba em
uma guerra.
Ele havia me contado essa história durante o percurso de volta, e
eu finalmente entendi a piada de Gewir quando estávamos a beira do
rio. Me peguei dando uma risada pensando sobre seu jeito com os en-
fermos.
Por algum motivo eu estou parada no saguão de entrada, olhan-
do o lustre e as escadas, como se aquilo tivesse um ar diferente do que
eu estava acostumada.
— Maldito brilho de sangue na prataria! — Digo em voz alta.
— O que? — Royal pergunta. Sua intenção é de se fazer de mal
entendido.
— Nada. Era só algo que eu sempre penso.
— Molly. — Ele me chama após uma pausa.
— Sim?
— Lembre-se do que combinamos no caminho.
— Eu me lembro.
— Agora vá descansar. Use um dos quartos de hóspedes. Nin-
guém nunca os usa de qualquer maneira.
— Está bem.
— O seu quarto precisa ser limpo. Você fez uma boa bagunça.
— Ele sorri enquanto fala, sua intenção era uma mescla de me elogiar e
caçoar. Eu recebo como um elogio, é mais fácil assim.
— É. — Respondo, sem muitas forças.
Me viro e começo subir as escadarias. Dessa vez vou pelas da
direita, que terminavam em um corredor análogo ao corredor onde meu
quarto se encontra. Assim como no outro lado da casa, haviam vários
quartos e dois maiores, um em cada extremidade. A escadaria terminava
no meio do corredor. Eu escolho o quarto mais afastado da entrada, que
ficava na mesma posição que o meu. Vejo marcas de sangue saindo de
alguns dos quartos, mas o último está a salvo.
Giro a maçaneta e por um segundo tenho a sensação de que
Lyade estaria estirada em minha frente. Sinto um certo enjoo pela ima-
gem que se formou em minha mente, mas quando olho para o chão, a
74
Paulo H. Yamaguti
sensação vai embora. Eu estou faminta, mas meu cansaço vence. O sol
não ilumina esse lado da casa durante a tarde, a penumbra me convida
gentilmente para o aconchego dos lençóis virgens. Me deito, sem prepa-
rar a cama como a Duquesa havia me ensinado. — Dane-se a Duquesa.
— Eu teria dito se houvessem forças, mas um pensamento foi tudo o
que consegui realizar.
Olho para o teto sem nenhum buraco, intacto. Minha vista se
cruza e gira. Acredito que ainda exista um pouco da mortília em meu
corpo. Sinto um abraço reconfortante, e pego no sono, com a sensação
de que eu nunca mais acordaria, a vida se torna um pesadelo.

***

— Oi, pai! — Pergunto animada. — Como o palhaço estava? E


como ele está? — Levanto-me do pequeno sofá e corro em direção a
ele.
— Molly. — Ele sorri. — Eu trouxe isso dele. — Gareth joga
uma carteira no ar em minha direção.
— Obrigado! — Eu sorrio de volta enquanto pego a carteira em
voo.
— Isso vale muito dinheiro, não fique por aí mostrando para
seus amigos. É couro de dragonio.
— O que é dragonio?
— É um lagarto. Parecido com uma lagartixa daquelas que an-
dam pelas paredes, mas muito maior. Do comprimento da carroça do
velho Logan.
— Muito dinheiro?
— Você, sempre pensando em dinheiro. Mas sim, muito.
— Com muito dinheiro eu posso comprar comidas para casa.
Agente pode ter um jantar muito bom!
— A carteira é sua, pode fazer o que quiser. Até vender, não li-
go. — E Gareth da uma risada reconfortante.
— Obrigada. — Eu o abraço.

75
Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Ela era do palhaço, melhor não ficar aqui de qualquer manei-
ra, não é?
— Eca! Melhor jogar fora! — Brinco. Melhor vender.

***

Alguém bate na porta. Novamente uma memória roubava meu


tempo de sono. Me lembrei por um instante sobre como era minha vida
em Dirty Town. Tínhamos muito mais do que qualquer outra família no
distrito, mas ainda assim, quase todos os lucros da venda de mortília era
usada para a fabricação de mais entorpecentes. O que sobrava nos per-
mitia ter refeições satisfatórias, na maioria das noites. Eu e Jenny pas-
sávamos os dias aprendendo a lutar e roubar. Gareth nos ensinava a
bater carteiras, mas ele sempre nos alertava para nunca fazer isso em
Dirty Town e nunca fazer isso em Wealthill. Algumas vezes eu ignora-
va a regra, mas na maioria, eu entendia a preocupação. Apesar das atro-
cidades que meu pai cometia, éramos uma família feliz. Pelo menos, até
três anos atrás, quando Larry acabou com tudo. Desde então, passei a
não ver tanta felicidade, e passei a fazer parte de uma família de duas
pessoas. Agora, me dedico simplesmente a um único fim, a vingança.
Abro os olhos, o quarto está iluminado pelo horrível fim do cre-
púsculo rebatido pelos jardins, eu não enxergo nada. O fim da tarde
sempre me fez imaginar como seria ser cega, Quincci poderia me contar
sobre isso, mas eu prefiro não trocar minhas palavras por rosnados en-
tendíveis. Mais batidas na porta. É Larry, e meu coração disparou, tudo
o que eu desejo é correr até ele e tirar sua vida de qualquer maneira pos-
sível. Mil maneiras de assassiná-lo se passam em minha mente em um
instante, mas nenhuma seria boa o suficiente para que eu continuasse
viva após o ato. Quincci está lá ao lado daquele aniliano gordo, me pro-
vando que a cegueira nem sempre cega. Logo me acalmo e me sento
naquela cama nova.
— Pode entrar, pai. — Digo com desdém, que espero ser con-
fundido com cansaço.

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Paulo H. Yamaguti
Eu vou te matar. Muito em breve. Mas por hora, eu sou sua fi-
lha, Larry.

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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 10 — De Igual Para Igual

A porta se abre e a luz da lamparina ofusca minha visão, acos-


tumada com a penumbra dentro do quarto, mas logo percebo que minha
previsão estava certa, era meu padrasto. O brilho da chama faz a curva-
tura de sua barriga parecer maior e seu papo com resquícios de barba
ganha um volume novo. Quincci permanece parado na porta e Larry,
lentamente, anda até o pé da cama.
— É… Como você está? — Eu odeio o modo como ele finge
que pensa antes de falar. E agora posso ouvir sua intenção de fingir a
burrice.
Deixo minha raiva tomar conta dos meus sentimentos e forço lá-
grimas pelos meus olhos, que saem com facilidade. Me sinto uma boa
atriz, ou um caso perdido de psicopatia.
— Foi horrível. — Eu olho para baixo e limpo a água salgada.
Larry coloca uma mão em meu ombro e se senta ao meu lado. Não tão
longe quanto eu gostaria, mas eu tinha que aguentar.
— Você quer falar sobre isso? — É claro que não.
— Acho que sim. — Creio que Quincci poderia facilmente iden-
tificar mentiras, se ele não houvesse desenvolvido uma falta de empatia
tão grande ao longo de sua vida.
— Comece por onde quiser.
— Tentaram me matar. Lyade tentou me matar. Eu a matei. —
Eu limpo meu nariz escorrendo em minha roupa e finalmente percebo o
quão suja estava. — Depois disso Marie apareceu. Ela mandou Royal
fazer a limpeza de segurança enquanto ficávamos trancadas no quarto.
— Eu faço uma pausa e espero para ouvir o que ele dirá.
— Continue, por favor, filha.
— De repente aquele homem apareceu. Ele arrombou a porta e
entrou com uma corrente. Era rápido, me pegou e me prendeu. Ele era
muito forte também.
— Que homem? — Larry interrompe minha explicação.
— Royal me disse que ele se chama Gewir, ou algo assim.
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Paulo H. Yamaguti
— Você nunca o havia visto antes? — Uma pergunta levemente
desconfiada.
— Não. — Uma resposta certamente confiante.
— Prossiga. — Ele exala um suspiro desapontado, pelo que me
parece.
— Ele matou Marie. — Meu olhar de alívio ao dizer isso fez
Larry disfarçar um sorriso.
— Nós dois sabemos que nós dois não ligamos para isso. — Eu
dou uma pequena risada e ele também, e logo me sinto culpada por esse
momento de concordância. Me sinto suja por compartilhar algo com
ele, mas o ódio mutuo contra algo aproxima as pessoas tão bem quanto
o dinheiro. Eu arriscaria dizer que o ódio é valioso em certas situações,
muito mais do que o amor.
— Depois disso ele me desmaiou com um soco. Eu acordei
amarrada pela corrente em um barco. Nós descemos em Dirty Town.
Ele me levou até um lugar meio abandonado e começou… — Eu olho
para o nada com uma expressão tão vazia quanto posso fingir.
— Começou? — Certa curiosidade veio subentendida em sua
voz, o que é uma ótima confirmação de sua índole quebrada.
— Ele enfiou uma faca em minha perna e começou me pergun-
tar coisas. Me deu socos no rosto e mais perguntas. Ele queria saber
sobre sua fábrica. Coisas que eu não sabia.
— Que coisas? Me desculpe se eu estou sendo insensível, filha.
Mas isso pode ser importante.
— Ele perguntou sobre alguma fábrica de Brisa Mar. Eu disse
que não sabia de nada. Ele disse que você iria me usar para se tornar o
dono do mercado no reino. — Eu o olho com um leve sopro de desa-
provação. Agora começam as apostas que Royal me disse, e garantiu
que seriam certeiras.
— É… Acho que já está na hora de abrir o jogo, não é? — Por
algum motivo, ele tenta se redimir pelo meu olhar.
— Acho que sim.
— Bom, a três anos atrás, quando a vi correndo daqueles dois,
eu sabia quem você era e o que você um dia poderia fazer. Mandei
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Quincci te salvar. Eu havia acabado de ser informado sobre a morte de
seu pai, que sua alma esteja em paz. Então te abriguei e te dei o melhor
que uma filha de um Richeist poderia ter. No começo senti certa apre-
ensão, achei que você poderia tentar fugir ou fazer algo contra mim,
mas fui começando gostar de você, das nossas conversas durante os
cafés. E, claro, sua presença sempre foi muito mais agradável do que a
de Marie. — Ele fez uma pausa. E nada de uma intenção que me reve-
lasse mentiras. — Não pense que eu não te considero uma filha. Mas eu
sou um homem de negócios. Sim, eu tive interesses secundários com
você, e ainda tenho. Mas, de certo modo, eu te amo, filha. — A última
parte soou levemente forçada, mas ele tinha máscaras bem feitas, eu
quase acreditei em suas palavras. O desgraçado sabe como articular o
que fala sem precisar mentir.
Por alguns segundos, eu olho para seu rosto, iluminado pela luz
alaranjada do fogo. Suspiro, com raiva e meus punhos se fecham em
armas naturais. Quincci vira seu rosto em nossa direção, sem que Larry
perceba, e aquilo é o suficiente para que a raiva diminua e dê seu lugar
ao medo. O tykeram cego é um problema. Minhas mãos afrouxam e os
pensamentos voltam a fluir.
— Sendo assim, menos mal. Mas ainda assim isso é um pouco
triste.
— Não se sinta triste, filha. Eu sempre te dei tudo que precisava,
não?
— Sim. — E nesse ponto ele tem razão, em todo o tempo que
estive aqui, ele me tratou bem. Por vezes eu sentia dó de Marie por não
receber metade do que eu recebia.
— É… Gewir te disse quem ele é?
— Sim. Eu suponho.
— Assim sendo, vou lhe dizer algo. Quase ninguém no reino sa-
be sobre o grupo daquele homem. Apenas os nobres, e não são todos
que acreditam que a Contra União é um grupo bem organizado. A maio-
ria acredita que eles são apenas um bando de guerrilheiros terroristas
que tentam matar o maior número de inocentes, o tipo de coisa que não
faz sentido. — Engraçado ouvir sobre inocência. Principalmente da
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Paulo H. Yamaguti
boca de Larry. — Mas, na verdade, eles querem derrubar o reino e re-
construir o império tykeram. Não que isso faria mal a você, talvez até
fizesse bem. Mas nós não vivemos mais em um mundo onde a violência
e a escravidão devem reinar.
— Talvez você tenha razão. — Massagear seu ego, ganhar sua
confiança.
— Sabe, você viveu em Dirty Town e conhece como a vida é
desigual. Talvez você culpe pessoas como eu por isso. Mas os tykerans
antigos faziam pior quando estavam no poder, eles escravizaram povos
inteiros, pelo menos a menor parte que não fugiu e nem morreu nas
guerras. O problema não é a desigualdade, e sim o poder. — Em algum
momento da conversa a voz de Larry passou de seu tom burro de sem-
pre para uma credibilidade religiosa em suas próprias ideias. Ele real-
mente acredita em tudo que diz. — Mesmo que o grupo de Gewir con-
siga tomar o poder, em poucos anos, o poder corromperia os novos líde-
res e as rédeas seriam puxadas pelo egoísmo mais uma vez. Talvez de
uma maneira pior do que acontece hoje. O reinado atual controla a po-
pulação através do dinheiro e dos entorpecentes, e não através de vio-
lência, como os antigos tykes. — É claro que ele se esqueceu dos assas-
sinatos sem sentido cometidos por nobres de maneira trivial, entre ou-
tras coisas piores.
— Eu posso concordar com isso, mas você ainda não me disse
nada sobre a fábrica de Brisa Mar que ele tentou me fazer falar a base
de tortura. O desgraçado jogou erva de sangue no meu ferimento, para
arder, e o abriu novamente, repetiu isso várias vezes. Eu não posso ter
sofrido por uma revoluçãozinha sendo armada. — Eu ofego ao final da
frase, com aparente raiva e um leve orgulho de minha atuação.
— A fábrica. — Ele carrega desculpas em sua voz e em seu
olhar. Alguma ideia do que a erva de sangue faz, ele tem. — A fábrica
de gorzalka é minha fachada. No subterrâneo eu produzo toda a Brisa
Mar que os nobres e bonevitos consomem no condado. Assim como seu
pai uma vez produziu a Mortília para os desagraçados.
— Eu nunca soube disso.

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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Ninguém aqui além de Quincci sabe sobre isso. E quase nin-
guém precisa saber. Eu não estou aqui por conta própria, estou aqui
pelo reino, para manter as mentes em paz. Existem problemas que nós
tentamos controlar, que talvez não façam um real sentido, mas nós ten-
tamos. — E sua credibilidade nas próprias palavras se mantém.
— E você lucra no processo.
— Eu sou um homem de negócios, como já disse. Fui escolhido
para isso, pois eu gosto do que faço.
— Ficar rico? — Minha aparente raiva ainda pairava sobre a
conversa e Larry não se deixa irritar. Ele sabe que preciso de explica-
ções, que as mereço, pois sofri nas mãos de Gewir.
— Fazer os negócios funcionarem bem e melhores.
— E por quê Gewir iria querer algo com seus negócios?
— Talvez ele queira acabar com a paz, acabando com a Brisa
Mar.
— Como isso pode ser tão relevante? Não faz sentido para mim.
— Nesse ponto da conversa os meus sentimentos falsos já haviam guia-
do a entonação além do que me parecia seguro.
— Você faz muitas perguntas para uma garota de dezenove
anos. Mas vou responder, mesmo que isso não seja totalmente apropria-
do.
— Obrigada.
— A Brisa Mar impede que a face ruim do ser humano seja
mostrada. Nós nascemos insatisfeitos e sentimos a necessidade de ser-
mos melhores que o resto. A Brisa Mar nos dá um sentimento de satis-
fação, mesmo que ínfimo, e assim podemos seguir com nossas vidas
sem cairmos dentro da armadilha de nossa natureza. O que os homens
precisam é da recompensa imediata, do prazer rápido, para mantê-lo
longe das ânsias maiores, das ambições. Precisamos acomodar os âni-
mos dos cidadãos. — Ele toma um segundo para respirar entre suas
palavras decoradas. — Apesar de nem todos usarem os entorpecentes, o
mercado é enorme, maior do que você pode imaginar. Os que não usam
são pessoas pacíficas por natureza, ou conformadas demais para se da-
rem ao trabalho de cobiçar e almejar algo maior.
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Paulo H. Yamaguti
— Então você faz um bem?
— Isso é o que nós chamamos de “bem maior”. Algo que apenas
os anis são ensinados, mas que eu estou compartilhando com você.
Existe algo dentro de nós que nos empurra para a morte. Nós tentamos
amenizar isso, manter a sociedade longe de problemas.
— Não faz muito sentido. — Na verdade, todo o discurso sobre
sermos empurrados para a morte me parece loucura.
— Eu sei que não. Mas vou colocar isso tudo em uma perspecti-
va que você possa aceitar, a mesma que uso para não me sentir mal pe-
los efeitos colaterais que o “bem maior” causa.
— Por favor.
— Sempre haverá alguém no poder, e o poder nunca irá deixar
de corromper uma alma se quer. Então, eu não tento quebrar as regras
do jogo, simplesmente participo. Se eu não cometer alguma atrocidade,
alguém irá cometer, se eu não roubar, alguém irá roubar, se eu não abu-
sar do poder, alguém abusará de mim. Eu posso fazer minha escolha,
posso ter o poder e mantê-lo com quaisquer recursos que possuo, ou
posso ficar com os restos, a mercê dos que podem me prejudicar. — Ele
da um suspiro enquanto percebo que seu discurso é, inegavelmente,
válido, não existe uma cura absoluta para o mal que praticamos. —
Molly, você quer ficar com os restos ou quer estar no topo?
— Eu quero estar no topo. — Uma resposta que Larry gostaria
de ouvir.
— Mas você tem que estar preparada para qualquer coisa, moral
ou imoral.
— Eu sempre estive.
— Ótimo. Juntos nós vamos nos tornar os donos da Brisa Mar
no reino. — Ele faz uma pausa e finalmente admite. — No fundo, eu
não acredito nessa história de “bem maior”, parece algo dito com o ob-
jetivo de que nossa consciência fique limpa. De qualquer modo, o di-
nheiro limpa minha consciência. — Sua intenção com as últimas frases
era enevoada, ele omitiu algo, mas resolvi que não haviam motivos para
trazer isso a tona.

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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— É para isso que eu estou aqui, não é mesmo? — Outra provo-
cação.
— Você está aqui por suas próprias decisões. Eu nunca te forcei
a morar comigo. Só estou pedindo um favor. Afinal, você é como uma
filha. — Ele demonstra uma pitada de raiva que logo some entre a ver-
melhidão em seu rosto branco.
— Eu irei. E vou te ajudar. Mas quero minha parte nisso. — Eu
sorrio, maliciosamente.
— É claro.
— Agora posso descansar? O dia acabou comigo. — Dessa vez
deixo um sorriso amigável refletir a luz da chama fraca.
— Pode, filha. — Ele retribui fazendo seus músculos repuxarem
a gordura de modo a sorrir.
— Obrigada. — Ele se levanta e começa a andar para fora do
quarto. Mas para no meio do caminho.
— Uma última coisa. — Ele se vira, como uma bailarina gorda e
desajeitada, em um movimento deslizante sobre os calcanhares. — Co-
mo você saiu das mãos de Gewir e voltou para a mansão? — Ele afasta
os pés, um do outro, com certa vergonha de seu movimento. Eu riria em
outra situação, mas meu nervosismo sobre a pergunta segurou meu hu-
mor. A raiva contra ele fez a maior parte do serviço.
— A corrente não estava tão bem presa, e enquanto eu me deba-
tia em meio a tortura, consegui afrouxar algumas partes do meu corpo.
Quando Royal chegou próximo eu senti suas intenções, e sabia que ele
iria entrar pela porta. Me libertei das correntes o mais rápido que pude
com ajuda de Tyler enquanto Royal distraía Gewir. Mesmo desarmado,
ele lutava de igual para igual com Royal. Nenhum golpe de espada en-
costava nele, mas nenhum soco de Gewir conseguia fazer algum efeito
em Royal. Quando me libertei, Royal acertou um chute no peito de Ge-
wir, e fugimos. Corremos até o fim de Dirty Town, mesmo que Gewir
não tentasse nos perseguir nem por um instante. — As palavras saíram
rápidas demais, porém, tudo soou de maneira crível, eu espero.
— De igual para igual? — Ele me pergunta, incrédulo.

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Paulo H. Yamaguti
— Sim. Talvez ele tenha algum dom, assim como eu. Ele conse-
guiu me acertar um soco, e eu sabia que aquele soco viria. O homem é
rápido. — Digo de maneira jogada e leviana.
— Pode descansar. — Ele responde na mesma entonação.
Ele se vira um pouco insatisfeito com a explicação. Pensando
melhor nas palavras que eu disse, tudo saiu decorado demais, nada na-
tural. Se nós não houvéssemos combinado o que dizer antes de chegar-
mos a mansão, eu poderia ser morta hoje mesmo. Mas ele vai cair
quando perguntar a Royal sobre tudo o que houve.
A pior parte é não pular em seu pescoço. O auto controle vai
acabar se tornando minha maior virtude ao longo dos próximos dias.
Caso contrário, vou matá-lo e morrer em seguida. Eu não planejo mor-
rer, gosto de ganhar, morrer nunca seria uma boa vitória, por mais que
ele também caia. Pretendo me manter viva quando isso acabar, eu não
gosto de empates. Ganhar é ter paciência.

A verdade é inconveniente e, apesar de tudo, eu ouvi verdades


vindas de Larry. Ninguém nesse mundo se isenta de culpa simplesmen-
te por não ser ruim. Do mesmo modo que ninguém tem culpa por fazer
algo ruim. Nós não nascemos o que somos, mas somos moldados pelo
que nos rodeia. A culpa é do caos que norteia o destino, do tempo que
não volta para que possamos repensar e refazer. A culpa não é algo que
de fato existe, pois se existisse, todos a teríamos. Todos somos parte das
vidas uns dos outros. Não me importo em matar e em causar o dor, pois
as circunstâncias me levaram a isso. Sendo um nobre que rouba com os
impostos abusivos e mata pelo bel-prazer, ou sendo um desagraçado
que furta um pão, todos fazemos mal. É nossa natureza. Então, eu acre-
dito que quero estar no topo. Odeio pensar assim, mas Larry me mos-
trou uma perspectiva que dá certo sentido a minha vida. Mesmo que
esse sentido seja uma mera desculpa para minhas vontades doentias.
Hoje algo em mim morreu, eu não sei dizer exatamente o que
foi, mas morreu. O que restou é tão podre quanto o rio Vulgro e tão sujo
quanto o chão da feira de Dirty Town. Eu sinto como se minha alma
estivesse encolhendo ao passo que se torna mais forte. Essa parte que
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
não tem mais vida dentro de mim não teve uma morte súbita. Ela levou
três anos e um dia para finalmente ser velada nesse quarto escuro entre
minha consciência e meus sonhos. Um dia já fui feliz, a garota que batia
nas outras crianças por ter as mãos mais rápidas, e ainda assim, tinha
amigos, uma família. Mas desde que meus pais se foram, minha alma
adoeceu, como uma ferida que infecciona e finalmente, após alguns
dias, mata. Com toda frieza, eu estive amputando essa parte morta de
mim, por três anos, para que a infecção não me matasse.
O que me tornei é uma bestialidade, um semblante cínico e sem
compaixão, com um pequeno resquício de humanidade e uma enorme
vala onde esse resquício está. Talvez algum dia eu ainda consiga reco-
brar minha sobriedade moral, ao lado de Jennifer, quem sabe até cons-
truir uma família. Mas por hora, abraço a morte e tudo que ela me trou-
xe, de bom e de ruim. Vou apresentá-la a Larry no momento certo, dis-
so tenho certeza. O tipo de certeza que é incerto, que existe como mule-
ta para as vontades já fracas e mantém o pânico afastado.
Novamente me deito, vazia. Sinto, mais uma vez, o abraço re-
confortante, como se aqueles braços sentissem orgulho de mim, do que
eu me tornei. E no conforto, entre a sujeira em minhas vestes, a penum-
bra que se tornava escuridão e a noite que roubava a cena do sol, eu
sinto que renasci, e minha consciência se vai. Como se meu corpo des-
ligasse, sem sonhos e sem memórias, aquela sensação vazia me preen-
che e me acolhe em seu cólon.
— Obrigada. — Digo, como se aquela fala não fosse minha, sus-
tentada por meia consciência.
Durmo.

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