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Vergílio Ferreira

Aparição

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Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão
entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa
jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro
de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua
fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias
solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza.
Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita.
Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa
enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua
sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a
noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe
desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol
ilude e reconforta. Esta cadeira e que me sento, a mesa, o cinzeiro de
vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos.
Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece
na sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas
vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma
palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do
que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões
de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam,
se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já
sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois
tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo
que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada
hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à
nossa face.
A mancha da lua fosforesce como o vapor de uma lenda. Um bafo
quente sobe dessa água, sagra-me de silêncio como um dedo na fronte. E

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outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim
a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é
difícil, miraculoso, pensá-lo.
Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela
preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em
evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de
que ilumino o mundo, de que há um fora que me vem de dentro, me
implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio
que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque
ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me
queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em
minhas mãos, revê-la nas horas do esquecimento, foge-me como fumo,
deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo... E, todavia,
sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha
condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo
- da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência
ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu
esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha
presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de
mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são
uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a
minha morte é o nada de tudo. Como é possível. Conheço-me o deus que
recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos
sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções,
descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e
inverosímil. E este mundo completo, amealhado com suor, com o sangue
que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada
absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é

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quase estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é
um milagre instantâneo.
A lua subiu ao céu quente, a sua água escorre-me agora pelo corpo.
Lavo nela as minhas mãos e é como se me purificasse num tempo anterior
à vida, num luminoso halo de coisas por nascerem. Súbito, neste silêncio
mineral, a porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo
franzino, esfuma-se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os pés ao
luar sem dizer nada: ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na
aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse
pronunciada a primeira palavra. Tomo as suas mãos nas minhas e no
deslumbramento da noite abre se, angustiada, a flor da comunhão...

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I

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação


de Évora. Nos membros espessos, no crânio embrutecido, trago ainda o
peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeira-se de mim, ergue
a pala do boné:
- É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a
desembarcar.
- Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
- Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu.
Com passinhos curtos, anda dobrado como se tivesse dores de bexiga.
A cara e os olhos são vermelhos, ensopados de sangue. Carrega tudo aos
ombros com uma complicação de cordéis, promete-me uma pensão muito
boa, mesmo na Praça, que é já ali, e convida-me a segui-lo com os seus
olhos lastimosos de aguardente.
Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento
leve da planície, fresco de orvalhos. À minha frente, o moço de fretes,
agachado sobre si, vai dançando um estranho ritmo de arame com os seus
passos saltitados. Mal o olho.
Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me
alaga, me submerge. A Praça ainda é longe e não já ali, como me garantira
o moço. Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte,
que eu acabo de fazer, tornam-me estranha esta cidade branca,
separam-ma dos meus olhos vazios. Venho de luto, o meu pai morreu.
Que têm que fazer, em face da minha dor, da minha alucinação, estas
árvores matinais da avenida que percorro, a branca aparição desta

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cidade-ermida?
- Estamos quase, senhor engenheiro.
Pelo empedrado das ruas, carroças estremecem com um estrépito de
ferragens, cruzam-se diante de mim as fachadas dos prédios numa
alucinação de luz, uma vaga de aridez abre-me à imensidão da planície.
Sobre o casario branco vou descobrindo aqui e além manchas negras
de velhos templos, e ao alto, disparadas ao céu, as torres da Sé.
Subitamente, recordo-me do doutor Moura. Fora condiscípulo de meu
pai, passara mesmo, há algum tempo, pela nossa casa da Beira, meu pai
escrevera-lhe dias antes de morrer. Eu tinha de visitá-lo, mas não antes de
descansar, de me refazer, de achar dentro de mim a pessoa conveniente
para visitas. Com os seus passinhos travados, o moço de fretes anda mais
depressa do que eu. Pára agora, carregado de bagagem, olha para trás
para que eu não o esqueça. Mas a cidade é fácil nesta rua principal: o que
se perde nela não são os passos mas apenas, quando muito, o olhar. Com
efeito, nas súbitas arcadas que levam à Praça, abre-se-me um obscuro
labirinto onde julgo repercurtirem-se, como ecos de uma gruta, os ecos do
tempo e da morte.
- Cá estamos, senhor engenheiro.
Sobe-se por uma escada íngreme e estreita, selada de frios muros como
os de uma prisão. No primeiro andar há uma tabuleta de um médico
dentista. No segundo andar, um velho abre uma porta com o cabaz das
compras. A pensão é no terceiro. Quando cheguei ao alto, já o moço
tocava a campainha. Um homem abriu enfim, um homem alto ,
corpulento, com uns óculos sujos enterrados no nariz.
- Senhor Machado - disse o moço -, aqui o senhor engenheiro é
professor do Liceu. Trouxe-o para aqui.
O Sr. Machado olhou-me, cumprimentou-me e por fim concentrou-se.

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Toda a sua massa varonil teve um toque de retraimento, como um arrepio
de vergonha. Dava as mãos à frente do peito, com timidez , cerrava os
olhos castos com uma compunção beata:
- Eu, senhor doutor, para lhe ser franco, aceitar professores do Liceu,
hoje tenho muitas dúvidas...
Falava devagar, centrado de virtude.
- Muito bem - disse eu. - Procuro outra pensão.
O Sr. Machado, porém, ergueu logo a mão alarmado, de cotovelo
colado ao tronco, abanou a cabeça de olhos cansados: Não, não.
- O senhor doutor não me entendeu. O que eu queria dizer era que em
minha casa exijo respeito. A minha casa é uma casa muito séria. Ora aqui
há tempos tive aí um professor... Ó senhor doutor... Viriha aí uma
senhora...
Voltou-se para o moço:
- De que estás à espera, Manuel?
Paguei ao moço, o moço ergueu a pala do boné:
- Quando precisar, senhor engenheiro. É só perguntar pelo Manuel
Pateta.
- ... Pois, senhor doutor - continuou Machado -, até... até... Meu Deus!
Uma vez ia eu no corredor...
Aplaquei o homem uma vez mais; eu estava tão cansado, queria enfim
estirar-me, dormir talvez um pouco. O quarto, largo e branco, dava para
o terraço, onde fios de roupa brilhavam ao sol; e um gralhar de galinhas
que se ergueu não sei donde lembrou-me subitamente os grandes
silêncios da aldeia. Cerrei as portas da janela e estendi-me sobre a cama à
procura do sono. Mas os olhos ardiam-me com uma espertina viva e só
pude recordar.
Eis que se me levanta de novo a imagem de meu pai, caído de bruços

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sobre a mesa, ao jantar, dias antes de eu partir. Todos os anos, pela
vindima, meus pais queriam ali os três filhos como pelo Natal. O Tomás
vivia perto, tinha a sua lavoura, mas não deixava nunca de comparecer ao
jantar. Mas o Evaristo vivia na Covilhã. E agora, que escrevo esta história
à distância de alguns anos, exactamente neste mesmo casarão em que
tudo se passou, relembro vivamente o estrépito da sua chegada nessa
manhã de Setembro.
Ouço de novo no meu quarto a buzina metálica do seu carro, berrando
para todo o pátio com espalhafato.
Um ar de arraial invade toda a casa. Há portas e janelas que se abrem
bruscamente e enfim a voz de Evaristo e de Júlia sacodem tudo com a sua
alegria mecânica, automática, como um bater de êmbolos e bielas: “Eh,
pessoal!” Depois, num alarme de berros já na sala de entrada:
- O monge? Onde é que está o monge?
Monge sou eu. Vou ao encontro de todo aquele estardalhaço e apanho
uma pancadaria de abraços do meu irmão e da minha cunhada. Julgam
do seu dever serem alegres e são-no com alarido, para a família, para os
criados. Júlia empurra-me o filho, que tem o meu nome e é uma criança
triste e amarelenta. Depois põem-se a contar toda a viagem:
- saímos cedo, não, temos de passar o dia todo com os pais.
- tu não querias, tu só querias vir depois do almoço.
- cala-te para aí, não digas asneiras, eu sempre disse: vamos cedo.
- eram nove horas já estávamos na Guarda, este emplastro (o filho),
para o tirar da cama...
- e então por cá?
- então, monge, conta-nos coisas -, falavam atropelados,
acotovelavam-se, queriam saber que tal a colheita desse ano. Júlia era
gorda, tendendo para a elefantíase, e em breve se estafou de falatar,

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suada e vermelha. Mas o Evaristo, magro e alto, articulado como um
boneco de lata, parecia dançar um infindável charleston. Fumava cigarros
miudinhos, cantarolava, irrequieto, dizia a meu pai (que era médico e
viera do consultório):
- Então, velhote...
Meu pai sorria, minha mãe sorria contagiada. Desde pequeno que
Evaristo tinha aquele modo fácil de estar bem-disposto e essa era decerto
mais uma razão, para a minha mãe o preferir. Porque havia outra, talvez
mais forte, que era a de meu irmão ser o filho mais novo e lhe recordar
por isso melhor a maternidade. Aliás, Evaristo nem sempre era alegre.
Parecia habitá-lo uma pessoa não única ou coordenada, mas feita das
sucessivas aparências de cada circunstância. Ria ou chorava com uma
facilidade incrível, era cruel ou amável, egoísta ou generoso.
Mas esta mesma volubilidade impunha-o à estima de muitos que
conviviam com ele, por ser imediata, impudica e portanto corajosa, com a
sedução de todo o acto de coragem, para o bem ou para o mal. Também
este modo repentista de ser indicava aos outros, por vezes, o que deviam
sentir. E eles ficavam gratos por isso. Já o sogro (que era dono de uma
fábrica na Covilhã) não lhe apreciava o feitio, pouco grave para a
seriedade dos negócios.
Tomás veio pela tarde. Veio só, a cavalo, para estar um pouco
connosco, regressaria logo depois: Isaura não poderia abandonar ou
trazer a criançada.
Minha mãe protestou:
- Olha! Dormíeis cá todos. Fazia-lhes cá as caminhas.
- É uma trabalheira - protestou meu irmão.
- Traz, traz a ranchada - clamavam Júlia e Evaristo.
E assim se fez. Tomás voltou à aldeia (que ficava a uns dez

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quilómetros da nossa) e algum tempo depois aparecia com uma
extraordinária carrada de gente.
Estava uma tarde calma. Toda a massa da montanha, erguida em
frente da nossa casa, se dourava ao sol do Outono. Do pátio subia o
aroma quente dos tonéis lavados, do mosto que uma dorna trazia do
lagar. Meu pai visivelmente preferia o Tomás , talvez por ser o mais velho
e o mais sensato. Tomás amava o campo, a lida agrícola, e a
imagem-síntese que dele tenho desde sempre é a de um lavrador ,
cheirando à terra, ajudando à manobra da descarga do milho para a
tulha, assistindo à lavagem dos tonéis, à pesagem dos carros de lenha, à
tira das batatas nas tardes quentes de Agosto, à fabricação do azeite pelas
noites frias de Dezembro.
Relembro. Uma grande mesa oval resplandecente de brancura, cristais,
reflexos de louças, dois grandes candeeiros de globos pálidos, e fora,
pelos espaços da noite nua, uma memória grande de paz. Um longo
abraço, quente de ternura, sufoca-nos a todos na procura de um refúgio,
de uma alegria perdida quando? onde? o sonho não é de nunca. O que é
vivo, o que é real é aquela ceia vulgar, com uma sopa, vários pratos,
doces e uma necessidade de preencher os espaços de silêncio com o que
há de único na hora e não sabemos e nos foge. Sobre esse vazio enorme,
para a comoção e o alarme, o meu irmão Evaristo fala dos seus negócios,
200 contos, 500 contos, a casa Varela, em Lisboa, 400 contos de
encomendas, a de Crispim & C.á, do Porto, a guerra acabara, agora era
quanto pudessem produzir. Evaristo trouxera um livro de facturas,
queria mostrar, Júlia falatava, gorda e vermelha, contava anedotas com
pimenta, e a paz?, e a alegria do nosso encontro com a memória? Depois
falou o Tomás. Mas o que ele contava tinha agora mais verdade - era a
terra e o vinho desse ano, as sementeiras e as próximas manhãs de geada

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e de sol e a paz solene da fecundação. As suas mãos grossas e escuras
como fragas, quase não faziam gestos, os seus olhos desciam sobre si,
sobre Isaura e os filhos, como se receasse perder-se de uma comunidade
de raízes, dessa plenitude fértil onde tudo estava certo: a harmonia da
vida e da morte. Por fim, Evaristo e Júlia interrogaram-me sobre o meu
futuro no liceu. Lembravam episódios do seu tempo de estudantes com o
prazer póstumo de poderem agora confraternizar com um professor, de
poderem como que vingar-se dos seus terrores de outrora. Meu pai mal
falava. Mas ouvia-nos atento, com a tolerância de sempre. E era como se
desejasse que a vida se revelasse espontânea através de nós, dos nossos
sonhos, das nossas virtudes e misérias. A certa altura, porém, ergueu a
cabeça branca, inclinou-a um pouco para trás e para o lado, para lhe
quebrar a altivez - mas não a decisão - e disse:
- Bem. Estamos aqui todos reunidos uma vez mais. Estás tu e o Tomás
e o Evaristo. E nós e a Júlia e a Isaura. E estão os pequenos. Para o Natal
queremo-los cá outra vez. É bom estarmos aqui todos. A casa é grande de
mais para nós...
Voltou-se para minha mãe:
- Não é verdade, Suse?
- Não me chames Suse.
- Não é verdade, Susana?
Não sei que pacto se estabelece entre a pessoa que somos e o nome que
nos deram: o nome, como o corpo, é nós também. Não imagino com outro
nome nem o Tomás, nem o Evaristo, nem o Álvaro, nem o Alberto. O
Álvaro é o meu pai e o Alberto sou eu. Não sei se era por isso que minha
mãe não gostou nunca de que meu pai a chamasse Suse. Mas o meu pai
teimava sempre, talvez por isso também: para criar para si isso que era
ela, para a moldar nisso ao seu poder - no nome.

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Depois de um silêncio, meu pai perguntou:
- Está a correr mal o discurso, não está?
Minha mãe não respondeu, fitando-o apenas com esse seu olhar
extraordinário de mansidão e amargura. E foi Evaristo quem falou:
- Não senhor. Vais muito bem. Estamos todos encantados de te ouvir.
Diz lá o resto.
E ele disse:
- Bom. Agora, que vocês vieram, já é mais fácil recomeçar. A vossa
mãe ainda não se resignou com o terdes crescido. Quanto a mim, penso
que...
Mas subitamente meu pai teve um arranco, esboçou o gesto de apertar
o coração e caiu a todo o peso sobre a mesa. Um prato saltou, estilha-
çando-se no chão, um copo tombou, derramando o vinho na toalha.
Fulminados, não nos movemos. Até que, aturdidos de pânico, nos
levantámos todos em tropel, correndo para meu pai. Erguemos-lhe o
busto, a cabeça branca tombava-lhe para o peito, os braços pendiam-lhe
inertes.
- Está morto!
Quem foi que gritou? Está morto, está morto! Júlia dava gritos
espavoridos, as crianças choravam com alarido, minha mãe abraçava-se a
meu pai, tacteando-lhe a face, as mãos, o peito, intimando-o a viver,
ordenando-me, iluminada, que fosse chamar o médico. Fui à vila com o
Tomás, o médico veio, meu pai dormia sereno sobre a cama, onde os
criados o tinham já estendido. Quando enfim foi possível acomodar cada
um na sua dor, depois de Evaristo, que desmaiara, esgotar os seus berros,
entrei sozinho no meu quarto, abri uma janela para a noite. Uma grande
lua solene, suspensa sobre a aldeia, banhava toda a massa da montanha.

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II

Quero tentar dormir. Toco a campainha reclamando pelo Sr. Machado


e um banho que me serene. O Sr. Machado consente, mas com uma
pequena restrição:
- Ó senhor doutor. Eu quero prevenir já o senhor doutor de que em
minha casa um banho é um banho, quero dizer, é para uma pessoa se
lavar. Porque eu tive cá um hóspede, ó senhor doutor, aquilo eram umas
cantorias, toda a manhã a cantar e a encher tudo de água.
Cansado, prometi ao homem um banho rápido. Sim, sem música.
- Que as coisas querem-se claras logo no princípio.
- Decerto, decerto.
- Tive uma vez aí outro hóspede...
- Onde é a casa de banho, senhor Machado?
- É ali, senhor doutor. É ali. Mas há-de sempre fazer-me o favor de
esperar um quarto de hora para encher a banheira.
Lavei-me enfim, mudei de roupa, saí para o Liceu, com uma
tranquilidade nova. A cidade resplandecia a um sol familiar, branca,
enredada de ruas como de velhas ciladas, semeada de ruínas, de arcos
partidos, nichos de santos das orações de outras eras , janelas góticas,
como olhares embiocados.
Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos
sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis! Escrevo à luz mortal
deste silêncio lunar, batido pelas vozes do vento, num casarão vazio.
Habita-me o espaço e a desolação. E é como se aqui ouvisse ainda a
tragédia da planície nos teus corais de camponeses. Subo a rua que leva à
Sé, viro ao largo do Templo de Diana. E nas colunas solitárias ouço como

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o murmúrio antigo de uma floresta imóvel. O zimbório da Sé brilha,
dourado ao sol matinal. Fico a olhá-lo longo tempo, parado sob um arco
que se lança sobre a rua, suspenso de silêncio e de memória. Depois as
ruas descem apressadas, oblíquas a velhos medos, até outras ruas
obscuras, onde me perco. E finalmente descubro o edifício do Liceu.
Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto
casarão, tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença
alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma
estranha face intocável e solitária. Mas os elos de ligação entre os factos
que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem só
audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou,
os ecos angustiantes desses factos em si - padrões de uma viagem que já
mal sei.
Eis-me , pois, em face do Liceu e da minha estrada final. Não escolhi a
profissão: de algum modo saíra-me. Nesta sala em que escrevo, meu pai
levanta-se de outrora , faz-me sentar aqui, a esta mesa, passeia em
diagonal. Pára enfim na minha frente, pergunta-me, fitando-me:
- Que curso queres seguir?
Tinha de optar já, no sexto ano do liceu, pelo de Letras ou de Ciências.
Mas o interesse profundo de um e de outro como podia eu sabê-lo? A
verdade de um curso não está no que aí se aprende mas no que disso
sobeja: o halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens.
Assim meu pai, que era médico, estava certo com a sua profissão, como o
meu irmão Tomás estaria com o seu curso de Agronomia, como o meu
irmão Evaristo com as suas sucessivas reprovações no quinto ano.
- Penso - disse meu pai - que te darás melhor em Letras.
Decerto, decerto: eu nunca tivera saúde, a vida de professor era
tranquila. Porque eu sonhara sempre, talvez por isso, com uma farda

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militar e uma vida romanesca. Meu pai corrigiu:
- Não é só isso. Há mais razões.
Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a invenção do indizível e o
meu verso clandestino que a cantava. Havia a minha dedicação pela
velha tia Dulce e pelo seu velho álbum, de que depois falarei.
Havia enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta
de nós próprios e que eu também fizera um dia a meu pai:
- Quem sou eu?
Era uma tarde de Verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu
olhava a água, absorto.
- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado: - tu és meu filho, um
homem, um ser vivo que pensa, que vive e que há-de morrer como todo o
ser vivo.
- Mas eu, eu o que é que sou?
Meu pai optou por contar-me a história da evolução da vida. Mas eu,
que a acredito hoje como exacta, sentia, como sinto, que alguma coisa
ficara por explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me habita,
essa presença obscura e virulenta que me aparecera, como também
contarei, quando a vi fitar-me do espelho.
O Liceu estava deserto, as aulas começariam daí a dias, agora haveria
apenas os exames da segunda época. E jamais eu esqueceria essa aparição
do Liceu, como a de toda a cidade, tão estranha. Templo de Diana. Só
nessa noite o vi bem, nessa noite de Setembro, lavado de uma grande lua
- raios imóveis de uma oração mutilada, silenciosa imagem do arrepio
dos séculos... Repetia-se no Liceu a Universidade de Coimbra como eu a
ia guardando para sempre. Mas era como se o tempo habitasse os
claustros de mais longe, talvez pelo silêncio dessa manhã despovoada,
talvez pela imensidão da planície, que lhe dava um ar de ruína. Um

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empregado escuro olhou-me vagarosamente, longo bigode caído, olhos
redondos de pasmo como os de um retrato egípcio. Adiantei a minha
identidade, o homem atravessou uma sala para me anunciar ao reitor.
Mas o reitor não estava: pela porta entreaberta vi apenas um grande cão
perdigueiro que adormecia o seu tédio sobre uma esteira. A presença do
cão dava ao empregado a certeza de que o reitor já viera. Apareceria
portanto dentro em pouco. E eu saí de novo para o claustro. Havia no
centro um jardim tratado, em cujos canteiros verdes morriam as últimas
rosas de Verão. Sobre um pequeno lago erguia-se uma taça de mármore
onde vinham pombos beber. Até que, para o silêncio de uma porta à
entrada, ouvi uma forte descarga de água e um homem alto apareceu.
Segui-o com os olhos, convencido de que era enfim o reitor.
E, com efeito, o homem alto e vagaroso abriu uma porta secreta e
entrou no edifício. Fui de novo à secretaria e o empregado, sem uma
palavra, penetrou na reitoria para me anunciar. Mas eu já estava ali à
porta à espera de um aviso.
- Que faça o favor de entrar - ouvi de dentro.
Entrei, cumprimentei, disse o meu nome:
- Alberto Soares.
- Doutor Alberto Soares. O novo professor do primeiro grupo.
Professor efectivo. Em que Liceu esteve este ano? Mas sente-se Tem aí
essa cadeira.
Sentei-me. Tinha feito apenas o serviço de exames desse ano. Em
Coimbra.
- É portanto o primeiro liceu em que ensino - acrescentei.
De que nadas a vida se sustenta! O necessário, sim, o necessário é que
o futuro os habite mesmo em ilusão. Boa noite, reitor. Falo-te daqui da
montanha, ouvindo os cepos a estalar na chaminé, ouvindo as vagas do

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vento. Nada soube de ti, amigo. Nunca. Mas dos teus pecados ou
virtudes, o que me relembra agora é essa amável perfeição de uma face
cansada de quem esgotou a vida e essa boa tolerância para quem a estava
anunciando. Porque eu tinha projectos tão ingénuos. Onde se calara a voz
da minha gravidade? Subitamente, com efeito, pus-me a falar de coisas
extraordinárias a realizar, excitado no meu entusiasmo de principiante.
Exercícios, redacções, técnicas modernas de pedagogia, leituras de
modernos escritores, cultura, cultura. Também disse, é verdade, como era
necessário aprender a distinguir um fado de uma sinfonia, um Picasso de
um calendário. Bons deuses! E como tudo isso me foi perfeito na manhã
de sol do jardim, na face grave do homem, céus, na minha profunda
solidão! O reitor ouvia-me do lado de lá do seu cansaço e parecia
animar-se um pouco à passagem da minha juvenilidade.
E dizia na sua voz patuda de catarro:
- Sim... Sim...
Baixava os olhos, batia um lápis na mesa.
Depois tocou a campainha e o empregado voltou a aparecer:
- Deixe ver o horário e as cadernetas do senhor doutor Alberto Soares.
Dia novo. Belo dia de Outono cheio de memórias de Verão. Tinha o
corpo sovado de insónia e do comboio, os olhos ardidos de espertina, mas
sentia-me bem, já na rua, com os meus papéis profissionais na algibeira.
Olho a planície do alto da rampa e sinto-me invadido dessa plenitude de
quem olha o mar do alto de uma falésia.
E dois dias depois começavam os exames da segunda época. São meia
dúzia os alunos que essa manhã suam as entranhas. Há uma guerra de
Tróia a decidir a golpes de dicionário. Eu assisto, ainda comovido.
Fumo ao longo da sala, abro enfim uma janela para o espaço da
planície, crestada, abandonada ao sol.

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Passa ao longe o assobio de um comboio de crianças, um carro desliza
pela fita negra de uma estrada. O tempo arrefecera bruscamente. E um sol
triste pousa ao de leve nas coisas, um vento inesperado sopra de vez em
quando, revolve no chão as folhas secas das árvores. Nos fios eléctricos
que passam diante das janelas agrupam-se cachos de andorinhas que
meditam na sua longa migração. Estremecem no baloiço, aos sopros do
vento, de penas eriçadas, olhando ao longe com melancolia.
Subitamente, porém, a porta abriu-se e o vasto reitor entrou. Trazia no
seu sorriso belfo e infantil uma pequena notícia para me dar:
- O doutor Moura telefonou-me a perguntar por si. Quer saber onde é
que o pode encontrar.

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III

Mas não foi fácil encontrarmo-nos. Eu próprio lhe telefonei daí a


pouco e acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada,
sem que Moura se lembrasse de que era uma terça-feira, ou seja, dia de
mercado. Com efeito, ao entrar no café, após o almoço, tive a surpresa de
ver aquele vasto túnel apinhado de gente. O corredor atravancava-se de
negociantes, porque era ali, entre bebidas, que se realizava o mercado da
semana. A terça-feira era dia de porcos, como soube mais tarde que lhe
chamavam. E, por isso, quando recordo esses dias distantes, a imagem
que deles tenho é a de um ventre glorioso digerindo poderosamente,
preenchendo compactamente todo o espaço do café... Achei a custo um
lugar a um canto, à esquerda de quem entra e onde viria a instalar-me
para sempre. Em mesas postas para o almoço, forasteiros mastigavam; e
dir-se-iam eles tão naturalmente feitos para isso, que mesmo sem
mastigarem me pareciam mastigar; como certos carros aerodinâmicos,
mesmo parados, parecem largados a grandes velocidades... Por entre a
vozearia, a fumarada e o odor a corpos, tento localizar o doutor Moura
em quem tenha o olhar inquieto e procure também como eu. Canso-me
enfim e para ali fico, abandonado a cigarros e a olhos vãos.
Decerto o encontro falhara. Meu pai recomendara-me o Moura como
um apoio no deserto. E sei que lhe escrevera. Tinham sido colegas em
Coimbra, tinham ambos construído aí um passado, sobretudo através de
uma discreta boémia - essa que, por ser discreta, pode melhor depois
preencher uma memória. Meu pai contara-me que o homem tinha uma
bela voz de tenor e coadjuvava os amigos com serenatas nos flirts de
ocasião. Bato um novo cigarro, espero ainda. E de súbito vejo vir até perto

19
de mim um sujeito gordo, baixo, ensacado, de olhar inquieto pelas mesas.
Ergo-me, vou até ele. Fitámo-nos ambos um momento até acharmos o
nosso traço de união; e foi ele quem primeiro o descobriu:
- É o doutor Alberto Soares? Ora viva, viva. Então que tal de viagem?
Onde está instalado? Ora vamo-nos sentar um pouco. Isto hoje é mau dia,
mas nem me lembrei.
E sentámo-nos. Moura pediu o seu café e, talvez por reparar no meu
fato preto, evocou enfim o meu pai. Contei-lhe o desastre súbito da sua
morte (que ele soubera pelos jornais), mas era evidente que Moura se não
sentia muito impressionado. Tinha a sua alegria espontânea, firmada não
sei em quê – como aliás nunca soube. Depois falou da minha aldeia, da
nossa casa, e ela foi verdade mesmo ali, naquele ar grosso de fumo, de
algazarra, de notas de conto esfolhadas pelas mesas de negócio.
- Passámos lá há dois anos. Não: há três.
- Eu estava para fora.
- Eu sei. O Álvaro, o seu pai, disse-me. Mas a casa, a casa.
Extraordinária. Muito antiga, não é?
Velha casa. E eu sendo, aparecendo, criando-me através de ti e de
mim. Muito antiga? Havia uma data que eu descobrira no sobrado: 1761
ou 1767. Algum velho mineiro a trouxera do Brasil. Um vasto jardim em
frente, com um grande alpendre ao lado, um pinhal descendo oposto até
à ribeira, e adiante a montanha.
- Vai-lhe custar a adaptar-se - disse Moura. - Isto aqui é muito
diferente. Mas note: também tem a sua beleza. Quando eu vim foi o
mesmo. Porque eu não sou daqui. Mas casei em Évora e por cá fiquei. A
mim diziam-me: O que custa são os primeiros dez anos.
- Espero ir para o ano para Lisboa.
- Eu sei, quero dizer, calculo. O senhor não é um desconhecido. É

20
muito falado lá em casa. A minha Sofia, que também faz versos...
Sofia. à luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no
teu olhar ácido de pecado...
Domingos de Primavera pelos campos, noites quentes de Verão no
Alto de São Bento, a planície banhada de uma lua enorme. E tu voltada
para o céu, cantando, cantando: Ai... Ai, ai, ai, ai Ouço nas vísceras o teu
canto ardente, iluminado de loucura. Os céus estremeciam à anunciação
da tua divindade. Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão jovem tinham
o mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue.
Canta! Que mais há na tua vida que o teu canto, a angústia do teu grito
contra os céus desabitados?...
- ...Também faz versos? - perguntei por fim.
- A minha Sofia? Se ela tivesse tanto jeito para o latim como tem para
isso...
- Latim?
- Dois anos reprovada na admissão a Direito, veja o meu amigo. Dois
anos. E, se calhar, vai-se ao ar também o terceiro.
Mas um moço de face redonda, um começo de calvície, um sorriso
cortado à navalha, de orelha a orelha, aproximou-se de nós, poisou a mão
no ombro do Dr. Moura:
- O Chico está melhor. Passei agora lá por casa.
- Ah, sim? Bom, então não preciso de ir lá já.
- Mas passe por lá logo. Ele diz que se sente melhor. E já fala outra vez
em políticas e em razão e em cultura, eu sei lá. Ontem estava
macambúzio, ar amodorrado.
- Um novo amigo: doutor...
- Alberto Soares.
- Alfredo Cerqueira. Como está o senhor doutor?

21
- Meu genro - disse ainda Moura.
- Marido de Sofia? - perguntei.
- De Ana. Tenho três filhas - esclareceu Moura, sorridente. - E
desculpe... Ora vamos a ver: sábado. Pode ir jantar connosco?
Fui. A casa ficava para as portas de Alconchel. No átrio havia um
grande pote de cobre. Subia-se uma larga escadaria de pedra, bordejada
de uma fieira de bilhas de barro que Moura coleccionava. Com grandes
arcadas de velho mosteiro, todo esse rés-do-chão se congelava com um
frio mineral, uma frescura de catacumbas. E eu o lembro agora, a esse
frio, numa súbita imagem de um estranho silêncio coalhado em
abóbadas... A criadita que me atendeu, toda armada de folhos, meteu-me
num escritório, selado de reposteiros. A casa era grande, mal se ouvia um
rumor de passos ou de portas. Até que o Dr. Moura apareceu, açodado.
Estendeu-me os dois braços, conduziu-me através de uma baralhada de
salas até a uma espécie de marquise, onde me esperavam já com
aperitivos. Em frente havia um jardim, cercado de um alto muro, onde a
noite começava a germinar. Duas palmeiras explodiam no céu como
granadas. E ao longe, para lá do casario, a planície azulava-se como
horizonte marinho. Conheci então Madame, abundante senhora, loura
por antiguidade (devia ter cabelos brancos), ousada e astuciosa por
direito de mamã. Conheci a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha
cabelos longos e lisos, face magra de energia e de ânsia, olhar vivo de
estoque... O lábio superior abria-se com a irregularidade de um dente. E
conheci-te, Cristina. Estavas com os teus sete anos, a tua saia azul de
folhos, o teu arzinho de menina grave. Nada dirias por então - e que
tinhas tu a dizer? Falarias dali a pouco, só depois do jantar. E de um
modo tão extraordinário, Cristina, que eu te ouço ainda agora como a voz
mais perfeita de tudo quanto me aconteceu, esse ano e outro ano, e todos

22
os anos da vida...
Até que, como numa expectativa de teatro, apareceu Sofia. Tinha um
vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável.
Uma forte adstringência apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das
curvas como duas maxilas cerradas.
A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe
os olhos. E era assim como se uma descarga da terra a atravessasse toda, a
revoluteasse num duro arranque de ira... Apertei-lhe a mão com calor,
subitamente infeliz. A noite adormecia sobre a terra, cálida, tranquila,
como uma nudez saciada. Sofia, Madame Moura e Ana e Alfredo
cercaram-me dessas perguntas de nada com que se inicia um convívio.
Não conhecia o Alentejo? Nunca tinha ido a Évora? Ficaria por lá? Que
ensinava eu?
Não, não fora nunca a Évora, não ficaria por lá, ensinava português e
latim...
- Latim, latim - exclamou Sofia, imensamente divertida por haver no
mundo, e ali ao pé, quem ensinasse tal coisa.
- Gostava de Letras, decidi-me pelo ensino - esclareci. - E como o latim
tinha futuro e me não dei mal com ele...
- Oh!, o latim... - exclamou Sofia ainda.
- Descanse que não serei um professor exemplar - prometi eu,
imediatamente, desculpando-me como de uma degradação. Aliás,
acrescentei, uma profissão não era para mim um bilhete de identidade.
Poderia ficar na aldeia, trabalhando a terra como o meu irmão Tomás.
Mas havia o vício do livro, do meu verso clandestino. Cumprido o dever
burocrático, ficar-me-ia tempo para o mais. Sim, sim escrevia o meu
verso. Mas a arte não era para mim um mundo da letra impressa, uma
estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com

23
a evidência, uma reencarnação na verdade de origens - eu o sabia, eu o
saberia sobretudo depois. Ana tinha uma pergunta a fazer. Mas Alfredo
interrompeu-a:
- Ó senhor doutor. O senhor doutor vai ver que o Alentejo... Eu tenho
aí uma herdade, havemos de lá ir. Em a gente aqui estando, digamos,
dois anos, dois anos! A gente quer lá outra coisa...
E sorria em volta com o seu sorriso repuxado, deliciosamente ingénuo,
quase imbecil. Mas a criadita vermelhusca, toda estalada em folhos
brancos, apareceu no terraço, anunciando o jantar.
Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de há pouco. Havia nela a
violência de um prosélito recente ou em crise. Era em crise, boa Ana,
como em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria
silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a
certeza de que nada em ti estava seguro.
- Li dois livros seus - disse-me ela. – Publicou mais algum?
Não, não publicara, disse eu, centrado na atenção de todos.
- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu
deus ressuscitou também no terceiro dia.
- Não, não, minha filha - interrompeu Moura, pousando
precipitadamente o talher. - Hoje não me levas à discussão. Isto é comigo,
sabe? - acrescentou para mim.
- Julguei que fosse comigo.
- É comigo. Bem: eu sou religioso, acredito em Deus, em Cristo, no
Papa, no dogma, em tudo o que me ensinaram. Mesmo não tenho tempo
para pensar mais no assunto. Tenho um Deus para me tomar conta da
vida e da morte. Fico com o tempo livre para tomar eu conta dos doentes.
Ao meu outro lado estava Sofia. Interpunha breves perguntas, de
olhos baixos, erguia-os às vezes subitamente, fitando-me como um tiro.

24
De uma vez olhei Madame. ela envolvia-nos aos dois com malícia e
tolerância. Alfredo, docemente calvo, sorria para tudo, falava de novo das
herdades, perguntava-me se eu gostava de fruta, porque queria que eu
provasse umas laranjas que lá tinha e havia de me enviar à pensão. Estava
eu no Machado? Pois bem: no dia seguinte... não, daí a dois dias, havia de
me remeter um cabaz de laranjas. Como as preferia eu? Da Baía?
Voltava-se para a cunhada.
- Diz lá tu, Sofiazinha querida, que tal as laranjas da Baía.
“Que gente, que gente”, pensava eu. Moura, lançado no jantar, parecia
distraído no prazer com que comia. Porque a sua boa disposição tinha a
sólida base de um estômago cumpridor. Imprevistamente, Ana regressou
à sua obsessão:
- Há uns versos no seu livro que me intrigam.
Dizem assim, mais ou menos:

Do sangue nascem os deuses


que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
e só aí são eternos.

- Ah, não! - clamou Moura, bruscamente acordado na sua sobremesa. -


Deixem Deus sossegado e o doutor Soares também.
Mas o jantar acabava e fomos tomar café para outra sala. Madame teve
tempo ainda de me perguntar:
- Desculpe: mas não é então crente?
- Decerto que não, minha senhora.
- Ah, estes jovens de hoje, estes terríveis jovens...
Inesperadamente, porém, apareceu um tipo baixo, sólido, quadrado,

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de uns trinta anos, com um ar dominador de pugilista.
E foi em todos uma alegria maravilhada e enternecida:
- Chico! Já estás bom, Chico? Então que foi isso?
- Perguntai ao vosso pai.
E Moura esclareceu, paternal: um pouco de tensão, um pouco de
excesso, ele sabe, ele sabe; com um bocado de juízo, tudo entra na ordem.
Mas tinham-se esquecido de mim e foi Ana quem nos apresentou. Chico
(como imediatamente passei também a tratá-lo) veio sobre mim para me
apertar a mão com um sacão brusco, como se me reconhecesse
nobremente desde uma secular fraternidade. Tal fraternidade, porém, não
existia, como logo mo demonstrou. Com efeito, conhecia também os meus
versos, tinha de acertar comigo umas ideias:
- Temos muito que conversar. Há imenso que fazer.
- Ouve lá, ó Chico - interveio Alfredo. - Como era aquela frase que tu
há dias disseste? Anda a gente em cavalarias e mal se descuida está para
aqui a pensar na morte. Não era bem assim, era uma rica frase. Já a quis
dizer aqui ao doutor, mas não me lembro.
- Come. Come e não digas tolices.
- Lá estás tu a querer tramar-me outra vez.
E eis que chega a tua hora, Cristina. Terias tu já dito alguma coisa?
Não me lembro. E que dissesses? O que tens a dizer, as palavras não o
sabem. Nem o lugar. Nem a hora. Tu não és de parte alguma, de tempo
algum, Cristina. Súbita aparição, foste surpresa em tudo para todos. Sim,
eu sei. Já o sabia quando te conheci...
Cristina viera fora de tempo. Ninguém a esperava já. O pai errara as
contas da fisiologia, havia a lei moral - e ela nascera. Os amigos de
Moura, risonhamente, quando se referiam à filha, perguntavam-lhe pela
neta... E ele sorria, inocente, porque a verdade da vida era mais forte do

26
que ele, simples instrumento ou espectador...
- Cristina - disse Moura -, tu agora vais tocar um bocadinho para o
senhor doutor.
A miúda fitou-me com os seus olhos azuis, sorriu imperceptivelmente
e sentou-se ao piano. Ajeitou a saia à roda do banco e, de mãos imóveis
no teclado, apesar do nosso silêncio, esperou ainda pela nossa atenção ou
pela sua.
E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação. Que
eram, pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros,
diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível,
tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era
pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali,
entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso
tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina
se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais -
toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de ância, se gravava de
arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven,
Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha
própria emoção. Apertas ligeiramente a boca, pões uma rugazinha na
testa, estremeces brevemente a cabeleira loura com o teu laço vermelho. E
de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da
grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas
mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como
de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez ainda,
Cristina. Agora, só para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste
vento de Inverno. Chopin, Nocturno número 20. Ouço, ouço. As
palmeiras balançam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece
na planície. Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre,

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Cristina, tu sabe-la. Biliões e biliões de homens pelo espaço dos milénios e
tu só, presente, a memória disso tudo e a dizê-la...
Quando Cristina acabou, todos a quisemos beijar. E ela veio à roda, já
infantil e desabitada de grandeza, um pouco intrigada de que algo se
tivesse passado em si. Ana, estranhamente, acariciou-a de um modo
especial, falou-lhe baixo ao ouvido como numa cumplicidade.
Depois, cantou-se. Com grande surpresa minha, o Dr. Moura, com
uma excelente voz de tenor, fez um dueto com Sofia, cantando um trecho
já não sei de que ópera ou oratória. Soube depois que Moura estudara
canto e fazia parte de um coro que se exibia às vezes na Sé. Sofia tinha
uma linda voz de contralto sem trémulos nem petulância. Porque o canto
não era nela senão o anúncio de que estava viva, de que estava presente
na terra.
Ergui-me enfim para me despedir. E subitamente, sem que o tivesse
pensado, ofereci-me para ensinar a Sofia o seu latim necessário. Madame
Moura aceitou logo, estalando de prazer:
- Que favor, senhor doutor... É um milagre. Sofia! Nem agradeces?
Ela agradeceu, declarando logo que era uma péssima aluna, que iria
arrepender-me. Moura confirmou: eu arranjara uma carga de trabalhos.
Tinha eu ao menos uma boa palmatória para ajudar?
Saí enfim para a noite, Chico saiu comigo. E, enquanto subíamos a rua,
falou-me de si, falou-me de Évora. Estava ali há cinco anos, era
engenheiro, trabalhava na Direcção dos Monumentos. Évora era uma
cidade absurda, reaccionária, empanturrada de ignorância e de soberba.
Em Évora - tinham-lhe dito um dia - não se podia ter mais do que a
quarta classe nem menos que 300 porcos.
- Qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e de banha.
O peso da Idade Média enegrecia ainda as almas, e os mouros

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também. Ter meia dúzia de amantes era para aqueles sultões um sinal de
abundância. E havia damas que durante anos não saíam à rua, ou saíam
apenas pela Semana Santa. Muitas casas tinham jardins. Pois visse eu se
os descobria. Cercavam-nos de muros altos como a toda a sua vida. Criar
relações em Évora era um milagre. Tudo ali tinha muralhas: a
sociabilidade, os jardins e, enfim, a própria cidade. Mas de vez em
quando aquela gente ia a Lisboa. E então era vê-la desabafar: casinos,
teatros, ceias. Depois recolhiam ao mosteiro. Havia damas que nunca se
viam na rua. Vira-as ele, Chico, fumando e bebendo no Estoril. Évora era
a Quaresma e Lisboa o Carnaval. Ora bem, ele, Chico, e alguns amigos
não desistiam de importunar a embófia gorda daqueles senhores. Falhara
em tempos o Círculo de Cultura Musical. Falhara o Cinema Clássico. Mas
iam atacar outra vez. Agora, com uma série de conferências na Harmonia.
Poderia eu colaborar?
Vagueámos pela cidade morta, de arcadas desertas.
Disse enfim ao caloroso homem:
- Ignoro tudo de Évora. Mas sinto que você exagera. Por ora sei apenas
que é uma cidade fantástica. E quanto às conferências, decerto estou
pronto a colaborar.
Subi às escuras as escadas da pensão, bati quatro vezes à porta. Veio
enfim abrir-ma o Sr. Machado, de chinelas, um capote sobre uma
extraordinária camisa, que lhe chegava às canelas. Naturalmente,
arreou-me duro:
- Ó senhor doutor... Em minha casa à uma hora está toda a gente na
cama. Quem quiser vir mais tarde faz o favor de pedir a chave.
- De acordo, senhor Machado, de acordo. Não torna a acontecer.
Começava a irritar-me aquele tipo, eu tinha de mudar de pensão. Mas,
quando me deitei e apaguei a luz, o convite de Chico para fazer a

29
conferência incendiou-me de alvoroço. Tinha ali uma oportunidade de
pôr ordem no que me excitava . Um dia poderia desenvolver as minhas
ideias num estudo mais longo; agora precisava de as fixar nos pontos
capitais. E foi isso que desencadeou toda a história que narro.
E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom preverso
da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em
palavras que, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco.
Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para
me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência.
A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha
instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me.
Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava
esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha
evidência necessitava de um estado de graça. Como os místicos em certas
horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver.
Regressava à aldeia, nessa noite de Setembro, quando meu pai morreu. Se
tu viesses, imagem - minha condição... Se apareces, Como me esqueces
tão cedo, como te sei e te não vejo!
Voltado para a montanha toda lavada de lua ouço alguém abrir-me a
porta.
- Temos de ir vestir o nosso pai - disse Tomás.
Senti um arrepio na ameaça do contacto com uma carne morta. Mas
reagi. Que mãos profanas para te tocarem, meu velho? Que outras mãos
senão estas na piedade, de um coração despedaçado? Sofro. Vou até ao
quarto onde meu pai dorme, Veste as calças de saragoça dos trabalhos
agrícolas, as botas ferradas que não quis tirar para a festa de família.
Evaristo recusa-se a colaborar connosco. E, para se justificar, desata aos
berros outra vez. Temos de chamar o António. E ele vem, baixo, grosso, a

30
cabeça já branca, com uma selva de cabelos no peito descoberto. Entra no
quarto, benze-se e atira-se ao trabalho. O mais difícil era descalçar as
botas. Eu e o Tomás seguramos o corpo, ele puxa. Não vai. Manda-nos
afastar, aproxima-se do ouvido do meu pai e diz-lhe coisas em voz baixa.
E depois, sozinho, suavemente, tirou as duas botas.
- Todos os mortos se fazem rogados - explicou-nos. - Então a gente
pede e eles dão um jeito.
Céus! Onde a minha repugnância? Tudo me esqueceu. Corpo morto,
carne morta. Como as pedras.
Trabalho com aplicação, quase com gosto. As calças, a camisa, sapatos
de verniz - os sapatos é o António quem lhos calça. Eis-te pronto, meu
velho, para a grande viagem. Estás sereno, a face gravada de doçura, de
perdão a tudo, à vida, à morte. E uma comoção humedece-me os olhos.
Vou até ao meu quarto, abro as janelas para a noite.
Então bruscamente ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o
absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte.
Como é possível? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho?
Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar? não a tua boca, mas o espírito
que a vivia? Onde, não os teus pés ou as tuas mãos mas aquilo que eras tu
e se exprimia aí? Vejo, vejo, céus, eu vejo aquilo que te habitava e eras tu e
sei que isso não era nada , que era um puro arranjo de nervos, carne e
ossos agora a apodrecerem. Mas o que me estrangula de pânico, me
sufoca de vertigem é teres sido vivo, é tu estares ainda todo uno para
mim, na memória do teu riso, no tom da tua voz, que era lenta,
sossegada, nas ideias que punhas a viver entre nós, na realidade
fulgurante de seres uma pessoa.
Recordo-te totalizado, olho-te. Que é que te habita, que é que está em ti
e és tu? Não, não é a carne, não é o corpo: é aquilo que lá mora, aquilo

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que ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo
único de ser, aquilo a que nós falávamos, atravessando a tua parte visível.
E, no entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava não era senão a sua
morada; como o espaço de uma casa, a intimidade do homem, são as
paredes que o fazem: derrubada a casa, a intimidade que lá havia
também morre...
E desde quando o sei, desde quando? A verdade aparece e desaparece.
Deus, a imortalidade e uma ideologia política e a sedução de uma obra de
arte e a sedução de uma mulher - onde começam?, onde findam? Sou um
indizível equilíbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mãos tanta ilusão
consistente. Depois a ilusão desfez-se. Ficou, porém, o rasto do que
toquei, o gesto das minhas mãos - essa última união com o que quis,
acreditei. Então eu descobri que as mãos estavam impuras. Lavar-me,
renascer. Deus está morto porque sim. Não foi bem, meu velho, porque
me ensinaste a história da terra e do homem e dos bichos que já não há e
de que há seres humanos desde há dois dias, isto é, desde há um breve
milhão de anos, se tanto. Não foi por isso, não foi por isso. Foi porque
Deus se me gastou. Sei só que não está certo que ele viva. Sei que ele é
absurdo porque o é. Sei que ele está morto, porque não cabe na harmonia
do que sou. Não cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que
aborreci. Como não cabem as anedotas . infância, que já não têm graça
nenhuma. Como não cabe nada do que já não sou eu. Não discuto, agora,
não discuto! Sei lá porque é que uma anedota de que ri não tem hoje para
mim graça nenhuma! Sei só que a não tem. E, todavia, pesa-me como uma
pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a
arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto
está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de
que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade

32
do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou
aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo,
EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está
atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece. EU! Ora
este eu é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada.
Sei-o com a certeza do meu equilíbrio interior. Mas como é possível?
Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua
evidência.

33
IV

Porquê, eu tinha um problema: justificar a vida em face da


inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar
outro. De que poderia falar na conferência? Nada mais há na vida do que
beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou
miséria, ciência, glória, vexame, e a política e até a arte para tantos
artistas, conhecimento do homem no corpo e no espírito - quantos modos
de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental.
Mas o que é extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha
precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o
esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de
esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim,
quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o
que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da
minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de
uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado
de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não
contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um
homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não
tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem
conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos
um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de
biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo
perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas - e esse homem sou
eu...
E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto,

34
me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma
distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a
mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada
entendo da minha contingência. Como pensar que eu poderia não existir?
Quando digo eu, já estou vivo... Como entender que esta iluminação que
sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio,
esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que
pudesse não existir? Como pensar que é nada? A minha vida é eterna
porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é
ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro acto de me
ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de
aparição, este SER - SER que me fascina e às vezes me angustia de terror...
E todavia eu sei que isto nasceu para o silêncio sem fim...
Como tu, meu velho. Aí estás à beira da cova, na urna aberta, para te
reconhecermos pela última vez. Onde a tua pessoa, onde o que eras tu?
Passam pela estrada os carros chiando. Vêm das vinhas, das vindimas,
trazem o aroma da terra e da vida. Mas tu agora és apenas a tua imagem.
Que é de ti? Ouço para lá dos teus lábios cerrados a tua palavra grave,
vejo as tuas mãos erguerem-se, povoadas de um gesto que eras tu. Não!
Quem te habitava não é. Viverás ainda na memória dos que te
conheceram. Depois esses hão-de morrer. Depois serás exactamente um
nada, como se não tivesses nascido. Quantos crimes, vexames, remorsos,
alegrias e projectos e traições e castigos e prémios e tudo e tudo nos
milhões de homens que passaram noutros séculos por esta pequena
aldeia e souberam os seus sítios e a montanha e a ribeira e se souberam
daqui e disseram esta casa é minha, esta terra é minha e sentiram a aura
de tudo isto, destes ventos, destas noites, e são hoje o nada integral,
absoluto, pura ausência, nada-nada? Eis que começa a tua longa viagem

35
para a vertigem das eras, para a desaparição do silêncio dos milénios.
Sim, agora ainda vives para mim porque te sei.
Como os retratos do álbum da tia Dulce...
Boa tia Dulce! Lembro-te. Era irmã do meu avô, herdada pelo meu pai
com a velha casa, uma velha criada, e com o velho ar de tudo. Magrinha
como uma suspeita, sisuda por defesa no receio de que lhe faltassem ao
respeito, revestia de gravidade aqueles dos seus actos em que
pudéssemos ver uma inferioridade, como, por exemplo, comer sempre
com muito apetite. Porque na aldeia o apetite é uma degradação, por
lembrar a pobreza ou a animalidade. Por isso tia Dulce comia com
requinte, muito séria, mastigando devagar, com um pequeno ar de
desgosto, trabalhando os talheres com minúcia – mas alimentando-se
sempre muito bem.
Mas ofendo-te, velha mulher, aqui a desvendar a tua psicologia - eu,
que detesto como um insulto essa coscuvilhice das minudências íntimas,
esse ofensivo desmontar de relojoaria, como se um ser humano fosse um
brinquedo. Mas tu eras alguma coisa mais do que um boneco, eu o sei.
Ainda que tu mesma talvez o não soubesses. Porque em ti vivia a
fascinação do tempo, o sinal do que nos transcende.
Assim eu esqueço esse teu intransigente apetite, as más digestões
consequentes e a magnésia e os clisteres, a tua boca aguçada em
conveniência, a tua vingança contra a idade nessas maledicências secretas
com a tua amiga Inocência, a do falatório beato, as tuas intrigas com as
criadas nos saguões familiares, as tuas rixas com o António, o moço da
lavoura, a ganância com que defendias o teu pecúlio de tostões, a gula
com que recebias os nossos beijos, que eram a prova de que não tínhamos
nojo de ti - assim eu esqueço tudo, e o que te resume, boa mulher, é esse
teu velho álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes

36
que eu conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois para o
guardar e eu tenho agora aqui na minha frente como o espectro das eras e
das gentes que já mal sei e me fitam ainda do lado de lá da vida e me
querem falar sem poderem e me angustiam como o olhar humano do
Mondego dias antes de o António o matar.

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V

E todas as quartas e sábados eu dava lição a Sofia.


Começámos pelo princípio para recapitular. Ela cantava as
declinações, tinha um modo gracioso de se enganar e de tal forma que eu
sentia obscuramente que os erros é que estavam certos. E era assim como
se qualquer coisa a habitasse e fosse maior do que ela e do que a miséria
das regras de gramática. Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e
cravada de travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em
qualquer sítio de mim onde não houvesse lembrança do que estávamos
dizendo. Eu sentava-me num sofá em frente dela, ela sentava-se noutro
sofá, cruzando a perna, escrevendo em cadernos de uma infância já
morta. Era raro eu ver Madame ou alguém mais da casa. A pequena
criada, vermelhusca, sempre a estalar de sangue, vinha abrir-me a porta e
metia-me no escritório. Eu ficava ali à espera algum tempo, abafado de
estofos e silêncio, até que Sofia entrava. Fechava sempre a porta atrás de
si com um à-vontade que era quase desprezo por quem exigisse que
ficasse aberta. Assim, era como se entre Sofia e mim uma única vida se
estivesse gerando e ambos a reconhecêssemos. Uma única vez me
apareceu de chinelas, uma camisola azul sobre os ombros, igualada assim
ao trato familiar da banalidade doméstica onde habita a fraqueza e a
necessidade.
Mas Sofia sabia-se excepcional. Por isso se vestia em perfeição, destra e
aguda, disparada desde os saltos aos seios agressivos, aos olhos rectos e
lúcidos. E eu sentia que tudo o que é vivo na terra estava ali presente no
seu corpo. Que tinha que fazer, frente à execução da alegria, o meu pobre
ministério de cadáver? Assim um íntimo desastre me tolhia e envelhecia

38
as palavras. Um dia, depois de eu explicar não sei que regra sintáctica,
depois de Sofia tentar cumpri-la num exercício, fechou o caderno,
cansada, risonha de tolerância. E perguntou:
- Porque há-de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser
sempre nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...
Tive uma palavra professoral, como era ali da minha obrigação:
- Se todos fizéssemos só o que nos apetece...
- Sim. Mas porque é que numa vida certa o verbo studeo há-de pedir
dativo?
- Que queria você fazer, Sofia?
- Sei lá, sei lá...
E ficava muito séria, olhando ao lado qualquer presença obscura - e
ambos nos esquecíamos dos livros e cadernos. Mas acontecia outras vezes
que Sofia entrava na sala, grave, bem integrada na sua função de aluna,
sabendo tudo, absolutamente tudo, com uma certeza e minúcia que me
derrotavam. Os exercícios estavam feitos correctamente, sem erros, às
lições atrasadas conheci-as sem falhas. Eu tentava então traduções à
primeira vista. E Sofia, após leves hesitações e depois de eu dar um ou
outro significado, traduzia quase bem. No entanto, na vez seguinte, ela
voltava a errar desastradamente.
Naturalmente, um dia irritei-me:
- Basta de troça, Sofia. Você sabe. Você não quer é dizer. Você decidiu
rir-se disto tudo.
- Rir-me? Que absurdo! Faça um esforço, doutor, faça um esforço. Saia
um momento das regras e excepções. Só assim talvez entenda. Há dias
em que é absolutamente necessário que eu não saiba! E então não sei, não
sei, não sei. Não me peça explicações. Não sei!
E saiu do escritório, talvez para não chorar ali. Madame, porém,

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apareceu logo, dir-se-ia estar ali à escuta. E, sem me perguntar o que se
passara, limitou-se a pedir-me desculpa.
- Desculpa? De nada, minha senhora. Sofia hoje está mal-disposta.
Temos de ter todos paciência.
Vexado, reuni os meus papéis, meti-os na pasta - nessa pasta que eu
tanto viria a odiar - e saí.
Mas algum tempo depois Sofia procurou-me inesperadamente na
pensão. O senhor Machado anunciou-me a sua visita, de mau modo,
inquieto decerto de um aroma a mulher, de uma suspeita a tramóia:
- Está ali uma senhora a procurá-lo. É uma filha do doutor Moura. um
grande amigo meu, uma pessoa de bem. Mas, ó senhor doutor, o senhor
doutor já sabe que em minha casa...
- Nem mais uma palavra, senhor Machado. Não pode então vir uma
senhora a esta casa? É isto um convento?
- Não, senhor doutor, está bem de ver que não é um convento.
- Ou a presença de uma senhora faz disto por força um lupanar?
- Credo, Jesus, o que ele disse, o que ele disse!.
E fugiu a apertar a cabeça.
Não! Tinha de sair dali! Mas para onde?
Sofia esperava-me na sala de jantar, em pé, bela e vigorosa:
- Que fez ao senhor Machado? - perguntou-me em voz baixa. - O
homem parecia que tinha visto o Diabo, o Diabo antigo, o autêntico.
Contei a Sofia o que se passara. Ela riu um riso ilícito, clandestino, e eu
tive a primeira certeza do que já suspeitava...
- Ele diz-se amigo do seu pai.
- Oh, o pai... O pai ri-se. O homem também faz parte da Conferência
de São Vicente de Paulo. Bem vê, há as sobras da pensão. Mas não
ficamos aqui a dizer mal.

40
- Vamos dizer mal para onde?
- Bem. Vai só o doutor. Vai o doutor e o meu pai, que o espera lá em
baixo.
- Sofia...
- Não pergunte nada. Oh, não recomece. Devo pedir-lhe desculpa?
Pois bem: desculpe.
Saímos. Moura esperava-me, com efeito, na Praça, com o projecto de
um passeio aí adiante. Ia ver um doente, eu precisava certamente de ir
conhecendo o Alentejo. Não, Sofia não podia ir. Sentei-me à frente, ao pé
de Moura, no seu Fiat pequeno. Lembro-me bem de que nessa manhã
toda a Praça acordara enfeitada de crisântemos. Mas só agora eu reparava
bem neles. Havia crisântemos ao longo das arcadas, uma roda de vasos
cercava a fonte por dentro das grades.
Havia-os brancos, roxos, amarelos, de cabeleiras caídas para os olhos,
com o seu ar fatal ao sol triste de Outono.
Partimos pela estrada do Redondo, atravessando as duas linhas
férreas. Atrás ficava a cidade, dourada pelo sol, coroada pela Sé. Moura
parou o carro no alto de uma rampa para que eu ficasse gravado daquela
aparição. E daqui do meu Inverno, desta noite em que escrevo, eu a
relembro agora. As casas brancas apinhavam-se, umas contra as outras, à
ameaça do deserto e da desolação. E ali parado, em face da cidade
perdida na planície, era como se ouvisse em mim um coro de peregrinos
à vista de um santuário nas romagens antigas...
- Temos de ir indo - lembrou Moura.
Ele tinha pressa de falar de Sofia. E havia tanta coisa a contar. Porque
tu foste sempre uma criança difícil, Sofia. Eu tinha de ter paciência, de te
não levar muito a sério. De uma vez, contou Moura, Sofia foi repreendida
pela mãe. Era então uma miúda de sete anos e a repreensão foram duas

41
palavras severas. A falta fora um capricho absurdo da garota.
Sofia brincara toda a tarde no pátio, sujara-se, rasgara o vestido. Havia
nessa noite visitas de cerimónia, a mãe vestira a miúda de lavado. Mas à
hora da recepção Sofia apareceu na sala com o vestido roto e sujo,
apresentou-se assim mesmo às pessoas de cerimónia. Madame sentiu-se
vexada, trouxe a filha a um recanto disciplinar e explodiu. Sofia nada
disse. Não se ria, não chorava. Estava apenas muito séria como se tivesse
cumprido um dever. Mas nessa noite, ao deitar, desapareceu. Correu-se a
casa toda, bateu-se à porta dos amigos, da família. Nada. Meteu-se a
Polícia, a Guarda, telefonou-se para as estações do caminho de ferro, das
camionetas. Em vão. Só na tarde do dia seguinte ela reapareceu,
absolutamente serena, indiferente à aflição familiar. Tinha estado todo
esse tempo empoleirada na chaminé de um forno abandonado, no pátio.
De outra vez, e sem questão nenhuma, atou fortemente um nastro num
braço, prendendo a circulação. Já tinha a mão roxa quando o pai
descobriu. Sofia sentiu-se alegre por saber que estivera em risco de perder
o braço todo. Mas aos doze anos saiu realmente de casa, a pé, com destino
a Lisboa. Apanharam-na em Montemor. Raramente confraternizava com
a irmã nas suas brincadeiras, preferindo entreter-se sozinha, quase
sempre fechada no seu quarto povoado de bonecas. Mas este modo de ser
tranquilo, este modo de fechar-se consigo, era ainda o indício de uma
tensão interior de que se tinha o sinal flagrante no jeito súbito de fitar
como se então explodisse. Vivia sempre à escuta de uma invisível ameaça
ao seu mundo pessoal - mundo de alegrias ou amarguras que só ela sabia.
Acontecia assim às vezes - Moura contava - que durante uma conversa
(como quando o pai falava da morte de algum doente) ela sorria enlevada
com o ar distante, separado, de uma louca. Como em situações diversas
(uma vez, por exemplo, numa festa de anos da irmã) ela fugia de todos,

42
grave de amargura mas raramente chorando. A certa altura houve quem
preconizasse o recurso de um colégio. Meteram-na no colégio. Mas não
houve outro remédio senão tirá-la de lá, porque duas vezes tentou
suicidar-se. Sofia! Como eras estranha! Como o foste até ao fim! Mas
agora que morreste de uma morte inesperada que te evitou o gesto puro
de te matares, agora que relembro toda a tua vida certa, evidente, na mais
breve atitude, reconheço a verdade antiga, axiomática, de todo o teu raiar
a um mundo de limites, de máximos, de pura iluminação. Passam os
campos à nossa volta no desamparo do Outono. Raros homens de pelico
vão andando pela estrada para o deserto do seu destino.
Um ou outro aparece, solitário, no meio do descampado. Eu olho e
ouço. Por sobre o rumor surdo do carro o teu pai fala. Mas já sem a
bonomia do seu viver sem problemas.
- Se ela casasse, se ela casasse...
Ele sabe a lição da fisiologia. E depois? Em certo serão de Inverno,
Sofia, Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma boneca.
Tu foste para o quarto, grave, sem uma lágrima. E de um a um quebraste
todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os
cacos: melhor que a náusea das compensações medianas, preferias o
absoluto da destruição.
Senti um ataque brutal a todas as minhas vísceras e vi como era
compreensível o sonho de Sofia. Realizar a vida num acto, num gesto,
num sonho, por mais miserável que seja. Mas Sofia, como eu havia de
saber, conhecia apenas o arranque e a inquietação. Sabia talvez apenas de
que lado da vida lhe falavam. De qualquer modo, como entendê-la, pois,
nas explicações do pai? E disse:
- Talvez não seja só uma questão de casamento.
Moura olhou-me um instante, a sorrir com resignação da minha

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ingenuidade:
- Sou médico, meu bom amigo. E às vezes desejava não sê-lo.
- Que sabe a fisiologia sobre os sonhos de um homem?
- Talvez não saiba muito - admitiu Moura. – Mas não há dúvida de
que, se o irmão corpo está tranquilo, os sonhos são mais razoáveis. Claro:
Sofia era então uma criança. Mas desde quando o não é? Problemas
complicados, trapalhadas da vida. Bom: a estrada boa acaba aqui. Agora
vamos cortar por este ramal.
Era um caminho mau, escavado das chuvas e dos carros das mulas.
Para um lado e outro estendiam-se as terras escuras e abandonadas. De
longe em longe erguia-se o espectro de uma ou outra azinheira. Reunir a
vida num acto, num sonho. Mas ter primeiro a evidência da sua
grandeza, da sua verdade. E ter a evidência daquilo que ele recusa.
Subitamente à beira de um monte, um homem de pelico ergueu a mão
ao carro. Eram três ou quatro casas apinhadas num terreiro. Moura parou
e reconheceu o homem:
- Você outra vez? Então o que é que há de novo?
- Eu sabia que o senhor doutor ia ali à dona Alzira e pus-me aqui à
espera.
- Mas então o que é que há?
O homem olhou-me para ver até que ponto eu podia participar do seu
segredo.
- Se é preciso, eu saio - declarei.
- Não, acho que não - disse Moura. - O senhor doutor pode ouvir? -
perguntou.
- Ele também é doutor? - adiantou o homem raiado de esperança.
- É doutor, mas não é médico. Diga lá então.
E o homem contou uma história incrível. Moura já a conhecia, porque

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fez referência a uma consulta na cidade. Mas de nada lhe valeu, porque o
homem ia contá-la outra vez desde o princípio. Receava muito que lhe
tivesse falhado algum pormenor e isso lhe destruísse a esperança.
Contava-a agora de novo:
- Quando foi da sementeira, o patrão Arnaldo disse-me: “Ó Bailote, tu
já não tens a mesma mão para semear”. Porque eu, senhor doutor, tive
sempre uma mão funda, assim grande, como um cocho de cortiça. Eu
metia a mão ao saco e vinha cheia de semente. Atirava-a à terra e
semeava uma jeira num ar.
Conta, bom homem, conta o teu sonho perdido.
Tinhas, pois, uma boa mão de semeador bíblico. Atiravas a semente e a
vida nascia a teus pés. Eras senhor da criação e o universo cumpria-se no
teu gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a Face escurecida
dos séculos, os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o
outrora dominando a planície com a sua mão poderosa. A terra abria-se à
sua passagem como à passagem de um deus. A terra conhecia-o seu
irmão como à chuva e ao sol, identificado à sua força germinadora.
- Agora o patrão diz que eu já não tenho mão.
E mostrava a sua desgraçada mão, envelhecida, carbonizada de anos e
soalheira. Moura olhou-me e sorriu-me numa cumplicidade.
- Olhe. Faça ginástica aos dedos. Assim.
E exemplificava. De olhos escorraçados, o homem lamentou-se:
- Tenho feito, senhor doutor. Mas o patrão Arnaldo diz que eu já não
tenho mão. Veja, senhor doutor, então isto não será ainda uma mão de
homem?
E tentava cavá-la fundo, com os dedos gretados no ar.
- Então que quer que eu lhe faça?
- Dê-me um remédio, senhor doutor. Um remédio que me ponha a

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mão como a tinha. Assim grande, assim funda, assim, assim...
E moldava no ar a capacidade de uma mão de Jeová.
Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os campos
repousavam no grande e plácido Outono. E pelo vasto céu azul, sem a
mancha de uma nuvem, ecoava levemente a última memória de Verão.
Moura pôs o motor a trabalhar.
- Então passe muito bem - disse ao semeador.
E o carro arrancou, erguendo o pó do caminho.

46
VI

Mas a visita à doente foi breve. Era uma casa fidalga perdida no
descampado. Espectros de um ou outro homem ou mulher olhavam-me
no carro parado, olhavam o silêncio em redor. Regressámos enfim pelo
mesmo caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador,
saltou-nos à frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gritos, de
imprecações, braços no ar, braços apontados para uma loja. Moura saiu
do carro e o magote de gente seguiu-o. Fiquei só. Mas o médico
regressava daí a pouco, pálido, transtornado.
- Que aconteceu?
Ele não respondeu logo, conduzindo o carro aos tropeções. E só
quando o monte se não via já me declarou:
- O homem enforcou-se.
Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.
Só. Era espanto e fúria e terror. Era essa indizível e total suspensão em
que a absurda evidência nos esmaga pela absoluta certeza e absoluta
impossibilidade. Sei e recuso. Uma violência iluminada incha-me no
cérebro, estala-me o crânio como uma massa solar. Pensar, reflectir,
como?, como? Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imóvel.
Apanha-me todo e queima-me e endurece-me nas mãos enclavinhadas
uma surda intoxicação. Moura, a meu lado, nada diz. à luz obscura da
tarde parece-me que envelheceu. A gordura que lhe enchia a face feliz
descai-lhe agora para o pescoço em pregas flácidas. Os campos
estendem-se a perder de vista, o ar acende-se de um último clarão. Que
fazemos nós na vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão
toda a imensidade do milagre de estar vivo? Não vale então nada, meu

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velho desconhecido, esse prodígio de seres, em face de uma mão que não
é já a de um semeador?
Tinha uma missão a executar, uma extraordinária notícia a transmitir.
Precisava urgentemente de fazer a conferência, de revolucionar o mundo.
Porque o mundo aparecia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era
necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se
libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente
necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte. Viriam a
chamar-me mórbido, doentio. Porquê? Mais real do que o nascer era o
morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo,
é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos
seus limites, depois de a morte o não poder surpreender. Não porque a
tivesse decorado como um gato-pingado, não porque a tivesse esquecido,
mas por tê-la incorporado na plenitude da vida. Sabia bem quanto era
difícil já não digo esta aceitação esclarecida mas até o ver o problema;
sofrer o impacto da sua fulgurante aparição. Eu próprio quantas vezes o
esqueço! Quantas vezes me remordo em desespero, porque nada vejo,
nada vejo! A parte animal do homem, a parte gorda, a que tem sono e
quer dormir é brutalmente pesada.
Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartição.
Não está: saiu para uma avaliação de prédios ou o exame de alguma
construção. Procuro-o no café depois das cinco: não está também. Vou
enfim a sua casa. Mora ao pé de São Francisco, numa casa que dá para o
Jardim. Bato à porta: iam ver se o senhor engenheiro estava. E ele aparece
enfim, de roupão e um cigarro entre os dentes. O quarto é grande e no
rés-do-chão. Quando passam carroças na calçada, o soalho estremece.
Passam constantemente carroças, mesmo a horas tardias. Ouço-as ainda
agora, martelando toda a cidade, percorrendo em fila as estradas da

48
planície. Levam fardos de palha moída, lenha para os fornos, azeite, louça
de barro.
Na minha imagem distante, filtrada pelo tempo, unem-se à figuração
de um pelico, de um ventre e face gorda, de notas de conto esfolhadas nas
mesas do café à terça-feira, essas carroças rijas com machos e almocreves,
martelando a cidade de uma memória de terra e de estrume. Chico
pergunta-me:
- Então que há, professor?
Tratava-me por professor, que era a fórmula mais certa para ele de
uma camaradagem tolerante. Eu tratava-o por Chico e às vezes por
engenheiro.
- Pensei já na conferência - disse eu.
- Óptimo. Mas a coisa não vai ser fácil. Falei já com os senhores da
Harmonia, mas eles não se entusiasmaram. De que vai você falar? De
cortiça? De adubos? Não vai. Bom, nesse caso está tramado.
- Vou falar de uma coisa nova, de uma descoberta extraordinária.
- Descoberta? Então não é para a Harmonia: é para a Academia das
Ciências.
Eu fumava, nervoso. Um candeeiro estampava a luz na secretária,
dissolvia o quarto em penumbra. Sentia-me possuído da minha evidência
e mal reparei assim na ironia do engenheiro. Queria falar, tinha de falar.
- A minha descoberta destina-se a toda a gente. Nem é uma
descoberta. Quero dizer: é a descoberta de uma aprendizagem.
O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se
informa ao atender um cliente. Eu estava numa situação de inferioridade
e o que desejava não era uma tolerância mas uma comunhão. De súbito,
porém, bateram à porta. O engenheiro mandou entrar e quem apareceu
foi um moço meu aluno. Mostrou-se embaraçado com a minha presença,

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prometeu sair logo.
- Podes ficar - disse o engenheiro. - O doutor dá licença. É meu primo -
acrescentou para mim.
Não dera ainda tal licença. Mas concordei. Era o Carolino, meu aluno
de Literatura, moço bisonho, com a cara crivada de espinhas e a quem
por isso os colegas chamavam o Bexiguinha.
- Lá passei no Redondo. O teu pai não estava - declarou o engenheiro
ao rapaz. - Mas estava a tua mãe... Não acreditou lá muito nessa história
de mais livros. Mas mandou o dinheiro.
E passou notas ao rapaz, que as guardou em silêncio, corando
fortemente. O engenheiro acendeu novo cigarro, recostou-se outra vez:
- Mas diga então, professor.
Não, amigo. Não é para essa tua fleuma abundante que eu tenho voz.
Procura! O rasto da tua radiação divina, o lume secreto da tua aparição,
onde está? Onde o perdeste, amigo? Em que recesso do teu ar monolítico?
Trago o eco perdido do ermo de ti próprio. E tu, pobre Bexiguinha de
olhos alagados de estupefacção? És tu só então que me estás ouvindo?
Mas de que falo eu, afinal? De que nada tão brutal de fúria e solidão?
Descobri as raízes da minha vida, a flagrância do que sou. E falo, falo. O
entusiasmo incendeia-me, as minhas palavras são já quase só vibração.
Mas só talvez assim estejam certas, como um ferro em brasa que nos
atinge não pelo ferro que é.
- A descoberta que proponho é bem difícil - insisti eu. - Não lhe contei
ainda o caso do homem que se enforcou?
- Contou-me o Moura - disse Chico.
- Que foi? Que foi? - perguntou o Bexiguinha, a voz fina e cantada da
sua terra e que assim o aquecia como a uma criança.
- Encontrámos um homem há dias, quando o doutor Moura ia ver um

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doente. O homem queixava-se de que já não tinha uma boa mão para
semear. à volta, quando passámos outra vez pelo monte, o homem
tinha-se enforcado.
Bexiguinha abriu os olhos e a boca.
- É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar a
vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de
sabermos bem o que é uma e outra, depois de nos encandearmos na sua
iluminação. Sabia acaso o homem o milagre que destruía? Mas eu sei.
- Como se sabe, senhor doutor? - perguntou-me o Carolino na sua voz
ridícula, que tanto me desmanchava.
E de repente, em face do interesse do rapazinho, não dito em palavras
mas expresso na sua avidez, de novo me empolgou a fúria de revelar.
Virei-me para o Bexiguinha, falei só para ele. E perguntei:
- Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta?
Nunca fizeste essa experiência?
- Nunca fiz, senhor doutor - respondeu ele no seu tom de falsete.
Era preciso fazê-la. Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-nos
não existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença
aguda das coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E
subitamente gritamos: “Eu estou vivo, EU SOU.” E falamos connosco,
fazemo-nos perguntas. Sobe-nos então à garganta uma surpresa de terror:
“Quem sou eu? Quem está aqui comigo?” Dá vertigens. É como se nos
aparecesse um fantasma e estivesse dentro de nós e fosse alguém a mais e
visse pelos nossos olhos e falasse pela nossa boca. Só os doidos falam
sozinhos, porque não têm medo. O mundo para eles não existe: só existe a
sua loucura. Por isso nós, se falamos, nos sentimos doidos, separados
subitamente do mundo. O que existe então não é o quarto onde estamos,
os livros, a noite; o que existe é este vulcão brutal que sai de nós, o jacto

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do deus que nos habita, esta monstruosidade que nos adormecia dentro.
Mas de súbito o telefone tocou. Chico ergueu-se pesadamente, foi
atender.
- Como está? Sim... Não, não... Pois... Os alicer... Pois... Os alicer... Não,
eu já lhe tinha dito. Os alicerces é que ficaram mal.
Pousou o telefone, voltou-se para mim:
- Mas dizia você, professor...
Não, quadrado homem de ferro e de cimento. Não me entendes, não te
entendo. Falo para ti, Bexiguinha.
- Há uma outra experiência - disse eu. - Uma vez, quando era miúdo...
Contei. Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.
Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em
breve aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só meu pai me
repetia a história dos astros, que eu guardava na memória: Antares,
Altair, Deneb, gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A
lua veio enfim. Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao
comprido para ver melhor as estrelas. E minha mãe mandou-me ao
quarto procurar a manta e a almofada dos nossos sonos no tempo. A
porta estava aberta, a lua entrava por uma das janelas. Procurei a manta e
a almofada numa cadeira, no canto onde minha mãe as arrumava.
Subitamente, porém, quando ia a erguer-me, eu vi que estava alguém
mais no quarto. Dei um berro, larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos
meus gritos acudiu minha mãe, meu pai, meus irmãos, as criadas, a tia
Dulce. E ali, à face de todos, declarei:
- Está um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás
dela. Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladrão não
apareceu.

52
- Oh, a imaginação desta criança! - exclamou minha mãe.
Sermão sobre a minha imaginação. Meu pai aproveitou a
oportunidade para atacar o malefício das historietas que nos contava a
velha tia Dulce. Aliás, quem mais as escutava era precisamente eu, não
tanto então, durante a minha infância, como mais tarde, quando vinha a
férias e desentulhava do sótão, das lojas, dos cantos das arrumações,
velhos vestígios de outrora - jornais, fotografias, algumas bem recentes,
pois já eu figurava nelas, mas que para mim tinham já a distância
ilimitada do passado.
Subitamente, meu pai teve uma ideia:
- Onde é que viste o ladrão?
- Ali.
- Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande
espelho do guarda-fatos. Meu pai pôs-me a mão na cabeça com a sua
protecção.
Minha mãe voltou a lamentar a minha fantasia. E o meu irmão
Evaristo fez rir toda a gente, porque se pôs diante do espelho a fingir
medo:
- Um ladrão! Olha um ladrão!
Regressámos à varanda, tia Dulce regressou à grande sala batida do
luar e a cujas janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno
céu. No grande silêncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No
ar pairavam ainda as crepitações do calor, com uma memória de cigarras
estalando à luz do sol... Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita
presença de alguém que agora sabia ser eu. À hora de deitar meu pai
ordenou-me:
- Tu vais-te deitar sozinho. Tu és um homem.

53
Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever
de ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de não olhar para o
guarda-fatos. Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no
sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa
que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu
ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face
desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela
primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser
vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e
em que agora descobria qualquer coisa mas, que me excedia e me metia
medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de
fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade
misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.
Calei-me enfim. Uma carroça retardatária atroou toda a calçada. Pelos
vidros das janelas via a massa nocturna do Jardim, imaginava o busto de
Florbela, colocado ali há pouco tempo, numa manhã clandestina, agora
meditando sobre o seu pesadelo. Chico dormitava ao eco das minhas
palavras. Carolino tinha agora a boca aberta, todo petrificado. Por fim o
engenheiro falou:
- Tudo isso, professor, é muito grave.
- Grave como?
- Grave. O que você propõe é pura e simplesmente o regresso à pedra
lascada...
- Lascada?
- ...porque o homem sabe que existe já desde então.
- É falso. E que o soubesse? A verdade é que o não sabe hoje. Tenho a
certeza.
Chico endireitou-se, fez peito. Era tremendo a fazer peito. Porque tudo

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se me deslocava para uma questão de músculos.
- Vivemos numa época formidável - disse ele. – A única verdade a
conquistar é a de que todos os homens têm direito a comer.
- Quando é que afirmei que o homem deve passar fome? Mas, se em
todas as épocas se tivesse só pensado na melhoria económica, hoje não
seríamos homens: seríamos apenas máquinas. O meu humanismo não
quer apenas um bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude.
Bexiguinha olhava-nos, ora a um ora a outro, como num jogo de
pingue-pongue. Chico interpelou-o:
- Tu que pensas?
O moço estremeceu, abriu mais os olhos, num raio de loucura:
- Eu acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Às vezes, lá em casa,
ponho-me a pensar: o que é que sentirá uma galinha?
- Uma galinha? - perguntou o engenheiro.
- Sim. Uma galinha. Penso assim: Se eu fosse galinha? E o que o senhor
doutor contou, isso do espelho, também já tenho pensado. A gente às
vezes brincava a fazer caretas ao espelho. às vezes fazia uma coisa que
não devia fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo
como se me estivesse a ralhar a mim próprio. Depois ficava melhor. Mas
falar alto para mim nunca falei.
Ficámos todos embaraçados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do
nosso embaraço e talvez do seu.
Até que o engenheiro se abriu todo em gargalhada para restabelecer a
normalidade:
- Com que então, Carolino, uma galinha...
- Eu não sei porque é que te ris. A gente pensa: Se eu fosse um cão? Se
eu fosse uma galinha? Uma galinha tem um olho para cada lado, por
exemplo, e tem aquela coisa dura que é o bico. E depois a galinha dorme

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empoleirada num pau e não cai.
- Bem, bem. Temos galinha que chegue. Trata mas é de não gastares o
dinheiro dos livros em paródia. E esquece a galinha. Pensa, por exemplo,
na vaca, para variar.
- Mas a vaca também é um bicho esquisito.
Eu estava atónito. Porque sentia em Carolino, através do que havia
nele de estranho, uma inquietante separação de si, não sei se para um
encontro lúcido consigo, se para uma união de loucura. Precisava de
conversar com o pobre Bexiguinha. Ele não era decerto um louco. O
modo de falar era trôpego, ridículo no seu esganiçado de falsete, e isso é
que sobretudo perturbava. Mas o telefone retiniu de novo. Chico foi
atender.
- ...Não, não me esqueci. Atrasei-me só um pouco. Tive visitas. Ainda
cá estão... O professor e o Carolino. Sim... Até já.
E para nós:
- Com a história da galinha, esqueci-me de que tenho galinha em casa
dos Cerqueiras.
- Então vão sendo horas - lembrei eu, levantando-me.
- Vão sendo horas - concordou Chico, erguendo-se também.
Carolino, vexado a sangue, com as espinhas mais visíveis, saudou o
primo brevemente e saiu comigo. Estava uma noite nítida, com estrelas
de vidro. No largo deserto, à luz dos candeeiros, a Igreja de São Francisco
erguia a sua massa negra entre as fachadas brancas dos prédios. E as
janelas iluminadas na pequena colina sugeriam um presépio à minha
memória de Inverno.
- Onde moras tu, Carolino?
- Na Rua da Mouraria.
- Vou contigo. Damos uma volta aqui por baixo.

56
Gostava de percorrer as ruas silenciosas, emaranhadas como uma
alucinação. Numa ou noutra janela armava-se ainda o pau com o fio da
roupa branca. Das tabernas, com meias-portas fechadas, vinha um eco
sujo de luz fosca e de sarro.
- O senhor doutor acha que o que eu disse era assim para rir? -
perguntou-me subitamente o Bexiguinha.
- Bem, Carolino; nós temos muito que conversar. O que disseste não é
nada uma tolice. Quando era miúdo senti uma coisa parecida com um
cão. E com um gato. E com outros bichos. Descobri neles o começo de
uma pessoa. O cão chamava-se Mondego. O António matou-o.
- Quem era o António?
- Um criado.
Percorríamos o labirinto de ruas em todos os sentidos. Mercearias
escuras como grutas com uma luzinha ao fundo, antros de carvoeiros,
interiores de casas iluminadas para lá das cortinas, namoros oblíquos de
esquina - toda aquela zona da cidade se cruzava de segredo e de suspeita.
- Também fiz outra experiência, senhor doutor.
- Que experiência?
- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou
qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E
depois, pedra já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o
milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E
saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
- Quantos anos tens tu?
- Dezassete.

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- Gostas de fazer versos, de escrever?
- Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
- Tu percebeste o que eu queria dizer?
- Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso.
Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem
de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.
Afinal deixei o Bexiguinha na Praça do Giraldo. Eu tinha ainda de ir ao
Nazaré antes que a livraria fechasse.

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VII

Só no dia seguinte eu soube que a nossa conversa em casa do


engenheiro tinha sido largamente comentada em casa dos Cerqueiras. Eu
subia a Rua da Selaria para o Liceu, parara um pouco diante de um cão
que todos os dias ali estava na rua, ladrando para uma janela até lhe
atirarem de lá um osso. Era decerto um cão vadio, com o seu pêlo surrado
e olhos lacrimejantes. Eu próprio lhe trouxera esse dia um bocado de pão,
que o desgraçado apanhou com infinito fastio: tal o seu regime de ossos,
não apreciava decerto pão. Foi quando à minha beira travou uma
furgoneta e descobri ao volante o Alfredo Cerqueira.
- Então, doutor, a alimentar os animaizinhos... O doutor já tem um cão,
temos de arranjar uma galinha para o Carolino... Tinha o seu sorriso
repuxado, de orelha a orelha, como uma figura de Bosch. E logo
abrindo-me uma porta.
- Entre, doutor, que eu levo-o ao Liceu.
Entrei, instalei-me.
- Já sabe então da história - disse eu.
- O doutor sabe lá o que isso foi. Já há muito tempo que não ria assim.
Aquele Chico é levado dos diabos.
- Grande galhofa, então, estou vendo.
- Não senhor. Aquilo foi o cabo dos trabalhos. A Sofiazinha começou a
discutir e não queira saber. A minha mulher a princípio não abria a boca.
Ela é muito calada... Mas depois começa também a dizer das suas... Olhe,
doutor, não sabia para que lado me virar. Eu nunca assim vi uma coisa. E
de noite? Primeiro que sossegasse? Eu só lhe dizia: “Ó mulher, mas
porque é que te ralas com isso?”, E ela logo: “Cala-te que não sabes o que

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dizes”. Assim mesmo: Não sabes o que dizes. E eu, é claro, calei-me... Ela
é a minha rainha e eu obedeço. E de manhã pôs-se-me lá diante do
espelho a olhar-se, a olhar-se...
- Mas então: riram ou discutiram?
- Quem riu fui eu. Oh, aquele Chico, aquele ladrão... Tem muita graça,
aquele maroto. Tem muita piada...
Alfredo dera a volta à Praça, já despida de crisântemos, atravessara a
Rua dos Infantes, sempre embaraçada de peões, e, chegado à rampa do
Liceu, quis descer até ao portão. Mas impedi-o disso para lhe facilitar a
manobra do carro e ali ficámos um momento, dominando a planície, que
se estendia ao fundo.
- Então aqui o deixo, doutor. Passe muito bem.
E já quando me afastava:
- Doutor! Olhe que a minha mulher quer falar consigo.
- Quando quiser. E a propósito de quê?
- Não me disse. Mas imagino que é ainda por causa da galinha.
Mas com quem falei primeiro foi com Sofia. Era sábado e chovia desde
alta noite. Lembro-me bem dessa primeira chuvada de Inverno, porque a
chuva era para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da
memória ao que nela aconteceu.
Subtilmente, aliás, é à vibração inefável das horas da natureza que eu
posso reconhecer melhor o que me aconteceu no passado. Um sol
matinal, a opressão das sestas no Verão, o silêncio lunar, os ventos áridos
de Março, os ocos nevoeiros, as massas pluviosas, os frios cristados são o
acorde longínquo da música que me voa, tecem a harmonia vaga de tudo
o que fiz e pensei. A minha vida assinala-se em breves pontos de
referência. Mas esses pontos, como os de uma constelação, abrem-se ao
que os ressoa como música de feras, vêm de longe até mim não no que os

60
concretiza mas na névoa que os esbate como um murmúrio nada. O
passado não existe. Assim me acontece às vezes que toda a minha vida de
outrora se me revela ilegível: o que a forma não são factos, sentimentos
que se analisem ou reconheçam, mas os ecos alarmantes de um labirinto
onde a chuva, o sol ou o vento repercutem e quase criam uma estranha
vibração. São vozes que me chamam dos quatro cantos do espaço e eu
não ouço senão quando a aura das horas mas lembra. Daí que me acusem
por vezes de retórico. Ainda um dia hei-de falar desse equívoco da
retórica. Porque não há retórica apenas da inflação da garganta. Há-a do
empolamento como do esquematismo; do calor como da frigidez; do
sentir como do pensar; da emoção como da inteligência. Se Hugo é
retórico, é-o também Mallarmé; Lívio como Tácito, Sá-Carneiro como
Pessoa, Camilo como Eça, Régio como Torga. A retórica pode não separar
um autor de si próprio: separa-nos a nós dele, quando o não aceitamos. A
própria vida será retórica para aquele que está morto... Hei-de falar disto
aos meus alunos. Conheço uma certa emoção das horas, sei da aparição
dos instantes-limite, das vozes submersas, e gostava de dar aos outros
essa notícia. Há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à
realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio,
mundo da surpresa e do aviso. Assim o próprio presente pode ter a voz
do passado, vibrar como ele à obscuridade de nós. A minha retórica vem
do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não
tem nome e onde as palavras se dissipam com a névoa do que narram.
Como não falar, pois, desse sábado pluvioso, com uma massa de cinza
balançando no espaço até aos limites da vertigem? Revejo-a, a essa hora
de água, desde as janelas da sala de jantar, debruçado para a Praça numa
espera despovoada. Os carros passam embrulhados de resguardo,
estrugindo nas toalhas de água, as casas descem unidas a colina,

61
escondem-se algumas no refúgio da planície. As horas dos sinos escorrem
pela face dos prédios, uma flacidez gomosa ingurgita-me nos membros,
na garganta. Tenho de preencher o tempo até ir dar lição a Sofia. As
arcadas enchem-se de gente silenciosa que olha a água a cair, o café
fumega de capotes molhados. Na livraria, o chão de tábuas apodrece de
humidade, o ar empasta-se da poalha de água que o vento atira pela
porta. Saio enfim quando a hora chega.
Rente aos muros, desço a rua, onde só os carros passam desarvorada-
mente. De gola erguida e sem chapéu (porque sempre me seduziu o ar de
aventura e uma cabeça descoberta). aperto contra mim, de mãos nos
bolsos, a minha pasta miserável de professor. Venho para a lição, como
sempre, com uma corda dorida na garganta. Espero algum tempo depois
de tocar à porta e finalmente o trinco estala e a criadita aparece, toda
armada de folhos brancos. Mas, depois de tirar a gabardina e de a dar à
rapariga, reparo que no limiar de uma sala, à esquerda Sofia me esperava
toda de preto. Não se moveu. Encostada, pelo lado de dentro, à
meia-porta fechada, a aresta da porta cortava-a de alto a baixo,
dividindo-a pelo meio dos olhos, dos seios, das pernas. A criadita
desaparecera, ficáramos nós, sozinhos, sob a cúpula claustral do átrio,
com o rumor fantástico da chuva na rua. Avancei enfim; Sofia, sem se
desencostar, entregou-me a mão esquerda, abandonada, como se ma
desse a beijar.
- Sofia!
- Olá, doutor.
Desencostou-se então da porta e foi a uma prateleira tirar livros. Veio
depois com eles, erguidos ao alto nas pontas dos dedos, como nos cafés os
criados transportam às vezes as bandejas. O vestido de veludo negro,
colado ao corpo, esticado até ao pescoço e até ao limite dos braços finos,

62
iluminava-lhe a face jovem, a doçura quente da nuca sob os cabelos
puxados para o alto, a fragilidade das mãos, tão brancas e subtis. Mas o
que sobretudo se iluminava era o seu maravilhoso olhar, esse olhar de
uma violência ingénua, secreto e húmido e fulgurante como um primeiro
pecado. Estávamos sentados a um ângulo de uma mesa, Sofia pousara as
mãos sobre o livro aberto. E então irresistivelmente tomei-lhas nas
minhas. Palpava-as, olhava-as, olhava-as na sua alvura de creme, nos fios
azuis das veias. Os dedos curvavam-se, lineares, até ao bico das unhas,
em curvas longas como o eco de uma harpa. Mas sem gestos,
abandonadas à minha procura, pareciam-me mortas. Então virei-as: por
dentro tinham menos mistério, menos vida. Ou talvez que tudo fosse de
estarem frias. Tive um gesto de as aquecer. De súbito, porém, qualquer
coisa se separou em mim mesmo e senti que o meu gesto se quebrava.
Ergui os olhos a medo para Sofia. Ela olhava-me impassível:
- Tenho sempre as mãos frias. Mesmo no Verão.
Como eu já lhe não investigava as mãos e lhas tinha para ali
desaproveitadas, ela retirou-mas para procurar um estojo, donde tirou
uma longa boquilha em que acendeu um cigarro.
- Que me diz ao meu escritório privativo?
Era uma sala pequena de abóbada alta, dois maples, uma mesa,
estantes e alguns quadros. Uma grande janela dava para o pátio deserto,
onde a água estalava sem cessar. Sofia acendeu a luz e fechou a janela. E
neste claustro de intimidade, com a chuva afastando-nos a cidade para
longe, sentíamo-nos numa solidão para os dois e era como se o mistério
de Sofia me fosse mais revelado ou menos invulnerável.
- Está-se bem aqui - disse eu.
O calor fechado do irradiador eléctrico, o silêncio inconsútil, vigiado
pela chuva, a nossa presença defendida, como que legitimavam a minha

63
excitação, o apelo voraz que subia em mim. Mas havia a conveniência,
esse plano neutral em que podíamos comerciar.
E perguntei:
- Estudou a lição?
- Não peguei em livro - disse ela, sorrindo entre o fumo do cigarro. -
Não está contente?
- Contente? Porquê?
- Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser
consequente, unir o que faço ao que... Porque não faz o mesmo?
- Como não faço o mesmo?
- Oh, não faz... Se o fizesse, já me tinha beijado.
A violência que me apanhou não foi súbita.
Houve um silêncio de atordoamento. Até que na intimidade dos meus
ossos, dos meus nervos, uma raiva de dentes me endoideceu. Sofia estava
na minha frente, frágil e intensa como uma fibra de nervo; e eu sentia-a
toda colada ao meu apelo, aniquilada, num esmagamento de mãos
torcidas, de mastigação... Ergui-me trémulo, apoderei-me dela, cerrei-a
violentamente no meu calor, tentei reduzi-la toda a esse ápice
incandescente, onde a vida infinita se me centrava. Mas ela, com uma
energia que era eficaz por me pôr diante de mim, por vir dela - um ser
frágil -, repeliu-me com raios no olhar.
Senti-me miserável como quem é apanhado nu: o que era do meu
mistério, do meu segredo, ficara ali exposto, sem que Sofia me pagasse a
minha revelação com a revelação de si própria. E reuni os meus papéis,
preparando-me para sair. Ela então veio sobre mim, já humilde, curvada,
pagando alguma coisa da minha humilhação com um pouco da sua
fraqueza.
- Nada aqui tenho a fazer - disse eu.

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- Fique, fique.
- Não se divertiu bastante?
Sofia então tomou-me bruscamente a cabeça nas mãos e deu-me um
beijo rápido na boca. Mas eu sentia-me vexado. Tinha, aliás, a certeza de
que, se tentasse de novo tomá-la, de novo havia de me repelir. Sentei-me,
por fim, em silêncio, acendi um cigarro. Uma onda forte de chuva batia
agora no pátio, irradiando a presença de tudo para uma desolação
imemorial. Sofia acendeu também um cigarro; e a sala, abafada de fumo,
começava a segregar um cheiro a vício nocturno.
- Que mais deseja dizer-me? - perguntei.
- Ah, você não entende, você não entende... O Chico contou em casa da
minha irmã o que você lhe disse. E eu sabia-o, eu sabia. Você não trouxe
nenhuma novidade. Aliás o Chico não soube contar. Mas foi como se
soubesse, porque eu já conhecia tudo.
Calou-se um momento, quebrando a cinza do cigarro. Num instante a
porta da rua abriu-se, alguém entrou, limpando os pés no tapete,
trocando com alguém palavras ininteligíveis.
- Não se preocupe. Ninguém vem aqui. Dei ordens terminantes.
- Não estou preocupado. Estou só a ouvi-la.
Eu reconciliava-me pouco a pouco com ela. De novo se me erguia,
fascinante, no seu corpo selado de luto, nas suas mãos agudas, de gestos
oblíquos, no seu olhar ilícito e inocente. Sofia falava. Em momentos
fulgurantes, pelo meio da noite, ela descobrira também a vertigem da
vida, da sua pessoa, da gratuidade desse absurdo milagre, da
interrogação para o amanhã: Eu já conhecia tudo. Ou talvez não tivesse
descoberto verdadeiramente e só agora, ao aviso da minha palavra, tudo
se lhe revelasse em violência, um bater descompassado do coração. Que
havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e

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de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo?
Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia
os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as
leis dos outros e a sua sanção o seu teimoso estabelecimento de uma
comunidade ,para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da ida, a
resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e
executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras
que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento.
Este eu solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o
pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse eu e a
sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo!
Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o
despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a
dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional?
Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de
sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade
de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Ilumi-
narmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos
com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. Somos
cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote até
às fezes a nossa condição de escaravelhos.
Calou-se enfim. Uma beleza demoníaca, como de uma criança
assassina, fulgurava-lhe nos olhos líquidos, na face branca, na boca ávida
e sangrenta.
E um apelo de uma união trágica e blasfema subiu-me pelo corpo
como um grito estriado, uma raiva distorcida com longos olhos cho-
rando... Então, quase serenamente, tomei Sofia nos braços e ambos nos
sentimos perdidos de aflição como no último amor de dois condenados à

66
morte.
Quando voltámos a ouvir a chuva no pátio e nos reconhecemos enfim
um ao outro, o olhar que trocámos foi quase de amargura e de piedade.
Mas, após um longo silêncio, Sofia acabou por sorrir-me, porque era ela
talvez quem ali apenas poderia proteger:
- E a lição? Não damos hoje a lição?
Trabalhávamos agora o canto 4º da Eneida. Ela abriu o livro:

“Anna soror, que me suspensam insomnia terrent”. Quis novus hic nostris
successit sedibus hospes.”

E traduziu, já séria, fulminando-me quase de gravidade:

Minha querida Anna, que fantasmas nos trazem desvairadas! Que assassino
foi este que entrou na nossa casa!

Mas subitamente parou, sorriu-me outra vez, beijou-me devagar nos


olhos, quase com devoção:
- Meu querido assassino...
- Mas hospes não significa...
- Meu bom assassino...

67
VIII

68
A chuva cessara quando saí, a tarde escurecia rapidamente. Sentia-me
perturbado e pus-me a percorrer a cidade sem destino. Trazia ainda nas
mãos um calor de sangue, trazia em todo o corpo um sabor morno à
humidade elementar onde o cansaço, à angústia, a plenitude subterrânea
anunciam o esquecimento absoluto e a ressurreição absoluta. Doíam-me
ainda os dentes, as unhas, as junturas dos ossos. Uma raiva milenária
centrara-me em delírio como num acto de desespero. O frémito que se
extinguia em mim não falava a uma harmonia solar mas a um choro
solitário de condenado. Assim me agradava percorrer as ruas como se
fugisse de mim. Nos muros brancos ressumando água, nos pátios e
jardins empapados da chuva e que eu entrevia por portas entreabertas,
pelo gradeamento de janelas vazias, nas gentes que passavam, flácidas
como esponjas, no céu espumoso de névoa, no suor de goma, já frio, do
meu corpo, eu sentia a lassidão que entorpece e cerra os olhos e inventa
um abandono de caminhos desertos ao vento. Saio à estrada de
circunvalação, vou ao longo da muralha com os seus dentes descarnados
em arranque para o vazio... Como a minha cólera Se obscura... Será pois
vão tudo o que sonho? Velho Fausto da pobre ilusão, serás tu, pois, o
génio dos meus dias? E já à hora da procura, da juventude... Sou novo e
sei. Como mo não sabe a vida? Pergunto-o, . agora que passo sob os
grandes arcos do aqueduto, e é como se me coroasse o triunfo de uma
ruína. A estrada de terra batida enlameia-me os passos, os carros fogem,
estrugindo na lama, crianças brincam em poças de água negra. Do alto da
rampa do Liceu, aonde chego enfim, olho atrás um momento a planície
saqueada. As terras ensopadas fumegam em silêncio. A espuma da
neblina amassa o horizonte, um arrepio de viés, como um esquema de
vidros, inteiriça o mundo à ameaça da noite... Só ao longe, para as bandas
de Évora-Monte, um rasgão no céu abre ainda uma mancha de sol - um

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facho erguido sobre um campo de ruínas... Encosto-me ao gradeamento
do largo e penso para o deserto com o fumo do cigarro. A noite veio de
súbito quando as luzes se acenderam.
Bruscamente, porém, a imagem de Sofia estampou-se-me nos nervos.
Precisava de a ver de novo, de cerrar o mundo todo no meu punho
sangrento. Atravessei a cidade, desci a sua rua, bati à porta. Que iria
dizer? Oh, Sofia, nada, nada. Ver-te, ver-te só. Ouvir-te ainda, mergulhar
até às fezes da minha condenação. Por milagre ela estava ainda no
escritório, veio logo até à porta. (Esperava-te também, esperava-te
também....) Que era a vida e o seu sonho e as suas conveniências? Ser
feliz, ser feliz. Esgotar no instante toda a ferragem e velharia de quantos
problemas e interrogações e amarguras. Fui até ao âmago, ao extremo
limite da procura, até ao ponto incandescente onde as minhas angústias e
a minha raiva se consumiam, se largavam na babugem de uma boca que
espreme todo o seu fel e todo o seu sonho... Mas tudo era tão excessivo
que um grito de dor me vibrou desde as unhas dos pés. Numa estria de
fogo, ardiam-me os rins, o estômago, a garganta asfixiada, a minha língua
de veneno...
Saí enfim. E quando transpunha a porta, Madame Moura, ao que
julguei, fingia descer a larga escadaria para uma sala ao lado. Veio até
mim, tomou-me nas suas a minha mão e apertou-ma longamente:
- Como vai a nossa estudante?
Falava por cima do que estava dizendo com as mãos.
Respondi às palavras como pude:
- Vai bem. Vai muito bem.
Sofia, encostada à meia-porta, que a cortava na vertical, sorria apenas,
longe do que dizíamos ambos.

70
IX

A vida recomeçou. Todos os dias de manhã subo a Rua da Selaria para


o Liceu, ouço a praga de carroças que atroam a cidade. Perto do nicho do
senhor dos Terramotos, que lhe fica ao alto e quase em frente, o cão
espera o osso da janela lá de cima. Com a chuva, encolhe-se a tremer no
limiar de uma porta. Eu rodeio a Sé, desço uma escada íngreme junto de
três arcos solitários, desço a rampa, recomeço as aulas. Fixar uma vida em
torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! à unidade que nos
pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é
uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil nos
perdermos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não
sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença
imediata. Um caminho é o caminho em cada instante que passa. Muitas
vezes o pensei, aos domingos, no mercado matinal, junto de São
Francisco. Aldrabões de feira fecham um círculo de atenção, impingindo
o seu vigário; vendedores de ferro-velho oferecem restos de arados,
parafusos, três elos de corrente, bacias descascadas, armações de
lavatórios, espelhos, garrafas vazias, rolhas, fivelas de cintos; livreiros
vendem almanaques antigos, folhetos de cordel, livros de missa, volumes
de folhetins, compêndios escolares de outrora; há os vendedores de fatos
usados, de chapéus velhos; há os vendedores de louças, velho calçado; há
ainda, perto do muro do jardim, os vendedores de blocos de cal, com as
suas carroças pousadas nos varais, os cavalos desatrelados ruminando a
ração. Mas cada fragmento deste lixo está exposto preciosamente, porque
lhe pertence uma fracção do nosso interesse, do nosso entusiasmo. Pobre
feira da ladra - a vida. Eis-me passando para o jardim, para beber o sol do

71
Inverno. Mas ouço os aldrabões e quedo-me e olho o estendal de
ferrugem, de sebo livreiro, à face das grimpas da velha igreja.
Um dia, ao descer para o Rossio, que é um vasto largo deserto onde
gosto de deambular, encontrei Cristina com a criada, a Lucrécia, subindo
a arcada para a Praça. Vinha seriazinha, com uma gravidade que nela não
era imposta pela educação - essa forma de antecipar o adulto na criança.
Com o seu casaco de creme, um barrete azul de malha apertado no
queixo, os cabelos louros saindo para os ombros, caminhava certa com a
criada, saudando senhoras solenes, armadas como tronos, que lhe
sorriam, homens postados às portas das lojas, lavradores de botas de
bezerra e de colarinhos sem gravata, travados de ouro. Porque Cristina
era muito popular.
- Então, Cristina! Foste à tua lição de piano?
- Não, não fui à minha lição de piano. A minha professora vai-me dar
as lições a casa.
- Então aonde foste?
- Fui ver a Ana, que está doente.
- Doente?
- Sim. Ontem tinha febre. Mas hoje está melhor.
Ana morava ali perto e resolvi bater-lhe à porta. Quando, porém, uma
criada abriu e perguntei pela saúde de Ana, Alfredo, que saía,
reconheceu-me e fez-me entrar. Era uma casa antiga, com um grande
átrio frio, uma escada ao fundo com corrimão de granito. A meio do vasto
átrio, um grande pote de cobre, como em casa de Moura, centrava aquela
nudez de luxo de velhas eras. E uma vez mais eu senti ali, como em casa
de Moura, como em tantas outras as entrevistas num ocasional abrir de
portas da rua, a presença fria de tempos remotos, essa presença de ossos e
de linhagem, um opaco silêncio de grutas, um eco de velhos senhores

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com botas ferradas em madrugadas de gelo, a memória póstuma de uma
rudeza primitiva. Ana estava sentada ao fogão numa pequena sala aberta
de portas para todo o lado e que os pesados reposteiros mal defendiam.
Ergueu para mim os seus grandes olhos de fogo, sorriu com o seu dente
saído, que dava ao seu corpo vibrante uma graça infantil de imperfeição.
- Então que foi isso? - perguntei.
Mas Alfredo interrompeu-me, de mãos dadas à frente, curvando-se
para nós com a sua bochecha rosada:
- Bem, meus caros amigos. Vocês ficam agora aqui no quentinho a
conversar, que eu vou aí adiante à minha vida. Meu caro doutor... Adeus,
Aninhas, minha rica... O Chico também deve estar a chegar.
Sentei-me num sofá em frente de Ana. A lenha estalava no fogão, pelos
vidros de uma janela eu via adiante, descendo para os lados da estação,
uma floresta de chaminés brancas, flores de gesso nos ângulos das casas,
grandes terraços gradeados de ferro.
- Mas então? - perguntei ainda. - Uma ponta de gripe? E já melhor?
- Coisa sem importância. Uma dor de cabeça, umas décimas de febre.
Tudo passou. Fui sempre muito saudável.
- Sim, sim. Diga-me, dona Ana...
- ... Ana. Sou só Ana. Tenho aqui o bilhete de identidade...
- ... Diga-me, Ana: nunca pensou em concluir o seu curso? (Um curso
de Letras que eu sabia ter interrompido para casar.)
- Ouça, doutor Alberto...
- ... Sou só Alberto. Tenho aqui o bilhete de...
- Ouça, Alberto: o curso não me entretinha senão mais três anos. E, de
resto, eu não quero entreter-me...
- Decerto - concordei. Mas o curso não era para entreter, era para lhe
firmar uma... uma consciência. Sem dúvida, num curso pouco se aprende.

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Mas dá-nos pontos de referência, talvez nos dê uma certa forma de
responsabilidade.
Ana calou-se, tirou de uma cigarreira de pele branca um longo cigarro,
que acendeu. Depois, bruscamente, mas calma, sacudindo a cinza,
perguntou-me:
- Que há entre você e Sofia?
A velha ordem de pedagogo, que vivia em mim, incendiou-me de
remorso e cobardia. Mas reagi:
- Sofia sabe o que quer...
- Sabe o que quer... Todos julgamos que o sabemos. E depois um
acidente qualquer vem-nos provar que não.
- Você não sabe, Ana?
Ela olhou-me com o seu olhar iluminado, como se quisesse
defender-se de uma acusação, não minha, mas dela. E, um pouco
transtornada, increpou-me vivamente por ser ali a testemunha dessa
acusação:
- Quem julga você que é? Que notícia extraordinária pensa que nos
traz? Tenho a minha vida resolvida há muito tempo e não é qualquer
pessoa, qualquer ideia que pode transformar-me.
- Mas, Ana, eu não disse nada, eu não disse. Você é que afirmou que
um acidente qualquer nos pode mudar.
Ah, como te torces dentro de ti! Também tu então nada sabias de ti!
Também eu te trouxe a notícia das vidas onde hás-de acender a nova luz.
Céus! Mas tão eu fui necessário! Todo um mundo duvidoso esperava o
novo Messias! Sofre, amiga! Trago comigo a destruição dos mitos que
inventaste, desses cómodos sofás em que instalaste o teu viver
quotidiano, como esse em que estás sentada. Mas eu não te ensinei nada!
Ninguém nos ensina nada, talvez, minha amiga. Só se consegue aprender

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o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino,
somo-lo: se alguém no-lo ensinou, não demos conta disso. Ensinar então é
só confirmar.
- Resolvi definitivamente os meus problemas com os deuses - clamou
Ana ainda. - Definitivamente!
Mas eu não falara ainda de deuses. Sabia bem, todavia, como a minha
notícia podia trazer o seu eco. Também eu liquidara as minhas contas
com os céus...
- ...não sei se definitivamente, Ana. Mas creio que sim. Quem pode
estar prevenido contra as evidências do futuro? A parte de nós que é
transaccionável, que está regrada para os gestos, o código das ruas, essa
poderá mudar-se talvez, porque é postiça quase sempre. Mas a
iluminação de dentro, a pura presença de nós próprios é o nosso ser. E
esse não se muda senão quando ele quer. Uma vez...
E comecei a contar. Eu andava no liceu, estava no sétimo ano...
Mas subitamente Ana estendeu o braço com um dedo em riste e veio
pôr-mo diante:
- Não conte. É tudo tão doloroso...
Os olhos vidrados brilhavam.
- É tudo tão simples - disse eu. - Tudo o que é forte e decisivo acontece
como ter fome.
Sentia-me aturdido, com vagas de febre nos ouvidos. A janela
multiplicava-se numa fieira de janelas paralelas ou num esquadriado de
rectângulos até à planície, uma dor penetrava-me no crânio como um
prego. Ana pôs um cepo no fogão, um gato preto com uma fita vermelha
ao pescoço e um guizo subiu para o sofá. Moveu-se lesto e silencioso
como uma insídia. Depois, ronronando, de cauda espetada, rodou em
torno do busto de Ana, encostando-se-lhe, de patas tensas, como se a

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empurrasse, enrolou-se-lhe por fim no regaço. E ali ficou assim, com a sua
presença inquietante, oblíqua de avisos nos olhos lúcidos que entreabria
com um lampejar metálico. Um silêncio trémulo descia com a tarde que
alastrava pelas faces planas da cidade, pelo horizonte da planície nula.
Errava no ar um vago odor a remédios e talvez que a minha vibração de
febre fosse como um seu contágio. Ana olhava-me, direita, desde uma
eternidade imóvel que vinha das esfinges, dos desertos, civilizações
perdidas, da obscuridade de todos os ses e de todas as interrogações. E eu
projectava-me todo, fascinado, para aquela pessoa inteira.
Habitada no limite dos seus seios fortes, das suas ancas volumosas e
solenes como a noite germinara, das suas mãos imóveis, do seu dente
ingénuo de imperfeição. E, ao irresistível apelo daquele milagre avulso,
daquele mundo ignorado, fantástico e sem importância, outra vez me
inundou a torrente de perguntas, de espanto, de exclamações absurdas e
eram o rio caudaloso que tentava exprimir-me e onde só os destroços
dessa minha alucinação podiam dizer espalhadamente o que eu queria
dizer.
O instante em que me afirmo é uno como um ronco. Bruta expressão
de presença, flagrante indiscutibilidade. Mas eu sei que lhe pré-existem e
o erguem quantos ventos e aluviões e estrume e infinitos sóis. Somente
agora que são eu, não os entendo. Sei que mudei, mas não sinto ter
mudado. Se tento recuperar o passado, não o consigo. Os factos que
verdadeiramente recordo não têm imediatamente significação. Porque o
que eles significam é mais violento e antigo do que eles.
- Escurece - disse Ana. - É Melhor acender-se a luz.
- Sabe que o meu pai era ateu? E que minha mãe foi sempre o que se
chama uma beata? Meu pai explicava-nos a vida, o universo, tinha
sempre respostas naturais para as nossas perguntas. Minha mãe casou

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com ele, amou-o sempre, mesmo por aquilo que o separava dela. Creio
que o julgava forte. O pai de minha mãe era um anticlerical esturrado.
Com pêra e tudo. Fui à igreja, fiz a minha comunhão. O padre ia a nossa
casa e arrotava. Depois soube que tinha filhos. Bem: eu tinha um Céu,
tinha Inferno, Deus Padre, Deus Filho, o Espírito Santo, anjos, diabos, a
aparelhagem completa para a vida funcionar bem. No liceu; quando
passava um padre, os estudantes mais velhos, alguns de barbas,
gritavam:
“Quá;” ou diziam: “Já perdi uma coroa”. O meu irmão “quá” Evaristo
era terrível. Blasfemava como um espanhol.
Uma vez, muito bêbedo, meteu-se no coro das Filhas de Maria durante
o mês da Virgem, que é em Maio e pôs-se a cantar desafinado.
Puseram-no na rua e foi aclamado. O meu irmão Tomás já não ia à missa.
Mas não dizia mal dos padres. Foi para Lisboa e recusava-se a ir à
desobriga. Minha mãe chorou, ele abraçou-a e o meu pai sorriu. A certa
altura eu comecei a não ir à missa. Outras vezes ia. O pecado começava a
ser-me familiar. Não sei porque não ia à missa, não significava nada. Mas
rezava ao deitar.
Era um jeito, como ler antes de apagar a luz. Um dia pensei: “Que
estupidez.” Os gestos reformam-se. Porque os gestos duram. Como um
cadáver. Cortei com o gesto e apanhei uma insónia. Na noite seguinte já
dormi. E uma vez pensei: “Afinal, Deus não existe”. Não existia mesmo.
Era evidente, natural, claro, como era claro não haver Pai Natal. Mas era
agora evidente desde as raízes, como à superfície mecânica do dia-a-dia.
Evaristo blasfemava, mas conformava-se e desobrigava-se e, se não ia à
missa, era por despeito, como quem se vinga. Depois fui político. Ser
avançado era bom e verdadeiro como ter força e ser novo. Depois deixei
de ser novo e de fazer barulho. E, quando não houve barulho, ouvi vozes

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obscuras, submersas a esse mesmo barulho. Depois a vida não teve
significado, porque me estava sem emprego. Bom: então, deste grau zero,
descobri que estava vivo, que existia, e era eu. E agora tento salvar essa
extraordinária descoberta, pô-la a funcionar com o universo e a morte.
Troilà.
O gato preto ergueu-se do regaço de Ana, espreguiçou-se, arqueando o
dorso, abrindo a boca de dentes agudos. Depois saltou ao chão, com um
baque no estofo almofadado. Ana meteu outro cepo no fogão.
Agora, as faces brancas das casas tomavam um tom azulado,
baralhavam-se numa intercepção de planos, como num jogo de axiomas
estéreis.
- Que toma? - perguntou Ana, erguendo-se a uma estante envidraçada
de álcoóis. - Há uísque Vat 69 (não faz mal a ninguém), há brande,
Coineau, Porto, Madeira, conhaque Napoleão e Carlos I. genebra...
- Uísque. Com sifão.
Trouxe o material, prepararam-se as bebidas.
Abriu latas de amêndoas, pinhões, amendoins. E, bruscamente, mas
com a calma habitual, a calma que era nela uma tensão a explodir, Ana
perguntou-me:
- Porque é você tão pantomineiro?
Onde conversávamos nós, Ana? Em que ponto cimeiro entre espaços
desabitados? Pergunto-o agora diante de outro fogão, aqui, na velha casa,
aberto de limiar. Não há presenças aqui senão as das origens. Minha
mulher dorme. Estou só. Habito o início, o silêncio de mim próprio, onde
a verdade é nua como o luar na montanha.
Pousei o copo bruscamente, verguei a fronte acabrunhada. O gato
empinou-se-me aos joelhos, fitou-me com os seus olhos sulfúricos, miou.
Sacudi-o, ele bufou, de dentes à mostra, sapateando as patas no ar, de

78
garras desembainhadas.
- Porque me chama pantomineiro?
- Tudo comédia, tudo comédia. Deus vive no seu sangue como um
vício. Deixar de beber, de fumar. Mas o seu mundo é o do ópio e do
álcool.
- De que tem você medo?
Ela empalideceu, gastou três fósforos para acender o cigarro:
- O moralista é normalmente um pecador. A moral vivida não se
prega. Não pense que vem perturbar-me. O que mais detesto num demó-
nio não é o mal que faz: é a sua pedantice. Estamos todos prevenidos,
estamos todos prevenidos!
- Ana!
Ela não falava alto senão com os olhos. Mas esses eu ouvia-os até me
doer a cabeça. Como numa fúria de injúrias a um condenado... Depois
pegou no gato, pôs-se a beijá-lo, a esfregar-lhe a cara no focinho, a
fazer-lhe cócegas no ventre felpudo. E, sem uma transição, arremessou-o
ao tapete com um estrondo e um tinir de guizo. Alongou o pescoço,
falou-me em voz surda, de augúrio:
- E julga você que Sofia é sua? Teve já vários amantes! O primeiro foi
um aluno da Escola Agrícola. Depois foi um colega dele. Na praia, uma
vez, foi um homem casado. Em Lisboa, no Carnaval...
- Cale-se!
Ela sorriu, enlevada, fechou os olhos e recostou-se. Eu ergui-me para
sair. Mas pouco depois a porta abria-se e Alfredo apareceu:
- Já embora, doutor? Foi por eu chegar?
- Não. Tenho de ir indo.
- Deixe-se estar mais um bocadinho. Trago uma notícia que também
lhe interessa. Adeus, Anica, minha rainha. Mas sabem o que sucedeu?

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Não me sentei, mas não saí logo. Alfredo, porém, depois de beijar a
mulher, instalou-se numa cadeira, estendendo as botas de cano para o
lume. Ia falar mas suspendeu-se ainda, indicando-me o sofá.
- Sente-se, doutor.
Ana interveio, inesperadamente:
- Sente-se. E ouça: jante hoje connosco.
Sentei-me, acendi um cigarro.
- Pois a coisa é uma maçada - confessou Alfredo Cerqueira. - Então não
querem lá ver uma destas? Estive agora com o Ramiro dos artigos
eléctricos (e a propósito, Anica, o secador do cabelo não tem conserto. A
bobina ou o dínamo tinha de ser enrolado à mão e levava horas e horas e
não tem pessoal). Mas então não querem lá saber que a família do Bailote
vai processar o meu sogro?
- Quem é o Bailote? - perguntou Ana.
- O homem que se enforcou, o tal que já não tinha mão para semear.
- Mas que tem o meu pai com isso? - interveio ela ainda.
- Pois isso foi o que eu logo lhe disse. Então que é que o meu sogro tem
com isso? Que o meu sogro o desanimou. Olha o Bailote... Então não
conhecia? Era muito... tinha muita piada, aquele ladrão. Uma vez,
doutor...
Contou. Não o ouvi. Baralhavam-se-me as ideias e tremia.
Queimavam-me a boca palavrões de insulto, de vingança, precisava de
vexar aquela tipa, que, de perna cruzada, baforava um fumo feliz. A
ameaça sobre o pai decerto a não comovia. Gozava a renda das ofensas
que capitalizara em mim. Sou então um aldrabão, senhora? Preciso então
de valorizar a minha fraqueza à tua face? Mas porque me desafiaste? Não
preciso do teu apoio, do teu interesse, da tua complacência! A minha vida
é minha, sou eu que a resolvo contra a tua arrogância, o teu escárnio

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imbecil. Deus morreu, Deus não é a minha meta, é o meu ponto de
partida. Assumo a minha fraqueza como assumo as minhas tripas. Na
miséria ou na glória, sou eu! E como é reles que fales na tua irmã. Que me
importam os amantes que teve? (É claro que o meu sogro vai ter com...)
Onde me queres ferir? Em que parte da minha miséria? (...mas o
advogado...) Sofia é maior do que a tua vilania. Sabe o preço dos seus
sonhos e paga-os sem hesitar. Aliás, eu não a amo; Ouço nela a voz dos
actos que unificam, dos gestos que resolvem a vida por uma vez. (Eu
disse logo ao Ramiro: - Que é que o advogado há-de...) Não, não quero
suicidar-me. Quero achar a evidência que procuro, estabelecer nela a
minha vida em plenitude. Mas o grito de Sofia imita-a no esquecimento.
Esquecer, unir, vertigem... os teus olhos calmos, Ana, o homem que se
enforcou, estava uma tarde bonita, Ana, uma luz pura, filtrada em
violeta, uma alquimia de ouro, as azinheiras estáticas, a sua sombra em
cauda solene (...porque a questão é só esta: “que lei é que...)”, onde a
grandeza da vida? Não na qualidade do sonho senão para quem sabe de
mais, uma mão que semeie, que se cave fundo, absorva o máximo de
semente, responda ao pedido da terra, à voz da misteriosa germinação, e
o teu pai (nunca o meu erro...), somos todos culpados, somos todos
ignorantes, culpado eu de lhe não dizer: “É tarde já, meu amigo, não
semeies, resigna-te a ser tu semeado, é tarde já”! - que horas são? Olho o
relógio e olho Ana e assim nos esquecemos um instante. Só então reparo
que Alfredo se calara, suspenso sobre nós; há um silêncio submerso nas
raízes da nossa presença. Olho Alfredo, num instante, ele sorri, mudo,
com o seu sorriso oco, à maneira de um velho desdentado. Depois,
sibilino, ri alto e curto eh, eh... Estremeço. Ana emprega a força da sua
naturalidade para restabelecer tudo em verdade corrente. E pergunta:
- Quando é que tu me hás-de dar o casaco, redo? O meu marido não

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tem vergonha de andar pela cidade sem um botão no casaco?
Alfredo senta-se-lhe ao pé, “diz “minha rainha” e corre-lhe o cabelo,
exibindo-me a sua posse. Depois deseja saber o que penso da questão do
sogro. Penso que é uma questão sem pés nem cabeça. - Tal qual o que eu
disse logo ao Ramiro. E diz-me, doutor, não conhece a nossa casa?
- Ó Alfredo...
- Minha rica Aninhas, deixe-me mostrar a casa ao doutor. Eu gosto
muito da minha casinha...
E ergueu-se convidando-me a acompanhá-lo. Mal me lembro dela.
Mas recordo bem o quarto, o quarto de casal, onde Alfredo se demorou.
Fez-me palpar o colchão, bater as molas. Ele próprio caiu sentado a todo o
peso sobre a cama, balançando-se com regalo.
- Bela cama, hem, doutor? Estreada há oito dias.
Disse que sim, sem retraimento: Sofia não dormia ali...
- E sabe uma coisa, doutor? Quando quiser uma cama, vá ao Romão
das Portas de Moura. Isso é que é um artista de se lhe tirar o chapéu, o
ladrão. Olhe só para isto!
E tornou a cair sobre o colchão, provando a comodidade das molas. Eu
estava enjoado - ou não bem isso, talvez: desconcertado. Quem era aquele
tipo? Apenas um idiota? E que pretendia ele de mim Circunvaguei ainda
um olhar pelo quarto: a cama tinha um dossel com o seu aparato real, um
aroma oleoso impregnava de intimidade todas as coisas; tudo tinha um ar
de servido e uma memória à presença de corpos e suor.
- Está visto, doutor?
Claro que estava visto - e regressámos à sala. Mas com certa surpresa
nossa...
- ...Olha quem aqui está! Pois já vieste, Chiquinho da minha alma?
Então levanta-te e vem cá dentro, que te quero mostrar uma coisa.

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“Era a cama” - pensei. Com certeza. Chico levantou-se, risonho, lá foi
para dentro com Alfredo. Ana fechara as portadas das janelas, e um
quente de conforto, em estofos e fogão, unia a sala de agasalho, e
esquecimento. Eu não me sentara, esperando Alfredo para me despedir.
Sem me dizer nada, Ana olhava o fogão, olhava o relógio, até que tirou o
termómetro de um sovaco, desapertando a blusa até à alvura do seu
recato:
- Trinta e seis e oito. Está fino. Sente-se, Alberto.
- Tenho de ir indo.
- Já dei ordens para o jantar. Não seja cobarde e desmancha-prazeres.
Uma fúria de cães mastigou-me os nervos. Seria pecado que pudesse
vexar-me, era esse da cobardia. Amigos de Coimbra chamavam-me
velho, cobarde, decadente, só porque eu tinha agora um problema de
vida-morte, um problema metafísico para resolver. Tinha lutado com
eles, tinha atirado o meu punho e o meu berro de combate. Não
entendiam assumir a miséria do homem, enfrentar o que humilhava a sua
condição era um sinal de coragem mais profunda.
- Não sei o que pretende de mim - disse - Mas sei que não sou cobarde.
- Então sente-se - respondeu, enquanto abria a mesa.
A mesa era excessivamente grande para quatro pessoas. Possivelmente
tinha tabuleiros corrediços e esticara-os até ao tamanho maior. Aos topos
fica ela e o marido. Chico e eu aproximadamente ao centro, mas não
frente a frente, de modo que os quatro talheres não desenhavam bem um
losango: Chico ficava mais perto de Alfredo e eu de Ana. A sala era
enorme, com uma frialdade de grandes muros de sombra, e, apesar dos
radiadores eléctricos, eu sentia-me arrepiado de nudez. Comíamos em
silêncio, com tinir árido de talheres. Enchíamos a colher, parávamos como
se a sopesássemos, engolíamos.

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Alfredo dedilhava por sobre a mesa uma torrente de palavras, que nos
não atingiam, como a agitação da super-grandeza. Falava de bois, de
cavalos, de raças de coelhos e galinhas e finalmente dos seus canteiros de
rosas e de goivos entalhados junto ao muro de uma herdade, mesmo ao
pé da grande nora.
Sob esta agitação palreira havia entre nós uma conspiração de olhares.
Eram olhares não planos, frontais, de um puro encontro de presenças,
mas longos de cumplicidade, para lá dos olhos.
Em mim, porém, eram só interrogação e suspeita. Era sobretudo Ana
quem instaurava esta clandestinidade, fitando-me a mim, a Chico,
sorrindo transversalmente. Alfredo às vezes interrompia-se surpreso,
intervindo no jogo. Mas logo voltava à sua herdade, aos bois e às rosas,
estabelecendo talvez conscientemente a sua conversa de palavras sobre a
nossa conversa muda. Uma criada veio, levou os pratos da sopa. Os
talheres brilham à luz das lâmpadas, tecem uma ligação de fios de aço.
Enchem-se os copos de cristal, retine no ar uma nitidez de arestas, uma
realidade facetada espelha-se entre todos os objectos. Encostados aos
muros, há móveis com uma abundante exposição de pratas, dentro de
montras de vidro, como nas ourivesarias...
Subitamente, Ana tira flores do centro da mesa e: vem-nos enfeitar a
lapela aos três. Sinto-me lúcido e vão como as pratas dos bombons
espalhados pela mesa, amontoados em taças de vidro. Estou inútil, de
mãos na toalha branca, diante das louças, da fieira de copos de pé alto,
dispostos em escala. Que é de mim?, do que me habita?, do que me
esqueço? Então Chico retoma para Ana uma questão decerto dos dois:
- O Comité de Salvação não pode explicar a tua atitude senão por um
abandono dos princípios.
Vejo-me pelos olhos de Chico, vejo-me pelos olhos de Ana, de Alfredo,

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sinto-me pessoa na pessoa Deles, reconheço-me um todo fechado do lado
de lá, edito-me em mim próprio na pessoa deles, sinto-me uma quádrupla
força misteriosa, fechada sobre si. Olho cada um deles, penso o ser
estranho de cada un, com um tipo de gestos, tom de voz, a luz viva que é
eles. Penso por Ana: “Vejo o meu marido um pouco tolo, coitado, vejo o
Alberto, extraordinariamente magro, de pequeno bigode estúpido,
porque a você”.
Bigode? Eu lhe digo, Ana, eu lhe digo: para me ajudar à personalidade.
Está satisfeita? Penso no Chico: Vejo Ana, vejo este tipo aqui em frente,
magro e viscoso como as suas palavras, os seus gestos, a sua acção
sub-reptícia. Que sou eu para eles? Que objecto destrutível e sem
consequências?
Sobre o aparador há um busto, só agora reparo nele, há em mim
sempre um véu de cegueira, uma distracção congénita mesmo para o que
me vive dentro, é fácil esquecer-me, é fácil esquecer-me, seduz-me
terrivelmente às vezes uma quebreira de febre, de cansaço, longinqua-
mente sonho com um estado nulo de indiferença onde tudo seja igual em
mim, a virtude, o bom e o mau. A minha lucidez é violenta como um
ataque. O busto lembra Cristina, tenho a certeza de que foi Ana quem o
fez.
- O Comité de Salvação estranhou a tua falta.
O Comité não era nenhuma agremiação, não tinha estatutos, nem
sequer mesmo essa mística que pertence a qualquer agrupamento. O
Comité não existia. Soube-o logo nesse dia. Era um grupo de pessoas
amigas que se reuniam rotativamente na casa de uns e de outros para
discutirem e tomarem chá.
Nunca fiz parte dessas reuniões, porque justamente eu era o inimigo.
Ana desculpa-se:

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- Não pude ir. Estava doente.
- Isso foi depois.
- De que se ocupa o Comité? - perguntei.
Foi o Alfredo quem explicou: Redimir o homem de hoje, preparar o de
amanhã, não é, Chico?
Silêncio. Ouço um guizo sob a mesa, atravessando a casa como um
sinal clandestino: o gato preto. Mas então, preparar o homem de amanhã?
- É preciso prepará-lo todo! - clamei eu.
- Ouça, meu amigo - disse Chico, brincando com o pé de um copo e
fitando-me com os seus olhos pequenos, cravados numa face pálida, de
pedra, pescoço em feitio de caibro. - É exactamente por isso que nos irrita:
que alguém nos venha ainda com notícias dos deuses e da água-benta.
- Quem veio com a caldeirinha de água-benta? - perguntei.
- Olha, Ana, minha rica, tomaste o xarope antes do jantar?
Ana acena com a cabeça, a criada ronda a mesa de novo com meia
travessa, eu escolho ainda uma asa de frango. Ninguém mais voltou a
servir-se e como sozinho, meticulosamente, tentando salvar o desastre.
Acabei enfim. Aceito uma laranja com recheio de chantilly. Chico fita-me
de vez em quando como a fazer pontaria ao meu sossego que o
desassossega, Até que dispara:
- Uma palavra pode ser tão criminosa como uma punhalada. Irra,
falemos claro: que pretende você?
- Ana - perguntei -, arranja-me um café?
- Decerto. Tomamo-lo lá dentro.
E voltámos à sala do fogão. Uma pinha de brasas e cinza derretia-se na
grelha. Ana pôs cepos novos.
Senti que estava bloqueado de hostilidade, até de Alfredo, talvez por
me supor sob a sedução da mulher. Que pretendia eu? Era tão estúpido

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dizê-lo assim, entre um mundo concreto, endurecido, estável. Para me
explicar, era preciso uma preparação, não de palavras mas de um estado
afectivo, de nudez íntima, de humildade. Não o dissera já a Ana?
Adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma actividade
necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura
ausência, um nada-nada).
- Sou materialista! - disse eu.
- Você? Materialista? - riu Chico. - Essa tem graça.
- Mas o meu materialismo não é o de um pedreiro.
- Quantas colheres? - perguntou-me Ana, erguendo o açucareiro.
O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós, nós próprios, a
interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade - tudo era da vida
real, da matéria de que eram feitas as pedras e os cardos. Sim, os deuses
tinham habitado tudo isso. Mas os deuses estavam mortos. Mortos sem
discussão. Mortos-mortos. Porque recusar a evidência desse mundo? Ele
era o homem, do seu barro, como os dentes e as tripas.
Havia uma tarefa ingente: reabsorver em humanidade natural, em
equilíbrio, todo esse mundo suspeito era suspeito. Mas talvez fosse
suspeito só por o terem viciado: na verdadeira era do mito, os deuses não
tinham ainda nascido.
- É exactamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se
tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava
duas vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.
Há uma luz verde de um quebra-luz a um canto.
Alfredo cabeceia ponderadamente, diz por fim:
- Sim senhor. Muito bem visto.
Tenho-lhe ódio. Para este imbecil, eu falei bem.
Chico bebe cálices de Macieira. Ana tem já o gato preto ao colo.

87
Imprevistamente, diz-me uma palavra de aplauso:
- Essa é a base última de um verdadeiro humanismo: instalar o homem
mesmo nos aposentos divinos.
É uma frase bonita, talvez, mas não fui eu que lha disse? De qualquer
modo, Ana opõe-se a Chico, toma o meu partido. O telefone retiniu, Ana
foi atender:
- Sim, Cristina. Diz ao pai que estou bem. Não, não tenho febre. Sim...
Quanto a isso, não sei... Está; jantou cá.
Pousou o telefone:
- A Sofia perguntou por si.
Corei. Corei ou não? Senti-me mal. Sorvi uma longa fumaça do cigarro
- do charuto. (Alfredo apresentou-nos uma caixa aberta de charutos).
Agora não há mais nada a dizer. Ana põe um disco a girar no
aparelho, que lhe fica ao lado e ela utiliza pelo dia fora para matar o
tempo. Discos gastos. Ou aparelho mau. Discos já roufenhos.
Folheamos revistas, há um silêncio de harmonia ou de suspensão:
Gosto de olhar o lume, os cepos com uma chama azulada que mal adere à
madeira e desliza por ela aos lampejos. É um lume discreto como uma
breve presença. Não como este diante do qual escrevo aqui, na velha casa,
e que enche o espaço deste salão com um justo augúrio onde me perco e
tenho medo. Não podemos ficar ali indefinidamente, Ana tem de se
deitar cedo. Parece-me que Alfredo já cabeceia de sono. Tem os olhos
pequenos e vidrados de álcool (bebe bastante), uma face menineira de
boas cores, um pasmo ancestral em todo o seu ar ingénuo. Sorri quase
sempre. Ouve as nossas conversas, apartado, fitando-nos alternadamente,
balançando às vezes gravemente a cabeça como se comparticipasse do
que dizemos. Mas, quando mal nos descuidamos, ele reage e fala de outra
coisa. Tem portanto também o ar de dizer. E, como o diz sem reservas,

88
supõe-no importante. Sinto que, pouco a pouco, a minha pessoa perde
interesse para esta gente - para Ana. A minha presença não é exemplar
senão de vez em quando. Pois é uma presença neutra, desvendada,
nivelada. Quanta coisa a concluir de tudo o que se passou? Ora não o sei.
De repente, Chico pergunta-me:
- Já foi crente?
Claro que tinha sido. Quando o deixara de ser?
Pois bem: há uns sete anos. Chico teve um riso cru, o seu riso áspero
de fibra. Era um tipo estriado de músculos, pálido, um cabelo rente e
encarapinhado de atleta. Donde vinha o meu mal? Claro, de uma
vocação. Ele criara-se em puro ateísmo, nada anti. Porque ser anti é correr
ainda o risco de ser pró. Ele era sempre puramente ateu. A Humanidade
futura devia ser puramente ateia.
- Ó Alfredo - disse Ana -, tu não te envergonhas de estar já a dormir?
- Levantei-me às seis, minha Anicas. Mas não estava a dormir. Estava a
ouvir, estava a aprender. Este Chico, e você também, doutor, sim senhor,
que ricas coisas têm dito. Tenho aprendido muito.
Levantámo-nos. Ana apertou-me vigorosamente a mão nas suas,
fitou-me, sorriu com uma cumplicidade sem razão, disse:
- Apareça. Apareça muitas vezes. Temos imenso que conversar.
Chico separou-se de mim logo à porta. Não ia, pois, já para casa ou
evitava acompanhar-me. Estalou-me os ossos na sua mão quadrada, não
com fraternidade, como estive quase a julgar quando o conheci, mas
como se quisesse vitalizar-me com a sua energia. E já depois de se
despedir:
- Não pense que isto fica por aqui. Você é responsável por tudo quanto
acontecer.
Tudo o quê? Encolhi os ombros e desandei. Não era ainda muito tarde,

89
mas a cidade apareceu-me despovoada. Solitário, sentia-a assim. As
fachadas dos prédios desciam obliquamente, altas, nuas, como numa
aparição a um jacto de velocidade, formavam em baixo, na rua, como um
estreito canal entre barragens. Uma mão, como espátula, esquadriava em
planos o jogo das frontarias, um eco surdo alongava-se pela rua até ao
vazio da planície adivinhada ao longe, como um cerco infinito à cidade
irreal. Vagueei longo tempo através das ruas, facetadas de branco, pelo
puro gosto de me sentir sozinho, sem ideias, anulado de silêncio. Uma
cidade fantástica erguia-se imaginada, numa geometria árida de
superfícies lisas, com faixas de sombra e luz estiradas dos candeeiros às
esquinas, com filas de janelas altas e cerradas, túneis de arcarias desertas,
flechas de torres, de chaminés à altura dos astros, ângulos negros de ruas,
nóvel espectro de uma civilização perdida... Saí pela estrada, subi a São
Bento, ali fiquei algum tempo, cortado de frio, olhando ao longe a cidade
contra o azul-escuro do céu, toda brilhante de luzes como uma cascata ou
uma pinha de diamantes. Filas de lâmpadas derivavam do centro até se
perderem na escuridão. Algumas luziam ainda, já longe da cidade, em
viagem não sei para onde. Sentia-me bem ali. Havia perto uma casa de
janelas apagadas. Pensei nela para viver. Tinha talvez ainda algum
poema a escrever, mas sobretudo tinha de me visitar de vez em quando,
de me não perder da minha aparição. Quando regressei à cidade era
tarde. Pensei seguir a estrada de areia que através de quintas vai dar à de
circunvalação.
Receei o escuro, voltei para a estrada de alcatrão que entra na Rua da
Lagoa. Cidade deserta, agora realmente deserta. Mas a minha exaltação
figurava-a morta desde há séculos. Apetecia-me gritar para as ruas ermas.
As arcarias abrem um túnel de silêncio, as fachadas descem em
obliquidade de vertigem. Sinto ainda um eco longo, todavia inaudível, a

90
não ser numa certa repressão de expectativa. Vozes mortas erguem-se
com as fachadas, embatem no silêncio das galerias, multiplicam-se como
num labirinto. E eu que falo? As lâmpadas adormecem pelas esquinas, há
um ressoar de espaço, como num mundo primordial.
Caminho devagar sob as arcadas. Um breve dançarino agita-se lá ao
fundo. Reconheço-o enfim.
- Boas noites, senhor engenheiro.
- Não me chames engenheiro. Sou professor do Liceu.
- Sim, senhor engenheiro. Tem Aí uma coroa para o Manuel Pateta.
Dou-lhe a coroa, mas ele já está borracho. Creio que está borracho
mesmo sem beber. Encontro-o às vezes pela manhã: tem já os olhos a
escorrer aguardente.
- Muito obrigado, senhor engenheiro. Boas noites, senhor engenheiro.
Tenho a chave da pensão? Sermão do Sr. Machado. Tenho de sair dali.
A casa no Alto. A casa no Alto.

91
X

Reentro no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou


seja, do que ainda está criando. Possivelmente, porém, o trabalho mais
não é o que nasce logo mecanizado e não tem, pois, nunca a surpresa do
cansaço. Porque se não cria indefinidamente. Eu inventava assim técnicas
novas julgava que inventava. Contava, por exemplo, uma história para os
alunos a redigirem, confrontava depois as redacções com a que da mesma
história era de um autor célebre. Baralhava frases correctas e incorrectas
para os alunos as distinguirem. Fazia perguntas dos cadernos com as
redacções para que cada aluno fizesse a crítica da de um companheiro.
Obrigava-os a fazerem redacções na primeira pessoa, imaginando-se
que essa pessoa era um groom de pé, ou um caixeiro, ou uma costureira,
ou um professor. Eles começavam: Eu sou groom no Café Britânia e
verificavam com surpresa que o mundo se lhes transfigurava. Contava as
minhas experiências aos colegas, ao reitor. Mas o que mais me excitava
eram as conversas à margem dos textos, dos assuntos de literatura -
precisamente uma disciplina do Carolino (o Bexiguinha), que andava no
séptimo ano. Eu dizia:
“Abramos aqui um parêntese; ou: Agora, um pouco de paleio”. E
largava em divagações de toda a espécie.
De que falava eu? à distância destes anos já mal me lembro. Ou lembro
quase só os assuntos e nem sempre o halo da emoção que os torna meus e
portanto verdadeiros. Porque só há a verdade do que somos ou do que
reinventamos como nosso. Os alunos abriam os olhos, fascinados, e eu
sentia que eles transpunham o limiar da aparição. Mas havia os recreios e
a caderneta e as notas, o mundo sólido e imediato. Como o havia para

92
mim. Já disse como este mundo é insidioso. às vezes tentava prolongar a
vitória sobre ele. E ficava na aula (que era na sala durante o intervalo,
olhando a planície, dourada por um sol trémulo ou varrida de grandes
vagas de chuva. Outras vezes, se tinha um furo no horário e havia sol,
passeava pelos claustros ou no jardim. De tarde, a fila de arcadas batida
de sol tinha uma luz interior, recortava-se em sombras nos azulejos da
parede. Desfolhavam-se ainda no jardim umas últimas flores vermelhas e
amarelas, semelhantes a lírios. Dos telhados, pombos desciam, em linhas
convergentes, para a taça da fonte.
Um dia o reitor veio surpreender-me nesse meu passeio. Aliás eu vira
o cão entrar pelo pátio e soubera logo que o homem vinha aí. Sem um
desvio, o perdigueiro virara à direita, subira as escadas e enfiara pela
secretaria. Ia decerto para o gabinete do reitor, onde tinha o seu recanto,
junto da secretária para consumir a sua melancolia. Porque era um cão
triste. Fazíamos-lhe festas, ele ficava quedo, de rabo pendido e cabeça
baixa. O reitor veio para mim com o seu andar patudo de gigante:
- Então? A fazer horas? A fazer horas? Hen...
- A fazer horas, senhor reitor. Está um dia...
- Hen... Está quente, está bom.
Parou, pôs-se a embrulhar um cigarro, muito direito, quase embe-
zerrado, de olhos baixos e lábio grosso estendido, como se encarasse o
seu vício com tolerância e desprezo:
- Está quente, está bom. Hen... Então como se está dando por cá?
Eu ia-me dando bem. E estava satisfeito com os alunos, com as técnicas
que experimentava, as redacções, por exemplo, senhor reitor, e as leituras,
de vez em quando, à margem das matérias obrigatórias, e a cidade e o
tempo, a memória, o silêncio, é claro, Lisboa era o meu fito, sim, tinha
esperança de para o ano, e afinal o clima, tinham-me dito que, bom, era

93
da serra, estava habituado ao frio, o claustro do Liceu (àquela hora da
tarde, um recolhimento de mosteiro, bom para se morrer ou quase), pois
era assim, estava satisfeito. O homem passeava comigo para trás e para
diante ao longo de um dos lados do jardim, onde o sol estendia uma
passadeira de luz. às vezes, ao virarmos, trocávamos o passo. Ele
acertava-o logo como um soldado na forma, dando um pequeno salto
ridículo. Disse enfim:
- Esta cidade... É preciso cuidado, muito cuidado. Essas redacções, é
claro, são curiosas, são muito curiosas. Mas dê outras, dê outras. O
groom, a costureira e tal. É claro, são redacções curiosas. Mas não as dê,
não as dê. Há outras, é claro, nunca ensinei Português. Mas há outras. A
Primavera e tal. Uma tempestade. As histórias dos meninos que dão
esmola a um pobre e assim. As histórias de esmolas são sempre bonitas. E
ficam contentes os ricos e os pobres...
Ria com o seu riso de catarro, a sua infinita bonomia para as loucuras
do mundo. Eu não o entendia bem logo então, porque a minha
serenidade não dava para mais do que para ouvi-lo, saber o que me
dizia... E àquela hora de sol de Inverno e de silêncio, tudo era excessivo
para uma harmonia inocente.
A sineta anunciava os últimos cinco minutos e em breve os claustros se
encheriam da algaraviada crua dos moços.
Mas, se eu não podia atrair os alunos a uma realidade sociológica,
podia falar-lhes do mistério obscuro da vida. Aliás, julgo-o hoje, bom
reitor, o que tu me proibias não era bem que os alunos sentissem a pessoa
flagrante do moço de fretes, do operário; era que eles criassem outro ser, à
margem da lei dos homens e talvez dos deuses. O que tu me proibias era
que eles formassem com as suas mãos mortais uma pessoa nova, um
outro Adão fora da Bíblia. Mas havia tanta coisa de que falar! De uma vez

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calhou lermos a “Sobolos rios que vão”.
Contava-se aí da Babilónia e da Jerusalém celeste. E Camões, meu
reitor de não sei quando, só queria dizer que a pátria celeste era uma
aspiração do seu sonho de miséria, do seu sonho de condenado. Mas eu
sabia, eu, que não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que,
luto há tanto tempo por reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz
ainda um rasto divino, eu, que desejo reabsorver isso na minha condição
mortal e efémera de um pobre arranjo de água e barro, eu, que nada
recuso à minha emoção e ao meu alarme de tudo quanto me alarma ou
me comove, eu, que sou materialista mas não só de um materialismo que
se mede a metro e pesa na balança, eu, que conto com o reinado integral
do homem na terra da sua condenação e grandeza, assumindo tudo
quanto se anuncia em mistério e exaltação, eu sabia que a memória de
Camões, para além dos olhos e da carne, era a minha memória de origens,
a minha memória absoluta. Somente no meu impulso para ultrapassar as
nuvens, para vencer o espaço da minha vida, eu achava o céu vazio. Mas
a memória era minha, eu o sabia, eu o sabia destes avisos surdos que me
abalam nas raízes do meu ser, deste alarme de nada quando certas horas
me visitam, quando a tua música me lembra, Cristina. Chopin. Nocturno
número 20.
Cristina... Falei aos moços de Proust, do tempo reencontrado nas
lembranças, do halo que se ergue de um sabor que se conheceu na
infância, das pervincas azuis de Rousseau, reencontradas mais tarde com
a memória de outrora. Mas a minha memória não era bem essa. A minha
memória não tinha apenas factos referenciáveis, não exigia a sua
recuperação para que o halo se abrisse. A minha memória não era
memória de nada. Uma música que se ouve pela primeira vez, um raio de
sol que atravessa a vidraça, uma vaga de luar de cada noite podiam abrir

95
lá longe, na dimensão absoluta, o eco dessa memória, que ia para além da
vida, ressoava pelos espaços desertos, desde antes de eu nascer até
quando eu nada fosse há muito tempo para lá da morte. Visão de uma
alegria sem risos, de uma plenitude tranquila, ela falava de um tempo
imemorial como as vozes oblíquas da noite e do presságio. A presença
imediata esvaziava-se e o que ficava pairando era um tecido de bruma e
de nada, canção sem fim, harmonia ignota de paragens sem nome. Que
um Deus tivesse respondido outrora a essa procura desorientada, a essa
busca para lá da vida, eu o sabia, eu o compreendia. Os espaços
abandonados do céu vazio tinham agora, todavia, um eco mais profundo.
Das abóbadas povoadas pelos anjos, pelos santos, pela divindade, o eco
descia ainda mais amplo, mais retumbante. De pólo a pólo, a memória
vibrava assim como corda retesa através do universo, e o homem
reaprendia a conhecê-la como sua, como nascida dos seus sonhos
seculares e que nele dormiam até que uma íntima nudez ou humildade
ou atenção os fizesse vibrar de novo, lhes reconhecesse a persistência.
Assim Camões era ainda nosso, embora Jerusalém fosse uma cidade
morta. O seu apelo e as vozes que lhe falavam ouviam-se ainda agora ao
abalo flagrante das horas excepcionais. Sonho para sempre vivo, talvez, o
que inquietava o homem era a descoberta, não reconhecida ainda
inteiramente, de que a voz ouvida era sua, de que o sonho atirado à
infinitude não trazia outra resposta senão a que nele se pusera, de que os
monstros e a glória e o terror e a grandeza fantástica do seu eco eram o
prodígio que habitava o próprio homem e com ele se consumia e renascia.
A Jerusalém não é em parte alguma e só a conhece o alarme de milénios
de um homem que se interroga, se procura no absoluto de uma plenitude
que é o seu sonho de entre pedras e cardos. A Jerusalém é nossa, mas
construímo-la tão longe, tão dentro da nossa violenta inquietação que só a

96
sua miragem nos visita de quando em quando, à hora das raízes e das
sombras.
Naturalmente, poucos moços me entenderam. No seu olhar aberto de
espanto, a sua imobilidade face da anunciação, eram o sinal de que algo
longínquo lhes acenava infinitamente.
Eis que, porém, o Carolino me procurou ao fim da aula. Mal tinha
reparado nele enquanto ia falando.
E de uma vez que o fitei pareceu-me pálido, borbulhas picotando-lhe a
cara de vermelho.
- Senhor doutor...
- Dize.
- Eu não sei se entendi bem, mas...
- Sim, dize.
... mas é como se entendesse, quero dizer...
- Sente-lo.
- Pois... Mas... é tudo tão... Não sei como dizer: é tudo tão forte, tão...
Mas eu, eu já sei quem sou, já me conheço, quero dizer, já uma vez me vi.
E eu queria falar disso ao senhor doutor.
Quando um aluno assim me procurava, eu não tentava naturalmente
entender-me com ele no plano da evidência, do sentir, da consequência,
da fraternidade de dois homens que se reconhecem e buscam identi-
ficar-se na comunhão: procurava apenas elucidar, instruir, informar,
colocando-me no plano neutro de um registo de ideias: a comunhão, a
evidência, era só enquanto falava para todos – como se entre a minha
condição de professor e a condição de cada um deles, simples particu-
lares, separados do que os sagrava e transcendia a todos como comuni-
dade de alunos, só pudesse transitar, fiscalizada e clara, a secura das
ideias. Mas o Bexiguinha não tinha ideias: tinha quase apenas o seu

97
alarme de louco.
- Tens aula agora a seguir?
- Não tenho, senhor doutor.
- Então podes vir comigo, se quiseres. Vou dar uma volta pelo campo.
E ele seguiu-me um pouco atrás, com receio talvez de os colegas
repararem naquela camaradagem com um professor, de que o julgassem
manteigueiro. Mas, transposto o portão, alinhou comigo: Descemos a
rampa do Liceu, tomámos a estrada do Redondo, mas, chegados à
primeira passagem de nível, seguimos à esquerda, ao longo da linha
férrea. Desoprimido da presença dos outros, Carolino falou enfim. Eu,
porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu
entendesse nele só o que sabia de mim. Não era fácil conversarmos, aliás,
porque seguíamos por uma vereda da linha e não era assim possível
caminharmos sempre a par. Na sua voz cantante, quase de falsete,
Bexiguinha contava-me das suas experiências. Voltava a relatar-me a sua
curiosa destruição da linguagem:
- A gente quando fala não pensa nas palavras, - dizia -, mas depois
tornamos a dizer as mesmas palavras muitas vezes, muitas vezes, e já não
são nada, é como que uma fala de doido.
- Sim.
- A gente diz por exemplo: “Esta cidade é bonita”. E depois repete:
“Esta, esta, esta, esta” assim muitas vezes. E no fim já não é nada, é só
som. Mesmo que se repita a frase toda. Primeiro a gente fica com uma
ideia na cabeça. Depois já não há nada.
Eu olhava-o: sim. As palavras são pedras, Carolino; o que nelas vive é
o espírito que por elas passa.
- Mas há outra coisa, senhor doutor.
Havia outra coisa, bom moço. Eu, porém, não queria envenenar-te, ao

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contrário do que depois se afirmou.
Grito daqui aos que me acusam, grito-o com a força, uma força igual e
invencível como a da montanha na noite.
Reassumir, reabsorver, recuperar tudo o que ao homem se anuncia e é
dele e é da terra de que nasceu e o há-de consumir. Não errei, não errei,
eu afirmo, apesar da ameaça desta noite longa e deste vento que estala na
chaminé, apesar destas vozes de augúrio que me cercam. Não te pregava
a morte, Bexiguinha.
Pregava-te a vida, mas a vida iluminada perante as suas últimas raízes.
Ver não é um erro. O que acontece é que nem todos os olhos aguentam: a
cegueira que aí nasce vem dos olhos, não da verdade.
Havia outra coisa - e de súbito Carolino disse-a:
- Pensei muito, senhor doutor, na história do homem que se enforcou.
Esse homem que já não tinha boa mão para semear. E então eu pensei: já
não há deuses para criarem e assim o homem, senhor doutor, o homem é
que é deus porque pode matar.
Olhei-o feroz e aterrado.
- Eu não digo que se mate, senhor doutor, eu não digo isso. Digo é que
matar é igual a criar. Bom, não é bem igual, quero dizer, é diferente, eh,
eh...
E riu, imbecilmente, infantilmente, pálido, as espinhas pontuando-lhe
de novo a cara.
- O senhor doutor há-de dizer que é uma ideia disparatada e eu não
sei, mas parece-me... E depois foi uma coisa muito forte, quando o pensei,
uma coisa muito grande, muito grande.
- A vida é um milagre fantástico - disse eu. – A vida é um valor sem
preço.
- Mas por isso mesmo, senhor doutor, por isso mesmo. às vezes penso:

99
um assassino não será por isso que mata?
- Um assassino é um sub-homem, não um super-homem.
- Pois é, senhor doutor, mas se o assassino souber muito bem, muito
bem o que destrói...
Mas uma massa negra, com um ronco surdo, saltou-nos bruscamente
adiante. Distraído como estava, assustei-me. Era um porco fugido de
algures e perseguido por um homem. Reparei então numa espécie de
bairro de lata, ali próximo da linha e que o Carolino me explicou serem
pocilgas.
Esquecidos do que dizíamos, pusemo-nos a observar as casotas de
madeira alinhadas em arruamentos, donde soprava agora um cheiro a
estrume. O homem perseguia aflito o gordo bicho, porque em breve
passaria a automotora. Com efeito, reconduzido o porco, a automotora
apareceu ao longe, balançando-se suavemente, crescendo como um grito,
passando em furacão num atroar de ferragens. Adiante, porém, saímos da
linha para um caminho no descampado. Perto, numa cerca de muros
altos, denteada de pedra, pastavam em sossego corças, veados, coelhos.
Foi o Bexiguinha quem me explicou na sua voz raquítica e rindo com
aquele seu riso, que era um misto de timidez e de perversidade:
- É para os matarem, senhor doutor. É pràs caçadas. São os veados aí
de um ricalhaço. Quando querem caçar, soltam um ou dois veados e
coelhos. Depois matam-nos.
Olhei o moço profundamente:
- Mas porque é que te ris?
- Eu não me estou a rir, senhor doutor.
Só agora reparei que tinha os olhos azuis. Era um azul claro, aguado,
como uma lucidez serena. Qualquer coisa vinha neles à superfície,
qualquer coisa de evidente e de irremediável. Acendi um cigarro, pus-me

100
a andar em silêncio. Carolino veio logo atrás de mim. Caminhávamos
agora por uma ponte estreita, paralela a uma outra, alta, de ferro, onde
passava o comboio. Em baixo, um regato formava uma toalha de água
com pedras de lavadouro à beira. Os juncos reflectiam-se no espelho,
numa harmonia delicada, e eu parei um instante, ainda preso daquela
quietude à luz da tarde, daquela miniatura de uma alegria a cintilar,
fresca e instantânea. Talvez por me lembrar dos flashes de água da minha
aldeia, em dias nítidos de Inverno, nos campos marginais da ribeira.
Andados, porém, alguns passos, vimos num largo campo uma manada
de vacas. Já perto delas, ouvimos o boieiro dar ao cão que o acompanhava
uma ordem em tom normal, como quem conversa.
Devia ser uma ordem, porque o cão imediatamente desatou em
correrias, circundando a manada, ladrando furioso a alguma vaca
tresmalhada e recalcitrante, até as juntar todas numa só massa. Quando
alguma reconsiderava e voltava atrás, o cão arremetia contra ela,
forçava-a a regressar. O homem assistia, imóvel , à manobra do cão. Por
fim, resignadas, todas regressaram em paz, num ressoar solene de
chocalhos pela planície, como a anunciação de um Angelus. Mais perto
de nós, um bando de galinhas bicava, por aparente passatempo, tufos de
ervas, montículos de lixo. Mas eis que a certa altura, quando a manada
atravessava o caminho, o cão se separou do grupo, avançando contra nós.
Veio a passo lento e olho fito como se quisesse surpreender-nos, acelerou
depois, e a uns seis metros estacou bruscamente, disparando a ladrar
como quem prega um susto. Estendia para a frente as patas dianteiras, o
peito quase de rojo, alçava o traseiro nas patas posteriores, em plano
inclinado, e ladrava, de cabeça aos estremeções.
Instintivamente, eu e o Carolino baixámo-nos à procura de pedras. O
cão percebeu o gesto e desandou, de rabo murcho, instalando-se porém,

101
outra vez, logo adiante, na posição de guerra. Carolino baixou-se,
apanhou enfim uma pedra, disparou-a como um tiro.
O cão virou-se, fugindo, convulsamente. Mas a pedra, não o atingindo,
voou sobre ele e foi apanhar em cheio, incrivelmente, a cabeça de uma
galinha.
Não havia ali ninguém, o homem da boiada, indiferente ao cão,
afastara-se provavelmente para um monte um pouco adiante. Com o
impacto fulminante, a galinha rolara uns passos estonteada, agitando as
asas aflitas, caíra, enfim, de borco, toda atirada para a frente, as penas das
asas abertas sobre a terra.
Provavelmente Carolino não vira o desastre, atento ao cão, que
desistira do assalto e desaparecia ao longe. Porque, quando eu lhe disse:
- Mataste uma galinha, ele olhou-me, olhou o sítio do bando, com um
ar emparvecido. Depois correu para lá, baixou-se, pegou na galinha por
uma asa. Em volta, na planície deserta, não havia um rumor. Eu fui-me
aproximando, Carolino, imóvel, segurava ainda a galinha suspensa. E
olhava-a fascinado, olhava-lhe o bico, donde o sangue pingava, olhava-
lhe as penas da asa que segurava toda aberta em leque, a outra asa
descaída, as patas negras com anéis de rugas e de dedos unidos. E dizia
em voz surda:
- Matei-a.
- Temos de saber de quem é o bicho - falei eu. - Tem de se pagar a
galinha.
- Matei-a.
Mas não havia ali ninguém. No próprio monte, que branquejava à
distância, tudo parecia morto. Levar a galinha até lá? Deliberei um
instante, decidi finalmente:
- Deixa a galinha aí, algum pobre a aproveita.

102
Ele olhava-me, segurando ainda e sempre o bicho pela asa. E sem me
desfitar, com o seu ar apatetado, largou-a enfim. A galinha tombou num
baque surdo e lá ficou, toda enovelada de penas, uma asa ainda
semiaberta, cobrindo-lhe quase as patas estendidas.

103
XI

Regresso a férias pela primeira vez, depois que o meu pai morreu.
Natal. Possivelmente, não haverá ceia este ano. Minha mãe vive só no
vasto casarão, Evaristo, provavelmente, consoará com os sogros, na Covi-
lhã. Mas que não venha ele nem o Tomás nem a ranchada das crianças.
Para mim não faz diferença: estou eu e aquilo que me povoa. A evidência
da vida não é a imediata realidade mas o que a transcende e estremece na
memória. A minha memória está cheia. Da janela do comboio olho a
montanha ao longe, branca de espaço, olho as matas de pinheiros, o chão
trágico de pedras. Tento reconhecer aí o que é vivo e relembra, o que dura
e aparece nos instantes do alarme. Fecho os olhos, raivoso, e busco e
busco a verdade inicial, a que sabe a minha presença no mundo, o que eu
sou, a música irredutível que às vezes me visita. Ah, o Natal não é de
nunca, porque nunca foi do presente. A alegria que procuro é de um
outrora absoluto, desde antes da infância, do eco que me transcende do
passado ao futuro, me vibra com o som de uma harmonia que não sei.
Espera-me na estação o António com a carroça.. – Há um Overdand na
casa, velho carro de perna alta, que só o Tomás sabe guiar. Mas não me
desagrada viajar assim. Instalo-me no banco, de manta aos joelhos. O
criado traz um rolo de notícias para me ir abrindo pela viagem. Mas eu
tenho tanta coisa para mim... Ponho-lhe a mão no ombro:
- Velho António! Deixa-me pensar.
Pela estrada fora, aberta entre a neve, os guizos do cavalo retinem
alegremente. Uma claridade baça desce do céu imóvel com a promessa de
mais neve. E para um olival distante gente escura canta. Fecho os olhos
ainda, e escuto. É uma música antiga, da idade da terra, da idade do

104
destino dos homens: Da amargura funda como os séculos, dos biliões de
sonhos consumidos pelas eras, ela vem até mim, essa a canção de nada,
abrindo no ar sobre a solidão do Inverno, com a mensagem de uma noite
perene. Caminhamos agora por uma recta extensa. Passam à nossa beira
camponeses escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das
misérias bíblicas. Ao fundo, barrando o horizonte, ergue-se a montanha,
que recua, vagarosa, diante de nós, como para nos atrair à sua verdade de
génese. E, suspenso sobre ela, unido ao cântico dos homens, que já não
ouço, eis que se me abre um coral longínquo, eco de que paz triunfal
numa manhã solene, esperança sem fim, esperança eterna? Messias.
Haendel. Behold the Lamb of God that taketh away the sin of the world.
E é como se através da multidão dos séculos eu ouvisse o tropear de
todos os povos da terra caminhando comigo, cantando o sonho da sua
amargura milenária. Gente estropiada, escarros de humilhação, a fome, e
o remorso, e o cansaço, e a loucura que emerge como um incêndio na
noite, e a lepra, e a angústia da interrogação, velhos da idade do sofri-
mento, gente que espera, gente que sonha... De que abismos esta mensa-
gem? A montanha vibra na sua massa branca ao apelo da ansiedade.
Vozes de longe, cantando, cantando. Marcha sem fim, ó coro da desgraça
de sempre! Que força absurda vos ergue para a esperança do que não há?
Surely He hath borne our griefs, and carried our sorrows!
Como o sabeis? Como o sabeis? Ah, a vossa dor é a medida da eterni-
dade. Mas a esperança renasce-vos sob as mesmas cinzas e a mesma
ruína... Ei-los cantando como doidos para a distância do céu nublado.
Mas vós acreditais que uma estrela nascerá por detrás das nuvens...
O coro morre ao longe entre o silêncio das fragas.
E quem avança para a montanha e para a mão que dela se ergue sou
eu só. Esperança de nada, só relembra agora a névoa da música irreal,

105
onde de mim?, em que encontro impossível com a paz e a plenitude.
Chegamos enfim a casa, o tinir alegre dos guizos por todo o pátio. Mas
não vejo ninguém. Há um silêncio quase tão audível como o de quando o
comboio pára nos apeadeiros pelo meio da noite.
Entro em casa e é o mesmo silêncio pelos salões abandonados. Final-
mente aparece uma criada. Perguntei por minha mãe, ela leva-me ao seu
quarto Sentada na cama, um xaile pelos ombros, minha mãe abraça-me
numa aparente indiferença. Mas que tinha? Porque me não avisara?
Dissera sempre que estava bem de saúde!
- Estou bem - confirmou. - Senti-me hoje cansada, apeteceu-me ficar na
cama.
- É preciso avisar o Tomás!
- Estou bem. Levanto-me daqui a pouco. Amanhã parece que vamos
consoar com ele. Falou-me nisso, pelo menos. O Evaristo não vem.
Torcia nas mãos desocupadas uma franja do xaile, erguia às vezes os
seus olhos espessos, que emergiam de uma distância de brumas, arras-
tando consigo um peso imenso de cansaço, de desilusão e de bondade.
- Mas veio cá um médico?
- Não estou doente.
E, com efeito, pela tarde levantou-se. Mas veio logo para a braseira
(que preferia ao fogão) e aí se ficou, na sua cadeira, revolvendo as cinzas,
alheada: Mal tinha perguntas a fazer-me, o que era extraordinário, porque
eu era agora mais filho do que qualquer dos outros, visto ser solteiro,
porque vinha de longe e porque ela estava só. Ou talvez que por isso
mesmo ela tivesse aprendido a linguagem do silêncio, essa em que as
palavras são a névoa do alheamento, da meditação do nada, e em que as
palavras em voz alta são da pessoa de fora como as de um intruso. Ao
jantar, porém, Quis saber da minha vida e eu contei-lhe e eu disse-lhe do

106
Alentejo e da planície, do Dr. Moura, que ela conhecia, das aulas, dos
professores. Minha mãe ouvia-me, sorria, como se descansasse, já à hora
da morte, sobre o meu destino.
- Estás magro - disse, no entanto.
- Sempre fui magro.
- Sim. Mas estás magro.
Boa velha, que tens? Soa a tua voz a uma voz de nada. Casa deserta, os
filhos dispersos, o marido morto. E a tia Dulce e as criadas de outrora. Já
sei que não estás doente, e para que é precisa a doença? A doença é um
pretexto, tu não precisas de pretextos.
Subitamente alarmado, eu disse:
- E se tu viesses comigo?
Ela sorriu quase com pena. Estendeu a mão sobre a mesa, apertou a
minha em silêncio. Mas pouco depois deitou-se, eu fiquei só, à braseira.
Em breve, porém, toda a casa mergulhava em silêncio. Fui para o quarto,
abri a janela para a noite. O céu limpara, era agora um imenso lago escuro
onde uma lua branca boiava. Toda selada de neve, a montanha brilha até
aos píncaros mais distantes, flutua levemente num vago halo azul. Ressoa
brevemente o murmúrio da ribeira, do ar imperceptível, do silêncio dos
grandes espaços livres, uma adstringência recorta a sombra dos pinhais,
geometriza a noite em linhas de aço... Fecho a janela, fico a olhar por trás
dos vidros. E parece-me subitamente que o dia não renascerá jamais, que
a verdade da vida só ali se cumpre para sempre, na secreta imobilidade
das coisas, na pureza lunar de uma neve nocturna.
Deito-me enfim, mas não fecho as portadas da janela.
A lua desce da serra, entra pela vidraça, derramando-se pelo soalho
em coágulos de gelatina. Por uma noite assim, há cerca de vinte anos...
Por vezes, tento reconquistar-me desde o mais remoto passado. E,

107
embora reconheça que nada explica nada, há pontos de referência que se
me erguem como marcos geodésicos e me fixam o mapa da vida. Sabe-me
bem relembrar. A vida amplia-se-me até limites mais distantes do que ela,
e eu apareço aí como quem a vive mas apenas se descobre submerso nela,
ou sua pura testemunha. Não falei ainda do meu cão Mondego?
Era uma tarde de Junho, regressávamos os três irmãos da escola. A
certa altura da estrada, saímos para um caminho entre campos de cultura.
Revejo essa tarde à claridade lunar. Passam carros na estrada, uma poeira
quente doura as árvores das bermas, o sol brilha obliquamente na
folhagem. Ouço ainda uma voz que sobe das leiras regadas. É uma voz
anónima como o espírito da terra. E é que, a dada altura, reparo que atrás
de nós vinha u cão lazarento. Evaristo apedrejou-o, o cão ganiu e
afastou-se. Mas algum tempo depois, Tomás reparou que o cão nos
seguia outra vez. Farejava, pois, o dono na sua inquietação de cão livre.
Evaristo procurava já outra pedra, praguejando, o cão fugira, olhando de
lado, pressentindo o perigo. Mas a submissão do cão deu-me pena e a
importância de toda a pessoa que tem pena.
- Mondego!
Dei-lhe um nome, o cão olhou-me de longe, imóvel, com o seu olhar
triste e ressentido de velhice.
- Mondego! Venha aqui!
Não se mexeu. Mas, assim que recomeçámos a andar, o cão seguiu-nos
os passos. Ao portão, porém hesitou: sabia, como todos os cães, que a
propriedade privada existe... Então encorajei-o, Tomás encorajou-o. Mon-
dego olhava-nos, a avaliar das nossas tenções. E, enfim, entrou. Fui bus-
car-lhe de comer, eu gostava tanto de ter um cão. Tia Dulce, severa, não
me aprovou: associava os cães à gente ordinária, aos pastores, caseiros, à
gente nómada, ciganos, oleiros e caldeireiros ambulantes, que os traziam

108
presos aos eixos dos carros. Minha mãe aceitava-o, mas na rua, no
quintal. O cão ficou. O António fez-lhe a casota num só dia, com a ajuda
do meu entusiasmo. Pôs-se-lhe palha, uma tigela à porta e, para lhe
dilatar a área de liberdade, esticou-se um ramo até ao galinheiro onde o
cão deslizava a argola da corrente. Mas o cão não utilizava essa folga.
Aninhava-se à porta, como à espera da morte, animando-se apenas com a
minha presença. Porque eu vinha com frequência até ele e falava-lhe e o
cão erguia os olhos para mim com uma sabedoria compadecida. Estabe-
leceu-se assim uma comunicação entre nós por uma certa qualidade de
presença, de realidade íntima, de pessoas. Todos os bichos que eu obser-
vara até então eram puros objectos mecânicos, como os grilos, os ralos, as
louva-a-deus; ou matéria, lama com movimento, como os vermes, as rãs,
os sapos; e os que eram já vida, como os pássaros, os bois, mal tinham
estabelecido comigo uma convivência que lhes revelasse, se a tivessem, a
individualidade. Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas vibráteis lagar-
tixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas vívidas doni-
nhas, nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão confusa-
mente uma forma total de vida, a mesma força universal repartida pelos
bichos, esse modo de ser em que o começo e o fim não são um limite mas
elos de uma continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente uma
pessoa. Quando distinguia os meus passos, alvoroçava-se, ladrava com a
sua voz rouca, e, ao aproximar-me, erguia-se, agitava a cauda, acabava
por se deitar, com o focinho sobre as patas estendidas, olhos semicer-
rados, sentindo-se bem com a minha companhia silenciosa. Fazia-o
erguer-se, dava-lhe ordens, ele obedecia sem entu-siasmo. Mas, se não
podia fazer força, podia perfeitamente conversar, entender-me. Eu
falava-lhe, ele abria os olhos profundos. Tinha a sua personalidade defi-
nida, com simpatias e antipatias, o conhecimento do que se passava à sua

109
volta, as intenções dos que se abeiravam dele.
Ora um dia, precisamente, descobri meu pai e o criado conversando ao
pé do cão e visivelmente sobre ele. Mondego adoecera, o pêlo rareava em
clareiras leprosas, os olhos bordavam-se-lhe de escorrências, vomitava
frequentemente. Deram-lhe drogas, mas o pobre não melhorou. Era uma
tarde de Inverno, perto do Natal, a montanha cobria-se de neve, como
agora a via para lá da janela. Quando eu me aproximei, meu pai e o
criado interromperam-se. Mas o cão deu-me a notícia, ladrando, rouco, na
direcção dos dois, olhando-me depois com amargura e humildade.
- Estava eu a dizer ao António que o cão não passa este Inverno -
declarou meu pai. - Para ele era uma sorte se morresse.
- Não morre! - disse eu, aflito.
Mas Tomás aproximara-se também:
- Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.
Não havia ali, porém, uma acusação. Havia só o reconhecimento de
uma evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não
era a morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a
sua pessoa?
Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saía da casota.
Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria
morrer. Assim, pelas manhãs eu corria logo ao quintal, como se a vida do
cão dependesse da minha pressa.
- Morre, mas leva tempo - disse um dia o pai.
Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como
a de agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A
neve brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa
casa, só o meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um
lampião para ir decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam

110
na neve e a lua nem sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra,
outras luzes brilhavam, no rasto da esperança, convergindo para a igreja.
Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque
de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do
alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão
tivesse morrido. E, abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do
jardim. à luz da lua, espreitei para a casota, chamei o cão. Mondego não
respondeu. Meti a mão dentro - o cão não estava. Presumi, absurdamente,
que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui
para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego!
Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão, enfim: suspenso de
uma trave, enforcado no arame, Mondego recortava-se contra o céu,
iluminado de lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o
grupo, que voltava atrás a procurar-me.
Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente:
quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma
trave o seu corpo leproso, banhado de luar...
No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à
porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal,
para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a
falar-lhe fosse uma voz de aliança.
Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha,
voltada para mim, ilumina-se agora toda, branca e solene. E nesta imóvel
radiação do silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do
Mondego irmana-se à de meu pai, dissolve-se num imenso apazigua-
mento. Como um olhar gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra,
a profunda surdez que me submerge...

111
XII

Deixei abertas as portadas da janela e o sol acorda-me cedo. Entra pela


vidraça, começa a derreter os ramos de gelo que o frio cristalizou pelo
lado de dentro. Olho esses ramos um instante. Desenham-se em curvas
regulares, estampam-se nos vidros quase simetricamente. Filetes de água
cortam já um ou outro, como na chapa de uma gravura que se destrói.
Despertas pelo sol, as coisas iniciam o seu bulício de seres vivos. Sobre a
mesa, o jarro vidrado posto dentro da bacia brilha em sol, cintilando de
alegria. Uma toalha, toda estalada em brancura, cobre-lhe a boca, tomba
para os dois lados, com festos apertados de goma. A minha roupa
desmancha-se numa cadeira. Um mundo frio de reflexos esquadria-se no
espelho. Estou só e sinto-me bem. Fecho os olhos ainda, abandonado à
dormência da manhã breve, tento ouvir na casa os rumores matinais. Mas
levanto-me enfim. Não há frio e abro a janela toda à invasão do sol. A
neve esterilizou a vida numa pureza excessiva e sem tempo como a de
um estranho mundo artificial de plástico, de ersatz. Ou o sol sobre a neve.
Porque a neve só tem tempo talvez, só é genesíaca com um céu escuro de
nuvens ou um augúrio lunar... Uma palavra erradia e vibra ao longe no ar
branco, golpes avulsos ressoam no céu de vidro: portas que se fecham?,
lenha que se parte para o lume?, carros que estremecem nas calçadas? A
aldeia fica num córrego, o ar freme na manhã.
Subitamente, um buzinar forte ecoa pelo pátio.
Aguardo o gralhar de Júlia, da pobre Júlia gorda, o matraquear esque-
mático, esse árido estrépito de maquineta do Evaristo, com a pergunta
final:
- O monge? Onde é que está o monge?

112
Mas o gralhar não vem, a maquineta não trabalha. O que me vem, e já
do corredor, do seu desencontro de ângulos, é a voz pesada do Tomás.
Não entendo o que ele diz, mas breve o ouço parar à porta do meu
quarto:
- Pode-se entrar?
Abro a porta, abraçamo-nos. Admiro a sua pujança estável de
lavrador, ele fala paternalmente da minha magreza.
- Tu não tens frio? - pergunto.
Não traz sobretudo. Usa um fato grosseiro de saragoça, botas de
bezerra cardadas. As mãos têm um toque áspero e crestado de geadas, de
invernia. Os olhos riem, levemente azulados.
- A Isaura? Os pequenos? E quantos é que tu já tens?
- Tenho... Eu te digo: seis, quase sete. Tudo bom de saúde. Tudo fino.
- Quase sete... E ouve uma coisa: que tem a nossa mãe?
Tomás não sabia. A mãe tinha dias que ficava na cama. Não queria
médico. Apetecia-lhe a cama, era só. Tomás não sabia que fazer. às vezes
remetia-lhe dois netos para a distraírem. Vinham sempre dois para se não
aborrecerem. A mãe gostava das crianças, mas esquecia-as ou elas marti-
rizavam-lhe a paciência. E pedia socorro a meu irmão: “Vem buscá-los
que os não posso aturar”. Quem vinha muito agora lá a casa era a Inácia,
velha beata que ia escravizando minha mãe com uma religiosidade
minuciosa de novenas, terços, irmandades do Santíssimo, do Coração de
Jesus, de São Vicente de Paulo. O velho prior, o das forças, morrera de
congestão. Era um homem vermelho a estalar de musculatura. Arrotava
às refeições. Contava proezas da juventude. Agora o novo prior era um
moínho de rezar. De madrugada à noite rezava. A mãe ia indo nisso,
excepto quando decidia ficar longo tempo na cama.
- Eu vim cá para combinarmos onde se ceia hoje - acrescentou Tomás. -

113
Os meus sogros vêm; e nesse caso, estás tu a ver...
Os sogros: o Sr. Paulino e Dona Ermelinda. O Sr. Paulino enriquecera
negociando em fazendas, de feira em feira, com uma pequena carroça,
tinha uma vozinha aflautada. Dona Ermelinda era uma senhora geniosa,
toda rebiteza. Isaura era filha única. Tomás fizera um bom casamento.
Imprevistamente, sobre a questão da consoada, minha mãe foi
intransigente: não sairia dali. E, em vistas disso, fiquei também.
- Mas vai tu! - dizia-me ela. - Vai tu!
Claro que não ia. Iria no dia seguinte almoçar. Minha mãe prometeu ir
também. Tomás ficou ainda algum tempo, viemos ambos até ao pátio
beber o sol. Ele não se cansava de me avaliar a magreza:
- Precisas de comer. Precisas de descansar os miolos. Talvez te fizesse
bem casar. E ouve outra coisa: a mãe não te disse nada das partilhas? Há
tempos fez-me uma proposta. Como sabia que vinhas, não te escrevi. Mas
escrevi ao Evaristo.
A questão das partilhas era simples: dividiam-se já todos os bens e
minha mãe recebia uma mesada de cada um de nós. Eu aprovei. Natural-
mente o Tomás governaria as minhas coisas. Ele aceitava em princípio,
mas teria ainda de pensar, de falar com Isaura. Quanto ao Evaristo, era
possível que aparecesse pelas férias para aproveitar a minha vinda e
arrumar-se tudo de vez.
A ceia foi lúgubre. No entanto minha mãe vestira-se de festa, a mesa
resplandecia de cristais. Ficámos ao pé um do outro, nos mesmos lugares
do costume: ela num topo, eu ao lado, logo ao dobrar do ângulo. O mais
estranho, porém, é que a mesa está esticada à máxima dimensão, com a
toalha a cobrir-lhe a sua vasta nudez. Só ao meio um ramo de azevinho
artificial, com velas presas por apliques amarelos. Em volta, pesando
sobre o ambiente, está a velha mobília, grossa e escura, de renascença

114
holandesa. Minha mãe fala pouco. E, quando o faz, tem o costume
arrepiante de olhar os lugares vazios. Falas portanto para aí, boa mulher.
Acompanho-te o olhar e olho também. Eis-nos, pois, testemunhas do
nosso próprio destino - um pano branco, ao longo de uma mesa,
amortalhando uma ausência, meia dúzia de velas, trémulas na sombra,
velando uma memória. Fora, a noite é uma vibração de seda. Ouço-a,
ouço-a no nosso silêncio afogado, nas sombras geladas do pátio, no
rumor esparso ao longe, eco de um mundo de outrora. As velas
consomem-se no ramo de azevinho. Os sinos começam a dobrar para a
noite.

115
XIII

Tomás apareceu pelas onze horas com o carro.


Levámos a nossa mãe à igreja (ela não fora à missa do galo),
aguardámos que saísse.
- Já não vais então à missa - disse-me Tomás.
- Há quanto tempo... Mas ainda ouço os coros.
- Como ainda?
Ouvia-os. Saíam da igreja, vibravam pelo adro todo coberto de neve,
uniam-se à solene plenitude da montanha. Em volta do adro corre um
cerco de casas negras. Uma delas tem um alpendre com um suporte de
traves ressequidas. Aí nos abrigamos, voltados para o sol. Na encosta da
serra, entre as árvores carregadas de neve, flutua ainda a neblina matinal
como a massa confusa e original da criação. E era aí, na aparição da
manhã, que os cânticos do Natal se me abriam luminosos, lavados na
pureza de um início absoluto, inventados em inocência e em confiança
perene. Esqueço o Tomás e penso. Não tenho saudades de mim, não
tenho saudades de nada: amanhã é o dia de hoje. O que me seduz no
passado não é o presente que foi - é o presente que não é nunca. O que
sonho nestes cânticos não é a paz do passado: o que sonho é o sonho.
- Como estranhas que eu os ouça? - disse eu ainda.
- Sabes tu... Sabes tu o que é a vida?
- A vida... Bom. Tu lês muito, tu sabes coisas. É claro, também leio,
também penso. Leio pelas noites de Inverno, a Isaura rala-se. Mas eu
trabalho a terra. É difícil explicar-te: a gente colabora com a terra. A gente
come os frutos, a gente mata as reses, mas não as destrói. Há um pacto de
aliança.

116
O sol não nos aquece: aquece a terra. É difícil explicar-te. Ainda ontem
estive no lagar do azeite. Os lagareiros tinham já os fatos ensebados de
óleo negro. E as mãos. E a cara. Tinham a cor do azeite velho e rançoso.
Eram o próprio azeite. E eu achei-os extraordinários. Digo-te isto por
muitas razões. Até talvez por estares magro.
Após um longo silêncio, os cânticos irradiaram de novo da igreja,
abrindo no adro como uma grande flor de neve.
- Mas tu não ouves esta música? - perguntei.
- Ouço. Mas não ainda, como tu. Hei-de ouvi-la sempre, suponho.
- Mas não és crente, tu.
- Se o fosse, não a ouvia, suponho. Os que estão dentro não a ouvem:
cantam-na. A terra não se conhece a si própria.
- Terás tu... Terás tu achado o que procuro?
...essa superação de todas as angústias, de todas as dúvidas? Terás tu
visto o absurdo e o milagre, e ficado tranquilo?
- Não sei o que queres dizer. Mas tenho a certeza de que não achei o
que procuras. Porque, se tu procuras, só tu podes achar.
Mas a missa acabava. Alguns homens, dos que ficam ao fundo da
igreja, começavam a aparecer à porta, enfiando o chapéu. Iam-se
formando grupos junto das velhas casas, aquecendo-se ao sol. Minha mãe
apareceu enfim, ajeitando a mantilha. Senta-se à frente com meu irmão,
eu sento-me atrás, sozinho, apoiado todavia ao banco deles. Minha mãe
nada diz, mas a sua face grave irradia a velha acusação contra a nossa
irreligiosidade. Nem no dia de Natal... Sim, a mulher. Mas saberás tu
como conheço o teu mundo, agora que o não habito? Saberás tu que o eco
dos teus coros me persegue neste caminho de neve? Vêm de longe, dos
espaços de vertigem, iluminados na sua branca fascinação. Como as velas
do presépio, brilham na estrada deserta entre as árvores imóveis.

117
O sol repete-os e o mundo canta-os com uma força surda, como a
inocência irresistível que quase nos faz chorar. Sabes tu que coragem
cruel é necessária para ouvi-los e permanecer fechado no triunfo do nosso
árido destino? Vimos de longe, mulher.
Caminhámos até onde se abria a revelação. Ouço os teus choros na
minha terrível maioridade. São belos e tristes como o aceno de uma
criança que ficou na estação...
O carro roda vagaroso nos trilhos escorregadios. Gente passa pelas
bermas, fechada de sinal e de uma alegria íntima. O sol abre-se à brancura
da terra, cintila na neve em agulhas estrídulas...
- Queres entrar em casa, mãe? Ou seguimos já?
- Entro só um momento. Entrai vós também um momento.
Mas nós esperamos. Acendo um cigarro, abro os vidros do carro: um
bafo gélido coalha-me na face. A casa negra, suspensa do augúrio de
longas eras,
solitária no enorme silêncio branco. Àquela distância, a montanha
desdobra-se em grandes vagas de neve até ao céu duro, de aço azul.
Subitamente pergunto a Tomás:
- Tu és feliz?
Ele olha-me surpreso, até me entender:
- Nunca pensei nisso. Ou antes: talvez tenha pensado. Pois é claro que
pensei. Mas não me perguntei se era feliz. Difícil responder-te.
Reconheço e aceito, talvez. A vida é feliz e eu faço parte da vida.
- Nunca pensaste na morte?
- Se a vejo todos os dias!
- Pergunto se pensaste na tua.
- Na minha... Claro que pensei. Tenho os filhos, quase sete. Como não
pensar?

118
Mas não era disso que eu falava. E expliquei-me de longe, desde o
limiar da minha obscura interrogação. Adequar a nulidade da vida à sua
brutal necessidade. Pensá-la no domínio prático é fácil como estar
entretido. Mas não era isso: era assistir à aparição incandescente da nossa
própria pessoa, ver o jacto fulgurante que sai de nós e não ficar cego, não
ficar atordoado. Contra, porém, a minha expectativa, Tomás não se
perturbou:
- No Inverno, às vezes, leio pela noite fora:
É bela uma noite de Inverno, muito certa, muito nítida. Venho à janela
ver as estrelas, os campos escuros sem um ruído. Bom: então acho
extraordinário que eu esteja vivo. E sinto-me bem eu. Mas não me sinto
eu sozinho. Outras partes de mim estão em outro lado e são os filhos que
dormem, ou os trabalhadores com quem falei, ou a terra que ajudei a
trabalhar. E é como se eu fosse só uma parte de qualquer coisa muito
grande que vai para além de pessoas conhecidas e chega às pessoas
conhecidas - dessas e a outras e para o passado e para o futuro.
- Mas não é isso! É muito diferente! É muito diferente!
Todavia, minha mãe chegava enfim e Tomás pôs o carro em marcha.
Então, de súbito, lembrei-me das prendas para os pequenos. Voltei atrás,
procurei nas malas, achei por fim os cartuchos de guloseimas, tarros
alentejanos com doce de raiz de escorcioneira, doces regionais. Carreguei
os embrulhos, instalei-me ao carro. Deslizávamos agora pelo caminho
estreito até atingirmos a estrada larga. Depois percorremos uns dez
quilómetros até à aldeia de meu irmão. A casa era dos sogros, que viviam
noutra terra e ali tinham uma vasta quinta de vinha, oliveiras e terra de
semeadura. Minúsculo povoado com um pequeno ribeiro e vastas
extensões de terra árida de fraguedo. Casa larga de lojas e um andar.
Atrás, uma vinha, e logo depois uma velha mata de pinheiros. Quando o

119
carro travou do lado de trás da casa, depois de subir uma alameda que a
contornava, uma horda de garotos assaltou-nos em alta grita. Os mais
velhos vinham à frente, descendo com desembaraço a escada de granito;
atrás, no fim de todos, vinha o mais pequeno, chorando desolado por não
poder acompanhar os irmãos. Isaura apareceu também no alto da escada,
descendo depois devagar. A miudagem saltava à minha volta, eu pedia
juízo para fazer a distribuição dos embrulhos. Por fim lá consegui impor a
minha justiça e cada qual levou a sua parte, aplicando-se logo a
desembrulhá-la, confrontando-a com a dos irmãos.
- Não lhes dê confiança, senão nunca mais o largam - disse Isaura.
Tomei ao colo o mais pequeno, que não conseguia desatar o pacote.
Apoiado à escadaria, sentei-o numa perna e ambos nos entregámos ao
trabalho. E logo que acabámos, o pequeno quis ir para o chão, para exibir
o seu triunfo aos irmãos. Minha mãe subiu enfim com Isaura, os miúdos
desapareceram, eu fiquei só com Tomás. O sol brilhava morno, seguimos
por uma vereda entre os galhos da vinha, coberta de uma pequena
camada de neve que de pouco espessa derretera quase toda. Chegámos
enfim à mata, onde algumas rochas nuas se expunham ao sol. Olhei em
roda, respirei profundamente, todo aberto àquele horizonte plácido de
um dia de sol e de neve.
- Eis-te nos teus domínios, Tomás. Com uma ranchada de filhos. Como
um belo patriarca.
Ele olhava em volta também. Depois fitou-me, cerrando um pouco os
olhos, como se me investigasse:
- Tu disseste que era diferente, que vermo-nos não era vermo-nos nos
outros. Quando a gente sente a sério uma coisa, julga que ninguém mais a
sente. Julga-o, porque é difícil exprimir isso que sente. Tu julgas que o
velho Deus e a violência estúpida da morte e o milagre da vida nunca

120
entraram nas minhas contas. Entraram. Mas agora são como animais
familiares. Durmo bem no meio deles.
- Não é possível! Tu não viste nada! Tu não viste a pessoa do nosso
pai, a realidade única que ele era, que o habitava. Tu não assististe ainda à
aparição de ti a ti próprio. Tu nunca pensaste a sós contigo, no silêncio:
Estou vivo, eu sou, eu, esta vitalidade iluminada que se sente, se não
pensa, se toca e é estranha e arrepia de medo e nos põe os cabelos em pé.
Tu vives adormecido nesta quietude da terra e no fundo não sabes que és
mortal.
Tomás abanou longamente a cabeça:
- Pobre Alberto. Porque não vais tu à missa? É a tua última tarefa.
- Não se soluciona uma vida como se soluciona uma doença. Toda a
verdade para a vida é uma criação: ninguém a pode ensinar. E, se a
ensina e aprendemos, não damos conta disso, é ainda uma criação.
- Um pouco assim. Já to disse há pouco. Em todo o caso, os apóstolos
existem.
- Como as trelas dos cães. Ou como a luz num quarto escuro; o que
estava no quarto não se emendou.
- Talvez, talvez - condescendeu Tomás. - Eu sou um pobre lavrador.
Não tenho um stock de ideias para estas ocasiões. Mas creio que estás
enganado sobre a experiência de mim próprio. Na verdade, nada disseste
ainda que eu ignorasse. às vezes ponho-me a pensar no caso dos meus
filhos. Eles são seres independentes, sentem-se a si próprios sem ligações
com nada, como nós nos sentimos em relação aos nossos pais. Ainda que
se pareçam connosco, que tenham os nossos tiques, eles não o sabem, não
o entendem. Mas eu vejo-os de mim para eles e sinto que alguma coisa de
mim está neles, que alguma coisa me pertence. A minha vida é única, é
um milagre, como tu dizes. O nada absoluto da morte atordoa. Mas eu sei

121
que para além de mim há a vida e que a vida não morre. Sim, raras vezes
vejo isso flagrantemente. Mas quando o vejo não fico cego.
Abala-me um pouco, mas acabo por ficar calmo e aceitar. A morte
então toma a velha imagem do sono - do sono que se apetece ao fim de
um dia de trabalho.
- Tomás! Alberto!
- Lá vamos, lá vamos.
O almoço foi um espectáculo tão extraordinário que jamais o esqueci.
E agora que o relembro neste Inverno em que escrevo, sinto-o ainda como
a resposta melhor do meu irmão Tomás a tudo quanto eu lhe disse.
Outras vezes almocei ou jantei em sua casa. Mas só este almoço do Natal
me recorda como resumo e sinal das suas repetições. Na grande sala
interior, uma extensa mesa (talvez duas ou três ligadas) brilhava com os
talheres para doze comensais: nós, toda a tribo do Tomás, e ainda os
sogros, com quem mal falei. Pouco depois abancava já a ranchada das
crianças, incendiando toda a casa de um alarido infernal, batendo nos
pratos com as facas e garfos, esboçando rixas entre si. Isaura, tranquila,
ultimava os preparativos, pedia sossego. Mas os garotos tinham a sua
excitação, as suas queixas mútuas. Por fim, abancámos nós; e, distraídos
ou surpresos, os garotos acalmaram. Mas, logo que se estabeleceram na
novidade, recomeçaram em violenta diatribe. Gritavam, erguiam-se,
apresentavam reclamações sempre aos berros, mobilizavam a atenção de
Isaura, dos pais dela e por fim de minha mãe. No entanto, no meio desta
balbúrdia, Tomás falava-me em voz baixa, como se tudo fosse silêncio.
Ficara num dos topos, eu logo ao lado dele. Com uma violência crescente,
os miúdos atiravam-se impropérios, amuavam, pondo o prato de lado,
tinham exigências especiais, chorando com alarido, abandonavam a mesa
e atiravam-se em correrias, esboçavam mesmo cenas de pancada.

122
Entretanto, porém, Tomás ia comendo calmamente.
Voltava-se para mim, apresentava uma ideia das que o iam
percorrendo:
- Eu não sei bem qual é o teu problema. Nem como o desejas solu-
cionar. Mas parece-me que o problema hoje é só um, e a gente, vê tu,
anda tanto à trela que nem sequer nos é fácil inventar ou descobrir outras
questões. Ora bem...
Um prato caiu no chão com um fragor de estilhaços.
- Ora bem - continuou Tomás tranquilamente. - Se o problema é o da
harmonia, eu sei que não há problema. E os problemas, aliás, não sendo
nossa invenção, não tendo nascido em nós, em que medida não são o
nosso passatempo? Tu dizes e eu também que tudo o que interessa à
nossa vida é nossa criação: o teu problema criaste-o tu? Tens a certeza?
Era-me difícil falar no meio daquela algazarra. Eu mal ouvia Tomás; e
um sorriso de ternura para a sua serenidade, para aquela impossível
instalação na vida com o silêncio dos campos ou o estrépito das crianças,
começava a abrir em mim e a desarmar-me.
Tomás era de um mundo diferente. Mas somente a sua confissão de
evidência harmoniosa me intrigava, me excitava. Teria ele atingido o
cimo inverosímil que eu sonhava existir como limite indistinto da minha
busca sufocante? Seria ele a prova concreta de que esse limite existia?
Ter-lhe-ia aparecido a evidência da plenitude num mundo desértico, com
rastos profundos de tantas vozes mortas?
- O meu problema - disse eu por fim - criou-se-me, porque o senti meu.
Que os outros mo iluminassem, pouco isso me importa.

Ora pela tarde, imprevistamente, apareceu o Evaristo com a Júlia e o


miúdo. Tinham ido à aldeia, souberam da nossa vinda a casa do Tomás e

123
vieram também. A sarilhada que se armou alastrou por toda a casa,
espalhou-se pelo pátio. Evaristo palmeava-me as costas, exibia a sua
alegria como exemplo e estímulo do meu génio macambúzio, Júlia,
afogueada e gorda, também me batia, estalando de optimismo e de
arremesso. Por fim Tomás pegou em mim e no Evaristo e levou-nos para
as pedras da mata, onde ainda dava o sol. Na copa alta dos pinheiros,
uma leve brisa ressoava a espaço e silêncio. Mas não se via bulir um
ramo, uma erva, naquela plácida aridez de um dia linear. à nossa frente, o
alinhamento seco dos galhos da vinha lembrava a ordenação final de um
campo de mortos; e, no fundo, a casa, acaçapada e sombria, soturna de
Inverno e de grandes medos, entroncava-se em força, na força da própria
terra, com a face escura da escuridão dos séculos... Mas só eu parecia ter
olhos para tudo em volta, porque, quando vim a mim, Tomás e Evaristo
altercavam com firmeza. Evaristo desengonçava-se com o seu ar matra-
queado, Tomás erguia a fronte, sólido de serenidade. Era a questão das
partilhas. Num papel já pronto e bem discriminado, Evaristo anotara a
valorização das terras, com as diferenças miúdas de pés de oliveira,
árvores de fruto, regime de águas de regas, muros em ruína. Eu não era
casado, não tinha filhos e talvez por isso não entendia bem o preço
esmiuçado destas coisas. Deixei que os dois se entendessem. E, para que a
minha presença os não perturbasse, afastei-me mesmo com um cigarro.
Explorei a mata, fui ver o horizonte para o lado de trás, tomei nas
mãos um bloco de neve, olhando-o encantado na sua maravilha. Quando
voltei, Evaristo e Tomás estavam mudos, decerto amuados. Perguntei:
- Chegastes a acordo?
Iam falar os dois ao mesmo tempo. Calaram-se, fitaram-se a ver quem
falava primeiro. Evaristo adiantou-se: ele propunha que a Tapada
formasse um lote e que a Urgueira e a casa formassem outro. Mas Tomás

124
entendia que a Urgueira e a casa só podiam interessar a quem quisesse a
casa. Ora o Evaristo punha a condição de não ficar ele com ela, porque
não vinha viver para ali. Mas Tomás também não.
- Fica para mim - disse eu.
Calaram-se ambos. Mas logo Evaristo se ensarilhou numa demons-
tração imbricada de que a casa e a Urgueira valiam mais que a Tapada.
Para ele, claro, não valiam, mas só porque lhe não interessava viver na
aldeia. Em absoluto, a casa valia metade da Tapada, até porque tinha
terra em volta. Consentia que eu ficasse com ela, se desse uma compen-
sação aos dois. Por exemplo: vinte contos.
- Já não fico com ela - disse eu.
Evaristo então disparatou. Não julgasse eu que por ser doutor o podia
enrolar. Uma vez que eu aceitara ficar com a casa, não podia voltar atrás.
Expliquei que aceitara, mas sem compensação. Além disso, a mãe
continuaria a viver nela e, portanto, a casa só seria de facto minha após a
sua morte.
- Que Deus Nosso Senhor te castigue do roubo que nos queres fazer! -
clamou Evaristo.
- Não quero a casa! Acabou-se - declarei. - Organizem os lotes como
entenderem e tiram-se depois à sorte.
Afastei-me de novo, deixei-os com o problema. Mas pouco depois cha-
mavam-me. Regressei. Tomás propunha que fôssemos para uma espécie
de escritório que ele tinha a um extremo da casa e onde se acumulavam
livros em estantes, alguns no chão, entre material de apicultura, um
enxofrador de vinha inpregnado de verdete, fios de uvas secas e alguns
braços de cebolas. Evaristo recorria de novo aos poderes divinos para
nosso castigo. E, de súbito, uma voz esganiçada falou à fechadura da
porta:

125
- Olhem que a Tapada é para mim. Estás a ouvir, Evaristo? Olha que a
Tapada é para nós.
- Assim é impossível - disse eu, farto.
Foi uma operação difícil. Havia que recorrer a um advogado. à ameaça
de despesas, Evaristo consentiu no sorteio.
Os lotes ficaram a seu gosto. Mas foi, apesar de tudo, diante de um
advogado que se tiraram os bilhetes. Coube-me a Urgueira e a casa. Fora
o Esteval e uma mata. A Tapada ficou para o Tomás.
Evaristo cortou relações connosco.

126
XIV

E eis-me de novo em Évora, por uma manhã de sol. A minha história


espera-me mais terrível do que nunca, disparando para o seu desfecho.
Venho à janela do comboio, que abranda a marcha e estremece nos
trilhos, olho a cidade, que ao longe se move lentamente. O sol limpa-lhe a
face, a colina ergue-a na mão como a um objecto de preço. Fico de pé a
vê-la, a mala ao lado, pronto para o desembarque, olho a massa escura de
São Francisco, as torres negras da Sé, os blocos brancos dos prédios
construídos uns nos outros, e, em volta, como um espanto da cidade, a
imensa planície já verde. O comboio estaca num súbito silêncio que torna
mais solitária a estação. Desço com a mala, o chão de cimento
solidifica-se-me sob os pés.
- Alguma coisa, senhor engenheiro?
Manuel Pateta vem para mim com os seus passinhos de arame.
Soergue o boné, os olhos chorosos escorrem aguardente. Dou-lhe a mala,
ele põe-se a andar adiante, dobrado em compasso, como se lhe doesse o
ventre, as calças de ganga pelo meio da canela, os pés sem meias em
alpercatas brancas. Acendo um cigarro e, embora haja táxis na estação,
prefiro seguir-lhe atrás o seu andar de pássaro. De repente o homem
parou, voltou-se. Tinha algum problema a resolver:
- O senhor engenheiro vai prò Machado?
Falava com uma voz presa de sarro e de cuspo.
- Vou, vou para o Machado.
- Mas sabe, senhor engenheiro, o senhor engenheiro se calhar não sabe,
o senhor engenheiro não pode ir para o Machado, a pensão do senhor
Machado já fechou.

127
- Fechou?
- Fechou, sim, senhor engenheiro. O senhor engenheiro não pode ir
para lá. A pensão do Machado já fechou. O senhor engenheiro pode ir
para a Eborense ou para a Diana, também pode ir para a Giraldo.
E, sem mais explicações, pôs-se a andar outra vez. Fui apanhá-lo,
pus-me a andar ao lado dele, quis saber o que havia. O homem explicou:
- O senhor Machado fazia parte de um grupo. Depois disseram à
Polícia que eram comunistas. Mas não eram. Andavam de camisa a... a
dançar...
Olhei-o um instante, ele deixou cair o beiço gretado e riu-se apaler-
mado e de gosto. Ia andando, parava de vez em quando, olhava para
mim e ria de novo.
Com efeito, a pensão estava deserta. Foi uma mulher gorda quem me
atendeu, de mãos dadas sobre o ventre: o Sr. Machado fora à terra,
resolvera fechar a casa. Instalei-me, pois, na Eborense, para onde levei as
minhas coisas. Mas nesse mesmo dia tentei saber quem era o dono da
casa do Alto. E, para a execução completa do meu projecto, pensei numa
escola de condução que me desse carta em breve para comprar um carro.
Era um projecto que eu trazia de férias, desde o sorteio dos bens. Alto de
São Bento, o vento da planície e os meus olhos perdidos na lonjura...
Agora, porém, arrumado o problema da pensão, queria era ver Sofia.
Escrevera-lhe da serra, não me respondera nunca. Desci por isso a sua
rua, pela tarde, depois de fazer horas no café, após o almoço. Sofia! à
medida que me aproximava de casa, a sua imagem ardia-me em todo o
corpo. Precisava tanto de ti, Sofia, que eu tremia de dor e julgava inve-
rosímil que tu estivesses a dois passos, do lado de lá da porta, com o teu
riso fresco, os teus olhos vivos de inocência e perversão, o teu corpo
áspero e delicado. Suam-me as mãos, a minha boca é uma maldição de

128
secura. Relembrei-te nas férias? Não sei: escrevi-te várias vezes. Mas
havia tanta coisa sobre mim - velhas memórias e o espaço e o silêncio e a
neve. Agora estou só com a minha violência. Toco a campainha, a
campainha não se ouve e fico na dúvida sobre se funciona. Mas algum
tempo depois o trinco da porta estala e Lucrécia aparece, baixa, a face
alegre a espirrar de vermelho.
- Adeus, Lucrécia. (Como está o senhor doutor?) A menina Sofia está?
- A menina Sofia não está!
Não estava? Estupidamente, nem perguntei pelos senhores. A minha
primeira visita devia ser para eles, mas Sofia enchia-me todo, expulsava a
memória dos pais. No entanto, senti obscuramente que era bom ela não
estar. Havia o meu alvoroço imbecil, a minha ira dolorosa, a minha ideia
tão fixa, tão apertada no crânio, tão ardente de execução, que me parecia
inverosímil que Sofia existisse. Subi, pois, de novo a rua, quase contente
de que tudo falhasse, para que dentro da minha calma o mundo me
renascesse. Mas quando cheguei à Praça, vi Ana e Alfredo. Ela vinha
esplêndida como sempre, o seu cabelo louro enrolado ao alto, saia e
casaco cintado, abrindo na gola branca da blusa como uma flor. De sapato
alto, um volume quente à flor da saia, batia-a toda uma onda de
plenitude. A seu lado, Alfredo exibia ostensivamente o seu fato grosseiro
de camponês, calça de cotim, bota de cano, um blusão de um castanho
desbotado. Foi ele quem me descobriu:
- Olha quem ele é! Então já de volta, doutor?
Cumprimentei os dois. Ana, como se eu não tivesse saído de Évora,
falou-me serena. Mas disse depois bruscamente:
- A Sofia ficou de vir ter connosco ao café. Não quer vir também?
Sim, vou; mas porque mo perguntas? Porque me odeias? Acaso
porque me amas? Seria cómico, mas tu sabes, o Alfredo é possível que o

129
suspeite. E de quem não suspeita ele? Ei-lo aqui a nosso lado, vestido de
esfregão. Que a cidade inteira lhe insulte a humilhação para que esse
insulto se vire contra ti, contra o teu esplendor de fêmea soberba.
Fomos para o Lusitânia, instalámo-nos ao fundo, no canto da direita.
- Que é que toma a minha Anicas?
- Chá e bolos.
- E você, caro doutor?
Podia ser um galão e uma torrada.
- Pois eu vou num bife com batatas fritas. E uma garrafa de cerveja.
- Ó Alfredo...
- Mas que quer a queridinha? Estou com fome, tenho apetite...
Eu, porém, mal o ouço. Penso em Sofia. Toda a frente do café se rasga
em vidraças, olho através delas o trânsito da rua. Estava um dia claro de
Inverno, com um sol vivo pelas fachadas.
- A minha queridinha já não gosta do seu filhinho? Porque eu (diz para
mim) sou o filhinho dela. Ela trata de mim, ela dá-me conselhos. Mas o
filhinho porta-se mal, não é, queridinha?
- Não dês espectáculo.
- Vê? Já está a ralhar com o menino.
- Diga-me uma coisa, Ana: a Sofia esteve doente?
Ela olhou-me longamente até me entender. E depois, com piedade:
- Não. Não esteve doente.
O criado trouxe o meu lanche e o de Ana. Alfredo impacientava-se:
- Esse bife, José, esse bife.
Desapertava o blusão, metia os dedos nas cavas do colete que trazia
por baixo. Ana trincava um bolo, bebia o chá, de busto direito, a goles
solenes. Eu sentia-me vexado. Então Ana perguntou-me:
- Que tal as suas férias?

130
- Bem. Muito frio, muita neve.
- Sim. E meditou? E aprofundou as suas teses?
- Teses? Mas uma tese não se medita: fala-se, lê-se, discute-se. A vida é
mais séria do que isso.
- São servidos? - pergunta Alfredo, quando o criado lhe traz enfim o
bife. - Não queres um bocadinho, Aninhas?
Ela cerrou os olhos sobre si, apertou os dentes, como se lhe tivesse
dado uma dor repentina. Abriu os olhos, disse em voz surda:
- Não.
- E você, doutor?
- Obrigado.
Inesperadamente, Alfredo perguntou:
- Sabe que a raça dos cavalos está a desaparecer?
- Não sabia - disse eu, amável e desnorteado.
- Está a desaparecer. A prova está em que para a procriação é preciso
um chegador ou apontador. Cá para o Alentejo chama-se apontador. Mas
creio que para o Norte lhe chamam chegador.
Era uma intervenção absurda. Ana baixou os olhos, pálida, uma ira
fina nas narinas trementes. Acendi um cigarro, olhei a rua: quando viria
Sofia? O café estava quase deserto. Uma ou outra pessoa avulsa quedava-
se imóvel e alheada, diante da mesa e da chávena vazia; os criados, de
pano branco no braço, encostavam-se ao balcão. Silêncio estranho para a
minha tensão, para a grosseria ofensiva de Alfredo, para a imóvel tensão
de Ana, toda aguda de lâminas... O sol embatia no prédio em frente,
iluminava a rua num clarão. A sala do café esquadriava-se em nitidez nos
reflexos dos metais, na lisura dos mármores, na lucidez das vidraças,
como uma evidência estéril. Se tu viesses, Sofia...
E ela veio, enfim. Surgiu à porta, de casaco amplo, fina, quente de

131
intimidade. Trazia o cabelo solto, a orla enrolada à volta como no dos
cavaleiros medievais, uma franja na testa e os olhos vivos de sempre. Mas
quando chegou ao pé de nós, disse-nos apenas:
- Olá!
E esclareceu logo depois que o Chico vinha aí.
- Só ele? - perguntou Alfredo.
- Não. Vem também o Carolino.
E compôs, num disfarce, qualquer coisa no cabelo, olhando o vazio,
sorrindo. Que tenho eu com isso? Eu to pergunto desde a minha noite
longa. Acaso te amei? Não amo ninguém, não amo ninguém: amo a
minha violência. Senta-te, Sofia. Toma o teu lanche. Que fio invisível te
une agora a Ana? Belas ambas e um desafio comum à minha ira infeliz...
- Então quando veio, doutor?
Toma o teu lanche. Sim, está quente. Tira o casaco, eu te vejo ainda
agora, de busto flexível como uma cólera sanguínea... Sim, vim hoje:
- Não lhe mandei dizer quando vinha?
Alfredo ri o seu riso oco e guinchado, de olhos fitos no bife.
- Claro! Que memória a minha - disse Sofia. – E tu, Ana? De corpo bem
feito? Mas está um dia esplêndido.
Tudo quanto eu dissesse estava a mais. Havia, porém, talvez a minha
curiosidade legítima. Não penses. Que são os outros para a tua vida, a
tua, a tua, essa que te remorde e te ameaça e exige explicação? Que são
eles mais que a distracção inútil ou prejudicial? A luz morre devagar, o
branco das casas vibra num tom violeta, a cor da esterilidade... Há aulas
amanhã e o aceno da tua casa no Alto para tocares, sem importunos, a
verdade da tua condição.
Chico aparece e vem com o Carolino. Vejo-os avançar pelo café,
Carolino à frente, de olhar inquieto, mas não tímido, Chico atrás, baixo,

132
bloqueado de força, o ar empertigado de boxeur.
- Então os meus meninos só agora? Senta-te, Chiquinho. Sente-se você,
Carolino. Que é que tomam Vai um bifezinho?
Bexiguinha está agitado, cumprimenta-me comprometido, o olhar
incerto, o sorriso incerto, olhando em roda à procura de lugar. Chico
aperta-me a mão; na sua mão quadrada, com um ar evidente de desprezo.
Agrupa-se uma nova mesa à nossa, Carolino instala-se ao pé de Sofia. Há
um momento de embaraço, eu fumo um cigarro. Alfredo chama o criado.
- Sempre vai para Lisboa para o ano? - Pergunta-me Ana.
- Não sei. Espero uma vaga neste concurso:
- E essa coisa da pensão? - interrompe Alfredo. - Isso é que foi uma
escandaleira! Muito me ri eu quando me contaram. Só ontem, minto, só
anteontem é que eu soube. O doutor conhece a história?
- Contou-ma o carregador.
- Era o Machado, era o Dagoberto também, era... quem era mais?
Todos à roda a dançarem; O diabo dos homens, para o que lhes havia de
dar...
Mal o ouço. Olho Sofia. Há um diálogo mudo entre ela e Carolino.
Carolino baixa a cabeça, faz sinais com os olhos, franze a testa, sorri, faz
gestos com as mãos. Sofia olha, interrogadora, pensa, tem enfim um
sorriso de quem entendeu.
- E agora para onde muda? - pergunta-me Ana.
- Para o Alto de São Bento. Alugo lá uma casa Se cá ficasse, comprava
um moinho.
Toda a gente se interessou pelo meu projecto.
Sofia pergunta-me logo, a meio do seu diálogo com o Bexiguinha:
- Quando muda?
- Logo que tenha carta de condução. Sim, tenho de comprar um carro.

133
- No Alto de São Bento? - estranhou Ana. - Que ideia!
Porquê, Ana? Estou longe, estou só. Largar-te-ei à tua liberdade, eu o
demónio que te irrita, largarei Sofia, a minha vida é criminosa, vós mo
fazeis acreditar. E, no entanto, não há verdade alguma fora dela. Chico
pareceu ouvir-me:
- Mas é um sítio ideal para ele - disse a Ana. - Está isolado, pode
meditar em sossego sobre o espantoso milagre de estar vivo e o incrível
absurdo da morte.
Mas tu não riste, Ana. E perguntaste-lhe a ele o que tinha ele a dar aos
homens. Chico foi claro como um murro:
- Pão e orgulho.
- Orgulho de quê?
- Deles mesmos. Para não consentirem que lhes ponham a pata em
cima.
De queixo nos polegares, Sofia e Carolino espreitam a conversa de
longe. Estais, pois, unidos secretamente. Como me sinto ridículo. A união,
aliás, é entre todos vós. Eu a pressinto neste meu banco de réu. Que és tu,
Ana, mais do que um meu advogado de defesa - se fores?
- Que fará você - pergunto a Chico - quando os homens tiverem
comido e já estiverem a fazer a digestão?
- Conforme. Se a digestão for difícil, bicarbonato. Se não for, um
passeio ao ar livre ou um bocado de sesta.
Alfredo, de olhos piscos, a face redonda de sorriso, fumava e ouvia. De
súbito, interrompeu:
- Vocês sabem quantos coelhos pariu este mês uma coelha branca que
lá tenho?
Mas Chico insultou-o: para o diabo ele mais a coelha dele:
- Já me tramaste - chorou Alfredo. - Já me codilhaste. Há tipos que só

134
são felizes quando podem humilhar os outros.
Olhei Ana, ela tinha os olhos baixos, revolvia, séria, o açúcar no fundo
da chávena.
- Tenho de ir indo - disse eu.
Chamei o criado, mas Alfredo travou-me o braço: “estava pago, ora
essa; não senhor, estava pago”.
- Quando muda? - perguntou-me Ana, como se falasse só para mim.
Mas eu já lho tinha dito: dentro de uns vinte dias. Ela sorriu:
- Depois nunca mais aparece.
- Que ideia. Aliás...
Voltei-me para Sofia, embaraçado:
- ... não temos o nosso latim para resolver?
- Ah, não sabe? O pai não esteve consigo?
- Não o vi ainda. Cheguei hoje.
- Mas não foi lá a casa?
Neguei cobardemente. Neguei sem pensar. Sofia; porém, foi cruel:
- A Lucrécia... vejam aquela rapariga. Disse que o doutor tinha lá
estado pelas quatro horas.
Vexado - eu já estava de pé -, declarei abertamente:
- Fui procurá-la mas foi a si.

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XV

Mas o que o pai de Sofia me não dissera disse-mo o reitor. Com efeito,
logo no primeiro dia de aulas, ou logo num dos primeiros, mandou-me
aviso de que me queria falar. Procurei-o à tarde, mas na reitoria só estava
o perdigueiro, enroscado a um canto, consumindo o seu tédio. Esperei à
porta da secretaria, olhando o claustro já despovoado, os últimos raios de
sol que douravam o perfil da frontaria. O homem veio enfim de qualquer
sala longínqua, insólito na solidão das arcarias. Fez-me entrar à frente,
indicou-me um sofá:
- A... Eu mandei-o chamar... a...
Depois sorriu, para que eu me sentisse melhor. Mas eu nunca me senti
mal, reitor. Tu eras um ancião e no teu ar largo e pesado perdiam-se,
como num mar, todos os ímpetos do mundo. Fala, bom homem. Eu te
escuto ainda agora:
- É preciso cuidado, todos temos inimigos. Ora vieram-me dizer que
você dava lições.
- Lições?
- Sim. à filha do Moura.
- Sofia? Mas... Não são lições. Ajudo-a no latim.
- Pois é... pois é... De qualquer maneira, são lições particulares. E a lei,
já vê, a lei é clara. Não dê lições. Está bem, uma dúvida de vez em
quando, uma pergunta que ela lhe faça... Mas já vê: lições regulares! Duas
vezes por semana, não era?
- Sim, realmente, duas vezes. Mas gratuitas. Eu não dava propriamente
lições... É extraordinário como estas coisas se sabem logo.
Temos inimigos, todos temos inimigos, explicava ainda o bom homem,

136
de olhos baixos, beiço estendido. Todos temos inimigos, era preciso
cuidado com os inimigos. Como soubera ele? Era fácil: recebera uma carta
anónima, perguntara ao Moura, e o Moura (que é um belo rapaz) natural-
mente confirmou logo.
Saí embaraçado de fúria e de surpresa. Quem fora o canalha? Como o
soubera? Mas não te agites: Sofia, de qualquer modo não quereria mais
lições. A tarde alonga-se em silêncio - olha-a, escuta-a. Estás só. É bom
estares só. Ao alto da rampa suspendo-me, disperso. O largo está vazio,
debruço-me das grades, vou pela planície de olhos perdidos, até à linha
aguda da serra azul e longínqua. As searas abrem-se em promessa à
aparição das sombras. Talhões ainda despidos alisam-se, macios. Casas
avulsas recolhem-se ao primeiro sinal da noite. Um apelo doce de uma
paz longínqua fala-me onde me esqueço, imperceptivelmente, insidiosa-
mente. E é já quase com violência que me ponho a andar ao acaso pelas
ruas. Vou pela Rua do Colégio, tento prender-me das casas à beira, olho
por outras ruas, que descem a pique, com muros de quintais, palmeiras
abrindo pelo céu, apontando ao longe súbitos trechos de planura que me
lembram uma praia, uma ria de povoações marinhas. Há uma casa à
direita, ao alto de um jardim, com uma fachada de azulejos azuis, um
terraço com balaustrada. Tem um olhar de horizontes como quem chega a
um mirante. Do portão de ferro, que dá para a rua, entre duas colunas,
sobe uma escadaria para um parque de ciprestes e limoeiros. Uma outra
casa adiante, com um brasão, abre-se de arcarias, num jardim traçado
pela curva da rua. Contorno-o, olho-o. Meto pelo labirinto das ruas ao pé
da Sé. Há uma a pique, penosa como uma velha penitência. Paro a meio,
ergo os olhos para a massa escura da catedral, o alinhamento dos contra-
fortes, a renda de corda, lavrada a mãos grossas, pelas rosáceas, pelas
ameias, a ascensão, até às flechas, de uma força entroncada, vinda do

137
fundo da terra, escorrendo ainda o seu negrume de raízes... Dos frisos
imbricados milhafres atiram gritos para o silêncio; por cima dos
coruchéus, no vasto céu azul, uma nuvem isolada vai passando devagar.
No entanto, o meu corpo não se engana. Eis que, depois de vaguear
pelas ruas e becos, esta humilhação secreta de ossos e de vísceras, esta
cólera sangrenta, este choro oculto e desgraçado de baba e solidão, este
urro amordaçado se exprimem de uma só vez quando estou de novo na
Praça, ao cimo da rua de Sofia. Desço apressado como se com receio de
que a urgência me abandone. Aperto o botão, não ouço a campainha: terá
tocado? Agora espero; agora amedronto-me, tenho quase pena de mim.
Mas o trinco estala e Lucrécia aparece. E, sem me deixar falar, explica
imediatamente que:
- A menina Sofia está a dar lição.
Mas eu não to perguntei, Lucrécia! Eu venho é visitar os Senhores.
- Então faça favor de subir.
Mas espera: a dar lição? Quem lhe dá lição agora? Lucrécia não
responde, mas eu também não chego a perguntar. Hesito ainda junto ao
bojudo pote de cobre que centra todo o átrio. Subo enfim a larga esca-
daria de granito, bordada das bilhas de barro que, Moura coleccionava.
Terá ele já bilhas da Beira? Nunca lho perguntei, mas deve ter, os cântaros
da Beira nada têm de especial. Lucrécia abre-me a sala de visitas, que é
também o escritório, e ali me deixa no silêncio de carpetes e reposteiros. É
um silêncio esponjoso, selado a mofo, que me afoga a boca, os olhos, os
ouvidos.
Passa com estrépito uma carroça na rua: ouço-a num rumor amor-
tecido em sucessivas pastas de algodão... Que faço eu aqui? Sinto-me
mais presente a mim, mas de uma presença mole, gomosa, aturdida de
estofos. Ouço passos no corredor, Madame vem aí enfim. Mas os passos

138
perdem-se de novo, lá para dentro. Que vais tu dizer-lhe? Naturalmente,
vens trazer cumprimentos. Supõe que te fala de Sofia, evidentemente
fala-te de Sofia. Sê calmo, sê em evidência como a vida, o caso de Sofia é
bem claro, houve a carta, o reitor, e há tanta coisa por cima e à volta e
para além... Mas eis Madame à porta (não lhe ouvi os passos), loura,
risonha e abundante. Senta-se e é como se se sentasse sobre a vida. Como
estava eu?, quando tinha chegado? - eu já viera ali a casa...
- Vim a horas inconvenientes, não apresentei cumprimentos...
Madame sorri, pára, atira-me olhares clandestinos, pousa os olhos no
regaço, volta a fitar-me, mas fixa-nos com um olhar amplo onde caibo eu,
alguém mais, a vida toda, que ela já vê soberanamente em conjunto. E eu
sentia-me quase bem, desaparecido aí, na sua protecção, na sua tolerân-
cia, no seu ar cimeiro. Ou será que tudo isso, boa Madame, é o desprezo
pela minha insignificância, este meu ar tímido, consumido em magreza,
em olhos estonteados? Porque tu sabes, desde o teu trato mundano,
batido no teu corpo, nos teus prazeres secretos (como será a tua submis-
são no prazer?), nas nódoas dos teus desgostos, nas tuas mentiras, na
mecânica endurecida da tua convivência, tu sabes que a aventura de Sofia
é um pormenor sem importância, excepto no protocolo correntio; no
rumor fácil das palavras convencionais, tão sem importância como a
nulidade de um pobre professor, de um jovem magro, assustadiço, não
alisado pelo uso e em cujas arestas é fácil prender as mãos. E se não é
assim, se há uma consciência na aventura de Sofia e na minha, que
fiquemos com ela - tu o pensarás, Madame - e que a aproveites ane-
xando-a ao teu mundo de conveniência.
- Essa questão das lições... - Diz, Madame! Essa questão...
- ... Vocês podiam continuar como até aqui, que ninguém sabia nada.
- Mas como se soube?

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Como se soube, Madame? Acaso imaginas quem me terá denunciado?
- ... Poderia tê-lo feito alguém muito da casa.
- Quem?
Eu não sei, Madame. Supõe que foi o Alfredo, ou Ana, ou o Chico, ou a
própria Sofia.
- ...Porque a gente fala com A ou B à confiança, não pensa que A ou B
diz a C ou D e assim por diante. Aliás, que mil razões profundas para isso
e que tu não sabes, Madame, nem eu?
- Portanto, o senhor doutor também poderia ter falado.
Toca, Cristina. Ouço-te ao longo da porta entreaberta, ao longo dos
corredores - que vens tu fazer à nossa conversa? O dia morreu cedo
através destes cortinados, destes reposteiros, o teu piano é a voz desta
hora, do meu cansaço.
- Sim, minha senhora, eu podia ter falado. Mas não falei.
- Eu chamo a Sofia.
Lucrécia apareceu toda vermelha, foi abaixo, voltou - Sofia tinha saído.
- De resto - disse eu -, Sofia já tem professor.
- Que professor? O Carolino?
- O Bexiguinha?
- Quem é o Bexiguinha?
- Os rapazes chamam Bexiguinha ao Carolino. Ele tem aquelas borbu-
lhas, chamam-lhe o Bexiguinha.
- Mas o Carolino... Não. Que ideia! – disse Madame. - O rapaz é do
Redondo, a Sofia esteve lá nas férias, tenho lá uma irmã. O Carolino
prontificou-se a estudar com ela. Mas ele é, coitado...
E calcule, desistiu do liceu, vai como externo a exames. Que pode
saber ele?
Toca, Cristina. Suspenso da tua música, ouço.

140
Devo ter erguido a mão, a interromper Madame. Ela consente,
Madame sorri, quero eu ir ouvir?
- Sim.
Vamos pé ante pé, o teu piano enche o deserto da casa, as abóbadas, a
escadaria, as sombras dos corredores. É a sala de outrora, de um outrora
que já não sei - onde de mim?, em que hora de paz ou de agonia, de
plenitude ou de choro, lembrada agora, evocada agora com o seu sinal de
origens para lá da vida e da morte, agora, neste rumor de Inverno e de
grandes ventos? A porta está aberta, eu sustenho Madame para não
interromper. De costas, a cabeleira loura de Cristina desce-lhe pelos
ombros. Tem uma camisola azul de malha. Em frente, aberto na estante
do piano, um grande livro de música. Madame entra cautelosa, eu fico à
porta um instante. Decerto Cristina ouviu-nos, mas não se interrompe.
Ou talvez não tenha ouvido, e eu sinto que seria bom que não nos
ouvisse, a nós, à nossa grosseria, às nossas manhas de animais em
disputa, à parte de nós manufacturada pela vida. Entro também na sala,
instalo-me num sofá, de modo a ver a face de Cristina. Do alto de uma
janela, à esquerda do piano, desce a última claridade da tarde. E é para
mim uma aparição essa alegria que me ignora e sorri da luz para Cristina,
para os objectos na sala. Toca ainda, Cristina. E que estarás tu tocando?
Bach? Mozart? Não sei. Sei apenas que é belo ouvir-te nesta hora breve de
Inverno, neste silêncio fechado como uma pérola. Um halo vaporoso
estremece à tua volta e eu tenho vontade de chorar. Que tu sejas grande,
Cristina. E bela. E invencível. Que te cubra, te envolva o dom divino que
não sei e evoco à memória de um coral majestoso no centro do qual te
vejo como no milagre de uma aparição. Escrevo pela noite e sofro. Onde
estás tu e a tua música? Cristina... Se tu viesses! Até à minha fadiga...
Direita, as mãos dadas à frente, com a tua rugazinha de seriedade,

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uma revoada de brancura a envolver-te, cantando-te... Sê viva sempre,
Cristina. Sê grande e bela. Deuses! Porque a traístes? Eu te guardo agora
como um perene nascimento, como a memória sufocante de uma verdade
inacessível.
Cristina terminou enfim. Abro-lhe os braços, ela vem para mim de
olhos baixos, ergue-os depois e sorri tolerante.
- Sabes que tocaste muito bem? - digo-lhe, depois de também sorrir.
- Não foi muito bem, não. A minha professora diz que eu tenho de
tocar mais depressa.
- Mas ela não pode - disse Madame. - Os dedos ainda não chegam.
- Pois é. As oitavas não posso. E, mesmo os pianos e forte, a minha
professora diz que também não estão muito bem.
- Tem de estar um dia - digo-lhe. - Há-de estar tudo um dia muito bem.
Espero ouvir ainda o teu primeiro concerto.
Ela fita-me de lado, desconfiada, faz depois um momo de aborreci-
mento, como se eu estivesse a fazer troça.

E a minha vida recomeçou, cronometrada a aulas, a toques de sineta, a


longos silêncios de cigarro no quarto da pensão, a vagabundagem pela
cidade, sobretudo às horas da tarde. Tomava lições de condução e em
breve teria a carta, porque de há muito sabia a teoria (desde que um dia,
há muitos anos, meu pai me explicara o mecanismo das alavancas) e
porque tinha, na opinião do instrutor, decidida vocação para o volante.
Foi todavia um período desagradável: a cidade renascia-me sob o signo
da mecânica, com ruas apertadas, cruzamentos enviesados, cotovelos em
ângulo recto. A rede das ruas esboçava-se-me em movimentos instintivos,
mas ainda conscientes, dos meus membros, apelava para o jeito das mãos
na rotação do volante ou dos pés na manobra dos pedais, aparecia-me aos

142
olhos na decifração das placas que regularizam o trânsito. Uma rua
estreita e distorcida não era uma voz de tempo e de silêncio - era um
comando aos reflexos de pés e mãos.
Pela manhã, os ruídos da cidade criavam-me os sinais com que ainda a
relembro. Estrépito de carroças, batendo a ferragem nas calçadas, a
corneta do azeiteiro, toque de ferrinhos do caldeireiro ambulante; pregões
do vendedor de queijo meia-cura, queijo, do comprador de peles de
coelho ou de lebre, do vendedor de mel, água-mel e louça - ó cidade
estranha, cidade velha, portas entreabertas para pátios seculares com
velhos criados de lavoura de blusas de xadrez, com as pontas atadas à
frente, campaniços de pelico vindos das herdades, cidade milenária
dormindo o sono da planície, entre os restos deixados pelas praças e
povos que vieram, se cruzaram, partiram. Nestas noites de vigília
ressoam-me à memória as horas das igrejas, vibram-me até ao anúncio
indistinto do meu alarme, rolam pelo descampado sob a eternidade do
céu. No limiar de uma porta da Rua da Selaria, por uma tarde de chuva,
um cão tirita ainda, de focinho apontado para a sua janela alta, à espera
de que a abram e lhe atirem um osso...
Não vi Sofia durante longo tempo. Entretanto tirei a carta, comprei
carro e aluguei a casa de São Bento. Mas não me mudei logo, porque era
necessário decidir várias questões prévias (mulher da arrumação,
refeições na cidade, compra de alguma mobília). Um dia, porém, recebi
um bilhete de Sofia: podia eu estar em certa hora no Museu? Fui. Sofia
estava já no pequeno claustro, estudando, dobrada com interesse, a
inscrição de um cipo funerário:
- Ouça, doutor. Você, que sabe latim, diga lá o que é que isto quer
dizer.
Como se nada houvesse entre nós. Tentei ler a inscrição. Mas nesse

143
instante uma avalancha de turistas invadia o Museu. Eram estrangeiros,
decerto ingleses, pela tralha de aparelhos que traziam ao ombro e pelo ar
infantil, branco e rosado, dos cavalheiros, mesmo idosos (como pela face
avelhãtada das mulheres, mesmo jovens). Espalharam-se pelo claustro,
desorientados, até que um cicerone veio tomar conta deles.
- Se saíssemos? - propus a Sofia.
- Para onde?
- Para onde... Bom: antes de mais: que me queria você?
Ela fitou-me com o seu olhar cintilante. E falou.
Mas o que me dizia vi bem que ficava à superfície
do que era mais grave.
- O Alfredo quer que a gente vá no domingo almoçar à Sobreira. Mas
teve receio de o convidar.
- Receio? A mim?
- Você já leu o Eterno Marido, de Dostoievski.
- Mas receio porquê?
- Pavel Pavlovitch esqueceu-se de interpor ou o Stepane ou o
Veltchaninov entre Natália e um deles.
- Não sei o que quer dizer. Sei que Ana é uma mulher extraordinária.
Mas a vaga de turistas regressava das salas do rés-do-chão.
- Se saíssemos? - perguntei de novo. - Podíamos... É verdade: você não
quer experimentar o meu carro?
Ela cerrou os olhos em deliberação profunda:
- Sim.
Descemos as escadas da Sé, perdemo-nos por vielas até à garagem
perto do jardim. Julguei que Sofia preferisse esperar-me na rua: acom-
panhou-me e instalou-se logo no carro. Na estrada de Reguengos, pouco
adiante do desvio para Viana, havia um eucaliptal atravessado por um

144
caminho que ligava com a estrada. Foi Sofia quem sugeriu esse sítio,
depois de pensar em vários outros: a albufeira, o riacho na estrada das
Alcáçovas, os sobreiros ao alto de uma rampa da estrada para o Redondo,
a ponte, mais adiante, na mesma estrada de Reguengos. Atento à
condução, aos olhares de quem cruzávamos, eu não falava. E Sofia,
absorta, não falava também. O sol de Inverno iluminava a planície, já
toda verdejante e a perder de vista; as árvores das bermas, em fileiras
ininterruptas, entestavam em cunha à velocidade do carro. Passámos o
desvio para Viana, breve a mata de eucaliptos surgia à nossa esquerda.
Abrandei a marcha à espera do caminho. Sofia pôs-me a mão no braço:
- É aqui.
Era um caminho escavado, com cortes bruscos que sacudiam o carro.
Parámos enfim numa clareira e aí ficámos algum tempo em silêncio, sem
nos movermos. A minha atenção desprendia-se do carro. E naquele
súbito descampado, com o aroma intenso de Sofia ao pé de mim, as suas
formas quentes entre o casaco aberto, a sua face tenra e branca, o seu
olhar oblíquo de pecado, inchava-me de cólera o corpo todo. E brusca-
mente as minhas mãos ficaram cheias da sua massa, os dentes esta-
laram-me como à aparição de um raio. Sofia, porém, impassível,
aguardava sem pressas que eu me visse só e reparasse que mais alguém
estava a ver-me - ela precisamente. E eu me vi, ridículo, numa espécie de
degradação sem cúmplices. Saí do carro, atirei com a porta e afastei-me,
acendendo um cigarro. Quando voltei, já sereno, Sofia fumava também
no seu jeito de pegar no cigarro a dedos breves, soprando o fumo por um
fio de lábios. Sentei-me a seu lado, vago e sério.
- Por quem me toma você? - perguntou-me ela enfim.
- Eu sei o que quero. Eu sei.
- Que se passou nestas férias? não tenho o direito de saber?

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- Evidentemente que não. Mas eu conto, eu conto. Foi para isso que
vim, para contar. Conta, Sofia. Para lá dos eucaliptos, na estrada de
pedra, o rumor dos carros cresce como um susto, ergue-se ameaçador,
desaparece com o seu pânico. Podes contar, Sofia, estou calmo e há ainda
sol nas árvores.
- Só uma vez você foi grande. E eu penso: você não era isso, você
meteu-se numa ideia como quem se mete numa bicha que por acaso tem
pouca gente. Ou como quem se embebedou.
- Como? Como?
- Mas eu estava feita, doutor. Só me faltava apalavra. Você sabia a
palavra.
- Que tem que fazer Carolino na sua vida?
- O Carolino é um homem como qualquer outro. E é novo. Além disso
tem ideias. Também sabe valorizar até o que não tem valor. Mas é
extraordinariamente tímido. Bom, há várias formas de timidez, quero
dizer, várias razões para o ser. Mas a dele é a daqueles para quem um
pecado é mesmo um pecado, uma sedução terrível, e que defendem
portanto a inocência que detestam ou que amam com um amor infeliz.
Dirá você: dominar uma inocência é próprio do homem. Pois é. Mas eu
também gosto. Toda a mulher é um homem não realizado - não é o que
vocês pensam Aliás, dominar uma inocência é talvez uma fraqueza que
quer imitar a força. Não é isso mais próprio da mulher?
- Pobre Bexiguinha - murmurei, tentando valorizar a minha derrota
com a compaixão.
- Mas você também é um tímido! - riu Sofia. - E, depois, ele falava
muito de si. Admira-o ou admirava-o. E eu pensei: assim, também o
tenho a ele. Ele é você.
- Porque mente? - perguntei.

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- Mas que é a mentira? O que digo talvez não fosse verdade noutra
altura. Mas é-o agora, porque o digo. Se o digo, achei bem que o dissesse.
Logo, é verdade em mim, agora.
- Coitado do Bexiguinha...
- Que estupidez, doutor! Que estupidez em si!
Carolino disse-me: “Que bonita você é.” Imagine a violência que o
dominava para ele o dizer. Nós estávamos no fundo do quintal dele, a
minha tia tinha ido visitar-lhe os pais. Havia ali um pavilhão com trepa-
deiras secas. A sala tem janelas ao sol. A um canto havia um sofá. Ele
chorou, porque foi tudo muito mais forte do que supunha. Lembra-me
um tio que já morreu. Era um segundo-tio que tomava rapé. Uma vez um
primo meu pediu-lhe uma pitada. À primeira tentativa, o pobre moço
desatou a espirrar e passou assim a espirrar toda a tarde. Meu tio
disse-lhe: “Que rapaz feliz! Ainda espirras...”
- Como você é cruel!
- Oh, não me elogie, não gosto que me elogiem. Só eu é que gosto de
me elogiar.
Então tive uma revelação. E, olhando Sofia longamente, pesadamente,
perguntei:
- Quem é que me denunciou ao reitor?
- Mas fui eu, naturalmente.
- Com uma carta anónima!
- Tive de lhe fazer ver que outras pessoas da cidade já sabiam. Só
assim dava resultado.

147
XVI

A quinta da Sobreira fica na estrada do Espinheiro. Mas vira-se à


direita, a certa altura, por um caminho estreito, bordado de valados e
piteiras - e perdi-me. Descobri enfim a casa, aonde já viera com Alfredo
numa tarde vazia de Dezembro, porque Alfredo gostava de levar os
amigos às herdades, mostrar a sua familiaridade com os camponeses,
como quem admite que a generosidade é uma forma evidente de poderio.
Lembro-me de lhe gabar a casa para seu gosto. Ele massacrou-me logo
com a explicação miúda dos confortos da vivenda.
Filho único, herdara uma interessante fortuna. Mas Ana, infelizmente,
não podia dar-lhe filhos: desarranjo no ventre ao primeiro parto falhado,
uma operação eliminatória. Evoco a quinta ao sol cálido de Inverno. A
casa tem um alpendre à largura da fachada, no estilo colonial, para o lado
de nascente. Uma sala térrea de mosaico abre-se em frescura, relembra já
lá fora a violência do Verão.
Filas de plantas bordam as alamedas, um aroma de mimosas desva-
nece-se no ar com uma lembrança de estradas longínquas. Uma piscina
vazia escava-se no terreiro, com um ar de ruína nas folhas secas, deposi-
tadas no fundo. A um topo estende-se um pano de cimento colorido: um
vago frémito de linhas de água, a rosa e cinzento, âncoras-algas boiando,
afogando-se no ondeado límpido. Alfredo explicara-me que era um muro
do Cardoso, seu amigo de Lisboa. Cheguei quase à hora do almoço, todos
mostraram interesse pela minha demora. Mas foi Alfredo, de chapéu de
campónio e com um pequeno sacho, quem me fez uma festa maior:
- Olha, olha o nosso doutor! Mas isto serão horas de se aparecer?
Perdeu-se então no caminho... O Alentejo é assim, doutor. Como é que a

148
minha Aninhas diz? Diz lá, Aninhas, diz lá. “Caminhos abertos, caminhos
fechados.” Diz lá tu, que tu é que sabes. Porque a minha Aninhas, em
coisas de livros, de cultura, é uma deusa.
Sorrio, olho em volta. Ana encolhe os ombros.
Sofia saúda-me de longe. Carolino a seu lado para os fundos da quinta.
Ana senta-se ao sol, com um grande chapéu de palha. Chico, de pé,
continua uma conversa baixa, ri musculadamente, transmite de vez em
quando a Alfredo, em voz alta, uma ou outra frase para fingir uma
comunidade, Alfredo responde agradado, como se mesmo de longe fosse
o dono da conversa. Mas de súbito interrompe-o:
- Tu já viste a minha ninhada de porcos? Vamos daí ver a minha
ninhada. Você há-de gostar, doutor.
Ana não quer ir.
- Vem Aninhas. Vem ver os porquinhos. Eles gostam tanto de ti!
Porque a conhecem, doutor. Ela leva-lhes uma folha de couve, eles
conhecem-na.
Ela olha-nos, como se nos consultasse, ergue-se enfim. Do muro da
pocilga, vemos em baixo uma massa convulsa de bichos negros, ouvimos
uma grulhada de guinchos, os roncos compassados da porca, que ergue
para nós os dois furos do focinho. Alfredo estava contente, mas mos-
trava-se sereno para que a sua importância parecesse natural. Contou
coisas de porcos, a história, esse ano repetida, de um leitão nascido a mais
e que tivera de matar. A Natureza era muito engraçada... - mesmo muito
engraçada. Não sei se sabem que cada porco tem a sua teta. Mal nascem,
cada bicharoco toma logo conta da sua. E ali, meus amigos, é que não
mama mesmo mais ninguém. Desta vez não havia teta para toda a gente.
Porque cada porca, aqui o doutor talvez não saiba, sabe muita coisa mas
de porcos talvez não saiba, cada porca tem dez tetas. Se nascem onze

149
porcos, é claro, um fica a ver navios. Mesmo dez porcos já é de mais. A
não ser que seja uma porca muito robusta. Oito porcos é que é o normal.
A minha porca é um monumento. Aguenta ali dez crias, sim senhor. Mas
nasceram onze e tivemos de matar uma. Eu tive muita pena... Mas tinha
de ser e matou-se mesmo o animalzinho.
- Mas porquê? - perguntei com deferência. – O leitão mamava nos
intervalos das refeições dos outros...
- Qual quê, doutor - elucidou-me com piedade. – O leitão morria de
fome. Se ele pegasse numa teta, vinha logo o dono e punha-o fora.
Saturado do cheiro a estrume, afastei-me. Sofia passou por mim,
sorriu-me cúmplice, Carolino mal me olhou, sinistro e hostil. Almoçámos
na sala térrea, onde se expuseram os cabazes trazidos da cidade.
Pelas janelas abertas entra a luz viva de Fevereiro, vêm os primeiros
aromas da terra fecundada. Ao anúncio da alegria, pássaros vibram já na
radiação do sol, uma expectativa encantada abre-se pelo ar. Alfredo, de
pé, distribui as rações, incita-nos a um desembaraço folgazão. Recebo a
minha dose, encho o meu copo, invisto com o meu apetite. No silêncio de
introdução, ensaiamos uma comunidade de alegria, razões fáceis para ela.
Alfredo tenta a sorte, fala do apetite de Carolino, que empalidece,
coalhado de borbulhas. Depois ataca Sofia, que come pouco, em gestos
esguios. Por fim, estabelece-se uma conversa para essa zona, eu falo a
Ana, que está à minha frente:
- “Caminhos abertos, caminhos fechados.” Porquê fechados, quanto
mais abertos?
- Quando se muda? - interrompeu-me ela.
Bebo um gole de prazo:
- Talvez esta semana. Ando nisto há uma vida, falta sempre qualquer
coisa.

150
- Tem pressa de mudar... E que está lá à sua espera?
- Não sei, não sei bem. Só se espera o que já se sabe, não é? Mas sei que
há lá silêncio para me não distrair.
- Distrair... Que medo você tem de se distrair. Mas quem quer não é.
Não é santo quem quer. Nunca pensou que era um impostor?
- Até os grandes o hão-de ter pensado, Ana. Mas só há impostura
quando há público. E o que eu procuro é ser público de mim próprio.
- Oh... É um público como qualquer outro.
- Ó Chico - interrompeu Alfredo -, tu não querias dizer qualquer coisa
aqui ao nosso doutor?
Chico fez um momo displicente de quem não se lembra e de quem não
ligava importância. Olhei-lhe a face esverdinhada, de pergamóide, os dois
olhinhos pequenos e pretos cravados como pregos.
- Não tinha nada de especial a dizer. A não ser talvez das conferências.
- Ora é isso mesmo - aproveitou Alfredo. – Era precisamente das
conferências. Sim senhor, era isso mesmo, lembro-me agora muito bem.
Chico hesitou, bebendo um trago desdenhoso:
- Bom, o que há sobre as conferências é que já se não podem fazer.
Não se podiam? Expandi-me sobre a cultura, sobre a grossa obstinação
do alentejano, a sua encasmurrada negação a que uma ideia o perfure e a
sua gorda bazófia disso, encordoada a riso rouco, esse riso que vem do
estômago, esse riso pançudo. Eu repetia Chico, afinal. Mas Chico fazia
agora restrições. Havia o senhor feudal, decerto; mas havia também o
operário, o trabalhador. As conferências eram para estes e exactamente
por isso é que tinham sido torpedeadas. A conversa alastrou: verdadeira
cultura, falsa cultura, esterilidade de gabinete, consciência dos problemas
amassados nas mãos, saber inútil, saber prático. Depois veio a política e o
mundo de amanhã e a reforma de uma cultura ancilosada. Depois ainda

151
as relações do homem interno e externo. Chico era de opinião que o
homem de dentro era lavável, escarolável, à agulheta de uma nova ordem
social. Eu também o admitia, mas não o imaginava, como não podia
imaginar uma pessoa estranha ao que eu era.
- Vocês sabem que o porco é um animal inteligente? - interveio
Alfredo. - Sim, senhor, muito inteligente. Ora vejam vocês: aqui no
Alentejo há aldeias onde os porcos vão todos juntos para os montados
com um garoto. Pois à noite, quando regressam, vai cada qual para a sua
pocilga e não se enganam, cada um sabe muito bem onde é que é a sua
casa. Uma vez estava eu aí numa aldeia e vejo os porcos voltar do campo.
Em dada altura, um deles distraiu-se e passou a pocilga sem reparar. Mas
chegou à frente, parou e fez assim: room, room. Foi como se batesse na
testa e dissesse: Espera, já me esquecia. E voltou para trás. O porco é um
animal muito inteligente...
Carolino riu de gosto, eu ri polidamente, Ana olhou o marido com
ferocidade.
- A minha Aninhas não achou graça, já conhecia a história.
Voltei-me para Ana, subitamente lembrado do processo projectado
contra o Moura:
- Uma coisa: em que ficou essa questão do homenzinho que se
enforcou?
Foi o Alfredo quem respondeu:
- Em nada, como era de esperar. Olha os Bailotes. Espertos como
ratos... Mas podia lá ser, agora o meu sogro o responsável!
- Tinha filhos?
- Dez - disse Ana. - Dois ainda pequenos, três anos um, o outro dois. O
mais pequenino é uma rapariga.
- Outra coisa - lembrei : - porque não veio a Cristina?

152
- Está adoentada.
- Doente?
- Barriguite, coisa sem importância - esclareceu Alfredo.
Carolino não dissera ainda nada. Mas de vez em quando eu
apanhava-o a observar-me, como se receasse de mim uma surpresa e
desejasse estar prevenido. Mas que surpresa te poderia eu dar, bom
moço? Reconheço-te hostil, ignoro os teus projectos. Quem não sabe em
Évora a história de Sofia? E quem sabe como tu a sabes ou a queres saber?
Por mim, está tranquilo. Há tanta coisa grave à minha espera! Sê feliz,
moço. Ou sê infeliz, que é a forma mais nobre talvez da felicidade.
Aproveito no entanto este silêncio. E pergunto-te:
- Então desististe do liceu, Carolino?
Ele ficou violentamente sério, quase louco, murmurou: “desisti,
desisti”.
- Mas frequentavas o liceu durante o segundo período e desistias no
terceiro. É o costume.
- Desisti no segundo.
- Tens explicadores?
Bexiguinha atirou-me em riste o seu olhar colérico:
- Eu acho que não tenho satisfações nenhumas a dar.
Medi-me com o moço, a olhos mudos. Alfredo interveio:
- Ouça lá, ó Carolino. Se a gente for ao Redondo no Carnaval, você é
capaz de nos dar lá de comer?

153
XVII

E eis que me instalo enfim na minha casa do Alto. E Tomado o desvio


para São Bento, sobe-se depois aos moinhos: a casa fica ao lado direito.
Uma vizinha trata-me dos arrumos, tomo na cidade quase sempre as
refeições, mesmo as ligeiras, que, todavia, por vezes eu próprio preparo.
No pátio em frente há um toldo de glicínias que começam a florir, e,
debaixo, bancos de madeira apodrecendo. Sob os beirais da casa há
sempre um frémito de asas: as primeiras andorinhas. Ao lado, para lá de
um caminho rústico, um alto pano de velho muro abre-se em ruínas,
mostrando no interior as pedras brancas de sombra. Atrás há um quintal
semeado que não arrendei e onde crescem favas novas, uma mesa de
pedra e bancos junto à casa para os grandes calores de Verão. Para longe,
ondulam linhas brandas de colinas, salpicadas de casas brancas, donde
sobem vozes anónimas de gente, cânticos de galos que vibram no ar com
um sinal antigo de terras solitárias. Fixo três grandes pinheiros de vasta
copa redonda, não longe dali, a cuja sombra eu me iria estender nas
tardes de grande sol. Mas o que eu sobretudo gostava de olhar era a
cidade. E eu a revejo agora do meio da minha noite, plácida e branca,
cercada de infinitude. Instala-se na colina, cisma para a lonjura, onde me
abismo também, veste de branco a acumulação dos séculos como de um
luar de morte. O espaço esvazia-se até ao limiar da memória, onde alastra
o meu cansaço, o afago quente de um choro, o aceno de sinais que se
correspondem como ecos de um labirinto. Num oblíquo aviso afloro o
que estremece sob os gestos enfim apaziguados. Évora, Évora. Para o
meio da planície, uma inesperada toalha de água de represa lembra ao
longe os poços do deserto. Uma ou outra casa branca, perdida na planura,

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descansa-me os olhos de vertigem da distância. Quedo-me longo tempo
ao meu mirante, evoco, no vasto céu, o eco de um coral alentejano, essa
voz para o deserto donde nunca se responde...
Fecho a janela enfim, regresso à minha presença. Que busco na minha
solidão? Chico acusa-me. Ana também, talvez. A massa de amigos com
que fui fraternizando através da vida despreza-me com náusea. E, no
entanto, nenhum deles tem uma resposta que aniquile o que me fascina.
Para que serve, para quê? Mas do para quê sei muito pouco, porque sei
de mais: para ser homem. Porque só se é homem assumindo tudo o que
fale em nós. Chico pensa na utilidade prática. Mas, se através dos tempos
o homem pensasse apenas na utilidade prática, hoje não seria um homem,
seria um parafuso. De resto, os utilitários estão lutando contra si:
conquistada a base prática, liquidados, em hipótese, os problemas de
bem-estar, forçada toda a azáfama ao silêncio, eis que as flores da solidão,
da asfixia, brotarão com a sua virulência clandestina da miséria do
homem: a vida estará então toda ela por conquistar, desde o limiar das
origens.
No arrumo da casa há mil coisas a fazer: caixotes por abrir, livros a pôr
no lugar. Tomo os instrumentos de trabalho, ponho-me a martelar,
pregando, despregando. Os livros pelo chão inquietam-me: têm o ar
desgraçado de um stock de alfarrabista. Elevo-os à sua dignidade,
perfilando-os nas estantes, irmanando-os na sua comunhão silenciosa.
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da
tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o
tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em
tons verdes e brancos, segurando no regaço um leque fechado. Cinta
instantânea, seios pequenos, um olhar enviesado de galanteio clandes-
tino. As folhas cartonadas só se passam devagar; e em cada face de folha,

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só um ou dois retratos. Vida efémera. Tão breve. E aí, o sonho invencível
da solidez, de uma unicidade eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as
figuras não estão centradas para um ponto único, não nos olham nem se
olham, altivas na sua independência. Viram-se para a esquerda e para a
direita, para o alto, para a frente, num desafio arrogante. Cerro os olhos e
sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que mais me perturba é
pensar que o rasto dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho
ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa
complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. E foi como se ela
própria se dobrasse à piedade por essa gente desaparecida e quisesse que
alguma coisa perdurasse. Mas de muitos retratos já nada sei. São esses
que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados ou risonhos ou
sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em
eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém vos
ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? Tu, por exemplo, de
colarinhos à Lincolnsim, eu te lembro na voz da tia Dulce. Eras “muito
respeitado”. E tu, boa moça, de peito armado em folhos e cordões? Eras
filha de... Já não sei. Mas não casaste, tia Dulce o disse. Das tuas vigílias,
do teu suor de insónia, do teu choro nocturno, eu te invento à minha
aflição compadecida. Frágeis fios destas imagens amarelecidas, conver-
gindo para mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por
uma breve referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu
lhe contarei o que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do
meu filho, ou o filho do filho do meu filho. Então aparecereis num
recanto do sótão, absurdos, incríveis, inquietantes, com uma face a falar
ainda, como o olhar de um cão que nos fita, nos procura, e que o silêncio
de permeio e que um vidro de permeio separam irremediavelmente de
nós. Mas agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta

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casa solitária, vos liga à vida que freme para lá destes muros na
Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas que me buscam o beiral,
na planície aberta de esperança.
Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um
nada do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul
do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso:
procuro.
Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”, sei já há tanto tempo...
Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque
o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E, todavia,
um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se
tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que
a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na
angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma
regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode
ver quando lhe apetece? A fidelidade é então só teimosia ou cedência à
parte convencional da “nobreza de carácter”, da “honradez”. Não é isso,
não é isso que eu quero. Em que iluminação eu acredito quando falo em
nome dela e a imponho a Ana, aos outros? Falo de cor - a iluminação é
então a minha noite de secura.
Por isso, quando ela volta, eu me abro à sua devassa, à acidez da sua
presença. Por isso eu a recebo ainda agora e falo dela e me aqueço e
queimo ao seu lume. Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e
escreverei sequer para mim. O que me arrasta ao longo destas noites, que,
tal como esse outrora de que falo, se aquietam já em deserto, o que me
excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o
desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e

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vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela
evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas
mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. E, como tantas outras vezes, de
novo me assalta a presença obcecante de mim próprio, esta terrível
presença, esta coisa, isto que mora comigo, que é brutalmente vivo,
independente, que desaparece, que volta, num jogo de reflexos em que
me vejo, me perscruto, me sinto eu, e breve me foge e está apenas sendo o
mundo em roda, estas paredes,. estes livros. Fixar bem, apanhar em
flagrante esta realidade medonha que emerge de mim, me estonteia, se
me some. Fixá-la a essa luz subtil, não a esquecer, mergulhar até onde
sou, para que nada de mim se perca no que hei-de decidir; sentir, ser no
mundo, para que eu saiba bem o que há a salvar, o que está condenado,
para que a construção que vier brote desde as raízes. Canso-me, insisto,
canso-me. Um acto de presença não se define, não cabe nas palavras,
SOU. Jacto de mim próprio, intimidade comigo, eu, pessoa que é em
mim, absurda necessidade de ser, intensidade absoluta no limiar da
minha aparição em mim, esta coisa, esta coisa que sou eu, esta indivi-
dualidade que não quero apenas ver de fora como num espelho mas
sentir, ver no seu próprio estar sendo, este irredutível e necessário e
absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me, esta categórica
afirmação de ser que não consegue imaginar o ter nascido, porque o que
eu sou não tem limite no puro acto de estar sendo, esta evidência que me
aterra quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E
estas mãos, estes pés que “são meus” não são meus, porque eu sou-os a
eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e
todavia vejo-os também de cima, de fora, como a caneta com que vou
escrevendo...

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Eu o disse, o repeti a Ana quando um dia me veio visitar. Eu a calei no
silêncio da sua submissão até onde ela me começava a ouvir e estremecia
também no cigarro febril, nos olhos cerrados até à sua procura e à sua
angústia. Eu o disse e repeti a Sofia quando uma noite, sozinha, veio no
carro do pai e se sentou à minha mesa e bebeu pela noite fora. Porque me
procuraste, Sofia? Repeli-te, a princípio, não sei porquê. Talvez porque
nada do que eras tu me fora prometido, talvez por renascer uma voz de
justiça entre nós ambos e que eu escutava ainda, com uns ouvidos justos
ou injustos, não sei. Mas qualquer eco de desespero vibrava ainda em
mim, vinha ainda e sempre talvez, porque é possível que só aí eu esteja
certo e a evidência que me queima seja a procura ou a expressão disso
que sou e me recuso. Assim te atravessei por fim da minha loucura ou da
minha raiva, esse gosto furioso de vencer em ti o que em ti resistia ou me
alucinava. Tu, uma pessoa inteira, tão flagrante, tão vibrante no teu
contorno, no tom da tua voz insidiosa, nos teus gestos estriados de vício.
Um segredo de ti me fascina - tocá-lo, vencer-te, vencer-me, saldar num
urro toda esta aflição. Eis-me escrevendo como louco, aos tropeções nas
palavras, enrodilhado, contraditório talvez, a boca amaldiçoada de
secura, um frio íntimo nos ossos, um arrepio no ventre. Sofia... Saíste já
alta noite, vim ver-te descer a colina, correr ao longo da estrada no rasto
de uma pequena luz. A paz não está em nós, não está a minha em ti, não
está em mim a tua. Mas tu queres amar o teu próprio desespero como
uma embriaguez, eu sonho a plenitude de umas mãos dadas com a vida.
Talvez, porém, que para lá da minha verdade que procuro esteja a tua
loucura. Não quero pensar agora - agora não. O luar verde de Março sobe
no horizonte da minha noite de vigília, esta noite infinita em que escrevo.
Olho-o pela janela na montanha e uma alegria profundamente triste
embacia-me o olhar. Minha mulher dorme. Tremo de pensar que o

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sossego que às vezes me visita esteja só na sua bênção; na paz que irradia
do seu silêncio. Estarei só e condenado? O reino da vida está cheio ainda
do rasto dos deuses, como num país velho perdura a memória dos
senhores antigos e expulsos. Mas o homem nasceu - nasceu agora da sua
própria miséria e eu sonho com o dia em que a vida fique cheia do seu
rasto de homem, tão certo e evidente e tranquilo como a luz da tarde de
um dia quente de Junho...

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XVIII

Cristina. Está um dia bonito, Cristina. Os campos estalam de fecun-


didade, os homens lavram as terras, guiando os arados, as cegonhas, que
vieram de longe, limpam os vermes com o seu bico comprido. Algumas
levantam voo, vão aonde não sei, talvez aos ninhos que os grandes
ninhos delas, de vergas entrançadas, talvez já estejam habitados nas
chaminés, nas nervuras secas dos ramos. Correm três passos, abrem as
asas e sobem. Ponho-me a olhá-las muitas vezes esticadas como fusos, as
grandes asas, esfarrapadas nas pontas. Andam na terra como em andas,
articulando as patas mecanicamente como robots. São mulas que puxam
às grades, aos arados. Na terra inculta, nas bermas dos caminhos onde
manchas brancas de malmequeres enfeitam uma memória de graça e de
festa. De festa, Cristina , vamos ao Redondo, é dia de Carnaval. Está um
dia belo de sol, de luz viva e quente com um assomo de Verão.
- Tu vens comigo, Cristina?
- Não, não vou consigo. Vou com o Alfredo.
Tens um costume de holandesa e eu vejo-te ainda, tão graciosa na tua
saia folhada, de barras verticais azuis e brancas, uma blusa de rendas,
socos altos, chapéu branco de um tecido rígido com bicos erguidos como
um barco ou um templo oriental. Não vais então comigo, vais com
Alfredo, com Ana, com o Chico. Eu vou com tua mãe e Sofia: o teu pai
não pode ir.
A estrada alonga-se por entre as searas verdes com manchas, à
distância, de cores variadas, amarelas, brancas e roxas, com manchas
castanhas das terras lavradas, um castanho húmido de gleba fecunda.
Alfredo vai à frente com o jeep marcando a marcha, Sofia e eu atrás com o

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meu pequeno Volkswagen.
Senta-se ao meu lado, apesar de eu lhe sugerir a meios-olhos e
palavras que devia ir atrás com a mãe.
- Lindo dia, lindo campo - digo eu em voz alta.
- Deve ser a única oportunidade do Alentejo, esta da Primavera.
- Gosto mais em Agosto - opõe Sofia, olhando em frente.
Terra calcinada, deserto estéril - pensei -, a cor dos restos do incêndio,
o teu destino de desastre, Sofia. Sim, entendo. Madame Moura concordou
comigo e para isso encostou-se ao nosso banco, onde lhe sinto os braços.
Tinha costela do Norte, do Minho, talvez, a água, o verde, o lirismo do
que é mimoso e tranquilo. Sofia responde ainda - o Alentejo era trágico,
não lírico, só a praga, a blasfémia ardente o exprimia.
Alfredo acelera a marcha, já o não vemos. Eu sigo em andamento
moderado, trago o carro em rodagem ou trago em rodagem a minha
aptidão de condutor. Mas lá para diante ,apanhamo-lo enfim: ele
estacionara a uma sombra.
Acolhe-nos à estrada, pergunta-me que volante saí eu. Rochas nuas
como ossos afloram aqui e além debaixo de oliveiras, de azinheiras, um
cheiro intenso a germinação alastra sobre a gravidez da terra. Distingo
sobretudo um aroma a mimosa, esse aroma quente, genesíaco, a força e a
liberdade, bebido a haustos fundos e a braços abertos. Alfredo localiza-a
adiante, toda copada de verde e oiro. É ele próprio que lhe vai cortar
alguns ramos para enfeitarmos os carros. Cristina atira serpentinas do
alto de uma seara para a estrada, uma leve brisa ondeia-as para longe,
prende-as nos ramos de alguma árvore. Ata depois algumas aos
pára-choques dos carros, aos fechos das portas, onde se prendem também
ramos de mimosas com as suas folhas de renda, os seus cachos de bolas
de oiro em pó. E, ovantes assim de festa, retomamos a marcha. O ar vibra

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nas serpentinas retesas, estala algumas, que ficam para trás enroladas na
estrada. vai connosco, com a nossa festa, uma excitação de boémia e
aventura.
Bexiguinha aguarda-nos no largo da vila. Tem para nós uma janela de
família donde podemos ver o cortejo. Fico na rua, quero ver a festa de
perto.
Na pequena praça, enquadrada de casas, o sol aperta já, convicto de
Verão, cega o ar, numa reverberação a brancura. Passam na rua os
primeiros comediantes daquela comédia pobre: homens de mulheres, de
pernas peludas à mostra, para que o equívoco se não consume, homens
gordos, acarnavalados com cartolas, com máscarras de carvão na face,
com a exibição de uma degradação voluntária - arrepio-me, confranjo-me,
tento achar o significado deste prazer no rebaixamento do cómico, neste
aceno à animalidade, no gosto da assunção do grotesco, como se no
homem se não calasse uma saudade do reles, um eco grosso de enxúndia.
Num café próximo, onde me instalo, homens enfarruscados (que é o seu
passe, o seu cartão de livre-trânsito na galhofa) trazem ao ombro sacos de
cevada, de tremoços secos, pousam no mármore das mesas cestos de ovos
que esvaziaram e atascaram de farelo durante o Inverno, ensaiam breves
pugnas entre si, disparando punhados de tremoços como balas. Mas o
cortejo vinha aí para iniciar o torneio. à primeira volta não havia batalha,
era a volta da apresentação, como numa tourada. São carros com motivos
alegóricos, quadros vivos, com ranchos de moços que cantam, que
lançam serpentinas. à segunda volta, porém, começa a luta, e uma fúria
de chacina desvaira toda a praça. Do alto dos prédios e dos cafés para os
carros, uma guerra desembesta ao apelo da raiva que o ano policiou,
vibra em disparos violentos de pequenos sacos, comprimidos de cevada,
de farelo, excita-se, aperta a ira de entusiasmo, ressoa em risos cavados,

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ecos de triunfos sanguinários de outrora - assim o penso, refugiado a um
canto, perto de uma janela. às primeiras arremetidas, os moços dos carros
tentam ripostar.
Passam por fim escondidos, cobertos com mantas, defendendo-se da
metralha. Foi um espectáculo triste. Num intervalo, entre duas passagens
do cortejo, saí do café, procurei a minha gente pelas janelas. Foi Alfredo
quem me viu, me fez sinal para entrar. Estava contente, ria. Ana
conversava com Chico num sofá. Madame e Sofia não estavam. Cristina
travava uma pugna de serpentinas com uma janela ao lado.
- Então gostou? - perguntou-me Ana, e eu fitei-a apenas com surpresa.
- São levados do diabo estes melros do Redondo - dizia Alfredo. -
Todos os anos é isto, doutor.
- Quando partimos? - perguntei.
- Já embora, doutor? O Carolino quer-nos dar o lanche.
Lanchámos no quintal, dentro do pavilhão, onde encontrei com os
meus os olhos de Sofia antes de entrarmos. Ela veio para mim, com
perguntas supérfluas como rama movediça de uma obscuridade com
raízes. Bexiguinha encarou-nos aos dois, empalideceu, o rosto
crivou-se-lhe de borbulhas.
- Sinto-me sujo - disse eu a Sofia. - Julguei que tudo estivesse morto.
- Com o Carolino?
Mas que tinha eu com isso? Nunca te amei, Sofia. Sabia que o teu
caminho passava por mim e eu deixei-te passar. Conheço o teu desespero,
conheço-o das minhas horas de crise, vencer-te, vencer-me, esvaziar-me
no gosto que imitasse o arranque – o arranque para nada... Tento
lembrar-te, Sofia, lembrar-me aí, onde nada tinha que fazer. O pecado
anda comigo, sim, o pecado, que é vizinho desta tensão-limite em que me
busco, em que sonho ver-me ainda, ainda, em que desejo queimar tudo o

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que perdura da minha crosta, para que enfim me descubra em autenti-
cidade e pureza. Não és nada para mim, eu o sei, eu o sei, não és mais do
que o inverso do que me aspiro, como um espelho de feira. E, todavia,
sinto-te ao pé de mim, demasiado viva, demasiado real, como o grito que
dura de uma aflição antiga. Ou será que eu te evito como à condenação
verdadeira que me espera? És bela, Sofia. Bela. Como um veneno.
Quando regressamos a Évora é quase noite. Alfredo comeu e bebeu
alegremente. Tem a face rubicunda do prazer carnudo. Instalamo-nos nos
carros, partimos.
Alfredo rompe logo em viva aceleração e em breve por isso o
perdemos de vista. Uma claridade imensa e circular traça ao longe o
horizonte, e nas rectas extensas um coro de fadiga sobe em mim como a
memória das grandes marchas pelo deserto. Ouço que música, Cristina?
Acendo o rádio - é a música mecânica, tento outra, não há mais estações,
fecho o rádio e calo-me. Madame Moura questiona-me sobre o cortejo -
oh, Madame, foi tudo tão vexatório, tão...
Subitamente, porém, numa sucessão de curvas em declive, apare-
cem-nos pela frente Chico e Alfredo agitando os braços freneticamente.
Travo a fundo, o carro rabeia pela estrada, estaca enfim ao pé deles.
Têm sangue na face e nas mãos, falam sufocados: ao fundo de uma
ravina, mas direito, entestado a uma azinheira, estava o jeep: Cristina?
Ana? Que foi? Que aconteceu? Multiplicamos as perguntas, descemos
precipitadamente, Chico ampara Madame, que quer descer também, que
não pode descer, Sofia corre atrás de mim, a última luz da tarde coroa a
terra apaziguada. Ana tem Cristina ao colo, aparta-lhe os cabelos da testa,
onde o sangue coagulou. Morta?
Cristina respira, está viva ainda, mas não dá acordo de si. Trans-
portamo-la com cuidado para o meu carro, Ana ampara-a também sem

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um queixume, sem uma palavra, senta-se atrás, encosta Cristina ao peito,
onde manchas de sangue lhe tingem a blusa, Madame vai à frente comigo
e grita e grita. Sofia fica com Chico e com Alfredo, esperam um novo
carro que passe. Rompo em grande velocidade, mas os estremeções da
marcha abalam Cristina, o corpo despedaçado de Cristina. A noite desce
devagar, Évora é longe, Évora é longe. Madame vira-se para a filha e grita
sempre e sufoca de aflição, Ana atira-lhe um berro arrancado do mais
fundo da angústia, Madame volta-se para a frente, põe as mãos no rosto e
chora só para si. Nada digo, nada pergunto, olho desvairado as rectas
infindáveis, aperto ainda de novo o acelerador, quando a estrada me
parece lisa. O silêncio estala-me todo, os olhos nublam-se-me de água.
Faço um esforço brutal para ser útil, para cumprir, para ser uma força
desta máquina que rola pela estrada sem fim com uma vida que se
extingue. Cristina, Cristina. Está uma tarde bonita, Cristina, toda azul e
rosa, os campos recolhem-se para o sono da noite. Nas dobras de sombra
só uma casa brilha de longe em longe à memória do dia. Acendo os faróis,
mas é a hora má do crepúsculo, em que se vê pior com eles - e apago-os
outra vez. Carros desarvorados, com restos de Carnaval, passam por nós,
levam a sua festa. Mas pelo espelho retrovisor vejo um outro carro que
nos segue. Tento reconhecer quem vai nele. Não consigo.
Serão talvez Sofia e Chico e Alfredo. A meu lado, Madame aban-
dona-se, desfalecida, Cristina geme de vez em quando. Já quase
sossegados dentro da nossa dor, ouso falar enfim:
- Ana!
Mas ela não me responde. Vejo-lhe no espelho a face branca, tento
ver-lhe os olhos. A estrada é longa, a estrada não acaba, Ana parece-me
olhar sempre em frente, nesta marcha interminável, como se nada mais
houvesse para ela do que esta fuga sem fim, pelo espaço de um deserto,

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gravada de loucura... Olho atrás a estrada, o carro de há pouco segue-nos
ainda, não tenho dúvida agora de que são Sofia e os outros. A noite vai-se
fechando, acendo os faróis, agora vejo melhor. Rolo ainda infinitamente
pelos campos abandonados, um ar fresco entra pelo carro com o perfume
húmido da germinação.
Quanto tempo ainda? Olho nas bermas os marcos da quilometragem -
estamos perto, estamos perto. Até que de súbito, ao alto de uma rampa,
Évora surge-nos adiante, toda armada de luzes, recortada ainda na última
claridade do céu. Neste instante o carro que nos segue põe-se-nos a par,
Sofia corre o vidro, pergunta-nos por Cristina, diz que vão à frente para o
hospital. E, com efeito, quando chegamos, dois enfermeiros esperam-nos
com uma maca. Moura? O Dr. Moura? Está onde? Sofia e Madame
interrogam-se, Madame recomeça a chorar como quem de novo se
recorda, diz-me na Sé. Parto eu sozinho pelas ruas solitárias, onde restos
de serpentinas suspensas dos fios evocam a alegria morta. Entro na Sé,
quedo-me suspenso da massa de coros que reboam pelas abóbadas. Ao
fundo, um trono de luzes investe-se desses cânticos, irradia-os de
majestade. Uma paz de submissão afunda aquela gente que alastra pela
nave, recolhe-a à memória milenária de quantos homens pelo escuro das
eras se reencontraram tranquilos nos despojos de si próprios, na proster-
nação que abdica... Que cerimónia era aquela? Agora não o sei, agora
tento orientar-me entre as vagas do coral, que vêm não sei donde, das
lájeas do chão, do alto dos pilares, do próprio espaço inebriado de
incenso.
Passa à minha beira um homenzinho diligente, com ar de sacristão, de
funcionário da igreja, pergunto-lhe por Moura, falo do desastre da filha.
O homem leva-me ao coro. Moura canta ainda, de papel na mão,
interrompe-se ao aviso do homenzinho, olha-me, vem para mim. Saímos

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logo, eu informo-o brevemente, rompemos para o hospital. à porta do
quarto acumula-se gente, eu afasto-me e vagueio pelos corredores. E de
súbito, desde uma memória de infância, eu soube a festa da Sé: Moura
desagravava o Senhor dos pecados do Carnaval...
Não me deitei em toda a noite, sentado pelos bancos do corredor,
divagando pelo hospital. Alfredo e Chico tinham sido examinados pelos
médicos, não havia senão leves contusões. Pela madrugada entrei enfim
no teu quarto, Cristina. à luz frouxa da lâmpada que rezava ao pé de ti,
vi-te enfim a face branca coroada de ouro. E a certa altura, sem que
ninguém mais tivesse visto, só eu vi, só eu vi, Cristina, as tuas mãos
pousadas sobre a dobra do lençol moveram os dedos brevemente. Era um
movimento concertado das duas mãos, mas num ritmo de cansaço final.
Na dobra do lençol tu sentias o teu piano, tu tocavas, Cristina, tu tocavas
para ti e para mim.
Música do fim, a alegria subtil desde o fundo da noite, desde o silêncio
da morte. E eu ta ouço ainda agora, Cristina, gelado à lua verde deste
Março na montanha, entre o vago deserto que alastra à minha volta e este
húmido afago que me vela os olhos de ternura...

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XIX

No dia seguinte ao do enterro fui pela tarde a casa dos Cerqueiras. Eu


queria falar com Ana, dizer-lhe qualquer coisa, não lhe dizer nada,
oferecer a minha presença à sua amargura, que eu imaginava ser maior
que a de todos, decerto porque não vira Ana chorar. Quando à noite,
aliás, no silêncio da minha casa, eu revi a tragédia e recordei tudo desde
quando chegara a Évora, lembrava sobretudo aquela afeição quase
clandestina de Ana pela irmã, as palavras secretas que lhe dissera da
primeira vez que ouvi Cristina tocar. Lembrava o desastre maternal de
Ana, a sua impossibilidade de ter filhos, o modo como, calma, quase
solene, tomara Cristina nos braços, a trouxera no colo toda a viagem, se
inventara para Cristina, até ao fim, a mãe que o seu ventre sonhava ainda.
Bato à porta, ninguém me vem abrir. Olho ao alto as grandes janelas
de guilhotina - viam-se as portadas através dos vidros. Bato uma vez
ainda, espero um momento, vou-me embora. Telefonei depois do café
para casa do Moura, mas ninguém respondeu também. Absurdamente,
desci a rua, bati-lhe à porta, mas a campainha, que eu nunca ouvia,
parecia-me agora, com o seu silêncio, também certa com tudo o mais.
Tinham, pois, saído todos da cidade. Ao próprio Chico não o encontrei
nesses dias; mas não era provável que os tivesse acompanhado. E que
podia ele dizer-me? Sim, uma verdade vivida fechava talvez um cerco:
que palavras de concórdia para de uma muralha a outra? Eis-me de novo
só. A chuva voltou, balançada a grandes ventos. Fico a olhá-la, difusa-
mente, desde o fumo da lonjura donde avança em altas vagas, submer-
gindo a planície. A cidade afoga-se na espuma nevoenta, imobiliza-se, de
olhos opacos, no fundo do meu cismar. Passam na estrada carros

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desarvorados, com um rasto de pânico, ouço-os estremecer na minha
memória vazia. Longa espera de nada a uma janela para o deserto. E dias
e noites assim.
Mas certa noite ainda de chuva em que eu regressava tarde (tinha ido
ao cinema, ficara ainda no café), depois de arrumar o carro na garagem e
quando ia abrir a porta da casa, vejo um vulto cosido no umbral.
Estaquei, procurei a minha lâmpada de algibeira.
- O senhor doutor desculpe. Eu tinha de falar hoje consigo.
Conheci a voz, sosseguei um pouco, alarmado ainda, todavia, com o
insólito de tudo:
- Entra. Podias ter vindo a outra hora. Deves estar a escorrer.
- Tinha de vir hoje.
Abri a porta, acendi a luz, Carolino entrou. Debaixo da chaminé, no
lugar do fogão que não tinha (servia-me de um fogareiro), acendi uma
fogueira com jornais e tábuas de caixotes. Mas Carolino não se moveu.
Em pé no meio da cozinha, os cabelos escorrendo-lhe pela cara, os braços
pendentes, olhava tudo aparvalhado.
- Senta-te. Puxa uma cadeira. E diz então o que há. Tomas um álcool? -
E fui procurar dois cálices e uma garrafa.
- Não me trate por tu.
Suspendi-me, de conhaque na mão para encher os dois cálices: um frio
súbito preveniu-me nos ossos de um perigo insuspeitado. Ilumino-me de
vigília, armo as minhas defesas.
- Senta-te - repeti. - E toma um cálice.
Sentei-me eu próprio ao pé da mesa, acendi um cigarro, aguardei.
Carolino mantinha-se de pé com um ar desgraçado de desespero. Pingava
como um náufrago, olhava o chão fixamente:
- Sei tudo... Sei tudo...

170
- Senta-te. Enxuga-te ao lume.
- Não me trate por tu!
Silêncio duro. Tomo o meu cálice, bebo um gole natural. Olho o
Bexiguinha, aguardo de atenção engatilhada.
- Os senhores julgam que eu sou um trouxa, todos vocês julgam que eu
sou para aqui uma trampa. Mas enganam-se, mas enganam-se, sou um
homem, sou eu! Eu posso! Eu, se quiser... Tenho o mundo nas mãos, até a
cidade, até uma cidade, podia deitar fogo à cidade, podia.... Eu sou eu!
Tenho estas mãos...
E erguia-as de dedos estranguladores.
- Tenho-me a mim, não sou um monte de esterco, sou um homem
livre, posso, que são vocês mais do que eu?
Ela foi-se embora sem uma palavra. Mas já há muito tempo. Eu bem
percebi, eu bem percebia tudo.
- A gente engana-se, Carolino, a gente às vezes engana-se. Creio que te
referes a Sofia.
- Não pronuncie o nome dela! Você tem os lábios porcos!
Estremeci, dominei-me:
- Sofia não deve ter ânimo para te escrever. Com a morte da irmã, ela...
- Não fale nela, não fale de Sofia nem mais uma vez! - E avançou para
a mesa, apoiando-se na borda, fitando-me de olho gázeo.
Olhei-o de frente, disposto a tudo mas sem me levantar:
- Vamos a saber de uma vez: o que é que o meu amigo quer?
Ele sofreu um choque com a minha decisão. Eu olhava-o sempre, de
coragem apontada. Carolino, então, de olhar vago, veio vindo vagaroso à
roda da mesa. Ergui-me, segurei a garrafa. Carolino estacou. E inespera-
damente caiu numa cadeira, recostou-se, estendendo as pernas, e
começou a rir um riso idiota e babado. “Está bêbedo” - pensei. - “Ou

171
endoideceu?”
O desamparo da noite agravava-me o alarme. Ouvia o vento no
telhado e nas ramadas, como num filme de terror. Mas tudo aquilo era
absurdo. Atirei cem mãos poderosas ao meu susto inverosímil. Admiti
mais fortemente que o moço endoidecera. E na noite perdida, abalada de
chuva e de vento, o espectro da loucura era-me um pavor abstracto,
intangível, inatacável... Não lutava, pois, com a presença física do jovem,
que eu podia talvez aniquilar, mas com o que de súbito se me revelava
nele de informe, de medonho, de irradiante. Tentei, porém, de novo um
nivelamento humano:
- Porque é que me procuraste? Que tenho eu com tudo isto?
- Eu sou um homem! - gritou o moço outra vez. - Sei o que quero. Sou
livre, sou grande, tenho em mim um poder imenso. Imenso como Deus.
Ele construía. Eu posso destruir.
- Explique imediatamente de que se trata. Senão ponha-se na rua.
- Eu? Na rua? O senhor é tolo. O senhor pensava que podia fazer
chacota do pobre Bexiguinha. Eu sou o Bexiguinha! Eu! Estas mãos são
minhas! - E tornava a exibi-las com os dedos em gancho. - E estes braços,
estas pernas, estas borbulhas. Mas por dentro eu sou igual aos outros,
quero dizer, sou maior, sou... Eu posso, eu, se quisesse... E ela nunca mais
me olhou para a cara... Mas eu... Ela vai ter uma surpresa. E está uma
noite bonita para correr o mundo. Expulso do paraíso... Não estou
bêbedo, não estou doido, é bom estar aqui a olhar o senhor, que está vivo
e me está a ver e está cheio de medo. Eu não tenho medo. De nada.
Mesmo da morte, o senhor tem medo da morte, a morte é a gente antes de
ter nascido... nascido...
Calou-se enfim; e outra vez o vento me alucinou no silêncio da noite,.
frenético, aziago. Pareceu-me que o moço esgotara a sua fúria nesse modo

172
imediato de palavras. Ergui-me, quase sereno, dei uma sugestão:
- Tomas um cálice e levo-te a casa.
Sem erguer os olhos, estendeu o braço, eu empurrei-lhe o cálice cheio.
Repentinamente, porém, ele deu um pincho e apareceu-me em frente de
navalha aberta. Era uma navalha de ponta que abria de estalo. Erguia-a
alto, como uma condenação, um brilho maligno reflectia-se dela para os
olhos do moço, ao clarão da fogueira. Instintivamente, atirei-lhe a mão ao
pulso e aparei o golpe. E com uma força brutal, ignorada na minha
timidez, no meu súbito alarme, na própria submissão a que me vergava a
noite, torci-lhe o braço, triturando-lhe o pulso. A navalha caiu, pisei-a
com uma patada, despedi um murro cerrado à ponta do queixo do moço,
que cambaleou. E, na raiva que se apossara de mim, esbofeteei o rapaz até
me estafar. Mas eu sentia obscuramente que apenas me esbofeteava a
mim... O moço caiu na cadeira, deitou a cabeça na mesa, fechou-a com os
braços e chorou medonhamente um choro convulso como num estertor.
Apanhei a navalha, fechei-a, meti-a no bolso. O vento crescera de fúria. E
era estranho e inquietante ouvir os soluços de Carolino no meio da
solidão tempestuosa.
Mas quem te destruiu os sonhos, bom moço? - eu to pergunto daqui,
do meio da minha vigília, em que retomo e recrio (e me reinvento) a
verdade original do que passou. O ar das grandes alturas é bom, meu
jovem. Que o teu corpo o não saiba, que o não saiba o teu veneno - quem
é culpado? Não, não fui eu, nem contigo nem com ninguém, se a culpa
não é maior do que o nosso sonho e o nosso esforço de verdade ou de
inocência. Bebe o teu cálice, Bexiguinha. Bebe. A noite avança, a
madrugada vem aí. Sabes tu se a tua força ou a tua raiva é maior do que o
sol? O sol é forte, Carolino. Não procures a noite por não suportares o dia.
Leva para o sol a tua aparição e serás um homem. Mas que verdade é a

173
tua descoberta a sangue e a morte Porque sei agora que o teu crime não
era contra mim, não seria contra ela. O teu crime era contra a vida, contra
o absurdo que te assolou. Mas eu não queria isso, não queria isso...
Mas em que medida tu já me esperavas? Tu? Sofia? Sofia disse-me que
eu não trouxera novidade nenhuma. Sim: a semente não germina senão
na terra que a espera. Culpado eu? Não quero pensá-lo agora. Agora não.
Fumei um cigarro, Carolino bebeu. Olhava o chão com um ar
miserável de quem se sente destruído, vexado no próprio crime que não
cometera - ou por isso mesmo que o não cometera: corridos todos os
riscos (e o maior, o do espectáculo), o bom moço chegava ao fim como
viera.
- Come alguma coisa.
Tinha queijo, pão, manteiga. Havia leite numa jarra. Ele parecia
abandonar-se à minha compaixão. Mas teve ainda um arranque de
orgulho e recusou-se-me. Ergueu-se de salto e dirigiu-se à porta.
- Eu levo-te no carro.
Parou, quando me ouviu. Mas não se virou. Avançou por fim,
decidido, para a porta, abriu-a e saiu. Um golpe de vento e de chuva
dobrou-o sobre si, fez-lhe flutuar os cabelos desalinhados. Corri a chave,
voltei para a cozinha. O vento estalava na chaminé.
Quando a manhã entrou pela janela, eu dormia ainda, debruçado
sobre a mesa.

174
XX

Perguntei a alguém o que se passou - estou cansado de o meditar


sozinho. Mas nem o próprio Chico encontro: na repartição informam-me
de que partira para o Algarve. Telefono para casa de Moura ninguém
ainda. Bato à porta de Ana - ninguém vem abrir. A cidade inventa-se-me
a desastre e a espectros.
- Bom dia, senhor engenheiro, como está o senhor engenheiro?
Há o Manuel Pateta e os seus olhos podres a escorrerem aguardente. E
as aulas. E o Liceu. Que significa para mim a aliança dos alunos? Sim, às
vezes encontramo-nos numa comunidade de interesse, ou não bem de
interesse talvez: - de surpresa. Mas a surpresa só o é uma vez. Depois fica
a repetição, o enfado. E para o enfado os moços têm uma defesa, que é a
inquietação do sangue, a astúcia, a indisciplina. Vencer essa constante
agressão não é fácil: quase nunca atrás dela há algo mais do que ela.
Tenho então de descer ao nível deles, dar-lhes como o prazer de me
vencerem e tentar depois, na minha aparente derrota, na minha
submissão, o suborno para o que me interessa. Toda a profissão é uma
abdicação. Mas abdicar diante da força abstracta da lei, diante, sobretudo,
dessa massa informe que é só força gratuita, orgulho de quem tem todos
os caminhos disponíveis, sem a limitação, a responsabilidade, até mesmo
o vexame de ter assumido um - a juventude... Lisboa! Mas no concurso
que se abriu não fui classificado.
Não encontrei o Chico e foi bom não o encontrar: contar o que se
passara seria expor-me à devassa do meu pecado possível (o que é
sempre uma forma de o tornar real), seria abrir ao sol o escândalo. Mas o
escândalo abriu-se do mesmo modo. As vozes surdas que já alastravam

175
desde há tempos (eu era um homem público através dos alunos e famí-
lias) precisavam apenas de qualquer índice importante que as centrasse,
as encorajasse, lhes desse razão. Tal índice surgiu não sob a forma de uma
realidade bruta (eu não morrera, eu não ficara ferido) mas sob a forma
apenas de uma voz mais alta que esse rumor.
Quem a ergueu? Não sei. Talvez que Carolino tivesse anunciado
previamente o seu lance para de algum modo se comprometer a ele, não
desanimar.
Avisou-me o próprio empregado da secretaria, o de bigode caído e
olhar desgraçado como de retrato egípcio. Quando entrei na reitoria, o
reitor embrulhava um cigarro, grave. Mandou-me sentar.
Sentei-me no maple de couro preto, ao lado do qual dormia enroscado
o cão perdigueiro. O bom homem não acabava de enrolar o cigarro, olhos
baixos, centrado de seriedade, o beiço estendido. Acendeu o isqueiro,
enfim. E eu ali, eterno réu perante o mundo e a vida.
Entre a fumarada de dois sorvos, o homem abriu uma conversa
preliminar:
- Já sabe os resultados do concurso?
- Não fui classificado, senhor reitor. Fiquei em terceiro lugar.
- Sim... Não concorreu a nenhuma outra vaga... Só Lisboa.
- Só Lisboa.
- Hen... Ainda há outro concurso lá para...
- Agosto, creio.
- Sim. E volta para Évora, se não for para Lisboa?
Entendi. Entendi enfim. Querias, pois, expulsar-me, bom homem, ou
que eu me expulsasse. Eu estava, pois, a mais no teu plácido reino de
claustros e de silêncio.
- Não sei se voltarei para Évora. Não tenho projectos nenhuns.

176
- Sim. Évora é uma bela cidade, Évora é uma cidade extraordinária. E
está perto de Lisboa... Mas, por exemplo, Setúbal ou, digamos, Santarém
ou mesmo Leiria... É claro, são tudo meios pequenos. É o defeito de Évora
também. Tudo se sabe e, se se não sabe, inventa-se. Pois é...
Convidava-me a abrir eu a questão delicada. Mas eu sustive-me, sem
saber aliás como falar. O homem então calou-se, de olhos baixos, o lábio
estendido, batendo um lápis na secretária. Finalmente despertou:
- Os ditos chegam sempre, a gente não quer ouvir, mas ouve, não tem
outro remédio. O senhor é inexperiente, o senhor é novo... A gente julga
às vezes que está procedendo bem, mas é preciso sabermos com quem
falamos.
- Não sei do que se trata, senhor reitor. Mas nada tenho de que me
acuse.
- Pois... Ela é uma louca, oh, o pai sabe-o bem. E depois esse tolinho
desse moço... Mas há o nome do Liceu, há o nome da casa.
Corei estupidamente, devo ter corado como uma donzela. Senti, pelo
menos, um instante, o esvaziamento de mim próprio, a fuga das razões
em que ordenasse o meu todo. E nada disse. O reitor percebeu-me escla-
recido. E, olhando a minha confusão e fragilidade (fala, idiota, tens ou
não uma personalidade?, és ou não responsável?, é ou não consequente a
tua vida?), encerrou a entrevista:
- Está pois tudo esclarecido... Eh... A vida é assim, você está novo, a
experiência é sempre dura... Boa tarde então.
Não cheguei a saber o que se dizia na cidade. Mas, ao sair do Liceu,
cada olhar que cruzasse era um escárnio, uma acusação. Ninguém,
porém, ousou falar-me claramente do caso. E, assim, em breves dias o
silêncio de mim para os outros dava-me uma certa defesa como uns
óculos escuros... Possivelmente, o reitor exagerava. E vinham aí as férias

177
da Páscoa para alongar ao passado toda a agitação presente. Eu temia
sobretudo o encontro com Moura. Mas a morte de Cristina devia ser para
o bom homem (como para toda a família) uma noite demasiado negra
para ver fosse o que fosse através dela. Assim um pouco o confirmei
quando me cruzei com Alfredo. Eu faltava muito às aulas, fugia muito
para o campo ou para casa, desertando da cidade. Um dia eu sentava-me
junto a um riacho, na estrada das Alcáçovas, mas em sítio donde vigiasse
o meu carro. Parou então um jeep ao pé dele e vi Alfredo. Instintivamente
saudei-o, ele veio ter comigo. Trazia a sua blusa habitual (apenas com a
braçadeira do luto), calça de cotim e bota de cano. Imaginava-o pesaroso
com tudo o que sucedera, mas Alfredo, por superficialidade, por
insolência ou até por fortaleza, pouco mudara:
- Pareceu-me o seu carro e disse cá comigo: “será mesmo o doutor?”
- Sou eu mesmo.
- Mas que diabo de ideia essa de vir para estes sítios?
- Gosto de ver a água, de ver os juncos.
Ele sentou-se ao pé de mim numa das rochas que apareciam por todo
aquele campo de azinheiras. Perguntei-lhe por Ana, pelos sogros. Ele
então bateu-me no ombro uma palmada folgazã:
- Que diabo veio a ser essa história do Carolino? Ai o ladrão, para o
que diabo lhe havia de dar.
Aceitei a plataforma de entendimento mútuo que Alfredo me oferecia
e sorri também do lance como de uma garotice.
- Olha a Sofiazinha agora a provocar duelos. É levada da breca aquela
rapariga.
- E a sua mulher? Como aguentou a morte de Cristina?
- A Anica, é claro, ficou abalada, ficou bastante abalada. Lá a levei a
distrair, ela é que escolheu, ela é que disse mesmo para onde queria ir.

178
Estivemos então na serra e na Praia da Rocha. Viemos de lá anteontem.
- Na serra onde?
- Na Covilhã. Nas Penhas da Saúde. Mas sabe lá, doutor, os trabalhos
que tive com a minha Aninhas.
E contou, contou largamente, mas como um estranho, os silêncios de
Ana, as horas sem fim à janela da pensão, suspensa dos horizontes de
neve, os passeios solitários pela estrada entre pinheiros (não queria que o
marido a acompanhasse e eu, é claro, submeto-me sempre às suas
ordens). Depois foram para a Rocha, mas sem passarem por Lisboa nem
por Évora.
Aí recomeçou a sua meditação. Vagueava pela praia, às vezes mesmo
de noite, sentava-se nas falésias, ouvindo o mar. Eu dizia-lhe: - “Aninhas,
não precisas de nada? Sentes-te doente?” E ela só me respondia: -
“Deixa-me”.
- Até que apareceu o Chico. Tinha ido ao Algarve em serviço e passou
pela Rocha. Mas desta vez achou-se ao engano: a Aninhas mandou-o
bugiar.
Olhei o bom Alfredo: ria largamente com o seu riso oco, como de um
desdentado, a bochechinha vermelha. Tenho a certeza de que jamais
Chico interessou a Ana. Alfredo sabia-o possivelmente também. Mas uma
hipótese contrária parecia dar-lhe prazer - o velho prazer da humilhação.
Mas teria Chico ilusões? Talvez: Alfredo era um convite a isso, até porque
parecia admiti-lo e quase aceitá-lo. Mas tu, Ana, eras tão grande, tão bela
na tua vigorosa afirmação, que é estranho ter Chico imaginado sobre ti o
que não eras. Chico? Não o terei eu imaginado, não bem, embora, sob a
forma de traição da tua parte, mas de uma forma clara e humana de
comunhão comigo?
Era evidente que Ana sofria de uma crise. Gostava de estar com ela,

179
Ana sabe as palavras do abismo...
- Já tentei visitá-los a vocês. Nunca estão.
- Não vá por ora, doutor, não vá por enquanto. Deixe passar mais uns
dias. A minha Aninhas precisa de repouso. Ela é muito de magicar, ela é
muito pensativa. O doutor vai, começa com filosofias, ela pela-se por isso
e temo-la tramada. Depois há ainda a questão da Polícia a resolver. É
claro que o desastre, oh, eu nem quero pensar nisso. Os técnicos verifi-
caram que se partiu a direcção. E podia lá haver crime, eu? Coitadinha da
Cristininha...
A nossos pés o ribeiro falava a linguagem dos loucos, conversando
sozinho ao longo dos campos ermos. Tufos de juncos isolavam-se nas
águas, rebentavam das margens, esboçando uma imagem de frescura e de
repouso à ameaça do Verão na grande planura.
- E Sofia? - perguntei.
- Ah, já cá faltava... Pois a Sofiazinha ficou em Lisboa. Não: estou a
mentir. A Sofiazinha veio a Évora, mas voltou logo para Lisboa. Foi para
uma casa de freiras, a ver se tira a Admissão. E já vê, agora aqui em
Évora... Foi para Lisboa. Foi muito bem pensado.
Sim. É absurdo que eu a lembre, como se não desistisse de a sentir do
meu destino. Eu a esqueci por certo, a julguei estranha a mim, porque a
mecânica dos meus dias, a execução da vida não davam, dentro em
pouco, pela sua falta. Mas que me é essencial? Que define, realmente, a
minha necessidade? A minha disponibilidade é talvez mais extensa do
que eu desejo. Descobri-me na negação e na procura: será que interrogar
não é querer uma resposta? Há homens que em toda a vida apenas
afirmam, e, se negam, é só para afirmarem. Variará o que afirmam, não
esse modo de serem homens na afirmação. Pergunto-me às vezes a que
fundura de si mesmos vai o seu ser categórico. Mas eles próprios o

180
ignoram ou se desinteressam disso. E que é uma autenticidade? –
pergunto-me, pergunto-me. Ceder a uma tentação (de um roubo, de um
assassínio, de um pecado qualquer) ou não ceder à tentação é talvez
igualmente autêntico: quem não cede reconhece-se mais ele na resis-
tência, no incómodo da virtude, como quem cede se reconhece também.
Se não, porque não pecou - ou pecou? Que fundura é a da tentação, no
modo de ser de um homem, se se lhe pode resistir? Quem afirma é assim
como quem nega, assim é. Será? Terei, pois, como destino esta agitação
constante, esta sufocação de nada? Será, pois, uma ilusão o termo da
minha luta, esse termo que eu me invento talvez só para a dignificar? Sei
o que quero, agora que o não tenho. Que será necessário inventar-me ou
descobrir-me em mim para saber que tenho o que quis, quando o tiver -
quando o tivesse? Porque eu sei o que desejo, mas pode a vida não
sabê-lo: a vida também sou eu, o que ignoro de mim, amanhã.

Nessa tarde deixara o carro na garagem para lubrificação. Uma lição


de Português levou-me à Biblioteca, ao pé do Templo de Diana. Chovia,
não muito. Aguardei, todavia, que abrandasse. Mas a pressa incitou-me:
não era chuva que me ensopasse.
Farto de aguardar no limiar da porta, atiro-me, de gola erguida. Mas
ao pé da Sé uma brusca descarga pesada, grossa, faz-me refugiar no
pórtico. No empedrado do largo a água embate com extraordinária
violência, ergue um vapor como se as pedras fumegassem. De vez em
quando abranda, mas logo recrudesce, cerrando uma cortina espessa:
como a instabilidade de um homem colérico, cedendo, recomeçando.
Hesito longo tempo sem saber que fazer, olhando ao lado as caixas
tumulares com inscrições góticas, as siglas de alguns degraus, as fieiras
pálidas dos apóstolos, desajeitados no alto das suas colunas. Mas, quando

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um trovão abala toda a cidade, entro instintivamente na Sé. Um vasto
silêncio de cúpulas, de largas superfícies nuas afoga-me em pesadelo. As
naves estão desertas e mergulhadas na obscuridade de um peso de
chuvada batendo nos vitrais, prolongando no seu rumor uma memória
de catacumbas, de aturdimento e refúgio. Sigo com o olhar o avançar
solene das arcadas até a um limite imaginado de uma distância de
alucinação, sinto-me despojado de mim, errando em pasmo pelo espaço
das abóbadas. Um súbito clarão ilumina os vitrais, o silêncio da catedral,
com um sinal antiquíssimo de aparição de deus bíblico. Aguardo o trovão
da velha cólera dos céus, relembro as flechas do templo, erguidas além
das nuvens, no diálogo fraterno e solene dos grandes poderes cósmicos...
E eis que de repente descubro que não estou só: lá no fundo, num
ângulo do cruzeiro, uma breve presença de negro destaca-se à luz
trémula que desce da lanterna. Avanço pela nave, olho ao lado um
instante: “Ana!
- Ana!”
Ela volta-se devagar, fita-me sem espanto. Vou para ela, sento-me ao
pé, Ana banha-me a face do seu olhar ardente, serena mas com o ar
estranho de quem me não reconhecesse ou de quem me visse à distância
de um adeus para nunca mais...
- Ana! Que faz você aqui?
Ela olha-me ainda, sem responder.
- Recolheu-se da chuva? Está à espera de alguém?
- Estou aqui - disse por fim em voz baixa.
E foi como se declarasse que estava ali para sempre. Mas eu o sei hoje,
Ana, que era bem para sempre, que os caminhos da tua inquietação
vinham afinal dar ali. Está uma tarde de tempestade e eu te vejo, Ana, eu
te vejo, submissa, rendida ao peso de uma velha condenação, procurando

182
nos despojos de ti mesma a última flor de humildade que te perfume a
solidão. E tenho pena de ti.
- Mas você...
Olhei-lhe a face pálida, envolvida de sombra, o olhar angustiado, onde
passava às vezes um breve raio de loucura, tentava entender tudo
daquela presença insólita entre os espectros de uma catedral deserta com
uma fúria de tempestade pelos céus.
- Ouça, doutor, trouxe o carro?
- Não trouxe. Foi por isso que entrei. A chuva apanhou-me no largo.
- Não podemos estar aqui, não podemos estar aqui.
- Veio há muito?
- Há uma hora, há duas. Não sei...
Falava baixo, sempre baixo, como se emergisse dos fundos de algum
terror e o não tivesse ainda esquecido.
- Mas não podemos sair - disse eu. - A chuva não pára.
E por momentos ela pareceu ignorar-me. Olhava em frente a presença
longínqua da sua obsessão.
- Mas, Ana, você sente-se bem?
Então, abruptamente, ela gritou para os ecos das abóbadas:
- Sinto-me bem!
Assustei-me. Fiquei interdito. Mergulhei em longo meditar.
Ana então pareceu reconsiderar sobre o seu excesso, arrepender-se,
quase compadecer-se de mim:
- Todos me perguntam se estou bem - disse outra vez em voz baixa. -
Todos pensam que estou doente. Estou cansada, mas não estou doente.
Sinto-me bem, bem...
- Mas porque veio você aqui?
- Venho aqui às vezes. Gosto de vir aqui. Não foi você para São Bento?

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Porque foi você para lá?
- Mas, Ana!, São Bento não é uma igreja...
- Um dia saberá que é. Um dia saberá...
E sorria, enlevada, numa alegria subitamente tranquila, como o halo
de uma criança num limiar.
- Não, Ana. Não o saberei jamais! Não, não!
- Não tenha medo. Não negue tanto. Eu sei que você se ilude.
- Não iludo!
- Sei-o, porque foi a sua linguagem que eu achei para me exprimir a
mim mesma, para me certificar a mim mesma.
- É absurdo! É impossível!
- Não fale alto.
O clarão de um raio incendiou os vitrais. Mas o trovão só já tarde se
ouviu, distante, espraiado em grandes rolos, como a notícia de uma praga
longínqua. Eu calava-me indeciso, intrigado, quase enovelado de vexame.
A reacção de Carolino, a reacção de Sofia, expressariam de algum modo
um desastre da minha angústia; mas eu sentia-os ainda um pouco ao meu
lado, como o rasto miserável da minha condição. Fulminados de mal-
dição, de castigo, eles eram ainda da minha humanidade, resolviam-se
ainda nos limites do homem. Destruíam-se com o seu protesto, mas
recusavam-se a renegar o seu destino, morriam no combate, mas não
pretendiam salvar-se fugindo desse combate. Mas Ana fugia, eu o
pensava dolorosamente, eu o via absurdamente, opacamente, como um
muro. Uma memória envelhecida de cera, de água-benta, de meninos de
coro, de beatas, de novenas, de indulgências, de confessionário
instalou-se-me no estômago até à náusea. Era impossível que Ana, a bela
Ana de olhos de fogo, da graça invulnerável do seu dente irregular, da
força plena do seu corpo, ignorasse a degradação que eu lhe estava

184
imaginando. Impossível? Não sei, não sei, não sei: tu casaste com
Alfredo...
- Foi aqui que puseram a urna de Cristina – disse ela inesperadamente.
- Cristina? Mas porque é que...
- Aqui...
Depois, transfigurada, falou, falou. Frases desconexas, ideias avulsas,
pedaços de um monólogo, de um naufrágio profundo:
- ..E de súbito vê-se que não é possível morrer.
Que não é possível! Onde está Cristina, a que era ela, não a que morreu
de vestido de holandesa, não a que tocava, ela tocava tão bem... Havia
outra, outra, profunda, Ela, eu via-A, vinha até ao seu olhar, ao seu
sorriso, eu via-A, eu vejo-a, relembro-a, está aqui comigo, conheço-a, só
me não pode falar. Sou irmã dela, não eu, que você vê, sou irmã dela EU,
que estou comigo, que me sinto ser, eu... Então e eu poderia lá morrer?
Sou irmã dela e de você e disto que anda aqui neste silêncio grande, no
eco da chuva, dos relâmpagos, dos trovões que ressoam com uma voz
que não vem nos livros, que é uma voz dos grandes céus desertos. Como
diz você? A voz inicial... Ouço-a, sei-a... Mas isto é muito maior que nós,
muito maior, muito maior... Reduzir essa voz à dimensão humana? Da
dimensão humana são só os ouvidos para a ouvirem. E é preciso não
estar distraído. Então a gente assusta-se, a gente sabe que tudo isso
existe...
- Não era assim, não era assim...
- Mas ninguém me entende. O meu pai julgou que sim. Não entende.
Ele também anda distraído...
- Mas você veio aqui. E aqui é o lugar de seu pai...
- Aqui é um lugar em que se ouve bem... Aqui é um lugar que tem uns
restos do que é importante. Estas cúpulas, esta hora fechada...

185
- Mas você acredita. Em quê?
- Não pretenda que eu diga, não pense que eu diga um nome. Sou
pequena e sei que a grandeza existe. Existe onde? Existe. Sinto-o em mim
como uma pancada no escuro...
- Oh, Ana... Essa grandeza é sua, de mais ninguém. Essa grandeza é
nossa, nós a descobrimos, a arrancámos do nosso pobre barro. Porque o
barro é nosso, é o barro da terra.
- Não me conte a história do homem, você sabe-a desde a infância, o
seu pai ensinou-lha, mas você não acreditou. Como quer que eu acredite?
- Acreditei, acreditei. Também ouço a voz da chuva, da tempestade.
Mas essa voz é minha. Só sonho com ouvi-la sem estremecer.
- Há-de estremecer sempre. Até reconhecer que lhe não pertence. Não
a inventou você. Deram-lha, veio-lhe de outrem. E você esquece que está
a repeti-la como se lha não tivessem dado. Papagaios orgulhosos e
ridículos, empoleirados na sua pobre suficiência...
- Ridícula é essa verdade de renúncia.
- Não renuncio: assumo.
Impossível diálogo: Ana mergulhara já numa nova natureza, num ser
integrado de si mesmo, fechado em si mesmo, como uma coisa. Só a
minha tolerância, decerto a minha disponibilidade de procura, de incer-
teza, de pura aspiração, me permitiam ainda uma permuta de palavras:
duas verdades vividas ignoram-se decerto uma à outra ou insultam-se,
talvez.
- Mas, Ana, tudo isso é violentamente absurdo. Não é preciso falar-lhe
do que a ciência nos demonstrou, e a biologia, e o mais que você sabe. É
idiota falar-lhe nisso, porque isso é já o nosso sangue, é já a nossa
evidência, é já ridículo falar disso. Há um equilíbrio interno, há a
flagrante certeza de que o homem é humano.

186
- Sei tudo isso, não tenho razões nenhumas para opôr a isso. Sei só que
vejo. Alguma coisa mais se misturou no meu sangue e é já o meu sangue.
É bom ver...
A chuva parara, uma claridade maior abria pelas naves, pelas abó-
badas. Do alto do coro um facho dourado desceu enfim para o cruzeiro
como a sagração de um mistério, a unção absoluta do mundo obscuro, do
mundo submerso às nossas palavras vãs.
- Já não chove - disse eu. - Posso acompanhá-la a casa?
- Não, não. Prefiro ir sozinha.
Acompanhei-a até ao largo. O sol escondera-se de novo atrás de
nuvens altas. Um vento fresco de águas estremecia na folhagem verde
das árvores.
Bruscamente, tive uma ideia:
- Que diz o Chico a tudo isso?

187
XXI

Mas não o pude saber tão cedo. Ana não mo dissera ou não soubera
dizer. Chico e eu, aliás, evitávamos encontrar-nos, ou só eu o evitaria,
desejando esse propósito para os dois, a fim de me tranquilizar. Não
tinha medo de discutir, de afirmar a minha verdade: sentia só, como com
Ana, que duas verdades vividas não podem talvez estabelecer um
diálogo... Não tinha medo e, todavia... Tinha eu afinal uma verdade e não
apenas uma dúvida? Ter-se-ia até apagado em mim a fascinação de quem
precisamente se mostra inteiro, seguro de si, embora, para a minha
suspeita, essa inteireza seja só publicitária? De qualquer modo, não nos
vimos tão cedo. De resto, as férias vinham aí e eu sonhava-as
ardentemente para sossegar, fugir: dos outros, da desordem violenta nas
minhas relações.
Mas um domingo de manhã Chico bateu-me à porta.
Veio cedo, trazia no rosto musculado e cor de azeite o rasto de uma
insónia total. Era um domingo bonito, cheio de sinos ao longe. O sol vivo
aproveitava qualquer frincha para me invadir a casa. Chico bateu à porta
com violência, a violência categórica de quem vem por ordem da justiça.
E foi essa ideia absurda que me assaltou, a ideia de que uma autoridade
qualquer me vinha condenar. Vesti o roupão, fui abrir. E ao ver o
engenheiro, tentei um sorriso, uma palavra fácil que legalizasse tudo:
- Você? Tão cedo? Que ventos o trouxeram? Mas nem há vento afinal...
Ele não respondeu e entrou abruptamente como um polícia. Eu fiquei
atrás, fechei a porta. Vim encontrá-lo já na sala, de pé, junto às janelas.
Fulminantemente pensei que alguma coisa muito grave se passara de
véspera, talvez na reunião de sábado que se costumava fazer, em alguma

188
sessão do Comité, a que nunca assisti, mas que eu sabia funcionar em
casa de Ana, do médico Saldanha, do advogado Nogueira, no quarto do
próprio Chico. Quando cheguei a Évora, pôs-se a hipótese de eu ser
integrado nessa pequena sociedade secreta. Mas logo se viu que eu não
tinha interesse, que eu era mesmo o inimigo. Aliás, o Comité não existia:
dava apenas a oportunidade de uma conversa livre, de uma leitura e
comentário de papéis clandestinos, de um revigoramento de esperanças
para o futuro político do País, esperanças boas para um fim-de-semana e
uma noite tranquila. De resto, o nome de Comité de Salvação fora Alfredo
quem o inventara, num dia excepcional, e os outros adoptaram-no. (Chico
dizia que fora a única invenção de Alfredo em toda a sua vida e que ficara
estafado para o resto dos seus dias.)
- Venho aqui apenas perguntar-lhe se você tenciona voltar para Évora
no próximo ano.
Como? Ah, não! Era o cúmulo.
- O meu caro amigo está equivocado. Eu não me integro em nenhuma
hierarquia. Eu não tenho satisfações a dar a ninguém.
- Tem!
- Perdão. O meu amigo vem a minha casa, instala-se numa autoridade
que eu nunca lhe dei.
- Posso dizer na rua o que tenho a dizer aqui.
Era evidente que algo de grave ocorrera nos sonhos do sujeito. Era
evidente que eu servia de pretexto a um desforço, um desabafo. Tentei
serenar. Chico, aliás, num confronto físico, impunha-me reflexão: baixo,
duro, plasmado em bronze, tinha uma lenda agressiva de músculo e de
rixa que eu conhecia.
Olhei ao lado, instintivamente, à busca de uma defesa: uma cadeira,
uma jarra, uma pá de braseira... Optei por me sentar e acender um

189
cigarro.
- Sente-se, Chico. Conversemos um pouco.
- Quero só que me responda.
- Ouça: a ideia de não voltar tem-me assaltado com frequência. Mas
você, com essa imposição, incita-me a reconsiderar. Quero resolver sem
vexame. Sem vexame muito visível.
- Reconhece, portanto, que não é oportuno voltar.
- Talvez. Mas não pelas suas razões. Reconheço pelas minhas.
Ele acabou por se sentar, fitando brutamente a sua inquietação.
Lembrei-me do Carolino: a loucura era acessível a todo o homem, era
do destino de todos: chamamos loucos apenas aos que não regressam
dela...
- Você sabe a que extremo Ana chegou? - perguntou-me.
- Sei. Tentei já fazê-la reflectir. Inútil.
- Reflectir? Mas ela repete-o a você, ela diz exactamente as suas
palavras.
- Não estou apaixonado por Ana. Ana não está apaixonada por mim.
- Não falo disso!
- Ainda bem...
- Não falo disso! Falo da sua mixórdia irracionalista, dos seus sofismas,
da sua perversão.
Ergo-me, abro as janelas. Para a cidade ao longe, para a planície verde,
uma paz solene de sol e plenitude abre-se, expande-se, como um triunfo
anunciado. Abril da luz, da festa primordial, da reinvenção do início,
como te lembro, como me dóis!
Regresso ao meu lugar, acendo novo cigarro:
- Tem a certeza de que não é irracional?
- Eu? Irracional?

190
- Toda a ideia vivida é do sangue, não do cérebro. Não há ideias
estritamente racionais. Nem sequer talvez na tabuada.
- Não pretenda enrolar-me, meu amigo. Sou pesado. Não é fácil
manobrarem-me.
Mas ninguém manobrava ninguém: apenas poderia operar a
revelação. Olho-me, Ana, não tenho culpa de nada. Os teus demónios são
teus.
- Ana reconheceu-se. Eu fui só um espectador.
- Mas eu sei que, se o espectador desaparecer, ela se descobrirá
diferente. Diferente...
E um instante, uma onda de fraqueza pareceu-me quebrá-lo, a onda
solitária do próprio silêncio final. Deixei-o render-se totalmente a si
mesmo, talvez para que eu tivesse um pouco de razão, me sentisse onde
não fosse o réu que treme e se humilha. Mas Chico reagiu:
- Tudo o que se passa nela é absurdo. Absurdo como a estupidez.
Absurdo.
- Ana viu. Foi ela que mo disse. Tentei reconduzi-la: não era aquilo,
não era aquilo... Ana regressou. Nunca sonhei regressar.
Chico pôs-se em pé. Um momento pareceu-me ir ainda falar. Mas
susteve-se. E nem sequer se despediu.
Abriu a porta, bateu-a secamente, desandou para a cidade.

191
XXII

Conduzo o carro, parto para férias. Não irei à aldeia senão um ou dois
dias - apetece-me andar.
Não tenho projectos, não procuro nada, excepto estar só, eu só,
soldado à máquina, nesta pura fuga de vertigem, nesta fuga de nada,
nesta quente sedução de esquecer. Estradas abertas, campos abertos, a
alegria à minha volta, evidente, natural como a luz do céu. O carro gira
vertiginosamente, o motor zumbe como uma obsessão, espectros de
casas, gentes à beira da estrada, outros carros que se cruzam com o meu
num mundo reinventado à alucinação. Mas eu estou calmo e leve como
quem transforma um risco num jogo. Dos restos do que passou, dos
pedaços em que me quebrei, de tudo o que bateu à minha porta, à pessoa
que me habita, a memória sobe, purifica-se, aquieta-se à minha volta,
penetra-me o sangue, estabelece-se em harmonia, como se fosse de
amanhã, como se fosse já de agora que a revivo à luz da noite. Atravesso
Lisboa, tomo a estrada de Sintra - que maldição pesa sobre a assunção do
nosso destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?, sobre a
evidência da nossa condição? Será que é sagrado e intocável o nosso
signo animal?
Árvores nas bermas, bosques, fontes, frigus opacum, o céu é azul como
o sorriso que aflora ao meu olhar, ao meu corpo purificado dos despojos
do cansaço. Sintra é um túnel de sombra como uma igreja. Abrando a
marcha, não porque o trânsito me obrigue mas porque a hora se grava de
uma paz solene de grandes árvores com raios de ouro entre a folhagem,
os troncos, com um halo de sossego em toda a terra. Não paro, tomo à
direita a estrada de Mafra, vou andando até que a noite me recolha. O sol

192
desce para os lados do mar, rasa o campo aberto que vou atravessando,
Que esperas tu da vida? Vê como os teus sonhos se resolvem nos outros
em... Mas são actos definitivos, não se iludem, não se iludem.
Duvidar é cómodo, interrogar-se é cómodo. Sei o que quero, sei o que
sonho. Que fazes para o atingir?
Mafra. Sentado em monumento, entroncado em monumento, branco,
gordo, há um abade que cheira a suor de um minuete de grandes damas,
confessionário, perucas empoadas, uma plebe inumerável, coxos, lepro-
sos, festa do Corpus Christi, imagens-síntese ao sol da brisa marítima.
Que fazes para o atingir? Não sei, não sei. Reconheço-me na evidência
última da minha condição - saber é já conquistar. Mil razões e factos me
trabalham a saúde e um dia vejo-me doente. Mil remédios me trabalham
a doença e um dia reconheço-me saudável. Toma o teu remédio, doente.
Toma o teu remédio. Qual remédio? Não o sei.
Como quem se despe de todos os artifícios, eis-me nu à minha face. A
vida é curta - tanto tempo só para isto, para me desnudar. Um dia virão
os mensageiros da Grande Reconquista, agora é cedo, a vida é curta.
Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do
homem a verdade da alegria. Ou a própria terra e o próprio sol
inventarão à nudez o calor vindo do sangue.
Torres Vedras, na Praia da Areia Branca há uma pensão que avança até
ao mar, o sol tomba em majestade, eu, aqui, ao mirante do Ocidente,
sinto-me bem. As ondas rolam em espuma o embalo do meu terror. Fico à
janela do meu vazio, disperso ao rumor da solidão marinha. Nasce no
céu, ao meu olhar saqueado, a primeira estrela, que mal espero. Levo-a
comigo para o meu sono, para que a noite me não fique desprotegida. E
durmo, durmo. O mar recolhe a minha inquietação, balanceia-a,
reconhece-a em espuma branca...

193
Porque o conto agora, nesta noite de Abril? A Páscoa vem aí como
outrora, a encosta baixa da montanha lava-se da água errante que
transborda das nascentes, cobre-se de verdura e de flores que nasceram
para o sonho de ninguém, para o meu olhar fortuito, talvez, e estão certas
como esta hora absurda de alegria que ninguém conquistou, que é alegria
por ser da verdade para isso. Que fazes para atingir o teu sonho? Não o
sei. Um dia virão os núncios da Grande Reconquista. Quando for a hora
para isso.
Aceito o mar e o seu reconforto, sigo a orla marítima, vou com os
ventos de viagem. São Martinho, Nazaré, subo ao alto das falésias, os
mareantes de outrora... Que ilusão! A busca indefinida é do destino do
homem. Sim. Mas outra busca, depois desta. A minha procura é a
primeira, a que está antes de todas, a que encontre para este corpo mortal,
esta luz vivíssima e mortal, o seu lugar ignorado num universo que se
cumpre, com ventos e águas e serras, desertos e planetas e Vénus e Marte
e estrelas, Antares, Deneb, Altair - meu velho pai - e galáxias e milhões de
anos-luz e o infinito que submerge e aturde. Silêncio. No vasto ressoar
das águas verdes, aqui, do alto da falésia, do limite da inquietação,
quando nada mais resta do que partir, aqui, frente aos ventos salgados,
frente à montanha muda, lavada ao perfume angustiante da germinação,
ouço-te ainda Cristina. Fica um pouco. Até que o sorriso me reconheça e
me sagre. Leiria, Figueira, Aveiro, Porto. Praia de Âncora, - esgota-se-me
pelo caminho o que é de mais em mim, o que é excessivo para a pequena
entrevista que comigo marquei, Praia de Âncora, há uma mata para os
passos retardados, os últimos que restam da agitação, há um mar sentido
a nórdico, a mim, que venho do Sul.
Depois ziguezagueio em busca das capelas românicas, lembro-me
desde as aulas de História de Arte, vi uma à beira da estrada - a de

194
Bravães -, procuro outras, São Pedro de Rates, Ferreira, Roriz, ó mãos
desajeitadas, trôpegas de medo e de uma brutal humanidade inchando
nos músculos informes, nas faces broncas de pasmo, e a flor e a flor
delicada tentando romper através dessa grossura ancestral, da pele
tanada a calos e a invernos seculares. De Amarante a Vila Real, a serra do
Marão ressoa à hora original do meu destino, do mundo inicial da minha
aparição, aberto a terrores de grandes córregos, de vastas superfícies
nuas, de silêncios suspensos de nevoeiros. Desço enfim à minha aldeia - o
tempo mudou. Um vento árido varre as areias da estrada, mas a terra
alegra-se à festa da Primavera. Minha mãe estranho-a. A ausência dos
filhos, do marido, criou-lhe já um mundo habitável, mundo sereno na
própria solidão. O seu olhar espesso de sonho mas vivo de ânsia, de
sorriso longínquo, envelhece agora numa quase severidade entre rugas
de pedra, imóvel. Agita-se pela casa, que centra ao seu mando, ordena a
sua vida para a morte, sem que a morte, porém, tenha voz nos seus
domínios. Uma voz que se ouça. Tenho o quarto arranjado como se eu
fosse esperado, mas eu venho de improviso.
Pergunto-lhe pela saúde, ela sorri: Bem. Reconheço-a fechada como se
um muro a rodeasse e fico de fora olhando. De que segredos se resolve
uma vida? De que pressões, escolhos, sacrifícios? Reintegraste-te toda,
boa mulher. Que podem sonhar-se em eco as palavras que te disser?
Somos a mesma carne, o mesmo calor de sangue, dizem-me que me
pareço contigo, no olhar ao menos, no olhar: estamos sós e definitivos
aqui à face um do outro... Erro pela aldeia – imagem do velho recomeço,
da depuração da morte que o tempo acumulou. O leite que bebo sabe às
giestas floridas, os cordeiros mamam a alegria nas tetas das mães,
estremecem até às caudas de prazer - o prazer irmão da angústia
(rasgados à faca pelos vendedores, que os apertam entre as pernas, os

195
sangram para uma tigela, os despem em carne quente e vermelha para a
festa pascal). Cheira a loureiro nos velhos muros, as camélias de plástico
abrem pelos jardins, sobre as leiras revolvidas à plantação das batatas, o
cuco marca o eco da alegria irradiante. Não vejo o Tomás, não vejo o
Evaristo, sei que com a hora nova nasceu ao Tomás mais um filho. Mas é
o sétimo e quase me esqueço assim de que é realmente um primeiro,
porque é sempre um primeiro cada homem que nasce. De resto, parto em
breve - e minha mãe não estranha: mesmo presente, é como se eu fosse
ausente, porque a ausência assumida, assimilada à velha ordem, é o
mundo dela, ou parece. Páscoa da convivência, da alegria que já fala de
janela a janela, tecida ao sol já cálido nas visitas do prior, Páscoa da
Natureza, da confraternização com ela, a olhos alegrados em flores e
águas libertas, demora-te um pouco ainda, fica um pouco ainda ao apelo
da minha plenitude... Ah, que a tua absurda verdade fosse a minha razão
cheia quando a quisesse; e que a tua verdade natural fosse a minha
verdade ignorada, tão ignorada e viva que, quando eu a quisesse provar,
as razões fossem de mais...
Mas na marcha para o Sul tudo me está esperando.
Os factos que me fizeram, me estruturaram, rebentam pelos caminhos
desertos, aguardam-me como ciladas.
Há alguma coisa então em mim que é daqui? O que eu sou é então
também deste pó que me vai cobrindo o carro novo, o fato novo?

196
XXIII

O Verão chegou à cidade como uma explosão.


Maio viera sereno, com alguns dias de chuva, continuando quase o
Inverno. A chuva desapareceu, o tempo estabeleceu-se em acalmia. No
pátio do Liceu as quatro árvores reverdeceram. Algumas delas polvi-
lham-se de florinhas lilás com um aroma activíssimo, quase doentio.
Passeio por lá durante os furos do horário, vou até ao gradeamento de
ferro olhar as searas já louras. Num quintal próximo uma rola canta. Ao
fim das aulas divago pelo jardim público para ouvir os pássaros. Pelos
túneis de sombra os mióporos espargem florezinhas brancas como numa
apoteose. Quando dará flor o aloendro? Pombos de leque esvoaçam na
alameda, pelos beirais do palácio, pela cúpula do coreto, cisnes vogam
lentamente nos lagos sob chorões. Sento-me, reconciliado, nos bancos de
azulejos, fechados em recantos clandestinos, vou visitar Florbela, olho-a
de um banco de madeira que lhe fica em frente, medito com ela. É uma
cabeça calma, triste e majestosa. Banha-se de grandeza e gravidade desde
a fronte cansada, que verga sobre as mãos em repouso, até às espáduas
largas, em que o pescoço se espraia.
Sinto que ela prevaleceu sobre a melancolia dos séculos e que chegou
até nós para nos dar testemunho. Não está bem ali, rodeada de lirismo. E
imagino-a num limite da cidade, frente à planície deserta, num alto
pedestal tocando os astros...
Da minha história, ninguém conhecido durante largos dias. Vejo o
Moura acidentalmente na sua ronda de clínico. Saúda-me do carro
discretamente ou finge não me ver. Pelos caminhos rústicos, vou à
procura de sombra nalgum sobreiral, nalgum velho muro, na Quinta das

197
Glicínias, que tem uma torre fálica num montado, velhas árvores
nodosas, enrameadas em bosque, um tanque comprido e uma casa
deserta. Ou rompo pelas estradas da planície, Vila Viçosa, serra de Ossa,
Monsaraz - terra estranha, esqueleto de velhice e de ruína, com crianças
solitárias que riem como sobre uma sepultura. Normalmente, porém,
viajo em torno da minha casa. Há uns pinheiros atrás do Alto, para aí vou
com algum livro, alguma pequena ideia.
Mas um dia encontrei de novo Alfredo e foi de novo através dele que
eu tive notícias dos outros. Alfredo praticava uma certa independência do
que ia acontecendo à sua volta, atento, porém, a tudo, como se o seu
destino não interessasse a ninguém e ele próprio o tivesse de defender.
Pergunto-me se ele era um tolo, embora gostasse de se exibir em tolice:
por vingança?, por astúcia? Tinha os seus meios de combate, sem que
mostrasse aplicar-se a eles com muito empenho. Assim a sua vida parecia
resolver-se numa certa tolerância para com os desvarios, vicissitudes da
vida, que ele atravessava com risos e despropósitos. Encontrei-o no
Banco, eu esperava a minha vez de receber dinheiros da aldeia, obser-
vava, aplicado, a mecânica do caixa, retirando de pequenas divisórias de
uma espécie de mostrador notas e moedas, que contava, alinhava,
entregava ao guiché. Intrigava, era inquietante a frieza profissional do
homenzinho, manuseando maços de notas como objectos sem valor,
passando e repassando fortunas entre os dedos inocentes, sem um olhar
de cobiça, sem uma demora de calor - só o calor de quem manuseia os
objectos de um ofício. Era um sujeito magro, nervoso, com uma execução
de gestos de uma máquina perfeita. Ao fim do mês receberia as suas
notas, as suas, para as tocar de outro modo, as integrar no calor da sua
casa, como a cozinheira após a sua tarefa, à hora da sua refeição. Eu
estava na bicha quando uma mão me pesou no ombro:

198
- Olha quem ele é! Então por aqui, doutor?
Tive o meu pequeno sobressalto, embora já habituado a não me
sobressaltar com Alfredo. Recebi o meu dinheiro, esperei pela vez dele.
- Nunca mais os vi, onde param vocês?
Não, não os tinha procurado. Simplesmente, podia tê-los visto na rua.
- É que nós estamos na Bouça - disse Alfredo. - Temos a ceifa à porta,
eu tinha de lá ir todos os dias. Há lá uma casa e a Aninhas quis ir para lá.
- Demoram-se, portanto.
- Uma coisa, doutor: venha daí a minha casa. Ou tem que fazer? Então
venha daí. Hão-de lá ir uns homens carregar umas coisas, entretanto
conversamos um bocado.
O Verão chegara como um vulcão, a cidade abafava em silêncio. A
casa estava deserta, de janelas cerradas. Ficámos no rés-do-chão, numa
sala vazia, com cadeiras de pau. Alfredo abriu a janela que dava para o
pátio. Um muro branco em frente fulgurava ao sol, acima e ao longe uma
faixa azul de céu, como na violência luminosa das pinturas impressio-
nistas.
- Que é que toma, doutor? Há bebidas lá em cima. Tome, vá.
Arranjam-se mesmo bebidas frescas. Quer uma limonada? Uma cerveja?
Não tomei nada, acendi um cigarro:
- Mas, então, agora ficam pela herdade?
- Ouça uma coisa, doutor: vá lá um dia destes. Valeu? O doutor nunca
viu uma acêfa? Arranja-se lá uma jantarada, está lá também a
Sofiazinha...
- Sofia?
E Alfredo riu com malícia: “oh, aquela Sofiazinha, aquilo não era uma
mulher, aquilo era um demónio. Então eu não sabia?”
- Mas naturalmente não sei de nada.

199
- Pois a Sofiazinha já deixou Lisboa. Você sabe lá, doutor. Calcule que
tentou suicidar-se outra vez...
E ria, com um gozo muito íntimo, visceral. Não perguntei como
tentara suicidar-se, Alfredo também mo não disse. Contava a série de
desvarios de Sofia - noites passadas fora de casa, um grupo de malandros
com quem se atirara a estúrdias, rixas com as directoras da casa e um
ultimato urgente ao pai para a retirar de lá.
- Está agora aí, diz que vai fazer exame e que há-de passar. Ela é capaz
de tudo. Se se lhe mete uma coisa na cabeça, é capaz mesmo de a fazer.
Mas o meu sogro pergunta: mas, mesmo que passe, que vai fazer esta
rapariga amanhã em Lisboa? E quem diz Lisboa diz Coimbra. É uma
mulher levada do diabo.
- E Ana? Está mais conformada?
- Ah! Tenho uma surpresa. Vai ter uma grande surpresa. Não senhor,
não lhe digo. Vá lá à Bouça.
Ouça, doutor, vá amanhã! Não senhor: depois de amanhã.
- Não sei o caminho.
- Qual não sabe? Sabe, sim senhor. E se não soubesse, vinha cá buscá-
lo. Mas não é preciso. Ouça, doutor, que eu vou explicar-lhe. O doutor
lembra-se dessa vez que foi com o meu sogro? Quando o Bailote se
enforcou? Não vá dizer nada a ninguém, mas já lhe digo que a surpresa
tem que ver com o Bailote. Ora bem, depois de passar esse monte onde o
homem se enforcou, o doutor segue adiante, segue sempre adiante. E aí
coisa de um quilómetro encontra um caminho à direita. É esse. Depois é
só seguir em frente que vai lá ter.
- E outra coisa: o Chico? Ele vai também?
Era absurda a pergunta, Alfredo não a achou tal: o Chico estava para
fora, havia quase uma semana que o não via. Ele tinha a seu cargo a

200
inspecção de toda a área do Sul. E, ou era a Beja ou ao Algarve, saía
muitas vezes. Também ia a Lisboa, à direcção dos serviços.
- Mas, se ele vier e nós lá, aparece com certeza. Aqui para nós, doutor,
eu gostava bem que aparecesse.
Não perguntei porquê. Alfredo, porém, como se eu perguntasse, disse
ainda:
- Cá por coisas.
E riu um riso secreto, de uma astúcia profunda, que lhe iluminava a
face feliz.
Fui no dia combinado. Era um dia pavoroso de calor, desse velho calor
alentejano, sólido, imóvel, fincado à terra como um ódio tenaz. Logo pela
manhã a casa inunda-se-me de luz, que rebenta das frinchas, vinda do
próprio sol, das reverberações do pátio, da poalha incandescente do ar.
Os pássaros excitam-se pelas ramadas do quintal, uma mosca vareja
penetra-me no quarto, incha-me à memória um calor gordo de bronze.
Saio para o Liceu, tenho aulas só de manhã. São já aulas de fim de ano, os
exercícios estão feitos, a matéria já foi dada, canso-me à procura de
motivos que inventem uma novidade, um recomeço, vençam o mormaço
da aula, a falta de convicção dos alunos e minha.
- Fale-nos de qualquer coisa.
É o convite ao sonho, talvez à aparição. Mas de que vos hei-de falar,
amigos? Creio que já vos contei tudo o que sabia. Histórias de pintores, a
aventura da arte moderna, a crise do mundo, a contingência absoluta do
vosso nascimento, até as aporias do Eleata, essa fina absurdez do
movimento da seta, o mistério do tempo, que mais?, e a que propósito
contei tudo? Já não sei...
E após o almoço, parti. Atravessadas as duas passagens de nível, a
planície submerge-me, alucinada de fogo. A fita de asfalto dardeja, vagas

201
de lume embatem-me no carro. É a estrada do Redondo, onde Cristina
agoniza. Mas nada em volta relembra agora a sua música, nesta hora
estática de terror. Árvores das bermas olham-me a viagem, paralisadas à
praga do sol. Acelero a marcha na esperança de uma brisa, mas o ar
espesso arde como a massa liquefeita de um metal. Olho à esquerda,
atento ao desvio para a herdade, e ele surge-me enfim, escavado e
poeirento. Balanço agora entre um mar branco de searas que torram ao
calor, sob a concha enorme de um céu de zinco. Agora como nunca, uma
condenação pesa em mim de solidão ofegante, de blasfema aridez, nesta
insólita marcha pela terra abandonada, fervendo em silêncio, amadu-
rando em suplício o grão da minha fome.
Eu o sinto sobretudo quando enfim chego à herdade: diante de mim,
em fila, como em marcha de penitência, homens e mulheres, cosidos com
a terra, ceifam uma seara. E na minha carne incendiada uma memória
antiga de uma fraternidade esquecida arde com essa gente fulminada
pelo sol. Mas não vos traio, amigos, se outra aflição à espera se me
levanta após a fome saciada. Que a justiça vos redima, homens do castigo.
E que, à sombra da paz que vos sonho e vós sonhais, a minha aflição vos
reconheça, para que a nossa fraternidade seja total. Que direis vós então,
que direis? Porque a vossa voz só agora vem do estômago, do vosso
corpo condenado, da miséria do vosso sangue de veneno. Mas que o
vosso corpo se cumpra e a vossa fome se cumpra. Não virá então o sono,
mas outra insónia e outra, a pálida vigília de quem espera ainda. Mas
agora sois só os escravos da maldição - maldição dos homens que se
enojam de ter as vossas tripas, os vossos ossos, e se revolvem a
inventar-vos diferentes e se inventam uma cumplicidade do céu, com
deuses do seu partido e da sua violência. Eu vos amo até na vossa
barbaridade, flor bárbara da vossa condição. Como explicar-vos, porém,

202
que, após a vossa justiça clamorosa, há outros gritos abaixo da saciedade,
sob a redenção futura da vossa humilhação? Sede bons, amigos, sede
compreensivos. A fome da nossa condição não se esgota num estômago
tranquilo...
Alfredo irrompe de um portão, com um vasto chapéu de palha. Eu
quedava-me no carro, à sombra de uma azinheira, olhava ainda o suplício
dos ceifeiros. A meu lado, um rapazinho guardava a bilha de água tapada
com uma concha de cortiça, o cocho, e que ele levava aos homens ou
aonde eles vinham beber.
- Então ficou aqui, doutor?
- Olho isto, olho isto...
Endurece-me a garganta, amaldiçoada de secura, o ar cintila em
faúlhas, queima-se-me o olhar nesta praga de aridez. Quebrados pelos
rins, os homens ceifam sempre. Sinto-me nas suas mãos, nos seus
ouvidos, na sua língua, um mundo de arestas, calcinado, esgazeado de
sede, crepitante de bichos de metal, fulminado de cólera e de blasfémia.
- Traga o carro cá para dentro, doutor.
Ponho o motor a trabalhar e um eco de óleos e ferragens irmana-se-me
à desumanidade em redor. Alfredo, com grandes gestos, auxilia-me na
manobra difícil. Venço enfim o portão, paro à sombra de uma grande
nogueira, perto de uma cisterna. Ao lado, debaixo de um caramanchão
armado em ferros como uma capela, vejo Ana. Ana? Ela ergue a face de
um livro que lê, olha-me por cima de uns óculos... E é extraordinário,
Ana, que eu sinta fulminantemente e obscuramente e dolorosamente
(mas com que invasão de simpatia!) que os óculos te fiquem tão bem... De
súbito, -estremeço, intrigado: Alfredo ficara de lado, observando-me,
precisamente à espera da minha reacção: brincando ao pé de Ana, sob o
dossel de glicínias, duas crianças fitavam-me curiosas.

203
Alfredo não resistiu mais; e, rindo como se me tivesse pregado uma
partida, declarou entusiasmado:
- Aqui tem, doutor, a surpresa de que lhe falei.
Mas eu não entendera ainda. E ele explicou, já quase condoído da
minha hesitação:
- São os filhos do Bailote, os dois mais novos. Ficámos com eles. E que
me diz a isto, doutor?
Mas eu não dizia nada. Olhava Ana, via-a atenta aos pequenos, com o
livro no regaço, esquecida de mim.
- Há certos tipos que estão sempre prontos a julgarem os outros
parvos, doutor. Mas é preciso cuidado... às vezes enganam-se. Isto de se
julgar uma pessoa parva... Não. Nem todos somos parvos.
Eu não entendia. Seria comigo?
- Quero-lhe dizer uma coisa, doutor: a minha Aninhas é feliz.
Sim, sim: acredito (foste tu então que lhe trouxeste as crianças?). Mas
admito mesmo, meu pobre Alfredo, que Ana acabe por se apaixonar por
ti. E, agora, que relembro, admito-o com uma força maior. Tinhas o teu
método, tinhas o teu processo. No fim de contas, não eras um ser passivo.
Os teus insultos à beleza plena de Ana, mediante a ostentação da tua
baixeza, da tua grosseria, as tuas intervenções absurdas nas nossas
discussões, eram uma forma de ataque, de afirmação de uma personali-
dade. De certo modo, agredias Ana, sobrepunhas-te a ela e a nós. E
colado ao teu estratagema talvez ingénuo mas eficaz, colado à tua luta
subterrânea e imediata, incorporado a uma força quase natural é como se
hoje reconhecesse em ti um escárnio a todos os nossos problemas, a toda
a nossa perturbação. Tomás estará além como tu estás aquém de toda a
minha angústia. Mas um e outro vos ordenais numa linha de eficácia.
Tomás é inverosímil. Tu repugnas-me, pobre tonto - e todavia intrigas-me

204
e quase me perturbas de inquietação, sei lá até se de remorso.
Ana olhava o marido, serena, lavada numa pureza excessiva para os
meus olhos alucinados. Toda vestida de preto, os óculos a situá-la num
mundo de resignação, de outra idade, as duas crianças brincando sob a
paz do seu olhar, Ana retirava-se definitivamente da minha angústia, que
continuava, se alimentava de tudo o que falasse a sua voz, que seguia na
indefinida procura do eco que lhe respondesse, da noite final sem insónia
ou pesadelo.
- Ana!
- Sente-se. Não apanhe sol. Não quer que o Alfredo lhe arranje um
chapéu?
- Veja lá, doutor. Arranja-se já aí um chapeirão que o cobre todo. Não
quer? Então dêem-me licença, que tenho de ir à minha vida.
- Ana...
- A Sofia está aí, sabia?
- Não. Sim. Ana: você achou? Você chegou ao fim? Você dorme
descansada?
- Está um dia ardente, está um calor pavoroso. Mesmo aqui na sombra
se sente...
- Desde quando tem as crianças?
- Lembro-me às vezes de você: é extraordinário como no corpo destes
pequenos há uma pessoa viva, um todo independente, com uma cons-
ciência brutal da sua individualidade. Sei agora que nada disso é
absurdo...
Acendi um cigarro, afrouxei o colarinho. Uma verdade natural, uma
harmonia natural trespassava toda a terra, os campos, as árvores, Ana, as
crianças.
Mas eu estava de fora...

205
Subitamente, Sofia apareceu ao pé de nós.
Literalmente: apareceu. Não lhe ouvi os passos, não lhe vi a sombra.
Surgiu imprevista ao pé do caramanchão. Vestia calça de cotim azul até
sob os joelhos, onde se lhe apertava contra a perna, abrindo numa fenda.
No tronco, cingindo os seios disparados, uma blusa branca sem mangas.
E na cabeça um vasto chapéu de palha. Ria, imovelmente, um vivo riso
vermelho:
- Viva!
Ana envolveu-nos a ambos. Mas ignoras tu ainda, Ana, que a nossa
vida não se reconhece? Nem no desespero? Porque eu não desespero e a
aparência disso dá-a a minha fraqueza, os gritos ocasionais do meu
cansaço. Oh, Sofia é tão bela, Ana. Como evitá-lo sempre? Bela como a
perdição, como todo o pecado. Se na minha angústia há muito de
pecaminoso... Não sei, não sei, agora não.
Perguntei a Sofia pelos estudos, para normalizar a sua presença e a
minha em face da sua pela lei que à nossa volta tudo parecia apaziguar.
Ela declarou-me que ia tudo muito bem. Faria exame, tinha a certeza de
que iria passar. Estava bem resolvida a tirar um curso superior, natural-
mente o de Direito, amava a justiça, tinha talvez também o seu pequeno
sonho de emendar o mundo. Fitei-a um instante, esquecida de nós,
varada de si própria, um rasto de sorriso nos lábios, agressivo e desde-
nhoso. Sentou-se, acendeu um cigarro. Estendia a perna esquerda,
apoiando a planta do pé, dobrava a direita, aproveitando a liberdade das
calças para aquela atitude rígida de nobreza. Em volta o sol chiava de
brancura na cal áspera da casa, da cisterna, na sílica do ar... Os pássaros
calavam-se nas ramadas, a terra abrasada estalava de maldição. Hora de
cobras, de insectos metálicos crepitando ao calor. E do outro lado do
muro, no dorso dos homens, o testemunho vivo dessa praga...

206
- Não preferem estar em casa? - perguntei.
Sofia protestou: amava o sol, a chaga viva da luz.
Ana olhou as crianças, num alarme. Quisera deitá-las, fazê-las dormir
a sesta: os miúdos viviam a excitação dos brinquedos desconhecidos, da
alegria desconhecida.
Fui ainda ver a ceifa e o seu suplício. Mas o que era aí doloroso só o
vejo bem agora, revertido à verdade antiquíssima e original que tacteio
nesta procura nocturna. E pela tarde jantámos ao ar livre.
A noite descia, a terra atirava baforadas de forno.
Alguns homens ficaram ainda, Alfredo pediu-lhes que cantassem.
- Deixe-os lá - sugeri.
- Eles gostam.
- A gente gosta.
Eles gostam... Gostais como? Que logro procurais nessa música
resignada? Ninguém vos sonha assim, ninguém dos que vos sonham o
futuro.
Reconhecervos-eis nesse sonho? Plácida, a planície adormece, lavrada
ainda dos restos de calor – numa linha longínqua, a Lua sobe como uma
mão final. Pelos campos rasos e crestados alastra o coro dos ceifeiros à
procura de um eco. As crianças adormecem nos degraus da casa. É a hora
do regresso, ergo-me, despeço-me.
Então Alfredo propõe-me:
- O doutor podia levar Sofia. Escusava eu de ir à cidade.
Aflijo-me e aceito. Ponho o carro a trabalhar e mergulho no
descampado, já todo inundado de lua. Sentada a meu lado, Sofia fuma
em silêncio. Está, como eu, saturada das memórias do dia, memórias
densas, ofegantes, pesando sobre os olhos, sobre o peito, sobre os
membros inchados. Abertas à infinitude, as searas ondulam ao luar. A

207
presença de Sofia, a presença de nós ambos à solidão a toda a volta
chama-me a uma intimidade de uma defesa comum, de um mútuo
entendimento que não existe. Como uma ilha de naufrágio.
- Sofia...
O carro balança às ondas da lua, não me cessa no corpo essa estranha
sensação de refúgio, de sobrevivência a um desastre universal.
- Sofia! Os miúdos ficam agora com eles?
- Foi Alfredo quem os descobriu. Ana aceitou-os como se os esperasse
há muito. Há gente cobarde para tudo, para aceitar, para acreditar, para
jogar a vida numa solução. Como se houvesse uma solução.
- Não tem você a sua?
- Tenho a de não a ter. Assumo a vida toda sem sofismas. Sou corajosa
e não tenho ilusões.
- Calo e esqueço, eu.
Bruscamente ela disse-me.
- Pára!
Atirei uma patada ao travão, o carro chiou, guinando pela estrada.
Sofia desceu, olhou a ravina da berma. E só então reparei: era o sítio do
desastre de Cristina. E, sem uma transição, Sofia irrompeu a cantar. Era
um cantar da Beira Baixa (creio que da Beira Baixa), escuro, antiquíssimo
ou com um sabor a isso, ali, na grande noite lunar.
Aguardei que Sofia terminasse, inteiriçado de surpresa e de terror.
Sofia, porém, entrou de novo no carro, cantando agora a meia voz. Reco-
mecei a marcha, caminhando todavia devagar. E Évora apareceu enfim,
exposta na colina, toda armada de luzes.
Desci a rampa, atravessei as duas linhas férreas, mas, quando cheguei
ao bairro novo, Sofia pediu que me desviasse para a direita, e entrei pela
estrada de circunvalação:

208
- Gostava de ir à tua casa.
À esquerda, panos de velhos muros, à direita o campo deserto. Passei
à Porta de Avis, passei por sob os altos arcos do Aqueduto, vim sair à
estrada de Arraiolos. E, chegados a casa, Sofia apoderou-se de mim com
uma raiva de desespero. Abruptamente, senti inchar-me nas mãos, nas
veias, o seu corpo frágil e extraordinariamente vigoroso. Os ossos
doeram-me de novo, uma milenária sede de conquista, de vitória cruel,
estalava-me a boca, as narinas. A lua entrava por uma janela aberta...
Depois viemos para a rua ver a noite, a cidade, a planície obscura,
atravessada longe por um pequeno comboio todo iluminado, como por
uma larva estranha.
Deitámo-nos numa rocha, olhando os astros. Eu falava das estrelas,
das gigantes vermelhas, das anãs brancas, das novae, da medição das
distâncias, das nebulosas, da nossa galáxia, cuja distância máxima, de
extremo a extremo, é de cem mil anos-luz, da Andrómeda, a mais
próxima, a um milhão de anos-luz, dos montões de galáxias, algumas à
distância de quinhentos milhões de anos-luz, das grandezas relativas, da
E do Cocheiro, que é maior do que a órbita de Saturno, dizia nomes de
um sabor terrível para mim, Arcturo, Capela, Aldebarão, Rigel,
Betelgeuse, Altair, falava do aspecto da Ursa daqui a cem mil anos,
contava de textos indianos em que se falava de certa polar, o que só
poderia ter acontecido há x milhares de anos, contava do movimento de
precessão...
- ... em cada 25.000 anos o eixo da Terra descreve um cone duplo em
torno da perpendicular à eclíptica... ...e que há 120 séculos a nossa polar
não era a estrelinha que sabemos mas a Vega; e que daqui a outros 120
séculos sê-lo-ia a Vega outra vez.
- Pois bem - disse Sofia. - Para toda essa coisa brutal como inventar

209
uma resposta?
E de novo ela cantou, agora um canto desconhecido que a exprimia
com ardor. Voz bela, enchãdo os espaços. E, agora que tudo findou, eu a
ouço ainda aqui, nesta noite de Verão, com um insidioso arrepio...
Porque, apesar de bela, a sua voz soava-me como um insulto, era ácida
como todo o desespero de Sofia. E eu disse:
- Não se fica em paz quando se te ouve. Não se fica. Que pena não
poder agora ouvir Cristina sequer na memória...
Sofia voltou ao Alto ainda algumas vezes. E trazia-me sempre o seu
pânico, explodindo, sanguíneo, em desvario amoroso, em cânticos para a
noite e, rarissimamente, num ou noutro poema breve.
Depois deixei de a ver: quando uma outra vez a encontrei, ela
falava-me como se eu mal a conhecesse: decerto a nossa entrevista,
confirmo-o hoje, recordando o que depois aconteceu, tinha acabado para
sempre.

210
XXIV

Foi no café, durante as férias de ponto, que eu recebi a notícia da morte


de Chico. Quem ma deu? Já me não lembro. Saí abruptamente para sua
casa, que ficava ao pé do jardim, como julgo já ter dito. Mas a criada que
me atendeu ficou pálida e desmentiu a notícia: o senhor engenheiro
estava mal, mas felizmente não morrera. Fora apenas uma das suas crises
de coração, desta vez particularmente grave.
E, com efeito, alguns dias depois convalescia. Para mim houve uma
certa perturbação, quase um desapontamento, na falsidade do boato: que
obscura paixão do desastre nos domina?, ou que orgulho subtil de termos
sempre razão, ainda que a razão magoe? Quando Chico melhorou fui
visitá-lo. Ana estava também. E Alfredo. Chico sentia-se humilhado na
sua qualidade de enfermo, de homem indefeso – ele que trazia no sangue,
nos músculos, uma voz de triunfo, de positividade maciça.
- Um doente não é um homem - começou por dizer. - Um doente é um
ser em decadência. Tudo o que é válido para a vida não deve contar com
ele. Não abuse de um doente, como os padres...
- Mas o espírito de um doente, para você, não tem que estar doente -
disse eu.
- O espírito faz-se no sangue.
- Não! - objectei. - Para você, não: uma ideia exacta deve-lhe ser exacta
de qualquer modo.
Calei-me um pouco, acrescentei:
- O espírito faz-se no sangue, está bem. Mas justamente eu já sei que o
meu sangue há-de apodrecer. E eu quero estar prevenido para quando ele
estiver podre.

211
- Não abuse da situação...
Estava uma tarde quente, do Rossio vinha já o eco da azáfama para a
feira. Ana olhava tudo, ouvia tudo, quase desinteressada. Mais tarde, já
eu não estava em Évora, disseram-me que tu, Ana, te tornaras fanática.
Verdade? Não sei. Sei apenas que, por então, tu reagrupavas-te ao teu
mundo novo, à maravilha que irradiava de uma paz reencontrada. Eras
crente, não eras ainda apóstola.
Havia contas a saldar com as convicções antigas, com as suas
testemunhas. Mas justificar-se, discutir parecia-lhe decerto inconveniente.
Vivia a sua alegria, mas na humildade: só por encantamento?, por
deferência? Vivia a sua alegria e era só: o silêncio resolvia-lhe toda a
manifestação. Chico sentia-a distante e, talvez por estar doente, aceitava
já a distância como resignado. Eu não queria violentar o engenheiro a
uma discussão frontal do que ficara em aberto entre nós. Eu não queria
abusar da situação.
Mas precisamente eu pretendia incluir a situação numa problemática
da vida. Sentia, sabia que era um logro decidir-se para a vida sem ter-se
em conta a doença, a morte. Um homem não se limita a dois braços fortes
erguidos. Um homem limita-se em toda a sua condição. Se as ideias de
um doente são ideias doentes, porque serão decisivas as ideias com
saúde, se a saúde é uma contingência, um estado passageiro? As ideias
saudáveis também são débeis: elas pertencem ao acaso do vigor.
Poder-se-ia pois responder a quem as expõe que a sua exactidão depende
apenas de uma frescura ocasional do sangue: o seu rigor é contingente...
Mas eu queria soluções para toda a idade da vida, eu queria uma certeza
assumida, assimilada, para a ameaça da morte. Eu queria que a desgraça
da nossa condição nos não trouxesse surpresas... E era isso exactamente
que eu sonhava para todos os homens, para a hora em que um estômago

212
estivesse calado, adormecido.
- Portanto - declarei - a exactidão de uma ideia não é uma exactidão
em si. Portanto, toda a razão é irracional. Sei-o há muito. Mas, você só
agora o sabe... Um doente não pode ter opiniões para a vida. Você o diz.
Por mim, digo antes que as deve ter e nunca mais esquecê-las.
- Não seja desleal, professor.
- Que cada qual esgote a sua voz - disse Ana. - Que a esgote até ao fim.
Você mesmo, Alberto. E então se saberá. Uma voz certa não tolera
discussões, não foi você quem mo disse? Todos vocês discutem..
- Só falta que Ana me traga um padre e os santos óleos... Mas não traz!
Uma ideia com saúde não é uma ideia como as outras: é uma ideia
normal. Ninguém faz fé no juízo de um bêbedo ou de um doido.
Ninguém a pode fazer no juízo de um doente.
- Somente um louco ou um bêbedo é incapaz de dizer isso - objectei.
Chico soergueu-se:
- Por favor! Acabemos.
- Sim senhor - interveio Alfredo -; que rica discussão, que ricas coisas
aqui se disseram! Muitas ideias vocês trazem nessas cabeças! Eu, é claro,
sou um bruto, não é, Aninhas? Mas cá vou vivendo, enfim, cá vou
cumprindo...
Um altifalante crescia na aragem vinda do Rossio. Outro altifalante
passou na rua, anunciando o Circo Luftman. Tocava longe uma trompete
pelas ruas, anunciando decerto uma tourada. Para lá da janela e do muro
gradeado do jardim, Florbela continuava a sua meditação. E nesta
mistura de excitações da vida e da melancolia final, das palavras de Chico
e da sua condição de vencido, nesta soma entrecruzada de esperança e de
desastre, de conquista e de submissão, um instante foi como se a própria
vida tivesse mais razão do que tudo isso, fosse maior do que nós, a nossa

213
inquietação, o nosso desejo de vencê-la, de capturá-la numa ideia, numa
significação onde coubesse toda e nos permitisse enfim que nos confron-
tássemos com ela. Porque o meu sonho não era afinal senão esse: o de
reabsorvê-la toda; e talvez que para isso a minha pequena ambição, com a
minha angústia, fosse a última etapa, sempre esquecida, apelando para a
integração do que sempre se olvidava, do que sempre aparecia com um
sinal de degradação, de fraqueza, de miséria, ao sonho invencível - lúcido
ou ignorado - para a condição do homem, de uma condição de deus...

214
XXV

A feira abriu com grande excitação. Todo o Rossio se iluminou de festa


com fieiras de barracas, carrocéis, circos, stands de carros e máquinas
agrícolas, tendas de doçaria, de fotocómico, tômbolas, jogos de argolinha,
aparelhos de buena-dicha com variantes de passarinhos que tiram o papel
da sorte, tiro ao alvo, aparelhos para demonstração de forças, solitários
vendedores de água com uma bilha e um copo ao lado, vende-dores de
mantas, de escadas, de cestos - sob um céu duro de altifalantes e poeira e
vibrações luminosas. Noite de São João, noite cálida de bruxas e de
sonhos. Para lá da mesa em que escrevo, para lá da janela aberta, clarões
de fogueiras abrem-se de descantes que irradiam pelos céus. Há danças,
entre as estrelas, de gente que se dá as mãos... A montanha arfa
pesadamente dos grandes calores do dia. Eu ouço e comovo-me. De vez
em quando o homem lembra-se de clamar a sua presença contra a noite,
contra as sombras. As fogueiras são os fachos dessa vitória efémera. Mas
é belo que se discuta até ao fim o derradeiro triunfo do silêncio. Eis Évora
discutindo-o também aos meus olhos irradios e doridos. Nesta praça de
loucura ignoro a loucura. O que enfrenta o meu cansaço, o que afoga a
minha interrogação é esta fácil desautorização da morte. Nós, os homens
das contas complexas de quem aprendeu mais do que as quatro opera-
ções, das bibliotecas de catacumbas de quem ousou mais do que o a b c,
de quem arriscou as ideias e as não gastou em palavras, sabemos que a
discussão se não esgota num simples voltar de costas, numa troça de
desprezo, embora soberana e eficaz como a das crianças. Mas esta gente
pareceu-me hoje, neste breve instante, que é viva e natural, que tem a
força bravia das ervas dos baldios. E uma opressão esmaga-me como

215
diante de uma audácia a que só nós emprestamos consciência para a
tornar audaz. Eis-te, aí, bom reitor, com amigos que eu não sei, a uma
mesa de esplanada, cheia de canecas vazias de cerveja, como um pólipo
de ventosas... Saúdas-me risonho, o lábio grosso, a face injectada de boa
disposição. O Verão era a tua hora de grandes libações, lembro-me de no
café te ver com frequência bebendo uma tarde inteira, enchãdo a mesa de
vidros que mandavas retirar para não publicares a tua sede. Eis-te a ti,
Ana, passeando com gente que só conheço de vista e te torna a ti, a meus
olhos, anónima e dispersa. É dia de São Pedro?, o dia chique? Já não sei.
A multidão ferve rodando em torno de si, como se toda a feira fosse um
enorme carrocel. Mas a noite recua um pouco, as sombras começam onde
já ali se não lembram.
- Não viu a Sofia?
Não, Ana, não vi. Já não a vejo há muito, quero dizer... Pois:
encontro-a ocasionalmente, ela passa à minha beira; mas só poderia vê-la
de frente. Nunca mais voltou ao Alto, mas ainda se lá ouvem os seus
cantos de desvairo... A última vez que a vi foi num banco secreto do
jardim. Estava com o Carolino.
Vou no rasto desta massa de gente que alastra por toda a feira. É uma
gente que sabe como a fraternidade da pele encoraja o que é da pele, os
músculos, a garganta, amplia a parte mecânica de um homem: a alegria, a
que é da rua, fortifica-se nesse encorajamento. Um ou outro afirma-a a
altos berros para que ele próprio a ouça, experimenta-a para a saber,
como se experimenta um risco, atira-se a ela para que os outros
verifiquem que afinal ela existe.
Passo junto dos circos, há bichas de gente à procura de bilhetes. Hei-de
lá ir também. Gosto dos palhaços como de quem me põe à prova a
urgência do que sinto: os palhaços recusam-me o que eu devo recusar

216
talvez... Gosto dos trapezistas como de quem se liberta, das lantejoulas,
dos dourados, como das tréguas da ilusão que não quer ser mais do que
isso.
- Se vir a Sofia, diga-lhe que estamos no Café Luso.
Outra vez Ana e o seu rancho. Mas quem falou agora foi Alfredo. E de
súbito, com uma violência irrespondível, eu lembrei-me de um telefo-
nema de há dias. Eu estava no Liceu, num intervalo de exames:
- Só você é responsável. Só você.
Quem falou? A tanta coisa, aliás, eu podia ligar aquele aviso absurdo,
de um terrorismo incipiente. Ponho-me a correr a feira numa fúria.
Barracas de tiro, carrocéis, bichas para os circos, esplanadas. Vou mesmo
ao jardim, vou à zona secreta dos bancos de azulejo. Um rumor de vento
agita toda a convulsão do Rossio, afasta-a, balança-a em reflexos de metal.
Venho de novo à feira, ouso estupidamente alguns telefonemas a que
ninguém responde - estupidamente, porque eu sinto a estupidez do meu
alarme, que a mim próprio receio confessar. Não que tema que se esboce
a sua confirmação mas tão-só por me atingir como alarme. Para que
insistir na minha inquietação e na sua narrativa como quem quer retardar
um efeito teatral? Na realidade, no dia seguinte, e com uma clareza sem
sombras, como a desse sol de Junho, Sofia apareceu num caminho que
parte de junto do Chafariz de El-Rei, assassinada a punhal.

Enfim, vou-me embora. Houve um concurso para Faro e fui classifi-


cado. Voltarei ainda, decerto, para o julgamento, porque não devem
dispensar o meu testemunho ou o meu sacrifício. Alfredo declarou-me
que o Chico me considerava responsável pelo crime de Carolino. Aceito a
responsabilidade de tudo, porque aceito a responsabilidade da minha
vida. Mas à minha vida não a alterarei. Só em face do meu dever (que o

217
não é, porque é só a minha voz) eu me salvo ou me condeno. Se o meu
dever é um crime, é um crime inocente. O homem perdeu o seu lugar de
encontro mútuo, de reconhecimento mútuo, para que o dever seja uma
responsabilidade comum e indivisa. Uma vida não chega para nos
reconhecermos irmãos. Que fazer, porém, se eu sei que uma fraternidade
só pode construir-se numa evidência de raízes e o dever só existe na
inaceitação, quero dizer, na submerssão ao que está fora de nós e Aquilo
de que falo está dentro de mim, sou eu... Se algum crime houve em mim,
foi só o de ter nascido.
Aluguei casa em Fáro, remeti para lá quase todas as minhas coisas. O
Manuel Pateta encarregou-se de tudo.
- Já não volta para Évora, senhor engenheiro?
Pago-lhe por tabela alta. Ele desbarreta-se várias vezes, rojando pelo
chão os pobres olhos borrachos.
- Hei-de vir ainda para arrumar o que falta.
Venho em Setembro, como da primeira vez. Tinha serviço de exames,
mas o reitor dispensou-me como das orais em Julho. Vou ao Liceu
despedir-me do bom homem. Encontro-me com ele na sala 8, como há um
ano. E, como há um ano, olho pela janela o sol arrefecido, brilhando nas
medas de palha, nas terras lavradas de longe em longe, o vento varrendo
as areias do parque, sacudindo as folhas mortas das árvores. Nos fios que
passam em frente das janelas, de novo as andorinhas se agrupam em
cachos, de penas eriçadas, meditando longamente na grande migração.
Adeus, reitor. Até um dia, até sempre. Levo nos meus olhos, para a vida
inteira, estes claustros, este silêncio, estas ruínas, estas vozes milenárias
que se ouvem ainda nas ruas, esta vasta solidão da planície em que o
homem se sente ainda, angustiadamente, o senhor da criação...
Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas com

218
um céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à cidade, à
planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo
extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de
terreno, um incêndio lavra interminavelmente, iluminando a noite. É uma
queimada, suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra.
Alinhadas pelos sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável.
E aos meus olhos saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade
fantástica, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos. Cidade, minha
cidade... Que a terra tenha razão sobre ti, que essa força que mal sei te
absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e outro ignorado
começo - que me importa? A minha vida é a vida, só existe o que me sou:
não se imagina quem se não é...
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém
deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que
o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição
universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma
inundação. Sinto-me só e nu, escapado ao desastre. Mas esta nudez que
eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros,
esta redução extrema às minhas raizes, esta solidão inicial de quem não
pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à
vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo
comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e
perdão... A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra
noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder. Acaso será possível
construir uma cidade como a imagino, a Cidade do Homem? Acaso não
dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem conse-
quências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o

219
sei, não o sei...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu
lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não
deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os
homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas
as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.
Não me pergunteis como consegui-lo, não me pergunteis. O que é
evidente aparece. Mas nestas noites de insónia em que me vou perscru-
tando, neste esforço natural como o da terra, em que me vou revelando,
eu pude ver, em instantes de fulgor, o que me era, o que me cumpria, o
destino que me gravara. E ver é já conquistar, possuir. O terreno é bom, o
terreno é este. Não será tempo ainda de construir a minha cidade. Mas é
já tempo de saber que se deve construir... Talvez a tua música, Cristina,
ajude a mover as pedras; como certa lira de outrora... Eu a sonho, pelo
menos, como o ar respirável de um dia, aberto às alturas de um triunfo
apaziguado, como a alegria dominadora e sem tumulto de quem chega ao
alto de uma montanha...
Ao contrário do que esperava, não fui notificado para o julgamento do
Carolino. Da minha culpa, aliás, quem poderia decidir além dele, de mim,
de nós, dos que sabem a linguagem que é ignorada pela lei? Sigo o
processo pelos jornais, aqui, nesta casa que aluguei na rampa de Santo
António, frente à ria onde os poentes apodrecem. Há quem proponha um
exame psiquiátrico ao pobre Bexiguinha. Nas suas declarações há zonas
obscuras como pegos, os homens que as registam, que as examinam,
hesitam, contornam-nas, à procura do caminho interrompido.
“Ela fazia pouco de mim, eu gostava muito dela, muito, muito. Eu
matava-a e ela depois ficava a descansar, que é que valia matá-la? Ela
descansava e quem sofria era eu. Mas depois pensei: Ela é uma coisa

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extraordinária, ela é muito grande, ela diz eu e quando diz eu é uma força
enorme, uma maravilha extraordinária. Se eu a matasse, está bem, ela
ficaria a descansar, mas eu reduzia-lhe a nada aquilo que era grande, ela,
ela. E ela era tão bela e quando me amava ela era grande como ela,
porque ela era tudo isso e eu reduzi a nada tudo isso. E eu continuo vivo,
continuo a ser grande, ela já não é nada. Mas tenho pena - oh, ela é que
teve a culpa. Sinto-me orgulhoso da minha força, mas estou triste.”
Entendo a tua loucura, meu bom moço, a tua perplexidade diante do
poder que te nasceu nas mãos.
Mas como não aprendeste que é mais forte criar uma flor (um
parafuso...) do que destruir um império? O tempo e o amor... Sei o
milagre da vida, por isso a morte me humilha. Tu chamaste a ti a força da
humilhação. Mas um tirano só é grande aos olhos do cobarde. Tenho
pena de ti...
Quanto tempo ainda? Um ano e outro ano e outros anos. Minha mãe
morreu numa noite de Novembro, precisamente na véspera de Tomás ser
pai pela décima vez. Não fui à aldeia, soube tudo lá longe, ao rumor dos
ventos do mar. Faro é uma cidade aberta, sem muralhas nem cúpulas.
Mas o meu mundo reconhece-se na laguna das águas mortas, na aragem
que sopra do lado de lá da ilha.
Por isso talvez alguém mais sabia ali a minha linguagem final, a que
aflora num susto a aparição do silêncio, a que sagra e anuncia... Casei,
adoeci, retirei-me do ensino.
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de fim de
Verão entra pela varanda, lava o soalho numa pureza irreal, anterior à
minha humanidade e onde, no entanto, sinto presente uma parte de mim.
O céu é húmido e fresco como uma nudez, o ar satura-se ainda desse
aroma genesíaco que as chuvadas ergueram da poeira do Estio. É bom

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estar aqui, neste abandono, todo aberto a estas vozes de indício, a este
trémulo aviso de uma verdade primordial. Instante perfeito da totalidade
presente, aureolando tudo o que me é degradação...
Dou a face inteira à inundação da lua, que me escorre por este corpo
perecível, o trespassa do seu fluído de eternidade, o transmigra ao país da
legenda. Um grande halo de grandes olhos abertos suspende-se raiado à
anunciação da evidência. Sei e não temo: será o temor só dos outros, para
os outros, como são deles as palavras? Sei, não talvez como quem
conquistou mas como quem se despoja: a minha verdade é o que me
sobeja de tudo. Quantos anos ainda à espera? Que caminhos desertos ou
de estalagens à espera? Mas o tempo não existe senão no instante em que
estou. Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me
sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro
senão o que agora me projecto? O meu futuro é este instante desértico e
apaziguado. Lembro-me da infância, do que me ofendeu ou sorriu:
alguma coisa veio daí e sou eu ainda agora, ofendido ou risonho: a vida
do homem é cada instante - eternidade onde tudo se reabsorve, que não
cresce nem envelhece -, centro de irradiação para o sem fim de outrora e
de amanhã. O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu
sendo, vibrando. Como imaginar o futuro? Sou agora irremediável como
a absurdez de uma pedra, como uma obstinação. O que o sonho mal é um
sonho, porque o espero violentamente, o desejo na experiência do meu
corpo, das minhas vísceras – como deve ser realizável o pão à fome de
quem nunca o teve. Mas dos desvarios que o meu aviso suscita como um
erro de cálculo ou de manobra, da secura mecânica das horas que o
esqueceram na execução dos gestos, do terror dos longos dias até ao
repouso final a que aspiro, da própria angústia que me torce à evidência
da minha condição - neste instante fugidio e apaziguado eu me esqueço à

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quietude desta lua irreal sobre a terra realizada em dádiva e fertilidade, à
memória de uma inocência de outrora e para sempre reinventada em
música a uma hora gravada de cansaço entre uns dedos indefesos e uns
cabelos louros e a luz derradeira de um dia de Inverno, eu me esqueço
ainda, ao anúncio de alguém numa porta que se abre, e que me procura e
me toma as mãos e as molda, à luz da lua, na flor breve e miraculosa de
uma profunda comunhão...

Évora, 3 de Julho de 1959

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