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Yamaguti
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“Os pássaros olharam para a porta da gaiola. Não entendiam,
mas ao mesmo tempo entendiam. Eu podia aperceber-lhes as
pequeninas mentes tentando funcionar. Tinham comida e água
bem ali, o que significava aquele espaço aberto?”
— Charles Bukowski
Para todos aqueles que são hipócritas e para os que acham que
são honestos. Para todos aqueles que de alguma forma estão em
minha vida, já estiveram, ou ainda vão estar.
E, especialmente, para Sabrina.
Paulo H. Yamaguti
Paulo H. Yamaguti
Prólogo
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Paulo H. Yamaguti
Capítulo 1 — Tabaco e Pólvora
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Paulo H. Yamaguti
Capítulo 2 — A Sola dos Sapatos
Meu sono é leve, mas dessa vez a Duquesa teve de invadir meu
quarto com sua chave mestra. Não é todo dia que comemoro o aniversá-
rio de morte dos meus pais, me deixei passar do horário na noite anteri-
or. Os gritos nervosos dela são quase tão ruins quanto a luz entrando
pela janela. Aquele projeto de mulher berrando sobre o umbral já estaria
morta se isso não fosse uma passagem para a minha própria morte.
— Molly! Molly! Acorde logo, sua… Acorde, filha.
Seus cabelos estão alisados pelo ritual com pedras quentes que
ela pratica todas as manhãs. Não que aquilo fosse suficiente para que
ela ficasse bonita, mas é o suficiente para que eu não vire o rosto en-
quanto olho em sua direção. A maquiagem até certo ponto ajudava, mas
aparentemente ela desconhecia onde tal ponto ficava. Ela é uma mulher
ou um boneco mal feito de farinha? Não sei. O que sei é que é magra
demais para as roupas que usa, e sua idade avançada demais para que
ela se sinta a vontade de ser o que é. Basicamente, um esqueleto coberto
de pó e tinta com pelos lambidos no topo, uma voz que traz pensamen-
tos homicidas envolvendo uma personalidade tão amável quanto a de
um carrasco de mal humor. Eis a Duquesa Richeist.
— Já vou me levantar, mãe. — Eu odeio o termo e ela também.
O Vendedor de Esperança acha apropriado, e o dinheiro dele dita o que
é e o que não é dentro de sua casa.
— Ande logo, sua… Filha. — Eu já deixei de me incomodar
com as provocações e ela deixou de achar graça, mas o costume se
mantém.
— Pode sair do quarto, eu já vou me trocar e me maquiar. Meu
cabelo não precisa ser alisado, não vai demorar. — Bem onde dói, Du-
quesa de merda.
Ela levanta seu nariz mais alto do que seu ego e se vira sem di-
zer nada. Seus quilos de saia balançavam de um lado para o outro. Sua
falta de curvas deve ser uma dor para meu padrasto, que foi obrigado a
se casar quando ainda eram jovens. Talvez seja esse o motivo da falta
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
de filhos, falta de motivação. Ao sair ela fecha a porta com uma força
desnecessária. Dou uma inaudível risada e me levanto da cama.
— Mais um dia no paraíso! — Digo, como se alguém fosse rir
ao meu lado.
Tiro toda a roupa e abro a porta da sacada. Não há ninguém nos
jardins para me espiar. E mesmo que houvesse, o idiota que olhasse a
filha dos Richeist se trocar teria os olhos arrancados da cara. Em todo o
caso, não dou chances ao azar alheio, só queria uma brisa mais forte
para acalmar o calor que as camadas de roupa me fariam sentir no final
do verão. Peça após peça vou me vestindo, se os garotos de Dirty Town
pudessem me ver agora, eu perderia todo o respeito que ganhei que-
brando seus narizes. A temida Molly vestida igual uma nobre aniliana,
isso era uma piada que perdeu a graça ao longo dos últimos três anos. A
maquiagem era sempre pouca. Eu odeio o modo como todas as garotas
se fazem parecer bonecas com seus rostos pintados. Um soco de cada
lado surtiria exatamente o mesmo efeito. E o cabelo era meu único trun-
fo. Comprido e levemente ondulado, sempre, sem a necessidade de cui-
dados. Espero que além dos olhos, o cabelo seja a única coisa que her-
dei de minha finada mãe.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
agora, obedecer e seja lá qual é a outra intenção de Royal, me parecem
quase a mesma coisa.
Ficamos sentadas na cama, imóveis, correndo os olhos pelas pa-
redes, teto, taças de vinho e marcas apressadas de passos no carpete.
Esse seria um dos momentos desconfortáveis, preenchidos por silêncio
e falta de assuntos. Mas a cada segundo eu agradecia mentalmente a
Weh por não haver uma tentativa de conversa. Após alguns poucos mi-
nutos de silêncio sinto a intenção de Marie de defecar palavras.
— Molly. — Ela está tremendo e eu quase acertei, meu nome
não se enquadra em fezes. — Seu dom… Ele despertou, não é?
— Sim. Mas como você sabe sobre isso? — Talvez eu entenda o
motivo de ter sido acolhida na mansão Richeist.
— Todos sabem sobre isso.
— Como nunca ninguém me disse nada?
— Não queríamos que você pensasse nada de errado.
— Como por exemplo?
— O importante é que você está a salvo. — Defletindo, como de
praxe.
— Como minha servente sabia disso?
— Talvez ela já soubesse disso quando começou trabalhar aqui.
Talvez ela não gostasse de seu pai traficante.
— Não fale assim dele! — Eu levanto minha mão, mas logo a
abaixo. — Qualquer tykeram de Dirty Town gostava dele.
— Talvez… — Ela pensa sozinha por um instante. — Mas isso
não poderia ser. — Ela diz a si mesma.
— Não poderia ser o que?
A porta do quarto é escancarada por um chute. Só Royal teria
tamanha força. E era Royal quem havia desferido o golpe, eu suponho.
A porta se abre até o máximo e com a força do impulso volta a quase se
fechar. Por alguns segundos apenas o silêncio existiu. Foi tempo sufi-
ciente para a poeira levantada pela violência se abaixa-se. A Duquesa
segura minha mão direita como se eu fosse a proteger enquanto coloca
seu corpo atrás do meu. Eu estou de pé, de frente para a porta, esperan-
do algo acontecer.
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Paulo H. Yamaguti
— Tem alguém aí? — Marie grita. — Royal? É você?
— Robert Gabard Royale, Duquesa. Esse é o nome do homem
que irá te matar. — A mesma voz gutural e áspera ressoa atrás do belo
pedaço de madeira.
— Royal, qual o significado disso?
A porta se abre, e por ela, Royal entra no quarto. Grande, forte e
manchado com o sangue dos serventes e guardas da casa, exceto o de
seus dois subordinados diretos, Royal nunca os mataria. Ele limpa a
lâmina de sua espada com um lenço branco e a descansa em sua cintura
após uma prazerosa carnificina. Seguido dele, um homem vestido com
um sobretudo marrom e um chapéu caído sobre o rosto, entra. Seus pas-
sos são pesados e ele carrega uma corrente. Eu nunca antes mirei al-
guém tão imponente quanto ele, sua presença me causa calafrios e ta-
quicardia. Talvez a demora entre cada passo fosse levemente desneces-
sária, mas a cena se torna muito mais dramática por esse motivo. Talvez
se não fosse por meu medo, isso seria engraçado. Mas no momento não
é.
— Esse é Gewir, Líder da Contra União e meu verdadeiro chefe.
— Royal diz.
— Obrigado, Roy. E muito prazer, madames. — Sua voz é doce
e suave tanto quanto grave e experiente.
O homem abaixa sua cabeça e estica um braço para nos saudar.
Eu senti sua intenção, ele iria jogar aquela corrente em mim. Senti os
elos fortes e pesados atravessando o ar, senti a lâmina na ponta fincar
em minha perna direita e senti a dor, ao mesmo tempo em que ouvi a
intenção. Ele é rápido. Caio no chão sobre a Duquesa, que balbucia al-
guma coisa desimportante, minha perna dói e não me dou o trabalho de
entender. Algumas lágrimas descem carregando o pó em meu rosto e
borram a maquiagem. Olho para minha perna, o corte foi muito mais
fundo do que eu gostaria. A ponta da lâmina se fincou no fêmur, eu
podia sentir. Visualizar um ferimento traz uma dor lancinante, mais
lágrimas alcançavam meu queixo. Olho para cima e o homem está a
alguns passos de mim. O movimento para arremessar a corrente fez
com que seu chapéu caísse no chão. Seu rosto é bonito e, por alguma
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
razão, me transmite a sensação de segurança. Sua boca é grande, seu
nariz também, e seus olhos, em covas profundas cobertos por uma so-
brancelha espessa, são castanhos como a terra. O queixo é coberto por
uma barba bem feita, talvez de uma maneira exageradamente meticulo-
sa, e seu pelo facial contrasta com sua careca lisa. Ele possui uma tatua-
gem no topo da cabeça, duas adagas cruzadas.
— Por Weh, por quê esse símbolo? — Digo e percebo que meu
fôlego me trai.
— Olá, garotinha. Nós vamos dar uma volta. — As intenções de-
le vem junto com suas ações. Ele sabe como lidar comigo. Cuspo nos
sapatos dele e o mesmo parece não se importar. O meu ódio nasce natu-
ralmente, como se eu precisasse odiá-lo, desde sempre.
Sem dificuldade alguma ele enrola minhas mãos com a mesma
corrente que está fincada em minha perna. Logo após prende minhas
pernas e meu tronco. A outra extremidade dos elos também termina em
uma lâmina, que está pendente logo atrás da minha cabeça, por onde eu
assumo que ele vá me puxar. Eu tentei me desvencilhar de suas mãos e
amarras, mas ele é rápido demais. Eu não consigo ler suas intenções
antes que ele aja. Resolvo não dizer mais nada, o sangue perdido faz
minha consciência fraquejar.
A Duquesa Richeist se encontra chorando, ainda em balbucias,
seus soluços disfarçados de palavras dão leves socos de voz. Ela inter-
cala a ação de proteger o rosto com as mãos e a de desviar a cara de
algo. Uma mulher desesperada, eis a Duquesa Richeist.
— Marie Diye Richeist, se levante. — Royal diz.
Ela está com medo, e continua no chão. Dessa vez, seus movi-
mentos se fazem mais velozes e trepidantes, braços vibrantes que não
tem serventia na situação.
— Receba sua sentença da forma que desejar. Eu, Royal, em
nome da Contra União e todos nessa droga de casa, lhe dou a sentença
de morte. — Ele olha para Gewir e da um sorriso. Eu nunca o vi sorrir
antes.
— Nós não estamos mais no império tyke para você falar desse
modo. E você nunca teria tido a oportunidade de falar assim, naquela
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época. Teria morrido nas cidades do oeste. — Ele da uma risada amigá-
vel — Só mate-a. — Gewir diz.
— Por favor, não. Nós temos dinheiro, temos joias. Pode levar
essa desagraçada. Leve o que quiser, mas não me mate.
— Há homens que gostam de riquezas, outros gostam da luxúria
e outros gostam de poder. A maioria gosta das três coisas em igual in-
tensidade. — Ele agacha seu corpo enorme para chegar perto da Duque-
sa e fala em voz baixa, quase inaudível. — Não ligo para essas futilida-
des. Eu gosto da morte.
Ele segura a Duquesa pelo pescoço, agora sem uma passagem de
ar para continuar suas súplicas. Com uma única mão ele a levanta o
máximo possível e fica em pé. Marie tenta chutar seu peito e seu rosto,
mas ele é forte demais. Com um estalo ela se despede do mundo. Seus
braços e pernas ficam moles e dão um último espasmo. O som de seu
pescoço quebrando foi mais educado do que qualquer palavra que já
havia saído de sua boca. Um male que se despede do mundo.
— Vamos embora agora? — Diz Gewir enquanto recupera seu
chapéu e o coloca de volta, cobrindo a tatuagem.
— Vamos. — Ele solta o corpo morto que faz um baque seco no
chão.
Eu preciso gritar, talvez até agradecer por matar a Duquesa, mas
as palavras não saem. Eu luto para me manter acordada. Estou sendo
arrastada para fora do quarto, posso ver mais uma vez o que restou de
Lyade e todo o sangue dos serventes mortos. Ninguém escapou.
— Você matou todos eles?
— Foi a limpeza de segurança. Matei quase todos, menos aque-
la. — Ele aponta para meu quarto. — Aquilo foi obra dessa aqui.
— Você tinha razão. — Diz em tom sarcástico. — Ela não é uma
nobre. Mas matar todos, isso foi desnecessário. Bom, pelo menos nin-
guém vai abrir a boca sobre você quando você voltar.
— Eu sei o que faço. — Sua voz tenta esconder um leve orgulho.
— Chame Boris e Tyler e vamos embora.
Gewir me coloca em seu ombro com extrema facilidade, para
descer as escadas. Eu perco a consciência por um breve segundo até ele
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
me jogar no chão de volta, para continuar me arrastando. Eu estou to-
talmente indefesa. Minha vontade de dizer algo já havia sumido e mi-
nhas últimas forças se esgotam aos poucos. Fecho os olhos vendo o
chão da cozinha passar, e, de repente, lá se vai minha consciência.
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Capítulo 3 — Ouroboros
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
O Líder da Contra União olha para mim como se acabasse de
lembrar de algo, com uma cara de surpresa. Como se algo houvesse
sussurrado em seu ouvido palavras importantes.
— Garota, me diga o seu nome!
— Molly… — Falo com dificuldade.
— O nome inteiro. — Ele me olha como se a minha vida depen-
desse da resposta, e sua intenção de me matar, caso eu errasse, é clara.
— Molly… Bla… — Respiro fundo e sinto as forças voltando
aos poucos. — Molly… Molly… Greenlay! — Meu nome verdadeiro,
não o que haviam me ensinado a usar. Me sinto feliz e levemente eufó-
rica, a adrenalina faz meus músculos receberem um choque e começo
voltar a plena consciência. Posso perceber no rosto de Gewir que a res-
posta esperada foi dada, ele sorri.
— Se você tivesse dito Richeist, eu teria que te matar.
— Eu sei.
— Sabe de tudo, exatamente igual Gareth. — Meu sorriso au-
menta novamente, o nome do meu pai. A primeira impressão que tive
sobre Gewir desaparece por um breve instante, a raiva dá lugar a curio-
sidade.
— Você conhece meu pai?
— Um velho amigo. — Ele desvia seu olhar e metade de seu
sorriso se vai. — Um cigarro?
— Por favor.
— Ficou educada depois de morar entre os nobres? — E a pri-
meira impressão volta, um desgraçado arrogante que enfiou uma faca
em minha perna. Ele merece morrer.
— Me dá a droga do cigarro. — Gewir da uma risada, inocente,
na medida do possível.
— Aqui está, senhorita. — Ele enfia uma mão em um bolso in-
terno de seu sobretudo e me passa um. Por um momento houve a espera
por um agradecimento que não veio, então outra risada curta, mais rís-
pida e forçada.
— Você roubou isso da mansão. — Nenhuma resposta além da
fumaça em meu rosto, como um rebate pela minha última atitude.
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Eu me sento sobre um degrau que dava acesso ao enorme palco
e nós conversamos por alguns minutos. Gewir e Royal me contam tudo
o que aconteceu nesses três anos. A versão real.
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Quase todos os soldados eram anilianos bonevitos, que são obri-
gados a se “voluntariarem” no serviço militar, que visava defender os
“interesses maiores”, como assim eram chamados. Ao meu ver, não
passam de uma forma amena de garantir que quem está no poder, conti-
nue no poder.
Entre os jovens de hoje em dia pode-se perceber um crescente
desinteresse nesses tais interesses maiores e um maior foco em ser soci-
almente aceito, o que significa que quase todos os jovens anilianos
agem de uma maneira unidirecional e medíocre. Mesmas roupas, mes-
mas gírias, mesmas vontades e mesmos cortes de cabelo, o tempo onde
jovens eram rebeldes já está esquecido, dizia meu finado pai. É o preço
do desenvolvimento, dizia minha mãe. Isso tudo nos leva ao principal
problema enfrentado pelas forças militares do reino, os novos recrutas
estão cada vez mais moles e fracos. Os muitos grafans, leonios, safírios,
scarlans e sanguilhos que aderiram a vida de bonevitos não possuem o
mesmo empenho em defender uma falsa pátria, mas tem menos empe-
nho ainda em tentar fazer algo contra a sociedade que lhes garante um
estilo de vida quase fácil. E para não dar mais motivos para revoltas, os
anilianos não obrigam os que não possuem olhos anis a fazerem parte
de sua força armada.
Royal é um soldado de uma geração anterior, que ainda era en-
sinada sobre a história do primeiro livro de Saphila, o que, geralmente,
causava certo patriotismo. Geralmente. O homem com a cicatriz no
rosto não acreditava em patriotismo, ele acreditava na morte e em como
ela poderia ser uma arte, se bem executada. Nunca compreendi como
Larry se sente a vontade com uma mentalidade desse tipo cuidando da
segurança de sua casa.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 4 — A Dança dos Dados
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 5 — Negócio de Família
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Após pouco tempo o garoto volta correndo com um pedaço de
madeira lixado e bem cuidado, não foi simplesmente pego do chão. Mas
surrado demais para que eu chamasse aquilo de bengala. Os nobres fize-
ram meus padrões se tornarem altos demais. Dei de ombros e estendi a
mão.
— O dinheiro, primeiro.
Gewir, em uma velocidade incrível, agarra a bengala da mão do
garoto e me entrega.
— Aprenda a confiar um pouco mais. — Ele joga uma moeda
que gira por um piscar de olhos até ser pega com ferocidade pelo garo-
to.
— Isso é só uma moeda de bronze, mentiroso. — Para sua ida-
de, aquilo foi um insulto.
— Aprenda a confiar um pouco mais e talvez vai acabar morto.
Desrespeite quem é mais forte e você certamente vai acabar morto.
Ele cospe no chão e sai correndo. Vestido com uma calça suja e
uma camisa rasgada, seus pés descalços tinham calos como se fossem
escamas, que só não eram mais pedra do que seu cabelo. Ele tem os
olhos castanhos de um tykeram e resolve gritar uma última frase, ao
longe.
— Vão se ferrar, garota mimada!
Só então percebi que minhas vestimentas são demasiadamente
requintadas para andar por essa parte do condado. Eu sinto a ânsia de
rasgar as roupas e por algo mais adequado, mas tudo que eu possuo para
vestir são elas. Gewir deixa que sua intenção de andar me avise sobre
nosso movimento. Com a bengala, eu consigo me locomover quase que
como um daqueles safírios idosos e sábios de duzentos anos de idade.
Gewir anda devagar, me esperando.
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Jennifer fica sem palavras. Ela me envolve em seu morno abraço
de mãos geladas em uma manhã de outono ímpar. Eu estou em casa,
após de três anos. Esse abraço é minha casa. Estamos juntas finalmente,
por um tempo que parece ser menor a cada segundo, um tempo que
tenta me fazer tirar o atraso pelos anos perdidos.
— Me desculpe, eu não voltei… — Minhas lágrimas escorrem
como cachoeiras e eu me desprendo de seus braços para me recompor.
— Tudo bem, tudo bem. — Ela limpa os próprios olhos e reco-
bra sua postura.
Seus cabelos ruivos e encaracolados pendem até o meio de suas
costas como cipós das árvores anciãs de Evergreen ao mesmo tempo
que escondem suas orelhas e os cantos da testa. Seu busto ficou grande
e seu quadril largo. Ela havia crescido tarde, pois sua altura era a mes-
ma que a minha a três anos atrás. Agora ela estava um palmo mais alta.
Seus músculos são protuberantes, o suficiente para que ela colocasse
medo na maioria das pessoas do distrito, estava forte. Sua calça de cou-
ro de bisão marrom possui um apoio para uma faca que pende leve em
sua coxa esquerda e suas botas estão tão gastas quanto se podia gastá-
las antes que elas perdessem seu uso. Ela usa uma camisa larga com um
decote provocativo, com as mangas rasgadas. Sua boca é grande e de
beiços finos. — Idêntica a de Cecille. — Dizia meu pai quando éramos
crianças. Seu nariz ficou maior, mas ele era pequeno demais, hoje fica
perfeito em seu rosto. E os olhos, castanhos como a terra molhada e
grandes como cerejas. Suas mãos estão calejadas e ela as estende, me
convidando a mais um abraço. Eu aceito.
Logo, Jennifer percebe quem me acompanhava.
— Que droga você faz aqui? — Ela se solta de mim dominada
pela ira.
— Eu salvei Molly dos Richeist. — Gewir diz sem a menor pre-
ocupação. Sem querer se gabar, soando como se quisesse.
— Eu só não te mato, porque ninguém tem força para isso no
reino.
— Jennifer, uma vez um velho amigo me disse: quando sua vida
é salva por alguém a divida só é paga quando a morte está satisfeita.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Você e seus amigos nobres com dizeres anis. Vá embora lo-
go.
— Eu vou, trate bem da perna dela. — Ele desvia seu olhar para
mim. — Mais tarde eu volto para conversarmos, Molly.
Jennifer bufa, mas fica quieta. Eu levanto a barra da saia, cober-
ta de terra, para que ela visse o ferimento. Minha meia irmã olha para a
perna e arregala os olhos. A pele que cercava o ferimento está pálida,
com rachaduras roxas correndo em todas as direções, logo abaixo do
torniquete feito por Royal. Pus escorria, sangue também, algumas pe-
quenas moscas voavam em torno da carne aberta querendo por seus
ovos. Eu não sinto mais nada e espero que ela possa fazer algo a respei-
to. Afinal, eu gosto da minha perna, e gostaria de chutar certas pessoas
em minha vida.
— Molly! Venha cá!
Ela me pega no colo antes que eu pudesse protestar e me leva
para dentro da casa. O interior está diferente, talvez para que ela esque-
cesse os corpos pendurados. Funcionou.
Fui colocada em uma cama em nosso antigo quarto e ela voltou
para trancar a porta. A casa estava mais limpa e mais bem cuidada. As
paredes de tijolos resistiram bem ao tempo e se mantiveram firmes. Os
lençóis são finos demais para essa parte da cidade, mas se os negócios
fossem os mesmos e fossem bem, ela conseguiria comprá-los. Há um
baú no pé da cama, talvez meus antigos pertences, mesmo que poucos,
estão a salvo no interior. As paredes do quarto são próximas o suficien-
te para que nada mais caiba de maneira adequada. Jennifer logo volta ao
meu lado trazendo um frasco com um líquido viscoso avermelhado,
parecendo um sangue espesso e outro menor com uma dose grande de
mortília.
— Sem perguntas, beba! — Ela enfia todo o líquido branco em
minha boca, que era salgado ao mesmo tempo que doce, e de um amar-
go característico.
— Você está me desmaiando.
— Sim.
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Ela remove a rolha que tampava o frasco maior e derrama um
pouco daquilo sobre meu ferimento. Sinto uma leve queimação enquan-
to ela desamarra o torniquete, o sangue correndo livre arde. Eu posso
ver o líquido vermelho dançar sobre meu ferimento, e finalmente pular
inteiramente para dentro. O rosto de minha irmã começa a se distorcer,
hora mais bela, hora medonha. O teto se despedaçou e vi as estrelas
caírem sobre minha cabeça como meteoritos, cada um com uma cor
nova, diferente das que eu já havia visto antes. Começo a cair, e vejo
um fundo negro que me atraía como um ímã atraí o ferro da areia. Cada
pequena parte de mim se gruda ao fundo que não acaba e continua va-
zio. Meu tato aos poucos dá lugar a algum tipo novo de sensação e meu
sangue borbulha como água fervente. A dor em minha perna é lancinan-
te, me trazendo a sensação de estar pegando fogo. Eu adormeço, inerte,
enquanto sinto minha alma queimar.
***
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Me desculpe, ele devia estar atrás de mim. — Meu pai não
estava bravo, e sim orgulhoso. Mas sempre preocupado.
— Não se preocupe, não era o homem de cinza que você rou-
bou.
— Você… — Ele sabia tudo sem precisar de palavras.
— Sim. — Ele me interrompe. — Agora vá para casa. E leve o
dinheiro para sua mãe. Eu te amo, Molly. Até a janta.
— Até.
Eu me viro para ir embora, e em uma última olhada para trás, ele
não estava mais lá. O chão sob meus pés começava a sumir e aos pou-
cos uma queimação em minha perna direita.
***
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Capítulo 6 — O Rei do Caos
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 7 — Marionete
Duas batidas na porta, depois mais três e outras três logo em se-
guida. Eu me assusto a princípio, mas então me lembro do que Royal e
Gewir me contaram mais cedo. É o código da Contra União. Simples
demais, na minha opinião.
— Quem é? — Pergunto, mesmo tendo certeza de quem era.
— O seu sequestrador. — Ouço sua voz abafada e humorada.
Me levanto com a espada em mãos e me dirijo até a porta. Havia
uma chave na tranca. Eu a giro e pulo para trás, pronta para qualquer
coisa.
— Entre.
A porta se abre lentamente, como se fosse o vento fraco que leva
nuvens claras embora. Ele está parado, com o mesmo gesto da primeira
vez em que o vi, curvando-se diante de mim.
— Olá, senhorita.
— Entre logo.
Com um sorriso falso, ele entra, seguido do som da corrente ar-
rastada.
— O que você quer?
— Comer algo. — Ele anda em direção a mesa enquanto eu
tranco a porta novamente.
Gewir pega uma fruta na mão, a olha com uma cara de desgosto
e a põe de volta. Um rápido olhar em meus olhos e novamente mira a
mesa. Haviam algumas folhas razoavelmente grossas, de papel, ao lado
das limoneiras, quase que amarelas, em branco.
— Você sabe o que são?
— Papel.
— Não. Na realidade, quase. Isso é papel de mel. Não sei aonde
sua irmã conseguiu isso, mas vou pegar um.
— Faça como quiser, ela não vai ficar feliz em te ver aqui de
qualquer maneira.
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— Sabe. — Ele ignora completamente o que eu havia acabado
de dizer. — Isso vem de Nipporia. Só é feito por lá, experimente um.
— Você ouviu o que eu disse? — Ele segura uma daquelas fo-
lhas grossas e rasga ao meio. A borda começa a se liquefazer.
— Coma as bordas, rápido, antes que escorram. — Ele não ou-
viu e começou a rir.
Eu mordo toda a borda rapidamente e, surpreendentemente, as
partes que encostaram em minha saliva não estão mais derretendo. Sin-
to como se isso fosse a obra de algum mago idiota em um momento de
tédio. Gewir fez o mesmo.
— Tem gosto de mel, ou caramelo. Não sei. — Entro no jogo
dele.
— Sim, doce como a vingança, não é? — Ele tinha um ponto em
tudo isso, me lembrar de Larry.
— Não tanto. — Eu senti meus poros suando frio e meus dentes
rangendo, sendo apertados uns contra os outros inconscientemente. —
Eu vou matar aquele gordo, hipócrita, desgraçado…
Ele interrompe meus insultos e continua a falar.
— Mas, para tal, você precisa entrar na mansão mais uma vez,
como uma filha, como fingia ser até essa manhã. E precisa continuar o
bom trabalho com sua atuação.
— Talvez.
— Você precisa estar do lado de Larry sem que Quincci esteja
presente.
— O que você pretende? — Ele estava certo, Quincci era uma
aberração e eu nunca conseguiria matar o Vendedor com ele o seguindo
como uma sombra. Pelo menos, não sem morrer no ato.
— Você entende rápido como funciona o jogo, igualzinha seu
pai.
— Eu ouço a droga das suas intenções. — Explico, com raiva.
— Então?
— Não vou mentir, nem omitir. Eu quero que você não só mate
Larry, mas também mate o Conde. — Rio forçadamente ao ouvir aque-
las palavras.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Nunca ouvi nada tão absurdo na vida. Sério, o que você quer?
— Pergunto, mesmo sabendo que ele nunca teve a intenção de mentir.
— Você terá uma oportunidade, sem aqueles dois assassinos por
perto. — Talvez essa não fosse uma piada fora de hora.
— Explique.
— Eu posso te colocar de volta na mansão, sem suspeitas de que
você tomou o meu partido. Mas você precisará ganhar a confiança dele.
Consegue?
— Eu não tomei o seu partido de merda. Você é idiota? — Eu
estou exaltada, mas ele merece ouvir os xingamentos.
— Consegue! — Me ignora enquanto sorri.
— É claro que sim. — De qualquer maneira, eu não iria ganhar
da imbecilidade e ignorância em um diálogo.
— Você não vai poder matá-lo antes da hora certa, quando os
dois estiverem lado a lado. Entende?
— Vai ser difícil aguentar.
— Você não conseguiria, de qualquer maneira. Quando foi que
viu Larry sem Quincci ao seu lado nesses anos?
— Nunca. — Eu tenho de admitir, ele está certo.
— Você vai ter sua chance, eu sei que vai. E quando eu sei, você
pode confiar.
— Difícil confiar no idiota que enfiou uma faca na minha perna.
— Fácil confiar no homem que já salvou a vida do seu pai. —
Ele fala a verdade, não ouvi a intenção de mentir. — E você sabe que eu
falo sério.
— Eu confio em você. — Minto parcialmente. — Mas quando
será essa chance?
— Assim que você conseguir a confiança dele.
— Eu te odeio, já te disse isso?
— Hoje de manhã.
— Depois dos dois, eu vou atrás da sua cabeça. — E minha fala
desperta uma gargalhada.
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Paulo H. Yamaguti
— Essa foi a coisa mais absurda que eu já ouvi. — Ele não po-
dia ser tão forte assim. Mas estava confiante no que dizia, assim como
toda vez que abria a boca.
— Como você vai me por de volta?
— Última coisa. Não tente matar ele antes da sua oportunidade,
está bem? — Ignorando o que eu digo novamente. — Royal vai te dizer
o que fazer.
— Sim. Mas… — Ele vira as costas, abre a porta e se mescla ao
movimento de pessoas nas ruas.
Por quê eu confio nele? Sei que não mente, sei que é forte, sei
que poderia ter me ferrado, se quisesse, mas ainda assim, não sei dizer o
motivo. Enfim, tudo o que quero no momento é matar Larry. Se preciso
matar o Conde e conseguir a confiança do assassino dos meus pais, não
importa. No final ele vai morrer confiando em mim. Isso é o suficiente
para que eu espere. Isso e minha vontade de manter a cabeça grudada
no pescoço. Além do que, negligenciar dores é um dos meus pontos
fortes. Pelo menos é o que me manteve sã nos últimos anos. Era como
se eu não sentisse grande parte dos meus sentimentos, como se eles fos-
sem faíscas tentando acender palha molhada.
Quase que um minuto após Gewir sair, a porta se abre. Eu ainda
estou em pé com a espada em mãos. Assim que vejo a forma de uma
pessoa na porta, levanto a lâmina. Apenas Jennifer. Abaixo a arma e a
coloco de volta em seu lugar.
— Eu deixei a porta aberta?
— Não, eu abri ela.
— Por quê? — Ela está realmente curiosa, apesar de sua voz so-
ar reprobatória o suficiente para esconder a curiosidade. Suas intenções
de saber o motivo são maiores do que as de me confrontar.
— Gewir veio aqui, eu abri a porta. Me desculpe. — Me sinto
mal por isso.
— Tudo bem, você não sabe o que ele fez.
— O que ele fez?
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Alias, você tem visitas. — Até ela ignorando o que eu digo,
ótimo! — E eles estão apressados.
Royal e Tyler entram. Estão com rostos e roupas sujas, como se
tivessem brigado com alguém.
— Vamos voltar para mansão. — A voz gutural diz.
— Você encontrou com ele agora?
— Ele? Gewir? Não. — O desgraçado tinha tanta certeza de que
eu iria concordar com o plano, que isso já fazia parte do total.
— Tudo bem, vamos. Só me dê um minuto com minha irmã.
— Não temos tempo. Larry pode suspeitar de algo, vamos logo.
— Suas palavras soariam insensíveis vindas da boca de outra pessoa,
mas Royal demonstrava tanto sentimentalismo quanto um galho que-
brado. Soaram simplesmente factíveis.
Eu suspiro, olho para Jennifer, olho para o baú ao lado da cama
pelo canto do olho. Tudo estaria aqui, assim que eu terminasse o que
tenho de fazer. Se eu sobreviver de alguma maneira ao que está por vir,
é claro. Três anos como uma marionete de Larry, agora sou uma mario-
nete de Gewir. Ótimo. Se eu não estivesse acostumada a ficar quieta,
devido aos três últimos anos, eu estaria gritando agora. Por sorte, o
tempo me mudou. O dia de hoje, no entanto, foi o ápice, abracei a vin-
gança. Esse sentimento me tomou, colocando fogo na palha molhada.
Como se fosse o calor da manhã em uma noite fria, alcançando cada
músculo de meu corpo e me deixando pronta para levantar me sentindo
nova. Tudo o que eu precisava era de uma morte. Uma única morte.
— Jenny. Me desculpe, mas eu tenho de ir. Quando eu resolver
meus problemas, volto para casa, com você. — Eu dou um abraço nela.
— Eu nunca me intrometeria na vida da minha irmãzinha. Você
sabe se cuidar. Só não demore mais três anos.
— Eu volto o quanto antes. Se cuide.
— Você também.
Nós duas estamos tristes e felizes, em igual intensidade, mesmo
que não demonstrássemos. As sobrancelhas apontam para o centro e
para cima, enquanto as bocas sorriem. As lágrimas estão sendo barradas
pela esperança de que logo eu voltaria e pelo clima duro de Dirty Town.
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Paulo H. Yamaguti
Eu me sinto feliz, e pelo contraste com os sentimentos ruins, era como
se fosse a maior felicidade de minha vida. Minha irmã estava viva e
bem e, por hora, isso bastava.
Conforme ando, olho para trás. Ela está lá, olhando para minhas
costas, pronta para correr e me trazer de volta. Eu estou pronta para
voltar correndo e desistir de dar o troco, mas algo dentro de mim preci-
sa ser saciado. Há uma fome diferente, que os waffles no café da manhã
não saciariam, nem mesmo uma limoneira ou qualquer outro tipo de
comida. Eu preciso da cabeça de Larry rolando no chão. Após alguns
metros, resolvo parar de me virar para olhar Jennifer. Isso não é defini-
tivo. Só preciso resolver uma última coisa, e sentimentos me atrapalha-
rão. Meus pais não se orgulhariam do que eu decidi, muito menos Jen-
nifer, se soubessem meus motivos para voltar até a mansão. Mas ética
não é algo que mantém gargantas intactas, e nunca será.
A vingança, muito menos.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 8 — Blackard
— Dessa vez vai dar certo, sim, sim, sim. Dessa vez eu vou te
ajudar. — Dizia uma voz fina e macabra em um beco de Wealthill vin-
da de um rapaz de aparentes vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.
Talvez menos ou mais, não havia como saber. Ele trajava vestes negras
e rasgadas, disformes, que cobriam seu corpo como se tivessem sido
jogadas sobre ele. Sem cerimônias, apenas jogadas. Seu nome era Rohe
Blackard, de uma família que surgiu a partir da união de duas tradicio-
nais famílias tykerans, cujos nomes não são importantes nos dias de
hoje. Com o passar dos anos, muitas crianças dessa família começaram
a nascer sempre com o mesmo dom, o de ouvir o silêncio. Tudo que não
pode ser falado ou que simplesmente é omitido pode ser desvendado
por essas pessoas, mas nada muito certo se sabe sobre, além de que to-
dos nascidos com tal poder acabavam tendo uma morte trágica. Ele ain-
da não era um alvo eminente do último sono, mas o destino costuma
não errar, principalmente se tratando de um espécime como esse.
Não muito distante dali, Larry estava indo em direção a sua fá-
brica, não queria ficar em casa enquanto corpos eram movidos e quei-
mados. Ele possuía uma destilaria, de onde vinha todo suprimento de
gorzalka do condado, daí vem seu título de Vendedor de Esperança. A
única coisa que traz esperança as pessoas é o álcool.
— Eu posso ouvir ele chegar, sim, sim, sim. Eles estão me con-
tando. Eles estão na rua de traz. — Com um pulo, que mais parecia um
gato se debatendo enquanto tem uma convulsão, Rohe sai debaixo de
sua pilha de lixo, que o manteve aquecido durante a noite que passou.
Diga-se de passagem, aquecido e alimentado. — É hoje que Senhor
Esperança vai morrer! — Sua voz ficou grossa de repente, como se a
voz fina fosse mera atuação digna de um ator quadjuvante em decadên-
cia no decadente e monótono cenário teatral anil.
Ele retira um arcabuz, sabe-se Weh onde ele o conseguiu, de sua
cama em decomposição. — Três, dois, um. Morre! — Um disparo se
ouve e um vulto sai correndo dando piruetas e se contorcendo em dire-
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Paulo H. Yamaguti
ção a floresta, onde era sua casa. Um disparo de precisão duvidável,
visto que a duzentos metros de distância seria difícil acertar um elefante
com aquela arma.
No exato instante que Larry vira a esquina aquela bala estava na
metade do caminho, indo diretamente em direção de seu nariz empina-
do. Quincci já possuía conhecimento sobre a bala, com um impulso
sobre humano, vira a esquina e com sua wakizashi desembainhada ele
desvia a bala com um corte extremamente preciso. Sua habilidade per-
mitia que ele tivesse conhecimento sobre tudo a sua volta. Mas ele não
poderia perseguir seu alvo deixando Larry desprotegido.
A arma preferida de Quincci era a espada oriental wakizashi,
curta e precisa. Um dos motivos de seu apreço por Larry é que o mesmo
podia sustentar sua obsessão pelas espadas, pois seu custo de importa-
ção era alto demais, e ele precisava de armas feitas por verdadeiros
mestres safírios para poder apresentar a luz no fim do túnel de maneira
apropriada aos seus alvos. Benny, por outro lado, gostava de Chakrans,
uma arma extremamente difícil de ser usada de maneira correta, que nas
mãos desse guerreiro tyke eram extremamente perigosas. Os discos de
madeira, revestidos com metal para dar a lâmina, ricocheteiam nas pa-
redes de maneira imprevisível. Apenas com o dom dos gêmeos pode-se
utiliza-los sem perder um dedo, na melhor das hipóteses, tentando agar-
rá-los em voo.
— O que aconteceu, Quincci? — Assustado, Larry pergunta a
seu guarda costas depois de pular para trás como um rato pula ao ver
um felino. Por pouco não caiu para trás, mas seu centro de gravidade foi
fiel.
— Rohe tentou te matar outra vez. Ele está correndo em direção
a floresta. — A voz de Quincci era uma raridade. Era rouca como se
viesse de uma pessoa morta tentando dar seu último suspiro. Um som
que não deveria ser escutado.
— Tudo bem, enquanto você estiver como meu guarda costas
nada nessa cidade consegue me atingir. — Quincci toma isso como um
elogio e concorda com a cabeça. — Comprarei outra espada como um
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
símbolo da gratidão por ter me salvo. — Era o que ele esperava. Ganhar
um novo brinquedo a cada simples desviar de bala que realizava.
— Obrigado.
— É… Sabe de uma coisa? Preciso contratar mais pessoas para
cuidar da mansão. — Ele diz e coloca as mãos na cintura por um mo-
mento como se aquilo fosse uma conclusão sábia, como se sua pose
significasse algo.
Quincci não diz nada, apenas faz um leve gesto com a cabeça,
concordando com seu chefe. Eles começam a andar para outra direção,
o Centro de Lushburg. Lá ficava o maior comércio do condado, onde a
maior parte dos bonevitos faziam suas compras, e alguns poucos desa-
graçados também.
Diferente da feira de Dirty Town, lá havia todo tipo de coisa útil
e bem feita. Mas principalmente, comida e roupas. No entanto, o que
Larry procurava naquele lugar eram novos serventes e talvez alguns
guardas. Mas para os homens armados, ele teria de passar no castelo de
Lushburg.
Em meio as barracas de comidas exóticas e tecidos de todas as
cores e texturas, haviam muitos tykerans trabalhando, com salários mui-
to baixos. Para serem fisgados pelo gordo de olhos anis não levava nem
o vislumbre do dinheiro, apenas ouvir os números já os deixavam ani-
mados.
— É… Você, tykeram, não é mesmo? Venha cá! — Ele chama-
va um homem de cerca de trinta anos de idade, que estava removendo
as penas de uma galinha com o pescoço recém quebrado.
— Senhor? — Os tykerans temiam os anis, ainda mais os no-
bres. Sua cabeça estava baixa, e sua voz era tremula.
— Quanto você ganha aqui?
— O dinheiro para dar pão aos meus filhos e leite algumas ve-
zes, senhor. — Todas as palavras saiam de sua boca sem desviar o olhar
do chão.
— Você já viu um hílio? — Os olhos do tyke brilharam para o
cascalho.
— Nunca, senhor.
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Paulo H. Yamaguti
— Pegue esse, você vai trabalhar para mim, a partir de amanhã.
E consiga mais três homens e cinco mulheres de confiança. — Larry
sorri enquanto fala, e o enganado tykeram se sente em um dia de sorte.
Ele nem se dá ao luxo de perguntar quanto iria ganhar, muito prova-
velmente por medo de insultar e acabar morto.
— Muito obrigado! Muito obrigado! — O tykeram diz. Larry
responde com um abano de seu chapéu, sem palavras, como se o gesto
tentasse fazer o tyke parar de sorrir.
— Você sabe onde fica a entrada de Wealthill partindo daqui?
— É claro!
— Esteja lá, as seis da tarde, amanhã, com os outros. Combina-
do?
— É claro, senhor!
Larry pensa. — Mais fácil do que deveria ser. — E então anda
mais vários metros até avistar uma minúscula casa sem paredes, com
várias mesas de madeira e cinco mulheres tykes cozinhando e cuidando
do negócio. Larry caminha, lentamente, até uma das mesas e senta-se.
Logo uma delas aparece para atendê-lo. Ela possuía um lenço azul no
pescoço, e tinha um rosto muito bonito, apesar de sua adolescência ter
acabado a anos. Usava um espartilho meia boca marrom e uma camisa
branca por baixo, e por fim, uma saia rodada que tampava seus pés e se
arrastava pelo chão. E assim como as outras, olhos castanhos.
— Posso ajudá-lo? — Ela sorri, quase que sem medo do nobre a
sua frente. Uma mulher forte e decidida. Burra, porém, forte e decidida.
— Qual o seu nome?
— Judith, meu senhor.
— Você sabe cozinhar, Judith?
— Sim, e muito bem, senhor.
— E suas colegas ali no fundo?
— Qualquer coisa que quiser, sabemos fazer.
— Ótimo, eu estou contratando todas vocês para trabalharem em
minha mansão.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Mas nós… — E três hílios rolam sobre a mesa. A mulher pa-
ra sua frase, mesmo sem o dinheiro seria mais seguro parar a frase. Ju-
dith gostava da própria vida. — Quando começamos?
— Amanhã, as seis horas da tarde, na entrada de Wealthill mais
próxima daqui.
— Estaremos lá, senhor.
— E por favor, a melhor bebida que tiverem.
Aquela cerveja avermelhada era realmente boa. — Nada como
os vinhos e a gorzalka, mas, legitimamente, uma ótima bebida. — Foi o
que ele pensou enquanto Judith pegou as três minúsculas moedas de
ouro depois de lhe trazer aquela caneca de madeira. O homem gordo e
nobre foi deixado sozinho, para apreciar a bebida, enquanto as mulheres
se deliciavam com o toque raro do ouro.
Larry terminou de beber todo o conteúdo e se levantou, seguido
por Quincci, que estava sentado ao seu lado, se passando por um estra-
nho, mas vigilante. Ele saiu daquela casa aberta e começou a andar em
direção ao castelo. O sol dizia que eram duas e meia, talvez três da tar-
de, com a distância do verão aumentando, os dias estavam diminuindo,
talvez fosse mais cedo. Por mais uma hora ele andou até chegar no cas-
telo, onde era recebido como um morador. O Conde não estava, mas
seus assuntos eram com o representante da guarda real em Lushburg,
Bartolomeu Latrocci. Um aniliano de cabelos grisalhos, sua idade esta-
va na casa dos sessenta anos, metade do que um aniliano costuma viver.
Sua armadura repousava em um manequim no canto da sala e sua espa-
da estava sobre sua mesa, uma lâmina que nunca provou o gosto do
sangue. Um mero adorno afiado, mais bonito do que útil. Trajava vestes
azuladas e nobres e um bigode ralo o qual costumava passar a mão en-
quanto se concentrava. Ele estava assinando documentos coçando seu
buço quando Larry entra.
— Bartolomeu. — Larry faz um gesto com a cabeça cumpri-
mentando o homem. — A quanto tempo não venho falar com você, não
é mesmo?
— Desde que você estava bêbado a uns meses atrás. — Ele co-
loca seus afazeres de lado.
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Paulo H. Yamaguti
— Eu não me lembro disso. — Eles falavam como verdadeiros
amigos. — Como anda a vida?
— O de sempre, o trabalho aqui é sempre fácil. Só peço mais
guardas para a capital quando algum aqui morre. — Uma breve risada,
meio falsa, meio forçada. — E você, Vendedor de Esperança?
— Consegui me livrar de Marie, finalmente!
— Até que enfim! O que você fez?
— É… Dei um jeito dela ir embora, nada que valha muito a pe-
na contar. — Um sorriso que tenta mudar de assunto se forma e é se-
guido por um projeto de risada mesclado a um engasgo.
— Agora vai por uma pele mais macia na sua cama?
— Acho que já está na hora de eu levar Amélia para casa.
— Ainda com essa? Você deve amar ela mesmo.
— Algo assim. — Arqueia a boca rapidamente, como um sorriso
falso que findava o assunto.
— Mas o que te traz aqui para falar comigo? Você nunca vem
até o fundo do castelo.
— Eu preciso de guardas novos. Limpeza de segurança, sabe?
— Royal está matando meus guardas? — Ele joga um rápido
olhar reprobatório a seu amigo.
— Apenas quatro, aqueles dois, Tyler e Boris, estão vivos.
— Eles são bons amigos de Royal. O homem salvou a pele da-
queles dois mais vezes do que eu tenho dedos na mão. — Bartolomeu
levanta sua mão direita, onde faltavam seu mindinho e o anular. Ele dá
uma pequena risada. Larry também ri.
— Mande-me quatro soldados, amanhã.
— Às seis da tarde.
— Você me conhece.
— Você é previsível. — Bartolomeu ri.
— Bom te ver, Bart. — Ele da um toque em seu chapéu e inclina
a cabeça, como um sinal de despedida.
— Apareça mais vezes, temos muito o que conversar.
— Pode deixar. — Mente e se vira, anda em direção a porta on-
de Quincci o esperava.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Larry caminhou de volta para sua mansão com passos lentos, a
tarde já chegava e junto dela uma das últimas noites realmente quentes
antes da chegada do inverno. O condado estava velho e decaído. A po-
pulação havia aumentado nas últimas décadas. Larry estava com seus
cinquenta e tantos anos de vida e já havia visto várias faces dessas ter-
ras. Alguns fios de cabelo começavam a ficar brancos, mas ele se sentia
orgulhoso do que havia conseguido, mesmo que desonestamente. — Se
tudo der certo, e tudo vai dar, eu vou ser o homem mais rico do reino.
— Pensa enquanto entra em Wealthill. Ele avista uma casa de muros
negros e altos, que lembravam um pequeno forte abandonado. Ao pas-
sar em frente aos portões, diz em voz baixa. — Desgraçado. Logo vou
te ferrar. — E contínua sua caminhada até seu lar.
— Quincci.
— Sim?
— É… O que você pensa sobre mim?
— Você me paga, eu mato e te protejo. Não há muito o que pen-
sar.
— Ótimo! — Ele sorri, como se essa fosse a resposta que ele
precisava. — Ótimo, mesmo!
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Capítulo 9 — De Volta Para Casa
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Paulo H. Yamaguti
A mansão se encontra aberta, e o cheiro que faz seu caminho pa-
ra fora é mórbido. Dou alguns passos até me acostumar e logo não per-
cebo nada além das listras de sangue que convergiam para os fundos,
todas pintadas pelos corpos arrastados com desdém. Boris voltava pela
cozinha, que dá acesso aos fundos.
— Vocês voltaram. — Ele olha para Royal com uma expressão
cansada. — A parte divertida já acabou, chefe.
— Muito bem. — Boris se dirige para frente, aos portões junto
de Tyler, que havia ficado de guarda quando chegamos.
***
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Ela era do palhaço, melhor não ficar aqui de qualquer manei-
ra, não é?
— Eca! Melhor jogar fora! — Brinco. Melhor vender.
***
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Paulo H. Yamaguti
Eu vou te matar. Muito em breve. Mas por hora, eu sou sua fi-
lha, Larry.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
Capítulo 10 — De Igual Para Igual
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— Ninguém aqui além de Quincci sabe sobre isso. E quase nin-
guém precisa saber. Eu não estou aqui por conta própria, estou aqui
pelo reino, para manter as mentes em paz. Existem problemas que nós
tentamos controlar, que talvez não façam um real sentido, mas nós ten-
tamos. — E sua credibilidade nas próprias palavras se mantém.
— E você lucra no processo.
— Eu sou um homem de negócios, como já disse. Fui escolhido
para isso, pois eu gosto do que faço.
— Ficar rico? — Minha aparente raiva ainda pairava sobre a
conversa e Larry não se deixa irritar. Ele sabe que preciso de explica-
ções, que as mereço, pois sofri nas mãos de Gewir.
— Fazer os negócios funcionarem bem e melhores.
— E por quê Gewir iria querer algo com seus negócios?
— Talvez ele queira acabar com a paz, acabando com a Brisa
Mar.
— Como isso pode ser tão relevante? Não faz sentido para mim.
— Nesse ponto da conversa os meus sentimentos falsos já haviam guia-
do a entonação além do que me parecia seguro.
— Você faz muitas perguntas para uma garota de dezenove
anos. Mas vou responder, mesmo que isso não seja totalmente apropria-
do.
— Obrigada.
— A Brisa Mar impede que a face ruim do ser humano seja
mostrada. Nós nascemos insatisfeitos e sentimos a necessidade de ser-
mos melhores que o resto. A Brisa Mar nos dá um sentimento de satis-
fação, mesmo que ínfimo, e assim podemos seguir com nossas vidas
sem cairmos dentro da armadilha de nossa natureza. O que os homens
precisam é da recompensa imediata, do prazer rápido, para mantê-lo
longe das ânsias maiores, das ambições. Precisamos acomodar os âni-
mos dos cidadãos. — Ele toma um segundo para respirar entre suas
palavras decoradas. — Apesar de nem todos usarem os entorpecentes, o
mercado é enorme, maior do que você pode imaginar. Os que não usam
são pessoas pacíficas por natureza, ou conformadas demais para se da-
rem ao trabalho de cobiçar e almejar algo maior.
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Paulo H. Yamaguti
— Então você faz um bem?
— Isso é o que nós chamamos de “bem maior”. Algo que apenas
os anis são ensinados, mas que eu estou compartilhando com você.
Existe algo dentro de nós que nos empurra para a morte. Nós tentamos
amenizar isso, manter a sociedade longe de problemas.
— Não faz muito sentido. — Na verdade, todo o discurso sobre
sermos empurrados para a morte me parece loucura.
— Eu sei que não. Mas vou colocar isso tudo em uma perspecti-
va que você possa aceitar, a mesma que uso para não me sentir mal pe-
los efeitos colaterais que o “bem maior” causa.
— Por favor.
— Sempre haverá alguém no poder, e o poder nunca irá deixar
de corromper uma alma se quer. Então, eu não tento quebrar as regras
do jogo, simplesmente participo. Se eu não cometer alguma atrocidade,
alguém irá cometer, se eu não roubar, alguém irá roubar, se eu não abu-
sar do poder, alguém abusará de mim. Eu posso fazer minha escolha,
posso ter o poder e mantê-lo com quaisquer recursos que possuo, ou
posso ficar com os restos, a mercê dos que podem me prejudicar. — Ele
da um suspiro enquanto percebo que seu discurso é, inegavelmente,
válido, não existe uma cura absoluta para o mal que praticamos. —
Molly, você quer ficar com os restos ou quer estar no topo?
— Eu quero estar no topo. — Uma resposta que Larry gostaria
de ouvir.
— Mas você tem que estar preparada para qualquer coisa, moral
ou imoral.
— Eu sempre estive.
— Ótimo. Juntos nós vamos nos tornar os donos da Brisa Mar
no reino. — Ele faz uma pausa e finalmente admite. — No fundo, eu
não acredito nessa história de “bem maior”, parece algo dito com o ob-
jetivo de que nossa consciência fique limpa. De qualquer modo, o di-
nheiro limpa minha consciência. — Sua intenção com as últimas frases
era enevoada, ele omitiu algo, mas resolvi que não haviam motivos para
trazer isso a tona.
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Um Conto Sobre a Noite e a Escuridão
— É para isso que eu estou aqui, não é mesmo? — Outra provo-
cação.
— Você está aqui por suas próprias decisões. Eu nunca te forcei
a morar comigo. Só estou pedindo um favor. Afinal, você é como uma
filha. — Ele demonstra uma pitada de raiva que logo some entre a ver-
melhidão em seu rosto branco.
— Eu irei. E vou te ajudar. Mas quero minha parte nisso. — Eu
sorrio, maliciosamente.
— É claro.
— Agora posso descansar? O dia acabou comigo. — Dessa vez
deixo um sorriso amigável refletir a luz da chama fraca.
— Pode, filha. — Ele retribui fazendo seus músculos repuxarem
a gordura de modo a sorrir.
— Obrigada. — Ele se levanta e começa a andar para fora do
quarto. Mas para no meio do caminho.
— Uma última coisa. — Ele se vira, como uma bailarina gorda e
desajeitada, em um movimento deslizante sobre os calcanhares. — Co-
mo você saiu das mãos de Gewir e voltou para a mansão? — Ele afasta
os pés, um do outro, com certa vergonha de seu movimento. Eu riria em
outra situação, mas meu nervosismo sobre a pergunta segurou meu hu-
mor. A raiva contra ele fez a maior parte do serviço.
— A corrente não estava tão bem presa, e enquanto eu me deba-
tia em meio a tortura, consegui afrouxar algumas partes do meu corpo.
Quando Royal chegou próximo eu senti suas intenções, e sabia que ele
iria entrar pela porta. Me libertei das correntes o mais rápido que pude
com ajuda de Tyler enquanto Royal distraía Gewir. Mesmo desarmado,
ele lutava de igual para igual com Royal. Nenhum golpe de espada en-
costava nele, mas nenhum soco de Gewir conseguia fazer algum efeito
em Royal. Quando me libertei, Royal acertou um chute no peito de Ge-
wir, e fugimos. Corremos até o fim de Dirty Town, mesmo que Gewir
não tentasse nos perseguir nem por um instante. — As palavras saíram
rápidas demais, porém, tudo soou de maneira crível, eu espero.
— De igual para igual? — Ele me pergunta, incrédulo.
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— Sim. Talvez ele tenha algum dom, assim como eu. Ele conse-
guiu me acertar um soco, e eu sabia que aquele soco viria. O homem é
rápido. — Digo de maneira jogada e leviana.
— Pode descansar. — Ele responde na mesma entonação.
Ele se vira um pouco insatisfeito com a explicação. Pensando
melhor nas palavras que eu disse, tudo saiu decorado demais, nada na-
tural. Se nós não houvéssemos combinado o que dizer antes de chegar-
mos a mansão, eu poderia ser morta hoje mesmo. Mas ele vai cair
quando perguntar a Royal sobre tudo o que houve.
A pior parte é não pular em seu pescoço. O auto controle vai
acabar se tornando minha maior virtude ao longo dos próximos dias.
Caso contrário, vou matá-lo e morrer em seguida. Eu não planejo mor-
rer, gosto de ganhar, morrer nunca seria uma boa vitória, por mais que
ele também caia. Pretendo me manter viva quando isso acabar, eu não
gosto de empates. Ganhar é ter paciência.
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