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Aquelas que
sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente –
atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.
Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria
dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes
não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a
esperança.
Toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão. Não. Toda
compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo
momento de achar é um perder-se a si próprio
Se não tivesse sido eu, eu não saberia, e tendo sido eu, eu soube – apenas isso. O que é
que me havia chamado: a loucura ou a realidade¿
No mundo primário onde eu entrara, os seres existem para os outros como modo de se
verem.
Pela primeira vez na minha vida tratava-se plenamente de agora. Esta era a maior
brutalidade que eu jamais recebera. Pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade
não tem um futuro: o futuro será exatamente de novo uma atualidade.
Pois viver é somente a altura a que posso chegar – meu único nível é viver. Só que
agora, agora sei de um segredo
Se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se
transformar para eu caber nele.
Eu sempre pensara que encontrar seria fértil e úmido como vales fluviais. Não contava
que fosse esse grande desencontro.
Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e
enxergasse – mas enxergasse o que¿ um triângulo mudo e incompreensível. Poderia
essa pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo
incompreensível¿
Mas é que nunca fui capaz de perceber as coisas se encaminhando; todas as vezes que
elas chegavam a um ápice, me parecia com surpresa um rompimento, explosão de
instantes, com data e não a continuação de uma ininterrupção.
É suficiente ver no couro de minhas valises as inicias G.H., e eis-me. Também dos
outros eu não exigia mais do que a primeira cobertura das iniciais dos nomes.
[...] meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade
infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com
a verdade sempre me difamaram.
[...] a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os
pedaços continuarão estremecendo e se mexendo.
Não, não te assustes! Certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida
sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte
coisa da gente.
Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais
imundos e proibidos¿ por que se, como os outros, também eles haviam sido criados¿
Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me aconteceu
– quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem¿
[...] nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a
respiração do mundo e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e
chamamos de silêncio.
Estou tentando te dizer como cheguei ao neutro e inexpressivo de mim. Não sei se estou
entendendo o que falo, estou sentindo – e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um
dos estilos de ser
E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que
o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho.
Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, sem antes teres
que ser bipartido pela porta de um guarda-roupa, sem antes ter quebrado os teus
invólucros de medo que com o tempo foram secando em invólucros de pedra, assim
como os meus tiveram que ser quebrados sob a força de uma tenaz até que eu chegasse
ao tenro neutro de mim... então aprende de mim, que tive de ficar toda exposta e perder
todas as minhas malas com suas iniciais gravadas.
O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou
não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal.
Ser humano não deveria ser um ideal para o homem que é fatalmente humano, ser
humano tem que ser o modo como eu, coisa viva, obedecendo por liberdade ao caminho
do que é vivo, sou humana. E não preciso sequer de minha alma, ela cuidará fatalmente
de mim, e não tenho que fazer para mim mesma uma alma: tenho que apenas escolher
viver. Somos livres, este é o inferno.
[...] manifestar o inexpressivo é criar. No fundo somos tão, tão felizes! Pois não há uma
forma única de entrar em contato com a vida, há inclusive as formas negativas!
Inclusive as dolorosas, inclusiva as quase impossíveis – e tudo isso, tudo isso antes de
morrer, tudo isso mesmo enquanto estamos acordados.
Não te assustes como estou assustado: não pode ser ruim ter visto a vida no seu plasma.
É perigoso, é pecado, mas não pode ser ruim porque nós somos feitos desse plasma.
Aquilo que eu fizer do pedido e da carência – esta será a vida que terei feito da minha
vida.
Minha exigência é o meu tamanho e meu vazio é a minha medida.
Mas, já que somos pouco e portanto só precisamos de pouco, por que então não nos
basta o pouco¿ É que adivinhamos o prazer. Como cegos que tateiam, nós pressentimos
o intenso prazer de viver.
Corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém.
Ah, meu amor, as coisas são muito delicadas. A gente pisa nelas com uma pata humana
demais, com sentimentos demais. Só a delicadeza dos iniciados é que sente o seu gosto
quase nulo.
[...] minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal que me fazia
usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa vida que eu levava, eu não
conheceria.
Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto¿ E a resposta é: não é só isto, é
exatamente isto.
A realidade é a matéria prima, a linguagem é o modo como vou busca-la – e como não
acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que
instantaneamente reconheço.
Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em
relação ao humano, não tem sentido.
O ponto de tudo que está escrito é em relação ao ser, o fluxo de consciência traz
questões, embora metafísicas, totalmente materiais sobre a existência e a própria noção
de que se existe. As reflexões que a clarice traz não são o mistério em si porque o que é
descrito aqui se encontra em todos os indivíduos que compartilham desse mesmo
processo de reflexão, o mistério é: o que é a abrata de cada um¿ o processo de
conscientização da própria existência num mundo completamente atribulado que nos
leva a refletir o externo, ignorar o interno e nos moldar para caber dentro dele
impossibilita para milhões de pessoas qualquer reflexão sobre o espaço como indivíduo
– animal – coisa. Essa reflexão leva, uma vez realizada, é algo que explode dentro da
gente, descobrir o inexpressivo requer a sua manifestação, pois entramos em contato
com o que entendemos como base, como a parte coisa, a parte tão indivíduo que conecta
todos os seres humanos. O que precisamos pra chegar a reflexão¿ mistério, mas é fato
que o ócio criativo é um dos caminhos até lá, ócio que é permitido em nossa estrutura,
por posições socioeconômicas privilegiadas. E quando as reflexões surgem num meio
nada propício a isso¿ quando a manifestação do inexpressivo insossa não cabe nas bocas
viciadas em sal, quando a reflexão é uma maldição que faz com que a existência seja
extremamente penosa e dolorosa pois, por entraves antinaturais, capitalistas, não
conseguimos atingir o natural que enxergamos, e vivemos sobre o desmoronamento de
tudo o que conhecemos. Sobre a impossibilidade de ser natural, sobre a impossibilidade
de ser.
a própria ideia de escrever um ensaio sobre esse livro parece uma pretensão diabólica.
existe um tema mais tratado na literatura, na música e em as expressões de arte do que o
ser? o que eu — um amador em ser — posso contribuir para o tema que a psicologia e
outros estudos já não tenham contribuído? — esse é o pensamento que me entravava
antes ao cogitar a possiblidade de colocar pra fora qualquer ponto que esse fluxo de
consciência tenha despertado na minha própria consciência, ponto esse que acredito que
é o que, entre zilhões de outros, o livro quer destruir. Qual é o ponto onde sabemos o
bastante sobre “ser”¿
a própria ideia de escrever um ensaio sobre esse livro soa como uma pretensão
diabólica: enfim sei o bastante sobre “ser” para discorrer sobre¿
g.h. suplica por um relato de quem está simplesmente sendo, repleto de amadorismo.
Eis o meu relato terrivelmente incompleto:
a própria ideia de escrever um ensaio sobre esse livro parece uma pretensão diabólica:
enfim sei o bastante sobre “ser” para discorrer sobre? o que eu, completo amador em
ser, posso contribuir para o tema mais retratado em todas as formas de expressão? Esse
é o pensamento que entrava qualquer manifestação do inexpressivo provocada em mim
pelos fluxos de consciência
existe algo crucial de esmiuçarmos antes de entrarmos nas questões que, inicialmente
parecem abstratas. Existe algo mais material que a própria consciência¿ ao lermos
qualquer fluxo de pensamento damos de cara com a estética do mistério, como se as
reflexões surgissem do externo e se encaminhassem para um lugar desconhecido e
presente em poucos seres humanos dotados de extrema profundidade. Pantomima,
patuscada! A consciência é a materialidade da realidade, a descoberta de cada fluxo é
uma escavação do intrínseco ao humano, em seu estado mais coisa possível.
A primeira fagulha da consciência pode ser um mistério quase divino, mas o resto, ah, o
resto tem a grande segurança de todo o processo de descoberta
Poderia eu: massa, de origem suburbana, ser tão diferente assim¿ só tem qualidade
aquilo que classifica com exclusividade¿ e o que nos torna membro da raça humana¿
Mas vivendo sobre as mesmas referências, circunstâncias, poderia eu, como indivíduo
ser tão único e especial assim¿ ou o ponto que entendemos como individual é
unicamente aquilo que nos qualifica como membros da raça humana¿