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Este texto visa fazer uma analise global do repertório que toco em rituais de
ayahuasca desde fins de 2019. Participo de encontros de grupos que se autodefinem
como pertencentes à linha do xamanismo universalista. Também participo como
convidado em rituais de pajés huni kuin nesses mesmos centros. O xamanismo
universalista é uma vertente recente de uso ritualístico da ayahuasca. Na literatura
antropológica foi cunhado o termo neoxamanismo (Labate, 2004) para os usos da
ayahuasca além dos rituais tradicionais dos povos indígenas da Amazônia ocidental (huni
kuin, yawanawá, xipibo, etc) e das religiões criadas no século XX (Santo Daime, União do
Vegetal e A barquinha). O que une de certa forma essas práticas é a diversidade de
entidades que podem ser cultuadas ou invocadas: animais de poder, Cristo, Buda,
Khrishna, orixás, caboclos, etc. Há um entendimento nesses grupos de que todas essas
entidades são seres de luz1 que podem nos ajudar nos nossos processos de cura física e
espiritual. Também há uma visão em comum do xamanismo como um processo
terapéutico em que podem entrar, além da ayahuasca, outras medicinas da floresta,
outras medicinas naturais e diversas terapias alternativas. Vejamos um texto escrito por
um dos compositores das músicas usadas nesses rituais, Léo Artese:2
Entende-se que em muitos destes grupos há uma procura por uma volta
às origens, uma suposta espiritualidade ancestral a todas as culturas humanas,
relacionada com a vida em contato com a natureza e com as chamadas plantas
sagradas ou plantas de poder usadas principalmente pelos povos ameríndios:
ayahuasca, peyote, wachuma,3 tabaco (rapé, chá de tabaco e cachimbo),
sananga (colírio de limpeza ocular e descalcificação da glândula pineal), entre
outras. Todas estas medicinas4 geralmente são colhidos na mata por índios,
que fazem sua preparação (feitio) e os vendem para as instituições religiosas/
espirituais/terapêuticas nas cidades. Há também não-índios que fazem seus
plantios e feitios para fins comerciais. Entende-se, de qualquer modo, que os
produtos oferecidos sempre são orgânicos e preparados entoando rezas, de
5Em muitos casos o termo yagé é associado a ayahuasca, neste caso, porém, o termo se refere
especificamente ao cipó (jagube ou mariri).
6 https://www.youtube.com/watch?v=g3x_ZtdxCUo
7 O termo baixa vibração é usado para denotar um espírito preso às paixões (inveja, ciúme,
cobiça, etc.), uma entidade que ainda precisa trabalhar o caráter para atingir o plano do amor
incondicional.
8Conjunto de pessoas que realizam uma “corrente" de união espiritual durante um trabalho no
mundo astral.
canções huni kuin, canções yanawaná, ícaros9, repertório composto ou
recebido10 por participantes do xamanismo universalista, músicas de índios de
América do Norte, músicas de outros povos indígenas da América do Sul,
músicas de temazcal (México)11, músicas de rituais paganos da Europa e
músicas indianas. Em muitas canções do repertório há alusões a caboclos da
Jurema e da Umbanda, assim como aos orixás. A continuação, vou apresentar
uma análise das generalidade do repertório que eu construí a partir de
sugestões de participantes das cerimônias. Em um primeiro momento vou
fazer uma explicação de como funciona a música nos rituais, para
posteriormente comentar questões sobre os textos e questões propriamente
musicais.
Dentro dos rituais de xamanismo universalista (e nos rituais huni kuin que
eu participei) geralmente se consagram três medicinas: ayahuasca, rapé12 e
sananga.13 Em alguns rituais a roda de rapé é feita após a toma da ayahuasca
(geralmente uma hora depois da primeira dose). Em outros casos o rapé é
soprado antes de tomar a primeira dose, com o intuito de ajudar numa
limpeza14 inicial. A sananga geralmente é aplicada no fim da cerimônia, mas há
grupos que aplicam antes da ayahuasca, ou logo depois de tomar a primeira
dose. Um ritual de ayahuasca dura geralmente entre quatro e seis horas.
Normalmente, há uma primeira dose com mais líquido e uma segunda com
menos líquido. Esta última tem por objetivo prolongar por mais tempo a força.
Nos rituais de ayahuasca dirigidos por habitantes de centros urbanos o
trabalho combina o uso do som mecânico (play list) e momentos de música “ao
vivo”. Nos rituais huni kuin que eu assisti15 não houve uso de play list, os
9Repertório peruano (povo shipibo) de canções para rituais de ayahuasca. Os ícaros tem forte
componente improvisatório e são consideradas o principal agente de cura. (de Mori, 2009).
10Na cultura dos povos das terras baixas há uma constante menção à “recepção" por xamãs de
repertórios de cura espiritual, os hinários do Daime, as chamadas da UDV, assim como boa parte
do repertório do neoxamanismo é “recebido”.
11Músicas usadas no ritual norteamericano do Temazcal, uma “tenda do suor” em que as
pessoas entram para simular o ventre materno e trabalhar aspectos sentimentais.
12O rapé é um pó que é soprado no nariz. É feito pela misturas das cinzas peneiradas de tabaco
e cascas ou sementes de árvores. Tem diversas funções terapéuticas: reumatismo, hipertensão,
problemas respiratórios. É também uma medicina da instrospecção e meditação.
13 A sananga é um colírio feito a partir da raiz de uma planta (Tabernaemontana Sananho).
Promove a limpeza do globo ocular e descalcifica a glândula pineal (relacionada supostamente
com o desenvolvimento da vidência). Ver: http://povodafloresta.com.br/sananga-o-colirio-da-
floresta-amazonica/
14Uso o termo limpeza aqui especificamente me referindo ao vômito que tanto o rapé quanto a
ayahuasca podem produzir, embora haja outros tipos de limpeza: espirro, bocejo, diarreia, choro,
gargalhada. O termo limpeza alude sempre a uma manifestação fisiológica que expulsa algo de
dentro, seja toxinas ou problemas espirituais.
15 Rituais oferecidos a pessoas urbanas em Foz do Iguaçu.
momentos sem música ao vivo são momentos de silêncio em que se manifesta
a paisagem sonora.
A estrutura básica da música nos rituais urbanos é: 1) após consagrar a
primeira dose se coloca a play list, 2) trinta minutos depois se fazem os cantos
de abertura dos portais espirituais quando a bebida começa a fazer efeito, 3)
volta-se à play list, 4) pode haver uma ou mais intervenções musicais, 5) o
encerramento varia, às vezes é feito com play list, às vezes um ou mais cantos
de encerramento16 e em algumas, uma oração ou reflexão. Em todos os grupos
há uma conversa final sobre a experiência visionária e os ensinamentos. Os
cantos de abertura dos huni kuin são feitos a capella, com uma voz principal e
uma secundária. Em outros ritos urbanos se observa um ou mais cantos de
abertura acompanhados por maracá. Os huni kuin especificam que após esses
cantos de abertura é possível a entrada do violão, instrumento este que traz à
cerimônia um caráter de festa. Outros instrumentos usuais são: djembê,
flautas, maracás, pandeiro, cajones, tambores lakotas, flautas xamânicas e
violino. Minha função nos rituais até agora é participar nessa sengunda parte
como cantor, acompanhado com o violão, ou tocando outro instrumento para
acompanhar outro rezador.17 O repertório que analiso aqui tem a ver com esse
momento do ritual.
O repertório
Lado A Lado B
Tupinambá (Luiza Rosa) Sólo Dios sabe si vuelvo (Jonas Winter, Danit
Treubig & Nick Barbachano)
Tzen tze re rei (tradicional povo Shuar - versão: Cuatro vientos (Danit Treubig)
Nase Chiriap)
Colibrí dorado (Danit Treubig & Nick Barbachano) Plantas sagradas (Danit Treubig & Nick
Barbachano)
Abraço do amor (uma música recebida por mim) Wacomaia (tradicional yawanawá)
Pachamama (Rasana Bissoli) Vem jiboia (Letra: Paulo Henrique - Música: Bruno
Rubano)
Iansã dos ventos (Alê de Maria) Cantos krahô + hino da jurema (tradicionais/dóis
sóis)
Força do rapé (Gustavo Solaio Mello) Pajezinhos da floresta (Tuin Nova Era)
Passarinho kãnã (Tuin Nova Era) Pasha Dume Pae (Tuin Nova Era)
Está em você (Elisa Cristal) Vem força da ayahuasca (Takan Cavalo Branco)
Sobre os textos
Questões musicais
Tupinambá: I - V - I - V - I - V - I - V - I - IV9 - I - V - I
Sólo Dios sabe si vuelvo: Im - bVI - bIII - Vm - Im - Vm - Im - Vm - Im
Jaia Shiva Shankara: Im - bVII
Sirenita Bobinsana: bVI - bIII - V7 - Im
Tzen tze re rei: Im - bIII
Cuatro vientos: Im7 - Vm7
Colibrí dorado: Im7 - Vm7 - bVII - bVII - Im7 - Im7 - Vm7
Plantas sagradas: Im7 - Vm7 - bVII9 - Vm7(9) - IV - Vm7 - Im
Abraço do amor: Im7(9) - IVm7 - V7(b9)
Pachamama: Im - bVII9
Vem Jiboia: Im7 - V7
Voo do Beija-flor: I - V - VIm - IV
Balança divina: Im - bVI - bVII
Bienvenido Chamán: Im - bVII - bVI - Vm7 - bVII - bVI - Im7 - V7 -
Im7 - bVII - Im7 - bVII - bVI - V7 - IVm
Cura sana: Im - bVI - bIII - V
Govinda: Im - bVII9
As forças verdadeiras: Im - bVII9
Iemanjá: Im7 - IVm7
Iansã do tempo: Im7 - IVm7 - IIm7(b5) - V7 - Im7 - Im7/VII - Im7/
bVII - Im7/VII - bVI7M - IIm7(b5) - V7 - Im7
Cantos krahô + hino da jurema: Im - bIII
A energia da floresta: Im - bVII - bVI
Pajezinhos da floresta encantada: Im - bIII - Im - IVm - Im
Passarinho Kãnã: Im - IVm - bIII - Im
Eskawata Kayaway: versão Nawa Bari Im - bVII
versão Txanã Ikakuru I - V - IIm - IV - VIm - IV - I
Pasha Dume Pae: Im - IVm
Kanô: bVII - Im - bIII
Wacomaia: bVII - Im - bIII
Eu tomo esta bebida: Im - IVm - bIII - V7
Recado da mãe divina: I - IV - IIIm - VIm - V - IV - I
Eu canto nas alturas: Im - bVII - bIII - bVII - Vm - Im
Cura da floresta: Im - IVm - Im - bIII
Vem força da ayahuasca: VIm - IV - I - V ( final cadencia em G)
Cura do Beija-flor: Im - bVII - V
Échale miedo al fuego: Im - bIII - bVII - Im - bIII - bVII - V - Im
Águila aguilé: Im - bIII - bVII - Im
Senhora rainha da floresta: I7M(9) - IV6 - I7M(9) - VIm7(9) - IV6 -
V7(9) - I7M(9)
Para o alto: Im - Vm7 - bVII9 - IV7(4) - Im - Vm7 - IV7(4)
Canto curador: Im- IVm - V7 - Im
He yama yo: Im - V7 - Im - bIII - IVm - Im - V7 - bVII - Im
31 O ciclo tonal é o emprego dos acordes nas seguinte sequência de funções harmônicas: Tônica
(T), Sub-dominante (S), Dominante (D) e Tônica (T).
32A linearidade direcional é definida por Kramer como um caminho de crescimento de todos os
elementos de uma peça a partir de um material mínimo. (Kramer, 1988, p. 20) Um exemplo disso
poderia ser o motivo inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven.
modulação, como princípio motor do discurso tonal pode-se colocar dentro
dessa lógica. A não linearidade, ao contrário implica a “permanência" em um
tipo de comportamento. A música modal parece sempre reforçar um tom
central, que implicaria (de alguma forma) esse “aqui e agora”. É singular que
tenha sido a música europeia aquela que descobriu os métodos de modulação
de tons, a cultura que “saiu de casa” na construção de um mundo globalizado.
Nesse sentido, o uso de escalas e harmonias modais no repertório usado no
neoxamanismo parece significar uma volta a esse mundo antigo, a ligação com
a terra, a esse mundo que não é centrado exclusivamente na racionalidade.
A teoria de Costère, por outro lado, trata sobre as implicações acústicas
dos intervalos. Foge da divisão em consonâncias e dissonâncias (um valor
estritamente cultural), para apontar o grau de polaridade. Há intervalos
polares (em que as notas se atraem), intervalos neutros e intervales apolares
(em que as notas se repelem). Resumidamente:
Considerações finais
Referências
KRAMER, Jonathan. The time of music: new meanings, new temporalities, new listening
strategies. New York: Schirmer Books, 1988.
TRUJILLO et al. El uso de la ayahuasca en la Amazonia. Ingenierías & Amazonia 3(2), 2010, pp:
151 - 163
MORI, Bern Brabec de. La corona de la inspiración. Los diseños geométricos de los Shipibo-
Konibo y sus relaciones con cosmovisión y música. Indiana. 26, (2009), pp. 105-134.
https://www.youtube.com/watch?v=g3x_ZtdxCUo