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a

mantenedora
do ritual

stella carvalho
a mantenedora do ritual
a
mantenedora
do ritual
stella carvalho

2021
Numa noite inesperada de chuva, alguém se res-
guarda em seu ombro. Os seus longos e esvoaçantes fios,
agora úmidos, se relegam à função de cobertura. Os pingos
assolam a bota, não mais a pele. Os pisos se enlameiam, não
há quem releve, e as cortinas de fumaça não mais costuram
em obviedades o ciclo interrompido por quem só guarda-
-chuva. Não evapora. Não dissipa. Escoa. Foge aos dedos
como o líquido insípido que sempre foi.
Desde que perdi Baobá naquela noite, arrancado
de mim como se nada fosse, a pessoa mais majestosa que
conheci, de altura megalomaníaca e mente fascinante, pele
escura como o carbono presente no solo fértil onde habitam,
de quem tão atentamente escuto histórias com a intimidade
que apenas uma brisa pode nos proporcionar, aprendi a li-
dar com a vida com a destreza de quem percorre quilômetros
mesmo ao permanecer parada. Um ano se passou e o cansaço
ainda desponta como inseparável e irrequieto companheiro,
enquanto a minha alma aos poucos recobre o sentido espa-
lhado ao vento. Os fragmentos se debatem numa tentativa
desesperada de reencontro, pois não há sobrevivência isola-

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da no alto-mar que tem sido nossa existência. Às vezes sinto des. Se quisermos permanecer e manter pulsante o constante
a sua presença nos meus sonhos mais conturbados, como se modo orbital entre a terra dos ancestrais e a terra dos inqui-
soprasse um de seus poemas em meu ouvido: “Shea, conti- linos, para que Baobás, Naomis, Malidomas, Serenas voltem
nue a navegar”. a eclodir os planos frustrados em épocas passadas, gozando
Aqui me reencontro, do outro lado do que um dia harmonia e plenitude, hei de aguentar qualquer fardo a ser
conhecemos por Atlântico, reconstruindo das cinzas o que me apresentado.
parece ter sido a nossa vitória. Há sempre muita incerteza
no que afirmo, confesso, mas preciso transpor sinceridade ao -
denotar o que não tem sido fácil. Sim, estamos livres das gar-
ras frias dos yurugus, seres que se introduziram à humani- — Zezé, a sua licença. Temo que Ibu esteja enfren-
dade com a intenção de nos destruir e acabaram por implo- tando problemas para encontrar o ser a que a nossa mais ve-
dir a sua espécie, visto que esse lugar não foi proposto para lha se referia em seus últimos tempos – indaguei a uma das
suportar ganância ou intemperanças usurpadoras. Sim, não pessoas mais queridas por mim, enquanto entrava em um
mais parecem se importar se ainda carrego água ou esperma dos recintos do nosso lar em construção.
entre as pernas enquanto exerço o melhor da minha incon- Por mais que, quase em totalidade, estivéssemos
gruência com as exigências que me foram um dia tão rigida- todos redescobrindo os nossos propósitos, alguns de nós
mente apresentadas. Sim, permanecemos vivos, mesmo que nunca esqueceram a função da sua vinda da terra dos ances-
tão pouco do que nos rodeia reverbere vida. No entanto, é trais. Zezé era uma dessas inquilinas: apresentava uma es-
incontestável a nossa responsabilidade com o que se suce- tatura mediana, provavelmente alguns poucos centímetros
deu. Nenhum de nós espera que seja fácil o que está por vir. mais baixos do que eu, a sua tez reluzia como o bronze mais
Há quem acredite que houve sorte no fim daqueles brilhante que os meus olhos já haviam repousado. Nos enca-
que foram deixados para trás, ou daqueles que, assim como rava com pupilas tranquilas, porém espessas, como se guar-
Baobá, encontraram descanso frente ao seu tempo de tortura dassem mistérios enterrados em águas das mais profundas.
na Terra, já que não precisam carregar o fardo da restituição Um olhar tão curiosamente rugoso que é preciso manter cui-
enquanto nem sequer repaginaram a própria anedota vivida. dado para não se afogar. Ela preferiu não alterar o seu nome
Mas, quão nítidas foram as mensagens recebidas através de de batismo, entendia que a sua vida nesse tempo-espaço es-
sonhos, lembranças reconfiguradas, transes da inconsciência tava com os dias contados e preferiria encerrá-la como co-
ou qualquer sorte de comunicação espiritual, não recebería- meçou: a Zezé de olhos marejados e postura suntuosa que
mos outra chance da gama energética que protege o fio de sempre foi.
sobrevivência pairando sobre nós. De certo, não contamos — Paciência, minha filha - começou, como quem
com certezas ou respostas, mas com demandas e necessida- percebe na incerteza uma das dádivas da vida – Ibu há de en-

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contrar a prosperidade para a comunidade entre as plantas bárbaro de todos os sabores, como aço sendo soldado, fer-
e a seiva. vendo e escaldante percorrendo o caminho longínquo e es-
Acenei como se tivesse feito sentido as poucas pa- treito da minha garganta. Há dor em toda tentativa de fala e
lavras que Zezé me direcionou. Tenho percebido que a razão incompreensão em qualquer palavra dita. Não foi para esse
perdeu o seu poder de uns tempos para cá e me desacostumar fim que minha existência teria sido orquestrada. Se existisse
a acreditar apenas no palpável aos olhos tornou-se a minha funcionalidade na sociedade incivilizada em que vivíamos,
maior dificuldade. Lembro-me quando, entre uma lágrima e eu seria o equivalente a um depósito, estático, aguardando,
outra do meu processo interminável de luto, agonizando em um poço sem fim, buraco energético ansiando vida em coá-
busca de qualquer vestígio simbólico que me levasse de vol- gulos de enxofre.
ta ao amor, Zezé me despertou os sentidos e pediu para que Talvez tenha sido realmente intempérie ter resis-
parasse de ver: “Shea, feche os olhos”. Os olhos são sorratei- tido. Há situações em que o corpo precisa parar de sentir se
ros, muitas vezes suspeitos a despeito do que se é. A imagem a alma pretende sobreviver. É incerto se alcancei sucesso em
é momentânea, poucas vezes espontânea e contextualiza o qualquer uma das tentativas, a sensação parasita que bom-
que se deve ser. Ouvir te prepara para os desdobramentos beia os pulmões e devolve pus às amígdalas não me permite
do caminho que nunca vão ser permitidos ver. Tocar te afa- regular a respiração. Questiono-me se isso se deve ao fato
ga para encontrar sustento quando a solidão é tudo o que de que fui vítima não apenas pelos declarados inimigos, mas
aparece para você. Sentir permite arrepiar os muros e des- por toda a sorte de inquilino que, ao enxergar em mim a pos-
trinchar jornadas, desbravar horizontes e constituir forças sibilidade de ser tocado por resquícios de poder, não titubeou
armadas. Feche os olhos.Tenho tentado. antes de lançar-se sobre as minhas particularidades e desti-
Tenho insistentemente tentado. Há traumas, acre- tuir-me de qualquer dignidade. Seria razoável atribuir culpa
dito, que nunca se despedem. Despedaçam o porta-retra- às minhas pernas estremecidas quando encontram as mes-
to interno e interrompem a dança perfeitamente ritmada mas figuras que, outrora me estarreceram no Calvare, estão
das memórias que ali habitam. O que nos resta são alguns aqui, agora, também com a função de constituir renovação?
membros quebrados, cacos do mais fino vidro e os poucos
segundos de uma música que perdeu a métrica. O tempo que -
passamos entre os seres sem pulsação arterial foi longo o
suficiente para nos destituir de qualquer traço de sanidade. — Mais uma noite sem dormir, Shea? – reconhe-
Em minha vida na Calvare, nome a que as inquilinas da me- ceria esse timbre mesmo se estivesse em meio ao círculo de
mória atribuem ao período em que estivemos aficionados à cinzas mais espesso com o rompante de cem inquilinas da
enganosa claridade, experimentei relações das mais torpes, conciliação rogando em alto tom às conchas cauri por sabe-
encarei o âmago da contaminação humana e senti o mais doria e proteção, a voz capaz de preencher florestas e revelar

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o silêncio das matas ao falar mais alto – Não há com o que delas sem que o minguante da sua vinda lumiasse a minha
se preocupar. penumbra e ainda não estaria pronta para eclipsá-lo. Tal-
Ibu voltara. As penas brancas amparadas com ejé vez eu não tenha chorado a sua partida. Foram tantas idas e
em seu torso começaram a preencher o espaço aos poucos - a vindas, saídas e corridas, expulsões e aprisionamentos. Para
sua movimentação sorrateira é a inicialização ritualística de qual delas eu deveria ter chorado? Em qual delas eu chorei?
conforto. Se existisse disposição em meu risório ou apenas — As crianças guardam a mensagem. – continuou
uma alquimia forte o suficiente que me fizesse esquecer, isso como quem não esperava resposta.
já seria motivo o bastante para despertar o meu mais sincero — Há sopa na caçarola e ervas escaldadas na cal-
sorriso. Assim como quem traz o mantimento, responsável deira, para um banho. – Avisei.
por todos os inquilinos do nutrimento, Ibu recobre o meu — Então sabia que eu viria.
chão. Apesar de não conseguir manter de pé a firmeza de que Consenti.
não há com o que me preocupar, certamente não me torce Em uma de minhas andanças na Calvare, deparei-
a necessidade de perguntas. Se voltara, então bendito seja. -me com um grupo curioso sentado em círculo entre quatro
Jamais voltaria de mãos vazias. ruas crucifixas, como se esperassem certeiramente naquele
— Deparei-me com mais um dos meus sonhos, ponto em comum a aparição de algo jamais visto. Ora, jamais
tenho tentado pronunciá-los desde então – respondi, es- visto por mim. O declarado dono da gira parecia ter uma fa-
pontaneamente, numa tentativa de omitir as minhas reais miliaridade reconfortante com todos os presentes que des-
atribulações. — Mais uma vez, uma série de crianças com for- pertou a minha curiosidade de tal forma que me fez perder
ça inexplicável e capaz de me carregar vem até mim e me a noção de, em contrapartida, ser observada por ele. Até que
erguem até me despejar num vão de terra. Começam a me fui convidada ao centro. O moço segurou a minha mão, pou-
cobrir pouco a pouco com as próprias mãos enquanto can- sou os olhos cerrados nos meus e concretizou o prenúncio de
tam numa língua que jamais ouvi – continuo. – Mas sei que um esplendor jamais visto. À época, nem sequer acreditava
conheço. As conheço. em tal sentido, tampouco achava possível habitar o desco-
— Você já chorou o suficiente? nhecido. O tempo se cobre de fazer jus às peculiaridades ir-
Recebo o questionamento com surpresa. De todas racionais que preenchem a vida. Com penas brancas.
as respostas que já esperei, não achei que recobrariam o meu
luto. Não ele. Especialmente ele. Por mais que tivéssemos -
perdido o costume de contar os dias, a necessidade de pon-
tuar horas, ou demarcar anos, sei que essa lembrança há de — Shea, se encarregue de macerar as ervas dispos-
me acompanhar pelo tempo que me resta. O tempo que for tas no agdá. – ouvi e segui sem precisar reconhecer quem
necessário. Se contássemos luas, já teriam se passado 913 dissera. Naquele momento, tantas pessoas preenchiam o

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espaço que de algumas eu nem sequer conhecia o nome. O clamando pulsão de fogo.
nascimento de uma criança se tornou a maior das raridades A proximidade que concedemos um ao outro nes-
desde o fim da Calvare, nem sequer presenciamos, só ouvi- se momento não foi solicitada ou exigida, nem sequer co-
mos falar. Todos os inquilinos das redondezas estão presen- municada ou organizada, o sentido de importância dado ao
tes, seja para o auxílio na obtenção de materiais ou suportes nascimento é o que nos mantêm aqui. Envolver-nos uns aos
necessários para os genitores, seja para a condução de rituais outros, com o cuidado que o início do fim nos configurou,
de fortalecimento e cura, ou simplesmente para regozijar-se reacende as chamas. As cinzas que recobrem os conflitos e
com a vida. repensam as contendas são mantidas em silêncio, num canto
Quando tudo com o que nos deparamos, tudo o que vazio um pote de madeira com sua tampa rachada e guizos
nos rodeia, tudo o que nos preenche, tudo o que nos atra- em correia coletam faíscas. As palavras envolvem os proble-
vessa, tudo o que nos toca simplesmente desaparece, perde mas. Como o mel inundando em água e o azeite que unta as
a potência, a energia vital, uma grande parte de nós padece. feridas.
E, por mais que, por muito tempo, fosse perceptível o decrés- Acontece de me perguntar, hora ou outra, qual é a
cimo gradual do valor que atribuíamos à vida; por mais que minha função nessa roda. Sei que não posso parar de girar,
as nossas configurações humanas e intrínsecas se encarre- e nem tenho parado, há muito o que fazer e realmente faço.
gassem de gotejar avisos e de inundar pedidos de socorro; Mas a que devo a visita? Como o mensageiro que está por
por mais que a familiaridade com a perda fosse herdada e vir e que rememora todas as suas instâncias e reconecta as
estivesse fora do nosso controle, o processo de esquecimen- vibrações outras para encontrar o momento exato do fecun-
to enquanto crescíamos tomou conta de omitir os anseios a do, a que devo a visita? Já não tenho chorado e se ainda há
vida. lágrima que percorra a minha face, não fará mais do que as
Enquanto maceramos as ervas e somos preenchi- tantas outras que um dia foram. Será pressuposto o começo?
dos pelas fragrâncias do patchouli, é possível observar in- Se longas penas de pavão povoassem a minha
quilinos do nutrimento prepararem a refeição, inquilinos crosta superior e no meu dorso pendurassem fios de palha,
da conciliação jogarem conchas cauri ao alto para garantir por quantas luas eu dançaria dentre as matas? E se eu fos-
a paz e a concentração no novo trajeto que o espírito está se agora mesmo, num ato de repentino desespero, cobrisse
por fazer, inquilinas da memória se encarregarem de todo o em mim ejé, atasse folhas e seiva, se eu saísse sem nenhuma
cuidado com o parto, o conforto dos genitores e as responsa- certeza por dentro ali, até o profundo, o inóspito, o que ar-
bilidades com a chegada, enquanto os inquilinos da conexão, rebatou o mundo e revelou o vazio, até o mais desmedido de
protetores responsáveis pelo amadurecimento das novas todos os desafios, caminharia sem fim? Continuo o percurso,
vidas com o proposto lar, rodeiam os genitores e riscam de agora, quem sabe, pelo menos não reste mais ao que me atar,
vermelho o chão como chamado de rito, canto de incêndio, o que colher, costuro aos solavancos e embalo essa jornada

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em desdém. Se tudo o que acreditava me levou a isso, trans-
formarei o inexistente e farei rebuliço em pulos e rastejos.
São irreconhecíveis obstáculos, às vezes aparecem de frente,
outrora do seu lado, mas o tropeço te levou ao vão, sete pal-
mas abaixo, a cobriu de terra, deu as mãos a raiz e disse:
— Ela nasceu.

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