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NEO XAMANISMO ESTUDOS E PRÁTICAS ANCESTRAIS

SHAMANIC HEALING – INICIAÇÃO NO PODER DAS TRADIÇÕES XAMÂNICAS

Xamanismo Amazônico
Alecsandre Auá
Neste volume: “Xamanismo Amazônico”
do Curso de Formação Shamanic Healing do Neo Xamanismo,
pesquisei e revisei alguns aspectos importantes da bebida
sacramental Ayahuasca e as medicinas da floresta amazônica,
bem como suas indicações e contra-indicações
para fins terapêuticos e espirituais,
à luz de anotações e experiências pessoais
quando em expedição pelo estado do Acre e da literatura
existente sobre o assunto, mas não somente,
no que diz respeito aos seus aspectos neuroquímicos,
farmacológicos e legais, foram consultados revistas nacionais
e internacionais: Science, Veja e Galileu.
Além disso, consultei livros e alguns sites da Internet.

Agradeço

Ao Grande Espírito.
À Mãe Terra, em sua abundância.
À todas as minhas relações.
Ao xamanismo, pela luz no caminho.

Alecsandre Auá
Pesquisador da cultura da ayahuasca
Enteógenos X Alucinógenos
O uso de plantas expansoras da consciência que induzem ao estado xamânico
ou de êxtase é uma realidade mundial e milenar.
Como plantas, os enteógenos também são chamados por grupos religiosos e
povos indígenas de plantas mestras, plantas professoras, plantas de
poder e plantas sagradas.
A palavra "enteógeno", significa literalmente "manifestação divina".
A farmacologia ainda não chegou a um acordo sobre o termo para descrever as
suas ações farmacológicasː assim, o termo "alucinógeno" continua sendo a
designação predominante entre os cientistas mais tradicionais.
Alguns autores não consideram que a expressão "enteógeno" seja um mero
sinônimo de alucinógeno, já que nem todas as plantas usadas num contexto
sagrado provocam alucinações. A distinção se apoia no contexto religioso,
sagrado e tradicional, em que seu uso é feito, e na forca espiritual que estaria
presente na bebida.

Introdução
Dentre as inúmeras plantas e substâncias utilizadas por populações indígenas
da bacia amazônica, talvez nenhuma delas seja mais interessante ou complexa
em termos botânicos, químicos ou etnográficos, como a Ayahuasca, Hoasca,
Vegetal ou Daime.
A Ayahuasca é uma bebida sagrada da América do Sul, fundamental para o
xamanismo no tratamento de doentes em muitas tribos indígenas da
Amazônia, obtida pela fervura do cipó Jagube (Banisteriopis caapi) com a
mistura de folhas do arbusto Chacrona (Psycotria viridis).
A natureza química dos compostos ativos, bem como, a maneira de utilização
faz com que essa bebida ocupe posição de destaque no Brasil, nos atuais
estudos da etnomedicina, neurofarmacologia, neurofisiologia e psiquiatria. As
plantas sagradas constituem poderosa base experimental para investigar a
correlação biológica com os estados alterados de consciência.
O estudo dos enteógenos em humanos é de suma importância porque as
substâncias com essas propriedades afetam certas funções cerebrais que
tipicamente caracterizam a mente humana, incluindo a cognição, volição, ego e
auto-percepção.
As várias manifestações dos "desequilíbrios do ego" são especialmente
características psicodélicas proeminentes, que acabam naturalmente criando
as psicoses.
História do Uso da Ayahuasca
A palavra Ayahuasca tem sua origem no idioma Quéchua, falado nos altiplanos
andinos, cuja etimologia é: Aya – persona, alma, espíritu; waska – cuerda,
enredadera, parra, liana; que poderia ser compreendida como: “Cipó das
Almas”, em referência as várias espécies de cipós utilizados como base da
preparação da bebida utilizada por pelo menos 72 grupos indígenas diferentes,
espalhados pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador.
Mesmo que seu uso tenha origem indígena, a partir do fim do século XIX e
início do século XX, grande número de trabalhadores (principalmente
seringueiros, atraídos pela corrida da extração da borracha), vindos de diversas
regiões do Brasil, do Peru e da Colômbia entraram em contato com essa
bebida. A partir desse encontro entre indígenas e ribeirinhos, seringueiros e
agricultores, a ayahuasca passou a ser utilizada em novos contextos,
caracterizados por influências culturais as mais variadas: catolicismo popular,
espiritismo kardecista, magia e esoterismo europeus, cultos afro etc., dando
origem a novas e complexas maneiras de uso dessa poderosa medicina.
A partir das décadas de 1920-1930, formaram-se as chamadas religiões
ayahuasqueiras, como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal (UDV),
organizações atualmente presentes em praticamente todo o território nacional,
inclusive nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, o uso religioso da
ayahuasca é legitimado juridicamente desde 1986 pelo Conselho Nacional
Antidrogas – CONAD, submetido à plenária e aprovado por unanimidade.
O uso da ayahausca vem se expandindo nas últimas décadas para as principais
capitais brasileiras e para grandes centros urbanos dos Estados Unidos e
Europa, aumentando o leque de informações, sobretudo a respeito de suas
bases neuroquímicas e farmacológicas.
Religiões Xamânicas
Embora em vários países da América
do Sul, tais como Colômbia, Bolívia,
Peru, Venezuela e Equador, haja uma
tradição de consumo da ayahuasca por
xamãs e vegetalistas, curiosamente é
somente no Brasil que se desenvolvem
religiões de populações não-indígenas
que fazem uso desta bebida.
Estas religiões, a exemplo dos casos da
religião do Buiti do Gabão (que utiliza a
Iboga) e da Native American Church no
México e EUA (que faz uso do Peyote),
reelaboram as antigas tradições dos
sistemas locais a partir de uma
releitura influenciada pelo cristianismo.
Esta releitura, no caso brasileiro, é formulada por meio da herança de consumo
da ayahuasca pelos sistemas que compõem as matrizes das religiões
ayahuasqueiras, a saber: a tradição indígena, principalmente o xamanismo
amazônico; o cristianismo, representado pelo catolicismo popular; o
espiritismo kardecista; elementos afro-brasileiros; e elementos do esoterismo
europeu. (sobretudo via o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento).
(Labate, 2004, p. 65)
Em um cenário de intensas transformações na vida amazônica, relacionadas
principalmente à formação dos seringais e do contato entre caboclos e
indígenas, um conjunto de elementos ganhou atenção especial nas pesquisas
sobre o Santo Daime, a Barquinha e a UDV, consolidando na história um
conjunto de matrizes culturais das quais os grupos são herdeiros, cada qual
com sua particularidade.
As primeiras pesquisas sobre a Barquinha e a UDV não deixam de apontar a
importância dos nordestinos migrantes e da população cabocla, especialmente
daqueles que se empregaram na extração da borracha, por travarem contato
com grupos indígenas nos primeiros momentos da ocupação amazônica, fator
determinante para a transmissão e disseminação do uso da ayahuasca entre a
população urbana.
Deste modo, as pesquisas em questão apresentam indícios importantes sobre
a relevância do contexto socioeconômico amazônico e do papel que o contato
entre populações indígenas e caboclas assume na reconstituição histórica do
fenômeno enquanto movimento de circulação de crenças, práticas e de
elaboração de novas modalidades de consumo da ayahuasca.
O Bailado do Santo Daime
Além de ser conduzido pelo ritmo dos hinos, qual o outro sentido para tal
movimento?

O baile é uma dança com passos laterais para direita e esquerda, seguidos de
ritmos da marcha, a mazurca e valsas. Narram os mais antigos, como dona
Percília Matos e dona Maria Gomes, que esse foi um período de aprendizado
dos mais difíceis na história de relacionamento com o grupo de seguidores.
Irineu Serra teve de ensinar cautelosamente a cada seguidor a bater o maracá
nos três ritmos e a dar os passos laterais no mesmo compasso.
O baile tem como referência o mar, cujas águas vão e vêm com a força dos
ventos. O sopro da vida. Podemos até fazer a relação: Mediante essa
sistematização, ou seja, a ritualização, é que se baixam os seres divinos. Cada
um na sua ordem, no seu ritmo, no seu compasso, com sua mensagem – são
os hinos reagindo como forças da natureza e atuando como elemento
disciplinador de cada um e da humanidade, no conjunto de pensamentos
positivos fluidos por meio da harmonia, do amor, da verdade e da justiça, tudo
isso invocado pelos cânticos.

A execução dos hinários que exigem um esforço maior por parte dos
seguidores, muitas vezes chegando a 12 horas de serviço, trazem curas e
benefícios à irmandade. Afinal, o conjunto harmônico do cântico e do bailado,
exercido pelo deslocamento ritmado de todos no compasso da música, é
capaz de formar uma corrente de voz e movimento muito além daquilo que
nossos pensamentos possam imaginar.

Esta ciranda religiosa que faz o homem e a mulher percorrerem quilômetros na


melodia é, na verdade, a construção de uma estrada espiritual de cada um que
participa desse trabalho. Os passos dados para direita e à esquerda constituem
uma terapia de limpeza transmitida de acordo com a história de quem recebe o
hinário e, automaticamente, repassada aos que participam do ritual.

Os quilômetros percorridos formam uma estrada, uma caminhada material e ao


mesmo tempo, espiritual. Com os olhos do espírito fazendo-nos ver imagens
imateriais através do nosso encontro com a divindade; com os olhos materiais
formando uma festa de louvor mágica e admirável para visitantes.
Cronologia da Ayahuasca
2000 A.C. - Há evidências arqueológicas, através de potes e desenhos, que levam a crer que o
uso de um chá, feito da PLANTA MESTRA, era conhecido entre os povos do continente desde
pelo menos 2.000 A.C..

Século XIII - O inca Manco Capac funda Cuzco (que significa "O Umbigo do Mundo"), capital do
Império e estabelece um Estado Teocrático Absolutista. Não se sabe ao certo se aprendeu com
os nativos da floresta ou se introduziu o costume de tomar um misterioso CHÁ, reservado
apenas aos nobres de sua corte.

Século XVI - Há relatos de que os espanhóis e portugueses observaram a utilização de bebidas


na cultura indígena e recriminaram-na: "quando bêbados, perdem o sentido, porque a bebida é
muito poderosa; por meio dela comunicam-se com o demônio, porque eles ficam sem
julgamento e apresentam várias alucinações que eles atribuem a um deus que vive dentro
destas plantas". (Guerra, 1971). No BRASIL começa para os habitantes nativos do litoral
atlântico o GRANDE BALANÇO. A primeira coisa que ocorre é a restrição da LIBERDADE
religiosa.

Brasil Colônia de Portugal

1500 - Pedro Álvares Cabral chega ao BRASIL em nome da Igreja Católica Apostólica Romana e
inicia a cristianização e a escravização dos povos nativos. No período português do povo
brasileiro existiam duas possibilidades: ser livre ou ser escravo, e a liberdade era então
somente a do cristão, o que fez surgir o sincretismo religioso.

1533 - Os espanhóis chegam ao Império Inca. Conta a lenda que o inca HUASKAR se refugiou
na Floresta Amazônica e levou a receita do misterioso CHÁ. Depois de sua morte, a PLANTA
MESTRA passou a ser conhecida como Aya (alma de) Huaskar (chicote), ou seja, Ayahuaska,
ou Ayahuasca.

1591 - 1ª visitação da Inquisição no Brasil (BA-PE). Haverá outras em 1618 e 1769. Alguns réus
irão para a fogueira em Portugal.

1616 - O uso da Ayahuasca é condenado pela Santa Inquisição.

Século XVII - As missões jesuítas informam a corte portuguesa sobre a existência de "poções
diabólicas" feitas pelos índios do Amazonas.

Brasil Império

1840 - A Harmalina é isolada da planta Peganum Armala em laboratório na Europa.

1849 - O botânico inglês Richard Spruce remete às escondidas para o "Jardim Botânico de
Kew" da Inglaterra, mudas de algumas das 11 espécies da SERINGUEIRA. De 1849 a 1864
viajou intensamente através da Amazônia brasileira, venezuelana e equatoriana, para montar
um inventário da variedade de espécies de plantas lá encontradas (Schultes and Raffauf, 1992).
Spruce fez grande número de descobertas valiosas, incluindo Hevea, os genes da Seringueira e
Cinchona, da qual o quinino é derivado e usada pelos nativos da floresta para se fazer bola.
Identificou também uma das fontes primárias de uma poderosa destilaria de alucinógenos
usada por indíos Mazan e Zaparo, chamada ayahuasca ("vinho das almas " ou "vinho dos
mortos", na língua quechua).

1851 - Richard Spruce percorre o Rio Negro no interior do Estado do Amazonas e constata que
os nativos Tucanos usam a planta Caapi, que ele classifica como pertencente à ordem das
Malpigiáceas e ao gênero das Banisterias.
1858 - Spruce encontra a mesma planta sendo usada na tribo Guahibo, na margem superior do
rio Orinoco, na Colômbia e Venezuela e, no mesmo ano, entre os Záparos dos Andes peruanos,
que denominavam-na Ayahuasca. Villavincencio é o primeiro a descrever o misterioso chá no
Rio Napo, na Amazônia equatoriana.

1886 - Simson's é o primeiro a observar a mistura das plantas na cocção da Ayahuasca.

Brasil República

1891 - A REPÚBLICA no Brasil introduz o princípio de separação entre a Igreja e o Estado. O


Marechal Deodoro da Fonseca, chefe provisório da República dos Estados Unidos do Brasil,
constituído pelo Exército e pela Armada, em nome da Nação, decreta: Art. 1º - É proibido à
autoridade federal, assim como à dos Estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos
administrativos estabelecendo alguma religião ou vedando-a, e criar diferenças entre os
habitantes do Brasil, por motivo de crenças, opiniões filosóficas ou religiosas.

1903 - Ocupação brasileira do território do Acre, que pertencia à Bolívia. Chegam homens
vindos dos estados do Ceará e do Maranhão, os soldados da borracha, para a extração do
látex. Entram em contato com os nativos.

1902 - O exército de seringueiros de Plácido de Castro toma Xapuri.

1903 - Rebeldes acreanos de Plácido de Castro tomam Puerto Alonso da Bolívia.

1905 - A "telepatina" - outro nome da harmina - é identificada como o "yajé" dos índios (Zerda e
Bayon).

1907 - O Marechal Rondon, do Exército Brasileiro, chega às regiões da fronteira amazônica.

1909 - O português António Olívio Rodrigues funda, em 27/6/1909, o Círculo Esotérico da


Comunhão do Pensamento, em São Paulo, sob influência do pensamento filosófico Martinista,
criado pelo ocultista Papus. A.O.R. Introduz então cursos esotéricos e faz a distribuição de
livros sobre ocultismo e astrologia por correspondência, uma novidade para época.

1909 - Rondon conclui a ligação telegráfica do Amazonas (997 km de selva).

1912 - Raimundo Irineu Serra migra para o Acre, vindo do Estado do Maranhão. Lá atua como
seringueiro, soldado da Guarda Territorial, e já é conhecido CURADOR.

1913 - Em Brasiléia (fronteira com o Peru), Irineu experimenta a Ayahuasca com nativos.

1915 - Perto de CUSCO, ex-capital do Império Inca, Mestre Irineu recebe do plano astral o seu
primeiro ÍCONE, que chama de Hino.

1918 - Irineu Serra é reconhecido pelo xamã peruano Dom Crescêncio Pizango, em uma sessão
de Ayahuasca, como sendo o herdeiro do conhecimento do inca Huaskar. Segundo Pizango,
Mestre Irineu era a pessoa que estava em condições espirituais de revolucionar a Ayahuasca
no mundo.

1920 - Surge a primeira igreja oficial do Santo Daime na cidade de Rio Branco, capital do Acre,
no bairro hoje conhecido como Alto Santo.

1931 - A Dimetiltriptamina (DMT) é sintetizada e identificada como outro alcalóide deste chá.

1934 - A nova Constituição Brasileira declara: Art. 113, prg. 4: É inviolável a liberdade de
consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não
contravenham à ordem pública e aos bons costumes. As associações religiosas adquirem
personalidade jurídica nos termos da lei civil.
1943 - José Gabriel da Costa, capoeirista, ex-soldado, seringueiro, vem da Bahia para o Acre.

1945 - Daniel Pereira de Matos, músico, poeta e amigo de Mestre Irineu, funda a Capelinha,
depois Capelinha de São Francisco e, finalmente, BARQUINHA, no estado do Acre, em Rio
Branco.

1955 - A N. N, Dimetiltriptamina (DMT) é identificada como substância natural na planta


Piptadenia peregrina (Anadenanthera peregrina).

1957 - Hochstein e Paradies encontram, além de Harmina, a Harmalina e a Tetrahidroharmina


na Planta Mestra.

1959 - José Gabriel da Costa encontra a Ayahuasca pelas mãos de um seringueiro chamado
Chico Lourenço, em Colocação de Capinzal, na fronteira com a Bolívia.

1961 - José Gabriel da Costa, em Porto Velho, no Estado de Rondônia, funda no dia 22 de julho
a UDV - União Do Vegetal - adotando o nome Hoasca para a planta.

1975 - Sebastião Motta registra a entidade religiosa e filantrópica denominada CEFLURIS -


Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, no Estado do Amazonas.

1982 - A Sede Central da UDV sai de Rondônia e se fixa em Brasília.

1985 - O CONFEN, Conselho Federal de Entorpecentes, constitui um grupo multidisciplinar de


trabalho com o objetivo de analisar sob o ponto de vista médico-farmacológico, jurídico e
social o uso do chá em rituais religiosos.

1987 - O uso da Ayahuasca dentro de contexto religioso começa a ser estudado para futuro
reconhecimento no Brasil.

1988 - Na CARTA MAGNA, a Constituição de 5 de outubro de 1988, é mantida a determinação


de liberdade religiosa, no artigo 5º.

1991 - As entidades que utilizam o chá assinam a "CARTA de Princípios dos USUÁRIOS", em
Brasília.

1992 - O CONFEN, depois de sete anos de pesquisa, por unanimidade de votos de seus
integrantes, decide liberar o uso religioso do Chá em todo o território nacional.

2004 - O CONAD em 4/11/2004 emite parecer reconhecendo a legitimidade, juridicamente, do


uso religioso da Ayahuasca (Diário Oficial da União, Edição 214, Seção 1, 08/11/2004, pg. 8).

2006 - O Seminário da Ayahuasca em Rio Branco do Acre, organizado pelo CONAD, conta com
a presença de inúmeras autoridades e elege o GMT (Grupo Multidisciplinar de Trabalho para os
Estudos da Ayahuasca), que por sua vez cumpre a resolução de realizar um cadastro nacional
das entidades que fazem uso da Ayahuasca e a confecção do Relatório Final (Documento de
Deontologia), que foi assinado em 23 de Novembro.

2010 - O CONAD em 25/01/2010 dá a chancela governamental ao Relatório Final do GMT ao


publica-lo na integra em sua Resolução N.1, na página 58 do Diário Oficial da União de N. 17.
Farmacologia da Ayahuasca
Em bioquímica, um agonista é uma substância capaz de se ligar a um receptor celular e ativá-lo para
provocar uma resposta biológica, uma determinada ação na célula, geralmente similar à produzida por
uma substância fisiológica. Enquanto um agonista causa uma ação, um antagonista bloqueia a ação do
agonista.

Ayahuasca como agonista


serotoninérgico
A ayahuasca é uma bebida
psicoativa cujas bases
neuroquímicas e farmacológicas
são complexas e de maneira geral,
pouco conhecidas. Dado que o uso
desse composto vem, nas últimas
décadas, se expandindo para as
principais capitais brasileiras, dos Estados Unidos e da Europa, a melhor
compreensão de seus mecanismos de ação permite planejamento otimizado
de possíveis políticas de informação associadas ao consumo dessa bebida.
Além do que, abre perspectivas para o possível uso terapêutico do composto,
ou de alguma das substâncias presentes no mesmo.
Existem diversos estudos mostrando que os principais componentes da
ayahuasca (harmina, THH, harmalina e N, N-dimetiltriptamina (DMT), são
substâncias químicas molecularmente semelhantes à serotonina,
neurotransmissor presente no sistema nervoso de boa parte dos organismos.
Corroborando essas observações, estudos subseqüentes demonstraram que a
DMT possui efeito semelhante ao da própria serotonina.
Em relação às beta-carbolinas presentes na ayahuasca, essas substâncias
atuam como agonistas serotoninérgicos indiretos. Além disso, evidenciou-se a
afinidade de beta-carbolinas em relação aos receptores. A ação conjunta
desses dois mecanismos agonistas serotoninérgicos – inibição da MAO e da
recaptação de serotonina – pode elevar os níveis de serotonina no cérebro.

DMT
Alcaloides
Substância presente na ayahuasca
estimula a formação de neurônios

Alguns compostos presentes nas


folhas e flores das plantas que lhes
conferem um gosto bastante amargo
são chamados de alcaloides. Os
alcaloides são muito usados em terapias alternativas substituindo, geralmente
com vantagem, as drogas de onde são extraídos e de que constituem o
princípio ativo.
Apesar de serem de origem vegetal, os alcaloides podem também ser
sintetizados em laboratório. Nas plantas, os alcaloides servem para afastar
insetos e animais, mas, na nossa sociedade, a principal aplicação dos
alcaloides é em medicamentos.
Um dos alcaloides mais antigos empregados pelo homem é a morfina, extraída
da flôr da papoula (Papaver somniferum). Essa planta originou o ópio que já era
prescrito para pacientes desde meados de 400 a.C. A morfina é utilizada para
aliviar dores intensas, como as dores que pacientes em estado terminal de
câncer.
Estudos verificaram que os principais alcalóides presentes na ayahuasca são
harmina, THH, harmalina e N, N-dimetiltriptamina (DMT).
Uma equipe de cientistas do Brasil constatou que a harmina, substância
contida em grande quantidade na ayahuasca (planta base do chá usado nos
rituais do santo-daime) contribui na regeneração de neurônios. O achado pode
levar a tratamentos para doenças neurológicas.

A pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisa e Ensino (Idor) e pelo Instituto


de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB-UFRJ),
foi publicada esta semana na revista especializada Peer J.
A descoberta, feita por pesquisadores de instituições brasileiras, deve ajudar no
desenvolvimento de tratamentos contra o mal de Alzheimer.
Estudos realizados anteriormente haviam comprovado que a ayahuasca
continha efeitos ansiolíticos (que combatem a ansiedade) e antidepressivos.
Agora, os pesquisadores do país buscaram relacionar a harmina à criação de
novas células neurais humanas.
Na experiência, os pesquisadores expuseram células com capacidade de se
transformarem em estruturas neurais humanas à substância. "Nós criamos
(em laboratório) progenitores neurais, ou seja, células humanas que vão dar
origem a neurônios. Esse é o grande diferencial do nosso trabalho, diz Stevens
Rehens, um dos autores do projeto e pesquisador do Idor.
Depois de quatro dias, foi descoberto que a substância aumentou a
proliferação de progenitores neurais humanos em 71%. Colocamos uma
quantidade de células em cultura, em uma placa, e expusemos essas células à
harmina. Quando realizamos essa exposição, vimos que o nível dessas células
aumentou de forma significativa; explica o cientista.
O resultado instigou a equipe a descobrir como a substância age sobre as
células progenitoras. Nós usamos uma série de ferramentas bioquímicas e
concluímos que ela inibe uma enzima chamada DYRK1A. E o interessante é que
essa enzima está extremamente ativada ao mal de Alzheimer e à síndrome de
Down.
Segundo Stevens, o resultado tem grande relevância. Temos o diferencial de
que foi feito com células humanas, e o estudo abre a perspectiva de se estudar
a harmina com uma possibilidade de aplicação terapêutica, considerou. Para o
cientista, isso abre precedentes para que o tema seja mais explorado na
comunidade científica.
Precisamos fazer muito mais estudos nesse sentido. Nós temos uma primeira
evidência. “É o primeiro tijolinho de um trabalho que busca evidenciar
substâncias que, muitas vezes, são proibidas, mas têm um potencial
terapêutico que precisa ser estudado". Stevens Rehens, pesquisador do Idor.

Adicção e tolerância
Do ponto de vista farmacológico, a
ayahuasca parece não produzir
dependência fisiológica, nem induzir
mudanças corporais crônicas capazes
de desencadear tolerância. Pesquisa
realizada com membros da União de
Vegetal evidenciou a inexistência de
distúrbios psiquiátricos que
caracterizam dependência (abstinência,
tolerância, comportamento de abuso e
perda social).
Corroborando esses dados, estudos sobre a administração de repetidas doses
de DMT em seres humanos não encontrou qualquer evidência de tolerância aos
efeitos. A DMT é essencialmente não-tóxica para os órgãos do corpo e não
produz dependência fisiológica ou comportamentos associados com a
dependência.
Mesmo que a ayahuasca não possua apenas DMT em sua composição, esses
dados, somados aos estudos com membros da União do Vegetal, sugerem a
inexistência de dependência fisiológica produzida pela ayahuasca. No entanto,
a ayahuasca pode produzir forte fascinação em certas pessoas que tiveram
experiências poderosas com a bebida, algo semelhante ao fascínio
desenvolvido por alguns indivíduos com a música, questões intelectualmente
interessantes, ou talvez com uma paixão por outra pessoa e, em todos esses
casos, se a fascinação é positiva ou negativa, uma benção ou um vício, é
responsabilidade de cada indivíduo julgá-la dentro do contexto de sua própria
vida.
Embora não existam pesquisas sistematizadas, depoimentos fornecidos por
consumidores da bebida apontam para a não existência de tolerância e/ou
dependência. Observou-se que membros de religiões ayahuasqueiras que
consomem a bebida há várias décadas não aumentam a dose de chá ingerido,
pelo contrário, vários consumidores diminuem a quantidade de ayahuasca com
o passar do tempo, e ainda assim continuam a experimentar seus efeitos
peculiares.
Além disso, pesquisas recentes têm evidenciado, de maneria geral, que o
consumo ritual da ayahuasca parece não produzir qualquer tipo de prejuízo
social ou patologia, seja física ou mental, inclusive em adolescentes.

Pesquisas sobre o uso terapêutico


Estudos sugerem que a ayahuasca exerce papel terapêutico em casos de
depressão e ansiedade.
A ayahuasca vem na onda do renascimento das pesquisas com enteógenos e
psicolédicos, que já inundou algumas áreas da ciência em todo mundo e
promete revigorar as terapias alternativas.
As terapias que utilizam a ayahuasca são capazes de modular a expressão dos
genes das proteínas transportadoras de serotonina, trazendo respostas muito
rápidas para o tratamento de transtornos como depressão, ansiedade, estresse
pós-traumático, autismo, desordem de déficit de atenção, hiperatividade e
demência.
Em 2006, uma equipe internacional de pesquisadores descobriu uma proteína
que pode exercer um papel importante no desencadeamento de estados
depressivos. Além disso, o achado abre novos caminhos para o tratamento da
depressão, doença que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Batizada
de p11, a proteína regula a reação das células cerebrais a um neurotransmissor
chamado serotonina, níveis reduzidos de p11, foram encontrados em pessoas
deprimidas e em ratos de laboratório com depressões artificialmente
induzidas.
Esta descoberta, publicada na revista Science, constitui um avanço importante
no tratamento da depressão e também alterações do sono, dentre outras
aplicabilidades.
Do ponto de vista terapêutico, o aumento nos transportadores de serotonina,
encontrado entre consumidores frequentes de ayahuasca, possa reverter
quadros de dependência química, associado a comportamento violento e
comportamento suicida.
Publicada em junho de 2020, no periódico Psychological Medicine, uma outra
pesquisa mostra que o chá de ayahuasca — feito há milênios por culturas
indígenas da Amazônia com a mistura do cipó jagube e das folhas da chacrona
— tem um efeito antidepressivo rápido em pacientes com depressão que não
respondem a tratamentos convencionais. “Esses efeitos foram observados um
dia depois do uso do chá e se mantiveram de dois a sete dias depois”.
Vinte e nove pessoas fizeram parte do estudo, das quais 14 tomaram o chá e
15 receberam placebo. Uma semana depois, dos 14 participantes, 9
apresentaram melhora. No outro grupo, só 4. “No geral, nosso estudo traz
novas evidências que apoiam a segurança e o valor terapêutico dos
psicodélicos quando usados em ambiente adequado e com a intenção
adequada”, afirma a pesquisadora da UFRN Fernanda Palhano, principal autora
da pesquisa.

Quem faz tratamento com antidepressivos


pode beber Ayahuasca?
Você já tentou de tudo?
Talvez não tenha tentado
tudo ainda. A Ayahuasca
pode ser a luz no fim do
túnel.

Antidepressivos são
fármacos para tratar
transtornos depressivos, mas
também são utilizados para
tratar diversas outras
doenças, como transtornos de ansiedade, transtornos alimentares, distúrbios
do sono, dependência química “adicção” e mal de Parkinson.
Os transtornos do estado de ânimo parecem estar relacionados a uma redução
na transmissão dos impulsos ou dos sinais nervosos nas áreas do cérebro que
regulam o humor.
O cérebro de indivíduos em fase depressiva, transtorno bipolar, depressão
crônica ou profunda poderá apresentar pequenas diminuições na utilização dos
neurotransmissores “monoaminas” (adrenalina e dopamina) e da serotonina.
Os sintomas mais comuns nas pessoas que sofrem de depressão, podem ser
agrupados da seguinte forma: sintomas emocionais (falta de ânimo, tristeza,
desesperança, sensação de solidão, negatividade, ansiedade, perda de
interesse ou prazer, sentimento de culpa, ideias suicidas e transtornos
cognitivos) e sintomas físicos (agitação, mudanças de peso, dores musculares,
perda de energia, alterações do sono).
Os antidepressivos atuam diretamente no cérebro, modificando e corrigindo a
transmissão neuroquímica em áreas do sistema nervoso que regulam o estado
do humor (o nível da vitalidade, energia, interesse, emoções e a variação entre
alegria e tristeza), quando o humor está afetado negativamente num grau
significativo.
A ação farmacocinética da Ayahuasca é bem parecida com a destes
medicamentos, que contém ISRS (inibidores seletivos de recaptação de
serotonina) e IMAO (inibidores da monoamina oxidase), porém seu efeito
antidepressivo é natural.
É muito importante observar a quantidade de Ayahuasca quando em
associação com antidepressivos que contenham IMAO e ISRS, administrando
sempre uma quantidade menor que a normal, para não correr o risco de
acontecer uma sobrecarga de serotonina no sistema nervoso central (síndrome
serotoninérgica) o que não é nada muito grave, mas pode ser; podendo
provocar irritabilidade, agitação, ansiedade, hiper vigilância, aumento de
temperatura, contrações musculares e convulsões, em casos extremos pode
ser fatal.
Isso pode ser facilmente equilibrado, diminuindo a quantidade de Ayahuasca
ou diminuindo a quantidade dos remédios. E recomendável suspender a
utilização desses medicamentos por no mínimo 48 horas, para maior
segurança e conforto durante a experiência.
O conhecimento mais aprofundado da farmacologia da ayahuasca também
pode prevenir eventuais riscos associados a esse consumo.

Efeitos Colaterais
É comum durante as sessões acontecerem as “limpezas” ou “purgas” (vômito e
diarréia) não acontece com todos, se acontecer, é porque faz parte do
tratamento. Na maioria das vezes estas limpezas, são processos de cura para
questões psicológicas ou emocionais, não deve ser compreendido como
simples efeitos colaterais.
Contra-Indicações
“A ayahuasca é para todos, mas nem todos são para a ayahuasca.”
Para a maioria das pessoas a ayahuasca faz um bem impressionante, porém
ela não faz milagres, alguns pacientes não respondem positivamente.
Especialistas explicam que o chá pode causar distúrbios psiquiátricos em
pessoas com histórico ou pré-disposição genética para bipolaridade e
esquizofrenia, — como mostrou o caso de Cadu, o jovem diagnosticado com
esquizofrenia que matou o cartunista Glauco e seu filho Raoni, em 2010.
“O grande problema é que não é possível prever quem terá problemas
psiquiátricos após beber o chá. É uma questão de genética e vulnerabilidade
sobre a qual ainda não existe conhecimento sólido.”

Síndrome Serotoninérgica
Redução do Uso Abusivo de Drogas
Após 15 anos de observação de
milhares de casos de ingestão da
ayahuasca sob condições específicas
de preparação, prescrição e
acompanhamento terapêutico, podemos
afirmar que a ingestão destas
preparações possui uma ampla
variedade de indicações, com total
ausência de dependência. A expansão
que simultaneamente envolve o corpo,
as sensações e os pensamentos,
proporcionam a possibilidade de
confrontar problemas habituais por
conta própria e sob uma nova perspectiva. A intensa aceleração dos processos
cognitivos que acompanham tais experiências, concebem soluções originais
que melhor se adaptam à personalidade de cada pessoa.
O que caracteriza o uso problemático ou abusivo de certas substâncias não é,
necessariamente, a quantidade e a frequência de uso destes psicoativos,
embora estes fatores possam fazer parte do comportamento. Mais do que
quantidade de substâncias e frequência de uso, que poderiam atuar num nível
primário (físico-biológico), seriam as desarmonias na vida profissional,
sentimental e espiritual, num nível secundário, os principais motivos para o
problema.
Existem vários relatos na literatura sobre os possíveis efeitos benéficos do uso
ritual e/ou supervisionado de enteógenos como alternativa às terapias
contemporâneas para o auxílio na dependência ou no uso abusivo de drogas,
sobretudo cocaína, álcool e antidepressivos.
Logo após a descoberta dos efeitos do LSD-25 por Albert Hofmann em 1943,
várias substâncias desta classe foram aplicadas e testadas no contexto
psicoterapêutico, médico e em práticas espirituais, ou seja, práticas que, em
condições favoráveis de supervisão e preparação, buscam a reestruturação do
indivíduo por meio de um estado de consciência xamânica, que seria
semelhante ao estado de êxtase, que são experienciados como uma
iluminação por uma realidade transcendental.
A opção de se utilizar certos enteógenos para auxiliar o tratamento do uso
abusivo de substâncias também ocorre em grupos indígenas. Como exemplos
do uso tradicional da ayahuasca na amazônia, uma prática com alta taxa de
sucesso (por volta de 60%, após alguns meses de tratamento) e a recuperação
de práticas ancestrais, incluindo o uso ritual de cactos contendo mescalina por
parte dos curandeiros, como o wachuma.
Nestes contextos, as plantas são carregadas de um simbolismo altamente
complexo, no qual fazem parte de seu consumo os aspectos:
a) biológicos – a planta em si, suas substâncias e o organismo do indivíduo;
b) psicológicos – o indivíduo, suas expectativas, motivações e preparações;
c) socioculturais – o indivíduo, sua comunidade e as regras sociais;
d) ambientais – o local, música, danças, aromas, decoração etc.
Recentemente, um estudo realizado com 15 membros da União do Vegetal que
consagravam a ayahuasca ritualisticamente demonstrou, entre outras coisas,
que de acordo com os critérios da CID-10 e DSM-III-R, cinco dos examinandos
tinham antecedentes de desordens formais por abuso de álcool, dois de
depressão crônica e três de ansiedade fóbica; 11 examinandos tinham um
histórico de uso moderado a grave de álcool anterior à sua entrada na UDV,
com cinco deles referindo episódios associados com comportamento violento
(dois deles tinham sido presos por causa de sua violência) (Grob & cols., 2004
Além destes dados, o estudo de Grob e cols. (2004) evidenciou que quatro
indivíduos também relataram envolvimento anterior com abuso de outros
psicoativos, incluindo cocaína e anfetamina, e que oito dos 11 examinandos
com históricos anteriores de álcool e abuso de outros psicoativos eram
dependentes de nicotina. Muitos dos examinandos do estudo de Grob e cols.
referiram uma variedade de comportamentos disfuncionais anteriores à sua
entrada na UDV. Autodescrições incluíram “impulsivo, sem respeito, raivoso,
agressivo, opositor, rebelde, irresponsável, alienado, fracassado”.
Entretanto, avaliações de diagnóstico psiquiátrico revelaram que apesar de
uma porcentagem de usuários de longo tempo da ayahuasca terem tido
desordens relativas ao uso de drogas, depressivas ou de ansiedade, essas
desordens estavam diminuindo consideravelmente depois de sua entrada na
UDV. Os examinandos referiram que desde sua entrada na UDV suas vidas
passaram por mudanças profundas. Os sujeitos enfaticamente afirmaram que
sua conduta diária e orientação para o mundo à sua volta estavam passando
por uma reestruturação radical.
Ainda neste contexto, vale citar a existência do
Centro Takiwasi, em Tarapoto, Peru, fundado em
1992. Neste centro, colaboradores – curandeiros
locais, médicos, psicólogos e terapeutas –
exploram os potenciais curativos do racionalismo
ocidental juntamente com as práticas espirituais
xamânicas e das terapias tradicionais amazônicas,
utilizando plantas medicinais, dietas, isolamento na
floresta, vida comunitária, psicoterapia e a
ayahuasca, desenvolvendo métodos alternativos para lidar com o uso abusivo
de álcool e outras drogas, principalmente cocaína, cuja região é uma das
principais consumidoras do mundo.
A Magia do Vegetalismo
A população mestiça em territórios peruanos e colombianos, assim como a
prática de seus curandeiros ao longo de rituais de cura – na floresta e nas
metrópoles – com ayahuasca e outras plantas de poder demonstraram ser o
vegetalismo um tipo de medicina popular, tendo como base os saberes
adquiridos das plantas, incluindo a arte de cantar e curar, além da noção de
ataque ou proteção contra malefícios, a prática de dietas, restrições e a
comunicação do curador com planos extra-humanos.
Dentre esta população encontramos diversos curandeiros, sendo os
vegetalistas representantes de um subgrupo desta categoria abrangente,
intitulados de “maestros”, “doutores”, “bancos” e “abuelos”. Práticas
vegetalistas podem ser encontradas dentre as populações interioranas e
urbanas do Peru e da Colômbia, uma mescla das tradições indígenas, cristãs e
esotéricas.
A prática vegetalista surgiu em território amazônico do final do Século XIX para
o início do XX período, no qual observamos o contato dos seringueiros
advindos do Peru e de outros países com as populações indígenas e caboclas,
que já haviam passado por processos de colonização e catequização. O
xamanismo vegetalista voltado para a cura, é identificado como produto
cultural relativo a intercambio étnicos e fluxos migracionais da cidade para a
floresta e vise versa.
Mesmo diante das mudanças inerentes aos processos de colonização,
catequização, exploração da borracha e migrações – inicialmente da floresta
para a cidade e depois da cidade para a floresta – alguns elementos
xamanísticos permaneceram dentre vegetalistas, embora tenham passado por
influências de outros sistemas simbólicos como vertentes do catolicismo rural
e do esoterismo europeu. Os saberes sobre plantas foram “preservados” pelos
curandeiros, assim como a concepção ameríndia sobre mundo e corpos em
relação com o cosmos e o plano espiritual.
O termo vegetalista passou a ser designado aos curadores, que obtiveram
conhecimentos sobre corpos, doenças e curas a partir dos espíritos de “plantas
professoras” capazes de instruírem os xamãs em prol da cura, mas também do
desvelo referente aos segredos do universo. Vegetais também designados por
“doutores”, pois aos seus espíritos são outorgados os princípios da sabedoria
unificada numa complexa e abrangente sapiência médica, religiosa e mágica
transmitida por meio de cantos e demais sonoridades, pela performática
salivação acompanhada da ejeção de “corpos patológicos” (soprar fumaça
para curar) do organismo infortunado, além dos estados ampliados de
consciência, que representam elementos centrais às terapêuticas vegetalistas.
Embora o mais importante destes professores seja a ayahuasca, encontramos,
tal qual no contexto indigenista, a presença de “plantas aditivas” inseridas
pelos vegetalistas à bebida - feita à base do cozimento das folhas da
Psychotria viridis, junto com o cipó Banisteriopsis caapi – tendo em vista, que
os mesmos compactuam da crença de que outros vegetais de poder, quando
acrescentados à “planta mãe”, além de tornarem-na mais potente, facilita o
contato do curandeiro e dos doentes com o espírito destas outras plantas,
também possuidoras de almas, perspectivas e autonomias acessadas durante
as Sessões da ayahuasca; “planta mãe” que permite a manifestação de outros
espíritos vegetais a ela agregados.
Vegetalistas podem ser denominados feiticeiros ou bruxos. Neste sentido,
estas categorias são utilizadas para definir sujeitos envolvidos com a magia
voltada para o “mal”, havendo batalhas no mundo dos vegetalistas contra tais
forças frente à cura dos “clientes”. A doença pode ser inserida no corpo por um
“brujo” mal intencionado, sendo capaz de ser sanada perante atuação de um
curandeiro poderoso (banco). No universo dos feiticeiros, podem existir
“bancos do bem” e “bancos do mal”, a depender das formações iniciáticas,
condutas e escolhas do vegetalista no decorrer de sua trajetória de vida.

Xamanismo e enteogenia ameríndia


A noção de “Encanto” é cara à prática vegetalista, adquirindo, múltiplos
significados. O Encanto, ou Encantado, pode representar uma alma, ou
qualquer ente possuidor de consciência capaz de estipular interrelações com
os curandeiros e seus pacientes, como também Encante pode nos remeter a
territórios metafísicos, onde habitam as entidades, aos objetos mágicos
“benignos” ou “malignos”, desde que a coisa em si tenha uma autonomia
espiritual. Contam muitos vegetalistas sobre os fatos ocorridos no ínterim de
suas iniciações, momento no qual entraram em contato com espíritos a ofertá-
los dons e presentes de vários tipos “benignos” ou “malignos”. O iniciado, em
processo de passagem, tem o arbítrio para escolher as dádivas ofertadas,
apesar da narrativa dos vegetalistas trazer a concepção da maior facilidade em
se tornar um brujo do que um banco, na medida em que para testar a índole do
sujeito, as entidades brindam os iniciados com “poderes do mal” e, caso o
sujeito se impressione, tornar-se-á um brujo.
No desenrolar do processo de preparação e iniciação, presentes “benignos”
voltados a saúde, do sucesso profissional e do amor são ofertados pelas
entidades aos neófitos, que dispõem de amplo conhecimento, pois passam a
compreender e a lidar com as forças a eles apresentadas e ofertadas, no intuito
do vegetalista proteger seus clientes e a si mesmo contra os ataques de forças
a serviço de brujos.
O ímpeto para adesão ao “lado negativo” é uma constante, considerando-se,
que o acúmulo dos poderes do feiticeiro tende a influenciá-lo às “práticas
incorretas”. O fomento de hábitos moralmente condenáveis, como consumir
drogas ilícitas e bebidas alcoólicas, são suscetíveis a conduzir feiticeiros para
o “lado negativo”, sendo comuns histórias de vegetalistas, que prestaram
serviços às “forças do bem”, tornando-se brujos com o tempo.
Normalmente os feiticeiros iniciam no xamanismo vegetalista devido ao
acometimento de patologias desacreditadas pela medicina oficial. Não
conseguindo cura, o futuro curandeiro busca os serviços de vegetalistas ou
ingere a bebida por conta própria. Entrando em contato com os mistérios do
chá e de outras plantas de poder, quando se curam, ganham de um gradativo
dom de curar. Os procedimentos da cura vegetalista giram em torno de dietas
cercadas por abstinências e restrições. Há, por parte de curadores e enfermos,
a ingestão de “plantas purgativas” – anterior ao consumo de plantas de poder -
com o objetivo de “limpar” os corpos, para que os vegetais doutores possam
neles atuar. Esta ação é de precaução, no tocante aos efeitos adversos, que
podem acometer o sujeito durante o ritual, devido ao consumo de alimentos e
toxinas, cujos restos são expelidos na forma de vômito e fezes.
O cumprimento das dietas leva os bancos ao caminho da sabedoria, tornando
seus corpos poderosos, sem contar na atribuição dada aos procedimentos
dietéticos frente ao melhor funcionamento de mente e espírito, aguçando os
sentidos e a capacidade de memorização dos ensinos dos enteógenos.
Praticando a dieta, o conteúdo de sonhos e visões fica mais nítido,
pedagogicamente falando, mesmo porque a comunicação com os espíritos
curativos não sofre interferência de outras “forças” estranhas à ordem
terapêutica.
No contexto vegetalista dietas são seguidas, tanto por curandeiros, quanto por
pacientes, antes da consagração da ayahuasca, uma vez que a transgressão
destes preceitos pode intervir no efeito da beberagem, chegando à
inviabilização de sua potencialidade terapêutica.
Ritos vegetalistas em torno da cura incluem a manipulação performática de
cunho conciliador frente às forças espirituais, no intuito de aliviarem as
reclamações dos clientes, sejam os mesmos de ordem orgânica, psíquica,
espiritual, emocional, financeira ou moral. Apesar dos rituais apresentarem
variações de curandeiros para curandeiros, o universo vegetalista se volta à
manutenção de certas matrizes rituais e místicas em comum, assim como,
determinados símbolos trazidos cerimonialmente no rezar, na contação de
histórias, no consumir a ayahuasca e cantar para forças naturais e
extranaturais.
Após a consagração do chá, os curandeiros adentram em processos de
incorporação propiciados pelas entidades evocadas. Males orgânicos são
exprimidos em objetos mágicos, estando o curador atento à manutenção de
sua proteção e de seus pacientes. Acredita-se que a fumaça do tabaco
fomenta uma armadura mágica; a arkana, reconhecida como instrumento de
defesa, bloqueando corpos e impedindo o ataque de “vetores malignos”. A
arkana, adquire variadas formas vislumbradas pelos vegetalistas na figura de
animais, arcanjos ou soldados a guerrear contra forças do mal. No meio do
ritual, os curadores recebm apoio de entidades antropomórficas (animais e
vegetais), assim como de almas dos antepassados (mestres e pajés de cura),
embora possam ser auxiliados por médicos, pensadores desencarnados e
entidades extraplanetárias. O curador pode ou não incorporar entidades,
quando não, eles dialogam com elas, recebendo conselhos e instruções.
Elemento crucial à arte dos vegetalistas, os ícaros (yakaray) e sopros de
fumaça para curar acompanham as ações xamanísticas, estando ou não as
práticas destinadas ao consumo de enteógenos. A qualidade do curador
repousa em sua habilidade na entoação de cânticos capazes de fomentar
visões durante os rituais. Um saber adquirido conforme o trilhar de cada
curador e que os diferencia, chegando a criar rivalidades nos planos místicos
ou cotidianos.
O vegetalismo encontrado atualmente, principalmente na Amazônia Peruana, e
se baseia nas práticas de cura a partir de concepções psicológicas, cristãs e
ocidentalizadas de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal em
detrimento da magia e da feitiçaria, apesar de serem temáticas recorrentes nos
relatos de novos e antigos curandeiros. Amiúde, os bancos antigos estão mais
próximos dos conceitos ameríndios, enquanto os mais jovens tendem à
inclinação esotérica inspirados em filosofias europeias.

Saberes médicos e vegetalistas no tratamento


de toxicomanias
Atualmente os saberes dos xamãs vegetalistas vêm sendo reinterpretados por
modelos terapêuticos em países sul-americanos encarregadas no tratamento
da dependência química. Os pesquisadores vêm demonstrando interesse
nestas medicinas tradicionais capazes de manifestarem nos sujeitos estados
de consciência ampliados favoráveis à cura de adicções.
Em solo peruano detectamos comunidades terapêuticas diversas, em especial
os Centros: Takiwasi, Sonccowasi e Situlli que se utilizam das práticas
vegetalistas para a recuperação de dependentes, associando estes saberes
com os procedimentos da psicologia e da medicina. Constatando a ocorrência
de tratamentos de alcoolistas, que vêm sendo desenvolvidos por grupos da
Costa Norte peruana inspirados no uso da mescalina encontrada no cacto
wachuma.
Em se tratando de comunidades terapêuticas sul-americanas e seus “trabalhos
de desintoxicação” mediante uso da ayahuasca, onde há relação entre práticas
xamanísticas e oficiais, principalmente, advindas das áreas de saúde,
psicologia e terapia ocupacional. Os pesquisadores vêm dando atenção ao
Centro Takiwasi, em Terapoto no Perú, fundado pelo médico francês Dr.
Jaques Michel Mabit em 1992, após iniciação e aprendizado junto aos
curandeiros, onde elaborou um modelo capaz de incluir múltiplas práticas de
cura.
O modelo Takiwasi figura meio psicoterápico singular, pois tamanha agregação
de elementos da medicina mestiça com os conceitos biomédicos e
psicológicos, no tocante ao tratamento de dependências, traz implícita a
concepção de que o uso e o abuso em psicoativos representam problemas
secundários, sendo suas raízes detectadas nos casos envolvendo caos nas
“esferas espirituais”; condições levadas seriamente em consideração.
Em quíchua, a palavra Takiwasi pode ser traduzida pela expressão “casa que
canta”. O paradigma desta comunidade repousa num tripé, cujas bases estão
ancoradas nas dietas (isolamento e manutenção de jejuns), nas purgações
(propiciadas pela ingestão de plantas depurativas) e na consagração da
ayahuasca. O cotidiano da clínica é repleto de dinâmicas de grupo, oficinas e
sessões psicanalíticas. Os pacientes ficam internados durante 9 meses em
estado de reclusão, onde ingerem ayahuasca e outras plantas depurativas,
como é o caso da Yawa panga (Aristolochia didyma). Os Trabalhos feitos com
os vegetais complementam-se às psicoterapias, oficinas e à própria rotina dos
internos.
A ingestão de plantas purgativas – dias antes da consagração da ayahuasca -
por parte dos pacientes tem como objetivo a “limpeza” do corpo devido ao
anterior uso abusivo de drogas, cujas toxinas são expelidas. A função
secundária dos vegetais purgativos estaria ainda – conforme os terapeutas da
Takiwasi – relacionada à redução, ou, até mesmo, extinção dos sintomas das
síndromes de abstinência, pois, após as purgações, os sujeitos afirmam
sentirem-se aliviados no tocante aos quadros de ansiedade, compulsão e
depressão devido à ausência de sua(s) substância(s) problema.
A atuação dos vegetalistas durante as sessões com ayahuasca ocorre através
da entoação de ícaros, sopradas de fumaça de tabaco ou de essências nos
pacientes, além de sucções de energias intrusas nos corpos, demonstrando
grande importância para a ampliação das perspectivas médicas.
Os xamãs delegam o abuso de substâncias por parte dos indivíduos, a um
suposto roubo da alma por eles experienciado, em algum momento de suas
vidas. Ao ter acesso a esses tratamentos, os internos conseguem acessar uma
“ordem universal” encontrada dentro do sujeito e que passa a norteá-lo,
fazendo com que o mesmo assuma nova identidade por meio do acesso a
outras perspectivas para além do abuso de drogas.
No tratamento os pacientes permanecem em recuperação ao longo de 09
meses considerado período de “gestação fetal”, pois passados os processos
individuais, os sujeitos afirmam terem adquirido nova vida como se estivessem
encubados.
O modus operandi da “clínica enteogênica” baseia-se no diálogo entre os
vegetais professores com os pacientes absortos em estados ampliados de
consciência. Neste contexto, a ayahuasca favorece experiência unificadora,
que gradualmente vai conduzindo os pacientes a ensinos e conhecimentos
sobre si, posicionando-os numa realidade mais ampla do Eu, Alma, Espírito.

Considerações
Buscamos elucidar brevemente o papel conferido as plantas de poder para
algumas tradições indígenas e vegetalistas ameríndias, destacando, acima de
tudo, o processo envolvendo os fenômenos da saúde, da doença e da cura
imersos em peculiares perspectivas xamânicas, inerentes aos planos físicos e
metafísicos, que circundam as medicinas da floresta, sendo a ayahuasca
considerada “la madre de todas las plantas”.
“Medicina ancestral”, condutora de ações, perspectivas e identidades em
mundos infinitos, onde vivos e não-vivos interagem no plano da “consciência
cósmica”. “Medicina transcendental”, pois localizam a origem das doenças e
distúrbios, adentrando noutros estados de consciência, onde seres encantados
e outros agentes não humanos, seriam responsáveis pela recuperação ou
perda da saúde, e cuja eficácia depende da capacidade que um xamã tem de
fazer acordos e negociar com essas “forças ocultas”, no intento de restaurar e
manter o equilíbrio, cuja ausência se manifesta em infortúnios individuais e
coletivos. “Medicina professora”, pois, de fato, ensina aos humanos, os grandes
mistérios da vida.

Uso e conhecimento indígena


A ayahuasca é um elemento central no vasto repertório indígena
Chamada de uni pelos Katuquina e pelos Yawanawa, a ayahuasca era, até
poucos anos atrás, utilizada preferencialmente entre os pajés, como forma de
instrução, aprendizado e ensinamento. Acompanhada de outras plantas e
substâncias como a “raiz dos sonhos” (muká), tabaco inalado (rapé) e a “vacina
do sapo” (kambô), consideradas importantes fontes de conhecimentos
espirituais e práticos.
Atualmente no Acre, entre os quinze grupos étnicos reconhecidos e residentes
no estado, praticamente todos fazem uso da ayahuasca. Na família linguística
Aruak são os Ashaninka, Manchineri, Apurinã; na família Arawa, os Madijá e na
família Pano, Huni Kuin, Yaminawa, Yawanawa, Nukini, Puyanawa, Nawa,
Kuntanawa, Shawadawa (Arara), Shanenawa, Katuquina, Apolima Arara. Com
nuances na intensidade, frequência e quantidade do uso.
Os usos e conhecimentos inter-relacionados são tão variados como as
cosmologias indígenas amazônicas e sul-americanas. Contém regras e
normas, formas de conduta, acesso e administração, que merecem ser
observados e destacados num processo de patrimonialização que procure
contemplar as formas sociais de uso em vigor no Brasil. Em se tratando dos
grupos indígenas.
Seria impossível retratar as sociedades indígenas atuais, nos estados do Acre e
Amazonas e também os recursos ambientais, intelectuais e sociais disponíveis
em seus territórios, demarcados ou não, sem nos remetermos ao processo de
ocupação da região amazônica. E as relações estabelecidas historicamente à
revelia com os ocupadores estrangeiros, comerciantes e colonizadores. O
impacto dessa ocupação faz-se presente na história de cada etnia indígena em
particular. E, sobretudo, na história da sociedade brasileira como um todo.
Não podemos nos referir à história de uma sociedade indígena como um fato
isolado, seja no cenário regional, nacional ou internacional. Cenários e
contextos, em micro e macro escala, certamente estão relacionados.
Como uma grande árvore, todos os aspectos da vida social indígena:
espiritualidade, economia, artes, política, parentesco, ciência, história, estão
interligados, através e a partir dos conhecimentos relacionados ao meio
ambiente, uso e contato com plantas, animais e outros reinos visíveis e
invisíveis. E também aos preparos físicos e espirituais como dietas,
experiências cotidianas e rituais.
O conhecimento indígena, chamado de tradicional, não está ‘parado no tempo’,
como o termo tradicional sugere. Sabemos que não existe cultura
completamente avessa às novidades ou aprendizados que o tempo,
apropriadamente, trás consigo. As sociedades indígenas têm uma cosmovisão
e sistemas de pensamento refinados, mas, jamais fixo ou suspenso num
‘tempo atemporal’. As próprias linhagens ayahuasqueiras provam, através de
sua existência, não haver espaço para conservação da pureza de uma tradição.
A universo da ayahuasca é complexo, formada por elementos de natureza
psicológica, neurológica, química, física, social, cultural e religiosa. Sua
compreensão sugere, uma abordagem igualmente plural.
A própria bebida e sua trajetória já é um ponto de partida privilegiado para
descobrir a diversidade de usos e conhecimentos indígenas relacionados à
ayahuasca, agregando uma cadeia de saberes, práticas e significados.
A conexão com os animais
As cobras, mais particularmente a jibóia e a sucuri, são consideradas uma
importante fonte de conhecimentos por inúmeros grupos culturais.
Conhecimentos que chamamos de “ciências”, como práticas médicas e
terapêuticas, artísticas, espirituais, matemáticas e ocultistas, dentre outros
aspectos. Há outros animais, e suas interações, considerados “mestres” de
conhecimento para a compreensão geral a respeito da natureza, dos degraus e
limites do conhecimento indígena. Por exemplo, a onça é um animal
fundamental na cosmologia, principalmente em rituais, por estar relacionado
com a comunicação.
Conhecedora, fonte e reprodutora de conhecimentos e especialidades, a jibóia
é um tema recorrente na cosmologia amazônica indígena. As histórias são
longas. E cada pequeno habitante do rio sabe uma sequência infindável delas.
História das bichonas, no exato sentido de sua força de encantaria. Em sua
malha, confundem-se os sentidos profundos desses conhecimentos. Para
falarmos então das cobras, assim como de um cipó/bebida que nos une num
filamento, serão considerados alguns de seus aspectos interligados.
A cobra jibóia é portadora de conhecimento sagrado da ayauahuasca. Em
algumas histórias Huni Kuin, ela é a própria raiz do cipó huni (banisteriosis
caapi). Da cobra, em seu estado vegetal, cipó-cobra, surgem outros
conhecimentos, principalmente, o uso de plantas medicinais, aromáticas,
folhas, raízes e batatinhas.
A jibóia encantada varia em seu aspecto. Fremindo suas escamas, tira o rumo
de quem anda na floresta. Já quem orienta as visualizações relacionadas na
ayahuasca é yube; a jibóia branca. Os Huni Kuin não pode esquecer a panela no
fogo, tem que cuidar bem da sua panela, porque o líquido efervescente não
pode derramar. Assim, a bebida “não dá pressão”. E a cobra não freme sua
escama furta-cor, ou mesmo, engole seu escolhido.

Kenes
Os kenes teriam sidos ensinados por uma entidade chamada Inka. O “espírito
dono do cipó”, do qual se faz a bebida ayahuasca chama-se Nishi ibo. Pino, o
espírito do beija-flor, orienta as visões necessárias.
Através de experiências e memórias retratadas pelos Marubo, por exemplo,
percebemos o frondoso porte da samaúma primordial, onde as lagartas fazem
casas e estabelecem um padrão no aninhar-se; padrões geométricos
conhecidos como kene.
Os kenes representam instruções profundas, e também conversam com a
ayahuasca nas mais variadas circunstâncias, inclusive entre este grupo clânico,
existe o matsi tama kene. Esse kene é um dos tipos que devem ser
“camuflados” pelo pajé. Serve para a proteção do povo, pois, se trata do
desenho da jibóia e da anaconda-sucuri que “atrai, engana e mata”. Carrega
para uma vida que não é boa, segundo as explicações. Tais espécies de cobras,
os Marubo não matam e nem olham.
Entre pessoas que consomem ayahuasca, indígenas ou não, é comum a
visualização de cobras, além de outros animais e plantas da Amazônia.
Especialmente das cobras citadas. A visão, chamada pelos seguidores de
religiões ayahuasqueiras de miração, traz “elementos característicos do
ambiente” onde vivem os vegetais utilizados no feitio da bebida.
Já os padrões gráficos indígenas “kenes”, seu processo de memorização,
aprendizado e realização, também se apresentam fortemente em tais
mirações. Em variados contextos relacionados à bebida e as plantas,
correlacionam o aprendizado dos desenhos com a sananga/sanango, colírio
extraído do sumo do arbusto Apocynaceae, Tabernaemontana sananho.
Tais visualizações, de fractais, vórtices, espirais e também geometrias planas
bidimensionais independem da linha espiritual daquele que toma a bebida, da
condução de procedimentos rituais adequados ou mesmo, do conhecimento
prévio destas referências. É certo que haja uma comunicação, entre o cipó e a
cobra. Ou, entre a bebida e o ambiente endêmico do cipó e também da folha.
A jibóia, em suas variantes encantadas, hora cobra, ora ser encantado,
transformado-se em homem ou mulher, se encarrega de repassar para as
mulheres, especialmente, os variados estilos e tecnologias relacionadas aos
kenes.
A ayahuasca proporciona visões relacionadas aos kenes, tanto homens como
mulheres podem ver detalhes de tais desenhos. Sendo administrada sozinha
ou acompanhada de outras plantas de poder, como a Sananga, proporcionando
visões acuradas dos desenhos a serem executados. As folhas podem ainda ser
postas sobre o umbigo durante a puberdade nas meninas e moças aprendizes
dos kenes.
Reconhecidos por sua singularidade, ao entrelaçar os padrões numa
sobreposição, um kene dialoga com o outro kene. O mesmo acontece na
intersecção entre ayahuasca, outros enteógenos, plantas medicinais e
conhecimentos indígenas.
Ao permearem-se, sintetizam um conjunto de conhecimentos sistemicamente
interligados numa ramaria de interações. Tal ramaria, caso compreendida e
valorizada em projetos e processos, pode servir como resguardo de princípios
éticos e estéticos associados à bebida e suas conexões simbólicas e práticas,
de grupos étnicos e sociais variados.
Trato com a jibóia
Entre grupos indígenas das famílias linguísticas Pano e Aruak, e também entre
os seringueiros, há eventos específicos, conhecidos como tratos, em que uma
pessoa interessada em aprender habilidades específicas faz uma negociação
com a cobra. Habilidades como “rezar”, cantar, dançar e bem enxergar, ser bom
caçador, visualizar feitiços e inimigos, ou mesmo, tornar-se invencível em
disputas são todas passíveis de trato. Ou de contrato, um acordo entre duas ou
mais partes que transferem entre si algum direito ou se sujeitam a alguma
obrigação.
Jibóias e sucuris, de preferência grandes, são reservadas para tal fim entre
Yaminawa, Yawanawa, Huni Kuin, Katuquina. As jibóias são guardadas em
caixas fechadas, durante parte do dia. Mas, são soltas para passear e se
alimentar de sapos e pequenos animais, voltando ou sendo recolhidas pelos
donos ao entardecer. As trocas entre as pessoas e cobras existem desde
sempre.
O “trato com a jibóia” envolve conhecimentos e poderes como o da
invisibilidade e da irresistibilidade à sedução, obtido através da ingestão do
olho da jibóia branca ou de seu contato, quando o olho é posto num tecido
quadrado, costurado e mantido seco sob a camisa. O olho é retirado com a
cobra ainda viva. A cobra deve ser posta para rastejar novamente. Segue sem o
olho, mas, alguém lhe deve algo. E enxerga por ela, ou, como ela.
A jibóia freme suas escamas. E durante um estado alterado, a pessoa pode
sentir arrepios em sua coluna vertebral, igualmente estivesse fremindo suas
próprias escamas. Ou mesmo, transformar-se na cobra ou ser engolido por ela;
o que para alguns grupos como Huni Kuin, Yawanawa e Yaminawa simboliza o
interesse da cobra em repassar seus conhecimentos para um futuro possível
pajé.
A jibóia, enquanto animal vivente, freme suas escamas para encantar sua
presa, seja uma cotia, uma paca ou um rato-coró. Geralmente, embiaras ou
animais de pequeno porte.
A pessoa perdida na mata ou que anda em círculos faz um nó na própria roupa,
ou a veste do avesso e pede para a jibóia deixá-la ir embora. Há interações
imperceptíveis, mas, fundamentais nos nexos semânticos e simbólicos
relacionando cobras, seus ambientes, o uso de enteógenos e plantas sagradas.
Mas, para saber usar, antes de tudo é necessário, conhecer, estabelecer
ligações e pesquisar profundamente.
Cura, Pajelança e Xamanismo
Todos os homens Shipibo-Konibo sabem preparar a ayahuasca. No entanto,
apenas um ou dois em cada aldeia, o fazem habitualmente. Todos os iniciados
podem beber, mas nem todos tomam a mesma quantidade e com a mesma
frequência. Alguns nunca tomam, enquanto outros tomam sempre que servido,
o que acontece mais ou menos uma vez por semana ou mês, em pequenos
grupos.
Atualmente bebida é ingerida em sessões terapêuticas ou “de cura”, as
cerimônias públicas de consumo da ayahuasca praticamente desapareceram.
A ayahuasca propicia o diagnóstico e inspira o xamã em suas técnicas, como
por exemplo, ao desenhar os kenes sobre o corpo do paciente e cantar.
As pessoas mantem-se sentadas e cantam. Com frequência há relatos de
grandes cobras, além de animais como onças e jaguatiricas. As mirações e
observações de cada participante são discutidas após a cerimônia, buscando-
se obter detalhes a respeito da causa de uma doença, problemas ou
dificuldades na caça, comércio, conflitos.
Há uma correlação direta entre música, vizualizações, processos de cura e
desenhos. Para o povo indígena Mai Huna Tucano, os desenhos que servirão
para curar, precisam ser fixados ao corpo através do canto do xamã e do sopro
do moe (tabaco), juntamente com o bate-folhas de ervas aromáticas.
Tomar banho é considerado importante, pelo menos no dia seguinte, caso
contrário o nixi pae “ayahuasca”, fica agindo; seu efeito vem e vai como numa
onda ou banzeiro. A jibóia, dona da bebida para os Huni Kuin, não abandona
facilmente sua presa.
Para que o desenho se fixe são necessárias várias sessões. Em média de três a
quatro sessões com cinco horas cada. Durante o tratamento a pessoa tem uma
dieta rígida, assim como alguns membros de sua família, deve evitar o contato
com mulheres menstruadas e casais que tenham mantido relações sexuais.
Entre os Ashaninkas, a utilização da ayahuasca é um processo ritual em
pequenos grupos, geralmente em encontros noturnos e silenciosos, são
chamados kamarãpi ("limpeza"). Os cantos são apenas vocais, não sendo
acompanhados por nenhum instrumento musical.
Pawa, o Sol na cosmologia Ashaninka, traz a bebida para que as pessoas
Ashaninka adquiram conhecimento e aprendizados essenciais para sua vida na
Terra. O conhecimento e o aprendizado xamânicos denominados sheripiari
prevê anos de consumo regular e repetitivo da bebida. Esse uso continuado e
sua experiência conferem respeito e credibilidade a quem se propõe fazê-lo.
Através da bebida, o xamã realiza suas viagens para outros mundos e adquire
sua própria sabedoria. Tais procedimentos só logram resultado em questões
consideradas indígenas, circunstâncias específicas de necessidade de
organização e planejamento, conflitos pessoais e grupais, feitiçaria, mortes e
doenças.
Já entre os Apurinãs, da mesma família lingüística que os Ashaninka, o
princípio das doenças e da cura do “pajé” (meẽtu) são as pedras. A pedra é, ao
mesmo tempo, agente da cura, do aprendizado e da feitiçaria. Um meẽtu utiliza
katsoparu, folha que se masca, e awire, rapé. Uma das atribuições do pajé é
cuidar dos espíritos das crianças, severamente acometidas pelos malefícios
vindos de animais que levam consigo seus espíritos.
Como entre os dauiá Huni Kuin, o xamã guia-se pelos sonhos e outros espíritos
disponíveis, de felinos como as onças e répteis como as cobras. No entanto, o
uso da ayahuasca é relativamente recente entre os Apurinãs de Boca do Acre –
Amazonas. Segundo consta, tal grupo passou a consumir ayahuasca a partir do
contato com as religiões ayahuasqueiras.

Lugares sagrados
A jibóia planta, a jibóia cobra, o cipó cobra e os variados desenhos que os
representam, os desenhos da cobra, também se inscrevem, sub-repticiamente,
na topografia dos rios amazônicos em seu típico serpentear. Rios Juruá, Purus,
Madeira, Negro e o próprio Rio Amazonas. Em línguas Pano, como do povo
Huni Kuin, o termo runu (cobra/jibóia) assemelha-se ao termo rene (rio).

Municípios de Rio Branco (Alto Santo, Barquinha, Colônia Cinco Mil), Tarauacá
(Aldeia Pinuya “Beija-Flôr”), Cruzeiro do Sul na região do Rio Croa (Terra
Indígena Katukina, Comunidade Nova Era, Casa da Xamã Peruana “Flores”) e
Vila Céu do Mapiá na Floresta Nacional do Purus.

A melhor época para viajar para o Acre a turismo é entre os meses de maio e
setembro. Além de ser um período com temperaturas mais baixas, o volume de
chuva também é menor — sendo a única época do ano em que não chove todos
os dias. Festividades e cerimônias importantes do Santo Daime e Barquinha
em Rio Branco, meses de junho e julho.
Quem controla a Ayahuasca?
Ao liberar o uso do chá da ayahuasca para fins religiosos, o Conselho Nacional
de Políticas sobre Drogas (Conad) também reconheceu, ao menos
implicitamente, que o consumo do alucinógeno é arriscado para algumas
pessoas, por isso é obrigatório um rigoroso controle sobre o sistema de
ingresso de novos adeptos ou pacientes.
Quem fiscaliza os centros ayahuasqueiros? Quem identifica os portadores de
transtornos mentais? Quem será responsabilizado caso a resolução não seja
seguida? Fazer essas perguntas às autoridades leva, hoje, a uma série de
contradições…
Segundo Paulo Roberto Yog de Miranda Uchôa, chefe da Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas (Senad) – que exerce a função executiva do Conad -, a
fiscalização acerca do uso do chá cabe tanto “às instâncias que congreguem
as entidades usuárias” (ou seja, entidades como Cefluris e a União Vegetal, que
têm vários templos espalhados pelo país) como “aos diversos órgãos da
administração pública, conforme suas competências específicas”.
Vladimir de Andrade Stempliuk, coordenador-geral do Observatório Brasileiro
de Informações sobre Drogas, subordinado ao Senad, é mais específico:
“Compete aos diversos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas
sobre Drogas a fiscalização e a imposição de medidas legais caso estas sejam
pertinentes”, explica. Dessa forma, se tornariam responsáveis, por exemplo, o
próprio Conad e, indiretamente, entidades como a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Polícia Federal (PF), que compõem o Conselho
Nacional.
Mas nem todos entendem assim. Procurada pela reportagem, a Anvisa afirmou
que a ayahuasca não faz parte da lista de substâncias que caem sob seu
controle. Já o Ministério da Saúde encaminhou ao Conad, alegando com razão
ter sido esse órgão “quem regulamentou o uso religioso dessa bebida no
Brasil”.
Igualmente, o Ministério Público Federal, apontou para o Conad. Os
promotores, contudo, podem agir caso haja descumprimento da fiscalização.
Ainda segundo o MPF, “nenhum procedimento nesse sentido” está registrado
na base de dados da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
A resolução do Conad recomenda ainda que a produção da bebida seja auto-
sustentável, veta seu comércio e propaganda do composto e estabelece que o
cultivo e o transporte só devem ocorrer para fins religiosos.
Mas quem, de fato, fiscaliza a produção e comércio dessas plantas? A Polícia
Federal, por exemplo, alega que sua função se restringe ao controle do DMT (n-
dimetiltriptamina), a substância alucinógena do chá da ayahuasca. “Se isolado,
o DMT passa a ser droga proibida, portanto conduzi-la ou comercializá-la será
crime a ser enquadrado na lei contra uso e tráfico de entorpecentes”, explica
em nota. Fiscalizar o plantio da erva-rainha ou do cipó-jagube, dos quais são
extraídos o DMT, portanto, não seria atribuição da PF.
Para os juristas, os furos no sistema criado pela resolução do Conad são
gritantes. “O poder público pecou em não regulamentar mais clara e
objetivamente o uso do chá”, diz o advogado criminalista André Alves
Wlodarczyk. Ao que o advogado constitucionalista João Wiegerinck
acrescenta: “Por eliminação, percebemos que a fiscalização só será feita
quando provocada: quando alguém passar mal ou surtar com a bebida.
Obviamente, é uma falha.”
Não há dúvida de que a própria entidade religiosa que faz uso do chá poderá
ser responsabilizada em caso de dano a um fiel, se não forem observadas as
orientações da resolução do Conad. “A igreja tem o dever de indenizar, se for
provado que ministrou sem os cuidados que a resolução determinava”, diz
Wlodarczyk. Pode, em tese, vir a ser o caso da Céu de Maria, seita fundada pelo
cartunista Glauco e onde seu assassino, Carlos Eduardo, bebia o daime. Isso
porque, Carlos Grecchi, pai de Carlos Eduardo, afirma ter pedido a Glauco que
parasse de dar o daime ao filho em 2007. Não teria sido atendido.
Saúde pública – A resolução também é criticada por profissionais da saúde
pública. Ela entrega aos próprios religiosos a responsabilidade de dizer quem
está apto a tomar ou não o chá. Mas essa deveria ser uma tarefa de psicológos
ou psiquiatras. Segundo Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente do Grupo Multidisciplinar de
Trabalho do Conad, “o uso do chá é arriscado para pessoas que tomam
antidepressivos e é contra-indicado a pessoas com diagnóstico de psicose, já
que aumenta muito a produção de certas substâncias no cérebro”. Para ele, o
Conad deveria desenvolver algum tipo de instrumento para aferir se as
entidades religiosas estão realizando o questionário ou não. “A falta de
fiscalização pode levar o aparecimento de vários casos graves”, diz Silveira.
Preocupado com as brechas deixas pela resolução do governo sobre o daime,
o psiquiatra Emmanuel Fortes, vice-presidente do Conselho Federal de
Medicina (CFM) e novo representante do órgão no Conad, acredita que o atual
estado de coisas pode desaguar em um problema de saúde pública. “É uma
temeridade. As pessoas não saem por aí dizendo se têm doença mental ou
não. Isso merece uma reflexão por parte do Conselho Federal de Medicina”, diz,
criticando abertamente a capacidade de as entidades religiosas decidirem
quem pode ou não tomar o chá. “Com a ampliação e o crescimento organizado
de novas seitas, os casos de efeitos colaterais indesejados e o agravamento de
estados psíquicos começarão a aparecer”, acredita Carlos José Renaut Filho,
psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que presta consultoria
a uma entidade daimista no Rio de Janeiro.

Fonte: Revista VEJA


Comercialização e o movimento Nova Era
Hoje, praticamente todos os grupos indígenas no estado do Acre, mantém
algum tipo de comércio de bens e serviços, digamos, espirituais e xamânicos
relacionados à ayahuasca. Sejam estes, servir cipó, promover dietas, curas e
tratos, retirar feitiço, aconselhar, administrar plantas e banhos, rapé, sananga,
cantar, dançar. E até massagens xamânicas e casamentos. Algumas famílias
têm-se especializado nesse tipo de serviço, especialmente, entre os grupos
Huni Kuin, Yawanawa, Katuquina, Kuntanawa, Puyanawa. Os chamados
“Festivais Culturais” em Terras Indígenas, também são usados hoje como
vitrine para esses conhecimentos, práticas e artes associadas à ayahuasca.
Além do universo de ressignificações decorrentes do intercâmbio entre
conhecimentos, a realização de experiências com tais substâncias ganha
novos adeptos, contornos e protagonistas entre jovens e maduros, homens e
mulheres. Isso altera as relações de trabalho e produção, sociabilidade,
casamentos, além de criar expectativas várias entre todos os envolvidos.
Porém a bebida funciona diferentemente, de acordo com os contextos onde é
dada sua experiência. Hoje, são múltiplas as formas e interações promovidas
pelo intercâmbio de pessoas, pelo fluxo de informação e mensagens, pela
circulação de capital, bens e mercadorias. A bebida ayahuasca, a partir da
fundação das primeiras religiões ayahuasqueiras no Brasil, se tornou em
menos de 50 anos, um movimento internacionalmente organizado. Com
seguidores de todas as idades e crenças. Passou também a ser um produto
comercializável. Como a “vacina do sapo”, o “colírio sananga”, o rapé e as
próprias dietas realizadas para se preparar para o uso de uma planta com
peculiaridades especiais.
A relação comercial com os conhecimentos xamânicos no Peru, por exemplo,
deu um lugar a uma forte demanda social. Várias pessoas trataram de se
aprofundar no que conhecemos hoje por vegetalismo; um combinado de
práticas xamânicas indígenas e conhecimentos esotéricos oriundos do
movimento Nova Era.
O “eco-turismo xamânico” e a relação entre uso de enteógenos, espiritualidade
e globalização, define tais serviços como condizentes com a “natureza do
conhecimento xamânico”, e, também com o ponto-de-vista da história
ocidental. É sabido que o fortalecimento de práticas xamânicas ocorre em
situações de dominação do tipo colonial. E instauram processos de
intercambio entre saberes e conhecimentos variados.
O turismo xamânico aparece num contexto histórico específico, num período
em que também aparece o discurso ocidental sobre xamanismo e o uso de
alucinógenos. Ainda na década de 1960, muitos pesquisadores sugeriram uma
perspectiva libertária, que considera legítimo o uso terapêutico da ayahuasca,
como suporte para tratamentos psiquiátricos, psicoterapêuticos, de cunho
espiritual e/ou clínicos médicos como a adicção, abuso de álcool e drogas,
neuroses e fobias, dentre outras possíveis aplicações terapêuticas.
As medicinas sagradas utilizadas dentro de um contexto ritual com intensões
específicas e foco na “transformação individual”, podem ser uma alternativa de
cura em momentos de crise pessoal ou para quem busca “conhecimento”. O
uso da ayahuasca também passa a interessar cada vez mais a classe média
urbana, motivados pela exposição na mídia de artistas que a utilizara sob a
supervisão de pajés indígenas.
Atualmente, jovens e lideranças indígenas no cobram pela sessão de
ayahuasca que pode vir acompanhada de rapé, kambô, sananga, dentre outras
“medicinas da floresta”. Um “ritual” pode custar R$ 200,00 reais por noite, no
centro-sul do Brasil. Já na França, pode valer entre E$ 200 a E$ 400 euros. A
aplicação de rapé e kampõ são cobradas à parte, assim como, um
“atendimento” ou “consulta” individual com um responsável.
Vários jovens têm enveredado por estas atividades. Por serem jovens, entre 20
e 40 anos, ainda estão num processo formação. Porém, são tratados com todo
o respeito pelo seu público externo. Quando há possibilidade, esses jovens
conhecedores são acompanhados por um especialista mais experiente, seja
este um txana (cantor), dauiá (pajé/curador) ou paxuir (responsável pela
administração de plantas).
No Brasil, já são muitas as transformações e adequações resultantes desses
encontros e movimentos.
Conclusão
A ayahuasca representa variados usos e sistemas de conhecimentos no Acre e
na Amazônia. A bebida e seus usos, conhecimentos e práticas associados,
consistem num legado comum para toda a população amazônica e sul-
americana. Particularmente, aos povos que chamamos de “povos da floresta”,
indígenas, seringueiros, agricultores e ribeirinhos. E a todos que dela fazem
uso, reverentemente, respeitosamente, espiritualmente.
A bebida “dialoga” com inúmeras artes, práticas e conhecimentos essenciais
ao legado, memória, organização, ética e estética das sociedades indígenas. A
ayahuasca, tanto como, outros enteógenos, plantas medicinais e
conhecimentos terapêuticos indígenas são profundos elos, entre o que
distinguimos, nós urbanos, como natureza e sociedade. São conhecimentos
tratados ainda de forma marginalizada pelo conhecimento formal. Tanto como
pelas políticas públicas de saúde, educação, ciência e tecnologia.
A ayahuasca permite acessar, e muitos nem precisam ingeri-la para perceber
seus efeitos e complexos conhecimentos inter-relacionados. No entanto,
atualmente, tais conhecimentos são repassados em inúmeras oportunidades
públicas, como conhecimento excêntrico, esdrúxulo, extravagante, exótico.
Mesmo por quem tem obrigação técnica em discuti-lo formalmente ou
apresentá-lo teoricamente.
Devemos pesquisar, estudar, corrigir, atualizar, mas, também ampliar os canais
destes conhecimentos, garantindo condições para seu livre crescimento com
resguardo e bom senso. E não apenas, “democratizar” o acesso a tais
conhecimentos, através do que se convencionou chamar de “turismo
xamânico”.

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