Você está na página 1de 92

S.S.

Maisa

@toma ai um poema
Imagine-se em um mundo parecido como este, porém sem ninguém
além de você. Esse então deixaria de ser "nosso mundo"para ser
apenas "seu", onde inexplicavelmente bombas estão constantemente
explodindo, sem nenhuma evidência de outra entidade. Como um
apocalipse pessoal. Como é bom estar sozinho é uma pequena história
que pode-se chamar de "história surrealista", por seu aspecto ficcional
contendo uma narrativa subjetiva em tempo e espaço que transita entre
o psicológico e o físico.
COMO
É BOM
ESTAR
SOZINHO

S.S. Maisa

2023
@tomaaiumpoema
Editora-Chefe
Jéssica Iancoski

Projeto Editorial & Gráfico


Toma Aí Um Poema

Revisão
S. S. Maisa

M231c
Maisa, S. S.
Como é bom estar sozinho / S. S. Maisa. – Curitiba: Eu-i,
2023.
88 p.; 15 X 21 cm
ISBN 978-65-85009-69-0
1. Coletânea. 2. Literatura brasileira. I. Maisa, S. S. II. Título.
CDD 869.8

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ELABORADA PELA BIBLIOTECÁRIA JANAINA RAMOS – CRB-8/9166

1ª edição, 1ª impressão

Editora Eu-i.
Selo Toma Aí Um Poema
Curitiba — Paraná
www.tomaaiumpoema.com.br
@tomaaiumpoema

© S. S. Maisa, 2023
À todas as almas solitárias
cujos melhores amigos
são os livros
Pró
lo
4
go
Um, dois, três.

Eu não posso contar, pois nada aqui é inteiro. Nada em mim


é inteiro. Para estar sozinha, preciso estar completa.
Ser completo é viver em harmonia consigo e com o exterior,
coexistindo sem cobrar, forçar ou esperar. Dar e receber pelo
único motivo de acaso cíclico, o que está para ser. Não há
necessidade de nada nem ninguém, não obstante de considerar-
me o descarte de tudo o que não sou.
Eu almejo a solitude, estar sozinha em minha própria
harmonia. Não falo de uma paz egoísta onde desinteresso-me
pelo exterior, mas sim lidar com os eventos da minha própria
forma, tal que foi moldada por eventos anteriores.
Todavia, não me considero o suficiente. Esse fato se dá pela
falta de valorização que dou a minha existência, logo me parece
mais acessível doar-me ao que eu não compraria. Nada em mim
é completo. Minhas partes individuais deveriam coexistir, mas
preferem se isolar em uma constante luta para sobressairem
umas às outras.

5
6
PARTE I: Diário de Bordo

7
Capítulo 1- “Olá, meu nome é Eme”
Olá, meu nome é Eme. Bem vindos ao fim do mundo.
Isso mesmo. Nesse exato momento estou olhando pela
janela. Não é bem uma janela, mas do outro lado da rua uma
casa acabou de explodir. Já deve fazer meses desde que tudo isso
começou, não sei direito, parei de contar, mas as bombas ainda
explodem. Adoraria conhecer quem fez tudo isso. E depois meter
um belo soco na cara, é claro.
Eu acabei de acordar. Já faz muito tempo desde que dormi
em uma cama decente e tive uma boa noite. É como uma roleta-
russa do sono. Será que alguma bomba vai explodir e me matar?
Será que vou acordar em anos quando tudo isso tiver acabado?
Será que o apocalipse é um sonho? Não sei, mas gosto de arriscar.
Vou sair para procurar algo pra fazer.

***
Não sei dizer quantos quilômetros andei o dia todo. Não
tenho noção de espaço. Nem de mais nada. Não sei que dia é
hoje, nem quantos anos eu tenho. Parei de me preocupar com
isso. Não é minha prioridade.
Para ser sincera, eu não tenho exatamente uma prioridade.
Eu não me importo em tentar sobreviver, ou achar outra pessoa,
ou encontrar a resposta de tudo isso. Eu só vou viver enquanto
posso. Continuar me divertindo. Buscando novas sensações.
Eu não preciso entender tudo o que aconteceu ao meu redor.
Não preciso saber de tudo. Eu prefiro sentir o mundo do que
compreendê-lo, pois minha alma vem dele e já o conhece o
suficiente então do que isso valeria? Nesse lugar vazio, tentar
entender o sentido da vida não vai preenchê-la. Afinal, a única
coisa que tenho sou eu mesma. E se eu tenho a mim já é mais
do que o suficiente, pois posso transformar tudo em sentimento.
Meus sentidos. São minha maior dádiva. Posso sentir o calor
do sol que bate em minha pele. Posso ouvir o silêncio e decifrar

8
o que ele me diz. Tudo isso me traz emoção, a única coisa que
posso desfrutar por aqui.
Todos os dias, quando eu acordo, tento sentir a energia
ao meu redor. A vida não acabou por completo, eu sei disso.
Enquanto eu viver, posso dar vida ao que não tem alma.
Andar pela rua silenciosa, até alguma bomba levar para o
alto tijolos de alguma casa. A poeira sobe e então tudo fica em
câmera lenta. Bem longe, eu posso ouvir uma sinfonia, vindo do
fundo da minha mente. Mesmo baixa, ela me preenche. Eu não
estou sozinha, as explosões são como pessoas, que me tiram do
meu centro e eu lembro do mundo ao meu redor. Eu não sei se
é mesmo algo fora de mim, ou se o mundo só existe porque eu
estou nele. Mas tudo bem.
Enquanto eu existir, ainda haverá o sabor dos abacates que
ainda encontro por aí. Ainda haverá o cheiro de fumaça. Ainda
haverá a beleza das cores encardidas. Não preciso de alguém que
sinta por mim, e vai além do físico. Quanto mais eu me conecto
com o mundo, mais profundamente posso sentir cada átomo,
cada partícula. É sobre entregar meu corpo aos sentidos e me
dedicar e descobri-los cada vez mais.
Quando fecho os olhos, busco o contato com o mundo. Deixo
que minha alma se liberte para ir ao encontro do seu verdadeiro
lar. Sinto que da mesma forma que estou no mundo, o mundo
está em mim. Na minha história, na minha mente. Eu vivo aqui e
sou parte do tempo que me leva á um futuro infinito. Enquanto
minha alma habitar esse corpo, enquanto ela não se transformar
em outra coisa, eu poderei desfrutar da energia que está ao meu
redor.
Tudo o que eu sinto, quanto mais eu sinto, me sinto
saciada. Sensações alimentam meu espírito. Cada vez que uma
bomba explode, estou em um estado diferente, e então posso
contemplar a diversidade e os infinitos sentimentos que sou
capaz de experimentar. Eu, como uma pessoa nascida em um
mundo que me reconhece como sua filha.
É de fato muito bom estar sozinha.

9
Capítulo 2 - Não é que eu não goste de pessoas
Não é que eu não goste de pessoas, ou que não queira
encontrá-las. Eu apenas não lembro delas. E sinto que não
preciso lembrar. Eu apenas não preciso lembrar. Eu sei como o
mundo já foi, de algum modo. Sei que havia pessoas nas casas e
provavelmente não existem mais. Isso parece triste.
Eu posso finalmente lembrar como é estar com alguém. Não
me recordo de nenhum rosto ou nome, mas um sentimento é
algo que minha alma não esquece. Alguma vez eu devo ter me
apaixonado, e sou eternamente grata por isso. Não preciso disso
pois me sinto completa, mas talvez eu não seria completa se
nunca tivesse vivenciado uma paixão.
Eu sei que essa pessoa despertava em mim algo impulsivo e
ansioso. Eu queria aproveitar cada mísero segundo com ela, pois
estar com ela me fazia acreditar nas pessoas. Acreditar que as
pessoas podem ser reais e podem ser diferentes, o que é lindo.
Alguém que tenha desejos e sonhos. Alguém que não sou eu,
que tem uma história que mesmo que por um tempo incontável
encontrou-se com a minha.
Acho que se eu pudesse voltar em um momento, seria
com essa pessoa. Que o tempo parasse para que eu pudesse
vivenciar aquilo novamente. Se as pessoas existem, deve haver
um jeito de tê-las por perto. Ter uma conversa verdadeira com
alguém. Algo fluido onde os corações se toquem e as mentes se
abracem. Quando alguém entende o que você pensa, às vezes
sem precisar dizer. Ter uma história e momentos com alguém,
algo pra recordar.
Tenho a impressão de que passei por isso. Que tive um
melhor amigo. Meu espírito lembra de ter encontrado outro que
o pudesse tocar. Alguém com quem eu me conectei a alguém
com quem eu pude contar. Alguém em quem eu acreditasse.
Alguém que foi real pra mim.
Uma pessoa. Pessoas. Imaginar que em algum lugar há vários
seres humanos que são deslumbrantes de seu próprio modo,

10
únicos e autênticos, que interagem entre si em um mundo que
os une. Tão diferentes, cada um com sua vida que se entrelaça
com outra. Talvez a Grande História seja como um novelo de lã.
Quando estou andando pelas ruas, vejo o que as pessoas
criaram pra mim. As pichações na parede, por exemplo, revelam
a arte de alguém. Essa caneta que estou usando foi inventada por
alguém. A humanidade é tão criativa e inteligente. O que eu mais
gosto são as motos. Eu não sei como usá-las, raramente consigo.
Mas abençoado seja quem inventou a moto. Quem pensaria que
se deslocar em alta velocidade pudesse ser tão estiloso?
Sei que as pessoas também já fizeram coisas horríveis. Eu
leio livros de história. Eu também já vi coisas ruins acontecendo.
Quando lembro de todas as guerras e os desastres, tenho
vergonha de ser humana. A Terra faz de tudo para elas tudo o
que precisavam. E hoje, o planeta está machucado. Nunca vou
perdoar a humanidade pelo que ela já fez, a maldade das pessoas
umas com as outras é trazer maldição ao mundo.
Mas.
Em um mundo amaldiçoado, sei que há esperança. Eu
acredito em segundas chances.
Sou eternamente grata a todas as pessoas que descobriram,
pensaram e experimentaram essa minha realidade que chamo
de mundo, sou feliz por ser uma de vocês.
Talvez um dia eu possa criar algo também.

11
Capítulo 3 - Hoje eu caminhei mais um pouco
Hoje eu caminhei mais um pouco, e como todos os dias,
descobri coisas incríveis.
Já fazia muito tempo que eu não encontrava uma ladeira.
Mas a encontrei. Eu não consigo explicar a magnitude de uma
grande declinação bem asfaltada. Sabe por quê?
PORQUE DÁ PRA ESCORREGAR!
Eu só precisava de algumas rodas para fazer meu escorregador
gigante. Com muita sorte, achei um skate jogado na calçada. É
bem bonito. O shape grid parecia não estar tão velho. Imaginei
os bons momentos que tiveram com ele.
Me certifiquei de não ter nada que pudesse quebrar e me
machucar comigo. Carrego tanta coisa nos bolsos que às vezes
esqueço o que tenho. Cobri as mãos com um par de luvas, ralar
a mão é pior do que qualquer outra parte do corpo. Quando já
estava pronto, subi até a parte mais alta, sentei no skate e segurei
bem os joelhos.
Acho que essa pode ser a minha mais nova regra de
sobrevivência: segurar bem os joelhos.
E então, a magia aconteceu.
Minha motocicleta-dragão descia os anéis de saturno em alta
velocidade. Nada poderia me parar. Deslizando furiosamente
rasgando o espaço-tempo, eu pude cuspir nos olhos do perigo.
Vroom vrroom, os motores urravam prontos para a adrenalina,
eu pude ouvi-los gritar por aventura. Totalmente abastecida na
base da ira, minha querida Aracne era implacável. Eu soltei os
joelhos e joguei os braços para trás.
O sabor da euforia é ardentemente delicioso. Nada explica a
imensidão de cores que se pode ver quando sua alma conhece
a verdadeira felicidade. Talvez eu tenha me arranhado, mas é só
uma metáfora de que as vezes cicatrizes são marcas deixadas em
você para que se lembre de que a vida é uma perfeita aventura.
Os desafios que o mundo tem a oferecer, meu corpo vibra
ao imaginar de quantas formas pode-se chegar perto da morte e

12
saltar por cima dela. É como se uma bomba carregada estivesse
em sua barriga, causando aquele frio, mas quando você percebe
que venceu o medo, ela explode em um brilho enorme. Você se
sente mais leve, mais capaz. Tudo vale a pena quando o assunto
é diversão. Porque eu posso fazer valer a pena.
Quando nosso corpo libera adrenalina, é algo único. Eu amo
isso, poder sentir os arrepios quando faço algo idiota que pode
acabar mal, mas pelo menos eu fiz. Mesmo que eu me arrependa
depois, pelo menos eu fiz. Só se vive uma vez, certo?
Talvez eu esteja perdendo algo divertido estando sozinha,
mas enquanto eu tiver esses momentos comigo mesma, estarei
bem.

13
Capítulo 4 - Acordei de repente
Acordei de repente, provavelmente com o barulho de uma
bomba.
Eu gosto de acordar com as bombas. Toda a noite é apagada,
minha mente começa tudo de novo a partir do que estava desde
ontem e o resto do passado. Abro os olhos, meus voltam a se
organizar e minha mente aos poucos faz suas associações até
então afirmar: hoje é um novo dia.
É até possível traçar uma metáfora. Quer dizer, se o mundo
surgiu a partir de uma explosão, o que será que havia antes?
Tipo, se nada se cria e tudo se transforma, deve ter havido
alguma coisa antes. Talvez tivesse todo um universo. Eu não sei
dizer se acredito que era algo exatamente como este mundo. As
mesmas pessoas, os mesmos planetas, as mesmas leis, o mesmo
tempo. Pode ser que toda a história que estou vivendo seja só
mais uma repetição, pois o universo pode ter se programado até
um certo limite onde volta-se ao início de tudo.
Mas talvez. Ah, essa possibilidade é lindamente complicada,
com milhares de variações e probabilidades de vários tamanhos.
Eis então: Se não foi igual.
Se o mundo era totalmente diferente. As formas como o
universo se organizava, como as dimensões coexistiram. As
formas de vida que poderiam ser absurdamente racionais e com
um potencial inimaginável. Elas provavelmente fizeram com que
acontecesse o bigbang, se autodestruindo. E o próprio universo,
como uma consciência inteligente, resolveu criar novamente e
se reorganizar.
É possível pensar em formas lego onde encaixam-se as peças
de formas infinitas criando coisas diferentes, mas com as mesmas
peças. Você pode até derreter uma peça e fazer outra. Pode ser
que seja eterna essa combinação.
Ou então, combinação por combinação, se pensar em uma
dimensão exuberante de pequena. Como o efeito borboleta. A
cada novo círculo, uma partícula mínima muda de lugar. Pode

14
ser que as diferenças sejam quase nulas, ou de uma proporção
incalculável.
Li em algum lugar que Einstein disse que E=mc^2. Bela
fórmula, que tenho preguiça de explicar, mas graças a isso o ser
humano descobriu como criar a famosa bomba atômica, que é
basicamente uma fissão de dois núcleos de átomos.
Átomos, que antes pensávamos ser inquebráveis. Átomos
são minúsculos de minúsculos e fazem um estrago enorme.
Assim entendemos que um evento pequeno pode ter
possibilitado a existência de tudo o que já conheci hoje.
Será que eu posso interferir no próximo bigbang?

15
Capítulo 5 - Será que eu deveria parar de man-
dar em mim mesma?
Será que eu deveria parar de mandar em mim mesma?
Eu sou uma sociedade. Tenho meus costumes, meus
princípios. Sigo ideias, ajo de acordo com minhas concepções de
quem sou. Sou fiel a mim. Ou pelo menos eu tento.
Um ser humano precisa dizer a outros humanos como devem
ser humanos, iguais, juntos. Um líder deve usar de seus meios
e conceitos para guiar seus subordinados a um objetivo único:
coexistir.
Eu tenho que me mandar ser eu?
Basear-me em minha personalidade para me conduzir a
ações, pensamentos e consequentes sentimentos, os quais
eu quero que façam parte de mim, para que assim possam se
relacionar e se entender como único eu.
Mas, às vezes.
Não quero ser eu, não quero me seguir. Me rebelar contra
quem se rebela contra mim que sou eu mesmo.
Eu sou meu grande ditador que leva-me a punho para alcançar
o que quero, com ambição. Sou o presidente que me rege e me
guia por mim mesmo, para que assim eu possa atingir o meu
melhor. Sou o rei que representa meu nacionalismo e estende a
minha individualidade.
Mas eu sou péssima. Logo, desejo depor-me. Me expulsar,
me arrastar. Faço a mim um péssimo trabalho. Desrespeito
todos os meus direitos, minha constituição baseada em meus
pensamentos. Há em mim guerras civis infinitas, pois não sou tão
democrático. Conflitos bélicos cujas armas são minhas próprias
leis.
Eu não quero mais me governar, e não desejo que ninguém o
faça. Eu não preciso de um regime. Eu sou o partido anarquista.

16
Capítulo 6 - Em minha caminhada hoje, fiz um
amigo
Em minha caminhada hoje, fiz um amigo.
Eu o chamo de Miguel. Ele é esférico e tem listras coloridas,
feitas de algum tipo de couro. Ele pula muito bem, então acaba
sendo útil.
Na verdade foi o Miguel quem me achou. Quando uma
bomba explodiu em mais uma casa, Miguel pulou pela janela e
bateu em minha cabeça, mas estou bem.
Tenho dó de chutá-lo por aí, e ele não parece ter sido feito
para chutar e então eu o carrego sempre no ombro para ele
tenha uma boa visão. De vez em quando, dou uns toques para
ele pular, ele gosta. Quando não consigo ver atrás de um muro,
ele também é muito prestativo.
Miguel é bem calado, então acabo tendo que falar por nós
dois, mas acho que ele não se importa. Perguntei pra ele o que
ele achava do nosso mundo.

- Não sei se importa se gosto ou não. É o meu mundo,


mesmo se houver outros, fui feito neste e meu lugar é aqui.
- Tem ideia de onde gostaria de ir? Tipo, se pudesse ir para
outro mundo?
- Não conheço muita coisa, e não sei se ir para outro
mundo está ao meu alcance. Por enquanto, vou me concentrar em
conhecer este.
- Quero conhecer este também. Se houver outros, eu
também adoraria visitar.
- Mas você gosta desse?
- Às vezes sinto que já estive em outro lugar, outra vida. Mas
não me imagino nem outro. Sinto que fui feito pra essa realidade e
ela feita pra. Como se eu vivesse dentro de mim mesmo, entende?
Gosto dessa sensação de estar em todo lugar, e todo lugar está em
mim. Eu sou o mundo em que vivo, não sei. Eu gosto disso aqui.
Acordo todos os dias feliz por estar vivo, por sempre ter onde ir.

17
- Aceitar a realidade é uma coisa. Amá-la é muito mais difícil.
- Acho que amar o mundo é sobre querer o melhor pra
ele, e querer ver o melhor que ele tem. Fico cada vez mais
impressionado, todos os dias, tem sempre algo novo. É por isso
que estou sempre mudando. De casa em casa. Coleciono objetos
que encontro pelo caminho- nesse momento, abri minha mochila
e mostrei os objetos para Miguel: Uma caixa de giz de cera, uma
frigideira, um relógio de pulso digital desligado e um carrinho de
brinquedo. Peguei o giz e usei para desenhar olhos, nariz e boca
em Miguel, assim ele se expressa melhor.
- Então você é como uma abelha que poliniza as flores por
onde passa?
- Tipo isso. Um pouco daqui pra cá. Sempre um pouco
de mim para o mundo, e do mundo para mim. Acho que esse
sempre foi meu objetivo. Ser amigo de onde vivo.
- Isso é interessante. Eu não penso tanto, acho que sou
apenas um mediador crítico. É bom que você tenha um.
- Obrigada por ser uma extensão da parte menos
conhecida de mim Miguel.
- Não há de que - ele disse, rolando pro canto. Miguel
também gosta de ficar sozinho às vezes.

18
Capítulo 7 - Hoje Miguel e eu acordamos mais
cedo
Hoje Miguel e eu acordamos mais cedo. Na verdade, eu não
penso tanto sobre isso, mas desde que conheci Miguel presto
mais atenção nas coisas.

- O que costuma fazer nessas horas em que está acordada?


- Não sei. Não tenho nada a perder, então faço o que eu
quiser, o que aparecer pra eu fazer. Mesmo que eu demore mais
tempo tentando pregar uma moeda do chão do que tentando
salvar minha vida- eu disse, jogando a mochila nas costas e
segurando-o firme.

Andei alguns metros até entrar em uma casa. Parecia um


pouco mais antiga que as outras, era pequena também. Por
dentro era fascinante.
Isso porque um dos cômodos tinha vários relógios. Todos
parados ou quebrados, provavelmente por causa da presença
das bombas. Eram relógios de várias cores e tamanhos, e eu quis
pegar todos. Mas me contive apenas com um.
Estava guardado sozinho em uma gaveta. Era dourado, com
corrente. Um relógio de bolso, tinha vários desenhos e detalhes.

- Para onde acha que o tempo corre?- Perguntou-me


Miguel.
- Eu não sei. As vezes acho que o tempo corre em círculos.
A humanidade criou a concepção de tempo para melhor
organização baseando-se em eventos naturais é claro- Então
a natureza cria seu tempo, sua proporção. Digo, o movimento
da lua faz o tempo, a decomposição de matérias orgânicas cria
tempo, e o tempo passa enquanto essas coisas acontecem.
- Então o tempo pode ser material?
- Talvez. É como um quinto elemento que rege o mundo,
ou talvez o elemento principal. Talvez ele controle tudo, talvez

19
ele seja o mais baixo na hierarquia atual. Assim como o mundo,
o tempo deve ser aproveitado. Quando estamos em harmonia
com o tempo, nossas ações acabam sincronizadas com o cosmo.
O tempo é como o ponto que nos conecta ao crescer das árvores,
ou melhor, as estações. Acho que as estações são a maior obra de
arte do tempo.
- Se não houvesse tempo, não haveria inverno nem verão
nem outras estações?
- Eu não sei bem. Se o tempo fosse estático ou inexistente,
a natureza também seria. O mundo seria como um quadro que
nunca muda. Mas as pessoas, eu não sei bem. Acho que nosso
corpo também não mudaria, mas e nossa mente? Será que ela
vai além do tempo? Nossa alma ainda existiria desse mesmo
jeito em algum lugar onde o tempo não passa? Eu acho que
deve existir esse lugar, e talvez um dia eu chegue lá. E se estiver
sozinho, posso criar o tempo.
- E se duas almas diferentes criassem tempos diferentes?
- Acho que as pessoas sempre tiveram tempos diferentes,
só contavam do mesmo jeito. Como árvores que demoram
períodos diferentes para crescer, as pessoas deviam ter seu
próprio tempo para pensar e se conhecer. Elas agiam como se
vivessem dias iguais, mas para algumas 24 horas parecem pouco,
para outras muito. Algumas não se limitam a isso e demoram 30
horas para terminar um dia. Mas elas acabam dando um jeito
de se entenderem com isso. Não temos controle, de qualquer
forma. Pra mim, não preciso contar dias ou meses ou anos. Estou
sozinha. Talvez fazer isso seja mais interessante, talvez só me
ultrapasse. Considero meu jeito de contar o tempo em como vivi.
Estou vivendo muito, então tenho tempo. Meu tempo, minha
vida. Minhas memórias e sensações, pois o que realmente acho
importante é o presente. Mesmo que seja rápido, não preciso
viver o tempo todo. Eu quero viver o agora.
- E depois?
- Depois eu não sei. Não preciso saber. Quem se importa?
Mesmo assim, vou levar o relógio. É bem bonito e está parado,
então ele não manda em mim.

20
Capítulo 8 - Silêncio
Silêncio. Mesmo depois de tanto tempo, eu nunca havia
prestado atenção no silêncio. Acho que penso demais, minha
mente nunca está em silêncio. Além das bombas.
Mas, de certa forma, o barulho das bombas faz parte do
silêncio. É a nova realidade.
É que Miguel e eu encontramos uma casa que parecia muito
mais quieta. Senti como se ninguém nunca tivesse falado nada.
Ou talvez eu estivesse em silêncio, não sei.
Sentamos no chão. Miguel entendeu que eu queria
experimentar o que é estar quieta, então ele também se calou.
Ficamos ali, de olhos fechados ouvindo o nada.
O silêncio nos faz ouvir nossa voz interior.
Minha voz interior não parava de falar. É comum que eu sinta
algo quando eu penso sobre algo, mas para isso algo precisa
acontecer. A voz do mundo precisa sussurrar em meu ouvido,
mas naquele momento, ela também se calou.
O silêncio, a solidão. Apenas eu e mais ninguém. A voz na
minha cabeça que já não falava nem consigo mesma.
Geralmente, quanto mais baixo o som, mais nossos ouvidos se
esforçam, indo cada vez mais fundo, dentro de mim, procurando
uma voz. Eu sabia que tinha algo dentro de mim, falando bem
baixo.
Mas estava tão longe. Tão fundo que seu eco era distorcido,
quase inexistente. Não posso afirmar que era uma palavra,
pois o que eu estava tentando ouvir era um sentimento muito
silencioso, mas grande e parecia estar em cada parede de tecido
do meu corpo.
O som que vem do vazio e me possui de solitude, a voz que
me reflete de dentro para fora.

21
Capítulo 9 - Por uns minutos, acabei esquecendo
Por uns minutos, acabei esquecendo de Miguel. Sei que
ele não se ofendeu. Na verdade, o encontrei por acaso. Havia
acordado e saiu rolando por aí. Quando parou, olhava fixo para
frente.

- Estou aqui há uns vinte minutos. Não consigo rolar mais.


- Quer uma mão? Ou um pé?
- Prefiro a mão- ele disse. Segurei-o firme
- Achou algo de interessante?
- De fato. Aquilo. Uma base policial.
- Ah cara, que achado! Vamos ver se tem alguma coisa
bacana lá- Me animei, mas o lugar estaria caindo aos pedaços.
Mal dava para perceber se era mesmo uma base por dentro.
- Se tivessem pessoas na prisão, fariam bom uso das
bombas.
- Imagine que você está preso, e quando consegue fugir, o
mundo acaba - brinquei
- Então você acha que está menos livre por estar sozinha?
- Não- eu ri- não tem nada a ver. Para algumas pessoas
talvez. Se fosse outro alguém em meu lugar é provável que essa
pessoa se entediasse por não ter ninguém com quem aproveitar
a liberdade. Mas eu, bem. Eu me sinto mais livre do que nunca,
não que eu tenha me sentido menos livre antes de tudo isso
porque eu mal me recordo do que é estar presa. Mesmo se
estivesse, daria um jeito de encontrar a liberdade, mas tenho a
sorte dela ter me encontrado.
- O que é a sua liberdade?
- Relativismo, obrigada. Acho que se ela fosse apenas uma
utopia, eu não saberia responder melhor. Somos tão bons em
traçar metas detalhadas. Devo dizer que isso é minha liberdade,
tudo ao meu redor. Não porque eu vejo, mas porque sinto. É
do exterior para o interior. Me pergunto se sou mesmo livre ou
se vivo na liberdade. Será que ela só existe quando também há

22
prisão para que a comparemos? Quando precisamos conquistá-
la, quando sonhamos com ela.
- Então, só por viver em um mundo vazio, você não tem
nada que a prenda?
- Não. Sei que é automático imaginar que são as outras
pessoas que nos policiam. Que aqueles que estão acima de nós
são a maior ameaça à liberdade, por ditarem valores que temos
que seguir. Mas fomos nós, em nosso trabalho coletivo, que
criamos a ética que devemos seguir para que assim a vida seja
respeitada. Aqui, a liberdade é uma ameaça, pois um sujeito
sem limitação moral pode prejudicar os outros. Porém, cada um
de nós temos nossos preceitos mesclados às regras que vieram
antes de nós. Tudo o que acreditamos ser justo barra nossos
desejos mais profundos. Então, mesmo sozinha, ainda tenho a
mim. Eu me proíbo de fazer, de sentir, de falar. Fui construída
com ideias sobre o que fazer e o que não fazer. Mesmo sem
pessoas, mesmo sem sentir fome, mesmo sem medo de morrer.
É inconsciente, eu sempre estarei tentando me parar. Mesmo
que eu me peça liberdade, eu não posso ouvir. Como pedir para
que uma ditadura seja instituída. Se sentir livre é se sentir você
mesmo, com limites e regras auto instituídas e entender que
seus valores fazem parte de você, do seu “eu” livre. Pode ser que
sozinha seja mais fácil ser eu mesma. Me aceitar, me impor, por
ninguém. Eu sou a liberdade.

23
Capítulo 10 - Estou aqui, novamente
Estou aqui, novamente. Eu sempre acabo voltando.
Voltando para o canto do mundo onde eu fico sozinha, triste
e sem nada para fazer. É como um castigo. Um castigo por ser eu
mesma.
É que quando eu paro para pensar que vivo em um mundo
com pessoas, isso me assusta. Tantas delas, tão diferentes,
e mesmo assim todas elas têm algo em comum, até mesmo
comigo. O que é ainda mais bizarro. Todo mundo é muito bizarro,
por que só eu levo culpa?
Parece que sou a única cuja mente para e então eu começo
a me perguntar por que estou alí e o que estou fazendo. Por que
ainda me preocupo em ser eu?
É doloroso mostrar o meu universo e as pessoas não saberem
apreciá-lo. Porque eu só quero novas sensações, mas me sinto
tão grande que é como se eu estivesse em todo lugar, em todo
o tempo, tocando tudo, sentindo tudo, e não sei lidar com isso.
Logo as pessoas se tornam entediantes.
E aí, não me encaixo. Eu sou idiota demais, espontânea
demais, completamente impulsiva. Eu sou um pouco mais
rápida que as pessoas, elas não me acompanham bem. Talvez o
problema seja mesmo comigo. Talvez eu precise mudar. É difícil.
Eu quero me expressar sem que façam suposições erradas.
Aqui mesmo eu erro, considerando que o que as pessoas pensam
é importante.
Mas as vezes elas me trazem boas sensações.
Às vezes, elas não percebem, mas conseguem ser geniais.
Conseguem me mostrar uma visão diferente das coisas, e eu
sinto que sou parte do mundo.
Mas volto a insegurança de estar sendo inconveniente,
desnecessário. De que eu deveria me prender ao meu mundo
porque talvez eu seja excêntrica demais. Talvez eu seja muito eu.
Eu tenho medo de até isso não estar fazendo direito. Essa é
mesmo eu? Ou quem eu finjo ser? Será que eu sou de verdade?

24
Eu não sei onde estou, não sei quem sou e não sei o que
estou fazendo. Eu quero estar sozinho e me acostumar com isso.
Eu quero estar comigo por mais tempo, para me encontrar de
verdade.
Mas acontece que “eu” sou tanta gente.

Ser eu é muita gente em um mundo com muita gente.

25
Capítulo 11 - Tudo está tão grande
Tudo está tão grande e tão rápido que eu não consigo me
mexer. O mundo quer parar, mas não pode. Eu não aguento mais.
Tudo passa rápido demais por mim, e logo não sei mais para onde
estou indo.
Caio no meio da rua porque ficar de pé me deixa tonta. E
então, começa a chover. Eu não sei de onde vem, mas as lágrimas
apenas não param de cair. Minha roupa fica tão pesada, minha
pele é pesada. Eu me canso de me vestir de mim, mesmo sabendo
que posso ser quem eu quiser.
Mas no fundo, qualquer outra pessoa ainda será eu, pois sou
só eu. Eu sou todas as pessoas caídas no chão depois de tanto
vagar por si mesmos. Somos infinitas.
O mundo não nos deixa parar. Ele nos empurra para dentro
de nós mesmos. Somos engolidos, esmagados, tentando achar
uma saída, mas sequer sabemos onde estamos.
Porque onde quer que eu esteja, estarei sempre no mesmo
lugar. Todo lugar é um, mesmo, em mim, onde quer que seja, sou
eu.
Amado amigo, descanse em paz Miguel.
Miguel nunca morrerá de verdade, pois ele é parte de mim.
Talvez ele volte um dia. A vida vai e vem, e parece que vida e
morte são a mesma coisa. Ora é vida, ora é morte. Mas nada aqui
está vivo de verdade.
Eu me sinto viva, respirando, meu corpo ainda funciona.
Minha alma está aqui. Mas estou tão completa que já não sei o
que buscar. Eu me encontro, e isso é o suficiente.
Mas eu preciso mesmo ter o que é o suficiente? Talvez na
vida sempre tem algo faltando, e se não tem, é a morte. O que
falta na vida é a morte já completa.
Estou vivendo e vivendo muito. Mas acho que só estou
vivendo porque estou sobrevivendo. É fácil viver quando não se
tem medo da morte. Estou vivendo tanto que já não sei o que se
há pra viver.

26
Eu sempre estive sozinha. E provavelmente, sempre estarei.
Pela primeira vez, em muito tempo, vi um espelho que não
estava quebrado. Não só isso, prestei muita atenção nele.
Em um quarto vazio de uma casa solitária, provavelmente de
solteiro. Havia poucas coisas, e por isso o espelho grande e bem
adornado me chama atenção. Ou talvez, tenha sido eu mesma.
Não é que eu seja egoísta, eu estou sozinha e não sei dizer se
me importaria com alguém que não fosse eu. Não importa quem
seja, ou o que tenha feito. Não sou eu. Não sei se posso conhecer
nem confiar.
Eu não me conheço por completo, mas sou minha única
referência. Sou minha única definição do que é ser uma pessoa,
e a única que acho que exista. Não sei como ter certeza da minha
existência, mas se existo, quero continuar existindo.
Penso muito em mim, mais do que em qualquer outra coisa.
Em minha imagem, meus gostos, minhas ideias, o que eu posso
criar. Minha identidade não se destaca porque é única, o único
ponto a se ver no meio do nada.
Por isso faço o que quero, penso no que quero, sempre
partindo de mim. Eu não sou egoísta, sou a única coisa para
me importar. Eu apenas penso muito sobre minha existência e
colocá-la acima de tudo, assumi-la como uma verdade.
Experimentar a existência é discutir consigo mesmo, sobre o
seu motivo e quão magnífica é.
Eu existo. Eu sou eu. Apenas eu.

27
Capítulo 12 - “Perdido em conversas de buraco
negro”
“Perdido em conversas de buraco-negro
asfixia ao nascer do sol
me mantenha acordado a noite toda
Eu só quero sentir algo” disse uma vez Miley Cyrus. Sei disso
porque encontrei um iPod muito bem guardado em uma gaveta.
Junto, fones de ouvido. O quarto era cheio de pôsteres. Ariana
Grande, Willow Smith, BTS, Led Zeppelin.
Me lembro de várias músicas, muito boas. Mas naquele
quarto havia referências musicais de várias décadas. Desde vinil
do KISS a CD da Avril Lavigne. Muito rock’n roll, me senti em casa.
Eu amo a música.
Não sei se música faz parte do meu destino. Mas sem dúvida,
é uma grande parte de mim. Sinto a conexão desde o primeiro
homem a criar a primeira melodia. Criar ritmos e juntar com as
palavras, isso nunca vai deixar de ser fascinante. A música move
o mundo, faz parte de toda a história e conta história. A música
pode trazer o ritmo do coração. Mesmo para aqueles que não
ouvem.
Algumas pessoas têm uma alma musical capaz de fazer todo
o meu corpo cantar e dançar. Essas pessoas usam a energia da
forma que melhor sabem, marcando quem tem o privilégio de
ouvir. Ao reunir acordes, harmonia e traduzir sentimentos em
palavras cantadas, a música é onipresente.
“Meet me at our spot” da Willow Smith. Essa música me diz
onde estou, e me leva para mais perto de mim. É lindo como a
Willow cria o próprio universo com sua música, e eu queria estar
cada vez mais imersa em seu mundo.
E então “Plastic Hearts” da Miley Cyrus. Ela cria um cenário
com a música, é incrível. Não só a letra, mas toda a composição.
De repente, me vejo em uma sala com várias pessoas. Elas são
espertas, divertidas, mas eu as odeio. Quero ver algo nelas, mas
não consigo. Eu não consigo gostar daquelas pessoas. Estou

28
embriagada e tento fugir o mais rápido possível, mas as ruas
escuras e silenciosas me fazem querer ficar mais um pouco.
Eu só não sei onde. Corações de plástico sangram. Eu quero
aquilo que me faz querer ficar acordada mais um pouco, me faça
esquecer do nascer do sol. Uma conversa real, uma conexão real.
Serei eternamente grata pelo modo como posso sentir a
música. E não só isso, por ter inspiração para criar.
Um violão um pouco velho, jogado no fundo, mas que ainda
dá pra tocar quando se afina bem. Começando com alguns
acordes. Ré, Sol. Sol maior é alegre demais. Talvez Ré, um pouco
fria. Do se encaixa melhor. Tento criar algumas sequências de
acordes em uma melodia. Algo bem calmo, quente. Como um
casaco de veludo, ou um suéter de lã. Um bom nome.

- Enquanto o sol nasce do lado de cá


Você parece gostar do frio
Me pergunto se você ainda está
Usando aquele suéter de lã

Não tenho tanto talento, mas só eu estou aqui e gosto do que


sinto quando estou a sós com minha música.

29
Capítulo 13 - Eu não faço ideia de como cheguei aqui
- Eu não faço ideia de como cheguei até aqui- disse Evelyn.
A primeira frase verdadeira que disse naquele dia.

Sentada na calçada olhando as luzes distantes da cidade. A


rua estava vazia, ouvia-se apenas grilos na grama. Evelyn quis
que um deles pudesse falar.

- Eu nunca tinha visto esse seu lado. Você guarda muita


coisa, devia conversar com alguém de vez em quando…
- Conversar não resolve nada Nicolas. Eu falo demais o
tempo todo- respondeu ríspida. As lágrimas começaram a rolar,
borrando o delineado- E eu sei que ninguém nunca escuta nada
de verdade. Ninguém escuta ninguém, eu não deveria me dar
ao trabalho de pensar porque não vale a pena. - mantinha o tom
seco, ignorando as lágrimas. Queixo sempre para cima, nunca
perdia a postura, olhando no fundo dos olhos do garoto- Eu não
tenho motivos pra pensar cara, eu nem sinto que existo.
- Você existe- Ele a interrompeu, aproximando-se e
tocando seu pescoço, encarando os olhos marejados. O cabelo
castanho escuro bem cortado, a pele clara. Ele era real demais, e
por isso faltava-lhe algo - Para mim.
- Não deveria ter me conhecido. Sou cansativa, intensa.
Você não merece um furacão ambulante- Aqui já não tinha
escrúpulos de se martirizar. Todos o fazem, de qualquer forma.
- Mas eu gosto de você- abraçou-a, tentando segurar
firme seu corpo magro quase a desfalecer. Como se ela estivesse
prestes a cair de um penhasco, sentiu que deveria envolvê-la.
- Você nem sequer sabe porquê. Se eu sumisse, não
mudaria nada. A culpa não é sua, por favor, vá embora.
- Não quero te deixar sozinha
- Isso porque você é educado demais. Escute sua
consciência às vezes e afaste-se do que não te faz bem.

30
Nicolas a encarou pela última vez e soube que deveria
respeitá-la. Ele gostava mesmo daquela garota de tranças roxas,
e não queria esquecê-la. Mesmo que doesse, não podia obrigá-la
a nada.
Confusa, Evelyn abraçou os joelhos e soluçou de tanto chorar.
Não queria fazer nada, nem pensar, nem sentir mais nada.
Amaldiçoava a própria existência. Nunca se sentiu tão fora do
mundo, como se não devesse estar em lugar nenhum.
Quis esquecer todos os 19 anos de vida que tinham se
passado. Os momentos bons e ruins. Não aguentava mais a
própria mente trabalhando, buscando por uma luz no fim do
túnel. Estava cansada de todas as viagens que sua cabeça já havia
feito.
O coração batia absurdamente rápido, e os pulmões pareciam
inchar. O ar estava pesado, o corpo frio e tremendo. Sentiu
cada tecido se contorcer em agonia. Chorava como se pudesse
expulsar a própria alma pelas lágrimas.
Mesmo quando fechava os olhos, não conseguia desligar-se.
A noite parecia infinita, e a garota sentiu-se parada no tempo.
Presa em um loop de desespero. Tentou afundar as mãos no
chão, torcendo para que o asfalto a engolisse.

- Me leve para algum lugar, por favor- Disse, soluçando.


Mas apenas ela estava ali para ouvir. Decidiu que choraria
sentada no mesmo lugar por toda a eternidade. Não quis parar,
pois nunca parecia o bastante.

Nada nunca era o bastante. Se reinventara tantas vezes


que sua alma era uma boneca cheia de remendos, perdida
na originalidade. Nunca estaria completa, nunca seria real de
verdade. Sempre havia uma parte rasgada, defeituosa, que não
devia estar alí.
Eu nunca saberei o fim da história. Só sei que Evelyn se
sentia tão sozinha que parecia que até as células de seu corpo
abandonaram-na e iam embora. Talvez, foi isso que aconteceu.
Aos poucos.

31
Mas eu sei que é sempre melhor morrer sozinho.
Evelyn via as pessoas reais se afastando. As pessoas cuja a
alma brilhava. Pessoas com visões e conexões sobre o mundo,
pessoas capazes de transformar o ambiente.
Elas só sumiam.
Mesmo que procurasse, sempre sumiam. Evelyn se perguntava
se havia tido uma conexão real com alguém, pois sempre chegava
um ponto onde ela não existia mais para ninguém. Ela era um
vazio do qual as pessoas fugiam.

-Garota feita de nada (Por Eme)

32
Capítulo 14 - Sentir medo é o traço mais cômi-
co do ser humano
Sentir medo é o traço mais cômico do ser humano. Claro
que todos os processos que o corpo inicia para poder fugir e se
esconder foram os responsáveis por termos vivido tanto tempo.
O medo tenta nos proteger, logo somos naturalmente egoístas
e fazemos o absurdo para evitar se machucar, mesmo que
machuque outros. Mas quando o medo começou a se mostrar
complexo, ficamos obcecados em reprimi-lo.
Ter medo ou enfrentar o medo é muito particular e depende
muito da nossa moral. Mas às vezes não dá pra evitar.
Quer dizer, eu nunca tive medo de bombas. É comum pra
mim, familiar. Mas quando entrei em uma logo com vários
brinquedos, senti um pouco de medo.
Eu me assustei com as bonecas que me encaravam e tal. Mas
não é sobre isso. Uma delas começou a falar em outro corredor e
por algum motivo eu jurei que era, pasme, uma pessoa.
Observa-se então duas dualidades (expressão bizarra):
As bombas são algo do meu cotidiano, e ter medo delas seria
estranho. Sobre o medo do que elas podem causar eu não sei.
Mesmo sendo mortais, quanto mais próximo de mim menos
acredito que são mesmo perigosas.
Mas eu simplesmente não vejo pessoas (ainda bem). Talvez o
medo que senti tenha sido por isso. Pessoas são tão imprevisíveis
e com danos colaterais misteriosos. Se fosse uma pessoa, o que
ela faria comigo? Eu não sei, e a falta de conhecimento e contato
é o maior motivo para temer algo.
Também penso que é porque não gosto de pessoas e se
houvesse uma, ela iria me atrapalhar me deixar com raiva. Eu iria
sair de mim. Devemos ser flexíveis com mudanças porque elas
podem ser boas, mas não quero. Ta aí o lado racional do medo.
Mas o susto, o que seria o susto? Não envolve trauma, ódio
ou ignorância. Porque o inesperado faz com que comecemos a
imaginar milhões de cenários possíveis?

33
E então a pior parte: A criatividade quando estou com
medo. Juro que já pensei na pessoa tentando correr atrás de
mim e de repente as saídas sumiriam e eu ficaria presa com um
desconhecido. Daria uma boa história. Mas ainda bem que foi só
um susto. Pessoas me assustam.

34
Capítulo 15 - Gosto de quando saio na rua
Gosto de que quando saio na rua, tenho uma visão periférica
do mundo. Eu vejo tudo, menos eu mesma.
Vejo cada coisa em meu campo de visão, e as coisas também
me vêem. As janelas podem me ver. Como será que elas me
vêem?
Mesmo que eu me veja em algum espelho, não posso ter
certeza de que sou eu. Eu me conheço demais, posso ouvir
minha voz interior e alguém em mim que nunca vai se mostrar.
Mas quem eu sou no mundo?
Eu queria ser outra pessoa por um dia. Qualquer outra
pessoa, menos eu. Só pra saber como é me ver de longe.
Saber como é me ver tropeçando na rua, dançando e
cantando. Ouvir minha voz atrás de si. Como minha imagem seria
construída na cabeça de outra pessoa.
Será que eu iria gostar de mim se eu não fosse eu mesma? Ou
será que eu não iria perceber os mínimos detalhes que pra mim
parecem importantes?
Queria saber como é conversar comigo. Olhando nos
meus olhos, ouvir minha voz. Trocando argumentos comigo,
construindo uma relação, um momento comigo. Se eu pensaria
em mim ao longo do dia. Se eu teria uma opinião sobre mim. Se
eu iria querer falar de mim para alguém.
Ou não. Na visão de alguém estranho que me vê como uma
estranha. Alguém que por um segundo tem a atenção roubada
por mim, e naquele meio tempo construir um pré-conceito
sobre quem eu seria. Mesmo que esqueça depois, saber por um
segundo que eu realmente existo.

35
Capítulo 16 - Há o Paraíso
O cristianismo diz: Há o Paraíso, para onde almas vão, e a
Terra, onde vivemos com nosso corpo.
Antes disso, Platão afirma que nossa alma e nossas ideias
vinham do mundo das ideias. Nossa consciência, a forma de
nossas ideias, vem do outro plano até chegar em nossa forma
material, o que pode transformar pensamento em ação.
Mas, às vezes, desejamos ter um terceiro olho.
Para isso, precisa-se do terceiro mundo. É para lá que nossas
ideias vão quando não encontram lugar aqui no plano comum.
Por isso, mantemos contato com elas mesmo sem poder vê-las.
Sabemos que elas estão lá.
Talvez um dia possamos vê-las. Éramos ideia, hoje somos
matéria. Matéria essa que cria e transforma o mundo que cria
e transforma. Que haja então o mundo das ideias, o mundo e
então o mundo ideal.

36
Capítulo 17 - Não tinha percebido que poderia
andar tanto
Não tinha percebido que poderia andar tanto, nem chegar
tão longe. Mas veja só, encontrei um parque.
É sem dúvida um dos melhores lugares por aqui.
É vazio, silencioso. O sol está baixo, mas o céu está bem azul.
É lindo. Não sei como explicar, mas deitar na grama no meio das
pequenas espécies de folhas que se espalham. Respirar ar puro.
Meus olhos focaram em uma única flor. Um dente-de-leão
minúsculo, bem perto do meu nariz. Sorri e assoprei, fazendo-o
voar com o vento. Talvez algum desejo que eu não saiba que
tenho se realize, ou nasça uma fada. Eu não sei.
Eu interferi na natureza de uma maneira não agressiva. Talvez
ela se lembre de mim.
Senti que o mundo ao meu redor me observa. As árvores, a
grama, as nuvens. Estavam todos comigo.
Porque sou a única.
Porque quando se há pessoas é com elas que se interage.
Mesmo de longe. Dá pra criar várias linhas de possibilidades
baseadas na teoria do caos. Mesmo quando duas pessoas se
olham de longe, pode ser que haja uma pequena comunicação
que seja importante naquele momento.
E as vezes quando se tem sorte, uma pessoa pode ser seu
maior fruto na vida.
Mesmo que você não realize muita coisa, alguém pode se
inspirar em você. Você mudou alguém, de alguma forma. Quando
há troca de opiniões ou informações entre duas pessoas, aquilo
fica gravado. Todas as suas impressões momentâneas, conclusões
não se esvaem fácil e às vezes viram referências futuras.
Ou quando comunicação é só por toque físico. Seu corpo
guarda aquilo caso tenha significado algo. As emoções não se
esquecem. Nossa alma é uma construção nossa em relação ao
mundo e as pessoas que vivem nele assim como nós. Somos trocas
e trocas, ou seja, um pouco de cada pessoa ao mesmo tempo.

37
Então é inevitável duvidar do que eu sou e como sou se não
há ninguém para ser.
Sou a pessoa mais sozinha do mundo justamente por ser a
única nele.

38
Capítulo 18 - Por isso, amo a natureza
Por isso, amo a natureza. Porque, quando estou em harmonia
com o que esse mundo tem a oferecer, posso sentir cada parte
dele. Cada partícula, cada molécula.
Quando respiro e inspiro oxigênio, posso experimentar o
cheiro das árvores que se conectam com suas raízes e guardam
o mundo. O cheiro das águas em todo lugar, levando e trazendo
histórias. O cheiro das estrelas, mesmo distantes, guardando-me.
Penso que esse mundo foi criado por alguém. Um deus, uma
grande consciência coletiva que está em tudo, que rege tudo,
que determina as leis naturais e se comunica com aqueles que
têm a alma disposta a ouvir a voz do mundo.
Uma energia forte que faz as árvores crescerem e darem
frutos. Que faz a água correr, a chuva cair, o vento soprar e o fogo
queimar. Porque está tudo conectado, o tempo é uma dimensão
caótica. Ele também é o tempo.
Meu corpo criado para receber os dons da natureza.
Para senti-la e usar sua energia. Um corpo capaz de viajar
por consciências, capaz de ouvir cada átomo inspirado pela
consciência onipresente.
Corpo este que nasce e morre, e vira energia. Sinto-me
honrada em saber que o solo vai aproveitar da minha matéria,
logo sou imortal. Quando eu morrer, minha alma continuará
viajando pelo éter na mais plena paz, pois sou parte desse
mundo.
Ciclos sem fim. Passo a vida me alimentando dos eventos
e absorvendo fenômenos graças à natureza. Posso me banhar
no tempo, me aquecer na criação. Respirar o mundo. Criado e
destruído a todo segundo, porque tudo muda. Nada se cria, tudo
se transforma. Matéria quebrada em energia e então criada para
construir mais matéria, mais energia.
Eu sou a natureza. Sou a terra, sou a água, sou o ar, sou o
fogo. Sou o ver, ouvir, cheirar e tocar. O ir e o vir. Quando meu
espírito viaja pelas mentes do universo e se comunica com todas

39
as almas de todos os elementos. Caminhando pelas energias e
me ligando a história de tudo o que foi criado e destruído.
Natureza. Energia. Consciência. Existência. Transmutação.
Conexão.

40
Capítulo 19 - O universo pode nos ouvir
O universo pode nos ouvir. Tive certeza quando saí do parque.
Talvez por eu ser a única a fazer um desenho, ele tenha sido
mais forte e só por isso se realizou mais rápido.
É que eu não sabia o quanto queria ver Miguel até ver. Eu não
sei exatamente o motivo, porque ele sempre está comigo. Mas às
vezes uma parte de mim some. Eu não sou perfeita.

- Você está aqui


- Estou aqui o tempo todo. Por que me chamou?
- Eu não sei. Não pensei em nada quando segurei o dente-
de-leão. Esperava que o universo ouvisse minha voz interna.
- Querida, eu sou sua voz interna, mas às vezes você não
ouve.
- Então o universo te trouxe pra mim.
- Sim, porque é você quem deve realizar seus desejos
- Você não sabe por que eu desejei isso?
- Você tem pensado demais. Precisa dividir o que pensa
com você, com o mundo. E não precisa de um dente-de-leão
para o mundo te ouvir.
- Você tem razão
- Você escreve tudo o que acontece não é?
- Sim. Eu gosto de deixar registrado.
- Apenas isso?
- Eu penso que posso escrever com uma intenção. É meio
que o super poder da espécie humana: a intenção, ela vai se
exteriorizar. É como escrever cartas para a lua. Mesmo que ela
não as leia, ela sabe o que sentimos. Quando aceitamos nossos
desejos internos de nos expressar, o mundo os carrega pelo
acaso, para outra pessoa e às vezes para nós mesmos.
- Se você faz uma sopa para alguém doente desejando
que ela fique bem, essa pessoa vai sentir as boas vibrações. A
sopa é só um meio material, mas essa troca de expressões é o
que fazia as pessoas serem o que eram.

41
- Se você joga uma moeda numa fonte desejando ser rico,
e esse for o seu destino, o mundo vai ouvir o seu real desejo.
Talvez você queira dinheiro para investir em algo bom. Ou não.
Mas despertará em você a melhor forma disso. Às vezes, você vai
precisar da ajuda de outra pessoa que também tinha um desejo.
Então as pessoas, em sua coexistência, eram partes dos desejos
umas das outras.
- E você? É parte do próprio desejo?
- Meio que sim. E do mundo. O mundo também quer algo
de mim. Ele me escuta, me sente, e eu o escuto.

Eu não sei se sou um desejo, e não sei qual é o meu desejo.


Mas desejo que o mundo me conte o que quero de mim mesma.

42
Capítulo 20 - Se eu fosse eu
Clarice Lispector me perguntou o que eu faria se eu fosse eu.
Se eu fosse eu.
Muito provavelmente, me odiaria. Odiaria a minha
impulsividade, irresponsabilidade e por vezes minha imoralidade.
Se eu fosse eu, choraria todas as noites em uma esquina. Porque
eu posso agir com egoísmo, eu ainda seria sensível. Carregar o
mundo inteiro, como a própria Clarice uma vez comentou.
E mesmo sem carregar nada, sem ter motivo para querer me
livrar de tudo, porque não tenho nada o motivo seria eu, porque
eu não seria nada. Eu seria tanta coisa que já não importaria,
não faria diferença pois não poderia ser, como eu seria? como?
quando? jamais, pois não teria nada.
Com tantos nadas a fazer, eu me entediados, mas não
mudaria. Pois não haveria um algo final a se fazer, então eu
nem começaria. Assim, nada me faria sentir-me como eu e me
perderia nesse monte de “eu” que não serve pra nada. Eu teria
tanta coisa, mas nada pra colocar.
O que eu faria com isso? O que eu faria comigo? Tão mutável,
imprevisível, inconstante, infiel. Seria errado não ser um? E por
que isso me importaria? Eu seria qualquer forma.
Porque eu seria tudo. Um tudo sarcástico, escarnecedor. Um
tudo o tempo todo, pra tudo. Por nada. Para quê? Nada. Mas
com tudo se faz vários nadas, e eu seria todos. Sem nada pra me
impedir mesmo.
E se eu não fosse eu?
Eu provavelmente não existiria pra contar.

43
Capítulo 21 - Gosto de como tudo é meio caótico
Gosto de como tudo aqui é meio caótico. Como quando eu
saio de uma casa. O sol brilhando ou não. Às vezes o céu está um
pouco cinza, mas ainda sim é bonito.
As casas são sempre destruídas e abandonadas. É triste,
porém poético. Quando ando pelas ruas, a minha cabeça começa
a tocar música de fundo. “Hello, Is the anybody in there?”*. Isso
me leva para todas as dimensões comprimidas nesse mundo.
Passo por passo, tento notar o máximo de detalhes possíveis.
É uma ótima distração, além de que às vezes tenho sorte de
encontrar algo interessante. As bombas explodem como fogos
de artifício.
Então eu vejo cores nas bombas. Elas gritam que faz a
realidade parecer mais silenciosa e então escuto a conversa da
minha alma com o mundo. “Thais is now how i am”*
Parar. Atravessar a rua, às vezes fingir que tem um carro
passando e então me jogar na frente. Pular das sacadas, correr
de um lado pro outro. Não sei, me movimentar faz com que eu
me sinta mais leve.
Respirar ar puro e olhar as nuvens, com a música e as bombas
e o carro imaginário. “I’ve become comfortably numb”*
Rio irônica quando minha mente formula hipóteses sobre
como seria com pessoas. Seria ridículo. Elas não seriam livres,
teriam medo e achariam problemas umas nas outras.
Eu não sei para onde estou indo. Quem sabe. Mas eu não me
entendo comigo mesma.
*Comfortably Numb- Pink Floyd

44
Capítulo 22 - Descobri que seria uma ótima
pesquisadora
Descobri que seria uma ótima pesquisadora em química.
Minha intuição é infalível.
Eu estava em uma casa. Era uma bagunça, obviamente por
causa das bombas. Na cozinha, havia várias coisas jogadas, mas
era a única parte minimamente habitável do recinto. Resolvi que
queria descobrir algo novo.
Eu queria mesmo era achar um laboratório, mas não posso ter
certeza de nada, então me contento com uma garrafa PET e fiz de
conta que era meu tubo de ensaio. Joguei dentro a primeira coisa
que vi: um detergente. A cor amarelada me chamou atenção,
logo decidi que seria legal testar as possibilidades.
Eu não sei o que água oxigenada fazia em uma cozinha, além
de ser super perigoso.
Por isso, dá-lhe água oxigenada na garrafa. Não sei quanto
coloquei. Quando a voz na minha cabeça diz “pare” só então eu
paro. Achei também corante cor-de-rosa. Seja o que fosse, eu ia
gostar que fosse rosa.
Mas não aconteceu nada. Esperei, e nada. Até que me afastei
para ter uma visão ampla. E foi aqui que esbarrei em uma tigela
com um pó misturado à água. Não sei bem o que era. Farinha?
Fermento? Enfim. Resolvi jogar e me afastar.
BOOOOMMMMM!!!
Não fez exatamente esse barulho, mas só para representar.
Uma explosão mas não das bombas e sim do meu mais novo
experimento. Eu achei incrível pois simplesmente não sabia o
que estava fazendo.
E por muitas vezes não saber o que está fazendo é o que mais
vale. Experimentos espontâneos movidos pela voz da natureza
em nosso inconsciente que nos levam a descobrir algo.
Esse sentimento é incrível, como se o acaso estivesse ao
seu lado. Eu me senti tão sortuda. Mesmo que alguém tenha
feito antes de mim, a curiosidade e a operação é um processo

45
revigorante. E se eu estivesse errado, quando não se sabe o
que é o jeito certo, aprendo com qualquer jeito. É sobre testar
experimentos e apenas esperar que algo aconteça.
Mesmo quando já se tem uma teoria. Cientistas gostam de
formular hipóteses e colocar a mão na massa. Errar quantas vezes
for necessário. Comprovar, reinventar ou até negar. Aposto que
a euforia de estar se envolvendo com algo para aumentar nossa
energia. Nossa mente se sente capaz de qualquer coisa. Por isso
eu gosto de ser meio ignorante às vezes. Eu não sei de nada, e
quanto menos se sabe mais se há para aprender.
É claro que o conhecimento passado por gerações é útil, tipo,
quem eu seria sem regra de três?
Mas o que acontece é que eu seria muito boba se me achasse
esperta. Imagina olhar uma situação e instintivamente saber
como resolvê-la? É um talento válido, de fato. Mas é melhor
quando se tem também a avidez por descobrir mais de um jeito
e as probabilidades trazidas caso algo dê errado.
Eu tenho todo o tempo do mundo para errar e acertar.

46
Capítulo 23 - Sou um grande idiota
Sou um grande idiota e odeio a escola.
Não, sério. Eu não entendo como passei tanto tempo
suportando tudo isso. Parece que fica cada vez pior. Uma hora
eu era um garotinho de 10 anos que só jogava videogame. Escola
pra mim era só a lição de casa que eu nunca fazia. Eu nem sei se
realmente aprendi alguma coisa. E então me vejo calçando os
tênis atrasado, pois fui dormir tarde terminando meu trabalho de
física. Eu tô quase desistindo de dormir.
É estranho, mas um dos poucos momentos de paz que tenho
é caminhar de manhã até a escola. O sol ainda nascendo, as ruas
vazias. É um começo de dia, mesmo eu sabendo que o dia será
um saco.
Eu não sou pessimista, infelizmente é a realidade. Todo santo
dia eu entro naquele lugar sussurrando pra mim mesmo “só
mais um dia, Rhuan, só mais um dia”. Graças a Deus. É cada dia
mais difícil. Suportar aquele bando de gente estúpida que não
têm o mínimo de consciência de que em alguns meses seremos
formandos. É uma vergonha meu último ano na escola ser com
essas pestes, cujas atitudes os expõem tanto ao ridículo que
até eu me sinto constrangido. Eles desconhecem o respeito e
provavelmente nunca saberão de fato o que estão fazendo. A
julgar pelo modo que vêem o futuro, farão sempre de modo
estúpido.
O que é falta de senso em relação aos professores. Não têm
culpa de nada, apenas fazendo seu trabalho do melhor jeito que
podem. Claro que a maioria deles teve um ensino louvável em
universidades de renome o que os coloca superficialmente acima
dos outros que podem ser tão competentes quanto. De qualquer
forma, sou grato a cada um, pois sem eles eu de fato já teria
desistido dessa escola.
É uma das melhores, devo dizer, mas apenas no quesito
formação. Dentro dela, estou ficando maluco. Esta nova grade
de ensino é uma grande sacanagem e claramente não está

47
funcionando como deveria. Mesmo fazendo um certo sentido,
nosso aprendizado é quase nulo em função da quantidade de
tarefas a fazer. Dentro da sala, aprendendo a matéria, é o mais
fácil.
Mesmo que eu esteja surtando pois todo mundo parece
calcular fórmulas três vezes mais rápido que eu, ainda é menos
desesperador do que quando temos que preparar um seminário e
estudar para as provas. Ou você faz um bom slide no PowerPoint,
ou você aprende. Minha cabeça gira, pula, cai e derrete.
Sem falar do tempo que isso leva. Mesmo quando não estou
com as mãos na massa, digo no caderno, minha mente não sai da
escola. Então o dia passa mais rápido e eu não aproveito nada. Eu
gosto de ler, desenhar e às vezes tocar guitarra. Mas cara, tá sendo
cada vez mais difícil me deixar levar por essas coisas porque eu
só consigo pensar na prova que tenho que fazer, mesmo sabendo
que é um problema minúsculo comparado às normas da escola
que criam um ambiente tóxico, traumático e a pressão de POR
DEUS COMO É QUE EU VOU ME FORMAR?
Quando acabar, eu também estarei acabado. Porque eu
simplesmente não estou conseguindo viver. E pior, eu não sei
para onde vou. Não sei se vou passar em um vestibular, conseguir
um emprego e me sentir confortável em casa.
Estou ficando maluco. Tomara que eu ainda seja o Rhuan.

-Rhuan, o grande idiota (por Eme)

48
Capítulo 24 - Intenção na forma de arte
Intenção na forma de arte.
Porque eu vi um grafite. Vermelho e roxo se misturando,
pareciam duas pessoas e ao mesmo tempo duas estrelas se
chocando. As cores se juntavam com toques de verde escuro.
Toque.
Foi o que aquela imagem me fez sentir. Toque. Quando uma
matéria tange outra, ambas sentem o impacto. Matéria essa
pode ser um sentimento de um artista para o observador. Como
se o artista me tocasse para que eu pudesse senti-lo, saber que
ele estava alí. Compreendê-lo como alguém e permitir que me
toque, me oferece uma sensação. Talvez eu o pudesse tocar,
como se as pessoas se tocam, e ele também pudesse me sentir.
Tudo se mistura em um toque. Partes se encontrando.
Porque não só ver e processar as cores e os traços é tocante.
Qualquer obra carregada de intenção e exposta está me tocando.
Isso é arte. Ela te traz uma identidade, uma vontade. Uma vez.
É preciso ouvir para que ela possa viajar por suas sensações e
invocar sua criatividade, seu desejo. Te toca no profundo porque
ao sentir-se você pode retribuir com uma nova impressão, um
sentimento esperando para tocar algo.
Tocando o mundo com o que criamos.
Isso é arte. Trazer um pouco de si, oferecer algo que lhe foi
dado. Temos tudo para criar, inventar, refazer. Liberdade de ser e
se desenvolver. A arte é liberdade de contato, de troca. Música,
pintura, cinema. Inspira criação, inspira liberdade, desejo.
É arte.

49
Capítulo 25 - Um ventilador
Um ventilador. Uma porta. O vento frio, o cheiro de queimado.
Escuto a explosão, vejo a fumaça, sinto o cheiro. Uma pedra voa
para perto de mim e para no meu pé. Uma bomba. Eu sei que é
uma bomba.
A mente humana é de uma complexidade incalculável,
tamanha é a minha habilidade de guardar informações mesmo
não me recordando de imediato a origem de minhas conclusões
sobre o mundo que se manifesta em meus sentidos. Há a matéria,
então baseada em visão ou audição e entre outros, meu cérebro
vai direcionando um conjunto de informações que chegam à
razão e logo tenho uma opinião embasada em tais como minhas
experiências e observações passadas. Até que um comando seja
enviado, ou a porta de um sentimento seja aberta.
Eu gostaria de fazer uma espécie de mapa mental. Li uma
vez que nossos hábitos e reações, junto à expressões corporais,
provém de uma construção psicológica que ocorre desde nossa
infância mesmo nossa mente não estando desenvolvida, logo
algumas eventos que não foram devidamente interpretados
deixam em meu subconsciente infinitas marcas que me
acompanharão pela vida, isso me faz ser quem sou.
Não quero ser pragmática e dizer que gosto do que gosto por
escolhas de fatores exteriores me influenciaram desde a época
em que eu não tinha plena consciência do desenvolver de minha
psique. Mesmo tendo minha personalidade baseada em eventos
de relação exterior para interior, não teria como ser diferente. Eu
gosto de gostar do que gosto. Gosto dos pensamentos constantes
e ideias antigas que me acompanharam.
Gosto de ciências humanas apesar de ser a única humana
na Terra. Apesar de preferir não viver em sociedade, gosto de
estudar sociologia. Gosto de experimentos.
Eu não saberia definir de forma breve e direta como minha
mente funciona, muito menos ser objetiva ao tentar fazer uma
síntese sobre a superfície do meu “eu” pensante. Tenho sim

50
uma certa curiosidade, saber o que aconteceu para cada detalhe
de meus conceitos e desejos, seria tão interessante quanto
descobrir a história de formação de um novo tipo de planta e
como funciona em relação às suas adaptações em função do seu
habitat.
De qualquer forma, contento-me em ser eu e entender que
sou eu. E, por curiosidade, apenas eu.

51
Capítulo 26 - Está no fim do dia
Está no fim do dia. A noite está muito linda.
O céu estrelado e a lua brilhante. Uma estrela em particular
está brilhando mais que as outras.
Será que é uma nave alienígena tentando me buscar?
Seria bacana. Quer dizer, não dá pra prever os aliens. Mesmo
que o tal Einstein tenha dito que as leis da física são as mesmas
em todo universo, gosto de deixar minha imaginação me levar.
Talvez aliens de outra dimensão que saibam driblar as leis que
conheço até hoje.
Eu sou um ser humano. Cresci no planeta Terra. Com seu
próprio ecossistema que me influencia e sou quem sou parte pelo
mundo em que vivi. Toda a humanidade teve coisas em comum
um dia, pois crescemos sob as mesmas leis e nos desenvolvemos.
Coexistimos.
Mas alguém de outro planeta, onde a vida é totalmente
desconhecida. A atmosfera é diferente, toda história é única.
Seria impossível absorver tudo. Mas seria tão edificante
aprender sobre uma nova civilização do zero. Sem ter sequer
uma linguagem em comum. Pensar nisso é excitante.
Claro que penso se o extraterrestre que me observa de longe
é minimamente racional ou até ainda mais. O que é
incrível. Quantas coisas ele deve saber que eu não sei. Quantas
experiências inexplicáveis ele passou. Tudo o que ele carrega,
tudo o que ele é, tudo o que ele representa.
Por mais que sentimentos humanos sejam infinitos, nossas
capacidades em comum tornam tudo mais familiar, onde as
sensações se completam. Mas meu amigo desconhecido tem
sentimentos que eu jamais irei compreender.
Seu cérebro deve ser inexplicável. Mesmo que ele pareça
inferior no contexto evolução, talvez seja uma forma diferente de
compreender o mundo. Mundo esse que é diferente, logo não
posso julgar.
Uma interação seria impossível. No máximo nos olharíamos

52
por segundos. Apenas contemplando a magnificência de nossa
existência. E então, nos contentaríamos que nunca poderíamos
compreender nada um do outro. Almas com infinitas divergências,
seguiríamos nossa sina na grandeza de nossa história. Sozinhos.

53
Capítulo 27 - Conhece-te a ti mesmo
Conhece-te a ti mesmo para que em ti habite o cosmos.
Eu sou uma construção de sentimentos e pensamentos,
transformados em ações, resultado de um processo que se dá
desde o primórdio de toda a existência. Faço parte de um ciclo e
estou inserido no mundo do mesmo modo que ele está em mim.
Há no profundo de minha consciência tudo o que se passou e o
que se há de vir. Posso sentir o que acontece, posso sentir o que
existe. Em mim há o que está, o que foi e o que será. Quanto mais
fundo chego dentro de mim, mais longe absorvo de tudo.
Eu existo. Sou um sujeito racional e tenho ciência de que sou
pelo fato de poder questionar-me sobre, por poder me entender
como mutável e incerto. Assim como o mundo. Eu me reflito,
mesmo sem a firmeza do fundamento. Certezas relativas que
me atingem ao passo que as refuto. Porque o saber-me não é
estático, eu posso ir e voltar.
É essa habilidade que me proporciona a imersão mas também
a evocação do que existe estendido a mim. A partir de mim,
há o que me trouxe aqui, o que me mantém e o que me leva.
Influenciado por minhas vontades, não obstante submetendo-
me às suas leis e processos. Conexões de cosmos coexistentes,
macro e micro, que somos um em todos.

54
Capítulo 28 - Estou sem sono
Estou sem sono. A noite está linda.
Amo quando o céu fica azul escuro, não quero nunca perder
essa vista. Pela janela, posso ver a lua cheia, rodeada de estrelas.
As estrelas dançam e brincam ao redor da lua, como uma deusa
e suas sacerdotisas.
A lua nos abençoa com seu magnífico brilho. Ela nos
acompanha de noite, nos protege. Estou sob a sua vontade. Ela
envia as estrelas para nos sussurrar os segredos do céu e tudo o
que há de mágico na imensidão do universo.
Não sei se sou capaz de ouvir o som do infinito. Não posso
ver o seu rosto. Mesmo estando em todo lugar, ainda está muito
longe. Sei que quanto mais se busca, mais se encontra.
Planetas incríveis, coloridos. Estrelas de todos os tamanhos.
Luas que cantam com suas próprias vozes. Imagino como seria
me perder fora da Terra, e quantas vezes eu me encontraria.
Mas, dentro de mim, há uma grande galáxia.
Sou uma pequena parcela do cosmos, cuja alma tenta recriar
sua complexidade para ficar cada vez mais perto de suas origens.
Minha alma deseja ser um corpo celeste, uma estrela orbitando
a si própria, livre e brilhante.
Se as pessoas tivessem estrelas, a minha seria um buraco
negro.
Solitário e misterioso. Nem ele mesmo sabe para onde está
indo. Colhendo a luz para si, tentando achar o próprio brilho que
lhe foi roubado.
O buraco negro que tudo vê. Ele vê o mais profundo em
minha alma e a convida para conhecer sua escuridão. Minha
alma vê nele seu lugar para viver sozinha.

55
Capítulo 29- Eu gostaria de estar viva
Eu gostaria de estar viva para contar essa história, mas não
estou. Sinto que nunca estive. Depois de tanto tempo existindo
no mesmo estado vazio, qualquer evidência de que já estive viva
de nada me vale.
A única coisa da qual detenho é a memória da dor. Isso sim
estou certa de que vivenciei, e é também a única sensação da
qual me recordo. Temo não conhecer palavras que descrevam
com mínima suficiência o quão torturante foram os meus últimos
momentos, e não importa o quanto eu tente descrever, ninguém
mais morrerá da mesma forma. Mas aqui estou.
Não tenho a menor noção de qualquer passagem de tempo,
então não saberei dizer quando começou. Minha mente é
dominada pelas imagens de segmentação distorcida e já não
detenho a capacidade de pensar sistemático. Lembranças
se sobrepondo e misturando simultânea e constantemente,
apagando de mim qualquer sentimento instantâneo. Mas da
agonia que passei me lembro perfeitamente. Como uma grande
mancha em minha alma que absorve tudo ao seu redor, em
breve não passarei disso. Serei consumida por esta marca, sem
alma, sem humanidade.
Não posso dizer se é preferível a ter que carregar as
lembranças, as únicas lembranças, responsáveis pelo definhar na
mente que as guarda. Por mais que eu tente as expressar dizendo
que eu não deveria ter olhado para o relógio. Foi minha pior
escolha. Não sei opinar sobre como cheguei naquela casa, minha
não era, mas eu estava lá. No meio do nada rodeado de árvores
altas que escondiam o céu. Coberta pelo silêncio da noite. Aquela
casa já devia ser o próprio vazio, o mais solitário. Irônico. Havia
tempo naquele vazio, era o que dizia o maldito relógio. 23. Vinte
e três em ponto.
Às 23:00 eu estava escrevendo, e daria tudo para lembrar
minhas últimas palavras, antes do frio apagar. Era um frio
singular, vindo de todas as direções, me rodeando e invadindo

56
meu corpo, debaixo da minha pele. O desconforto fez com
que meu foco se voltasse para qualquer coisa que pudesse me
aquecer. Eu precisava do fogo, mas a lareira não era o suficiente.
A casa precisava se encher de chamas para que assim pudesse
afugentar o frio.
Acendendo o fogo em todas as paredes, até não sobrar
espaço para o próprio ar. Porém, ao fundo da casa, algo se
recusava a queimar. Iluminado pelas chamas estava um pedaço
retangular de vidro. Logo, via-se alguém dentro dele. Presa. Me
encarando. Um rosto familiar, o único que já devia ter visto ao
passo de ser o único rosto do qual não tenho certeza dos traços.
Os olhos, voltados para os meus, atraindo o meu corpo para mais
perto. Eu não dominava mais os meus ossos, ainda congelando,
obedecendo os olhos do fantasma no reflexo.
Era tão real quanto eu, e então ainda mais real que eu.
Enquanto eu já não me sentia como um ser completo, pois não
tinha vontade própria que se estendesse além de me aquecer,
a imagem expressava um ódio imensurável, faminto. Uma ira
completa e concreta que motivou sua saída de sua porta de
vidro para me atacar, sedenta por minha alma. As mãos em meu
pescoço, infinitamente frias transmitindo a mim uma raiva, agora
mútua. Tudo o que eu mais odiava era o frio.
Da mesma forma, como um espelho, tentei fechar sua
garganta. Fazer com que implorasse pelo ar do mesmo modo
que eu, tomar-lhe os sentidos como fazia comigo, roubar-lhe
a respiração para que até o mais profundo de sua existência
sufocasse, tal como eu sufocava. Tentou voltar para seu portal,
que quebrou ao seu desejo. Vi então a forma de tirar sua mão
gélida de minha pele, usando vidro quebrado para cortar seu
pulso. O sangue jorrando, sua vida se esvaindo pelo corte e
correndo pelo chão. Custou também meu sangue, escapando
pelo mesmo pulso. O pior era como estava gelado. Angustiante,
como milhões de espíritos amargurados me possuíssem, o frio
de um inferno de infelicidade, como se fosse eu a personificação
do pavor do qual os mortos são submetidos.
Que a morte me levasse ao fogo do inferno. Eu precisava

57
ser o fogo. Mais e mais cortes para que o calor entrasse por
minha pele. Para que o sangue corresse quente. Voltei para os
pedaços de vidro, que começaram a explodir, de todos os lados.
Vidro caindo do teto. O som agudo ultrapassa os limites do
insuportável, rasgando minha alma de tão alto. E quanto mais eu
podia ouvir, parecia que o frio aumentava.
Me arrastei pelo fogo e me encolhi implorando para que me
cobrisse, me consumisse. Eu não queria mais nada a não ser o
fogo. Mesmo que queimasse o ar, me impedindo de respirar.
Respirar era atrair o frio. Eu estava muito grande, muito ar no
corpo, muito frio. A casa era pequena, e a cada segundo parecia
infinitamente menor. As paredes se aproximando. Cada vez
respirando menos. Estava acabando, a casa consumindo o fogo,
o fogo me consumindo. Eu queria que acabasse logo, não havia
mais nada no mundo que fosse quente o bastante então não
valia a pena viver. Me quebrando, contorcendo. Me entreguei a
casa, ao fogo, ao calor. Ficando tão pequena, menor que a vida,
menos que o ar.
Continuo, cada vez mais dentro de mim, consumida pela
memória.

-A última noite (Por Eme)

58
Capitulo 30- Venho me dedicado a este ofício
Venho me dedicado a este ofício há alguns anos: relatar o que
escuto. Tenho minhas crônicas pessoais, porém não satisfeito
com a narrativa de minhas próprias experiências, agora registro
histórias de desconhecidos por terceiros, contos que se inventam
por onde vou.
Hoje irei contar sobre uma casa que encontrei por acaso em
uma de minhas aventuras pelo campo. Poucas pessoas ao redor
sabiam algo sobre o lugar, mas tinham informações suficientes
para me deixar curioso e impressionado de maneira que achei
relevante considerar escrever sobre o interessante passado que
a construiu.
Não me atrevi a entrar, pois estaria invadindo a privacidade
dos espíritos. Localizava-se no centro mais calmo por entre
as árvores por um motivo. Porém de longe não parecia muito
grande, simples, porém com um ar aconchegante e acolhedor. A
parede externa verde escura se disfarçava no ambiente, rodeada
por diferentes cultivos vívidos, como se ainda estivessem sendo
cuidados pelo antigo proprietário. Um homem sensato, pelo
que ouvi. Mas não foi sempre assim. O protagonista desse conto
carregava um passado sombrio. Alguns dizem que fazia parte
da venda de órgãos humanos, outros que chefiava o tráfico de
mulheres. Alguns estavam certos de que sequestrava crianças e
as escravizava. A única certeza é de que foi um homem que agia
frívolo, desumano. Não se sabe os motivos ou o que veio antes
de sua maldade. De qualquer forma, era só mais uma pessoa
dentre todas as muitas insensíveis e descartáveis.
Com o tempo, o homem que fora o que se pode chamar
de desgraça em pessoa caiu em si, digo, na própria desgraça.
Isolado, sem mais desejos ou intenções. Via-se como nada além
de um homem desafortunado, insuficiente para usar suas mãos
para fazer o bem e compensar o desequilíbrio que causara no
mundo. Lembrar de todas as atrocidades que foi capaz o deixava
atormentado, definhando sem dormir por dias.

59
O remorso o corroía a cada segundo, cada vez mais fundo,
incapaz de sequer pensar em outra coisa que não fosse a própria
infelicidade, amaldiçoado pelo arrependimento. Desejando
nunca ter criado noção da gravidade de seus atos, nunca ter se
visto como realmente era. Parecia bem maior quando diminuía
seres humanos a vermes ao invés de se sentir como um.
Acreditou que sua punição era saber exatamente como era
incorrigível, como Deus ou o universo ou qualquer carma o
via. Não chegava a se comparar com o arquétipo de demônio.
será nada mais do que um homem, miserável, criatura podre e
desprezível. Inútil, acima de tudo.
Sua vida não fazia a menor diferença, mas a morte parecia
nunca chegar. Merecia viver, merecia remoer cada segundo, e
não poderia morrer até sentir toda a dor.
Porém, em um dia fatídico, o seu martirizar tornou-se passivo.
Porém, sua mudança não veio pelo acaso, algo magnífico ocorreu.
Conta-se que um ser brilhante e de cor incerta, energia que
ultrapassava a compreensão humana e uma presença jamais
sentida de tão intensa. Um anjo, o mago ou gênio apareceu para
ele, o mais físico possível, tão real quanto o homem ou ainda
mais.
A criatura fez-lhe uma proposta: realizaria qualquer
desejo que sua alma abatida pudesse ter. O que quisesse, sem
julgamentos. Poderia torná-lo muito rico, poderia dar a ele o
amor perfeito, poderia corrigir qualquer ponto de sua vida, até
mesmo fazer com que voltasse no tempo e se dedicasse a fazer
o bem. Tornaria-se monge, doando o que tivesse aos pobres e
buscaria pela plena paz de espírito. Seria feliz.
Mas o que iria garantir que não mudasse de conduta?
O que aconteceu, aconteceu. Poderia ser diferente, mas não
foi. Eu não estava lá quando o homem decidiu seu pedido, mas o
que ouvi me pareceu algo como:

-Desejo um lugar para ser triste. Peço -te que se for verídico o
teu poder, peço uma casa pacífica em um lugar isolado, longe das
pessoas para que minha existência não as perturbe. Eu não peço

60
para ser feliz pois não sou humano o suficiente para me dar ao
luxo de buscar o que todos querem. Então, eu suplico, se tenho
eu algum direito. Dá-me um lugar onde eu possa ser triste.

O gênio, não impressionado, sem refutar, o levou para uma


casa pequena, rodeada de árvores. Desde aquele dia, o homem
passou o resto de sua vida no silêncio vazio e pacífico.

A casa no meio do campo (Por Eme)

61
Capítulo 31- Toda vez, quando vou dormir
Toda vez quando vou dormir. Quando eu fecho os olhos…
Tudo some. Todos os sons, todas as formas, todos os cheiros.
O mundo some. Me pergunto para onde tudo vai quando não
estou consciente. Se tudo isso existe mesmo. Se só existe porque
eu existo por ele. Será que…
Será que eu realmente existo?
Eu não consigo sentir felicidade. Um ser humano deveria
ser capaz de experimentar sensações infinitas, certo? Sinto que
estou sendo impedida de sentir algo. Nesse momento, eu não
tenho nada. Na prática, eu não perdi nada. Não há motivo para
não se ter esperança. Estou em uma ótima situação. Mas eu
simplesmente não estou satisfeita. Sinto falta de algo. Sinto falta
de mim.
Eu não sei bem onde estou. Eu não sei por onde passei, nem
por onde estou indo. Porque sou um erro na matrix. Eu não
deveria estar aqui. Eu sou um corpo cuja consciência é falsa, é
plastificada. Eu não existo nem nunca existi.
Eu não sinto tudo o que há no mundo, é decepcionante.
Talvez esse mundo também nem seja real. Estou aqui, fazendo
hora, sendo enganada. Agindo como se fizesse parte de algo
grande. Algo que sequer é verdadeiro. E eu nunca vou sair disso.
Não vou embora. Eu não tenho para onde ir. Eu já me perdi há
muito tempo, eu nunca tive nada. E não saio do lugar.
Eu nunca quis estar aqui.

62
PARTE II: Viagem Propriamente Dita

63
Quando eu era ela
eu fui embora
eu me abandonei
afastei até de mim mesma
de quem achava ser eu

eu não me sinto mais, não me vejo


chego a pensar que não existo mais
talvez eu não seja feita para ser eterna
eu me desfaleci antes de viver

todos foram embora


tudo acabou, é tudo vazio
eu sou o meu grande abismo
e não estou lá para me olhar de volta

levei comigo minha vontade


de correr de volta para mim
não deixei nada
para nunca mais ser eu

perdida, esquecida
nunca mais será a mesma
serei apenas o nunca, para sempre

64
Estrelas Turvas
não chore
garota ingrata
delineado borrado

quando a festa acaba


desequilíbrio nas ruas
a música nunca começa
a dança nunca termina

grite rouca pelas vielas


vestido molhado da chuva
nada é mais sujo do que seu coração quebrado

onde estão meus sapatos?


rostos borrados na multidão
só mais uma história a ser contada e esquecida

sem lágrimas, sem dor


noite linda para se meter em encrenca
me encher de orgulho até transbordar desgosto

decepcionados? eu também
eu me fiz pra destruir tudo
deitada nas ruínas
gosto amargo na boca

o beijo da morte, eu diria


nos vemos no próximo verão
eu espero parada o tempo começar a andar

65
Você tem um cigarro?
desculpe incomodar
você tem um cigarro?
eu poderia apenas perguntar as horas

eu não estou atrasado


nao estou perdido
afinal não tenho para onde ir

não se preocupe comigo


eu só quero a fumaça do agora
e quando ela abaixar
talvez eu não esteja mais aqui

velho amigo, me dê um cigarro


não precisa continuar aqui
vá embora e leve minhas decepções

vou ficar sentado


olhando a janela
baforando no mundo à fora
soprando minhas mágoas

dizem que faz mal


mas viver também faz mal
eu não quero viver
eu só quero um cigarro

cinco minutos de paz


sem pensar em como respirar
sem sentir o ar

te paro na rua
e peço um cigarro
você me daria a chance de morrer?

66
siga seu caminho
e eu fujo do meu
vejo todos passarem na frente

nao estou em lugar nenhum


tenho a mim, tenho meu isqueiro
mas ainda preciso de outro alguém

alguém que seja real


alguém que faça o que não faço
alguém que tenha um cigarro

67
Três Metros
é muito bom
sentar na cama
no escuro da madrugada
sozinho

não estou sozinho


tenho meus amigos
estão em todo lugar
e eu não preciso vê-los

sem palavras
nós rimos
ao mesmo tempo
por sermos um só

chove dentro do quarto


a chuva faz cócegas
então rimos muito

ela atravessa
nossos corpos
um calafrio
e então rimos mais

a lua sorri conosco


estamos dentro dela

68
Sussurros
ouvi o vento assobiando
achei que estava me chamando
ele me disse, sussurrando
um segredo que estava guardando

soprou bem baixinho


“segure minha mão
feche seus olhos
e tire os pés do chão”

planando pelo ar
sem nada pra me preocupar
o mundo é tão pequeno
para aqueles que podem voar

me contou que voava


pra onde eu quisesse chegar
rápido ou tranquilo
sem nada pra atrapalhar

não precisa ser notado


mas não quando quer, pega pesado
não precisamos do chão pra ir longe
sussurrou o vento e seguiu adiante

69
Caneta Rosa
você é um poema que eu memorizei
e todos os dias eu recitei

um rascunho falso de uma falsa história


posso te passar a limpo com minha caneta rosa

me mostre a cor verdadeira dos teus olhos


eu te mostro a cor verdadeira dos meus olhos
vamos esquecer quem somos por um segundo
vamos correr, desconhecidos, até o fim do mundo

70
Cuidado com poetas
três estrofes, nove versos
promessas mentirosas
em linhas e rimas

uma bela história


um sentimento falado
palavras doces e venenosas

feitiços disfarçados de sonetos


declarações mascaram o perigo
da paixão por belas frases

cuidado com poetas


que comparam seus olhos com o céu
que inventam estrelas com seu nome

cuidado com poemas


sobre amor verdadeiro
e cores que não existem

cuidado com poetas


que não sentem o que escrevem
coração gelado, flores podres

71
Não Sou
olá, olá
alguém aqui ou acolá?
será que minha voz ainda pode ser ouvida?
será que minha face ainda pode ser refletida?

ondas de som e luz aqui não se propagam?


onde estou então? se é que sou para estar
não sinto meu corpo, meus órgãos não trabalham
mas como, então, ainda posso pensar?

é só isso que tenho, neste vazio sem fim


dúvidas e dúvidas, pois não posso afirmar
se meu corpo ainda existe ou se separou de mim
pode ser um sonho em que flutuo pelo ar

não posso me mover, pois não tenho forma pra me mexer


mas sinto que estou voando
talvez seja liberdade que carrega o meu ser
disfarçado de nada, onde estou vagando

para uma escuridão sem limite que a determine


mas não tenho nada para sentir o espaço
pois o espaço se é quando sentir o define
só existe meu derredor quando eu mesmo o faço

direita, esquerda, para frente e para trás


direções aqui não existem mais
pois liberto sou de qualquer definição
de ser, de agir, do ódio e da paixão

não estou mais preso às minhas vontades


pois o que antes eu desejava era do corpo
não há nada além de mim para julgar minha sanidade
liberto sou da comparação com um homem torto

72
livre, livre, já disse que estou livre?
quando destruo o mundo e o corpo que me aprisiona
não me recordo que nenhuma sensação que já tive
pois agora sou mais, sou o que me direciona

nem antes, nem depois, nem agora


o tempo é ilusão
pois meu eu nunca vai embora
não muda, nem permanece, pois a eternidade é a única razão

são palavras que digo? como as conheço?


se não são o suficiente para dizer o que penso
a linguagem verbal não é tão útil
pois são formas de ideia, afinal

ideias que existem sem tomar forma


mas é necessário moldá-las
para que em algo tangível se transforma
e assim posso enfim chamá-las

chamo-as pelo meu nome?


de onde vem o que define minha identidade?
e sobre ela novamente a dúvida me consome
mas ora, onde estou, não há necessidade

para o eu, e apenas a mim seguirei


existirei para o meu pensar e para o meu existir pensarei
sou o que sempre precisei
sou o que sempre serei.

73
Conto-lhes o que nunca irei dizer
do dia em que eu não consegui me aproximar
eu não vou me afastar
mesmo que eu tenha que expulsar um pouco de mim

com palavras ilegíveis


que criam e destroem vidas
apenas por existirem

eu me arrependo e faço de novo


e não me importo mais
estou sempre me dando primeiras chances

porque quem disse


que eu não deveria dizer
o que me disseram?

se for pra ser odiado


que seja por ter falado
o que ninguém pediu para ouvir

o mundo já é barulhento demais


um pouco de caos não faz diferença
quando se já está rumando ao fim

todos nós temos vozes


que falam tanto que nos calam
talvez se as colocássemos para conversar

teríamos tempo de ouvir a nós mesmos


o silêncio levaria nossas palavras
e então compreenderíamos de fato uns ao outros

74
talvez seja a mesma voz
a voz do mundo que não quer nos escutar
porque ele já está cheio de gritos vazios

mas eu me levanto
acima dos traumas, crises e dores
mesmo que seja por um suspiro antes de me silenciar para
sempre

meus ouvidos estourados, minha garganta sufocada


eu acabo estourando nas pessoas
eu acabo sufocando as pessoas

obrigo-as a ouvir o meu silêncio ensurdecedor


e no fim não dizemos nada
nós nem queremos nos ouvir

descontroladamente estúpido
reflexo do mundo que me cerca
eu devo assumir meu lugar

se eu pudesse
calar tudo dentro de mim
será que você falaria mais baixo?

eu já desabei demais
por nunca ter coragem de construir algo
eu tenho paredes enormes me cobrindo

eu não vou morrer


com todas as coisas que eu não tive coragem de dizer
e eu vou viver
pra dizer o que eu sinto, e sentir o que eu escuto

75
Eu quero explodir minha cabeça
eu não sei se estou acordado
mas se estou dormindo, devo morrer
para acordar dessa verdade irreal
ressuscitar em um mundo vazio

sonhos deveriam ser bons


mas dormir está me deixando cansado
se a felicidade está além da realidade
a tristeza não deve deixar de ser verdade

se minha mente criou essas pessoas


ou sou um perfeito estúpido ou demasiado maquiavélico
por que eu mesmo traria ao meu mundo
algo que não vem de mim?

se eu criei essa ilusão


devo estar louco de ódio
por me isolar do que está ao meu redor
devo me odiar

porque se programei isso pra mim


estou me machucando
essa mentira parece bonita
mas continuo sozinho fora dela

não mais um ser pensante


uma consciência inexistente
máquina enganada por si mesma
que se cria e autodestrói

se estou peso em uma matrix


desligue meus cabos, queime minha energia
já me gastei ao máximo tentando me manter
em um mundo onde certamente não me encaixo

76
prefiro estar quebrado e inútil
do que me alienar a esse filme
de infinitas cenas repetitivas
fitas vazias, CD arranhado

consciente de minha existência


ou enganado pelo menos
não quero mais pensar
abomino meu ego

77
Chorar por um olho só
eu posso só
chorar um pouco
prometo não inundar
nem afogar em mim

porque eu tenho que ser


sempre assim, sempre eu
eu quero ser um pouco de tudo
porque eu já nem me identifico mais

eu pareço com o fogo


e ajo como se fosse um corvo
eu falo sobre tudo o que odeio
e acabo escondendo o que amo

mas se eu puder
ter sentimentos
só enquanto eu nao for eu

só pra poder me importar


pra poder me apegar
e sentir saudade quando acabar

eu não sei porque sou assim.

78
Viver o que não digo
talvez eu deva viver mais do que escrever
eu tenho medo de perder algo
mas viver é arte

das músicas que me levam


a viagens em minha mente
levito pelas ruas cinzentas

o ritmo das atmosferas


que se estendem e se misturam
dimensões dançam
sentimentos cantam

em algum lugar, eu vejo


pintando mundos e vidas
com cores, rabiscos

traços que definem


tudo de mim
mostro o que não digo

e quando falo
lendo em voz alta
para os fantasmas das paredes

tento me escrever
em palavras ditas em minha mente
por um eu que se apaga e se refaz

imagino as cenas
que invocam minha alma
para quem quiser assistir

79
todas as vezes que me encenei
para achar em outras pessoas
que vão contar sobre o meu redor

meus, minhas, minha


eu junto a energia
eu faço o fogo

por um momento
eu paro o tempo, adentro
ma memória que chama

nu, vazio, carregado


através da escuridão quente
que me apresenta, me incorpora

eu trago comigo
eu consigo
para sempre, em mim

para sempre minha


vida escondida
minha vida
(viver é arte)

80
Silêncio cortando o vento
cheiro de fumaça por toda parte
o mundo grita, contorcendo-se em dor
qual é a graça do brilho colorido do dia?
nem o sol dura para sempre
por que amar o que não é amor?

enquanto viver é perda de tempo


toque, invoque, tudo de uma vez
respire cada centelha de prazer
que apenas o ódio pode trazer

posso cortar-lhe a garganta


ofereça-se de sangue
não espere que eu exista
pois venho em um susto

medo de sentir
toda a inconveniência que trago
risadas de escárnio
absorvo toda a escuridão

81
Divã
eu vou e volto
fico parada
as vezes sou muito as vezes sou pouco

imprevisível
indecisa
eu não preciso que me entendam

é tudo tão grande


nunca chegarei ao final
eu não corro rápido sem tropeçar

gosto de fogo
e de pintar
mas não de pessoas

eu nao sei quem são


elas podem ir embora
e deixar marcas sem me tocar

tudo bem se eu não sentir?


eu tenho medo de sentir demais
pensar demais eu já penso

olha lá de novo
porque o espelho parece invisível
mas é tudo brilhante e contraditório

que me incomoda
eu já sou agitada
que barulho

82
eu queria não ser uma pessoa
não ser ninguém
talvez nem existir

é pesado ser alguma coisa


ainda mais por nao ter nada
vou parar com antônimos

e com paradoxos
e com anáforas
e com ironias

e se eu nunca mais falar


se eu nao aparecer
na aula amanhã

tendo que fazer tudo


e existe tanta gente no mundo
chega a ser sufocante

onde estou, afinal


eu nem quero saber mesmo
eu nao quero mais nada

83
Narciso abandonado
fantasmas ao redor da minha cabeça (não vou deixá-los entrar)
querem que eu seja vazia como eles
querem que eu seja fria como eles
querem que eu esteja morta como eles

eu não tenho medo das sombras


elas são parte de mim
eu não quero ser boa
eu não quero ser ruim
eu quero ser o melhor do pior
eu quero ser o pior do melhor

mas eu não consigo olhar para o espelho


minha essência se mistura
ao gosto do seu ódio
você apaga meu reflexo
e minha identidade vai se esvaindo
eu quero me segurar e me jogar longe

mas não encontro meu corpo


eu não sinto mais nada
eu quero aquilo

eu quero me sentir viva

eu quero o que eles dizem ser venenoso


eu quero o que parece ser perigoso
eu quero viver do jeito que eles vão morrer

é uma dor boa


escrevo meu nome com sangue
então sei quem eu sou, quero saber quem eu sou
conhecer minha existência

84
Escravo da Liberdade
de artista a egoísta
de egoísta a apaixonado
apaixonado pelo ir, pelo voltar, pelo sentir, pelo ser
apaixonado por mais do que os olhos podem ver

alguns amam e se aprisionam


virando escravos do amor
mas amante e livre
estou a mercê do criar

aos que sentem e não falam


eu falo para os fazer sentir
e de que serve meu sentimento
se não para ser falado?
o que me faz construir
em uma estrada em movimento
um lugar seguro para meu coração amedrontado

em lágrimas me destruo
em palavras me reconstruo
minha armadura é minha se também for sua
até que esteja pronto de revelar sua alma nua

85
Primavera
eu não quero esquecer seu rosto
o tempo corre contra nós
segure firme em minha mão
querida, seremos imortais

até depois do fim


seu sorriso não se apaga
não se afaste de mim

vamos parar o relógio


e roubar as horas
momentos eternos
sem fim da história

me deste os melhores presentes


e por ti chorei
por tua causa já fui rejeitado
e por isso sou grato

você refletiu o melhor de mim

e o pior me fez aceitar


mesmo com espinhas em um rosto abstrato
nos piores dias você insistiu em ficar

minha menina
não cresça, não vá
se não terei que ir contigo
e o sol não brilha por lá

86
87
Composto em fontes Calibri & Sketchnote Square
Impresso em papel pólen bold 90 g/m², em abril de 2023.
Uma metalinguagem que conta sobre o universo alternativo conectado
a mente de uma jovem que se apresenta como Eme e relata suas expe-
riências sozinha em seu próprio mundo, viajando em si mesma. A obra
em si é dividida nos dois estágios intimistas e simbolistas da trajetória
especial da protagonista: O Diário de Bordo, sua história em forma de
diário com contos escritos durante a mesma e a Viagem Propriamente
Dita, a visão interna das reflexões e transformações das emoções de
Eme em forma de poemas.
- Então as pessoas, em sua coexistência, eram
partes dos desejos umas das outras.
- E você? É parte do próprio desejo?
- Meio que sim. E do mundo. O mundo também
quer algo de mim. Ele me escuta, me sente, e
eu o escuto.

Eu não sei se sou um desejo, e não sei qual é


o meu desejo. Mas desejo que o mundo me
conte o que quero de mim mesma.

Você também pode gostar