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Divino~
Leviata
A lenda da princesa dilacerada
Por
Sharon Cardoso
Copyright © Sharon Cardoso
Título:
O Divino Leviatã
Capa:
Sâmi Vacari e Bruno Gabriel Simões
Ilustração de capa:
Sâmi Vacari
Revisão:
Bruno Gabriel Simões
'
Sumario
Epístola V: O noviço 54
Agradecimentos 240
O que Deus viu no espelho?
Prólogo
Os espelhos de Deus
“N
o princípio era o verbo... De suas conjugações, uma pequena
bolha em expansão chamada universo. Átomos cheios de va-
zios, partículas subatômicas, quânticas e subquânticas cria-
vam fronteiras entre o nada e o caos.
Dos primeiros aminoácidos que surgiram, das reações químicas
que uniram os coacervados ao RNA, criando a forma mais primitiva de
vida, dos heterótrofos e suas fermentações, dos autótrofos e suas fotos-
sínteses, mudando à atmosfera do planeta e gerando O2 e O3, a criação
e os seus detalhes, como reproduzir algo de tão belo? Diga-me Deus ou
Aleksander Oparin, se o que me torna são apenas questões sobre o que
racionalmente não compreendo? Sou apenas um joguete de minhas tor-
mentas emocionais.” assim declamava uma jovem princesa negra, com
rosto dilacerado, levando consigo uma criança recém nascida e ainda li-
gada em suas trompas.
“Deus criou espelhos na existência e seu espírito pairava sobre
eles, todos refleriam sua glória. O que é a criação? O que assemelha-se
a mim? Deus olhou para o espelho a sua frente e o seu reflexo sorriu.
“Eu, querido pai... Sou o que me assemelho em aparência e graça.” A figura
emergiu do espelho e Deus o nomeou de Lúcifer, o detentor da luz. E os
reflexos de Deus, pela existência, criaram a raça dos anjos. O criador os
presenteou com uma bela morada e esse foi o início da terra original.
Em seis grandes eras, a diversidade na pequena esfera azul se de-
senvolveu... O que Deus viu no espelho? Por que sua imagem e seme-
lhança o traiu? A rebelião nos céus foi orquestrada pelo grande traidor e
os seus aliados. Por que o reflexo que outrora glorioso, voltou-se contra
o seu arquétipo? O que Deus viu no espelho, se não foi a sua própria
natureza e seus auto enganos? O primeiro espelho trincou, Deus não po-
deria admitir algo tão controvertido em sua essência e selou sua própria
A princesa dilacerada 9
criação nas profundezas do submundo, assim nasceu o inferno destinado
para toda perdição da existência. O grande Deus mais uma vez refletiu a
sua glória em outro espelho acima de sua cabeça, o reflexo não tinha o
mesmo esplendor do primeiro filho, Deus o chamou de Adão.
Dele também surgiu Eva, a mulher, que junto ao seu companhei-
ro, traíram a confiança do criador e comeram do fruto proibido, nascendo
assim o pecado original. Junto a seus filhos e gerações conseguintes, que
geraram as nações; os reis; as famílias, a degeneração humana; a corrup-
ção; a maldade; a bondade; a esperança; o salvador, o sangue do cordeiro,
a providência divina, o Divino Leviatã e consequentemente eu...” Narrou
a princesa negra entorpecida pelo sangue que escorria de seu dilacerado
rosto.
Uma grande manta áurica de cor dourada envolvia o seu corpo e
acima dela, uma magnífica esfera incandescente era colidida por meteori-
tos que aumentavam dramaticamente a sua massa. A imponente avenida
Paulista desmanchava-se com a imensa gravidade da esfera. Um soldado
da respeitada divina armada imperial observava atônito a princesa e a sua
esfera se aproximarem do tanque no qual escondia-se amedrontado.
- Comando, aqui é o sargento Paulo, minha unidade foi com-
pletamente esmagada! Repito! Minha unidade foi esmagada pelo poder
gravitacional de uma estrela ou planeta, não faço a mínima ideia do que
seja isso, ela carrega uma criança recém-nascida, tenho medo. -Relatou
o soldado dentro do tanque ao acionar seu módulo de comunicação no
capacete.
- Sargento Paulo, aqui é a base de Alcântara, poucos foram os so-
brevives da capital do reino de São Paulo, peço que se esconda, ela não é o
adversário mais indicado a você, os sete grandes reis e os vinte principa-
dos já foram enviados para deter a princesa, temo que nem esses poderão
enfrentar alguém com tantos poderes.
Nesse instante a comunicação foi interrompida por uma enorme
onda de rádio. Paulo saiu da escotilha, concentrou uma grande quantida-
de de energia num pequeno canhão de plasma acoplado a sua mão direita
e disparou contra a princesa.
Houve uma grande explosão.
- Maldita, teve o que merecia! - Congratulou-se o Soldado.
Antes que Paulo pudesse orgulhar-se de seu feito, uma presença
10 O Divino Leviatã
surgiu em seu costado.
- Paulo... Sussurrou a princesa.
O terror suspendeu à alma do soldado que não moveu um dedo.
- Você sabe que dia é hoje? - Perguntou a Princesa.
Trêmulo ele respondeu.
- Hoje é dia 21 de Abril de 2040, feriado de Tiradentes.
- Sim... Esse país sempre nutriu a triste tradição de homenagear
os seus heróis depois de arruinarem suas vidas, receio que acontecerá o
mesmo comigo.
- Princesa, o que pretende fazer? - Perguntou o soldado.
- A vida é injusta, consigo ver isso aos olhos divinos que con-
quistei ao desafiar Deus, mas enquanto a você, soldado... - Apenas com
o poder telecinético, a princesa ergueu o combalido sargento das tropas
imperiais. - Não há espaço na criação de um novo mundo para quem
apenas sabe destruir com as leis do velho mundo, não se ataca o ventre de
quem gerou o novo Gênesis, esse pecado eu não perdoo, apenas eu, tenho
o direito a vida, desapareça para sempre!
O eco da voz da princesa se perdeu pela devastada São Paulo, en-
quanto o sargento era desmaterializado junto ao seu tanque.
A princesa dilacerada 11
princesa, o raio rasgou os céus e atingiu o seu alvo.
- Acabou... Foi um triste fim a uma herdeira do trono, farei ques-
tão de prestar minhas condolências pessoalmente. - Lamentou o general
com a voz embargada.
- O que Deus viu no espelho? - Assim à assombrada e gélida voz
da princesa ecoou pela sala de comando, os monitores mostravam a prin-
cesa encouraçada pela sua manta áurica ainda mais dourada. - Não há
o que lamentar, General, o velho mundo e suas consciências destrutivas
passarão, farei um novo mundo para meu filho.
Nesse momento os monitores explodiram, tamanho foi o poder
exercido pela princesa.
A destruição prosseguia ao passo que a massa da esfera atingia
um tamanho critico ao ponto de começar a influir nas marés e nas placas
tectônicas. Assim, o imperador designou que os vinte principados en-
frentassem a princesa, todos eles dotados de grandes poderes, no entanto,
caíram por terra. Levantaram-se sete reis com armaduras reluzentes, es-
ses também não foram capazes de feri-la.
Perante os seus adversários vencidos, a princesa tornou a repetir
sua questão.
- O que Deus viu no espelho?
- Que tipo de pergunta é essa? - Indagou Dom Felipe, um dos sete
reis.
- Isso é inacreditável, a esfera atingiu uma massa equivalente ao da
Lua. - Observou um dos principados escondido entre escombros.
A princesa sorriu e em seguida desapareceu subitamente junto a
sua enorme esfera.
- O que aconteceu? Para onde ela foi? Perguntou Dom Felipe.
Nos céus de Brasília surgiram a princesa e o seu globo em chamas,
sua mente viajou e a teleportou acima do suntuoso palácio do planalto
que, diferentemente dos tempos da república, está suspensa nos céus atra-
vés da força eletromagnética exercida por três grandes anjos revestidos de
mármore que mantinham a estrutura flutuante.
- A vontade de Deus... Por que? - Questionou-se a princesa con-
templando a imensidão.
- Porque assim foi profetizado! - Respondeu o imperador que sur-
12 O Divino Leviatã
giu do Palácio com uma armadura dourada e reluzente, segurava em seu
braço direito um elmo. - Não cabe a nós simples servos nos ocuparmos
dessas questões. Somos criaturas sujeitas as vontades divinas. Ao longo
das eras pecamos, fomos punidos e recebemos a devida misericórdia. Mi-
nha querida Vitória, apenas aceite a sua penitência, para o bem do Impé-
rio... Para o seu bem. - Completou o imperador.
Por um instante a princesa levantou sua mão esquerda na direção
do Sol e a esfera sob o seu encantamento, elevou-se aos céus e eclipsou a
luz solar que iluminava o Império.
A única luz de Brasília emanava da herdeira do trono, a esfera que selou o
sol transmitia um pálido vermelho em um céu lúgubre.
-No final de tudo, Espinosa baseou suas vivências filosóficas em
inocentes crenças num Deus essência... Na verdade, toda criação baseia-
-se na exaltação da sua obra, tudo é uma grande igreja, os céus são abóbo-
das e ao ser humano resta a servidão. Qual o sentido de existir? Seria mais
justo que todos fossemos deuses de nossas vontades, não existe apenas
um verbo, somos o verbo! Meu corpo e suas ações são frutos da minha
consciência. Meu vínculo com Deus aqui termina...
A esfera ganhou uma forma planetária e já havia atingido a mes-
ma massa da terra. - E foram criados um novo céu e uma nova terra, essa
é a vontade da Deusa.
Ao proferir essas palavras, um grande terremoto começou a devastar a
terra.
- Pai, sou parte de ti, sua imagem e semelhança, você me vê no
espelho?
- Não... Infelizmente o que vejo é uma deformação do que ajudei
a conceber. - Respondeu Dom Fernando.
- Entendo... Igualmente a Lúcifer e seus anjos, a rebelião defor-
mou suas plenitudes. Nesse caso, terei que fazer melhor que Lúcifer.
A princesa cantarolava uma cantiga enquanto amamentava o seu
pequeno filho, o planeta entrou numa intensa atividade, os mares invadi-
ram as cidades costeiras e os terremotos devastaram as grandes metrópo-
les, a princesa contemplava a destruição com um olhar sereno e uma aura
dourada transmitindo paz.
- Papai, receio que precise fazer algo a respeito. - Sugeriu a Prince-
sa que parecia ignorar qualquer diferença entre a criação e a destruição.
A princesa dilacerada 13
- Não tenho outra escolha a não ser cumprir o que Deus ordenou,
você escolheu o seu caminho. - Lamentou o imperador.
- Você condenaria ao inferno a sua própria filha e seu neto? - Per-
guntou a princesa.
Ao tempo que as lágrimas vertiam do rosto do imperador, uma
fenda no tecido do espaço e tempo foi aberta, dela surgiu uma espada de
luz que foi de encontro a mão direita do imperador.
- O arcanjo Miguel cedeu a sua espada para a definição dessa
guerra, eu suplico, arrependa-se, minha filha.
- Cumpra a sua missão, meu pai. - Respondeu a jovem princesa
que em nenhum momento condenou seu pai, pois sabia que seu legado
também era difícil.
O imperador elevou-se aos céus e, frente a sua filha, encarou-a
com ternura por alguns segundos, até a sua espada atravessar o coração
da princesa.
- Me perdoe, filha.
- Não há o que perdoar, papai... - Assim respondeu a princesa que
apesar da triste maldição que a esperava, sorria para seu destino, a fenda
dimensional já havia sugado o seu mundo.
- O que será dessa criança? - Perguntou o imperador.
- Viverá longe da tirania do seu Império.
Nesse instante a princesa desapareceu perante os olhos do impe-
rador e teletransportou-se para uma distante floresta no lado norte do
reinado de São Paulo.
Entre duas árvores escondia-se Valéria, a sua guardiã. Uma bela
jovem de longos cabelos lisos e negros, trajava um uniforme cinza com
ombreiras cromadas. Ao ver o estado deplorável de sua ama, correu ao
seu encontro.
- Por que não me deixou defendê-la? Indagou sua fiel guardiã.
- Valéria, você sempre me amou incondicionalmente, lamento
muito não poder correspondê-la.
- Princesa, isso não importa agora, precisamos tratar da sua feri-
da. - Interviu Valéria.
- Infelizmente, eu já não tenho muito tempo.
A princesa rompeu o cordão umbilical que a unia com o seu pe-
queno rebento e o entregou a Valéria.
14 O Divino Leviatã
- Cuide dele para mim, seja a mãe que eu não poderei ser...
- Princesa... Sussurrou Valéria.
- O que Deus viu no espelho? Um dia ele fará essa pergunta, quan-
do esse momento chegar, diga que não há nada além de um menino con-
templando o seu próprio reflexo.
- Princesa! Gritou uma voz em meio a floresta.
- Essa voz... Kadu?
Um homem corre em direção a princesa, o desespero e as lágri-
mas derramadas foram contemplados pela natureza que silenciou-se em
respeito ao seu copioso pranto, apenas transpirações se podiam ouvir.
Ao passo que ficaram de frente um para o outro, Kadu, que imo-
bilizava seu braço direito numa bandagem manchada de sangue, olhou
fixamente a figura da sua amada princesa que começava a se desfazer.
- Me perdoe por ser tão fraco e não poder te proteger, infeliz-
mente os meus poderes não foram suficientes para salvar-te. Lamentou o
inconsolável Kadu.
- Não é o seu legado me proteger, Kadu, ninguém pode mudar o
meu destino, está consumado.
A princesa entrelaçou seus dedos entre os cabelos negros e cache-
ados de Kadu, seus gestos transmitiam paz e o seu sorriso era de despe-
dida, os átomos desprendiam-se de seu corpo proporcionando um belo
espetáculo luminoso.
- O que vai acontecer agora? Perguntou Kadu.
- O fim de uma era e o amanhecer do oitavo dia... Ao proferir suas
últimas palavras, a princesa foi desintegrada, suas partículas envolveram
o desolado Kadu e sua fiel protetora Valéria, que agora teria a missão de
cuidar do filho da pessoa que mais amou em vida.
- Qual o nome dessa criança? Perguntou Kadu.
- Gênesis... Esse foi o nome escolhido pela princesa.
E assim a sétima era da criação teve o seu fim. Muito antes da
princesa conhecer o seu destino, no início dos tempos, Deus designou 7
anjos para cada dia da criação, suas imagens também foram refletidas no
espelho da existência, seres dotados de grandes prodígios, Deus os de-
nominou “A ordem dos leviatãs” O criador designou Metatron o líder da
ordem e protetor da terra, no entanto, os sete leviatãs foram corrompidos
por Satanás e convencidos a corromperem Adão e Eva a comerem das
A princesa dilacerada 15
sete árvores capitais, de cada uma experimentaram um fruto diferente de
pecado.
A ira de Deus condenou as almas dos sete Leviatãs para o tártaro,
seus corpos foram desintegrados e suas partículas fundiram-se na alma
humana, separando o potencial do homem em sete partes, assim nasce-
ram os chacras e a divisão das auras espectrais. Metatron por falhar em
sua missão de liderar a ordem dos Leviatãs, também foi enviado ao Tárta-
ro e condenado por toda a eternidade com a penitência de ser o guardião
do Cárcere, as sete almas foram induzidas ao transe profundo através da
flauta das sete eras, da qual, Metatron entoa as melodias da criação num
sopro contínuo.
O pecado agora estava no coração de todos, Deus continuava a
olhar no espelho e não gostava do que via, quando se deparou com o meu
reflexo, tratou logo de me condenar para o pior dos tormentos, a rejeição
do próprio Satanás, o criador deixou-me como Deus e diabo da minha
própria existência, não há castigo pior... Hoje eu vejo rosas sobre um cai-
xão, rostos desconhecidos numa silenciosa avenida.
16 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
I
'
Memorias de
um funeral
A
família imperial desfila num cortejo fúnebre, vejo expres-
sões vazias….
Quando abandonamos a densa matéria, ganhamos a mal-
dição de poder vislumbrar todas as suas nuances, como somos frágeis….
Um amontoado de átomos, repletos de vazios unidos a outros vácuos da
existência.
- A filha do Brasil morreu. - Dizia um repórter que cobria o cor-
tejo.
Sim… Morri, aguardo com serenidade a providência divina, ousei
experienciar a criação, quis um mundo melhor para todos vocês, e o que
recebi em troca? O que todos os Deuses da história receberam, esque-
cimento, só espero que não criem uma religião e tão pouco fomentem
guerras em meu nome.
O Palácio do Planalto tomado por personalidades da política e
curiosos, assistiam a família imperial carregando o que jaz de Vitória Ver-
salhes de Bragança.
Papai já não ostentava a imponência do dia que destronou a repú-
blica em nome de Deus. O que era Dom Fernando Versalhes de Bragança
além de um simples homem tomado pela culpa e preso a uma dolorosa
coroa tão atroz quanto os espinhos que martirizavam Cristo.
Abel selava as suas emoções numa expressão fria e indiferente;
mamãe, a Imperatriz Camila, a primeira negra a ostentar o posto na his-
tória das Américas, em seu semblante, um choro copioso, e de todos que
participaram desse triste desfecho, talvez fosse a única que foi envolvida
nesse processo sem ao menos ter o poder para reagir.
Quando o cortejo se aproximou de uma grande limusine preta, as
A princesa dilacerada 17
nuvens de Brasília pesaram e a chuva caiu….
Abel olhou para os céus, ajeitou o seu dread e fez uma breve ob-
servação:
– Ironia…. Quando éramos crianças, Vitória dizia que a chuva
simbolizava o choro de Deus pelos pecados da humanidade… E hoje?
Essa mesma chuva repentina simboliza os seus pecados… Vitória… Es-
ses são os caminhos da inocência, só podem resultar em morte e esqueci-
mento.
O esquife foi colocado no carro que seguiu viagem rumo ao aero-
porto de Juscelino Kubitschek, onde o meu corpo seria transladado para
São Paulo, o sepultamento aconteceria na cripta imperial.
Antes do inevitável destino do corpo, é curioso vivenciar certos aconteci-
mentos em nossa existência…
Como se sentiriam se pudessem presenciar os seus próprios cor-
tejos fúnebres? Pessoas lamentando pela sua morte, outras segurando o
riso, abraços protocolares de todos os sanguessugas do Império. Hoje eu
contemplo o espetáculo de minha própria morte.
O início de tudo, o meu despertar; a minha rebelião; minha puni-
ção…. São definidos em atos como qualquer peça de teatro.
O primeiro ato confunde-se com a própria história da humanidade, Dos-
toiévski deveria ser o narrador de minha alma, talvez ele conseguisse en-
contrar Deus em mim, desvendar o que eu não conseguir encontrar no
espelho, minha imagem e semelhança...
O que eu sou? Qual imagem refleti todos esses anos?
Deus ao longo das eras sempre impôs a sua vontade sobre a hu-
manidade, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, O dilúvio, Sodoma e Go-
morra, o fogo de Deus também consumiu Pompeia e fez perecer todos os
exércitos humanos que ousaram desafiar sua grandeza, Babilônia, Medo
Pérsia, Grécia e Roma tiveram suas glórias transformadas em ruínas, até
chegar nas revelações de João de Patnos sobre a segunda vinda daquele
que morreu pelos pecados da humanidade.
A minha existência não foi um anúncio de salvação, sou repleta
de rebeliões, não há promessas em mim, mas deixo um legado, fui capaz
de criar realidades para aqueles que amo, sejam vocês Deuses de suas
próprias existências.
18 O Divino Leviatã
Lembro de uma noite nublada na bucólica Petrópolis, a calmaria
do inverno serrano contrastava com o caos que tomou conta de todas as
grandes capitais do Brasil.
Lembro de papai abraçado junto a minha mamãe, ambos senta-
dos num sofá branco simples, mas bem confortável, assistiam incógnitos
os acontecimentos que alastravam-se pelos quatro cantos do país.
O Âncora do Jornal entoava um profundo pesar nas notícias que
veiculava, minhas recordações são vagas, mas lembro que foi algo nesse
sentido…
- São Paulo teve mais uma noite de protestos por toda a cidade,
três postos da Polícia militar foram invadidos por rebeldes, prefeitura de-
predada por grupos extremistas que exigem reformas em todas as insti-
tuições. Tenho um link direto com a nossa repórter Valnice Soares que
cobre os acontecimentos em São Paulo.
Assim a pobre jornalista começou a narrar com uma voz quase
trêmula o horror que acontecia em São Paulo.
- A situação está fora de controle, a tropa de choque acabou de re-
cuar devido ao grande contingente de pessoas atacando com toda a sorte
de objetos e coquetéis molotov. Há registro de 14 mortes de civis, estou
aqui com um dos líderes dessas manifestações, Carlos Eduardo de An-
dradas, conhecido como “Kadu”. Por favor, você está ao vivo para todo o
Brasil, diga-nos, quais são as exigências para que os revoltosos de todo o
Brasil entre em acordo com o governo federal?
Bruscamente Kadu arrancou-lhe o microfone da mão e estarreceu
o Brasil.
- Não existe acordo e tão pouco governo para negociar, não reco-
nhecemos esse estado autoritário e fascista, retomar o legado da revolução
Francesa, um governo do povo para o povo, a soberania é nossa! Vamos
tomar as ruas de todo o Brasil! - Anunciou Carlos Eduardo empenhan-
do uma barra de ferro. Seu olhar tinha um brilho diferente, um sorriso
destemido, uma certa timidez ao se expressar, o rosto bonito e jovial que
qualquer revolução precisa.
Depois dessas declarações, papai desligou a televisão e comen-
tou…
- A federação está se deteriorando, como é triste assistir isso… O
congresso nacional e o senado estão de mãos atadas, parece que o exército
A princesa dilacerada 19
vai interferir nas capitais.
Mamãe tentou confortá-lo, mas também não conseguia esconder
sua preocupação.
- Amor, o que podemos fazer? Não quero que as crianças fiquem
assustadas com esse caos, não podemos viajar para Braga? Visitar alguns
dos seus parentes?
- Não, Camila…. Estamos num campo de guerra, o pacto federa-
tivo de nada mais vale, me parece que é o fim do mundo como conhece-
mos….
A tensão do momento foi quebrada por Abel, que correu para os
braços de nosso pai e lhe mostrou empolgado o jogo que acabara de sal-
var.
- Pai eu zerei, olha! Passei da fase das catacumbas e detonei o Boss.
Papai apenas sorriu para Abel e levantou-se do sofá, em seguida
mamãe também se levantou e foi ao meu encontro perto da antiga escri-
vaninha nos fundos da sala, aquele era o meu local predileto para brincar,
abria e fechava as gavetas sem nenhum objetivo, apenas gostava de ouvir
o ranger das roldanas indo e voltando.
- Vitória, hora de dormir. - Disse mamãe que apanhou-me do
chão e levou-me nos ombros.
- Manhê, você não vai contar aquela história da cigarra impruden-
te de novo, né? - Assim perguntei emburrada por ter a minha emocionan-
te diversão interrompida.
- Não… Hoje não tem a cigarra imprudente, você não lembra,
mas o papai tocava modas de viola para uma princesinha dormir.
- Eba! Papai vai tocar a nossa música!
Assim me entusiasmei, porque a “ Nossa Música” foi uma compo-
sição de todos da família, minha contribuição foi com as palavras “prin-
cesa flor”, e também com a parte percussiva usando uma panela velha e
duas colheres de pau.
- Vamos para o seu quarto, Vivi, hoje a moda de viola será lá! -
Disse mamãe com o seu marcante sorriso.
Lembro de ter entrelaçado meus braços no seu pescoço e deitado
minha cabeça sobre o seu ombro esquerdo, seu cheiro era único, uma
loção caseira de alfazema, aveia e mel, antes que eu pudesse me sentir
protegida nos seus braços, olhei instintivamente para janela da sala e vi
20 O Divino Leviatã
um vulto deslocando-se com muita rapidez.
- Mãe, tinha alguém na janela! - Alardeei gesticulando na direção
da janela.
Mamãe se aproximou da janela e espreitou a escuridão, não havia
nada de suspeito, apenas o nosso velho cão pastor Proteus atormentado
por suas pulgas e carrapatos e coçando-se em frente sua humilde casinha.
- Não tem nada lá fora, Vivi, sabe o que é isso? Criança com sono
que precisa dormir.
Eu não tinha nenhuma explicação para o que eu tinha visto, mas
preferi abraçar-me na segurança dos seus braços. Subimos dois pequenos
lances de escada até chegar no meu quarto, papai com o violão e Abel com
um pandeiro meia lua já estavam lá nos aguardando.
- As meninas chegaram! - Entusiasmou-se papai que dedilhava
algumas notas da introdução de “Nossa Musica”, então mamãe começou
a cantar…
- Ouço um leve dedilhar de violão. Melodias de um trovador da
solidão.
Papai cantou a segunda parte.
- Poesias de um rei e uma rainha improvável unidos pelo coração,
mortos por Maquiavel e ressurretos pelo cordel. Os ramos de Petrópolis
deu os seus frutos de amor.
- Abel o desbravador! - Assim gritou o meu irmão chacoalhando
o pandeiro meia lua.
- E Vitória princesa Flor! - Cantei a minha parte na música.
Todos demos uma pausa e rimos daquela composição esquisita,
mas com uma grande carga de símbolos valorosos.
- Pai, vamos cantar de novo, é que eu não consegui dar o meu
gritão! Sugeriu Abel com os seus cabelos desgrenhados e fiapos de traves-
seiro por todo canto.
- Tudo bem, então vamos cantar e…
Repentinamente as luzes do quarto oscilaram, todos olharam para
o velho lustre que vibrava os seus cristais, enquanto o feldspato da lâmpa-
da apresentava um brilho opaco.
- O que é isso, pai? - Perguntou Abel ressabiado.
- Algum curto no quadro de energia. Deduziu papai.
Logo a luz do quarto estabilizou-se e, no silêncio de nossas con-
A princesa dilacerada 21
clusões, aquilo nada mais era que o péssimo serviço de luz fornecido para
a região serrana, foi quando nossas almas foram tiradas do repouso do
silêncio pelo toque de celular do papai.
- Oi, pode falar. - Atendeu papai.
- Sr Fernando, aqui é o Firmino, tem visitas para o senhor.
- Visitas a uma hora dessas? Diga que eu não estou e viajei a negó-
cios, todos que conheço sabem que não recebo visitas inesperadas.
- Mas senhor, não se trata de uma pessoa qualquer, ela se anun-
ciou como Senadora da República, Helena Sant’anna.
Papai ficou em silêncio por alguns segundos, sua feição de perple-
xidade até hoje está ilustrada em minha mente como um quadro impres-
sionista.
- Helena Sant’anna? O que uma senadora da república faz no meu
sítio em plena noite de Petrópolis, e com o país tomado por revoltas?
- Firmino, deixe-a entrar.
- Querida, leve as crianças para o quarto, acredito que a conversa
será longa. Disse papai olhando para o vazio e demonstrando preocupa-
ção.
- Amor, o que essa mulher quer com você?
Papai não respondeu a questão, fechou-se em pensamentos e
transpirações.
O clima leve de uma cantiga familiar, tornou-se tensa. Abel como
qualquer menino de oito anos, não deu importância para aquilo, foi para
o seu quarto com os olhos vidrados no seu game portátil.
Eu já sentia a preocupação de mamãe passando pelo meu corpo,
era como uma conexão de auras, um encontro de galáxias que me propor-
cionava sentir a sua angústia.
Mamãe deixou-me a sós na penumbra do meu quarto infantil
repleto de ursinhos sorridentes na parede e um abajur ao lado da mi-
nha cama que iluminava parte do meu quarto. Estava inquieta, fiquei por
dez minutos fitando as sombras dos galhos da amoreira projetadas no
teto, quando fui tomada por uma torrente de pensamentos, uma criança
curiosa e angustiada jamais se renderá a conformidade do travesseiro e
o ósculo maternal na testa, acompanhado de um boa noite, não pude re-
sistir e sorrateiramente levantei-me da cama, apanhei o meu sapinho de
pelúcia e desci até o escritório onde papai costumava a receber visitas.
22 O Divino Leviatã
Desci as escadas e o vi abrindo a porta e recepcionando três indivíduos.
Helena Sant’anna, senadora da república, uma senhora de trajes
bem distintos e que aparentava o cansaço da viagem e da idade avançada.
As outras duas pessoas que a escoltavam, me aguçaram a curiosi-
dade. Pareciam de alta patente e demonstravam muita segurança.
Uma mulher de notável beleza trajada com um longo vestido pre-
to, os seus cabelos eram castanhos escuros e sua pele morena.
O outro indivíduo era um homem incrivelmente grande e forte,
cabelos loiros e alongados até a base do antebraço, seu rosto era de uma
austeridade que jamais havia visto. Eu me posicionei na escada de um
ponto que não podiam notar a minha presença, e lá fiquei até que reali-
zassem todas as formalidades e, finalmente entrassem no escritório.
Desci as escadas e percebi que a porta estava entreaberta, espian-
do dessa abertura, avistei papai sentado em sua mesa e a Senadora junto
com seus misteriosos seguidores em pé. As revelações que ocorreram a
partir dessa reunião, mudaram os destinos da minha família, do país, do
mundo e me transformou numa existência errante e amaldiçoada. Assim,
papai fez o primeiro contato:
- Confesso que estou curioso com essa visita tão repentina, me
desculpem, não sou o tipo de homem que gosta de surpresas, minha vida
é toda programada, não sou de improvisos.
- Dom Fernando, Você sabe muito bem o motivo da nossa visita.
Afirmou a Senadora.
- Não entendo. - Insistiu papai.
- Aqui mesmo nessa casa, há trinta anos…. Um típico festejo de
sete de setembro, na época você era um garoto de nove anos, e eu cum-
pria o meu primeiro mandato de deputada federal constituinte.
- Lembro vagamente. - Disse Papai. - Creio eu que não veio relem-
brar o passado, não é mesmo?
- Você é um homem direto, gosto de pessoas assim, prometo ser
breve. Para que entenda o motivo da nossa visita, precisamos relembrar
essa tarde tão agradável de sete de Setembro de 1989, o país estava em
polvorosa, começávamos a nossa democracia, eu fui convidada pelo seu
falecido pai, Dom Luiz a participar da solenidade. Toda aquela festividade
ocultava algo grandioso. O segredo que o saudoso imperador D Pedro II
levou para o descanso eterno, e hoje a república e as sociedades secretas
A princesa dilacerada 23
que a regem, guardam a sete chaves. Por acaso lembra que no tardar da-
quele dia, seu pai reuniu convidados seletos para rezar na antiga capela?
Na verdade estávamos diante de um vórtex.
Papai acompanhava todo o relato da senadora expressando desin-
teresse.
- Vórtex? Talvez eu não tenha compreendido muito bem, você dis-
se que na pequena capela aos fundos de minha casa, existe uma espécie de
portal? Compreendi bem? -Papai gargalhou copiosamente entrecortando
com uma tosse da gripe que o acometeu a noite passada.
- Senadora, meu pai nunca havia me relatado sobre o seu talento
em criar ficções tão criativas. Conspirações…. O que seria da literatura
fantasiosa sem elas? Não teríamos clássicos como as 20 mil léguas subma-
rinas, senadora, não sou um homem de intuições, mas essa conversa não
me parece muito promissora.
Repentinamente a mulher que trajava um longo vestido preto,
manifestou-se pela primeira vez.
- Se me permite, Senadora, acho que precisamos ser mais convin-
centes. Dom Fernando, cada vórtex espalhado pelo país é um portal para
o submundo. Ao redor do planeta existem outras vórtex com aberturas
parciais ou apenas um ponto energético para atrair potestades de diversas
categorias. Somente no Brasil todas as vórtex são portas para o submundo
ou para a morada de Deus. Um antigo regimento do exército Imperial de
Portugal e Algarves no ano de 1733 avistou em três pontos da até então
capital da província do Rio de Janeiro, três grandes luzes;
A primeira emanava do cume do corcovado, a segunda luz surgiu
do que é hoje o paço imperial, e a terceira… - A mulher pausou sua fala
por alguns segundos e aguçou a curiosidade de papai que mudou sua ex-
pressão de desinteresse para esboçar um sorriso que mesclava um leve de-
boche com surpresa. - A terceira luz surgiu exatamente nesse local… Um
engenheiro militar que acompanhava a guarnição, José Fernandes Pinto
Alpoim, se aproximou daquela estranha luz que rompia a escuridão da
madrugada e assistiu a cena mais inquietante de sua vida, os vinte solda-
dos da sua guarnição que foram checar o fenômeno, tiveram seus corpos
arrastados por uma força invisível até o centro da luz, e nunca mais foram
vistos. Alpoim acabou relatando as autoridades locais e ao governador
Gomes Freire que os seus homens foram abatidos num ataque de escravos
24 O Divino Leviatã
foragidos, como conseguiria explicar algo tão insólito?
- O engenheiro voltou várias vezes ao local para entender o que
havia ocorrido, foi exatamente ao ponto que a guarnição perecera diante
da luz e, calculou a distância das outras duas luzes. Veio em sua mente
que o dia anterior foi o início do solstício de inverno e, associou aque-
las luzes com o fenômeno astronômico. O engenheiro decidiu estudar os
fenômenos e aguardou pacientemente o fim do solstício de inverno e o
começo do solstício de verão, e para sua surpresa, as previsões estavam
certas. Alpoim escreveu uma carta sobre a sua descoberta e direcionou
ao rei Dom João V, que pouca importância deu ao fato. E no local onde
foi encontrada a primeira luz, o engenheiro construiu o paço dos vices
reis e governadores, que depois tornou-se o Paço Imperial… - A mulher
silenciou outra vez a sua narração e sorriu para papai. - Dom Fernando…
Tenho duas revelações importantes. - A misteriosa mulher jogou um jor-
nal em cima da mesa. - Leia a capa do Jornal e atente-se a data.
Papai apanhou o jornal e fitou com um olhar debochado as três
figuras que o assistiam. Quando fixou os seus olhos na capa do Jornal
da tarde, percebeu que a data da publicação era 22 de julho, três dias no
futuro.
E a matéria o estarreceu… Uma triste foto da nossa família envolta em
sangue com o título:
“Tragédia em Petrópolis!
Descendentes da família imperial Versalhes e Bragança foram en-
contrados mortos na manhã dessa quarta feira na casa de veraneio da fa-
mília ao sul da cidade serrana.”
A princesa dilacerada 25
caminhou apressadamente para porta.
- Não tão cedo, imperador. - Interviu a Senadora.
- Do que me chamou? - Indagou papai.
- Estamos aqui exatamente para debatermos o destino da sua fa-
mília e do Brasil…. Aceite o seu destino e reine sobre o Brasil e todas as
nações, ou morra e veja os homens mais perversos do mundo destruírem
nossa sagrada terra com suas ganâncias. E a segunda notícia que precisa
saber, a Cia já tem o conhecimento do que você significa para o futuro, e
mandou seis agentes dos mais preparados para eliminar a ameaça conhe-
cida como “Divino Leviatã”, fora os agentes de campo instalados no Brasil
para o apoio logístico.
- Não… Vocês estão loucos. - Disse papai dando-lhes as costas e
direcionando a mão direita para abrir a porta.
- Você não está agindo como um imperador.
Pela primeira vez se manifestou o homem de longos cabelos alvos,
sua voz era incrivelmente poderosa e preenchia a sala.
- Você terá as respostas que precisa, mas se quer salvar a sua fa-
mília, terá que nos acompanhar a uma viagem.
- Viagem? Afinal, quem são vocês? - Gesticulou papai na direção
das duas misteriosas figuras.
- O Meu nome é Crocell, perdi minhas asas e cai junto com a terça
parte dos céus, hoje eu tenho a oportunidade de um dia recuperar a glória
que tive, assim como você, sou um nobre sem coroa.
- Eu não sou uma existência, logo não tenho nome, sou a missão
que vim cumprir e nada mais. - Respondeu a mulher.
- Senadora, eu não sou o homem certo para o seu golpe de estado,
sim, eu descendo da família imperial, mas os tempos são outros, defen-
do o estado democrático de direito e não quero reger um país, minhas
pretensões são modestas, começam desde administrar o meu negócio até
terminar a educação dos meus filhos, o que um homem como eu pode
oferecer?
A indagação de papai pairou pelo silêncio da sala, não houve res-
posta, até o momento que Crocell olhou para o alto como se houvesse
captado algo e com o estrondo de sua voz alertou:
- Eles estão por perto!
- Então quer dizer que a brincadeira já vai começar, nesse caso
26 O Divino Leviatã
não podemos perder mais tempo aqui. - Complementou a mulher.
A Senadora se aproximou de papai e lhe entregou uma fotografia
de mamãe segurando-me após o parto.
- Filhos são dádivas de Deus, não é mesmo Dom Fernando? Saiba
que acreditando ou não, os fatos que relatamos aqui vão acontecer… Por
determinação divina não podemos ir mais longe do que isso. Todo um
arranjo apocalíptico de todos os profetas inspirados por Deus podem ser
desfeitos, basta você acreditar nas providências divinas.
- Existe algo que ainda me intriga nessa história toda. - Disse pa-
pai.
- O que te aflige, Dom Fernando?
- O que é o Divino Leviatã?
A senadora sorriu com um ar de satisfação e prontamente respon-
deu.
- O Futuro.
A princesa dilacerada 27
EPÍSTOLA
II
A viagem ao
submundo
P
apai saiu do escritório junto com os seus três visitantes e ca-
minharam rumo a antiga igreja, eu tratei logo de me escon-
der antes que pudessem notar minha presença, esgueirada
atrás do sofá.
Sai pelos fundos da casa na intenção de cortar caminho, logo me
deparei com a amoreira e por lá fiquei até os meus olhos se acostumarem
com aquela escuridão. Olhei na direção da capela e avistei um brilho opa-
co, segui a luz abraçada no “Charlie”, meu sapo de pelúcia e, finalmente lá
estavam eles dentro da capela, até então, eu jamais tinha explorado aquele
local. Eles já tinham adentrado à capela, um lugar muito pequeno e difícil
de entrar sem que eles percebessem a minha presença.
Engraçado…. Minhas memórias falham ao confrontar-me com
essa parte da história, sinto um vazio tão grande…
Uma gargalhada emanou dos céus e interrompeu as memórias
póstumas de Vitória.
- Irmãzinha... É comovente sua entonação ao detalhar os momen-
tos mais singelos da sua infância, brincar com as roldanas da gaveta, as
modas de viola do papai, o seu sapo de pelúcia. Se fosse viva eu bem que
poderia sugerir que escrevesse um livro, eu lhe garanto que seria um best
seller.
- Abel, é Você?
Ao seu estilo extravagante, Abel surge perante a princesa com um
belo sobretudo branco que cintilava a luz do
Glorioso Império.
- Você fez uma viagem astral só para me observar, Abel? Suponho
28 O Divino Leviatã
que esteja aqui desde o começo de minhas recordações.
- Sim, minha irmã… Escutei boa parte das suas memórias, somos
ligados pelo espírito, sinto a sua vibração áurica não importa onde estiver.
- O que quer de mim, Abel? Estamos de lados apostos, você fez
das suas para destruir Dom Rafael e a mim, e tudo pelo poder, e claro…
Ser a luz desse império, enquanto a mim? Restou o papel a alma errante
que adotou a escuridão.
- Deixe dessa vitimização e guarde esse besteirol filosófico para
você, quem liga para essa bobagem? - Advertiu Abel. - Vamos observar
juntos a história, irmãzinha… E faremos isso de um modo mais diverti-
do, venha comigo!
Abel puxou o braço esquerdo de sua irmã e ambos desapareceram
nos céus. E surgiram na capela.
- Veja como é bem mais divertido apreciar o passado participando
dele, ao menos como espetros.
- Desde quando consegue transitar pelas linhas temporais? - Per-
guntou Vitória.
- Truques que aprendemos com as nossas necessidades, fora do
corpo físico, tudo é possível. - Respondeu-me Abel.
- Não entendo…. Depois de tudo que me fez, ainda tem coragem
de me procurar?
- Psiu… A cena vai acontecer agora, olhe para baixo dos bancos
da igreja. - Disse Abel apontando para quatro fileiras de banco.
Vitória observa a sua figura do passado e comenta.
- Estranho… Por que não me lembrava disso?
- Psiu! Já disse, fica quietinha e observe o primeiro ato. - Advertiu
Abel ajeitando o seu dread.
A princesa dilacerada 29
militar, muitos outros viajantes de todas as partes do Brasil avistaram es-
sas luzes, o que aguçou a curiosidade do Príncipe Herdeiro, Dom Pedro,
quase oitenta anos depois. Expedições foram feitas a revelia do imperador
Dom João VI, e foi exatamente nesse ponto que no início do solstício de
inverno de 1808, surgiu a luz perante Dom Pedro e outros cinco soldados
de sua confiança. Dom Pedro tentou interagir com o fenômeno, observou
com cautela a situação, quando decidiu agir, o nosso amigo Crocell apa-
receu e revelou ao príncipe que aquela era uma das chaves que interligam
o submundo, Terra, Céu e os poderes que as chaves guardavam, o perigo
que ofereciam a humanidade.
Crocell e a Senadora se aproximam do gazofilácio.
- Sim, o homem havia perdido a sua sintonia com o mundo espi-
ritual, e quando ocorre esse desequilíbrio entre os três mundos, os vórtex
entram em colapso, então fiz um mapa dos nove pontos. E concedi a ele
o poder de encontrar esses vórtex e selá-los até o dia que a humanidade
pudesse entender o seu papel no equilíbrio dos mundos. Isso só podia ser
feito por mãos humanas. O Príncipe desbravou a maior de suas aventu-
ras, cortou todo o Brasil e encarou a ganância de muitos aventureiros que
conheciam a lenda, sobretudo os americanos. Com muita dificuldade,
Dom Pedro venceu os obstáculos e selou os sete vórtex. Muitos usaram as
chaves dimensionais para atrair espíritos perigosos e realizar toda a sorte
de ganâncias, e o selo só pode ser quebrado por alguém que possua à au-
torização dos dois mundos espirituais ou daquele que foi escolhido pelo
supremo criador como imperador dos três poderes, o Divino Leviatã.
- E essa é só a introdução da história, se quiser saber do restante,
terá que nos acompanhar até o submundo. - Complementou a senadora
Helena.
Repentinamente, Crocell e a misteriosa mulher foram tomados
por uma premonição.
- Eles chegaram. - Exclamou Crocell.
A misteriosa mulher ajeitou o seu vestido e também constatou a
presença do inimigo
- Sim, e como foi previsto, seis indivíduos já estão posicionados
na casa e esperando as ordens da agência, um apoio aéreo nos entornos
e outros vinte agentes de campo organizados pela cidade para um apoio
logístico. Consigo sentir a vibração áurica de todos eles.
30 O Divino Leviatã
- Vocês chegam em minha casa, invadem a minha privacidade,
assustam a minha família e, de repente, começam a contar histórias des-
conexas, e a tal luz? Não vejo luz alguma. - Revoltou-se Dom Fernando.
Barulho de vidraças quebrando e gritos surgiram da casa.
- O que foi isso? - Perguntou Dom Fernando. - Invadiram a minha
casa, ouvi gritos da minha mulher, por acaso tudo isso faz parte do plano
de vocês?
- Os agentes da CIA já estão com a sua mulher e filho, infelizmen-
te o seu caseiro foi morto, eles manterão sua família com vida, pois é você
o alvo principal a ser destruído, serão usados como isca para te encontrar,
e eles sabem que está aqui. A CIA possui métodos pouco ortodoxos para
cumprir suas missões, não se importam muito com as constituições lo-
cais. - Comentou a misteriosa mulher.
- Acho que já viu o suficiente, não é mesmo? Aceite o seu destino
e poderemos tomar partido da situação. - Assim pressionou a Senadora
num tom bem incisivo.
As mãos de Dom Fernando tremiam e ele se mantinha incrédulo,
não conseguia formular uma frase, apenas observava os três na tentativa
inútil de encontrar alguma resposta. Foi quando o seu momento de inér-
cia foi quebrado pelo inevitável confronto com a morte, entram na capela
os agentes Finnigan e Morello.
- Existem coisas que simplesmente acontecem e muitas vezes
não temos o controle dos eventos… Grandes poderes precisam ser man-
tidos… E para isso, algumas ameaças precisam ser dizimadas. Querem
saber de uma coisa? Certo trecho dessa viagem cansativa eu me senti o
Aquiles em Ilíada, e pensei retratar todo esse derramamento de sangue
com um lindo conto poético, embora… - Disse Morello.
Nesse instante, os outros quatro agentes surgem na capela, um deles jo-
gou o menino Abel e a sua esposa Camila, desfalecidos sobre os chão da capela.
- O que vocês fizeram com a minha família seus desgraçados? O
que querem de mim?
- Estão vivos. Por eu ser metódico, não faço nada que não esteja
dentro do planejado, vocês morrerão juntos como uma família deve mor-
rer. Enquanto a você, senadora, saia daqui enquanto eu permito, já me
certifiquei que a sua viagem será tranquila, enquanto aos seus capangas…
Infelizmente é informação demais para eu ignorar, suas vidas terminam
A princesa dilacerada 31
aqui.
Dom Fernando olhou para a Senadora e também observou com atenção os
outros dois que a escoltavam, e assim tomou a decisão que salvou a sua família.
- Senadora, parafraseando o meu antepassado, se é para o bem ge-
ral da nação e principalmente da minha família, eu aceito o meu destino,
farei a viagem!
A senadora sorriu e prontamente fez um sinal para que os seus
dois subordinados agissem.
- Vocês sabem o que fazer. - Disse a Senadora.
- É claro que sabemos, já era tempo. - Respondeu a misteriosa
mulher.
- Eu não sei o que pretendem fazer, mas será inútil. Ah! Antes que
eu me esqueça, o nosso satélite mapeou todo o metro quadrado da sua
residência, lá encontramos a distinta senhora Camila e o garotão aqui,
o curioso é que descobrimos que na capela tinham três pessoas, a Se-
nadora, o Dom Fernando e uma pequena criança que se arrastava pelos
bancos. - Morello puxou com força a pequena Vitória e a rendeu. - Olha
só o que eu encontrei aqui.
- Papai! - Gritou Vitoria
- Filha! - Bradou desesperadamente Dom Fernando ao tentar ir ao
seu encontro.
- Nada vai acontecer com a sua família, a partir de agora, meu
dever é protegê-los. - Tranquilizou Crocell.
A misteriosa mulher se aproximou do agente Morello e o encarou
com deboche.
- Entediante… Seu satélite identifica muitas coisas, embora tenha
sido incapaz de localizar a presença de Crocell e a minha, é uma pena que
os esforços da agência mais importante do mundo, será de pouca ser-
ventia. Da mesma forma que a CIA possui os seus interesses, eu também
tenho a minha missão, e você, Morello, está no meu caminho.
- Quanta confiança para uma subalterna qualquer, vou te ajudar
na sua missão. - Morello apontou sua pistola semiautomática no fronte de
sua oponente e atirou a sem nenhuma cerimônia. A misteriosa mulher
caiu no chão aparentemente morta.
Camila e Abel acordaram com o barulho do tiro e observaram apavora-
dos o corpo sem vida.
32 O Divino Leviatã
- Do que adianta ser prepotente e fraca… - Comentou Morello
que olhava com desprezo a sua adversária no chão. - E você grandão? Será
o próximo! Fowler, cuide dele. - Ordenou Morello a um agente que usava
um rabo de cavalo, aparentava ter uns 35 anos e usava óculos escuros para
completar o visual.
- Alguma coisa a declarar? - Perguntou Fowler que já apontava a
sua Magnum 45 na cabeça do anjo renegado.
- Eu pergunto o mesmo, algo a declarar? - Replicou Crocell.
- Que conversa é essa? - Disse o agente Fowler seguido de uma
gargalhada arrogante.
- Preste atenção. - Preconizou Crocell com um semblante austero.
O anjo caído selou seus olhos e juntou suas mãos numa posição
de reza. Sua aura brilhou num azul intenso e moldou-se num triângulo.
- Equação Arcana! - Crocell proferiu sua conjuração e formou um
triângulo de energia que atingiu seu oponente, deixando-o suspenso no
ar devido ao grande poder de atração exercido pelo triângulo. Fowler caiu
no chão retorcendo-se todo para o espanto dos outros agentes.
Morello surpreso perguntou.
- Que tipo de tecnologia é essa?
Crocell não respondeu.
- Desde quando vocês brasileiros utilizam tecnologia militar tão
sofisticada?
-Vocês não fazem a mínima ideia do que estão enfrentando. -
Gargalhou a misteriosa mulher ainda no chão. - Suas armas são obsoletas,
eu sou desprezada pelos dois arranjos inevitáveis da existência, a vida e a
morte.
- Sendo assim, não posso morrer.
- Acham que vou acreditar nessa história? O que fizeram com o
Fowler? - Irritou-se Morello.
Repentinamente à agente Finnigan o interrompe.
- Morello, tem alguma coisa errada com esses dois, a agência não
consegue rastreá-los com o satélite, precisamos ser cautelosos.
- Quer saber o que aconteceu com o Fowler? - Perguntou Crocell.
O agente Fowler ergueu-se como se uma força invisível o manipu-
lasse, apontou sua arma para Morello e lamentou com os olhos marejados
- Me perdoe, é mais forte do que eu.
A princesa dilacerada 33
Antes que o gatilho fosse apertado, Morello teve o instinto de des-
viar do projétil e atirar contra Fowler quatro vezes.
O agente caiu envolto ao seu próprio sangue, suspirou por três vezes e morreu.
- Que Diabos foi isso? - Perguntou Dom Fernando.
- Não se preocupe, com esses dois você está a salvo. - Disse a Se-
nadora num tom tranquilizador.
- Por acaso isso é tecnologia soviética? Chinesa, Norte Coreana? -
Perguntou Morello.
- Não sei se conhecem as resoluções da ONU, usar armas de tec-
nologia desconhecida infringem um tratado com mais de 150 signatários,
dentre eles o Brasil, estão arrumando uma grande dor de cabeça diplo-
mática para o seu país. Meus parabéns! - Disse o Agente Morello ovacio-
nando com palmas espaçadas. - Conseguiram seus passaportes para vida,
agora saiam daqui junto com a senadora e nos deixem cumprir nossa
missão.
- E se eu pedisse para enfiar a sua cortesia onde lhe fosse mais con-
veniente, o que faria? Indagou a mulher num tom irônico e sensualizado.
A fúria tomou conta de um dos agentes, numa atitude intempesti-
va, colocou-se a frente de Morello.
- Já chega! Não vou ficar ouvindo essa mulherzinha nos afrontar.
- Não Timothy, não faça isso! Suplicou.
O Agente disparou uma rajada de tiros de submetralhadora, os
projéteis simplesmente ricocheteavam numa espécie de campo de força e
pereciam no chão.
- A hora do teatro acabou, Morello... Não mais fingirei que fui
atingida para satisfazer o seu ego, e antes que pergunte, uma das minhas
habilidades é a distorção do espaço usando telecinese avançada, enquanto
a você, Timothy, a lei da semeadura… semeou as suas cápsulas e vai co-
lher a morte…
Mais de cinquenta projéteis se voltaram contra o corpo de Ti-
mothy que desfigurou-se num cadáver ensanguentado sem ao menos ter
uma chance de reação.
Camila e as duas crianças correram para os braços de Dom Fernando.
- O que está acontecendo? Quem são essas pessoas? Perguntou
Camila com semblante de horror.
- Eu também não sei quem são, querida, prometo que ficará tudo
34 O Divino Leviatã
bem.
- Pai, estou com medo! - Disse o pequeno Abel que logo foi con-
solado pelo seu inseguro pai.
A princesa dilacerada 35
divina agora abrirá uma das suas moradas.” - A mão da guardiã dos três
mundos brilhou intensamente e fez liberar uma energia avassaladora, as
estruturas da capela começaram a tremer.
A luz do vórtex finalmente foi liberada, Dom Fernando e sua fa-
mília se afastaram da Luz, Morello e Finnigan tentavam furtar os seus
olhos daquele fantástico fenômeno.
- Então o temor de Washington é verdadeiro… - Comentou Fin-
nigan.
- E como havia prometido, o desfecho do último ato! - Disse a
Guardiã levantando os braços num tom teatral. Aos que são cativos das
correntes do submundo, jamais poderão se soltar! O castigo desses três
idiotas vem do Oeste.
Os estranhos enigmas da mulher deixou a todos incógnitos, até o
momento que um trote de cavalo foi ouvido.
- O que é isso? Se perguntou Morello.
- Os carrascos da morte chegaram. Respondeu a mulher com um
sorriso sádico.
Repentinamente duas figuras assombrosas adentraram a capela
montadas em seus corcéis negros e arredios, ambos ligados as correntes
que acometiam os três agentes.
- Não! Deixe-nos sair, por favor! Não queremos morrer!
A Guardiã colocou-se a frente dos pobres diabos que estavam ca-
tivos de suas correntes e sorriu.
- Vocês nada mais fizeram do que cativar a maldade que realiza-
ram em vida, se fossem pessoas justas, jamais as correntes os aprisiona-
riam. Mataram sem nenhuma compaixão, apenas obedeceram interesses
escusos. Eu não decido sobre a existência, sou apenas a guardiã dos por-
tais do submundo e do paraíso, se fossem pessoas de boa índole, jamais
seriam prisioneiros das correntes da iniquidade.
- Que espiem seus pecados eternamente, levem-nos!
Prontamente os cavaleiros da iniquidade obedeceram as ordens
da misteriosa guardiã e arrastaram os dois agentes para o centro da luz.
- Morello! Nos ajude! Por favor! Não queremos morrer! - Gritou
um dos condenados que foi arrastado sem piedade para o seu destino
infernal.
Camila desmaiou nos braços de Dom Fernando, tamanho foi o
36 O Divino Leviatã
impacto da cena que presenciou. Morello e Finnigan finalmente desper-
taram para realidade, trêmulos e confusos, abraçaram-se um ao outro
como se fossem duas crianças presas no escuro.
- Por favor, perdoe-nos pela nossa imprudência, só obedecemos
os interesses de Washington. Sou um agente de campo muito experimen-
tado, conheço toda podridão dos bastidores da CIA, tenho informações
tão comprometedoras que fariam de “water gate” uma mera notícia de
tabloide.
- Que cena mais patética, esperava mais dignidade, Morello. No
final das contas, não passa de um rato que trai seu próprio país para so-
breviver
- O que vai fazer conosco? - Perguntou Finnigan.
A guardiã não respondeu e sorriu ao contemplar o medo estam-
pado no rosto dos agentes. Crocell aproximou-se e indagou.
- Acha mesmo necessário matar esses dois? A casa branca já tem
o conhecimento do fracasso da missão, a morte deles não acreceria nada.
- Crocell, para um anjo caído por rebeldia, você tem um coração
muito mole, não posso deixar sujeitos da estirpe do Morello impunes, a
minha missão é garantir que não exista nenhuma ameaça para a implan-
tação do Divino Leviatã.
A guardiã deu as costas ao anjo caído e caminhou a passos lentos
na direção dos agentes. Morello e Finnigan tentaram inutilmente uma
fuga, mas os seus corpos foram paralisados e suspensos no ar pelo poder
telecinético da poderosa mulher.
Finnigan começou a chorar copiosamente, os seus soluços parti-
ram os corações de todos os presentes.
- Por que entrou na CIA, agente Finnigan? Você participou de
operações clandestinas na América do Sul e foi responsável por mortes
e cânceres de lideres de estado através do patógeno que trouxe ao Brasil.
Seu choro é de medo, e não de arrependimento.
- Sua desgraçada, acha mesmo que pode enfrentar à América so-
zinha? Um dia te encontro no inferno, vagabunda!
- Eu lamento não poder realizar o seu sonho, Morello, chegou a
hora de apreciar novas paisagens! As correntes do inferno surgiram das
mãos da guardiã, que impôs aos seus cativos a impossibilidade de fuga.
A mulher que tinha em seu poder a chave para uma das portas do
A princesa dilacerada 37
inferno, cantarolava uma cantiga infantil enquanto arrastava os dois para
o centro da Luz, ao cruzar o caminho de Dom Fernando e sua família, ela
sorriu e fez o convite para viagem.
- Siga-me Dom Fernando, chegou a hora de realmente conhecer
a verdade. - Depois de proferir essas palavras, correu para dentro da luz
e desapareceu junto com os dois agentes que clamavam desesperados por
ajuda.
Abel e Vitória protegiam-se abraçados nas pernas do pai, que por
sua vez segurava a desfalecida Camila em seus braços.
- Imperador, também precisamos partir. - Preconizou Crocell.
Dom Fernando acenou positivamente com a cabeça.
-Senadora, também viajará conosco? Perguntou o predestinado
imperador.
- Essa viagem eu já fiz e não pretendo retornar, vá em paz, cuidarei
das coisas por aqui. Disse a senadora.
Dom Fernando colocou a desfalecida Camila em cima do banco
da primeira fileira, e acomodou sua esposa com a jaqueta que usava,
Abel e Vitória ficaram juntos a mãe velando o seu repouso.
- Cuide da minha família, Senadora, eu voltarei!
Dom Fernando e Crocell caminharam para a luz e desapareceram,
assim como o vórtex que perdeu intensidade até dissipar-se por completo.
O silêncio pairou sobre a pequena igreja e os espectros de Abel e
Vitória do tempo presente que assistiram a todo o evento, começaram a
caminhar pela capela na direção dos seus passados.
- Eu não me lembrava do quão terrível foram esses acontecimen-
tos, não foi atoa que apaguei da memória. - Comentou Vitória.
- Sim, foi algo assustador, mas ainda existem fatos muito mais
relevantes para te mostrar. - Disse Abel.
- O que vamos fazer agora? - Perguntou Vitória.
- Ora, não é óbvio? Vamos desbravar ainda mais o passado.
Abel e Vitória desapareceram, deixando o pequeno templo des-
cansar em seu silêncio sepulcral.
38 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
III
A carta aos
condenados
-V
ocês demoraram... E quando usamos a valência do
tempo num plano de eternidade, é porque algo gran-
dioso que transcende os limites dos céus e da terra
esta prestes a acontecer.
- Sócrates, você teve a honra de ter junto ao criador, nem mesmo
eu que estive tão próximo de sua presença, sequer vi a sua face. - Disse
Crocell.
- Eu simplesmente desvendei o seu mistério e cumpri o meu jura-
mento quando fui condenado ao submundo zero. O criador não aprecia
aqueles que tentam desmistificar a sua deidade, o que vocês chamam por
filósofos são enviados para essa parte do submundo, onde precisamos
criar o nosso universo exatamente como Deus criou, por isso o marco
zero é o lugar mais caótico de toda existência.
- O que quer de mim, Sócrates?
- Quero que condene o Dom Fernando ao ostracismo eterno, e
que renasça as virtudes de um imperador que precisamos.
- Guardiã, por favor, abra o portal para o submundo zero.
O portal foi aberto e os quatro entraram no universo caótico
criado por Deus aos filósofos. Abel e Vitória que observavam os eventos
como espectros, olharam um para o outro e também desapareceram.
O marco zero do submundo era algo aterrorizante e ao mesmo
tempo magnífico, parecia uma representação do universo com todas as
suas luzes e criações no auge da primavera astral. Era possível ver plane-
tas, estrelas, constelações e outros corpos celestes.
- Isso não pode ser verdade… - Disse Dom Fernando incrédulo
com o que presenciava.
A princesa dilacerada 39
- Diga-me, qual é a verdade, imperador. A morte é tão ingrata
quanto a vida, não dá respostas, não há respostas, o que existe é a
vontade absoluta de um Deus.
- Veja aquilo. - Apontou Sócrates a uma colisão de planetas e
uma fusão de galáxias.
- Esses planetas se colidindo e a fusão dessas cadeias de galá-
xias, nada mais é que o encontro dos filósofos, no mundo zero suas
ideias vão de encontro e são destruídas. Muitos filósofos conseguem
criar o universo, outros sequer conseguem surgir do Boson de Higgs,
eu me libertei desse mundo, por uma fração de milésimos de segun-
dos obtive o poder divino, organizei o meu caos e crie as minhas pró-
prias leis do universo. Dom Fernando, tenho algo pra você.
Sócrates entrega uma carta ao imperador junto com uma se-
mente vermelha que selava o envelope.
- O que significa isso? - Perguntou Dom Fernando.
- Essa é a carta dos condenados de todas as eras da terra. Essas
almas clamam pela misericórdia do criador, a semente que sela a car-
ta dará origem a Ninrode. - Revelou Sócrates.
- Ninrode? - Insistiu Dom Fernando.
- Ninrode foi um rei da antiguidade, um dos poucos sobrevi-
ventes do dilúvio, um homem que ousou a desafiar Deus. Sua alma
foi conjurada e o seu corpo transformado numa semente. A punição
de Ninrode será dar o fruto que ele sempre desprezou em vida, a obe-
diência ao criador e a mortificação do livre arbítrio. Ninrode será à
árvore que unirá os três reinos do Divino Leviatã, e terá que ser ger-
minada no momento que os sete reis tomarem posse dos seus reinos
e o imperador vencer o inimigo do Brasil.
- Você fala por enigmas, eu não entendo. - Inquietou-se Dom
Fernando.
- Você entenderá... O importante eh que o mundo volte a sua
essência. O contato direto com o oráculo de Delfos e de todos os can-
tos da terra. A criatura não questionando o criador, pois assim era
antes da terça parte dos céus cair.
Antes que todos pudessem refletir sobre as palavras de Sócra-
tes, um poderoso relâmpago rompe os céus do marco zero.
- Parece que temos uma resposta dos céus. - Comentou a
40 O Divino Leviatã
Guardiã que observava o fenômeno.
- Finalmente, já era tempo dele se manifestar... Apareça de
uma vez, Arcanjo Miguel! - Bradou Crocell que assistiu um gran-
dioso ser surgindo dentre os relâmpagos. Seus cabelos loiros eram alon-
gados com sete tranças, seu corpo vibrava numa frequência superior a
humana, sua aura emitia um som constante e suave, traços femininos e a
indumentária constituída por um mineral ainda mais resistente e sublime
que o diamante.
- O que há para compreender nos desígnios de Deus? - Questio-
nou Miguel. - O que há de transcendental num traidor expulso dos Céus?
Numa criatura que rejeitou a própria humanidade? Na filosofia de um
simples homem? O que o criador quer de um imperador fraco?
- Suas questões são as mesmas de milhões de anos atrás, apenas
mudaram os personagens. Quando você levantou a sua espada e venceu a
nossa rebelião, vi essas mesmas questões refletidas nos seus olhos. - Disse
Crocell.
-Você sempre foi um pretensioso, Crocell, acha mesmo que pode
fazer uma leitura sobre mim? Jamais tive dúvidas... Eu sou o ser no uni-
verso que mais reflete a glória do criador... E mesmo assim, ele não me
deu a missão de reerguer a estrutura dos três mundos.
Miguel se aproxima de Dom Fernando e o encara de cima abaixo.
- Ele escolheu esse homem fraco e cheio de dúvidas.
- E você não seria a mais fraca das criaturas por ser o mais próxi-
mo do criador e ainda duvidar das suas vontades? - Interviu Sócrates.
- Eu não estou aqui para tratar das minhas questões, vim em nome
do criador para sacramentar o Divino Leviatã. Miguel elevou-se aos céus
no bater de suas quatro asas, ergueu seu braço direito e fez surgir uma
poderosa espada que parecia reluzir a luz de uma estrela.
- Está sacramentado! Céus, terra e submundo mais uma vez uni-
dos como no começo da criação! - Miguel apontou sua espada de luz na
direção do imperador e o seu brilho ficou intenso ao ponto de tomar todo
o marco zero com sua intensidade.
Todos desviaram seus olhos da luz, até ela dissipar-se por comple-
to.
- Miguel? - Chamou o Imperador.
- Ele se foi... Mas cumpriu a sua missão, olhe para sua mão direita.
A princesa dilacerada 41
- Disse Crocell.
Dom Fernando observou o desenho de um pequeno leviatã na
palma de sua mão.
- Isso é inacreditável...
- E eu represento Lúcifer, o imperador do submundo, sua rubrica
é a primeira da carta dos condenados. - Revelou Crocell.
- Temos o nosso acordo, agora precisamos sair desse lugar. - Disse
a Guardiã num tom impaciente. - Voltem para terra e se preparem para a
maior guerra que a sua nação já enfrentou. Na época que lutei no Pelopo-
neso, tanto os reis quanto o seu povo lutavam na pureza de suas espadas e
eram consagrados com honras pelo sangue que vertiam, hoje os sofistas
dominaram o mundo e as guerras não acontecem mais pelo resgate da
honra ou pela conquista de um território, a guerra virou um mercado,
nem mesmo os trinta tiranos seriam tão ousados. O ser humano precisa
de grandezas universais, somente assim encontraremos a verdade.
Dom Fernando fitou por alguns segundos a figura de Sócrates e
depois a imensidão dos céus do Marco Zero, antes que pudesse se perder
em pensamentos, a Guardiã o trouxe a realidade.
- Chegou a hora de voltarmos para casa, esse lugar é deprimente.
A guardiã abre o portal e os três abandonam o submundo zero, deixando
Sócrates contemplando o mundo no qual um dia foi cativo.
Abel e Vitória espectrais comentam sobre o que acabaram de pre-
senciar.
- Eu sempre fiquei impressionada com papai contando essa his-
tória, vendo tudo isso acontecendo é ainda mais incrível. - Comentou
Vitória.
- Sabe o que achei curioso? Nosso pai é um homem firme, coman-
da um império praticamente invencível, nunca o vi confuso e cheio de
dúvidas da forma que presenciei aqui.
- Para onde vamos agora? - Perguntou Vitória.
- A diversão só começou, irmãzinha, vamos assistir a batalha final,
venha comigo.
Ambos se deram as mãos e desapareceram do marco zero.
42 O Divino Leviatã
- Mesmo tão habituada a esse lugar, a sensação de desesperança
ainda me aflige. - Comentou Vitória.
- Minha irmã, o espírito da morte é o regente de uma das estru-
turas da existência, o fim das esperanças é o controle que ela tem para
manter todos sobre o seu domínio. Olhe aquilo, Vitória.
Abel apontou para uma grande ponte acima de um vale, suspensos no ar
observavam a guardiã arrastando os condenados com as suas correntes.
- Chegamos ao destino, espero que apreciem cada segundo. - Dis-
se a Guardiã.
- Que lugar é esse? - Perguntou Morello.
- Essa é a ponte que dá acesso a todas as extremidades do sub-
mundo, abaixo de vocês existe o lago da expiação.
Os gritos de horror surgiam do lago de águas escuras e lodosas,
milhares de almas acorrentadas umas as outras suplicavam por perdão
frente a uma gigantesca estátua de Maria, a mãe de Deus, que chorava
lágrimas de sangue pelo sofrimento dos condenados.
- Guardiã, eu imploro, sei que existe algo de humano em você, nos
mande de volta para nossa família, eu tenho dois filhinhos. - Implorou
Finnigan que soluçava ao chorar.
- Triste engano, nada mais soa humano em minha existência...
Hoje o legado da minha missão é tudo o que preciso.
Nesse momento chegam Crocell e Dom Fernando. Morello olhou
pela última vez o predestinado imperador do Brasil e se despediu com
uma insólita profecia.
- Imperador, Vai chegar o momento que desejará o destino que a
CIA lhe reservou. Do que valerá tudo isso? Se terá que ferir sua própria
carne para manter a sua coroa? Eu espiarei os meus pecados que são mui-
tos, mas você sentirá que uma ordem do criador vai lhe ferir mais que
qualquer pecado. Seu choro será mais amargo do que todas essas almas
condenadas juntas...
Dom Fernando apenas observou consternado o agente Morello.
A guardiã suspendeu os condenados com as correntes, e os despejou no
lago da expiação.
- É melhor nos apressarmos, imperador, muitas pessoas têm ur-
gência em vê-lo.
Os três atravessaram a extensa ponte, Dom Fernando que não pa-
A princesa dilacerada 43
rava de fitar todo aquele ambiente terrível, criou um estranho fascínio
pela estátua de Maria que chorava pelos seus condenados.
Um grande campo tomado por uma densa névoa surge perante os três.
- Que sensação horrível. - Comentou Dom Fernando.
- Esse é o campo de batalha mais terrível da existência humana,
todas as grandes guerras acontecem aqui, aquele que viveu pela arma,
aqui também o fará.
44 O Divino Leviatã
tos homens atiraram contra o anjo caído que recebeu as balas no corpo
sem esboçar reação.
- Suas armas não podem me ferir, eu não tenho interesse algum de
continuar com essa luta. Equação Arcana! Tríplice estrutura da existên-
cia!
A conjuração recitada por Crocell multiplicou os triângulos e re-
tângulos em duzentos, e cada nazista recebeu no seu fronte a marca trian-
gular e no peito a retangular, o círculo tornou-se um enorme pentagrama
no chão que envolveu todos os soldados.
- O que diabos é isso? - Se perguntou Dom Fernando.
- Essa é a equação arcana que atinge as três formas da existência,
cada ser vivente possui uma equação, cada espécie com sua complexida-
de, o triângulo sela à alma, o círculo tem a regência sobre o tempo de vida
e o retângulo controla o corpo carnal, uma vez desvendada a equação,
posso ter o controle sobre a mente e corpo de uma pessoa. - Respondeu
Crocell.
- Maldito! - Praguejou o cadavérico comandante nazista.
- Que suas almas fiquem seladas até que consigam espiar suas
existências desprezíveis. Selo arcano esquife! - Conjurou Crocell. Os re-
tângulos marcados no peito dos soldados converteram-se em esquifes ne-
gros e os envolveram.
- E pensar que esses miseráveis assombraram o mundo, que paté-
ticos. - Comentou a Guardiã.
A princesa dilacerada 45
vam, deparavam-se com figuras cadavéricas acorrentadas.
Pareciam enfeitiçados, dançavam, corriam, discursavam, pregavam, es-
creviam... Algo que assemelhava-se a um sanatório.
- Eles são inofensivos, quando encarnados, viveram uma vida
egoísta e de aparências, e aqui continuam com suas ilusões... - Explicou a
Guardiã.
Um homem se aproximou de Dom Fernando e o interpelou.
- Ei você! Conhece a minha filha Lisandra? Olhe como é linda. -
Disse o homem que mostrava com uma expressão feliz e com suas carnes
desprendendo do osso, um pedaço de pedra que imaginava ser a fotogra-
fia de sua Lisandra.
- Sim, sua filha realmente é muito bonita. - Respondeu Dom Fer-
nando desconcertado.
- Hoje não posso falhar, vou encontrá-la. - Determinou o homem
que dispersou-se para outro lugar.
- Esse homem morreu na eminência de cumprir a sua promessa,
viveu para destruir reputações e ter dinheiro fácil, a frase que mais dizia
a sua filha foi: “Amanhã eu volto” e sua existência agora agoniza em busca
desse amanhã que nunca mais chegará. - Disse Crocell ao observar a de-
primente figura cativa de seus delírios.
Dom Fernando.
- O livre arbítrio... Esse é o resultado... Seria o homem in-
capaz de ser o senhor das suas vontades? - Se perguntou
46 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
IV
O Misterioso
William
A
bel e Vitória reaparecem num cenário devastado.
-Contemple o caos, irmãzinha, esse é o centro ve-
lho de São Paulo…
- Estamos no meio da segunda revolução constitucionalista? -
Perguntou Vitória que flutuava sobre os escombros da prefeitura.
- Sim, a cidade foi totalmente devastada, a união rejeitou o pacto
federativo e a nova república, é claro que isso recorreu num grande derra-
mamento de sangue.
Repentinamente dois caças rasgam os céus.
- Assista a história em seu fluxo! Para que servem os historiadores,
afinal? Se podemos ser testemunhas oculares? A materialidade sem influ-
ência ideológica. Apenas observe, Vitória!
A princesa dilacerada 47
-Estou aqui... Representando a nova era para o Brasil, não preci-
samos de homens corruptos e tão pouco do Divino Leviatã.
William olha diretamente para os caças e retira do seu longo ca-
saco preto, duas espadas chanfradas. As lâminas emanaram um brilho
dourado e intenso.
- Desapareçam! - Bradou William atirando as duas espadas na di-
reção dos caças, foram rasgados pelo poder do cintilar dourado e tomba-
ram próximos aos escombros da prefeitura.
Com um olhar desolado observando a cidade destruída, William
recitou um poema de Cecilia Meirelles.
- Tanto é o sangue
Que até a lua se levanta horrível,
E erra nos lugares serenos,
Sonâmbula de auréolas rubras,
Com o fogo do inferno em suas madeixas.
Tanta é a morte
Que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
E os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.
48 O Divino Leviatã
- Perfeito, não há mais nenhuma resistência aos nossos objetivos,
a propósito, você foi muito bem na sua entrevista no jornal das oito, estou
orgulhoso.
- Eu tive o melhor dos mestres, tudo que sei aprendi com você. -
Disse Kadu passando as mãos entre as mechas do cabelo e sorrindo timi-
damente.
- Enquanto a nossa convidada especial, apreciou as nossas acomo-
dações?
A ironia de William contagiou o seu irmão que por um instante
perdeu-se em olhares debochados para o vazio a sua direita, certamente
buscando a sua memória visual.
- Confesso que não foi tarefa fácil nos livrarmos daqueles segu-
ranças, mas conseguimos sequestrar a senadora Helena Sant’anna, quer
uma palavrinha com a excelentíssima?
- Tragam-na até aqui, quero fazer as minhas reverências pessoal-
mente.
Dois homens fortes e trajados com um terno preto, arrastavam a
senadora Helena que inutilmente tentava se desvencilhar dos capangas.
- Curioso, acho que a senadora tem algo muito importante a nos
dizer, mas é uma pena, não consigo escutá-la.
- Kadu, tenha a bondade de tirar a mordaça da nossa ilustríssima
senadora. - Assim pediu William, entoando sarcasmo e indiferença a dor
de sua refém.
Sem o menor tato e cerimônia, Kadu puxou a fita adesiva dos lábios da
senadora, causando-lhe intenso desconforto.
- O que pensam que estão fazendo? Acham mesmo que conse-
guirão levar esse plano adiante? Nada podem fazer contra as providências
divinas.
- Providências divinas... - Sussurrou William. - Deus mais uma
vez muda os seus planos e eu preciso adequar-me aos divinos desejos...
Não... Não precisamos de um Deus, tão pouco de um imperador... O Bra-
sil prosseguirá! - Exclamou - Quer saber de uma coisa, Senadora? Talvez
eu seja um castigo de Deus, e se você não tivesse cometido grandes peca-
dos, o seu Deus não teria me enviado para te castigar.
- Para citar Gengis Khan, sem dúvidas deve nutrir o mesmo espí-
rito tirano dele. - Rebateu a Senadora.
A princesa dilacerada 49
William apenas sorriu e fez um sinal para que os seus dois subor-
dinados à amordaçassem novamente, mas por um momento, permitiu-se
hesitar e gesticulou com a mão direita para que parassem a ação.
- Existe um motivo especial para mantermos essa sua carcaça ve-
lha com vida... Seja sabia, senadora, você sabe que no tabuleiro de Deus
você é uma mera peça, apenas diga o queremos saber, qual o paradeiro do
imperador?
- E o que te leva a pensar que vou passar informações de Dom
Fernando?
- Pois bem... Parece que teremos que fazer uma viagem para re-
frescar a sua memória. Vamos para Brasília! Kadu, providencie tudo.
- Pode deixar irmão, podemos partir a qualquer momento.
- Sim... Cantaremos o novo hino no Palácio da alvorada. - Disse
William cerrando os punhos.
E naquela mesma noite o presidente do Brasil fez um pronuncia-
mento em cadeia nacional.
- Interrompemos a nossa programação para o anúncio do excelen-
tíssimo presidente da república, Inácio Vergueiro, de acordo com a LEI Nº
9.504, DE 30 DE SETEMBRO DE 1997.
- Povo brasileiro, hoje é dia 22 de agosto de 2019, avançamos oito
meses de governo trabalhando arduamente, como disse o apóstolo Paulo,
combatemos o bom combate, e vocês, povo brasileiro! Caminharam conos-
co até agora. Eu, Inácio Vergueiro, fiz um juramento de amor com a pátria,
e é por amá-los tanto, que anunciou em cadeia nacional a minha renúncia.
Existem momentos na vida que um líder precisa reconhecer os seus fracas-
sos, e devido aos últimos acontecimentos, tenho o dever de alertá-los sobre
os novos tempos que a nação enfrentará, entrego o governo a patentes que
não conheço, mas não tenho escolha a não ser confiar o Brasil na mão des-
sas pessoas e torcer sempre pelo melhor. E as minhas últimas palavras como
líder do executivo deste país, peço que tenham acima de tudo, tranquilida-
de.
Repentinamente a transmissão foi congelada, a imagem do cabis-
baixo presidente se multiplicou em diversos televisores enfileirados num
grande corredor escuro. Vitória e Abel caminham entre as imagens sus-
pensas.
- Convenhamos, William era um sujeito arrojado. - Comentou
50 O Divino Leviatã
Abel.
- Ele era um fanático pelo poder, assim como você, irmão.
- Vitória... Sua falta de ambição lhe trouxe até aqui, foi amaldiçoa-
da por escolher o lado mais fraco. E hoje? O que se tornou? Valeu a pena
se rebelar contra o seu próprio sangue?
- Você sabe muito bem que os meus motivos são bem maiores que
uma desavença familiar, mas afinal, por que me trouxe a esse lugar?
-Oh! Irmãzinha! Eu estava esperando você perguntar! O local que
estamos é pura alegoria simulada pela minha mente criativa, lhe trouxe
aqui para assistirmos o começo da meteórica república de William, e por
fim, o nosso triunfo! Vamos para Brasília!
Os televisores que antes mostravam um fracasso presidencial,
agora transmite a tomada do poder de William Andradas.
O povo aplaudia William que contemplava o esplendor do planal-
to, os aplausos cessaram ao passo que percebiam os olhares de William
perdidos na imensidão. O silêncio reinou por um minuto cravado, até o
momento que William se pronunciou:
- Vocês sabem traduzir o som dos ventos? Conseguem decifrar
seus códigos? Eu escuto a música e a poesia que os ventos me trazem.
Muitas vezes não necessitamos que as notas sejam entoada através dos
instrumentos musicais, da voz de uma solista ou na declamação de um
trovador solitário. Basta senti-los por cada átomo do corpo e traduzi-los
em inspiração.
O que os ventos nos trazem? Nos trazem a mesma inspiração
quando fui eleito senador da república por São Paulo, os ventos que fazem
tremular nossa bandeira são os mesmos que trazem o legado de liberdade
ao meu país. E pergunto a vocês, o que os ventos lhes sopraram? - Pergun-
tou William no apogeu de sua retórica.
- Liberdade! Esperança! - Responderam vozes na multidão.
- Liberdade uma sensação, esperança uma expectativa... - Sussur-
rou William. - Os ventos trouxeram cinco soluções, e através deles, liber-
dade e esperança serão defendidos.
William voltou seus olhares para a multidão e bradou!
- Apareçam, meus cinco federalistas!
Do povo surgiram cinco figuras que se movimentavam em grande
velocidade.
A princesa dilacerada 51
Os federalistas se colocaram de joelhos em reverência ao presidente
William.
- Esses são os homens e mulheres mais leais do país, dariam a
vida por vocês, por favor se apresentem.
O primeiro a se apresentar foi um homem de longos cabelos ver-
melhos e fisionomia pacífica, trajado com uma exoarmadura mesclada
de dourado e carmesim.
- Meu nome é Theodoro, sou o responsável pela federação do su-
deste.
- Eu sou Ingrid e os meus domínios são todas as terras do Sul.
- Disse uma jovem mulher de cabelos loiros e curtos trajando um exoes-
queleto branco.
- Heitor! Federalista do Centro Oeste! - Bradou um homem negro
que usava uma trança até a cintura, sua exoesqueleto era negra com raja-
das verdes.
- Aghata, domino a federação do norte! - Trajada com uma exo-
esqueleto que imitava o princípio do galhos de árvores contornando o
corpo, no seu braço direito duas serpentes intercalando-se na cor verde
e amarelo, a função das serpentes é proporcionar uma excelente opção
de ataque disparando flechas. Seus olhos negros e profundos contrastam
com sua pele vermelha, as feições eram de uma mulher indígena e seus
cabelos escuros escorriam até a base da cintura.
- Eu sou Romeu e sirvo ao grande presidente William comandan-
do a federação do Nordeste! - Disse um grande homem com a típica ca-
racterística cabocla, usava um corte de cabelo ralo e assimetricamente
ajeitado, sua indumentária combinava as ligas de metal de forma diferen-
te das demais, uma combinação de espirais na cor preta e marrom, no seu
peito uma insígnia azul.
O povo imediatamente se afastou dos cinco federalistas e os ob-
servavam com curiosidade.
- Federalistas? O que isso quer dizer? Os Estados acabaram?
- É claro que não, os outros estados continuarão os mesmos, o que
o presidente William propôs foi um melhor controle da união. - Respon-
deu Theodoro, Federalista do sudeste.
- Sim, separando as regiões teremos mais facilidade para uma re-
organização econômica e autonomia das federações. - Complementou
52 O Divino Leviatã
Aghata, federalista do norte.
William sorriu ao observar a inquietação do povo e chamou o
último componente daquela cerimônia de posse.
- Agora eu queria que vocês conhecessem a pessoa que me ajudou
a fazer tudo isso possível, venha cá, meu querido irmão, Kadu.
Timidamente o discreto irmão de William surge do povo e cami-
nha pela rampa do planalto até chegar a sacada do palácio.
-Tudo isso só foi possível graças a genialidade de um jovem de
quinze anos, peço que não economizem em seus aplausos para reveren-
ciarem o meu irmão, Kadu! Os exoesqueletos e todas as armas do nosso
exército nasceram nessa mente incrível!
O público ovacionou e gritou pelo nome do acanhado Kadu que,
discretamente acenou para a multidão. William abraçou seu jovem irmão
e juntos contemplaram a euforia popular.
- Eu ainda não entendo tudo isso. - Confessou Kadu numa expres-
são incógnita.
- Um novo tempo, irmão...
Assim disse William formando um sorriso iluminado pela luz da
lua.
A princesa dilacerada 53
EPÍSTOLA
V
O novico
'
A
república de William suspendeu todos os direitos garantidos
na constituição de 1988, o país foi dividido em cinco federa-
ções.
Foram dois anos de profunda crise financeira e social, os gover-
nos se tornaram ineficientes ao atender a demanda dos estados, muitos
se rebelaram contra as irresponsáveis políticas econômicas, monopólios
e oligopólios cresciam ao passo que as iniciativas populares eram inibidas
pelos aparatos do estado.
Assim, passaram-se dois anos, Dom Fernando havia desapareci-
do sem deixar rastros, a senadora Helena Sant’Anna pagou o preço pela
morte dos seis agentes da CIA, uma semana depois da posse do presi-
dente William, seu corpo foi encontrado em seu apartamento, suspenso
a uma corda amarrada em seu pescoço, um assassinato que foi divulgado
pela mídia como suicídio. Washington determinava as diretrizes do Bra-
sil, aquela liberdade tão anunciada na noite do golpe não passava de um
idealismo.
A frágil utopia de William lhe custaria caro. Um jovem foi escolhi-
do para devastar as estruturas do governo, sua missão é preparar o Brasil
para a chegada do imperador.
A princesa dilacerada 55
ta e demanda.
Repentinamente a garota de boné azul atacou a cabeça de Alberto
com uma garrafa de cerveja e tentou fugir junto com à amiga.
“Corre!”, Gritou uma das meninas.
Como um caçador jogando com a presa, Alberto as deixou correr
até uma determinada distância, e usando a incrível tecnologia do exo-
esqueleto, deslocou-se numa velocidade sobre-humana, colocando-se a
frente das pobres garotas.
- Vocês tornaram essa caçada mais divertida, agora sejam boazi-
nhas.
Nesse instante o soldado Carlos os alcança.
- Alberto, não é melhor simplesmente as deixarem partir?
- Fique observando. - Respondeu Alberto com um sorriso sádico.
O inescrupuloso policial rasgou as roupas das duas jovens e as ergueu
pelo pescoço.
- Escolha uma Carlos.
- Não, não posso fazer isso! - Recusou Carlos.
- Frouxo! Ao menos fique de vigia e me alerte se acontecer algo
estranho, enquanto a mim e essas duas belezas, vamos nos divertir um
pouco na guarita móvel e...
A fala do inescrupuloso Alberto foi interrompida por uma insóli-
ta visão. Surge uma figura de túnica branca, seu rosto não se desvendava,
a lua iluminava o alvo capuz que apenas mostrava a sombra de um rosto
juvenil.
- Quem diabos é você? Está infligindo uma lei marcial. Identifi-
que-se e coloque as mãos onde eu possa ver.
A figura ficou estática.
- Não vou repetir o meu comando! Mãos ao alto e identifique-se!
- Irritou-se Alberto.
A figura manteve-se inerte.
- Vejo que você não é muito comunicativo, talvez eu precise ser
mais convincente. - Novamente ameaçou.
- Não entendo... Em qual momento o estado se corrompeu ao
ponto de usar instrumentos da lei tão desprezíveis? - Sussurrou a figura.
- Ora, temos um questionador! Você está começando a me irritar.
- A irritação não deveria ser um código dos soldados federalistas,
56 O Divino Leviatã
não passa de uma estúpida reação emocional. - Disse a misteriosa apari-
ção.
- Já chega dessa besteira! - Alberto arremessou as duas jovens de
forma violenta no chão e retirou de sua perna direita um bastão de cho-
que acoplado.
- O que você vai fazer? - Questionou Carlos que tentou interceptar
o braço direito do seu companheiro de soldo.
- Observe! - Respondeu Alberto que ao se desvencilhar de Carlos,
atingiu a ambígua figura que ao chão pereceu.
Os dois soldados surpreenderam-se com o que o alvo capuz re-
velou, era apenas um menino, aparentava ter uns dez anos, tinha um
rosto corado, cabelos castanhos claros e traços bem delicados.
-Que droga é essa, Alberto? Você usou a voltagem letal numa
criança?
-Seu desgraçado! Matou o menino! - Gritou uma das garotas.
- Fique quieta, piranha! Preciso pensar em algo.
Por um instante, Alfredo se fechou em pensamentos e observou o
jovem desfalecido por alguns segundos, até o instante que os seus olhos
foram tomados pela cólera resulta de algum pensamento perturbador, e
foi assim, joguete do próprio ódio que o acometera, propôs a Carlos a pior
forma de corrupção da alma.
- Carlos, preste atenção no que eu vou dizer, pois será esse o rela-
tório que você escreverá sobre a ronda de hoje: “Jovem de aparentemente
dez anos de idade assassinou duas jovens negras por ódio racial, o policial
Alberto e eu vigiávamos o outro perímetro da Câmara municipal quando
ouvimos gritos, e quando nos direcionamos ao local do evento, nos de-
paramos com a fatídica cena de um jovem garoto tomado por um ódio
irracional, bebia o sangue de suas vítimas como se fosse uma besta-fera,
escondia seu corpo com uma túnica e capuz brancos, tentamos rendê-lo,
mas nossas tentativas foram inúteis, tive que abatelo.”
- Como é? Você quer que eu assuma um crime que não cometi? -
Inquietou-se Carlos.
- Você sabe que a corregedoria está em cima de mim, com você é
diferente, quem sabe até não ganhe uma medalha por isso?
- Agora daremos início ao plano. Vamos esfaquear essas piranhas,
desenhar um pentagrama no chão e escrever qualquer maluquice extre-
A princesa dilacerada 57
mista numa carta e pronto! Temos o nosso álibi.
- Por favor, nos deixe ir! - Imploravam as garotas.
- São as circunstâncias, meninas... Mas eu prometo que aparece-
rão na primeira página.
Alberto tirou de sua cintura uma pequena adaga, caminhou len-
tamente até as meninas, e ao tentar desferir o ataque, uma luz o surpreen-
deu.
- O que é Isso? - Alberto voltou seus olhares para trás e observou
uma intensa luz envolvendo o corpo do garoto.
- Como pôde? Quanto desprezo pela vida... - Disse o menino
ainda no chão.
- É impossível esse garoto ter sobrevivido.
- Alberto, o que está acontecendo? - Perguntou Carlos que tentava
proteger os seus olhos da luz.
- Carlos, você deixaria o seu companheiro fazer tudo aquilo que
ele planejou? - Perguntou o garoto.
Carlos não respondeu, apenas recuava os seus passos e protegia os
olhos.
- Você é fraco, não deveria jamais ser um instrumento da lei, como
viveria com o remorso de não ter feito nada? Ainda assim, eu permito que
sobreviva, enquanto a você, Alberto... Seu coração é irrecuperável, seus
pecados o transformou numa existência desprezível, você será punido
pela sagrada cruz de Avís. Enquanto a vocês, voltem para as suas casas. -
Assim ordenou o garoto com grande autoridade.
- Tome cuidado, menino. - Aconselhou uma das garotas, que jun-
to a sua amiga, correram sem hesitar.
- Aonde pensam que vão? Isso é resistência a prisão e, pela lei
marcial devo puni-las com a morte! - Alberto tentou atirar contra as ga-
rotas, mas os projéteis eram barrados por uma espécie de campo de força.
- O que é isso? Quem diabos é você, garoto?
- O criador me deu a tarefa de limpar o Brasil de gente como você.
Eu sou o noviço!
O garoto tirou de seu pescoço o crucifixo de Avís e o jogou para o
alto. O pingente girou na imensidão até atingir o tamanho de uma grande
cruz de Avís. O noviço abriu os braços como se estivesse crucificado e
proferiu uma prece.
58 O Divino Leviatã
- Que a sagrada cruz de Avís o purifique essa alma com a chama
divina, que faça revelar os seus pecados! Sagrada Cruz de Avís!
O grande crucifixo adornado de uma energia azul cintilante e po-
derosa atingiu o soldado e o arremessou a cem metros, o seu exoesqueleto
foi corroído como se fosse papiros da biblioteca de Alexandria.
- Chegou a hora de confessar os seus pecados, Alberto, eu te asse-
guro que todos os impuros serão punidos pela cruz.
- O que é isso? O meu corpo queima como se eu estivesse envolto
em chamas. - O corpo do soldado estava repleto de pequenas cruzes que
lembravam estigmas.
- Essas cruzes que o atormentam nada mais são que os seus peca-
dos, confesse-os antes de morrer.
- Garoto maldito... Eu... Eu... Assassinei Helena Sant’Anna a man-
do do presidente. Argh!! O Sr Heitor federalista do centro-oeste coorde-
nou toda a missão e eu fiz o serviço sujo, desde sabotar o carro, levá-la ao
seu apartamento e fazer parecer um suicídio. - Disse Alfredo ao agonizar.
- Isso explica tudo. - Concluiu o noviço.
- Eu vou para o inferno? - Indagou o soldado usando suas últimas
forças.
- Eu não posso determinar isso... Sou apenas um instrumento do
criador, vai depender do seu coração.
As palavras do Noviço foram as últimas que o impiedoso soldado
Alberto escutou, morreu contorcido com as dores de seus pecados. Carlos
se aproximou do Noviço e prostrou-se implorando por perdão.
- Você foi enviado pelo criador para nos punir? Por favor me per-
doe!
- Carlos... O seu coração é fraco para aguentar o calor de uma ba-
talha, peça perdão pelos seus pecados, e quando recobrar a coragem, lute
ao meu lado e defenda aqueles que mais necessitam.
Naquele instante os ventos sopraram de forma sombria e com
eles, uma insólita névoa que escondeu o Noviço, Carlos tentou espreitar
sobre a densa névoa, mas nada encontrou além do corpo desfalecido do
seu companheiro de soldo.
A princesa dilacerada 59
EPÍSTOLA
VI
O fim das
~
federacoes
'
V
assouras RJ - Federação do Sudeste 02:13 AM
Existe um grande templo erguido em 1846 pela família Avís de
Bragança, a segunda na sucessão ao trono brasileiro. Sua localização fica
em Vassouras, uma pacata cidade ao norte fluminense e banhada pelas
águas do rio Paraíba do sul. A família Avís é conhecida pela sua devoção
incondicional ao criador, no interior do templo havia um homem trajado
com um fino sobretudo negro que muito parecia um hábito, de média al-
tura, seus cabelos eram castanhos claros e curtos, sua barba era bem rala
e alinhada.
Falava aos vitrais do templo como se esses tivessem a profundida-
de de aquietar o seu coração.
- Ele ainda não deu notícias, estou preocupado, será que ocorreu
algum imprevisto? Talvez tenha sido um erro ter confiado uma missão
tão complicada a um garoto.
A pequena chama da vela tremulava com a corrente de ar que su-
avemente levava ao homem o odor da cera queimada, seu coração aquie-
tou-se ao sentir uma agradável presença que acabara de chegar.
-Não há com o que se preocupar, querido pai. - Disse o Noviço
que surgiu repentinamente ao lado do homem.
- Dom Rafael, meu filho, ao que parece você não se esconde nas
sombras, são elas que gentilmente o acolhem, há quanto tempo chegou?
- Na verdade acabei de chegar, só quis lhe trazer as boas novas da
missão que cumpri. - Respondeu o garoto.
- Então diga, quais são as fraquezas das federações?
60 O Divino Leviatã
- A fraqueza de William e seus federados é exatamente aquela que
eles consideram a sua principal virtude, o poder bélico. Possuem um bom
treinamento militar, mas lhe faltam alma e coragem, são fracos perante o
nosso poder arcano.
- Isso é muito bom, você conseguiu cumprir sua missão sem que
o inimigo percebesse a sua presença? - Perguntou o homem.
- Infelizmente ocorreram alguns imprevistos, tive que abater um
soldado federalista. - Respondeu o noviço.
- O que você fez? Por acaso não sabe dos riscos de entregar nossa
posição? - Indagou.
- Não tive escolha, são os efeitos colaterais da guerra, embora, ou-
tra situação me preocupa. Qual o paradeiro do tio Dom Fernando? Eu
me preocupo muito com Verônica, Vitória e Abel.
-Enquanto a isso não se preocupe, a família do meu irmão está se-
gura e Dom Fernando está em uma busca pessoal, fazem dois anos que ele
se afastou da família, apenas seus dois protetores sabem do seu paradeiro.
As velas de dois candelabros eram as únicas que iluminavam a
igreja, repentinamente o jovem Dom Rafael as soprou.
- Por que fez isso? - Perguntou Miguel.
- Papai, você uma vez me disse que as coisas mais belas do mundo
são sombras, o meu corpo precisa repousar sobre elas, usei todo o meu
poder invocando a sagrada cruz de Avís e desloquei-me em alta velocida-
de para chegar ao templo, além disso, o meu corpo foi castigado com uma
alta voltagem.
- Sim, a sua vibração áurica está muito baixa, precisa repousar. -
Concordou Dom Miguel.
- Antes disso, preciso revelar algo importante. - Disse o noviço
entoando suspense.
- O que você descobriu?
- Helena Sant’Anna foi assassinada a mando do presidente William
e o federalista Heitor comandou toda a operação. - Revelou Dom Rafael.
- Isso já era esperado, a morte da senadora foi parte do acordo
de paz entre Washington e a república de William, tudo para eliminar o
que para eles é uma ameaça, o Divino Leviatã! - Disse Dom Miguel sem
demonstrar surpresa.
- Pai, precisamos reunir todos os guerreiros para a maior guerra
A princesa dilacerada 61
que esse país já teve. É chegada a hora, espero que o imperador esteja
pronto.
Ao dizer essas palavras, o jovem Dom Rafael desfaleceu sobre os
braços do pai e a opaca luz do luar, rompeu os vitrais do templo, ilumi-
nando os seus semblantes.
- Filho... Ainda posso te levar em meus braços todas as vezes que
forem necessárias, embora eu pressinta que não terei mais oportunidades
como essa, e tão pouco poderei te proteger do futuro nebuloso que o es-
pera. Te amo.
Ambos desapareceram do lúgubre templo de Avís.
62 O Divino Leviatã
- Ora! Que monte de bobagens! Qualquer palácio do governo é
bem protegido, o que tem isso de extraordinário? - Assim interpelou mais
uma vez o exasperado Vagner.
- Você não se atentou que os palácios foram construídos exata-
mente em pontos de vórtex? - Rebateu o pequeno noviço.
- Somos apenas em quinhentos e temos exatamente 10% do pode-
rio que eles possuem apenas para proteger os palácios e arredores. Ape-
sar de não possuírem o nosso treinamento, seus exoesqueletos os tornam
perigosos. Embora, devêssemos tomar cuidado com os cinco federalistas,
eles são bem diferentes dos soldados rasos, possuem o domínio da aura
para atacar, suas exoarmaduras são de uma tecnologia mais avançada.
- Enquanto a isso não se preocupe. - Interviu Lorde Vagner. - Eu e
meus homens podemos derrotá-los com facilidade.
Vagner era um homem com semblante severo, sua voz austera de-
notava a liderança que possuía sobre os demais, assim como a sua altura
e porte físico que inibia qualquer ação contraria a ele. Cabelos levemente
grisalhos que mesclavam-se com alguns dos fios negros, não tinha so-
brancelhas e sua face pálida fazia contraste com a sua armadura unifor-
memente negra e com uma Cruz de Avís branca no peitoral.
Dom Miguel toma a palavra.
- Sendo assim, agora peço que prestem muita atenção. Vamos nos
separar em cinco grupos de cem guerreiros e amazonas, o plano é come-
çar o ataque no início do crepúsculo. Lorde Vagner e seus homens irão
para a federação do sul, Capitão Alcântara para o centro oeste. Edgar, sob
a sua liderança, cem guerreiros rumo ao norte, Veridiana e suas amazonas
irão para o nordeste, enquanto a mim... Viajarei para São Paulo e cuidarei
pessoalmente da federação do Sudeste.
- Faremos valer o sacrifício de Helena Sant’Anna!
- Agora levantem-se! Vamos abrir caminho para o imperador!
Para o Divino Leviatã!
Todos levantaram suas armas e bradaram.
- Pai! Eu não posso deixar de ir! Esse legado também é meu!
- Meu filho, preciso que fique aqui protegendo sua mãe e irmã.
Por mais que seja forte e tenha me superado, o campo de batalha não é
lugar para criança, olhe para cada rosto aqui, muitos desfrutam de seus
últimos momentos de vida, despediram-se de seus familiares pela fé que
A princesa dilacerada 63
os move. Filho, proteja sua mãe e irmã, elas precisam do seu poder, deixo
os meus maiores tesouros em suas mãos. - Disse Dom Miguel com voz
embargada e acariciando os cabelos do pequeno noviço.
- É isso mesmo, rapaz, vá para casa jogar videogame ou brincar de
bonecas. - Disse Lorde Vagner num tom sarcástico e provocador.
- Adeus, Lorde Vagner, prometo ir no seu funeral. - Rebateu Dom
Rafael com o mesmo sarcasmo.
- Se não fosse filho de quem é, te daria uma lição, noviço.
- Basta! - Interferiu o Duque. - Respeitem esse templo sagrado. O
comando já foi dado, tomem seus postos!
Assim ordenou Dom Miguel para as quinhentas almas que brava-
mente partiram para a maior guerra que o Brasil já teve.
A cada minuto que antecedia o crepúsculo, os corações dos ho-
mens e mulheres já batiam na expectativa de sangrar, o palpitar era a
introdução da sinfonia da morte, sem sorrisos, sem palavras, apenas a
transpiração controlada, semblantes fechados e a única certeza que paira-
va... A morte rasgando corpos, bebendo do sangue e comendo da carne.
A primeira sombra do crepúsculo atingiu o austero semblante de Lorde
Vagner, era chegado o momento, as 18h um ataque rápido e avassalador
pegou os federalistas de surpresa, os guerreiros e amazonas de Avís le-
vavam vantagem contra os soldados e suas exoarmaduras, no entanto,
não conheciam a força dos cinco federalistas que entraram na batalha
e equilibraram as coisas, se moviam numa velocidade que os olhos não
podiam acompanhar. No Palácio de Piratini, uma dramática luta entre
Lorde Vagner e a federalista Ingrid acontecia.
- Maldição, como pode uma mulher ter tanto poder? - Murmurou
Lorde Vagner levando a mão direita sobre o rosto machucado.
- Você confia demais no seu poder, o seu erro é ver fragilidade em
mim.
O lorde e seus homens se posicionavam para atacar Ingrid quan-
do algo inacreditável ocorreu.
Uma figura sombria aparece atrás da federalista. Sua forma era in-
decifrável, sua matéria era composta por energia escura. Todos sentiram
uma grande opressão.
- O que diabos é isso? - Se perguntou Lorde Vagner.
Ingrid apenas virou a cabeça para esquerda e teve a visão perifé-
64 O Divino Leviatã
rica de uma criatura sem rosto, antes que pudesse se defender, a figura
desferiu um ataque com uma espada de lâmina negra, atravessando as
costas de Ingrid.
- O que faremos, Lorde? - Perguntou um dos seis soldados que o
acompanhava.
- Eu não sei... - Respondeu o incógnito Vagner.
Ingrid tombou sobre o chão e antes que desfalecesse, murmurou
suas últimas palavras.
- O que é você? - Perguntou Lorde Vagner.
- Eu sou muitas coisas, por hora eu e você somos um só. - Respon-
deu a criatura de voz tenebrosa que ao caminhar na direção da federalista,
a incorporou.
- Esse ser se apoderou do corpo dela? - Perguntou o soldado.
Lorde Vagner não respondeu, mas pensou consigo:
- Isso não é nada bom... Não estava preparado para isso. Homens!
Fiquem atentos, seja lá o que for aquilo, está dentro dessa mulher.
- Finalmente entendi o significado de antropofagia. - Ingrid le-
vantou-se num plano rasteiro e com um olhar frio debaixo para cima
fitava os seus adversários. - Antropofagia... Partilho da carne e do sangue,
fazei isso em memória de mim... Ingrid... Seu corpo e o seu sangue agora
fazem parte do que eu sou.
A federalista começou a flutuar um metro do chão, de seu corpo
uma aura negra emanava densa e poderosa.
- Eu nunca senti algo assim, eu acho melhor atacarmos todos
juntos. - Sugeriu um dos guerreiros.
- Vamos atacar!
- Não! Esperem! - O alerta de Lorde Vagner não foi ouvido e os
bravos homens foram ao encontro de suas mortes.
Ingrid levantou seu braço direito para o alto e do seu dedo indica-
dor emanaram pequenas esferas de energia escura.
- Desconstrução! - Assim bradou Ingrid.
As esferas foram de encontro aos guerreiros e desagruparam suas
células, foram exterminados sem deixar vestígios.
- A matéria realmente não é nada. - Comentou Ingrid.
- Quem é você? Sei que não estou falando com essa infeliz que
você parasitou. - Perguntou Vagner.
A princesa dilacerada 65
- E pensar que um dia invejei os humanos por terem uma matéria
viva e bela, mas não passa de um amontoado de células inúteis. Sou um
General do mundo inferior, meu nome é Andrômalus, minha especiali-
dade é o domínio sobre a matéria.
- Não importa o que você domina, vou te destruir.
Lorde Vagner desembainhou uma grande espada de suas costas e
a posicionou no chão, segurando-a com as duas mãos.
- Descendo de tribos nórdicas e germânicas, nutrimos a tradição
berseker, vai se arrepender de ter saído do inferno.
Uma aura vermelha emanou de Vagner, seus olhos tomaram a
mesma coloração, com a espada feriu o chão e com sua voz invocou:
- Espírito berseker! Sismos de gaia!
A terra começou a tremer e um vento cortante abriu uma fenda
até chegar a Ingrid e partir seu corpo ao meio.
- Espírito inútil, que nunca mais volte!
Lorde Vagner deu as costas ao cadáver, mas o espírito de Andrô-
malus ainda se mantinha poderoso.
- Caso tenha esquecido, eu te disse que tenho o poder de manipu-
lar a matéria.
As duas partes separadas ao meio, uniram-se novamente, deixando o
Lorde desconcertado e perplexo.
- Isso é impossível, é como se eu nem o tivesse atingido. - Impres-
sionou-se Vagner.
- Espero que o seu Deus criador te receba, ou então eu mesmo o
recepcionarei no inferno!
Deslocando-se numa velocidade impossível de ser calculada por
olhos humanos, Andrômalus atingiu o coração do Lorde guerreiro com a
sua espada de energia escura.
Vagner sorriu, pois o seu orgulho o impedia de mostrar uma ex-
pressão de dor, jamais demonstrou fraqueza contra seus adversários.
- Espirito fátuo... Fogo fátuo... Corpo... Transfira toda sua energia
em minha errante alma para que eu possa avisar aos meus companheiros
de batalha o nosso novo inimigo.
Essas foram suas últimas palavras até o seu corpo desaparecer por
completo.
Afinal, quem era Andrômalus? E qual seu interesse nessa batalha?
66 O Divino Leviatã
O mesmo ocorreu nas federações do centro-oeste, Norte e Nordeste. Os
corpos dos federalistas foram tomados por criaturas com uma poderosa
aura negra. Dos quinhentos guerreiros enviados, apenas trinta e cinco
ainda estavam vivos, enquanto o mistério pairava nas quatro federações
destruídas, no Palácio dos Bandeirantes, federação do Sudeste, Dom Mi-
guel e seus homens adentravam ao palácio sem saber o que os esperavam.
- Que estranho, o ar está rarefeito. - Comentou um dos soldados.
Ao passo que avançavam , a atmosfera parecia cada vez mais irres-
pirável. Os homens começaram a ficar agitados e suas visões turvas.
- O que acontece aqui? - Se perguntou Dom Miguel.
- Lamento por vocês, mas terão uma morte terrível. - Assim ecoou
uma voz jovial.
- Apareça de uma vez, Theodoro, vamos acabar com isso. - Voci-
ferou Dom Miguel.
- Sabe, eu não sou do tipo que recebe ordens de gente da sua es-
tirpe, mas acho justo contemplarem o rosto do seu algoz. - O federalista
aparece perante os guerreiros e tripudia de seus sofrimentos. - Visão tur-
va, agitação, enjoos, saliva quente e uma pressão interna no corpo... Estão
sentindo tudo isso, ou estou enganado? Um dos meus dons é o controle
atmosférico, posso tirar a pressão do ar.
-Isso é trapaça! - Irou-se um dos soldados.
- Na guerra as questões morais são subjetivas, o que é certo? Ou
errado? A sobrevivência se sobrepõe a todas essas questões. A guerra é o
puro exercício niilista.
- Homens, o nosso ataque precisa ser único e rápido, não aguen-
taremos muito tempo com o ar despressurizado. - Disse Dom Miguel.
- Bom plano... Simplório para um duque, mas ainda assim eficien-
te.
Só que eu esqueci de avisar de outros dos meus dons. Domino a gravidade
de todos territórios que piso. - Theodoro levantou a mão direita na dire-
ção do teto e conjurou. - Prisão gravitacional!
Ao proferir essas palavras os soldados tombaram ao chão, tama-
nha era a gravidade.
- Não entendo... Por que você não é afetado com a falta de oxigê-
nio e gravidade pesada?
- É muito simples, minha aura serve como manta protetora junto
A princesa dilacerada 67
a exoarmadura, absorvo o oxigênio e ele se mantêm armazenado na aura,
e ela também serve como uma força independente a gravidade, eu a con-
trolo.
Dom Miguel riu.
- Do que está rindo, posso saber? - Encabulou-se Theodoro.
- Obrigado por me revelar seus segredos, se você realmente me es-
tudou, sabe que eu sou um mestre em manipular aura. Tudo o que tenho
que fazer é...
Dom Miguel usou todas as suas forças para se levantar da terrível
opressão gravitacional, tirou de seu pescoço um terço e o rompeu, fazen-
do cair sobre o chão as pérolas que o adornava.
- O que pretende fazer? - Indagou o federalista demonstrando
curiosidade.
- Poucos sabem, mas... A constelação de cruzeiro do Sul foi criada
pelo grande Deus para homenagear todos aqueles que lutaram bravamen-
te na queda de Lúcifer, simbolicamente segue o mesmo princípio do arco-
-íris. O terço originalmente tem esse significado e as pérolas significam a
providência dos anjos.
Dom Miguel através do seu poder telecinético fez as pérolas des-
locarem-se numa grande velocidade e romper o teto do Palácio em pe-
quenos buracos.
- O meu terço tem 120 pérolas, elas simbolizam os três anjos guer-
reiros. Rafael, Miguel e Gabriel. Cada um recebeu do criador quarenta
pérolas, o terço foi a arma concedida por Deus para que os três pudessem
dar o fim a guerra santa e vencer Lúcifer e a terça parte dos céus. O meu
terço é apenas um símbolo, uma pequena fração do poder original, mas
o suficiente para te derrotar. É provável que perderemos as nossas vidas,
mas será para um bem maior. Benedita Providência! - Conjurou.
As pérolas caíram sobre o Palácio como se fossem meteoros e de-
vastaram tudo. Nada restou do símbolo da federação do sudeste, a não
ser escombros e fumaça.
Dom Miguel estava com a perna presa a uma pilastra e o restante
dos soldados envoltos em cinzas e protegendo seus rostos.
- Minha perna, ela está quebrada. - Queixou-se Dom Miguel ex-
pressando muita dor.
- Senhor Duque, aguente firme que eu vou te ajudar. - Prontifi-
68 O Divino Leviatã
cou-se o guerreiro de nome Fabrízio.
Repentinamente Theodoro sai dos escombros com sua exoarma-
dura branca e carmesim danificada.
- Não é possível! Como pôde ter sobrevivido a isso? Os escombros
mais pesados caíram por cima dele. - Indignou-se Miguel com uma ex-
pressão mesclando ódio e desilusão.
- Idiota... Mesmo o seu ataque sendo poderoso, ainda assim eu te-
nho o poder sobre a gravidade em qualquer espaço que minha aura puder
alcançar, diminui a gravidade do Palácio segundos antes de tudo desmo-
ronar, mas eu mantive o peso original de todos aqui presentes, para que
o corpo pudesse suportar uma carga 30% menor, se não fosse por mim,
estaríamos mortos.
- Maldito! - Murmurou Dom Miguel com o semblante tomado
pela dor.
- Dom Miguel, vou acabar com a sua dor e...
A fala de Theodoro foi interrompida tamanha foi a surpresa que o
acometera.
Surge perante todos, envolto em grande couraça áurica, Lorde
Vagner.
- Vagner! Você conseguiu vencer o inimigo! É muito bom te ver
com vida. - Animou-se Dom Miguel.
Flutuando sobre os escombros do Palácio dos Bandeirantes, Lor-
de Vagner alertou aos guerreiros sobreviventes sobre os temíveis inimigos
que surgiram.
- Escutem com atenção, pois não tenho muito tempo, nossos ini-
migos mais poderosos não são os federalistas, eles não são humanos e
nenhuma arma criada pelo homem pode detê-los.
- Do que está falando, Vagner?
- Me perdoe Miguel, não pude fazer nada a respeito. Não deixe
minha morte em vão. Adeus amigo.
A presença de Lorde Vagner dissipou-se completamente, assim
como o eco de sua voz se perdeu na longínqua paisagem destruída de São
Paulo.
- Vagner usou sua própria alma para nos alertar do perigo... Des-
canse em paz, seu nome será lembrado por mil anos. - Dom Miguel cho-
rava copiosamente, mas seu amargor logo foi substituído por perplexida-
A princesa dilacerada 69
de.
- Mas o que é aquilo?
Quatro figuras emergiram do chão, seus corpos eram revestidos
de chamas negras.
- Não pode ser... Ingrid, Heitor, Agatha e Romeu?
As criaturas gargalharam frente a indagação de Theodoro:
- Não somos mais esses infelizes, junte-se a nós, Theodoro.
- Tem algo errado, não é possível que William esteja por trás disso.
- A única coisa errada é a sua repugnante honestidade. - Disse
Romeu (federalista do nordeste) que ao se aproximar de Theodoro atra-
vessou-lhe o peito usando a mão esquerda.
- Romeu... - Sussurrou o federalista do sudeste que desfaleceu
sobre o seu próprio sangue vertido.
- Belzebu! O seu corpo já está pronto para possessão.
Uma presença poderosa e opressora tomou conta do ambiente.
- Mas o que é isso? Mal consigo me mexer. Disse Fabrizio com o
corpo retorcido tamanha era a pressão exercida pela aura de Belzebu.
Sombras negras entravam no corpo de Theodoro e o fez ressurgir
como o general das forças inferiores. Seu nome agora é Belzebu.
70 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
VII
Acordem Federalistas!
-E
u vou precisar de um tempo para me acostumar a essa
matéria tão sensível, as nuances da natureza, finalmente
conseguimos! - Disse Belzebu ao contemplar seu corpo
humano.
- Eu não entendo, com o poder que possuem por que precisam se
apoderar de corpos humanos? - Perguntou Fabrizio.
- Ora! É muito simples, nosso corpo possuí outra constituição
de matéria, menos densa e mais sensível, podemos suportar apenas oito
horas diárias na superfície terrestre, nossa energia se esvai rapidamente
porque os fótons de luz vão de encontro a nossa matéria, assim usamos o
corpo humano para filtrar a ação dos fótons e proteger o perispírito.
- O que vocês pretendem com tudo isso? - Perguntou Dom Mi-
guel.
- Humanos... - Sussurrou Belzebu. - Antes de serem criados pelo
supremo, nós, os anjos, éramos os habitantes desse planeta, o grande Lú-
cifer reinava a terra, todos se curvavam perante sua glória, exceto o pró-
prio criador, esse foi o primeiro Leviatã.
- Primeiro Leviatã? - Perguntou Dom Miguel.
- Sim, a união entre os céus e a terra, depois que fomos humi-
lhados pelo criador e expulsos do reino dos céus e da terra, caímos nas
profundezas condenados por toda a eternidade, assim nasceu o reino das
sombras. A partir desse momento todos os anjos amaldiçoados pelo cria-
dor o odiaram com todas as forças de suas existências. Algo inconciliável.
Então Deus resolveu mudar mais uma vez os seus planos e fez um acor-
do com o mestre Lúcifer, graças a intervenção daquele maldito Sócrates.
Uma chance de redenção e o início de um novo Leviatã, agora com três
moradas; o Reino da Terra sob o comando de Dom Fernando, o Sub-
mundo dominado por Lúcifer e o soberano Deus dominando o reino dos
céus. Enquanto aos cinco demônios, não concordamos com a providên-
A princesa dilacerada 71
cia divina e nem assinamos a carta dos condenados. Nos voltamos contra
Lúcifer, jamais esqueceremos da dor e a humilhação que sofremos, por
isso reivindicamos o que é nosso por direito, o Reino da Terra.
E é claro que nos unimos aos Andradas, eternos inimigos da coroa brasi-
leira. Esses cinco jovens foram selecionados através de um árduo proces-
so, as almas mais puras, um sacrifício poderoso! Para que fôssemos agra-
ciados com a vida. Bom... Agora que já entendeu... Chegou o momento
de mais um valoroso sacrifício, posso sentir o seu sangue e o ritmo das
batidas de seu coração, quero me alimentar dele, agradeço por servir de
cobaia involuntária para o meu alimento.
Belzebu concentrou em sua mão direita uma poderosa esfera de
fogo, quando projetou sua mão para atacar Miguel, três flechas atravessa-
ram o corpo parasitário de Belzebu.
- Isso é lamentável... Havia esquecido que os seres humanos sen-
tem dor física. Quem atirou essas flechas?
A amazona com o nome de Veridiana surge perante todos, seus
cabelos eram loiros e com uma trança alongada até a base das costas, sua
pele rosada demonstrava uma fragilidade que ludibriava seus adversários,
seus olhos verdes transmitiam o ódio e a sua indumentária mesclava o
cóton com partes de bronze protegendo pontos vitais.
- Não é tão fácil me matar. Eu estou aqui para vingar as minhas
companheiras mortas. - Jurou Veridiana alinhada ao seu arco e mirando
o oponente.
- Não importa quem seja, o resultado será o mesmo. - Disse Bel-
zebu num tom desafiador.
- General, deixe que eu termine o serviço que comecei. - Interviu
Varsago, um dos anjos caídos que parasitava o corpo do Federalista Ro-
meu.
Veridiana caminhou até a pilastra que prendia a perna do Duque de Avís
e com a ajuda de Fabrizio, o removeram dos escombros.
- Precisamos de um plano, não conseguiremos vencer esses cinco
no estado que estamos. - Sugeriu Veridiana que levava o Duque de Avís
escorado em seus ombros.
Dom Miguel apenas acenou com a cabeça. Os soldados que ha-
viam sido atingidos pelo desabamento do Palácio agora estavam de pé.
- Vocês vão pagar caro pelo que fizeram com o mestre! - Bradou
72 O Divino Leviatã
um dos soldados.
- Não façam isso! - Alertou Veridiana.
- Vamos atacar!!! - Os trinta e quatro guerreiros foram de encon-
tro aos demônios, Varsago sorriu e se colocou a frente dos soldados.
- O ser humano vive de ilusões, a pior delas é o livre arbítrio...
Vocês acham mesmo que lutam por vontade própria?
Uma densa névoa foi soprada pela boca Varsago.
- Conheçam o sopro da agonia, vivam a ilusão que merecem.
A névoa atingiu os guerreiros e os fizeram cair no pior de seus
pesadelos. Se retorciam como se os corpos estivessem em chamas, tinham
a ilusão de vermes comendo suas carnes.
- Tarde demais... - Lamentou Veridiana. - Precisamos sair daqui,
o quanto antes. - Veridiana se colocou a frente dos cinco demônios e lan-
çou-lhes uma de suas principais técnicas. - Paradox arrow!
Cerca de mil flechas foram disparadas, quando os demônios ten-
taram desviar, experimentaram o verdadeiro sentido do paradoxo de Ve-
ridiana.
As flechas dividiram-se em duas partes de quinhentas flechas,
uma parte atingiu os cinco demônios e as outras flechas atingiram a pi-
lastra que servia de sustentáculo para o chão que pisavam, a brilhante
ideia de Veridiana fez com que os cinco demônios caíssem dentro de uma
galeria abaixo do Palácio.
Rapidamente os três deixaram as dependências dos Bandeirantes
e correram para bem longe dos demônios.
A princesa dilacerada 73
- Tentou te enganar ou foi você que não quis ouvir seu coração? -
Ah! - Gritou Vitória.
Repentinamente o corpo da princesa foi tomado pelas chamas, a
parte esquerda do seu rosto foi desfigurada, tal qual foi quando punida
pelo seu próprio pai, seu corpo converteu-se numa forma cadavérica e
fonte de alimento dos vermes.
- O que está acontecendo? - Se perguntou Vitória.
- Não é óbvio? O seu tempo na superfície já está por acabar... Sua
alma pertence ao inferno... Mas não se preocupe, nosso tour pela história
já está por acabar. Agora assistiremos o fim dessa guerra, não mais por
televisores... Vamos para o campo de batalha!
Num piscar de olhos Vitória e o excêntrico príncipe Abel estavam
no Viaduto do Chá.
- O que vai acontecer aqui? - Perguntou Vitória atormentada pelas
chamas.
- Olhe para baixo do viaduto.
Abel apontou para o Duque de Avís, Veridiana e Fabrizio que se
escondiam em uma das bases de sustentação do viaduto.
- Apenas observe... - Sussurrou Abel nos ouvidos de Vitória.
74 O Divino Leviatã
viaduto fosse sugado pela esfera de energia.
Heitor e Agatha parasitados pelos demônios Savitre e Barbatus
surpreenderam os três guerreiros de Avís e exerceram sobre eles uma
grande opressão, um a cada lado criaram um campo de força que limitava
o movimento dos três.
- Não é possível que morreremos aqui. - Inconformou-se Fabrizio.
- Não... Tem que ter um jeito de sairmos daqui. Essa era a esperan-
ça da amazona arqueira.
- O que é a esperança a não ser o reconhecimento da fraqueza e
o sonho esquizofrênico de lutar contra aquilo que não se pode vencer, eu
me pergunto... Fé para que? Deus escolheu um idiota que pregava num
deserto, sua cabeça foi servida numa bandeja, mil anos depois, um idiota
unindo a filosofia a fé, a ciência a serviço de Deus! Qual foi a necessidade
disso? Depois tudo isso ganhou o mesmo valor que um amontoado de
merda, depois do édito dos condenados. Querem mudar suas realidades?
Eu não permitirei... - Disse Belzebu que caminha na direção do Duque
de Avís e os outros. Concentrou em sua mão direta uma grande esfera de
fogo. - Minha chama queimará toda as suas esperanças... Ah! O que está
acontecendo?!
Inexplicavelmente a chama esvaiu-se e o corpo de Belzebu sofreu
uma estranha paralisia.
- O que está acontecendo?
- Você acha mesmo que usará o meu corpo sem que eu mostre
resistência? - Uma voz duplicada emanou do corpo.
- Não interfira humano maldito, esse corpo agora me pertence.
- Você é só mais um espírito decadente, rejeitado pelos céus e o
submundo, mas eu vou te enviar para além do inferno. - Assim disse à
alma te Theodoro num tom desafiador.
- Do que está falando? - Perguntou Belzebu.
- O abismo, é o único lugar que você jamais poderá voltar.
Todos observavam com tamanha perplexidade dois espíritos brigando
pelo mesmo corpo.
- Andrômalus, Varsago, Barbatos e Savitri, comecem a executar o
plano, não temos muito tempo! Destruam tudo que encontrarem!
Andrômalus e Varsago atacavam São Paulo ferozmente, pessoas eram de-
sintegradas com a energia escura ou sucumbiam a névoa do pesadelo.
A princesa dilacerada 75
Barbatos liberou de seu corpo uma espécie de pólen que emergia da terra,
plantas com aspectos sombrios e raízes negras, Savitri juntou suas mãos
numa prece perturbadora entoando num tom lírico um coral gregoriano
com milhares de vozes, com sua habilidade natural de necromancia fez
surgir das tumbas seus novos servos.
- Enquanto a vocês! - Gritou Belzebu ao apontar à amazona e
os dois guerreiros escorados nos escombros do viaduto. - Conhecerão a
morte!
O general do inferno concentrou outra grande espera de fogo e a
lançou contra eles. Os três guerreiros se abraçaram na esperança de um
milagre. O calor da esfera já atormentava os sagrados de Avís, quando
uma surpreendente luz tomou conta dos céus de São Paulo.
- Essa luz... - Sussurrou o Duque de Avís.
Veridiana olhou para os Céus e viu uma grande cruz desenhada
sob a constelação de cruzeiro do Sul.
- Quem seria capaz de produzir uma luz tão intensa? É como se
estivéssemos no sol do meio dia, o que aconteceu com a esfera de fogo?
- Andrômalus e Varsago se aproximaram da cruz e investiram um feroz
ataque. Seus esforços inúteis causaram perplexidade em Belzebu.
- Deve ser mais um desses inúteis que veio nos atrapalhar. Apare-
ça de uma vez! - Bradou.
O brilho ficou ainda mais intenso, o que fez Belzebu despertar
uma intuição!
- Varsago! Andrômalus! Saiam de perto da cruz!
- O que? - Se perguntou Varsago.
O noviço surgiu perante os dois demônios e conjurou.
- A Sagrada Cruz de Avís! - Uma grande Luz marcou os corpos
parasitados pelos demônios com chagas em formato de cruz, os espíritos
abandonaram o corpo, tamanha era a opressão espiritual causada pelas
chagas.
Os corpos caíram sobre o chão e os espíritos ficaram suspensos no
ar, atormentados pela luz.
- Belzebu, volte para o inferno com os seus demônios fracassados,
não a nada no meu reino para você.
- Seu reino? - Se perguntou Belzebu.
- O novo Leviatã fez surgir no Império do Brasil sete reinos, e eu
76 O Divino Leviatã
sou Dom Rafael Bragança de Avís, rei de São Paulo, conclamado pelo
próprio criador.
- Dom Rafael... Apesar de ter utilizado uma mera técnica arcana,
sua luz ainda é capaz de causar grandes estragos. Mas realmente acha que
pode nos vencer sozinho?
Savitri juntou novamente suas mãos numa prece, Barbatos proje-
tou em sua mão direita uma flauta doce e começou a soprar uma suave
melodia.
Repentinamente raízes surgiram do chão e prenderam o corpo do Novi-
ço, um séquito de mortos-vivos evocados pela flauta, farejavam o sangue
do pequeno Duque.
- Sua luz é incapaz de iluminar a minha escuridão... No final das
contas, sua intervenção foi inútil.
- Você me subestima, Belzebu. Um espírito com milhões de anos
deveria ser mais prudente.
- Quanta confiança, vou mostrar para você o quanto sou impru-
dente.
Belzebu mais uma vez teve o seu corpo paralisado pela alma de
Theodoro.
- Outra vez... Deixe-me em paz, humano maldito!
- Meu corpo não servirá aos interesses do traidor do William, tão
pouco os seus. Acordem, amigos! Não deixem que esses espíritos usem
seus corpos!
- Já chega! Matem-no de uma vez. - Gritou Belzebu que digladiava
com a alma de Theodoro.
Savitri e Barbatos começaram a golpear o corpo do pequeno no-
viço com muita violência até o instante que o imponderável aconteceu,
dois triângulos compostos de energia áurica de cor azulada envolveram
os corpos dos demônios e os paralisaram.
- O dilema do jovem duque faz sentido... - Disse uma poderosa
voz.
- Como pode uma criatura com milhões de anos ser tão impru-
dente? Por acaso não sabe que a possessão de corpos humanos é instá-
vel?
Ter o controle majoritário de um corpo não significa a morte do
espírito, existe a união natural entre corpo, alma e espírito, e quando um
A princesa dilacerada 77
invasor tenta burlar essa natureza, acontece exatamente o mesmo fenô-
meno quando um vírus invade um corpo. Os anticorpos combatem o in-
vasor, aniquilando-o ou não, é um mecanismo de defesa. A luz do espí-
rito emite seus fótons de luz e combate as trevas do demônio invasor, por
isso a alma de Theodoro está lutando e te enfraquecendo a cada instante.
Para surpresa de todos surge Crocell, o anjo caído.
- Crocell? O que faz aqui? Não deveria cuidar da segurança do
imperador? Por que interferiu? Eu estou no controle da batalha, não me
atrapalhe! - Disse o noviço ainda preso nas raízes.
- Você não me parece confortável nessa situação, ainda mais preso
nesse truque barato do Barbatos. - Rebateu o anjo caído.
- Crocell, seu desgraçado! Liberte-nos! - Bradou Savitri.
- De fato o motivo da minha vinda é relacionado a libertação, não
a de vocês, é óbvio! Estou aqui para cumprir uma promessa que fiz há
muitos anos. Aqui estou, Theodoro!
Todos se surpreenderam com a proximidade de Crocell e Theodo-
ro.
- Não entendo, qual a relação entre esses dois? - Perguntou Fabri-
zio escorado entre os escombros do viaduto.
78 O Divino Leviatã
Epístola
VIII
' de
O Sacrificio
Theodoro
-H
á muito tempo em uma das minhas peregrinações
pela terra, conheci um menino franzino de cabelo
vermelho que velava sozinho os corpos de sua mãe e
irmão mortos pela fome.
O norte de Minas Gerais era caótico, pobreza e morte para qualquer canto
que se olhe.
- Esse menino percebeu a minha presença naquele cemitério pre-
cário e me perguntou: “Os garotos acreditam que meu irmãozinho vai se
transformar num querubim e minha mãe cuidará dele, isso é verdade?”
Eu respondi que não sabia e ele insistiu: “O que é você? Não me parece
um homem comum.” Hoje eu não saberia lhe dizer o que sou, respondi.
“Você pode dar novas vidas para a minha mãe e irmão?” Não, infelizmen-
te não tenho esse poder, respondi um tanto desconcertado. Os homens
são tão injustos… Após as desiludidas palavras, o menino se fechou num
silêncio desolador, resolvi dar as costas para aquela triste história e seguir
a minha jornada, até que...
- Senhor, um dia você me ajudará a fazer justiça e os seus pecados
serão perdoados, é uma promessa…
- Você sabe quem é esse menino, Theodoro?
- Crocell, finalmente o dia da nossa justiça chegou, faça o que tiver
que fazer, estou preparado.
Crocell libertou Dom Rafael das raízes que o prendiam e ordenou.
- Vá para os escombros do Palácio dos Bandeirantes e espere o
cruzeiro do sul surgir nos céus para invocar a vórtex.
- Veridiana, é melhor levarmos o mestre para um lugar mais segu-
ro. - Sugeriu Fabrízio.
A princesa dilacerada 79
- De acordo, vai ficar muito perigoso aqui. - Concordou à arqueira
que junto a Fabrízio carregaram o agonizante duque de Avís.
- Por favor, cuidem do meu pai. - Suplicou o noviço.
Rapidamente os três se afastaram do local.
- Quando você quiser, amigo. - Disse Theodoro.
Nesse instante Belzebu se manifestou no corpo de Theodoro.
- Que linda cena! Você é realmente lamentável, Crocell, nunca vi
um ser tão rastejante.
- Belzebu, chegou a hora de retornar para o lugar de onde você
nunca deveria ter saído. - Crocell posicionou seus dois braços em X e
conjurou. - Relux arcana!
Um intenso brilho emanou do anjo caído e atingiu o Espírito de
Belzebu que abandonou o corpo de Theodoro.
- Os cinco demônios já foram expulsos, agora é com você.
- Obrigado, amigo. - Agradeceu Theodoro que levou sua mão no
lado esquerdo do peito e sorriu ao dizer. - Preparem-se demônios!
Um buraco negro com um grande poder de atração surgiu do co-
ração do federalista.
- O que é isso? - Perguntou o noviço.
- O que ainda faz por aqui? Saía depressa! Assuma sua posição no
Palácio dos Bandeirantes. Eu cuidarei das coisas por aqui.
- Tudo bem, tenha cuidado, Crocell. - Assim disse o Noviço Dom
Rafael que deslocou-se numa grande velocidade rumo ao palácio.
- Por favor, proteja meus amigos, obrigado por tudo, adeus…
O poder da gravidade exercida no coração de Theodoro tornou-se
caótica e os espíritos Andrômalus, Varsago, Savitri e Barbatus foram tra-
gados para o centro do coração.
- Esse humano inútil criou um buraco negro bem no seu coração.-
Constatou Belzebu que resistia a terrível gravidade.
- Sim, por acaso esqueceu que um dos meus dons é a manipula-
ção gravitacional? Eu posso aumentar e diminuir a gravidade conforme
minha vontade, usando-a em grandes territórios ou no meu pequeno co-
ração.
- Miserável! - Irou-se Belzebu.
- Que a justiça seja feita, volte para o abismo!
O buraco negro atingiu um poder gravitacional inacreditável e su-
80 O Divino Leviatã
gou o espírito do general do submundo para uma dimensão caótica.
Logo o buraco negro se fechou e os espíritos malignos já não esta-
vam mais ali.
Nesse instante os federalistas recobraram suas consciências.
- Hum... O que aconteceu? - Se perguntou Ingrid.
- Eu não consigo me lembrar de nada. - Queixou-se Heitor.
- Vocês foram dominados por cinco grandes espíritos, mas foram
salvos por esse jovem. - Explicou Crocell.
- Theodoro? Theo! - Assim o chamou Ingrid ao correr na dire-
ção do federalista do sudeste que, misteriosamente estava imóvel. Ingrid
parou em frente a Theodoro e logo percebeu que já não existia mais vida
naquele corpo, apenas um homem sepultado em pé e com seu orgulho
intacto.
-Theo! - Exclamou Ingrid.
- Amiga, você sabe que ele não está mais entre nós. - Disse Agatha
que ao se aproximar da federalista do sul à abraçou.
- Esse canalha sempre nos salvando. - Disse Romeu num choro
copioso.
O corpo de Theodoro desmanchou-se em partículas iluminadas e
envolveu os quatro federalistas.
Ingrid olhou para os céus e contemplou aquela neve energética
produzida pelas partículas de Theodoro.
- Se não fosse por você, não estaríamos vivos. - Concluiu Ingrid.
- Venha, querida… Nada temos a fazer aqui, é possível que o pró-
ximo governo tente nos perseguir. - Sugeriu Agatha.
- Continuar sem o Theodoro vai ser muito difícil para mim.
- Para todos nós, querida…
Os quatro olharam pela última vez as partículas que auxiliavam a
lua na iluminação daquela noite quente de novembro, cada um apanhou
uma centelha de energia e partiram com um sorriso provocado pelas
doces lembranças.
A princesa dilacerada 81
Epístola
IX
A conversa entre
~ Andrada
os irmaos
-A
tenção, solicitamos que deixem as dependências do
Palácio do Planalto, aos senadores, deputados e seus
respectivos assessores, a força aérea brasileira reser-
vou aeronaves para que cheguem ao abrigo de Alcântara com segurança.
- Assim alertava uma voz repetidas vezes no desértico Palácio.
82 O Divino Leviatã
- Você prega liberdade sacrificando os próprios amigos, William?
Theodoro e os outros confiaram em você e no final foram meros hospe-
deiros de demônios? Odeia a Deus e se alia ao que tem de mais podre?
Kadu o pegou pelo colarinho e disse tudo que o perturbava.
- Você assassinou uma senadora da república de forma covarde e
cruel, e o pior... Me envolveu nisso! Quem é você? Quem é você?!
Kadu desferiu um soco no rosto de William que ao chão pereceu.
- Pronto... Já liberou a sua cólera? Meu querido irmão, a plena paz
exige sacrifícios, sejam eles voluntários ou involuntários, o que é a vida
ou morte se não uma mera formalidade subatômica? Nada morre, tudo é
uma merda metamorfa.
William se levantou, ajeitou seu sobretudo, limpou o sangue que
escorria de sua boca e sorriu para o seu irmão.
- Agora vá... As coisas ficarão perigosas por aqui.
- Não deixe a sua raiva cegá-lo ao ponto de duvidar do meu amor
por você.
- Se o pior acontecer, adapte-se ao Brasil que vier.
Ainda perturbado, Kadu rompeu numa desajeitada corrida dei-
xando uma triste trilha de lágrimas.
A princesa dilacerada 83
EPÍSTOLA
X
A Batalha Final
B
onito MS- 23: 32 PM
84 O Divino Leviatã
eu acordava dos meus pesadelos. Lembro de uma namorada aos dezoito
anos, o pai dela era muito rígido com horários, e que balada boa chega
no seu auge as 23h? O jeito era sempre levá-la ao shopping e trazê-la sã e
salva para o papai. É... Não durou muito tempo...
- Aonde quer chegar com essa história ridícula? - Perguntou Dom
Fernando impaciente.
- São exatamente 23:45 e me deparo com mais uma decisão na
vida, sei que não é importante, mas é só uma curiosidade para distração.
- Você não precisa morrer, William, apenas se entregue e o criador
terá piedade de você.
- Piedade... - William voltou seus olhares para o céu e fez um gesto
obsceno. - Criador dos céus e da terra, observe o que eu faço com o mari-
cas do seu imperador!
Ao gritar essas blasfêmias, William retirou de seu sobretudo preto
suas famosas espadas curvadas, e as arremessou na direção do imperador
que repelindo-as facilmente apenas as observou cortando os céus.
- Você só sabe brincar com facas, Sr. Presidente? - Indagou o im-
perador entoando enigma.
- O que pretende fazer? - Perguntou William.
Dom Fernando acelerou sua moto e rompeu em grande velocida-
de, empinando-a e pegando grande altura para finalmente chegar a saca-
da do palácio.
William por pouco não foi atingido, Dom Fernando adentrou ao
Palácio e por um momento parou a moto.
- Agora darei início aos planos do criador, o maior monumento da
república terá que ser destruído!
Nesse instante surge de um pequeno portal a guardiã dos três
mundos que segurava em sua mão direita uma adaga prateada com um
pomo de rubi e adornos de esmeralda no chappe.
- Preparado para morrer? - Perguntou a guardiã que não esperou
a resposta do imperador, aproximou-se e o apunhalou no coração.
A princesa dilacerada 85
- Apenas observe.
A alma do imperador desceu até o mundo inferior no campo de
batalha mais sangrento da humanidade.
Um homem banhado por sangue se aproximou de Dom Fernando
que observava o campo de batalha.
- Você não me parece um homem de guerras, o que faz nesse lugar
tão horrível, sem nenhuma esperança?
- Qual é o seu nome? - Perguntou o imperador.
- Eu sou Spartacus, fui condenado a uma eterna batalha sem lega-
do, aqui não temos a noção do tempo e a sensação da espada nos atraves-
sando , tornou-se parte de nós.
- Essa é a evolução da dor e o sofrimento, sentimos na alma. - As-
sim definiu Spartacus a sua estada no inferno.
- Spartacus... Que destruiu a casa de Battiatus, derrotou Crasso e
legiões romanas...
- Posso te dizer que as suas batalhas poderão fazer algum sentido,
olhe isso.
Dom Fernando abriu sua mão esquerda e mostrou a semente ver-
melha da Ninrode. Spartacus recuou e suas expressões formosearam o
medo.
- Você é... - Sussurrou Spartacus.
- Sim, sou o imperador!
Dom Fernando jogou a semente no campo de batalha e um gran-
de terremoto cessou aquela insana guerra que perdurava a milênios.
Legionários, acadianos, espartanos e os guerreiros de todas as culturas
que já passaram pela terra, observavam atônitos as raízes da Ninrode bro-
tarem do chão e evoluírem rapidamente rumo a superfície.
- Foi preciso que eu morresse para semear um novo tempo. A par-
tir desse instante todos os signatários da carta dos condenados poderão se
redimir perante o criador.
As raízes tomaram conta da alma do imperador e a elevaram até
a superfície. As terras do Brasil estremeceram e o chão do palácio do pla-
nalto pereceu ao esplendor das raízes.
- Maldito! - Gritou William.
- Compreendeu agora que está arruinado, William?
- Arruinado? - William riu. - Guardiã, apesar de tudo isso me sur-
86 O Divino Leviatã
preender profundamente, não sou o tipo que se deixa abater, Sigrid, apa-
reça!
Poucas vezes a guardiã demonstrou surpresa como naquele ins-
tante.
Uma mulher de longos cabelos brancos e corpo translúcido apareceu.
- Eu não tive alternativa, perdoe-me, mãe.
- Como sempre querendo resolver tudo sozinho e confiando de-
mais nas suas habilidades, quando vai aprender, filho?
- Talvez nunca, minha mãe, mas ajuda-me a vencer.
- E o que essa mulher pode fazer? - Perguntou a guardiã num tom
de desdém.
Sigrid arrancou de dentro de sua túnica cinza, uma pequena am-
pulheta e à atirou contra a guardiã.
A magia paralisava o tempo do oponente por uma hora, o corpo
da guardiã ficou inerte ao tempo, não opaco a luz, pois essa também é re-
gida pelo tempo. O corpo da guardiã ganhou uma coloração cinza escura,
os prismas das cores emitidas pela luz, simplesmente desviavam do seu
corpo, era como se a sua existência fosse ignorada.
- Essa velha aqui não tem condições para te enfrentar, mas posso
te paralisar um pouquinho. - Disse Astrid num tom debochado.
- Agora é a sua vez, meu filho, cuide do imperador.
William levantou suas duas mãos e as espadas retornaram.
- Corte a cabeça dele. - Sugeriu Sigrid que observava junto ao filho
o corpo sem vida de Fernando.
- Chegou a hora de acabar com de uma vez por todas essa guerra.
Quando William tentou desferir o derradeiro ataque, as raízes da
Ninrode protegeram o imperador.
- Mas o que é isso? - Se perguntou o presidente William.
- A Ninrode está enraizada na alma do imperador, as raízes são
como anticorpos o protegendo. - Explicou Sigrid.
Dom Fernando finalmente despertou, por um instante contem-
plou o seu corpo e a ferida peitoral que já estava cicatrizada.
- Chegou o momento de definirmos essa luta, William.
- Imperador... O seu Deus não vai te ajudar. - Disse William posta-
do em sua base de gladio com as duas espadas direcionadas ao adversário.
Sigrid se aproximou da Ninrode, ajoelhou-se perante ela e come-
A princesa dilacerada 87
çou a recitar um mantra para retardar o seu crescimento.
Os dois se encararam por alguns instantes e finalmente começa-
ram a grande batalha. Uma espada surgiu na mão direita do imperador,
em suas lâminas um léxico angelical que brilhava como ouro.
William tomou o primeiro partido da luta, um ataque com as duas
espadas que imediatamente foram interceptadas pelo imperador.
No decorrer da batalha e no calor dos corpos, Dom Fernando
mostrou uma ligeira vantagem, William caiu ao chão e Fernando apro-
ximou-se com a lâmina de sua espada fazendo atrito sobre o pescoço do
presidente.
- Acabou, William, renda-se.
- Só vai acabar quando eu morrer. Você não percebeu, mas estão
longe de serem simples espadas, observe...
As duas espadas começaram a emitir uma aura de cor avermelha-
da, a espada da mão esquerda de William desprendeu-se do seu amo e
ascendeu acima da cabeça, a essa deu-se o nome de “bênção de Sigrid” a
outra espada desenvolveu uma energia da mesma cor vermelha e espira-
lada, que tomou conta do corpo de William e forjou-se numa armadura
sólida e intransponível de cor vermelha. O elmo cobria toda a cabeça, seu
desenho muito lembrava as armaduras dos séculos XVII e XVIII.
Numa velocidade espantosa, William atacou o imperador e dece-
pou seu braço direito com uma espada de energia vermelha.
- Ah! Meu braço, maldito! - Gritou Dom Fernando que observava
aterrorizado o sangue jorrar de sua ferida aberta.
- Deixe de praguejar, Dom Fernando, vou te proporcionar um fi-
nal digno de todos os reis da história.
Dotado de uma notável insanidade, retalhou o corpo do impera-
dor, que por sua vez, tentava revidar os ataques, mas a “bênção de Sigrid”
que flutuava sobre a cabeça do presidente William, criava um campo de
força para impedir o ataque do imperador.
Na intenção de decidir a batalha, William ergueu o imperador
pelo pescoço.
- Maricas... Cadê o seu Deus agora?
- Mate-o! Mate-o agora! - Exclamou Sigrid que meditava para im-
pedir a evolução das raízes da Ninrode.
- Mamãe, contemple a vitória final dos Andradas!
88 O Divino Leviatã
No instante que William cravaria sua espada no coração de Fer-
nando, Crocell aparece a tempo de deter o ataque do Presidente da Repú-
blica, ao invés da espada ferir o coração do moribundo imperador, foi a
mão do anjo caído que ela atravessou.
- Você?! O que faz aqui?! Saia do meu caminho!
- William, você é uma das piores existências que já conheci, tro-
cou toda a sua bondade por um projeto de poder, vendeu sua alma para
o que tinha de mais podre no inferno, e usou cinco jovens inocentes para
isso, você é tão desprezível que não percebeu que também foi usado por
Belzebu e os outros demônios que não assinaram a carta dos condenados,
agora você não tem mais nada.
- Poupe-me, pomba sem asas, você se humilha pelo perdão de um
criador que te expulsou dos céus. Existência desprezível? Faça-me rir!
- Crocell! - Gritou Sigrid que interrompeu sua reza frente a Nin-
rode.
- Não é com o Crocell que deve se preocupar, sua velha! - Disse a
Guardiã que havia se recuperado muito antes do que Sigrid previa.
- Miserável, o cancelamento temporal não durou dez minutos. -
Lamentou Sigrid.
- O truque é bom, quem sabe eu não o coloque no meu repertório.
Mas... Por agora será conduzida ao inferno pela minha cavalaria particu-
lar.
A guardiã assobiou e a exemplo do que aconteceu com os agentes
da CIA, dois cavaleiros da iniquidade montados em seus corcéis negros
invadiram o palácio e lançaram correntes contra a Bruxa da família An-
dradas e a arrastaram para um portal escuro que ecoava os gritos mais
terríveis do inferno.
- Mãe! - Gritou William.
- Eu te amo... - Sussurrou Sigrid ao desaparecer nas sombras.
- Agora nada impede a Ninrode de crescer. - Disse a Guardiã que
observava as raízes tomarem conta de todo o Palácio e os troncos final-
mente romperem o teto do maior símbolo do poder executivo.
- Maldita! Vai pagar pelo que fez a minha mãe! - Ameaçou William
com lágrimas que salpicavam as raízes vermelhas da Ninrode.
- Não! - Gritou o imperador que se escorava numa pilastra, ten-
tando manter-se em pé. - Não é com a Guardiã a sua luta, venha me en-
A princesa dilacerada 89
frentar!
- Você... No mais obscuro de seus pensamentos sabia que a sua
derrota era eminente, e mesmo assim seguiu com os planos, por que?
- Imperador, você ficou muito tempo trabalhando como mestre
cervejeiro e esqueceu de entender seres humanos...
- Você deixaria seus filhos morrerem e não faria nenhuma tenta-
tiva de salvá-los, mesmo sabendo de suas limitações para tal? Não desis-
timos do que amamos, e eu amo esse país... Moralmente posso ter feito
péssimas escolhas, só agora vejo isso claramente. Eu fui exatamente o que
um príncipe descrito por Maquiavel deveria ser. Me aliei a forças malig-
nas para construir a paz que eu sempre sonhei, vislumbrei um horizonte
e vi a minha impossibilidade de conquistá-lo, tentei a paz pela guerra,
combati o maligno com forças igualmente malignas e no final de tudo
só fui um joguete de Deus, Ele precisava de um antagonista perfeito, e eu
sem saber me submeti a esse papel, os historiadores vão relatar com pom-
pas o grande imperador que destruiu o perverso William e o seu exército,
mesmo assim, dane-se imperador! Dane-se o Divino Leviatã e dane-se o
Criador dos céus e da terra! Eu vou tentar mudar as providências divinas,
mesmo que isso resulte na minha morte!
William elevou sua espada para o alto e um poderoso relâmpago
vermelho a atingiu, atribuindo-lhe grande poder, era o derradeiro ataque.
Dom Fernando também levantou sua espada para os céus e recitou parte
da oração de São Miguel arcanjo.
- Príncipe Guardião e Guerreiro defendei-me e protegei-me com
Vossa Espada. Não permita que nenhum mal me atinja.
Nesse instante um relâmpago rasgou os céus e atingiu a espada
do imperador, toda aquela potência de bilhões de joules foi canalizada na
espada sem causar ferimento algum a Dom Fernando, sua aura manifes-
tou-se numa coloração dourada e moldou-se ao seu corpo na forma de
uma armadura reluzente que mesclava uma luz tão intensa quanto o sol e
a rigidez de um metal poderoso e dourado.
A armadura a exemplo de William, também cobria o corpo do
imperador, proporcionando-lhe uma defesa perfeita, o diferencial era a
coroa dourada com pequenos adornos de esmeraldas no lugar de um ro-
busto elmo.
Os primeiros galhos da Ninrode envolveram-se no corpo do im-
90 O Divino Leviatã
perador e o elevou para os céus numa grande velocidade, rompendo o
que restou do teto do palácio.
William observa o longínquo brilho do imperador nos céus e
também rompeu em voo ao encontro do seu inimigo.
- Não importa! Maldito! Dane-se as divindades! Dane-se as po-
testades! Dane-se o Divino Leviatã! Vou rir da eternidade tomando um
bom vinho. Morra!
Com a sua espada lançou um poderoso relâmpago vermelho que
foi capaz de mostrar seu esplendor em todo território brasileiro.
O imperador entoou a frase que ficou na história.
- Eu te condeno ao castigo destinado a todos aqueles que ousaram
enfrentar a vontade do Criador! O lugar no inferno reservado a todos os
déspotas! Providência divina!
A espada do imperador emitiu uma luz tão intensa quanto o sol,
aquele era o sinal para os sete reis que formariam o Império do Brasil.
A princesa dilacerada 91
Crocell e a Guardiã se aproximaram do imperador e o levaram em seus
braços.
- Você foi muito bem, imperador. Agora teremos um pouco de
paz. - Disse Crocell sorrindo.
- Uma coisa de cada vez, no momento estou preocupado com o
meu braço decepado.
Os três deram boas risadas, e logo em seguida Dom Fernando
desmaiou sobre os braços da Guardiã.
-Você sabe o que fazer. - Disse Crocell.
- Sim, não se preocupe, ele ficará bem. - Respondeu a Guardiã que
levando o imperador em seus braços, fez surgir um portal e desapareceu.
Não distante dali, Kadu aparece novamente para se despedir do
irmão.
- Você é um moleque, sabia? Por que não foi embora quando eu
mandei? - Disse William vencido sobre o chão e respirando com grande
dificuldade.
- Irmão, o que eu farei sem você?
Numa intervenção delirante, William respondeu com outra per-
gunta.
- Que horas são?
Sem entender a essência da pergunta, Kadu apenas se limitou a
responder.
- 0h01.
- O primeiro minuto do dia 15 de novembro... É o tempo de so-
breviver meu irmão, sobreviva... Deixe o nome Andradas morrer comi-
go...
- Mamãe desapareceu e não vai poder te ajudar, está sozinho, mas
eu acredito na sua genialidade, vai sobreviver.
Kadu se aproximou do corpo do irmão e ajoelhou-se perante ele,
limpou sua testa suada e fria, beijando-a com ternura. Os olhos de Kadu
encheram-se de lágrimas.
-Hey! Não chore. - William usou suas últimas forças para limpar
as lágrimas do irmão. - Prometa pra mim que não vai se entregar e que
estará vivo para ver esse império cair.
- Eu prometo... Eu prometo... - Assim jurou Kadu num choro co-
pioso.
92 O Divino Leviatã
- Assim está bem melhor...
William sorriu, selou seus olhos, respirou por três vezes e mor-
reu...
Kadu não teve outra reação a não ser gritar e lamentar do fundo
de sua alma a fragilidade e impotência de não poder salvar o seu irmão.
A princesa dilacerada 93
Epístola
XI
O Esplendor do
novo Brasil
O
triunfo do novo império trouxe um amanhã de cinzas e o
odor dos corpos putrefatos e dilacerados pela guerra.
94 O Divino Leviatã
viatã, o isolamento econômico de nada adiantou, a produção brasileira
crescia de forma exponencial e fora dos índices.
Ás 13h do mesmo dia 15 de novembro de 2022, Dom Fernando
de Bragança anunciou em cadeia nacional os novos tempos do Brasil e a
união dos novos três poderes, Céu, terra e submundo.
- Comeis do fruto, alcancem a eterna paz e sacrifiquem seus li-
vres-arbítrios, essa é a vontade do criador. - Assim dizia o imperador do
Brasil.
Sociólogos de todo o mundo analisavam com curiosidade o com-
portamento desse “novo brasileiro” não mais existia o bon vivant cario-
ca ou o frenético e despojado paulistano, todos aparentavam mansidão e
uniformidade, não demorou para que atribuíssem essa estranha mudança
a majestosa Ninrode.
Não havia explicação para uma árvore que rasgava os céus, afinal,
que experiência científica era aquela? Pensavam os americanos.
Muitas inspeções Internacionais foram barradas pelo Império, o
que agravou a situação diplomática do Divino Leviatã.
Para a proteção do Império, um poderoso exército foi criado, as-
sim nasceu a Divina Armada Imperial, exército, marinha e aeronáutica
unidos numa única força.
Crocell e a Guardiã treinaram os melhores soldados que a huma-
nidade já conheceu, não eram fortes apenas fisicamente, seus espíritos
eram poderosos e todos eram capazes de manipular magia arcana.
Em pouco tempo o Brasil se transformou no principal polo eco-
nômico do mundo e os principais investidores apostaram no Divino Le-
viatã.
Uma grande desaceleração na economia foi o suficiente para os
americanos irem além das sanções diplomáticas, o Presidente republica-
no Joseph Conrad acusou a Dívida armada imperial de produzir armas
nucleares, infringindo assim o tratado de não proliferação nuclear.
Não havia prova alguma disso, a CIA falsificou pesquisas de ativi-
dade nuclear e apontou a cidade de Alcântara como possível lugar de um
laboratório de enriquecimento de urânio.
Paraguai, Bolívia, Peru e Equador uniram-se ao Divino Leviatã e
formaram uma coalizão estrategicamente importante para delimitar es-
paço no continente.
A princesa dilacerada 95
A América declara guerra ao Império brasileiro, ingleses e Ale-
mães juntaram-se aos USA, o fim do Divino Império parecia próximo,
embora, nenhum deles conhecessem o brilhante rei de São Paulo, Dom
Rafael de Avís e Bragança.
- Majestade! Os caças americanos estão muito próximos de Al-
cântara. O que faremos? - Perguntou um dos soldados.
Dom Rafael sorriu no alto das pompas de seu uniforme militar
condecorado e disse:
- Deixem que se aproximem, tenho um presente de boas vindas.
Os bombardeios começaram, mas havia algo que intrigava o Te-
nente Richmond, piloto de um dos caças, os mísseis pareciam não atingir
os alvos, era como se fossem neutralizados por alguma força.
- Não sei o que acontece, os mísseis foram desviados para algum
lugar! - Comunicou o tenente a inteligência em Washington.
Não houve resposta do comando, para total angústia do promis-
sor tenente de 26 anos.
Richmond observou o radar e nenhum dos seus companheiros
estavam próximos. Repentinamente o caça entrou em turbulência e foi
sugado por algo que o tenente não podia ver.
Antes que pudesse raciocinar, chocou-se a uma enorme bola de
fogo. De uma forma inexplicável, os 32 caças colidiram-se ao mesmo
tempo.
Em Alcântara todos se perguntavam o que havia acontecido. Com
um sorriso sereno, Dom Rafael, que diferente do impetuoso garoto de
outrora, havia se tornado um grande rei estrategista.
- Vejo que ainda não entenderam… Eu criei junto com o núcleo
de ciências, múltiplos portais que dobram o espaço e direcionam toda a
força aérea inimiga para um ponto em comum. Os portais não se abrem
para os caças da Divina Armada Imperial, pois todas as nossas armas de
guerra são codificadas, e os caças e foguetes inimigos não possuem o có-
digo para voarem em nossos céus, sendo assim, os portais se abrem e os
direcionam para um ponto em comum onde todos se colidem. Os misseis
disparados, mesmo que estejam fora do alcance dos portais, são rapida-
mente detectados, fazendo o portal mais próximo calcular exatamente
o ponto de impacto e se colocar a frente do missel, dispersando-o para
diversos pontos no universo.
96 O Divino Leviatã
- Rei Dom Rafael, você é realmente genial! - Assim bradou um
dos oficiais que comemoravam o êxito.
O desfecho da guerra proporcionou aos americanos, ingleses e
alemães, a desonra de assinarem uma constrangedora trégua.
A terceira guerra mundial trouxe aos USA uma crise sem prece-
dentes. Embora, o pior inimigo para o império brasileiro estava dentro do
seu próprio território.
O fruto da primeira inocência foi rejeitado por aqueles que não
queriam se prostrar a um Deus, tão pouco a um imperador, assim nasce-
ram grupos marginalizados que combatiam o divino leviatã com muita
coragem e arriscando suas vidas, existe humanidade na servidão inques-
tionável? Se perguntava Cicero, um dos lideres das forças divergentes,
essa pergunta foi respondida pelo grande líder religioso do Império, Re-
verendo Dom Maximiliano que discursava a um grande público na ceri-
mônia fúnebre da princesa Vitória na cripta Imperial.
- Todas as dores dessa primeira vida já se passaram, com o devido
tempo, a carne se transformará em partículas espalhadas, um memorial
de nossa existência.
Nesse instante chega a grande limusine que levava o caixão da
princesa, dois carros oficiais cercavam o que jaz de Vitória.
Os espíritos de Vitória e Abel assistiam o cortejo, e o excêntrico
príncipe se despediu da amaldiçoada irmã.
- Irmãzinha, você deve entender, não é mesmo?
- Preciso voltar para o meu corpo, não é muito recomendável re-
alizar viagens astrais por um longo período de tempo, além do mais, sua
estada na terra chegou ao fim.
Vitória sentiu uma terrível dor, acanhou-se numa postura de pro-
fundo sofrimento e voltou sua cabeça para o chão.
- Esse seria o momento pertinente para perguntar se depois de
tudo que aconteceu, você não sente um pingo de remorso, mas logo as
minhas memórias retornam… E percebo que você não tem a capacidade
de mensurar sentimentos, apenas os racionaliza, sendo assim, não adian-
taria nada praguejar contra você, apenas fique ciente que essa situação
não ficará impune, o seu juízo chegará.
- Acabarei com as suas ambições doentias. - Jurou Vitória.
- Irmãzinha, culpar um homem pela sua ambição é o mesmo que
A princesa dilacerada 97
culpar a própria existência. O existir já é uma ambição das mais egoístas,
imagine, em paradoxos infindáveis e algoritmos impossíveis de se enten-
der no ciclo de vida humana, você acaba sendo a única possibilidade en-
carnada.
- Ambição não nasceu de nenhum tratado filosófico, ela é além
da filosofia, ambição é o efeito colateral da própria existência, logo, ela é
superior a moral humana.
Abel se aproximou do atormentado corpo de sua irmã e a beijou
no rosto.
- Até nunca mais, irmãzinha, não se preocupe, deixei instruções
para que os demônios à alimentem bem.
Abel desapareceu junto com o eco de sua voz, agora Vitória estava
sozinha, observando o cortejo, o choro copioso de sua mãe, à austerida-
de de Dom Fernando que hora ou outra ameaçava desconcertar, a mídia
que cobria a triste cerimônia como se fosse um show de uma grande es-
trela, curiosos que observavam despretensiosamente os acontecimentos,
e por fim, a cena que mais a irritou, seu irmão Abel sai da limusine com
um forçado semblante de choro, logo a imprensa se aproximou do prínci-
pe para ouvir suas palavras.
- Príncipe Abel, sabemos do momento difícil que a família impe-
rial passou ao enfrentar a princesa Vitória junto com os marginalizados,
e que sua morte veio pelas mãos do próprio pai, como superar isso?
- Meu caro repórter, é óbvio que todos estamos tristes, perdi mi-
nha irmãzinha querida, alguém que eu amava muito.
- Que o Brasil se conscientize que não podemos ter diálogo com
os insurgentes que influenciaram minha irmã, precisam ser eliminados
urgentemente!
- Amanhã enviarei ao parlamento um ofício de guerra contra to-
dos que se levantaram contra o Império, vingarei minha querida irmã.
Vitória enfureceu-se e investiu contra Abel, mas a sua essência
não conseguiu atingir o corpo carnal de seu irmão, nesse instante as cha-
mas do seu corpo se intensificaram e sua alma foi tomada por uma espiral
negra que a sugou para o submundo.
98 O Divino Leviatã
EPÍSTOLA
XII
O Espelho da Alma
-P
or que existo? - Questionou-se Vitória contemplando o
reflexo do seu rosto desfigurado nas águas escuras do
rio da morte.
- Não entendo o propósito da minha existência... Sofro as dores
do inferno, por que também preciso sofrer as da terra?
As águas escuras começaram a refletir cenas do seu funeral, e uma
fala do reverendo Maximiliano lhe chamou à atenção:
“As antigas dores já passaram, que Vitória descanse em paz.”
A princesa suspirou e refletiu por alguns segundos.
- Paz? Do que ele fala realmente? Não existe paz no que sou e
aonde estou. A morte para os vivos é o silêncio, para os mortos que foram
amaldiçoados é a tormenta de memórias enquanto vivos combinadas
com as chamas do inferno.
Vitória observou que nas profundezas do rio haviam milhares
de grandes espelhos que refletiam imagens de pessoas, pareciam pre-
sas em suas próprias ilusões. A princesa percebeu que as imagens de
seu funeral que acabara de assistir, haviam sido refletidas por um espel-
ho que estava na superfície do rio. Esse espelho tinha na parte superior
de sua moldura o rosto de Vitória com seu nome logo abaixo esculpido.
A princesa ajoelhou-se a margem do rio e ao tocar o espelho, seu
corpo foi absorvido.
- O que aconteceu? Me sinto leve, mas as minhas angústias ele-
varam-se ao mesmo nível do fogo que atormenta minha alma.
“Memórias...” sussurraram vozes.
E assim, a alma de Vitória viajou no espaço e tempo.
A princesa dilacerada 99
EPÍSTOLA
XIII
O Noivado
-O
nde estou? - Se perguntou a princesa ao pre-
senciar uma grande festa, todos bem traja-
dos, a nova corte brasileira desfilava no sa-
lão do suntuoso e reformado palácio do planalto. - Essa é a minha
festa de noivado, com tudo que aconteceu, apaguei de minha memória.
Vitória encontrou a sua figura do passado trajada com um lindo
vestido branco de fino corte que contornava seu largo quadril.
Seus cabelos negros com canecalon e pigmentos de diamante dava
o tom de uma princesa negra e majestosa como o Brasil jamais havia vis-
to. Ela não dançava com os demais, estava deslocada no salão e com um
olhar distante.
- Agora me lembro, eu estava angustiada a espera do meu noivo,
na verdade nunca quis me casar, só de pensar na ideia me dava calafrios,
mas era necessário para o fortalecimento do Império e os seus reinos, um
casamento principesco típico.
- Atenção! - O porta-voz do Império se anunciou. - Nossa majes-
tade, príncipe Dom Rafael, acaba de chegar!
Todos cessaram a dança e abriram corredor para o vitorioso prín-
cipe. Duas damas se aproximaram da princesa para encorajá-la.
- Eu não entendo o seu desânimo, quem não gostaria de casar
com um homem tão lindo, sensível e heroico quanto o Rei de São Paulo?
- Questionou a Baronesa de Campinas, uma bela mulher de longos cabe-
los loiros, olhos verdes, sardas rosadas, batom rubi, um vestido vermelho
suede e de corte seco.
- Sensível até demais. - Comentou Valéria, uma bela mo-
rena de olhos negros, cabelos longos e castanhos, pele jam-
bo e vestido esmeralda com franjas no decote, ela fazia minha
segurança pessoal, seu semblante era fechado, odiava cerimônias, prin-
O Olho de Deus
M
eu irmão era do tipo que sempre gostava do con-
trole da situação, jogava as cartas e divertia-
-se com isso, Abel era um misto de bobo da
corte com aqueles príncipes extravagantes e afetados da idade mé-
dia, superestimava demais suas habilidades de persuasão, nem to-
dos podiam ser manipulados, tão pouco alguém como Dom Rafael.
Dentro do laboratório os três caminhavam por um grande com-
plexo com luzes de intensidade baixa, o que deixava o clima do labora-
tório lúgubre e aterrador. Passaram por uma fileira de corpos congelados
criogênicamente, todos num repouso suspenso em cápsulas.
- O que significa isso? - Indagou o Rei.
- São corpos dos soldados brasileiros mortos na última guerra,
muitos deles morreram para que hoje você tivesse todas as honrarias. -
Respondeu ironicamente Abel.
- Eu não fico nada feliz com isso, eu mesmo poderia usar meus
poderes e vencê-los com facilidade, mas recebi ordens específicas do im-
perador para não usar magia arcana, apenas máquinas contra máquinas,
homens contra homens. - Replicou o rei encabulado.
- Tudo isso é uma grande bobagem, em situações de risco se exige
atitudes extremas, esses corpos são gólens para o uso de anjos e demônios
que ascenderem ao nosso mundo. Eles são incorporados, assim esses se-
res espirituais não precisam gastar grandes quantidades de energias para
se materializarem. Mas isso não é tudo, venham! Ainda tem muito mais.
Ao avançarem o corredor depararam-se com armaduras acopla-
das na parede.
- Esse também é um dos meus maiores orgulhos, essas armadu-
ras foram desenvolvidas com a nanotecnologia mais avançada, são pra-
ticamente indestrutíveis, pois os seus átomos são mais compactados, as
106 O Divino Leviatã
armas convencionais sequer chegam à arranhá-las, são separadas por gra-
des e serão distribuídas de acordo com as patentes, nível de magia arcana
e aura. Todas só funcionam plenamente se o soldado puder manipular
poder arcano em algum nível. Serão divididas nas classes D, C, B, A e S.
A partir da Classe B as armaduras serão alimentadas por dois nú-
cleos de energia, um núcleo serve para o funcionamento dos softwares e
o outro servirá de alimento para as armas que assessoram os soldados,
inclusive é possível neutralizar ataques usando campos de força. E é claro,
priminho... Não poderia deixar de lado o seu presente!
Abel apontou para uma bela armadura escarlate que vibrava como
se fosse uma imagem holográfica, ressonava de uma maneira incomum.
- O que é isso? Que tipo matéria é essa? - Perguntou o Rei.
- Se me permite, Príncipe Abel, eu gostaria de explicar. - Sugeriu educa-
damente o doutor. - A armadura se porta de maneira diferente, sua liga
de metal é energizada e memorizada, ela também foi desenvolvida através
do seu sangue e onda cerebral. Nós observamos a armadura em seu ta-
manho real, mas os átomos podem ser desagrupados e armazenados em
sua coluna espinhal, é a única armadura da série, pode ser acionada pela
sua mente, possui uma defesa perfeita, e o seu grande trunfo é que se um
grande poder destruí-la junto com o corpo do seu utilitário, ela reagrupa
novamente tanto os seus átomos quanto as partículas do guerreiro que
ela protege.
- Sim! Eu falo de ressurreição. - Disse Abel entusiasmado.
- Então vamos testar na prática. - Sugeriu Rafael. - O rei concen-
trou uma poderosa esfera de luz na mão direita. - Relux!
Evocou seu raio de luz arcano que fez à armadura em pedaços.
- Não! Qual foi a necessidade disso, majestade? - Desesperou-se o
doutor.
- Acalme-se, vamos observar a mágica acontecer. - Disse o meu
irmão num tom tranquilizador.
Rapidamente os átomos da armadura escarlate agruparam-se ou-
tra vez, era como se nada houvesse atingido à armadura.
- Isso é inacreditável. - Impressionou-se o rei.
- Considere um presente em homenagem a nossa eterna amizade,
embora, meu querido priminho, tenha algo que precise fazer por nós. Me
acompanhe, por favor.
A ira do Imperador
O
projeto do meu irmão foi apresentado ao conselho dos
vinte principados, que era a primeira instância para que
qualquer projeto fosse aprovado e, por decisão unânime,
graças ao prestígio de meu rei e marido, o projeto avançou esse estágio,
agora só restava o último obstáculo para as ambições de meu irmão, o
STR (Supremo Tribunal Real), Abel estava confiante, pois tinha em suas
mãos o rei de São Paulo, que nutria um sentimento genuíno por ele.
O STR nutria em toda sua estrutura de poder, os antigos governos
estaduais, do legislativo e do judiciário. Homens e mulheres sábios e dota-
dos de grande poder. O equilíbrio do Divino Leviatã está nesse conselho,
foi uma votação apertada, mas os projetos militares de Abel com caráter
expansionista venceram exatamente com quatro votos contra dois, o rei
do Rio de Janeiro absteve do voto e fez um protesto.
- Eu fui escolhido por Deus para defender a paz e não para es-
palhar ódio pelo mundo, não há necessidade de um exército com tanto
poder, me admira um herói nacional do prestígio de Dom Rafael aprovar
essa sandice, esse projeto de poder!
- Não participarei de nenhuma decisão desse conselho que tenha
esse tipo de pauta. Ainda hoje enviarei um ofício ao imperador convocan-
do-o para exercer seu poder de veto.
- Dom Felipe, por favor, seja razoável, você mesmo observou os
últimos acontecimentos da guerra, os ressentimentos de outras nações
ainda são latentes, precisamos garantir a segurança do nosso povo e ga-
rantir a paz mostrando o poder para aqueles que só entendem dessa for-
ma. - Interpelou Dom Rafael.
- Me poupe de sua retórica, nobre rei dos paulistas, ainda vou des-
cobrir as suas motivações.
Felipe se levantou da bancada presidida por Dom Rafael e retirou-
A origem de
'
todo odio
-Ó
dio…. Afinal, é o que rege o mundo? Abel ajudou-me
a trilhar esse destino tão cruel.
- Venha... - Sussurrou as vozes que ecoavam nas
águas escuras do rio da morte.
- O que querem agora? Por que continuam a me atormentar? - In-
dagou a alma de Vitória.
- A origem do ódio? Quer conhecer? - As vozes vinham de três
mulheres cadavéricas que cobriam seus corpos com mantas negras, elas
nadavam entre os corpos aprisionados nos espelhos.
Uma das mulheres tirou o capuz que cobria totalmente seu rosto.
- Você era muito pequenina quando eu ainda vivia na terra, sou
Sigrid, mãe dos irmãos Andradas, mãe de Kadu.
- Eu ouvi histórias sobre você, mas não sabia que estava no infer-
no. - Disse Vitória.
- Minha alma foi condenada ao inferno, mas o meu corpo foi es-
condido numa longínqua dimensão pela guardiã dos três mundos.
- E o que quer de mim? - Perguntou Vitória.
- Eu posso te ajudar a sair desse lugar, em troca, preciso de dois
favores. Como detentora do dom da criação e da luz, você tem poderes
para acionar todos os portais. Quando o fizer, o portal onde meu corpo
foi escondido emitirá um grande poder, ali estará o Cubo de Metraton.
- Cubo de Metraton?
- Sim, através do cubo usamos a geometria sagrada para acelerar
partículas e proporcionar um equilíbrio vibracional, com os arranjos geo-
métricos podemos reagrupar as partículas de qualquer corpo, até mesmo
o seu.
O Casamento
O
matrimônio tem a sua raiz na palavra mãe e casamento
etimologicamente é ligada a palavra casa.
O conceito de casamento nos remete a segurança de uma
casa e o colo de uma mãe, um porto seguro.
Os portugueses são mais práticos, sua constituição define o casa-
mento como um contrato, e é exatamente o que significa o meu casamen-
to, um contrato para garantir a continuidade de uma dinastia.
Lá estava eu caminhando por um tapete vermelho e brilhante que
surgia conforme meus pés pisavam nele.
Papai estava posicionado junto a mamãe e atrás do reverendo
Maximiliano que celebraria nossa união. Dom Rafael me esperava num
pequeno altar. Finalmente chegamos na presença do reverendo, estáva-
mos sublimes, os futuros rei e rainha de São Paulo. Rafael usava um lindo
terno branco com suas condecorações militares, seu cabelo na altura dos
ombros brilhavam tal qual seu sorriso, e eu só trajava uma túnica branca,
a princípio não havia entendido a simplicidade para um momento tão
importante, mas toda a mágica aconteceria no momento seguinte.
Finalmente estávamos perante o reverendo.
- Estamos aqui reunidos em nome do criador de todo universo
para celebrar mais uma união, mas antes tenho uma surpresa para vocês.
Repentinamente as luzes do Palácio se apagaram, por alguns se-
gundos tudo ficou escuro, até o instante que as silhuetas de papai e ma-
mãe brilharam com tanta intensidade que tudo foi iluminado novamente,
quando me dei conta, o salão havia se transformado numa plataforma
suspensa a cem metros do chão, três anjos de aço revestidos com uma
fina camada de cerâmica exerciam um poder magnético que mantinham
a plataforma suspensa no ar, as estátuas foram posicionadas com as mãos
como se estivessem exercendo um poder divino sobre a estrutura, os
anjos simbolizavam, Miguel, Gabriel e Rafael. Todos os convidados, in-
Os lamentos no
Rio da Morte
-P
obre Dom Rafael... Sempre foi tão bondoso comigo,
parte do que ele se tornou é culpa minha. Enfim... Mi-
nha mente retornou a esse inferno... Embriaguei-me
com o perfume do rei, mas agora... Sinto apenas o odor da carne apodre-
cida e os murmúrios desses mortos...
- Lamentar não é de grande serventia, olhe para os lados, esse
lugar ecoa murmurações de todas as eras, nem por isso suas almas são
menos atormentadas. - Interviu Sigrid.
Vitória percebeu uma agitação próxima as margens do rio da
morte.
- O que acontece ali?
- São os demônios de classe baixa em seus momentos de recrea-
ção, certamente atormentando os recém chegados. - Explicou Sigrid.
Vitória se aproximou daquele evento e constatou algo perturba-
dor, uma bela mulher, nua, de cabelos loiros, sentada sobre a margem do
rio e com as mãos submersas nas águas negras e lodosas. A mulher estava
cercada por criaturas asquerosas e aladas que apontavam lanças em sua
direção.
- A morte exala muitas fragrâncias, posso distingui-las cada uma
delas, mas você... Ainda possui o pútrido odor da vida... O que faz no
submundo? - Indagou uma das criaturas que possuía um corpo repleto
de pelos acinzentados e braços desproporcionais ao corpo. Era impossível
decifrar o seu rosto, possuía quatro camadas de pelos que escondiam seus
olhos carmesins.
- O que eu faço aqui não é do interesse de seres tão inferiores e
desprezíveis. - Respondeu a mulher que parecia indiferente aos demônios
~ Parte I
Revelacoes
'
-T
ivemos os nossos bons momentos, Maria.
- Isso já não tem mais importância, todo o meu
passado desmoronou. O inferno é um lugar de casas
desmoronadas, esses lamentos que reverberam nesse lugar desprezível
são os passados das almas de todas as eras que Deus depositou no lixo da
existência. Logo estarei aqui.
- Vamos embora, Princesa, precisamos achar o meu corpo, so-
mente assim encontraremos o cubo de Metraton. - Preconizou Astrid de-
monstrando impaciência.
- Então se trata disso... Agora entendo a presença dessas bruxas,
querem um acordo para voltarem a vida. Ingenuidade sua acreditar nes-
sas feiticeiras enganadoras.
- Cale-se maldita! Como ousa? - Irritaram-se as três bruxas que
acompanhavam Astrid.
- Esse é um risco que preciso correr, não posso deixar o Império
nas mãos do Abel. - Explicou Vitória.
- Não há nada de divino no Império Brasileiro, tal qual Roma, foi
construído com pilhas de corpos. Não há o que salvar daquela gente, eles
comem do fruto da Ninrode e são enganados por Deus. O que é o homem
sem o livre arbítrio?
- E o que é o ser humano alimentado pelo ódio? - Rebateu Vitória.
- Me dê um motivo para amar o mundo e ajudar aquelas pessoas.
- Disse Maria com um olhar colérico e num tom de voz desafiador.
- Eu darei... Você quer mesmo que eu acredite que a existência
humana é pautada pelo ódio?
Vitória andou na direção de Maria sem hesitar, sua determinação
a assustou, que recuava os seus passos e furtava-se do olhar altivo e hip-
nótico de Vitória.
~ Parte II
Revelacoes
'
-P
rincesa Vitória?
- Princesa, aonde você está?
Acordei com aquele chamado de Valéria em ple-
na manhã, ao abrir os olhos, percebi em minha turva visão que a guar-
diã olhava para minha cama como se não estivesse me enxergando.
Minha visão periférica capturou meu irmão deitado ao meu lado.
- Psiu! Quietinha! - Sussurrou Abel.
- O que você vai fazer? - Perguntei.
- Vamos para zona proibida, não se preocupe, deixei nossos cor-
pos invisíveis, Valéria não consegue nos ver. - Respondeu Abel.
Saímos discretamente do quarto e viajamos rumo aos lados mais
sombrios de São Paulo.
Abel tinha o dom de voar, habilidade rara, viajamos por toda a
capital, a cidade pulsava a 100 metros de nós e não demorou muito para
chegarmos a zona morta do império.
Do baixo Glicério até São Mateus, uma grande zona abandonada
pela lei divina, pessoas que vivem em condições sub-humanas, casebres
com bicos clandestinos de eletricidade, córregos poluídos e pessoas pe-
rambulando pelas ruas atrás de um fortuito negócio, uma oportunidade
de ganhar dinheiro e sobreviver naquela pobreza extrema. Muitos viviam
de agricultura de subsistência, algo que só havia assistido em vídeos da
antiga república.
É assustador sobrevoar a pobreza, apesar de seus corpos se mo-
verem de forma frenética e sem nenhuma organização rítmica e suas ex-
pressões apresentarem uma insana mistura de sentimentos, ainda assim
era belo.
- Pronto, chegamos, vamos descer. - Disse Abel.
Aterrissamos num lugar com um grande fluxo de gente, parecia
uma feira.
A queda de
Dom Rafael
V
itória interrompeu sua locução e apenas observava Maria
nadando nas águas lodosas do rio da morte.
- Você apenas me conta histórias, mas não importa a en-
toação dramática, tudo sempre acaba nesse lugar. Maldito Abel... - Sus-
surrou Maria.
- Meu irmão te fez sofrer muito, não é mesmo? Mas uma coisa
não consigo entender, por que mentiu? - Perguntou Vitória.
-Você nunca vai compreender, não há porque perder tempo com
explicações. - Respondeu Maria rispidamente.
- É você que não compreende o que o tempo fez conosco, nossas
mentes e espíritos estão viajando sobre ele, por acaso não te ocorreu que
estamos sendo testadas? - Perguntou Vitória.
- Testadas? O que isso significa? O submundo é uma constante
expiação, o fogo é o menor dos tormentos aqui. Eu não me importo ne-
nhum pouco com a sua dor. Não posso senti-la por você, na verdade, eu
já me cansei das suas histórias. - Indignou-se Maria. - Você continua a
mesma fugitiva, se realmente nada te importa, por que refletir suas ques-
tões existenciais no submundo?
- Vitória, devemos partir o quanto antes. - Preconizou Sigrid que
observava o diálogo entre a Maria e a Princesa.
- Maria, você não sabe como eu me senti quando tudo ocorreu.
Nesse instante uma aura vermelha intensa emanou de Maria, os
seus olhos inflamaram como chamas e o seu ódio oprimia o próprio in-
ferno, rompeu em grande velocidade na direção de Vitória e a pegou no
pescoço.
- Sente muito? - Indagou Maria.
Essa foi a sua história, Maria... Realmente eu dei as costas a você... Mas
existe algo que ainda não entendi muito bem, como conseguiu sobrevi-
ver?
O cubo de Metatron
-A
s coisas terminaram de uma forma tão trágica, não é
mesmo? - Indagou Vitória que acabara de retornar de
suas lembranças, a princesa tentava encontrar um ras-
tro de humanidade no olhar de Maria, com suas frágeis mãos, amortecia
a pressão causada pela esganadura exercida pelas mãos de Maria.
- Quer saber por que estou viva? Se não fosse a fusão com a in-
dumentária, eu teria morrido, quando o meu corpo foi desintegrado pelo
plasma, as partículas inteligentes da armadura já tinham sido diluídas em
minha medula, recombinou as células e restaurou o meu corpo... Acordei
no subterrâneo da Praça imperial, era a antiga estação república, eu es-
tava confusa e sem memória, apenas sabia o meu nome, Maria... Haviam
outros desabrigados e fugitivos do império, rebeldes de todos os cantos
do Brasil que escolheram não comer do fruto, e assim sobrevivi nesses
últimos dezoito anos.
- Dezoito anos? - Surpreendeu-se Vitória.
- Ora, pensou mesmo que suas reflexões de alma seriam tratadas
em minutos, horas ou dias?
- Esse é o pior castigo do inferno, privação de tempo, não sabemos
o que se passa na terra...
- Você passou como todas as coisas passam na vida... - Disse Ma-
ria que ao olhar as expressões cadavéricas de Vitória, a jogou nas águas
lodosas do rio da morte. - Me cansei disso tudo, nem mesmo o sofrimen-
to do inferno é um refúgio para refletir, seja lá o que for fazer na terra, não
quero fazer parte disso. Não me procure!
Maria concentrou sua aura vermelha ao redor de seu cor-
po, a chaga da Cruz de Avís em seu peito esquerdo incandes-
ceu, assim rompeu em grande velocidade rumo ao império.
Sigrid e as outras bruxas aproximaram-se de Vitória e formaram
^
Escandalo '
no Imperio
E
u lembro... Duas semanas haviam se passado após a morte
de Dom Rafael. Eu lembro... Que vergonha... Foi o que sen-
ti... Os olhares de constrangimento da corte, da imprensa,
dos serviçais do palácio, fuzilavam-me com seus julgamentos, todos os
flashes dos paparazzos, a intransigência dos repórteres, os sorrisos debo-
chados daqueles que um dia me abraçaram com seus punhais escondi-
dos, estava em casa, no palco dos fingimentos e no teatro das aparências!
Aqueles que comeram do fruto da Ninrode, mortificaram os seus livres
arbítrios, hoje não me soam como santos, parecem escravos divinos de
um Deus e suas providências divinas.
Fechei-me em meus aposentos, no quarto que foi eleito o meu sar-
cófago. Papai e mamãe respeitaram o meu silêncio, não me procuraram
até que eu me sentisse bem, longas foram as noites, breve era a minha paz
de espírito, apenas meu pequenino filho e eu... Os seus movimentos em
meu útero, os chutes esporádicos e a minha imaginação ao tentar des-
vendar os mistérios de sua fisionomia, com quem ele parece? Puxou os
meus traços? Têm a personalidade de seu falecido pai? Em qual momento
falarei de todas essas situações que ocorreram antes do seu nascimento?
O filho de um traidor com uma princesa humilhada e condenada em suas
masmorras existenciais, embora, o destino reservasse outros planos.
O módulo de comunicação do meu quarto foi acionado, um suave
sinal monofônico e linear, seguido da holografia de Kadu, ainda com o
seu disfarce de Dr Heisenberg.
- Vitória, desculpe a minha ausência nesse momento tão difícil de
sua vida, pensei que seria melhor deixá-la só por algum tempo.
- Eu sinto tanta vergonha, simplesmente não entendo, meu pe-
quenino crescerá com o peso de ter um pai traidor, foi tudo tão rápido...
Os acontecimentos fugiram do meu controle, não pude salvar Dom Ra-
fael ou seja lá o que ele era. Assim lamentei deitada sobre a minha cama e
A princesa dilacerada 171
coberta por um simples lençol branco.
- Você não têm culpa, talvez nem mesmo Dom Rafael a tenha, era
a sua natureza. - Comentou Kadu.
- Maria... Esse era o seu verdadeiro nome. - O corrigi.
- Eu apenas liguei para prestar os meus pêsames e tratar de um
assunto muito delicado. - Disse Kadu entoando e expressando uma pro-
funda angústia.
- Seja qual for o assunto, não deve ser mais grave do que passei
nos últimos tempos. - Eu disse.
- Vitória, temo que a sua vida corra um grande risco. Existem in-
teresses pela sua morte, são as mesmas pessoas que vitimaram Dom Ra-
fael.
- Querem me matar? E quem teria esse interesse? Quem ousaria
promover um atentado contra a família imperial? - Indaguei-lhe.
- Intimamente você sabe de quem se trata... Seu irmão foi deter-
minante para o assassinato do rei, e ele não está sozinho, o reverendo o
apoia incondicionalmente.
- Você sabe que essa é uma acusação muito grave, não podemos
inferir sobre a moral do príncipe e do sumo sacerdote sem apresentar
provas. - Assim o alertei na tentativa de manter as minhas aparências.
- Não é o momento para se esconder em diplomacias, prince-
sa, você já teve amostras do caráter do seu irmão, quase perdeu a vida por
duas vezes, a união entre os dois ramos da família Bragança frustrou os
planos de Abel, ele pensava em herdar naturalmente o trono, mas... Como
você mesmo sabe, o imperador sempre desaprovou o príncipe, nunca foi
afeito as suas extravagâncias e falhas de caráter.
- E como descobriu essas coisas? - Perguntei.
- Abel se utiliza da tecnologia que eu criei, mas esquece que eu
conheço todos os protocolos do programa “Olho de Deus”, e é claro que é
do meu interesse saber de tudo o que acontece. Há meses que sigo os pas-
sos desses dois miseráveis, eles mataram o rei, agora querem você, isso eu
não vou permitir. - Assim me respondeu Kadu. - Para mais detalhes, peço
que seja o mais discreta possível e me encontre no hotel Empire, amanhã
no começo da tarde, até lá, cuide-se bem. - Assim Kadu encerrou o seu
contato e sua imagem holográfica dissipou-se em pixels espalhados pelo
quarto.
Passado aquele dia, decidi que aquelas escutas deveriam cair nas
mãos da figura mais intempestiva e ávido cumpridor das leis de todo im-
~ de Kadu
A traicao
'
D
om Felipe levou as provas para o supremo tribunal real,
não havia mais volta, os meus inimigos já estavam de-
clarados, não tardou para que as escutas fossem vazadas
para a imprensa, a família imperial encarava o seu grande escândalo.
Fui convidada a depor no STR, fiquei frente a frente com a Abel e
Maximiliano. Os seus olhares não fugiam de mim, pareciam tranquilos e
prontos para um revide.
Naturalmente negaram todas as acusações, um julgamento de
quase quatorze horas que parecia não afetá-los, hora ou outra, Abel co-
mentava algo nos ouvidos de Maximiliano, que sorria discretamente sem
tirar os olhos de mim.
O longo depoimento dos réus terminou precedido por uma inten-
sa sabatina da imprensa. Maximiliano fechou-se em seu hábito episcopal
negro e passou rapidamente pelos repórteres sem ao menos se pronun-
ciar, ao contrário de Abel que tinha uma imagem a zelar e um teatro a
fazer, ainda assim, tudo calculado e sem exageros cênicos.
- Príncipe Abel! Essa é a primeira grande crise encarada pela fa-
mília imperial brasileira, sua voz aparece nas escutas tramando o assassi-
nato de sua irmã e do falecido rei de São Paulo, Dom Rafael, mesmo com
uma prova tão contundente, como pretende fundamentar a sua defesa?
- Perguntou o repórter.
- Minha defesa está mais que estruturada, toda essa situação é um
grande mal entendido, se houve uma escuta interceptada, o nome disso
é grampo, sem uma autorização judicial é crime, logo, todo esse julga-
mento é ilegal por quebrar o meu sigilo.
- Príncipe! Por Gentileza! Sou a Mônica Bridi do Tribuna Paulis-
tana. - Anunciou-se a jornalista. - Nessa seara de denúncias contra vossa
alteza, destaca-se também a denúncia do tesouro imperial por usar verbas
sem licitação para o desenvolvimento bélico da divina armada imperial e
178 O Divino Leviatã
do projeto Olho de Deus, o que tem a declarar, Príncipe Abel?
- Me faltam palavras para expressar esse momento, mas o que
posso falar é que toda essa situação é uma pantomima, uma patuscada!
Sinto também que a sua pergunta está viciada, pois não existe processo
formal, tão pouco uma condenação a minha pessoa, repudio essa pergun-
ta com toda a veemência da minha alma, se houve superfaturamento, não
foi da minha parte, não admito que o meu nome seja ventilado em atos
cometidos por terceiros, é um absurdo o que acontece nesse país. - Res-
pondeu Abel visivelmente alterado.
- Majestade! Permita-me a palavra, Sou o Carlos Munhoz do
Jornal do Alvorada, com essas denúncias, você acredita que o STR pode
considerar que o Reverendo Maximiliano criou uma máfia para destruir
reputações com o intuito que a vossa majestade assumisse o trono com
uma participação maior do clero? - Indagou o jornalista.
- Esse é um outro devaneio de minha irmã e das forças obscuras
que a manipulam. O reverendo é um homem devoto em salvar almas, in-
clusive faz um ótimo trabalho no submundo, dando esperanças aos con-
denados. É um absurdo pegarem uma conversa sem nenhum contexto,
conjecturarem sobre a minha moral e me demonizarem como se eu fosse
um psicopata, não aceito! - Rebateu.
- Príncipe Abel, você planejou o assassinato de Dom Rafael? -
Perguntou uma voz abafada na sabatina dos repórteres.
- Sua pergunta não merece resposta.
Abel simplesmente deu as costas aos repórteres e caminhou rapi-
damente para um carro preto e deixou as dependências do STR escoltado
por outros carros da segurança imperial.
Os jornalistas também foram em busca do meu pronunciamen-
to, mas a pedido do imperador, um forte esquema de segurança foi cria-
do, o prédio foi esvaziado e só assim deixei as dependências do STR.
O audacioso resgate
V
ejo três cartas de tarô dispostas num jardim de ro-
sas mortas... Um valete de ouros, a justiça e as bigas...
O que essas lâminas podem representar juntas? Quem é
essa menina que caminha sobre um tapete de pétalas apodrecidas?
As Cartas do destino
E
nquanto as partículas do meu corpo são novamente rea-
grupadas em minha alma através do cubo de Metatron, as
partes mais dolorosas de minhas recordações continuavam
a me atormentar.
Eu nunca fui de acreditar em destino, até o dia que conheci a pe-
quena Lúcia, as cartas do seu destino eram tristes, porém, mostram a
nobreza de uma pequenina que jamais fugiu de sua missão.
Lúcia era única, em seu semblante não existia o pesar de quem
estava prestes a partir.
A morte de Lucia
-A
s pessoas podem até fazer um mal juízo sobre as mi-
nhas reflexões nos registros históricos, mas confesso
que nunca fui afeita a pobreza... Minimalismos não
me atraem, aliás, tenho a crença pessoal que todos que adotam tal prática
como uma filosofia de vida, na verdade são tão materialistas quanto qual-
quer príncipe perdulário, tudo que o ego faz questão de mostrar de forma
exacerbada, é na verdade a carência daquilo que quer demonstrar.
O Gasômetro tinha o odor da miséria que nunca senti, as pa-
redes rústicas daquele quarto causavam-me agonia, tudo parecia
um grande museu a céu aberto de souvenires macabros dos anos 90.
Levantei-me da cama ainda com os trajes que usei no jardim da criação,
sai do quarto e logo deparei-me com Valéria, sentada sobre um pequeno
banco de madeira, ela me observava com um olhar apreensivo, em suas
expressões, evidências de uma noite mal dormida.
- Princesa, temo que não tenha sido uma boa ideia nos aliarmos a
Kadu e a sua resistência.
- E por que diz essas coisas na altura dos acontecimentos? - Per-
guntei. - Sabíamos que seria perigoso desde o início.
- O imperador enviou um ofício a todo o império sobre o nosso
desaparecimento e, como era esperado, eles associaram esse fato com a
fuga de Kadu da CIRB1, é questão de tempo eles invadirem esse lugar
e assassinarem toda essa gente. E isso não é o pior... O projeto de lei do
príncipe foi aprovado em seção extraordinária no STR a revogação da
cláusula de tolerância aos rebeldes que até aqui não comeram do fruto da
Ninrode para a mortificação de seus livres arbítrios, tudo isso ocorreu en-
quanto você repousava, os reis e os juízes das provinciais foram autoriza-
dos a executarem a todos que não comerem dos frutos. E por falar nisso,
desculpe-me invadir a sua privacidade, mas percebo que a senhora não
A lenda de
'
Santa Vitoria
C
omo nascem os mitos?
São as práticas narrativas sobre os fenômenos que não de-
finimos pela razão.
O milagre é a causa última da esperança, quando o poder da ação
humana não tem forças para interferir no destino, assim o divino se ma-
nifesta.
O mito é o grande berçário da filosofia, a forma de usarmos as
nossas sensibilidades, observar o mundo e atribuir aos deuses, os fenô-
menos naturais. Aos antigos santos foram atribuídos milagres, os seus
feitos romperam até mesmo a barreira da morte... O sacrifício... É o que
nos torna santos?
Pobre Lúcia... Um destino tão triste é um gesto tão nobre, quem
lembrará da pequenina cigana? Quem? As suas palavras ainda me tocam,
mesmo desconhecendo os seus reais significados. Um mito nasceu no
Gasômetro, aquelas pobres pessoas que assistiram o desfecho da triste
batalha contra o império, agora depositam as suas esperanças em mim.
Os seus olhos me seguem e a suas rezas tentam me alcançar, tor-
nei-me uma santa em meio a desolação e o desespero. Os povos que se
rebelaram contra o império, criaram um estranho sincretismo, onde os
oráculos das mais diversas religiões e sistemas mágicos, fundiram-se em
um único fim eudemônico, cuja padroeira era eu.
Primeiro Ato
O despertar do amor
A
s minhas lembranças finalmente alcançaram o nono mês
de gestação, sinto o meu corpo aquecido pelo arder das
brasas numa pequena fogueira que centralizava uma roda
de amigos, as pessoas dançavam e cantavam embriagadas pela noite, as
crianças chutavam uma bola de futebol sem grandes objetivos, Tião e
Montserrat faziam stand ups para entreter os populares, todos se diver-
tiam.
Kadu circulava no entorno da fogueira com um carrinho de
algodão-doce, oferecendo um pouco de alegria para aquelas pes-
soas. E eu estava por ali... Sentada sobre uma cadeira de praia, já não
havia em mim qualquer vestígio principesco, minha figura confun-
dia-se com a simplicidade de qualquer popular, e assim eu me sen-
tia feliz, enlaçada num vestido de pano com estampas floridas.
E o carrinho de Kadu chegou na sua última parada, trazia um
mísero algodão-doce.
- Açúcar cristal e um corante azul adicionados a uma máquina
girando no sentido horário. O milagre que está dentro de minhas possi-
bilidades. - Disse Kadu com um sorriso farto.
- É mesmo? Hum... Pode até ser um milagre fácil de realizar, mas
é o mais gostoso. - Retribui o sorriso e gentileza.
- São trinta pratas, moça. - Assim Kadu me cobrou, usando de
uma irreverência incomum a ele, estendendo-me um chapéu preto que
fortuitamente tomou de um cidadão que passava ao lado.
- Não tenho trocados miúdos, servem títulos da coroa?
- Nesse caso vou abrir uma exceção, estou com pena de ti, os títu-
los da coroa de nada valem aqui, tome de graça! Não morra de fome.
Ultimo Ato
^
O Genesis
O
que torna a vida humana um registro na existência?
As lembranças são arquivos quânticos na imensi-
dão do universo... Ainda assim cometemos a insanidade
de pensarmos na inexistência como uma possibilidade...
Abrisse-vos à! Buscais e achareis as lembranças do primeiro ao
último ato.
“Nasce em Petrópolis a descendente da antiga famí-
lia Versalhes de Bragança! Filha do mestre cervejeiro, que rene-
ga suas raízes imperiais e vive num bucólico sítio com sua es-
posa Camila e o seu filho Abel.” Foi capa da folha de Petrópolis.
“Morre a princesa do Brasil! O trágico desfecho da guerra do Gasômetro.”
Esse foi o título de capa do “Tribuna Paulistana”.
Deus através de linhas editoriais, anunciou a minha chegada e
partida do mundo. Eu vejo Deus contemplando a sua imagem nos espe-
lhos da existência, os infinitos reflexos converteram-se em almas.
O que Deus viu no espelho quando me criou?
- E a pergunta de Vitória ecoou... - Disse uma voz que soava como
relâmpagos.
- Quem ousa invadir a minha mente?
- Você foi tão longe... Não se contentou em ser uma deusa, agora
tenta ser a própria concepção de justiça e verdade? - Questionou a pode-
rosa voz.
Vitória interrompeu as suas lembranças e voltou para o plano terres-
tre, o cubo de Metatron ainda não havia agrupado todas as suas partículas.
-Essa voz não pertence ao Abel, quem é você? - Perguntou Vitória.
- O que Deus viu no espelho? Essa é a sua pergunta? Eu a observei
E
u dedico esse espaço para os meus queridos amigos e futu-
ros fãs do “Divino Leviatã”.
As minhas devidas gratidões aos que em verdade me ajuda-
ram e permanecem de coração.
É tanta gente...
Começo dedicando essa obra a um ser especial que dedicou a mim
os seus últimos dias: Ramisses, um simples vira-lata. Nos momentos mais
difíceis da minha vida, esteve comigo, dormindo em minha cama e ofere-
cendo a sua verdadeira amizade.
Nossas brincadeiras e o fim de uma solidão. A você dedico essa
história e qualquer outro sucesso que eu tenha em vida, que a sua exis-
tência fique registrada na história, que a sua imagem rompa os séculos,
amigo querido.
Os meus agradecimentos eternos a Cris Risoleu, que me acolheu
num momento difícil da minha vida, colocando-me em sua casa e com-
partilhando de sua vida comigo.
Soube me perdoar quando nos piores pensamentos, tirei conclu-
sões influenciadas por pessoas podres de espírito, que fique registrado a
minha admiração e faltas que tive com você. Quero sempre dar o melhor
de mim a você, seus filhos e o grande cara, Cláudio, seu marido e excelen-
te caráter.
Agradeço também a Charles Canato pela sua tolerância e o tempo
que dispôs a me aceitar em seu espaço.
Vanessa Baptista Bitencourt, uma pessoa de uma honestidade que
eu vi apenas nela, um modelo que eu inclusive quero seguir, uma amiza-
de que perdura desde 2008, gratidão por permanecer, sempre gostei de
você, um dia vamos comemorar um título nacional de expressão de nossa
Portuguesa de Desportos. A sua irmã, Priscilla Baptista Bitencourt, uma
240 O Divino Leviatã
pessoa excelente, educada e de boa comunicação. Sempre tive boas con-
versas, também está guardada em meu coração.
Ingrid “cara de cobra” sempre! Menina de uma beleza exuberante
e humilde, mãe do Leon, inteligente e uma verdadeira amiga.
Terra Grammont, amo fazer trocadilhos com o seu nome, uma
pessoa que assim como eu, busca a sua felicidade, uma amiga que aprendi
a gostar e quero levar para vida.
Alice del Sur! Uma morena misteriosa e cheia de magia em seu
sorriso. Nossas energias se encontraram, prefiro considerar assim. Gosto
muito de você.
Angélica Touch Vancini, me conhece desde pequena, uma pessoa
sempre solicita e essencialmente boa. Agradeço muito por permanecer na
minha vida.
Lisete! Lisete! Lisete! Evoco a sua presença com um brado! Pois
de tão bonita e elegante com seus cigarros sofisticados, só pode ser uma
aparição. Beijos querida! Permaneça! Quem é da minha gangue não tem
medo!
Eliz Magalhães, uma pessoa intuitiva ao máximo, se comunica
por códigos e imagens, muito simbólica e com enigmas dignos da esfin-
ge de “Édipo Rei” menina excelente, verdadeira, não faz linha e também
sempre muito bonita e elegante.
Fábio Assis, agradeço também por permanecer em minha vida e
ser o amigo excelente que é! Sofreu um bocado nos últimos anos e voltou
com tudo! Essencialmente bom e um pai dedicado aos seus filhos, um
autêntico aprendiz da vida.
Paula Shimene, te conheço a tão pouco tempo, mas!Tu merece
uma nota nesse meu momento importante, uma boa pessoa que merece
ser feliz. Não vou te dar salgadinho! Beijos querida.
Suelen Moraes que um dia pretendo conhecê-la pessoalmente,
pessoa do bem, assim como eu, uma Malévola na vida, temos uma bon-
dade incompreendida. Hehehe. Beijos Guria, que faça 50 graus nesse ve-
rão só porque você reclamou do calor.
Luiza Coppiters, pessoa engajada, quer fazer o bem e excelente
caráter. Vai ser ainda muito importante, as cartas dizem.
Por falar em cartas, Luh Neves, a cigana oblíqua, suas car-
tas de tarot e seus dilemas amorosos, sempre uma divertida conversa.