O narrador está sofrendo de ansiedade noturna e alucinações, sentindo-se observado pela lua cheia. Ele vê pontos luminosos na garagem que o assustam, mas percebe que eram ilusões. Então ouve uma voz calma e antiga dentro de si, dizendo que a mente humana sempre será escura o suficiente para que o mal possa habitar.
O narrador está sofrendo de ansiedade noturna e alucinações, sentindo-se observado pela lua cheia. Ele vê pontos luminosos na garagem que o assustam, mas percebe que eram ilusões. Então ouve uma voz calma e antiga dentro de si, dizendo que a mente humana sempre será escura o suficiente para que o mal possa habitar.
O narrador está sofrendo de ansiedade noturna e alucinações, sentindo-se observado pela lua cheia. Ele vê pontos luminosos na garagem que o assustam, mas percebe que eram ilusões. Então ouve uma voz calma e antiga dentro de si, dizendo que a mente humana sempre será escura o suficiente para que o mal possa habitar.
impede de dormir, não consigo mais me sentir seguro dentro ou fora de minha casa, no claro ou no escuro. Não importa onde seja, eu sempre sinto essa sensação. O formigamento em meu peito se assemelha às crises de ansiedade, mas não é o mesmo sentimento. Enquanto as crises me deixam eufórico, incapaz de discernir meus pensamentos, esse momento é de calmaria, uma calmaria inexplicavelmente racional. Tudo está em seu lugar e eu me convenço de que isso não passa da falta de um bom e velho cigarro. Me desentranho das cobertas e desato os nós de letargia que me prendem à cama. Passo pela cozinha escura, com suas portas de vidro que dão para a pequena escada de 3 degraus cuja responsabilidade é dividir o interno aconchegante da madrugada gelada, não em temperatura mas em sentimento. Começo a bolar meu cigarro, não sem antes perceber o céu vazio da noite sem estrelas da cidade, normalmente não se vê nada além do borrado tom de um azul quase negro que só o ar denso das metrópoles proporciona. Apesar do desconforto me sinto tranquilo, a única certeza que tenho é que aqui, na cidade, no império das máquinas, câmeras e tecnologias sem fim nada pode me perturbar. Estou cercado pela modernidade e os pesadelos antigos, baseados nas crendices ancestrais, estão enterrados sob um túmulo de piche e ferro do qual se erguem os prédios, cada vez mais volumosos, substituindo as selvas e terrenos desconhecidos por paralelepipedos formes e seguros, onde podemos repousar sem mais temer os predadores escondidos nas sombras, esperando pelo momento certo de se banquetear com nossas entranhas. O céu, porém, tinha algo de diferente do normal fundo monocromático, as nuvens, já presentes nesse dezembro nublado, estavam espalhadas regularmente e craqueladas, como rugas em um rosto cansado ou como o buraco que sobra no lugar dos barrancos que deslizam nas partes menos nobres, onde os prédios não ousam tocar, quando a chuva carregada pelas cicatrizes celestes desaguam. No meio das nuvens craqueladas e cinzentas, a lua cheia e enorme rompe a monotonia do cenário desolado com uma luz abundante, chamativa, que além de revelar o que se assemelha a um buraco por onde a claridade adentra, cria uma auréola luminosa que se estende até ser lentamente apagada pelo resto da paisagem morta sob minha cabeça. Essa lua parece me observar, me julgar, ela parece saber o que fiz e o porquê a calmaria me assusta. Como um olho, ela penetra minha alma com seu rosto enrugado e me obriga a olhar minha imagem em seu reflexo, o formigamento cresce, eu acendo o cigarro, a fumaça, mal cuspida pela minha trêmula boca, me coça os olhos por um instante e faz aquela luz mais incômoda do que já havia se mostrado, por um momento pendo a cabeça para baixo, deixando de mirar o céu, para olhar o chão de cimento, quase tão cinza quanto o cenário anterior. Mas não sem antes olhar por um instante mínimo para a garagem de meu pai, um ambiente escuro, tapado por telhas de amianto, que apesar dos furos e das provas científicas de que são prejudiciais à saúde, são eficazes em impedir que a luminosidade da lua e dos postes adentre naquele pedaço específico. No momento em que meus olhos passaram rapidamente pela garagem senti algo estranho, como se não fosse só a lua a me observar. Vi dois pequenos pontos luminosos com suas auréolas finas, devoradas pela escuridão. "Deve ser a imaginação movida pela calmaria, mente vazia é a oficina perfeita para o diabo afinal", porém por algum motivo eu não conseguia olhar novamente para aquele ponto, a minha cabeça se recusava a me obedecer, meu pescoço havia se congelado como se o instinto ancestral, amolecido pelos tempos de fartura pós industrial, tivesse naquele momento revivido. Meu peito queimava cada vez mais, cada vez mais forte era a sensação de que aquelas marcas antigas que carrego comigo estavam se reabrindo. Com o pescoço incapaz e paralisado era impossível não ver a região exata onde ela está, a marca do meu passado, aquilo que não quero olhar mas que mesmo coberta pelos tecidos de minha roupa sou capaz de ver. Sinto como se aqueles dois pontos estivessem se aproximando, por mais que eu não pudesse os ver, sinto sua presença, seus passos silenciosos e densos como essa noite, vindo até mim com uma aura nefasta que parece me sufocar, me sinto fraco, impotente, o cigarro cai de meus dedos trêmulos e num rompante de adrenalina e loucura, consegui superar meus instintos e fitei novamente o lugar perturbador onde nem a luz ousou entrar. Quando meus olhos se focaram percebi: não havia nada. Os pontos eram uma ilusão de minha criatividade. Abaixei-me e peguei novamente meu cigarro e ao acendê-lo, eu ouvi uma voz calma, jovial e ao mesmo tempo antiga, uma voz que me preencheu por inteiro como se me tirando de mim mesmo, me expulsando do controle de meu próprio corpo e antes de poder esboçar qualquer reação, meus olhos cheios d'água, e meu rosto, acredito, tão retorcido quanto as nuvens foram tomados por um calor súbito e o som estrondoso que violava o silêncio nas palavras calmas que Ele dizia: "por mais que haja luz, a mente dos Homens será sempre escura o suficiente para que eu possa habitar".