As vezes ficamos tão aficionados em se provar para o mundo que
acabamos nos tornando pessoas intragáveis para se conviver, achando que estamos sempre interpretando aqueles típicos heróis protagonistas tão retratados em crônicas antigas e em canções altamente previsíveis cantaroladas por bardos nas tavernas com o néctar mais duvidoso de um vilarejo qualquer, que trazem consigo a pinta de “o escolhido”, aquele desacreditado que subitamente receberá uma chance caída dos céus para mostrar aos quatro cantos da terra o quanto ele é especial, e como ele nunca morre nos momentos mais insanos e intensos em uma batalha em que uma besta no mínimo três vezes maior que ele está prestes a separar a suas pernas do seu tronco. E é com grande tristeza que eu venho a todos anunciar que TCHARAM!! Isso não existe e a menos que você tenha grande experiência em esquiva, eu sugiro que você aprenda a usar suas mãos para correr com a mesma eficiência que as pernas, por que na famigerada “realidade” você NÃO é o protagonista. Eu tenho costume de refletir sobre esse tipo de pensamento até pegar no sono, mas naquela noite estava impossível, eu estava escorado em uma pedra contra a frente de vento gelado nas montanhas de “nome fictício”, que fica ao leste das terras do barão “nome fictício” ,na tentativa completamente frustrada de repor parcialmente as minhas forças. Digamos que eu não seja o cara mais resistente do mundo a combates e a temperaturas extremas, era tarde da noite e o frio era cortante, ao ponto das minhas gengivas parecerem se contrair e ressecar cada vez mais a cada instante que se passava, eu já havia sentido a sensação de morte algumas vezes, mas essa com toda certeza vai entrar para lista das mais agoniantes e lentas. Talvez pela preocupação e desespero eu não houvesse reparado em uma espécie de gruta bem pequena que se encontrava a alguns metros acima de mim e que caberia perfeitamente para que eu pudesse me encolher e terminasse de passar a noite, o terreno era íngreme e instável, onde me congelava mais ainda a espinha perante o medo de um passo em falso e a lenta desaceleração do meu coração a cada cascalho que caia pela ventania para baixo daquele abismo, me lembrei das aulas práticas em terrenos hostis na academia e de como eu me arrependia de ter ignorado a voz do professor para fazer cada traço daqueles desenhos no meu braço, mas não era hora para ressentimentos, com o pouco do vigor que havia me restado sugado de meus inimigos durante o combate, me escorei na ponta de um pedregulho que parecia resistir facilmente ao meu peso, assim conseguindo me forçar pra cima e rolar até um terreno relativamente mais plano ao que eu estava anteriormente. No momento em que minhas costas tocaram a superfície desconfortável, incômoda e fria da rocha, suspirei aliviado e apesar de alguns aspectos deporem contra a integridade da pedra, pela primeira vez naquela noite, me sentia seguro. Me via em uma espécie de caverna, só que muito reduzida, semelhante a ponta de um bico de pato, que para a atual circunstância, era perfeita pois me garantia a proteção por cima e me bloqueava completamente do vento gelado pelas paredes laterais, no fundo haviam algumas folhas e pequenos pedregulhos, o ambiente estava escuro e com uma aura extremamente FRIA. Me ajoelhei contra uma das paredes, peguei algumas pedras e retirei meu caderno de magia do bolso, apesar de entender e lembrar com bastante clareza da maioria dos meus feitiços, eu por algum motivo não conseguia me lembrar de cabeça daquela maldita conjuração de labaredas que eu lembro de ter anotado para aprender desde que tinha 14 anos e peguei pela primeira vez um grimório de magia para iniciantes, eu até me recordava do nome, “Introdução a magia básica 1” escrita por “nome fictício”, mas por algum motivo que eu não sabia explicar o por que eu não me lembrava com certeza. Porém, de modo resumido eu teria que riscar um símbolo no chão e repetir um encantamento. Você pode ate se perguntar “repetir encantamento? Mas e os magos e feiticeiros mais avançados?”. Essa era uma grande questão, eu por não me recordar com muita certeza, precisava recorrer a recursos vocais para estes encantamentos básicos especificamente, mas era bem simples, eu precisaria apenas repetir os dizeres “uma benção sagrada da natureza que ilumina, aquece e alimenta, eu te invoco o poderoso fogo (em latim)” e uma labareda de chama mágica surgia da palma da minha mão e eu poderia manipula-la como preferisse até que desconjurasse o feitiço. Era impressionante, que por mais que fizesse muito tempo que eu não o invocasse, esse feitiço sempre me trazia a mesma sensação, uma segurança e tranquilidade indescritível, era caloroso em todos os sentidos, podia sentir consumir desde a palma da minha mão até a ponta dos dedos um calor que se materializava em uma perfeita chama, me concentrei e a direcionei para aquele amontoado de folhas já secas, que foram imediatamente consumidas pelo fogo e em poucos segundos já sustentava uma fogueira. Me encostei na parede de pedras ao lado da fogueira, perdido em pensamentos trêmulos e confusos, enquanto dobrava minha capa repetidas vezes, improvisando uma espécie de travesseiro. Repousar a cabeça em uma superfície relativamente macia era um momento incomum naqueles últimos meses, não que eu não tivesse visto nenhuma cama por ai, mas a minha capa já vinha fazendo uma excelente substituição a algum tempo, na verdade eu até preferia assim, ela trazia junto o cheiro extremamente agradável de baba e pelo molhado, um aroma que me tranquilizava mais do que todos os elementos daquele lugar, até de longe a Nika se fazia presente. Enquanto me concentrava para dormir, podia finalmente sentir cada músculo relaxando cada vez mais, parecia que a minha até então inquietude anestesiava todo o cansaço do meu corpo e não me permitia sentir a exaustão extrema, porém eu permanecia imóvel, deitado sob a pedra. Enquanto encarava as labaredas totalmente inconstantes, perguntas ecoavam em minha mente, mais uma vez era eu mesmo questionando a existência da magia nesse mundo, por que cá entre nós, tecnicamente seria impossível alimentar uma fogueira sem lenha e muito menos resistir a temperaturas tão extremas com tanta “facilidade”, definitivamente eu devia a minha atual sobrevivência a isso, mas eu terei tempo para pagar essa dívida, só que antes eu só precisava dormir um pouco. E esses foram meus últimos pensamentos, antes que a minha visão fosse totalmente tomada pela escuridão.