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Enteógenos Bíblicos: conclusão especulativa

Benny Shanon é Professor de Psicologia na Universidade Hebraica de


Jerusalém (Israel). Seus focos principais de pesquisa são a fenomenologia da
consciência humana e a filosofia da psicologia. Entre suas publicações se
incluem O Representacional e o Presentacional (1993) e Os Antípodas da
Mente (2002). Atualmente se encontra trabalhando em uma teoria geral da
psicologia da consciência.

RESUMO
É apresentada uma hipótese especulativa associando a antiga religião Israelita
ao uso de enteógenos (plantas psicoativas utilizadas em contextos
sacramentais). Esta hipótese se baseia em uma releitura dos textos do Antigo
Testamento relativos à vida de Moisés. As idéias desenvolvidas se baseiam
primeiramente no fato de existirem, nas regiões áridas da Península do Sinai e
no Sul de Israel, duas plantas que contêm as mesmas moléculas psicoativas
encontradas na bebida alucinógena do Amazonas conhecida como Ayahuasca.
As plantas são a árvore da Acácia e o arbusto Peganum harmala. Esta hipótese
é corroborada por observações comparativas de caráter experimental e
fenomenológico, considerações lingüísticas, exegeses de antigos textos
judaicos e outras tradições do Oriente Médio, folclore antropológico, e dados
etnobotânicos.

Em seu livro Poisons sacrés, ivresses divines (que não tem tradução portuguesa
ou inglesa), Philippe de Felice (1970 [1936]) analisa o uso de substâncias
psicotrópicas em diversas culturas. O uso destas substâncias, que os Ocidentais
tratamos com o termo genérico de ‘droga’, possui em muitas culturas um
caráter sagrado. De Felice repara que o uso de psicotrópicos é central a muitas
religiões, tanto do Velho quanto do Novo Mundo. As substâncias, ou as
plantas de que estas procedem, são consideradas sagradas e até divinas. De
Felice arrisca a hipótese de que o uso de substâncias psicotrópicas é inerente à
cultura humana, e intrinsecamente relacionado ao instinto humano mais básico
– a busca da transcendência. Disto ele conclui que o uso de substâncias
psicotrópicas se encontra provavelmente na raiz de todas as religiões. Idéias
similares têm sido apresentadas em vários outros lugares. Um número
crescente de pessoas prefere se referir aos agentes psicoativos, geralmente
conhecidos como psicodélicos (expansores da mente) ou alucinógenos, com o
termo enteógeno – ou seja, agentes que colocam em contato com o Divino
interior.

Este termo foi criado por Ruck et al. (1979) e posteriormente analisado por
Ott (1996) e por Jesse (2001). Para uma análise sobre a relação entre
enteógenos e a origem das religiões, assim como do uso de enteógenos em
práticas religiosas, conferir La Barre (1972), Wasson et al. (1986), Ott
(1995), Smith (1964, 2000), as antologias editadas por Forte (1997), Roberts
(2001) e Labate e Goulart (2005), assim como Devereux (1997) e Rudgley
(1993), as pesquisas de Shanon (2001b, 2002c) e as propostas não-científicas
de McKenna (1992). Um estudo experimental moderno da importância
religiosa das substâncias psicoativas é o de Pahnke (1972); análises
intelectuais esclarecedoras sobre o significado espiritual e religioso dos
enteógenos podem ser encontrada em Smith (1964, 1976, 2000). A utilização
de plantas de poder e preparados psicoativos como meio de estabelecer
contato com áreas superiores de espiritualidade tem sido uma prática central
em práticas xamânicas do mundo inteiro. Menção especial será feita ao
instrumento principal do xamanismo amazônico, a bebida alucinógena
Ayahuasca. Plantas e substâncias psicoativas eram amplamente utilizadas nas
culturas urbanas da América Pré-Colombina – Astecas, Maias e Incas.

Para maior informação sobre o assunto, consultar Dobkin de Rios (1984),


Harner (1972, 1973), Langdon (1979), Langon e Baer (1992), Reichel-
Dolmatoff (1975, 1978), Walsh (1990) e Winkelman (1995, 2000). Maior
informação sobre o papel dos alucinógenos nas culturas tradicionais pode ser
encontrada em Dobkin de Rios (1984), Furst (1976, 1990), Harner (1973), Ott
(1993) e Schultes e Hoffman (1992). Para trabalhos específicos sobre a
América Pré-Colombina, consultar Emboden (1981, 1982), Emboden e
Dobkin de Rios (1981), Ott e Wasson (1983), Ropinsky-Naxon (1998),
Schultes (1972), Schultes e Winkelman (1995), e Wasson (1961, 1980). Mas as
plantas e substâncias psicoativas desempenharam um papel central também
nas religiões do Velho Mundo. Wasson (1968) sugere que a Soma, o néctar
mágico dos Vedas hindus, era de fato uma infusão do cogumelo alucinógeno
Amanita muscaria. A bebida sagrada empregada na antiga religião
Zoroastrista, conhecida como Homa ou Haoma, seria também um agente
psicoativo, tendo como ingrediente principal o arbusto Peganum harmala (ou
harmal em árabe). Flattery e Schwartz (1989) argumentam que a Soma
indiana seria também produzida a partir deste arbusto, e não de um
cogumelo, como foi proposto por Wasson

A evidência literária referente à proeminência dos estados alterados de


consciência nos ritos religiosos antigos da Índia e da Pérsia é mais que
abundante. O Rig Veda, o clássico mais antigo da literatura védica, é uma
coleção de hinos dedicados à Soma. Nele, os devotos louvam a bebida como
uma divindade, e descrevem os efeitos que esta produz. Similares Hinos
Zoroastrianos são dedicados à Homa.

As seguintes são traduções de meu próprio punho de exemplos textuais


apresentados por de Felice (1970 [1936]): Ó Rei Soma, prolonga nossas
vidasComo o Sol que acalenta os dias toda manhã.---O Soma é cheio de
inteligênciaInspira o homem com entusiasmoE faz os poetas cantarem.---
Temos bebido o Soma: tornamo-nos imortais,Alcançamos a Luz,Chegamos
aos Deuses.---Uma metade de mim está nos céus,A outra nas
profundezas.Será que eu bebi Soma?Sou enormemente alto,Minha elevação
alcança as nuvens.Será que eu bebi Soma?(Rig Veda)---Oh dourado Haoma,
eu te peçoSabedoria, força, vitória, saúde,Cura, prosperidade e grandeza.(Zen
Avesta) Quanto à antiga Europa, Wasson e seus colaboradores (Wasson,
Hoffman e Ruck, 1978; Wasson et al. 1986) propõem que os mistérios gregos
de Eleusis incluíam o consumo de outra bebida psicoativa, contendo
alcalóides do ergot (ver Ruck, 2006, em que se analisa o papel enteogênico
dos cogumelos). Tem sido sugerido que as três grandes religiões monoteístas
de Ocidente – Judaísmo, Cristianismo e Islã – têm sua raiz no consumo de
substâncias psicoativas. Em seu famoso e polêmico livro O Cogumelo
Sagrado e a Cruz, Allegro (1970) associa a religião cristã aos cogumelos
psicoativos; este trabalho se baseia essencialmente na análise lingüística.

Outras teorias enteogênicas relativas ao cristianismo primitivo foram tecidas


por Ruck, Staples e Heinrich (2001), e por Ruck (2006), assim como por
Bennett e McQueen (2001) e mais recentemente por Gosso e Camilla (2007).
Baseado na análise de obras de arte e na exegese de textos, Ruck e seus
colaboradores propõem que o cristianismo original envolvia o uso de
cogumelos psicoativos. Obras de arte medievais da Espanha e da Itália
retratam a relação entre a datura e o conhecimento sagrado, indicando uma
possível indicação do uso enteógeno desta poderosa planta psicoativa
(Celdrán e Ruck, 2001). Similares conjeturas são feitas com relação ao Islã.

Ao estudar o folclore dos árabes e beduínos do Sul da Jordânia, o


investigador independente Rami Sadji sugere a utilização de enteógenos nas
religiões Islâmicas e pré-Islâmicas (Sadji, em http://www.acacialand.com ). À
época da publicação deste artigo, está sendo produzido um interessante
trabalho referente ao uso de enteógenos no Islã. (Dannaway, Piper e Webster,
2006). Este artigo se dedicará a analisar o judaísmo. Merkur (1985, 2001),
psicanalista e estudioso das religiões, propôe que o Maná que o povo de
Israel recebeu dos céus durante sua peregrinação pelo deserto do Sinai era,
de fato, um enteógeno. Me proponho a tecer uma hipótese, abertamente
especulativa, sobre outros usos de enteógenos na antiga religião hebraica.

Antes de me debruçar sobre o assunto, gostaria de esclarecer meu nível de


envolvimento no assunto em questão. Como psicólogo cognitivo e filósofo da
psicologia, meu principal foco profissional é a fenomenologia da consciência.
Por vinte e cinco anos tenho estudado a consciência humana e tentado
desenvolver uma teoria estruturada sobre ela (ver Shanon 1989, 1998c). Há
quinze anos atrás, as contingências da vida me levaram a encontrar a
poderosa bebida psicoativa do Amazonas conhecida como Ayahuasca, e a ter
minhas primeiras experiências com ela. Posteriormente, ao ler sobre o
assunto, chamou-me a atenção a similaridade entre as visões descritas por
relatos de Ameríndios e minhas próprias visões. Este fato me fez considerar a
idéia de que as visões da Ayahuasca não são, como certos antropólogos
afirmam (Reichel-Dolmatoff 1975) a manifestação das fantasias da mente dos
povos primitivos, mas antes um sintoma do trabalho da mente humana, da
mente do Homo Sapiens em geral.

Devo notar que, à época de minha primeira experiência com Ayahuasca,


praticamente todos os estudos científicos sobre o chá pertenciam à ordem das
ciências naturais (botânica, farmacologia, fisiologia e medicina) ou da
antropologia cultural. Minha opinião profissional é de que o fenômeno em
questão pertence, em sua essência, ao âmbito das experiências internas, e
portanto à disciplina que trata do estudo da mente e da consciência. Alinhado
aos insights pioneiros de William James (1929) e Aldous Huxley (1971), vejo
o estudo das plantas psicoativas e de seus efeitos como um caminho precioso
para o estudo do sistema cognitivo humano em geral, e para o fenômeno da
consciência em particular. Por isso lancei o primeiro estudo psicológico-
cognitivo sobre a Ayahuasca de que se tem notícia.

Empiricamente, meu trabalho se baseia na condução de entrevistas com um


número muito grande de pessoas de diferentes locais e contextos de uso, assim
como em minha própria experiência com o chá (que tenho experimentado em
torno de 160 ocasiões, em diversos contextos e locais.2) Em teoria, este
projeto de pesquisa apresenta um mapeamento geral sistemático das diversas
facetas da experiência da Ayahuasca e oferece um novo marco teórico de
conceptualização a partir de uma perspectiva psicológico-cognitiva.

Os resultados desta pesquisa podem ser conferidos em minha monografia Os


Antípodas da Mente (Shanon 2002a) assim como em Shanon (1998a, 1998b,
2002b, 2003a, 2003c). Uma das descobertas principais de minha pesquisa é o
fato das visões de Ayahuasca exibirem caracteres comuns interpessoais, que
vão além das variações socioculturais. Por último, e à maneira de introdução,
apesar de não ser um judeu praticante, tenho uma relação muito pessoal e
significativa com a própria herança cultural hebraica. A partir de minhas
experiências pessoais com a Ayahuasca, tenho vindo a observar vários
aspectos de minha cultura a partir de uma nova perspectiva. Alimentado por
estudos sobre o papel dos enteógenos na história humana, como os nomeados
anteriormente, apresento aqui uma nova hipótese enteógena – assumidamente
especulativa.

A hipótese se origina na descoberta de paralelos entre os efeitos psicológicos


induzidos pela Ayahuasca e padrões descritos na Bíblia, em conjunção com as
experiências e eventos relatados na vida do fundador e maior profeta da
religião israelita, Moisés. Esta hipótese é corroborada pela informação
botânica e etno-botânica que recopilei, pela exegese de textos Talmúdicos e
do misticismo judaico, pela informação antropológica proporcionada pelo
folclore judaico e oriental, assim como pelo conhecimento dos efeitos de
plantas análogas à Ayahuasca. A informação textual e empírica apresentada
provém de diversas fontes e pertence a muitas disciplinas acadêmicas e
culturais. Algumas das descobertas apresentadas são muito novas, e coube a
mim reunir todos estes elementos juntos. Finalizo dizendo que esta pesquisa
foi conduzida de maneira similar à de uma investigação policial independente.

AYAHUASCA

Antes de tratar sobre Moisés e a Bíblia, apresentarei alguns dados sobre a


Ayahuasca e sobre o arbusto do Oriente Médio chamado harmal.A Ayahuasca
é um dos mais importantes e potentes agentes psicoativos, empregado pelas
culturas americanas (ver Schultes 1982). Etimológicamente, ‘Ayahuasca’ é
uma palavra composta Quéchua (a língua do antigo Império Inca), que quer
dizer alternativamente ‘cipó dos espíritos’ ou ‘cipó da morte’. O chá é feito a
partir de duas plantas. Normalmente, a primeira é o cipó Banisteriopsis caapi
(Malpighiaceae), enquanto a segunda é a Psychotria viridis (Rubiacaea),
arbusto que é conhecido localmente como chacrona. É comum a utilização do
termo Ayahuasca para referir-se não apenas ao chá, mas também à primeira
das duas plantas constituentes naturalmente.

Os povos originários do Amazonas têm utilizado a Ayahuasca por milênios, e


no vasto território compreendido entre o Oeste do Brasil e as regiões orientais
do Equador, Peru e Colômbia, a Ayahuasca é considerada um pilar da cultura
nativa.

No passado, a Ayahuasca era utilizada para ajudar em todas as grandes


decisões de uma tribo, especialmente na declaração de guerra e na busca de
animais de caça. Era também parte central dos ritos de iniciação. Hoje em
dia, permanece como instrumento usual de xamãs e curandeiros (ver Reichel-
Dolmatoff 1971, 1975, 1978; também Dobkin de Rios 1972, 1992; Langdon,
1979; e Luna 1986). A bebida serve também como sacramento principal de
diversas novas religiões sincréticas, que reúnem as tradições nativas do
Amazonas com o cristianismo popular (ver Labate e Sena Araújo 2002; Polari
1999). Típicamente, a Ayahuasca induz poderosas visões, de todas as
modalidades de percepção. Efeitos cognitivos não perceptuais também se
manifestam de maneira pronunciada. Estes incluem insights pessoais, criações
intelectuais, reações afetivas e profundas experiências de ordem mística e
espitritual. A Ayahuasca permite àquele que a toma experimentar outras
realidades. Quem consome o chá tem a sensação de estar ganhando acesso a
novas fontes de conhecimento, em que se lhe revelam mistérios e verdades
profundas do Universo. Isto se combina com o que os consumidores habituais
descrevem como um encontro com o Divino. Quimicamente, os principais
elementos do chá são os alcalóides N,N-Dimetiltriptamina ou DMT, harmina,
e harmalina. O primeiro é um poderoso alucinógeno, porém inativo se
ingerido oralmente. A desativação do DMT é bloqueada pelos outros
ingredientes, betacarbolinos inibidores da oxidase monoamina (MAO). Os
betacarbolinos protegem o DMT da desativação pelo MAO e o tornam
oralmente ativo (para uma análise clássica, ver Schultes 1972; para uma
discussão recente mais ampla, ver Ott 1993, 1994, e também Strassman 2001

O consumo por separado dos ingredientes do chá de Ayahuasca não produz


efeitos alucinatórios 3. Para isto, são necessárias as duas plantas indicadas,
ou seus equivalentes funcionais. DMT, a substância que produz as
alucinações, é encontrada especificamente na chacrona, enquanto os outros
componentes se encontram no cipó. É comum dizer que o primeiro elemento
proporciona a luz, enquanto o segundo dá a força; mas para a produção dos
efeitos alucinógenos, é necessária a união de ambos. Eventualmente podem
ser utilizadas outras plantas como ingredientes, mas o princípio é sempre o
mesmo: uma planta contém DMT, e a outra os inibidores MAO. Existem no
Brasil diversas religiões sincretistas que combinam tradições cristãs e/ou
africanas, andinas e indigenas com os rituais da Ayahuasca. Numa dessas
religiões, a Igreja do Daime e do Santo Daime, que são cantados hinos
durante o ritual (a bebida é conhecida nesse contexto como Daime, que vem
do português ‘dai-me’).

Pessoalmente fiquei muito impresidonado com a grande similaridade entre


estes hinos e aqueles das tradições Védicas e Zoroastristas. A seguir,
apresento alguns fragmentos desses hinos; o leitor interessado pode consultar
MacRae (1992) e Polari (1999): Dai-me força, dai-me luz, Dai-me amor!
4
...Daime... professor de professores...Eu tomo esta bebidaQue tem poder
inacreditávelEla mostra todos nósAqui dentro desta verdade Subi, subi,
subiSubi foi com alegriaQuando cheguei nas alturasEncontrei com a Virgem
Maria Subi, subi, subiSubi foi com amorEncontrei o Pai EternoE Jesus Cristo,
Redentor.

Os hinos de onde provêm estes fragmentos foram recebidos pelo fundador da


Igreja do Santo Daime, Mestre Raimundo Irineu Serra, um trabalhador das
plantações de borracha que morava na Amazônia Brasileira durante a
primeira parte do século XX. Certamente não tinha conhecimento dos Vedas
ou da religião Zoroastriana. A citação dos hinos, apesar deles pertencerem a
uma tradição totalmente diferente à que toca este estudo, vem reforçar a
hipótese, feita por Flattery e Schwartz (1989) e citada anteriormente, segundo
a qual a Soma dos hindus e a Haoma dos iranianos devem ser identificadas
com o arbusto Peganum harmala, que no Oriente Médio se conhece como
harmal. HARMAL

Os inibidores MAO harmina e harmalina presentes na Banisteriopsis caapi


podem também ser encontrados no arbusto do Oriente Médio conhecido como
Peganum harmala. O próprio nome científico da planta, e de suas substâncias
ativas, derivam do nome harmal, que em árabe quer dizer ‘tabu’ ou ‘sagrado’.
A palavra hebraica herem, ‘tabu’, deriva da mesma raiz. Tendo tido ampla
experiência com Ayahuasca, fiquei curioso em experimentar a harmal.
Seguindo as instruções do Dr. Mina Paran, farmacológo especialista nas
plantas medicinais do Israel, encontrei um campo com arbustos em
abundância. Encontrava-se logo em frente às cavernas de Qumran, lar dos
essênios, a congregação mística judaica (e provavelmente proto-cristã) que
habitou o deserto da Judéia desde o séc. II a.C. até o séc. II d.C. Qumran é
também o local onde foram encontrados os textos bíblicos mais antigos, os
chamados Manuscritos do Mar Morto, além de vários outros textos religiosos.
Intuitivamente, me parece evidente que os essênios devam ter tomado
conhecimento do uso desta planta psicoativa. Não há nenhuma prova
conclusiva a respeito, mas é uma poderosa coincidência. Até onde sabemos,
não há uma única menção ao harmal na Bíblia. É claro que o texto hebraico
original é rico em nomes de plantas cuja identificação botânica atual não se
conhece ou da qual não podemos ter certeza. Porém, o harmal está associado
a uma longa tradição medicinal no Oriente Médio. Feliks (1997) cita um texto
hebraico de cunho enciclopédico do séc. XII, que descreve o harmal como
planta medicinal. Em entrevistas realizadas no Israel com judeus do Irã e do
Marrocos, pude confirmar a tradição que associa o harmal a poderes mágicos
e curativos. No Irã, incenso de harmal (conhecido como asphan) é utilizado
para exorcizar espíritos; os judeus marroquinos o usam em diversos
tratamentos médicos, e inclusive para induzir ao aborto. Judeus yemenitas
utilizam a planta para a elevação do espírito e em tratamentos
antidepressivos, enquanto no Egito árabe são conhecidas suas propriedades
alucinógenas (para análise destas, ver Emboden 1972; Danin 1983; Palevitch
e Yaniv 1991). Pesquisando na Internet, encontrei o site anteriormente
mencionado, do pesquisador jordaniano de medicinas beduínas tradicionais,
Rami Sajdi. Sajdi descobriu que os curandeiros beduínos usam o harmal como
elemento medicinal e mágico, e dá conta de diversos mitos e relatos
folclóricos associados à planta
. MOISÉS E A EXPERIÊNCIA PSICODÉLICA

Tomemos agora o Antigo Testamento e Moisés. Foi dito na época de sua


morte, no final do Pentateuco: “Não houve no Israel profeta algum como
Moisés, que encontrou o Senhor face a face.” (Deuteronômio 34:10; ver
também Êxodo 33:11). Na tradição judaica, de fato, se diz que todos os
profetas viram o Divino através de um espelho sem brilho, e apenas Moisés
viu Deus por um cristal brilhante, e falou com Ele diretamente, cara a cara
(Talmud Babilônico, tratado Yevamot, 49b). Para uma análise maior, ver
Scholem (1993) e Wolfson (1994). A seguir, veremos cinco episódios da vida
de Moisés que me parecem claros sinais de experiências psicodélicas.
Especificamente, são padrões muito similares àqueles que, por experiência
própria e corroborada pelas entrevistas com inúmeros usuários da bebida,
são experimentados sob efeito da Ayahuasca. O primeiro episódio é o
primeiro encontro de Moisés com Deus. Aconteceu no deserto do Sinai, onde
Moisés morava com seu sogro Jetro, sacerdote do povo Médio. Vejamos a
seguir: ‘E apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em
Midiã; e levou o rebanho atrás do deserto, e chegou ao monte de Deus, a
Horebe.‘E apareceu-lhe o anjo do SENHOR em uma chama de fogo do meio
duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se
consumia.‘E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e verei esta grande
visão, porque a sarça não se queima.‘E vendo o SENHOR que se virava para
ver, bradou Deus a ele do meio da sarça, e disse: Moisés, Moisés. Respondeu
ele: Eis-me aqui.’ (Êxodo 3:1-4). O encontro com o Divino é uma das
experiências mais poderosas associadas ao transe de Ayahuasca de alto nível.
(Para uma descrição detalhada das experiências no contexto indígena do
Amazonas, o leitor deve consultar Payaguaje 1983; para outros exemplos e
análise aprofundada, ver Shanon 2002a, 2001b, 2002c.) Porém as
experiências deste tipo são assuntos privados de grande delicadeza, que
prefiro não comentar. Focar-me-ei no outro elemento descrito, o arbusto que
arde sem se consumir.

Minha tese é de que este evento não produziu alteração nenhuma no mundo
real, não tendo nada a ver com arbustos ou fogo. Reflete, isto sim, uma
alteração radical no nível de consciência do observador, ou seja, de Moisés.
Seu próprio senso de tempo foi alterado, fazendo com que um breve instante
fosse percebido como uma eternidade. Tais alterações na percepção do tempo
são comuns nos níveis mais altos do transe por Ayahuasca (Shanon 2001a).
Assim, ao olhar para o arbusto, Moisés sentiu como se houvesse passado
muito tempo, tempo suficiente para que o arbusto queimasse e se consumisse,
quando no plano físico da realidade havia-se apenas uma fração de segundo,
pois o arbusto não sofreu mudança alguma. Digno de interesse é o comentário
de Feliks (1994) em um glossário de plantas da Terra Santa. Ele nota que
vários investigadores – não citados – sugerem que o arbusto em questão fosse
ou uma planta que produz cintilações luminosas, ou um alucinógeno,
provavelmente extraído da árvore de acácia. Voltaremos à acácia mais
adiante. O segundo episódio bíblico é o encontro de Moisés e seu irmão Aarão
com os feiticeiros do Faraó. Nesse encontro, ambos lados transformam
bastões em serpentes (ou em grandes répteis).

Tanto na literatura antropológica (ver Luna e Amaringo 1991) quanto em


minha própria pesquisa empírica (Shanon 1998a, 2002a), pode-se verificar
que a serpente é uma visão comum no transe de Ayahuasca. Inclusive, tem
havido visões em que bastões e outros pedaços de madeira são transformados
em serpentes. Em terceiro lugar, voltemos ao momento mais sagrado e
tremendo da Bíblia Hebraica: a teofanía no Monte Sinai. É nesta ocasião que
os Dez Mandamentos são outorgados e é realizado um pacto entre Deus e
Israel. O povo de Israel é transformado, assim, em Nação. Todos os Filhos de
Israel estavam presentes. Tiveram que preparar-se com três dias de
purificação e santificação, durante os quais nenhuma atividade sexual foi
permitida. Deus chegou ao topo da montanha, e salvo Moisés, ninguém
poderia dar mais um passo adiante, sob pena de morte: ‘E aconteceu que, ao
terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões e relâmpagos sobre o monte, e uma
espessa nuvem, e um som de buzina mui forte, de maneira que estremeceu
todo o povo que estava no arraial... E todo o povo viu os trovões e os
relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso,
retirou-se e pôs-se de longe.’ (Êxodo 19:16; 20:18) [ Depois que as Leis
foram outorgadas, o povo de Israel ofereceu sacrifícios e]: ‘E viram o Deus
de Israel, e debaixo de seus pés havia como que uma pavimentação de pedra
de safira, que se parecia com o céu na sua claridade... E o parecer da glória
do SENHOR era como um fogo consumidor no cume do monte, aos olhos dos
filhos de Israel.’ (Êxodo 24:10,17) Diversos elementos nesta descrição
relembram características peculiares da experiência da Ayahuasca

Antes de analisá-las, vale a pena notar o período de três dias de purificação,


que inclui a abstinência sexual. Em todos os contextos tradicionais do uso da
Ayahuasca, estas mesmas restrições são regra.5 Ao analisar a experiência da
teofanía em si, cabe destacar três elementos em comum com a Ayahuasca. O
primeiro é o fogo. Em todos os seus contextos, a experiência da Ayahuasca se
caracteriza como um encontro com a Luz. Pessoas que experimentaram o chá
costumam falar em uma Luz suprema, muitas vezes sob a forma de fogo. Nos
níveis avançados, a visão da Luz é acompanhada de profundos sentimentos
religiosos e espirituais. Em tais ocasiões, tem-se a sensação de que a visão da
Luz é um encontro com a origem de todo o Ser – fonte de tudo quanto existe e
poder que sustenta o cosmo, a vida e a mente. Muitos identificam este poder
com Deus. Em Shanon (2002a), presto especial atenção às experiências de
suprema Luz. Apresento como exemplo um relato de um de meus
entrevistados: ‘À minha frente havia a mais brilhante fonte de luz, como uma
lanterna de muitas, muitas facetas. Eu soube que se olhasse diretamente, iria
entrar em colapso e talvez morresse. Por isso eu virei a cabeça. Durante esta
experiência, senti como se perdesse meu senso de individualidade e a
faculdade da memória.’ O segundo elemento a ser notado é o medo da morte.
Este medo é muito comum com a Ayahuasca. Muitas pessoas que bebem o chá
sentem que estão a ponto de morrer.

É muito significativo, como notamos acima, que a origem etimológica do


termo ‘Ayahuasca’ esteja associada à morte. O terceiro é a sinestesia, ou seja,
a mistura de percepções de diferentes modalidades sensoriais. No texto
bíblico citado, lemos que os Filhos de Israel viram o trovão e o som da
buzina. Tanto na literatura antropológica quanto em minha própria
experiência com a Ayahuasca, é muito comum a visão de material sonoro.
Outros efeitos sinestésicos menos comuns também são encontrados (para
maior análise, ver Shanon 2003d). Prosseguindo com a vida de Moisés,
encontramos o quarto episódio: ‘E Moisés disse ao SENHOR: Eis que tu me
dizes: Faze subir a este povo, porém não me fazes saber a quem hás de enviar
comigo; e tu disseste: Conheço-te por teu nome, também achaste graça aos
meus olhos.‘Agora, pois, se tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que
me faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça aos teus
olhos; e considera que esta nação é o teu povo.‘Disse pois: Irá a minha
presença contigo para te fazer descansar.‘Então lhe disse: Se tu mesmo não
fores conosco, não nos faças subir daqui.‘Como, pois, se saberá agora que
tenho achado graça aos teus olhos, eu e o teu povo? ‘Acaso não é por andares
tu conosco, de modo a sermos separados, eu e o teu povo, de todos os povos
que há sobre a face da terra?‘Então disse o SENHOR a Moisés: Farei
também isto, que tens dito; porquanto achaste graça aos meus olhos, e te
conheço por nome.‘Então ele disse: Rogo-te que me mostres a tua
glória.‘Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de
ti, e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de
quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.‘E
disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a
minha face, e viverá.‘Disse mais o SENHOR: Eis aqui um lugar junto a mim;
aqui te porás sobre a penha.‘E acontecerá que, quando a minha glória passar,
pôr numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja
passado.‘E, havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a
minha face não se verá.’ (Êxodo 33: 12-23) Este episódio é surpreendente, e
tem ocupado as mentes de estudiosos judeus durante séculos.

Como pode Deus ter frente e costas? Como pode alguma parte d’Ele ser
vista? Maimônides, o grande estudioso medieval e filósofo racionalista,
explica que neste contexto os termos ‘frente’ e ‘costas’ se referem
respectivamente aos níveis mais alto e mais baixo de percepção humana do
Divino, ou aos aspectos central e periférico de Sua Essência (ver Maimônides,
1963). Mas a experiência com Ayahuasca sugere outra explicação. Ver
criaturas sem poder ver seus rostos é um aspecto comum da experiência da
Ayahuasca, conforme explicitamente registrado no folclore de vários povos
indígenas, e confirmado por minha própria investigação.

Em uma das pesquisas que conduzi com consumidores habituais não-


indígenas Rio de Janeiro, em resposta à minha pergunta sobre qual havia sido
a visão mais impressionante, um dos entrevistados fez a seguinte descrição:
‘Eu vi uma criatura. Era uma mulher, mas não uma pessoa comum, nem
sequer um ser humano. Conseguia vê-la claramente, mas sem poder ver seu
rosto, e implorei ‘Por favor, por favor, mostre-me sua cara.’ Ela caminhou,
me dando as costas. Eu voltei a implorar a ela. Muito rapidamente, ela se
virou para mim. Tão rápido que apenas pude ver um sorriso, ao mesmo tempo
benevolente e zombeteiro, como se quisesse demonstrar o quanto eu era
pequeno como mero ser humano. E então ela foi embora, dando-me as
costas.’ O que me parece mais impressionante na descrição bíblica não é
apenas o fato de Deus ocultar Seu rosto, mas a reação de Moisés. O que
acontece durante uma sessão de Ayahuasca, e as visões particulares que a
bebida induz, não são resultado apenas do chá, mas também da contribuição
do próprio usuário. Pessoas diferentes terão visões diferentes com a mesma
quantidade do mesmo chá, e mesmo uma mesma pessoa em diferentes
contextos. É como se o que acontece durante uma sessão de Ayahuasca fosse
uma interação, um pas de deux, entre a bebida e a pessoa que a tomou.

Como todo usuário habitual de Ayahuasca sabe, com o tempo se aprende a


dominar a bebida e as energias mentais que esta gera. E com a experiência é
possível ir além e avançar em nossa própria jornada pessoal pelas regiões
incomuns da consciência. É explicado em detalhe em Shanon (2002a, 2002b)
que com o tempo nossa própria interação com as visões torna-se mais ativa.
No começo, vemos apenas ‘coisas’. Mais tarde (ou em níveis mais altos de
transe), é possível participar de cenas. Com maior experiência, podemos
interagir com as entidades, criaturas e objetos de nossas visões. Nos casos
mais avançados e raros, é possível inclusive dirigir a própria visão, como o
faz um diretor de cinema.Enquanto os novatos costumam ser mais passivos,
consumidores avançados da Ayahuasca realizam com freqüência maiores
esforços e tentam penetrar mais profundamente no ‘mundo da Ayahuasca’.
Alguns serão mais insistentes que outros.

Face a um portal, alguns se aventurarão a entrar, enquanto outros terão medo


de fazê-lo; ao ver uma porta, uns tentarão abri-la, e outros a ignorarão; se a
porta não se abre, uns irão insistir, implorar, talvez rezar, esperando que
eventualmente esta se abra, revelando maiores e maiores segredos. Muitos,
inclusive, vêem a experiência da Ayahuasca precisamente como uma
oportunidade para descobrir segredos, desta e de outras realidades. Minha
própria pesquisa indica que as pessoas com esta atitude (em comparação, por
exemplo, com aquelas que bebem o chá para obterem cura ou bem-estar) são
precisamente as que têm as visões mais poderosas. Tal atitude é sintomática
de certos traços de personalidade, que incluem curiosidade, coragem,
ousadia, determinação, insistência, perseverança, e certa atração pelo mágico
e o secreto. Pelas Escrituras podemos ver que Moisés possuía todos esses
traços. Notamos isto mesmo em seu primeiro encontro com o Divino, o
primeiro episódio aqui examinado, do arbusto em chamas. Os textos bíblicos
associados a Moisés não incluem nenhuma visão de olhos desencarnados.
Este é um elemento presente na descrição mais explícita da revelação Divina
– a do primeiro capítulo do Livro de Ezequiel, conhecida como a Visão da
Carruagem.

Em uma análise independente (Shanon 2003b), comparei este famoso relato


bíblico com as poderosas visões da Ayahuasca, percebendo diferenças
significativas entre ambos. Estas últimas são similares às descrições dos
reinos celestes na tradição mística judaica conhecida como literatura da
Merkava (carruagem) ou do Heikhalot (palácio), que existiram do séc. II ao
séc. V d.C. O quinto e último episódio de Moisés que eu gostaria de
mencionar como sintoma de experiência psicodélica é aquele, percebido por
todos que o viram retornar por segunda vez do Monte, trazendo as tábuas da
Lei: o brilho no rosto de Moisés (Êxodo 34:30). Tenho percebido isto como
um fato especialmente comum, quase universal: após uma sessão de
Ayahuasca, as pessoas parecem brilhar – têm aspecto mais jovem, sua pele é
mais suave, os olhos cheios de luz, e têm uma aparência especialmente bela.
Recapitulemos. Ao analisar diferentes episódios da vida de Moisés,
encontramos fortes similaridades com elementos característicos dos estados
alterados de consciência induzidos pelo consumo do chá amazônico
conhecido como Ayahuasca.

Os fatos bíblicos, aliás, descrevem experiências extremamente comuns com o


chá, incluindo metamorfoses de serpentes, sinestesia, luzes intensas, a visão
de criaturas sem rosto e o encontro com o Divino. Apesar da visão de luzes e
do encontro com o Divino não serem exclusivos da Ayahuasca, os outros
sintomas listados são especialmente característicos deste enteógeno em
particular. Tendo estabelecido a base característica das experiências
religiosas de Moisés como estados alterados de consciência induzidos pelo
DMT, analisaremos a substância psicotrópica em questão e veremos se pode
ou não ter estado ao alcance de Moisés e de seus companheiros de êxodo. A
análise seguinte tentará demonstrar que a resposta a esta pergunta é
rotundamente afirmativa

. ACÁCIA – UM POSSÍVEL ENTEÓGENO BÍBLICO

No Livro do Êxodo, imediatamente após o relato da teofanía no Monte Sinai,


lemos o seguinte: ‘Então falou o SENHOR a Moisés, dizendo:‘Fala aos filhos
de Israel, que me tragam uma oferta alçada; de todo o homem cujo coração se
mover voluntariamente, dele tomareis a minha oferta alçada.‘E esta é a oferta
alçada que recebereis deles: ouro, e prata, e cobre,‘E azul, e púrpura, e
carmesim, e linho fino, e pêlos de cabras,‘E peles de carneiros tintas de
vermelho, e peles de texugos, e madeira de shittim,‘Azeite para a luz,
especiarias para o óleo da unção, e especiarias para o incenso,‘Pedras de
ônix, e pedras de engaste para o éfode e para o peitoral.‘E me farão um
santuário, e habitarei no meio deles.‘Conforme a tudo o que eu te mostrar
para modelo do tabernáculo, e para modelo de todos os seus pertences, assim
mesmo o fareis.‘Também farão uma arca de madeira de shittim; o seu
comprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e
meio, e de um côvado e meio a sua altura.‘E cobri-la-á de ouro puro; por
dentro e por fora a cobrirás; e farás sobre ela uma coroa de ouro ao redor;‘E
fundirás para ela quatro argolas de ouro, e as porás nos quatro cantos dela,
duas argolas num lado dela, e duas argolas noutro lado.‘E farás varas de
madeira de shittim, e as cobrirás com ouro.‘E colocarás as varas nas argolas,
aos lados da arca, para se levar com elas a arca.‘As varas estarão nas
argolas da arca, não se tirarão dela.‘Depois porás na arca o testemunho, que
eu te darei.‘Também farás um propiciatório de ouro puro; o seu comprimento
será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e meio.‘Farás
também dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas
extremidades do propiciatório.‘Farás um querubim na extremidade de uma
parte, e o outro querubim na extremidade da outra parte; de uma só peça com
o propiciatório, fareis os querubins nas duas extremidades dele.‘Os querubins
estenderão as suas asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; as faces
deles uma defronte da outra; as faces dos querubins estarão voltadas para o
propiciatório.‘E porás o propiciatório em cima da arca, depois que houveres
posto na arca o testemunho que eu te darei.‘E ali virei a ti, e falarei contigo
de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins (que estão sobre a arca
do testemunho), tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.‘Também
farás uma mesa de madeira de shittim; o seu comprimento será de dois
côvados, e a sua largura de um côvado, e a sua altura de um côvado e meio.‘E
cobri-la-ás com ouro puro; também lhe farás uma coroa de ouro ao
redor.‘Também lhe farás uma moldura ao redor, da largura de quatro dedos,
e lhe farás uma coroa de ouro ao redor da moldura.‘Também lhe farás quatro
argolas de ouro; e porás as argolas aos quatro cantos, que estão nos seus
quatro pés.‘Defronte da moldura estarão as argolas, como lugares para os
varais, para se levar a mesa.‘Farás, pois, estes varais de madeira de shittim, e
cobri-los-ás com ouro; e levar-se-á com eles a mesa.‘Também farás os seus
pratos, e as suas colheres, e as suas cobertas, e as suas tigelas com que se hão
de oferecer libações; de ouro puro os farás.’ (Êxodo 25:1-29) Depois farás
um véu de azul, e púrpura, e carmesim, e de linho fino torcido; com querubins
de obra prima se fará... Farás também para a porta da tenda, uma cortina de
azul, e púrpura, e carmesim, e de linho fino torcido, de obra de bordador. E
farás para esta cortina cinco colunas de madeira de shittim, e as cobrirás de
ouro; seus colchetes serão de ouro, e far-lhe-ás de fundição cinco bases de
cobre. (Êxodo 26: 31, 36-7) Farás também o altar de madeira de shittim;
cinco côvados será o comprimento, e cinco côvados a largura (será quadrado
o altar), e três côvados a sua altura. E farás as suas pontas nos seus quatro
cantos; as suas pontas serão do mesmo, e o cobrirás de cobre... Farás também
varais para o altar, varais de madeira de shittim, e os cobrirás de cobre.
(Êxodo 27: 1,2,6). Os materiais listados nestas passagens são materiais
preciosos. Isto é óbvio para o ouro, a prata e as pedras preciosas. Os
pigmentos de azul, púrpura e carmesim eram extremamente caros no antigo
Médio Oriente, e altamente apreciados.

O único material diferente é (‘shittim’), um tipo de madeira. Como se pode


notar na longa citação, este material joga um papel central na construção do
tabernáculo – a moldura da tenda, a arca, a mesa e as tábuas de suporte são
todas feitas a partir desta árvore. Antes de continuar, façamos um
esclarecimento lingüístico. No texto original em hebraico, o termo utilizado é
‘atzei shittim’. Atzei é a forma plural de etz, árvore ou madeira; e shittim é o
plural de shita, ou acácia. A tradução literal de atzei shittim deveria ser
‘árvores de acácia’, porém a moderna Bíblia de Jerusalém traduz a expressão
como ‘acácia’ ou ‘madeira de acácia’. Por que acácia? Estudiosos
tradicionais judaicos têm argumentado que os pobres, aqueles que não
possuem ouro ou prata, deviam prover a madeira. Eu gostaria de propor
outra explicação – as propriedades psicoativas da árvore. Há muitas
variedades desta espécie, que cresce não apenas no deserto do Sinai, mas
também na Austrália, no México e na América do Sul. As subespécies
presentes na península do Sinai e no deserto Negev ao sul de Israel, que
contém DMT, são: Acacia albida (Mimosaceae), Acacia lactea (Mimosaceae)
e Acacia tortilis (Mimosaceae). Outras espécies que contém DMT são Acacia
seyal (Mimosaceae) e Acacia nilotica (Mimosaceae), que crescem no Egito
(ver Shulgin e Shulgin, 1997). Feliks (1997) sugere que a acácia mencionada
na Bíblia é Acacia albida; Duke (1983) associa o shittim à Acacia seyal.
Porém Danin, o principal especialista em plantas de Israel na atualidade, me
informou pessoalmente que nenhuma destas plantas crescem na península do
Sinai (ver também Alon, 1993; assim como o website da Flora de Israel,
http://flora.huji.ac.i , e o website do Jardim Botânico da Universidade
Hebraica www.botanic.co.il/A/catalog.asp).

Assim, os candidatos mais prováveis parecem ser a Acacia tortilis e Acacia


láctea. Em resumo, se bem que a disputa quanto à árvore específica
permaneça sem resolver, é fato que algumas subespécies de acácia presentes
na região contém DMT. A árvore de acácia é novamente mencionada em
outros textos judaicos. No Talmud (Tratado Gittin, 69b) está escrito que a
sávia da árvore de acácia é utilizada como medicina. Em outro contexto, o
Talmud explica que a palavra shittim é derivada do termo shut (sem sentido)
(Tratado Sanhedrin, 106a). Seria esta uma alusão às alterações psicológicas
que esta planta produz? Curiosamente, após enumerar as qualidades
medicinais da planta, um certo intérprete do Talmud repara que muitos
reconhecem nela o sneh (o mencionado arbusto bíblico) em linguagem bíblica
(ver Krispil 1988).

Em outras partes do Talmud (Tratado Avoda Zara, 24b), assim como nos
primeiros textos da hermenêutica judaica (Genesis Rabbah, 54) aparece o
seguinte poema (citado em Elior 2004, p252): ‘Canta, ó árvore da
acácia‘Ascende em toda tua graça‘Coberto em dourado véu,‘O palácio dos
devires ouve tua eulogia‘E com diversas jóias és adornada.’ Apesar de não
existir notícia sobre o uso medicinal ou psicoativo da acácia no Oriente
Médio, tal uso é encontrado na América do Sul. Os indígenas do estado
brasileiro de Pernambuco utilizam a casca das raízes de uma certa espécie de
acácia, Mimosa hostilis (Mimosaceae) em cerimônias enteógenas: no dialeto
local é conhecida como Jurema (ver de Mota 1979, 2005). Como acontece
com a Ayahuasca, o DMT da Jurema precisa de uma segunda planta com
inibidores de MAO para fazer efeito. o Dr. Grünewald, antropólogo brasileiro
que participou das cerimônias da Jurema, investigou o assunto e não
identificou nenhuma outra planta na composição da mistura (ver Grünewald
2005).

Com ele, deixo essa questão em aberto. A acácia era planta sagrada para os
egípcios, ocupando ocupa um lugar especial em sua mitologia, ao estar
associada ao nascimento do deus Osíris, assim como ao dos faraós (Helck
1975). Segundo o mito, Osíris morre encerrado em um féretro do qual brota
uma árvore de acácia; através dela, Osíris volta à vida (em outras versões,
Horus). Os egípcios verdadeiramente consideravam a acácia como a “árvore
da vida”, e como hipóstase divina (Koemoth 1994). Lendas posteriores
vinculam a acácia com a morte e a vida ultraterrena. No Livro dos Mortos
consta que o morto é conduzido por crianças até a árvore, e que partes dela
são então maceradas e espremidas pelo morto, que as emprega com efeitos
mágicos de cura (ver www.pantheon.org/articles/a/acacia.html). Os egípcios
utilizavam a acácia com diversos usos medicinais, assim como para a
construção de sarcófagos (Krispil 1988). Lembremos que Moisés veio do
Egito, e há inclusive quem especule com a idéia de que fosse realmente um
príncipe egípcio (ver Freud 1953 [1939]). Estes antigos mitos e lendas
egípcios são pertinentes ao assunto em questão ainda por outro aspecto: são,
manifestamente, mitos de morte e ressurreição (e por isso mesmo, encontram-
se talvez na raiz da teologia cristã da ressurreição). Morte e renascimento são
facetas-chave da experiência com Ayahuasca, e do folclore indígena
associado a ela. Lembremos que o nome Ayahuasca significa ‘cipó da morte’.
Recentemente tomei conhecimento do trabalho do pintor israelense Ron Gang,
que se especializa em retratar árvores de acácia nos desertos do sul de Israel
(ver www.rongang.net , figura 2). Ele reparou no costume tradicional beduíno
de conduzir rituais de juramento sob essas árvores. Por último, e diretamente
relacionado aos mitos egípcios, lembremos que o galho de acácia é um
símbolo central da Maçonaria (Pike 1871).

ACÁCIA E HARMAL

Conectando as diferentes linhas de análise, consideremos agora ambas


plantas, acácia e harmal, in tandem. Lembremos que os princípios psicoativos
do chá de Ayahuasca são a harmina e a harmalina, cujo nome é derivado do
arbusto harmal. Após tomar conhecimento sobre a espécie brasileira de
acácia conhecida como Jurema, soube que as sementes de Peganum harmala
podem ser adicionadas à Jurema para preparar uma bebida que, como a
Ayahuasca, é uma mistura de DMT e inibidores de MAO. Experimentei tal
bebida no Brasil, em um contexto privado. Ao contrário dos cogumelos, do
peiote ou do San Pedro (Trichocerus pachanoi, cacto sul-americano rico em
mescalina), que induzem a experiências psicológicas muito diferentes, o
preparado de Jurema com Peganum me pareceu (e a muitas outras pessoas
com quem travei contato, todos usuários habituais de Ayahuasca) como sendo
decididamente similar à Ayahuasca. Poderia dizer-se que, apesar de ambas
poções não serem idênticas, parecem pertencer à mesma família. Para usar
uma analogia, pode-se dizer que as bebidas de Ayahuasca e de Jurema são
similares da mesma maneira que o vinho tinto é similar ao vinho branco; e
que ambas são tão diferentes de outros enteógenos quanto os vinhos o são de
outras bebidas alcoólicas.

OUTROS CASOS

Há muitos outros casos na história israelita e judaica que sugerem o uso de


outras plantas psicoativas, além de harmal e acácia. Os primeiros dois
envolvem histórias bíblicas, os outros se relacionam a relatos e exegeses
posteriores. Nenhum destes casos tem como assunto harmal ou shittim, mas
todos sugerem fortemente a noção de que as plantas psicoativas fossem
altamente apreciadas pelos antigos israelitas. A primeira destas histórias
envolve Raquel, a amada esposa de Jacó. Jacó amava Raquel muito mais do
que amava Léa, irmã de Raquel, com quem foi forçado a casar por seu sogro.
‘Mas quando o Senhor viu que Léa era desprezada, Ele abriu seu útero,
enquanto o de Raquel permaneceu fechado’ (Gênese 29:31). ‘Vendo Raquel
que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me
filhos, se não morro.’ (Gênese 30:1). Este é o pano de fundo do episódio, que
continua da seguinte maneira: ‘E foi Rúben nos dias da ceifa do trigo, e achou
mandrágoras no campo. E trouxe-as a Léa sua mãe. Então disse Raquel a
Léa: Ora dá-me das mandrágoras de teu filho.E ela lhe disse: É já pouco que
hajas tomado o meu marido, tomarás também as mandrágoras do meu filho?
Então disse Raquel: Por isso ele se deitará contigo esta noite pelas
mandrágoras de teu filho.’ (Gênese 30:14-15) Esta história é fascinante. Após
sabermos de forma bastante clara que a coisa mais importante na vida de
Raquel é o amor que devota ao seu marido, que deve compartilhar com sua
detestada irmã, vemos Raquel disposta a sacrificar sua relação com Jacó para
obter mandrágoras.

Vemos que Lia também desejava estas mandrágoras, pois as compara a Jacó,
objeto de desejo e rivalidade entre as irmãs. Aparentemente, o motivo pelo
que o narrador inseriu este breve episódio na história, cujo assunto principal
é a relação entre Jacó e suas esposas e a maneira em que seus filhos
(fundadores das doze tribos de Israel) foram criados, é para indicar o valor
que as mandrágoras tinham na antiga sociedade israelita. A mandrágora é,
obviamente, altamente psicoativa (ver por exemplo Schultes e Hofmann 1992).
A segunda história bíblica é a origem de todas as outras, a história seminal da
Árvore da Sabedoria. Este é um dos episódios mais importantes do Antigo
Testamento, e também um dos mais intrigantes, tendo gerado vasta literatura.
Aqui, nos limitaremos a fazer duas observações que se referem diretamente ao
assunto dos enteógenos. A primeira tem a ver com as crenças culturais que a
história pressupõe. Qualquer que seja a interpretação que se faça sobre esta
história, uma coisa é clara: ela é narrada dentro de um contexto em que se
acredita que o conhecimento pode ser obtido através da ingestão de um
vegetal. A segunda observação é sobre as fortes semelhanças entre o relato
bíblico e as mitologias indígenas sobre a Ayahuasca. Na América do Sul, a
Ayahuasca está relacionada a mais histórias e mitos do que qualquer outro
agente psicoativo.

São particularmente abundantes os relatos sobre a origem da bebida. Atribuo


isto ao fato de que a descoberta do chá costuma ser surpreendente e
reveladora. Como temos visto, a Ayahuasca requer a união de duas plantas,
que individualmente não produzem efeito psicoativo algum. A floresta
Amazônica é tão abundante que resulta difícil crer que a descoberta tenha se
dado por um método de tentativa e erro. A ciência moderna reconhece que sua
origem permanece um enigma (ver Furst 1976, Naranjo 1983, Narby 1998).
Diferente tribos sul-americanas contam diferentes histórias sobre a origem da
Ayahuasca. Porém uma análise detalhada de uma dezena destas histórias
revela alguns traços comuns, como a presença de serpentes e de um ato
criminoso ou ilícito, usualmente de caráter sexual. O primeiro encontro com a
Ayahuasca é geralmente caracterizado como um evento cataclísmico. Antes
dela, a vida humana era paradisíaca: as pessoas viviam em harmonia com a
natureza, tendo satisfeitas todas suas necessidades básicas de sobrevivência,
podendo também conversar com os animais. Desde o surgimento da
Ayahuasca, a vida humana tornou-se difícil e trabalhosa. A descoberta da
Ayahuasca é vista também como a origem de toda cultura humana. Através
dela o homem descobriu o conhecimento, a identidade tribal, as leis maritais,
e a música (ver por exemplo Reichel-Dolmatoff 1975 e Luna e White 2000). A
similaridade com a história bíblica da Árvore da Vida dispensa comentários.
O caso seguinte é o do incenso empregado no Templo de Jerusalém (o
chamado ktoret, também conhecido como ktoret há-shamim, ou incenso das
drogas). Este incenso contém uma série de ingredientes, a maioria
desconhecidos para nós até hoje. Sua receita era mantida em segredo por uma
única família sacerdotal, e perdeu-se com a destruição do Templo. O ktoret
era utilizado regularmente nos rituais, mas apenas uma vez ao ano no seu
local mais sagrado, o inner sanctum do Templo. Isto devia ser feito somente
pelo Sumo Sacerdote, durante o Yom Kippur, o dia mais sagrado do
calendário judaico. O Talmud conta que existia o perigo de que o Sumo
Sacerdote não retornasse em bom estado, pelo que era amarrado pelas
roupagens a uma fina corrente de ouro, que permitia aos que permaneciam do
lado de fora controlar seu estado. Através da similaridade fonética entre a
palavra ‘ktoret’ e a palavra hebraica para ‘conexão’, o Zohar, o grande texto
da Kabbalah, explica que o ktoret estabelece uma conexão entre o homem e
Deus.

O incenso sagrado tem também papel central em outros dois episódios da vida
de Moisés, ambos envolvendo uma transgressão com conseqüências fatais. No
primeiro episódio, Nadab e Abihu, filhos de Aarão, fazem a oferenda de
incenso sem seguir as normas e sem permissão, sendo imediatamente mortos
pelo fogo que provém do ktoret (Levítico 10:1-7). O segundo episódio trata da
revolta da família sacerdotal de Korah contra a autoridade de Moisés, que
envolve, também, o uso ilícito do incenso. Os rebeldes são punidos com a
morte, e posteriormente uma epidemia se alastra entre o povo. Aarão cura os
doentes utilizando o incenso (Números 16-17). Unindo ambos episódios,
estudiosos judaicos e kabalistas concluíram que o ktoret devia ser um
narcótico poderoso e de grande poder curativo. Há algum tempo tem sido
sugerido que o termo ‘cannabis’ provém do termo hebraico keni bossem, ou
‘canavial fragrante’, e é considerado como um dos ingredientes do incenso
sagrado utilizado primeiro no tabernáculo e posteriormente nos dois Templos
de Jerusalém (para a hipótese original, ver Benetowa 1967 [1936]); para uma
análise aprofundada, ver Bennett e McQueen 2001). Muito recentemente
tenho tomado notícia de um projeto de pesquisa, não publicado ainda, que
está sendo desenvolvido por Mechoulam e Moussaieff.

Estes farmacólogos israelenses descobriram propriedades levemente


psicoativas na resina de Boswellia, conhecida em hebraico como levona, que
é um componente principal do incenso queimado no Templo de Jerusalém.
Era também utilizada em rituais religiosos pelos antigos egípcios, pelos
gregos, e pelos cristãos do séc. IV. Outra informação interessante é
proporcionada pelo historiador judeu do séc. I, que menciona em seus escritos
que a mirra do Sumo Sacerdote continha a imagem dourada da planta
Hyoscyamus. Esta planta é conhecida por ser altamente psicoativa (ver
Schleiffer 1979, PP 169-70). Por último, após escrever este artigo, pedi a um
judeu ortodoxo versado em literatura rabínica e cabalística que o lesse. 8 Ele
encaminhou-me aos escritos de Rabbeinu Be’cha’yei ben Asher, um estudioso
judaico medieval (1255-1340), famoso por sua interpretação da Torah.
Rabbeinu Be’cha’yei escreve que os alimento mais puros foram criados logo
no início da Criação, para permitir a posse do conhecimento superior.
Explicitamente, relaciona isto à Árvore bíblica do Conhecimento, e lembra
que tal conhecimento superior pode ser alcançado através do uso de
narcóticos e medicinas disponíveis em sua época. Acrescenta ainda que o
Maná tinha as mesmas propriedas (o que nos relembra o estudo
contemporâneo de Merkur sobre o Maná como um enteôgeno, anteriormente
mencionado neste artigo).

ENTEÓGENOS BÍBLICOS: UMA CONCLUSÃO ESPECULATIVA

À maneira de conclusão, tentarei resumir a linha do argumento apresentado.


Nas regiões do Sul da Terra Santa e na península de Sinai crescem duas
plantas que contém princípios ativos que, quando unidos, constituem os
componentes essenciais de uma das substâncias psicodélicas mais poderosas
de que se tem notícia, a bebida amazônica chamada Ayahuasca. Uma destas
plantas é a Peganum harmala, ou harmal em árabe, e a outra é a Acácia, em
hebraico shita (no plural, shittim). Elas contém, respectivamente,
betacarbolinas e DMT. Não há na Bíblia nenhum indício do uso da primeira
planta, mas temos fortes evidências do uso e do alto valor dados à segunda.
Foi com madeira dela que se construiu o Tabernáculo, assim como a Arca
onde foram guardadas as Tábuas da Lei. A árvore de acácia também era
considerada sagrada pelo egípcios. Curandeiros árabes e beduínos utilizam
ambas plantas na atualidade em suas práticas curativas. Da mesma maneira,
em todo o Oriente Médio, o harmal é utilizado pelos judeus como elemento
mágico e curativo. Descobrimos claros indícios na Bíblia de que as plantas
psicoativas eram altamente valorizadas na antiga sociedade israelita. É
notável que diversos episódios-chave na vida de Moisés exibem sintomas
proeminentes da experiência da Ayahuasca. Estes episódios incluem o
primeiro encontro com o Divino e a teofanía no Monte Sinai, tradicionalmente
tido como o evento mais importante na história judaica. Diversos textos
místicos e rabínicos confirmam a hipótese enteogênica. Os dados
antropológicos e botânicos, unidos às descrições bíblicas e da hermenêutica
judaica, sugerem fortemente a existência de uma conexão bíblica com
elementos enteogênicos. De fato não há provas definitivas; mas tantos e tão
variados indícios, que parecem unir-se em um todo coerente e intrigante.
Deixo ao leitor ou leitora o direito de emitir seu próprio julgamento. NOTAS

1. Muitos anos se passaram entre a concepção inicial das idéias


apresentadas neste artigo e sua impressão. Isto se deve, em grande
medida, à natureza não-ortodoxa e iconoclasta da tese sugerida.
Agradeço aos editores de Time and Mind por terem a mentalidade
aberta necessária para receber e publicar este artigo. Uma
apresentação aberta deste material foi realizada na ‘Conferência sobre
Enteogênese’ em Vancouver, em fevereiro de 2004.
2. Afinal de contas, como escrever sobre música sem ter tido a experiência
de ouvi-la?
3. Existem indícios de que uma dosagem suficientemente alta do alcalóide
harmina pode producir alucinações, mesmo sem a adição de DMT (ver
Shanon 2002a, Ott 1993)
4. Isto é um jogo de palavras. O texto original em português quer dizer
tanto ‘dai-me força’ quanto ‘o chá é a força’.
5. Existe um motivo para esta proibição: minimizar os efeitos fisiológicos
adversos, assim como o desconforto físico que acompanha o transe.
6. O devir é o inner sanctum, o sagrado dos sagrados, no Templo judeu.
7. Interessante é notar que os mitos gregos associados aos mistérios de
Eleusis também têm como tema principal a morte e a ressurreição
(Wasson, Kramrisch, Ott, e Ruck 1986).
8. Esta pessoa não quis ter seu nome divulgado.
http://www.portadosol.org.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=13&Itemid=28&lang=pt

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