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O

Divino~
Leviata
A lenda da princesa dilacerada

Por
Sharon Cardoso
Copyright © Sharon Cardoso

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EDITORA LITERATRANS
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Atibaia - SP - CEP: 12954-636
Tel: (11) 4416-0224
www.literatrans.com.br

Título:
O Divino Leviatã

Capa:
Sâmi Vacari e Bruno Gabriel Simões

Ilustração de capa:
Sâmi Vacari

Revisão:
Bruno Gabriel Simões
'
Sumario

Prólogo: Os Espelhos de Deus 09

Epístola I: Memórias de um funeral 17

Epístola II: A viagem ao Submundo 28

Epístola III: A carta aos condenados 39

Epístola IV: O misterioso William 47

Epístola V: O noviço 54

Epístola VI: O fim das Federações 60

Epístola VII: Acordem Federalistas! 71

Epístola VIII: O sacrifício de Theodoro 79

Epístola IX: A conversa entre os irmãos


andrada 82

Epístola X: A Batalha Final 84

Epístola XI: O esplendor de um novo Brasil 94

Epístola XII: O Espelho da Alma 99


Epístola XIII: O noivado 100

Epístola XIV: O Olho de Deus 106

Epístola XV: A ira do Imperador 110

Epístola XVI: A origem de todo ódio 118

Epístola XVII: O casamento 122

Epístola XVIII: Os lamentos no Rio da Morte 125

Epístola XIX: Revelações Parte I 129

Epístola XX: Revelações Parte II 141

Epístola XXI: A queda de Dom Rafael 149

Epístola XXII: O Cubo de Metatron 166

Epístola XXIII: Escândalo no império 171

Epístola XXIV: A traição de Kadu 178

Epístola XXV: O audacioso resgate 184

Epístola XXVI: As cartas do destino 188

Epístola XXVII: A morte de Lucia 191

Epístola XXVIII: A lenda de Santa Vitória 203

Final: Prólogo do sacrifício

Primeiro Ato: O despertar do amor 212

Segundo Ato: O Gênesis 215

Agradecimentos 240
O que Deus viu no espelho?
Prólogo

Os espelhos de Deus

“N
o princípio era o verbo... De suas conjugações, uma pequena
bolha em expansão chamada universo. Átomos cheios de va-
zios, partículas subatômicas, quânticas e subquânticas cria-
vam fronteiras entre o nada e o caos.
Dos primeiros aminoácidos que surgiram, das reações químicas
que uniram os coacervados ao RNA, criando a forma mais primitiva de
vida, dos heterótrofos e suas fermentações, dos autótrofos e suas fotos-
sínteses, mudando à atmosfera do planeta e gerando O2 e O3, a criação
e os seus detalhes, como reproduzir algo de tão belo? Diga-me Deus ou
Aleksander Oparin, se o que me torna são apenas questões sobre o que
racionalmente não compreendo? Sou apenas um joguete de minhas tor-
mentas emocionais.” assim declamava uma jovem princesa negra, com
rosto dilacerado, levando consigo uma criança recém nascida e ainda li-
gada em suas trompas.
“Deus criou espelhos na existência e seu espírito pairava sobre
eles, todos refleriam sua glória. O que é a criação? O que assemelha-se
a mim? Deus olhou para o espelho a sua frente e o seu reflexo sorriu.
“Eu, querido pai... Sou o que me assemelho em aparência e graça.” A figura
emergiu do espelho e Deus o nomeou de Lúcifer, o detentor da luz. E os
reflexos de Deus, pela existência, criaram a raça dos anjos. O criador os
presenteou com uma bela morada e esse foi o início da terra original.
Em seis grandes eras, a diversidade na pequena esfera azul se de-
senvolveu... O que Deus viu no espelho? Por que sua imagem e seme-
lhança o traiu? A rebelião nos céus foi orquestrada pelo grande traidor e
os seus aliados. Por que o reflexo que outrora glorioso, voltou-se contra
o seu arquétipo? O que Deus viu no espelho, se não foi a sua própria
natureza e seus auto enganos? O primeiro espelho trincou, Deus não po-
deria admitir algo tão controvertido em sua essência e selou sua própria

A princesa dilacerada 9
criação nas profundezas do submundo, assim nasceu o inferno destinado
para toda perdição da existência. O grande Deus mais uma vez refletiu a
sua glória em outro espelho acima de sua cabeça, o reflexo não tinha o
mesmo esplendor do primeiro filho, Deus o chamou de Adão.
Dele também surgiu Eva, a mulher, que junto ao seu companhei-
ro, traíram a confiança do criador e comeram do fruto proibido, nascendo
assim o pecado original. Junto a seus filhos e gerações conseguintes, que
geraram as nações; os reis; as famílias, a degeneração humana; a corrup-
ção; a maldade; a bondade; a esperança; o salvador, o sangue do cordeiro,
a providência divina, o Divino Leviatã e consequentemente eu...” Narrou
a princesa negra entorpecida pelo sangue que escorria de seu dilacerado
rosto.
Uma grande manta áurica de cor dourada envolvia o seu corpo e
acima dela, uma magnífica esfera incandescente era colidida por meteori-
tos que aumentavam dramaticamente a sua massa. A imponente avenida
Paulista desmanchava-se com a imensa gravidade da esfera. Um soldado
da respeitada divina armada imperial observava atônito a princesa e a sua
esfera se aproximarem do tanque no qual escondia-se amedrontado.
- Comando, aqui é o sargento Paulo, minha unidade foi com-
pletamente esmagada! Repito! Minha unidade foi esmagada pelo poder
gravitacional de uma estrela ou planeta, não faço a mínima ideia do que
seja isso, ela carrega uma criança recém-nascida, tenho medo. -Relatou
o soldado dentro do tanque ao acionar seu módulo de comunicação no
capacete.
- Sargento Paulo, aqui é a base de Alcântara, poucos foram os so-
brevives da capital do reino de São Paulo, peço que se esconda, ela não é o
adversário mais indicado a você, os sete grandes reis e os vinte principa-
dos já foram enviados para deter a princesa, temo que nem esses poderão
enfrentar alguém com tantos poderes.
Nesse instante a comunicação foi interrompida por uma enorme
onda de rádio. Paulo saiu da escotilha, concentrou uma grande quantida-
de de energia num pequeno canhão de plasma acoplado a sua mão direita
e disparou contra a princesa.
Houve uma grande explosão.
- Maldita, teve o que merecia! - Congratulou-se o Soldado.
Antes que Paulo pudesse orgulhar-se de seu feito, uma presença

10 O Divino Leviatã
surgiu em seu costado.
- Paulo... Sussurrou a princesa.
O terror suspendeu à alma do soldado que não moveu um dedo.
- Você sabe que dia é hoje? - Perguntou a Princesa.
Trêmulo ele respondeu.
- Hoje é dia 21 de Abril de 2040, feriado de Tiradentes.
- Sim... Esse país sempre nutriu a triste tradição de homenagear
os seus heróis depois de arruinarem suas vidas, receio que acontecerá o
mesmo comigo.
- Princesa, o que pretende fazer? - Perguntou o soldado.
- A vida é injusta, consigo ver isso aos olhos divinos que con-
quistei ao desafiar Deus, mas enquanto a você, soldado... - Apenas com
o poder telecinético, a princesa ergueu o combalido sargento das tropas
imperiais. - Não há espaço na criação de um novo mundo para quem
apenas sabe destruir com as leis do velho mundo, não se ataca o ventre de
quem gerou o novo Gênesis, esse pecado eu não perdoo, apenas eu, tenho
o direito a vida, desapareça para sempre!
O eco da voz da princesa se perdeu pela devastada São Paulo, en-
quanto o sargento era desmaterializado junto ao seu tanque.

Distante do caos que acometia à avenida Paulista, pequenos mo-


nitores evidenciavam uma figura cingida pelo próprio sangue.
- General Silveira! O espectrômetro já ultrapassou o nível arcano
de poder, a princesa alcançou o estágio divino de aura. - Relatou o solda-
do que mantinha-se compenetrado em seus monitores.
Silveira assistia com incredulidade uma inefável esfera de rocha
incandescente que aumentava sua massa e gravidade a cada instante.
- Inacreditável, estamos assistindo um processo geológico que le-
varia bilhões de anos acontecendo em minutos.
- Isso é ser Deus? - Se perguntou o General.
- Acione a função de Satélite do Olho de Deus. - Ordenou Silveira.
- Olho de Deus acionado. - Respondeu a inteligência artificial do
sistema.
- Dispare raio de plasma!
Fora da atmosfera, um pequeno objeto metálico no formato de
um olho, concentrou uma grande quantidade de energia e atirou contra a

A princesa dilacerada 11
princesa, o raio rasgou os céus e atingiu o seu alvo.
- Acabou... Foi um triste fim a uma herdeira do trono, farei ques-
tão de prestar minhas condolências pessoalmente. - Lamentou o general
com a voz embargada.
- O que Deus viu no espelho? - Assim à assombrada e gélida voz
da princesa ecoou pela sala de comando, os monitores mostravam a prin-
cesa encouraçada pela sua manta áurica ainda mais dourada. - Não há
o que lamentar, General, o velho mundo e suas consciências destrutivas
passarão, farei um novo mundo para meu filho.
Nesse momento os monitores explodiram, tamanho foi o poder
exercido pela princesa.
A destruição prosseguia ao passo que a massa da esfera atingia
um tamanho critico ao ponto de começar a influir nas marés e nas placas
tectônicas. Assim, o imperador designou que os vinte principados en-
frentassem a princesa, todos eles dotados de grandes poderes, no entanto,
caíram por terra. Levantaram-se sete reis com armaduras reluzentes, es-
ses também não foram capazes de feri-la.
Perante os seus adversários vencidos, a princesa tornou a repetir
sua questão.
- O que Deus viu no espelho?
- Que tipo de pergunta é essa? - Indagou Dom Felipe, um dos sete
reis.
- Isso é inacreditável, a esfera atingiu uma massa equivalente ao da
Lua. - Observou um dos principados escondido entre escombros.
A princesa sorriu e em seguida desapareceu subitamente junto a
sua enorme esfera.
- O que aconteceu? Para onde ela foi? Perguntou Dom Felipe.

Nos céus de Brasília surgiram a princesa e o seu globo em chamas,
sua mente viajou e a teleportou acima do suntuoso palácio do planalto
que, diferentemente dos tempos da república, está suspensa nos céus atra-
vés da força eletromagnética exercida por três grandes anjos revestidos de
mármore que mantinham a estrutura flutuante.
- A vontade de Deus... Por que? - Questionou-se a princesa con-
templando a imensidão.
- Porque assim foi profetizado! - Respondeu o imperador que sur-

12 O Divino Leviatã
giu do Palácio com uma armadura dourada e reluzente, segurava em seu
braço direito um elmo. - Não cabe a nós simples servos nos ocuparmos
dessas questões. Somos criaturas sujeitas as vontades divinas. Ao longo
das eras pecamos, fomos punidos e recebemos a devida misericórdia. Mi-
nha querida Vitória, apenas aceite a sua penitência, para o bem do Impé-
rio... Para o seu bem. - Completou o imperador.
Por um instante a princesa levantou sua mão esquerda na direção
do Sol e a esfera sob o seu encantamento, elevou-se aos céus e eclipsou a
luz solar que iluminava o Império.
A única luz de Brasília emanava da herdeira do trono, a esfera que selou o
sol transmitia um pálido vermelho em um céu lúgubre.
-No final de tudo, Espinosa baseou suas vivências filosóficas em
inocentes crenças num Deus essência... Na verdade, toda criação baseia-
-se na exaltação da sua obra, tudo é uma grande igreja, os céus são abóbo-
das e ao ser humano resta a servidão. Qual o sentido de existir? Seria mais
justo que todos fossemos deuses de nossas vontades, não existe apenas
um verbo, somos o verbo! Meu corpo e suas ações são frutos da minha
consciência. Meu vínculo com Deus aqui termina...
A esfera ganhou uma forma planetária e já havia atingido a mes-
ma massa da terra. - E foram criados um novo céu e uma nova terra, essa
é a vontade da Deusa.
Ao proferir essas palavras, um grande terremoto começou a devastar a
terra.
- Pai, sou parte de ti, sua imagem e semelhança, você me vê no
espelho?
- Não... Infelizmente o que vejo é uma deformação do que ajudei
a conceber. - Respondeu Dom Fernando.
- Entendo... Igualmente a Lúcifer e seus anjos, a rebelião defor-
mou suas plenitudes. Nesse caso, terei que fazer melhor que Lúcifer.
A princesa cantarolava uma cantiga enquanto amamentava o seu
pequeno filho, o planeta entrou numa intensa atividade, os mares invadi-
ram as cidades costeiras e os terremotos devastaram as grandes metrópo-
les, a princesa contemplava a destruição com um olhar sereno e uma aura
dourada transmitindo paz.
- Papai, receio que precise fazer algo a respeito. - Sugeriu a Prince-
sa que parecia ignorar qualquer diferença entre a criação e a destruição.

A princesa dilacerada 13
- Não tenho outra escolha a não ser cumprir o que Deus ordenou,
você escolheu o seu caminho. - Lamentou o imperador.
- Você condenaria ao inferno a sua própria filha e seu neto? - Per-
guntou a princesa.
Ao tempo que as lágrimas vertiam do rosto do imperador, uma
fenda no tecido do espaço e tempo foi aberta, dela surgiu uma espada de
luz que foi de encontro a mão direita do imperador.
- O arcanjo Miguel cedeu a sua espada para a definição dessa
guerra, eu suplico, arrependa-se, minha filha.
- Cumpra a sua missão, meu pai. - Respondeu a jovem princesa
que em nenhum momento condenou seu pai, pois sabia que seu legado
também era difícil.
O imperador elevou-se aos céus e, frente a sua filha, encarou-a
com ternura por alguns segundos, até a sua espada atravessar o coração
da princesa.
- Me perdoe, filha.
- Não há o que perdoar, papai... - Assim respondeu a princesa que
apesar da triste maldição que a esperava, sorria para seu destino, a fenda
dimensional já havia sugado o seu mundo.
- O que será dessa criança? - Perguntou o imperador.
- Viverá longe da tirania do seu Império.
Nesse instante a princesa desapareceu perante os olhos do impe-
rador e teletransportou-se para uma distante floresta no lado norte do
reinado de São Paulo.
Entre duas árvores escondia-se Valéria, a sua guardiã. Uma bela
jovem de longos cabelos lisos e negros, trajava um uniforme cinza com
ombreiras cromadas. Ao ver o estado deplorável de sua ama, correu ao
seu encontro.
- Por que não me deixou defendê-la? Indagou sua fiel guardiã.
- Valéria, você sempre me amou incondicionalmente, lamento
muito não poder correspondê-la.
- Princesa, isso não importa agora, precisamos tratar da sua feri-
da. - Interviu Valéria.
- Infelizmente, eu já não tenho muito tempo.
A princesa rompeu o cordão umbilical que a unia com o seu pe-
queno rebento e o entregou a Valéria.

14 O Divino Leviatã
- Cuide dele para mim, seja a mãe que eu não poderei ser...
- Princesa... Sussurrou Valéria.
- O que Deus viu no espelho? Um dia ele fará essa pergunta, quan-
do esse momento chegar, diga que não há nada além de um menino con-
templando o seu próprio reflexo.
- Princesa! Gritou uma voz em meio a floresta.
- Essa voz... Kadu?
Um homem corre em direção a princesa, o desespero e as lágri-
mas derramadas foram contemplados pela natureza que silenciou-se em
respeito ao seu copioso pranto, apenas transpirações se podiam ouvir.
Ao passo que ficaram de frente um para o outro, Kadu, que imo-
bilizava seu braço direito numa bandagem manchada de sangue, olhou
fixamente a figura da sua amada princesa que começava a se desfazer.
- Me perdoe por ser tão fraco e não poder te proteger, infeliz-
mente os meus poderes não foram suficientes para salvar-te. Lamentou o
inconsolável Kadu.
- Não é o seu legado me proteger, Kadu, ninguém pode mudar o
meu destino, está consumado.
A princesa entrelaçou seus dedos entre os cabelos negros e cache-
ados de Kadu, seus gestos transmitiam paz e o seu sorriso era de despe-
dida, os átomos desprendiam-se de seu corpo proporcionando um belo
espetáculo luminoso.
- O que vai acontecer agora? Perguntou Kadu.
- O fim de uma era e o amanhecer do oitavo dia... Ao proferir suas
últimas palavras, a princesa foi desintegrada, suas partículas envolveram
o desolado Kadu e sua fiel protetora Valéria, que agora teria a missão de
cuidar do filho da pessoa que mais amou em vida.
- Qual o nome dessa criança? Perguntou Kadu.
- Gênesis... Esse foi o nome escolhido pela princesa.
E assim a sétima era da criação teve o seu fim. Muito antes da
princesa conhecer o seu destino, no início dos tempos, Deus designou 7
anjos para cada dia da criação, suas imagens também foram refletidas no
espelho da existência, seres dotados de grandes prodígios, Deus os de-
nominou “A ordem dos leviatãs” O criador designou Metatron o líder da
ordem e protetor da terra, no entanto, os sete leviatãs foram corrompidos
por Satanás e convencidos a corromperem Adão e Eva a comerem das

A princesa dilacerada 15
sete árvores capitais, de cada uma experimentaram um fruto diferente de
pecado.
A ira de Deus condenou as almas dos sete Leviatãs para o tártaro,
seus corpos foram desintegrados e suas partículas fundiram-se na alma
humana, separando o potencial do homem em sete partes, assim nasce-
ram os chacras e a divisão das auras espectrais. Metatron por falhar em
sua missão de liderar a ordem dos Leviatãs, também foi enviado ao Tárta-
ro e condenado por toda a eternidade com a penitência de ser o guardião
do Cárcere, as sete almas foram induzidas ao transe profundo através da
flauta das sete eras, da qual, Metatron entoa as melodias da criação num
sopro contínuo.
O pecado agora estava no coração de todos, Deus continuava a
olhar no espelho e não gostava do que via, quando se deparou com o meu
reflexo, tratou logo de me condenar para o pior dos tormentos, a rejeição
do próprio Satanás, o criador deixou-me como Deus e diabo da minha
própria existência, não há castigo pior... Hoje eu vejo rosas sobre um cai-
xão, rostos desconhecidos numa silenciosa avenida.

16 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
I

'
Memorias de
um funeral

A
família imperial desfila num cortejo fúnebre, vejo expres-
sões vazias….
Quando abandonamos a densa matéria, ganhamos a mal-
dição de poder vislumbrar todas as suas nuances, como somos frágeis….
Um amontoado de átomos, repletos de vazios unidos a outros vácuos da
existência.
- A filha do Brasil morreu. - Dizia um repórter que cobria o cor-
tejo.
Sim… Morri, aguardo com serenidade a providência divina, ousei
experienciar a criação, quis um mundo melhor para todos vocês, e o que
recebi em troca? O que todos os Deuses da história receberam, esque-
cimento, só espero que não criem uma religião e tão pouco fomentem
guerras em meu nome.
O Palácio do Planalto tomado por personalidades da política e
curiosos, assistiam a família imperial carregando o que jaz de Vitória Ver-
salhes de Bragança.
Papai já não ostentava a imponência do dia que destronou a repú-
blica em nome de Deus. O que era Dom Fernando Versalhes de Bragança
além de um simples homem tomado pela culpa e preso a uma dolorosa
coroa tão atroz quanto os espinhos que martirizavam Cristo.
Abel selava as suas emoções numa expressão fria e indiferente;
mamãe, a Imperatriz Camila, a primeira negra a ostentar o posto na his-
tória das Américas, em seu semblante, um choro copioso, e de todos que
participaram desse triste desfecho, talvez fosse a única que foi envolvida
nesse processo sem ao menos ter o poder para reagir.
Quando o cortejo se aproximou de uma grande limusine preta, as

A princesa dilacerada 17
nuvens de Brasília pesaram e a chuva caiu….
Abel olhou para os céus, ajeitou o seu dread e fez uma breve ob-
servação:
– Ironia…. Quando éramos crianças, Vitória dizia que a chuva
simbolizava o choro de Deus pelos pecados da humanidade… E hoje?
Essa mesma chuva repentina simboliza os seus pecados… Vitória… Es-
ses são os caminhos da inocência, só podem resultar em morte e esqueci-
mento.
O esquife foi colocado no carro que seguiu viagem rumo ao aero-
porto de Juscelino Kubitschek, onde o meu corpo seria transladado para
São Paulo, o sepultamento aconteceria na cripta imperial.
Antes do inevitável destino do corpo, é curioso vivenciar certos aconteci-
mentos em nossa existência…
Como se sentiriam se pudessem presenciar os seus próprios cor-
tejos fúnebres? Pessoas lamentando pela sua morte, outras segurando o
riso, abraços protocolares de todos os sanguessugas do Império. Hoje eu
contemplo o espetáculo de minha própria morte.
O início de tudo, o meu despertar; a minha rebelião; minha puni-
ção…. São definidos em atos como qualquer peça de teatro.
O primeiro ato confunde-se com a própria história da humanidade, Dos-
toiévski deveria ser o narrador de minha alma, talvez ele conseguisse en-
contrar Deus em mim, desvendar o que eu não conseguir encontrar no
espelho, minha imagem e semelhança...
O que eu sou? Qual imagem refleti todos esses anos?
Deus ao longo das eras sempre impôs a sua vontade sobre a hu-
manidade, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, O dilúvio, Sodoma e Go-
morra, o fogo de Deus também consumiu Pompeia e fez perecer todos os
exércitos humanos que ousaram desafiar sua grandeza, Babilônia, Medo
Pérsia, Grécia e Roma tiveram suas glórias transformadas em ruínas, até
chegar nas revelações de João de Patnos sobre a segunda vinda daquele
que morreu pelos pecados da humanidade.
A minha existência não foi um anúncio de salvação, sou repleta
de rebeliões, não há promessas em mim, mas deixo um legado, fui capaz
de criar realidades para aqueles que amo, sejam vocês Deuses de suas
próprias existências.

18 O Divino Leviatã
Lembro de uma noite nublada na bucólica Petrópolis, a calmaria
do inverno serrano contrastava com o caos que tomou conta de todas as
grandes capitais do Brasil.
Lembro de papai abraçado junto a minha mamãe, ambos senta-
dos num sofá branco simples, mas bem confortável, assistiam incógnitos
os acontecimentos que alastravam-se pelos quatro cantos do país.
O Âncora do Jornal entoava um profundo pesar nas notícias que
veiculava, minhas recordações são vagas, mas lembro que foi algo nesse
sentido…
- São Paulo teve mais uma noite de protestos por toda a cidade,
três postos da Polícia militar foram invadidos por rebeldes, prefeitura de-
predada por grupos extremistas que exigem reformas em todas as insti-
tuições. Tenho um link direto com a nossa repórter Valnice Soares que
cobre os acontecimentos em São Paulo.
Assim a pobre jornalista começou a narrar com uma voz quase
trêmula o horror que acontecia em São Paulo.
- A situação está fora de controle, a tropa de choque acabou de re-
cuar devido ao grande contingente de pessoas atacando com toda a sorte
de objetos e coquetéis molotov. Há registro de 14 mortes de civis, estou
aqui com um dos líderes dessas manifestações, Carlos Eduardo de An-
dradas, conhecido como “Kadu”. Por favor, você está ao vivo para todo o
Brasil, diga-nos, quais são as exigências para que os revoltosos de todo o
Brasil entre em acordo com o governo federal?
Bruscamente Kadu arrancou-lhe o microfone da mão e estarreceu
o Brasil.
- Não existe acordo e tão pouco governo para negociar, não reco-
nhecemos esse estado autoritário e fascista, retomar o legado da revolução
Francesa, um governo do povo para o povo, a soberania é nossa! Vamos
tomar as ruas de todo o Brasil! - Anunciou Carlos Eduardo empenhan-
do uma barra de ferro. Seu olhar tinha um brilho diferente, um sorriso
destemido, uma certa timidez ao se expressar, o rosto bonito e jovial que
qualquer revolução precisa.
Depois dessas declarações, papai desligou a televisão e comen-
tou…
- A federação está se deteriorando, como é triste assistir isso… O
congresso nacional e o senado estão de mãos atadas, parece que o exército

A princesa dilacerada 19
vai interferir nas capitais.
Mamãe tentou confortá-lo, mas também não conseguia esconder
sua preocupação.
- Amor, o que podemos fazer? Não quero que as crianças fiquem
assustadas com esse caos, não podemos viajar para Braga? Visitar alguns
dos seus parentes?
- Não, Camila…. Estamos num campo de guerra, o pacto federa-
tivo de nada mais vale, me parece que é o fim do mundo como conhece-
mos….
A tensão do momento foi quebrada por Abel, que correu para os
braços de nosso pai e lhe mostrou empolgado o jogo que acabara de sal-
var.
- Pai eu zerei, olha! Passei da fase das catacumbas e detonei o Boss.
Papai apenas sorriu para Abel e levantou-se do sofá, em seguida
mamãe também se levantou e foi ao meu encontro perto da antiga escri-
vaninha nos fundos da sala, aquele era o meu local predileto para brincar,
abria e fechava as gavetas sem nenhum objetivo, apenas gostava de ouvir
o ranger das roldanas indo e voltando.
- Vitória, hora de dormir. - Disse mamãe que apanhou-me do
chão e levou-me nos ombros.
- Manhê, você não vai contar aquela história da cigarra impruden-
te de novo, né? - Assim perguntei emburrada por ter a minha emocionan-
te diversão interrompida.
- Não… Hoje não tem a cigarra imprudente, você não lembra,
mas o papai tocava modas de viola para uma princesinha dormir.
- Eba! Papai vai tocar a nossa música!
Assim me entusiasmei, porque a “ Nossa Música” foi uma compo-
sição de todos da família, minha contribuição foi com as palavras “prin-
cesa flor”, e também com a parte percussiva usando uma panela velha e
duas colheres de pau.
- Vamos para o seu quarto, Vivi, hoje a moda de viola será lá! -
Disse mamãe com o seu marcante sorriso.
Lembro de ter entrelaçado meus braços no seu pescoço e deitado
minha cabeça sobre o seu ombro esquerdo, seu cheiro era único, uma
loção caseira de alfazema, aveia e mel, antes que eu pudesse me sentir
protegida nos seus braços, olhei instintivamente para janela da sala e vi

20 O Divino Leviatã
um vulto deslocando-se com muita rapidez.
- Mãe, tinha alguém na janela! - Alardeei gesticulando na direção
da janela.
Mamãe se aproximou da janela e espreitou a escuridão, não havia
nada de suspeito, apenas o nosso velho cão pastor Proteus atormentado
por suas pulgas e carrapatos e coçando-se em frente sua humilde casinha.
- Não tem nada lá fora, Vivi, sabe o que é isso? Criança com sono
que precisa dormir.
Eu não tinha nenhuma explicação para o que eu tinha visto, mas
preferi abraçar-me na segurança dos seus braços. Subimos dois pequenos
lances de escada até chegar no meu quarto, papai com o violão e Abel com
um pandeiro meia lua já estavam lá nos aguardando.
- As meninas chegaram! - Entusiasmou-se papai que dedilhava
algumas notas da introdução de “Nossa Musica”, então mamãe começou
a cantar…
- Ouço um leve dedilhar de violão. Melodias de um trovador da
solidão.
Papai cantou a segunda parte.
- Poesias de um rei e uma rainha improvável unidos pelo coração,
mortos por Maquiavel e ressurretos pelo cordel. Os ramos de Petrópolis
deu os seus frutos de amor.
- Abel o desbravador! - Assim gritou o meu irmão chacoalhando
o pandeiro meia lua.
- E Vitória princesa Flor! - Cantei a minha parte na música.
Todos demos uma pausa e rimos daquela composição esquisita,
mas com uma grande carga de símbolos valorosos.
- Pai, vamos cantar de novo, é que eu não consegui dar o meu
gritão! Sugeriu Abel com os seus cabelos desgrenhados e fiapos de traves-
seiro por todo canto.
- Tudo bem, então vamos cantar e…
Repentinamente as luzes do quarto oscilaram, todos olharam para
o velho lustre que vibrava os seus cristais, enquanto o feldspato da lâmpa-
da apresentava um brilho opaco.
- O que é isso, pai? - Perguntou Abel ressabiado.
- Algum curto no quadro de energia. Deduziu papai.
Logo a luz do quarto estabilizou-se e, no silêncio de nossas con-

A princesa dilacerada 21
clusões, aquilo nada mais era que o péssimo serviço de luz fornecido para
a região serrana, foi quando nossas almas foram tiradas do repouso do
silêncio pelo toque de celular do papai.
- Oi, pode falar. - Atendeu papai.
- Sr Fernando, aqui é o Firmino, tem visitas para o senhor.
- Visitas a uma hora dessas? Diga que eu não estou e viajei a negó-
cios, todos que conheço sabem que não recebo visitas inesperadas.
- Mas senhor, não se trata de uma pessoa qualquer, ela se anun-
ciou como Senadora da República, Helena Sant’anna.
Papai ficou em silêncio por alguns segundos, sua feição de perple-
xidade até hoje está ilustrada em minha mente como um quadro impres-
sionista.
- Helena Sant’anna? O que uma senadora da república faz no meu
sítio em plena noite de Petrópolis, e com o país tomado por revoltas?
- Firmino, deixe-a entrar.
- Querida, leve as crianças para o quarto, acredito que a conversa
será longa. Disse papai olhando para o vazio e demonstrando preocupa-
ção.
- Amor, o que essa mulher quer com você?
Papai não respondeu a questão, fechou-se em pensamentos e
transpirações.
O clima leve de uma cantiga familiar, tornou-se tensa. Abel como
qualquer menino de oito anos, não deu importância para aquilo, foi para
o seu quarto com os olhos vidrados no seu game portátil.
Eu já sentia a preocupação de mamãe passando pelo meu corpo,
era como uma conexão de auras, um encontro de galáxias que me propor-
cionava sentir a sua angústia.
Mamãe deixou-me a sós na penumbra do meu quarto infantil
repleto de ursinhos sorridentes na parede e um abajur ao lado da mi-
nha cama que iluminava parte do meu quarto. Estava inquieta, fiquei por
dez minutos fitando as sombras dos galhos da amoreira projetadas no
teto, quando fui tomada por uma torrente de pensamentos, uma criança
curiosa e angustiada jamais se renderá a conformidade do travesseiro e
o ósculo maternal na testa, acompanhado de um boa noite, não pude re-
sistir e sorrateiramente levantei-me da cama, apanhei o meu sapinho de
pelúcia e desci até o escritório onde papai costumava a receber visitas.

22 O Divino Leviatã
Desci as escadas e o vi abrindo a porta e recepcionando três indivíduos.
Helena Sant’anna, senadora da república, uma senhora de trajes
bem distintos e que aparentava o cansaço da viagem e da idade avançada.
As outras duas pessoas que a escoltavam, me aguçaram a curiosi-
dade. Pareciam de alta patente e demonstravam muita segurança.
Uma mulher de notável beleza trajada com um longo vestido pre-
to, os seus cabelos eram castanhos escuros e sua pele morena.
O outro indivíduo era um homem incrivelmente grande e forte,
cabelos loiros e alongados até a base do antebraço, seu rosto era de uma
austeridade que jamais havia visto. Eu me posicionei na escada de um
ponto que não podiam notar a minha presença, e lá fiquei até que reali-
zassem todas as formalidades e, finalmente entrassem no escritório.
Desci as escadas e percebi que a porta estava entreaberta, espian-
do dessa abertura, avistei papai sentado em sua mesa e a Senadora junto
com seus misteriosos seguidores em pé. As revelações que ocorreram a
partir dessa reunião, mudaram os destinos da minha família, do país, do
mundo e me transformou numa existência errante e amaldiçoada. Assim,
papai fez o primeiro contato:
- Confesso que estou curioso com essa visita tão repentina, me
desculpem, não sou o tipo de homem que gosta de surpresas, minha vida
é toda programada, não sou de improvisos.
- Dom Fernando, Você sabe muito bem o motivo da nossa visita.
Afirmou a Senadora.
- Não entendo. - Insistiu papai.
- Aqui mesmo nessa casa, há trinta anos…. Um típico festejo de
sete de setembro, na época você era um garoto de nove anos, e eu cum-
pria o meu primeiro mandato de deputada federal constituinte.
- Lembro vagamente. - Disse Papai. - Creio eu que não veio relem-
brar o passado, não é mesmo?
- Você é um homem direto, gosto de pessoas assim, prometo ser
breve. Para que entenda o motivo da nossa visita, precisamos relembrar
essa tarde tão agradável de sete de Setembro de 1989, o país estava em
polvorosa, começávamos a nossa democracia, eu fui convidada pelo seu
falecido pai, Dom Luiz a participar da solenidade. Toda aquela festividade
ocultava algo grandioso. O segredo que o saudoso imperador D Pedro II
levou para o descanso eterno, e hoje a república e as sociedades secretas

A princesa dilacerada 23
que a regem, guardam a sete chaves. Por acaso lembra que no tardar da-
quele dia, seu pai reuniu convidados seletos para rezar na antiga capela?
Na verdade estávamos diante de um vórtex.
Papai acompanhava todo o relato da senadora expressando desin-
teresse.
- Vórtex? Talvez eu não tenha compreendido muito bem, você dis-
se que na pequena capela aos fundos de minha casa, existe uma espécie de
portal? Compreendi bem? -Papai gargalhou copiosamente entrecortando
com uma tosse da gripe que o acometeu a noite passada.
- Senadora, meu pai nunca havia me relatado sobre o seu talento
em criar ficções tão criativas. Conspirações…. O que seria da literatura
fantasiosa sem elas? Não teríamos clássicos como as 20 mil léguas subma-
rinas, senadora, não sou um homem de intuições, mas essa conversa não
me parece muito promissora.
Repentinamente a mulher que trajava um longo vestido preto,
manifestou-se pela primeira vez.
- Se me permite, Senadora, acho que precisamos ser mais convin-
centes. Dom Fernando, cada vórtex espalhado pelo país é um portal para
o submundo. Ao redor do planeta existem outras vórtex com aberturas
parciais ou apenas um ponto energético para atrair potestades de diversas
categorias. Somente no Brasil todas as vórtex são portas para o submundo
ou para a morada de Deus. Um antigo regimento do exército Imperial de
Portugal e Algarves no ano de 1733 avistou em três pontos da até então
capital da província do Rio de Janeiro, três grandes luzes;
A primeira emanava do cume do corcovado, a segunda luz surgiu
do que é hoje o paço imperial, e a terceira… - A mulher pausou sua fala
por alguns segundos e aguçou a curiosidade de papai que mudou sua ex-
pressão de desinteresse para esboçar um sorriso que mesclava um leve de-
boche com surpresa. - A terceira luz surgiu exatamente nesse local… Um
engenheiro militar que acompanhava a guarnição, José Fernandes Pinto
Alpoim, se aproximou daquela estranha luz que rompia a escuridão da
madrugada e assistiu a cena mais inquietante de sua vida, os vinte solda-
dos da sua guarnição que foram checar o fenômeno, tiveram seus corpos
arrastados por uma força invisível até o centro da luz, e nunca mais foram
vistos. Alpoim acabou relatando as autoridades locais e ao governador
Gomes Freire que os seus homens foram abatidos num ataque de escravos

24 O Divino Leviatã
foragidos, como conseguiria explicar algo tão insólito?
- O engenheiro voltou várias vezes ao local para entender o que
havia ocorrido, foi exatamente ao ponto que a guarnição perecera diante
da luz e, calculou a distância das outras duas luzes. Veio em sua mente
que o dia anterior foi o início do solstício de inverno e, associou aque-
las luzes com o fenômeno astronômico. O engenheiro decidiu estudar os
fenômenos e aguardou pacientemente o fim do solstício de inverno e o
começo do solstício de verão, e para sua surpresa, as previsões estavam
certas. Alpoim escreveu uma carta sobre a sua descoberta e direcionou
ao rei Dom João V, que pouca importância deu ao fato. E no local onde
foi encontrada a primeira luz, o engenheiro construiu o paço dos vices
reis e governadores, que depois tornou-se o Paço Imperial… - A mulher
silenciou outra vez a sua narração e sorriu para papai. - Dom Fernando…
Tenho duas revelações importantes. - A misteriosa mulher jogou um jor-
nal em cima da mesa. - Leia a capa do Jornal e atente-se a data.
Papai apanhou o jornal e fitou com um olhar debochado as três
figuras que o assistiam. Quando fixou os seus olhos na capa do Jornal
da tarde, percebeu que a data da publicação era 22 de julho, três dias no
futuro.
E a matéria o estarreceu… Uma triste foto da nossa família envolta em
sangue com o título:

“Tragédia em Petrópolis!
Descendentes da família imperial Versalhes e Bragança foram en-
contrados mortos na manhã dessa quarta feira na casa de veraneio da fa-
mília ao sul da cidade serrana.”

Pude observar as feições de papai enrubescerem-se e gradativa-


mente sua respiração ficar colérica, tomado pela fúria, jogou o jornal em
cima da mesa e levantou-se prontamente para afrontar a mulher.
- Eu não sei o tipo de golpe que querem aplicar, mas escutem bem
o que vou lhes dizer! Jamais aceitarei essas chantagens absurdas, o que
querem de mim? Vantagem política? Econômica? Querem fazer de mim
um símbolo para alguma tramoia na República? Perderam viagem, se
me permitem. Preciso descansar, amanhã tenho negócios a resolver com
a nossa cervejaria, não tenho tempo para esses jogos. - Disse papai que

A princesa dilacerada 25
caminhou apressadamente para porta.
- Não tão cedo, imperador. - Interviu a Senadora.
- Do que me chamou? - Indagou papai.
- Estamos aqui exatamente para debatermos o destino da sua fa-
mília e do Brasil…. Aceite o seu destino e reine sobre o Brasil e todas as
nações, ou morra e veja os homens mais perversos do mundo destruírem
nossa sagrada terra com suas ganâncias. E a segunda notícia que precisa
saber, a Cia já tem o conhecimento do que você significa para o futuro, e
mandou seis agentes dos mais preparados para eliminar a ameaça conhe-
cida como “Divino Leviatã”, fora os agentes de campo instalados no Brasil
para o apoio logístico.
- Não… Vocês estão loucos. - Disse papai dando-lhes as costas e
direcionando a mão direita para abrir a porta.
- Você não está agindo como um imperador.
Pela primeira vez se manifestou o homem de longos cabelos alvos,
sua voz era incrivelmente poderosa e preenchia a sala.
- Você terá as respostas que precisa, mas se quer salvar a sua fa-
mília, terá que nos acompanhar a uma viagem.
- Viagem? Afinal, quem são vocês? - Gesticulou papai na direção
das duas misteriosas figuras.
- O Meu nome é Crocell, perdi minhas asas e cai junto com a terça
parte dos céus, hoje eu tenho a oportunidade de um dia recuperar a glória
que tive, assim como você, sou um nobre sem coroa.
- Eu não sou uma existência, logo não tenho nome, sou a missão
que vim cumprir e nada mais. - Respondeu a mulher.
- Senadora, eu não sou o homem certo para o seu golpe de estado,
sim, eu descendo da família imperial, mas os tempos são outros, defen-
do o estado democrático de direito e não quero reger um país, minhas
pretensões são modestas, começam desde administrar o meu negócio até
terminar a educação dos meus filhos, o que um homem como eu pode
oferecer?
A indagação de papai pairou pelo silêncio da sala, não houve res-
posta, até o momento que Crocell olhou para o alto como se houvesse
captado algo e com o estrondo de sua voz alertou:
- Eles estão por perto!
- Então quer dizer que a brincadeira já vai começar, nesse caso

26 O Divino Leviatã
não podemos perder mais tempo aqui. - Complementou a mulher.
A Senadora se aproximou de papai e lhe entregou uma fotografia
de mamãe segurando-me após o parto.
- Filhos são dádivas de Deus, não é mesmo Dom Fernando? Saiba
que acreditando ou não, os fatos que relatamos aqui vão acontecer… Por
determinação divina não podemos ir mais longe do que isso. Todo um
arranjo apocalíptico de todos os profetas inspirados por Deus podem ser
desfeitos, basta você acreditar nas providências divinas.
- Existe algo que ainda me intriga nessa história toda. - Disse pa-
pai.
- O que te aflige, Dom Fernando?
- O que é o Divino Leviatã?
A senadora sorriu com um ar de satisfação e prontamente respon-
deu.
- O Futuro.

A princesa dilacerada 27
EPÍSTOLA
II

A viagem ao
submundo

P
apai saiu do escritório junto com os seus três visitantes e ca-
minharam rumo a antiga igreja, eu tratei logo de me escon-
der antes que pudessem notar minha presença, esgueirada
atrás do sofá.
Sai pelos fundos da casa na intenção de cortar caminho, logo me
deparei com a amoreira e por lá fiquei até os meus olhos se acostumarem
com aquela escuridão. Olhei na direção da capela e avistei um brilho opa-
co, segui a luz abraçada no “Charlie”, meu sapo de pelúcia e, finalmente lá
estavam eles dentro da capela, até então, eu jamais tinha explorado aquele
local. Eles já tinham adentrado à capela, um lugar muito pequeno e difícil
de entrar sem que eles percebessem a minha presença.

Engraçado…. Minhas memórias falham ao confrontar-me com
essa parte da história, sinto um vazio tão grande…
Uma gargalhada emanou dos céus e interrompeu as memórias
póstumas de Vitória.
- Irmãzinha... É comovente sua entonação ao detalhar os momen-
tos mais singelos da sua infância, brincar com as roldanas da gaveta, as
modas de viola do papai, o seu sapo de pelúcia. Se fosse viva eu bem que
poderia sugerir que escrevesse um livro, eu lhe garanto que seria um best
seller.
- Abel, é Você?
Ao seu estilo extravagante, Abel surge perante a princesa com um
belo sobretudo branco que cintilava a luz do
Glorioso Império.
- Você fez uma viagem astral só para me observar, Abel? Suponho

28 O Divino Leviatã
que esteja aqui desde o começo de minhas recordações.
- Sim, minha irmã… Escutei boa parte das suas memórias, somos
ligados pelo espírito, sinto a sua vibração áurica não importa onde estiver.
- O que quer de mim, Abel? Estamos de lados apostos, você fez
das suas para destruir Dom Rafael e a mim, e tudo pelo poder, e claro…
Ser a luz desse império, enquanto a mim? Restou o papel a alma errante
que adotou a escuridão.
- Deixe dessa vitimização e guarde esse besteirol filosófico para
você, quem liga para essa bobagem? - Advertiu Abel. - Vamos observar
juntos a história, irmãzinha… E faremos isso de um modo mais diverti-
do, venha comigo!
Abel puxou o braço esquerdo de sua irmã e ambos desapareceram
nos céus. E surgiram na capela.
- Veja como é bem mais divertido apreciar o passado participando
dele, ao menos como espetros.
- Desde quando consegue transitar pelas linhas temporais? - Per-
guntou Vitória.
- Truques que aprendemos com as nossas necessidades, fora do
corpo físico, tudo é possível. - Respondeu-me Abel.
- Não entendo…. Depois de tudo que me fez, ainda tem coragem
de me procurar?
- Psiu… A cena vai acontecer agora, olhe para baixo dos bancos
da igreja. - Disse Abel apontando para quatro fileiras de banco.
Vitória observa a sua figura do passado e comenta.
- Estranho… Por que não me lembrava disso?
- Psiu! Já disse, fica quietinha e observe o primeiro ato. - Advertiu
Abel ajeitando o seu dread.

- Pronto, aqui chegamos, não vejo nada, a não ser um monte de


quinquilharias.
- Acalme-se, Dom Fernando, existe algo que você ainda não sabe
sobre mim. - Disse a misteriosa mulher.
Ambos se aproximaram de um pequeno gazofilácio no centro da
capela, enquanto Crocell e a Senadora os observava logo atrás.
- Fui designada pelo próprio criador e por Lúcifer a ser a úni-
ca com o poder de abrir os vórtex. Depois da descoberta do Engenheiro

A princesa dilacerada 29
militar, muitos outros viajantes de todas as partes do Brasil avistaram es-
sas luzes, o que aguçou a curiosidade do Príncipe Herdeiro, Dom Pedro,
quase oitenta anos depois. Expedições foram feitas a revelia do imperador
Dom João VI, e foi exatamente nesse ponto que no início do solstício de
inverno de 1808, surgiu a luz perante Dom Pedro e outros cinco soldados
de sua confiança. Dom Pedro tentou interagir com o fenômeno, observou
com cautela a situação, quando decidiu agir, o nosso amigo Crocell apa-
receu e revelou ao príncipe que aquela era uma das chaves que interligam
o submundo, Terra, Céu e os poderes que as chaves guardavam, o perigo
que ofereciam a humanidade.
Crocell e a Senadora se aproximam do gazofilácio.
- Sim, o homem havia perdido a sua sintonia com o mundo espi-
ritual, e quando ocorre esse desequilíbrio entre os três mundos, os vórtex
entram em colapso, então fiz um mapa dos nove pontos. E concedi a ele
o poder de encontrar esses vórtex e selá-los até o dia que a humanidade
pudesse entender o seu papel no equilíbrio dos mundos. Isso só podia ser
feito por mãos humanas. O Príncipe desbravou a maior de suas aventu-
ras, cortou todo o Brasil e encarou a ganância de muitos aventureiros que
conheciam a lenda, sobretudo os americanos. Com muita dificuldade,
Dom Pedro venceu os obstáculos e selou os sete vórtex. Muitos usaram as
chaves dimensionais para atrair espíritos perigosos e realizar toda a sorte
de ganâncias, e o selo só pode ser quebrado por alguém que possua à au-
torização dos dois mundos espirituais ou daquele que foi escolhido pelo
supremo criador como imperador dos três poderes, o Divino Leviatã.
- E essa é só a introdução da história, se quiser saber do restante,
terá que nos acompanhar até o submundo. - Complementou a senadora
Helena.
Repentinamente, Crocell e a misteriosa mulher foram tomados
por uma premonição.
- Eles chegaram. - Exclamou Crocell.
A misteriosa mulher ajeitou o seu vestido e também constatou a
presença do inimigo
- Sim, e como foi previsto, seis indivíduos já estão posicionados
na casa e esperando as ordens da agência, um apoio aéreo nos entornos
e outros vinte agentes de campo organizados pela cidade para um apoio
logístico. Consigo sentir a vibração áurica de todos eles.

30 O Divino Leviatã
- Vocês chegam em minha casa, invadem a minha privacidade,
assustam a minha família e, de repente, começam a contar histórias des-
conexas, e a tal luz? Não vejo luz alguma. - Revoltou-se Dom Fernando.
Barulho de vidraças quebrando e gritos surgiram da casa.
- O que foi isso? - Perguntou Dom Fernando. - Invadiram a minha
casa, ouvi gritos da minha mulher, por acaso tudo isso faz parte do plano
de vocês?
- Os agentes da CIA já estão com a sua mulher e filho, infelizmen-
te o seu caseiro foi morto, eles manterão sua família com vida, pois é você
o alvo principal a ser destruído, serão usados como isca para te encontrar,
e eles sabem que está aqui. A CIA possui métodos pouco ortodoxos para
cumprir suas missões, não se importam muito com as constituições lo-
cais. - Comentou a misteriosa mulher.
- Acho que já viu o suficiente, não é mesmo? Aceite o seu destino
e poderemos tomar partido da situação. - Assim pressionou a Senadora
num tom bem incisivo.
As mãos de Dom Fernando tremiam e ele se mantinha incrédulo,
não conseguia formular uma frase, apenas observava os três na tentativa
inútil de encontrar alguma resposta. Foi quando o seu momento de inér-
cia foi quebrado pelo inevitável confronto com a morte, entram na capela
os agentes Finnigan e Morello.
- Existem coisas que simplesmente acontecem e muitas vezes
não temos o controle dos eventos… Grandes poderes precisam ser man-
tidos… E para isso, algumas ameaças precisam ser dizimadas. Querem
saber de uma coisa? Certo trecho dessa viagem cansativa eu me senti o
Aquiles em Ilíada, e pensei retratar todo esse derramamento de sangue
com um lindo conto poético, embora… - Disse Morello.
Nesse instante, os outros quatro agentes surgem na capela, um deles jo-
gou o menino Abel e a sua esposa Camila, desfalecidos sobre os chão da capela.
- O que vocês fizeram com a minha família seus desgraçados? O
que querem de mim?
- Estão vivos. Por eu ser metódico, não faço nada que não esteja
dentro do planejado, vocês morrerão juntos como uma família deve mor-
rer. Enquanto a você, senadora, saia daqui enquanto eu permito, já me
certifiquei que a sua viagem será tranquila, enquanto aos seus capangas…
Infelizmente é informação demais para eu ignorar, suas vidas terminam

A princesa dilacerada 31
aqui.
Dom Fernando olhou para a Senadora e também observou com atenção os
outros dois que a escoltavam, e assim tomou a decisão que salvou a sua família.
- Senadora, parafraseando o meu antepassado, se é para o bem ge-
ral da nação e principalmente da minha família, eu aceito o meu destino,
farei a viagem!
A senadora sorriu e prontamente fez um sinal para que os seus
dois subordinados agissem.
- Vocês sabem o que fazer. - Disse a Senadora.
- É claro que sabemos, já era tempo. - Respondeu a misteriosa
mulher.
- Eu não sei o que pretendem fazer, mas será inútil. Ah! Antes que
eu me esqueça, o nosso satélite mapeou todo o metro quadrado da sua
residência, lá encontramos a distinta senhora Camila e o garotão aqui,
o curioso é que descobrimos que na capela tinham três pessoas, a Se-
nadora, o Dom Fernando e uma pequena criança que se arrastava pelos
bancos. - Morello puxou com força a pequena Vitória e a rendeu. - Olha
só o que eu encontrei aqui.
- Papai! - Gritou Vitoria
- Filha! - Bradou desesperadamente Dom Fernando ao tentar ir ao
seu encontro.
- Nada vai acontecer com a sua família, a partir de agora, meu
dever é protegê-los. - Tranquilizou Crocell.
A misteriosa mulher se aproximou do agente Morello e o encarou
com deboche.
- Entediante… Seu satélite identifica muitas coisas, embora tenha
sido incapaz de localizar a presença de Crocell e a minha, é uma pena que
os esforços da agência mais importante do mundo, será de pouca ser-
ventia. Da mesma forma que a CIA possui os seus interesses, eu também
tenho a minha missão, e você, Morello, está no meu caminho.
- Quanta confiança para uma subalterna qualquer, vou te ajudar
na sua missão. - Morello apontou sua pistola semiautomática no fronte de
sua oponente e atirou a sem nenhuma cerimônia. A misteriosa mulher
caiu no chão aparentemente morta.
Camila e Abel acordaram com o barulho do tiro e observaram apavora-
dos o corpo sem vida.

32 O Divino Leviatã
- Do que adianta ser prepotente e fraca… - Comentou Morello
que olhava com desprezo a sua adversária no chão. - E você grandão? Será
o próximo! Fowler, cuide dele. - Ordenou Morello a um agente que usava
um rabo de cavalo, aparentava ter uns 35 anos e usava óculos escuros para
completar o visual.
- Alguma coisa a declarar? - Perguntou Fowler que já apontava a
sua Magnum 45 na cabeça do anjo renegado.
- Eu pergunto o mesmo, algo a declarar? - Replicou Crocell.
- Que conversa é essa? - Disse o agente Fowler seguido de uma
gargalhada arrogante.
- Preste atenção. - Preconizou Crocell com um semblante austero.
O anjo caído selou seus olhos e juntou suas mãos numa posição
de reza. Sua aura brilhou num azul intenso e moldou-se num triângulo.
- Equação Arcana! - Crocell proferiu sua conjuração e formou um
triângulo de energia que atingiu seu oponente, deixando-o suspenso no
ar devido ao grande poder de atração exercido pelo triângulo. Fowler caiu
no chão retorcendo-se todo para o espanto dos outros agentes.
Morello surpreso perguntou.
- Que tipo de tecnologia é essa?
Crocell não respondeu.
- Desde quando vocês brasileiros utilizam tecnologia militar tão
sofisticada?
-Vocês não fazem a mínima ideia do que estão enfrentando. -
Gargalhou a misteriosa mulher ainda no chão. - Suas armas são obsoletas,
eu sou desprezada pelos dois arranjos inevitáveis da existência, a vida e a
morte.
- Sendo assim, não posso morrer.
- Acham que vou acreditar nessa história? O que fizeram com o
Fowler? - Irritou-se Morello.
Repentinamente à agente Finnigan o interrompe.
- Morello, tem alguma coisa errada com esses dois, a agência não
consegue rastreá-los com o satélite, precisamos ser cautelosos.
- Quer saber o que aconteceu com o Fowler? - Perguntou Crocell.
O agente Fowler ergueu-se como se uma força invisível o manipu-
lasse, apontou sua arma para Morello e lamentou com os olhos marejados
- Me perdoe, é mais forte do que eu.

A princesa dilacerada 33
Antes que o gatilho fosse apertado, Morello teve o instinto de des-
viar do projétil e atirar contra Fowler quatro vezes.
O agente caiu envolto ao seu próprio sangue, suspirou por três vezes e morreu.
- Que Diabos foi isso? - Perguntou Dom Fernando.
- Não se preocupe, com esses dois você está a salvo. - Disse a Se-
nadora num tom tranquilizador.
- Por acaso isso é tecnologia soviética? Chinesa, Norte Coreana? -
Perguntou Morello.
- Não sei se conhecem as resoluções da ONU, usar armas de tec-
nologia desconhecida infringem um tratado com mais de 150 signatários,
dentre eles o Brasil, estão arrumando uma grande dor de cabeça diplo-
mática para o seu país. Meus parabéns! - Disse o Agente Morello ovacio-
nando com palmas espaçadas. - Conseguiram seus passaportes para vida,
agora saiam daqui junto com a senadora e nos deixem cumprir nossa
missão.
- E se eu pedisse para enfiar a sua cortesia onde lhe fosse mais con-
veniente, o que faria? Indagou a mulher num tom irônico e sensualizado.
A fúria tomou conta de um dos agentes, numa atitude intempesti-
va, colocou-se a frente de Morello.
- Já chega! Não vou ficar ouvindo essa mulherzinha nos afrontar.
- Não Timothy, não faça isso! Suplicou.
O Agente disparou uma rajada de tiros de submetralhadora, os
projéteis simplesmente ricocheteavam numa espécie de campo de força e
pereciam no chão.
- A hora do teatro acabou, Morello... Não mais fingirei que fui
atingida para satisfazer o seu ego, e antes que pergunte, uma das minhas
habilidades é a distorção do espaço usando telecinese avançada, enquanto
a você, Timothy, a lei da semeadura… semeou as suas cápsulas e vai co-
lher a morte…
Mais de cinquenta projéteis se voltaram contra o corpo de Ti-
mothy que desfigurou-se num cadáver ensanguentado sem ao menos ter
uma chance de reação.
Camila e as duas crianças correram para os braços de Dom Fernando.
- O que está acontecendo? Quem são essas pessoas? Perguntou
Camila com semblante de horror.
- Eu também não sei quem são, querida, prometo que ficará tudo

34 O Divino Leviatã
bem.
- Pai, estou com medo! - Disse o pequeno Abel que logo foi con-
solado pelo seu inseguro pai.

Finnigan que apontava a sua arma calibre 45 na direção dos seus


ofensores, titubeava em passos para trás.
- Morello, não temos condições de enfrentá-los, fomos recrutados
para uma missão de pequeno risco, isso aqui esta além da nossa capaci-
dade.
- Não temos uma ordem da agência para recuarmos. - Rebateu
Morello.
- Nós quatro precisamos sair dessa capela e nos espalharmos pelos
arredores, não vejo outra maneira a não ser explodirmos esse lugar e…
Morello interrompeu suas palavras e ficou mudo ao fitar dois de
seus agentes suspensos no ar por correntes incandescentes, restando ape-
nas Finnigan como sua companheira de missão, os corpos foram atraves-
sados, como se por lanças fossem atingidos.
- Meu Deus! Exclamou Finnigan aos prantos.
Morello aparentemente atordoado e sem a segurança de outrora,
disse:
- Eu nem havia percebido essas correntes, o que são vocês!? - In-
dagou Morello com um grito angustiado.
- Sou a missão, nada mais que isso, agora… Como toda brinca-
deira precisa ter um fim, deixei dois eventos espetaculares para que apre-
ciem, e é claro… Que participem! - Respondeu a mulher que despiu-se
do vestido negro e evidenciou um corpo tomado por correntes que con-
vergiam com o seu coração exposto para o lado de fora do peito e prote-
gido por duas espessas correntes que se sobrepunham as outras.
- Morello, diga-me, do que adianta ser prepotente e fraco? As cor-
rentes que atingiram esses pobres infelizes vieram direto do submundo.
Antes de enviá-lo ao inferno, assista o meu show particular.
A mulher caminhou até o pequeno gazofilácio e com a mão direi-
ta espalmada recitou um pequeno ritual.
- “Exilada da vida e rejeitada pela morte, guardiã das chaves dos
três mundos, evoco a luz que deu origem a criação, a organização do cos-
mos e da ínfima vida humana, a mão direita que selas-te com a sua marca

A princesa dilacerada 35
divina agora abrirá uma das suas moradas.” - A mão da guardiã dos três
mundos brilhou intensamente e fez liberar uma energia avassaladora, as
estruturas da capela começaram a tremer.
A luz do vórtex finalmente foi liberada, Dom Fernando e sua fa-
mília se afastaram da Luz, Morello e Finnigan tentavam furtar os seus
olhos daquele fantástico fenômeno.
- Então o temor de Washington é verdadeiro… - Comentou Fin-
nigan.
- E como havia prometido, o desfecho do último ato! - Disse a
Guardiã levantando os braços num tom teatral. Aos que são cativos das
correntes do submundo, jamais poderão se soltar! O castigo desses três
idiotas vem do Oeste.
Os estranhos enigmas da mulher deixou a todos incógnitos, até o
momento que um trote de cavalo foi ouvido.
- O que é isso? Se perguntou Morello.
- Os carrascos da morte chegaram. Respondeu a mulher com um
sorriso sádico.
Repentinamente duas figuras assombrosas adentraram a capela
montadas em seus corcéis negros e arredios, ambos ligados as correntes
que acometiam os três agentes.
- Não! Deixe-nos sair, por favor! Não queremos morrer!
A Guardiã colocou-se a frente dos pobres diabos que estavam ca-
tivos de suas correntes e sorriu.
- Vocês nada mais fizeram do que cativar a maldade que realiza-
ram em vida, se fossem pessoas justas, jamais as correntes os aprisiona-
riam. Mataram sem nenhuma compaixão, apenas obedeceram interesses
escusos. Eu não decido sobre a existência, sou apenas a guardiã dos por-
tais do submundo e do paraíso, se fossem pessoas de boa índole, jamais
seriam prisioneiros das correntes da iniquidade.
- Que espiem seus pecados eternamente, levem-nos!
Prontamente os cavaleiros da iniquidade obedeceram as ordens
da misteriosa guardiã e arrastaram os dois agentes para o centro da luz.
- Morello! Nos ajude! Por favor! Não queremos morrer! - Gritou
um dos condenados que foi arrastado sem piedade para o seu destino
infernal.
Camila desmaiou nos braços de Dom Fernando, tamanho foi o

36 O Divino Leviatã
impacto da cena que presenciou. Morello e Finnigan finalmente desper-
taram para realidade, trêmulos e confusos, abraçaram-se um ao outro
como se fossem duas crianças presas no escuro.
- Por favor, perdoe-nos pela nossa imprudência, só obedecemos
os interesses de Washington. Sou um agente de campo muito experimen-
tado, conheço toda podridão dos bastidores da CIA, tenho informações
tão comprometedoras que fariam de “water gate” uma mera notícia de
tabloide.
- Que cena mais patética, esperava mais dignidade, Morello. No
final das contas, não passa de um rato que trai seu próprio país para so-
breviver
- O que vai fazer conosco? - Perguntou Finnigan.
A guardiã não respondeu e sorriu ao contemplar o medo estam-
pado no rosto dos agentes. Crocell aproximou-se e indagou.
- Acha mesmo necessário matar esses dois? A casa branca já tem
o conhecimento do fracasso da missão, a morte deles não acreceria nada.
- Crocell, para um anjo caído por rebeldia, você tem um coração
muito mole, não posso deixar sujeitos da estirpe do Morello impunes, a
minha missão é garantir que não exista nenhuma ameaça para a implan-
tação do Divino Leviatã.
A guardiã deu as costas ao anjo caído e caminhou a passos lentos
na direção dos agentes. Morello e Finnigan tentaram inutilmente uma
fuga, mas os seus corpos foram paralisados e suspensos no ar pelo poder
telecinético da poderosa mulher.
Finnigan começou a chorar copiosamente, os seus soluços parti-
ram os corações de todos os presentes.
- Por que entrou na CIA, agente Finnigan? Você participou de
operações clandestinas na América do Sul e foi responsável por mortes
e cânceres de lideres de estado através do patógeno que trouxe ao Brasil.
Seu choro é de medo, e não de arrependimento.
- Sua desgraçada, acha mesmo que pode enfrentar à América so-
zinha? Um dia te encontro no inferno, vagabunda!
- Eu lamento não poder realizar o seu sonho, Morello, chegou a
hora de apreciar novas paisagens! As correntes do inferno surgiram das
mãos da guardiã, que impôs aos seus cativos a impossibilidade de fuga.
A mulher que tinha em seu poder a chave para uma das portas do

A princesa dilacerada 37
inferno, cantarolava uma cantiga infantil enquanto arrastava os dois para
o centro da Luz, ao cruzar o caminho de Dom Fernando e sua família, ela
sorriu e fez o convite para viagem.
- Siga-me Dom Fernando, chegou a hora de realmente conhecer
a verdade. - Depois de proferir essas palavras, correu para dentro da luz
e desapareceu junto com os dois agentes que clamavam desesperados por
ajuda.

Abel e Vitória protegiam-se abraçados nas pernas do pai, que por
sua vez segurava a desfalecida Camila em seus braços.
- Imperador, também precisamos partir. - Preconizou Crocell.
Dom Fernando acenou positivamente com a cabeça.
-Senadora, também viajará conosco? Perguntou o predestinado
imperador.
- Essa viagem eu já fiz e não pretendo retornar, vá em paz, cuidarei
das coisas por aqui. Disse a senadora.
Dom Fernando colocou a desfalecida Camila em cima do banco
da primeira fileira, e acomodou sua esposa com a jaqueta que usava,
Abel e Vitória ficaram juntos a mãe velando o seu repouso.
- Cuide da minha família, Senadora, eu voltarei!
Dom Fernando e Crocell caminharam para a luz e desapareceram,
assim como o vórtex que perdeu intensidade até dissipar-se por completo.
O silêncio pairou sobre a pequena igreja e os espectros de Abel e
Vitória do tempo presente que assistiram a todo o evento, começaram a
caminhar pela capela na direção dos seus passados.
- Eu não me lembrava do quão terrível foram esses acontecimen-
tos, não foi atoa que apaguei da memória. - Comentou Vitória.
- Sim, foi algo assustador, mas ainda existem fatos muito mais
relevantes para te mostrar. - Disse Abel.
- O que vamos fazer agora? - Perguntou Vitória.
- Ora, não é óbvio? Vamos desbravar ainda mais o passado.
Abel e Vitória desapareceram, deixando o pequeno templo des-
cansar em seu silêncio sepulcral.

38 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
III

A carta aos
condenados

-V
ocês demoraram... E quando usamos a valência do
tempo num plano de eternidade, é porque algo gran-
dioso que transcende os limites dos céus e da terra
esta prestes a acontecer.
- Sócrates, você teve a honra de ter junto ao criador, nem mesmo
eu que estive tão próximo de sua presença, sequer vi a sua face. - Disse
Crocell.
- Eu simplesmente desvendei o seu mistério e cumpri o meu jura-
mento quando fui condenado ao submundo zero. O criador não aprecia
aqueles que tentam desmistificar a sua deidade, o que vocês chamam por
filósofos são enviados para essa parte do submundo, onde precisamos
criar o nosso universo exatamente como Deus criou, por isso o marco
zero é o lugar mais caótico de toda existência.
- O que quer de mim, Sócrates?
- Quero que condene o Dom Fernando ao ostracismo eterno, e
que renasça as virtudes de um imperador que precisamos.
- Guardiã, por favor, abra o portal para o submundo zero.
O portal foi aberto e os quatro entraram no universo caótico
criado por Deus aos filósofos. Abel e Vitória que observavam os eventos
como espectros, olharam um para o outro e também desapareceram.
O marco zero do submundo era algo aterrorizante e ao mesmo
tempo magnífico, parecia uma representação do universo com todas as
suas luzes e criações no auge da primavera astral. Era possível ver plane-
tas, estrelas, constelações e outros corpos celestes.
- Isso não pode ser verdade… - Disse Dom Fernando incrédulo
com o que presenciava.

A princesa dilacerada 39
- Diga-me, qual é a verdade, imperador. A morte é tão ingrata
quanto a vida, não dá respostas, não há respostas, o que existe é a
vontade absoluta de um Deus.
- Veja aquilo. - Apontou Sócrates a uma colisão de planetas e
uma fusão de galáxias.
- Esses planetas se colidindo e a fusão dessas cadeias de galá-
xias, nada mais é que o encontro dos filósofos, no mundo zero suas
ideias vão de encontro e são destruídas. Muitos filósofos conseguem
criar o universo, outros sequer conseguem surgir do Boson de Higgs,
eu me libertei desse mundo, por uma fração de milésimos de segun-
dos obtive o poder divino, organizei o meu caos e crie as minhas pró-
prias leis do universo. Dom Fernando, tenho algo pra você.
Sócrates entrega uma carta ao imperador junto com uma se-
mente vermelha que selava o envelope.
- O que significa isso? - Perguntou Dom Fernando.
- Essa é a carta dos condenados de todas as eras da terra. Essas
almas clamam pela misericórdia do criador, a semente que sela a car-
ta dará origem a Ninrode. - Revelou Sócrates.
- Ninrode? - Insistiu Dom Fernando.
- Ninrode foi um rei da antiguidade, um dos poucos sobrevi-
ventes do dilúvio, um homem que ousou a desafiar Deus. Sua alma
foi conjurada e o seu corpo transformado numa semente. A punição
de Ninrode será dar o fruto que ele sempre desprezou em vida, a obe-
diência ao criador e a mortificação do livre arbítrio. Ninrode será à
árvore que unirá os três reinos do Divino Leviatã, e terá que ser ger-
minada no momento que os sete reis tomarem posse dos seus reinos
e o imperador vencer o inimigo do Brasil.
- Você fala por enigmas, eu não entendo. - Inquietou-se Dom
Fernando.
- Você entenderá... O importante eh que o mundo volte a sua
essência. O contato direto com o oráculo de Delfos e de todos os can-
tos da terra. A criatura não questionando o criador, pois assim era
antes da terça parte dos céus cair.
Antes que todos pudessem refletir sobre as palavras de Sócra-
tes, um poderoso relâmpago rompe os céus do marco zero.
- Parece que temos uma resposta dos céus. - Comentou a

40 O Divino Leviatã
Guardiã que observava o fenômeno.
- Finalmente, já era tempo dele se manifestar... Apareça de
uma vez, Arcanjo Miguel! - Bradou Crocell que assistiu um gran-
dioso ser surgindo dentre os relâmpagos. Seus cabelos loiros eram alon-
gados com sete tranças, seu corpo vibrava numa frequência superior a
humana, sua aura emitia um som constante e suave, traços femininos e a
indumentária constituída por um mineral ainda mais resistente e sublime
que o diamante.
- O que há para compreender nos desígnios de Deus? - Questio-
nou Miguel. - O que há de transcendental num traidor expulso dos Céus?
Numa criatura que rejeitou a própria humanidade? Na filosofia de um
simples homem? O que o criador quer de um imperador fraco?
- Suas questões são as mesmas de milhões de anos atrás, apenas
mudaram os personagens. Quando você levantou a sua espada e venceu a
nossa rebelião, vi essas mesmas questões refletidas nos seus olhos. - Disse
Crocell.
-Você sempre foi um pretensioso, Crocell, acha mesmo que pode
fazer uma leitura sobre mim? Jamais tive dúvidas... Eu sou o ser no uni-
verso que mais reflete a glória do criador... E mesmo assim, ele não me
deu a missão de reerguer a estrutura dos três mundos.
Miguel se aproxima de Dom Fernando e o encara de cima abaixo.
- Ele escolheu esse homem fraco e cheio de dúvidas.
- E você não seria a mais fraca das criaturas por ser o mais próxi-
mo do criador e ainda duvidar das suas vontades? - Interviu Sócrates.
- Eu não estou aqui para tratar das minhas questões, vim em nome
do criador para sacramentar o Divino Leviatã. Miguel elevou-se aos céus
no bater de suas quatro asas, ergueu seu braço direito e fez surgir uma
poderosa espada que parecia reluzir a luz de uma estrela.
- Está sacramentado! Céus, terra e submundo mais uma vez uni-
dos como no começo da criação! - Miguel apontou sua espada de luz na
direção do imperador e o seu brilho ficou intenso ao ponto de tomar todo
o marco zero com sua intensidade.
Todos desviaram seus olhos da luz, até ela dissipar-se por comple-
to.
- Miguel? - Chamou o Imperador.
- Ele se foi... Mas cumpriu a sua missão, olhe para sua mão direita.

A princesa dilacerada 41
- Disse Crocell.
Dom Fernando observou o desenho de um pequeno leviatã na
palma de sua mão.
- Isso é inacreditável...
- E eu represento Lúcifer, o imperador do submundo, sua rubrica
é a primeira da carta dos condenados. - Revelou Crocell.
- Temos o nosso acordo, agora precisamos sair desse lugar. - Disse
a Guardiã num tom impaciente. - Voltem para terra e se preparem para a
maior guerra que a sua nação já enfrentou. Na época que lutei no Pelopo-
neso, tanto os reis quanto o seu povo lutavam na pureza de suas espadas e
eram consagrados com honras pelo sangue que vertiam, hoje os sofistas
dominaram o mundo e as guerras não acontecem mais pelo resgate da
honra ou pela conquista de um território, a guerra virou um mercado,
nem mesmo os trinta tiranos seriam tão ousados. O ser humano precisa
de grandezas universais, somente assim encontraremos a verdade.
Dom Fernando fitou por alguns segundos a figura de Sócrates e
depois a imensidão dos céus do Marco Zero, antes que pudesse se perder
em pensamentos, a Guardiã o trouxe a realidade.
- Chegou a hora de voltarmos para casa, esse lugar é deprimente.
A guardiã abre o portal e os três abandonam o submundo zero, deixando
Sócrates contemplando o mundo no qual um dia foi cativo.
Abel e Vitória espectrais comentam sobre o que acabaram de pre-
senciar.
- Eu sempre fiquei impressionada com papai contando essa his-
tória, vendo tudo isso acontecendo é ainda mais incrível. - Comentou
Vitória.
- Sabe o que achei curioso? Nosso pai é um homem firme, coman-
da um império praticamente invencível, nunca o vi confuso e cheio de
dúvidas da forma que presenciei aqui.
- Para onde vamos agora? - Perguntou Vitória.
- A diversão só começou, irmãzinha, vamos assistir a batalha final,
venha comigo.
Ambos se deram as mãos e desapareceram do marco zero.

Os espectros de Abel e Vitória surgem no inóspito submundo, gri-


tos de horror na escuridão e a desesperança eram a continuação da morte.

42 O Divino Leviatã
- Mesmo tão habituada a esse lugar, a sensação de desesperança
ainda me aflige. - Comentou Vitória.
- Minha irmã, o espírito da morte é o regente de uma das estru-
turas da existência, o fim das esperanças é o controle que ela tem para
manter todos sobre o seu domínio. Olhe aquilo, Vitória.
Abel apontou para uma grande ponte acima de um vale, suspensos no ar
observavam a guardiã arrastando os condenados com as suas correntes.
- Chegamos ao destino, espero que apreciem cada segundo. - Dis-
se a Guardiã.
- Que lugar é esse? - Perguntou Morello.
- Essa é a ponte que dá acesso a todas as extremidades do sub-
mundo, abaixo de vocês existe o lago da expiação.
Os gritos de horror surgiam do lago de águas escuras e lodosas,
milhares de almas acorrentadas umas as outras suplicavam por perdão
frente a uma gigantesca estátua de Maria, a mãe de Deus, que chorava
lágrimas de sangue pelo sofrimento dos condenados.
- Guardiã, eu imploro, sei que existe algo de humano em você, nos
mande de volta para nossa família, eu tenho dois filhinhos. - Implorou
Finnigan que soluçava ao chorar.
- Triste engano, nada mais soa humano em minha existência...
Hoje o legado da minha missão é tudo o que preciso.
Nesse momento chegam Crocell e Dom Fernando. Morello olhou
pela última vez o predestinado imperador do Brasil e se despediu com
uma insólita profecia.
- Imperador, Vai chegar o momento que desejará o destino que a
CIA lhe reservou. Do que valerá tudo isso? Se terá que ferir sua própria
carne para manter a sua coroa? Eu espiarei os meus pecados que são mui-
tos, mas você sentirá que uma ordem do criador vai lhe ferir mais que
qualquer pecado. Seu choro será mais amargo do que todas essas almas
condenadas juntas...
Dom Fernando apenas observou consternado o agente Morello.
A guardiã suspendeu os condenados com as correntes, e os despejou no
lago da expiação.
- É melhor nos apressarmos, imperador, muitas pessoas têm ur-
gência em vê-lo.
Os três atravessaram a extensa ponte, Dom Fernando que não pa-

A princesa dilacerada 43
rava de fitar todo aquele ambiente terrível, criou um estranho fascínio
pela estátua de Maria que chorava pelos seus condenados.
Um grande campo tomado por uma densa névoa surge perante os três.
- Que sensação horrível. - Comentou Dom Fernando.
- Esse é o campo de batalha mais terrível da existência humana,
todas as grandes guerras acontecem aqui, aquele que viveu pela arma,
aqui também o fará.

Avançando o campo, era possível assistir homens de todas as eras


travando uma batalha sem sentido algum, apenas se destruíam continua-
mente.
- Isso é perturbador até mesmo pra mim. - Disse a guardiã ao as-
sistir um acadiano decepando a cabeça de um legionário.
- Esperem! Quem ousa ultrapassar os limites do nosso território?
- Surge uma divisão com mais de 200 homens com fardamento da SS.
- Esse lugar pertence ao grande Hitler, não é permitido tráfego de
civis. - Bradou uma figura cadavérica que aparentava ter uma alta patente.
- Pobres diabos, pensam que estão na Segunda Guerra, esses sol-
dados morreram no inverno russo, antes da Alemanha ser derrotada. -
Explicou a Guardiã.
- Escutem com atenção! - Alertou Crocell. - Apenas queremos ul-
trapassar o campo, não precisamos de um enfrentamento inútil.
Os soldados começaram a rir.
- Olhem só! Não querem um enfrentamento inútil, suas vidas aca-
baram no momento que invadiram território hostil!
- Se querem assim...
Crocell novamente juntou suas mãos na posição de prece e levitou
perante os soldados.
- Que truque é esse? O que pretende fazer?
A aura azul do anjo Crocell se converteu em três formas geomé-
tricas. Acima da sua cabeça um triângulo, a sua esquerda o retângulo e a
direita um círculo. Suspenso no ar, Crocell alertou os seus adversários.
- Tolos... Já morreram a tanto tempo e nem se deram conta que
suas vidas foram grandes desperdícios... Cometem exatamente os mes-
mos erros.
- Já me cansei da sua conversa! - Zangou-se o soldado. Os duzen-

44 O Divino Leviatã
tos homens atiraram contra o anjo caído que recebeu as balas no corpo
sem esboçar reação.
- Suas armas não podem me ferir, eu não tenho interesse algum de
continuar com essa luta. Equação Arcana! Tríplice estrutura da existên-
cia!
A conjuração recitada por Crocell multiplicou os triângulos e re-
tângulos em duzentos, e cada nazista recebeu no seu fronte a marca trian-
gular e no peito a retangular, o círculo tornou-se um enorme pentagrama
no chão que envolveu todos os soldados.
- O que diabos é isso? - Se perguntou Dom Fernando.
- Essa é a equação arcana que atinge as três formas da existência,
cada ser vivente possui uma equação, cada espécie com sua complexida-
de, o triângulo sela à alma, o círculo tem a regência sobre o tempo de vida
e o retângulo controla o corpo carnal, uma vez desvendada a equação,
posso ter o controle sobre a mente e corpo de uma pessoa. - Respondeu
Crocell.
- Maldito! - Praguejou o cadavérico comandante nazista.
- Que suas almas fiquem seladas até que consigam espiar suas
existências desprezíveis. Selo arcano esquife! - Conjurou Crocell. Os re-
tângulos marcados no peito dos soldados converteram-se em esquifes ne-
gros e os envolveram.
- E pensar que esses miseráveis assombraram o mundo, que paté-
ticos. - Comentou a Guardiã.

Os três atravessaram o campo nebuloso e encontraram uma pe-


quena bifurcação que parecia ligar uma caverna.
- No final dessa caverna encontraremos quem anseia em nos ver.
- Preconizou Crocell.
- O cheiro de enxofre desse lugar é algo impressionante, mal con-
sigo respirar. - Queixou-se Dom Fernando levando as mãos ao nariz.
- É natural que sinta isso com o seu corpo carnal, imperador, os
seus sentidos no submundo são seis vezes mais aguçados do que na terra.
- Explicou Crocell.
- Vamos logo, precisamos nos apressar. - Disse a Guardiã num
tom impaciente.
Ambos começaram a explorar a caverna e ao passo que avança-

A princesa dilacerada 45
vam, deparavam-se com figuras cadavéricas acorrentadas.
Pareciam enfeitiçados, dançavam, corriam, discursavam, pregavam, es-
creviam... Algo que assemelhava-se a um sanatório.
- Eles são inofensivos, quando encarnados, viveram uma vida
egoísta e de aparências, e aqui continuam com suas ilusões... - Explicou a
Guardiã.
Um homem se aproximou de Dom Fernando e o interpelou.
- Ei você! Conhece a minha filha Lisandra? Olhe como é linda. -
Disse o homem que mostrava com uma expressão feliz e com suas carnes
desprendendo do osso, um pedaço de pedra que imaginava ser a fotogra-
fia de sua Lisandra.
- Sim, sua filha realmente é muito bonita. - Respondeu Dom Fer-
nando desconcertado.
- Hoje não posso falhar, vou encontrá-la. - Determinou o homem
que dispersou-se para outro lugar.
- Esse homem morreu na eminência de cumprir a sua promessa,
viveu para destruir reputações e ter dinheiro fácil, a frase que mais dizia
a sua filha foi: “Amanhã eu volto” e sua existência agora agoniza em busca
desse amanhã que nunca mais chegará. - Disse Crocell ao observar a de-
primente figura cativa de seus delírios.


Dom Fernando.
- O livre arbítrio... Esse é o resultado... Seria o homem in-
capaz de ser o senhor das suas vontades? - Se perguntou

- Ora! A sua resposta esta exatamente na pergunta. - Disse uma


voz jovial que emergiu de uma figura camuflada nas sombras.
- Quem é você? - Perguntou Dom Fernando.
- Sou aquele que o espera com anseio, a história da humanidade
me apresenta por... - Um jovem rapaz saiu das sombras e se apresentou -
Sócrates.

46 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
IV

O Misterioso
William

A
bel e Vitória reaparecem num cenário devastado.
-Contemple o caos, irmãzinha, esse é o centro ve-
lho de São Paulo…
- Estamos no meio da segunda revolução constitucionalista? -
Perguntou Vitória que flutuava sobre os escombros da prefeitura.
- Sim, a cidade foi totalmente devastada, a união rejeitou o pacto
federativo e a nova república, é claro que isso recorreu num grande derra-
mamento de sangue.
Repentinamente dois caças rasgam os céus.
- Assista a história em seu fluxo! Para que servem os historiadores,
afinal? Se podemos ser testemunhas oculares? A materialidade sem influ-
ência ideológica. Apenas observe, Vitória!

Dois caças da força aérea brasileira cruzavam os céus no encalço


de um único homem, seu nome, William Andradas. Considerado inimi-
go número um do Brasil, fomentou a maior revolta já conhecida, reu-
niu um exército de revoltosos que fez declinar o antigo sistema. William
caminhava na direção do teatro municipal ignorando a perseguição dos
caças.
- A paz possui a sua dualidade, ela habita nos campos de flores
e na brisa sobre a relva, embora edifique a sua morada no silêncio das
cidades destruídas e nos ventos que ajudam a exalar o nauseante sangue e
a carne apodrecida, tudo evolui no silêncio, entender a existência é saber
que existem duas formas de vivenciar a paz nos arranjos de vida e morte...
Qual tipo de paz eu quero? O que os meus inimigos merecem?
William levantou seu braço na direção dos caças e conjurou:

A princesa dilacerada 47
-Estou aqui... Representando a nova era para o Brasil, não preci-
samos de homens corruptos e tão pouco do Divino Leviatã.
William olha diretamente para os caças e retira do seu longo ca-
saco preto, duas espadas chanfradas. As lâminas emanaram um brilho
dourado e intenso.
- Desapareçam! - Bradou William atirando as duas espadas na di-
reção dos caças, foram rasgados pelo poder do cintilar dourado e tomba-
ram próximos aos escombros da prefeitura.
Com um olhar desolado observando a cidade destruída, William
recitou um poema de Cecilia Meirelles.

- Tanto é o sangue
Que até a lua se levanta horrível,
E erra nos lugares serenos,
Sonâmbula de auréolas rubras,
Com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
Que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
E os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...


Os olhos que já não pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...

Nesse instante chega um jovem empunhando uma arma de pe-


queno porte, seu braço esquerdo estava enfaixado com uma gaze man-
chada por sangue, um rosto que apresentava uma fisionomia jovial e for-
jada por duros conflitos, uma cicatriz no queixo marcava seu histórico de
batalhas.
- Irmão... Você não perde o costume de chegar repentinamente
nos lugares. - Disse William.
- Me perdoe, irmão, apenas pensei que seria prudente avisá-lo que
avançamos a segunda parte do plano, partiremos para Brasília dentro de
uma hora.

48 O Divino Leviatã
- Perfeito, não há mais nenhuma resistência aos nossos objetivos,
a propósito, você foi muito bem na sua entrevista no jornal das oito, estou
orgulhoso.
- Eu tive o melhor dos mestres, tudo que sei aprendi com você. -
Disse Kadu passando as mãos entre as mechas do cabelo e sorrindo timi-
damente.
- Enquanto a nossa convidada especial, apreciou as nossas acomo-
dações?
A ironia de William contagiou o seu irmão que por um instante
perdeu-se em olhares debochados para o vazio a sua direita, certamente
buscando a sua memória visual.
- Confesso que não foi tarefa fácil nos livrarmos daqueles segu-
ranças, mas conseguimos sequestrar a senadora Helena Sant’anna, quer
uma palavrinha com a excelentíssima?
- Tragam-na até aqui, quero fazer as minhas reverências pessoal-
mente.
Dois homens fortes e trajados com um terno preto, arrastavam a
senadora Helena que inutilmente tentava se desvencilhar dos capangas.
- Curioso, acho que a senadora tem algo muito importante a nos
dizer, mas é uma pena, não consigo escutá-la.
- Kadu, tenha a bondade de tirar a mordaça da nossa ilustríssima
senadora. - Assim pediu William, entoando sarcasmo e indiferença a dor
de sua refém.
Sem o menor tato e cerimônia, Kadu puxou a fita adesiva dos lábios da
senadora, causando-lhe intenso desconforto.
- O que pensam que estão fazendo? Acham mesmo que conse-
guirão levar esse plano adiante? Nada podem fazer contra as providências
divinas.
- Providências divinas... - Sussurrou William. - Deus mais uma
vez muda os seus planos e eu preciso adequar-me aos divinos desejos...
Não... Não precisamos de um Deus, tão pouco de um imperador... O Bra-
sil prosseguirá! - Exclamou - Quer saber de uma coisa, Senadora? Talvez
eu seja um castigo de Deus, e se você não tivesse cometido grandes peca-
dos, o seu Deus não teria me enviado para te castigar.
- Para citar Gengis Khan, sem dúvidas deve nutrir o mesmo espí-
rito tirano dele. - Rebateu a Senadora.

A princesa dilacerada 49
William apenas sorriu e fez um sinal para que os seus dois subor-
dinados à amordaçassem novamente, mas por um momento, permitiu-se
hesitar e gesticulou com a mão direita para que parassem a ação.
- Existe um motivo especial para mantermos essa sua carcaça ve-
lha com vida... Seja sabia, senadora, você sabe que no tabuleiro de Deus
você é uma mera peça, apenas diga o queremos saber, qual o paradeiro do
imperador?
- E o que te leva a pensar que vou passar informações de Dom
Fernando?
- Pois bem... Parece que teremos que fazer uma viagem para re-
frescar a sua memória. Vamos para Brasília! Kadu, providencie tudo.
- Pode deixar irmão, podemos partir a qualquer momento.
- Sim... Cantaremos o novo hino no Palácio da alvorada. - Disse
William cerrando os punhos.
E naquela mesma noite o presidente do Brasil fez um pronuncia-
mento em cadeia nacional.
- Interrompemos a nossa programação para o anúncio do excelen-
tíssimo presidente da república, Inácio Vergueiro, de acordo com a LEI Nº
9.504, DE 30 DE SETEMBRO DE 1997.
- Povo brasileiro, hoje é dia 22 de agosto de 2019, avançamos oito
meses de governo trabalhando arduamente, como disse o apóstolo Paulo,
combatemos o bom combate, e vocês, povo brasileiro! Caminharam conos-
co até agora. Eu, Inácio Vergueiro, fiz um juramento de amor com a pátria,
e é por amá-los tanto, que anunciou em cadeia nacional a minha renúncia.
Existem momentos na vida que um líder precisa reconhecer os seus fracas-
sos, e devido aos últimos acontecimentos, tenho o dever de alertá-los sobre
os novos tempos que a nação enfrentará, entrego o governo a patentes que
não conheço, mas não tenho escolha a não ser confiar o Brasil na mão des-
sas pessoas e torcer sempre pelo melhor. E as minhas últimas palavras como
líder do executivo deste país, peço que tenham acima de tudo, tranquilida-
de.
Repentinamente a transmissão foi congelada, a imagem do cabis-
baixo presidente se multiplicou em diversos televisores enfileirados num
grande corredor escuro. Vitória e Abel caminham entre as imagens sus-
pensas.
- Convenhamos, William era um sujeito arrojado. - Comentou

50 O Divino Leviatã
Abel.
- Ele era um fanático pelo poder, assim como você, irmão.
- Vitória... Sua falta de ambição lhe trouxe até aqui, foi amaldiçoa-
da por escolher o lado mais fraco. E hoje? O que se tornou? Valeu a pena
se rebelar contra o seu próprio sangue?
- Você sabe muito bem que os meus motivos são bem maiores que
uma desavença familiar, mas afinal, por que me trouxe a esse lugar?
-Oh! Irmãzinha! Eu estava esperando você perguntar! O local que
estamos é pura alegoria simulada pela minha mente criativa, lhe trouxe
aqui para assistirmos o começo da meteórica república de William, e por
fim, o nosso triunfo! Vamos para Brasília!
Os televisores que antes mostravam um fracasso presidencial,
agora transmite a tomada do poder de William Andradas.
O povo aplaudia William que contemplava o esplendor do planal-
to, os aplausos cessaram ao passo que percebiam os olhares de William
perdidos na imensidão. O silêncio reinou por um minuto cravado, até o
momento que William se pronunciou:
- Vocês sabem traduzir o som dos ventos? Conseguem decifrar
seus códigos? Eu escuto a música e a poesia que os ventos me trazem.
Muitas vezes não necessitamos que as notas sejam entoada através dos
instrumentos musicais, da voz de uma solista ou na declamação de um
trovador solitário. Basta senti-los por cada átomo do corpo e traduzi-los
em inspiração.
O que os ventos nos trazem? Nos trazem a mesma inspiração
quando fui eleito senador da república por São Paulo, os ventos que fazem
tremular nossa bandeira são os mesmos que trazem o legado de liberdade
ao meu país. E pergunto a vocês, o que os ventos lhes sopraram? - Pergun-
tou William no apogeu de sua retórica.
- Liberdade! Esperança! - Responderam vozes na multidão.
- Liberdade uma sensação, esperança uma expectativa... - Sussur-
rou William. - Os ventos trouxeram cinco soluções, e através deles, liber-
dade e esperança serão defendidos.
William voltou seus olhares para a multidão e bradou!
- Apareçam, meus cinco federalistas!
Do povo surgiram cinco figuras que se movimentavam em grande
velocidade.

A princesa dilacerada 51
Os federalistas se colocaram de joelhos em reverência ao presidente
William.
- Esses são os homens e mulheres mais leais do país, dariam a
vida por vocês, por favor se apresentem.
O primeiro a se apresentar foi um homem de longos cabelos ver-
melhos e fisionomia pacífica, trajado com uma exoarmadura mesclada
de dourado e carmesim.
- Meu nome é Theodoro, sou o responsável pela federação do su-
deste.
- Eu sou Ingrid e os meus domínios são todas as terras do Sul.
- Disse uma jovem mulher de cabelos loiros e curtos trajando um exoes-
queleto branco.
- Heitor! Federalista do Centro Oeste! - Bradou um homem negro
que usava uma trança até a cintura, sua exoesqueleto era negra com raja-
das verdes.
- Aghata, domino a federação do norte! - Trajada com uma exo-
esqueleto que imitava o princípio do galhos de árvores contornando o
corpo, no seu braço direito duas serpentes intercalando-se na cor verde
e amarelo, a função das serpentes é proporcionar uma excelente opção
de ataque disparando flechas. Seus olhos negros e profundos contrastam
com sua pele vermelha, as feições eram de uma mulher indígena e seus
cabelos escuros escorriam até a base da cintura.
- Eu sou Romeu e sirvo ao grande presidente William comandan-
do a federação do Nordeste! - Disse um grande homem com a típica ca-
racterística cabocla, usava um corte de cabelo ralo e assimetricamente
ajeitado, sua indumentária combinava as ligas de metal de forma diferen-
te das demais, uma combinação de espirais na cor preta e marrom, no seu
peito uma insígnia azul.
O povo imediatamente se afastou dos cinco federalistas e os ob-
servavam com curiosidade.
- Federalistas? O que isso quer dizer? Os Estados acabaram?
- É claro que não, os outros estados continuarão os mesmos, o que
o presidente William propôs foi um melhor controle da união. - Respon-
deu Theodoro, Federalista do sudeste.
- Sim, separando as regiões teremos mais facilidade para uma re-
organização econômica e autonomia das federações. - Complementou

52 O Divino Leviatã
Aghata, federalista do norte.
William sorriu ao observar a inquietação do povo e chamou o
último componente daquela cerimônia de posse.
- Agora eu queria que vocês conhecessem a pessoa que me ajudou
a fazer tudo isso possível, venha cá, meu querido irmão, Kadu.
Timidamente o discreto irmão de William surge do povo e cami-
nha pela rampa do planalto até chegar a sacada do palácio.
-Tudo isso só foi possível graças a genialidade de um jovem de
quinze anos, peço que não economizem em seus aplausos para reveren-
ciarem o meu irmão, Kadu! Os exoesqueletos e todas as armas do nosso
exército nasceram nessa mente incrível!
O público ovacionou e gritou pelo nome do acanhado Kadu que,
discretamente acenou para a multidão. William abraçou seu jovem irmão
e juntos contemplaram a euforia popular.
- Eu ainda não entendo tudo isso. - Confessou Kadu numa expres-
são incógnita.
- Um novo tempo, irmão...
Assim disse William formando um sorriso iluminado pela luz da
lua.

A princesa dilacerada 53
EPÍSTOLA
V

O novico
'

A
república de William suspendeu todos os direitos garantidos
na constituição de 1988, o país foi dividido em cinco federa-
ções.
Foram dois anos de profunda crise financeira e social, os gover-
nos se tornaram ineficientes ao atender a demanda dos estados, muitos
se rebelaram contra as irresponsáveis políticas econômicas, monopólios
e oligopólios cresciam ao passo que as iniciativas populares eram inibidas
pelos aparatos do estado.
Assim, passaram-se dois anos, Dom Fernando havia desapareci-
do sem deixar rastros, a senadora Helena Sant’Anna pagou o preço pela
morte dos seis agentes da CIA, uma semana depois da posse do presi-
dente William, seu corpo foi encontrado em seu apartamento, suspenso
a uma corda amarrada em seu pescoço, um assassinato que foi divulgado
pela mídia como suicídio. Washington determinava as diretrizes do Bra-
sil, aquela liberdade tão anunciada na noite do golpe não passava de um
idealismo.
A frágil utopia de William lhe custaria caro. Um jovem foi escolhi-
do para devastar as estruturas do governo, sua missão é preparar o Brasil
para a chegada do imperador.

Goiânia, GO - Federação do Centro-Oeste.

- Que monotonia... As noites de Goiânia tornaram-se tão chatas.


- Segura a onda, Alberto. A federação ainda está em estado de
sítio, logo tudo voltará ao normal.
Assim conversavam dois soldados trajados com exoesqueletos
negros. Tinham a incumbência de vigiar o perímetro nos arredores da
câmara municipal de Goiânia.
- Eu gostava da minha vida de solteiro, o meu único compromisso
54 O Divino Leviatã
era transar com quem eu via pela frente.
- Alberto, você é o cara mais indiscreto do mundo.
- Carlos, sou um homem com muitas demandas, um predador!
Sigo o cheiro de sangue e vou à caça.
Nesse instante duas mulheres chamam à atenção dos soldados,
elas gritavam e gargalhavam com garrafas de cerveja nas mãos.
- Olha só o que temos aqui, Carlos... Duas idiotas infringido o
toque de recolher.
Os dois policiais se colocaram a frente das garotas e as interroga-
ram.
- Vocês já deveriam saber que violar uma lei marcial é um ato de
terrorismo na federação do centro Oeste. - Disse Alberto com a arma
apontada para as jovens.
- Nos perdoe, senhor, estávamos voltando de um aniversário e não
tínhamos outro caminho para fazer, moramos no conjunto habitacional. -
Se explicou uma das meninas que usava jeans, uma camisa collant branca
e boné azul. Ambas eram negras.
Alberto as observou por alguns segundos e sussurrou:
- Moram no conjunto habitacional...
- Sim, moramos, tem algum problema nisso? - Respondeu a outra
garota que usava tranças enraizadas...
- Você é abusada, garota... Ser um soldado federalista me dá al-
guns poderes, sabia que eu posso te prender por trinta anos numa cadeia
Federal alegando o que eu quiser? Fale apenas quando eu mandar, enten-
deu? - Ameaçou Alberto.
- Isso é injusto, você não tem esse direito. - Retrucou uma das
garotas.
- O seu direito é o que eu decidir. Querem se livrar da cadeia?
Terão que me fazer um pequeno favor.
- Alberto, o que você está pensando em fazer?
- Carlos, não é óbvio pra você? Temos aqui quatro pessoas com
graves problemas, essas lindas garotas não querem ser presas, enquanto a
nós... Ah! Precisamos recuperar um pouco da juventude que a vida nos
tirou.
- Isso é loucura. - Retrucou Carlos.
- Não, eu diria que é uma das maneiras bizarras de conceber ofer-

A princesa dilacerada 55
ta e demanda.
Repentinamente a garota de boné azul atacou a cabeça de Alberto
com uma garrafa de cerveja e tentou fugir junto com à amiga.
“Corre!”, Gritou uma das meninas.
Como um caçador jogando com a presa, Alberto as deixou correr
até uma determinada distância, e usando a incrível tecnologia do exo-
esqueleto, deslocou-se numa velocidade sobre-humana, colocando-se a
frente das pobres garotas.
- Vocês tornaram essa caçada mais divertida, agora sejam boazi-
nhas.
Nesse instante o soldado Carlos os alcança.
- Alberto, não é melhor simplesmente as deixarem partir?
- Fique observando. - Respondeu Alberto com um sorriso sádico.
O inescrupuloso policial rasgou as roupas das duas jovens e as ergueu
pelo pescoço.
- Escolha uma Carlos.
- Não, não posso fazer isso! - Recusou Carlos.
- Frouxo! Ao menos fique de vigia e me alerte se acontecer algo
estranho, enquanto a mim e essas duas belezas, vamos nos divertir um
pouco na guarita móvel e...
A fala do inescrupuloso Alberto foi interrompida por uma insóli-
ta visão. Surge uma figura de túnica branca, seu rosto não se desvendava,
a lua iluminava o alvo capuz que apenas mostrava a sombra de um rosto
juvenil.
- Quem diabos é você? Está infligindo uma lei marcial. Identifi-
que-se e coloque as mãos onde eu possa ver.
A figura ficou estática.
- Não vou repetir o meu comando! Mãos ao alto e identifique-se!
- Irritou-se Alberto.
A figura manteve-se inerte.
- Vejo que você não é muito comunicativo, talvez eu precise ser
mais convincente. - Novamente ameaçou.
- Não entendo... Em qual momento o estado se corrompeu ao
ponto de usar instrumentos da lei tão desprezíveis? - Sussurrou a figura.
- Ora, temos um questionador! Você está começando a me irritar.
- A irritação não deveria ser um código dos soldados federalistas,

56 O Divino Leviatã
não passa de uma estúpida reação emocional. - Disse a misteriosa apari-
ção.
- Já chega dessa besteira! - Alberto arremessou as duas jovens de
forma violenta no chão e retirou de sua perna direita um bastão de cho-
que acoplado.
- O que você vai fazer? - Questionou Carlos que tentou interceptar
o braço direito do seu companheiro de soldo.
- Observe! - Respondeu Alberto que ao se desvencilhar de Carlos,
atingiu a ambígua figura que ao chão pereceu.
Os dois soldados surpreenderam-se com o que o alvo capuz re-
velou, era apenas um menino, aparentava ter uns dez anos, tinha um
rosto corado, cabelos castanhos claros e traços bem delicados.
-Que droga é essa, Alberto? Você usou a voltagem letal numa
criança?
-Seu desgraçado! Matou o menino! - Gritou uma das garotas.
- Fique quieta, piranha! Preciso pensar em algo.
Por um instante, Alfredo se fechou em pensamentos e observou o
jovem desfalecido por alguns segundos, até o instante que os seus olhos
foram tomados pela cólera resulta de algum pensamento perturbador, e
foi assim, joguete do próprio ódio que o acometera, propôs a Carlos a pior
forma de corrupção da alma.
- Carlos, preste atenção no que eu vou dizer, pois será esse o rela-
tório que você escreverá sobre a ronda de hoje: “Jovem de aparentemente
dez anos de idade assassinou duas jovens negras por ódio racial, o policial
Alberto e eu vigiávamos o outro perímetro da Câmara municipal quando
ouvimos gritos, e quando nos direcionamos ao local do evento, nos de-
paramos com a fatídica cena de um jovem garoto tomado por um ódio
irracional, bebia o sangue de suas vítimas como se fosse uma besta-fera,
escondia seu corpo com uma túnica e capuz brancos, tentamos rendê-lo,
mas nossas tentativas foram inúteis, tive que abatelo.”
- Como é? Você quer que eu assuma um crime que não cometi? -
Inquietou-se Carlos.
- Você sabe que a corregedoria está em cima de mim, com você é
diferente, quem sabe até não ganhe uma medalha por isso?
- Agora daremos início ao plano. Vamos esfaquear essas piranhas,
desenhar um pentagrama no chão e escrever qualquer maluquice extre-

A princesa dilacerada 57
mista numa carta e pronto! Temos o nosso álibi.
- Por favor, nos deixe ir! - Imploravam as garotas.
- São as circunstâncias, meninas... Mas eu prometo que aparece-
rão na primeira página.
Alberto tirou de sua cintura uma pequena adaga, caminhou len-
tamente até as meninas, e ao tentar desferir o ataque, uma luz o surpreen-
deu.
- O que é Isso? - Alberto voltou seus olhares para trás e observou
uma intensa luz envolvendo o corpo do garoto.
- Como pôde? Quanto desprezo pela vida... - Disse o menino
ainda no chão.
- É impossível esse garoto ter sobrevivido.
- Alberto, o que está acontecendo? - Perguntou Carlos que tentava
proteger os seus olhos da luz.
- Carlos, você deixaria o seu companheiro fazer tudo aquilo que
ele planejou? - Perguntou o garoto.
Carlos não respondeu, apenas recuava os seus passos e protegia os
olhos.
- Você é fraco, não deveria jamais ser um instrumento da lei, como
viveria com o remorso de não ter feito nada? Ainda assim, eu permito que
sobreviva, enquanto a você, Alberto... Seu coração é irrecuperável, seus
pecados o transformou numa existência desprezível, você será punido
pela sagrada cruz de Avís. Enquanto a vocês, voltem para as suas casas. -
Assim ordenou o garoto com grande autoridade.
- Tome cuidado, menino. - Aconselhou uma das garotas, que jun-
to a sua amiga, correram sem hesitar.
- Aonde pensam que vão? Isso é resistência a prisão e, pela lei
marcial devo puni-las com a morte! - Alberto tentou atirar contra as ga-
rotas, mas os projéteis eram barrados por uma espécie de campo de força.
- O que é isso? Quem diabos é você, garoto?
- O criador me deu a tarefa de limpar o Brasil de gente como você.
Eu sou o noviço!
O garoto tirou de seu pescoço o crucifixo de Avís e o jogou para o
alto. O pingente girou na imensidão até atingir o tamanho de uma grande
cruz de Avís. O noviço abriu os braços como se estivesse crucificado e
proferiu uma prece.

58 O Divino Leviatã
- Que a sagrada cruz de Avís o purifique essa alma com a chama
divina, que faça revelar os seus pecados! Sagrada Cruz de Avís!
O grande crucifixo adornado de uma energia azul cintilante e po-
derosa atingiu o soldado e o arremessou a cem metros, o seu exoesqueleto
foi corroído como se fosse papiros da biblioteca de Alexandria.
- Chegou a hora de confessar os seus pecados, Alberto, eu te asse-
guro que todos os impuros serão punidos pela cruz.
- O que é isso? O meu corpo queima como se eu estivesse envolto
em chamas. - O corpo do soldado estava repleto de pequenas cruzes que
lembravam estigmas.
- Essas cruzes que o atormentam nada mais são que os seus peca-
dos, confesse-os antes de morrer.
- Garoto maldito... Eu... Eu... Assassinei Helena Sant’Anna a man-
do do presidente. Argh!! O Sr Heitor federalista do centro-oeste coorde-
nou toda a missão e eu fiz o serviço sujo, desde sabotar o carro, levá-la ao
seu apartamento e fazer parecer um suicídio. - Disse Alfredo ao agonizar.
- Isso explica tudo. - Concluiu o noviço.
- Eu vou para o inferno? - Indagou o soldado usando suas últimas
forças.
- Eu não posso determinar isso... Sou apenas um instrumento do
criador, vai depender do seu coração.
As palavras do Noviço foram as últimas que o impiedoso soldado
Alberto escutou, morreu contorcido com as dores de seus pecados. Carlos
se aproximou do Noviço e prostrou-se implorando por perdão.
- Você foi enviado pelo criador para nos punir? Por favor me per-
doe!
- Carlos... O seu coração é fraco para aguentar o calor de uma ba-
talha, peça perdão pelos seus pecados, e quando recobrar a coragem, lute
ao meu lado e defenda aqueles que mais necessitam.
Naquele instante os ventos sopraram de forma sombria e com
eles, uma insólita névoa que escondeu o Noviço, Carlos tentou espreitar
sobre a densa névoa, mas nada encontrou além do corpo desfalecido do
seu companheiro de soldo.

A princesa dilacerada 59
EPÍSTOLA
VI

O fim das
~
federacoes
'

V
assouras RJ - Federação do Sudeste 02:13 AM


Existe um grande templo erguido em 1846 pela família Avís de
Bragança, a segunda na sucessão ao trono brasileiro. Sua localização fica
em Vassouras, uma pacata cidade ao norte fluminense e banhada pelas
águas do rio Paraíba do sul. A família Avís é conhecida pela sua devoção
incondicional ao criador, no interior do templo havia um homem trajado
com um fino sobretudo negro que muito parecia um hábito, de média al-
tura, seus cabelos eram castanhos claros e curtos, sua barba era bem rala
e alinhada.
Falava aos vitrais do templo como se esses tivessem a profundida-
de de aquietar o seu coração.
- Ele ainda não deu notícias, estou preocupado, será que ocorreu
algum imprevisto? Talvez tenha sido um erro ter confiado uma missão
tão complicada a um garoto.
A pequena chama da vela tremulava com a corrente de ar que su-
avemente levava ao homem o odor da cera queimada, seu coração aquie-
tou-se ao sentir uma agradável presença que acabara de chegar.
-Não há com o que se preocupar, querido pai. - Disse o Noviço
que surgiu repentinamente ao lado do homem.
- Dom Rafael, meu filho, ao que parece você não se esconde nas
sombras, são elas que gentilmente o acolhem, há quanto tempo chegou?
- Na verdade acabei de chegar, só quis lhe trazer as boas novas da
missão que cumpri. - Respondeu o garoto.
- Então diga, quais são as fraquezas das federações?

60 O Divino Leviatã
- A fraqueza de William e seus federados é exatamente aquela que
eles consideram a sua principal virtude, o poder bélico. Possuem um bom
treinamento militar, mas lhe faltam alma e coragem, são fracos perante o
nosso poder arcano.
- Isso é muito bom, você conseguiu cumprir sua missão sem que
o inimigo percebesse a sua presença? - Perguntou o homem.
- Infelizmente ocorreram alguns imprevistos, tive que abater um
soldado federalista. - Respondeu o noviço.
- O que você fez? Por acaso não sabe dos riscos de entregar nossa
posição? - Indagou.
- Não tive escolha, são os efeitos colaterais da guerra, embora, ou-
tra situação me preocupa. Qual o paradeiro do tio Dom Fernando? Eu
me preocupo muito com Verônica, Vitória e Abel.
-Enquanto a isso não se preocupe, a família do meu irmão está se-
gura e Dom Fernando está em uma busca pessoal, fazem dois anos que ele
se afastou da família, apenas seus dois protetores sabem do seu paradeiro.
As velas de dois candelabros eram as únicas que iluminavam a
igreja, repentinamente o jovem Dom Rafael as soprou.
- Por que fez isso? - Perguntou Miguel.
- Papai, você uma vez me disse que as coisas mais belas do mundo
são sombras, o meu corpo precisa repousar sobre elas, usei todo o meu
poder invocando a sagrada cruz de Avís e desloquei-me em alta velocida-
de para chegar ao templo, além disso, o meu corpo foi castigado com uma
alta voltagem.
- Sim, a sua vibração áurica está muito baixa, precisa repousar. -
Concordou Dom Miguel.
- Antes disso, preciso revelar algo importante. - Disse o noviço
entoando suspense.
- O que você descobriu?
- Helena Sant’Anna foi assassinada a mando do presidente William
e o federalista Heitor comandou toda a operação. - Revelou Dom Rafael.
- Isso já era esperado, a morte da senadora foi parte do acordo
de paz entre Washington e a república de William, tudo para eliminar o
que para eles é uma ameaça, o Divino Leviatã! - Disse Dom Miguel sem
demonstrar surpresa.
- Pai, precisamos reunir todos os guerreiros para a maior guerra

A princesa dilacerada 61
que esse país já teve. É chegada a hora, espero que o imperador esteja
pronto.
Ao dizer essas palavras, o jovem Dom Rafael desfaleceu sobre os
braços do pai e a opaca luz do luar, rompeu os vitrais do templo, ilumi-
nando os seus semblantes.
- Filho... Ainda posso te levar em meus braços todas as vezes que
forem necessárias, embora eu pressinta que não terei mais oportunidades
como essa, e tão pouco poderei te proteger do futuro nebuloso que o es-
pera. Te amo.
Ambos desapareceram do lúgubre templo de Avís.

14 de novembro de 2022. 8:30 AM


O templo de Avís foi tomado por uma legião de guerreiros oriun-
dos de todos os cantos do pais, mais de quinhentos homens e mulheres
prostrados perante o príncipe Dom Miguel e o seu filho, o noviço Dom
Rafael.
- Vejo que todos atenderam ao conclame, vocês foram treinados
especialmente para esse momento, hoje será o começo da nossa vitória.
Um grande general chinês disse que a guerra é um assunto de importân-
cia vital para o estado; o reino da vida ou da morte; o caminho para a
sobrevivência ou a ruína. É indispensável estudá-la profundamente. Meu
querido filho esteve nas linhas inimigas e nos trouxe informações valiosas
sobre William e o exército federalista.
- Senhor Dom Miguel, permita-me a palavra. - Assim interpelou
Lorde Vagner, um respeitável guerreiro da ordem de Avís.
- Permissão concedida - autorizou o Duque Dom Miguel que cru-
zou seus braços para dentro do sobretudo e observou Vagner sair do seu
estado de reverência para tomar uma postura obstinada e senhorio.
- Todos nós sabemos dos incríveis prodígios do pequeno Dom
Rafael, mas creio que seja temerário acreditarmos num julgamento de
uma criança de 10 anos de idade. Eu quero ter certeza que meus homens
e eu, não perderemos nossas vidas em vão.
- Eu faço questão de responder, meu querido pai. Lorde Vagner,
minha idade é irrelevante, estou cumprindo a minha missão. Eu pude
ver com detalhes as cinco federações e pude constatar que os 27 palácios
estão bem guardados.

62 O Divino Leviatã
- Ora! Que monte de bobagens! Qualquer palácio do governo é
bem protegido, o que tem isso de extraordinário? - Assim interpelou mais
uma vez o exasperado Vagner.
- Você não se atentou que os palácios foram construídos exata-
mente em pontos de vórtex? - Rebateu o pequeno noviço.
- Somos apenas em quinhentos e temos exatamente 10% do pode-
rio que eles possuem apenas para proteger os palácios e arredores. Ape-
sar de não possuírem o nosso treinamento, seus exoesqueletos os tornam
perigosos. Embora, devêssemos tomar cuidado com os cinco federalistas,
eles são bem diferentes dos soldados rasos, possuem o domínio da aura
para atacar, suas exoarmaduras são de uma tecnologia mais avançada.
- Enquanto a isso não se preocupe. - Interviu Lorde Vagner. - Eu e
meus homens podemos derrotá-los com facilidade.
Vagner era um homem com semblante severo, sua voz austera de-
notava a liderança que possuía sobre os demais, assim como a sua altura
e porte físico que inibia qualquer ação contraria a ele. Cabelos levemente
grisalhos que mesclavam-se com alguns dos fios negros, não tinha so-
brancelhas e sua face pálida fazia contraste com a sua armadura unifor-
memente negra e com uma Cruz de Avís branca no peitoral.
Dom Miguel toma a palavra.
- Sendo assim, agora peço que prestem muita atenção. Vamos nos
separar em cinco grupos de cem guerreiros e amazonas, o plano é come-
çar o ataque no início do crepúsculo. Lorde Vagner e seus homens irão
para a federação do sul, Capitão Alcântara para o centro oeste. Edgar, sob
a sua liderança, cem guerreiros rumo ao norte, Veridiana e suas amazonas
irão para o nordeste, enquanto a mim... Viajarei para São Paulo e cuidarei
pessoalmente da federação do Sudeste.
- Faremos valer o sacrifício de Helena Sant’Anna!
- Agora levantem-se! Vamos abrir caminho para o imperador!
Para o Divino Leviatã!
Todos levantaram suas armas e bradaram.
- Pai! Eu não posso deixar de ir! Esse legado também é meu!
- Meu filho, preciso que fique aqui protegendo sua mãe e irmã.
Por mais que seja forte e tenha me superado, o campo de batalha não é
lugar para criança, olhe para cada rosto aqui, muitos desfrutam de seus
últimos momentos de vida, despediram-se de seus familiares pela fé que

A princesa dilacerada 63
os move. Filho, proteja sua mãe e irmã, elas precisam do seu poder, deixo
os meus maiores tesouros em suas mãos. - Disse Dom Miguel com voz
embargada e acariciando os cabelos do pequeno noviço.
- É isso mesmo, rapaz, vá para casa jogar videogame ou brincar de
bonecas. - Disse Lorde Vagner num tom sarcástico e provocador.
- Adeus, Lorde Vagner, prometo ir no seu funeral. - Rebateu Dom
Rafael com o mesmo sarcasmo.
- Se não fosse filho de quem é, te daria uma lição, noviço.
- Basta! - Interferiu o Duque. - Respeitem esse templo sagrado. O
comando já foi dado, tomem seus postos!
Assim ordenou Dom Miguel para as quinhentas almas que brava-
mente partiram para a maior guerra que o Brasil já teve.
A cada minuto que antecedia o crepúsculo, os corações dos ho-
mens e mulheres já batiam na expectativa de sangrar, o palpitar era a
introdução da sinfonia da morte, sem sorrisos, sem palavras, apenas a
transpiração controlada, semblantes fechados e a única certeza que paira-
va... A morte rasgando corpos, bebendo do sangue e comendo da carne.
A primeira sombra do crepúsculo atingiu o austero semblante de Lorde
Vagner, era chegado o momento, as 18h um ataque rápido e avassalador
pegou os federalistas de surpresa, os guerreiros e amazonas de Avís le-
vavam vantagem contra os soldados e suas exoarmaduras, no entanto,
não conheciam a força dos cinco federalistas que entraram na batalha
e equilibraram as coisas, se moviam numa velocidade que os olhos não
podiam acompanhar. No Palácio de Piratini, uma dramática luta entre
Lorde Vagner e a federalista Ingrid acontecia.
- Maldição, como pode uma mulher ter tanto poder? - Murmurou
Lorde Vagner levando a mão direita sobre o rosto machucado.
- Você confia demais no seu poder, o seu erro é ver fragilidade em
mim.
O lorde e seus homens se posicionavam para atacar Ingrid quan-
do algo inacreditável ocorreu.
Uma figura sombria aparece atrás da federalista. Sua forma era in-
decifrável, sua matéria era composta por energia escura. Todos sentiram
uma grande opressão.
- O que diabos é isso? - Se perguntou Lorde Vagner.
Ingrid apenas virou a cabeça para esquerda e teve a visão perifé-

64 O Divino Leviatã
rica de uma criatura sem rosto, antes que pudesse se defender, a figura
desferiu um ataque com uma espada de lâmina negra, atravessando as
costas de Ingrid.
- O que faremos, Lorde? - Perguntou um dos seis soldados que o
acompanhava.
- Eu não sei... - Respondeu o incógnito Vagner.
Ingrid tombou sobre o chão e antes que desfalecesse, murmurou
suas últimas palavras.
- O que é você? - Perguntou Lorde Vagner.
- Eu sou muitas coisas, por hora eu e você somos um só. - Respon-
deu a criatura de voz tenebrosa que ao caminhar na direção da federalista,
a incorporou.
- Esse ser se apoderou do corpo dela? - Perguntou o soldado.
Lorde Vagner não respondeu, mas pensou consigo:
- Isso não é nada bom... Não estava preparado para isso. Homens!
Fiquem atentos, seja lá o que for aquilo, está dentro dessa mulher.
- Finalmente entendi o significado de antropofagia. - Ingrid le-
vantou-se num plano rasteiro e com um olhar frio debaixo para cima
fitava os seus adversários. - Antropofagia... Partilho da carne e do sangue,
fazei isso em memória de mim... Ingrid... Seu corpo e o seu sangue agora
fazem parte do que eu sou.
A federalista começou a flutuar um metro do chão, de seu corpo
uma aura negra emanava densa e poderosa.
- Eu nunca senti algo assim, eu acho melhor atacarmos todos
juntos. - Sugeriu um dos guerreiros.
- Vamos atacar!
- Não! Esperem! - O alerta de Lorde Vagner não foi ouvido e os
bravos homens foram ao encontro de suas mortes.
Ingrid levantou seu braço direito para o alto e do seu dedo indica-
dor emanaram pequenas esferas de energia escura.
- Desconstrução! - Assim bradou Ingrid.
As esferas foram de encontro aos guerreiros e desagruparam suas
células, foram exterminados sem deixar vestígios.
- A matéria realmente não é nada. - Comentou Ingrid.
- Quem é você? Sei que não estou falando com essa infeliz que
você parasitou. - Perguntou Vagner.

A princesa dilacerada 65
- E pensar que um dia invejei os humanos por terem uma matéria
viva e bela, mas não passa de um amontoado de células inúteis. Sou um
General do mundo inferior, meu nome é Andrômalus, minha especiali-
dade é o domínio sobre a matéria.
- Não importa o que você domina, vou te destruir.
Lorde Vagner desembainhou uma grande espada de suas costas e
a posicionou no chão, segurando-a com as duas mãos.
- Descendo de tribos nórdicas e germânicas, nutrimos a tradição
berseker, vai se arrepender de ter saído do inferno.
Uma aura vermelha emanou de Vagner, seus olhos tomaram a
mesma coloração, com a espada feriu o chão e com sua voz invocou:
- Espírito berseker! Sismos de gaia!
A terra começou a tremer e um vento cortante abriu uma fenda
até chegar a Ingrid e partir seu corpo ao meio.
- Espírito inútil, que nunca mais volte!
Lorde Vagner deu as costas ao cadáver, mas o espírito de Andrô-
malus ainda se mantinha poderoso.
- Caso tenha esquecido, eu te disse que tenho o poder de manipu-
lar a matéria.
As duas partes separadas ao meio, uniram-se novamente, deixando o
Lorde desconcertado e perplexo.
- Isso é impossível, é como se eu nem o tivesse atingido. - Impres-
sionou-se Vagner.
- Espero que o seu Deus criador te receba, ou então eu mesmo o
recepcionarei no inferno!
Deslocando-se numa velocidade impossível de ser calculada por
olhos humanos, Andrômalus atingiu o coração do Lorde guerreiro com a
sua espada de energia escura.
Vagner sorriu, pois o seu orgulho o impedia de mostrar uma ex-
pressão de dor, jamais demonstrou fraqueza contra seus adversários.
- Espirito fátuo... Fogo fátuo... Corpo... Transfira toda sua energia
em minha errante alma para que eu possa avisar aos meus companheiros
de batalha o nosso novo inimigo.
Essas foram suas últimas palavras até o seu corpo desaparecer por
completo.
Afinal, quem era Andrômalus? E qual seu interesse nessa batalha?

66 O Divino Leviatã
O mesmo ocorreu nas federações do centro-oeste, Norte e Nordeste. Os
corpos dos federalistas foram tomados por criaturas com uma poderosa
aura negra. Dos quinhentos guerreiros enviados, apenas trinta e cinco
ainda estavam vivos, enquanto o mistério pairava nas quatro federações
destruídas, no Palácio dos Bandeirantes, federação do Sudeste, Dom Mi-
guel e seus homens adentravam ao palácio sem saber o que os esperavam.
- Que estranho, o ar está rarefeito. - Comentou um dos soldados.
Ao passo que avançavam , a atmosfera parecia cada vez mais irres-
pirável. Os homens começaram a ficar agitados e suas visões turvas.
- O que acontece aqui? - Se perguntou Dom Miguel.
- Lamento por vocês, mas terão uma morte terrível. - Assim ecoou
uma voz jovial.
- Apareça de uma vez, Theodoro, vamos acabar com isso. - Voci-
ferou Dom Miguel.
- Sabe, eu não sou do tipo que recebe ordens de gente da sua es-
tirpe, mas acho justo contemplarem o rosto do seu algoz. - O federalista
aparece perante os guerreiros e tripudia de seus sofrimentos. - Visão tur-
va, agitação, enjoos, saliva quente e uma pressão interna no corpo... Estão
sentindo tudo isso, ou estou enganado? Um dos meus dons é o controle
atmosférico, posso tirar a pressão do ar.
-Isso é trapaça! - Irou-se um dos soldados.
- Na guerra as questões morais são subjetivas, o que é certo? Ou
errado? A sobrevivência se sobrepõe a todas essas questões. A guerra é o
puro exercício niilista.
- Homens, o nosso ataque precisa ser único e rápido, não aguen-
taremos muito tempo com o ar despressurizado. - Disse Dom Miguel.
- Bom plano... Simplório para um duque, mas ainda assim eficien-
te.
Só que eu esqueci de avisar de outros dos meus dons. Domino a gravidade
de todos territórios que piso. - Theodoro levantou a mão direita na dire-
ção do teto e conjurou. - Prisão gravitacional!
Ao proferir essas palavras os soldados tombaram ao chão, tama-
nha era a gravidade.
- Não entendo... Por que você não é afetado com a falta de oxigê-
nio e gravidade pesada?
- É muito simples, minha aura serve como manta protetora junto

A princesa dilacerada 67
a exoarmadura, absorvo o oxigênio e ele se mantêm armazenado na aura,
e ela também serve como uma força independente a gravidade, eu a con-
trolo.
Dom Miguel riu.
- Do que está rindo, posso saber? - Encabulou-se Theodoro.
- Obrigado por me revelar seus segredos, se você realmente me es-
tudou, sabe que eu sou um mestre em manipular aura. Tudo o que tenho
que fazer é...
Dom Miguel usou todas as suas forças para se levantar da terrível
opressão gravitacional, tirou de seu pescoço um terço e o rompeu, fazen-
do cair sobre o chão as pérolas que o adornava.
- O que pretende fazer? - Indagou o federalista demonstrando
curiosidade.
- Poucos sabem, mas... A constelação de cruzeiro do Sul foi criada
pelo grande Deus para homenagear todos aqueles que lutaram bravamen-
te na queda de Lúcifer, simbolicamente segue o mesmo princípio do arco-
-íris. O terço originalmente tem esse significado e as pérolas significam a
providência dos anjos.
Dom Miguel através do seu poder telecinético fez as pérolas des-
locarem-se numa grande velocidade e romper o teto do Palácio em pe-
quenos buracos.
- O meu terço tem 120 pérolas, elas simbolizam os três anjos guer-
reiros. Rafael, Miguel e Gabriel. Cada um recebeu do criador quarenta
pérolas, o terço foi a arma concedida por Deus para que os três pudessem
dar o fim a guerra santa e vencer Lúcifer e a terça parte dos céus. O meu
terço é apenas um símbolo, uma pequena fração do poder original, mas
o suficiente para te derrotar. É provável que perderemos as nossas vidas,
mas será para um bem maior. Benedita Providência! - Conjurou.
As pérolas caíram sobre o Palácio como se fossem meteoros e de-
vastaram tudo. Nada restou do símbolo da federação do sudeste, a não
ser escombros e fumaça.
Dom Miguel estava com a perna presa a uma pilastra e o restante
dos soldados envoltos em cinzas e protegendo seus rostos.
- Minha perna, ela está quebrada. - Queixou-se Dom Miguel ex-
pressando muita dor.
- Senhor Duque, aguente firme que eu vou te ajudar. - Prontifi-

68 O Divino Leviatã
cou-se o guerreiro de nome Fabrízio.
Repentinamente Theodoro sai dos escombros com sua exoarma-
dura branca e carmesim danificada.
- Não é possível! Como pôde ter sobrevivido a isso? Os escombros
mais pesados caíram por cima dele. - Indignou-se Miguel com uma ex-
pressão mesclando ódio e desilusão.
- Idiota... Mesmo o seu ataque sendo poderoso, ainda assim eu te-
nho o poder sobre a gravidade em qualquer espaço que minha aura puder
alcançar, diminui a gravidade do Palácio segundos antes de tudo desmo-
ronar, mas eu mantive o peso original de todos aqui presentes, para que
o corpo pudesse suportar uma carga 30% menor, se não fosse por mim,
estaríamos mortos.
- Maldito! - Murmurou Dom Miguel com o semblante tomado
pela dor.
- Dom Miguel, vou acabar com a sua dor e...
A fala de Theodoro foi interrompida tamanha foi a surpresa que o
acometera.
Surge perante todos, envolto em grande couraça áurica, Lorde
Vagner.
- Vagner! Você conseguiu vencer o inimigo! É muito bom te ver
com vida. - Animou-se Dom Miguel.
Flutuando sobre os escombros do Palácio dos Bandeirantes, Lor-
de Vagner alertou aos guerreiros sobreviventes sobre os temíveis inimigos
que surgiram.
- Escutem com atenção, pois não tenho muito tempo, nossos ini-
migos mais poderosos não são os federalistas, eles não são humanos e
nenhuma arma criada pelo homem pode detê-los.
- Do que está falando, Vagner?
- Me perdoe Miguel, não pude fazer nada a respeito. Não deixe
minha morte em vão. Adeus amigo.
A presença de Lorde Vagner dissipou-se completamente, assim
como o eco de sua voz se perdeu na longínqua paisagem destruída de São
Paulo.
- Vagner usou sua própria alma para nos alertar do perigo... Des-
canse em paz, seu nome será lembrado por mil anos. - Dom Miguel cho-
rava copiosamente, mas seu amargor logo foi substituído por perplexida-

A princesa dilacerada 69
de.
- Mas o que é aquilo?
Quatro figuras emergiram do chão, seus corpos eram revestidos
de chamas negras.
- Não pode ser... Ingrid, Heitor, Agatha e Romeu?
As criaturas gargalharam frente a indagação de Theodoro:
- Não somos mais esses infelizes, junte-se a nós, Theodoro.
- Tem algo errado, não é possível que William esteja por trás disso.
- A única coisa errada é a sua repugnante honestidade. - Disse
Romeu (federalista do nordeste) que ao se aproximar de Theodoro atra-
vessou-lhe o peito usando a mão esquerda.
- Romeu... - Sussurrou o federalista do sudeste que desfaleceu
sobre o seu próprio sangue vertido.
- Belzebu! O seu corpo já está pronto para possessão.
Uma presença poderosa e opressora tomou conta do ambiente.
- Mas o que é isso? Mal consigo me mexer. Disse Fabrizio com o
corpo retorcido tamanha era a pressão exercida pela aura de Belzebu.
Sombras negras entravam no corpo de Theodoro e o fez ressurgir
como o general das forças inferiores. Seu nome agora é Belzebu.

70 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
VII

Acordem Federalistas!

-E
u vou precisar de um tempo para me acostumar a essa
matéria tão sensível, as nuances da natureza, finalmente
conseguimos! - Disse Belzebu ao contemplar seu corpo
humano.
- Eu não entendo, com o poder que possuem por que precisam se
apoderar de corpos humanos? - Perguntou Fabrizio.
- Ora! É muito simples, nosso corpo possuí outra constituição
de matéria, menos densa e mais sensível, podemos suportar apenas oito
horas diárias na superfície terrestre, nossa energia se esvai rapidamente
porque os fótons de luz vão de encontro a nossa matéria, assim usamos o
corpo humano para filtrar a ação dos fótons e proteger o perispírito.
- O que vocês pretendem com tudo isso? - Perguntou Dom Mi-
guel.
- Humanos... - Sussurrou Belzebu. - Antes de serem criados pelo
supremo, nós, os anjos, éramos os habitantes desse planeta, o grande Lú-
cifer reinava a terra, todos se curvavam perante sua glória, exceto o pró-
prio criador, esse foi o primeiro Leviatã.
- Primeiro Leviatã? - Perguntou Dom Miguel.
- Sim, a união entre os céus e a terra, depois que fomos humi-
lhados pelo criador e expulsos do reino dos céus e da terra, caímos nas
profundezas condenados por toda a eternidade, assim nasceu o reino das
sombras. A partir desse momento todos os anjos amaldiçoados pelo cria-
dor o odiaram com todas as forças de suas existências. Algo inconciliável.
Então Deus resolveu mudar mais uma vez os seus planos e fez um acor-
do com o mestre Lúcifer, graças a intervenção daquele maldito Sócrates.
Uma chance de redenção e o início de um novo Leviatã, agora com três
moradas; o Reino da Terra sob o comando de Dom Fernando, o Sub-
mundo dominado por Lúcifer e o soberano Deus dominando o reino dos
céus. Enquanto aos cinco demônios, não concordamos com a providên-
A princesa dilacerada 71
cia divina e nem assinamos a carta dos condenados. Nos voltamos contra
Lúcifer, jamais esqueceremos da dor e a humilhação que sofremos, por
isso reivindicamos o que é nosso por direito, o Reino da Terra.
E é claro que nos unimos aos Andradas, eternos inimigos da coroa brasi-
leira. Esses cinco jovens foram selecionados através de um árduo proces-
so, as almas mais puras, um sacrifício poderoso! Para que fôssemos agra-
ciados com a vida. Bom... Agora que já entendeu... Chegou o momento
de mais um valoroso sacrifício, posso sentir o seu sangue e o ritmo das
batidas de seu coração, quero me alimentar dele, agradeço por servir de
cobaia involuntária para o meu alimento.
Belzebu concentrou em sua mão direita uma poderosa esfera de
fogo, quando projetou sua mão para atacar Miguel, três flechas atravessa-
ram o corpo parasitário de Belzebu.
- Isso é lamentável... Havia esquecido que os seres humanos sen-
tem dor física. Quem atirou essas flechas?
A amazona com o nome de Veridiana surge perante todos, seus
cabelos eram loiros e com uma trança alongada até a base das costas, sua
pele rosada demonstrava uma fragilidade que ludibriava seus adversários,
seus olhos verdes transmitiam o ódio e a sua indumentária mesclava o
cóton com partes de bronze protegendo pontos vitais.
- Não é tão fácil me matar. Eu estou aqui para vingar as minhas
companheiras mortas. - Jurou Veridiana alinhada ao seu arco e mirando
o oponente.
- Não importa quem seja, o resultado será o mesmo. - Disse Bel-
zebu num tom desafiador.
- General, deixe que eu termine o serviço que comecei. - Interviu
Varsago, um dos anjos caídos que parasitava o corpo do Federalista Ro-
meu.
Veridiana caminhou até a pilastra que prendia a perna do Duque de Avís
e com a ajuda de Fabrizio, o removeram dos escombros.
- Precisamos de um plano, não conseguiremos vencer esses cinco
no estado que estamos. - Sugeriu Veridiana que levava o Duque de Avís
escorado em seus ombros.
Dom Miguel apenas acenou com a cabeça. Os soldados que ha-
viam sido atingidos pelo desabamento do Palácio agora estavam de pé.
- Vocês vão pagar caro pelo que fizeram com o mestre! - Bradou

72 O Divino Leviatã
um dos soldados.
- Não façam isso! - Alertou Veridiana.
- Vamos atacar!!! - Os trinta e quatro guerreiros foram de encon-
tro aos demônios, Varsago sorriu e se colocou a frente dos soldados.
- O ser humano vive de ilusões, a pior delas é o livre arbítrio...
Vocês acham mesmo que lutam por vontade própria?
Uma densa névoa foi soprada pela boca Varsago.
- Conheçam o sopro da agonia, vivam a ilusão que merecem.
A névoa atingiu os guerreiros e os fizeram cair no pior de seus
pesadelos. Se retorciam como se os corpos estivessem em chamas, tinham
a ilusão de vermes comendo suas carnes.
- Tarde demais... - Lamentou Veridiana. - Precisamos sair daqui,
o quanto antes. - Veridiana se colocou a frente dos cinco demônios e lan-
çou-lhes uma de suas principais técnicas. - Paradox arrow!
Cerca de mil flechas foram disparadas, quando os demônios ten-
taram desviar, experimentaram o verdadeiro sentido do paradoxo de Ve-
ridiana.
As flechas dividiram-se em duas partes de quinhentas flechas,
uma parte atingiu os cinco demônios e as outras flechas atingiram a pi-
lastra que servia de sustentáculo para o chão que pisavam, a brilhante
ideia de Veridiana fez com que os cinco demônios caíssem dentro de uma
galeria abaixo do Palácio.
Rapidamente os três deixaram as dependências dos Bandeirantes
e correram para bem longe dos demônios.

O cenário desolador da cidade de São Paulo, multiplicou-se em


pequenas imagens transmitidas por televisores, novamente estamos nas
ilusões do príncipe Abel.
- Irmãzinha... O que achou de tudo que viu? Intrigante não é mes-
mo? Sabe que eu até havia me esquecido dos cinco federalistas?
- É muito estranho associar Dom Rafael, o noviço e a pessoa que
conhecemos hoje. - Comentou Vitória.
- Essa figura decadente do Dom Rafael nada mais é que um ar-
remedo, um lixo que um dia tentou me enganar. - Indignou-se Abel que
pela primeira vez havia perdido o controle das emoções e aumentou o
tom da voz.

A princesa dilacerada 73
- Tentou te enganar ou foi você que não quis ouvir seu coração? -
Ah! - Gritou Vitória.
Repentinamente o corpo da princesa foi tomado pelas chamas, a
parte esquerda do seu rosto foi desfigurada, tal qual foi quando punida
pelo seu próprio pai, seu corpo converteu-se numa forma cadavérica e
fonte de alimento dos vermes.
- O que está acontecendo? - Se perguntou Vitória.
- Não é óbvio? O seu tempo na superfície já está por acabar... Sua
alma pertence ao inferno... Mas não se preocupe, nosso tour pela história
já está por acabar. Agora assistiremos o fim dessa guerra, não mais por
televisores... Vamos para o campo de batalha!
Num piscar de olhos Vitória e o excêntrico príncipe Abel estavam
no Viaduto do Chá.
- O que vai acontecer aqui? - Perguntou Vitória atormentada pelas
chamas.
- Olhe para baixo do viaduto.
Abel apontou para o Duque de Avís, Veridiana e Fabrizio que se
escondiam em uma das bases de sustentação do viaduto.
- Apenas observe... - Sussurrou Abel nos ouvidos de Vitória.

Fabrizio tentava sem sucesso estancar o ferimento exposto da per-


na do Duque.
- Ele entrou em estado de choque, não há muito mais o que fazer.
- Lamentou Fabrizio.
- Não podemos desistir, precisamos nos manter escondidos até
conseguirmos ajuda.
- Você acha que conseguiu detê-los com suas flechas? - Perguntou
Fabrizio.
- Receio que eu apenas tenha ganho algum tempo, infelizmente
minhas flechas não podem fazer muito. - Respondeu Veridiana desapon-
tada e demonstrando grande desgaste.
Num rompante, Fabrizio teve uma premonição, olhou para os
céus e viu uma esfera de energia escura sendo lançada por Andrômalus
na direção do viaduto.
- Temos que sair daqui! - Gritou Fabrizio que por questão de se-
gundos conseguiu mover o corpo do Duque para outro lugar antes que o

74 O Divino Leviatã
viaduto fosse sugado pela esfera de energia.
Heitor e Agatha parasitados pelos demônios Savitre e Barbatus
surpreenderam os três guerreiros de Avís e exerceram sobre eles uma
grande opressão, um a cada lado criaram um campo de força que limitava
o movimento dos três.
- Não é possível que morreremos aqui. - Inconformou-se Fabrizio.
- Não... Tem que ter um jeito de sairmos daqui. Essa era a esperan-
ça da amazona arqueira.
- O que é a esperança a não ser o reconhecimento da fraqueza e
o sonho esquizofrênico de lutar contra aquilo que não se pode vencer, eu
me pergunto... Fé para que? Deus escolheu um idiota que pregava num
deserto, sua cabeça foi servida numa bandeja, mil anos depois, um idiota
unindo a filosofia a fé, a ciência a serviço de Deus! Qual foi a necessidade
disso? Depois tudo isso ganhou o mesmo valor que um amontoado de
merda, depois do édito dos condenados. Querem mudar suas realidades?
Eu não permitirei... - Disse Belzebu que caminha na direção do Duque
de Avís e os outros. Concentrou em sua mão direta uma grande esfera de
fogo. - Minha chama queimará toda as suas esperanças... Ah! O que está
acontecendo?!
Inexplicavelmente a chama esvaiu-se e o corpo de Belzebu sofreu
uma estranha paralisia.
- O que está acontecendo?
- Você acha mesmo que usará o meu corpo sem que eu mostre
resistência? - Uma voz duplicada emanou do corpo.
- Não interfira humano maldito, esse corpo agora me pertence.
- Você é só mais um espírito decadente, rejeitado pelos céus e o
submundo, mas eu vou te enviar para além do inferno. - Assim disse à
alma te Theodoro num tom desafiador.
- Do que está falando? - Perguntou Belzebu.
- O abismo, é o único lugar que você jamais poderá voltar.
Todos observavam com tamanha perplexidade dois espíritos brigando
pelo mesmo corpo.
- Andrômalus, Varsago, Barbatos e Savitri, comecem a executar o
plano, não temos muito tempo! Destruam tudo que encontrarem!
Andrômalus e Varsago atacavam São Paulo ferozmente, pessoas eram de-
sintegradas com a energia escura ou sucumbiam a névoa do pesadelo.

A princesa dilacerada 75
Barbatos liberou de seu corpo uma espécie de pólen que emergia da terra,
plantas com aspectos sombrios e raízes negras, Savitri juntou suas mãos
numa prece perturbadora entoando num tom lírico um coral gregoriano
com milhares de vozes, com sua habilidade natural de necromancia fez
surgir das tumbas seus novos servos.
- Enquanto a vocês! - Gritou Belzebu ao apontar à amazona e
os dois guerreiros escorados nos escombros do viaduto. - Conhecerão a
morte!
O general do inferno concentrou outra grande espera de fogo e a
lançou contra eles. Os três guerreiros se abraçaram na esperança de um
milagre. O calor da esfera já atormentava os sagrados de Avís, quando
uma surpreendente luz tomou conta dos céus de São Paulo.
- Essa luz... - Sussurrou o Duque de Avís.
Veridiana olhou para os Céus e viu uma grande cruz desenhada
sob a constelação de cruzeiro do Sul.
- Quem seria capaz de produzir uma luz tão intensa? É como se
estivéssemos no sol do meio dia, o que aconteceu com a esfera de fogo?
- Andrômalus e Varsago se aproximaram da cruz e investiram um feroz
ataque. Seus esforços inúteis causaram perplexidade em Belzebu.
- Deve ser mais um desses inúteis que veio nos atrapalhar. Apare-
ça de uma vez! - Bradou.
O brilho ficou ainda mais intenso, o que fez Belzebu despertar
uma intuição!
- Varsago! Andrômalus! Saiam de perto da cruz!
- O que? - Se perguntou Varsago.
O noviço surgiu perante os dois demônios e conjurou.
- A Sagrada Cruz de Avís! - Uma grande Luz marcou os corpos
parasitados pelos demônios com chagas em formato de cruz, os espíritos
abandonaram o corpo, tamanha era a opressão espiritual causada pelas
chagas.
Os corpos caíram sobre o chão e os espíritos ficaram suspensos no
ar, atormentados pela luz.
- Belzebu, volte para o inferno com os seus demônios fracassados,
não a nada no meu reino para você.
- Seu reino? - Se perguntou Belzebu.
- O novo Leviatã fez surgir no Império do Brasil sete reinos, e eu

76 O Divino Leviatã
sou Dom Rafael Bragança de Avís, rei de São Paulo, conclamado pelo
próprio criador.
- Dom Rafael... Apesar de ter utilizado uma mera técnica arcana,
sua luz ainda é capaz de causar grandes estragos. Mas realmente acha que
pode nos vencer sozinho?
Savitri juntou novamente suas mãos numa prece, Barbatos proje-
tou em sua mão direita uma flauta doce e começou a soprar uma suave
melodia.
Repentinamente raízes surgiram do chão e prenderam o corpo do Novi-
ço, um séquito de mortos-vivos evocados pela flauta, farejavam o sangue
do pequeno Duque.
- Sua luz é incapaz de iluminar a minha escuridão... No final das
contas, sua intervenção foi inútil.
- Você me subestima, Belzebu. Um espírito com milhões de anos
deveria ser mais prudente.
- Quanta confiança, vou mostrar para você o quanto sou impru-
dente.
Belzebu mais uma vez teve o seu corpo paralisado pela alma de
Theodoro.
- Outra vez... Deixe-me em paz, humano maldito!
- Meu corpo não servirá aos interesses do traidor do William, tão
pouco os seus. Acordem, amigos! Não deixem que esses espíritos usem
seus corpos!
- Já chega! Matem-no de uma vez. - Gritou Belzebu que digladiava
com a alma de Theodoro.
Savitri e Barbatos começaram a golpear o corpo do pequeno no-
viço com muita violência até o instante que o imponderável aconteceu,
dois triângulos compostos de energia áurica de cor azulada envolveram
os corpos dos demônios e os paralisaram.
- O dilema do jovem duque faz sentido... - Disse uma poderosa
voz.
- Como pode uma criatura com milhões de anos ser tão impru-
dente? Por acaso não sabe que a possessão de corpos humanos é instá-
vel?
Ter o controle majoritário de um corpo não significa a morte do
espírito, existe a união natural entre corpo, alma e espírito, e quando um

A princesa dilacerada 77
invasor tenta burlar essa natureza, acontece exatamente o mesmo fenô-
meno quando um vírus invade um corpo. Os anticorpos combatem o in-
vasor, aniquilando-o ou não, é um mecanismo de defesa. A luz do espí-
rito emite seus fótons de luz e combate as trevas do demônio invasor, por
isso a alma de Theodoro está lutando e te enfraquecendo a cada instante.
Para surpresa de todos surge Crocell, o anjo caído.
- Crocell? O que faz aqui? Não deveria cuidar da segurança do
imperador? Por que interferiu? Eu estou no controle da batalha, não me
atrapalhe! - Disse o noviço ainda preso nas raízes.
- Você não me parece confortável nessa situação, ainda mais preso
nesse truque barato do Barbatos. - Rebateu o anjo caído.
- Crocell, seu desgraçado! Liberte-nos! - Bradou Savitri.
- De fato o motivo da minha vinda é relacionado a libertação, não
a de vocês, é óbvio! Estou aqui para cumprir uma promessa que fiz há
muitos anos. Aqui estou, Theodoro!
Todos se surpreenderam com a proximidade de Crocell e Theodo-
ro.
- Não entendo, qual a relação entre esses dois? - Perguntou Fabri-
zio escorado entre os escombros do viaduto.

78 O Divino Leviatã
Epístola
VIII

' de
O Sacrificio
Theodoro

-H
á muito tempo em uma das minhas peregrinações
pela terra, conheci um menino franzino de cabelo
vermelho que velava sozinho os corpos de sua mãe e
irmão mortos pela fome.
O norte de Minas Gerais era caótico, pobreza e morte para qualquer canto
que se olhe.
- Esse menino percebeu a minha presença naquele cemitério pre-
cário e me perguntou: “Os garotos acreditam que meu irmãozinho vai se
transformar num querubim e minha mãe cuidará dele, isso é verdade?”
Eu respondi que não sabia e ele insistiu: “O que é você? Não me parece
um homem comum.” Hoje eu não saberia lhe dizer o que sou, respondi.
“Você pode dar novas vidas para a minha mãe e irmão?” Não, infelizmen-
te não tenho esse poder, respondi um tanto desconcertado. Os homens
são tão injustos… Após as desiludidas palavras, o menino se fechou num
silêncio desolador, resolvi dar as costas para aquela triste história e seguir
a minha jornada, até que...
- Senhor, um dia você me ajudará a fazer justiça e os seus pecados
serão perdoados, é uma promessa…
- Você sabe quem é esse menino, Theodoro?
- Crocell, finalmente o dia da nossa justiça chegou, faça o que tiver
que fazer, estou preparado.
Crocell libertou Dom Rafael das raízes que o prendiam e ordenou.
- Vá para os escombros do Palácio dos Bandeirantes e espere o
cruzeiro do sul surgir nos céus para invocar a vórtex.
- Veridiana, é melhor levarmos o mestre para um lugar mais segu-
ro. - Sugeriu Fabrízio.

A princesa dilacerada 79
- De acordo, vai ficar muito perigoso aqui. - Concordou à arqueira
que junto a Fabrízio carregaram o agonizante duque de Avís.
- Por favor, cuidem do meu pai. - Suplicou o noviço.
Rapidamente os três se afastaram do local.
- Quando você quiser, amigo. - Disse Theodoro.
Nesse instante Belzebu se manifestou no corpo de Theodoro.
- Que linda cena! Você é realmente lamentável, Crocell, nunca vi
um ser tão rastejante.
- Belzebu, chegou a hora de retornar para o lugar de onde você
nunca deveria ter saído. - Crocell posicionou seus dois braços em X e
conjurou. - Relux arcana!
Um intenso brilho emanou do anjo caído e atingiu o Espírito de
Belzebu que abandonou o corpo de Theodoro.
- Os cinco demônios já foram expulsos, agora é com você.
- Obrigado, amigo. - Agradeceu Theodoro que levou sua mão no
lado esquerdo do peito e sorriu ao dizer. - Preparem-se demônios!
Um buraco negro com um grande poder de atração surgiu do co-
ração do federalista.
- O que é isso? - Perguntou o noviço.
- O que ainda faz por aqui? Saía depressa! Assuma sua posição no
Palácio dos Bandeirantes. Eu cuidarei das coisas por aqui.
- Tudo bem, tenha cuidado, Crocell. - Assim disse o Noviço Dom
Rafael que deslocou-se numa grande velocidade rumo ao palácio.
- Por favor, proteja meus amigos, obrigado por tudo, adeus…
O poder da gravidade exercida no coração de Theodoro tornou-se
caótica e os espíritos Andrômalus, Varsago, Savitri e Barbatus foram tra-
gados para o centro do coração.
- Esse humano inútil criou um buraco negro bem no seu coração.-
Constatou Belzebu que resistia a terrível gravidade.
- Sim, por acaso esqueceu que um dos meus dons é a manipula-
ção gravitacional? Eu posso aumentar e diminuir a gravidade conforme
minha vontade, usando-a em grandes territórios ou no meu pequeno co-
ração.
- Miserável! - Irou-se Belzebu.
- Que a justiça seja feita, volte para o abismo!
O buraco negro atingiu um poder gravitacional inacreditável e su-

80 O Divino Leviatã
gou o espírito do general do submundo para uma dimensão caótica.
Logo o buraco negro se fechou e os espíritos malignos já não esta-
vam mais ali.
Nesse instante os federalistas recobraram suas consciências.
- Hum... O que aconteceu? - Se perguntou Ingrid.
- Eu não consigo me lembrar de nada. - Queixou-se Heitor.
- Vocês foram dominados por cinco grandes espíritos, mas foram
salvos por esse jovem. - Explicou Crocell.
- Theodoro? Theo! - Assim o chamou Ingrid ao correr na dire-
ção do federalista do sudeste que, misteriosamente estava imóvel. Ingrid
parou em frente a Theodoro e logo percebeu que já não existia mais vida
naquele corpo, apenas um homem sepultado em pé e com seu orgulho
intacto.
-Theo! - Exclamou Ingrid.
- Amiga, você sabe que ele não está mais entre nós. - Disse Agatha
que ao se aproximar da federalista do sul à abraçou.
- Esse canalha sempre nos salvando. - Disse Romeu num choro
copioso.
O corpo de Theodoro desmanchou-se em partículas iluminadas e
envolveu os quatro federalistas.
Ingrid olhou para os céus e contemplou aquela neve energética
produzida pelas partículas de Theodoro.
- Se não fosse por você, não estaríamos vivos. - Concluiu Ingrid.
- Venha, querida… Nada temos a fazer aqui, é possível que o pró-
ximo governo tente nos perseguir. - Sugeriu Agatha.
- Continuar sem o Theodoro vai ser muito difícil para mim.
- Para todos nós, querida…
Os quatro olharam pela última vez as partículas que auxiliavam a
lua na iluminação daquela noite quente de novembro, cada um apanhou
uma centelha de energia e partiram com um sorriso provocado pelas
doces lembranças.

A princesa dilacerada 81
Epístola
IX

A conversa entre
~ Andrada
os irmaos

-A
tenção, solicitamos que deixem as dependências do
Palácio do Planalto, aos senadores, deputados e seus
respectivos assessores, a força aérea brasileira reser-
vou aeronaves para que cheguem ao abrigo de Alcântara com segurança.
- Assim alertava uma voz repetidas vezes no desértico Palácio.

William observava o luar das 23h20 da sacada do planalto central.


O povo que outrora o conclamava, já não estava presente para admirar o
seu esplendor e aplaudir o seu discurso, William sentia-se só, mas prepa-
rava seu espírito para uma batalha decisiva.
Nesse instante seu irmão Kadu chega, parecia um tanto perturba-
do.
- Pronto, o Palácio, a Esplanada dos Ministérios e a Câmara já fo-
ram esvaziados, nada mais tem além de nós dois. - Assim informou Kadu.
- Ótimo, você também pode ir. - Disse William que continuava
observando o luar.
- Irmão, apesar de lamentar o que se tornou, jamais irei te abando-
nar.
- O que me tornei?
- A única coisa que eu quis oferecer a esse povo foi a verdadeira
liberdade, livre dos homens maus, livre de Deus... Mas não me dou por
vencido, o criador dos céus e da terra permitiu todo esse derramamento
de sangue, o sangue dos perversos misturando-se ao dos bons, existe jus-
tiça nisso? Somos meros fantoches do seu sadismo, destruindo a vontade
de Deus, sua essência também é destruída, assim completamos o assassi-
nato de Deus que Nietzsche anunciou.

82 O Divino Leviatã
- Você prega liberdade sacrificando os próprios amigos, William?
Theodoro e os outros confiaram em você e no final foram meros hospe-
deiros de demônios? Odeia a Deus e se alia ao que tem de mais podre?
Kadu o pegou pelo colarinho e disse tudo que o perturbava.
- Você assassinou uma senadora da república de forma covarde e
cruel, e o pior... Me envolveu nisso! Quem é você? Quem é você?!
Kadu desferiu um soco no rosto de William que ao chão pereceu.
- Pronto... Já liberou a sua cólera? Meu querido irmão, a plena paz
exige sacrifícios, sejam eles voluntários ou involuntários, o que é a vida
ou morte se não uma mera formalidade subatômica? Nada morre, tudo é
uma merda metamorfa.
William se levantou, ajeitou seu sobretudo, limpou o sangue que
escorria de sua boca e sorriu para o seu irmão.
- Agora vá... As coisas ficarão perigosas por aqui.
- Não deixe a sua raiva cegá-lo ao ponto de duvidar do meu amor
por você.
- Se o pior acontecer, adapte-se ao Brasil que vier.
Ainda perturbado, Kadu rompeu numa desajeitada corrida dei-
xando uma triste trilha de lágrimas.

Acima do Palácio, Vitória e Abel assistiam tudo.


- Kadu continua o mesmo passional, mas sempre foi um homem
de valor. - Disse Vitória.
- Enfim, você falou sobre o Kadu, já estranhava o seu silêncio so-
bre ele, aproveitando o ensejo; valeu a pequena sacrificar tudo por causa
desse idiota?
Vitória voltou seu olhar para Abel e respondeu.
- Não foi só por ele, foi por mim, pelos nossos país, o Brasil... O
mundo, a existência no universo e até mesmo por você.
- Oh! Fico lisonjeado! Mas quem liga para essa droga, não é mes-
mo? Vamos assistir a última batalha! Luz, câmera, ação!
- Idiota.
- Tonta!
Assim trocaram ofensas enquanto William se fascinava pelo luar.

A princesa dilacerada 83
EPÍSTOLA
X

A Batalha Final

B
onito MS- 23: 32 PM

O mistério sobre o paradeiro de Dom Fernando finalmen-


te foi revelado, despido de suas vestes e de seu passado, o imperador nada
pelas águas cristalinas de Bonito.
“Enfim... Decidiremos essa guerra de uma vez por todas.” Assim
pensou Dom Fernando que nadava sobre as profundezas do Rio. “Dois
anos de um árduo treinamento e longe da família, volto ao mundo como
Imperador, talvez não mais como pai.”
Dom Fernando nadou até a superfície e deparou-se com a Guar-
diã dos dois mundos.
- Imperador, precisamos partir, o portal está pronto. - Disse a
Guardiã trajada com o seu típico vestido preto, longo e ajustado no corpo.
- Meu espírito já está pronto. - Disse o imperador que saiu das
águas e trajou-se com os seus habituais jeans, jaqueta preta e botas.
Dom Fernando subiu em sua moto e contextualizou o seu ante-
passado:
- O Divino Leviatã ou a perdição no livre arbítrio?
- O criador é quem sabe!
O imperador acelerou sua moto em uma pequena estrada, avistou
um grande portal que emitia um brilho espelhado e o rompeu a toda ve-
locidade, arremessando-se junto a moto para o outro lado do portal.
- Brasília... - Sussurrou ao avistar o Palácio do Planalto já do outro
lado do portal.
- Coisas engraçadas acontecem as 23h45, já percebeu isso? - Inda-
gou o Presidente William da sacada do palácio ao observar a chegada do
futuro imperador.
- Minha mãe dizia que era exatamente o horário que eu chorava
pelo leite dos seios dela, no alto dos meus oito anos era o horário que

84 O Divino Leviatã
eu acordava dos meus pesadelos. Lembro de uma namorada aos dezoito
anos, o pai dela era muito rígido com horários, e que balada boa chega
no seu auge as 23h? O jeito era sempre levá-la ao shopping e trazê-la sã e
salva para o papai. É... Não durou muito tempo...
- Aonde quer chegar com essa história ridícula? - Perguntou Dom
Fernando impaciente.
- São exatamente 23:45 e me deparo com mais uma decisão na
vida, sei que não é importante, mas é só uma curiosidade para distração.
- Você não precisa morrer, William, apenas se entregue e o criador
terá piedade de você.
- Piedade... - William voltou seus olhares para o céu e fez um gesto
obsceno. - Criador dos céus e da terra, observe o que eu faço com o mari-
cas do seu imperador!
Ao gritar essas blasfêmias, William retirou de seu sobretudo preto
suas famosas espadas curvadas, e as arremessou na direção do imperador
que repelindo-as facilmente apenas as observou cortando os céus.
- Você só sabe brincar com facas, Sr. Presidente? - Indagou o im-
perador entoando enigma.
- O que pretende fazer? - Perguntou William.
Dom Fernando acelerou sua moto e rompeu em grande velocida-
de, empinando-a e pegando grande altura para finalmente chegar a saca-
da do palácio.
William por pouco não foi atingido, Dom Fernando adentrou ao
Palácio e por um momento parou a moto.
- Agora darei início aos planos do criador, o maior monumento da
república terá que ser destruído!
Nesse instante surge de um pequeno portal a guardiã dos três
mundos que segurava em sua mão direita uma adaga prateada com um
pomo de rubi e adornos de esmeralda no chappe.
- Preparado para morrer? - Perguntou a guardiã que não esperou
a resposta do imperador, aproximou-se e o apunhalou no coração.

William entra no palácio e se depara com o corpo do imperador


sem vida no chão.
- Não entendo, o que acontece aqui? Por que fez isso?
A guardiã sorriu e apenas respondeu.

A princesa dilacerada 85
- Apenas observe.
A alma do imperador desceu até o mundo inferior no campo de
batalha mais sangrento da humanidade.
Um homem banhado por sangue se aproximou de Dom Fernando
que observava o campo de batalha.
- Você não me parece um homem de guerras, o que faz nesse lugar
tão horrível, sem nenhuma esperança?
- Qual é o seu nome? - Perguntou o imperador.
- Eu sou Spartacus, fui condenado a uma eterna batalha sem lega-
do, aqui não temos a noção do tempo e a sensação da espada nos atraves-
sando , tornou-se parte de nós.
- Essa é a evolução da dor e o sofrimento, sentimos na alma. - As-
sim definiu Spartacus a sua estada no inferno.
- Spartacus... Que destruiu a casa de Battiatus, derrotou Crasso e
legiões romanas...
- Posso te dizer que as suas batalhas poderão fazer algum sentido,
olhe isso.
Dom Fernando abriu sua mão esquerda e mostrou a semente ver-
melha da Ninrode. Spartacus recuou e suas expressões formosearam o
medo.
- Você é... - Sussurrou Spartacus.
- Sim, sou o imperador!
Dom Fernando jogou a semente no campo de batalha e um gran-
de terremoto cessou aquela insana guerra que perdurava a milênios.
Legionários, acadianos, espartanos e os guerreiros de todas as culturas
que já passaram pela terra, observavam atônitos as raízes da Ninrode bro-
tarem do chão e evoluírem rapidamente rumo a superfície.
- Foi preciso que eu morresse para semear um novo tempo. A par-
tir desse instante todos os signatários da carta dos condenados poderão se
redimir perante o criador.
As raízes tomaram conta da alma do imperador e a elevaram até
a superfície. As terras do Brasil estremeceram e o chão do palácio do pla-
nalto pereceu ao esplendor das raízes.
- Maldito! - Gritou William.
- Compreendeu agora que está arruinado, William?
- Arruinado? - William riu. - Guardiã, apesar de tudo isso me sur-

86 O Divino Leviatã
preender profundamente, não sou o tipo que se deixa abater, Sigrid, apa-
reça!
Poucas vezes a guardiã demonstrou surpresa como naquele ins-
tante.
Uma mulher de longos cabelos brancos e corpo translúcido apareceu.
- Eu não tive alternativa, perdoe-me, mãe.
- Como sempre querendo resolver tudo sozinho e confiando de-
mais nas suas habilidades, quando vai aprender, filho?
- Talvez nunca, minha mãe, mas ajuda-me a vencer.
- E o que essa mulher pode fazer? - Perguntou a guardiã num tom
de desdém.
Sigrid arrancou de dentro de sua túnica cinza, uma pequena am-
pulheta e à atirou contra a guardiã.
A magia paralisava o tempo do oponente por uma hora, o corpo
da guardiã ficou inerte ao tempo, não opaco a luz, pois essa também é re-
gida pelo tempo. O corpo da guardiã ganhou uma coloração cinza escura,
os prismas das cores emitidas pela luz, simplesmente desviavam do seu
corpo, era como se a sua existência fosse ignorada.
- Essa velha aqui não tem condições para te enfrentar, mas posso
te paralisar um pouquinho. - Disse Astrid num tom debochado.
- Agora é a sua vez, meu filho, cuide do imperador.
William levantou suas duas mãos e as espadas retornaram.
- Corte a cabeça dele. - Sugeriu Sigrid que observava junto ao filho
o corpo sem vida de Fernando.
- Chegou a hora de acabar com de uma vez por todas essa guerra.
Quando William tentou desferir o derradeiro ataque, as raízes da
Ninrode protegeram o imperador.
- Mas o que é isso? - Se perguntou o presidente William.
- A Ninrode está enraizada na alma do imperador, as raízes são
como anticorpos o protegendo. - Explicou Sigrid.
Dom Fernando finalmente despertou, por um instante contem-
plou o seu corpo e a ferida peitoral que já estava cicatrizada.
- Chegou o momento de definirmos essa luta, William.
- Imperador... O seu Deus não vai te ajudar. - Disse William posta-
do em sua base de gladio com as duas espadas direcionadas ao adversário.
Sigrid se aproximou da Ninrode, ajoelhou-se perante ela e come-

A princesa dilacerada 87
çou a recitar um mantra para retardar o seu crescimento.
Os dois se encararam por alguns instantes e finalmente começa-
ram a grande batalha. Uma espada surgiu na mão direita do imperador,
em suas lâminas um léxico angelical que brilhava como ouro.
William tomou o primeiro partido da luta, um ataque com as duas
espadas que imediatamente foram interceptadas pelo imperador.
No decorrer da batalha e no calor dos corpos, Dom Fernando
mostrou uma ligeira vantagem, William caiu ao chão e Fernando apro-
ximou-se com a lâmina de sua espada fazendo atrito sobre o pescoço do
presidente.
- Acabou, William, renda-se.
- Só vai acabar quando eu morrer. Você não percebeu, mas estão
longe de serem simples espadas, observe...
As duas espadas começaram a emitir uma aura de cor avermelha-
da, a espada da mão esquerda de William desprendeu-se do seu amo e
ascendeu acima da cabeça, a essa deu-se o nome de “bênção de Sigrid” a
outra espada desenvolveu uma energia da mesma cor vermelha e espira-
lada, que tomou conta do corpo de William e forjou-se numa armadura
sólida e intransponível de cor vermelha. O elmo cobria toda a cabeça, seu
desenho muito lembrava as armaduras dos séculos XVII e XVIII.
Numa velocidade espantosa, William atacou o imperador e dece-
pou seu braço direito com uma espada de energia vermelha.
- Ah! Meu braço, maldito! - Gritou Dom Fernando que observava
aterrorizado o sangue jorrar de sua ferida aberta.
- Deixe de praguejar, Dom Fernando, vou te proporcionar um fi-
nal digno de todos os reis da história.
Dotado de uma notável insanidade, retalhou o corpo do impera-
dor, que por sua vez, tentava revidar os ataques, mas a “bênção de Sigrid”
que flutuava sobre a cabeça do presidente William, criava um campo de
força para impedir o ataque do imperador.
Na intenção de decidir a batalha, William ergueu o imperador
pelo pescoço.
- Maricas... Cadê o seu Deus agora?
- Mate-o! Mate-o agora! - Exclamou Sigrid que meditava para im-
pedir a evolução das raízes da Ninrode.
- Mamãe, contemple a vitória final dos Andradas!

88 O Divino Leviatã
No instante que William cravaria sua espada no coração de Fer-
nando, Crocell aparece a tempo de deter o ataque do Presidente da Repú-
blica, ao invés da espada ferir o coração do moribundo imperador, foi a
mão do anjo caído que ela atravessou.
- Você?! O que faz aqui?! Saia do meu caminho!
- William, você é uma das piores existências que já conheci, tro-
cou toda a sua bondade por um projeto de poder, vendeu sua alma para
o que tinha de mais podre no inferno, e usou cinco jovens inocentes para
isso, você é tão desprezível que não percebeu que também foi usado por
Belzebu e os outros demônios que não assinaram a carta dos condenados,
agora você não tem mais nada.
- Poupe-me, pomba sem asas, você se humilha pelo perdão de um
criador que te expulsou dos céus. Existência desprezível? Faça-me rir!
- Crocell! - Gritou Sigrid que interrompeu sua reza frente a Nin-
rode.
- Não é com o Crocell que deve se preocupar, sua velha! - Disse a
Guardiã que havia se recuperado muito antes do que Sigrid previa.
- Miserável, o cancelamento temporal não durou dez minutos. -
Lamentou Sigrid.
- O truque é bom, quem sabe eu não o coloque no meu repertório.
Mas... Por agora será conduzida ao inferno pela minha cavalaria particu-
lar.
A guardiã assobiou e a exemplo do que aconteceu com os agentes
da CIA, dois cavaleiros da iniquidade montados em seus corcéis negros
invadiram o palácio e lançaram correntes contra a Bruxa da família An-
dradas e a arrastaram para um portal escuro que ecoava os gritos mais
terríveis do inferno.
- Mãe! - Gritou William.
- Eu te amo... - Sussurrou Sigrid ao desaparecer nas sombras.
- Agora nada impede a Ninrode de crescer. - Disse a Guardiã que
observava as raízes tomarem conta de todo o Palácio e os troncos final-
mente romperem o teto do maior símbolo do poder executivo.
- Maldita! Vai pagar pelo que fez a minha mãe! - Ameaçou William
com lágrimas que salpicavam as raízes vermelhas da Ninrode.
- Não! - Gritou o imperador que se escorava numa pilastra, ten-
tando manter-se em pé. - Não é com a Guardiã a sua luta, venha me en-

A princesa dilacerada 89
frentar!
- Você... No mais obscuro de seus pensamentos sabia que a sua
derrota era eminente, e mesmo assim seguiu com os planos, por que?
- Imperador, você ficou muito tempo trabalhando como mestre
cervejeiro e esqueceu de entender seres humanos...
- Você deixaria seus filhos morrerem e não faria nenhuma tenta-
tiva de salvá-los, mesmo sabendo de suas limitações para tal? Não desis-
timos do que amamos, e eu amo esse país... Moralmente posso ter feito
péssimas escolhas, só agora vejo isso claramente. Eu fui exatamente o que
um príncipe descrito por Maquiavel deveria ser. Me aliei a forças malig-
nas para construir a paz que eu sempre sonhei, vislumbrei um horizonte
e vi a minha impossibilidade de conquistá-lo, tentei a paz pela guerra,
combati o maligno com forças igualmente malignas e no final de tudo
só fui um joguete de Deus, Ele precisava de um antagonista perfeito, e eu
sem saber me submeti a esse papel, os historiadores vão relatar com pom-
pas o grande imperador que destruiu o perverso William e o seu exército,
mesmo assim, dane-se imperador! Dane-se o Divino Leviatã e dane-se o
Criador dos céus e da terra! Eu vou tentar mudar as providências divinas,
mesmo que isso resulte na minha morte!
William elevou sua espada para o alto e um poderoso relâmpago
vermelho a atingiu, atribuindo-lhe grande poder, era o derradeiro ataque.
Dom Fernando também levantou sua espada para os céus e recitou parte
da oração de São Miguel arcanjo.
- Príncipe Guardião e Guerreiro defendei-me e protegei-me com
Vossa Espada. Não permita que nenhum mal me atinja.
Nesse instante um relâmpago rasgou os céus e atingiu a espada
do imperador, toda aquela potência de bilhões de joules foi canalizada na
espada sem causar ferimento algum a Dom Fernando, sua aura manifes-
tou-se numa coloração dourada e moldou-se ao seu corpo na forma de
uma armadura reluzente que mesclava uma luz tão intensa quanto o sol e
a rigidez de um metal poderoso e dourado.
A armadura a exemplo de William, também cobria o corpo do
imperador, proporcionando-lhe uma defesa perfeita, o diferencial era a
coroa dourada com pequenos adornos de esmeraldas no lugar de um ro-
busto elmo.
Os primeiros galhos da Ninrode envolveram-se no corpo do im-

90 O Divino Leviatã
perador e o elevou para os céus numa grande velocidade, rompendo o
que restou do teto do palácio.
William observa o longínquo brilho do imperador nos céus e
também rompeu em voo ao encontro do seu inimigo.
- Não importa! Maldito! Dane-se as divindades! Dane-se as po-
testades! Dane-se o Divino Leviatã! Vou rir da eternidade tomando um
bom vinho. Morra!
Com a sua espada lançou um poderoso relâmpago vermelho que
foi capaz de mostrar seu esplendor em todo território brasileiro.
O imperador entoou a frase que ficou na história.
- Eu te condeno ao castigo destinado a todos aqueles que ousaram
enfrentar a vontade do Criador! O lugar no inferno reservado a todos os
déspotas! Providência divina!
A espada do imperador emitiu uma luz tão intensa quanto o sol,
aquele era o sinal para os sete reis que formariam o Império do Brasil.

O Noviço Dom Rafael que estava nos escombros do Palácio dos


Bandeirantes em São Paulo, ao observar o sinal nos céus, levantou sua
mão direita e acionou a vórtex, e assim fizeram todos os reis do Brasil.
As sete vórtex uniram-se ao poder da espada do imperador e for-
maram uma energia jamais vista, a espada em ressonância, vibrava em
frequências variadas, não parecia um estado de matéria conhecido.
O raio vermelho de William foi neutralizado apenas com a resso-
nância da espada do imperador.
- Não é possível, apenas o som da espada deteve o meu relâmpa-
go? Não importa, tentarei agora com todas as minhas forças!
E mais uma vez William atacou com o seu grandioso relâmpago
vermelho, dessa vez com o poder dobrado. O imperador decidiu terminar
de uma vez essa terrível guerra.
- Eu te condeno a providencia divina!
Uma poderosa energia surgiu da espada do imperador e confron-
tou o relâmpago vermelho de William que não foi capaz de nivelar tama-
nho poder, sendo assim atingido violentamente pela providência divina e
arremessado contra o palácio do planalto.
Enfim, a batalha havia terminado.
A Ninrode devolveu o imperador ao chão com toda a segurança,

A princesa dilacerada 91
Crocell e a Guardiã se aproximaram do imperador e o levaram em seus
braços.
- Você foi muito bem, imperador. Agora teremos um pouco de
paz. - Disse Crocell sorrindo.
- Uma coisa de cada vez, no momento estou preocupado com o
meu braço decepado.
Os três deram boas risadas, e logo em seguida Dom Fernando
desmaiou sobre os braços da Guardiã.
-Você sabe o que fazer. - Disse Crocell.
- Sim, não se preocupe, ele ficará bem. - Respondeu a Guardiã que
levando o imperador em seus braços, fez surgir um portal e desapareceu.
Não distante dali, Kadu aparece novamente para se despedir do
irmão.
- Você é um moleque, sabia? Por que não foi embora quando eu
mandei? - Disse William vencido sobre o chão e respirando com grande
dificuldade.
- Irmão, o que eu farei sem você?
Numa intervenção delirante, William respondeu com outra per-
gunta.
- Que horas são?
Sem entender a essência da pergunta, Kadu apenas se limitou a
responder.
- 0h01.
- O primeiro minuto do dia 15 de novembro... É o tempo de so-
breviver meu irmão, sobreviva... Deixe o nome Andradas morrer comi-
go...
- Mamãe desapareceu e não vai poder te ajudar, está sozinho, mas
eu acredito na sua genialidade, vai sobreviver.
Kadu se aproximou do corpo do irmão e ajoelhou-se perante ele,
limpou sua testa suada e fria, beijando-a com ternura. Os olhos de Kadu
encheram-se de lágrimas.
-Hey! Não chore. - William usou suas últimas forças para limpar
as lágrimas do irmão. - Prometa pra mim que não vai se entregar e que
estará vivo para ver esse império cair.
- Eu prometo... Eu prometo... - Assim jurou Kadu num choro co-
pioso.

92 O Divino Leviatã
- Assim está bem melhor...
William sorriu, selou seus olhos, respirou por três vezes e mor-
reu...
Kadu não teve outra reação a não ser gritar e lamentar do fundo
de sua alma a fragilidade e impotência de não poder salvar o seu irmão.

Nesse instante surgem Vitória e Abel como observadores espec-


trais de todo aquele evento.
- E essa foi a linda história do nascimento do Divino Leviatã. -
Disse Abel no seu típico tom teatral e debochado.
- O que há de belo nessa história? Derrotas pessoais e vitórias com
motivações contestáveis, foi o que assistimos. - Rebateu Vitória.
- Minha linda dilacerada, você é muito chata, o seu senso crítico
me da sono.
- Digo o mesmo da sua irreverência doentia. - Devolveu Vitória
- Era isso que queria me mostrar?
- É claro que não, ainda tem muita coisa, vamos!
Ambos desapareceram do cenário de final de guerra, deixando
Kadu chorar pelo seu morto e a república morrer no mesmo dia que nas-
ceu em 1889.

A princesa dilacerada 93
Epístola
XI

O Esplendor do
novo Brasil

O
triunfo do novo império trouxe um amanhã de cinzas e o
odor dos corpos putrefatos e dilacerados pela guerra.

O Brasil chorava pelos seus mortos, ao passo que admiravam em-


basbacados a esplendorosa Ninrode, a árvore da mortificação do livre ar-
bítrio. Todos sabiam que o mundo no qual construíram suas vidas, agora
jazia no vácuo histórico, embora desconhecessem a sua natureza.
Terra, Céu e submundo agora unidos como nova providência di-
vina, aqueles que outrora foram condenados ao inferno, terão a chance de
se redimirem, aos que já ascenderam aos céus, caberá a nobre missão de
orientar o caminho daqueles que não se adequarem ao novo modelo de
existência do criador, enquanto a nós, os vivos, nossa missão era a mais
difícil, abrir mão de seu livre arbítrio em troca da obediência e devoção,
caberá apenas comer do fruto da Ninrode e mortificar a humanidade que
até aqui nos guiou, seria o caminho para o homem finalmente alcançar a
suprema espiritualidade?
Aos poucos o fruto da Ninrode forjou esse novo homem dócil e
obediente, o país foi reconstruído graças aos sete reis e seus esforços para
nos manter fortes e com esperança.
A restauração da monarquia brasileira tendo seu viés teológico
fundamentado pelo divino leviatã, causou um comportamento hostil por
parte das Nações unidas. USA, Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Israel
e Rússia não reconheceram a legitimidade do Império brasileiro, deci-
diram aplicar sanções econômicas até que o Brasil convocasse eleições
direitas para eleger seu novo representante.
Para espanto de todas as nações, não houve recuo do Divino Le-

94 O Divino Leviatã
viatã, o isolamento econômico de nada adiantou, a produção brasileira
crescia de forma exponencial e fora dos índices.
Ás 13h do mesmo dia 15 de novembro de 2022, Dom Fernando
de Bragança anunciou em cadeia nacional os novos tempos do Brasil e a
união dos novos três poderes, Céu, terra e submundo.
- Comeis do fruto, alcancem a eterna paz e sacrifiquem seus li-
vres-arbítrios, essa é a vontade do criador. - Assim dizia o imperador do
Brasil.
Sociólogos de todo o mundo analisavam com curiosidade o com-
portamento desse “novo brasileiro” não mais existia o bon vivant cario-
ca ou o frenético e despojado paulistano, todos aparentavam mansidão e
uniformidade, não demorou para que atribuíssem essa estranha mudança
a majestosa Ninrode.
Não havia explicação para uma árvore que rasgava os céus, afinal,
que experiência científica era aquela? Pensavam os americanos.
Muitas inspeções Internacionais foram barradas pelo Império, o
que agravou a situação diplomática do Divino Leviatã.
Para a proteção do Império, um poderoso exército foi criado, as-
sim nasceu a Divina Armada Imperial, exército, marinha e aeronáutica
unidos numa única força.
Crocell e a Guardiã treinaram os melhores soldados que a huma-
nidade já conheceu, não eram fortes apenas fisicamente, seus espíritos
eram poderosos e todos eram capazes de manipular magia arcana.
Em pouco tempo o Brasil se transformou no principal polo eco-
nômico do mundo e os principais investidores apostaram no Divino Le-
viatã.
Uma grande desaceleração na economia foi o suficiente para os
americanos irem além das sanções diplomáticas, o Presidente republica-
no Joseph Conrad acusou a Dívida armada imperial de produzir armas
nucleares, infringindo assim o tratado de não proliferação nuclear.
Não havia prova alguma disso, a CIA falsificou pesquisas de ativi-
dade nuclear e apontou a cidade de Alcântara como possível lugar de um
laboratório de enriquecimento de urânio.
Paraguai, Bolívia, Peru e Equador uniram-se ao Divino Leviatã e
formaram uma coalizão estrategicamente importante para delimitar es-
paço no continente.

A princesa dilacerada 95
A América declara guerra ao Império brasileiro, ingleses e Ale-
mães juntaram-se aos USA, o fim do Divino Império parecia próximo,
embora, nenhum deles conhecessem o brilhante rei de São Paulo, Dom
Rafael de Avís e Bragança.
- Majestade! Os caças americanos estão muito próximos de Al-
cântara. O que faremos? - Perguntou um dos soldados.
Dom Rafael sorriu no alto das pompas de seu uniforme militar
condecorado e disse:
- Deixem que se aproximem, tenho um presente de boas vindas.
Os bombardeios começaram, mas havia algo que intrigava o Te-
nente Richmond, piloto de um dos caças, os mísseis pareciam não atingir
os alvos, era como se fossem neutralizados por alguma força.
- Não sei o que acontece, os mísseis foram desviados para algum
lugar! - Comunicou o tenente a inteligência em Washington.
Não houve resposta do comando, para total angústia do promis-
sor tenente de 26 anos.
Richmond observou o radar e nenhum dos seus companheiros
estavam próximos. Repentinamente o caça entrou em turbulência e foi
sugado por algo que o tenente não podia ver.
Antes que pudesse raciocinar, chocou-se a uma enorme bola de
fogo. De uma forma inexplicável, os 32 caças colidiram-se ao mesmo
tempo.
Em Alcântara todos se perguntavam o que havia acontecido. Com
um sorriso sereno, Dom Rafael, que diferente do impetuoso garoto de
outrora, havia se tornado um grande rei estrategista.
- Vejo que ainda não entenderam… Eu criei junto com o núcleo
de ciências, múltiplos portais que dobram o espaço e direcionam toda a
força aérea inimiga para um ponto em comum. Os portais não se abrem
para os caças da Divina Armada Imperial, pois todas as nossas armas de
guerra são codificadas, e os caças e foguetes inimigos não possuem o có-
digo para voarem em nossos céus, sendo assim, os portais se abrem e os
direcionam para um ponto em comum onde todos se colidem. Os misseis
disparados, mesmo que estejam fora do alcance dos portais, são rapida-
mente detectados, fazendo o portal mais próximo calcular exatamente
o ponto de impacto e se colocar a frente do missel, dispersando-o para
diversos pontos no universo.

96 O Divino Leviatã
- Rei Dom Rafael, você é realmente genial! - Assim bradou um
dos oficiais que comemoravam o êxito.
O desfecho da guerra proporcionou aos americanos, ingleses e
alemães, a desonra de assinarem uma constrangedora trégua.
A terceira guerra mundial trouxe aos USA uma crise sem prece-
dentes. Embora, o pior inimigo para o império brasileiro estava dentro do
seu próprio território.
O fruto da primeira inocência foi rejeitado por aqueles que não
queriam se prostrar a um Deus, tão pouco a um imperador, assim nasce-
ram grupos marginalizados que combatiam o divino leviatã com muita
coragem e arriscando suas vidas, existe humanidade na servidão inques-
tionável? Se perguntava Cicero, um dos lideres das forças divergentes,
essa pergunta foi respondida pelo grande líder religioso do Império, Re-
verendo Dom Maximiliano que discursava a um grande público na ceri-
mônia fúnebre da princesa Vitória na cripta Imperial.
- Todas as dores dessa primeira vida já se passaram, com o devido
tempo, a carne se transformará em partículas espalhadas, um memorial
de nossa existência.
Nesse instante chega a grande limusine que levava o caixão da
princesa, dois carros oficiais cercavam o que jaz de Vitória.
Os espíritos de Vitória e Abel assistiam o cortejo, e o excêntrico
príncipe se despediu da amaldiçoada irmã.
- Irmãzinha, você deve entender, não é mesmo?
- Preciso voltar para o meu corpo, não é muito recomendável re-
alizar viagens astrais por um longo período de tempo, além do mais, sua
estada na terra chegou ao fim.
Vitória sentiu uma terrível dor, acanhou-se numa postura de pro-
fundo sofrimento e voltou sua cabeça para o chão.
- Esse seria o momento pertinente para perguntar se depois de
tudo que aconteceu, você não sente um pingo de remorso, mas logo as
minhas memórias retornam… E percebo que você não tem a capacidade
de mensurar sentimentos, apenas os racionaliza, sendo assim, não adian-
taria nada praguejar contra você, apenas fique ciente que essa situação
não ficará impune, o seu juízo chegará.
- Acabarei com as suas ambições doentias. - Jurou Vitória.
- Irmãzinha, culpar um homem pela sua ambição é o mesmo que

A princesa dilacerada 97
culpar a própria existência. O existir já é uma ambição das mais egoístas,
imagine, em paradoxos infindáveis e algoritmos impossíveis de se enten-
der no ciclo de vida humana, você acaba sendo a única possibilidade en-
carnada.
- Ambição não nasceu de nenhum tratado filosófico, ela é além
da filosofia, ambição é o efeito colateral da própria existência, logo, ela é
superior a moral humana.
Abel se aproximou do atormentado corpo de sua irmã e a beijou
no rosto.
- Até nunca mais, irmãzinha, não se preocupe, deixei instruções
para que os demônios à alimentem bem.
Abel desapareceu junto com o eco de sua voz, agora Vitória estava
sozinha, observando o cortejo, o choro copioso de sua mãe, à austerida-
de de Dom Fernando que hora ou outra ameaçava desconcertar, a mídia
que cobria a triste cerimônia como se fosse um show de uma grande es-
trela, curiosos que observavam despretensiosamente os acontecimentos,
e por fim, a cena que mais a irritou, seu irmão Abel sai da limusine com
um forçado semblante de choro, logo a imprensa se aproximou do prínci-
pe para ouvir suas palavras.
- Príncipe Abel, sabemos do momento difícil que a família impe-
rial passou ao enfrentar a princesa Vitória junto com os marginalizados,
e que sua morte veio pelas mãos do próprio pai, como superar isso?
- Meu caro repórter, é óbvio que todos estamos tristes, perdi mi-
nha irmãzinha querida, alguém que eu amava muito.
- Que o Brasil se conscientize que não podemos ter diálogo com
os insurgentes que influenciaram minha irmã, precisam ser eliminados
urgentemente!
- Amanhã enviarei ao parlamento um ofício de guerra contra to-
dos que se levantaram contra o Império, vingarei minha querida irmã.
Vitória enfureceu-se e investiu contra Abel, mas a sua essência
não conseguiu atingir o corpo carnal de seu irmão, nesse instante as cha-
mas do seu corpo se intensificaram e sua alma foi tomada por uma espiral
negra que a sugou para o submundo.

98 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
XII

O Espelho da Alma

-P
or que existo? - Questionou-se Vitória contemplando o
reflexo do seu rosto desfigurado nas águas escuras do
rio da morte.
- Não entendo o propósito da minha existência... Sofro as dores
do inferno, por que também preciso sofrer as da terra?
As águas escuras começaram a refletir cenas do seu funeral, e uma
fala do reverendo Maximiliano lhe chamou à atenção:
“As antigas dores já passaram, que Vitória descanse em paz.”
A princesa suspirou e refletiu por alguns segundos.
- Paz? Do que ele fala realmente? Não existe paz no que sou e
aonde estou. A morte para os vivos é o silêncio, para os mortos que foram
amaldiçoados é a tormenta de memórias enquanto vivos combinadas
com as chamas do inferno. 
Vitória observou que nas profundezas do rio haviam milhares
de grandes espelhos que refletiam imagens de pessoas, pareciam pre-
sas em suas próprias ilusões. A princesa  percebeu que as imagens de
seu funeral que acabara de assistir, haviam sido refletidas por um espel-
ho que estava na superfície do rio. Esse espelho tinha na parte superior
de sua moldura o rosto de Vitória com seu nome logo abaixo esculpido.
A princesa ajoelhou-se a margem do rio e ao tocar o espelho, seu
corpo foi absorvido.
- O que aconteceu?  Me sinto leve, mas as minhas angústias ele-
varam-se ao mesmo nível do fogo que atormenta minha alma.
“Memórias...”  sussurraram vozes.
E assim, a alma de Vitória viajou no espaço e tempo.

A princesa dilacerada 99
EPÍSTOLA
XIII

O Noivado

-O
nde estou? - Se perguntou a princesa ao pre-
senciar uma grande festa, todos bem traja-
dos, a nova corte brasileira desfilava no sa-
lão do suntuoso e reformado palácio do planalto. - Essa é a minha
festa de noivado, com tudo que aconteceu, apaguei de minha memória.
Vitória encontrou a sua figura do passado trajada com um lindo
vestido branco de fino corte que contornava seu largo quadril.
Seus cabelos negros com canecalon e pigmentos de diamante dava
o tom de uma princesa negra e majestosa como o Brasil jamais havia vis-
to. Ela não dançava com os demais, estava deslocada no salão e com um
olhar distante.
- Agora me lembro, eu estava angustiada a espera do meu noivo,
na verdade nunca quis me casar, só de pensar na ideia me dava calafrios,
mas era necessário para o fortalecimento do Império e os seus reinos, um
casamento principesco típico.
- Atenção! - O porta-voz do Império se anunciou. - Nossa majes-
tade, príncipe Dom Rafael, acaba de chegar!
Todos cessaram a dança e abriram corredor para o vitorioso prín-
cipe. Duas damas se aproximaram da princesa para encorajá-la.
- Eu não entendo o seu desânimo, quem não gostaria de casar
com um homem tão lindo, sensível e heroico quanto o Rei de São Paulo?
- Questionou a Baronesa de Campinas, uma bela mulher de longos cabe-
los loiros, olhos verdes, sardas rosadas, batom rubi, um vestido vermelho
suede e de corte seco.
- Sensível até demais. - Comentou Valéria, uma bela mo-
rena de olhos negros, cabelos longos e castanhos, pele jam-
bo e vestido esmeralda com franjas no decote, ela fazia minha
segurança pessoal, seu semblante era fechado, odiava cerimônias, prin-

100 O Divino Leviatã


cipalmente aquelas que tinham Dom Rafael como um dos protagonistas. 
- Poupe-me de seus comentários maldosos, Valéria, Dom Rafael é
o meu noivo, peço que tenha com ele a mesma dedicação que tem comigo.
- Faço por você, e sempre por você, Vitória. - Disse Valéria.
Enfim, o pomposo rei de São Paulo entrou no Palácio, as pessoas
o amavam, sua figura heroica só estava abaixo do próprio imperador, se
pudéssemos definir Dom Rafael, diríamos que era o modelo do cidadão
virtuoso, alguém que superou o conformismo de Maquiavel ao definir
que o príncipe teria que fazer o necessário para governar, o rei e meu
futuro noivo fazia o que era certo, não se corrompia, infelizmente sua san-
tidade não foi o bastante para que não o punissem por sua natureza, mas
essa é uma outra história,  foquemos em seu belo uniforme militar azul
marinho, condecorado até as ombreiras, seus longos cabelos castanhos
claros que estavam lindos, seu corpo em sintonia, seus passos firmes, seu
olhar altivo e suas faces esculpidas como um anjo barroco, apesar do meu
coração não estar na beleza e bondade do rei Dom Rafael, ainda assim era
hipnótico contemplá-lo.
- Mano! - Assim gritou Aurora de Avís e Bragança , irmã mais
nova de Dom Rafael e a sétima na linha de sucessão ao Império, ela pra-
ticamente se atirou nos braços do bom rei, seu descuido foi tamanho que
não se deu conta que estava com uma taça de vinho e que acabará de
manchar seu vestido branco.
- Hey! Vá com calma, se você pensa que vou comprar outro vesti-
do desses está muito enganada. - Disse Dom Rafael com um farto sorriso
no rosto.
- Que coisa feia! Você não é assim! Sei muito bem que você nunca
iria desamparar sua irmãzinha querida. - Retrucou Aurora.
- Começo a descobrir que criei um monstro chantagista e com
hábitos muito caros.
Rafael tinha um sorriso fácil, as pessoas o amavam e o queriam
por perto.
-Para com isso, afinal, é só uma manchinha de vinho. - Resmun-
gou Aurora.
- Meu filho! - Disse a voz embargada do Duque de Avís, seu pai,
trajava um terno preto e andava claudicante com auxílio de uma bengala
de noz.

A princesa dilacerada 101


- Pai! - Respondeu Dom Rafael que logo foi aos braços do velho
Duque.
- Tenho muito orgulho do que se tornou. - Disse o Duque com
lágrimas nos olhos.
- Tive o melhor dos professores.
De repente,  a voz do imperador ecoou pelo Palácio. 
Era papai, ele já não era o mesmo homem, o empresário do ramo de cer-
vejas, o sorrateiro que escondia chocolates debaixo do meu travesseiro
enquanto eu dormia, hoje é um imperador poderoso, trajava um belo so-
bretudo azul anil, seu braço direito era biônico, pois como devem lem-
brar, o perdeu na batalha contra William. Seus cabelos alvos já acusavam
seus sessenta e quatro anos. Ao seu lado o meu irmão Abel com seu dread
de cor branca combinando com o terno.
- Peço à atenção de todos, pois a ocasião é muito especial. Hoje é
o noivado da minha querida filha, princesa Vitória, confesso a todos que
não me preparei para esse momento, mesmo com os meus sessenta e qua-
tro anos, o egoísmo me impede de ver a minha filha como mulher, antes
era uma criança que se impressionava com qualquer coisa que eu fizesse,
me olhava admirada quando eu dedilhava notas no meu violão, eu me
sentia o melhor violonista do mundo, mas agora...
Papai silenciou por alguns segundos, parecia bombardeado por
lembranças, seu olhar  perdeu-se no salão até encontrar Dom Rafael e
finalmente concluir.
- Agora o Brasil precisa de uma poderosa princesa que lutará pelos inte-
resses do Divino Leviatã e um virtuoso Príncipe. As famílias Versalhes
de Bragança e Avís de Bragança, serão uma só. Nesse momento eu gosta-
ria de dedicar aos noivos o hino Imperial, que todos dancem e comemo-
rem porque esse é o futuro do Brasil! 
Depois que papai terminou o seu discurso emocionado,  Dom Ra-
fael se aproximou, pegou em minhas mãos e timidamente sorriu.
- Você está feliz? - Perguntei.
-Precisamos ser felizes, é o que esperam da gente, não é mes-
mo? - Respondeu Dom Rafael que me conduziu para o centro do salão.
Meu irmão estava com uma cara de poucos amigos, a história que
eu e Rafael éramos o futuro do Brasil parecia atormentá-lo de uma for-
ma que na ocasião eu não entendi, o que foi inocência da minha parte.

102 O Divino Leviatã


No centro do salão principal do Palácio, estávamos lá parados, es-
perando o prelúdio dos violinos, Dom Rafael percebia o meu desconforto
com a situação e com a sua notável doçura tentava me confortar.
- Tenho obras de Pablo Picasso, coleções dos escritos de Leonardo
da Vinci, originais de Shakespeare, objetos raros que já foram proprieda-
des do Smith Sônian, relíquias da nossa dinastia Bragança e muitas moe-
das como esse dracma.
- Todos esses tesouros eram protegidos por tratados internacio-
nais, o que fez para obtê -los? - Perguntou Dom Rafael.
- Oh! Majestade!  manter o meu luxo tem um preço, e as outras
nações para se manterem protegidas, pagam o que for necessário. Mas
não são dos meus hobbies que eu gostaria de tratar, quero que conheça
uma pessoa.
Abel levantou de sua poltrona e acionou o módulo de telefonia
através da sua voz.
- Acionar modo telefonia. - Assim deu o comando. 
Uma tela holográfica surgiu perante o príncipe e a sua secretária apareceu
em vídeo conferência.
- Wanessa, peça para que o Dr Heisenberg entre na sala.
- Sim senhor, o Dr Andrey já está a caminho. - Obedeceu o co-
mando.
Dois minutos de espera e o sorriso daqueles que sempre querem
surpreender estampado no rosto do meu irmão. A porta se abriu e lá es-
tava ele, o doutor Andrey, um homem de cabelos negro com mechas gri-
salhas, óculos de armação arredondada, usava um uniforme branco com
uma credencial do laboratório imperial.
- Dom Rafael, os brinquedos que você usou para massa-
crar os americanos e os seus aliados, saíram dessa mente brilhante,
e se eu faço questão de revelar o meu grande trunfo, saiba que é por
um motivo nobre, eu vislumbro um futuro soberano para o Império.
- Fico lisonjeado por sua confiança, primo, embora eu não tenha
compreendido os seus objetivos.
- Você levantou um ponto muito interessante, se tem algo que
aprendi na vida, foi a importância de guardar os nossos sonhos, deixá-los
longe de pessoas sem visão, revelar no momento certo e para indivíduos
especiais, é o seu caso, Dom Rafael, agora peço que me acompanhem, por

A princesa dilacerada 103


favor.
Os três saíram da sala de entretenimento e adentraram a um ele-
vador que os levaram para base secreta do laboratório Imperial, um lugar
cujo o acesso era restrito até mesmo para mim, uma princesa e até mesmo
para o meu irmão, embora eu ainda não conhecesse nenhuma regra da
qual o príncipe Abel se curvasse, não haviam limites para sua ambição.
Chegando ao laboratório, o Príncipe de São Paulo ficou impressionado
com a amplitude do corredor que mal se podia ver o fim.
- É um prazer conhecê -lo, Rei Dom Rafael. - Cumprimentou o Dr
Andrey com um sorriso tímido e furtando o olhar.
Dom Rafael apenas acenou gentilmente com a cabeça.
- É aqui! - Disse Abel indicando para uma porta eletrônica de aço.
- O que significa esse lugar? Um grande corredor e apenas uma
porta? - Inquietou-se o rei.
- Você não faz ideia da tecnologia que temos disponível, por favor,
Dr Heinsenberg faça as honras!
Andrey se posicionou num círculo vermelho em frente a porta, 
instantaneamente  holografias de pequenas borboletas começaram a voar
ao redor do cientista e logo depois converteu-se numa bela mulher negra
de cabelo afro e uniformizada com os trajes comuns da equipe científica.
- Dr Andrey, é sempre um prazer reencontrá-lo. Você fica lindo
sem barba.
O doutor corou-se em vergonha, não tinha o costume de receber elogios.
- Peço que relevem alguma ousadia que Sarah pos-
sa fazer, ela é parte de um grande projeto. Sarah, libere o acesso 6.
- Será liberado, Dr Heinsenberg, lembrando que tanto o rei de São
Paulo quanto o príncipe Imperial não possuem autorização para adentrar
no setor. - Preconizou Sarah.
- É um assunto de interesse nacional, Sarah, eu não programei
você apenas com um lógica cartesiana buscando sempre as probabilida-
des, você é essencialmente humana e creio que também possui ambições,
o projeto do setor 6 diz muito a respeito do seu futuro, um assunto de
interesse do divino leviatã.
- Eu não tenho como recusar as suas ordens, confio na sua in-
tuição, peço que todos se posicionem no círculo vermelho, tenham uma
boa viagem. - Disse Sarah demonstrando uma inquietude a respeito do

104 O Divino Leviatã


ingresso de Rafael e meu irmão nas instalações secretas do laboratório.
O circulo irradiou uma intensa luz que ofuscou todo o corredor
por cinco segundos, ambos furtaram seus olhos da luz e, quando recobra-
ram suas visões, Dom Rafael teve a impressão que ainda estava no mesmo
corredor.
- Acho que houve um engano aqui, estamos no mesmo lugar.
- Observe melhor, primo.
No painel acima da porta, estava o indicativo:
Setor 6 - Laboratório principal - Sede: São Paulo.
- Um laboratório nas dependências do meu reino e não sou infor-
mado? Ainda assim é inacreditável. 
- Não guarde mágoas, priminho, os desígnios de Deus são miste-
riosos, apenas encare como o tempo de Deus. 
-Presumo que fomos teletransportados com a mesma tecnologia
dos portais de distorção do espaço? 
Abel apenas sorriu e o Doutor Andrey acionou a porta através do
leitor óptico e ambos sem embargo avançaram ao laboratório.

A princesa dilacerada 105


EPÍSTOLA
XIV

O Olho de Deus

M
eu irmão era do tipo que sempre gostava do con-
trole da situação,  jogava as cartas e divertia-
-se com isso, Abel era um misto de bobo da
corte com aqueles príncipes extravagantes e afetados da idade mé-
dia,  superestimava demais suas habilidades de persuasão, nem to-
dos podiam ser manipulados, tão pouco alguém como Dom Rafael.
Dentro do laboratório os três caminhavam por um grande com-
plexo com luzes de intensidade baixa, o que deixava o clima do labora-
tório lúgubre e aterrador. Passaram por uma fileira de corpos congelados
criogênicamente, todos num repouso suspenso em cápsulas.
- O que significa isso? - Indagou o Rei.
- São corpos dos soldados brasileiros mortos na última guerra,
muitos deles morreram para que hoje você tivesse todas as honrarias. -
Respondeu ironicamente Abel.
- Eu não fico nada feliz com isso, eu mesmo poderia usar meus
poderes e vencê-los com facilidade, mas recebi ordens específicas do im-
perador para não usar magia arcana, apenas máquinas contra máquinas,
homens contra homens. - Replicou o rei encabulado.
- Tudo isso é uma grande bobagem, em situações de risco se exige
atitudes extremas, esses corpos são gólens para o uso de anjos e demônios
que ascenderem ao nosso mundo. Eles são incorporados, assim esses se-
res espirituais não precisam gastar grandes quantidades de energias para
se materializarem. Mas isso não é tudo, venham!  Ainda tem muito mais. 

Ao avançarem o corredor  depararam-se com armaduras acopla-
das na parede.
- Esse também é um dos meus maiores orgulhos, essas armadu-
ras foram desenvolvidas com a nanotecnologia mais avançada, são pra-
ticamente indestrutíveis, pois os seus átomos são mais compactados,  as
106 O Divino Leviatã
armas convencionais sequer chegam à arranhá-las, são separadas por gra-
des e serão distribuídas de acordo com as patentes, nível de magia arcana
e aura. Todas só funcionam plenamente se o soldado puder manipular
poder arcano em algum nível. Serão divididas nas classes D, C, B, A e S.
A partir da Classe B as armaduras serão alimentadas por dois nú-
cleos de energia, um núcleo serve para o funcionamento dos softwares e
o outro servirá de alimento para as armas que assessoram os soldados,
inclusive é possível neutralizar ataques usando campos de força. E é claro,
priminho... Não poderia deixar de lado o seu presente!
Abel apontou para uma bela armadura escarlate que vibrava como
se fosse uma imagem holográfica, ressonava de uma maneira incomum. 
- O que é isso? Que tipo matéria é essa? - Perguntou o Rei.
- Se me permite,  Príncipe Abel, eu gostaria de explicar. - Sugeriu educa-
damente o doutor. - A armadura se porta de maneira diferente, sua liga
de metal é energizada e memorizada, ela também foi desenvolvida através
do seu sangue e onda cerebral. Nós observamos a armadura em seu ta-
manho real, mas os átomos podem ser desagrupados e armazenados em
sua coluna espinhal, é a única armadura da série, pode ser acionada pela
sua mente, possui uma defesa perfeita, e o seu grande trunfo é que se um
grande poder  destruí-la junto com o corpo do seu utilitário, ela reagrupa
novamente tanto os seus átomos quanto as partículas do guerreiro que
ela protege.
- Sim! Eu falo de ressurreição. - Disse Abel entusiasmado. 
- Então vamos testar na prática. - Sugeriu Rafael. - O rei concen-
trou uma poderosa esfera de luz na mão direita. - Relux!
Evocou seu raio de luz arcano que fez à armadura em pedaços. 
- Não! Qual foi a necessidade disso, majestade? - Desesperou-se o
doutor.
- Acalme-se, vamos observar a mágica acontecer. - Disse o meu
irmão num tom tranquilizador.
Rapidamente os átomos da armadura escarlate agruparam-se ou-
tra vez, era como se nada houvesse atingido à armadura.
- Isso é inacreditável. - Impressionou-se o rei.
- Considere um presente em homenagem a nossa eterna amizade,
embora, meu querido priminho, tenha algo que precise fazer por nós. Me
acompanhe, por favor.

A princesa dilacerada 107


Os três avançaram o corredor até o centro do laboratório.
- Parem aqui! - Ordenou Abel. - Consegue sentir alguma presença
além da nossa, primo?
- É evidente que não, qual é o truque dessa vez? - Perguntou Dom Rafael
um tanto impaciente.
Num rompante, algo deslocou-se em frente ao rei, não se podia
acompanhá-lo com os olhos.
- Que coisa é essa? Por que mal consigo ver e nem sentir essa pre-
sença que se move pelo laboratório? - Indagou Dom Rafael.
- Por três motivos,  priminho, a grande obra-prima desse império
que você não consegue ver, possui a capacidade de ficar invisível em até
13 frequências diferentes,  infravermelho,  ultravioleta... Ter o seu corpo
invisível,  não importa, nada na terra pode se esconder do Olho de Deus!
- Olho de Deus?
- Sim, majestade! - Interferiu o Dr Heisenberg.
- E os dois motivos que restaram da explicação do Príncipe, são a
onisciência e a onipresença. O Olho de Deus se desloca em espaços di-
versificados,  não apenas aqui nesse laboratório,  foi por esse motivo que
não conseguiu detectar sua presença,  consegue captar a onda cerebral
de qualquer ser vivo e decifrar os códigos da mente e traduzi-los, não há
mistérios na mente humana que não possa ser lido pelo olho de Deus.
- Isso é inacreditável, não tenho palavras... - Disse o príncipe admirado
que sem sucesso tentava encontrar o Olho de Deus.
- Se me permite,  príncipe Abel, mostrarei de uma vez por todas
o nosso maior projeto. Olho de Deus, apareça na frequência de visão hu-
mana.
Nesse instante uma figura metálica de formato esférico e com tre-
ze olhos de cores diferentes surgiram perante os três. Os olhos pareciam
biológicos e todos eles concentrados no Rei.
- Impressionado? E saiba que assim como nós, o Olho de Deus
também é uma criatura viva, desenvolvida com os genes de todas as espé-
cies existentes, seu revestimento com ligas de aço poderosas e desmagne-
tizadas proporciona uma defesa especial caso precise, mas lembre-se que
o Olho de Deus se desloca no espaço a partir de portais.
- Mas é agora que entra você, priminho, sabemos muito bem que
para eu conseguir verbas para o prosseguimento dos projetos, eu preciso

108 O Divino Leviatã


do aval do conselho dos 20 principados e dos sete reis do Supremo Tribu-
nal Real. É muito simples, basta eu ter à aprovação da metade, mais um,
para que possamos ter um Império invencível. Você é influente, tem o
apoio de outros reis, seria muito fácil para um herói de guerra conseguir
apoio.
- Eu realmente não sei o que pensar, preciso de alguns dias para refletir. -
Respondeu Dom Rafael ainda com expressão incógnita.
- Claro... Terá o seu tempo. O tempo às vezes é alheio à nossa von-
tade, mas só o que é bom dura tempo o bastante pra se tornar inesquecí-
vel. - Disse o Príncipe imperial.
- Interessante, de quem é essa frase? De algum filósofo grego? -
Perguntou o rei.
- Não, isso é Charlie Brown Jr. - Respondeu Abel num riso copioso.

Essas não são minhas lembranças, mas agora começo a entender


certas situações. Mas por que o espelho da alma me confronta com me-
mórias que não são minhas?

A princesa dilacerada 109


EPÍSTOLA
XV

A ira do Imperador

O
projeto do meu irmão foi apresentado ao conselho dos
vinte principados, que era a primeira instância para que
qualquer projeto fosse aprovado e, por decisão unânime,
graças ao prestígio de meu rei e marido, o projeto avançou esse estágio,
agora só restava o último obstáculo para as ambições de meu irmão, o
STR (Supremo Tribunal Real), Abel estava confiante, pois tinha em suas
mãos o rei de São Paulo, que nutria um sentimento genuíno por ele.
O STR nutria em toda sua estrutura de poder, os antigos governos
estaduais, do legislativo e do judiciário. Homens e mulheres sábios e dota-
dos de grande poder. O equilíbrio do Divino Leviatã está nesse conselho,
foi uma votação apertada, mas os projetos militares de Abel com caráter
expansionista venceram exatamente com quatro votos contra dois, o rei
do Rio de Janeiro absteve do voto e fez um protesto.
- Eu fui escolhido por Deus para defender a paz e não para es-
palhar ódio pelo mundo, não há necessidade de um exército com tanto
poder, me admira um herói nacional do prestígio de Dom Rafael aprovar
essa sandice, esse projeto de poder!
- Não participarei de nenhuma decisão desse conselho que tenha
esse tipo de pauta. Ainda hoje enviarei um ofício ao imperador convocan-
do-o para exercer seu poder de veto.
- Dom Felipe, por favor, seja razoável, você mesmo observou os
últimos acontecimentos da guerra, os ressentimentos de outras nações
ainda são latentes, precisamos garantir a segurança do nosso povo e ga-
rantir a paz mostrando o poder para aqueles que só entendem dessa for-
ma. - Interpelou Dom Rafael.
- Me poupe de sua retórica, nobre rei dos paulistas, ainda vou des-
cobrir as suas motivações.
Felipe se levantou da bancada presidida por Dom Rafael e retirou-

110 O Divino Leviatã


-se do plenário. 
- Dou por encerrada essa seção. Agradeço a todos por colabora-
rem com a democracia e ajudarem no crescimento do Império. 
Rapidamente os reis dispersaram da grande sala do conselho, a
bancada em formato curvado estava repleta dos relatórios que lá foram
deixados, restou apenas Dom Rafael na mesa central da presidência do
conselho e a frente da bancada, restara apenas um rei e seus pensamentos. 
Nesse instante o Dr Heisenberg abre a porta da sala e entra a pas-
sos lentos e calculados. 
- Você é um bom ator,  Dom Rafael, me admiro o príncipe Abel
não ter desconfiado de nada. -  Disse o doutor num tom irônico.
- Não tão bom quanto você, Dr Andrey, ou devo te chamar pelo verdadei-
ro nome? Carlos Eduardo Andradas, o famoso “Kadu, irmão do falecido
presidente William Andradas”? - Respondeu o rei com um altivo sorriso
de um nobre. 
- Longos foram os anos que fiquei na Alemanha, acabei me acos-
tumado com a vida em Leverkusen, por um momento eu esqueci daquele
garoto esquisito, do qual só herdei a timidez. O que me intriga nessa his-
tória toda é saber o seu interesse em me colocar como espião do príncipe,
por quê? - Perguntou Kadu.
- Abel está incontrolável, age pelas costas do conselho e do im-
perador, quando me dei conta das pretensões do príncipe, decidi que era
melhor intervir. O principal motivo pelo qual aprovei o pacote de medi-
das para restruturação bélica da divina armada Imperial, foi pelo simples
fato de que se nada fosse feito, Abel criaria um poder paralelo.
- Você acredita que o príncipe faria algo ao seu próprio pai?
- Eu quero acreditar que não, apesar de amá-lo como um irmão,
tenho minhas responsabilidades com o Divino Leviatã e com o próprio
criador.
- Enquanto a minha situação,  Dom Rafael, pretende me entregar?
Eu sou procurado pelo Império,  existem recompensas pela minha cabe-
ça, o que vai fazer? 
- Kadu, havia  descoberto desde o primeiro momento a sua in-
filtração na elite, sua sede por vingança ficou muito clara, senti em seu
espírito.
- Dom Rafael, quando você me chamou pelo nome naquela noite

A princesa dilacerada 111


no laboratório, cheguei a pensar que minha vida havia acabado ali, con-
fesso que hoje não sei se quero prosseguir com minha vingança, mas de
qualquer modo, devo a minha vida a você e, me convém te ajudar.
Dom Rafael levantou-se de sua mesa e junto ao Doutor Henrich,
saíram da sala do conselho, eu nunca imaginaria um segredo entre Kadu
e o meu futuro marido, o Rei de São Paulo.

Logo após esses acontecimentos,  passaram-se alguns dias, estáva-


mos em abril de 2032, papai havia recebido uma visita inesperada, era o
Rei da província do Rio de Janeiro,  Dom Felipe, como havia prometido
nas ameaças que fez ao conselho dos 7 reis, foi ao encontro do imperador. 
- Imperador, o rei Dom Felipe do Rio de Janeiro solicita uma au-
diência. - Anunciou o seu assessor.
- Os reis deveriam saber que os protocolos precisam ser respeita-
dos, uma audiência deve ser marcada com duas semanas de antecedência.
- Disse papai demonstrando insatisfação.
- Majestade, desculpe-me mas, Dom Felipe me pareceu aflito. -
Insistiu o assessor.
- Se não há outro remédio, deixe-o entrar. - Ordenou o regente
imperial.
Dom Felipe entrou na sala sem ao menos ser anunciado pelo as-
sessor.
- Majestade, peço desculpas pela minha intransigência, mas o as-
sunto que trago é de extrema urgência. - Assim disse Felipe que iniciou a
sua fala num tom dramático.
- Então diga sem cerimônias, o que tem de tão importante a me
comunicar que precisou quebrar protocolos e hierarquias necessárias
para chegar até mim? - Questionou Papai num tom frio e demonstrando
indiferença.
-Imperador... Na verdade eu ainda busco o melhor jogo de pa-
lavras,  o tom correto para não machucá-lo... De forma alguma quero
constrangê-lo... Embora eu tenha o legado divino de informar que o seu
filho, o príncipe Abel, provavelmente tenha Iniciado o projeto do “Olho
de Deus” antes da aprovação do conselho. - Finalmente Dom Felipe havia
revelado a sua acusação, ainda que apresenta-se as faces ruborizadas, ta-
manha era a vergonha de comunicar tal notícia ao imperador.

112 O Divino Leviatã


- A natureza dessas acusações é muito grave, ainda mais tratando-
-se de meu filho, presumo que tenha provas contundentes. - Indignou-se
o Imperador.
- Infelizmente as provas falam por elas mesmas. Minha equipe
fez um relatório sobre as atividades do projeto que será demonstrada em
gráficos. - O rei Felipe acionou em sua pulseira nanotecnológica, uma
interface holográfica, manuseando-a, acessou um relatório com gráficos e
análises sobre desvios de recursos sem licitação. - O relatório é bem claro,
grande parte dessas verbas foram direcionadas para contas fantasmas e,
parte desse dinheiro gasto na aquisição de matéria-prima na metalúrgica
imperial. A empresa emitia uma nota fria endereçada para uma offshore
que só existe virtualmente, essa não possui sede fixa nenhuma dos sete
reinos ou nos 20 principados. Fica explícito em nota que os metais foram
destinados para construção civil sem grandes explicações, não bastando
isso, o Olho de Deus tem como grande trunfo, o poder e prestígio de
Dom Rafael. Veja bem, Majestade, embora não tenha provas concretas
que liguem o Rei de São Paulo a todos esses crimes, o seu nome é citado
inúmeras vezes, e vossa majestade deve compreender o meu zelo pelo te-
souro imperial e a minha condição de juiz do povo brasileiro. - Concluiu
Dom Felipe.
- Realmente as provas são robustas, vou observá-las com minú-
cias e logo depois, convocar uma assembleia geral com reis e principados.
Enquanto a você,  Dom Felipe, agradeço a sua devoção, tomou a melhor
das atitudes, agora deixe comigo.
- É eu que te agradeço, imperador Dom Fernando do Brasil, é um
prazer servi-lo.
O Rei Felipe saiu satisfeito da audiência com o imperador,
andava pelos corredores do palácio com um olhar altivo e a cer-
teza de ter atrapalhado as ambições do meu irmão. Foi nesse ins-
tante que nossos destinos se encontraram, minha mãe e eu saía-
mos de uma solenidade quando nos deparamos com o nobre rei.
- Rainha Verônica e Princesa Vitória, é um prazer revê-las.
- Dom Felipe, também fico feliz em reencontrá-lo, diga-me, o que
lhe traz aqui ao Palácio? Pensei que o veria apenas no casamento de Vitó-
ria. - Perguntou mamãe que trajava uma túnica verde-oliva, sandálias da
mesma cor e brincos esmeralda. 

A princesa dilacerada 113


- Não foram boas novas que me trouxeram aqui, mas já está tudo
resolvido.
- Mamãe e eu estamos muito felizes, pois conseguimos negociar
com as sociedades indígenas a comerem do fruto da Ninrode. Papai aca-
bou de ligar da Bélgica para nos felicitar.
- Você disse,  Bélgica? - Perguntou Dom Felipe que foi tomado por
uma expressão de incógnita, afinal, ele acabara de sair de uma audiência
com o imperador.
Não demorou muito para que ele compreender o que havia ocor-
rido, meu irmão tem o dom de materializar qualquer pessoa, seja ela exis-
tente ou projetada pela sua imaginação, foi dessa forma que ele materiali-
zou papai e enganou o Rei Felipe.
- Sim, para Bélgica, o conselho não foi informado a tempo porque
não é uma visita oficial, foi um convite para uma homenagem da mo-
narquia belga, papai foi eleito a principal liderança que promove a paz. -
Respondi na minha inocência.
-Bom saber... Afinal, o imperador é o principal instrumento do
criador, a nossa rocha.
Por um instante o olhar do Rei Felipe ficou perdido, parecia dis-
farçar o ódio.
-Foi um prazer reencontrá-las, peço licença as vossas majestades,
pois tenho algo a tratar com o príncipe Abel.
Rapidamente ele se retirou sem muita cerimônia,  mal sabíamos o
motivo daquele exaspero, mas a fúria era perceptível na sua aura.
Ao chegar na sala do imperador, abriu a porta sem aviso e intimi-
dou meu irmão.
- Eu já sei de tudo, foi um belo truque, Abel, pode acabar com o
teatro.
- Ora! Que ousadia, por acaso perdeu a razão,  Rei Felipe?
- Não me faça de idiota, não estou com humor para os seus jogos,
retorne para sua forma original.
Imediatamente Abel tomou a sua forma.
- Pelo visto eu te subestimei, não pensei que descobriria tão rápi-
do. - Disse o meu irmão com um sorriso debochado.
- Me encontrei com a Imperatriz e a Princesa, elas me contaram
sobre a viagem do imperador a Bélgica. 

114 O Divino Leviatã


- Entendi, então foi isso. Juro que não havia contado com essa
possibilidade. Mas foi engraçado ver a sua cara de idiota satisfeito pelo
dever cumprido.
- Você perdeu toda a noção de decência, temo pelo Império que
um dia você herdará.
- Decência é uma convenção dos fracos, eu faço o que é necessá-
rio, esse é o mundo dos homens e não dos anjos.
- Você é louco. - Indignou-se Felipe.
- Loucura é algo totalmente moralista, o louco cria para si uma
estrutura que da sentido as suas ações, eu não crio estruturas, sou guiado
pela minha criatividade.
- Agora você, Dom Felipe, não é do tipo criativo, você supõe e
categoriza demais, um mero seguidor das convenções, mas isso pode ser
mudado. Convém para você ficar ao meu lado, tem muito a ganhar. - As-
sim propôs Abel na tentativa de aliciar o incorruptível Rei Dom Felipe,
um homem pragmático e com uma visão limitada das nuances humanas,
porém, honrado e justo.
- Eu não quero nada que você possa me oferecer. Mostrarei para
o seu pai os relatórios que consegui, vou provar que mesmo sendo um
príncipe, não se absteve de roubar do tesouro imperial, acabarei com sua
brincadeira. - Disse Dom Felipe, mantendo um tom austero e agressivo.
- Você terá todas as pompas que hoje pertencem a Dom Rafael, eu
sei que você nunca o suportou, no meu Império, você só não será maior
do que eu, tem a minha palavra. - Insistiu Abel.
- Longe de mim fugir com o decoro, ainda mais com um príncipe
imperial, mas fique a vontade para enfiar sua palavra no lugar que melhor
lhe aprouver. - Vociferou Felipe que ofendeu-se profundamente com a
proposta de meu irmão.
-Sendo assim, acho que vou ter que te ensinar algumas coi-
sinhas, como respeitar o futuro imperador do Brasil é uma delas.
Em grande velocidade Abel investiu contra Felipe que desviou do chute e
contra-atacou com um soco na face esquerda.
Abel foi arremessado no espelho central da sala que esmigalhou-
-se por completo. Dom Felipe se aproximou para finalizar o enfrentamen-
to, quando meu irmão desapareceu perante os seus olhos.
- Príncipe,  não precisamos desse enfrentamento inútil, apenas

A princesa dilacerada 115


encare o seu erro como um homem. - Disse Dom Felipe espreitando cada
canto da sala.
Abel ficou invisível e materializou os fragmentos do espelho levi-
tando-os
- Mas o que é isso? - Se perguntou Felipe.
Os pequenos estilhaços foram disparados violentamente contra o
regente das terras do Rio de Janeiro que bloqueou quase todos, um frag-
mento passou pela sua defesa, causando um profundo ferimento em seu
rosto.
- Eu recomendo que pare agora o seu ataque, não quero machucá-
-lo seriamente. - Alertou Dom Felipe que ainda o procurava pela sala.
- Você não tem capacidade para tal, reizinho patético. 
Abel se materializou novamente e atacou Felipe.
Dessa vez o embate estava equilibrado, era quase impossível de
assisti-los a olho nu.
- Você é realmente forte, não sabia que tinha nível para enfrentar
um dos 7 reis. - Admirou-se Dom Felipe.
- Tive os melhores mestre. - Disse Abel.
Num rompante, uma presença poderosa e sufocante emergiu na
sala. Antes que pudessem reagir ao poder opressivo, Abel foi arremessado
no chão e o Rei Felipe foi atingido no pescoço por uma figura encouraça-
da por uma manta de aura azul, caindo desacordado ao chão.
- Você? Não é possível.
A criatura que flutuava a frente de Abel o saudou.
- Você é esperto, embora seja imprudente.
- Reverendo Maximiliano?  Há quanto tempo nos observa?
- Posso dizer que é tempo o suficiente para entender que você se
meteu numa grande encrenca. - Respondeu o reverendo.
- Você o matou? - Perguntou meu irmão que olhava assustado o
corpo inerte de Felipe.
- Não, ele só dormiu um pouquinho, quando acordar não se lem-
brará de nada do que ocorreu.
Maximiliano impôs suas mãos sobre a cabeça do rei e lançou so-
bre ela uma energia de cor púrpura. 
- O que você fez? - Perguntou Abel.
- Apaguei sua memória do ocorrido, mais tarde cuidarei das ou-

116 O Divino Leviatã


tras pessoas que colaboraram com essa investigação.
- E a troco do que me oferece ajuda? - Abel o indagou.
- Meninos não podem fazer o trabalho de homens, Abel. Até onde
pensa que vai chegar com seus esquemas corruptos? Desviando quantias
pequenas para manter a sua vida vazia e hedonista. Pense como um im-
perador, não como um infante. Idiotas com senso de moralidade igual a
Dom Felipe esperam oportunidades como essa para conquistarem prestí-
gio junto a Dom Fernando.  Eu estou disposto a te ajudar a ser o impera-
dor do Brasil. 
- Quanta bobagem, eu sou o filho primogênito, o trono é meu por
direito. - Respondeu Abel demonstrando insegurança. 
- Ingênuo e péssimo mentiroso. Qual a sua grande teoria sobre
um casamento entre duas famílias? Os ramos Versalhes e Avís de Bragan-
ça formando uma única dinastia poderosa e nas figuras de sua irmã e pri-
mo? Diga-me, consegues vislumbrar um futuro para ti nesse conto de fadas?
Abel abaixou a cabeça e ficou em silêncio.
- Os seus segredos estão guardados, te farei imperador, em tro-
ca, quero o domínio sobre as atividades do império no submundo.
E que o clero tenha poder de decisão. - Assim propôs o reverendo.
Abel fitou Maximiliano por alguns instantes, voltou a olhar
para baixo por cinco segundos e tornou a encará-lo novamente. 
- Seja lá quais forem suas intenções, não tenho outra alternativa a
não ser aceitar sua aliança. - Concordou Abel.
- Precisamos tirar a sua irmã do nosso caminho, jamais devere-
mos aceitar uma mulher no trono, tão pouco um herói e suas excentri-
cidades. Eu ainda não sei o que fazer com eles, mas uma hora abrirão a
guarda, e será nesse momento que destruiremos suas reputações.
Assim disse o reverendo ao meu irmão, ainda que confrontado
com sua natureza e tomado por crises em sua consciência, o sorriso am-
bicioso não tardou em aparecer em seu semblante.
Era preciso romper com os  laços afetivos, ser o próprio conceito
de justiça e poder.

A princesa dilacerada 117


EPÍSTOLA
XVI

A origem de
'
todo odio


dio…. Afinal, é o que rege o mundo? Abel ajudou-me
a trilhar esse destino tão cruel.
- Venha... - Sussurrou as vozes que ecoavam nas
águas escuras do rio da morte.
- O que querem agora? Por que continuam a me atormentar? - In-
dagou a alma de Vitória.
- A origem do ódio? Quer conhecer? - As vozes vinham de três
mulheres cadavéricas que cobriam seus corpos com mantas negras, elas
nadavam entre os corpos aprisionados nos espelhos.
Uma das mulheres tirou o capuz que cobria totalmente seu rosto.
- Você era muito pequenina quando eu ainda vivia na terra, sou
Sigrid, mãe dos irmãos Andradas, mãe de Kadu.
- Eu ouvi histórias sobre você, mas não sabia que estava no infer-
no. - Disse Vitória.
- Minha alma foi condenada ao inferno, mas o meu corpo foi es-
condido numa longínqua dimensão pela guardiã dos três mundos.
- E o que quer de mim? - Perguntou Vitória.
- Eu posso te ajudar a sair desse lugar, em troca, preciso de dois
favores. Como detentora do dom da criação e da luz, você tem poderes
para acionar todos os portais. Quando o fizer, o portal onde meu corpo
foi escondido emitirá um grande poder, ali estará o Cubo de Metraton.
- Cubo de Metraton?
- Sim, através do cubo usamos a geometria sagrada para acelerar
partículas e proporcionar um equilíbrio vibracional, com os arranjos geo-
métricos podemos reagrupar as partículas de qualquer corpo, até mesmo
o seu.

118 O Divino Leviatã


- Eu não sei se conseguiria. - Hesitou Vitória.
- Você é a única capaz, terá o seu corpo e também nos ajudará,
pois nós, as bruxas,  ocuparemos o corpo que descansa na dimensão es-
condida, e seremos plenas! A você cabe aceitar o nosso acordo e ter uma
nova vida, a sua vingança!  Parte do nosso acordo será revelar-te a origem
do ódio.
- Venha! - Astrid estendeu sua mão a Vitória.
A princesa dilacerada não tinha outra opção a não ser, guiar-se
pelas mãos da bruxa, sua alma foi retirada do espelho e, junto as feiticei-
ras, nadava na direção da superfície.
Vitória emergiu diante da enigmática estátua de Maria chorando
pelos condenados.
- Precisamos voltar ao mundo dos vivos.
Enquanto viva, suas vibrações criaram familiaridades, e parte das memó-
rias dos seus entes queridos foram transmitidas a você, apenas lembre,
você é energia, tudo é vibração. - Sigrid pegou as mãos da princesa e o
despertar da mente começou.
Imagens eram lançadas na mente de forma desorganiza-
da, até que um evento no passado se sobrepôs a outras imagens. 
Um dia qualquer na sala principal do Palácio, vejo Abel com uma
túnica branca da ordem dos noviços, junto aos nossos pais e mais dois
conselheiros. 
E eles conversavam, ou melhor dizendo, Abel discursava no alto
do seu histrionismo e moral pouco ortodoxa...
- Eu não entendo a surpresa dos senhores, alguém com minha
mente brilhante jamais teria dificuldades de entender a escolástica. A ra-
zão e a fé! Os verdadeiros líderes precisam da fé para entenderem a razão.
Eu, futuro imperador do Brasil e guardião dos três mundos necessito ter
a fé de Jó e as razões de Platão e Aristóteles.
- São belas palavras meu filho, mas são o que são... Palavras ao
vento ecoadas pela vaidade de quem nunca as praticou. - Assim disse meu
pai, o imperador. 
- Se me permite, meu pai, como falsear esse líder tão inalcançável
que você tanto vislumbra? Eu faço de tudo para mostrar o meu valor a
você,  e sempre recebo suas respostas evasivas,  por que? Por acaso é algu-
ma prova que preciso passar?

A princesa dilacerada 119


- Abel,  você passou tanto tempo tentando me agradar e esqueceu
do que realmente importa,  sua razão e fé não são adereços para serem
exibidos, são nobrezas imateriais que não servem para adornar coroas,
mas para servir ao seu povo e ao seu criador. 
- Antes de ser um grande imperador, precisa ser um grande
homem. Peço que me deixe a sós com sua mãe, precisamos conversar.
Abel apenas olhou com tristeza para o imperador que tam-
bém o seguia com olhar de desaprovação. Ele hesitou em sair, ca-
minhou até a porta segurando o seu pranto, deixando finalmente 
a sala do Império. Talvez a obstinação seja a sua única qualidade, e foi
através dela que Abel descobriu a verdade que mudou sua vida, usou o
seu dom de materialização para ampliar o som que era repelido pela por-
ta, e assim ele ouviu:
- Você me deixou aflita, o que precisa tratar comigo que nem mes-
mo nosso filho pode presenciar? - Perguntou mamãe, a Imperatriz Verô-
nica do Brasil, sempre linda e simples, tanto na forma de se vestir quanto
em suas palavras.
-Querida, há muito tempo amadureço uma decisão que não posso
mais adiar. Abel não tem condições de assumir o trono. - Ele disse, no
estilo que sempre foi o seu, desde que era um simples mestre cervejeiro,
direto e lacônico.
- Você não tem esse direito, Fernando, Abel é nosso primogênito!
Eu compreendo que muitas vezes as suas extravagâncias não são condi-
zentes ao título de um príncipe, dê uma chance a ele, eu te peço. - Supli-
cou mamãe que talvez fosse a única que acreditasse nas boas intenções de
Abel.
- Receio que seja tarde, Abel teve todo o tempo que precisou para
se corrigir, eu já estou velho e preciso pensar na minha sucessão.
- Se o nosso Abel não será o imperador, então quem será? - Per-
guntou mamãe.
- Eu decidi que a única forma de termos uma sucessão legítima é
unirmos os ramos Versalhes e Avís de Bragança.
Rapidamente a Imperatriz reagiu a decisão do imperador.
- Você quer um casamento entre Vitória e Dom Rafael?
- Sim, seremos um só, uma família aprovado pelo criador e que se
perpetuará por toda a eternidade.

120 O Divino Leviatã


Meu irmão já tinha ouvido o suficiente, preterido da sua maior
ambição, uma vergonha para qualquer primogênito, assim nasceu o seu
ódio por mim, agora está tudo claro, embora  tenha me causado estranhe-
za aquele casamento com o Duque de Avís, jamais imaginaria que papai
quisesse me tornar Imperatriz do Brasil. 

A princesa dilacerada 121


EPÍSTOLA
XVII

O Casamento

O
matrimônio tem a sua raiz na palavra mãe e casamento
etimologicamente é ligada a palavra casa.
O conceito de casamento nos remete a segurança de uma
casa e o colo de uma mãe, um porto seguro.
Os portugueses são mais práticos, sua constituição define o casa-
mento como um contrato, e é exatamente o que significa o meu casamen-
to, um contrato para garantir a continuidade de uma dinastia.
Lá estava eu caminhando por um tapete vermelho e brilhante que
surgia conforme meus pés pisavam nele.
Papai estava posicionado junto a mamãe e atrás do reverendo
Maximiliano que celebraria nossa união. Dom Rafael me esperava num
pequeno altar. Finalmente chegamos na presença do reverendo, estáva-
mos sublimes, os futuros rei e rainha de São Paulo. Rafael usava um lindo
terno branco com suas condecorações militares, seu cabelo na altura dos
ombros brilhavam tal qual seu sorriso, e eu só trajava uma túnica branca,
a princípio não havia entendido a simplicidade para um momento tão
importante, mas toda a mágica aconteceria no momento seguinte.
Finalmente estávamos perante o reverendo.
- Estamos aqui reunidos em nome do criador de todo universo
para celebrar mais uma união, mas antes tenho uma surpresa para vocês.
Repentinamente as luzes do Palácio se apagaram, por alguns se-
gundos tudo ficou escuro, até o instante que as silhuetas de papai e ma-
mãe brilharam com tanta intensidade que tudo foi iluminado novamente,
quando me dei conta, o salão havia se transformado numa plataforma
suspensa a cem metros do chão, três anjos de aço revestidos com uma
fina camada de cerâmica exerciam um poder magnético que mantinham
a plataforma suspensa no ar, as estátuas foram posicionadas com as mãos
como se estivessem exercendo um poder divino sobre a estrutura, os
anjos simbolizavam, Miguel, Gabriel e Rafael. Todos os convidados, in-

122 O Divino Leviatã


cluindo setoristas que cobriam o casamento ficaram impressionados com
tamanha grandiosidade daquele evento.
- Creio que todos ficaram admirados com a obra mais magnífica
desse século, não haveria ocasião melhor para apresentá-la ao mundo,
mas essa não é a única surpresa dessa noite.
O reverendo fez um sinal com a cabeça para que os meus pais se
aproximassem. Papai juntou-se a nós e com um sorriso desejou.
- Filha, seja feliz.
Nesse instante o seu corpo desintegrou-se em pequenas partículas
de diamante, assim também aconteceu com mamãe,  uma fina poeira de
diamante envolveu o meu corpo e foi moldando-se a ele,  a túnica branca
reagia a interação das poeiras de diamante e formou um magnífico vesti-
do de noiva que mesclava faixas de tecido forjadas a diamantes brancos e
negros até os babados.
A glória do Império e o futuro do Brasil estavam ali depositados
em mim, todos aplaudiram, e nesse instante, a orquestra Imperial que
estava a nossa esquerda, evidenciou mamãe como solista mezzo-soprano
e papai ao lado dos violinistas tocando a sua viola.
Aquelas eram chamadas partículas inteligentes, programadas
para realizarem suas funções, separadas ou unidas, seriam sempre roupa.
“Deus havia nos unido para um propósito divino. No decorrer
dos séculos e milênios, casais foram escolhidos para guiar reinos e na-
ções, e mais uma vez o criador intervém na história, não apenas para um
sagrado matrimônio, mas sim para uma providência divina, Versalhes e
Avís unidas, essa é a vontade do criador.”, assim nos disse o reverendo no
instante que as alianças foram colocadas, nos olhamos, mas não confessa-
mos amor,  apenas contemplamos o silêncio um do outro.

Logo após a cerimônia, veio o momento da tradicional dança no


salão. Mamãe e papai fizeram um belo dueto. Na orquestra Imperial can-
taram um tema conhecido como “Nós dois”.
No salão, Dom Rafael me conduzia a passos cuidadosos, era cons-
trangedor não sentir amor por ele. Os casais em volta trajados a rigor, ho-
mens com ternos white tie com coletes longos, as mulheres com vestidos
brancos trapeados com acessórios e pedrarias, estavam trajados exata-
mente como os imperadores, todos eles deslizavam por nós como fantas-

A princesa dilacerada 123


mas brancos, nos observavam e trocavam sorrisos.
Fora da pista de dança, meu irmão tomava uma taça de vinho
e conversava discretamente com o reverendo, que diferente dos demais,
trajava uma túnica episcopal com um colete lilás adornado de ouro.
- Me perdoe Dom Rafael... - Eu disse.
- Perdoar pelo que?
- Me sinto tão perdida que não consigo demonstrar o amor que
merece.
- Só conseguimos demonstrar os sentimentos que realmente te-
mos, você não pode dar amor, eu também não conseguiria correspondê-
-lo se por acaso ele existisse. Nosso coração é repleto de mistérios, queri-
da Vitória. E a nossa mente... Nos sabota a cada instante.
Dom Rafael concluiu aquela frase com um olhar distante, eu não
me esforcei muito para compreendê-lo, mas a partir daquele instante eu
entendi que a minha missão no mundo não estava relacionado com a
felicidade, o amor não era uma prioridade imperial.

124 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XVIII

Os lamentos no
Rio da Morte

-P
obre Dom Rafael... Sempre foi tão bondoso comigo,
parte do que ele se tornou é culpa minha. Enfim... Mi-
nha mente retornou a esse inferno... Embriaguei-me
com o perfume do rei, mas agora... Sinto apenas o odor da carne apodre-
cida e os murmúrios desses mortos...
- Lamentar não é de grande serventia, olhe para os lados, esse
lugar ecoa murmurações de todas as eras, nem por isso suas almas são
menos atormentadas. - Interviu Sigrid.
Vitória percebeu uma agitação próxima as margens do rio da
morte.
- O que acontece ali?
- São os demônios de classe baixa em seus momentos de recrea-
ção, certamente atormentando os recém chegados. - Explicou Sigrid.
Vitória se aproximou daquele evento e constatou algo perturba-
dor, uma bela mulher, nua, de cabelos loiros, sentada sobre a margem do
rio e com as mãos submersas nas águas negras e lodosas. A mulher estava
cercada por criaturas asquerosas e aladas que apontavam lanças em sua
direção.
- A morte exala muitas fragrâncias, posso distingui-las cada uma
delas, mas você... Ainda possui o pútrido odor da vida... O que faz no
submundo? - Indagou uma das criaturas que possuía um corpo repleto
de pelos acinzentados e braços desproporcionais ao corpo. Era impossível
decifrar o seu rosto, possuía quatro camadas de pelos que escondiam seus
olhos carmesins.
- O que eu faço aqui não é do interesse de seres tão inferiores e
desprezíveis. - Respondeu a mulher que parecia indiferente aos demônios

A princesa dilacerada 125


que a cercavam.
- Acho melhor medir suas palavras, existe uma linha tênue entre
vida e morte, não teríamos dificuldade de fazê-la ultrapassar.
- Me desculpe, tenho pouco interesse na sua concepção de vida e
tão pouco me importa essa conversa existencial. - Respondeu prontamen-
te a mulher que nem ao menos encarava as criaturas.
- Eu não entendo, não consigo ler a aura dessa mulher. - Comen-
tou um dos demônios que possuía chifres e espinhos por todo o corpo.
- Já terminaram a patrulha? Não há nada melhor para criaturas de
casta tão baixa realizarem? - Disse a mulher num tom de desdém ao tatear
à água pantanosa.
- Esses humanos ficaram confiantes demais depois da unificação
dos três mundos, pensam que podem nos afrontar, mas eu tenho algo
especial para vagabundas da sua estirpe. Vamos atacar!
Aproximadamente vinte demônios investiram um ataque contra a
mulher, mas as suas lanças não conseguiam ferir o seu corpo.
- O que significa isso? - Questionou uma das criaturas.
- Se vocês não viram o que aconteceu, só tenho a lhes dizer que
não serviriam nem como recrutas do Império Brasileiro, não me admiro
de tantas vezes viajar ao inferno sem nenhuma resistência.
- Você não vai nos intimidar com seus truques! - Irritaram-se os
demônios.
Repentinamente, a misteriosa mulher desapareceu.
- Como essa vadia fez isso?
- Ao que parece não é uma pessoa comum, pode usar energia ar-
cana.
- Hã? Olhem aquilo! - Disse o demônio que olhava incrédulo o
corpo de sua oponente suspenso no ar e envolto numa couraça de luz.
- Vocês realmente não sabem o que aconteceu? Suas auras obscu-
ras são  espelhos das almas desprezíveis que possuem, o ódio acumulado
por milhões de anos em suas auras criaram antimatéria em grande escala,
vocês perderam a propriedade da matéria, a única atitude que tomei foi
lançar carga negativa em seus corpos e criar pares de elétrons e pósitrons.
- O que? Seremos aniquilados? Maldita! Por acaso sabe o quão de-
morado é a regeneração do nosso corpo? Pode demorar séculos! - Gritou
um dos demônios.

126 O Divino Leviatã


- Exatamente, o encontro de matéria e antimatéria causa à aniqui-
lação de ambas, resumindo, vocês perderão seus corpos repulsivos.
- O que está acontecendo? Não! Ah!
Assim gritaram os demônios que foram sugados por esferas bri-
lhantes dentro de seus corpos.
As 20 esferas de fótons de raio gama que resultaram da destrui-
ção dos demônios foram absorvidas pelo corpo da misteriosa guerreira.
Em seguida, voltou seus olhares para Vitória e as bruxas.
- E vocês?  Vão ficar só olhando?
A mulher desapareceu e rapidamente reapareceu atrás da princesa
e das feiticeiras.
- Eu jamais imaginei que te reencontraria aqui, Vitória.
Surpreendida, a princesa afastou-se da mulher e de imediato os
seus olhares estatelaram-se quando percebeu que as feições da mulher lhe
pareciam familiares.
- Você? Não é possível... - Sussurrou Vitória.
- Me chame de Maria, esse é o nome da mulher que gerou Deus.
- Maldita seja! - Vociferou Sigrid.
- Você foi uma das pessoas responsáveis pela morte do meu filho!
- Seu filho era um homem poderoso, mas com um espírito fraco,
não merecia outro destino a não ser o que trilhou...
As outras três bruxas recuaram, afinal elas pressentiam um gran-
de poder emanando de Maria.
- Dane-se o seu filho e os outros fracos que morreram naquela
guerra estúpida.
- Eu não entendo, eu jamais imaginaria ouvir essas palavras vin-
das de você. - Disse Vitória que a encarava com desaprovação.
- Deixe de ser estúpida, por acaso estamos num ambiente propício
para um chá das cinco? Não é atoa que foi enviada ao inferno pelo seu
próprio pai.
- Por que tanto ódio, Maria? - Perguntou Vitória.
- Por que? Abel…. Aquele Miserável traidor! Me tirou tudo...Nada
me restou a não ser odiar. E você... Quando precisei do seu apoio, me
abandonou como todos os outros. -  Disse Maria, mostrando muito res-
sentimento.
- Não diga isso, não se esqueça que também tive minhas batalhas

A princesa dilacerada 127


para lutar.
- Claro... Uma dessas terríveis batalhas foi na cama do filho da
bruxa. Mas isso não importa agora, eu caminho pelo rio da morte exata-
mente para mortificar o que há de humano em mim. Eu vivi a minha vida
toda adorando a um Deus que nunca me ouviu, o servi, derramei o meu
sangue e presenciei muitas pessoas de bom coração morrendo em nome
desse Deus. Se o salário do pecado é a morte, então a recompensa pela
obediência é a traição divina?
Um silêncio aterrador tomou conta do ambiente,Vitória buscava
palavras que confortassem Maria, mas nada parecia curar a sua alma atri-
bulada.

128 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XIX

~ Parte I
Revelacoes
'

-T
ivemos os nossos bons momentos, Maria.
- Isso já não tem mais importância, todo o meu
passado desmoronou. O inferno é um lugar de casas
desmoronadas, esses lamentos que reverberam nesse lugar desprezível
são os passados das almas de todas as eras que Deus depositou no lixo da
existência. Logo estarei aqui.
- Vamos embora, Princesa, precisamos achar o meu corpo, so-
mente assim encontraremos o cubo de Metraton. - Preconizou Astrid de-
monstrando impaciência.
- Então se trata disso... Agora entendo a presença dessas bruxas,
querem um acordo para voltarem a vida. Ingenuidade sua acreditar nes-
sas feiticeiras enganadoras.
- Cale-se maldita! Como ousa? - Irritaram-se as três bruxas que
acompanhavam Astrid.
- Esse é um risco que preciso correr, não posso deixar o Império
nas mãos do Abel. - Explicou Vitória. 
- Não há nada de divino no Império Brasileiro, tal qual Roma, foi
construído com pilhas de corpos. Não há o que salvar daquela gente, eles
comem do fruto da Ninrode e são enganados por Deus. O que é o homem
sem o livre arbítrio?
- E o que é o ser humano alimentado pelo ódio? - Rebateu Vitória. 
- Me dê um motivo para amar o mundo e ajudar aquelas pessoas.
- Disse Maria com um olhar colérico e num tom de voz desafiador.
- Eu darei... Você quer mesmo que eu acredite que a existência
humana é pautada pelo ódio?
Vitória andou na direção de Maria sem hesitar, sua determinação
a assustou, que recuava os seus passos e furtava-se do olhar altivo e hip-
nótico de Vitória.

A princesa dilacerada 129


- O que você está fazendo? Afaste-se!
- Vamos lembrar juntas? O que você vê? - Perguntou Vitória que
se aproximou da desiludida e rancorosa mulher e a beijou nos lábios.
Assim, as memórias também começaram a atormentar Maria.
- Essa sou eu? - Perguntou Maria ao contemplá-la num dos três
jardins suspensos que simbolizavam os três planos existenciais, Céu, Ter-
ra e Submundo, eram esféricos e orbitavam sobre o também flutuante Pa-
lácio do Planalto como se fossem luas. Seu belo vestido vermelho varria
um espesso tapete de flores que se estendia por todo caminho.
-  Apenas lembre... - Assim ecoou a voz da princesa dilacerada na mente
de Maria.

Descansando sobre uma grande árvore, Abel observava curioso


uma bela mulher que jamais havia visto pelas intermediações do Palácio.
- Interessante uma mulher tão bela escolhendo exatamente o jar-
dim que todos evitam por simbolizar o submundo. - Disse Abel que re-
pousava suas costas na árvore.
- Não passam de superstições tolas, os jardins são apenas analo-
gias dos três novos poderes. - Respondeu a mulher aparentemente desin-
teressada pelo galanteio de Abel.
- Interessante o argumento, mas por que você acha que o jardim
do submundo é exatamente o mais extenso e belo? Percebeu a mensa-
gem? O caminho mais prazeroso nem sempre nos conecta com o criador. 
- Eu apenas vejo como um belo jardim que me traz a paz, suponho
que você venha aqui pelo mesmo motivo, estou errada, príncipe?
- Não deixa de ser verdade, como se chama? - Perguntou Abel
- Eu não sou daqui, vim de muito longe, me chamo Maria.
- Maria... Um nome comum, apesar de sempre soar belo. Essa
noite tenho um evento no salão principal do palácio, apenas convidados
especiais, gostaria muito de sua presença. - Convidou Abel.
- Eu não sei se posso, acho melhor não termos esse tipo de conta-
to.
Maria correu na direção dos grandes roseirais e desapareceu. 
- Hey! Espere! - Abel se levantou da sombra da árvore e tentou
sem sucesso alcançá-la.
A memória de Maria avançou rapidamente para aquela noite. As

130 O Divino Leviatã


festas do príncipe eram sempre um caso a parte, nada muito monárquico,
Abel gostava de festas regadas a um bom vinho, mulheres bonitas, simu-
ladores de jogos e música bem alta e pesada.
Abel usava um extravagante terno jeans e os seus dreads estavam
negros nessa ocasião. 
Os olhos do príncipe só buscavam uma pessoa, mas só encontra-
vam os mesmos rostos que sempre frequentavam suas festas, até que um
vulto vermelho atravessou uma das pilastras do salão e deslocou-se rumo
a uma sacada.
Em meio aos corpos e suas catarses, o príncipe imperial despren-
deu-se das suas estonteantes companhias femininas e direcionou-se a sa-
cada.
Logo ao chegar, foi surpreendido por uma voz.
- É muito fácil chamar a sua atenção. - Maria estava deslumbrante,
com o mesmo vestido vermelho que desenhava suas formas.
- Por que foge de mim? - Perguntou Abel.
- E quem disse que as minhas ações são dependentes de você? Eu
apenas aproveito a paisagem e a festa sozinha, já que as companhias são
desinteressantes.
- Então, você só veio a minha festa para avaliar os meus convida-
dos? - Perguntou Abel.
- Ora, os convidados não são espelhos do anfitrião? - Rebateu Ma-
ria com outra pergunta.
Abel sorriu copiosamente.
- Você é intrigante, nunca ninguém falou comigo nesses termos,
gosto disso. Nietzsche dizia que o verdadeiro homem quer duas coisas:
perigo e jogo. Por isso quer a mulher: o jogo mais perigoso.
- Eu não sou um jogo para brincar, príncipe. Nietzsche foi um
grande gênio idiota, mas ele está correto. 
Maria se aproximou do Príncipe e colocou sua mão entre as per-
nas dele.
- Essa noite você vai brincar sozinho. - Logo após dizer essas
palavras, Maria golpeou o rosto de Abel e subitamente desapareceu.
Parecia uma miragem, hipnótica no olhar, movia-se junto ao ven-
to, confundia o príncipe e o mantinha na excitação, um joguete de sua
libido, um mero refém de uma mulher que o tratava como um homem

A princesa dilacerada 131


qualquer.
Naquela noite, Maria não apareceu na cama do príncipe, seu
desejo foi esfriando e as lembranças da sedutora mulher de verme-
lho turvaram-se até chegar ao sétimo dia, uma noite quente de de-
zembro, o corpo nu do príncipe envolto a um fino lençol branco,
a transpiração que fazia escorrer do seu rosto um incômodo suor.
Repentinamente uma voz feminina começou a cantarolar em ple-
na noite, Abel acordou e logo sentiu o perfume da mulher que tanto de-
sejava, na sacada do seu quarto, a sombra de Maria projetava-se sublime
nas cortinas.
Abel sorriu  e logo foi ao encontro do seu desejo, ao chegar na
sacada, não havia nada a não ser as luzes de Brasília. Foi quando a voz
cantarolou novamente, dessa vez no quarto do príncipe.
- Você é um demônio? - Perguntou Abel ao contemplar Maria
deitada sobre sua cama e desnuda de qualquer pudor.
- Você quer um demônio? - Perguntou Maria.
- Você está brincando com fogo, garota.
- Não, eu estou brincando com um tolo. Príncipe, eu quero você
dentro de mim.
Maria empinou seu quadril esperando o toque do príncipe. Abel a
puxou pelos cabelos e a penetrou delicadamente, Maria mordia os lábios
e sentia o pulsar, as almas se conectando, o membro entre as duas paisa-
gens, movimentos contínuos da penetração e os gemidos de prazer.
E houveram mais noites como aquelas.

A mente de Maria retornou ao submundo e dominada por uma


torrente de pensamentos confusos, empurrou a princesa que a beijava.
- Por que me fez lembrar dessas coisas?
- Você não teve prazer enquanto esteve na cama do meu irmão?
- Prazer é algo efêmero, se ele não for uma ponte para felicidade,
do que vale? - Se questionou Maria.
- Você procura garantias para felicidade? Elas não existem, os mo-
tivos pelos quais as pessoas são felizes, são pulverizados, gatilhos que são
acionados quando interagimos com o mundo.
- Só precisamos ser senhores das nossas sensações. 
- Guarde sua vã filosofia, não preciso desse monte de lixo, se ela

132 O Divino Leviatã


funcionasse, não estaria nesse lugar. - Irritou-se Maria.
- Eu gostaria de contar a história do meu marido, o rei Dom Rafa-
el. - Disse Vitória.
- Por que simplesmente não me deixa em paz? - Sugeriu Maria
demonstrando uma inquietude angustiante. 
- Apenas escute... A minha união com o Rei Dom Rafael não se
resumia a um simples casamento, éramos a esperança de continuidade
do Império, a união das famílias Versalhes e Avís. Casamos, e a única
vez que o tive em meus braços,  foi na nossa noite de núpcias, fizemos
amor, fomos um só. Rafael sabia que eu não o desejava como homem, em
contrapartida, ele não me tomava com o maior dos desejos. Tínhamos
carinho e respeito um pelo outro, amor mesmo não existia. No entanto, 
Dom Rafael deu-me o maior presente que alguém poderia me dar, pas-
saram-se sete meses desde que soube de minha gravidez, ficamos felizes
e essa notícia contagiou a todo o Império, enfim, um herdeiro da nossa
dinastia.
Valeria zelava pelo meu sono como uma boa guardiã que era, em algumas
ocasiões, sua devoção me causava estranheza e constrangimento, sua vida 
era dedicada ao meu bem-estar. A gravidez trazia-me complicações, as
dores me incomodavam e fazia-me prisioneira de meu próprio quarto, na
manhã do dia 31 de abril de 2032, o desjejum foi servido em minha cama.

- Eu cuidei de tudo,  essa é uma alimentação balanceada.


Eu apenas sorri em agradecimento. 
- O que aconteceu com Dom Rafael? - Perguntei.
- Ele embarcará no próximo voo para São Paulo assim que resol-
ver questões em Brasília. - Assim me respondeu Valéria, com um sem-
blante ríspido que convergia com seu uniforme social de cor preta, ela
definitivamente não gostava do Rei, mas o respeitava por minha causa.
E assim passaram-se os dias, suficientes para minha recuperação,
aproveitei para retomar o ritual de minhas trivialidades, tomei meu desje-
jum longe dos fadigantes lençóis, queria um pouco de normalidade numa
mesa com tudo que me apetecia, frutas, pães e frios, não tinha nada me-
lhor. 
O silêncio de minha cozinha foi quebrado pelo módulo telefônico
que emitiu um som curto, acionando a imagem holográfica do Rei.

A princesa dilacerada 133


- Vitória, você está linda, a gravidez te fez muito bem, já estamos
no sétimo mês, não é mesmo? - Indagou a imagem de Rafael incrivelmen-
te nítida.
- Sim, ele já está enorme, amor, quando chega ao reino?
- Vitória, receio que ficarei mais alguns dias em Brasília, tenho
assuntos que demandam tempo.
- Tudo bem, fico triste por perder os melhores momentos. - Assim
eu disse sem muito entusiasmo.
- Eu também liguei para avisar que receberemos um hóspede no
Palácio.
- Um hóspede? De quem se trata?
- O Dr. Heisenberg vai me representar no fórum econômico e tec-
nológico em São Paulo, e carece de um lugar para ficar, nada mais ade-
quado que o palácio para acomodá-lo.
- De acordo, e quando ele chega? - Perguntei.
- Seu helicóptero deve aterrissar no heliporto dentro de alguns
instantes.
- Querida, preciso me apressar, tenho uma agenda longa a cum-
prir, até mais ver.
Acenamos um para o outro nos despedindo. Em seguida, a ima-
gem holográfica desapareceu. Alguns minutos de inércia e olhares para o
vazio precederam a entrada sem cerimônias da minha protetora, Valéria.
- Rainha, o doutor Heisenberg acaba de chegar.
- Sim, já era esperado, mande-o entrar.
- Com licença, senhora.
- Valéria, antes de qualquer coisa, não precisa me chamar por títu-
los ou pronomes de tratamento, você é como se fosse uma irmã.
Valeria sorriu timidamente e pediu para que o meu convidado
entrasse.
- Dr. Heisenberg, rainha Vitória o aguarda.
Quando aquele homem entrou por aquela porta, literalmente a
minha vida mudou. Nada tinha de especial, um tipo comum de cabelos
negros e levemente grisalhos, rosto pálido e anguloso, um óculos de ar-
mação quadrada, calça jeans e um jaleco branco, tão pouco era bonita a
sua postura corporal retraída, mas o amor muitas vezes nasce daquilo que
não podemos ver. Ele é imaterial...

134 O Divino Leviatã


- Rainha Vitória, lamento muito incomodá-la, o Rei insistiu para
que eu me hospedasse no palácio, não teria problemas em me acomodar
em algum hotel das redondezas. - Disse o Dr. Heisenberg constrangido e
segurando minhas mãos.
- Não há incômodo algum,  receio apenas não poder te dar à aten-
ção devida, logo mais partirei para a praça do Império para o discurso do
dia Primeiro de Maio.
- Sei que não nos conhecemos, rainha, mas gostaria de acompa-
nhá-la no comício, teria algum problema?
- Por mim tudo bem, será bom ter uma companhia. - Respondi
prontamente, mas um tanto curiosa por aquela súbita vontade de me seguir.

Convidei o doutor para o desjejum naquela manhã, eu tentava


evitar o encontro de  olhares, pois sempre resultava no sorriso de ambos
os lábios.
A tarde de primeiro de maio foi marcante na minha vida, não por
aquele inesperado encontro no café, mas sim, um atentado contra minha
vida. A imprensa de todo o Império cobria o evento enquanto eu discur-
sava:
- O Reino de São Paulo tem orgulho da obediência e devoção ao
seu rei que infelizmente não pôde se fazer presente, mas eu, rainha Vitó-
ria, estou aqui para agradecer todo o trabalho realizado até aqui, esse ano
crescemos 12%, o maior de todo o Império.
A população ovacionou aos assobios e gritos. “Glória ao Reino
de São Paulo, Império brasileiro e o Divino Leviatã!” Assim bradavam os
populares.
- Ainda assim, com todas as bênçãos do criador,  existem brasilei-
ros que ainda insistem em desobedecer as leis de Deus. Após a providên-
cia divina, Deus, por amar a humanidade, nos deu a chance de aos pou-
cos limparmos a alma dos pecados e retornar ao nosso estágio original,
comendo do fruto da Ninrode e mortificando o livre arbítrio. Comam do
fruto e experimente da misericórdia do criador.
No auge do meu discurso fui interpelada por Cicero, um homem
de cabelos meia idade, usava um conjunto de calça e jaqueta jeans e uma
camisa branca.
- Você fala de uma maneira tão emancipadora, mas quer nos

A princesa dilacerada 135


tirar a liberdade de questionarmos o seu Deus tirano, comei do fruto!
Comei do fruto! Olhem para esses zumbis! - Vociferou Cicero apon-
tando para alguns populares que contemplavam a princesa com uma
expressão pacífica e congelada. - Perderam suas humanidades em troca
de uma obediência humilhante,  esse é o resultado de comer do fruto?
Eu perdi a fala por alguns segundos e observei as pesso-
as que regularmente comiam do fruto e comparei aos marginali-
zados que se recusavam em fazer  devocionais ao Divino Leviatã.
Daqueles que se recusavam a comer do fruto eu observava a viva-
cidade e reações diversas ao meu discurso, enquanto aqueles que obede-
ciam ao criador mantinham sempre uma serenidade quase que imutável,
e isso também se traduzia em suas vestimentas, todas padronizadas e cla-
ras.
Foi então que me questionei: O que nos faz humanos?
Eu olhei para Cícero e o respondi de acordo com os meus valores
da época.
- Platão já dizia que aquele que muito se incomoda com a tirania,
é porque quer implantar a sua, o que o Divino Leviatã oferece é a liberda-
de junto a Deus. 
Cicero irritou-se e rebateu:
- Não há liberdade discursada por déspotas que não termine em
tirania! O seu Deus só quer morte!
As palavras de Cícero foram um prelúdio para o atentado que so-
fri, um tiro foi disparado, a multidão dispersou-se do centro da praça e
revelou quatro sujeitos trajados com um exoesqueleto negro e bem en-
couraçado.
- Rainha, fique atrás de mim! - Orientou Valéria que ao mesmo
tempo gesticulou para que três jovens soldados sob o seu comando ata-
cassem os quatro misteriosos sentinelas.
- Excelente! Teremos um pouco de ação!
- Isso! Chega de treinar em bonecos e campos de simulação!
- Vamos atacar! - E assim fizeram os três soldados que antes mes-
mo de se aproximarem dos sentinelas de armadura negra, foram neutra-
lizados por um campo elétrico e morreram instantaneamente.
- O que acontece aqui? - Perguntei assustada.
- Não tem problema, rainha, eu posso cuidar disso. - Disse Valéria

136 O Divino Leviatã


que desembainhou sua espada e apontou para um dos homens.
- Quem são eles? - Perguntei.
- Pessoas do passado, a escória nazista que restou no mundo, vou
tratar de matá-los, agora!
Um dos sentinelas nazistas tomou a iniciativa do ataque, ele usava
duas espadas grandes e com dois gumes. Suas técnicas se confrontaram
no ar, lutavam com grande perícia e velocidade.
- Não vai usar um exoesqueleto? - Perguntou o nazista.
- Não preciso dessas coisas, ainda mais para matar vermes nazis-
tas.
- Péssima escolha. - Disse o supremacista que segurou o golpe da
espada de Valéria e a chutou no rosto.
Minha guardiã foi violentamente arremessada contra o palanque.
- Não sabia que a guardiã pessoal da rainha fosse desse nível.
O sentinela nazista a pegou pelo pescoço e a golpeou três vezes
com os joelhos.
- O exoesqueleto me dá o poder de cinco homens, por que pensou
que poderia me derrotar? - Gargalhou Valéria.
- O que é tão engraçado? - Perguntou o Nazista.
Rapidamente, Valéria tirou de uma bainha escondida em sua per-
na esquerda, uma adaga e a cravou no pé direito do sentinela, que aos
urros praguejou contra a minha guardiã.
- Vagabunda! Traiçoeira! - Gritou enfurecido.
- Por que pensei que podia  derrotá-lo? Simples, você não é dos
espécimes humanos mais inteligentes.
Valeria desembainhou outra espada de suas costas e utilizando-se
de sua agilidade, atravessou o nazista ao meio. Os outros três se manti-
nham estáticos.
- Fique aqui, princesa, vou terminar com essa história.
Com um semblante fechado, Valéria fixava os olhares em seus três
alvos, o sangue vertia pelo seu rosto e, mesclado com o suor, nascia ali
o seu elixir da coragem, um tanto da efusão batizava o chão, outra parte
rompia seus lábios e era digerido.
Valéria caminhava lentamente fazendo a espada criar atrito com o chão,
faíscas criadas pelo resultado faziam a espada energizar uma manta áuri-
ca de cor vermelha bem clara.

A princesa dilacerada 137


- Meu pai, o grande Lorde Wagner morreu na sagrada guerra de
14 de novembro, ele me deixou a sua herança, a fúria Berseker!
Deslocando-se em grande velocidade, Valéria investiu um ataque
contra os três sentinelas nazistas, mas, surpreendente, dois daqueles indi-
víduos desapareceram perante os seus olhos e, imediatamente reaparece-
ram cercando-a da esquerda a direita e lançaram sobre ela chicotes pra-
teados que descarregavam uma grande descarga elétrica, fazendo Valéria
ajoelhar-se parente a forte pressão exercida.
- Malditos! - Vociferou.
O terceiro sentinela se aproximou para zombar de sua dor. 
- Uma coragem admirável, prometo que terá uma morte honra-
da, assistirá o assassinato dessa princesa negra, logo depois vou te matar
como todo grande guerreiro merece morrer na história, sua cabeça sepa-
rada do corpo e transformada em memorial...
- O Reich de 1000 anos surgirá, traremos de volta o grande Füher!
Aquele homem correu na minha direção, não havia nada que eu
pudesse fazer, estava fraca, meu corpo acusava os meses de repouso devido
a gravidez,  quando o sentinela se aproximava em grande velocidade, duas
espadas curvadas foram lançadas contra ele, uma o decapitou e a outra ar-
rancou-lhe a perna, olhei para trás, ainda ajoelhada no palanque e vi o Dr.
Heisenberg com uma postura diferente da qual ele mostrou no Palácio. 
- Esse comício foi um grande erro, poderia ter morrido aqui. Ve-
nha comigo, vai ficar tudo bem. - Heisenberg  escorou-me em seus braços.
- Hey! O que pensam que estão fazendo? - Perguntou um dos
sentinelas.
Valéria aproveitou a distração de um deles e decepou os braços de
ambos algozes com sua espada, fazendo os chicotes caírem sobre o san-
gue.
- Pelo poder que me é concedido pelo reino de São Pau-
lo, Império brasileiro e o Divino Leviatã, os sentencio a pas-
sar suas miseráveis vidas dependendo de caridade para se ali-
mentarem! - Valéria decepou os braços restantes e usou a energia 
Berseker acumulada na espada e cauterizou os ferimentos.
- Por que não nos mata de uma vez? -  Suplicou um dos sentinelas.
- Não sou essas almas desprezíveis que são, vocês não me ataca-
ram para matar, logo, minha reação também não será matá-los.

138 O Divino Leviatã


- O código divino é perfeito, reflitam sobre seus pecados.
Valéria os deixou sozinhos e humilhados,  logo depois caminhou
ao meu encontro e sorriu.
- Me perdoe por não ter calculado toda essa situação. - Lamentou-
-se Valéria.
- Todos nós tivemos um dia difícil, você não tinha como prever.
- Assim a confortei.
- A partir de hoje teremos que tomar algumas precauções. - Disse
o Doutor que estava logo atrás de mim.
- Tem razão, Doutor Heisenberg, a princípio, não imaginava que
também possuía habilidades num campo de batalha.
- Infelizmente existem momentos que precisamos reviver um pas-
sado que queremos esquecer.
Minhas memórias que envolvem o Doutor Heisenberg são muito
vivas, pois, o que vivemos depois daqueles acontecimentos, foi muito in-
tenso.
O Fórum Econômico e Tecnológico aconteceu no dia seguinte
daquele primeiro de maio, nos despedimos de uma maneira protocolar,
confesso que cheguei a pensar que nunca mais nos veríamos,  mas o des-
tino novamente tinha outros planos.
Apesar de todo o acorrido, algo ainda me afligia, ao observar aque-
les pecadores representados por aquele homem chamado Cicero, eu me
perguntei o que havia de prazeroso no livre arbítrio, por que não comiam
do fruto? Caminhei até a cozinha do palácio e apanhei de uma cesta de
frutas a vermelha e esférica Ninrode, diferente de tudo que existia, o seu
gosto é único e a sensação de prazer ao degustá-la, fazia-me querer mais
e mais, sentia uma conexão com o divino e, olhando para suas nuances,
tentava teorizar a fascinação que todos tinham ao degustá-la, e o porquê
de ainda existir pessoas que não queriam aquelas sensações. O que é a
humanidade sem o contato com o Criador? Me perguntava.
Comi do fruto e mantive a minha conexão com o Divino, coinci-
dentemente a Ninrode servia-me de refúgio das minhas reflexões, quan-
do me alimentava do fruto, a mente esvaziava-se de qualquer questão, só
havia espaço para certezas, o que não deixa de ser amedrontador obser-
vando pela minha perspectiva atual.
No dia seguinte ao meu atentado, Abel me visitou, seu pretexto foi

A princesa dilacerada 139


a preocupação com minha saúde,  mas era óbvio que existiam intenções
além do tangível.
- Irmãzinha! Que saudades! Eu nunca imaginaria que ficaria tão
graciosa nesse estado interessante. - Assim disse Abel que sorria ao assis-
tir-me tomada pelos meus sete meses.
- A cobra não morde uma mulher gestante devido ao seu es-
tado interessante, não é mesmo? Diga-me, querido irmão, se não
veio me alfinetar e nem pregar peças, certamente não veio somen-
te para saber sobre minha saúde, no que posso ajudar meu irmão?
- Soube por mamãe que sofreu um terrível atentado, como está? 
- Eu estou bem, infelizmente três vidas foram perdidas.
- Trágico! Sabe, as vezes penso  que papai adota medidas muito
austeras contra os rebeldes que não comem do fruto.
- E por que pensa assim, irmão?
- Ora, nós já fomos pecadores, sabemos das sensações provocadas
pela carne, é difícil abandonar o hedonismo, o prazer de sentir, as maiores
obras da humanidade nasceram das sensações, o que é ser divino, minha
irmã? De fato ainda não sabemos, não foi expressada em arte. Sabendo
dessas coisas eu entendo o porquê dos rebeldes não abandonarem as suas
práticas.
- Eu realmente não sei o que pensar, não esperava que tivesse esse
tipo de preocupação. - Disse encarando-o com curiosidade.
- Irmãzinha, muitos apenas me enxergam como um extravagante!
Mas eu tenho visão para um Império grandioso,  e isso começará pela
conquista desses povos marginalizados,  embora, eu não tenha a sua sen-
sibilidade com as palavras. Uma boa rainha sabe como adaptar sua retó-
rica, você deveria conhecer de perto a realidade dessas pessoas.
- E como eu faria isso?  Por acaso não esqueceu que papai proibiu
qualquer acesso à zona dos marginalizados?
- E quem disse que papai ou qualquer outra pessoa precisa saber?
Essa é a vontade do criador. O que seria de Israel se David não quebras-
se algumas regras? Hoje dormirei no palácio e amanhã faremos a nossa
aventura, eu tenho os meus truques.
Mesmo considerando inusitado o interesse do meu irmão pelos
marginalizados, havia algo dentro de mim que queria experimentar aqui-
lo, afinal, o que existia de melhor que os planos de Deus?

140 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XX

~ Parte II
Revelacoes
'

-P
rincesa Vitória? 
- Princesa, aonde você está?
Acordei com aquele chamado de Valéria em ple-
na manhã, ao abrir os olhos, percebi em minha turva visão que a guar-
diã  olhava para minha cama como se não estivesse me enxergando.
Minha visão periférica capturou meu irmão deitado ao meu lado.
- Psiu! Quietinha! - Sussurrou Abel.
- O que você vai fazer? - Perguntei.
- Vamos para zona proibida,  não se preocupe, deixei nossos cor-
pos invisíveis, Valéria não consegue nos ver. - Respondeu Abel.
Saímos discretamente do quarto e viajamos rumo aos lados mais
sombrios de São Paulo.
Abel tinha o dom de voar, habilidade rara, viajamos por toda a
capital, a cidade pulsava a 100 metros de nós e não demorou muito para
chegarmos a zona morta do império.
Do baixo Glicério até São Mateus, uma grande zona abandonada
pela lei divina, pessoas que vivem em condições sub-humanas, casebres
com bicos clandestinos de eletricidade, córregos poluídos e pessoas pe-
rambulando pelas ruas atrás de um fortuito negócio, uma oportunidade
de ganhar dinheiro e sobreviver naquela pobreza extrema. Muitos viviam
de agricultura de subsistência, algo que só havia assistido em vídeos da
antiga república.
É assustador sobrevoar a pobreza,  apesar de seus corpos se mo-
verem de forma frenética e sem nenhuma organização rítmica e suas ex-
pressões apresentarem uma insana mistura de sentimentos, ainda assim
era belo.
- Pronto, chegamos, vamos descer. - Disse Abel.
Aterrissamos num lugar com um grande fluxo de gente, parecia
uma feira.

A princesa dilacerada 141


- Que lugar é esse? - Perguntei.
- Chamavam isso aqui de Gasômetro, hoje é só um lugar de bar-
ganhas. - Respondeu Abel.
Por um instante olhei os meus trajes e percebi que ainda estava
com o meu pijama branco.
- Você ao menos poderia ter me esperado escolher um traje mais
adequado. 
- Relaxa... Ninguém consegue te ver.
Uma multidão cercava uns artistas populares que usavam de suas
artes para vender peixe. 
-Atenção! - Gritou um homem de meia idade com uma cartola
preta, trajando um conjunto lilás com botinas pretas. Era de origem chi-
nesa, seu rosto estava imundo. - Os peixes mais frescos que acabaram de
chegar do porto! Coisa fina que só tem no lado rico do Império!
Um transeunte curioso parou e perguntou:
- E cadê os peixes, homem? E como conseguiu burlar a segurança
do porto? - Perguntou o popular.
- Eu estava esperando você me perguntar! Montserrat apareça!
Uma drag queen de cabelos vermelhos e aproximadamente 1,90 de
altura surgiu entre dois barris azuis e começou a cantar um jingle sobre o
peixe que carregava:
- Sardinha, tilápia ou cação! É aqui que se encontra promoção!
Não importa se é patrão ou se é pião, peixes frescos é Montserrat e Tião! 
Tan! Tan!
Embora tivessem feito grande esforço naquela performance, fres-
co não era exatamente o estado daquele Salmão que  esfregava em seu
corpo de forma sensual e constrangedora, trajada com um collant verde
com escamas.
- Hey! Esse salmão tá podre! Trapaceiros! Vamos pegá-los. - Enfu-
receu-se o transeunte que correu atrás dos dois atrapalhados vendedores.
- Ai!! O que aconteceu? Errei no jingle, Tião?
- Mas que diabos você fez? Não te disse para conservar o peixe no
gelo? - Questionou Tião.
- Que gelo?
- Ai meu Deus! Você não faz nada certo! -  Lamentou Tião que
corria junta a sua companheira de trambiques segurando a cartola na ca-

142 O Divino Leviatã


beça. 
Abel e eu assistíamos a cena rindo feito crianças, aquelas pessoas
eram pitorescas de tão engraçadas.
- Eu nunca vi uma coisa dessas. - Comentei.
- É o brasileiro de antes, ainda sobrevive nessas camadas esqueci-
das pelo tempo. - Disse Abel.
Nesse instante seu bracelete vibrou, era o módulo telefônico, ele
pode ser forjado de várias maneiras possíveis, podendo inclusive cobrir
todo o corpo de seu usuário como se fosse uma vestimenta. Abel acionou
um pequeno leitor infravermelho com a digital do seu polegar, sorriu e
logo em seguida disse os seguintes números:
“23,5445, 46,623...”
Não dei muito importância e continuei seguindo-o,  até chegar-
mos num velho cortiço.
- Por que me trouxe aqui, Abel?
- Nada especial irmãzinha,  apenas para conhecer um mundo ain-
da inexplorável.
Nesse instante uma porta se abriu, e dela surgiu uma menina de
vestido florido e cabelos loiros, cacheados, levava consigo uma boneca de
pano suja. Eu me aproximei da garotinha para admirar sua peculiaridade.
Num rompante a garota voltou os seus olhares na minha direção e enca-
rou-me com curiosidade.
- Quem é você moça? E por que está vestida assim?
- Você consegue me ver? - Perguntei um tanto surpreendida.
Olhei para trás e Abel havia desaparecido, sem que eu ti-
vesse tempo para pensar, caças da divina armada imperial cru-
zaram os céus e as pessoas começaram a correr desesperadas.
- Tia! Vêm comigo! É perigoso aqui fora!
A garotinha me puxou para porta que ligava um estreito corredor,
mas antes que pudéssemos chegar na casa dela, um soldado surgiu peran-
te nós.
- Civis infringindo leis, terão que me acompanhar para interroga-
tório.
Assim disse um sargento imperial equipado com uma armadura
azul metálica, segurava uma pistola da mesma tonalidade.
- Sargento, sou a sua rainha Vitória, estou numa missão humani-

A princesa dilacerada 143


tária, não há necessidade de violência, não são hostis. - Tentei intervir.
- Não vou repetir, terão que me acompanhar para interrogatório,
caso contrário, será aplicada a lei marcial.
Olhei as pupilas daquele homem através do visor de seu ca-
pacete,  e as percebi dilatadas, era como se estivesse num transe.
O dialogo era inútil, levantei minhas mãos para o alto sinalizando ren-
dição, quando consegui persuadi-lo, apliquei um chute giratório frontal
que aprendi nas tortuosas instruções de combate tive desde criança, o
soldado tombou sobre o chão, tomei a menina em meus braços e corri
daquele cortiço, voltei para a rua do Gasômetro e me deparei com uma
cena assoladora, mortos por todos os lados.
“O que é isso?” Perguntei.

A menina apegava-se a mim como se eu pudesse protegê-la.


- Não me solte, tia. - Ela implorava.
Olhei mais a frente e vi um grupo de vinte soldados cercando cin-
co civis.
- Isso não é possível, o que aconteceu com o Abel?
Antes que eu pudesse construir a resposta, senti uma presença
atrás de mim, era o mesmo soldado, voltei-me em sua direção e imediata-
mente fui desacorda com um soco na cabeça.
Momentos depois acordei em meio a um grupo de pessoas que
choravam amarguradas sobre o chão.
- Não vou perguntar outra vez! Cadê o Cícero? - Gritava o solda-
do.
- Procure em seu buraco mais fétido! Porco nojento! - Respondeu
uma corajosa mulher idosa que usava um lenço vermelho na cabeça. O
soldado sorriu e apenas a executou com um tiro no fronte.
- Mais alguém com sugestão similar?
Eu não podia permitir que aquela situação continuasse, mesmo
grávida eu tive que fazer algo.
- Soldados! Existe um engano aqui, sou a rainha de São Paulo, 
minha missão é humanitária, ordeno que parem a execução.
- Ora! Uma princesa! E o que vossa majestade faz no meio desses
terroristas que tramam contra o seu próprio reino e também contra o
Império? 

144 O Divino Leviatã


- Ao menos tem provas do que fala?
O soldado acionou o scanner no visor de seu capacete para me
identificar.
- Como eu imaginei... Perfil não identificado. 
- Isso é impossível! - Indignei-me.
- O rastreador não mente, olhe isso, “rainha”. - Disse o Soldado que
sorria ironicamente ao pegar a pequena garotinha que me acompanhava.
- A divina armada imperial é preventiva e sempre elimina o mal pela raiz. 
Outros dois soldados pegaram aqueles mesmos trapaceiros que
vendiam peixe podre na praça e os renderam.
- Ai meu Deus! A vida pode até acabar! Mas sempre performática,
ao menos posso maquiar lágrimas em meus olhos? - Perguntou Montser-
rat num tom de lamento. O soldado que a rendeu, golpeou-a no estôma-
go, fazendo-a cair.
Tião, o senhor de cartola, rezava para um Deus que o havia aban-
donado há muito tempo, embora sua fé não se abalasse por isso.
- Todos serão executados pelo crime de conspiração contra o Im-
pério, por acobertarem o terrorista Cícero. - Declarou o soldado.
- Hey, preste atenção! Ninguém aqui está relacionado com ativi-
dades terroristas, por acaso enlouqueceram?
Num piscar de olhos, o soldado usou sua grande velocidade e gol-
peou-me com um forte soco no rosto, caída no chão, observei que um
daqueles malditos erguia a garota com sua mão direita e a sufocava.
- Com o poder concedido a mim pelos três impérios,  te condeno
a morte.
Não havia outra alternativa a não ser usar o meu dom especial.
- Esperem! - Gritei.
- Ao que parece vocês só querem mesmo matar essas pessoas e
justificar os seus atos nas leis imperiais, não posso permitir...
Apanhei uma pedra jogada ao chão e a esmaguei em minha mão
direita, deixei suas partículas se espalharem pelos quatro pontos cardeais.
- O que é isso? Por acaso é uma bruxa?
-Não passa de uma maluca que engravidou do primeiro vagabun-
do.
- Tem certeza disso? Invoco o poder das quatro estrelas reais! Al-
debaran, o equinócio da primavera, Guardião do Leste; Regulus, o solstí-

A princesa dilacerada 145


cio de verão, Guardião do Sul; Antares,  o equinócio de outono, Guardião
do Oeste; Fomalhaut, o solstício de inverno, Guardião do Norte.
As partículas da pedra começaram a brilhar e colidiram-se for-
mando uma pequena estrela branca.
- O que significa isso? É magia arcana? - Perguntou o sargento.
- Isso mesmo! Essa é a estrela arcana imperial!
A estrela exerceu um grande poder gravitacional sobre os solda-
dos imperiais,  destroçando seus exoesqueletos.
- Quem é você? - Perguntou um dos soldados.
- Eu já disse, sou a sua rainha. - Após isso ele desmaiou.
- Uhu! Arrasou! - Bradou a eufórica Montserrat.
- Aonde aprendeu essas coisas, moça? - Perguntou Tião.
- Essa é uma longa história. - Respondi.
- Tia! Olha! - Gritou a menina.
Olhei para os céus e um dos caças em formato de disco disparou
um torpedo, não havia tempo para reação, foi quando mais uma vez duas
adagas foram lançadas contra o projétil.
- Doutor Heisenberg? 
- Sim... Sou eu minha rainha... 
Em seguida o caça foi destruído por uma esfera de plasma lançada
pelas luvas de Arquimedes, usadas por Cícero que atirou do alto de um
edifício em ruínas.
- Como nos velhos tempos, Kadu. - Disse Cicero trajado com a
mesma roupa do dia do comício.
- Kadu... - Sussurrei imersa a minha a minha perplexidade.
- Eu não queria que soubesse dessa forma, mas eu não sou Andrey
Heisenberg. Sou Carlos Eduardo Andradas, Kadu, irmão do ex presidente
William.
E foi dessa maneira que descobri a sua verdadeira identidade,
quem diria... Foragido da lei...
Kadu e Cícero me apresentaram toda a cidade perdida,  a huma-
nidade que ainda existia naquelas pessoas, seus desejos, desesperanças e
a crença num Deus que os havia apartado de seu plano divino. Pobreza,
desolação, morte e a frágil esperança de serem salvos, não passavam de
um passivo a ser eliminado. Foi naquele momento que as esperanças da-
quelas pessoas tornaram-se as minhas,  já não fazia sentido denominá-los

146 O Divino Leviatã


pecadores, mesmo que recusassem comer do fruto que mortifica o livre
arbítrio. 
Eu não queria que o meu filho herdasse um reino pu-
nitivo, então eu tomei a decisão mais corajosa da minha vida.
Eu precisava interceder por aquele povo, então, no dia seguinte ao atenta-
do que sofri, viajei para Brasília. Naquela altura, ainda estava preocupada
com o paradeiro de Abel, na época eu não tinha percebido que os nú-
meros ditos por Abel eram coordenadas da nossa localização,  mas logo
percebi que não era o irmão amoroso que eu imaginava.
Cheguei a Brasília sem grandes cerimônias,  aterrissei no
heliporto do Palácio do Planalto e fui direto a sala do império.
- Vitória? Que surpresa agradável, vejo que logo virá o meu neti-
nho.
A destra do trono do imperador estava sentado o meu irmão, des-
sa vez com dreads e sobretudo prateados, ninguém podia negar que ele ti-
nha estilo. A esquerda do trono encontrava-se o reverendo Maximiliano,
trajado com um hábito episcopal preto.
- Se eu te conheço bem, essa não é uma visita familiar, não é mes-
mo? - Indagou papai sentado ao seu trono e elegantemente vestido com
um terno preto, o grisalho dos sessenta anos contrastava com aquele pai
aventureiro da minha infância, em meu casamento ele me disse que era
difícil me ver como mulher, pois eu também tenho dificuldades de en-
xergá-lo como imperador. Eu fiz o maior dos esforços para escolher as
palavras certas, até mesmo a minha respiração eu organizei para que o
meu discurso não tivesse ruídos.
- Pai... Eu conheci a zona proibida do meu reino, vi o sofrimento
e a miséria na vida daquelas pessoas. Eu confio muito em sua bondade e
julgamento, por isso venho aqui pedir clemência por essas almas, deixe-
-me convencê-los a comer do fruto e compartilhar da nossa santidade. -
Houve um silêncio sepulcral na sala do trono, papai me contemplava com
um sorriso, o reverendo fechou o semblante e o meu irmão forjava em sua
expressão um contentamento com a minha causa.
- Vitória, jamais imaginaria que tivesse coragem de desobedecer
uma lei imperial, mesmo sendo minha filha, poderia puni-la, por outro
lado admiro a sua grandeza em querer salvar os marginalizados, no en-
tanto, eles possuem os profetas para ensiná-los o caminho certo, assim

A princesa dilacerada 147


deve ser.
- Queira me desculpar pai, mas eu pude comprovar que profeta
algum vai ao encontro dessas pessoas, o que eu vi foi um verdadeiro mas-
sacre proporcionado pela divina armada imperial.
Nesse instante o reverendo interpelou.
- Não querendo ser desagradável com vossa majestade, mas creio
que houve um mal entendido. As campanhas evangelistas apenas pregam
a paz e o arrependimento daqueles que ainda vivem em pecado, nenhum
profeta ou soldado matou em meu nome. - Defendeu-se o reverendo.
- Não foi bem o que vi, Reverendo. - Nesse momento nossos olha-
res se fuzilaram.
- Minha decisão já está tomada, não permito que faça qualquer
ação conjunta com os marginalizados.
- Então é essa a vontade de Deus? - Deixei a pergunta em sus-
penso na intenção de inquietar suas consciências, e deixei o Palácio do
Planalto.
Triste foi a indiferença que vi do imperador, naquele momento eu
soube distinguir o antigo mestre cervejeiro do austero e frio monarca.
Antes de embarcar no helicóptero,  Abel ainda tentava se explicar pelo
ocorrido na cidade perdida.
- Hey, maninha! Obrigado por não me entregar, já tenho proble-
mas suficientes com papai.
- Não por isso, mas o que aconteceu com você? Por que desapare-
ceu? - Perguntei.
- Eu fui rendido e levado pelos soldados, até eu conseguir me des-
vencilhar levou tempo e você já tinha ido embora, você falou com as lide-
ranças, conseguiu se comunicar no dialeto deles?
- Eles falam o mesmo português, merecem todo o nosso respeito,
é inadmissível que sejam abandonados dessa forma, eu me recuso em
acreditar num Deus tão cruel, por quê?
- Eu não sei, irmãzinha, mas pode contar com o meu apoio, vou interce-
der pela sua causa junto a papai.
Minha resposta ao gesto de Abel foi um beijo em seu rosto, depois
disso eu não voltaria mais para Brasília como uma aliada do Império.

148 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XXI

A queda de
Dom Rafael

V
itória interrompeu sua locução e apenas observava Maria
nadando nas águas lodosas do rio da morte.
- Você apenas me conta histórias,  mas não importa a en-
toação dramática, tudo sempre acaba nesse lugar. Maldito Abel... - Sus-
surrou Maria.
- Meu irmão te fez sofrer muito, não é mesmo? Mas uma coisa
não consigo entender, por que mentiu? - Perguntou Vitória.
-Você nunca vai compreender, não há porque perder tempo com
explicações. - Respondeu Maria rispidamente.
- É você que não compreende o que o tempo fez conosco, nossas
mentes e espíritos estão viajando sobre ele, por acaso não te ocorreu que
estamos sendo testadas? - Perguntou Vitória.
- Testadas? O que isso significa? O submundo é uma constante
expiação, o fogo é o menor dos tormentos aqui. Eu não me importo ne-
nhum pouco com a sua dor. Não posso senti-la por você, na verdade, eu
já me cansei das suas histórias. - Indignou-se Maria. - Você continua a
mesma fugitiva, se realmente nada te importa, por que refletir suas ques-
tões existenciais no submundo?
- Vitória, devemos partir o quanto antes. - Preconizou Sigrid que
observava o diálogo entre a Maria e a Princesa.
- Maria, você não sabe como eu me senti quando tudo ocorreu.
Nesse instante uma aura vermelha intensa emanou de Maria, os
seus olhos inflamaram como chamas e o seu ódio oprimia o próprio in-
ferno, rompeu em grande velocidade na direção de Vitória e a pegou no
pescoço.
- Sente muito? - Indagou Maria.

A princesa dilacerada 149


Mais uma vez as memórias de Vitória foram acessadas.

- Esse é o quarto de Abel... - Concluiu ao observar os detalhes ex-


travagantes e a cama magnética no centro do quarto suspensa a quarenta
centímetros do chão.
Entre os lençóis, Abel penetrava a sua parceira sexual, ambos
convergiam seus gemidos em harmonia, o ritmo era conduzido pela sua
batuta que penetrava na alma em estocadas percussivas, quando a exaus-
tão os alcançava, as transpirações soavam como Moonlight Sonata num
piano suave; o prelúdio para o segundo ato; o elixir da vida, o apogeu da
orquestra de ninfas, cupidos, o báculo fazendo a sua mágica e finalmente
a saciedade do príncipe que jogou sua parceira para o outro lado da cama
como se fosse a carcaça de um animal abatido.
- Já acabei, saia pelos fundos e não deixe que ninguém a veja.
A jovem mulher de cabelos negros e pele branca apanhou sua rou-
pa e rapidamente deixou o quarto do Príncipe.
- O prazer tornou-se um mero espasmo para mim,  Maria tomou
a minha paz...
- Abel... - Sussurrou uma voz feminina.
- Maria? 
O príncipe caminhou até a cortina branca de seu quarto mas,
nada encontrou.
- Eu estou sempre um passo a sua frente. - Disse Maria num tom
provocativo enquanto insinuava-se na cama.
- Como chegou até ai? Perguntou o príncipe.
- E isso importa? Certos acontecimentos fogem dos processos car-
tesianos, como, aonde e por que? Apenas transe comigo.
Abel a tomou em seus braços e ambos entregaram-se as suas con-
cupiscências. Meu irmão tinha o estranho prazer de pressionar os pulsos
de suas amantes e sentir o fluir sanguíneo, hora deitava sua cabeça entre
os seios de Maria para sentir o ritmo cardíaco, embora, a insólita mulher,
alternava temperaturas em seu corpo.
- Quem é você afinal?
Uma aura vermelha intensa tomou conta do corpo de Maria e a
fez desaparecer como névoa entre as cortinas da janela. Ela pensou que
poderia continuar com o seu jogo perigoso, embora, Abel já tivesse ou-

150 O Divino Leviatã


tros planos, os mistérios da mulher de aura carmesim estavam prestes a
serem revelados: sem que Maria pudesse perceber, Abel implantou um
pequeno módulo de rastreamento em seu vestido.
Assim iniciou-se a implacável busca a mulher que roubara sua
paz, através do radar localizou um sinal que deslocava-se em grande ve-
locidade para o reino de São Paulo.
Abel seguiu o sinal do radar viajando através de um jato super-
sônico, a perseguição sessou quando o sinal do localizador indicou que
Maria estava nas dependências do Palácio dos Bandeirantes. A mente do
meu irmão esvaziou-se de qualquer pensamento complexo, de todos os
lugares que imaginava, o Palácio dos Bandeirantes era de longe o mais
insólito.
Abel pousou o jato no heliporto e camuflou a nave com seu poder
de invisibilidade. Ao entrar no Palácio, surpreendeu-se com a facilida-
de da qual avançou, caminhou até o quarto do rei Dom Rafael, e o que
somente encontrou foi o meu corpo em repouso entre edredons bran-
cos, um tanto desconcertado, saiu dos meus aposentados e caminhou até
um pequeno corredor, percebeu que havia uma luz opaca escapando pela
brecha da fechadura. Caminhou até a porta e desfragmentou-se em par-
tículas de areia pelas fissuras da porta, dentro do quarto deparou-se com
Maria despida e fitando-se no espelho, em seu semblante existia a luxuria.
Abel queria seduzi-la com os mesmos requintes, foi quando sua
astúcia e inteligência foram colocadas em xeque, Maria caminhou até o
guarda roupa, despiu-se de seu cetim vermelho e apanhou um uniforme
azul-escuro e o vestiu, numa sincronia fria, amarrou seu cabelo, limpou o
rosto da maquiagem e calçou sapatos pretos italianos.
Todo aquele ritual pouco performático intrigou Abel, mantinha-
-se invisível ao espreitar sem saber o que ocorria, até que Maria virou-se
na direção da porta, e o que viu,  confundiu-o profundamente ao ponto
de ser sequestrado pelo seu próprio ódio: Maria era Dom Rafael. A pes-
soa com a qual manteve intensas relações sexuais era o seu primo, o Rei
de São Paulo, marido de sua irmã temporã. Antes fosse uma maldição
de Hera aos olhos de Abel, tão pouco era Tiresias provando aos Deuses
qual dos prazeres era o mais intenso, era uma mulher transexual na casca
de um herói do Império, um segredo que causava-lhe a dicotomia entre
o ódio mortal e o senso de oportunidade, aquela era a chance que tanto

A princesa dilacerada 151


perseguia para destruir os planos de papai na unificação dos ramos Ver-
salhes e Avís, seu ódio apenas precisava ser controlado, o momento de
desmoralizar seu desafeto deveria ser muito bem planejado. Meu irmão
controlou o seu ímpeto e abandonou o quarto dos espelhos ocultando a
sua presença. 
Os planos que traçou junto ao reverendo Maximiliano já pode-
riam ser executados. E a forma como Abel escolheu para destruir Dom
Rafael,  foi ao seu estilo, um jogo.
O príncipe imperial anunciou a toda corte uma grande festa, os
cem nomes mais influentes do império foram convidados através de uma
misteriosa carta espelhada que refletia o maior desejo da pessoa, não se
via o seu próprio reflexo, mas os sonhos. Os dizeres da carta eram um
enigma muito peculiar da criatividade de Abel:
“ Esse espelho reflete a essência, a forma é parnasiana e engano-
sa, não sou o que vejo, aparento os meus sonhos mais profanos, quem eu
sou? Estou além das aparências e sou refém da minha identidade.”
Junto a carta e a sua enigmática escrita, foi encontrado um peque-
no radar. As residências dos respectivos convidados foram atacadas por
misteriosas figuras de indumentárias negras, seus rostos eram encobertos
pelas trevas, no verso da carta, todos os convidados foram preconizados a
não comunicarem a natureza do convite, a eles só era designado compa-
recer ao evento de Abel.
A princípio todos já tinham ciência dos gostos extravagantes do
meu irmão, poucos eram os que não se escandalizavam com o seu gosto
duvidoso, no entanto, Abel conhecia como ninguém os interesses daquela
corte brasileira, suas santidades faziam concessões a possíveis privilégios
que poderiam conquistar.
Já estávamos nos últimos dias de julho de 2039, todos comparece-
ram ao salão principal do Palácio do Planalto, reis, principados, duques,
marqueses, condes e a mais alta burguesia do Império,  todos cercados
por grandes espelhos. O mais inquieto era Dom Fernão, o Rei de Mi-
nas Gerais, trajava um terno preto muito comum, era um homem forte e
grande, cabelo ralo levemente acinzentado, sua pele era morena e o seu
rosto quadrado, uma das barbas mais elegantes que eu já vi num homem,
sua aparência bruta não condizia com os seus finos modos, elegantemen-
te questionou papai que também se perdia no esplendor dos espelhos no

152 O Divino Leviatã


Salão.
- Imperador, todos nós apreciamos muito o modo espirituoso do
nosso príncipe imperial, mas existem muitos afazeres nas Gerais que dei-
xei por  fazer apenas para participa desse evento, se me permite a pergun-
ta,  vossa majestade poderia nos adiantar do que se trata essa festa?
- Receio que nem mesmo eu saiba da natureza dessa festa. - Res-
pondeu papai um tanto incomodado com a situação. Mamãe apenas ob-
servava, parecia receosa, assim como Dom Rafael, que custou à aceitar
o convite mas, recusá-lo seria uma desfeita, uma vez que politicamente
estavam unidos devido o orçamento aprovado para implementação do
projeto “Olho de Deus” e também pelo afeto que sentia pelo meu irmão.
Olhava para ele e dessa vez não enxergava o seu sorriso caracte-
rístico, fitava o seu relógio de pulso a cada três minutos, a sua irmã, Du-
quesa Aurora de Avís exibia feliz o seu novo vestido prateado que ligava
transversalmente uma faixa da cintura ao ombro esquerdo, uma excelente
costura que deixava a mostra um corte evasé.
- Estou tão angustiada, esses espelhos a nossa volta...
Aurora caminhou até o espelho mais próximo, fitou seu próprio
reflexo por alguns segundos, em seguida tocou no espelho e, repentina-
mente ele escureceu.
Todos foram surpreendidos pelo evento e se aproximaram de Au-
rora, assim, uma voz interpelou a perplexidade da duquesa.
- O que é você?
- Eu sou a Duquesa Aurora de Avís e Bragança e você apenas um
espelho bobo.
- Não... Eu sou Aurora.
Imediatamente o reflexo de uma garotinha de vestido colorido,
maria chiquinhas e algodão doce surgiu em todos os espelhos.
- Minha estimada priminha, o reflexo do interior jamais mente,
um espírito patusco, despreocupado, leve e infantil emana de você! Essa
foi a primeira revelação da noite.
Nesse instante,  fótons de luz refletidos pelos espelhos aglutina-
ram-se num único ponto, proporcionando o efeito visual de Abel cami-
nhando entre os convidados.
- A noite apenas começou, o que os espelhos ainda nos reservam?
Eu escolherei três nomes aleatórios, por que não a Baronesa Stephania

A princesa dilacerada 153


de Campinas, o príncipe George das terras do Acre ou o nosso intrépido
Dom Felipe, o legítimo rei das províncias que compõem o Rio de Janeiro?
Espelhos, envolva-os em suas próprias verdades!
Ao proferir sua magia arcana da revelação, três espelhos foram
lançados contra os seus alvos, estilhaçaram-se antes de atingi-los e cada
fragmento orbitavam entre eles, correspondia a lembranças de um passa-
do que ambos escondiam.
- George, você será o primeiro, o seu interior só reflete frustração
por casar com a filha menos agraciada de beleza do barão de Rio Branco,
o nariz com o septo curvado para baixo e os dentes centrais enormes da
arcada superior te desencorajam a beijá-la, você é só um homem tosco
e superficial como tantos outros... Baronesa de Campinas é uma dama
de fino trato, uma chata sem assuntos interessantes, isso é óbvio, mas o
seu interior esconde outra característica bem interessante: o espelho nos
revela que a baronesa sempre teve pretensões de casar-se comigo, um ne-
gócio lucrativo para garantir mais poder na província para sua família, e
ser a minha consorte, um bom plano se não fosse o fato de considerá-la
uma pessoa vazia. O meu preferido é o estimado amigo, Dom Felipe!
- Seja lá o que for realizar com o seu novo brinquedinho ao meu
respeito, faça de uma vez e sem rodeios! - Interpelou Dom Felipe.
- Acho justo, sempre foi um homem íntegro, conservador e o mais
devoto ao imperador dentre todos os sete reis, essa carcaça bonita e fidal-
guia performática, até parece que címbalos e trombetas precederão o seu
pronunciamento, mas tudo isso é vaidade, nunca passou de um frustrado
que jamais conseguiu tocar qualquer projeto até o final, falta criatividade,
brilho, talento! Os espelhos mostram que a sua inveja a Dom Rafael é
latente, olhem todos vocês! 
A corte assistia atenta os segredos do inexpugnável Felipe causa-
rem rubores em seu rosto. Altivo do jeito que era, o rei dos cariocas e dos
fluminenses, tratou de tomar as rédeas da situação:
- Era apenas isso?  Se me permite, príncipe, tenho afazeres em
meu reino que me impede de perder tempo com os seus jogos. - Irritou-se
Dom Felipe.
- Não tenha pressa, o que vêm a seguir vai compensar a sua noite.
Todo espetáculo têm que acabar, esse é o último ato.
Repentinamente os espelhos que estavam distribuídos no salão

154 O Divino Leviatã


foram em direção a Dom Rafael e o cercou.
- O que significa isso? - Perguntei sem entender o que ocorria.
- Irmãzinha, prepare-se para o maior choque de sua vida.
Alertou-me Abel com um sorriso perverso que até então jamais
contemplei.
- Abel,  pare com isso,  o que pretende provar com esse circo? -
Indagou Dom Rafael cercado pelos espelhos da alma.
- Espelho, espelho meu... O que refletes para mim? Um herói de
guerra ou...
Nesse momento todos os espelhos apresentaram uma animação
de quadro a quadro do grande segredo do Rei de São Paulo, um rei acima
de qualquer suspeita,  travestindo-se na bela mulher de vestido vermelho.
Toda a corte ficou em silêncio, era impossível acreditar no que víamos, 
logo após a suspensão existencial no salão, todos riram copiosamente
acreditando que fosse outro dos tantos truques de Abel, era surreal aquela
história.
- Meu filho, suas brincadeiras já ultrapassaram alguns limites! -
Exclamou o rei.
- Brincadeira? Olhem isso! - Abel tentou rasgar a roupa de Dom
Rafael, que facilmente deteve o ataque de seu punho esquerdo.
- Meu primo, não quero te machucar, por favor, detenha-se. - Su-
plicou Dom Rafael.
- Você deveria se envergonhar, me enganou por tanto tempo, me
seduziu! Vou acabar com você!
Abel retirou do coldre de sua calça uma adaga de lâmina curvada
e tentou outra ataque com a mão esquerda, Dom Rafael desviou da inves-
tida e dessa vez deixou-se tomar pela fúria.
- Perdoe-me pelo que vou fazer, querido Abel. Arcana de luz!
Dom Rafael evocou a magia que ofuscou o salão e arremessou o
meu irmão contra um conjunto de vasos de cerâmica que decoravam o
palácio.
- Perdoe-me, primo... - Disse Dom Rafael ao corpo desfalecido de
meu irmão.
Mesmo que a verdade da alma tenha sido espelhada, a figura do grande
herói do império era inatingível. Abel foi humilhado e o seu orgulho foi
ferido, nada parecia o suficiente para destruir Dom Rafael e também a

A princesa dilacerada 155


mim, no entanto, o Reverendo Maximiliano mais uma vez apareceu na
vida de meu irmão.
No dia seguinte, no quarto de Abel, Dom Maximiliano o visita,
ainda que emaranhado nos lençóis de sua vergonha e o rosto marcado
por dois finos cortes protegidos por uma gaze, Abel fitava o vazio com um
brilho odioso no olhar.
- Eu já havia dito a você, não irá conseguir o trono utilizando-se
de suas pirotecnias. Dom Rafael não é qualquer adversário. - Disse o Re-
verendo que assistia o repouso de meu irmão.
- Diga-me algo novo, reverendo. Foi para isso que veio? Ser profe-
ta do passado? Eu não preciso disso. - Murmurou Abel um tanto descon-
certado.
- Nem tudo está perdido, príncipe Abel. Há uma maneira de des-
truirmos Dom Rafael de uma vez por todas. - Disse o Reverendo num
tom misterioso.
- Você mesmo assistiu a verdade da alma daquele miserável, do
que me serviu? - Irritou-se Abel em sua questão.
- Meu querido infante, o antídoto para qualquer veneno se extrai
a partir do próprio, qual a principal técnica arcana de Dom Rafael? - Per-
guntou o Reverendo.
- O ramo de Avís é protegido pelo sagrado cruzeiro do sul, o ele-
mento luz foi um presente do próprio Deus a família Avís por serem os
mais próximos do coração de Deus, diante da Cruz nenhum pecado fica
oculto, mas... O que pretende com essa história? 
- Ora! Não te parece óbvio? Vamos expor os seus pecados ao jul-
gamento da cruz de Avís! - Sugeriu Maximiliano que mantinha o seu
olhar fixo na complexidade das expressões de meu irmão.
- E como faremos isso? - Perguntou Abel.
- Tenho uma surpresa para o nosso condecorado herói.
Essas palavras congelaram qualquer acalento em Abel, o olhar sa-
gaz deu o seu lugar a uma contemplação inquieta ao reverendo, o sem-
blante de quem sempre levava sua vida como um bon vivant adoeceu em
maldade da alma, selou-se o sorriso e perdeu -se o que faz sentido a vida de
qualquer homem, o espírito. Abel não percebia que era apenas uma peça
no tabuleiro de Dom Maximiliano, sua sede pelo poder e o ódio por ter
sido enganado o levou a destruir de uma vez por todas o meu então marido.

156 O Divino Leviatã


Nos corredores escuros do Palácio dos Bandeirantes, a luz do luar
adentrava entre um vácuo demarcado por duas pilastras que iluminava
os passos de Dom Rafael. Caminhando em direção ao nosso quarto, Dom
Rafael percebeu dois vultos deslocando-se nas sombras.
- Quem está ai? Apareça de uma vez? - Ordenou.
Não houve resposta, embora as duas presenças malignas eram sentidas.
- Percebo que não querem revelar o mistério de suas identidades,
nesse caso, vou atacá-los!
As duas sombras responderam atirando adagas contra Dom Rafa-
el que as neutralizou com o seu poder psiônico. Uma das sombras inves-
tiu num confronto corpo a corpo, Dom Rafael demonstrou surpresa pelas
habilidades do seu oponente, no fluir da batalha, a sombra aplicou um
chute rodado que teve o seu ponto de explosão desviado pelo antebraço
de Dom Rafael.
Múltiplos ataques com adagas foram desferidos, todos inúteis, não
era o adversário mais indicado para um herói imperial, foi facilmente
inutilizado por uma técnica denominada Kata Guruma.
Depois de uma forte queda no chão, a máscara que obscure-
cia a face do lutador misterioso rompeu-se, revelando a triste verdade. 
Abel estava diante dele, apesar das relações estremecidas, Dom Rafael ja-
mais imaginaria que o meu irmão fosse tão baixo em sua vingança.
- Você? - Perguntou Rafael.
- Pensou mesmo que zombaria de mim e viveria para contar a história? 
Sou o príncipe imperial e futuro imperador do Brasil, não há lugar para
você nos meus sonhos, seu doente!  - Disse Abel num tom arrogante e
questionador.
A outra sombra aproximou-se de Dom Rafael e fez-lhe uma reve-
rência.
- Saudações, majestade, desculpe-nos pelos péssimos modos, mas
não poderia ser diferente, afinal, será a ultima vez que será chamado por
esse título, Dom Rafael, eu já posso chamá-la de Maria?
- Essa voz? Dom Maximiliano? - Se perguntou Rafael.
O reverendo também retirou a sua máscara, lá estava a pior das
conspirações do império, o ressentimento e a intolerância unidas numa
vingança doentia.
- Eu sempre o considerei um grande canalha, reverendo Maximi-

A princesa dilacerada 157


liano, sua aura nunca me enganou. - Disse Dom Rafael não demonstran-
do nenhum temor.
- Transexual... Certamente será um choque para toda a corte, ain-
da assim, mesmo que Abel tenha mostrado as suas verdades através do
espelho da alma, não foi o suficiente para destruir a sua reputação, mas
hoje é o dia de mudar a história ao nosso favor.
- As suas bromas não me interessam, reverendo, vocês invadiram
o meu palácio e sofrerão as consequências disso, farei que confessem os
seus pecados perante o próprio imperador! - Dom Rafael elevou o seu
braço direito e uma intensa luz emergiu a partir daquele movimento, a sa-
grada cruz de Avís surgiu acima da cabeça do Rei. - Espero que aprendam
a lição e que vigiem os seus pecados. Recebam a penitência da sagrada
cruz de Avís! - Evocou Dom Rafael a intensa energia de fótons  formando
a cruz que subjugaria qualquer pecado. No entanto, ao lançar o poder
contra os seus inimigos, o rei não desconfiou do ardil que o condenaria
ao esquecimento.
O golpe foi refletido contra  Dom Rafael, a cruz de Avís o atingiu
e fez emergir em seu peito uma grande chaga flamejante.
- Não entendo, por que a técnica foi refletida contra mim? - Se
perguntou angustiado.
- Olhe para cima.  - Apontou o reverendo para um conjunto de
espelhos distribuídos por todo o corredor.
- Você se julga tão especial,e no final das contas é um pecador
como outro qualquer, o espelho da alma além de revelar as verdades do
nosso interior, também nos faz cativos dos nossos próprios julgamentos.
Será julgado pela sua própria cruz, agora você fará exatamente o que que-
remos. Agora você é Maria, a luz não te pertence mais, a chaga que arde
em seu peito selou o  dom divino da luz.
A chaga em formato de cruz  ardia como forja em ponto de fusão
no corpo da liberta mulher, mas a que preço?
- O que pretendem fazer? - Perguntou Rafael tomado pela dor da
sua chaga.
- Confesse o seu pecado, priminho. - Sugeriu Abel entoando ódio
em suas palavras.
- Eu não pequei... Apenas escondi a minha condição, sou tran-
sexual, não blasfemei contra o criador, assim ele me fez desde a minha

158 O Divino Leviatã


fundação.
- Não me refiro a isso, você me seduziu, escondeu a sua identida-
de, usou feitiços para me tomar em seus braços... - Disse Abel demons-
trando grande ressentimento.
- Eu apenas não consegui esconder a minha condição, passei a mi-
nha vida toda performando o papel de protetor do Império, o herói sem
máculas casado com a filha do imperador, sou o Rei de São Paulo, eu dilui
todo o meu ser num papel social e esqueci do que realmente sou...
- E o que você é? - Perguntou o Reverendo.
-  Maria... - Respondeu.
O reverendo sorriu, caminhou na direção de Maria e a pegou pelo
pescoço.
- Nada disso me importa, você matará o imperador, e fará isso
contra sua própria vontade.
- E como pretende me obrigar? - Indagou Maria com a fala sufo-
cada.
- Pensei que nunca iria me perguntar.
O Reverendo materializou em sua mão esquerda um verme irrita-
diço e ruidoso de cor pálida que se debatia desordenadamente.
- Que coisa é essa? - Perguntou Abel demonstrando repulsa.
- Esse parasita têm a capacidade de replicar os tecidos cerebrais e
interagir as sinapses, ele está ligado ao meu espírito, então, teremos uma
conexão direta. Uma vez ligado ao seu córtex, você será uma mera mario-
nete das minhas vontades.
- Agora, apressa-te, o imperador precisa morrer o quanto antes.
Ao dizer essas palavras, o Reverendo rasgou o uniforme que ainda
mantinha Maria em sua farsa real. O parasita entrou pelas narinas e alo-
jou-se em seu córtex.
- Não! Por favor, liberte-me disso. - Suplicou Maria.
- Nada pessoal, mocinha, você é apenas uma peça a ser usada para
algo grandioso, se eu não soubesse de quem se trata, certamente a toma-
ria como minha esposa, você seria bem obediente, não é mesmo? Caso
contrário, além de prazer eu te daria uns bons corretivos, você não pode
fazer nada, a não ser matar o imperador, agora, vá de uma vez!
O Reverendo atirou Maria contra os vitrais no centro do corre-
dor que refletiam a luz do luar. Aquele barulho repentino me assustou, e

A princesa dilacerada 159


mesmo grávida de cinco meses e com certas dificuldades de locomoção,
levantei-me e fui até o corredor. Nada encontrei além dos vitrais que-
brados, foi quando os meus olhos detectaram um sombra projetada nos
estilhaços de vidro, olhei para o alto e avistei uma sombra me observando
no que antes era o vitral.
As palavras me abandonaram nesse momento, minha respiração
entrecortava arritimicamente em busca de fôlego, a gravidez deixava-me
fragilizada, antes que eu pudesse interagir com a situação, a sombra desa-
pareceu no rastro do luar.
Percorri por todo o palácio e não encontrei uma pista sequer do
rei que ainda conhecia. Aves de mal presságio circundavam os arredores
do palácio, sentia que algo de muito terrível estava  prestes à acontecer. 

No avançar da madrugada, no Palácio do Planalto, o imperador


ainda estava na sala do trono perdido na solidão dos seus pensamentos,
foi quando sua cadeia de reflexões foi quebrada com uma grande explo-
são nas portas que selavam a sala.
- O que significa isso? Guardas!
Ao ordenar a intervenção de sua segurança pessoal, uma mulher
de vestido vermelho jogou ao chão o corpo sem vida dos dois soldados
que vigiavam a porta.
- Não é possível, quem é você? Ao menos sabe o tipo de afronta
que faz ao Império e ao próprio criador?
- Não me reconhece, imperador? - Perguntou Maria.
Dom Fernando olhou a mulher atentamente em seu semblante, e
espantou-se ao constatar que tratava-se de Dom Rafael, seu sobrinho por
afeto, filho de seu primo, o Duque de Avís.
- Não... Não pode ser... Dom Rafael?  Por que está vestido dessa
forma?
- Não sou essa pessoa que mencionou... O meu nome é Maria e
você vai morrer! - Disse Maria com um semblante frio e um andar pro-
gressivo.
- Então, o espelho da alma é verdadeiro, trata-se realmente de
uma pessoa transexual. - Constatou papai. - Embora, não compreenda o
motivo de querer atentar contra a minha vida, por que?
Maria não respondeu, estava em transe, o parasita agia em seu

160 O Divino Leviatã


cérebro sobre o comando do reverendo.
- Por favor,  pense no seu próximo passo, é um caminho sem volta.
Os apelos de papai foram inúteis, Maria o atacou com um chute
no rosto, papai foi arremessado direto ao seu trono que foi despedaçado.
- O que foi isso? Por acaso enlouqueceu? -  Indignou-se o impera-
dor.
- Você precisa morrer... - Sussurrou Maria que caminhava lenta-
mente na direção de papai para aplicar-lhe o último golpe.
Nesse momento a aura de Maria tornou-se negra e densa.
- Você precisa morrer. - Repetiu o comando.
Maria concentrou em sua mão esquerda uma esfera antimatéria
que possuía um poder gravitacional suficientemente poderoso para des-
materializar a sala, papai apoiava-se numa pilastra, pois tudo era sugado
para o núcleo da esfera.
Quando a opressão tornou-se insustentável, papai não suportou e
foi arrastado, nesse momento, sua vida foi salva por um herói inesperado,
Dom Felipe, Rei de todas as províncias do Rio de Janeiro chega a tempo,
chutou a esfera das mãos de Maria, assim perdendo a sua estabilidade e
dissipando-se por completo.
- Então os rumores são verdadeiros, embora, sempre tenha des-
confiado de sua pose de herói. - Comentou Dom Felipe.
- Não atrapalhe, ou também morrerá. - Assim ameaçou Maria.
- Eu pude sentir a sua aura maligna se aproximando do planalto,
não pense que deixaremos que mate o nosso imperador!
Nesse momento surgem os outros cinco reis que também pressen-
tiram o perigo.
- Então pretendem me enfrentar? - Perguntou Maria.
- Será jogado no lixo da história. - Declarou Dom Felipe que junto
aos outros reis, romperam num feroz combate.
Maria era muito poderosa,  com o poder da mente, os manteve
suspensos no ar.
- Querem mesmo morrer? Atenderei aos seus pedidos.
Inesperadamente, uma terrível dor de cabeça acometeu Maria, o
seu cérebro reagiu ao parasita acoplado no córtex. Dom Felipe e os outros
aproveitaram a oportunidade e atacaram  com rajadas de plasma emergi-
das de suas mãos, cada feixe atravessou o corpo de Maria e a fez perecer

A princesa dilacerada 161


no chão.
Os planos do reverendo e do meu irmão foram frustrados, graças
a incansável vigilância de Dom Felipe, Maria estava entre a vida e a mor-
te, agonizava sobre o banho do próprio sangue, ainda assim, reuniu suas
últimas forças para concentrar outra esfera de energia negativa e desma-
terializar os dois pilares base da sala do trono, assim desmoronando-a por
completo. Maria fugiu para o laboratório secreto do Doutor Heisenberg
nos subterrâneos do palácio, deixando um rastro de sangue para que a
seguissem.
O seu ódio levou até o subsolo B, onde as pesquisas de bio androi-
des, exoesqueletos e armaduras eram desenvolvidas, Maria foi resgatar
a promessa feita por Abel, quando as pesquisas necessitavam da apro-
vação do MP20 (Ministério dos Vinte Principados) e do STR (Supremo
Tribunal Real) o ainda Dom Rafael com o seu prestígio de herói foi de-
terminante para que os recursos fossem direcionados para investimento
de tecnologia bélica, uma promessa em especial foi a incrível armadura
vermelha, à indumentária mecânica, computadorizada, femtotecnologica
e com partículas inteligentes, que podiam ser diluídas em sua medula
espinhal, tanto a parte mecânica quanto o software podiam ser acionados
com o comando do cérebro, e por serem partículas inteligentes, podem se
reagrupar independente dos danos sofridos.
Maria se aproximou da cápsula que guardava à armadura, posi-
cionou o seu olho direito no leitor óptico e a cúpula de vidro foi aberta.
Maria entrou na cápsula e sentou em frente a indumentária vermelha.
Uma interface holográfica surgiu para que o processo de fusão entre Ma-
ria e à armadura fosse realizada.
Ao acionar a interface um líquido de cor vermelha inun-
dou a cápsula, Maria conseguia respirar envolta aquela substância
que não resultava em afogamento, a fusão era perigosa e nunca ti-
nha sido testada até então. A armadura se liquefez e fundiu-se ao cor-
po ferido de Maria, a interface começou a evidenciar a porcentagem
da fusão, quando os números alcançaram 55%, a porta que selava o
laboratório explodiu, entre os detritos e fumaça surgiu um exérci-
to fortemente armado e liderado por Dom Felipe e os outros reis.
Ao perceberem que Maria estava em processo de fusão com à ar-
madura, atiraram contra a cápsula e a destruíram por completo. 

162 O Divino Leviatã


Derrotada, humilhada e nua sobre um chão repleto da substância verme-
lha e aquosa, Maria olhava os seus algozes e suplicava por clemência.
- Por favor, deixe-me ir.
- Um triste fim para um herói do império, morrer humilhado feito
uma mulherzinha, cadê a sua dignidade?  - Perguntou Dom Felipe que
escarnecia da humilhação de seu maior rival.
- Sabe o que é mais triste em você? Nunca será um herói por você
mesmo, precisou fazer a sua carreira as custas da minha desgraça, sempre
será um incapaz. - Logo após  essas palavras, Maria escarrou sangue nas
botas de Dom Felipe.
- Eis ai o batismo moral que merece. - Disse formoseando um
sorriso e fitando a nauseante fidalguia de Dom Felipe.
Foi nesse momento que eu entrei no laboratório e o vi destruído
junto aos escombros de sua imagem, minha intuição me levou ao Palácio
do Planalto, eu senti que o seu desaparecimento naquela noites culmina-
ria naquele momento.
- Dom Rafael... - Sussurrei.
- Eu desconheço essa pessoa. - Respondeu Maria.
- Porque nunca me disse?
- Eu não saberia o que dizer... Jamais escolhi palavras para esse
momento. - Respondeu.
-  Como pôde submeter-se a isso? Tentou matar o meu pai? - As
minhas lágrimas deixaram-me submersa na expectativa de uma resposta
satisfatória do então rei. Tinha que ser algum engano, certamente é outra
das insuportáveis peças de Abel, mas a resposta que obtive, me fez aban-
doná-la...
- Eu não lembro porque atentei contra o seu pai, algo me tomou...
Confundo-me entre existência e essência, sempre acreditei nos planos
divinos para minha vida, minha mente em conflito com a forma e eu
querendo mudar o que sou... Há quem diga que o existir está acima da
essência,  e que essa é construída com o que aprendemos no horizonte
histórico... A questão que dilacera a minha alma é saber em qual pon-
to Deus em sua complexidade determinou a essência Maria na forma de
Dom Rafael? Agora... Se o existir é o fim de todo ser humano livre, em
qual momento Maria nasceu no horizonte histórico e até que ponto ela
pode ser livre na forma de Dom Rafael? O que eu posso dizer é que sou

A princesa dilacerada 163


Maria...
As reflexões de Maria sobre a dualidade de sua nature-
za deixou-me perplexa, não havia nada que eu pudesse dizer, de
forma involuntária, deixei que duas de minhas lágrimas salpicas-
sem seu braço esquerdo, e dei as costas para o seu triste destino. 
Dom Felipe, os cinco reis e muitos dos soldados da divina armada
imperial, apontavam suas armas na direção de Maria, a chama em for-
mato de Cruz inflamava no lado esquerdo de seu peito, aqueles homens
a rondavam, sedentos por morte e impiedades, os exoesqueletos de cor
negra de cada soldado, emitiam um brilho esverdeado que emergiam dos
pés até o canhões de plasma acoplados em seus braços direitos, Maria
sorriu e manteve a sua característica tranquilidade.
- Covardes, precisam de tudo isso para me assassinarem? São to-
dos da mesma corja, você  também tramou contra mim junto ao Reveren-
do Maximiliano e o príncipe Abel, não é mesmo?
- Eu não faço ideia das idiotices que fala, mas a mim não interes-
sa, eu como representante divino do criador e de vossa majestade Dom
Fernando de Versalhes e Bragança,  o condeno a morte baseado no inciso
primeiro do Tríplice Tratado de 15 de novembro de 2022 entre as três
esferas da existência, Paraíso, Terra e Submundo, que deixa evidente que
ataques de qualquer natureza a vossa majestade, deve ser punido com a
morte na terra e condenação na região do tártaro, nas profundezas do
submundo. Algo a declarar antes que a sentença seja executada pelo pe-
lotão imperial? - Perguntou Dom Felipe, demonstrando indiferença ao
destino de Maria.
- Sim, eu tenho algo a dizer...
Lembro de uma transpiração profunda como se um esforço fosse
para segurar o pranto, em seguida deu o seu último brado para o registro
histórico de Dom Rafael de Avís.
- Queimem no inferno!
As suas últimas palavras precederam um ataque furioso de fa-
gulhas de energia escura que atravessaram o corpo de dez soldados que
pereceram no chão, quando foi desferir outro ataque contra os seus ad-
versários, o parasita em seu córtex o imobilizou por completo, assim, os
reis sob o comando de Dom Felipe e parte da dívida armada imperial, dis-
pararam contra Maria os raios de plasma através de seus canhões, assim,

164 O Divino Leviatã


desintegrando-a por completo...
Eu caminhei sem olhar para trás, o choro de amargura por uma
alma que não pude salvar, uma vítima dos ardis malignos do Reveren-
do e de meu irmão, foi exatamente naquele momento que eu conheci o
verdadeiro coração de meu irmão Abel, liguei todos os pontos daquela
triste história, as expressões frias de Abel no meu noivado e casamento, o
ataque que sofri no primeiro de maio, o dia que me abandonou em meio
a zona dos revoltosos e quase morri numa ação intempestiva da divina
armada imperial e a morte de Dom Rafael,  tudo me veio num estalo tão
tardio...
Os dias que sucederam a morte de Maria, foram marcados por
uma campanha suja e difamatória patrocinada por Dom Felipe e todos
os reis e principados do império, o herói nacional foi desconstruído em
todas as mídias existentes, vídeos sobre o atentado ao imperador circula-
vam pelas redes sociais.
Os comentários maldosos de toda a corte brasileira sobre os de-
talhes de nossa vida conjugal e a imaginação sobre as aventuras sexuais
de Maria ultrapassavam até mesmo a perversão do Marquês de Sade. O
plano de unificar os dois ramos da família imperial foi destruído graças
ao ardil de Dom Maximiliano e Abel, embora, o reino de São Paulo ainda
ficou sob a égide da família Avís, a Duquesa Aurora, irmã do falecido
herói Dom Rafael,  foi conclamada rainha numa cerimônia discreta e sem
grandes festejos.
Restou a mim o retorno ao Palácio do Planalto, grávida de um
traidor e desmoralizada perante a todo o império.

Essa foi a sua história, Maria... Realmente eu dei as costas a você... Mas
existe algo que ainda não entendi muito bem, como conseguiu sobrevi-
ver?

A princesa dilacerada 165


EPÍSTOLA
XXII

O cubo de Metatron

-A
s coisas terminaram de uma forma tão trágica, não é
mesmo? - Indagou Vitória que acabara de retornar de
suas lembranças, a princesa tentava encontrar um ras-
tro de humanidade no olhar de Maria, com suas frágeis mãos, amortecia
a pressão causada pela esganadura exercida pelas mãos de Maria.
- Quer saber por que estou viva? Se não fosse a fusão com a in-
dumentária, eu teria morrido, quando o meu corpo foi desintegrado pelo
plasma, as partículas inteligentes da armadura já tinham sido diluídas em
minha medula, recombinou as células e restaurou o meu corpo... Acordei
no subterrâneo da Praça imperial, era a antiga estação república, eu es-
tava confusa e sem memória, apenas sabia o meu nome, Maria... Haviam
outros desabrigados e fugitivos do império, rebeldes de todos os cantos
do Brasil que escolheram não comer do fruto, e assim sobrevivi nesses
últimos dezoito anos.
-  Dezoito anos? - Surpreendeu-se Vitória.
- Ora, pensou mesmo que suas reflexões de alma seriam tratadas
em minutos, horas ou dias?
- Esse é o pior castigo do inferno, privação de tempo, não sabemos
o que se passa na terra...
- Você passou como todas as coisas passam na vida... - Disse Ma-
ria que ao olhar as expressões cadavéricas de Vitória, a jogou nas águas
lodosas do rio da morte. - Me cansei disso tudo, nem mesmo o sofrimen-
to do inferno é um refúgio para refletir, seja lá o que for fazer na terra, não
quero fazer parte disso. Não me procure!
Maria concentrou sua aura vermelha ao redor de seu cor-
po, a chaga da Cruz de Avís em seu peito esquerdo incandes-
ceu, assim rompeu em grande velocidade rumo ao império.  
Sigrid e as outras bruxas aproximaram-se de Vitória e formaram

166 O Divino Leviatã


um círculo sobre ela.
- Princesa, é chegada a hora, não podemos mais perder tempo. -
Preconizou Sigrid.
As bruxas jogaram quatro flores ao chão em posições cardeais, Si-
grid posicionou-se ao norte e declamou o mantra da sagrada flor da vida.
- Hekhalot-Merkabah Adiriron Dapdapiron! “Sagrada flor da vida,
síntese da alma de Metatron, regente da morte e do tempo das coisas,
abra-nos mais uma vez a portal da vida! Metra-tronos!
Uma complexa figura geométrica com treze círculos, 26 linhas e
outras formas cartesianas surgiram do chão emanando uma luz que mes-
clava branco e azul.
- Que poder assombroso. - Impressionou-se Vitória.
Um vórtex surgiu na imensidão do inferno e as elevou até o seu
epicentro. Os demônios e as almas atormentadas surgiram no horizonte
de eventos e foram envolvidos pela intensa gravidade exercida, repenti-
namente, as almas de Vitória, Sigrid e as três bruxas desapareceram do
inferno e foram enviadas para o céu de uma nova alvorada, que se anun-
ciava no dia 5 de janeiro de 2056. Afinal, o que havia de familiar com
aquela tão longínqua?
Dezoito anos se passaram após os eventos que sucederam na
sua morte. Vitória olhava os arredores de uma São Paulo que ela já não
mais conhecia. 
- Esse é o bairro do Ipiranga, aqui as minhas cinzas foram deposi-
tadas. - Comentou Vitória.
- Chegou o momento de cumprir a sua parte, preciso que encon-
tre o meu corpo. - Cobrou Sigrid.
- Você precisa amplificar a sua matéria absorvendo a energia da
cidade, todo portal possui uma fissura, elas se rompem quando estimula-
das por grandes quantidades de energia,  uma vez abertas, um dos portais
irradiará uma grande quantidade de poder, ali estará o corpo de Sigrid
junto cubo de Metatron. - Explicou Constanza, uma das três bruxas que
acompanhava a matriarca dos Andradas.
- E não se esqueça, menina, você têm o potencial de liberar todo o
seu poder, pois não está limitada a carne, o corpo sensível é ilimitado na
manipulação de energia arcana. - Preconizou Marie, a bruxa que segurava
um pequeno cântaro de prata.

A princesa dilacerada 167


- Você consegue. - Incentivou Serafine, a última das feiticeiras que
tinha como destaque, um punhal prateado na mão esquerda e uma franja
negra que cobria os seus olhos, se no inferno as suas almas eram acinzen-
tadas e opacas, impossível distingui-las, no plano terrestre eram figuras
insólitas e temíveis.
Marie juntou suas mãos numa prece e sua pequena alma que an-
tes tinha um brilho pálido, brilhou intensamente ao ponto de ofuscar as
bruxas. Todo pulso eletromagnético daquelas circunvizinhanças foram
atraídas para o corpo de Vitória. Quando a energia atingiu o seu ápice,
Vitória a expandiu para imensidão e as fissuras surgiram. Na direção do
alvorado solar, uma poderosa luz rompeu a fissura, finalmente o corpo de
Sigrid foi descoberto.
As quatro bruxas fitaram-se com sorrisos de satisfação, o corpo
emergiu do portal e ficou suspenso perante elas.
- Vocês sabem o que fazer. - Disse Sigrid.
Constanza, Marie e Serafine uniram-se perante a sua feiticeira
mestra e fundiram-se num ser poderoso. Sigrid entrou em seu corpo e a
luz que a encouraçava dissipou-se por completo. O corpo pousou sobre
as flores que adornavam o jardim do museu do Ipiranga, parecia imersa
num sono profundo e tranquilo.
A respiração suave foi o prelúdio para o abrir de olhos no mundo
dos vivos. O corpo rejuvenesceu, Sigrid aparentava uma jovem de vinte
anos, seus cabelos encarnados eram vibrantes como o fogo, ornamenta-
vam a formosura de seu rosto redondo,  salpicado de sardas e natural-
mente ruborizado, seus lábios tinham um formato de coração e pincela-
dos por um rosê suave.
- Há quanto tempo fui privada de tudo isso?  Finalmente eu vol-
tei.- Disse Sigrid olhando a imensidão e deitada sobre a grama.
- Cumpri a minha parte do acordo, agora é a sua vez. - Intimou
Vitória.
Sigrid sorriu:
- É justo, mesmo unida a Constanza, Marie e Serafine, não tenho
o potencial para usar o cubo de Metatron, é um poder complexo e divino
que talvez apenas você possa usar.
Sigrid levitou na direção da alma de Vitória que estava suspensa
nos céus e fez surgir em sua mão esquerda, o cubo de Metatron era um

168 O Divino Leviatã


objeto que oscilava entre matéria e vibração, uma fusão de brilho e resso-
nância emitia um som constante em lá maior, o seu cintilar assemelhava-
-se ao padrão de uma estrela de nêutrons.
- Esse cubo tem o poder de mover energias em nível quântico, e
isso,  não é nem uma terça parte do seu potencial. - Explicou Sigrid.
- E como eu posso ativar os poderes do cubo? - Perguntou a prin-
cesa.
- Antes de tudo você deve lembrar que o cubo não é um objeto
qualquer, ele possui parte da alma de Metatron, existe vida pulsando den-
tro desse cubo, e o seu corpo facilmente será restaurado. Existe o prin-
cípio do entrelaçamento quântico, as partículas que um dia formaram o
seu corpo foram espalhadas pela terra ou uniram-se a outro ser vivo desse
planeta, pois na natureza nada é exterminado de fato, tudo é transforma-
do, por isso as bruxas veneram tanto a natureza, ela é a mãe de todas as
feiticeiras. O elétron também pode mover-se em dois lugares ao mesmo
tempo, várias de suas partículas podem ser formadoras de outros seres ou
até objetos. Nesse caso o cubo encontrará a cópia desse elétron em outro
espaço e o reagrupará em seu corpo, apenas peça ao cubo, ele mapeará a
sua alma, e assim a magia começa.
O cubo intensificou o seu brilho e num impulso, Vitória o soltou.
A Flor da Vida tal qual foi decantado pelas bruxas, flutuou sobre a cabeça
de Vitória hora vibrando, hora forjando-se em matéria.
- Faça o seu pedido, princesa. - Insistiu Sigrid.
- Metatron, restaure o meu corpo, me dê a oportunidade de fazer
justiça contra aqueles que me destruíram e ainda se escondem nas som-
bras de seus ardis e traições. Devolva-me a vida que tão covardemente me
tiraram. Eu suplico, flor da vida!
Nesse instante, o cubo fundiu-se ao núcleo da alma de Vitória e
as suas partículas que foram espalhadas aos quatro cantos do Brasil, uni-
ram-se mais uma vez ao corpo que um dia constituíram.
- Isso é incrível! - Impressionou-se Vitória.
- Espero que consiga atingir os seus objetivos, princesa, mesmo
porque, o meu grande sonho depende disso... - Sigrid forjou-se em péta-
las de rosas negras que, perdidas ao vento, deixou um suave aroma.

A princesa dilacerada 169


As partículas colidiam no invólucro do corpo sensível,  as lem-
branças dos seus últimos dias mais uma vez se inflamaram.

170 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XXIII

^
Escandalo '
no Imperio

E
u lembro... Duas semanas haviam se passado após a morte
de Dom Rafael. Eu lembro... Que vergonha... Foi o que sen-
ti... Os olhares de constrangimento da corte, da imprensa,
dos serviçais do palácio, fuzilavam-me com seus julgamentos, todos os
flashes dos paparazzos, a intransigência dos repórteres, os sorrisos debo-
chados daqueles que um dia me abraçaram com seus punhais escondi-
dos, estava em casa, no palco dos fingimentos e no teatro das aparências!
Aqueles que comeram do fruto da Ninrode, mortificaram os seus livres
arbítrios, hoje não me soam como santos, parecem escravos divinos de
um Deus e suas providências divinas.
Fechei-me em meus aposentos, no quarto que foi eleito o meu sar-
cófago. Papai e mamãe respeitaram o meu silêncio, não me procuraram
até que eu me sentisse bem, longas foram as noites, breve era a minha paz
de espírito, apenas meu pequenino filho e eu... Os seus movimentos em
meu útero, os chutes esporádicos e a minha imaginação ao tentar des-
vendar os mistérios de sua fisionomia, com quem ele parece? Puxou os
meus traços? Têm a personalidade de seu falecido pai? Em qual momento
falarei de todas essas situações que ocorreram antes do seu nascimento? 
O filho de um traidor com uma princesa humilhada e condenada em suas
masmorras existenciais, embora, o destino reservasse outros planos.
O módulo de comunicação do meu quarto foi acionado, um suave
sinal monofônico e linear, seguido da holografia de Kadu, ainda com o
seu disfarce de Dr Heisenberg.
- Vitória, desculpe a minha ausência nesse momento tão difícil de
sua vida, pensei que seria melhor deixá-la só por algum tempo.
- Eu sinto tanta vergonha, simplesmente não entendo, meu pe-
quenino crescerá com o peso de ter um pai traidor, foi tudo tão rápido...
Os acontecimentos fugiram do meu controle, não pude salvar Dom Ra-
fael ou seja lá o que ele era. Assim lamentei deitada sobre a minha cama e
A princesa dilacerada 171
coberta por um simples lençol branco.
- Você não têm culpa, talvez nem mesmo Dom Rafael a tenha, era
a sua natureza. - Comentou Kadu.
- Maria... Esse era o seu verdadeiro nome. - O corrigi.
- Eu apenas liguei para prestar os meus pêsames e tratar de um
assunto muito delicado. - Disse Kadu entoando e expressando uma pro-
funda angústia.
- Seja qual for o assunto, não deve ser mais grave do que passei
nos últimos tempos. - Eu disse.
- Vitória, temo que a sua vida corra um grande risco. Existem in-
teresses pela sua morte, são as mesmas pessoas que vitimaram Dom Ra-
fael.
- Querem me matar? E quem teria esse interesse? Quem ousaria
promover um atentado contra a família imperial? - Indaguei-lhe.
- Intimamente você sabe de quem se trata... Seu irmão foi deter-
minante para o assassinato do rei, e ele não está sozinho,  o reverendo o
apoia incondicionalmente.
- Você sabe que essa é uma acusação muito grave, não podemos
inferir sobre  a moral do príncipe e do sumo sacerdote sem apresentar
provas. - Assim o alertei na tentativa de manter as minhas aparências.
- Não é o momento para se esconder em diplomacias, prince-
sa, você já teve amostras do caráter do seu irmão, quase perdeu a vida por
duas vezes, a união entre os dois ramos da família Bragança frustrou os
planos de Abel, ele pensava em herdar naturalmente o trono,  mas... Como
você mesmo sabe, o imperador sempre desaprovou o príncipe, nunca foi
afeito as suas extravagâncias e falhas de caráter.
- E como descobriu essas coisas? - Perguntei.
- Abel se utiliza da tecnologia que eu criei, mas esquece que eu
conheço todos os protocolos do programa “Olho de Deus”, e é claro que é
do meu interesse saber de tudo o que acontece. Há meses que sigo os pas-
sos desses dois miseráveis, eles mataram o rei, agora querem você,  isso eu
não vou permitir. - Assim me respondeu Kadu. - Para mais detalhes, peço
que seja o mais discreta possível e me encontre no hotel Empire, amanhã
no começo da tarde, até lá, cuide-se bem. - Assim Kadu encerrou o seu
contato e sua imagem holográfica dissipou-se em pixels espalhados pelo
quarto.

172 O Divino Leviatã


A noite avançou no ritmo de meu anseio, pouco notei os acon-
tecimentos da manhã do dia seguinte. Dado o horário, despistei minha
guardiã e fui ter com Kadu no hotel Empire, numa conversa com poucas
palavras, embora repleta de intensidades, tive uma das piores confirma-
ções da minha vida: Kadu me revelou conversas gravadas entre o reveren-
do Maximiliano e Abel, tudo interceptado de forma ilegal, um escândalo
que abalaria as estruturas do império.
Num quarto acanhado e discreto, Kadu estava acomodado numa
cadeira de mogno envernizada, seu olhar direcionava-se num plano bai-
xo, pernas levemente abertas e os pés paralelos, quando percebeu a minha
aproximação, ergueu a sobrancelha e fitou-me de baixo para cima.
- Vitoria... - Ele sussurrou. Kadu segurava em sua mão direita um
pequeno dispositivo e o pressionou. - Apenas escute...
O quarto possuía uma tecnologia integrada com o sistema “Olho
de Deus” , ambientado para qualquer frequência de som.
-O que eu tenho aqui vai mudar a história do império, eu lamento
muito pelo que vai ouvir.
Kadu manuseou o dispositivo e a primeira escuta começou:

Maximiliano: - Preste atenção, o Primeiro de Maio é uma data per-


feita, exatamente por não ser muito emblemática, chama pouca atenção, o
ataque precisa ser hoje.
Abel: - Eu não sei, não estou seguro.
Maximiliano: - Homens em sua posição não podem hesitar, observe
bem o que está em jogo, é o plano de Deus, o seu pai está mudando o curso
natural da providência divida do criador, para unir os dois ramos da famí-
lia imperial.
Abel: - O que pretende fazer?
Maximiliano: - Eu tenho um grupo de mercenários que agem nos
bastidores da  armada imperial, farão o serviço.
Abel: - Enquanto a Dom Rafael?
Maximiliano: - Eu ainda não descobri um ponto fraco relevante,
por hora vamos seguir com o plano, Vitória morre hoje, terá um enterro
digno e entrará para a história, acredite, é a vontade de Deus, eu sou o pro-
feta Samuel e você é Davi, veja as coisas dessa forma, Deus já agiu assim no
passado.

A princesa dilacerada 173


Abel - Mantenha-me informado, preciso desligar.
O príncipe Abel encerrou o contato.

Um toque monofônico direcionou a gravação para segunda escuta.


Abel entre em contato com Maximiliano para arquitetar a segunda
tentativa de assassinato.
Abel: - Reverendo, antes de mais nada, só preciso tranquilizá-lo so-
bre as nossas conversas, estamos numa linha segura, o tráfego das nossas
ligações são desviados para uma ERB (estação rádio base) particular,  e a
central que organiza esses contatos fica no meu quarto, não há com o que se
preocupar.
Maximiliano: - Perfeito, assim é bem melhor, você me disse na ceri-
mônia no Palácio do Planalto que tinha um plano, do que se trata?
Abel: - Eu percebi algo muito importante sobre a Vitória, ela tem
uma preocupação toda especia com o marginalizados, eu me aproximei
dela e a convidei para uma aventura entre irmãos na zona neutra.
Maximiliano: - E o que pretende fazer?
Abel: - O meu pretexto foi que tivéssemos uma aventura juntos para
relembrarmos os velhos tempos, sabe? Ela é nostálgica e apegada ao pas-
sado, viajaremos por aquele lixo que é o gasômetro, manteremos a nossa
presença invisível até certo ponto.
Maximiliano: - Hum... Como assim? Ainda não entendi o seu pla-
no.
Abel: - É muito simples, Reverendo, eu vou enviar os soldados bio
androides para o toque de recolher na zona dos refugiados, em especial no
Gasômetro, eu os programei para receberem as minhas ordens, apaguei de
seus bancos de dados a memória visual de Vitória, não conseguirão realizar
o reconhecimento, assim minha querida irmãzinha morrerá junto com os
outros lixos pecadores.
Maximiliano: - A ideia me soa razoável, esses androides foram de-
senvolvidos com os investimentos aprovados pelo STR, não foi?
Abel: - Sim, são corpos de soldados que perderam suas vidas em
guerras passadas, aproveitamos o estado físico bem desenvolvido para oti-
mizá-los, são bestas lógicas, sem nenhum tipo de sentimento. Assim que
chegarem no gasômetro, entrarão em contato comigo e eu darei um jeito de
desaparecer e deixar a minha irmãzinha visível para a guarnição.

174 O Divino Leviatã


Maximiliano: - Perfeito, me avise quando a missão for concluída.
O reverendo encerra o contato, novamente o sinal monofônico
direciona a terceira gravação.

Soldado: - Príncipe Abel, estamos a caminho do local estipulado,


quais são as coordenadas?
Abel- 23,5445, 46,623.
Soldado: - Entendido, cumpriremos a missão.
O soldado encerrou o contato. 

Nesse momento eu tive um estalo.


- Eu agora me recordo que Abel comunicou aqueles números pau-
sadamente para que a pessoa do outro lado anotasse. - Relembrou Vitória.
- Sim, e observe bem os números, são coordenadas de latitude e
longitude, isso explica o porquê do seu irmão desaparecer logo após falar
os números, ele entregou a sua posição.
- Maldito, eu jamais  imaginaria que o meu próprio irmão fosse
capaz de tamanha crueldade!
- E isso não é o pior... Esses dois canalhas foram os responsáveis
pela morte de Dom Rafael!
- Maria... Chame-a por Maria. - Corrigiu Vitória.
- Ainda assim, escute... - Sugeriu Kadu. - As gravações seguintes
só reforçaram o que eu custei a entender, Abel tentou me matar e, junto
ao reverendo, destruíram Maria.
Kadu acessou a interface de sua nuvem de dados utilizando-se
da tecnologia gestual, separou a pasta e enviou para o meu módulo de
comunicação acoplado ao meu anel no anelar da mão esquerda. - Vá até
o conselho de principados e no STR, precisamos desmascarar esses dois
canalhas.
Kadu valorizou cada palavra, o seu lamento pela morte de Ma-
ria era sincero, estava disposto a destruir o meu irmão e o reverendo,
enquanto a mim, ainda era difícil conceber a ideia de ter Abel como um
inimigo para toda a vida.

Passado aquele dia, decidi que aquelas escutas deveriam cair nas
mãos da figura mais intempestiva e ávido cumpridor das leis de todo im-

A princesa dilacerada 175


pério, o Rei Dom Felipe do Rio de Janeiro, mesmo que na ocasião eu
ainda nutrisse um profundo ódio por ele ter sido o responsável pela mor-
te do meu marido, eu precisava pensar racionalmente,  mesmo porque,
Felipe é apenas um tolo sem visão que segue as leis a risca sem questionar, 
porém,  a pessoa mais íntegra de todo o império, fui ao seu encontro no
palácio da Guanabara.
Uma estrutura revestida de prata e adornada por raízes e plan-
tas verdes que envolvem as pilastras de sustentação, assemelha-se a
um castelo medieval com um pequeno fosso e adaptações modernas.
Os Palácios dos reis eram a síntese de suas almas, no caso de Dom Felipe,
a sua forma antiquada de ver a vida era o reflexo do seu palácio.
Entrei na imponente e bela edificação sob a rígida vigilância de
seus soldados, levaram-me até os fundos do salão principal, passando por
uma pequena bifurcação, cheguei ao famoso Jardim botânico, onde Dom
Felipe resgatou parte do viridário destruído na guerra civil brasileira e o
transformou em seu quintal particular. Haviam pessoas de todas as par-
tes andando pelo jardim, pequenos animais silvestres e aves numa inte-
ressante diversidade, havia também um lago de águas verdes e vitórias
régias contribuindo com o seu conjunto de belezas. Ao centro das águas
de mansas correntes, um estranho objeto flutuava, tinha um formato de
disco, apresentava uma cor negra e uma superfície aparentemente fina,
a insólita estrutura sustentava um grande trono de madeira muito bem
envernizado, sentado sobre ele estava Dom Felipe.
- Por favor, princesa, o Rei aguarda com anseio a sua presença. -  
Disse um dos soldados que me conduziu até um disco da mes-
ma natureza que sustentava o firmamento de Dom Felipe, po-
rem, apresentava um diâmetro menor, cabia apenas os meus pés. 
O princípio daquele disco funcionava como um skate que operava através
do nosso campo eletromagnético combinado com a energia solar. Rapi-
damente cheguei na presença de Dom Felipe e o saudei com todo o ceri-
monial que lhe cabia.
A princípio, Felipe manteve-se sobre o trono, fitando-me com
desconfiança, trajava uma túnica azul clara e um medalhão prata com
uma estrela de esmeralda.
- Princesa Vitória, confesso que você era a ultima pessoa que eu
imaginei receber em meu palácio, ainda mais com os últimos aconteci-

176 O Divino Leviatã


mentos.
- Não por isso, rei Dom Felipe, infelizmente, tristes circunstâncias
o levou a cumprir o seu chamado, protegeu os interesses do Império. -
Assim eu disse na tentativa de ganhar sua confiança.
- Fico feliz por interpretar os fatos a esse modo, princesa, embora
eu creia que a sua visita tem um objetivo mais complexo, não é mesmo?
-  Indagou-me Felipe. 
- De todos os reis desse grandioso império, você é o mais justo e
austero, o motivo de minha visita começa pela palavra confiança, preciso
confiar a você um dos maiores escândalos desse império.
Prontamente Dom Felipe interessou-se pela minha introdução e
demonstrou isso com um sorriso.
- Sou todo ouvidos, princesa, espero que aproveite a vista, todo
esse paraíso emergiu de uma pequena árvore que restou do antigo jardim
botânico, a natureza aquieta o meu espírito.
Dom Felipe acionou o seu medalhão de prata e recebeu direto da
minha nuvem os áudios gravados por Kadu. Suas expressões mudavam
de acordo com os fatos que eram revelados pelo grampo telefônico, a sua
sede por justiça atingiu o seu ápice quando a trama para destruir a repu-
tação do meu marido foi confessada por Maximiliano e Abel, não haviam
dúvidas sobre a índole desses dois miseráveis.
Ao finalizar os áudios, pude notar uma expressão que mes-
clava ódio com um profundo arrependimento, o sangue de Ma-
ria manchava a sua consciência, a justiça perfeita da qual tanto se
orgulhava, era falha, Dom Felipe percebeu o quanto foi tolo e mani-
pulável, o seu orgulho foi ferido e ele precisava fazer algo respeito. 
Ele não proferiu uma única palavra em minha presença, fitava o vazio
num plano baixo e com um semblante austero, o deixei com os seus con-
flitos internos e voltei para Brasília, agora era questão de tempo a verdade
correr por todo o império.

A princesa dilacerada 177


EPÍSTOLA
XXIV

~ de Kadu
A traicao
'

D
om Felipe levou as provas para o supremo tribunal real,
não havia mais volta, os meus inimigos já estavam de-
clarados, não tardou para que as escutas fossem vazadas
para a imprensa, a família imperial encarava o seu grande escândalo.
Fui convidada a depor no STR, fiquei frente a frente com a Abel e
Maximiliano. Os seus olhares não fugiam de mim, pareciam tranquilos e
prontos para um revide.
Naturalmente negaram todas as acusações,  um julgamento de
quase quatorze horas que parecia não afetá-los, hora ou outra,  Abel co-
mentava algo nos ouvidos de Maximiliano, que sorria discretamente sem
tirar os olhos de mim.
O longo depoimento dos réus terminou precedido por uma inten-
sa sabatina da imprensa. Maximiliano fechou-se em seu hábito episcopal
negro e passou rapidamente pelos repórteres sem ao menos se pronun-
ciar, ao contrário de Abel que tinha uma imagem a zelar e um teatro a
fazer, ainda assim, tudo calculado e sem exageros cênicos.
- Príncipe Abel! Essa é a primeira grande crise encarada pela fa-
mília imperial brasileira, sua voz aparece nas escutas tramando o assassi-
nato de sua irmã e do falecido rei de São Paulo, Dom Rafael, mesmo com
uma prova tão contundente, como pretende fundamentar a sua defesa?
- Perguntou o repórter.
- Minha defesa está mais que estruturada, toda essa situação é um
grande mal entendido, se houve uma escuta interceptada, o nome disso
é  grampo, sem uma autorização judicial é crime, logo,  todo esse julga-
mento é ilegal por quebrar o meu sigilo.
- Príncipe! Por Gentileza! Sou a Mônica Bridi do Tribuna Paulis-
tana. - Anunciou-se a jornalista. - Nessa seara de denúncias contra vossa
alteza, destaca-se também a denúncia do tesouro imperial por usar verbas
sem licitação para o desenvolvimento bélico da divina armada imperial e
178 O Divino Leviatã
do projeto Olho de Deus, o que tem a declarar, Príncipe Abel?
- Me faltam palavras para expressar esse momento, mas o que
posso falar é que toda essa situação é uma pantomima, uma patuscada!
Sinto também que a sua pergunta está viciada, pois não existe processo
formal, tão pouco uma condenação a minha pessoa, repudio essa pergun-
ta com toda a veemência da minha alma, se houve superfaturamento, não
foi da minha parte, não admito que o meu nome seja ventilado em atos
cometidos por terceiros, é um absurdo o que acontece nesse país. - Res-
pondeu Abel visivelmente alterado.
- Majestade! Permita-me a palavra, Sou o Carlos Munhoz do
Jornal do Alvorada, com essas denúncias, você acredita que o STR pode
considerar que o Reverendo Maximiliano criou uma máfia para destruir
reputações com o intuito  que a vossa majestade assumisse o trono com
uma participação maior do clero? - Indagou o jornalista.
- Esse é um outro devaneio de minha irmã e das forças obscuras
que a manipulam. O reverendo é um homem devoto em salvar almas, in-
clusive faz um ótimo trabalho no submundo, dando esperanças aos con-
denados. É um absurdo pegarem uma conversa sem nenhum contexto,
conjecturarem sobre a minha moral e me demonizarem como se eu fosse
um psicopata, não aceito! - Rebateu.
- Príncipe Abel, você planejou o assassinato de  Dom Rafael? -
Perguntou uma voz abafada na sabatina dos repórteres.
- Sua pergunta não merece resposta.
Abel simplesmente deu as costas aos repórteres e caminhou rapi-
damente para um carro preto e deixou as dependências do STR escoltado
por outros carros da segurança imperial.
Os jornalistas também foram em busca do meu pronunciamen-
to, mas a pedido do imperador, um forte esquema de segurança foi cria-
do, o prédio foi esvaziado e só assim deixei as dependências do STR. 

No dia seguinte eu acordei próximo das onze horas,  depois de


uma noite que custei a dormir devido aos desdobramentos da fase de
depoimentos do STR e também pela gravidez que me acometera em
profundas dores já nesse quinto mês, ainda fechada em meus lençóis
e perdida em bocejos, sou alvejada pela voz de Valéria, que arrebatou-
-me da paz e deixou o meu estado de espírito em profunda perturbação. 

A princesa dilacerada 179


- Princesa! Princesa! Sintonize a transmissão ao vivo do STR, por
favor! É urgente! - Disse Valéria que gesticulava freneticamente e me fita-
va com olhos de espanto.
- Acionar tela holográfica. - Assim eu enviei o comando de voz
para o sistema integrado de tecnologia do meu quarto.
Quando sintonizei no canal do STR, logo me deparei com Kadu
numa coletiva de imprensa ao lado do meu irmão, em seguida Dom Feli-
pe se pronunciou.
- Sr Andrey Heisenberg, devo lembrar que o senhor está sob ju-
ramento perante o supremo tribunal real, o qual está abaixo apenas do
grande imperador Dom Fernando. - Preconizo que fale apenas a verdade,
caso o seu depoimento não corresponda com os fatos, sofrerá as sanções
previstas no Código Imperial de 1 de dezembro de 2022. Você tem a pa-
lavra, Doutor Heisenberg.
Aquilo era incompreensível, não havia motivos para Kadu estar
naquele lugar, afinal, ele me confiou segredo da autoria das escutas. Suas
primeiras palavras foram devastadoras.
- Vossa majestade Rei Dom Felipe e membros desse tribunal, tal-
vez a melhor forma de começar um depoimento é revelar a maior das
mentiras, o meu nome não é Andrey Heisenberg, sou Carlos Eduardo de
Andradas, irmão do Ex-presidente morto em combate, William Andra-
das.
O público presente e os jornalistas se manifestaram com surpresa
perante a revelação.
- Sim, eu criei esse personagem para me vingar da família impe-
rial, todas as minhas ações me levaram até esse momento,  enganei a prin-
cesa, tramei a morte de Dom Rafael e culpei o príncipe Abel e o reverendo
Maximiliano com escutas fraudulentas.
Outra vez o público se manifestou com perplexidade diante as pa-
lavras do agora desvendado Kadu.
- O Sr Carlos Eduardo Andradas sabe muito bem as impli-
cações legais dos seus atos, lembrando a esse tribunal que o nosso de-
poente, agora na qualidade de réu,  já era procurado por  todo o impé-
rio acusado pelo crime de terrorismo e conspiração contra o Brasil.
Cabe a esse tribunal cumprir com a punição já estabelecida a Kadu...
Um silêncio sepulcral tomou conta do STR, até que a derradeira

180 O Divino Leviatã


providência foi anunciada por Dom Felipe.
- A morte!
Aquela sentença declarada só me fez ter uma reação, desli-
guei a tela holográfica, fechei-me em pensamentos difusos e olhares
que ricocheteavam o chão, a luz do sol invadia o meu quarto através
de uma janela circular, eram oito minutos até que os raios da estre-
la da manhã atingissem o meu corpo, o mesmo tempo que eu precisa-
va para chegar ao STR e tentar um confronto com Kadu, eu não havia
entendido aquela traição, precisava compreender o porquê daquilo.
Levantei-me da cama, apanhei uma túnica branca e minhas san-
dálias de um pequeno closet, acionei a interface da minha nuvem gestu-
almente e escolhi o aplicativo de minha roupa, através dele posso mani-
pular a cor, escolhi o azul por essa cor me conectar a memórias afetivas,
selecionei um colar de pérolas que se materializou em meu pescoço.
- O que vai fazer, princesa?
Deixei a pergunta de Valéria sem uma resposta e rompi numa in-
vestida pelos corredores do palácio, cruzei o salão principal e cheguei até
um dos carros oficiais estacionados em frente aos três anjos de mármore
que mantinham toda aquela estrutura suspensa através da energia eletro-
magnética exercida.
Entrei no veículo e pedi ao motorista que me levasse ao STR, Va-
léria chegou logo em seguida e sentou ao meu lado.
- Não vou perdê-la de vista, princesa, nunca se sabe o que encon-
traremos por lá.
O carro fechou automaticamente e partirmos para o STR, sem
que eu me desse conta, já estávamos em frente ao tribunal, abri a porta
do carro e sem cerimônias, corri até a seção em julgamento. Deparei-me
com uma multidão que cercava Kadu, uma malta de repórteres e curiosos
formavam uma couraça que o impedia de qualquer movimento.
Me aproximei do tumulto e logo fui alvejada pela imprensa, por
mais que Valéria tentasse impedir que os jornalistas me sabatinassem, era
uma tarefa impossível.
As perguntas pipocavam ao meu redor, mas as expressões de cul-
pa eram o que os meus olhos procuravam em Kadu,  houve o momento
que a multidão dispersou, ficamos frente a frente.
- Me perdoe, Vitória. - Ele Suplicou. - Tudo será explicado, confie

A princesa dilacerada 181


em mim, eu só quis o melhor para a minha família.
- Eu não entendo, por que me traiu?
Ele apenas abaixou a cabeça e seguiu escoltado por uma pequena
guarnição da Divina armada imperial, que o conduziria para reclusão. 
Um olhar desolador era o que eu podia transmitir, não haviam forças
interior para manter as aparências.
Nesse momento chegam, Dom Felipe, a rainha Aurora de Avís e
meu irmão, o príncipe imperial Abel.
- Princesa Vitória, o que faz aqui? Recomendo que volte para o
palácio junto ao imperador, você está grávida de um herdeiro do trono, se
ficar exposta ao público, corre o risco de sofrer um atentado dos inimigos
do Império, muito me admira a sua guardiã não ter avaliado esse perigo,
talvez precise repensar a sua segurança. - Sugeriu Dom Felipe.
Valéria imediatamente fechou o seu semblante, embora tenha
mantido o seu silêncio com os punhos cerrados e postura imponente.
- Dom Felipe, peço que guarde as suas sugestões para você, sei
cuidar muito bem de mim. - Respondi com aspereza, embora pessoal-
mente, Dom Felipe sempre me tratou com os devidos protocolos e  reve-
rência.
- Queira me desculpar, princesa, não foi a minha intenção. - Feli-
pe se desculpou um tanto desconcertado.
- O que pretende com tudo isso, Vitória? - Perguntou a Rainha
Aurora.
- Ora! Não é óbvio para você? Maria foi covardemente julgada e
morta por um tribunal cruel e desumano, estou aqui em memória dela. -
Justifiquei.
- Maria? Quem é essa pessoa? Eu tive um irmão que traiu a famí-
lia, o Império e a próprio criador, alguém que sempre mentiu para mim...
E o nome desse desgraçado é Rafael! - Assim a rainha Aurora de Avís se
impôs contra as minhas intenções, as memórias de uma lendária figura
do império, o qual ela muito amou, são os fantasmas que ela deseja exor-
cizar. - Esqueça o meu irmão, princesa, ele morreu e pagará pelos peca-
dos, eu e minha família estamos seguindo, faça o mesmo.
Assim a rainha de São Paulo deu as costas a mim e aos demais e
entrou num automóvel branco com o brasão azul claro da cruz de Avís.
- Perdoe-me, princesa. Pessoalmente eu tenho muitos motivos

182 O Divino Leviatã


para desconfiar daqueles dois, mas com a confissão de Kadu, pouco posso
fazer a não ser aplicar a lei.
Lamentou Dom Felipe que me observou por uns dez segun-
dos e despediu-se com um discreto aceno de cabeça. Naquele mo-
mento eu percebi que estava sozinha e não podia confiar em ninguém.
A minha angústia era a antessala do ódio que estava prestes a romper a
barreira, a justiça muito longe de minhas mãos me frustrava, havia perdi-
do as esperanças, foi quando o inevitável encontro com Abel aconteceu.
-Há quem diga que a justiça é uma questão moral...Isso é uma
grande besteira, irmãzinha. - Surge a imagem holográfica de Abel, tra-
java um fino terno escuro e dreads presos. - Justiça é a defesa do poder
estabelecido, não passa por uma questão moral, é apenas punição para os
indesejáveis, o tempo os determina conforme o contexto histórico. E hoje,
querida irmã, é conveniente a justiça defender o meu poder e eliminar to-
dos os inimigos que atentam contra mim. Espero que esteja ao meu lado,
Vitória... Veja o que aconteceu com  Kadu e Dom Rafael, eliminados por
entrarem no caminho... Vou encarar tudo o que ocorreu com a gente, como 
um grande mal entendido, espero não ter mais problemas com você, ir-
mãzinha.
Assim disse Abel com a sua característica ironia e sorriso estático,
por um momento eu pensei em deixar as coisas seguirem o seu curso na-
tural, aceitar a concepção de justiça de meu irmão e fechar os meus olhos
para a realidade, mas depois de tudo que vivenciei com os marginalizados
e pecadores, eu não poderia ignorar.
Havia algo na traição de Kadu que eu estava disposta a descobrir, 
e faria isso a qualquer custo.

A princesa dilacerada 183


EPÍSTOLA
XXV

O audacioso resgate

V
ejo três cartas de tarô dispostas num jardim de ro-
sas mortas... Um valete de ouros, a  justiça e as bigas...
O que essas lâminas podem representar juntas? Quem é
essa menina que caminha sobre um tapete de pétalas apodrecidas?

As árvores secas a escoltavam para os portões da CIRB1 (Centro


imperial de reclusão Brasília 1), o destino de todos os presos políticos do
Brasil. Essa é a pequena Lucia...
A menina que salvei no Gasômetro, o que ela faz num lugar tão
inóspito? Eu confesso que tive dificuldades para associá-la com aquele
cenário, até as três cartas dispostas no chão começarem a flutuar com as
figuras arcanas em evidência.
- Cícero? É você? - Perguntou Lucia que assistia as lâminas dança-
rem no ar, sem esboçar medo ou surpresa.
O corpo de Cícero, uma das lideranças insurgentes contra o impé-
rio, materializou-se frente a Lúcia, ele usava a sua famosa luva de Arqui-
medes, segurando as três cartas.
- Hum... Então as cartas nos favorecem, não é mesmo? As bigas
trazem a justiça para o valoroso homem. Somos os instrumentos do des-
tino de Kadu... - Ao revelar o significado das cartas, Cícero usou a luva
para evaporá-las, as pequenas partículas serpentearam com o vento e en-
traram entre as grades dos portões do presídio. - Você conseguiu identifi-
car o setor no qual o Kadu foi preso?
Os olhos de Lúcia tomaram uma coloração vermelha  bem inten-
sa.
- Olhe diretamente os meus olhos. - Pediu a pequenina.
Ao fitar os olhos de Lúcia por alguns segundos, Cícero recebeu
informações de toda a estrutura do centro prisional, Kadu foi aprisionado
no subsolo 5, lugar reservado para todos aqueles com potencial de pro-
184 O Divino Leviatã
porcionar revoltas sociais.
- As cartas falam algo sobre o nosso destino? - Perguntou Cícero.
- Se você quer saber se algo mudou em nosso futuro, a resposta é
não... Tudo permanece da mesma forma. - Respondeu Lúcia.
- Entendo, ainda assim, obrigado. Seu poder em muito nos aju-
dou. Agora deixe o restante por nossa conta.
Assim gentilmente agradeceu Cícero, que acio-
nou a luva de Arquimedes, digitando um comando que emitiu 
uma vibração energética de cor avermelhada, logo em seguida, três ho-
mens com uniformes negros surgiram entre as árvores mortas armados
com espadas, AK-47 e exoesqueletos.
Os três homens juntaram suas mãos numa forma de prece, fa-
zendo emergir uma manta áurica de cor azulada, dado o momento, as
energias se entrelaçaram formando um campo de força.
- Fique dentro da nossa proteção, Lúcia, digo o mesmo a você,
Cicero. Sugeriu um dos homens.
- Venha comigo, querida, prometo que não vai demorar. - Assim
disse Cícero, que estendeu sua mão esquerda e conduziu a pequenina
para junto dos três combatentes. - Estão prontos?
Todos acenaram positivamente com a cabeça, ao passo que se
aproximavam dos portões de entrada do presídio. Um soldado imperial
observava Cícero, Lúcia e os combatentes se aproximarem e deu-lhes um
aviso ameaçador.
- Afastem-se daqui!  O trânsito de civis é proibido nesse setor, se
derem mais um passo, tenho à autorização do próprio imperador para
executá-los.
Cícero não respondeu às advertências e concentrou em sua luva
uma grande quantidade de energia, disparando um pulso voltaico que
fez cair por terra os portões e a guarita do presídio. Os soldados impe-
riais que protegiam aquela estrutura,  foram derrotados com facilidade.
No subsolo cinco, libertaram Kadu e os outros presos políticos, um dos
resgates mais ousados da história do Brasil, a guerra era inevitável, os reis
foram afrontados e o clero desmoralizado.
Era tempo de julgamento, as realidades foram distorcidas de tal
forma, que a profanação refletia o sacro, o louco estava prestes a comple-
tar a sua jornada e se transformar no mago, as coisas se transmutaram, os

A princesa dilacerada 185


quatro elementos estavam equilibrados e só restava uma missão a Kadu...

Eu caminhava sozinha e escondida nas sombras das árvores do


Jardim da Criação, não havia chegado ao meu conhecimento os fatos
ocorridos no CIRB1, não me recordo com detalhes o que se passava pela
minha mente naquele momento, mas eu estava apreensiva, caminhava
sem medir os passos, com os pés descalços esmagava as amoras no chão,
as bordas do vestido branco manchavam-se com seu suco, era o rito que
fazia para a minha mente viajar. Por um instante os meus olhos buscaram
por Valéria que sempre vigiava a minha bruxaria oblíqua, não a encontrei
por parte alguma, senti um sopro de ventos insólitos, olhava para os lados
compulsivamente, até encontrar uma fonte de águas escuras que refletiam
a minha imagem tremulada, a solidão nunca me simbolizou abandono,
pois sempre tive a sensação que apesar de caminharmos sozinhos nas
sombras, haveria alguém espreitando, assistindo nossa trajetória, ainda
que não quisesse interferir em nosso caminho, essa foi sempre a minha
ideia de um Deus onipresente, o que ocorria naquele momento era dife-
rente, parecia o prelúdio para um grande acontecimento.
Antes que as impressões da noite me atemorizassem e as sombras
dos galhos aguçassem a minha imaginação, os ventos sopraram e trouxe-
ram-me três cartas de tarô, o eremita, nove e sete de espadas, num enlace,
as cartas, o vento e as folhas  formaram uma consciência que orbitava o
meu corpo.
- O que significa isso? - Perguntei.
- Não tenha medo, princesa... Considere isso uma singela corte-
sia... - Disse uma voz infantil.
- Cortesia? Quem é você?
Lúcia emerge das sombras com um vestido florido com fissuras e
sandálias gastas pelo tempo.
-Você? Aquela menina do Gasômetro...
- Finalmente o destino nos aproximou, dessa vez de uma forma
definitiva... - Disse Lúcia com um sorriso enigmático.
- Não entendo, do que você fala exatamente? - Perguntei.
Outra figura sai da escuridão.
- As cartas não mentem,  Vitória... Você se esconde do seu próprio
destino, chegou o momento de sair das sombras do império.

186 O Divino Leviatã


-Essa voz? - Se perguntou Vitória que tentava identificar o homem
que se escondia na penumbra.
- Sim... Sou eu... Kadu...
Ao revelar a sua identidade, o único sobrevivente da família An-
dradas surge em minha presença.
- O que faz aqui? - Perguntei. - Você me enganou, foi condenado
a morte por ser um terrorista, tentou assassinar o meu pai!
- Tudo será devidamente esclarecido, primeiro eu peço que me
acompanhe. - Kadu estendeu a sua mão, sorrindo cordialmente,  mas  eu
estava ferida e não sabia como agir naquele momento, recuei os meus
passos até esbarrar num corpo que estava coberto pela escuridão.
- Princesa, peço que siga o Sr. Kadu. - A voz era de Valéria, o luar
escondido em nuvens cinzentas demorou para revelar as faces da minha
guardiã.
Finalmente os ventos cessaram e as cartas caíram no chão.
- Vocês estão juntos nisso? - Perguntei a Valeria.
- Na verdade soube de tudo a pouco.
Cicero e os outros três soldados também   avançaram das som-
bras.
- Você não tem escolha. - Impôs Cícero.
- Você fugiu de um presídio de segurança máxima, todos os pro-
tocolos de segurança foram acionadas, até onde pretende chegar com essa
história?
- Enquanto a isso não se preocupe, eu criei os protocolos, posso
quebrá-los no momento que eu quiser. A pequena Lúcia tirou as suas car-
tas, juntas apresentam o seu medo, o estado de reclusão no qual a sua vida
se encontra. Você terá a sua justiça,  e eu terei a minha! Por agora confie
em mim, precisamos sair daqui o quanto antes, sua vida corre risco.
Naquele momento todos se reuniram perante a mim, um podero-
so campo foi criado e num romper de alguns relâmpagos, desaparecemos
do jardim da criação.

A princesa dilacerada 187


EPÍSTOLA
XXVI

As Cartas do destino

E
nquanto as partículas do meu corpo são novamente rea-
grupadas em minha alma através do cubo de Metatron, as
partes mais dolorosas de minhas recordações continuavam
a me atormentar.
Eu nunca fui de acreditar em destino, até o dia que conheci a pe-
quena Lúcia,  as cartas do seu destino eram tristes, porém,  mostram a
nobreza de uma pequenina que jamais fugiu de sua missão.
Lúcia era única, em seu semblante não existia o pesar de quem
estava prestes a partir.

Na manhã seguinte do meu sequestro,  acordei em uma cama


desconfortável, envolta a uma coberta rústica, um quarto pequeno com
pintura branca e sem grandes destaques, a não ser por um quadro de na-
tureza morta ilustrando uma maçã vermelha, um vaso de cerâmica bran-
co sobre uma pequena mesa bem envernizada, com minha visão turva
explorei o quarto, até recuperar a nitidez e os meus olhos encontrarem a
pequena Lúcia sentada numa cadeira de balanço em frente a minha cama.
- Você tem um sono muito profundo, estou aqui a horas e você
não despertou por nenhum momento... - Disse Lúcia que embalava-se na
cadeira.
- Aonde estou? - Perguntei.
- Ah sim! Essa é a casa do Cícero... Não tem o conforto do palácio,
mas é o que temos.
- Como cheguei aqui? - Perguntei.
- Você adormeceu na viagem, Kadu a trouxe até aqui, ele pediu
para que não gaste as suas energias, hoje você é a nossa hóspede, gosta de
café pela manhã? - Perguntou Lúcia segurando uma travessa com duas
xícaras de chá e café, um pão sovado e manteiga.
- Kadu e Cicero? Por onde andam? - Perguntei.
188 O Divino Leviatã
- Nesse momento estão na assembleia reunidos com os outros re-
beldes.
Lúcia deixou a travessa em cima da cama para que eu pudesse me
servir, por alguns segundos me olhou com curiosidade, tentou ensaiar
uma pergunta, mas acabou desistindo e me deu as costas.
- Você foi a garota que salvei no Gasômetro,  não é mesmo? - Per-
guntei antes que deixasse o quarto.
Lúcia novamente voltou os seus pequenos olhos levemente puxa-
dos e amendoados na minha direção,  retirou de dentro do seu vestido
branco aos borralhos, quatro cartas.
- Foi impressionante o que aconteceu naquele dia, o destino cru-
zou os nossos caminhos, a minha missão está muito perto de ser cumpri-
da.
-Você diz coisas interessantes para alguém da sua idade, por onde
anda os seus pais? - Perguntei.
- Minha mãe morreu em uma das incursões da divina armada
imperial, o nome dela era Lígia, o meu pai você conheceu, é o Cícero,
morávamos num assentamento cigano antes de tudo ser destruído, o re-
verendo chegou com um grande carregamento de frutos da Ninrode e
nos fez a promessa de contato direto com o criador se comêssemos do
fruto e mortificássemos o nosso livre arbítrio, Cícero rejeitou a proposta
do reverendo Maximiliano e a tragédia veio ao nosso povo... O seu pai
quer purificar a humanidade e nos tornar escravos de um Deus que nun-
ca se importou conosco, temos a cultura cigana, amamos a nossa gente,
não queremos perder o que nos torna humanos, não queremos plenitude,
viver é o maior dos nossos sonhos, com luzes e também com as nossas
sombras...
Por um instante a pequenina cessou as suas palavras e olhou as
quatro cartas em suas mãos.
- Qual o significado dessas cartas? - Perguntei.
Lucia sorriu e não ousou furtar os seus olhares de mim,
sem embargo, mostrou-me os quatro arcanos e os seus significados. 
Morte, Torre, 10 de espadas, Roda da fortuna e valete de copas.
- O que as cartas significam? - Perguntei.
Novamente Lúcia sorriu e não hesitou em nenhum momento de
responder o que já havia sentido em meu coração.

A princesa dilacerada 189


- Essas cartas foram tiradas assim que eu nasci, elas simbolizam a
minha breve missão na terra e a inevitável morte... - Respondeu.
- Morte? Você realmente acredita no poder das cartas?
- Elas nunca mentiram para mim... E eu consigo ver que o mo-
mento da minha partida está próximo, ainda mais porque eu te encontrei.
Nós duas encontraremos juntas o caminho para o seu dom.
Assim concluiu a pequenina, deixando-me na solidão daquele pe-
queno quarto e ainda cativa de minhas dúvidas.

190 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XXVII

A morte de Lucia

-A
s pessoas podem até fazer um mal juízo sobre as mi-
nhas reflexões nos registros históricos, mas confesso
que nunca fui afeita a pobreza... Minimalismos não
me atraem, aliás, tenho a crença pessoal que todos que adotam tal prática
como uma filosofia de vida, na verdade são tão materialistas quanto qual-
quer príncipe perdulário, tudo que o ego faz questão de mostrar de forma
exacerbada, é na verdade a carência daquilo que quer demonstrar.
O Gasômetro tinha o odor da miséria que nunca senti, as pa-
redes rústicas daquele quarto causavam-me agonia, tudo parecia
um grande museu a céu aberto de souvenires macabros dos anos 90.
Levantei-me da cama ainda com os trajes que usei no jardim da criação,
sai do quarto e logo deparei-me com Valéria, sentada sobre um pequeno
banco de madeira, ela me observava com um olhar apreensivo, em suas
expressões, evidências de uma noite mal dormida.
- Princesa, temo que não tenha sido uma boa ideia nos aliarmos a
Kadu e a sua resistência.
- E por que diz essas coisas na altura dos acontecimentos? - Per-
guntei. - Sabíamos que seria perigoso desde o início.
- O imperador enviou um ofício a todo o império sobre o nosso
desaparecimento e, como era esperado, eles associaram esse fato com a
fuga de Kadu da CIRB1, é questão de tempo eles invadirem esse lugar
e assassinarem toda essa gente. E isso não é o pior... O projeto de lei do
príncipe foi aprovado em seção extraordinária no STR a revogação da
cláusula de tolerância aos rebeldes que até aqui não comeram do fruto da
Ninrode para a mortificação de seus livres arbítrios, tudo isso ocorreu en-
quanto você repousava, os reis e os juízes das provinciais foram autoriza-
dos a executarem a todos que não comerem dos frutos. E por falar nisso,
desculpe-me invadir a sua privacidade, mas percebo que a senhora não

A princesa dilacerada 191


se alimenta do fruto já faz semanas, você poderia me dizer o por quê? - A
pergunta de Valéria me trouxe uma torrente de reflexões confusas e uma
pausa demorada para processar uma resposta coerente, o seu olhar dire-
cionado a mim, era uma mescla de reprovação, surpresa e medo. Valéria
encarava toda aquela situação contra a sua vontade, se os seus poderes
fossem suficientes para enfrentar Kadu e os outros insurgentes, certamen-
te o faria, mas a sua prudência e análise da situação, a fez tomar a melhor
das decisões: ela decidiu aliar-se a causa de Kadu, muito mais para me
proteger, e isso diz muito sobre a sua nobreza e devoção a mim.
- Valéria, as coisas não são mais como antes, eu não posso aceitar
que o império fique nas mãos de Abel e do reverendo Maximiliano, o
fruto da Ninrode não trará a paz para essas pessoas, é apenas mais uma
fuga da realidade,  a servidão, uma forma de Deus restaurar as fissuras
nos espelhos da existência, a vaidade de contemplar todos os seus reflexos
a sua imagem e semelhança.
- E o que pretende fazer, princesa? - Perguntou Valéria.
- Eu preciso falar com o Kadu, não podemos mais esperar.
Valéria me levou até uma pequena praça em frente a um hospital
abandonado, espreitou as ruas ao redor e até constatar a nossa segurança,
receou em entrar no prédio abandonado da Santa Casa de Misericórdia. 
Na sala de espera nos deparamos com uma multidão inquieta e
doente, algumas pessoas estavam desmaiadas em leitos, outras se contor-
ciam de dores no chão rústico, aquela estrutura funcionava graças a cola-
boração de um médico voluntário que havia se aliado a causa de Kadu.
- Eu sabia que viria... - Disse uma voz infantil em meio aos enfer-
mos. 
- Lúcia, é você? - Perguntei.
A menina caminhou lentamente em minha direção, estendeu-me
as mãos e disse:
- Venha comigo, Kadu está a sua espera.
- O que são essas pessoas? - Perguntei.
- Kadu e Cícero mantém esse lugar funcionando graças aos saques
que organizamos nos armazéns das províncias. Essas pessoas não podem
usar o sistema de saúde imperial, e esse hospital abandonado é tudo que
elas possuem. - Respondeu Lúcia.
- Tudo aqui é muito escasso e de baixa qualidade, não é a toa que

192 O Divino Leviatã


esse lugar está repleto de doentes. - Observou Valéria que nos fazia escol-
ta com sua espada desembainhada e controlando os nossos passos.
Caminhávamos por um estreito corredor, haviam cadáveres em
macas improvisadas e envoltos em sacos pretos com fissuras e desgas-
tes proporcionados pelo mal uso, tudo isso iluminado por uma fileira de
lâmpadas incandescentes que oscilavam uma luz opaca que ia e voltava a
cada cinco segundos, tudo muito precário. Logo a frente, nos deparamos
com uma porta dupla com um letreiro escrito “Anfiteatro”.
Lúcia adiantou os seus passos e sem cerimônias entrou na sala.
- Não temos alternativa, princesa. - Observou Valéria.
Caminhamos na direção do anfiteatro, ao abrir-
mos a porta, percebemos o quão eficiente era o seu isolamen-
to acústico, tamanha era a celeuma que ocorria dentro daque-
le ambiente, o som não era irradiado para o restante do hospital. 
Era uma sala de conferências padrão, Cicero discursava intensamente aci-
ma de uma pequena bancada, enquanto Kadu estava acomodado em uma
mesa ao lado do líder insurgente.
Por um instante as murmurações cessaram, todos haviam perce-
bido a nossa presença. Kadu ajeitou a armação de seu óculos e sorriu
discretamente, levantou de sua mesa, e me recepcionou.
- Finalmente você chegou, já era tempo. - Disse ele.
Um tanto menos hospitaleiro, Cícero foi muito formal em sua
cortesia, não me tratou com as honrarias que alguém de minha linha-
gem normalmente receberia, logo avançou para o discurso populista.
- Aproveitando o ensejo da visita da princesa do Brasil em nossa humilde
plebe, todos aqui já estão cientes que o confronto com império é ine-
vitável. Seremos atacados a qualquer momento, por isso, decidimos em
decisão popular que não aceitaremos as medidas do império, não come-
remos do fruto, queremos rever nossas vidas, independente da crença
ou dá não crença em um Deus, seja ele um Deus onisciente, onipresente
e onipotente ou mesmo um Deus de nossas projeções pessoais, temos
direito a nossa subjetividade... Não queremos nos prostrar a tirania de
um império que supostamente responde a Deus. O que é Deus? Afinal
o que é livre arbítrio? Embora eu não tenha a mesma propriedade do
nosso companheiro Kadu, tão pouco da princesa do Brasil, o debate fi-
losófico é inevitável. Ao longo das eras, Deus sempre interferiu na ação

A princesa dilacerada 193


humana, abençoando aqueles que seguiram as suas ordenanças e conde-
nando aqueles que o desafiaram, dizimados da história, seria esse nosso
destino? Aqueles que sempre exigiram a liberdade, que ousaram falar a
Deus que agora seriam os senhores de suas vidas, a Serpente no paraíso
pode ser uma mera ilustração, ou até mesmo um ser mitológico, aqueles
que zombaram de Noé quando esse construiu a arca e foram sucumbidos
pelo dilúvio do Criador, os exércitos que atentaram contra o suposto povo
de Deus, caíram um por um. E agora fazemos parte da ironia de Deus
em mais uma de suas providências, o rei Ninrode foi o homem que mais
desafiou o Divino na história da humanidade, e hoje seu nome batiza a
árvore da mortificação do livre arbítrio, o que outrora significava rebel-
dia, a vontade de Deus se transformou no símbolo de servidão. Quando
nos deparamos com os deuses na história, seja o Deus hebraico ou da
mitologia grega, sempre encontramos o temor humano em detrimento
a exaltação de Deus,  guerras foram travadas em nome desses Deuses.
E hoje mais uma vez essa situação nos é apresentada, uma relação
destrutiva entre deuses e imperadores, não importa muito se a serpen-
te do Paraíso ou a deusa Hera causaram um grande mal à humanidade,
não importa o Panteão de Deuses, o resultado será sempre a escravidão,
por isso não aceitaremos a intervenção de Deus em nossas histórias, hoje
declaramos que o Gasômetro, os bairros insurgentes contra o império, a
partir dessa data não mais fará parte da união,  e para todos os efeitos, a
princesa Imperial está sob nossa custódia e assim ficará até que haja um
acordo, e o império respeite a nossa autodeterminação. Caso contrário,
não vamos nos abster de entrarmos em confronto e assim tenho dito.
Aqueles homens e mulheres hipnotizados pela retórica de Cícero,
o aplaudiam e bradavam palavras de ordem, apesar de não ser um ho-
mem afeito a discursos filosóficos, ele sabia como cativar as pessoas.
Kadu se aproximou de mim e abraçou-me com certa cautela, pa-
recia um tanto preocupado ao olhar a minha gravidez.
- Acredito que toda essa situação deve ter a estressado um
pouco. Por mais que seja importante você ter o conhecimento da si-
tuação, não quero que a sua saúde seja prejudicada. - Disse Kadu.
- Não acha que é tarde demais para nos dar esse aviso? -  Retrucou
Valéria.
- Eu entendo que você seja a guardiã pessoal da princesa, mas não

194 O Divino Leviatã


posso ignorar as vidas dessas pessoas.
- O seu pai é responsável pela morte de todos os entes queridos
dessa gente, a divina armada Imperial, a revelia de seu pai, assassinou
essas pessoas da maneira mais impiedosa possível. Você é a nossa moeda
de troca, a possibilidade de um tratado de paz, não queremos uma guerra,
princesa,  mas não podemos deixar que esse  derramamento de sangue
prossiga.
Nesse momento Cícero interveio.
- Princesa, a sua missão é interceder junto ao seu pai a liberdade
do nosso povo, temos o direito de seguir as nossas vidas sem que tenha
intervenção divina, tão pouco sermos massacrados pelo seu irmão. É
como as coisas são.
- Você faz ideia da natureza de coisas que me pede? - Perguntei.
Antes que as minhas inquietações fossem respondidas, uma gran-
de explosão abalou as estruturas do hospital. Fendas abriram-se no teto
do anfiteatro, as lâmpadas estouraram deixando cair faíscas e estilhaços de
vidro, uma mulher visivelmente desesperada invadiu o anfiteatro e gritou.
- A Divina Armada Imperial atacou o Gasômetro!
Os rebeldes ali presentes ficaram a postos, mais uma batalha esta-
va prestes à acontecer.
- Saiam todos, aqui não é seguro! - Ordenou Cicero.
A pequena Lúcia apoiou-se no braço direito de seu pai, Kadu, es-
tendeu-me a mão direita e me conduziu para fora do prédio. Quando
chegamos na rua do Gasômetro, nos deparamos como uma horda de sol-
dados da Divina Armada Imperial, era um batalhão inteiro com apoio
aéreo fortemente armado. 
A frente do Pelotão estavam Abel e o Reverendo Maximiliano. 
- São aqueles Malditos! - Bradou Cícero indignado.
- Princesa não é prudente ficarmos na linha de fogo, vou provi-
denciar um lugar para nos refugiarmos. - Sugeriu Valéria colocando-se a
minha frente tentando me proteger.
-  Eu não posso simplesmente me esconder. - Respondi.
Abel deu alguns passos a frente e sorriu com a maior das simpatias.
- E pensar que acabamos de sair do submundo e encontramos
almas que nos faziam súplicas para que os seus pecados fossem perdoa-
dos. Existências errantes que hoje podem amenizar as suas penitências, se

A princesa dilacerada 195


produzirem para o Império em troca de suas salvações. Hoje temos uma
produção abundante graças aos esforços daqueles que foram Condenados
ao inferno e hoje vendem as suas mais valias. Devemos as nossas riquezas
a esses miseráveis.
- E você se orgulha de explorar esses pobres coitados? Como
pôde criar ilusões na mentes dessas pessoas? - Indignou-se Kadu.
- Carlos Eduardo Andradas... Não me surpreende encontrá-
-lo nesse lugar… Você é um homem de poucas palavras, embora pos-
sua o péssimo hábito de me interromper, isso é algo que normalmente
eu não tolero, mas, você é um caso especial. Como eu dizia, o criador
ofereceu uma nova chance de redenção para aqueles que foram con-
denados, e um homem benevolente que sou, ofereci a minha carida-
de. Os lábios daqueles seres deploráveis chegavam a umedecer ape-
nas vislumbrando a possibilidade de comerem do fruto da Ninrode.
Enquanto a vocês... Possuem a dádiva da vida, justamente para obedecer
os mandamentos do Criador, embora, prefiram afrontá-lo. Ousam levan-
tar as suas armas contra o seu príncipe Imperial, pois bem, o diálogo com
vocês acabou, devolvam a princesa e comam do fruto.
Logo após esse édito da morte proferido pelo meu irmão, o si-
lêncio preludiar pairou sobre o Gasômetro. Cícero acionou a sua luva de
Arquimedes e ela materializou-se em sua mão direita, olhou diretamente
para os olhos de Abel e o desafiou:
- A nossa resposta também é muito simples, o único diálogo que
teremos com a dita nobreza, será para que respeitem a nossa autodeter-
minação como povo, qual o tipo de Deus que se contentaria com o der-
ramamento de sangue de seus próprios filhos? Não queremos obedecer
nada além de nossa liberdade.
O Reverendo Maximiliano ouviu atentamente o afronte de Cíce-
ro, e decidiu finalmente se manifestar:
- Se me permite a palavra, príncipe Abel.
- Fique à vontade, Maximiliano, afinal, esse também é um assunto
do Clero. - Concedeu a parte Abel.
- Eu tenho autoridade espiritual para destinar as suas almas para
o inferno, vocês afrontam o império dos homens e as leis de Deus, “dai a
César o que é de César”, ora! O que há de injusto nisso? Ainda assim,  des-
prezaram a misericórdia do Príncipe Abel. Pois aqui declaro que o juízo

196 O Divino Leviatã


chegou, sou um instrumento das providências de Deus!
Num gesto ritualístico, o Reverendo ergueu suas mãos aos céus e
clamou ao criador.
- Posso senti-lo no fluir de meu sangue, em cada extremidade do
meu corpo! Dê-me o sinal! É a sua vontade a execução dessas pessoas?
Alguns segundos precederam as primeiras gotas de chuva que
caiam sobre o Gasômetro.
- Pai... - Sussurrou  a pequena Lúcia escondida entre as pernas de
Cícero.
A chuva aumentava ao passo que os sulcos do asfalto mal pa-
vimentado encharcavam. O Reverendo ajeitou o seu hábito pre-
to, meu irmão acionou o seu bracelete nanotecnológico acoplado no
braço direito, fazendo assim, pequenas partículas brilhantes mol-
darem-se no seu corpo, formando a sua armadura branca com de-
talhes dourados. O seu dread também ganhou a mesma coloração.
Os rebeldes empunharam suas armas, todos munidos de espadas,
metralhadoras e exoesqueletos de modelos ultrapassados, se comparado
as indumentárias utilizadas pela Divina Armada Imperial. Abel sorriu
gentilmente como se estivesse numa solenidade, tamanha era a sua frieza
e desdém como aquelas vidas. Levantou a sua mão esquerda para o alto e
deu o seu comando.
- Divina armada Imperial, cumpra a sua missão, sejam vocês a
vontade de Deus, ataquem, agora!
E assim deu início a uma terrível batalha, na vanguarda da cruel-
dade e covardia, a Divina Armada Imperial utilizou-se do melhor de seu
arsenal, pouco puderam fazer os mais de cem homens que decidiram en-
frentar os seus destinos.
Eu tentava fugir junto a Valéria e a pequena Lúcia, foi quando essa
ação foi observada por Abel, que na tentativa de nos encurralar, concen-
trou em seu bracelete uma esfera de luz e atirou contra nós. Valéria se
colocou a minha frente e recebeu o ataque, suportando-o com um  sorriso
franco e seguro.
- Você está bem? - Perguntei.
- Precisa de muito mais que isso para me derrubar, princesa. -
Respondeu Valéria que havia perdido metade de sua túnica cromada com
o ataque.

A princesa dilacerada 197


A pequena Lúcia escondia-se em minhas pernas, tamanho era o
seu pavor.
Cícero e Kadu lutavam lado a lado, tentavam suportar o poder
do exército comandado por Abel e o Reverendo, certa feita do confronto,
Kadu investiu um ataque contra o Reverendo, e Cícero concentrou toda a
sua energia na Luva de Arquimedes para enfrentar meu irmão, em quanto
os mortos se multiplicavam, duas grandes batalhas eram travadas, Kadu
perseguia o Reverendo utilizando-se do exoesqueleto, embora o reveren-
do o mantinha distante graças ao seu poder telecinético, Cícero e Abel
trocavam golpes, o poder da luva era realmente surpreendente, apenas
um toque de Cícero desmaterializou a ombreira direita da armadura de
Abel. Assustado com o poder destrutivo daquele artefato, meu irmão per-
cebeu que seria perigoso aquela luta prosseguir, então decidiu colocar um
fim naquela batalha. Na tentativa de distrair Cícero, desferiu-lhe alguns
chutes que não causaram grandes danos, enquanto concentrava em sua
mão direita uma esfera de luz que atirou contra o peito de Cícero, arre-
messando-lhe violentamente contra a porta de vidro do hospital.
- Interessante o que a mente do nosso querido Kadu pode criar,
uma luva de propriedades alquímicas.
- Então você pretendia me transformar em pó?
- Eu não entendo esse péssimo hábito de destruírem as coisas, não
aprenderam que tudo possui um valor intrínseco? Se forem simplesmente
transformadas em pó, como diferenciá-las?
- Se for tirar a minha vida, que seja como um príncipe deve mor-
rer! No Campo de batalha como os grandes na história sempre morre-
ram, e não nesse lugar desprezível.
- Eu lhe concedo o perdão Imperial, mas eu preciso do seu sa-
crifício para que essas pessoas compreendam que não podem desafiar o
império, tão pouco as leis de Deus. Assim esses miseráveis, comerão do
fruto e mortificaram os seus livres arbítrios. Isso acaba aqui e agora.
Abel apanhou uma arma acoplada em sua perna direita, apon-
tou na direção de Cícero e atirou. Sem que eu me desse conta, as mãos
delgadas de Lúcia escorregaram das minhas, senti o seu pequeno corpo
deslocando-se entre Valéria e eu, no fluxo de tempo que ligava a mira da
arma, o momento do disparo e um grito infantil desesperado.
- Pai! - Clamou Lúcia pelo destino de Cicero que parecia findar.

198 O Divino Leviatã


Quatro cartas de tarô fizeram o rastro do caminho que a pobre
menina percorreu até receber em seu peito o tiro de plasma que foi desti-
nado ao seu pai.
-Lúcia! - Gritei!
A filha de Cícero caiu em seus braços, ela sorria para o seu pai que
acabara de salvar da morte e eu fui ao seu socorro, Cicero estava incons-
ciente e a pequenina acomodada em seus braços, o sangue vertia entre os
estilhaços de vidro, estava consumado.
- É assim que tinha que ser... - Sussurrou Lúcia.
- Tenha calma...Eu sou a princesa do Brasil, vou providenciar os
melhores médicos, você vai ficar bem.
Assim fiz a minha promessa vã na esperança de trazer algum con-
forto para pequena Lúcia.
- Minha missão termina aqui, posso ver o desfecho de toda essa
história, dentro de você existe um poder único, seu filho é o princípio
e também será o fim de todas as coisas... O que é Deus? Os espelhos da
criação refletiram sete eras da existência, o nascimento do seu filho será
o Gênesis, o oitavo dia da Criação. Desperte o poder que a dentro de
você, abandone os seus medos, deixe as dúvidas no passado. As suas car-
tas mostram o sacrifício que precisará fazer, há em você um dom divino,
a criação! Qual o sentido da vida se a nossa existência está apenas fadada
a servidão? Queremos liberdade em nós mesmos, a mortificação do livre
arbítrio é a morte do que somos, humanos. Me dê a sua mão.
Quando as nossas mãos se encontraram, senti um formigamen-
to percorrendo por todo o meu corpo, uma fina manta de aura dourada
emanou de minha essência.
- Deus a escolheu como mãe... Novamente será o verbo para habi-
tar entre nós, há em você um poder que ultrapassa o nível arcano, a aura
que envolve o seu corpo é divina, crie um mundo novo.
Abel materializou em sua mão esquerda uma fotografia em tom
sépia, imortalizando a pequena Lúcia nos braços de seu pai.
- Como não se emocionar? São essas coisas que fazem as guerras
tão grandiosas, não concorda, irmãzinha?
- Como pôde? Uma criança... - Sussurrei essas palavras enquanto
uma aura dourada envolvia o meu corpo.
- Eu não faço o roteiro das guerras, o meu pecado é apenas fa-

A princesa dilacerada 199


zer parte do lado vencedor. Ah! Quanto drama, você pertence a re-
aleza, não é nenhuma revolucionária, a quem quer enganar? Quan-
to tempo o seu safári na pobreza extrema vai durar? Venha de uma
vez, não quero perder o meu precioso tempo, você e sua guardiã se-
rão perdoadas. - Assim disse Abel num tom autoritário e desdenhoso.
O ódio transbordou de toda a minha essência, eu senti a mente
esvaziar de complexidades, era um poder que jamais havia experimen-
tado, não haviam pensamentos, apenas instinto, os meus olhos tomaram
uma coloração dourada e o meu corpo vibrava como se a forma humana
tivesse me abandonado, eu era apenas energia e justiça.
- O que diabos é isso? - Se perguntou Abel.
- Eis a sua resposta!
O meu instinto liberou em vibração sônica , uma poderosa ener-
gia que desmaterializou a indumentária de meu irmão e fez cair por terra
toda a Divina Armada Imperial, Maximiliano que enfrentava Kadu, não
teve alternativa a não ser abandonar o confronto e defender-se da pode-
rosa onda de energia dourada, a derrota que parecia certa, foi revertida
graças ao milagre que eu ainda tenho oculto.
- Vai trair a sua própria família? Desafiará a Deus? - Questionou
Abel.
- Não faz sentido seguir a um Deus cruel que se agrada com sacri-
fícios de inocentes. - A minha resposta soou com uma voz que compassa-
va cada palavra com harmonia, eu caminhava na direção dos meus ofen-
sores emanando a minha aura dourada, ao passo que Abel, Maximiliano
e o restante dos homens do exército recuavam.
- Blasfêmia! - Interpelou Maximiliano. - Como ousa infringir o
tratado divino? Quem você pensa que é? As hostes angelicais, a carta dos
Condenados, o império do Brasil e o próprio Deus que nos deu oportuni-
dade de comer do fruto que mortifica o livre arbítrio, você despreza todos
esses eventos? Eu não permito esse afronte! Sou uma autoridade eclesiás-
tica, arrependa-se do seu pecado, princesa. Ajoelhe-se perante mim, que
sou santo e represento o criador,  coma do fruto da Ninrode! - Ordenou
Maximiliano que aparentemente estava com o seu ego ferido, afinal, a mi-
nha recusa o desmistificava como um ser sem máculas, cuja palavra era
inquestionável, caminhei na direção do Reverendo,  ajoelhei-me perante
seus pés, o sorriso imponente formoseou o seu rosto austero. Maximilia-

200 O Divino Leviatã


no olhou para um dos soldados que carregava consigo uma urna conten-
do vários frutos, um simples aceno com a cabeça para na minha direção
foi o suficiente para o soldado entender que ele deveria se aproximar de
mim oferecendo-me o fruto da Ninrode.
- É uma sábia decisão, princesa. O seu exemplo será seguido por
todos esses miseráveis. Coma do fruto e seja um instrumento de Justiça
e responsabilidade do Criador. - Assim discursou Maximiliano que me
assistia atentamente apanhar o fruto de cor vermelho sangue e de formato
esférico em uma urna carregada pelo soldado.
Abel e Maximiliano engrandeceram-se com suas per-
formances imponentes e sorrisos fartos pela vitória que imagi-
navam ter, olhei para o fruto e observei por alguns segundos o
meu reflexo na superfície lisa, fechei os olhos e finalmente mordi.
Mastiguei por três vezes a casca adocicada junto com a massa e
o sumo, confesso que era quase irresistível não digeri-la, fiz um bolo ali-
mentar, olhei para Maximiliano e cuspi todo aquele composto tem sua
face.
- Maldita, você não faz ideia dá blasfêmia que cometeu, mesmo
sendo uma princesa.
- Eu já disse, a sua resposta já foi dada, vão embora! - Eu ordenei
usando minha autoridade de princesa. - E saibam que a partir desse mo-
mento, não responderemos mais ao império até que um novo acordo de
paz seja selado.
- É isso aí vão embora não temos nada com seu Imperador tão
pouco com seu Deus. - Encorajou se um dos marginalizados que carrega-
va o seu braço ferido devido a batalha.
- Saiam daqui! - Encorajaram- se outros até criar um vi-
ral e fazer mulheres e crianças saírem de suas casas e gritaram a toda
a divina armada Imperial que eles não eram bem-vindos do Ga-
sômetro e nem outro lugar onde as pessoas  reivindicam-se livres.
Maximiliano e Abel recuaram os seus passos, tama-
nha era a pressão exercida pelas vozes insurgentes.
- Nós vamos sim... Mas saibam que as coisas não terão esse desfe-
cho, comemore a sua pequena vitória com essa gente desprezível, voltare-
mos a nos encontrar, irmãzinha...
Abel nos jurou vingança e sua matéria dissipou-se no ar, con-

A princesa dilacerada 201


fundindo-se com os grãos de areia das ruas devastadas do Gasôme-
tro, o restante do exército, junto a Maximiliano, abandonaram o local,
deixando no passado a inesperada e vergonhosa derrota, o brado dos
vencedores romperam as ruas do Gasômetro, o sangue de seus rostos
foram limpos pela torrencial chuva,  estávamos eufóricos e ao mesmo
tempo resignados como a morte de nossos companheiros de batalha.
Em meio aos clamores de vitória, minha visão ficou turva e aos
poucos perdi os sentidos, percebendo a situação, Kadu me tomou em seus
braços antes que eu desfalecesse ao chão.
Ainda contemplando com vistas embaçadas, o semblante de Kadu
formoseava um sorriso de admiração e uma lágrima serena a rolar de seus
olhos.
- O que você fez aqui foi incrível, agora deixe o resto com a gente.
- Disse Kadu.
Eu não tive forças para responder, apenas desfaleci em seus bra-
ços.

202 O Divino Leviatã


EPÍSTOLA
XXVIII

A lenda de
'
Santa Vitoria

C
omo nascem os mitos?
São as práticas narrativas sobre os fenômenos que não de-
finimos pela razão.
O milagre é a causa última da esperança, quando o poder da ação
humana não tem forças para interferir no destino, assim o divino se ma-
nifesta.
O mito é o grande berçário da filosofia, a forma de usarmos as
nossas sensibilidades, observar o mundo e atribuir aos deuses, os fenô-
menos naturais. Aos antigos santos foram atribuídos milagres, os seus
feitos romperam até mesmo a barreira da morte... O sacrifício... É o que
nos torna santos?
Pobre Lúcia... Um destino tão triste é um gesto tão nobre, quem
lembrará da pequenina cigana? Quem? As suas palavras ainda me tocam,
mesmo  desconhecendo os seus reais significados. Um mito nasceu no
Gasômetro, aquelas pobres pessoas que assistiram o desfecho da triste
batalha contra o império, agora depositam as suas esperanças em mim.
Os seus olhos me seguem e a suas rezas tentam me alcançar, tor-
nei-me uma santa em meio a desolação e o desespero. Os povos que se
rebelaram contra o império, criaram um estranho sincretismo, onde os
oráculos das mais diversas religiões e sistemas mágicos,  fundiram-se em
um único fim eudemônico, cuja padroeira era eu.

Estávamos em um vasto campo velando a pequena Lúcia. O seu túmulo


foi marcado por uma estátua de bronze simbolizando a infância de uma
menina brincando com o Fauno, as flores demarcavam o humilde memo-
rial a pequena heroína.

A princesa dilacerada 203


- É muito triste quando buscamos palavras para nos despedirmos
de quem amamos, e o que vem a nossa mente, são os velhos dizeres aos
ventos, simbolizando um ritual sócio religioso, frente a um crucifixo ou
um anjo esculpido e desolado. É triste não ter palavras para expressar o
quanto amei Lúcia... Logo eu... O pai que deveria ao menos recitar belas
palavras junto a uma coroa de flores... Não tenho uma coisa e nem outra...
Assim dizia Cícero que observa com tristeza a estátua de bronze
junto a um amontoado de terra, no qual jazia o corpo da pequenina Lú-
cia.
Eu me aproximei de Cícero e o abracei, conseguia sentir o seu
sofrimento, as lágrimas não mais vertiam, o seu semblante era de um pe-
sar comedido. Ninguém ousou dizer uma só palavra, nada havia para ser
dito, apenas refletimos nas palavras angustiadas de um pai.
- Lúcia... - sussurrava Cícero.
Aos poucos as pessoas deixaram aquele triste cerimonial, fi-
cando Cícero a fitar a estátua de bronze, como se num transe estivesse.
Eu ainda observava o desfecho do funeral, quando fui surpreendida por
uma mulher humilde que trazia consigo um pequeno cântaro.
- Você é filha de anjos? - Perguntou a mulher.
Surpresa com a natureza da pergunta, prontamente respondi.
- Absolutamente não, sou tão humana quanto você.
Um rapaz franzino de pele negra, trajando um uniforme  de um
time de futebol, indagou-me.
-Você derrotou sozinha aqueles homens?
Não havia em mim, materialidade para responder aquelas ques-
tões, antes que eu pudesse me desvencilhar das perguntas que me causa-
vam constrangimento, deparo-me com os inseparáveis Montserrat e Tião,
a dupla atrapalhada que me fez rir na primeira vez que visitei o Gasômetro.
- Então você é a santa que tanto falam? A filha renegada do impe-
rador que deixou o luxo para viver com a plebe no lixo? - Perguntou Tião
que trajava uma camiseta branca com um suspensório preto e botinas da
mesma cor.
- São apenas fantasias. - Respondi.
- Tem certeza, flor? Tu é cheia dos salamaleques que eu sei, ou
tu acha que não vi a senhorita usando magia contra aqueles soldados na
feira de barganhas? - Indagou-me a drag queen Montserrat que desfilava

204 O Divino Leviatã


uma fantasia de escola de samba que já estava surrada pelo tempo e com
um odor bem característico de mofo.
Antes que eu pudesse reagir a abordagem daquelas duas figuras
burlescas, Kadu veio ao meu socorro.
- Deixem-na em paz, os últimos acontecimentos foram muito im-
pactantes, ela precisa descansar agora.
- Nos perdoe Kadu, mas é justo sabermos se não estamos diante
de uma santa, todos nós estamos perdendo a esperança. - Disse Tião.
- Sim! Sim! Tenho saudade da minha época de estrelato, os bofes
pagavam fortunas e reservaram os seus “happy hours” somente para mim.
- Divagou Montserrat.
- Deixem dessa besteira, vão procurar o que fazer. - Exortou Kadu,
tirando-me do alcance daqueles que buscavam respostas em mim.
Kadu me conduziu entre os becos e vielas do Gasômetro, ao ponto
de nossas presenças ficarem inalcançáveis aos olhos populares.
- Pronto, aqui é seguro, não tem ninguém por perto. - Tranquili-
zou-me Kadu.
- Muito obrigada, na verdade as pessoas não incomodam, o que
me deixa inquieta é não ter respostas… - Assim eu disse, sentada sobre
um caixote da madeira e fitando as horríveis sandálias de plástico que
apertavam meus pés.
- Quando aprendeu a fazer aquilo? - Perguntou Kadu escorado a
um muro de frente para mim.
- Pelo visto essa é mais uma pergunta que eu não poderei respon-
der, se você se refere aquela aura dourada que me envolvia, eu não sei...
- Entendo...  Eu me lembro de ver aquela aura dourada apenas
uma vez, foi a espada do arcanjo Miguel no ponto crucial da batalha do
imperador contra o meu irmão, ainda assim, num objeto divino, jamais
emanando de um ser humano.
- O que é você, Vitória? - Perguntou Kadu, fitando-me com aten-
ção.
A questão obrigou-me a emergir para as mais profundas lembran-
ças e não encontrar respostas, até o momento que voltei a realidade e
encontrei o meu rosto refletido numa poça d’água a poucos centímetros
dos meus pés.
- Se sou alguma coisa...  Deus olhou no espelho antes da fundação

A princesa dilacerada 205


do mundo...
- O que disse? - Perguntou Kadu.
- Nada, apenas pensei alto.
Antes que pudéssemos nos aprofundar no diálogo, um grito de
mulher ecoou pelas vielas.
- Socorro!  Socorro! Me ajudem! O meu filho! - Gritava uma se-
nhora de meia idade desesperada.
- O que aconteceu com o seu filho, dona Ivone? - Perguntou Kadu.
-A Santa casa já não tem os remédios para a terapia do câncer, faz
três meses que o tratamento foi interrompido, ele desmaiou novamente. -
Relatava a inconsolável dona Ivone, uma mulher de estatura muito baixa,
cabelos negros e alongados na base da cintura, uma pele maltratada num
tom avermelhado, e trajava um vestido rudimentar de estampa florida.
- Infelizmente não tenho mais recursos para investir na saúde des-
ses cidadãos, é muito triste a sina dessa gente, se não morrem em con-
frontos, são acometidos pelas doenças... - lamentou-se Kadu.
A jovem senhora voltou os seus olhares em minha direção e inda-
gou-me:
- Não é você a tal santa princesa? Por favor... Cure o meu filho... -
Suplicava a dona Ivone com lágrimas e apegada a um terço.
- Lamento, eu não posso curar o seu filho, interceda junto ao cria-
dor, quem sabe ele não tenha misericórdia de ti.
Imediatamente, os olhares de Ivone perderam-se no vazio.
- As minhas orações não chegam aos céus, sou apenas uma velha
beata... Eu comi do fruto porque o reverendo me prometeu que a doença
de meu filho seria curada, mas isso não ocorreu... Diga-me, princesa, fal-
tou fé para o meu milagre acontecer? - Perguntou entoando um profundo
pesar.
Naquele momento senti um leve chute, era o meu pequenino...
Haviam se passado seis meses de gestação.  Eu pensei no quanto o
meu filho significava para mim, e observei o pranto daquela velha se-
nhora.  Por que um outro milagre não poderia acontecer? Pensei.
Coloquei-me de pé e caminhei na direção da jovem senhora.
- Você realmente crê que eu possa fazer um milagre? - Perguntei.
- Eu creio em qualquer um que possa devolver à alegria em minha
casa. - Respondeu Ivone.

206 O Divino Leviatã


- O que pretende fazer? - Perguntou Kadu que observava todo o
diálogo.
- Acho que posso ajudar. - Assim eu prometi.
Caminhamos até um pequeno cortiço e entramos na humilde casa
de Ivone. Como era característico daquele lugar, tudo muito simples e
escasso. Subimos um lance de escadas e logo nos deparamos com um pe-
queno espaço isolado por duas cortinas, o qual eles denominavam quarto.
Deitado sobre um colchão sem forro e envol-
to em lençóis umedecidos pelo suor, estava um projeto huma-
no, esquelético e agonizando na cama, era de cortar o coração. 
- Princesa,  peço que não leve a mal qualquer grosseria do meu
Guilherme, a doença o deixou amargo. - Disse a jovem senhora que ajei-
tou uma cadeira para que eu pudesse sentar ao lado de seu amado filho.
A princípio eu me limitei a velar o seu atribulado sono, não co-
nhecia nenhuma técnica arcana poderosa o suficiente para curar um do-
ente terminal. Direcionei as minhas duas mãos sobre o corpo desfalecido
e tentei usar as técnicas de aura prateada desenvolvida pelos curandeiros
do clero, embora eu não fosse exatamente uma especialista.
O meu poder base era muito baixo, eu apenas despertava um
grande poder quando o controle de minhas emoções diluía-se em ódio.
Nesse tempo, Guilherme acordou.
- Mãe, quem é essa imbecil? Tire ela daqui, agora! Você nunca
aprende! Não gosto de visitas! - Gritava o jovem enfermo.
- Então você é o Guilherme? O que você tem exatamente? - Per-
guntei. 
- Respondendo as suas duas perguntas:
Não,  eu não sou esse tal Guilherme,  sou a droga do Pero Vaz de Caminha,
não viu a minha embarcação? Olhe os remos! Devem estar perdidos por
ai! Terra vista! Terra Vista! Vejo nativos e uma burra falante que me faz
perguntas idiotas! E como eu me sinto? Livre como um passarinho, cheio
de saúde! Vivaz!  Ferrabraz, como um macho deve ser. Agora que sabe
tudo sobre mim, cai fora, otária! - Gritava loucamente o pobre jovem.
Antes que eu me deixasse atingir pelos seus surtos, passei a mão
entre os seus poucos cabelos e sorri.
- Cara... Você é maluca? Está começando a me assustar. - Disse
Guilherme que alternava a sua cólera para um temor que o fazia tremer

A princesa dilacerada 207


por debaixo daqueles lençóis.
- Filho, essa é a princesa santa de quem tanto falei. -
Revelou a dona Ivone, fechada em seu terço e ajoelhada frente a cama de
seu filho.
- Uma santa... ao menos as santas de pau oco tinham o seu propó-
sito... Serviam de urna para os mercadores de diamantes. Deus e todos os
santos me abandonaram, e você me traz promessas?
Eu procurei não me envolver em suas confusas emoções, esvaziei
a minha mente de todo o pensamento, e mais uma vez aquela aura doura-
da emanou de mim.
Todo o ambiente foi tomado por uma vibração poderosa, senti a
minha alma preencher os corpos de Kadu, Ivone e Guilherme, formamos
uma única consciência, o câncer que nascia em sua medula e fluía na cor-
rente sanguínea, estava dentro do meu campo de sensibilidade.
Eu aqueci a minha aura para dentro do corpo de Guilherme, as
partículas cancerígenas foram desintegradas, usei uma pequena parce-
la de minha energia vital para alimentar os chacras do jovem filho de
Ivone. A aura contraiu para o duplo etérico, a minha visão ficou turva e
perdi o controle sobre os meus sentidos, mais uma vez Kadu veio ao meu
socorro e me tomou em seus braços.
- O que aconteceu? - Perguntou Ivone.
- O milagre que tanto pediu, o seu filho está de volta. - Disse Kadu.
O rubor da vida alcançou o semblante de Guilherme,  seu aspecto
doente desapareceu junto as células cancerígenas.
- Eu sinto as minhas forças retornando ao meu corpo. - Disse o
jovem Guilherme ao levantar da cama e arriscar alguns passos.
- Ela é realmente uma santa, a única esperança do nosso povo. -
Disse a Dona Ivone ajoelhada perante os pés de Kadu.
- Existem tantos enfermos espalhados pelo Gasômetro e outros
lugares que se rebelaram contra o Império, todos esses merecem a sorte
que tive! - Entusiasmou-se Guilherme, ainda claudicante pelo longo tem-
po de inatividade.
- Sim, que a lenda de santa Vitória seja conhecida por toda a ex-
tensão do império.
O pequeno milagre ocorrido naquele quarto ecoou por todo o
Gasômetro, as pessoas faziam incontáveis filas para terem os seus mila-

208 O Divino Leviatã


gres realizados, os meus dons aumentavam a cada dia, a fé dos rebela-
dos os moviam de toda a parte do império, em três meses não havia mais
um único enfermo. 
Um rio de águas mortas e poluídas cruzavam o Gasômetro, era o
destino de toda a sorte de lixos oriundos das grandes cidades do reino de
São Paulo, criamos uma forte barragem e isolamos as nossas águas, com
o meu poder de transmutação, removi toda a impureza das águas, usei as
minhas riquezas para revitalização do Gasômetro.
A Santa casa voltou a funcionar em toda sua plenitude, o comércio
local foi subsidiado por um forte investimento que fiz nos mercados de
rua, apesar do embargo que sofríamos, os armazéns imperiais não eram
um grande problema para Cicero e seus homens, usávamos nomes fictí-
cios na receita imperial e criamos pessoas jurídicas para investimentos
em ações, a possibilidade de poder de compra, um nome discreto e acima
de tudo, longe das suspeitas do fisco imperial.
Aos poucos o aspecto desolador do Gasômetro deu o seu
lugar a uma pequena cidade independente e progressista, longe
das guerras, das leis opressoras e os usos e costumes das religiões. 
Um povo que tinha anseio de liberdade, embora soubesse das res-
ponsabilidades que as traziam. A lenda de uma improvável santa chegou
aos ouvidos do clero e de toda a corte imperial.

No palácio do planalto, o reverendo Maximiliano e o meu pai dis-


cutiam fervorosamente sobre os rumos tomados na crise do Império.
- Permita-me discordar de vossa majestade, mas fomos negligen-
tes com a crise no Gasômetro, tentamos todas as negociações possíveis,
mas esses selvagens só compreendem a linguagem da guerra, são incor-
rigíveis, chegou o momento de definirmos essa batalha. - Sugeriu Dom
Maximiliano, trajado com a sua habitual indumentária episcopal.
- Eu sei muito bem que essa insurgência já tomou proporções ini-
magináveis. - Disse o imperador sentado sobre o trono.
- O que eram algumas centenas de miseráveis que se recusavam a
comer do fruto, hoje se transformaram num grande movimento subsidia-
do por um banco central alternativo.
- Malditos, até a minha filha tomaram de mim… - Lamentou-se o
imperador.

A princesa dilacerada 209


- E aquele Carlos Eduardo Andradas, esteve o tempo todo ao al-
cance de nossas vistas, é tão perigoso quanto o irmão, fora isso, também
temos a resistência de Cícero e os seus soldados que sempre nos trouxe-
ram problemas. - Disse Maximiliano num tom aborrecido.
- Apesar de tudo isso, é a minha filha que se levanta contra mim,
logo a minha herdeira.
- Eu compreendo a vossa dor, majestade, todos os dias me coloco
em oração pedindo a Deus para confortar a sua alma, embora eu deva
preconizá-lo que os assuntos do Divino Leviatã são mais importantes que
a nossa amada princesa imperial. Sendo assim, é prudente que o impe-
rador convoque o STR para estabelecermos um conselho de guerra, não
devemos atrair atenção excessiva do plano celestial para os nossos proble-
mas. - Aconselhou o reverendo.
Papai ficou e não deu uma resposta ao reverendo, embora, a sua
perplexidade foi quebrada com a intervenção de um mensageiro que en-
trou sem grandes cerimônias na sala imperial, o homem vestia um traje
do divino exército, caminhava claudicante e ferido, segurava consigo uma
carta manchada de sangue.
- O que significa isso? - Perguntou Maximiliano.
- Assim como foi ordenado, avisamos aos rebeldes do prazo es-
tipulado para comerem do fruto da Ninrode, mas a nossa guarnição foi
atacada pelos homens de Cicero, me deixaram com vida para que eu pu-
desse entregar essa carta. - Disse o soldado que deixou a carta sob os
cuidados de papai e logo após desmaiou.
- Isso é revoltante, passou de todos os limites. - Irou-se o reveren-
do.
Papai limitou-se em abrir a carta e ler os meus dizeres:
“Os tempos são de paz? São essas as boas novas tão anunciadas por
címbalos e trombetas? Eu lhe trago o sangue desse combalido soldado, assim
como as espadas com os brasões imperiais, deslizaram sobre os pescoços
desses pobres inocentes. Vida e morte sob a égide de um tratado celestial,
enquanto comíamos pães e frios no Paço de Petrópolis.
Hoje conheço a verdade, e ela me libertou. O seu neto em breve nas-
cerá, e espero que seja num mundo de paz.
As pessoas me chamam por Santa Vitória, embora eu ainda não
saiba a real dimensão desse legado. Curei enfermos e reergui o orgulho des-

210 O Divino Leviatã


sas pessoas, que apenas adoram a Deus as suas maneiras ou não prestam
culto algum, pois acredito que esse direto também lhes pertencem.
Desde já,  peço para que não mais interfira na vida dessas pesso-
as, ou faça a providência divina ser mais convincente por meios pacíficos. 
Papai, aqui me despeço, mande lembranças a mamãe e tenha cuidado com
Abel e Maximiliano,  eles não são as pessoas que julgam ser.
Espero encarecidamente que não haja um confronto entre nós, em-
bora eu considere inevitável.
Abraços de sua amada filha, Princesa imperial D Vitória Versalhes
de Bragança.
Reino de São Paulo,  Província do Gasômetro,  21 de novembro de
2048.”
Papai leu a carta sem demonstrar emoções, levan-
tou-se do trono e tomou a única posição que poderia tomar. 
- Reverendo Maximiliano, convoque o STR e todos os principa-
dos do império, faremos o ofício de guerra. - Declarou com um semblante
austero e entristecido.
Maximiliano apenas o reverenciou, deixando-o com os seus de-
mônios.

A princesa dilacerada 211


FINAL
Prólogo do Sacrifício

Primeiro Ato
O despertar do amor

A
s minhas lembranças finalmente alcançaram o nono mês
de gestação, sinto o meu corpo aquecido pelo arder das
brasas numa pequena fogueira que centralizava uma roda
de amigos, as pessoas dançavam e cantavam embriagadas pela noite, as
crianças chutavam uma bola de futebol sem grandes objetivos, Tião e
Montserrat faziam stand ups para entreter os populares, todos se diver-
tiam.
Kadu circulava no entorno da fogueira com um carrinho de
algodão-doce, oferecendo um pouco de alegria para aquelas pes-
soas. E eu estava por ali... Sentada sobre uma cadeira de praia, já não
havia em mim qualquer vestígio principesco, minha figura  confun-
dia-se com a simplicidade de qualquer popular, e assim eu me sen-
tia feliz, enlaçada num vestido de pano com estampas floridas.
E o carrinho de Kadu chegou na sua última parada, trazia um
mísero algodão-doce.
- Açúcar cristal e um corante azul adicionados a uma máquina
girando no sentido horário. O milagre que está dentro de minhas possi-
bilidades. - Disse Kadu com um sorriso farto.
- É mesmo? Hum... Pode até ser um milagre fácil de realizar, mas
é o mais gostoso. - Retribui o sorriso e gentileza.
- São trinta pratas, moça. - Assim Kadu me cobrou, usando de
uma irreverência incomum a ele, estendendo-me um chapéu preto que
fortuitamente tomou de um cidadão que passava ao lado.
- Não tenho trocados miúdos, servem títulos da coroa?
- Nesse caso vou abrir uma exceção, estou com pena de ti, os títu-
los da coroa de nada valem aqui, tome de graça! Não morra de fome.

212 O Divino Leviatã


Assim demos boas gargalhadas. Kadu ajeitou uma cadeira ao meu
lado e se acomodou.
- Eu nunca vi essas pessoas tão felizes, você fez isso, Vitória.
- Imagine... Bondade sua. - Fiquei desconcertada.
- Você conhecia a Montserrat e o Tião? - Perguntou Kadu.
- Eu os conheci na minha primeira visita aqui no Gasômetro, qua-
se morremos. - Comentei.
- Eles possuem uma história linda... - Dizia Kadu enquanto assis-
tíamos o stand up da dupla. - Tião nasceu com o nome de Amanda Wong,
apesar de ser brasileira, sempre viveu em colônias chinesas, formada em
Administração, o seu destino era herdar os negócios do pai nas diversas
lojas no bairro oriental, mas se apaixonou pelo circo.
- Interessante, Tião é um homem transexual? - Perguntei.
-Não, Tião não se reivindica como homem, não sei ao cer-
to o que o define, ele não gosta de rótulos, tem alma de artista, assim
como Montserrat...  Essa tem uma história interessante! - riu. - Foi co-
nhecida por muitos anos por Benício Vancini, primeiro tenor do coro
de sua igreja, italiano de nascença, também foi gerente bancário. Por
trás da sua performance de homem de bem, existia um segredo,  a fo-
gosa Montserrat. Todos os sábados depois das reuniões da igreja, lá es-
tava ela, fazendo shows no circo e em uma dessas apresentações ela co-
nheceu Amanda Wong, foi amor a primeira vista, a  única questão era
financeira, Amanda vendeu a sua loja e quitou todas as dívidas do circo. 
Encantada com aquele universo circense e tudo  que representava o per-
sonagem de Benício, Amanda teve a sensibilidade de perceber que a com-
panhia de circo precisava de um mestre de cerimônias, um personagem
caricato que faria escada para a maior estrela, assim nasceu Tião.
O Cirque del Montserrat fez muito sucesso até o emblemático 15 de No-
vembro de 2022, o dia da ascensão do Império.
Toda a companhia morreu naquela guerra, eles perderam tudo, desde en-
tão, sobrevivem com o que a sorte oferece.
Assim disse Kadu que assistia a Montserrat cantando “O barbeiro
de Sevilha” trajada com um biquíni de bolinhas amarelas.
- É uma história tocante, mas por que me contou? - Perguntei.
- Apesar dos planos divinos, essas pessoas viviam os seus sonhos,
não queriam fazer parte de um grande plano, você devolveu a esperança

A princesa dilacerada 213


para essas pessoas. Por muitos anos eu planejei a minha vingança, deta-
lhei cada passo... Então eu percebi que o pior castigo para o imperador
seria perder a sua filha tão amada... Eu deixei que as coisas seguissem o
seu fluxo natural.
- Você acha que eu consigo ajudar essas pessoas?  - A pergunta
causou diversas reações em Kadu, das quais, apenas uma guardei para
mim.
Os seus olhos encontraram os meus, senti as suas questões inva-
direm as minhas janelas da alma, estávamos conectados, os seus lábios
ensaiaram as palavras certas para arrebatarem o meu coração.
- Essa fogueira é a extensão do seu milagre…
- Olhe essas pessoas, o que Deus reservou a elas? Foram destina-
das para os caprichos divinos, uma hecatombe com pilhas de corpos...
Sem você o canto da Montserrat seria convertido em fogo fátuo, todas es-
sas pessoas dançando e sorrindo, seriam apenas figuras presas na  rigidez
cadavérica... Além disso... Você fez um milagre em mim...
-Fiz? - Perguntei encabulada.
Nos conectamos entre mãos e olhares, o algodão-doce caiu sobre
a terra umedecida, não haviam palavras a serem ditas, apenas a colisão
entre dois mundos, lábios que se encontraram pela primeira vez, uma
afronta aos deuses, era esse o milagre que realizei no coração de Kadu:
Renunciou a sua vingança contra o meu pai, pelo amor que sente por
mim. Eu estava disposta a viver aquela vida simples com ele, ter o meu
filho e me confundir entre os comuns, não precisei ser uma princesa, tão
pouco uma deusa, apenas o amei...
E ainda o amo...

214 O Divino Leviatã


FINAL
Prólogo do Sacrifício

Ultimo Ato
^
O Genesis

O
que torna a vida humana um registro na existência? 
As lembranças são arquivos quânticos na imensi-
dão do universo... Ainda assim cometemos a insanidade
de pensarmos na inexistência como uma possibilidade...
Abrisse-vos à! Buscais e achareis as lembranças do primeiro ao
último ato.
“Nasce em Petrópolis a descendente da antiga famí-
lia Versalhes de Bragança! Filha do mestre cervejeiro, que rene-
ga suas raízes imperiais e vive num bucólico sítio com sua es-
posa Camila e o seu filho Abel.” Foi capa da folha de Petrópolis.
“Morre a princesa do Brasil! O trágico desfecho da guerra do Gasômetro.”
Esse foi o título de capa do “Tribuna Paulistana”.
Deus através de linhas editoriais, anunciou a minha chegada e
partida do mundo. Eu vejo Deus contemplando a sua imagem nos espe-
lhos da existência, os infinitos reflexos converteram-se em almas.
O que Deus viu no espelho quando me criou?
- E a pergunta de Vitória ecoou... - Disse uma voz que soava como
relâmpagos.
- Quem ousa invadir a minha mente?
- Você foi tão longe... Não se contentou em ser uma deusa,  agora
tenta ser a própria concepção de justiça e verdade? - Questionou a pode-
rosa voz.
Vitória interrompeu as suas lembranças e voltou para o plano terres-
tre, o cubo de Metatron ainda não havia agrupado todas as suas partículas.
-Essa voz não pertence ao Abel, quem é você? - Perguntou Vitória.
- O que Deus viu no espelho? Essa é a sua pergunta? Eu a observei

A princesa dilacerada 215


em todas as suas reflexões, desde a interação com Abel, os atritos com Ma-
ria no submundo, até o momento que obteve o cubo do anjo Metatron...
Você teve o tempo de toda uma existência para fitar-se nos espelhos, e
ainda não encontrou a sua natureza? Acha mesmo que na ressurreição
encontrará essas respostas?
-Deus... - Sussurrou Vitória. - Eu tive uma existência para compre-
ender os meus demônios... E você... Olhou para o seu reflexos, não gostou
do que viu e os culpou por suas naturezas, não admitiu para você mesmo que
todas as ações dos homens na história eram partículas do seu próprio ego.
A primeira mentira da existência foi sua, inventou o livre arbítrio para
anistiar as suas próprias questões, transferindo-as para humanidade...
Responda-me, qual mortal suportaria o peso das mazelas de um Deus?
Agora você quer mortificar o livre arbítrio... Até quando pretende brincar
conosco? - Perguntou Vitória num tom de afronta a Deus.
-Até quando questionará essas coisas?! Não é óbvio para você? -
Irou-se Deus. - A minha vontade converte-se em realidade... Eu penso,
logo realizo... Assim é... Não cabe a um Deus se rebaixar a filosofia. Cabe
a humanidade adorar-me e ser grata por minha misericórdia. - Bradou
a voz do Criador que precedia aos relâmpagos. - O curioso dessa prosa
é que a filosofia também é parte de você...  Tudo que provém da mente
humana já estava sob a expiação do próprio Deus, e mesmo assim nos
deixou trilhar esse caminho,  por que?
Antes que Vitória pudesse ter a resposta para sua pergunta, o cor-
po da princesa expandiu uma grande quantidade de energia.
- Esse poder... - Sussurrou Vitória.
- Sim, foi um salto quântico, o seu corpo em breve será restaurado.
- Disse a voz.
- Uma centelha de criação? Inacreditável! - Espantou-se Vitória ao
contemplar uma grande manta energética envolvendo o seu corpo, foi a
partir dessa energia que o Gênesis começou.

As lembranças de Vitória retornaram para 2038:
Vejo um grande templo... Me parece o clero, ape-
sar de ter visitado esse lugar duas vezes, nunca me foi familiar...
Maximiliano estava elevado a um púlpito de dois metros, com seu
hábito episcopal, logo acima dos sete supremos clérigos que levitavam a

216 O Divino Leviatã


um metro do solo.
- Viemos assim que o édito foi conclamado, deixamos os nossos
afazeres pela urgência que entoou. - Disse Ezequiel, o supremo clérigo do
reino das Minas Gerais.
- Exatamente, nosso sacerdócio nos reinos é muito importante,
pressinto que seja algo extraordinário. - Complementou Ático, supremo
clérigo do reino do Sul.
- Eu compreendo vossos sacerdócios, se não fosse um assunto do
interesse do clero, não os convocaria. - Explicou o Reverendo. - Então
diga, o que nos trouxe aqui?
- Meus caros, vocês devem estar cientes de todos os eventos ocor-
ridos no Gasômetro, infelizmente esse conflito atingiu proporções inima-
gináveis para uma insignificante resistência num pequeno distrito.
- Trago a vocês uma inspiração do próprio Criador! - Disse Maxi-
miliano ao levantar os braços numa performance teatral. - Deus compar-
tilhou comigo uma visão que dará outro rumo a essa crise! 
- E o que isso significa? - Perguntou Ezekiel. - O imperador Dom
Fernando não quer investir numa guerra contra esses terroristas, percebo
um temor de uma guerra civil.
- Ora, uma saída diplomática não seria a solução mais elegante?
Não vejo como um derramamento de sangue possa agradar o nosso Deus.
A interpelação do Clérigo Simeon do Reino de São Paulo trans-
formou o semblante ávido e feliz do Reverendo, nas feições de um conde-
nado que encarava o juri que acabara de sentenciá-lo.
- Simeon, os desígnios de Deus são mais importantes que a diplo-
macia do homem, chegamos no estágio que a omissão pode nos custar
caro, não sejamos como o profeta Elian, que negligenciou o seu sacer-
dócio, precisamos agir! Deus encarregou o clero de fomentar o conflito
contra a resistência. - Disse Maximiliano.
- E como faremos isso? - Indagou Ezekiel.
- Faremos ataques em todos os sete reinos, quanto mais víti-
mas tivermos nesses atentados, mais comoção teremos, todos os in-
dícios desse ataque serão direcionados para os insurgentes. - Revelou
Maximiliano.  - E é claro... Temos um poderoso aliado nessa batalha...
Maximiliano congelou o seu sorriso por uns segundos e revelou
uma improvável aliança.

A princesa dilacerada 217


- Entre Cícero. - Ordenou o Reverendo.
Cícero adentrou ao templo e encarou cada clérigo, ficou de frente
a Maximiliano e prostrou-se perante ele.
- Isso só pode ser uma piada de muito mal gosto. Indignou-se
Ezekiel.
- Foi para isso que nos trouxe aqui? - Irou-se Simeon.
- Não vejo motivos para exaltações, Cícero e eu temos um acor-
do... Trarei a sua pequena Lúcia dos mortos, em troca, ele nos fará um
favorzinho...
- Sim... - Concordou Cícero. 
- Eu espero que você cumpra com o que foi acordado, minha dig-
nidade e honra de guerreiro de nada importa sem a minha filha...
- Eu sou um sumo sacerdote, não posso faltar com a minha pa-
lavra, sua filha está numa ala especial do submundo, os demônios não a
tocam. - Tranquilizou Maximiliano.
- Um momento por favor! - Bradou o Clérigo Mathias, Sacerdote
do Rio de Janeiro. - Desde quando pode decidir quem pode voltar a vida?
- As atenuantes, meu caro... Cícero pagará pelos pecados da filha
e assumirá todos os ataques terroristas, o seu rosto precisa ser filmado em
cada alvo de ataque. - Explicou Maximiliano.
- Se isso for tudo, eu já quero me encarregar dos ataques. -  Disse
Cicero que mantinha-se ajoelhado e com os olhares direcionados para o
chão.
- Faça como preferir, você terá o apoio de alguns de nossos solda-
dos. - Disse Maximiliano.
- Sendo assim, me retiro.
Cícero deixou o templo e também toda a sua dignidade, não havia
sequer um elétron do homem que foi.
- Enquanto a vocês, nobres Clérigos, auxiliem Cícero no que ele
necessitar. E nem preciso alertá-los sobre o sigilo dessa missão.
- Faremos o que nos ordenou, embora eu ainda não compreenda
as intenções do Criador ao atentar contra o próprio povo que o segue em
devoção. - Disse Ezekiel.
- Os mistérios de Deus estão além da nossa compreensão, as víti-
mas inocentes são consciências inevitáveis num fronte de guerra, eu vejo
a questão por um outro prisma, as almas que partirão nesse atentado se-

218 O Divino Leviatã


rão promovidas ao céu. A nossa prioridade é extirpar o mal desse mundo,
não importa o preço a ser pago.
O Reverendo Maximiliano anunciou o édito das suas próprias
ambições, os atentados aos sete reinos ocorreram naquela mesma noite:
213 vítimas…
Cícero era um guerreiro hábil e objetivo, muito diferente do exibi-
cionismo cruel que demonstrou frente as câmeras de TV.
Os insurgentes no Gasômetro assistiam atônitos na sala de
conferências da Santa Casa, as ações insanas de seu líder Cícero. 
- Eu não posso acreditar... - Lamentava-se Kadu ao assistir o líder
insurgente atacando os populares com o apoio de mercenários contrata-
dos pelo clero.
- No que isso afeta a nossa situação? - Perguntei.
Kadu direcionou os seus olhares para todas as mulheres e crian-
ças que ali estavam, logo depois, fechou-se num silêncio amedrontador, e
assim ficou por um minuto.
- Tem alguma coisa errada nisso tudo, Cícero não me parece o
tipo de homem que faria uma ação tão desastrada, isso vai atrair toda a
divina armada imperial contra a resistência. - Comentou Valéria que as-
sistia as imagens do atentado.
Por um instante, a minha visão periférica foi atraída por um bri-
lho cintilante na janela lateral da sala de conferências. A primeira vista,
deslocavam-se como fogos de artifícios, até o momento que percebi que
eram mísseis destinados para a Santa Casa.
Eu só tive a reação de olhar para as pessoas que ali estavam pre-
sentes e gritei:
- Saiam do hospital!
Houve três reações ao meu grito: Os rebeldes treinados em evacu-
ações de grandes edifícios me acompanharam numa desesperada corrida,
um segundo grupo apenas assistiu o nosso desespero e foram consumi-
dos pelo fogo. A última reação e a mais triste, foram os instintivos abraços
entre mães e filhos, um lindo gesto de proteção que foi superado pelo fogo
do Império.
Apenas 5 sobreviveram, Valéria, Kadu, Montserrat,  Tião e eu...
No lado de fora dos escombros da Santa Casa, uma densa fumaça oca-
sionada pela explosão, camuflavam os corpos que tentavam fugir de suas

A princesa dilacerada 219


sortes, soldados do Império metralhavam os insurgentes, não pouparam
mulheres ou crianças. A ordem era executar a todos, sem distinção.
- Quem dera fosse um peixe! Fígaro! Fígaro!! - Declamava Mont-
serrat, tentando disfarçar o medo com seu o bom humor.
- Isso lá é hora para cantorias, mulher? - Indagou Tião inconfor-
mado.
- Só estou tentando me acalmar, mas não está sendo fácil, como já
dizia Kátia, a cega!
- Fiquem quietos, seus idiotas, não chamem atenção com essas
bobagens. - Irritou-se Valéria.
- Precisamos nos esconder nos abrigos de contingência. - Sugeriu
Kadu que nos conduzia em meio a névoa da morte, desviando dos corpos
que jaziam no chão.
Os sons das metralhadoras e os gritos de horror alternavam-se
numa tórrida sequência, eu sentia o deslizar dos corpos dos outros quatro
sobreviventes.
Num determinado ponto do percurso chegamos a um pequeno
portão azul.
- Chegamos. Disse Kadu.
- Esse é um abrigo antiaéreo? Por acaso é uma brincadeira? - In-
dagou Valéria ao analisar a simplicidade do local.
- O abrigo é subterrâneo e liga a outros pontos da cidade, é a nossa
única saída. -  Explicou Kadu que estava com o ombro seriamente machu-
cado. 
Entramos rapidamente no abrigo, muitas daquelas casas no Gasô-
metro eram fachadas que davam acesso ao abrigo.
O primeiro cômodo da casa era uma cozinha simples com uma
mesa circular no centro.
- Sentem-se, por favor. - Pediu Kadu que posicionou-se ao norte
da mesa, logo em seguida, preenchemos os outros espaços.
- Estão preparados? - Perguntou Kadu.
- Preparados para o que? - Indaguei.
Kadu acionou um botão camuflado na parte inferior da mesa,
toda aquela estrutura submergiu para um complexo subterrâneo a cem
metros do chão. Para a surpresa de todos, não havia ninguém no abrigo,
a escuridão pairava sobre o úmido e lúgubre esconderijo.

220 O Divino Leviatã


- O que aconteceu com o restante das pessoas? - Perguntou Tião.
- Morreram todos... - Respondeu Kadu num tom de lamento.
Repentinamente as luzes do abrigo foram acesas, surge a nossa
frente, o algoz de toda aquela tragédia, Cícero.
-Você… - Sussurrou Kadu ao fitar a figura do líder insurgente
nos assistindo com os braços cruzados e um olhar indiferente. - O que
aconteceu? Por que fez isso? Por acaso não tem a dimensão do mal que
fez? - Questionou que a cada momento ganhava o rubor do ódio em seu
semblante.
- Foi por Lúcia… - Disse Cicero de uma forma vaga.
- Do que está falando? - Perguntei.
-O Reverendo me prometeu que traria a minha filha do mundo
dos mortos...
- Então você resolveu sacrificar centenas de  pessoas por causa do
seu egoísmo? Todos morreram em vão por que você não soube lidar com
a sua perda, foi isso?
- Lúcia não merecia morrer, era apenas uma criança... - Disse Ci-
cero ao contemplar o vazio.
As declarações de Cicero fizeram a entropia emocional de Kadu ebulir ao
ponto de perder o seu equilíbrio e o golpear com um soco na face esquer-
da, fazendo-o tombar ao chão numa expressão fria, como se nada mais
importasse.
- E quem merecia morrer? - Perguntou Kadu.
- Seja como for, esse abrigo não será de grande ajuda. - Concluiu
Valéria.
- Não é seguro?  Estamos a cem metros da superfície. - Argumen-
tou Montserrat.
- A Divina Armada Imperial possui diversas tecnologias para en-
contrar esse tipo de esconderijo, temos os mapas de relevo de todos os
cantos do Império, além disso, também é possível identificar alvos hu-
manos através da visão infravermelha ou do campo eletromagnético.
- Eu não entendi nadinha. - Disse Montserrat balançando a cabe-
ça.
- Trocando em miúdos, o que ela quis dizer é que estamos ferra-
dos! - Explicou Tião com tanta ênfase que fez a sua cartola cair. - Ela está
certa, aqui não é seguro, vão embora, salvem suas vidas.

A princesa dilacerada 221


- E o que você vai fazer? - Perguntei.
- Isso não importa mais, estou pronto para encarar o meu destino.
- Respondeu Cícero ainda abatido no chão.
Foi nesse momento que eu senti pequenos sedimentos do teto ca-
írem sobre a minha cabeça, olhei para cima e percebi que haviam grandes
fissuras que tremulavam junto as lâmpadas fluorescentes.
- Meu Deus, o que foi isso? - Se perguntou Tião.
- Não pergunte a Deus, isso é obra dos seus enviados, foram eles
que proporcionaram esse momento. - Ironizou Montserrat.
- Isso não é nada bom, existe uma saída alternativa desse lugar? -
Perguntou Valéria.
- O abrigo é ligado aos antigos canais de esgoto, é a nossa única
chance.- Disse Kadu apontando para uma porta de ferro aos fundos do
esconderijo.
- Conforme os diálogos se desenvolviam, sentia as minhas pernas
pesarem, os meus olhos embaçaram e aos poucos o chão fugiu dos meus
pés, dessa vez Valéria foi ao meu socorro.
- Princesa! Princesa!
Percebi um líquido quente vazando entre minhas pernas, a bolsa
havia estourado.
- Precisamos sair daqui agora! - Gritou Valéria, levando-me em
seus braços na direção dos canais.
Kadu e os outros também evacuaram o abrigo, deixando Cícero
a sua própria sorte, consumido por sua culpa e condenado pela sua trai-
ção. Corríamos na escuridão dos canais, na trilha dos ratos que fugiam
desesperados, a cada dez metros que avançávamos, grandes estrondos
abalavam as estruturas.
- Eu nunca imaginei que a divina armada imperial fosse tão cruel...
Papai sempre falou que a sua missão era salvar os insurgentes, a que pre-
ço? - Me perguntei.
- Não pense nisso, princesa, todas essas coisas já passaram, vou
escoltá-la até o Palácio dos Bandeirantes e deixá-la sob os cuidados da
rainha Aurora de Avís.
- E quanto a Kadu e os outros? Devemos protegê-los, não é mes-
mo? - Questionei.
- A vida desses não é a minha responsabilidade. - Respondeu Va-

222 O Divino Leviatã


léria num tom indiferente.
Toda aquela trilha nos levou a uma grande escada de ferro embu-
tida a uma parede.
- Essa escada da acesso a catedral da Sé. - Explicou Kadu.
- E como vamos transportar essa moça grávida? - Perguntou Tião.
- Eu poderia carregá-la sem problemas, mas eu preciso abrir a
tampa que está selada. - Justificou Kadu.
- Quanta bobagem, eu carrego, já estou fazendo isso! - Prontifi-
cou-se Valéria.
- Me coloque no chão, eu posso subir sozinha.
- Mas princesa,  você está frágil... - Relutou Valéria.
- Vou subir essa escada sozinha e não iremos para nenhum palá-
cio, vamos resistir.
Eu já estava debruçada nas laterais da escada, nada me impedi-
ria de subir sem nenhum auxílio,  logo acima estava Kadu, usando uma
pequena pistola laser nas bordas da tampa de cobre para liberar o nosso
acesso.
- Pronto, consegui. É melhor nos apressarmos. - Disse Kadu.
A escada nos deu acesso dentro da catedral. Aquele lugar foi en-
tregue as ações do tempo, resquícios de velas derretidas e o característico
cheiro do abandono.
- Ninguém reza por aqui há muito tempo… - Observou Mont-
serrat, desvencilhando-se de uma teia de aranha enroscada a sua peruca
loira.
Eu me deitei sobre uma bancada e fitei as abóbodas  do templo.
- No princípio era o verbo. Ele vai habitar entre nós. - Sussurrei as primei-
ras palavras que vieram a mente.
- Ela vai entrar em trabalho de parto. - Afligiu-se Kadu.
- Afastem-se, vocês dois! Preciso de espaço aqui. - Exasperou-se
Valéria ao afastar Tião e Montserrat da bancada.
Valéria segurou minhas mãos e olhou diretamente em meus olhos.
- Respire fundo, princesa,  eu preciso que faça um pouquinho de
força, o seu bebê já está as portas. - Disse Valéria.
- E o que eu faço? - Perguntou Kadu.
- Você vai esperar a chegada do bebê. Orientou Valéria.
- Isso é constrangedor, nunca vi um parto na minha vida. - Co-

A princesa dilacerada 223


mentou Kadu.
Montserrat me observava de longe com expressões de repulsa,
Tião andava de um lado para o outro sem saber o que fazer.
Kadu examinava as minhas contrações com um excessivo cuida-
do.
- Vamos, você consegue! - Incentivava Kadu.
Os meus olhares se perdiam nos detalhes da abóboda,  eu tentava
anestesiar as dores do parto com a minha imaginação, as vozes de Kadu
e Vitória se misturavam com as expressões incógnitas de Tião e Montser-
rat, tudo havia se transformado numa fusão de sons e imagens distorci-
das, estava prestes a desmaiar quando um poderoso ataque destruiu parte
do teto da catedral.
- O que foi isso? - Se perguntou Kadu.
- Vocês atacam o meu reino, matam os meus cidadãos e se escon-
dem nas minhas ruínas?
- Quem vocês pensam que são?
Uma figura com asas mecânicas e uma indumentária branca des-
cia dos céus como um anjo enviado pelo próprio Deus,  era Aurora de
Avís, Rainha de São Paulo.
- Aurora? Houve um engano, o ataque não partiu da resistên-
cia, foi uma ação isolada de Cícero. - Tentou explicar Kadu.
- Poupe-me de suas histórias, matarei a todos, com a exceção da
princesa.
- Não importa que seja irmã de Maria, não vou deixar que mate
mais inocentes! - Kadu efetuou seis disparos com uma pistola convencio-
nal,  os tiros ricochetearam no campo de força de Aurora.
- Enquanto os insurgentes brincavam de rebeldia trans-
viada e pós-moderna nos confins do meu reino, saquea-
vam para subsistência e eram problemas apenas para o impera-
dor,  eu não interferia na guerra, mas agora... Agora é diferente!
Cidadãos do meu reino morreram, e alguém precisa pagar por isso. -
Disse Aurora suspensa em suas asas e envolta na luz de sua armadura.
- Eu não conheço nenhuma Maria... E vou executá-lo agora mes-
mo.
Aurora apontou o seu dedo indicador na direção de Kadu e o fez
levitar.

224 O Divino Leviatã


- Eu não consigo me mover. - Queixou-se Kadu.
Aurora o arremessou contra uma fileira de bancos.
- Kadu! - Todos gritaram.
- Não se preocupem, vocês serão os próximos.
- Aurora, por favor, ninguém mais precisa morrer, se não tem ou-
tro remédio, pode me levar, mas não mate essas pessoas. - Supliquei.
- Você não está em condições de negociar, princesa. A lei será
cumprida, e nada mais. - Enfatizou a rainha.
- Você era uma duquesa bondosa, assim como foi sua irmã,  o que
aconteceu?
Aurora manteve-se fria e objetiva em sua missão, era um mero
instrumento do Império.
- Aconteceu o que Deus reservou, nada mais que isso...
Valéria posicionou-se a minha frente, desembainhou a sua espada
e a colocou na direção de Aurora.
- Eu não me importo com você ou essas pessoas, a minha missão é
proteger a princesa, independente do lado que ela tomar na guerra, nesse
caso, você é minha adversária. - Disse Valéria num tom desafiador.
Repentinamente um feixe de plasma vermelho atravessou o peito
de Valéria, arremessando-a contra a sacristia.
O ataque não partiu de Aurora, acima dela, três pessoas se ma-
terializaram: Abel, o Reverendo Maximiliano e o clérigo de São Paulo,
Mathias.
- O que fazem aqui? E por que interferem na minha missão? - In-
dagou a rainha demonstrando grande irritação.
- Quanta demora para executar uma tarefa simples. - Disse o Re-
verendo num de reprovação. - Esse é um assunto do interesse do clero. A
princesa e a criança terão uma escolta especial. - Respondeu Maximilia-
no, fechado em seu hábito episcopal preto e protegido a uma couraça de
aura azul.
- Por acaso são os três reis magos? Trouxeram incenso e mirra? O
que tanto querem com essa criança? - Questionou Montserrat ajeitando a
sua peruca.
- Olha se não são as aberrações do mercado de escambos. - Os ri-
dicularizou Abel. - Irmãzinha, você precisa escolher melhor as suas ami-
zades, que exemplo você quer deixar para o seu filho? 

A princesa dilacerada 225


- Você tentou me matar, que mal eu fiz? - Eu perguntei em meio as
dores.
- Não é pessoal, irmãzinha, só estou corrigindo os seus passos,
esse é o papel dos irmãos mais velhos.
Abel pousou e caminhou ao meu encontro,  ele sorriu pacifica-
mente e esfregou as mãos como se estivesse preparado para algo.
- Vitória, que tal falarmos sério agora? Você vem comigo e o seu
filho ficará sob os cuidados do Reverendo.
- O que vocês querem com o meu filho? - Perguntei.
- Como eu poderia te explicar isso? Hum…. Já sei!  Além do seu
filho ser um herdeiro ilegítimo filho de um traidor, ao que parece, existe
algo muito errado com essa criança?
- Do que está falando? - Perguntei.
- Permita-me explicar, príncipe.
- Majestade, no início dos tempos, o Criador baniu sete poderosos
Leviatãs para as profundezas do tártaro, o próprio Deus designou ao anjo
Metatron a missão de mantê-los no cárcere, não são meros reflexos de
Deus na existência, é algo ainda mais grandioso. - Revelou. - Os Leviatãs
são os próprios egos de Deus... Representavam os sete dias da criação.
No antigo Éden, existiam as árvores das sete virtudes capitais. “De todos
os frutos podereis comer, exceto os frutos do conhecimento do bem e
do mal”, assim diziam as escrituras sagradas. Adão e Eva foram tentados
por Lúcifer a invadir o bosque dos Leviatãs e comer de cada fruto do co-
nhecimento. Os sete Leviatãs foram adormecidos por um encantamento
de Satanás, e quando acordaram, já era tarde, foi o fim das sete virtudes
e o começo dos sete pecados capitais. Os Leviatãs foram punidos com a
destruição de seus corpos perfeitos e a condenação ao tártaro, Adão e
Eva foram expulsos do Paraíso e todos os seus potenciais foram divididos
em sete chacras, dificultando as suas plenitudes e contato com o Criador.
Desde então, os Leviatãs nutrem um grande ódio pela humanidade... E o
seu filho é a encarnação dessa vontade. O próprio Deus...
-  Por que diz esses absurdos, Reverendo? Como o meu filho pode
ser o próprio Deus? - Eu perguntei.
- Deus não está num espaço físico ou espiritual, ele é a consciência
sobre todas as coisas.
- Os sete Leviatãs formaram o verbo, e ele se tornou carne. Não se

226 O Divino Leviatã


preocupe, princesa,  Deus tem muitos inimigos, e eles sempre atentaram
contra a paz, a minha missão será o extermínio desse mal.
Maximiliano deslocou-se em grande velocidade na direção da
bancada, em frente ao meu corpo, desembainhou uma pequena adaga e
declarou:
- Sócrates chegou ao coração de Deus, superou a sua penitência e
foi até aos céus, assim nasceu o acordo entre as três esferas da existência,
era óbvio que despertaria a ira dos Leviatãs.
- Eu não dou a mínima para essa história, você não vai tocar em
meu filho!
- Receio que isso não cabe mais a você, isso termina aqui.
Maximiliano investiu um golpe com a sua adaga, mas foi surpre-
endido por Cicero, que interceptou o golpe com a luva de Arquimedes, 
desintegrando a lâmina;
- Acho que tínhamos um acordo, Reverendo. - Disse Cicero.
- Oh! Mais é claro! A sua filha. Não podemos resolver essa questão
uma outra hora? - Perguntou Maximiliano.
- Eu quero agora! - Exigiu Cícero.
- Acordo? Que tipo de acordo você teria com um terrorista, espe-
ro que tenha uma boa explicação para isso. - Indignou-se Aurora.
- Esse é um assunto do clero, rainha.
- Você me prometeu, faça a minha filha voltar a vida. - Exigiu Cí-
cero. 
- Acho que houve um erro de semântica, eu disse que teria a sua
filha de volta, mas não em vida...
O Reverendo elevou a sua mão direita na direção do firmamento,
e manipulou as nuvens com o seu dedo indicador e desenhou um hexa-
grama.
- O que isso significa? - Perguntou Cicero.
- A minha promessa!  - A exclamação do Reverendo pre-
cedeu a um grande terremoto. Que a morte me entregue um dos
seus, Lúcia partiu pelo ato nobre do sacrifício, não era chegada
a sua hora. Eu a declaro absolvida de suas penitências, que a ter-
ra devolva o que tomou! - Recitou o Reverendo ao contemplar uma 
fenda rasgando o chão da catedral, fazendo emergir das profundezas, um
corpo espectral que exalava um forte cheiro de enxofre.

A princesa dilacerada 227


Uma aura negra e opressora emanava daquele corpo, definitiva-
mente não era a pequenina Lúcia.
- Foi o que eu pensei... Você é um grande vigarista, Reverendo,
achou mesmo que eu cairia em seu truque barato?
- Papai... - Sussurrou o espectro.
- Você não é a minha filha! - Gritou Cícero que ergueu o espectro
e o desintegrou com a sua luva de Arquimedes.
- Dramático. - Disse o Reverendo com um sorriso irônico e aplau-
sos espaçados.
- Então foi isso... Você manipulou toda essa situação desde o co-
meço... - Concluiu Aurora.
- Entenda como quiser,  Rainha... - Desdenhou o Reverendo. 
- Agora eu compreendo... Você também matou o meu irmão, in-
dependente de suas escolhas, não merecia morrer. - As lágrimas vertiam
do rosto da rainha, em suas feições, a dor do arrependimento.
- Quer se libertar dessa dor, Aurora? - Indagou o Reverendo.
- E o que isso significa? - Perguntou a Rainha.
Maximiliano a encarou por alguns segundos e sorriu.
- Convenhamos... Você é uma figura que me inspira alguns cuida-
dos, não posso deixá-la partir, não depois do que presenciou aqui...
- Por acaso isso é uma ameaça? - Indignou-se a princesa que ma-
terializou uma espada de cristal e direcionou contra Maximiliano. Mont-
serrat e Tião assistiam embasbacados aquele confronto e perceberam
uma grande oportunidade de fugirem da catedral.
- Essa é a nossa chance, vamos fugir, Montserrat.
- E vamos deixar a Vitória aqui? Perguntou Montserrat.
- E o que podemos fazer? Ela está em trabalho de parto, não temos
como carregá-la, sem chamar à atenção deles. - Problematizou Tião.
- Deixa comigo, eu sei o que fazer.
Montserrat se aproximou de mim, ajoelhou ao meu lado e limpou
o suor de minha testa.
- Fica quietinha, vamos sair daqui enquanto esses idiotas se ma-
tam. - Assim disse Montserrat soprando as palavras.
Ao me pegar em seus braços, ela caminhou na direção da saída de
incêndio, que ficava a esquerda de quem adentra ao templo. Tião abriu a
porta com todas as minucias que eram possíveis, sequer um ranger das

228 O Divino Leviatã


dobradiças se fez ouvir, até o momento que Montserrat pisou em uma
placa de ferro e chamou à atenção de todos.
- Que ridículo, confesso que fiquei entretido com a tensão do mo-
mento e esqueci desses dois, eles quase fugiram com a Vitoria. - Comen-
tou Abel que caminhava em nossa direção.
- O que faremos agora? - Se perguntou Montserrat.
Abel ajeitou o seu dread e manuseou o seu bracelete.
- Não é comigo que vocês devem se preocupar, seus ratos, sou
apenas um holograma aqui... Faça o que tiver que fazer, Reverendo, não
perca a minha irmã de vista, e dê um jeito na rainha Aurora, seja rápido.
Abel desapareceu perante os nossos olhos, eu já havia percebido
que ele não estava por ali de fato, não era do seu feitio se expor a perigos.
- Como quiser, príncipe. - Concordou o Reverendo.
Maximiliano piscou para o clérigo Mathias, que investiu contra a
rainha, golpeando-a no pescoço, deixando-a desacordada no chão. Ma-
ximiliano levitou o corpo de Aurora apenas com o poder de sua mente, e
impôs a sua mão direita no fronte da irmã de Maria.
- Vou apagar as suas lembranças de hoje, não me convém assassi-
ná-la. 
- De acordo, Reverendo. - Apoiou o Clérigo Mathias.
O Reverendo concentrou duas grandes esferas de fogo azul em
suas mãos e lançou contra Tião e Montserrat.
- O que é isso? Eu estou queimando? - Desesperou-se Tião.
Montserrat gritava aterrorizada e debatia-se no chão, aquele pare-
cia o fim. Embora sofressem, as suas carnes não consumiam.
- Que tipo de magia é essa? - Eu perguntei. 
Esse é o fogo que consome à alma, não queima o corpo físico, a dor é sete
vezes pior.
Montserrat me arremessou ao chão na tentativa de salvar a mi-
nha vida. Aquelas pobres pessoas burlescas e alegres, perderam suas vidas
como se nada fossem, e aquilo doeu em minha alma.
- Kadu, Valéria, Tião e Montserrat... - Olhei para as expressões de
cada um deles... Todos eles mortos e com as suas humanidades desres-
peitas em nome de um projeto divino, aquela não podia ser a vontade de
Deus... Não... Não podia. 
Num rompante, senti como se as correntezas de um rio rompes-

A princesa dilacerada 229


sem todas as barreiras,  uma torrente de sentimentos e reflexões,  uniram-
-se num conceito de justiça,  a minha consciência, expandiu para além do
corpo físico.
Maximiliano, Cícero e o Clérigo, sentiram a energia que emanava
de meu corpo.
- O poder dela está bem maior do que a última vez já está fora de
controle, preciso fazer algo urgente. - Concluiu Maximiliano tomado por
uma respiração convulsiva.
- Não vejo outra solução a não ser o extermínio. - Propôs o Cléri-
go, Mathias juntou suas mãos numa prece e fez emergir de seu corpo uma
aura prateada.
Três espíritos emergiram  do clérigo e envolveram o corpo do Re-
verendo. A bênção do clérigo criou uma poderosa armadura prateada,
a Dádiva Angelical proporcionou asas ao Reverendo e o fogo consumidor
ofereceu o domínio sobre o elemento fogo.
Os clérigos não eram muito poderosos, embora fossem exímios
nos encantamentos.
Maximiliano contemplava o seu próprio corpo e gargalhava insa-
namente.
- Lamento princesa, mas você precisa morrer, prometo que
confortarei o seu pai e direi as melhores coisas ao seu respeito. -
Disse Maximiliano.
- Hey, Reverendo! Não se esqueça de mim, ainda estou aqui! -
Gritou Cícero que segurava o Clérigo com a luva de Arquimedes. - Você
fala demais e subestima os seus adversários.  Eu cometi o pior erro de
minha vida que foi confiar em você... Eu fui tão egoísta... Meus amigos
morreram por isso... Vou tentar me redimir agora...
Cicero desintegrou o clérigo com a luva de Arquimedes e um
grande poder emanou daquele artefato.
- O que é isso? - Espantou-se Maximiliano.
- Esse é o maior potencial da luva, a extinção atômica! -
Respondeu Cícero conformado com o destino que o aguardava.
- Não faça isso, você vai destruir toda a cidade! - Implorou o Re-
verendo que recuava os seus passos. - Eu não vou deixar que destrua os
meus sonhos! Que o poder do fogo consumidor purifique à alma daque-
les que profanam contra um servo de Deus.

230 O Divino Leviatã


Maximiliano elevou-se aos céus com suas asas angelicais e con-
centrou na mão esquerda uma esfera de fogo do tamanho da própria ca-
tedral. Cícero o encarava com um sorriso franco, o poder exercido pela
luva de Arquimedes já começa a desmaterializá-lo.
Os seus olhares se cruzaram pela última vez,
até os grandiosos poderes entrarem em colapso. As do-
res do meu parto eram insuportáveis, já não conseguia andar, 
arrastava-me pelo chão criando rastros de sangue,  as contrações estavam
muito fortes. Envolta ao meu próprio sangue, contemplei um espetáculo
celeste, a colisão entre os poderes desencadeou uma poderosa explosão
que devastou grande parte da cidade de São Paulo.
As ondas de impacto me lançaram a cinquenta metros da catedral.
As minhas roupas foram pulverizadas e o meu corpo envolvido entre
cinzas e  brasas. Recobrei a minha consciência em meio aos escombros.
Respingos d’água caiam sobre o meu rosto, olhei para a direita e avistei
um hidratante que disparava jatos contínuos para a imensidão, criando
uma chuva artificial. 
Em meus braços encontrei o meu filho, não havia um único feri-
mento...
- O que aconteceu aqui? - Me perguntei.
- Vitória... - Sussurrou uma voz.
- Quem está ai? Você cuidou do meu filho? - Assim eu perguntava
olhando para os lados e ainda repousada sobre as ruínas da cidade.
- E o seu nome se confundirá com o início dos tempos, a materia-
lização dos ego de Deus, o príncipe que carrega os cântaros da vida e da
morte...
- Eu conheço essa voz, só pode ser... Crocell?
O poderoso anjo caído trajava uma túnica branca e empenhava
uma espada de dois gumes. Os seus olhos azuis me fuzilavam e o seu
semblante mantinha a austeridade de sempre.
- Princesa, o que acha que vem a seguir? - Perguntou Crocell
- Eu não sei... - Respondi sem grandes reflexões.
- Não é a sua culpa, a ordem dos Leviatãs a usou com o propósito
de afrontar a Deus e destruir a humanidade... São espíritos muito antigos,
não aceitaram a punição de Deus... Fugiram de seus cárceres e selaram
Metatron num eterno sono. Uniram-se num único ser... O verbo que se

A princesa dilacerada 231


fez carne... Você tem duas escolhas: Mate o seu filho ou entregue a sua
vida por ele...
Eu mantive o silêncio e me levantei dos escombros com o meu
filho nos braços, caminhei na direção de uma vitrine e me deparei com
um monstro que não conhecia. Uma mulher nua com a face esquerda
dilacerada. O meu rosto...
- Um mundo assim? Por que?  - Me perguntei. - Usaram a mi-
nha vida por uma vingança que perdura pela existência... Os sete Leviatãs
querem a vingança contra os humanos, Deus quer destruir o meu filho...
E o que resta a mim? Aceitar? Eu não me importo com a origem do meu
filho, se Deus não o quer em seu mundo, eu crio uma nova morada para
ele...
A minha mente se esvaziou de qualquer complexidade, era como
se todas as respostas sobre a criação se apresentassem para mim. Os cor-
pos dos meus amigos emergiram das ruínas e flutuaram ao meu redor.
- Um mundo onde os meus amigos possam viver felizes...
A minha aura dourada restaurou os seus corpos e os trouxe a vida
novamente. Estavam todos bem, Kadu, Valéria, Montserrat e Tião.Todos
se encaravam com curiosidade, olhavam incrédulos para os seus corpos
ressurretos.
- Como voltamos a vida? - Perguntou Kadu.
- Vocês só estavam dormindo. - Eu disse.
Kadu e os outros se assustaram ao contemplarem o meu rosto des-
figurado.
- O que aconteceu?
- Vai ficar tudo bem... - O tranquilizei.
Kadu voltou os seus olhares para o anjo caído.
- Você ajudou a matar o meu irmão... - Disse Kadu ao encarar
Crocell.
- William trilhou o seu próprio caminho de morte, assim como
você fez...
Aquele princípio de animosidade foi interrompido por Valéria
que logo veio ao meu socorro.
- Não há tempo para essas besteiras, a princesa necessita de cuida-
dos médicos. - Advertiu Valéria.
- Eu estou bem... Eu só quero que faça uma coisa para mim.

232 O Divino Leviatã


- O que eu posso fazer por você, princesa? - Atenciosamente per-
guntou.
- Leve essas pessoas para um lugar seguro, até mesmo Aurora.
Assim eu pedi, apontando na direção da rainha de São Paulo que estava
desacordada nas ruínas da catedral.
- O que pretende fazer? - Perguntou Valéria.
- O que pretendo fazer? - Repliquei a pergunta.
Eu não encontrava palavras para formular uma resposta comple-
xa, eu podia sentir os anseios de todas, as pessoas, seus pensamentos in-
vadiam a minha mente, ao passo que as pedras flutuavam ao meu redor
numa cidade que se desenhava fúnebre.
Não havia vida por ali... as pessoas morreram, os sonhos forja-
vam-se em palavras vazias numa lápide.
- O que eu pretendo... - Tornei a repetir aquela questão. - Qual o
sentido de um mundo assim? Se o propósito da existência humana for
a servidão a um Deus, então a liberdade é só uma utopia inalcançável...
Todas essas mortes foram em vão...
As minhas reflexões foram interrompidas pelo deslocar das héli-
ces de um helicóptero.
- O que é isso? - Perguntou Tião.
- É o apoio aéreo da armada imperial. - Respondeu Valéria.
- Princesa, temos ordens do imperador para resgatá-la com vida,
nos acompanhe sem resistência. - Bradava um soldado no alto de seu he-
licóptero, sobrevoando a vinte metros de nossas cabeças.
Eu sentia o deslocamento  de ar emanando das hélices, os corpos
quentes de meus amigos, ouvia mais do que as suas palavras podiam me
falar, o espírito dos Leviatãs tomaram o corpo de meu filho e transforma-
ram o meu espírito para algo que transcendia a moral humana, o bem e
o mal se misturavam em narrativas e conveniências, parecia que a minha
consciência havia alcançado a todos. Sócrates encontrou a Deus, ao meu
ancestral, Dom Pedro Ihe foi prometido que a sua descendência reinaria
o Brasil, pois essa era a antiga terra dos Leviatãs, antes mesmo dos huma-
nos chegarem.
Perderam as suas identidades, são seres errantes que agora habi-
tam no corpo de meu filho. Sinto a dor deles, mãe que agora sou. Se Deus
é onisciente, em algum momento na existência ele refletiu sobre a minha

A princesa dilacerada 233


sina, sabia que os Leviatãs me usariam para suas vinganças, construiu
toda a minha história, e não bastando, ainda me deu o livre arbítrio, van-
tagem essa já abolida pelas novas providências divinas.
Estranho pensar em Deus como um grande louco segurando duas
ampulhetas, as areias negras afunilariam para um destino de condenação
no inferno, a outra escorreria as areias alvas que me levariam para as mo-
radas dos céus. Deus proporcionou uma nova chance para a humanidade
e ao mesmo tempo quer corrompê-la?
-  Se não há lugar no mundo para o meu filho….
No momento que as minhas palavras retumbavam sobre a cidade
morta, aquela estranha aura dourada que envolvia o meu corpo em mo-
mentos de perigo, retraiu para o duplo etérico.
- O que aconteceu com o brilho dourado da princesa? Ela deixou
de ser santa? - Perguntou Montserrat.
- Que sensação esquisita, senti um calafrio. - Queixou-se Kadu.
- Sim, é uma sensação horrível, o meu corpo não obedece. - Con-
cordou Valéria.
- Não pode ser... - disse o anjo caído que me observava angustia-
do. - Eu não consigo me mover um milímetro, eu me lembro de sentir
essa opressão terrível uma única vez.
Crocell cessou as suas palavras por alguns segundos, até o mo-
mento que teve um estalo.
- No momento definitivo da grande guerra celestial, esse mesmo
tipo de energia emanou de Lúcifer... Aquele mesmo olhar... Então quer
dizer que...
Pela primeira vez eu pude observar um olhar de medo em Crocell,
ele recuou uns cinco passos e mentia a sua atenção em mim.
- O que foi? Por que age assim? - Perguntou Kadu.
- Corram o mais rápido que puderem! - Gritou Crocell correndo
em grande velocidade, Montserrat e Tião, não quiseram ficar para confe-
rir, e também correram.
- Essa opressão que sentimos vem da princesa? - Perguntou Kadu
que movia-se com dificuldades, tamanha foi a carga enérgica lançada por
mim.
- Eu não posso deixar princesa Vitória aqui,  é a minha missão
protegê-la. - Disse Valéria com os punhos serrados e a cabeça curvada

234 O Divino Leviatã


para baixo, talvez na tentativa de esconder o seu choro.
Foi nesse momento que as minhas palavras assustaram a todos.
- No princípio era o verbo... De suas conjugações, uma pequena
bolha em expansão chamada universo...
Assim eu disse com o meu rosto dilacerado e o meu bebê ainda
ligado as minhas trompas.
Direcionei meu olhar para Valéria e Kadu, e os levitei a uns 10
metros do chão.
- O que vai fazer conosco princesa? - Perguntou Valéria demons-
trando espanto ao contemplar a frieza de minhas expressões.
Eu não respondi a sua pergunta, pois a minha consciência com-
preendia os anseios da alma e do espírito, eu conseguia ver além das pa-
lavras amedrontados de meus amigos, enxergava as suas almas e queria
salvá-las.
Eu olhei para quatro pedras dispostas ao chão, as levitei para a
altura de minha cabeça. Eu apenas imaginei as pedras sendo aquecidas
ao ponto de rochas vulcânicas, e assim aconteceu, foram colididas pelo
meu poder telecinético, mantiveram-se acima de minha cabeça protegi-
das por uma gravidade artificial que eu criei. Logo em seguida, voltei-me
aos meus amigos e sorri para tranquilizá-los.
Naquele momento eu era apenas a minha vontade de transformar
as coisas, o meu recital prosseguiria, era preciso,  queria ser uma força
transformadora, e assim foi:
- Os átomos cheios de vazios,  partículas subatômicas, quânticas
e subquânticas criavam fronteiras entre o nada e o caos... O começo de
tudo!
Recitei ao levitar com o meu filho, enquanto o amamentava. 
A minha mente viajou por mil lugares, buscava um refúgio para
proteger os  meus amigos das providências divinas, avistei um lugar ao
norte da capital do reino e os teleportei para lá.
- O que aconteceu com aquelas pessoas? - Se perguntou o piloto
do helicóptero.
- Eu não faço ideia, simplesmente desapareceram. - Respondeu o
soldado que apontava uma metralhadora em minha direção.
- Eu vou sair desse lugar, aqui não é seguro. - Disse o comandante
da nave.

A princesa dilacerada 235


- Não, temos uma ordem direta do imperador para resgatarmos a
princesa.
O módulo de comunicação do helicóptero foi acionado.
- Comandante Peres na escuta.
Era possível ouvir a voz de um homem agonizando.
- Identifique-se, por favor. - Ordenou o comandante.
- Eu sou o Reverendo Maximiliano, mate essa criança imediata-
mente. - Assim pedia o Reverendo que assistia a todo aquele evento esco-
rado a uma pilastra que restou das ruínas da Catedral da Sé.
Em seguida, Maximiliano desmaiou sobre os escombros.
- Você escutou isso? Devemos acatar essas ordens? É só uma
criança. - Indignou-se o comandante.
- O Reverendo é uma importante autoridade, vou seguir as or-
dens.
O soldado acionou a mira de sua arma e apontou na cabeça de
meu filho, que amamentava sem ao menos pressentir o mal que o ron-
dava. O meu nível de consciência naquele ambiente era tão amplo, que
eu conseguia interceptar qualquer tipo de comunicação, sentia as ondas
modulares em todas as suas frequências e escutei perfeitamente as ordens
do Reverendo. Em nenhum momento ponderei sobre a vida daqueles que
estavam no helicóptero, eu era a própria encarnação do espírito maternal,
um ser repleto de vontades e sentimentos apurados, puro instinto e o pró-
prio conceito de justiça. Lancei sobre os meus oponentes a providência
divina, uma onda de choque que fez o helicóptero girar em seu próprio
eixo, até atingir um grande prédio e explodir.
Por um momento eu percebi que aquele prédio era todo espelha-
do, um típico edifício comercial de alto padrão, olhei o meu reflexo entre
as chamas que carbonizavam o helicóptero. Eu levitava o meu corpo na
altura do décimo quinto andar, os estilhaços criavam várias versões de
uma princesa dilacerada.
- O que Deus viu no espelho? Essa pergunta nasceu de algum pro-
cesso incorpóreo, a própria existência havia questionado. O que é a cria-
ção? Essa pergunta desencadeou os processos que resultaram na minha
condenação ao inferno.
Ousei desafiar toda a criação de Deus, olhei para os espelhos do
edifício, imaginei o próprio Criador contemplando os seus reflexos do

236 O Divino Leviatã


contínuo existencial, e assim criou todas as coisas a sua imagem e seme-
lhança. Derrotei toda a Divina Armada Imperial, deixei um legado de es-
perança para todos aqueles que não queriam comer do fruto da perfeição;
que não queriam ser escravos dá vontade de um Deus, me deixei vencer
pela espada de papai, não tive coragem de machucá-lo. Por mais que eu
questione toda a criação, sou parte dele, e assim foi desde o começo para
minha dinastia, desde épocas imemoriais.
Deixei o meu filho sobre os cuidados de Valéria, assim como reve-
lei em minhas extensas reflexões...
Eu transformei uma pequena esfera incandescente num Grande
Globo planetário, onde o verbo era eu, e a minha presença pairava sobre
as águas, o meu mundo perfeito se perdeu no vácuo, na existência, assim
como a deusa que a criou...
Um legado eu deixei, Gênesis é o meu filho e com ele nasceu o
oitavo dia da existência.
Ás vezes eu me pergunto, o que um jovem da idade do meu filho
faz nos dias de hoje?

E essas foram as memórias de uma princesa dilacerada,  narrativas
que misturavam-se a tantas outras e que o tempo fazia questão de contar,
a sua mente retornou para os tempos atuais, ainda com o seu corpo em
restauração.
- Eis me Aqui Deus, ouviste atentamente a minha história, Qual
o seu juízo sobre mim? Pretende me condenar? - Questionou Vitória ao
fitar o vazio celeste.
- Eu não preciso fazer isso. - Respondeu a voz que era precedida
por relâmpagos.
- Então o que vai fazer? - Tornou a perguntar Vitória.
- Deixarei que prossiga com os seus planos, ao final da sua jorna-
da... Você perguntou sobre o que eu vi no espelho, agora eu faço a mesma
pergunta, o que vê no espelho?  Se você concluiu que toda a maldade do
mundo emergiu de mim, o que há dentro de você que a faria criar um
mundo mais justo? O que viu em seus espelhos, Vitória? - Tornou a per-
guntar a voz que perdeu-se entre as reflexões da princesa.
Num rompante, o Cubo de Metatron irradiou uma poderosa luz
e em seguida, apagou-se com a mesma maneira anormal que acendera.

A princesa dilacerada 237


Finalmente o corpo da princesa foi restaurado, Vitória contemplava o seu
corpo numa espessa couraça de aura branca.
- É chegado o momento...
Concluiu a princesa ao contemplar a imensidão do reino de São
Paulo, frente a um reator de usina que inflamava os céus da próspera ca-
pital, que hora ou outra eram rompidos por veículos antigravidades e ho-
logramas que cultuavam a imagem da família imperial.
Aos poucos, as expressões contemplativas ganharam um contor-
no de alegria, o sorriso da princesa ganhou a moldura do tempo, a rubrica
de uma esperança tão necessária ao Império do Brasil.

238 O Divino Leviatã


A princesa dilacerada 239
Agradecimentos

E
u dedico esse espaço para os meus queridos amigos e futu-
ros fãs do “Divino Leviatã”.
As minhas devidas gratidões aos que em verdade me ajuda-
ram e permanecem de coração.
É tanta gente...
Começo dedicando essa obra a um ser especial que dedicou a mim
os seus últimos dias: Ramisses, um simples vira-lata. Nos momentos mais
difíceis da minha vida, esteve comigo, dormindo em minha cama e ofere-
cendo a sua verdadeira amizade.
Nossas brincadeiras e o fim de uma solidão. A você dedico essa
história e qualquer outro sucesso que eu tenha em vida, que a sua exis-
tência fique registrada na história, que a sua imagem rompa os séculos,
amigo querido.
Os meus agradecimentos eternos a Cris Risoleu, que me acolheu
num momento difícil da minha vida, colocando-me em sua casa e com-
partilhando de sua vida comigo.
Soube me perdoar quando nos piores pensamentos, tirei conclu-
sões influenciadas por pessoas podres de espírito, que fique registrado a
minha admiração e  faltas que tive com você. Quero sempre dar o melhor
de mim a você, seus filhos e o grande cara, Cláudio, seu marido e excelen-
te caráter.
Agradeço também a Charles Canato pela sua tolerância e o tempo
que dispôs a me aceitar em seu espaço.
Vanessa Baptista Bitencourt, uma pessoa de uma honestidade que
eu vi apenas nela, um modelo que eu inclusive quero seguir, uma amiza-
de que perdura desde 2008, gratidão por permanecer, sempre gostei de
você, um dia vamos comemorar um título nacional de expressão de nossa
Portuguesa de Desportos. A sua irmã, Priscilla Baptista Bitencourt, uma
240 O Divino Leviatã
pessoa excelente, educada e de boa comunicação. Sempre tive boas con-
versas, também está guardada em meu coração.
Ingrid “cara de cobra” sempre! Menina de uma beleza exuberante
e humilde, mãe do Leon, inteligente e uma verdadeira amiga.
Terra Grammont, amo fazer trocadilhos com o seu nome, uma
pessoa que assim como eu, busca a sua felicidade, uma amiga que aprendi
a gostar e quero levar para vida.
Alice del Sur! Uma morena misteriosa e cheia de magia em seu
sorriso. Nossas energias se encontraram, prefiro considerar assim. Gosto
muito de você.
Angélica Touch Vancini, me conhece desde pequena, uma pessoa
sempre solicita e essencialmente boa. Agradeço muito por permanecer na
minha vida.
Lisete! Lisete! Lisete! Evoco a sua presença com um brado! Pois
de tão bonita e elegante com seus cigarros sofisticados, só pode ser uma
aparição. Beijos querida! Permaneça!  Quem é da minha gangue não tem
medo!
Eliz Magalhães, uma pessoa intuitiva ao máximo, se comunica
por códigos e imagens, muito simbólica e  com enigmas dignos da esfin-
ge de “Édipo Rei” menina excelente, verdadeira, não faz linha e também
sempre muito bonita e elegante.
Fábio Assis, agradeço também por permanecer em minha vida e
ser o amigo excelente que é! Sofreu um bocado nos últimos anos e voltou
com tudo! Essencialmente bom e um pai dedicado aos seus filhos, um
autêntico aprendiz da vida.
Paula Shimene, te conheço a tão pouco tempo, mas!Tu merece
uma nota nesse meu momento importante, uma boa pessoa que merece
ser feliz. Não vou te dar salgadinho! Beijos querida.
Suelen Moraes que um dia pretendo conhecê-la pessoalmente,
pessoa do bem, assim como eu, uma Malévola na vida, temos uma bon-
dade incompreendida. Hehehe. Beijos Guria, que faça 50 graus nesse ve-
rão só porque você reclamou do calor.
Luiza Coppiters, pessoa engajada, quer fazer o bem e excelente
caráter. Vai ser ainda muito importante, as cartas dizem.
Por falar em cartas, Luh Neves, a cigana oblíqua, suas car-
tas de tarot e seus dilemas amorosos, sempre uma divertida conversa. 

A princesa dilacerada 241


Maria Servalli, a menina pura ciência, se houve uma outra encarnação,
essa certamente foi uma bruxa psicanalítica, e hoje o seu karma é o ceti-
cismo. Hehe
Brincadeiras a parte, sua magia está na sensibilidade e forma de ver as
coisas, pessoas de sua categoria, constroem mundos melhores e menos
intolerantes. O meu eterno abraço.
Samara Rodrigues, uma pessoa sensível e muito humana, me es-
tendeu a mão quando muitos preferiram me julgar no alto de suas hipo-
crisias, me fez bem e contínua com sua terapia muito eficiente. Desejo um
ano de 2017 excelente!
Katia Gobitti, pessoa que gosto de pregar peças de vez em quando,
gente boa, assim como seu marido e filha.
Jaqueline Verdan uma boa pessoa que faz um trabalho competen-
te como assistente social.
Débora Verdan, sempre atenciosa. 
Bianca Lopes Rosário, Priscilla Monteiro, Luís Freitas, Fábio Bart, Mar-
celo Novaes, Vanessa Vitalina, Cris Cardoso, companheira de conversas e
debates nesse facebook doido!
Malena Wilbert, Paula Oliveira, Marcelo Tecnocrata e liberal,
Morrigan Oliveira, Morrigan Dannan, Aine Leannan, Bianca Lopes Ro-
sário todos esses presentes em minha página no Facebook.
Fernando Moreno, sempre gentil e atencioso. Cláudio Bastos, um
cara inteligente e sensível. Carolina Gerassi, advogada de causas humani-
tárias.
Rod Paixão, Pedro Tenório, Pedro Montrois Key Mee, Vivian, Lí-
cia Franco, Lívia (Living la Lívia Louca) Kandi Girl, Fernanda, pessoal do
grupo Marxismo cultural, galera dos grupos de whats e telegram!
Minha querida mãe e minha primeira professora, Cristiane.
Todos aqueles que estiveram comigo e construíram coisas legais
nesses últimos anos.
Agradecimentos finais a Bruno e Sâmi que ajudaram nesse sonho.
Divirtam-se!

Ass.: Sharon Cardoso

242 O Divino Leviatã

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