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A última noite

S.S. Maisa

Eu gostaria de estar viva para contar essa história, mas não estou. Sinto que nunca estive.
Depois de tanto tempo existindo no mesmo estado vazio, qualquer evidência de que já estive
viva de nada me vale.
A única coisa da qual detenho é a memória da dor. Isso sim estou certa de que vivenciei, e é
também a única sensação da qual me recordo. Temo não conhecer palavras que descrevam
com mínima suficiência o quão torturante foram os meus últimos momentos, e não importa o
quanto eu tente descrever, ninguém mais morrerá da mesma forma. Mas aqui estou.
Não tenho a menor noção de qualquer passagem de tempo, então não saberei dizer quando
começou. Minha mente é dominada pelas imagens de segmentação distorcida e já não
detenho a capacidade de pensar sistemático. Lembranças se sobrepondo e misturando
simultânea e constantemente, apagando de mim qualquer sentimento instantâneo. Mas da
agonia que passei me lembro perfeitamente. Como uma grande mancha em minha alma que
absorve tudo ao seu redor, em breve não passarei disso. Serei consumida por esta marca, sem
alma, sem humanidade.
Não posso dizer se é preferível a ter que carregar as lembranças, as únicas lembranças,
responsáveis pelo definhar na mente que as guarda. Por mais que eu tente as expressar
dizendo que eu não deveria ter olhado para o relógio. Foi minha pior escolha. Não sei opinar
sobre como cheguei naquela casa, minha não era, mas eu estava lá. No meio do nada rodeado
de árvores altas que escondiam o céu. Coberta pelo silêncio da noite. Aquela casa já devia ser
o próprio vazio, o mais solitário. Irônico. Havia tempo naquele vazio, era o que dizia o
maldito relógio. 23. Vinte e três em ponto.
Às 23:00 eu estava escrevendo, e daria tudo para lembrar minhas últimas palavras, antes do
frio apagar. Era um frio singular, vindo de todas as direções, me rodeando e invadindo meu
corpo, debaixo da minha pele. O desconforto fez com que meu foco se voltasse para qualquer
coisa que pudesse me aquecer. Eu precisava do fogo, mas a lareira não era o suficiente. A
casa precisava se encher de chamas para que assim pudesse afugentar o frio.
Acendendo o fogo em todas as paredes, até não sobrar espaço para o próprio ar. Porém, ao
fundo da casa, algo se recusava a queimar. Iluminado pelas chamas estava um pedaço
retangular de vidro. Logo, via-se alguém dentro dele. Presa. Me encarando. Um rosto
familiar, o único que já devia ter visto ao passo de ser o único rosto do qual não tenho certeza
dos traços. Os olhos, voltados para os meus, atraindo o meu corpo para mais perto. Eu não
dominava mais os meus ossos, ainda congelando, obedecendo os olhos do fantasma no
reflexo.
Era tão real quanto eu, e então ainda mais real que eu. Enquanto eu já não me sentia como
um ser completo, pois não tinha vontade própria que se estendesse além de me aquecer, a
imagem expressava um ódio imensurável, faminto. Uma ira completa e concreta que motivou
sua saída de sua porta de vidro para me atacar, sedenta por minha alma. As mãos em meu
pescoço, infinitamente frias transmitindo a mim uma raiva, agora mútua. Tudo o que eu mais
odiava era o frio.
Da mesma forma, como um espelho, tentei fechar sua garganta. Fazer com que implorasse
pelo ar do mesmo modo que eu, tomar-lhe os sentidos como fazia comigo, roubar-lhe a
respiração para que até o mais profundo de sua existência sufocasse, tal como eu sufocava.
Tentou voltar para seu portal, que quebrou ao seu desejo. Vi então a forma de tirar sua mão
gélida de minha pele, usando vidro quebrado para cortar seu pulso. O sangue jorrando, sua
vida se esvaindo pelo corte e correndo pelo chão. Custou também meu sangue, escapando
pelo mesmo pulso. O pior era como estava gelado. Angustiante, como milhões de espíritos
amargurados me possuíssem, o frio de um inferno de infelicidade, como se fosse eu a
personificação do pavor do qual os mortos são submetidos.
Que a morte me levasse ao fogo do inferno. Eu precisava ser o fogo. Mais e mais cortes para
que o calor entrasse por minha pele. Para que o sangue corresse quente. Voltei para os
pedaços de vidro, que começaram a explodir, de todos os lados. Vidro caindo do teto. O som
agudo ultrapassa os limites do insuportável, rasgando minha alma de tão alto. E quanto mais
eu podia ouvir, parecia que o frio aumentava.
Me arrastei pelo fogo e me encolhi implorando para que me cobrisse, me consumisse. Eu não
queria mais nada a não ser o fogo. Mesmo que queimasse o ar, me impedindo de respirar.
Respirar era atrair o frio. Eu estava muito grande, muito ar no corpo, muito frio. A casa era
pequena, e a cada segundo parecia infinitamente menor. As paredes se aproximando. Cada
vez respirando menos. Estava acabando, a casa consumindo o fogo, o fogo me consumindo.
Eu queria que acabasse logo, não havia mais nada no mundo que fosse quente o bastante
então não valia a pena viver. Me quebrando, contorcendo. Me entreguei a casa, ao fogo, ao
calor. Ficando tão pequena, menor que a vida, menos que o ar.
Continuo, cada vez mais dentro de mim, consumida pela memória.

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