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Análise de um repertório para rituais de ayahuasca

Prof. Dr. Marcelo Villena (UNILA)

Este texto visa fazer uma analise global do repertório que toco em rituais de
ayahuasca desde fins de 2019. Participo de encontros de grupos que se autodefinem
como pertencentes à linha do xamanismo universalista. Também participo como
convidado em rituais de pajés huni kuin nesses mesmos centros. O xamanismo
universalista é uma vertente recente de uso ritualístico da ayahuasca. Na literatura
antropológica foi cunhado o termo neoxamanismo (Labate, 2004) para os usos da
ayahuasca além dos rituais tradicionais dos povos indígenas da Amazônia ocidental (huni
kuin, yawanawá, xipibo, etc) e das religiões criadas no século XX (Santo Daime, União do
Vegetal e A barquinha). O que une de certa forma essas práticas é a diversidade de
entidades que podem ser cultuadas ou invocadas: animais de poder, Cristo, Buda,
Khrishna, orixás, caboclos, etc. Há um entendimento nesses grupos de que todas essas
entidades são seres de luz1 que podem nos ajudar nos nossos processos de cura física e
espiritual. Também há uma visão em comum do xamanismo como um processo
terapéutico em que podem entrar, além da ayahuasca, outras medicinas da floresta,
outras medicinas naturais e diversas terapias alternativas. Vejamos um texto escrito por
um dos compositores das músicas usadas nesses rituais, Léo Artese:2

O xamanismo é a mais antiga prática espiritual, médica e filosófica da


humanidade. Hoje médicos, advogados, donas de casa, psicólogos,
espiritualistas, místicos, estudantes, executivos, e pessoas das mais
variadas crenças estão estudando e aplicando o xamanismo. Os rápidos
resultados, introvisões de profundo significado, o contato com realidades
ocultas, a obtenção de auto-conhecimento, a busca do poder pessoal,
contribuem para o interesse nas práticas. O xamanismo é um conjunto
de crenças ancestrais. Sua prática estabelece contato com outros planos
de consciência, a fim de obter conhecimento, poder, equilíbrio, saúde.
Propicia tranquilidade, paz, profunda concentração, estimula o bem
estar físico, psicológico e espiritual. (ARTESE, html).

Entende-se que em muitos destes grupos há uma procura por uma volta
às origens, uma suposta espiritualidade ancestral a todas as culturas humanas,
relacionada com a vida em contato com a natureza e com as chamadas plantas
sagradas ou plantas de poder usadas principalmente pelos povos ameríndios:
ayahuasca, peyote, wachuma,3 tabaco (rapé, chá de tabaco e cachimbo),
sananga (colírio de limpeza ocular e descalcificação da glândula pineal), entre
outras. Todas estas medicinas4 geralmente são colhidos na mata por índios,
que fazem sua preparação (feitio) e os vendem para as instituições religiosas/
espirituais/terapêuticas nas cidades. Há também não-índios que fazem seus
plantios e feitios para fins comerciais. Entende-se, de qualquer modo, que os
produtos oferecidos sempre são orgânicos e preparados entoando rezas, de

1 Isto é, entidades que fazem o bem ou trazem ensinamentos que o promovem.


2Terapeuta Holístico, Acupunturista, estudioso do Xamanismo com iniciações no E.U.A., Peru e
Brasil. Ver: https://conscienciaprospera.com.br/colunistas/leo-artese/
3 Também conhecido como São Pedro, cacto da região andina que contém mescalina.
4 Empregarei o itálico para termos próprios deste contexto cultural.
forma que o espírito da planta se manifeste (entre) no corpo da pessoa que
consagra a medicina nos rituais.
Em todos os grupos que participo há uma centralidade no uso da
ayahuasca. A ayahuasca é uma tecnologia ancestral indígena que consiste no
cozimento misturado de duas plantas: a folha da chacrona (psychotria viridis)
e o cipó conhecido como jagube ou mariri (banisteriopsis caapi). Essa mistura
mostra uma apurada capacidade investigativa dos povos da floresta sobre os
efeitos e funções de ambas plantas.

El yagé5 contiene alcaloides beta-carbonilos, entre ellos la harmalina,


harmina, la yagenina, y la tetra-hidroharmina […] los cuales han
demostrado propiedades antimicrobianas, antihelmínticas y vaso
relajantes […], que han sido utilizadas farmocologicamente para
combatir estados de rigidez, postcefálicos y epilepsia […], y la chacruna
contiene DMT (N-Dimetiltriptamina), de esta manera, al mezclar las dos
plantas, la harmalina permite la actuación del DMT, inhibiendo
temporalmente la acción de la enzima monoaminoxidasa (MAO) y
originando la acción alucinante de la bebida […] (TRUJILLO et al., 2010)

Se em muitos âmbitos se fala que a ayahuasca é um alucinógeno, nos


centros ayahuasqueiros é usado o termo enteógeno, para destacar o fato de
que a bebida não produz alucinações: nos rituais as pessoas são conscientes o
tempo inteiro de seus atos e as visões acontecem quase sempre de olhos
fechados. No filme DMT, a molécula do espírito6 é salientada uma característica
da ayahuasca que a tornou popular, a experiência de alteração de consciência
tem longa duração (umas 4 horas), o que permite a realização de rituais
longos, onde as muitas visões e reflexões podem ser processadas de forma
clara pelo participante.
Em todos os rituais de ayahuasca, sejam indígenas, Daime, UDV ou
xamanismo universalista, a música tem uma função primordial: é ela que guia
o trabalho. Entende-se que a ingestão de DMT abre os portais do mundo
espiritual, a música tem a função de chamar entidades benéficas, ou até
“encaminhar" para a luz, entidades de baixa vibração.7 É uma forma de
proteção e de planejamento do trabalho espiritual que a egrégora8 vai realizar.
Nos rituais indígenas se interpretam músicas tradicionais dos respectivos
povos, no Daime os hinários, na UDV as chamadas. No xamanismo
universalista há um repertório próprio, bastante recente, que convive com
muitos outros. Nos núcleos de Foz do Iguaçu identifiquei os seguintes
repertórios ao vivo ou nas play list: hinários do Daime, chamadas da UDV,

5Em muitos casos o termo yagé é associado a ayahuasca, neste caso, porém, o termo se refere
especificamente ao cipó (jagube ou mariri).
6 https://www.youtube.com/watch?v=g3x_ZtdxCUo
7 O termo baixa vibração é usado para denotar um espírito preso às paixões (inveja, ciúme,
cobiça, etc.), uma entidade que ainda precisa trabalhar o caráter para atingir o plano do amor
incondicional.
8Conjunto de pessoas que realizam uma “corrente" de união espiritual durante um trabalho no
mundo astral.
canções huni kuin, canções yanawaná, ícaros9, repertório composto ou
recebido10 por participantes do xamanismo universalista, músicas de índios de
América do Norte, músicas de outros povos indígenas da América do Sul,
músicas de temazcal (México)11, músicas de rituais paganos da Europa e
músicas indianas. Em muitas canções do repertório há alusões a caboclos da
Jurema e da Umbanda, assim como aos orixás. A continuação, vou apresentar
uma análise das generalidade do repertório que eu construí a partir de
sugestões de participantes das cerimônias. Em um primeiro momento vou
fazer uma explicação de como funciona a música nos rituais, para
posteriormente comentar questões sobre os textos e questões propriamente
musicais.

A música e a estrutura dos rituais de ayahuasca

Dentro dos rituais de xamanismo universalista (e nos rituais huni kuin que
eu participei) geralmente se consagram três medicinas: ayahuasca, rapé12 e
sananga.13 Em alguns rituais a roda de rapé é feita após a toma da ayahuasca
(geralmente uma hora depois da primeira dose). Em outros casos o rapé é
soprado antes de tomar a primeira dose, com o intuito de ajudar numa
limpeza14 inicial. A sananga geralmente é aplicada no fim da cerimônia, mas há
grupos que aplicam antes da ayahuasca, ou logo depois de tomar a primeira
dose. Um ritual de ayahuasca dura geralmente entre quatro e seis horas.
Normalmente, há uma primeira dose com mais líquido e uma segunda com
menos líquido. Esta última tem por objetivo prolongar por mais tempo a força.
Nos rituais de ayahuasca dirigidos por habitantes de centros urbanos o
trabalho combina o uso do som mecânico (play list) e momentos de música “ao
vivo”. Nos rituais huni kuin que eu assisti15 não houve uso de play list, os

9Repertório peruano (povo shipibo) de canções para rituais de ayahuasca. Os ícaros tem forte
componente improvisatório e são consideradas o principal agente de cura. (de Mori, 2009).
10Na cultura dos povos das terras baixas há uma constante menção à “recepção" por xamãs de
repertórios de cura espiritual, os hinários do Daime, as chamadas da UDV, assim como boa parte
do repertório do neoxamanismo é “recebido”.
11Músicas usadas no ritual norteamericano do Temazcal, uma “tenda do suor” em que as
pessoas entram para simular o ventre materno e trabalhar aspectos sentimentais.
12O rapé é um pó que é soprado no nariz. É feito pela misturas das cinzas peneiradas de tabaco
e cascas ou sementes de árvores. Tem diversas funções terapéuticas: reumatismo, hipertensão,
problemas respiratórios. É também uma medicina da instrospecção e meditação.
13 A sananga é um colírio feito a partir da raiz de uma planta (Tabernaemontana Sananho).
Promove a limpeza do globo ocular e descalcifica a glândula pineal (relacionada supostamente
com o desenvolvimento da vidência). Ver: http://povodafloresta.com.br/sananga-o-colirio-da-
floresta-amazonica/
14Uso o termo limpeza aqui especificamente me referindo ao vômito que tanto o rapé quanto a
ayahuasca podem produzir, embora haja outros tipos de limpeza: espirro, bocejo, diarreia, choro,
gargalhada. O termo limpeza alude sempre a uma manifestação fisiológica que expulsa algo de
dentro, seja toxinas ou problemas espirituais.
15 Rituais oferecidos a pessoas urbanas em Foz do Iguaçu.
momentos sem música ao vivo são momentos de silêncio em que se manifesta
a paisagem sonora.
A estrutura básica da música nos rituais urbanos é: 1) após consagrar a
primeira dose se coloca a play list, 2) trinta minutos depois se fazem os cantos
de abertura dos portais espirituais quando a bebida começa a fazer efeito, 3)
volta-se à play list, 4) pode haver uma ou mais intervenções musicais, 5) o
encerramento varia, às vezes é feito com play list, às vezes um ou mais cantos
de encerramento16 e em algumas, uma oração ou reflexão. Em todos os grupos
há uma conversa final sobre a experiência visionária e os ensinamentos. Os
cantos de abertura dos huni kuin são feitos a capella, com uma voz principal e
uma secundária. Em outros ritos urbanos se observa um ou mais cantos de
abertura acompanhados por maracá. Os huni kuin especificam que após esses
cantos de abertura é possível a entrada do violão, instrumento este que traz à
cerimônia um caráter de festa. Outros instrumentos usuais são: djembê,
flautas, maracás, pandeiro, cajones, tambores lakotas, flautas xamânicas e
violino. Minha função nos rituais até agora é participar nessa sengunda parte
como cantor, acompanhado com o violão, ou tocando outro instrumento para
acompanhar outro rezador.17 O repertório que analiso aqui tem a ver com esse
momento do ritual.

O repertório

O repertório consiste, no momento, de 47 músicas, que eu coloco numa


lista separada em duas colunas, que costumo chamar de Lado A e Lado B
(resquícios da época dos LPs). A ideia desta divisão seria tocar uma coluna
numa cerimonia e uma coluna em outra, mas geralmente acontecem
mudanças no momento18 e acabo mesclando músicas dos dois lados. Vou
manter essa divisão aqui como forma de organização e para mostrar a forma
musical geral das apresentações, porque mesmo tendo essa mistura, há um
plano que respeito: no início músicas mais calmas, meditativas, avançando
para um clima mais “festivo”.

Lado A Lado B

Rogativa mapuche Canción de Cuna Mapuche

Tupinambá (Luiza Rosa) Sólo Dios sabe si vuelvo (Jonas Winter, Danit
Treubig & Nick Barbachano)

Jardim do universo (Bettina Maureen) Flor de Ogún (Alê de Maria)

16 Os huni kuin costumam encerrar com um canto e dança coletivos em roda.


17 Nome dado às pessoas que “puxam o canto”.
18 Às vezes uma pessoa pede uma música ou acontece alguma situação no ritual que motiva a
alteração do repertório: pessoas dançando, um processo psicológico ou espiritual difícil, enfim,
situações que indicam que uma música seria apropriada para o momento.
Jaia Shiva Shankara (mantra tradicional indiano) Sirenita bobinzana (Artur Mena)

Tzen tze re rei (tradicional povo Shuar - versão: Cuatro vientos (Danit Treubig)
Nase Chiriap)

Colibrí dorado (Danit Treubig & Nick Barbachano) Plantas sagradas (Danit Treubig & Nick
Barbachano)

Abraço do amor (uma música recebida por mim) Wacomaia (tradicional yawanawá)

Pachamama (Rasana Bissoli) Vem jiboia (Letra: Paulo Henrique - Música: Bruno
Rubano)

Voo do beija-flor (Elisa Cristal) Balança divina (Caminhantes do Céu)

Bienvenido chamán (Sami Brothers) Cura sana (Andrés Córdoba)

Govinda/As forças verdadeiras (kirtan tradicional/ Iemanjá (Léo Artese)


Max Mello e Suzan Flores)

Iansã dos ventos (Alê de Maria) Cantos krahô + hino da jurema (tradicionais/dóis
sóis)
Força do rapé (Gustavo Solaio Mello) Pajezinhos da floresta (Tuin Nova Era)

A energia da floresta (Ibã Huni Kuin) Eskawata kaiaway (Txaná Ikakuru)

Passarinho kãnã (Tuin Nova Era) Pasha Dume Pae (Tuin Nova Era)

Eskawata kaiaway (Nawa Bari) Eu tomo esta bebida (Mestre Irineu)

Kanô (tradicional yawanawá) Eu canto nas alturas (Mestre Irineu)

Recado da mãe divina (Chandra Lacombe) Canto curador (Txai Fernando)

Cura da floresta (Txai Fernando) Échale miedo al fuego (Darwin Grajales)

Cura do beija-flor (Chandra Lacombe) He yama yo (Canto Lakota)

Está em você (Elisa Cristal) Vem força da ayahuasca (Takan Cavalo Branco)

Aguila aguilé ( tradicional, recopilada por Ivan Silencio (Elves do Juruá)


Donalson & Giannina Leyva)

Para o alto (Bukun Mapua) Senhora rainha da floresta (Pia Vila)

Sobre os textos

O repertório que agrupei tem as seguintes origens: 1) duas canções de


origem mapuche19, 2) nove canções huni kuin ou yanawaná, 3) nove canções
em espanhol, 4) vinte e duas canções em português, 5) uma canção que
mistura cantos krahô com hino em português, 6) uma canção que mistura
espanhol e quíchua.
As canções mapuche são em mapungundum. Uma delas é uma rogativa e
a outra uma romanceada. Esses termos seriam o equivalente a “música sacra”
e “música profana”. A primeira é uma oração pedindo força para Futachao

19 Etnia indígena da Patagônia,


(Deus supremo). Incluí no repertório por ter ouvido numa play list de um
ritual. O fato de pedir força é coerente com o momento.20 Acredito que poderia
ser usada como canção de abertura por ser a capella e pelo seu estilo. A
segunda música mapuche é uma canção de ninar. A princípio fiquei um pouco
receoso de inclui-la por se tratar de um gênero "profano", mas tem-se
mostrado útil para acalmar as pessoas quando atravessam um processo
interno (psicológico) difícil durante os trabalhos.
As canções huni kuin usam português e hatxã kuin. Não encontrei ainda
uma tradução confiável dos textos, só ideias vagas de que enumeram
medicinas, por exemplo: pasha dume pae = tabaco (rapé), xoru = cannabis.
Também fazem menções ao ser supremo (iuxibu) ou ao espírito da ayahuasca
(nixi pae).21 As músicas em yawanawá são integralmente na língua nativa. As
duas canções yanawaná que canto estão incluídas num CD chamado Cantos
Yanawana.22 No CD são feitas à capella em pergunta e resposta. Mas há
inúmeras versões na internet em que são cantadas com violão sem a dinâmica
pergunta/resposta.
As canções em espanhol são de fontes diversas. Tem três músicas que
canta Danit Treubig, que falam de elementos da natureza, de animais de poder
ou homenageia as plantas sagradas. Outras mencionam figuras emblemáticas
do xamanismo (chamán, taita, abuelita curandera).
No repertório em português há músicas que aludem a animais de poder, a
caboclos, a elementos da natureza, às medicinas. Vemos uma grande
homogeneidade nos temas em todos os repertórios. Poucas músicas do meu
repertório aludem a Cristo ou à virgem Maria. É uma escolha pessoal,
evidentemente.

Questões musicais

A música de rezo em geral é simples. Não há harmonias muito complexas,


não há melodias que precisem de virtuosismo por parte do cantor. A
simplicidade é uma forma de tornar os rezos acessíveis a muitas pessoas.
Nisso segue à música indígena que, em geral, não requer virtuosismo, mas
requer concentração. Não é uma música solitária de uma pessoa excepcional
(paradigma romântico), é música comunitária, coletiva, em que participa a
comunidade toda e não só especialistas. Muita música indígena inclue
sonoridades da natureza organizadas em formas musicais simples (formas
binárias, geralmente) baseadas em oposições de pergunta e resposta (canto
responsorial). Os cantos huni-kuin e yawanawá, especificamente, são simples
de transcrever em partitura.
O aspecto responsorial do canto indígena pode ter influenciado em certa
medida todo o repertório. Embora exista essa prática em gêneros afro e
europeus (religiosos) a forma em que está estruturado lembra mais as canções

20 Os efeitos da ayahuasca são denominados (pelos participantes dos rituais) de força.


21 Vários participantes dos rituais perguntamos aos pajés sobre as letras sem obter resposta.
22Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EGz_QNlnsvs Acesso: 17 de março de
2020
dos huni kuin. Tanto no repertório huni kuin, yawanawá, como de outros povos
(penso no momento nos ianomami) trechos curtos são cantados por um solista
e repetidos imediatamente por várias pessoas. A resposta pode ser com ritmo
coordenado, ou descoordenado propositalmente, 23 gerando uma bela
heterofonia, ou em casos extremos (ianomami, sobretudo) uma textura
granular. Essa prática de cantar e repetir serve para reafirmar o que é dito no
texto, e de alguma forma, é um método de ensino: o mestre canta e o
discípulo repete até decorar. Muitas das músicas que canto aprendi nas
cerimônias dessa maneira. Mesmo canções em formato convencional de canção
repetem cada verso ou cada dois versos.24 A particularidade do repertório
indígena é a prática (em alguns casos) de descoordenação da resposta. Ao
vivo eu nunca vi um conjunto de pessoas responder descoordenado mas vi sim
uma pessoa ou duas cantar junto, mas sem cantar a parte completa do cantor
principal, criando uma heterofonia pela fragmentação da linha principal,
gerando acentuações deslocadas e preenchimento de espaços vazios.25
A questão dos espaços vazios é uma questão também a ser destacada.
Cantos como Pasha Dume Pae são difíceis pela articulação do texto em hatxã
kuin, sim, mas sobretudo porque Tuin canta quase sem respirar.26 Esse
costume de não deixar vazios, presente nas artes visuais das etnias pano
parece ser também uma característica da interpretação musical. Muitas rezas
compostas nas cidades seguem o mesmo modelo: As forças verdadeiras27 e
Balança divina28 são claros exemplos. O cantor precisa estar atento para não
perder o fluxo da letra na força.
Gostaria abordar um pouco sobre as escalas e harmonias empregadas.
Vamos observar por repertório. As músicas do Daime que toquei até o
presente momento tem todas a mesma estrutura harmônica i-iv-III-V7-i. Pela
sétima da dominante poderíamos classificar como linguagem tonal, mas é um
problema semelhante a muita música de tradição oral latino-americana,
aparentemente tonal (pela escala e pela harmonização), porém, há algum tipo
de modulação? Essa persistência numa vibração única, esse centro de atração
fixo, torna as músicas de rezo mais modais29 que tonais. As músicas huni kuin
por exemplo, jamais apresentam sétima da dominante.

23A título de exemplo ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=ju5A9RHZpVY&t=128s Acesso


17 de março de 2020.
24 É interessante destacar que as músicas indianas também tem esse canto responsorial.
25 Percebi isso em cantos guarani no Aty Guaçu (Grande Assembleia) de 2017 em MS, e nos
rituais de Nawa Bari e Txaná Mana
26Ver a performance em: https://www.youtube.com/watch?v=gn06OR9ZQg0
27 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=seBxWwBXMss
28 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7x0n0atNJ9w
29Lembremos sempre que essa terminologia é europeia e tem um certo grau de arbitrariedade,
porém nos serve para dialogar com uma comunidade acadêmica.
Vejamos as sequências harmônicas: 30

Tupinambá: I - V - I - V - I - V - I - V - I - IV9 - I - V - I
Sólo Dios sabe si vuelvo: Im - bVI - bIII - Vm - Im - Vm - Im - Vm - Im
Jaia Shiva Shankara: Im - bVII
Sirenita Bobinsana: bVI - bIII - V7 - Im
Tzen tze re rei: Im - bIII
Cuatro vientos: Im7 - Vm7
Colibrí dorado: Im7 - Vm7 - bVII - bVII - Im7 - Im7 - Vm7
Plantas sagradas: Im7 - Vm7 - bVII9 - Vm7(9) - IV - Vm7 - Im
Abraço do amor: Im7(9) - IVm7 - V7(b9)
Pachamama: Im - bVII9
Vem Jiboia: Im7 - V7
Voo do Beija-flor: I - V - VIm - IV
Balança divina: Im - bVI - bVII
Bienvenido Chamán: Im - bVII - bVI - Vm7 - bVII - bVI - Im7 - V7 -
Im7 - bVII - Im7 - bVII - bVI - V7 - IVm
Cura sana: Im - bVI - bIII - V
Govinda: Im - bVII9
As forças verdadeiras: Im - bVII9
Iemanjá: Im7 - IVm7
Iansã do tempo: Im7 - IVm7 - IIm7(b5) - V7 - Im7 - Im7/VII - Im7/
bVII - Im7/VII - bVI7M - IIm7(b5) - V7 - Im7
Cantos krahô + hino da jurema: Im - bIII
A energia da floresta: Im - bVII - bVI
Pajezinhos da floresta encantada: Im - bIII - Im - IVm - Im
Passarinho Kãnã: Im - IVm - bIII - Im
Eskawata Kayaway: versão Nawa Bari Im - bVII
versão Txanã Ikakuru I - V - IIm - IV - VIm - IV - I
Pasha Dume Pae: Im - IVm
Kanô: bVII - Im - bIII
Wacomaia: bVII - Im - bIII
Eu tomo esta bebida: Im - IVm - bIII - V7
Recado da mãe divina: I - IV - IIIm - VIm - V - IV - I
Eu canto nas alturas: Im - bVII - bIII - bVII - Vm - Im
Cura da floresta: Im - IVm - Im - bIII
Vem força da ayahuasca: VIm - IV - I - V ( final cadencia em G)
Cura do Beija-flor: Im - bVII - V
Échale miedo al fuego: Im - bIII - bVII - Im - bIII - bVII - V - Im
Águila aguilé: Im - bIII - bVII - Im
Senhora rainha da floresta: I7M(9) - IV6 - I7M(9) - VIm7(9) - IV6 -
V7(9) - I7M(9)
Para o alto: Im - Vm7 - bVII9 - IV7(4) - Im - Vm7 - IV7(4)
Canto curador: Im- IVm - V7 - Im
He yama yo: Im - V7 - Im - bIII - IVm - Im - V7 - bVII - Im

30Coloco as sequências de forma reduzida, anotando só as sequências de acordes sem as


repetições.
Silêncio: Im - bVII - Im - bIII - IVm - Im - IVm - Im - bIII - IVm - Im
Força do rapé: Im - IVm - V7
Jardim do universo: Im7 - IVm7 - Im7 - bVII - Im7
Flor de Ogún: Im - Vm - Im - Vm - IVm - Vm - IVm - Im
Está em você: IVm - Im - bIII - bVI - bVII - Im

Vemos uma tendência dominante de músicas no modo menor e


pouquíssimas músicas que usam a sétima da dominante. Na maioria das
músicas há movimento contrário ao ciclo tonal: T - D - S - T (em vez de T - S -
D - T).31 No lugar da sétima da dominante é usada muitas vezes a tríade maior
sobre o sétimo grau menor. Isso significa que a escala menor não sofre as
alterações típicas das escalas menores do sistema tonal (a sétimo grau
melódico alterado para formar uma sétima maior e, por extensão, um trítono
com o quarto grau). Estamos diante do uso de escalas modais (eólio ou dórico,
a depender do caso). Também encontramos com muita frequência cadências
plagais (IV - I). A linguagem de acordes em geral é bem austera, em poucos
casos se usam acordes expandidos e estranhamente um diminuto. Isto último
dá uma noção: o diminuto tem trítono, é um acorde de dominante. O trítono
pode ser considerado a peça fundamental da música tonal, o material
determinante. Essa ausência (ou escassez, para ser mais exato) acaba
pendendo a balança no sentido de definirmos o repertório, em linhas gerais,
como modal. Por que a música tocada em rituais de ayahuasca teria essa
tendência? Que implicações há nisso?
Vou trazer ao dialogo dois teóricos: Jonathan Kramer e Edmond Costère.
O primeiro pode nos ajudar a entender as implicações na temporalidade, o
segundo, na polaridade acústica. Para tal, nosso pensamento seguirá
lineamentos de análises que tomam o material musical como fonte de
observação de fenômenos extra-musicais, como a análise sociológica (Adorno)
e a análise ecológica (Kramer). O que eu quero dizer é que tomo
características de tratamento compositivo do material musical em suas
implicações na percepção do ouvinte, que neste caso se encontra sob os
efeitos de uma bebida alteradora de consciência.
Seguindo Kramer (1988) podemos afirmar que sétima da dominante é um
acorde lineal direcional,32 ele não permite uma direção diferente que a
resolução do trítono: há um caminho obrigatório que é o ciclo tonal (T-S-D-T).
A música do período renascentista, como exemplo de repertório modal, podia ir
tanto nessa direção como na oposta, ou até alterar a direção do ciclo durante o
discurso musical. Kramer define essa temporalidade como linearidade não-
direcional. Lembremos que ele opõe dois tipos de temporalidade: linear e não
linear, sendo a linearidade um caminho de ida, “em direção” (poderia-se dizer)
a um outro lugar. Há uma implicação dramática ou narrativa, causa/efeito. A

31 O ciclo tonal é o emprego dos acordes nas seguinte sequência de funções harmônicas: Tônica
(T), Sub-dominante (S), Dominante (D) e Tônica (T).
32A linearidade direcional é definida por Kramer como um caminho de crescimento de todos os
elementos de uma peça a partir de um material mínimo. (Kramer, 1988, p. 20) Um exemplo disso
poderia ser o motivo inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven.
modulação, como princípio motor do discurso tonal pode-se colocar dentro
dessa lógica. A não linearidade, ao contrário implica a “permanência" em um
tipo de comportamento. A música modal parece sempre reforçar um tom
central, que implicaria (de alguma forma) esse “aqui e agora”. É singular que
tenha sido a música europeia aquela que descobriu os métodos de modulação
de tons, a cultura que “saiu de casa” na construção de um mundo globalizado.
Nesse sentido, o uso de escalas e harmonias modais no repertório usado no
neoxamanismo parece significar uma volta a esse mundo antigo, a ligação com
a terra, a esse mundo que não é centrado exclusivamente na racionalidade.
A teoria de Costère, por outro lado, trata sobre as implicações acústicas
dos intervalos. Foge da divisão em consonâncias e dissonâncias (um valor
estritamente cultural), para apontar o grau de polaridade. Há intervalos
polares (em que as notas se atraem), intervalos neutros e intervales apolares
(em que as notas se repelem). Resumidamente:

Polar Neutro Apolar

segundas menores terças segundas maiores


sétimas maiores sextas sétimas menores
quartas justas quarta aumentada
quintas justas quinta diminuta
oitavas justas

A cadência típica da música tonal desta maneira, é polar, enquanto que a


cadência modal usada na maioria das rezas (bVII - I) é apolar. A sensação
deste intervalo de segunda maior, especificamente, dá uma sensação de duas
coisas separadas, que sob efeitos de uma bebida alteradora de consciência
pode gerar a percepção de coexistência de mundos paralelos. A minha
experiência na ayahuasca diz a respeito principalmente disso: a compreensão
da realidade como diferentes dimensões que convivem no mesmo espaço, ou
que podem ser interpretadas de formas diferentes, levando a experiências
perceptivas diferentes do mundo ao redor. A minha escuta da cadência da
música Jardim do universo é eloquente: em vez do bVII perfeitamente poderia
ser colocado V7, mas é justamente esse bVII que parecem permitir essas
bifurcações (ou duplicações) na percepção quando estou na força.

Considerações finais

A música de rituais de ayahuasca tem por função conduzir uma viagem no


plano astral (para quem acredita nisso) ou, pelo menos, no nosso inconsciente.
As músicas são usadas para que a pessoa que tomou a medicina tenha
pensamentos ou sentimentos que possibilitem a cura física, psicológica e
espiritual. Este texto apresentou aspectos gerais do repertório usado em
cerimônias de xamanismo urbano (ou neoxamanismo), movimento este que
além de ter produzido um repertório próprio, acolhe outros repertórios
anteriores (músicas indígenas, hinário do Daime, chamadas da UDV e música
indiana, entre outros). O fio condutor foi o repertório que construí como
rezador acolhendo sugestões de participantes de rituais na cidade de Foz do
Iguaçu. A análise de aspectos gerais revela uma tendência forte a linguagem
modal, no parâmetro altura, relacionado, em minha opinião, com uma procura
por um estado meditativo. A linguagem modal dá uma sensação de quietude
(pela ausência de modulações) e se relaciona ao tempo linear não direcional ou
ainda a uma temporalidade não linear, empregando as terminologias de
Kramer. O uso da cadências bVII - Im em vez de V7 - Im leva a refletir sobre
as implicações do sistema modal na percepção do mundo espiritual (ou o
mundo onírico inconsciente, se preferir) como um mundo em que se
superpõem diferentes dimensões ou diferentes formas de percepção da
realidade. As diferentes atitudes da linguagem modal, obedecendo ou
contrariando o ciclo tonal (T-S-D-T) também oferecem a possibilidade de
diversos caminhos discursivos para a música. Esse aspecto tem a ver com uma
sensação recorrente da experiência da ayahuasca: a observação de um fato da
nossa vida por diferentes ângulos e óticas. A ayahuasca entre outras coisas,
mostra a quem consagra diferentes possibilidades de entendimento das
problemáticas que se apresentam no fluxo de consciencia do ritual. Observar
os materiais musicais e as técnicas discursivas serve para entendermos como a
música age nos processos de cura xamânica.

Referências

KRAMER, Jonathan. The time of music: new meanings, new temporalities, new listening
strategies. New York: Schirmer Books, 1988.

TRUJILLO et al. El uso de la ayahuasca en la Amazonia. Ingenierías & Amazonia 3(2), 2010, pp:
151 - 163

MORI, Bern Brabec de. La corona de la inspiración. Los diseños geométricos de los Shipibo-
Konibo y sus relaciones con cosmovisión y música. Indiana. 26, (2009), pp. 105-134.

LABATE, Beatriz C. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas/São


Paulo: Mercado de Letras/ Fapesp, 2004.

ARTESE, Leo. O que é xamanismo? Universo Místico. Disponível em: https://


universomistico.org.br/o-que-e-xamanismo/

A molécula do espírito. Direção: Mitch Schultz. 2010. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=g3x_ZtdxCUo

Sananga: o colírio da floresta. Projeto Povo da Floresta. Disponível em: http://


povodafloresta.com.br/sananga-o-colirio-da-floresta-amazonica/

Costère, Edmond. Mort ou transfigurations de l'harmonie. Paris: FeniXX, 1962.

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