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Para Josh—

Por me dizer para escrever essa série, e por acreditar


em mim enquanto eu escrevia.
Para Tomi—
Porque não há mais ninguém com quem eu gostaria
de estar fazendo isso.
TABELA DE CONTEÚDOS

CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
ARIDA
Ilha da magia da alma
Representada pela sáfira

VALUKA
Ilha da magia elementar
Representada pelo rubi

MORNUTE
Ilha da magia do encantamento
Representada pelo bêrilo rosa

CURMANA
Ilha da magia da mente
Representada pela ônix

KEROST
Ilha da magia do tempo
Representada pela ametista

SUNTOSU
Ilha da magia da restauração
Representada pela esmeralda

ZUDOH
Ilha da magia da maldição
Representada pela opala
CAPÍTULO UM

Esta água é feroz.


Ela rosna ao se debater contra o Duquesa, que se deixa levar
pela fúria das marés de inverno. Ela testa sua nova capitã, me
jogando contra o leme gasto pelo tempo, enquanto a água
granulada do mar alisa a madeira e umedece meus dedos.
Mas não vou escorregar. Não dessa vez.
— Volte a vela principal! — Eu enfio minhas botas no convés
e agarro o leme com força, me recusando a deixar o navio me
provocar. Eu sou a capitã. Se o Duquesa se recusa a ouvir, não
tenho escolha a não ser forçá-lo.
Hoje não há promessa de ilhas vizinhas à distância.
Nenhuma das montanhas de Mornute é visível através da
névoa branca e leitosa que sopra do norte. Ela umedece o ar,
infiltrando-se em meus poros e engessando os cachos úmidos
em meu pescoço.
O navio entorta com outro golpe das marés, e eu me preparo
para o que está por vir quando vejo a sombra tênue da boia,
que se aproxima rapidamente, a que ancorei no mar uma
temporada inteira atrás. Fecho os olhos e oro baixinho a
qualquer deus que possa ouvir enquanto nos aproximamos,
implorando que me poupem. Implorando para que este seja o
dia em que os limites da minha maldição sejam empurrados
ainda mais longe.
Mas, como sempre, os deuses se recusam a ouvir.
No momento em que o Duquesa passa pela boia, meus
joelhos se dobram enquanto uma dor incandescente rasga
minha espinha e atravessa meu crânio como uma lâmina muito
familiar cortando meu corpo. Eu mordo o interior da minha
bochecha até sentir o gosto de sangue, fazendo tudo que posso
para conter minha dor para que a tripulação não suspeite. Eu
cavo minhas unhas no elmo, suor frio lambendo meu pescoço
enquanto minha visão pisca para dentro e para fora.
Desesperada, dou o sinal a Vataea.
Ela se inclina sobre a popa imediatamente, sussurrando um
canto tão forte que cada palavra que passa por seus lábios é um
trovão. O mar a observa com curiosidade a princípio, depois
obedece à magia de sereia de Vataea com um estalo, girando a
direção das marés. Alguns membros da tripulação resmungam
com irritação enquanto voltamos para as docas, perguntando-
se por que eu os faço fazer essa mesma viagem idiota todos os
dias – nem mesmo dura meia manhã, e nunca para um destino
específico. Mas pelo menos em voz alta, eles não reclamam.
Eles não são tolos o suficiente para ir contra sua rainha.
No momento em que o Duquesa segue para o sul em direção
a Arida, a tensão contra meu crânio diminui e minha respiração
irregular se acalma. Só quando minha visão começa a clarear é
que afrouxo meu aperto.
Vataea pressiona uma mão hesitante nas minhas costas.
— Talvez seja hora de pararmos com isso. — A voz da sereia
nunca deixa de soar como a mais doce das canções, mesmo que
as palavras ameacem me cortar novamente. — Talvez seja hora
de parar de lutar contra sua maldição e tirar o melhor proveito
dela.
Não digo nada. Até que alguém tenha metade de sua alma
rasgada longe e amaldiçoada em outra pessoa viva, não me
importo em ouvir suas sugestões. Vataea nunca saberá como é
ter parte dela fundida em outra pessoa. Para poder sentir sua
presença. Suas emoções mais fortes. Tudo dela.
Ela não consegue ser aquela que está cansada de tentar
quebrar essa maldição.
A mão de Vataea escorrega das minhas costas, deixando
minha pele fria.
— Sinto muito pelo que aconteceu, mas ser imprudente não
vai te curar mais rápido.
Eu quero me arrepiar. Quero me virar e gritar sobre todas
as coisas que ela não entende. Mas, em vez disso, o ar em meus
pulmões murcha quando ela se vira e segue em direção à proa.
Esses são os limites da minha maldição. Uma maldição que
significa que metade da minha alma – e toda a minha magia –
vive dentro de Bastian.
E como hoje, toda tentativa de quebrá-la só termina em
fracasso.
As docas estão cheias de soldados reais e servos que recuam
à medida que nos aproximamos das docas de Arida, onde a
névoa camufla os navios visitantes, tornando suas velas opacas.
Instintivamente, sinto um aperto no peito ao ver as figuras
esperando por mim, sabendo que não é mais hora de ser capitã,
mas de ser rainha.
— Jogue as âncoras! — Giro o leme e o navio geme enquanto
o forço contra as ondas, diminuindo nossa velocidade
rapidamente. Minha tripulação obedece, e as duas âncoras
alcançam o fundo da água rasa, nos sacudindo. Alguém bate na
saliência do navio e escorrega de cara no convés, mas não
posso ajudá-los. Eu giro o leme para o lado oposto, forçando o
navio a se comprometer. A obedecer.
Ele se firma e meu aperto afrouxa quando meus músculos
relaxam.
No momento em que atingimos a costa, minha tripulação
entra em ação. Alguns se concentram em endireitar as âncoras
e largar as velas, enquanto outros se jogam na costa para
proteger o navio. Eles abaixam a rampa até a areia vermelha
como sangue, onde Mira, minha dama de companhia, está de pé
em uma capa preta grossa com uma gola de pelo branco de lobo
que se estende até o queixo modesto, apertado e sufocante.
Suas mãos enluvadas combinando estão cruzadas diante dela,
os olhos estreitos com a preocupação perpétua a qual estou
acostumada.
— Você está atrasada. — Sua respiração vaporiza o ar,
criando espirais que envolvem os rostos da equipe real, que se
endireitam quando eu me aproximo. Dois deles seguram um
travesseiro de safira de pelúcia com elegantes bordados de
prata e ouro, e equilibrado em cima dele fica minha coroa – a
cabeça de uma enguia Valuna gigante, sua boca aberta e
esperando para sentar na minha cabeça e prender em volta do
meu queixo. Esperando para me devorar.
A espinha incrustada de pedras preciosas brilha com a
umidade da névoa, fazendo minha garganta engrossar
enquanto lembro como essa falsa coroa parecia natural para
meu pai. É uma coroa feita para impostores e, como se ajusta
rapidamente na minha cabeça, não posso deixar de pensar em
como deve parecer natural para mim também agora.
— Eu nunca estou atrasada. — Eu aperto meu casaco safira
com força e endireito minha coroa enquanto os dentes
irregulares da enguia roçam minha mandíbula e têmporas. —
Eu sou a rainha.
Eu sou rápida em corresponder ao sorriso que Mira dá para
mim, embora nossa brincadeira não seja nada além de uma
farsa. Esse é um jogo que estamos jogando desde o verão,
esperado pelo meu reino. Eles sorriem e eu sorrio de volta, sem
fazer perguntas. Sou a rainha deles agora e, apesar de tudo o
que aconteceu, devo mostrar ao meu povo que ainda somos
fortes. Que enquanto Visidia sofreu perdas, nos uniremos para
superar nossas adversidades e restaurar o reino.
— Diga isso a todos que estão esperando. É a sua primeira
reunião de consultoria como rainha de Visidia, você deve
causar uma impressão melhor. — Os olhos cansados de Mira
reviram, é algo que ela nunca teria feito antes do verão
passado, antes de quase ser morta durante o ataque de Kaven
a Arida. Agora, porém, ela está relaxada, disposta a contar a
qualquer pessoa o que está em sua mente – incluindo eu.
Estou feliz por isso. Estou feliz com a cor em suas bochechas
e a energia em seus passos. Estou feliz que ela esteja viva. Nem
todo mundo teve tanta sorte.
— A rainha viúva está esperando com os conselheiros na
sala do trono — Mira começa, mas essas palavras acendem um
calafrio perverso dentro de mim. Ele floresce em meu
estômago e envolve minha garganta com garras.
— Não a chame assim. — Viúva. Eu praticamente sibilo com
o título, não precisando de um lembrete adicional de que meu
pai está morto, os restos de seu corpo carbonizado
alimentando os peixes enquanto ele descansa no fundo do mar.
— Quando você estiver na minha presença, chame-a pelo
nome.
As bochechas de Mira ficam vermelhas e tento não deixar
transparecer o constrangimento da minha explosão. Quando
ela abre a boca, eu afasto suas palavras, não querendo o pedido
de desculpas que permanece em sua língua. A última coisa que
preciso é de mais pessoas na ponta dos pés perto de mim –
especialmente quando eles não têm ideia do que realmente
aconteceu na noite em que meu pai morreu. Que se eu tivesse
sido capaz de impedir Kaven antes que ele chegasse a Arida,
meu pai ainda estaria vivo. Eu seria a princesa e minha alma
ainda estaria inteira.
Mas isso está longe de ser o destino com que os deuses me
amaldiçoaram.
Enfio minhas mãos nos bolsos do casaco antes que alguém
possa ver como elas tremem ferozmente, e ergo meu queixo
bem alto para aqueles que estão assistindo.
— Leve-me aos consultores.
CAPÍTULO DOIS

A sala do trono fica em silêncio quando eu entro, os últimos fios


de conversa evaporando como fumaça enquanto os saltos das
minhas botas batem contra o chão de mármore.
O ar amargo e o formigamento dos fantasmas roçando
minha pele me dão as boas-vindas a uma sala na qual não pisei
desde que lutei com Kaven aqui no verão passado. É uma sala
que não mostra mais sinais do fogo que a destruiu, ou mesmo
uma gota de sangue que me lembro fluindo tão livremente do
cadáver de meu pai quando ele enfiou uma espada em seu
próprio estômago para cortar sua conexão com Kaven e dar a
Bastian e a mim a capacidade de lutar contra ele.
Não paro para observar os conselheiros que se levantam e
inclinam a cabeça até eu sentar ao topo de uma mesa enorme
de quartzo preto, esfregando os dedos sobre os ossos
carbonizados do meu trono – recém-laqueados desde o
incêndio para que seja resistente o suficiente para sentar.
É um castigo cruel realizar nossa reunião do conselho aqui,
mas ninguém diz uma palavra, provavelmente pensando na
mesma coisa que eu: um de nós está sentado no mesmo lugar
onde meu pai morreu.
Minha mãe se senta depois de mim. Seus cachos estão
penteados para trás, em tranças tão apertadas que levantam
sua testa, deixando suas sobrancelhas altas e alertas. Uma vez,
sua bela pele morena brilhava radiante como os penhascos à
beira-mar ao nascer do sol. Agora está amarelada e afundada, e
ela segura os lábios como se tivesse acabado de dar uma
mordida em algo totalmente insatisfatório. Talvez ela sinta o
erro desta sala tanto quanto eu.
Conselheiros de cada uma das ilhas – com a notável, mas não
inesperada exceção de Kerost – sentam-se ao nosso redor.
Penas emplumadas e pergaminhos cheios de notas estão diante
deles. Há um assento vazio à minha direita destinado ao meu
principal conselheiro, Ferrick, mas aceno para um guarda real
retirar sua cadeira.
— Ferrick tem deveres em outro lugar hoje — digo aos
conselheiros antes que eles perguntem, projetando meu queixo
para que eu possa parecer a mais autoritária possível sob
minha coroa. — Eu mesma falarei em nome de Arida.
Ao meu lado, a voz de mamãe repreende em um sussurro
que só eu posso ouvir:
— Cuidado com o seu tom, Amora. Você não está aqui para
lutar. Todos nós queremos a mesma coisa.
Suas palavras forçam meus lábios em uma linha fina. Desde
que assumi o trono, não faltaram aqueles que questionam
minha autoridade. Mas ela está certa, confrontar os
conselheiros de Visidia como se eu estivesse preparada para
enfrentá-los não me fará bem.
Mergulhando fundo em mim mesma, encontro minha
vontade de continuar jogando o jogo que eu e Mira começamos
nas docas – o mesmo jogo cansado que venho jogando com o
reino desde que assumi o trono. Eu coloco um sorriso em meus
lábios.
— Obrigada a todos por terem vindo. — Faço-me parecer
mais leve desta vez. Mais amigável. — Sei que as coisas estão
difíceis para todos nós agora, então agradeço a disposição de
todos em se encontrar.
— Estou feliz por finalmente termos a chance. — A voz que
fala é enganosamente tenra. Pertence a Zale, a conselheira
recém-nomeada de Zudoh, uma ilha que estamos trabalhando
para reintroduzir no reino depois que meu pai os baniu por
engano há onze anos. Embora seu povo tenha sofrido
cruelmente, Zale foi gentil o suficiente para oferecer a minha
tripulação e a mim abrigo e proteção quando chegamos em
Zudoh em nossa busca para encontrar Kaven – mesmo apesar
de Bastian ser seu irmão.
Desde que sua ilha foi libertada do reinado de Kaven, ela
desenvolveu um brilho vivo em sua pele quente, e seus olhos
outrora vazios se encheram de um brilho que rivaliza com a
malaquita mais brilhante. Ela é linda em suas vestes brancas de
seda, mas há uma ferocidade nela que não pode ser esquecida.
Zale é uma das mulheres mais inteligentes e determinadas que
já conheci.
Ao lado dela, Lorde Bargas está sentado tão orgulhoso
quanto alguém pode estar envolto em um casaco de rubi tão
grosso que é praticamente um cobertor. Acompanhado por seu
jovem sucessor, eles representam Valuka, o reino da magia
elemental. Meu coração pula uma batida quando o vejo, e me
lembro nitidamente de Bastian e como ele fingiu ser o filho do
barão na noite em que nos conhecemos para ganhar a entrada
para a minha festa de aniversário. O barão e sua tripulação
foram deixados no mar, desarmados, despidos e sob a forte
influência do pó do sono de Curmana.
— Olá, Vossa Majestade. — Seus lábios se contraem em um
tipo de sorriso que poderia derreter gelo durante o inverno
mais frio. Ele é o conselheiro mais velho, quase sessenta anos,
e vê-lo não só me lembra Bastian, mas também a maneira como
papai gostava de brincar com o barão. A maneira como ele batia
no ombro de Lorde Bargas e rugia com uma das suas risadas de
fazer barulho no peito.
— É um prazer vê-lo novamente, Lorde Bargas. — Limpo
minha garganta e a emoção crescendo dentro dela, guardando-
a para um momento posterior, quando os olhos estarão menos
curiosos. — Ouvi dizer que você estava dormindo da última vez
que nos vimos.
Isso me rendeu algumas risadas, até mesmo do senhor e da
jovem sentada ao lado dele.
— Eu garanto a você, não foi por escolha. — Há um brilho de
conspiração em seus olhos. — Aquele maldito pirata até
roubou uma das minhas espadas favoritas. Certifique-se de
pegar de volta para mim, certo?
Eu imito seu sorriso animado.
— Verei o que posso fazer. Quem é essa que você trouxe com
você?
Ele põe a mão firme no ombro da jovem.
— Esta é Azami Bargas, filha do meu irmão mais velho e
minha nova sucessora. Azami assumirá totalmente o controle
na primavera.
— É um prazer conhecê-la, Azami.
Ela inclina a cabeça rapidamente e de forma baixa.
— Da mesma forma, Vossa Majestade.
Estou surpresa ao descobrir que há outros rostos aqui que
não reconheço. Enquanto a maioria me observa intrigado, e
nove conselheire de Mornute coloca os dedos na mesa de
mármore e, em seguida, bate padrões ansiosos nela. A cada
toque de seus dedos, minúsculas constelações dançam em
torno de suas unhas pretas laqueadas. Quando elu me pega
olhando, elu chama a atenção.
— Leo Gavel, Vossa Majestade! — O rosto de Leo é
agradavelmente jovem, com bochechas salpicadas de sardas
encantadas a parecerem estrelas. Fisicamente, Leo é baixinhe e
rechonchude, com feições marcantes que me dão uma pontinha
de ciúme por todos aqueles que praticam a magia do
encantamento. Elu tem olhos amarelos penetrantes e cabelos
penteados combinando, e usa um terninho lilás com delineado
alado em um tom semelhante ao redor dos olhos. — Não
conseguimos nos encontrar desde que o conselheiro anterior
de Mornute foi morto durante o ataque, mas garanto que estou
bem treinade. Estou ansiose para trabalharmos juntos.
— Assim como eu. — Mas minhas palavras são forçadas
enquanto meus pensamentos permanecem na noite do ataque,
imaginando quantas pessoas eu deixei morrer. Porque eu não
consegui matar Kaven na primeira vez que ele e eu lutamos em
Zudoh, quanto sangue sou responsável por derramar?
Há ainda outro rosto novo – o conselheiro que representa
Curmana, a ilha da magia da mente, a julgar por suas calças
largas de ônix e capa cintilante.
— Eu sou Elias Freebourne e vou substituir minha irmã que
entrou em trabalho de parto na manhã em que carregamos o
navio para a viagem. Estou ansioso para servi-la, Vossa
Majestade. — Há um brilho em seus impressionantes olhos
verdes que aquece minha pele.
Eu me afasto rapidamente.
— Esta reunião é para discutir a unificação de Visidia — digo
a eles. — Eu gostaria de me concentrar em nossos esforços de
restauração com Zudoh e Kerost. Embora as relações com o
primeiro estejam indo tão bem quanto podemos esperar,
precisamos descobrir uma maneira de restaurar a confiança de
Kerost em nós antes que eles se separem do reino.
Nós os deixamos sofrer com as tempestades por muito
tempo. Nós os ignoramos porque um comerciante de tempo
lucrou com sua dor e roubou anos de suas vidas. Se quisermos
compensá-los, teremos muito trabalho pela frente.
O conselheiro de Mornute se agita.
— Estou mais do que feliz em discutir os esforços de
restauração, Vossa Majestade. Mas meu objetivo principal ao
vir aqui é discutir o bem-estar de Mornute e como está sendo
afetado pelas recentes... mudanças de Visidia.
Imediatamente sei que Leo está se referindo à minha
abolição da lei que impede visidianos de praticar mais de uma
magia. Uma lei que foi elaborada com base na maior mentira do
reino e que eu coloquei fim no momento em que assumi o
trono.
Por séculos, os Montaras mantiveram os visidianos fracos,
garantindo que eles praticassem apenas uma magia – e nunca
tivessem a habilidade de aprender a magia da alma – para que
ninguém pudesse dominar sozinho nossa família. Eles criaram
a lenda de uma besta que causaria a ruína de Visidia caso
violassem a lei. Uma lenda que enganou meu povo fazendo-os
acreditar que os Montaras sozinhos poderiam usar magia de
alma perigosa para protegê-los. A história se tornou tão
arraigada na fundação do nosso reino que poucas pessoas se
desviaram.
Mesmo agora, meu povo não sabe o que os Montaras –
minha família – fizeram. Eles acreditam que eu venci a besta e
liberei a magia. Se eles soubessem a verdade, eu não estaria no
trono. Eu nunca teria a chance de consertar as coisas.
Enquanto eu usar esta coroa, tenho apenas um objetivo:
arrepender-me dos erros dos meus ancestrais quebrando a
maldição Montara e libertando a magia da alma de nossa
linhagem. Eu irei tornar este reino inteiro dando ao meu povo
tudo o que eles sempre quiseram ter e, finalmente, contarei a
verdade.
E então, vou aceitar qualquer punição que eles considerem
adequada.
— Eu também gostaria de discutir como essas mudanças
estão afetando nossas ilhas individuais — disse o conselheiro
Suntosan, Lorde Garrison. Ele é um homem robusto com uma
espessa barba ruiva que esconde metade de seu rosto. É
meticulosamente estilizado toda vez que o vejo, e macio
também. Como se ele colocasse óleo todas as noites. — Alguns
de nós viajaram muito para estar aqui. É justo que possamos
resolver nossas preocupações.
O lembrete de mamãe ressoa em minha cabeça: você não
está aqui para lutar contra eles. Mas, deuses, entre seu queixo
orgulhoso e olhos avaliadores, não posso evitar.
— Eu conheço nossa geografia, Lorde Garrison — eu digo
laconicamente, satisfeita com a forma como seus olhos se
estreitam em surpresa. — Estou muito ciente de quão longe
você viajou. Estou certamente feliz em ouvir o que todos…
— No passado — diz ele, passando por cima das minhas
palavras como se eu não tivesse falado — o rei Audric abriria
essas reuniões com cada um de nós apresentando seus
próprios pensamentos e necessidades para as ilhas que
representamos, em vez de se abrir...
À menção do meu pai, algo em mim estala. A mão de minha
mãe encontra meu joelho embaixo da mesa, apertando-o em
advertência. Mas a presença dela não é suficiente para evitar a
malícia que quebra meu sorriso.
Lorde Garrison sempre foi leal ao meu pai, mas como o resto
dos conselheiros, ele foi educadamente frio comigo. Até o
outono passado, eu quase não tinha permissão para interagir
com os conselheiros. Meu pai guardava muitos segredos; até
que ganhasse o título de herdeira do trono, nunca me
permitiam detalhes dessas reuniões. Foi inútil e frustrante,
especialmente agora que estou sentada no topo de uma sala,
destinada a liderar um grupo de conselheiros que mal me
conhecem e cuja confiança acreditam que ainda não ganhei.
Mas eles estão enganados. Conquistei meu lugar neste trono
no momento em que esfaqueei Kaven. Ganhei este lugar com o
sangue dele e o meu. Eu ganhei com minha magia e com o
sacrifício de cada vida que tirei para chegar aqui.
Dane-se a confiança. Eu ganhei esta coroa com minha alma.
— Obrigada por me deixar saber como meu pai dirigia as
coisas. Todos nós sabemos que ele era um governante perfeito,
nunca cometendo um único erro. — Eu me endireito na
cadeira, fixando meus olhos nos de Lorde Garrison. — E
considerando que eu nunca fui autorizada a participar dessas
reuniões e que ninguém pensou em me incluir, suas
informações são muito úteis. Mas gostaria de lembrá-lo, Lorde
Garrison, que meu pai está morto.
Não desvio o olhar quando ele recua, nem me viro para
mamãe quando sua mão fica mole na minha coxa. Em vez disso,
mantenho meu foco treinado no conselheiro Suntosan
enquanto ele muda de posição com desconforto.
Quando ele abre a boca para falar, eu levanto minha mão e
continuo:
— No entanto, como o falecido rei costumava governar não
importa, porque ele não é mais aquele que se senta no trono.
Eu sou. Não tenho certeza se você sentiu que estava tudo bem
em ser condescendente comigo porque eu sou uma mulher, por
causa da minha idade, ou simplesmente porque sou nova nesta
posição e você sentiu a necessidade de estabelecer algum tipo
de domínio que você não tem e nunca terá. Mas, da próxima vez
que você abrir a boca para falar comigo, lembre-se de que está
falando com sua rainha. Você entende?
Pelo canto do olho, pego e conselheire de Mornute
boquiaberte enquanto os outros desviam o olhar em um
silêncio desconfortável. O rosto de Lorde Garrison fica
vermelho, e estou feliz por seu constrangimento. Ele merece.
— Eu entendo, Vossa Majestade — ele praticamente bufa,
como se não tivesse certeza se fica surpreso ou arrependido.
— Bom. Então, suponho que podemos continuar com a
discussão que estabeleci? — Eu empurro meus ombros para
trás, fazendo questão de mostrar que estou relaxada, e não uma
bobina tensa pronta para pular novamente. — Estou, é claro,
interessada em discutir as mencionadas “mudanças” também,
como sugeri antes da sua explosão. Podemos começar com Leo.
E conselheire de Mornute se vira para mim e eu sorrio mais
uma vez, tentando aliviar o choque. Embora a maioria dos
conselheiros seja reservada, elu ainda é tão nove que mostra
suas expressões claramente no rosto, e eu gosto disso. Isso me
faz confiar nelu mais do que na maioria nesta sala.
Leo sobressalta com atenção e agarra o pergaminho diante
delu, vasculhando-o para organizar seus pensamentos.
— Quero discutir como a abolição dessa lei terá um impacto
negativo em nossa ilha. Nossa cidade portuária, Ikae, é o maior
destino turístico de toda Visidia e nossa fonte de renda mais
importante. Tememos que, se nossa mágica chegar a outras
ilhas, não seremos mais capazes de gerar o mesmo turismo que
fazemos atualmente. Se alguém pode deixar sua cidade
deslumbrante com encantos, por que a nossa continuará a ser
tão atraente? Estou preocupade com a possibilidade de que
Mornute tenha uma grande redução na fonte de renda devido
a essa mudança.
A preocupação delu é legítima, mas já considerei.
— Você está certe de que essa lei mudará as coisas — digo a
Leo. — Mas Visidia deve sofrer uma mudança já faz algum
tempo. E à medida que evolui, devemos nos concentrar em
evoluir com ela. Embora você esteja certe de que Mornute é
principalmente um destino turístico, acredito que você esteja
negligenciando o valor monetário de suas exportações de
álcool.
O lampejo de curiosidade que desperta nos olhos de Leo me
diz que estou certa; isso não é algo que elu tenha considerado
profundamente.
— O clima de Mornute se presta bem a ser uma das poucas
áreas que podem cultivar os ingredientes necessários para
fazer uma boa cerveja e vinho em quantidades massivas. Você
pode se concentrar na expansão da produção. Se a taxa de
turismo em outras cidades aumentar, o consumo de álcool
também aumentará, e eles precisarão importar bebidas
destiladas de algum lugar. Haverá mais demanda por seus
produtos do que nunca, e talvez uma renda ainda maior.
— Minha sugestão para você é começar na frente na
preparação para mais vendas de álcool — eu continuo. —
Expandir os vinhedos nas encostas das montanhas. Plante mais
cevada. E enquanto você está nisso, considere desenvolver um
estilo de álcool que seja exclusivo para Ikae. Faça com que os
entusiastas venham diretamente para a ilha se quiserem
experimentá-lo.
Leo fica sentade por um momento antes de sorrir para o
pergaminho, fazendo anotações.
— Certamente é algo a se considerar. Vou levar essa ideia de
volta para a ilha e ver o que podemos fazer com ela.
Fico feliz que alguém aqui seja fácil de se comunicar.
Contanto que Mornute possa atender à demanda, nunca
deveria se preocupar, e minha ideia parece ter deixado Leo à
vontade. As pessoas de Mornute, especialmente as da cidade
portuária de Ikae, apreciam estilos de vida luxuosos. Estou
confiante de que eles surgirão com muitas outras maneiras
inovadoras de manter isso.
Não tinha percebido que estava tão dura e rígida na cadeira
até que a mão de minha mãe se afastou. Eu relaxo, sabendo que
é um sinal de sua aprovação. Minha resposta parece apaziguar
vários dos outros conselheiros também, todos os quais
estavam sentados na beirada de suas cadeiras, ansiosos para
ver como eu me sairia.
Depois da maneira como lidei com Lorde Garrison, a maioria
dos novos conselheiros leva tempo para reunir coragem para
falar. Mas logo reconheço minha confiança, apreciando o
padrão constante de conversa em que entramos. Eu relaxo na
conversa, me mexendo apenas quando há um grito abafado nas
portas duplas. Estou fora do meu lugar, adaga na mão, quando
aquelas portas são abertas, para grande protesto dos guardas
que vigiam.
Mas meus dedos enfraquecem no punho quando vejo que
aquele que está lá na soleira, escapando do alcance de Casem,
é a última pessoa nesta ilha que eu quero ver agora.
Bastian.
CAPÍTULO TRÊS

Parado na porta está o garoto que venho evitando há quase


uma temporada inteira.
O garoto que detém a metade que falta em minha alma.
Vestido com calças pretas elegantes e uma camisa opala
iridescente com vários botões de cima abertos, Bastian se
ergue com uma arrogância orgulhosa que o faz se sentir o
conselheiro real que fingiu ser na noite em que nos
conhecemos. Olhos castanhos encontrando os meus, ele passa
as mãos pela barba escura em seu rosto. O brilho em seus olhos
é inconfundível.
Ele é frustrantemente bonito, e o bastardo sabe disso.
Bastian entra sem convite, hesitando por apenas um breve
segundo ao ver a sala polida e incólume. Há um aperto rápido
em sua mandíbula. Por causa da nossa maldição, sinto a rápida
explosão de terror em seu peito que ecoa dentro do meu. Como
eu, ele deve estar se lembrando da última noite em que
estivemos nesta sala, afogando-se em um rio de sangue do meu
pai. Mas ele não tem escolha a não ser se endireitar, puxando a
cadeira descartada de Ferrick do canto e arrastando-a para a
mesa. A madeira range contra o mármore, mas o som não o
detém, nem mesmo quando os conselheiros fazem uma careta.
Tento chamar a atenção de Bastian, mas ele não olha para
mim, mesmo quando se senta entre mim e Zale. Só então ele
sorri, tão irritantemente charmoso que tenho vontade de
estender a mão e usar minhas unhas para limpá-lo dos seus
lábios.
— Desculpe, estou atrasado. — Ele oferece um aceno casual
com a mão. — Por favor, continue. Não há necessidade de fazer
uma pausa por minha causa.
Eu pressiono minhas mãos no meu colo para que ninguém
possa ver as unhas cravadas em minhas palmas quando
pergunto a ele:
— O que você está fazendo?
Bastian ainda não olha para mim enquanto penteia os dedos
sobre o cabelo arrumado e olha melancolicamente para a
frente.
— Estou aqui para a reunião.
Cada cabelo ao longo do meu corpo se eriça.
— Esta reunião é apenas para conselheiros, Bastian.
— Ah, então você se lembra do meu nome. Faz tanto tempo
que não nos falamos que eu estava começando a me perguntar.
— Sua própria voz abaixa, e a rouquidão dentro dela faz coisas
estranhas no meu estômago. — E eu posso fazer o que eu
quiser, princesa. Eu ajudei a salvar este reino.
Princesa. O apelido arrepia minha pele.
— Além disso, o que você vai fazer? — Ele se inclina,
sussurrando a próxima parte apenas para mim. — Me expulsar
da ilha?
— Você não pode se tornar um conselheiro — Zale
interrompe, os olhos sorrindo apesar da tensão em sua
mandíbula. — Mas eu gostaria de oferecer a você pessoalmente
um assento, Bastian. Em nome de Zudoh, agradecemos sua
opinião.
Preciso de tudo em mim para relaxar minhas mãos. Sabendo
melhor do que ir contra Zale, eu ignoro a presunção que come
os lábios de Bastian enquanto ele tira uma pena de trás da
orelha, lambe a ponta e coloca vários pedaços de pergaminho
na mesa. Ele pisca quando me pega olhando.
Nunca houve um momento em que eu quisesse aprender a
falar na mente como a magia de Curmana mais do que agora.
Se eu praticasse, teria a certeza de dizer a Bastian exatamente
onde ele poderia enfiar aquela pena.
— Temos um longo caminho a percorrer para ajudar Zudoh
— Zale continua, conduzindo-nos rapidamente de volta aos
trilhos. — Estamos progredindo, mas levará algum tempo para
que nossa ilha se recupere do abandono.
— E a água? — A presunção deixou os lábios de Bastian, e a
sinceridade que pulsa dentro das palavras é profunda. Desde a
morte de Kaven, o desejo de restaurar Zudoh quase o
consumiu. Sentindo sua paixão com tanta força quanto eu sinto
a minha própria, minha raiva diminui.
— Os valukanos estão ajudando a limpar a água, tornando-a
mais habitável para a vida marinha após o tributo da maldição
de Kaven — responde Zale. — Levará algum tempo para os
peixes reaparecerem, mas já estamos vendo melhorias.
— Fico feliz em ouvir isso — eu digo. — Lorde Bargas,
devemos discutir a melhor forma de dividir os esforços de
restauração dos valukanos entre Kerost e Zudoh...
Nós conversamos por horas, indo e voltando,
compartilhando ideias e chegando a um acordo com as
mudanças que precisam ser feitas. E embora a reunião tenha
começado instável, no final dela estou relaxada em meu
assento, tendo tirado minha coroa para me concentrar melhor.
Alguns dos conselheiros têm novas perspectivas, enquanto
outros estão teimosamente fixados em seus velhos hábitos.
Mas não existe um de nós que não queira o melhor para o nosso
povo. E apesar da sua grande entrada, estou surpresa ao
descobrir que todos são receptivos a Bastian. Por mais
repugnante que seja admitir, suas ideias são valiosas e o amor
que ele nutre por sua ilha natal é genuíno.
Mas assim como tudo correu até agora, o desafio nos olhos
de Lorde Garrison é suficiente para me avisar que nem tudo
será tão fácil.
— Leo — ele diz casualmente quando é sua vez de falar. —
eu acredito que é hora de Sua Majestade saber sobre os papéis.
Os olhos de Leo se arregalam. Bruscamente, elu se volta para
Lorde Garrison.
— Eu já disse a você, a situação está resolvida.
Mas Lorde Garrison ignora, bufando em sua barba enquanto
ele enfia a mão nos bolsos internos de seu casaco esmeralda. O
pergaminho se enruga sob seus dedos calejados quando ele o
joga na mesa diante de nós. Eu chego para frente e o agarro.
Uma das últimas tendências da Ikae é o pergaminho que foi
encantado com imagens em movimento para mostrar as
últimas fofocas e moda. Vataea e meu primo Yuriel estão
debruçados sobre eles há semanas, mas estive muito distraída
para me concentrar no que qualquer um deles tem a dizer.
Aparentemente, foi um erro significativo da minha parte.
SUA MAJESTADE, AMORA MONTARA: RAINHA DO
NOSSO REINO, OU A MAIOR AMEAÇA DE VISIDIA?
No verão passado, a Rainha Amora virou nosso reino de
cabeça para baixo com o anúncio de que Visidianos não seriam
mais forçados a honrar a prática secular de usar apenas uma
única magia.
Embora alguns desejem essa mudança há muito tempo,
muitos estão céticos. O anúncio veio poucos dias após a morte do
falecido rei Audric, e depois que a rainha Amora foi forçada a
assumir o trono, apesar de sua falha anterior em desempenhar
as funções necessárias de um Animancer. Embora nossa rainha
reivindique a besta que viveu dentro da linhagem Montara por
séculos – a razão por trás de nossa lei de magia única – foi
derrotada na mesma luta que matou o rei Audric e Kaven Altair,
é difícil ignorar o momento conveniente.
Desde o momento em que nossa rainha assumiu o trono, o
estado de Visidia tem estado tumultuado, para dizer o mínimo.
Se a rápida mudança da dinâmica da magia não é suficiente para
preocupá-lo, o estado mutante de nosso reino deve ser. Com o
esforço de Zudoh para se reunir ao reino acontecendo entre as
ameaças de Kerost de tentar se separar, devemos nos perguntar
o que Sua Majestade está pensando com todas essas mudanças.
Talvez seja porque ela é uma mulher jovem, ou talvez seja
porque não há ninguém por perto para domesticá-la, mas seja
qual for o motivo, uma coisa é certa: nossa rainha está
destruindo Visidia. E se algo não mudar com ela logo, temo que
o pior ainda está por vir.
Há uma foto minha do dia da minha coroação, sentada
diante do meu povo no mesmo trono queimado em que estou
agora. Mamãe está colocando a coroa de enguia na minha
cabeça, e as pessoas diante de mim se curvam. Pareço severa e
confiante, ombros para trás e queixo erguido.
Mas eu me lembro daquele momento, e se alguém olhasse
com atenção o canto dos meus olhos e o sulco de minhas
sobrancelhas sob as mandíbulas da enguia, eles veriam o medo.
Medo de não conseguir consertar Visidia sozinha.
Medo de que meu povo descobrisse a verdade sobre os
Montaras e me matasse antes mesmo que eu pudesse tentar
consertar.
Não querendo reviver a memória, desvio minha atenção na
imagem e, em vez disso, volto rapidamente para uma única
linha, lendo-a repetidamente.
Nossa rainha está destruindo Visidia.
— Nosso povo não confia em você, Vossa Majestade. — A
presunção na voz de Lorde Garrison dificilmente é o suficiente
para me distrair da raiva que escalda minha pele. — Desde que
você falhou em realizar suficientemente a magia da alma
durante sua apresentação no verão passado, eles temem que
você seja incapaz de lidar com sua magia.
Graças aos deuses, meu povo não sabe que não posso nem
usar minha magia agora. Minha maldição me impede de
acessar a magia da minha alma, visto que metade da minha
alma está amaldiçoada dentro de Bastian.
Eu sou a Alto Animancer. A rainha. Se eu não conseguir
realizar a magia da alma o suficiente, há pouca coisa que
impeça meu povo de arrancar a coroa da minha cabeça.
O rosto da minha mãe aperta com força enquanto ela lê o
pergaminho, eu posso praticamente vê-la mordendo a língua.
Até Bastian abre a boca para protestar, mas as palavras
morrem inutilmente em seus lábios enquanto ele lê
novamente.
— O que você propõe que eu faça para mudar a percepção
que o reino tem de mim? — Eu aperto minhas mãos contra os
braços da cadeira e olho Lorde Garrison mortalmente nos
olhos. — Contar piadas mais engraçadas? Dar festas onde o
reino pode dançar e beber alegremente? Não salvei apenas
Visidia de Kaven, trouxe a magia de volta para este reino. E
ainda assim eu preciso ser domesticada? — Eu bato meu punho
na mesa. — Pelo amor dos deuses, eu sou uma rainha!
Quando Lorde Garrison se endireita, o ressentimento
envenena minha boca e cobre minha língua. Eu arrasto meus
punhos para longe, para o meu colo, escondendo os nós dos
dedos arranhados embaixo da mesa.
— Você pode ter o título de uma rainha — Lorde Garrison
diz friamente — mas aos olhos de muitos, você ainda é pouco
mais do que uma garota que fugiu do seu reino, em quem não
se pode confiar o poder que ela exerce.
Eu o odeio por não perder a paciência. Mas eu o odeio ainda
mais porque, depois de tudo que aprendi sobre os Montaras no
verão passado, sei que ele fala a verdade.
— O que Visidia precisa é de estabilidade. Não podemos
apenas jogar dificuldades em nosso povo e esperar que eles se
sintam confortáveis com a mera promessa de que, um dia, as
coisas podem ser melhores. Eles precisam confiar em você. Eles
precisam sentir que ainda não têm apenas uma rainha, mas
uma protetora.
Eu pressiono meus lábios e afundo de volta na cadeira.
— Suponho que você tem uma solução em mente?
É como se nenhum outro conselheiro estivesse na sala
quando Lorde Garrison olha para mim, confiante e calculado.
— Proponho que demos uma distração a Visidia, algo para
eles se concentrarem enquanto trabalhamos para mudar a base
do nosso reino. Quero dar a eles um motivo para torcer por
você.
A maneira como ele fala envia eletricidade pelas minhas
veias.
— Você é a rainha, agora. — Ele saboreia cada palavra. —
Seu dever é com seu reino, e parte desse dever é que você
deverá continuar a linhagem de Montara fornecendo o próximo
herdeiro do trono o mais rápido possível. Por causa disso, você
precisará ter um marido.
Talvez seja porque ninguém está por perto para domesticá-la.
Eu sinto o ressentimento de Bastian aumentar, tão amargo
quanto o meu. Mas quando ele coloca as mãos sobre a mesa
como se estivesse prestes a se levantar, eu chuto sua canela e o
encaro com um olhar que exige que ele permaneça sentado.
Essa não é sua batalha.
— Tecnicamente, não preciso de um marido para produzir
um herdeiro — começo, mas mamãe me corta com um olhar
penetrante. Não posso deixar de notar que ela não tomou
posição contra sua sugestão. — O que está pensando? — Eu
pergunto a ela bruscamente.
— Eu só quero que você fique segura — ela responde com
cada gota de exaustão que está sacudindo meus ossos. — Se um
marido pode estabelecer nosso reino... pode valer a pena
considerar.
— E daí? — Bastian rosna, me ignorando quando eu bato
minha bota contra sua canela pela segunda vez. — Você quer
desposá-la? Ela é sua rainha, não seu peão.
Lorde Garrison coloca as mãos sobre a mesa, mantendo-se
ereto.
— A política é um jogo, filho. Todo mundo é um peão.
Do restante dos conselheiros, um silêncio esmagador é a
única resposta.
— Proponho que enviemos um aviso a cada uma das ilhas —
continua Lorde Garrison, embora eu não olhe mais para ele. Em
vez disso, pressiono a mão na testa, disposta a afastar a dor de
cabeça que floresce nas minhas têmporas. — Nós vamos dizer
a eles que você está a caminho de conhecer seus solteiros mais
cobiçados. Seremos barulhentos sobre isso e garantiremos que
a atenção de todos esteja em você. Vamos distrair o reino da
rapidez com que tudo ao seu redor está mudando.
— É uma ideia inteligente. — A voz de Zale é suave e
arrependida quando ela interrompe. — Nós poderíamos usar
isso como uma oportunidade para você conseguir favores,
Amora, e fazer com que as ilhas te conheçam. As pessoas se
sentiriam engajadas, como se você fosse um deles, e parte deste
reino. O amor também a torna vulnerável. Isso a torna suave, e
essa suavidade é o que as pessoas precisam ver de você. Isso
pode dar esperança a Visidia.
Leva tudo de mim para não deixá-la sentir a extensão da
minha raiva, mesmo quando o resto dos conselheiros acenam
em concordância.
Mal se passaram duas temporadas desde que rompi o
noivado com Ferrick, e eles já estão tentando me jogar em
outro homem. Só a ideia disso é o suficiente para eu empurrar
a mesa, levantando-me sobre as pernas que ameaçam tremer
de raiva.
— Passei mais de dezoito anos treinando para estar na
posição em que estou. — Eu cerro as palavras entre os dentes,
tendo que retroceder cada uma das minhas emoções. —
Estudei os livros da nossa história. Os mapas. Magia. Armas.
Estratégia. Cortes. Diga-me, que homem existente fez o
mesmo? Que homem poderia estar pronto para sentar-se ao
meu lado e ajudar a liderar um reino? — Tento firmar minha
voz vacilante, que não vem dos nervos, mas do ódio.
Não por Lorde Garrison ou pelos outros conselheiros, mas
pelo simples fato de que, no fundo, reconheço que essa ideia
tem seus méritos.
O reino precisa de algo para distraí-los, e eu disse para mim
mesma que faria o que fosse necessário para consertar os erros
deixados pelos Montaras. Mas isso?
Do outro lado da mesa, Lorde Garrison permanece calmo
como o mar de verão.
— Eu admiro sua tenacidade em fortalecer o reino, mas
como já disse, os Visidianos precisam confiar em seu
governante. Ninguém viu sua força. Você pode ter impedido
Kaven, mas desde que falhou durante sua cerimônia no verão
passado, ninguém viu sua magia. Com as prisões de Arida
lotadas, muitos têm suas hesitações a seu respeito, Majestade.
Rumores de que você não pode usar sua magia no nível de um
Alto Animancer têm circulado. Muitos acreditam que você não
tem controle sobre a magia da sua alma nem para executar
prisioneiros, quanto mais para proteger Visidia. É hora de
controlar os danos. É hora de mostrar ao reino que você é
vulnerável, que está tão aberta para ouvir as preocupações dos
plebeus que até consideraria trazer um deles para o reino como
seu marido.
O rosto de minha mãe relaxa enquanto eu congelo. Esta é a
primeira vez que ouço sussurros sobre minha magia.
— Houve preocupações mais urgentes do que a execução de
prisioneiros. — É a voz afiada de Bastian que me interrompe, e
estou grata pelo momento que me dá para me recompor. — A
magia dela é boa.
Embora Lorde Garrison acene com a cabeça, os cantos de
seus olhos se enrugam com um escrutínio que diz que ele não
acredita totalmente na mentira.
— Claro. É por isso que uma viagem como esta seria tão
benéfica, para que Sua Majestade pudesse mostrar ao reino que
ela não é apenas poderosa, mas que é alguém em quem podem
confiar. Que ela escuta suas preocupações e fará o que for
melhor para o reino.
Eu sinto o gosto de sangue no meu lábio inferior por causa
da forma como me preocupo com isso.
— Vou pôr fim a todos os rumores sobre a minha magia esta
noite — digo antes que possa decidir melhor sobre isso. — Vou
dirigir-me a todos os prisioneiros que foram condenados a uma
execução pela minha magia e convido-o a assistir, Lorde
Garrison. E se mais alguém aqui está preocupado com a minha
magia, você é bem-vindo para se juntar a nós.
Minha mãe e Bastian tentam chamar minha atenção, mas me
recuso a prestar atenção a eles. Aqui, antes dos outros, devo
manter minha calma mais desdenhosa, mesmo enquanto meu
coração dispara tão ferozmente que não pode demorar muito
para quebrar.
Eu preciso sair daqui. Preciso planejar e pensar, longe de
sussurros ou conselheiros e da massa turbulenta dos nervos de
Bastian que me corroem.
Quanto antes eu puder acabar com os rumores sobre minha
magia, melhor. Acima de tudo, a descoberta da minha magia
perdida é a última coisa de que preciso.
— Vou considerar essa proposta, Lorde Garrison — anuncio
para a mesa, escondendo minhas mãos trêmulas. — E eu te vejo
hoje à noite.
CAPÍTULO QUATRO

Bastian me alcança antes que eu possa escapar de volta para o


meu quarto, sem fôlego enquanto ele segura meu pulso.
Eu pulo com o choque da sua pele na minha. Seu toque
queima através de mim como fogo, acendendo minhas veias.
Isso me faz querer me entregar a ele, deixá-lo me abraçar e
apenas queimar.
É por isso que tenho feito tudo ao meu alcance para ficar
longe dele.
— Você realmente vai sair correndo assim? — Ele exige, seu
cabelo varrido pelo vento de tanto correr, olhos castanhos fixos
nos meus. — Você não tem magia, Amora. Como você acha que
vai se safar com isso, especialmente com os outros assistindo?
— Você não entende, não é? — Eu tiro minha mão dele,
como se ele fosse uma chama ameaçando queimar minha pele.
— Eu preciso de outros para assistir. Essa é a única maneira que
tenho, uma chance de acabar com os rumores de que algo
aconteceu com a minha magia.
Seus punhos estão cerrados, os músculos do pescoço tensos.
— Mas você tem um plano? Você sabe, aquela coisa em que
você para pra pensar sobre o que está fazendo antes de
anunciar para uma sala inteira que vai fazer isso?
— Claro que sim — eu argumento. — Eu tenho um... um
plano de contingência.
Ele inclina a cabeça para o lado.
— Ah? Que tipo de plano de contingência?
Eu aperto meus dentes, moderando a frustração que está
borbulhando dentro de mim.
— Um que vai funcionar. — Mas também, um que eu
esperava nunca ter que usar. Um com muitas variáveis quando
temos apenas uma chance de acertar. Eu sei muito bem o quão
arriscado é, um passo em falso e todo o meu reinado irá cair em
chamas antes mesmo de começar. Mas eu sabia que esse dia
chegaria desde o momento em que assumi o trono, e essa é a
única ideia que tem uma chance.
Bastian suspira.
— Você não precisa fazer isso sozinha. Apenas... fale comigo.
Você e eu somos melhores juntos. Deixe-me ajudá-la.
Por um momento fugaz, quero um pouco mais do que
exatamente isso. Mas eu confiei em meu pai com tudo, e veja
aonde isso me levou. Não vou colocar minha fé apenas em outra
pessoa novamente.
— Você pode me ajudar ficando longe essa noite. — Eu
mantenho minha voz concisa, tentando ignorar a forma como
sua dor me corta. Cada fibra do meu corpo vibra com o erro
dessa emoção que não é minha. — Você é uma distração,
Bastian. E não posso ter nenhuma distração quando estou na
prisão.
Talvez sejam palavras cruéis. Mas quando seu rosto cai, eu
sei que elas funcionaram. Por enquanto, isso é tudo que
importa.
— Você tem me evitado por todo o outono. Tenho certeza
que consigo ficar longe de você por uma noite. — Ele se afasta
de mim e cruza os braços sobre o peito. A postura parece quase
casual, mas não estou enganada. A frustração ferve dentro dele,
aquecendo minha pele. — Mas e o que disseram na reunião?
Você está... Isso é algo que você quer?
— Casar? — Eu bufo. — Claro que não. Mas você não pode
negar que a ideia tem mérito.
— É uma ideia segura — ele desafia, rangendo as palavras
entre os dentes cerrados. Sua raiva é uma tempestade negra e
violenta de emoções que cresce dentro de mim.
— Não há nada de errado em tentar estar segura. — Não tive
a chance de realmente considerar a ideia, mas não posso evitar,
mas quero que Bastian sinta uma pontada de minhas palavras.
Eu quero que ele saiba que, independentemente desta
maldição nos ligando, ele não é meu dono. Ele não é meu
destino e, embora eu possa desejá-lo, não preciso dele. —
Visidia perdeu muito. Minha mãe perdeu muito. O que há de
errado em ter alguma estabilidade?
— Não há nada de errado com a estabilidade. Mas não deve
significar sacrificar quem você é. — Ele dá um passo à frente e
estende a mão como se fosse me tocar. Embora cada centímetro
do meu corpo queime por esse toque, recuo, apenas
percebendo um pouco tarde demais o que fiz.
Bastian se imobiliza, abatido. Seu peito não se move – por
um momento, ele não respira.
— Você acabou de sair de um noivado, não se prenda de
novo. — Suas palavras se transformaram em um sussurro,
suave e suplicante.
— Essa não é uma sugestão repentina. — Eu mantenho
minha voz dura. — Há uma razão pela qual minha família me
noivou com Ferrick no verão passado, e agora há muito poucas
opções para ser o herdeiro. Tenho que considerar isso, farei o
que for preciso para consertar este reino, e se isso significa que
devo colocar um anel no dedo para fazer isso, ou fingir tudo o
que devo fingir para que meu povo possa descansar, então eu
vou.
Sua mandíbula se fecha, e eu praticamente posso ouvir seus
dentes rangerem juntos. Estou prestes a me dispensar, incapaz
de suportar a tensão por mais tempo, quando sua postura
relaxa.
— Tudo bem. — Bastian fala com tal finalidade que, por um
momento, fico quase ofendida por ele não ter tentado me
impedir com mais determinação. No mínimo, eu esperava uma
explosão, mas sua raiva vem fria e amarga.
— Tudo bem?
— Foi o que eu disse. — Sua voz é calma, mas firme. — Está
bem. Na verdade, você deve fazer isso.
É como se ele tivesse me acertado bem no peito. Eu me
afasto, não querendo deixá-lo ver a raiva inflamada dentro de
mim.
— Isso é tudo que você precisou para aceitar? Estrelas,
talvez eu devesse ter começado a namorar há muito tempo.
A risada de Bastian é suave como vinho. Com sua
proximidade, posso praticamente sentir o cheiro familiar de sal
marinho em sua pele.
— Quem falou em aceitar? O plano seria encontrar os
solteiros mais elegíveis de toda Visidia, certo? E ver se você tem
uma conexão com algum deles?
Eu o observo com cautela, olhos estreitos.
— Está correto.
Sua respiração se acalma. Embora seus olhos sejam escuros,
a determinação os endureceu. O sorriso que ele dá é quase o
suficiente para me derreter no chão, quente, rico e brilhante.
— Então, se é isso o que você decidir fazer, não vamos
esquecer que também sou solteiro. E eu sou muito, muito
elegível.
Quando o choque das suas palavras se instala, eu descubro
que mal posso mover meus lábios, muito menos formar
palavras. O suor cobre minhas palmas, e eu as limpo fingindo
alisar meu vestido. Minha boca está seca e minhas bochechas
quentes e agitadas. A última coisa que quero é que ele perceba,
embora a tentativa seja inútil. Este menino pode sentir minha
própria alma.
— Se você me der licença. — Eu me afasto antes que meu
coração trovejante possa me trair a ele e a todo o reino. — Eu
tenho que me preparar para esta noite.
A última coisa que vejo de Bastian é que ele inclina a cabeça.
Há um sorriso em sua voz quando ele grita:
— Você não será capaz de me ignorar para sempre, princesa.
Mas até que eu possa resolver essas emoções turbulentas
dentro de mim, tenho certeza que as estrelas vão tentar.
CAPÍTULO CINCO

Minhas botas afundam na areia vermelho-sangue enquanto


Casem e eu levamos os conselheiros para a prisão sob o fundo
de uma lua prateada. Apenas dois apareceram: Lorde Garrison
e Lorde Freebourne. Quanto aos outros, tenho certeza que os
rumores grotescos sobre minha magia superaram sua
curiosidade.
Enquanto eu crescia, papai e eu entramos nessas prisões
uma vez por ano com um único propósito: livrar Visidia de seus
criminosos mais perigosos, usando nossa magia para executá-
los. Naquela época, eu pensava que estava protegendo Visidia
com minha magia, como meu reino ainda acredita
erroneamente. A magia da alma que meu pai e eu praticamos
era corrupta e grotesca, mas até o verão passado eu não
conhecia nada melhor. Nossa magia é o resultado de uma
maldição em nossa linhagem para punir meu ancestral Cato,
que originalmente enganou todos fazendo-os acreditar que só
podiam praticar uma magia para sua proteção.
Uma vez que eu quebrar tanto a maldição Montara quanto
minha maldição à Bastian, a magia da minha alma deve
retornar ao modo como sempre foi destinada a ser usada: algo
pacífico e protetor que permite que seus usuários leiam as
almas e a intenção delas. E embora esteja animada para
conhecer essa versão da minha magia, não posso deixar de
reconhecer a lasca de medo.
Por mais grotesca que minha magia possa ter sido, sempre
acreditei que a estava usando para proteger os outros. E por
essa razão, passei a amá-la.
— Você está se sentindo bem com isso? — É o sussurro de
Casem que quebra nosso silêncio, me tirando dos meus
pensamentos.
Não é hora de ficar triste.
— Agora é um momento tão bom quanto qualquer outro —
digo a ele. — Vamos acabar com isso.
Eu conduzo os outros por um penhasco íngreme nas
profundezas de um bosque de eucaliptos arco-íris,
intimamente satisfeita pelos bufos e tropeços de Lorde
Garrison. Ao contrário dele, não preciso de nada mais do que a
luz das estrelas para me guiar por esta ilha que conheço tão
bem. Esta ilha que se gravou dentro da minha alma. Em meus
pulmões. No sal que queima a pele rachada das minhas palmas.
Eu poderia fechar meus olhos e ainda conduzir os outros por
Arida sem perder um passo.
Construída como uma caverna na encosta do penhasco, a
saída da prisão é vigiada por três soldados habilidosos: dois
Valukans com afinidade com a terra e o ar e um Curmanan com
magia mental, habilidoso na levitação. Enquanto eles se
afastam para nos deixar passar, mais guardas esperam dentro
da prisão.
Normalmente, meu pai os mandaria embora para nossas
execuções. Mas seja porque eu sou nova em fazer isso sozinha
ou porque eles suspeitam do motivo de eu ter evitado as
prisões por tanto tempo, vários guardas nos seguem à
distância, como se esperassem que eu desse o comando para
eles para sair a qualquer momento. Mas é bom que os guardas
estejam aqui. Quanto mais pessoas testemunharem isso,
melhor.
O suor permeia em minhas têmporas enquanto viajamos
pelos túneis úmidos, pegando o caminho de terra bolorento
que leva à seção da prisão que hospeda os piores criminosos.
Quando chegamos, o nervosismo toma conta do meu peito
enquanto espio pela janela minúscula esculpida em uma porta
de ferro.
Uma mulher loira e esguia me encara de volta. Sua pele é
pálida e seus olhos são fundos, em seu pescoço está a familiar
tatuagem preta de um X: a marca de alguém acusado e julgado
por assassinato premeditado. Suas mãos estão fortemente
amarradas à sua frente, cobertas por um grosso saco de estopa.
Cada centímetro de sua pele é coberto com um pano, e em seus
pés há botas de metal irremovíveis que me dizem que ela é uma
Valukan com uma afinidade com a terra. Sem ser capaz de
conectar seu corpo com a terra por meio do toque, sua
capacidade de controlar o elemento é inexistente.
Há outros atrás dela, cinco no total, amarrados por correntes
na parede. Todos os quais serão executados essa noite.
Eu mantenho minha posição fora da cela enquanto o guarda
abre a porta. A curiosidade está em chamas nos olhos de todos
os guardas. A maioria deles está do lado quando eu entro, os
braços cruzados atrás deles enquanto observam com foco de
falcão. Os conselheiros ficam com eles, e Lorde Garrison
observa com expectativa enquanto as mordaças da mulher são
arrancadas dela.
— Eu estava começando a achar que você nunca iria
aparecer. — Ela mantém a voz brincalhona mesmo quando
seus olhos passam de um lado para o outro, procurando a saída
mais próxima. Com tantos guardas patrulhando a prisão, seria
inútil para ela fugir. Mas isso não impediu prisioneiros de
tentar.
Eu reduzo o espaço restante entre ela e arranco um fio de
cabelo do seu couro cabeludo. Quando ela se esquiva do meu
toque, vejo a marca que procuro. Em suas mãos amarradas,
logo acima da borda da estopa que deveria cobri-la por
completo, está uma tatuagem lilás tênue em seu antebraço.
Dois peixes esqueléticos formando ossos cruzados sob um
crânio. É minúsculo, quase impossível de ver, mas me dá toda
a coragem de que preciso para prosseguir. Agarrando o cabelo
em meu punho, faço uma prece silenciosa para que isso
funcione.
— Eu preciso de fogo — digo ao guarda mais próximo.
A magia da alma é baseada na troca equivalente, se quero
tirar um osso de alguém, devo oferecer um osso e algo da
pessoa, geralmente um fio de cabelo. Se eu quero o dente deles,
ofereço um dente em troca. E se eu quiser matá-los, devo usar
seu sangue.
No entanto, não há uma maneira de usar a magia da alma.
Todos que já o manejaram, o fizeram de uma maneira única.
Meu pai usava água para se afogar, minha tia engole os ossos e
usa o ácido do estômago para destruí-los. Eu uso o fogo para
queimar o sangue e os ossos das minhas vítimas.
Provavelmente antecipando meu pedido, uma guarda
Valukan obriga-se a tirar um sopro profundo do seu intestino.
Quando ela expira de novo, é com a palma da mão estendida.
Nela, uma pequena chama pisca e se estende para a vida,
crescendo a cada vez que a Valukan exala. Ela coloca as chamas
em um pequeno poço construído na cela, criado exatamente
para esse propósito, e ele se acende intensamente. Abro a
palma da mão e balanço o cabelo acima dela.
— Qual é o seu nome?
O comportamento fácil da prisioneira vacila. Sua expressão
se torna azeda quando ela tenta se levantar, mas as botas
pesadas a fazem tropeçar e não há nenhum lugar para ela ir.
Apenas prisioneiros amarrados esperam atrás dela, e um
punhado dos mais poderosos manejadores de magia de Visidia
à sua frente.
— Não tente — advirto enquanto seus olhos se voltam para
a única saída. — Vou perguntar mais uma vez. Qual é o seu
nome?
Pego a bolsa no quadril, saboreando a forma como minha
pele treme contra o couro polido, sem ter um motivo para pegá-
la. De dentro dela, retiro um único dente e enrolo o cabelo da
prisioneira em torno dele.
Para mim, os dentes são a forma mais humana que conheço
de obter a quantidade de sangue que preciso para acabar com
a vida de uma pessoa. Embora seja desconfortável, é bastante
indolor.
Eu balanço o dente sobre o fogo que se contorce, observando
enquanto a mandíbula da mulher se contrai em resposta. Sua
atitude dura se estilhaça.
— Por favor, não faça isso — implora a mulher. — Por favor,
me dê outra chance.
Minha própria mandíbula também se contrai, embora ao
contrário dela, a minha é de aborrecimento. Eu odeio ser feita
de vilã, especialmente na frente de uma multidão.
— Eu perguntei seu nome.
— Riley — ela diz. — É Riley Pierce.
— Riley Pierce, como a Rainha de Visidia, é meu trabalho
manter o reino seguro. Sua alma é uma praga, se corrompeu
com seus crimes, e o povo de Visidia escolheu a execução como
seu castigo. Se você tem alguma última palavra, diga-as agora.
Ela abaixa a cabeça, os ombros tremendo enquanto
pressiono minha palma contra eles, mantendo-a de joelhos
caso ela tente alguma coisa.
Quando ela levanta o queixo novamente, há gelo em seus
olhos.
— Eu espero que você queime.
São palavras que sacudiram minha mente duas temporadas
antes, e penso no cadáver sem vida de meu pai queimando em
um mar de fogo, a pele carbonizando e derretendo dos seus
ossos. Seu sangue se acumulando e fervendo ao redor dele,
transformando-se em alcatrão. Eu balanço quando as paredes
da prisão se fecham e me forço a respirar fundo pelo nariz para
me equilibrar.
Não agora. Não aqui. As memórias podem me assombrar
mais tarde, como sempre acontece quando fecho os olhos. Mas
agora, devo manter minha compostura.
— Um dia — digo à prisioneira — tenho certeza que vou.
Os olhos de Riley piscam para mim, confusos, mas minha
única resposta é deixar cair o dente ferido com seu cabelo na
chama. Seu corpo sofre espasmos enquanto o sangue sai das
suas gengivas, manchando seus dentes e escorrendo por seus
lábios. Eu me curvo para correr meu dedo sobre ele, revestindo
minha pele; em seguida, espalho o sangue sobre dois ossos: um
de uma coluna vertebral humana e um pequeno fragmento de
um crânio.
Levando apenas um breve momento, eu me viro para olhar
para os rostos dos conselheiros. Lorde Garrison ficou branco
como os ossos, enquanto as sobrancelhas escuras de Lorde
Freebourne franzem como se ele não tivesse certeza se deve
ficar chocado ou intrigado.
Jogo os ossos ensanguentados no fogo e, enquanto eles
estalam, a mulher cai. Sua espinha torce bruscamente e seu
crânio cede. Ela dá um suspiro de surpresa antes de estremecer
no chão, morta.
A morte pelas minhas mãos nunca é indolor — não tenho o
luxo de dar isso às pessoas — mas certamente pode ser rápida.
Com o corpo inerte de Riley diante de mim, me viro para os
conselheiros para ver que Lorde Garrison se virou. Está claro
que todas as dúvidas que ele tinha sobre minha magia se foram.
Eu dei a ele o que ele queria, mas ele nem mesmo teve
estômago para assistir.
— Casem, você fica. O resto de vocês, não há necessidade de
se torturar. — Eu me agacho diante do corpo de Riley,
colocando minha mão sobre a bainha da minha adaga de aço.
— A menos que você queira me ver drenar os corpos e colher
seus ossos, saia. Eu lidarei com o resto dos prisioneiros
sozinha.
O alívio flui de Lorde Garrison em ondas que dão um nó no
meu estômago. Embora Lorde Freebourne hesite, parecendo
meio inclinado a ficar, os dois homens eventualmente acenam
com a cabeça e partem sem protestar. Os guardas são rápidos
em seguir, entregando a Casem o chaveiro de cobre para que
eu possa terminar meu trabalho em paz. Esta não era nem
mesmo minha magia verdadeira, e ainda assim os enoja.
— Lorde Garrison? — Eu chamo quando ele está quase fora
da porta.
Ele está branco como um lençol enquanto ele luta contra o
aperto de mãos, e se vira para mim, incapaz de me olhar nos
olhos.
— Sua Majestade?
— Se eu ouvir um sussurro sobre minha magia,
especialmente da boca de um Suntosan, terei que falar com
você.
— Sim, vossa Majestade.
E então ele se foi.
Casem está de pé com as mãos cruzadas atrás dele, o olhar
firme no chão. Só quando não podemos mais ouvir os passos
dos outros é que ele exala uma respiração presa fortemente.
— Sangue dos deuses, não posso acreditar que você
conseguiu.
— Ainda não acabou. — Eu desamarro as amarras dos
pulsos de Riley e a viro para que ela não fique mais deitada de
cara no chão sujo, mas com a parte de trás da cabeça no meu
colo. — Vá e guarde o perímetro.
Casem se move para obedecer, mas algo o impede no meio
do caminho. Baixinho, ele sussurra:
— Você não tem que fazer o resto disso, você sabe. Podemos
encontrar outra maneira.
— Não há outro caminho. — Por mais que eu queira
acreditar nessas palavras, elas são uma mentira. Este é o meu
dever, tal como Lorde Garrison disse antes. E se não consigo
nem fazer isso, algo que treinei por toda a minha vida, algo que
meu povo acredita ser um ato de proteção… por que ainda uso
esta coroa? — Certifique-se de que ninguém entre.
Embora espere um pouco demais, Casem inclina a cabeça e
pede licença. Só quando ele sai, pego o rosto de Riley em
minhas mãos e aperto suas bochechas.
— Belo show — digo a ela. — Agora levante-se, precisamos
nos mover rapidamente.
Ela se mexe, o loiro de seu cabelo lentamente derretendo em
um rosa pastel suave. A tatuagem lilás em seu pulso se contorce
e se derrete em sua pele. A mulher abre os olhos que não são
mais castanhos, mas um rubi mágico e surpreendente, e é
Shanty quem sorri para mim.
Ela é uma metamorfa de Ikae que conhecemos em nossa
jornada no verão passado. Ela ajudou a nos disfarçar por tempo
suficiente para escapar da ilha e foi quem nos disse onde
encontrar Vataea.
Seus dentes estão manchados de vermelho e, com as costas
da mão, ela limpa o sangue dos lábios e retira uma pequena
bolsa vazia de sangue de porco do topo das gengivas.
— Para referência futura, essas coisas são revoltantes. — Ela
cospe no chão com uma careta. — Você me deve muito.
Os gritos dos prisioneiros que esperam atrás dela são
abafados por suas piadas enquanto o encantamento de Shanty
se desvanece. O resto deles, infelizmente, são reais. E aquela
que Shanty estava interpretando, seu próprio rosto alterado
com magia de encantamento.
Shanty pega minha mão estendida e fica de pé, limpando a
sujeira de sua túnica creme e calça lilás de linho.
— Eles acreditaram. — O alívio me preenche quando digo
em voz alta, acalmando os nervos que fizeram minha pele
arrepiar. O alívio quase me faz rir. — Eles caíram
completamente. Você foi incrível.
Ela tira um cacho rosa bebê do ombro e sorri com os lábios
vermelhos como rubis.
— Alguma vez você duvidou de mim? — Sua voz é um
ronronar orgulhoso.
Embora eu estivesse hesitante em adicionar algo à lista de
pessoas que sabem que não posso acessar minha magia,
contratar Shanty foi uma necessidade. Ela está aqui em Arida
desde o outono, provavelmente vivendo com um rosto novo a
cada dia. Foi ideia de Ferrick convidá-la aqui, e manter seu
segredo, apenas no caso de precisarmos de suas habilidades.
Poucas pessoas sabem que ela está aqui em Arida.
Foi uma boa ligação. Por mais frágil que Visidia esteja agora,
é necessário garantir que meu povo ainda acredite que está
protegido por um Animancer poderoso. E como disse Lorde
Garrison, às vezes precisamos distrair nosso povo da verdade
por tempo suficiente para fazer o trabalho.
— Peça a Casem para ajudá-la a sair daqui — digo a ela. — E
certifique-se de que você não seja vista.
— Como se eu fosse pega antes de receber o pagamento —
reflete Shanty. — Ficar escondida é minha especialidade,
Majestade. Te vejo do outro lado.
Ela faz uma pequena saudação, deixando-me focada nos
cinco verdadeiros prisioneiros à minha frente. Ao meu lado
estão duas adagas: Rukan, a lâmina que forjei do tentáculo
envenenado da Lusca, uma besta marinha que abati no verão
passado, e a lâmina de aço que tenho desde que meu pai me
presenteou nesta prisão, há treze anos. É aquela cujo punho eu
pego agora, agarrando-a com força enquanto me agacho diante
do primeiro prisioneiro que devo executar. O homem levanta
os olhos para mim enquanto eu arranco suas mordaças,
avaliando minha coroa.
— Seu povo sabe que sua rainha é tão mentirosa quanto o
resto de sua família? — Ele cospe nas minhas mãos, depois olha
para mim como se esperasse que eu recuasse. Mas está longe
de ser a primeira vez que recebo uma cusparada. Eu limpo na
minha calça.
Não é assim que deveria ser. Seu sangue em minhas mãos
não é o que eu quero, e sem minha magia, não posso nem olhar
em sua alma para garantir que sua execução seja justa. Mas
para fazer Visidia acreditar em mim e na minha proteção até
que eu possa restaurar o reino e todas as suas magias, isso é o
que devo fazer.
Talvez Lorde Garrison estivesse certo, talvez eu não seja
nada mais do que um peão neste jogo.
— Que os deuses julguem cada um de vocês como merecem.
— Sem demorar mais um momento, enfio minha adaga no
coração do homem e giro a lâmina, pressionando uma mão
contra seus ombros para firmar seu corpo até que a convulsão
pare. Enquanto a vida é drenada de seus pulmões, inclino seu
cadáver contra a parede e tiro a adaga.
Eu passo para o próximo prisioneiro. Embora eu tente fazer
cada morte o mais rápido possível, uma lâmina através do
corpo está longe de ser indolor, e eu não consigo controlar o
desejo de um corpo de viver. Alguns vão rapidamente,
enquanto outros são lentos e dolorosos. Um homem demora
tanto e sofre tanto que acabo cortando sua garganta para que
ele vá logo.
Os gemidos dos prisioneiros restantes se transformam em
lágrimas enquanto esperam, que depois se transformam em
soluços e gritos abafados pelo tecido que os amordaça.
O sangue deles mancha minhas mãos em um tom tão
violento que, não importa o quão forte eu possa esfregar, eu sei
que nunca vai sair. Para cada coração que minha lâmina
perfura, um pedaço de minha alma já murcha se parte. Mas não
paro até que o último prisioneiro caia e minhas botas se
banhem em uma poça de sangue misturado. E mesmo assim, eu
não terminei. Deixar cinco corpos esfaqueados é muito
suspeito quando minha magia não depende de uma lâmina
para matar. Se eu tivesse mais fogo e um cômodo maior,
queimaria os corpos. Mas minha única opção para esconder as
feridas é cortando-as, drenando-as e recolhendo os valiosos
ossos um por um.
Para alguns, eu levo muitos ossos. Para outros, colho apenas
alguns importantes: um na clavícula e na coluna. Apenas o
suficiente para fazer parecer que eu tinha um bom motivo para
esfaquear o peito de cada um deles.
É um processo ao qual estou acostumada, mas é diferente
desta vez, agora que sei a verdade sobre a magia da alma. Agora
que sei que nunca precisou ser assim.
A náusea me deixa gelada, apesar do fogo fervente, e preciso
de tudo para não perder o estômago. Demoro horas até que eu
esteja recolhendo os ossos ensanguentados para serem
lavados, mantendo os corpos dos prisioneiros expostos para os
guardas alimentarem os peixes.
Acabo de terminar quando passos ecoam pelo túnel. Embora
Shanty tenha ido embora e eu tenha feito tudo que posso para
encenar minha mentira, uma onda de pânico me percorre e eu
pulo de pé, esperando Casem ou um dos outros guardas. Mas é
Ferrick quem corre para a prisão, seu rosto tão vermelho
quanto seu cabelo enquanto ele tenta respirar.
Meu peito se aperta de alívio ao vê-lo, mesmo quando seu
nariz se torce e sua respiração para ao ver o sangue em que
posso ter me banhado e uma pequena montanha de cadáveres
atrás de mim. Ele fecha os olhos com força e se afasta
imediatamente. Minhas bochechas ficam vermelhas.
— Você não deveria estar aqui. — A vergonha afunda em
meus ossos enquanto eu limpo minhas mãos ensanguentadas
na sujeira. Já se passou uma temporada inteira desde a última
vez que estivemos juntos, antes de eu dar a ele seu primeiro
trabalho oficial como meu conselheiro principal. Eu odeio que,
em nosso primeiro momento juntos novamente, ele tenha que
me ver assim.
— Nós o encontramos — Ferrick disse, ignorando minhas
palavras. Seus ombros estremecem a cada respiração pesada.
Eu coloco os ossos em minha bolsa e atravesso o chão até ele
tão rapidamente que meu cérebro mal consegue acompanhar
meus movimentos.
— Onde ele está agora?
— Ele está detido no navio. Nós o pegamos.
Eu poderia beijar Ferrick por essas palavras. Eu quase jogo
meus braços ao redor dele até que ele recua, e eu me lembro do
sangue.
— Vou mandar trazê-lo aqui…
— Não. — Eu embainho minha lâmina, a determinação
endireitando minha espinha. — Leve-me até ele.
CAPÍTULO SEIS

As docas são um fantasma do que eram ontem.


Os céus ficaram mais claros durante minhas horas na prisão,
e o amanhecer luta para se libertar debaixo de um pesado
coágulo de nuvens de tempestade. Enquanto o mar mantinha
um ritmo pacífico horas atrás, agora as marés batem
violentamente contra as docas, borrifando meu rosto com sal
marinho. O tipo de ondas que são uma ameaça para o
marinheiro médio, mas um convite à aventura para o resto de
nós. O tipo de ondas que foram feitas para serem conquistadas.
A névoa fresca do mar é um perfume com o qual me envolvo
quando cada onda acena. Encho meus pulmões com ela, como
se fosse alimentar o fundo da minha alma. Embora tenha sido
ontem que minhas mãos agarraram um elmo pela última vez, o
desejo engrossa minha garganta. Velejar ao redor da baía, sem
expandir os perímetros de minha maldição à Bastian, está
muito longe da navegação que desejo.
Olhando para os navios atracados, meu corpo dói pelos dias
de volta a Keel Haul. Para as manhãs em que acordei com o sol
e as noites que passei contando as estrelas com uma sereia, um
pirata e um clandestino ao meu lado.
Toda a minha vida eu não quis nada mais do que um dia
governar Visidia. Mas agora que é minha, tudo o que consigo
pensar é no dia em que finalmente poderei passar a
responsabilidade e ter meu corpo devolvido ao mar o qual
pertence.
Ferrick sobe as docas, acenando para mim em direção ao
pequeno navio de carga que chegou. Tendo mantido a
tripulação o mais reduzida possível, apenas alguns soldados de
confiança esperam por nós, seus rostos sombrios e cansados.
Eles não sabem nada sobre o homem que os mandei atrás, ou
os crimes revoltantes dos quais ele escapou da punição por
muito tempo. Enquanto todos os soldados são rápidos em se
curvar, vários olham propositalmente para longe do sangue
que mancha minha pele e roupas, enquanto outros me
encaram.
— Todos vocês se saíram maravilhosamente bem. — Pego a
escada de corda pendurada no navio e me arrasto nela com a
facilidade praticada. — Vão se limpar e voltar para suas
famílias. Vocês ganharam uma folga.
Alguns hesitam, surpresos por eu estar dispensando-os tão
rapidamente. Mas eles obedecem às minhas ordens, e espero
com Ferrick em silêncio até que estejam muito longe da costa
para me ouvir perguntar:
— Onde você o encontrou?
— Na costa de Suntosu. Recebi uma dica de alguém que o
conhecia em Kerost. Disseram que ele está viajando em busca
de alguém.
Eu coloco a mão no ombro de Ferrick e aperto, apenas uma
vez, e é um gesto que chama sua atenção. Ele se vira devagar
para me olhar. Mesmo que eu esteja coberta de sangue, ele
envolve seus braços em volta dos meus ombros e me puxa para
perto. Eu não luto com ele, me permitindo derreter em seu
corpo, grata por seu retorno seguro.
Na época em que fui forçada a ser sua noiva, nem sempre fui
muito gentil com Ferrick. Mas depois da nossa jornada no
verão passado, não consigo imaginar a vida sem ele. Eu o
abraço com força, deixando-o ser o primeiro a se afastar.
— Eu não queria que demorasse tanto. — Ele passa os dedos
pelos cachos ruivos soltos que precisam desesperadamente ser
aparados. — Como vão as coisas aqui? Como você está?
Minha pele esfria, sem querer considerar o peso por trás da
pergunta.
— Estou feliz que você esteja em casa, mas vamos deixar o
que está acontecendo para depois. Eu preciso vê-lo.
A pele entre as sobrancelhas de Ferrick se enruga, mas ele
acena com a cabeça do mesmo jeito.
— Nós o amarramos lá embaixo. Eu posso ir com você…
Balanço minha cabeça.
— Fique aqui e vigie a porta. Eu não quero que Vataea
descubra sobre ele até que venha de mim.
— Ela está bem, então? — Ele pergunta, inocente, mas
esperançoso o suficiente de que a luz em seus olhos aqueça
meu coração.
— Ela se adaptou à vida no palácio tão bem quanto
esperávamos. E ela ficará emocionada quando descobrir quem
você trouxe para ela.
Com as bochechas coradas de satisfação, Ferrick balança a
cabeça e dá um passo para o lado para que eu possa acessar as
escadas que conduzem ao convés inferior. Eu vou rapidamente,
e com um navio tão pequeno, não demoro muito para
encontrar quem estou procurando.
Ele está preso a um poste, bem amarrado na cintura e nas
mãos. Embora eu saiba que é ele, seu rosto não é aquele que eu
reconheço à primeira vista. Ele envelheceu significativamente
desde o nosso último encontro, sua pele enrugada e danificada
pelo sol. Seu rosto, antes liso e bem barbeado, agora está
coberto por uma espessa barba grisalha que se estende por
todo o pescoço. Mas, por mais diferente que ele pareça, eu
reconheço seus olhos verdes cansados, a pele queimada da sua
garganta e seu dedo esquerdo faltando. Feridas que sobraram
da nossa briga no verão passado.
Blarthe.
Um homem diretamente responsável pelo comércio ilegal
de tempo em mais de uma centena de acusações. Responsável
por caçar uma sereia, a espécie mais ameaçada e protegida do
nosso reino. Ele destruiu a vida de dezenas e aproveitou seu
sofrimento em um momento de necessidade, e também
sujeitou Vataea a anos de atrocidade.
Esse é um homem que merece tudo o que recebeu e muito
mais. Ele é aquele cuja execução eu não hesitaria em condenar.
Ele merece queimar antes de todos os Kerost pelos danos que
causou.
— Olá, princesa. — Blarthe mostra dentes que não são mais
brancos perolados, mas enegrecidos de podridão e cárie.
Vários estão faltando de onde eu os queimei.
— Você vai me chamar de rainha, agora. — Eu me agacho
diante do comerciante de tempo, percebendo como ele
envelheceu mal. — É assim que você realmente se parece?
Deuses, não é de admirar que você demora a negociar. Alguém
deveria ter chutado você do mar há muito tempo.
Ele cospe nos meus pés mas eu não recuo. Com todo o
sangue que os mancha agora, planejei queimar essas botas. Mas
Blarthe precisa se lembrar de quem está no comando.
Em um movimento fluido, tiro Rukan da bainha e coloco-a
contra sua garganta. Seu foco se estreita na estranha lâmina
marinha enquanto ele tenta se retrair das pequenas manchas
iridescentes que se movem dentro dela.
— Tenho certeza que você já ouviu falar da Lusca? Eu tirei
isso como um presente de despedida. — Eu pressiono a lâmina
em forma de gancho para frente o suficiente para assustá-lo,
mas tenho o cuidado de não romper a pele. A última coisa que
quero é envenená-lo quando ainda preciso dele vivo. Afinal, ele
não é apenas um presente para Vataea. Sua captura é como vou
reconquistar a confiança de Kerost.
Pesar escurece seus olhos.
— Eu ouvi rumores sobre você, sabe. Dizem que a nova
rainha se recusa a usar sua magia.
— Olhe para o sangue que uso em minhas roupas e pele e
você verá que não passam de rumores. — Eu provoco a ponta
de Rukan contra o topo de sua garganta, o calor fervendo
dentro de mim.
Mas não é o suficiente para fazê-lo calar a boca.
— Você se esquece que eu estava lá quando Kaven tentou
tomar Kerost. Ao contrário de muitos, eu vi o que sua magia
podia fazer. Eu sei que ele tinha a habilidade de amaldiçoar a
magia.
Eu embainho Rukan antes que eu esteja tentada a envenenar
Blarthe e acabar com isso.
— Diga outra palavra e eu corto sua língua.
Blarthe não vacila, embora haja um tremor em suas palavras
que ele luta para esconder.
— Qualquer um que conheça a magia de Kaven será capaz
de descobrir, garota. Pegue minha língua se for preciso, mas
saiba disso: me silencie, e você nunca terá sua magia de volta.
Posso te ajudar.
A risada que me atravessa é praticamente um latido.
— Você acha que sou idiota?
— Eu considero você alguém que sabe que nem todos os
mitos são falsos. — Seus olhos piscam para o punho de Rukan
e eu aperto a lâmina com mais força. — Você não está curiosa
para saber o que eu estava procurando quando seus soldados
me encontraram?
— Não particularmente. Eu trouxe você aqui para ser
julgado por seus crimes, e porque há uma sereia que tenho
certeza que adoraria ter uma palavra a dizer sobre sua punição.
Não tenho interesse no que quer que você esteja procurando.
— Mas essa última parte é mentira. O tom de sua voz fez com
que minha curiosidade explodisse mais do que gostaria de
admitir.
— Eu estava procurando por um artefato que as lendas
dizem que foi deixado pelos próprios deuses. — O foco de
Blarthe não vacila enquanto ele prossegue com o desespero de
um homem lutando por sua vida. — É aquele que tem o poder
de aumentar a magia mais do que você jamais poderia
acreditar. Diz-se que, com ele, uma pessoa poderia exercer o
poder dos deuses.
— Nenhuma pessoa deve ter esse tipo de poder. — Deuses,
não posso acreditar que estou entretendo ele. Eu me inclino
para trás, pronta para buscar Vataea e acabar com isso, mas
suas próximas palavras me congelam no lugar.
— Mas imagine o que você poderia fazer com isso. — Ele
inclina a cabeça para trás, contra o poste. — Você quer sua
magia de volta, não quer? Não adianta esconder, Kaven
amaldiçoou você. Você estaria me ameaçando com mais do que
uma lâmina, se ainda a tivesse.
As palavras de Blarthe fazem com que as memórias
penetrem, obscurecendo seu rosto e tornando-o o do meu pai.
Há fumaça ao redor de seu corpo. Embora eu saiba que não é
real, o fogo devora suas calças e o sangue rasteja da espada que
agora se projeta de seu estômago para o chão. Lembrando-me
que eu não poderia salvá-lo. Que ele está morto por minha
causa.
Se eu não estivesse amaldiçoada, se eu tivesse minha magia,
eu poderia ter salvado meu pai naquela noite. Eu poderia ter
salvado tantas vidas.
— Você está mentindo. — É preciso esforço para encontrar
minhas palavras e manter minhas mãos apertadas em volta de
mim para que ele não possa ver o quanto elas tremem. — A lista
de seus crimes pode se estender daqui até Ikae. O que te faz
pensar que eu confiaria em uma palavra do que você diz?
Embora o suor goteje em sua testa, ele encolhe os ombros
como se essa fosse uma situação em que se encontra todos os
dias.
— Porque há mais nisso para você do que para mim se
fôssemos chegar a um acordo. Deixe-me aqui enquanto você
procura, se for necessário. Por que eu mentiria quando sou o
único a arriscar alguma coisa?
Eu espio atrás da porta, olhando por baixo das rachaduras
para garantir que a sombra de Ferrick não esteja esperando do
lado de fora. Embora eu não veja nada, eu me agacho mais uma
vez e deixo cair minha voz.
— O que você está oferecendo parece uma lenda. — Mas,
mesmo dizendo isso, sei por experiência própria que toda
lenda está enraizada na verdade. A própria adaga que carrego
comigo agora é de uma besta que eu uma vez acreditei ser
pouco mais do que uma história.
Uma risada cruel sacode seu peito, dividindo seus lábios
secos.
— Se você acreditasse nisso, não estaria ouvindo.
Eu não quero ter esperança. Mas toda vez que fecho meus
olhos, papai está lá esperando por mim, seu rosto envolto em
fumaça e sua mão estendida, implorando-me para ajudá-lo.
Noite após noite, lembro-me do vazio dentro de mim onde
minha magia costumava ficar. Lembro-me de que Visidia não
está inteira, nem eu.
Eu preciso quebrar as maldições que foram colocadas sobre
mim, tanto aquela da linhagem Montara que mantém a magia
da alma longe do meu povo, quanto aquela que me conecta a
Bastian da mesma forma que ele já foi conectado a seu navio.
Mesmo que seja bom demais para ser verdade, posso fugir
dessa oportunidade sem tentar?
— Esse objeto é o mais perto que você vai chegar de ser um
deus — pressiona Blarthe, como se pudesse sentir minha
hesitação. — Com ele, você teria o poder de amplificar a magia
em extensões impossíveis. Se eu usá-lo para amplificar a magia
do tempo, poderei reverter o que aconteceu com seu corpo. Eu
poderia restaurar sua magia.
Eu me deixei cair no chão, encostando-me na parede porque
não confio mais nas minhas pernas para me manter firme.
— Por que me dizer isso? O que tem a ganhar com isso? —
Sou tola como um peixe, mordendo a isca com a qual ele me
atraiu. E ainda não posso ir embora.
Embora estejamos sob o convés, é como se a própria
tempestade enchesse seus olhos.
— Sou um homem que valoriza a sua vida. Não é o
suficiente? Prometa-me minha liberdade e eu vou te emprestar
minha magia.
— Vou encontrar outra pessoa…
— Outro comerciante de tempo? — ele bufa. — Boa sorte.
Somos tão raros quanto eles vêm.
Minhas mãos ficam tensas de irritação, mas ele continua
como se eu já tivesse concordado.
— Durante minhas viagens, conheci ume jovem aventureire
que afirmava ser filhe de um homem que havia usado o poder
dos deuses no passado. Não me lembro muito da história delu,
provavelmente tínhamos bebido um barril de vinho entre nós
dois. Mas se você quiser encontrar a localização do artefato,
encontrá-lu é sua melhor aposta.
— E onde posso encontrar esse aventureire? — Quando ele
não responde, eu arrasto minhas mãos pelo meu rosto,
gemendo em minhas palmas. — Você pelo menos sabe o nome
delu?
Sem isso, tentar encontrar esse amplificador não será
melhor do que continuar a procurar qualquer encanto que
Kaven tenha usado ao criar minha maldição. Seria como
procurar no mar uma única concha.
— Vou lhe dar um nome e até mesmo mostrar como usar o
artefato assim que o tiver. Mas primeiro vou precisar que você
faça algo por mim.
Eu cerro meus punhos, sabendo que a ameaça das minhas
adagas não será o suficiente desta vez. Mesmo com a pele sob
minhas unhas manchada de preto com o sangue e as entranhas
dos prisioneiros que matei, Blarthe sabe que não sofrerá o
mesmo destino esta noite. Os deuses sabem que eu não o
deixaria tocar no artefato. Mas se eu for procurar por ele, vou
precisar dele por perto até ter certeza de como usá-lo. Vou
precisar dele vivo.
Leva quase tudo para fora de mim, mas cerro os dentes e
rosno entre eles:
— Diga o seu preço.
— Eu preciso de uma promessa — diz ele. — Uma garantia
de que você não apenas me deixará ir, mas que perdoará
quaisquer indiscrições do passado que possam me condenar.
Assim que estivermos do outro lado, não quero que você
procure por mim.
— Indiscrições? — Eu afundo meus dentes dentro da minha
bochecha.
A primeira coisa que me vem à mente é Vataea, depois
Kerost, e a culpa se enterra em mim pensando neles. Perdoar
Blarthe e fingir que ele não está por aí se aproveitando dos
outros negociando com o tempo não significaria apenas sujar
meu reino, mas também trair minha amiga. Significaria deixar
seu agressor em liberdade.
Mas como posso dizer não a isso?
Visidia poderia estar inteira, de novo. Eu poderia estar
inteira de novo.
Sem mais mentiras. Sem mais maldições.
Embora eu deseje do fundo do meu coração que não tenha
que ser assim, há uma crença que passei toda a minha vida
praticando: uma vida não é mais importante do que Visidia
inteira.
Além disso, Blarthe está me dando muito crédito. Posso
estar estendendo sua vida, mas ao aceitar sua oferta não estou
de forma alguma poupando-o. Vou manter sua presença aqui
em segredo por enquanto, mas no momento em que tiver o que
preciso dele, sua vida terminará.
Afinal, não sou apenas a rainha de Visidia. Eu sou sua
protetora. Seu monstro.
Vataea e Kerost podem esperar, porque isso vai além deles.
É assim que eu conserto tudo.
Endireitando os ombros, eu olho Blarthe nos olhos.
— Dê-me um nome e você tem um acordo.
Sua voz é doce como seiva.
— Ornell Rosenblathe.
CAPÍTULO SETE

Leva horas para tirar o sangue da minha pele. Mesmo depois de


tomar banho, ainda posso sentir os restos daqueles que matei
há apenas algumas horas. Embora eu tenha me esfregado, é
como se o sangue fosse parte de mim agora. Sempre e para
sempre lá.
Eu faço tudo ao meu alcance para me distrair enquanto
relaxo na espreguiçadeira da minha sala de estar, folheando os
livros com capa de couro recolhidos na biblioteca, enquanto
tento não cutucar a pele sob minhas unhas.
Embora grande parte da biblioteca tenha sido destruída nos
incêndios no verão passado, consegui encontrar três livros
recuperados sobre lendas marítimas. Estive debruçada sobre
eles por horas, lendo histórias de marinheiros que viram
amigos serem arrastados para o mar por sereias, apenas para
afirmar que viram o rosto daquele amigo novamente anos
depois, fantasmagórico sob a superfície da água. Mitos de uma
serpente gigante que vive nos vulcões Valukans e histórias de
cavalos de água que carregam as pessoas às profundezas para
roubar seus corpos por um ano inteiro, antes que se
deteriorem e eles sejam forçados a encontrar outro navio ou
rastejar de volta para o mar.
Os arrepios na minha pele duplicam com cada imagem e
história, sabendo muito bem que há verdade em pelo menos
algumas dessas lendas. Mas quanto ao que quer que seja este
item que dizem ter sido deixado pelos deuses, não consigo
encontrar uma única palavra sobre ele. Existem páginas que
foram arrancadas por marinheiros gananciosos ou manchadas
de tinta que tornaram ilegíveis, provavelmente por aqueles
cujas orações os tornaram paranoicos. Talvez eu pudesse
encontrar mais histórias se procurasse bem, mas é como
Blarthe disse, enquanto eu estiver procurando, ele vai definhar
nas prisões. Ele está se agarrando à chance de viver, não
ganhará nada em troca disso, especialmente se eu falhar. Então,
talvez haja pelo menos alguma verdade em sua história, afinal.
— Amora?
Minhas mãos ainda estão sobre as páginas ao som da voz de
mamãe. Eu chuto os tomos extras atrás da espreguiçadeira
antes de abrir o que está no meu colo para a página menos
ofensiva. Algo fantástico e ridículo, sobre um reino cheio de
tesouros que, segundo rumores, existe dentro das nuvens,
apenas tocando o chão uma vez a cada cem anos.
— Entre.
A porta se abre e lágrimas enchem os olhos de mamãe no
momento em que ela me vê. Embora eu saiba que é de alívio, o
fato de que ela ainda teve que se preocupar com a execução me
fere. Ela cruza o chão e praticamente joga os braços em volta
de mim, puxando-me com força contra seu corpo. Em sua
camisola, ela está mais frágil do que parecia quando a vi pela
última vez na sala do trono, seus ossos afiados e delicados,
como se ela fosse quebrar se eu a abraçar com muita força.
— Ah, graças aos deuses. Você fez isso, então?
Eu recuo para dar uma olhada melhor nela. Ou eu estava
muito distraída durante a reunião do conselho para notar as
sombras profundas pesando em seus olhos e a nitidez das suas
maçãs do rosto, ou sua criada é incrivelmente hábil em
mascará-las. Mamãe não parece estar comendo.
Dia após dia fica mais difícil olhar para ela. Porque quando
faço, penso no papai.
A pele da minha mãe ainda brilharia se ele estivesse vivo.
Suas bochechas ainda estariam saudáveis e cheias.
Mas eu o tirei dela.
Por mais que eu a examine, ela faz o mesmo comigo. Não
durmo há pelo menos um dia inteiro e meus olhos estão
pesados e avermelhados. Não preciso ver meu reflexo para
saber que provavelmente há olheiras embaixo deles e que a cor
está lentamente sendo sugada da minha pele.
— Shanty realmente se destacou. — Tento me afastar do seu
escrutínio, concentrando-me, em vez disso, no lampejo de
movimento por cima do ombro. Tia Kalea entra na sala e fecha
a porta atrás dela. Seus braços estão cruzados como se ela
estivesse se abraçando, os lábios pressionados e sua cabeça
baixa como um cachorrinho repreendido, incerta se ela é bem-
vinda.
Os músculos do meu pescoço se contraem quando ela se
aproxima. Desde sua traição no verão passado, nosso
relacionamento não tem sido o mesmo. Não é por falta de
esforço, nem por minha falta de vontade de querer que as
coisas voltem a ser como eram, mas minha confiança nela se
despedaçou.
Tia Kalea deveria adiar a seleção de sua magia até que eu
reivindicasse meu título de herdeira do trono de Visidia e me
mostrasse ao reino. Mas em vez disso, ela aprendeu magia de
encantamento, tornando-se inelegível até mesmo para tentar
se tornar a futura Alto Animancer em meu lugar. Por causa
dela, pensei que não tinha outra escolha a não ser fazer uma
viagem para salvar o reino. Por causa dela, perdi minha magia.
Por causa dela, meu pai está morto.
Eu cerro meu punho enquanto ela hesitantemente dá um
passo à frente, cravando minhas unhas na palma da minha mão
para me firmar. Pelo bem de nossa família, faço o meu melhor
para manter as coisas civilizadas ao redor dela. Mas mesmo
agora, me encontro agarrando as páginas do livro com muita
força, vincando-as.
O que teria acontecido no verão passado, se ela tivesse
ficado quieta e nunca tivesse revelado seu segredo para mim?
Se ela não tivesse colocado a pressão de todo o reino sobre
meus ombros, eu ainda estaria tentando carregar o peso da
coroa hoje?
— Queríamos ter certeza de que você estava bem. — A voz
de tia Kalea é baixa e cautelosa e, pelo amor de minha mãe, tudo
o que posso fazer é conter minha amargura enquanto ela
borbulha na superfície. Ela não precisa de mais dor onde a dor
pode ser poupada.
— Ninguém suspeitou de nada — digo a ambas, afastando-
me lentamente de minha mãe e puxando seus braços para os
lados. — Mas não é uma farsa que poderei manter para sempre.
O que temos é um curativo, não uma solução.
Mamãe segura minha mão, balançando a cabeça
suavemente.
— Encontraremos uma maneira de recuperar sua magia,
Amora.
— Ou talvez você possa aprender uma nova — tia Kalea
oferece. Ela enrijece quando meus olhos encontram os dela,
provavelmente escorrendo com cada grama de raiva e
ressentimento que sinto. — As leis são diferentes agora. Você
pode aprender uma nova magia; mostre ao reino que você é tão
forte e capaz com algo que não é tão ... cruel.
A raiva não pode mais ser engolida. Minha língua é uma
coisa venenosa e ácida.
— Você saberia tudo sobre isso, não é? Como você ousa dizer
isso para mim, depois de tudo que você fez?
Eu me recuso a me sentir mal pela forma como seu rosto se
contorce. A única ponta de culpa que sinto vem quando mamãe
afunda nas almofadas, uma sombra da mulher que um dia foi.
A tensão aumenta ao nosso redor, sua pressão insuportável.
Há alguém aqui que está faltando e cada uma de nós sente o
significado da sua ausência. Essa dor não é apenas mental. É
física, como garras rasgando meu peito de dentro para fora.
— Não consigo aprender nenhuma magia com metade da
minha alma faltando. — Sento-me mais reta, colocando meus
pés embaixo de mim. — E além da minha mentira nas prisões,
a única coisa que as barracudas nos compraram foi um tempo
extra. Shanty não é alguém a quem eu gostaria de estar em
dívida, nós só podemos usar seus serviços por um certo tempo.
Existem muitos riscos que vêm com a necessidade de envolver
outros.
O que eu preciso é uma maneira de mudar Visidia. Para
encontrar o artefato lendário e mudar meu destino. Quebrar
minhas maldições. Restaurar Visidia de uma vez por todas.
Mas não consigo fazer isso aqui em Arida.
— Estive pensando sobre a reunião de ontem. — Eu olho
para o meu colo, enrolando os dedos dos pés e hesitando, como
se eu não tivesse ficado acordada pensando nesse plano. Eu
tenho que vender essa história. Se eu fingir que estou animada
ou desistir facilmente, mamãe vai suspeitar de algo. — Os
conselheiros estavam certos, Visidia está muito dividida.
Preciso conquistar a confiança de nosso povo agora mais do
que nunca. Eles precisam saber que estou aqui para protegê-
los e que praticar múltiplas magias é o caminho do nosso
futuro.
Minha mãe segura minhas mãos nas dela. Ela não quer
parecer muito animada, mas não é difícil ver que é isso que ela
quer. Ela acha que estarei mais segura dessa forma, namorando
toda Visidia e encontrando um novo rei para nós. Um que nosso
povo irá respeitar e adorar. Um que ela provavelmente pensa
que vai me proteger.
Essa ideia por si só é o suficiente para gelar meu estômago,
mas mantenho a fachada.
— Sei que não é isso o que você quer — diz mamãe. — Mas
Visidia precisa de uma distração. Estamos tentando mudar
muito, muito rapidamente. Nosso povo precisa de estabilidade,
um líder em quem eles confiam e adoram. A promessa de um
futuro estável, com herdeiros que um dia governarão.
— Eu gostaria que isso não fosse um fardo que você tivesse
que carregar — ela continua. — Não é fácil para as mulheres
em nossa posição. Seu pai foi visto como um governante capaz
e confiável desde o momento em que se posicionou para
assumir o trono. Mas nós? Se formos firmes demais em nossas
crenças, temos um coração frio. Se não sorrimos, somos
indiferentes. Existem padrões diferentes para você e para mim,
mas especialmente para você como a rainha deste reino. E parte
desses padrões, parte do seu trabalho, é o casamento e os
filhos.
Eu fico tensa na deixa, fazendo questão de desviar o olhar
dela. Desfilar comigo para os solteiros está tão abaixo de uma
rainha que chega a ser repugnante.
— Meu pai nunca teria que fazer algo assim. Ele teria rido da
ideia.
— Seu pai teve o privilégio de ser um homem, Amora. Não
importa o quão capaz você seja, as coisas serão mais difíceis
para você do que eram para ele. — Ela trabalha no queixo,
como se dizer as palavras em voz alta fosse irritante.
Mas ela não precisa me convencer. Uma distração é
exatamente o que vou precisar para me tirar de Arida, para que
eu possa encontrar o aventureiro que nos levará ao lendário
artefato: Ornell Rosenblathe, que espero ser um dos muitos
solteiros que vou conhecer.
— Então, você quer que eu desfile por aí com homens,
fazendo um show enquanto meu reino ainda está sofrendo? —
Eu faço minha voz amarga, não a deixando pensar que estou
cedendo muito facilmente.
— Eu quero que você jogue o antigo jogo da corte. — Mamãe
me irrita, apertando minha mão com mais força. — A linhagem
Montara está diminuindo e nosso reino precisa se sentir
seguro. Portanto, dê a eles uma rainha que eles desejem
proteger e uma família real à qual eles se curvem. Não estou
dizendo que seja justo ou certo, mas é mais fácil para o público
amar e confiar em uma mulher que eles veem como gentil e
vulnerável. Aquela que tem um homem encantador ao seu lado.
Jogue o jogo deles e mostre o que eles querem ver. Faça um
show e ganhe a confiança deles enquanto faz o trabalho para
reconstruir este reino. Faça com que eles amem você, Amora.
Você pode fazer isso?
Não está certo. Eu não deveria ter que sorrir ou mudar a
forma como os outros me veem como uma governante forte. Eu
ganhei essa coroa com muito mais do que direito de sangue.
Quem se importa se eu sorrio ao dar ordens?
Mas preciso sair da ilha para quebrar as maldições, e esta é
a melhor chance que tenho. Tudo o que importa é que eu
encontre o artefato.
E por essa razão, eu exalo uma respiração profunda e inclino
minha cabeça.
— Eu posso.
O alívio no suspiro de minha mãe aperta meu coração
culpado. Seus olhos lacrimejam quando ela leva nossas mãos
conectadas aos lábios, beijando-as antes de colocar sua testa
contra elas. Baixinho, ela sussurra uma oração silenciosa que
não consigo entender totalmente.
Ela se afasta e solta minhas mãos.
— Você é a rainha agora. O mar está agitado nesta época do
ano, e estamos apenas começando a entender essa nova fase do
nosso reino. Preciso que você prometa que será mais cuidadosa
do que nunca. Nada disso. — Ela gesticula em direção a Rukan,
ainda embainhada em meu quadril.
Eu me forço a acenar com a cabeça, embora seja talvez a
maior mentira que já contei hoje.
— Claro. E vou trazer a tripulação mais forte que Visidia tem
a oferecer.
— Vou mandar os oradores da minha mente cuidarem de
você também — diz mamãe. — Não importa onde você esteja,
eu estarei de olho em você. Se alguma coisa acontecer, vou
mandar trazê-la para casa ou enviar soldados imediatamente.
Leve Ferrick, certo? E aquele menino também.
Eu odeio a maneira piedosa como ela diz isso. Isso desperta
um calor raivoso dentro de mim, e eu tiro minhas mãos dela
com a menção de Bastian.
— Não é possível ir embora sem ele. — As palavras contêm
cada grama de amargura que sinto. Desta vez, não me
incomodo em tentar contê-la. — Acredite, eu tentei.
Ela levanta a mão como se fosse colocá-la no meu ombro,
então hesita e a coloca de volta ao lado dela. O movimento é o
suficiente para tirar meu fôlego, me lembrando tão
nitidamente de meu pai. Sinto o fantasma de sua mão em meu
ombro. O único aperto – apenas um – e meus joelhos quase
dobram. É tudo que posso fazer para fingir que não percebi.
Para fingir que estou bem. Que papai não morreu e me deixou
com um reino quebrado em seu rastro.
— Eu nunca desejaria o que aconteceu com você para meu
pior inimigo. — Mamãe cruza as mãos diante dela e tão longe
dos meus ombros quanto possível. Distraída como estou pelo
fantasma do toque de meu pai, suas palavras são distantes. Se
eu me concentrar o suficiente, é quase como se pudesse sentir
o cheiro dele, um cheiro familiar de mar e sândalo. Quase posso
sentir o calor persistente do sol em sua pele quando ele voltou
de um dia na Duquesa.
Se ele ainda estivesse aqui.
O som de mamãe levantando-se da espreguiçadeira me
agita, e o fantasma de papai foge mais uma vez, fora de alcance.
— Vou deixar a tripulação para você, e você deixa o
planejamento e a fanfarra para mim. Você vai zarpar em dois
dias. — Ela se curva para beijar o topo da minha cabeça. —
Bons sonhos, Amora.
E então ela se vai, a porta fechando silenciosamente atrás
dela. Só então tia Kalea levanta a cabeça para me olhar
completamente. Eu olho de volta, sufocando meu
ressentimento.
— Você precisa cuidar dela. — Eu sou uma cobra com um
veneno tão letal que até minhas palavras são mortais. — Eu não
me importo com o que você tem que fazer, ou com o que
aconteça. Você a protegerá com sua vida.
Com a partida de mamãe, não me importo mais com
civilidade. Minha tia se encolhe, mas não protesta. Ela merece
cada grama da minha raiva e muito mais.
— Keira é forte — diz ela. — Concentre-se em si mesma em
vez de se preocupar com ela.
Eu tenho que morder de volta o riso que turva profundo e
vicioso dentro de mim.
— Deixe-me preocupar em consertar meu reino. Afinal, isso
é o que você sempre quis.
Mais uma vez, ela aceita os insultos com calma, o que faz com
que algo dentro de mim queime e apodreça. Eu quero que ela
morda de volta, que lute contra mim. O que aconteceu é tanto
culpa dela quanto minha, e não há nada mais que eu queira do
que que ela saiba disso. Gritar com ela repetidamente e
enterrar minha raiva tão profundamente dentro dela que ela
sentisse até a última gota.
Mas ela não briga comigo, nem me morde de volta. Kalea
leva meus socos um após o outro, apagando o fogo ardente
diretamente para fora de mim. Quando volto a falar, não é mais
com raiva, mas com a frieza dos fatos.
— Não tenho intenção de voltar até que meu povo esteja
disposto a cair com espadas por mim. Na minha ausência,
confio à minha mãe o cuidado de Arida. Mas eu juro por cada
deus, Kalea, se alguma coisa acontecer com ela enquanto eu
estiver fora, eu vou pegar sua cabeça. Não vou perder outro
parente por sua causa.
E com isso, volto aos livros em meu colo e a dispenso sem
mais olhar.
CAPÍTULO OITO

Encontro um Ferrick recém-banhado em seu quarto na manhã


seguinte, com gotas de água pingando do seu cabelo aparado.
De costas para a porta que abro, ele está em posição de luta com
o florete levantado à sua frente. Uma das mãos está atrás de
suas costas enquanto ele dá o bote, então se afasta, respirando
profundamente. Muda os pés para uma nova posição.
Eu me inclino contra o limiar para assistir, fascinada por
como ele não vacila. Pela maneira como os músculos de seus
ombros nus e costas se flexionam e se contraem, mais fortes
agora. Sem o casaco, é mais fácil ver o quanto ele está forte
desde o verão. Embora ele ainda seja mais magro do que
Bastian, seus ombros e braços aumentaram quase o dobro do
tamanho desde que começou a treinar com Casem.
Atrás dele, prateleiras de ervas e plantas ocupam uma
parede inteira, com garrafas e potes de vidro cheios de musgo
e outras coisas que não consigo entender.
— O que você está fazendo?
Ele praticamente grita, sacudindo-se com tanta força que o
florete escapa da sua mão e cai na ponta dos seus pés. Eu faço
uma careta quando ele amaldiçoa, tropeçando em sua cama.
Pegando uma túnica descartada da bagagem aberta que tem ao
lado dela, ele a abraça contra o peito para se cobrir.
— Pelos deuses, Amora, você não sabe como bater? — Suas
bochechas ficam tão vermelhas que, apesar de tudo, não
consigo conter o riso.
— As rainhas não precisam bater — provoco. — O que você
estava fazendo?
— O que parece que eu estava fazendo? — Ele amassa a
camisa nas mãos, bufando. — Eu estava treinando.
— Molhado e seminu?
— Eu não sou metade... Quer saber? Você nunca sabe como
serão as condições, certo? Os deuses sabem que você encontra
problemas em todos os lugares. Se vou ser seu conselheiro,
preciso ser o melhor.
— Certo. Eu me sinto muito mais segura sabendo que você
pode lutar nessas condições. — Estrelas, senti falta de Ferrick.
— Mas você pode não querer desfazer as malas. Estamos
saindo de novo amanhã na primeira hora.
Seu rosto sardento cai. Olhando para ele agora, limpo depois
de meia temporada no mar, vejo que suas bochechas estão
gritantemente queimadas pelo sol e que há rugas finas ao redor
dos seus olhos por ter passado tantos dias semicerrando os
olhos para o sol.
— De jeito nenhum. — É tudo o que ele diz a princípio,
virando-se. Depois de outro momento, ele geme. — Por favor,
me diga que isso é uma piada.
Quando eu não digo nada, ele passa os dedos pelos cabelos
e joga a camisa que está segurando em seu baú de viagem.
— Isso é um castigo cruel, Amora. Eu tenho pés. Os pés
devem estar na terra. — Sua mão vai para o estômago, e eu não
preciso ler mentes para saber que ele está pensando em seu
enjoo. — Eu preciso adquirir um navio?
— Está feito. Estaremos levando a Duquesa, com uma
tripulação tão pequena quanto possível. Eu gostaria de você
como nosso curador, Vataea para comandar as águas, e
Bastian... porque ele é um requisito.
Lentamente, os lábios de Ferrick se curvam para cima.
— É a nossa velha equipe.
Eu me pergunto se isso aquece o coração dele tanto quanto
o meu. Nossa equipe, juntos novamente. Mas é pouco mais do
que um sonho, porque nossa equipe é um fantasma do que já
foi, e a culpa é minha. Sou eu que não consigo ficar na mesma
sala que Bastian.
— Nossa equipe e mais alguns — eu digo eventualmente. —
Estou adicionando Casem, para usar sua afinidade com o ar
para ajudar com a navegação, e porque Mira o tem ensinado a
falar na mente e minha mãe insiste que eu permaneça em
comunicação com ela e as ilhas. Há outra pessoa que eu poderia
acrescentar também, se ela estiver pronta para isso.
— Qual é a nossa missão? — Ele se senta à minha frente e
oferece sua mão. Eu não hesito em pegá-la, deixando-o colocar
suas mãos em volta das minhas.
— Devo fazer o reino me adorar. — Eu abro meu sorriso
mais experiente antes de explicar nossa estratégia para visitar
o reino e encontrar seus solteiros elegíveis. Algo na expressão
de Ferrick rachou no momento em que termino, embora não
consigo dizer se é curiosidade ou descrença que brota nas
rugas de sua testa.
— Você vai se casar?
— Novamente, você não precisa estar casado para ter um…
— Eu sei como funciona. — Ele me interrompe, a pele
ficando rosa. — Eu só imaginei que você gostaria de quebrar
sua maldição com Bastian e tentar coisas com ele, primeiro.
Sabe, considerando o quão duro você estava lutando contra o
casamento e tudo isso quando nós estávamos envolvidos.
Ele franze as sobrancelhas com força e aperta os olhos para
mim.
— Você está falando sério, certo? Ainda não é uma piada?
— Ainda não é uma piada — eu repito. — Isso é o que todos
querem para mim. Mas... não é isso que realmente vai
acontecer. — Espero até que sua curiosidade cresça antes de
acrescentar calmamente: — Eu posso ter encontrado uma
maneira de quebrar a maldição da minha família. Enquanto o
reino pensa que estou namorando, vamos ter um objetivo
diferente.
Para isso, os ombros de Ferrick relaxam.
— Ah, sim, isso soa muito mais como você. Por um segundo
pensei que algum espírito do mar perverso tivesse te possuído.
Eu rio, cutucando-o no braço, mas Ferrick dá um tapa na
minha mão e a ignora.
— Você sabe que procuramos em todos os lugares por esse
amuleto, certo? Fizemos de tudo, menos destruir Zudoh
fisicamente, procurando por qualquer coisa que Kaven possa
ter usado para criar sua maldição, e não conseguimos
encontrar nada. O que te faz pensar que o encontrará em
Kerost?
— Eu não — eu digo. — Não tenho dúvidas de que qualquer
objeto que Kaven usou está perdido para sempre. Isso é algo
novo.
— Algo que Blarthe lhe contou? — Ferrick é muito
inteligente para seu próprio bem. Ele exala forte, e minha falta
de resposta é uma confirmação suficiente. — E o que
acontecerá com Blarthe quando você encontrar este objeto de
boato?
— Então irei prosseguir com ele como planejado — digo
facilmente. — Ele não tem poder, eu só preciso mantê-lo por
perto até ver se sua liderança vai a algum lugar.
E com a sua ajuda com a magia do tempo, embora Ferrick
não precise saber disso.
— Ele não teria contado a você a menos que tivesse algo na
manga, Amora. Ele se auto preserva demais para isso.
É um pensamento que está me consumindo também. Mas
quando Ferrick diz isso, fico imediatamente na defensiva.
— Se ele tentar qualquer coisa, estaremos prontos. Por
enquanto, ele está nas prisões, amarrado e amordaçado. Nós
temos tempo.
Inclinando-se para trás com suas mãos, Ferrick concorda.
Embora ainda cético, ele não briga comigo ou diz que sabe
mais. Quer ele concorde comigo ou não, Ferrick assumiu seu
papel como meu principal conselheiro e está apoiando minha
decisão.
Minha gratidão por ele é quente o suficiente para queimar
um buraco no meu coração. Por um momento fugaz, tenho o
desejo de contar tudo para ele, não apenas sobre a longa noite
que passei acordada, lendo lendas, mas sobre o que está
acontecendo toda vez que fecho meus olhos. Como tudo o que
me espera atrás deles é a morte.
Penso em contar a ele como vejo uma massa de Visidia caída,
com meu pai parado entre um mar de cadáveres. Do sangue
que cai como um rio de seu estômago, e da fumaça que envolve
seu rosto e corpo, mas nunca da mão que sempre estende para
mim, implorando para que eu o salve. Penso em contar a ele
como a respiração está mais dolorosa do que nunca agora e que
às vezes nem chega.
Quero dizer a Ferrick que sei como isso parece ridículo,
porque sou eu a que devo proteger Visidia. Eu devo restaurá-
la. Mas às vezes me preocupo que esses pesadelos ficarão
comigo para sempre. Corpos tecidos em vermelho,
encharcados em mares de sangue.
Quero dizer a ele que estou disposta a arriscar qualquer
coisa, tudo, para compensar o passado da minha família e
enviar essas memórias para o fundo do mar, onde pertencem.
Em vez disso, escolho o caminho mais fácil, o caminho
seguro. Porque a última coisa de que preciso agora é o
julgamento de alguém. Principalmente dele.
Dou um tapinha rápido em seu joelho enquanto me levanto
e faço meu caminho para a porta.
— Diga a Bastian para fazer as malas também, certo? —
Acrescento baixinho; não estou pronta para compartilhar a
notícia com ele. — Mas ... Diga a ele quando nos encontrar nas
docas. Eu preciso ser a única a contar a ele o resto.
Você não será capaz de me ignorar para sempre, princesa.
Eu estremeço com a memória das palavras de Bastian. Ele
está certo, o amanhã vem e não serei capaz de ignorá-lo por
mais tempo. A partir de amanhã, seremos forçados a viver no
mesmo navio por Deus sabe quanto tempo.
Ferrick passa os dedos pálidos pelo cabelo ruivo úmido.
— Claro. Quero deixar claro que odeio essa ideia e estou
totalmente contra todas as partes dela... Mas é claro. Não vou
dizer nada até você falar com ele, mas e Vataea? — Há um tom
de esperança em sua voz. Um brilho em seus olhos. — Ela e eu...
quero dizer, sei que estamos indo devagar, mas gostaria de ver
onde isso pode chegar. Você está me pedindo para manter um
grande segredo não contando a ela sobre Blarthe.
— E eu sinto muito por fazer isso. Mas você sabe tão bem
quanto eu o que acontecerá se Vataea souber que o pegamos.
Até eu encontrar o artefato, preciso de Blarthe vivo.
— Mas…
— Ferrick. — Eu me viro totalmente para ele agora. — É
uma ordem.
A surpresa pisca em seus olhos antes que ele se endireite,
inclinando a cabeça.
— Tudo bem então, Vossa Majestade. Não vou dizer uma
palavra.

Uma vez que Ferrick e Casem foram alertados, e um pedido
para outro membro da tripulação feito, é hora de ver Vataea.
A sereia está deitada em sua varanda, com as pernas longas
e o estômago liso exposto enquanto ela tenta chamar o sol para
bronzear sua pele. Ela estende os dedos de uma mão à sua
frente, cada um deles coberto com um amabon em miniatura
espetado em suas unhas. Ela coloca um deles na boca quando
eu entro, seu sorriso ficando cheio de dentes quando ela me vê.
Me acenando, ela chuta os pés na espreguiçadeira que ela
arrastou para a varanda.
Meu primo Yuriel tem aproveitado ao máximo sua presença
no palácio. Os dois se tornaram praticamente inseparáveis.
Mesmo agora, ele está deitado ao lado dela, tomando um gole
de uma grande taça de sangria como se estivéssemos no meio
do verão. Embora Vataea estivesse programada para deixar
Arida semanas atrás para começar a explorar o reino, ela se
acostumou com a vida pródiga de um convidado real no
palácio. Mas depois de tudo que ela suportou com Blarthe,
estou feliz por ela ter colocado seus planos de viagem em
espera por um tempo. Para ficar em algum lugar que ela
pudesse se sentir segura e confortável.
— Você sabe que está congelando, certo? — Eu cruzo meus
braços em volta de mim e puxo meu casaco bem apertado. As
cortinas de cetim safira em torno da janela aberta de Vataea se
dobram com a brisa forte, mas ela permanece impassível,
vestindo apenas o suficiente para não se expor. Yuriel pelo
menos usa um casaco cintilante que foi encantado para parecer
feito de pele de raposa lilás.
— A sangria mantém você aquecido — ele diz
preguiçosamente, sem se preocupar em olhar para mim.
Ele vira a página de um pergaminho Ikaean, rindo de uma
das imagens em movimento. Quase me arrepio até que ele vira
para Vataea e vejo que não é o mesmo pergaminho que Lorde
Garrison compartilhou comigo, mas sim o de um homem
aparentemente bêbado cujas calças de bolha se estragaram em
uma festa. Vataea se inclina sobre Yuriel para pegar o
pergaminho. Um olhar e ela se desfaz em uma risada perversa.
Quando eu limpo minha garganta, ela revira os olhos e deixa
o pergaminho e suas imagens em movimento de lado.
— É muito mais quente aqui do que no fundo do mar. — Ela
coloca outro amabon em sua boca e mergulha a cabeça para
trás contra a espreguiçadeira. — Você gostaria de vinho? Como
convidada de honra do palácio, tudo o que tenho a fazer é tocar
uma campainha e receberemos o quanto pudermos beber. —
Outro amabon, e então um sorriso largo. — Joga fora essa sua
cara séria, Amora. Venha, coma e beba comigo por uma noite.
— Outra hora. — Eu cruzo o chão para arrancar um amabon
de seu dedo e o coloco em minha boca. O pão deliciosamente
fofo praticamente derrete na minha língua, cheio de uma pasta
de ameixa doce. Quando eu gemo, Vataea ri e acaba com as duas
últimas. Ela parece totalmente relaxada e tento não deixar que
isso me faça me sentir culpada. Se ela soubesse que Blarthe está
nas prisões de Arida neste momento, esta seria uma tarde
totalmente diferente.
— Como você se sente sobre outra aventura? — Eu lambo o
resto do açúcar dos meus lábios. — Uma apropriada desta vez.
Não apenas ir para a boia e voltar.
Os olhos de Vataea se estreitam em fendas quando ela se
vira para me avaliar. Dentro deles, eu juro que vejo um
vislumbre de deleite escuro.
— O quão apropriada estamos falando?
— Eu devo navegar pelo reino. Haverá solteiros, uma chance
de visitar as outras ilhas e, provavelmente, muito mais comida
e bebidas do que poderíamos desejar em nossas vidas. —
Quando Yuriel se anima, eu rapidamente acrescento: — Mas
precisamos manter a tripulação o menor possível. Vou precisar
da sua ajuda para navegar.
Ela joga as pernas sobre a espreguiçadeira e estende bem os
braços. Algum tempo em terra fez bem a ela, sua pele está
quente de sol e sua barriga está cheia e saudável.
— Quem sou eu para negar uma aventura? — Embora ela
fale melancolicamente, há alegria em seus olhos quando
encontram os meus. — Para onde vamos primeiro?
A culpa é uma piranha, me devorando inteira enquanto eu
forço a verdade.
— Kerost.
Não quero pedir a ela que volte para o lugar de onde a
resgatamos, um dos vários lugares em que foi mantida em
cativeiro por Blarthe e exibida como um troféu. Eu entendo
perfeitamente a vingança que Vataea busca contra ele, e uma
vez que ele cumpra seu propósito, Vataea pode ter sua vez com
ele. Mas, por enquanto, devo seguir sua liderança em Kerost e
encontrar Ornell Rosenblathe.
— Você pode ficar no navio, se quiser. Você não tem que
desembarcar.
Ela mostra os dentes, afiados e perigosos.
— Eu me recuso a permitir que aquele homem me impeça
de aproveitar minha vida. Eu vou. Acho que os meninos estão
vindo com a gente?
— Claro que vão — eu quase rosno, lembrando nitidamente
de Bastian e sua explosão na sala do trono.
Quanto mais penso em Bastian, mais penso em minha
maldição. E quanto mais penso sobre minha maldição, mais
meu ressentimento cresce e minha mente se arrasta para
dentro de si mesma. As bordas da minha visão escurecem,
cavando um túnel. Cavando. Cavando. Até eu ver fumaça. Fogo.
Sangue. Bastian se contorcendo no chão. Meu pai morto, uma
espada entre suas costelas. Procuro seu rosto na fumaça que o
envolve, mas tudo que encontro são os rostos de mil espíritos
mortos circulando atrás dele. Me assistindo.
— Amora?
Eu inalo um suspiro ao ouvir a voz melódica de Vataea. Eu
me concentro nela, usando-a como uma âncora para arrastar
meu foco de volta. Há um aperto no peito e um vazio no
estômago, mas faço tudo o que posso para ignorar e me
concentrar em empurrar meus ombros para trás e ficar em pé.
— Arrume suas coisas antes do anoitecer. — Eu faço minha
voz firme, silenciosamente implorando para ela deixar por isso
mesmo. Porque se ela pressionar, com certeza vou vacilar. —
Partimos ao amanhecer.
CAPÍTULO NOVE

O pelo ao longo do manto de mamãe ondula atrás dela


enquanto estamos na beira do cais. Ela parece um espírito, sua
expressão não menos assombrada do que a névoa que nos
rodeia ou a madeira que geme sob nossas botas.
Seu rosto magro está voltado para as ondas turbulentas,
vincado por uma preocupação tão profunda que se instala em
suas mãos, que se fecham e se abrem contra sua capa em um
ritmo ansioso.
— Podemos adiar a turnê até o verão. — O grasnar das
gaivotas quase abafou sua voz. — Será mais seguro viajar,
então.
Eu sigo seu olhar, observando enquanto a espessa espuma
do mar se agita contra a costa, tentando reivindicar
caranguejos que se refugiam nas rochas. Entendo a hesitação
de mamãe, mas, ao contrário daquele caranguejo, não tenho
medo do mar. O oceano mantém minha alma firme. Sal e névoa
se acomodam em minha pele como um casaco, atraindo-me
para seu conforto. Eu me inclino para o sentimento, dando
boas-vindas a ele.
— Quanto mais cedo tivermos este reino sob controle,
melhor. — Eu mantenho minhas palavras desprovidas da
ansiedade que mexe dentro de mim.
Liberdade para Visidia fica a apenas um oceano de distância.
A liberdade das minhas maldições está a apenas um oceano
de distância.
Não vou esperar até o verão para zarpar.
Nossa partida é mais silenciosa do que eu esperava. Como
todos os que moram em Arida trabalham para a família real,
não há multidões de torcida para nos mandar embora. Os
poucos que passam por aqui vêm em silêncio e não se
demoram, a maioria chefs do palácio que trazem carnes e doces
de presente, enquanto as criadas abastecem o navio com
vestidos e sabonetes.
— As ilhas estão confusas tentando preparar tudo a tempo.
— Mamãe junta as mãos em um esforço para parar de mexer
em sua capa. — Mas tudo foi arranjado, e se você precisar de
algo, ou se algo acontecer, Amora, faça Casem entrar em
contato comigo.
Eu gostaria de não ter que ver a dor em seus olhos, ou o
medo de perder alguém em sua vida. Eu gostaria que houvesse
um lugar onde eu pudesse olhar sem ver o papai.
— Vou consertar tudo, eu prometo.
Eu abraço minha própria capa com força enquanto os
soldados andam em torno de nós, carregando nossos
suprimentos para a Duquesa. Embora a ilha esquente ao longo
do dia, aqui, na névoa da manhã, minha respiração forma
nuvens cinzentas e espessas. Eu respiro a salmoura tão
profundamente que pica meu nariz, pegando meus dedos
batendo em um ritmo rápido contra meu corpo.
Eu não deveria estar tão ansiosa. Estive no Duquesa quase
todos os dias desde que me recuperei da minha luta com Kaven.
Mas, enquanto tento me lembrar disso, um flash de velas
totalmente brancas flutua no canto da minha visão, e meus
dedos param.
O navio que se aproxima é um que não vejo desde que Arida
deu uma mordida nele, no verão passado. De alguma forma, o
esplêndido arco branco foi remendado com bétula zudiana e
todo o navio polido com perfeição. As cracas que uma vez
comiam seu caminho ao longo da madeira foram arrancadas e
a brilhante figura branca de um dragão marinho fervilhando
paira sobre nós, maior e mais feroz do que nunca.
Keel Haul é e sempre será o navio mais brilhante, e enquanto
meus olhos se demoram em seu capitão, tenho que morder
minha língua.
Bastian não está atrás do leme onde eu esperava, mas
sentado no topo da figura da proa, impecável em um casaco
escarlate justo e calça cáqui. Suas botas de couro estão
engraxadas e seu cabelo castanho está solto e ondulado contra
o vento. Ele é lindo, mas não é isso que faz meu coração parar
e meu estômago se torcer ferozmente de desejo.
É o sorriso dele. O mesmo sorriso turbulento e arrogante
que ele usava quando o conheci. O sorriso de quem exala
charme. Quem quer ser notado e tem sucesso com isso.
É o sorriso do pirata pelo qual me apaixonei, pela primeira
vez em anos.
— Esse menino certamente gosta de fazer uma entrada. —
Eu ignoro a sugestão de diversão que ilumina as palavras de
mamãe. — Suponho que isso significa que é hora de eu voltar
para o palácio. Mas lembre-se do que eu disse: esteja segura.
Estou apenas a uma vela de distância. — Ela me puxa para o
peito sem aviso, enterrando-me no calor de suas peles por um
momento muito longo antes de se retirar, mantendo seu rosto
fora de vista. — Eu sinto muito por este fardo, mas você vai ser
uma rainha incrível, Amora. Eu simplesmente sei disso.
Ela está no meio do cais antes que eu possa processar suas
palavras, seus passos apressados, sem olhar para trás. Se ela
fizer isso, nós duas sabemos que ela tentará me impedir.
Eu desvio minha atenção da figura de mamãe se retirando
para frente do mar. As velas de Keel Haul ondulam conforme o
navio se aproxima, e Vataea fica na proa, seus lábios se
movendo em um canto constante. Embora eu não possa ouvi-
la, está claro que ela está comandando as marés enquanto elas
rolam e se dobram à sua vontade, conduzindo o navio para as
docas ao lado do navio de papai, o Duquesa.
— Ahoy, Vossa Majestade! — Bastian coloca as mãos em
concha sobre a boca para me chamar, e luto contra a vontade
de revirar os olhos. A última coisa que ele precisa fazer é gritar.
Todos nós podemos ouvi-lo. — Diga aos seus soldados para
transferirem a carga para o meu navio. — Ele tem um pé
pendurado no dragão, enquanto dobra o outro no joelho e se
inclina contra ele, parecendo perfeitamente confiante.
Perfeitamente à vontade. Simplesmente... perfeito,
realmente. É incrivelmente irritante.
Embora uma vez ele tenha me dito que não queria nada mais
do que dar uma pausa no mar e se acomodar, olhando para ele
agora, está claro que Bastian nunca pertencerá a uma vida fácil
na costa. Talvez ele quisesse provar, só para ver se satisfazia
seu desejo. Mas eu sei como é esse desejo e nunca estará
satisfeito. Sua alma é feita para se mover, sempre em busca da
próxima aventura.
Keel Haul geme quando ela se acomoda na areia, e eu enfio
minhas mãos dentro da minha capa com medo de que seu
tremor denuncie o quão desesperados meus dedos estão para
estender a mão e pousar em sua madeira fria. Ou como meu
corpo está desesperado para se acomodar em meu lugar no
convés. Voltar para minha cabana e ser embalada para dormir
em uma rede, cercada por nada mais do que ondas e madeira.
Sem política. Sem dor. Sem magia falsa.
Tão rapidamente quanto esse desejo cresce dentro de mim,
eu o apago, cavando minhas unhas em minhas palmas para
suprimir a antecipação.
Isso não é para ser uma aventura.
— Nós vamos pegar o Duquesa — eu anuncio teimosamente,
levantando meu queixo para ver suas sobrancelhas franzirem.
É impossível dizer se é por diversão ou aborrecimento.
— Não, nós vamos pegar Keel Haul — ele desafia, a voz leve
como o ar e tão confiante quanto só os homens podem ser. —
Você quer causar uma boa impressão em seu povo, não quer?
Você quer que todos percebam a partir do momento em que
você chega, pronta para partir os corações de alguns pobres
desgraçados?
Flexível por experiência, Bastian desce pelo pescoço da
figura da proa. Ele sabe exatamente onde se agarrar para se
abaixar o suficiente para pular com segurança na areia.
— O Duquesa é um grande navio — diz ele. — Mas não é Keel
Haul. Este navio nos ajudou a passar por uma aventura juntos,
e ele está preparado para nos ajudar em outra.
De perto, vejo que seu rosto não está tão confiante quanto
eu pensava. Embora ele mantenha sua facilidade e charme, os
cantos daquele sorriso vacilam. Enquanto seus olhos dançam
de esperança, a ansiedade surge em sua pele.
— Se você acha que estar em Keel Haul vai de alguma forma
fazer tudo entre nós voltar ao normal...
Ele balança a cabeça.
— Pare de ser teimosa e dê a ordem. Você sabe que prefere
pegar meu navio. Ele é mais rápido. Seremos capazes de
reduzir nosso tempo de viagem entre as ilhas. — Atrás dele,
Vataea ri, e eu atiro um olhar furioso para ela por se deixar
envolver pelas travessuras de Bastian.
Abro a boca para discutir, com medo de como estar em Keel
Haul com Bastian pode me fazer sentir. Mas antes que eu possa,
há uma mão no meu ombro. Eu pulo, exalando um suspiro de
alívio quando vejo que é apenas Ferrick.
Ferrick está vestido com seu uniforme de conselheiro,
usando um vestido verde escuro incrustado com elegantes
costuras douradas que serpenteiam por sua gola, formando
folhas e heras. Não é mais um florete que ele carrega ao lado,
mas uma linda espada dourada com um punho decorado com
uma safira de um lado e uma esmeralda feroz do outro.
Embora o verde que escolheu para o casaco não combine
muito com as calças douradas, ele está ficando melhor com seu
guarda-roupa. Embora eles nunca admitam, suspeito que ele e
Bastian tenham selecionado roupas juntos recentemente.
— Acho uma boa ideia ir com Keel Haul. — As palavras de
Ferrick são baixas, dirigidas apenas para mim. — Estamos
tentando manter a tripulação pequena e ele é um navio mais
fácil de manobrar. Além disso, estamos confortáveis com ele.
Bastian está certo, você está sendo teimosa. — Ele bagunça
meu cabelo, frisando-o com a fricção, mas a tensão no meu
peito diminui. Eles estão certos.
Em vez de olhar para Bastian, me viro para os soldados.
— Obrigada pelo seu trabalho, mas os planos mudaram.
Carregue tudo em Keel Haul o mais rápido possível.
Se eles estão irritados, eles não demonstram. Felizmente,
acabamos de começar a carregar o Duquesa, e os soldados são
rápidos para ajustar sua rota e se mover com a carga. Enquanto
eles fazem isso, Ferrick sorri para mim.
— É normal ficar animada — diz ele, como se conseguisse
sentir a ansiedade que estou desesperadamente tentando
esconder. — Você adora velejar, não tenha vergonha disso.
Você pode ter que manter uma cara corajosa para Visidia, mas
você está com amigos aqui. Tudo bem?
— Tudo bem. — Eu levanto minha mão para deixar minha
palma sobre a dele, acomodada em meu ombro. Embora eu não
acredite totalmente em suas palavras, eu as aprecio.
Desde a morte do meu pai, é Ferrick quem tem sido minha
rocha. Uma luz minúscula e confiável em uma névoa cinza.
Embora Bastian tenha tentado estar lá, como eu poderia deixá-
lo me confortar quando não posso fazer o mesmo por ele?
Ferrick e eu não temos um amor romântico e nunca teremos.
Mas confio nele mais do que em qualquer pessoa. Ele é, sem
dúvida, meu melhor amigo.
— Estou feliz por você estar de volta — digo a ele, e ele
responde com um sorriso e um beijo rápido no topo da minha
cabeça.
— Estou contente também. — Seu tom, no entanto, não
corresponde às suas palavras. — Eu só... não posso deixar de
me sentir culpado por isso. Depois de tudo que Vataea passou,
ela merece saber sobre Blarthe.
— Ela merece. — Eu o encaro com um olhar sério. — Mas se
eu contar à Vataea agora, ela marchará direto para a cela dele
e cortará sua garganta sozinha.
— Ela estaria errada? — Ferrick pergunta, e eu meio que
espero que ele esteja brincando. No verão passado, ele nunca
teria dito tal coisa. Mas seus olhos estão sombreados agora, e
seus lábios estão pressionados em uma linha reta e fina.
Percebo que, desta vez, ele está falando sério.
É como se toda vez que eu piscasse, vejo outra parte de
Ferrick que mudou. Afinal, foi ele quem deu o golpe final que
matou Kaven. Mesmo que fosse para me salvar, ele tirou uma
vida. Sei por experiência própria o quanto isso pode mudar
uma pessoa.
— Não — eu admito. — Pelo menos, eu não acho que ela
estaria.
Por mais que Ferrick tenha mudado, eu também mudei. Uma
vez, eu teria concordado prontamente que Vataea deveria
cortar sua garganta e acabar com isso. Deuses, ela poderia até
morder sua garganta com os próprios dentes e eu a teria
apoiado. Mas desde que descobri a verdade sobre os Montaras,
desde que aprendi que cada pessoa que matei não era para o
bem do reino como fui criada para acreditar, não tenho mais
certeza.
Farei absolutamente tudo o que for necessário para servir
ao meu povo e conduzi-los a um futuro mais forte. Se eu tiver
que matar ou sujar as mãos para fazer isso, eu farei.
Mas isso significa que não está errado? O que me torna
melhor do que aqueles que mato?
— Por enquanto, eu preciso dele vivo. — Eu empurro a
tensão em minha voz, me recusando a deixar os pensamentos
persistirem. — Se mantivermos nossa tripulação o menor
possível, precisaremos da magia de Vataea. Precisaremos dela
afiada.
Embora seja com um suspiro, Ferrick cede. Sua mão muda
para a parte inferior das minhas costas enquanto ele empurra
para frente, me impulsionando em direção a Keel Haul e ao
menino que está na areia antes dela, esperando.
Não vamos esquecer que também sou solteiro.
Pensando nas palavras de Bastian, minha pele fica quente.
Com tudo em mim, eu gostaria de poder me permitir cair no
peso dessas palavras e senti-las. Eu gostaria de poder pegar seu
rosto em minhas mãos e pressionar meus lábios contra os dele.
Provar o sal e o mar que tenho certeza que nunca os deixou.
Há desespero em seus ossos e uma pulsação faminta em sua
alma que me diz que Bastian sente o mesmo. Mas eu não posso
deixar seu sorriso de lado ou as estrelas dançando em seus
olhos me balançarem, não importa o quanto meu corpo queira
ser influenciado.
Bastian é rápido em subir a escada e abaixar a rampa de Keel
Haul, e eu passo por entre os soldados reais para subir a bordo.
Mas, no momento em que passo, ele sussurra:
— Bem-vinda a bordo — e, de repente, sou transportada de
volta à noite em que nos conhecemos.
Eu paro, e sua expressão familiar é o suficiente para me
dizer que ele está perfeitamente ciente do que está fazendo
comigo. Sem dizer uma palavra, eu forço meus pés a
obedecerem e a passarem por ele, fazendo meu caminho para
Vataea.
— Você tem certeza de que será capaz de guiar o navio? —
Eu pergunto, levantando as mãos apaziguadoras quando seu
olhar se torna venenoso. — Eu não estou duvidando de você.
Só não quero que você se canse.
— Tenho praticado. — Altivamente, ela projeta o quadril
para o lado, os braços cruzados.
Com o peso que ela ganhou desde que ficou em Arida, suas
curvas são generosas e difíceis de desviar. Atrás de mim, uma
soldada tropeça e deixa cair uma arca cheia de carga,
esquecendo-se de si mesma ao ver Vataea. Os olhos da sereia
piscam brevemente para a soldada, olhando para ela uma vez e
depois voltam para mim.
— Pratique o quanto quiser — eu digo — mas isso não
significa que você nunca vai se cansar. Você não é invencível,
Vataea.
— Talvez não. — Ela joga mechas de cabelo preto como um
corvo por cima do ombro. — Mas eu sou a coisa mais próxima
disso. Além disso, ele estará por perto para ajudar.
Quando Vataea aponta suas longas unhas escuras atrás de
mim, me viro para encontrar Casem e Mira. Ele está com o arco
pendurado nas costas, uma das mãos livre para segurar a de
Mira. Tento não examiná-la muito enquanto ela desce pela
costa. Agora há cor em suas bochechas e um brilho saudável em
sua pele. Mas não consigo deixar de pensar em quando a vi
estirada no chão, morrendo de uma facada no peito. Mesmo
com a ajuda dos suntosan, isso levou muito tempo para curar.
Ela favorece o lado esquerdo, e o leve mancar em seus passos
me diz que ela não está tão recuperada quanto diz. Nenhum de
nós está.
Na parte inferior da rampa, Casem se vira para Mira e a puxa
para perto. Ele sussurra algo que não consigo ouvir, mas sei que
é íntimo o suficiente para que eu desvie o olhar. E ainda assim,
eu não posso. Nem mesmo quando ela fica na ponta dos pés e
agarra seu rosto, beijando-o com mais ferocidade do que eu
imaginava que ela fosse capaz. Quando ela se afasta, seu anel
de noivado de pérola reflete a luz do amanhecer, e eu me pego
olhando para ele com um calor ardente em minhas veias.
Estou feliz por eles. Eu realmente estou. Mas não posso
deixar de invejar o quão fácil isso é para ela. Ela ama Casem, e
ele a ama. Não há nada confuso ou difícil nisso.
Só depois de se certificar de que ela está enrolada
firmemente em seu casaco, Casem dá outro beijo firme em seus
lábios e começa a se afastar. Seus passos são lentos,
arrastando-se pela areia.
Eu gostaria de não ter que levá-lo comigo. Mas Mira o tem
ensinado a falar com a mente e, junto com sua habilidade de
manipular o ar, ele é valioso demais para ser deixado para trás.
— É quase todo mundo — digo, principalmente para mim
mesma, embora os lábios de Vataea se contraiam com a
surpresa.
— Quase? — Ela ecoa quando uma soldada real se aproxima.
É uma que não reconheço, a mesma mulher que tropeçou ao
ver Vataea. Ela é alta, com ombros largos e cabelos ruivos
curtos. Sardas beijam seu rosto, e seus olhos verdes estão
brilhantes e tortuosos quando ela nos olha. Em seu pulso está
uma pequena pulseira que parece ter sido feita de ossos de
peixe delicados e banhada a ouro rosa.
— Perdoe minha escuta — sua voz é um ronronar que
reconheço instantaneamente. — Mas eu ouvi corretamente?
Você está esperando por outro membro da tripulação?
Os olhos de Vataea piscam quando ela se vira para mim,
como se perguntasse: Essa pessoa está falando sério?
Tento não rir quando o sorriso da soldada fica cheio de
dentes. O ruivo de seu cabelo clareia e alonga sua espinha,
transformando-se em ondas rosa-bebê. Seus olhos verdes se
aprofundam na sombra de sangue fresco, e suas curvas se
alargam enquanto ela diminui de altura. Lentamente, seu corpo
continua a se transformar até que seja claramente Shanty
quem está diante de nós.
— Olá, capitã — ela ronrona. — Importa-se de me
apresentar à sua amiga?
Eu mordo de volta um sorriso quando o pescoço de Vataea
se contrai com a surpresa inicial. Mas ela nivela sua expressão
e deixa a curiosidade tomar seu lugar. Seus olhos se demoram
lentamente em Shanty, sem pressa.
— Vataea — ela responde por si mesma, mas mantém os
braços cruzados sobre o peito, sem oferecer a mão.
— Você deve ser a sereia. — Shanty oferece a mão dela de
qualquer maneira, e sorri maliciosamente quando Vataea
eventualmente a pega. — Eu sou a Shanty.
— Shanty é quem nos deu a dica sobre onde encontrar você
— eu ofereço. — Ela usa a magia de encantamento Ikaean de
uma maneira que eu nunca tinha visto antes de conhecê-la. Se
autodenomina uma metamorfa.
— Não só rostos agora — Shanty corrige. — Eu posso
encantar partes do meu corpo, também. Sou melhor com a
metade superior do que com a inferior, mas estou trabalhando
nisso.
A primeira vez que encontrei Shanty foi no escondido
Barracuda Lounge em Ikae. Ela parecia perigosa então, entre as
luzes coloridas e liderando uma gangue que não hesitaria em
cortar nossas gargantas se ela pedisse. Mas aqui, enquanto o
sol está aparecendo através da névoa, estou surpresa com o
quão normal ela parece.
Shanty é mais baixa do que eu me lembrava, quase
alcançando meus ombros. E embora a cor vermelha que ela
prefere manter nos olhos seja enervante, ela é estranhamente
acessível. Inteligente e implacável, Shanty também é linda, com
bochechas rosadas e um sorriso mentiroso, convencendo o
mundo de que não é uma ameaça. Ela é o tipo de garota por
quem as pessoas se sentem atraídas, sem nunca saber
realmente por quê. O tipo em que você confia com muita
facilidade, mesmo que seja o tipo que pode te trair no momento
em que tiver a chance.
Embora eu tenha perdoado Shanty e os barracudas por seus
crimes passados graças a ela nos ajudar a encontrar Vataea,
isso foi antes de eu saber que eles eram mercenários
contratados. Embora Shanty saiba que estou de olho nela,
nenhuma parte de mim acredita que os barracudas ainda não
estejam aceitando trabalhos.
— Estamos esperando por mais alguém? — Vataea pergunta
enquanto os soldados terminam de trazer o resto da carga, e eu
examino o convés para ver a tripulação que montamos:
Ferrick, Casem, Vataea, Shanty, Bastian e eu. Uma tripulação
de seis pessoas, o que normalmente nunca seria suficiente para
manter um navio deste tamanho. Mas é uma equipe perfeita.
Um curandeiro.
Um falante da mente que pode manejar o ar.
Uma sereia que pode virar as ondas com uma única música.
Uma metamorfa de rosto.
Um pirata com magia de maldição, assim como a magia que
eu já tive.
E eu. Quem, sem nenhuma magia ou habilidade além de
saber como e onde esfaquear uma pessoa para obter a máxima
eficiência, não adiciona exatamente nada ao conjunto de
habilidades da tripulação.
Mas é exatamente para isso que estou aqui.
Quando a rampa para Keel Haul é puxada e os soldados
voltam à costa para acenar para nós, desejando-me sorte,
Bastian segura o leme.
— Para onde vamos primeiro? — Ele mal consegue
esconder o tom esperançoso em sua voz. Embora eu saiba que
ele não quer nada mais do que voltarmos para Zudoh, primeiro
preciso perseguir a pista de Blarthe e ver o que posso encontrar
sobre o artefato.
— Nós iremos para Kerost.
Bastian acena com a cabeça e gira o leme com força.
— Vataea, isso significa que precisamos ir para o sudoeste.
É uma longa viagem, então se você for tão gentil...
Vataea é rápida em tomar seu lugar na proa. Ela se inclina
sobre a grade, sussurrando um cântico tão baixo que a
princípio parece que ela está resmungando. Mas à medida que
as marés se agitam, seu canto fica cada vez mais alto até que as
ondas praticamente tomam conta do nosso navio e nos jogam
para frente. O choque inicial me faz tropeçar em Ferrick, que
me pega enquanto tenta manter o equilíbrio.
— Pelos deuses — ele murmura, e eu olho para cima para
ver que seu rosto está ficando verde. Ferrick praticamente me
deixa cair no convés e corre para o corrimão, mal conseguindo
chegar a tempo.
Bastian dá uma olhada para ele e revira os olhos e, apesar de
tudo, meu estômago aquece.
Mesmo com tudo o que está acontecendo, eu me deixo
afundar nesse sentimento. Porque pela primeira vez desde o
verão, estou finalmente em casa.
CAPÍTULO DEZ

Só depois que Arida não está mais à vista e o mar afunda em


minha pele é que percebo que isso é real. Estamos fazendo isso.
O vento forte rasga meus cachos enquanto eu me sento no
ar úmido, puxando minha capa com força enquanto olho para a
boia. Ela balança atrás de nós, e meu peito se enche com uma
sensação que quase não reconheço: liberdade. Já não estou
confinada em Arida, mas aqui em alto mar, pronta para outra
aventura.
A tripulação descansa no convés atrás de mim, Casem e
Bastian traçando nosso curso enquanto Shanty se inclina
contra o mastro, usando magia de encantamento para alterar
repetidamente a cor das suas unhas, tendo dificuldade em
parar em qualquer tom.
Ao lado dela, Vataea inclina a cabeça para trás contra a luz
fraca do sol, comendo contente um pote de arenque em
conserva enquanto Ferrick se agita, criando coragem para falar
com ela.
Vataea o pega pelo canto do olho, e os lábios se contorcem
de diversão antes que ela lhe entregue o pote como oferta.
— Arenque? — Meu estômago se enrola quando uma
barbatana viscosa desaparece entre seus lábios. Ela dá um
gemido satisfeito antes de começar outro.
— Sim, obrigado. — Ferrick pigarreia e pega a oferta, sem
hesitar em morder. Todo o seu corpo se agita no momento em
que o faz, forçado a disfarçar o sufoco tossindo na manga. —
Delicioso. — Ele quase resmunga quando diz isso, forçando-se
a terminar educadamente a coisa toda. — Só um pouco...
salgado.
Eu pego um punhado de carne seca e sufoco minha risada,
indo para a proa para deixá-los com sua conversa. Keel Haul é
um lutador hoje. Ele pisa nas ondas do inverno, sacudindo o
navio o suficiente para que eu tenha que agarrar a grade para
me equilibrar enquanto olho para o horizonte.
Um dia faremos uma viagem juntos, papai me disse uma vez
enquanto me carregava para fora do primeiro navio em que
tentei embarcar. Vou te mostrar o reino inteiro. Vou te mostrar
cada joia e cada segredo que ele tem a oferecer.
Fechei os olhos, tentando lembrar como era a sensação
contra seu peito. A cada dia que passa, encontro-me
perseguindo papai ainda mais. Perseguindo a lembrança do seu
sorriso, ou o som da sua risada que sempre parece me invadir.
Quanto mais tento manter a memória do meu pai, mais minha
mente distorce sua imagem.
O sangue carmesim penetra em seu colete e nas minhas
mãos, manchando-as. Ele me deixa cair enquanto o sangue vaza
de sua boca, sombras acumulando-se como fumaça nas órbitas
vazias, mascarando seu rosto. Atrás dele, surge um mar de
Visidianos mortos. Cada um deles me encara, sem piscar, e
reconheço alguns de seus rostos do massacre que aconteceu
em Arida no verão passado. Onde deveriam estar seus olhos, há
buracos cheios de sangue que escorre como riachos por suas
bochechas.
Estendo a mão para meu pai enquanto o sangue se acumula
ao meu redor, mas cada vez que me empurro para frente, os
mortos o puxam para fora de alcance. Sua raiva bate em meus
ossos, quase penetrando o suficiente para abrir minha cabeça.
Eles sabem o que os Montaras fizeram a eles e as mentiras
que o papai guardou. Eles sabem que a culpa é nossa.
A última coisa que vejo é papai segurando a barriga com
uma das mãos, enquanto a outra me alcança através dos
mortos que o agarram com força. Eu me empurro cada vez mais
forte para alcançá-lo, gritando quando os mortos o devoram.
É minha culpa que ele esteja morto.
É minha culpa que eles estão todos mortos.
É minha culpa…
— Amora?
A voz tira a imagem do meu pai e eu abro os olhos. Minhas
mãos estão segurando o corrimão com tanta força que tremem,
cravando os pregos na madeira estilhaçada. Ouço um som
ofegante e estrangulado, e não percebo que sou eu quem está
fazendo isso até que alguém tenha uma mão nas minhas costas
e a outra no meu ombro.
— Ah, deuses. Ei, respire, certo? Tente respirar. — A voz é
feminina, mas não o suficiente como uma música para ser de
Vataea. Embora eu mal possa me concentrar, tento o meu
melhor para fazer o que Shanty diz. — Bom. Ouça minha voz.
E embora eu espere que ela continue me dizendo para
respirar, é com um choque de surpresa que percebo que ela não
está mais falando, mas cantando tão baixinho que tenho que me
concentrar para ouvir que é uma canção popular do mar.
A voz dela não se parece em nada com a de Vataea. É como
um navio raspando na areia, completamente fora do tom. Mas
o ritmo familiar das palavras bate na minha cabeça e eu o sigo.
No momento em que a música termina, minha visão se
estabiliza e Shanty afrouxa seu aperto. Ela provavelmente é a
única razão pela qual ainda estou de pé.
— Obrigada — eu consigo dizer entre respirações niveladas,
deixando a salmoura do oceano me embalar de volta ao seu
conforto. Lentamente, mas com segurança, a dor das memórias
diminui. Ainda está lá, e ainda é um peso constante, mas não
muito para conter.
Ao meu lado, Shanty inclina os braços contra a grade.
— Não há nada a agradecer. Eu sei que não parece agora,
mas… Essas coisas? Vão ficar melhores. Talvez não por um
tempo, talvez nunca totalmente, mas fica melhor.
Eu fico parada, quase com medo de perguntar.
— Isso já aconteceu com você?
Ela olha para trás, certificando-se de que ninguém está
prestando atenção antes de sussurrar:
— Imagino que tenhamos motivos diferentes. Mas quando
meus motivos parecem grandes demais para lidar, sei como
isso pode ser sufocante. Isso não acontece mais comigo com
tanta frequência. Mas para mim, a música ajuda. Normalmente,
se é uma música que eu conheço, posso me concentrar nas
palavras em vez de nas memórias. Meus pensamentos podem
ficar sombrios às vezes, então tento induzi-los a algo mais feliz.
Estou surpresa com o quão confortável ela parece em um
navio. Eu esperava que ela se sentisse deslocada, mas ela está
perfeitamente à vontade enquanto se inclina contra o arco.
Mesmo agora, é difícil para mim entender quem é Shanty. Eu
sei que ela não veio aqui de boa fé, mas pelo pagamento que
vem ajudando uma rainha. E ainda, neste momento, ela não
parece ter nenhum motivo oculto. Parece que ela teria parado
para ajudar qualquer um que estivesse passando pelo que eu
estava.
Sempre pensei em Shanty como alguém temível. Alguém que
quase nada poderia abalar. Mas aqui está ela, igual a mim.
— Eu não esperava que você viesse. — Minhas palavras são
tão altas quanto minha voz trêmula pode controlar.
Dificilmente mais altas do que o vento. — Os barracudas
ficarão bem sem você?
— Os barracudas sabem se cuidar — diz ela. — Isso é um
trabalho como qualquer outro. Eles sabem que voltarei para
eles, e meus bolsos estarão bonitos e gordos quando isso
acontecer.
Eu coloco meus braços sobre a grade e inclino minha cabeça
para eles.
— Por favor, não conte a ninguém o que aconteceu. Eles não
entenderiam.
Por um momento ela não diz nada, e se eu não sentisse a
presença de seu corpo ao meu lado, pensaria que ela tinha ido
embora. Porém, eventualmente, sua resposta vem.
— Não é da minha conta para contar. Mas alguns deles
podem entender mais do que você pensa, sabe.
— Você disse que ficou melhor para você. — Atrás dela, vejo
os outros lançando olhares furtivos para nós, mas entre a
distância e os ventos fortes, não posso imaginar que eles
tenham ouvido nada do que aconteceu. — Quando?
— Quando eu parei de fugir disso. — Há algo de carinhoso
na maneira como ela diz isso. — Tive a ajuda dos meus
barracudas. Eles me ajudaram a abraçar meu passado quando
fugir dele se tornou muito cansativo.
Mais uma vez, meus ossos endurecem. Calafrios percorrem
minha espinha e estremeço, embora pareça que é apenas o
vento.
— O que você acha de tomarmos café da manhã? — Shanty
insiste. — As anotações de Casem de sua mãe sobre como
impressionar os solteiros e as dicas dela estão contribuindo
para o melhor entretenimento de toda Visidia. Você realmente
deveria vir e ouvi-los.
— Já vou — digo. — Me dê um minuto.
— Claro. — Ela aperta meu ombro de uma forma que agarra
meu coração e me lembra nitidamente de meu pai antes de
pedir licença. Em sua ausência, eu deixei o peso de suas
palavras afundarem.
Tive ajuda das minhas barracudas.
E eu tenho minha equipe, mas Shanty está errada. Eles estão
frustrados, cansados de mim e como eu tive que lidar com
minha maldição como ela é. Eles nunca entenderiam.
Eu parei de fugir disso.
Mas isso não é uma opção para mim. Minhas mãos estão
manchadas com o sangue daqueles que foram mortos em Arida
na noite do ataque de Kaven. Elas estão manchados com o
sangue do meu pai.
Se eu parar de correr, isso significaria aceitar suas mortes,
assim como minha maldição. Significaria aceitar que só tenho
metade da minha alma, e que a magia da alma nunca mais
pertencerá a mim ou ao resto de Visidia novamente.
Até eu encontrar o artefato, até que eu faça tudo ao meu
alcance para retribuir Visidia pelo dano que causei, não há
como parar. Não há perdão, não há esquecimento.
Por enquanto, devo continuar correndo.
CAPÍTULO ONZE

Com nosso curso definido, vou para a cabine de Vataea, dividir


e começar a desfazer minha mala. É com o coração pesado que
corro os dedos pelas cordas esfiapadas da minha rede,
lembrando-me da minha primeira noite deitada aqui no mar. O
início de uma jornada que me daria tudo o que sempre quis, ao
mesmo tempo que levaria tudo que eu mais amo.
Uma batida silenciosa de botas descendo os degraus me
acalma, e eu sei que elas pertencem a Bastian antes mesmo que
ele se aproxime com uma segunda rede na mão. Nossos olhos
se encontram, mas ele passa sem dizer nada. Eu recuo ao som
do primeiro golpe enquanto ele martela a rede no Keel Haul.
Olhando para a tensão em seu corpo e a raiva em seus
ataques, sei que agora é a hora de dizer a verdade: que estou
aqui para encontrar um artefato que pode quebrar nossa
maldição, não para tomar um marido. Mas quando as palavras
estão quase saindo da minha boca, Bastian quebra o silêncio:
— Isso teria sido incrivelmente doloroso de fazer no verão
passado. — Enxugando o suor da testa, ele cravou outro prego
na madeira.
Demoro um segundo para entender que ele está se referindo
à sua maldição anterior, aquela que tinha sua alma conectada a
Keel Haul, e eu cruzo minhas mãos enquanto me sento em
frente a ele.
— Você deve estar feliz por não estar mais conectado a um
navio.
Deuses. A conversa fiada já é ruim por si só, mas a conversa
fiada com Bastian me faz querer morder meu próprio braço.
A respiração que ele solta soa quase como uma risada, mas
muito amarga.
— Eu levaria minha última maldição a este aqui em qualquer
momento, Amora.
Diga a ele, uma voz dentro de mim pede. Diga a verdade a
ele. Mas a hesitação vence e eu ignoro a voz.
— É por isso que você nunca desfez suas coisas? —
Interiormente, eu me amaldiçoo por perguntar. Quero
continuar ignorando Bastian, assim como tenho tentado fazer
desde o outono. Mas querer e fazer são algo entre o qual minha
mente e meu corpo travam uma guerra constante,
especialmente agora que fomos forçados a esses aposentos tão
apertados. — Você quase não tinha nada para os soldados
carregarem no navio.
Ele continua martelando, o olhar nunca se desviando do seu
trabalho.
— Era para o caso de eu ter que sair.
Eu endureço, reprimindo minha surpresa.
— Você não pode ir embora. E a nossa maldição?
— Não seremos amaldiçoados para sempre. — Outro golpe
de martelo. — Eu estava me preparando para quando
encontramos uma maneira de rompê-la, e você decidiu que não
me quer mais em Arida. É impossível ficar confortável em um
lugar onde não seria bem-vindo.
Meus dedos ainda batem ansiosos.
— Por que você pensaria que eu não iria querer você lá?
Achei que você queria que Arida fosse sua casa.
Finalmente ele deixa cair o martelo para o lado, mas o olhar
que Bastian me dá é de exaustão, tão diferente da confiante
arrogância que ele exibiu na costa esta manhã.
— Como posso me sentir bem-vindo quando você sai do seu
caminho para me evitar? Quando você recua se eu tento tocar
em você? — Ele termina a rede de Vataea e se senta para testá-
la, passando as mãos pelo rosto. — Zudoh é minha casa. Se você
parar para me ouvir por cinco minutos, talvez você perceba
isso.
Eu fico tensa antes de perceber que não há dureza em suas
palavras. Elas são planas e reais, e isso por si só interrompe
minha crescente tensão.
— Essa maldição me afeta também — diz ele — e seria bom
se você se lembrasse disso. Aonde quer que você vá, não tenho
escolha a não ser segui-la. Então, quando você estiver presa em
Arida, ou desfilando pelas ilhas com pretendentes, lembre-se
que eu também tenho que estar lá, quando tudo que eu quero é
voltar para Zudoh e ajudar a reparar os danos causados à
minha casa.
— Isso é tudo o você quer? — E deuses, não sei por que
pergunto. Parte de mim quer engolir as palavras no momento
em que elas saem, mas a outra parte quer ouvi-lo dizer, porque
não consigo parar meus sentimentos. A raiva. O querer.
A parte mais cruel de mim quer saber que ele está se
sentindo da mesma maneira.
Diga a ele, Amora. Diga a verdade a ele.
— Você sabe que não é. — Bastian se levanta, e eu mal posso
respirar quando ele atravessa o chão. Cada passo que ele dá em
minha direção é um que eu recuo, até que estou bem contra a
parede e estamos frente a frente. Ele prende um braço ao lado
da minha cabeça e inclina o rosto para que sua respiração
aqueça meus lábios. Nem uma vez seus olhos castanhos se
desviaram dos meus até que sua mão se fechasse em meus
cachos e eu fechasse os olhos, deixando cair minha cabeça
contra a parede enquanto meu corpo praticamente quebra sob
seu toque, querendo nada mais do que ele me beijar. Para me
tocar.
Eu endureço, na expectativa, mas nada acontece. Eu forço
meus olhos abertos apenas para vê-lo franzir a testa.
— Quero você. — Algo em sua voz se quebra com essas
palavras. — Eu simplesmente não posso dizer se você me quer
também. Com você, eu ficaria feliz em Arida. Mas toda vez que
você me vê, é como se você preferisse que eu não existisse. E,
no entanto, aqui estamos nós, assim, e você não está
exatamente fugindo. Então me diga o que devo pensar.
Ele se afasta e meu peito dói quando ele não está mais contra
mim. Mas no momento em que há distância entre nós, é como
se a névoa se afastasse da minha mente, abrindo caminho para
meus pensamentos.
— Diga-me o que você quer que eu faça — ele insiste. — Eu
moveria montanhas para você. Eu perseguiria as estrelas
apenas para que você pudesse segurar uma. Mas se você não
quer isso, diga-me agora, porque não vou sofrer. Estou fazendo
tudo que posso, Amora, mas você tem que me dizer o que você
precisa.
São palavras que nunca ouvi antes. Palavras que agitam meu
peito. Uma pressão crescente no meu sangue. Uma sensação
avassaladora de que este momento é frágil e de que, com um
movimento errado, quebrarei tudo.
— Eu gostaria que fosse assim tão fácil. — Não é o que eu
quero dizer; é o que eu tenho que fazer. — Sinto coisas por você
que nunca senti por ninguém, mas parte da minha alma está
dentro do seu corpo, Bastian. Como posso confiar que tudo isso
é real?
— Porque era real desde o momento em que nos
conhecemos. — Sua voz é firme, com determinação. — Eu sei
que você sentiu a mesma faísca que eu. Não foi um problema
na primeira vez que nos beijamos, ou na segunda, ou quando
estávamos em Zudoh e quase dormimos juntos. Você e eu
tínhamos sentimentos um pelo outro muito antes dessa
maldição.
Ele está certo e, embora eu queira concordar, sei no meu
íntimo que não é a mesma coisa. Eu não estarei com alguém que
irá perseguir as estrelas por mim se eu não puder dar a lua em
troca. Se não posso estar completa, não posso estar com
ninguém.
Esta é minha última chance de dizer a verdade a ele. Mas
Bastian é uma maré que não para de me puxar, e preciso ser tão
inflexível quanto uma âncora. Eu preciso que ele sinta uma
distância crescente entre nós. Porque não vou deixar esse
menino me reivindicar, e se isso é o que ele precisa para
perceber, que assim seja.
— Eu gostaria de poder confiar nisso. — Eu tenho que
arrancar as palavras de mim. Cada uma é serrilhada, me
dilacerando. — Mas sempre que estou perto de você, parece
que você é meu dono. Eu não estou bem vivendo assim.
Ele recua e, enquanto esfrega a mão na boca e na barba
escura que a salpica, fico impressionada com o quão mais velho
ele parece. As sombras em seus olhos endureceram desde a
perda de seu irmão, e sua mandíbula quadrada se transformou
em aço. Sempre considerei Bastian forte, mas ele está mais
cheio agora, com músculos adicionais em seus ossos e força em
seus ombros.
Ninguém que conhece Bastian agora poderia chamá-lo de
menino. Enquanto eu não estava olhando, ele se transformou
em um homem. E agora, há uma faísca nos olhos daquele
homem.
— Não sou idiota, Amora. — Sua voz fica fria como o gelo e
seu nariz se enruga como se ele tivesse provado um novo vinho,
apenas para descobrir que não tem gosto para isso. — Se você
pensasse que se estabelecer era o melhor para Visidia, não teria
rompido seu noivado com Ferrick. Ele é tudo o que seu reino
poderia desejar em um rei.
Meu peito aperta. Eu sei que essa é minha chance de dizer a
verdade a Bastian, e ainda… eu não consigo pronunciar as
palavras. Não quero que ele saiba que há uma chance de
quebrar nossa maldição. Não quero que ele saiba o que
procuro, porque não preciso de suas opiniões. Bastian tem
muito controle sobre mim do jeito que está. Se eu contasse tudo
a ele, significaria deixá-lo entrar. Significaria compartilhar essa
jornada juntos.
E não tenho certeza se estou pronta para isso.
— Eu a conheço bem o suficiente para saber que você está
escondendo algo — diz ele. — Há mais nisso do que você está
me dizendo. Mas vou jogar o seu jogo, e espero que você dê o
seu melhor com aqueles garotos. Porque você vai ficar muito
desapontada quando descobrir que nenhum deles sou eu. — A
cada palavra, sua confiança floresce. — Eles nunca serão
capazes de fazer você sentir nem metade das coisas que eu faço
você sentir.
Sua arrogância de pirata estala para trás quando ele dá um
passo à frente novamente. Um pé. Outro. E então sua mão está
na minha cintura. No início, é hesitante, me dando a chance de
recuar. Mas meus joelhos tremem e mal consigo ficar de pé. A
última coisa que quero é que ele me solte.
— E se você encontrar alguém que o faça — ele continua,
com a voz um rosnado baixo — então eu vou parar de tentar.
Vamos atribuir metade do que você sente por mim à maldição.
Mas a outra metade? Vou chamar isso de real. E se houver
alguém lá fora que te faça sentir mais do que isso, não vou
tentar impedi-la de estar com ele. Eu quero que você seja feliz.
Mas... — Ele se inclina para baixo para que sua testa seja
pressionada contra a minha, suas palavras roçando a
respiração quente em meus lábios. — Já que estamos jogando,
estou criando uma nova regra. Vou provar a você que o que
você sente por mim é real. O que quer que aqueles outros caras
façam para tentar cortejá-la, estarei jogando também. Eu posso
fazer tudo o que eles fazem.
Não sou mais capaz de dizer se estou respirando; fecho
minhas mãos em punhos e as pressiono contra a parede para
que não o toquem e me traiam.
— Me cortejar — eu zombo, fazendo tudo ao meu alcance
para não deixá-lo ver a influência que tem sobre mim. — Como
se eu fosse tão facilmente…
— Amora. — O som do meu nome me interrompe. — Não
tenho mais família. Meu irmão destruiu minha casa e não posso
voltar a Zudoh para ajudar meu povo porque estou
amaldiçoado com você. Sua magia está correndo em minhas
veias e, como não sou um Montara, não temos ideia de quanto
tempo serei capaz de mantê-la, ou o que ela pode fazer comigo.
Você não é a única afetada por isso.
— Como espero que você entenda — ele continua. — Minha
vida certamente já foi melhor. E, no entanto, não te pedi nada,
porque sei o quanto você está estressada. Estrelas, eu sinto o
quanto de estresse tinha sobre você. Tenho guardado o meu
único pedido e é isso. Não preciso de favores especiais. Guarde
seus segredos, eu não me importo. Mas se eu tiver que
concordar com essa farsa, então quero uma chance justa. Por
favor. Dê-me uma chance justa.
Não há argumento para isso, não importa o quanto eu tente
encontrar um. Por mais que eu queira meu espaço de Bastian,
ele está certo ao dizer que não merece a maneira como o trato.
Não é culpa dele estarmos amaldiçoados. Nada disso é culpa
dele.
É minha.
Agora, porém, tenho a chance de consertar meus erros. Eu
tenho uma chance de consertar tudo. Mas se isso vai acontecer,
então essa briga constante com Bastian precisa parar.
— Tudo bem — eu cedi, tendo que empurrar as palavras
para fora de mim. — Quaisquer que sejam as festividades
planejadas para os pretendentes, você pode participar.
— Maravilhoso. — Bastian mascara o alívio em sua voz com
um sorriso enquanto se afasta de mim para pegar seu martelo
descartado. Meus lábios ficam frios e entorpecidos com sua
ausência enquanto ele se dirige para a porta.
Por cima do ombro, Bastian me lança uma piscadela pela
qual tenho quase vontade de queimar pensando nele.
— Estou feliz por finalmente podermos concordar em algo.
Durma bem, princesa.
CAPÍTULO DOZE

Com a velocidade de Keel Haul, a força do vento de Casem


inflando as velas e a magia de Vataea fazendo o mar nos
empurrar para a frente, chegamos a Kerost em pouco mais de
dois dias.
O ar está cortante e fresco quando chegamos, e quando ele
roça minha bochecha, lembro-me da última vez que estive aqui.
No verão passado, havia sinais de que algo estava errado no
reino, mas não foi até quando eu pisei na praia de seixos de
Kerost e ouvi um coro de marteladas que eu entendi o quão
ruim o estado do meu reino tinha ficado.
Felizmente, as coisas estão melhores agora. Os golpes de
martelos não mais permeiam o ar, em vez disso, ouço vozes e
risos.
Não mais murchas e esquecidas, as docas estão repletas de
navios com bandeiras de esmeraldas e rubis penduradas neles.
Curmanans com a habilidade de levitar objetos e os elementais
Valukans talentosos estão em terra firme, usando sua magia
para reconstruir a ilha, como ordenei quando assumi o trono.
O orgulho aquece meu peito enquanto abaixamos a rampa de
Keel Haul, uma sensação estranha considerando que, devido à
nossa necessidade de estarmos prontos para fugir a qualquer
momento, só usamos a escada em nossa última aventura.
— Vejam o quanto mudou. — O alívio toma conta de mim
enquanto descemos a costa. O pavimento é sólido e fresco sob
nossos pés, não é mais a pedra rachada e lascada de que me
lembro.
Quando vi Kerost pela última vez, era devastadoramente
pobre e Blarthe havia se prontificado para atacar seus
cidadãos. Enquanto ele dava aos Kers os suprimentos de que
precisavam para reconstruir sua ilha, ele pegou o tempo de
suas vidas em troca. Mas os suprimentos que ele lhes deu
nunca seriam fortes o suficiente para resistir às tempestades
extremas que assolam sua ilha a cada poucos anos.
Agora, porém, eles estão aprendendo as habilidades que
precisam para sobreviver.
Há um pequeno grupo de metalúrgicos Valukans talentosos
que fizeram a jornada para Kerost também, usando sua
afinidade com a terra para reforçar as estruturas para que
sejam resistentes o suficiente contra as tempestades.
Perto da água, em frente às docas, estão vários outros
Valukans que instruem uma classe de Kers sobre como
manipular a água. Seus movimentos são como a dança mais
elegante, e me vejo afastando-me da tripulação para poder
chegar perto o suficiente para ouvi-los.
— As pessoas costumam confundir a água como o mais
gentil dos elementos — diz uma pequena garota Valukan.
Embora ela seja mais jovem do que o resto, seus movimentos
são de longe os mais elegantes e precisos. — Mas isso não é
verdade. A água pode ser feroz. Pode ser indisciplinada. Se você
pensar que vai dominá-la, nunca aprenderá. Em vez disso, você
deve pensar nisso como uma extensão do seu corpo.
Quando ela coloca as mãos acima da cabeça, a água do mar
espirala acima dela em um arco nítido. Quando ela balança as
mãos para baixo, a água segue. Ela coloca um pé na areia e vira
círculos lentos, deixando a água seguir sua dança graciosa. Ela
aumenta até parecer que ela está parada no meio de um furioso
redemoinho. Eu mal posso vê-la levantando a mão entre as
aberturas da água, mas quando ela a deixa cair, o redemoinho
voa de volta para o mar com um estalo agudo.
Os Kers assistindo estão entusiasmados com seus aplausos,
os olhos brilhando de êxtase por essa nova magia que estão
ansiosos para finalmente aprender.
— Agora, todos, venham ficar na praia — diz a jovem. —
Vamos começar com o básico...
Observá-los se aproximando me enche de um prazer
profundo. Isso é o que Kerost sempre precisou. Se ao menos
eles tivessem recebido a habilidade de aprender várias magias
anos atrás, muito da sua dor e sofrimento poderiam ter sido
evitados.
Pelo menos eles estão finalmente aprendendo agora.
No entanto, por mais que exista isso em Kerost, é impossível
não reconhecer o que não existe.
Não houve cerimônia após a chegada de Keel Haul. Não há
banners. Nenhum conselheiro real ou Kers esperando para me
cumprimentar e me levar embora para encontrar seus
solteiros.
Se eu não soubesse melhor, pensaria que a ilha não fazia
ideia de que eu chegaria hoje. Mas eu estava lá quando mamãe
fez os preparativos, isso não é algo que ela esqueceria.
Reconheço um dos Kers em treinamento como o menino que
conhecemos ao chegar em Kerost, Armin. Havíamos passado
horas martelando ao lado dele após o que Ferrick curou nas
mãos doloridas do menino. Armin não nos vê, mas a mulher
mais velha que o observa de uma rocha escorregadia do mar
acima da costa sim. Meu coração salta uma batida quando seus
olhos verdes amargos perfuram meu corpo. Por um momento,
fico parada, os punhos cerrados, porque me lembro das últimas
palavras dela para mim.
Da próxima vez que vier aqui, é melhor que seja com uma
frota inteira.
No momento em que assumi o trono, enviei exatamente isso
a ela.
A mulher tem o queixo orgulhoso, e é com um sobressalto
que vejo o emblema dourado cintilante no ombro de sua capa
de ametista. Ela é a conselheira de Kerost, aquela que não
apareceu para a reunião em Arida. E ela está esperando por
mim.
— Esperem aqui — digo aos outros, embora Casem seja
rápido em responder.
— Você não deve ser deixada sozinha, Amora. Não é seguro.
Eu lanço para ele minha carranca mais profunda, mas Casem
não se incomoda.
— Ela é sua conselheira — eu argumento.
— E eu sou seu guarda. — Seus braços se cruzam enquanto
seus olhos se desviam. — Algo aqui não está certo e é meu
dever protegê-la.
O calor em sua voz é o suficiente para eu ler nas entrelinhas,
e com a compreensão do amanhecer vem um buraco no meu
estômago.
O pai de Casem, Olin, era o amigo e protetor de maior
confiança de meu pai, até que Olin o traiu. Não tenho nenhum
ressentimento por Casem, que não tinha ideia de que seu pai
tinha se juntado a Kaven até que fosse tarde demais. Como
alguém que também é indiretamente responsável pela morte
de muitas pessoas, só posso me solidarizar.
— Você não é seu pai. — Minha voz é suave enquanto seus
ombros murcham. — E eu não sou o meu. Estou aqui para que
meu povo me conheça. Eles precisam sentir como se eu tivesse
abaixado a guarda ao redor deles, e isso não vai acontecer com
você como minha sombra. Venho treinando com você há anos,
Casem. Você acha que me ensinou bem?
Seu rosto se retrai em confusão.
— Claro que tenho…
— Então pare de se preocupar comigo. Magia ou não, posso
cuidar de mim mesma.
Casem cerra o queixo, mas eventualmente inclina a cabeça
em derrota e dá um passo para trás com os outros. Com sua
bênção, eu caminho pela costa e subo um penhasco arenoso até
chegar à conselheira de Kerost. No tempo que levei para
escalar, ela se afastou para que eu pudesse ter um lugar ao lado
dela na grande rocha. Silenciosamente, eu me sento.
— Então você é nossa rainha, agora — ela diz depois de um
momento, ainda observando o menino que eu só posso
presumir que seja seu neto.
— Eu sou. — Não tenho ideia do porquê minhas palavras
parecem tão ásperas, ou por que os nervos comem o
revestimento do meu estômago em carne viva. — E parece que
você é a nova conselheira.
O título faz com que seus lábios se torçam com tanta força
que quase estremeço.
— Não foi minha escolha, mas uma decisão feita por aqueles
que permanecem aqui em Kerost.
Meus próprios lábios azedam agora. Como a família
Montara, os conselheiros geralmente vêm da mesma linhagem.
Mas eu não preciso pedir para que seja clara sobre quem foi o
conselheiro; deve ter morrido na tempestade mais recente.
Kerost deve ter improvisado escolhendo seu próprio
governante.
Essa mulher, pelo menos, se encaixa bem.
— Teria sido bom ver você na reunião do conselho. — Sou
cuidadosa com minhas palavras, compreensíveis no gelo fino.
— Eu nem mesmo sabia seu nome.
— Ephra Tost — ela diz friamente, ainda olhando para
frente.
Estou dolorosamente ciente de como os movimentos de
Ephra são lentos. A última vez que a vi, ela estava usando a
magia do tempo para acelerar seu corpo. Agora, cada um de
seus movimentos parece deliberado, lento e dolorido. Embora
ela seja uma anciã, seu cabelo ficou grisalho e sua pele enrugou
muito além da idade. Olhando para ela, não posso deixar de
reconhecer que, embora Kerost finalmente tenha uma chance
de estabilidade, ainda era tarde demais. Muito tempo foi tirado
de muitas pessoas, e elas nunca o receberão de volta. Não
importa o quanto eu tentei, ainda assim falhei com eles. Mas,
quando estou prestes a me desculpar, Lady Tost estende a mão
trêmula e a coloca no meu colo, segurando minha mão.
— Você fez bem. — Ela mantém os olhos no neto, nunca
olhando diretamente para mim. — Você fez mais pelo meu
povo em duas temporadas do que qualquer Alto Animancer fez
por nós em sua vida. — Tento puxar minha mão de volta, um
argumento queimando minha língua, mas ela segura com força.
— Meu filho e sua esposa morreram em uma tempestade. A
casa deles e tudo o que havia nela foram destruídos; apenas
Armin sobreviveu. Ele estava enterrado sob seus corpos
chorando quando eu o encontrei.
Ela acena com a cabeça para o menino na costa, que cai de
volta na areia quando a água que ele estava tentando controlar
o atinge com força no rosto.
— Mas, assim como você está fazendo, temo que Kerost não
possa te perdoar tão facilmente — Lady Tost continua. —
Bastaria alguém que estivesse disposto a nos dar as
ferramentas necessárias para cuidar de nós mesmos. É por isso
que não pude ir para Arida. Embora eu aprecie que você
finalmente tenha nos dado essas ferramentas, não queremos
instruções sobre como devemos usá-las. Sei tudo sobre a sua
razão de estar aqui e sobre o marido que você deve encontrar.
Mas eu convidei você aqui para esta ilha para que você pudesse
ver nosso progresso, não para celebrar você depois do que
sofremos. Enquanto você desfila com os solteiros, nossos
esforços se concentram na restauração de nossa ilha. Kerost
não quer participar dessa farsa.
Cada palavra dói como veneno se infiltrando em minha pele.
Eu finalmente consigo deslizar minha mão para longe da dela,
nós de nervos enrolados como cobras na minha garganta.
Eu entendo de onde isso está vindo; demoramos muito e
deixamos Kerost com muita dor por causa disso. Se eu
estivesse no lugar dela, faria o mesmo pela minha ilha. Eu
exigiria o melhor, assim como ela.
Mas eu não sou Ephra. Eu sou a rainha de Visidia e meus
planos de viajar pelas ilhas e encontrar este lendário artefato
estão sendo interrompidos. E não faz nem uma hora que
estamos em terra firme.
Se eu quiser continuar esta jornada, não posso deixar o resto
de Visidia ver que fui rejeitada por Kerost, ou deixá-los
acreditar que eles podem se safar com o mesmo tratamento. E
certamente não posso me deixar ser expulsa da ilha até
descobrir mais sobre Ornell, a única pessoa com as
informações sobre o artefato que devo encontrar.
— Não espero seu perdão tão facilmente. — A tensão
apertando meus músculos me fez tropeçar nas minhas
palavras. — E eu entendo que você não queira participar,
embora eu garanta que não tenho intenção de desfilar. Mas se
você me convidou aqui para ver o progresso desta ilha,
certamente pode permitir que minha tripulação e eu fiquemos,
pelo menos, esta noite aqui? Eu gostaria de ver como Kerost
está se saindo.
O bufo de Ephra é um som triste.
— Não posso impedir a rainha de ficar o tempo que desejar.
Ainda não nos separamos de Visidia. Faça o que quiser. Mas
saiba que Kerost não é a casa que eu conheci e espero que você
descubra que é uma ilha completamente diferente. Ouso dizer
que a influência de Blarthe em nossa ilha realmente nos deixou
algo bom.
Minhas sobrancelhas se enrugam.
— O que você quer dizer?
Ela dá um tapinha na minha coxa antes de colocar a mão de
volta no colo.
— Vá e faça uma visita ao Vice. — Ela diz isso com tal
finalidade que alguém poderia pensar que ela mesma era uma
rainha.
Eu saio apenas depois de agradecê-la e desço os penhascos
para me juntar aos outros.
Vataea é a primeira que vejo esperando por mim. Seus olhos
voam de um lado para o outro na praia, o corpo enrolado e
pronto para saltar. Embora ela não tenha dito nada, imagino
que estar de volta à ilha que foi forçada a viver por tanto tempo
contra sua vontade seja um tormento.
— Você está bem? — Eu pergunto a ela baixinho. —
Ninguém vai pensar em nada se você precisar esperar na Keel
Haul.
Ela apenas balança a cabeça e diz:
— Se aquele bastardo ainda está escondido aqui, quero ser
a primeira a encontrá-lo.
A garganta de Ferrick balança enquanto ele engole, e eu olho
para ele rapidamente para lembrá-lo de não dizer nada. Vou
contar à Vataea a verdade sobre Blarthe em breve. Só... não
antes de encontrar o artefato.
— Se mudar de ideia, você pode sair a qualquer momento.
Mas, por enquanto, parece que estamos indo para Vice.
***
Kerost está longe de ser a ilha mais fácil de navegar.
Aninhada na extremidade sudoeste do reino, carece de pontos
turísticos como os belos jardins de Arida, os vulcões e fontes
termais em Valuka ou a magnífica beleza de Mornute. É a
menor ilha de Visidia e, sem nenhum atrativo natural, nunca foi
um lugar de parada para os viajantes. Mas, à medida que
contornamos a colina em direção a Vice, fica cada vez mais
claro que Kerost está longe da ilha que era antes.
— O que em nome dos deuses… — A surpresa de Ferrick
espelha a minha enquanto somos forçados a nos agrupar
fortemente, não querendo nos perder na multidão que enche
as ruas.
Para me manter discreta e experimentar Kerost sem chamar
atenção para mim, eu puxo minha capa bem apertada,
encantada por ser Ker ametista em vez de safira, graças a
Shanty, e levanto meu capuz.
— BILHARES E BLACKJACK! — Grita uma mulher vestida
com um vestido colante de ametista. É cortado tão baixo na
frente que minha pele esquenta, nunca tendo visto ninguém
ousado o suficiente para usar algo assim. O resto da tripulação
também encara, sem vergonha alguma, e eu limpo minha
garganta enquanto a mulher grita novamente: — Venha testar
sua sorte no bilhar e no blackjack!
Outra mulher está em uma estrutura recém-erguida em
frente a ela, chamando a multidão com entusiasmo
correspondente:
— Senhoras, temos os cavalheiros mais bonitos de todo o
reino esperando para atendê-las. — Ela passa o braço em volta
de uma das duas jovens que fazem uma pausa e a atrai para a
entrada com um encanto bem praticado. — Isso mesmo, entre.
Por aqui.
Mais abaixo na rua, os clientes levantam sua cerveja para os
céus antes de espirrar canecas com risadas barulhentas. Suas
peles estão coradas e seus olhos injetados enquanto eles gritam
apostas no que parece ser algum tipo de corrida.
Enquanto muitos dos clientes que vagam pelas ruas de
Kerost usam o tom ametista impressionante que os marca
como Ker, alguém que antes só se especializou em magia do
tempo, dezenas de outros clientes também preenchem as ruas.
Pelos estilos luxuosos que usam, é fácil perceber que a maioria
é de Ikae. Parece que a tendência da moda Ikaean atual são as
nuvens, que tentam dar o melhor de si usando tons de rosa,
lavanda, azul suave e creme. A maioria parece folhada, mas um
cliente com um estilo inteligente se vestiu como uma
tempestade violenta. Um raio ocasional atinge seu terno
marinho a cada poucos minutos, transformando-o em um tom
surpreendente de amarelo. Outra mulher Ikaean se vestiu com
tule cinza; ela deve praticar magia Valukan agora também, pois
ela criou sua própria nuvem de chuva pessoal acima de sua
cabeça. Embora a chuva goteje continuamente sobre ela, ela
nunca se molha.
Existem muitos Valukans também, e até mesmo alguns
Aridianos entrando e saindo dos prédios de pedra cinza. Alguns
tropeçam, embriagados, enquanto outros gritam sobre como
seu dinheiro foi roubado e como todos os jogos são fraudados.
Em uma esquina, um jovem está se arriscando a conversar
com um pequeno grupo de mulheres. No canto oposto, uma
criança vende pilhas de pergaminhos em movimento.
— A Rainha Amora está procurando um marido! Apenas um
pedaço de vidro do mar para ler! É isso mesmo, pessoal,
adquiram sua cópia...
Toda a atividade que acontece nessas ruas é tão
desorientadora que Casem traça um passo protetor para perto
de mim.
— Parece que eles se transformaram em uma cova gigante
de jogos de azar. — Não há malícia ou julgamento nas palavras
de Bastian. Caso existam, ele parece impressionado.
Eu sigo seu foco quando ele aponta para a frente, para a
placa que diz VICE. Foi pintado desde a última vez em que
estivemos aqui na antiga casa de Blarthe, agora ostentando um
fundo prateado chamativo com letras de ametista em negrito.
As mulheres que se aventuram no estabelecimento usam
vestidos curtos ou ternos cintilantes por baixo dos casacos que
deixam na porta, enquanto os homens vestem suas melhores
vestimentas. Tudo é chamativo de uma maneira que eu nunca
vi antes. É opressor, barulhento e com tanto álcool e dinheiro
circulando por aí, certamente não é seguro.
— Todos fiquem perto — Casem exige, flexionando as mãos
no punho da sua espada. — Este lugar é perigoso.
— Este lugar é incrível — eu argumento.
— É notável — Shanty ecoa, levantando o capuz e
mergulhando o rosto para que os outros na multidão não
percebam o encantamento escorrendo sobre sua pele
enquanto ela pressiona dois dedos contra suas bochechas. Ela
suaviza os olhos e deixa o cabelo mais comprido e os lábios
cheios e carnudos, transformando-se em alguém com o tipo de
doce inocência da qual muitos homens gostam de tirar
vantagem. O vestido que está tomando forma sob seu casaco,
no entanto, é tudo menos inocente.
— Se você precisar de mim — diz ela com um sorriso tão
malicioso que duvido do perdão que dei a ela — estarei nas
mesas fazendo todo mundo sangrar.
— Você quer dizer seus bolsos — Ferrick diz, uma ruga
profunda se formando entre suas sobrancelhas. — Certo? Você
vai sangrar os bolsos deles?
Shanty apenas sorri.
— Suponho que isso vai depender de como a noite for.
Com o menor aceno, ela desaparece na multidão,
lembrando-me mais uma vez o quão perigosa é a tripulação
que eu montei. Shanty poderia ter uma faca na minha garganta
em um único segundo e eu nunca a veria chegando.
Embora soubesse que Visidia mudaria após a morte do meu
pai, esperava que ocorresse lentamente, que as ilhas
precisassem de mais suporte. Shanty está certa, porém. O que
os Kers fizeram por sua casa é necessário e engenhoso. Mas
também é um lembrete de como Visidia está mudando
rapidamente e de como tenho pouco controle sobre como
dirigi-la.
Agora que eles estão recebendo treinamento para se
proteger das piores tempestades, agora que estão seguros, tudo
o que eles tinham de enfrentar era descobrir uma maneira de
gerar mais renda.
E eles têm.
O sol se põe atrás dos edifícios de pedra, começando uma
rápida descida no crepúsculo. Luzes ofuscantes ganham vida,
banhando a noite em néons brilhantes dos quais é impossível
se desviar. Eles não foram feitos para ser um belo arranjo de
cores como os de Ikae, mas tão chamativos e exagerados que
são quase espalhafatosos. E ainda há algo magnético sobre eles.
Algo emocionante.
Isso é exatamente o que o Kerost precisa. Esta é a sua
atração, a sua atração para os turistas visitarem e gastarem o
seu dinheiro. Eles pegaram o que Blarthe deu a eles e o
tornaram seu, e acho que nunca me senti mais orgulhosa do
meu povo.
Como Shanty, quero sair pelas ruas bem iluminadas e
explorar tudo que esta cidade tem a oferecer. Eu quero
encontrar Ornell. Mas com a tripulação me seguindo, fazer isso
livremente é impossível.
Eu preciso procurar sem que os outros suspeitem muito. No
momento, Ferrick é o único que pode saber qual é meu
verdadeiro objetivo.
— Você ama isso. — A voz de Bastian chama minha atenção,
baixa e melancólica.
— É incrível. — Eu não nego, a evidência está escrita em meu
rosto. Essa é a parte de viajar que adoro mais do que qualquer
coisa, não apenas ver meu reino e seu povo, mas aprender
como cada ilha funciona. Conhecendo seus costumes e
conhecendo-os em primeira mão. Eu poderia ler sobre a moda
de Ikae ou das montanhas monstruosas de Valuka mil vezes,
mas nada supera a experiência. — Veja o quão longe eles
chegaram em apenas duas temporadas.
Um sorriso se forma nos lábios de Bastian, embora vacile
quando ele avista algo na esquina. Ele inclina o queixo para a
esquerda e eu discretamente me viro para olhar um
comerciante que está instalado na beira de um estreito beco.
Três canecas de metal estão diante dele, e ele as muda na mesa
onde está sentado de pernas cruzadas. Uma multidão se forma
ao redor dele enquanto ele levanta uma das canecas para
revelar uma concha em miniatura.
— Fique de olho no prêmio — diz o comerciante a uma
garota que está sentada à sua frente. Ela estreita os olhos com
atenção enquanto ele cobre a concha com a caneca e começa a
movê-la. Seus movimentos são lentos no início, fáceis de seguir.
Mas, eventualmente, sua mágica do tempo se instala, e as
canecas giram tão rápido que ficam borradas.
Mesmo quando o comerciante se acomoda e as canecas
ainda se mexem, a garota não parece desanimada. Ela aponta
para a xícara do meio, ostentando confiança. Mas uma carranca
encontra o rosto do comerciante e, quando ele levanta a caneca,
não há nada sob ela.
— Você estava tão perto — diz o comerciante, fingindo
simpatia. — Quer tentar de novo?
Ela concorda.
— Não há como alguém ganhar isso — Ferrick bufa baixinho
enquanto avançamos para ter uma visão melhor. — Você não
pode ver nada!
— Mesmo se você pudesse, você nunca ganharia. — Bastian
está com os braços cruzados sobre o peito, olhando para o
comerciante como se ele fosse um quebra-cabeça que acabou
de ser resolvido. — Assim que as canecas pararem e ela estiver
prestes a adivinhar, observe as mãos dele.
A garota aponta para a caneca na extrema direita e, com
certeza, em um movimento tão rápido que quase não percebo,
o comerciante usa a magia Valukan para alterar o ar de modo
que a concha escorregue de baixo da caneca do meio para a
manga do seu casaco. Quando ele revela a caneca vazia, ele dá
de ombros.
— Acho que não é o seu dia.
A garota cai para trás, perplexa.
— Mas eu poderia ter jurado... Em qual delas está, então?
Eu observo as mãos do comerciante, que usam uma mistura
de tempo Ker e magia de ar Valukan para deslizar a concha da
sua manga e de volta para a caneca do meio com a velocidade
da luz antes de revelá-la totalmente.
Ainda não estou acostumada a ver múltiplas magias usadas
com tanta fluidez, e meu coração salta com a visão. Pode não
ser nada mais do que um truque de salão, mas é um no qual
esse garoto é hábil.
Derrotada, a garota geme e passa os dedos pelos cabelos
dramaticamente.
— Esse seria meu próximo palpite. Achei que tivesse
conseguido dessa vez!
E nas duas vezes, ela tinha.
— Precisa treinar seus olhos para serem bons e afiados
como os meus — diz o comerciante. — Você sempre pode
tentar de novo se quiser.
Embora a garota pareça pronta para sacrificar todo o
dinheiro que ainda resta nos bolsos para provar que pode fazer
isso, não tenho intenção de deixá-la ir à falência por um jogo
fraudulento. Sem mencionar que preciso encontrar uma
maneira de explorar esta cidade sem Bastian e Casem
respirando no meu pescoço, e esse garoto me deu uma ideia.
— Você gosta de um jogo, Vataea? — Eu pergunto,
ignorando o gemido cansado de Casem.
Um sorriso se forma perversamente em seus lábios e ela
enlaça seu braço no meu.
— Eu pensei que você nunca iria perguntar.
— Espere um segundo — Ferrick chama enquanto
começamos a avançar. — Perdi alguma coisa? O que estamos
fazendo?
Bastian encolhe os ombros.
— Eu acho melhor apenas seguir com isso, cara.
As fivelas das suas botas tilintam silenciosamente quando
ele nos segue, e Casem e Ferrick o seguem um segundo depois.
Ignorando os protestos e comentários irritados, Vataea e eu
abrimos caminho através da multidão, não parando até
estarmos diretamente diante da mesa do comerciante. Seus
olhos se voltam para mim, céticos.
— Você se importaria se eu tentar? — Eu pergunto com a
voz mais doce que posso reunir, embora eu não espere para
sentar.
A garota que estava jogando anteriormente se vira para mim
como se estivesse pronta para protestar, mas eu tiro o capuz da
minha capa e deixo o choque registrar. Não demora muito para
que os sussurros e suspiros silenciosos se espalhem como um
incêndio pelas ruas. Graças a esses pergaminhos, agora toda
Visidia conhece meu rosto.
— Sua Majestade! — A garota se levanta, resmungando uma
torrente de desculpas enquanto faz uma meia reverência antes
de se afastar tropeçando. — Claro!
Vataea se senta atrás de mim.
— A rainha quer jogar o meu jogo? — O comerciante tenta
ser charmoso ao falar, mas gotas de suor formam uma linha
acima de seu lábio superior. Tão perto, vejo que ele é mais
jovem do que eu pensava, talvez catorze ou mais, e está claro
que ele está processando se vale a pena me deixar vencer. Ele
seria tolo se não o fizesse. Afinal, sou a rainha de Visidia. E uma
rainha deve sempre ter a melhor aparência diante de seu povo.
Por quanto ele suou, ele deve saber disso. Mas quando
pressiono uma moeda de ouro maciço sobre a mesa, sombras
famintas escurecem seus olhos. Embora eu não tenha dúvidas
de que ele ganhe um bom dinheiro com seu esquema, uma
única moeda de ouro provavelmente vale uma semana de
trabalho para ele.
— Não pegue leve comigo — digo a ele com sinceridade.
Determinado agora, o comerciante acena com a cabeça e me
mostra que a concha ainda está sob a caneca da extrema direita,
e pretendo que ela permaneça lá. Porque as conchas vêm do
mar, afinal. E as sereias governam o mar.
As canecas começam a se mover. Lentamente no início,
depois incrivelmente rápido. No momento em que a magia do
tempo do comerciante entra em ação e ele está prestes a
colocar a concha de volta em sua manga, Vataea começa a
cantar baixinho atrás de mim para manter a concha no lugar
com a magia dela. Eu finjo que fico de olho nas canecas o tempo
todo, mas conforme sua velocidade aumenta, é impossível.
Meus olhos nunca foram treinados para seguir a magia do
tempo e, mesmo que minha vida estivesse em risco, eu
morreria antes de ser capaz de adivinhar com segurança qual
caneca contém a concha. Vataea, porém, está preparada.
No momento em que as canecas param de se mover, a ponta
de sua unha roça meu braço esquerdo, tão suavemente que
quase acho que é um truque do meu cérebro e tão casualmente
que ninguém mais perceberia.
Eu aponto para a caneca esquerda.
— Sinto muito, Vossa Majestade — o comerciante diz
enquanto o levanta. — Receio que você escolheu… — A
multidão ruge, e o rosto do comerciante empalidece quando ele
olha para baixo para descobrir a concha.
Vataea bate palmas, fingindo alegria. Eu mantenho meus
olhos no comerciante, que aperta os punhos com força na mesa.
Seus olhos encontraram os meus e deixo meu sorriso ficar
tímido para confirmar suas suspeitas.
Ele lambe os lábios rachados, a frustração evidente nos
movimentos bruscos que ele faz para alcançar embaixo da
mesa e pegar uma bolsa cheia de moedas.
— Seus ganhos. — Ele mal consegue conter o rancor em sua
voz. Eu chego para frente, puxando apenas minha moeda de
ouro.
— Eu não preciso do seu dinheiro. — Eu aponto para o beco
atrás de nós. Está escuro e quase vazio, bloqueado por sua
mesa e livre de quaisquer luzes piscando ou ouvidos curiosos.
— Mas eu gostaria de falar com você por um momento, se você
não se importar de se juntar a mim.
Levanto o capuz e me aventuro no beco, o comerciante logo
atrás de mim. Embora taciturno sobre isso, Casem obedece à
minha ordem de ficar de guarda na borda dela enquanto o resto
da tripulação espera perto da cabine, observando com olhos
afiados para garantir que ninguém tente nada engraçado.
Não que alguém fosse tolo o suficiente para tentar, pois eles
ainda acreditam que tenho minha magia. E mesmo sem ela, não
estou indefesa. Tenho uma adaga de aço amarrada a um
quadril, enquanto Rukan está descansando na bainha do outro
lado.
— Ouça, Vossa Majestade. — A voz do menino estremece de
nervosismo. — Eu tenho algumas moedas se você quiser, mas
eu tenho uma família para cuidar. Uma irmã doente e pais que
perderam muito tempo tentando reconstruir nossa casa depois
da tempestade. Se você pudesse me dispensar…
Estendendo a mão e pego a mão do menino. É ossuda e
calosa, uma mão ativa, e a seguro suavemente entre as minhas.
— Eu sou sua rainha — digo a ele. — Não sua comandante.
Como já disse, não quero seu dinheiro. Você, no entanto,
precisa ter cuidado com esse seu truque. Se eu percebi isso tão
rapidamente, haverá outros. E eles serão muito mais sóbrios e
muito mais inteligentes do que parecem.
Sob as fracas lâmpadas de óleo, suas bochechas ficam
vermelhas.
— É um truque inteligente — acrescento, esperando que ele
relaxe. — Mas e se você nunca mais tivesse que fazer isso?
Ele fica mortalmente imóvel, tanto que não consigo dizer se
ele está respirando.
— Não consigo parar, preciso do dinheiro...
— Mas e se você não precisasse do dinheiro? — Eu
pressiono uma moeda de ouro em sua palma, examinando sua
mudança de expressão o tempo todo. Embora haja alguma
confusão, nada pode superar a fome que surge em seus olhos,
ou a forma como seus dedos se contorcem desesperadamente
em torno da moeda. — Qual o seu nome?
— Ronan — ele responde enquanto eu puxo minha mão,
hesitando em embolsar a moeda, como se não tivesse certeza
se vou mudar de ideia.
— Bem, Ronan, e se eu disser que tenho muito mais moedas
de ouro como essa? Digamos trinta delas. Você nunca mais teria
que arriscar esse seu esquema. Você poderia cuidar da sua
família.
Ele usa uma manga para enxugar o suor da testa.
Finalmente, ele fecha o punho em torno da moeda de ouro e a
embolsa. Quando ele olha para mim novamente, sua voz fica
grossa de determinação.
— O que eu tenho que fazer?
Esse menino é inteligente. Pode ser um truque de salão que
o valeu minha atenção, mas por causa daquele truque de salão
notei várias coisas. Um, ele é um ótimo ator. Segundo, ele tem
o tipo de rosto que se mistura, fazendo com que pareça
qualquer outro comerciante por aqui. E três, ele está
desesperado por moedas.
— Eu preciso encontrar alguém. — Embora eu saiba que
estamos sozinhos, abaixo minha voz do mesmo jeito. — Mas eu
tenho muitas pessoas comigo para fazer isso sem levantar
suspeitas. Você reconhece o nome Ornell Rosenblathe?
Ele balança a cabeça.
— Não, mas se ele mora em Kerost, não deve ser difícil de
encontrar.
— Não tenho certeza se ele mora aqui — eu admito. — Mas
se não, então eu preciso que você descubra antes do amanhecer
para onde ele foi. Você pode fazer isso?
— Amanhecer? — Olhando para as estrelas em formação, ele
se encolhe. Mas mais uma olhada na moeda o fez endireitar os
ombros. — Eu posso fazer isso.
— Bom. — Eu aceno para a moeda em seu bolso, a única
motivação de que ele deveria precisar. — Descubra e você
nunca mais se preocupará com dinheiro.
Não lhe dou tempo para mudar de ideia ou pescar respostas
que não tenho. Não há nada que eu possa fazer para ajudar, só
posso esperar e lutar por uma razão para ficar aqui mais um
dia se Ronan aparecer de mãos vazias.
A fome nos olhos daquele menino, porém, me garante que
não será o caso.
CAPÍTULO TREZE

O tempo em Kerost é inexistente.


Horas se passaram desde o pôr do sol, e ainda assim as luzes
encantadas continuam a pintar as ruas enquanto a agitação e o
barulho os mantém totalmente acordados. As casas de jogo
continuam abertas, servindo bebidas e apostando sem sinal de
que vão parar. Casem puxa o capuz da minha capa sobre a
minha cabeça enquanto nos enfiamos em uma, escondendo
meu rosto. Eu reviro meus olhos. Essas pessoas se importam
pouco com política e estão ocupadas demais com seus jogos
para perceber minha entrada.
Moedas são jogadas livremente de uma mão gananciosa
para a outra, e os trabalhadores nos chamam de mesas ao lado
e tampos de bares, oferecendo cerveja e vinho enquanto
imploram para que participemos de seus jogos. Eu pego
Bastian olhando para uma mesa de blackjack com curiosidade,
examinando cada rosto individual na multidão.
Tento não prestar muita atenção, mas sua curiosidade
pinica dentro de mim, fazendo minha pele coçar. Quando não
aguento mais, pergunto:
— O que você está procurando?
Ele se endireita.
— Shanty. Ela será um problema se dermos rédea solta a ela
em um lugar como este.
A maneira como ele fala não é indelicada, mas preocupada.
Eu até ousaria dizer que foi um pouco afetuoso. O ciúme
desperta dentro de mim e me odeio por isso. Embora eu
soubesse que ela e Bastian estavam de alguma forma
conectados no passado, nunca pensei sobre a extensão disso.
Pelo menos não até agora.
— Você sabe que ela pode mudar de rosto, certo? O objetivo
de sua magia é torná-la impossível de ser reconhecida. — O
veludo molhado da voz de Vataea é suficiente para chamar a
atenção de vários fregueses sentados no bar.
Eles se viram, os olhos se arregalando com sua beleza
irresistível. Se ela percebe, ela não dá a mínima para eles.
Tendo estado em terra por tanto tempo, ela se tornou quase
insensível à cobiça de nós, humanos. Embora, às vezes, eu a
pegue olhando de volta para aqueles que a observam com
punhais em seus olhos dourados irritantes. Ela vai dar a eles
um sorriso cheio de dentes, mostrando seus incisivos
pontiagudos. Normalmente, isso é o suficiente para eles
deixarem ela em paz.
— Às vezes há indícios — Bastian argumenta. — Como uma
tatuagem ou cor de cabelo que ela prefere, ou joias que ela
escolhe não disfarçar. O suficiente para alguém que está
propositalmente procurando ser capaz de encontrá-la.
— O quão bem você conhecia Shanty? — O desconforto irrita
meu estômago. Não tenho motivos para me preocupar com
algo tão trivial, especialmente quando não quero um
relacionamento com Bastian agora. Ainda assim, não posso
evitar a curiosidade me consumindo.
O sorriso branco como os ossos de Bastian é desarmante. Ele
sabe muito bem por que estou perguntando, mas para minha
surpresa, ele não me provoca. Em vez disso, ele diz:
— Eu a conhecia antes de ela formar as barracudas. Depois
que fui expulso de Zudoh pela primeira vez, passei um período
morando em Ikae. Shanty era minha amiga mais próxima desde
então, embora não demorou muito até eu perceber que viver
na terra não seria possível para mim. Eu a conheci quando ela
ainda estava aprendendo sua magia, e sei que às vezes ela pode
ficar um pouco preguiçosa com as mudanças que faz quando
sabe que ninguém está suspeitando dela. Ela tem certas
características às quais sempre recorre. Pelo menos, ela fazia
naquela época.
É estranho pensar na vida que Bastian teve antes de nós dois
nos conhecermos. Se não fosse pelos problemas com o reino e
a destruição causada por seu irmão, é perfeitamente provável
que nós dois nunca teríamos nos cruzado. Afinal, Visidia é um
reino enorme. Mesmo se eu explorasse cada centímetro do
reino, duvido que algum dia pudesse conhecer todo mundo. E,
no entanto, não consigo imaginar uma vida em que nunca tenha
conhecido Bastian. Eu nem quero tentar.
— Vamos. — Ele acena com a cabeça em direção a uma mesa
diferente de qualquer outra que eu tenha visto antes. É uma
com números, onde aqueles que jogam fazem apostas e lançam
dados. Não tenho ideia de como funciona, mas considerando
que mais da metade das pessoas reunidas ao redor estão
bebendo, não pode ser difícil.
— Tem certeza de que deveríamos estar aqui? — Casem
exige, os olhos percorrendo a multidão. Todo o seu corpo está
surpreendentemente tenso.
Com simpatia, Ferrick coloca a mão no ombro do meu
guarda, balançando a cabeça.
— Não adianta, Casem. Bem-vindo a uma equipe que não
conhece nenhuma razão.
Há uma garota de pé à mesa com curvas que podem deixar
uma pessoa de joelhos, e ondas suaves lilases. Ela está nos
braços de um homem Ikaean com um forro de prata lindo alado
em pontas afiadas como adagas ao redor dos olhos. Seu cabelo
é prateado combinando com a pele clara, e ele está em um
elegante terno lilás, segurando seu corpo da mesma forma que
aqueles que têm orgulho de seu dinheiro costumam fazer.
Ele tem dados em sua mão e os aponta para os lábios
carnudos e rosados da mulher. Com uma risadinha, ela assopra
os dados e ele os joga na mesa. Quando a multidão aplaude, eu
me alongo na ponta dos pés para tentar ver melhor o que
aconteceu, embora nada disso faça sentido.
— Não tem como ser Shanty — eu sussurro para os outros.
Bastian apenas encolhe os ombros.
— Ela é uma excelente atriz.
— Uma ajudinha, aqui? — A voz de Ferrick é um sussurro
agudo quando alguém o pega pelo braço e coloca um par de
dados em suas mãos.
— Sua vez — eles dizem, e dão um tapa nas costas dele. Ele
tropeça na frente da mesa, e a mulher que pode ser Shanty
arqueia uma sobrancelha lilás curiosa que faz Ferrick ficar
vermelho do pescoço para cima. Hesitante, ele joga os dados e
rola um sete.
— Sete fora, sete fora, sete fora!
A multidão inteira ruge, e o rosto de Ferrick fica ainda mais
brilhante.
— De novo — ele diz, já procurando em seus bolsos a bolsa
de moedas. Estou prestes a agarrar seu colarinho e guiá-lo para
longe dessa armadilha em que ele caiu tão facilmente quando a
mulher de cabelo lilás se liberta do homem Ikaean, para sua
decepção, e, em vez disso, se enrola em Ferrick. Eu vejo o flash
de uma pulseira de ouro rosa em seu pulso, delicada e com a
forma de várias dúzias de ossos de peixe delgados.
— Por que não me deixa soprar para você? — Sua voz é um
ronronar baixo e sedutor. Imediatamente, o restante de nós
concordou com a cabeça.
— Sim, — diz Bastian — é ela.
Ferrick, entretanto, não parece perceber isso. Ele lança um
olhar para trás, para Vataea, como se tentasse transmitir seu
desinteresse por essa mulher com sua expressão de pânico.
Sem estourar os vasos sanguíneos, ele não poderia ficar mais
vermelho. Seu corpo fica rígido quando Shanty passa um braço
sobre o dele, rindo. Quando ela se inclina, ela bate nas mãos
dele com muita força e faz Ferrick largar os dados. Ela os pega
bem a tempo e os coloca de volta em suas mãos com as
bochechas rosadas e vermelhas.
— Desculpe! — Ela diz para a mesa. — Parece que o
espumante está fazendo efeito.
Ferrick, ainda rígido como uma tábua com o toque dela,
desajeitadamente joga os dados na mesa. Não vejo os números
que ele rola, mas seja o que for, faz o homem que dirige a mesa
arregalar os olhos, enquanto o resto da multidão grita e agarra
Ferrick pelos ombros. Eles torcem por ele como se fossem
melhores amigos há muito tempo.
— Eu não acho que bebi o suficiente para lidar com este
lugar — Vataea suspira, se esquivando quando avista o bar. —
Eu voltarei.
— Você precisa de dinheiro? — Bastian é rápido em
perguntar, prestes a enfiar a mão em sua própria bolsa de
moedas quando Vataea zomba.
— Tenha um pouco mais de fé em mim, pirata. — Ela
desaparece em uma multidão que se separa dela, e com Ferrick
felizmente distraído, estou perfeitamente ciente da presença
de Bastian ao meu lado. É uma sensação confortável, um
zumbido caloroso no qual não quero nada mais do que afundar
e nunca emergir. Preciso de tudo em mim para ignorá-lo,
mantendo minha atenção à frente enquanto Ferrick joga outro
par de dados, recebido imediatamente por mais vivas.
— Eu teria perdido os meus pés neste lugar quando era mais
jovem. — Bastian suspira, tentando puxar conversa. — Com
esse tipo de torcida, tenho que imaginar que nossas bebidas
estão todas na conta de Ferrick esta noite.
Não é uma má ideia. O que quer que Shanty esteja fazendo,
está funcionando. Mas também está chamando atenção.
Discretamente, eu cutuco o lado de Casem com o cotovelo,
acenando com o queixo uma fração de centímetro para dois
homens que estão observando Ferrick por trás da multidão na
extremidade oposta da mesa. Eles se parecem menos com
homens e mais como pedregulhos ambulantes, construídos
grossos e fortes, com enormes músculos acentuados. Com base
na cor ametista de suas roupas, eles são Kers.
Um dos homens me pega olhando, e o reconhecimento
acende um brilho em seus olhos. Ele dá uma cotovelada em seu
companheiro, que vira sua atenção para mim. Percebo que não
é com interesse, como eu poderia esperar de pessoas que
reconhecem sua rainha em público, mas com malícia.
Calmamente, eu digo:
— Algo me diz que não vamos tomar essas bebidas.
Bastian discretamente pega quem estou olhando e faz um
som baixo no fundo da garganta.
— Ninguém iria arranjar uma briga com você em público.
Atacar você seria motivo para uma execução. — Os homens se
levantam, deixando canecas cheias de cerveja para trás no bar
para que possam seguir seu caminho em minha direção. —
Então, novamente, eu estava errado antes.
— Jogando fora o dinheiro do seu povo? — A voz do homem
mais alto é áspera e rala. — Eu não deveria estar surpreso,
embora eu esperasse mais da nova rainha de Visidia.
A torcida da multidão morre rapidamente, e a sala de jogos
se acalma com um zumbido desconfortável. Diante de mim, o
homem é alto e presunçoso, praticamente sussurrando por
atenção.
— Acho que vamos sacar agora — diz Shanty, juntando as
fichas e enfiando algumas no bolso e outras no peito antes de
desaparecer na multidão.
Abro a boca para falar, apenas para descobrir que estou
muito seca para formar as palavras que quero. No passado, eu
não teria nenhum problema em colocar esses homens em seus
lugares. Agora, porém, a voz de mamãe ressoa em meus
ouvidos: Faça com que eles amem você.
Este homem quer uma luta. Ele quer me fazer de boba e
perder a paciência. Ele quer que eu seja o monstro que muitos
do meu povo já acreditam que eu seja. Casem e Bastian já estão
com as mãos nos punhos de suas espadas, prontos para sacá-
las a qualquer momento. A tensão do corpo de Bastian parece
pulsações afiadas de eletricidade em minhas veias, me
sacudindo.
— Ela não estava desperdiçando o dinheiro de ninguém —
ele começa a argumentar, mas pressiono minha mão contra seu
peito, parando-o.
Há muitas pessoas assistindo. Muitas pessoas ficam tensas
em seus assentos, esperando para ver como sua rainha
responderá.
— Eu estou em uma tour pelo reino — eu digo enquanto
abaixo meu capuz, deixando as palavras fluírem pelos meus
lábios sem nenhuma mordida. É uma luta não pegar minha
adaga quando ameaçada. Ao invés disso, eu instintivamente
busco minha magia, apenas para minha pele se inundar de
frieza quando ela não responde.
— Sabemos tudo sobre sua turnê — diz o segundo homem,
com voz firme. Ele é mais baixo, mas cheio de músculos. —
Kerost não quer ter nada a ver com isso.
Novamente Bastian começa a falar, mas Casem o acotovela
nas costelas antes que ele possa dizer qualquer coisa.
— A única razão pela qual estou aqui — continuo — é para
ver como posso continuar a apoiar Kerost. Para fazer isso,
preciso ver o que está acontecendo na ilha.
Não me defender ou me preparar para cortar suas línguas
por sua calúnia parece... estranho. Não estou acostumada a isso,
e claramente esses homens também não. Eles parecem
incomodados com a maneira como eu manobro em torno da
sua discussão, não me esquivando totalmente da culpa, mas
também não aceitando tudo o que eles dizem.
— Se me der licença, — digo com firmeza — gostaria de
voltar a assistir aos jogos. Mas saiba que entendo suas
frustrações e estou trabalhando para encontrar uma solução.
Se eu não me importasse, estaria em outra ilha agora, já que
seus planos para mim envolvem festas e comida de graça.
Algumas vozes na multidão se divertem com minha piada e
dão risada, e os clientes voltam para seus jogos. Eu sei que
ganhei esta partida.
— Certo — diz um dos homens, coçando a nuca enquanto o
barulho anima a sala de jogos mais uma vez.
Não está mais todo mundo prestando atenção nele ou
esperando por uma explosão. Eu poderia facilmente ter sido a
vilã nessa situação, mas em vez disso, fiz com que ele parecesse
um idiota. Só assim, os homens se afastam.
Bastian e Ferrick estão olhando para mim com surpresa,
enquanto Casem exala de alívio. Lentamente, Bastian tira a mão
do punho.
— Bem, essa é certamente uma nova maneira de lidar com
as coisas.
A nitidez da risada de Ferrick me surpreende.
— Deuses, teria sido bom para você ter descoberto há muito
tempo. Você pode imaginar quantas lutas poderíamos ter
evitado?
Reviro os olhos, agradecida quando Vataea emerge da
multidão com quatro canecas gigantes de cerveja nas mãos. Ela
entrega duas para Casem e para mim, e em seguida, coloca uma
com alguns goles já consumidos na mão de Bastian. Ele está
prestes a protestar quando seus olhos cortam para ela com
expectativa.
— Você não pagou por isso.
Ela franze a testa.
— Você pagou?
Um sorriso cheio de dentes rasteja em seus lábios, o que é
uma resposta suficiente para todos nós.
O salão de jogos já está em pleno andamento novamente,
mas agora as pessoas me observam mais de perto ou me puxam
para os jogos. Eles não pedem dinheiro ou fichas, em vez disso,
eles os oferecem, apenas querendo que eu participe de um jogo
com eles. Eles perguntam o que estou bebendo e pedem mais.
Casem os olha como um falcão o tempo todo, andando de um
lado para o outro do bar toda vez que alguém me serve uma
nova bebida para ter certeza de que não estão colocando nada
nela.
Nenhum de nós tem ideia de onde Shanty foi, mas vendo
quantas moedas ela roubou, não tenho dúvidas de que ela já
pegou um rosto diferente. Enquanto isso, Vataea e eu estamos
em uma mesa de blackjack com Ferrick atrás do meu ombro e
Bastian sobre o dela. Ele olha as cartas dela com uma expressão
neutra antes de se curvar para sussurrar algo em seu ouvido.
Eu encontro meus dedos tensos contra as cartas, meu aperto
se tornando mais forte enquanto minha mente não está no jogo
diante de nós, mas nas memórias de sua respiração fazendo
cócegas em minha pele. Dele sussurrando em meu ouvido.
Eu bebo, me forçando a desviar o olhar. Obrigando-me a rir
quando alguém faz uma piada e a relaxar o melhor que posso
com a pressão de tantas pessoas me olhando, esperando que os
deuses saibam o quê. Tudo o que sempre quis foi que meu povo
soubesse quem eu era e ganhar o seu amor.
Por que, então, minha pele parece estar formigando? Por
que cada palavra que sai da minha boca parece que estou
tentando falar com lábios fechados com pregos?
As horas passam sem interrupção na ação. Ninguém parece
se cansar e a multidão não se dispersa até o amanhecer. A luz
da manhã penetra pelas janelas e banha a sala. Com a claridade,
todas as comemorações parecem muito altas. Toda a
maquiagem e roupas cintilantes da noite não deslumbram
mais, mas parecem excessivas e fora do lugar.
É hora de sair daqui e encontrar Ronan. Rezo para que ele
tenha encontrado as respostas de que preciso. Não tenho
certeza se posso lidar com noites consecutivas em Kerost.
Fiz questão de não beber muito, apenas tomando goles
educados de qualquer coisa que comprasse para mim. O
suficiente para fazer as pessoas pensarem que somos
amigáveis, mas não perder o juízo. Mesmo assim, minha cabeça
lateja e meus olhos ficam embaçados, embora provavelmente
seja mais por exaustão do que pelo álcool.
Deuses, eu deveria ter dormido horas atrás. Vai ser um longo
dia em Keel Haul.
À medida que a multidão diminui, nós voltamos para fora,
alguns de nós grogues enquanto outros, ou seja, Ferrick e
Vataea, ainda zumbem de tanto rir. Cada um de seus passos
balança alguns centímetros longe demais, e suas bochechas
estão vermelhas tanto do álcool quanto de uma risada
ofegante.
— Você o ouviu? — Vataea ri, enxugando os olhos
lacrimejantes.
Ferrick solta uma risada em resposta, o som tão forte que ele
está tendo que segurar o estômago para se conter.
— Oi! — Ele diz em uma voz baixa e zombeteira. — Você não
é uma daquelas sereias?
Vataea praticamente uiva e Bastian e eu trocamos um olhar
divertido que faz meu estômago formigar e imediatamente
desvia o olhar. Ferrick e Vataea continuam assim, sem fazer
absolutamente nenhum sentido para ninguém, exceto um para
o outro, os braços em volta um do outro. Enquanto a mão de
Ferrick se senta confortavelmente na cintura de Vataea, eu vejo
ela se mexer para que a mão dele caia em seu quadril. Ela
espera por uma reação, e eu percebo o mais breve e azedo
franzido de seus lábios quando Ferrick continua com sua risada
bêbada, educadamente mudando sua mão para cima. Só
quando ela propositalmente pega a mão dele e a abaixa de novo
até o quadril, ele dá um pulo de surpresa. Desta vez, porém, ele
não a afasta.
Os dois caminham à frente enquanto eu tomo meu tempo,
vasculhando as ruas em busca de uma cabeça de cabelo preto
desgrenhado. Avisto Ronan em um canto sombreado sob a
placa da VICE, tentando não cochilar. Quando ele me vê, sua
carranca fica mais profunda e ele pula de pé.
— Você realmente teve que ficar lá a noite toda?
Enquanto o resto da tripulação para para ver a reclamação
do garoto, eu respiro fundo e congelo, esperando que eles não
o reconheçam. Mas, com certeza, Bastian aperta os olhos e dá
um passo à frente.
— Você é o garoto com as conchas — ele diz rapidamente.
— Aquele foi um truque inteligente que você usou lá atrás.
Ronan levanta o queixo, mas cerro os dentes e olho para ele
com atenção para chamar sua atenção. Ele fica imóvel, os olhos
se arregalando quando ele entende. Essa não é uma conversa
que possamos ter na frente dos outros.
— Dê-me um minuto com ele — eu sussurro para a
tripulação. — Mais cedo ou mais tarde alguém vai pegá-lo, e
nunca é uma visão bonita quando há dinheiro envolvido.
Prepare o navio, certo? Só vou precisar de um minuto.
— Nós não estamos deixando você…
Não fico para ouvir o argumento de Casem. Eu puxo Ronan
pelo pulso, ignorando a forma como a luz do sol forte gira
minha cabeça. Eu o levo para o mesmo beco em que tivemos
nossa discussão na noite anterior, e só quando me certifico de
que ninguém está por perto é que falo.
— Você encontrou Ornell? — Tento não deixar minhas
palavras soarem tão urgentes quanto sinto. Muito tempo e
certamente alguns membros da tripulação virão procurar.
Ele acena com a cabeça rapidamente.
— Eu conheci uma mulher que reconheceu o nome. Ela disse
que era amiga da mãe de Ornell e que, pela última vez que
soube, a família havia se mudado para Curmana. — Ele
endurece sua mandíbula, tentando não deixar seus nervos
transparecerem. — Sinto muito, foi tudo o que consegui
descobrir. Ninguém sabe nada sobre ele ou se ele ainda está lá.
Não é muito, mas é uma pista. E por enquanto, isso é o
suficiente. Pego uma pequena bolsa de moedas do meu casaco
e pressiono em suas palmas.
— Mantenha isso seguro, certo? Chega de fraude.
Ele enfia as moedas em sua camisa, mas o sorriso em seus
lábios dura apenas alguns segundos antes de seus olhos se
erguerem, olhando por cima do meu ombro. O medo se instala
nele e ele se encolhe, tornando-se menor. Com todos os
músculos do meu corpo rígidos, eu olho para o chão, onde não
uma sombra paira sobre mim, mas duas.
CAPÍTULO QUATORZE

Lentamente, levo minha mão até o punho de Rukan.


— Corra — peço a Ronan. Ele não precisa ouvir duas vezes.
No momento em que ele sai, eu giro, evitando por pouco uma
faca que faz uma espiral em meu rosto. Ela dá uma mordida no
meu cabelo e eu faço uma carranca para o homem que a
empunha. — Estou tentando fazer isso crescer novamente.
São os homens do salão de jogos mais cedo. Eles piscam para
o sol, um deles com uma faca na mão, enquanto o outro
empunha sua espada. Eu aperto minha própria lâmina com
força, recusando-me a deixar meu rosto mostrar o pânico que
vem de lutar contra um Ker.
Nunca lute com um Ker. Meu coração é um monstro, furioso
contra meu peito quando me lembro do antigo aviso de meu
pai. Eles terão uma faca na sua garganta antes mesmo de você
perceber.
A magia do tempo não pode ser usada livremente. É a mais
difícil de controlar e é a que mais prejudica o corpo do seu
portador. Mas qualquer Ker seria um tolo se entrasse em uma
luta que pretende vencer sem usar isso em seu proveito.
Eu procuro minha magia interiormente, fazendo tudo que
posso pensar, tudo que fiz mil vezes antes, para tentar
despertá-la. Mas, mais uma vez, ela se recusa a ouvir.
Eu sei que minha magia se foi, mas ainda tento
freneticamente puxá-la ao meu redor e fazer com que atenda
ao meu chamado. Porque sem ela, eu não tenho chance nessa
luta.
O mais alto dos homens ataca com sua faca, e estou aliviada
que o ataque não seja tão rápido dessa vez. Eu recebo um corte
feio no meu antebraço, mas consigo me esquivar do pior,
contra-atacando com Rukan. Mas um segundo antes de minha
arma cortar sua pele, a voz de mamãe ressoa em minha cabeça
e eu vacilo. Faça com que eles te amem. Não importa onde você
esteja, eu estarei de olho em você.
Eu paro um pouco antes de atacar.
Minha hesitação não passa despercebida. Enquanto o mais
alto dos dois hesita, o mais baixo e robusto rosna:
— Você acha que porque nos enviou alguns soldados
deveríamos inclinar nossas cabeças e agradecer? Isso, de
alguma forma, é o suficiente para tornar tudo melhor?
Eu embainho Rukan e agarro minha adaga de aço. Mutilar,
mas não matar, é a única maneira de vencer isso. Mas sou
incapaz de agarrá-la antes que o homem fique diante de mim,
rápido como um raio, e me jogue contra a parede. Minhas
costas estalam quando atinge a pedra, tirando o fôlego dos
meus pulmões.
— Saia da nossa ilha. — Cada uma de suas palavras é seu
próprio rosnado, e o fedor de álcool rançoso suja seu hálito.
Eu me encolho quando ele se inclina para perto, uma mão
em volta do meu pescoço, tirando o fôlego dos meus pulmões
enquanto sua espada espera pronta. Eu procuro minha arma
desesperadamente enquanto a escuridão apimenta minha
visão.
O pânico aumenta, borbulhando enquanto eu imploro à
minha magia para ouvir. Para me proteger. Enquanto imploro
para que minha mão alcance um pouco mais ao redor deste
homem para agarrar a lâmina de aço que espera por mim, se
apenas eu puder alcançá-la.
Seu amigo, o mais alto, começa a se afastar, o rosto em
pânico enquanto aquele que me agarra pela garganta levanta
sua lâmina. Ela pressiona contra meu casaco e eu me preparo
para a mordida de aço com a qual me familiarizei demais.
Mas não sou eu quem é mordida.
Eu caio de joelhos, ofegando desesperada por respirações.
Meus dedos cavam nos paralelepípedos enquanto eu me
inclino e pisco a névoa da minha visão.
— Você vai ficar bem. — Eu sei que são as mãos de Bastian
que se acomodam em meus ombros porque meus pulmões
respiram mais facilmente e minha visão se aguça com seu
toque. Eu me deixo cair nele, esfregando minha garganta
sensível.
Meu agressor está caído de cara no chão, duas longas
agulhas cutucando a pele do seu pescoço. Shanty está atrás
dele, enfiando as agulhas restantes nos pequenos espaços entre
os ossos de sua pulseira, e um pequeno frasco de um líquido
branco espesso em sua manga.
Ferrick está à minha esquerda, e eu pulo com a picada afiada
de sua magia de restauração em minha garganta. Ele se acende
uma vez no ponto mais agudo de dor, então diminui para nada
além de uma dor surda. Ainda assim, minha própria voz está
rouca quando pergunto:
— Ele está...?
— Morto? Não. — Shanty chuta a mão do homem,
pressionando a bota em um de seus dedos até que ele geme. —
Vê? Apenas inconsciente. Pode acordar com uma dor de cabeça
assassina, mas nada que ele não esteja pedindo. Casem saiu
correndo atrás do segundo cara.
Bom. Eu poderia tê-los matado com Rukan, mas o reino não
pode amar uma rainha que eles veem como um monstro; já
aprendi isso da maneira mais difícil. Meu povo espera que uma
rainha seja gentil e justa, não alguém que vai sangrar as mãos
desnecessariamente.
Se eu usar o veneno de Rukan para matar, esses homens vão
conseguir o que querem. Sempre serei considerada uma
governante cruel e perigosa. Irá contra tudo o que mamãe
deseja que eu mostre a Visidia, e ela teria me mandado de volta
para Arida no mesmo dia.
— Nós nunca deveríamos ter deixado você fora das nossas
vistas — Vataea rosna, os dentes arreganhados para o homem
inconsciente. — Temos que prendê-los.
Estou prestes a impedi-la quando Ferrick me adianta.
— Não podemos. Se outros descobrirem que Amora foi
atacada em nossa primeira parada, depois que Kerost já se
recusou a participar de nossa turnê por Visidia, como você acha
que ficaria? Isso pode arruinar nossa jornada antes mesmo de
começarmos.
Bastian praticamente se gaba com a notícia, mas Shanty
balança a cabeça.
— Talvez não. — Ela se agacha, levantando meu queixo com
um dedo para me inspecionar. — Se há uma coisa que minha
magia me ensinou, é que as pessoas sempre verão o que você
mostra a elas. — Endireitando sua coluna, ela se vira para
Ferrick. — Vá buscar o máximo de pergaminho que puder
encontrar. E você — ela se vira para Vataea. — faça alguma
coisa com o corpo desse homem. Ele não vai acordar por
algumas horas. Coloque-o no sol e deixe-o queimar em algum
lugar.
Há um brilho nos olhos da sereia quando ela enfia as mãos
sob os braços do homem e o arrasta para o beco, fora de vista.
Só espero que ela não o esteja arrastando diretamente para o
mar.
Ferrick, por sua vez, sai apenas depois de me verificar se há
ferimentos.
— Fique aqui — diz ele sério antes de se virar, correndo em
direção à rua.
Não tenho desejo de seguir. Em vez disso, inclino minha
cabeça contra o peito de Bastian enquanto ele me segura,
relaxando na sensação de integridade que vem com seu toque.
Conectados assim, não posso dizer se é a minha curiosidade
que aumenta ou a dele quando os olhos de Shanty brilham com
malícia.
— O que você está fazendo? — Ele pergunta, ao que ela
endireita os ombros.
— Confie em mim, pirata. Estou prestes a ser positivamente
brilhante.
***
Estou encostada no mastro principal de Keel Haul quando
Shanty me entrega sua criação.
— Não há necessidade de dizer obrigada. — Ela sorri
enquanto pego o pergaminho. — Você pode simplesmente me
dar um bônus na hora do pagamento. Faça com que seja aquela
sua lâmina da besta marinha e ficaremos quites.
Há uma fome em seus olhos quando ela olha para Rukan.
Eu cubro a lâmina com meu casaco para fora da vista dela
enquanto coloco o pergaminho no meu colo, assustada com a
imagem em movimento que aparece em mim em um loop.
Sou… eu. Mas não é uma imagem parada, capturada por um
artista. É em cores, realistas e deslumbrantes.
Eu me endireito, percebendo que este pergaminho é
semelhante ao que Yuriel e Vataea estavam olhando em Arida,
e como aquele que Lorde Garrison me mostrou durante a
reunião do conselho. Esta imagem em particular é minha na
sala de jogos, levantando uma taça de espumante com outros
clientes enquanto apostamos juntos nos jogos. Nós rimos
alegremente, aparentemente nos divertindo o suficiente para
que qualquer um ficasse com inveja de não ter ficado de fora.
Abaixo dele, o pergaminho diz:
SUA MAJESTADE, RAINHA AMORA MONTARA, PARA
CASAR!
Parece que Visidia vai ganhar um novo rei mais cedo do que
pensávamos! A viagem de Sua Majestade a Visidia começou há
poucos dias e ela já está se tornando amiga do povo de Kerost. O
amor logo estará no ar para nossa rainha? Melhor se
prepararem, solteiros.
Há uma lista de anúncios na parte inferior do pergaminho
em movimento, apresentando estilistas Ikaeans e consultores
de guarda-roupa para ajudá-los a prepará-los para minha
visita. Vale a pena revirar os olhos, mas desconsiderando os
eventos mais infelizes de Kerost, é brilhante. O que é retratado
é curto, doce e exatamente o tipo de show que se espera de
mim. Eu agarro o pergaminho com força, apenas sentindo
realmente meu cansaço quando o alívio se instala em mim.
— Isso é brilhante — digo à Shanty, enquanto ela joga o
cabelo rosa sobre os ombros.
— Eu sou brilhante. De nada.
Casem está sentado atrás dela, os olhos com o branco
nebuloso de alguém usando magia de Curmana.
— A notícia já está se espalhando — diz ele, a voz distante.
Mas à medida que o azul de seus olhos retorna, o mesmo
acontece com sua empolgação. — Os oradores mentais estão
engolindo isso. Ikaeans estão replicando a história e levando-a
de volta para sua ilha para ser redistribuída, e eles querem
mais. Eles querem a documentação de cada uma das suas
paradas. Podemos usar essa história da maneira que
quisermos.
— Só se formos nós que ficarmos no topo — alerta Shanty.
— Essas peças de fofoca estão tão populares ultimamente; as
pessoas estarão competindo por informações. As melhores
fofocas resultam na bolsa de moedas mais gorda, então
precisamos divulgar nossas histórias o mais rápido possível.
Se o propósito dessa viagem fosse apenas garantir que meu
povo me favorecesse, essa teria sido uma estratégia brilhante.
Agora, porém, é um incômodo. Isso apenas garante mais
atenção aos meus movimentos, e que precisarei ser mais
cuidadosa ao seguir em frente.
Devolvo o pergaminho para Shanty, e ela fica maravilhada
mais uma vez com seu trabalho.
— Veremos sobre esse bônus — digo a ela. — Mas obrigada.
Eu agradeço.
— Para a rainha? — ela provoca. — A qualquer momento.
De pé no leme com uma bússola na mão, Bastian lança um
olhar azedo para o pergaminho. Ele só zombou quando viu a
manchete, e agora passa o tempo olhando para a bússola,
fingindo estar despreocupado.
— Nosso itinerário não nos leva a Zudoh para outros três
dias — diz ele. — Teremos que contatá-los e avisá-los que
chegaremos mais cedo.
Eu não perco o tom esperançoso de sua voz e a culpa torna
minha garganta grossa. Eu gostaria que Zudoh fosse o próximo
destino conforme planejado, mas meu objetivo principal é
encontrar Ornell e descobrir o que ele sabe sobre o lendário
artefato.
— Iremos primeiro para Curmana. — Tento soar indiferente
sobre isso, mas os olhos de Bastian se estreitam com suspeita
e Ferrick se move de onde está sentado à minha frente,
franzindo as sobrancelhas. — Casem, entre em contato com
eles e diga a eles que nossos planos mudaram.
Casem fica no mesmo lugar.
— Mas nós temos um itinerário.
— Sem mencionar que Curmana está do lado oposto do
reino — Bastian resmunga. — Ir para lá agora não faria
nenhum sentido. Sua mãe e Zale vão arrancar nossas cabeças
se ignorarmos os planos.
— Não estamos ignorando — eu digo. — Estamos nos
protegendo. Se quisermos ficar à frente dos pergaminhos de
fofoca, não precisamos que todos esses repórteres saibam
nosso próximo local. Eles nos atacariam.
É uma mentira que sai facilmente da minha língua. Aquela
que tem mérito suficiente para que, por um momento, ninguém
discuta.
A resposta de Ferrick é a primeira a vir, quieta e melancólica.
— Deuses, no que eu me meti.
Eu o ignoro e fico de pé sobre as pernas cansadas para
erguer meu queixo em direção aos outros.
— Minha mãe gostaria que tivéssemos precauções. Se algo
der errado novamente, a última coisa de que precisamos são
mil novos pergaminhos de fofoca. — Sem mencionar que, com
tantos repórteres farejando, encontrar Ornell será muito mais
difícil. — Diga a ela que vamos visitar Curmana em seguida e
que vamos manter nosso itinerário flexível. Ela vai entender.
Eu coloco cada grama de autoridade que tenho em minha
voz, me recusando a explicar ou elaborar, o que exigiria
inventar uma mentira que eu não tenho.
A mandíbula de Bastian aperta, mas mesmo que ele possa
sentir que eu não estou dizendo a ele toda a verdade, não é
como se ele pudesse ler meus pensamentos reais.
— Defina nosso curso. — Deixo-o no leme e vou para baixo
do convés antes que ele ou os outros possam se intrometer
mais.
Lá embaixo, na cabine, Vataea já está dormindo sem álcool,
enrolada nas cordas da rede como se tivesse sido pescada
direto do mar. Ela nem mesmo estremece quando subo na rede
ao lado dela, a exaustão se instalando em meus ossos.
Quando fecho os olhos desta vez, rezo para que, pelo menos
uma vez, seja o sono que espera por mim, e não o fantasma do
meu pai.
CAPÍTULO QUINZE

Escuro como tinta derramada, o céu noturno está coberto com


uma poeira estelar que brilha vagamente no reflexo do mar. Eu
fico olhando para ele do cordame, cansada e lenta do meu sono
interrompido e o álcool ainda filtrando pelo meu corpo.
Como sempre, os rostos dos mortos estavam lá para me
cumprimentar no momento em que fechei os olhos. Meu pai
estava entre eles, o rosto envolto em fumaça e sua mão
ensanguentada se estendendo na minha direção em desespero
enquanto a massa de Visidia caída se agarrava a ele, pesando-
o.
Eu faço tudo que posso para tirar a memória da minha
mente, cantarolando uma canção marítima silenciosa
enquanto mergulho minha cabeça para trás contra as cordas.
Na minha primeira vez aqui, as minhas palmas estavam
suando tanto que eu mal fui capaz de manter meu controle. No
verão passado, escalar o cordame com Bastian foi o primeiro
momento que me lembro de me sentir verdadeiramente viva.
Lembro-me do calor da sua respiração na minha pele enquanto
ele me estabilizava, evitando que eu caísse. A forma como seus
olhos brilharam de alegria quando uma gaivota grasnou para
nós em saudação e ele grasnou de volta. A forma como o ar
salgado do mar rasgou meu cabelo e roçou meu rosto, me
dizendo que este é o meu lugar.
Foi minha primeira experiência da verdadeira liberdade
antes de saber a verdade sobre meu pai e a família Montara.
Antes que eu perdesse minha magia e papai enfiasse uma
espada profundamente em seu estômago para me proteger.
Eu não tinha sido uma rainha, então. Eu tinha sido a Princesa
Amora Montara: uma garota que era ingênua o suficiente para
acreditar que poderia proteger um reino que ela mal conhecia,
com uma magia que não era nada mais do que uma mentira.
Parece que foi há muito tempo; quando o corpo de papai foi
enviado ao mar, aquela garota afundou nas profundezas ao
lado dele. Agora, uma rainha que mal reconheço tomou seu
lugar.
A luz da lua prateada surge por trás de uma cortina de
nuvens e eu fecho meus olhos contra ela, acalmando as
lágrimas quentes antes que elas venham. Não importa o quanto
eu tente pensar de outra forma, não importa o quanto eu tente
puxar meus pensamentos desse lugar escuro e me concentrar
no que precisa ser feito, minha mente continua me puxando de
volta para um único pensamento: tanto quanto meu eu passado
ansiava por um dia sentar-se no trono, talvez eu não seja a
governante legítima deste reino.
Mas, por enquanto, até que Visidia esteja de volta aos trilhos,
sou a governante de que precisam. Sou a única com
conhecimento para expiar o passado da minha família. E até
então, não vou chorar, mas lutar para dar ao meu povo o reino
que eles merecem.
Só quando o cordame balança abaixo de mim que abro os
olhos e me equilibro, segurando as cordas com força. Eu deslizo
minha atenção para baixo, esperando Bastian, mas meus
protestos param quando vejo que é Ferrick que está subindo
lentamente. Sua testa está tensa de nervosismo e, a cada
poucos centímetros que ele sobe, ele para para praguejar
baixinho.
— Estrelas. — Eu suspiro e me solto das cordas, descendo
alguns metros para que ele não tenha que se torturar subindo
mais alto. — Você deveria estar dormindo.
— Eu poderia dizer o mesmo para você — ele tenta dizer,
mas seus dentes batem tão ferozmente que suas palavras
estremecem. Ele estremece quando uma maré particularmente
violenta atinge o navio e ele agarra o cordame
desesperadamente.
Eu reviro meus olhos e pressiono a mão em suas costas,
ajudando Ferrick a recuperar o equilíbrio. O mar não recebe
bem os visitantes durante o inverno. A água escura é agitada e
violenta, e cada movimento parece amplificado aqui no
cordame.
— Casem ronca como um marinheiro bêbado — murmura
Ferrick, encolhendo o pescoço no casaco como um caranguejo
eremita. Parte de sua respiração escapa, espalhando o ar ao seu
redor em fios de fumaça. — Eu ia roubar uma vela do quarto de
Bastian para derreter a cera e tapar meus ouvidos, mas então
eu vi você.
Eu imagino que seu sorriso espelharia o meu se ele não
estivesse tão ocupado enterrando tanto de sua pele exposta em
seu casaco quanto fisicamente possível.
Com sua teimosia, não posso deixar de rir.
— Enrole as mãos nas cordas. — São as mesmas instruções
que Bastian me deu em minha primeira escalada. — O mar está
agitado esta noite, então é melhor ser cauteloso. Podemos ir
mais baixo também, se você estiver com medo…
— Estou bem. — Apoiando-se contra os ventos frios, Ferrick
se retira do calor de seu casaco. Conforme instruído, ele enrola
as mãos ao redor do cordame por segurança e hesita por
apenas um segundo antes de virar para o mar. Quando eu me
inclino contra o cordame, ele segue o exemplo.
Eu sigo seus olhos para as marés, que não parecem mais tão
escuras. O luar brilha mais forte, acendendo o que parecem ser
milhares de minúsculos cristais sobre a água. Eles iluminam o
mar como uma pedra preciosa.
Agora, mais do que nunca, gostaria de aprender a magia do
tempo. Eu poderia congelar-me nesse momento, encharcada de
lua e olhando para o oceano. Eu me tornaria a figura de proa de
Keel Haul, colada a este navio por toda a eternidade. Viajar para
sempre, em vez de sentar em um trono construído sobre
sangue e queimado por mentiras.
— Isso me lembra a noite em que lutamos contra a Lusca. —
A voz de Ferrick vem suavemente, como se estivesse ciente de
que ele está me tirando dos meus próprios pensamentos
sombrios. — O mar estava mais calmo então, pelo menos até a
besta aparecer, mas estava escuro como esta noite. Linda
também... se não fosse pelo monstro gigante tentando nos
matar.
Estou surpresa com o quão genuíno é o meu riso. Não é como
em Arida, onde devo brincar de fingir.
Ferrick estava lá na noite em que minha vida mudou. Ele
esteve lá para tudo isso. Com ele, não há fingimento.
— Naquela noite, você se tornou a pessoa mais corajosa que
já conheci. — É surpreendente até para mim como é natural
estar perto dele. Quão confortável.
Sua risada é suave, quase varrida pelo vento.
— Eu poderia dizer o mesmo para você.
Lembro-me daquele momento em que me joguei na Lusca.
Como havia pensado nas histórias que Visidia contaria em
minha homenagem e como meu pai ficaria orgulhoso quando
eu lhe mostrasse a prova de que venci a fera. Eu nunca tive a
chance de mostrar Rukan a ele.
O silêncio pesa entre nós, mas não é tenso ou estranho.
Aproximando-me de Ferrick, eu me sento naquele silêncio,
deixando meus olhos fecharem e minha cabeça cair em seu
ombro enquanto ele passa um braço em volta de mim. Não
tenho certeza de quanto tempo ficamos assim, mas é só quando
Ferrick se mexe que levanto minha cabeça para olhá-lo.
— Estamos fazendo a coisa certa? — Seus lábios estão
apertados e seus olhos verdes estão incomodados e distantes,
como se ele estivesse tentando montar um quebra-cabeça.
— Por “nós” você está me perguntando se eu acho que estou
fazendo a coisa certa?
Com o pé quicando contra o cordame, ele balança a cabeça.
— Não me sinto bem mentindo para todos. Vataea merece
saber sobre Blarthe, e até mesmo Casem está fazendo o seu
melhor para tornar isso mais fácil para você. Ele está se
comunicando com sua mãe e com as outras ilhas todos os dias,
tentando tornar isso o mais suave possível. Os Montaras
mentiram durante séculos, você não tem que ser igual a eles.
Olhando para o céu sem nuvens, eu me pergunto se algum
deus pode ouvir meu suspiro.
— Eu parei de saber qual era a coisa certa a fazer há muito
tempo, Ferrick. Tudo o que posso fazer é o que acho certo. E,
por enquanto, isso faz de Visidia a prioridade. Não serei a
mesma que minha família, vou contar a verdade a todos
quando chegar a hora certa. Mas, por enquanto, mantenho
minha decisão. — Eu chuto o cordame, deixando as cordas
emaranhadas em minhas botas.
O escárnio de Ferrick é tão suave que quase sinto falta.
— Você está muito acostumada a fazer as coisas sozinha. Dê
ao resto de nós algum crédito, está bem? Nós queremos ajudar.
Eu escondo minha carranca, cansada de ouvir isso. Passei
dezoito anos contando com outra pessoa, e veja aonde isso me
levou. A melhor maneira de fazer algo é fazer eu mesma. Se eles
não conseguem acompanhar, não é problema meu.
— Agradeço por você cuidar de mim. — Há uma aspereza
em meu tom que não me preocupo em mascarar. Um aviso de
que é hora dessa conversa terminar. — Mas estou fazendo o
que acredito ser melhor para o meu reino.
— Bem, diga-me como posso ajudá-la, então — ele
argumenta. — Estou tentando fazer tudo que posso para estar
lá para você. Para ser um bom amigo, um melhor conselheiro,
um lutador mais forte com mais magia. O que mais posso fazer?
Enquanto meu coração cai para o meu estômago, eu cerro
meus punhos em torno da corda.
— Você é perfeito, Ferrick. Eu prometo, isso não é sobre
você.
Seu peito cai enquanto ele afunda mais no cordame, e por
um longo momento ele deixa o silêncio se expandir, sendo o
único som entre nós o de ondas agitadas e ventos agudos.
Quando ele finalmente se volta para mim, seus olhos são tão
penetrantes e inteligentes quanto os de uma raposa. Tão
baixinho que não tenho certeza se inventei as palavras na
minha cabeça, ele diz:
— Se é assim que você quer que seja, tudo bem. Mas sua
teimosia será a faca em todos os nossos peitos um dia, Amora.
Deuses nos ajudem.
CAPÍTULO DEZESSEIS

Até meus ossos estão cansados enquanto subo com dificuldade


até o convés na manhã seguinte.
Passei horas no cordame, bem depois que Ferrick saiu, até
que meus dedos ficaram dormentes de frio, meu aperto
afrouxou e eu não conseguia mais manter os olhos abertos. Só
então voltei sorrateiramente para a minha rede, roubando
algumas horas antes que os pensamentos sobre meu pai e as
visões dos mortos me acordassem novamente.
Bastian é o primeiro que vejo quando entro no convés. Ele
está sentado sozinho a estibordo, enquanto Vataea e Shanty
estão sentadas a bombordo. Elas têm um saco de estopa
desenrolado cheio de frutas desidratadas, queijos duros e
carnes secas espalhadas entre elas. Enquanto elas jogam um
estranho jogo de cartas que requer virar as cartas e ser o
primeiro a bater as mãos no baralho ao ver algumas, Bastian se
ocupa com um item familiar.
Estou sem fôlego no momento em que vejo: minha bolsa.
Ele esvaziou seu conteúdo, espalhando ossos e dentes sobre
a tela. Embora ele ainda não use a magia, eu sentiria se ele
usasse, posso senti-lo considerando isso enquanto segura um
osso entre dois dedos longos, usando a outra mão para
arranhar suavemente o osso com a ponta de uma pequena
lâmina. Sua vontade pulsa dentro de mim, e eu sei de uma vez
que ele está tentando chamar a magia da alma para ele.
Não vem.
— Você nunca me disse que estava tendo problemas com
isso. — Eu sento hesitante na frente dele, correndo meus dedos
ao longo das conhecidas cristas dos ossos. Embora parte de
mim odeie o desejo que ganha vida dentro de mim, não há como
negar sua existência.
Eu odeio o que fui forçada a fazer com minha magia. Odeio
ter passado dezoito anos aprendendo a matar pelo bem de uma
besta dentro de mim que nunca existiu. Eu odeio que minha
magia não seja nada mais do que uma mentira.
Mas eu não odeio minha magia, eu nunca poderia odiar a
parte mais íntima de mim. E um dia, vou recuperá-la em sua
forma verdadeira. Gentil. Pacífica. Protetora. A forma como a
magia da alma foi criada para ser.
Bastian aperta o osso entre os dedos com mais força dessa
vez. Ele o examina como se fosse algum tipo de quebra-cabeça,
e meu coração praticamente treme quando me lembro da
última vez que vi aquela expressão em seu rosto, quando eu
estava criando Rukan. Foi a primeira noite em que nos
beijamos de verdade.
Minha pele coça com o desconforto que me impele a sair
daqui e me distanciar de Bastian, mas o pulso da minha magia
dentro dele me mantém sentada.
— Isso porque só agora quando você está encalhada em um
navio no meio do mar e tem poucos lugares para se esconder
de mim eu posso falar com você. — Sua voz é alegre o suficiente
para eu revirar os olhos.
— Bem, eu estou aqui agora. Me diga o que se passa.
Ele faz um som fraco de estalo sob sua respiração.
— Você parece muito mais fascinada com o que tenho a
dizer do que me importo com as respostas que você pode ter.
Mas eu tenho uma ideia, algo para satisfazer nossas
necessidades. — Ele olha para cima, estrelas dançando
naqueles olhos castanhos deslumbrantes. — Você já pensou em
pedir com educação?
O que eu não daria para jogar este maldito pirata ao mar.
Eu mordo minha língua e torço meus lábios em um sorriso
gelado.
— Você poderia, por favor, me dizer por que você não pode
usar a magia da alma? Seu arrogante, idiota, bastardo...
— Você realmente precisa aprender a parar quando já é o
bastante. — Ele suspira, mas chega mais perto. — Não se
preocupe, vamos trabalhar nisso. Agora, para sua pergunta, é
simples. Só não sei o que fazer com isso.
Ele segura um osso, apertando os olhos para examiná-lo à
luz do sol. Eu me inclino, tentando ver se ele está olhando para
algo diferente que eu. Mas tudo que vejo é um osso normal de
dedo.
— O que você quer dizer com não sabe o que fazer com isso?
— Quer dizer, eu sei como invocar a magia. Eu posso sentir
isso. Mas sempre que eu tentava praticar com ela, sempre que
eu tentava ver como era a sensação, eu não sabia o que fazer.
Você tem o seu fogo, sua tia fica com aquela coisa toda do ácido
estomacal quando engole um osso, seu pai usava água... Mas eu
não sei o que fazer. Como você sabia que deveria usar fogo?
Eu me inclino para trás em minhas mãos, tentando me
lembrar se houve algum sinal.
— Era algo que eu simplesmente sabia — acabei admitindo.
— Foi instintivo.
Seu suspiro é muito mais dramático do que o necessário
enquanto ele acena o osso para mim.
— Tudo que eu quero fazer é quebrar essa coisa horrível. —
Pegando os ossos e dentes, ele os enfia de volta na bolsa. —
Magia de maldição é muito mais fácil.
— Isso é porque você cresceu aprendendo. — Minha pele
arrepia sem o toque dos ossos, e sufoco a sensação. — Todas as
novas magias são difíceis de aprender no início. Olhe para o
Ferrick.
Eu aceno em direção à proa, onde Casem tenta ensinar a
Ferrick a fala da mente. Tudo o que Ferrick fez desde que
voltou para casa foi mergulhar de volta em seu treinamento, e
meu coração dá um puxão ao vê-lo. Eu deveria saber que se eu
desse a ele o papel de meu conselheiro, meu parceiro de maior
confiança, ele o levaria mais a sério do que qualquer outra
pessoa. Assistindo ele, eu sei que fiz a escolha certa. Não tenho
ideia de quanto tempo eles estão nisso, mas a pele ao redor da
boca de Ferrick está tingida de vermelho e, segundos depois de
observá-lo, ele já está curando um sangramento nasal recente.
À minha frente, Bastian estremece.
— Bom ponto. Mesmo assim, não é ótimo saber que tenho a
magia mais forte do reino e não tenho ideia de como usá-la.
— Você não deveria usar de qualquer maneira — eu digo. —
Essa magia nunca foi feita para ser praticada por ninguém que
não fosse um Montara. Quando Kaven tentou fazer com que
outros aprendessem, a maioria deles morreu.
— Eles morreram — ele concorda com um pequeno aceno
de cabeça. — Mas não era a mesma coisa. Eles não tinham isso
de verdade.
— Não vale a pena arriscar. — A raiva aumenta dentro de
mim. — Não sabemos o que vai acontecer se você usar, e eu
quero você vivo. Nós temos uma maldição para quebrar, então
deixe isso pra lá. Se você tiver que usá-la, que os deuses me
livrem, você saberá como.
— Você diz isso, mas como…
— Você apenas vai, certo? Eu prometo.
Para minha surpresa, o resto de seu argumento morre em
sua língua e a tensão em seu corpo diminui.
— Vocês dois vão trabalhar a manhã toda ou vão se juntar a
nós no café da manhã? — Shanty chama, as mãos em concha ao
redor da boca para causar efeito.
Hoje seu cabelo é de um verde menta fresco que combina
com seus olhos, que estão alados com um lindo forro rosa
fluorescente. Embora eu saiba que não é nada mais do que um
glamour, ela está vestida com mais elegância do que qualquer
pessoa que viaja em um navio tem o direito de estar, vestindo
uma capa rosa cintilante que sopra levemente ao redor dela
como uma bela nuvem. Sua camisa de colarinho solta trava está
com dois dos botões de cima desabotoados, de um rosa tão
tênue que quase parece branco, e está enfiada em belas calças
lilás que ondulam na bainha. Hoje, ela é distintamente Ikaean,
com gosto tão caro quanto o meu e o de Bastian.
— O que acontece quando vocês, Ikaeans, ficam sem temas
exclusivos para suas roupas? — Eu aceno provocativamente
para suas roupas enquanto Bastian e eu nos movemos para nos
juntar a elas, seguidos de perto por Ferrick e Casem.
Shanty joga uma uva em sua boca.
— Impossível, o mundo é muito interessante. Sempre
haverá muitas ideias e não haverá tempo suficiente para todas
elas. Agora, café da manhã?
Só quando coloco um cubo de queijo na boca é que ela volta
a embaralhar as cartas, satisfeita. Enquanto ela embaralha,
suas unhas mudam de uma bela cor de ameixa para um
vermelho profundo e cruel.
— Você está tentando ganhar de volta tudo o que perdeu em
Kerost noite passada? — Bastian provoca, e eu noto que ele
está brincando com uma pequena caixa ametista.
Sem se incomodar, Shanty bate o cabelo por cima do ombro.
— Como desejar. Não sei perder dinheiro, pirata. Tudo o que
faço é vencer. — Ela limpa a garganta para chamar nossa
atenção para o interior de seu casaco enquanto o abre,
mostrando uma grossa bolsa de moedas de ouro rosa dobrada
de um lado. Ela faz o mesmo com o outro lado, e desta vez há
dois porta-moedas.
É tudo o que o resto de nós pode fazer para não ficar
boquiaberto com ela.
— Isso é tudo da noite passada? — Bastian pergunta, sem se
preocupar em esconder o ciúme em sua voz.
— A casa sempre vence, certo? — Shanty diz. — Durante
parte da noite, joguei como revendedora e embolsei algumas
fichas para usar quando voltasse a ser jogadora. Juntamente
com os ganhos de Ferrick, poderíamos ter comprado aquele
covil inteiro. Você sabe, eles deveriam expulsar alguns
contadores com magia de encantamento. Todo mundo poderia
muito bem estar me entregando seu dinheiro.
A gargalhada de Vataea é tão aguda e genuína que é
impossível não participar.
— Estrelas, Shanty. — Bastian balança a cabeça. — Você é
um monstro.
— Obrigada. — Em algum momento, sem eu perceber, ela
sacou uma faca fina. Ela enfia nas uvas, empilhando-as na
lâmina. Tão rápido quanto ela o manobra, ela nunca erra.
Várias vezes, porém, ela pressiona sua lâmina com muita força
e cava a ponta do aço no Keel Haul. Cada vez que isso acontece,
a carranca de Bastian fica mais severa.
— Qual é a atualização de Curmana? — Ferrick pergunta a
Casem, tentando distrair das claras tentativas de Shanty de
irritar o pirata. Colocando um pouco de carne seca de gaivota e
queijo em minhas palmas, mudo o foco para a minha guarda.
— Pude entrar em contato com o consultor deles quando
saímos de Kerost — Casem diz entre garfadas de carne seca. —
Eles estão nos esperando em dois dias e estão “emocionados
por finalmente ter a chance de ter a rainha em seu solo”.
Aparentemente, já faz muito tempo que eles não recebem a
visita da família real, e eles adorariam jogar fora todas as
paradas. A Baronesa Ilia Freebourne estará lá para
cumprimentá-la, e eles terão todos os solteiros prontos e
esperando para tirá-la do chão.
Ele faz uma pausa para comer um queijo, sem se preocupar
em forçar nenhum entusiasmo. Para ele, isso nada mais é do
que uma viagem para longe de Mira e todo o planejamento do
casamento que ele está morrendo de vontade de fazer. Não
tenho dúvidas de que metade de seu tempo neste navio foi
gasto usando a linguagem mental para se comunicar com sua
noiva como o romântico sentimental que ele se tornou.
— Haverá comida e vinho, e muito para reabastecer quando
terminarmos a nossa celebração. Você só precisa se preocupar,
Amora, em fazer com que eles se apaixonem por você. Essa é
uma nota que vem diretamente de sua mãe, por falar nisso. Ela
não está entusiasmada com a mudança de itinerário, mas está
feliz por você estar tomando precauções.
Deuses, mal posso esperar para encontrar Ornell e acabar
com esta charada ridícula. Quando meu povo descobrir a
verdade sobre o que fiz, eles ou vão me amar por isso ou me
odiarão. Mas de qualquer maneira, meu trabalho estará feito.
— Mal posso esperar. — Eu consigo manter pelo menos um
pouco da amargura na minha voz enquanto arranco um pedaço
de carne seca. — E quanto à própria ilha? Algum de vocês já
esteve lá?
Ferrick e Vataea balançam a cabeça, enquanto Shanty morde
uma uva de sua faca e diz:
— Estive lá a negócios. Fico feliz em compartilhar os
detalhes se vocês estiverem interessados. — É claro que ela
está falando sobre mais do que a geografia da ilha.
Embora parte de mim odeie admitir, estou interessada.
Ferrick, no entanto, parece enjoado.
— Já estive lá bastante — disse Bastian, evitando que
precisássemos ouvir os detalhes. Enquanto fala, ele empurra a
pequena caixa ametista em minha direção, como se precisasse
de uma distração para dizer. — Está impecavelmente limpa,
mas não há muito o que fazer. Eles cultivam centenas de ervas
diferentes na selva que circunda a extremidade norte da ilha e
as usam para desenvolver pós, poções e a maioria dos remédios
que são enviados diretamente para os curandeiros Suntosan.
Seus spas são populares por causa dessas ervas; eles as jogam
na água em que você toma banho ou as transformam em
tônicos e óleos que usam para massagear sua pele para relaxar
você. Dizem que em Curmana existe erva para tudo. Você se
lembra daquele pó que usei nos guardas na prisão de Arida no
verão passado? É daí que veio.
— Pó para dormir? — Shanty adivinha em voz alta, sorrindo
quando Bastian não a corrige. — Ah, eu adoro um bom pó para
dormir.
— É uma bela ilha — continua Bastian. — Mas é quieta.
Considere a elegância simples de Curmana. Para quem procura
aventura, não a recomendo. Tudo fecha mais cedo e é um pouco
abafado.
Um lugar tranquilo e relaxante soa melhor do que qualquer
coisa agora. Além disso, se for realmente tão calmo e quieto,
isso deve tornar meu trabalho de encontrar Ornell ainda mais
fácil.
— Parece adorável — eu digo, e embora Bastian dê de
ombros, seus lábios se curvam no mais ínfimo dos sorrisos.
Pego a caixa que ele deslizou em minha direção e a abro. — Se
você pudesse providenciar isso, Casem, eu adoraria que
pudéssemos visitar aqueles spas…
Dentro da caixa tem ginnada, e meu coração salta para a
garganta.
— Onde você conseguiu isso? — É uma coisa boba, mas
apenas o cheiro da pasta de amêndoa açucarada é suficiente
para deixar meu coração pesado. Elas me lembram Arida, antes
de Kaven. De meus pais e eu nos enchendo de sobremesa toda
vez que os cozinheiros as preparavam para uma festa.
Meu pai as amava ainda mais do que eu.
Eu respiro o cheiro delas e fecho os olhos. Desde que perdi
minha magia, não estou mais com tanta fome quanto antes.
Naquela época, eu tinha um apetite que era praticamente
insaciável, pois precisava constantemente repor minha energia
para minha magia. Mas, mesmo sem meu velho apetite, eu
colocaria no chão um navio inteiro cheio de ginnada se tivesse
chance.
— Eu sei que você ama essas coisas. — Bastian não olha para
mim quando diz isso. Embora não haja tremor ou timidez em
suas palavras, a ansiedade dentro dele vibra no fundo da minha
alma meio perdida. Ele coça a nuca, infantil e ansioso. — Eu as
peguei em Kerost, não é grande coisa.
Mas ele está errado. Porque tudo que vejo quando olho para
a ginnada é o castanho quente dos olhos de papai. Tudo o que
ouço é sua risada berrante.
Eu gostaria que Bastian parasse de ser gentil. Que ele
parasse de se importar, pelo menos até que eu me lembrasse
de como cuidar da mesma forma. Pelo menos até eu não estar
mais tão vazia por dentro.
— Eu não posso aceitar isso. — Eu pressiono a caixa de volta
em seu peito, incapaz de firmar minhas mãos trêmulas. Eu não
vejo o olhar em seus olhos, mas isso não me impede de sentir
sua dor.
— É apenas ginnada. Você não tem que…
— Coma se quiser. — Eu não consigo manter o frio na minha
voz. Cada respiração é muito apertada no meu peito, me
contraindo até que eu estou à beira de estourar. — Ou jogue-a
ao mar, eu não me importo. Mas tire isso da minha vista.
Tudo o que ouço são as risadas do meu pai. Tudo o que vejo
é seu sangue em minhas mãos. A espada em seu estômago.
Deuses, por que ele não para de rir?
— Amora…
Shanty segura o ombro de Bastian, balançando a cabeça
lentamente.
Eu odeio a pena em seus olhos.
Eu odeio a dor em Bastian, e como ela reflete a minha
própria.
Eu odeio o jeito que todos eles olham para mim, como se eu
fosse um animal ferido para ser consolado.
E eu odeio mais do que tudo como me sinto sozinha quando
eles estão bem na minha frente.
Shanty disse que eles poderiam entender, mas olhando em
seus olhos, agora sei que ela estava errada. Eles nunca vão
entender.
— Eu estarei na minha cabine. — Eu me forço a não tropeçar
enquanto fico de pé. — Alguém me busque quando chegarmos.
Um pé na frente do outro, eu me forço para longe dos seus
olhos. Desço as escadas, para as cabines. Eu mal chego a uma
bacia antes de vomitar.
CAPÍTULO DEZESSETE

Curmana é tão bonita quanto eu imaginava e quase idêntica ao


que Bastian descreveu. E eu contaria aos outros quando saímos
do navio, se ao menos eu tivesse falado com eles nos últimos
dois dias.
Chegamos na areia tão pura e branca que, apesar dos cinco
Curmanans parados diante de mim enquanto nossa tripulação
desce de Keel Haul, é difícil acreditar que alguém viva nesta
ilha.
— Bem-vinda, Majestade. — Uma linda mulher com cabelo
sedoso platinado faz uma reverência tão baixa que o tecido da
sua calça de algodão – cortada na altura dos tornozelos – bate
na areia branca. Sua pele de porcelana é tão lisa e sem poros
que ela parece mais espiritual do que humana. Um espírito alto,
ágil, parecido com um pássaro, com um nariz afilado e olhos
redondos e claros.
A mulher usa um top de seda preta com alças feitas de
delicadas correntes de prata. Embora seja significativamente
mais quente aqui do que em Kerost, ainda há ar suficiente para
que ela use uma capa de ônix incrustada com um emblema de
prata que reconheço como uma folha de zolo: a erva medicinal
mais popular de Curmana, usada em quase todos os remédios
em todas as ilhas. Imediatamente eu sei que não é um espírito,
mas a Baronesa de Curmana, Lady Ilia.
Eu olho para sua barriga, ainda inchada de sua gravidez
recente, e noto as sombras profundas sob seus olhos que vêm
de ter um recém-nascido. Embora eu tenha visto Ilia de
passagem durante o reinado de papai, dificilmente trocamos
palavras uma com a outra. Seu irmão ocupou o lugar de Ilia
durante nossa recente reunião de aconselhamento sobre Arida
porque ela acabara de dar à luz.
Ilia se endireita, um sorriso grudado em seus lábios.
Infelizmente, aquele sorriso não atingiu seus olhos.
— Espero que o mar tenha lhe oferecido uma boa viagem —
ela diz por meio de uma conversa amigável. Sou rápida em
obedecer, totalmente acostumada a essa charada educada.
— Sim, obrigada. Estou feliz por finalmente estar aqui, Lady
Ilia. Embora eu espero que você saiba que não tem que vir me
ver pessoalmente. Eu teria entendido se você estivesse
ocupada com seu recém-nascido.
Seus lábios rosa pálido se franzem.
— Só Ilia está bem, obrigada. E não é nenhum incômodo,
Vossa Majestade. Posso ser mãe agora, mas ainda sou a
conselheira desta ilha, há deveres a cumprir. Minha esposa,
Nelly, está cuidando de nosso filho, então não se preocupe. É
um prazer tê-la aqui em Curmana e, finalmente, ter a
oportunidade de lhe mostrar nossa ilha. — Até sua voz é uma
brisa gelada. Seu rosto afiado permanece sem expressão, não
correspondendo inteiramente às suas palavras.
O resto da tripulação está quieta atrás de mim, mas pelo
canto do meu olho eu percebo a incerteza na expressão de
Ferrick e sei que não sou a única que Ilia está deixando ansiosa.
Sua beleza é etérea, mas isso só a torna mais assustadora. Ela
me conduz pela areia branca e plana, tão densa que minhas
botas mal afundam nela.
— Eu vou te mostrar o seu quarto onde você pode se limpar
para a festa hoje à noite. Você vai se encontrar…
— Há uma festa hoje à noite? — Eu odeio a faísca de alegria
que brilha dentro de mim, querendo pisar fora. Estou aqui com
a missão de não colocar um vestido e dançar a noite toda. E
ainda não consigo parar o zumbido de excitação que arrepia
minha pele, querendo desesperadamente uma distração.
Sem falar que festa significa que haverá multidões. E nessa
multidão, talvez Ornell esteja esperando.
— Alguns podem chamá-la de a melhor festa que Visidia já
viu! — É uma nova voz que fala, muito menos astuta e muito
mais turbulenta. Outra mulher está descendo a costa com
entusiasmo, lindos cachos loiros como o mel ondulando atrás
dela. Seus olhos são de um verde brilhante e familiar, um tom
que eu já vi antes, mas não consigo lembrar por nada, e seu
sorriso é quente o suficiente para derreter o iceberg que é Ilia.
— Nelly — Ilia começa, embora sua voz esteja mais calorosa.
— Você deveria estar cuidando do bebê.
— Ah, relaxe, Elias está olhando ele por alguns minutos. Eu
queria conhecer a rainha! — Nelly se inclina para dar um beijo
rápido na bochecha de Ilia e, embora as sobrancelhas da
conselheira franzem, ela finalmente cede e suspira.
— Fui eu que planejei a festa. — Nelly não espera que eu
estenda minha mão antes de pegá-la e dar duas sacudidas
firmes e rápidas. — Tivemos que fazer algumas mudanças em
pouco tempo, mas eu prometo que você vai adorar. Temos o
melhor serviço de bufê que Curmana tem a oferecer. Imagine
bolos e vinhos importados de Ikae, mais sobremesas do que
você já viu na vida, peixe fresco com rodelas de manga...
Quanto mais ela lista, mais intrigado Casem fica, dando um
longo passo para ouvir com mais atenção.
— Vossa Majestade — Ilia gentilmente interrompe apenas
quando eu não consigo imaginar que comida vai sobrar em
Visidia depois desta festa. — Deixe-me apresentá-la à minha
esposa, Nelly. Ela veio de Suntosu e trabalha como curandeira
para a ilha.
As bochechas rosadas de Nelly ficam vermelhas.
— Desculpe, Sua Majestade. Estou tão animada com sua
visita. Sabemos como é importante para você encontrar o
próximo rei de Visidia. Quero ter certeza de que nossa parte
será a mais tranquila possível para você. Se você vai encontrar
o amor essa noite, a atmosfera tem que ser absolutamente
perfeita!
Atrás de nós, Bastian zomba.
Enquanto o olhar de Nelly é de determinação, o de Ilia é
confuso e apologético. O olhar que ela me lança diz que pelo
menos ela sabe que isso não tem nada a ver com amor ou
romance, mas sim com Visidia. Tenho certeza de que seu irmão,
Elias, a informou após a reunião do conselho.
— Minha esposa é muito romântica — ela diz, ao que Nelly
sorri.
— E não há nada de errado com isso! Além disso, nada
acontece em Curmana. Ter você aqui será uma boa mudança de
ritmo para os moradores.
— Mas, primeiro, devemos mostrar a Sua Majestade onde
ela e seus convidados ficarão. — Ilia mantém os ombros retos
e o corpo alto enquanto caminha, como se estivesse
equilibrando algo tão pesado quanto a coroa de uma enguia.
Embora as duas não pudessem ser mais diferentes, há uma
familiaridade na maneira como elas estão lado a lado. Uma
naturalidade no modo como a mão de Nelly desliza na de Ilia e
seus dedos se entrelaçam.
O ciúme floresce dentro de mim, tão amargo e abrangente
que me afasto, tentando sufocar a emoção antes que Bastian
perceba.
Como deve ser a sensação de ser capaz de sentir suas
emoções com tanta liberdade e naturalidade? Confiar no que
você sente por outra pessoa, sem a complicação de uma
maldição em seu caminho?
Quase não me lembro mais.
— Você vai ficar em um de nossos spas, se estiver tudo bem
— Ilia diz, chamando minha atenção de volta das minhas
profundidades amargas. — Achei que seria o lugar mais
adequado para uma rainha e seus acompanhantes.
— Acompanhantes? — Vataea começa a protestar, mas
Shanty a cutuca rapidamente.
— Depois de ver as vantagens que você está prestes a obter,
V, você não vai se importar como eles te chamam — ela
sussurra.
Meio distraída pela tagarelice ao meu redor, eu volto para
Ilia e aceno com a cabeça, tentando não parecer tão ansiosa
quanto me sinto com a ideia de não apenas ter algumas noites
longe de compartilhar uma pequena cabine, mas também estar
em um dos spas que meu primo Yuriel e tia Kalea sempre
elogiaram.
— As festividades também serão realizadas lá?
Os lábios de Nelly se curvam, me dizendo que devo ter
perguntado algo engraçado.
— Curmana se orgulha de ser a ilha mais tranquila e
relaxante possível — Ilia diz secamente. — Se você já esteve em
Ikae, então viu seu estilo de vida acelerado. Eles são frívolos;
tudo é uma festa para eles. — Minha língua fica mais afiada,
pronta para discutir, mas Ilia continua antes que eu tenha
chance. — As pessoas que visitam Ikae procuram
especificamente um gostinho dessa vida. Mas as pessoas vêm
aqui para relaxar. Sentir que todos os dias duram três e que
nunca há pressa. Os turistas vêm para experimentar nosso
estilo de vida tranquilo, uma chance de respirar. Nossos spas
são nossas áreas mais sagradas para isso; não queremos
perturbar esse ambiente com uma festa. Nossas festividades
acontecerão mais perto da água, ao longo da orla. Esses planos
vão funcionar para você, Vossa Majestade? — Seus olhos âmbar
brilhantes piscam para mim.
Mais do que qualquer coisa, gostaria de poder beber até ficar
boba e dançar nos braços de uma dúzia de homens bonitos,
rindo e me sentindo mais como eu mesma do que nunca. Mas é
como eles disseram, temos apenas três dias em Curmana.
Preciso maximizar meu tempo para encontrar Ornell.
— O plano é perfeito. — Eu sorrio apesar do cansaço que
pesa em meus ossos. — Essa noite vai ser maravilhosa. Só vou
precisar de algumas horas para me preparar. Prefiro não
cheirar a peixe ao encontrar essas pessoas pela primeira vez.
— Engraçado. — O tom provocador de Bastian me pega de
surpresa. Embora eu imaginei que ele ainda estaria bravo com
a ginnada, ele está sorrindo. — Devo cheirar a peixe o tempo
todo, então. Mas você nunca teve um problema com isso antes.
— Eu sou um peixe — Vataea interrompe. No início, sua
expressão é plana, e todos nós nos perguntamos se a
ofendemos. Mas então seus lábios se curvaram em um sorriso
malicioso. — Acho que as pessoas realmente gostam.
É chocante me encontrar relaxando com as risadas de todos,
e em dobro quando Bastian envia uma vibração branca e
quente pelo meu corpo, fazendo minha respiração engatar no
meu peito.
Bastian atrai minha atenção e meu coração dispara. Deuses,
as coisas que esse garoto faz comigo.
— Está tudo bem, Amora. Eu não estou bravo. — Seus olhos
aquecem sob os cílios escuros, mas eu tiro minha atenção para
longe. Não é justo que ele possa sentir o que estou sentindo
com tanta facilidade. Tenho que me concentrar enquanto Ilia e
Nelly nos escoltam até o spa onde ficaremos, afastando todos
os pensamentos sobre ele.
O interior do prédio é ainda mais lindo do que eu poderia ter
imaginado, construído com pedra natural cinza e piso de
ardósia entrelaçado com grandes seixos. Uma parede é
ocupada inteiramente pela maior lareira de pedra que já vi,
enquanto a outra é feita de musgo amarelo espesso, folhas
verdes ricas e hera escura que serpenteia em padrões
intrincados. Três pequenas cachoeiras fluem suavemente sob
as folhas, e o som relaxante é amplificado pelo grande espaço.
— Este é o spa? — Ferrick pergunta ceticamente, ao que
Nelly ri.
— Aqui é apenas o lugar onde fazer o check-in! Os spas estão
mais para trás no edifício.
Minha pele esquenta. Missão ou não, farei uma visita ao spa
antes de partir.
No momento em que alcançamos nossos quartos, eu
percebo que somos os únicos hospedados aqui. Temos todo o
andar só para nós, e Ilia e Nelly se apressam em nos deixar para
explorar nossos quartos, insistindo que há mais o que fazer
antes da festa desta noite.
— Você tem que experimentar os banhos — Nelly diz
animadamente antes que os atendentes tomem conta dela,
ajudando a carregar nossa bagagem em nossas suítes. — Já
deve haver um elaborado para você.
E, com certeza, enquanto caminho pelas lajes de piso de
pedra inacabada, encontro uma banheira perfeitamente
aquecida esperando por mim lá dentro, com uma coleção de
ervas flutuando sobre água fumegante. Pistas de capim-limão e
sálvia me atraem em direção à profunda banheira de pedra,
onde tentáculos de calor espiralam e lambem minha pele
enquanto me inclino para respirar os aromas.
Atrás da banheira, há uma parede de ferro com potes de
especiarias. Após uma inspeção mais detalhada, descobri que
cada um deles tem uma pequena etiqueta escrita em uma
caligrafia elegante, descrevendo conteúdos como sândalo ou
alfazema. Alecrim e sal marinho. Há tudo que eu poderia
imaginar e muito mais, óleos perfumados para pele e cabelo,
uma tigela de líquido quente e cintilante que promete que meus
cachos ficarão mais brilhantes depois de usá-la. Existem
poções e tônicos para limpar minha pele e depois reabastecê-
la, e uma parede forrada com produtos de beleza que fazem
meu coração disparar.
Existem potes de rouge em todas as tonalidades que posso
imaginar. Dezenas de itens para os lábios e kohl para os olhos.
Existem escovas e acessórios de cabelo, e absolutamente tudo
que eu poderia desejar. E se de alguma forma eu quisesse algo
que não está aqui, por mais impossível que pareça, há uma
corda no canto onde posso prender uma nota com o que
preciso; seja comida, bebida, água fresca para o banho, roupas
novas, um estilista, qualquer coisa. Se eu puxar vai alertar a
equipe.
Estrelas, não é de admirar que minha tia e meu primo
frequentassem este lugar. Eu viveria assim para sempre se
pudesse.
Arrepios rolam em minha pele nua quando eu entro na água,
e há um breve momento em que todos os pensamentos sobre
minha maldição e missão se dissipam. Eu não sou uma rainha.
Sou apenas Amora.
E com isso eu poderia me acostumar.
***
Não consigo imaginar que criatura silenciosa deve ter me
entregado enquanto eu estava tomando banho, mas quando
volto para o meu quarto, há uma coleção de roupas e joias
Curmanans dispostas na cama de dossel.
Não se parecem em nada com os vestidos extravagantes que
usei em festas no passado. Em vez de um material mais espesso
como crepe ou chiffon, as roupas são de linho confortável ou
seda macia como uma pena. Não há nenhum dos tops
rigidamente estruturados com os quais estou acostumada.
Tudo é fluido e elegante.
Embora não sejam totalmente extravagantes, os detalhes
embutidos nas peças são requintados, desde os intrincados
enfeites nos ombros até o pescoço profundo e as linhas das
costas. Um vestido de cetim quase não tem tecido nas costas,
apenas fios finos de ouro que o mantêm unido, brilhando como
uma teia de aranha úmida.
Além dos vestidos, também recebi terninhos como opção, e
sou imediatamente atraída por um feito de seda. A parte
superior é de um preto profundo com alças delicadas feitas
inteiramente de pequenas pedras de ônix, cortadas acima do
umbigo. Há uma capa leve descansando ao lado dela, cintilante
e tão transparente que eu me pergunto se ela foi feita para
fornecer algum calor.
Visto a calça combinando, cortada até os tornozelos. Elas se
espalham muito, tão confortáveis que fico irritada com Arida
por ainda não ter adotado esse estilo de moda. Por mais que eu
ame nossos vestidos justos e estruturados, ser capaz de comer
sem sentir que vou sufocar será um alívio bem-vindo.
Acabei de calçar sandálias de joias e prender meus cachos
de volta em algo que espero que pareça razoavelmente
elegante quando há um som na porta.
— Mais cinco minutos — eu digo, imaginando que deve ser
Casem do outro lado. — Eu ainda preciso colocar minhas joias.
Mas o som vem de novo momentos depois, tão baixo que mal
ouço desta vez, e percebo que não foi uma batida.
Alguém está mexendo na maçaneta.
Imediatamente meus pensamentos se voltam para os dois
homens que me atacaram em Kerost. Pego Rukan de sua bainha
na minha cama e agarro a adaga envenenada com força ao meu
lado, odiando o quão rápido meu coração dispara. Eu me
arrasto em direção à porta, todos os pelos do meu corpo
arrepiados e alertas.
Eu sou Amora Montara, Rainha de Visidia. Mesmo sem minha
magia, ainda posso lutar. E com Rukan, basta um corte
profundo o suficiente para que o veneno da lâmina se infiltre
na corrente sanguínea e acabe com a vida de alguém.
O pensamento me dá coragem para abrir a porta com minha
adaga em punho. Mas quando eu a levanto no ar e me preparo
para atacar, Bastian tropeça para trás, jogando-se contra a
parede.
— Estrelas! — Ele engasga com a palavra, a voz três oitavas
acima. — Eu pensei que tínhamos passado da fase de
esfaqueamento do nosso relacionamento!
Rukan se vira para liderar em minhas mãos e eu embainho
a lâmina.
— O que você está fazendo? Por que você não disse nada?
— Considerando nossa situação, achei que você teria me
sentido. — Endireitando-se, ele alisa as rugas de sua camisa
com uma careta. — Eu sei que você não está entusiasmada com
a nossa maldição, mas você poderia encontrar uma solução
melhor do que me matar?
Eu o ignoro, a raiva quente em minha garganta.
— Você estava me espionando?
— Claro que não. — Seus olhos se desviam, as mãos
flexionando ao lado do corpo. — Eu estava apenas... Estrelas,
eu estava colocando uma maldição na sua porta, ok? Depois do
que aconteceu em Kerost, percebi que um pouco de proteção
extra não faria mal.
Quase perco o fôlego com essas palavras, aquecendo a pele.
— Por que você simplesmente não me contou? Sou
totalmente capaz de...
— De se proteger? — Ele levanta seu rosto para o meu. —
Saber o que você diria é exatamente por isso que não te contei.
A princípio, jogo meus ombros para trás, na defensiva. Mas
então eu vejo que há sangue em seu dedo, e uma gota dele foi
manchada na maçaneta da porta. Embora eu queira ficar com
raiva dele, não há nada para ficar com raiva. Na verdade, mais
do que tudo, é o constrangimento que faz minha voz ficar baixa
e minhas bochechas quentes.
— Obrigada — eu murmuro, cruzando meus braços ao meu
redor. — E... eu sinto muito pelo outro dia. Eu não queria
perder a paciência.
Ele se acalma, os nervos agitando o ar.
— Você não precisa se desculpar. Eu deveria saber.
— Não havia nada para saber, certo? Apenas... entre e se
lave.
Só então eu me permito olhar totalmente para ele, e o calor
se estende pelo meu pescoço. Nunca o vi tão polido. Seus
ombros são largos e seu peito orgulhoso em um casaco de ônix
rico com botões dourados cintilantes e enfeites. Seu cabelo foi
alisado para trás, e sua pele marrom-dourada quente brilha por
causa dos óleos e cremes. Quando ele entra na sala, tudo que
posso pensar é que ele parece um homem totalmente diferente,
bonito e seguro de si.
Ele parece um nobre.
— Isso é cedro? — Eu me inclino e respiro o ar ao redor dele,
em busca da salmoura do mar que pertence a sua pele.
— É vetiver, na verdade. — Ele mantém o queixo erguido,
como se estivesse orgulhoso por eu ter notado. — Cheira bem,
huh?
Eu enrolo meu nariz.
— Não tem o seu cheiro.
Assim que as palavras saem, quero enfiá-las de volta na
garganta e engolir em seco. A surpresa que cintila nos olhos de
Bastian aquece minha pele com tanta força que temo que possa
queimar até as cinzas aqui e agora.
— Ah. — Bastian estala a língua, arqueando a sobrancelha.
— Então você gosta do cheiro de peixe.
Deuses, até seu sorriso parece diferente. Mais brilhante.
Mais nítido. Mais astuto. Ele brilha para mim, brilhando com
travessura que faz meu coração gaguejar. Sempre pensei que
Bastian era bonito, mas vê-lo tão limpo, vestido da cabeça aos
pés em um ônix rico e aveludado, faz coisas ao meu corpo que
eu preferia que não fizesse.
Esse não é o Bastian com o qual estou acostumada, o pirata
com um sorriso torto e travessura nos olhos.
Esse é Bastian Altair, o elegível solteiro visidiano que está
aqui para fazer sua presença conhecida.
Infelizmente para mim, funcionou. Meus dedos doem com o
desejo de pentear aquele cabelo polido dele e deixá-lo
selvagem novamente. Para desabotoar um ou dois botões da
sua camisa de ônix e ver o quanto dele brilha com óleo.
Estou feliz por um momento em me recompor enquanto ele
desaparece no banheiro para lavar as mãos, embora eu me
perca novamente no momento em que ele está de volta.
— Deixe-me acompanhá-la essa noite. — Sua declaração é
água fria contra minha pele. Sinto a pulsação ansiosa da sua
alma, mas ele não demonstra. Ele estende o braço e eu tenho
que me puxar para trás quando instintivamente o alcanço,
querendo desesperadamente tocá-lo.
— Joias — eu engasgo, precisando me distrair. Não é hora
de ter esses sentimentos.
— Joias? — As sobrancelhas de Bastian se franzem e se
firmam quando eu aponto para minha cama e a coleção de joias
colocada sobre ela. — Ah. Certo. Posso esperar no corredor se
precisar de mais algum tempo?
Ele começa a se afastar e, embora pela minha vida eu não
consiga entender por que, eu balanço minha cabeça antes que
ele possa chegar até a porta. O lábio inferior suga com força
entre os dentes, e minha voz me trai.
— Fique. Você pode me dizer qual fica melhor em mim.
— Tudo fica melhor em você. — Seu sorriso brilha com
charme. Quando eu não digo nada, no entanto, Bastian enxuga
as mãos rapidamente e se senta na beira da cama, esperando.
Corro os dedos pelas joias, fingindo contemplá-las para me
distrair. Mas, deuses, tudo que posso pensar é como estar tão
perto dele aquece o gelo em minhas veias. Não consigo parar
de pensar em como ele fica frustrantemente bonito com essas
roupas, mas também estou imaginando como ele fica fora
delas. Sem mencionar que ele está na minha cama.
Talvez meus sentimentos por Bastian sejam reais. É como se,
desde o momento em que o conheci, seu espírito tivesse
chamado diretamente o meu.
Espero que você dê o seu melhor com aqueles meninos, ele
desafiou. Porque você ficará extremamente desapontada
quando descobrir que nenhum deles sou eu.
Não há uma única parte de mim que não queira decolar em
Keel Haul e explorar Visidia com Bastian ao meu lado. Lembro-
me de momentos em que pensei que Bastian poderia ser isso
para mim, que ele entendia minha alma de uma forma que
ninguém mais seria capaz. Mas nossa maldição confundiu esses
sentimentos.
Eu posso muito bem estar apaixonada por Bastian Altair.
Mas até que nossa maldição seja quebrada, não posso confiar
em mim mesma para tomar essa decisão.
É tudo que posso fazer para afastar os pensamentos. Para
pegar o colar mais próximo e segurá-lo como se o tivesse
olhado o tempo todo.
— Esta? — Eu pergunto, só agora vendo que é uma elegante
corrente de prata com uma lágrima de pérolas pretas e brincos
combinando.
Ele leva um tempo para examiná-las, então acena com a
cabeça enquanto eu prendo os brincos, pérolas simples que
pendem de uma corrente de ônix, discreta e elegante. Quando
vou colocar o colar, no entanto, Bastian me observa lutar com
o fecho. Com pena das minhas tentativas, ele se levanta.
— Dê aqui. — Ele pega as joias delicadas em suas mãos
largas e calosas. Eu tremo quando elas roçam minha nuca, e
meus pulmões se contraem até que minha respiração fica baixa
e áspera.
Bastian não parece notar minha luta. Ele consegue prender
o colar rapidamente e ajusta-o para que fique reto.
— Aqui. — A rouquidão em sua voz faz coisas estranhas no
meu estômago. — Linda. — Mas ele não está olhando para o
colar e suas mãos não se movem dos meus ombros.
Cada parte de mim está simultaneamente gelada com
arrepios e me afogando em fogo, meu corpo em chamas sob seu
toque. Sob sua voz.
Eu não aguento mais um segundo.
Eu me viro e Bastian sabe exatamente o que eu quero,
porque ele também quer. Suas mãos firmes agarram meus
ombros e ele me puxa para seu corpo com cada grama de
desejo que turva o meu. Eu envolvo meus braços em volta do
seu pescoço, me odiando por beijá-lo, e me odiando por sempre
considerar o contrário. Eu volto para a cama e o arrasto sobre
mim. Eu não tenho forças para quebrar nosso beijo e
estremecer com um par de brincos que cravam nas minhas
costas, mas Bastian tenta varrer tudo de lado do mesmo jeito.
Por medo de quebrar esse momento, nenhum de nós diz
uma palavra. Uma palavra errada, uma respiração errada, um
olhar errado e tudo estará acabado.
Seus lábios encontram a curva do meu pescoço e eu exalo
um suspiro de satisfação enquanto meu corpo ameaça derreter
sob o peso reconfortante dele. Seus lábios traçam padrões
delicados contra a minha pele no início, mas quanto mais
tempo dura, mais gananciosos e desesperados nos tornamos.
Beijando um ao outro. Tocando-se. Segurando um ao outro.
Mas então ele diz:
— Você tem certeza disso? — E nós recobramos.
Minha pele queima enquanto meus pulmões se esticam e se
enchem, respirando muito mais fácil do que quando ele e eu
estamos separados. Se eu pudesse me enrolar nesta cama com
sua pele contra a minha por uma eternidade, eu o faria.
Corro minha língua sobre os lábios secos, tentando
encontrar as palavras certas, embora não tenha certeza do que
quero. Minha força de vontade em torno de Bastian é péssima.
— Entendo. — Ele me poupa de ter que responder sendo o
primeiro a falar. Gentilmente, seus dedos deslizam pelos fios de
cabelo que se soltaram do meu penteado. Ele gira um dedo em
torno de um dos meus cachos. — Posso não ter sido
amaldiçoado por uma pessoa, mas fui amaldiçoado por Keel
Haul, lembra? Por mais que eu ame aquele navio, minha
maldição me fez ressentir-me dela. Eu não quero isso para nós.
— Eu sei que o que você está sentindo é assustador — ele
continua, mudando de posição para ficar mais ao meu lado do
que em cima de mim. — Mas precisamos trabalhar juntos se
quisermos superar isso, Amora. — A forma como meu nome
soa em seus lábios atiça um fogo voraz dentro de mim. — Quer
você goste ou não, estou nessa confusão com você. Você não
precisa colocar o peso do mundo sobre seus próprios ombros.
Deixe-me carregar um pouco também.
— É mais fácil falar do que fazer. — Eu me afasto dele, mas
ele segura meu ombro, implorando por meu olhar. Eu não dou
a ele. Se eu fizer, temo que possa me destruir completamente.
— Talvez seja mais fácil para você — diz ele. — Mas,
estrelas, eu preciso de ajuda também. Só que, ao contrário de
você, não tenho medo de admitir. Depois de tudo o que
aconteceu, às vezes parece que o mundo vai desabar sobre mim
a qualquer momento. Mas estar com você me estabiliza. Sei que
você queria espaço e tentei ao máximo dar isso a você. Mas não
posso fazer isso, porque estar separado não machuca apenas
você. Eu tentei tanto estar lá para você, e lhe dar tempo, mas eu
preciso de alguém para estar lá para mim.
Não consigo imaginar a força necessária para admitir essas
palavras. Mesmo assim, não consigo olhar para ele. Eu aperto
minhas mãos no tecido da minha calça.
— Você não tem que me amar. — Sua voz é mais gentil dessa
vez, tão suave que é pouco mais que um sussurro. — Você não
tem que fazer nada. Mas precisamos um do outro agora, e
passamos por muito para nosso relacionamento vacilar por
causa de uma maldição que vamos consertar, juntos.
O apelo em sua voz é o suficiente para tirar o fôlego de mim.
O peso do seu corpo não é mais um conforto, é sufocante. Eu
me liberto de Bastian e agarro meu peito apertado.
Os lados da sala se estendem para dentro, até que tudo que
consigo ver é um túnel à frente. Minha respiração fica rápida e
difícil, e meu corpo está muito pesado e muito frio para que eu
seja capaz de me concentrar o suficiente para fazer qualquer
coisa a respeito.
Eu não posso mais ver Bastian no fim daquele túnel, embora
em algum lugar no fundo da minha mente eu saiba que ele
ainda deve estar sentado na minha frente. Em vez disso, vejo
meu pai morto no chão. Vejo Kaven sorrindo para ele, uma
lâmina gotejando com o sangue de meu pai levada aos lábios.
Quando eu vejo Bastian, é ele convulsionando no chão, olhos
revirados em seu crânio enquanto uma multidão de mortos
enxameia ao redor dele, assistindo com fome em seus sorrisos.
Então, tudo que vejo é o sangue, tecendo-se sobre minha
visão.
Vermelho.
Vermelho.
Vermelho.
Vermelho.
Há sons agora, vindos do túnel. Não consigo decifrá-los no
início, mas eles ficam cada vez mais altos até estarem batendo
contra meu crânio como as marteladas dolorosas de um Kerost
lutando.
Tento afogá-los, cantarolando baixinho uma familiar cantiga
do mar, tentando firmar o ritmo. Tento me concentrar nisso em
meio ao bater dos martelos, mas continuo me perdendo. Eu
continuo perdendo…
O peso repentino em meu corpo é suficiente para me fazer
pensar. Para fazer o túnel se expandir um pouco enquanto os
martelos param de bater. A gritaria que ouvi fica mais clara e
reconheço agora que não sou a única a cantarolar.
O túnel se quebra.
Bastian me segura com força por trás, os braços em volta do
meu peito.
— Está tudo bem — ele diz com uma firmeza calmante. —
Está tudo bem, estou bem aqui.
Eu envolvo minhas mãos em torno de seus braços e afundo
em seu peito enquanto o tremor acalma e o aperto em meus
pulmões diminui. Ele continua cantarolando a cantiga quando
não posso mais continuar, sem precisar ser questionada. Meu
corpo é conduzido contra o dele, tão pesado e cansado que mal
posso me mover. Mas pelo menos eu posso ver de novo. Pelo
menos estou de volta à realidade.
— Você está comigo? — Ele pergunta, ao que consigo um
grunhido baixo em resposta. A tensão em seus ombros relaxa
um pouco e ele afrouxa o aperto. Eu aperto o meu em resposta,
ancorando-me de volta na realidade e longe das memórias que
tenho tentado desesperadamente manter arquivadas na fenda
mais distante da minha mente.
— Não tenha pressa — sussurra Bastian. — Só respire.
Podemos ficar assim a noite toda se precisarmos.
E embora eu saiba que ele está falando sério, também sei
que ele está errado. Porque eu não sou uma turista aqui para
uma viagem de spa, eu sou a Rainha de Visidia, e há uma ilha
inteira me esperando essa noite.
Não há nada que eu queira mais do que permanecer
exatamente assim pelo resto da noite. Imóvel, protegida e
inteira, escutando o som calmante desse menino cantarolando
espetacularmente desafinado. Não sei se consigo me mover
fisicamente. Até mesmo respirar dói, e minha visão ainda está
tão turva que me preocupo que nunca vai se normalizar. Mas
não posso me dar ao luxo de ficar sentando em meus
sentimentos, não importa o quanto eu precise.
— Eu tenho que me levantar — digo a Bastian, embora
nenhum de nós dê qualquer passo para se mover. Em vez disso,
ficamos sentados lá por mais um longo e silencioso momento
antes que ele finalmente se mexa.
— Foi isso que aconteceu alguns dias atrás? Quando você viu
a ginnada?
Eu engulo o nó que diminui lentamente na minha garganta.
— Aconteceu algumas vezes. — Tenho medo de que ele peça
mais detalhes, como as coisas que vejo quando isso acontece,
mas ele não pede. Em vez disso, ele pressiona um beijo na
minha têmpora, ainda me embalando.
— Lamento que você esteja passando por isso, Amora. Mas
estamos todos aqui para ajudá-la.
Não tenho certeza de quanto tempo ficamos sentados lá,
mas Bastian me segura até que meus músculos relaxem, a
tensão diminuindo. Meu corpo dói enquanto me forço a rolar
para fora de seu peito e me levantar, trêmula. Ele está de pé em
um segundo, esperando para ver se preciso dele enquanto
arrumo meu cabelo despenteado e aliso minhas calças.
Olhando no espelho, vejo que meus lábios estão inchados e
meus olhos vermelhos e inchados. Mas na escuridão da noite,
tenho esperança de que ninguém seja capaz de dizer.
Quando estou pronta, seguro o braço oferecido por Bastian
e o deixo me conduzir pelo corredor, grata por sua presença.
Meu corpo parece que usou demais da minha magia, me
exaurindo completamente. Eu concentro minha energia em
cada passo, esperando que com um pouco de comida e
distração de meus próprios pensamentos, eu seja capaz de
relaxar o suficiente para participar das festividades desta noite.
— Você consegue — ele diz, e tento mergulhar nessas
palavras. Para envolvê-las em torno de mim como uma
armadura. — Eu estarei lá se você precisar de mim.
— Obrigada. — Eu aperto seu braço, apenas uma vez, e sinto
seu corpo ficar relaxado. — E eu posso tentar estar lá também.
Sua expressão se suaviza e ele olha para frente, sabendo,
assim como eu, que não há como voltar atrás agora. Não dele, e
não das centenas de solteiros famintos pelo título de rei
enquanto nos jogamos na briga.
CAPÍTULO DEZOITO

As festas em Curmana estão longe de ser os eventos


barulhentos e agitados a que estou acostumada.
Não há comerciantes empoleirados atrás de barracas de
ginnada doce e açúcar. Nada de cozinheiros com suor nas
sobrancelhas enquanto distribuem espetos de carnes recém-
assadas ou sobremesas geladas esmaltadas, e nada de risadas
desinibidas de foliões dançando que se aglomeram em torno de
barris de vinho e cerveja que se enfileiram nas ruas.
Em vez disso, há curmanenses vestidos com elegantes
vestes de ônix que usam magia de levitação para fazer flutuar
pequenas porções de comida e taças moderadamente cheias de
vinho tinto espumante ao redor da multidão. Substituída pela
bateria alta e trompas que estou familiarizada, está um
harpista que está posicionado em um canto, tocando uma
música que é tão suave e bonita que poderia facilmente cair no
sono com ela. Quase ninguém fala, e quando o fazem, suas
vozes são suaves e baixas, oferecidas apenas com o mais
educado dos sorrisos.
Em Arida, não chamamos isso de “festa”.
Minha pele arrepia com o silêncio.
— Por que ninguém está falando?
— Eles estão. — Bastian dá uma olhada superficial ao redor
da baía, olhando de solteiro em solteiro faminto. A tensão em
seus ombros aumenta. — Só não em voz alta. Falar pela mente,
lembra?
Deuses, só posso imaginar as coisas que estão dizendo sobre
mim. Eu gostei da magia da mente quando Mira a usou; ela
sempre tem as melhores fofocas para compartilhar sobre o
reino. Mas, deste lado, é possivelmente a minha magia menos
favorita de todas.
Vejo Ferrick conversando com uma Nelly sorridente, que
olha furtivamente para trás dela de vez em quando para
Vataea, de quem Ferrick está claramente falando. Seu rosto
inteiro está vermelho quando Nelly se inclina e sussurra algo
para ele de forma conspiratória. Ferrick acena com a cabeça,
ouvindo atentamente qualquer conselho romântico que ela
deve estar oferecendo.
Ilia está ao lado deles, ouvindo com apenas uma
peculiaridade de diversão em seus lábios. Enquanto Nelly está
vestida com um lindo vestido preto com toques de esmeralda
brilhante, Ilia usa um terno de ônix aveludado e uma rica capa
combinando. Seu cabelo foi preso em uma longa trança que cai
sobre um ombro, enquanto o de Nelly foi elegantemente
enrolado e empilhado no topo de sua cabeça de uma forma que
não deveria funcionar, mas milagrosamente funciona.
Enquanto Ferrick usa roupas semelhantes às de Bastian, a
cor áspera torna sua pele pálida, quase fantasmagórica. Alguns
metros à frente dele está o foco de seu interesse: Vataea está ao
lado de Shanty, que pegou uma bandeja inteira de comida de
um dos trabalhadores e a segura entre elas enquanto bebe
vinho espumante.
Uma multidão de admiradores permanece ao redor delas,
lançando olhares esperançosos para as garotas, alguns criando
coragem para convidá-las para dançar. Vataea parece
positivamente feroz no vestido de seda que fica em seu corpo
como uma segunda camada de pele. Acostumada a
temperaturas mais baixas, ela negligenciou qualquer forma de
casaco ou capa, mostrando toda a extensão de um decote
profundo e finas alças de diamante. Shanty escolheu ignorar a
cor e o estilo característicos de Curmana a favor de encantar
seu próprio vestido colante para ser um lilás tão surpreendente
quanto seus cabelos e olhos. O vestido curto abraça suas curvas
ferozmente, e ela se deleita com a atenção que está recebendo.
Atrás delas, vejo Nelly dar um pequeno empurrão em
Ferrick, e ele vai até as duas garotas quase arrastando os pés a
cada passo. Ele parece um peixe fora d'água, mexendo na gola
da camisa como se estivesse muito apertada. Porém,
eventualmente, ele chega à Vataea, falando palavras que não
consigo ouvir com as bochechas que estão vermelhas como
vinho. Mas elas a fazem sorrir e, no momento em que ele
estende a mão, ela a agarra. Vataea praticamente o arrasta para
a pista de dança.
É o pequeno impulso moral que preciso para tirar meu braço
de Bastian enquanto nos aproximamos da festa.
Imediatamente minha pele esfria com o frio de sua ausência, e
leva tudo de mim para não estender a mão novamente.
— Guarde uma dança para mim. — Há uma tensão em seu
sorriso que enruga os cantos dos olhos. — Estarei por perto.
Ele desaparece na multidão enquanto Nelly se aproxima de
mim. Casem segue atrás dela, parecendo um guarda adequado
com o emblema real brilhando em seu ombro. Ou tão
apropriado quanto poderia parecer, suponho, já que está
segurando um prato com cinco espetos de carne.
— Não é lindo? — Há emoção transbordando na voz de Nelly
quando ela inclina a cabeça para admirar as centenas de
lanternas brancas e cintilantes que pairam no céu ao nosso
redor. Eles são como pequenas estrelas, sustentadas pela
magia da mente e balançando agradavelmente com a brisa. —
Fale sobre a iluminação do ambiente. A cena está armada, os
homens estão aqui e agora a senhora de honra finalmente
chegou. Você está pronta para sua grande noite?
Atrás dela, os lábios de Casem se contraem em um sorriso
divertido e conhecedor enquanto ele morde um pedaço de um
espeto. Eu o ignoro.
— Estou explodindo de animação. — Eu aceno para um dos
Curmanans que trabalham, que responde usando sua magia
para flutuar sobre uma massa folhada ridiculamente pequena
com creme doce. Embora delicioso, tudo é comida de conversa,
muito pequena e saborosa. Vou precisar de cerca de cinquenta
trabalhadores que levitam bandejas do meu jeito se vou
conseguir o suficiente para uma refeição.
Outro bolo flutua em minha direção, e eu salto quando este
explode na minha língua não com creme, mas com deliciosa
carne cozida. O trabalhador ri da minha reação e, de repente,
estou cercada por pastéis que dançam ao meu redor, apenas
esperando para serem arrancados do céu.
Que serviço. No momento em que procuro mais, no entanto,
Nelly franze a testa e segura minha mão.
— Haverá tempo para comida mais tarde. — Ela me puxa ao
lado dela com um aperto surpreendentemente firme, nos
guiando em direção à festa com determinação brilhando em
seus olhos. A excitação vibra em sua pele enquanto ela me puxa
direto no meio da multidão e para a beira de um mar
turbulento de pessoas.
Casem está se esforçando para acompanhar enquanto Nelly
solta minha mão para bater palmas ruidosamente.
— Estimado povo de Curmana — ela começa com um
sorriso largo. — Esta noite, tenho o prazer de anunciar a
convidada de honra desta festa, a Rainha de Visidia, Sua
Majestade Amora Montara.
Todos os olhos se voltam para mim. As conversas verbais
diminuem à medida que as costas se endireitam. Os queixos se
levantam e os peitos incham enquanto olhos avaliadores
vagam sobre mim. Eu faço o meu melhor para não encarar
ninguém cujo olhar persiste por muito tempo ou parece estar
com muita fome. Aqui em público, aos olhos de todos, serei
educada. Cara a cara, no entanto, não sou responsável por
minha adaga acidentalmente roçar aqueles que me olham
como se eu fosse um prêmio a ser conquistado, ou por quantas
vezes eu piso em seus dedos do pé.
Quando a multidão se abaixa em uma reverência, eu
educadamente dispenso seu gesto. No passado, eu teria me
deleitado com a exibição deles, deixando seu respeito tomar
conta de mim e me encher de orgulho. Agora, quando eu olho
para eles, tudo que vejo são os rostos dos mortos olhando de
volta.
Quantas dessas pessoas perderam entes queridos durante o
ataque de Kaven? Durante as tempestades em Kerost?
Eu sou uma mentirosa que não deveria estar aqui, os
Montaras nada mais são do que uma fachada, não são mais
poderosos do que qualquer pessoa. A besta sobre a qual meu
grande ancestral Cato uma vez nos advertiu nada mais era do
que um estratagema para que ele ganhasse o poder.
E, no entanto, essas pessoas se curvam a mim, porque
nenhuma delas sabe a verdade.
Eu faço tudo que posso para me fincar na terra, lutando
contra a vontade de me virar e fugir dos olhos que me
observam. Mas Ornell pode estar aqui nesta multidão, e vou
manter essa farsa até encontrá-lo, não importa o que aconteça.
Cato Montara era um covarde. Tia Kalea era uma covarde.
Meu pai era um covarde.
Eu não serei.
— Por favor — eu digo com o que espero que soe como uma
risada gentil. — Não há necessidade disso esta noite. Você vê
uma coroa na minha cabeça? — Eu espero, sorrindo. — Me
chamem de Amora. E com o passar da noite, espero ter o prazer
de conhecer cada um de vocês. Não como sua rainha, mas... —
Eu protelei, respirando fundo para me fazer parecer um pouco
nervosa. Eu pressiono meus lábios juntos, e em seguida, olho
para eles por baixo dos meus cílios, desempenhando o papel da
rainha amigável, recatada e na esperança de encontrar seu rei.
— Como eu sou.
Casem se aproxima para ser minha escolta até a costa, seus
lábios se curvando em diversão, o que eu considero significar
que estou fazendo meu trabalho direito. Ele coloca a mão no
meu ombro e encara a multidão para se dirigir a eles ele
mesmo, tendo de alguma forma feito seu prato de comida
desaparecer.
— Como todos sabem, Sua Majestade está procurando um
pretendente. Alguém que será rei. — Ele balança as
sobrancelhas, e tento não engasgar, porque não há como um
solteiro qualquer que eu conhecer pudesse se tornar o rei de
Visidia como se fosse uma competição.
Não quando eu treinei por tanto tempo e tão duro para isso,
e ainda não tenho a menor ideia do que estou fazendo na
metade do tempo. E ainda assim mantenho aquele sorriso
colado aos meus lábios para salvar a vida enquanto Nelly se
junta a nós.
— A noite é jovem — diz ela — e todos terão sua vez. Então,
por favor, sejam pacientes e que as festividades comecem!
Gentilmente, Casem aperta minha mão e me conduz pelas
etapas restantes.
— Certifique-se de obter um pouco de vinho — diz ele como
forma de encorajamento. — Você vai precisar.
***
Casem não estava mentindo.
Embora eu esperasse mais namoro e menos política, depois
de três horas e duas taças de vinho espumante, eu dancei meu
caminho de um homem para o outro, tendo ouvido pelo menos
uma dúzia me contar como eles se encaixam para ser rei e todas
as mil coisas que estou fazendo de errado com Visidia.
Até agora, ninguém chamado Ornell foi encontrado em lugar
nenhum.
Como esperado, a maioria desses solteiros são tolos o
suficiente para acreditarem que podem me conquistar com
uma língua esperta, mas eu não lhes dou tempo para se
ouvirem falando. Há muitas pessoas aqui esta noite, mas
apenas uma eu preciso encontrar. Eu tenho que continuar
andando.
— Acho que as forças de Visidia precisam de um
treinamento regimentado mais forte — um dos homens me
disse. Nelly o apresentou como Lorde Gregori. E porque ele está
conectado com a nobreza, não importa o quão distante, isso
aparentemente deu a ele a crença de que ele tem o direito de
agir como um imbecil pomposo. Ele está por volta dos vinte e
poucos anos, com a pele branca como a neve e ondas louras que
deve ter passado muito tempo penteando com perfeição. —
Depois de tudo isso ter acontecido no ano passado, acho que é
hora de nos prepararmos melhor. Devemos começar com
rascunhos obrigatórios e procurar criar armas de longo
alcance mais eficazes. Tenho um diagrama de uma que acho
que você gostaria, operada com pólvora. Imagine um canhão de
mão...
— Fascinante. — Corto seus pensamentos com um aceno de
mão. — Diga-me, você conhece alguém com o nome de Ornell?
Ornell Rosenblathe?
Nariz franzido de aborrecimento, ele balança a cabeça.
Quando ele começa a falar novamente, eu termino meu vinho e
sinalizo para alguém para o que será minha terceira taça e mais
folhados, abafando as palavras arrogantes do menino. Ele não
parece notar, tagarelando sobre as armas que espera criar e
sobre como deve haver um orçamento melhor para seu
desenvolvimento. Coloco um dos pastéis flutuantes na boca e
pulo de surpresa com o novo sabor.
— Este é de hortelã! — Eu digo a ele em voz alta, feliz por
finalmente ter uma distração razoável.
Seus olhos se estreitam em ofensa.
— Com licença?
Aponto para a massa folhada restante e dou uma mordida
antes de mostrar a ele a geleia verde que escorre de dentro,
então tomo outro gole de vinho.
— É geleia de menta. Você gostaria de experimentar? —
Estendo a metade restante da massa folhada e seus olhos
passam rapidamente para a minha taça de vinho e voltam. Seus
lábios se curvam.
— É bom ver que nossa rainha está levando seu namoro a
sério.
As palavras são tão ridículas que não consigo evitar de rir.
Sim, posso estar um pouco confusa com o vinho, mas ainda
tenho o meu juízo sobre mim. Afinal, estou em uma missão.
— E é bom ver que não faltam homens que pensam que são
mais qualificados para o meu trabalho do que eu — digo
casualmente. — Diga-me, você nasceu com seus delírios de
grandeza, ou você estudou para ser assim?
A boca de Gregori caiu aberta, mas em sua surpresa,
nenhuma palavra conseguiu sair. Até mesmo o ploc ploc
tranquilo do meu espumante é mais alto do que ele quando
tomo outro gole e digo a ele:
— Passei todos os dias durante dezoito anos treinando para
usar minha coroa. Fui eu quem derrotei Kaven e acabei com a
ameaça a Visidia. Então, por favor, continue a me menosprezar.
Conte-me tudo sobre suas armas idiotas e como elas resolverão
nosso conflito político. — Eu coloco minha taça de vinho vazia
em suas mãos. — Na verdade, pensando bem, prefiro que não.
Com licença.
Eu o deixo sem olhar para trás, irritação queimando minha
pele. Meio ano atrás, eu teria amarrado aquele menino pelos
dedos por zombar tanto da coroa. É uma pena que não tenho
mais essa opção.
Não é que eu estivesse ansiosa por isso, mas estrelas, eu
presumi que haveria pelo menos um pouco mais de dança e
flerte. Teria sido bom ter até mesmo um pequeno adiamento
de ser forçada a considerar e discutir as mudanças que
acontecem dentro do reino.
— Sorria, Amora — resmungo para mim mesma. — Ria,
Amora. Faça com que eles amem você, porque os padrões são
diferentes para nós, Amora.
No meio da multidão, avisto um homem baixo e atarracado
vestido da cabeça aos pés em um azul pastel suave. Não tenho
ideia de que tema ele está procurando com seu guarda-roupa,
mas a estranheza de sua gola e ombros largamente bufantes
são o suficiente para saber que ele é de Ikae. Seus olhos
amarelos capturam os meus brevemente antes de girar atrás
de mim, para onde um Gregori enfurecido ainda está com
minha taça de flauta apertada em sua mão.
Quando o Ikaean anota algo em um pedaço de pergaminho,
eu cerro os dentes para manter minha carranca, sabendo
imediatamente que ele é um dos repórteres sobre os quais
Shanty nos alertou. E estou contando a ele uma ótima história.
Com o coração apertado, tento acenar para um trabalhador
quando bato com força no peito de alguém. Eu tropeço para
trás, mas o homem segura minha mão antes que eu possa cair,
me firmando.
— Cuidado — ele diz, a voz profunda e rouca. — Eu não
gostaria de ter problemas por acidentalmente ferir a rainha.
Eu olho para um rosto que é surpreendentemente familiar:
Lorde Elias, o irmão mais novo de Lady Ilia e o homem que ela
enviou para substituí-la durante a reunião de aconselhamento
de Arida.
Ele tem um queixo duro e quadrado e ombros largos. Focada
na reunião, não prestei tanta atenção nele da última vez que o
vi. Tão perto, porém, seu rosto é bonito o suficiente para deixar
minha boca seca. Eu pressiono meus lábios, tentando me
recompor enquanto eu olho para os profundos olhos de
espuma do mar que são lindos contra sua pele bronzeada. Ele
se eleva sobre mim, dando um sorriso malicioso que me faz
notar a barba por fazer que estou surpresa por querer tocar.
— Você seria jogado nas prisões por isso — me pego
dizendo, forçando as palavras a saírem. Meu estômago vira
quando ele ri, baixo e profundo. Eu quero ignorar isso, mas não
posso deixar de sentir a familiaridade que me atinge com força.
Ele me lembra um Bastian loiro, forte e largo, com uma risada
profunda e uma voz rouca.
— Certamente você viria para pagar a minha fiança? — Ele
provoca. — Eu sei que minha rainha é muito benevolente para
permitir que eu apodreça no subsolo.
Eu finjo considerar isso, olhando para ele.
— Parece que você não conhece sua rainha. Mas, vou te dizer
uma coisa: Posso ajudá-lo com esse problema, se você me
ajudar a encontrar outro copo de...
— Espumante? — Nelly está atrás de Elias, brilhando tão
intensamente quanto a lua enquanto pressiona taças de vinho
rosa borbulhante em nossas mãos. — Estou tão feliz em ver
vocês dois conversando. Essa pista de dança com certeza está
um pouco vazia, no entanto...
A risada de Elias é baixa e tingida de estranheza.
— Desculpe-me pela minha cunhada. — Ele lança um olhar
para ela, franzindo as sobrancelhas. — Ela está tentando me
empurrar para alguém o ano todo.
— Eu só estou tentando ajudar — ela diz inocentemente
entre goles de vinho. — Você precisa de uma boa garota em sua
vida, Elias.
— E sou perfeitamente capaz de encontrar uma sozinho,
garanto-lhe. — Ele suspira, me encantando completamente
com a forma como suas bochechas ficam rosadas. Ele é rápido
em estender sua taça para mim. — Independentemente disso,
Vossa Majestade, espero que isso resolva nossa reclamação.
— É um começo. — Eu bato minha taça contra a dele, minha
própria pele aquecendo enquanto Nelly lentamente se afasta.
— Vou deixar vocês dois sozinhos, então. — Ela começa a se
retirar para a multidão, onde Ilia rapidamente pega a mão dela.
Há uma expressão severa e séria no rosto da conselheira
enquanto seu foco muda para mim por pouco mais do que
alguns segundos.
Os lábios de Nelly pressionam juntos. Ela gentilmente retira
o braço, murmurando algo sob sua respiração que eu não
consigo entender. É claro que elas estão discutindo, embora
façam em voz baixa para não chamar a atenção para si mesmas
enquanto desaparecem na multidão.
Embora minha curiosidade aumente, não há nada que eu
possa fazer sobre isso quando vejo o repórter Ikaean
demorando-se no canto da minha visão. Eu considero Elias. Ele
é tudo o que o povo de mamãe e Visidia compraria: carismático,
bonito e de sangue nobre. E com o repórter assistindo, sei que
minha chance de descobrir o que as duas estavam discutindo já
passou. Não há espaço para política esta noite, e como Ornell
não está em lugar nenhum, posso muito bem dar um show a
Visidia.
— Devo admitir, não esperava que estivesse aqui esta noite,
Lorde Elias. — Eu deixo minha voz mais suave. Meus olhos mais
gentis. — Você nunca me pareceu alguém interessado na coroa.
— Eu nunca tinha pensado nisso — diz ele com um encolher
de ombros fácil, mordendo a isca e se acomodando em um lugar
confortável ao meu lado. — Mas depois de encontrar você em
Arida, decidi que estava interessado em quem usava a coroa. Eu
pensei: por que não tentar esta noite e ver se havia uma
conexão?
— Engraçado — eu digo. — Você não parecia muito
interessado antes.
— Você acredita que eu sou extremamente tímido? —
Mostrando ou não, seu sorriso quase me estrangula. Não
importa com quantos homens eu conversei esta noite,
nenhuma vez fui capaz de tirar Bastian da minha cabeça. Eu
comparei cada novo rosto com o dele. Cada voz com a forma
como suas palavras fazem meu estômago revirar. Cada par de
olhos mostra a maneira como gosto de olhar para ele.
Até agora, ninguém foi sequer comparável.
Mas Elias é pelo menos semelhante. Tanto é que se eu não
olhar para ele muito de perto ou ouvir muito atentamente, ele
pode ser uma distração maravilhosa.
— Você sabia que o nome Amora significa "lindo sol"? —
Sem ter dado um gole, ele trocou seu espumante por vinho
tinto. — Você também é assim. Radiante e bela, como uma bola
gigante de luz do sol.
Eu pretendia tomar apenas um gole de vinho para manter a
cabeça reta, mas engasgo ao inclinar o copo para trás,
engolindo acidentalmente um gole gigante que quase sai do
meu nariz.
— Sangue dos deuses, onde você ouviu isso?
Um sorriso tímido brinca nos lábios de Elias.
— Eu não ouvi. Mas é isso que deveria significar.
E deuses, eu rio, mesmo que seja principalmente por causa
do álcool e do ridículo do meu nariz em chamas.
— Quantas vezes você já tentou cortejar uma garota com
essa fala ridícula? — Dou-lhe uma cotovelada provocante em
seu intestino, e ele esfrega com uma risada profunda.
— Eu prometo que um foi feito especificamente para você.
A música cresce no ar ao nosso redor, não mais
dolorosamente suave e lenta. Acelera o suficiente para que
outros encontrem seu caminho para uma pista de dança
improvisada na areia, parecendo tão estupefatos que acredito
que eles nunca dançaram antes. Quando espreito Elias, prestes
a pedir-lhe para se juntar a mim, a sua mão já está estendida na
minha direção.
— Senhoras com quem dancei no passado me disseram que
tenho dois pés esquerdos — diz ele com um sorriso torto. —
Mas nunca tive certeza se deveria acreditar nelas. Você se sente
qualificada para fazer essa avaliação?
Esse aqui é um falamansa.
Não paro para considerar a oferta porque, se o fizer, posso
pensar melhor. Eu deveria ir para a próxima pessoa, caçar
Ornell. Mas talvez seja porque eu sei que preciso dar um show,
ou talvez porque ele apenas me fez rir tanto que quase
engasguei. Ou talvez seja porque ele me lembra Bastian, ou
como durante a noite de volta a Arida, quando eu fingi minha
magia para os conselheiros, ele foi o único que não se virou com
horror. Seja qual for o motivo, eu pego sua mão.
Todos os olhos estão em nós enquanto ele me leva para a
pista de dança, incluindo, tenho certeza, os de Bastian. Mas não
me permito pensar nele.
Eu endureço quando Elias coloca suas mãos em meus
quadris, arrepios crescendo na minha pele. Eu coloco uma mão
no braço que segura minha cintura, e a outra em seu ombro
largo, me aproximando dele. A música, embora mais rápida do
que antes, ainda é lenta e elegante o suficiente para nos manter
nos braços um do outro.
O aperto de Elias é forte e confortável, familiar mesmo
quando ele não é. Eu me encontro relaxando enquanto
dançamos, o mundo lentamente se transformando em um
borrão de luzes e joias. Elias certamente não tem dois pés
esquerdos; ele é um excelente parceiro de dança e um
conversador ainda melhor. No começo, sou capaz de
acompanhar seu humor, mas quanto mais dançamos, mais
lentos e gelatinosos meus membros se encolhem. Meus pés
ficam lentos e o borrão de luzes e joias não é o mais bonito, mas
doloroso o suficiente para fazer-me retesar. Mesmo quando
paro de me mover, o mundo ao meu redor continua girando.
Estrelas, devo ter bebido mais álcool do que pensava.
No momento em que a música termina, eu me afasto de
Elias, sem fôlego e suando. Essa não é minha primeira vez
bebendo, eu sei como é quando estou chegando perto do meu
limite. Fiz questão de comer e andar, mas não deve ter bastado.
— Eu tenho que parar — eu consigo dizer. — Eu sinto muito.
Embora seus olhos se arregalem um pouco, fico feliz em ver
que Elias não parece ofendido.
— Não se preocupe com isso. Você está parecendo doente,
no entanto. Existe algo que eu posso…
Eu balanço minha cabeça, não querendo que ele me veja
assim.
— Você é um adorável parceiro de dança, mas devo aos
outros continuar com as apresentações. — Agora que paramos
de dançar, o mundo se acalmou um pouco. Minha visão ainda
fica embaçada nos cantos e, se me movo muito rápido, meu
equilíbrio oscila, mas está melhor. — Por que você não me
encontra amanhã? Eu poderia precisar de alguém para me
mostrar a ilha. — Mesmo com a cabeça leve, não perco a
maneira como seu peito incha, e eu rio baixinho de sua
ansiedade.
— Eu ficaria honrado. — Ele não perde o ritmo. — Vou
esperar aqui por volta do meio da manhã?
Não tenho chance de responder. A queimadura de bile sobe
em minha garganta, e eu fecho meus olhos para acalmá-la,
senão estou prestes a fazer papel de boba diante de toda a ilha.
— Vossa Majestade? Você tem certeza de que não há nada
que eu possa…
— Você pode sair do caminho e dar a ela um pouco de ar.
Pela onda imediata de calor e alívio que me inunda, eu sei
que a voz pertence a Bastian. Abrindo meus olhos novamente,
vejo que ele está ali diante de mim, colocando um copo d'água
em minhas mãos. Quando Elias hesita, os olhos de Bastian
brilham sombrios, a voz baixando para um rosnado.
— Vire-se e vá embora. Você vai chamar a atenção se
continuar olhando.
Mas é tarde demais para isso. O repórter Ikaean no canto
está trabalhando sua mágica no pergaminho em suas mãos, e
tenho certeza de que há uma dúzia de outras pessoas que não
consigo ver que estão fazendo o mesmo.
— Vejo você amanhã, Elias — digo com urgência, tentando
sorrir, mas falhando miseravelmente quando uma nova onda
de náusea rola sobre mim. Felizmente, ele entende a dica e
inclina a cabeça antes de recuar.
— Amanhã então. Fique bem, Vossa Majestade.
No momento em que ele vai embora, eu balanço, mas não
caio. As mãos de Bastian estão em meus ombros, me firmando.
Pela expressão em seu rosto, fica claro que ele está me
assistindo a noite toda. Não que eu esperasse que ele não fosse.
— Bem, você certamente tem um tipo. — Embora um pouco
da amargura em sua voz ele tenha deixado para Elias, ainda
está longe de ser emocionado. — O que aconteceu?
Eu seguro seu braço para me equilibrar.
— Acho que o vinho deve ter me atingido completamente.
Eu pensei que estava me controlando, mas... — Minha voz
falhou quando ele acenou com a cabeça e colocou uma mão
firme na minha cintura. A sensação disso desperta um calor na
minha barriga quando me lembro de todos os lugares em que
essas mãos passaram pela minha pele antes, de volta ao meu
quarto.
— Como você se sente agora?
— Tonta. Mas ainda há muitas pessoas que preciso
conhecer. Eu tenho que… tenho que ir conhecê-los. — Passei
muito tempo dançando com Elias, eu deveria ter passado esse
tempo certificando-me de que conhecia todos. Estou prestes a
me desvencilhar de Bastian e caçar no meio da multidão
quando seus dedos se espalham pelo meu quadril. Tensa, eu os
olho. — O que você está fazendo?
Ele se endireita, evitando meu olhar, olhando para cima.
— Você está enrolando suas palavras, Amora. A última coisa
que queremos é que as pessoas falem sobre como sua rainha
ficou muito bêbada em sua primeira visita em Curmana, ou
para compartilhar aquelas malditas imagens em movimento.
Não vou deixar você voltar lá sozinha. — Ele se vira para a
multidão, levantando a voz para eles antes que eu possa
argumentar. — Esta será a última dança da noite para Sua
Majestade! Ela voltará ao amanhecer bem cedo e com muito
mais tempo para conhecer todos. Se ela quiser mais tempo com
vocês, serão convocados amanhã. — Ele diz as últimas palavras
com aborrecimento audível, cerrando-as entre os dentes com
muito esforço.
— Outra dança? — Eu resmungo, com a cabeça latejando e
os pés doendo.
— Não podemos sair correndo daqui sem parecer suspeito
— Bastian diz gentilmente, pelo menos tendo a decência de
parecer que está arrependido de ter me feito fazer isso. — Me
dê mais uma dança e então faremos uma fuga limpa. Vamos
pegar um pouco de comida e água para você dormir sem tomar
aquele vinho e passar o amanhã com meu sósia. Mas, por
enquanto, mais uma dança.
Embora ele mantenha sua voz leve e provocante, há medo
em suas palavras. Através de nossa maldição, esses
sentimentos se infiltram em mim tão ferozmente que é como
se fossem meus.
Desta vez eu desisto e me inclino no peito de Bastian. Por
cima do ombro eu localizo Ferrick, observando e pronto para
varrer o local caso eu precise dele. Mas agora o toque de
Bastian é exatamente o que preciso para ajudar com essa
doença. A sensação de sua pele contra a minha acalma minha
visão oscilante, mas não é o suficiente para embasá-la
totalmente.
Já estive bêbada, mas nunca senti nada assim. Nossa “dança”
nada mais é do que ele me segurando em meus pés enquanto o
mundo mais uma vez se confunde ao meu redor.
— Você comeu? — Seu sorriso é amplo e orgulhoso, falso
para todos que estão assistindo.
— Eu ouvi Ilia e Nelly discutindo — eu respondo, sem me
lembrar do que ele me perguntou.
— Você sabe do que se tratava?
— Talvez ela estivesse brava porque tudo isso é falso? — Eu
rio para seu ombro, não sendo mais capaz de vê-lo. Minha pele
está tão quente. Tão pegajosa. Tudo é branco. — Ela deve ter
gasto muito dinheiro nesta festa, e é tudo falso.
Eu rio novamente quando a música para, sentindo Bastian
ficar tenso sob meu controle.
— Espere um segundo a mais. Vou tirar você daqui.
— Desculpe — alguém diz. Ferrick, talvez? Pelos deuses, eu
amo Ferrick. — Mas estamos sob ordens estritas de levar Sua
Majestade a seu quarto por uma hora razoável para prepará-la
para o resto de seu tempo em Curmana. Mas fique à vontade
para continuar curtindo essa festa maravilhosa. Coma, beba,
dance! — Ele diz outra coisa que faz a multidão rir, mas eu não
ouço.
Bastian vira minhas costas para a multidão quando eu não
posso mais fingir. Tudo o que posso fazer é segurar seu braço e
permitir que ele me conduza.
— O que há de errado com ela? — Ao longe, reconheço a voz
de Vataea e me pergunto quando ela chegou.
— Ela disse que era muito vinho — Bastian diz, mantendo
sua voz baixa. — Apenas aja com naturalidade. Rir ou algo
assim. Estrelas, Vataea, você chama muita atenção.
Ela ri baixinho, como Bastian sugeriu. Mas, à medida que nos
afastamos, ela sussurra:
— Tem certeza que é o vinho?
— Estou bem — tento argumentar, mas não tenho certeza
se as palavras passam pelos meus lábios ou se todos estão me
ignorando.
— Intoxicação alimentar, talvez? — Casem pergunta.
Devemos estar longe o suficiente da multidão, porque meus pés
escorregam debaixo de mim e meu corpo se inunda com calor
quando Bastian faz uma pausa para me pegar em seus braços,
embalando-me contra seu peito.
— Precisamos levá-la para o quarto sem ninguém ver — diz
Bastian. — Shanty, uma ajudinha aqui?
Essas palavras e a pressão de duas mãos quentes contra
minhas bochechas são a última coisa de que me lembro.
CAPÍTULO DEZENOVE

Quando acordo na manhã seguinte, a primeira coisa que faço é


vomitar na bacia de metal ao lado da minha cama.
Embora já não me lembre de que isso tenha acontecido, algo
na maneira como estendi a mão para a bacia, esperando por
isso, me garante que não é a primeira vez.
Só depois de uma onda de vômitos secos é que noto Bastian
na espreguiçadeira ao meu lado. Eu me assusto quando o vejo,
meu estômago aperta ainda mais forte, e sua mandíbula aperta
com força.
— Parece que você está acordada dessa vez. — Ele se
levanta para reunir meus cachos caídos em suas mãos e
prendê-los de volta em uma fivela que não estava lá na noite
anterior. — Aqui, beba um pouco de água. — Sem palavras, ele
pega a bacia e desaparece com ela. Dois minutos depois e ele
está de volta, colocando uma limpa ao meu lado. — Como você
está se sentindo?
— Melhor, eu acho. — Com o estômago vazio, a náusea
diminuiu um pouco. Minha pele não está mais escorregadia de
suor frio, mas pegajosa com a memória disso. — O que
aconteceu ontem à noite? Lembro que estava dançando, e
então estávamos indo embora, e tudo depois disso é... confuso.
Um barulho vem do banheiro, e tanto Vataea quanto Shanty
colocam a cabeça para fora.
— Eu disse que ela estava acordada — Vataea bufa, saindo
do cômodo para se juntar a nós. Há preocupação gravada nas
linhas duras de seu rosto, e enquanto Shanty se aproxima atrás
dela, até ela parece preocupada o suficiente para que minha
pele se arrepie.
— Vocês estão me assustando com essas caras — tento
provocar, mas a piada acaba com a preocupação em seus olhos.
— Relaxe. Bebi muito vinho, mas agora estou bem.
Ferrick aparece então, abrindo a porta do meu quarto com
cuidado enquanto equilibra uma pesada bandeja de comida.
Embora eu espere uma das refeições gourmet elegantes que tia
Kalea e Yuriel sempre elogiaram, estou surpresa ao descobrir
que tudo o que ele trouxe vem do estoque de Keel Haul. Carnes
secas, queijo, peixe e nozes. Casem segue atrás dele com um
pequeno barril cheio de água que tínhamos estocado no navio.
Eu aperto minhas sobrancelhas, surpreendentemente
faminta por ter vomitado.
— Eles não nos ofereceram café da manhã?
— Eles ofereceram. Mas é isso que estamos dando a você. —
Ferrick pousa a bandeja e, com um pouco de relutância, dou
uma mordida na carne seca.
Com fome como estou, não deixo a comida me distrair. A
tripulação me olha com uma expressão tão compassiva que me
lembra de quando quase fui morta pela Lusca ou ferida por
Kaven. Seus corpos estão tensos e agitados, como se eles
acreditassem que eu poderia cair a qualquer momento. Estou
prestes a tranquilizá-los de que estou bem, que todos podem se
preparar para o nosso dia, mas o olhar que compartilham me
impede.
Eles não estão apenas sendo excessivamente protetores.
Algo está errado.
— Amora, precisamos te contar uma coisa. Mas precisamos
que você não surte e confie em nós.
Calafrios inundam meu corpo quando eu reconheço o
tremor na voz de Ferrick como medo genuíno. Ele estende a
mão e eu a pego sem demora. Vataea coloca a mão na minha
coxa e, embora ela não seja do tipo melindrosa, até os lábios de
Shanty estão pressionados firmemente juntos, parecendo mais
zangada do que chateada.
— Sabíamos que a tensão era alta dentro do reino — diz
Ferrick. — Nós sabíamos que alguns seriam resistentes. Mas
Amora, não achamos que sua doença ontem à noite tenha algo
a ver com álcool. Achamos que você foi envenenada.
Eu puxo minha mão dele enquanto uma respiração afiada
agarra meus pulmões e para lá.
— Por quê? — Exijo mais concisamente do que pretendo. —
Porque você pensaria isso?
Bastian se inclina para frente para que seus cotovelos
fiquem sobre os joelhos e olha para mim com a expressão mais
severa que eu já vi.
— Você estava vomitando sangue. Ferrick esteve aqui a
noite toda, tentando mantê-la viva. Imagino que você estaria
morta sem ele; você não parou até o sol sair.
— Você também viu? — Eu pergunto a Ferrick, cujo pescoço
se retrai de surpresa. Ele começa a responder quando a voz de
Bastian se transforma em cascalho.
— Você acha que estou mentindo?
Ele não tem razão para isso, mas não quero acreditar. Não
me senti ameaçada na noite passada. Eu me sentia como se
estivesse dando um show que mamãe me disse que nosso povo
queria, sem o deslize ocasional, como com Lorde Gregori.
A maioria do meu pessoal parecia receptiva a mim. Será que
um daqueles rostos estava realmente mentindo?
— Não — eu ofereço baixinho. — Mas você poderia ter
confundido com outra coisa? Comi muito ensopado naqueles
folhados.
Ele torce o nariz e se inclina para trás em sua cadeira.
— Não era ensopado. Curmana é especialista em ervas,
lembra? A maioria das que você encontrará por aqui são para
cura. Em pequenas doses, elas são relativamente inofensivas,
como a folha de zolo no emblema de Curmana. Mas... nem todas
as ervas são seguras, e digamos que eu costumava conhecer o
mercado de Curmana. Se você sabe para onde olhar, o veneno
não é difícil de encontrar. — Seus olhos cintilam para Shanty,
cujos lábios se apertam ainda mais.
— Ele está certo — ela admite. — Comprei meu quinhão
usando muitos rostos diferentes. Existem muitas formas
diferentes de veneno, mas essa era letal. Você tem sorte de que
Ferrick esteja aqui e, seja o que for que você tenha consumido,
deve ter sido apenas uma pequena porção.
O suor frio está de volta, lambendo minha espinha enquanto
percebo: eu poderia ter morrido na noite passada. Se Ferrick
não estivesse aqui, eu teria morrido.
Vataea puxa o cobertor por cima do meu ombro e há uma
proteção feroz em seus olhos que, se eu não soubesse que era
para mim, seria aterrorizante.
— Eu vou matar quem fez isso. — Suas palavras são simples
e casuais, como se ela nos dissesse que vai comer torradas no
café da manhã. Ferrick põe a mão gentilmente em seu ombro.
— Se você não fizer isso, então eu vou. — Os punhos de
Bastian se fecham. — Mas primeiro, precisamos encontrá-lo.
Ferrick balança a cabeça e se senta na beira da cama.
— Ah, nós os encontraremos — diz ele sem um pingo de
hesitação. Ele abaixa o queixo, tornando cada uma de suas
palavras mais firmes. — Nós o encontraremos, Amora. Isso não
é algo que você pode fazer por conta própria. Se vamos
encontrar quem fez isso rapidamente, você precisa nos deixar
ajudá-la.
Para minha surpresa e dele, não consigo encontrar palavras
para protestar. Por muito tempo me senti sozinha, mesmo com
minha tripulação ao meu lado. Mas agora, vendo a raiva em
seus olhos, sentindo seu medo, quero seu apoio. Quero
encontrar a pessoa por trás disso, e esse não é um obstáculo
que quero enfrentar sozinha.
Meu pai morreu por causa do trono e das decisões que
tomou enquanto estava nele. Eu soube no momento em que
coloquei a coroa na minha cabeça que a morte tentaria me
seguir. Você obtém uma certa força por estar no poder, mas
também há um perigo único. E sem minha magia, sem nenhuma
magia, não é um perigo que eu queira enfrentar sozinha.
Eu quero deixar os outros entrarem, mais do que qualquer
coisa. Não quero encontrar tudo sozinha. É apenas... difícil. Mas
talvez em pequenas doses. Talvez este seja o primeiro passo.
A tensão no corpo de Ferrick diminui quando ele solta um
suspiro pesado de alívio. Se eu não estivesse tão doente do
estômago, poderia até ter rido de como isso era exagerado.
— Bom. — Ele abaixa a voz o suficiente para que o resto de
nós tenha que se inclinar, cuidadosos com qualquer espião que
possa estar passando por perto. — Vamos nos encontrar à
tarde para uma viagem ao mercado para descobrir onde o
veneno foi comprado e para quem foi vendido. — Em seguida,
ele se vira para Shanty, cujo corpo se endireita com
compreensão quando ele diz: — Vamos precisar da sua ajuda.
— Basta dizer a palavra. — O sorriso de Shanty é tão letal
quanto uma lâmina serrilhada, embora pisque por apenas um
momento antes de ela olhar para mim novamente. — Mas antes
disso, há algo que você pode querer ver, Amora.
A cabeça de Ferrick gira em direção a ela, o rosto contraído
e severo.
— Achei que íamos esperar por isso.
— Ela precisa saber…
Conforme cada um de seus rostos fica amargo, eu suspiro.
— Seja o que for, me mostre. Não é como se este dia fosse
piorar.
Enquanto ela tira um pedaço de pergaminho dos bolsos e o
desdobra, no entanto, eu sei instantaneamente, ao olhar para o
pergaminho em movimento, o quanto estou errada.
SUA MAJESTADE, RAINHA AMORA: UMA NOVA
GOVERNANTE REALIZADA, OU UMA CRIANÇA NA COROA?
Ontem à noite, os oficiais reais da Rainha Amora foram vistos
escoltando Sua Majestade de seu próprio grupo várias horas
antes do fim. Com relatos da equipe de Curmana afirmando que
a Rainha Amora estava vomitando pela manhã, nós nos
perguntamos: Será que a rainha está grávida?
Com a linhagem de Montara diminuindo, não é nenhum
segredo que a rainha precisará produzir rapidamente um
herdeiro ao trono. Fontes afirmam que a criança pode pertencer
a um homem de cabelos escuros visto entrando no quarto de Sua
Majestade, sozinho, antes da festa.
Mas talvez haja outra resposta. De acordo com Lorde Gregori,
neto do representante Suntosan, Lorde Garrison, Sua Majestade
estava fortemente embriagada durante as festividades da noite.
“Tentei fazer com que ela diminuísse o ritmo”, disse-nos ele em
uma entrevista exclusiva. “Passamos a maior parte da noite
juntos, planejando estratégias sobre Visidia e discutindo a
expansão do armamento. No início, Amora parecia bem. Ela
estava sorrindo e rindo, e estávamos nos divertindo muito. Mas
talvez a noite tenha sido demais para ela, porque à medida que
a festa avançava, comecei a notar que ela bebia mais. Quando
pensei em impedi-la, ela já tinha quase seis copos de vinho e
estava ficando cada vez mais irritada comigo. Quando percebi
que algo estava errado, rapidamente encontrei sua equipe e
mandei buscá-la. Não tenho certeza de como ela está, mas com
certeza irei ver como ela está hoje. Temos uma data marcada
para esta tarde.”
Se Lorde Gregori estiver certo, então devemos nos perguntar
– nas mãos de uma rainha recém-formada de dezoito anos, quão
segura é Visidia? É demais
Amasso o pergaminho em minhas mãos sem terminá-lo,
odiando a imagem em movimento de mim empurrando minha
taça de vinho vazia no peito de Lorde Gregori.
— Sua mãe não está feliz — Casem diz timidamente. — Ela
gritou comigo a manhã toda. — Seus olhos são de um branco
leitoso, nebulosos com a aparência de alguém usando magia
mental. Quando a cor volta a eles, ele suspira e esfrega as
têmporas, cansado.
— Diga a ela que foi uma intoxicação alimentar. — Minha
voz treme com raiva. Não tento controlar, deixando-a me
alimentar. — Se ela descobrir que foi qualquer outra coisa, ou
se ela achar que estou aqui fazendo papel de boba, ela vai tentar
me trazer de volta para Arida.
— Isso seria uma coisa ruim? — É Ferrick quem pergunta,
com a mão na bainha. — Você já teve duas tentativas de
assassinato. Talvez devêssemos voltar para casa e tentar
planejar outra coisa.
— Não vou me encolher diante do meu reino. — Ferrick,
mais do que ninguém, deve entender por que isso é tão
importante. Quando ele abre a boca para protestar, eu olho
para ele e Bastian, que parece pronto para ficar do lado de
Ferrick a qualquer momento, com um olhar penetrante. — Eu
sou a rainha de Visidia. Estou aqui com um propósito e não vou
embora até que tenha cumprido tudo o que me propus a fazer.
— Meu corpo está fraco enquanto tento ficar de pé. — Faremos
a nossa manhã como planejado e depois nos encontraremos à
tarde para descobrir quem fez isso. E Casem, me faça um favor
enquanto isso. Encontre o repórter que escreveu este
pergaminho, certo? Eu gostaria de ter uma palavra com ele.
CAPÍTULO VINTE

Não importa o quão cansada e exausta eu me sinta, devo me


apresentar com sorrisos e continuar com o jogo inocente de
que está tudo bem.
Depois de expulsar todos, exceto Vataea, que fica em uma
espreguiçadeira no meu quarto, olhando para a porta como se
ela estivesse prestes a ganhar vida e atacar a qualquer
momento, eu vou para o banheiro anexo para tentar respirar
um pouco para a vida voltar em minha pele.
Eu ensaboo a banheira com pós e tônicos, todos com o
objetivo de me energizar, esfregando minha pele com cremes
perfumados e meu cabelo com óleos cintilantes. Saindo, aliso
meus cachos para trás e os enrolo em um coque, usando água
de rosas e rouge para animar minhas bochechas. Quando
termino, pareço muito menos cansada do que me sinto, e posso
fazer minha viagem por Curmana. Principalmente, para meu
encontro com Lorde Freebourne.
Embora eu tenha pensado em cancelar, Ferrick insistiu que
não quer levantar suspeitas. No entanto, não devo consumir
nada, seja água ou comida, a menos que venha diretamente da
minha equipe.
— Você está bonita. — Vataea se levanta para esticar seus
longos membros enquanto eu saio do banheiro, totalmente
vestida e meu rosto maquiado. — Você parece estar realmente
tentando impressionar esse homem.
A cadência questionadora de sua voz coça na minha pele. Eu
estava tentando impressionar Elias? Ele é bonito e inteligente,
admito. Mas meus pensamentos não se demoram nele. Ele foi
uma distração divertida para a noite, mas pouco mais do que
isso.
— É tudo sobre Curmana que estou tentando impressionar
— digo a ela em vez disso, embora as palavras deixem minha
língua amarga. O quão duro eu deveria estar tentando quando
alguém aqui tentou me envenenar? Odeio não poder ser ousada
em minhas ações e alertar o reino para que possamos descobrir
quem o fez.
Eu odeio ter que fingir.
Vataea pendura uma bolsa nos quadris, passando os dedos
pelo punhal para garantir que esteja no lugar. De volta a Arida,
Casem e eu a ajudamos a desenhar a lâmina longa e serrilhada.
É fina e leve o suficiente para não pesar sobre ela se ela fosse
levá-la para o oceano. Mas há perigo nas bordas dentadas
mortais. Embora a verdadeira arma de Vataea sempre seja sua
voz e a água ao seu redor, ela precisava de algo para proteção
aqui na terra. Para minha surpresa, ela se apegou bastante a
isso.
— Bem, então vamos impressioná-los. — Calçando um par
de botas pretas, ela me joga um casaco e saímos.
Shanty espera de pernas cruzadas no chão do lado de fora,
mexendo nas unhas. Ela parece aliviada por se levantar, e estou
aliviada por tê-la. Essas duas garotas são de longe as mais
ferozes e capazes da minha tripulação em uma luta; se alguém
tentar algo, ficarei feliz em tê-las ao meu lado.
Mas, infelizmente, Shanty não está sozinha. Bastian está ao
lado dela, braços largos cruzados sobre o peito.
— Precisamos conversar — diz ele, arqueando a
sobrancelha quando Shanty astutamente se aproxima um
centímetro para ouvir. — Sozinhos.
— Há um lugar que eu preciso estar — eu começo, mas ele
me ignora, rápido para me pegar pelo pulso e me levar de volta
para o quarto, fechando a porta atrás de nós. Do lado de fora,
Vataea rosna algumas palavras bem escolhidas.
— Freebourne pode esperar. — Ele solta meu pulso, olhos
duros e sem estrelas. — Eu sei que disse que não me importava
se você guardasse seus segredos, mas menti. Estamos
brincando com fogo e é hora de me dizer a verdade. Por que
estamos realmente aqui?
Meu peito entorpece. É tudo o que posso fazer para manter
meu nível de atenção com o dele e não me entregar.
— Visidia precisa de um herdeiro…
— Não me venha com essa. — Há veneno em seu rosnado,
cru e fresco. — Nós dois sabemos que isso não é nada mais do
que uma farsa, Amora. E não vamos esquecer que posso sentir
sua alma. Você estava procurando por alguém na noite
passada, mas não era um pretendente. Cada vez que alguém se
apresentava a você, você ficava desapontada. Você estava
procurando por alguém e eu quero saber quem. Sem mais
jogos.
Minha língua fica pesada, inútil enquanto o peso da verdade
se instala entre nós.
— Por que você está mentindo para mim? — Ele pressiona,
e pelo menos para isso eu tenho uma resposta.
— Porque eu precisava do meu espaço de você, Bastian. —
Minhas palavras vêm em uma rajada de ar que quase me
derruba. — Eu precisava me sentir eu mesma, de novo. Como
se você não estivesse lá comigo para cada decisão que eu tomo!
— E você acha que eu não quero isso também? Para nós
dois? — Ele aperta os punhos ao lado do corpo, tentando aliviar
o tremor de raiva. — Você está agindo como se eu, de alguma
forma, tivesse feito algo errado com você, como se essa fosse
minha escolha. Eu não coloquei essa maldição sobre nós,
Amora. Eu não quero isso mais do que você. Mas os deuses
proíbem que você seja honesta comigo, para que possamos
trabalhar juntos em vez de você tentar fazer tudo sozinha.
Deuses proíbem que não preciso ficar infeliz todos os dias,
pensando que a mulher que eu amo não está fingindo que está
procurando um marido! Que eu não tenho que vê-la desfilar
enquanto o reino tenta assassiná-la, e ela nem mesmo me deixa
tentar protegê-la.
No momento em que as palavras passam pelos lábios de
Bastian, ele congela, os olhos se arregalando como os de uma
coruja quando ele percebe o que disse. Até a sala parece
respirar fundo, parada e esperando que alguém rompesse o
silêncio.
Minha pele fica pegajosa e não tenho ideia se é certo
continuar olhando nos olhos dele ou me afastar. Mas antes que
eu possa decidir, Bastian se vira e geme em suas palmas,
alisando os cabelos em frustração.
— Quer saber, não vou fazer isso agora. Espero que você
tenha um tempo maravilhoso com aquele lindo garoto-
propaganda. Ele parece verdadeiramente encantador.
Eu penso em pará-lo. As palavras podem até ter saído da
minha boca, não tenho certeza. Mas Bastian abre a porta de
qualquer maneira, invadindo o corredor e deixando duas
garotas confusas piscando para mim atrás da porta.
— Então — reflete Shanty enquanto ela se vira para a figura
de Bastian recuando, então para mim com uma franzida dos
seus lábios. — Acho que isso significa que você está pronta para
o seu encontro?
Fervendo, eu pego minha capa da cama e a coloco sobre
mim, desejando ter magia Valukan para que eu pudesse colocar
fogo em algo.
— Vamos acabar com isso.
***
Elias espera na areia branca como pó com os lábios
pressionados enquanto caminha em pequenos círculos. Ele se
endireita ao nos avistar, parecendo quase surpreso.
— Amora! Eu li os jornais essa manhã, como você está se
sentindo? Eu tentei passar no seu quarto para eu mesmo
verificar você, mas aquele seu guarda dificultou as coisas para
mim. Não acho que ele gosta de mim. — Ele parece
surpreendentemente infantil, e minha pele esfria ao vê-lo,
lembrando-me do que Bastian o chamou: encantador garoto-
propaganda.
Ele não estava exatamente errado. No entanto, enquanto
parte de mim quer se gabar do que é claramente seu ciúme, a
outra parte quer rastrear Bastian e...
Não tenho certeza do quê. Queimar o casaco dele? Empurrá-
lo para o mar? Beijar aquela carranca dele?
Deuses, eu odeio a incerteza.
Espiando por cima do meu ombro, Elias acena com a cabeça
em saudação para as duas meninas, embora sua atenção
permaneça em Vataea um segundo a mais. Mesmo que suas
roupas tornem impossível ver cicatrizes em seu pescoço e
coxas de suas guelras e nadadeiras, está claro que há algo
diferente nela.
— Suas camareiras? — Ele pergunta.
Os olhos de Vataea se estreitam em fendas perigosas.
— Se as camareiras são as que arrancam seu coração com os
dentes ou enfiam uma adaga em seu olho se você ao menos
olhar para a rainha de forma errada, então sim. Somos as
camareiras dela.
O nó na garganta de Elias balança enquanto ele engole.
— Não são camareiras, então. Devidamente anotado.
Acho que devo dizer a ele para não se preocupar, ou que
Vataea e Shanty mais ladram do que mordem, mas seria uma
mentira facilmente descoberta. Então, em vez disso, coloco
minha mão em seu braço oferecido, embora meu coração esteja
longe disso.
— Devo admitir que fiquei desapontado quando não vi você
de novo na noite passada — diz ele enquanto começamos a
descer a praia. — Você escapuliu tão rápido. Mas será bom ter
um dia só para nós dois passearmos pela ilha.
Há uma emoção genuína em sua voz que eu gostaria de
poder igualar. Ontem à noite, bêbada de vinho e aparentemente
envenenada, passear pela ilha com Elias parecia uma ideia
maravilhosa. Agora, porém, estou muito distraída com
pensamentos sobre Bastian.
Aquele bastardo disse que me amava. Mas não há como isso
estar certo. Suas emoções devem ser tão confusas quanto as
minhas, então como ele ousa dizer algo assim? E então ir
embora!
É preciso todo o meu poder para afastar meus pensamentos
de Bastian e compartimentá-lo em outro lugar para que eu
possa me concentrar no meu tempo com Elias, que conhece
Curmana melhor do que ninguém, dada a sua posição. Eu vim
aqui para encontrar Ornell Rosenblathe e hoje preciso fazer
alguns progressos.
— Você viveu aqui toda a sua vida? — Vataea e Shanty estão
mantendo uma distância apropriada, mas eu silencio minhas
palavras de qualquer maneira, deixando este tempo entre nós
parecer mais íntimo. Quanto mais relaxado ele estiver, mais
informações posso obter.
— Todos os vinte e dois anos. — Seu sorriso é encantador
demais. — Já viajei para a maioria das outras ilhas, mas
Curmana é minha casa. Se alguma coisa acontecer com minha
irmã, estou na lista de possíveis conselheiros para ocupar o
lugar dela. Então tento ficar em Curmana na maior parte do
tempo para ficar a par do que está acontecendo na ilha.
A curiosidade arrepia minha pele, mas não me permito
demonstrar. Em vez disso, continuo educadamente
interessada.
— Alguma coisa interessante aconteceu, ultimamente?
Algo relacionado a veneno, talvez?
É possível que ele não saiba sobre o ponto fraco de sua ilha,
assim como eu não sabia o quão ruim as coisas no reino
estavam ficando enquanto eu estava presa em Arida. Observo
seu rosto em busca de um sinal, qualquer pausa ou hesitação
que possa mostrar que ele está ciente de algo acontecendo em
Curmana que ainda não foi informado aos oficiais reais. Mas
sua expressão permanece confiante e inabalável, sem trair
nada.
— Nada muito excitante, não. Temos um clima mais ameno
nesse extremo norte, então não temos as mesmas tempestades
que assolam as ilhas do sul. A renda continuou a aumentar ao
longo dos anos à medida que expandimos nossos spas e
inflamos os preços de nossos serviços mais luxuosos. Somos
incrivelmente estáveis e auto suficientes, pois também
produzimos a maioria das ervas e óleos que vendemos aqui na
ilha.
— E quanto ao crime?
E aí está. Breve e tão fugaz que quase sinto falta: um tique
rápido em sua mandíbula.
— Perdão, Vossa Majestade?
— A taxa de criminalidade — repito. — Como é?
— Ouso dizer que Curmana é o lugar mais seguro que você
vai visitar. Recentemente visitei Ikae e é impressionante a
quantidade de pequenos furtos que os turistas fazem por lá. A
tranquilidade aqui deixa os residentes e turistas felizes; por
causa disso, nossos índices de criminalidade são baixos.
Os residentes de Curmana olham para Elias e para mim
enquanto caminhamos ao longo da costa branca e lustrosa, a
areia tão pulverulenta que eu me pergunto se é assim que a
neve sobre Zudoh pode parecer. A maioria abaixa a cabeça, mas
há um punhado de crianças que ficam boquiabertas para mim,
para horror dos pais que tentam apressadamente fazer com
que abaixem a cabeça.
Shanty está observando eles também, olhos estreitos
enquanto ela examina seus rostos, procurando por outros com
magia de encantamento que estão aqui apenas para procurar
uma história para os pergaminhos de fofoca dessa noite.
Resumidamente, eu me pergunto o que o dia de hoje pode
dizer.
RAINHA AMORA E LORDE ELIAS FREEBOURNE:
OUVIMOS QUE HÁ ALGO NA ÁGUA DE CURMANA. PODERIA
SER AMOR?
Ou talvez:
UM LORDE OU UM PIRATA: PODERIA UM DESTES
ENCANTADORES SOLTEIROS SER NOSSO NOVO REI?
Antes que meu rosto possa denunciar minha raiva, eu me
afasto desses pensamentos, voltando a me concentrar na
missão em questão.
— Tínhamos um amigo da família daqui que sempre
elogiava como Curmana é maravilhosa. — Eu deixo minha voz
leve, como se estivesse relembrando boas lembranças. — Você
conhece a família Rosenblathe, por acaso? Ornell Rosenblathe?
Ele sempre me falava sobre a comida e os spas, e que Curmana
fazia com que ficar deitado em uma banheira cheia de lama
quente fosse a coisa mais luxuosa de todos os tempos. Adoraria
vê-lo enquanto estou aqui.
Tudo em meu corpo paralisa quando Elias aperta os olhos,
franzindo a testa enquanto ele examina seus pensamentos.
Balões de esperança ameaçam explodir dentro de mim. Eu
cerro meus punhos com força e mergulho minhas unhas em
minhas palmas para contê-la.
Mas murcha quando Elias franze os lábios e suspira.
— Desculpe. Eu sei que é familiar, mas não consigo lembrar
de onde ouvi.
Tento não deixar transparecer minha decepção, sem escolha
a não ser me acomodar em nossa caminhada.
Curmana realmente é outro mundo. Um mundo
maravilhoso, relaxante e lindo.
Um grupo de turistas se estica na areia, lendo os últimos
pergaminhos ou livros. Muitos usam chapéus e óculos gigantes
para proteger os olhos, enquanto cobrem a pele com calças
largas e regatas esvoaçantes. Trabalhadores Curmanans em
linho preto usam magia mental para fazer flutuar uma
variedade de mercadorias ao redor deles, oferecendo aos
turistas comida e bebida.
Mais turistas sentam-se confortavelmente ao lado de uma
fogueira, enquanto outros à distância relaxam em camas
planas, seus corpos brilhando enquanto os atendentes
massageiam suas peles com óleos e colocam pedras
fumegantes em suas costas.
Por mais relaxante que seja, é difícil não notar como toda
Curmana é tranquila. De certa forma, isso me lembra de quando
conheci Zale em seu acampamento em Zudoh. Só que esse
silêncio não é feito de medo. Porque muitos Curmanans usam
a mente para se comunicarem e os turistas seguiram
naturalmente o seu exemplo, mantendo o silêncio. Mesmo
quando falam em voz alta, sua conversa é pouco mais que um
sussurro.
— Podemos entrar se você quiser — Elias oferece enquanto
me pega admirando uma bela cabana de pedra com vapor
saindo de dentro. — É um edifício destinado à meditação. É
suposto que ajuda a desintoxicar sua mente e alma. Alguns
afirmam até mesmo usá-lo para tentar se comunicar com os
deuses.
Eu bufo.
— Como se os deuses fossem se incomodar com um
humano.
Ele ri.
— Nós deixaremos a sauna a vapor, então. Não se preocupe,
há mais para ver. — Elias abre caminho para dentro de
Curmana, nos guiando para longe das docas.
Minha manhã é gasta sendo carregada de um lado para o
outro, enquanto sou forçada a fingir que minha cabeça não está
latejando por causa do veneno.
Não é que meu tempo com Elias seja ruim, mas quanto mais
destinos turísticos visitamos, mais meus pensamentos vagam
para como pode ser um encontro aqui com Bastian. Se eu o
deixasse me mostrar sua ilha natal, Zudoh, ele nunca me
mostraria lugares destinados a turistas. Ele me mostraria a
caverna que costumava explorar quando criança, ou o melhor
ponto de observação da ilha. E mesmo que demorássemos duas
horas para chegar, valeria a pena. Ele nunca me mostraria os
lugares que alguém poderia encontrar, ele me mostraria os
lugares que continham pequenos pedaços da sua alma.
Mesmo aqui em Curmana, tenho certeza de que ele teria
coisas muito mais fascinantes para me mostrar do que um
restaurante pitoresco onde eu não poderia comer, ou uma
viagem pelos vários spas.
Com Elias, não posso deixar de me perguntar: Onde está a
diversão nesta ilha? Onde está o ponto fraco? A fofoca e os
segredos da ilha que você tem que cavar na superfície para
descobrir?
Estar com Bastian me estragou. Nada menos do que isso
nem parece valer meu tempo.
— Essa sua cabeça com certeza está nas nuvens — Shanty
sussurra enquanto ela estica o pescoço para o céu, apertando
os olhos contra o sol. — Se olharmos bem o suficiente, você
acha que podemos ser capazes de encontrá-la?
Com o foco puxado de volta para o mundo ao meu redor, eu
reviro meus olhos apesar do meu sorriso.
— Haha, engraçada.
Um bosque de bananeiras se estende à distância,
completamente coberto de vegetação com suas folhas grandes
penduradas ao acaso. Além deles, mais ao norte, está uma
paisagem tão densa de flora que não consigo ver nem mesmo
uma lacuna dentro dela.
— Lá em cima está o mercado — Elias oferece, seguindo
meu olhar. — A maioria dos habitantes locais vive assim. Nós
tentamos nosso melhor para garantir que a área perto da água
permaneça tranquila para manter a paz para os turistas. Muitos
dos habitantes locais gostam de viver mais longe; eles podem
ser mais barulhentos e as regras são menos rígidas. Também
fica mais perto do mercado e de qualquer emprego que envolva
trabalho na selva, como coletar ervas para remédios suntosans.
— E para os venenos — resmungo baixinho para Vataea, que
endireita os ombros e olha ao nosso redor com cautela em
resposta.
À medida que a areia dá lugar a raízes serpenteantes e folhas
mortas que se esmagam sob minhas botas, edifícios humildes
tomam forma, marcando o que sei ser o limite do mercado. Na
base dele está uma pequena construção de pedra decorada com
musgo e as folhas de centenas de árvores grossas que assomam
sobre ela. Há uma pequena pintura de uma xícara de chá e
vapor em uma placa de madeira pendurada sobre a porta.
— Esse é um dos meus lugares favoritos na ilha — diz Elias
enquanto abre a porta que range. — É privado também. Achei
que poderia parecer mais...
— Íntimo — é a palavra que ele está procurando, mas minha
pele se arrepia com a ideia.
Tudo o que ouço são as palavras de Bastian batendo na
minha cabeça.
A mulher que amo.
A mulher que amo.
Eu amo.
Respiro fundo e tento limpar minha mente.
Não importa o quão apetitoso seja o cheiro de pão de mel
assado que vem da casa de chá, estou prestes a sugerir a Elias
que encontremos outro plano quando a figura esguia e de
espírito gelado de Ilia emerge das profundezas da loja. Elias
enrijece imediatamente, claramente tão surpreso quanto eu.
— Lee? — Ele aperta os olhos para a irmã. — O que você está
fazendo aqui?
— Procurando por você. — Até sua voz é afiada como um
pingente de gelo, me empalando. — Como discutimos, você tem
deveres a cumprir hoje. Você deveria estar na floresta agora,
ajudando o resto dos coletores. Não há tempo para... isso. — Ela
acena sua mão ossuda entre nós, a nitidez de suas maçãs do
rosto aprofundando sua carranca.
Elias parece rebelde.
— Amora está aqui apenas por alguns dias…
— Tenho certeza que ela vai entender. — Os olhos de Ilia
brilham com tanta força que quase dou um passo para trás. Há
algo letal em seus olhos que não estava lá ontem.
Imediatamente me pergunto se ela está com raiva de ainda
estar aqui hoje.
Se ela está com raiva porque eu sobrevivi.
É como se ela estivesse enojada com a ideia de seu irmão em
qualquer lugar perto de mim. Até Vataea e Shanty estão rígidas
ao meu lado, prontas para intervir.
— Eu entendo perfeitamente — eu rosno, a suspeita
coçando minha pele. Eu poderia facilmente dizer a ela para se
afastar e deixar Elias e eu, mas mesmo com as meninas ao meu
lado não vale a pena correr o risco. Não as colocarei nessa
situação quando for evitável.
— Talvez pudéssemos remarcar para o jantar? — O
arrependimento enche a voz de Elias. Seus ombros caem, o
rosto se desculpando.
— Talvez — eu digo, embora eu não esteja olhando para ele.
Eu fico olhando para os olhos pálidos e gelados de Ilia enquanto
ela mantém o queixo alto e desafiador, esperando que eu a
desafie.
— Eu li os pergaminhos esta manhã — ela diz friamente. —
Eu estou contente que você está se sentindo melhor, Majestade.
Sinta-se à vontade para explorar nossa humilde ilha o quanto
quiser, mas por enquanto devo levar Elias. Tenho certeza de
que suas camareiras serão uma companhia maravilhosa.
Embora Vataea faça uma carranca, Ilia não percebe. Ela se
vira para o irmão, pegando-o pelo braço e puxando-o de mim
como se eu estivesse doente. Ela o faz sair em segundos,
deixando nós três no meio desta pequena loja de chá vazia. Só
então noto a mulher atrás do balcão, magra e idosa. Seus olhos
se arregalaram de surpresa quando a pegamos olhando
diretamente para mim, como se ela estivesse prestes a
desmaiar.
Com uma voz rouca e nervosa, ela pergunta:
— Chá, Vossa Majestade?
CAPÍTULO VINTE E UM

— Isso pode levar muito menos tempo do que eu esperava —


diz Ferrick, avaliando o mercado que margeia a estrada.
No final da tarde, depois de várias horas entretendo a dona
da loja fingindo beber seu chá, todos menos Shanty, pelo
menos, que alegava ser imune à maioria dos venenos e era
capaz de provar de tudo com alegria, o mercado ficou mais
movimentado.
É construído na borda da selva densa, sobre o ponto de
encontro da areia e da raiz. Enquanto alguns mercadores
vendem seus produtos em cabanas de madeira, outros se
apoiam em árvores grossas e retorcidas. Eles usam o dossel de
folhas como sombra com seus produtos espalhados sobre um
cobertor diante deles. Mas, ao contrário do mercado de Ikae,
aqui não há comerciantes gritando, anunciando pargos
caríssimos ou gritando sobre seus produtos diários. Ninguém
está vendendo vestidos finos ou provando cerveja em uma rua
cheia de vendedores concorrentes.
O mercado de Curmana, como o resto da ilha, é tão
perturbadoramente calmo que não consigo controlar os
nervos. Não é que as pessoas não estejam falando, há alguma
conversa e risos. Trocas, até. Mas tantas conversas estão
acontecendo sem palavras. Eu pego um par de olhares fixos de
vez em quando, acenando com a cabeça para algo que o outro
deve estar dizendo silenciosamente.
Uma criança corre, tentando brincar entre os vendedores.
Mas antes que ela possa ir muito longe, seu pai usa a magia de
levitação para erguer a garota no ar e trazê-la de volta para o
seu lado. A garota faz pouco mais do que piscar, sem surpresa,
antes de sair correndo novamente.
Se eles estão conversando, eles também conversam em
silêncio. E embora eu admire a privacidade da magia, há algo
estranho sobre os humanos serem tão... quietos.
— Este lugar é horrível. — A voz de Bastian é baixa e rouca,
tentando ao máximo não ser ouvido em meio ao silêncio
assustador. Os sons mais altos vêm dos insetos nas árvores
atrás de nós. — Tem certeza de que não estamos presos em
uma maldição?
Esses tantos corpos silenciosos são mais assustadores do
que uma maldição jamais poderia ser, mas eu não digo isso a
ele. Desde o que ele me disse no meu quarto, não temos sequer
olhado um para o outro.
Do canto do meu olho, eu mal posso ver os cachos loiros e
grossos e os olhos azul-bebê que Shanty o encantou. Ele não
tem mais a barba por fazer ao longo das bochechas e queixo,
mas uma barba cheia que não consigo deixar de olhar. Eu nunca
beijei alguém com uma barba cheia antes, e estou
irritantemente curiosa para saber como é.
Bastian não é o único de nós cuja aparência foi alterada
pelos encantamentos de Shanty. Ela tem cabelos castanhos
lisos e uma aparência mansa para não se destacar. Embora ela
tenha tentado esconder algumas das qualidades de sereia de
Vataea, não funcionou totalmente. Suas cicatrizes estão
escondidas, mas qualquer um que olhar para Vataea, com seus
longos cabelos ruivos, olhos redondos e bochechas rosadas,
certamente ainda se perguntará como uma pessoa pode ser tão
bonita.
Ferrick e Casem parecem ser gêmeos, ambos usando vestes
pesadas de ônix que combinam com a escuridão de seus
cabelos. Casem usa o seu curto, enquanto o de Ferrick é
comprido o suficiente para dar um nó na nuca. Seu rosto
comprido foi alargado e seus ombros ficaram mais estreitos.
Embora eu não me veja no espelho desde que Shanty alterou
nossas roupas e aparência do lado de fora da casa de chá, há
ondas vermelhas soltas em meus ombros, e sei que meu rosto
e corpo devem estar tão habilmente disfarçados quanto os de
todo mundo.
— Chamamos muita atenção como um grupo — diz Bastian.
— É hora de nos separar. Será mais fácil encontrar informações
dessa forma. E se alguma coisa acontecer, Amora e eu seremos
capazes de nos encontrar.
Pelo menos nossa maldição tem um bom uso, suponho. Não
importa onde Bastian esteja, posso senti-lo como um farol em
uma noite sem lua.
— Só não vão muito longe. — Minhas mãos envolvem meu
estômago com a memória da dor incandescente que surge
quando um de nós se afasta muito do outro.
— Todos planejamos se encontrar de volta aqui ao pôr do
sol. — Ferrick coloca a mão sobre o que eu sei que deve ser o
punho da sua espada, embora esteja oculto pelo tecido grosso
do seu manto. Seus olhos azuis encantados pegam os meus,
esperando que eu acene antes que ele relaxe.
Bastian agarra Ferrick em um ombro e Casem no outro.
— Vamos indo. Vocês três — seus olhos encontram os meus
por apenas um breve segundo antes de ele tirar o cabelo do
rosto e se virar. — fiquem seguras.
Vataea coloca a mão no quadril.
— Como se eu fosse deixar qualquer coisa acontecer.
E com isso nosso grupo se separa, mergulhando ainda mais
em extremos opostos do mercado. Passamos por várias
cabanas de madeira que foram construídas nas árvores ao
longo da entrada da selva, pintadas de branco para se
destacarem contra a copa de folhas e troncos curvos
monstruosos das árvores. Eles estão vendendo principalmente
coisas casuais, como temperos para cozinhar todos os dias,
remédios ou elixires de saúde. Shanty aponta para um frasco
de semente de cenoura selvagem, um método popular para
prevenir a gravidez, e balança as sobrancelhas para mim
provocativamente.
— Foco — eu rosno de volta, ignorando o calor que sobe
para o meu pescoço e peito.
Além da falta de vozes, nada sobre este lugar parece
estranho ou perigoso, e ainda as palavras de Bastian no verão
passado soam em meus ouvidos. Cada cidade tem um ponto
fraco. Você só precisa saber para onde olhar.
— O que devemos procurar? — Vataea pergunta, afastando
mosquitos do seu rosto.
Fico feliz que ela pergunte, porque enquanto Shanty segue
em frente, confiante e determinada, estou tentando descobrir a
mesma coisa.
— Estamos procurando algo óbvio — diz Shanty, — mas isso
não está certo.
Quão útil.
Quanto mais procuramos, recusando educadamente ofertas
delicadas de especiarias e elixires, mais claro se torna que não
sou a responsável por este grupo. Longe de ser uma garota
mansa que ela se encantou para parecer, Shanty caça pelas
baias como um predador faminto por uma presa. Vataea e eu
trocamos um olhar enquanto a observamos, nenhuma de nós
tendo qualquer opção a não ser seguir seu exemplo.
Shanty finge examinar um carrinho cheio de produtos;
enquanto admira um pequeno melão com uma das mãos, ela
enfia um pêssego no bolso com a outra. Só quando estamos fora
de vista ela o recupera e dá uma mordida, enxugando o suco
que escorre por seus lábios e queixo.
— Você faz isso como Bastian. — Lembro-me da destreza de
seus dedos. A maneira inteligente como ele pode deslizar uma
moeda de uma mão para a outra antes que haja tempo para
piscar.
A risada de Shanty é calorosa e genuína antes de ela dar
outra mordida e dizer:
— Quem você acha que o ensinou?
A surpresa quase me fez tropeçar nos próprios pés. Não é
nenhum segredo que Bastian e Shanty se conheceram no
passado. Quando nos conhecemos ela disse a Bastian que ele
devia dinheiro a ela, o que me levou a acreditar que tinha sido
uma coisa passageira. Achei que talvez ele tivesse passado
alguns dias em Ikae e por acaso topasse com ela, ou que a
tivesse contratado para um trabalho. Mas há mais do que isso.
Shanty joga o caroço de pêssego na areia.
— É quando éramos crianças, antes dos barracudas sequer
terem nome. Eu tinha deixado minha casa na temporada
anterior, e ele estava naquele navio quase ao mesmo tempo.
— Nós nos conhecemos no mercado — ela continua,
esfregando as mãos umedecidas de pêssego nas calças. — Ele
estava competindo por pão, e eu estava de olho em um par de
brincos de diamante rosa. Eu também estava com fome, não me
entenda mal, mas pensei que Bastian costumava pensar muito
pequeno. Por que ir para o pão quando você pode ir para algo
que poderia comprar uma padaria inteira? Eu não tinha
controle total sobre minha magia ainda, mas aprendi desde
muito jovem como alterar meu rosto o suficiente para impedir
que alguém me reconhecesse. Depois de me encantar, eu ia às
lojas e fingia fazer compras. Às vezes, quando eu tinha dinheiro
sobrando, eu realmente comprava alguma coisa, para que eles
passassem a confiar em um de meus rostos e não prestassem
muita atenção quando eu me aproximasse demais das joias.
— Eu passei uma semana tentando descobrir essa loja. Eu ia
lá todos os dias com uma cara diferente para ver quem estava
trabalhando e descobrir qual lojista faria a marca mais fácil.
Todos os dias Bastian estava lá também, vagando pelas ruas,
roubando pequenas coisas como bolos e frutas. Achei que ele
nunca tivesse me notado, estava acostumada a ser a única que
vigiava, já que ninguém jamais foi capaz de me reconhecer.
Exceto que, um dia, Bastian o fez. — Shanty balança a cabeça
quando ela diz isso, um sorriso brincando em seus lábios.
— No segundo em que finalmente consegui aqueles brincos,
retornei de volta para onde estava hospedada, acho que era
uma cabana que estava fora do mercado e estava tendo
dificuldade para ser vendida. Eu não achei que tivesse sido
seguida, e ainda sim, Bastian estava lá. Ele apareceu na minha
casa para me dizer que tinha me visto usar magia para encantar
meu rosto naquela primeira noite, e que sabia que era eu desde
então. Enquanto eu o estava observando, pensando que ele era
tão bobo por ir atrás de objetos tão triviais, ele foi o único que
esteve nisso por um longo tempo. Ele sabia que eu tinha os
brincos e viu o que eu poderia fazer. Se quisesse, poderia ter
contado às autoridades e sido recompensado por isso. Esses
brincos não foram o primeiro par de joias que roubei; as lojas
reclamaram de roubo e os soldados começaram a atacar para
tentar me pegar. Ele sabia disso, tenho certeza, mas quando
perguntei se ele iria me denunciar, ele riu e disse que não se
fôssemos parceiros. Bastardo inteligente. Eu não tive escolha.
Tentei enganá-lo algumas vezes no início, mas ele sempre
conseguia me encontrar de novo. Ele era muito mais maduro
do que aparentava.
Demoro um momento para perceber que estou sorrindo e
tento sufocá-lo antes que qualquer uma das garotas possa ver.
O Bastian de suas histórias soa exatamente como o pirata pelo
qual me apaixonei.
— O que aconteceu? — É Vataea quem pergunta, mantendo
sua voz melódica baixa em público. — Por que vocês dois se
separaram?
Também estou curiosa e Shanty percebe.
— Nunca foi nada romântico, se essa foi a sua impressão.
Homens não são minha praia. Bastian e eu tivemos uma
parceria de negócios por um tempo, mas ele nunca escolheu
Ikae da mesma forma que eu. Ele saía todas as noites para
dormir em seu navio e voltava cedo na manhã seguinte pronto
para trabalhar. Ele guardava muitos segredos, mas funcionou
porque eu também guardava. Nenhum de nós jamais
pressionou um ao outro por respostas; ter um parceiro era
muito benéfico, e eu imagino que não queríamos estragar isso.
Roubar sozinha funcionou, mas há muito mais a ser feito com
duas pessoas. Um de nós pode ser a distração, o outro um
ladrão. Começamos a roubar não apenas pequenas joias, mas
também armas. Roupas caras. Tudo.
— Porém, conforme Bastian ficava mais velho — ela
continua — percebemos que seu sorriso poderia conquistar
mais do que uma distração mesquinha, poderia ganhar
corações para ele. Ele começou a cortejar meninas de famílias
ricas, e acho que nós dois começamos a perceber que ele não
precisava mais de alguém para ajudá-lo a mudar seu rosto. Ele
sabia como usar o seu muito bem. Ele pegou tudo o que pôde
de Ikae e foi embora quando não havia mais nada para ele. Ele
parou de precisar de mim, o que parece ruim, mas eu não
estava muito chateada. — Ela encolhe os ombros. — Nunca
tivemos o que eu chamaria de amizade verdadeira; eu não acho
que Bastian sabia como ter uma dessas. Mas trabalhar com ele
me fez perceber o quanto eu gostava de trabalhar com outras
pessoas, e que poderia haver sucesso em números. Então,
quando ele saiu, encontrei outros que viviam nas ruas como
nós e comecei os barracudas.
— E quanto ao dinheiro que você disse que ele lhe devia? —
Eu pressiono. — Quando nos conhecemos?
— Ele costumava parar no lounge ocasionalmente. Um
daqueles dias, ele roubou meu maldito brinco. — Fico surpresa
quando ela diz isso com uma risada. — Aqueles diamantes rosa
da noite em que nos conhecemos. Nunca acabei vendendo, eu
os amava muito. Eu ainda tenho um, mas Bastian conseguiu
roubar o outro naquela noite.
Lembro-me de ter visto um brinco como aquele no verão
passado, quando estava trabalhando na criação de Rukan em
sua mesa. Na época, pensei pouco nisso, suspeitando que não
era nada mais do que uma lembrança perdida de um
relacionamento anterior, ou talvez joias caras que ele estava se
preparando para vender na próxima vez que tivesse uma
chance.
Bastian não seria contra fazer amigos. Eu sei mais do que
ninguém o quanto ele queria acertar, mas também como ele
não acreditava que poderia. Se ele passou tanto tempo com
Shanty, não foi porque precisava dela ou se sentiu forçado. Era
porque ele queria fazer funcionar.
Ele se importava com Shanty, provavelmente não só por isso
que ele pegou aquele brinco, mas também porque ele ainda o
tem. Como um lembrete, caso ele nunca mais tivesse a chance
de vê-la novamente.
Por mais que ele encare esse jogo de pirata, Bastian é um
bom homem.
— Amora? — Vataea diz novamente, sua voz rica em mel
aquecendo minha pele. — Você está bem?
Eu começo a acenar para ela, mas quando vou levantar
minha mão, algo me impede. Confio em Vataea para me dar a
verdade mais do que confio em qualquer pessoa. As sereias,
pelo que pude perceber, raramente mentem. Elas têm pouco
senso de esconder a verdade simplesmente para poupar os
sentimentos de alguém.
— Você acha que, sem a maldição, eu estaria com Bastian
agora? — A única maneira de pronunciar as palavras é forçá-
las rapidamente, não demorando para pensar no que estou
dizendo. — Você acha que eu o amo?
Ela me encara mortalmente nos olhos e, sem nem piscar, diz:
— Acho que você já sabe a resposta. — Ela continua
passando por mim sem olhar para trás, sem perceber que perdi
o fôlego.
Como ela pode ter tanta certeza?
— Não há tempo para revelações pessoais. — Shanty bate
seu quadril contra o meu para chamar minha atenção e acena
com a cabeça para frente. — Vê aquilo lá em cima? Na manga
daquela comerciante? É a nossa marca.
Demoro mais do que gostaria de admitir antes de ver a que
ela se referia, uma folha de zolo dourada na manga da longa
túnica de ônix da comerciante.
— Esse é o símbolo que procuramos? — Vataea pergunta,
expressando meu mesmo ceticismo. — Essas folhas estão em
todo lugar aqui.
— Essa é a beleza disso. — A voz de Shanty é praticamente
admirada. — As folhas de zolo são conhecidas por terem duas
veias no centro. Você notará que este símbolo, entretanto,
possui apenas uma. A maneira mais inteligente de esconder
algo é escondendo-o à vista de todos.
Eu pisco, percebendo que ela está certa. Mas sem ela, eu
nunca teria notado.
A mulher que carrega o símbolo sorri com o mesmo sorriso
educado das outras, embora o dela não alcance seus olhos.
— Pão de alecrim? — Ela não tem uma cabine comercial
adequada. Em vez disso, ela se senta contra o tronco de uma
árvore retorcida, uma cesta de madeira com pão à sua frente.
Shanty pega um pão e o leva ao nariz.
— Deve ser um negócio difícil agora, dada a concorrência.
Acho que já passamos por pelo menos quatro barracas de pão
até agora. — Pelo canto do olho, noto Vataea recuando
lentamente, posicionando-se vários passos à esquerda de
Shanty. Ela acena para mim, e eu sigo sua liderança me
posicionando em frente a ela, à direita de Shanty. Juntas,
formamos um triângulo para bloquear a mulher contra a
árvore.
— Quando você vende o melhor, os visitantes ainda vêm —
diz a comerciante.
— Este é um lindo manto que você está vestindo. Eu amo o
bordado. — Shanty dá uma mordida hesitante, considerando
por apenas um momento antes de cuspir no chão. — Sim, é este.
O que é aquilo? Semente de lua? Deve ser uma dose leve, mal
dá para sentir o gosto sobre o alecrim. É suposto ser um
sedativo leve?
O rosto da comerciante cai e, com um suspiro pesado, ela
diz:
— Você é aquela garota sobre a qual todos me avisaram, não
é? A metamorfa? Não devemos mais vender para você.
Shanty sorri largamente, como se estivesse satisfeita por ter
feito algo que justificasse que alguém precisasse ser avisado
sobre ela.
— Boa sorte com isso. Leve-nos à sua loja e facilite isso,
senão terei que te convencer. E você descobrirá que posso ser
incrivelmente persuasiva.
— Você é uma ladra. Se você acha que vamos entretê-la
depois que você roubou o...
Shanty estala a língua.
— Ah ah ah. Não vamos discutir o passado quando estamos
no presente. — Seus olhos piscam para mim, então para a
adaga em meu quadril, e ela salta uma sobrancelha. Eu reviro
meus olhos e pego Rukan, só porque é a mais chamativa das
duas. Eu a agarro com força em minhas palmas, e a garganta da
comerciante balança.
Shanty pega a arma e eu a entrego a contragosto.
Imediatamente me sinto nua, agora sem não apenas minha
magia, mas também minha próxima melhor fonte de proteção.
Tento firmar minha respiração conforme elas ficam mais
nítidas, a ansiedade tomando conta.
Minha visão começa a formar um túnel, mas antes que eu
possa girar, avisto Vataea. Seus olhos perfuram os meus e tento
novamente me equilibrar.
Tento pensar em sua risada, em sua canção que muda o mar
e conduz nosso navio. Daquela que eu a ouço cantando na proa
enquanto ela se senta acima da figura de proa tarde da noite,
quando ela acha que ninguém está ouvindo.
Eu não falo a língua ou entendo suas palavras, mas toco a
melodia para mim mesma na minha cabeça até que meu peito
não esteja mais tão apertado, inflando com as respirações
completas que finalmente sou capaz de respirar. Eu levanto
meu queixo mais alto e fico mais ereta, dando a Vataea um
pequeno aceno de cabeça.
Estou bem.
Ela acena de volta e, embora seja claro pela tensão em seus
ombros que ela não acredita em mim, ela deixa para lá.
— Você está familiarizada com o veneno — Shanty
casualmente diz à comerciante enquanto brande Rukan,
admirando as estranhas manchas de azul iridescente e a ponta
azul-marinho recortada em forma de gancho. — Diga-me, você
já ouviu as lendas da Lusca? Você sabia que cada um de seus
tentáculos tem ganchos farpados cheios de veneno letal
diferente de qualquer outro tipo? É improvável que eles
encontrem um antídoto; a única maneira de evitar a morte é
cortar seu membro infectado ou drenar o sangue antes que o
veneno se espalhe muito rapidamente. Esta lâmina é o anzol
farpado da Lusca, porque essa mulher aqui, nossa rainha, a
venceu no mar.
Quando Shanty inclina a cabeça em minha direção, se
divertindo muito com isso, a comerciante empalidece. As
pontas dos dedos dela cavam na terra e ela prepara os pés,
claramente se preparando para fugir.
— Apenas uma fatia do seu pescoço bonito, apenas um soco,
e você estará tão boa quanto…
A comerciante se levanta em um salto, mas estou pronta
para ela. Eu avanço, derrubando seus pés debaixo dela com um
chute rápido. Ela atinge a grama arenosa de cara e, antes que
possa se levantar, estou montando em suas costas com uma
mão em volta do cabo da minha adaga de aço. A outra está
presa em seu cabelo, puxando seu rosto da areia.
— Da próxima vez, mantenha seu discurso mais curto — eu
resmungo para Shanty, que faz um barulho bufando baixinho.
— Dá muito trabalho fazer ameaças criativas — ela suspira.
— Elas deveriam ser apreciadas.
O calor arrepia meu pescoço, mantendo-me focada. Meu
sangue pulsa, minhas veias explodem com pequenos choques
de energia ansiosa. Pela primeira vez, os deuses sabem quanto
tempo, me sinto viva. Embora no fundo da minha mente eu
saiba que é errado, embora eu saiba que não deveria amar a
luta, eu amo.
Anseio por esse sentimento mais do que qualquer outro.
A comerciante pragueja e tenta me acertar com suas unhas
compridas. Uma delas tem a ponta de um metal fino e elegante
que se estende de seu dedo como uma unha comprida e
enfeitada. Ela o coça nas minhas calças e, embora não rompa o
tecido, começa a chiar. Qualquer veneno que esteja na ponta
daquele dedo metálico queima, e eu xingo enquanto ele corrói
seu caminho através da minha calça rapidamente, sabendo que
isso só pode significar que passará pela minha pele a seguir.
Eu largo minha mão de seu cabelo e deslizo a adaga pela
minha calça, rasgando o tecido antes que derreta na minha
perna. A comerciante tenta usar minha distração para me
desequilibrar e escapar, mas Vataea pressiona o pé contra o
pescoço da comerciante antes que possa fugir. Seus olhos
dourados são nada menos que letais.
— Estou começando a ficar com fome. — A voz de Vataea é
puro gelo. — Tente de novo, e vou esfolar você viva e filetá-la
como um peixe.
— Ah, boa, V — Shanty entra na conversa. — Certifique-se
de se lembrar disso. Teremos que usá-la novamente.
Com a pele pálida, a comerciante fica imóvel.
— Você não é humana.
— Que gentileza sua notar — diz Vataea. Suas palavras são
tão farpadas e letais quanto aqueles olhos dourados. — Agora,
se você valoriza seu coração, você tornará isso fácil. Minhas
amigas e eu temos algumas perguntas para você. — Ela tira o
pé do pescoço da comerciante e eu solto as costas da mulher o
suficiente para que ela recupere o fôlego e se endireite.
— Eu vou te levar lá — a comerciante grasna, esfregando sua
garganta. — E eu vou te dizer o que você quiser saber. Apenas
se apresse, por favor, antes que alguém nos veja.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

A umidade se apega à minha pele enquanto viajamos para a


selva, nos aventurando muito além do mercado e nas
profundezas do matagal de árvores crescidas e flora
exuberante. Insetos zumbindo nos enxameiam, atraídos pela
doçura do nosso suor, e eu os afasto com um fluxo constante de
maldições enquanto eles tentam sentir o gosto da minha pele.
Quanto mais nos aprofundamos na selva, e quanto mais
minha distância de Bastian aumenta, mais pesados meus
membros se tornam enquanto minha maldição se instala em
meus ossos.
— Quanto mais longe? — Exijo enquanto a comerciante
hesita perto de um tronco disforme, inspecionando sua casca.
Apertando os olhos, noto que uma pequena folha de zolo foi
grosseiramente esculpida nele. A tensão em meus ombros
diminui. A comerciante não está nos enganando, ela está
procurando. Em uma selva tão grande, é impossível distinguir
qualquer coisa. Onde quer que estejamos indo, deve estar bem
escondido.
— Estamos quase lá.
Para Shanty eu pergunto:
— Como você encontrou este lugar da última vez?
— Nunca estive na base antes. — Um mosquito golpeia seu
pescoço e ela o mata, fazendo uma careta para as tripas na
palma da mão. — Eu me encantei para parecer um dos
comerciantes e roubei seus produtos. — Ela sorri quando
minha sobrancelha arqueia. — Uma garota precisa trabalhar,
Amora. Ninguém se machucou sem merecer.
Sinto uma pontada no peito por causa da magia perdida da
minha alma; o que eu não daria para dar uma olhada na alma
de Shanty e ver como é lá.
À medida que avançamos na selva, a copa sobre nós fica
mais espessa, coagulando o céu. Nenhuma luz do sol penetra
pelos galhos, tornando impossível decifrar há quanto tempo
estamos aqui ou quão perto pode estar do pôr do sol. Meu
coração dá um aperto de ansiedade e me viro para a
comerciante.
— Para o seu bem, é melhor você se apressar.
Enquanto seus passos se aceleram, a mulher faz uma
carranca. Eu me arrasto atrás dela, as botas lutando para
manter o ritmo através do musgo úmido espesso e ervas
daninhas crescidas que se estendem para nos enredar. Vataea,
talvez depois da sua quarta vez tropeçando em algo, rosna e
crava sua lâmina no mato.
— Você sabe que eles são inanimados, certo? — Shanty
pergunta casualmente. — Que eles não estão realmente
tentando te machucar?
Mesmo assim, Vataea cospe no chão.
— A terra é muito confusa. Pelo menos com o mar há espaço
vazio. Você pode ver para onde está indo.
Estremeço ao me lembrar da vez em que ela me trouxe para
o mar com ela, para que pudéssemos passar pela barreira de
Kaven e chegar a Zudoh. O mar parecia vasto, mas certamente
não parecia vazio. Suas profundezas continham muitas coisas
desconhecidas, coisas que eu não conseguia ver, mas sabia que
estavam observando.
Felizmente para Vataea, não caminhamos por muito tempo.
A comerciante bate os nós dos dedos na casca de outra árvore,
e dessa vez, nós três ficamos paradas quando o vazio ecoa de
volta. A comerciante enfia os dedos na casca cinza e a descasca
como se fosse abrir a árvore.
— Escadas? — Vataea aperta os olhos, mantendo a lâmina
desembainhada ao lado do corpo enquanto se aproxima da
comerciante. Seguro Rukan com força em minha própria mão
mais uma vez, sigo e espreito para baixo na base da árvore. Com
certeza, existem escadas construídas a partir do tronco,
descendo até as raízes da árvore e seguindo para a escuridão
do que parece ser uma sala vazia.
É engenhoso. Uma pessoa pode pesquisar para sempre e
nunca encontrar este lugar.
— Eu vou primeiro — eu ofereço. — Se ela é uma faladora
de mentes, há uma chance de termos companhia lá.
Embora eu faça um movimento para descer as escadas,
Vataea pressiona a mão no meu peito para me segurar.
— Você é a rainha — ela diz simplesmente, plena e real. —
Você precisa sobreviver.
Não querendo aceitar um não como resposta, ela dá um
passo à minha frente e desce as escadas. Eu sou rápida em
segui-la, com Shanty e a comerciante nos seguindo.
— Experimente qualquer coisa engraçadinha — Shanty
avisa a mulher com uma voz aparentemente agradável, uma
faca fina pressionada contra suas costas enquanto elas
caminham — e você estará morta antes da sua próxima
respiração.
As escadas são tábuas improvisadas de madeira podre sobre
a terra, dificilmente estáveis. Nós vamos devagar, com as armas
em punho apesar do silêncio que nos espera.
O túnel é uma escuridão sufocante, tão estagnada que meus
pulmões se contraem; é tão escuro que testo cada um dos meus
passos antes de ir. Somente quando as escadas terminam e
alcançamos o piso nivelado é que meus olhos se ajustam o
suficiente para ver a forma de uma pequena mesa de madeira
e a lamparina a óleo ao lado dela. Com facilidade praticada, a
comerciante acende a lâmpada, banhando os aposentos
apertados com um brilho âmbar fraco.
Nenhum rosto espera para nos atacar. Nenhuma arma é
sacada, além das nossas, e nenhuma luta é iminente.
— Eles estão ali. — A comerciante aponta para uma pequena
sala esculpida no canto, e eu troco um olhar com Vataea. Seu
olhar conhecedor confirma minhas próprias suspeitas: algo
aqui não está certo. Isso é muito fácil.
— Não demore — digo a ela. — Precisamos nos apressar e
sair.
Frascos de venenos líquidos e bolsas de algodão recheadas
com pós enchem as paredes, cada uma delas rotulada não com
o que está nelas, mas com o que fazem. Minha pele se arrepia
quando percebo que há um minúsculo símbolo de caveira no
rótulo de mais da metade deles, e já estou pensando em
centenas de maneiras diferentes de queimar este lugar até o
chão. E pensar que tal lugar poderia existir bem debaixo do
meu nariz.
Meu pai sabia sobre isso? Depois de tudo, eu não ficaria
surpresa se ele soubesse. Há quanto tempo a família Montara
permite que este reino se destrua? A cada dia que passa, parece
que meu dever de consertá-lo está ficando cada vez mais difícil.
— Alguém tentou matar nossa rainha. — Shanty vasculha as
prateleiras, sem se preocupar em ser dissimulada quando enfia
três frascos diferentes e duas bolsas de pós em seus bolsos,
para protesto da comerciante. Eu mordo o interior da minha
bochecha, odiando que eu me pergunte para que ela pretende
usá-los. Shanty provou ser útil até agora, e eu a pago muito bem
para ela ser uma ameaça para mim.
A menos que alguém lhe oferecesse mais...
Eu odeio pensar isso, mas Vataea observa a metamorfa tão
atentamente quanto eu. Seus olhos estão apertados, tentando
decifrar o que, exatamente, Shanty está pegando. O ar ao redor
de Shanty fica confuso enquanto ela caminha, e eu ignoro o
latejar surdo em minhas têmporas enquanto o veneno da noite
passada começa a agir.
— Achamos que alguém enfiou alguma coisa na comida dela
— diz Shanty. — Precisaria ser algo facilmente mascarado.
A comerciante bufa.
— Você acha que alguém seria capaz de fazer isso em uma
festa? Para enfiar algo em sua comida, especificamente?
Haveria muitas pessoas. Muitos riscos. Mais pessoas ficariam
doentes.
O peso de Rukan de repente pesa em minhas mãos.
— Se não na comida ou no vinho, então o quê?
— Quais foram seus sintomas? — A comerciante examina as
prateleiras, apertando os olhos para ver as etiquetas na luz
fraca. Vataea fica perto dela, inspecionando os frascos com
lábios azedos.
— Eu estava vomitando sangue e parecia que tudo estava
girando. Acordei com a sensação de que não bebia água há um
ano e, ontem à noite, não importa o que eu tenha comido, não
foi o suficiente. No final da noite, não conseguia entender o que
estava acontecendo. Eu desmaiei.
— Isso exclui um veneno de corrente sanguínea. O tempo é
muito longo para isso, e você se recuperou rápido demais. —
Ela vai para uma prateleira diferente, ainda semicerrando os
olhos. — Pode ter sido um veneno ingerido, mas... não. Muito
arriscado. Teria que entrar no corpo de outra maneira.
Possivelmente…
— Através da pele. — Assim que as palavras saem dos lábios
de Shanty, meu estômago embrulha com a compreensão.
Meu banho. Algo estava nos óleos e nos tônicos que coloquei
na água. Os que eu respirei através do vapor do banho e
mergulhei meu corpo.
Aquele que Lady Ilia preparou para mim quando cheguei a
Curmana.
Não tinha pensado em nada quando apareci no meu quarto
com a banheira já preparada para mim. Afinal, eu sou a rainha.
Isso é bastante normal.
Mas não foi alguém tentando causar uma boa primeira
impressão. Alguém estava tentando me matar.
Eu agarro uma prateleira para me equilibrar, batendo nela
com tanta força que um dos frascos rola e tomba no chão,
estilhaçando cacos de vidro gotejando com um líquido amarelo
fluorescente.
A comerciante vasculha várias outras prateleiras até que ela
faz um barulho de cacarejar com a língua e puxa um frasco,
tendo encontrado o que estava procurando.
— O cheiro era assim? — Ela me oferece a bolsa, mas Shanty
a pega primeiro e respira fundo antes de passá-la para mim.
Tem cheiro de capim-limão e sálvia.
A bile sobe para minha garganta.
— Quem foi a última pessoa para quem você vendeu isso?
O rosto da comerciante permanece impassível.
— Deve ter sido um tempo atrás. Eu não consigo me
lembrar…
Eu bato o punho contra a prateleira, deixando mais frascos
se espatifarem no chão.
— Não estou brincando. — Eu agarro a comerciante pela
mão e a puxo para frente, ignorando sua respiração afiada e
súplica de protesto enquanto eu puxo Rukan ao longo da parte
de trás de seu dedo indicador, pressionando a lâmina em forma
de gancho fundo o suficiente para seu sangue borbulhar.
Linhas azuis se cruzam imediatamente sobre sua pele
quando o veneno entra em sua corrente sanguínea. Ela grita e
eu coloco minha mão em sua boca para abafar o som. Quando
ela morde, pressiono Rukan mais profundamente em seu dedo,
até que sua mordida se transforme em soluços quando a lâmina
quase corta completamente.
— Você tem um minuto para me dar um nome. — Eu tiro
minha mão da sua boca e, no momento em que ela começa a
gritar, meu joelho encontra seu estômago e tira o ar dos seus
pulmões.
Uma vida não é mais importante do que o reino. Se eu
morrer, morrerá também a chance de liberdade do povo. Ao
contrário da luta em Kerost, aqui eu posso e vou atacar
livremente depois do que ela fez, fora da vista de quaisquer
olhos errantes.
Lentamente, garantindo que a comerciante sinta cada
centímetro desta lâmina, eu a arrasto em um segundo dedo.
— Quanto mais veneno há em seu sangue, mais rápido
funciona. Tente de novo e não terá outra chance de falar. Vou
cortar sua garganta.
Ela tenta me encarar com os olhos marejados, mas o medo é
muito potente enquanto eu seguro Rukan contra seu pescoço.
Ela treme, sua determinação se fragmentando.
— Alguém encomendou há alguns dias, isso é tudo que eu
sei! Eles nunca foram à loja, mas sabiam quem eu era.
Usávamos a linguagem mental para nos comunicar e eles
escondiam o rosto com uma capa. Trocamos mercadorias, é
isso.
Eu não removo minha arma, mas em vez disso a pressiono
mais profundamente contra sua pele.
— Para o seu bem, espero que pense em outra coisa para nos
dar.
— Amora… — Vataea começa, mas eu não volto.
O pânico acelera a respiração da comerciante e deixa sua
pele pegajosa contra minhas mãos.
— L-loiro! Eu vi cabelos loiros e eles eram altos. E... deuses,
não sei de mais nada! Acho que a voz deles ficou encantada de
alguma forma, era diferente cada vez que eu falava com eles.
Mas eu nunca vi um rosto, eu juro.
Eu recuo para olhar para as duas.
— Teria sido alguém que sabia que estávamos chegando.
Eles saberiam em que sala eu estaria.
— Amora. — A voz de Vataea está tensa agora, os olhos fixos
na escada. — Ela disse que eles se comunicavam por meio da
fala mental.
A implicação nessas palavras me acalma. O medo desaba dos
meus dedos das mãos para os dos pés, e meu aperto em Rukan
afrouxa.
— Precisamos sair daqui. — Afinal, a comerciante não se
perdeu na selva. Ela estava protelando. — V, Shanty, vão!
Estes aposentos apertados são o último lugar onde podemos
nos dar ao luxo de sermos sugadas para uma luta.
As meninas não hesitam. Elas embainham suas armas e
correm para as escadas, e eu empurro Rukan para trás da
comerciante, cuja cabeça cai para trás com uma risada fria e
dolorida.
— Eu sempre ouvi que nossa rainha era cruel — ela rosna.
— Eu deveria ter dado ao cliente um veneno mais forte.
Deixo-a no chão e pego a lamparina a óleo.
— Não vamos sem você — avisa Vataea da base da escada,
ao lado de uma Shanty inquieta que parece estar tendo uma
luta mental sobre essa promessa. — O que você está fazendo?
Eu olho para a parede de pós e venenos. Posso não ser capaz
de impedir que esses venenos sejam produzidos, mas
certamente posso estancar suas vendas.
— Se você conseguir sair daqui viva, boa sorte cortando sua
própria mão — digo à comerciante. — Essa será a única
maneira de parar o veneno.
A mulher tropeça em seus pés, riachos de sangue fresco
escorrendo como vinho da ponta dos dedos. Ela faz um som
sufocado enquanto eu chuto as prateleiras, deixando os frascos
caírem e se espatifarem.
Não me viro para olhar seu horror. Em vez disso, envio uma
oração aos deuses, jogo a lamparina sobre os venenos que
vazam e me viro para correr o mais rápido que minhas pernas
permitem, empurrando Shanty e Vataea à frente. Felizmente,
leva mais tempo do que eu esperava para os venenos e óleo
pegarem fogo, mas a explosão quase derruba o chão sob meus
pés quando estou na metade da escada. Uma de nós grita na
escuridão, e a próxima coisa que eu sei é que a escuridão está
inundada por chamas vermelhas rosnantes.
A comerciante tropeça atrás de nós enquanto Vataea abre a
porta improvisada, abrindo o tronco. Ela estende a mão para
Shanty e eu, nos arrastando para fora. Mal tenho tempo de
puxar a comerciante para fora antes que Vataea feche a porta
como se tivesse esperança de apagar o fogo.
O veneno de Rukan está rasgando a mulher; linhas marinhas
fazem um banquete de sua pele, devorando seus dedos e se
espalhando por seus braços. Se ela quer salvar sua vida, ela vai
precisar trabalhar rápido. Mas além de puxá-la antes que as
chamas pudessem fazer dela uma refeição, estou cansada de
ajudar. Ela mesma cavou essa sepultura.
Em algum ponto de nossa distração, o encantamento de
Shanty se dissipou. Eu não noto até que ela tropeça em mim e
deixa o calor de sua magia se estabelecer em minha pele como
cera de vela derretida. Tusso. Na minha visão periférica, vejo
que ela fez meu cabelo parecer um vermelho cobre quente e o
prendeu em cachos. De onde ela toca, eu sei que ela está
alterando o formato da minha mandíbula e do meu nariz antes
de mascarar minha roupa.
Seu trabalho com Vataea é rápido, tornando o rosto da
sereia menor e mais redondo, e seus cabelos de um castanho
quente. Ela trabalha em si mesma por último, envelhecendo
sua pele, cansando-a com bolsas pesadas sob os olhos e
clareando seu cabelo até um corte curto de cinza.
— Você me deixa horrorizada — digo a ela enquanto me
oriento. Meus olhos ardem de fumaça e veneno, seja da noite
passada ou de inalar a fumaça, não tenho certeza. — Os
disfarces dos meninos também terão acabado. Precisamos nos
apressar e…
Um golpe no rosto é forte, me fazendo tropeçar. Ofegante,
minha mão voa para o meu queixo dolorido por instinto,
antecipando o sangue. Mas não há nada lá, e nenhuma ameaça
está diante de mim.
— Alguém viu…
Outro golpe. Desta vez, tira o ar dos meus pulmões e eu
agarro meus braços com força em volta de mim, procurando a
fonte através dos olhos lacrimejantes.
A percepção bateu tarde demais. Minha respiração engata
em respirações agudas e minúsculas. Não sou eu quem está
sendo atingida: é Bastian.
— Os meninos estão com problemas.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Embora meu corpo proteste, doendo com uma dor que não é
minha, eu forço minhas pernas em chamas em uma corrida.
Nenhuma das garotas faz perguntas, mantendo-se perto
enquanto eu atravesso a selva. Ao contrário do nosso caminho,
não estou perdida. Minha alma sabe para onde ir; é meu corpo
que está lutando para acompanhar.
Eu sinto que estamos nos aproximando rapidamente dos
outros quando todo o ar é retirado dos meus pulmões. Eu caio
de joelhos, segurando minha garganta. A escuridão assola
minha visão turva, me lembrando da época em que eu estava
na água com a Lusca, me afogando enquanto o oceano me
segurava em suas garras.
E então simplesmente desaparece. Eu agarro
desesperadamente as raízes abaixo de mim enquanto ofego em
minhas respirações.
Bastian está sufocando.
— Continue — eu grito, trêmula enquanto me arrasto da
árvore e forço um pé na frente do outro até que eu possa
recuperar a habilidade de correr. — Eles estão perto.
Mantenha-se indo…
Outra onda de falta de ar me atinge e eu começo a afundar
quando as outras duas engancham seus braços sob os meus e
me puxam para cima entre elas até que eu possa firmar meus
joelhos trêmulos mais uma vez.
Maldita seja essa maldição.
Meu peito aperta, a pele esquentando em um sinal que eu sei
que significa que Bastian está perto. Mas a selva é densa e
escura sob a copa de folhas grossas de couro, e não consigo vê-
lo.
Por que não posso vê-lo?
— Tenha cuidado! — É a voz de Ferrick, mas o aviso chega
tarde demais. Raízes enormes se arrancam do chão embaixo de
mim, nos forçando a recuar. Elas se erguem no ar, e eu percebo
o que estão fazendo bem a tempo de empurrar Shanty e Vataea
para trás. As raízes triplicam de tamanho antes de baterem no
chão com força total, me atingindo com força no peito. Eu
respiro, mas há pouco tempo para me recompor antes que mais
raízes sejam arrancadas, esticando-se e alongando-se à medida
que chegam para nos enlaçar.
— Isso é magia de encantamento — sussurra Shanty, pasma.
Ela se encolhe, evitando por pouco as raízes que se enrolam
em minhas pernas, cortando-as com a faca para me libertar.
Rapidamente, ela enfia a mão no bolso e tira um dos frascos de
veneno escaldado com uma caveira no rótulo. Ela afunda várias
agulhas nele e as prende na parte de baixo da sua pulseira de
espinha de peixe. Duas das agulhas, no entanto, ela mantém
entre os dedos.
— E magia de levitação, pelo que parece. — Eu me arrasto
para mais perto deles, com a garganta em carne viva.
— Qual de vocês é a rainha? — A voz baixa e familiar torce
meu peito, criando nós que ameaçam roubar meu fôlego. —
Mostre-se e eu deixarei todo mundo ir.
Antes que eu possa dizer qualquer coisa, as unhas de Vataea
estão cravadas em meus pulsos.
— Nem uma palavra.
Quando nenhuma de nós dá um passo à frente, há uma
quebra no velame acima e uma mudança de movimento. Eu
agarro o punho de Rukan com força quando os vejo; os meninos
pairam no ar, sufocados pelas trepadeiras que ameaçam
derrubá-los a qualquer momento.
Se eles caíssem, Ferrick poderia ter uma chance com sua
magia de restauração, e Casem poderia usar sua afinidade com
o ar para amortecer o golpe, mas sem dúvida mataria Bastian.
— Fique para trás! É... — As palavras de Bastian são
interrompidas quando uma videira se quebra ao redor dele e
atinge sua boca, alojando-se em sua garganta. Ele engasga,
sufocando-se. Eu sinto a dor de Bastian em meus ossos, como
se fosse minha. Leva tudo de mim para não mostrar essa dor.
Para não engasgar com o fantasma das videiras se contorcendo
na minha garganta.
Não vou revelar minha maldição antes do meu inimigo. Além
disso, não preciso que Bastian me diga contra quem estou
lutando. Com um buraco no estômago, percebo que já sei.
Enquanto várias pessoas sabiam que eu estava chegando e em
qual quarto eu ficaria, apenas uma pessoa esteve em Ikae
recentemente e teria a chance de estudar magia de
encantamento.
— Pare de ser covarde e se mostre, Elias. — Eu puxo minha
mão da de Vataea e dou um passo à frente. O encantamento de
Shanty pode estar por toda a minha pele, mas Elias aposta que
sou eu mesma.
Empoleirado em um galho muito grosso, ele usa a magia de
levitação para fazer seu corpo flutuar até o chão, olhos brancos
nebulosos fixos nos meus.
— Eu esperava que você estivesse morta antes do
amanhecer. — Sua voz fica mais fina. — Você é mais inteligente
do que eu acreditava.
— Isso é o que todos os meninos me dizem. — Eu agarro
Rukan perto de mim, tentando descobrir como chegar perto o
suficiente para atacar. — Achei que você praticasse a fala
mental.
— Você nunca considerou que há alguns de nós que
praticam os dois? — Seu orgulho é doentio.
Eu odeio gritar quando o chão cai embaixo de mim, e meu
corpo é puxado para frente por sua magia de levitação. Quando
ele avista Rukan, no entanto, ele dá uma pausa para qualquer
ideia que ele estava fermentando e me coloca de pé. Atrás de
nós, há um forte assobio no ar seguido por um grito e uma série
de maldições vibrantes enquanto os meninos caem no chão.
Eles caem tão rapidamente que todo o meu corpo se agita.
Casem mal tem a chance de colocar as mãos em volta dos lábios
e soprar, criando uma rajada de ar que joga Ferrick e Bastian
para o lado segundos antes de baterem.
Mas há pouco tempo para se proteger. Ele mal consegue
amortecer o golpe, batendo forte o suficiente para que seu grito
me diga que quebrou algo, mas não com tanta força que o
impacto o mate.
A carranca de Elias se aprofunda em sua aterrissagem
segura, e sua frustração é suficiente para me fazer pensar: Elias
não é bobo. Já estive em lutas o suficiente para saber que não
devo correr riscos quando você não conhece a magia do seu
oponente. Ele não sabia nada sobre esses três, mas mesmo
assim arriscou-se a permitir que eles voltassem ao campo de
batalha e saíssem de suas garras.
Imediatamente, penso em Ferrick tentando aprender a falar
com a mente em Keel Haul, lembrando do sangue que escorria
do seu nariz e das dores de cabeça que Casem sente quando ele
usa a magia com muita frequência.
Uma nova magia requer crescimento; é desgastante para o
corpo. E Elias não é exceção a essa regra, ele revelou a falha da
sua magia com muita facilidade: ela tem limites. Peso, tempo ou
distância, um ou todos esses fatores impediram Elias de poder
lutar comigo sem libertar os meninos.
Essa luta não será fácil, mas Elias não é invencível.
— Por que você está fazendo isso? — Eu tenho que cavar
para encontrar minha voz. — Estou tentando ajudar Visidia.
Sua resposta não vem com raiva, mas com um
ressentimento profundo e perturbador.
— Você realmente acha que é o melhor para Visidia? Por
séculos, minha ilha está em paz, apesar do governo de sua
família. Tomamos todas as precauções para proteger nossos
egos e manter isso. Mas desde o momento em que assumiu o
trono, você foi uma ameaça para Curmana. Você está invadindo
nossa independência. Nosso poder. Você é a última coisa que
este reino precisa.
— Seu poder? — Eu encontro o aço em minha voz e mordo.
— E quanto ao poder das outras ilhas? Sua estabilidade deve
significar a ruína delas? Por que elas deveriam ter que lutar
apenas para que você se sinta confortável? Olhe para Kerost,
ter múltiplas magias os está ajudando.
Ele estala a mão para o lado, irado.
— Você mesma disse que Curmana sempre foi auto
suficiente. Por que as outras ilhas não podem ser iguais? Por
que devemos compartilhar nossos recursos, nossa força,
porque somos forçados a viver sob seu domínio? Por que não
podemos nos governar?
Minha garganta está seca, doendo com a fumaça e as vinhas
que sufocaram Bastian. Tento falar, mas descubro que não
tenho resposta. Só uma pergunta.
— Você quer que Curmana se separe?
— Eu quero que todas as ilhas se separem. — Ele cospe as
palavras, tenso e fervendo. — Estou cansado de ver a minha
ilha responsável pela vida dos outros. Nós trabalhamos duro,
por que não devemos colher nossos próprios benefícios? Por
que devemos compartilhá-los?
— Não entendo como você pode ser tão insensível a ponto
de querer ver os outros sofrerem quando tem a capacidade de
ajudá-los.
— E eu não entendo como sua família conseguiu convencer
um reino inteiro a seguir os Montaras por séculos quando você
não fez nada por nós! Nós não precisamos de você.
Por mais que eu tente, minha mente luta para acompanhar
suas palavras, ainda persistindo na ideia por trás delas. Nunca
considerei isso seriamente, mas as palavras de Elias são duras.
Por que o reino precisa de um governante?
Para mantê-los seguros com os soldados reais? Para
garantir a segurança nas prisões? Para ser o fator decisivo para
a aprovação de leis?
O que fazemos pelas ilhas que eles não podem fazer
individualmente?
Estou fazendo algum bem pelo meu povo?
Passos pesados me distraem e eu me viro a tempo de ver a
espada larga de Bastian erguida em preparação para um
ataque. Mas seus movimentos são muito lentos, e é com uma
sensação de afundamento que posso sentir o veneno
percorrendo seu corpo, retardando-o. Embora eu saiba que não
está dentro de mim, ele morde do mesmo jeito, me deixando
lenta. Se se tratar de um combate físico entre Elias e eu, não vou
ganhar de jeito nenhum. Deixando de lado a falta de magia, essa
maldição turvou minha mente e fez meu corpo ficar fraco com
o veneno passando pelas veias de Bastian. Se vou acabar com
isso, vou precisar ser rápida.
— Se você morresse, seria o suficiente para agitar o reino —
Elias diz, usando sua magia para puxar as videiras
protetoramente ao seu redor. Elas incham até ficarem grossas
como troncos, pairando sobre nós. — Poderíamos iniciar uma
revolução de liberdade para cada uma de nossas ilhas.
Seríamos responsáveis por nossa ilha e por mais ninguém.
Sua convicção me faz pensar, a confiança em suas palavras e
a forma como ele endireita os ombros me lembra Kaven. De
alguém que talvez um dia realmente teve uma ideia sólida, mas
que se perdeu em suas ideologias.
— Você não quer liberdade. — Dou um passo à frente
enquanto ele me avalia com cautela. — Você quer poder. —
Mesmo sem minha magia, não vou protelar. Enquanto eu
levanto Rukan, vejo em minha mente todo o sangue que esta
lâmina derramou. Posso ser fraca, mas não estou desamparada.
Eu vou derrotá-lo.
No próximo passo que dou, o vento sopra dos meus pulmões
e sou empurrada para o ar, cambaleando em direção à parede
com sua magia de levitação. Casem estende a mão, tentando
impedir que isso aconteça, mas seu corpo se curva, incapaz de
convocar o ar a tempo. Minhas costas batem em uma árvore e
eu grito enquanto uma dor cegante rasga através de mim. Meu
ombro se estilhaça, quebrando em uma dúzia de lugares.
Vataea e Shanty estão lá para me pegar enquanto Ferrick
ainda não se moveu das vinhas que o restringem. Seus olhos
estão fechados e meu coração dá um aperto, pensando o pior.
Mas então eu noto as rugas de concentração entre suas
sobrancelhas, e percebo que ele não está ferido, ele está se
curando do mesmo veneno contra o qual Bastian está lutando.
É algo contra o qual Casem, sem dúvida, está lutando também.
Eu olho para Elias enquanto Bastian se move atrás dele,
embora não tenha ideia de como ele ainda está de pé. Deve ser
só a adrenalina que o faz dar outro golpe contra Elias, mas o
golpe nunca acerta. Há vinhas nas costas de Elias em segundos,
acertando Bastian na mandíbula e enrolando-se firmemente
em torno dele. Ele atinge o chão com uma dor tão forte que
agarro meu peito, ofegando contra ele e minha mandíbula
latejante.
Enquanto ele luta para se levantar, com o corpo tremendo,
percebo três coisas:
Primeiro, somos suficientes para superar o número de Elias.
Mas porque ele pratica a fala mental, precisamos mantê-lo
suficientemente distraído para que ele não possa pedir
reforços.
Em segundo lugar, Bastian precisa de cura para o veneno
que está subindo por sua garganta, ameaçando nos atingir a
qualquer momento.
Terceiro, eu sei como vencer essa luta.
Enquanto Shanty tenta me ajudar a ficar de pé, eu agarro sua
mão e aperto com força, deslizando a pulseira de seu pulso o
mais astutamente que posso. Seus olhos piscam com um aviso
para ter cuidado, mas ela não faz perguntas ou deixa
transparecer enquanto eu deslizo as agulhas enfiadas entre
meus dedos.
— Seu desgraçado. — Bastian, teimoso como é, tem sua
espada erguida contra Elias mais uma vez. Ele se parece com
Kaven, raiva em seus olhos e seu corpo pronto para matar. Seus
movimentos oscilam e, embora não haja como ganhar, ele se
recusa a recuar, ganhando tempo. — Você vai queimar pelo que
tentou fazer com ela.
— Depois de hoje, não haverá mais tentativas. — Sem
levantar um dedo, Elias derruba Bastian no chão mais uma vez.
O aço cintila quando ele tira uma lâmina fina do cinto.
O medo me atinge, frio como gelo, enquanto ele se abaixa
sobre Bastian, brandindo a lâmina. Eu me apresso, sem fôlego,
mas nunca vou chegar a tempo.
E, no entanto, não é o medo de Bastian que sinto
aumentando. É orgulho.
Liso como uma enguia, ele chuta Elias no peito e saca uma
lâmina de empurrar de algum lugar do seu casaco, cravando-a
na mão de Elias.
Elias tropeça para trás, segurando a mão ensanguentada
contra o peito.
— Você vai morrer por isso!
Bastian me lança um olhar fugaz, quase apologético e
alcança o seu lado, para uma bolsa em seu quadril.
A compreensão surge um momento antes de eu sentir o
pulso da minha magia enquanto ela ganha vida dentro dele,
quente e consumidora. É fogo em minhas veias, queimando
através de mim até que estou de joelhos, sufocando sob ele.
Tento assumir o controle disso para me abrir para sua
pressão familiar. Mas a magia se recusa a obedecer. Porque não
sou eu quem a magia está dentro. É Bastian, e ele não tem ideia
de como manejá-la.
Ele agarra um pedaço de osso em seus punhos, cobrindo-o
com o sangue de Elias da lâmina de empurrar, e eu cedo. Seus
músculos estão tensos com determinação, mas sua confusão
rola sobre mim como uma onda enquanto ele olha para o osso.
Você saberá, eu disse a ele. Se algum dia você tiver que usá-
la, Deuses me livrem, você saberá como.
E com uma compreensão doentia, ele o faz.
Bastian põe a ponta do osso ensanguentado na boca, cerrou
os dentes sobre ele e o partiu quase ao meio, estilhaçando o
osso e quase levando um de seus próprios dentes com ele.
O grito de Elias é seguido por uma série de estalos enquanto
seu braço se contorce de forma tão grotesca que os ossos se
projetam de sua pele. Ele ruge, caindo de joelhos enquanto
Bastian cospe o osso, engasgando com o sangue que cobre seus
lábios e língua.
A respiração de Elias é através dos dentes cerrados,
fervendo de raiva e desespero. Perdido para o calor e poder da
magia, Bastian treme e puxa outro osso de sua bolsa, mas ele
cede antes que possa usá-lo, a magia da alma furiosa contra seu
corpo.
Os olhos turvos de Elias ficam brancos como leite enquanto
ele puxa sua mão ilesa, e mais uma vez estou sendo puxada
contra a minha vontade. Ele me arrasta pelo chão da selva até
que sua mão está em volta do meu pescoço, apertando
enquanto ele me imobiliza e crava sua lâmina na carne da
minha coxa.
— Faça outro movimento — ele ferve entre respirações
raivosas, cuspindo com cada palavra — e eu vou matá-la.
Não consigo esconder minha angústia enquanto Elias enfia
a lâmina mais profundamente na minha coxa para dar ênfase,
depois a puxa de volta. Da dor de Bastian ou da minha própria,
minha visão pisca em branco. Sinto cada centímetro do aço frio
em meu corpo.
Com as mãos tremendo, agarro Elias como se estivesse
caindo.
E deuses, eu quero cair. Para ceder. Mas eu não passei por
essa dor para que ele não caísse comigo.
Ele esfaqueia minha coxa novamente e puxa a lâmina de
volta com força. Mas dessa vez, quando ele se curva para fazer
isso, eu pego um punhado de seu cabelo com uma mão, convoco
cada centímetro de vontade que resta em mim e me levanto o
suficiente para socar as agulhas encharcadas de veneno entre
meus dedos profundamente em sua garganta.
Elias dá um pulo para trás, os olhos esbugalhados ficando
vermelhos conforme a névoa se desvanece deles. Pressionando
dedos trêmulos em seu pescoço, ele engasga quando eles
roçam a agulha. Um som minúsculo e aterrorizado desliza por
seus lábios.
— O que você fez comigo? — O tremor em suas mãos se
transforma em um tremor total, embora ele tente fortemente
segurar sua lâmina. — O que você fez?
Eu rio, meio delirando enquanto meus dedos aquecem na
pequena poça de sangue que se forma ao redor da minha ferida
aberta. Não vou aguentar muito se continuar a sangrar assim;
só posso esperar que o veneno seja de ação rápida.
— O veneno é uma vadia, não é?
Gordas gotas de sangue borbulham em seu pescoço e rolam
por todo o comprimento. Apertando os olhos através da névoa
que ameaça comer minha visão, sorrio quando o sangue não é
vermelho, mas preto como tinta.
Elias grita e aperta as duas mãos em volta da adaga, e sei
exatamente o que ele planeja fazer com ela. Mas antes que ele
possa me apunhalar novamente, uma faca atravessa seu
estômago. Bastian solta a mão do punho, ofegante. Seus olhos
estão começando a rolar até o crânio por causa dos tremores
secundários da magia da alma que seu corpo não foi feito para
usar. O veneno o corrói também, e a nuvem sobre minha visão
floresce. Minha própria respiração fica mais nítida quando
meus olhos refletem os dele, rolando para trás em meu crânio.
Quando ele apaga, eu também apago.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Acordo com o cheiro de sândalo e a tagarelice de sussurros


preocupados.
Por um momento, penso em manter os olhos bem fechados
para poder voltar ao pesado canto de sereia do sono. Mas
quando reconheço uma das vozes baixas como sendo de
Bastian, minha atenção não pode deixar de se mexer; sua voz
está mais áspera do que o normal. Quanto mais eu ouço, mais
as peças do quebra-cabeça se encaixam na minha cabeça até
que eu me lembre do veneno. A espada. Minha coxa. E outra
pessoa morta pelas minhas mãos.
— Amora? — A voz aérea de Nelly aparece. — Sua
Majestade, você pode me ouvir? Acho que ela está acordando.
Ouço um barulho de passos contra a madeira e o ar ao meu
redor se contrai. Lentamente, embora eu desejasse não
precisar, eu abro meus olhos e vejo o círculo de rostos ansiosos
olhando para mim: Vataea, Shanty, Ferrick, Casem, Ilia e Nelly.
Minhas sobrancelhas franzem quando percebo que falta um
rosto, até que dedos quentes tocam os meus e eu me viro.
Bastian está deitado na cama ao meu lado, e seu cabelo está
uma bagunça.
— Devíamos realmente tentar resolver os nossos desmaios.
Talvez possamos torná-lo um tipo de aventura única?
— Que tal uma aventura tipo nunca? — Ferrick interrompe,
ignorando o nariz enrugado de Bastian. — Eu não me inscrevi
para ser um curandeiro pessoal.
— Não tenho certeza se seríamos capazes de chamar isso de
aventura se nunca houvesse desmaio, cara.
Eu enrolo meus dedos em torno de sua mão estendida,
deixando o calor de nossa conexão estabelecer-se entre nós.
Minha risada forçada soa como um sapo coaxando, rouco e
dolorido.
— Há quanto tempo estamos fora?
— Você? — O tom provocador de Bastian tem um tom sério.
— Dois dias. Fiquei acordado depois do primeiro, mas eles me
colocaram em repouso na cama por causa dos meus... sintomas.
— Vocês dois estavam tendo convulsões — Nelly esclarece
severamente, seus olhos se estreitando quando Bastian tenta
evitar suas palavras.
Meu peito cai quando ele desvia sua atenção do meu rosto,
se recusando a olhar para mim. Mas não preciso das palavras
de Nelly para saber que algo está errado com ele. Sinto como se
meu corpo tivesse sido atingido por um canhão; cada
movimento é lento, e a dor surda, mas distante.
Esta dor pertence a Bastian, e eu sei de uma vez que é
porque ele usou a magia da alma.
Embora Bastian tenha acesso à magia por causa da maldição
de Kaven, ele não é um Montara; seu corpo não está equipado
para lidar com isso. Cada um dos seguidores de Kaven que
perseguiu a magia da alma acabou morto ou se deteriorou. No
final, isso atingiu Kaven, distorcendo sua percepção e
conduzindo sua sede de sangue até que o consumiu
inteiramente.
Tento chamar sua atenção, mas mais uma vez seu foco se
torna inconstante, me evitando propositalmente.
— Você foi muito imprudente. — Ferrick é quem quebra o
silêncio, alisando os lençóis da cama em que me deito. — Você
é a rainha agora, Amora. Você precisa parar de se jogar no
perigo.
— Eu sempre pareço fazer isso bem. — As palavras saem
antes que eu possa detê-las, tensas e amargas. — São todas as
outras pessoas ao meu redor que se machucam.
Os lábios de Bastian se contraíram o suficiente para me dizer
que era a coisa errada a se dizer. Mas também é verdade. Não
importa quantas vezes eu mergulhe em uma briga, sempre há
alguém que fica em pior situação. Pai. Tia Kalea. Mira. Bastian.
Nelly limpa a garganta como se quisesse aliviar a tensão. Ela
está sentada ao lado da minha perna, limpando-a com um pano
que pinga um líquido amarelo espesso. Ferrick está sentado em
frente a ela, observando atentamente.
— Posso fechar suas feridas quantas vezes você precisar —
ele resmunga, como se fosse capaz de sentir meu olhar — mas
não posso manifestar mais sangue. Agradeço o que você fez por
nós, mas é nosso trabalho protegê-la. Nosso reino precisa de
você agora.
Seu tom de alerta me dá uma pausa e luto contra um
estremecimento que não quero que ele veja.
— Eu sinto muito. — Eu fricciono as palavras, não
apreciando o gosto delas.
A raiva pulsa na mandíbula de Ferrick.
— Suas feridas estão seladas. — Ele se levanta, mas não se
move, não tendo para onde ir. — Entre você, Bastian e Elias, eu
só tive a energia para mantê-la longe da morte. Você vai ficar
com uma cicatriz, mas temos pomadas para ajudar com isso, e
quando terminarmos aqui, posso tentar curá-la, mas pode ser
um lento...
Sento-me muito rapidamente, o sangue subindo pela minha
cabeça e com uma dor latejante opressora na minha coxa,
fazendo-me reprimir uma maldição.
— Elias está vivo?
A coluna de Ferrick se endireita, a culpa comendo as bordas
de sua carranca.
— Eu não sabia mais o que fazer. Ele estava me observando
enquanto eu cuidava de você e de Bastian. Ele continuou
olhando, e ... Sim. Ele está vivo.
Eu roubo um olhar para Bastian, cujos olhos frios cortam
para os meus. Elias viu Bastian usar magia da alma. Se a notícia
se espalhar antes de estarmos prontos para dizer a verdade ao
reino, isso pode arruinar tudo.
— Há algo que você deveria saber. — Embora Ferrick fale
suavemente, algo em seu tom chama minha atenção. — O
veneno... afetou sua mente. Ele não parece se lembrar de quem
é.
Se for verdade, é um alívio. Mas não posso correr riscos;
minha mente já está girando em como manter isso em segredo.
— O que você fez com Elias... você planejou isso? — Até
agora, Ilia permaneceu em silêncio. Sombras preenchem as
linhas duras de seu rosto, envelhecendo-a.
— Fiz o que tinha de fazer para permanecer viva — digo a
ela, lembrando-me da raiva em seus olhos na casa de chá e da
maneira como ela praticamente arrancou Elias de mim. Achei
que ela me odiava, mas talvez não fosse comigo que ela estava
preocupada. — Você sabia que foi ele quem me envenenou?
Sua cadeira praticamente a engole, e as manchas de lágrimas
secas em seu rosto me dizem que ela ficaria grata se isso
acontecesse.
— Eu tive minhas suspeitas. — Ela se senta apenas para
colocar a mão no ombro de Ferrick, um tremor sacudindo sua
voz. — Eu nunca serei capaz de agradecer o suficiente por
salvá-lo. Eu nunca esperava... Eu sabia que ele queria coisas
para Curmana e para o reino com as quais eu não concordava.
Mas nunca pensei que ele fosse tão longe.
Nelly pega a mão de Ilia, aninhando-a no colo como se para
deixar sua esposa saber que ela está ali com ela.
— É minha culpa, Sua Majestade. Ilia me avisou sobre o que
ela temia que ele estivesse se tornando, mas eu não queria
acreditar. Eu o conheço desde que ele era criança; ele é
realmente como meu próprio irmão. Eu pensei que talvez se ele
conhecesse você, ou talvez se ele a ouvisse, ele entenderia que
existem outras soluções por aí além das dele. Eu queria que ele
aprendesse.
A culpa de Nelly é tão palpável que me atinge em ondas
densas que rolam dela quando pergunto:
— Então, vocês duas sabiam sobre os venenos em sua ilha?
E sobre as mudanças que Elias queria para Visidia?
Enquanto a cabeça de Nelly cai e as lágrimas brotam dos
seus olhos, Ilia aperta a mandíbula e levanta o queixo mais alto.
— Estávamos tentando acabar com os venenos nós mesmas,
antes que os soldados reais precisassem intervir — disse Ilia.
— Eu não queria acreditar que meu irmão era capaz disso. Mas
eu prometo a você, farei tudo ao meu alcance para compensar
não só você, mas toda esta ilha. Achei que era o momento certo
para dar a ele a chance de provar a si mesmo e chegar à posição
de um governante. Eu queria que ele visse o quão desafiador o
papel realmente era... Mas eu subestimei sua arrogância, ao que
parece. Ele é tão jovem, e o poder deve ter subido direto para
sua cabeça.
— Sou mais jovem do que ele e sou a rainha de todo o reino.
— São palavras que fazem Ilia hesitar, dobrando seus ombros
quando me viro para Casem. — Os homens nem sempre
precisam de aulas, às vezes eles precisam de punição. Sua idade
não é desculpa para tentar o regicídio. Casem, preciso que você
o leve para Arida imediatamente, onde ele ficará na prisão até
minha volta. Eu mesma supervisionarei seu julgamento.
Ilia se encolhe como se eu tivesse batido nela; nós duas
sabemos que não é um julgamento que ele vai ganhar. Sua boca
se abre, fecha e, por fim, ela não diz nada enquanto o lábio
inferior de Nelly treme.
Para o bem delas, gostaria de poder abrir uma exceção. Mas
Elias fez uma grande denúncia e, mesmo que ainda não tenha
percebido, ele sabe demais. Mesmo se eu o colocar nas prisões,
ele tem como falar pela mente. Ele poderia compartilhar as
informações que possui com muita facilidade.
— Eu deveria ficar com você — Casem argumenta baixinho,
embora não haja convicção em sua voz. Seu rosto está
totalmente branco, sabendo tão bem quanto eu que teremos
que encontrar uma maneira de silenciar Elias
permanentemente. Se ele já está envenenado, não seria
exagero acreditar que ele morreu no navio durante sua jornada
para Arida.
— Ferrick assumirá sua posição como orador da mente —
eu digo. — Isso tem prioridade.
Ilia faz um barulho estranho de engasgo no fundo da
garganta e Ferrick estica a mão para apertar seu ombro. Por um
momento, eu o odeio por ser capaz de fazer isso. Por poder
pedir desculpas a ela e por não ser responsável por essa
decisão. Enquanto eu sou a que está deitada aqui na cama,
quase sangrando até a morte por impedir alguém que queria
cometer regicídio, outra pessoa se torna o mocinho.
Nelly segura a outra mão de Ilia com força e, como se
quisesse quebrar a tensão da situação, Ferrick acena com a
cabeça para ela e diz:
— Nelly está na equipe da enfermaria de cura de Curmana e
estudou o desenvolvimento de ervas e medicamentos
Curmanans em primeira mão. Ela fez a pomada na sua perna.
Pisco, olhando para baixo para ver que minha perna está
completamente anestesiada por uma pasta verde espessa que
cheira a hortelã e manjericão.
— Se Amora algum dia decidir que gostaria de um novo
conselheiro, virei aqui para estudar. — O espanto de Ferrick ao
ver o unguento é inegável. — Há tanto aqui. Tantas ervas e
plantas para tônicos, e remédios, e…
— Veneno. — Eu levanto minhas sobrancelhas enquanto
Ferrick frisa.
— Sim... E veneno. Mas há coisas boas nesta ilha também,
Amora. Essas ervas têm feito muitas coisas incríveis.
— Eu deveria ter alertado você na primeira vez que ouvi
sobre isso. — A voz de Ilia está se desgastando nas bordas, sua
tristeza e culpa facilmente a emoção mais palpável que eu
ainda não vi dela. — Para cada remédio incrível que criamos,
existe alguém que encontra uma maneira de transformá-lo em
algo nojento. Tive soldados patrulhando, alguns deles até
disfarçados, e fizemos as nossas próprias prisões. Achei que
poderíamos lidar com isso internamente; nós não queremos
assustar ninguém. — Ela faz uma pausa. — Mas vejo agora que
não foi o suficiente. Por melhor que tenhamos ficado em caçá-
los, eles ficaram ainda melhores em se esconder. Nunca pensei
que meu irmão se envolveria em algo assim.
— Você está certa — eu digo. — Você deveria ter nos avisado
no momento em que descobriu que isso era um problema. Mas
agora tudo o que podemos fazer é encontrar maneiras de
controlar essas substâncias. Podemos fechar o acesso à selva.
Coloque soldados em patrulha e proíba o acesso de qualquer
pessoa que não seja certificada para usar as ervas para o
desenvolvimento de medicamentos. Mesmo assim, ninguém
deverá ser capaz de viajar para a selva sozinho; eles irão em
times.
— Amora. — Eu só noto como as bolsas estão pesadas sob
os olhos de Bastian quando ele os revira. — Você quase
sangrou até a morte. A política pode esperar até que você se
sinta melhor. — Com cuidado, ele se levanta com um
estremecimento e estende as mãos para mim novamente. — Eu
acho que devemos nos curar e seguir. Quanto menos pessoas
souberem desse incidente, melhor. Os únicos que precisam
saber estão aqui nesta sala.
Seguir.
Eu fico tensa.
Quatro dias em Curmana. Quatro dias perdidos, nada mais
perto de encontrar Ornell Rosenblathe. Não é um resultado que
posso aceitar.
— Onde meu pessoal pensa que estou? — Minhas palavras
são hesitantes, quase com medo de perguntar.
— Dissemos a eles que você teve um caso horrível de
intoxicação alimentar — Nelly disse suavemente. — e que
estávamos ocupados tentando cuidar de você para que
recuperasse a saúde e mantê-la dentro de casa, porque tudo o
que você queria fazer era vê-los.
— Todos os pergaminhos estão falando sobre isso — Shanty
entra na conversa. — É uma coisa boa. As pessoas estão com
raiva de Curmana, não de você. Isso gerou simpatia entre os
Visidianos.
Grata como estou, isso não impede a dor em meu peito. Em
todos os aspectos, estou falhando miseravelmente. Quer seja
para conhecer meu povo e fazer um show para eles, ou
encontrar Ornell e o artefato, nada do que tentei deu certo.
Em Kerost, fui desafiada a me envolver com meu povo.
Em Curmana, fui envenenada por alguém que desejava
encerrar meu reinado.
Não quero nem imaginar o que pode acontecer em nosso
próximo destino.
Estou meio tentada a desistir agora. Aceitar minha maldição
e minha magia perdida e sentar no trono até que alguém venha
me buscar. Posso deixar para o próximo pobre coitado
consertar a bagunça deste reino.
Mesmo assim, não consigo me convencer a dar esse passo.
Não consigo me convencer a não me importar.
Porque, no fundo, ainda sou a rainha de Visidia. Meu povo
merece tudo e mais pelo que minha família fez por eles e,
infelizmente, eu sou a única com o poder de dar isso a eles. Até
meu último suspiro, devo continuar tentando.
— Elias me disse que você é boa com nomes — digo a Ilia.
Parece que estou nadando em água lamacenta, tentando
encontrar minhas palavras, mas eu chego lá. — Você já ouviu
falar de alguém com o sobrenome Rosenblathe? Há um
aventureiro chamado Ornell Rosenblathe, e tenho motivos
para acreditar que ele está aqui em Curmana. Antes de partir,
preciso conhecê-lo.
No momento em que os olhos de Ilia se arregalam, o alívio
explode dentro de mim com tanta força que posso chorar.
Silenciosamente, agradeço aos deuses por terem pena de mim
apenas desta vez.
Ilia o reconhece. Eu não preciso que ela responda para ver
isso. Mas, curiosamente, seus olhos se voltam para Nelly, cujos
olhos lacrimosos se tornaram como os de uma coruja.
— Como — pergunta Nelly — você sabe meu nome de
nascimento?
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Fui uma idiota por presumir que Ornell era um homem. Todo
esse tempo eu esperava um solteiro, e aqui estava ela, bem
debaixo do meu nariz.
— Se você quer minha ajuda — Bastian me diz
laconicamente — é hora de me dizer o que está acontecendo.
Apenas nós dois ficamos na sala. Por ordem minha, Nelly
espera do lado de fora enquanto os outros saem inteiramente.
Olhando para Bastian agora, minha pele fica quente e meu
estômago se revira. Não posso deixar de pensar em quando
estivemos juntos pela última vez e nas palavras que ele disse.
A mulher que amo.
A mulher que amo.
Algo mudou entre nós aqui em Curmana. A partir do
momento em que o peguei lançando maldições protetoras na
minha porta, distraindo Elias o suficiente para me salvar,
apesar do veneno em seu corpo e do tributo da magia da alma,
minha frustração com ele diminuiu. Maldição ou não, eu confio
em Bastian com minha vida, não importa o quanto eu tentei não
confiar.
— Eu encontrei uma maneira de quebrar a maldição de
Montara. — É hora de contar tudo a ele, sobre Blarthe e a pista
que ele me deu, e como não consigo dormir.
Sobre os rostos que vejo toda vez que fecho os olhos. Conto
a ele sobre o poder que os deuses disseram ter sido deixado
para trás e como, com ele, posso me arrepender dos danos que
minha família fez. O tempo todo ele mantém os olhos no chão,
sem palavras, contemplando. Eu falo o suficiente por nós dois,
porque uma vez que a verdade começa, eu não posso pará-la.
Há liberdade em externar isso tudo.
— Vataea sabe que você está trabalhando com Blarthe? — É
a primeira coisa que Bastian pergunta. — Você precisa dizer a
ela.
Meus ombros cedem. Eu sei que deveria; Vataea merece
saber que capturamos o homem que lhe causou anos de dor e
trauma. Mas estou mais perto do que nunca do meu objetivo e
não posso correr o risco de perder esta oportunidade. Além
disso, o que ela pode pensar agora que mantive isso em segredo
por tanto tempo?
— Quando chegar a hora certa — digo a Bastian — vou
contar tudo a ela.
Eu fico tensa quando ele se levanta e passa a mão pela barba
escura que está começando a tomar forma em sua mandíbula,
esperando sua reação. Esperando que ele grite ou me diga
como estou sendo ingênua ao arriscar tudo pela palavra de
Blarthe.
— Eu também quero isso — ele finalmente diz. — Eu quero
minha liberdade e viajar livremente. Mas se vamos fazer isso,
você e eu precisamos estar na mesma página. Vou te ajudar,
mas só se você prometer que trabalharemos juntos a partir de
agora. Chega de segredos.
Eu recuo, lembrando de ter dito essas mesmas palavras para
ele no verão passado. Eu nunca esperei o quão culpada eu me
sentiria por estar do lado oposto.
— Você me perdoa? — Eu pergunto, hesitante. — Mesmo
assim?
Ele bufa uma risada pequena e silenciosa.
— Você me perdoou por coisa pior, Amora. Temos um
acordo ou não?
Eu aceno, e minha pele está quente.
— Nós temos um acordo.
— Então é hora de descobrir o que Ornell tem a nos dizer. —
Bastian cruza a sala para buscar Nelly, que espera
ansiosamente atrás da porta. — Você trouxe? — Ele pergunta,
ao que ela acena com a cabeça e lhe entrega uma pedra grande
e lisa. Ele é rápido em colocá-la sobre a mesinha que arrasta
entre eles e se senta perto de Nelly.
— Tudo o que você precisa fazer é pensar no que você quer
que vejamos — ele instrui. — Deixe suas memórias fluírem
livremente. Você pode fazer isso?
Enquanto ele fala, ele tenta acalmar as mãos trêmulas na
pedra enquanto outro abalo da magia da alma se apodera de
seu corpo. Isso me faz sentir como se estivesse fervendo antes
de passar. Trêmula, exalo um suspiro enquanto Bastian apenas
agarra a pedra com mais força, como se fingisse que não sentiu
nada.
Embora Nelly pudesse simplesmente nos contar sua
história, as memórias preenchem as lacunas onde as palavras
não podem. Usando a magia de maldição de Bastian, ela pode
me mostrar tudo o que sabe sobre o artefato, embora caberá a
mim decifrar o que significa.
— Nelly, já que estamos acessando sua memória, tudo que
você precisa fazer é adicionar seu sangue à pedra — diz
Bastian. — Você é quem está fazendo o trabalho. Estou aqui
apenas para guiá-la através dele e anexar as memórias à pedra.
Não se afaste antes de nos mostrar tudo.
Nelly acena com a cabeça e olha para mim enquanto eu me
encosto na cama, a perna apoiada, tentando não deixar minha
dor aparecer.
— Tem certeza de que isso vai funcionar? — Eu pergunto.
— Ela não tem magia de maldição.
Bastian me lança um olhar. Tirando sua lâmina, ele segura a
mão de Nelly e pressiona suavemente a ponta em seu dedo
indicador, o suficiente para tirar sangue. Erguendo a pedra, ele
limpa o sangue dela em sua superfície.
— Vai funcionar porque eu estou aqui guiando ela. Não será
diferente de quando você viu as memórias de Sira sobre Cato
no verão passado.
É estranho ver como a magia de maldição é versátil. Por anos
eu acreditei que a magia tinha apenas um propósito: uma
habilidade misteriosa e assustadora de prender as pessoas em
um estado onde elas vissem quaisquer imagens estranhas que
o portador da magia desejasse. Mas vê-la usada assim, para
transferir pensamentos, imagens ou memórias de uma pessoa
para outra, é uma vitrine de como a magia pode ser diversa.
Está sempre mudando e evoluindo, nunca ficando estagnada. É
assim que eu quero que meu reino seja também.
Nelly envolve a pedra com os dedos e fecha os olhos quando
Bastian pressiona um dedo nela também, seus próprios olhos
fechando com força.
— Amora, toque na pedra — ele diz, e eu obedeço.
Minha testa unida em linhas de profunda concentração, eu
me acomodo quando o pulso distante de magia aumenta dentro
de mim. A magia de Bastian parece fria e plácida. Não é nada
como a besta faminta e ardente da magia da alma, e é estranho
ser lembrada de que é assim que a magia deve ser sentida. Que
o que pratiquei durante toda a minha vida não foi
verdadeiramente mágico, mas uma maldição. Embora essa
magia possa drenar Bastian depois de um tempo, seu cansaço
pode ser curado pelo sono. Não é o cansaço até os ossos, a
exaustão com risco de vida que minha magia traz.
Mais uma vez a magia atinge um pico e, enquanto Nelly a
alimenta com suas memórias, sou levada para dentro delas.
***
Seu nome é Rogan Rosenblathe, e não há nada que eu queira
mais do que ele olhe para mim.
Sou puxada para a memória da mesma maneira que fui
puxada para as memórias de Sira no verão passado. Só que
dessa vez não sou uma mulher, mas uma jovem de talvez oito
anos, e aquele cuja atenção eu desejo tanto que parece que as
emoções são minhas, é meu pai.
Eu vejo papai pela fresta da porta de seu escritório,
entreaberta apenas o suficiente para eu espiar dentro. Como de
costume, ele está sentado à sua mesa, debruçado sobre uma
confusão de pergaminhos: notas, mapas, gráficos, guias das
constelações e até mesmo livros encadernados em couro de
antigas lendas marítimas.
Disseram que papai já foi marinheiro, anos antes de eu
nascer. Mas ele não fala daqueles tempos.
Garrafas cheias de cerveja de cevada e vinho estragado estão
espalhadas pela mesa e pelo chão, e o cabelo de papai está
bagunçado de tanto passar os dedos por ele, puxando as pontas
e xingando palavras que mamãe me disse que eu nunca deveria
dizer.
— Deveria estar aqui — ele murmura para si mesmo, a voz
tão baixa e frenética que minha pele se arrepia. — Deveria estar
aqui. Malditos despertados dos deuses, por que não está aqui?
Empurrando-se de sua cadeira, ele bate o punho contra a
mesa de madeira já estilhaçada. Uma lamparina a óleo apagada
cai no chão, o óleo espirrando no chão de palha. A madeira
faminta absorve tudo, mas papai não percebe. Só quando ele
ouve minha respiração aguda e surpresa é que sua atenção se
volta para a porta.
— Mariah? — O tom cortante de sua voz me faz cambalear
para longe da porta, me perguntando se devo correr. Mas não
dá tempo. Suas botas caem com passos pesados e bêbados que
se aproximam a cada segundo. — Pensei ter dito para você
nunca...
Papai escancarou a porta instável, confusão inundando seu
rosto. Só quando ele olha para baixo é que ele me nota,
tremendo e encostada na parede, tentando me fazer tão
pequena quanto me sinto.
— V-você não desceu para jantar — eu gaguejo. — Eu
queria... conferir você.
Ele suspira, e aqui, à luz do corredor, percebo que seus olhos
estão úmidos e injetados. Chutando a porta atrás de si, papai
diz:
— Entre.
Embora não haja carinho em seu tom. Não há nada do calor
que espero encontrar um dia.
Mas eu não me importo; papai nunca me deixou entrar em
seu escritório, e eu não consigo nem me lembrar da última vez
que falei com ele. Eu me apego ao que posso conseguir.
— Eu também gosto de mapas, você sabe. — Com o canto do
olho, observo para ver se ele está impressionado. — E eu
conheço todas as constelações principais e como navegar com
elas. Minha amiga e eu seremos marinheiras um dia, assim
como você! Ela será a capitã e eu a navegadora. A menos que...
você tenha decidido que quer navegar novamente. Eu poderia
ser sua navegadora em vez disso, talvez. Se você quiser.
— Eu estarei navegando novamente. — Ele diz isso tão
claramente que meu coração dispara. — Assim que eu
descobrir para onde estou indo. Mas você não virá comigo.
Meu coração bate de volta, direto na minha garganta.
Embora nunca tenha realmente me permitido acreditar no
contrário, esperava que papai pelo menos me considerasse.
Tenho estudado todas as noites, assim como ele. Eu sei que
poderia ser muito útil se ele me deixasse tentar.
Minha tristeza aumenta, mas não vou deixá-lo perceber.
Afinal, papai nunca mostra suas emoções. Talvez os
marinheiros não devam. Talvez seja um teste e não devo
mostrar as minhas também.
— Você está procurando por algo? — Sento-me na beira da
pequena cama atrás dele. Então eu levanto meu queixo bem
alto, tentando soar séria e digna de sua atenção.
Para minha surpresa, funciona. Papai não me diz para ir
embora ou me lança um olhar fulminante. Ele simplesmente se
senta em sua cadeira e passa as mãos pelos cabelos loiros,
puxando as pontas com um suspiro.
— Sim — é tudo o que ele diz a princípio, e eu hesito, sem
saber se pressiono ou fico quieta.
No final, decido ir para algo intermediário.
Tão baixinho que quase espero que ele não ouça, pergunto:
— O que é?
A cadeira embaixo dele range quando ele a inclina para trás
e dá um longo gole em sua garrafa. Mesmo daqui, posso sentir
a doçura do rum em seu hálito.
— Você realmente quer saber, Ornell?
Algo em meu intestino se agita, me dizendo que eu deveria
ir embora. Nunca vi papai assim antes, e algo não parece certo.
Mas antes que eu possa me mover, ele está falando de novo, e
não consigo perturbá-lo. Ele nunca falou tanto comigo ao
mesmo tempo. Eu deveria querer isso.
Lentamente, eu aceno.
— Estou procurando aquela que tem meu coração. — Sua
voz é suave e real, cada palavra como um soco. — Estou
procurando uma maneira de trazer a mulher que amo de volta
dos mortos.
Tudo em meu corpo entorpece.
— Mas... mamãe não está morta. — Eu sei que são palavras
ingênuas antes mesmo de eu dizê-las, mas elas escapam.
Papai nunca falou assim; ele nunca colocou emoções como o
amor em suas palavras. Deve ser o rum tirando-o dele, pois
seus olhos ficam mais vidrados e injetados e as palavras saem
mais rápido a cada gole.
— Não, mas Corina está — ele range para fora. — E não
importa quantas vezes eu tentei salvá-la, eu sempre falhei.
Diga-me, você leu isso?
Chutando os pés sobre a mesa, ele chega até a borda do livro
de navegação marítima encadernado em couro que está aberto
para uma imagem esboçada de um pássaro voando para uma
cidade que fica sobre as nuvens. Nunca li, mas folheei o
suficiente para saber que é sobre as lendas de Visidia, coisas
como kelpies, hidras e a Lusca, lendas que mamãe me contou
que foram forjadas por marinheiros bêbados que precisavam
encontrar maneiras de sobreviver a noites longas e solitárias.
— Há uma lenda aqui sobre os despertados dos deuses,
quatro divindades que foram as primeiras criações dos deuses,
cada uma com uma missão: a proteção da terra, do mar, do céu
ou da humanidade. Eles protegem nosso mundo com corpos
que detêm o poder dos deuses. Uma escama de sua pele ou uma
pena de suas asas, e alguém seria o ser humano mais poderoso
já conhecido. — Seus olhos estão acesos com uma fome que faz
minhas mãos tremerem. Desesperadamente, eu as coloco no
meu colo. — Mas a magia deles vem com um preço; para ter o
que mais deseja, você deve desistir do que mais ama.
— Quando eu tinha dezoito anos — ele continua — eu estava
noivo de uma mulher por quem teria movido as estrelas:
Corina. Nosso casamento estava previsto para o verão seguinte,
quando um dia ela se juntou ao pai para uma pescaria e nunca
mais voltou. Mal sabia ela ou eu, que não era realmente uma
viagem de pesca, mas uma viagem de caça furtiva para capturar
sereias e roubar as escamas de seus corpos. No final, aquelas
sereias usaram a voz para vencer a luta e tiraram a vida de cada
um dos marinheiros daquele navio. Eu nunca deveria ver
Corina novamente, mas esse era um destino com o qual eu não
poderia viver. Eu soube desde o momento em que soube de sua
morte que precisava encontrar uma maneira de recuperá-la,
não importava o preço que eu tivesse que pagar.
— Levei cinco anos antes de descobrir o segredo dos
despertados dos deuses; se eu pudesse obter seu poder,
poderia usar a magia do tempo para amplificá-lo. Para voltar
no tempo e reconquistar sua vida. E eu fiz isso. — Sua voz é um
sussurro baixo, como se ele não estivesse mais contando uma
história, mas falando apenas por si mesmo. — Eu fiz isso. Eu
cacei a divindade da água, uma besta feita de coral e ervas
daninhas do mar, e roubei uma escama das suas costas.
Naquele dia, mudei meu destino para sempre.
Seus dedos longos e pálidos se apertam ao redor da garrafa.
— Mas deuses são bastardos complicados. Nunca parei de
amar Corina; ela era a razão de eu viver. A razão por trás de
cada respiração que tomei. Eu não sabia no que estava me
metendo com aquela magia; achei que poderia oferecer algo
mais e, contanto que tivesse Corina de volta, poderia fazer
qualquer coisa funcionar. Mas o que eu mais queria era ela, e o
que mais amava também era ela.
— Voltei o relógio e a trouxe de volta. Mas ela não se
lembrava de quem eu era. E por mais que eu tentasse
conquistá-la, ela sentia repulsa por mim. Não importava o que
eu fizesse, eu não poderia conquistar seu coração. E no final,
nada disso importava. Ela voltou ao navio de seu pai naquele
mesmo dia predestinado, e as sereias a roubaram de mim
novamente.
— Então eu tentei uma segunda vez. Dizia-se que a
divindade guardiã do céu tinha asas macias e brancas como
nuvens. Naveguei para uma ilha muito além deste reino, para
um lugar com montanhas tão altas que tocam o céu. Foi o
último lugar que alguém a viu, e eu procurei lá por dois anos
antes de encontrar o que estava procurando: uma pena caída,
imbuída de sua magia e poder. Mais uma vez, voltei no tempo,
e novamente Corina saiu do meu alcance e voltou para aquele
maldito navio. Não sei o que perdi naquela época, mas ganhei
algo ainda mais importante: o conhecimento de que precisava
amar outra coisa, algo novo, antes de tentar novamente. — Ele
toma um longo gole da sua garrafa. — Pensei em começar uma
família. Se eu tivesse isso, poderia dar a esses malditos
guardiões algo novo, em troca de Corina.
O brilho da lamparina a óleo parece mais fraco, e a corrente
de ar na sala mais fria enquanto corroí meus ossos. A sala se
aperta com sombras que rastejam das fendas mais escuras,
estendendo-se em direção ao chão. Eles me pegam pela
garganta, deixando minha voz rouca.
— Você queria trocar eu e mamãe? Mas... nós morreríamos.
— Minha voz não soa como a minha; é muito estridente. Eu
entendi mal? Certamente, não era isso que ele queria dizer?
Papai nunca me trocaria...
Seu perfil é sombreado pela fraca luz âmbar,
transformando-o em nada além de ângulos agudos e
sombreados: um monstro na noite. Ele não se volta para mim,
não tenta aliviar o medo que ferve nas minhas entranhas, me
deixando entorpecida demais para me mover.
— Eu só tenho que encontrar um guardião. — Ele se volta
para o pergaminho em sua mesa, e vejo agora que um deles é
um mapa rabiscado com anotações.
Várias das ilhas estão circuladas ou riscadas, com notas
rabiscadas ao longo do mapa. São palavras como Leviatã? e
Serpente de fogo? acompanhadas por números de página para
o material de origem e notas rabiscadas e desenhos das feras.
A divindade do ar é tão bonita até na arte, com penas tão
grossas e brancas que quase parecem pelo, e um bico curvo de
obsidiana. Embora tenha quatro garras enormes, não se parece
com uma besta feroz. Parece pacífica e como se devesse ser um
crime para qualquer um sequer imaginar caçá-la.
Espero, mortalmente imóvel, para ver se papai começa a rir
ou oferece mais alguma coisa. Suas costas permanecem
dobradas enquanto ele se inclina sobre os pergaminhos,
embaralhando-os com uma torrente de sussurros muito baixos
e rápidos para eu decifrar. Não demorou muito para perceber
que fui esquecida.
Rezando aos deuses para que continue assim e para que
meus pés e minha respiração fiquem o mais silenciosos
possíveis, eu escorrego da cama e saio do quarto, meu coração
batendo tão forte que me preocupo que ele possa ouvi-lo
mesmo quando estou no meio do caminho para o corredor,
correndo para o quarto da mamãe.
Mamãe sempre disse que papai tinha sua própria maneira
de amar as pessoas. Mas quando subo em sua cama, com as
lágrimas caindo mais rápido do que posso processá-las
enquanto conto a ela o que aconteceu, percebo que ambas
sabemos a verdade agora: papai não nos ama e nunca vai amar.
Isso é o que os deuses tiraram dele na segunda vez que ele
tentou roubar sua magia: seu coração.
Rogan Rosenblathe era realmente um homem sem coração.
***
Parece que horas se passaram antes que Nelly soltasse um
suspiro, que Bastian e eu repetimos, encerrando a maldição de
uma vez. Mesmo de volta à realidade, porém, minha mente
permanece nas partes finais das memórias de Nelly.
Ela e sua mãe escaparam naquela mesma semana, deixando
Rogan para trás. Elas foram morar com a família de sua mãe em
Suntosu, onde Ornell mudou seu nome e começou a aprender
magia de restauração aos doze anos de idade, antes de se
mudar para Curmana para trabalhar. Ela nunca mais viu seu
pai, e estou feliz por isso.
E, no entanto, não é Nelly quem está em primeiro lugar na
minha mente enquanto as memórias se arrastam para o fim,
nem é o fato de que usar essa magia despertada por Deus tem
um preço alto que eu nunca tinha conhecido até agora: para ter
o que você mais deseja, você deve desistir do que você mais ama.
Agora, isso não importa. Tudo o que importa é que Rogan
Rosenblathe usou com sucesso a magia dos despertados dos
deuses para se reunir com os mortos.
E se ele poderia fazer isso, o que me impede de fazer o
mesmo?
CAPÍTULO VINTE E SEIS

As bochechas de Nelly estão encharcadas de lágrimas e há


surpresa em seus grandes olhos esmeraldas.
— Desculpe. — Ela é rápida em enxugar o rosto com a
bainha da camisa. — Eu sinto muito, eu não sei o que deu em
mim. É só que... Ele não é alguém em quem gosto de pensar.
— Não há razão para se desculpar. — A expressão de Bastian
é de profunda simpatia. — Algumas memórias são mais fáceis
de esquecer.
Eu não deixo de perceber as sombras que afundam em sua
pele, cavando seus olhos. Eu sinto a emoção crescendo dentro
dele, e embora eu não possa ler seus pensamentos, seu desejo
é o suficiente para me dizer que ele está pensando em um
tempo muito anterior. Uma época em que ele ainda estava em
Zudoh com sua família.
Um tempo antes de seu irmão roubar aquela vida dele e tirar
meu pai de mim.
— Foi realmente catártico, de certa forma. — O sorriso de
Nelly é fino como um junco e sua voz alegre é muito aguda. —
Ele era um homem horrível, e ainda assim, passei anos
obcecada por ele e seus mapas malditos. Acho... acho que vi um
pouco do meu pai em Elias. Eu não tinha conseguido ajudar
meu pai, mas pensei que talvez pudesse ajudar Elias, sabe? É
difícil admitir às vezes que os outros não são de sua
responsabilidade. Não havia nada que eu pudesse ter feito para
ajudar qualquer um deles.
Os olhos de Bastian estão sobre mim. Ao contrário de
Ferrick, que estaria me enviando mensagens silenciosas para
ser mais sensível, Bastian parece tão intrigado quanto eu
quando pergunto:
— Nelly, você conseguiu descobrir alguma coisa nesses
mapas?
Os olhos de Nelly escurecem, os lábios apertados.
— Seja o que for que meu pai estava atrás, Vossa Majestade,
você não quer tocar. A magia que ele usou é algo que não
deveria fazer parte deste mundo. É algo que nenhum ser
humano deveria saber.
Eu me endireito o melhor que posso para olhar nos olhos
dela, colocando cada grama de poder que tenho em minha voz.
— Se você descobriu onde encontrar os despertados dos
deuses, eu preciso que você me diga. Não me dê um motivo
para fazer uma ordem.
Embora dure apenas um momento, sua determinação se
quebra. Novas lágrimas brotam dos seus olhos.
— Valuka — é tudo o que ela sussurra por um longo
momento, como se estivesse lutando contra a batalha moral de
arrancar as palavras de si mesma. — Como eu disse, eu estava
obcecada por ele. Mesmo quando minha mãe e eu fugimos, li
tudo o que pude sobre os despertados dos deuses. Perdi muitos
anos rastreando-os, como se encontrar um pudesse fazer meu
pai me amar ou perceber que eu valho alguma coisa. — Ela
zomba, abaixando a cabeça. — Houve muitos rumores de
avistamentos dos despertados dos deuses, especialmente em
torno de Kerost. As pessoas acreditavam que, como as
tempestades são tão frequentes ali, isso devia ter algo a ver
com despertados dos deuses zangados que viviam nas águas
próximas. Mas nunca gostei dessa lenda. Parecia muito fácil.
— Houve outro que se destacou para mim, no entanto. Sobre
uma serpente mítica que vive nas profundezas dos vulcões de
Valuka — continua Nelly. — Os vulcões estão ativos, então é um
desafio confirmar se tal criatura realmente existe. Mas eu viajei
para lá um dia, só para ver. Não consegui chegar perto do
vulcão; a fumaça é muito densa. Não é natural. Mas... há essa
presença. Não posso explicar, mas é como se houvesse algo
dentro da fumaça, algo poderoso. Aposto minha vida que é
onde está escondida. Mas, para o seu bem, Amora, espero que
nunca a encontre. — Com isso, ela se levanta e segue até a
porta. — Lembre-se de usar pomada duas vezes ao dia para
ajudar na cicatrização. E continue fazendo seus alongamentos.
Vá com calma, Majestade, e boa sorte.
Quando a porta se fecha, os olhos de Bastian se fixam em
mim, procurando.
— Você sabia o que o artefato poderia fazer?
O desejo dentro dele se intensifica, assim como o meu. Com
o poder dos deuses em nossas mãos, poderíamos mudar tudo.
— Eu não sabia de tudo.
Poderíamos ressuscitar os mortos... Eu poderia trazer meu
pai de volta.
A fome nos olhos de Bastian me diz que seus pensamentos
não estão longe dos meus e, pela primeira vez desde que tive
essa maldição, gostaria de poder me aprofundar em sua mente
para ver o que ele está pensando.
— Você realmente sente falta deles, não é? — Eu pergunto.
Bastian vira os ombros para trás, endireitando-se antes de
responder:
— Todos os dias.
— E nunca fica mais fácil?
Há um longo momento em que ele não diz nada, apertando
os lábios em pensamento. Então, lentamente, ele cruza o chão
até a cama em que estou e se acomoda na beirada. Quando ele
segura minha mão, minha pele esfria.
— A perda pode levar as pessoas a fazer coisas vergonhosas.
— Seu polegar roça lentamente em meus dedos, embora seus
olhos estejam distantes, perdidos em algum lugar nos
pensamentos de Bastian. — Para mim, isso me fez fugir da
minha casa por anos, deixando meu povo sofrendo. Para Rogan,
ele desistiu da sua capacidade de amar e estava disposto a
sacrificar sua esposa e sua filha.
— Não sei se vai ficar mais fácil — ele continua. — Se isso
acontecer, então eu ainda estou esperando. Porque não
importa o que Kaven fez, não importa a dor que ele causou e
tudo que ele tomou, eu ainda sinto falta dos dias antes de ele
encontrar a maldita faca de Cato e decidir que seu propósito
era mudar Visidia. Ainda me pergunto se poderia ter mudado
as coisas. Se houve algo que eu fiz de errado ou uma
oportunidade que perdi e que poderia ter salvado minha
família.
Bastian não olha para mim, posso sentir que sua alma está
rasgando entre as costuras. É igual a minha. Mesmo sem essa
maldição entre nós, Bastian e eu somos iguais.
— A perda vai acabar com você, Amora. — Há uma sensação
de urgência em seus olhos castanhos. — Vai exigir tudo o que
você der, e nunca estará satisfeita. Portanto, não se atreva a dar
você mesma.
Ele aperta minha mão com mais força, e sei exatamente o
que ele quer dizer sem precisar perguntar. Bastian não precisa
ler meus pensamentos para entender minha alma. Se ele
pudesse ter trazido seus pais de volta, tenho certeza que o teria
feito.
Meu pai nem sempre foi um homem perfeito e estava longe
de ser o rei perfeito. Mas deuses, eu o amo.
Eu poderia viver com minhas maldições para sempre se isso
significasse que eu poderia usar a magia dos despertados dos
deuses para vê-lo novamente.
Para buscar seu conselho. Navegar com ele. Ir em uma
aventura e perseguir as feras mais ferozes do mar.
Deuses, o que eu não daria para ouvir sua risada mais uma
vez.
Mas não importa para que eu use a magia dos despertados
dos deuses, devo pagar um tributo muito mais pesado do que
jamais imaginei.
Para ter o que mais deseja, você deve desistir do que mais
ama.
Há muitas coisas que amo, mas o que eu mais amo? O que,
exatamente, serei forçada a pagar se for usar essa magia?
— Prometa que não vai usar esse artefato. — A voz de
Bastian é tão suave como eu já ouvi. — Quando encontrarmos,
vamos descobrir uma maneira de usá-lo que não exija um
pagamento tão alto. Não quero que você toque nisso, Amora.
Não antes de descobrirmos uma maneira melhor.
O medo rola dele em ondas, mas não estou ofendida. Ele está
certo em duvidar das minhas intenções.
Se eu tivesse o poder de trazer meu pai de volta, ele e eu
poderíamos curar Visidia juntos. Poderíamos encontrar uma
maneira diferente de restaurar a magia da alma para o reino.
Ele poderia redimir-se pelo que fez.
— Eu prometo. — A mentira passa pelos meus lábios antes
que eu pense em pará-la. — Assim que encontrarmos o
artefato, encontraremos outra maneira de usá-lo.
Eu saio da minha cama sob o escrutínio de Bastian,
efetivamente terminando esta conversa enquanto eu espreito
através das cortinas de cetim pesadas para confirmar que é
anoitecer.
Ilia foi sábia o suficiente para não nos levar para a
enfermaria de cura para recuperação, mas para sua casa
pessoal. Embora eu só tenha visto a suíte de hóspedes, seu
lindo piso de pedra branca e teto de treliça são suficientes para
me dizer que este lugar é grandioso.
Embora minha perna esteja quase totalmente curada, ainda
há uma dor nos músculos da minha coxa esquerda que grita a
cada pequeno passo. Eu irrito totalmente a rigidez dos
músculos e pego Bastian pelo antebraço enquanto descemos
uma escada de pedra em espiral.
— Os outros já deveriam estar esperando — diz ele, indo tão
devagar quanto minhas necessidades ditam. O que,
infelizmente, é pouco mais do que um rastreamento lento.
Estou esperando uma noite silenciosa na costa quando
Bastian abrir a porta, mas o que recebo está muito além disso.
A costa está repleta de cidadãos curmanans vestidos com
suas melhores roupas, as cabeças inclinadas e as mãos erguidas
com oferendas: sedas, frutas, doces, estendendo-se por todo o
caminho até Keel Haul.
Eu tropeço ao vê-los, a surpresa prendendo minha
respiração. Bastian pressiona uma mão firme nas minhas
costas, sorrindo para o cenário diante de nós.
— Eu sei que não deveria contar a eles — a voz de Ilia vem
baixa e tímida da varanda. — Mas seu povo não demorou muito
para ver você e eles queriam se despedir.
Cuidadosamente, eu desamarro meu braço do de Bastian,
endireitando-me para esconder meu ferimento enquanto faço
meu caminho para a costa.
A primeira pessoa que espera lá é um homem que reconheço
da noite da festa, alguém que manteve uma conversa educada.
Ele se ajoelha e oferece um lindo xale de seda.
— Para mantê-la aquecida em sua jornada — ele diz
enquanto eu pego as sedas lentamente, escovando meus dedos
ao longo do tecido luxuoso.
Ao lado dele, uma mulher com um coque frouxo ajoelha-se e
oferece uma garrafa de vinho tinto espumante.
— Para mantê-la livre em sua jornada.
Eu rio e agradeço a ela, entregando a garrafa para Bastian,
que permanece protetoramente atrás de mim. Até o repórter
Ikaean espera na costa, as mãos tremendo enquanto ele oferece
desculpas na forma de doces. Para ele, ergo o nariz e me afasto.
Embora eu nunca tenha tido a chance de dizer nada a ele,
parece que Casem deu a ele um sermão e tanto.
Eu gostaria de poder provar a comida que meu povo oferece,
ou as loções e óleos que eles colocam em minhas mãos. Quero
confiar neles, mas a dor na minha coxa me lembra que estou
mais segura se não confiar. Vou sorrir e aceitar suas ofertas,
mas só mais tarde me livrarei de tudo que possa estar
envenenado. Por mais doloroso que seja, será mais seguro
assim.
Até os soldados de Curmana ajudam a carregar as
mercadorias oferecidas até Keel Haul e, pela primeira vez desde
o verão, meu peito se enche de orgulho.
Talvez Elias fosse realmente uma anomalia. Talvez nem todo
mundo pense que estou fazendo um trabalho horrível, afinal.
Casem nos espera na base da rampa de Keel Haul.
— Vou rezar para que o seu tempo nas outras ilhas seja mais
seguro e grandioso do que o que você experimentou até agora.
— Ele estende os braços, me pegando em um abraço apertado.
Eu rio fracamente contra seu peito, retribuindo.
— Dê a Mira meus cumprimentos — eu digo enquanto me
afasto, deixando Casem se demorar em direção à borda da
rampa. — E diga à minha mãe que vamos para Valuka, a seguir.
Casem mantém o rosto severo enquanto alisa os dedos
pálidos em suas ondas loiras cor de mel.
— Vou avisá-los para começar a preparar. Se você precisar
de alguma coisa, peça a Ferrick para entrar em contato comigo.
Ele é um péssimo falante de mentes, sempre soa como se
estivesse gritando através de uma concha, mas ele deve ser
capaz de me alcançar.
— Eu irei. E lamento pedir isso a você, Casem, mas... você
sabe o que fazer com Elias.
Ele acena com a cabeça rapidamente, não precisando de
mais detalhes.
— Eu vou lidar com isso. Você se concentra em se cuidar,
certo? Nós vamos superar isso.
Assentindo, eu o solto e começo a subir a rampa para onde
Shanty e Vataea esperam por mim, com sorrisos orgulhosos.
Enquanto levantamos as âncoras, nos afastando das docas,
Bastian me lança um olhar por cima do ombro.
— Para Valuka?
— Para Valuka.
Bastian ergue uma bússola no ar e gira o leme, definindo
nosso curso na direção oeste.
— Segure firme, Ferrick, e tente manter esse seu estômago.
Teremos uma noite turbulenta.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Nem mesmo o puxão suave das ondas é suficiente para me


embalar para dormir. A essa altura, estou convencida de que
nunca mais terei uma noite inteira de sono, a menos que esteja
envenenada ou doente. Eu deveria ter roubado um pouco de pó
para dormir de Curmana enquanto tive chance.
É a dor na minha coxa que me mantém acordada e alerta,
tensa com cada ranger de tábua do piso e cada golpe do vento
contra o navio. Eu sei que é irracional, nada pode me pegar no
meio do mar, a menos que a Lusca decida testar sua sorte
novamente. Mas, mesmo assim, as memórias de Kerost e
Curmana chocam contra meu crânio, enganando meus olhos e
fazendo-os ver estranhas agitações nas sombras de bestas que
não estão realmente lá.
Alguns dos Kers torceram o nariz para meu reinado,
acreditando que era tarde demais.
Elias tentou me envenenar para abalar o trono e derrubar a
monarquia. Ele queria que Curmana governasse a si mesma e
estava disposto a me matar para isso.
E não importa o quanto eu tente, não importa o quão
faminto por poder Elias possa ser, talvez ele tivesse razão.
Depois de todo esse tempo e tudo o que fizemos, por que os
Montaras ainda governariam Visidia?
Mas há outro pensamento em conflito com as memórias de
Elias também.
Achei que tinha meu plano pronto: encontrar o artefato,
quebrar minhas maldições e restaurar Visidia ao que sempre
deveria ter sido. Mas agora o indício de hesitação afunda em
mim, cavando fundo.
Se eu encontrar este artefato, terei o poder de trazer meu
pai de volta. E apesar do aviso de Bastian, apesar de todo
sentimento horrível dentro de mim que diz que quebrar a
maldição é o movimento certo para Visidia e que meu pai era
um rei terrível, quero ser egoísta. Eu quero ouvir sua risada
mais uma vez. Quero ver seus olhos verdadeiros, e não os dois
buracos cheios de fumaça e sombras que esperam por mim em
meus sonhos.
Mas se eu me der esse presente, o que acontecerá com
Visidia? Sem a verdade, sem a magia restaurada a eles de uma
vez por todas, como sou melhor do que qualquer outro
Montara?
Sem mencionar que haverá um preço a pagar, não importa o
que eu escolha fazer.
Para ter o que mais deseja, você deve desistir do que mais
ama.
Mas o que exatamente é isso?
— Você vai me dizer qual é o problema ou vai ficar
suspirando a noite toda? — A voz de Vataea corta o silêncio do
nosso quarto escuro. Mesmo pesadas de sono, suas palavras
ainda soam como uma canção de ninar.
— O que vai acontecer se eu escolher o suspiro? — Ela vai
revirar os olhos ou me comer viva pela piada, mas de qualquer
forma, eu saberei se essa é uma conversa que ela está acordada
o suficiente para ter.
Para minha surpresa, Vataea bufa.
— Então eu derreterei uma vela e encherei meus ouvidos
com sua cera, e você pode continuar suspirando pelo tempo
que quiser. — Está muito escuro na cabine sem janelas para vê-
la, embora eu possa dizer que ela se vira pelo farfalhar da sua
rede. Quando ela fala novamente, sua voz está mais alta e mais
focada. — O que está errado?
Minha coxa ferida pulsa quando me viro para encará-la.
Mesmo que não possamos nos ver, é melhor assim.
— Por que você ainda está aqui, V?
Dado o longo silêncio que se segue, sei que essa não era a
pergunta que ela esperava. Ela hesita por um momento, e só
quando parece que ela nunca vai responder é que ela pergunta,
em uma voz estranhamente calma para ela:
— Você prefere que eu esteja em outro lugar?
— Não é nada disso. Mas você pode estar em qualquer lugar
agora, fazendo qualquer coisa. Então, por que você está aqui
conosco? Por que você arriscaria sua vida por nós quando há
muito mais que você poderia estar fazendo?
Seu suspiro vem após uma breve pausa, longa e dramática.
— Se eu soubesse que compartilharíamos nossos
sentimentos esta noite, estaria dormindo agora.
Eu reviro meus olhos, pensando em jogar meu travesseiro
em seu rosto. Lembrando daqueles dentes dela, entretanto,
penso melhor.
— Me dê humor — digo a ela. — Só dessa vez.
Ela vira de lado e, embora eu não tenha certeza, juro que
aqueles olhos amarelos dela podem me ver na escuridão.
— Se você realmente quiser saber, eu te conto. Mas direi
apenas uma vez e nunca me repetirei. — As palavras soam
como um aviso no início, mas rapidamente se tornam tímidas,
diminuindo para pouco mais que um sussurro. — Eu nunca
pensei que queria amigos até que conheci você, Amora. Minha
espécie é diferente; temos laços, mas não o tipo de parentesco
que vocês, humanos, têm. E eu suponho… que eu gosto disso.
Por alguma razão, acho que gosto irritantemente de vocês,
barrigudinhos. Além disso, sempre quis ver este reino, e às
vezes é preferível fazer isso em um navio do que com minhas
próprias nadadeiras.
Suas palavras se separam em mim, me dividindo em duas.
Sei imediatamente que preciso contar a verdade a Vataea. Eu
tenho que contar tudo a ela.
— V, há algo…
— Chega dessa conversa — ela diz com uma voz enérgica
que reconheço como constrangimento. — Diga-me o que há de
errado com você. Sobre o que você está suspirando?
— Eu não…
— Diga-me, ou vou dormir fora.
A culpa rasteja em minha pele, mas o momento de contar a
ela passou. Em vez disso, faço o que ela quer e pergunto:
— Você acha que Elias estava certo?
A resposta dela vem lenta e pensativamente.
— Acho que Elias queria poder.
— Mas você acha que ele estava certo? Que talvez o
problema de Visidia seja que temos um único governante?
Desta vez, ela faz uma pausa tão longa que temo que ela
tenha adormecido.
— De onde vem isso?
Eu fico tensa e me viro em direção às sombras no teto agora,
os pensamentos girando.
— Eu acho que seus métodos foram mal orientados, mas ele
fez um bom ponto. Os Montaras governaram por séculos, mas
posso contar as coisas boas que fizeram por este reino. Minha
família tem muito poder e Visidia ficou estagnada sob nosso
governo. Veja o quanto Kerost floresceu desde que eles
puderam aprender múltiplas magias, desde que eles puderam
se ajudar. Você pode imaginar um mundo onde eles receberam
esse direito o tempo todo? Não consigo parar de pensar em
como esse mundo seria diferente… se minha família não
estivesse no comando de tudo.
Vataea considera isso e pergunta:
— Mas seria realmente melhor?
E é só isso. É para isso que eu sempre volto. Não importa o
quanto eu pense nisso, é impossível saber a resposta.
— O que você faria? — Tento capturar seus olhos na
escuridão, vagamente capaz de distinguir seu brilho fraco. —
Se você fosse eu, você daria um passo adiante ou daria um
passo para trás?
— Se eu fosse você, pararia de me culpar pelas queixas dos
mortos, mesmo que já tivéssemos compartilhado o mesmo
sangue. — São palavras insensíveis, mas são por isso que
consigo falar com Vataea com tanta facilidade. Não há como
fingir com ela. — Às vezes, renunciar significa a mesma coisa
que intensificar. Essa é a sua situação para descobrir e ficar em
paz com ela, Amora. Mas você precisa sair do passado se quiser
ver um futuro melhor. Você ama seu reino mais do que
qualquer coisa; você fará o que é certo para ele.
É como se Keel Haul parasse com essas palavras.
Você ama seu reino mais do que qualquer coisa.
É com uma doença paralisante que percebo que ela está
certa; amo Visidia mais do que qualquer outra coisa.
Devo usar a magia dos despertados dos deuses, e perder
meu reino é o preço que terei que pagar.
Mas o que isso significa? Eu seria incapaz de governar
Visidia? Eu seria forçada a viver em outro lugar, longe, em um
reino desconhecido? Ou eu ficaria e simplesmente perderia
meu amor pelo meu reino? E se for esse o caso, posso lidar com
isso?
— Amora? — O sono aperfeiçoa suas palavras e sei que ela
está à deriva.
— Descanse um pouco, V. — Eu coloco meus braços atrás da
minha cabeça, desejando poder fazer o mesmo. — Eu vou ficar
bem.
E de uma forma ou de outra, eu ficarei.
***
Assim como faço sempre que o canto da sereia do sono
finalmente chega, sonho com meu pai.
Eu sonho com a fumaça que se forma ao redor dele enquanto
ele enfia uma espada profundamente em seu estômago. Do
jeito que o fogo queima sua pele centímetro a centímetro.
Ele estende a mão para mim, seu rosto envolto em fumaça e
seu corpo coberto por um casaco feito com os rostos dos
mortos de Visidia.
Eu corro, desesperada para salvá-lo. Desesperada para que
a fumaça se dissipasse para que eu pudesse ver seu rosto mais
uma vez. Rezo aos deuses por isso: para me darem um último
momento com ele.
Mas cada passo me leva para mais longe, até que seu corpo
nada mais seja do que fumaça, cinzas e a memória de uma mão
que chegou até mim para salvá-lo.
Mais uma vez, vejo meu pai queimar, sabendo que fui muito
lenta para salvá-lo.
E novamente, eu acordo.
CAPÍTULO VINTE E OITO

A baía de Valuka está inundada de chamas turquesa quando


chegamos no início da manhã, três dias depois de deixarmos
Curmana. As chamas se movem como uma dança, fios de fogo
disparando do mar e brilhando no céu, chovendo em mil brasas
rosa deslumbrantes. Minha respiração fica presa quando elas
chovem sobre Keel Haul, desaparecendo pouco antes de
tocarem o navio.
Os valukans enchem as docas com suas melhores vestes de
rubi, parecendo um mar de sangue à distância. Eles mudam as
marés ao nosso redor, girando em piscinas de maré cintilantes
que nos sugam em vórtices de ar que chicoteiam meu cabelo
para trás com tanta força que agarro a grade de Keel Haul,
rindo.
O vento é música na água, empurrando e pressionando
contra ela, uivando e sussurrando. Um grupo de Valukans na
baía estende os braços acima da cabeça, deixando o mar fluir
pela ponta dos dedos e atendendo ao chamado da sua magia.
As ondas se expandem e se contorcem até formar um corpo.
Então um rosto. Uma boca. Um dragão de água salgada toma
forma diante de mim, o vento sibilando de suas poderosas
mandíbulas. A cada movimento que os Valukans fazem, o
dragão segue, serpenteando ao redor do navio. Ele mergulha
na água apenas para emergir novamente diante de mim, sua
boca aberta e furiosa e seus bigodes aquosos a centímetros do
meu rosto. Meu coração bate rápido, ameaçando explodir.
O vento geme ao redor do dragão, e o fogo floresce em seu
peito antes que ele incline a cabeça para trás e respire brasas
para o céu. O vapor chia ao redor da besta mágica, e eu tropeço
para trás em reverência.
— Tudo isso é para nós?
— Não. — Bastian me estabiliza, suas mãos pousando
suavemente na minha cintura enquanto observamos o dragão
criar enormes asas aquosas. — É tudo para você.
Eu não o afasto.
Com um último suspiro de fogo, o dragão voa para o céu
antes de seu corpo se estilhaçar, derramando no mar milhares
de gotas de água que deslumbram como escamas de dragão
caídas enquanto chovem no convés.
De repente, mesmo com tantas pessoas, o mar parece muito
quieto enquanto o dragão desaparece. A maré muda para nos
levar às docas agora, onde uma dúzia de Valukans são rápidos
para ajudar a proteger Keel Haul. É impossível não notar,
especialmente quando me afasto do corpo rígido de Bastian,
que quase todos eles são jovens.
Vataea vai até a amurada de bombordo ao meu lado e olha
para baixo, assobiando baixinho.
— Tragam os solteiros.
Ferrick dá um passo ao lado dela, observando a multidão.
— Eles certamente não perdem tempo.
— E eles certamente não se seguram — bufa Bastian. —
Estrelas, não está nem tão quente assim. Coloque sua camisa de
volta, há senhoras a bordo! — Ele chama um tímido Valukan,
que sorri para ele.
Vataea dá um sorrisinho.
— Você está com ciúmes, Bastian?
Seus ombros se endireitam quando ele assume um ar de
desprezo.
— Claro que não. Você já viu como Amora tenta me despir
com os olhos? Não tenho nada com que me preocupar.
Conforme a rampa de Keel Haul é abaixada, eu levo meu
tempo olhando por cima da grade para irritá-lo. Um dos jovens
Valukan me pega olhando e abre um sorriso malicioso. Sua pele
é marrom escura e seu cabelo encaracolado é tocado perto do
couro cabeludo. Ele tem um sorriso que os deuses fizeram para
encantar. Quando ele acena para mim, eu aceno de volta.
— Sério? — Bastian pergunta.
— Eu tenho que manter as aparências, não tenho? — Eu
sussurro de volta.
Vataea captura minha mão e, com uma risada, me conduz
pela rampa até a margem, onde sou imediatamente saudada
por nada menos que cinquenta Valukans. À frente deles, Lorde
Bargas e Azami estão orgulhosos. Eles estão deslumbrantes em
ricos casacos escarlates bordados com costuras douradas
semelhantes ao que Bastian usava quando nos conhecemos,
com o emblema de duas enguias enrolando em torno de um
vulcão fumegante nos punhos.
— Bem-vinda, Majestade — diz Azami com o entusiasmo
mais genuíno que senti em toda esta jornada. Renunciando às
formalidades, ela me puxa para um abraço rápido, mas firme,
enquanto Lorde Bargas observa com um sorriso.
Percebo agora o que não vi em Arida; seus ombros estão
começando a se curvar para a frente em uma curvatura, e a pele
sob seus olhos pesa de idade e exaustão. Há pequenos tremores
nas mãos que ele pressiona contra o corpo.
— E pensar que a menina que eu vi crescer está agora aqui,
como a Rainha de Visidia. Seu pai ficaria muito orgulhoso. —
Ele pousa a mão no ombro de Azami. — Você vai ter que me
perdoar, Vossa Majestade, mas meus velhos ossos não são o
que costumavam ser. Eu incumbi Azami com o dever de cuidar
de você durante o seu tempo aqui. Será uma boa chance para
vocês duas se conhecerem; ela será a mais nova conselheira de
Valuka em breve.
Azami praticamente brilha de empolgação.
— Bem-vinda, Vossa Majestade. Espero que nosso
desempenho tenha sido do seu agrado.
Eu rio, sem perder a faísca de luz em seus olhos.
— Foi incrível. Você não precisava fazer tudo isso apenas
para nós.
Ancorada no centro do território terrestre e aquático,
Valuka se estende por quilômetros intermináveis à nossa
frente em todas as direções. A ilha é dividida em quadrantes
separados dedicados a cada elemento e, bem à direita, posso
ver um bosque de árvores que leva ao território pantanoso da
água. À esquerda, espirais de montanhas rochosas elevam-se
no céu, desaparecendo em nuvens que marcam a fronteira do
território terrestre e o território aéreo que não consigo ver.
Ao longe, ao norte, três vulcões enormes surgem no distante
território do fogo. Enquanto os dois vulcões menores parecem
adormecidos, um se eleva sobre toda Valuka com colunas de
fumaça cinza espessa que se retorcem de seu pescoço como
uma serpente.
— Isso não pode ser um bom sinal — diz Vataea com
ceticismo.
A atenção de Lorde Bargas e Azami pisca brevemente para o
vulcão, confusos, e então eles riem.
— Não precisa se preocupar — diz Azami. — Parece mais
assustador do que é.
— Toda essa fumaça não te incomoda? — Vataea pressiona.
A voz de Azami é suave enquanto ela nos leva para a borda
oriental pantanosa da ilha, em direção ao território aquático.
— De jeito nenhum. As lendas dizem que existe uma besta
que vive nas profundezas do vulcão, que protege Valuka do
perigo. Consideramos a fumaça como uma forma de nos
informar que ela ainda está lá.
Tão perto do artefato, tão perto de ter o poder dos deuses
em minhas mãos; meus ossos doem para virar e correr direto
para o vulcão até encontrar a serpente de fogo. Não apenas um
protetor lendário, mas supostamente uma divindade criada
pelos deuses: um dos acordados dos deuses.
Quando criança, eu ouvia meu pai ler as lendas da serpente
de fogo, sempre tagarelando sobre como um dia ele
encontraria a besta e roubaria uma escama de suas costas, só
para provar que era capaz. Ele disse que me traria com ele;
seria uma aventura só para nós dois.
Não tínhamos ideia de que a besta era uma despertado dos
deuses, mas a serpente estava lá com a Lusca em termos de
lendas marítimas: algo tão poderoso e sobrenatural que não
poderia existir. Mas eu sempre acreditei, e desde a primeira vez
que papai me falou sobre isso, eu queria um dia enfrentar essa
fera. Mas eu queria meu pai ao meu lado quando eu fizesse isso.
— Você já viu isso? — Eu pergunto, tentando evitar que
meus pensamentos vaguem. Se eu tivesse vindo para Valuka
pela primeira vez com meu pai, em circunstâncias diferentes,
significaria que o mundo veria seu rosto quando vimos a
serpente. Eu daria qualquer coisa para ter aquele momento
com ele.
— Gostamos de dar espaço. — A voz de Azami é suave, como
se ela pudesse sentir algo triste em meu tom. — É amplamente
aceito que a serpente proteja a ilha, mas nós, Valukans, temos
uma crença diferente. Se aquele vulcão entrasse em erupção,
toda a ilha seria destruída. Não achamos que a serpente esteja
protegendo os vulcões de nós; acreditamos que está nos
protegendo dos vulcões. E assim lhe damos espaço para
trabalhar. Além disso, não poderíamos chegar perto desses
gases, mesmo se tentássemos.
Essa mudança no mito me pega de surpresa. Cresci com
histórias que me diziam que a serpente tinha presas mais
longas do que o corpo de uma pessoa. Aquele veneno quente
como fogo corre por suas veias, e como um toque de uma
escama poderia derreter a pele. As histórias diziam que nunca
foi vista porque as pessoas estavam com muito medo de
rastreá-la para baixo, não porque estivesse muito ocupada
protegendo uma ilha inteira do perigo.
— Esqueça o vulcão, Vossa Majestade. Temos algo ainda
mais grandioso para mostrar a você! — A voz de Azami é rica
em emoção genuína. — Esta temporada tem sido uma das
maiores que a nossa ilha já viu em algum tempo. Eu sei que tem
havido alguma hesitação em torno das mudanças nas leis, mas
elas têm sido maravilhosas para Valuka. Permita-nos mostrar
a você.
— Por favor — eu digo. — Me chame de Amora.
Azami sorri e inclina a cabeça educadamente.
— Admito que, quando ela apresentou sua ideia pela
primeira vez, fiquei hesitante — acrescenta Lorde Bargas em
seu tom de barítono áspero. — As coisas têm funcionado da
mesma forma neste reino por mais tempo do que tenho meu
título, mas isso é parte da razão pela qual estou deixando o
cargo. Azami é jovem; ela é capaz de se adaptar aos tempos de
mudança de uma forma que luto para ver.
— No verão passado, estávamos à beira de uma crise
quando muitas de nossas fontes termais começaram a secar.
Mas, agora... — As palavras de Azami morrem com um sorriso
que fez meu sangue esquentar. — Agora, você terá que nos
deixar mostrar a você. Siga-me por aqui! Teremos seus
pertences esperando por vocês em seus quartos.
Cada osso do meu corpo está doendo, e a última coisa que
posso imaginar é ter uma conversa fiada com estranhos.
Especialmente quando preciso me apressar e chegar até a
serpente de fogo. Embora eu ainda não tenha certeza de como
vou usá-lo, não posso fazer nada até que o artefato seja meu.
Mas eu ainda estou aqui em uma falsa missão, afinal. E é
praticamente garantido que nem todos na multidão são
Valukans. Embora todos usem o mesmo tom de rubi brilhante,
não tenho dúvidas de que alguns desses rostos são verdadeiros
repórteres Ikaeans tentando se misturar. Com eles assistindo,
vou precisar esperar o momento certo.
Sem mencionar que a empolgação de Azami é contagiante.
Apesar de tudo, sinto-me atraída por ela, com vontade de segui-
la.
E então eu digo:
— Será um prazer.
Porque o que importa mais uma noite? Só mais uma noite,
antes de ser forçada a escolher meu destino.
— Venha, então. — Azami segura minha mão. — Valuka está
esperando por você.
***
Os invernos em Valuka são muito quentes para uma capa.
Até minha camisa de linho fina gruda em minha pele pegajosa
com o calor da coagulação.
Deuses, não consigo imaginar morar aqui durante o verão.
Estamos nas profundezas do território aquático, cercados
por pântanos com água tão espessa e verde que é impossível
ver nem um centímetro lá dentro. Videiras cobertas de
vegetação e raízes retorcidas saem do solo, formando
caminhos tortuosos e desiguais entre a água. A maioria das
árvores foram removidas, criando uma extensão de pântanos e
mangues com terra molhada que suja nossas botas.
— Nossa ilha é a maior do reino — diz Lorde Bargas, com as
mãos cruzadas atrás das costas enquanto avalia o terreno ao
seu redor, franzindo o nariz para a lama em suas botas e calças.
— Por isso, adotamos alguns métodos alternativos de
transporte. É aqui que vou deixá-la hoje, infelizmente. Mas não
sem um presente.
Ele levanta as duas mãos no ar, e ao seu redor os pântanos
ganham vida, água lamacenta saindo deles. Mas a água não cai.
Em vez disso, ela toma forma como na baía, transformando-se
em um dragão verde aquático menor que paira no ar. Ao lado
dela, mais água brota de pântanos próximos e toma a forma de
quatro cavalos que batem seus cascos enevoados contra o solo
e sacodem os fios de algas e trepadeiras que formam suas
crinas.
— Eles os levarão aonde vocês precisam ir — oferece Lorde
Bargas. — Azami, estou colocando nossa rainha e seus
companheiros sob seus cuidados.
Azami sorri, fechando o punho e socando a terra. Um pedaço
dela se divide sob seus pés, levantando-se do chão de modo que
ela fica pairando sobre ela.
— Ela estará em boas mãos, tio. Você está pronta, Amora?
O dragão serpenteia ao meu redor, mergulhando entre
minhas pernas e me levantando de costas em um movimento
rápido. Eu suspiro, esperando ficar encharcada, mas cada parte
do dragão que toquei se transformou em gelo sólido.
— Tem certeza de que não existe uma maneira mais...
higiênica de chegarmos lá? — Ferrick faz uma careta para a
água turva enquanto Shanty sobe alegremente em seu corcel.
Vataea está mais curiosa do que cautelosa, correndo os dedos
pela água. Posso praticamente ver sua mente trabalhando para
decifrar se ela poderia produzir algo assim por conta própria.
— Eu não fazia ideia que a magia Valukan pudesse ser tão
versátil — Bastian diz enquanto olha seu cavalo.
— Ah — Lorde Bargas diz com surpresa fingida. — Eu teria
pensado que alguém se passando por um Valukan soubesse
mais sobre isso. — Ele não dá a Bastian a chance de morder de
volta. Em vez disso, ele faz um pequeno movimento no pulso, e
o cavalo d'água joga a cabeça no estômago de Bastian, jogando-
o de costas.
— Não se atreva, seu velho… — A voz de Bastian corta com
um grito agudo quando o cavalo d'água decola e Bastian é
forçado a segurar. O tempo todo Lorde Bargas ri com tanto
entusiasmo que seu estômago treme.
O resto das nossas montarias decola enquanto Lorde Bargas,
ainda rindo, acena em despedida, e eu aperto minhas coxas
com força ao redor da besta improvisada abaixo de mim e
seguro.
O vento chicoteia minhas bochechas e meus dedos
entorpecem contra o corpo gelado do dragão enquanto ele
corre pelo terreno, pairando sobre os outros.
Shanty dá uma gargalhada, usando a crina improvisada do
cavalo como rédea.
— Mais rápido! — Ela grita, e o cavalo dá um assobio de
respiração nebulosa ao obedecer, pisando forte na água do
pântano como se fosse um terreno plano.
Não sendo derrotadas, Vataea e eu compartilhamos um
rápido olhar antes de corrermos atrás dela, rindo. Eu abro
meus braços enquanto o dragão passa por elas, sentindo como
se estivesse voando enquanto o vento sopra contra mim. Nós
ziguezagueamos entre árvores tortas e meio caídas, cobertas
de musgo que se enrosca em seus galhos.
Abaixo, a terra empurra Azami para frente, movendo-a
rapidamente pelo terreno enquanto ela nos segue, tendo que
trabalhar mais para formar seu caminho em torno dos
obstáculos.
Semicerrando os olhos contra o vento forte, mantenho
minha cabeça abaixada e minha boca fechada para os
mosquitos que enxameiam os pântanos estagnados. Cobrimos
vários quilômetros em minutos, finalmente avistando os
Valukans que nos esperam em um pântano encharcado. Eles
estão amontoados em uma grande extensão de terra onde
todas as árvores foram arrancadas e derrubadas. Sorrisos se
espalham em seus rostos quando nos veem. Meu dragão treme
enquanto desce até o chão, dissipando-se em vapor enquanto
me deixa de pé diante deles. Eu balanço ao pousar, o corpo
tonto com o movimento, mas minha adrenalina está
aumentando.
Estrelas, pagaria para fazer isso de novo.
— Então, como você está aproveitando nossa humilde ilha
até agora? — Azami pergunta com uma cadência de
conhecimento.
Minha risada de resposta é rápida e sem fôlego.
— Já estou planejando minha próxima visita.
Seu sorriso não poderia irradiar mais brilhante.
— Então você vai adorar o que vem por aí. — Ela deixa cair
a terra debaixo dela e se acomoda de volta ao chão como se não
estivesse perturbada. — Eu gostaria de dar as boas-vindas ao
maior show de Visidia!
No momento em que ela diz essas palavras, todos os
Valukans que estão esperando entram em ação. Aqueles que
têm afinidade com a terra batem o pé esquerdo contra o
pântano e voam rapidamente pelo ar. O solo treme sob nós
antes de romper a superfície e formar a metade de um anel
curvo, com longos bancos feitos de lama. Outros Valukans os
endurecem com chamas incandescentes que saem de suas
bocas ou palmas antes que Azami faça um gesto para que nos
sentemos neles. Só então percebo que, ao contrário do resto de
nós, Bastian está encharcado até os ossos, com o cabelo
espalhado sobre a cabeça.
— Nem uma palavra — ele resmunga, acomodando-se em
sua cadeira com os braços cruzados enquanto mais Valukans
tomam seus lugares, ainda como estátuas enquanto Azami se
coloca entre eles, de volta para nós.
Nós cinco prendemos a respiração e há uma fração de
segundo em que me pergunto se isso tudo é uma armadilha.
Com tantos Valukans, seríamos derrotados em um instante.
Mas então Azami se vira, e não estamos mais nos pântanos
de Valuka, mas transportados para a maior apresentação que
eu já vi. É como o show aquático que eles fizeram enquanto nos
cumprimentavam, mas maior e mais elaborado do que
qualquer coisa que eu jamais poderia ter imaginado.
Perfeitamente em sincronia, os Valukans afinados com a
água levantam-se da sua posição agachada, arrastando com
eles corpos de água escura do pântano. Em suas palmas, essa
água se funde em esferas perfeitas que eles jogam para frente
e para trás. Cada vez que o fazem, a água se divide e assume
uma nova forma, até que cada Valukan está segurando um
minúsculo golfinho aquático, cada um deles de uma cor
diferente.
Vários Valukans se inclinam para frente e respiram na água;
suas respirações fumegam com o gelo que congela os golfinhos.
Eles caem das mãos dos performers, mas em vez de estalar, é
como se o chão engolisse os golfinhos. Ele os cospe de volta
para que os golfinhos pareçam estar nadando na terra, com o
solo que se torce e se eleva ao redor deles como ondas.
— Estrelas. — Shanty respira fundo ao se inclinar, os olhos
brilhando com uma fome que comecei a reconhecer nela, uma
fome que acontece quando ela é presenteada com algo valioso
que deseja para si mesma.
Valukans com afinidade com o fogo são os próximos,
respirando esferas quentes de chamas que lançam contra
aqueles com afinidade com o ar. O ar atiça as chamas, criando
um inferno sob eles. Cada um de nós engasga quando os quatro
Valukans se deixam cair de volta no inferno, mergulhando tão
graciosamente quanto cisnes. Eu libero minha respiração
ansiosa quando vejo que as chamas não os queimam; em vez
disso, os Valukans manipulam o ar ao seu redor para que sejam
torpedeados de volta ao céu. Eles se separam quando o vórtice
os cospe, ondulando graciosamente o ar sob seus pés,
parecendo que estão voando sobre nuvens.
Alguns dos Valukans também praticam magia de
encantamento; eles formam e moldam o ar abaixo deles,
encantando-o em formas como nuvens escuras marinhas
cheias de estrelas, ou uma feroz e fervilhante besta marinha
que parece que estão cavalgando para a batalha.
Quando caem, o fazem delicadamente, pousando
silenciosamente sobre os pés, com arcos suaves e sorrisos
satisfeitos.
Estamos de pé batendo palmas em segundos, e Azami sorri,
as mãos cruzadas animadamente contra o peito.
— Você gostou? Verdadeiramente?
— Claro que sim, foi incrível…
— Tenho tantas ideias! — Shanty interrompe, as palavras
praticamente explodindo dela. — Eu nunca vi magia elemental
e de encantamento misturadas assim, é brilhante! Eu acho que
você deveria fazer isso à noite. Torne as cores mais brilhantes.
E você pode adicionar música que sincroniza com o que todos
estão fazendo! — Embora o rosto de Azami se contorça de
surpresa no início, ela ri quando Shanty joga um braço sobre
seus ombros com entusiasmo. — Você vai fazer isso crescer,
certo? Monetizar?
— Esse é o plano. Precisamos melhorar com a magia de
encantamento, mas é um começo. Queremos nos adaptar aos
tempos de mudança e mostrar que ela não precisa ser
assustadora.
Não estou mais com a guarda levantada quando ela se vira
para me procurar, tão animada e aliviada que não tenho ideia
de como poderia ter suspeitado que ela seria capaz de me
machucar.
— Eu quero que Valuka se sinta como um lugar repleto de
magia — ela diz com cautela, como se estivesse protegendo
suas apostas da minha reação. — Quero que seja um lugar onde
você possa montar cavalos aquáticos ou decolar com o vento.
Quero que haja apresentações e que seja tão bonito que as
pessoas queiram voltar sempre.
— É engenhoso. — O sorriso de Shanty é tão faminto e torto
que quase penso em puxar Azami para longe dela. Mas a
promissora conselheira está muito animada, com um sorriso
tão largo que ameaça quebrar seu rosto enquanto ela agarra o
braço de Shanty feliz.
— Isso tudo foi ideia sua? — Eu pergunto.
Azami não parece mais tímida quando responde. Ela
endireita os ombros e afasta os fios de cabelo pretos para que
possa me olhar diretamente nos olhos.
— Visidia está estagnada há muito tempo — diz ela com
segurança. — E muitos de seu povo são iguais, com medo de
abraçar a mudança e realmente ver o que Visidia poderia ser se
permitíssemos que o reino prosperasse. Você está mudando a
base deste reino e eu acredito em sua missão. Eu acredito no
que você está fazendo e quero fazer parte disso.
O sorriso que vem com suas palavras me atinge com força
no peito, preenchendo um vazio que eu não tinha percebido
que estava sentindo.
— Quero ajudá-la a moldar uma nova Visidia — diz ela, com
uma voz suave e confiante como a chuva. — Juntas, acredito
que podemos remodelar nosso reino para melhor.
E para minha surpresa, eu acredito nela.
— Azami Bargas — digo a ela. — Eu acredito que você será
uma das maiores conselheiras que Visidia já viu.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Nosso primeiro dia em Valuka apenas começou.


Os homens zumbem animadamente ao nosso redor,
verificando seus cabelos e respiração quando pensam que não
estou olhando. Ao contrário de Curmana, eles não usam seus
melhores trajes, mas túnicas soltas e calças de algodão, roupas
que permitem que seus movimentos sejam tão livres e flexíveis
quanto sua magia exige.
— Nós queríamos ser os que colocassem um desempenho
para você — Azami me diz. — Não o contrário. Eu sei que você
está aqui com um propósito, Amora, mas eu não queria que
você se sentisse como se estivesse em exibição. Eu queria que
tudo parecesse o mais natural possível.
— Eu estou supondo que é por isso que você não me deu
tempo para me limpar?
Azami oferece um sorriso de desculpas.
— Você só vai suar, de qualquer maneira. Achei que seria
divertido se você passasse o dia testando magia conosco.
Podemos descobrir sua afinidade!
É como se todo o calor fosse expelido da ilha de uma vez,
deixando-me com frio e tensa.
— Eu... pensei que as pessoas deveriam escolher qual
elemento elas praticam?
Ela enfia o cabelo preto e lustroso atrás das orelhas.
— Você pode, é claro. Mas geralmente as pessoas se sentem
atraídas por um mais do que pelos outros. Você saberá quando
sentir. Depois de encontrar o seu, ele a consome. Como se você
sempre tivesse sido destinada a tê-la, e sempre foi parte de
você. — Azami agarra minha mão, e não há tempo para impedi-
la enquanto ela me leva dos pântanos para um terreno mais
sólido.
— Minha afinidade é com a terra — ela anuncia quando um
punhado de homens Valukans se aproximam, oferecendo arcos
e seus nomes enquanto se acomodam ao nosso lado.
Normalmente Azami estaria certa; essa certamente seria
minha maneira preferida de conhecer as pessoas de cada ilha:
relaxados e em sua vida diária. Mas com metade da minha alma
faltando, não posso praticar magia, não importa o quanto eu
queira. O Alto Animancer deve ser o mais forte do reino; o que
meu povo pensará quando descobrir que não posso aprender a
magia Valukan?
Ela estava certa em dizer que eu estaria suando, mais do que
ela poderia ter imaginado. Meu corpo está entorpecido,
congelando, e mesmo assim gotas de suor escorrem pelo meu
couro cabeludo, me deixando com náuseas.
— Comece fixando-se na terra — oferece um jovem com
uma rica pele bronzeada e sardas sob os olhos verdes. — Deixe
isso te firmar. Sinta sua força com os dedos dos pés. — Ele
respira fundo e exageradamente e espera que eu o imite. —
Você sente isso?
Eu enrolo meus pés na terra, esperando, mas tudo que eu
sinto é a necessidade de esfregar meus pés para limpar.
Eu olho para os outros. Vataea começou a se sentar,
declarando dramaticamente que está muito calor aqui e que
devemos jogá-la de volta ao mar antes que ela murche.
Shanty, Ferrick e Bastian também se concentram, tentando
o seu melhor, apesar do suor brilhando em suas peles. Em uma
hora, descobrimos que nenhum de nós tem afinidade com a
Terra. Os Valukans dão tapinhas em nossos ombros
desanimados e, embora Azami pareça um pouco desapontada,
ela permanece otimista.
— Não importa — ela declara com a mesma determinação
que imagino que a ajude a coreografar shows tão
espetaculares. — Temos o dia todo para encontrar sua
afinidade!
Mas também não o encontramos nos pântanos, onde um
homem encantador nos guia através da magia que ele nos diz
ser como uma dança, suave e fluida, ou raivosa e precisa. Eu
reconheço a lição como a mesma que eu vi a garota Valukan
ensinando em Kerost.
Vataea pega rapidamente, impressionando um grupo de
homens Valukans de olhos brilhantes que batem palmas para
ela. Só quando eles não estão olhando eu vejo seus lábios se
movendo em um canto silencioso para a água, e eu sei que não
é nada mais do que sua magia de sereia com a qual ela os está
enganando.
Mesmo que eu adorasse ser capaz de criar meu próprio
dragão de água para cavalgar, não é até que cheguemos a uma
fogueira que o desejo realmente desperta dentro de mim.
Quando eu tinha minha magia, precisava de fogo para usá-la. Se
eu tivesse o poder de criar esse fogo sozinha, deuses, eu seria
invencível.
Enquanto todos nós estendemos nossas mãos em direção à
fogueira, tentando seguir as instruções para acalmar nossas
mentes e alcançar dentro de nós mesmos o calor que de alguma
forma deveria estar em nosso âmago, são as mãos de Ferrick
que pegam fogo. Eu pulo com seu suspiro de surpresa, e o
ciúme flui dentro de mim enquanto pequenas brasas cintilam
em seu braço.
— Fique calmo — diz um dos Valukans nos guiando,
pegando Ferrick pelos ombros. — Respire fundo. É preciso ter
a mente clara para controlar essa magia. Concentre-se na
sensação das palmas das mãos. Respire e deixe ir.
Eu respiro mais fundo, tentando fazer o mesmo, esperando
e rezando para que a magia venha. Odiando que não sou eu
quem consegue fazer isso, mas pesada com a culpa pelo meu
ciúme quando as brasas acendem a excitação nos olhos de
Ferrick, abrindo um novo mundo de possibilidades para ele.
Uma pequena gota de sangue começa a escorrer de seu
nariz, mas ele a limpa; mesmo a dificuldade de praticar uma
nova magia não abala sua empolgação.
Minha frustração e culpa só pioram quando estamos
praticando a afinidade final: ar. Azami me observa com olhos
curiosos, esperando ansiosamente, mas são Bastian e Shanty
que tecem tentáculos disso entre seus dedos, levantando folhas
em suas palmas e rindo enquanto sopram rajadas de ar no
cabelo um do outro.
O sorriso de Bastian transborda de excitação, e pelas
emoções que sinto crescendo em sua alma, eu entendo por que:
ao dominar a magia do vento, ele será capaz de ajudar a guiar
as velas de Keel Haul, possivelmente nunca precisando de uma
tripulação completa. É brilhante, mas não consigo evitar a
sensação de que ele está me deixando para trás.
Eles estão todos me deixando para trás.
E por que não deveriam? Ferrick e Bastian praticam cada um
três magias agora, e eu não tenho nenhuma. Meu sangue é o
responsável direto pela destruição de Visidia. Meu próprio
povo está tentando me matar.
Eu também me deixaria para trás.
— Você não sentiu uma faísca com nenhum deles? — Azami
pressiona. — Talvez nós tenhamos perdido isso. Se precisar de
mais tempo, tenho certeza que os outros não se importariam
de ficar mais tempo para ajudá-la a aprender.
Azami é genuína, eu sei disso. Como os outros, ela acredita
que estou aqui para encontrar um rei para Visidia, e ela foi, pelo
menos, gentil o suficiente para tentar tornar o encontro com
pretendentes Valukans o mais natural possível para mim,
trabalhando com eles. Nada do que ela está fazendo está
errado. E ainda assim a pressão no meu peito está aumentando,
rasgando seu caminho através do meu corpo e deixando para
trás um veneno que torna meu peito tão pesado que mal posso
respirar.
Há decepção nos olhos dos Valukans. Uma expectativa
persistente que substituiu seu desejo de me conquistar. O Alto
Animancer de Visidia deve ser a pessoa mais poderosa do
reino, e eles acabaram de me ver falhar.
Vê-los me olhando assim me traz de volta à noite da minha
festa de aniversário, onde minha magia me dominou na frente
de uma multidão. A memória é uma âncora em meu peito,
afundando mais e mais até quebrar qualquer armadura que
construí em torno de mim. Eu agarro meu estômago, minha
garganta, tentando forçar o ar em meus pulmões enquanto
meus ouvidos zumbem com as memórias daquela noite.
Ela vai destruir tudo!
Ela é quem deve ser executada! Ela vai matar todos nós!
A cabeça de Bastian se levanta de repente para que seus
olhos encontrem os meus rápidos como um raio quando minha
visão começa a penetrar. Ele não precisa que eu diga a ele que
preciso de ajuda antes que ele esteja ao meu lado, as mãos
apertando meus ombros para me avisar que ele está lá.
Por que estou fazendo isto?
E daí se todo mundo me acha fraca por não ser capaz de
aprender sua magia? Por que isso é minha culpa?
Por que estou fazendo isso?
Por que é importante o que Visidia pensa de mim quando
estou tão perto de ter a chave do destino deles? Eu poderia
liberar a magia da alma para eles. Eu poderia restaurar Visidia
ao que sempre deveria ser e, finalmente, contar a verdade. Eu
poderia liderar nosso reino para o futuro que sempre foi feito
para ter.
Ou eu poderia ser egoísta. Eu poderia ter meu pai de volta e,
com seu reavivamento, as pressões da coroa não recairiam
mais apenas sobre mim. Mamãe sorriria novamente. Eu
poderia ouvir sua risada e mostrar a ele Rukan. Ele e eu
poderíamos restaurar Visidia juntos, e eu não me sentiria tão
sozinha.
Não importa o que os outros pensam. O destino de Visidia
está em minhas mãos, e farei com elas o que eu quiser. Uma
rainha não precisa sorrir. Ela não precisa jogar.
Uma rainha precisa governar.
— Não vou mais fazer isso — As palavras não parecem
minhas. Elas são um sussurro amargo, baixo o suficiente para
que Azami se incline.
— Amora?
Meus joelhos dobram.
— A festa acabou. — A voz de Bastian está distante. — Todos
voltem para suas casas, a rainha verá todos vocês amanhã…
— Não. — No momento em que a palavra sai da minha boca,
posso respirar mais fácil. A liberdade disso traz uma risada
borbulhando na minha garganta. — Não, eu não acho que vou
vê-los amanhã. Eu acho... acho que terminei.
O rosto de Azami fica pálido. Atrás dela, outros olham
estupefatos.
— Há algo errado, Vossa Majestade? Tenho certeza que
posso consertar…
— Você foi brilhante. — Com cada palavra, a pressão no meu
peito diminui. A cada respiração, me sinto um pouco mais como
eu. — Agradeço tudo o que você me mostrou e tudo o que está
fazendo por Valuka. Tenho certeza de que todos esses homens
são maravilhosos, mas trabalhei muito por esse trono. Eu
sacrifiquei muito de mim mesma pelo meu povo. Ninguém, por
mais gentil ou maravilhoso que seja, jamais compreenderá ou
estará preparado para assumir o fardo dessa coroa, e estou
cansada de fingir que permitiria. Diga ao Lorde Bargas para
deixar o reino saber que eu terminei com esse jogo.
Em todas as ilhas que visitamos até agora, perdi muito
tempo mantendo as aparências. Por duas vezes, quase morri
tentando persuadir os outros a gostarem de mim. Estou
cansada de fingir ser algo que não sou, apenas para ser aceita.
Eu sou Amora Montara e não serei mais um peão. Eu serei
uma rainha.
***
— Já era hora de você parar com essa farsa — Vataea me
disse enquanto nos acomodamos em nosso quarto naquela
noite. — Fiquei surpresa que durou tanto tempo.
Puxando um travesseiro sobre minha cabeça, eu inalo o
cheiro de lavanda profundamente, fazendo tudo ao meu
alcance para desaparecer nele. Embora eu esteja feliz pela
liberdade de não ter mais que desfilar com os pretendentes,
amanhã haverá uma tempestade nos pergaminhos.
Mas não importa. Eu não posso deixar isso importar. Que
venha o amanhã; é hora de encontrar o despertado dos deuses
e mudar o destino de Visidia de uma forma ou de outra.
Só quando o peso adicional range a cama eu me mexo, me
descolando do travesseiro por tempo suficiente para ver os
olhos dourados de Vataea fixos em mim.
— Você está com pena de si mesma? — Ela pergunta tão
claramente que, por um momento, me lembro de como ela
realmente é desumana. — Ou é porque você está sentindo falta
do seu pai de novo?
— Eu sempre sinto falta dele. — Quando me sento, ela segue
minha liderança.
— Há muitos de quem eu também sinto falta. — Enquanto
ela diz isso casualmente, algo pesado sobrecarrega seus
ombros, desabando-os.
A luz pisca e escurece em seus olhos. Durante séculos, as
sereias foram caçadas, colhidas por suas escamas e pelos
motivos mais abomináveis. Para alguém que viveu tanto tempo
quanto ela, tenho certeza de que sofre a perda de muitos.
— Eu sei que seu reinado foi construído em mentiras. E que
ele fez tudo o que podia para apoiá-los — eu digo
eventualmente, lutando para tornar minha voz audível. — Eu
sei disso. Mas... eu daria qualquer coisa para vê-lo novamente.
Mesmo que apenas por um momento. — Não posso dizer o que
causa isso, mas algo dentro de mim se estilhaça sob seu olhar
brilhante. As emoções passam por mim como se uma represa
tivesse sido rompida, derramando livremente e de uma vez. —
Não importa o que ele tenha feito, ele é meu pai. Eu não posso
deixar de sentir que se ele estivesse aqui, ele poderia me ajudar
a consertar essa bagunça.
— Você não pode desfazer mentiras de séculos em duas
temporadas. — Vataea segura meus ombros com firmeza. —
Você está fazendo o seu melhor, Amora. É o bastante. Há muitos
que perdi, mas não me permito me perder com eles. Eles não
gostariam que pausássemos nossas vidas porque seu tempo
acabou. Sofra, mas não se perca no luto.
Suas palavras são muito mais fáceis de dizer do que de fazer.
Por mais pessoas que ela tenha perdido, ela nunca foi
responsável pela dor, pelas mortes, de tantas.
— Os deuses são cruéis por tê-lo tirado de mim. — Minhas
palavras parecem patéticas, mas eu as quero dizer com tudo
em mim. Tanto é que mando cada uma para os deuses como um
soco, esperando que eles possam sentir cada grama da minha
raiva com elas. — Eu só queria que eles o devolvessem.
Juntos, podemos restaurar a magia. Derrotar Kaven. Poupar
tantas vidas.
Se eu não soubesse melhor, acharia que a expressão no rosto
de Vataea é de pena.
— Até eu sei que não é sensato amaldiçoar seus deuses,
Amora. — Vataea desliza da minha cama para se enroscar na
dela, apagando a vela no caminho. — Você nunca sabe quando
eles podem estar ouvindo.
CAPÍTULO TRINTA

Alguém está me observando.


Eu me endireito na cama, sem fôlego.
A única luz na sala vem do luar que sangra no chão por entre
as frestas das cortinas. Eu aperto os olhos através de sua névoa
prateada, mas tudo que vejo é Vataea dormindo
profundamente na cama ao lado da minha, sua respiração
pesada e imperturbável.
Cautelosamente, me acomodo de volta na cama, confiante de
que meus nervos estão me alcançando enquanto tento
recuperar o fôlego. Mas estou de pé no momento em que uma
sombra cruza minha janela, segurando Rukan e pronta para
acordar Vataea quando ouço a sombra rir.
É um som estrondoso e orgulhoso que sacode meus pulmões
e quase me deixa de joelhos. Eu reconheceria aquela risada em
qualquer lugar. Mas... não pode ser.
— Pai? — Minha voz fica rouca e baixa, mas sua risada ecoa
novamente em resposta. Tudo o que posso fazer é não chorar
com a familiaridade disso.
Quando Vataea ainda não se mexe, eu belisco meu pulso com
força, sabendo que isso deve ser nada mais do que um sonho
cruel. Minha respiração fica presa quando o beliscão dói, e não
espero mais um segundo antes de jogar uma capa sobre a
minha camisola, firmar a bainha de Rukan em volta de mim e
correr. Eu escapei pela casa em um borrão, o mármore frio
mordendo meus pés descalços.
— Pai! — Eu chamo de novo, mais alto quando estou longe
dos ouvidos adormecidos. Ele ri de novo, e dessa vez vejo o que
sei que deve ser ele, um borrão de sombras e luz correndo pelo
terreno à frente.
Eu não penso. Eu apenas sigo, movendo-me cada vez mais
para longe da casa até que a terra se transforma em pouco mais
do que montanha e pedra, a dor rastejando em minhas solas
dos pés. Eu sei com tudo em mim que isso não pode ser real. É
uma maldição. Uma miragem. Alguma coisa.
Mas meu pai está bem na minha frente. Ele se move tão
rápido que, se eu quiser pegá-lo, não posso hesitar.
— Espere por mim — eu sussurro atrás dele, os punhos
cerrados enquanto uma pedra cava em meu calcanhar. —
Espere um segundo!
Assim que as palavras passaram pelos meus lábios, uma
figura brilhante surge diante de mim. Uma besta feita de
chamas azuis cintilantes ergue-se alta e orgulhosa. Ela toma a
forma de um lobo, excessivamente grande e queimando tão
ferozmente que luto para não fechar os olhos contra ele.
Suas patas fumegantes batem impacientemente no chão, um
fluxo constante de brasas frescas caindo de seu pelo brilhante.
Orbes de fogo branco tomaram conta de seus olhos, e me pego
segurando minha adaga enquanto eles se fixam em mim.
Percebendo meu movimento, a besta bufa enquanto a
fumaça sai das suas narinas, como se estivesse tentando me
dizer para não me incomodar. Não está aqui para lutar.
— Você vai me levar até ele? — Eu fecho o espaço entre nós
e ofereço uma mão hesitante em seu pescoço, sugando um
suspiro de surpresa quando as chamas não chamuscam minha
pele. Forçosamente, eu crio coragem para me erguer
totalmente sobre a besta, não querendo ficar muito longe de
meu pai.
No momento em que estou montada, o lobo sai em uma
corrida que rivaliza com o vento, espalhando brasas azuis em
seu rastro. Somente lá, nas costas desta besta ígnea, minha
mente alcança meu corpo, me avisando que sou uma tola por
segui-lo tão facilmente. Este lobo não se criou sozinho e sabe
claramente para onde está indo. Mesmo assim, a risada de meu
pai era muito real. Muito perto.
Eu não posso voltar, agora. Não quando ele está ao meu
alcance.
Papai está de costas para mim quando o encontramos, seu
corpo feito das chamas vermelhas que ele compartilha com seu
próprio corcel, um alce gigante com chifres de prata. Juntos,
eles avançam pelas montanhas, tecendo em torno de gêiseres
que explodem em um céu espesso com estrelas cadentes, sua
névoa espirrando sobre minha pele e fazendo a besta abaixo de
mim chiar e fumegar.
— Olhe para mim — sussurro, pedindo a meu pai que se vire
e me enfrente. Exortando-o, implorando-o, para me mostrar
seu rosto e provar que é ele, mas com medo de acordar no
momento em que ele o fizer.
Mas, quando insisto para que isso aconteça, papai se vira e o
fogo ao redor de seu corpo se apaga. Pela primeira vez desde
que o vi queimar, vejo seu rosto.
Aí está sua pele bronzeada, enrugada por anos no mar. Olhos
castanhos quentes que brilham de orgulho quando me olham.
E um sorriso. Amplo, maravilhoso e belo.
— É você. É você mesmo.
Papai não responde. Em vez disso, ele levanta a mão para o
céu, usando uma magia que nunca vi para desenhar uma série
de constelações em redemoinho em suas palmas. Elas
envolvem suas mãos e dançam seu caminho até seus braços e
ombros, girando entre tons de rosa e azul e verde. Ele ri de
novo, estendendo a mão para mim. Dessa vez, as constelações
giram entre seus dedos e através do meu cabelo. Eu rio
enquanto elas passam ao meu redor antes de explodir de volta
para o céu, me engolindo em um mar de magia e estrelas.
Eu mal percebo que minhas bochechas estão encharcadas de
lágrimas enquanto inclino minha cabeça para trás para elas, e
eu não me importo.
Embora eu tenha que acordar desse sonho, oro a qualquer
deus que esteja ouvindo que a realidade não chegue para mim
tão cedo. Eu quero ficar neste momento pelo maior tempo
possível. Ouvindo sua risada. Vendo seu sorriso.
Toda minha vida eu quis essa aventura com papai. Agora
que ele está aqui, rezo para que dure para sempre, até que a
galáxia nos engula inteiros e nosso mundo não exista mais.
Mas até os deuses têm seus limites, e eles já foram muito
gentis comigo.
O corpo de papai começa a soltar fumaça nas bordas e, com
um chute rápido em seu corcel, ele está avançando novamente.
Só que desta vez ele está subindo cada vez mais alto, como se
estivesse correndo para o céu. Eu me inclino para o lobo abaixo
de mim, segurando seu pelo com força em meus punhos
enquanto ele avança, seguindo.
A cada segundo, mais e mais fumaça sai do corpo de papai.
Torna o ar ao nosso redor nebuloso, apertando meus pulmões
e queimando minha garganta. Mas ainda sigo, porque não há
como ele escorregar pelos meus dedos uma segunda vez.
— Não pare — eu sussurro no ouvido do lobo, me achatando
contra ele enquanto a fumaça começa a nos envolver. — Pegue
ele.
A besta queima intensamente contra a névoa de fumaça,
aquecendo meus dedos enquanto avança, parando apenas
quando está diante da forma parada de meu pai.
Ele está sentado diante de mim, uma luz cintilante entre
fumaça e sombras. Ele roubou a lua e a usa como seu sorriso.
— Você certamente captou meu senso de aventura. — Suas
palavras crescem com um orgulho que perfura meu peito com
uma força mais terrível do que qualquer lâmina.
— Deuses — eu sussurro em torno de uma boca grossa
como algodão enquanto desmonto. Minha garganta queima
com cada palavra. — Eu sinto sua falta.
Há tanta coisa que quero dizer a ele. Eu quero dizer muito.
Mas meu pai está se transformando em fumaça que está se
dissipando no ar muito rapidamente. Estendo a mão para ele,
desesperada para encontrar uma maneira de mantê-lo aqui
comigo, mas ele não volta atrás.
— Eu sinto sua falta mais do que você poderia imaginar. Mas
eu preciso que você seja corajosa, Amora. — Seu corpo está
desaparecendo como fumaça nas estrelas. — Seja corajosa,
minha menina, e faça o que eu não pude.
Tento gritar. Tento agarrá-lo novamente. Mas minha mão
cai no ar vazio e cada grama da minha respiração cai com ela.
Tão rápido quanto ele veio, papai se foi. E, no entanto,
nuvens de fumaça ainda permanecem em seu lugar, tomando
forma em algo que espera atrás de onde ele estava apenas um
momento antes, algo que ele me prometeu que nós dois um dia
encontraríamos juntos.
Algo com grandes olhos vermelho-sangue.
Então a criança finalmente apareceu. Bem-vinda, pequenina.
Fiquei me perguntando quando você chegaria.
Eu tropeço para trás enquanto as sombras se movem,
tomando forma em uma criatura enorme que se aproxima
furtivamente. Só então eu percebo onde estou parada, e que o
corpo do meu pai não era puramente responsável pela fumaça
que nos cerca.
Ele me levou até a base do vulcão, onde a divindade que
venho procurando está esperando.
Ele me levou ao despertado dos deuses.
Mas como? Devia ter levado horas para chegar aos vulcões
de onde estávamos. E, no entanto, meus momentos com papai
pareceram segundos.
O corpo esguio da serpente se eleva sobre mim enquanto ela
se endireita. É como se fosse construído pelo céu noturno,
crescendo e se esticando e encolhendo conforme as sombras
diminuem e fluem da luz de lava brilhante do vulcão. Escamas
de ônix brilham enquanto eu olho para a forma deslizante, para
cima e para cima até dois pares de olhos vermelhos piscarem
para mim, mais curiosos do que ameaçadores. A serpente
desliza para frente, o poder irradiando dela em ondas tão
extraordinárias que luto para me recompor. Cada membro do
meu corpo está dormente; é preciso um esforço excruciante
para mover até mesmo minhas mãos.
Meus dedos trêmulos agarram Rukan, e os olhos da serpente
piscam para ela antes que sibile, a língua bifurcada roçando
minha bochecha.
Vejo que você tem caçado um pouco.
Eu me forço a olhar em seus olhos. A boca da cobra nunca se
move, mas eu juro que ouço essas palavras claras como o dia.
Mantenha essa arma embainhada ou farei de você uma
refeição, pequenina; que se dane o destino.
Eu embainho a arma imediatamente, mais rápido do que
nunca, apesar do tremor.
— Você pode usar a fala mental?
Abaixando-se, a besta se enrola com força, a cabeça
projetando-se para fora e pousando sobre o corpo enquanto
me observa.
Eu sou uma criação dos deuses, pequenina. Eu conheço todas
as magias que existiram, existem e sempre existirão. Você ousa
me questionar?
Eu engulo um pedido de desculpas quente na minha língua
até que percebo que a serpente está sorrindo. Sua língua se
bifurca no que só pode ser descrito como diversão, e cerro os
dentes.
— Como estou aqui? — Eu pergunto, incapaz de impedir
minha voz de tremer, não importa o quanto eu tente. — Aquilo
era... ele era real? Era realmente ele?
Ele era tão real quanto poderia ser, responde a serpente, a
voz lenta e preguiçosa. Você queria vê-lo de novo, não é?
Eu cerro meus punhos, tentando colocar algum sentido de
volta em meus membros.
— Então por que você o tirou de mim de novo? Queria poder
dizer mais alguma coisa! Havia mais do que eu precisava dizer
a ele…
Eu vi seus fardos, pequenina. Sozinha como você pensa que
está, nós observamos e sabemos. Esta noite foi o presente dos
deuses para você, uma bondade, por todos os fardos que você
nasceu para enfrentar. Você recebeu o que aqueles que sofrem
muitas vezes buscam: um momento final. Por que desperdiçar
aquele momento com palavras?
— Então você conjurou uma visão dele para me atrair aqui?
Não foi uma visão. O espírito do seu pai vive dentro de você,
pequenina. Tudo o que fiz foi dar forma, mesmo que por pouco
tempo.
Eu quero chorar. Eu quero brandir minha adaga mais uma
vez e enfiá-la na besta novamente e novamente até que o
despertado dos deuses me devolva papai. Mas está certo. Eu
não teria mudado um único segundo ao ver meu pai esta noite;
simplesmente não foi o suficiente. Nunca poderia ser longo o
suficiente.
Mas foi algo.
Foi uma chance de ver que papai não está rodeado de
mortos. Que ele não está estendendo a mão, implorando para
que eu o salve.
Papai ainda está tendo suas aventuras; só que agora elas
estão entre as estrelas.
— Qual dos despertados dos deuses é você? — Eu pergunto,
encontrando minha voz trêmula.
A serpente parece considerar isso por um momento.
Bem, não sou eu quem guarda a santidade dos céus, nem sou
eu quem guarda a ira das marés. Talvez eu guarde a ira das
chamas? Ou talvez seja a inocência dos humanos que protejo? Eu
sou um desses.
Meus olhos caem em Rukan, pensando na Lusca, e a cobra
sibila novamente com desgosto.
Aquela besta que você matou não era um guardião. Se tivesse
sido, você não estaria aqui diante de mim hoje. Agora me diga,
pequenina, por que você veio aqui? Há anos que te vejo na minha
cabeça, mas não sei o que é que procura neste momento. Aqui
não é um lugar para sua espécie.
A serpente está certa. Meu peito já está ficando mais
apertado e minha respiração mais superficial. À medida que
uma névoa fina se forma sobre minha visão, suspeito que a
única coisa que me mantém de pé em meio a esses vapores e
fumaça é a magia da besta. Se quisesse, poderia me deixar
morrer na fumaça a qualquer momento. Mas estou tão perto,
não há como eu desistir sem tentar.
— Estou aqui para pegar emprestada a magia dos deuses.
A serpente desliza para mais perto de modo que as escamas
brilhantes de seu corpo roçam o meu. Tento alcançá-las ou
agarrar minha lâmina para poder cortar uma, mas o poder
esmagador do seu corpo me mantém parada.
O que você deseja fazer com esse poder? Existe uma
bifurcação em seu caminho; que estrada você pretende seguir?
— Como rainha deste reino, farei o que eu quiser com isso.
Minha resposta não deveria importar para você.
Eu sou favorecida pelos deuses. Que uso tenho para a
construção de rainhas?
Embora não ria fisicamente, sua voz ressoa na minha cabeça
com uma diversão sombria.
Construir? Eu me arrepio, embora a serpente não se importe
menos. Ela se pressiona contra mim, o corpo enrolando em
torno do meu.
Tenho observado vocês, pequeninos, desde o alvorecer dos
tempos, e cada rainha e rei que conheci se preocupou mais
consigo mesmo do que com qualquer outro. Você recebeu um
presente esta noite e ainda é gananciosa, querendo mais. Mas ah,
vejo que você já sabe disso, não é? Vejo que você imagina como o
mundo e sua magia poderiam ser prósperos se não fosse por sua
ganância. Você imagina que mundo diferente esse lugar poderia
ser. Existem muitas possibilidades. Também estou curiosa para
saber como será o mundo. Talvez um dia eu saiba.
— Nem tudo que os Montaras fizeram foi ruim. — Não sei
por que estou discutindo. É como se a serpente estivesse
ecoando meus próprios pensamentos íntimos, e parece fútil
debater com uma divindade. Mas eu me empurro de seu aperto
e giro para enfrentá-la do mesmo jeito. — Houve pelo menos
algo bom.
Mas qual é mais importante do que o outro, eu me pergunto?
Os erros ou os acertos? Porque tudo que vejo quando penso nessa
resposta são as possibilidades. Eu vejo "o que poderia ter sido"
para este mundo, mas nunca o "o que será". As novas magias que
poderiam ter sido descobertas até agora, mas não aquelas que
podem ser descobertas. Eu vejo as mudanças que seu reino pode
fazer, mas não sei quais mudanças você vai escolher. Eu só posso
imaginar o mundo com que você sonha, pequenina. E espero por
isso da mesma forma que você.
A voz da serpente fica grossa e melódica. Eu caio nela,
embalada por suas palavras. Eu me afogo no calor. Na fumaça.
Na picada. E eu imagino o que a serpente quer que eu faça: um
mundo não construído pela divisão da magia, mas crescendo
com ela e se adaptando. Expandindo. Eu imagino um mundo
explodindo de magia, um reino que pôde passar séculos
construindo e explorando sua magia ao invés de um reino
reprimido pela ganância.
E é lindo.
Vejo magia na forma de flores crescendo nas pontas dos
dedos. Em um jovem que canta canções para os pássaros e que
compreende cada palavra que eles cantam. É um mundo cheio
de cores e magia que eu nunca vi, e a beleza disso arde em meus
olhos, fazendo novas lágrimas queimarem dentro deles.
Vejo isso tão claramente que meu coração dói. Este mundo
“poderia ter sido” realmente poderia ter sido, se não fosse por
minha família.
— Estou tentando compensar. — Minha voz está fraca,
arranhando minha garganta ferida. — Eu vou compensar isso.
O que o mundo se torna está em suas mãos, você tem razão
quanto a isso. Mas não se muda o futuro alterando seu passado.
A voz da serpente é uma frieza que se espalha em minhas
veias, congelando-me no lugar.
— Se você não queria que eu trouxesse meu pai de volta,
então por que mostrá-lo para mim? Por que me dizer que é
possível?
Não somos tão cruéis quanto você acredita, pequenina. Você
não pediu para carregar esses fardos que foi escolhida para
carregar. Para eles, você recebeu um presente. Não basta vê-lo?
Saber que ele ainda está aqui, ainda observando?
Embora eu o tenha visto em paz, ainda não parece o
suficiente. A menos que meu pai esteja aqui ao meu lado, nunca
será o suficiente.
Mais uma vez, minha mão encontra o caminho para Rukan.
Dessa vez, entretanto, eu desfaço sua bainha, convocando cada
grama de coragem que tenho para evitar que meu corpo trema.
— Já que você parece saber de tudo, então sabe que não vou
embora sem essa condição.
O que eu sei, pequenina, são apenas algumas coisas. A
primeira é que você e eu estávamos fadadas a nos encontrar; não
há linha do tempo em que você não me procure. E a segunda é
que você tem uma escolha pela frente, uma escolha que, não
importa o que você escolha, alterará o destino deste mundo como
o conhecemos. Um que o levará ao caos e outro que será sua
salvação. Escolha sabiamente.
Sei a escolha que isso deve significar: significaria colocar o
poder de trazer meu pai de volta e mudar a história de Visidia
ali em minhas mãos, mas me dizer para não usá-lo. Escolher
seguir em frente, em vez de tentar mudar o passado.
— Então você quer que eu diga adeus a ele novamente. —
Não é uma pergunta. — É um castigo cruel, mesmo para os
deuses.
Eu não quero que você faça nada, pequenina. Não existe uma
resposta certa ou errada, existem apenas possibilidades. A
serpente pisca seus olhos vermelhos redondos como se fosse
me estudar. Essa ingenuidade é o que mais admiro em vocês,
pequeninos. Pois mesmo que eu dissesse a você a escolha que você
deveria fazer, você faria o que quisesse no final. Não importaria
o que eu dissesse. Além disso, não sou uma divindade. Não sei bem
se o que este mundo precisa é de destruição ou salvação. Mas vou
lhe dizer uma coisa: os deuses não são gentis com aqueles que
tentam roubar seus mortos. É aconselhável seguir em frente,
nunca voltar.
— Diga-me — exijo, tentando acalmar minhas mãos
trêmulas. — Eu fiz algo para merecer isso?
Você não fez nada além do que foi criada para fazer. Esse é o
seu destino, e é por isso que você recebeu esse presente esta noite.
Sua jornada é algo que eu não invejo. É aquela que vai deixar
muitas cicatrizes. Mas essas cicatrizes vão sarar, e nelas você vai
se encontrar. Você descobrirá o que deve fazer. O corpo da
serpente gira outra espiral completa ao meu redor. Lembre-se
de que todos os seres têm seu tempo, até eu mesma. Você é a
rainha de Visidia, e com esse título, você carrega uma
responsabilidade que ninguém mais carregará. Como você disse,
é um destino cruel, mas é seu. E o que você fizer com isso
determinará o futuro de Visidia para sempre. Isso vai além de
você. Lembre-se disso.
Lembre-se disso. Lembre-se disso?
Não preciso de um lembrete quando tudo o que faço é
lembrar. Lembro-me de como a magia costumava me
preencher, como era uma chama poderosa em minha alma,
inextinguível. Lembro-me de uma época em que a maior parte
de Visidia não vivia com medo. Quando eu não precisaria
distraí-los para aprovar uma nova lei. Quando eu não teria que
viajar para cada uma das ilhas com minha guarda levantada,
temendo que alguém pudesse tentar me matar.
Lembro-me de uma época em que podia beijar quem eu
quisesse sem duvidar de meus sentimentos.
Quando a risada do meu pai explodia na baía enquanto
estávamos ao leme da Duquesa. A forma como tantos
confiavam nele antes que Kaven se tornasse uma ameaça.
Lembro-me do fantasma do seu beijo na minha testa. A
memória do sangue drenando do seu corpo enquanto a vida
esmaecia dos seus olhos. A espada atravessando sua carne,
enterrada profundamente em sua barriga. Os pesadelos de sua
mão estendendo-se para mim e um rosto envolto em fumaça.
Eu me lembro de tudo.
Eu aperto meus punhos com força e levanto meu queixo
para a serpente.
— Não vou sair daqui sem condições.
Ela mergulha a cabeça, a língua bifurcando-se.
Não sou a guardiã que tentará impedi-la de obtê-lo. Estou
apenas encarregada de proteger a terra.
Meu equilíbrio oscila enquanto o chão treme sob mim, mas
não vou cair tão facilmente. Agarrando Rukan, coloco minha
lâmina sobre a serpente, cortando sua pele e arrancando um
pedaço dela, com escamas presas. A besta sibila mas não
sacode, quase como se quisesse que eu a levasse. A escama sai
facilmente na minha mão.
Eu amaldiçoo e quase a deixo cair quando ela queima minha
pele. Mas quanto mais eu toco, mais poder se afunda em minha
pele e profundamente em meus ossos. Pela primeira vez desde
que perdi minha magia, me encontro tremendo sob o peso do
poder, tendo que me equilibrar antes de ser jogada no chão.
Apenas uma escama e um pouco de pele desta besta contém
mais magia do que eu já senti em minha vida.
Eu sou rápida para fechar a escama na minha mão, me
afastando da serpente que se enrola, levantando sua cabeça
para me observar.
Como eu disse, não sou a única encarregada de proteger a
terra, pequenina. Eles são.
Os olhos da serpente piscam para o vulcão atrás de mim
enquanto um raio atinge o céu acima dele. Nuvens negras como
alcatrão saem de sua boca enquanto o vulcão entra em erupção,
o magma incandescente jorrando dele e explodindo no céu.
No meio desse magma, uma forma estranha toma forma
enquanto se estende pela noite, crescendo mais e mais até que
o ar foge dos meus pulmões, e eu entendo.
Não há uma divindade guardiã aqui; existem duas.
Esta é a serpente de fogo.
CAPÍTULO TRINTA E UM

Ao contrário da divindade da terra que se retrai e se enrola


firmemente em si mesma para observar o que se desenrola, a
divindade do fogo não fala antes de mostrar suas presas,
assobiando o vapor contra minhas bochechas. Todo o seu
corpo é feito de fogo; lava queima quente ao redor dele,
derretendo tudo em seu caminho. O magma goteja das suas
presas, e seus olhos são o coração de um fogo, incandescente.
O calor que irradia do seu corpo é sufocante, quase me
sufocando.
Você é uma tola por permitir que essa garota tenha tanto
poder. Você não aprendeu com o passado?
A voz deste guardião ressoa enquanto condena o outro, cujo
piscar é lento e calmo.
Os pequeninos farão o que quiserem, diz a divindade da terra.
Ela estar aqui estava fadado a acontecer.
A língua da divindade do fogo ataca em desgosto antes de se
esgueirar para mais perto. Eu engasgo com sua presença, a
fumaça segurando minha garganta enquanto tropeço para trás
em busca do lobo flamejante que me trouxe aqui.
Milagrosamente, ele ainda espera por mim, enrolando suas
garras no chão e queimando um branco brilhante. Quando eu o
alcanço, ele atende ao meu chamado e me ajuda a ficar de
costas, descendo a encosta da montanha enquanto eu agarro a
escama da cobra no meu peito.
Pare de ajudá-la! Sibila a serpente de fogo enquanto bate seu
corpo no chão, perseguindo-me. A divindade da terra não se
importa com a outra enquanto se enrola em um canto, o corpo
desaparecendo nas sombras.
Com cada centímetro mais perto do despertado dos deuses
deslizando, fogo e lava flamejam. Eles devoram o solo sob a
besta, como se estivessem tentando abrir a própria ilha.
Não sei como a fumaça negra e venenosa do vulcão ainda
não me atingiu. Deve ser a mesma magia que me mantém nas
costas desta besta ígnea, descendo a montanha tão rápido
quanto o vento.
Deixe essa escama e vá embora, humana. Eu não vou pedir de
novo.
Eu ignoro a serpente e aperto a rica escama de ônix no meu
peito, colocando todo o meu foco nela, usando-a como um farol
para focar meus pensamentos e me manter de pé.
Não vou desistir. Não vou desistir quando cheguei tão longe.
O despertados dos deuses ergue a cabeça para trás, mostra
as presas do tamanho do meu corpo e ataca.
Eu me agarro com força ao lobo abaixo de mim enquanto ele
faz uma curva fechada para a esquerda, cavando os dedos da
minha mão livre em seu pelo de brasa para se equilibrar. O
calor do corpo do despertado dos deuses está consumindo
tudo, fazendo a terra nadar e minha pele pegajosa de suor.
O chão treme e ruge abaixo de nós a cada movimento, vapor
saindo do solo. Estou prestes a me afastar dos gêiseres
ameaçadores abaixo de nós quando vejo um lampejo de cabelo
preto no canto do meu olho.
— O que você está fazendo? — Eu grito. — Saia daqui!
Vataea está parada descalça na beira da montanha, a
camisola colada à pele úmida. Ela afunda os pés na terra,
avaliando o vapor dos gêiseres abaixo de nós.
— Continue correndo — é o único aviso que ela dá antes que
uma música a consuma. É mel e vinho, intoxicantemente doce,
mas azedo com um toque amargo que faz minha cabeça girar.
Enquanto ela canta, o tremor se amplifica, tão forte que até o
despertado dos deuses dá um pulo para trás.
Mas é muito tarde. A canção de Vataea comanda a água, e
quando ela levanta as mãos para o céu, a terra se racha e a água
explode, atingindo a serpente com firmeza no peito. Ela ruge,
girando para ela, mas eu sou mais rápida. Puxando as brasas do
meu lobo, dirijo-o bruscamente para Vataea, agarrando sua
palma e puxando-a atrás de mim, nas costas do lobo.
— Você já poderia ter descido esta montanha — ela rosna,
sem fôlego. Seu aperto na minha cintura é fraco, debatendo-se
como um peixe fora d'água no meio deste calor. — O que você
estava pensando, Amora?
Atrás de nós, a serpente grita. O chiado de seu corpo é tão
alto que meus ouvidos doem e o vapor queima meus olhos. Eu
mal consigo apertar os olhos em meio a tudo isso, desorientada
enquanto corremos à frente. A escama na palma da minha mão
queima, pronta para abrir um buraco na minha carne. Pelo
chão tremendo e pelo vapor que me segue, sei que a serpente
ainda está atrás de nós. Diminuiu a velocidade, mas não parou.
— Não havia tempo para pensar. — Meus pulmões se
contraem, começando a sentir os efeitos do vulcão. — Você
pode chamar a água de novo?
— Eu posso tentar. — A voz de Vataea treme com uma
música quando ela chama outro gêiser. Desta vez, porém, a
água não pega apenas a divindade, mas também o lobo. Ele chia
embaixo de nós, dobrando-se com o esforço até cairmos de
suas costas.
Vataea atinge o chão de joelhos, rosnando de dor. Sua
respiração está muito apertada. Muito alta no calor opressor.
Ela não seria capaz de invocar mais da sua magia, mesmo se
tentasse.
Empurrando-a atrás de mim, agarro Rukan com força e giro
para encarar a serpente que paira sobre nós, chovendo vapor e
brasas.
Suas presas são lava que goteja de sua boca e cai sobre seu
corpo derretido. Elas são surpreendentemente brilhantes e
brancas como a costa de Curmana. E elas estão prestes a me
devorar.
Até que, de repente, elas não estão.
A serpente joga a cabeça para trás com um rugido e eu recuo
surpresa, tentando encontrar a fonte da sua dor.
Bastian está atrás dela em seu próprio corcel, as palmas das
mãos derramando sangue que foi revestido em um grupo de
pedras que ele flutua ao lado dele, usando a magia aérea de
Valuka. Ele joga as pedras amaldiçoadas na besta, os olhos
furiosos.
Mas esta besta não é como a Lusca. Uma maldição não dura
mais do que alguns segundos.
Eu me viro a tempo de ver que Ferrick também está aqui,
puxando Vataea para cima de um cavalo laranja em chamas.
— A próxima vez que você me convidar para uma aventura
maldita, eu juro pelos deuses, é melhor que sejam férias! — Ele
brada.
— Se sairmos daqui, vou levá-lo para onde quiser. Agora se
apresse e leve Vataea para algum lugar mais fresco. — Eu
engasgo com a respiração ardente, fazendo tudo que posso
para manter meu foco em Bastian.
— Meu dever é proteger você…
— Eu vou dar à rainha algum tempo. — A voz pertence a
Shanty, que a segue a uma distância respeitável, claramente
querendo ser a primeira a sair daqui se as coisas derem errado.
— Tire Vataea daqui, Ferrick.
Vataea sibila com as palavras, mas o nó na garganta de
Ferrick balança apenas uma vez quando ele engole, então acena
com a cabeça.
— Apenas saia daqui viva, certo? — Ele me diz.
Eu concordo.
— Tudo bem.
Envolvendo os braços em volta de Vataea para mantê-la
estável, ele chuta o lado do cavalo e sai correndo, deixando
nada além de brasas em seu rastro.
— Você precisa sair daqui também — digo a Shanty, que
revira os olhos.
— Confie em mim, quero isso. Mas não sem um pequeno
presente de despedida. — Caindo no chão, ela bate a palma da
mão contra a terra. Como a porta estranha de quando descobri
o Barracuda Lounge, o mundo ao nosso redor se transforma em
uma ilusão de encantamento.
Árvores extras brotam da terra. A névoa rola, nos
escondendo. Visões de lobos de fogo tomam forma, andando
para frente e para trás na escuridão e enganando os olhos.
Quando ela termina, Shanty balança e agarra seu corcel de
fogo.
— Use isso a seu favor.
— Vamos. Agora se apresse e vá para Keel Haul.
Eu não espero para vê-la partir. Em vez disso, giro para ver
Bastian ainda lutando contra o despertado dos deuses com
maldições que quase não têm efeito sobre ele. Embora pare por
um momento cada vez que Bastian o acerta com uma pedra, ele
sai da maldição não mais do que alguns segundos depois,
cuspindo fogo. É tempo suficiente para Bastian voltar para o
meu lado, deixando a serpente despertada pelos deuses para
nos encontrar na névoa.
Basta!
O magma incha, iluminando a noite de uma vez. E está claro
que, não importa o quão magnífico o poder de Shanty ou o quão
rápidos esses corcéis possam ser, não há como escaparmos do
despertado dos deuses.
— Você pegou? — Sua voz está áspera por causa da fumaça.
Eu envolvo meus dedos em torno da escama e do punhado
de pele de cobra ensanguentada que está presa e aceno.
— Nós vamos ter que lutar.
— Não podemos nem tocá-lo — ele argumenta. — Como
vamos derrotar algo que derrete nossas armas?
Ele tem razão; nem mesmo Rukan é páreo para essa besta.
Para ter uma chance disso, precisaríamos do poder dos deuses.
Felizmente, temos isso.
A serpente de fogo está acima de nós agora, seu calor e
energia consumindo, uma verdadeira besta de lendas.
Mas já venci uma fera lendária antes e posso fazer isso de
novo.
— Nós temos que usar a magia da alma. É a única maneira.
— Com a escama em uma mão, pego a mão de Bastian na outra,
como se meu corpo soubesse exatamente o que fazer antes que
minha mente pudesse alcançá-la. No momento em que nossas
peles se tocam, é como se o fogo ao nosso redor agora estivesse
dentro de mim.
Com o poder dos deuses em minhas mãos, posso sentir
minha magia pulsando dentro de Bastian. Queima em meu
sangue e se enraíza em minhas veias, espalhando-se como um
incêndio.
Bastian arranca sua mão da minha, apagando o fogo de uma
vez. Mesmo com o calor sufocante, sinto frio como gelo.
— Você viu o que aconteceu da última vez. — Ele franze a
testa. — Eu não posso controlar isso. Sem falar que tive que
colocar o sangue de Elias na boca. Não posso exatamente fazer
isso com lava, Amora.
— Então não usaremos o seu. — Não vamos demorar muito
nessa fumaça. Cada uma das minhas respirações sai áspera
agora, fina e dolorosa. — Nós usaremos a minha. A magia da
minha alma não é uma magia criada pelos deuses; podemos
usá-la contra o despertado dos deuses.
O pânico contorce seu rosto.
— Mas você não pode usar sua magia.
— Eu não posso usar isso sozinha. Eu preciso que você confie
em mim, Bastian.
E embora eu saiba que ele está com medo, embora eu saiba
que ele não quer nada mais do que correr, Bastian me agarra
pelo ombro.
— Eu confio em você.
Isso é tudo que preciso.
Tiro a pele enrugada de cobra do pulso e a seguro como uma
xícara, rezando para que funcione. O outro despertado dos
deuses não estava preocupado com o incêndio, não estava
preocupado em ser queimado.
Sua pele é imune às chamas. Por que outro motivo ele
viveria tão perto do vulcão?
Quando eu crio coragem para pular, não é para o guardião,
mas para a lava que goteja de seu corpo como uma segunda
pele. Para meu alívio, ele fica no copo improvisado de pele de
cobra, não me queimando.
A serpente de fogo afunda para trás, zangada e cautelosa,
com olhos brancos e ferventes.
O que você está fazendo?
Sua tensão me diz que ela já sabe: eu tenho um fogo e agora
sua pele. Eu tenho tudo que preciso para a magia da alma.
O incêndio está aumentando e agora só há uma maneira de
saber se meu plano funciona. Eu pego a mão de Bastian e deixo
a magia entre nossas almas inchar mais uma vez enquanto eu
seguro firme.
— Temos que tentar.
— É minha alma, Amora. Se eu deixar você entrar... não
haverá como voltar. Não há mais como fugir de mim.
— Eu sei. — Eu aperto sua mão. — É minha alma também,
lembra? Deixe-me vê-la.
Não há tempo para se preocupar se haverá consequências
ou o que isso significará para ele e para mim. Bastian puxa a
magia da alma em torno dele como um escudo e, apesar do
perigo, fecho meus olhos e sigo seu exemplo enquanto isso nos
consome.
Eu o sinto em todos os lugares. Em minha pele, em minha
alma, em minha mente. Eu sinto seu espírito. Provo o sal em sua
pele enquanto ele abre sua alma para mim. Enquanto ele me
deixa entrar nas partes mais íntimas dele.
A alma de Bastian é de dor. De saudade. Ainda assim, ele
brilha com aventura, mais brilhante do que qualquer outro que
eu já vi.
Ele é lindo.
Hesito ao sentir a sensação familiar de magia me
intrometendo, tentando mergulhar em minha alma da mesma
forma que vi ser feito com meu pai na noite em que ele morreu.
No começo, eu não deixei. Meu corpo fica tenso por conta
própria, rejeitando a tentativa. Por quase uma temporada
inteira eu me escondi de Bastian. Eu me escondi em meus
próprios pensamentos, evitando meus próprios sentimentos.
Mas não mais.
Agora, eu o deixo entrar. E no momento em que o faço, a
magia nos consome enquanto ele a estende para mim.
Eu pressiono a pele de cobra e o fogo derretido em suas
mãos, e Bastian joga o pedaço da serpente de fogo em chamas,
mantendo a pele da divindade da terra nas mãos.
Somos duas pessoas, mas somos uma alma.
A magia da alma flui através de Bastian e para dentro de
mim, e eu saboreio sua frieza em minhas veias. Na forma como
me preenche, me tornando inteira.
Fecho meus olhos para me concentrar na magia que ganha
vida dentro de nós, ajudando a guiá-la através de Bastian e para
dentro de mim. Dessa vez, com nós dois, a magia obedece ao
nosso comando.
Nós alimentamos as chamas com a pele da serpente, e seu
fogo se extingue imediatamente. A divindade ergue a cabeça
para trás enquanto a lava descasca de seu corpo carbonizado.
Sem sua armadura de fogo, ela não é mais tão grande quanto
parecia, ou quase tão ameaçadora.
Quando a magia entre Bastian e eu se rompe, quase caio de
joelhos antes que ele me pegue. Há algo diferente quando
nossas peles se tocam neste momento, uma faísca do que quer
que tenha acontecido entre nós. Eu o sinto mais forte do que
nunca. A tensão em seus músculos. A admiração ao observar a
divindade retroceder.
Juntos, nenhuma repercussão vem da magia da sua alma.
Juntos, éramos fortes o suficiente para derrubá-lo.
Preste atenção ao meu aviso, humana. O despertado dos
deuses avisa, sua voz um sibilo vicioso. Se você escolher o
caminho errado, não haverá volta.
Mas não ouvimos. Nós apenas corremos.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Chegamos a Keel Haul sem fôlego e exaustos, caindo no convés


como se fosse nossa salvação.
Os outros prepararam o navio para a partida. No momento
em que estamos a bordo, Vataea começa a cantar para a água,
sem perder tempo. Ela já melhorou significativamente, seu
cabelo molhado o suficiente para me dizer que ela deve ter se
acalmado dando um mergulho. Embora eu desejasse que
houvesse uma chance de dizer adeus a Azami e agradecê-la por
tudo que ela fez, não há tempo.
Eu caio de joelhos, os pulmões ofegando pelo ar puro do
mar, feridos por causa da fumaça e da falta de ar. Minha cabeça
gira, a visão turva enquanto luto contra a vontade de desmaiar,
como meu corpo provavelmente deveria ter feito há muito
tempo. Mas me recuso a focar no giro e não vou ceder à minha
visão turva.
— Vejo que nenhum dos membros da equipe se preocupa
com o sono de beleza — resmunga Shanty, enquanto ela
envolve os braços firmemente em torno de si mesma. —
Devemos ter problemas a qualquer hora da noite?
Ignorando-a, agarro a escama de cobra perto do meu peito e
deixo sua magia pulsar contra minha pele. É leve, com um calor
que penetra em meu interior. Sua magia latente é poderosa o
suficiente para estalar meus ossos e fazer minha pele parecer
que não quer nada mais do que engatinhar para dentro de si
mesma.
Isso é magia. Antes eu pensava que era forte, mas não tinha
nada com esse poder. Isso parece impossível. Deuses.
Eu quero essa magia para sempre. Esse poder. Essa
habilidade dos deuses. É minha.
É minha.
É minha…
— Amora? — Meu corpo fica rígido enquanto Ferrick se
agacha ao meu lado. Suor e cinzas lambem suas sobrancelhas e
espanam seu rosto, embora seja a preocupação em seus olhos
onde me concentro. — O que é isso?
A escama da cobra não está mais quente, está escaldante. Eu
suspiro e a coloco diante de mim no convés quando queima
minha palma, estremecendo de dor. A presença de Ferrick me
acalma e percebo com crescente horror que esses pensamentos
não eram inteiramente meus.
Esta magia é poderosa, perigosa.
— É uma escama de um despertado dos deuses. — Tentada
para tocá-la novamente, eu aperto minhas mãos e as pressiono
com força contra meu colo, resistindo. — Isso é o que vai
consertar tudo.
Quando Bastian estende a mão para tocá-la, dou um tapa em
sua mão por instinto, parando enquanto o faço. Até mesmo
Shanty e Vataea estão assistindo agora, e todos recuam com
surpresa. Mais uma vez, fecho minhas mãos, os dedos se
contraindo.
— Eu... eu sinto muito. Apenas, por favor, não toque nisso.
As sobrancelhas de Bastian se franzem de preocupação, mas
ele retira as mãos.
— O que você estava pensando, indo atrás disso sozinha?
Você poderia ter morrido.
Arrastando meus membros trêmulos para uma posição, eu,
sem palavras, pego a escama e a embalo perto de mim
novamente. Não há palavras para as coisas que vi esta noite.
Pelas coisas que experimentei.
Em minhas mãos, tenho a chance de trazer meu pai de volta.
Tenho a chance de trazer de volta todos os que morreram
naquela noite em Arida no verão passado. Tudo o que tenho
que fazer é pegá-la.
Mesmo que isso signifique que Visidia deve esperar mais
tempo para ser totalmente restaurada, e eu sou forçada a
encontrar outra maneira de quebrar minha maldição.
Mesmo que isso signifique perder minha equipe inteira.
Meu corpo treme com o peso do poder que embalo em meus
braços e a antecipação do que está por vir.
— Defina nosso curso para Arida.
— Só isso? — A voz doce de Vataea é muito amarga na língua.
Eu nivelo meu olhar, embora seja impossível igualar a
ferocidade em seus olhos. — Bastian está certo. Você escapou
no meio da noite após várias tentativas de assassinato, não
contou a nenhum de nós e quase foi comida por uma cobra
gigante. Somos seus amigos ou seus súditos? Porque quase
morri por você, Amora. E não consigo entender por que você se
colocou nessa posição sem dizer nada para as pessoas que se
preocupam com você.
Eu agarro a escama da cobra mais perto, inclinando-me em
seu poder. Ele me chama ainda mais forte do que o canto de
uma sereia, e não quero nada mais do que obedecê-lo. Só não
sei que caminho escolher, o que poderia ter sido ou o que
poderia ser.
— Vocês são… — digo a Vataea gentilmente, incapaz de falar
mais alto. — Sinto muito, mas onde quer que eu os arraste,
sempre há perigo esperando. Como amiga, gostaria de protegê-
la e espero que confie em mim para fazer isso. Mas, como sua
rainha, estou pedindo que obedeça.
Vataea vira a cabeça, os punhos cerrados, enquanto Bastian
firma a mão no meu ombro. Há tensão em sua mandíbula.
— Basta nos dizer se você está bem.
Tento me concentrar na magia pulsando contra meus dedos.
Sobre as possibilidades do futuro que eu poderia dar a Visidia
se voltasse no tempo. Se eu tivesse mais ajuda. Se eu tivesse
meu pai de volta ao meu lado, as pessoas teriam mais confiança
em seu governante. A serpente de fogo pretendia me dar um
momento de paz com o papai, mas tudo o que fez foi me fazer
ansiar por uma verdadeira reunião ainda mais.
Se eu o trouxesse de volta, poderia dormir novamente, não
mais atormentada pelos rostos dos mortos cuidando de mim.
Mas o custo dessa realidade está ficando mais profundo a
cada dia que passa. E para responder à pergunta de Bastian,
não, não sei se estou bem. Talvez eu não esteja. Mas não posso
perder esse tempo ruminando quando, de uma forma ou de
outra, tudo está prestes a mudar.
Eu penso na intensa emoção de estar de mãos dadas com
Bastian enquanto executávamos a magia da alma. Mesmo
agora, sinto como se nossas entranhas tivessem sido abertas e
expostas uma à outra, em carne viva e sangrando. E ainda não
consigo desviar o olhar.
Eu não quero desviar o olhar.
Porque ao me abrir para ele, eu sei a verdade agora. Bastian
Altair me faz me sentir em casa, e eu nunca quero ir embora.
Pego sua mão, apertando-a brevemente, apenas uma vez.
Antes que eu possa deixar os nervos tomarem conta de mim,
digo:
— Coloque este navio no curso e depois me encontre em sua
cabine. Há algo que preciso falar com você.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Entrar nos aposentos do capitão é como entrar em uma


memória. Eu atravesso o chão, com o coração pesado enquanto
olho a luxuosa cama de dossel e o brilho quente da lamparina a
óleo, que me lembra tanto o meu primeiro beijo de verdade
quanto o de Bastian, e dos dias que passei aqui depois que perdi
minha magia.
Meus dedos percorrem a mesa de Bastian, admirando os
atlas e mapas espalhados ordenadamente por ela, organizados
de uma forma que sei que é dele. Seu guarda-roupa é codificado
por cores com a moda de cada uma das ilhas, com sapatos
cuidadosamente alinhados abaixo deles de acordo com a altura
e o estilo. Vendo-os assim, nem um centímetro fora do lugar, eu
sorrio. Por mais abrasivo que Bastian possa ser, é encantador
como ele é meticuloso com seus pertences.
Cada minuto que passa parece uma hora enquanto faço meu
caminho para a cama dele, sentando-me de pernas cruzadas
sobre os lençóis azul-marinho. Guardei a escama de serpente
no meu quarto para não ficar mais tentada a tocá-la, então não
há nada aqui para me distrair dos nervos agitados dentro de
mim, me fazendo cutucar a pele ao redor das minhas unhas,
descascando até sangrar.
Quando a porta dos aposentos do capitão se abre, meus
nervos pulam na minha garganta, engrossando-a com tanta
força que temo nunca mais falar. Bastian fecha a porta atrás
dele, o cair de suas botas lento enquanto ele desce as escadas
de madeira que rangem. Sua garganta balança quando ele me
vê, e ele hesita.
— Eu sei que você está passando por muita coisa, e sinto
muito por isso. — Ele se senta na beira da cama, tomando
cuidado para me dar espaço. — Mas... você sabe que pode falar
com a gente, certo? Qualquer um de nós. Estamos todos aqui
para ajudá-la.
Bastian deve sentir meus nervos porque ele estende uma
mão cautelosa. Apertando meus lábios, eu a pego, entrelaçando
meus dedos nos dele. No momento em que nossas peles se
tocam, um peso é retirado do meu peito e ombros. Eu posso
respirar mais facilmente contra ele.
E embora eu tenha odiado esse fato, agora me inclino para
ele, querendo gravar a sensação de seu toque em minha
memória.
— Eu odiei a temporada passada, você sabe — eu digo
suavemente. — Eu odiava me obrigar a ficar longe de você.
Algo em seu comportamento se quebra. Sua respiração está
muito forte e seu aperto suaviza no meu.
— Amora…
Eu balanço minha cabeça antes que ele possa dizer mais
alguma coisa, e fico de joelhos. Olhos nunca se desviando dos
dele, eu fecho o espaço entre nós, esperando que ele enrijeça.
Que ele hesite. Para me dizer que, depois de tudo que o fiz
passar, não sou mais bem-vinda.
Mas Bastian não faz nenhuma dessas coisas. Em vez de me
afastar, suas mãos encontram meus quadris e me ajudam a me
puxar para seu colo. Enquanto minhas pernas chutam sobre
seus quadris para montá-lo, seus olhos castanhos brilham com
fome e seu aperto em meus quadris aumenta.
— Você vai ter que me dizer o que estamos fazendo aqui. —
Suas palavras são roucas e baixas. — Eu não quero interpretá-
la mal.
Eu pressiono meus quadris firmemente contra os dele,
acariciando meus dedos por seu cabelo enquanto sua cabeça
rola para trás com um gemido baixo.
— Não há nada para interpretar mal. Estou apavorada com
as coisas que sinto por você, Bastian Altair. Mas dizer que não
senti nenhuma dessas coisas antes da minha alma ser
amaldiçoada por você é uma mentira. Eu queria você então, e
pelos deuses, eu quero você agora. Mas só se você ainda me
quiser também. Eu não vou te culpar se você não fizer isso.
Mas, por favor, faça.
Ele me olha, como se estivesse absorvendo o que está sendo
apresentado e tentando determinar se é real. Eventualmente,
seus olhos confiantes encontram os meus.
— Eu quero você, Amora. Tudo de você. Agora e para
sempre, é tudo o que sempre quis.
Há uma doçura nessas palavras que eu não esperava, e é
chocante. Não é assim que nenhuma das minhas noites
anteriores com homens foram. Todos eles tinham sido uma
série de membros emaranhados e corpos desejosos,
pressionados juntos para saciar uma fome temporária.
Nenhum deles jamais satisfez essa fome desesperada que tenho
agora. Esse desejo profundo.
Ninguém mais olhou para mim como ele.
— Tudo de você — Bastian repete com firmeza, sem ousar
desviar o olhar. — Isso é o que eu quero, se você me permitir.
— Eu irei.
Eu me inclino para trás em seu colo e solto minha capa,
deixando-a cair no chão. Minha camisa é a próxima; eu não
desvio o olhar enquanto tiro a roupa pela cabeça e jogo a roupa
no chão, pela primeira vez sem me importar se vai ficar
estragada ou suja.
No momento em que minhas roupas caem no chão, Bastian
me pega pelos quadris e me joga na cama. Ele é rápido em
remover sua camisa antes que ele seja o único que está
montando em mim, me beijando da orelha para baixo, levando
seu tempo para alcançar meus lábios. Meu pescoço. Tomando
a pele da minha clavícula suavemente entre os dentes. Eu
envolvo meus braços em torno dele enquanto ele desce mais,
arrastando meus dedos sobre os músculos pronunciados de
suas costas, ou pegando punhados de seu cabelo castanho
quando ele fica muito baixo para eu alcançar. Seus lábios vão
do meu umbigo aos meus quadris, onde ele hesita. Há uma
pergunta nos olhos que brilham para mim, e todo o meu corpo
aquece com o desejo que irrompe daquele único olhar. Eu
entendo exatamente o que ele está oferecendo, e eu quero isso.
Quando eu aceno, seus dedos se atrapalham com os botões
da minha calça, e ele a tira, chutando-a para o chão antes que
seus lábios estejam contra a minha pele novamente. Desta vez,
porém, eles viajam ainda mais baixo, e quando ele encontra a
área mais sensível de mim, eu desfaço. Eu cavo os dedos em seu
cabelo. Nos lençóis ao nosso redor. Em qualquer coisa que eu
possa colocar minhas mãos até meu corpo estremecer em
torno dele. Estou sem fôlego, revelando o que ele me deu. Mas
ainda não terminei com ele.
Eu puxo Bastian para que seu corpo fique sobre o meu e o
beijo com firmeza.
— Mais — eu digo contra seus lábios, acendendo em sua
risada baixa.
— Tem certeza?
— Sim. — Nunca tive tanta certeza de nada em minha vida.
— E eu tenho sementes de cenoura selvagem para comer, então
estaremos seguros. — Começo pelas calças de Bastian, mas
quando ele se levanta para terminar de se despir, meu único
trabalho é me recostar na cama e admirá-lo.
O calor da sua pele morena brilha como o sol na luz
bruxuleante de uma vela. Seu peito e ombros são mais largos
do que eu me lembrava. Quando ele demora muito, eu fico de
joelhos para arrastar Bastian para a cama.
Seus olhos se arregalam quando eu não o puxo para cima de
mim novamente, mas em vez disso me arrasto para seu colo.
— Por que você parece tão surpreso? — Eu rio, passando
meus dedos por seu cabelo e salpicando beijos ao longo do seu
pescoço para acalmar seus nervos. — Você já esteve com
alguém antes?
— Eu já. — Suas mãos se acomodam em seu lugar familiar
em meus quadris, e eu estremeço quando seus polegares
traçam padrões sobre minha pele nua. — Só não... assim.
Ele acena para o meu corpo, e eu entendo de imediato que
Bastian está acostumado a ser o único no controle.
Talvez seja egoísmo, mas esta noite eu o quero de todas as
maneiras que eu o quero. Porque não importa o que venha
depois disso, não importa que escolha eu faça, sou eu quem vai
perder algo quando chegar a hora de usar essa escama. Então,
por esta noite, serei egoísta.
Eu pego seu rosto em minhas mãos e planto o beijo mais
suave em sua boca.
— Tudo bem. Se houver algo que um de nós não goste,
vamos parar.
Ele passa os dedos pelos meus cachos, colocando uma
mecha atrás da minha orelha enquanto seu polegar acaricia
minha bochecha. Ele sorri enquanto o faz, suave e contente, e
me beija de volta.
É um beijo lento, suave e terno, derretendo meu corpo
contra o dele. Mas isso se torna algo feroz e desesperado, até
que parece que não há nada no mundo que pode me saciar,
exceto ele.
Quando nos conectamos, não há nada que eu queira mais do
que durar este momento entre nós. Maldição ou não, estar com
Bastian dessa forma é diferente de tudo que eu já experimentei.
É como se nossos corpos fossem feitos um para o outro. Onde
ele toca, minha pele se transforma em fogo. Quando eu o beijo,
seu corpo se inclina para o meu.
Não tenho como saber há quanto tempo estamos
emaranhados antes de relaxar nos lençóis, ambos sem fôlego e
cobertos de suor. No entanto, nenhum de nós faz qualquer
movimento para se afastar.
Bastian me segura perto do seu peito nu, enterrando o rosto
na curva do meu pescoço. Eu quero viver neste momento o
tempo suficiente para capturá-lo. Para lembrar a sensação de
suas respirações suaves e satisfeitas. A sensação de seu corpo
contra minha pele. Como ele passa os dedos pelos meus cachos,
envolvendo-os em torno dos dedos calejados.
Ele está mais vulnerável do que eu jamais o conheci, e não
posso deixar de me perguntar o que aconteceria a seguir entre
nós. Se a escama da serpente não estivesse nos esperando, para
onde eu e Bastian iríamos a partir daqui?
— Você tem algo planejado. — Ele fala as palavras contra
meu pescoço, enviando arrepios pela minha espinha e arrepios
ao longo dos meus braços. — Eu confio em você, Amora. Todos
nós confiamos. Mas também estamos preocupados com você.
Isso é... É sobre o que vimos nas memórias de Nelly? Sobre a
escolha que o pai dela fez?
Eu fico imóvel, e por um momento Bastian fica tenso, como
se ele estivesse preocupado que eu pudesse me afastar. Mas eu
não o faço, mesmo quando a culpa pesa em meu estômago
como chumbo.
— Kaven mudou a paisagem deste reino para sempre. — Eu
mantenho minha voz plana. — Nosso povo não confia mais em
mim para liderá-los, mesmo que eu seja uma das poucas que
conhece a verdade por trás da nossa história. Estou tentando
ajudar a consertar o dano que minha família fez. Mas se Visidia
soubesse a verdade sobre os Montaras... de jeito nenhum eles
ouviriam o que eu digo. Com o artefato, poderia ter a chance de
mudar as coisas. Eu tenho uma chance de consertar Visidia.
— Amora. — O instinto faz meu corpo relaxar com a forma
como meu nome soa vindo dos seus lábios. Fecho os olhos,
concentrando-me em como seus dedos brincam com meus
cachos enquanto ele fala. — Às vezes, coisas bonitas vêm das
nossas experiências mais dolorosas. Antes de seu reinado,
Zudoh quase foi aniquilada. Os Kers estavam se matando,
trocando o tempo de suas vidas com Blarthe, apenas pela
possibilidade de um dia terem suas casas de volta. A magia
estava sendo mantida longe do nosso povo.
— Sua família cometeu erros que mudaram a história deste
reino, você está certa — continua ele. — Mas se você não contar
a verdade a eles, o que a torna melhor do que o resto deles?
Nenhum Montara jamais deu a Visidia uma escolha até você
assumir o trono. Eu sei que é difícil, e eu sei... Eu sei que você
tem o poder de fazer algumas coisas que parecem muito
atraentes agora. Mas a Amora que eu conheço? Ela faria o que
fosse necessário para dar liberdade ao seu povo. Para dar a eles
o futuro que eles merecem. E essa é a Amora pela qual estou
apaixonado.
Um nó se enrola no centro do meu peito, tornando as
palavras ainda mais difíceis de decifrar.
— Eu sinto falta dele, Bastian. Eu sinto como, se ele estivesse
aqui, ele saberia o que fazer sobre tudo isso. Eu sinto que ele
poderia consertar tudo.
Bastian pressiona sua testa na minha nuca e beija minha
pele com um suspiro suave.
— Você não precisa da ajuda dele; você já sabe o que precisa
ser feito. O rei pode ter sido um pai amoroso, mas não foi um
grande governante. Ele não consertou nada. Ele teria feito o
que fosse melhor para ele e sua família sozinho. Você não é
assim; você não pode ser. Visidia pode estar mudando, mas só
está ficando mais forte. Pode ainda estar se encontrando, mas
um dia vai se estabilizar novamente, eu prometo a você.
O rei pode ter sido um pai amoroso, mas não foi um grande
governante. As palavras atingem algo dentro de mim, ferozes e
devastadoras. Meu corpo inteiro fica tenso, pensando na
escama da serpente mais uma vez. Tudo que eu preciso é de
alguém que possa usar a magia do tempo, e meu pai estará vivo.
Em dois dias, meu mundo inteiro poderia mudar e eu poderia
tê-lo de volta.
Toda a minha vida eu acreditei que fui feita para sentar no
trono de Visidia, mas estando agora, eu sei com certeza que
estou tão errada para o trono quanto Bastian acredita que meu
pai estava.
Suponho que a verdadeira questão então é qual de nós é
pior.
— Você acha que ele poderia ter sido um bom rei? — No
início, não tenho certeza se minhas palavras saem, elas são tão
silenciosas. — Se eu tivesse falado diretamente com ele sobre
Kaven, você acha que ele teria me ouvido? Que existe uma
realidade em que ele teria ficado do nosso lado?
A hesitação de Bastian é uma resposta suficiente, embora
não seja a única que ele dá.
— Acho que o amor de seu pai por você era tão grande que
ele nem sabia o que fazer com ele. Ele sabia que você o
idolatrava. Acho que a última coisa que ele gostaria era que
você passasse a desprezá-lo. Por causa disso, acho que ele teria
tentado manter suas verdades escondidas de você para
sempre. Então não, eu não acho que ele teria ficado do nosso
lado. E essa é a diferença entre vocês dois. Acho que tudo
aconteceu da única maneira que poderia acontecer. Mas
também acho que nada de bom pode sair dessa conversa. —
Com um toque suave nas minhas bochechas, ele se inclina para
dar um beijo na minha pele.
— Às vezes é difícil para um homem ser aberto e
compartilhar o que ele está sentindo — continua Bastian. — O
reino esperava que ele fosse severo e forte, então foi isso que
ele mostrou a eles que era. Mas ele quebrava essa fachada toda
vez que te via. Vocês dois se amavam de uma maneira que eu
gostaria de ter vivenciado com meu próprio pai. Eu mal
conhecia o rei Audric, mas vi quando vocês dois estavam juntos
na noite do seu aniversário.
— Ninguém pode te dizer como sofrer. — Ele enrola os
dedos nos meus. — Você precisa chorar da maneira que for
certa para você. Mas ele não gostaria de ver você pensando
assim. Ele acreditou em você; ele morreu para que você
pudesse viver e ajudar o reino de uma forma que ele não foi
capaz de fazer. A última coisa que ele gostaria é que você
desistisse do sacrifício que ele fez.
Nunca falei sobre o que aconteceu naquela noite. Minha mãe
queria saber os detalhes, mas não importava o quanto eu
tentasse, não poderia fazer isso. Cada vez que tentava pensar
neles, pensava no sangue. Eu pensaria na vida drenando de seu
corpo e olhos, e eu me perderia na dor daquela noite
novamente.
Mas esta noite é diferente. Desta vez, quando penso na
morte do meu pai, não é o sangue ou a espada que vejo. Foi o
momento em que ele me levou para o lugar profundo e secreto
da sua própria alma, e eu disse minhas últimas palavras a ele:
Não posso te perdoar por isso.
Por muito tempo tentei evitar pensar naquele momento, nas
palavras que há tanto tempo queria pegar de volta.
Meu último momento com papai foi gasto dizendo a ele o
quão errado ele estava e culpando-o pelos muitos erros que ele
fez. E esta noite, mesmo que não fosse realmente ele, eu ainda
não tinha conseguido dizer a ele que sentia muito.
Eu não percebo que estou chorando até que Bastian enrola
seus braços em volta de mim com força e nos embrulha nos
lençóis. Ele está dizendo algo entre sons suaves, mas não
consigo me concentrar o suficiente para entender as palavras.
Eu enterro meu rosto em seu peito, incapaz de parar todos os
sentimentos que me inundam de uma vez. Dor, luto e uma
dormência absoluta e interminável.
— Eu disse a ele que não poderia perdoá-lo. — Eu quase
engasgo com as palavras na pele de Bastian, e seus ombros
caem com a compreensão. — Essas foram minhas últimas
palavras. Não um adeus. Não o quanto eu o amo. Eu disse a ele
que nunca poderia perdoá-lo.
— Você não precisava dizer a ele o quanto o amava. —
Bastian me segura com força, não importa o quanto eu chore
em sua pele nua, bagunçando seu peito. — Ele sabia. Eu
prometo a você, se há uma coisa que o Rei Audric sabia, é que
você o amava.
E deuses, eu quero que ele esteja certo. Não quero nada mais
do que acreditar nisso como minha verdade. Mas não há como
eu realmente saber.
Papai está morto. E se eu decidir quebrar minha maldição,
nunca terei a chance de dizer a ele o quanto o amo.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Eu acordo antes do amanhecer, saindo do calor da cama de


Bastian e calmamente colocando meu casaco e botas. Evitando
o mais rangente dos degraus, saio furtivamente dos aposentos
do capitão e volto para minha própria cabine bem antes que
alguém desperte.
Para minha surpresa, não é uma Vataea adormecida que
espera por mim.
Tanto ela quanto Ferrick estão no cômodo, ele uma bagunça
desgrenhada e ela uma feroz. Ela fala em um silvo baixo e
zangado enquanto Ferrick tenta acalmá-la, as mãos levantadas
em defesa.
Minha mão escorrega da porta quando os olhos dourados de
Vataea cortam para mim, muito mais letais do que eu já vi.
Mesmo enquanto puxava homens para o mar, ela nunca parecia
tão assustadora quanto agora.
Ela salta do chão e me pressiona contra a parede sem avisar,
com o antebraço pressionado contra minha garganta.
— E pensar que já chamei você de amiga. — Suas palavras
são um rosnado pior do que o de Lusca e mais temível do que
até mesmo o do despertado dos deuses. Sua outra mão está ao
lado da minha cabeça, garras para fora e arranhando a madeira.
— Você tem me usado como todo mundo, não é? Você não é
melhor do que qualquer um deles!
— Deixe ela falar, Vataea! — Ferrick agarra seu ombro, mas
ela gira tão rápido que não entendo o que aconteceu até que
Ferrick cambaleia para trás, tropeçando e segurando um braço
sangrando contra o peito.
Só então a luz volta aos olhos de Vataea. Atingida pelo terror,
ela aperta a mão com força contra o peito e dá um passo para
trás.
— Todos me disseram para não confiar nos humanos. — O
mar açoita ao nosso redor, as marés crescendo com uma
ferocidade que combina com suas palavras. — Eu pensei que
você fosse diferente, mas tudo que vocês humanos fazem é
mentir. Vocês pegam o que querem e mentem.
Eu aperto minha garganta, engasgando com as palavras que
forço para fora delas.
— O que você está…
— Blarthe! — ela grita, as unhas cravando-se nas palmas das
mãos enquanto as fecha em punhos. — Você tem Blarthe e não
me contou!
Meus dedos estão dormentes na minha garganta. Ferrick
baixa os olhos vermelhos para o chão. A pedra com as
memórias de Nelly fica entre eles, e eu sei imediatamente que
ela percebeu tudo.
— Ela sabia que você estava escondendo algo, então foi
procurar pistas. — Completamente miserável ao cair contra a
parede, Ferrick nem se preocupa em curar seu próprio braço.
— Devíamos ter contado a verdade a ela antes.
— V — eu digo suavemente. — Eu sinto muito. Eu queria te
dizer, eu juro. Eu só... eu estava com medo.
— Meu nome é Vataea. — Cada sílaba é afiada como gelo,
pronta para empalar. Ela chuta a pedra amaldiçoada com a
bota, e eu recuo quando ela arranha a madeira. — Eu não sou
frágil. Você me perguntou por que fiquei, porque arrisco minha
vida por você, e eu disse a verdade. Você teve muitas chances
de ser honesta comigo, mas você é uma vaca. — Ela chuta a
pedra novamente, sua raiva crescendo.
É como se ela mal conseguisse se conter, respirando fundo e
passando as unhas ensanguentadas pelos cabelos.
— Eu tenho que quebrar essa maldição. — Minha voz treme
mais do que eu gostaria. — Eu precisava de Blarthe vivo até
encontrar o que procurava.
— E você vai quebrar sua maldição? — Nunca ouvi uma voz
tão fria como a dela. — Ferrick e eu vimos o que aquele homem
nas memórias fez. Ele alterou o tempo para ressuscitar os
mortos, Amora. Diga-me que você não pretende fazer o mesmo.
Diga-me que você não está planejando desperdiçar cada
momento de nossas vidas nas últimas duas temporadas. Não
vim até aqui para voltar para onde estava, nem este reino.
Minha hesitação dura um segundo a mais. Sua carranca
afunda profundamente em seu rosto, como se competisse para
se tornar um elemento permanente.
— Eu não… Eu ainda não tenho certeza. — Minhas palavras
não estão saindo como eu quero.
— Você é uma decepção, Vossa Majestade — Vataea cospe
com puro veneno. — Eu teria ajudado você de qualquer
maneira. Eu teria ajudado mais do que você jamais saberá, se
você tivesse sido honesta.
Eu a sigo quando ela se vira para subir as escadas de dois em
dois degraus, subindo até o convés e não perdendo tempo para
tirar sua capa, depois suas calças, jogando-as no chão enquanto
ela agarra o cordame e se puxa para o corrimão.
— Meu povo estava certo em nunca se preocupar com vocês,
humanos. — Ela me lança um olhar por cima do ombro. — Eu
não serei assunto de ninguém. Espero que você se encontre
novamente, mas agora você está perdida e eu fui usada o
suficiente por uma vida.
Naquele momento, Vataea é mais humana do que eu já a vi.
Há tristeza na forma como suas sobrancelhas se unem antes de
ela se virar lentamente para o mar. E então ela pula.
No momento em que seu corpo atinge a água, meus joelhos
ameaçam desistir debaixo de mim. Eu me curvo, a respiração
presa na minha garganta, me sufocando.
À distância, vejo uma barbatana de ouro rosa erguer-se do
mar e bater nela com um último adeus antes de desaparecer.
Simplesmente assim, Vataea se foi.
Tento não olhar para Ferrick, mas meu corpo me trai. Seus
ombros caem, seu corpo murcha em si mesmo, e eu me forço a
me virar quando a dor o esmaga.
— Eu sinto muito. — Suas palavras são apenas um sussurro
para o vento. — Ela encontrou a pedra, e eu tive que contar a
ela. Eu não conseguia mais mentir para ela.
— Por que você estava na minha cabine para começar? —
Eu rasgo meus olhos em direção a ele, e embora suas bochechas
fiquem vermelhas e nervosas, ele não responde. — Você
deveria ter me deixado ser a única a dizer a ela. — Não consigo
parar a maneira como suas palavras nadam na minha cabeça.
Eu não poderia mentir para ela. Eu não poderia mentir...
Eu ouço o julgamento em seu tom. A decepção. O aviso do
despertado dos deuses, me dizendo que todos devem morrer.
Os céus cinzentos formam um túnel ao meu redor, suas
sombras alcançando e consumindo. Eu caio cada vez mais
fundo naquele túnel, onde meu pai espera por mim enquanto
eu fecho meus olhos, não em seu corcel com seu sorriso
brilhando, mas com seu rosto tentando emergir de trás de uma
faixa de sombras. Sua mão está estendida, esperando por mim
novamente.
Seja corajosa, ele me disse. Mas o que isso significa? Não
importa qual escolha eu faça, eu estaria perdendo alguém que
amo. Não importa o que eu faça, vou perder Visidia usando o
poder dos despertados dos deuses.
— Não vamos deixar você desaparecer atrás de nós de novo.
— Eu mal ouço a voz de Bastian através da névoa do meu
cérebro e meus pensamentos confusos. Só quando ele
pressiona a mão no meu ombro e eu o sinto ali, a presença
aquecendo meu corpo, que a névoa se dissipa antes e sou capaz
de me concentrar em suas palavras. — Volte para nós, Amora.
Um deles coloca um casaco sobre meus ombros, me levando
para o convés, onde nos encostamos no mastro. Estar aqui com
nada além do mar se estendendo infinitamente diante de mim
e o ar salgado se firmando em minha língua. Isso me
fundamenta o suficiente para que meus dedos parem de
procurar a mochila que não vão encontrar, e eu me inclino para
trás. Eu inclino minha cabeça para o céu, e por um tempo, nós
três ficamos sentados assim. Até Ferrick roçar minha bota com
a dele, o que chama minha atenção.
— Admito que prefiro a terra — diz ele, surpreendendo-me
com a suavidade do seu tom. — Mas há algo em estar no mar
que não se compara. Parece que estamos sozinhos no mundo,
como se fosse tudo nosso. O mar, as estrelas, tudo isso. Parece
que é nosso para agarrar. Sempre entendi por que você ama
tanto esta vida.
— Você também ama isso — murmura Bastian, mantendo
os olhos voltados para o céu. — Não finja.
— Eu me acostumei. Mas não é o mesmo para mim. Vocês
dois amam a aventura disso. Poder ir aonde quiser e ver o que
quiser. Eu prefiro a terra. A estabilidade, sempre sabendo onde
está tudo e a rotina de tudo isso. Mas o que amei é o tempo que
passei com todos vocês. Eu não tinha uma tripulação como essa
em Arida; eu mal tinha amigos além de Casem. Passar as
últimas duas temporadas com todos vocês… Bem, me ensinou
muito sobre mim. Sinto-me uma pessoa diferente de quem era
antes e não consigo imaginar nunca ter sido capaz de ter isso.
São palavras que me rasgam, derretendo meu coração e
rasgando-o de culpa. Em nosso tempo em Keel Haul, Ferrick
realmente cresceu em si mesmo.
— Sinto muito pelo que pedi a você — eu sussurro. —
Lamento que ela se foi.
— Eu também sinto. — Ele inclina a cabeça de volta para o
céu, esvaziando os pulmões. — Mas tenho a sensação de que
não é para sempre. Vataea processa emoções de maneira
diferente de nós, eu acho. Ela tem todo o direito de estar brava,
mas espero que ela nos dê outra chance.
Cuidadosamente, eu me aproximo de Ferrick e descanso
minha cabeça em seu ombro. Ele se inclina também, de modo
que sua bochecha se encosta no topo da minha cabeça.
— Você sabe que sempre vou te amar. — Ele beija o topo do
meu cabelo e meu coração se suaviza. — Eu sempre estarei
aqui para você porque você é minha melhor amiga. Mas essa
decisão que você está prestes a tomar afeta muito mais do que
apenas você. Fale conosco.
— O reino está desmoronando. — Minha voz vacila. — Está
mudando rápido demais para que todos acompanhem, e não há
nada que eu possa fazer para evitar. As pessoas me querem
morta. Como vou liderar um reino que tenta me envenenar?
Que quer me ver morta? Se eu tivesse meu pai aqui... ele
poderia ajudar. O reino se sentiria mais seguro.
— Só porque as coisas estão difíceis agora, não significa que
você esteja fazendo algo errado. Você está tentando compensar
séculos de maus-tratos. Tudo bem se parecer difícil; deve
parecer difícil. Mas você pode fazer isso e nós podemos ajudá-
la. — Ferrick não mostra nada da raiva que espero quando me
afasto para olhar para ele, nem há simpatia em sua expressão.
Em vez disso, há pena naqueles olhos verdes. Ele coloca uma
mão gentil no meu ombro, desejando que eu não desvie o olhar.
Eu afasto isso de mim.
— Não me trate como se eu fosse uma criança — eu estalo,
embora no momento em que as palavras saem, eu gostaria de
poder mordê-las de volta. — Estou bem.
— Se você está bem, me diga o que estava pensando em fazer
com aquela escama — ele desafia. — Diga-me que você não
estava pensando em torcer o tempo há tanto tempo que
teríamos que fazer tudo de novo.
Eu olho para longe, sem dizer nada. Ferrick me conhece
muito bem.
— Você me fez seu conselheiro. — Sua voz é comandante.
Poderosa. — E um pouco de conselho é exatamente o que você
precisa. Então aguente e ouça, porque estamos presos em um
navio no meio do mar e não há nenhum outro lugar para você
ir. — Há uma expressão quase selvagem em seus olhos que me
diz que ele está determinado a dizer o que quer, e enquanto o
vento me empurra, puxando meu cabelo para trás e forçando
meu corpo a ficar sentado, é como se os próprios deuses
exigissem que eu ouvisse. — A última coisa que você está é bem.
Pense nas ramificações se você fizer isso. Toda a sua vida você
desejou governar este reino, Amora. Então governe. Se você
desistir agora, você não será melhor do que seus ancestrais.
— Eu tenho pensado nas ramificações! Já pensei em tudo.
— Você realmente pensou? Então me diga o que pode
resultar dessa decisão. Como você vai salvar Visidia,
colocando-a de volta no estado em que estava?
Eu sei que essa é uma conversa de que preciso. São
pensamentos que estiveram girando em minha cabeça por
tanto tempo, e eu sei que preciso tirá-los. E, no entanto, não
posso evitar minha atitude defensiva. Ser confrontada assim
faz minha pele formigar e minha voz ficar amarga. Por mais que
eu ache que quero essa conversa, a realidade é irritante.
— Se pudermos impedir Kaven antes que ele ataque Arida
— eu ofereço — estaremos salvando vidas.
— E você também os estará destruindo. — Ele não perde o
ritmo. — Não há dúvidas de que Visidia está passando por um
período de dificuldades, mas antes que algo possa curar, ela
cicatriza. Fica feio e doloroso, e você só quer pular para a parte
fácil, onde está tudo bem. Mas se você voltar, você colocará
Vataea de volta em um cativeiro. Kerost e Zudoh voltarão à luta
em que estavam antes. E se demorarmos muito para mantê-los
estáveis novamente? Quantas vidas podemos perder, então?
Você se lembra de cada soldado que estava ao lado de Kaven?
Porque se você não fizer isso, e as informações escaparem, ele
pode atacar em um momento diferente. Ou ele poderia reforçar
a barreira em torno de Zudoh e torná-la ainda mais difícil de
penetrar. É muito arriscado. Você estaria começando da estaca
zero, tentando convencer seu pai de que vale a pena nosso
tempo para ajudar.
— Eu também amava o Rei Audric. — A voz de Ferrick cai
quando ele diz isso. — Mas ele não era esse tipo de homem, e
precisamos parar de fingir que ele poderia ter sido. Não
podemos esperar que ele mude de ideia e, se não mudar, de que
outra forma você ajudará Visidia? Você sozinha colocará este
reino em mais risco do que está agora.
Tento resistir a eles, mas as palavras ressoam. Embora eu
amasse meu pai profundamente, ele sabia a verdade. Ele
poderia ter impedido todas as mentiras em Visidia, mas não o
fez. Na noite do meu aniversário, Bastian deu a ele a chance de
se levantar, mas meu pai ignorou. Eu o pressionei para obter
informações e ele mentiu na minha cara.
Ferrick está certo, se eu trouxesse meu pai de volta, não há
como dizer que eu poderia fazer as coisas correrem de maneira
diferente. Mesmo se eu não tivesse falhado em meu
desempenho, mesmo se eu tivesse reivindicado meu título de
herdeira naquela noite, meu pai mentiu para mim por muito
tempo. Era assim que ele sabia governar.
Visidia merece uma coisa melhor do que ele. Ela merece
coisa melhor do que qualquer um de nós.
É um destino cruel, mas é seu. E o que você fizer com isso
determinará o futuro de Visidia para sempre. Lembre-se disso.
— O reino pode estar desequilibrado, mas você está agindo
bem com nosso povo ao permitir que ele siga este curso — diz
ele. — Olhe para Kerost, como eles estão prosperando. A única
razão pela qual eles conseguiram é porque você enviou
Valukans para ajudá-los a reconstruir, para que eles possam
aprender a se proteger e a proteger suas casas. Eles estão em
melhor situação do que em anos porque você tornou a magia
disponível para todos.
— Pense em Zudoh — interrompe Bastian, cada palavra
pressionada com firmeza. — Meu povo finalmente faz parte do
reino novamente. Você os libertou de Kaven e enviou soldados
para ajudá-los a reconstruir. Valuka já estava em perigo; dar a
eles o uso de múltiplas magias vai fazer maravilhas por eles.
— E o que aconteceu em Curmana? — Eu exijo, porque eles
estão vendo apenas metade do cenário. Por tudo de bom que
fiz, há um milhão de erros piores que cometi. — As pessoas me
querem morta.
Embora eu queira que minhas palavras o influenciem,
Ferrick é rápido em balançar a cabeça.
— Era uma pessoa e Elias tinha fome de poder — diz ele.
— Ele reconheceu uma mudança no clima e quis tirar
proveito disso. Ele usou você como desculpa, não como uma
razão. Acho difícil acreditar que um homem que queria o poder
tanto quanto ele nunca teria tentado outra coisa se a
oportunidade de ir contra você nunca tivesse surgido. Você não
pode se culpar por isso. No mínimo, você ajudou o povo de
Curmana descobrindo o que estava acontecendo e trazendo à
luz suas lutas. As novas leis que você vai criar vão apenas
ajudar a protegê-los de perigos.
Por mais que ele me desafie, reconheço que é por isso que
pedi a ele para ser meu conselheiro; mesmo em momentos
como este, ele tem a capacidade de ser a pessoa mais racional
que conheço. Não importa o quão chato possa ser.
Eu aperto meus dentes na pele interna da minha bochecha,
mordendo enquanto uma onda de adrenalina passa por mim.
Não posso determinar o que exatamente está causando isso,
porque sinto tudo. Dor. Confusão. Frustração. Culpa.
Em algum lugar dentro de mim, eu sei que o que Ferrick está
dizendo é a verdade. Eu sei que deveria estar ouvindo. Mas, a
cada palavra que sai da sua boca, sinto que estou sendo puxada
para mais longe de papai.
Eu recuo quando a mão de Ferrick envolve a minha, quente
e firme.
— Eu também perdi um dos pais. — Suas palavras são
ternas, mas são outra faca torcendo em meu coração. — Todos
nós perdemos. Eu sei que dói. Perder minha mãe doeu mais do
que qualquer dor física que já senti. Eu gostaria de poder curar
esse sentimento por você, Amora. Eu gostaria de poder tirar
essa dor, porque eu faria isso por você em um piscar de olhos.
Mas ninguém pode lhe dar esse alívio, e sinto muito por isso.
Me desculpe. Mas Bastian e eu estivemos lá. E estamos aqui
para ajudá-la. Não vamos a lugar nenhum.
Isso é tudo que posso aguentar. Tudo que incha dentro de
mim borbulha para a superfície e não pode mais ser contido.
As lágrimas vêm quentes e rápidas enquanto meu peito
balança com a respiração que mal posso tomar. Eu afundo na
madeira, e Ferrick é rápido em me seguir, puxando-me em seus
braços. Eu não sei as palavras que ele diz, mas eu o sinto
sussurrar contra meu cabelo enquanto me abraça.
— Não estou pronta — sussurro em seu ombro, uma e outra
vez, como uma oração. — Não estou pronta para dizer adeus.
No início, não tenho ideia se Ferrick responde, porque tudo
que posso ouvir são meus próprios soluços. Tudo o que vejo é
o corpo do meu pai, sangrando e em chamas, desaparecendo na
minha frente. O fantasma dele estende a mão, e minha mão dói
para pegá-la de volta.
— Ele gostaria que você fizesse isso. — A voz de Ferrick
corta a névoa de fumaça nublando minha visão, e eu vacilo. A
mão que estendo na direção de papai se vira para liderar,
pesada demais para acompanhar. Lentamente, ele começa a
cair para o meu lado. — Ele gostaria que você vivesse a vida
que você merece.
Eu fico olhando para papai. Na mão que ele estende para
mim. Dou um passo em direção a ele e, desta vez, não recuo.
Bastian e a presença de Ferrick me acalmam, e a fumaça ao
redor dele começa a tomar a forma de seu corcel de fogo.
Os olhos do meu pai se erguem para os meus, claros, quentes
e maravilhosos, e meu peito queima quando minha mão cai de
volta ao meu lado. Seus lábios se curvam e ele sorri.
Eu te amo. Tento gritar as palavras para ele. Para contar a
ele tudo que eu não tive a chance de dizer antes. Mas tudo que
saiu é que não sei como fazer isso sem você.
Lentamente, os olhos nunca deixando os meus, ele abaixa a
mão. É como se todas as adagas que me perfuraram nas últimas
temporadas se revirassem ao mesmo tempo, me destruindo
quando percebo que ele não está me pedindo para salvá-lo. Ele
não está procurando por mim. Ele está tentando se despedir.
— Você pode não saber agora, mas vai aprender. — Não sei
de onde vem a voz, mas a ouço em alto e bom som.— Faça desta
vida tudo o que deveria ser.
A fumaça está de volta, enchendo meus pulmões. Ela envolve
o corpo do meu pai mais uma vez, e ele desaparece por
completo.
Se esse foi outro presente dos despertados dos deuses ou
inteiramente da minha própria imaginação, não posso ter
certeza. Mas o que eu sei é que papai realmente, finalmente, se
foi.
Quando o mar volta a aparecer e meus olhos se abrem,
descubro que meus soluços não vêm mais em suspiros. Minhas
bochechas ainda estão encharcadas com novas lágrimas, mas
posso respirar novamente.
O sorriso do meu pai permanece em minha mente, suas
palavras ecoando. Faça desta vida tudo o que deveria ser.
Finalmente, eu sei o que é. Eu sei o que devo fazer.
***
Sento-me na proa tarde naquela noite, as pernas balançando
sobre a serpentina figura de proa enquanto coloco pequenos
pedaços de pergaminho na água.
Eu sinto muito.
Por favor, volte.
Eu sou a pior humana do mundo e você pode me dizer o
quanto quiser se você voltar.
Eu deixo cair desculpa após desculpa na água, meu coração
tão escuro quanto as marés que as puxam para baixo. Vataea
provavelmente nunca verá isso. Ela provavelmente já se foi há
muito tempo. Mesmo assim, tenho que tentar algo.
E assim eu rabisco minhas anotações e jogo uma após a
outra, até que não haja nenhum pergaminho para ser
encontrado e eu tenha dado todas as desculpas que sobraram
em mim.
Exceto por um.
Erguendo minha cabeça para o céu, fecho meus olhos e
convoco todas as peças restantes de coragem que posso
encontrar.
Ferrick estava certo quando disse que, aqui em Keel Haul,
parece que estamos sozinhos no mundo. Como se todo o mar
fosse nosso. Eu me imagino por anos no leme, minhas mãos
gastas com calosidades e a pele aquecida pelo sol,
compartilhando os sinais reveladores de um marinheiro que
passei anos admirando no meu pai.
— Sinto muito pelo que tenho que fazer. — Eu falo as
palavras apenas para os céus. — Eu não sei se é o que você
gostaria, ou o que você teria feito. Mas espero que, quando você
olhar para mim, seja com orgulho. Eu sei que este é o nosso
caminho a seguir; é assim que vamos compensar o que fizemos
ao nosso reino.
Nenhum Suntosan é poderoso o suficiente para curar minha
dor. Está em cada centímetro do meu corpo, destruindo-o e
reconstruindo-o, apenas para começar a destruí-lo novamente.
Essa destruição pode nunca parar totalmente, mas um dia,
espero que diminua.
— Eu amo você. — Envio minhas palavras aos deuses para
que as entreguem a ele. — Mas esse é realmente o nosso adeus.
E conforme a brisa do mar aumenta ao meu redor, roçando
minha pele e enchendo meus pulmões com o ar salgado do mar,
eu sei que meu pai está ouvindo, e que esse é o seu adeus
também.

UM CASAMENTO? OU UM TRUQUE REAL?


Parece que a busca pelo futuro rei de Visidia foi cancelada
quase tão repentinamente quanto começou.
Foi relatado que em seu primeiro dia de visita a Valuka, Sua
Majestade Amora Montara sofreu do que as testemunhas só
podem descrever como um "colapso mental completo e
absoluto", onde ela se recusou a participar de qualquer uma das
atividades pré-combinadas da ilha após ser incapaz de encontrar
sua afinidade Valukan. Testemunhas dizem que Sua Majestade
desapareceu logo após sua explosão e que eles não a viram desde
então. Supostamente, ela e o navio em que ela viajava
desapareceram da ilha no meio da noite.
Apesar de estendermos a mão para falar de nossa
preocupação com a rainha, Lorde Bargas e a promissora
conselheira Azami Bargas se recusaram a fornecer quaisquer
comentários sobre o assunto. Embora a rainha devesse ter
permanecido em Valuka por mais vários dias, pouco se sabe
sobre o atual paradeiro de Sua Majestade.
Dados os relatos das testemunhas, não temos escolha a não
ser formar nossas próprias teorias, das quais temos algumas:
Será que a explosão de Sua Majestade tem algo a ver com a
trágica morte prematura do próprio Elias Freebourne de
Curmana, com quem Amora supostamente estava se
acostumando vários dias antes?
É possível que o futuro rei de Visidia já tenha sido encontrado?
Talvez nossa rainha tenha sido desprezada pela rejeição?
Ou estamos dando muito crédito a Sua Majestade? Talvez não
haja resposta óbvia para sua explosão, a não ser a indecisão e a
falta de experiência adolescente.
Seja qual for o motivo, parece que tudo o que podemos fazer
agora é esperar que Sua Majestade apareça em algum lugar e se
explique de uma vez por todas.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Dessa vez, ao nos aproximarmos de Arida, não é para o fogo de


canhão e a fumaça de um ataque. Não são os gritos do meu povo
enquanto eles lutam por suas vidas.
Dessa vez, é com nada além de uma mandíbula cerrada e
determinação. Dessa vez, é com esperança.
— Preparem-se.
O mar de inverno é poderoso e violento. Eu agarro o elmo
com força, envolvendo meus dedos firmemente em torno da
madeira e me recusando a ser intimidada pelas marés.
A areia vermelha como sangue nos espera nas margens de
Arida, marcando nosso destino. Eu me concentro nela
enquanto o mar nos arrasta e Bastian também. Ferrick e Shanty
se preparam, agarrando-se ao cordame para se manterem
estabilizados. Bastian é verdadeiramente levado nessa magia
do ar Valukan; ele gira o ar salgado através das pontas dos
dedos, usando-o para ondular e torcer as velas enquanto eu
pego o leme para direcionar Keel Haul para as docas.
Formamos uma boa equipe, ele e eu.
Shanty é a primeira a sair quando atracamos, sem se
preocupar com a rampa, e Ferrick está logo atrás dela. Ele
alegremente se agacha na areia, arrastando os dedos por ela e
parecendo que está meio pronto para rolar nela. Eu gostaria de
poder compartilhar seu entusiasmo, mas a preocupação toma
conta da minha garganta, sabendo o quanto há a fazer agora
que chegamos, e não sabendo como alguém reagirá às
mudanças que estou prestes a fazer.
A preocupação diminui quando uma mão calejada envolve a
minha, me inundando com calor.
Nossa chegada alertou os soldados reais, alguns dos quais
ficaram boquiabertos com nossa aparência e por não nos
preverem de volta à Árida tão cedo. Eles se aglomeram ao
nosso lado e ao redor do nosso navio para ajudar a descarregar
a carga, mas sou rápida para detê-los.
— Divulgue que há algo que gostaria de discutir com meu
pessoal daqui a uma semana — digo a eles. — Certifique-se de
que todas as ilhas sejam alertadas. Todos os que puderem são
incentivados a comparecer. E certifique-se de que, dessa vez,
Kerost esteja aqui.
O soldado líder, Isaac, hesita.
— Seria melhor se você me deixasse escoltá-la ao palácio,
Vossa Majestade. Precisamos avisar Visidia que você está bem.
Tem havido muita conversa na imprensa...
Ferrick viu o pergaminho pela fala mental e me informou do
seu conteúdo. Mas não posso mais me preocupar com as
aparências ou fofocas. Já me decidi e não vou dar a ninguém ou
a nada a oportunidade de me convencer do contrário.
Além disso, mantive Blarthe longe da justiça por tempo
suficiente.
— Você deve fazer o que eu digo, Isaac. — Minha voz está
inabalável. — Agora mesmo, eu preciso que você busque um
prisioneiro para mim. Seu nome é Blarthe e ele é perigoso.
Tome cuidado.
Não demorou muito para que os soldados o encontrassem.
Pés e mãos acorrentados, Blarthe parece mais abatido do que
nunca enquanto os soldados o arrastam pela costa. Ele aperta
os olhos para a luz desconhecida do sol, sombras profundas sob
seus olhos. A magia do tempo tem cobrado seu preço em seu
corpo; cada passo parece doloroso e deliberado, e ele acaricia
o joelho esquerdo. Sua pele parece esticada como couro,
crivada de manchas de sol.
Ao vê-lo, Bastian faz uma careta.
Blarthe não parece preocupado em me ver, nem está muito
ansioso. Olhos famintos examinam minhas mãos, então meu
casaco, procurando por qualquer sinal do artefato.
— Você achou? — São as primeiras palavras que saem da
sua boca, e o soldado franze a testa, puxando as correntes de
Blarthe.
— Curve-se diante de sua rainha — Isaac o avisa.
— Eu não preciso da reverência dele — digo a ele. Então,
para Blarthe, eu aceno. — Quantas vezes você planeja ir contra
os deuses, Rogan?
No início, estou apenas supondo, mas a forma como a fome
em seus olhos diminui e suas mãos se contraem ao lado do
corpo me diz que eu estava certa em arriscar.
— Eu conheci sua filha, mas ela não estava em Kerost como
você pensou que estaria. Ela está feliz e prosperando em algum
lugar longe de você, onde nunca mais terá que ver seu rosto
triste.
— Eu não me importo se você encontrou ela. O artefato.
Onde está o artefato? — Ele estende as mãos acorrentadas para
pegar a escama e, por um momento, sinto pena da forma como
essas mãos tremem. Mas deixei esse pensamento passar; este é
um homem a quem foram dados muito mais anos do que
qualquer vida merece. Que voltou no tempo não uma, mas duas
vezes.
De volta a Kerost, ele estava usando a magia do tempo para
se tornar o que era quando conheceu Corina. Todo esse tempo,
ele esteve tentando perseguir esse período da sua vida.
Não cometerei seus erros.
— Não é para você. — Eu cruzo meus braços atrás das
costas, mantendo meu queixo erguido.
Seu pescoço se retrai, um fogo em seus olhos que me lembra
da noite em que lutamos em Kerost. Meu primeiro instinto é
puxar minha magia em torno de mim para proteção, mas coloco
a mão no punho de Rukan, em vez disso.
— Cuidado, Amora — sussurra Shanty, sentindo a mesma
ameaça nele que eu.
— Eu sei — digo a ela. — Fique atrás.
— Vou contar a todos o seu segredo. — A voz de Blarthe é
quebradiça. — Veja o que eles pensam de você então, pequena
rainha. Veja como eles arrancam a coroa da sua cabeça.
Eu desembainho minha adaga de aço em um movimento
rápido e a pressiono profundamente contra a garganta de
Blarthe.
— Vá em frente. — E eu quero dizer isso. É por isso que
estou de volta a Arida; eu não me importo mais com o que meu
povo pensa de mim. É hora de eles saberem a verdade.
Mas o que não prevejo é que minha aproximação com
Blarthe seja exatamente o que ele deseja. Porque, como o resto
de Visidia, ele também está praticando uma nova magia. E é
uma que ele está escondendo.
Chamas azuis surpreendentes brilham em seu corpo,
queimando tão ferozmente que a magia Valukan quebra suas
correntes e envia os guardas cambaleando para trás. Não tenho
tempo para me afastar antes que as chamas alcancem o aço da
minha adaga e queimem a pele da palma da minha mão. Eu
recuo, largando minha lâmina por instinto, e meu estômago
afunda quando Blarthe mergulha para pegá-la.
Ele vira os soldados primeiro, mais rápido do que um raio
com sua magia do tempo, e enfia a adaga em suas barrigas antes
que eu possa piscar. Meu coração acelera quando Isaac cai. Os
movimentos de Blarthe não são nada parecidos com os de
nossa luta em Kerost. Não há tempo para rastreá-lo. Sem tempo
para se preparar. Não usando mais o tempo que roubava dos
outros para manter sua aparência jovem, ele exerce toda a
força da sua magia do tempo.
Blarthe está em cima de mim com a adaga na minha
garganta.
— Cadê? — Ele rasga minha jaqueta para vasculhar os
bolsos, tirando minhas botas para ver se eu a escondi lá.
Eu luto para respirar sob o peso dele, a mão procurando
cegamente por Rukan, mas não consigo alcançar Blarthe para
pegá-la. Novamente eu tento convocar minha magia, mas é
inútil. Quando Blarthe não encontra o que procura, o metal frio
da adaga pressiona minha pele, e percebo que é assim que é ser
verdadeiramente impotente. Sem mágica. Sem armas. Apenas
um homem com o dobro do meu tamanho, me segurando com
fúria nos olhos.
É tudo que posso fazer para agarrar seu braço e lutar contra
a lâmina, mas não é o suficiente.
Não é o suficiente.
— Ei! — Blarthe recua com o grito de Ferrick, e eu encho
meus pulmões com o ar de que eles estavam
desesperadamente precisando. — É isso que você está
procurando?
E os deuses abençoam esse idiota; Ferrick tem a escama que
eu pensei que ainda estava guardada com segurança a bordo
da minha cabine em Keel Haul. Ele pega a luz do sol, brilhando
como água, e de repente Blarthe não está mais em cima de mim.
Apenas minha tripulação seria tola o suficiente para lutar
contra um portador do tempo. Aqueles que praticam a magia do
tempo são alguns dos melhores soldados, meu pai me disse uma
vez. Eles terão sua espada no fundo do estômago do inimigo
antes que alguém possa piscar.
Vendo isso em ação, sei que papai estava certo.
Blarthe está na frente de Ferrick em um segundo, mas os
meninos o antecederam. Bastian envia uma onda de vento que
derruba Blarthe, dando a Ferrick tempo suficiente para
deslizar a escama para algum lugar que eu não vejo. Seus olhos
encontram os meus e eu aceno, dizendo a ele que estou bem.
Ele não tem tempo para se distrair.
Tropeçando em meus pés, eu finalmente agarro Rukan com
força. Cansei de jogar de forma honesta.
Quando Blarthe se recompõe, não é em Ferrick que ele
mergulha neste momento, mas Shanty. Ele está com a minha
adaga nas costas dela, os olhos brilhando perversos.
— Dê-me o artefato ou ela morrerá — ele range os dentes,
respirando pesadamente.
Mas Shanty é fácil de subestimar. Ela joga a cabeça para trás
de modo que bate com força contra o nariz dele, rachando-o.
Enquanto ele rosna de dor, ela escorrega de suas mãos e joga
uma nuvem de pó amarelo brilhante na frente dela. Com uma
longa baforada, ela sopra no rosto de Blarthe e se esquiva,
puxando duas longas facas do cinto.
Ela pode não gostar de bagunçar as mãos, mas pela destreza
de seus dedos nessas lâminas, fica claro que isso não significa
que ela não fará isso.
A pólvora retarda os movimentos de Blarthe, fazendo-o
balançar, mas não o impede.
— Essas bestas me disseram que eu veria Corina novamente
— ele cospe. — Dê-me a escama! Eu vou vê-la de novo!
Em outra época, eu poderia ter sentido pena dele.
Seus olhos passam de Ferrick para Shanty, e tão
rapidamente que quase não percebo, Blarthe está nela
novamente. Embora as lâminas de Shanty estejam prontas, ela
não é párea para a velocidade de um Ker. Blarthe a derruba,
mas Ferrick deve ter percebido seu plano. Ele joga Blarthe no
chão um segundo antes de a adaga atingir Shanty; em vez disso,
ele corta o flanco de Ferrick.
Meu coração acelera. Ferrick se contorce e chia, mas sua
magia de restauração já está trabalhando para fechar a ferida
de dentro para fora. Mas a magia de Ferrick só pode se
concentrar em um ferimento por vez, e Blarthe está levantando
sua adaga novamente.
Bastian e eu avançamos, mas nenhum de nós o alcançou
antes que o oceano rugisse atrás de nós. As marés envolvem
Shanty, empurrando-a através da costa antes de engolir Ferrick
e Blarthe inteiros. Bastian me agarra enquanto as ondas
quebram, nos jogando contra a areia. Eu bato meu ombro
primeiro, e algo em meu braço estala. Eu engasgo, engolindo
água do mar, mas as marés vão embora um momento depois, e
pisco com os olhos picados de sal para ver Blarthe de quatro,
ofegante na areia vermelho-sangue.
Atrás dele, as marés ondulam e aumentam em torno de
Vataea. O alívio inunda minhas veias com tanta força que o
latejar em meu braço desaparece.
— Você não pode tocá-lo. — A voz de Vataea é de mil
canções, fazendo minha cabeça girar e meus ouvidos
ameaçarem sangrar. — Levante-se, Blarthe. Você achou que me
viu pela última vez?
Seu peito se contrai de medo e ele se recusa.
— Eu disse LEVANTE. — Ela é o olho de sua própria
tempestade. Atrás dela, até o céu escurece enquanto os deuses
protegem seus olhos com medo dela. A água estala sob Blarthe,
pegando-o pela garganta e jogando-o de pé.
Para seu crédito, ele não implora quando Vataea sai do mar,
soltando sua barbatana ao cruzar a areia. As marés esperam
atrás dela, fervilhando e mudando, tão famintas quanto ela.
— Eu tenho pensado sobre o que eu faria com você por anos.
— Ela não vacila quando ele ataca com a adaga. O mar é seu
escudo, engolindo a lâmina antes que ela pudesse atingi-la e
cuspindo-a em minhas botas. Eu a coloco em minhas mãos
molhadas. — Eu sonhava em enfiar uma adaga profundamente
em sua garganta e sangrar você até secar. De tomar meu tempo,
cortando você pedaço por pedaço ao longo dos anos, devagar o
suficiente para que você permanecesse vivo, implorando para
morrer. Em outros sonhos, eu o chamaria para o mar. Eu
arrancaria seu coração e devoraria seu corpo membro por
membro. Mas parece que seus deuses me favorecem hoje,
porque nenhum daqueles sonhos jamais poderia superar a
oportunidade que eles me deram.
O mar se divide atrás dela, e eu percebo agora que Vataea
não está sozinha. Outra sereia espera, a pele pálida como
granizo e lábios carnudos azuis como os de um cadáver. Uma
coroa de ondas loiras se espalha ao seu redor com as marés, e
ela nos encara com olhos penetrantes de lavanda, rasgados
como os de um gato.
No instante em que Blarthe a vê, seus ombros caem e um
soluço sacode seu peito.
— Corina. — O nome é uma oração em seus lábios, e meu
estômago embrulha ao som disso.
Corina. O amor que ele perdeu para as sereias. Ele nunca a
havia perdido de verdade.
Corina abre os lábios, e eu grito para Shanty e os meninos
cobrir seus ouvidos. Sua canção não é sedas e mel como a de
Vataea; é cascalho e aço, algo não muito certo sobre o tom. Mas
Blarthe está apaixonado da mesma forma. Ele tropeça na areia,
tentando parar a cada poucos passos para olhar para Corina.
Ele grita o nome dela, desejando que ela pare, mas ela não para.
— Você trocou o amor dela por você — Vataea diz com uma
risada tão cruel que eu dou um passo para trás, afundando na
areia. Todo esse tempo sou grata por tê-la ao meu lado. Agora,
porém, não tenho tanta certeza de que ela esteja. — Agora, você
passará uma eternidade dentro do mar como nosso animal de
estimação, e ela nunca se lembrará de você. Não importa o
quanto você tente, não importa o quanto você implore, ela não
se importará com você ou com seus pedidos. Você vai passar
seus dias no oceano, lamentando aquela que está bem na sua
frente. E quando você quiser morrer, vou garantir que você
viva. Você é meu troféu, agora. E é hora de te mostrar.
Corina envolve seus dedos ao redor da garganta de Blarthe
enquanto pressiona seus lábios nos dele. Mas, em vez de
acordá-lo de um transe, ela deixa a pele de Blarthe azul como
gelo e, em meio ao primeiro de seus gritos, Corina o arrasta
para a água.
Eles nunca ressurgem.
Vataea está diante de mim, e eu pulo de joelhos até ela.
— Sinto muito — eu digo. — E não porque você é
assustadora, mas porque eu quero dizer isso.
Com isso, o menor sorriso estala em seus lábios, mas eu não
paro.
— Vataea, eu nunca quis te machucar, eu juro. Eu ia contar a
verdade quando chegássemos em Arida, e Blarthe sempre seria
responsabilizado por seus crimes. Mas... deuses, sinto muito.
Ele te machucou mais do que ninguém, e eu sinto muito.
Ela coloca uma mão em meus ombros e tento não vacilar
com as garras longas, afiadas como facas.
— Eu entendo que você estava tentando fazer o que achava
ser o melhor. — A magia em sua voz ainda não acabou. A
doçura disso faz minha cabeça doer. — Mas você abriu feridas
dentro de mim, Amora, e não posso te dizer quando elas podem
começar a curar.
— Mas podemos tentar? — Eu coloquei minha mão sobre a
dela, determinada. — Podemos tentar curá-las?
Muito lentamente, ela balança a cabeça. Mas não há tempo
para afundar no alívio que vem. Na costa, Shanty grita.
— Nós precisamos de ajuda!
Vem tosse. Tosse úmida e áspera, e meu corpo fica frio ao
ver um Ferrick encharcado do mar ofegando na areia. Shanty
tem as mãos pressionadas com força contra o peito dele, mas o
sangue escorre por seus dedos sem nenhum sinal de
desaceleração.
O ataque de Blarthe foi mais profundo do que eu pensava.
Por mais que esteja tentando curar, Ferrick não consegue
diminuir o sangramento.
Corro para o lado dele, ajudando Shanty a colocar força no
ferimento. Isaac está apenas conseguindo se levantar. Ele está
trêmulo, levando a mão ao lado que sangra. Mas o sangue é
mínimo; felizmente não é um ferimento fatal.
— Vá buscar os curandeiros! — Eu grito para ele. — Agora!
O sangue de Ferrick é quente e fresco, fluindo muito
rapidamente de seu corpo. Eu empurro com mais força, mas
Ferrick coloca uma mão trêmula em cima da minha. Lágrimas
embaçam meus olhos quando ele sorri.
— Obrigado por me deixar fazer parte da sua aventura. —
Seus dedos enrolam em torno dos meus, apertando
fracamente. — Eu não poderia ter pedido uma equipe melhor.
Bastian está ao meu lado agora, e Vataea também. Ela encara
o sangue dele, cantando como se lutasse para controlá-lo. Ao
contrário do mar, não obedece. Mas ela não para, franzindo a
testa em profundas linhas de concentração enquanto ela tenta
e tenta novamente.
— Cale a boca, Ferrick. — Eu puxo minha mão da dele,
forçando a pressão sobre a ferida. — Você e eu temos muito
mais aventuras. Você apenas tem que aguentar um pouco mais;
os curandeiros estão chegando. — Seu sangue está quente
contra minhas mãos enquanto pressiono a ferida com tudo o
que tenho, pensando em papai e na noite em que o deixei
morrer bem ali ao meu lado. — Por favor, você tem que esperar.
Não posso perder mais ninguém. Eu não posso perder você.
Ele tenta não mostrar a dor, mas eu vejo isso na demora em
suas palavras e na maneira como ele range os dentes, lutando
contra ela. A escama brilha em sua mão esquerda, presa com
força em seu punho com os nós dos dedos brancos. Tudo o que
tenho que fazer é arrancar dele e posso consertar tudo. Vamos
refazer a luta. Vou manter minha adaga longe de Blarthe. Eu
vou…
—Amora. — Ele puxa minha mão novamente, puxando-a
suavemente de seu ferimento. — Pare de pensar e deixe-me
dizer adeus.
Eu não quero. Com tudo em mim, eu quero recusar. Mas não
sou a única a chorar. Bastian está segurando os ombros de
Ferrick com firmeza, o peito tremendo enquanto ele abaixa a
testa para a de Ferrick. Eu não ouço o que ele diz, apenas que
ele diz isso em meio aos soluços que está tentando protelar por
tempo suficiente para sufocar as palavras.
— Você pode ser o maior idiota que já conheci — Ferrick diz
a ele, embora seu tom seja leve. — Mas você se tornou meu
irmão, e estou feliz por cada minuto que passamos juntos.
Exceto aquele em que você cortou meu braço. — E então ele se
vira para Vataea, seu sorriso se desfazendo nos cantos da
boca.— Eu sinto muito por tudo. Eu nunca deveria ter mentido
para você.
— Naquele dia em Kerost, foi você quem veio até mim. —
Sua voz é o sussurro mais suave. — Foi você quem me salvou.
Eu nunca te agradeci por isso. — Ela se curva, pressionando
seus lábios firmemente nos de Ferrick. Seu braço envolve
suavemente em torno de sua cabeça, enfiando dedos fracos em
seu cabelo.
Quando eles se separam, ele pressiona sua bochecha contra
a de Vataea e diz algo, as palavras suaves demais para eu
entender.
Há lágrimas nos olhos de Vataea quando ele se recosta,
embora ela não chore; ela parece não entender mais o que está
acontecendo. Como se algo aqui não estivesse certo.
E não é. Os humanos são muito frágeis. Nada disso está certo.
Não consigo imaginar a força necessária, mas ele levanta a
cabeça o suficiente para dar um beijo na minha têmpora em
seguida, com força e firmeza.
— Escute-me. Não quero que você fique de luto por mim,
Amora. Eu quero que você viva para este reino e para você
mesma. Eu te amo e... sinto muito pelo que tenho que fazer.
— Eu também te amo — eu digo, porque se há uma coisa que
precisa ser dita, é isso. Não vou deixá-lo me deixar como meu
pai fez, com muita tristeza entre nós. Mas só depois de dizer
isso é que pego o resto de suas palavras, e sinto calafrios.
Eu olho mais uma vez para sua mão, agarrada com força ao
redor da escama.
— Ferrick…
— Essa foi a minha aventura final. — Cada uma de suas
palavras exige mais esforço do que a anterior, as mãos lutando
contra pequenos espasmos. — Mas me prometa que você terá
mais mil.
A escama se estilhaça antes que eu possa impedi-lo. Ferrick
bate a mão no meu peito e no de Bastian, e minhas veias
inundam com fogo enquanto a magia de restauração de Ferrick
me preenche, alcançando profundidades que não deveriam ser
possíveis. Alcançando minha alma e tornando-a inteira.
A magia surge do que antes era vazio dentro de mim, e sou
eu mesma novamente: Amora Montara. Totalmente,
exclusivamente, eu.
Abro os olhos para Ferrick, cujas lágrimas caem livremente
agora, não tentando mais ser forte. Eu o alcanço, sem fôlego,
mas minhas mãos atravessam o ar.
Um momento depois, eu me pergunto... Quem eu estava
procurando?
E de quem é o sangue que mancha minhas mãos?
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

A primavera chegou e a mudança veio com ela.


Um vento calmo me cumprimenta enquanto estou na minha
varanda, olhando além das fileiras sinuosas de eucaliptos arco-
íris e do mar que me espera. Ele brilha como mil cristais à luz
do sol, o azul mais magnífico.
— Essa é uma grande decisão. — Atrás de mim, Bastian
coloca uma mão firme no meu ombro. — Espero que você
esteja orgulhosa de si mesma.
Eu fecho minha mão sobre a dele, apreciando o calor que se
espalha por mim com seu toque. Porque dessa vez, ele não tem
influência sobre mim. Finalmente, somos livres para ser nosso
próprio povo.
Hoje, Bastian usa o mesmo casaco rubi impressionante que
usava quando nos conhecemos. Isso me lembra a versão mais
verdadeira dele, um pirata malandro com fome de aventura.
Isso me lembra o homem por quem me apaixonei pela primeira
vez, e aquele com quem espero ter muito mais aventuras. Se
pudermos passar por hoje.
Embora a visão dele naquele casaco encha meu coração com
calor, não pode me distrair da tristeza persistente pesando em
meus ossos. Uma tristeza por algo que eu só gostaria de poder
explicar.
Por mais feliz que eu esteja por ter as coisas voltando a ser
como eram com Bastian, não posso ignorar o buraco na minha
memória desde o dia em que minhas maldições foram
quebradas. Não posso ignorar o quarto do palácio em frente ao
meu que ficou vazio por uma semana, forrado de floretes e
ervas, com um armário cheio de roupas verde-esmeralda. Não
posso ignorar como meu olho encontra a porta toda vez que
passo por ela, esperando alguém entrar ou sair, embora eu não
consiga, por minha vida, lembrar quem deveria ser.
Ninguém consegue se lembrar quem deveria ser.
Algo aconteceu no dia em que Blarthe foi arrastado para o
mar. Alguém deve ter usado a escama da serpente para quebrar
a maldição de Montara, mas nenhum de nós pode se lembrar
de quem fez isso ou o que aconteceu.
Tudo que lembro é que havia sangue em minhas mãos e
nenhum membro da minha tripulação estava sangrando.
— Você não sente que está faltando alguma coisa? — Eu
aliso minhas mãos não sobre um vestido safira, mas calças
largas de linho. Hoje não desejo parecer a rainha de Visidia,
mas sim uma das pessoas. — Foi muito fácil.
Bastian envolve suas mãos fortes ao redor das minhas,
firmando-as.
— Você chama o ano passado de fácil? Enfrentamos a
lendária serpente de fogo. A Lusca. Derrubamos Kaven. Fomos
envenenados e abertos mais vezes do que posso contar. E ainda
assim, nós vencemos . — Seus dedos pressionam minhas
palmas, quentes e reconfortantes. — Sim, um de nós deve ter
usado a escama para quebrar a maldição, mas tudo o que
importa é que ainda estamos todos aqui. A tripulação está viva
e bem. Nossa maldição foi quebrada e nós temos tudo o que
queríamos. Este ano já foi difícil o suficiente; estou pegando o
que posso conseguir. — Inclinando-se para frente, ele salpica
beijos leves como uma pena na minha bochecha. — Você
deveria fazer o mesmo.
Eu sei que deveria. Eu quero. Se fui eu quem quebrou a
maldição, tudo o que perdi naquele dia se foi, levado pelos
próprios deuses. Eu nunca vou recuperar, não importa o
quanto eu tente me lembrar. Mas minha magia está de volta, e
a maldição de Montara não existe mais.
Consegui quase tudo que mais queria, mas qual foi o preço?
Minha família e tripulação estão bem. Meu amor por Visidia
continua completo.
Não poderia ter sido eu a usar a escama. Então quem foi?
— Amora? — A voz da minha mãe vem da porta. — Está
quase na hora. Casem estará aqui em breve.
Livrando-me de seu aperto, Bastian pressiona um último
beijo na minha testa antes de colocar a mão na parte inferior
das minhas costas, conduzindo-me para o quarto.
— Eu te encontro lá fora, certo? Você vai ser incrível.
Eu aceno, embora meu corpo pare quando percebo que não
é apenas mamãe esperando por mim, mas Vataea também.
Não fui a única que mudou naquele dia na praia. Seus olhos
estão mais escuros agora, suas palavras mais frias. Eu amo
Vataea e quero estar lá para ela do jeito que eu não estava
antes. Mas não posso desfazer o que fiz. Só posso tentar seguir
em frente e esperar que seja o suficiente.
No momento em que minha mãe me vê, ela agarra minhas
mãos. As mãos dela estão mais ossudas do que costumavam
ser, mas estão ficando mais fortes a cada dia.
— Você tem certeza disso? — As palavras saem dela tão
rápido que mal consigo distinguir cada uma. — Ainda não é
tarde para mudar de ideia.
Mas é. Depois de tudo que passei, depois de tudo que vi no
ano passado, sei claramente como o céu noturno o que eu devo
fazer. Essa noite, Visidia finalmente estará livre.
— Nós vamos ficar bem. — Eu aperto sua mão, apenas uma
vez, e deixo o peso da ausência de papai se estabelecer entre
nós. Não é mais uma âncora em meu coração, mas uma
lembrança de tudo que tivemos que sacrificar para trazer
Visidia à liberdade que ela merece.
Embora ela esteja enrolada com a tensão, mamãe balança a
cabeça e me puxa para ela, pressionando sua testa na minha.
— Você é a rainha que este reino sempre mereceu, Amora.
— Seus lábios quentes pressionam contra minha bochecha. —
Estou tão orgulhosa de você.
Há muita emoção na sala. Muita dor. Com um último beijo
em minha mão, mamãe pede licença e sai. Em sua ausência,
Vataea parece mais alta, com os ombros quadrados e o queixo
pontudo erguido e orgulhoso. Ela está radiante em um elegante
vestido de safira, mas há uma expressão em seus olhos que me
diz que essa pode ser a última vez que a vejo na cor de Arida.
— Você está indo embora — eu digo, não como uma
pergunta. Mas dói do mesmo jeito quando ela balança a cabeça.
— Você não vai me ver depois do seu discurso. Adeus são...
confusos. E eles são difíceis. Mas é hora de eu ir. — Cada uma
de suas palavras é uma rachadura em meu coração, uma após
a outra. Eu coloco minhas mãos em minha camisa, precisando
de algo para me segurar.
— Aonde você irá?
Lágrimas molham seus cílios escuros, mas não caem.
— Não tenho certeza — ela diz. — Quando eu estiver pronta,
vou te encontrar. Mas não posso ser uma ajudante na sua
aventura. Vou me lembrar de nosso tempo juntas e vou
apreciá-lo. Mas existe um mundo inteiro lá fora, e pretendo vê-
lo.
Não posso ser egoísta e não posso chorar. Porque Vataea
merece isso mais do que tudo. Ela merece o mundo, e eu
preciso deixá-la ficar com ele.
— Um dia, espero que você me conte tudo sobre isso. — Eu
estendo a mão, esperando, orando, que ela pegue minha mão.
Quando ela o faz, leva tudo em mim para enrolar meus dedos
em torno dos dela sem me deixar desmoronar completamente.
— Eu irei. — Ela é lenta para puxar a mão de volta, mas é um
alívio quando ela o faz. Porque se dependesse de mim, eu nunca
a deixaria partir.
— Vou sentir sua falta, Vataea. Mas espero que você tenha
as melhores aventuras de qualquer um de nós. — Cada palavra
é uma adaga me apunhalando, de novo e de novo, até que eu
não aguento mais. Sou a primeira a me afastar, porque essa dor
dói quase tanto quanto quando perdi meu pai.
Vataea pode não estar morta, mas ela está indo embora.
Outro pedaço do meu coração se foi assim.
Eu não volto nem mesmo com o som de seus passos. Nem
mesmo quando a porta se abriu. Nem mesmo quando sua voz
veio da porta, baixa, mas firme.
— Amora? — Eu quero me lembrar daquela voz doce para
sempre. Quero embuti-la bem fundo na minha memória e
nunca deixá-la desaparecer. — Me chame de V.
A porta se fecha e eu agarro a coluna da cama para acalmar
meu tremor. Isso é o que ela queria, e quando uma batida
hesitante soa na minha porta segundos depois, digo a mim
mesma para ser grata por ela ter a chance de viver seu sonho.
Mesmo que eu não faça parte disso.
Casem espera do lado de fora, as mãos cruzadas atrás das
costas. Seus olhos azuis me observam por baixo dos longos
cílios loiros. O emblema real que o marca como o principal
conselheiro de Arida brilha tanto quanto o sol em seu blazer
safira, quase combinando com o ouro de seu cabelo. Ele tenta
sorrir, mas sua boca torce com preocupação quando ele
percebe as lágrimas em meus olhos.
— Todo mundo está esperando por você. Você está pronta?
Penso em Vataea e nas milhares de aventuras que ela viverá.
Pegando seu braço, decido que é hora das minhas próprias
aventuras também.
A partir de hoje, seja qual for o resultado desta reunião, tudo
mudará. Mas quando olho para trás pela janela para ver Keel
Haul esperando por mim à distância, fluindo nas agradáveis
marés de primavera, sei que essa é a escolha certa.
Os deuses me criaram para liderar Visidia; eu cresci com
essa crença. Essas foram algumas das últimas palavras de meu
pai para mim. Agora, eu acredito nelas mais do que nunca.
De volta a Valuka, o despertado dos deuses me avisou que
eu logo faria uma escolha que levaria Visidia para o futuro ou
seria sua morte. Hoje, sei que nosso futuro é brilhante.
Continuamos subindo a encosta, para o jardim que fica no
pico de Arida. Centenas de flores estendem pétalas enormes
para nos saudar, lindas à luz do sol, mas esperando até que a
luz da lua realmente floresça e revele sua bioluminescência,
uma visão que as pessoas vêm de todo o reino para ver.
Uma vez, considerei esses jardins um lugar calmo. Um lugar
para buscar refúgio e beleza que não parece que deveria
pertencer a este mundo. Agora, porém, não posso cair em sua
beleza tão facilmente. Muito aconteceu aqui. É aqui que minha
jornada começou e é aqui que ela terminará.
Todas as cores do reino estão diante de mim na multidão,
incluindo a ametista dos Kers. A fofoca e os sussurros
reverberam pelo jardim com tanta força que até as plantas
tremem com a expectativa do encontro de hoje.
O conselheiro de cada ilha está alinhado atrás do trono, que
fica erguido em uma clareira cercada por cogumelos rosa
brotando e flores roxas que caíram da árvore acima, onde ficam
penduradas como uma coroa sobre os jardins. Mamãe também
está lá, e Casem toma seu lugar entre eles enquanto Bastian
observa da multidão que espera. Respiro fundo ao passar e
assumir meu lugar no trono. Mamãe encaixa a coroa do Alto
Animancer no topo da minha cabeça. Sua mão roça suavemente
em minha bochecha enquanto ela faz isso, e nossos olhos se
encontram.
Faça desta vida tudo o que deveria ser. Ouço a voz do meu pai
em seu sorriso antes que ela se curve e tome seu lugar à
esquerda do trono. A coroa de enguia gigante pesa demais, me
comendo viva enquanto procuro na multidão os rostos que
preciso ver.
Vataea e Bastian, lado a lado. Bastian observa com orgulho
queimando seus olhos, enquanto ele oferece o menor aceno de
cabeça.
Mira está próxima com Yuriel e tia Kalea, cuja presença faz
minha garganta apertar. Seu corpo ameaça murchar sob meu
olhar, mas o tempo para essa raiva acabou. Não posso culpá-la
pelo que aconteceu com papai; agora, mais do que nunca,
precisamos ficar juntas. É hora de aceitar que ela está sofrendo
tanto quanto eu.
Eu não vejo sua verdadeira face na multidão, mas quando
uma mulher loira com olhos vermelho-sangue pisca para mim,
eu sei que Shanty está assistindo também.
Tento não sorrir para ela e começo a procurar por mais um
rosto. Só que não percebo até um momento depois que não
tenho ideia de qual rosto estou procurando. Em minha mente,
vejo olhos verdes como esmeraldas e cabelos vermelhos como
fogo.
Mas não sei a quem pertencem. Quem quer que seja, eles não
estão aqui.
— Bem vindos. — Eu encontro minha voz após um momento
de hesitação, puxando meu foco de volta para a multidão que
espera. — Estou feliz por todos aqueles que puderam vir hoje,
especialmente nossos amigos de Kerost. Sei que nosso reino
não tem sido muito gentil com vocês, então saibam que sua
presença aqui é muito apreciada.
Enquanto os muitos rostos do meu povo me olham, a
primeira pontada de nervosismo se instala em meus ossos.
Agarrando os braços do trono, deixo sua curiosidade afundar
em minha pele e alimentar minhas palavras.
Eu não vou vacilar. Tudo o que fiz, cada luta e cada obstáculo
que enfrentei, foi para este momento.
— Por séculos vocês colocaram sua fé nos Montaras,
confiando em nós para proteger este reino com o melhor da
nossa capacidade. Disseram-lhes que uma fera terrível vivia
com o sangue de minha família e que foi colocada ali porque
meu grande ancestral, Cato Montara, o primeiro governante de
Visidia, arriscou a vida para salvar este reino. Disseram-lhes
para obedecê-lo praticando apenas uma magia, porque de
outra forma aquela besta levantaria sua cabeça e destruiria
Visidia.
Eu encontro o rosto de Bastian na multidão e respiro com
seu pequeno aceno de encorajamento antes de continuar.
— Mas hoje estou aqui para lhes falar a verdade, porque por
mais que ame a minha família, Visidia merece coisa melhor.
Cato Montara não era um herói; ele era um ladrão e mentiroso,
praticar múltiplas magias nunca foi perigoso, e nunca houve
qualquer besta envolvida com a magia da alma.
Eu prossigo através dos sussurros crescentes, dizendo a eles
a verdade por trás da criação de Visidia e as mentiras sobre as
quais nosso reino foi construído. Eu conto a eles como Cato
roubou múltiplas magias através de Sira, e como ela
amaldiçoou a linhagem Montara.
Conto tudo a eles, meu corpo mais leve a cada palavra que
passa.
— Por tudo o que minha família fez e por cada uma das
minhas mentiras, sinto muito. Não posso recuperar o mal que
foi feito, mas acredito que há uma maneira de superarmos isso.
Eu antecipei a raiva e os gritos. Mas, para minha surpresa, os
olhos de Visidia olham em silêncio ansioso, pendurados em
cada palavra minha. Com as mãos trêmulas, tiro a coroa da
cabeça e lanço uma última olhada nos ossos da enguia. Durante
séculos, esta coroa foi usada por nada mais do que mentirosos
enganadores: Cato, papai e eu.
Nunca mais ela se assentará na cabeça de um Montara.
— Que hoje seja o dia em que tomemos de volta Visidia e
restauremos este reino à terra que um dia foi. — Eu estou com
a coroa na mão. — A partir de hoje, todos podem praticar a
magia da alma. Toda a magia está disponível gratuitamente. A
partir de hoje, ninguém mais usará esta coroa ou se sentará
neste trono! Depois de hoje, não haverá rei ou rainha. Não
haverá monarquia!
— Somos um reino de sete ilhas. — Cada palavra é
fervorosa, vinda com uma paixão que não posso controlar. — E
então sete líderes são o que devemos ter. Coletivamente,
trabalharemos juntos para governar este reino. Não haverá
mais laços de sangue, não haverá mais realeza. A cada dois
anos, nosso povo votará no representante que deseja que
conduza sua ilha e, juntos, conduziremos Visidia ao futuro que
cada um de nós merece.
Eu me viro para os conselheiros atrás de mim, que estão com
os ombros para trás e o peito orgulhoso.
— Todos aqueles a favor, digam sim.
— Sim. — Casem é o primeiro a responder, seus olhos azuis
brilhando de orgulho.
Azami o ecoa imediatamente.
— Sim.
E assim vai, um conselheiro após o outro. Apenas Lorde
Garrison hesita, mas, sem fazer a si mesmo parecer mal diante
dos outros, ele balança a cabeça e responde "sim" em seu
barítono áspero.
E então a atenção está de volta para mim. Estou sem fôlego,
a coroa tremendo em minhas mãos; imediatamente, sei o que
devo fazer com ela.
Com mãos que dificilmente parecem minhas, jogo-a e ela se
espatifa no chão. Os ossos revestidos de marfim se quebram em
mil pedaços, e com isso tudo que eu já conheci. Todos os dias
da minha vida até agora.
Mas também é o início de uma nova vida. Não só para Visidia,
mas para mim.
Talvez mamãe seja a conselheira de Arida. Vou ajudá-los a
começar, mas não estarei no comando. Meu trabalho está feito
e meu futuro pertence ao mar.
Eu não percebo o quão difícil estou respirando até que eu
puxo meu olhar dos ossos quebrados para o meu povo. Eles não
estão mais de pé. Cada um deles está de joelhos, cabeças
inclinadas, quebrando qualquer resolução remanescente que
eu estava tentando desesperadamente conter.
Isso é mais do que eu mereço, mas não tenho forças para
impedi-los.
— Obrigada — digo a eles através das lágrimas que
finalmente deixei cair, vindo quentes e rápidas. Nossos
problemas ainda não acabaram. Uma nova Visidia está no
horizonte e com ele vem um novo futuro estranho que teremos
que descobrir. Juntos.
Não será fácil, mas valerá a pena. O futuro de Visidia começa
agora.
— Obrigada por me permitir ser sua rainha.
EPÍLOGO

Esse dia é feito para velejar.


O ar ameno da primavera incha as velas, e inclino a cabeça
para trás para saborear sua brisa.
Bastian está atrás de mim no leme, reunindo respirações do
ar salgado com um sorriso largo em seu rosto.
— Para onde? — Seus olhos brilham o suficiente para
desafiar as próprias estrelas. — Desafiar a Lusca para uma
revanche? Caminhada pelas trilhas de Suntosu? Beber até
ficarmos bobos nas tavernas de Ikae?
Eu escovo meus dedos contra a madeira granulada do
deque, tentando memorizar tudo sobre este momento, desde a
névoa roçando minha pele até as palavras que Bastian fala. Eu
me inclino para elas, me permitindo imaginar as aventuras que
nos aguardam.
Imaginar aprender a alterar minha aparência em Mornute.
Imaginar velejar para Valuka para que Azami possa me ensinar
como criar um dragão feito de água. Imaginar passar um tempo
com Ephra em Kerost, aprendendo a mudar a maneira como
meu corpo interage com o tempo enquanto reconstruímos a
ilha.
O mundo está aberto para mim agora, e também suas
magias. E pretendo aprender todas elas.
Um sussurro da memória do inverno paira no ar frio, e eu
me mexo para puxar meu casaco ao redor de mim e afundar em
meu conforto. Mas quando me ajusto, algo em meu casaco se
enruga e chama minha atenção. Pego no bolso uma pequena
folha de pergaminho dobrada que está guardada dentro.
Bastian ainda está listando todos os lugares que devemos
visitar: Shanty em Ikae, do outro lado do mar para finalmente
ver Suntosu, e até mesmo encontrar uma maneira de alcançar
as nuvens para que possamos perseguir o reino lendário que
dizem existir nelas. Mas suas palavras são abafadas quando
abro as pontas do pergaminho. Está dobrado com tanta força
que tenho o cuidado de não rasgá-lo, mesmo apesar das minhas
mãos trêmulas. Embora eu tente acalmá-las, elas não param,
mesmo quando eu seguro o pergaminho aberto diante de mim.
Amora,
Se você está lendo isso, saiba primeiro que sinto muito. Eu
soube desde o momento em que vi as memórias de Nelly que isso
era o que tinha que ser feito. Visidia precisa ser libertada e cabe
a você fazer isso.
Então, sinto muito pelo que tive que fazer. Mas se eu estiver
certo, fico feliz em saber que você não se lembrará de nada disso.
E se eu estiver errado, bem, acho que devo uma explicação a você.
Dizem que você deve oferecer o que mais ama para conseguir o
que mais deseja, e não consigo pensar em nada que ame mais do
que o tempo que passei com todos vocês. Minha tripulação.
Eu estaria mentindo se dissesse que não quero que você se
lembre de mim, mas é o melhor. Você não precisa lamentar mais
ninguém. Eu não quero que você faça isso. Só quero que você e
Visidia finalmente tenham a liberdade que merecem.
Portanto, pegue meu presente e fique feliz por ele. Mas, em
troca, você deve fazer duas coisas por mim:
Primeiro, faça o que é melhor para Visidia. Diga a eles a
verdade. Magia da alma livre para você e para todos.
Em segundo lugar, seja feliz. Mesmo que seja com aquele
maldito pirata. Vá em todas as aventuras que eu não fui capaz
de ir.
E pensando bem, estou adicionando uma terceira cláusula:
não estou quebrando suas maldições para que você possa se
matar, certo? Não estarei mais por perto para te curar, então
pense antes de mergulhar. E você pode pelo menos tentar confiar
mais nos outros? Eu sei que é difícil, mas você tem uma equipe
incrível. Eu sei.
Agora saia e vá ver o seu reino. Só posso rezar para que, um
dia, possamos nos ver novamente.
Até lá, boa navegação.
F
A dor me aperta com força, cortando meus pulmões e
destruindo meu peito. Minhas lágrimas caem livremente,
tantas que não consigo ver direito, embora não possa dizer por
que elas vêm.
Arranco minha memória, mas por mais que tente, não
reconheço quem poderia ter escrito esta carta. Mesmo assim,
há algo de familiar nisso. Algo que me faz apertá-la com força
contra o peito, com cuidado para não deixar minhas lágrimas
estragarem a tinta.
— Amora?
Eu me assusto com a voz de Bastian, endireitando minha
espinha. Talvez não seja nada mais do que o ano passado me
alcançando; por que mais eu estaria chorando por alguém que
não conheço? Deve ser uma brincadeira, uma estranha piada
de adeus de Casem.
Mas eu não jogo a carta. Com cuidado, dobro-a para trás e a
coloco no bolso para mantê-la segura, respirando fundo para
me equilibrar. Quando me viro para Bastian, não é com
lágrimas, mas com um sorriso.
De quem quer que seja esta carta, se o que elu disse for
verdade, então elu me deu um presente. E para elu, vou
aproveitar ao máximo.
— Que tal Zudoh? — Eu pergunto.
Bastian fica tenso, e é um lembrete nítido e estranho de que
não posso mais dizer o que ele está sentindo. Mas não preciso
sentir sua alma; eu posso ver agora. Resplandecente, bonita e
brilhante como as estrelas. Ele limpa a garganta, tentando tanto
não deixar as lágrimas virem que eu me levanto e pego uma das
suas mãos. Eu coloquei minha outra ao lado da dele, os dedos
envolvendo o elmo envernizado pelo mar.
— Para Zudoh — ele repete, as estrelas em seus olhos
queimando de orgulho.
— E para mais mil aventuras.
O mar nos atrai para seus braços à espera; apenas uma
garota e um pirata, prontos para aproveitar nosso mundo pela
tempestade.
AGRADECIMENTOS

Todos me avisaram que escrever o segundo livro seria


difícil, mas me sinto traída porque ninguém me disse que
escrever os agradecimentos seria ainda mais difícil! Por onde
devo começar?
Em primeiro lugar, sou grata a Deus por me ajudar a
sobreviver à maldição do segundo livro e por colocar pessoas
incríveis e uma equipe incrível em minha vida. Esse negócio
tem sido muito mais desafiador do que eu esperava, mas estar
cercada por pessoas tão incríveis o torna muito melhor.
Mamãe e papai, já agradeci por seu amor e apoio, portanto,
para este livro, vou agradecer por vender cópias em mãos a
estranhos onde quer que vão e me envergonhar. Por favor, não
leiam depois do capítulo trinta e dois, amo vocês.
Josh, por não pensar que tive delírios de grandeza totais
cinco anos atrás, quando disse que iria construir uma franquia
como Patrick Rothfuss. Obrigada por sempre ouvir e tentar
fazer sentido do mundo selvagem de publicar comigo, mesmo
quando muito raramente faz algum sentido.
Tomi, não consigo imaginar esse processo sem você.
Obrigada pelos telefonemas, as madrugadas, o KBBQ e a
comida tailandesa, os vídeos do YouTube, tudo isso. Não há
mais ninguém com quem eu prefira construir impérios. [Insira
aquela citação não oficial da Azula aqui.]
Shea, estou escrevendo isso enquanto estou em quarentena
e sinto tanto a sua falta! Sou eternamente grata por todos nós
simplesmente vivermos na mesma cidade e nos unirmos pela
comida tailandesa, e por ter você como amiga.
Haley Marshall, nunca deixarei de me arrepender da
quantidade de vezes que peço que você leia as coisas. Obrigada
por estar sempre presente, por seus olhos, ouvidos, cérebro,
coração e, o mais importante, pelas fotos do Peter.
Kristin Dwyer, minha irmã gêmea mais nova, por onde
começar? Obrigada por ser uma das pessoas mais magníficas
que já conheci, por ser apenas você e por exigir que eu deixasse
K-Drama entrar em minha vida. Eu mudei para sempre (e
também choro muito mais, obrigada). Eu me pergunto se devo
agradecer a Lee Min-ho também...
Rachel Griffin, esse mundo não é puro o suficiente para você.
Obrigada por ser um ser humano maravilhoso que tenho a
sorte de conhecer. Estou muito feliz por ser uma Bruxa de
Inverno.
Shelby RapMonster Mahurin, gostaria de ter metade da sua
frieza, com talvez um quarto das suas habilidades de rap.
Obrigada por não fugir quando eu te sequestrei.
#BunkBuddies4Life
Adrienne Young, por uma dose saudável de realidade e
perspectiva. Eu respeito e admiro muito você e sua incrível
ética de trabalho.
Para meu agente, Peter Knapp, você tem meu eterno
agradecimento por intervir e apoiar a mim e a este livro. Estou
extremamente grata por trabalhar com um advogado tão
incrível!
Na Imprint, todos os agradecimentos às minhas duas
editoras, Nicole Otto e Erin Stein. Nicole, não tenho certeza se
há alguém que entenda este mundo e esses personagens tanto
quanto você. Estou tão agradecida por ter trabalhado com você
na história de Amora, e agora você nunca vai escapar de mim.
Huzzah! :) E Erin, sua fúria geral e proezas editoriais são
inspiradoras. Obrigada por montar uma equipe tão incrível na
Imprint. Tenho a sorte de “deixar minha marca” com todos
vocês.
Natalie Sousa, deusa do design, imagine me curvando diante
de você agora. Entrando em todo esse processo, fiquei
apavorada com a minha capa e se eu adoraria ou seria capaz de
dar alguma contribuição. Trabalhar com você, entretanto, foi
tão bobo. Esses livros são deslumbrantes, obrigada, obrigada.
John Morgan, Jessica Chung e Camille Kellogg, pelo que
tenho certeza foi uma quantidade infinita de trabalho ajudando
a deixar este livro pronto para o olhar do público.
Morgan Rath, mentalmente me refiro a você como meu
publicitário sempre que recebo um e-mail seu. Mas esse título
não é bom o suficiente. Publicitário Grande Mestre, talvez?
Publicitário assistente todo-poderoso? Vou continuar
trabalhando nisso para descobrir algo adequado que seja tão
maravilhoso quanto você!
Allegra Green e Olivia Oleck, estou muito feliz por trabalhar
com vocês duas no marketing. Vocês são tão inteligentes, tão
maravilhosas, seus e-mails sempre me deixam feliz, e GAH. Eu
simplesmente tenho uma equipe incrível!
Linda Minton e Ilana Worrell, obrigada por seus olhos de
especialistas e sua ajuda para preparar este livro (e por
registrar todas as vezes que mudei aleatoriamente a cor dos
olhos de alguém no meio do livro).
E para tantos outros na Macmillan, a lista é longa, mas
poderosa: Melissa Croce, Julia Gardiner, Allison Verost, Molly
Brouillette, Kathryn Little, Mariel Dawson, Lucy Del Priore,
Jordan Winch, Kristin Dulaney, Raymond Ernesto Colón, Dawn
Ryan, Hayley Jozwiak e Lois Evans, obrigada por fazerem parte
desta equipe maravilhosa.
Roxane Edouard, Ema Barnes e Abigail Koons, obrigada por
seu incrível trabalho ajudando a colocar este livro nas mãos de
leitores em todos os lugares. É um sonho vê-lo chegar a leitores
em diferentes países.
Gemma O'Brien, Rainha da Arte, obrigada por dar vida a este
mundo bem ali na capa. É tudo que eu esperava e muito mais, e
estou tão apaixonada.
Equipe Marítima da Keel Haul, obrigada a todos por seu
apoio inicial e entusiasmo por esta série. Significou o mundo, e
estou emocionada por poder compartilhar esse mundo com
todos vocês. Agradecimentos especiais aos membros Madison
Nankervis, Nicole Faerber, Bianca Visagie, Brithanie Faith
Richards, Jennifer Doehler, Brie Chelton Wood, Holly Hughes,
Claire Eva Leyton, Bre Lynn R., Nikole Clow, Deidreanna Isak,
Chantel Pereira, Mara Hubl, Jessica Olson, Dana Nuenighoff e
Lily A.!
E a todos os leitores que vieram até aqui, a qualquer pessoa
que me apoiou e a estes livros ao longo do caminho, obrigada.
Suas cartas, mensagens, arte e entusiasmo significaram mais
para mim do que vocês jamais saberão. Obrigada a todos por
subirem a bordo do Keel Haul e por fazerem essa jornada
comigo. Conseguimos!

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