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Levinas: enigma e fenômeno

O discurso racional subordina a filosofia ao presente, pois só se pode propor aquilo que se vê,
aquilo que existe no momento proposto.
O presente é o único tempo que existe pois o passado e o futuro são imateriais, sendo assim
existe uma posição de privilégio do presente onde tudo é traduzido em memória (passado) ou
projeção (futuro).
O presente é certo e nele ocorre a manifestação dos fenômenos do mundo, o mundo
domesticado pelo ser.
A filosofia estuda tudo a partir do ser e é subordinada ao presente e fazendo com que o
mundo seja traduzido em presença ela subordina aquilo que é descoberto do passado ou do
futuro de forma que esses sejam subjugados à ordem do discurso. Pois caso um discurso não
se fundamente no fenômeno do presente ele é irracional ou insensato.
Porém, por vezes temos que lidar com presenças que se fazem presentes em ausência, por
exemplo Deus que nunca se mostra para seus fiéis.
O próprio se mostrar seria o fim da transcendência, no momento em que Deus se faz presente
ele deixa de ser um divino inalcançável e se faz persona presente sendo assim sua presença
aniquila ele próprio e para que Deus se faça presente ele deve fazê-lo não o fazendo.
Ideias como essas de um conceito supremo trazem consigo um vestígio de algo que não é o
ser perfeito mas sim um para além do ser, uma pista de um momento atemporal,
transcendente.
Mas tentar analisar esse fator transcendente em discurso seria já traduzi-lo no presente e
portanto torná-lo subjugado a ordem. Será que não existe uma transcendência que não se
torne ordenada no momento que recebe significado, assim, deixando de significar?
Depende da possibilidade de uma transcendência de não assumir o mesmo curso do discurso
que a traduz e de não se reduzir a sua ordem. Isso só seria possível com uma significação de
uma transcendência que indica uma desordem irredutível, se fosse possível descrever uma
desordem completa a transcendência poderia ser captada sem que seu significado se anulasse.

O chamamento à ordem
Como seria possível existir uma desordem que foge da compreensão do Eu?
A presença do Eu e do Outro no fenômeno do encontro configuram uma ordem. Quando o
outro provoca o eu a ordem é quebrada, mas rapidamente surge uma nova formulação de tal
ordem, que muda para se manter e assim vencer os problemas que a ameaçam. A ciência é
um exemplo claro disso, as normas do passado junto das provocações do presente ditam as
normas do futuro que serão postas para englobar o novo como parte da estrutura já
diagramada.
A desordem quando não é absoluta funciona como o choque de duas ordens que geram uma
nova, mais universal e forte. Por exemplo, quando um colega de trabalho interrompe meu
raciocínio mas logo me diz seus motivos e com um diálogo nós encontramos um meio de
conciliar minha concentração e às necessidades que ele me roga, estabelecemos por meio do
atrito de nossas ordens uma que é menos frágil e mais universal.
A ruptura da ordem passa a integrá-la, esse tipo de desordem é precursora da construção de
uma totalidade mais forte e não é o foco de nossos apontamentos.
Aquilo que rompia se justifica, se contesta, assim daremos atenção não ao que é aglutinado,
mas ao que aglutina: a ordem.
Existe alguma falha que não surge de uma ordem mal estruturada ou caminha para uma mais
bem feita que seja capaz de sobrepujar a ordem? Se não existisse então tudo que é real seria
um processo racional.
Se não existisse então nenhum Outrem teria sido capaz de escapar da ordem, mas o contato
com o Outro indica que existe o contato que é capaz de fugir a tradução, como ele o faz? O
momento do contato reflete a um passado inacessível, um passado que não é traduzido em
memória pois não se faz presente, ele se faz ausente. É um passado que existe no vestígio de
sua in-presença que deixa uma marca, não uma marca ao se colocar mas uma ao se retirar que
se mantém no esquecimento que só pode ser percebido pela falta de algo que liga aquilo que
foi ao presente.
O vestígio que faz presente a ausência da desordem é a face do outro nua, a face que se
exprime derrotada e que implora por misericórdia sem dizer nada. Uma face que não faz parte
da ordem e que não é retomada pelo contexto quebrado pois é intraduzível, como um
morador de rua que do nada te toca na rua ou um disco voador que paira sobre sua casa.
(Somente o rosto do mais fraco é a face do Outro?)
O vestígio não é apenas o signo da falta, é a falta em si, como o buraco é a falta de matéria e
não apenas o signo que representa sua falta, o vestígio é o buraco que a perda irrecuperável
da presença do outro deixa.
Apesar da desordem romper totalmente com a ordem ela o faz sem destruir a ordem, se assim
quiser o Eu ordenador, pois o vestígio aparece apenas por um instante, é um buraco que
existe e não existe, é como se eu ouvisse meu nome ser chamado e ao olhar em volta não há
ninguém, não há ninguém mas fui chamado, o chamado por mim é o vestígio que se mantém
num passado que já não posso mais acessar, um vestígio que aparece apenas pela falta de
algo, no caso do proclamador do chamado, e que dentro de poucos segundos posso ignorar e
seguir meu caminho sem mais pensar em quem chamou meu nome. O Outro se apresenta
dessa forma, rompendo a ordem e retornando a ela em uma velocidade incapturável, o Outro
se revela sem revelar, por meio da ausência e sem dar tempo do Eu de capturá-lo. A essa
forma do outro de aparecer sempre de forma fugaz e oblíqua damos o nome de Enigma.

Uma nova modalidade


O essencial está em como o sentido que está para além do sentido se insere na expressão da
linguagem.
O enigma se põe se retirando, no momento que surge desaparece e não revela nada de si, pois
se o fizesse seria traduzido pelo Eu, o enigma cria um local onde pode assumir um papel de
verdade sem que seja subordinado ao presente e a racionalidade. Isso só é possível pelo
desencanto do mundo pois só em um cenário que determina a ordem pode surgir aquilo que a
quebra.
A desordem que não gera uma nova ordem e que não é convertida em ordem em algum
momento é aquela que sai da ordem antes de chegar nela, ela surpreende o presente frágil e
logo se recolhe, ataca recuando.

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