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Mas quando uma traição dilacera Ara, Max e Tisaanah, eles são
empurrados para um conflito ainda mais sangrento. Tisaanah deve
apostar no poder de Reshaye para reivindicar uma vitória quase
impossível. E Max, forçado à liderança, deve viver tudo o que ele
esperava esquecer: seu passado, e sua própria magia misteriosa.
O ar atingiu meu peito de uma vez só. Meus olhos se abriram para
um poço de escuridão. O suor grudava no meu cabelo e o pescoço e nos
lençóis ásperos na minha pele. O sangue correndo em meus ouvidos
abafava os sons do navio – a madeira rangendo, o oceano agitado, a
respiração constante dos passageiros adormecidos ao meu redor.
Algo está vindo.
O sussurro circulou minha mente, inundando-me com pânico sem
direção. Toda vez que eu piscava, as memórias de Reshaye me assaltavam
– um lampejo de cabelo dourado, um quarto branco, e a sensação
avassaladora de que algo invisível surgia logo após o horizonte,
estendendo a mão para mim.
Para nós.
Lentamente, eu me sentei. Levantando-me, canalizei para Reshaye
minha calma, ou pelo menos, tanto quanto pude forçar. Tive que me
mover com muito, muito cuidado para não acordar ninguém. O navio era
grande, mas comportava tantos passageiros que tivemos que abrir mão de
camas formais em favor de colchonetes, praticamente ombro a ombro. A
propriedade de Esmaris Mikov, afinal, na verdade era mais como uma
cidade. E aquela cidade abrigava quase mil escravos – soldados, criados e
criadas, treinadores de cavalos e fazendeiros, artesãos e cozinheiros. E
dançarinos, claro. Como eu já fui.
Alguns escolheram ficar em Threll, seja para se reunir com familiares
ou permanecer na propriedade Mikov, agora formalmente sob a liderança
das Ordens. Mas a maioria veio conosco, para Ara. Um país onde eles
poderiam ser livres. Até porque agora era o país que segurava minha
coleira.
Com o pensamento, Reshaye deslizou no fundo da minha mente.
Mesmo aquele pequeno movimento foi o suficiente para me deixar tensa.
Olhei para baixo, procurando um caminho claro. Serel roncava
baixinho ao meu lado e, mesmo agora, mais de uma semana depois,
quando olhava para ele, senti uma estranha pontada de descrença no
peito. De vez em quando eu tinha que resistir ao impulso de agarrá-lo só
para ter certeza de que ele era real.
Há muito tempo eu havia parado de acreditar em deuses. Eu já vivi
minha vida sob o controle de tantos homens mortais – não me traz
conforto pensar em imortais puxando as cordas também. Mas se havia
algo que parecia uma intervenção divina, era que meu amigo estava ao
meu lado novamente.
O saco de dormir do meu outro lado estava vazio.
Andei na ponta dos pés sobre os corpos adormecidos e subi as
escadas de madeira rangentes. Uma parede de ar frio me cumprimentou
no convés, o céu se abrindo sobre mim como um cobertor de veludo. Eu
meio que tropecei no parapeito e me inclinei. Uma rajada de vento esfriou
o suor da minha pele, mas meu coração ainda estava acelerado.
Foi um sonho, sussurrei para Reshaye. Você está seguro. Não é real.
Um silvo, acariciando meus pensamentos.
É sempre real. De uma forma ou de outra. Este mundo ou no próximo. Aqui,
ou o que está por baixo. Uma respiração ofegante fez minha nuca se arrepiar.
E eu podia sentir a inquietação de Reshaye, seu medo, enquanto meus
olhos se erguiam no horizonte.
Algo…
Meu olhar se demorou na divisão entre os mundos onde o céu
encontrava o mar. O interesse de Reshaye foi para lá, alcançando a
distância, desejando, procurando.
Eu me inclinei ainda mais sobre o navio.
Eu nem sabia o que estava procurando. Mas era como se algo
estivesse me puxando para frente, algo que, se eu conseguisse ir longe o
suficiente, seria capaz de ver...
Uma mão me puxou para longe. Eu tropecei, deixando escapar um
pequeno grunhido quando minhas costas bateram em uma forma familiar
e um par de braços me envolveu.
— Frio demais para nadar — uma voz murmurou, tão perto da ponta
da minha orelha que arrepios de um tipo totalmente diferente surgiram na
minha pele. Foi pontuado por um roçar agonizantemente breve de lábios.
Reshaye silenciosamente se esgueirou para o fundo da minha mente.
— Eu não ia cair.
— Prefiro não arriscar. Se bem me lembro, você não é uma ótima
nadadora.
— Tsc. — Corri meu dedo pelas costelas do meu captor, e assim como
eu sabia que ele faria, ele soltou uma risada mal abafada e me soltou.
Eu me virei para ver Max me dando um meio sorriso conciso que
parecia estar tentando ficar irritado e falhando. Lado esquerdo primeiro,
claro.
Era o tipo de sorriso que eu devolvia sem pensar.
— Você abusa do poder que eu confiei a você explorando minhas
fraquezas assim — ele disse.
Dei de ombros.
— Não se pode esperar que eu resista a todas as tentações.
Passamos uma semana em constante e agonizante proximidade, mas
mal nos tocamos. Afinal, não tínhamos privacidade para mais nada,
embora eu nunca admitisse em voz alta a quantidade embaraçosa de
tempo que minha mente agora gastava pensando em todas as coisas que
faríamos depois que estivéssemos sozinhos.
Minha orelha ainda latejava de calor. Eu dei a ele um sorriso
malicioso, pronto para outra réplica, mas seu olhar ficou sério e
preocupado.
— Pesadelos?— ele disse, baixinho.
— Eles parecem muito reais.
— Eles parecem.
Claro, Max, de todas as pessoas, saberia.
Ele estendeu a mão e eu arqueei minhas sobrancelhas.
— O que?
Ele zombou.
— Por favor, Tisaanah.
Havia uma parte de mim que não queria mostrar a ele – não queria
dar a ele mais uma coisa com que se preocupar, especialmente quando eu
sabia o quanto ele estava sacrificando para estar aqui comigo. Coloquei
minha mão na dele, com a palma para cima, e juntos olhamos para ela.
As veias do meu pulso e antebraço, antes pouco visíveis sob as
manchas pálidas da minha pele albina, escureceram quase até o preto.
A sobrancelha de Max franziu.
— Já há tanto sobre Reshaye que não entendemos — murmurei. —
Talvez este seja apenas outro pedaço desconhecido.
— Não gosto de nada desconhecido.
Eu quase ri. Muito ruim. Porque estamos cercados por ele.
Seu olhar subiu para encontrar o meu, e as palavras morreram na
minha garganta. Seus olhos eram rígidos e brilhantes sob o luar. Eles eram
o último lembrete do que a coisa que espreitava dentro de mim era capaz.
Eu ainda podia imaginar vividamente aquelas pálpebras translúcidas
deslizando para trás, revelando um olhar escuro e determinado, e seu
corpo se desfazendo em chamas.
Lindo. Aterrorizante.
Olhei para minha mão mais uma vez. Então dei de ombros e deixei
cair.
— Essa deveria ser a menor das nossas preocupações, de qualquer
maneira — eu disse, enquanto voltava meu olhar para o mar. Em direção a
Ara.
Eu não sabia o que nos esperava lá. Depois que deixamos a
propriedade de Mikov, por alguns dias felizes, o ápice da vitória abafou
todo o resto. Mas então os pesadelos ficaram mais vívidos, e as margens de
Ara se aproximaram, e eu senti as correntes das Ordens se apertando.
Eu tinha feito um acordo, afinal. As Ordens me deram o poder que eu
precisava para derrubar os lordes Threllianos e salvar aqueles que deixei
para trás. Mas, em troca, vendi-me de volta à escravidão. Exceto que agora,
eu usaria a morte, em vez de toques leves e palavras bonitas.
Um nó se formou em meu estômago ao pensar nisso. As lembranças
de Max sobre a destruição de Sarlazai ainda assombravam minhas
pálpebras. Eu não repetiria esse tipo de devastação.
— Acho que tenho a capacidade mental de me preocupar igualmente
com tudo isso, pessoalmente — Max murmurou, e coloquei minha mão
sobre a dele. Seus dedos se reorganizaram ao redor dos meus
instintivamente, quentes e familiares.
— O que você acha que vamos encontrar? Quando voltarmos?
Ele ficou em silêncio por um longo momento.
— Acho que não faz sentido — disse ele, por fim. — Acho que Nura
tem estado muito quieta. Acho que o reinado de Sesri é uma estranha
aposta para as Ordens escolherem. E acho que estão desesperados, e isso é
o que mais me assusta, porque não sei por quê. Portanto, não sei para o
que vamos voltar em casa, mas sei que não gosto disso.
Quando voltarmos, Nura me disse, espero que você esteja pronta para lutar
como o diabo.
Eu não tinha escolha a não ser estar pronta. Eu estava cercada por
lembretes de tudo o que dependia de mim. Oito anos atrás, minha mãe me
deu um beijo na testa e me mandou, sua única filha, para um futuro
hediondo e incerto. Foi tudo para que eu pudesse ter uma chance – apenas
uma chance de sobreviver, de viver. E esta era minha única oportunidade
de fazer minha vida valer a pena por todas as que eu tinha visto extintas.
Não haveria mais garotinhas arrancadas de suas mães durante a noite.
Não mais mães trabalhando até a morte nas minas.
Não haveria sacrifício grande demais por isso.
Meu olhar se ergueu para Max, para seu olhar distante. Culpa e afeto
emaranhados em meu peito, cada um alimentando o outro.
Max já havia feito tantos sacrifícios, mais do que qualquer um
deveria ter que sofrer.
— Eu entenderia — eu disse, baixinho.
Seus olhos se voltaram para mim.
— Hum?
— Eu entenderia se você não pudesse fazer isso. Se você não puder
estar em outra guerra. Eu entenderia.
Uma sombra atravessou seu rosto, como se algo doloroso o tivesse
atravessado e depois se suavizado.
— Se você pode fazer isso, eu posso fazer isso. — Sua mão levantou
para acariciar minha bochecha, então ele disse, mais suavemente — Eu não
me importo com o que estamos entrando. Você não vai fazer isso sozinha.
Deuses. Meu olhar escorregou para o oceano, porque de repente, a
visão dele – a visão do jeito que ele olhava para mim – era muito
avassaladora. E por um momento, ele fez tudo parecer superável.
Mas então a voz de Reshaye se desenrolou em minha mente como
um fio de fumaça na escuridão.
Ele está certo, sussurrou. Você nunca estará sozinha.
Houve uma época em que a visão das Torres era reconfortante para
mim. Além de reconfortante, na verdade – era inspiradora. Fiquei
impressionado com sua força, sua beleza, a estabilidade incessante que
representavam. Quão apropriado, eu pensava, que elas fossem visíveis por
tantos quilômetros. Elas eram um farol chamando pela terra e pelo mar,
sinalizando a verdade constante. Assim como as próprias Ordens.
Eu nunca havia acreditado em nada com uma convicção tão
inabalável.
Eu nunca faria novamente.
Agora, eu franzia a testa enquanto observava as Torres aparecerem.
Ainda estávamos a várias horas de distância da costa, mas elas foram o
primeiro pedaço de Ara a aparecer, duas colunas de luz subindo no céu e
desaparecendo na névoa nebulosa. Os Threllianos engasgaram, sorriram e
apontaram.
Quase pude ver outra imagem sobreposta a esta. A imagem de
Tisaanah, antes de conhecê-la, agarrada à amurada de um navio
exatamente como este, com as costas destruídas e o corpo ardendo em
febre, totalmente sozinha. Ela provavelmente olhou para esta mesma visão
e foi dominada pelo alívio – alívio – porque ela estava tão certa de que as
Ordens salvariam a todos nós. Em vez disso, eles nos despojariam até que
não houvesse mais nada para levar.
Onde antes eu via força e certeza, agora via monumentos grotescos
de promessas quebradas. Dois dedos do meio levantados para o céu.
Bem, foda-se eles também.
Ela estava ao lado de Serel. Ele olhava para o horizonte com a mesma
esperança dos outros. Mas o olhar de Tisaanah era um pouco mais duro,
um pouco mais frio. Havia uma pequena curva séria no canto de sua boca.
Eu me perguntei se ela estava pensando em um plano. Tisaanah
amava planos.
Eu? Eu ansiava pela certeza de um fator conhecido e, no entanto, agia
quase inteiramente por impulso. Meus impulsos estavam gritando comigo
agora, embora para fazer o quê, eu não tinha certeza.
— Estou ansioso para sair deste navio — Sammerin murmurou. Ele
se apoiou na amurada com elegante descuido, embora eu tivesse quase
certeza de que ele estava tentando ativamente não vomitar. — Terra sólida
parece... bom.
— Não tenho certeza se será bom o suficiente para compensar o que
quer que esteja esperando por nós quando chegarmos lá.
— Hum. — Sammerin fez um ruído evasivo. Mas ele respirou fundo
pelo cachimbo e soltou o ar entre os dentes, lançando fumaça ao vento. Ele
só fumava quando estava nervoso. Essa respiração disse mais do que suas
palavras jamais diriam.
Eu gostaria de ser tão bom em esconder minha ansiedade. Por mais
que eu desprezasse as viagens marítimas, havia um certo apelo ao tempo
que passávamos aqui, suspensos neste navio. Eu não precisava entender
Thereni para entender a esperança e o entusiasmo dos Threllianos. E por
alguns dias, foi fácil se perder nisso também – especialmente enquanto eu
assistia Tisaanah. Ela olhava para Serel como se não tivesse certeza de que
ele era real. Havia um deleite eufórico em suas interações, como se ambos
estivessem emocionados por se verem novamente.
Era agradável. Fazia todo o resto parecer como se tivesse valido a
pena. Porque qualquer coisa teria valido a pena para vê-la assim, vê-la
feliz.
Mesmo que eu pudesse sentir a sombra se aproximando.
Olhei para Nura, demorando-se perto de Eslyn e Ariadnea, que
pareciam abjetamente miseráveis. Syrizen podem ser inerentemente
enervante – aquele olhar sem olhos apenas corta você – mas achei o
silêncio de Nura infinitamente mais agourento. Ela mal tinha falado
durante esta viagem. E, no entanto, eu a conhecia bem o suficiente para ler
as duras linhas de antecipação na maneira como ela olhava para Ara todos
os dias.
— Você vai lutar? — Sammerin perguntou. — Na guerra de Sesri,
com Tisaanah?
— Eu certamente não vou deixá-la lutar sozinha.
Minha resposta foi fácil, rápida. Ainda assim, seria mentira dizer que
a ideia não fez minhas mãos suarem. Uma coisa era acabar com os
traficantes de escravos. Outro era levantar uma arma contra pessoas que
por acaso seguiam um líder diferente do meu. A última guerra deixou
marcas suficientes em mim. Eu sabia muito bem quão alto era o preço, e
tudo por tão pouco.
— Eu vou ficar com ela — eu disse, com firmeza, como se fosse para
mim mesmo. — Mas isso é tudo. É sobre ela, não sobre eles.
Sammerin soltou outra baforada de fumaça. A Guerra de Ryvenai
também o destruiu, mesmo que ele fosse melhor em esconder as cicatrizes
do que eu jamais seria. Ele havia ficado mais quieto nos últimos dias. Era
um silêncio diferente do habitual, carregado não de consideração, mas de
nervosismo.
— Sabe — eu disse — tenho certeza de que poderíamos encontrar
outra pessoa. Se você quiser voltar ao seu consultório quando voltarmos.
Eu disse isso casualmente, mas Sammerin me deu um olhar que
cortou meu descuido forçado.
— Você não poderia encontrar ninguém tão bom. — Ele deu a
Tisaanah um breve olhar, um olhar sombrio o suficiente para que eu
soubesse que ele não estava olhando para ela, mas para o que se escondia
dentro dela. — E eu não confio em mais ninguém para controlar essa coisa.
Mesmo que eu espere que não chegue a isso.
Um nó se formou na minha garganta. Eu odiava estar aliviado.
Porque também não sabia se confiava em mais alguém para fazer o que
Sammerin podia. A força de sua magia – domínio da carne – fez dele um
dos raros indivíduos que poderiam forçar Tisaanah a se acalmar se
Reshaye ficasse fora de controle. E a força de seu caráter fez dele a única
pessoa no mundo em quem eu confiava para fazer isso.
Ele não estava lá, no dia em que Nura forçou minha mente a se abrir
e dizimou uma cidade inteira. E ele não estava lá no dia em que Reshaye
usou minhas mãos para assassinar minha família.
E mesmo que ele nunca dissesse isso em voz alta, eu sabia que ele
carregava esse peso.
Não havia mais nada a dizer. Então, em vez disso, dei um tapinha no
ombro dele e voltei para o mar, observando as Torres se aproximarem
cada vez mais e sentindo suas sombras ficarem mais frias.
— Estou tão feliz em ver que vocês chegaram aqui com segurança,
apesar da... emoção. Aparentemente vocês não receberam nossas cartas no
mar. Sente. Coma. Você deve estar faminto.
Zeryth ficou na cabeceira da mesa e gesticulou para baixo em seu
comprimento. Travessas cheias de comida estavam arranjadas
artisticamente no centro, frango e peixe, arroz e pães, frutas em cubos com
carne vermelha e úmida brilhando sob a luz das velas. A mesa poderia
facilmente acomodar trinta, mas nós cinco estávamos agrupados em uma
extremidade. Perto do outro, Tare, o conselheiro Valtain de Sesri, estava
sentado com os olhos baixos. E na cabeça, Zeryth se levantou e sorriu para
nós com charme fácil.
Zeryth. Zeryth estava lá, no mesmo lugar que meu pai costumava
sentar, na sala de jantar principal da casa da minha família.
Zeryth Aldris, usando uma coroa na cabeça.
Eu estava tão furioso que mal conseguia falar.
— Porque estamos aqui? — Eu exigi.
Mas minhas palavras foram cortadas em duas pelo som do ar se
partindo. Três borrões prateados passaram zunindo pela minha orelha, tão
rápido que senti meu cabelo farfalhar.
— Sua cobra — cuspiu Nura.
Em uma fração de segundo, Zeryth estava encostado na mesa,
esfregando o pescoço e olhando por cima do ombro – para as três facas de
arremesso agora embutidas no papel de parede atrás dele.
Ao meu lado, Nura estava rígida, os olhos gelados de raiva.
— Bem-vinda de volta, minha querida Segunda — Zeryth disse,
docemente.
— Você não tem vergonha.
— Ao contrário de... quem, você? Quem não esperou trinta segundos
antes de sua primeira tentativa de assassinato?
Ela errou de propósito. Eu gostaria que ela não tivesse. Eu ainda
estava sem palavras. Isso era raro.
— Você tem muitas coisas para explicar, Zeryth — Tisaanah disse,
baixinho, mas com um tom mortal em sua voz, e Zeryth se endireitou
enquanto sorria para nós.
— Eu realmente tenho. Sentem-se e conversaremos.
Sentam-se. Engraçado, como de tudo, essa palavra, foi o que fez uma
risada amarga escapar por entre meus dentes.
O sorriso de Zeryth se transformou em gelo.
— Algo é divertido?
— Zeryth Aldris acabou de me convidar para jantar em minha própria
casa de infância, com uma coroa empoleirada na cabeça. Divertido não é o
termo que eu usaria.
Eu não percebi que estava inclinado para frente até que senti minhas
palmas pressionadas contra o mogno da mesa. Sob meu polegar esquerdo,
pude sentir um arranhão na superfície. Variaslus havia feito essa marca,
cerca de quinze anos atrás, quando rabiscava um pergaminho muito fino
com a ponta de sua caneta.
E agora Zeryth está sentado lá, me dizendo para sentar.
— Onde está Sesri? — Sammerin perguntou.
— Por que estamos aqui? — Eu adicionei. Porque ainda assim, apesar
de tudo, era a única pergunta que eu sempre voltava.
Mas eu não esperava a absoluta falta de hesitação, a total indiferença,
quando Zeryth disse:
— A rainha Sesri está morta. — Ele deu uma mordida no bife,
mastigou ruidosamente. — Comam. Não desperdice tudo isso.
Todos nós sentamos lá em um silêncio atordoado. Cada par de olhos
olhava para Tare, que parecia afundar em sua cadeira, olhando para seu
prato vazio, inexpressivo.
— Acidente a cavalo — acrescentou Zeryth. — Foi horrível.
— Acidente — Sammerin repetiu, secamente.
Zeryth ergueu uma sobrancelha, então largou o garfo e continuou.
— Sesri depositava muita confiança nas Ordens. Tare, afinal, era seu
conselheiro de maior confiança. — Zeryth gesticulou para o Valtain ao
lado dele, embora o olhar de Tare permanecesse obedientemente abaixado.
— Obviamente, Sesri não tinha herdeiros e provavelmente não teria por
muito tempo, considerando sua idade. Assim, antes de sua morte, ela
promulgou um decreto confiando a Coroa ao Arquicomandante como
regente, no caso de sua morte. Por isso…
Zeryth enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma folha de papel
pergaminho dobrado. Ele o alisou sobre a mesa e o deslizou em nossa
direção. Estiquei o pescoço para lê-lo.
Por Decreto da Rainha Sesri, primeira de seu nome, ela sem sucessor, eu
declaro que no evento prematuro de minha morte...
Eu folheei o resto, vários parágrafos de verbosidade sinuosa. Até
chegar ao fim, a parte importante:
…a coroa passará para o Arquicomandante da Ordem da Meia-Noite e da
Ordem do Amanhecer, como aquele que está mais comprometido com Ara e mais
qualificado para o papel.
E ali, embaixo, estava a assinatura de Sesri.
— Mas é claro... — Sem olhar para cima, eu podia ouvir o sorriso
presunçoso e sarcástico na voz de Zeryth. — Nada disso é uma surpresa
para a minha querida Segunda. Ela não te contou?
A percepção caiu sobre mim como uma sombra fria.
Tudo isso para quê? Pelo trono de uma garota de treze anos? Eu havia
perguntado isso a Nura apenas algumas semanas atrás, quando estávamos
viajando para Threll. Agora, tudo se encaixou. Eles – Zeryth e Nura –
estavam usando Sesri. Usando-a para substituir os Lordes por outros mais
favoráveis à sua causa. Usando-a para se tornar tão terrivelmente
impopular que qualquer alternativa seria bem-vinda de braços abertos.
Nura não estava atirando facas em Zeryth porque ele havia roubado
uma coroa. Ela estava atirando facas nele porque ele fez isso sem ela.
Minha cabeça estalou. Tisaanah estava dando a Nura um olhar
penetrante, mas os olhos de Nura ainda não olhavam para nada além de
Zeryth, qualquer reação escondida sob camadas de gelo.
— Você ainda não respondeu — eu resmunguei — Por que nós...
— Se você tivesse um pouco de paciência, Maxantarius, você me
ouviria explicar que estamos aqui porque ainda há muito trabalho a fazer.
Ninguém vai comer? Não? — Ele soltou um suspiro e se levantou, então
pegou um pedaço de pergaminho enrolado no aparador atrás dele,
empurrou seu lugar para o lado com um floreio dramático e desenrolou o
tecido sobre a mesa. Era um mapa de Ara. A tinta vermelha marcava
várias cidades ao longo dela, e o maior círculo vermelho de todos ficava ao
redor da Capital.
— Como todos vocês viram — Zeryth disse — Sesri declarou o
Arquicomandante – eu – como o herdeiro legítimo da Coroa no caso de sua
morte. Mas, como seria de esperar, muitos dos primos de Sesri não estão
especialmente ansiosos para aceitar a verdade sobre o assunto.
Particularmente Atrick Aviness. Eu vim para o norte logo após o anúncio
para solidificar minha posição com os nobres Ryvenai e reunir tropas leais.
— Seu olhar se voltou para mim. — Todos nós sabemos que Korvius, é
claro, é o centro militar do norte. Sua tia Lysara estava muito disposta a
hospedar o novo rei, especialmente depois que ela descobriu que você é
um aliado.
— Lysara — repeti.
É claro. Eu não duvidaria que minha tia miserável hospedasse
Zeryth. Ainda assim, havia... era decepção? Por um segundo, havia apenas
uma parte de mim que estava se perguntando...
— Certamente você não pensou que Brayan tinha me convidado —
Zeryth disse.
Não. Era um pensamento ridículo.
— Ele não teria feito isso.
O nariz de Zeryth enrugou.
— Não. Ele não faria isso.
Pelo que eu sabia, meu irmão mais velho havia saído de Ara por
quase dez anos. Todos muito ansiosos para deixar a propriedade aos
cuidados de nossa tia e ir passear por Besrith. Não que eu pudesse culpá-
lo.
— De qualquer forma. — Zeryth limpou a garganta, a voz ficando
amarga. — Admito que foi um erro deixar o Palácio tão cedo. Subestimei a
lealdade que alguns na Capital teriam em relação à linhagem real. As
forças de Aviness assumiram o controle do Palácio enquanto eu estava
fora. Apenas uma pedra de tropeço, é claro. Dados nossos recursos
superiores.
Seu olhar caiu para Tisaanah, e eu cerrei os dentes. Ela o encarou com
um olhar frio.
— Você sabia o que nos encontraria em Mikov — ela disse
calmamente. — Você lutou com Ahzeen Mikov. Você sabia que ele estava
zangado com as Ordens. Você sabia que aquele convite para festa era uma
armadilha. E você não nos disse nada disso. Você esperava que alguns de
nós não voltassem vivos? Ou foi apenas algo para nos manter ocupados,
enquanto você veio a Ara para roubar uma coroa?
— Aceitei o convite pelos contatos. Além disso, eu tinha muita fé em
suas habilidades. Com razão, parece. Ouvi algumas histórias incríveis
sobre o que aconteceu naquela noite. — Seus olhos se voltaram para mim.
— Coisas muito interessantes, na verdade.
— E depois de tudo isso — disse Tisaanah — você espera que
tomemos a Capital e lhe demos seu trono roubado.
Eu praticamente podia ver as engrenagens girando em sua cabeça.
— Eu me oponho a essa descrição — Zeryth disse, escovando a coroa
em sua testa. Parecia se encaixar estranhamente em sua cabeça, como se ele
não se sentisse totalmente confortável em usá-la. — Mas sim. É claro que
devemos derrotar os rebeldes que desafiam a linha legítima de sucessão.
— Rebeldes? — Nura bufou. — Você faz parecer que estamos falando
de um bando de milicianos esfarrapados. Atrick Aviness tem um dos
melhores exércitos de Ara, talvez até do mundo. E vejo pelo menos cinco
outras casas antigas naquele seu mapa.
Ela estava certa. Alguns dos distritos mais antigos e poderosos de
Ara estavam entre os marcados em vermelho. Não foi nenhuma surpresa
para mim que essas seriam as famílias a se oporem mais fortemente ao
reinado de Zeryth. Para alguns, a perda de uma linhagem real significava a
perda de sua própria reivindicação de poder. Mas mesmo além disso,
muitos se oporiam apenas por princípios. Zeryth ganhou grande poder
dentro das Ordens, sim, mas ele veio do nada. Para a nobreza Aran, um
trono mantido por um bastardo sem nome seria visto como uma ameaça
ao seu próprio modo de vida.
— Se você está sugerindo que tomemos a Capital de volta agora — eu
disse — então estamos olhando para um banho de sangue, não importa...
quanto poder nós temos. — Eu não perdi o prazer no olhar de Zeryth em
Tisaanah. Ou em mim.
— E como você faria isso?
Fiquei propositadamente em silêncio. Eu tinha uma resposta, claro.
Mas eu não estava prestes a aconselhar Zeryth Aldris sobre a melhor
maneira de conquistar Ara.
Em vez disso, Nura falou.
— Se a Capital estiver controlada apenas pelo exército de Aviness,
então talvez você tenha uma chance de recuperá-la facilmente. Mas isso
significaria tirar, no mínimo, as famílias Gridot, Lishan, Varnille e
Archerath de seu pool de aliados. — Ela apontou para cinco cidades no
mapa. — Eles têm exércitos fortes e conexões mais profundas com o
sangue antigo. Sem eles, as forças de Aviness desmoronam.
Zeryth assentiu.
— Eu também acho. E assim, essa será a nossa abordagem. Tisaanah
vai me ajudar a derrubar Varnille e Archerath do poder. E você, Max,
levará Gridot, Lishan e algumas outras dessas pequenas fortalezas para o
oeste.
Tisaanah e eu trocamos um rápido olhar.
— Absolutamente não — eu disse.
— Se você ganhar essas pessoas como seus aliados — disse Tisaanah
— você será mais forte do que se simplesmente as conquistasse. Você
absorve a força deles em vez de destruí-la.
Eu poderia dizer que até mesmo Tisaanah entendeu que o que ela
estava sugerindo era irreal. Mas eu conhecia a classe alta de Ara bem o
suficiente para saber que era mais do que irreal – era uma completa
loucura. Essas famílias? Elas sacrificariam suas próprias vidas e milhares
de seus soldados antes de dobrar os joelhos para alguém como Zeryth.
Ele nos lançou um olhar que dizia que ele também sabia. Uma
percepção feia caiu sobre mim. Depois de tudo, era para isso que servia. As
manipulações das Ordens. Pacto de Sangue de Tisaanah. Esta era a guerra
que ela lutaria. A servidão que ele exigiria. Ela mataria em nome de
Zeryth.
E eu não estava prestes a sair do lado dela. Nem por um minuto.
— Estou aqui para manter Reshaye sob controle — eu disse. — Isso é
tudo. Não estou prestes a vagar pelo maldito país coletando aliados para
você.
— Vamos deixar de lado os fingimentos. Todos nesta sala sabem por
que você está aqui. E não é por causa de Reshaye. — Ele se inclinou para
frente, seu sorriso se transformando em algo mais nítido, um olhar que fez
meu sangue ferver. — Não tenho muito orgulho de dizer que você é um
grande lutador, Maxantarius, e um Portador fenomenal. Qualquer exército
ficaria honrado em tê-lo em sua frente, inclusive o meu. Mas.— Seu lábio
se curvou. — Se você pisar um único fio de cabelo fora da linha. Se você
me prejudicar. Se você olhar para mim de uma forma que eu desaprovo,
farei destes próximos cinco anos os piores da vida de Tisaanah. E eu sei a
escala de tudo o que isso implica, considerando o passado dela.
Ao meu lado, ouvi Tisaanah soltar um suspiro lento por entre os
dentes.
Minha fúria correu tão quente que queimou o interior de minhas
veias. E por um momento, considerei genuinamente a possibilidade de
matá-lo aqui e agora. Eu poderia levá-lo. E havia alguém nesta sala que me
impediria?
O olhar de Zeryth brilhou, dessa maneira particular que eu vim a
aprender significava que ele sabia exatamente o que eu estava pensando.
— Há mais uma coisa que eu gostaria de mostrar a vocês. — Ele se
abaixou e desabotoou o pulso de sua jaqueta, então puxou a manga até o
cotovelo. Ali, em seu antebraço, havia uma tatuagem. Não reconheci o
desenho, semelhante a um estragrama, mas mais retorcido e caótico, as
linhas se entrelaçando no centro do círculo e crescendo tão densas que as
formas individuais eram indistinguíveis. Circundando sua borda havia
figuras minúsculas e irregulares que pareciam ser palavras, embora não
em nenhum idioma que eu já tivesse visto antes. A tinta preta sangrou com
raiva, manchada de roxo na pele albina de Zeryth.
— Legal — eu disse, categoricamente. — Muito bonita, Zeryth. Mas
parece inflamado.
— Isto não é apenas uma tatuagem — disse ele. — É um feitiço.
Combinei meu sangue e o de Tisaanah. E liga a vida dela à minha. Se eu
morrer, ela também morrerá.
Meu coração parou de bater. Meu olhar disparou para Tisaanah,
apenas o suficiente para ver seus olhos se arregalarem.
— Impossível — eu lati.
Zeryth sorriu enquanto abaixava a manga.
— Nada é impossível, Max. As pessoas nesta sala devem saber disso
melhor do que ninguém, agora.
Impossível, uma parte de mim ainda insistia – a parte de mim que
queria desesperadamente estar certa. Isso não pode ser feito. Impossível.
Tisaanah moveu-se tão silenciosamente que eu não percebi que ela
havia dado um passo à frente até que ela estava passando por mim,
pressionando as palmas das mãos na mesa enquanto se espreguiçava em
direção a Zeryth. Seu rosto estava totalmente calmo e, no entanto, seus
olhos estavam tão brilhantes, como se algo dentro dela tivesse pegado
fogo.
— Eu assinei seu pacto — ela disse, sua voz calma e afiada. — Eu
lutarei sua guerra. Eu não tenho escolha nisso. Mas saiba que derrotei
homens mais poderosos do que você, Zeryth, e no final o desejo de poder
deles só tornou isso mais fácil.
— Não é nada pessoal — Zeryth disse. — Sou realista sobre os riscos
que enfrento. Estou me protegendo. Não finja que algum de vocês faria
algo diferente se estivesse no meu lugar.
Eu não. E é por isso que eu nunca ficaria onde ele estava.
Seus dedos roçaram a coroa, distraidamente, e um lampejo de
incerteza pensativa cruzou seu rosto.
Mas então aquele sorriso estava de volta, fácil e descuidado.
— Você sabe o que é poder? — disse ele, recostando-se na cadeira. —
Poder é sentar aqui sozinho em uma sala com quatro pessoas que querem
me matar e saber que sairei vivo.
Capitulo Seis
Tisaanah
Juntei-me a Max bem atrás da casa. Ele havia feito uma curva
acentuada para longe dos caminhos principais, desviando para uma
extensão isolada de grama alta na beira do terreno. Estava escurecendo e a
névoa pairava no ar, tornando o céu cinza e achatando as montanhas
distantes em silhuetas. A floresta de um verde profundo se estendia diante
de nós, e a casa assomava atrás.
Max parou de andar abruptamente, cabeça baixa, mãos enfiadas nos
bolsos, de frente para a linha das árvores. Ficamos ali juntos em silêncio.
— Eles não vão mandá-lo para lá — eu disse finalmente, baixinho. —
Eles vão?
— Não sei. Eles o trouxeram. Se eles estão desesperados... — Ele
limpou a garganta. — Da última vez, alguns desses soldados tinham
apenas quatorze, treze anos, perto do fim. Crianças.
Não deixei de notar a maneira como sua cabeça se virou em direção à
casa, como se fosse olhar por cima do ombro e pensar melhor. Os soldados
não foram as únicas crianças reivindicadas pela guerra.
Um piscar de olhos e suas memórias – as memórias de Reshaye – me
inundaram. Sangue, fogo e raiva, e as vidas de todas aquelas crianças
Farlione descartadas em uma noite terrível como pétalas de flores
esmagadas.
Peguei sua mão, e seus dedos se enroscaram nos meus com uma força
inesperada, como se ele fosse um navio afundando e eu fosse a única coisa
que o prendia à margem.
Ou talvez, o oposto.
— E é para isso que tudo serve — eu murmurei. — O trono de
Zeryth.
— Eu deveria ter visto isso acontecendo. — Ele fechou os olhos. —
Mas é claro que não. Eu não vi nada disso até que fosse tarde demais.
Eu sabia que ele estava falando sobre mais do que a coroa. Mais do
que a guerra. Mais do que Zeryth. Ele estava falando de mim também.
Reshaye se mexeu no fundo dos meus pensamentos. Eu estremeci.
— Não é possível — disse ele. — Uma vida não pode estar ligada a
outra assim. Ele está blefando.
Eu estava em silêncio.
Eu não duvidaria que Zeryth nos manipulasse com uma mentira. E,
no entanto, quando pensei na estranheza do que ele havia nos mostrado,
na estranha magia que senti no ar quando ele revelou... Suspeitei que não
fosse tão simples. E eu suspeitava que Max também sabia disso e não
queria admitir.
— Deve haver uma maneira de rescindir seu contrato — disse Max.
— Ouvi rumores de que existem maneiras de quebrar um Pacto de Sangue.
Se eu falar com as pessoas certas, talvez...
— Quebrar?
— Claro. Você quer ser a responsável por colocar Zeryth em um
trono?
Não. A resposta soou na minha cabeça, com firmeza. Não, eu não.
Mas em voz alta eu disse:
— Eu não. Mas eu vou.
O olhar de Max se voltou para mim. A traição nele me destruiu.
— Esse homem não merece respirar.
— Não importa.
— Não importa?
— Você acha que eu não o odeio também? Claro que sim. Ele é... ele
me fez...
Eu não conseguia nem descobrir como terminar essa declaração. Que
palavras estavam lá? Ele me deixou na escravidão uma vez, e agora ele me
arrastou de volta para ela. Ele pegou meu desejo desesperado de salvar os
indefesos e o usou para fazer de mim uma arma mortal. Agora ele tentou
controlar minha própria vida e usá-la para controlar os outros. Isso me
deixou com tanta raiva que eu não conseguia respirar.
Mas então, a imagem dos refugiados no navio passou pela minha
mente. A maneira como eles olhavam para mim – como se eu fosse sua
última esperança.
— Mas eu fiz esse pacto por uma razão — eu engasguei. — Isso não
mudou. Eu luto a guerra dele, para que eu possa lutar a minha.
— Sua guerra pelo quê? Para o ego dele?
— Quando derramei meu sangue naquele contrato, pensei que seria
para o ego de Sesri. Existe alguma diferença?
Max me deu um olhar que dizia que achava que havia um mundo de
diferença.
— Zeryth é a diferença. Reshaye é a diferença.
— Eu controlei isso — eu disse. — Eu posso fazer isso de novo. Posso
usar esse poder para tornar esta guerra menos sangrenta do que seria sem
ele.
— Você parece Nura.
As palavras me cortaram. Afastei minha mão da dele, embora já
pudesse ver o arrependimento se espalhando por seu rosto.
— O que você quer que eu diga a você? — Eu atirei de volta. — Quer
que eu diga que quero me afastar de tudo isso? Sim, Max. Claro que eu
quero. Mas há tantas pessoas que não podem ir embora. Elas ainda estão
lá, sofrendo. Garotas como eu. Você odeia Zeryth por me deixar lá, mas
está me pedindo para fazer a mesma coisa.
Algo cintilou em sua expressão.
— Isso não é o mesmo.
— Por que? Porque eles não estão na sua frente? Porque você não os
ama do jeito que você me ama? Só porque você não vê, não significa que
não esteja acontecendo, e eles são igualmente amados e importantes. É um
privilégio não fazer nada, Max. Tantas pessoas não têm esse dom.
Ele olhou para mim, mandíbula apertada, arrependimento, tristeza e
raiva se misturando em seus olhos.
— Nenhuma guerra pode ser travada com as mãos limpas — disse
ele. — Nem mesmo as que são travadas pelos motivos certos. Nem mesmo
aquelas que você ganha.
Eu sabia que ele estava certo. Nas guerras de Threll, perdi muitos de
meu próprio povo ao custo da vitória.
Mas que escolha eu tinha?
Eu me aproximei e coloquei minhas mãos em cada lado de seu rosto.
— Você não tem que lutar esta luta — eu sussurrei. — Você já deu
tanto.
A testa de Max pressionou contra a minha, seu corpo tão perto que
eu podia sentir seu calor me envolvendo. E quando ele falou de novo, toda
aquela raiva havia desaparecido, substituída apenas por uma resignação
cansada.
— Isso nunca foi uma opção, Tisaanah — ele murmurou, e me puxou
para um abraço.
Parecia que estava caindo. Em um momento, eu estava agarrada aos
meus planos e compostura, e no próximo, eu estava perdida nele. Seu
perfume de lilases e cinzas me envolveu. Eu enterrei meu rosto contra seu
pescoço, inalando-o. Eu podia sentir o leve estremecimento em sua
respiração enquanto ele lutava para não desmoronar.
Eu me afastei apenas o suficiente para virar meu rosto, os lábios
entreabertos, embora eu não soubesse o que iria sair. Mas antes que eu
pudesse falar, ele me beijou – me deu o tipo de beijo que comunicou tudo o
que não poderíamos colocar em palavras. Por segundos preciosos, nada
importava exceto por isso, a cadência de nossa respiração compartilhada, o
movimento de seus lábios, o roçar de sua língua.
Nada importava, exceto que estávamos vivos, aqui e juntos.
Nós nos separamos, mas ficamos próximos, sua testa contra a minha.
— Sinto muito — ele murmurou. — Eu só estou... estar aqui é...
Ele soava como se mal conseguisse pronunciar aquelas palavras
fragmentadas. Meu peito doía. Foi impossível perder a mudança nele no
minuto em que entramos por aquelas portas – uma dor crua e tangível,
como se ele estivesse andando sobre lâminas de barbear.
— Não vamos deixar que seja como da última vez — sussurrei. —
Vamos encontrar uma maneira.
Eu disse a mim mesma que poderia tornar isso verdade. Fiquei grata
por ele não ter falado sobre minha incerteza, embora eu saiba que ele
ouviu.
Em vez disso, ele deu um beijo no meu queixo e disse baixinho:
— Quero acreditar em você.
Capitulo Sete
Aefe
Já era tarde quando voltei para Zeryth. Seus guardas acenaram para
que eu entrasse. Eu odiava a indiferença deles. Isso significava que eles
estavam me esperando. Isso significava que Zeryth sabia que eu voltaria.
Quando a porta se abriu, Zeryth estava descansando em uma mesa
na biblioteca, parecendo dramaticamente surpreso ao me ver.
— Maxantarius. Que surpresa. — Ele sorriu e me deu uma cara de
confusão exagerada. — O final da nossa última conversa não caiu bem
para você?
— Moth Rethem — eu disse. — Ele é um novo recruta. Na divisão do
Comandante Charl. Eu o quero no meu.
— Um novo recruta? Mas por que...
— Ele vai ficar comigo ou não?
Zeryth deu de ombros.
— Certo. Duvido que Charl se importe muito de qualquer maneira.
— Então ele me lançou um olhar de soslaio. — Acho que isso significa que
você aceitou oficialmente o título que eu tão graciosamente lhe ofereci,
General Farlione.
Fez minha pele formigar, ouvir ele se referindo a mim dessa forma. E
aquele formigamento se intensificou para rastejar completamente quando
me ouvi responder:
— Sim. Aceito.
— Fico feliz em ouvir isso — Zeryth disse alegremente. Eu já estava
saindo.
No meio do corredor, parei. Nura dobrou uma esquina à minha
frente e nós dois nos encaramos em silêncio.
Por um momento, fiquei impressionado com a bizarra percepção de
que da última vez que vira Nura aqui, nesta casa, tudo em nossas vidas
tinha sido diferente. Minha família estava viva. E eu amava Nura, confiava
nela implicitamente. Agora, esse pensamento parecia uma piada cruel.
Aqui, nós dois estávamos cercados por tudo que a guerra e Reshaye
haviam tirado de nós. E só estávamos aqui por causa dela.
— O grande mistério resolvido — eu disse. — Então, tudo isso, e foi
apenas para um golpe.
Algo cintilou em sua expressão.
— É mais complicado do que isso.
— É? Porque de onde estou, parece que você está preparada para
matar milhares de pessoas pelo quê? Uma coroa? É para isso que serve a
vida de Tisaanah?
— Você diz isso como se eu não estivesse dando a ela tudo o que ela
sempre quis.
Deixei escapar um escárnio ofegante. E pensar que houve um tempo
em que admirei essa qualidade nela, sua capacidade de eliminar emoções,
sua capacidade de ser implacável. Ela sempre foi uma soldado melhor do
que eu. Levei apenas dez malditos anos para perceber o quanto isso custou
a ela.
— Não entendo você, Nura — disse eu, virando-me. — Eu não
entendo como você pode estar nesta casa e dizer isso com uma cara séria.
Eu não esperei por uma resposta. Eu já estava no meio do corredor
quando Nura gritou:
— Max. Você disse a Zeryth que lideraria?
Eu parei. Não voltei atrás. Meu silêncio foi o suficiente.
— Vai valer a pena — disse ela. — Eu prometo.
Eu quase ri. Como se as promessas de Nura ainda valessem alguma
coisa.
Pelo menos na primeira vez que vendi minha alma para as Ordens,
eu era muito jovem e estúpido para saber que estava apenas cravando uma
adaga em minhas próprias entranhas.
Desta vez, senti cada centímetro da lâmina.
Meu pai não veio sozinho. Siobhan estava com ele, assim como Klein,
o mestre Sidnee da guerra e da espionagem. Todos os três me deram
olhares estranhos quando entraram na sala para me encontrar já aqui.
Siobhan, um olhar de confusão cuidadosamente escondido. Klein, um
olhar nada oculto de puro desgosto (que, como sempre, retribuí com
prazer). E meu pai, uma pausa quase invisível com os olhos ligeiramente
estreitados. Durou menos de um segundo, mas aquela desaprovação
afundou no fundo do meu estômago como uma pedra.
Se Caduan viu alguma coisa, não demonstrou. E da mesma forma, ele
não mostrou sinais de dor, embora eu tivesse certeza de que ele estava em
agonia – a agonia de seu corpo dilacerado e a agonia de sua solidão
absoluta e repentina. Meu pai, Klein e Siobhan ofereceram suas solenes
condolências, e Caduan mal reagiu.
— Estamos profundamente tristes com o que aconteceu com a Casa
da Pedra, Caduan Iero — disse meu pai. — É a maior tragédia e nunca
permitiremos que isso aconteça com outra Casa.
Caduan mal olhou para ele.
— Você? — ele perguntou. — Você viu?
— Nós vimos — Siobhan disse, calmamente.
— Não sobrou nada.
— Não.
— Você me disse que eram humanos — murmurei. — Mas eu
pensei... isso não pode ser verdade.
Poderia?
Essa pergunta pairou no ar, pesada e pungente.
Todos nós olhamos para Caduan, esperando, mas ele olhou além de
nós, para a parede distante da sala – como se pudesse ver através dela,
para o horizonte além.
— Vocês sabiam — disse ele — que não há criaturas no mundo mais
sensíveis às circunstâncias ao seu redor do que a borboleta Atrivez?
A testa do meu pai franziu.
— Perdão?
— Elas são um tipo raro de criaturas dos lugares habitados por
feéricos que têm uma sensibilidade inerente à magia. São poucas, mas
suficientes para antecipar coisas que vão além dos sentidos típicos de um
inseto. Como resultado, elas são difíceis de matar. Elas têm uma população
explosiva em Atecco, porque poucos predadores podem pegá-las. O mais
leve e distante indício de perigo, e elas simplesmente voam para longe.
E só então aquele olhar musgoso se voltou para nós.
— Naquela manhã, todas foram embora. Milhares delas, disparando
para o céu como vapor sobre o lago. Você sabe como soam dez mil asas de
borboleta?
Ele falou tão calmamente. Mas eu olhei para os lençóis e vi que suas
mãos estavam fechadas em torno deles.
Suas palavras da noite anterior, irregulares e delirantes, passaram
pela minha memória.
Parecia chuva.
— Chuva — eu sussurrei.
E uma versão grotesca de um sorriso se contorceu em um canto de
sua boca quando ele abaixou o queixo.
— Exatamente. Foi bonito.
Eu quase podia ouvir. Imaginar.
O sorriso desapareceu.
— Não é nada parecido — disse ele — o que veio depois. Não havia
nada de bonito nisso. Milhares de soldados humanos desceram sobre
Atecco. Não os vi chegar. Eu estava na periferia da cidade, trabalhando
nos arquivos, quando ouvi os gritos, os berros. Olhei pelas janelas e já
estava acontecendo. Eles estavam por toda parte. Muitos tinham magia.
Uma breve pausa. Um músculo em sua mandíbula se contraiu.
— A maioria não escapou — disse ele, por fim. — Foram muitos.
Reuni aqueles de nós que sobraram e os trouxe até aqui. Não poderíamos
ficar e não teríamos sobrevivido por mais tempo.
— Mas os humanos são muito mais fracos do que nós — disse Klein.
— Como?
Caduan soltou um fantasma de escárnio.
— “Mais fraco.” Não é assim que a natureza funciona. Mesmo os
predadores mais fortes têm seus inimigos. E quando os números são três
para um…
— Três contra um? — Siobhan engasgou.
— Isso é uma surpresa? A expectativa de vida humana é uma fração
da nossa, sim, e talvez seus corpos sejam fisicamente mais fracos. Mas
enquanto um feérico teria sorte de produzir um ou talvez dois filhos ao
longo de quinhentos anos, os humanos se reproduzem com frequência e
facilidade. E eles também têm acesso à magia de novo. — Seus olhos
escureceram. — Nós nos sentamos aqui enquanto os humanos
conquistavam montanhas, desertos e mares, livrando alguns dos
ambientes mais inóspitos do mundo de suas forças mais perigosas. E
ainda... pensamos que somos poderosos demais para eles.
— Porque nós somos — disse Klein, enfaticamente. — A tragédia da
Casa da Pedra não se repetirá. Eu juro isso para você. Surpreenderam a
sua Casa. Mas eles não vão nos surpreender, nem a nenhuma outra.
Caduan lançou-lhe um olhar duro.
— A arrogância não é reconfortante para mim. Não sei por que você
pensou que seria.
Ele disse isso como se fosse simplesmente um fato – e talvez fosse.
Poderíamos nos consolar com nossas promessas de vingança e ação rápida.
Mas o que isso significaria para Caduan? O que isso significaria para tudo
que seu povo já havia perdido?
Nada.
Pensei em todas aquelas casas, sozinhas na chuva, reduzidas agora a
pouco mais que pilhas de tijolos frios.
— Você pode ficar aqui. — As palavras deixaram meus lábios antes
mesmo que eu soubesse que estava falando. — Pelo tempo que você
precisar. Você e a Casa da Pedra restante têm um lar aqui, se você... se você
quiser.
Minhas bochechas começaram a queimar no final dessa frase. Eu
podia sentir três pares de olhos perfurando meu rosto. Eu tinha acabado
de fazer uma oferta que não era minha para dar. A Casa de Obsidian era
firmemente separatista e, embora não estivéssemos em más relações com a
Casa da Pedra, eles também não estavam entre nossos aliados.
Evitei cuidadosamente o olhar de meu pai, encontrando apenas o de
Caduan.
Mais uma vez, parecia que ele não tinha ideia de que eu havia
cometido uma gafe. Em vez disso, o mais leve vislumbre de... algo...
cintilou por trás de sua expressão.
— Obrigado — disse ele. — Isso é muito gentil.
— É claro que você e os outros de sua família podem ficar aqui o
tempo que quiserem — disse meu pai. Pisquei surpresa – mesmo
considerando minha oferta inadequada, seria raro meu pai dar abrigo
indefinido com tanta facilidade.
— Meus parentes — Caduan repetiu, baixinho, como se para si
mesmo.
— Há outros dezoito, todos na enfermaria. A maioria ainda não está
consciente, mas você pode visitá-los assim que estiver bem o suficiente
para andar.
Caduan ficou um pouco mais pálido, a linha entre as sobrancelhas se
aprofundando.
Meu pai disse:
— Disseram-me que você está na fila para a Coroa de Pedra.
O olhar de Caduan estalou em mim, então deslizou de volta para
suas mãos.
— Décimo terceiro. Quase não estou na fila.
— Parece que isso não é mais verdade.
— Não importa quem está no trono de uma nação que não existe
mais. Fantasmas e escombros não precisam ser governados.
— Há dezoito almas nesta enfermaria que precisam de um rei mais
do que nunca.
Caduan estremeceu visivelmente, como se o título doesse.
— Nunca deveria ter sido eu — disse ele.
— Talvez não — disse meu pai. — Mas aconteceu.
Houve um longo silêncio. E quando Caduan finalmente ergueu o
queixo, quando seu olhar finalmente encontrou o meu novamente, eu o vi
endurecer com uma decisão relutante e silenciosa – do tipo que me deu um
arrepio na espinha.
— Isso é terrível.
— Tissaanah.
Meus olhos se abriram. Eu soube imediatamente que algo estava
errado. Minha mão estava a meio caminho do cabo de Il'Sahaj quando a
escuridão entrou em foco.
Uma silhueta esculpida na sombra conforme minha visão se ajustava.
Pele branca, cabelos brancos, olhos brancos, roupas brancas.
— Levante-se — disse Nura, e eu já obedeci.
— O que aconteceu?
Eu sabia, de alguma forma, antes que as palavras saíssem de seus
lábios. Havia um certo zumbido no ar, como o tipo que persiste antes do
estalo de um raio, um que atormentava a fome de Reshaye.
— Kazara atacou primeiro — disse Nura. — Eles estão à nossa porta.
Hora de mandá-los embora.
Ela disse isso como se fosse uma tarefa árdua a ser executada, como
alguém pode falar de ratos que entraram no galpão de grãos ou de uma
necessidade há muito esperada de aparar as cercas vivas. Levantei-me e
vesti o casaco militar que ela me presenteou, enfiei os pés nas botas, vesti-
me rapidamente no escuro.
Quando me juntei a Nura, ela me deu um olhar rápido que continha
apenas um pingo de incerteza. Sem tempo para reconhecer isso antes que
ela nos mandasse um estratograma para longe, e uma parede de ar frio me
atingiu.
A escuridão do quarto foi substituída pela sombra prateada das
montanhas à noite, o luar caindo sobre seus picos como néctar derramado.
Ficamos em um dos postos avançados, uma parede se espalhando em
ambas as direções. Estávamos cercados por Syrizen. Seus rostos estavam
todos voltados para o horizonte.
A princípio, a topografia da paisagem disfarçou o que eu realmente
estava olhando.
E então, de repente, entrou em foco. Eu lutei contra o desejo de
xingar.
Quantos homens eram? Mil? Dois? Eles se espalharam por entre os
cumes rochosos à distância, a cavalo e a pé, tochas vermelho-sangue
pontilhando suas linhas.
— Como diabos eles chegaram aqui tão rápido? — Nura soltou.
— Estratagramas. O abrigo das montanhas. —Anserra me lançou um
olhar avaliador. — Pelo menos temos nossa grande salvadora.
— Realmente Salvadora — uma voz familiar ronronou, e eu me virei
para ver Zeryth se aproximando, suas mãos enfiadas nos bolsos de seu
longo casaco branco e um sorriso torcendo seus lábios. E, no entanto,
quando ele se aproximou, pude ver algo fervendo sob a superfície daquela
voz suave, aquele sorriso malicioso, transformando-os em uma pantomima
insípida de sua maneira usual.
— Você sabe as coisas que coloquei aos pés de Esmee Varnille em
troca da aliança de Kazara? E é assim que ela retribui minha generosidade.
— A notícia se espalhou rapidamente — disse Anserra. — Eles
sabiam que seus exércitos partiram ontem.
— Então eles acham que eu seria estúpido o suficiente para me
apresentar como um cordeirinho para o matadouro. Eles não sabem quem
está no quarteirão do açougueiro.
Quando seu olhar caiu sobre mim novamente, todos os vestígios
daquele exterior liso haviam desaparecido, substituídos apenas por aço
esfarrapado. Algo estava diferente nele, mais áspero, mais afiado,
controlado com menos cuidado. Ele se aproximou e, quando o fez, não vi
nada além de ódio em seus olhos – olhos cercados por uma escuridão
incomum.
— Eu vi o que você fez com aqueles traficantes de escravos — ele
rosnou. — Quero que o que você fizer com eles seja pior.
Reshaye estremeceu, faminto por meu medo ou pela promessa de
sangue, ou ambos.
Olhei para os exércitos. Milhares de homens. Milhares de vidas.
— O centro de escravos tinha cinquenta homens — eu disse. — São
milhares.
Nada, comparado ao que podemos fazer Reshaye sibilou, como se
insultado por minha hesitação.
Zeryth soltou uma risada feia. E seus dedos inclinaram meu queixo
para ele, enquanto ele se inclinava perto o suficiente para me beijar.
— Não aja como se eu não soubesse exatamente do que você é capaz.
Tão perto, eu podia ver teias de aranha de veias escuras sob a pele
pálida ao redor de seus olhos.
Ele me soltou e se virou para os outros.
— Eles estão vindo pela Passagem Ervai — Zeryth disse. — Se você
derrubar os penhascos lá, poderá esmagá-los.
Esmagá-los.
Literalmente esmagá-los.
A bile subiu em minha garganta. De repente, minhas narinas foram
preenchidas com o cheiro avassalador de fumaça.
— Isso seria um desperdício — eu disse. — Se Esmee Varnille se
render a você, você leva Kazara e todos os seus exércitos. Por que você
destruiria o que seria seu?
— Esmee Varnille e as pessoas que habitam sua cidade deixaram bem
claro que não têm interesse em ser úteis para mim.
— Você está permitindo que seu rancor obscureça suas decisões —
disse Nura. — Tisaanah está certa. Você está jogando fora recursos
preciosos.
Zeryth soltou uma risada baixa.
— Nossa, Nura. E pensar, é um coração mole que ouço batendo sob
seu peito frio?
— Estes são pessoas Arans, Zeryth — ela sibilou. — As mesmas
pessoas que você está tentando liderar. Pense sobre isso.
São pessoas, Nura. A memória me atingiu rapidamente, desaparecendo
assim que chegou. As palavras de Max em Sarlazai, antes de Nura forçá-lo
a massacrar uma cidade.
E eles nunca o esqueceram Reshaye sussurrou. Ele mostrou a eles do que
era capaz. Agora, ele é lembrado. Essas mortes compraram a vitória.
— Você está questionando minha decisão, Segunda? — A boca de
Zeryth se contorceu em um sorriso de escárnio. — Eu tenho pensado sobre
isso. Eu pensava nisso toda vez que Varnille jogava minhas negociações de
volta para mim. Eu pensava nisso toda vez que ela me chamava de lixo de
sangue baixo. Derrube os penhascos. Dê-me uma vitória que choca o
mundo. — Ele enfiou a mão no bolso e colocou um frasco na mão de Eslyn.
— Vá com ela — disse ele. — E use isso para ajudar.
Eslyn franziu o cenho para sua mão.
— É...?
— Você sabe o que é — Zeryth disse, mas eu mal podia ouvi-lo, meu
sangue agora martelando em meus ouvidos.
— Isso é um erro, Zeryth.
Ele se virou para mim, a raiva finalmente explodindo.
— Não me questione. Estas são as suas ordens. E eu invoco seu Pacto,
Tisaanah.
Um suspiro áspero escapou dos meus lábios. As palavras estalaram
algo em volta da minha garganta, como uma coleira puxada de repente
esticada. Eu podia sentir a magia de Zeryth também, me alcançando,
alcançando minha mente e apertando, apertando.
— Dê-me uma vitória, Tisaanah. Dê-me uma vitória que deixe
Varnille e todos os seus amigos de sangue nobre tremendo de medo ao
meu nome. Faça de mim alguém a temer. E faça o que for preciso. Essas
são suas ordens.
Essas são suas ordens.
Essas são suas ordens.
Cada palavra era um elo de uma corrente, que penetrava em minha
pele, serrava meus pensamentos. De repente, tudo ficou nebuloso.
Zeryth se foi rapidamente, deixando-me cambaleando enquanto ele
se afastava. Com a mesma rapidez, Eslyn estava ao meu lado.
— Parece que temos nossas ordens — ela murmurou.
— Espere — eu disse. Minha cabeça latejava. — Espere, eu....
Eu não posso fazer isso.
Eu não conseguia falar as palavras em voz alta – elas ficaram presas
em algum lugar entre minha mente e meus lábios, como moscas presas no
mel.
Sim, nós podemos. Podemos fazer tudo o que ele pediu e muito mais.
Era isso que eu temia.
Humanos. Sempre com tanto medo do que são capazes.
Os soldados estavam se espalhando pela passagem, cada vez mais
rápido. Eslyn me deu um olhar que parecia de pena.
— Para o que você acha que se inscreveu?
Nura me puxou para o lado, puxando-me para perto.
— Eu sei que é difícil — disse ela. — Acredite em mim, eu sei. Mas o
que ele pede é uma vitória decisiva. Quanto mais força mostrarmos hoje,
mais cedo a guerra terminará. E quanto mais cedo você poderá lutar sua
guerra em Threll, Tisaanah. Pense nisso.
Deuses, a forma como ela racionalizou. Como se fosse uma simples
equação, uma balança a ser inclinada, um jogo a ser jogado apenas em
números.
E ainda…
Pensei nas pessoas que estavam esperando por mim e nas promessas
que fiz. Era isso? Eu teria que abrir caminho enterrando pessoas em
escombros sangrentos?
Você acha que alguma dessas pessoas se importaria com você ou seu pessoal?
Eu não tive tempo para questionar.
Eslyn me agarrou e nós duas desaparecemos no ar.
A reunião deu lugar a uma festa. Depois que o choque passou, fiquei
tão empolgada que mal conseguia pensar – uma afetação que não ajudou
em nada com as várias canecas de uísque comemorativo que bebi durante
o jantar. Atirei-me na música da banda, na dança no centro do salão. E
quando finalmente vi meu pai se levantar e se afastar - quando finalmente
fui capaz de encontrá-lo parado em um corredor silencioso, olhando para a
sombra de pedra dos túneis de Pales – corri atrás dele apenas para
diminuir a velocidade e parar alguns passos atrás, de repente
autoconsciente.
Eu já tinha motivos para desconfiar de minhas próprias palavras,
muitas vezes afiadas e rápidas demais. Fiquei ali em silêncio.
— O que foi, Aefe?
Ele não se virou. Ele estava olhando para o corredor, para a escuridão
tão profunda que não passava de uma parede preta.
— O que você está olhando?
— Os Pales. Às vezes, quando o mundo é perigoso e incerto, eu
simplesmente gosto de... olhar para eles.
Sua palma pressionou contra a parede de pedra. Algo em mim saltou
com esse pequeno e familiar gesto. Eu também faço isso! uma parte infantil
de mim queria dizer, como se quisesse se agarrar a cada fio de semelhança
entre nós.
Eu limpei minha garganta.
— É uma grande honra atendê-los. Uma grande, grande honra.
Obrigada.
Meu pai olhou para mim, e eu poderia jurar que vi um lampejo de
pena em seu olhar.
— Ao contrário do que você possa pensar, Aefe, eu acredito que você
tem... potencial. — Seu olhar caiu sobre meu antebraço exposto e a
topografia de X escuros. — Você simplesmente não consegue utilizá-lo.
— Você já pensou que as coisas poderiam ser diferentes? — Eu
perguntei, baixinho. — Você já imaginou como seria se elas fossem?
Eu me encolhi assim que falei. Como sempre, fiz uma pergunta que
não deveria e sabia que a resposta iria doer.
— Não adianta sonhar com realidades que não existem.
— Eu ainda sou sua filha. — Ergui a manga do braço direito, aquele
coberto não com X, mas com tinta e cicatrizes salientes que contavam as
histórias de meus ancestrais. — Eu uso suas histórias na minha pele assim
como elas estão no meu sangue.
— Se ao menos essa fosse a única coisa que seu sangue carregasse.
Eu vacilei. Lá estava. Assim como eu sabia que aconteceria, assim
como acontecia todas as vezes, doeu.
Mas apenas porque sempre seria verdade.
Meu pai se virou para mim. Havia uma expressão estranha em seu
rosto, algo que eu mal conseguia ler, mas era muito mais profundo do que
sua típica rejeição fria. Se eu não o conhecesse melhor, poderia ter pensado
que era afeto. Ou... arrependimento.
— Eu gostaria que as coisas não fossem como são — disse ele. — Mas
os deuses mancharam você. Você sabe por que não pode ser a Teirness...
— Não quero ser a Teirness — sussurrei. — Eu quero ser sua filha.
Meu pai desviou o olhar, como se minhas palavras tivessem invadido
algo muito pessoal, e me arrependi imediatamente. Quando ele falou de
novo, sua voz era medida e distante, e eu odiei minha honestidade por
abreviar aquele breve momento de conexão.
— Estamos em um momento importante, Aefe — disse ele. — A
encruzilhada de tantos caminhos sangrentos. Sua missão é importante e
decidirá se esta leva a sangue. Eu não confio em Wyshraj. Observe-os. E
além disso, observe a verdade. Os Sidnee estão contando com você. — Ele
fez uma pausa e acrescentou: — Estou contando com você.
Não pude deixar de saborear essas palavras. Nunca pensei que as
ouviria.
Ele colocou uma mão firme no meu ombro.
— Mostre-me tudo o que você poderia ser, minha filha.
Talvez fosse o álcool. Talvez fosse a empolgação inebriante do dia.
Talvez fosse a pressão de sua mão no meu ombro, o tipo de toque familiar
que eu não sentia há muito tempo. Mas eu me vi lutando contra as
lágrimas.
— Sim — eu engasguei. — Eu vou. Eu vou.
Capitulo Quatorze
Tisaanah
— Respire, Tisaanah.
Um choque de gelo pressionou minha testa. Todo o meu corpo
convulsionou e eu cegamente procurei... alguma coisa, eu nem sabia o quê,
mas o que eu acertei foi a borda da bacia, na qual eu violentamente
esvaziei o conteúdo do meu estômago.
Quando terminei, pisquei para a luz fraca da lamparina. Nura se
inclinou sobre mim.
— O que você está fazendo aqui? — A pergunta foi arrastada. Minha
língua não era cooperativa.
Eu não me sentia assim desde... deuses, desde o começo.
— Você não pode ficar sozinha assim. Aqui. — Nura enfiou um
pequeno frasco em minhas mãos. — Beba.
— Como você...
— O que você fez lá fora foi notável. Mesmo comparando com o que
eu já tinha visto. — Ela me deu um olhar duro. — Você esquece que eu
estava lá durante tudo isso. Eu sei o preço que custa fazer algo assim. E me
perdoe se eu não queria que nosso melhor trunfo morresse sozinha em seu
quarto porque ela estava se exibindo. Beba. Para o seu maldito bem.
Engoli o conteúdo do frasco e imediatamente me arrependi.
— Não vomite isso — disse Nura.
— Estou tentando — murmurei.
Eu levantei minha cabeça, ou tentei. Ela parecia diferente, o cabelo
solto em volta do rosto. E ela não usava seu típico casaco de gola alta, mas
uma camisola que revelava mais de sua pele do que eu já tinha visto.
Pele que estava completamente coberta por cicatrizes de
queimaduras horríveis e desfigurantes.
Mesmo que eu mal conseguisse manter meus olhos abertos, eu ainda
me vi olhando.
Nura me deu um sorriso sem humor.
— Você e eu e nossas cicatrizes. Acho que nós duas sabemos como é
pagar por alguma coisa.
Não somos iguais, quis dizer, mas uma onda de dor me esmagou.
Reshaye soltou um gemido horrível e sem palavras. O presente e o
passado – o meu e tantos outros – correram juntos, meus sentidos
assaltados por centenas de fragmentos de memórias de uma só vez.
Todos eles se afogando em branco e branco e branco.
E dor.
Quando voltei a mim, estava no chão. Tremendo. Suando. O pano
frio foi pressionado na minha testa.
— Idiota — murmurou Nura. — Valeu a pena? Tudo isso para se
exibir por aí?
Engraçado, como nas profundezas da agonia, você encontra mais
clareza.
Se você estivesse no meu lugar, concordaria? Zeryth tinha me
perguntado. Você, uma escrava? Como você faria com que eles a respeitassem?
Talvez Esmaris estivesse certo. Não bastava viver como humano e
morrer como humano. Eu tive que me esculpir em seus sussurros.
Hoje, eles me olharam não como uma escrava, não como uma
mulher, mas como uma deusa.
— Valeu a pena? — perguntou Nura, enquanto eu me curvava sobre
a bacia. Um sorriso feio surgiu em meus lábios.
— Sim — eu engasguei. — Sim, valeu.
Eu desapareci novamente depois disso, a realidade se fundindo com
os sonhos em uma mancha cinza de escuridão. E talvez sonhei que, algum
tempo depois, meus olhos se abriram sob o controle de outro. Talvez eu
tenha sonhado que rolei para ver Nura ainda em meu quarto, lendo, com
uma taça de vinho na mão.
— Você — minha voz rangeu.
O olhar de Nura deslizou para mim, ficando mais frio. Ela pousou a
taça de vinho.
— Olá, Reshaye.
Um sorriso espasmódico surgiu em meus lábios.
— Você não tem medo de ficar aqui sozinha comigo?
— Se você fosse me matar, você já teria feito isso.
— E, no entanto, eu vi o seu medo. Eu sei o quão profundo ele é.
As memórias eram cacos de vidro. Nura, com o rosto contorcido de
ódio, caiu no chão pela quinquagésima vez. Nura, derramando seu sangue
sobre um braço aberto e sem vida, em uma sala de branco.
Nura, lutando de novo, e de novo, e de novo.
E agora Nura, com o rosto banhado pela luz da lua, lançando-me um
sorriso lento e frio.
— Talvez — ela disse. — Mas eu te odeio mais do que temo você. E
meu ódio é sempre mais forte.
— Odiar. — Eu rolei a palavra sobre minha língua. Minha mão
pressionou meu peito. — Ela também te odeia. Ela odeia você quase tanto
quanto eu.
— Eu não esperaria nada menos.
Lentamente, ela se levantou e se aproximou de mim.
— Porque ela? — ela sussurrou, finalmente. — Por que você a
escolheu, quando rejeitou tantas outras?
Soltei uma risada baixa.
— Você a inveja.
— Eu não.
— Você sim. E não porque ela tem seu ex-amante, mas porque ela me
tem. E onde eu teria morado, nessa sua mente? Você pensou que iria me
trancar em seu palácio de gelo e aço, como tudo o que você teme?
Sentei-me, embora meus músculos gritassem. E eu me inclinei para
perto dela, tão perto que nossos narizes quase se tocaram.
— Você realmente não me queria, porque eu teria visto tudo em você.
O rosto de Nura endureceu. Seus olhos brilharam na escuridão como
dois cacos de metal.
— Ainda não terminamos um com o outro, Reshaye. Podemos
apodrecer em nosso ódio e deixar que ele nos torne fortes, ou estúpidos, ou
ambos. E não se engane, eu te odeio. Eu te odeio mais do que jamais odiei
qualquer coisa. — Ela se afastou e foi até a janela, olhando para as
montanhas. — Mas você e eu sabemos que há algo mais vindo. E nossos
caminhos ainda estão emaranhados.
Um arrepio percorreu minha pele. Por um momento, pensei que
podia ver uma sombra se aproximando, uma silhueta com o rosto voltado
para mim, muito abaixo das camadas de magia.
A consciência se esvaiu, o mundo voltando aos meus sonhos.
E a última coisa que ouvi foi a voz de Nura.
— A verdadeira luta — ela murmurou — mal começou.
Capitulo Quinze
Max.
Eu escrevi de volta:
Meu Ilustre Rei,
Eu sei.
- General Farlione
Capitulo dezesseis
Aefe
— Teirna
Capitulo Trinta e Um
Tisaanah
Tisaanah.
Meu nome era um sussurro.
Olhava para o sol poente sobre uma extensão infinita de ouro rolante.
Vazio, agora. Mas uma vez Nyzerene. Uma vez minha casa.
Não é de admirar que parecesse me chamar assim.
Tisaaaaanaaaaah.
O sol estava baixo, roçando beijos ao longo da linha do horizonte,
passando os dedos pela grama ondulante. Ergui o queixo para o céu e me
deleitei com ele.
Ao longe, uma figura se virou e estendeu a mão para mim. Eu não
conseguia vê-la, a luz era tão, tão brilhante, achatando sua forma em uma
silhueta borrada. Ela chamou outro nome, um nome que eu não reconheci,
mas sabia que me pertencia.
O suor escorria pelo meu pescoço.
Dei um passo à frente, mas o sol me cegou. E de repente ficou tão
quente, muito quente, minha pele queimando. Pisquei e abri meus olhos
para um mar de fogo – azul, como as chamas que consumiram a
propriedade Mikov, como aquelas que eu inalei em mim quando lutei
contra Reshaye nos níveis mais profundos da magia.
Então planícies douradas murcharam para decair.
Olhei para baixo e vi uma podridão negra rastejando sobre minhas
palmas. A luz se derramando das pontas dos meus dedos.
Você me viu.
E desta vez, reconheci a voz. Eu vi minha carne murchar, sem mais
língua para falar, sem mais garganta para gritar. Minhas mãos eram
apenas o marfim puro do osso, fraturado com rachaduras de luz carmesim.
E quando você olha para um espelho Reshaye sussurrou você sabe o que
olha de volta.
Mas ainda assim, todo esse poder se derramou de mim.
Surgiu e consumiu, até que não vi nada além de branco, branco e
branco.
Eu senti... curiosidade.
A coisa que estava diante de mim não era uma pessoa. Não, apenas
uma sombra de uma sombra. Ela me circulou, examinando.
Eu conheço você, ele sussurrou.
Eu também sabia, de uma forma que não entendia. Como o cheiro
deixado para trás no rastro de um corpo familiar, ou a névoa pairando no
ar do inverno após uma respiração quente.
Eu estive procurando por você, a voz murmurou, por tanto tempo.
Reshaye estremeceu, afastando-se.
Um lampejo de mágoa.
Você não se lembra de mim?
O que significa lembrar? Uma memória é a marca de uma história passada, e
todas as minhas foram arrancadas.
A sombra se aproximou. Foi difícil, eu poderia dizer, como se tivesse
que lutar contra uma maré alta.
O que você é? Perguntei. Onde você está?
Minha curiosidade me aproximou, e então recuei com um suspiro.
A visão durou apenas uma fração de segundo, consistindo em
imagens fragmentadas.
Eu vi Ara queimando, cidades e palácios reduzidos a meras cascas.
Um campo cheio de cadáveres, empilhados uns sobre os outros, suas tiras
de carne podre. Os oceanos subindo, repletos de criaturas de dentes,
sombras e destruição.
Eu vi as planícies de Threll em chamas, o céu negro com fumaça.
Eu vi um mar infinito de ossos.
E então, com a mesma rapidez, tudo se foi – tão rápido que talvez eu
tenha imaginado tudo.
A resposta veio num sussurro distante, enquanto a presença se
esvaía:
Eu sou a vitória. Eu sou a vingança.
E agora, não estou em lugar nenhum.
Mas em breve, estarei com você.
Capitulo Quarenta e Sete
Aefe
Eu tinha vencido.
Quando acordei depois do que parecia um sono de um milhão de
anos, Max estava ao meu lado. Ele me contou sobre o resultado da batalha
e preencheu minhas memórias obscuras com as dele. Ele me contou sobre
o número de mortos e sobre a vitória que essas mortes haviam comprado.
A Capital estava agora sob o controle de Zeryth.
— Então a guerra acabou — murmurei.
— Deveria. Embora Zeryth não tenha declarado publicamente seu
fim. Não que ainda haja alguém para ele lutar.
Isso me deixou nervosa. Eu estava assistindo Zeryth se desfazer
lentamente, sua mente murchando, e agora me peguei imaginando se sua
paranóia encontraria novos inimigos para atingir nas sombras de suas
próprias alturas.
Mas fui puxada desse pensamento quando notei a maneira como
Max estava olhando para mim, sua testa franzida e um único músculo se
contraindo em sua mandíbula.
Eu pisquei para ele.
— O que?
— Encontrei o bilhete que foi deixado para você naquela manhã —
disse ele.
Eu me acalmei. Eu soube imediatamente de qual nota ele estava
falando. A de Fijra, me pedindo para visitar sua avó. O pensamento disso
ainda fez um nó subir na minha garganta.
— Então. Foi para lá que você foi levada?
Eu balancei a cabeça. Talvez ele me conhecesse bem o suficiente para
ver o que eu não estava dizendo, porque sua voz era mortalmente calma.
— Então foi uma armadilha. E é por isso que você quis ir para lá,
depois da batalha.
E, novamente, meu silêncio foi resposta suficiente.
A raiva de Max era tão intensa que se adensava no ar.
— Você está lutando mais por eles do que qualquer outra pessoa
jamais faria. E eles te entregam a ele? Isso não é apenas cruel. É estúpido.
Antes que eu pudesse pensar, as justificativas que eu disse a mim
mesma saíram de meus lábios.
— Você diz eles como se fossem todos iguais. Era uma pessoa. Para
alguns, será sempre difícil confiar...
— Achei que era tarde demais, Tisaanah. — Ele não levantou a voz. E,
no entanto, a crueza ainda era suficiente para me fazer pular. — Eu pensei
que estava invadindo aquele palácio para encontrar seu cadáver. Achei
que algumas daquelas visões de Ilyzath tinham se tornado realidade. Eu
nunca tive tanto medo. Nunca.
Seu olhar se moveu para encontrar o meu. Minha boca se fechou.
Esse medo ainda estava em seu rosto. E se eu estivesse no lugar dele... se
fosse ele quem estivesse preso lá...
O pensamento disso me deixou doente.
— Você não vai se livrar de mim tão facilmente. — Eu empurrei uma
mecha rebelde de cabelo escuro para longe de seus olhos, meu polegar
alisando a ruga de sua testa. — Essas pessoas foram forçadas a uma
posição impossível. Para alguns, sempre será difícil acreditar em mim.
Ele arrastou minha palma até sua boca e a beijou.
— Se eles não acreditaram antes, eles vão acreditar em você agora —
ele disse calmamente. — Eles olharam para você como se você fosse mais
do que humana.
Eu não tinha certeza de por que esse pensamento me deixou
vagamente enjoada – embora fosse exatamente minha intenção.
— É assim que as pessoas olham para você também — eu disse.
E ele merecia isso, aquela reverência de olhos arregalados, porque ele
era de tirar o fôlego.
Max se encolheu, desviando o olhar. Ele havia enfrentado seu maior
medo mostrando ao mundo do que era capaz. Foi difícil o suficiente para
ele fazer isso em Threll. Agora, estava lá fora, além até mesmo de suas
coisas ruins.
— Eu preferia me esconder — ele murmurou. — Mas valeu a pena.
Inclinei-me contra ele – pressionei meus lábios contra seu pescoço,
respirando seu cheiro. Ele abandonou minha mão para um abraço mais
completo, puxando-me para perto.
Às vezes, em momentos como este, havia tanto que eu queria dizer a
Max que a perspectiva de forçar toda aquela emoção em meras sílabas
parecia risível. Eu passei minha vida inteira sendo arrancada do que eu
amava. Meu coração nunca poderia criar raízes, porque a cada poucos
anos elas seriam arrancadas. Você aprende a viver sem elas. Você aprende
a encontrar amor onde ele não existe, como nas gentilezas superficiais de
um homem cruel. Você aprende a aceitar a perda como parte de você e
finge que não lamenta cada conexão rompida.
Eu havia esquecido que era possível que as raízes do afeto de alguém
fossem tão profundas, tão sólidas. Eu poderia construir uma vida nos
galhos desta árvore. Eu poderia embalar o futuro de uma geração
aninhado em suas folhas.
Mas eu ainda tinha tantas cicatrizes. E é difícil sonhar quando você
está cercado pelas cinzas da perda. Difícil não se perguntar se as sobras
que sobraram valem a pena oferecer a alguém que merecia tanto.
Eu apertei meus olhos fechados. Eles formigaram.
— Eu te amo — eu engasguei.
Amor. A palavra era tudo que eu tinha. Ainda assim, não parecia o
suficiente.
Mãos cerradas ao meu lado, meu coração acelerado. Vos olhou para
mim através de mechas de seu cabelo ruivo bagunçado, um sorriso de
escárnio em seus lábios.
Zeryth dispensou os guardas, mandando-os para fora do quarto.
Então ele sorriu para mim. Toda vez que eu encontrava seus olhos, algo
nocivo deslizava sob minha pele. Reshaye recuou com desgosto.
Ele está envenenado, sussurrou.
Envenenado?
Por muito tempo, ele brincou com magias além dele. Ele é perigoso.
— Tisaanah — Zeryth disse — por que você mentiu sobre como você
foi levada?
Eu congelei, meus olhos passando rapidamente para Vos.
— Porquê ele está aqui?
O sorriso de Zeryth não vacilou.
— Ele está aqui porque ofereceu você a Atrick Aviness. Com a ajuda,
é claro, de Lady Erksan aqui, amiga sempre leal de Aviness.
Minha mandíbula se apertou.
Vos. Deuses. Claro.
Toda vez que pensava em meu sequestro, tinha que lutar contra
minha raiva. Agora, com Vos de joelhos na minha frente, era quase
impossível sufocar.
Como você insistiu que poderia ser diferente. E, no entanto, observei
centenas de anos se passarem e sei que é a mesma história tantas vezes. Tantas
traições. Reshaye se enrolou em torno da minha dor. Perigosa. Eu
cuidadosamente mantive o controle longe de seu alcance.
— Eu não sei o que você quer dizer — eu disse.
— Não minta para mim, Tisaanah.
— Eu não sabia que qualquer uma dessas pessoas estava envolvida.
A verdade, tecnicamente.
Os lábios de Zeryth se contraíram.
— Então deve ser um choque e tanto — disse ele. Ele se inclinou mais
perto, e eu estava tão distraída com a falta de graça enervante de seus
movimentos e as veias ao redor de seus olhos que quase pulei quando algo
frio pressionou minhas mãos.
Eu olhei para baixo.
Era uma adaga.
— Que sorte a sua, então — disse ele, vagando de volta para a janela
— que você terá sua justiça.
Lady Erksan caiu no chão, chorando.
— Não, por favor, não, não, não…
Mas Vos encontrou meu olhar diretamente, erguendo o queixo como
se fosse me apresentar sua garganta. Seu rosto estava imóvel, sua imagem
desafiadora, mas não me deixei enganar por sua aparência. Nenhum deles
protegeu suas mentes. O terror deles consumia o ar. O medo de Erksan era
como o de um animal assustado, quebradiço e frágil, próprio de alguém
que nunca conheceu o sofrimento. Mas o de Vos era pesado com
conhecimento sombrio. Ele tinha medo da morte, sim. Mas ele sabia o que
era dor. Ele sabia o que era sofrer.
Seria uma misericórdia dar-lhe a morte depois de tudo o que ele suportou.
Para dar a ele o destino que ele merece, pelo que ele fez conosco. Ele se curva sob o
peso dela.
Seria uma mentira dizer que uma parte de mim não ansiava por
vingança. Reshaye encontrou em mim, um pequeno fragmento de raiva
incandescente. Essa parte de mim odiava Vos pelo que ele fez comigo.
Talvez tanto quanto Vos me odiava por aquela mentira. Aquela
mentira que destruiu sua vida.
Não desviei o olhar dele quando disse:
— Deixe-o viver.
A surpresa de Reshaye ondulou, no mesmo momento em que o rosto
de Zeryth estalou para mim.
— Você me implorou pela vida dele. Você vendeu metade de sua
alma para garantir que ele fosse sustentado. Então ele entrega você para
Aviness para ser morta. Ou torturada, ou dissecada. E você me diz para
'deixá-lo viver?'
Ele se virou para Max.
— E você, então? Acho que você adoraria fazer isso.
Max estava visivelmente tenso, sua mandíbula apertada.
— Você está agindo como um louco, Zeryth.
Zeryth latiu uma risada áspera.
— Louco?! Estou mais são do que nunca! É incrível, na verdade,
como conseguir tudo o que você sempre quis deixa você são.
— Exatamente — eu disse. — Você tem tudo o que deseja. Você é o
rei. — Fui até a janela e levantei o queixo, acenando para os foliões lá
embaixo. — Agora dê a eles o que eles querem. Talvez agora eles relutem
em amar você. Mas mostre a eles que você pode ser o rei de que eles
precisam. Mostre a eles que você conhece a misericórdia.
Zeryth parou, quase pensativo, soltando uma leve zombaria.
— Misericórdia, hum? É isso que eles querem?
— Sua guerra acabou e você venceu — disse Max. — Pegue sua
vitória e deixe-a.
Essas palavras pareceram quebrar algum fio de contenção em Zeryth,
porque cada ângulo de seu corpo ficou duro, os olhos brilhando, a boca
torcida em um sorriso de escárnio.
— Minha guerra não acabou. Não quando estou cercado por malditos
traidores Ascendentes. Minha guerra mal começou.
Meu estômago caiu.
Nura deu um passo à frente, seus olhos correndo entre nós.
— Nós discutimos isso, Zeryth...
— Nós? — ele rosnou. — Não existe nós. Não pense que não sei o que
você tem feito, minha querida e leal Segunda. Não pense que não sei
exatamente o que sua ajuda fez comigo.
Os olhos de Nura se arregalaram.
Mas Zeryth voltou para mim antes que ela pudesse reagir. Ele se
movia aos trancos e barrancos, como uma coleção de membros unidos por
cordas desgastadas.
— Execute-os — ele ordenou.
E com essas palavras, o laço do meu pacto se apertou ao meu redor
como uma corda. Meus dedos foram forçados a fechar em torno do cabo
da adaga.
Ele merece isso Reshaye sussurrou, e seria tão fácil, mas...
Não, eu não queria fazer isso. Não importa o que Vos tenha feito
comigo.
— Não — eu engasguei.
Ainda assim, cada músculo do meu corpo se esticou para obedecer ao
comando de Zeryth. Eu o segurei por segundos.
Então Zeryth revirou os olhos, soltou uma zombaria, e a próxima
coisa que eu soube, a adaga não estava mais em minhas mãos.
— Certo. Então fique aí.
Dois passos suaves, e ele estava atrás de Lady Erksan, puxando-a
pelos cabelos, e o grito dela cortou o ar, e então havia sangue por toda
parte, respingando em meu rosto, no chão, na janela. Seu grito tornou-se
um gargarejo. O belo terno branco de Zeryth estava inundado de
carmesim.
O corpo caiu em uma pilha. Vos se arrastou para longe dele,
escorregando no sangue.
Faça alguma coisa.
Mas a ordem de Zeryth me congelou:
Fique. Fique. Fique.
Zeryth estendeu a mão para Vos, a lâmina levantando...
E então Max estava entre eles, sua mão pegando o pulso de Zeryth.
— É assim mesmo que você quer começar seu reinado? — ele disse.
— Se escondendo das pessoas que você governa e se afogando na
paranóia?
— Essa é uma declaração rica, vindo de você. Depois que você
mentiu para mim como você mentiu. — Seu olhar escureceu com ódio
feroz. — Você me disse que as histórias de Threll eram exageros. E você
me diz que não estou cercado de traidores, quando você é um deles?
— Eu nunca...
— Você mentiu para mim. — Os dois estavam travados assim, cada um
empurrando o aperto do outro. A magia começou a crepitar na pele de
Zeryth – magia estranha e doentia diferente de qualquer outra que eu já
tinha visto. A dor cintilou no rosto de Max.
— Eu pensei que precisava de você — Zeryth zombou. — Precisava
do seu nome, da sua nobreza. Tão patético.
Nura começou a se aproximar e Zeryth latiu, sem desviar o olhar de
Max:
— Não se mexa, porra.
Ela parou. Ela também não podia lutar contra seus comandos, fosse
por causa de sua magia ou seu próprio pacto, ou ambos. Sua magia era
tóxica no ar, tão espessa que minha visão ficou turva.
Fique. Fique. Fique.
Como último recurso, minha magia alcançou a mente de Zeryth e eu
quase engasguei.
Ele estava tão, tão longe.
Sua mente era uma coisa podre infestada de larvas. Ele nem se
preocupou em proteger seus pensamentos, se é que eles poderiam ser
chamados assim. Não havia mais nada além de dor e raiva. Ele não se
importava por ter vencido. O que quer que ele esperasse reivindicar ainda
o iludiu. Qualquer buraco dentro dele que ele esperava consertar com os
pontos de poder ainda estava aberto.
Uma percepção horrível caiu sobre mim: ele nunca iria parar. Este era
um homem capaz de qualquer coisa.
Eu fiquei tensa, me preparando para o pior.
Mas Zeryth respirou fundo. Em seguida, soltou-o. Ele largou a adaga.
Recuou.
Quase me permiti sentir alívio.
— A verdade é — Zeryth disse calmamente — é um alívio não
precisar mais de você.
Eu não teria tido tempo de reagir, mesmo que pudesse.
O golpe foi como o estalo de um raio, dividindo a sala em duas. A
dor cortou minha cabeça, minha visão ficando branca. Quando pude ver
de novo, Max estava no chão, sangue ensopando sua camisa. Zeryth estava
sobre ele, magia nociva descascando de sua pele, tão espessa quanto seu
ódio.
E eu ainda não conseguia me mexer.
Max contra-atacou rápido, ficando de pé, o fogo na ponta dos dedos.
As chamas subiram pelas roupas de Zeryth.
Mas Zeryth apenas sorriu.
Ele investiu novamente.
Sua magia foi ainda mais forte, desta vez, tirando o fôlego de meus
pulmões. Max lutou, o fogo crescendo. Ele era um bom lutador. A magia
de Zeryth era forte, mas seu corpo era uma sombra do que já foi.
Mas aquela magia...
Outra rajada deixou Max no chão novamente. Desta vez, ele foi mais
lento para se recuperar.
Zeryth iria matá-lo.
Eu precisava fazer algo.
Mas o pacto me prejudicou. Tudo em mim rugiu para obedecer –
para servir aos comandos de Zeryth. Para protegê-lo.
Meu pacto de sangue. Meu... mas... talvez...
Uma ideia surgiu do nada além do desespero.
Reshaye. Me ajude. O pacto que me une é meu, não seu. Juntos, podemos
parar isso.
Reshaye examinou meu pânico. E então disse, friamente Por quê?
Max estava no chão. O fogo engrossou o ar, e foi engrossado ainda
mais pela magia de Zeryth. E Zeryth continuou vindo.
Talvez ele mereça isso. Ele me abandonou.
Meu ódio borbulhou.
Você é um monstro. É só nisso que você pensa? As pessoas que erraram com
você?
Reshaye rosnou. Você não sabe nada sobre o que eu sofri.
Você está comigo porque eu sei TUDO sobre o que você sofreu!
Minhas memórias nos assaltaram. As mãos de Esmaris na minha
pele. Seu chicote nas minhas costas. A traição, no meu coração e no dele.
Meu sangue no contrato de Zeryth.
Eu o amava e ele me deixou. Mesmo depois de ter dado a ele tudo o que tinha
a oferecer. Assim como eles sempre fazem. Assim como você vai.
Essa raiva não é amor. O amor é altruísta. E eu acho que você sabia disso,
uma vez. Acho que a parte de você que vi naquele dia na propriedade Mikov que
entendeu.
Outra golpe. Max estava de joelhos, cambaleando. Tudo era fogo e
sombra. Quantos golpes Max receberia?
Eu não deixaria isso acontecer. Cada músculo do meu corpo tenso.
Reshaye examinou meu desespero, confuso.
Sua vida está ligada à de Zeryth. E você ainda agiria contra ele? Mesmo que
isso signifique sacrificar sua vida?
Os olhos de Max se desviaram para mim. Ele não mataria Zeryth,
nem mesmo se houvesse uma chance de isso resultar na minha morte. Mas
Zeryth mataria Max. Ele mataria milhares mais. Ele nunca iria parar.
Eu não precisava responder.
Entendo Reshaye disse, com uma calma estranha.
Algo se encaixou no lugar.
Aconteceu rápido. Eu levantei minha mão. A magia faiscou na minha
pele. Zeryth foi puxado pela sala, seu corpo colidindo com o meu. Juntos,
caímos no chão.
A princípio, o rosto magro de Zeryth estava escuro de fúria. Ele caiu
em cima de mim, um rosnado em seus lábios, tão perto que poderia ter me
beijado. O sorriso de Reshaye se infiltrou em meu rosto lentamente.
— Você está certo, rei tolo — minha voz sussurrou, meu sotaque
sumiu.
A raiva de Zeryth deu lugar à confusão, deu lugar à dor, deu lugar ao
medo.
Medo, ao perceber que minha lâmina estava enterrada entre suas
costelas.
Reshaye acariciou seu rosto como um amante. Decadência arrastava
meus dedos, consumindo pele, músculo, osso.
— Você foi ingênuo — eu ronronei.
Senti um belo momento de satisfação ao ver Zeryth morrer. E pensei
que talvez ele realmente estivesse blefando sobre a extensão de seu poder –
talvez a maldição que ligava minha vida à dele fosse uma mentira, o
tempo todo.
Meus olhos encontraram os de Max enquanto ele lutava para se
levantar. Ele parecia apavorado.
Está tudo bem, eu queria dizer a ele. Estou bem. Viu?
Mas então algo me agarrou, como um monstro saindo do fundo do
mar para me arrastar para baixo.
Menos de um segundo, e eu tinha ido embora.
Capitulo Cinquenta e Tres
Aefe
— Ele não vai nos ajudar — Siobhan disse, andando de um lado para
o outro na sala. — Devemos seguir em frente imediatamente. Quanto
menos tempo ficarmos aqui, melhor.
Reunimo-nos na sala de estar da suíte de hóspedes que Ezra e
Athalena nos deram. As janelas ocupavam toda a extensão da sala, sua
moldura coberta por hera sinuosa, com vista para a cidade de Niraja e um
céu estrelado. Uma bela vista, embora nenhum de nós tenha tido tempo
para apreciá-la.
— Estou inclinado a concordar — disse Ishqa. — Eles claramente não
cooperam com a nossa causa.
Caduan franze a testa.
— Eu não acho que isso seja necessariamente verdade — disse ele, e
Ashraia soltou um escárnio, jogando as mãos para cima.
— Claro que é. Por que estamos surpresos com isso? Um bando de
mestiços hereges não entenderia ou se importaria com nossa situação.
— Mas eles sabem por que isso está acontecendo — eu disse. — Eu
sei que eles sabem. Você viu o rosto de Athalena? Ela sabia alguma coisa.
Foi Ezra quem não quis falar.
— Podemos culpá-lo? — Siobhan murmurou, e Ishqa soltou um
pequeno ruído de concordância, que era quase uma risada irônica.
Ela estava certa. Eu não conseguia pensar na família de Ezra e
Athalena como como Ashraia havia dito “hereges mestiços” mas era
inegável que eles tinham poucos motivos para nos ajudar. Um nó de culpa
que eu não conseguia desembaraçar se formou em meu estômago. Talvez
tenha sido uma tolice vir até aqui, e quanto mais cedo partíssemos, menos
chance teríamos de nosso mau julgamento ser descoberto.
— Desistimos de muita coisa para vir para cá — murmurei. — Eu
odeio desperdiçá-lo.
Caminhei até a janela e olhei para fora. A cidade caía abaixo de nós
em degraus, as luzes bruxuleantes das lanternas iluminando as janelas e as
figuras em movimento nas ruas abaixo. Se eu olhasse de perto, ainda podia
ver as pessoas rindo e conversando nas ruas abaixo. Em uma das varandas
próximas, observei dois velhos fumando cachimbo e bebendo vinho.
— É diferente aqui — murmurei — do que eu pensei que seria. Isso
é…
— Mais legal — disse Caduan.
Lancei-lhe um olhar curioso. Passei o dia todo observando-o,
esperando uma reação que não veio.
— Eu pensei que seria difícil para você vir aqui. Para ver todos esses
humanos.
— Você não os odeia? — Siobhan perguntou, baixinho.
Os olhos de Caduan não saíam da janela.
— Eu pensei que sim. Mas eu cheguei aqui e... — Ele apontou para a
cena do lado de fora. — Olho para isso e vejo um mundo sem o ódio que
destruiu meu lar. Há uma certa... esperança nisso.
— É uma fantasia — Ishqa murmurou. — Eu conheci Ezra, uma vez,
há muito tempo. Ele era um bom guerreiro e líder. Mas ele está vivendo
em um mundo de sonhos agora, e ele sabe disso, mesmo que sua esposa e
filhos não saibam.
— Não tem que ser — eu disse, e Ishqa me deu aquele olhar, aquele
tipo que era levemente compassivo.
— Talvez seja uma boa fantasia. Mas uma fantasia, no entanto. A
natureza não foi feita para tal união. Ele verá sua esposa envelhecer e
morrer, seus filhos e os filhos de seus filhos. O jardim que ele está
cuidando pode estar lindo agora, mas ele terá que vê-lo murchar. E isso se
ele não tiver que ver os outros virem queimá-lo primeiro.
Suas palavras machucaram mais do que pareciam que deveriam.
Pressionei meus dedos no vidro e olhei para a cidade.
— Mas ter construído algo não vale mais do que o medo de ser
destruído?
— Eu acho que sim.
O som da voz nos fez girar para a porta. Athalena ficou lá, uma única
chama pairando na ponta dos dedos. Ela era uma Portadora, eu percebi.
Seu olhar se voltou para Ishqa.
— Você deveria se sentir muito sortudo, agora, por sua esposa ter um
coração mais bondoso do que o seu.
Ishqa apenas abaixou a cabeça.
— Minhas palavras foram imprudentes e cruéis — disse ele. — Peço
desculpas, eu só...
— Você estava falando a verdade como você a viu. Não posso fingir
que muitos outros não veem da mesma maneira. — Ela olhou para mim e
para Caduan. — Mas fico feliz em ver que alguns dos meus convidados
não olham para minha família e não veem nada além de erros da natureza.
— Eu... — Ishqa começou, mas ela o dispensou com um gesto.
— Eu não preciso de suas desculpas. — Ela se virou para Caduan e se
aproximou, procurando seu rosto.
— Você falou sério sobre a sua oferta — disse ela. — Falou?
Caduan inclinou o queixo.
— Sim.
— Se eu te disser isso, preciso da sua garantia de que minha casa
estará protegida se os humanos vierem atrás de nós.
— Se você nos disser do que precisamos — eu disse — os humanos
não virão mais atrás de ninguém.
Ela estremeceu.
— Eu espero que seja verdade. — Então ela foi até a mesa no centro
da sala e se ajoelhou, tirando um pedaço de pergaminho do bolso e o
desdobrando. O papel era tão grande que cobria quase toda a mesa. Era
um mapa, muito antigo, pintado com tinta já desbotada. Perto do topo,
reconheci as terras feéricas – a Casa de Nautilus, a Casa dos Juncos, a Casa
das Ondas Turbulentas. Mais ao norte, os limites ficaram mais vacilantes e
mal definidos, como se o cartógrafo soubesse que havia algo ali, mas não
tivesse certeza do quê. Em direção ao centro do mapa estava a ilha de
Niraja. E mais ao sul, havia as terras humanas, fronteiras separando nações
sobre as quais eu sabia muito pouco.
— Há uma razão — disse ela — por que tudo isso está acontecendo
agora. As nações humanas estão envolvidas em guerra. Eu ouvi apenas
histórias, mas parece que pode ser um dos piores derramamentos de
sangue que eles já viram em muitos anos. — Ela passou a mão sobre várias
nações humanas ao sul. — Todos esses países estão envolvidos. Três
grandes nações estão atacando as outras, tentando conquistá-las. Alguns
desses reinos já caíram. Veja, algumas sociedades avançaram no uso da
magia mais rapidamente do que outras.
— O retorno da magia humana mudou as probabilidades — Ashraia
murmurou, e Athalena assentiu.
— Sim, drasticamente. Algumas dessas nações estiveram à mercê de
outras durante séculos, pois tinham forças armadas menores ou economias
mais fracas. Mas agora? A luta pelo poder aqui mudou muito
rapidamente. Muitos perderam suas casas. E isso os deixa com apenas
duas esperanças. Uma delas é encontrar um novo lar, onde seus
conquistadores não possam tocá-los. E a outra é se tornarem mais
poderosos do que seus agressores e assumir o controle mais uma vez.
Tornar-se mais poderoso. Isso era exatamente o que Caduan
suspeitava que eles estavam fazendo, quando examinou o corpo da
deformada feérica da Casa dos Juncos.
— Como você sabe de tudo isso? — perguntou Siobhan.
— Alguns, de nossos sussurradores que ainda circulam entre os
reinos humanos. Alguns, dos comerciantes que por ali passam. E alguns...
— Ela fez uma pausa e, quando voltou a falar, sua voz estava mais firme.
— Tivemos visitas, há cerca de quatro meses. Um grupo de humanos
buscando refúgio depois que sua casa foi destruída. Nunca antes havíamos
aceitado tantos humanos em nossas paredes de uma só vez, mas nenhum
de nós suportaria mandá-los embora. Eles estiveram aqui por duas
semanas antes que eu percebesse... suas intenções não eram o que eles
alegavam. — Ela engoliu em seco, os olhos ficando distantes – então
limpou a garganta e gesticulou para o mapa. — Eles tentaram roubar este
mapa de nós.
Olhei mais de perto o mapa. Diferentes nações tinham diferentes
símbolos neles. Percebi, aos poucos, que muitos dos símbolos
correspondiam a nações que haviam sido atacadas. A Casa de Pedra. A
Casa dos Juncos. Mesmo Yithara.
— O que isso significa? — perguntei, apontando para as marcas que
enfeitavam cada uma daquelas nações.
— Até meu marido é várias centenas de anos jovem demais para
saber o verdadeiro propósito deste mapa. — Sua testa franziu. — Mas os
mitos afirmam que marca poças ocultas de magia, lugares específicos onde
é mais forte. Ou talvez, onde artefatos mágicos estão escondidos. As
histórias variam. — Ela balançou a cabeça. — Para ser sincero, suspeito
que sejam mais ficção do que fato. Mas não tenho certeza do quanto isso
importa. Tudo o que importa é que os humanos estão desesperados e
acreditam que isso pode ser verdade. Mesmo uma pequena chance é
suficiente para levá-los a…
— Genocídio? — Caduan disse, calmamente.
E Athalena ficou tão quieta, tão silenciosa, por um momento tão
longo que me perguntei se talvez ela não responderia.
— Coisas horríveis — ela sussurrou, finalmente. — Coisas hediondas.
Os humanos que acolhemos em nossas paredes... — Sua voz falhou. —
Eles mataram um dos meus filhos. Eu ouvi os gritos e corri para o quarto
da minha filha para encontrá-los prendendo-a no chão. Havia sangue...
Aqui, ela engasgou, como se suas palavras fossem muito afiadas para
engolir. Ainda assim, ela não levantou os olhos da mesa.
— Havia sangue por toda parte. Eles cortaram seus pulsos. Havia
dois Portadores, um Valtain e um Solarie, e eles estavam fazendo algum
feitiço, algo para... para dominá-la, para transformar minha doce filha em
algo...
Ela parou abruptamente, e eu tive que piscar para afastar uma
memória que me assaltou de uma só vez – meu pai me segurando, com as
mãos na minha garganta. Lutei contra a vontade repentina e irresistível de
vomitar.
Athalena voltou-se para nós.
— Eu os fiz falar — ela cuspiu, sua boca torcida em um sorriso de
escárnio. — Eu fiz eles me contarem o que estavam fazendo. E eles me
contaram sobre as lendas que estavam seguindo – algumas infundadas,
como as gravadas neste mapa. Histórias de sangue feérico tendo poderosas
propriedades mágicas se empunhadas ou comidas ou... ou alteradas. Eles
disseram que foram informados de que o sangue meio-sangue era o mais
poderoso de todos. Que poderia ser usado para aumentar o poder de seu
portador. Que a vida da minha filha mestiça valia tão pouco quando
comparada com a de suas nações.
Sua voz estava rouca de dor. Humano ou não... eu senti isso também.
E eu estava tão perdida nisso que nem pensei nas implicações do que ela
estava dizendo. Não até Ishqa dizer baixinho:
— Como um Essnera?
Eu podia sentir seu olhar. Eu senti como se todo o sangue de repente
tivesse deixado minhas mãos. Ao meu lado, Caduan enrijeceu.
— Não sei — disse Athalena. — Eu nem me importo. Para mim,
parece que tudo pode ser uma pilha de merda de cavalo de contos de
fadas. Os seres humanos têm uma capacidade inigualável de acreditar nas
coisas. É o que nos torna poderosos, faz nossa sociedade avançar como tem
feito. — Seu olhar foi longe. — Sempre pensei que tive muita sorte de ter
encontrado Ezra. Um homem feérico que acredita nas coisas com todo o
seu ser, assim como os humanos. É uma coisa linda. Mas também é
perigoso. Os humanos seguirão uma doce mentira até os confins da terra.
Eles morrerão por isso e matarão por isso.
Seus olhos encontraram os nossos novamente – mais brilhantes, mais
nítidos, mais mortais.
— E isso é o que eu sei. Os humanos estão desesperados. Eles não
têm para onde ir. E eles não vão parar. Eles nunca vão parar. E eu sei que
vocês podem pensar que o ser humano é pequeno e fraco, mas ele nunca
vai parar de se adaptar, nunca vai parar de inovar. Uma verdadeira guerra
entre as nações humana e feérica será catastrófica. Milhões de pessoas
morrerão. Eu sei disso em meus ossos. Mas…
Ela enfiou a mão no bolso e retirou um pedaço de pergaminho muito
amassado. Isso ela colocou sobre a mesa. Era uma carta.
— O que é isso? — Perguntei.
— Esta é uma carta dos líderes de uma coalizão de nações humanas
— disse ela. — Meu marido não sabe que eu tenho isso e gostaria de
mantê-lo assim.
Peguei a carta e a desdobrei, folheando-a.
— Eles vão se encontrar, em breve. Em uma ilha ao sul, ao largo da
costa — disse ela. — Peguei esta carta de uma das pessoas que vieram
aqui. Os líderes estarão todos lá, incluindo aqueles que lideram esta
missão.
— Por que você não contou a Ezra sobre isso? — Eu perguntei, e por
um momento, Athalena parecia tão triste.
— Meu marido usa seu sorriso com facilidade, mas a morte de nossa
filha o deixou seco. Mesmo para uma pedra, dói ver o jardim murchar.
O olhar de Ishqa se desviou, envergonhado.
— Ele não queria aceitar os humanos para começar. Vou carregar
essa culpa pelo resto da minha vida. Mas agora, ele tem ainda mais medo
de perder sua família. Eu também estou, mas sei que isso acontecerá se não
agirmos. Eu quero que vocês façam isso, mesmo que eu não possa.
— E o que você espera que façamos nesta reunião? — Ashraia
perguntou.
— Sei que alguns desejam a paz, não a guerra sem fim. Vocês
poderiam convencê-los, negociar com eles. Negociar um tratado. No
momento, eles veem vocês como fauna, não como pessoas.
Para uma mulher que parecia tão razoável, isso parecia a sugestão de
uma criança otimista.
Mas então seu rosto endureceu, a raiva crescendo em seus olhos.
— Ou vocês podem massacrar os líderes onde eles estão e assistir
seus exércitos sem cabeça desmoronar.
Matar os homens que fizeram coisas tão terríveis não parecia uma má
ideia.
Athalena se levantou.
— Tudo o que peço é que Niraja permaneça protegido. E que
fiquemos fora disso. — A dor ondulou em seu rosto. — Já fizemos
sacrifícios tão dolorosos. E espero que ninguém, nem feéricos nem
humanos, tenham que suportar outro.
Capitulo Cinquenta e Quatro
Max.
— Foi embora.
Nura ficou parada com os braços cruzados sobre o peito, repetindo a
palavra lentamente. Seus olhos estavam estreitados, seu olhar duro.
— Sim — disse Tisaanah. — Perdido.
Os olhos de Nura se estreitaram ainda mais.
Ela estava parada na porta do nosso quarto na Torre da Meia-Noite.
Ela estava com a mesma roupa de sempre, aquele casaco branco abotoado
até o pescoço, com uma diferença notável: a insígnia agora bordada na
lapela. Um sol e uma lua eclipsados – a insígnia que estava na sala de
Zeryth, não muito tempo atrás.
A morte de Zeryth deu a Nura o que ela sempre mais desejou: o
título de Arquicomandante. Ou, pelo menos, Arquicomandante interina,
certamente para se tornar oficial em algumas semanas. Não que houvesse
alguém que fosse desafiá-la agora. A morte de Zeryth foi limpa facilmente
com uma pequena história de Nura. Seus apoiadores eram leais às Ordens,
não a ele pessoalmente. Muitos suspiraram aliviados por terem as Ordens
chefiadas por alguém mais estável.
Eu odiava Zeryth demais para sentir pena dele, mas senti algo
próximo disso quando percebi o quão facilmente o mundo mudou sem ele.
Ele havia desistido de tanto para ganhar poder, apenas para ser deixado de
lado como uma nota de rodapé incidental na história. Era quase triste.
Quase.
Agora, eu lutava para ler o olhar no rosto de Nura enquanto seu
olhar disparava de Tisaanah para mim e vice-versa. Ela permaneceu em
silêncio enquanto Tisaanah contava a ela o que ela havia me contado, sobre
como ela sobreviveu à quebra da maldição de Zeryth. Sobre como Reshaye
foi quem morreu, em vez disso.
Eu ainda achava difícil de acreditar. Claro, em teoria, eu podia ver
como isso poderia funcionar, pelo menos pelos limites que Eomara havia
estabelecido. Eu estava alimentando Tisaanah com minha magia, e isso a
manteve viva por tempo suficiente para que Reshaye trocasse qualquer
vida que tivesse, se é que alguém poderia chamar o que quer que Reshaye
tivesse de vida pela dela.
Parecia inacreditável, mas não mais do que qualquer outra
insanidade com a qual vivíamos todos os dias. Eu simplesmente não
estava pronto para aceitá-la. Não estava pronto para me deixar acreditar
nesse tipo de esperança.
— E desde então — disse Nura — você não ouviu nada?
— Não. Nada.
— E a sua magia?
Tisaanah estendeu a mão. Seus dedos, como os meus, ainda estavam
enegrecidos, veias escuras subindo pelo interior de seus antebraços. Suas
mãos tremiam.
— Nada — disse Tisaanah.
E eu sabia que isso era o que mais aterrorizava Tisaanah: essa súbita
impotência.
Algo que nem eu consegui decifrar passou pelo rosto de Nura. Eu
meio que esperava que ela ficasse furiosa com esse desenvolvimento. Eu
sabia que ela considerava Reshaye o bem mais valioso que as Ordens
possuíam. E para que desaparecesse agora, assim como ela finalmente
tinha o poder do Arquicomandante ao seu alcance?
Bom, pensei. Estou feliz.
Mas se Nura sentia essa frustração, não a expressava.
— Você está exausta — disse ela. — Levará semanas para você se
recuperar fisicamente, ainda mais magicamente. É muito cedo para
dizermos o que Reshaye fez ou deixou de fazer.
Tisaanah não disse nada. Mas eu li a expressão em seu rosto, uma
que dizia, eu sei o que isso fez.
— Acho que vocês dois deveriam descansar por algumas semanas —
Nura continuou. — Deixem as Torres, se quiserem. Vão para casa.
Tisaanah e eu trocamos um olhar surpreso.
— Estou chocado que você confie em nós o suficiente para nos deixar
sair das Torres — eu disse secamente. Mas Ascendido, eu não queria mais
nada. A palavra casa pegou em minha mente e permaneceu lá.
— Oh, eu sei que você vai voltar. — Nura olhou para Tisaanah, com o
fantasma de um sorriso nos lábios. — Tisaanah tem negócios inacabados
para resolver, afinal.
E com certeza, Tisaanah usava uma expressão que agora eu conhecia
muito bem, força bruta implacável, tão em desacordo com a óbvia
fraqueza de seu corpo. Eu observei uma guerra de batalha silenciosa em
seu rosto.
— E quando eu voltar — ela disse — vamos voltar para Threll.
— Quando você voltar, voltaremos para Threll. Assim como seu
contrato estabelece. Você ganhou nossa guerra. Não tenho intenção de
desistir do nosso acordo.
Não perdi a leve inflexão amarga quando Nura disse nossa guerra. A
guerra de Zeryth. Tenho certeza que isso a matou.
Ainda assim, eu a olhei com cautela. Algo não estava certo nesta
resposta. Do ponto de vista das Ordens, era objetivamente insensato ir
lutar uma guerra em Threll quando a aqui tinha acabado de terminar, e ela
precisaria dessas forças para ajudar a reconstruir seu país e reprimir
pequenas rebeliões. Seria do seu interesse tentar escapar de seus termos
com Tisaanah de qualquer maneira que pudesse. Se ela não estava fazendo
isso agora, ela faria mais tarde. Eu tinha certeza disso.
Tisaanah viu isso também, porque havia uma pitada de ceticismo em
sua expressão.
— Apenas duas semanas — disse ela, finalmente. — Podemos nos
recuperar por duas semanas e depois voltaremos.
— Seja realista consigo mesma. Você não pode nem curar um osso
quebrado em duas semanas, muito menos um corpo quebrado. Parece que
vocês dois passaram por um moedor de carne.
Tisaanah apenas balançou a cabeça.
— Duas semanas.
Nura encolheu os ombros.
— Como quiser, suponho.
E foi isso. Tisaanah e eu deveríamos deixar as Torres no dia seguinte.
Mais tarde naquela tarde, Sammerin veio. Ele abriu a porta – como
sempre, sem bater – e ficou lá me dando um olhar inexpressivo de total
desaprovação.
— Ouvi dizer que você teve um dia muito emocionante.
— Você ouviu corretamente.
— Toda vez que vejo você, sempre fico um pouco surpreso por você
ainda estar vivo. — Ele balançou a cabeça, largou a mochila e começou a
trabalhar em meu braço, que ainda doía muito. Mas quando levantei a
manga, ele olhou para as veias da minha pele, franzindo a testa e em
silêncio.
— Eu sei — eu disse. — Nada atrativo, não é?
— Você sabe o que é isso?
Fiz uma pausa, as palavras de Eomara ecoando em minha cabeça.
Agora parecia tão óbvio que fiquei surpreso por não termos percebido
antes.
— Eu acho — eu disse baixinho — que é algum tipo de A'Maril.
O olhar de Sammerin disparou para mim, seu silêncio não
escondendo seu alarme com o pensamento.
— Acho que a magia que Tisaanah e eu temos nos expõe. Eomara
teorizou sobre isso. E até mesmo Vardir disse algumas coisas que
implicavam… a magia que estávamos usando não era para corpos
humanos.
— E isso significaria A'Maril — murmurou Sammerin.
— Certo. — Olhei para minhas mãos, veias escuras, e pensei em
como as de Tisaanah eram muito mais escuras. — Eu não percebi até
alimentar Tisaanah com minha magia. Parecia que... ampliava tudo.
— Espere, você...
Eu dei a ele um encolher de ombros fraco.
— Como você disse. Foi um dia emocionante.
Sammerin recostou-se na cadeira, cruzando os braços e me olhando
com expectativa. Eu suspirei e, claro, eu disse a ele toda a desculpa.
Quando terminei, Sammerin soltou um longo suspiro.
— Isso soa…
— Inacreditável?
— Se eu não soubesse que você é um péssimo mentiroso, eu diria que
você está...se engrandecendo.
Soltei uma risada áspera.
— Essa é a nossa vida hoje em dia, não é?
Sammerin deu de ombros, como se concordasse. Então ele se inclinou
para frente, subitamente sério.
— Foi embora.
— Assim parece.
— Talvez seja muito cedo para fazer essa determinação. Se Tisaanah
está tão esgotada quanto você, pode ser apenas...
— Poderia ser. Mas Tisaanah está certa.
— Se for verdade — Sammerin murmurou — então nunca ficarei tão
feliz em ver algo morrer.
— Eu também.
E ainda assim, eu não conseguia me livrar da sensação de que isso
era... incompleto. Como se estivesse olhando todas as páginas que ainda
restavam antes do final do livro.
— Mas isso... — Os olhos de Sammerin voltaram para baixo. Ele
pegou meu braço e eu senti a sensação desagradável de meus músculos se
contraírem, bem abaixo da pele. Deixei escapar um ruído mudo de
desaprovação, mesmo que eu não conseguisse ficar realmente irritado.
Sammerin estava usando sua magia para falar com o tecido, procurando o
que quer que estivesse por baixo. Era assim que, por exemplo, ele
encontrava um osso quebrado ou um tendão cortado, identificava a
origem de uma lesão. Desconfortável, mas eficaz.
Ele franziu a testa.
— O que?— Perguntei.
— Parece A'Maril. Mas só vi quando comecei a procurar. É uma
variante estranha, nada que eu já tenha visto antes. Parece mais... uma
infecção... como se houvesse algo estranho... — Ele parou de falar, a boca
estreitada, a testa franzida. Então ele disse: — Não use essa magia por um
tempo.
— Isso não é um grande sacrifício. Adoraria nunca mais usá-la.
Sammerin apenas me lançou um olhar duro.
— Quero dizer. Algo está... — Ele franziu a testa e balançou a cabeça.
— Só não faça isso.
Capitulo Cinquenta e Oito
Tisaanah
Era quase o pôr do sol. Puxei meu casaco para mais perto de mim -
Ara estava ficando frio. Depois de Phylias e Riasha, havia outros a visitar,
mais refugiados que queriam falar comigo.
— Só mais uma coisa — eu ficava dizendo para Max. E,
eventualmente, ele apenas respondeu com um olhar inexpressivo.
— Você mal consegue ficar de pé. Inferno, eu mal posso ficar de pé.
Vamos.
— Mas há apenas...
— Alguém já lhe disse que você tem uma mente fechada? — Ele
inclinou meu queixo para ele. — Você não pode salvar o mundo ainda.
Mas estaremos de volta. Ei. Olhe para elas. — Ele acenou com a cabeça
para as pessoas nas ruas. Os prédios, embora degradados, aos poucos
foram sendo reformados e decorados. Antes, este lugar era tenso e vazio.
Agora, as crianças brincavam do lado de fora. Velhas bebericavam chá em
mesinhas. As pessoas cuidavam de jardins em vasos.
— Eles estão vivendo suas vidas — disse ele, calmamente. — E ainda
estarão quando você voltar.
Eu não sabia por que meus olhos estavam ardendo, mas assenti em
silêncio e peguei a mão de Max. Então fiz uma pausa, dando-lhe um olhar
de soslaio.
— O que? — ele disse.
— Você aprendeu Thereni.
Ele desviou o olhar, um pouco envergonhado.
— Mal. Principalmente em livros. Tenho certeza que minha
pronúncia é uma bagunça. Eu só pensei... — Seu olhar deslizou de volta
para mim. Quando ele falou em seguida, foi em um Thereni ruim e com
forte sotaque. — Sempre, você ouve palavras que não pertencem a você.
Eu quero... — Ele tropeçou, lutando. — Quero te dar, falar com você, nas
suas palavras. Sua voz.
Fechei os olhos, de repente achando difícil falar. Sim, ele estava certo.
Seu Thereni era terrível, o sotaque tão forte que era difícil de entender. E,
no entanto, o som da minha língua materna traduzido em sua voz parecia
a colisão de duas canções cantadas no fundo da minha alma, agora
entrelaçadas em perfeita harmonia. Parecia um lar.
Lar.
Eu apertei sua mão.
— Vamos para casa — eu engasguei.
Max nos mandou um estratagrama para longe.
Foi o cheiro que me atingiu primeiro
Deuses, havia mil lembranças naquele cheiro de sol e flores. Eu abri
meus olhos, e a visão disso me tirou o fôlego. O pequeno chalé de pedra
estava aninhado em um mar de flores silvestres, agora irremediavelmente
coberto de mato, como se a própria natureza tentasse envolvê-lo em um
abraço.
Apropriado. Foi assim que me senti também. Um abraço.
— Ascendido acima — Max murmurou. — Eu senti falta deste lugar.
Eu também. Eu tinha sentido tanta falta disso que não foi tão difícil
me livrar da minha culpa como um casaco manchado de sangue, pegar a
mão de Max e me deixar cair.
Capitulo Cinquenta e Nove
Aefe
Estava tão escuro lá dentro que, a princípio, não consegui ver nada.
Eu ouvi sussurros abafados de repente ficarem em silêncio. Lentamente, a
sala entrou em foco ao meu redor. Estávamos em uma grande sala circular.
A luz forte da porta entreaberta entrava por trás de nós, lançando um
rastro violento no chão. As paredes, como as colunas do lado de fora, eram
esculpidas. Um único banco de pedra curvo contornava o perímetro da
sala.
Naquele banco sentavam-se os humanos.
Havia talvez duas dúzias deles. A maioria eram homens, mas havia
algumas mulheres. Eles usavam diferentes estilos de roupas, embora a
maioria usasse roupas esvoaçantes que me lembravam as roupas do
Wyshraj. Quase metade deles tinha pele sem cor e cabelos brancos, como o
homem que encontrei em Meriata.
Eu abri minha boca para falar, porém, o que eu diria? Será que eles
me entenderiam? Mas então um dos humanos deu um passo à frente e
todas as palavras me deixaram.
A luz caiu sobre seu rosto pálido, refletindo os cabelos prateados à
luz do sol. Cabelo prateado e uma cicatriz que ia do canto da boca até a
orelha.
Instintivamente, minhas mãos dispararam para minhas lâminas. Mas
um dos outros humanos ergueu as mãos e minhas armas voaram pelo
chão, arranhando todo o caminho. Tentei dar um bote, mas a mão de Ishqa
ainda estava firme na minha, embora eu tentasse arrancá-la frustrada.
— Ishqa, vamos! — Engoli em seco, mas outro dos humanos se
aproximou de mim, olhando-me como um gato, e de repente minha
cabeça, meus pensamentos, estavam em uma agonia paralisante.
Eu não conseguia me mexer. Eu não conseguia respirar. Eu não
conseguia pensar.
E ainda, Ishqa não estava se movendo.
Ele soltou minha mão e eu desabei no chão, meus músculos de
repente fora do meu controle.
E foi então que ouvi oito palavras que me despedaçaram.
— Eu cumpri seu pedido — Ishqa disse, para o humano com
cicatrizes. — Agora você cumpre o nosso.
Tudo ficou dormente.
Todo o meu corpo estremeceu quando virei a cabeça para olhar para
Ishqa. Ele não olhou para mim.
O que você está fazendo?! Tentei gritar, mas meu corpo não era meu.
Uma dos humanos de cabelos brancos, uma jovem, ajoelhou-se ao
meu lado. Ela pegou meu rosto na mão e o virou, olhando para mim como
quem examina um cavalo para ser comprado. Ela disse algo para o
humano com cicatrizes em um idioma que eu não entendi, não entendi,
exceto por uma palavra:
Essnera.
O humano com cicatrizes sorriu, como se estivesse satisfeito com o
que ela havia dito a ele.
— Você não sabe quanto tempo e quanto trabalhamos para isso —
disse ele a Ishqa, com um forte sotaque. — Muitas das vidas do nosso povo
serão salvas.
Ishqa não retribuiu o sorriso. Um sorriso de escárnio se contraiu em
seu lábio. Ainda assim, ele cuidadosamente evitou meu olhar.
— Você já tomou muitos dos nossos.
— Só por desespero. Ações das quais lamentamos sinceramente.
— Bem. Agora não será mais necessário. — Ele abaixou a cabeça. —
A rainha Shadya aprecia sua aliança.
Entendi. A traição sangrou através de mim como a lágrima de uma
adaga. Tentei gritar, tentei berrar, tentei atacar Ishqa. Se eu pudesse me
mover, teria arrancado seu crânio de seu corpo. Eu teria arrancado os
olhos daquele lindo rosto.
Mas eu não conseguia me mover.
Eu não conseguia nem chorar.
— Da mesma forma — disse o humano com cicatrizes, e abaixou a
cabeça.
Ishqa começou a se virar. Então ele fez uma pausa e olhou para mim.
Algo estremeceu em seu rosto.
— É realmente tão poderosa? — ele disse, baixinho. — A coisa que
ela vai se tornar?
O humano sorriu.
— É a coisa mais poderosa que o mundo jamais verá.
Um dos outros humanos me tocou e a agonia me consumiu. Dois
pares de mãos me colocaram de pé. Meus membros estavam flácidos, mas
lutei, lutei com tudo o que tinha contra o feitiço que me consumia.
Por apenas um momento, eu quebrei isso. Meus membros se
debateram. Mais dois humanos estavam em mim. Meus olhos estavam
embaçados com lágrimas.
— ISHQA! — Eu gritei. — Você não pode me deixar aqui!
Eles estavam me arrastando de volta, me arrastando contra o chão.
Eu vi apenas os olhos dourados de Ishqa olhando para mim, seu rosto de
pedra.
— Você não pode fazer isso comigo!
Pensei na Casa dos Juncos e naqueles monstros.
Eu me tornaria um monstro também?
Minha consciência diminuiu, minha visão ficando branca e
embaçada. Eu estava sendo arrastada para cada vez mais longe de Ishqa.
ISHQA!
Não sei se gritei alto.
A última coisa que vi foi ele se virando, seu cabelo dourado voando
para trás em uma súbita rajada de vento.
E então minha visão foi consumida por branco, branco e branco...
Capitulo sessenta e sete
Tisaanah
— Conheceu... Reshaye?
A testa de Max enrugou e ele olhou para Ishqa com suspeita abjeta.
Ele ainda estava parcialmente na minha frente, como se para me proteger.
Mas Ishqa não parecia ter nenhum interesse em violência. Era estranho, na
verdade, o jeito que ele estava olhando para mim.
— Antes — disse ele calmamente. — Muito tempo atrás. Sim.
Talvez houvesse algum fragmento de Reshaye que ainda vivesse
dentro de mim, porque eu podia sentir algo latejando em meu âmago,
furioso ao vê-lo.
— Você tem ela — disse ele. — Eu posso sentir isso em você.
Ele deu um passo à frente e, com o movimento, as chamas rasgaram o
bastão de Max, fervendo no fio da lâmina. E com isso, Ishqa parou, seus
olhos estalando em Max.
— Você. Você a teve também. Sua magia, parece…
Ele parou, como se não soubesse qual palavra escolher.
Meus olhos caíram em seus ouvidos. Suas orelhas pontudas.
— Você é feérico. — Os mundos escaparam de meus lábios sem
minha permissão.
— Eu sou.
— Mas os feéricos... se foram.
— Não. Embora por muito tempo tenhamos preferido que os
humanos pensassem que sim. — Ishqa olhou para Max, que ainda o
encarava cautelosamente, arma pronta. — Você pode colocar isso para
baixo. Eu não salvaria vocês apenas para matá-los.
— E por que, exatamente, você nos salvaria?
— Porque algo muito pior do que o que você acabou de testemunhar
está chegando — disse ele. — E eu preciso da sua ajuda para impedir que
isso aconteça. — Ele limpou a garganta e, por um momento, ele realmente
pareceu constrangido - uma sombra estranha em um rosto que parecia tão
desumanamente elegante. — Entendo que o que estou prestes a contar vai
soar... inacreditável. Mas eu estou pedindo para vocês ouvirem. Por favor.
Max fez uma pausa e abaixou a arma, embora ainda a segurasse com
cuidado ao lado do corpo.
— Os feéricos nunca foram embora. Mas durante séculos, chegamos
muito perto disso. Antigamente, estávamos tão divididos que nada era
mais importante para nós do que destruir Casas rivais. Centenas de anos
atrás, em um conflito que caiu de seus livros de história, humanos e
feéricos se enfrentaram. Seu povo, dilacerado pela guerra e embriagado
pelo derramamento de sangue, eventualmente voltou essa agressão contra
nós. Eles assassinaram casas feéricas inteiras e destruíram nossas cidades
em busca do poder de que precisavam para vencer suas próprias guerras.
— Um lampejo de arrependimento passou pelo rosto de Ishqa. —
Estávamos tão divididos, então. Cegos. Em vez de enfrentar uma ameaça
iminente nos unindo, usamos isso como uma oportunidade para reduzir
nossos rivais. Eu acreditava nisso tanto quanto em qualquer outro.
Ele fez uma pausa, e aqueles olhos dourados enervantes ergueram-se
para nós, segurando apenas um toque de vergonha.
— Eu dei alguém aos humanos... — Ele tropeçou em suas palavras.
—Alguém que confiou em mim, em troca de sua aliança. O poder para
vencer suas guerras em troca do poder que eu precisava para vencer a
minha. Ela tinha uma magia rara entre os feéricos. E quando eu a dei a
eles, eles usaram seu poder para criar uma arma cataclísmica. A arma que
você agora conhece.
Minha boca estava seca.
— Reshaye — eu disse, calmamente. — Você deu a eles Reshaye.
Max xingou baixinho.
Ishqa disse solenemente:
— Essa traição foi o maior erro que já cometi.
— Um erro. — Max balançou a cabeça. Os nós dos dedos estavam
brancos ao redor do cajado. — Você entende quantas pessoas estão mortas
por causa desse ato? Isso é maior do que um maldito erro.
— Eu entendo. Sim.
— Então, por que você está aqui agora, centenas de anos depois?
— Tínhamos nossas próprias batalhas para lutar. Os humanos e seus
monstros desapareceram de nossas mentes, assim como os feéricos
desapareceram da sua. Mas agora… — O olhar de Ishqa foi para longe. —
As coisas começaram a mudar. Um novo rei surgiu, unindo o que restou
dos feéricos dispersos em uma Casa única. Antes dele, eu nunca teria
pensado que seria possível ver meu povo se tornar inteiro novamente. E
tem sido... maior do que eu jamais imaginei.
E então aquela admiração desapareceu, sua expressão endurecendo.
— A dedicação e a visão do meu rei permitiram que ele reconstruísse
nossa civilização, sim. Mas essas qualidades podem facilmente ser
distorcidas em obsessão sombria. É essa escuridão que está vindo para
vocês. Começando com o que vocês experimentaram esta noite.
Uma batida de silêncio. As palavras me escaparam.
— Deixe-me ter certeza de que entendi. — Max beliscou a ponta do
nariz. — Você está dizendo que um rei feérico louco é responsável pelos
monstros à nossa porta?
Ridículo. Totalmente ridículo. Minha mente lutou para conceder-lhe
a menor chance de verdade
— Ele tem motivos de sobra para odiar vocês — Ishqa disse,
calmamente, — Há muito tempo, os humanos massacraram muitos de
nosso povo para se salvarem uns dos outros. Suas vidas são tão curtas em
comparação com as nossas. Esses dias não passam de uma sombra distante
nas memórias perdidas de seus ancestrais. Mas nós? Nós vivemos isso, e
aquela dor e raiva ainda ardem dentro de nós. Tudo o que precisa é de
uma única faísca. — Seu lábio se contraiu, uma sugestão de escárnio. — E
alguém entre vocês ousou provocar isso.
Minhas sobrancelhas se ergueram por vontade própria.
— Provocou como?
— Feéricos desapareceram. Não muitos deles, mas o rei tem certeza
de que é obra dos humanos.
— Trabalho de quais humanos? — Max disse. — Existem milhões de
nós, em centenas de países totalmente não relacionados.
— Os humanos não se importavam com qual de nosso povo, nossas
Casas, eles teriam que abater para conseguir o que queriam — disse Ishqa,
bruscamente. — Perdoe-nos se muitos não estão dispostos a estender uma
cortesia maior, não quando nosso...
Ele fechou a boca abruptamente, deixando escapar um longo suspiro.
Quando voltou a falar, suas palavras foram cuidadosas e comedidas.
— Se for para ser honesto, eu odeio o seu tipo também pelo que
fizeram. Mas meu rei caminha por um caminho sombrio. — Ele deu um
passo à frente, seus olhos dourados queimando. — Talvez eu não tenha
sido claro. Ele quer matar todos vocês. Cada um. Ele é um grande rei
porque valoriza cada vida feérica. E por essa mesma razão, ele será um
adversário implacável. — Aqueles olhos caíram sobre mim. — E ele tem
procurado por vocês, para fazer isso. Pelo que vocês têm. Por quem vocês
têm.
Minha boca estava seca, minha cabeça girando. E através daquela
névoa, uma compreensão lenta caiu sobre mim.
O olhar que senti em meus sonhos. Os sussurros. A mão que alcança.
Estive procurando por você.
Não. Eram apenas sonhos.
Você sabia que não eram apenas sonhos.
Minha boca se abriu, mas eu não conseguia falar. Eu senti como se
estivesse ficando louca. Como se as incríveis probabilidades contra nós não
fossem suficientes. Como se já não tivéssemos essas ameaças terríveis
pairando sobre nós.
E agora... isso?
— Então eu tenho más notícias para ele — disse Max. — Reshaye se
foi.
As sobrancelhas de Ishqa se ergueram, embora o resto de seu rosto
permanecesse completamente imóvel.
— Se foi?
— Morta — eu disse.
Ishqa franziu a testa.
— Não sei se é possível que uma coisa dessas morra — disse ele
calmamente. — E ele ainda virá buscá-la, mesmo que seja apenas pelas
cinzas. Ele é obcecado. Ele nunca vai parar de procurá-la. Não em você. —
Seus olhos deslizaram para Max. — E não em você também.
Toda vez que fechava os olhos, via aquela caixa cheia de mãos. Meus
nervos estavam à flor da pele, muito perto da superfície da minha pele.
— E os Zorokovs? — Perguntei. — Que papel eles desempenham
nisso?
— Os... Zorokovs?
— A família Zorokov. Os Threllianos. Os responsáveis por essas...
essas coisas. A mensagem que eles nos trouxeram veio deles.
Ishqa olhou fixamente para mim. E então, a realização inundou seu
rosto.
— O rei estaria disposto a criar alianças temporárias. Eu... deixei seu
círculo íntimo. Mas, pelo que sei, falava-se de tal coisa. Aliança com alguns
humanos, para conseguir os números que precisava para fazer o que
desejava. Apesar de todos os seus defeitos... ele não está disposto a
comprometer a vida de feéricos. — Uma ruga se aprofundou entre as
sobrancelhas de Ishqa. — Se ele fez isso, então talvez as coisas estejam indo
ainda mais rápido do que eu temia. E é a prova maior do que nunca de que
devemos agir rapidamente.
— Eu disse a você que se foi — eu engasguei.
Mesmo que eu quisesse ajudar, não poderia. Eu era inútil.
— Não acredito que tenha realmente desaparecido. Seria difícil, se
não impossível, destruir de verdade. Se você me deixar tentar, eu poderia...
— Você poderia o quê? — Max disse. — Trazer essa coisa de volta ao
mundo? Tudo o que você acabou de nos contar é apenas mais um motivo
para deixá-lo enterrado.
Ishqa deu a Max um olhar de pena.
— Não vai ficar enterrado. É apenas uma questão de saber se somos
nós a usá-lo, ou ele é.
Um arrepio percorreu minha espinha.
— Nós? — Max disse. — E o que esse 'nós' faria, exatamente?
Digamos que concordamos. Digamos que deixamos você... deixamos você
usar suas magias feéricas para trazer Reshaye de volta à vida. Então o que?
— Seu olhar deslizou para mim. — Ela se torna sua arma, neste seu plano?
Ishqa ficou em silêncio, apenas o tempo suficiente para dar a resposta
que não expressou.
— Não tenho prazer em pedir isso a você — disse ele.
Max soltou uma lufada de ar por entre os dentes e balançou a cabeça,
sua linguagem corporal declarando sua rejeição antes de suas palavras:
Não. Absolutamente não.
E, no entanto, uma pequena parte de mim que sentiu o terrível
silêncio em minha magia onde antes havia tanto poder... e estaria disposta
a fazer qualquer coisa para trazê-la de volta.
Mas então, a memória me inundou. A sensação daquela carne pálida
contra meus dedos. Aquela caixa de morte horrível e sem sentido. Aqueles
gritos agonizantes.
Eu me senti doente.
Eu não poderia fazer isso, não poderia me tornar uma salvadora para
outro povo quando ainda não poderia salvar o meu.
— Não. Eu já fiz isso. Eu já me troquei pela guerra de outra pessoa.
Mas onde isso deixa as pessoas que precisam de mim? Você espera que eu
as abandone para que eu possa me tornar sua arma?
Ishqa me lançou um olhar compreensivo.
— Esta não é a guerra de outra pessoa. Esta será a sua guerra, quer
você goste ou não.
— Então por que você está aqui? — Max exigiu. — Você está aqui
para salvar a civilização humana de... por quê, benevolência?
A boca de Ishqa se afinou.
— Preciso de um motivo?
Max olhou para ele como se fosse uma resposta insultuosamente
estúpida. E foi. Tudo o que nos disse foi que Ishqa não queria nos dar a
verdadeira resposta, o que não ajudou muito a inspirar confiança.
A frustração fervilhava sob as feições imaculadas de Ishqa.
— Estou contando a verdade. Isso está vindo, mesmo que vocês
decidam ignorá-la. Então o que vocês vão fazer? Nada?
A boca de Max abriu, depois fechou. Ele olhou para mim, uma
conversa silenciosa acontecendo entre nós.
— Não podemos fazer nada aqui, agora — eu disse. — Nós
precisamos…
Um minuto. Um minuto para pensar. Um minuto para considerar. Porque
agora, tudo isso parece um sonho distorcido.
E isso foi resposta suficiente para Max. Ele se virou para Ishqa, com o
maxilar cerrado.
— Envie-nos de volta. Não sei onde diabos estamos, então não posso.
Ishqa não se mexeu por um longo momento, então se aproximou de
nós, um pedaço de pergaminho dobrado entre os dedos. Seus olhos
procuraram nossos rostos.
— Se vocês quiserem sair, não vou impedi-los. Mas... peguem isso
também.
Ali, junto com o pergaminho, colocou uma pena de ouro prateado.
— Queimem isso quando tiverem tomado uma decisão — disse ele,
— e eu irei até vocês.
Max desdobrou o pergaminho, revelando um delicado Estratagrama.
E Ishqa ficou lá, parado até o último segundo, quando deu um salto para a
frente.
— Meu filho — ele disse, sua voz áspera. — Meu filho está entre os
feéricos que estão desaparecidos. Sinto a mesma raiva que meu rei sente, o
mesmo desejo de incendiar este mundo que o tirou de mim. De ver seu
povo destruído por sua parte nisso. Mas eu vi onde esse ódio leva. Estou
vindo até vocês como um aliado e não como um vingador.
Ele deu um passo para trás e o mundo já estava começando a se
dissolver quando ele disse:
— Pensem no que eu disse. Por favor.
Capitulo Setenta
Max.
Nura abriu a porta e ficou parada ali, com os olhos arregalados, como
se estivesse olhando para um par de fantasmas.
Seu casaco não era mais branco. Metade dela estava encharcado com
respingos de carmesim, e o resto estava coberto de manchas estranhas que
floresciam da cor de flores murchas.
Todos nos entreolhamos em um silêncio perplexo.
Tisaanah e eu mal havíamos chegado às Torres. E eu nem tinha
certeza de por que viemos aqui, de todos os lugares, talvez fosse apenas
porque agora, literalmente, não tínhamos outro lugar para ir. O estragrama
de Ishqa nos trouxe até Ara, e depois disso consegui nos levar até as
Torres, embora minha magia fosse tão fraca que foi uma luta. Fizemos uma
grande agitação quando pousamos. Claro. Estávamos meio vestidos,
cobertos de sangue e geralmente parecíamos loucos.
Bem, eu estava disposto a abraçar essa imagem. Eu me sentia louco.
Agarrei a pessoa mais próxima que usava o selo da Ordem e exigi ver
Nura.
Eu não esperava que ela se parecesse com isso.
Lutei ao lado de Nura durante anos, mas nunca a tinha visto assim.
Sim, havia o sangue e a sujeira. Mas sua aparência desgrenhada não era
tão desconcertante quanto o olhar meio apavorado em seu rosto.
Ela fechou a porta e cedeu contra ela.
— Ascendido acima, porra — ela murmurou, pressionando a palma
da mão no olho. — Eu pensei que vocês dois estavam... Você sabe quanto
tempo eu procurei?
— Nura, o que aconteceu? — perguntei, e Nura bufou.
— O que aconteceu? Acabei de chegar da sua casa. Ou o que sobrou
dela.
O que sobrou dela. Essa declaração me deu um chute no estômago.
— Então você as viu — disse Tisaanah, calmamente. — As...
criaturas.
— Elas mataram oito Syrizen.
Xinguei baixinho. Estive em batalhas de milhares que não
conseguiram eliminar tantas Syrizen de uma só vez.
Nura não olhou para mim. Em vez disso, seus olhos continuaram
indo para longe, como se embaralhando cenários que só ela podia ver. Ela
parecia apavorada. Inferno, ela estava tremendo.
Uma realização caiu no lugar. Isso não foi um choque. Isso foi pior do
que choque. Era um horror, o horror de alguém que sabia exatamente o que
estava enfrentando e o quão ruim era.
— Você sabe de uma coisa — eu murmurei. — O que foi, Nura?
Seu olhar se voltou para mim. Por um momento, vi algo ali que não
via nos olhos de Nura havia quase dez anos: medo puro, o tipo de
vulnerabilidade que ela passara tanto tempo tentando proteger
cuidadosamente do mundo.
Ela engoliu em seco.
— Preciso mostrar uma coisa — disse ela.
Eu nem sabia que as Torres ficavam tão abaixo do solo. Nura nos
levou além do andar de entrada, até mesmo abaixo dos níveis mais baixos
usados para armazenamento. No entanto, quando a plataforma finalmente
parou, o corredor diante de nós não parecia um porão subterrâneo. Era
branco, limpo e adornado com prata, assim como os outros corredores da
Torre da Meia-Noite, bem iluminado, embora não houvesse janelas.
Nura não falava enquanto caminhávamos. Ela nos conduziu pelo
corredor, passando por várias portas pesadas fechadas, até chegarmos ao
final. Ela abriu a última porta e nos conduziu para o que parecia ser um
escritório. As prateleiras estavam cheias de livros que, à primeira vista,
pareciam ser ainda mais antigos do que os volumes das bibliotecas das
Torres. Havia mesas espalhadas pela sala, uma coberta de livros, outra
coberta de anotações rabiscadas, outra segurando muitos potes de vidro e
frascos de várias substâncias.
— Velhos amigos! — uma voz áspera sibilou atrás de nós.
Eu fiquei tenso. Ascendido acima. Não poderia ser.
Eu me virei e imediatamente amaldiçoei.
— O que ele está fazendo aqui?
Vardir, que estava sentado em uma das mesas bagunçadas, aqui, nas
Torres, e não apodrecendo sua vida em Ilyzath sorriu para mim.
— Como o destino veria isso! Nos encontrarmos novamente tão cedo.
— Seus olhos selvagens caíram para Tisaanah, e o sorriso se alargou, veias
surgindo sob a pele fina como papel de seu pescoço. — E com uma
companhia tão interessante. Não tenho estado tão revigorado em...
— Vardir — disse Nura, secamente — deixe-nos.
— Deixar? Tão cedo? Mas temos tanto para...
— Posso mandá-lo para o seu quarto ou posso mandá-lo de volta
para Ilyzath. Sua escolha. Vá.
Vardir franziu a testa, mas levantou-se a contragosto. Olhei
furiosamente para Nura, que foi até uma das outras mesas do outro lado
da sala, de costas para nós.
— O que ele está fazendo aqui? — Eu disse novamente.
— Eu precisava dele.
Eu não gostei dessa resposta. Vardir não tinha nada de bom para
contribuir com este mundo.
— Precisava dele para quê? — Tisaanah perguntou.
Vardir bateu a porta atrás de si ao sair, deixando-nos em um silêncio
pesado. Nura não se virou.
— Tem muita coisa que eu preciso explicar para vocês — ela disse. —
E vai ser difícil para mim.
Ela se virou. Em suas mãos repousava uma tigela longa e rasa de
ouro martelado. Líquido fino e prateado encheu-o até a borda e, na
superfície imóvel como vidro, havia um estratagrama carmesim, mantendo
sua forma com uma imobilidade antinatural, mesmo quando Nura se
aproximou de nós.
Minha testa franziu.
— Isso é...
— Sim. — Ela olhou para o conteúdo da tigela, franzindo a testa. A
expressão em seu rosto fez a pele da minha nuca formigar. Tão diferente
da versão dela que eu conhecia há tanto tempo.
— Você sabe, todo mundo pensa que eu sou tão insensível. Tão fria.
— Seu lábio se contraiu. — Tudo porque eu não corro por aí derramando
minha alma. Tudo porque palavras não são suficientes para...
Ela parou.
— O que é isso? — Tisaanah perguntou.
— Isto é um feitiço. Raro e difícil de lançar. Só pode ser criado por
Valtain e usado apenas uma vez. Isso vai mostrar... eu. Minhas memórias.
Fiquei sem palavras.
Eu não podia acreditar. De todas as coisas ridículas que aconteceram
nas últimas vinte e quatro horas, isso quase superou todas. Dar a alguém
acesso às suas memórias era um ato profundamente vulnerável,
especialmente porque tal feitiço não conseguia definir totalmente o que o
receptor via. A ideia de Nura fazer isso – Nura, que protegera seus
pensamentos e seu coração com arame farpado mesmo quando éramos as
pessoas mais importantes na vida um do outra – parecia absolutamente
ridícula.
— Por que? — Eu deixei escapar.
Seus olhos encontraram os meus, um apelo silencioso neles.
— Porque há tanto que preciso fazer vocês entenderem.
Ver Nura assim me fez arrepiar os cabelos da nuca. Havia um humor
cruel nisso. Uma década atrás, eu teria valorizado essa intimidade. Agora
estava sendo oferecido a mim anos depois, não por qualquer aparência de
amor, mas por... o quê? Medo?
Ela limpou a garganta.
— Bem? Vocês querem ficar por aí fazendo mais perguntas ou
querem respostas?
Eu não tinha certeza se queria essas respostas.
Mas deslizei meus dedos no líquido frio de qualquer maneira.
Tisaanah fez o mesmo. E, finalmente, Nura também, pressionando as
palmas das mãos no fundo da tigela.
Ela fechou os olhos e sua magia rolou sobre nós como uma onda
quebrando.
E com ele veio o passado.
Capitulo setenta e um
Nura
Nura tem dez anos. Ela está em uma festa organizada por um dos
parceiros de negócios de sua avó. Ela nunca tinha visto uma casa como
esta antes. Parece mais uma cidade do que uma casa. Há tantas pessoas
aqui e, no entanto, tudo consegue ser terrivelmente monótono. Nura está
muito, muito entediada.
Eventualmente, ela sai para fazer beicinho no canto, apenas para
descobrir que outra pessoa já está fazendo beicinho lá. O menino tem mais
ou menos a idade dela, cabelos e olhos escuros e uma aura geral de
desagrado por ter que sofrer com esse acontecimento. Ele estala os dedos e
fracas baforadas de chamas explodem entre eles.
Isso chama a atenção dela.
Um Portador. Como ela.
Ela se senta ao lado dele.
— Qual o seu nome?
— Maxantarius — diz o menino.
Nura faz uma careta. De onde ela veio, as pessoas recebem nomes
como Jon ou Erik.
O menino desvia o olhar.
— Eu sei que é um nome estúpido.
— É — diz ela.
Sua única resposta é estalar os dedos e liberar outra pequena centelha
de chama. Quando ele o faz, ela envia sua própria magia para enfrentá-lo,
um sopro de ar para soprá-la como lábios para uma vela. Pela primeira
vez, ela chama a atenção dele, um olhar que é em parte assustado, em
parte insultado, em parte intrigado.
Ela gosta desse visual, ela decide.
— Sou Nura — diz ela. E então acrescenta, após um momento de
reflexão: — Vou chamá-lo de Max.
Nura tem doze. Os anos passaram rápido. Ela e Max não fizeram
nada além de treinar, levados a uma busca sem fim pela perfeição por
Brayan. Ela nunca esteve tão exausta. E, no entanto, é fácil se comprometer
tão completamente quando isso significa que ela pode estar com os
Farliones, a mãe gentil de Max, seu pai amigável, seus irmãos que a
acolhem em suas disputas afetuosas, Brayan que a trata como se ela
realmente tivesse potencial. E claro, Max, o melhor amigo que ela já teve.
Agora, os dois estão na porta das Torres. Max tem um maxilar
trincado e um olhar cauteloso, mascarando uma incerteza secreta. Ela
também está insegura, mesmo que não admita.
— Os militares vão ser melhores do que ficar presos sozinhos em
algum aprendizado no campo — diz ele.
As palavras-chave são: Por nós mesmos.
Ela é uma Valtain e ele é um Solarie. Nos treinos, eles estavam
sozinhos. Pelo menos aqui, eles estarão juntos.
Além disso, que outra escolha existe? Para Max, não há nenhuma. Ele
se juntará ao exército, como seu irmão, seu pai e seu avô fizeram antes
dele, e ele se destacará, porque é isso que os homens Farlione fazem.
Nura também será excelente, ela decide. Tão boa quanto ele.
Melhor, até.
O nome dela é o primeiro nos papéis de alistamento.
Nura tem quinze anos. Ela aprendeu a dominar sua magia,
manejando a luz, a água, o ar e os pensamentos dos outros, mas acima de
tudo ela tem o dom de manejar o medo. Isso, ela pensa, faz sentido, ela
passou a vida controlando seu próprio medo. Não é de admirar que ela
fosse tão hábil em controlar isso nos outros.
Max também ficou bom. Ele fala com as chamas como se fossem
outra parte dele, e suas habilidades de combate ganham sussurros
impressionados entre os instrutores. Isso faz a pele de Nura formigar de
ciúme. Ela se pergunta como seria ser objeto de tais risadinhas.
Mas então eles dizem: Bem, é claro. Ele é um Farlione.
Claro. Ele é um Farlione, membro de uma dinastia militar, e ela é
uma menina órfã que passou a vida agarrada a seus casacos.
Mas Max não parece ouvir os murmúrios satisfeitos. Sempre, eles são
abafados pela insatisfação de seu irmão. Ele ainda se joga nos treinos como
quem tem tudo para prova.
Secretamente, Nura agradece por isso, pois tem certeza de que assim
que ele acreditar em tudo que todos dizem sobre ele, ele a deixará para
trás. E quando eles caem no chão após a quinta, décima ou décima sétima
rodada de treino, e ele conta alguma piada ou dá a ela o tipo certo de olhar
de soslaio, algo que ela não consegue identificar se agita em seu estômago.
E naquele momento, a ideia de ser deixada para trás por ele é a coisa
mais terrível que ela pode imaginar.
Max está muito doente. Ele não consegue engolir nada, nem mesmo
água. Nura mantém-se calma por fora, mas por dentro cresce um nó de
preocupação. Ela fica ao lado da cama dele e não sai.
Ele havia sido chamado para algum favor especial ao
arquicomandante e voltou assim. Ela não sabe o que fizeram com ele. Mas
mesmo que tivessem contado a ela, ela não teria entendido. Reshaye é o
tipo de coisa que precisa ser testemunhada para ser acreditada.
Dias depois, os olhos de Max se abrem e alguém que não é ele olha
através deles. Ela sabe imediatamente, ela conhece Max bem o suficiente
para reconhecer a diferença, mesmo antes de ele abrir a boca. Na primeira
vez, são apenas algumas palavras confusas que mal fazem sentido, e os
dedos dele no rosto dela, como se ele tivesse esquecido como é um ser
humano.
Ele explica a ela, mais tarde, o que é. Ele mesmo parece não entender.
Mas o Arquicomandante trabalha em estreita colaboração com ele, assim
como Vardir. Ela observa enquanto eles o treinam. Ainda assim, ela não
compreende verdadeiramente o poder do que ele detém até que um dia,
algum fio de controle se quebra dentro dele, e ele nivela todo o anel de
treinamento sem hesitar. É pura sorte que Nura, Vardir e o
Arquicomandante consigam escapar ilesos. Apesar da destruição, Vardir
está alegremente encantado, e o Arquicomandante está severamente
satisfeito. Nura não tem certeza se está mais impressionada ou com medo.
Talvez ambos.
O tempo passa. A guerra torna-se mais sangrenta. Reshaye fica mais
confortável na pele de Max, embora, para Max, seja o contrário. A primeira
vez que ele usa Reshaye em batalha, sua vitória é tão rápida e indiscutível
que deixa Nura sem palavras. Todo mundo está emocionado. Mas depois,
Max se retira, deixando a festa mais cedo. Ela vai para o apartamento dele
depois e o encontra sentado no escuro, olhando para a parede.
— Max? Você está bem?
Ele olha por cima do ombro para ela. Por uma fração de segundo, não
é ele. Então a familiaridade ganha vida como uma vela.
— Apenas cansado — ele diz, dando a ela um sorriso fraco, mas
Ascendido, ele sempre foi um péssimo mentiroso.
Nura tem vinte e dois anos e nada poderia tê-la preparado para isso.
Pessoas com quem ela lutou por uma década gritavam em agonia nas ruas
e ela simplesmente passava correndo. Ela virou uma esquina e viu seu
comandante morrer de forma brutal, uma lança rebelde empalando seu
peito. E como todo o resto, ela se virou e o deixou. O que ela poderia fazer?
Esta deveria ter sido uma missão de rotina. A cidade de Sarlazai nem
deveria ser seu destino final. Mas os rebeldes estavam esperando e os
emboscaram, emboscaram-nos aqui, praticamente destruindo sua própria
cidade. A pura insensibilidade disso a oprime.
Quando ela volta ao ponto de encontro, fica claro que se trata de uma
matança, sem caminho para a vitória. Uma percepção terrível caiu sobre
ela quando ela finalmente reconheceu um rosto familiar na fumaça. Ela
agarra o amigo e o puxa de volta para um beco, protegido, embora mal, da
luta.
Max é um bom lutador. Seu bastão está em sua garganta
imediatamente.
— Não se atreva a me matar — diz ela. — Há uma centena de
rebeldes que preferem fazer isso.
Seu bastão cai. O olhar de puro alívio em seu rosto quando ele a
reconhece é devastador. Então ela vê o quanto ele está sangrando e seu
estômago revira.
— Quanto disso é seu? — ele pergunta, observando o sangue em seu
próprio casaco, e ela balança a cabeça.
— Quanto disso é seu?
— Tão ruim assim?
— Muito ruim. Você não sente isso?
Seus olhos estão bem abertos, mas ela pode dizer que ele está
entrando e saindo da consciência. O medo aperta em seu peito. Ele não
ficará de pé, não assim, não sem um curador. Não sem...
— Precisamos recuar — ele diz a ela.
Mas Nura está cansada de recuar. Eles vão recuar hoje e deixar para
trás uma enorme quantidade de cadáveres que deram suas vidas por nada.
Amanhã ou na próxima semana ou no próximo mês, ela estará embalando
outro filho moribundo ou mãe chorando. Ela jogará as cinzas de outro
camarada no mar, onde serão arrastadas e perdidas, como um milhão de
outras antes delas.
Isso nunca vai parar.
E ela não tem mais nada para dar.
As mãos dela estão em suas bochechas.
— Nós temos você — ela sussurra. — Nós temos você.
A repulsa atravessa seu rosto.
— De jeito nenhum.
— Se eles querem cagar em suas próprias camas, podem deitar nela.
As palavras são tão duras que picam seus lábios. Mas ela está com
raiva. Estes são inocentes, sofrendo aqui. E os rebeldes começaram isso
aqui, ateando fogo em sua própria casa.
No entanto, a dor que pisca no rosto de seu amigo aperta seu coração.
É tão cru. Mesmo quando todos ficaram frios de pura exaustão, ele
manteve aquela ingenuidade maravilhosa e perigosa.
— Não posso — ele diz a ela, e ela entende que é a verdade.
Ele havia recebido um presente. Mas ele é muito gentil para usá-lo.
Mesmo que fazer essa coisa terrível salve a vida de milhares.
Ela ama ele. Ela nunca se permitiu pensar nisso nesses termos, nem
mesmo sozinha. É uma palavra perigosa. Só agora, no fim do mundo, ela
se deixa sentir.
Os dedos dela se movem para a têmpora dele. Ela pode sentir a
mente dele sob sua magia. Ela já conhece a forma dele. Ela nunca conheceu
ninguém tão bem.
Seria uma honra deixá-lo matá-la.
— Esse coração bom vai te matar um dia — ela murmura.
E então ela alcança sua mente, empurrando brutalmente com força,
profundamente. Rasgando a porta que ele guardou com tanto cuidado.
Liberando o incrível poder de fim de guerra dentro dele.
Ela vê o exato momento em que seus olhos mudam, da traição ao
medo para a fúria. Ela quase diz a ele que sente muito. Ela nunca saberá se
as palavras escaparem de seus lábios.
Porque então, o fogo está em toda parte, e ela está no chão, vendo
nada além de chamas e chamas e a morte estendendo suas mãos para ela.
Nura não se lembra de nada além da dor.
Eles lhe dão uma cadeira de rodas que ela pode usar para se
movimentar até que esteja bem o suficiente para andar. Até isso dói
terrivelmente, mas ela ouve até descobrir onde Max está e se dirige para o
quarto dele em outro lugar nas Torres.
Os sons que ela ouve de dentro fazem todos os seus músculos
congelarem.
Sua voz está mutilada pela agonia. Há um estrondo, como se coisas
estivessem sendo arremessadas ou punhos batendo contra as paredes. Ela
ouve enquanto sua explosão ruge em um crescendo e então cai em um
silêncio abafado.
Suas próprias lágrimas estão caindo silenciosamente por suas
bochechas. Uma mão está pressionada sobre sua boca, seus olhos bem
fechados.
Tudo isso é culpa dela.
Ela quer ficar com ele. Ela quer segurá-lo até que o mundo fique
quieto, quer confortá-lo, sofrer com ele. Ela quer cair de joelhos e implorar
por seu perdão. Ela quer esculpir seu coração e colocá-lo em suas mãos –
eu sei que isso não é muito, mas aqui está, e vou passar o resto da minha
vida tentando compensar a destruição das melhores coisas de nossas
vidas.
Mas ela não pode se mover.
Ela não tem certeza de quanto tempo se passou quando a porta se
abriu e Sammerin saiu. Ele lhe dá um olhar frio.
— Você vai entrar?
Ela demora muito para responder. Mas finalmente ela diz:
— Não — e nunca se sentiu tão covarde.
Sammerin se vira.
— Ótimo — diz ele, e a deixa sozinha no corredor, ouvindo o choro
do amigo.
Nura não se importa quando o título que ela mais queria é dado à
pessoa que ela mais odeia. Zeryth Aldris não ganha o título de
Arquicomandante. É entregue a ele pela duvidosa honra de ser o último
candidato restante. Maia Azeroth está morta.
Os ferimentos de Nura a forçaram a retirar-se da consideração. E Max
pode ter escapado de Ilyzath, mas pesadas restrições ainda foram impostas
a ele pelas Ordens, proibindo-o de perseguir o título.
Não que ele tenha qualquer desejo por tal coisa, agora.
Nura vai para o apartamento dele alguns meses depois. Quando ele
abre a porta, ela não consegue explicar tudo o que se passa dentro dela. As
palavras são muito complicadas. E assim, como costumavam fazer uma
vida atrás, eles se jogam um no outro. Talvez ambos pensem que podem
recuperar algum conforto do calor do corpo um do outro. Mas até seus
corpos não são mais familiares, marcados permanentemente por tudo que
os destruiu. Ela vê apenas um lampejo de tristeza no rosto dele quando ela
rasga a camisa sobre a cabeça e ele vê toda a extensão de suas
queimaduras. Então desaparece sob a fome selvagem e feroz.
O encontro deles é uma pantomima sem alma de algo quebrado que
eles haviam feito centenas de vezes antes. Não havia amor nisso, apenas
raiva, mágoa e o desejo de superar o presente. Quando o clímax
desaparece, Nura não sente nada além de vergonha.
Ela se vira e olha para ele. Seus olhos são diferentes – azul leitoso
agora, como se de alguma forma tivessem sido consumidos por catarata –
mas isso não é o que mais a impressiona. É o vazio odioso em seu olhar
que desliza entre suas costelas como uma lâmina.
Isso foi um erro. Para que ela veio aqui? Uma chance de recuperar
algo que eles já tiveram? Não há mais nada para salvar.
Ela não diz uma palavra para ele, ele não gostaria de ouvir nada que
ela pudesse dizer, de qualquer maneira. Em vez disso, ela se levanta, veste
as roupas e vai embora. Eles não falam uma vez.
Nura vive os anos como se fossem apenas algo a ser suportado. Ela se
recupera e fica mais forte do que nunca. Ela cumpre seu papel como
segunda do arquicomandante com eficiência implacável.
Ela nunca deixará ninguém saber o quão lamentavelmente solitária
ela é, e quantas vezes ela pensa naqueles que ela perdeu. Ela também
nunca deixará ninguém saber sobre os registros que ela procura
silenciosamente, procurando por um nome familiar, ou que toda semana
ela lê as listas de corpos não identificados encontrados em becos ou tocas
Seveseed, rezando para não encontrar um jovem de cabelos escuros com
olhos peculiares.
Só há uma coisa que lhe traz paz. Toda semana, nos dias de folga, ela
visita outra cidade e perambula pelas ruas. Ela observa as pessoas viverem
suas vidas, contentes. O país está inteiro novamente. As pessoas estão
seguras e felizes.
Ela fez uma coisa terrível. Mas ela fez isso pelos motivos certos e, por
isso, valeu a pena. Não há nada – nada – que ela ame mais do que ame
Ara.
Ainda assim, ela é assombrada pelo passado. De vez em quando,
quando os pesadelos ficam particularmente ruins, ela vai para a parte das
Torres que apenas um pequeno grupo de pessoas pode acessar. Ela entra
em uma sala de puro branco e olha para o homem enrugado amarrado à
mesa. Seus olhos permanecem cegos olhando para o teto. Ele está
respirando, mas fora isso, ele quase não está vivo.
E, no entanto, a magia mais poderosa de Ara, talvez a magia mais
poderosa do mundo está bem aqui, escondida dentro daquela mente
quebrada.
Esperando a próxima vez que for necessária.
Quem é você?
A voz soa tão estranha. Estranho ouvir isso dessa forma, de forma
pura, em vez de sair da boca de um ser humano.
Você sabe quem eu sou.
Revira suas memórias como pedras.
Eu te conheço. Para na memória de Sarlazai, em seu momento de
traição. Ela sente seu desgosto.
Estou lhe oferecendo um novo lar, diz ela.
Há muito esqueci o que é ter uma casa. Mas eu sei que um lugar como este,
tão frio e hostil, não é uma.
Você prefere ficar com a mente vazia e um quarto branco, então?
Um silvo baixo. Onde está Maxantarius?
A proteção aumenta antes que ela possa detê-la. Reshaye agarra a
emoção.
Você não gosta que eu pergunte sobre ele.
Isso é entre você e eu. Não ele.
Ele busca outra emoção, uma que ela não consegue esconder rápido o
suficiente. A maneira como ela se sentia toda vez que ele era elogiado.
Todas as vezes que ele foi promovido. O dia em que seria concedido a ele
um poder tão extraordinário, um poder que ele nem poderia controlar.
Uma risada baixa ondula seus pensamentos. Você não pode mentir para
mim. Eu sei a verdade de por que você está aqui e o que você busca ganhar.
Eu procuro ganhar o poder para parar outra guerra.
Você busca poder, sim. Mas eu não desejo dá-lo a você.
Ele começa a se afastar. Mas a magia de Nura o agarra, recusando-se
a deixá-lo sair.
Ela vai empunhá-lo. Ela vai dominá-lo.
Você tirou tudo de mim, ela rosnou. Você não pode ganhar isso
também.
E tão rapidamente, ele se transforma. Reshaye luta contra seu
controle.
Eu lutei contra magias mais fortes do que a sua, sibila. Eu quebrei mentes
mais fortes.
A luta é pior do que qualquer batalha em que Nura já esteve. É
selvagem, pedindo tudo o que ela tem e mais, alcançando todas as partes
sensíveis deixadas em sua mente. Eles se chocam, e ela se envolve em uma
teia da coisa que ela odeia mais do que jamais odiou, a coisa que destruiu a
melhor pessoa que ela conhecia e assassinou as crianças inocentes que
eram praticamente seus irmãos.
Em uma batalha de vontades, apenas seu ódio a tornará mais forte.
Ela tem certeza disso.
Mais tarde, ela só se lembrará de pedaços dessa época. A batalha
deles poderia ter durado horas, dias ou semanas. O tempo, afinal, pertence
ao mundo acima. Eles estão em algum lugar mais profundo do que isso
agora, e caindo ainda mais.
Reshaye a destrói.
Vocês são sempre os mesmos. Você me amarra, me quebra e me usa. Não
pense que não me lembro do que você fez.
Mas Nura não está disposta a ceder.
Com toda a sua força, eles se chocam uma última vez, e ela empunha
toda a magia de Reshaye até que queime suas veias, até que ela pense que
isso pode matá-la, até...
De repente, tudo fica em silêncio.
Nura abre os olhos.
Planícies ondulantes a cercam, estendendo-se em todas as direções. O
céu está preto e claro ao mesmo tempo, a luz azul estremecendo na
escuridão e flutuando como fios de fumaça. É sem vida e sem ar aqui.
Tudo nele cheira a magia, tão poderoso que poderia arrancar a pele de sua
carne.
Por um momento, tudo está parado.
E então uma explosão repentina de luz rola do horizonte, e ela nem
tem tempo de se preparar antes que a consuma.
O que Nura vê, lá nas profundezas daquela luz, faz com que os
horrores que ela viveu na Guerra de Ryvenai pareçam meros
inconvenientes.
Ela vê morte, tortura e destruição indiscriminada.
Ela vê as Torres se despedaçando, o vidro brilhando no alto como
uma chuva cortante.
Ela vê criaturas feitas de sombra e carne retorcida rastejando pelo
campo, dedos multiarticulares dilacerando pessoas gritando.
Ela vê uma armada de navios na linha do horizonte, estendendo-se
até onde ela pode ver, centenas e centenas e centenas e...
Ela vê as praias de Ara tão carregadas de corpos em decomposição
que nem uma faixa de areia é visível.
Ela vê um homem com cabelos dourados e uma espada erguida, asas
abertas atrás dele, rosto duro e impiedoso de raiva.
Ela vê muitos deles, essas pessoas, essas criaturas com magia
estranha e desconhecida, suas orelhas pontudas, cuspindo sangue violeta.
E, finalmente, ela o vê:
Um deles, envolto em sombras, inclinando-se sobre ela. Sobre sua
cabeça estão os picos de uma coroa, ecoando as pontas de suas orelhas. Ele
está tão perto que ela pode sentir sua respiração em seu rosto, mas não
consegue focalizar suas feições.
Você pensou que eu não viria para você? Ele sussurra, gentil como um
amante.
E então ela sente aço em suas entranhas, e o mundo desaba.
Embora Nura esteja esperando sua traição, ela fica furiosa ao voltar
para casa e encontrar Zeryth com uma coroa na cabeça e sua própria
guerra já em andamento. Ele a traiu antes que ela pudesse se virar contra
ele – esperto da parte dele, talvez, mas pelas razões mais estúpidas e
egoístas.
O pacto de lealdade de Nura significa que ela não pode cortar sua
garganta durante a noite como ela quer. Mas pelo menos sua guerra está
dando mais poder às Ordens, embora lentamente. E ela não precisa
levantar um dedo contra Zeryth para abatê-lo. O que ele mais deseja e o
que o destruirá são a mesma coisa.
Ele já começou a experimentar magia negra profunda para criar a
maldição que mantém a vida de Tisaanah – como ele conseguiu fazer isso
sozinho, Nura nunca saberá – e é fácil convencê-lo a fazer mais disso. Ele
quer ganhar sua guerra. Ele quer ganhar a coroa de Ara. E acima de tudo,
ele quer desesperadamente o respeito deles.
Tudo o que Nura lhe dá é exatamente o que ele quer. Magia. Magia
poderosa e inumana, extraída de suas experiências com Vardir. Mesmo ela
não entende por que Tisaanah e Max, devido à sua exposição a Reshaye,
são capazes de lidar com isso muito melhor do que a maioria. Mas Zeryth
é apenas humano, nem mesmo modificado como as Syrizen para aumentar
sua tolerância. Quanto mais ele tenta ser algo mais poderoso, mais fraco
ele fica.
Nura entrega a ele o poder que ele deseja e o observa usá-lo para se
destruir lentamente.
A guerra continua, e Zeryth murcha, e Nura estuda nas sombras,
olhando para o horizonte, observando, esperando. Trabalhando.
E ainda assim, as visões ficam mais vívidas a cada noite.
Até que meses se passam e a ameaça chega.
Eu tive que sair das Torres. Tudo naquele lugar me revoltava, até os
ossos. Eu estava no meio do corredor quando Max me alcançou. Eu podia
sentir sua raiva vibrando nele, nossa raiva nos envolvendo como fumaça.
Nós não falamos. Quando chegamos aos degraus da frente, lancei um
último olhar por cima do ombro para as duas colunas brancas que
pairavam sobre nós.
No dia em que vi Vos, ou o que aconteceu com ele, eu cambaleei para
fora dessas portas e fiquei parada nessas sombras e lutei para não
desmoronar. Essa foi a primeira vez que olhei para as Torres e pensei que
elas pareciam mais agourentas do que reconfortantes.
Agora, elas me enojavam.
Max desenhou a linha final de seu Estratagrama, e eles se
desenrolaram.
A primeira parte do mundo a retornar foi o cheiro, um cheiro de
cinzas tão forte que queimou minhas narinas. E quando todo o resto se
seguiu, fiz um som pequeno e sem palavras de horror.
A cabana havia sumido.
A casa de Max – nossa casa – fora reduzida a nada além de um
esqueleto enegrecido. A pedra ainda estava de pé, embora estivesse
desmoronada e carbonizada. O telhado havia desabado, restando apenas
algumas vigas quebradas. Vidros estilhaçados brilhavam entre os
destroços.
E o jardim... aquele lindo jardim agora era cinza murcha.
Desviei os olhos da cena para olhar para Max, e ele estava olhando
para ela com uma mandíbula apertada, boca estreita, rosto traindo tudo o
que ele não estava expressando em voz alta.
— Vamos reconstruí-la — eu disse, embora ambos soubéssemos que
nunca seríamos capazes de recapturar o que tornava este lugar tão
precioso.
Sua garganta balançou. Ele caminhou entre a folhagem carbonizada,
cutucando a terra com a bota.
— Houve pessoas aqui — disse ele. — Olhe para as pegadas.
— O povo de Nura.
— Tem que ser. Essas coisas acabaram.
Deuses. Tanta coisa aconteceu que o ataque parecia ter acontecido
anos atrás. Max parou no que antes era a porta. Em uma caixa aberta,
queimada, mas ainda de pé.
Juntei-me a ele e olhei para baixo. As mãos escravas lá dentro ainda
estavam lá, algumas tão queimadas que o osso branco brilhante cortou a
pele enegrecida.
E aí, o peso de tudo isso me quebrou.
Caí de joelhos. Curvei-me sobre aquele caixote, o cheiro de pele
queimada pairando no ar como incenso. As lágrimas deixaram pequenas
manchas molhadas em sua carne. Uma, depois duas, depois mais, até
soluços silenciosos sacudirem meu corpo.
— Como? — Eu engasguei. — Como qualquer coisa que façamos
pode melhorar isso?
— Não pode. Não esta parte.
Essas pessoas se foram para sempre e nada que alguém pudesse fazer
– eu, ele ou o mundo significaria algo para aqueles que perderam seus
entes queridos.
— Eu deveria ter escutado você — eu disse. — Você tentou me dizer
tantas vezes que não importa o que eu fizesse, acabaria assim.
— Não, Tisaanah — Max murmurou, mas as palavras saíram de
mim.
— Não importa quão boas sejam nossas intenções, ou o quanto nos
esforcemos. Isso se tornaria algo, algo distorcido. É por isso que estávamos
lutando? Apenas para ser mais um senhor de escravos? Eu os trouxe aqui e
pedi que confiassem em mim. Agora suas famílias estão mortas e eles são
apenas engrenagens em uma máquina diferente. E eu não lhes dei nada.
Nada. Eu havia trocado todas as fichas de barganha e agora fiquei
sem magia e influência corrompida arrancada de um sistema corrompido.
Enquanto isso, uma sombra ainda mais escura pairava sobre nós, tornando
tudo inútil.
— É isso que eles vão se tornar? — eu murmurei. — Novamente, eles
se tornarão sacrifícios para o bem maior?
Sempre foi assim, para nós. Nós éramos dispensáveis. E tudo o que
fiz apenas o perpetuou.
— Não vamos deixar isso acontecer. — Seus olhos foram longe. — O
que ela nos mostrou foi…
Horripilante.
— Você acredita nela? — Perguntei.
— Ela não estava mentindo. Ela não poderia fingir o que nos
mostrou. Você teria sido capaz de dizer. E eu... a conheço bem o suficiente
para saber, se não fosse real.
Deuses, as coisas que tínhamos visto. Eu a odiava. Tornou ainda pior,
de alguma forma, ver e sentir todos os seus pensamentos em primeira mão
e observar como eles chegaram a conclusões tão horríveis. Eu não tinha
dúvidas de que Nura realmente amava Max. E ela havia decidido que seu
amor lhe dava a absolvição de todos os sacrifícios sangrentos que faria no
altar de suas boas intenções.
— E se o que ela nos mostrou fosse verdade... se o que Ishqa nos disse
for verdade... — Minhas palavras vacilaram e fechei os olhos, uma dor de
cabeça zunindo sob minhas têmporas. Ishqa. Feéricos. Um convite para ser
uma arma em mais uma guerra.
Max soltou um suspiro entre os dentes.
— Como se nossos pequenos problemas mortais não fossem
suficientes. — Então seu olhar se voltou para mim, e algo mudou nele. —
Não sei o que fazemos com isso.
Ele disse isso como uma confissão vergonhosa. A expressão em seu
rosto torceu uma adaga entre minhas costelas. Ele tinha saído de tudo isso.
E eu o arrastei de volta, apenas para ele acabar lutando por líderes terríveis
e causas terríveis, com sacrifícios maiores ainda no horizonte.
Ele merecia muito melhor.
— Penso nisso com frequência, sabe — sussurrei. — Como eu
gostaria de ter ido com você. Quando você me pediu para deixar Ara com
você, antes de eu fazer meu Pacto de Sangue.
Parecia uma traição dizer isso em voz alta.
— Foi você quem quis salvar o mundo — ele disse calmamente. — Eu
só queria te salvar.
Se eu não estivesse tão triste, teria rido, porque isso era tão
flagrantemente falso, mesmo que o próprio Max não percebesse. Mas meu
peito doía de amor por ele, tanto pela mentira que ele contou a si mesmo
quanto pela verdade mais profunda por trás dela.
— Preciso contar aos refugiados. Sobre... a perda.
Eu balancei a cabeça para as mãos.
— Estou com você — Max murmurou, e deuses, eu nunca soube o
quão preciosas três palavras poderiam ser.
A última vez que estive aqui, cercada pelos refugiados, deixei que
eles me vissem como uma deusa vingativa. Eu os deixei acreditar que eu
era intocável. Talvez eu tenha me deixado acreditar também. Mas agora,
eu nunca me senti mais impotente. As palavras saíram da minha boca,
secas e amargas como cinzas se acumulando aos meus pés, enquanto eu
lhes contava as mortes – nada mais, mas essas eram mais do que
suficientes. Observei a felicidade desaparecer de seus rostos e a tristeza
brotar em seus olhos.
Pela primeira vez, fiquei grata por minha magia ter desaparecido. Os
olhares em seus rostos eram mais do que suficientes para me espetar sem
sentir suas emoções também.
Serel ficou na frente da multidão, aqueles lindos olhos azuis úmidos.
Ao lado dele estava Phylias, rosto duro de raiva.
— Eles não podem ter matado todos eles — disse uma voz fraca na
multidão. — Desperdiçar seus recursos assim? Não... não, deve ser um
truque. Talvez eles apenas tenham pegado as mãos.
— Vimos muito de sua crueldade para acreditar em contos de fadas
— outro murmurou.
— Estávamos apenas... aqui — uma mulher murmurou. — Nós
estávamos aqui, livres, enquanto eles estavam... enquanto eles estavam...
Sua voz sumiu e seu olhar se ergueu para os apartamentos, como se
visse uma súbita escuridão na felicidade que começava a florescer aqui.
Eu entendi. Ela estava sentindo a mesma culpa repugnante que eu
sentia, que ainda sinto – quando percebi que estava encontrando
contentamento imerecido no jardim de Max, enquanto os outros sofriam.
Assim como eu entendi, quando Phylias se aproximou de mim com
os punhos cerrados, por que eu era o alvo de sua raiva. Os Zorokovs eram
um mal intangível, a meio mundo de distância. E eu estava bem aqui.
— Você nos disse que isso não aconteceria — disse Phylias. — Você
nos disse que havia encontrado uma maneira de dar-lhes mais tempo e não
agimos por causa disso.
— Eu fiz — eu disse, calmamente.
— E aqui estamos nós — acrescentou outro. — Vivendo nossas vidas
a milhares de quilômetros de distância, recebendo notícias de suas mortes.
Poderíamos tê-los salvado.
— Nós nunca iríamos salvá-los — disse Serel, suavemente, e a calma
resignação em sua voz torceu uma lâmina dentro de mim.
— Poderíamos ter tentado — disse outro homem, e Serel respondeu:
— Ela tentou.
Phylias balançou a cabeça, mandíbula cerrada.
— Tentar não teria sido suficiente.
Deuses. Essa era a verdade. Tentar não era suficiente.
Eu tive que forçar as palavras na minha garganta.
— Quando eu lhes disse que os salvaríamos, eu acreditei. Eu queria
acreditar.
Apertei a mão contra o coração e, por um momento, meus lábios se
separaram e nenhum som saiu.
Tudo estava muito perto da superfície. Muito cru. E isso me
apavorava, porque eu vivia minha vida guardando cuidadosamente o que
eu apresentava ao mundo.
— Essas vidas — eu engasguei — são minha família tanto quanto são
suas. Não há nada que eu não teria sacrificado para salvá-los. Nada. Porque
eles mereciam coisa melhor. Eles mereciam muito mais.
A multidão ficou em silêncio. Eles me encararam com expectativa,
como se esperassem que eu respondesse por meus erros ou dissesse o que
faríamos a seguir. Tanto a confiança quanto a decepção pesaram da mesma
forma.
Eu estava tonta. E antes que eu percebesse o que estava fazendo, eu
estava de joelhos.
— Não tenho nada a dizer por mim mesma — eu disse. — Gostaria
de poder dizer a vocês que tenho um plano secreto ou poder suficiente
para resolver isso. Mas a verdade é que não tenho mais apresentações. Sem
truques. Sem shows de mágica. Nada de vestidos vermelhos. Nem mesmo
promessas. A vida útil deles é muito curta. E eu sei que muitos de vocês
provavelmente olham para mim e veem uma bruxa Nyzrenese. Isso é
justo. Talvez não tenhamos nada em comum, exceto o nome do homem
que nos acorrentou.
Deixei escapar um escárnio sem humor.
— Que coisa para nos amarrar. Prefiro que estejamos unidos por um
sonho compartilhado para o futuro, em vez de um passado terrível
compartilhado. E eu queria tanto nos dar esse futuro. Eu ainda quero nos
dar esse futuro. Mas…
Minha garganta fechou, mas talvez eles tenham ouvido as palavras
que eu não pude dizer:
Mas não sei como.
Minhas palmas estavam pressionadas no chão. Aqui, não havia nem
paralelepípedos. Em vez disso, a estrada era simplesmente feita de terra
compactada sob milhares de solas de botas e rodas de carroças, batidas
tantas vezes que era quase pedra.
Eu vi um par de sapatos entrar na minha visão. Olhei para cima para
ver Riasha diante de mim, ajoelhada. Lágrimas escorriam por suas
bochechas envelhecidas, mas sua voz era firme quando ela perguntou:
— Você sabe cantar as Canções à deriva?
Balancei a cabeça, incapaz de falar. Eu queria que minha resposta
fosse diferente. As Cançoes à deriva eram uma intrincada série de hinos
cantados em funerais. Mas apenas os sacerdotes conheciam todas as
palavras, e nós não tínhamos nenhum em nosso vilarejo cada vez menor
de fugitivos. Talvez uma vez, há muito tempo, eu os tenha ouvido cantar.
Mas foi uma parte do meu sangue Nyzrenese que se perdeu para sempre.
Uma das coisas incontáveis e inestimáveis que os Threllianos tiraram de
nós, até mesmo a capacidade de lamentar.
Riasha pressionou as palmas das mãos na terra, suas mãos se
acomodando em cada lado das minhas.
— Você devia ser tão jovem quando todos nós caímos. Uma criança
criada nos remanescentes das nações, como tantas. Mas é bom nos
enraizarmos no que já fomos. As Canções à deriva não eram apenas
nyzreneses, você sabe. Todos os nossos deuses viviam sob a terra, e todos
cantávamos nossas versões das Canções à deriva para enviar nossos
mortos a eles.
Então Riasha abriu a boca e começou a cantar. Sua voz era rouca e
inexperiente, as palavras desafinadas, mas eram a coisa mais linda que eu
já tinha ouvido.
Senti uma mão cair sobre a minha do lado esquerdo. Então meu
direito. Eu não precisava olhar – não poderia, mesmo que quisesse, porque
minha visão estava muito turva por causa das lágrimas que não caíam.
Max estava ajoelhado ao meu lado de um lado, os dedos entrelaçados com
os meus, e Serel do outro. E eu não precisava olhar para cima para saber
que os outros também estavam lá, todos pressionando suas mãos contra a
terra, o mundo em silêncio, exceto pela voz de Riasha cantando nossas
canções perdidas.
Olá.
Este não era Reshaye.
Deslizou pela minha cabeça da mesma maneira e tinha a mesma
qualidade inumana e não marcada. Mas esta era uma voz diferente. Essa
conexão era mais caótica, mais tênue. Eu podia sentir as bordas irregulares
da coisa que estava falando comigo, como uma silhueta que não conseguia
entrar em foco. Era mais real do que Reshaye. Mais vivo. E suas mãos
estavam em volta da minha garganta, apertando, apertando.
O mundo havia caído. Eu estava em algum lugar diferente agora, em
algum lugar que eu só tinha vislumbrado durante o pior dos meus sonhos
febris induzidos por Reshaye. Uma planície morta e um céu estrelado.
Num mundo físico que parecia muito distante, compreendi que meu corpo
ainda estava ali, o tempo suspenso, meus joelhos no chão de pedra da
Cicatriz, cercado pelo fogo.
Esse lugar? Isso era diferente. Mais profundo do que o mundo físico.
E a voz me arrastou até aqui.
Onde eles estão? perguntou.
Quem é você? Eu exigi.
Onde eles estão? Onde ela está?
Ela? Tisaanah? Nura? Com a minha confusão, seus rostos passaram
pela minha mente, e a presença agarrou as imagens.
Parou no rosto de Tisaanah. Familiaridade.
Eu não gostei disso. Nem um pouco.
Quem é você? Eu repeti.
Eu sou o sangue das pessoas que os seus roubaram, disse a voz. E estou
reclamando o que foi tirado de mim.
Foco.
Se eu tentasse muito, poderia solidificar o mundo ou, o não-mundo –
ao meu redor o suficiente para vê-lo como um lugar físico. Se eu me
concentrasse, poderia ver a sombra como algo parecido com uma pessoa.
Minha magia serpenteou em sua direção.
As imagens dividiram minha visão, como o estalo de um raio
iluminando o céu por um segundo fracionado de cada vez. O rosto de um
homem, assustado e zangado, sumiu rápido demais para que eu pudesse
reconhecê-lo. Portões de cobre cobertos por vinhas rastejantes. Estantes
transbordando e vislumbres de escrita que eu não reconheci.
Tudo e nada em menos de um segundo.
A presença cintilou, como se tivesse sido atingida, então investiu
contra mim com raiva renovada.
Eu a sinto em você. Em seu sangue e em sua magia. E eu não vou abandoná-
la, nem qualquer um dos outros que seu povo tirou de mim. Os humanos já
passaram do ponto de merecer nosso perdão. Vocês tiveram misericórdia uma vez e
a desperdiçaram. Agora vejo que vocês nunca mereceram.
Outra avalanche de imagens. Desta vez de corpos espalhados na
floresta pantanosa. Rostos mortos sob a água. Um rosto de mulher que não
reconheci, com tristes olhos violeta. As imagens fundiram-se e
emaranharam-se com as minhas, as consequências de Sarlazai, os
cadáveres queimados da minha família. O olhar incompatível de Tisaanah.
De repente, percebi.
Percebi por que essa magia parecia tão estranha, tão desumana.
Percebi por que fui arrastado até aqui, no momento em que abri
aquela passagem entre mim e os níveis mais profundos de magia.
Você é feérico, eu disse. Você é o rei feérico.
Agora eu entendi. O feérico que Nura possuía, aqueles que ela estava
tentando transformar no próximo Reshaye...
Ela havia criado isso. Ela havia criado a guerra que tanto tentava
impedir.
Não queremos uma guerra com vocês, eu disse. Seu povo foi levado por uma
humana. Uma humana equivocada que não merece o poder que ela tinha. Mas seu
reinado acabou. E juro a você que devolverei as pessoas que ela tirou de você.
Você está mentindo para mim.
Eu nunca minto. É uma falha pessoal.
Uma risada sem humor percorreu minha espinha. Você não sabe que
você mente. Mas é uma mentira, no entanto. E mesmo que não seja, já passei do
ponto de confiar em qualquer palavra que venha de suas inconstantes mentes
mortais. E como tem sido fácil colocar vocês uns contra os outros. Os humanos são
fracos e egoístas, facilmente divididos. Meu povo já foi assim. Ocupados demais
brigando por questões mesquinhas de orgulho para inovar, para realizar nosso
potencial. Não mais.
Ele não parava. Ele mataria por Reshaye. Ele mataria Tisaanah por
isso, e qualquer outro que estivesse em seu caminho. Ele devastaria Ara, e
talvez nós merecêssemos isso.
Mas eu não deixaria isso acontecer.
Escute-me. Minha magia agarrou a dele. Nós nos emaranhamos,
igualmente combinados. Ele estava muito longe. Eu podia sentir isso. A
distância era a única coisa que o impedia de me dominar.
Uma guerra entre nossos povos seria mais sangrenta do que qualquer um de
nós está preparado, eu disse. Não apoio isso e nunca apoiarei. Ainda podemos
impedir que isso aconteça. Eu devolverei seu povo para você. Nós nunca vamos te
machucar novamente. Eu juro.
Engraçado, como uma hora atrás, eu estava implorando a Nura
exatamente a mesma consideração.
Você está certo sobre os humanos, eu disse. Tanta coisa sobre nós é vil. Mas
também temos potencial para ser melhores. Dê-nos essa chance.
A presença fez uma pausa em consideração.
Mas então o céu se iluminou. Nós dois paramos, nossa atenção se
voltando para esta nova intrusão: um fio ardente de magia saindo deste
nível profundo, profundo.
Meu sangue gelou. Eu o reconheci imediatamente.
Tisaanah.
O foco do rei nela consumia tudo. Ele estendeu a mão para aquele fio,
como se estivesse examinando-o, empurrando ainda mais. E foi só então
que percebi que havia algo mais entrelaçado nisso também. Era um
pequeno fragmento de magia, tão fraco que eu não teria visto se não
estivesse olhando. Mas uma vez que eu fiz, eu sabia disso. Claro que sim,
porque uma vez fez parte de mim também.
O desejo do rei era voraz. Ele a queria. Ele queria Reshaye.
Foi apenas uma fração de segundo de distração. Ainda muito. Perdi
meu controle sobre a magia acima, minha resistência diminuindo. Era a
única abertura de que precisava. Ele forçou seu caminho através da porta.
Eu ouvi a voz sussurrar, mais perto do que antes,
Eu já lhe dei chances suficientes.
Meus olhos se abriram. Diante de mim estava Tisaanah, emergindo
das chamas.
Mas quando dei um passo à frente, meu corpo não era meu.
Capitulo oitenta e tres
Tisaanah
Dor.
O cheiro de sangue. A densidade da magia no ar. O chão estava
tremendo. Eu estava em Sarlazai. Eu estava na casa da minha família. Eu
estava aqui, na Cicatriz.
Tisaanah.
Forcei meus olhos a se abrirem e minhas segundas pálpebras se
fecharam. O mundo estava entorpecido e embaçado. Minha mente estava
quebrada.
Tisaanah.
Houve um estilhaço. Eu tive que forçar as peças juntas. Mesmo assim,
faltava muito.
Virei a cabeça e vi o rosto dela pressionado contra o chão, espalhando
a névoa entre nós. Uma linda garota, com manchas de pele incolor e
bronzeada, um olho prateado e outro verde, olhando através de mim. Uma
lágrima caindo no chão.
Pânico.
Ela estava morta? Ela parecia como se pudesse estar.
E isso seria, isso seria...
Não. Não, ela não estava morta. Seus dedos estavam se estendendo
para mim, fracamente. E os meus, por vontade própria, voltaram.
Mas antes que eles pudessem se tocar, ela foi levantada do chão. Eu
consegui olhar para cima. Havia um homem ali – ou... não um homem,
não um humano. Ele tinha asas e orelhas pontudas.
Eu lutei para encontrar o pedaço da minha mente que o conhecia.
— Voce pode se mexer? — ele estava dizendo. — Precisamos sair.
Agora.
Sair? Ir para onde? Eu nem sabia onde estávamos. Atrás do homem
alado, sombras brotavam de fissuras na parede. Elas assumiram a forma
de humanos, embora suas formas estivessem quebradas e se desfazendo.
— Eu não posso carregar vocês dois — o homem alado disse, com
mais urgência. — Levante-se.
Meus olhos caíram de volta para ele. Para Tisaanah em seus braços.
— Vá.
Formar a palavra consumiu toda a minha energia.
O homem hesitou. Então olhou por cima do ombro, para as sombras
que se aproximavam.
— Vá — eu disse novamente.
— Vou voltar — disse. — Tente chegar à superfície.
Eu nem tinha certeza de qual superfície ele estava falando. Não que
isso importasse. Eu balancei a cabeça do mesmo jeito.
As asas do homem se abriram e ele se lançou na escuridão acima. As
sombras se espalharam, como se tivessem medo dele, antes de se
endireitarem e virarem cabeças sem rosto em minha direção.
Eu tentei e falhei, duas vezes, me levantar em minhas mãos e joelhos.
O chão parecia estar se inclinando. As paredes estremeceram e
estremeceram. Pedras caíram.
Consegui ficar de joelhos, depois de pé, cambaleando para a frente.
Dei apenas três passos.
Algo me puxou de volta. Eu caí em uma pilha.
E então uma mulher de olhos cinza com cabelo trançado prateado se
inclinou sobre mim. Havia sangue em seu rosto e ódio em seus olhos.
Nura.
Esse nome me veio rápido.
Minha mão se fechou ao redor da adaga no chão. Meu corpo conhecia
os movimentos, mas meus músculos não cooperavam. Ela me desarmou
em segundos. A lâmina foi deslizando pelo chão.
Mais e mais pedras caíram. A câmara estava desabando.
E os olhos de Nura nunca deixaram os meus.
Engraçado, que é assim que terminaria.
O pensamento flutuou pela minha mente quebrada. E talvez tenha
sido porque todas essas peças individuais foram perdidas que a
culminação de repente parecia tão inevitável. Mil momentos conduzindo
aqui, a este lugar, a este ato. Um milhão de caminhos tortuosos que
chegam a este destino.
É isso que chamam de destino? Eu e ela, destruindo um ao outro?
— Você não pode fugir, Max — ela disse. — Não dessa vez.
Os estrondos da pedra em movimento engoliram suas palavras. Seu
rosto estava perto do meu.
— Você deveria ter me matado — ela sussurrou. — Eu te avisei sobre
esse coração bom.
As paredes desabaram.
E então, escuridão.
Capitulo oitenta e sete
Aefe
Reshaye
Aefe
Ele me conduziu por belos corredores com mais ouro, cobre e tetos
de vidro, plantas espalhadas por toda parte. Outro feérico passou por
nós no corredor, vestido com roupas excessivamente complicadas. Ele
me lançou um olhar estranho e parou para se curvar a Caduan quando
passamos.
Por fim, chegamos ao final de um corredor e passamos por um
conjunto de portas de vidro abertas, para uma varanda. O sol estava
forte. Eu tive que apertar os olhos. Minha cabeça dói. Uma brisa enviou
arrepios à superfície da minha pele. Eu não estava acostumada a estar
tão sintonizado com as sensibilidades de um corpo. É assim que os
humanos sempre se sentiram, quando tinham corpo para si mesmos?
— Esta — disse Caduan — é Ela'Dar. A Única Casa.
Sua voz mudou, um pouco, quando ele disse isso. Eu ouvi isso,
mesmo que ainda não entendesse as nuances do que a mudança
significava. Seu olhar se voltou para mim, observando-me de perto
enquanto eu caminhava até a grade da varanda e olhava. Uma cidade se
estendia diante de mim. Ela se espalhava o suficiente para preencher
minha visão, belos edifícios de cobre entrelaçados com vegetação. Tudo
isso foi construído na encosta de uma montanha, o bronze dos prédios, o
verde da floresta e o cinza ardósia da pedra, todos juntos, cada um
complementando o outro. Havia pequenas casas à distância, estruturas
imponentes envoltas em vinhas e estradas lotadas e pontes que as
conectavam a todas. Ao longe, além da queda abrupta das falésias de
ardósia, o calmo azul acinzentado do mar se estendia em direção ao
horizonte.
— Nosso mundo era muito diferente — disse Caduan, calmamente.
— Todos aqueles anos atrás. Todas as Casas constantemente lutando
umas com as outras. Quando a Casa Obsidiana e a Casa dos Ventos
Rebeldes entraram em guerra, quase destruiu a raça feérica. Séculos de
casas fragmentadas. Ou nenhuma casa. — Ele estava me observando. Eu
podia sentir isso, mesmo que eu não olhasse para ele. — Eu os uni. A
única maneira de prosperarmos é se fizermos juntos. E nós conseguimos.
Todos os pedaços quebrados foram reunidos para isso. Um reino feérico
unificado.
Minha cabeça doia. Meu estômago revirou.
— Não entendo por que isso é importante para mim.
Se Caduan ficou surpreso com essa resposta, não demonstrou.
— Eu entendo se não, agora. Mas achei que você gostaria de ver
seu lar.
Meu olhar estalou para ele.
Lar. Lar. Lar.
Como eu ansiava por um lar. Como eu ansiava por um. Este lugar é
o que era uma casa? Não parecia o que eu imaginaria. Parecia frio,
barulhento e lotado. Um lugar avassalador para se viver, com uma
mente tão fria e vazia.
Olhei para a cidade. Sem minha permissão, as memórias colidiram.
Cidades em chamas e guerra. Dor insuportável. Uma sala de branco e
branco e branco. O desgosto da traição.
E então, raiva.
A inundação repentina foi um alívio. Finalmente, algo familiar. Por
fim, algo que preenchia o vazio.
— Você nunca entenderia — eu disse, com os dentes cerrados — as
coisas vis que foram feitas para mim.
Um silêncio frio.
— Acredite em mim quando digo que sim — disse ele.
— Ninguém veio me buscar. Por tantos dias. — Eu me virei para
ele. — Por que? Se você sabia quem eu era, então por que me deixaria?
A dor cintilou em seu rosto.
— Eu tentei — disse ele. — Eu não sabia que você estava viva,
Aefe. E não consegui encontrar você. Não até que eu sentisse as
mudanças na magia. Eu senti você primeiro, ao sul, em Threll. E depois
em Ara.
Então aquela dor endureceu. Eu também conhecia a emoção que vi
ali. Uma raiva que refletia a minha.
— Eles começaram a nos levar — disse ele. — Pouco depois disso.
Seis feéricos desapareceram, enquanto eu estava aprendendo o que foi
feito com você. Eu os recuperei, mas apenas um sobreviveu. E o que eles
fizeram com você... centenas de anos disso...
Suas palavras ficaram desajeitadas. Parecia estranho ele falar
daquele jeito. Ele não parecia do tipo que perde o controle das palavras,
mas parou, desviou o olhar. Em seguida, voltou-se para mim.
— Os humanos prosperaram por tanto tempo porque nós
permitimos. Antigamente, as vidas valiam tanto quanto o poder de sua
Casa. Mas agora, somos um reino. Cada vida feérica vale a pena. Os
humanos já haviam massacrado centenas de nosso povo, há muito
tempo. Eles não conseguirão tirar uma única vida mais. Nenhuma. —
Um sorriso de escárnio se formou em seu nariz. — Nunca deixarei de
lutar pelo meu povo novamente. O mundo ficará melhor quando eles se
forem.
Silêncio. A intensidade de suas palavras parecia em desacordo com
a brisa suave através das folhas. Caduan olhou para mim, e seu olhar
deslizou pelo meu como mãos entrelaçadas. Algo nele, desta vez, me fez
parar. Havia memórias naquele olhar. Memórias que ele tinha e eu não.
— Eu não me lembro — eu disse, baixinho. — Não me lembro de
nada disso.
Seu olhar suavizou.
— Eu sei.
— Talvez você esteja procurando por Aefe. Talvez ela não exista
mais.
Outra mudança naquele olhar, uma que eu não tinha linguagem
para entender.
— Talvez — disse ele. — Mas estou feliz por ter você aqui, no
entanto.
Estranho, pensei. Eu não sabia como descrever a sensação em meu
peito. Era desconfortável. Tudo era desconfortável.
— Mesmo que eu seja apenas Reshaye? — Eu disse.
A mão de Caduan caiu sobre a minha. Desta vez, não me afastei.
— Mesmo assim — disse ele.
Capitulo oitenta e oito
Max.