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RESUMO
É apresentada uma hipótese especulativa associando a antiga religião Israelita
ao uso de enteógenos (plantas psicoativas utilizadas em contextos
sacramentais). Esta hipótese se baseia em uma releitura dos textos do Antigo
Testamento relativos à vida de Moisés. As idéias desenvolvidas se baseiam
primeiramente no fato de existirem, nas regiões áridas da Península do Sinai e
no Sul de Israel, duas plantas que contêm as mesmas moléculas psicoativas
encontradas na bebida alucinógena do Amazonas conhecida como Ayahuasca.
As plantas são a árvore da Acácia e o arbusto Peganum harmala. Esta hipótese
é corroborada por observações comparativas de caráter experimental e
fenomenológico, considerações lingüísticas, exegeses de antigos textos
judaicos e outras tradições do Oriente Médio, folclore antropológico, e dados
etnobotânicos.
Em seu livro Poisons sacrés, ivresses divines (que não tem tradução portuguesa
ou inglesa), Philippe de Felice (1970 [1936]) analisa o uso de substâncias
psicotrópicas em diversas culturas. O uso destas substâncias, que os Ocidentais
tratamos com o termo genérico de ‘droga’, possui em muitas culturas um
caráter sagrado. De Felice repara que o uso de psicotrópicos é central a muitas
religiões, tanto do Velho quanto do Novo Mundo. As substâncias, ou as
plantas de que estas procedem, são consideradas sagradas e até divinas. De
Felice arrisca a hipótese de que o uso de substâncias psicotrópicas é inerente à
cultura humana, e intrinsecamente relacionado ao instinto humano mais básico
– a busca da transcendência. Disto ele conclui que o uso de substâncias
psicotrópicas se encontra provavelmente na raiz de todas as religiões. Idéias
similares têm sido apresentadas em vários outros lugares. Um número
crescente de pessoas prefere se referir aos agentes psicoativos, geralmente
conhecidos como psicodélicos (expansores da mente) ou alucinógenos, com o
termo enteógeno – ou seja, agentes que colocam em contato com o Divino
interior.
Este termo foi criado por Ruck et al. (1979) e posteriormente analisado por
Ott (1996) e por Jesse (2001). Para uma análise sobre a relação entre
enteógenos e a origem das religiões, assim como do uso de enteógenos em
práticas religiosas, conferir La Barre (1972), Wasson et al. (1986), Ott
(1995), Smith (1964, 2000), as antologias editadas por Forte (1997), Roberts
(2001) e Labate e Goulart (2005), assim como Devereux (1997) e Rudgley
(1993), as pesquisas de Shanon (2001b, 2002c) e as propostas não-científicas
de McKenna (1992). Um estudo experimental moderno da importância
religiosa das substâncias psicoativas é o de Pahnke (1972); análises
intelectuais esclarecedoras sobre o significado espiritual e religioso dos
enteógenos podem ser encontrada em Smith (1964, 1976, 2000). A utilização
de plantas de poder e preparados psicoativos como meio de estabelecer
contato com áreas superiores de espiritualidade tem sido uma prática central
em práticas xamânicas do mundo inteiro. Menção especial será feita ao
instrumento principal do xamanismo amazônico, a bebida alucinógena
Ayahuasca. Plantas e substâncias psicoativas eram amplamente utilizadas nas
culturas urbanas da América Pré-Colombina – Astecas, Maias e Incas.
AYAHUASCA
Minha tese é de que este evento não produziu alteração nenhuma no mundo
real, não tendo nada a ver com arbustos ou fogo. Reflete, isto sim, uma
alteração radical no nível de consciência do observador, ou seja, de Moisés.
Seu próprio senso de tempo foi alterado, fazendo com que um breve instante
fosse percebido como uma eternidade. Tais alterações na percepção do tempo
são comuns nos níveis mais altos do transe por Ayahuasca (Shanon 2001a).
Assim, ao olhar para o arbusto, Moisés sentiu como se houvesse passado
muito tempo, tempo suficiente para que o arbusto queimasse e se consumisse,
quando no plano físico da realidade havia-se apenas uma fração de segundo,
pois o arbusto não sofreu mudança alguma. Digno de interesse é o comentário
de Feliks (1994) em um glossário de plantas da Terra Santa. Ele nota que
vários investigadores – não citados – sugerem que o arbusto em questão fosse
ou uma planta que produz cintilações luminosas, ou um alucinógeno,
provavelmente extraído da árvore de acácia. Voltaremos à acácia mais
adiante. O segundo episódio bíblico é o encontro de Moisés e seu irmão Aarão
com os feiticeiros do Faraó. Nesse encontro, ambos lados transformam
bastões em serpentes (ou em grandes répteis).
Como pode Deus ter frente e costas? Como pode alguma parte d’Ele ser
vista? Maimônides, o grande estudioso medieval e filósofo racionalista,
explica que neste contexto os termos ‘frente’ e ‘costas’ se referem
respectivamente aos níveis mais alto e mais baixo de percepção humana do
Divino, ou aos aspectos central e periférico de Sua Essência (ver Maimônides,
1963). Mas a experiência com Ayahuasca sugere outra explicação. Ver
criaturas sem poder ver seus rostos é um aspecto comum da experiência da
Ayahuasca, conforme explicitamente registrado no folclore de vários povos
indígenas, e confirmado por minha própria investigação.
Em outras partes do Talmud (Tratado Avoda Zara, 24b), assim como nos
primeiros textos da hermenêutica judaica (Genesis Rabbah, 54) aparece o
seguinte poema (citado em Elior 2004, p252): ‘Canta, ó árvore da
acácia‘Ascende em toda tua graça‘Coberto em dourado véu,‘O palácio dos
devires ouve tua eulogia‘E com diversas jóias és adornada.’ Apesar de não
existir notícia sobre o uso medicinal ou psicoativo da acácia no Oriente
Médio, tal uso é encontrado na América do Sul. Os indígenas do estado
brasileiro de Pernambuco utilizam a casca das raízes de uma certa espécie de
acácia, Mimosa hostilis (Mimosaceae) em cerimônias enteógenas: no dialeto
local é conhecida como Jurema (ver de Mota 1979, 2005). Como acontece
com a Ayahuasca, o DMT da Jurema precisa de uma segunda planta com
inibidores de MAO para fazer efeito. o Dr. Grünewald, antropólogo brasileiro
que participou das cerimônias da Jurema, investigou o assunto e não
identificou nenhuma outra planta na composição da mistura (ver Grünewald
2005).
Com ele, deixo essa questão em aberto. A acácia era planta sagrada para os
egípcios, ocupando ocupa um lugar especial em sua mitologia, ao estar
associada ao nascimento do deus Osíris, assim como ao dos faraós (Helck
1975). Segundo o mito, Osíris morre encerrado em um féretro do qual brota
uma árvore de acácia; através dela, Osíris volta à vida (em outras versões,
Horus). Os egípcios verdadeiramente consideravam a acácia como a “árvore
da vida”, e como hipóstase divina (Koemoth 1994). Lendas posteriores
vinculam a acácia com a morte e a vida ultraterrena. No Livro dos Mortos
consta que o morto é conduzido por crianças até a árvore, e que partes dela
são então maceradas e espremidas pelo morto, que as emprega com efeitos
mágicos de cura (ver www.pantheon.org/articles/a/acacia.html). Os egípcios
utilizavam a acácia com diversos usos medicinais, assim como para a
construção de sarcófagos (Krispil 1988). Lembremos que Moisés veio do
Egito, e há inclusive quem especule com a idéia de que fosse realmente um
príncipe egípcio (ver Freud 1953 [1939]). Estes antigos mitos e lendas
egípcios são pertinentes ao assunto em questão ainda por outro aspecto: são,
manifestamente, mitos de morte e ressurreição (e por isso mesmo, encontram-
se talvez na raiz da teologia cristã da ressurreição). Morte e renascimento são
facetas-chave da experiência com Ayahuasca, e do folclore indígena
associado a ela. Lembremos que o nome Ayahuasca significa ‘cipó da morte’.
Recentemente tomei conhecimento do trabalho do pintor israelense Ron Gang,
que se especializa em retratar árvores de acácia nos desertos do sul de Israel
(ver www.rongang.net , figura 2). Ele reparou no costume tradicional beduíno
de conduzir rituais de juramento sob essas árvores. Por último, e diretamente
relacionado aos mitos egípcios, lembremos que o galho de acácia é um
símbolo central da Maçonaria (Pike 1871).
ACÁCIA E HARMAL
OUTROS CASOS
Vemos que Lia também desejava estas mandrágoras, pois as compara a Jacó,
objeto de desejo e rivalidade entre as irmãs. Aparentemente, o motivo pelo
que o narrador inseriu este breve episódio na história, cujo assunto principal
é a relação entre Jacó e suas esposas e a maneira em que seus filhos
(fundadores das doze tribos de Israel) foram criados, é para indicar o valor
que as mandrágoras tinham na antiga sociedade israelita. A mandrágora é,
obviamente, altamente psicoativa (ver por exemplo Schultes e Hofmann 1992).
A segunda história bíblica é a origem de todas as outras, a história seminal da
Árvore da Sabedoria. Este é um dos episódios mais importantes do Antigo
Testamento, e também um dos mais intrigantes, tendo gerado vasta literatura.
Aqui, nos limitaremos a fazer duas observações que se referem diretamente ao
assunto dos enteógenos. A primeira tem a ver com as crenças culturais que a
história pressupõe. Qualquer que seja a interpretação que se faça sobre esta
história, uma coisa é clara: ela é narrada dentro de um contexto em que se
acredita que o conhecimento pode ser obtido através da ingestão de um
vegetal. A segunda observação é sobre as fortes semelhanças entre o relato
bíblico e as mitologias indígenas sobre a Ayahuasca. Na América do Sul, a
Ayahuasca está relacionada a mais histórias e mitos do que qualquer outro
agente psicoativo.
O incenso sagrado tem também papel central em outros dois episódios da vida
de Moisés, ambos envolvendo uma transgressão com conseqüências fatais. No
primeiro episódio, Nadab e Abihu, filhos de Aarão, fazem a oferenda de
incenso sem seguir as normas e sem permissão, sendo imediatamente mortos
pelo fogo que provém do ktoret (Levítico 10:1-7). O segundo episódio trata da
revolta da família sacerdotal de Korah contra a autoridade de Moisés, que
envolve, também, o uso ilícito do incenso. Os rebeldes são punidos com a
morte, e posteriormente uma epidemia se alastra entre o povo. Aarão cura os
doentes utilizando o incenso (Números 16-17). Unindo ambos episódios,
estudiosos judaicos e kabalistas concluíram que o ktoret devia ser um
narcótico poderoso e de grande poder curativo. Há algum tempo tem sido
sugerido que o termo ‘cannabis’ provém do termo hebraico keni bossem, ou
‘canavial fragrante’, e é considerado como um dos ingredientes do incenso
sagrado utilizado primeiro no tabernáculo e posteriormente nos dois Templos
de Jerusalém (para a hipótese original, ver Benetowa 1967 [1936]); para uma
análise aprofundada, ver Bennett e McQueen 2001). Muito recentemente
tenho tomado notícia de um projeto de pesquisa, não publicado ainda, que
está sendo desenvolvido por Mechoulam e Moussaieff.