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CONTENTS

TITLE PAGE
Hierarquia dos anjos
Glossário Angélico

Prólogo
Chapter 1
Chapter 2
Chapter 3
Chapter 4
Chapter 5
Chapter 6
Chapter 7
Chapter 8
Chapter 9
Chapter 10
Chapter 11
Chapter 12
Chapter 13
Chapter 14
Chapter 15
Chapter 16
Chapter 17
Chapter 18
Chapter 19
Chapter 20
Chapter 21
Chapter 22
Chapter 23
Chapter 24
Chapter 25
Chapter 26
Chapter 27
Chapter 28
Chapter 29
Chapter 30
Chapter 31
Chapter 32
Chapter 33
Chapter 34
Chapter 35
Chapter 36
Chapter 37
Chapter 38
Chapter 39
Chapter 40
Chapter 41
Chapter 42
Chapter 43
Chapter 44
Chapter 45
Chapter 46
Chapter 47
Chapter 48
Chapter 49
Chapter 50
Chapter 51
Chapter 52
Chapter 53
Chapter 54
Chapter 55
Chapter 56
Chapter 57
Chapter 58
Chapter 59
Chapter 60
Chapter 61
Chapter 62
Chapter 63
Chapter 64
Chapter 65
Chapter 66
Chapter 67
Chapter 68
Chapter 69
Epílogo

NEWSLETTER
Agradecimentos
Outros livros da autora
Sobre a autora
HIERARQUIA DOS ANJOS

SERAPHIM
Também conhecidos como Arcanjos. Existem sete deles. Ser
celestial de mais alta classificação.
Verities (anjos de sangue puro).

MALAKIM
Coletores de almas.
Verities.

ISHIM
Responsáveis pelos rankings. Eles estabelecem as pontuações do
pecador.
Verities.

ERELIM
Sentinelas celestiais.
Verities e híbridos.

OPHANIM
Trabalhadores da sociedade celestial: professores e supervisores.
Principalmente híbridos, mas abertos a Verities.

PLUMAS
Jovens anjos que ainda não completaram suas asas.
Verities e híbridos.
NEPHILIM
Anjos caídos. Desonrados. Sem asas. Mortais.
GLOSSÁRIO ANGÉLICO

ama – mãe
apa – pai
aheeva – amor
ayim – água
habamehot – escondam-se
kalkohav – luz das estrelas
lehatsamehot – mostrem-se
levsheh – amada
lev – coração
leh – meu
mota – boneca
mostasheh – doçura
naya – alvorecer
neshamateh – almas gêmeas
neshamim – almas
neshaleh – minha alma
ni – eu
sheh – doce
ta – você
teh – seus
tched - demônio
neshahadza – metade da alma
yot – ser ou estar
zoya - sedutora
PRÓLOGO
ASHER

H 4

N unca odiei uma cidade antes, mas nenhuma me destruiu


como Paris.
Paris, o berço do amor e do pecado.
Durante anos, considerei Jarod Adler o pecador mais cruel de
todos. Hoje à noite, eu mereci o título e uma pontuação muito pior
do que de Triplo.
Coletei a alma não de um, mas de dois nephilim e fugi com eles
pelos céus da capital francesa molhados pela chuva.
Debaixo de uma cerejeira em plena floração, estendi as mãos e
relaxei os dedos em torno das esferas douradas. O que, em
Abaddon, me possuiu para retirá-los de seus corpos? Esse ato de
loucura não só me faria ser questionado, mas também rebaixado e
expulso do Elysium sem as asas que me faziam ser quem eu era.
Tudo que eu era.
Enquanto as gotas de chuva escorriam pelas pétalas cor de rosa
claras e se curvavam em torno das esferas douradas, caindo em
minhas botas como sangue fresco, fechei os olhos e inclinei a
cabeça para trás. Se deuses existissem, eu teria implorado por
conselhos, mas nós, Arcanjos, éramos aqueles que decidiam entre
a vida e a morte, que pesavam destinos e julgavam almas.
Mas esta noite, eu não era uma divindade maior que a formiga
rastejando em meu polegar.
Abri os olhos e fechei os dedos, afastando a criatura desavisada.
Com as almas pulsando nas minhas mãos, abri as asas e me
preparei para retornar à Corte do Demônio. Mas os ventos fortes e
úmidos tinham um plano diferente para mim.
Eles estabeleceram um novo curso, quebrando minha bússola
moral, destruindo o anjo honrado e despertando o homem imperfeito
dentro de mim.
1
CELESTE

A ndei pelo bar movimentado antes de me espremer entre o


Sr. Metidão e duas garotas menores de idade usando muita
maquiagem e pouca roupa.
— Com licença — a aluna loira do ensino médio resmungou,
balançando o cabelo ao redor de um par de argolas que poderiam
ser usadas como pulseiras.
Sem desperdiçar um olhar, passei o antebraço pelo balcão de
madeira pegajosa, dando toda a minha atenção ao cara que estava
usando um boné de beisebol virado para trás e uma camiseta justa
que certamente friccionava seus mamilos.
— Estou com sede — falei. — Se importa se eu beber isso?
Ele passou um segundo me olhando de cima a baixo de um jeito
sensual.
— Você é maior de idade?
Fingi me irritar, embora eu não desse uma pena para meu peito
plano e quadris estreitos. Umedeci os lábios, me certificando de
fazer isso de forma agradável e lenta.
— Mais do que aquelas duas.
Seus olhos claros brilharam quando ele empurrou a cerveja que
comprou para a loira, que ainda estava resmungando, em minha
direção.
— É toda sua, linda.
Meus anéis bateram no vidro resfriado.
— Gosto de garotos generosos. — Fingi levar o copo aos lábios,
mas antes de encostá-lo na boca, estiquei o dedo indicador e o
passei pela sua mandíbula, depois pela base do seu pescoço. O
pomo de Adão se moveu, refletindo a emoção que dilatava suas
pupilas. Distraindo-o ao passar o nó dos dedos sobre os peitorais
endurecidos por muitas horas na academia da faculdade, pesquei a
carteira no bolso do jeans de cintura baixa.
Os ossos das minhas asas vibraram como se estivessem se
preparando para perder uma pena. Só que roubar não fazia meu
estilo. Pegar criminosos em flagrante, sim.
Fiquei na ponta dos pés e colei meus lábios em seu ouvido.
— Se você batizar a bebida de alguém de novo — abri sua
carteira e tirei a habilitação —, Matt Boyd, de Lafayette, Califórnia,
eu mesma vou chamar a polícia. — Em seguida, derramei a cerveja
em seu peito, me divertindo ao ouvi-lo xingar quando o líquido frio
atingiu sua virilha.
Deixei o copo vazio e a carteira no balcão e, em seguida, ofereci
a identidade do cara para Jase, o bartender que era meu ajudante,
vigilante e melhor amigo com inúmeros benefícios.
— Sua vadia maluca — Matt Boyd balbuciou. — Se alguém vai
ser preso, é você.
Sorri para ele. Embora eu tivesse sangue sobre-humano, não
era alta, então tive que inclinar a cabeça para cima.
— E por qual crime vou ser presa? Por salvar uma garota
inocente de ser drogada e estuprada?
Quando Jase pegou o cartão da minha mão, seus dedos
roçaram os meus.
— Estou fechando a sua comanda. O total é vinte dólares, sr.
Boyd. Dinheiro ou cartão? — Ele tirou uma foto dos dois lados da
identidade.
Os lábios finos do cara pulsaram com respirações raivosas.
— A merda da cerveja era por minha conta. Não em mim! — Ele
pegou a carteira e se afastou do bar, mas se viu frente a frente com
uma parede de músculos.
Leon, o dono do The Trap e irmão mais velho de Jase, colocou
as mãos nos ombros de Matt e o conduziu de volta para o balcão.
Enquanto Jase era magro, Leon era uma montanha com mais
tatuagens do que a maioria dos condenados nas telas de
ranqueamento holográfico da associação.
Leon me deu um sorriso com um dente ausente, resultado de
uma briga recente. Embora seu bar no Harlem estivesse na moda
entre os universitários, também estava “na moda” entre os drogados
e traficantes da vizinhança.
— Bela jogada, Celeste.
Matt começou a grunhir obscenidades que teriam custado um
monte de penas se ele fosse um Pluma.
— Ora, obrigada. — Comecei a frequentar o The Trap depois de
conhecer Jase na aula de Direito Criminal no semestre passado. E
então continuei indo ao bar em busca dos cheeseburgers super
gordurosos e deliciosos de Leon e a companhia fácil de Jase. E
como você poderia tirar uma garota da associação, mas não a
associação de uma garota, em noites agitadas, eu ficava de olho em
atividades desonestas.
— Dinheiro ou cartão? — Jase repetiu de forma amigável.
Matt ergueu o queixo mal barbeado.
— Não vou pagar merda nenhuma.
— Você batiza a bebida de uma garota no meu bar — Leon
grunhiu —, e depois tenta me enganar? Jase, chame o Tommy.
— Quem é Tommy? — A voz de Matt perdeu a força.
— Um fuzileiro naval aposentado que, por acaso, é um talentoso
sous-chef.
Tommy era do tipo forte e quieto, com tatuagens no rosto que
inspiravam medo na maioria das pessoas. Ele sempre foi indiferente
a mim, então eu não tinha problemas com ele.
Quando Jase foi em direção à cozinha, Matt tirou uma nota de
vinte dólares da carteira.
— Nada de polícia. Estou indo embora. E prometo que você
nunca mais vai me ver.
— Isso é bom, mas quero que você prometa que nunca mais vai
drogar uma pessoa. Acha que pode fazer isso?
— Sim. Eu nunca mais... — Matt engoliu em seco. — Nunca
mais vou fazer essa merda.
— Que bom. Agora entregue aquele estoque de comprimidos
que você trouxe para o meu bar.
Matt enfiou a mão dentro da cueca e pegou um pequeno ziploc,
que ergueu com um braço trêmulo.
Leon deu um tapa em seu braço.
— Não quero o maldito suor das suas bolas na minha cara. —
Ele pegou meu copo de cerveja vazio. — Jogue aqui.
Matt o largou e virou o boné, tentando proteger o rosto da
crescente atenção em nossa direção. Eu o ouvi murmurar um merda
quando a garçonete e namorada de Leon, Alicia, falou:
— Está tudo gravado, Leon.
— Obrigado, baby. — E então ele baixou a voz e murmurou algo
no ouvido de Matt que fez o rato de academia se contorcer e ficar
tão branco quanto os diamantes que cobriam a cruz pendurada no
pescoço de Leon.
Durante os primeiros quinze anos da minha vida, fui ensinada a
recuperar humanos que se comportam mal com gentileza,
oferecendo a eles uma mão para guiá-los no caminho certo. Nos
quatro anos seguintes, aprendi que ameaças e força bruta
funcionam tão bem, se não melhor. E muito mais rápido.
Alguém bateu no meu braço – a loira com as grandes argolas.
— Eu e minha amiga gostaríamos de te agradecer.
— Não precisa, mas fiquem de olho no que vocês bebem da
próxima vez. — Quando as garotas se viraram para Jase para
professar sua gratidão eterna – juro que elas o mantiveram ocupado
por muito tempo depois de dizerem obrigada –, peguei o celular do
bolso da jaqueta de seda azul-petróleo para verificar a hora e notei
uma mensagem perdida de Muriel.
Sorri ao ler. Mesmo que todas as sextas-feiras eu fosse para
casa, todas as quintas-feiras, sem falta, Mimi perguntava se eu tinha
feito outros planos e me lembrava de que estava tudo bem se eu
não fosse. Os fins de semana eram um tempo sagrado para a
família e, como Mimi era minha única família, dedicava todos eles à
mulher que sempre cuidou de mim depois que perdi Leigh.
Leigh... pensar nela ainda doía. Ela foi minha melhor amiga,
minha irmã, minha âncora. Na noite em que ela tirou a própria vida,
fiquei arrasada. E depois com raiva. Zangada com Jarod por desviá-
la de seu dever. Com raiva de Leigh por permitir que ele fizesse
isso. Irada com Seraph Asher por queimar suas asas e jogá-la de
volta na Terra cheia de bolhas formando duas luas crescentes nas
costas. Raiva por não ter sido o suficiente para mantê-la neste
mundo.
Por semanas, eu a odiei, e depois me odiei por isso.
E agora... agora, eu simplesmente sentia sua falta. Da mesma
forma que Mimi sentia falta de Jarod, o menino que ela criou como
filho.
Digitei depressa:
Vou tentar chegar para o almoço, mas preciso me encontrar
com meu orientador, então não espere por mim se sentir fome.
E depois acrescentei:
À propósito, comprei ingressos para a matinê de sábado
daquela peça de que estava falando. O remake de Um bonde
chamado desejo.
Três pontos piscaram quando Mimi digitou. Claro, ela não estava
dormindo. Muriel nunca dormia, preferindo tirar cochilos
esporádicos. Observei os pontos piscarem por um tempão,
esperando uma resposta prolixa, mas tudo o que ela mandou foi:
Tudo bem, ma chérie.
Jase gritou meu nome por cima da música alta saindo das caixas
de som. Ele estava inclinado sobre o balcão com os antebraços
tatuados apoiados na madeira pegajosa e o nariz a centímetros do
meu. Ele me olhou com aqueles seus olhos castanhos, tantos tons
mais escuros e ainda tantos tons mais suaves que os meus.
— Quer algo para beber, Cee?
Balancei a cabeça.
— Não. Vou voltar para o apartamento.
— Já?
— São duas da manhã, Jase.
— Vou sentir saudade. — A mistura de letreiros néon pregados
nas paredes de cimento, variando de um que estava escrito
Sapateiro Express ao contorno roxo de uma berinjela gigante, e um
menor de um porco com asas – minha contribuição – enfeitava seu
cabelo com gel em cores brilhantes.
Revirei os olhos.
— Você vai me ver em cinco horas. — Eu tinha uma aula cedo
às sextas-feiras, então meu café da manhã coincidia com o fim do
turno dele no The Trap.
— Ainda assim vou sentir saudade por cinco horas.
Eu ri. O garoto com quem eu dividia um apartamento de dois
quartos em um prédio espremido entre o campus e a Riverside
Drive me mostrou seus dentes brancos. Ele tinha um sorriso tão
lindo. Uma grande personalidade também. Ele faria uma garota feliz
no dia em que decidisse se casar e, embora ele brincasse que a
garota poderia ser eu, não seria. Se meu lugar na primeira fila do
relacionamento de Leigh e Jarod me ensinou alguma coisa, foi que
se apaixonar era confuso e doloroso.
Eu queria diversão. E tranquilidade. Jase era a combinação
perfeita de ambos.
— Boa noite, Cee.
— Boa noite, Jase. — Dei um beijo casto no canto de sua boca.
— Seja bom.
— Seja melhor.
Enquanto ele se dirigia para um cliente sedento, lancei um olhar
para o meu porco de neon. Pensei em Seraph Asher quando o
comprei e sorri quando Leon desempacotou o porco alado e o
pregou na parede. Minha má intenção tinha me custado uma pena,
mas caramba, valeu.
Deixando a escultura do Arcanjo para trás, passei pela multidão
de estudantes e moradores locais, sentindo as solas dos meus
sapatos grudarem no concreto regado à cerveja. Dei alguns passos
antes de me encontrar presa por duas garotas com lábios franzidos.
— Com licença. — Tentei evitá-las, mas as duas abriram suas
asas.
Ah, que bom.
A morena com os cachos brilhantes e penas azuis com pontas
douradas colocou as mãos na cintura.
— Meu pecador acabou de me dizer, e não com muita gentileza,
para eu me mandar. Você não saberia nada sobre isso, não é,
Celeste?
Presumi que houvesse pôsteres meus nas associações, porque
parecia que todos os Plumas com os quais cruzei em Nova York,
fossem mulheres ou homens, tinham ouvido falar de mim.
— Por que você acha que eu saberia alguma coisa sobre isso?
— Olhei em direção ao letreiro brilhante que indicava a saída.
— Porque ele estava murmurando algo sobre se vingar de uma
motoqueira com garras pretas pontudas e sem bunda chamada
Celeste.
Bem, isso foi rude. Eu tinha bunda, só era pequena, como o
resto de mim. E minhas unhas não estavam pontudas, embora isso
fosse conveniente.
— Eu nem tenho moto. — Eu duvidava que Mimi concordaria
que eu comprasse uma.
— Acho que ele estava falando sobre o seu visual. — A outra
Pluma deu uma olhada superficial para minhas botas e legging de
couro preto.
Levantei o dedo médio e fingi coçar algo no lábio superior.
— Você acha?
Ela corou até as raízes loiras.
— Eu tinha um plano para ele — a Verity disse.
— Sinto muito, Blue, mas você espera que eu me desculpe por
salvar uma garota inocente de ingerir um comprimido que
provavelmente a teria feito ser estuprada por ele ou por algum outro
cara?
Ela fez uma careta.
— Tudo o que você fez foi provocá-lo.
— Ele vai atacar novamente. — A loira fechou as asas
vermelhas nas costas.
Como as minhas, as dela não tinham pontas douradas. Seu
status híbrido acalmou meu tom mordaz porque, por mais cega que
fosse pelo mundo celestial, a venda acabaria caindo, e ela
perceberia que a falta de brilho de suas penas a condenaria aos
escalões mais baixos do Elysium. O melhor que os híbridos
poderiam esperar eram posições nas associações como Ophanim –
professores – ou em Elysium e Abaddon como Erelim – sentinelas
celestiais. Apenas Verities tinham acesso a diversão: Malakim –
coletores de almas – Ishim – classificadores de almas – ou
Seraphim – o crème de la crème dos anjos, ou melhor, crème de la
merda.
— Celeste! — a Blue ofegou.
Meu olhar instantaneamente percorreu a sala em busca de
problemas. Quando não encontrei ninguém correndo atrás de mim,
voltei minha atenção para a garota.
— O que foi?
— Você perdeu uma pena.
Ah.
Isso.
Olhei para a pluma roxa macia, me perguntando porquê eu a
perdi. Por meus pensamentos terríveis sobre Arcanjos ou por que
roubei o pecador de outro Pluma? Honestamente, fiquei surpresa
por apenas uma ter caído esta noite e que eu não tivesse percebido
a pontada rápida que acompanhou sua remoção.
Quando a pena desapareceu debaixo de um par de sapatos de
salto alto, olhei de volta para os anjos de olhos arregalados.
— Não foi a primeira. E não será a última.
Parei de contar há muito tempo, mas suspeitei que tinha perdido
tantas quanto ganhei, considerando que minhas asas – ou melhor,
asinhas – tinham quase a mesma densidade de antes de Paris.
A Verity cruzou os braços na frente de uma blusa branca que a
fazia aparecer positivamente angelical.
— Por que você desistiu?
— O que te faz pensar que eu desisti?
Meu humor se perdeu nas duas Plumas, que trocaram um olhar
antes de falarem uma por cima da outra.
A híbrida disse:
— Você só tem trezentos e vinte e cinco... bem, quatro agora.
Enquanto a Verity falou:
— E faltam três meses.
Mesmo que me irritasse que elas tivessem me procurado em um
holo-classificador, fiquei agradavelmente surpresa com esse
número. Já que perdia penas como uma galinha em época de troca
de plumagem, e não tinha me inscrito em nenhuma missão celestial
desde Paris, imaginei que tivesse menos de cem, mas,
aparentemente, acabei realizando muitas boas ações. Embora não
ganhássemos a quantidade de penas no cartão de pontuação do
pecador quando não nos vinculávamos a eles, se conseguíssemos
ajudá-los a mudar, mesmo que minimamente, coletávamos uma
pena por nossa bondade.
— Você não vai pegar? — a híbrida perguntou.
— E reviver meus dias de glória? Não. Sou o tipo de garota
carpe diem.
Uma profusa quantidade de branco apareceu em torno de suas
íris verdes.
— Me diga uma coisa. Eu me tornei algum tipo de estudo de
caso na associação ou um conto preventivo?
O rosto da Verity enrugou como se ela tivesse ingerido uma das
doses de tequila de goma azeda de Jase.
— As Ophanim estão preocupadas com você, Celeste.
Especialmente Ophan Mira.
— Ophan Mira? — Isso me fez sorrir um pouco mais. Eu
duvidava muito que a anciã da associação se importasse com o
destino nada espetacular de sua pupila. — Tenho certeza de que ela
está arrasada com a minha ausência. Diga que mandei lembranças,
tudo bem? — Quando finalmente passei por elas e subi as escadas
em direção à saída da rua, o número que elas me disseram girou
em minha mente.
Trezentas e vinte e quatro. Não que eu tivesse qualquer intenção
de completar minhas asas, mas a quantidade necessária para
chegar a mil era tão absurda que ri.
No caminho, mandei um beijo para Leon, que fingiu pegar e
colocar no bolso, embora estivesse ocupado conversando com uma
loira bonita – acho que Alicia e ele estavam separados. Estiquei o
pescoço em direção ao céu escuro como aço. Embora não
estivesse iluminado com estrelas como na associação, eu achava
que era o céu mais lindo.
Imperfeito e real.
Sufocado com poluição e luzes em vez de quartzo e
madressilva.
E barulho. Muito barulho. Nada disso era harmonioso. Não havia
pardais com asas da cor do arco-íris cantando árias, nem fontes de
quartzo derramando água cristalina sobre os lírios que floresciam à
noite. Apenas os bons e velhos táxis amarelos buzinando,
estudantes universitários agitados e bêbados animados da
vizinhança.
Eu amava esta cidade ainda mais por suas imperfeições, porque
ela refletia a vida que eu havia escolhido em vez daquela escolhida
para mim.
2

N a manhã seguinte, depois de me encontrar com meu


orientador para discutir minha tarefa de justiça criminal,
peguei o metrô e fui para o centro da cidade, para a
cobertura que Muriel comprou depois que fui aceita na Universidade
de Columbia.
Embora eu odiasse como a antiga babá de Jarod tinha entrado
em minha vida, não conseguia imaginá-la não fazendo parte dela.
Depois de acordar sozinha em meu quarto de hotel em Paris,
corri para a Corte do Demônio, onde vaguei por vans de emissoras
de TV e barreiras policiais, gritando o nome de Leigh a plenos
pulmões, exigindo falar com ela. Foi o guarda-costas de Jarod, Amir,
quem finalmente ouviu meus apelos. Embora ele tivesse me avisado
para ir para casa, eu insisti em ver Leigh, então ele me permitiu
entrar.
Quatro anos e meio depois, e eu ainda estremecia. Quantos
anos mais até que eu pudesse pensar em Leigh e não sentir que
meu coração estava sendo apunhalado pelo abridor de cartas que
ela usou para cortar suas veias?
Pisquei para afastar a lembrança sombria e me concentrei em
descascar mais o esmalte preto enquanto meus anéis refletiam as
faixas de luz que faziam todos no metrô parecerem pálidos e
doentios.
Mimi odiava que eu usasse o transporte público, mas durante a
hora do rush, não tinha maneira melhor de andar pela cidade.
Pensei mais uma vez em comprar uma moto. Precisaria tirar a
habilitação primeiro. Tirei o celular da bolsa de pano e pesquisei
instruções sobre habilitação para dirigir motos até sair para a
calçada ensolarada da Quinta Avenida.
Inspirei lentamente o ar do início do outono. Os veranicos na
Nova Inglaterra sempre foram minha estação favorita – o ar morno e
cheio de minúsculos seres vivos, o manto de folhas e de grama
cobrindo o Central Park em verdes exuberantes. Era a temporada
que mais senti falta durante os dois anos que morei no exterior.
Quando cheguei à entrada residencial do Plaza, os porteiros e
eu nos cumprimentamos por nome e eu perguntei a um sobre sua
filha adolescente e ao outro sobre seu novo neto. Mimi não saía do
apartamento com frequência – eu me certificava de que ela tivesse
tudo o que precisava ao seu alcance – mas quando ela saía, parava
no saguão, perguntando sobre as famílias de todos. Embora não
houvesse sangue de anjo correndo em suas veias, Mimi era mais
digna de asas que a maioria dos habitantes de Elysium.
Com certeza, mais digna que minha genitora. Ela me largou na
associação de Nova York no segundo em que saí de seu ventre e se
mudou para outra residência de Plumas. Ser Ophanim significava
que ela tinha permissão para viajar entre as associações e, ainda
assim, ela nunca tinha me visitado, nunca usou os telefones
holográficos das associações para entrar em contato comigo, nem
compareceu à minha cerimônia dos ossos das asas – um momento
chave na vida de um anjo, quase mais significativo do que nossa
ascensão, porque era o dia em que finalmente poderíamos sair das
associações e começar a acumular nossas penas preciosas. A essa
altura, eu não me importava mais em conhecê-la, porque eu tinha
Leigh, e ela preenchia minha cota de afeto.
E agora, eu tinha Mimi.
Enquanto eu pegava o elevador para a cobertura no vigésimo
primeiro andar que Mimi havia comprado com o dinheiro que Jarod
havia deixado em seu nome, pensei no dia em que sugeri me
afastar. Eu não tinha para onde ir, tendo decidido que nunca mais
pisaria em uma associação, mas não queria sobrecarregar Mimi.
Sua pele rivalizava com o túmulo de mármore branco pelo qual
passamos ao sair do cemitério de Montparnasse, onde enterramos
os corpos de Leigh e Jarod.
— Você tem família te esperando, Celeste?
— A Leigh era minha única família.
— E o Jarod era a minha.
Então eu fiquei e nos tornamos a família uma da outra. E nosso
vínculo forjado pela dor se transformou em uma conexão forjada
pelo amor. Encontrei em Muriel a mãe que pensei que não precisava
mais. Afinal, eu já tinha quinze anos e havia passado cinco andando
no mundo humano com pouca ajuda das Ophanim que nos
consideravam autossuficientes no dia em que os ossos das nossas
asas se formavam.
Muriel assumiu minha educação, enchendo a minha cabeça com
conhecimentos que não eram ensinados nas associações. O que
mais me cativou, ironicamente, foi o sistema de justiça humana.
Devorei livros sobre isso, encontrei lacunas, engoli as histórias da
forma ilegal com que os Adler impuseram a lei que Mimi contou
enquanto cozinhava em nossa cozinha espaçosa. Quando fiz
dezoito anos, confessei meus sonhos de me tornar advogada ou
juíza, mas isso exigiria uma educação universitária e eu não tinha
um único diploma escolar com meu nome.
Uma semana depois, recebi três convites para cursar
faculdades.
— Eu nem sabia que faculdades convidavam pessoas para se
matricular!
Mimi tinha me oferecido aquele seu sorriso silencioso que
escondia uma montanha de pensamentos.
— Eles não fazem isso, não é? Normalmente, quero dizer. Foi
você, não é? Você me colocou dentro.
— O que importa não é como você entra, mas o que você faz
quando está lá dentro. — Ela estava cortando o bolo quente que eu
a ajudei a preparar. — Então, qual delas te interessa?
Enquanto ela servia duas fatias, eu olhava para os três
cabeçalhos, com o olhar se demorando na da Universidade de
Columbia. No final, decidi que Nova York era muito longe dela,
então apontei para a carta da Sorbonne.
No dia seguinte, Mimi entrou no meu quarto e me entregou um
passaporte. Fiquei boquiaberta, já que nunca tive um, e localizei seu
sobrenome impresso ao lado do meu – Moreau.
Antes eu pertencia a uma raça. Agora, pertencia a uma família.
Tirei as chaves da minha bolsa e entrei no santuário de madeira
cinza escuro, granito preto e veludos bordô que Muriel comprou no
mesmo dia em que comprou nossas passagens de avião.
Poderíamos ter dividido um apartamento em um prédio sem
elevador, que eu teria ficado igualmente feliz porque o luxo nunca foi
importante para mim. Ainda assim, apreciava a segurança que veio
com o endereço chique. Mesmo que poucas pessoas soubessem da
filiação de Mimi à família Adler, só precisava de um para destruir
uma vida.
— Mimi, estou aqui — gritei ao atravessar o vestíbulo e ir direto
para a cozinha, seu refúgio habitual. Joguei a jaqueta e bolsa em
uma das cadeiras altas da ilha, em seguida, lavei minhas mãos
antes de roubar um pedaço de croque monsieur da bandeja em
cima do fogão, gemendo quando o queijo pegajoso iluminou minhas
papilas gustativas.
— Mimi?
— Aqui, Celeste.
Segui sua voz até a sala de estar onde ela estava em pé,
delineada pela tarde azul, com o olhar parado no amplo retângulo
verde do parque que se estendia por quase todo o caminho até o
apartamento que eu dividia com Jase. Enfiei o resto do sanduíche
quente de presunto e queijo dentro da boca antes de dar um beijo
em sua bochecha. Sua pele estava gelada, mas imaginei que ela
tivesse passado a manhã lendo na varanda estreita, seu
passatempo favorito depois de cozinhar.
— Ça va, ma chérie? — Sempre falávamos francês juntas,
embora seu conhecimento de inglês fosse impecável.
— Oui.
Muitas vezes, me perguntei se eu perderia minha aptidão
angelical para falar e entender qualquer língua quando perdesse
minhas asas, mas descartei o pensamento, principalmente porque
não tinha a quem perguntar. Além disso, eu descobriria em três
meses.
Enquanto eu tagarelava sobre minha nova tarefa e o conselho do
meu orientador, Mimi me ouviu com atenção extasiada e pontuou
meu fluxo rápido de frases com seus sorrisos calorosos habituais.
Sorrisos calorosos, percebi, que não cintilavam com batom
carmesim.
O croque monsieur congelou dentro do meu estômago.
— Algo está errado.
— Errado? — Seu tom estava estranho, assim como sua
aparência.
Meu coração ficou excepcionalmente parado.
— O que houve? Você precisa voltar para Paris? Aconteceu
alguma coisa com o Amir?
O guarda-costas de Jarod era a única pessoa com quem ela
mantinha contato. Ele permaneceu na França, se retirando para
Nice depois que a Corte do Demônio foi fechada e transformada em
um refúgio para crianças carentes.
— O Amir está bem, Celeste.
— Então, o que é? — pronunciei cada palavra devagar para que
nenhuma tremesse. — Mimi, o que...
— Câncer.
— Câncer? — repeti, como uma boba.
— Coisa horrível, câncer.
O queijo compactado e o presunto apertaram a minha garganta.
— Horrível, mas curável. — Engoli forte, empurrando o croque
monsieur de volta para baixo. — Certo?
— Celeste...
— Certo? — Quando ela não respondeu, a pressão cresceu nas
minhas têmporas. — Mimi? — Seu nome falhou em meus lábios.
— Eu lutei. Lutei o máximo que pude, mas o câncer lutou ainda
mais.
Paralisei. Não. Não. Não. Isso não poderia estar acontecendo.
— Todos aqueles cochilos. Seu apetite diminuído. Você disse
que estava só... — O que ela havia dito? Ah, anjos, eu não
conseguia me lembrar, mas ela sempre tinha uma desculpa. — Há
quanto tempo você — empurrei uma mecha de cabelo presa aos
meus cílios — sabe? — Pisquei algumas vezes, mas os contornos
de seu rosto continuavam embaçados.
— Seis mois.
— Seis meses! — ofeguei, sentindo como se ela estivesse
usando um fuê para fazer um merengue do meu coração. — Por
que você não... por que não me contou?
— Porque eu esperava vencer antes de te sobrecarregar com
isso.
— Me sobrecarregar? — As palavras desviaram do nó gigante
na minha garganta. — Ah, Mimi.
Seu polegar de pele fina como papel, que sempre cheirava a
manteiga e sabonete, acariciou minha bochecha.
— Deve haver... você já fez químio? A químio funciona. Ou
cirurgia. Quem é o seu médico? — Peguei o telefone e tentei digitar
“Melhores médicos de câncer”, mas o telefone escorregou dos meus
dedos e caiu no tapete grosso.
Ela segurou minhas bochechas entre as palmas das mãos.
— Ele metastizou no fígado, Celeste.
— O que isso significa?
— Que em breve, vou ter que te deixar.
— Não há realmente nada... nenhum tratamento... nada? — As
lágrimas escorreram e se acumularam ao redor dos dedos calejados
que me seguravam como se eu fosse feita de vidro.
Ela balançou a cabeça.
— Mas você está crescida agora e...
— Ainda preciso de você! Eu sempre vou precisar de você!
— Ma chérie.
— Por favor. Deve haver alguma coisa, Muriel... Por favor. — Eu
nem tinha certeza a quem eu estava implorando – a essa mulher ou
aos anjos? Encarei a expansão azul sem nuvens do lado de fora da
janela de sacada, me perguntando se algum anjo estava olhando. —
Por favor. — Os soluços saíam da minha garganta e balançaram os
cabelos ruivos com fios grisalhos que emolduravam seu rosto. Seu
cabelo estava sempre bem penteado, mas não hoje.
— É hora de eu ir ver o meu Jarod. Ele provavelmente está
causando todos os tipos de problemas no Céu, problemas que nem
a Leigh é capaz de enfrentar.
Jarod não estava no céu. Nem no Inferno. Ele e Leigh foram
negados nos dois lugares. E logo ela descobriria, porque esta
mulher, esta incrível e altruísta força da natureza, estava sem dúvida
ligada ao Elysium.
Pela primeira vez desde que perdi Leigh, desejei que minha alma
não estivesse destinada a se perder. Mas era tarde demais. Não
havia como ganhar mais de seiscentas penas em três meses.
— Quanto tempo antes...? — sussurrei, embora quisesse rugir
meu coração partido e ceticismo sobre a proficiência médica dos
especialistas com quem ela se consultou. Eles não poderiam ser
bons se não tinham encontrado uma cura para ela.
— Uma semana, possivelmente duas. Médicos são pessoas
miseravelmente pessimistas.
Dias? Eu tinha dias para ficar com ela?
Minhas lágrimas caíram mais rápido.
Meu coração se partiu com mais força.
O que fiz para receber isso? Foi porque fui desrespeitosa com o
Seraphim? Por que levantei minha voz contra as leis arcaicas do
meu povo? Por que virei as costas para eles?
Meus pulmões pareciam embalados a vácuo, incapazes de se
expandir e tomar ar. Ofeguei para respirar entre os soluços.
— Já organizei tudo, Celeste. Você não vai precisar fazer nada.
E embora eu gostaria que minhas cinzas fossem levadas para o
lado das de Jarod, leve-as quando se sentir pronta.
Outro soluço me estilhaçou. Ela enlaçou os braços na minha
coluna curvada e me puxou para si com tanta força que não
conseguia imaginar que seu corpo estivesse devastado por uma
doença.
Eu não a deixaria morrer.
Não deixaria o Malakim roubá-la de mim.
Eu encontraria uma maneira.
Tinha que encontrar um jeito.
Eu me prostraria aos pés dos Sete e imploraria por sua vida,
porque essa mulher era tudo que me restava neste mundo
miseravelmente injusto.
3

E u tinha jurado nunca mais pisar em uma associação depois


de Paris, mas assim que Muriel se acomodou para tirar uma
soneca, peguei um táxi para os dormitórios de quartzo. A
discreta porta verde me encheu com tanta raiva que quase voltei,
mas no final, afastei minha atitude vingativa, endireitei os ombros e
girei a maçaneta.
Surpreendentemente, a porta se abriu.
Presumi que, enquanto eu ainda tivesse penas, as Ophanim não
poderiam legalmente me bloquear.
As associações estavam sempre cheias, mas o fim da tarde era
sempre o mais movimentado. O átrio com suas vinhas crescentes
de madressilva, sete fontes de quartzo e teto de vidro abobadado
estava repleto de garotas aladas e pardais cantando. O ar doce
floral se infiltrou em meus pulmões como cola enquanto a multidão
Plumas se dividia ao meu redor, com as bocas abertas. Enquanto eu
caminhava em direção ao canal, meu plano de gritar até que eu
perdesse a voz ou que um anjo do alto escalão descesse pela
chaminé incrivelmente brilhante se consolidou.
— Pluma, você voltou para casa.
Parei na frente de Ophan Mira, que estendeu suas asas
vermelhas como se quisesse me impedir de chegar ao meu destino.
Casa? O fato de ela presumir que eu considerava esta associação
minha casa me fez pensar se ela achava que eu era louca.
— Não, Ophan. Vim para falar com o Seraphim.
Ophan Mira inclinou a cabeça para o lado, fazendo seu cabelo
preto curto e com fios grisalhos roçarem em seus ombros estreitos.
— Os Seraphim são pessoas ocupadas. Com o que posso
ajudar?
— Você pode curar câncer, Ophan?
— Não posso.
— Então você não pode me ajudar. — Tentei passar por ela, mas
uma mulher com um cabelo loiro que chegava até a base dos ossos
da sua asa deu um passo ao lado de Ophan Mira, barrando meu
caminho.
Como eu nunca a encontrei antes e suas asas eram tão
espessas quanto as da minha antiga professora, presumi que era
uma nova recruta da Associação 24.
— Você está tentando me manter longe do Canal? — perguntei
com gentileza, embora eu não me sentisse nada gentil.
— O câncer é um fenômeno natural, Celeste. Um fenômeno
necessário. Quando as almas estão cansadas de viver...
— Natural? É uma doença! Uma mutação celular! Não há nada
natural...
— Se acalme, Pluma.
Cerrei os dentes e fechei as mãos. Como ela se atrevia a dizer
para me acalmar? Ela não era a pessoa com o coração partido.
Minhas narinas dilataram como se eu tivesse corrido os cinco
quilômetros do Plaza até este lugar, que era tanto a minha casa
quanto a lixeira atrás da lanchonete gordurosa da esquina.
— Eu solicito uma audiência com o Seraphim.
— Para discutir esse câncer? Pluma, você não aprendeu nada
durante seus anos sob minha tutela? Não interferimos nos
cronogramas humanos. Não somos guardiões de vidas, somos
guardiões de almas. Se este humano tem câncer, então chegou a
hora do seu corpo e sua alma – se for digna – vai ser recolhida e
recompensada.
— Ela tem apenas sessenta anos! — Minha voz estalou como
asas totalmente emplumadas.
— Seis décadas é uma vida útil respeitável.
A irritação ameaçou me fazer ranger os dentes. Sessenta anos
era muito jovem.
— Muriel deveria ter, pelo menos, mais duas décadas!
— Calma, Celeste. — O uso do meu nome por Ophan Mira me
fez piscar. Ela raramente usava nossos primeiros nomes.
Meu olhar percorreu o quartzo em busca daqueles pôsteres com
meu rosto neles, mas as paredes do corredor estavam lisas e sem
adornos. Não havia nenhum cartaz de PROCURADO ou videira de
madressilva rebelde à vista.
Sua mão subiu para meus ombros inquietos. Dei um passo para
trás, odiando quando as pessoas me tocavam sem meu
consentimento.
— Eu vou retransmitir seu descontentamento para os Sete...
— Descontentamento? — bufei.
— Mas não vou permitir que você faça um espetáculo em meus
corredores. Se desejar esperar pela resposta do Seraphim no local,
por favor, se sente no refeitório, e eu ou a Ophan Lia — ela
gesticulou para a nova recruta — iremos buscá-la quando tivermos
notícias.
— E eu devo confiar que você vai transmitir minha mensagem?
Mira franziu o cenho.
— Confiar? Ah, Pluma, você se afastou muito da sua raça se
começou a questionar o valor mais precioso que temos, que é a
honestidade.
Minhas asas sempre doloridas poderiam atestar que essa era
sua prioridade.
— É uma pena que a compaixão não é o que vocês mais
valorizam. — Uma pontada de dor percorreu os ossos das minhas
asas. Não tive que olhar para baixo para saber que uma pena tinha
acabado de se desprender daquela porcaria em minhas costas.
— Nossa espécie não é culpada pela escolha pessoal de
alguém.
— Alguém? A Leigh não era apenas alguém. E que escolha ela
tinha?
— Celeste, vá para o refeitório agora, ou não vou transmitir sua
mensagem. — Os olhos de Ophan Mira pareciam brilhar como o
quartzo ao nosso redor. — Você se lembra de onde fica ou gostaria
que Ophan Lia a acompanhasse?
Sem gritar – eu estava muito além das palavras neste momento
– me virei e o grupo de Plumas com suas penas expostas se retraiu.
Minha pulsação martelou meu crânio quando entrei no corredor e no
vasto pátio de quartzo com seus canteiros botânicos elevados.
Sempre pensei que o céu elysio brilhava sobre a associação, mas o
azul inabalável era uma ilusão, assim como a chuva celestial que
borrifava as plantações através de aberturas estrategicamente
colocadas na cúpula de vidro. Os anjos eram especialistas em
ilusões.
Me sentei em uma mesa de quartzo em forma de lágrima
parcialmente oculta por uma figueira que dava frutos o ano todo. Os
Plumas preferiam mesas mais próximas da laje de quartzo com sua
oferta perpétua de grãos quentes e peixes cozidos no vapor, sucos
gelados em jarras de vidro e pilhas de frutas e legumes que
pareciam joias. A fragrância da minha infância revirou meu
estômago já embrulhado.
Enquanto esperava, cruzei as pernas, as descruzei, balancei-as,
encarando as poucas Plumas que tiveram a audácia de olhar para
mim. Eventualmente, todos desviaram os olhares curiosos.
Entediada, peguei o telefone e enviei uma mensagem para Muriel
para avisar que eu estava fazendo uma tarefa e para ela me ligar
quando acordasse. E então abri o navegador de Internet. A única
palavra que consegui digitar antes estava escrita de forma
provocativa na barra de pesquisa: melhor. Para piorar a situação, o
mecanismo de busca sugeria uma lista suspensa de melhores:
melhor filme, melhor restaurante chinês, melhor hotel de Manhattan,
melhores academias.
Academias? Eu nunca me exercitei. Odiava isso. Com fervor.
— Oi. — Uma voz leve me assustou, me distraindo de esganar o
celular.
Olhei para a dona da voz, uma criança de cabelos dourados com
uma trança lateral grossa e olhos castanhos. Quando ela subiu na
cadeira ao lado da minha, mantendo suas perninhas dobradas
embaixo dela para alavancar, questionei:
— O que você está fazendo?
Em vez de ficarem arregalados e cheios de lágrimas, seus olhos
permaneceram suaves, e ela sorriu.
— Você parece triste.
Examinei o pátio, imaginando que isso era algum tipo de
armação da Ophanim tentando me persuadir, enviando um
emissário angelical, mas nenhuma professora perambulava pelo
refeitório e a maioria dos Plumas tinha ido embora.
— Eu sou a Naya.
Abaixei o telefone.
— Você não deveria estar com a Ophan Pippa, Naya?
Ela torceu o nariz que parecia um botão.
— Ela está contando uma história sobre monstros. Eu não gosto
de monstros.
— O mundo está cheio deles, então é melhor se acostumar.
— Você já conheceu um monstro?
Pensei em Tristan. E depois em Asher. Diferentes tipos de
monstros, mas os dois monstruosos. E então, como de costume,
minhas asas perderam uma pena.
— Sim.
Ela arregalou os olhos para mim.
— Eles são realmente assustadores?
— Não. A maioria se parece comigo e com você.
— Você não parece um monstro.
— Tenho certeza de que as Ophanim discordariam.
— Por quê?
— Porque... — Por onde começar? — Porque, por um lado,
decidi viver minha vida entre os humanos.
Ela mordiscou o lábio inferior, como se refletisse porque isso me
tornaria um monstro.
— Minha cor favorita é a das asas do meu apa. — Ou não. —
Qual é a sua?
Me recostei na cadeira. As crianças eram curiosas e criavam
ligações entre tópicos desconexos à velocidade da luz. Acho que eu
deixava Leigh maluca com minha forma não linear de pensar.
— Preto. Preto é minha cor favorita.
— Preto não é cor.
Fiz um gesto para minha legging de couro e camiseta preta que
dizia um e cinquenta, mas minha atitude é de um e oitenta em letras
brancas – um presente de Jase pelo meu vigésimo aniversário no
mês passado.
— Peço desculpa, mas não concordo. Preto é cor.
— Preto é a ausência de luz.
Fiz uma careta, não por causa do que ela disse... tecnicamente,
eu sabia que preto não era cor, mas porque fiquei surpresa que
alguém tão jovem soubesse disso.
— Eu também gosto de roxo. — Ela olhou para o céu cada vez
mais profundo. — Violeta. Não lavanda.
— Você gostaria das minhas asas então.
— Posso vê-las?
Mantive minha plumagem esparsa escondida com magia,
desprezando o que parecia e o que representava. Apenas uma vez
por ano, em dezenove de dezembro – o aniversário da minha
cerimônia dos ossos da asa – eu permitia que minhas penas roxas
saíssem das minhas costas.
— Não. — Com a minha resposta curta, a criança franziu os
lábios, mas não pulou da cadeira. — Quantos anos você tem, Naya?
— Quatro e meio. E você?
— Vinte.
— Meu apa tem cento e quarenta e três.
Naya era mesmo filhinha do papai... quase perguntei pela sua
mãe, mas decidi que não deveria bisbilhotar. Nem me importei. Não
era como se eu fosse ver a criança novamente.
— Por que você está triste?
Pisquei. E eu que achei que parecia estar com raiva. Virei meu
telefone algumas vezes antes de responder.
— Porque alguém que amo está morrendo.
Ela franziu o cenho.
— A morte não é o fim.
Eu tinha me esquecido que a lavagem cerebral começava cedo.
— Para algumas pessoas é.
— Essa pessoa que você ama é má?
— Não. Ela é extraordinária. — O caroço que se instalou na
minha garganta como um membro fantasma começou a se expandir
novamente.
— Então por que você está triste?
— Porque eu não quero que ela morra.
— Mas você vai vê-la de novo. — Ela apontou um dedo gordinho
para o céu. — No Elysium.
— Não vou.
Sua carranca se tornou tão pronunciada que parecia que ela
havia roubado algumas rugas da testa de Ophan Mira.
— Mas você tem asas.
— Sim, mas não vou conclui-las a tempo. Sabe o que acontece
quando você não as conclui?
Sem hesitar, ela disse:
— Você se torna um nephilim.
— Bingo. O pior tipo de monstro.
— Nephilim não são monstros.
Inclinei a cabeça para trás com surpresa.
— Eu... concordo. — Me inclinei para frente. — Mas não fale isso
muito alto por aqui. Acho que somos as únicas pessoas que
compartilham dessa crença.
— Gosto de compartilhar algo com você, Celeste.
Meu coração deu um aperto lento e doloroso, mas ele foi
substituído por uma imobilidade total.
— Eu não te disse meu nome. Como você sabe?
Ela mordeu o interior da bochecha como se estivesse em
profunda concentração antes que um enorme sorriso se abrisse em
seu rosto.
— A minha cabeça me disse.
Cabeça dela? Eu a encarei até perceber o que ela queria dizer.
Ela deve ter ouvido meu nome ser dito por Ophan Mira antes. As
pedras carregavam o som como um túnel carregava o vento.
Falando no anjo... Ophan Mira circundou a figueira.
— Pluma, o Sera... — ela parou de falar ao ver minha
acompanhante. — Pluma Naya, o que você acha que está fazendo
aqui?
— Estava passando um tempo com a minha amiga. — Suas
mãos estavam unidas na mesa de quartzo como se ela estivesse no
meio de uma negociação comercial.
Eu me peguei sorrindo ao ver como ela não estremeceu ou
hesitou.
— Sua... amiga?
Que rudeza, Ophan. Eu não era digna de amigos?
Naya se mexeu na cadeira.
— Celeste e eu somos amigas.
— Que... maravilha. — Como as penas de Mira estavam
soldadas aos ossos das suas asas, nenhuma caiu. Se ela fosse
uma Pluma, essa mentira a teria custado uma. — No entanto, está
na hora de dormir. Por favor, prossiga para os dormitórios. Ophan
Pippa está esperando por você.
Um grande suspiro escapou do pequeno peito de Naya.
— Tudo bem. — Ela pulou da cadeira e de forma completamente
inesperada, me envolveu em um abraço, esmagando a seda azul-
petróleo da minha jaqueta. — Tchau, Celeste.
— Tchau, Naya. — Fiquei tão surpresa com sua demonstração
de afeto que não a abracei.
Enquanto contornava a mesa em direção a Ophan Mira, ela
perguntou:
— Você vai voltar para brincar comigo?
Não. Eu precisava dizer não.
— Eu... eu... — Um olhar para o rosto tenso de Mira fez meu
bom senso voltar. — Provavelmente, não.
Vim por um motivo e apenas um: ajudar Mimi. Se os anjos se
mostrassem incapazes ou relutantes em me ajudar, eu não teria
nenhum propósito em visitar as associações, muito menos formar
relacionamentos com Plumas mais jovens que eu não veria nos
próximos anos, uma vez que Plumas sem os ossos das asas não
tinham autorização do Elysium para sair das associações, já que
seus corpos eram tão frágeis e mortais quanto dos humanos.
Seu lábio inferior tremeu.
— Mas nós somos amigas.
— Pluma Naya — Mira resmungou o nome da menina —, pode ir
agora.
Ela piscou para a Ophanim antes de voltar seu olhar magoado
para mim. As lágrimas escorreram por suas bochechas, brilhando
como diamantes quebrados. Ela as enxugou, em seguida se virou e
correu, fazendo meu coração parecer tão frágil quanto uma pétala
seca.
Mira observou os cabelos dourados de Naya até que ela
desapareceu no corredor que levava aos dormitórios infantis.
— Ela é uma menina... extremamente emotiva.
Mais uma coisa errada em nosso mundo: os anjos exaltavam a
empatia e ainda assim defendiam o distanciamento emocional.
Leigh foi muito compassiva com seus pecadores.
— Ser emotivo não é uma falha, Ophan.
— Eu disse que era? — Se minhas penas estivessem em
exibição, seu tom as teria congelado.
— Então, o Seraphim pode me ajudar, Ophan?
— Não. Mas me pediram para que você visitasse a Sala de
Classificação para verificar a pontuação dela e para te lembrar de
ajudá-la a não comprometer sua morte natural.
Eu bufei.
— Não vou ajudá-la a cometer suicídio.
— Eu nunca disse que você faria isso. — Mas ela estava
pensando. Eu podia ver na miríade das rugas em sua pele
centenária. — Talvez você deva verificar sua pontuação também.
Me levantei de forma tão abrupta que a cadeira escorregou no
quartzo.
— Eu sei a minha pontuação.
— Sabe?
— Sim. Eu sei.
— Posso saber quais são os seus planos?
— Viver cada dia como se fosse o último, porque um deles
eventualmente será. — Caminhei em sua direção, parei para colher
um figo de um galho e depois o mordi. Impecavelmente maduro.
Fiquei tentada a cuspir. Mas não o fiz.
— Celeste... — Ela nivelou seus olhos desconfiados nos meus.
Senti que ela queria me dizer para não desperdiçar minhas
bençãos angelicais. No final, ela não acrescentou mais palavras
após meu nome.
— Adeus, Ophan.
Antes de sair, atravessei as portas curvas e deslizantes de vidro
da Sala de Classificação e me sentei em uma cadeira na longa
bancada que circundava a sala. Pressionei a palma da mão no
painel de vidro até que o holo-ranqueador zumbiu para a vida, então
digitei Muriel Moreau sobre o vidro frio. Seu rosto apareceu em três
dimensões, tão incrivelmente realista que parecia que ela estava
sentada na minha frente. Seus lábios flexionaram e então se
endireitaram, e seus luminosos olhos azul marinho encontraram os
meus, mandando ondas de ternura sobre mim.
Analisei seu perfil até que avistei sua posição. Só então, eu soltei
o ar que inspirei quando estava no refeitório: 7.
Do ponto de vista celestial, era uma pontuação incrível. Sua
alma, uma vez colhida, seria levada para o Elysium e teria a escolha
entre permanecer lá para sempre ou retornar à Terra dentro de um
novo corpo para outra vida. Na minha opinião, sua alma era perfeita
e não merecia nem um único dígito, mas descobri que minhas
visões de certo e errado diferiam muito dos Ishim.
Estiquei o pescoço em direção ao céu além do vidro abobadado
com suas listras falsas de laranja e rosa. O Elysium não merecia
alguém como Mimi.
Ela provavelmente não ia ficar. Principalmente quando
percebesse que Jarod e Leigh não estavam lá. Eu gostaria de poder
prepará-la de alguma forma para a decepção, mas não tínhamos
permissão para falar do Elysium com humanos. E embora eles
acreditassem que eu era imprudente e indigna, eu respeitava essa
lei de forma chocante.
Voltei meu olhar para o único dígito flutuando abaixo de um rosto
que eu conhecia melhor que o meu, e meu pulso estremeceu em
meus ouvidos, soprando para longe todos os outros sons. Um dia
próximo, esse rosto não existiria mais. Este perfil desapareceria. A
mulher que passei a amar teria morrido.
Com os ouvidos ainda zumbindo, verifiquei o que custou a Mimi
sete pontos: patricídio.
Minha perna parou de balançar. Meu sangue parou de bombear.
Mimi matou seu pai?
Por um momento, fiquei atordoada e, em seguida, cada som na
sala circular cresceu, substituindo o silêncio. Se ela o matou, foi
porque ele mereceu. Nunca bisbilhotei a vida dela, da mesma forma
que ela nunca bisbilhotou a minha. Embora nosso passado tenha
moldado nossa personalidade, nenhuma de nós permitiu que ele
moldasse nosso relacionamento. Eu a respeitava o suficiente para
continuar obedecendo ao nosso acordo tácito e deixar a história de
seu pecado se desvanecer no éter junto com seu corpo.
Com cautela, pressionei a palma da mão no painel de vidro, me
vinculando a Mimi para que nenhum Pluma a perturbasse de agora
em diante. Assim que as palavras ATRIBUÍDO A CELESTE DA
ASSOCIAÇÃO 24 apareceram em grandes letras maiúsculas sobre
seu retrato trêmulo, desliguei o holo-ranqueador e deixei a
associação de uma vez por todas.
4

— E depois, o que aconteceu?


enfiadas embaixo do travesseiro.
— perguntei, com as mãos

Nos últimos dois dias, Muriel me presenteou com histórias sobre


seu passado. Eu já tinha ouvido algumas, mas não essa. Enquanto
permanecíamos deitadas em sua cama king-size, o relógio na mesa
de cabeceira exibindo a hora em números vermelhos brilhantes – 4
da manhã – seus dedos frios deslizaram pelo meu cabelo. Desde
ontem, ela não tinha se levantado. Ela culpou a letargia por sua falta
de sono, e sim, não tínhamos dormido muito, ou pelo menos eu,
não. Ela vinha cochilando muito, às vezes no meio de nossas
conversas.
Meu lado egoísta queria mantê-la acordada. Queria acumular
tantos momentos quanto possíveis com ela para que pudesse
relembrá-los nos próximos meses. Como já tive o coração partido,
sabia que o primeiro ano seria o mais difícil.
— Então, o que Pierre fez?
Seus lábios, muito pálidos sem batom, se curvaram de forma
melancólica.
— Ele me levou para um campo de tiro. Me ensinou como lidar
com tudo, de armas a rifles.
Revirei os olhos.
— Que romântico.
Ela virou a cabeça e abriu os olhos.
— Isso me salvou, Celeste.
— Salvou?
Sua mão parou no meu longo cabelo castanho.
— Do meu pai.
Apertei os molares. Jurei não me intrometer, mas a pergunta
escapou.
— Como ele te machucou?
— Como só os homens que não têm autocontrole e moral podem
fazer.
Nunca escolhi ninguém com mais de quarenta pontos, mas não
era estranha ao pecado. Só porque não escolhi os grandes
pecadores, não significava que eu não tinha vasculhado seus perfis
e os crimes que eles cometeram para ganhar sua pontuação.
Crimes atrozes. Irredimíveis. Que foi a verdadeira razão de eu ter
ficado longe, não julgando-os merecedores. Eles eram monstros,
mais terríveis do que aqueles que povoavam as histórias de Ophan
Pippa.
Meus pensamentos vagaram para Naya. Pensei em como um
dia ela teria que lidar com esses pecadores, decidir se mereciam
uma segunda chance e se ela daria isso a eles. Normalmente, os
perigosos, especialmente os homens, eram deixados para os
rapazes Plumas, mas algumas garotas os pegavam. Leigh pegou.
Só que Jarod não era tão terrível, tendo ganhado sua pontuação
de três dígitos por causa de um erro cometido pelo homem que
inspirou minha compra do porco neon com asas.
— Seu pai ainda está vivo?
— Non, ma chérie.
— Como ele... se foi?
— Sem dor. Infelizmente. — Sua atenção se desviou para o teto
cinza perolado. — Minha pontaria era muito boa.
— Sinto muito, Mimi.
— Pelo quê?
— Por você ter sofrido nas mãos de alguém que deveria te amar.
— Humm. — Ela passou a mão sobre o edredom macio. — Eu
não sinto. Se ele tivesse sido gentil, eu não teria conhecido Pierre.
Se eu não tivesse conhecido Pierre, não teria aprendido a atirar. E
se não tivesse aprendido a manusear uma arma, Isaac Adler nunca
teria me contratado, e eu não teria conseguido criar o Jarod e
depois, você. — Ela passou o nó dos dedos pela minha bochecha.
— Eu acredito que tudo acontece por uma razão. Mesmo as coisas
terríveis. — Mimi confundiu meu silêncio com falta de compreensão,
porque acrescentou: — O que não te destruir vai te transformar.
Lembre-se disso, Celeste. Se lembre de que o mesmo fogo que
transforma areia em vidro pode transformar toras em cinzas.
A menos que fosse fogo de anjo. O fogo de anjo transformava
algo em nada. Cremava asas e destruía almas.
Me virei de costas.
— Não gosto de fogo.
— Uma vida sem fogo seria fria e triste, ma chérie. — Ela
acariciou uma das minhas olheiras. — Agora durma um pouco, e
pela manhã podemos fazer crepes para que eu possa demonstrar
as maravilhas do fogo. A menos que você prefira comer massa crua.
Olhei de lado para ela, combinando seu sorriso pálido com o
meu.
— Você pode me falar mais sobre o Pierre? O que aconteceu
com ele?
— Ele fazia parte das legiões estrangeiras.
— E?
— Feche os olhos e contarei a história de como Pierre e eu
começamos e, em seguida, de como terminamos.
Terminaram. Como eu detestava essa palavra.
Forcei meus olhos a se fecharem quando ela começou sua
história. Como se minha mente tivesse feito um pacto secreto com
meu coração sobre não querer ouvir o final, ela se desligou
enquanto Muriel e Pierre ainda estavam felizes e juntos.

A quando o amanhecer chegou, iluminando as


bordas das grossas cortinas vermelhas, me condenando por ter
perdido um tempo precioso com Mimi. Esfregando os olhos
sonolentos, me virei.
Quando meu olhar encontrou um par de olhos que eu não via há
anos e que eu esperava nunca mais ver, me sentei.
Se o Seraphim veio, significava apenas uma coisa: Mimi tinha
partido.
5

— N ão! — Rastejei em direção a Muriel, sem prestar atenção


a Seraph Asher.
Seu rosto estava suave, sem a dor e a melancolia que ela
carregara por décadas. Pressionei a bochecha contra a sua.
— Você me deixou sem dizer adeus — resmunguei em seu
ouvido.
— Celeste... — A voz de Asher me jogou de volta para o
momento mais sombrio da minha vida.
Me afastei de Mimi, levando as mãos às bochechas que
umedeceram tão rápido que as lágrimas pareciam estar sangrando
dos meus poros.
— Você, cale a boca. — Franzi o cenho quando os ossos das
minhas asas tensionaram e expeliram uma pena. — Filho de uma
pena. — Fechei os olhos até a dor diminuir e então os abri e os fixei
no homem que forçou minha amiga a ascender antes de incinerar
suas asas. Leigh estava morta por causa dele. — Eu não sabia que
coletar almas era uma das tarefas dos Seraphim. Os líderes do
Elysium não têm coisa melhor a fazer do que transportar almas?
Minha espinha tensionou quando outra pena caiu dos ossos de
minhas asas.
— Entendo que você esteja sofrendo...
— Sofrendo? Não estou sofrendo. Estou enfurecida. Enfurecida,
Seraph. — Minha voz era quase um sussurro, mas deve ter
parecido com um soco, porque Asher endireitou os ombros largos e
cruzou os braços, esticando a camurça marrom que cobria seu
torso.
— Primeiro a Leigh, agora a Muriel. — Segurei a mão dela entre
as minhas e a pressionei contra minha bochecha, implorando a seus
dedos que acariciassem minha pele uma última vez. — Você não
pode trazê-la de volta? Sei que ela não pode viver para sempre,
mas... — Minha voz falhou. Vacilou. Fechei meus lábios antes que o
soluço que crescia dentro de mim pudesse rasgar o ar angustiante.
Você me prometeu semanas.
E crepes. Você me prometeu crepes!
Minhas lágrimas escorreram em torno de seus dedos, molhando
os calos deixados por seus amados fuês e colheres de pau.
Para quem devo ir para casa nos fins de semana?
Com quem devo reclamar nos dias ruins? Ou nos bons?
Ah... Mimi.
— Sabe, Seraph, ela vai te odiar quando a alma dela assumir a
forma de Elysium e perceber o que você fez. Ou melhor, o que você
não fez, que foi salvar o menino que ela amava. Um menino cuja
alma não merecia ser apagada.
— Terminou? — Embora os contornos do corpo de Asher
estivessem borrados, suas íris cor de ciano com um feixe bronze
estavam em foco perfeito.
— O dia em que eu terminar de criticar as injustiças cometidas
por nossa espécie é o dia em que morrerei, então não, ainda não
acabei. Mas isso vai acabar acontecendo. Pode ser em três meses.
Pode ser daqui a setenta anos. Quem em Abaddon sabe quando
este meu corpo vai falhar? Quando a morte finalmente vai me
silenciar? Que celebração será em todas as associações, hein?
A mandíbula de Asher endureceu enquanto tendões e ossos se
contorciam em seus antebraços bronzeados, ainda cruzados e
pressionados contra o peito.
— Você terminou agora?
— Eu não estava falando em inglês? Ah, espere... isso não
importa, já que você é fluente em todos os idiomas. — Minhas
omoplatas arderam. Outra pena se foi.
— Celeste, pare com isso.
— Por quê? Estou ferindo seus sentimentos, Seraph? Não achei
que você os tivesse. — O Ishim me puniu novamente, e eu cerrei os
dentes até que percebi que as pontadas quentes de dor estavam
abafando aquela que me doía no peito. Então minha mandíbula
relaxou e dei boas-vindas ao desconforto.
Asher soltou um grunhido baixo e longo.
— Aposto que você está se arrependendo de ter se oferecido
para coletar a alma de Muriel, hein?
Ele apertou os lábios, amplificando as pequenas linhas que os
circundavam, bem como as que estavam ao redor dos olhos. Anjos
não envelheciam quando em Elysium ou Abaddon e envelheciam de
forma muito lenta dentro das associações e, ainda assim, Asher
parecia ter envelhecido dez anos desde que eu o vi pela última vez
em Paris.
Me sentei e o olhei com rancor.
— Por que você está aqui?
— Para cumprir uma promessa que fiz a Leigh. Uma que eu
falhei em manter.
— Que promessa foi essa, Seraph?
— Te ajudar.
— Me ajudar? — Quase ri. Não. Eu ri. E então, eu parei. —
Espero que não tenha sido para me ajudar a ascender, porque não
tenho nenhum interesse nisso.
Nos encaramos. Se ele achava que eu desviaria o olhar primeiro,
ele realmente não me conhecia. Bom, mas por que ele me
conheceria? Não é como se tivéssemos passado horas juntos no
passado. A maior parte do tempo que passamos na companhia um
do outro foi na tarde chuvosa em que ele me buscou na Corte do
Demônio para dar tempo e espaço a Jarod para explicar o que ele
fez com a ajuda de Asher.
No fundo, eu sabia que Jarod era o mais culpado pela ascensão
forçada de Leigh, mas Asher deveria ter se recusado a interferir. Ao
aceitar tirar Leigh de Jarod, ele a condenou. Ele tinha feito isso na
esperança de que, uma vez longe do seu grande amor, ela mudasse
de ideia e se casasse com o Arcanjo?
E pensar que eu a encorajei a se casar com o Seraphim. Eu
deveria ter mantido minha boca fechada no dia em que ele visitou a
associação. Eu nunca deveria ter ido a Paris e a encorajado a
completar sua missão. Se eu tivesse ficado fora da sua vida, talvez
ela estivesse no Elysium em vez de enterrada sob a terra fria.
Me parecia que a culpa também era minha.
Minha ânsia de mudança havia condenado Leigh.
A constatação fez com que a mão de Mimi escorregasse do meu
aperto e amassasse o edredom grosso.
Meu estômago se contraiu de culpa, enchendo minha garganta
de bile. Me virei e saí da cama, mas devo ter batido em uma das
minhas penas caídas, porque o quarto desapareceu, sendo
substituído por um pedaço de gramado queimado de sol e cercado
por espigões de madeira e arame.
— Você não pode matar seu cachorro de fome porque está com
raiva dele. — Acariciei o filhote de Rottweiler rechonchudo e recebi
um beijo desleixado em troca. — Ele ainda é um bebê. Não entende
o que fez de errado.
Monica puxou a coleira.
— Ele é meu cachorro, não seu.
— Não estou tentando roubá-lo de você.
— Então por que é que você está aqui?
— Para te lembrar de que você precisa pegar leve com ele.
— Ele é um cão de guarda. Pelo menos, deveria ser. Acho que
vou ter que pedir meu dinheiro de volta se ele continuar lambendo
crianças arrogantes. Quantos anos você tem? Oito?
Remexi as mãos.
— Onze.
— Que seja. Você é uma criança. Uma criança que está me
dando nos nervos, e eu estou ficando com os nervos à flor da pele
com vocês dois. — Ela acenou em direção ao cachorro.
— Qual é o nome dele?
— Rambo.
— É um bom nome para um cão de guarda.
Ela olhou para a bola de pelo preto por um momento, e eu senti
um afeto ali.
— Vamos torcer para que ele mereça. Ei, Rambo, sente-se.
Agora.
Rambo não se sentou. Em vez disso, ele olhou para mim
enquanto Monica arrastava seu corpinho pela grama irregular.
Entendi sua necessidade de um cão de guarda. Especialmente
porque ela morava sozinha com a irmã mais nova e a mãe, mas a
única maneira de fazer Rambo obedecer era misturando um pouco
de calor em sua autoridade.
— Você tem guloseimas?
— Guloseimas? Garotinha, eu mal tenho comida suficiente para
mim e minha família. Não tenho guloseimas. Além disso, ele não fez
nada para merecer isso.
Procurei em minha mochila e tirei uma barra de granola.
Provavelmente não era a comida de cachorro mais saudável, mas
não tinha chocolate dentro, então presumi que não era ruim.
— Posso tentar algo?
Ela olhou para mim e depois para a embalagem amassada. E
então, como ela não era má, só estava cansada e ansiosa por uma
solução rápida, ela suspirou e cedeu.
— Se ele cagar por todo o lugar, você vai limpar.
— Combinado. Você pode soltá-lo?
Monica ergueu uma sobrancelha preta com piercing, mas cedeu
novamente. Assim que Rambo se viu solto, ele pulou em minha
direção, abanando o rabo.
Quebrei um pedaço da barra de granola.
— Rambo, sente-se.
O cachorro pulou em mim, tentando pegar a comida, mas
continuei com ela erguida.
— Sente-se, Rambo, e isto é seu.
Ele ficou de quatro e começou a lamber minhas panturrilhas e
tornozelos.
Comecei a rir, porque fazia cócegas.
— Rambo, sente-se.
Monica estava olhando para mim, com os braços cruzados na
frente da blusa azul marinho que combinava com um hematoma que
ela exibia ao longo de seu bíceps esquerdo. Eu não tinha certeza de
como ela tinha conseguido aquilo, mas suspeitei que alguém a havia
machucado.
Me agachei e pressionei o dedo indicador logo acima da cauda
de Rambo.
— Sente-se.
O cachorro se sentou.
— Fique.
Sua cauda começou a balançar e ele saltou.
— Sente-se. — Pressionei o local novamente, e ele se sentou.
Desta vez, quando eu disse: fique, ele ficou. Alimentei-o com um
pedaço de granola, que ele engoliu sem mastigar.
Eu o fiz repetir esses dois comandos várias vezes, e então
entreguei a barra de granola para Monica e fiz com que ela
repetisse meus movimentos. Depois de uma hora com o sol batendo
em nossas cabeças, Rambo estava sentado e ficando como um
profissional.
Mas a melhor parte foi que quando ele lambeu os dedos dos pés
descalços de Monica, em vez de repreendê-lo, ela se agachou e
acariciou o cachorro.
Ela ganhou um de seus três pontos de pecador por maltratar
Rambo. Minha missão era lembrá-la de que a bondade compensava
mais do que a crueldade. Depois de ganhar minhas três penas,
gastei minha mesada em comida de cachorro para dois meses
antes de sair de sua vida.
Saí da lembrança como um mergulhador em alto mar que ficou
muito tempo sem ar. Asher pairava sobre mim, com os dedos
cerrados em volta do meu braço.
Mesmo que ele tenha me salvado de cair de cara, eu grunhi.
— Tire as mãos de mim!
Seus dedos se abriram, mas ele não deu um passo para trás,
assim como não desviou o olhar. Ele estava esperando que a
lembrança contida na haste da pena me deixasse mais calma e
flexível?
Pressionei a mão trêmula contra meu abdômen em espasmos.
— Pegue a alma dela e saia.
As pontas cor de bronze de suas penas turquesas balançaram
enquanto ele se virava e contornava a cama.
Eu não ia me virar.
Não ia vê-lo capturar a alma de Mimi e levá-la embora.
Mas quando me sentei sobre os calcanhares e apertei os
joelhos, meu olhar encontrou o espelho emoldurado encostado na
parede.
Eu não queria ver.
Mas vi.
Eu vi tudo.
Vi Asher colocar a palma da mão nas costelas de Mimi.
Vi os fios dourados de sua alma emergirem de sua casca sem
vida e aderir às mãos dele. A atração delicada que ele exercia sobre
os fios de seda. A esfera cintilante descansando calmamente em
sua palma, inteira e brilhante.
Eu queria tirar a alma de Mimi de suas mãos e envolvê-la entre
as minhas. Guardá-la no porta-joias que ela me deu no meu
aniversário de dezesseis anos. Aquele que ela preencheu com
dezesseis anéis, um para cada ano que perdeu. Ela riu quando
baixei minha colher cheia de crème brulée para colocar todos eles.
Aparentemente, foram feitos para serem usados separadamente.
Nunca fiz isso. Eu os mantive juntos.
Se eu pudesse manter sua alma e a minha juntas também...
Os olhos de Asher encontraram os meus no espelho.
— Vá embora — murmurei.
Uma violenta tempestade atingia meu interior, ameaçando
destruir minha dignidade enfraquecida.
Em vez de usar a porta, ele abriu a janela, bateu as asas e
saltou da balaustrada para o céu manchado pelo amanhecer.
6

M uitas horas depois, telefonei para o advogado de Mimi,


um homem chamado sr. Alderman. Ele chegou e
assumiu o controle enquanto eu me sentava no sofá
como um zumbi, segurando uma almofada contra o meu peito
dolorido e olhando com indiferença para a dança lenta das nuvens
do lado de fora das janelas.
Como ela morreu em casa, o sr. Alderman chamou a polícia para
que pudessem atestar que sua morte foi por causas naturais, e
depois o legista veio buscar seu corpo. Quando uma equipe de
limpeza apareceu, saí do meu transe e gritei para que fossem
embora.
O sr. Alderman tentou me acalmar.
— Srta. Moreau, a Muriel pediu que suas roupas fossem
retiradas para que você não precisasse...
— Não quero que toquem em nada — grunhi. — Nem nos
lençóis, nas roupas dela, nem mesmo na escova de dente. Nada.
O homem foi razoável o suficiente para não discutir comigo.
— Tudo bem. Quando estiver pronta, é só me ligar e eu cuidarei
de tudo. — Ele deu um tapinha em suas coxas cobertas por lã cinza
fina. — Uma última coisa. A sra. Moreau me informou sobre o
desejo de que suas cinzas fossem enterradas na cripta dos Adler.
Pressionei meus lábios, não me sentindo pronta para discutir
sobre enterrá-la, porque isso a levaria para longe de mim para
sempre. Sem mencionar que significava uma viagem para Paris e
Leigh, e eu não estava pronta para isso ainda.
Antes de sair, o sr. Alderman me fez assinar uma série de
papéis. Ele me disse que era para que eu pudesse tomar posse das
contas e da escritura do apartamento, mas não prestei atenção ao
que era. Se fosse para doar a qualquer um, não teria notado. Meus
olhos doíam muito para analisar o juridiquês e, no fundo, eu nem
ligava para os bens materiais. Especialmente da máfia.
Claro, Mimi tinha me explicado que o dinheiro que Jarod havia
deixado para ela não estava contaminado, que foi ganho pelos
estábulos de corridas de cavalos de seu tio, que todo o dinheiro de
sangue foi distribuído para instituições de caridade, mas eu poderia
confiar na palavra de Jarod? Mesmo que não fosse intrinsecamente
mau, ele ainda dirigiu um império de violência e coerção. Uma vez
que meus pensamentos e emoções se desemaranhassem, eu
ligaria para o sr. Alderman para discutir a criação de novas
instituições de caridade, porque eu não queria ou precisava do
dinheiro de Jarod Adler, limpo ou não.
Terminei de assinar os documentos, e ele os guardou em sua
pasta de couro elegante.
— Posso fazer algo por você antes de ir, srta. Moreau? Jantar?
Uma carona para o seu apartamento no campus?
O céu além das janelas da cobertura era da cor de lavanda,
manchado de pêssego e dourado. Eu estava prestes a chamar o
nome de Mimi – ela adorava o pôr do sol – quando me lembrei de
que ela não estava mais aqui, e meu coração se partiu na minha
garganta.
— Srta. Moreau? — O sr. Alderman mudou de posição nos seus
sapatos tão polidos que refletiam seu rosto redondo. — Precisa de
alguma coisa antes que eu vá?
Balancei a cabeça e me levantei do sofá. Ele estendeu a mão,
provavelmente imaginando que eu iria apertar, mas passei por ele e
destranquei a porta do terraço. Envolvendo as mãos no parapeito de
vidro, olhei para a cidade que adorava, embora agora estivesse sem
as pessoas que a tornaram especial. O lago de patos no Central
Park cintilava como papel alumínio e os aglomerados das árvores
frondosas estremeciam nos caminhos sinuosos de cimento ao longo
dos quais os humanos serpenteavam como formigas. O mundo não
parava de girar por alma nenhuma.
Quando todas as cores se misturaram, me enrolei nas almofadas
firmes do sofá ao ar livre e fechei os olhos, sentindo os arrepios
subirem pelos meus braços nus e o pedaço de pele do estômago
exposto entre a bainha da camiseta desbotada, que dizia Mestre do
Show de Horrores, e o cós elástico da legging de algodão.
Por um momento, pensei em comer e tomar banho, mas não
tinha vontade de fazer nenhum dos dois. Se Mimi estivesse aqui,
teria me forçado a me alimentar com algo delicioso, mas ela se foi.
Será que ela já tinha chegado ao Elysium? Já havia descoberto que
seu menino não chegou à terra dos anjos? Teria descoberto o que
eu era?
Pensei no homem sobre quem ela me falou ontem à noite,
Pierre. Ele estava em Elysium? Eu tinha me esquecido de perguntar
a Asher.
Asher, que prometeu a Leigh que cuidaria de mim.
Que notório.
Quando ela pediu isso a ele? Depois que ele a arrancou do
homem que ela amava ou enquanto queimava suas asas? E então
pensei nas penas que perdi esta manhã. Elas ainda estavam sobre
o edredom amarrotado ou algum dos meus visitantes as dissolveu
inadvertidamente?
Por fim, a ladainha de deliberações me embalou, e eu caí no
sono, sonhando com Rambo e Monica. Sonhei que eles eram
inseparáveis e haviam resgatado um ao outro mais de uma vez ao
longo dos anos. Acordei com um sorriso que rapidamente
desapareceu com a visão do apartamento escuro e silencioso.
Um novo amanhecer rompeu sobre a cidade, polindo as torres
de vidro, tijolos e metal, vencendo os tons monocromáticos do
crepúsculo. Tentei voltar a dormir, sem vontade de enfrentar este
novo dia.
O cheiro de Mimi emanou das fibras macias da manta de
cashmere com que me cobria e envolveu meu coração machucado
como uma das videiras madressilvas da associação, torturante e
reconfortante. Eu me envolvi no cobertor quente, grata pelo calor
que proporcionou a minha pele gelada.
Mas me sentei de repente e a coberta caiu em volta da minha
cintura. O sr. Alderman tinha me coberto antes de sair? Ele foi o
último a sair e ninguém mais tinha a chave do apartamento.
Envolvendo-a nos ombros como uma capa, voltei para dentro. Eu
esperava silêncio, mas fui recebida com o som distinto de algo
chiando. Meu coração bateu forte quando atravessei a sala e corri
pelo curto corredor em direção à cozinha. Alguém ressuscitou Mimi?
Isso era possível?
Meus pés derraparam quando parei abruptamente. E então meu
coração afundou.
— Como, por pluma, foi que você entrou? E o que exatamente
você pensa que está fazendo?
Asher olhou por cima do ombro para mim.
— Pela varanda onde você estava dormindo e estou fazendo seu
café da manhã. — Ele prendeu o cabelo em um coque masculino e
trocou a roupa de camurça por uma camiseta branca e calça jeans,
o que o fez parecer diferente. Um pouco mais... humano. Ainda
assim, totalmente indesejável.
— Não estou com fome.
— A Muriel me avisou que você diria isso.
Meu coração deu uma pirueta lenta.
— V-você falou com ela?
— Por um bom tempo.
Que injusto. Embora eu desejasse perguntar sobre a conversa,
queria que Asher fosse embora.
Ele preparou ovos mexidos e empurrou o prato para mim.
— Você precisa comer.
Enquanto ele vasculhava cada gaveta da cozinha,
provavelmente em busca de talheres, encarei o monte de gomos
amarelos, sentindo o estômago balançar como uma pena caída.
A coberta... ele devia tê-la colocado sobre mim.
Larguei o pano onde estava e recuei.
— Já que você encontrou o caminho da entrada, sem dúvida
será capaz de encontrar o da saída.
Eu me virei e refiz meus passos até a sala de estar, indo em
direção à minha ala do apartamento. Bati a porta, encontrando
grande satisfação na força com que a madeira bateu e o quanto o
som da tranca foi estridente.
Depois de um banho quente, me acomodei nos lençóis de seda
e peguei meu celular, ligando-o pela primeira vez desde sexta-feira.
Eu tinha várias chamadas perdidas, todas de Jase. Não me
incomodei em ouvir as mensagens da caixa postal, pois ele havia
enchido a tela com mensagens de texto.
JASE: As pizzas estão a caminho. Onde você está?
JASE: Filme ou série?
JASE: Celeste?
JASE: As pizzas estão aqui.
JASE: Estou de boxer. Aquela horrível com seu lindo rosto
nela.
JASE: Se você não chegar em casa logo, vou comer toda a
cobertura extra de berinjela da sua pizza.
JASE: Celeste, tudo bem se você se esqueceu de mim e fez
outros planos, mas me mande uma mensagem dizendo que
você está bem.
JASE: Certo, agora estou preocupado pra cacete.
JASE: Por favor, me ligue.
JASE: Estou prestes a registrar uma queixa de
desaparecimento. Não é brincadeira.
JASE: Celeste, droga. Liga para mim!
Finalmente liguei. Ele gritou comigo por três minutos inteiros
quando me ouviu dizer “alô”. Depois que ele colocou o estresse para
fora, contei a ele sobre Mimi e pedi para remarcarmos a pizza para
hoje à noite antes de me lembrar que era terça-feira. Ele trabalhava
às terças. Suas únicas noites de folga eram domingos e segundas.
Ele me disse para calar a boca, que pediria a alguém para cobrir
seu turno, e então perguntou se eu queria que ele fosse para a
cobertura. Embora eu estivesse tentada a convidá-lo, disse que não.
Jase era meu amigo, o melhor e único amigo, mas ele nunca
conheceu Mimi, nem veio a este apartamento. Por hábito, mantive
essa parte da minha vida privada, porque meu passado não era
facilmente explicado.
Depois de encerrar a ligação, enviei um e-mail para meu
orientador explicando minha ausência, depois assisti à TV, cochilei,
acordei com comerciais sobre queda de cabelo. Tentei dormir de
novo, mas sem sucesso, então vesti um suéter preto, a legging de
couro, fechei o zíper da bota, passei uma escova no cabelo
emaranhado, peguei o telefone e me aventurei para fora do meu
quarto.
Paralisei na soleira da cozinha.
O Asher ainda estava lá, como uma alma penada. Ele se sentou
em uma das cadeiras altas, bebendo água de um copo de cristal.
Ou talvez vodca pura. Antes, eu achava que o álcool custava penas,
mas aprendi que era mentira. Podíamos beber, usar drogas e fazer
sexo selvagem, desde que fizéssemos os dois primeiros com
moderação e o último, em particular.
— Coloquei seus ovos no forno para que não esfriassem.
Franzindo os lábios, fui até a geladeira, abri e peguei uma
garrafa de água.
— Celeste, por favor, coma alguma coisa. Se você não quer
ovos, sei outras receitas.
— Qual parte de “sair” você não entendeu, Seraph?
Ele apoiou as palmas das mãos contra a ilha de pedra negra.
— Grande Elysium, você é teimosa.
— Você achou que duas mortes e quatro anos me deixariam
tranquila?
Seus olhos endureceram, parecendo cada vez mais com as
bolas de gude com joias que costumávamos rolar no chão da
associação quando éramos crianças.
— Se você comer, eu vou embora.
— Humm. Tentador. — Tirei a tampa da água e tomei um longo
gole. — Tenho uma ideia melhor. Eu vou embora, e você pode ficar
e comer seus ovos. — Peguei a bolsa na cadeira ao lado dele, puxei
a jaqueta azul-petróleo e coloquei o celular no bolso.
— Celeste! — A voz do Seraphim era afiada o suficiente para me
fazer parar.
— O quê?
— Você tem menos de três meses para terminar suas asas, e
seiscentos e setenta e cinco penas para ganhar. Nós precisamos...
— Nós? — Arqueei uma sobrancelha. — Não somos uma
equipe, Seraph. Eu sou eu e você é — um incômodo — você.
Me senti muito generosa por não adicionar várias outras
descrições: um anjo detestável com um complexo de Deus, um
fantoche de Elysium, pior que um Triplo.
Um desses pensamentos me custou uma pena. Ergui o queixo
quando uma delas caiu de minhas asas e abri a porta, saindo para o
pequeno patamar que dava lugar ao elevador privativo.
— Além disso, não quero ascender e, ao contrário de Leigh,
ninguém me obriga a fazer nada que eu não queira. — Um sorriso
escapou de meus lábios quando o elevador apitou e eu entrei. —
Mesmo que eu adorasse ver alguém tentar. — Adicionei quando
Asher apareceu na porta.
— Para onde você está indo?
— Para casa. — Quando ele baixou as sobrancelhas, percebi
meu erro – ele não sabia sobre meu apartamento compartilhado em
uptown. Apertei o botão do lobby e bati com a bota enquanto as
portas se arrastavam para fechar. Elas poderiam ir mais devagar?
Uma mão as abriu de novo e Asher entrou, seu corpo enorme
cobrindo o espaço de ponta a ponta.
— Casa?
Estufei o peito, tentando me fazer parecer maior, mais resistente.
— A associação. Ai. — O Ishim arrancou outra pena de minhas
asas.
Ele avaliou a pena caindo.
— Acho que seu destino não é a associação.
Apertei os lábios com força, escolhendo o silêncio em vez de
mais tortura. O elevador começou a emitir um barulho baixo e
extremamente desagradável.
— Você pode soltar a porta, por favor?
— Posso.
E ele soltou.
Depois que entrou.
Fiz uma careta durante todo o percurso.
E então eu disse a ele para se perder, o que me rendeu um olhar
que fez minha mão se coçar para agir. O Ishim não devia ter
entendido minha intenção, porque não roubaram uma pena de
minhas asas.
Depois que saímos do Plaza e cruzamos o parque, eu disse:
— Perseguir custa pontos no ranking dos humanos.
Um olho azul-verde-bronze se apertou.
— Que bom que não sou humano.
Parei de andar e me virei para ele.
— Seraph, sou uma causa perdida. De forma voluntária e
entusiasta. Tenho certeza de que sua consciência está pesando
muito agora, mas não estou interessada em ser salva, então, por
favor...
— Ouvi dizer que você se matriculou em Columbia. Presumo que
more no campus.
Grunhi.
— Eu estava sendo muito sutil quando eu...
— A Muriel está muito orgulhosa de você por ser ambiciosa e se
sente péssima por você não se formar.
Ofeguei.
— Por que eu não iria me formar?
Ele inclinou a cabeça para o lado e uma mecha dourada caiu da
tira de couro que prendia seu cabelo.
— Porque a Mimi...
— Você não pode chamá-la assim!
Ainda que todos os pedestres, homens ou mulheres, estivessem
boquiabertos com Asher, minha voz elevada trouxe mais atenção
em nossa direção. Até os cães que passavam inclinaram a cabeça
na direção do Seraphim e de sua grande energia angelical.
Sex appeal era uma coisa, mas Anjo appeal era uma coisa do
Asher.
— A Muriel me pediu para te guiar de volta ao caminho certo.
Abri um sorriso de desdém que exibiu todos os meus lindos
dentes brancos.
— O Elysium não é mais o caminho certo para mim.
Cada pena nas asas que ele não tinha se incomodado em
esconder com magia se contraiu.
— Celeste...
— Me diga, Seraph, ela te deu um tapa pelo que você fez ao
Jarod e a Leigh?
As pontas cor de bronze de suas penas absorveram o sol do
meio dia e refletiram nos meus olhos.
— O Jarod escolheu o destino da Leigh, Celeste.
Se eu tivesse superpoderes, a raiva batendo em meu peito teria
destruído todos os arranha-céus em um raio de dezesseis
quilômetros.
— Culpar os outros por seus erros é infantil e impróprio,
principalmente para um dos Sete.
O início de um estrondo escapou pela linha inflexível de seus
lábios.
— Sinto falta da Mimi. Ela foi tudo para mim depois que perdi a
Leigh. Tudo. Não tenho ideia de onde estaria hoje se ela não tivesse
me acolhido. O que sei é que não posso e não vou sacrificar meus
novos sonhos pelos antigos. A morte da Leigh me mudou. Mudou o
que eu queria da vida. Mudou a forma como eu via o mundo. —
Umedeci minha garganta dolorida engolindo a saliva. — A Mimi
provavelmente se dignou a falar com você porque ela é madura e
misericordiosa. Duas coisas que não sou.
— Claramente.
Não reagi à provocação, já que fui eu que levantei a questão.
— Se você tem algum respeito por mim, vai me deixar em paz.
Você fez isso uma vez, então não tenho dúvidas de que é capaz de
fazer novamente.
Mantive o queixo erguido, o desafiando a me enfrentar. Quando
ele não o fez, provavelmente muito ocupado rangendo os dentes,
me virei e caminhei pela via sombreada por olmos. Só quando
cheguei ao Bethesda Terrace, lancei um olhar por cima do ombro.
O menino de ouro de Elysium finalmente tinha sumido.
7

Q uando cheguei ao meu apartamento no quarto andar, sem


elevador, estava tonta e minha pele coberta de suor. Cada
osso do meu corpo doía e cada músculo tremia. Até piscar
os cílios foi doloroso. Eu estava péssima.
Larguei a bolsa no sofá surrado que Jase havia resgatado dos
proprietários anteriores do The Trap. Eu queria substituir a
monstruosidade de couro preto por algo novo, mas minha sugestão
foi recebida com um não categórico. Jase era tranquilo em quase
tudo, exceto com relação ao sofá. Então, depois de assinar meu
nome no contrato ao lado do dele, esfreguei-o com água e vinagre
branco até que cheirasse menos como vaca morta, traseiro humano
e cerveja velha.
Não me incomodei em chamar o nome do meu colega de
apartamento, já que ele estava na aula. Eu conhecia seu itinerário,
porque era quase idêntico ao meu. Do outro lado do pequeno
corredor, a porta de seu quarto estava entreaberta, revelando uma
cama feita com precisão militar, persianas abertas e nada de
bagunça à vista. Embora não tivesse seguido os passos de seu pai
no Exército, assim como o irmão, ele foi criado por um defensor da
limpeza, e isso moldou sua personalidade.
Eu não era desleixada, mas definitivamente não tinha TOC com
arrumação. Muitas vezes, deixei uma camiseta pendurada nas
costas da cadeira da escrivaninha e livros abertos com anotações
em todos os lugares. Mas desde que me mudei, fiz um esforço
consciente para arrumar a cama pela manhã, dobrar as toalhas em
nosso banheiro compartilhado e lavar meus pratos sujos. E quando
me esquecia, geralmente voltava para casa e encontrava as três
coisas feitas para mim.
Entrei no meu quarto com suas paredes cor de creme, móveis de
carvalho branco e janelas em formato hexagonal que davam para a
saída de incêndio do prédio. Dois pombos estavam empoleirados
ali, com as garras finas enroladas ao redor do corrimão e as penas
cinza-púrpura se agitando. Me lembrei de ter sentido inveja, porque
eles nasceram com todas as suas penas e não precisaram ganhá-
las. Eu nunca admiti isso para ninguém. Nem mesmo para Leigh.
Quer dizer, quem admitia ter inveja de ratos com asas, que era
como a maioria dos nova iorquinos viam os mascotes da cidade?
Quando fechei as cortinas, algo brilhou no telhado plano do outro
lado do pátio. Apertei os olhos, sentindo o coração acelerar com a
ideia de que Asher ou outro Verity tivesse me seguido, mas eram
apenas unidades de ventilação volumosas e antenas de TV.
Meu pulso se acalmou, e deixei a sol ofuscante para fora. Depois
de tirar as botas, me deitei na cama e fiquei olhando para a parede
lisa sobre minha mesa. Eu adorava arte, mas nunca havia decorado
um quarto. Nem nas associações, no apartamento parisiense de
Mimi, no Plaza ou aqui. Nunca senti a necessidade de marcar minha
presença ou simplesmente nunca me senti em casa em qualquer
lugar?
Provavelmente o último. Desde crianças, fomos ensinados que
nosso verdadeiro lar era Elysium, que o mundo humano era
simplesmente uma parada em nosso caminho para nosso destino
final.
Peguei o telefone da minha jaqueta, e procurei fotos artísticas.
Vasculhei três sites antes de encontrar o que estava procurando.
Encomendei duas gravuras gigantes emolduradas em alumínio e
cobertas com acrílico. Eu estava cheia dessa lavagem cerebral.
Cansada de ser itinerante. Este mundo era isso. Meu término.
Depois de colocar o telefone na mesa de cabeceira, fechei os
olhos. Achei que não conseguiria dormir de novo, mas logo o
arrulhar dos pássaros cinzentos das ruas desapareceu, substituído
pelo som das ondas quebrando na areia branca. Leigh estava lá, o
cabelo cor de pêssego esvoaçando ao redor do seu rosto oval, com
os olhos verdes brilhando de felicidade e as asas brilhando como se
estivessem incrustadas de diamantes.
Como você pode sorrir depois do que nosso povo fez com você?
O que eles fizeram? O que eles fizeram, Celeste?
Eles te deixaram morrer. Queimaram suas asas.
Minhas asas estão bem aqui, querida.
E estavam, mas isso não estava certo.
Leigh havia perdido suas asas. Seraph Asher as reduziu a
cinzas.
Não foi? De repente, suas asas explodiram em chamas,
derretendo como cera ao redor de seus pés descalços. Ela não
gritou. Não chorou. Não se mexeu. Apenas ficou quieta e aceitou
seu destino.
Leigh! Leigh! Estendi a mão para ela, mas ela recuou.
Recuou mais.
E mais.
— Está tudo bem, Celeste. — Sua voz estava estranha, um
pouco rouca.
— Não está! Suas asas. Elas sumiram. Não é justo.
— Celeste... — O timbre era muito profundo. Muito masculino.
— Baby, acorde. Você está tendo um pesadelo.
Meus olhos se abriram e pousaram em um par de olhos
castanhos, uma mandíbula com a barba por fazer e cabelo escuro
penteado para trás com gel – Jase.
Não era Leigh.
— Ninguém está queimando as asas de ninguém. — Um sorriso
apareceu em seus lábios. Claro, Jase achou engraçado, já que as
pessoas não tinham asas em sua versão do mundo. Ele afastou
uma mecha de cabelo da minha testa e passou pelos dedos antes
de colocá-la atrás da minha orelha. — Trouxe pizza. Com berinjela
extra.
Meu estômago roncou, embora eu tivesse certeza de que
qualquer coisa que eu engolisse não ficaria ali por muito tempo.
Esfregando os olhos, me sentei e olhei ao redor do meu quarto
sombrio.
— E vinho. Não na pizza.
Tentei sorrir, mas meus lábios estavam muito moles. O dia de
hoje realmente aconteceu? Mimi realmente se foi? Asher realmente
tinha feito ovos para mim? Tudo parecia tão surreal.
— Você não deveria estar no trabalho?
— Eu te disse, sou todo seu esta noite. — A emoção faiscou em
meu peito, enchendo o casco frio com um pouco de calor. — Quer
falar sobre o que aconteceu?
Eu não tinha certeza se ele estava falando meu pesadelo ou a
morte de Mimi. Como não queria falar sobre nenhum dos dois,
disse:
— Não.
— Quer um abraço?
— Sim.
Ele me envolveu em seus braços tatuados, e eu apoiei a cabeça
na base de seu pescoço, inspirando seu cheiro amadeirado de
gengibre. Não conversamos, embora sua garganta balançasse.
Provavelmente com perguntas não ditas.
Apreciei seu silêncio.
Sua amizade.
Seu abraço.
Ele.
— Encomendei uns quadros para o meu quarto.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Será que ele estava
preocupado por eu fazer buracos no gesso? Eu não tinha certeza de
porque esse foi meu primeiro pensamento. Talvez porque eu
estivesse preocupada em desfigurar seu apartamento.
— Finalmente.
Eu me afastei.
— Você não se importa se eu decorar?
— Eu me importo que você esteja perguntando.
— É a sua casa.
— Esse é o seu quarto.
— Só o estou alugando. — Amassei o edredom.
— Ainda assim é seu quarto. — Ele apoiou a palma da mão
sobre a minha, que estava tensa, forçando meus dedos a relaxarem.
— Especialmente agora.
Agora que eu não tinha para onde ir aos fins de semana.
Meus olhos pareciam ter sido queimados por um isqueiro. Eu os
fechei, tentando reprimir minha crescente tristeza.
Lábios – quentes, macios – tocaram os meus. Hesitantes. E
então com menos cautela. A pressão familiar da boca de Jase
afastou minha tristeza, colocando-a atrás de uma onda de
necessidade crua. A necessidade de sentir outra coisa e nada.
Segurei sua cabeça e seus cachos rígidos, puxando-o mais perto,
cada vez mais, até que éramos apenas ar, calor e sangue pulsante.
Deixei seus dedos e boca me desnudarem, me acalmando de
uma forma que as palavras não poderiam. Era um tipo de conforto
superficial, mas ainda assim, conforto. Seu peso e calor foram
embora muito cedo, e eu fui deixada sozinha no escuro, nua e com
frio, saciada, mas vazia...
Vazia demais.
Como as paredes.
Enquanto ouvia o som da descarga e da tampa da lixeira, ele
perguntou:
— Pizza e vinho?
— Não estou com fome. — Eu me curvei e respirei. Apenas
respirei. Mantendo as lágrimas sob controle, mas não conseguindo
evitar a tristeza avassaladora.
— Tudo bem. — As dobradiças rangeram. — Tente dormir um
pouco então, Cee.
Quando a porta se fechou, ofeguei com os fragmentos flutuantes
do meu coração e abafei meus soluços no travesseiro amarrotado.
Jase não voltou, porque embora fôssemos para a cama algumas
vezes, não passávamos a noite juntos.
Esta noite, eu gostaria que ele esquecesse minhas regras,
voltasse para cá e me abraçasse.
Ele não fez isso, então acabei abraçando a mim mesma.
8

E nquanto Jase e eu caminhávamos pelo pátio da Columbia


no dia seguinte, ele disse:
— Cee, vá para casa.
Eu pisquei.
— Quê?
— Casa. Vá para casa.
Minha casa era Mimi, e ela se foi.
— Você não está em condições de assistir às aulas.
Abracei meu livro pesado com mais força.
— Estou bem.
— Não está.
— Acho que me conheço melhor do que você.
Seus lábios se contraíram e ele deu um passo para trás.
— Tem razão. Não sei nada sobre você. — Como a versão dos
sonhos de Leigh, ele se afastou cada vez mais. — Não por falta de
tentativa — ele falou, me deixando sozinha no meio do gramado.
Travei meus joelhos enquanto os elegantes edifícios de tijolo e
pedra incharam e encolheram ao meu redor, atordoante, sufocante.
Virei o rosto para o céu e olhei para o sol até que ele queimasse
minhas pupilas, as fizesse doer como o resto de mim, turvasse o
mundo, queimasse suas cores, cheiros, sons e movimentos.
Meu telefone tocou. Uma olhada na tela revelou uma mensagem
do sr. Alderman:
Quando e onde você gostaria que entregássemos as cinzas
de Muriel Moreau?
Meus joelhos amoleceram, e eu caí.
Caí.
E caí.
O mundo se tornou cinza e fragmentado antes de se tornar tão
escuro quanto obsidiana.

O em armários e água jorrando.


Me virei, esperando céu aberto, mas um teto cinza claro
assomava no alto e cortinas de veludo safira amassadas
emolduravam um retângulo preto sem estrelas. Me sentei tão
rapidamente que meu quarto ficou borrado e a TV de tela plana
gigante e armários espelhados balançaram. Eu não tinha saído do
Plaza ontem? Eu não estava no campus? Como foi...
Outra explosão fez meu coração parar na garganta. O som
estava próximo. Na minha suíte.
— Jase? — chamei baixinho.
A menos que fosse o porteiro, mas o que ele estaria fazendo no
banheiro? Não só seria estranho, mas também altamente
inapropriado. Chamei o nome de Jase novamente.
O homem que saiu do meu banheiro não tinha tatuagens ou
cabelo escuro.
Enrolei o lençol em volta do corpo, embora ainda estivesse
totalmente vestida com camiseta preta com a palavra Furacão
desenhada em chamas falsas e legging de couro. Lentamente, soltei
o lençol.
— Você voltou, Seraph.
— Isso implica em eu ter ido embora.
Minha boca ficou seca.
— Não foi?
Asher cruzou os braços sobre uma camiseta branca que parecia
muito em desacordo com seu status. Os tendões estremeceram sob
a pele bronzeada pelo sol de Elysium.
— Seu namorado parece... legal.
Ah, certo.
— Eu não sabia que vocês tinham se conhecido.
— Depois que você desmaiou. Ele voltou para te ajudar.
Isso soou como uma coisa que Jase faria.
— Você deveria ter deixado.
— E ele poderia fazer o quê? Levá-la de volta ao seu buraco de
rato em uptown e te foder acordada?
Suspirei.
— O apartamento dele não é um buraco de rato. E ele não é
meu namorado. É só o meu colega de apartamento. — Por que
senti a necessidade de esclarecer meu relacionamento?
Asher se encostou no batente da porta, escondendo suas
monstruosas asas turquesa nas costas.
— Talvez você devesse dizer isso a ele.
— Talvez você devesse ficar de olho no que é da sua conta.
— Você é da minha conta.
— Não sou, não.
— Celeste, acredite, se dependesse de mim, eu deixaria você
carpe diem a merda deste mundo.
Ele tinha acabado de xingar outra vez?
— Achei que você fosse o maioral, Seraph. Que você não
recebesse ordens. Pensei que você fizesse as regras.
Suas penas brilharam na luz fraca do banheiro adjacente.
— Sou. Não recebo. E eu faço.
— Então por que, em Abaddon, você está tão decidido a me
fazer ascender? Você não preencheu sua cota anual de ascensões?
Seus lábios se contraíram. Devo ter imaginado, porque o Arcanjo
possuía zero sagacidade e ainda menos humor.
— Eu já te falei, Celeste. A Muriel exigiu que você completasse
suas asas.
— Mimi nunca exigiria isso de mim.
— E ainda assim, foi o que ela fez.
— Por quê? E por que ela iria pedir a você, de todas as pessoas,
para me ajudar? O assassino do filho dela.
A escuridão tomou conta do Seraphim, fazendo sombras sob
suas dramáticas maçãs do rosto.
— Preparei um banho para você e pedi comida.
— Eu não sou sua filha.
Ele baixou o queixo.
— Tenho plena consciência de que você não é minha filha. De
alguma forma, você se tornou filha da Muriel. Você está presa a
mim, já que ela não está mais aqui para cuidar de você. Agora se
levante, tire a catinga do seu namorado da sua pele e me encontre
na cozinha.
Eu não corava. Nunca. No entanto, meu rosto se encheu de
calor. A catinga do meu namorado? Quem, por pluma, ele pensava
que era?
— Pare de pensar em maneiras de me fazer voar noite adentro e
te deixar para trás.
— Ah, Seraph. — Meus lábios se curvaram em um sorriso cruel.
— Eu não estava pensando em maneiras de te fazer voar para
longe. Estava pensando em maneiras de te matar.
Não perdi uma pena. Talvez porque não fosse mentira, ou talvez
porque o Ishim não se importou com a minha ameaça. Afinal, não
era como se eu pudesse matar o Arcanjo. Só outro Arcanjo tinha
esse poder, porque a única maneira de matar um ascendido era
queimando suas asas com o fogo dos Seraphim.
Asher bufou, e embora ele ainda estivesse mergulhado nas
sombras, seus olhos brilharam – uma faixa de azul contra o
monocromático.
— Bem, divirta-se com essas visões no banho.
Antes que eu pudesse responder, a porta do meu quarto se
fechou.
9

D epois de um longo banho, onde visualizei todas as


maneiras de irritar o Arcanjo o suficiente para que ele
desistisse de sua missão de ajude a pluma a ganhar suas
asas, decidi pelo método mais simples: a provocação. Coloquei um
top preto justo, que exibia meus mamilos empinados e combinei
com uma calcinha preta simples. Não era provocante nem
transparente. Se eu tivesse um sutiã, eu o teria usado, mas não
possuía esse tipo de peça, pois tinha pouco para aumentar e não
estava interessada em propaganda enganosa.
A única coisa que me diferenciava de uma criança ou de um
menino era minha cintura definida e as curvas da minha bunda, e os
dois estavam em perfeita exibição. Armada com muita pele exposta,
que certamente iria fazer o arcanjo puritano se contorcer, fui até a
cozinha, onde ele estava arrumando caixas de comida que foram
entregues. Ele não estava brincando quando disse que tinha pedido
muita comida. A ilha, que era enorme, estava tomada pelas caixas
de papelão ecológicos.
— Algum restaurante teve que fechar as portas? — Fiz um gesto
para o bufê ridículo.
Ele olhou para cima e o recipiente cheio de lula frita que ele
estava tentando espremer entre um monte de macarrão e um
pedaço de queijo parmesão escorregou de seus dedos e caiu no
chão.
Ele olhou para mim e depois para comida, como se ela também
estivesse vestida de forma inadequada.
— Acho que você se esqueceu de vestir a calça.
— Para que eu precisaria de calça? Estou em casa.
Ele se agachou e pegou os anéis fritos aos poucos antes de
jogá-los de volta no recipiente manchado de óleo. Ele devia se
irritado de limpar do jeito humano, porque seus dedos se iluminaram
com fogo, e ele incinerou a comida que sobrou. Em seguida, jogou a
caixa no lixo debaixo da pia. Mesmo que seu fogo provavelmente
tivesse queimado qualquer resíduo oleoso, ele lavou as mãos
diversas vezes, os músculos de suas costas se contraindo debaixo
do algodão fino.
— Como vai a vida, Seraph?
Ele fechou a torneira, mas não se virou. Só continuou de costas
para mim e apoiou as palmas das mãos molhadas na borda da pia
de pedra preta.
— Você se casou? Ah, espere, você conseguiu? Você só tinha
um mês para fechar o negócio com uma Pluma sortuda. Me
desculpe, uma Verity sortuda, porque as híbridas foram proibidas de
entrar na competição pela sua mão, sendo nossa plumagem tão
insípida.
Suas juntas ficaram esbranquiçadas e seus dedos flexionaram.
Crack. A pedra se soltou da bacia de metal.
Ele olhou para baixo.
Eu encarei suas mãos.
— Você acabou de quebrar a pia?
Ele soltou um grunhido baixo que não soou nada angelical.
— Vou consertar de manhã.
— Não sou pedreira, mas não acho que isso possa ser colocado
de volta.
— Eu disse que vou cuidar disso — ele grunhiu, ainda sem olhar
para mim.
Alguém está de mau humor.
A operação irrite o Seraphim estava funcionando
maravilhosamente bem.
Ele deslizou o pedaço de pedra preta sobre a bancada,
derrubando o frasco de sabão. Então o pegou, depois perdeu um
tempo absurdo tentando encontrar o ângulo exato para colocá-lo.
Quando ele finalmente se virou, com os olhos turquesa tão
brilhantes quanto nebulosos, os manteve fixos na minha testa.
— Então? — Me inclinei sobre a ilha e cheirei os pratos, me
certificando de manter a bunda para cima, embora meu lado
preguiçoso desejasse se sentar em uma das cadeiras da bancada.
— Encontrou a consorte perfeita?
— Não.
Tentei sufocar minha curiosidade genuína sob uma grande
indiferença.
— Por que ficou sem tempo?
— Porque decidi que não queria mais complicações na minha
vida.
— Complicações? Isso é ofensivo para o meu gênero. — Peguei
um tomate cereja de um prato e coloquei dentro da boca, afundando
os dentes na pele fina até que o suco espirrou.
Quanto tempo se passou desde a minha última refeição? Pulei o
café da manhã dois dias seguidos, o almoço e jantar, e depois o
almoço novamente por razões óbvias. O tomate caiu como uma
cereja azeda. A última vez que comi foi com Mimi, nesta cozinha.
Para escapar da minha dor, perguntei:
— Celibato, hein? Parece terrível.
As sobrancelhas escuras de Asher se inclinaram.
— Não estou aqui para discutir minhas escolhas de vida.
— O que devemos discutir então? Aah. Eu sei. A política do
Elysium. — Inclinei meu quadril contra a ilha. — Tenho muito a dizer
sobre isso.
— Tenho certeza disso.
— Por onde devemos começar? Que tal com a lei sobre as
almas dos nephilim? Adivinha o que descobri depois que você jogou
Leigh de volta no mundo humano? Os Nephilim têm almas. Ah,
espere. Você sabia disso. Dã. — Revirei os olhos de forma
dramática. — Mas eu e a Leigh, não. — Ele tensionou a mandíbula.
— Sabe o que eu acho?
— Prefiro que você não me diga.
Eu me afastei da ilha e caminhei até o homem grande, ficando
bem na cara dele, o que era uma façanha, levando em conta seu
tamanho.
— Acho que devo voltar para a associação e iluminar nosso
povo. Acho que os anjos em treinamento merecem saber a verdade.
— Estávamos tão próximos que pude ver a veia ao longo de sua
têmpora inchar e vibrar com uma raiva silenciosa. — Durante toda a
nossa vida, fomos ensinados a não mentir e, ainda assim, fomos
criados com mentiras. Você não acha que isso é depenado,
Seraph?
— Celeste... — ele disse meu nome com a mandíbula travada.
— O quê, Seraph? — perguntei com doçura.
— Assim que você ascender, eu te convido a trazer isso à tona
com os Sete.
— Mas eu não vou ascender. — Pontuei cada palavra com um
leve toque do meu dedo indicador contra seu peito rígido.
Ele ergueu a mão que esmagou a bancada e envolveu meu dedo
intrusivo. Por um segundo, pensei que ele fosse esmagar minhas
falanges, mas ele simplesmente o empurrou para longe e o soltou. E
em seguida, deu um passo para o lado.
Infelizmente, ele não voou para longe. Só foi até a geladeira e
abriu. Ele pegou uma garrafa de água da porta e a destampou.
— Quer uma?
— Não quero água.
— Um copo de leite?
— O que eu quero é que você não mude de assunto. O que eu
quero é ouvir que você vai usar sua posição para educar os jovens.
Em vez de uma resposta venenosa, recebi um suspiro.
— Sou apenas um homem.
— Mas é poderoso.
— Talvez, mas somos Sete. Para emendar uma lei, quatro de
nós precisam votar a favor dela.
— Bem, você ao menos tocou no assunto?
— Sim. Duas vezes.
— E?
Ele fechou a porta da geladeira com um pouco mais de força que
o necessário.
— E se as coisas não mudaram, você pode imaginar que meu
pedido não foi popular entre os membros do Conselho.
— E daí? Você desistiu?
— Não desisti, mas insistir... — Ele se interrompeu, tomou um
gole d'água e esfregou a lateral do pescoço. — Insistir chama
atenção.
— Também traz resultados.
Ele bufou.
— Por essa lógica, eu deveria simplesmente continuar insistindo
que você complete suas asas e você vai acabar fazendo isso sem
força bruta.
— Minhas asas são um assunto pessoal. As almas Nephilim são
públicas. Deve ser público.
— Você é muito rebelde. No entanto, está desistindo da luta. Por
quê?
— Minha voz nunca vai soar como a sua.
— Vai soar no Elysium.
— Posso ser híbrida, mas não sou burra.
— O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Você está tentando me apaziguar para mudar minha opinião
sobre a ascensão.
Ele esvaziou a garrafa de água e a amassou.
— Embora minha vida fosse mais fácil se você trabalhasse
comigo em vez de contra mim, nunca conheci ninguém tão vocal
quanto você.
— Leigh tinha uma voz alta. Ela também tinha belas penas
Verities. Penas Verity pura. E olhe o que aconteceu com ela, então
me desculpe por ser obtusa sobre me esforçar como um cavalo
alado para ganhar penas se vou acabar perdendo-as.
Os olhos de Asher escureceram como tinta derramada.
— Ela não as perdeu. Ela desistiu delas.
— Você acha que não vou seguir os passos dela se for abatida
pelos poderosos?
— Não achei que desistir fosse o seu estilo.
— Não é. Meu estilo é continuar, mesmo depois que todos
desistem de mim.
— Quem desistiu de você? Muriel e Leigh? — A respiração
ofegante fez seu peito se expandir. — Elas não desistiram de você.
Elas morreram. Existe uma grande diferença. Então, não tenho
certeza sobre quem você está falando agora, porque ninguém
desistiu de você. Você desistiu de nós!
O poder de sua voz ressoou dentro de mim.
— Eu nunca voltei para uma associação depois que a Leigh...
depois do que aconteceu. — Respirei fundo. — Eu tinha quinze
anos. — Respirei fundo de novo. — Ninguém veio atrás de mim. Em
quatro anos e meio, nenhum anjo veio me buscar. Você pode
discordar, mas para mim, indiferença é uma forma de desistir.
Sem outro olhar para a bancada repleta de comida, voltei para o
meu quarto e tranquei a porta. Fechei as cortinas, peguei o telefone
com as mãos trêmulas e enviei uma mensagem a Jase dizendo que
estava bem, que não, não havia sido sequestrada.
EU: Te vejo amanhã?
Sua resposta demorou a vir.
Almoço no Trap?
EU: Claro.
Antes de desligar o telefone, li a mensagem do sr. Alderman
novamente, aquela que me fez desmaiar. Digitei uma resposta
rápida:
Providencie para que seja entregue amanhã de manhã, no
Plaza. Obrigada.
E então, provavelmente porque eu passei muito tempo dormindo
e estava ligada na minha conversa com Asher, acabei acessando a
Netflix e assistindo três temporadas inteiras de Modern Family.
Como eu gostaria de ter nascido em uma família barulhenta e
maluca em vez de uma família silenciosa e submissa. Me afoguei na
autocomiseração por alguns minutos. Depois decidi que chafurdar
não servia para nada, e eu entraria em ação.
Eu construiria uma família barulhenta e maluca, adotaria muitos
filhos, já que Nephilim não podiam ter filhos biológicos, e talvez me
casasse com um homem. Ou dois. Alguns países permitiam que as
mulheres tivessem vários maridos, certo? Bom, dois homens
parecia uma dor de cabeça. Eu ficaria com um só.
Alguém bom.
Uma conversa antiga com Leigh me veio à cabeça. Estávamos
terminando o almoço nos jardins de Versalhes quando ela tentou me
convencer de que existiam almas gêmeas. Jarod foi mesmo a dela?
Mesmo que eu tivesse rido... eu ri? Talvez eu tivesse apenas
balançado a cabeça... me perguntei se isso era verdade.
Asher saberia?
Sorri com a ideia de trazer isso à tona. Embora, pensando bem,
se ele não tivesse partido, discutir romance certamente o faria ir.
Nenhum homem – alado ou não – gostava de discutir o amor.
Apesar de não juntar as pontas dos dedos e rir de forma
depravada, meu sorriso malicioso se transformou em um sorrisinho
que permaneceu em meus lábios. A. Noite. Toda.
10

N a manhã seguinte, ao sair do meu quarto, totalmente


vestida desta vez, ouvi vozes na cozinha. Duas. Uma era
de Seraph Asher. Não soube de quem era a segunda
porque, quando cheguei ao meu destino, o Arcanjo estava fechando
a porta.
Quando ele se virou para mim, passou a mão pelo cabelo,
tirando-o do rosto. Os fios loiros atingiram seus ombros e se
enrolaram ali. Ele tinha dormido aqui? E se dormiu, onde foi? Talvez
os Arcanjos não dormissem. Explicaria por que sua camiseta branca
não estava amarrotada. A menos que não fosse a mesma.
— Chegou para você.
Desviei o olhar para o vaso que ele colocou na ilha. Não era um
vaso. Era uma urna. Meus ossos amoleceram e minha saliva
engrossou. Engoli em seco, me lembrando de que a mulher que eu
amava não estava dentro da vasilha dourada. Ela estava segura em
Elysium.
Segura em Elysium...
Eu lidaria com esse pensamento mais tarde.
Coloquei o celular na ilha.
— Você finalmente vai comer alguma coisa? — Asher perguntou.
— Primeiro, café. — Fui em direção a um armário, aquele acima
da pia quebrada e peguei uma xícara de bolinhas, sentindo meu
coração apertar com a sensação da porcelana decorada que Mimi
valorizava tanto que trouxe todo o conjunto da Corte do Demônio.
Enquanto levava minha xícara para a sofisticada máquina de café
expresso embutida e a ligava, perguntei a ele: — Quer café?
— Eu adoraria, obrigado.
— Duplo? Curto? Açúcar? Leite?
— Curto. Puro.
Enquanto a xícara se enchia de delícias carbonizadas, voltei ao
armário.
— Você dormiu aqui?
— Dormi.
Troquei sua xícara pela minha debaixo do bico da máquina e
entreguei a sua de forma amigável.
— Estava preocupado que eu fugisse?
Ele ergueu a xícara, que parecia muito delicada entre seus
longos dedos.
— Você encontrou sua calça.
Olhei para o couro flexível que abraçava minhas pernas.
— A maioria dos homens ficaria desapontada, mas você parece
bastante satisfeito.
Já que sua boca estava escondida pelo xícara, observei seus
olhos para ver uma reação. Os cantos se enrugaram de leve, mas
talvez fosse porque Mimi e eu gostávamos de café muito forte e o
Arcanjo, não.
No entanto, ele esvaziou sua xícara.
— Pode ser porque a maioria dos homens está atrás do seu
corpo, e eu estou atrás da sua alma.
— Mas a minha alma está ligada ao meu corpo. Sempre estará.
— Já que minhas opções eram a morte ou a vida eterna alada. —
Fazem parte de um pacote fechado.
Ele pousou a xícara e apoiou as palmas das mãos na ilha.
— Talvez eu deva mudar minha tática então.
— Sua tática?
— Para levá-la ao Elysium. — Bebi meu café. — Talvez a
sedução te incite a ascender.
O líquido escaldante desceu pelas minhas vias respiratórias e
tossi.
— Elysium, não. — Ofeguei quando coloquei a xícara na mesa e
tossi um pouco mais, aparentemente ainda engasgada com o café e
sua proposta hedionda. Respirei várias vezes pelo nariz e me
acalmei. Então apoiei as mãos na ilha, refletindo sua postura,
ombros para trás e braços esticados. — Não há nada que eu
deteste mais do que um assassino, Seraph, então se eu fosse você,
não perderia meu tempo tentando seduzir alguém que o despreza.
Sua boca se estabilizou e a vibração de suas íris diminuiu.
— Eu não estava me oferecendo para o trabalho, Celeste.
— Bem, nem pense em enviar alguém para tentar, porque outro
grande obstáculo para mim são as asas. Especialmente do tipo
espesso e brilhante.
Ele me encarou por um longo tempo.
— Verities não são a fonte de todo o mal.
— Claro que não. Os malvados são os Nephilim. Não é verdade,
Seraph? — Eu não tinha certeza de porque essa conversa não
estava me custando penas. Não que eu estivesse reclamando.
— Obrigado pelo café. — Ele levou a xícara até a pia e a
enxaguou, me deixando ver suas vértebras tão tensas quanto o
tráfego na Quinta Avenida durante a hora do rush. — Quando você
estiver pronta para ir para a associação, me avise. Tenho um
telefonema a fazer. Estarei no terraço.
Quando ele recuou, gritei:
— Não vou para a associação. Vou almoçar com o Jase. Meu
amigo. E você não vai, porque não foi convidado.
Ele parou na porta. A tensão subiu por sua coluna e desceu por
seus braços, fazendo os ossos se realinharem e os tendões
turvarem. E então suas asas – brilhantes, turquesa, grossas – se
abriram. Eu esperava que ele as usasse para voar da minha
varanda de uma vez por todas.
Ele inclinou a cabeça, de forma que eu pudesse ver a linha dura
de sua mandíbula e uma única narina dilatada.
— Você está sendo malcriada.
— Como viver minha vida da maneira que eu quero me torna
malcriada?
Ele se virou completamente, fazendo suas asas se esticarem um
pouco mais, mas não o bastante para tocarem as paredes
acetinadas.
— Porque você está escolhendo esta vida por despeito. Por
mim. Por sua espécie. — Ele me atingiu com um olhar tão poderoso
que me perguntei se era infundido com magia – raios invisíveis de
fogo angelical talvez, ou pó de anjo, embora eu não tivesse certeza
de como a poeira poderia machucar, já que era usada apenas para
esconder. — Me odeie, tudo bem, mas não odeie quem você é.
— Quem eu sou, é Celeste Moreau.
— Quem você é, é uma filha de Elysium.
— O que Elysium já fez por mim além de encher minha cabeça
de mentiras e meu coração de... — balancei a mão no ar,
procurando pela palavra correta — injustiça? — Respirei fundo e
sibilei: — Você sabe como Plumas são horríveis uns com os outros?
O quanto são críticos? Competitivos? Sabe o que é ter asas
minúsculas que nem mesmo penosamente brilham? — Meu corpo
tremia como um gêiser prestes a entrar em erupção. — Não. Você
não sabe. Porque você é um Verity. Você pode não ter tido as coisas
de bandeja, mas teve acesso a tudo. Quer saber qual era o meu
sonho?
Uma veia latejava ao longo de seu pescoço, revelando uma
pulsação que poderia não corresponder à minha, mas, mesmo
assim, batia forte e rápido.
— Meu sonho era me tornar Malakim. Mas adivinhe? Híbridos
não têm permissão para guiar as almas. Portanto, não me diga que
estou escolhendo essa vida sem asas por despeito. Estou
escolhendo porque gosto de quem me tornei fora da minha prisão
de quartzo. Gosto de quem a Leigh e a Mimi me tornaram. —
Ofeguei como se tivesse acabado de completar uma maratona e
derrotado os corredores mais rápidos.
O olhar sombrio de Asher se desviou para o chão. Mesmo que
eu não me importasse se minha explosão tivesse me custado todas
as minhas penas, olhei para baixo. Não encontrei nada roxo
cobrindo a madeira acinzentada.
Meus olhos formigaram. Meu nariz e rosto também. Eu estava
quente. E furiosa. Cerrei as mãos para impedi-las de tremer e
circulei a ilha em direção à fileira de cadeiras altas em busca de
minha bolsa. Eu precisava sair daqui. Me afastar do Arcanjo egoísta
e teimoso que não aceitava não como resposta.
— Onde está a minha bolsa?
— Na sala de estar. — Seu tom era doce, como se sentisse que
falar mais alto me irritaria.
Com as mãos ainda fechadas, caminhei em direção a ele. Asher
não se afastou, mas encolheu as asas. A menos que eu grudasse
na parede, faria contato com suas penas.
— Mova-se.
O anjo grande não se mexeu.
— O que você disse é verdade. Não é justo que os híbridos não
tenham as oportunidades oferecidas aos Verities.
— Que bom que podemos concordar em algo. Agora mova-se.
— Ascenda e se torne a voz dos híbridos.
— Não estou interessada. Agora você pode, por favor... que seja.
— Empurrei sua asa.
Ele a fechou, mas era tarde demais. Fiz o proibido: toquei as
asas de outro anjo. E não de qualquer um, mas de um Arcanjo. Ele
poderia me punir por isso. Fazer o Ishim arrancar os ossos das
minhas asas.
Peguei minha bolsa e jaqueta, e voltei para o corredor. Asher
ainda estava lá, mas havia escondido as asas, provavelmente
preocupado em sujar mais suas belas penas com o toque da minha
pele híbrida.
— Ninguém jamais tocou nas minhas asas. — Seu tom era duro
novamente. — Não sem o meu consentimento.
— Não deveria deixá-la no caminho se não quer que seja
tocada.
Desta vez, quando passei, ele teve o bom senso de adicionar
espaço entre nossos corpos.
— Espero que tenha sido uma tortura. — Respirei lentamente
quando o Ishim finalmente me castigou, disfarçando minhas feições
para esconder minha reação à dor aguda de outra pena perdida.
— Visitei suas memórias, Celeste. Você não é assim.
Ele estava falando sobre a pena que pegou na associação na
noite em que anunciou seu desejo de encontrar uma consorte? Ou
encontrou outras?
Não importava.
Colocando a bolsa no ombro, falei:
— Eu era areia. Mas o fogo de anjo que você usou nas asas de
Leigh me tocou também, Seraph, e me transformou.
As últimas palavras de Mimi finalmente fizeram sentido. Eu era
areia e agora era vidro. Afiada e quebrável, mas não era mais
indefinida e maleável.
Recuando, deixei o ditador alado analisar esse pensamento na
companhia da minha pena roxa feia.
11

L evou toda a viagem de metrô até uptown para que meus


ossos parassem de fazer barulho. Saindo do subsolo,
pensei em ir embora. Jase não merecia ser submetido ao
meu péssimo humor. Ele podia ter se acostumado com minhas
mudanças repentinas, mas nunca mudou tanto. Peguei o telefone
para cancelar nosso encontro, mas depois coloquei-o de volta no
bolso. Eu devia a ele um pedido de desculpas por tê-lo repreendido
antes de desmaiar.
Cheguei ao The Trap antes dele e fui para a cabine do outro lado
que Alicia tinha reservado para nós, a que ficava embaixo do porco
alado. Em vez de me proporcionar alegria, vê-lo me deixou mais
irritada. Fiquei tentada a pedir outra mesa, mas o lugar estava
lotado de alunos apreciando a especialidade de Leon,
hambúrgueres grelhados e batatas fritas, então encostei na parede
de cimento escovado e fingi que o porco não estava lá.
Enquanto esperava por Jase, respondi a um e-mail do meu
orientador, depois às mensagens do sr. Alderman sobre ter recebido
as cinzas de Mimi e que, não, ele não precisava reservar meu voo
para Paris, que eu mesma faria isso em algum momento.
Alicia apareceu com uma cesta de nachos, guacamole e café
gelado.
— Cortesia do chef.
Sorri para ela.
— Diga ao chef que ele acabou de fazer o meu dia.
— Pode deixar. Quer mais alguma coisa enquanto espera? — A
berinjela neon acima da porta do banheiro unissex conferia um tom
roxo à sua pele negra e o cabelo platinado, que ela mantinha
raspado de um lado e trançado do outro. Ela adotou o estilo ousado
após seu terceiro rompimento com Leon e o manteve durante os
rompimentos quatro e cinco.
— Estou bem. Obrigada.
Depois que ela se afastou, abri um aplicativo de viagens e
comecei a verificar os voos para Paris. Eu estava prestes a inserir o
número do cartão de crédito quando Jase entrou no The Trap com
sua roupa normal: calça de moletom, camiseta e boné de beisebol.
Quando ele se sentou em frente a mim, virou o boné.
— Me desculpe. A professora Williams me pediu para ficar
depois da aula. Queria discutir a respiração durante falar em
público. Aparentemente, não respiro o suficiente. — Ele me lançou
um sorriso torto. — A propósito, ela perguntou onde você estava.
Disse que você estava resolvendo algumas coisas de família.
Coisas de família. Como abrir meu coração...
Uma mecha de seu cabelo escuro escorregou pelo boné virado e
roçou a ponta de sua sobrancelha.
— Quem era aquele cara ontem?
Eu não poderia ter uma hora livre de Asher? Apenas uma? Era
pedir muito?
— Ele é alguém do meu passado. — A parede parecia mais dura
e mais fria contra minhas omoplatas rígidas.
— Um namorado?
— Não. O oposto disso.
— Não tenho certeza de qual seria o oposto de namorado.
— Uma pessoa por quem não se tem afeição nenhuma.
Alicia passou pela mesa, anotou nosso pedido – o de costume –
e se afastou.
Jase colocou os antebraços tatuados sobre a mesa, fazendo os
músculos se retorcerem sob a tinta decorativa.
— Ele te machucou?
— Não fisicamente.
— Sabia que o Abercrombie era um idiota. — Sua voz estava
repleta de animosidade. — Eu não deveria tê-lo deixado te levar.
— Abercrombie? — Peguei um nacho com um pouco de
guacamole.
— Não conseguia lembrar o nome dele, então lhe dei um.
Não me incomodei em dizer o nome de Asher a Jase. Depois da
minha irreverência, o Arcanjo certamente desistiu de mim. Talvez ele
estivesse em Elysium, sentado em seu trono de quartzo, já que ele
não era do tipo que desmorona, negociando com que rapidez o
Ishim poderia me despojar de minhas penas restantes. Quantas eu
ainda tinha? Trezentos e quinze ou vinte?
O pensamento de que ele realmente considerou me ajudar a
ganhar mais de seiscentas penas antes do final do ano me pareceu
ridiculamente divertido.
— Por que você está sorrindo?
Mastiguei o nacho e o engoli com café.
— Eu gosto do apelido. — Abercrombie. Mesmo que Asher não
fosse um adolescente marombado americano, combinava bem com
o anjo musculoso e arrogante.
— O que ele fez com você, Celeste?
Ganhei alguns segundos para pensar em uma resposta plausível
enquanto pegava o canudo para encher meu estômago com mais
líquido gelado.
— Se lembra daquela garota de quem falei? Aquela que era
como uma irmã para mim?
— Leighton?
— Leigh. Antes de morrer, ela foi morar com ele.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Eles eram casados?
— Não exatamente. Ele queria se casar com ela, mas ela, não.
De qualquer forma, ele a expulsou de casa.
Seus olhos castanhos brilharam de ódio.
— Que idiota faz isso?
Eu provavelmente deveria ter adicionado a parte em que ela
implorou para sair, mas parecia irrelevante, já que ela nunca pediu
para entrar em Elysium.
Seu pescoço tensionou.
— Eu realmente sinto muito por tê-lo deixado te levar ontem.
— Está tudo bem. Como eu disse, ele não é perigoso. Ele é só...
— Um idiota? — Jase sugeriu.
Concordei. E então esperei sentir uma pontada, mas nenhuma
pena se soltou, provavelmente porque eu não tinha falado a palavra.
— O que ele estava fazendo no campus?
— Ele conhece a Mimi. — Seu nome trouxe uma explosão brutal
de dor em mim. — Ele a conhecia.
— Ele veio para o funeral dela.
Como não era uma pergunta, não respondi.
— Ele foi embora?
— Espero que sim. — Olhei para a porta como se esperasse vê-
lo parado ali, no restaurante subterrâneo de Leon, enfeitado com luz
neon colorida.
Felizmente, ele não estava lá.
Nossa comida chegou, e eu a devorei, embora meu estômago
doesse e protestasse, tendo encolhido com meus dias de jejum.
Quando Alicia apareceu com nossos hambúrgueres gordurosos
entre pãezinhos polvilhados com gergelim, desviei a conversa de
Asher e o mantive longe durante o resto do almoço.
Fora do restaurante, Jase virou o boné de beisebol para proteger
os olhos do sol forte.
— Você vai à aula do Goldstein hoje?
Eu não tinha planejado ir, mas por que não? Não tinha mais
nada para fazer a não ser ir para Paris.
Em algum momento.
Acabei voltando para o campus com meu colega de
apartamento. Em algum ponto, ele entrelaçou os dedos nos meus e,
embora eu permitisse que ele segurasse minha mão, mantive meu
aperto frouxo, porque não queria que ele interpretasse mal nosso
relacionamento.

E de voltar para o apartamento no campus depois da aula,


afirmei que precisava arrumar as coisas de Mimi. Embora fosse
verdade, não era esse o motivo de eu estar indo para o centro da
cidade... o aperto de mão era.
O calor de sua pele permaneceu como teias de aranha sobre a
minha, me proporcionando uma sensação profundamente
perturbadora.
— Te vejo mais tarde no The Trap? — Jase perguntou enquanto
me acompanhava até o metrô.
— Hoje, não. Preciso arrumar algumas coisas em casa e depois
voar para Paris. É onde a Muriel queria ser enterrada.
Eu odiava usar Mimi para escapar dessa situação
desconfortável. O que eu precisava era me sentar com Jase e
repassar os limites dessa amizade, que precisavam permanecer
intactos. Não éramos crianças. Éramos adultos. E a coisa adulta a
fazer era ser honesta.
Eu seria adulta depois da minha viagem.
— Quer que eu vá com você?
— Para Paris?
Ele deu de ombros.
— Ou para o seu apartamento. Posso te ajudar a encaixotar as
coisas. — Quando eu mordi o lábio, ele acrescentou: — Eu sou bom
com papelão.
Eu deveria ter retribuído o sorriso ou, pelo menos, apertado seu
braço e agradecido. Em vez disso, falei:
— É quinta-feira. Sua noite mais movimentada.
— Eu não preciso ir trabalhar. Não se você precisar de mim,
Celeste. — Seus olhos se fixaram nos meus, sondando. — Você
precisa de mim?
— Hum... — Mordi meu lábio inferior.
Minha indiferença borrou a expressão de Jase e acabou
matando seu entusiasmo.
— Acho que não.
— Jase.
Ele começou a recuar.
— Jase, você me conhece. Gosto de manter as partes da minha
vida separadas. Isto é o que eu faço. É o que sempre fiz.
— É por isso que você nunca me apresentou a ela? Para manter
sua vida organizada? Ou é porque você tinha vergonha de mim?
— Vergonha de você? Por que eu teria vergonha de você?
— Porque sou um aluno com bolsa de estudos e tenho um irmão
ex-presidiário.
— Não tenho vergonha de você ou do seu irmão. Admiro vocês
dois.
Ele parou de recuar, mas manteve a distância entre nós.
— Então por quê?
— Porque nunca apareceu o momento certo. A Mimi era uma
reclusa. E... — Balancei a mão no ar, frustrada, fazendo minha
coleção de anéis brilhar no sol da tarde. — Certo. Venha comigo! Eu
vou te mostrar aonde eu ia aos fins de semana.
Ele bufou.
— Passo.
Minha mão caiu ao lado do corpo. Fiquei surpresa por ele ter
recusado e, ao mesmo tempo, não. Eu não aceitaria minha oferta.
— Isso saiu...
— Não sei quais segredos você está tentando guardar, mas fico
triste que você sinta a necessidade de guardá-los de mim. — E com
isso, ele se virou e caminhou pelo quarteirão, evitando uma mãe
vestida como seu filho.
Com o peito arfando, fechei as mãos, cravando as unhas contra
as palmas. Talvez eu devesse ter feito um convite verdadeiro em
vez da versão irritada. Só para que ele pudesse ver que eu não
tinha nada a esconder. Antes de descer para o metrô de Nova York,
enviei uma mensagem contendo apenas uma linha: meu endereço
na Park Avenue South junto com o número do apartamento. Eu
tinha segredos, mas nenhum na casa que compartilhei com Mimi.
Meus segredos estavam enterrados em Murray Hill, em uma
residência de quartzo escondida atrás de uma estreita porta verde.
Jase provavelmente estaria com o orgulho ferido demais para vir
agora, mas caso mudasse de ideia, o convite estava feito.
12

J ase não veio depois do seu turno. Não que eu


realmente esperasse que ele viesse. O que eu esperava
era uma mensagem de texto, mas as últimas palavras
da nossa conversa me vieram à mente. Na manhã
seguinte, embora meu corpo estivesse pesado e meu humor tivesse
a consistência e a cor do céu, melancólico e cinzento, me forcei a
sair da cama.
Enquanto tomava café e mastigava biscoitos que faziam meus
dentes doer, olhei para o corredor onde havia perdido uma pena
ontem. Ela não estava mais lá, o que só poderia significar uma
coisa: Asher a havia tocado. A menos que ele a tivesse pegado com
uma pinça e jogado no lixo, uma possibilidade muito real,
considerando o quanto ele estava bravo.
Peguei outro biscoito da embalagem de plástico amassada e
olhei de novo para a urna, uma pequena coisa dourada contra a
pedra escura da ilha. Uma lembrança cruel da mulher que perdi.
Um tremor percorreu meus pulsos e meus dedos. A xícara
escorregou e se espatifou em fragmentos de bolinhas em volta dos
meus pés. Os pontos azuis dançaram em cima do branco. Em vez
de me agachar e juntar os cacos, só fiquei ali parada.
Meu peito tremia e se expandia, então apertou com tanta força
que estremeci.
— É uma xícara, Celeste — murmurei para mim mesma.
Mas não era só uma xícara. Como suas cinzas, o jogo de chá de
porcelana era uma parte da mulher que eu amava.
Eu não tinha certeza de quanto tempo fiquei assim, cercada por
fragmentos de porcelana se projetando como o casco de um iate
naufragado, a poça rasa de café se esticando e encharcando
minhas meias, mas o líquido quente ficou frio, depois gelado.
Eu precisava ir para Paris. Colocar os restos de seu corpo ao
lado do menino que ela amava, mesmo que isso não os reunisse.
Recuei, deixando pegadas molhadas pelo apartamento. Quando
cheguei ao quarto, tirei as meias e as joguei no cesto, junto com o
resto da roupa e entrei no chuveiro. Logo, eu estava envolta em um
vapor espesso e branco, as únicas nuvens que jamais tocaria.
Enquanto enxugava minha pele rosada pelo calor, reservei um voo
de primeira classe para Paris naquela noite, depois verifiquei as
mensagens novamente para ver se Jase havia respondido.
Nada.
Vesti uma camisa preta de mangas compridas e minha legging
de couro e vasculhei as gavetas em busca do passaporte. A única
coisa que encontrei foi uma tira de fotos que fez minha respiração
falhar. Leigh me levou ao cinema no dia em que ganhei minha
primeira pena. Não me lembrava qual filme vimos, mas me lembrava
de tê-la nos puxado para uma cabine fotográfica e nos imortalizado
em papel brilhante. Eu tinha dez anos. Ela tinha quinze, já era uma
moça com o cabelo rosa-alaranjado e as curvas suaves que ela
tanto odiava, mas que aos meus olhos, aos olhos de Jarod e aos
olhos de Asher já que ele abriu as asas para ela, a tinham deixado
linda.
A última década havia esculpido minhas bochechas e a raiva
havia aguçado minha expressão. Mesmo assim, eu ainda me
parecia com a garota da foto: sardenta, com covinhas, cabelos e
olhos exatamente do mesmo tom de castanho avermelhado. Sem
graça. Eu não precisava ter minhas asas em exibição para mostrar
minha herança híbrida. Nada em mim brilhava.
Quando passei o polegar sobre o rosto de Leigh, me perguntei o
que Jase viu em meu corpo andrógino. Isso não poderia ser
atraente para ele. Nem minha personalidade difícil.
Cada vez que Mimi insistia que eu era bonita, eu ria. Achava
graça de cada elogio que ela me fazia, mas ainda assim, eles
entravam em mim, penetrando em meu coração endurecido e o
amaciando.
Dei uma última olhada na tira brilhante e a coloquei de volta na
gaveta, voltando a me concentrar na minha tarefa: localizar a
porcaria do passaporte.
Mimi provavelmente o tinha guardado no cofre. Atravessei a sala
de estar e invadi seu quarto, mas paralisei na soleira. Os lençóis
amarrotados e uma pena roxa solitária caída perto da mesinha de
cabeceira ficavam mais próximos e depois recuavam, próximos e
distantes, várias e várias vezes. Bati a palma da mão contra o
batente da porta para me impedir de ser empurrada pela corrente de
minhas emoções avassaladoras. Meus anéis tilintaram quando
encontraram madeira, cravando em minha pele.
Naquele momento, me arrependi de ter dispensado a equipe de
limpeza. Eu não queria que eles apagassem Mimi, mas a prova de
que ela viveu, que havia parado de viver recentemente, pareciam
chamas subindo e descendo pelo meu peito, queimando de dentro
para fora.
Meus dedos doíam com o aperto forte. Eu soltei e recuei para a
sala de estar. Respirei fundo várias vezes até me lembrar o que eu
estava procurando no santuário de Mimi.
Meu passaporte.
Certo.
Encarei a porta aberta. Eu não poderia embarcar em um voo
sem ele. E se eu não embarcasse em um voo, não poderia chegar
a...
Meus pensamentos pararam. Havia outra maneira de viajar. A
ideia se enraizou e floresceu, parecendo cada vez melhor. Claro,
renunciei às associações, mas elas tinham Canais. A única coisa
que eu precisava era de um acompanhante. Não vi como ou por que
um ascendido se recusaria a voar comigo. Estimulada pela
inteligência e conveniência de meu plano, peguei minha jaqueta e
bolsa. Estava prestes a pegar a urna da ilha quando repensei sobre
viajar com algo quebrável. Peguei uma das echarpes vibrantes de
seda Hermès que Mimi sempre amarrava no pescoço e a abri sobre
a ilha.
Sua fragrância – o cítrico Acqua Allegoria, de Guerlain – jorrou
dos fios coloridos, agarrando e apertando meu coração de novo.
Tirei a tampa da urna e virei as cinzas. O pó salpicado por lascas de
ossos brancos fez minha pele ficar fria e úmida.
Não é a Mimi.
Engolindo o nó na garganta, dobrei o lenço até que os grãos de
seu corpo estivessem tão fortemente embrulhados como um recém-
nascido. Dei vários nós, depois o coloquei em minha bolsa de tecido
antes de descer as escadas e entrar em um táxi.
Com a bochecha apoiada no encosto de cabeça que parecia
plástico e cheirava a xampu para caspa, observei a cidade passar,
tão monótona que parecia sem cor. Gotas de chuva caíram no para-
brisa, suavemente a princípio, e então a batida se tornou estridente,
abafando a lufada de ar frio que entrava pelas aberturas e o loop de
notícias frívolas e trailers de filmes passando no monitor.
O trânsito estava horrível, então a viagem demorou mais do que
os quinze minutos habituais. Quando finalmente paramos, passei o
cartão de crédito no terminal de pagamento, me inclinei para
proteger a bolsa do aguaceiro e corri em direção ao templo
angelical.
Com o cabelo molhado, caminhei até o átrio com seu céu azul
falso e fontes jorrando. Um pardal com asas de arco-íris voou baixo,
girou em torno de uma estátua de anjo de quartzo antes de se
empoleirar em uma videira madressilva e lançar seu bico em uma
flor branca para sorver seu néctar. Depois de saciado, ele saltou e
retomou o canto, juntando-se à voz de seus pares que formava um
halo para um pequeno grupo de crianças encantadas sentadas de
pernas cruzadas com as cabeças inclinadas para cima.
Ophan Mira estava à frente de sua audiência extasiada,
alegrando as crianças com a história de nossa espécie. Por mais
tensa que fosse, ela era uma professora e contadora de histórias
maravilhosa. Me perguntei qual capítulo da história ela estava
contando e se era humana ou celestial. Me aproximei e ouvi o nome
Arion.
O primeiro Malakim, um dos pais dos anjos, um homem forjado
de céu e fogo que se ergueu do Mar do Nirvana junto com seis
outros anjos, quatro mulheres e dois homens, há vários milênios e
colonizou Elysium antes de se aventurar pelos canais.
Enquanto Arion desceu para a Terra, sua consorte, Olba, viajou
para Abaddon. Aparentemente, os canais que conduziam a qualquer
um dos mundos ficavam opostos um ao outro no Desfiladeiro do
Julgamento. Um era envolto em fumaça escura e brilhante, o outro
em lilás claro.
Arion voltou de sua primeira viagem à Terra com uma alma, a
primeira colhida. Quando soube que Olba ainda não tinha voltado,
ele liberou a alma aos cuidados de uma de suas irmãs e viajou pela
passagem escura. Lá, encontrou um mundo deserto feito de
obsidiana polida.
Essa costumava ser a parte da história em que Ophan Mira
percorria sua jornada pela terra sombria e árida, avançando
rapidamente para suas descobertas: uma imensa e explosiva
fogueira. Cercado pela luz do fogo, ele encontrou o corpo mole e
sem asas de Olba, sangrando por centenas de cortes. No início, ele
culpou um agressor pelos ferimentos de sua consorte e o fogo pela
ausência de suas asas, mas então, ele encontrou sangue seco e
tiras de pele sob suas unhas e percebeu que os cortes foram auto
infligidos. Mas e suas asas?
Ele a pegou, infelizmente inalando um pouco de fumaça. Sua
magia o agarrou e torturou, fazendo Olba parecer um monstro. Ele a
largou e voou em direção ao canal, mas antes de retornar ao
Elysium, percebeu seu erro e voltou para sua consorte. Desta vez,
ele prendeu a respiração ao pegá-la e não respirou até que a
fumaça se dissipasse no canal e ele saísse em Elysium.
Como se estivesse prendendo a respiração, Mira soltou um
suspiro profundo.
— Infelizmente, sem asas, ela não poderia mais ficar no Elysium.
— Como eles sabiam que ela não poderia ficar? — uma das
crianças perguntou.
Mira olhou para sua pupila.
— Eles simplesmente sabiam.
Clássico. Elimine uma pergunta perfeitamente razoável com uma
resposta perfeitamente inadequada.
— Assim nasceu o primeiro Nephilim — Mira continuou. — O
que aconteceu com ela? Alguém sabe?
Uma criança ruiva ergueu a mão.
— Sim, Juniper.
— Olba enlouqueceu, envelheceu e morreu.
— Correto — Mira concluiu. — Então, Plumas, qual é a lição a se
guardar da Lenda de Arion e Olba?
A mesma ruiva disse, um pouco excitada demais, considerando
o assunto deprimente:
— Que um anjo não pode sobreviver sem asas.
— Exatamente, Pluma Juniper. Exatamente.
Não deixei de notar a maneira como os olhos de Mira
semicerraram, como se me avisasse que esse seria o meu destino
se abrisse mão das minhas asas, eu eventualmente enlouqueceria e
morreria. Tudo bem, não era um final ideal, mas era melhor do que
viver para sempre com um bando de piolhos emplumados e
hipócritas.
Minha coluna ficou tensa e uma pena caiu de minhas asas
invisíveis.
A boca de Mira franziu enquanto ela seguia a pluma.
— Ophan Mira?
A voz familiar desviou minha atenção do meu desertor felpudo.
— Sim, Pluma Naya?
— O que aconteceu depois que ela morreu?
— O que você quer dizer?
— O que aconteceu com a alma dela? Ryan...
— Ah-ry-on — Mira a corrigiu.
— Ah-ry-on a trouxe de volta para Elysium?
— Nephilim não têm alma, Naya — a ruiva sabe-tudo disse.
Um suspiro escapou de Naya. Ela olhou para Juniper, então
voltou seu olhar para Mira.
— Isso é verdade, Ophan?
Eu esperava que Mira confirmasse. Afinal, foi isso que ela
passou anos martelando em nossas mentes crédulas.
Mas em vez disso, ela disse:
— Não. Eles têm almas, mas frequentemente estão danificadas
demais para serem recuperadas.
— A asa do pardal quebrou outro dia — Naya disse — e você o
curou, Ophan.
O corpo já tenso de Mira pareceu ficar ainda mais.
— Você não pode comparar a asa de um pássaro com a alma de
um anjo.
A voz de Naya se elevou novamente.
— Ah-ry-on pelo menos tentou...
— Chega! — O grito de Mira silenciou Naya e a maioria dos
pardais. Pelo menos, sua severidade foi precedida por algum cerne
de verdade.
Eu estava prestes a me afastar quando os ombros de Naya
começaram a tremer. Me lembrando de todas as vezes em que fui
silenciada por exigir respostas que nunca foram dadas, eu disse:
— A Naya levantou um ponto válido, Ophan.
O pescoço da loirinha se virou.
— Celeste! — Ela se levantou de repente e pulou para o meu
lado.
Quando seus braços envolveram minhas coxas, acrescentei:
— Já que os nephilim têm almas, talvez devêssemos tentar curá-
los em vez de abandoná-los. — Coloquei a mão sobre sua cabeça e
acariciei uma maria-chiquinha, depois a outra. — Os humanos são
dignos de uma segunda chance. Por que os anjos não?
Os lábios de Mira se estreitaram.
— Quando o dano é muito profundo, não pode ser reparado.
Naya olhou para mim.
— Eu sabia que você voltaria.
A culpa acalmou minha mão.
Naya soltou minha perna e pressionou as palmas das mãos.
— Posso ir brincar com a Celeste? Por favor, Ophan Mira, por
favorzinho.
Meu coração se apertou com o entusiasmo de Naya.
Embora os lábios de Mira ainda estivessem fechados com
firmeza, sua expressão suavizou.
— Posso estar errada, mas duvido que a Pluma Celeste tenha
vindo brincar.
Naya inclinou a cabeça para trás para olhar para mim. Eu estava
fazendo uma careta? Devo ter feito, porque seu sorriso se desfez e
ela deu um passo para trás.
Eu não queria mentir, e não porque me importasse em preservar
minhas penas pelo menos uma vez.
— Ophan Mira está certa, Naya. Vim para acessar o Canal. —
Quando seus olhos começaram a brilhar, me agachei e toquei seu
ombro. Ela não me ignorou, mas tensionou o corpo. — Naya, em
breve, eu não terei acesso às associações, e você não terá acesso
ao mundo exterior, então me tornar sua amiga não seria justo. —
Deixei de fora a parte que quando ela tiver acesso ao mundo
exterior, minha mente terá tomado o mesmo caminho que a de Olba.
A menos que isso fosse parte da lenda. Algo para nos assustar e
preservar nossas asas.
Naya enxugou o rosto. Se a situação fosse inversa, eu teria
soltado a mão dela há muito tempo, mas ela não era como eu.
Ela era toda cachos de ouro e inocência angelical.
— Você não deve desistir, Celeste.
— Só tenho dois meses e meio restantes, querida, e um monte
de penas para ganhar. Tentar nem é mais uma opção.
As outras crianças sussurraram como se percebessem que
estavam na presença de um futuro nephilim.
O tom de pele de Naya competia com os metros de pedra que
nos cercavam.
— Escolha um Triplo.
Inclinei a cabeça para o lado.
— O que você sabe sobre Triplos?
— Sei que nem todos são monstros.
Eu não conseguia lembrar quantos anos tinha quando me
disseram sobre o sistema de classificação, mas certamente não era
tão jovem.
Confirmando isso, uma das crianças perguntou:
— O que é um Triplo?
Eles eram muito protegidos e despreparados para o que havia
além de seu berço de quartzo. E não era minha função derrubar as
paredes que lhes davam uma falsa sensação de segurança – era
das Ophanim. Desafiei a professora da associação a explicar a eles
e, surpreendentemente, ela o fez. Em linhas amplas e vagas, ela
lhes contou sobre os pontos do pecador.
Enquanto Mira falava, eu disse:
— Preciso recuperar mais de um Triplo, Naya.
A esperança brilhava em seus olhos.
— Parece fácil, mas não é.
— Às vezes é.
Fiz uma careta. Seu pai havia contado histórias sobre Triplos?
Ele tinha recuperado um? Talvez tivesse contado a ela sobre Leigh
e Jarod, embora eu realmente duvidasse que um anjo contasse para
a filha a verdade sobre a verity transformada nephilim e seu amado
Triplo.
— Na maioria das vezes, não é. — Toquei a ponta de seu nariz
antes de me levantar novamente. — Se você ainda quiser brincar...
— Sim. — A palavra saiu apressada e ofegante.
— Tudo bem. — Sorri pela primeira vez hoje. A primeira vez em
alguns dias. — Ophan, posso ficar com a Naya por uma hora?
Mira me encarou sem vacilar, como se tentasse avaliar minhas
intenções. Ela provavelmente achou que eu usaria aquele tempo
para encher a cabeça de Naya com ideias traiçoeiras e seu coração
com falsas esperanças. Eu esperava que ela dissesse não.
— Uma hora, Naya. E depois, banho.
— Está bem, Ophan. — O sorriso de Naya iluminou seu rosto
quando ela estendeu a mão e pegou a minha. — Podemos começar
com... — Ela gritou de alegria, me livrando de vários decibéis de
audição — Apa! — Em vez de me soltar e correr para ele, ela puxou
minha mão, me levando em direção a um grupo de três anjos
parados no canto do átrio.
Esperei que o Ishim abrisse os braços para que sua filha
pudesse pular neles, mas não foi bem o que aconteceu.
Foi o Arcanjo quem fez isso.
Um nervo se contraiu ao lado do olho esquerdo de Asher quando
ele se apoiou em um joelho. Como uma fita soprada pelo vento, a
mão de Naya soltou a minha, e ela correu em direção aos braços
abertos.
13

A sher era pai?


Ele disse que não tinha encontrado uma consorte, mas
tinha uma filha?
Ele já era pai de Naya enquanto procurava uma esposa ou
depois de desistir de encontrá-la?
Um pedaço de nossa conversa veio à minha mente. Ele falou
sobre não querer mais complicações. Ele considerava Naya uma
complicação, ou a mãe? Quem era a mãe dela? Olhei para a mulher
de pé ao lado dele, uma mulher com um rosto fino e cabelos claros
que batiam nas asas lilases com pontas douradas. Seus olhos eram
tão escuros quanto os de Naya e seus cabelos eram loiros, embora
mais cacheados. Ela era a mãe? Não me surpreenderia que o
Seraphim tivesse escolhido uma Ishim. Afinal, Ishim eram Verities.
Não tão bem classificados quanto Malakim, porém, ainda estavam
no topo do totem celestial.
Quando Naya se afastou de Asher e cumprimentou os Ishim por
seus títulos, Ish Eliza e Ish Damon, deduzi que a Ishim não era sua
mãe. O que era reconfortante, porque havia algo muito duro em
suas feições. Imediatamente não gostei dela e, como gostava de
Naya, não queria que ela tivesse uma mãe assim.
Naya pulou para longe de Asher e voltou para mim.
— Apa, esta é a Celeste.
Ah, ele sabia quem eu era.
— Você tem uma filha, Seraph.
O pulso latejou na base de sua garganta com meu comentário.
Naya envolveu a mão na minha novamente.
— Vamos brincar de esconde-esconde.
Seu olhar se concentrou em nossas mãos entrelaçadas. Eu
poderia dizer que ele queria que eu soltasse a mão de Naya,
provavelmente a arrancasse da dela antes que eu maculasse sua
garotinha da mesma forma que maculei suas asas ontem.
— Esconde-esconde? — Sua voz soou tão áspera quanto a
barba por fazer em sua mandíbula.
— Prometi brincar com ela.
— Que... gentil.
Bufei, sabendo que ele não me achava gentil.
— Não vai se juntar a nós, Seraph?
— Não posso. Eu tenho... — ele me encarou com seus olhos da
cor do oceano — coisas para resolver.
Naya fez beicinho.
— Você sempre tem coisas para resolver, Apa.
Sua expressão suavizou instantaneamente.
— Ele é um Arcanjo, Pluma Naya. — O tom superior de Ish Eliza
fez minha antipatia por ela crescer tão rápido que me preocupei que
todas as minhas penas pudessem se desprender dos ossos das
asas. Surpreendentemente, nenhuma se soltou.
Naya deu um suspiro resignado.
— Eu sei que ele tem coisas mais importantes a fazer do que
brincar comigo.
Por que não arrancavam meu coração?
Apertei a mão de Naya para lembrá-la de que eu estava lá,
pronta para brincar com ela.
— Quer contar ou se esconder?
— Eu vou contar. — O timbre profundo de Asher ressoou contra
o teto de vidro abobadado. — Vocês duas vão se esconder.
Mais uma vez, Naya quase arrancou meus tímpanos de
felicidade.
— Podemos brincar também? — a garota ruiva perguntou.
— Sim. Todos podem — Naya anunciou.
Por alguma razão, imaginei Ophan Mira se escondendo, e isso
me encheu de diversão. E então imaginei Ish Eliza participando e ri
abertamente.
O olhar ardente de Asher me encarou novamente.
— Gostaria de compartilhar o motivo do seu bom humor,
Celeste?
— Eu poderia, mas poderia ser... depenada.
Ele balançou a cabeça, o que fez uma mecha de cabelo escapar.
— Se fosse tão terrível, já teria depenado.
— Verdade. — Ainda assim, eu não compartilhei minhas
reflexões. — Me diga, Seraph, entre lidar com Triplos e queimar
asas, como foi que encontrou tempo e energia para ter uma filha? —
Fiz minha provocação com doçura e em um tom de voz baixo para
que não chegasse a Naya.
A expressão de Asher não ficou apenas sombria, ficou nebulosa.
Naya puxou meus dedos.
— Vamos, Celeste.
Eu a deixei me puxar em direção ao corredor que levava aos
dormitórios dos anjos mais jovens enquanto Asher, com os dentes
cerrados, começou a contar.
Uma hora depois, Ophan Pippa veio buscar Naya para seu
banho. Embora ela não quisesse deixar o pai, acabou
acompanhando a Ophanim.
Não falei com ele nenhuma vez durante a brincadeira; ele
também não. Mas antes de ir, senti a necessidade de dizer:
— Sua filha é muito doce.
Seus olhos não se desviaram do corredor pelo qual ela foi
arrastada.
— É, sim.
O silêncio entre nós tinha tanta animosidade que uma mera
faísca certamente faria o ar entrar em combustão.
Ainda sem olhar na minha direção, ele disse:
— Achei que você tivesse parado de vir às associações.
— Preciso usar o canal.
Ele me olhou de lado.
— Para ir aonde?
Abaixei o queixo.
— A algum lugar.
Ele se virou, me prendendo com uma carranca formidável.
— Nenhuma Ophan irá te escoltar através de um canal sem o
meu consentimento.
Uau.
— Que jeito de lançar esse seu grande poder por aí, Seraph.
Ele me fuzilou mais um pouco com os olhos.
Recuei, com uma palma da mão pressionada de forma protetora
contra minha bolsa e as cinzas empacotadas de Mimi.
— Acho que vou usar o jeito humano de viajar para Paris então.
— Paris?
Ah, pluma. Não queria que meu destino escapasse. Qualquer
que fosse...
Comecei a caminhar em direção ao átrio quando ele perguntou:
— O que você vai fazer em Paris?
Olhei para ele por cima do ombro.
— Tive um desejo repentino de macarons. — Senti uma pontada
no osso da minha asa.
Ele observou a queda da minha pena.
— Eu te levo.
Devo ter perdido a audição junto com aquela pena, porque
pensei ter ouvido Asher se oferecer para me levar.
— Hum. O quê?
— Eu disse que vou te levar. — Ele caminhou de forma brusca
em minha direção, depois me alcançou.
Não queria viajar com o Arcanjo, já que segurar no
acompanhante era um pré-requisito, mas queria mais ainda viajar na
velocidade da luz, então segui atrás dele.
Quando contornamos o último corredor e entramos no eixo de
pura luz Elysiana, perguntei:
— Você não está planejando me deixar em Abaddon no
caminho, está?
Um canto de seus lábios se inclinou.
— Infelizmente, Abaddon só é acessível através do Elysium.
Como ele não tinha senso de humor, deduzi que o sorriso torto
era o início de um sorriso de escárnio cruel.
— Que pena.
Ele me ofereceu uma de suas mãos. E pensar que a mesma
mão que embalou Naya havia queimado as asas de Leigh.
Segurando a bolsa perto do corpo, encaixei a minha mão na sua
e disparamos para o éter.
14

N o segundo em que pousamos no canal da associação


parisiense, uma réplica exata do canal de Nova York,
afastei a mão da sua.
Ao sair, joguei um “Obrigada pela carona” por cima do ombro.
Ele me seguiu. E não apenas pelos corredores, mas pelo átrio
coberto de rosas. Certo... talvez ele tivesse me trazido aqui porque
tinha negócios em Paris. Pelo menos, sua companhia não solicitada
me distraiu da dor aguda de estar de volta à Associação 7 sem
Leigh.
Não deixei meu olhar vagar sobre as flores rosas que cobriam as
paredes brancas ou sobre as sete fontes que eram diferentes na
outra associação, não em tamanho, mas em representação. A flora,
os anjos esculpidos e o layout eram as únicas coisas que diferiam
de uma associação para outra. Todo o resto – os falsos céus
Elysios, o quartzo de fogo, os pardais cantando – eram inteiramente
iguais.
Não encontramos ninguém, provavelmente porque era
madrugada aqui. Plumas e Ophanim estavam enfiados na cama ou
aproveitando o que a cidade tinha a oferecer nos fins de semana.
Quando Asher abriu a porta e a segurou para mim, finalmente parei
de andar.
— Você não está me seguindo, está, Seraph?
— Da última vez que verifiquei, andar à frente de alguém não era
seguir.
Sério? Cruzei os braços.
— Você sabe o que eu quis dizer.
— Você está aqui para pegar algo no apartamento que dividiu
com a Muriel ou para enterrar as cinzas dela... — Ele olhou para
minha bolsa como se tentasse detectar a forma de uma urna através
do tecido.
— O que a minha razão para vir aqui tem a ver com sua
presença?
— Estava só me certificando de que você alcançasse seu
destino sem dor. Considere isso um agradecimento por brincar com
a Naya.
— Me agradecer por brincar com sua filha me ofende. — Ele
franziu o cenho. — Verifique o chão, Seraph.
— Por quê?
— Você obviamente acha que estou mentindo.
Seu olhar não se desviou do meu.
— Nem sempre penso o pior de você, Celeste.
— Isso é difícil de acreditar.
— Então, para onde você está indo?
— Você vai embora se eu te contar?
— Não.
— Então aproveite não saber. — Andei na frente dele,
descruzando os braços.
A porta bateu e esperei que fosse atrás do Arcanjo.
— Estamos no meio da noite, Celeste. — Não tive essa sorte. —
Você não deveria andar por aí sozinha.
Tentei ficar em silêncio, mas não consegui. Eu não era do tipo
forte e quieta, mas magra e tagarela.
— Sou adulta. Tenho certeza de que vou ficar bem. Além disso,
estava pensando em pegar um táxi.
— Os táxis estão em greve.
— Vou pegar o metrô então.
— Também em greve.
Apertei os olhos em direção ao boulevard, mas ainda não era
visível no final da sinuosa rua de pedestres.
— Você conhece os franceses tão bem quanto eu, Celeste. Eles
estão sempre em greve.
Ele tinha razão. Nos dois anos em que morei aqui, havia um
protesto por um mês sobre uma coisa ou outra. Normalmente, tinha
a ver com trabalhar menos e ganhar mais.
Suas asas se materializaram, as pontas de bronze cintilando
com o brilho das lanternas de ferro fundido e se projetando das
fachadas de calcário.
— Eu poderia voar com você para onde você precisa ir.
— Tá brincando, né?
— Pareço estar?
— Não, você parece estar falando muito sério, o que é
preocupante.
— Por quê?
— Ora. Você está se oferecendo para me carregar.
— Você está preocupada que eu não possa?
Se meu coração não estivesse batendo muito forte, eu poderia
ter bufado, mas estava muito ocupada tentando espaçar minhas
respirações, então não soei tão chocada quanto provavelmente
parecia.
— Eu não estava questionando sua força, Seraph. — Observei
os braços grossos se projetando da roupa de camurça marrom –
não tão grandes quanto os de um fisiculturista, mas marcado por
músculos rígidos.
— Isso não é um estratagema para te pendurar sobre a Torre
Eiffel até que você aceite completar suas asas.
Minha boca ficou seca.
— Não foi isso o que pensei.
— Então por que você parece que está prestes a vomitar?
— Porque sua oferta de me transportar pelo céu sem cinto de
segurança é inquietante.
— Você nunca foi levada por um anjo?
— Não. Sou uma garota da terra. E essa garota da terra
realmente gosta de caminhar. Além do mais, meu destino é um
arrondissement próximo, então vou por conta própria. A pé.
Quando comecei a me virar, ele perguntou:
— Você está com medo?
Parei.
— De quê? De você?
— De voar.
Soltei o ar pelo canto da boca.
— Claro que não. — Os ossos das minhas asas incomodaram. E
doeram.
Aqueles grandes braços se cruzaram sobre o peito largo. Se eu
não tivesse conhecido a mãe de Eve, a Arcanjo companheira de
Asher, teria assumido que os Seraphim eram fundidos em moldes
diferentes do resto de nós.
— Mas você, por outro lado, deveria estar.
— Do que devo ter medo, Celeste?
— Que eu toque acidentalmente – ou não – suas preciosas
penas, Seraph.
— Sobrevivi da primeira vez. Tenho certeza de que sobreviveria
a outra tentativa com minhas asas.
— Tentativa? — Sorri, mas depois afastei aquele sorriso, porque
ele era uma pessoa odiosa que merecia apenas frieza e olhares
furiosos. — Olha, se o seu plano de ação é me mostrar o que vou
perder...
— Eu não tenho um plano de ação.
— Sua compaixão não conhece limites, Seraph, mas ainda
prefiro caminhar. — E foi o que fiz, andando sobre as pedras
prateadas.
Um momento depois, o ar mudou, e o cheiro de Asher – vento,
camurça e luz do sol – girou ao meu redor novamente. Por Elysium,
o Arcanjo era teimoso, e isso vinha de uma garota particularmente
obstinada. Se eu fingisse que ele não estava lá, será que ele iria
embora?
Tentei essa abordagem por um minuto inteiro, até que perguntei:
— Você pode, por favor, encontrar outro Pluma para — umedeci
os lábios antes que a palavra irritar pudesse sair da minha boca —
ajudar?
Em vez de entender a dica, ele falou:
— Encontrei a sua mãe outro dia.
Meu passo vacilou. Ele estava tentando me pressionar? Por que
neste mundo, e no dele, ele mencionaria minha genitora?
— Eu não tenho mãe, Seraph.
— Tem.
Franzi os lábios.
— Ela mora na Associ...
— Aquela mulher era um útero, não uma mãe. — Como eu não
podia deixar isso para lá, perguntei: — Por que você a encontrou?
Para discutir minha situação?
— Já que você não quer ter nada a ver comigo, pensei que ela
poderia ser capaz de entrar em contato com você.
Dei uma risada sombria.
— Ela pelo menos se lembrou de que tinha uma filha?
— Sim, mas não quis se envolver.
— Surpresa. Surpresa. — Por que eu não poderia simplesmente
ser indiferente a ela? — Falando em mães, Seraph, quem é a mãe
da Naya?
Ele observou a fachada de vidro do restaurante na esquina, onde
uma garçonete solitária esfregava os tampos das mesas. Quando
passamos, seu olhar se desviou para Asher, e o pano de prato
escorregou de sua mão, bateu na borda da mesa antes de cair no
chão. Como ela não conseguia ver suas asas, presumi que havia
ficado impressionada com seu físico. A menos que ela tivesse uma
queda por cosplay. Com a túnica marrom e calça combinando, o
Arcanjo parecia ter acabado de dar uma pausa em uma luta com um
leão. Ela o observou até o boulevard, boquiaberta. Mas Asher
estava totalmente alheio à sua grande energia de anjo.
Quando chegamos ao boulevard, reiterei minha pergunta:
— E então? Que Verity sortuda você engravidou, Seraph?
— A mãe da Naya era humana.
Surpresa foi uma palavra fraca para minha reação à sua
resposta.
— Era?
Ele fixou seu olhar aflito em um táxi em movimento.
— Ela está morta.
— Ah. Sinto muito.
Um táxi passou pela pista reservada para veículos de transporte
público, enviando uma rajada de vento frio pelas penas de Asher.
Eu suspirei.
— Você mentiu sobre a greve!
— Menti. — Ele não demonstrou remorso.
— Eu não sabia que o menino de ouro do Elysium tinha o poder
de enganar pobres e inocentes Plumas.
Asher revirou os olhos. Realmente virou eles, um minuto suas
pupilas estavam olhando para mim, e no outro para o céu noturno.
— Dificilmente eu te chamaria de pobre ou inocente, Celeste.
Eu sorri.
Quando seus olhos se voltaram para o meu rosto, a expressão
do Arcanjo se transformou em algo mais suave que o fez parecer
amigável. Mas aquele olhar era só uma cortina de fumaça.
Asher não era gentil. Ele era o bruto poderoso que roubou minha
melhor amiga.
Ele devia ter sentido a direção dos meus pensamentos, porque
seu sorriso desapareceu e ele suspirou.
— O que fiz agora?
— Não é o que você fez agora. É o que você fez até então. Não
consigo esquecer e não consigo perdoar.
Quando recomecei a caminhar, ele não me seguiu.
15

O cemitério estava deserto e seus portões, trancados. Nem


me ocorreu que poderia estar fechado.
Olhei através das barras de ferro fundido em busca de
um segurança de lanterna em punho. Como não encontrei ninguém,
caminhei por toda a extensão da parede de pedra em busca do
posto de um vigia quando um corpo pousou na minha frente.
Alguém bem vivo.
Quando Asher retraiu suas asas, dei um salto para trás.
— O que há de errado com você? Não se aproxima das pessoas
desse jeito sorrateiro.
— Eu dificilmente chamaria isso de sorrateiro.
— Caramba! Não se surge na frente das pessoas assim.
— Então você trouxe a urna...
A raiva e o aborrecimento equilibraram as batidas do meu
coração.
— Por que você está aqui?
Ele baixou o rosto.
— Vim prestar meus respeitos a Leigh e Jarod.
Semicerrei os olhos.
— Você nunca respeitou nenhum deles quando estavam vivos.
Por que começar agora? É a sua consciência? Isso finalmente te
incomoda?
As sombras se acumularam nos planos endurecidos de seu
rosto.
— Você não tem ideia do que está falando.
— Eu estava lá. Na tarde em que você apareceu para informar
ao Jarod que seu plano deu certo. Que as asas de Leigh estavam
completas. Eu estava lá quando você acompanhou uma Leigh de
olhos vermelhos pelo canal até o Elysium. Eu estava lá quando você
a jogou de volta na Terra, no quarto de hotel pelo qual pagou tão
gentilmente. Também estava quando a Mimi encontrou o corpo. Os
corpos deles. Então, não se emplume a me dizer que não tenho
ideia do que estou falando!
Asher moveu a mandíbula de um lado para o outro.
— Agora saia do meu caminho. — Eu o evitei, não lhe dando um
amplo espaço de propósito para que eu pudesse empurrar suas
penas.
Esperei que ele as escondesse, mas ele não usou a magia para
isso, nem as afastou e suas pontas roçaram na minha orelha e a
lateral do meu braço. Mesmo através da seda espessa da jaqueta,
senti sua pressão tênue e isso me fez estremecer. Ou Asher tinha
os piores reflexos ou fez de propósito, sentindo que me irritaria tanto
quanto o irritou.
— Ah... a vida sem asas...
Abaddon, me dê forças.
— Quer uma carona agora, Pluma?
Paralisei, não por causa de sua oferta, mas por causa do título
detestável.
— Posso ter os ossos das asas, mas não tenho penas. —
Comecei a andar novamente. Meu ritmo era tão rápido que o ar frio
da noite serpenteava ao redor do meu pescoço e subia pela minha
espinha, provocando arrepios. Fechei minha jaqueta e envolvi os
braços em meu corpo.
O ar se agitou, levantando as pontas do meu cabelo comprido.
Achei que minha mensagem tinha finalmente entrado na cabeça
dura do Arcanjo e o feito alçar voo.
— Não morda — ele murmurou.
Não...
Comecei a me virar para reclamar novamente, já que era claro
que a primeira vez não foi suficiente, quando ele envolveu os braços
ao meu redor, me prendendo junto a ele e me levantando do chão.
À medida que a calçada ficava menor, prendi a respiração. E
então estávamos caindo. Dentro do cemitério. A aterrissagem não
foi tão brutal quanto eu esperava, mas ainda assim me roubou o ar.
No segundo em que seus braços se afastaram, me virei e bati as
mãos em seu peito, empurrando-o com tanta força que ele teria
desmaiado se fosse humano. Em vez disso, tropecei. Ele segurou
um dos meus cotovelos para me firmar. Assim que consegui me
equilibrar, puxei o braço.
— Não se agarra as pessoas e sai voando com elas!
— Tecnicamente, eu pulei. Alto.
— Você sabe o que eu quero dizer!
— Melhor ficar quieta. Gritar vai chamar atenção.
A veia em meu pescoço latejava. Eu ia matar esse homem-
pássaro! Os ossos das minhas asas se contraíram e uma pena caiu.
Asher seguiu a queda.
— Pensando em mim?
— Ah, você não tem ideia — sussurrei de um jeito sombrio.
Ele teve a audácia de sorrir. O macarrão de unicórnio teve a
audácia de sorrir com malícia! Mas seu olhar se voltou para o meu
rosto, e sua expressão divertida desapareceu.
— Bem, é melhor parar ou isso tornará minha missão mais difícil.
— Sua missão? Sua mão bateu em um holo-ranqueador celestial
e vinculou você a mim? — Injetei sarcasmo em minha pergunta para
esconder minha curiosidade.
— Os anjos não podem se vincular a outros seres angélicos.
Observei o cemitério escuro, tentando me orientar e lembrar
como chegar à cripta dos Adler.
— Olha, obrigada pela carona. Mesmo aquela que não pedi. Mas
por favor... voe suas penas embora, Seraph. — Comecei a subir a
estrada larga, depois fui para a direita.
— É para o lado contrário.
Cerrei os dentes. Se eu tivesse sido mais prepotente, teria
continuado andando na direção que escolhi, mas como queria
acabar com isso rapidamente, ouvi Asher. Seu olhar arrepiou a
lateral do meu rosto enquanto eu passava por ele e, em seguida, a
nuca enquanto eu me afastava. O vento empurrou os galhos das
tílias, fazendo-as ranger como ossos velhos. O efeito sonoro
combinado com a escuridão me fez estremecer. Tentei me lembrar
que o solo abaixo de mim envolvia apenas corpos, não almas.
Infelizmente, isso não diminuiu o estranhamento.
Parei na próxima estrada principal, tentando localizar uma placa
familiar.
— Continue em frente.
Argh. Sem falar nada, segui suas instruções.
Poucos minutos depois, cheguei a um pilar de mármore preto
reluzente inscrito com nomes: Isaac, Jane, Neil, Mikaela, Tristan,
Leigh, Jarod. Em breve, o nome de Mimi seria adicionado à lista de
falecidos.
Com a respiração acelerada, tracei as letras do nome de Leigh.
— Ela não iria querer você aqui. E nem o Jarod.
Asher não respondeu. Ele finalmente tinha ido embora? Olhei
por cima do meu ombro. Não. Ainda estava lá.
Ele ficou com os braços cruzados e as asas bem fechadas.
— Eles não estão mais aqui para protestar. — Seu olhar não se
desviou da porta da cripta.
— Você se certificou disso.
O vento passou pela teia fofa de suas penas, fazendo-as vibrar,
embora tudo o mais nele permanecesse imóvel.
— Sim.
Em vez de ir para cima dele – não tinha servido a nenhum
propósito nas primeiras vezes – fingi que ele não estava lá. Me virei,
me agachei e então puxei a maçaneta da porta atarracada de metal
que levava à cripta.
Uma gota de suor escorreu pela minha espinha quando consegui
abri-la. Retirei o lenço embrulhado da minha bolsa. O cheiro de Mimi
me atingiu novamente, fazendo meu peito apertar e meus olhos
lacrimejarem.
Ela não partiu de verdade, lembrei a mim mesma enquanto
liberava seus restos mortais no poço escuro.
Isso não aliviou minha dor, porque mesmo que ela não tivesse
partido, um dia, eu partiria.
16

D epois de enterrar Mimi, fechei a porta de metal da cripta e


esfreguei as mãos nas coxas. Asher ainda estava lá, de
pé ao lado da coluna de mármore de nomes.
Ele arqueou as sobrancelhas enquanto eu seguia em sua
direção e então, arquearam um pouco mais quando parei bem na
sua frente. Fechei as mãos, inspirando e expirando lentamente,
substituindo o cheiro quente e cítrico de Mimi pelo fresco de Asher,
e então bati em seu peito, bem onde seu coração sombrio batia.
Seus lábios se entreabriram em um suspiro com o meu primeiro
soco e depois de apertaram enquanto eu continuava batendo. Ele
não recuou nem interveio. Me deixou socá-lo até que os ossos das
minhas asas doessem tanto quanto meus dedos. Em algum
momento, ele segurou minhas mãos, fechou os dedos ao redor
delas e as puxou para baixo.
— Eu não terminei, Seraph!
— Terminou, sim.
— Não se atreva a me dizer o que devo fazer! — Tentei puxar as
mãos, mas ele segurou firme.
— Se as penas não estivessem se acumulando, eu ficaria feliz
em deixar você continuar, Celeste, mas me odiar só está
prejudicando suas asas, então se acalme.
— Você queimou as asas da Leigh! O corpo dela está se
desintegrando sob nossos pés por sua causa! Sua alma... a luz da
alma dela foi apagada por sua causa! — Consegui soltar uma mão.
Antes que eu pudesse acertá-lo no rosto, ele pegou meu pulso e o
empurrou para trás, depois fez o mesmo com a outra mão,
prendendo as duas.
— Eu não sou seu inimigo.
— Todo o sistema é meu inimigo, e como você está no topo,
também é.
Suas asas se abriram e se curvaram ao redor de nossos corpos,
nos prendendo em uma gaiola de penas.
— Tem medo de que o Ishim te veja maltratando outro anjo? —
grunhi, lutando contra seu aperto.
— Não. — Ele aproximou a boca no meu ouvido e sussurrou. —
Tenho medo de que me ouçam confessar algo que pode destruir a
ela... e a mim.
— A ela? — Tentei me afastar, mas não tive nenhuma vantagem
com minhas mãos presas nas costas e um corpo enorme curvado
sobre mim.
Ele respirou, apenas respirou, cada lufada de ar mais quente e
mais forte que a última.
— Eu salvei a alma dela.
Desta vez, quando inclinei a cabeça para trás, consegui um
mínimo de espaço entre nossos corpos.
— Onde... onde está? — Seu nome não dito se agarrou à
escuridão entre nós.
Seus olhos se fecharam com tanta força que linhas finas os
delimitavam. Sua boca também. Desejei que ele os abrisse e
respondesse, mas continuou assim.
— Como posso saber se você está dizendo a verdade?
O dossel de penas o projetava na sombra, mas vi o latejar da
veia correndo por sua têmpora, agitando uma mecha de cabelo que
havia escapado do elástico.
— Eu me amaldiçoei, Celeste — seus olhos se abriram
lentamente, mas não por completo — e você está perguntando se
estou mentindo? — Seus dedos soltaram meus pulsos, mas suas
asas permaneceram paradas e, embora nenhuma pena tocasse
meu corpo, eu as sentia em todos os lugares.
Esfreguei os pulsos como se ele tivesse me machucado, mas
estava bem.
Estremeci como se estivesse com frio, mas não estava.
Eu estava pasma. E chateada.
Ah... muito... chateada.
Dei um tapa em Asher.
— Como. Você. Ousa? — Os ossos das minhas asas
tensionaram quando o Ishim roubou mais uma pena, aumentando o
monte roxo que se formava ao redor das minhas botas.
O Arcanjo piscou.
— Como eu ouso o quê?
— Como você ousa me dizer isso só agora? Como você se
atreve a me deixar acreditar... que... — Eu não queria chorar, mas
um gemido escapou. — Quatro anos e meio, Seraph — resmunguei.
— Quatro anos e meio. Um pedaço do meu coração está morto há
quatro anos e meio.
Em um sussurro mortalmente baixo, ele disse:
— Se você não ficar quieta, esse pedaço ficará enterrado para
sempre. — Meus olhos se arregalaram tanto que meus cílios
roçaram minha sobrancelha. Eu nem havia considerado que sua
alma poderia ser caçada e destruída. — E eu que estava esperando
um abraço — ele murmurou, esfregando o queixo. — Ou, pelo
menos, um obrigada.
— Sinto muito. Por gritar e bater em você. — Encarei o monte
roxo que poderia facilmente ter enchido uma pequena fronha, mas
então a primeira parte de sua frase me atingiu. — Você acabou de
dizer que queria um abraço?
Ele afastou a mão do rosto.
— Eu não disse que queria.
Mesmo que sua filha fosse efusiva, não acho que ela tinha
herdado isso do pai. Provavelmente foi da mãe.
— Eu tenho perguntas.
— Posso imaginar, mas aqui, não.
— Onde?
— Conheço um lugar.
— Vamos lá.
Ele franziu o cenho, como se estivesse surpreso com minha
concordância.
— Tem certeza?
Assenti.
Ele se endireitou e girou ombros para trás, cambaleando e nos
expondo novamente à noite e às criaturas que nos espreitavam.
Será que o Ishim com asas cor de lavanda estava se balançando
em algum lugar acima de nós tentando escutar?
— Este lugar é... — A palavra distante se transformou em um
grunhido quando meus pés foram erguidos. Meus braços se
agitaram, prendendo o pescoço do Arcanjo enquanto ele disparava
para cima. — Um aviso teria sido bom — resmunguei.
Eu não tinha certeza se ele tinha me ouvido, mas quando parou
de bater suas asas poderosas, ele falou:
— Eu não estava com vontade de debater sobre o melhor meio
de transporte.
— Então você tirou a minha escolha? — Eu o apertei, não me
importando se o estava machucando com todos os meus anéis. —
Quase me esqueci de que esse era um dos seus muitos talentos. —
Fazer provocações pendurada a quilômetros de distância da terra
certamente era imprudente, mas sabedoria nunca foi meu ponto
forte. Honestidade, no entanto, era.
Meu comentário me rendeu um olhar duro, mas me distraí
quando seu corpo – e por extensão, o meu – se inclinaram para
frente. Meu estômago revirou. Virei o rosto para longe da cidade em
forma de caracol e enterrei-o contra o peito firme do Arcanjo.
Embora não tão frenético quanto o meu, seus batimentos estavam
acelerados contra minha testa, nariz, queixo.
Inspirei o cheiro de vento sombrio e camurça quente até que o
embrulho em meu estômago diminuiu.
— Você está avaliando o melhor lugar para me deixar?
Voamos em silêncio por alguns segundos antes que ele
dissesse:
— Talvez.
Abri os olhos para verificar se ele estava falando sério.
— Eu ainda tenho os ossos da asa. — Ele franziu a testa para
mim. — Se você me largasse, eu não morreria.
— Estou ciente disso.
— Mas doeria. — O que provavelmente seria o ponto... concluí
que era uma coisa boa eu não estar planejando completar minhas
asas, já que estava com vertigem e tão enjoada.
— Não tenho intenção de te causar dor, Celeste.
E ainda assim, ele tinha causado...
— Celeste?
— Só estou tentando não vomitar em seu lindo uniforme,
Seraph. — Engoli em seco. Uma. Duas vezes. Finalmente, tirei o
rosto do torso de Asher.
Ele estava olhando para a cidade. E eu não era corajosa o
suficiente para fazer o mesmo. A única coisa que tive coragem de
espiar foram as estrelas acima de nós.
— Faça suas perguntas, Celeste.
Pisquei para longe.
— Aqui? — O suor frio gelou minha pele, apesar de estar
aninhada contra um braseiro.
— Não há onde se esconder no céu. Especialmente em noites
claras.
Olhei em volta. Quando avistei a Torre Eiffel – a miniatura da
Torre Eiffel – enfeitando a noite, meu estômago deu um espasmo e
pressionei a testa contra o peito de Asher novamente. Ele me trouxe
aqui porque realmente era o lugar mais seguro para conversar, ou
por que estava no controle total?
Não importava.
Respirei fundo algumas vezes. Não pense sobre onde você está.
Você está segura.
Mais ou menos.
— Você também o salvou?
— Sim.
A surpresa separou meu rosto da camurça.
— Eles estão juntos no Elysium?
— Não.
— Eles não estão juntos? Ou não estão no Elysium?
— Nenhuma das duas coisas.
— Algum deles está em Abaddon?
— Não. — O brilho de estrelas distantes cintilou na barba por
fazer que revestia sua mandíbula rígida.
— Onde eles estão?
Ele fez um gesto com a cabeça indicando a Terra.
— Em Paris?
— Na Terra. Não em Paris.
— Estão juntos?
— Não.
— Você os separou? — Eu não acreditava em almas gêmeas,
mas Leigh sim, e ela acreditava que Jarod era dela.
A atenção de Asher se afastou da cidade iluminada e se fixou
em mim.
— Eu não tive escolha.
Não teve escolha? Ou ele ainda estava tentando ficar com
Leigh? Deixei essa questão de lado para mais tarde.
— Pelo que eu saiba, as almas não flutuam ao redor da Terra,
suponho que você as implantou em úteros humanos...
— Não.
Minhas sobrancelhas se ergueram.
— Então, onde?
— Se eu os tivesse colocado dentro dos úteros, eles seriam
filhos de alguém. Eu queria que eles fossem criados dentro de
associações para que os ossos das suas asas pudessem se
desenvolver. Assim, eles teriam uma segunda chance. — Ele
apertou os olhos, passando pelo meu cabelo preso. — Quanto você
sabe sobre reencarnação?
— Exatamente o que ensinam nas associações. Que o Malakim
deve embutir a alma no útero em algum momento do primeiro
trimestre de vida. E que, se não for feito, uma nova alma se formará,
fornecendo ao mundo um equilíbrio necessário entre o novo e o
antigo.
Uma corrente de ar gelada empurrou nossos corpos para o lado.
Meus dedos apertaram seu pescoço, imprimindo a forma de todos
os meus dezesseis anéis em sua pele.
Um canto de sua boca se ergueu.
— Relaxe, Celeste. Eu não vou deixar você cair.
— É fácil para você dizer. É você quem tem as asas. — Uma
mecha de cabelo bateu em minha testa. O desejo de colocá-lo de
volta se perdeu na compulsão de me agarrar a Asher.
Ele reajustou seu domínio sobre mim, e eu soltei um grito
ofegante. Seu dedo enganchou na minha mecha rebelde e a
afastou.
— Lembre-se de que posso voar mais rápido do que você pode
cair.
— Que... reconfortante.
Seu sorriso se ampliou, eliminando dezenas de linhas de
preocupação.
— Como você saberia disso se nunca deixou ninguém cair?
Seus olhos brilharam com o que eu poderia ter chamado de
travessura se ele fosse uma criança, o que Asher não era. Não era
há um século – mais até.
— Nunca soltei ninguém que não pedisse para ser solto.
— Quem em sã consciência pediria para ser solto? Sabe de uma
coisa? Não importa. Vamos voltar a Leigh. Onde você a colocou?
Um suspiro apagou a luz residual de suas feições.
— Você está ciente de que algumas novas almas nem sempre...
vingam?
— Você quer dizer natimortos? Você... você ressuscitou um
natimorto?
— Dois.
— Dando almas a eles?
— Sim.
— Você pode fazer isso?
— Arcanjos podem realizar alguns milagres.
— Por que você não ressuscitou Leigh e Jarod então?
Seus olhos se fecharam.
— Seus corações tinham parado de bater por muito tempo
quando cheguei.
Eu não achava que a morte afligia os Arcanjos, mas também não
considerava que Seraphim eram capazes de brincar de esconde-
esconde.
Minha pele se arrepiou de repente. Arrepio que nada tinha a ver
com a temperatura ambiente. Leigh morreu há quatro anos e meio,
e Naya tinha...
— Naya... — Eu meio que ofeguei, meio sussurrei.
Suas pálpebras se abriram e seus olhos, que não se pareciam
com os de Naya, procuraram os meus.
— Ela... — O calor percorreu meu rosto e meu peito. — É por
isso... — Minha garganta se apertou, e os pontinhos de estrelas se
juntaram até Asher estar envolto por um halo — É por isso que ela
sabia meu nome.
Um breve instante se passou.
— Eu estava com medo disso.
— Com medo de que ela soubesse meu nome?
— Que a alma dela reconhecesse a sua.
Meu coração quase parou no meio de uma batida.
— Você não a limpou antes de colocá-la dentro de seu novo
corpo?
— Sim, mas as almas de vocês tinham uma conexão profunda, e
isso não é algo que pode ser removido. Pelo menos, não sem
causar danos irreparáveis. — Ele disse as palavras com tanta
naturalidade que meu olhar se transformou em um atordoado. —
Vocês duas eram almas gêmeas.
— O quê? Eu pensei que... o Jarod...
— Ele não era a alma gêmea dela.
— Mas...
— Gêmea significa irmã, Celeste. O Jarod... acredito que ele era
mais. Acho que ele era seu neshahadza – sua alma-metade.
Eu ainda estava pensando no fato de que existiam almas
gêmeas. E agora, almas-metades?
— Neshahadzas possuem a conexão mais profunda e rara. —
Suas feições se contorceram de desgosto ou de dor?
Provavelmente desgosto, considerando o quanto o Arcanjo achava
o amor ruim. — Uma vez que as almas se unem, torna-se
impossível para elas viverem sem a outra.
Quase me esqueci de que estava suspensa sobre
absolutamente nada. Quase me esqueci de que estava apoiada em
um homem que odiei por tanto tempo. Um homem que eu não
odiava mais. Como eu poderia, quando ele desafiou a lei celestial e
salvou uma alma digna?
Duas almas dignas.
— Neshahadza, — pronunciei a palavra angelical. — Todo
mundo tem uma?
— Sim, mas a maioria das pessoas nunca encontra a sua, e elas
se contentam com uma de suas almas gêmeas.
— Temos mais de uma alma metade?
— Não.
— Você conheceu a sua?
Ele me lançou um olhar que poderia me ter feito rir se eu não
estivesse à sua mercê.
— Você não está ainda ansiando pela Leigh, não é?
Sua boca se curvou em desgosto.
— Claro que não! Por que você pensaria uma coisa tão horrível?
— Você queria se casar com ela...
— Porque a alma dela era linda. Nunca foi uma questão de
atração física.
— Ela não é sua filha biológica, Seraph, então tecnicamente...
— Ela é uma criança.
— As crianças crescem.
Ele estremeceu. Tipo, realmente estremeceu.
— Ela pode não ter meu sangue, mas é minha filha em todos os
aspectos que contam, e eu nunca profanaria isso. Nunca. — Ele
estremeceu de novo, e foi tão poderoso que fez meu próprio corpo
tremer. — Por favor, nunca insinue tal coisa. É repulsivo.
— Sinto muito, mas eu tinha que perguntar.
— Já perguntou. E agora, o assunto está encerrado.
Concordei.
Ele balançou suas asas lentamente, e então nós deslizamos
novamente, patinando através da imensidão brilhante.
— Você está criando o Jarod como seu filho? — Já que as almas
não tinham gênero, perguntei — Ou filha?
— Ele também é um menino nesta vida. E, não. Não tenho
nenhum relacionamento com ele. A origem de uma criança já era
complicada o suficiente para explicar.
— Acredito. — O desejo estranho de abraçar o Arcanjo tomou
conta de mim, mas eu não queria assustá-lo e arriscar ser
derrubada, mesmo que ele jurasse que a velocidade de sua asa
excedia a minha de queda.
Talvez eu o abraçasse mais tarde em terreno firme. Antes que
nos separássemos. Mas poderíamos nos separar? Eu tinha mais
três meses antes de ser excluída das associações. Eu poderia voltar
a viver minha vida e fingir que a alma de Leigh não fazia parte deste
mundo?
17

——OEuque aconteceu com o Jarod?


o confiei a um Ophanim da associação vienense — Asher
explicou. — Tobias.
— E este Tobias... ele sabe?
— Sim.
— E você confia nele?
— Com minhas asas.
Poucas coisas eram tão preciosas para um anjo quanto as asas.
— Você vai apresentar as crianças algum dia?
— Não até que eu tenha mudado a lei sobre as almas dos
Nephilim.
— Você está tentando mudá-la?
— Não ativamente ainda. Assim que as crianças provarem seu
valor, uma vez que os dois ascenderem, começarei minha cruzada.
Quanto às apresentações, embora eu espere que eles não se
encontrem por muito tempo, você encontrou o caminho até ela.
Imagino que ele irá encontrar também, ou ela até ele, uma vez que
vagam pelo mundo livremente. — Seu peito se ergueu com um
suspiro. — E imagino que suas almas irão se reconhecer de alguma
forma.
— Acho que você acabou de ganhar alguns cabelos brancos,
Seraph.
Ele bufou.
— Estou surpreso por ter sobrado algum cabelo.
Aliviei meu aperto em seu pescoço, não porque o terror de estar
tão longe sem nenhuma parede tinha ido embora, mas porque não
queria machucá-lo. Não mais. Mesmo que ele não tenha feito isso
por mim, salvar Leigh foi um presente.
— Qual é o nome de Jarod desta vez? Lúcifer?
A diversão aliviou seu rosto tenso.
— Teria sido adequado para ele.
— Também teria pintado um alvo em suas costas. — Ele olhou
para a cidade escura abaixo. — Tobias o chamou de Adam.
— Adam e Naya. Eu gosto.
Sua boca se apertou. Percebi que ele não gostou. Era porque
Naya era sua garotinha agora, ou porque ele ainda não era um fã
de... Adam?
Algo me ocorreu. Algo que de repente fez muito sentido.
— A Mimi sabe. É por isso que ela não te mandou tomar naquele
lugar e te mandou embora.
Uma sobrancelha se ergueu.
— Tomar naquele lugar?
— Você realmente precisa que eu desenhe?
— Acho que posso descobrir sozinho. — Isso foi um sorriso? —
E, sim. Ela sabe.
— A Ish Eliza sabe?
Ele inclinou a cabeça para trás.
— Ish Eliza? Por que ela saberia?
Dei de ombros.
— A Naya mencionou que vocês dois eram próximos quando
estávamos agachadas no baú de brinquedos, esperando que você
nos encontrasse.
— A Ish Eliza trabalha ao meu lado. Não estamos envolvidos e
mesmo que estivéssemos, eu nunca diria a ela. Você sabe que o
que fiz não só me rebaixaria, mas também me mataria.
— Você tem asas.
— Que vão virar fumaça se for divulgado que salvei uma alma
Nephilim – duas almas Nephilim. E suspeito que os Sete não
parariam nas minhas asas.
— Eles queimariam sua pele?
— Minha pele? Não... eles iriam direto para minha alma.
— Você pode queimar almas?
— O fogo do Arcanjo pode queimar muitas coisas. — Um sulco
apareceu entre suas sobrancelhas. — Sei que me odeia, Celeste,
mas se você tentar me machucar com essa informação, também vai
machucar a Naya. Eles não hesitarão em... — ele estremeceu —
queimar sua alma.
Embora eu mantivesse uma mão presa em seu pescoço, deixei a
outra deslizar para sua bochecha.
— Eu não te odeio. Não mais. E prometo levar tudo o que você
acabou de me dizer para a minha sepultura terrena.
— Sepultura?
— A menos que você tenha pena da minha alma Nephilim.
— Você não é Nephilim.
— Ainda. — Levei a mão de volta para sua nuca.
— Achei que confiar isso a você te faria mudar de ideia.
Esse é o motivo de ter me contado?
— Mesmo que eu mudasse de ideia, Seraph, infelizmente não há
como completar minhas asas a tempo. Eu precisaria ganhar
setecentas penas antes do fim de dezembro.
As pontas cor de bronze de suas asas tremulavam à medida que
flutuávamos.
— E?
— E isso é impossível.
— Assim como trazer Leigh e Jarod de volta. — Fios de cabelo
voaram em sua testa.
— Se você tivesse me contado antes... — Pela primeira vez em
quatro anos, me arrependi de estragar minhas asas. — Me
desculpe. A culpa não é sua.
— É, sim. Totalmente minha. Tudo isso é culpa minha. — A
pressão de seu polegar, com a qual ele afastou uma mecha de meu
cabelo, aumentou. Não dolorosamente. Era mais como um lembrete
de que ele estava segurando minha cabeça. E corpo também. — Me
permita te ajudar, Celeste. Me deixe tentar consertar o dano que
causei.
Mordi o lábio inferior, considerando seu pedido e suas
ramificações – a ajuda de um Arcanjo não levantaria suspeitas? E
então pesei nossas chances de sucesso – de pouca para mínima.
— Sei que você não me acha capaz de dar escolhas às pessoas,
Celeste, mas eu sou. E não vou te forçar se você realmente não
quiser ascender. Não agora que você sabe.
— Jura?
— Juro. Mas eu ficaria desapontado se você não tentasse. —
Sua boca se curvou para um lado. — Sem mencionar Naya e Mimi...
— E eu que pensei que os Arcanjos não chantageavam as
pessoas.
— Coerção é nossa especialidade, junto com fogo e
envergadura impressionante.
— E uma boa dose de humildade
Seus olhos brilharam.
— Está funcionando?
Seu motivo para me fazer reconsiderar não me escapou: a culpa
era um motivador poderoso. Mas tentar o impossível seria o
suficiente para aliviar sua consciência? E o mais importante: era o
que eu queria?
Eu gostava da vida que criei para mim mesma na Terra. Amava a
faculdade e meu melhor amigo não angelical. Tentar ganhar
setecentas penas seria caótico e cansativo. Sem mencionar que se,
por algum milagre, eu realmente conseguisse, estaria dizendo
adeus a um mundo que passei a amar em favor de um que
desprezo.
— Celeste? — A voz de Asher era tão gentil quanto o vento
batendo em nossos corpos.
Suspirei.
— Se eu aceitar, exatamente como você vai me ajudar? Como
exatamente você pode ajudar?
O aperto de seus braços aumentou. Era como se agora que eu
estava considerando a sua oferta, ele não quisesse arriscar que eu
escapasse.
— Eu pré-selecionaria os pecadores. Te vincularia a eles sem
que você tivesse que aparecer na associação. Economizaria o
máximo de tempo possível.
— Será um trabalho de tempo integral, Seraph. Você não tem
que governar o Elysium?
Ele não sorriu. Não, ele estava assustadoramente sério.
— Até que suas asas estejam completas, estarei ao seu lado.
— Está pensando em segurar minha mão, não é?
Seu torso e braços ficaram rígidos.
— Eu, ah... eu...
Revirei os olhos com seu desconforto.
— Relaxe. Eu estava brincando.
Olhei para as estrelas, desejando que elas pudessem me
aconselhar. Se eu aceitasse e falhasse, o golpe seria tão violento
que eu não tinha certeza se iria me recuperar. Mas se eu nem
mesmo tentasse, sempre me perguntaria. E se eu conseguisse...
— Fracassar ou me perguntar? — murmurei em voz alta.
— O quê?
— Estou pesando as consequências da minha decisão sobre a
minha sanidade.
Ele ficou em silêncio, como se quisesse me dar tempo para
decidir.
Se eu não morresse tentando, poderia viver para sempre com
todos que amo.
— Tudo bem. Vamos fazer isso. Ou tentar, pelo menos, mas se
eu enlouquecer enquanto ainda tenho os ossos da asa, é culpa sua,
Seraph.
Seu sorriso remodelou o rosto até que ofuscou as mais puras
asas Verity.
— Eu apertaria sua mão para selar nosso acordo, mas não
quero que você tire um único dedo do meu corpo no momento.
Ele deu uma risadinha. O som era surpreendentemente atraente.
— Alguma chance de que, agora que você conseguiu o que
queria, pudéssemos pousar?
— Seu desejo é uma ordem. — Ele me apertou contra si, então
se inclinou para frente e retraiu as asas.
Gritei enquanto cortávamos o ar, despencando tão rápido que
tentei escalar o Arcanjo.
— Não tão rápido! Pare! Por favor! Eu vou vomitar. Pare!
Suas se abriram e, embora nossos corpos tivessem arqueados
para cima, meu estômago atingiu meu cóccix.
— Celeste, você não tem nada a temer. — Seu aperto em mim
diminuiu, em seguida aumentou.
— Não gosto de velocidade. Também não gosto de altura. E eu
sinto um enjoo terrível.
— Podemos flutuar, mas vai demorar um pouco. Achei que você
queria voltar para o solo o mais rápido possível.
— Não há alternativa?
— Infelizmente, não.
Olhei de lado para ver quanto mais precisávamos cruzar.
— Por que você teve que vir tão longe? — murmurei ao avistar o
Grand Palais, seu telhado abobadado de aço e vidro atualmente do
tamanho de uma goma de mascar.
— Quando eu era criança, acreditava que as estrelas eram
almas que se afastavam do Elysium, cansadas dos mundos humano
e celestial. — O rosto de Asher estava voltado para cima. —
Quando um Ophanim explicou que eram bolas de hidrogênio e hélio
em chamas, eu chorei.
Bufei, porque o anjo homem era tão rude quanto Naya era
sensível.
— Não consigo imaginar você chorando.
Ele olhou para mim com os olhos brilhando como se tivessem
fugido com a luz das estrelas.
— Você provavelmente não imagina que já perdi uma pena
durante meus anos de Pluma.
Fiz uma careta.
— É mesmo? Perdeu uma?
— Várias.
— Não tantas quanto eu, certo?
— Acho que você detém o recorde de mais penas perdidas.
Abri um sorriso orgulhoso.
— Você também detém o recorde de mais penas ganhas fora de
serviço.
— Fora de serviço?
— Não estando em uma missão.
— Hum. Então, isso significa que quando eu ascender, terei
ganhado quase duas séries completas. Isso deve pelo menos me
dar acesso ao posto de Malakim.
Ele engoliu em seco.
— Prometo que assim que você ascender, lutarei para dar aos
híbridos os mesmos direitos que os Verities.
— Você tem uma luta mais importante chegando. Assim que
ganharmos a primeira, passaremos para a segunda.
O vento aumentou e balançou meu cabelo. Mantendo uma mão
presa em sua nuca, tirei a outra para afastar os fios soprados pelo
vento.
— A Mimi não pediu para voltar, pediu?
Um sorriso tranquilo surgiu em seu rosto.
— Não. Ela está esperando por você.
Enquanto voávamos em direção à Terra, me concentrei na
confiança inabalável de Mimi, em vez de pensar no caminho que
ainda tínhamos a percorrer. Ou melhor, que eu tinha que percorrer.
E eu não estava falando sobre o pouso.
Asher tinha feito o impossível. Eu conseguiria?
18

Q uando voltamos para a associação de Nova York, os


Plumas mais velhos estavam terminando o jantar ou se
preparando para sair em missões ou para se divertir. Vários
pararam para olhar para mim e para Asher.
— Já que estou aqui, Seraph, vamos dar uma passada na Sala
de Classificação e você pode me mostrar quem eu preciso
recuperar amanhã.
— Você está exausta, Celeste. Por que não vai para casa, e eu...
Um gritinho “Apa” soou, seguido por um pequeno tornado loiro
indo direto para Asher. Ele se agachou bem a tempo de pegar a
criança que chegava.
Quando ele se levantou, afastou o cabelo do rosto dela.
— O que você ainda está fazendo acordada?
Meu coração disparou.
Leigh...
Minha amiga estava lá, em um novo corpo, mas estava lá. Se eu
estendesse a mão, poderia tocá-la.
Eu a havia tocado.
— Estava tentando dormir, mas tive um sonho muito ruim, Apa.
— Ela estremeceu. — Foi assustador. Havia um homem. E ele
estava me sufocando.
Respirei fundo. Ela poderia... poderia estar se lembrando de sua
vida passada? Há quatro anos, um homem tentou estrangular Leigh,
um homem chamado Tristan. Ele era o melhor amigo de Jarod, e tão
possessivo com ele que quando percebeu que estava perdendo seu
amigo para Leigh, tentou matá-la.
Leigh tinha me dito o quanto estava assustada, não tanto por si,
mas por Jarod que, ao contrário dela naquela época, não era
imortal. Ele invadiu o quarto e jogou Tristan para fora da varanda, e
ele caiu naquela fonte com um anjo de pedra cujas asas ele havia
transformado em pó quando criança.
Asher não conseguiu despojar a alma de Leigh dessa memória?
Talvez as almas dos Nephilim fossem diferentes das humanas.
Talvez fosse isso que Mira queria dizer sobre alguns não serem
recuperáveis.
Nossos olhos se fixaram no cabelo selvagem de Naya. A
preocupação fez suas pupilas brilharem. Ele estava nervoso por ela
se lembrar de muitas coisas, pela possibilidade de que eu o traísse
ou por ela ter choramingado? Ele estava ciente de que Tristan tinha
estrangulado Leigh? Ela alguma vez tinha contado isso a ele?
Asher sussurrou algo no ouvido de Naya que a fez balançar a
cabeça muitas vezes, e então ele murmurou outra coisa que a fez
tirar a cabeça de seu ombro e virar o pescoço.
— Celeste!
Meu coração bateu forte. Suas batidas eram tão altas que
certamente fizeram o ar com cheiro de madressilva ondular.
— Oi, menina. — Tentei sorrir. Fracassei.
Ophan Pippa veio até nós.
— Me desculpe, Seraph. Levei a Naya para dar uma voltinha a
fim de acalmá-la para que ela não acordasse as outras crianças. Me
deixe pegá-la. — Ela estendeu os braços, o que fez Naya
aconchegar a cabeça na curva do pescoço de Asher e se enrolar no
Arcanjo quase tão ferozmente quanto eu me agarrei a ele quando
voamos sobre os telhados parisienses.
— Obrigado, Ophan, mas vou colocá-la na cama. — Ele deu um
beijo no topo da cabeça de Naya. — Depois que eu terminar de
conversar com a Celeste.
O Arcanjo estava cheio de surpresas esta noite. Colocá-la na
cama? Ele contava histórias a ela e se sentava aos pés de sua
cama até que ela dormisse? Nem todos os pais eram como os
meus, mas a maioria não perambulava pela associação, nem
durante o dia nem à noite.
Quando Asher acenou em direção à Sala de Classificação,
recuei um passo, depois me virei, e as solas das minhas botas
rangeram contra o quartzo com veios de fogo. Apenas uma outra
Pluma estava sentada na bancada circular interna. Ironicamente,
era aquela que conheci no The Trap com a amiga Verity, na noite
anterior à minha vida ser destruída.
Ainda que ela não tenha arregalado os olhos com a visão de
Asher e Naya, seus cílios se ergueram ao me ver. A infame Pluma
Celeste visitar a Sala de Classificação era, sem dúvida, chocante.
Puxei um banquinho, e seus pés rasparam no quartzo brilhante.
Asher se sentou ao meu lado, com Naya em seu colo. Quando
pressionei a palma da mão no painel de vidro para ligar o holo-
classificador, dei outra olhada no corpinho que abrigava a alma da
minha melhor amiga.
Leigh e Naya eram a mesma coisa, mas Naya não carregava
nossas memórias compartilhadas. Ela não se lembrava dos jogos
intermináveis de Nem sim, nem não que fazíamos. Não se lembrava
das penas que perdi quando fui chamada de asinha e retaliei com
palavrões que não eram criativos o suficiente para disfarçar seu
verdadeiro significado. Não se recordava de que me vinculei a um
pecador em Paris para estar ao seu lado durante seus últimos dias.
Eu queria roubá-la de Asher e envolvê-la em meus braços.
Queria contar a ela todas as histórias sobre nós. Tudo o que
fizemos juntas.
E queria que ela me dissesse que tudo ficaria bem.
Mas ela era uma criança.
E o nome dela era Naya.
Não Leigh.
Fechei as mãos no colo e observei Asher desembaraçar o
cabelo dela com seus longos dedos. Havia amor ali.
Amor e pertencimento.
O ciúme apareceu, porque era a mim que ela amava assim... ela
pertencia a mim. Bem, a mim e a Jarod, mas não a Asher.
E agora ela era dele.
Só dele.
— Essa não. Ela não é bonita. — Naya franziu o narizinho para a
imagem 3D que irradiava do painel de vidro.
Olhei para a pecadora. Encontrei uma mulher chamada Barbara
Hudson olhando para mim com a boca tão apertada que as rugas
irradiavam como raios de sol. Tudo que tive tempo de ler foi sua
pontuação – 100 – e o número de meses que ela estava no sistema
– 400 – antes de Asher se inclinar para frente e escrever um nome
no painel de vidro.
Quando o rosto da mulher se transformou em um homem com
sobrancelhas brancas espessas, uma massa de cabelo branco e
uma pontuação de 82, perguntei:
— O que essa Barbara Hudson fez para ganhar uma pontuação
de três dígitos?
Asher desviou o olhar para Naya antes de balançar a cabeça de
leve e suas mechas despenteadas pelo vento se moveram em torno
de seu rosto. Presumi que os crimes de Bárbara eram terríveis
demais para serem discutidos na frente de uma criança de quatro
anos.
Asher projetou o queixo em direção ao painel de vidro.
— Sua mão, Celeste.
Mesmo que eu confiasse em seu julgamento, ainda analisei a
ficha criminal do pecador.

GERALD BOFINGER (20 )


F .

— Ele é perigoso, Apa? — Naya enfiou a cabeça sob o queixo


dele.
— Não. Ele é inofensivo.
— Que bom. Porque não quero que a Celeste se machuque.
Meu coração apertou com sua preocupação.
— Não se preocupe, motasheh. Também não quero isso. — Com
essas palavras, ele afastou meu ciúme.
Pressionei a palma da mão no painel de vidro até que meu nome
aparecesse no rosto alegre de Gerald. Sim, rosto alegre. A
reprodução repetida mostrou os lábios do homem se curvando em
um sorriso, erguendo as bochechas tão vermelhas quanto a geleia
de framboesa que Mimi costumava fazer a cada primavera.
Mantive a palma da mão no lugar até que o zumbido do holo-
classificador foi substituído pelo ronco do meu estômago.
— Isso foi a sua barriga? — Apesar dos olhos inchados, Naya
conseguiu arregalá-los.
— Sim. — Como tínhamos terminado, me levantei. — Ainda não
jantei. — Ou almocei, se eu fosse sincera. Tudo o que comi foi
biscoito velho e café. — Vou para casa.
Asher, que ainda estava brincando com o cabelo da filha,
observou meus movimentos, então reajustou Naya e se levantou,
esticando seu longo corpo. Me senti muito pequena de pé ao lado
dele. Por outro lado, meu rosto estava nivelado com o de Naya, que
pendia contra sua clavícula.
De repente, ela afastou a cabeça do peito de Asher.
— Você pode jantar aqui! Eu me sento com você, depois
podemos brincar...
Asher bateu na ponta de seu nariz.
— Chega de brincadeira por hoje.
— Não é justo. — Ela cruzou os braços e emitiu um som
descontente que fez as covinhas em minhas bochechas surgirem
com um sorriso.
— A vida nem sempre é justa, Naya. É por isso que nós, anjos,
existimos. Para torná-la justa. — Equilibrando-a na curva de um
braço, ele se virou para mim. — Celeste, vou te buscar amanhã de
manhã, às nove.
— Não precisa me pegar. Eu te encontro em... espere, amanhã é
sábado. O escritório dele não estará fechado?
— O escritório sim, mas a casa, não.
— E você sabe onde ele mora?
— Sei.
— E por me pegar, você quer dizer em um Uber, certo?
Ele sorriu, compreendendo o significado subjacente à minha
pergunta. Ele provavelmente ainda tinha hematomas em forma de
dedo na nuca.
— Podemos caminhar. Não fica longe do Central Park South.
Assenti. E porque não pude resistir, passei um nó do dedo na
bochecha macia como um pêssego de Naya.
— Bons sonhos, menina.
Ela soltou os braços e esfregou os olhos com as mãozinhas.
— Vou ter agora.
— Você pode adicionar abraços mágicos à sua lista de
superpoderes, Seraph.
— Não acho que ela estava falando sobre meus abraços — ele
disse enquanto ela apoiava a cabeça em seu peito novamente.
Ela deu um tapinha em sua bochecha.
— Seus abraços são os melhores, Apa, mas meu coração está
feliz porque a Celeste quer suas penas de novo.
Encontrei o olhar turquesa de Asher sobre os cabelos dourados
dela.
— Vou tentar ao máximo consegui-las, mas não posso garantir
que o meu melhor será o suficiente.
Ela franziu o cenho.
— Por quê?
— Porque tenho muitas a ganhar. — Me virei para o holo-
classificador. — Pensando bem, acho que eu devia verificar quantas
eu tenho.
— Trezentas e quatro — a híbrida falou.
Quando Asher e eu olhamos em sua direção, suas bochechas
coraram, se tornando tão vermelhas quanto suas asas, que ela
arrastou em sua espinha.
De olho em mim? Em vez de colocá-la na berlinda, agradeci pela
informação e me afastei de Asher e Naya, evitando seus olhares,
não por vergonha, mas por inquietação.
Como o Arcanjo poderia acreditar que eu tinha uma chance de
ascender? Eu não era uma pessoa particularmente pessimista, mas
trezentas e quatro...? Valeria a pena tentar?
— Celeste? — A voz de Naya me parou.
Fechei os olhos, respirei fundo, colei um sorriso falso e me virei.
— Sim?
— Você vai voltar para brincar comigo?
A única razão pela qual eu voltei foi por ela. E pela Mimi.
— Se estiver tudo bem para o seu pai, eu adoraria.
Ela inclinou a cabeça em direção a ele, fazendo seu cabelo cair
em cascata sobre o antebraço musculoso.
— Apa?
Mantendo seu olhar fixo no meu, ele disse:
— A Celeste precisa se concentrar em suas missões, mas ela
vai voltar.
— Vou, sim — prometi antes de sair pelas portas de vidro e
descer o corredor de quartzo. No átrio, um pardal voou baixo sobre
minha cabeça, espalhando seu adorável canto em meus ouvidos,
depois bateu suas asas de arco-íris e se ergueu em direção ao céu
ilusório salpicado de estrelas.
Enquanto estava sentada em um táxi, pesquisei o homem com
quem iria me encontrar e recuperar amanhã. Encontrei uma série de
artigos, todos eles honoríficos – ativista dos direitos humanos,
benfeitor generoso, marido fiel, pai atencioso e avô carinhoso.
Depois de descobrir tudo que pude sobre ele, digitei o nome de
Barbara Hudson no meu navegador, descobri que ela era uma
advogada que assumiu muitos casos pro bono ajudando crianças a
se emanciparem de seus pais e mulheres a fugir de
relacionamentos abusivos. Ela era Triplo porque alegava que seus
casos eram gratuitos e fazia seus clientes pagarem de outra forma?
Eu estava prestes a procurar um pouco mais quando uma
mensagem de Jase apareceu na minha tela: Pizza amanhã à noite.
Você e eu?
Pulei naquele ramo de oliveira: Sim!
Um emoji de rosto sorridente apareceu, então: The Trap esta
noite?
EU: Não posso. Mas com certeza jantaremos amanhã. Às
18h no apartamento?
EU: Espere. Você vai trabalhar.
JASE: Pego depois do jantar. Qual apartamento?
EU: Nosso.
Os três pontinhos piscaram. Eu me perguntei o que ele poderia
estar digitando. Os pontos desapareceram, deixando para trás uma
tela vazia. Ele ficou irritado por eu ter chamado o lugar de nosso? A
não ser que...
Mordendo o interior da bochecha, enviei:
Na verdade, por que não nos encontramos na minha casa?
Sua resposta demorou a vir, embora consistisse em apenas duas
letras:
Ok.
19

O stentando o par de óculos de sol enormes que Mimi


comprou para mim em Paris, acenei para o porteiro e saí
do saguão para a luz ofuscante do sol. Dormi bem e
irradiava energia e otimismo renovado. Tanto que enquanto tomava
café no terraço, peguei um bloco de papel e uma caneta, rabisquei o
número de dias que me restavam e o número de penas que
precisava ganhar, e então cheguei a uma dúzia de possíveis
equações para alcançar meu objetivo. O que meus cálculos
revelaram é que eu não podia me dar ao luxo de perder tempo e
precisava escolher pessoas de alto escalão – pelo menos dez ou
doze, dependendo de suas pontuações.
Inclinei a cabeça em direção ao sol e sussurrei:
— Eu posso fazer isso.
— Você duvidava? — uma voz perguntou, uma que estava se
tornando tão familiar aos meus ouvidos quanto as de Leigh e Mimi.
— Sim. — Afastei o olhar da estrela ardente e o fixei no homem
que me fez desejar algo de que desisti.
Seus olhos estavam em meu peito. Bem, nas grandes letras
maiúsculas estampadas na minha blusa preta que dizia O PARAÍSO
ERA CHATO. A frase foi impressa de forma artística entre chifres de
diabo e um rabo demoníaco fofo.
— Gostaria que eu te desse uma camiseta igual? — perguntei de
forma doce. — Tenho certeza de que fazem tamanho XXX-G. Você
pode usá-la em suas viagens para Abaddon.
Ele sorriu quando observei sua escolha de roupa: jeans
desbotado que abraçava suas pernas musculosas sem parecer
pintada com spray e uma camiseta branca que exibia braços
bronzeados e tonificados que fez uma mulher passando por nós
tropeçar no meio-fio. Felizmente, um dos porteiros do Plaza
conseguiu alcançá-la antes que ela caísse de cara na calçada.
— Você é bonito demais para este mundo, Seraph.
Ele arqueou as sobrancelhas, como se tentasse descobrir se
minha declaração tinha a intenção de lisonjear ou debochar.
— Em meus cento e quarenta e três anos de vida, esta é a
primeira vez que alguém se refere a mim como bonito. — Ele
brandiu um copo da Starbucks. — Aqui. Isto é para você.
Olhei boquiaberta para a bebida.
— Você me comprou café?
— Sim. Presumi que você...
Estendi a mão e peguei meu presente cafeinado.
— Obrigada. Isso foi muito atencioso. — Tomei um gole do
líquido escuro e quente, depois umedeci os lábios, tentando
imaginá-lo parado na fila de um café. O quanto ele deveria ter
parecido absurdo. — Como a Naya dormiu? Mais algum pesadelo?
— De acordo com Ophan Pippa, dormiu profundamente. — Ele
passou uma mão pelo cabelo que escolheu usar solto. Os fios
brilhavam como se tivessem sido modelados em ouro fundido e
bronze. Raros eram os homens que podiam fazer o cabelo comprido
parecer atraente, mas de alguma forma, talvez porque tudo nele
gritava perfeição masculina, Asher conseguia. — Você dormiu bem?
— Apaguei. Foi maravilhoso.
— Você comeu?
Revirei os olhos.
— Sim, Apa.
Ele tensionou a mandíbula.
— Não me chame assim. — Fiz uma careta para ele. — Eu não
sou seu pai.
Baixei o copo.
— Confie em mim, Seraph, eu sei disso. Era só uma piada.
Asher endireitou os ombros como se tentasse parecer mais
intimidante, mas foi uma perda de tempo, já que nenhum homem ou
mulher jamais conseguiu me intimidar.
Levei o copo da Starbucks de volta aos lábios.
— Então, para onde? — Minha voz soou seca. Meu bom humor
se foi, esmagado pelo mau humor dele.
— Sutton Square. Gerald Bofinger tem uma casa no rio.
Quando começamos a andar para o leste, olhei de soslaio para
ele.
— Você poderia ter me mandado uma mensagem com o
endereço. Eu teria encontrado o caminho até lá. Os pombos-
correios não chegam aos pés do meu senso de direção. — Aprendi
a me movimentar no mundo humano depois que os ossos das
minhas asas apareceram, aos dez anos. Na minha primeira semana
fora, Leigh me acompanhou a todos os lugares, mas depois ela teve
que se concentrar em suas missões novamente, e eu fiquei sozinha.
— Prometi que ajudaria. — Ele manteve o olhar no fluxo
constante de carros descendo a Quinta Avenida.
— Me atribuindo pecadores, não sendo babá.
Enquanto esperávamos para atravessar, ele se virou para mim.
— Pense em mim como seu treinador, Celeste.
Assenti.
— Certo. Bem, então pode me explicar o pecado de Bofinger?
Eu o procurei ontem à noite e não encontrei nada.
Ele esfregou a parte de baixo da mandíbula como se tentasse
remover uma mancha de sujeira. Não havia nenhuma.
— Ele montou uma operação fraudulenta que ainda não foi
divulgada.
Outro Madoff, conhecido estelionatário em um esquema de
pirâmide.
— Nossa — sussurrei. — Quanto ele roubou de seus
investidores?
— Trinta e cinco bilhões de dólares.
O sinal de SIGA acendeu e atravessamos. O Arcanjo provocou
algumas colisões entre os pedestres. Uma pessoa até parou no
meio da faixas para olhar e continuou olhando assim que ele passou
por ela. Todo o tempo, os olhos de Asher permaneceram fixos no
cubo transparente que abrigava a Apple Store, alheio à comoção.
— A Comissão de Valores Mobiliários recebeu vários relatórios e
está investigando isso, mas Bofinger cobriu suas bases. Ele
transferiu todos os seus ativos para contas offshore e comprou uma
propriedade em Omã, onde não há tratado de extradição com os
EUA.
— O que exatamente devo fazer, Seraph? Fazer com que ele se
entregue ou convencê-lo a reembolsar trinta e cinco bilhões de
dólares?
— Você precisa recuperá-lo, Celeste.
— Que grande conselho, treinador. Posso chamá-lo de treinador
ou isso vai me render outra repreensão?
Embora não verbal desta vez, minha pergunta me rendeu uma
repreensão sob a forma de um olhar de lado.
— Que tal apenas Asher?
— Isso pode me fazer esquecer o quanto acima de mim você...
voa, Seraph.
Ele apertou a ponta do nariz e soltou um suspiro.
— Me chame do que te fizer feliz.
— Os nomes que me fariam feliz me custariam penas, então por
que não fico com Seraph?
Ele afastou a mão do rosto e me deu uma piscada lenta, como
se não pudesse acreditar que eu fosse pensar mal dele depois de
ter salvado Leigh. Tudo bem, eu não pensava. Seu senso de humor
precisava de um pouco de trabalho, mas, tirando isso, ele era
realmente um cara muito decente. Mantive esse pensamento para
mim mesma, sem sentir vontade de fortalecer seu ego ou debater os
méritos do humor. Em vez disso, bebi meu café e me concentrei em
bolar um plano para o babaca do Bofinger.
Respirei fundo, o que fez um pouco de café escapar da minha
boca e escorrer na blusa. Felizmente era preta.
Ah, qual é. Contive minha vontade de me enfurecer com o Ishim
para evitar que outra pena fosse roubada.
Asher seguiu a descida da minha pena.
— Achei que a noite passada pudesse ter diminuído sua aversão
por mim.
Não o esclareci e admiti que estava pensando em Bofinger. Em
vez disso, eu apenas segui em frente, bebendo meu café em
silêncio.
20

E sfreguei as solas das botas no capacho gigante com


monograma da casa de Bofinger e toquei a campainha. A
porta preta envernizada se abriu um momento depois.
— Posso ajudar? — um mordomo vestido com um terno de
algodão listrado perguntou.
— Tenho um encontro com o sr. Bofinger. Celeste Moreau. —
Isso não era mentira. Asher, que no momento estava sentado em
um banco de frente para o East River, havia telefonado com
antecedência e marcado uma reunião para mim, me fazendo passar
por uma investidora em potencial. Foi a única coisa que ele disse
depois que perdi minha pena, uma perda que ele levou para o lado
pessoal.
Algumas vezes, eu o senti querendo dar conselhos, mas meu
humor manteve seus lábios fechados e sua atenção fixada no fluxo
constante de humanos circulando ao nosso redor, alguns usando
roupas de academia a caminho do treino, outros vestidos com
roupas de festa da noite anterior, aparentando ter acabado de se
exercitar.
Eu odiava academia e não era fã de passar a noite fora, mas
ainda assim os invejava. Invejava sua independência. Seus
objetivos simples. O esquecimento da balança celestial
constantemente pesando suas almas.
O mordomo pigarreou.
— Por favor, me siga. — Enquanto me conduzia pelo saguão
que cheirava a purificador de ar de pêssego, ele olhou por cima do
ombro. Achei que com a legging de couro e regata preta, eu não me
encaixava na típica visitante de Bofinger.
Na entrada de uma sala de estar com janelas em arco com vista
para o rio, o mordomo estendeu a mão enluvada.
— Posso levar sua bebida? — Ele provavelmente estava
preocupado que eu derramasse o café da Starbucks sobre o
elegante tapete de desenhos geométricos.
— Claro. — Tomei o pouco café que restava antes de entregar o
copo.
— Gostaria de mais café? Chá? — Acho que ele não estava
preocupado com acidentes. — Uma mimosa talvez?
Coquetéis de champanhe às dez da manhã? Que extravagante.
— Água por enquanto. — Se eu tivesse sucesso, talvez
aceitasse sua oferta de uma mimosa. Quando ele saiu, caminhei
pela sala com móveis cor de nogueira, olhando as grandes pinturas
a óleo, depois as fotos em moldura de prata de Bofinger e sua
família, absorvendo tudo o que pude sobre o homem.
— Srta. Moreau!
Eu me virei para encontrar o financista de cabelos brancos
falando e caminhando em minha direção com um sorriso nos lábios.
Ele estendeu a mão e eu a apertei, assustada porque meus olhos
estavam no nível dos dele. Não que os pecadores tivessem
tendência a ser altos, mas por algum motivo, eu esperava um
homem mais imponente.
Nas fotos que catalogavam seu estilo de vida luxuoso, ele se
elevava sobre os vários membros da sua família. Lancei um olhar
furtivo por cima do ombro para entender como fui enganada. Em
uma foto brilhante, ele posou do topo de uma escada com cada um
de seus filhos sentados a seus pés. E então, em outra, ele estava
parado ao lado da cadeira de sua esposa enquanto ela o olhava
com adoração.
— Que prazer receber uma moça tão ilustre.
Ilustre? Voltei minha atenção para Bofinger, desejando ter
perguntado a Asher o que exatamente ele disse sobre mim.
— Seu consultor financeiro não conseguia parar de te elogiar.
Um sorriso apareceu nos cantos da minha boca.
— É mesmo? Me diga exatamente o que ele disse. Pode render
a ele um bom aumento.
— Ele falou de sua dedicação às causas humanitárias e ética de
trabalho infalível.
Suspeitei que minhas covinhas estivessem à mostra. Causas
humanitárias? Mais como missões celestiais. Quanto à minha ética
de trabalho, eu duvidava que o Arcanjo me achasse tão ética.
— Por acaso ele te contou como ganhei meu dinheiro?
— Ele disse que você herdou uma grande quantia de um parente
falecido e que a tem investido cuidadosamente, mas estava
interessada em explorar maneiras de conseguir melhores retornos.
Onde estão minhas maneiras? Sente-se. Por favor. — Ele apontou
para um sofá baixo e acetinado que era tão rígido quanto parecia.
Enquanto eu me acomodava no assento estofado, tentando ficar
confortável contra as almofadas rígidas, Bofinger se empoleirou na
beirada de uma poltrona.
— Faça todas as perguntas que quiser, minha querida. Você tem
toda a minha atenção.
Cuidado com o que pede, Bofinger.
— Se trabalhássemos juntos, por quanto tempo meu dinheiro
ficaria preso?
— Você quer dizer quando esperar retiradas?
— Sim.
O mordomo voltou, carregando uma bandeja com duas taças de
cristal cheias de água, que colocou no cubo de vidro, bem sobre o
que parecia ser a cabeça de um esqueleto de peixe gigante. Me
perguntei se os ossos presos no cubo eram reais ou esculpidos em
gesso.
Assim que a porta se fechou, Bofinger disse:
— Você estava perguntando sobre as retiradas. As
oportunidades mais atraentes exigem que o capital permaneça
intocado por tanto tempo quanto possível, então eu gosto de
implementar um mínimo de cinco anos, mesmo que você receba
relatórios trimestrais.
Peguei a taça de água.
— Que tipo de riscos essas oportunidades atraentes
apresentam?
— Sou totalmente avesso a riscos. Essa é a razão pela qual
prefiro, e encorajo, contratos de longo prazo em vez de curto. É
também a razão pela qual dou extrema importância à realização de
uma ampla e completa pesquisa em qualquer empresa em que meu
fundo escolha investir.
— Li que você começou como auditor da PWC antes de seguir o
caminho dos fundos de investimento.
Ele sorriu.
— Vejo que você conduziu sua própria pesquisa.
Você não tem ideia.
— Como você, sr. Bofinger, gosto de ser meticulosa. — Depois
de colocar a taça volta na bandeja, cruzei as pernas e coloquei as
palmas das mãos sobre o joelho. — Antes de falarmos sobre
números e taxas — ele se animou como um cachorro farejando um
osso —, gostaria de entender um pouco melhor para onde meu
dinheiro iria. Ouvi dizer que sua empresa gosta de alavancar os
fundos que recebe e tomar emprestado para amplificar o retorno dos
investidores. Isso é boato?
Seu sorriso vacilou.
— A alavancagem é uma prática comum na gestão de fundos de
investimento. Tempo é dinheiro, então quantias maiores geram
melhores investimentos e retornos mais saudáveis.
Bofinger falou devagar depois disso, juntando grandes palavras
e dando exemplo após exemplo dos extraordinários sucessos de
seu fundo. Tive que prender meus lábios para evitar bocejar. O
único entretenimento leve que tive foi de suas sobrancelhas
grossas. Elas se contorciam ao redor da sua testa enrugada como
aquelas lagartas peludas que encontrei nos subúrbios quando
acompanhei Leigh para visitar um de seus pecadores. Me agachei
para acariciá-las quando Leigh agarrou meu pulso e ofegou: —
Celeste, não. Seus espinhos são tóxicos. — Não teria me feito muito
mal, graças aos ossos das minhas asas, mas a experiência não
teria sido agradável.
Bofinger estava no meio de uma frase quando deixei de fingir
que era uma investidora interessada e perguntei:
— O que você acha do número trinta e cinco?
O pomo de Adão balançou sob a pele frouxa de sua garganta.
— O quê?
— Seguido por nove zeros.
— Isso é... — Ele puxou a gola da camisa com monograma,
como de seu capacho. — É isso o que você planeja investir
conosco?
— Não seria conveniente?
Ele piscou rapidamente.
— Sinto muito. Não tenho certeza se entendi.
— Você é um homem inteligente, sr. Bofinger. Tenho certeza de
que você me entende perfeitamente.
A cor cobriu suas bochechas e um brilho de suor apareceu em
suas têmporas.
— Olha, não sou do FBI ou da CVM. Sou apenas uma cidadã
preocupada.
Seus dedos se esforçaram para abrir o botão da camisa, como
se isso pudesse ajudá-lo a respirar.
— Você está caminhando sobre gelo. Gelo muito fino. E sim, sei
que você cobriu seu rabo. — Como a palavra também se referia a
parte traseira dos animais, não estava na lista de desobediências do
Ishim. Contanto que não estivesse anexada ao orifício. No dia em
que descobri que rabo era livre, a palavra assumiu uma posição de
destaque em meu discurso. — Ouvi dizer que você comprou um
imóvel em Omã e transferiu seus ativos para contas offshore.
Roxo. O homem estava roxo. Eu esperava que ele não
morresse, porque isso não me faria ganhar penas. Me levantei,
peguei seu copo de água e levei até ele, colocando-o em suas
mãos.
— Beba.
Ele ficou olhando de boca aberta para a água por um longo
tempo.
— Se você não trabalha em uma agência governamental,
então... por que está aqui?
— Estou aqui porque quero ajudá-lo.
— Me ajudar? — ele perguntou.
— Sim, te ajudar. — Voltei para o sofá, mas me sentei no braço
desta vez. — Você tem uma linda família, e quando o que você fez
vazar, irá destruí-los. Se lembra do caso Madoff? Um dos filhos dele
cometeu suicídio. Você não gostaria que isso acontecesse com
Henry, não é? Ou com a Madeline. Você não gostaria que sua
esposa fosse expulsa de todos os clubes sociais e insultada. Ou que
seus netos sofressem bullying e fossem rejeitados na escola.
Crianças podem ser muito cruéis.
Ele ficou quieto, mas pelo menos tomou um gole de água.
— Não estou pedindo uma confissão e nem estou usando
escuta. Só quero que encontremos uma solução antes que isso
exploda na sua cara. Quanto dinheiro você tem sobrando?
Seus olhos se voltaram para a porta.
— Sr. Bofinger, não sou sua carrasca. Na verdade, sou mais
como um anjo da guarda. — Ha. Quase sorri por ter colocado esse
pedacinho de verdade em uma conversa humana. Quase, porque a
verdade era que seu esquema Ponzi, como eram chamados esse
tipo de operação fraudulenta, não era motivo de riso. — Então, por
favor, converse comigo.
— Três.
— Bilhões?
— Não. — Ele fechou os olhos, e sua pele estava da cor
amarelada de pudim de arroz. — Trezentos milhões de dólares.
— E a casa? Quero dizer, casas?
— Eu poderia conseguir trinta, talvez quarenta, por esta. A dos
Hamptons vale cerca de setenta, mas... — Ele encostou a taça na
testa. — Mas já peguei emprestado usando aquela como garantia,
então... então o banco é o dono.
— E quanto às obras de arte?
— Valem alguns milhões. Vinte no máximo.
Eu não era um gênio da matemática, mas devolver aos
investidores seria como tentar tomar banho com uma gota d'água.
— Certo. E os investimentos? Certamente nem todos eles se
foram.
— Dois investidores exigiram seu dinheiro no mês passado,
então tive que devolver... — Uma lufada de ar estridente substituiu o
final de sua frase, e então seus ombros caídos começaram a tremer.
— Eu vou para a cadeia. Pelo resto da vida.
— Sim. Provavelmente vai.
— Eu deveria... — Ele olhou para a ponte East River. — Pular
daquela ponte.
— Então tudo isso vai recair sobre sua esposa e seus filhos.
Você não quer isso.
— O que você sugere que eu faça então? — Sua voz estridente
não me assustou.
— Sugiro que conte a sua família. Você vai precisar de apoio
emocional.
— Apoio emocional? — ele hesitou.
— Sim. Vão ser tempos difíceis. O mundo inteiro vai se levantar
contra você. Para sobreviver, você precisará de pessoas ao seu
lado.
— Prefiro morrer do que colocá-los nessa situação.
— Mas você não percebe que eles vão passar por isso, quer
você os deixe ou não? Sr. Bofinger, se você morrer, eles se tornarão
os rostos de seu esquema Ponzi. Se você ficar por perto e passar
pelas provações, você os protegerá. Pense em si mesmo como um
escudo.
Seus olhos avermelhados estavam focados em mim e ainda
assim estavam vidrados de uma forma que me disse que ele havia
se perdido nos pensamentos. Eu esperava que fosse para refletir
sobre o meu conselho.
— Além disso, você vai precisar chamar seus investidores e
confessar tudo, devolver o que puder, mesmo que não seja o
suficiente. E então ligar para o FBI e se entregar. Isso vai tirar
alguns anos da sua sentença de prisão.
Ele piscou para sair de seu torpor.
— Por quê? — ele resmungou. — Por que você está fazendo
isso, srta. Moreau? Por que está me ajudando?
— Porque não somos a soma de nossos erros, mas a forma
como lidamos com eles.
Pensei no arcanjo. Em como ele acabou salvando Leigh depois
de participar de sua morte. Retificar seu erro o tornou honrado aos
meus olhos. Adorável ao olhos de Naya. Mas isso o faria parecer
um criminoso para seus irmãos. A percepção era subjetiva.
Se entregar não justificaria o crime de Bofinger, não o pintaria
como inocente, mas o ajudaria a dar um passo em direção a ser um
homem melhor e aliviar sua alma.
— Certo. — O sr. Bofinger inspirou fundo. — Certo.
Meu coração bateu forte. Claro, era apenas uma palavra, mas
ele a pronunciou... foi como um presente. Sim, me encontrei com ele
para ganhar penas, mas, naquele momento, não estava pensando
nas minhas asas. Estava pensando em sua alma e como consegui
tocá-la.
— A sua esposa já sabe?
— Não de tudo.
— Ela está aqui?
— No andar de cima. — Ele olhou para o teto, então estremeceu
e olhou para suas mãos que seguravam a taça com firmeza. — Ela
vai me deixar.
Me levantei, caminhei até sua cadeira e coloquei a mão em seu
ombro.
— Pelas fotos que vi, pelos artigos que li, ela te adora.
Seu corpo tremia, quase sacudindo minha mão.
— Ela vai me deixar — ele repetiu.
Tirei a taça de seus dedos antes que ele a esmagasse e a
coloquei na bandeja.
— O amor mantém as pessoas juntas.
Infelizmente... apertei os lábios, tentando conter a explosão
repentina de raiva que disparou em meu peito. O amor manteve
Jarod e Leigh juntos, não em vida, mas na morte.
O sr. Bofinger tirou o celular que estava preso ao cinto. O
telefone balançou tanto que me ofereci para ajudá-lo. Localizei o
número de sua esposa no topo da lista de favoritos e, embora ela
estivesse na mesma casa, fiz a chamada.
Poucos minutos depois, a porta se abriu revelando uma loira
perfeitamente penteada e maquiada com um aparente vício em
cirurgia plástica.
— Gerald? — Ela correu até ele, olhando para mim, depois de
volta para ele. — Gerald, o que foi? — Ela puxou uma cadeira e
segurou a mão dele, prendendo-a entre as dela.
Ele desabou, então se abriu, revelando todos os seus segredos
sujos.
No final de sua confissão, a única coisa que ela disse foi:
— Então é por isso que vamos nos mudar...
Ele engoliu em seco e assentiu, embora não fosse uma
pergunta.
Ela ficou de pé.
— Vou ligar para a sua secretária.
— Espere, querida, preciso falar com as crianças primeiro.
— Não vou ligar para ela para te dedurar. Vou ligar para que ela
possa adiantar nosso voo. Partiremos esta noite.
Paralisei, não esperando esse resultado.
— Mas nós... querida, tenho que... não podemos deixar as
crianças lidarem com isso. — Os olhos vidrados de Bofinger
pularam entre mim e sua esposa.
— Eles virão conosco. Todo mundo virá. — Ela semicerrou os
olhos para mim. —Se esta baba ovo chamou os federais...
— Por favor, não me ameace. E não me chame de baba ovo.
Você sabe da onde veio essa expressão? Eca. — Franzi o nariz.
— Christophe! — ela gritou.
O mordomo entrou na sala, apalpando seu paletó de algodão.
— Sim, madame?
— Acompanhe essa garota até a saída.
— Miranda, nós...
— Não estou disposta a viver os poucos anos que ainda tenho
sem você!
Meu estômago parecia estar com um punhado de cubos de gelo
dentro dele. Eu estava certa sobre o amor manter as pessoas
juntas.
Com calma, o mordomo disse:
— Por favor, me siga, senhorita.
Ele percebeu o que estavam discutindo? Ele chamaria a polícia
ou seus patrões pagariam por seu silêncio?
— Vamos resolver as coisas a partir daí, Gerald. Juntos. Vamos
resolver as coisas juntos. — Ao contrário da expressão desalinhada
de seu marido, a dela era suave e cheia de determinação.
Os olhos lacrimejantes dele se ergueram para os meus.
Eu podia sentir sua alma lutando para fazer a coisa certa.
Eu realmente esperava que ele fizesse.
— Adeus, sr. Bofinger. — Inclinei a cabeça em direção a ele
antes de sair da sala, com o coração batendo rápido, não por medo
ou decepção, mas por compaixão.
Compaixão por um pecador...
Leigh ficaria orgulhosa.
21

Q uando saí da mansão, meu olhar foi direto para o banco.


Direto para o homem que ainda estava sentado lá,
esperando por mim. Uma parte de mim estava convencida
de que ele teria ido embora.
— Como vai a observação de pássaros? — perguntei em voz
alta enquanto caminhava até onde ele estava sentado com o braço
nas costas do banco e um pé apoiado no joelho oposto.
Ele se virou em minha direção e os olhos azuis viajaram do topo
da minha cabeça até a ponta das botas. Como eu não tinha trocado
de roupa, deduzi que ele estava procurando sinais de briga.
— Acho que não é tão empolgante quanto observar anjos em
Elysium. — Me sentei e cruzei as pernas.
Fui recebida com mais silêncio.
Entrelacei as mãos no colo, tentando evitar que tremessem.
— Você ficaria orgulhoso de mim, Seraph. Todas as minhas
penas estão intactas. Mantive a calma e não disse uma única
palavra errada.
Ele permaneceu calado, só me olhando. Primeiro o meu perfil,
depois as minhas mãos. O tremor era visível? Estiquei minhas
palmas e as coloquei entre as coxas.
— O que aconteceu lá dentro, Celeste? — Sua voz era profunda
e rouca, provocando arrepios na minha pele já gelada.
Lamentei não ter levado minha jaqueta, mas será que isso teria
ajudado? O ar estava excepcionalmente quente e o sol,
incrivelmente brilhante.
— O que aconteceu é que eu tentei. Mas tentar às vezes não é
suficiente.
Ele deslizou o braço do encosto do banco com hesitação e o
envolveu em meus ombros. Respirei fundo antes de permitir que
minha cabeça descansasse em seu ombro.
— Eu nunca parei de ajudar as pessoas, sabe? — divaguei. —
Não me inscrevi para missões, mas nunca parei de ajudar.
— Eu sei. Nós ficamos de olho nos nossos.
Então por que ninguém veio antes? Por que ninguém mostrou
um pingo de interesse em minhas asas antes de Asher?
— Quanto ao orgulho, já fiquei orgulhoso de você quando tocou
a campainha, Celeste.
Tentei abrir um sorriso, porque isso era muito doce, mas até
meus lábios estavam tremendo agora. Senti como se estivesse
voltando do alto.
— Nunca escolhi um pecador com mais de quarenta pontos
antes.
— Alguns deles não são muito diferentes de seus colegas de
pontuação mais baixa.
Fios de seu cabelo roçaram em minha testa. Eu não me importei,
mas ele deve ter se importado, porque os afastou com a mão livre.
Como seu braço ainda estava em volta de mim, presumi que ele não
achou o contato de minha pele tóxico. Só deve ter achado que seu
cabelo estava me incomodando.
— Certa vez, escolhi um Triplo. — Ele falou devagar, equilibrado.
— Em um desafio.
Inclinei a cabeça para trás em surpresa.
Seus olhos da cor do céu de verão estavam fixos no horizonte.
— Eu tinha dezesseis anos. Tinha ganhado os ossos das minhas
asas no ano anterior.
— Um pouco tarde, não é?
Ele olhou para mim com um sorriso divertido nos cantos da boca.
— Acredite ou não, naquela época era realmente normal.
E agora o normal era doze, mas sorte a minha ter desafiado
essa norma. Dois anos extras seriam bem-vindos...
Em vez de reclamar do meu desabrochar precoce, falei:
— Às vezes, me esqueço de quantas gerações nos separam.
Ele não apenas nasceu nos anos de 1900, mas também viveu
durante duas guerras mundiais e inúmeras pandemias. Ele
testemunhou aviões sendo construídos, foguetes sendo lançados
para o espaço. Viveu antes da TV e da internet. De acordo com os
Ophanim, os holo-classificadores só foram instalados nas
associações na década de 1970. Antes disso, eles tinham um tipo
de tablet com imagens em preto-e-branco, como folhas de jornal
angelicalmente aperfeiçoadas.
— Então... o desafio?
Seu olhar se ergueu para a copa de uma árvore cujas folhas
estavam salpicadas de âmbar.
— Tive um colega de quarto na associação vienense. Tobias.
— Aquele que... que te ajudou. — Que assumiu Adam.
Ele assentiu.
— Ele era um ano mais velho e mais ousado. Muito mais ousado
que eu. — Ele fez uma pausa. — Ele me desafiou a me vincular a
um homem que fornecia pistolas aos rebeldes bósnios. Apareci no
quartel-general do homem uma manhã e fingi estar procurando um
emprego como contrabandista de armas.
Levei a mão ao coração.
— Você mentiu?
Ele me deu outro sorriso, que retribui.
— Perdi uma pena – a minha primeira – mas valeu a pena, pois
me rendeu um emprego. Ou, pelo menos, eu acreditava que tinha
valido.
Fiz uma careta.
— Na minha primeira missão, tentei argumentar com ele que as
armas de fogo só matariam mais pessoas. E a maioria delas,
inocentes. Ele perguntou de que lado eu estava, e eu disse a ele do
lado da justiça. Ele começou a me mostrar o que a milícia austríaca
estava fazendo. Os massacres que testemunhei, Celeste. — Seu
pomo de Adão subiu e desceu devagar. — Ele me perguntou se eu
achava isso justo. — Sua mandíbula se apertou. — No caminho de
volta de um desses banhos de sangue, fomos baleados. Nós dois. E
não apenas uma vez. — Sua garganta se moveu novamente. — Ele
morreu. Acordei banhado em sangue.
Os ossos de seu ombro se moveram sob minha bochecha como
se ele estivesse se levantando da poça de sangue novamente.
— Eu tinha ido a cavalo, mas ele havia sumido quando acordei,
então voltei a pé. Levei quase uma semana para chegar à
associação. Uma semana em que vi tantas coisas terríveis, Celeste.
Coisas que me fizeram questionar se a humanidade poderia
realmente ser salva. Se valia a pena. — Ele ficou quieto e imóvel
por um momento. — A pior parte foi que o homem morreu como
Triplo e, embora ele estivesse longe de ser um santo, fiquei
indignado por sua alma ter sido deixada para murchar dentro de seu
cadáver.
Me afastei de seu braço para buscar as curvas suaves do
menino revoltado que ele tinha sido por trás dos músculos duros do
homem que ele se tornou.
— Por que você está me contando isso?
— Para te lembrar de que antes de ser um Arcanjo, eu era um
Pluma. Um Pluma que sonhava em mudar o mundo humano antes
de sonhar em mudar o celestial. — Ele não encontrou meus olhos.
Apenas continuou olhando para as folhas da árvore que
sombreavam um pedaço do banco e as espumas esbranquiçadas
no topo do rio. — No final, foram os mundos que me mudaram.
Coloquei a palma da mão com gentileza em seu braço e senti os
tendões se retesarem sob meus dedos.
— Isso não é verdade. Ou talvez seja, mas não totalmente. Cada
vida que você tocou, Seraph, você mudou. Você alterou seu curso.
Seus olhos finalmente encontraram os meus, repleto de muitas
sombras, e nem todas projetadas pela árvore.
— Nem sempre de um jeito bom. Veja o que fiz com o Jarod.
Com a Leigh.
— Olhe o que você fez comigo. — Abri um sorriso, mas isso não
fez nada para acalmar sua culpa devastadora. Quando ele não fez
nenhum movimento para se levantar, apoiei a cabeça em seu braço.
— Eu deveria ter vindo até você antes, Celeste.
— Você poderia não ter vindo.
— Fiz uma promessa a Leigh.
— E você a manteve. Está aqui agora, Seraph, então pare de se
martirizar por causa disso. Se eu falhar em ascender, não será sua
culpa.
A raiva silenciosa era tão evidente que eu podia senti-la pulsar
dentro de seu corpo. Vários minutos depois, ele soltou:
— Você não vai falhar.
Desta vez, fui eu quem ficou quieta. Não adiantava especular se
eu completaria ou não minhas asas. Eu tentaria e continuaria
tentando. Meus pensamentos se voltaram para Gerald Bofinger. Eu
tinha tentado o suficiente? A maioria das minhas missões levavam
dias, não horas.
Se ele não fosse para Omã, eu faria outra visita a ele.
Mas se ele não partisse para Omã, significaria que minhas
palavras não caíram em ouvidos surdos.
Só o tempo diria. Eu esperava que não muito tempo, porque eu
tinha setenta e sete dias e precisava fazer com que cada um
valesse a pena.
22

A sher e eu ficamos naquele banco em frente à mansão de


Bofinger por um longo tempo, os dois contemplando nossas
vidas em silêncio. Ou, pelo menos, eu contemplei minha
vida – meu passado, presente e futuro.
Não conseguia me imaginar na terra dos anjos, mas talvez fosse
porque eu nunca a tivesse visto. O que eu sabia sobre Elysium era
só o que as Ophanim haviam contado: que era feita de quartzo
branco e cheia de criaturas das cores do arco-íris. O infame Arco
Perolado separava a capital do Desfiladeiro do Julgamento, o Mar
do Nirvana cercava todas as ilhas Elysianas e as montanhas do
Nirvana serviam como refúgio para os mais velhos de nossa
espécie.
Eu estava prestes a pedir ao Arcanjo para me contar mais sobre
a terra que ele governava quando ele se mexeu, mencionando sua
promessa de encontrar Naya para almoçar antes de voltar para
Elysium. Guardei minhas perguntas para depois.
Eu podia não saber o que o futuro distante reservava, mas sabia
que meu futuro próximo incluía Asher. Afinal, ele era meu instrutor.
Ou supervisor. Mais para supervisor, já que ele escolhia minhas
missões e me enviava para elas. Por um momento, me senti como
um agente secreto, e isso me lembrou de Bofinger e dos federais
que acabariam invadindo a casa.
Ele estaria lá quando eles chegassem ou estaria tomando sol em
uma praia no Oriente Médio?
Encarei a porta da frente, hesitando em chamá-lo novamente.
— Seja paciente, Celeste.
Minha ansiedade havia se acalmado enquanto observávamos o
horizonte, mas estava de volta com força total.
— Você deveria almoçar conosco. Faria o dia da Naya.
Mordisquei o lábio inferior antes de declinar. Meu corpo doía com
a descarga de adrenalina e os nervos à flor da pele. Além disso, não
queria sujeitar Asher a mais horas na minha companhia do que o
absolutamente necessário, ou infligir meu humor estranho a sua
garotinha.
Suas asas apareceram, se abrindo lentamente dos ossos que as
prendiam e as pontas de cada pena lançaram brilhos na calçada
cinza.
Recuei para dar espaço para elas se esticarem.
— Obrigada por se sentar aqui comigo, Seraph. — Dei mais
alguns passos para trás. — E dê um grande abraço na Naya.
— Aonde você está indo?
— Para casa. Tenho adiado mexer nas coisas da Mimi. Acho que
está na hora.
— Me deixe voar com você.
Fiz uma careta para suas asas.
— Não, obrigada.
— Nem se eu prometer voar baixo?
Balancei a cabeça.
Seu queixo baixou um pouco e seus olhos, que estavam
borrados nas sombras, se tornaram tão luminescentes quanto o
semáforo que tinha acabado de mudar para verde.
— Te fiz mudar de ideia sobre suas asas. Vou te fazer mudar de
ideia sobre voar.
Eu ri. Sim, ele mudou minha opinião sobre ascender, mas ele
tirou um grande Az da manga. Ele não poderia ter um segundo
escondido.
— Assim que tiver minhas próprias asas, vou voar.
Ele deu um passo em minha direção.
— Antes que você ganhe suas próprias asas, vou fazer você se
divertir.
Arqueei uma sobrancelha.
— Você não está planejando me pegar de novo, não é?
— Eu pareço um predador? — Ele se aproximou um pouco mais.
— Agora parece. — Minha pulsação disparou, mas não de
medo. De outra coisa que talvez devesse ter me assustado. Afinal,
ele era um homem incrivelmente bonito, e eu era uma mulher que
enxergava muito bem.
Ele parou de andar e passou a mão pelo cabelo ondulado.
— Não tive a intenção de te intimidar, Celeste.
— Me intimidar? — Revirei os olhos. — Estive por aí por quase
uma década e conheci predadores que eram realmente
assustadores. Acredite em mim, eu não estava me sentindo
intimidada.
Ele procurou meu rosto por um momento, como se tentasse
entender o que eu estava sentindo. Minha pele não queimava em
chamas – nunca queimou –, mas minha apreciação deve ter
transparecido, porque ele desviou o olhar.
— Me deixe ao menos te levar para casa.
A facilidade que tínhamos compartilhado no banco havia
desaparecido. Eu a queria de volta e, para isso, um pouco de
distância física era necessária.
— Não deixe a sua filha esperando — falei antes de correr pela
rua.
Embora o Arcanjo não tenha me seguido a pé, ele planou bem
acima de mim. Olhei para cima uma vez quando cruzei a Park
Avenue, e balancei a cabeça com sua teimosia. O que ele achava
que poderia acontecer comigo entre a casa de Bofinger e a minha
no meio do dia? Estava preocupado que a esposa tentasse me
matar ou me sequestrar para que eu não manchasse o bom nome
da família dela?
Mordi o interior da bochecha depois que esse pensamento me
veio à cabeça porque não era tão improvável. Felizmente, nenhuma
van branca parou na minha frente e nenhuma bala zuniu em meu
crânio.
Sim, eu teria sobrevivido ao último, mas isso não significava que
eu queria sentir a dor.
Depois de chegar ao apartamento sã e salva, limpei tudo. Tirei
os lençóis da cama e esvaziei o armário. Dobrei as roupas e as
empilhei nas caixas de papelão que Stanley, o porteiro, gentilmente
entregou na minha porta. Guardei a maquiagem e o perfume
embaixo da pia. Eu não estava tentando eliminar a existência de
Mimi, apenas escondê-la para que sua ausência doesse menos. Em
algum momento, eu seria capaz de pensar em Mimi sem meu peito
apertar.
Enquanto eu olhava ao redor do quarto vazio cheio de caixas,
percebi que eu ainda não estava nesse ponto.
Ela está no Elysium, Celeste. Você a verá novamente.
Talvez.
Fechei a porta e deslizei por ela, puxando meus joelhos contra o
peito e embalando minha testa que latejava. Lembranças de sua voz
suave e abraços firmes espiralaram e se misturaram com memórias
de sua atenção obstinada e orientação inabalável.
Peguei fiapos da passadeira que se estendia entre o meu quarto
e o dela.
Câncer estúpido.
Enrolei o fio preso até ficar compacto e duro, depois joguei fora,
desejando poder fazer o mesmo com a minha tristeza.
De repente, fui distraída por um pensamento: eu não havia
encontrado as penas que perdi na manhã em que Asher resgatou
sua alma. Elas caíram debaixo da cama? Me levantei e estava
prestes a verificar quando o interfone tocou para anunciar que eu
tinha uma visita.
Minha busca teria que esperar. Jase estava aqui.
23

E mbora Jase tenha sorrido quando abri a porta e peguei as


duas caixas de pizza, não foi um sorriso completo. E
desapareceu completamente enquanto eu o levava para
dentro do apartamento, deixando o quarto de Mimi fora do tour. De
volta à cozinha, tirei a tampa de duas cervejas e empurrei uma para
ele.
Ele pegou o vidro resfriado e se acomodou em cima de um dos
assentos da ilha.
— Por que você escolheria morar em uptown comigo se tem um
lugar como este?
Tomei um gole de cerveja, sentindo o líquido deslizar pela minha
garganta e cair no meu estômago vazio.
— Porque o seu apartamento é no campus. O que o torna muito
mais conveniente. — Estendi a mão e peguei uma fatia de pizza de
berinjela da caixa.
Um pequeno sulco marcava a pele entre as sobrancelhas de
Jase.
Engoli em seco e acrescentei:
— E você está nele.
Jase ainda não havia tocado na pizza de pepperoni que comprou
para si mesmo.
— E agora?
Peguei um pedaço de toalha de papel do rolo e limpei a gordura
dos meus lábios.
— Vou colocar este lugar à venda. — Meu olhar se desviou para
a bancada quebrada que Asher tinha prometido consertar.
Provavelmente estava no final de sua lista de tarefas, o que
significava que eu deveria colocá-la no topo da minha. — E então,
se você não se incomodar que eu fique com você, gostaria de
manter meu quarto. Pelo menos até o final do semestre. — O que
coincidiria com o aniversário da minha cerimônia dos ossos das
asas. O que aconteceria depois disso ainda era um grande ponto de
interrogação. Ou eu ascenderia ou voltaria para a faculdade. Peguei
minha cerveja e tomei um gole.
Os ombros de Jase giraram para a frente e ele pegou um
triângulo cheio de queijo e pepperoni.
— O quarto é seu pelo tempo que você quiser.
E assim, o desconforto que ele carregou pelo apartamento se
dissipou e eu consegui meu melhor amigo de volta.
— Quando você está pensando em ir às aulas de novo?
— Só depois de janeiro. — A perspectiva seria um bom prêmio
de consolação se eu acabasse ficando na Terra.
Depois de terminar de comer sua pizza, ele perguntou:
— O que você está planejando fazer até lá?
Escolhi minha resposta com cuidado.
— Vou ajudar as pessoas.
— Pessoas?
— Estranhos que estão um pouco perdidos.
Jase ficou me olhando e, em seguida, esfregou as mãos nas
coxas cobertas pelo jeans, se levantou e deu a volta na ilha
devagar. Colocou as mãos nas laterais do meu rosto e inclinou
minha cabeça para cima. O leve cheiro de orégano e carne que
grudou em sua pele se transferiu para a minha.
— Celeste Moreau, você é realmente diferente.
Se ele soubesse o quanto...
— Sinto muito por ter sido um idiota com você.
— Você não foi.
— Fui, sim. Pode me perdoar?
— Você trouxe minha pizza favorita. Considere-se perdoado.
— Senti tanto a sua falta. — Ele encostou o nariz no meu, mas
antes que seus lábios pudessem alcançar os meus, a campainha
tocou.
Franzindo a testa, me afastei.
— Deve ser o porteiro. — Qualquer outra pessoa seria
anunciada por telefone antes de ser liberada.
Mas, não. Não era o porteiro. Lá, no pequeno patamar quadrado,
estava ninguém menos que um dos Sete.
Meu coração subiu até a garganta, porque a única coisa que
justificava uma visita domiciliar de Asher eram notícias sobre
Bofinger, e como o Arcanjo não estava carregando uma garrafa de
espumante, suspeitei que não fosse do tipo agradável.
— Ele foi embora, não foi? — Agi com indiferença, mas meus
nervos fizeram minha voz falhar.
— Foi.
Meu coração afundou. Passei a mão pelo cabelo, mas então
parei, porque meus dedos estavam tremendo e eu não queria que
Asher visse o quanto fiquei afetada. Forte. Eu precisava me manter
forte.
— Quem é o próximo?
— Podemos discutir isso lá dentro?
— Hum. — Segurei a borda grossa da porta. — Estou
acompanhada.
Como os barcos a remo no Lago Central Park, suas
sobrancelhas deslizaram uma na direção da outra, se estreitando
quase até a ponta.
— Acompanhada?
— Sim. — Quando seu olhar subiu para um ponto acima da
minha cabeça, um que irradiava calor e cheiro de pepperoni, eu
suspirei. Por que Jase não poderia ter ficado fora de vista? Abri
mais a porta. — Jase e eu estávamos terminando de jantar. Você
gostaria de entrar?
Eu esperava que Asher recusasse, mas a linha firme da sua
boca suavizou para o que, em qualquer outra pessoa, seria
categorizado como um sorriso malicioso, mas sorrisos maliciosos
não faziam parte do arsenal de expressões do Arcanjo.
— Adoraria.
— Mesmo?
— Tenho vontade de conhecer melhor o seu amigo.
— Tem?
— Tenho, sim.
Eu realmente queria perguntar a ele por quê, mas em vez disso,
dei um passo para o lado e gesticulei para que entrasse. Quando
fechei a porta, notei suas roupas. Em vez de roupas humanas, ele
veio vestido com as roupas de camurça Elysianas. Seria
interessante de explicar isso a Jase. Talvez, se o assunto surgisse,
eu poderia dizer que era alguma excentricidade.
— Achei que você odiasse esse cara. — Jase falou baixinho.
Não baixo o suficiente, aparentemente.
Asher entrou na cozinha.
— Nós nos reconciliamos. — Ele nem olhou por cima do ombro
quando disse isso. Apenas falou com frieza.
Mordi o lábio enquanto fechava a porta e voltava para a ilha,
onde me apoiei em um dos bancos altos.
Asher abriu a geladeira e se serviu de uma garrafa de água. Eu
podia imaginar como sua familiaridade pareceria para Jase.
Rolando o plástico entre seus longos dedos, o Arcanjo se
recostou na bancada quebrada.
— Então, há quanto tempo vocês dois se conhecem?
As pernas da cadeira ao lado da minha arranharam o piso de
madeira quando Jase se sentou novamente. Seu joelho bateu na
lateral da minha perna enquanto ele colocava o braço tatuado no
meu encosto.
— Jase e eu somos amigos há um ano.
— Amigos? Hum... — Asher tomou um gole de água.
Eu me arrepiei.
— O que você quer dizer com esse hum?
— Por definição, amigo alguém que sabe tudo ou quase tudo
sobre você. Como a Leigh sabia.
Minha coluna rígida bateu no antebraço de Jase. Por que ele
estava trazendo Leigh para o assunto?
— Aonde você quer chegar?
— Só que duvido que o Jase saiba muito a seu respeito, então
considerá-lo um amigo pode ser um exagero.
A raiva me atingiu. Quem ele pensava que era?
— Acho que você está me confundindo com a Naya.
Ele tomou outro lento gole de água.
— Se você fosse minha filha, Celeste, eu não a deixaria sair com
um garoto como Jason Marros.
Jase se transformou em um bloco de granito ao meu lado.
— Com licença, Abercrombie, mas se você não quer que eu
reorganize seu lindo rosto, sugiro que guarde suas opiniões para si
mesmo e dê o fora daqui.
— Eu guardaria essas ameaças, Marros. A violência nunca é a
resposta, mesmo sendo a sua favorita, não é?
A raiva se transformou em confusão, mas eu a afastei para
longe. Jase e eu éramos amigos e não deixaria Asher me fazer
duvidar disso.
— Eu o convidei para entrar por hospitalidade, mas como você
parece incapaz de ser cordial, gostaria que você fosse embora.
Ele não se afastou da bancada. Apenas continuou bebendo sua
água.
— Você não me ouviu? — perguntei.
— Ouvi.
— Então por que você não está indo até a porta? Ou janela? —
adicionei baixinho, não me importando em como Jase interpretaria
isso.
— Porque eu acho que você merece saber que tipo de homem
você recebeu em sua casa... e cama.
Respirei fundo com seu golpe baixo. Se ele queria jogar assim,
eu também faria.
— O Jase pode ter seus segredos, da mesma forma que eu. Da
mesma forma que você. Então pare de tentar me virar contra ele, ou
seja lá o que você está tentando fazer.
— Te protegendo. É isso que estou tentando fazer.
Senti a mandíbula doer com a força com que a estava
apertando.
— Não quero nem preciso da sua proteção agora.
Asher finalmente se afastou da pia, mas em vez de ir para a
porta, ele se aproximou da ilha e se inclinou para frente, colocando
a garrafa vazia sobre a bancada e prendendo-a entre os antebraços.
— A Celeste já te contou sobre o mês que passou em uma casa
de repouso quando tinha treze anos, convencendo uma mulher
idosa a não tomar uma overdose de seu medicamento para artrite?
Minha boca ficou seca.
— Ela não só deu àquela mulher a vontade de viver, mas foi
fundamental para uni-la ao senhor mais velho do outro lado do
corredor. Hoje, eles estão casados e felizes.
Minha pele se arrepiou.
— A Sylvie se casou com o Ronald?
Os olhos de Asher pousaram nos meus.
— Sim. Um ano depois de você ter salvado a alma dela, Ronald
a pediu em casamento. Foi um evento social. Ouvi dizer que eles
jogaram bingo até tarde da noite e todos os atendentes tiveram que
usar gravatas feitas de máscaras cirúrgicas.
Aposto que foi Sylvie quem fez. Além dos comprimidos, ela
acumulou máscaras azuis claras, convencida de que estavam
arruinando o sistema imunológico da geração mais jovem. Sorri com
o quanto ela tinha sido enfadonha, embora divertida, mas minha
felicidade diminuiu quando me perguntei como Asher sabia disso.
Eu nunca disse a ele sobre esta missão. Eu tinha um registro no
Elysium?
O polegar de Jase acariciou minha espinha.
— Não me surpreende. A Celeste é uma mulher incrível.
Asher inclinou a cabeça para o lado.
— Ela te contou sobre a vez em que ajudou uma esposa a parar
de abusar verbalmente do marido, mostrando a ela como rebaixá-lo
não estava só prejudicando o casamento deles, mas diminuindo o
respeito dos filhos?
Meu coração bateu mais rápido.
Cynthia não foi a humana mais fácil de recuperar, porque ela não
se considerava condescendente, apenas franca. Foi preciso que seu
filho mais velho chamasse o pai de idiota na frente dos amigos – a
palavra que Greg Jr. usou era muito mais terrível, mas eu a mantive
sob controle por causa das minhas asas – para que sua mãe se
apresentasse e protegesse o homem com quem se casou.
— Eles ainda estão casados? — perguntei.
— Não.
Ganhei nove penas por essa missão, mas se o casamento deles
desmoronou, posso ter falhado com Cynthia e Greg. Eu não merecia
aquelas penas. Provavelmente as tinha perdido.
Mordi o lábio quando Asher contou a Jase sobre mais uma das
minhas missões. Ele estava me fazendo passar por um ser
angelical. Quer dizer, eu era, mas ele estava me representando mal.
Ele estava tentando provar a Jase que meu amigo não sabia
nada sobre mim ou me lembrando de todos os motivos pelos quais
um relacionamento com um humano estava fadado ao fracasso por
ser construído sobre muitos segredos?
De repente, me levantei, me afastando do dedo de Jase, que me
acariciava.
— Foi você quem as pegou!
Era assim que ele sabia sobre Sylvie e Cynthia e os anjos sabem
lá quem mais! O arcanjo invadiu minha privacidade, absorvendo
minhas penas e as memórias atadas a elas.
Em vez de me agraciar com uma resposta – ele provavelmente
sentiu que era óbvio o suficiente, já que as penas se desintegraram
– contou mais um pedaço do meu passado para Jase.
Meu amigo se virou para mim. Em vez de suaves, seus olhos
castanhos brilharam como madeira de lei excessivamente
envernizada.
— Quanta história vocês dois têm juntos?
— Ah, eu e a Celeste nos conhecemos há muito tempo. — Asher
girou sua garrafa vazia duas vezes antes de acrescentar: — A vida
dela inteira, para ser exato. Sabemos tudo um sobre o outro, e
quando digo tudo, quero dizer tudo mesmo.
— Isso é um exagero. — Eu estava tentando manter meu humor
sob controle, mas a pressão crescente afrouxou minha língua. —
Não sei o tamanho do seu pau, Seraph, mas conheço o do Jase,
então pare de tentar intimidar meu amigo e saia da minha casa!
Meu estômago se contraiu quando uma pena foi removida de
minhas asas invisíveis. Não segui sua trajetória.
Jase remexeu os dedos, estalando os nós dos dedos.
— Você ouviu a garota, Seraph. Dê o fora do apartamento dela.
Droga. Chamei Asher por seu título, e agora Jase presumiu que
esse era o nome dele. Contanto que ele nunca descobrisse o que
significava, eu não teria violado uma lei celestial.
Asher não se moveu. Quase não se contraiu.
— Eu protejo os meus, Marros, então não, não vou embora, mas
você pode ficar à vontade.
A tensão fez o corpo de Jase vibrar.
— Os seus? A Celeste não é sua, seu idiota narcisista.
— Não o chame assim. — Minha voz cortou o ar espesso.
Asher era muitas coisas, mas não narcisista. Eu conheci um.
Recuperei um. O Arcanjo podia ser arrogante, mas não queria ser
perpetuamente admirado e não lhe faltava empatia. Ele não teria
trazido Leigh de volta ou criado Naya como sua filha se fosse
violentamente egocêntrico.
— Não o chame assim? — Jase fez um gesto vago em direção a
Asher. — Você não vê que é isso que ele é, Cee? Você mesma
disse. Ele está tentando te colocar contra mim! Pintando a si mesmo
como um cara muito justo e carinhoso para caralho e a mim como
um babaca inútil. E sim, posso não ser bom o suficiente para você,
mas nunca tentaria te possuir.
Dei um olhar aguçado para o arcanjo.
— Suas maneiras precisam ser melhoradas, mas isso não o
torna um idiota.
Asher me observou do outro lado da ilha, com o corpo tão imóvel
que parecia uma extensão da pedra negra.
— Não acredito que você o está defendendo. — O olho de Jase
tremeu.
— Você é meu amigo. Se ele te insultasse, eu te defenderia.
Jase se levantou, cambaleando. Achei que ele tentaria atacar
Asher, mas em vez disso, ele vestiu sua jaqueta de couro vintage.
— Aonde você vai.
— Para casa. Nossa casa. Você vem?
Hesitei, e essa hesitação fez o rosto de Jase se fechar. Era como
assistir a cada porta e janela se fechando ao mesmo tempo. Peguei
sua mão e a apertei, tentando me desculpar pela péssima forma
como a noite estava terminando.
— Me deixe resolver algumas coisas aqui, e então me juntarei a
você em uptown.
Seus olhos permaneceram nos meus por um longo tempo, como
se medindo se eu realmente faria isso.
— Tudo bem.
Dei um aperto final em seus dedos antes de soltá-los.
Liberando-o para ir.
24

D epois que a porta da frente se fechou, me virei para Asher.


— O que, em Abaddon, foi isso?
— O quê?
Girei meu dedo no ar.
— Por que você agiu assim... tão maldoso com ele?
— Não o chamei de nome algum. E não vejo como apontar sua
benevolência foi maldoso.
— Você não vê? Bem, me deixe explicar, Seraph. O Jase esteve
ao meu lado quando precisei de um amigo, um ombro para chorar,
uma mão para segurar, um corpo para me manter aquecida. Ele
pode não estar ciente do meu passado ou do que sou, mas ele me
conhece muito melhor que você jamais irá.
Asher se endireitou, empurrando os ombros enormes para trás e
esticando a blusa de camurça sem mangas. Jase não comentou
sobre o traje do Arcanjo, mas aposto que ele achou que Asher tinha
vindo direto do East Village.
— Você está ciente da pontuação dele, não está, Celeste?
— Pontua... — Afastei minha surpresa. — Pare de tentar me
virar contra ele!
— Quarenta e um. Essa é a pontuação dele.
Tampei meus ouvidos, mas era tarde demais. Sua pontuação
ricocheteou em meu crânio.
— Acabei de te dizer que não queria ouvir.
Asher contornou a ilha em minha direção.
— Não estou tentando colocá-la contra ele, Celeste. — Eu odiei
que sua voz penetrou pela barreira de pele. — Só quero que você
esteja ciente das pessoas que você permite que se aproximem.
Você pode achar que não me preocupo com você, mas me
preocupo.
A dúvida corroeu meu afeto imperturbável. Eu queria manter
meus ouvidos tapados e cantarolar até que Asher parasse de
destruir minha única amizade, mas escolhi agir com maturidade.
Baixei as mãos e levantei o queixo.
— É por isso que você tinha que me dizer a pontuação do Jase?
— Falei porque achei que você poderia querer ser atribuída a
ele.
— O quê? Não! — Minha cabeça girou. — O Jase é meu amigo.
Eu não posso... eu nunca... não. Escolha outra pessoa. Melhor
ainda — fiquei de pé, desviei de Asher e peguei minha jaqueta do
armário de casacos —, eu mesma vou escolher alguém.
— Você não terminou com Bofinger.
Parei, com a mão já na maçaneta.
— Ele foi embora. Você disse isso. — Minha respiração estava
saindo ofegante.
— Isso não significa que ele não vá voltar. Ou que ele não fará
nada para se redimir. Dê alguns dias. Prometo que se achar que
você está perdendo tempo, vou desvinculá-lo de você. — Ele
caminhou até mim naquele ritmo lento de homens acostumados a
ter gente esperando por ele.
Eu precisava de um pouco de ar. Quase saí descalça e sem as
chaves.
— Celeste, aonde você está indo?
— Vou sair. — Antes de ir, me virei para Asher. — E não se
atreva a me seguir ou nosso acordo será cancelado e você poderá
chafurdar na culpa por toda a eternidade.
Seus olhos ficaram cinzentos e ameaçadores como as águas do
Hudson durante os meses frios.
— Celeste...
— Não me diga Celeste. Você entra em minha casa e destrói
minha amizade. Minha única amizade. Se está esperando gratidão,
é melhor se sentar, pois se ficar de pé vai se cansar. — Girei a
maçaneta, saí e bati a porta na cara do Arcanjo.
Enquanto o elevador descia para o saguão, as emoções que ele
despertou se expandiram como ar despressurizado. Eu estava
lívida, desencantada e perturbada. A pontuação de Jase piscou na
frente dos meus olhos como se eu estivesse olhando para seu perfil
em um holo-classificador. Não fui para o Central Park. O parque à
noite não era um lugar agradável para se estar. Nem mesmo para
um imortal. Em vez disso, me dirigi para a Times Square.
Me perdi nos passos, no barulho dos carros, no som de freios,
na tagarelice de milhares de vozes falando uma centena de línguas
diferentes. Me ceguei com a onda de cores dos outdoors animados,
o brilho dos postes e faróis, das telas gigantes e das marquises do
teatro.
Em algum momento, entrei em um bar decadente coberto com
tantos pôsteres da Broadway que era impossível dizer do que as
paredes eram feitas. Não que eu me importasse. Tudo o que eu
queria era entorpecer minha mente que zumbia. Pedi uma vodca
com gelo, esperando que não me pedissem documento. Não queria
apresentar minha identidade falsa, porque exibi-la custava uma
pena. A bartender entregou meu pedido sem me incomodar.
Provavelmente porque estava feliz por eu ter aparecido, já que o
lugar estava vazio. Enquanto eu bebia, percebi que não havia
trazido a bolsa. Procurei por dinheiro nos bolsos, mas encontrei um
chiclete e duas moedas. Eu nem tinha trazido o telefone.
Eu não era o tipo de pessoa desorganizada. Culpei o Arcanjo por
isso. Decidindo que lidaria com o pagamento mais tarde, pedi uma
segunda dose enquanto uma mulher subia ao palco e cantava uma
música de o Fantasma da Ópera, que me deu calafrios de verdade.
O espetáculo era o favorito de Mimi, mas não foi por isso que fiquei
assim. Era pela voz da mulher, sua ressonância lânguida e etérea,
que se chocava tão completamente com essa espelunca.
Quando comecei a tomar a terceira dose, abandonando qualquer
tentativa de moderação, os ossos das minhas asas começaram a
latejar. Por mais que eu tenha fugido dos Ishim, eles sempre
estiveram lá. Por que eu ia querer ascender? Qual era o objetivo?
Sim, eu sentia falta de Mimi, mas fiquei quatro anos com ela. Quatro
anos fantásticos. Não poderia ser o suficiente? Quanto a Leigh –
Naya – uma vez que ela desenvolvesse ossos das asas, eu poderia
vê-la. Guiá-la. Ajudá-la aqui embaixo.
Tomei o copo inteiro em um gole. Quando me virei para a
bartender para pedir outro, a sobrancelha da mulher arqueou.
— Tem certeza, querida?
Eu tinha certeza de que queria esquecer essa noite.
— Sim — eu disse ao mesmo tempo que alguém atrás de mim
falou:
— Não.
Me virei em direção à pessoa que ousou tirar a decisão de mim.
— Vá embora, Seraph.
Um novo artista subiu ao palco, um jovem com longos dreads
que caíam sobre seus ombros enquanto seus dedos dançavam
sobre as teclas do piano, enchendo o bar com uma melodia
escandalosamente linda. Mudei de ideia. Este lugar não era
decadente. Era um achado, um diamante em bruto. Eu precisava
anotar o nome para que pudesse me lembrar dele de manhã e
retornar quando eu não fosse uma parte de vodca e duas partes de
raiva. E desta vez, com a carteira.
Olhei para Asher, que pairava sobre mim como meu guarda-
costas.
— Já que você está aqui, Seraph — um soluço escapou dos
meus lábios — por que não faz algo de útil e paga a esta senhora
simpática por minhas bebidas?
Seu olhar se fixou no meu como se quisesse desfazer minha
alma. Eu tinha certeza de que ele me considerava uma pluma
deselegante, mas que se dane. Não era como se eu me importasse.
— Quanto você bebeu?
Inclinei meu rosto para cima e sorri.
— O suficiente para perder uma pena. Ou duas. Não consigo
sentir os ossos das minhas asas no momento.
Seu peito estufou quando ele tirou dinheiro de – eu nem sabia de
onde, já que nem a calça de camurça nem a blusa tinham bolsos – e
o colocou no topo do balcão. Quando ele se inclinou sobre mim,
fiquei com o nariz cheio de vento e calor.
— Isso cobre a conta dela?
Eu não tinha ideia do que a moça atrás de mim respondeu.
Estava muito barulhento. Do lado de fora e de dentro. E seu cheiro.
Elysium, era uma distração. Eu poderia ter lambido seu pescoço se
a vodca não tivesse colado minha língua no palato.
— Você está pronta para ir?
— O quê? — Levei a mão ao peito, soltando um suspiro falso
seguido por um soluço real. — Você está me perguntando em vez
de mandar?
Sua resposta à minha provocação foi um suspiro.
— Esqueça que perguntei. Vamos.
— Ah... aqui está o Arcanjo que conheço e detesto. — Soluço.
— Celeste... — ele grunhiu.
— O que, Seraph? Você tem permissão para apontar as falhas
de todos — meu peito se contraiu com um soluço —, mas não
temos permissão para apontar suas falhas? Porque, me deixe te
dizer — cutuquei seu peito duro como pedra com meu dedo
indicador — você tem — soluço — taaantaaas. — Pulei do
banquinho, mas calculei mal minha aterrissagem e bati nele.
— Você pode andar?
Apontei para minhas botas.
— Não vejo porque não. Tenho dois pés. — Apertei os olhos. Na
verdade, quatro. Não. Isso não pode estar certo...
Dei um passo e tropecei. Tudo bem, talvez eu não pudesse.
Antes que eu tentasse novamente, Asher me pegou como se eu
fosse um saco de arroz.
Minhas bochechas passaram de quentes a escaldantes.
— Me coloque no chão. Você me envergonhou o suficiente por
uma noite.
— Você não consegue andar.
— Eu posso engatinhar.
— Você não vai engatinhar o caminho todo até em casa.
— E se eu quiser?
— Você não quer.
— Ah, então agora você sabe o que eu quero e o que não
quero?
— Você vai me agradecer amanhã.
— Eu nunca vou te agradecer. — Fechei os olhos, porque o teto
estava balançando.
Pelo menos os soluços sumiram. Isso foi bom.
E então o ar frio atingiu meu rosto. Outra coisa boa.
Tão boa que mantive os olhos fechados e me inclinei para a
escuridão fria que parecia ficar mais viva, embora um inferno
mantivesse meu corpo quentinho.
25

A cordei de repente, sentindo o ácido subir pela minha


garganta. Apertei meus lábios e me sentei, estendendo a
mão para me equilibrar. Acabei derrubando o copo de água
da mesa de cabeceira... ou era vodca? Por favor, que não seja
álcool – derramou no edredom e escorreu para o tapete. O quarto
oscilou e eu quase caí da cama, mas de alguma forma consegui
desafiar a gravidade e ficar de pé. Lentamente, o quarto em que eu
dormia apareceu em manchas de cores suaves. Eu estava em casa.
Na minha casa no centro da cidade.
Me lembrei de ter saído, mas não tinha nenhuma lembrança de
ter voltado. Meu estômago se apertou. Saltei da cama e corri em
direção ao banheiro, ficando de joelhos no momento em que um jato
de bile misturado com pedaços de berinjela espirrou no vaso. Argh.
Eu nunca mais ia beber.
Vomitei de novo, sentindo meu nariz arder e meus olhos
lacrimejarem.
O que, em Abaddon, me deu para beber tanto? Eu não era
assim.
Dedos longos seguraram meu cabelo, afastando-o do conteúdo
do meu estômago. Por um segundo, pensei que pertencessem a
Mimi, mas então a lembrança da sua perda me atingiu junto com
uma nova onda de náusea. O suor se formou em minha testa
enquanto eu me inclinava e esvaziava um pouco mais o estômago.
Quando recuei, avistei panturrilhas musculosas cobertas por
camurça.
Apoiei a bochecha no assento do vaso sanitário e fechei os
olhos.
— Você se diverte em me ver no meu pior estado, Seraph?
Seus dedos se apertaram ao redor do meu cabelo.
— Que tipo de pergunta é essa?
Levante a cabeça do assento plástico.
— Estou vomitando horrores. E você está aqui. Você sempre
está aqui.
— Por que você continua esperando que eu vá embora?
— Porque é isso que as pessoas ao meu redor fazem. Elas vão
embora. — Apoiei a bochecha contra o assento do vaso de novo
quando meu crânio começou a pulsar. — Seja quando eu peço ou
não.
Ele soltou meu cabelo e se levantou. Eu esperava que ele fosse
embora. Em vez disso, a água começou a correr e o vapor cobriu o
ar. Em seguida, uma toalha molhada foi passada pela lateral do meu
rosto e pescoço.
Asher ergueu minha cabeça e enxugou o outro lado do meu
rosto. Eu esperava que a repulsa contorcesse suas feições, ou pelo
menos, a desaprovação, mas encontrei apenas preocupação. A
palavra obrigada parou na ponta da minha língua, mas não saiu.
Só porque ele estava preocupado comigo, não significava que
ele realmente se importava. Ao contrário de Jase. Ele sim se
importava. Provou isso muitas vezes. Tudo que Asher provou foi ter
um senso de dever super desenvolvido para com seu povo, e uma
vez que eu ainda fazia parte dele...
— Aqui. — Ele empurrou um copo d'água na minha boca e me
entregou dois comprimidos brancos. — Tome isso e um banho. Você
deve se sentir um pouco melhor depois.
— Estou surpresa que você conheça a cura para ressaca. Não
consigo imaginar que você já tenha passado por isso. — Coloquei a
aspirina na boca e a engoli com a água. Meu estômago se revirou.
Inspirei e expirei lentamente, esperando que os espasmos
diminuíssem.
— Quer ajuda para entrar no banho?
Tentei imaginar o que ele queria dizer com isso.
— Você está se oferecendo para me despir?
As bochechas de Asher não brilharam, mas seus olhos sim, e
não de uma forma excitada, mais de um jeito vou te jogar no
chuveiro completamente vestida, com as narinas dilatando e tudo
mais.
— Duvido que você precise da minha ajuda para se despir. —
Ele se virou e saiu, batendo a porta com tanta força que a madeira
laqueada estremeceu.
Eu me levantei, exultando com a facilidade com que poderia
atormentar o ser antigo. A dor se espalhou das solas dos meus pés
até a raiz do meu cabelo enquanto eu cambaleava até a banheira.
Droga de vodca. Pelo menos, meu estômago não estava mais
tentando se virar do avesso. Tirei as roupas, despejei uma grande
dose de sais de banho com aroma de lavanda e mergulhei o corpo
na água.
Enquanto eu emergia, fechei os olhos e tentei lembrar da noite.
Ela voltou em fragmentos desconexos. Um deles fez meus olhos se
abrirem. Merda, Jase. Pedi a ele que me esperasse. Precisava ligar
para ele.
Depois do banho.
Fechei os olhos e fiquei um pouco mais ali. Depois de um tempo,
me levantei e me enrolei no roupão grosso com um C bordado no
peito – outro dos presentes de Mimi – e escovei os dentes. Me
sentindo muito menos enjoada, voltei para o quarto e vesti um short
de dormir preto e uma blusa com as palavras Eu falo sarcasmo
fluente impressas no peito. Mimi revirou os olhos para mim na
primeira vez que a usei.
Ah, Mimi... eu realmente questionei meu desejo de vê-la
novamente?
Eu queria mais anos com ela.
Pensei em Bofinger enquanto enrolava meu cabelo úmido em
um coque.
— Por favor, por favor, faça a coisa certa — murmurei, me
aproximando da janela e observei o amanhecer pintar o céu de um
cinza perolado. Pelas pessoas que você sacaneou. Mas também
por mim. Por favor.
Eu estava sóbria o suficiente para saber que meu apelo não
chegaria aos ouvidos dele, mas Leigh uma vez me disse que
orações não machucavam ninguém, então por que não murmurar
algumas? Logística cósmica à parte, minha súplica sussurrada me
fez pensar no dia em que ela me disse isso e, estranhamente, havia
conforto nessa lembrança.
Caminhei até a sala de estar em uma busca para encontrar meu
telefone e algo para comer, de preferência algo muito gorduroso e
cheio de açúcar. Aah, donuts. Eu poderia pedir que entregassem
alguns. Se eu pudesse localizar meu telefone...
Uma rajada de ar frio fluiu pela porta aberta do terraço, onde
Asher estava de costas para mim. Fiquei tentada a ir até lá e trancá-
lo quando asas cor de lavanda com pontas douradas apareceram
por trás de seu corpo largo. Ou melhor, de frente para ele.
Asher tinha companhia angelical. Imaginei que a visita fosse
relacionada ao trabalho. A menos que ele estivesse recebendo
anjos em minha casa, o que seria muito rude, já que ele não havia
pedido minha permissão para trazer visitas. A curiosidade me fez
mudar de direção e sair para a fresca manhã de outubro.
Eu não tinha certeza se ele sentiu minha presença ou se sua
companhia o alertou, mas ele se virou quando pisei na varanda
estreita, revelando uma Ishim que não dei muita atenção. Não que
eu desse atenção a eles. Minha espinha formigou como se quisesse
me lembrar de parar enquanto estava à frente, a menos que
quisesse perder outra pena. Quantas eu já havia perdido? Eu tinha
me esquecido de verificar a banqueta na noite passada.
— Celeste, você se lembra da Ish Eliza?
Como se eu pudesse esquecer a responsável por classificações
com cara de descanso de unicórnio. Abri um sorriso, que ela não
retribuiu, e me encostei no batente de metal frio.
— O que te traz a mi casa, Ish?
— Negócios que não te dizem respeito, Pluma.
— Ish Eliza... — A voz de Asher era baixa e ligeiramente
reprovadora.
O Arcanjo realmente adorava usar os nomes das pessoas em
vez de formar frases completas. Claro, ele transmitia a mensagem,
mas fez pouco para mostrar sua habilidade com as palavras. E o
homem era loquaz. Até hoje eu me lembrava do discurso
apaixonado que ele fez na associação quando estava em busca de
uma consorte. Será que ele já havia tentado algo com a Verity ao
seu lado? Provavelmente não, já que eles não estavam em um
relacionamento e, pela maneira como ela esfregava as penas no
braço dele, não parecia que ela o recusaria.
— Desculpe por ter interrompido sua reunião aconchegante.
Me afastei do batente e comecei a me virar quando Asher disse:
— Vou entrar em um minuto.
— Ah, não há necessidade de interromper seu encontro por
minha causa. Estou muito feliz por estar sozinha. Além disso,
preciso dar um telefonema para salvar minha amizade que ruiu.
O azul em seus olhos ficou escuro.
— Não faça planos. Temos trabalho a fazer hoje.
— Temos? Achei que tinha que dar tempo a Bofinger.
— Só não saia.
Para evitar perder uma pena, não respondi. Se Jase estivesse
acordado e atendesse minha ligação, eu gostaria de sugerir um café
da manhã gorduroso no The Trap para resolver as questões da
nossa amizade. Quando retomei minha busca pelo telefone celular,
o número 41 piscou na minha visão. Nosso relacionamento não
estava apenas estremecido, o vínculo havia se partido e, ainda que
a situação pudesse ser resolvida, até que eu entendesse como ele
ganhou essa pontuação, as coisas ficariam assim.
Eu tinha três opções: a) perguntar a Asher, b) ir até a fonte e
confrontar Jase ou c) ir até a associação e verificar em um holo-
classificador.
O medo me atingiu, despertando novamente as batidas
maçantes. Apertei minhas têmporas. Onde, em Abaddon, estava a
porcaria do meu telefone? Asher o confiscou? Assim que tive esse
pensamento, eu o localizei na mesinha de centro, ao lado do
controle remoto da TV.
— Ótimo. — Eu o peguei, mas meus dedos esbarraram no
controle remoto digital, fazendo a TV ligar.
A voz do âncora do noticiário explodiu nos alto-falantes,
atingindo minhas têmporas novamente. Apertei o botão mudo em
vez de desligar. Funcionava muito bem.
Meu telefone tinha três por cento de bateria restante, então me
apressei para localizar o contato de Jase e pressionei ligar.
Enquanto tocava, vi as bochechas rosadas da apresentadora
incharem enquanto ela compartilhava o que parecia ser uma notícia
estimulante.
A secretária eletrônica de Jase atendeu.
— Oi, Jase. Sinto muito pela noite passada. Se você não me
odiar, adoraria te encontrar em algum momento hoje. Me ligue... —
Um nome familiar apareceu na tela. — Quando... ah. Hum. Eu te
ligo de volta. — Desliguei e pressionei o telefone no peito, os aros
dos meus anéis apertando a capinha de silicone brilhante — Ah,
Santos Sete. — Joguei o telefone no sofá. — Asher!
O Arcanjo irrompeu na sala de estar, com a Ishim logo atrás de
suas asas. Sim, das pontas das asas. Ele as havia feito aparecer
com magia e as penas turquesa com pontas cor de bronze vibraram
com sua chegada apressada. Eu parecia tão angustiada que ele
presumiu que eu precisava ser levada embora?
Seus olhos me examinaram da cabeça aos pés.
— O que foi, Celeste?
A alegria me fez pular em sua direção e abraçá-lo. Seu corpo se
contraiu quando meus pulsos e dedos roçaram a parte inferior de
suas asas. Muito macio. O único lugar macio em seu corpo. Lá no
fundo, eu sabia que estava cometendo uma gafe, e das grandes. Eu
não estava apenas tocando a ponta de suas asas, mas em seu local
mais íntimo. Tentei me preocupar com o decoro. Tudo bem, não,
não tentei. Eu não dei a mínima para o decoro nesse caso. Tudo o
que me importava era expressar minha felicidade e gratidão para
com meu supervisor obstinado e de corpo duro. Além disso, se ele
estivesse desconfortável, poderia simplesmente eliminá-las com
magia. Já que ele não tinha feito isso, presumi que não era um
ponto sensível. Não que eu já tivesse verificado. Minhas asas
sempre foram uma fonte de dor. Transformá-las em uma fonte de
prazer seria confuso e desanimador se eu as perdesse.
Pela primeira vez em anos, me permiti sonhar que conseguiria
mantê-las.
Eu me inclinei para trás para olhar para ele. Suas pupilas
estavam dilatadas a ponto de eclipsar o fundo brilhante, e seu peito
batia com tanta violência que me preocupei que seu coração
estivesse tentando romper a pele para me bater pelo meu abraço
insolente. Ele era bem assustador, mas eu não estava com medo.
Eu sorri. Não o amoleceu nem um pouco.
— Consegui, Seraph. Bofinger acaba de confessar o esquema
Ponzi. Ele mesmo ligou para os investidores. Ele fugiu do país, mas
confessou.
Suas pupilas encolheram enquanto seu olhar se voltava na
direção da TV. A atenção de Eliza se voltou para lá também, mas
depois voltou para mim, ou mais precisamente, para minhas mãos
unidas aninhadas na curva da coluna do seu chefe, logo abaixo do v
aveludado de suas asas. Eu esperava que um grunhido saísse de
sua boca a qualquer momento. Quase me fez querer fazer uma
lenta carícia em Asher só para irritá-la, mas tive pena de suas penas
atacadas e o soltei.
— Pode não contar — Ish Eliza disse, derrubando a minha
exultação.
Minhas mãos caíram para os lados, batendo contra minhas
coxas.
— O quê? Por quê?
— Os humanos só podem se redimir se suas confissões forem
reforçadas pelo arrependimento. — Eliza deu um passo mais perto
de Asher. No segundo que o corpo dela se aproximou de suas
penas, ele as fez desaparecer.
— Eu discordo, Ish Eliza. — A voz de Asher soou uma oitava
mais profunda do que o normal. — Se este homem não estivesse
arrependido, ele não teria confessado.
Meu coração disparou como um balão de hélio fugitivo.
Ele olhou para mim e o azul cintilou como as chamas na parte
inferior do pavio de uma vela.
— Abra suas asas, Celeste. Vamos ver se tem novas penas.
Cruzei os braços.
— Hum. Não.
Ele franziu o cenho.
— Por que não?
Recuei um passo como se temesse que ele pudesse arrancar os
ossos das minhas asas usando força bruta, o que, felizmente, era
impossível.
— Por que não. Ish Eliza tem algum detector de penas
embutido?
— Ish Eliza não tem — ela respondeu.
Ouvi-la falar sobre si mesma na terceira pessoa normalmente
teria me feito fazer uma piada, mas eu estava muito tensa para
zombar dela.
— E você também não tem como saber, Seraph.
— Não sem olhar para suas asas ou para um holo-classificador.
Por que você não quer trazê-las para fora?
— Porque eu não quero.
Um sulco se formou entre suas sobrancelhas já tensas.
Eu não ia exibir minhas asas murchas na frente de qualquer um
deles. Mesmo que estivessem oitenta e duas penas mais cheias.
Meus olhos devem ter se voltado para a Ishim, porque, de
repente, Asher estava dizendo a Eliza para ir embora.
— Seraph, ainda há a questão de...
— Agora não.
— Mas o que devo dizer a Seraph Claire?
— Você pode dizer a ela que estarei em Elysium antes do fim do
dia, e podemos discutir o assunto pessoalmente.
— Ela ficará descontente.
— E se você não for embora agora, eu ficarei descontente!
Opa.
Eliza recuou um passo e depois outro, me fuzilando com os
olhos, embora não tenha sido eu quem emitiu o comando
estrondoso. Imaginei que fuzilar o Arcanjo com os olhos não a faria
ganhar pontos com ele, mas olhar assim para alguém tão abaixo
dela não custava nada.
— Muito bem. Vou passar sua mensagem, Seraph. — Ela voltou
para o terraço, abriu as asas e voou sobre o parque antes de fazer
uma curva fechada e desaparecer de vista.
— O que foi aquilo?
Ele evitou minha pergunta.
— Ela se foi. Pode abrir suas asas agora, Celeste.
— Não vou te mostrar minhas asas.
O sulco se aprofundou.
— Por que não?
— Porque não mostro minhas asas a ninguém. Não o fiz em
quatro anos. A única vez que as coloco para fora é no aniversário
dos ossos das minhas asas.
— Por quê?
Soltei o ar pelo canto da boca.
— Por que você está insistindo tanto nisso?
Ele cruzou os braços.
— Porque nunca conheci um anjo que se recusasse a exibir
suas asas.
— O que posso dizer? Sou única.
— Celeste... — Ele estava fazendo aquilo de novo. Grunhindo os
primeiros nomes como se constituíssem frases completas
perfeitamente adequadas.
— Meu apelido na associação era asinha.
— E?
— Se você tivesse um pênis minúsculo, você o exibiria? — A
questão escapou antes que eu pudesse escolher uma metáfora
melhor. Pelo que eu sabia, o Arcanjo poderia não ser
generosamente dotado. Ser grande em todo lugar pode ser
enganoso... descobri isso em primeira mão.
Seus olhos se arregalaram um pouco.
— Asas não são genitais.
— Não? As duas são zonas erógenas. — Alguém, por favor, cale
a minha boca.
— Prometo não tocá-las sem o seu consentimento.
Opa...
— Essa não era a raiz da minha reticência. — Eu estava
corando? Eu realmente esperava que não. Estava me sentindo um
pouquinho mais quente que antes, mas provavelmente foi porque
Eliza fechou a porta do terraço. Ah, espere... estava totalmente
aberta. Puxei a gola da minha blusa. — Minhas asas são ridículas.
Parecem adereços de fantasias.
— As asas vêm em vários tamanhos e cores, Celeste. Todas são
lindas.
Desta vez, revirei totalmente os olhos.
— Ah, faça-me o favor.
— Além disso, você tocou nas minhas... de novo. — Ele abaixou
o queixo para apontar melhor seu nariz aquilino para mim. — Sem
meu consentimento, devo acrescentar. O mínimo que você pode
fazer é exibir a sua.
— Não. E sinto muito por ter bagunçado suas penas, Seraph.
Sou uma pessoa muito imprevisível e efusiva. Você realmente deve
mantê-las escondidas quando estiver na minha companhia.
Um suspiro fez a linha afiada de sua mandíbula relaxar.
— Então, pelo menos, vá para um quarto e olhe para elas.
Engoli em seco, sentindo meus joelhos parecerem de borracha
de repente.
— Também não quero fazer isso.
— Por que não?
— Porque... e se não tiverem crescido plumas novas?
— Terão. Tenho certeza disso.
Outro punhado de saliva desceu pela minha garganta.
— Você não pode simplesmente ligar para alguém e pedir que
verifiquem em um holo-classificador?
— Posso, mas quero que você enfrente suas asas.
— Elas estão nas minhas costas, muito difíceis de enfrentar.
Ele respirou fundo.
— Você sabe o que eu quero dizer.
Mordi meu lábio inferior.
— Certo. — Antes que eu pudesse me questionar, fui para o
quarto mais próximo – o de Mimi – fechei a porta e fiquei na frente
do espelho. Criando coragem, deixei minhas asas odiosas
materializarem e as estiquei o máximo possível o que não era muito.
Ao vê-las, sua escassez fez minhas bochechas corarem.
Parei de olhar para o que não estava lá e procurei o que poderia
estar. Me virei um pouco e apertei os olhos. As bordas estavam
alinhadas no que se parecia com um vison violeta cortado. Devo ter
ofegado, porque a próxima coisa que percebi foi uma batida na
porta.
— Celeste? — O tom de Asher era rouco e mais do que um
pouco frenético. — Posso entrar?
Eu as fiz desaparecer, porque estava começando a perceber o
quanto o Arcanjo poderia ser impulsivo. Ele entraria mesmo se eu
dissesse não.
É claro, a porta se abriu. Um olhar para minhas bochechas
brilhantes fez com que a cor escapasse de seu rosto.
— Talvez seja muito cedo. Às vezes, leva um pouco de tempo
para que as penas apareçam.
Enxuguei as lágrimas, tentando colocar um sorriso nos lábios,
mas eles tremiam muito.
— Elas apareceram.
— Elas... então por que você está chorando?
— Porque eu estou... — O que eu estava? Orgulhosa?
Esperançosa? No final, optei por uma palavra que resumia as duas
coisas. — Porque eu estou feliz.
— Graças a Elysium sou imortal ou sua imprevisibilidade já teria
feito meu coração parar algumas vezes.
Eu sorri. E em seguida, eu ri. E depois chorei um pouco mais,
porque talvez este não fosse um sonho impossível. Eu ainda estava
longe de ascender, mas em um dia, ganhei oitenta e duas penas.
O Arcanjo apenas sorriu. E foi totalmente presunçoso, mas não o
provoquei, por causa daquelas penas... eu devia a ele. Mesmo que
eu não tenha agradecido em voz alta, eu tinha certeza de que meus
olhos brilhantes e lábios curvados transmitiam minha gratidão.
— Me indique o próximo pecador, Seraph.
Ainda sorrindo, ele disse:
— Por que você não se veste enquanto eu a vinculo?
— Estou vestida. — Seus lábios formaram uma linha nada
divertida. — Tudo bem. Vou colocar uma calcinha.
Por reflexo, seus olhos baixaram para o meu short muito curto, e
seu tom de pele, geralmente tão liso e dourado, ficou ligeiramente
corado.
Dei um tapinha em seu grande braço no caminho para fora.
— E uma calça. — Sorri até chegar em meu quarto.
Por que eu gostava tanto de implicar com o Seraphim? Ah, sim,
porque eu era boa nisso e adorava fazer coisas em que era boa.
Como cumprir missões. Aparentemente, eu era boa nisso também.
Em voz baixa, agradeci ao universo por conceder meu desejo,
embora provavelmente não tenha tido grande influência nisso.
Ao contrário de Asher.
Depois de vestir a legging de couro, voltei para a sala, pronta
para expressar minha gratidão, mas o Arcanjo havia sumido.
A única vez que desejei que ele estivesse por perto...
26

A comida de fast-food que engoli enquanto pesquisava meu


mais novo pecador pesava no meu estômago, não porque a
mulher parecia complicada ou assustadora, mas porque a
pressão para ter sucesso, e rapidamente, estava de volta.
Fernanda, uma pecadora de trinta e dois pontos, enganava
homens casados, lhes dando um prejuízo de milhões de dólares.
Ela começava seduzindo-os, tinha casos prolongados, documentava
esses encontros amorosos e depois ameaçava revelar às esposas,
as fotos, mensagens de texto e emails acumulados durante as
semanas que passou com os homens ingênuos. Ela enganou seis
homens e agora era a orgulhosa proprietária de um apartamento na
Park Avenue, uma casa em Londres, uma casa de férias na Costa
Amalfitana e uma conta bancária considerável, cortesias de seis
amantes.
Meu trabalho: acabar com seu negócio lascivo, embora lucrativo.
Abracei as orquídeas suntuosas que comprei como passagem
para o apartamento dela e entrei no prédio, indo direto para o balcão
do concierge. Depois de telefonar para a minha pecadora, o
concierge me acompanhou até o hall de elevadores. No mais
distante, ele pegou um cartão, pressionou o número 38 na tela e
recuou para que as portas pudessem se fechar.
Quando cheguei em frente à porta de Fernanda, ainda estava
pensando em como proceder para recuperá-la.
— Aah. Que bonita. — Ela estendeu a mão para a planta e seus
cachos loiros saltaram contra a camisola de seda coberta por um
robe transparente.
Ela estava prestes a fechar a porta quando eu a abri e entrei no
saguão de mármore branco.
Franzindo a testa, ela colocou o vaso em um console prateado.
— Você está esperando gorjeta?
— Não. — Peguei minha bolsa de tecido para pegar o arquivo de
fotos que compilei.
Ela deu um passo para trás.
— Não se preocupe. Não sou uma cônjuge desprezada.
Ela paralisou.
Estendi o arquivo.
— O que é isso?
— Fotos. Fotos de família. — Como ela não pegou o arquivo, eu
o abri e mostrei a foto do primeiro homem que ela enganou. — Se
lembra do Octavio? Ele se tornou alcoólatra e passa mais tempo na
reabilitação do que com sua esposa de trinta anos, não que ela
queira passar mais tempo com ele. — Passei para a próxima foto,
confrontando-a com a realidade brutal do que ela tinha feito. —
Este. Gaspard. Divorciado. Só vê seus filhos a cada dois fins de
semana.
Ela baixou os olhos e suas íris escureceram.
— Quem é você e o que você quer?
— Meu nome é Celeste Moreau, e o que eu quero é que você se
torne uma pessoa melhor. Podemos nos sentar?
— Não. — Sua boca mal se moveu ao pronunciar a palavra.
— Certo. — Joguei a foto de lado, depois tirei fotos de antes e
depois da presa número três, quatro, cinco e seis. — Caçar homens
casados não é um bom esporte. Você destruiu muitos casamentos,
Fernanda.
— É preciso dois para destruir um casamento. Além disso, todos
nós temos que ganhar a vida.
— Por que homens casados? Por que não solteiros?
— Por que você não cuida da sua vida?
— A cidade está cheia de solteiros ricos.
Ela ficou carrancuda.
— Não sou o tipo de mulher com quem os homens querem se
casar.
— Por que você diz isso?
— Por que... — Ela soltou um suspiro de frustração. — Eu
simplesmente não sou.
Fechei o arquivo e o coloquei de lado.
— Alguém te disse isso?
— A minha mãe sempre disse que havia dois tipos de mulheres
neste mundo: as que ficavam bem no papel e as que ficavam bem
nos lençóis. Aparentemente, fico melhor nos lençóis.
— As mães nem sempre estão certas.
Um sorriso sensual curvou seus lábios.
— Ah, mas eu fico bem nos lençóis.
— Esse não precisa ser o único lugar em que você fica bem.
— Não importa, já que não tenho desejo de me casar. Os
homens são todos traidores. Como você disse, eles pensam com o
pau.
— Eu realmente não disse isso, mas voltando ao assunto em
questão... por que homens casados?
— Porque eles me tratam como um prêmio em vez de uma
mercadoria. Homens solteiros sentem que merecem minha atenção
depois que me levam para um encontro. Homens casados se
sentem sortudos por eu lhes dar atenção.
— Você não deve estabelecer seu valor pela opinião de outras
pessoas a seu respeito.
O aborrecimento remodelou sua boca.
— Não faço isso. Sei o meu valor, e é por isso que faço as
pessoas pagarem.
— E quanto às esposas? As crianças? Você pensa neles?
— Tudo o que faço é desempenhar o papel com o qual as
esposas não se importam mais. Eu faço os homens se sentirem
desejados e interessantes novamente. De certa forma, faço um
favor às esposas... se durmo com seus maridos, elas não precisam
fazer isso.
Observei seu nariz empinado, seus cachos dourados macios,
seus seios grandes e quadris estreitos.
— Você não se sente culpada?
— Por que eu deveria me sentir culpada? Dou a eles o que o
dinheiro vale.
Girei o dedo no ar.
— Tenho certeza de que você é boa, mas boa assim?
Ela sorriu.
— Acredite ou não, foi a esposa de Gaspard quem me
presenteou com este apartamento. Ela estava preocupada que seu
marido a deixasse por mim, e ela não queria arriscar.
— Você poderia ter recusado.
— Recusado? Você está louca? Por que eu recusaria um
apartamento? — Ela bufou. — Você nunca aceitou um presente
ultrajante?
Pensei nos presentes que Mimi havia me concedido ao longo
dos anos. Presentes que eu aceitei, mas que nunca me senti em
dívida.
— Você deve parar enquanto pode.
— Posso ter um derrame e perder metade do movimento do
rosto ou, pior, do cérebro. Enquanto eu ainda tenho saúde e
aparência, planejo acumular o máximo de riqueza que puder.
Fiquei calada por um bom tempo, repensando minha estratégia.
Mesmo que minha apresentação de fotos a fizesse refletir sobre
seus erros, não a mudaria da noite para o dia, e eu precisava mudá-
la até a noite. O que me deu uma ideia.
— Que tal se eu te ajudar a encontrar um solteiro elegível?
— Já te disse, não estou interessada em homens solteiros. Eles
não valem meu tempo ou habilidade.
— Posso tentar provar que você está errada?
— Por quê? — Ela cruzou os braços. — O que isso te interessa?
— Minha alma se beneficiaria muito em ajudar a sua.
— Essa é a coisa mais estranha que alguém já me disse.
— Eu sou uma garota estranha. — Abri a porta. — Me encontre
hoje à noite no Dinos. Dez horas.
Ela inclinou a cabeça para o lado.
— E se eu não for?
Saí para o corredor.
— Vai perder uma refeição grátis no restaurante mais moderno
da cidade.
— Sem condições estipuladas?
Pouco antes de ela fechar a porta, acrescentei:
— A reserva será feita em nome de Moreau.
— Eu não vou.
Mas ela iria. A curiosidade, ou talvez a preocupação, a faria me
procurar.
27

E ntrei no Dinos às dez para as dez. Não queria que Fernanda


chegasse antes de mim e decidisse que não estava mais
interessada no que eu estava oferecendo. Depois que o
maitre me acomodou no bar que enfeitava o restaurante, liguei para
Jase pela décima vez e, novamente, ele não atendeu. Entendia o
porquê ele estava com raiva, mas seu silêncio agora estava me
irritando. O que exatamente ele queria? Ele achou que eu voltaria
para resolver as coisas entre nós?
Um garçom vestindo camisa de linho preta e com um forte
sotaque grego se inclinou e perguntou o que eu queria beber.
Abaixei meu telefone e pedi água com gás. Eu pensaria em Jase
mais tarde. Agora, eu precisava me concentrar nesta missão.
Depois de quinze minutos, Fernanda ainda não tinha chegado,
então comecei a ficar preocupada por ter sido confiante demais. Eu
daria mais quinze minutos, e se ela não aparecesse...
— Mudei de ideia. — Minha pecadora se sentou ao meu lado.
— Não mudou, não. — Abri o cardápio encadernado em couro.
— Você sempre planejou vir.
Sorrindo com a minha franqueza, ela tirou um blazer ajustado,
revelando um vestido vermelho que mostrava a todos os seus
atributos. Seu olhar percorreu o salão. Eu duvidava que ela
estivesse admirando as redes de pesca que cobriam o teto e
seguravam globos de vidro esmeralda e azul com lâmpadas.
— Onde estão todos aqueles solteiros?
— Você não gostaria dos que eu conheço.
Sua mão parou a caminho do copo d'água.
— Não entendo. Você disse...
— Este lugar se transforma em um clube depois da meia-noite,
daí o nosso jantar tardio. Já que a nata de Nova York se reúne aqui,
é provável que você encontre alguns candidatos disponíveis.
O garçom grego se inclinou sobre o balcão, oferecendo um
segundo cardápio para Fernanda. Quando ela o pegou, ele não o
soltou de imediato. Ela deu a ele um sorriso tenso.
Depois que ele foi chamado por outro cliente, me inclinei na
direção de Fernanda.
— Olhe para isso... você já chamou a atenção de alguém.
Ela se virou, olhando ao redor.
— De quem?
— Do nosso garçom.
Ela torceu o nariz.
— Sem ofensa, Celeste, mas de jeito nenhum vou para casa
com alguém que ganha um salário-mínimo. Nem por uma noite.
— Por quê? Ele pode ser uma pessoa excepcional.
— Talvez, mas para mim, o amor é transacional. Se eu não
tenho nada a ganhar, então não há razão para me envolver. — Ela
colocou as mãos em volta do copo e levou-o aos lábios pintados
que complementavam sua maquiagem. Asher mencionou que ela
tinha 29 anos, mas parecia mais jovem.
— Uma relação de verdade faria bem para a sua alma,
Fernanda.
— Minha alma? Achei que estávamos aqui pela sua alma. —
Seus lábios se curvaram com outro sorriso. — Você é engraçada.
Eu não estava tentando ser engraçada. Estava tentando ser
eficaz.
Depois que fizemos o pedido, e o garçom em transe colocou
uma taça de vinho rosé na frente de Fernanda, ela disse:
— Não janto com uma garota desde os dezesseis anos.
— Mesmo?
— Não gosto de mulheres. Elas geralmente são maliciosas e
competitivas. E julgadoras. Deus, como elas podem ser críticas.
Pensei em Eve e suas amigas emplumadas. Como eles sempre
olharam com desprezo para mim e minhas asas. A única que nunca
me tratou como lixo foi Leigh.
Fernanda deu um gole no vinho.
— Você tem muitas amigas, Celeste?
— Eu tinha uma.
Ela baixou a taça e limpou as mãos no guardanapo.
— Tinha? O que aconteceu?
Como as cordas dedilhadas do bouzouki tocando ao fundo, a
lembrança de Leigh pulsou em mim.
— Ela morreu.
Isso deixou minha companheira séria.
— Sinto muito.
Eu também...
Naya existia, mas ela ainda era uma criança. Uma criança com
quem eu havia quebrado minha promessa de ir vê-la. Amanhã. Eu a
veria amanhã.
— O polvo grelhado foi uma boa escolha.
Me virei em direção à voz, que pertencia ao meu outro vizinho de
bar, um homem bonito usando camisa rosa de colarinho aberto que
fazia sua pele bronzeada se destacar.
— Que bom que pedi então.
O olhar do homem passou pelo meu rosto e ele estendeu a mão.
— Phillip.
Eu a apertei.
— Prazer em conhecê-lo, Phillip. Eu sou Celeste. — Inclinei a
cabeça em direção a minha pecadora. — E esta é a minha amiga
Fernanda.
— Fernanda. Italiano?
— Metade. — Ela pegou o vinho e levou-o à boca.
Afastei a cadeira para que ele pudesse vê-la melhor.
— E você, Celeste? De onde você é?
— Eu cresci na cidade. — Verifiquei sua mão esquerda –
nenhuma aliança, nem linha de bronzeado para indicar que poderia
haver alguém. — E você, Phillip?
— Originalmente, St. Louis, mas me mudei para Nova York para
fazer faculdade e nunca mais saí.
Fernanda apoiou um cotovelo no balcão, fazendo seus cachos
loiros caírem em cascata sobre o ombro.
— E o que é que você faz, Phillip?
— Sou advogado. Especializado em fusões e aquisições.
Eu quase podia ouvir cliques no cérebro de Fernanda enquanto
ela avaliava em que faixa de renda o colocaria. Ela deve ter decidido
que era satisfatório, porque não deu atenção aos pratinhos de
comida brilhante que o garçom colocou entre nós.
Agradeci a ele. Seus olhos escuros se voltaram para mim antes
de olharem para Fernanda, que estava rindo de algo que Phillip
tinha dito. Nosso jantar para duas pessoas se transformou em um
para três. Phillip parecia bom o suficiente. Mais importante, porém,
Fernanda parecia cativada.
Quando ela pediu licença para se refrescar, me tornei a única
destinatária de sua atenção.
— Você é modelo?
Sério? Eu sorri.
— Me falta altura para isso. Na verdade, estou estudando direito
na Universidade de Columbia.
— Você está brincando? Essa é a minha alma mater. — Ele fez
sinal para o garçom e bateu em sua taça de vinho. — Inteligente e
bonita. — Sua atenção ficou cada vez mais pesada. Se eu não
estivesse tentando juntá-lo com Fernanda, poderia ter encorajado
Phillip. Ele era muito atraente e eu era solteira. — Posso pegar algo
para você beber, Celeste?
Agradeci.
— Hoje não, mas obrigado.
— Em algum momento desta semana, talvez? Eu adoraria saber
como você está indo em suas aulas. — Sua voz tinha ficado
totalmente rouca. — A Professora Goldstein ainda ensina?
— Ah, sim. E ainda cheia de energia.
— Celeste.
Meu nome me fez virar o pescoço.
— Que surpresa te encontrar aqui. — Sorri para o Arcanjo
carrancudo. Imaginei que sua expressão insatisfeita fosse devido à
presunção de que eu estava curtindo um encontro em vez de
trabalhar.
Phillip olhou entre nós.
— Phillip, conheça o meu... chefe.
— Chefe? Achei que você estava na faculdade.
— Estou.
— Olá, garotão. — Fernanda, que tinha acabado de chegar,
analisou meu supervisor de corpo largo com um exame completo. —
Eu sou a Fernanda. — Ela ergueu a mão, que ele não pegou. Nem
mesmo olhou. Fernanda apertou os lábios.
— Posso trocar uma palavra com você, Celeste?
Senti que ele queria trocar várias palavras comigo.
— Com licença. Eu volto já. — Me levantei e segui o Arcanjo
pelo restaurante onde as mesas estavam sendo colocadas de lado
para permitir que a multidão crescente se reunisse. As clássicas
melodias gregas foram substituídas por batidas mais fortes do clube.
Asher cruzou os braços. Sério, o homem tinha duas aparências -
Arcanjo Elysiano e James-Dean humano.
— O que você pensa que está fazendo?
— Trabalhando.
Seu olhar foi para o bar onde eu estava sentada e onde Phillip e
Fernanda agora estavam, olhando para nós. Suas bocas se
moveram. Bom, pelo menos eles estavam conversando.
— Prometi a Fernanda ajudá-la a encontrar um homem solteiro
para que ela pudesse mudar seus hábitos pecaminosos. Phillip está
solteiro. Antes de você nos interromper de forma tão rude, eu estava
tentando uni-los.
Um músculo pulsou em sua mandíbula travada. Uau. Ele estava
realmente bravo.
— Organizando um encontro para discutir sua vida universitária?
Cruzei meus braços, combinando com sua postura fechada.
— Só porque ele está interessado em mim, não significa que eu
esteja. Além do mais, como isso é da sua conta e como foi que você
ouviu essa conversa? Você estava escutando?
— Como você cumpre suas missões é muito importante para
mim. Aquele homem, o tal de Phillip... — ele quase cuspiu o nome
do meu admirador de camisa rosa — não está interessado na sua
pecadora, Celeste. Ele está interessado em você.
Há quanto tempo ele estava nos observando? Em vez de
confrontá-lo sobre seus métodos de perseguição, falei:
— Então vou encontrar outra pessoa para ela.
— E ficar com o Phillip? — Ele lançou um olhar amargo para o
pobre coitado.
— Sabe de uma coisa... talvez eu fique. Não é como se o Jase
estivesse atendendo minhas ligações. — Levantei meu queixo. — E,
Seraph, se você não está satisfeito com a maneira como realizo
minhas missões, sugiro que voe para o Elysium. Tenho certeza de
que você tem muito para mantê-lo ocupado lá.
Ele recuou, com as pupilas dilatadas. Embora sua expressão
falasse muito, sua boca não disse uma única palavra enquanto ele
abria caminho pela multidão e saía do restaurante.
28

C heguei em casa à uma da manhã, com os ouvidos


zumbindo pela música alta que estava tocando no Dinos. Eu
estava exausta e meus pés doíam por ter dançado com
Fernanda até que ela encontrou um homem para ficar. Então me
sentei no bar ao lado de Phillip e conversei sobre direito. Minha
noite terminou com uma oferta de estágio em sua empresa e um
novo contato em meu telefone. Mesmo que eu não tenha prometido
ligar, ele parecia satisfeito o suficiente por eu ter pegado seu
número.
Saí na mesma hora em que Fernanda e seu pretendente. Antes
de se afastar, ela colocou seu telefone desbloqueado em minhas
mãos.
— Como prometido.
— Não sei ao certo o que devo olhar...
Ela revirou os olhos.
— A galeria de fotos. Apagada.
Passei por páginas e mais páginas de selfies. Não havia uma
única foto do seu alvo mais recente.
— Você manteve sua palavra. — Devolvi o telefone ao sua
legítima proprietária.
— Sim. — Ela sorriu, então se virou para seu mais novo
paquera, que estava esperando ao lado de um táxi parado. Ela
começou a se afastar, mas se virou. — O cara que apareceu mais
cedo, todo zangado e tenso. Qual é o problema dele?
Ela tinha um homem a espera, mas estava perguntando sobre
outro?
— Ele tem uma filha, Fernanda.
— Eu não estava perguntando por mim. Estava curiosa sobre a
natureza do seu relacionamento com ele.
Fiz uma careta.
— Ele é meu chefe.
Ela puxou as correntes de sua bolsa Chanel.
— Ele é possessivo com todos os seus funcionários assim como
é com você?
— Possessivo? Ele não é possessivo. Ele só leva seu trabalho
extremamente a sério.
Ela sorriu.
— E eu pensei que você era astuta. — Ela me soprou um beijo.
— Me ligue se quiser jantar de novo. Foi divertido. — Ela se inclinou
de forma graciosa no táxi, e então seu pretendente se acomodou ao
lado dela e bateu a porta do carro.
Observei as lanternas traseiras desaparecerem antes de ir para
casa a pé. Eu ainda estava tentando entender suas palavras de
despedida – sobre eu ser astuta – quando entrei na sala mal
iluminada de casa e parei ao ver alguém no parapeito do terraço.
Alguém muito alto, muito alado. Refletido ao luar, Asher parecia um
daqueles anjos das capas de romances paranormais. Embora a
maioria nos retratasse de maneira incorreta, alguns estavam
surpreendentemente próximos da verdade, a ponto de eu suspeitar
que o autor tinha consciência de nossa existência.
Destranquei a porta da varanda.
— Veio me dar os parabéns ou me contar sobre meu próximo
pecador?
Asher se virou devagar, as pontas de suas asas tensas captando
a luz da lua e jogando-a no meu rosto.
— Te dar parabéns?
— Por um trabalho bem-feito. Ela apagou todo o material de
chantagem e foi para casa com um único homem.
— Phillip?
— Não. Outro homem.
— E quanto ao Phillip?
Segurei meus cotovelos, protegendo minha barriga nua do ar
cortante.
— O que tem ele, Seraph?
Ele olhou para dentro do apartamento como se esperasse
descobrir que eu não tinha voltado para o apartamento sozinha.
— É por isso que você está no meu terraço à uma da manhã?
Para verificar se eu trouxe um cara para casa?
Uma rajada de vento atingiu suas penas e cabelo, soprando-os
para os lados. Ele empurrou as mechas soltas de seus olhos duros
como pedra.
— Você não precisa de distrações.
— Com todo o respeito, Seraph, você pode gostar do celibato,
mas eu, não. Não trouxe ninguém para casa esta noite, mas não
vou ficar dois meses e meio sem sexo. — Comecei a me virar
quando decidi acrescentar: — Para sua informação, sexo faz bem à
mente e à alma.
— Você tem toda a vida para copular.
Um canto da minha boca se ergueu.
— É assim que se referiram a sexo na Áustria por volta dos anos
de 1900?
Ele fez uma careta.
— Vamos parar de perder tempo com esse assunto e nos
concentrar no que é realmente importante: suas asas, Celeste.
— Boa ideia. Por que você não volta para a associação e verifica
a minha pontuação?
— Por que voltar para lá quando a portadora das asas está bem
aqui?
— Eu não vou exibi-las, se é isso que você está insinuando.
Ele suspirou.
— Por que você tem que ser tão teimosa? São apenas asas.
Asas das quais você deve se orgulhar.
— Elas não são apenas asas. Não para mim.
— Celeste... — A frustração engrossou a entonação do meu
nome. — Vá para o seu quarto e feche a porta, me economize a
porcaria de uma viagem e as conjure.
— Não.
Ele inclinou a cabeça e me deu o arcanjo dos olhares severos.
— Por que está com esse humor irritadiço, Seraph?
— Não estamos aqui para discutir meu humor. Estamos aqui
para discutir suas asas.
— Não vou discutir minhas asas com um homem que parece
prestes a arrasar um quarteirão inteiro. Agora, ou você me diz o que
fiz de errado, já que imagino que você está com raiva de mim ou vá
se refrescar com um pequeno passeio no céu e, quando se sentir
melhor, pode voltar e podemos discutir minha missão. De
preferência, depois de dormir uma noite inteira.
Por alguns minutos, ele não respondeu, apenas desviou o olhar
para o céu escuro como se implorasse para lhe dar paciência.
Quando ele apertou a testa, tive pena. Claramente, algo
diferente de teimosia o estava incomodando.
— A Mimi costumava fazer chá de camomila com mel quando eu
estava com problemas. Você gostaria de uma xícara?
Ele voltou sua atenção para mim, escondeu as asas com magia,
o que interpretei como um sim, e me seguiu até a cozinha. Depois
de colocar a chaleira no fogo, tirei uma lata cheia de flores amarelas
secas.
Enquanto eu as colocava no filtro, Asher se sentou na ilha.
— Vou mandar alguém consertar sua bancada amanhã.
Abri um armário, peguei duas canecas e fiquei na ponta dos pés
para alcançar a prateleira com os condimentos e potes de mel.
Quando me virei para carregar tudo para a ilha, peguei Asher me
observando.
A chaleira assobiou e estalou.
Enchi o bule, sentindo a garganta apertar enquanto o aroma
familiar se erguia e perfumava o ar. Por quanto tempo a ausência de
Mimi doeria? Até eu ter certeza de que a veria novamente?
Engoli em seco.
— Ela encontrou o Pierre?
— Ela?
— Muriel. O Pierre era seu grande amor. — Virei o bule sobre as
duas canecas, acrescentei uma colher cheia de mel nas duas e
misturei, levando o doce vapor para cima. — Ela me contou sobre
ele na noite... — minha se garganta apertou novamente — em que
ela faleceu. — Empurrei a caneca para ele, olhando para a
superfície ondulante.
— Pierre morreu há mais de duas décadas. Embora ele tenha
vivido no Elysium por alguns anos, sua pontuação não foi boa o
suficiente para permanecer lá para sempre, então sua alma foi
devolvida à Terra. Para uma nova forma.
Meu coração se apertou. Se a alma de Pierre reencarnou, então
as memórias de sua vida com Mimi foram apagadas. Mesmo se ele
morresse com uma pontuação de pecador abaixo de dez desta vez,
o que lhe daria acesso ao Elysium para sempre, sua alma não
reconheceria a de Mimi.
— Posso sentir sua desaprovação.
— Decepção, não desaprovação. Ela o amava muito.
— Então, um dia, suas almas encontrarão um caminho de volta
uma para a outra.
— Cuidado, Seraph, posso rotulá-lo como romântico. — Sorri
para ele, que sorriu de volta. — Me diga, como eles encontrariam o
caminho um para o outro? Não é como se ele fosse se lembrar dela.
— Se eles fossem almas gêmeas ou almas-metades, a dele se
lembraria da dela em qualquer forma que eles se encontrassem.
— Mesmo? Achei que todas as memórias fossem removidas
antes que os Malakim devolvessem as almas à Terra.
— E são. As almas precisam começar de novo sem serem
sobrecarregadas por vidas anteriores, mas fragmentos de lugares
amados e pessoas queridas permanecem. — Suas palavras
levantaram vapor da superfície da caneca, que ele levou à boca. —
Olhe para Naya. — Seus olhos encontraram os meus.
Como a névoa ondulante de mel, minha morosidade se dissipou,
temperando o ar com a esperança recém-nascida.
— De volta ao motivo da nossa festa de chá. Por que você
quase arrancou minha cabeça mais cedo?
Ele baixou a caneca com cuidado, então curvou seus longos
dedos ao redor dela.
— Prefiro discutir reencarnações e almas gêmeas.
Eu sorri.
— Embora eu adoraria ouvir sua opinião sobre almas-metades,
não vou deixar você se safar por ter pulado no meu terraço e gritado
comigo.
— Eu não grito. — Embora seu timbre fosse profundo, seu tom
era leve.
— Verdade... você ruge.
Seus lábios formaram um sorriso que pareceu alcançar sua alma
e arrancá-la de suas botas de couro.
— E isso intimida todo mundo, menos você.
— Não me intimido com muita coisa, Seraph.
Seus olhos brilhantes encontraram os meus pelo vapor.
— Estou começando a entender isso.
— Então... por que você rugiu?
Ele se mexeu e as pernas da cadeira rangeram com seu peso.
— Se lembra de que eu disse que cometi não um, mas dois
erros há quatro anos e meio?
Meu bom humor se desvaneceu.
— Não os chame de erros.
— Não estou dizendo que o que fiz foi um erro. O erro foi como
fiz. Eu deveria ter planejado melhor. Cronometrado a chegada de
Adam à associação masculina de forma diferente. — Ele esfregou o
queixo com a barba por fazer que havia crescido durante a noite. —
O fato de que dois novos Plumas foram registrados com poucos
minutos um do outro no Elysium causou surpresa, mas como Adam
era bebê e tinha sangue de anjo, os Sete deixaram passar. — Sua
mão caiu. — Mas parece que a Seraph Claire, não. Ela continua
importunando Tobias para revelar a identidade da mãe. Ele está
protelando, tentando descobrir uma solução.
Não era de se admirar que o Arcanjo estivesse de mau humor.
— Eu nunca deveria tê-lo envolvido na minha confusão. — Ele
respirou fundo e depois soltou o ar.
Eu, por outro lado, parei de respirar. Não tinha certeza de quanto
tempo meus pulmões permaneceram vazios, mas quando os enchi
novamente, o oxigênio queimou. Se as crianças fossem
descobertas... Adam levaria a Naya... eu não poderia perdê-la de
novo.
Me aproximei de Asher e envolvi os braços em seu pescoço.
Então apoiei meu queixo no topo de sua cabeça curvada.
— Se você sentir que ela pode machucá-los, traga as crianças
para mim. Vou encontrar uma maneira de escondê-las.
Seus ombros rolaram sob meus antebraços tensos.
— Não há como se esconder dos anjos. Não há como fugir deles
também. Além disso, você realmente acha que eu deixaria você
carregar o fardo do meu crime?
Me afastei para olhar para o homem preocupado sentado na ilha
da minha cozinha.
— Se você é um criminoso, Seraph, então sou uma santa, e
como nós dois sabemos que peco como respiro, posso garantir que
você não é.
Ele grunhiu.
— Não aos olhos do meu povo.
— Não conheci Tobias, mas se ele te ajudou, então ele acredita
que o que você fez foi justo. Quanto aos outros, você não sabe o
que pensam de você. Tudo o que sabe é o que a Seraph Claire
pensa, e todos nós sabemos que ela é... — A palavra que eu estava
prestes a usar foi substituída por uma ingestão superficial de ar.
Asher seguiu a queda da minha pena.
— Vale a pena.
Ele se recostou na cadeira, fazendo o encosto curto ranger.
— Tenho certeza de que sim, mas prefiro muito mais que você
tente preservar suas asas, porque gostaria de ter uma aliada lá em
cima, Celeste. — Ele apontou para o teto.
Me sentei na cadeira ao seu lado, puxando a caneca em minha
direção.
— Então me vincule a meu próximo pecador.
— Tem certeza de que recuperou a Fernanda?
— Tenho. E para minha próxima missão, escolha um número
alto.
— Não a menos que eu encontre outro Bofinger. Pecadores com
pontuação alta são perigosos.
— Eu tenho os ossos das asas.
— Os ossos das asas podem mantê-la viva, mas não segura.
Bati em seu braço, que endureceu sob meus dedos.
— Eu tenho você para isso. — Em seguida, flexionei meu próprio
braço que inchou... um pouco. — Posso parecer inofensiva, mas
consigo causar alguns danos.
— Sem dúvida, mas o dano que você causaria não seria com
seus braços, mas com sua língua afiada.
Seu olhar pousou em meus lábios, o que fez meu corpo cansado
acordar como se o chá de ervas tivesse sido misturado com Red
Bull. Me aproximei um pouco mais dele. Como uma vespa seduzida
pelo fogo. Meu corpo aqueceu e meus membros começaram a
borbulhar como se minhas veias estivessem cheias de Dipnliks. Ele
devia estar emitindo algum tipo de feromônio angelical, porque
nunca me senti tão atraída por um homem antes.
Sério, até as profundidades turquesa de seus olhos pareciam
mais hipnotizantes, salpicadas por glitter.
— Celeste...
Meu nome soou rouco, intensificando o latejar em minhas veias.
Ele engoliu em seco e, na amplitude de um único segundo, seu
olhar enegreceu como se suas pupilas tivessem sido espetadas.
— Não faça isso.
— Não faça o quê?
— Não confunda nosso relacionamento.
Saí do meu torpor.
— O quê?
— Olhe para a sua pele.
E foi o que fiz, e horror frio substituiu o calor do desejo. Não,
não, não. De todos os homens disponíveis, por que eu tinha que
estar ardendo em chamas por um homem que realmente podia ver o
brilho da minha pele? Por que eu não poderia ter ardido em chamas
pelo Jase? Me levantei, cambaleando enquanto o Arcanjo olhava
para bancada quebrada, nojo contorcendo sua boca.
Eu não era deslumbrante e, com certeza, não era uma Verity,
mas não era repugnante.
— Isso acontece o tempo todo. Você não é nada especial,
Seraph.
Os ossos das minhas asas tensionaram e uma pena caiu.
Porcaria de detector de mentiras.
Seu olhar caiu para o chão em sincronia com a pluma roxa.
Eu me virei antes que ele pudesse massagear ainda mais meu
ego. A opinião das pessoas a meu respeito geralmente não me
importava, mas parece que de uma pessoa, sim.
Por quê? Por que ele? Eu estava passando por algum tipo de
Síndrome de Estocolmo? Não que ele tenha me sequestrado, mas
passamos uma quantidade excessiva de tempo na companhia um
do outro. Esse era provavelmente o ponto crucial de tudo. Eu não
podia esperar para que a operação salve as asas terminasse.
Bem-sucedida ou não.
Só para me livrar desse ser rígido e excessivamente masculino.
29

A cordei com uma batida. Gemi e coloquei um travesseiro na


cabeça.
— Vá embora — murmurei.
Mais duas batidas fortes.
— Acorde, Pluma.
Me sentei totalmente acordada. Passando a mão pelos cachos
emaranhados, atravessei o quarto e abri a porta. O outro lado
estava vazio. Será que sonhei com a voz feminina sarcástica?
A batida começou novamente, nós dos dedos contra vidro. Eu
me virei e puxei as cortinas.
Com mechas loiras balançando ao vento em torno de seu rosto
fino como uma faca, Ish Eliza pairava do lado de fora da minha
janela com as asas cor de lavanda bem abertas.
— Ah. Finalmente. A Pluma despertou. Me encontre na varanda.
O desejo de fechar as cortinas e me esconder debaixo do
edredom amarrotado agora que eu sabia que não havia ninguém no
apartamento era forte, mas saí e destranquei a porta de vidro.
— Ish Eliza — murmurei — a que devo o prazer de sua chamada
tão agradável para acordar?
— O Seraph Asher estava comprometido com outra coisa e me
enviou para informá-la de que você não teve sucesso em sua
missão.
O choque superou momentaneamente meu aborrecimento.
— Não tive sucesso? — Fernanda não havia apagado todas as
fotos? Ela havia feito um backup e precisava apagá-lo para que eu
recebesse minhas penas? Ou ela havia acordado esta manhã e
decidido voltar aos seus caminhos perversos?
— Você falhou.
— Estou bem ciente do significado de não ter sucesso. — Eu
queria grunhir, mas me mantive sob controle. — Por que o Seraph
não me deu a notícia?
— Talvez ele não quisesse ser sua babá hoje.
Ela poderia ser mais mesquinha?
— Qual é o seu problema comigo, Ish?
— Meu problema é que você está desperdiçando o precioso
tempo do nosso Arcanjo. Os Sete são eleitos para melhorar os
mundos, não para ajudar Plumas indignas a consertar seus erros.
Cerrei os dentes.
— Em primeiro lugar, nunca pedi a ajuda do nosso querido
Arcanjo – ele a deu de bom grado para mim – e em segundo lugar,
minha decisão de parar de ganhar penas não foi um erro. Foi uma
decisão consciente.
Ela endireitou os ombros e cruzou os braços, esticando o
uniforme cinza.
— Por mais divertido que seja esse bate-papo, tenho lugares
para ir. Se você não se importa em ajudar Fernanda a se tornar uma
pessoa melhor, então Seraph Asher sugeriu que você ajudasse
Stanley, o porteiro.
— O porteiro?
— Falei em Angélico?
Em vez de descer ao seu nível, escolhi o método mais rápido
para tirá-la da minha casa: simpatia.
— Do que exatamente o Stanley é culpado?
— Ele está sofrendo de um caso grave de cleptomania. Alguma
de suas entregas já desapareceu? — Seu olhar examinou meu
amplo apartamento. — Você provavelmente não teria notado...
— Por que eu tenho muitos bens terrenos inúteis?
Seus lábios se arquearam de forma dura.
— Eu disse isso?
— Não, mas você estava pensando alto.
— Se eu fosse você, gastaria menos tempo me perguntando o
que Ishim estão pensando e mais tempo me perguntando como
ajudar a afofar suas asinhas híbridas.
Ah... ela não fez isso.
— Dê. O. Fora. Do. Meu. Terraço. E diga ao Asher...
— Seraph Asher.
— Que se ele te enviar para transmitir suas mensagens, vou
parar de tentar ascender.
— Que pena seria.
Segurei a lateral da porta, me imaginando empurrando suas
asas cintilantes dentro do espaço e batendo a porta até que eu
tivesse machucado as penas. Uma pena caiu no chão.
— Sua mente é um lugar vil, Pluma. Sombria como Abaddon.
Dei um sorriso e comecei a fechar a porta, apertando a estrutura
de metal com tanta força que meus anéis sulcaram minha pele.
— Ah, antes que eu me esqueça, você terá que passar na
associação para se vincular ao seu próximo pecador e usar holo-
classificador por conta própria. Você se lembra de como eles
funcionam, certo?
Fechei a porta na cara dela e liguei para Fernanda.
Sua voz sonolenta soou pelo receptor depois de alguns toques.
— Celeste? Por que você está me ligando tão cedo?
— Você não apagou as fotos — retruquei.
Houve um breve silêncio, depois o farfalhar dos lençóis.
— O quê?
— Suas fotos de chantagem. Você disse que as apagou, mas
não o fez.
— Apaguei, sim. — Seu tom se tornou tão irritado quanto o meu.
Fechei os olhos e sua pontuação de pecadora piscou.
— Mas agora, eu me arrependo.
Meus olhos se abriram.
— Lamento ter seguido o conselho de alguém assim... instável.
O remorso me atingiu. Eu não deveria ter descontado minha
agressividade nela. Não era justo que eu esperasse que ela
mudasse durante a noite. Nem todo mundo era um Bofinger.
Passei a mão pelo cabelo despenteado pelo travesseiro.
— Fernanda, sinto muito.
— Se fôssemos amigas, eu teria me importado. Eu podia até ter
perguntado por que você está sendo tão ruim sobre isso, mas não
me importo. Minha oferta para jantar? Esqueça.
Antes que eu pudesse tentar controlar os danos, ela desligou a
chamada. Afundei no sofá, apoiei o rosto nas mãos e lamentei
minha confiança exagerada por me permitir sonhar que a estrada
para Elysium seria sem buracos.

F para a associação algumas horas depois, a pé. Achei que ar


fresco e exercícios ajudariam a extravasar meu estresse, mas na
verdade a caminhada me deu tempo para refletir sobre como lidei
com Fernanda.
Mal. De forma infantil. Grosseira.
Quase me virei e fui para casa. Quis mudar de ideia, mas isso
me faria desistir, e eu não era do tipo que desistia. Claro, minha
autoconfiança havia sofrido um golpe, mas eu a reconstruiria. Eu
ainda tinha tempo.
Quando entrei no átrio, meus passos vacilaram.
— Que coincidência feliz. — Eliza tirou um pedaço de papel
enrolado de seu cinto prateado trançado e o estendeu na minha
direção. — Eu estava na associação de Xangai com Seraph Asher,
e ele me pediu para entregar esta lista de pecadores. Ele disse que
ela deveria durar duas semanas. Todas são missões fáceis. Como
Bofinger.
Como o Bofinger? Se eu me lembrava bem, ela achava que ele
não mudaria tão rápido quanto mudou.
— Não deprecie a conquista da minha Pluma. — As asas
vermelhas de Ophan Mira estavam apertadas ao longo de sua
espinha, mal aparecendo por trás de seus ombros ainda mais
rígidos. — Nenhum pecador é simples ou inconsequente. Os
humanos são complexos, até mesmo os que tem pontuações mais
baixas.
Pisquei para Mira. Eu não conseguia me lembrar de uma única
instância em que minha antiga professora tivesse me defendido, e
ainda assim, aqui estava ela, me defendendo.
A Verity estendeu suas asas. Quando os anjos machos faziam
isso, era visto como um cortejo. Quando mulheres da nossa espécie
faziam isso, era uma demonstração de domínio.
— Você se esquece de que já fui uma Pluma, Ophan.
— Não me esqueço de nada, Eliza.
— Ish Eliza.
— Me perdoe, Ish. Na minha época, não precedíamos nomes
por títulos. Éramos anjos primeiro, arrogantes depois.
Uau. Uau. E uau.
A antipatia saiu da plumagem cintilante da Ishim, potente como o
cheiro de madressilva à deriva no átrio.
— Vou conversar com os Sete sobre a sua insolência.
Mira não disse nada.
— Assim que terminar, Pluma — Eliza enfiou a porcaria da lista
em meu peito —, informe a Ophan Mira, e eu voltarei com uma nova
lista.
— Eu te disse esta manhã que se o Seraph Asher mandasse
você para falar comigo de novo, eu ia parar. — Rasguei a folha de
pergaminho.
Os olhos de Ish Eliza tinham um brilho triunfante, como se ela
tivesse acabado de ganhar uma competição. Não achava que o
Arcanjo gostasse tanto de Eliza, mas desde que ele decidiu agir
como um querubim petulante, se afastando porque ousei arder em
chamas por ele, imaginei que ele não gostasse muito de mim
também.
— Que pena. — Sorrindo, Eliza se afastou, fazendo suas penas
balançarem no ritmo de seu traseiro.
Os olhos severos de Mira estavam fixos nas tiras espalhadas
pelo chão do átrio.
— Por que você destruiu a lista do Arcanjo?
Em vez de responder, perguntei:
— Será que a Ishim pode realmente te criar problemas por
defender os híbridos, Ophan?
— Eu estava defendendo minhas Plumas, híbridas e verities. O
brilho das asas nunca significou nada para mim. Nem no passado,
nem agora. Tudo o que posso esperar é que, um dia, isso pare de
fazer diferença.
Em silêncio, observamos uma à outra,
Eu não tinha certeza do que ela viu quando olhou para mim, mas
o que vi nela foi uma apoiadora em vez de detratora.
— Para que isso acontecesse, um híbrido precisaria se tornar
Arcanjo.
— Eu concordo, Celeste, e acredito que está na hora.
Quem era essa mulher e o que ela fez com minha professora
rabugenta e obediente às regras?
Ela finalmente soltou um suspiro ofegante que afrouxou a tensão
em seu corpo.
— Pelo menos, temos um campeão: Seraph Asher.
Um pardal voou sob nossas cabeças, derramando sua ária em
nossos ouvidos.
Segui sua ascensão em direção ao falso céu azul-celeste.
— O que te faz gostar tanto dele?
Algo passou pelo rosto de Mira, algo que fez minha pele arrepiar.
Ela sabia.
Ela sabia sobre Naya...
Ela reconheceu a alma de Leigh.
Mira quebrou o silêncio com uma pergunta.
— O que te torna tão intolerante a ele?
Mesmo que eu desejasse que ela deixasse isso passar, senti
que devia por ter me defendido.
— Achei que ele fosse meu amigo, mas achei errado.
Ela gesticulou para a lista retalhada ao redor das minhas botas.
— O papel aos seus pés conta uma história diferente da que
você conta a si mesma.
— Ele não está fazendo isso por mim.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Por quem ele está fazendo então?
— Ele está fazendo isso pela mulher cuja alma ele coletou há
algumas semanas. A mulher que tentei salvar do câncer. — Dizer
isso em voz alta fez meu ego latejar como um dedo do pé
machucado.
Argh. Por que o motivo de sua ajuda era importante? Por que
sua reação ao me ver arder em chamar importava? Eu estava
começando a achar que sua ausência poderia ser uma coisa boa.
Definitivamente, necessária.
— Você perguntou por que eu gostava tanto dele. — Ela
gesticulou para a lista. — Acho seu desejo de auxiliar almas
louvável.
Meus batimentos cardíacos ficaram mais fortes. Ela estava
falando sobre a minha ou a de Naya? E se ela estava falando sobre
Naya, isso significava que ela concordava com sua violação da lei?
— Algumas pessoas apontam que o que ele fez em Abaddon foi
um acaso com um final agradável, mas o presente confirma o que
eu sempre pensei... que não foi um acaso, mas um ato de grande
heroísmo.
— O menino de ouro de Elysium — pensei em voz alta.
Ela observou minha expressão como se tentasse descobrir se
falei o apelido em zombaria.
— Ele é mais homem do que menino, mas possui uma alma de
ouro.
— O que é que ele fez em Abaddon?
— Salvou Elysium de ser contaminado pela magia suja de
Abaddon.
— Como?
— Por que você não pergunta a ele?
— Eu gostaria, mas você não ouviu a parte em que ele está me
evitando? — Para alguém tão heroico, o menino-homem de ouro era
excepcionalmente covarde. Ele não apenas quebrou sua promessa
de me ajudar, mas também o fez por meio de uma Ishim
depenadora de asas...
— Ouvi, o que me faz pensar no que você fez.
— Ah, você me conhece. Algo muito ruim. — Esfreguei a lateral
do dedo indicador, sentindo a ponta do polegar bater em dois dos
meus anéis.
— Eu te conheço, Celeste, e apesar de todo o seu desafio e
sarcasmo, você não tem um osso ruim no corpo.
Meus dedos trêmulos se firmaram em seu elogio.
— Ele encontrará o caminho de volta para você. De alguma
forma, ele sempre encontra. Da mesma forma que você encontrou o
caminho de volta... para nós.
Naya. Ela se referia a Naya.
— Tenho uma aula para dar. — Ela se virou. — Por favor, cate a
sua bagunça antes de ir.
— Você não poderia simplesmente incinerá-lo?
— Não.
Suspirando, me agachei e peguei as tiras de papel, em seguida,
coloquei-as no bolso.
— Posso pegar a Naya emprestada?
Ela olhou por cima do ombro para mim.
— Minha recusa te impediria?
— Não.
Suas bochechas suavizaram com um sorriso que mal curvou
seus lábios.
— Ela está na aula de artes, se não me engano, tentando
aprender a pintar penas roxas. Imagina isso? Roxas...
Eu sorri. Não porque Naya parecia estar pensando em mim –
embora isso me aquecesse por dentro – mas porque Asher tinha
outro aliado. Meu primeiro instinto foi mandar uma mensagem para
ele, mas eu não tinha o seu número.
Voltei à minha tarefa de pegar os papéis, vendo o nome de
Stanley em uma das tiras. Tentei esquecer, mas é claro que era o
nome que acabei procurando no holo-classificador depois de meia
hora de navegação infrutífera.
Reclamei que Asher era infantil, mas destruir a lista não fez de
mim ainda mais?
30

D epois que saí da Sala de Classificação, encontrei Naya


parada em frente a um cavalete, passando tinta roxa em
uma tela. Seu cabelo loiro balançou e cintilou enquanto
ela inspecionava sua pintura, adicionando mais azul ao roxo,
passando mais traços curvos.
Eu a observei um pouco antes de entrar.
— Bela pintura.
Ela se virou, seus olhos castanhos se arregalaram e ela passou
os braços em volta de mim.
— Celeste!
— Oi, Pluminha.
— Pluminha?
Gelo. Meu sangue gelou. Por que eu usei o apelido que ouvi
Jarod chamar Leigh?
— Esse nome machuca meu coração. — Naya se desvencilhou
dos meus braços.
— Desculpe, eu... não queria machucar seu coração.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Por que dói?
Eu queria fingir que não sabia, mas seria uma mentira, e eu
estava tentando preservar as penas. Além disso, não queria mentir
para ela. Alisei meu rabo de cavalo sobre o logotipo dos Eagles na
minha camiseta, tentando pensar em algo que fizesse sentido.
— O que está escrito na sua camiseta? — Seus dedos
manchados de tinta puxaram a gola da minha jaqueta,
Empalideci, porque a camiseta já tinha pertencido a Leigh. Foi
um presente de um de seus pecadores. Não salvei muito do seu
guarda-roupa, nossos corpos eram bem diferentes, mas aquela
blusa tinha viajado comigo de Paris a Nova York. Naya a
reconheceu como tinha reconhecido o apelido?
Limpei a garganta.
— The Eagles. — Levei seu dedo indicador até o E, então
deslizei pelas letras restantes, pronunciando cada uma. — É uma
banda de rock.
— É a sua favorita?
— Não.
— Então por que você está com a camisa dela?
— Porque... porque pertencia a minha melhor amiga. — Meu
olhar percorreu o rosto de Naya, que não se parecia em nada com o
de Leigh e ainda abarcava toda a sua doçura.
— E ela não queria mais?
Ela não se lembra disso...
— Só peguei emprestado até que caiba nela novamente. —
Antes que ela pudesse me perguntar por que não cabia mais na
minha amiga, apontei para a tela. — Então, me diga por que você
está pintando uma pena roxa.
Ela se virou para o cavalete, fazendo as mechas loiras
balançarem.
— Era uma surpresa. Para você.
Afastei uma mecha enrolada de sua bochecha.
— Para mim? Isso é tão... obrigada, Naya — sussurrei.
— Você pode me chamar de Pluminha se quiser.
Minha mão parou antes de se afastar da sua pele aveludada.
— Eu... ah... — Se Asher me ouvisse usar esse apelido, ele me
queimaria com seu fogo de anjo.
A menos que ele não soubesse como Jarod chamava Leigh...
Ela deu de ombros.
— Você pode me chamar do que quiser. Exceto Sanguessuga.
Hesitei.
— Por que eu te chamaria de Sanguessuga?
— Não sei por que disse isso. — Ela mordiscou o lábio inferior.
Uma parte de mim suspeitava que alguém a tinha chamado
assim em sua vida passada. Provavelmente Tristan. Ele era a
encarnação do mal. Se Jarod já não o tivesse matado, eu teria tido
um grande prazer em livrar o mundo de sua alma.
— Você se importaria se eu pintasse ao seu lado?
Ela soltou o lábio.
— Quero que você fique.
Sorrindo, arrastei um cavalete em minha direção, ajustei a altura
e perguntei se poderia pegar emprestado um pouco da sua tinta. Ela
me entregou alguns tubos amassados e um pincel.
Quando ela voltou a trabalhar na pena roxa, observei seu perfil e
o tracei. Eu não desenhava nada há anos, mas conforme movia
meu pulso e guiava o pincel pela tela, me lembrei de como eu
gostava de criar arte.
— Sou eu? — ela perguntou depois de um longo tempo.
Concordei.
— Você deixou meu cabelo tão bonito.
— Eu só pintei o que estava aí.
— E olhe para o meu olho. É tão grande.
— Neste momento, eles estão enormes.
Ela olhou para sua semelhança.
— Estou feliz que meu cabelo não seja laranja.
Minha pulsação disparou e meu olhar se voltou para Ophan
Pippa, que estava explicando a composição para outra de suas
jovens pupilas.
Num volume baixo, falei.
— Cabelo laranja também é lindo. Toda cor de cabelo é linda.
— Mas Apa tem cabelos dourados como os meus. E ele é o
homem mais bonito de todos os mundos.
Eu sorri.
— E você é a garota mais bonita que eu conheço.
— Não. Você que é.
Meu batimento cardíaco diminuiu quando me lembrei de uma vez
em que Leigh me disse isso. Naquela época, eu era estranha,
sardenta e tinha covinhas e, como Naya, toda olhos. Não que eu
tivesse superado meus olhos. Eu simplesmente cresci. Quanto às
sardas e covinhas, elas ainda estavam lá.
Adicionei uma pincelada cor de pêssego ao longo do pescoço de
sua imagem.
— Você vai colocar esta pintura no seu quarto?
— Quero que você fique com ela. Assim você não me
esquecerá.
— Te esquecer? Ah, querida, de jeito nenhum eu poderia te
esquecer. — Guardei meu pincel e bati dois dedos no meu peito. —
Eu e você somos irmãs de alma.
— Irmãs de alma. — Seus olhos brilharam. — Você acha que
nossas almas são irmãs?
— Sei que são. — Eu me agachei até a altura dela e dei um beijo
em sua bochecha. — Tenho que ir agora, Naya. Seu pai me deixou
uma longa lista de pessoas para ajudar. — Em algum momento
durante minha sessão de arte meditativa, decidi crescer e colar a
lista quando chegasse em casa.
— Mas você vai voltar?
— Vou.
— Tudo bem então. Pode ir.
Sorri enquanto me levantava.
— Sua pena! — ela gritou.
— Que tal você me dar amanhã quando estiver seca?
— Certo.
Ao sair da sala de artes, observei Naya olhar seu retrato. Eu
provavelmente deveria ter olhado para onde estava indo. Teria me
salvado de uma colisão frontal no que parecia ser uma parede de
gesso, mas era o torso de um Arcanjo.
— Você tem tinta na bochecha.
Levantei a mão até o rosto e esfreguei.
— Permita-me. — Asher levou uma mão quente sobre a minha
pele.
O calor começou na parte inferior do meu rosto e, em seguida,
se espalhou para lugares que ele não estava tocando.
Ele levou a palma da mão para a gola manchada da minha
jaqueta.
— Não desista.
— Não vou.
— A Ish Eliza me informou que você rasgou minha lista.
— Rasguei.
Ele franziu a testa.
— Por quê?
Inclinei a cabeça para o lado.
— Porque eu estava com raiva de você.
Ele fechou os dedos, extinguindo as chamas.
— Sinto muito por reagir daquele jeito.
— Não sinta. Não acho que passarmos tempo juntos é sábio. —
Eu o evitei. — Mas, por favor, deixe sua próxima lista com Ophan
Mira em vez de sua classificadora favorita.
Saí da associação e uma parte boba de mim esperava que ele
me seguisse, nem que fosse para gritar que Eliza não era sua
favorita em nada, mas ele não foi atrás de mim, porque era Naya
quem ele tinha vindo ver.
Não a mim.
31

N o final daquela semana, eu tinha passado por mais da


metade da lista de Asher, ganhando um total de cento e
vinte e duas penas, elevando a densidade das minhas
asas a quinhentas e duas. Eu mal dormi, mal fiz pausas para me
alimentar. Mantive o cronograma de missões apertado, saltando de
pecador em pecador assim que o holo-classificador exibia uma
quantidade maior de penas em meu perfil. Não era um ritmo que eu
pudesse acompanhar, então decidi que a próxima pessoa que eu
ajudaria teria uma pontuação alta.
Mais alta do que qualquer pessoa na lista de Asher. Pensei
naquela mulher Triplo que eu tinha visto quando Asher e eu
tínhamos ido para a sala de classificação juntos, mas então me
lembrei de sua reação a ela e, embora curiosa, decidi que não
queria lidar com um Triplo. Pelo menos, não depois da semana
exaustiva que tive.
Também decidi que merecia uma noite de folga. E talvez até um
dia inteiro. Afinal, era fim de semana. Até mesmo os anjos tinham
permissão para descansar.
Como Jase não me ligou ou me mandou mensagem desde que
saiu da minha casa no sábado passado, decidi que iria encontrá-lo
no The Trap. Sentia falta do meu amigo, pecador e tudo mais.
Muitas vezes, fiquei tentada a procurar seu nome para descobrir seu
segredo obscuro, mas a cada vez, colocava as mãos no colo e
resistia.
Enquanto eu fechava o zíper da calça black jeans artisticamente
rasgada, sua pontuação piscava em meus olhos delineados com
kohl – 41.
E então se materializou novamente enquanto eu esperava o
Uber ao lado de Stanley.
— Engraçado. Tenho recebido muitas encomendas ultimamente.
Você não saberia quem está enviando, srta. Moreau?
Mantive os olhos no fluxo constante do tráfego de sábado à
noite.
— Todo mundo merece receber um pouco de carinho por
correspondência.
Pedi algumas coisas em seu nome e as enviei para o Plaza. Eu
não tinha certeza do quanto seria profissional ele receber pacotes
em seu local de trabalho, mas eu realmente não me importava. O
que me importava era que ele visse seu nome em uma etiqueta de
remessa, que as caixas que ele levasse para casa pertencessem a
ele.
O pecado de Stanley era... foi... cleptomania. Quase todas as
semanas, ele tirava um pacote da sala de correspondência. Um
pacote que ele nem abria, simplesmente guardava no porão.
Eventualmente, ele as devolvia aos seus legítimos donos, o que lhe
rendia suspiros de alívio, sorrisos e às vezes até gorjetas.
A gratidão era o que alimentava seu roubo. Ele cresceu em uma
casa onde os pais jamais expressaram o menor afeto por ele ou um
pelo outro. Conforme ele descreveu sua infância, contei minhas
bênçãos por ter tido Leigh e depois Mimi. Apesar de toda a dor que
o amor trouxe, a ausência dele realmente ferrava as pessoas.
— A Muriel sempre disse que você era um anjo. — Seus olhos
eram tão escuros quanto o sedan azul escuro encostando no meio-
fio.
Ouvir o nome dela e o que ela pensava de mim era como uma
pedra no coração, provocando uma dor ardente e aguda.
Fisicamente, eu era um anjo. Mas em todos os outros aspectos, me
afastei muito da minha raça.
Sua garganta se moveu quando ele abriu a porta do carro para
mim.
— Seus pacotes. Eles são a coisa mais gentil que alguém já fez
por mim.
Toquei a manga do seu paletó, apertei o braço por baixo e me
sentei no banco de trás.
Enquanto o carro seguia para o leste, eu disse:
— Na verdade, você pode pegar a Quinta? Preciso ir ao centro
primeiro. — Acrescentei o endereço da associação como um ponto
de parada no aplicativo, depois me recostei e me convenci de que o
que estava prestes a fazer era virtuoso.
Tive que me dar uma longa conversa estimulante antes, apoiada
em um banquinho na Sala de Classificação, para conseguir procurar
o nome de Jase no painel de vidro do meu holo-classificador.
Seu rosto apareceu em 3D, exatamente do jeito que eu sabia
que ele era, com a barba escura, o cabelo penteado para trás e
olhos castanhos suaves. Esfreguei as mãos úmidas sobre a calça
jeans enquanto lia e relia seu único crime: roubo de identidade. Eu
esperava coisas horríveis. Embora roubo de identidade estivesse
longe de ser bom, ele não havia agredido ninguém.
Por curiosidade, procurei o nome de seu irmão. Diferentemente
de Jase, sua pontuação era 63. Como Jase, seu crime era roubo de
identidade. Mas esse não era o único. Sua ficha criminal era longa e
incluía furto, jogo ilegal e incêndio criminoso.
Nunca pensei que Leon fosse santo, mas também não o
imaginei tão vilão. Ele não tinha medo de voltar para a prisão? Jase
não tinha medo de ir para a cadeia? Procurei o nome do meu amigo
novamente, desejando não ter bisbilhotado. Queria que Asher nunca
tivesse me contado sobre sua pontuação, que as coisas pudessem
voltar a ser como eram. Mas isso era mesmo uma possibilidade?
Tanta coisa mudou em minha vida nas últimas semanas.
Contemplei o rosto de Jase por um longo tempo, debatendo se
deveria me vincular a ele. Eticamente, parecia errado, mas
sentimentalmente, era certo. Se eu podia ajudar estranhos,
certamente poderia ajudar meu melhor amigo. Além disso, o próprio
Asher sugeriu que eu o recuperasse.
Antes que pudesse me acovardar, pressionei a palma da mão no
painel de vidro e meu nome apareceu sobre o holograma. Então
desliguei o sistema e me levantei.
No caminho para fora da associação, ouvi a doce voz de Naya
vindo do refeitório. Mesmo que minha carona ainda estivesse
esperando no meio-fio, decidi que poderia demorar mais um minuto.
Por mais tempo que eu passasse com Naya, nunca parecia o
suficiente.
Quando cheguei à entrada do refeitório, parei. Ela não estava
sozinha.
Meus olhos encontraram os de Asher por cima de seus cachos
dourados que ele estava alisando. Sua mão era tão grande quanto a
cabeça inteira. Ela tinha um braço enrolado em no pescoço dele e
um sorriso nos lábios por qualquer história que ele estava contando.
Outras crianças se reuniram para ouvir, todas extasiadas.
Meu ciúme do passado voltou.
Não é uma competição. E ainda assim, eu estava com ciúmes da
história que eles compartilhavam. Com ciúmes do amor que eles
tinham.
Antes que ela pudesse me ver, me virei e saí.

E , a viagem de quarenta e
cinco minutos até o Harlem me ajudou a relaxar. Quando cheguei ao
The Trap, Leon estava do lado de fora dando longas tragadas em
um cigarro na companhia de duas garotas em idade universitária.
— Oi — falei, me aproximando dele.
Seus olhos se moveram para mim, desprovidos de seu calor
habitual. Em vez disso, estavam tingidos de cautela.
— O Jase está trabalhando hoje à noite?
Ele soprou uma nuvem de fumaça clara nos rostos das garotas,
antes de abrir a pesada porta de metal e conduzi-las para seu covil
subterrâneo.
— Está.
— Ele tem evitado minhas ligações.
Lentamente, ele acenou com a cabeça.
— Achei mesmo que ele estava de mau humor por sua causa. —
Ele deu uma tragada no cigarro, soprou a fumaça para o lado, pois
conhecia minha aversão por nicotina. — O que aconteceu?
— Nós brigamos. Mais ou menos.
As sobrancelhas de Leon franziram.
— Ele queria que você se comprometesse ou algo assim, e você
não quis?
Fiz uma careta.
— Não. Por que você pensaria isso?
— Meu irmão está caidinho por você, Celeste.
Meus cílios se levantaram tanto que roçaram minha sobrancelha.
— Eu não estava... ciente.
Ele olhou para mim com uma sobrancelha grossa levantada
como se não acreditasse muito.
— Ele é meu melhor amigo, Leon, e sim, eu o amo, mas não
estou aberta a um relacionamento. Nunca o levei a pensar o
contrário.
Ele suspirou e tossiu.
— Talvez devesse dizer isso a ele.
— Eu vou. Esta noite.
Ele assentiu, tossiu mais um pouco e jogou a ponta acesa do
cigarro na rua.
— O lugar está lotado hoje. — Seu número e lista de pecados
me veio a cabeça, se sobrepondo a seu rosto ferido pela vida. —
Bom para os negócios.
Me perguntei a qual negócio ele estava se referindo, o negócio
do bar ou o paralelo dos irmãos?
Quando sua tosse seca começou novamente, ele bateu contra o
peito.
— Quer que eu pegue um copo d'água para você?
Ele sorriu.
— Não. Vai passar. Além disso, tenho uma cerveja. — Ele
ergueu a garrafa e tomou um gole.
Não insisti que a água provavelmente seria melhor quando
passei por ele e entrei no espaço barulhento.
Ele não estava brincando quando disse que estava lotado. Eu
não tinha certeza se já tinha visto The Trap tão cheio. Na verdade,
tinha. Após exames intermediários e finais. Você mal conseguia se
mover nessas noites.
Uma música do Lynyrd Skynyrd soava sobre as conversas,
criando uma cacofonia que fez meu cérebro cansado latejar, mas
então todos os sons desapareceram quando vi Jase e ele me viu. O
sangue correu em volta dos meus tímpanos quando o que eu estava
prestes a tentar fazer começou.
Quase voltei, mas a dor que passou por seu rosto incitou meus
pés. Enquanto eu abria caminho em direção ao bar, ele se virou
para um cliente sedento, depois outro e outro, me evitando.
— Soube que você está mal-humorado — falei quando ele
estava dentro do alcance auditivo.
A linha de seus ombros se acentuou, embora ele tenha ficado de
costas para mim
— Fale comigo, Jase.
Ele finalmente se virou, jogando o pano de prato que estava
usando para secar as mãos por cima do ombro.
— Não tenho nada a dizer.
— Ah, tenho certeza de que você tem muito a dizer.
Suas pupilas pulsaram com uma mistura de aborrecimento, raiva
e dor.
— Senti sua falta.
Ele ficou em silêncio, o que foi esmagador, porque Jase não era
do tipo silencioso. Esse era mais o modus operandi de Asher.
— Caso você não tenha percebido pelas milhares de mensagens
que enviei. E várias mensagens na caixa postal.
Depois de um breve silêncio, ele perguntou:
— Onde está o Abercrombie?
Dei de ombros.
— Provavelmente com a filha dele.
Ele piscou.
— Ele tem uma filha?
— Sim.
— E uma esposa?
— Não. Apenas um fã-clube de mulheres brilhantes.
— Brilhantes?
Mordi o lábio com aquele deslize. Não foi o meu pior.
— Você sabe... o tipo enfeitado. Muitas joias.
Seu olhar caiu para minhas mãos e minha variedade de anéis.
— Jase, ele e eu não estamos juntos. Nunca estivemos e nunca
estaremos. Mas não estou aqui para falar sobre ele. Estou aqui para
falar sobre você. Sobre nós.
Seus olhos castanhos vacilaram entre gentis e duros.
— Não estou com vontade de falar sobre mim e, claramente, não
existe nós.
— Tem certeza de que está claro?
— Agora está.
— Jase...
Ele levantou a mão.
— Por favor, Cee. Está tudo bem. — Seu rosto sério me disse
que não estava, mas pelo menos ele usou meu apelido.
Alguém tentou chamar sua atenção. Ele olhou em volta,
provavelmente para ver se Alicia poderia atender ao cliente, mas ela
estava entregando um prato de asas de frango em uma das
cabines, seu corpo se contorcendo como o de uma ginasta
enquanto ela passava pela multidão.
— Quer ajuda? Eu faço uma vodca com gelo mediana e sou
bastante profissional em destampar cervejas, se é que posso dizer
isso.
Ele sorriu. Desta vez, de verdade.
— Não. Está tudo sob controle. — Ele começou a se virar, mas
parou.
— Não vou a lugar nenhum. — Apoiei os cotovelos no bar e
fiquei confortável. — Se você não se importar que eu ocupe este
banco até a hora de fechar, claro.
— Não me importo.
— Que bom.
— Que bom — ele repetiu antes de ir para o cara sedento com o
braço levantado.
Embora ele tivesse passado as próximas horas recebendo
pedidos, ligando para clientes, embolsando gorjetas e esfregando a
parte superior do balcão, seu olhar se voltava para mim a cada
poucos minutos. Em algum momento, ele colocou um coquetel alto
e úmido na minha frente. Eu não tinha tocado em álcool por uma
semana, mas sentindo que era uma oferta de paz, aceitei a bebida e
tomei um gole hesitante, e depois outro, me acomodando para olhar
a multidão enquanto ele trabalhava. De vez em quando, outra coisa
aparecia na minha frente: uma pequena cesta de abobrinhas fritas,
um copo de água, uma bola de sorvete de chocolate caseiro, uma
bebida fresca, embora eu não tivesse acabado com a primeira.
Quando a multidão finalmente diminuiu, Jase se aproximou do
meu lado do bar.
— Viu algum canalha esta noite, Cee?
Vi algumas mãos errantes, mas nada que os receptores
daqueles toques indesejados não pudessem lidar. Na verdade, eu
estava muito perdida em meus pensamentos para prestar atenção
real ao salão. Minha cabeça estava no Jase, em como eu deveria
proceder para recuperá-lo e se essa era uma ideia terrível ou não.
Eu finalmente decidi que mesmo que isso me custasse a
amizade, fazê-lo trilhar um caminho melhor e, assim, salvá-lo do
destino de seu irmão, valeria o preço.
Mudando de posição no banco, eu disse:
— Nada que necessitasse de intervenção.
Ele pegou a tigela que esvaziei e a colocou em uma bandeja
cheia de pratos sujos, que carregou para a cozinha. Enquanto ele
saía, um pensamento me ocorreu. Ou melhor, um rolo de memórias.
Eu entregando carteiras de motorista e Jase tirando fotos delas.
Eu, sem saber, ajudei o seu negócio de roubo de identidade?
Ah, Jase... por favor me diga que você não me usou.
A porta se abriu, e ele caminhou para fora, seu andar
descontraído como sua personalidade. Como seu sorriso. Ele era
tão inteligente, tão trabalhador que eu não conseguia imaginar que
ele tivesse entrado nisso por vontade própria. Leon deveria tê-lo
arrastado além da linha do certo e do errado.
Girei meu canudo devagar, esperando que qualquer bem que eu
fizesse, Leon não desfizesse depois que eu tivesse partido.
Se ao menos os novos anjos não tivessem uma proibição de
viajar por um século...
Havia tantas leis que precisavam ser alteradas. Ophan Mira tinha
tanta confiança em Asher, mas ele era apenas um. Um homem
poderia mudar um mundo inteiro?
E por que eu estava pensando no Arcanjo novamente?
Ah, certo... porque eu tinha uma queda ridícula e não
correspondida pelo homem.
Engoli minha bebida, afastei o loiro dos meus pensamentos e me
concentrei no homem de cabelos escuros diante de mim.
32

C hegamos em casa tarde e, embora uma parte de mim


estivesse tentada a atrasar meu confronto, senti que não
seria capaz de dormir até que conversássemos.
Tirei a jaqueta e a pendurei em um dos ganchos perto da porta,
as asas prateadas costuradas nas costas se amassando em vincos
cintilantes. Mordiscando o lábio, pensei em como começar. Me virei,
decidindo apenas cortar pela raiz, mas me encontrei apoiada na
parede com uma boca quente cobrindo a minha, abafando as
palavras que eu estava prestes a dizer.
Peguei uma ponta da camiseta preta de Jase e a segurei.
— Jase, vá mais devagar. Preciso...
— Já entendi, Cee. Juro. Sem amarras. — Sua boca se inclinou
de volta para a minha.
Virei o pescoço e seus lábios encontraram a minha bochecha.
— Preciso falar com você antes de fazermos qualquer coisa.
Meu corpo normalmente acelerava com o toque da língua de
Jase, mas meus nervos transformaram a luxúria em pavor. Ele não
ia querer me beijar depois de nossa conversa. Ou me abraçar.
Ele franziu o cenho, com os olhos escurecidos.
— Você não está grávida, está?
— Grávida? Não. — De todas as conclusões a serem tiradas...
Ele esfregou a mão na testa.
— Graças a Deus.
Deus não tinha nada a ver com isso. Humanos, com seus
anticoncepcionais, sim.
— Ao contrário do Abercrombie, não tenho desejo de ser pai.
Não respondi que a paternidade também não era o desejo de
Asher. Pelo menos, não quando ele soprou a vida de volta ao corpo
infantil de Naya.
Jase tirou a carteira do bolso de trás da calça jeans e a jogou no
pequeno balcão da cozinha.
— Então, o que você quer discutir?
— Seu negócio paralelo.
Seus olhos ficaram inexpressivos.
— Meu negócio paralelo?
— Roubo de identidade.
Ele bufou.
— Roubo de identidade? — Outra bufada. — Foi isso o que o
Abercrombie te disse?
Fiquei em silêncio, sem querer mentir. Não era como se eu
pudesse explicar os holo-classificadores para Jase.
— O fato de você realmente acreditar nisso me faz questionar
nossa amizade. O cara obviamente está no meu pé.
Novamente, me esquivei de falar sobre minha fonte.
— As identidades que eu te dei, aquelas das quais você tirou
fotos, você as usou? Você me usou?
Ele as mãos pelo cabelo.
— Não se pode roubar a identidade de alguém só com um
documento. É preciso dos números do seguro social. Você se
lembra de ter me passado algum desses, Celeste? — ele grunhiu
cada palavra.
— Leon colocou você nisso?
— Não se atreva a trazê-lo para esse assunto.
— Jase, eu não sou uma policial disfarçada ou delatora. Sou sua
amiga.
Ele grunhiu.
— Se você fosse minha amiga, acreditaria em mim e não no seu
namorado bonitão.
Coloquei as mãos nos quadris.
— Novidade: sei que isso pode ser uma surpresa, mas posso
pensar por mim mesma. Tudo que sei, descobri por conta própria. A
única coisa que ele me disse foi que você estava envolvido em algo
que não deveria. Jase, você é uma pena de coruja de tão
inteligente. Você está na Columbia. Com uma bolsa de estudos! Por
favor, não jogue isso fora por dinheiro rápido. Por favor. — Respirei
fundo. — Se você precisa de dinheiro, me deixe te ajudar, mas
não...
— Não preciso de caridade. E não vou ficar aqui para discutir
coisas que não te dizem respeito. — Ele pegou a carteira e as
chaves, as enfiando de volta no bolso.
— Estou aqui porque me importo com você.
— Não é suficiente.
— O quê?
Ele caminhou até mim e me fez dar um passo para trás. Se ele
fosse qualquer outro homem, eu poderia sentir medo, mas Jase não
me machucaria fisicamente.
Certo?
— Você não se importa o suficiente comigo se está me acusando
disso.
Saliva atingiu a ponta do meu nariz. Estiquei os ombros e
mantive minha posição.
— Estou falando desse assunto porque quero ajudá-lo.
— Não quero sua ajuda, porra!
Sua indignação não era incomum. Ninguém gostava de enfrentar
seus demônios. Mas ele era uma pessoa tão tranquila que sua
reação acalorada me fez ofegar. O que eu estava esperando? Que
ele levasse isso na esportiva? Que nos sentaríamos em seu sofá
fedorento com bolinhos e chá e dissecaríamos sua consciência?
— Sei que é difícil encarar suas ações, especialmente as
questionáveis, mas se você não fizer isso, vai acabar na prisão
como o seu irmão, e não vou ficar aqui e assistir você jogar todo o
seu futuro fora por causa de um crime que você não precisa
cometer.
— Então fique em outro lugar! — Ele recuou. — Tive uma ideia.
Volte para sua linda cobertura, com suas coisinhas lindas e seu
namorado lindo e loiro. Porque você não é mais bem-vinda aqui.
Semicerrei os olhos para ele.
— Eu vou ficar onde minha pluma quiser! E agora, é aqui. Com
você. Então pare de tentar me afastar. Não vou a lugar nenhum. Eu
não abandono as pessoas quando as coisas ficam difíceis.
— Você ao menos sabe o que é difícil?
— Eu perdi a minha melhor amiga. Então, sim.
— Sabe quantos melhores amigos eu perdi?
— Isto não é uma competição, Jase.
— Não. É uma intervenção. — Seus lábios apertados se
curvaram em um sorriso assustador. — Bem, você pode economizar
seu fôlego. Quanto à porra do seu dinheiro, você obviamente tem
muito. Um pouco menos agora. Mas ainda tem bastante. — Aquele
seu sorriso feio se ampliou.
Meu batimento cardíaco acelerou.
— O que você está dizendo?
— Estou saindo. Vou te dar o dia para fazer as malas...
— Você roubou meu dinheiro... — sussurrei. — Quando?
Ele abriu a porta.
— Saia até segunda-feira.
Minhas mãos tremeram, tudo em mim estremeceu.
— Eu te perdoo. Eu te perdoo, Jase, mas não vá embora.
Seu sorriso brutal congelou e, em seguida, se desfez. Havia
grande poder no perdão.
— Só vá antes... vá embora, Cee. — E então ele saiu e fechou a
porta.
— Antes do quê? — gritei, mas não tive resposta.
Aparentemente, seria preciso mais do que perdão para trazer
Jase de volta ao caminho do bem.
33

N ão encaixotei minhas coisas. O que fiz depois que Jase


saiu foi rasgar as caixas que recebi na minha ausência e
retirar as fotos emolduradas em acrílico que pedi para as
paredes do meu quarto. E depois me enrolei na cama e olhei para
elas até que adormeci.
Acordei assustada com uma pancada. O tipo que pode derrubar
uma porta. Vestindo o jeans da noite anterior, saí do quarto com o
coração acelerado. Jase tinha falado com o irmão? Será que um
dos ex-militares que eram comparsas de Leon estava tentando
chegar até mim?
— Você tem os ossos das asas — murmurei. — Não precisa ter
medo.
Ainda assim, peguei uma faca de cozinha da bancada perto da
pia. Antes que eu pudesse olhar pelo olho mágico, a porta se abriu.
Me recuperei bem a tempo de evitar levar um tapa na cara e
levantei a faca, com os nós dos dedos brancos.
Estremeci ao ver o visitante e abaixei minha arma.
— O que há de errado com você, Seraph?
Asher olhou para a faca e depois para o apartamento. Sem dizer
uma palavra, passou por mim, abrindo todas as portas com força
enquanto eu fechava a da frente, sem querer audiência. A trava não
trancou. Apertei os olhos para ver. Estava derretida.
— Onde ele está? — Asher grunhiu.
— Imagino que você esteja se referindo ao Jase. Ele não está
aqui. — Joguei a faca na bancada e gesticulei para a porta. — Você
a quebrou.
— Você não abriu.
— Você tem que parar de andar por aí destruindo coisas.
— Deixei uma lista para você, Celeste.
— Estou com a sua lista, Seraph.
— Então por que você se vinculou a alguém que não estava
nela?
Cruzei os braços.
— O Jase é meu amigo. Estou ajudando todas essas pessoas
que nem conheço. Eu queria ajudar alguém que fosse importante. E,
a propósito, você mesmo sugeriu isso.
Minha frequência cardíaca estava desacelerando lentamente,
mas não havia estabilizado. Como poderia, quando, depois de
acordar assustada, eu agora tinha que lidar com um anjo truculento?
Os ossos da minha asa tensionaram, mas não perdi uma pena.
Provavelmente era a maneira fofa do Ishim de me avisar para
controlar minha opinião.
— Bem, recuperei os meus sentidos. Ele pode ser seu amigo,
mas se envolve com muitas pessoas perigosas. E você está ciente,
já que me cumprimentou com uma faca de pão.
Estiquei a mandíbula de um lado para o outro, sentindo meu
humor se expandir agora que meu medo havia diminuído.
— Ao contrário de algumas pessoas, não deixo meus amigos no
minuto em que fico desconfortável.
Os olhos do Arcanjo queimaram com raiva desenfreada.
— O quê?
— Você correu.
— Não corri, não.
— Me desculpe. Você voou.
Suas narinas pararam de dilatar.
— Celeste, eu não corri nem voei para longe. Recuei para te dar
o espaço que você tem me pedido desde que voltei para sua vida.
Revirei os olhos.
— Certo. Ficar com uma lista e uma Ishim hostil foi para o meu
próprio bem.
Seu pomo de Adão se moveu.
— Você tem razão. Não foi apenas para o seu próprio bem. Foi
para o meu também. Como não consegui encontrar uma consorte,
fiz uma promessa aos Sete de que todo o meu foco e coração iriam
para Elysium. — A voz dele diminuiu de tom quando ele
acrescentou: — E então fui em frente e fiz Naya e Adam. Eu não
queria outra...
— Distração? Sim, tudo bem. Eu entendi. — Apertei os braços.
— Olha, por mais que tenha gostado que você tenha parado aqui e
gritado comigo, estou cansada. Física e emocionalmente. Então, se
você não se importar eu agradeceria se pudesse ficar sozinha. —
Enquanto caminhava de volta para o meu quarto, acrescentei: —
Ah, e se você pudesse colocar uma nova tranca ao sair, seria ótimo.
— Você não vai ficar aqui.
Me virei e refiz meus passos. Então coloquei um dedo em seu
peitoral rígido.
— Não sou seu fantoche. Não sou nada sua. Você pode
governar Elysium, mas não me governa.
Ele colocou a mão em volta do meu dedo e o puxou para baixo.
— Você não vai ficar aqui porque não é seguro. E não porque a
trava esteja quebrada, mas porque o irmão do Jase matou por
menos.
Puxei meu dedo.
— Eu tenho os ossos das asas.
— Então eu deveria recuar e deixá-los te torturar?
— Ninguém vai me torturar.
— Você veio até mim com uma faca, então não me diga que o
pensamento não passou pela sua cabeça.
— Tudo bem, sim, mas Jase nunca faria isso.
A mandíbula de Asher parecia de granito. Seu corpo inteiro
parecia.
— Ele não vai te torturar, porque você vai abortar esta missão.
Dei um tapinha no meu peito e soltei um suspiro teatral.
— O quê? Você ainda não me desvinculou? — Havia um tom
estridente na minha voz que fez todas as linhas do corpo de Asher
ficarem mais definidas. — Saiu do seu jogo, Seraph?
Ele deixou escapar um som sombrio.
— Se eu te desvinculasse, você voltaria a se vincular só para me
irritar.
Abri um sorriso azedo para ele.
— Você me conhece bem. — Recuei para o meu quarto e bati a
porta, ou pelo menos tentei.
Asher bloqueou o fechamento com a palma da mão e, em
seguida, a abriu e entrou pisando firme.
— Vou mandar alguém recolher suas coisas, mas vamos embora
agora.
— Eu não vou embora.
— E eu não vou ficar parado vendo um dos meus se machucar.
— Eu não sou um dos seus, Seraph!
Suas asas se materializaram, afiadas como espadas gêmeas.
— Quer você queira ou não, você pertence ao Elysium.
— Eu pertenço a mim mesma.
— Não me desafie — ele rugiu em tom baixo e ameaçador.
— Ou o quê? Vai me retirar contra a minha vontade?
Suas narinas se dilataram com a respiração selvagem.
— Pior. Vou ficar por aqui até que você me implore para afastá-la
dos irmãos Marros.
— Você não vai ficar por aqui.
— Me desafie. — Sorrindo como alguém que derrotou seu
inimigo, ele voltou para a sala de estar e se acomodou no sofá. Até
pegou uma das revistas New Yorker que Jase guardava.
Minha raiva atingiu níveis estratosféricos.
— Ele te odeia, Seraph.
— Não consigo imaginar por quê.
Eu queria estrangular o homem.
— O que aconteceu com todo aquele trabalho que você tinha em
Elysium?
— Já terminei. — Ele virou uma página, depois outra.
— Não vou me desvincular até recuperá-lo e não vou conseguir
se ele me vir em sua companhia. Em outras palavras, você estaria
condenando minhas asas. Tem certeza de que quer isso na sua
consciência?
— Eu tenho pó de anjo. Ele não vai me ver.
— Mas eu vou, e isso vai destruir meu foco.
— Escolha outro pecador então.
— Não.
— Então acho que vamos passar muito tempo juntos, levsheh.
Levsheh? Eu estava supondo que isso era angélico, já que não
era em nenhum idioma que eu conhecia, e eu conhecia todos.
Provavelmente significava demônio.
— Te odeio. Te odeio de verdade. — Um golpe quente nos ossos
das minhas asas me fez sibilar, mas me recuperei rapidamente. —
Se eu nunca chegar ao Elysium, será culpa sua. Culpa. Sua. — Me
virei e, desta vez, quando chutei a porta do meu quarto, ela se
fechou.
34

D epois de extravasar minha raiva gritando contra o


travesseiro, escovei os dentes e o cabelo, passei um
corretivo e troquei a camiseta. Minha jaqueta estava na
sala de estar, mas era onde também estava meu guardião mal-
humorado. Puxei as cortinas e, em seguida, abri a janela. O ar
estava fresco, mas aquecido por raios de sol. Peguei um suéter e o
amarrei em volta da cintura. Coloquei a bolsa no ombro e enviei
uma mensagem de texto para Jase perguntando onde ele estava.
Como um ladrão, escorreguei pelo peitoril e minhas botas
bateram suavemente na escada de incêndio. Não me mexi por um
minuto inteiro, esperando para ver se Asher derreteria a fechadura
da porta do meu quarto ou lascaria a madeira frágil com um chute
bem dado. Quando nenhum dos dois aconteceu, desci depressa. No
momento em que alcancei o solo firme, o suor escorria pela minha
espinha.
Um sorriso por ter superado o Arcanjo fez minhas covinhas
aparecerem. Pulei para o beco dos fundos e segui pelas sombras ao
redor dos prédios, tomando cuidado para não me esfregar contra os
tijolos, especialmente aqueles descoloridos por urina e anjos sabem
lá quais outros fluidos corporais. Verifiquei meu telefone em busca
de uma notificação de mensagem, mas nada.
— Onde você está, Jase? — murmurei.
Olhei ao redor e depois para o céu. Um pombo passou voando,
mas nenhum homem alado. Corri para fora do beco e caminhei
depressa para o The Trap. Não sabia se Jase estaria lá, mas
parecia um bom lugar para começar minha busca, já que era um
espaço público e hora do almoço. Mesmo se Leon estivesse lá, ele
não tentaria nada comigo, não com uma multidão assistindo. Além
disso, eu trouxe uma lata de spray de pimenta que poderia fazer um
bunker de soldados berrar como bebês.
Antes de entrar no porão, virei a cabeça para ver o céu e a rua.
Nada do Arcanjo. Escapar dele foi fácil demais, o que me roubou um
pouco da satisfação. Segurando a bolsa, desci as escadas e apertei
os olhos na penumbra neon.
Alicia estava no bar, enchendo uma jarra com refrigerante.
Quando me aproximei, ela deu um sorriso que fez minhas entranhas
se apertarem e se acalmarem um pouco. Se ela sorriu para mim,
então Jase não tinha dito a ela que eu era persona non grata. Mas o
verdadeiro teste seria Leon.
— Bom dia — ela disse enquanto eu me empoleirava em um dos
bancos do bar.
Antes que eu pudesse pedir qualquer coisa, ela me empurrou
uma caneca de café.
— Deus te abençoe, Alicia.
Ela piscou para mim enquanto carregava a jarra para a mesa
que esperava e então anotou o pedido do brunch. Depois de
entregar na cozinha, ela voltou.
— Temos dois especiais hoje: ovos mexidos com... hum... amora
silvestre.
— Amora silvestre? — Essa era uma mistura estranha. Fiz uma
careta até que vi que sua atenção estava em outro lugar.
Olhei por cima do ombro. Quando avistei uma camiseta branca e
um cabelo loiro, travei os dentes. Eu deveria saber que Asher viria
atrás de mim.
Ele se sentou dois banquinhos longe, sem nem mesmo olhar na
minha direção. Rangi os dentes, me questionando se deveria sair
furiosa ou fingir que ele não estava lá.
Decidi escolher a segunda opção. Eu precisava falar com Leon o
mais rápido possível e fugir seria um revés. Além disso, estava com
fome.
Alicia piscou.
— Já vou, gatão. — Ela voltou a se concentrar em mim. —
Então, onde estávamos?
— Você estava me contando sobre aqueles ovos mexidos com
amoras — murmurei.
— É mesmo. Por que Leon colocaria frutas nos ovos?
— Ele devia estar sentindo vontade de experimentar coisas
novas.
Ela soltou um suspiro suave.
— Esse homem adora experimentar. De qualquer forma... tem
amoras nas panquecas de leite coalhado. E os ovos mexidos vem
também com bacon e torradas de abacate. Se sentindo tentada por
algum?
Sem vontade de me decidir, eu disse:
— Quero os dois.
Ela me deu um sorriso tímido.
— Você e o Jase tiveram uma noite agitada para aumentar esse
apetite, hein?
Estava prestes a dizer que não quando me lembrei que Asher
estava bem ali.
— Você nos conhece muito bem. — Minha resposta irritaria o
Arcanjo, que considerava o sexo uma perda de tempo. — O Leon
está na cozinha, certo?
— Cuidando da grelha. Precisa dele?
— Vou passar para vê-lo depois de comer.
— Certo. — Ela virou a folha em seu bloco e deu um passo em
direção a Asher. — Olá. Sou toda sua agora. O que deseja?
Por cima da minha caneca de café, murmurei:
— Alpiste com um pouco de humildade.
Não acho que Alicia me ouviu, mas os lábios de Asher cerraram
um pouco, o que me disse que ele escutou.
— Café preto seria ótimo.
— Já estou indo. — Ao passar por mim, Alicia arregalou os olhos
e ergueu a mão para se abanar.
Bonito por fora, mesquinho por dentro. Era incrível como uma
característica poderia fazer tanta diferença.
Olhando para o jogo de beisebol sem som no bar, perguntei:
— Sua poeira está com defeito? — Seu olhar fuzilou a lateral do
meu rosto. — Porque você está muito visível.
Ele se remexeu no banquinho, fazendo o jeans sussurrar contra
o vinil preto.
— Eu disse que não iria me mostrar se Jase estivesse por perto
e, pelo que posso ver, ele não está.
— Talvez ele esteja na cozinha.
O rebatedor acertou um homerun.
Asher balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Na verdade, ele está na biblioteca da faculdade.
Olhei para o rosto dele, que estava voltado para a TV. A luz clara
definia seu perfil enquanto as insígnias de neon o preenchiam com
rosa, laranja, verde e amarelo.
O quê? Como ele sabia?
— A escada de incêndio foi um toque legal, levsheh.
— Pare de me chamar assim.
— Pare de tentar escapar de mim.
— Nunca.
— Então se acostume com seu novo apelido.
Tanto esforço para fingir que ele não estava lá. Olhei de lado
para ele.
— O que isso significa? Um xingamento pela minha existência?
Pequeno demônio? Alma nojenta?
Ele sorriu, mostrando aqueles dentes brancos perolados.
— Dane-se. Não me importo. — Voltei minha atenção para o
jogo de beisebol. Eu perguntaria a uma Ophanim mais tarde. Ou
não.
Deixei o pensamento passar por mim como água sobre penas. A
respiração ficou presa na minha garganta... e se significasse
asinhas?
Não... ele não me detestava o suficiente para me chamar assim.
Não era?
— Então, qual é o seu plano?
— Como se eu fosse te contar.
A porta da cozinha se abriu e Alicia reapareceu com uma
travessa de comida destinada à mesa debaixo do meu porco rosa
brilhante.
Sorri comigo mesma.
— Está vendo aquele leitão alado na parede oposta?
Asher olhou por cima do ombro.
— Dei para o Leon no ano passado. Quis adicionar à sua
coleção. — Os ossos das minhas asas tensionaram. — Adivinha
quem eu tinha em mente quando o comprei? — Outro tremor ecoou
pelos ossos invisíveis. Pode arrancar... nem ligo.
— Vou arriscar e dizer que era eu.
— Notou a semelhança também, não é? — Odiei o quanto isso
me fez soar rancorosa. E pensar que eu o abracei e depois ardi em
chamas há alguns dias... Argh.
— Fico lisonjeado.
— Lisonjeado? — Isso entorpeceu o sorriso no meu rosto. — Por
que você ficaria lisonjeado?
— Porque estive em seus pensamentos por mais de quatro
anos.
Larguei minha caneca de café com mais força do que
necessário.
— Essa é a sua interpretação?
— O que posso dizer? — Ele levou caneca aos lábios e bebeu.
Com indiferença, inclinou o corpo em direção ao meu, fazendo com
que que suas longas pernas se abrissem. — Tento ver o melhor em
tudo e em todos.
Senti raiva. Mais uma vez, meus ossos das asas zumbiram, mas
não perdi uma pena.
Eu me concentrei no jogo.
— Bem, eu não estava tendo pensamentos positivos quando o
comprei.
— Imagino. Meu espírito animal certamente teria sido um
dragão.
Pouco egocêntrico.
— Qual é o seu plano, Seraph?
— Meu plano é cuidar de você. Se isso envolver te ver tomar um
café da manhã adequado para uma pequena família, por mim tudo
bem.
Eu queria grunhir e teria feito isso se não tivesse pensado em
um grande plano para me livrar do meu guardião. Repassei a lista
de contatos até encontrar o telefone do meu salão favorito. Liguei
para lá e reservei um horário para manicure, pedicure e depilação.
Antes de desligar, me virei para Asher.
— Já que vai ficar comigo o dia todo, devo reservar uma
depilação com cera no peito?
Ele virou os olhos perigosamente gelados na minha direção.
— Certo. Você não tem pelos no peito. Uma massagem então?
Você parece um pouco tenso.
Um azul gelado queimou em mim.
Sorrindo, eu disse ao telefone:
— É só isso. — Ela me perguntou que tipo de depilação eu
queria e eu disse: — Brasileira. Três da tarde está perfeito. Até logo.
— Desliguei e coloquei o telefone sobre o bar. — Vamos ter um dia
muito divertido.
Alicia voltou com dois pratos. Depois que ela checou Asher, que
ainda não tinha pedido nada para comer – rude –, saiu apressada.
Peguei minha torrada de abacate e dei uma pequena mordida.
— Se você insiste em ficar ao meu lado enquanto coloco cera na
virilha, posso segurar sua mão? É surpreendentemente doloroso.
Suas sobrancelhas baixaram, eclipsando o brilho residual.
Mordisquei a torrada novamente.
— Devo interpretar seu silêncio como um não definitivo?
Seu olhar se tornou abrasador.
Lambi uma gota de abacate do dedo, sentindo que ele estava há
dois segundos de partir. Mas aqueles dois segundos se
transformaram em vinte minutos. E ele ainda estava lá. Ele cederia
antes do salão. Quero dizer, nenhum cara respeitável iria assistir
uma garota que mal conheciam ter suas partes íntimas depiladas,
muito menos uma garota que ele conhecia.
Depois de terminar os dois pratos, pulei do meu banquinho.
— Ei, Alicia. Meu vizinho é intolerante a glúten e queria ouvir
todas as opções que você tem para pessoas com intestinos
sensíveis. — Fiquei agradavelmente surpresa com a minha
declaração não ter me custado uma pena.
O que me custou foi outra carranca mordaz.
Apertei o nó do suéter amarrado na minha cintura.
— Só vou agradecer ao chef por toda aquela comida deliciosa.
Volto logo.
Asher estava com um pé no chão, mas como Alicia correu para
discutir as opções sem glúten, ele ficou parado e ouviu.
Me esgueirei pelo balcão e abri a porta.
— Oi, Leon.
Ele estava ao lado da grelha, com uma bandana encharcada de
suor amarrada na testa.
— Celeste! — Seu sorriso largo acalmou meus nervos.
Encostei o quadril na bancada de aço inoxidável.
— Aquela torrada de abacate. Você precisa adicioná-la ao menu
normal.
— Saborosa, não é? É a páprica defumada.
Olhei para o ajudante de garçom lavando pratos do outro lado da
cozinha e para Tommy, o sous-chef com o estilo questionável em
arte facial.
— Leon, podemos conversar um segundo?
— Claro.
Mordi o lábio e olhei ao para a cozinha. Baixando minha voz para
um sussurro, eu disse:
— O Jase e eu brigamos.
— Acontece. Eu e a Alicia brigamos pelo menos duas vezes por
semana.
— Ele não te contou o motivo?
— O garoto não fala muito. Nem mesmo para mim. Você sabe
disso. — Ele virou dois hambúrgueres gordurosos.
— Leon, nós brigamos pelo que vocês... fazem.
Seus olhos escuros se voltaram para mim.
— O que fazemos?
— Seu negócio paralelo.
O sorriso agradável sumiu de seu rosto marcado.
— Não tenho ideia do que você está querendo, Celeste.
— Você realmente quer discutir isso aqui? — Balancei a cabeça
em direção a sua equipe. O ajudante de garçom estava de costas
para nós e podia não falar inglês, mas ainda estava por perto.
Quanto a Tommy, ele estava fatiando cuidadosamente uma cebola
roxa, mas eu não tinha dúvidas de que ele estava ouvindo.
Leon pousou lentamente a pinça de cozinha. Bem devagar.
Muito devagar.
— Não tenho segredos para meus funcionários.
Tommy ergueu os olhos. Claro, ele fazia parte da operação.
— Tire o Jase do esquema. Foi isso que vim pedir.
Leon se moveu e a cruz de diamante refletiu os holofotes do
exaustor.
— O Jase é adulto e decide por si mesmo.
— O Jase te adora. Ele faria qualquer coisa por você. Incluindo
entregar as informações bancárias da sua colega de apartamento.
Leon baixou o queixo.
— Não estou aqui para ameaçá-lo ou pedir que transfira de volta
o dinheiro que roubou da minha conta. Estou aqui para pedir que
você liberte o Jase, o force a se concentrar na faculdade de direito.
Se ele for pego, pode dizer adeus ao seu futuro.
— Fiz um bom futuro para mim e não frequentei nenhuma escola
sofisticada e cara.
— O The Trap é ótimo. Na verdade, admiro tudo o que fez aqui,
mas você está a um passo de ser mandado de volta para a prisão.
Ele enxugou as mãos grossas no avental preto da cintura.
Hematomas recentes marcavam os dedos.
— É mesmo? — Parecia que ele tinha se aproximado, mas devia
ser minha imaginação, já que seus Crocs verde-exército não haviam
se movido dos ladrilhos brancos manchados de graxa.
Ainda assim, dei um passo para trás. Quando minhas omoplatas
se encostaram em uma parede de músculos, soltei um suspiro.
Rezei para que fosse Asher, mas a mão que segurou minha boca
cheirava a cebola crua. Um olhar em direção à estação de corte fez
minha garganta apertar. Enfiei os dedos na bolsa e destampei o
spray de pimenta. Antes que eu pudesse erguê-lo, uma faca foi
enfiada debaixo do meu queixo.
Imortal. Eu era imortal. Eu ficaria bem. Eventualmente.
— Ei, Jesus! — Leon chamou o empregado da cozinha. — O
que acha de um bônus?
O garoto, que não devia ter mais de dezesseis anos, caminhou
em nossa direção, enxugando as luvas de borracha amarela até o
cotovelo nas pernas finas. O fato de ele não tê-las tirado era mais
do que alarmante.
Eu deveria ter ouvido Asher. Deveria tê-lo deixado me tirar
dessa. Ou, pelo menos, me acompanhado até a cozinha. Deixei
minha confiança prejudicar meu julgamento. Estúpida. Fui
incrivelmente estúpida.
— Eu sabia que você seria um risco. Disse ao Jase que ele
deveria ter se livrado de você, mas ele estava muito apaixonado. —
Leon se aproximou e passou um polegar sobre minha bochecha,
empurrando-o em minha covinha.
Eu queria vomitar.
— Eu realmente sinto muito, Celeste, porque você era fofa. E
bastante útil.
— Não faça isso — gritei, mas a palma da mão apertou meus
lábios abafando minha voz.
Mais zangada que assustada, mordi a mão de Tommy, peguei o
spray e o apertei. Um esguicho atingiu Leon bem no rosto. Jesus se
virou, grunhindo xingamentos em espanhol. Ótimo. Ele devia ter
sido atingido também. Virei a lata para Tommy no momento em que
a faca cortou minha pele, provocando um rio de calor pelo meu
pescoço. Meu dedo escorregou do spray e a lata de metal caiu no
chão.
Todos os sons ao meu redor se fundiram em um assobio baixo e
farfalhante. Minha visão ficou manchada. E ainda assim, no mar em
tons negros e brancos, avistei um turquesa vívido. Abri a boca para
pronunciar o nome de Asher. Saiu como um sussurro. Que bom.
Isso significava que Tommy não tinha cortado minhas vias
respiratórias.
Eu não tinha certeza de como acabei caída no chão, mas é onde
eu estava, sentada em ladrilhos sujos com puxadores de gaveta
afiados se projetando na minha coluna. Uma piscada lenta fez a
cozinha entrar em foco suave, mas os sons... ainda estavam
misturados, sobrepostos pela batida rítmica do meu coração.
Com as asas abertas como um anjo vingador, Asher deu um
soco bem onde a mandíbula de Tommy cruzava com a orelha. O ex-
presidiário se amontoou como uma toalha encharcada. Em seguida,
o Seraphim esticou o braço e lançou um raio de fogo nos rostos
atordoados e molhados dos outros dois. O fogo pegou no cabelo de
Jesus, se espalhou pela bandana de Leon e desceu pelas roupas de
cozinha, lambendo os tecidos manchados.
Horrorizada. Fiquei horrorizada.
— Não faça isso... não os mate, Seraph — murmurei.
Não porque eu me preocupasse com eles, mas porque sabia que
os anjos não deveriam mexer com os cronogramas humanos. Se
Asher os mandasse para as sepulturas prematuramente, haveria
consequências.
Ele se agachou diante de mim. Seu olhar era mais nítido do que
sua carranca, e era uma carranca poderosa e severa.
— Meu fogo não vai matá-los.
Bom. Isso era bom.
— Espero que tenha gostado do seu último momento de
liberdade, Celeste, porque a partir de agora, eu e você... vamos ficar
colados pela porra dos ossos das asas.
A intenção do Arcanjo provavelmente não era humor, mas a
imagem que ele trouxe era divertida, e meus lábios se curvaram.
— Você vai assustar meus pecadores, Seraph. E então não vou
ganhar... — A dor atingiu meu pescoço com o esforço que fiz para
mover a boca, e eu estremeci.
Ele ergueu a palma da mão e enviou uma explosão de calor
sobre minha ferida. Respirei fundo e segurei o ar até que ele
terminasse de limpar o sangue da minha pele.
— Boa escolha — murmurei. — Um pescoço ensanguentado
provavelmente assustaria mais os clientes.
Pelo canto do olho, vi a porta abrir e, em seguida, Alicia
apareceu, gritando.
Ela deixou cair a bandeja que estava segurando. Cerâmica e
vidro se estilhaçaram.
— O que aconteceu aqui? — A porta se fechou, batendo em seu
traseiro, fazendo-a tropeçar e seus tênis esmagaram a louça
quebrada. — Leon? — Sua voz estava tão estridente que machucou
meus tímpanos. — Baby, o que aconteceu?
— O idiota usou o maçarico em nós. — Sua voz trepidou com o
jato de água. — Estou pensando em chamar a polícia.
O olhar de Asher se concentrou em Leon, que estava na pia com
Jesus, os dois jogando água na pele com bolhas.
— Ah, você deve mesmo ligar, Leon Marros. Tenho certeza de
que eles adorariam se reconectar com você.
Me concentrei na malha de algodão branco que envolvia o peito
largo de Asher, na galáxia de pontos vermelhos. Aquilo era meu
sangue? Engoli a bile que crescia, mas o jato foi mais forte que os
músculos da minha garganta. Virei o rosto a tempo de evitar
manchar a camisa de Asher. Os ovos, as panquecas, o abacate, as
amoras... respingaram no chão ao meu lado. Embora aquilo fosse
desagradável, fiquei feliz em me livrar da comida preparada por
homens cruéis.
Eu ansiava por ligar para Jase no Facetime para mostrar minha
garganta a ele. Mas e se ele não ficasse surpreso com a selvageria
de seu irmão?
Pior, e se ele tolerasse isso?
Ele não toleraria. Jase era fundamentalmente bom.
Sua pontuação brilhou na frente dos meus olhos: 41. Não era
uma pontuação boa, mas era melhor que... qual era mesmo a
pontuação de Leon? Sessenta e alguma coisa? Seria cem agora
que ele me atacou? Espere. Tommy havia me atacado, não Leon.
Leon apenas deu a ordem. Tommy seria o Triplo.
— Vamos para casa. E não para aquele buraco de rato que você
chama de casa — Asher acrescentou com um resmungo.
Eu estava cansada de lutar contra ele quanto a isso.
— Tudo bem. — Minha voz parecia mais forte, mais clara. Apoiei
a mão em minha garganta. Estava lisa. — Espere... você... você me
curou? — O fogo de anjo poderia selar feridas?
— Você ainda terá um hematoma. Podemos ir ou você tem mais
alguma coisa para discutir com o irmão do seu amigo?
— Na verdade, tenho muito mais a dizer. — Pressionei as
palmas das mãos no chão. Antes que pudesse firmar meus pés, fui
erguida. Um grunhido escapou da minha garganta recém-curada. —
Seraph, eu posso andar.
Talvez.
— Estou bem zangado com você agora. — Suas palavras
resmungadas mal moveram seus lábios.
— Nada de novo aí. — Envolvi um braço em seu pescoço tenso.
Ele pigarreou.
Suspirando, apoiei a cabeça contra seu coração, optando por
não batalhar com ele a respeito do seu método de transporte. Afinal,
eu realmente queria sair daqui, e quanto mais rápido melhor.
Ele passou direto por uma Alicia em estado de choque,
pisoteando o mar cintilante de vidro rachado a seus pés. Quando
entramos no restaurante, bocas se escancararam de tal forma que
pedaços de comida caíram, e então telefones se ergueram.
— Você não queimou o sangue? — sussurrei.
— Eu estava ocupado remendando sua garganta. — O estrondo
profundo de suas palavras pulsou contra minha testa.
Dei uma olhada em meu peito, engolindo em seco quando notei
o vermelho na minha pele e a gola encharcada da camiseta cinza
clara. De todos os dias para não usar preto.
Quando emergimos, o ar fresco atingiu a lateral do meu rosto,
congelando a mistura de suor e sangue.
— Celeste? — alguém ofegou.
Olhei para o lado, em direção a um par de olhos inchados e
roxos.
— Jase!
A cautela do meu amigo se transformou em nojo quando viu o
homem me segurando.
Puxei o braço de Asher.
— Me coloque no chão, Seraph.
— Não.
— Vou ficar ao seu lado. Apenas me coloque no chão. —
Quando ele não o fez, acrescentei um por favor.
Ele resmungou algo, mas cedeu. Quando cambaleei, ele passou
o braço em volta das minhas costelas e então, murmurando de
novo, arrastou meu corpo de encontro ao seu, me prendendo na
lateral de sua caixa torácica. Sua fortaleza me impediu de cair de
cara no chão, o que eu era grata. Eu não precisava de mais
hematomas.
— Seu pescoço? — A voz de Jase fez com que eu me
reorientasse. — O que aconteceu com o seu pescoço?
Antes que eu pudesse responder, Asher retrucou:
— Seu irmão aconteceu com o pescoço dela.
O corpo de Jase paralisou no pedaço da calçada ensolarada.
— Leon não estrangularia a Celeste.
— Estrangular? Eu fui cortada, Jase. Foi o Tommy quem fez
isso, mas por ordem do Leon.
Jase estendeu a mão e puxou a gola da camiseta para baixo,
não o suficiente para expor meus seios, mas o suficiente para me
irritar.
— Não vejo um corte.
Antes que o grunhido se formando na parte de trás da minha
garganta pudesse emergir, Asher agarrou os dedos de Jase e os
empurrou para longe.
Jase cambaleou, a cor se projetando em seu rosto.
— Não me toque, Abercrombie, ou eu vou...
— Você não vai fazer nada — falei, com medo de que sua
pontuação aumentasse rapidamente se ele ao menos tivesse
pensamentos assassinos sobre o Arcanjo.
Os cílios de Jase se ergueram.
— De quem é esse sangue?
— Meu.
— Se fosse seu, você teria um corte!
— Pare de gritar.
— Pare de mentir!
— Jase, não estou...
— Vá se foder, Celeste. Vá se foder por me fazer acreditar...
Comecei a tremer.
— Te fazer acreditar no quê? Que me importo com você? Com o
que acontece com você? Eu me importo. De verdade. Tanto que fui
falar com seu irmão para tirar você disso.
Sirenes da polícia soaram. Eu queria tampar os ouvidos, mas
meus braços pendiam frouxos ao lado do corpo, meus dedos
fechados nas palmas das minhas mãos.
— Você o matou, Celeste?
— Se você acha que eu seria capaz de matar uma pessoa,
então você não me conhece.
— Você mudou. — Seu olhar foi para Asher, que permaneceu
surpreendentemente silencioso e imóvel ao meu lado. — E não se
transformou em alguém que eu queira perto de mim, então vou dizer
isso mais uma vez. Tire as suas coisas do meu apartamento ou vão
acabar no lixo. — Jase recuou balançando a cabeça e em seguida
desapareceu escada abaixo.
Em vez de tirar Jase da teia de seu irmão, eu o enrolei ainda
mais.
— Eu só estava tentando ajudar — sussurrei para ele, para mim
mesma e para Asher. — Que confusão. — Pisquei para afastar as
lágrimas que escorriam.
Falhei com Fernanda. Agora, com Jase.
A palma da mão de Asher se abriu na parte inferior das minhas
costas e, embora eu estivesse tremendo em todos os lugares, de
alguma forma, meu cóccix parecia tremer mais.
— Você tentou...
— Não foi bom o suficiente!
— Você se esforçou mais do que eu.
— Porque você não gosta dele.
— Tem razão. Não gosto. Não tenho nenhum respeito por
homens abusivos.
Eu me afastei dele, o que acabou me fazendo me inclinar, já que
ele não havia relaxado seu aperto.
— Abusivo? O Jase não é abusivo.
— Ele não usou sua amizade para roubar informações de você?
Não roubou seu dinheiro?
— O dinheiro não era meu.
— Você é muito indulgente.
— Fique feliz por isso. Caso contrário, eu não teria perdoado a
sua idiotice.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Idiotice?
— Quem age o tempo todo como um idiota.
Ele não parecia ofendido, o que era loucura, porque não era um
elogio.
— Se o fato de me recusar a te deixar enfrentar sozinha três
pecadores impiedosos – dois dos quais são ex-presidiários – me
torna um idiota, então usarei o título com grande orgulho.
Comecei a revirar os olhos quando um carro azul e branco
desceu o quarteirão, os pneus cantaram e pararam a alguns metros
de onde estávamos.
— Segure firme. — As asas de Asher se abriram ao mesmo
tempo em que ele me pegou e jogou um pouco de poeira para nos
cobrir.
— Por quê? Por favor, diga que não vamos...
A palavra voar se transformou em um suspiro quando Asher
disparou para o céu brilhante de Nova York. Com o coração pulando
na garganta, apertei os braços em seu pescoço e minhas pernas ao
redor da sua cintura, e em seguida fechei os olhos, enterrando o
rosto na curva do seu pescoço.
— Por que não podemos chamar um táxi como pessoas
normais? — murmurei.
— Porque não somos pessoas normais, levsheh.
Meu medo do ar foi momentaneamente dissipado pelo apelido
estranho. O que, em Abaddon, isso significa? Já que perguntar seria
demonstrar que eu me importava e minaria ainda mais a aparência
de que eu estava imperturbável, engoli a pergunta.
De repente, ele se estabilizou, deixando nossos corpos paralelos
à superfície da Terra. Meu estômago se encontrou com coração
dentro do meu abdômen, batendo tão rápido que Asher estava
sentindo a força de seus batimentos. Eu me apertei mais em seu
corpo, me impedindo de espatifar.
— Além disso, você me fez discutir glúten e evacuações com
uma estranha. — Sua voz foi carregada como uma rajada quente
sobre o vento forte. — Considere o voo como retribuição.
Um sorriso apareceu, apesar da minha angústia.
— Tudo bem, mas não tente isso nos dias em que eu não estiver
com a garganta cortada.
Seu peito ficou assustadoramente parado.
— Escolha pecadores da minha lista e você não terá a garganta
cortada.
Olhei para cima, encontrando suas feições tão tensas quanto o
resto de seu corpo.
— Está bem.
Algumas mechas de cabelo estavam enroladas em seu rosto.
Estendi a mão e peguei uma que balançava na frente de seus
olhos.
— Não quero que você bata em um arranha-céu.
Um sorriso se espalhou de sua boca para seus olhos, fazendo as
profundezas cor de ciano brilharem como joias.
Anjos, o homem era bonito. Os olhos. A boca e o queixo
também. E o nariz. E o cabelo. Sim... tudo nele era perfeito.
Como se ele sentisse que eu estava pensando sobre sua
perfeição, seu olhar baixou para o meu. E ficou ali.
— Seraph, por favor, olhe para onde você está indo.
— Eu poderia voar de olhos fechados, Celeste.
O sangue foi drenado do meu rosto.
— Se você tentar demonstrar essa habilidade, vou acariciar suas
asas.
Isso difundiu suas pupilas até que seus olhos ficaram mais
pretos do que azuis. Olhos assassinos.
Me concentrei em uma nuvem fina que se desenrolava como
algodão-doce além das pontas bronze das asas do arcanjo.
— Eu deveria guardar minhas ameaças para depois que
pousarmos.
Um minuto completo de silêncio depois, ele perguntou:
— Isso foi uma ameaça?
Meu olhar voltou para o seu, desconcertada com sua reação. Ele
não poderia realmente querer que eu tocasse em suas penas, não
é?
Um calor peculiar percorreu minha pele, fazendo-a formigar.
Ah, filho de uma Pluma.
De novo, não.
E não aqui em cima.
Gemendo, fechei os olhos, mas minhas pálpebras pouco fizeram
para bloquear minha luminescência. E pensar que estava colada ao
peito do homem por quem meu corpo decidiu queimar em chamas
sem o consentimento do meu cérebro.
— Mudei de ideia, Seraph. Por favor, me solte.
Uma vibração se estabeleceu sobre as batidas rítmicas de seu
pulso. Levei um instante para decifrar o som: risadas. Ele estava
rindo da minha situação.
— Não é bom tirar sarro das pessoas quando elas estão em
seus momentos mais fracos. — Eu realmente precisava localizar o
botão de liga e desliga da minha luminescência, porque se eu ia
continuar a queimar em chamas na presença dele, queria que fosse
nos meus termos.
Sua risada diminuiu para um riso elegante.
— Você quer dizer, quando estão mais cintilantes?
— Vou soltar agora. — Me obriguei a afrouxar o aperto mortal.
Ele pressionou sua boca no topo da minha cabeça.
— Vá em frente, levsheh. — O rei do Elysium e dos sinais mistos
me puxou para mais perto. — Eu te seguro.
35

D epois de me colocar na varanda, Asher perguntou se eu


tinha em mente alguém de sua lista para minha próxima
missão.
Dei de ombros.
— Alguém sem inclinação para a violência seria incrível.
Seus olhos se desviaram para o meu pescoço, o que fez minha
mão subir para a pele em carne viva. O sangue seco descascou sob
meus dedos.
— É só me enviar uma mensagem informando onde e com quem
devo me encontrar. — Comecei a me virar. — E se tenho um
disfarce.
Seu olhar ainda estava grudado na minha clavícula e, pelo
formato de seus lábios, deduzi que o que tinha acontecido comigo
no The Trap o perturbou.
— Te vejo — ia dizer mais tarde, mas mudei para — em breve.
— Ao contrário da palavra mais tarde, em breve não parecia
desespero. Além disso, estava feliz por estar sozinha. Eu precisava
de um banho e de espaço para processar tudo o que tinha
acontecido.
Depois que ele saltou da minha varanda, com as asas abertas
como as de uma ave de rapina, entrei e joguei a camiseta no lixo,
tirei a calça jeans, mas a joguei no cesto que estava transbordando.
Depois de me livrar de duas camadas de pele, coloquei a roupa
para lavar, abri uma garrafa de vinho branco e me sentei no sofá
para assistir a um reality show alegremente enfadonho. No meio do
segundo episódio de Desperate Housewives, me lembrei da ameaça
de Jase de despejar meus pertences. Devo ter ligado para oito
empresas de mudanças até encontrar uma que pudesse me atender
na manhã seguinte.
Mandei uma mensagem para Jase avisando que estariam no
apartamento às oito da manhã.
Sua mensagem: Eu disse hoje. E o que foi que aconteceu
com a fechadura?
Cerrei os dentes. Como não conseguiria explicar sobre isso: Não
tem ninguém livre hoje.
JASE: Então avise que eles podem pegar suas coisas no
beco dos fundos.
Me estiquei, bem chateada com sua mesquinhez. Pare de ser
idiota.
JASE: Ou o quê? Vai mandar os policiais que algemaram o
Leon passarem na minha casa?
A notícia da prisão de seu irmão me fez paralisar.
EU: Sinto muito.
JASE: Sente?
EU: Sim, Jase. Sinto.
Por um longo momento, nenhuma resposta apareceu na minha
tela.
JASE: Tire suas coisas hoje.
Enviei várias mensagens pedindo para ele ser razoável, mas os
três pontinhos não piscaram para mostrar que ele estava
escrevendo uma resposta. Soquei uma almofada e grunhi para ela,
até jogá-la do outro lado da sala, mas em vez de cair no tapete, caiu
em um par de mãos grandes.
— O que eu fiz agora?
Olhei feio para Asher, embora, pela primeira vez não fosse por
ele que eu estava com raiva.
— Acredite ou não, nem sempre você é a causa do meu mau
humor.
Ele largou a almofada em um dos sofás, a diversão fugindo de
sua expressão.
— O que aconteceu?
— O Jase está sendo um idiota.
Já tinha visto o Arcanjo zangado, irritado, frustrado. Nunca o
tinha visto com cara de quem queria quebrar ossos.
— E você estava conversando com ele por quê?
— Porque eu estava tentando coordenar a remoção de meus
pertences de seu apartamento, e o mais rápido que posso conseguir
uma empresa de mudanças é amanhã de manhã, o que não é bom
o suficiente para ele. — Meu nariz formigou como se eu fosse
chorar. Eu não ia chorar. Não por isso.
— Me dê as chaves, Celeste.
Fiz uma careta que se transformou em um aceno de cabeça
quando entendi que ele se referia as chaves do apartamento que eu
dividia com Jase.
— Não vou te envolver nisso.
— Já estou envolvido.
— Mas não precisa mais estar.
— Se você tem medo de que ele me machuque... — Sua voz
sumiu com o sorriso engraçado que apareceu em meu rosto.
— Te machucar? Não... tenho medo de que você possa
machucá-lo.
— Você ainda está protegendo-o depois de tudo que ele te
disse?
Franzi os lábios. Era depenado.
— Você está certo. Ele merece toda a minha ira. Quer saber,
acho que eu mesma vou até uptown...
— Não.
— E dizer a ele que ele é um piolho de pardal e...
— Não.
— Vou esmurrar sua garganta para que ele fique com um
hematoma como o meu.
— Não.
Dei um olhar desafiador a ele.
— Espere só para ver.
— Celeste — ele grunhiu.
Quando caminhei em direção ao corredor, ele entrou na minha
frente.
Apoiei as mãos em meus quadris e fiz uma careta para ele.
— Não estou com vontade de brigar com você por causa disso.
— Ótimo, porque eu gostaria de ter uma batalha a menos para
travar.
Meus ossos se comprimiram.
— Naya?
— Ela está bem. Um pouco irritada por você não ter me
acompanhado até a associação, mas por outro lado, ela está bem.
Meu pulso se acalmou tão abruptamente quanto havia
disparado.
— Será que você pode me dar as chaves e uma lista do que
gostaria que eu pegasse?
— Encaixotar calcinhas e brinquedos sexuais está muito abaixo
do seu nível.
Seus lábios tensos se entreabriram e se fecharam. Com a
mandíbula cerrada, ele resmungou baixinho:
— Se é só isso que você tem no apartamento, tenho certeza de
que um pedido pela internet pode repor sua perda.
Sorrindo, passei as mãos pelos meus quadris.
— A única coisa que eu realmente quero é minha jaqueta azul-
petróleo. Foi a Mimi que me deu e...
— Aquela com asas de anjo?
— Sim. — Passei os dedos pelo cabelo e um pensamento me
ocorreu. Algo que me incomodava desde que ela encomendou uma
jaqueta especial da Dior, há dois anos. — Ela sabia o que eu era?
— Em seu leito de morte, Mikaela – a mãe do Jarod — um sulco
marcava o espaço entre suas sobrancelhas —, mencionou anjos e o
Elysium. A Muriel atribuiu isso à demência e tristeza, mas com o
tempo, começou a se questionar. Especialmente quando ela
conheceu a Leigh. E você.
Engoli em seco e doeu, mas não por causa do hematoma.
— Eu sinto tanto a falta das duas.
A palma da mão de Asher passou de leve sobre meu braço,
quase se acomodando. No final, ele o afastou.
— As duas também sentem sua falta.
Mas uma não era... bem, não era exatamente a garota que me
deixou. Eu não disse isso em voz alta, com medo de que, de alguma
forma, doesse nele ouvir que eu desejava que Naya fosse outra
pessoa. Ela era diferente, mas era o suficiente. Mais do que o
suficiente. E eu estava incrivelmente grata por sua existência.
— De qualquer forma, você não precisa de chaves. Não há mais
tranca, se lembra? — Mordendo o lábio, acrescentei: — Ele vai
odiar te ver.
— Eu não esperava um tapinha nas costas e uma cerveja.
Não consegui nem sorrir.
— Obrigada.
Não percebi que estava torcendo minhas mãos até que Asher as
pegou e gentilmente as afastou.
— Você não fez nada de errado hoje, Celeste. Além de não me
ouvir, claro.
Puxei uma das mãos das suas e golpeei seu bíceps sólido como
osso.
— Homem arrogante.
— Responsável, não arrogante.
— Qualquer coisa que te ajude a dormir de noite.
Um sorriso apareceu em seu rosto.
— Já que você ardeu em chamas por mim duas vezes, acho que
a característica te entusiasma.
— Me entusiasma? — ofeguei. — Não. Nem um pouco. — Puxei
a outra mão – por que ainda estava na dele? – e coloquei algumas
mechas de cabelo atrás da minha orelha. — A arrogância é
extremamente desagradável.
Seu sorriso ficou torto, o que mudou todo o seu rosto, fazendo-o
parecer subitamente mais... acessível.
— Não vou demorar muito. Tente se abster de beber toda aquela
garrafa de vinho sozinha na minha ausência.
Olhei para a garrafa.
— Melhor não demorar muito então.
Ele suspirou.
— Beber nunca é a solução, Celeste.
— Entorpece a dor.
— Só a disfarça.
— Meu corpo. Minha escolha.
Todos os vestígios de sua diversão se foram.
— Pense nas suas asas.
— Eu penso. É tudo em que penso agora.
— Talvez pensar não seja a palavra certa. Se preocupe com
elas.
Eu me arrepiei.
— Eu me preocupo. — Como ele ousa presumir que só porque
eu me permitia fazer certas coisas, era indigna de ter asas?
Quando ele passou por mim, pensei tê-lo ouvido murmurar:
— Não tanto quanto eu. — Mas devia ser uma frase do reality
show, porque tudo com o que o Arcanjo se importava era aliviar sua
consciência, me ajudando a chegar ao Elysium.
Se ele se importasse comigo de qualquer outra forma, nem
sempre estaria discutindo minhas asas. Ele tocaria meu coração e
corpo. Mas não... era só a minha alma e a porcaria das asas que
nos ligavam.
36

A rebelde em mim tomou um gole de vinho depois que o


Seraphim saiu, mas o líquido doce tinha gosto azedo, então
cuspi e virei a garrafa na pia. Mas em vez de jogá-la, eu a
trouxe de volta para a sala de estar e a coloquei sobre a mesa de
centro. Era um pouco infantil, mas eu não queria manchar minha
personalidade impermeável, deixando-o pensar que tinha me
afetado.
Maldito seja ele e seu vórtex de culpa.
A pobre Naya estava prestes a ter uma adolescência nada
divertida.
Enquanto eu me acomodava no sofá com as pernas dobradas
debaixo de mim, fiquei quieta e irritada. Depois de alguns minutos,
fazer beicinho ficou chato. Além disso, meu estômago roncou, então
peguei o telefone e pedi comida indiana.
Eu tinha acabado de liberar Stanley, que veio entregar a comida,
quando o Arcanjo pousou no terraço com minha jaqueta pendurada
em seu antebraço.
Ele estava irritado e quase tive pena até que ele disse:
— Estou surpreso que você consiga andar em linha reta.
Então seu mau humor não foi induzido por Jase... mas por mim.
— E eu estou surpresa que você ainda pense que alguma coisa
sobre mim é surpreendente. — Eu o evitei, e como ele afastou as
asas, não houve qualquer choque de penas. — Obrigada por
recuperar minha jaqueta. Pode jogá-la em qualquer lugar.
— O que você fez com o vinho?
— Por quê?... eu bebi. — Já que bebi um pouco, não perdi uma
pena.
— Sei como você fica quando está embriagada. Você não
parece estar bêbada.
Arrumei todos os recipientes ao redor da garrafa vazia.
— Tudo bem, não bebi, mas não por causa de nada que você
disse. — Minhas asas formigaram, mas não perdi uma pena.
Obrigada, Ishim.
Presumi que Asher perguntaria por que mantive a garrafa vazia
quando ele acenou com a cabeça em direção à mesa carregada.
— Está esperando companhia?
Lambi uma gota de curry da ponta do dedo.
— Perdi meu último amigo hoje. Então, não.
Ele esmagou minha pobre jaqueta contra o torso.
— Jason Marros não era seu amigo.
— Era, sim.
— Um amigo de verdade nunca teria se aproveitado de você.
Era tão bobo, mas a lembrança de minha pobre falta de
julgamento me deixou amarga e na defensiva.
— Tudo bem. Você venceu. O Jase não era meu amigo.
A irritação esculpiu suas feições.
— Minha impopularidade e sinceridade te agradam? — Um
tremor começou em meus pés, subiu por minhas canelas, minhas
coxas, meu torso e se espalhou por meus punhos cerrados. Para
evitar que Asher percebesse, cruzei os braços.
— Apenas me diga quem eu terei o prazer de recuperar amanhã
e vá embora.
— Não.
— Não, o quê? Não foi uma sugestão.
— Eu não vou embora quando você está prestes a... — ele
acenou com a mão na minha direção — desmoronar.
— Não estou prestes a desmoronar. Estou prestes a quebrar
alguma coisa. Talvez o seu nariz, se você não conseguir sair da
minha casa. — Peguei a gola solta do meu suéter e o puxei, mas ele
se amontoou de volta no meu ombro. — Então. Quem?
Seus lábios ficaram mais finos do que o espaço entre os
recipientes de comida na mesa, e não tinha distância nenhuma
entre os pratos de alumínio.
— Lamento que você tenha se importado com um idiota e que
ele tenha te magoado.
— Tudo bem. Que seja. — Eu duvidava que ele lamentava
mesmo.
Ele jogou a jaqueta no braço do sofá e caminhou em minha
direção. Antes que eu pudesse reagir, Asher me envolveu em seus
braços e me pressionou contra seu peito, prendendo meus braços
cruzados entre nós.
Tentei me esquivar.
— O que, em Abaddon, você pensa que está fazendo?
— Estou te abraçando, Celeste.
— Então me solte. Não quero abraço. — Tentei
desesperadamente libertar meus braços, mas eu estava presa de
verdade.
— Se a Muriel ou a Naya estivessem aqui, elas teriam te
abraçado. E você teria permitido.
Inclinei meu pescoço o máximo que pude.
— Mas não quero o seu abraço.
— O que há de errado com ele?
— Seu abraço é por pena, e não quero sua pena.
— Pena? — Ele segurou minha nuca com gentileza.
Certo, tudo bem. Não parecia pena. Pelo menos, não a parte de
sua anatomia contra meu abdômen. Embora provavelmente tenha
sido apenas uma reação fisiológica ao atrito que provoquei ao me
contorcer.
— Por que você não me diz o que estou fazendo de errado para
que eu possa melhorar minha técnica? — ele perguntou em tom
baixo e grave, o que fez minha pele se arrepiar. Por que ele não
poderia ter uma voz de desenho animado, completa com um
guincho? — Só abracei outra pessoa, e ela se encaixa na curva de
um braço. Embora ela reclame de um monte de coisas, nunca
reclamou disso. Então? Como faço para que ele seja melhor?
— Me soltando.
O silêncio ressoou entre nós, seguido por Asher engolindo
lentamente.
— Eu tentei. Tentei por uma semana inteira, e então você decidiu
se vincular ao seu ex. E eu fiquei tão cego de raiva que aqui estou,
fazendo papel de bobo, tentando me agarrar a alguém que despreza
tudo o que sou e que faço.
Suspirei.
— Não desprezo você ou seus abraços, mesmo que eles sejam
um pouco avassaladores. Quanto ao Jase, ele não é, nem nunca foi,
meu namorado.
Ele franziu o cenho.
— Você dormiu com ele. Morou com ele.
Inclinei a cabeça mais para trás, o que fez seus dedos se
afastarem do meu pescoço.
— Dormi com ele porque era divertido e descomplicado, e morei
com ele porque era prático.
Doze batidas do seu coração depois – eu as contei – ele grunhiu.
— As mãos dele estavam em cima de você.
Levantei uma sobrancelha.
— Por que você se importa?
— Eu me importo porque a alma dele está contaminada, e a
sua... a sua não está.
Eu bufei.
— Sou a artilheira do quadro de classificação dos pecados da
associação.
— Não há classificação de pecados da associação.
— Mas se houvesse, eu derrotaria todo mundo.
— Você pode, por favor, parar de se rebaixar?
— Tecnicamente, estou me colocando para cima. Melhor
pontuação.
Ele soltou uma respiração frustrada que atingiu minha testa.
— Olha, posso ter sido ingênua quando se tratava de Jase, mas
meus olhos estão bem abertos agora. Espero que ele mude? Sim.
Serei eu quem vai mudá-lo? Não. Eu não posso. Achei que podia,
mas amizade e negócios realmente não são uma boa mistura.
Asher observou meus olhos como se quisesse ter certeza de que
eu estava falando a verdade. Eu não tinha certeza do porquê ele
estava olhando para o meu rosto. O ar em volta das minhas pernas
era muito mais revelador.
— Você dormiu com muitos homens?
Cada sarda no meu rosto – e havia muitas – esquentou. Desde
quando eu corava? E desde quando os Arcanjos se preocupam com
a vida sexual dos Plumas? E por que a palma da sua mão ainda
estava na parte inferior das minhas costas? Tentei me afastar, mas
ele me manteve firmemente presa. Com tanta força, parecia que
meu coração havia se soltado e estava chutando minha espinha.
Seus olhos se fecharam e sua boca franziu como se ele tivesse
acabado de morder algo azedo.
— Por quê?
Seus olhos se abriram e suas sobrancelhas franziram como se
ele estivesse com raiva.
— Tantos assim?
— Tantos assim?
— Imagino que haja muitos, se você não quer responder.
— Não quero responder porque é uma pergunta muito pessoal.
Sem mencionar uma que não te diz respeito.
— Tem razão. — Sua mão deslizou pela parte inferior das
minhas costas e, em seguida, seu olhar baixou, removendo os dois
últimos pontos que uniam nossos corpos.
Sua reação fez meu coração negligenciar algumas batidas. Ele
estava com ciúme ou simplesmente curioso? Abaixando os braços,
cedi.
— Tive dois outros parceiros antes do Jase. Os dois em Paris.
Nenhum sério.
Ele me olhou pelos seus longos cílios cor de mel.
— Eu nunca tive um relacionamento de verdade, porque nunca
quis ter. Nunca quis experimentar a dor que partiu o coração da
Leigh. Se apegar traz alegria, mas a dor que vem com isso... não
tenho certeza se compensa. Sim, eu amava a Mimi e a Leigh com
meu coração e minha alma, mas não com meu corpo. Não consigo
imaginar amar alguém com os três. A perda de tal amor... seria
destruidor. Então, essa é minha história não muito emocionante.
Quantas pessoas você amou em todos esses anos de vida que
teve?
— Como você amou a Leigh e a Muriel? Duas. Tobias e Naya.
— E como a Leigh amava o Jarod? Como você os chamou
mesmo? Almas metades? — Não se torture, Celeste. Não pergunte
se ele tem uma. — Você conheceu a sua? — Eu queria me sacudir.
Mas meu coração fez isso por mim. Ele estremeceu de forma tão
violenta que fez minhas costelas tremerem.
Seu olhar desviou para a comida que estava esfriando na mesa
de centro e ficou lá.
— Conheci.
Meu coração se afundou e parou, assim como meu tremor.
— Achei... quando?
— Há anos. — Sua mandíbula se apertou. Uma vez. Duas
vezes.
Há anos? Ele a tinha perdido? Era por isso que ele era tão
amargo sobre relacionamentos?
— Por que você não se casou com ela?
— Porque ela não era elegível.
Fiz uma careta.
Antes que eu pudesse questionar mais e descobrir a raiz do mau
humor do Arcanjo, seus olhos encontram os meus com a força de
um soco.
— Você disse que não fui o primeiro homem por quem você
ardeu em chamas, mas você perdeu uma pena.
Eu pisquei.
— Isso é uma pergunta ou uma avaliação dos meus modos
rancorosos e enganosos?
— É uma pergunta.
— Eu menti. Você foi a primeira pessoa por quem eu já ardi.
— Por que você mentiu?
— Menti porque estava mortificada, e você parecia horrorizado.
— Não fiquei horrorizado. — Seu pomo de Adão se moveu
— Bem, parecia.
— Eu estava em pânico, não horrorizado.
— Não tenho certeza de como isso é melhor — murmurei.
— Não tenho permissão para tomar uma consorte.
O que eu sabia que era uma maneira galante de dizer que ele
não estava interessado. Não apenas eu era uma híbrida, mas
também não era sua alma metade.
Escondi minha decepção sob um forte revirar de olhos.
— Ardi em chamas por você, Seraph. Não estou esperando uma
proposta de casamento. Simplesmente aconteceu. Acredite em
mim, eu gostaria de poder desarder, mas isso não é uma
possibilidade, então tenho que viver com esse constrangimento.
— Não há constrangimento em arder em chamas.
Olhei de lado para ele.
— Você obviamente nunca abriu suas asas para alguém por
acidente.
Ele deu um sorriso triste.
— Não. Não abri.
— Rei do autocontrole, conheça a rainha que cintila sem jeito. —
Soltei um suspiro. — Você pode, por favor, esquecer minha pele
luminescente?
— Não posso nem quero. — Um toque de tristeza apagou a luz
em seus olhos. — Mas, infelizmente, isso não muda o fato de que
tudo o que tenho a oferecer é minha amizade. E meus abraços. Que
prometo melhorar — ele sorriu — se você permitir.
Meu coração batia forte contra minhas costelas, fazendo meu
peito doer e minha garganta se apertar.
— Ok, tudo bem, claro. — Me joguei no sofá e peguei um pão
naan. A massa crocante estava fria. Mesmo assim, dividi em
pedaços, que comi sem saborear. O que, em Abaddon, havia de
errado comigo?
Olhei para a garrafa de vinho, desejando não ter jogado a bebida
fora. Claro, álcool não era a resposta, mas não havia nada como um
bom drinque para acalmar os nervos. Lembrando que eu tinha um
refrigerador de vinho abastecido, me levantei e evitei o Arcanjo
enorme.
Quando saí de sua linha de visão, minha respiração desacelerou
um pouco e meu coração parou de se catapultar contra meu peito.
Pressionei a testa contra a porta de vidro fria da adega embutida e
fechei os olhos.
Vinho. Vim buscar um pouco de vinho.
Inspirei de forma dolorosa, expirei lentamente, então repeti o
processo. Pensei no advogado que conheci na minha noite com
Fernanda. Talvez eu pudesse ligar para ele. Fazê-lo tirar minha
cabeça da confusão que me envolvi ao arder em chamas por
alguém interessado apenas em minha alma.
Mas percebi que tanto a garrafa que eu queria abrir, quanto o
homem que eu queria ligar eram apenas paliativos e que mesmo se
eles me dessem tempo para me recuperar, não iriam curar a ferida
que o Arcanjo inadvertidamente infligiu ao meu coração esta noite.
Como eu gostaria de não ter desejado ele.
Meu olhar desviou para a bancada que ele disse que consertaria.
Talvez algumas coisas quebradas nunca pudessem ser
consertadas.
Sufocando meu surto atípico, voltei para a sala e injetei em meu
tom uma leveza que não estava sentindo.
— Vai mandar consertar a bancada da cozinha, Se... — A última
sílaba se tornou ar com a visão da sala de estar vazia.
Bom.
Ele se foi.
Isso era bom.
Então por que me senti tão mal?
37

M inha garganta e meu coração machucados me fizeram


ter um sono agitado. Mesmo assim, na manhã
seguinte ao me vestir, encontrei um bilhete escrito à
mão na cozinha dizendo que deveria ir com calma nos próximos
dois dias. Mesmo que o tempo estivesse passando, não insisti em
assumir uma nova missão. Voltei para a cama e cuidei das minhas
feridas.
Me sentindo melhor no segundo dia, comprei um livro de colorir e
um estojo de canetinhas e caminhei até a associação para visitar
Naya. Nos sentamos à mesa do refeitório e, à sombra da figueira,
passamos a tarde tagarelando e enchendo papel após papel com
cores vivas.
Muitas vezes, olhei para ela e me perguntei como alguém não
reconhecia sua alma. Quer dizer, eu estava feliz por isso. Se alguém
além de Ophan Mira descobrisse...
Estremeci só de pensar.
Assim que tive esse pensamento, duas Ishim uniformizados
entraram no refeitório. Embora um galho baixo cheio de frutas
maduras e folhas nos isolasse do resto do refeitório, os olhos de Ish
Eliza cruzaram a sala em minha direção. Eu esperava que ela não
tivesse vindo para ter uma conversa sobre pecado e pecadores,
porque eu não estava com humor para conversar sobre qualquer
uma dessas coisas. Depois de ver minha companheira, seus lábios
contraídos franziram mais um pouco.
— Ela quer se casar com o Apa — Naya falou, sem tirar os olhos
das penas do papagaio que ela estava pintando cuidadosamente.
O ciúme me atingiu. Isso não era novidade, mas não significava
que eu gostava de ouvir.
— E o seu Apa quer se casar com ela?
— O Apa não tem permissão para se casar.
Essa não foi minha pergunta, não exatamente, mas decidi que
enfatizar a parte do querer só me faria parecer desesperada.
Eliza dobrou suas asas cor de lavanda brilhantes enquanto
caminhava em direção a Pippa. A voz da Ishim não foi ouvida, mas
percebi que não era o objeto de sua visita quando ela, junto com
sua colega Verity, saiu do refeitório.
— A Ophan Pippa disse que a única mulher com quem ele teria
permissão para se casar seria minha mãe. — Naya mordeu a ponta
da caneta e balançou a cabeça, fazendo as maria-chiquinhas loiras
baterem sobre o macacão rosa que ela combinou com uma
camiseta de unicórnio brilhante.
— Sua... mãe? — A mãe biológica de seu corpo ou da sua
alma? A mãe de Leigh não era casada?
Naya deu de ombros.
— O Apa nunca fala dela, então não acho que ela esteja viva. —
Ela desviou o olhar de seu papagaio. — Você a conhecia?
— Não. — Nunca conheci a mãe do seu corpo ou de sua alma.
Os pais de Leigh nunca haviam visitado a associação, algo que
entristecia imensamente a minha amiga.
Então pensei em minha própria mãe, mas suspirei. Qual era o
sentido de pensar em alguém que não se importava com você?
— De quantas penas você ainda precisa, Celeste?
— Muitas. — Peguei uma caneta turquesa e passei no rosto de
meu lobo. A cor era uma combinação exata dos olhos de Asher. Só
faltou um pouco de bronze.
Naya estendeu a mão e segurou a minha, fazendo minha caneta
se arrastar pela folha.
— Você vai ganhar todas elas. O Apa vai se certificar disso.
— Seu Apa pode ter poderes mágicos, Naya — com a mão livre,
toquei a leve cicatriz que ainda marcava meu pescoço —, mas
infelizmente ele não pode colorir de forma mágica os ossos das
minhas asas. — Apertei sua mão. — Mas fique tranquila, anjinho,
não vou desistir.
Parei na Sala de Classificação, antes de ir encontrar Naya, para
verificar minha pontuação. Embora eu tivesse ganhado cento e
setenta e oito penas em três semanas, ainda tinha um longo
caminho a percorrer para chegar a mil. Quatrocentos e noventa e
nove para ser exata. E apenas dois meses.
Eu provavelmente não deveria ter tirado dias de folga.
— Vamos jogar Nem sim, nem não.
Me acalmei enquanto lembranças após lembranças das vezes
que havíamos jogado surgiam em minha mente.
— Por que esse jogo? — perguntei com cautela.
— Porque é o meu favorito.
— Que engraçado. É o meu favorito também.
— Eu sei. Quero dizer... — Seu cenho franziu.
— Como poderia não ser o meu favorito, já que gostamos de
tantas coisas iguais?
— Sim.
Eu sorri.
— Um ponto Celeste. Zero Naya.
Ela abriu a boca.
— Ei. Eu não sabia que já tínhamos começado.
— Sou imbatível neste jogo, mas dê o seu melhor.
Um sorrisinho que eu poderia ter chamado de tortuoso, se ela
tivesse um osso tortuoso em seu corpo, curvou sua boca.
— Você ama meu Apa.
— Não. — Tossi. — O que te deu essa ideia? — Respirei fundo
quando uma pena saiu dos ossos das minhas asas. Argh.
Ela ergueu a mãozinha e abriu um sorriso tão grande que
enrugou seu rosto.
— Um a um. Você disse que não. — Mas então seu nariz franziu
e o sorriso sumiu quando ela viu minha mentira. — Você perdeu
uma pena.
Me concentrei muito na minha coloração.
— Posso tocar?
Larguei a caneta e olhei entre Naya e a haste que continha uma
das minhas memórias.
— Sim.
Ela pulou da cadeira e se agachou, então estendeu a mão para
pegá-la. Seus olhos se fecharam enquanto ela a apertava na palma
da mão. Logo, as farpas roxas se desintegraram em poeira
cintilante.
Quando ela abriu os olhos, estavam brilhantes.
— Não sabia que as pessoas podiam ser tão más com sua Ama.
Fiz uma careta, tentando me lembrar de quem ela poderia ter
visto. Um menino com quem me vinculei há seis anos me veio à
mente. Thomas. Ele gostava de insultar a mãe, dizer que ela estava
com sobrepeso, que era preguiçosa e que esse era o motivo de seu
pai ter ido embora. Foi isso que ela viu? Quase desisti dele, mas no
final, fiquei por perto e testemunhei uma reconexão emocionante. O
menino finalmente percebeu que seu pai era um canalha e pediu
perdão à mãe.
Contei a Naya o final dessa história, porque não queria que a
memória presa na minha pena a desanimasse pelo que ela teria que
fazer em alguns anos. E então jogamos mais algumas rodadas de
Nem sim, nem não. Acabamos empatadas em cinco a cinco.
— Quero asas de arco-íris quando eu crescer. — Naya pintou os
olhos do seu papagaio de verde.
— Asas de arco-íris?
— Cada pena de uma cor. Exceto preto. Não quero asas de
morcego. — Ela torceu o nariz.
Meus lábios se curvaram.
— Que bom que nenhum anjo jamais teve asas negras.
Quando voltamos a colorir, eu me perguntei se, neste novo
corpo, ela teria asas verities cintilantes ou se a transferência de sua
alma alteraria o brilho de suas asas.
— Mal posso esperar para vê-las. Qualquer que seja a cor,
porque sinto que serão lindas.
Ela sorriu, e embora seus lábios não tivessem a forma dos de
Leigh, a garota que eu conhecia transpareceu naquele sorriso.
D noite inteira de sono e uma visita ao meu salão
favorito, fui em direção à churrascaria para encontrar meu mais
novo pecador: um maitre que ganhava muito dinheiro vendendo
conversas de negócios ouvidas para partes interessadas.
Quando pisei no barulhento espaço masculino, o Arcanjo já
estava sentado, vestindo algo tão diferente da sua combinação
usual de camurça de Elysium e camiseta e jeans que quase passei
direto por ele. Certo. Isso foi um exagero. Ele não era o tipo de
homem pelo qual alguém poderia passar sem ver.
— Eu deveria ter me arrumado? — Observando o corte fino de
seu terno azul marinho e camisa branca com o colarinho aberto, me
acomodei na cadeira de couro volumosa em frente a ele.
— Não. Por quê? — Seus olhos pareciam um pouco mais
escuros do que o normal, como se ele tivesse passado algumas
noites difíceis. Já que Elysium não era conhecido por suas festas
selvagens, presumi que fosse trabalho.
Fiz um gesto entre minha camiseta roxa adornada com a
ilustração de um tigre rosnando e seu terno extravagante.
Ele olhou para o colo como se tivesse esquecido o que vestia.
— Ah. Não. Me vesti assim porque sou o seu disfarce. Vamos ter
um almoço de negócios.
Tirei minha jaqueta.
— E o que você está vendendo? Halos que brilham no escuro?
Um sorriso relaxou seu semblante rígido.
— Nada de auréolas. Apenas uma rede de lojas de roupas.
— Legal.
Seu olhar focou em minha garganta, na cicatriz e no hematoma.
— Como está o seu pescoço?
— Curado.
Por um momento, nenhum de nós falou, apenas nos encaramos.
Eu não tinha certeza do que se passava em sua mente, mas o
cansaço que emanava dele me preocupou.
Acima da conversa em volta, perguntei:
— Está tudo bem, Seraph?
— A Naya disse que você a visitou.
Achei que minha pergunta permaneceria sem resposta.
— Sim. Nós colorimos. Foi a maior diversão que tive em um bom
tempo. — Pensei no papagaio da cor do arco-íris que agora estava
apoiado ao lado da pintura de penas roxas na minha cômoda. —
Eliza estava na associação. Você sabe o que ela estava fazendo?
— Visitando uma Pluma que acabou de completar suas asas.
Alívio por ela não ter ido por Naya ou por mim guerreou com
ciúme por uma das minhas colegas estar ascendendo enquanto eu
ainda estava tão longe disso.
— Você vai acompanhar os Ascensionados através do canal?
— Eu não os acompanho.
— Você acompanhou a Leigh.
— Geralmente não os acompanho. — Ele se recostou na
cadeira, mas não havia nada relaxado em sua postura. — Você
estava inconsolável naquele dia.
— Eu estava perdendo a minha melhor amiga. — Eu mal sabia
que era o começo do fim. Passei os dedos pelo meu cabelo,
entrelaçando as unhas vermelhas brilhantes pelo ruivo profundo. —
É realmente uma pena que você não acompanhe os
Ascensionados.
— Por quê?
— Porque eu esperava que você me levasse através do canal.
Você sabe, porque você é meu mentor e tudo mais.
E tudo mais? Eu poderia soar mais idiota? Ele era meu mentor e
talvez amigo, mas era isso.
Mesmo que a sala estivesse escura, uma faísca brilhou em seus
olhos.
— Ah, eu estava planejando abrir uma exceção para você. Como
você disse, sou seu mentor. Normalmente eu a veria no final de sua
jornada.
Um ponto de calor tocou meu peito. Ele percebia o efeito que
tinha sobre mim? Claro, eu ardi em chamas, mas ele estava ciente
do quanto o meu desejo estava crescendo?
— Que bom. Eu estava preocupada que Ish Eliza tivesse que me
conduzir através do canal.
Ele sorriu.
— Pobre Eliza. Você realmente não gosta dela.
— Não costumo gostar de pessoas que consideram os que estão
abaixo delas com desdém.
Além disso, não gostava de pessoas que competiam pelos
mesmos homens, não que houvesse uma competição, já que o
Arcanjo não estava no mercado. Para uma consorte, pensei. Talvez
ele estivesse procurando uma namorada. E talvez ele estivesse
considerando Eliza. Afinal, ela era uma Verity. Ah, anjos, e se ela
fosse sua alma metade? E se ela não fosse elegível porque ainda
era uma Pluma naquela época?
— Quantos anos a Eliza tem?
Ele franziu a testa.
— Não tenho certeza. Duzentos e cinquenta, eu acho. Por quê?
Como se eu fosse responder a isso. Era bobo, mas sua resposta
me encheu de alívio. Sim, ele ainda tinha uma alma metade em
algum lugar, mas pelo menos não era a classificadora.
— Eles ainda não estão no mercado. — Asher meneou a cabeça
discretamente em direção ao homem que apareceu ao lado da
nossa mesa com uma jarra cromada e a testa suada.
Ah. Presumi que o garçom com costeletas dignas de um
romance vitoriano era o meu escolhido do dia.
— Estão entrando com pedido de falência — Asher falou.
O personagem de Jane Eyre demorou a encher nossos copos de
água.
— Em outras palavras, sua empresa poderia comprá-los por um
valor simbólico.
Eu me inclinei para frente, fingindo interesse extasiado.
— Se eles vão à falência, por que minha empresa ia querer
comprá-la?
— Porque eles têm dinheiro em conta. Seis milhões que virão
com a compra.
Eu não tinha ideia se as empresas que estavam indo à falência
tinham dinheiro, mas entender de negócios não era o ponto.
Meu pecador apertou a jarra contra o peito.
— Gostariam de ouvir os especiais de hoje?
— Com todo o prazer, Jacques. — Asher acenou com a cabeça
em minha direção. — Celeste, conheça o Jacques. O homem que
fez desta churrascaria uma instituição de Nova York.
— Você me lisonjeia, sr. Asher.
— Estou apenas falando a verdade.
Olhei entre os dois homens, surpresa por eles se tratarem pelo
primeiro nome. Depois de ouvir os especiais, Jacques recuou em
direção a um dos garçons de paletó e repassou nosso pedido, em
seguida, caminhou em direção a outra mesa para repetir seu
disfarce de espionagem oferecendo água.
— Você costuma comer e beber com Plumas neste lugar?
— Nunca dividi refeições com Plumas. Além da minha filha e de
você. — Sua expressão se tornou tão dura e sombria quanto a
decoração de nogueira da churrascaria. — E ainda que eu conheça
o Jacques... sua pontuação continua subindo, um ponto após o
outro. Ele não é um homem mau, mas se não tomar cuidado, vai
terminar com uma pontuação impossivelmente alta.
— Qual é a pontuação dele hoje?
— Quarenta e quatro. Ele vendeu muitos segredos delicados e
não tem motivação para parar.
Examinei o homem das costeletas.
— Então preciso motivá-lo...
Quando me virei para Asher, meu olhar se fixou em um rosto
vagamente familiar. Tentar reconhecer o homem que colocava um
casaco alinhado me fez olhar para ele por muito tempo. Ele sorriu
enquanto enfiava o telefone no bolso da camisa e se aproximava.
Seu nome me veio à mente assim que ele nos alcançou.
— Phillip. — Sorri. — Nos encontramos novamente.
— Quais as chances? — Phillip se virou para Asher, que parecia
ter se tornado tão sombrio quanto a escuridão do ambiente. —
Desculpe interromper seu almoço. — O olhar verde de Phillip voltou
para mim. — Só queria passar aqui e verificar se você não perdeu
meu número.
Balancei o celular.
— Não o perdi.
— Você deveria usá-lo. Eu vou atender.
Ri de sua franqueza. Ele inclinou a cabeça em direção a Asher,
então piscou para mim antes de caminhar em direção à porta.
Quando olhei na direção do meu companheiro de almoço, fui
recebida com uma carranca de gelo.
— Ele é uma distração. — Asher empurrou o guardanapo em
seu colo. — Você não precisa disso.
Semicerrei meu olhar.
— Posso não precisar, mas talvez eu queira.
Eu não estava tentando irritá-lo, mas minha declaração
aprofundou sua careta. Fiquei esperando que ele empurrasse a
cadeira para trás, dobrasse o guardanapo e declarasse que eu
estava condenada, mas Asher não se mexeu do assento de couro
acolchoado. Nem mesmo quando encurralei Jacques ao lado do
banheiro depois do prato principal e fingi estar bêbada com a única
taça de vinho que pedi e bebi. Tudo parte do meu plano para
reformá-lo. Soluçando, implorei ao maitre que me oferecesse um
conselho imparcial sobre minhas negociações falsas, escorregando
nos números e no nome de um verdadeiro concorrente. Depois de
um conselho prolixo, Jacques apresentou a conta a Asher, tentando
nos tirar dali e vender minhas divagações ao melhor lance.
Quando cruzamos a Terceira Avenida, o olhar de Asher baixou
para o meu caminhar.
— Relaxe, não estou bêbada, Seraph. Foi apenas uma atuação.
— Eu disse alguma coisa?
— Não, mas posso ver as engrenagens girando. — Parei na
esquina. — Vou caminhar um pouco. — Um convite para se juntar a
mim se prendeu à ponta da minha língua. Não éramos o tipo que
passeávamos juntos.
Ele tinha coisas melhores para fazer. E asas. Ele provavelmente
gostava de usá-las mais do que seus pés, especialmente
considerando como as calçadas de Nova York eram cheias.
— Preciso dar a Jacques um ou dois dias para prosseguir com o
que comecei. — Enrolei meu cabelo e o soltei sobre meu ombro.
Um nervo vibrou na mandíbula de Asher como se ele quisesse
dizer algo.
— Se você ficar entediado governando Elysium, você tem meu
número. Na verdade... você tem?
— Tenho.
— Eu não tenho o seu.
— Vou resolver isso. — Ele puxou seu telefone celular e, um
segundo depois, o meu vibrou.
— Ótimo.
Esperei que ele falasse algo semelhante ao que Phillip disse,
mas nenhum convite para ligar escapou de seus lábios tensos. E
então suas asas se materializaram, mas ele não as esticou nem as
bateu, simplesmente olhou para mim com uma intensidade tão
desarmante que meu coração girou como um pião batendo em
direção à borda de uma mesa.
Dominando a decepção por trás de um sorriso, fechei o zíper da
jaqueta e me afastei.
— Ligarei para você quando sentir que consegui falar com ele.
Assim você pode verificar minha pontuação e me vincular ao
próximo pecador.
Ele continuou mudo. Não deu nem mesmo tchauzinho. Não que
Asher fosse o tipo de homem que dizia tchauzinho, mas um tenha
uma tarde agradável teria sido bom.
Eu gostaria de poder culpar a azia pela dor aguda que crescia
dentro de mim, mas não tinha nada a ver com bolinho de
caranguejo, costeleta e a cesta de batatas fritas que eu ingeri. Meu
coraçãozinho bobo simplesmente queria alguém que não poderia
ter... alguém que me propôs amizade.
Esfreguei a parte inferior das minhas costelas distraidamente e
depois de meia hora chafurdando, procurei o contato de Phillip. Ele
era fofo, estava disponível e, o mais importante, estava interessado.
Mandei uma mensagem simples para ele: Oi.
Alguns segundos depois, ele respondeu: Celeste?
EU: Encontrei seu número.
PHILLIP: Eu respondi.
EU: Estou vendo.
Mesmo desejando estar tendo essa conversa com outro homem,
fiz planos. Planos que levaram a comprar roupas diferentes de tudo
que eu possuía. Hesitei momentaneamente em cortar as etiquetas
de preço, mas no final, eu o fiz. E na noite seguinte, vesti uma das
minhas compras – um vestido tão branco que quase cegava e tão
curto que era quase indecente.
E então adicionei outro item que nunca pensei que usaria: saltos
agulhas.
Enquanto olhava para meu reflexo no espelho do banheiro,
pensei em Mimi, imaginei-a escovando meu cabelo, me dizendo que
mulher linda eu havia me tornado. Ela me dizia isso com frequência,
como se esperasse que se dissesse o suficiente, eu começaria a
acreditar.
Ela me acharia bonita esta noite?
Eu me sentia um pouco bonita.
Também me sentia muito triste.
Peguei seu batom favorito, um vermelho que combinava com as
minhas unhas, e o apliquei. E então saí antes que pudesse esfregá-
lo, tirar o vestido e os sapatos para esperar por um homem que não
viria.
38

E u sabia que estava diferente quando saí do elevador, mas


não tinha percebido o quanto até que o porteiro olhou duas
vezes. Se eu pudesse me sentir diferente também... talvez
me sentisse depois desta noite. Talvez Phillip fosse divertido, fofo e
afastasse meus pensamentos do Arcanjo taciturno.
Passei os primeiros dez minutos da corrida de táxi ao centro da
cidade tentando aumentar meu entusiasmo para o encontro, os
próximos dez puxando a bainha do vestido me perguntando o que
em Abaddon havia dado em mim para usá-lo, e os dez últimos me
debatendo para dizer ao motorista para voltar para casa.
No final, saí do táxi e caminhei até a galeria de arte da moda
onde Phillip sugeriu que nos encontrássemos antes do jantar.
Esperei por ele do lado de fora, mas entre atrair uma quantidade
perturbadora de atenção e o ar fresco da noite, entrei. Peguei o
telefone e abri as últimas conversas. Meu olhar se demorou no
nome abaixo do de Phillip: Jase.
Mesmo que eu quisesse saber como ele estava, cliquei no meu
bate-papo com Phillip.
EU: Estou aqui.
Esperei alguns minutos a sua resposta. Quando a resposta não
veio, enviei a ele: Está tudo bem?
Quinze minutos se passaram. Mesmo que eu continuasse
checando o telefone, caminhei pela galeria, porque eu tinha orgulho
suficiente para não ficar parada no meio do espaço muito iluminado,
parecendo um cachorrinho abandonado.
Eu nunca tinha levado um bolo antes e doeu. E pensar que eu
não tinha grandes expectativas para este encontro... não conseguia
imaginar como seria esmagador se fosse alguém de quem eu
realmente gostasse.
Assim que superei a mágoa, aproveitei ao máximo meu passeio
e caminhei pelo labirinto de galerias que ficava menor e mais escuro
quanto mais eu entrava no prédio que ocupava um quarteirão
inteiro. Mas em vez de opressivo, a luz fraca e as salas próximas
acentuavam a arte. Também aumentava o vazio das galerias, com
os outros visitantes se aglomerando no espaço mais amplo e lotado
de gente. Afinal, a maioria das pessoas saiu para ser vista, não para
ver.
A última galeria, que não era maior do que o quarto que aluguei
no apartamento de Jase, continha uma peça particularmente bonita:
o horizonte de Manhattan feito inteiramente de palavras. Me inclinei
para a frente e olhei para os rabiscos. Era um poema, uma ode a
Nova York e aos nova-iorquinos. Tirei algumas fotos, querendo
mostrar a Naya. Talvez pudéssemos trabalhar em um projeto como
este juntas.
— Não sabia que você era admiradora de arte.
Meus ombros travaram ao som do timbre profundo. Lentamente,
eu me endireitei, e então mais devagar ainda, me virei.
Asher estava usando um terno novamente, um preto de três
peças desta vez.
— Esperando outra pessoa?
— Decidi não alimentar expectativas em relação às pessoas.
Isso diminui muito a minha decepção. — Mesmo usando sapatos de
salto alto, eu ainda era vários centímetros mais baixa que o Arcanjo
e tinha que inclinar a cabeça. — No entanto, estou surpresa em vê-
lo aqui e curiosa sobre como você sabia onde eu estaria.
Seu olhar se desviou para meu vestido curto, branco e sem
alças. Se fosse qualquer material diferente de chiffon plissado e
seda drapeada, seria vulgar. Mas não era. A aparência do vestido
era cara. E bonita. Pelo menos, foi o que achei. Eu não tinha certeza
se o Arcanjo compartilhava da minha crença, considerando o quanto
ele ficou carrancudo.
— Palpite de sorte — ele finalmente disse.
— Da mesma forma que não acredito muito nas pessoas, não
acredito muito na sorte. Você me seguiu? Rastreou meu telefone?
Verificou minha localização em seu aplicativo GPS de Plumas?
— Ainda não temos um desses, mas seria bastante conveniente.
— Você estava preocupado que eu estivesse procurando
distração?
— Não.
Uma mulher tentou entrar pela abertura estreita e solitária, mas
duas pessoas já eram uma multidão, então ela olhou para a pintura
atrás de mim, se virou e recuou.
Eu me concentrei em Asher.
— Como assim, não?
— Eu não estava preocupado que você estivesse se distraindo,
porque eu sabia que estaria aqui sozinha.
Franzi o cenho. Até compreender o significado de suas palavras.
— Você cancelou meu encontro?
Suas asas se materializaram, adicionando volume à sua forma já
imponente.
— Não posso acreditar que você fez isso. Você não tinha o
direito! — A raiva envolveu minha surpresa, dominando-a tão
completamente que não pude apreciar que não tinha levado o cano.
Asher nem teve coragem de parecer atrevido.
— Primeira regra da amizade: — falei com firmeza — não se age
pelas costas do seu amigo e cancela seus encontros.
— O Phillip fraudou os exames de admissão na faculdade e traiu
as duas últimas namoradas. Eu estava cuidando de você.
— Não acredito que você está se justificando! O que foi que você
disse que ele nem teve a decência de criar colhões e me ligar?
— Falei para ele perder seu número.
Apertei meus braços com força, fazendo as juntas dos dedos
embranquecerem.
— Você não tem vergonha.
— Em dois meses, você terá partido.
— Ou não! — Joguei as mãos no ar, exasperada. — Mas isso
não vem ao caso!
— Vai, sim. — O Arcanjo tinha noventa e nove problemas, mas
falta de confiança em mim não era um deles.
— Ainda não te dá o direito de decidir o que faço durante o
tempo que me resta — resmunguei.
O ar ao redor de seu corpo parecia balançar com o calor, como
se seu aborrecimento estivesse alimentando o fogo em suas veias.
— Não estou com vontade de estar na mesma sala que você
agora. — Tentei evitá-lo, mas ele abriu mais suas asas até que as
pontas cor de bronze roçaram as paredes da galeria.
Sim, a sala era pequena, mas suas asas eram ridiculamente
enormes.
Parei a um centímetro das suas penas.
— Feche-as, ou vou empurrá-las.
Ele não saiu do meu caminho.
Olhei para ele.
— Estou falando sério, Seraph. Guarde-as. Agora.
— Não posso.
— Não pode? — Me virei para ele e resmunguei: — Por quê?
Câimbra?
— Não.
— Então por que você não pode fechá-las ou removê-las com
magia?
— Quando você ardeu em chamas por mim, Celeste...
— Eu disse para esquecer isso. — Soltei um suspiro irritado,
xingando minha alma e pele por ter ardido para ele.
— Quando você ardeu em chamas por mim, sua luminescência
se apagou instantaneamente?
— Não vejo como a duração da minha combustão tenha algo a
ver com você não ser capaz de tirar suas asas do meu rosto.
— Celeste — ele grunhiu.
— O que, Seraph?
— Estou abrindo as asas para você.
39

N ão saía fumaça da pele do Asher, mas as veias em suas


mãos e ao longo de seu pescoço estavam distendidas.
Pisquei para ele e depois para suas asas, e de volta
para ele.
— Por quê? Por que você está abrindo as asas para mim?
Ele fechou os olhos e apertou a ponta do nariz.
— Porque eu perdi a porcaria da minha cabeça angelical — ele
falou tão baixo que mal ouvi suas palavras por causa da batida em
meu peito. Quando seus olhos se abriram, suas íris, geralmente tão
vívidas e claras, estavam cheias de trovões. — Porque sou um
homem egoísta, que tem pouco a oferecer, mas que quer tudo em
troca.
Minha respiração desacelerou, e a coisa em meu peito, a que
cobiçava o Arcanjo, apesar de ele ser inconstante, controlador e
inacessível, se expandiu.
— Prometi aos Sete que iria me concentrar em Elysium, em
nosso povo. Jurei evitar toda e qualquer distração, especialmente as
de natureza física. No entanto, aqui estou eu, abrindo as asas para
você. — Ele soltou uma risada amarga que me provocou calafrios
de verdade. — Não mereço ser Arcanjo e, se eu não estivesse tão
preocupado com a Naya e o seu destino, teria abdicado do meu
lugar. Estou apavorado, Celeste. Com medo de que ela seja tirada
de mim. Mas agora também estou com medo de que você seja
tirada de mim. Não posso perdê-la, mas também não posso perder
você. — Sua voz, tão firme e forte, falhou na última parte. — Não
posso me dar ao luxo de ter uma distração, mas também não tenho
estômago para perder você para o Phillip. Ou para alguém como
ele. Como o Jase.
Senti um comichão em meus olhos que se espalhou por meu
nariz e garganta.
Ele me lançou um olhar muito comovente.
— Você não pertence a eles. — Ele engoliu em seco, movendo
sua garganta.
— A quem eu pertenço?
Ele passou a mão trêmula pelo rosto, como se quisesse esfregar
sua frustração.
— Por que não poderíamos ter nos encontrado daqui a vinte
anos?
Meu coração saltou. Se apertou. Saltou. Se apertou.
— A quem eu pertenço, Seraph?
As hastes emplumadas se moveram sussurrando no ar da
pequena galeria quando finalmente começaram a se retrair.
— A mim, Celeste. Você pertence a mim. — E então ele deu um
passo à frente, preenchendo meu espaço. Preenchendo todo o
espaço. — Da mesma forma que eu pertenço a você. — Ele
desabotoou o colete, pegou minha mão e a apoiou contra a camisa
branca, bem na parte inferior da sua caixa torácica. Não estava nem
perto de seu coração, mas algo batia sob sua pele.
— Presumo que você não esteja grávido — acabei dizendo,
porque... o que em Abaddon era isso?
— Você ainda não percebeu... — Não era uma pergunta. Apenas
uma observação.
Ele apoiou a palma da mão sobre meu abdômen e meu
estômago ficou tenso e pressionado contra sua pele. Espere, foi
meu estômago? Onde ficavam os estômagos? Talvez tenha sido
meu coração... talvez o arcanjo finalmente tenha conseguido soltá-
lo.
Ele cobriu minha mão com a que não estava apoiada na minha
barriga.
— O que você está sentindo é a minha alma.
Meus cílios atingiram minha sobrancelha.
— Sua alma? Podemos sentir almas? Achei que apenas
Seraphim e Malakim tivessem essa habilidade.
— Seraphim podem controlar todas as almas. — Ele puxou
meus dedos um pouco mais para baixo, e a batida se seguiu. — Já
os Malakim possuem apenas o poder de guiar as almas de corpos
sem vida para novos corpos. — Ele curvou a mão na minha cintura,
colocando-a na minha coluna. As batidas dentro de mim dispararam
atrás dele como o filhote de Rottweiler que alimentei com granola.
— Da última vez que verifiquei, eu não era um Arcanjo. — Mudei
a mão para a lateral da sua caixa torácica e sua alma bateu forte.
Ele tirou a mão da minha e com a maior gentileza segurou minha
bochecha.
— Você pode senti-la porque minha alma imprudente decidiu que
pertence a sua. — O ar escureceu quando suas asas se enrolaram
ao redor dos nossos corpos. — Ta yot neshahadzaleh, levsheh. —
As pontas dos dedos dele tocaram toda a extensão da minha coluna
e desceram antes de envolver delicadamente a minha cintura. —
Você é minha alma metade, meu amor.
Meu sangue esquentou e então pareceu explodir, iluminando
minha pele que estava envolvida por suas asas.
— E eu que achei que levsheh significava filha do demônio.
Um sorriso tenso cintilou em sua boca.
— Estou declarando a incapacidade da minha alma de existir
sem a sua, e é nisso que você se concentra?
Dei de ombros, mas como estava tremendo, provavelmente
parecia que fui atingida por um daqueles ventos frios que sopraram
ao redor dos arranha-céus no auge do inverno.
— E, filha do demônio? Por que você acha que eu te chamaria
assim?
— Pode ter sido o seu tom.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Meu tom?
— Sim. Você tem uma maneira incomparável de arrancar minha
cabeça com um grunhido.
Seu sorriso se solidificou.
— Você provoca emoções que eu nem sabia que possuía,
Celeste. Emoções que ainda não estou preparado para enfrentar. —
Ele empurrou uma mecha do meu cabelo para trás e desceu os
dedos por toda a extensão do meu pescoço até alcançar a nuca. —
Seja paciente comigo, levsheh.
Levsheh.... amada. Agora que eu sabia o que significava, decidi
que era uma palavra bonita.
— Seraph...
— Por favor, não me chame pelo meu título.
Umedeci meus lábios. Levaria algum tempo para me acostumar.
— Asher... — Usar o nome dado pelos anjos foi tão estranho que
momentaneamente me fez parar.
— Sim?
— Por que você mentiu sobre ter conhecido sua alma metade há
anos?
— Não menti. Eu a conheci há anos. — Ele contemplou minha
pele cintilante com tanta reverência que meu brilho se intensificou.
— Em um banquete da associação em minha homenagem. Até
pude ver suas lindas asas naquela noite e vislumbrar sua alma
virtuosa.
Minha boca se abriu e, por um momento, perdi a capacidade de
produzir som, mas então ela voltou com tanta força que minhas
palavras saíram estridentes.
— Você estava falando sobre mim?
— De quem você pensou que eu estava falando?
— Não sei. — Mordi o lábio. — Você soube naquele momento?
— Que a sua alma era dona da minha? Não. Para que o vínculo
aconteça, é preciso haver contato físico, e não nos tocamos naquela
noite. Obrigado, Elysium, pois você ainda era tão jovem.
— Quando você soube então?
— Comecei a me perguntar no dia em que nos sentamos no
banco do lado de fora da casa de Bofinger, mas tive certeza no dia
em que você me abraçou na frente da Ish Eliza. Minha alma tentou
fugir do corpo quando sentiu a sua.
Eu pisquei.
— Tudo que me lembro é de pensar que você estava a dois
segundos de me matar por ter tocado em suas asas.
Seus lábios se curvaram um pouco mais e, embora sua
expressão não fosse despreocupada, era hipnotizante.
— Você realmente pensa o pior de mim.
— Antes de te conhecer, ouvi histórias de como você era grande
e heroico. O menino de ouro de Elysium. — Com a mão que não
estava sentindo sua alma, tracei o contorno de seu sorriso e abri o
meu. Como o dele, não era brilhante, porque as perdas que tive
diminuíram minha alegria, deixando um rastro de dor. — Tive
dificuldade em acreditar que alguém pudesse ser tão extraordinário.
Mas então você entrou na associação, fez seu grande discurso, e eu
disse a Leigh que ela precisava fazer algo para se tornar sua
consorte. — A lembrança de estar ao lado dela no átrio salpicado de
estrelas naquela noite apagou meu brilho. Como era possível sentir
falta de alguém que ainda estava essencialmente vivo? — Embora
eu esteja feliz por ela não ter me ouvido, ela também percebeu que
você fazia jus a sua fama.
Sua respiração pareceu ficar presa na garganta.
— Nunca duvide da minha admiração, Ser... Asher.
Ele engoliu em seco.
— Você me admira?
— Por tudo que você fez. — Emoldurei sua bochecha com uma
das mãos. — Por tudo que você faz. — Segurei o outro lado de seu
rosto. — E por tudo que você ainda precisa fazer.
O abraço de suas plumas se apertou ao nosso redor, cada haste
felpuda travou, nos mergulhando em mais escuridão.
Mantendo meus olhos fixos nos seus, falei:
— Pensar que você é um pouco meu agora.
Seu pescoço se curvou.
— Sou mais que um pouco seu, levsheh.
— Você também é da Naya e de Elysium.
— Não da mesma forma.
Apoiei minha bochecha em seu peito, bem na base de sua
garganta, e envolvi meus braços em sua cintura, sentindo o toque
suave de suas penas contra minha pele.
Seus dedos se entrelaçaram em meu cabelo e abriram caminho
lentamente.
— Não tenho permissão para me casar.
Eu me afastei.
— Por que você continua batendo nessa tecla? Não me importo
com casamento. Juro que não. A única coisa que me importa é estar
com você. Existe uma maneira de ficarmos juntos ou isso vai lhe
custar seu título?
— Não. Não me custaria meu título. — Ele enrolou as pontas do
meu cabelo em seus dedos e depois os soltou antes de enrolar
novamente.
— Você só está preocupado que eu vá ser uma distração muito
grande?
Ele encostou a testa na minha.
— Não estou preocupado com isso. Tenho certeza de que você
será.
Seus olhos estavam tão atormentados que suspirei.
— Então o que você sugere? Esperar até que a Naya ascenda?
— Já tentei esperar por isso. Por nós. — Ele se aproximou mais
e, na voz mais baixa que ouvi ele usar, sussurrou: — Me mande
embora, levsheh.
Passei a mão pela lateral de seu corpo, sentindo as penas
macias de suas asas acariciarem meus dedos, nos fazendo
estremecer. E então agarrei seu pescoço.
— Não.
— Você merece alguém melhor. Alguém que não infringiu a lei
mais importante de Elysium.
— Eu odeio nossas leis. — Os ossos das minhas asas
tensionaram.
Mas não perdi uma pena. Talvez porque eu não tenha
especificado quais leis eu detestava.
— Por favor, Celeste. Me mande embora.
Enrijeci minha alma e resmunguei o comando que ele queria
ouvir, não porque eu queria que ele atendesse, mas porque eu
queria que ele percebesse que ele não estava preso.
— Vá embora.
Seus olhos se fecharam e se apertaram até que os cantos
enrugassem.
Ele continuou parado, e então pronunciei as palavras odiosas
novamente.
Seus olhos se abriram e prendi o ar, esperando em silêncio para
ver se ele construiria suas paredes novamente, dobraria suas asas
e escolheria seu dever ao invés do seu coração. Disse a mim
mesma que se ele o fizesse, eu o perdoaria, porque sua escolha
seria forjada por responsabilidade e não covardia.
Ele prendeu mais cabelo em sua mão, inclinando um pouco mais
minha cabeça.
— Me perdoe, Celeste.
Minha garganta apertou. Meu peito também.
— Me perdoe por não ser um homem mais forte.
Engoli em seco enquanto um furacão de batimentos cardíacos
crescia e aumentava, levando minha alma para cima e para os
confins do meu corpo. Quando seus lábios roçaram nos meus, o
furacão aumentou. Ele estava me dando um beijo de despedida?
Seu beijo incendiou minha pele, iluminando nosso casulo de
silêncio e escuridão, onde nada fora de sua alma latejante e minha
pele cintilante existia.
Se isso era um adeus, era a despedida mais cruel.
Eu queria que ele explicasse qual decisão havia tomado, mas
minha boca se recusou a libertar a sua. Não que ele parecesse
desejoso de me liberar. Isso significava... isso significava que ele ia
ficar?
Quando seus lábios se separaram dos meus, meu pobre coração
saltou e disparou. Ou foi minha alma?
Mesmo que eu desejasse passar as mãos sobre suas penas
magníficas, não queria assustá-lo, então resolvi puxar seu rosto
para mais perto. Um gemido abafado saiu de sua boca. Eu devorei
seus batimentos cardíacos e calor também. Ele me apertou contra
si, e esse gesto despertou não apenas meus músculos, mas cada
uma de minhas terminações nervosas. Até minhas asas invisíveis
vibraram, desejo preenchendo cada haste e aleta.
Suas palavras giraram em minha mente turva: Me perdoe por
não ser um homem mais forte.
Ele acreditava que ficar o tornava fraco? Quantas paredes – dele
e do nosso mundo obsoleto – ele precisaria derrubar para
compreender sua força?
Meu umbigo afundou devido à protuberância que se espessava
entre nossos corpos. Em um canto do meu cérebro atordoado por
beijos, me dei conta de que se ele não me marcasse com a boca e
as mãos, me marcaria com aquela outra parte. Era insanidade
querer tanto ser marcada por este rei celestial atormentado?
O quanto a minha alma tinha alcançado...
Eu poderia ter sorrido com sua audácia de ter se prendido a um
governante imortal se minha boca não estivesse tão decidida a
absorver até a última gota do nosso primeiro beijo. Não queria que
acabasse, mas ainda assim queria, para que pudéssemos trocar
muito mais.
Meu sangue disparou através do meu corpo em tal velocidade
que minha cabeça ficou leve, ameaçando flutuar e se juntar ao meu
coração e alma onde quer que estivessem suspensos. Ofeguei, e
ele engoliu meus suspiros e me alimentou com um pouco dos seus.
Só depois que meu brilho desapareceu, ele tirou sua boca
ofegante da minha. Embora ele não tenha me soltado, seu abraço
afrouxou e ele libertou meu cabelos, que caíram como tiras de seda
pelas minhas costas.
— Minha alma parece que vai explodir. — Suas palavras
sussurradas aqueceram minha pele corada.
Bati em seu abdômen com dois dedos.
— Sua alma está mais acima, Seraph.
Ele piscou. Quando entendeu o que eu sugeri, seu lindo rosto
suavizou, e ele riu.
— Bem, já se passaram mais de duas décadas...
— O que aconteceu ao longo de duas décadas?
Seu olhar, que estava no meu, desceu para meu ombro nu. Ele o
observou como se fosse o osso mais fascinante do corpo.
— Desde que você esteve com alguém?
Seus olhos semicerraram, mas não se desviaram do meu ombro.
Estendi a mão e empurrei uma mecha dourada de cabelo para
trás.
— Asher?
— Sim. — Ele falou de um jeito tão rude que pareceu raspar
minha boca inchada e fechá-la com um alfinete. — Abaddon me
ferrou, Celeste.
O que ele sofreu no submundo? Umedeci os lábios, ansiosa para
perguntar, mas relutante em estragar o momento com memórias que
ainda o assombravam.
Apoiei a palma da mão em sua mandíbula para direcionar seu
olhar de volta para o meu.
— Bem, você não perdeu seu toque.
Isso me trouxe de volta sua atenção total.
— Se você acha que estou mentindo, por favor, verifique o chão.
Seu olhar não desviou do meu.
— Confio em você, levsheh.
Foi bobo, mas sua declaração foi quase tão inebriante quanto
seu beijo.
Seu nariz encostou no meu e sua boca se aproximou da minha
de forma suave e casta. E embora a gentileza durasse, a castidade,
não.
— Sua alma se ligou à de um homem fraco.
— Você não é fraco, mas se esta é sua maneira de me dizer que
vai me dar mais do que abraços, então, reduza seu valor. Tenho
admiração suficiente para compensar sua falta de orgulho.
Ele virou a cabeça e beijou a palma da minha mão. Eu ainda não
sabia se as almas podiam vagar livremente pelos corpos, mas
parecia que a minha tinha viajado direto para o local.
— Você sabia que uma vez que as almas encontram suas
metades, é fisicamente impossível para elas se separarem? É por
isso que acredito que a Leigh e o Jarod eram almas metades.
Porque ela voltou para ele, e porque eu voltei para você, apesar da
minha consciência brigar comigo para ficar longe. — Ele
delicadamente segurou minhas mãos e as transferiu para seu peito,
que batia forte e de forma constante, e depois para baixo, onde sua
alma zumbia descontroladamente.
Eu o acariciei.
Meu. Era meu. Ele era meu.
Este pilar de asas cintilantes era meu.
40

D epois que ele pegou minha jaqueta do armário


improvisado na porta da frente e me ajudou a vesti-la,
Asher pediu licença para falar com o dono da galeria,
provavelmente para agradecê-lo por ter mantido as pessoas longe
da salinha onde trocamos nosso primeiro beijo. E o segundo. E o
terceiro. Tudo permaneceu livre para todas as idades, embora
minha mente tenha vagado para muitos lugares classificados como
impróprios para menores.
Enquanto ele caminhava de volta em minha direção, com a
postura muito ereta, o andar muito firme e aparência muito refinada,
chamou a atenção de todos. Duas senhoras mais velhas até se
abanaram.
E pensar que ele estava voltando para mim. Eu queria que
alguém me beliscasse.
Ele estendeu a mão, e eu entrelacei os dedos nos seus.
Enquanto caminhávamos para fora, a impaciência para ir a
algum lugar privado me fez deixar escapar:
— Casa. Vamos para casa.
Ele parou de andar e olhou para mim.
— Você comeu?
— Não estou com fome. Pelo menos, não de comida.
Suas pupilas dilataram.
— Temos uma eternidade diante de nós, Celeste.
— E se não tivermos? — Mordi o lábio. Soltei. — E se em dois
meses...
— Não diga coisas assim. — Sua expressão se tornou um
trovão.
— Ei... — falei baixinho. — Só estou sendo realista.
Ele se esticou todo.
— Não, você está sendo derrotista, o que não é do seu feitio.
O silêncio se apoderou de nós.
— Terminou com o Jacques? — ele finalmente perguntou.
Suspirei.
— Quase.
Parei no restaurante na hora do almoço e encurralei o maitre
para lamentar que meu negócio foi cancelado por vazamento de
informações e que arrisquei perder meu ganha-pão... minha própria
vida. Sim, foi um exagero, mas não completamente falso. Se eu não
ganhasse minhas asas, acabaria perdendo-as e, por sua vez, minha
imortalidade.
Perguntei a Jacques à queima-roupa se eu disse algo
incriminador durante minha primeira visita ao estabelecimento dele.
Embora ele tenha fingido que não, sua testa estava banhada de
tanto suor que eu podia ver meu reflexo em suas ranhuras
brilhantes. Seu medo de ser desmascarado estava brincando com
sua consciência, a parte dele que eu estava tentando alcançar.
Depois que ele – com sorte – retirasse a informação, eu faria uma
última visita. No caso do meu tiro sair pela culatra, eu colocaria o
plano B em prática: me sentar com ele e confrontá-lo como fiz com
Bofinger. Eu não podia me dar ao luxo de passar semanas com
Jacques, mas poderia lhe dar mais alguns dias.
Para aliviar o clima, perguntei:
— Você está adiando voltar para a minha casa porque está com
medo ou está realmente determinado a me alimentar?
— Com medo?
— Do que vai acontecer entre quatro paredes depois de duas
décadas de celibato.
O Arcanjo me deu um sorriso lento.
— Se alguém deveria estar com medo, deveria ser você,
levsheh. Você está prestes a levar um homem faminto para sua
cama.
— Mal posso esperar. — Como se eu não tivesse ardido em
chamas por ele há pelo menos trinta minutos, minha pele decidiu
derramar luz sobre o pavimento e a fachada de tijolos de um
complexo de apartamentos.
— Você está cintilando, Celeste.
— Só me certificando de que seu olhar não se desvie.
Seu polegar passou por baixo da bainha da minha jaqueta e se
acomodou na curva da minha cintura.
— Não precisa arder em chamas para ter certeza disso.
— Não faz mal ser cuidadoso demais. Nossos mundos estão
cheios de pessoas atraentes, e elas te roubariam em um piscar de
olhos.
— Você é minha alma metade. Não há mais ninguém para mim.
— Ele inclinou seu corpo em direção ao meu. — Mas fique tranquila,
pois se alguém tentar nos separar, vou extinguir suas almas. — Ele
disse isso muito baixo e, ainda assim, sua ameaça ressoou em mim.
— Por favor, não extinga nenhuma alma em meu nome. — A
mera ideia de que ele pudesse, apagou minha luminescência, não
porque eu estivesse chocada, mas porque estava preocupada que
extinguir almas levaria a uma punição dos Sete, e pelo bem de
Naya, ele precisava se manter discreto.
Suas feições ficaram tensas como se ele estivesse tendo as
mesmas contemplações. Ou talvez ainda estivesse pensando em
alguém tentando nos separar.
— Há um excelente sushi bar a duas quadras. Você come peixe
cru?
— Eu como de tudo.
A palma da sua mão seguiu até minhas costas e começamos de
novo. Olhei para ele, e ele para mim, e o mundo parou de existir.
Não havia mais táxis nas ruas, conversa barulhenta dos
transeuntes, o brilho suave dos postes de luz. Só eu e ele.
Mas então o mundo desabou em som surround e tecnicolor
quando um homem desconexo que remexia a lixeiras do The Trap
na hora de fechar gritou algo sobre como o capitalismo iria trazer o
apocalipse. Ele tropeçou. Asher estendeu a mão para firmá-lo. O
homem arrancou seu braço das mãos do Arcanjo, então começou a
criticá-lo e sua roupa elegante e capitalista.
Asher tirou o paletó e o colocou sobre a regata suja do homem.
— Tem dinheiro dentro do bolso. Arranje um quarto de hotel,
comida, roupas e tome um banho.
Eu observei o bêbado – ou ele estava drogado? – passar as
mãos instáveis pela lapela do paletó de Asher que o atingiu no meio
da coxa. Ele apalpou os bolsos, então de repente congelou e olhou
em direção ao Arcanjo com os olhos tão arregalados que suas íris
pareciam prestes a saltar.
Asher segurou o ombro do homem e deu um aperto que
amassou o tecido largo ao redor da sua estrutura esquelética.
— Cada alma nesta Terra tem um propósito. Encontre o seu.
Faça do mundo um lugar melhor, mesmo que seja apenas para uma
pessoa. — Ele soltou o ombro do sem-teto e se virou, e então sua
mão estava de volta ao meu corpo.
Olhei por cima do ombro enquanto nos afastávamos e encontrei
o homem tremendo de novo, possivelmente mais do que antes. Eu
esperava ter testemunhado o momento que alteraria o curso de sua
vida.
— Quando eu era um Pluma — Asher começou —, queria salvar
todos os seres humanos, e pela minha vida, não conseguia
entender por que os anjos não se dedicavam inteiramente a garantir
que os famintos fossem alimentados, os feridos, curados e os
desolados, consolados.
— E agora?
— Agora, eu entendo os preceitos ensinados nas associações
de que a melhor maneira de salvar a humanidade é ensinando os
humanos a se salvarem. — Ele segurou a porta de vidro de um
restaurante para mim com um sorriso discreto suavizando sua
expressão. — Mas o menino aqui dentro ainda deseja poder salvar
a todos eles.
Fiquei na ponta dos pés e dei um beijo em sua mandíbula,
sentindo a barba por fazer arranhar meus lábios.
— E você duvida de que merece o papel que lhe foi confiado...
Minha fé em sua destreza não eliminaria magicamente o peso do
mundo que ele carregava nas asas, mas com sorte, aliviaria a
ansiedade que acompanhava a carga. Segurei sua mão e o puxei
para dentro do restaurante japonês que parecia a cabine de um
velho navio com painéis de madeira envernizada e lâmpadas a gás
penduradas sobre uma minúscula sala de jantar. Estava lotado, mas
a recepcionista nos encontrou dois banquinhos livres. Se ela não
estivesse salivando por causa do meu acompanhante, eu poderia
ter agradecido por sua diligência, mas Asher era meu, e
aparentemente eu era territorial.
Apoiei a mão em sua coxa e semicerrei os olhos para ela. A
mulher olhou entre mim e o Arcanjo, mas não deve ter me
considerado ameaçadora, porque continuou olhando para ele. Um
pouco de respeito teria sido bom.
Asher colocou o braço sobre o meu encosto e virou o menu
laminado.
— Algo de que você não gosta? — Ele moveu a boca para o
meu ouvido. — Além da recepcionista?
Soltei um suspiro baixo e me virei, prestes a reiterar que comia
de tudo, mas me distrai pela proximidade da sua boca da minha.
Antes que eu pudesse beijá-lo, o garçom apareceu. Asher fez
nosso pedido em um japonês tão perfeito que levou um minuto
inteiro para o garçom mover a caneta contra o bloco de notas.
— Gostaria de saquê, Celeste?
Os olhos vidrados e os dentes rachados do homem com quem
esbarramos surgiram em meus olhos, e eu balancei a cabeça. Não
que eu achasse que uma taça condenaria minha alma, mas queria a
mente e o corpo livres de álcool esta noite.
Assim que o homem saiu, desdobrei o guardanapo e o coloquei
no colo.
— Eu queria perguntar... como você se tornou o herói favorito de
Elysium?
Ele se recostou na cadeira.
— Não tenho certeza se será uma conversa agradável para o
jantar. — Ele deslizou o pequeno anel de papel ao redor de seus
pauzinhos e então mexeu nos dois longos pedaços de madeira
talhada. — Além disso, o que fiz não foi heroico. Qualquer homem
com meu poder e na minha situação teria feito o mesmo.
— Você era um Erelim de Abaddon naquela época, certo?
Ele assentiu.
— Embora eu nunca tenha ido para Abaddon, imagino que haja
mais de um Erelim patrulhando essa dimensão.
Ele não respondeu, mas sua boca apertada me disse que ele
não esteve sozinho no Inferno.
— O que foi que você fez?
Ele acariciou a extensão de madeira lisa gravada com a palavra
japonesa para SORTE.
— Uma alma conseguiu se libertar de seu recipiente, recuperar
sua forma humana e libertar outras. No momento em que a
pegamos, ela havia libertado sozinha mais de cinquenta almas que
vazaram a fumaça do arrependimento por toda a fortaleza. — Ele
estremeceu. — Foram os lamentos de dois dos nossos colegas
guardas, que sucumbiram aos vapores, que nos alertaram. Voei
para dentro da fortaleza e fechei a câmara de descompressão, o
único ponto de entrada. Não havia janelas nem portas. Apenas
caixa de vidro sobre caixa de vidro de almas.
— Achei que havia uma fogueira...
— Costumava ter, mas nossos ancestrais encontraram uma
maneira de contê-la e sugar os vapores — Asher explicou, embora
parecesse estar a um mundo de distância... de volta naquela
fortaleza. — Me obriguei a respirar o mínimo possível enquanto
corria, não por causa da fumaça, mas porque, uma vez que a
câmara de descompressão se fecha, o suprimento de ar diminui. Eu
não teria morrido, mas se tivesse desmaiado, não teria sido muito
útil. — Ele fez uma breve pausa. — Como tinha poucos pecados,
minhas memórias mais sombrias não eram debilitantes. Ao contrário
dos meus companheiros sentinelas. Um deles havia rasgado o rosto
e desmaiado de dor. Outra me atacou com seu fogo. Sua mente
estava tão confusa que sua mira estava errada, e eu consegui
nocauteá-la por tempo suficiente para localizar o pecador na fonte
do caos. Outras almas já haviam recuperado seus antigos
invólucros corpóreos, ou a aparência deles. — As chamas chiaram
sobre seus dedos e chamuscaram seus pauzinhos.
Bati a palma da mão sobre o fogo antes que alguém pudesse
notar. A fumaça vazou pelos meus dedos e minha pele ardeu, mas
não retirei minha mão. Asher estremeceu. Ele largou o pauzinho
carbonizado, que caiu no bar e depois virou minha mão e passou o
polegar pela minha pele em bolhas, murmurando baixinho. Novas
chamas lamberam seus polegares, que ele passou sobre as bolhas
até que a pele ficasse rosada e alisada.
— Sinto muito — ele murmurou, acariciando a palma da minha
mão com o polegar. — Sinto muito, Celeste.
Fechei a mão sobre a sua.
— Fui eu quem te obrigou a reviver este pesadelo.
O pomo de Adão se moveu em sua garganta.
— Última pergunta, e nunca mais falaremos sobre isso, mas por
quanto tempo você ficou preso?
Seu olhar se fixou no meu.
— Dois dias. Levei dois dias para conter as almas. Dois dias
durante os quais eu tive que nocautear os dois guardas
repetidamente para que eles não se machucassem ou tentassem
abrir a câmara de descompressão. Dois dias queimando carne e
revirando costelas para recuperar almas.
O horror de sua tarefa me fez apertar sua mão um pouco mais
forte.
— Se eu fosse Malakim naquela época. — Uma respiração forte
saiu de seus pulmões. — Eu poderia ter apenas persuadido suas
almas sem mutilar seus corpos.
Acariciei seus dedos.
— Às vezes, ainda sinto o cheiro... da carne queimada, os
vapores amargos, o ar fétido. — Suas narinas se dilataram. Ele
balançou a cabeça como se quisesse arrancar a memória feia. —
Depois de conter as almas e abrir a eclusa de ar, solicitei uma
transferência e não voltei mais para Abaddon. — Seus dedos
separaram os meus antes de envolvê-los delicadamente. — Que
encontro estou te proporcionando. — Ele me deu um sorrisinho. —
Te entretendo com contos de pesadelo sobre minha ascensão ao
poder.
— Agradeço por me contar. — Coloquei os pauzinhos
carbonizados em meu guardanapo para que seus restos não
trouxessem espanto a ninguém e pedi novos.
Nossa comida chegou.
Uma das mãos de Asher permaneceu no meu corpo durante a
refeição. Primeiro, cobriu a minha sob o bar, depois brincou com as
pontas do meu cabelo e, finalmente, alcançou minha coxa nua e
arrepiada.
Ele se inclinou e com uma voz que provocou um arrepio pelo
lado do meu pescoço, perguntou:
— Você já comeu o suficiente?
Fiz uma careta.
— Você estava planejando pedir mais?
— Não. — Embora sua mão não tenha acariciado minha coxa,
seus dedos envolveram minha perna. — Eu estava planejando
pagar e te levar para casa.
Com o coração batendo a milhares de quilômetros por segundo,
sussurrei:
— Me leve para casa então.
Embora ele tenha dado o dinheiro ao sem-teto, tirou uma carteira
fina do bolso da calça. Eu não tinha certeza de quanto o jantar
custou, mas duvidava que fosse perto da quantia que ele deixou.
Ele se levantou e puxou minha cadeira.
— Terra ou ar?
Meu coração parou, não de medo – quero dizer, eu ainda não
era fã de ficar pendurada no nada, embora eu confiasse no Arcanjo
com minha vida – mas por ele ter me dado a escolha. E por essa
mesmo razão, eu disse:
— Vamos voar, menino de ouro.
— Prefiro que você não me chame de menino, Celeste, mesmo
que seja um degrau acima de suíno neon.
— Suíno neon? Eu nunca... ah... — A lembrança do porco com
asas fluorescentes em sua efígie me fez morder o lábio. — Me
desculpe.
— Poderia ter sido pior.
— Como?
— Você poderia nem ter pensado em mim.
Meus lábios se curvaram em um sorriso, mas fugiu do meu rosto
quando, sem aviso, Asher me pegou em seus braços, despejou pó
de anjo ao nosso redor e disparou em direção ao céu.
41

— E u vou vomitar. — Pressionei o rosto em sua camisa branca,


sentindo os pequenos botões marcarem a minha testa. — Gostaria
que houvesse limites de velocidade aqui.
Uma risada reverberou em seu peito.
— E pensar que não estou voando com capacidade total.
— Você está brincando? — Me afastei para olhar em seus olhos.
— Você não considera nossa velocidade lenta, não é?
— Não é lento em si, mas posso ir muito mais rápido.
— Espero nunca descobrir como é a sensação de capacidade
plena.
Ele sorriu para mim.
— Com capacidade total, chegaríamos à Califórnia em... — Sua
brincadeira morreu quando seu olhar se fixou em algo abaixo de
nós.
Virei a cabeça, me arrependendo instantaneamente. Todo
sashimi subiu pela minha garganta. Cerrando os dentes, engoli em
seco quando a mulher de asas brilhantes parada na minha varanda
entrou em foco.
— Ish Eliza. — O tom de Asher foi amigável, mas cortante.
A boca da Ishim com penas cor de lavanda franziu enquanto
descíamos.
— Lamento chegar tão tarde e interromper sua noite, Seraph —
ela me lançou um olhar tão gelado quanto as pontas das suas asas
—, mas há uma situação em Elysium que requer sua presença.
— Que tipo de situação? — Ele me colocou no chão com
cuidado e, embora tenha tirado as mãos do meu corpo, ficou colado
contra minhas costas.
— O tipo que requer um voto — ela respondeu de forma
enigmática.
— E é imperativo que eu vote neste exato minuto?
O rosto dela se contraiu no ritmo de suas asas.
— Seraph Claire pediu que este assunto fosse resolvido
rapidamente. Tentei ligar quando cheguei à associação, mas você
não atendeu. — Ela observou meu traje curvando os lábios. — Sua
filha sugeriu que você poderia estar ajudando a Pluma Celeste em
sua última missão, então vim até aqui.
— Não há necessidade de títulos. Celeste está bem. —
Acrescentei um sorriso meloso para mostrar a ela como me sentia a
respeito de sua consideração por meu vestido e minha posição na
hierarquia celestial.
O peitoral de Asher encostou em minhas omoplatas e sua mão
envolveu meu quadril.
— Obrigado por vir até aqui e esperar, mas preciso falar com a
Celeste sobre sua missão.
Anjos, ele era um mentiroso talentoso. Se eu não soubesse de
seus planos para a nossa noite, poderia ter acreditado que
realmente estávamos prestes a discutir Jacques em longas e
tediosas horas.
— Por favor, diga a Seraph Claire que estarei em Elysium na
primeira hora da manhã e darei minha voz para a votação.
Sua dispensa – ou foi a mão que ele colocou em mim – deixou
as maçãs do rosto de Ish Eliza com duas manchas cor de rosa.
— Esta votação é extremamente delicada e urgente.
O corpo do Arcanjo tensionou ainda mais com aborrecimento.
— O que há de tão urgente nisso?
Ela voltou o olhar para o rosto dele.
— Você sabe tão bem quanto qualquer pessoa que os assuntos
de Elysium não dizem respeito a Plumas, Seraph.
— E você sabe tão bem quanto qualquer pessoa que quando um
Arcanjo lhe faz uma pergunta, é seu papel responder
imediatamente.
Uau.
— A votação diz respeito a Raphael e Sofia.
Eu esperava que ele relaxasse, já que nem o nome de Naya
nem o de Adam foram mencionados, mas seu corpo se tornou duro
como quartzo.
Inclinei a cabeça para trás para olhar para ele. Entre a pressão
de sua boca e o brilho sombrio de seus olhos, a preocupação
massacrou meu alívio de curta duração.
— Quem são eles?
Sua mandíbula formou um ângulo perfeito de noventa graus.
— Eles são... — Ele engoliu em seco. — Sofia e Raphael eram...
— Outra pausa. Mais uma engolida. — Eram os pais da Leigh.
Pisquei para ele. Será que descobriram sobre Naya e decidiram
reivindicá-la como sua? Ou queriam aniquilar sua alma? Meu
sangue esfriou com a contemplação horrível e ainda mais quando o
Arcanjo se afastou de mim. Ele deu um passo em direção à grade e
a segurou, olhando para o parque monocromático. Reprimi meu
desejo de acabar com a distância que ele colocou entre nós e aliviar
a tensão que trovejava por seu corpo.
— O que é que eles querem? — Sua voz soou fria e controlada,
mas a tensão elevou seu tom como o vento curvou as pontas cor de
cobre de suas penas.
O rosto fino de Eliza se enrugou como se fosse fisicamente
doloroso compartilhar os detalhes de sua tarefa com uma Pluma.
— Eles gostariam de se separar.
Asher olhou por cima do ombro para a Ishim.
Meu coração, que estava em processo de descarrilamento,
parou abruptamente. Eu desviei meu olhar do piso abaixo de mim e
me virei para o Arcanjo. Nossos olhos se encontraram, o alívio
parecendo ferver no ar escuro que nos separava. Embora ele ainda
segurasse o corrimão, agora havia um pouco de folga em seus
braços e coluna.
— Desde que perderam o terceiro filho, eles têm se sentido
infelizes. Todo mundo entende suas razões para não visitar
Abaddon, Seraph, mas se você tivesse feito uma visita aos Erelim
de lá, teria notado como os pais de Leigh se afastaram.
Algo me fez parar.
— Divórcios são votados no Elysium?
— Sua educação é muito deficiente, Pluma. Se você não tivesse
rejeitado nosso mundo, nossas associações...
— Cuidado com o que vai dizer, Ish Eliza. — O grunhido de
Asher imobilizou seus lábios. — Fiz de você uma Ishim e posso
facilmente desfazer. E sem colocar isso em votação.
A raiva que despertou nos olhos escuros de Eliza arrepiou os
cabelos finos da minha nuca. Eu estava grata pela proteção do
Arcanjo, mas ele não podia se dar ao luxo de fazer de Eliza uma
inimiga. Que ela não gostasse de mim ou não me respeitasse era
uma coisa. Que ela parasse de lamber o chão sob os pés dele era
outra. Presumi que ela era inteligente o suficiente para não atacar
diretamente o Arcanjo, mas cruel o suficiente para usar Naya como
punição.
Ela baixou a cabeça.
— Me desculpe, Seraph. Não tive a intenção de diminuir a sua...
protegida. Tudo o que quis dizer com minha observação anterior é
que as Ophanim são fontes de informação que garantem que as
Plumas estejam informadas sobre o que as aguarda após a
conclusão de suas asas.
Asher lhe lançou um olhar que teria feito qualquer outra pessoa
cagar nas calças, mas tudo o que ela fez foi alinhar os ombros. O
silêncio que se seguiu foi tão forte que reverberou sobre o uivo do
vento que se tornava cada vez mais forte, trazendo o cheiro da
chuva de outono.
Eliza afastou os cachos loiros de seu rosto.
— Você vai voltar para casa, Seraph, ou devo informar aos Sete
de que eles terão que adiar a votação?
Asher soltou a grade assim que as agulhas de gelo começaram
a cair.
— Vou agora. — Ele não me tocou com qualquer outra parte de
seu corpo além dos olhos, mas a lenta carícia provocou um arrepio
até os dedos dos pés. — Eu já volto, Celeste. — Ele abriu suas asas
e disparou para o céu.
Ish Eliza pairou por um momento.
— Você não tem respeito pelo nosso mundo.
Besouro rola-bosta.
— Sabe como chamamos mulheres como você no Elysium?
Mulheres que abrem as pernas para atrair homens? Zoya.
Tentadoras que desencaminham os anjos.
— Não sou fã de rótulos ou títulos, mas obrigado por ser assim...
edificadora. —Comecei a me virar, encerrando a conversa.
— Vou ter que denunciá-la.
— Por qual motivo?
— Por distrair o Arcanjo, o que vai prejudicar um pouco mais sua
reputação. No momento, não está mais sendo considerado tão
brilhante no Elysium.
Cerrei os dentes.
— Você está ameaçando a ele ou a mim?
— Não estou ameaçando ninguém. Apenas explicando nosso
modo de vida caso você consiga ascender. Ah, e divórcios de
verities são colocados em votação. Os híbridos podem se divorciar
sem se preocupar com os Sete, suas uniões não são tão sagradas.
— Um sorriso arrepiante saiu de seus lábios antes que ela voasse,
se misturando às nuvens.
Esqueça o besouro rola-bosta. Tive pensamentos tão duros e
vívidos sobre ela que minhas asas expeliram duas penas.
O trovão rosnou. O vento uivou. A chuva tamborilava. E ainda
assim, fiquei lá fora, resistindo à tempestade, rezando para que não
fosse uma amostra do que estava por vir.
42

E u não sabia ao certo o que me acordou.


Tudo que eu tinha certeza antes de minhas pálpebras se
abrirem era que eu não estava mais sozinha no quarto.
Alguém estava sentado na poltrona perto da janela. Quem
estava ali, nas sombras, possuía um corpo composto de linhas
duras e traços largos. Alguém cujos olhos eram da cor do oceano
em sua parte mais rasa.
Me virei de lado.
— Quando você voltou?
— Já faz um tempo. — A inflexão amortecida da voz de Asher
me deixou preocupada.
— O que aconteceu?
Sua mandíbula se apertou.
— Forcei um casal que não consegue se olhar sem ver os filhos
mortos a ficarem juntos.
Fiz uma careta.
— Você é um dos Sete. Certamente, a responsabilidade é
compartilhada.
— Houve um empate nos votos. Eu desempatei. — Ele apertou a
ponte do nariz. — Não consegui nem explicar a eles por que votei
da maneira que votei, porque explicar... — Um som saiu dele, um
lamento que fez meu coração cair como uma pedra.
Tirei as cobertas das minhas pernas e caminhei até ele com
nada além da calcinha. Seus olhos estavam fechados e sua cabeça,
baixa.
Me sentei em seu colo e coloquei os braços em volta de seu
pescoço, puxando seu rosto para a curva do meu pescoço.
— Entendo que a decisão dos Sete os mantém legalmente
vinculados, mas eles não podem levar vidas separadas?
— O adultério custaria as asas do traidor.
Pressionei a boca nas ondas de cabelo dourado bagunçado pelo
vento.
— Duvido que encontrar novos parceiros sexuais tenha sido o
motivo para a separação.
— Talvez não agora, mas é a intimidade deles, Celeste. Eu
deveria ter votado de forma diferente. Deveria tê-los liberado de seu
contrato conjugal, mas estava tão convencido de que eles estavam
se deixando pelos motivos errados. — Seus braços me enlaçaram.
— Estou tentando controlar a vida de todos, mas tudo o que faço é
atrapalhá-los.
— Isso não é verdade. Você me colocou de volta no caminho
certo. Naya e Adam também. Você não está atrapalhando ninguém.
Ele ergueu os olhos úmidos para os meus e piscou. Beijei suas
lágrimas até chegar em sua boca. Eu pretendia que fosse um
lembrete gentil de que eu estava aqui, mas ele o transformou em
outra coisa.
Algo tão feroz e opressor que fiquei ofegante.
Ele se afastou.
— Sinto muito. Eu não queria... — uma veia latejava em sua
têmpora — devorar sua boca.
Sorrindo, passei a ponta do dedo sobre seus lábios molhados.
— Não me importei. Na verdade, gostaria muito que você a
devorasse novamente.
A surpresa o fez se endireitar, o que colocou um pequeno
espaço entre nossos corpos. Seu olhar desceu pela minha pele
exposta antes de voltar para o meu rosto. Imaginei que ele estava
percebendo só agora que eu estava quase nua.
Infelizmente, isso me lembrou do que Eliza havia dito... da
ameaça que fez.
Deixando a mão deslizar para sua nuca, eu disse:
— Antes de sair, a Eliza me disse que teria que nos denunciar...
ou melhor, a mim, por iludir você.
Sua dor se foi. Em seu lugar, surgiu uma raiva tão poderosa
quanto a tempestade que assolou a cidade há poucas horas.
— Ela. Fez. O quê?
— Ela me disse que teria repercussões para você. Asher, eu não
quero estragar...
— Tem certeza de que foi isso que ela disse?
Eu me afastei, um pouco magoada.
— Você acha que, de alguma forma, me enganei ao ouvi-la me
chamar de Zoya?
— Ela te chamou do quê? — ele gritou.
Eu tinha acabado de condenar Eliza a um rebaixamento de
emprego? Era errado da minha parte ter essa esperança?
— Não me importo com o que ela pensa de mim, mas me
importo com as repercussões a você e ao seu trabalho. Estar
comigo vai te prejudicar, Seraph?
— Eu disse para você não me chamar assim — ele retrucou.
Não levei a sério seu tom. Sabia que não era de mim que ele
estava com raiva.
— Vai, Asher?
— Não. — Suas mãos cravaram em minhas costas. Ele poderia
segurar com tanta força quanto quisesse, contanto que fosse por
mim. Por nós.
— Que bom.
Seu olhar desceu novamente para meus mamilos, mas ele
vibrava com tanta ira que eu não tinha certeza se ele os estava
vendo. Eu esperava que não estivesse imaginando a cabeça de
Eliza. Não queria o rosto dela em qualquer lugar perto do meu
corpo.
— Gostaria que eu me vestisse?
— Não. — A palavra foi tão forte que a respiração que a
carregou bateu no meu queixo. Ele me olhou fixamente, e em
seguida se aproximou e falou um segundo não bem no meu mamilo
eriçado.
O mesmo fusível que acendeu meu pulso, acendeu minha pele.
Ele se afastou com os olhos cheios do meu ardor. Seu brilho o
fazia parecer completamente sobrenatural. Quer dizer, ele era, mas
naquele momento, era mais deus do que anjo. Seus dedos se
abriram e se curvaram na minha cintura.
— Tem certeza de que um relacionamento com uma Pluma
híbrida não pode prejudicá-lo? — perguntei uma última vez.
O desejo fazia os homens mortais se sentirem invulneráveis. Era
tolice da minha parte me preocupar com a possibilidade de cegar os
imortais também? Afinal, sob as penas e o fogo, Asher ainda era um
homem. Alguém com desejos e necessidades que todo o poder do
mundo não poderia saciar.
Ele segurou meus quadris.
— Tenho certeza de que nada vai te prejudicar.
— Não foi isso que perguntei.
— Se eu temesse que nosso envolvimento pudesse prejudicar
minha filha ou qualquer outra pessoa, não correria o risco. Posso
ser egoísta e fraco, mas não sou irracional.
Eu o segurei, sabendo que quando me entregasse, não seria
mais possível voltar atrás. Não para ele. E certamente não para
mim.
Mas já não havíamos chegado ao ponto sem volta?
— Certo. — Meus braços destravaram. Levantei e estendi a mão
para levá-lo em direção à minha cama.
Sua respiração parou, e ele ficou me olhando por tanto tempo
sem se levantar que comecei a me perguntar se ele tinha gostado
do que viu.
Nunca fui insegura antes, mas sua falta de ação...
— Não há muito para olhar, não é? — Comecei a cruzar os
braços quando ele se levantou e os separou.
— Há tanto para olhar que estou tentando decidir por onde
começar. — Antes que eu pudesse revirar os olhos, as palmas das
mãos pousaram sobre meus seios, depois mais abaixo, sobre meu
abdômen.
Eu ofeguei e meu coração disparou, batendo em minha alma.
Ele se inclinou novamente, girou a língua sobre um mamilo e o
sugou, me tornando incapaz de pensar, brilhante e pulsante.
Ele pairou com a boca sobre o mamilo molhado, então com a
maior delicadeza, lambeu o outro. Soltei um pequeno gemido
quando seus dentes roçaram a pele. Um sorriso ousado curvou
seus lábios. Quando ele segurou meus seios e acariciou a parte
inferior com os polegares, eu realmente pensei que poderia ter um
orgasmo sem qualquer outra forma de contato. Ele passou o nariz
pelo meu queixo brilhante, então beijou um canto da minha boca
entreaberta.
A pulsação no ápice das minhas coxas se intensificou a cada
beijo, cada sucção, cada carícia de seus polegares. Coloquei as
mãos em seu pescoço para me segurar.
— Tire as roupas. — Meu sussurro forçado atingiu sua boca
molhada.
— Ainda não.
— Asher... — grunhi, porque queria vê-lo. Prová-lo.
— Celeste... — Seu tom divertido não me fez rir.
— É o justo, e vocês, Arcanjos, são justos.
Balançando a cabeça, ele me satisfez e tirou o colete preto.
Depois abriu os botões da camisa, deixando-a cair.
— Satisfeita?
— Ainda não. — Movi a cabeça para sua calça. Quando ele não
fez nenhum movimento para tirá-la, segurei o botão da calça.
Quando abri, ele gemeu meu nome. Peguei o zíper, mas antes
que pudesse deslizar para baixo, ele agarrou meus pulsos.
— Calma, levsheh. Você precisa desacelerar. Quero que nossa
primeira vez dure. — Ele ergueu minhas mãos e abaixou a cabeça
até que sua boca encontrou a minha na escuridão.
As pontas dos dedos dele tocaram de leve a pele firme dos meus
braços e seguiram pelas minhas costas nuas, provocando uma onda
de emoção na minha coluna. Eu o puxei para mais perto,
esmagando meus seios contra os músculos dourados. Ele grunhiu
contra minha boca enquanto sua protuberância dura empurrava meu
estômago.
Me perguntei se ele estava arrependido de não ter permitido que
eu o libertasse. E então me perguntei sobre muitas outras coisas.
Não se ele caberia, porque eu sabia que a carne poderia se esticar,
mas qual profundidade ele seria capaz de alcançar? E eu sentiria
como se fosse a minha primeira vez de novo? E preservativos! Eu
tinha alguns – tudo bem, muitos – mas ele não era humano, e sua
pele era tão quente. E se eles derretessem? E se...
Afastei a boca da sua para ofegar:
— Você pode usar preservativos?
— Preservativos?
— Aquelas coisas feitas de látex muito fino. Para prevenir...
hum...
Ele deu uma risadinha.
— Eu sei o que são.
— Ah. — Tentando recuperar o fôlego, perguntei: — Bem, eles
funcionam com Arcanjos?
— Não sei. Nunca os experimentei, nem participei de uma mesa
redonda sobre anticoncepcionais humanos. Quanto mais velhos
nossos corpos ficam, mais difícil se torna de conceber. — Um véu
de melancolia cobriu seus olhos.
Ele queria filhos? Ele não poderia querer filhos com uma híbrida.
Uma zoya. Argh. Por que esse título teve que ressurgir? Eu não era
uma tentadora nefasta.
Afastei Eliza e seu insulto estúpido.
— O que você costumava fazer? Quando era mais jovem?
— Eu retirava.
— Toda vez?
— Toda vez. — Seu polegar enganchou meu lábio e o libertou de
meus dentes. — Mas se isso te faz se sentir mais segura, podemos
usar um preservativo.
Concordei.
— Mas podemos voltar a não discutir logística?
Assenti de novo.
— Bom. Porque tenho planos para você que não requerem
armadilhas de látex para espermatozoides. — Ele beijou minha boca
com tal langor que minha alma – e sim, minha alma... eu tinha
certeza desta vez – estava pressionada contra a barreira sobre a
pele, mantendo-a afastada de sua outra metade.
Asher deve ter sentido, porque sua mão desceu por entre nossos
corpos, acariciou a pele que pulsava antes de se aventurar mais
para baixo.
Inspirei com tanta força que suguei seu lábio inferior. Sua boca
se curvou em um sorriso tão indolente quanto seu beijo.
Vinte anos... como ele conseguiu ficar duas décadas sem
contato físico?
Parei de contemplar isso quando Asher se ajoelhou. Também
parei de respirar. Quando me lembrei que precisava de ar para ficar
consciente, inspirei tão profundamente que quase apaguei. E quase
desmaiei de novo quando uma de suas mãos segurou minha
calcinha. Em vez de tirá-la, ele a ergueu até encher minha entrada.
Então ele balançou a mão, afrouxando o tecido e puxando-o até que
a pressão no meu clitóris umedeceu o tecido e me fez choramingar.
Eu nunca choraminguei.
— Está tudo bem, Celeste?
Eu bufei.
— Tudo bem?
Ele afrouxou o aperto.
Abri a boca e olhei feio para ele.
— Por que você está parando?
— Achei que você... achei que você não tivesse gostado.
— Acredite em mim, gostei. — Não gritei. Pelo menos, achei que
não tivesse gritado, mas eu tinha choramingado, então...
Mesmo estando de joelhos, o Arcanjo pareceu crescer sessenta
centímetros. Ele agarrou a renda e deu um puxão forte. Arranhou
minha pele com tanta força que ofeguei. E então ele afrouxou o
aperto. Os movimentos continuaram, acariciando meu centro com
cuidado até que a fricção criou tanto calor que minhas coxas
começaram a tremer.
Ele beijou meu umbigo e depois a pele ao redor, continuando
seu joguinho de cabo de guerra com minha calcinha.
— Você é extraordinária, levsheh. — Ele moveu os ombros
enquanto abaixava a cabeça para a minha coxa e beijava o caminho
até meu quadril. — Absolutamente extraordinária.
Com seu elogio, a fricção da minha calcinha e suas narinas
dilatadas, o fogo que ele acendeu entre minhas pernas foi tão
violento que estendi a mão e agarrei seu cabelo. E então gritei seu
nome enquanto meu corpo se contraía e estremecia.
Com os olhos fixos nos meus, ele prendeu a renda e deslizou os
nós dos dedos pelo meu centro ainda pulsante e puxou o cós pelas
minhas pernas. Depois que tirei a calcinha, suas mãos voltaram
para a lateral das minhas panturrilhas e coxas, me abrindo ainda
mais. Inspirando profundamente o meu cheiro, ele se aproximou e
me deu uma lambida lenta.
Minhas costas arquearam e meus olhos se fecharam.
— E eu que pensei que os anjos consideravam o prazer um
pecado...
— Se dado gratuitamente, não é. — Ele me provou novamente.
E de novo.
Meu clitóris endureceu, meus joelhos travaram e meus dedos,
que estavam deslizando preguiçosamente por seu cabelo sedoso,
pararam.
Eu estava perto.
Perto... pra...pluma...
Ele acariciou meu centro com a língua, e eu gemi seu nome,
gozando contra sua boca em grandes ondas que atingiram minha
intimidade. Abri os olhos devagar, encontrando os seus fixos nos
meus enquanto ele lambia e sugava, pegando os últimos resquícios
do meu orgasmo.
— Seu gosto, Celeste. — Ele ergueu a cabeça e lambeu os
lábios inchados. — Néctar do Elysium.
Puxei seu cabelo para fazê-lo se levantar.
— Minha vez de saboreá-lo, Seraph.
Ele sorriu e acariciou minha lábia com a ponta do dedo indicador.
— Já que você me chamou pelo título, ainda é a minha vez.
Olhei para ele irritada.
— Que tipo de regra absurda é essa?
— Posso estar de joelhos, mas ainda sou seu soberano.
Eu queria revirar os olhos, mas ele beijou minha pele úmida e
causou um curto-circuito em mim.
— Logo será a sua vez.
O toque quente de sua respiração e o deslizar de seu dedo
foram suficientes para me fazer ronronar de prazer, mas então ele
acrescentou a língua aveludada à mistura e me levou aos céus de
um jeito tão intenso que achei que poderia alcançar Elysium antes
de completar minhas asas.
43

— V ocê vai acabar me matando — sussurrei enquanto gozava


outra vez.
— Que bom que você tem os ossos das asas. — Havia orgulho
em seu tom. Ternura também.
— Por favor, venha aqui — sussurrei, puxando-o para cima.
Sem ossos. Eu estava sem ossos. E mesmo que meus pés
estivessem plantados no tapete, senti como se ele tivesse me
carregado para o céu.
— Quer que eu pare?
— Sim. Não. Quero dizer, sim. Sim. Venha aqui.
Surpreendentemente, ele me satisfez e se levantou, exibindo seu
corpo gigante, músculo por músculo. Ele estalou os lábios e,
caramba, isso me deixou excitada novamente.
Desta vez, quando minhas mãos foram para o zíper da sua
calça, ele não me impediu. Empurrei a calça para baixo para revelar
o que, até então, eu só consegui sentir.
E, sim. Essa parte dele era proporcional a sua envergadura. Ele
era enorme. Em toda parte.
Fiquei de joelhos.
— Minha vez. Finalmente.
— Não quero gozar dentro da sua boca, Celeste. — Ele segurou
a lateral do meu rosto, apertando os polegares em minhas
bochechas para inclinar meu rosto para cima. — Quero gozar dentro
de você.
Segurei seu pau duro, impossivelmente grosso e
escandalosamente longo, e puxei a pele macia, deixando meus
dedos deslizarem todo o caminho até a ponta brilhante. Coloquei a
língua para fora e capturei a gota salgada.
— Você vai, Seraph. — Lambi a enorme cabeça brilhante
novamente. — Você vai gozar nos dois lugares esta noite.
— Celeste. — Meu nome grunhido me fez colocar a boca ao
redor do seu comprimento.
Seu corpo tensionou e palavras angelicais escaparam de seus
lábios enquanto mais de seu prazer revestia minha garganta. Engoli
e agarrei seu pau, acariciando-o um pouco mais rápido.
Ele gemeu, soprou, grunhiu. Nunca alguém tinha pronunciado
meu nome de tantas maneiras diferentes. Girei a língua ao redor
dele. Seus quadris deram um salto involuntário que o levou tão
fundo que respirei pelo nariz. Ele ofegou quando um jato de calor
desceu pela minha garganta.
Quente e doce.
Muito doce.
Como chá com mel que mal teve tempo de esfriar.
Como o sol no auge do verão.
Agarrando os músculos duros de suas coxas enquanto ele
estocava em mim, engoli seu sêmen celestial.
Ele inclinou a cabeça para trás, engoliu em seco e, novamente,
gemeu meu nome.
Passei as unhas de leve sobre suas coxas musculosas, afastei a
boca e me levantei.
Sua cabeça tombou para a frente.
— Me fode, porra.
— Essa é a minha fala.
Ele balançou a cabeça, mas sorriu e depois conjurou suas asas,
esticando-as.
— Você está abrindo as asas para mim ou me lembrando quem
tem as penas mais bonitas e brilhantes?
— Estou abrindo as asas para você. — Ele agarrou meus
quadris, levando sua ereção contra meu abdômen.
Passei os braços em volta dele para alcançar o V macio na base
de sua coluna, que agora eu tinha todo o direito de acariciar. O
poder que isso me deu era quase tão inebriante quanto a sensação
dele gozando em minha boca.
Respirando fundo, ele enganchou um braço debaixo da minha
bunda e, com uma pulsação de suas grandes asas, nos mandou
para o meio da cama king-size.
As pontas de seu cabelo solto fizeram cócegas em minhas
bochechas.
— Onde estão os preservativos? Quero gozar dentro do seu
corpo.
Acariciei sua testa com a ponta do dedo e o tique impaciente de
sua mandíbula.
— Na mesa de cabeceira.
Quando ele ficou de joelhos, músculos e tendões ondularam sob
extensões de pele bronzeada. Ele estendeu a mão para abrir a
gaveta, pegou uma tira de preservativos e rasgou um dos pacotes.
Ele franziu a testa para o látex fino, olhou para mim, depois
tentou desenrolá-lo.
— Assim, não. — Peguei o preservativo e rolei sobre a ponta.
Seus lábios se contraíram enquanto ele tentava puxá-lo mais
para baixo. Rasgou. Ele o tirou. Pegou um novo. Puxou com tanta
força que rasgou direto. Resmungando, ele abriu um terceiro
pacote.
— Por acaso você não teria algum para não humanos?
— Não no momento, mas vou verificar na farmácia mais próxima
pela manhã.
Ele frustrou a próxima tentativa, ficando cada vez mais irritado.
Me apoiei nos cotovelos.
— Quais são as chances de você me engravidar?
— Não muitas, mas posso tirar.
— Sente-se. — Deslizei debaixo dele.
Ele se recostou, e eu montei nele. Estendi a mão entre nós para
colocá-lo no ângulo certo. Suas narinas dilataram quando me
abaixei em sua ereção, controlando a velocidade e a profundidade.
Enquanto sua grossura esticava minha pele macia, cerrei os
dentes, respirando através da dor de seu corpo alargando o meu.
Depois de ter tomado o máximo que pude, me levantei, abaixei de
novo e me ergui. Seus olhos ficaram pesados e semicerrados.
Tirei seus dedos do edredom e os coloquei em meus quadris.
— Goze dentro de mim.
Ele abriu os olhos.
— Tem certeza?
— Sim. — Me inclinei e o beijei, cobrindo-o novamente.
Sua boca estava tão dura quanto o resto dele, mas lentamente,
ele relaxou.
Seus dedos flexionaram ao meu redor, me levantando e me
abaixando. A dor superficial se dissipou quando nossos corpos
encontraram um ritmo, e logo os fios de um novo orgasmo se
enrolaram na minha barriga, dando um nó cada vez mais forte.
Acelerei e gemi seu nome, ofeguei e parei quando os fios se
partiram, me estilhaçando em tantos pedaços que duvidei que
algum dia pudesse ser remontada.
Ele assumiu o comando, manipulando meu corpo enquanto a
veia em seu pescoço pulsava contra minha testa lisa. Toquei de leve
o V com a ponta cor de bronze, fazendo suas asas se abrirem e
estalarem como velas sopradas pelo vento. Ele grunhiu, ofegou,
beijou o topo da minha cabeça e soltou mais alguns gemidos
roucos. E então ele se acalmou enquanto meu nome escapava de
sua língua como uma oração. Foi a coisa mais linda que já ouvi.
— Você me desfez, levsheh. — A voz profunda do Arcanjo vibrou
na minha testa, que ainda estava pressionada em sua garganta.
— E você, a mim. — Acariciei de forma lânguida os músculos
fortes de seu ombro enquanto as pontas dos meus dedos desciam e
se curvavam.
Ele ainda estava dentro de mim, se contorcendo como se não
tivesse terminado de gozar.
— Obrigado. — Seus braços envolveram minhas costas e me
puxaram contra si. — Obrigado.
— Pelo quê?
— Por me aceitar com todas as minhas falhas.
— Suas falhas são sua melhor característica. — Dei um beijo na
base do seu pescoço e seu corpo inteiro estremeceu. Sem afastar a
boca, comecei a me mover sobre ele.
— De novo? — ele murmurou. — Tem certeza?
Respondi deslizando-o mais para dentro, até que ele atingiu
todas as minhas paredes.
De repente, me vi de costas. O impulso arrancou meus lábios de
seu pescoço e seu pau de dentro do meu corpo. Ele se apoiou em
mim enquanto os antebraços envolviam minha cabeça.
Fiz uma careta.
— Precisava de um descanso, coroa?
Sua boca se curvou e então ele riu, fazendo uma serenata para
mim com o som glorioso.
— Só pensei em dar um descanso às suas pernas, espertinha.
— Ele se encaixou e me penetrou.
Minha coluna arqueou para fora do colchão.
— Cuidado para não me partir ao meio, ou não serei de muita
serventia para brincar.
Ele diminuiu a velocidade, engolindo em seco.
— Nunca, Celeste.
Eu podia me ver refletida em seus olhos – cabelos castanhos
espalhados ao redor da minha cabeça como uma coroa de folhas de
outono, a pele clara salpicada de sardas, as covinhas em minhas
bochechas.
— Você pode pensar que os votos não significam nada para
mim, mas eles significam. — Seu olhar desceu para o meu umbigo
antes de voltar para o meu rosto. — Esta noite, juro proteger para
sempre seu corpo, seu coração e sua alma. — Em câmera lenta,
seus quadris se moveram para trás, depois para frente e um tremor
percorreu nossos corpos. — Ni aheeva ta, Celeste.
— O que isso significa?
— Significa eu te amo.
O calor se acumulou em meus olhos. Eu estava mesmo prestes
a chorar?
— Não acho que você entendeu o quanto ainda, mas espero que
logo entenda.
Pisquei, tentando afastar as lágrimas, mas elas escorreram pelas
minhas têmporas. Eu queria dizer a ele que entendia, que também
me sentia assim, mas não conseguia fazer meus lábios trêmulos
formarem palavras.
— Sei que você ainda se ressente da morte da Muriel, mas
agradeço a todas as estrelas do firmamento Elysiano que sua alma
tenha descansado. Se ela tivesse aguentado mais... — Ele
estremeceu.
— Você teria que encontrar um novo corpo para mim —
resmunguei. — De preferência, um com mais alguns centímetros e
menos sardas. Quero dizer, quem precisa de tantas?
Uma carranca fez suas sobrancelhas abaixarem.
— Você não vai ganhar um novo corpo. Você não me ouviu
prometer proteger este aqui?
— Sim, mas você não pode criar minhas asas ou parar o tempo.
A inclinação se aprofundou.
— Ei... — Levantei o polegar para alisar sua sobrancelha. — Não
estou desistindo... estou contemplando o que pode acontecer.
Precisamos estar preparados para o caso...
— Não há caso. Você vai conseguir. — Ele saiu de mim e ficou
parado, provocando minha entrada que pulsava com seu pau. —
Diga.
Inspirei profundamente. E exalei as palavras que ele queria ouvir.
Ele entrou em mim lenta e profundamente.
— De novo.
— Humm... — Minhas mãos alcançaram seu traseiro firme. —
Por quê?
— Porque quanto mais você disser, mais acreditará.
— Certo. Eu vou conseguir.
Ele saiu e ficou parado.
— De novo.
— Eu vou conseguir.
Ele me preencheu.
— De novo, aheevaleh.
— Aheevaleh?
— Meu amor — ele sussurrou, seu corpo transformando o meu
em respiração, calor e luz das estrelas.
44

A cordei com um corpo enrolado no meu e dores em lugares


que eu nem sabia que podiam doer. Tipo a minha cintura e
dedos dos pés.
A mão grande que passou a noite inteira presa no meu abdômen
ganhou vida e me puxou para si.
Quente e duro.
Me virei em seus braços e passei a mão por seus cabelos
desgrenhados, desembaraçando os nós de seda. De todos os
homens com quem imaginei dividir minha cama, Asher nunca
figurou a lista. Não que eu tivesse uma, mas se eu fosse o tipo de
garota que fazia, não teria adicionado o nome de um anjo a ela,
muito menos de um Arcanjo.
— Me mostre suas asas, aheevaleh.
Minha mão parou.
— Por quê?
Ele abriu os olhos.
— Assim não preciso ir até a associação e pesquisar sua
pontuação.
Franzi os lábios. De jeito nenhum eu exibiria minhas asinhas,
especialmente à luz do dia.
— Você não quer que eu aqueça mais um pouco sua cama?
— O suborno está abaixo dos Arcanjos. Além disso, mesmo se
eu quisesse fazer sexo com você, não acho que seria fisicamente
capaz.
A preocupação substituiu sua frustração.
— Por quê?
— Porque você é enorme, e fizemos isso quatro vezes na noite
passada. Meu corpo precisa se recuperar.
— Peço desculpas.
— Você se desculpa demais. — Bati em seu nariz. — E foi o
melhor sexo da minha vida, então realmente não há razão para se
desculpar.
— O melhor sexo, é?
— Sim. O melhor. Quer um troféu?
Ele puxou o edredom, convidando o ar frio indesejado.
— Ei! Essa é uma maneira cruel de me tirar da cama.
Especialmente depois do elogio que te fiz. — Tentei agarrar o
edredom, mas ele o segurou enquanto se levantava e dava tapinhas
no colchão ao redor do meu corpo.
Quando percebi que ele estava verificando se havia uma pena
caída, revirei os olhos.
Um sorriso satisfeito curvou os lábios do Arcanjo, e ele se
acomodou, colocando o edredom em volta de mim.
— Não gosto muito de troféus, mas adoro notas manuscritas.
Caso você queira colocar seus sentimentos no papel.
Eu sorri.
— Vou levar o seu pedido em consideração.
Sua mão deslizou entre minhas coxas.
— Por favor, leve. — Quando as pontas de seus dedos
começaram a fazer círculos lentos direcionados, ele sussurrou: —
Já que você não abre suas asas, pelo menos abra as pernas.
— Asher... estou muito dolorida.
— São apenas meus dedos. Deixe-me ter algo em que pensar
durante meu voo solitário de volta para a associação.
Soltei um pequeno gemido e me virei, dando acesso a ele. Ele
penetrou dois dedos dentro de mim e voltou as pontas molhadas
para o meu centro que vibrava e inclinou sua boca sobre a minha,
me beijando de um jeito tão doce que eu realmente considerei
mostrar a ele minhas asas para mantê-lo ao meu lado. Ele não
zombaria delas. Eu sabia disso. No entanto, depois que ele
arrancou um orgasmo de mim, decidi que não estava pronta, e ele
não insistiu. Apenas pulou da cama, tomou banho e se vestiu.
Enquanto ele prendia o cabelo, continuei debatendo se deveria
mostrar minhas asas ou não, mas a visão delas sempre estragou
meu humor, e eu não queria manchar esta manhã perfeita.
Pedi desculpas por minha teimosia.
Suspirando, ele se sentou na beira da cama, se inclinou e me
beijou.
— Em breve, vou vê-las todos os dias. Além disso, apesar de
todas as minhas reclamações, tenho que tomar café da manhã com
a Naya. Quer se juntar a nós?
Mordi o lábio.
— Não acho que eu possa enfrentá-la agora. — Aqui estão as
limitações de minha amizade com esta nova versão de Leigh. Havia
coisas que eu não podia mais confiar a ela. — Você vai contar sobre
nós?
— Eu gostaria que ela ouvisse de mim e não de outra pessoa. —
Sua mão vagou sobre o edredom e, embora fosse grosso, o calor de
seu toque penetrou em minhas pernas. — Mas se você quiser que
eu espere...
— Esperar é uma opção considerando a ameaça de Eliza?
Seus lábios se achataram.
— Certo. — Ele se levantou, os ombros esticando sua camisa
branca e colete preto.
Suspirando, saí da cama e passei os braços ao redor de seu
corpo, tentando acalmar um pouco de sua tensão.
— Faz um café para mim? Eu vou com você.
Sua boca finalmente relaxou o suficiente para perguntar:
— Tem certeza?
— De que eu quero café? Sim.
O mais leve sorriso suavizou sua expressão. Comecei a me
afastar, quando ele segurou minha nuca e a inclinou para que
nossos rostos ficassem nivelados.
— Obrigado.
Fiquei na ponta dos pés, despertando os músculos doloridos.
— Estamos nisso juntos. Não há razão para você ter que lidar
com a decisão infeliz de namorar uma Pluma híbrida sozinho.
Antes que eu pudesse beijá-lo, ele afastou a boca do meu
alcance.
— Não há nada de infeliz na minha escolha.
— Anjos não iluminados irão julgar. Você está ciente disso,
certo? Vou me tornar uma mancha em suas asas verity brilhantes.
— Pare com isso, Celeste.
— Parar o quê? De te lembrar como o seu mundo funciona?
— É o seu mundo também. — Ele saiu do quarto como um touro.
Suspirando, fui até o banheiro e lavei meu corpo dolorido. Depois
de secar meu cabelo com a toalha, eu o prendi em um coque alto
com um prendedor de plástico. Querendo saber se o Arcanjo tinha
esperado por mim, peguei a primeira camiseta na minha pilha cada
vez menor. Ironicamente, a camisa dizia: Sinto um pecado
chegando. Parecia bastante apropriado para o dia que teria pela
frente. Estremeci enquanto vestia a legging de couro.
Eu estava tão acostumada com Asher lidando com mágoas se
afastando que não esperava que ele ainda estivesse aqui. Ele não
apenas esperou, mas também me fez o café prometido.
Ele enfiou o telefone no bolso da calça.
— Acabei de receber uma mensagem de que alguém virá entre
as quatro e as seis para consertar sua bancada.
— Obrigada.
— Eu a quebrei.
Fiz uma careta quando finalmente me movi para pegar minha
xícara.
— E por isso você não merece um agradecimento? Você poderia
ter deixado quebrada.
Ele esfregou a base da garganta.
— Sou incapaz disso. Deixar as coisas quebradas.
— Meu consertador.
Ele parou de esfregar a pele.
— Odeio brigar com você.
— Sério? Você faz isso tão bem.
Ele balançou a cabeça, mas o sorriso leve demonstrou sua
expressão preocupada. Me sentei ao seu lado e tomei um gole da
poção mágica em que me viciei enquanto morava em Paris.
Ele olhou minha camisa.
— Você não tinha uma que dizia: O Arcanjo é meu.
— Surpreendentemente, não.
— Terei que remediar isso.
Sorri com a ideia de ele criar uma camiseta para mim.
Uma exalação pesada sacudiu o ar.
— Estou ciente de que muitas coisas precisam ser mudadas.
— Então por que você surtou?
— Surtei porque estou cansado de ouvir você se rebaixar. Todos
nascemos iguais, embora, você está certa, não recebemos as
mesmas oportunidades. — Seus dedos se fecharam, e ele os
apoiou na ilha. — Celeste, eu juro, vou mudar isso, mas...
— Mas você tem outra lei para alterar primeiro. Eu sei. — Cobri
sua mão e a apertei.
Seus dedos se abriram e eu os entrelacei nos meus.
— Tome seu café, levsheh. Nós temos um mundo para mudar.
Nós...
Não havia muito que eu pudesse fazer além de estar ao lado
dele quando as coisas ficassem difíceis, mas talvez isso fosse o
suficiente.
45

A pontuação que apareceu no holo-classificador foi um pouco


deprimente: 498. Imaginei que teria de fazer outra visita a
Jacques.
Asher franziu a testa para o número.
— Por que você está com menos três penas?
Três? Achei que tinha perdido duas. Ah, bem... dei de ombros,
girando meu banquinho em sua direção.
— Você sabe como eu reajo bem a ameaças.
Sua mandíbula cerrou enquanto ele lia as entrelinhas.
— Quer se desvincular do Jacques e escolher outra pessoa?
— Não. Tenho outra ideia. Se não der certo, vou passar aqui
esta tarde e escolher outra pessoa.
Ele olhou para a minha imagem em 3D e focou na pontuação por
longos segundos antes de se levantar. Incapaz de engolir o número
lamentável, desliguei o holo-classificador.
Asher estendeu a mão. Não a segurei.
— Me deixe receber a aprovação da Naya primeiro.
— Não percebeu ainda que já a tem?
Meu coração bateu um pouco mais rápido.
— Alguém já te disse o quanto você é confiante?
Rindo, ele inclinou a cabeça em direção à porta de vidro curva
que se abriu quando nos aproximamos.
Como todas as vezes que éramos vistos juntos na associação,
sussurros abafados soaram entre minhas colegas e fez Ophanim
arquearem sobrancelhas. Todas, exceto Ophan Mira. Quando
entramos no refeitório, o silêncio que caiu sobre as Plumas que
tomavam o café da manhã foi ensurdecedor. Até os pardais
pareceram se acalmar.
Felizmente, um grito desgastou o ar sufocante quando um
pequeno corpo cruzou a extensão maculada, com duas tranças
loiras se movendo em seu rastro. Ela correu ao longo do bufê e
seus cotovelos bateram em uma pirâmide de pêssegos que caiu no
chão. Manchas vermelhas floresceram em suas bochechas, e ela
parou, olhando as frutas e depois para Mira, que estava sentada
com as professoras algumas mesas adiante. Quando a chefe da
nossa associação acenou com a cabeça, Naya saltou de volta à
ação e rodeou as mesas restantes para alcançar seu pai.
Ele a pegou no colo.
— Bom dia, motasheh.
Ela envolveu seu pescoço com os braços e apoiou a bochecha
em seu ombro.
— Agora é um bom dia, Apa.
Jurei que podia ouvir ovários se dissolvendo ao nosso redor. E
não apenas o meu, ainda que eles estivessem se fundindo ao resto
da minha alma derretida. O que me lembrou do que Asher e eu
passamos a noite fazendo... sem preservativo. Ele não estava
preocupado com isso, então eu provavelmente não precisava ficar.
Na verdade, eu tinha assuntos mais urgentes com que me
preocupar, como ganhar um monte-alado de penas nas próximas
semanas.
Naya sorriu para mim com as bochechas rosadas de felicidade.
— Oi, Celeste.
Enquanto os seguia em direção a uma mesa livre nos fundos do
refeitório, ouvi-o murmurar para Naya:
— Você acredita que ela odeia voar?
Olhei de lado para ele.
— Odeio ir rápido e alto.
— Em outras palavras, voar.
— Certo, tudo bem. Tenho medo de voar.
Naya deu uma risadinha.
— Talvez você goste quando tiver suas próprias asas. Eu... —
Seu cenho franziu como se ela estivesse se lembrando de uma
época em que havia voado. Ela me contou tudo sobre isso. Tudo
sobre o Elysium no dia em que Asher a havia devolvido a Paris.
— É o que eu espero — suspirei — ou serei uma péssima
proprietária de asas.
— Você já está acabando?
— Estou chegando lá. — O que era uma boa expressão... Eu
estava muito longe da linha de chegada.
Asher a colocou em um assento e se sentou ao lado dela e eu
fiquei de frente para os dois.
Empurrando suas longas tranças loiras sobre os ombros, ela
perguntou:
— É por isso que você está aqui?
— Hum...
Asher veio ao meu resgate.
— Na verdade, a Celeste veio porque temos algo para te contar.
Os olhos de Naya começaram a brilhar, e eu verifiquei se não
era um reflexo da minha pele. Eu realmente não queria arder em
chamas pelo Arcanjo em uma sala cheia de olhos curiosos.
— Você finalmente beijou o Apa!
— O quê? — perguntei alto, afastando os olhos do meu pulso.
Uma risada baixa vibrou de Asher.
— Por que... — Brinquei com o zíper da jaqueta. — Por que você
tiraria essa conclusão?
— Porque você o ama. — Ela revirou seus enormes olhos que
tudo viam.
Nem mesmo em sua vida passada eu expressei interesse pelo
Arcanjo, então não poderia ser um resquício do tempo de sua alma
como Leigh.
Com um sorriso poderoso e satisfeito, Asher se recostou na
cadeira e cruzou os braços.
— Você me ama, hein?
Naya assentiu.
— Quando jogamos nem sim, nem não, perguntei a Celeste se
ela te amava e ela disse que não, mas perdeu uma pena.
Asher inclinou a cabeça.
— E quando vocês jogaram este jogo?
Arqueei uma sobrancelha.
— Por quê?
— Só estou curioso para saber há quanto tempo você me ama.
Eu estava prestes a dizer que não o amava, que ele precisava
deixar de ser arrogante, mas os ossos das minhas asas começaram
a arder. Detectores de mentiras idiotas.
— Quarta-feira de manhã — Naya interrompeu.
— Hum. — Asher inclinou os ombros para frente até que seus
antebraços pousaram na mesa com um baque que combinou com o
som da saliva que desceu por minha garganta.
Eu estava mirando na indiferença, mas o sorriso devorando as
feições de Asher me disse que eu estava falhando miseravelmente.
— Então? — Naya saltou em sua cadeira. — É isso que você
veio me dizer?
— Sim — Asher falou, ao mesmo tempo que eu disse:
— Não.
Ela franziu o cenho.
— Viemos perguntar se você ficaria bem se nós... — Meus lábios
ficaram presos. Merda, isso era difícil. — Se nós...
— Se beijassem? — Naya perguntou.
— Hum. Sim. Isso. — Puxei tanto o zíper da minha jaqueta que
ele beliscou a parte de baixo do meu queixo.
— Eu sabia! E, sim. Por mim, tudo belê.
— Belê, é?
— É uma palavra nova que a Raven me ensinou.
— Quem é Raven? — perguntei.
— Ela é minha amiga.
Fiz uma oração para que ela não fosse outra Eve.
— Quando vou conhecer essa Raven?
O olhar de Naya percorreu o refeitório.
— Não a estou vendo.
— Ela é uma boa menina. — Asher colocou um braço em volta
dos ombros de Naya e virou a mão livre com a palma para cima, um
convite para eu pegá-la.
Olhei para a mão, olhei para ele, então cedi e me juntei a ele.
Ouvi os suspiros ecoarem pela associação.
Naya apertou o peito como se o órgão estivesse prestes a
explodir.
— Meu coração está tããão feliz.
Me perguntei se era seu coração ou sua alma.
— O meu também, motasheh. — Asher beijou o topo da cabeça
de Naya e apertou minha mão.
Ah, porcaria... minha pele decidiu remediar minha falta de
sentimentalismo verbal se iluminando.
— Você está ardendo em chamas! — Naya gritou.
Eu queria rastejar para debaixo da mesa ou arrancar a figueira
do outro lado e me esconder atrás dela até que minha pele pudesse
esfriar suas plumas. Em vez disso, ostentei minha luminescência
como uma garota crescida.
De repente, Naya ergueu o queixo pequeno na direção do pai,
sem o sorriso.
— Mas você não pode se casar, Apa.
A boca dele formou uma linha sombria.
Eu esperava que com o tempo ele parasse de considerar sua
incapacidade de fazer de mim uma mulher honesta uma deficiência.
— Que bom que você não precisa se casar com alguém para ser
feliz.
Seu polegar acariciou minhas juntas.
Assim que minha pele parou de ser tão efusiva, afastei nossos
dedos e me levantei.
— Preciso ir. Minha missão me chama.
Asher olhou para mim enquanto eu contornava a mesa.
— Vou te encontrar quando voltar de Elysium — ele disse.
Fiz uma careta.
— Você está indo para Elysium?
— Preciso me encontrar com uma certa Ishim.
Assenti devagar e me agachei ao lado de Naya.
— Esqueci de te dizer. Vi uma peça de arte muito legal em uma
galeria ontem e queria tentar recriá-la com você neste final de
semana. Quer?
— Sim!
Sorri, beijei sua bochecha, me endireitei e comecei a me virar
quando Asher segurou meu pulso e me puxou para perto. Um pardal
voou sobre a cabeça de Naya, fazendo-a rir e tentar acariciar suas
penas coloridas como o arco-íris.
— E quanto a mim? — ele perguntou com voz rouca.
Meu coração disparou, porque eu sabia o que ele estava
pedindo, mas não estava pronta para isso. Não com Naya ali. Claro,
eu ardia em chamas em público, mas beijar era outra coisa. Ele
deve ter percebido minha reticência, porque pressionou seus lábios
na palma da minha mão e depois me soltou.
46

L evou a sexta-feira inteira, mas consegui. Recuperei


Jacques. Ou pelo menos, achei que tinha recuperado.
Pensei ter sentido o crescimento de quarenta e quatro
novas penas, mas sabia que era apenas meu subconsciente sendo
otimista. Não se conseguia sentir as penas crescendo.
Como eram quase quatro horas, não passei pela associação
para verificar minha pontuação. Corri para casa, decidindo que
agiria como uma mulher, ficaria diante do espelho e abriria minhas
asas. Eu poderia fazer isso. Afinal, Asher e eu tínhamos nos
assumido como um casal para Naya e, posteriormente, para o
restante da associação.
Quando cheguei ao prédio, recebi uma mensagem de texto
informando que as pessoas encarregadas de instalar a bancada
chegariam em meia hora. Tirei as botas no vestíbulo e caminhei em
direção ao banheiro. Lá, segurei a borda da pia, respirei
profundamente e trouxe as penas roxas à vida.
Não soltei o fôlego até que avistei a penugem que revestia as
laterais de minhas asas esqueléticas. Exultante, as escondi
novamente e comecei a fazer todas as tarefas humanas que estava
negligenciando. Quando os pedreiros chegaram, os lençóis haviam
sido trocados, as roupas estavam na secadora e a máquina de lavar
louça estava funcionando.
Enquanto os homens removiam o granito quebrado, mandei uma
mensagem para Asher dizendo que eu tinha acabado com Jacques
no caso de ele querer me vincular ao meu próximo pecador. Uma
hora depois, os pedreiros se foram, mas eu ainda não tinha ouvido
falar do Arcanjo. Passei roupas enquanto esperava, minha atenção
vagando entre a varanda e um documentário sobre cogumelos.
Enquanto guardava minha pilha de roupas, um sopro seguido
por uma rajada de ar frio me fez pular em direção à entrada do
quarto. Asher preencheu a porta e caminhou em minha direção, me
apoiando contra uma parede antes de apertar o botão ao lado da
mesa de cabeceira para abaixar as cortinas.
Eu fiz uma careta ao olhar seu rosto.
— O que está acontecendo?
Ele me beijou, e a forte pressão de seus lábios combinada com
seu silêncio fervente me fez agarrar seus bíceps e me afastar.
— Asher, o que aconteceu?
Meu cóccix bateu na parede, e ele se inclinou sobre mim e sua
boca estava na minha novamente.
A ansiedade afundou suas garras profundamente. Afastei a boca
da sua.
— Sério. O que aconteceu?
— Nada. — Ele cobriu minha boca e a capturou.
Eu o afastei de novo.
— Você não está agindo como se nada tivesse acontecido.
Ele deu um beijo no meu pescoço, mordiscando a pele. E então
suas mãos deslizaram por baixo da minha camiseta. Quando seus
dedos acariciaram a parte inferior dos meus seios, decidi deixar o
interrogatório para depois que ele desabafasse. Não era como se
minha cabeça conseguisse ser mais coerente quando tanta
masculinidade estava pressionada contra mim.
Com movimentos quase violentos, ele agarrou a barra da minha
camisa, puxou-a pela minha cabeça e depois tirou minha legging
enquanto eu me atrapalhava com as tiras que havia nas laterais de
seu uniforme de camurça marrom. Ele pausou a devastação de sua
boca para puxar sua blusa sobre a cabeça e abaixou a calça para
liberar sua ereção.
A fera obstinada me pegou e se posicionou na minha entrada.
Eu esperava que ele estocasse, mas Asher parou.
— Você está bem?
Evitando responder, porque eu estaria mentindo, me abaixei para
esfregá-lo contra mim antes de fazê-lo me penetrar. A sensação
inicial de dor foi rapidamente substituída por outras sensações.
Todas incrivelmente gloriosas.
Nossas bocas se encontraram enquanto ele movia os quadris e
apertava minha bunda. Nossas respirações estavam emaranhadas
e nossos cheiros se fundiram. Ele grunhiu e ofegou quando apertei
em torno dele e...
Ah... santos... Sete…
O oxigênio escapou dos meus pulmões enquanto eu caía de
cabeça em um oceano de prazer, ofegando seu nome e por ar. Ele
cobriu minha boca com a sua, me enchendo com sua língua antes
de me encher com seu sêmen. Ofegante, ele pressionou a testa
contra a minha. Nossas bocas se soltaram, mas permanecemos
unidos – nossos corações batendo forte, nossas almas pulsando e
nossos corpos formigando. Ele se moveu bem... devagar. Antes que
nossos batimentos cardíacos tivessem desacelerado, ele estava
duro novamente.
Desta vez, ele me pegou de forma suave, beijando e lambendo
um caminho através da minha clavícula enquanto os músculos do
meu estômago se contraíam gradualmente e um novo orgasmo se
construiu, contorceu, sugou meus órgãos e os enviou em espiral
para fora do meu corpo. Inclinei a cabeça e fechei os olhos
enquanto uma sequência de gemidos escapava dos meus lábios
entreabertos. Seus dedos me apertaram à medida que suas
estocadas aumentavam, e então ele grunhiu e reacendeu meu
núcleo com seu lindo fogo.
Acreditando que ele tivesse extravasado sua tensão e estivesse
pronto para falar, segurei seu queixo.
— Agora, por favor, me diga o que aconteceu.
Suas pálpebras se ergueram, revelando olhos tão escuros que
espelhavam o céu noturno – sem estrelas e cheio de poluição cinza.
Ele se retirou de mim e me colocou de pé. Riachos quentes
escorreram pela parte interna das minhas coxas. Peguei lenços de
papel da mesa de cabeceira e me limpei enquanto ele colocava a
calça e a amarrava, ainda em silêncio.
Finalmente, ele disse:
— Estou em um período probatório.
Esperei que ele elaborasse, sem saber o que isso significava na
linguagem do Elysium.
— Aparentemente, não estou agindo como um Arcanjo.
— Por minha causa?
Sua mandíbula apertou.
— Não. Por minha causa. Porque estou reservando muito tempo
para minha vida pessoal e pouco para a profissional. — Ele passou
a mão pelo cabelo, puxando as mechas da tira de couro. As ondas
douradas caíram e brincaram ao redor das linhas duras de sua
mandíbula. — Se eu não me concentrar na minha tarefa celestial,
estou fora.
Um arrepio percorreu minha pele, dissipando o calor anterior.
— Fora do Conselho ou fora do Elysium?
— Fora do Conselho. Minhas infrações não são graves o
suficiente para comprometer minhas asas. — Suas narinas se
dilataram. — Preciso começar a viajar pelas associações
novamente, oferecendo meu tempo aos Ophanim e minha ajuda a
outros Plumas.
— Certo... — Isso não era tão ruim.
— O que significa um tempo longe de você. Da Naya. Não quero
ajudar outros Plumas, caralho. Quero te ajudar, mas eles me
avisaram que se eu permanecesse ao seu lado em Nova York,
tirariam minha chave do canal até que você terminasse. — Um
grunhido de dor irrompeu de sua boca. — Eu não vou... não posso
ficar longe de você por dois meses. Uma tarde já foi uma tortura.
— Isso é porque você tem a libido de um garoto de treze anos no
momento.
Ele me olhou de forma ameaçadora, mas eu sorri, porque não
havia raiva em seu olhar.
— Você contou a eles sobre o nosso vínculo?
— Sim. É por isso que não fui expulso do Conselho. Almas
metades têm um status especial. — Ele olhou para o tapete. — Não
especial o suficiente para nos deixarem em paz, infelizmente.
Mordi o interior da minha bochecha com tanta força que perfurei
a pele, e o gosto de cobre revestiu minha língua.
— Então me deixe ver se entendi. Você tem que ficar longe de
mim pelos próximos dois meses?
— Tenho que me concentrar em meus deveres de Arcanjo, e
você é uma...
— Distração. — Suspirei. — O tempo passa rápido. Dois
meses...
Ele desviou seu olhar para o meu, a intensidade de sua irritação
me cortando.
Coloquei a mão em seu peito.
— Ou menos. Talvez eu consiga fazer isso em menos tempo. Já
estou quarenta e quatro penas mais cheia. Faltam apenas
quatrocentas e cinquenta e oito penas. — Seu coração furioso
estremeceu contra a minha mão.
Me senti vitoriosa quando cheguei em casa e vi as novas
plumas, mas agora... agora eu me sentia um pouco deprimida com o
número que ainda faltava. Umedecendo os lábios, fui até o guarda-
roupa e tirei um suéter enorme e uma calcinha nova, porque esse
não era o tipo de conversa que eu queria ter nua. Minhas mãos
tremiam enquanto eu me vestia, e tremeram um pouco mais
enquanto eu arrancava meu cabelo da gola redonda.
De repente, Asher me encarou.
— O que foi?
— Preciso viajar pelas associações. — Ele rondou
languidamente em minha direção como um leão que se regalava e
tomava banho de sol. — Você pode vir comigo. Enquanto eu cumpro
minhas obrigações arcangélicas, você reformará pecadores.
— Achei que eles tinham dito que não poderíamos passar mais
tempo juntos.
— Eles disseram que eu precisava começar minhas rondas
novamente. — Suas mãos emolduraram meu rosto e o levantaram.
— Tem certeza de que não vai te causar problemas?
— Não se eu estiver trabalhando. — Sua excitação era um
pouco maníaca para o meu gosto, mas levantou meu ânimo. Minha
alma também, por falar nisso. Talvez sua brecha fosse sólida. —
Faça as malas, levsheh. Partimos esta noite. — Ele se abaixou e me
beijou. — Primeira parada, Viena. Soube mais cedo que um dos
Plumas de Tobias completou as asas hoje. A cerimônia é amanhã à
noite e vamos comparecer.
A surpresa lutou contra a excitação.
— Tem certeza de que posso comparecer? Se for em uma
associação masculina...
— As mulheres não podem dormir em associações masculinas,
mas não há nenhuma lei sobre passar o tempo lá. Além disso, quero
que conheça o Tobias. E seu filho, por falar nisso.
Um raio de oxigênio invadiu meus pulmões. Eu ia conhecer
Adam...
— Tem certeza de que não é arriscado?
— Tenho. — Seu beijo tinha o gosto de tanta certeza que
finalmente acabou com minha ansiedade.
Afinal, os anjos eram rígidos, mas não inerentemente cruéis. Isso
é o que eu disse a mim mesma enquanto jogava roupas e produtos
de higiene pessoal em uma pequena mala com rodinhas. Não
empacotei mais do que o suficiente para uma semana, porque
estaríamos de volta. Eu não ia passar meus últimos dois meses
longe de Naya.
Além disso, não estávamos fugindo, apenas saindo em uma
aventura cultural.
47

A terrissamos no canal vienense da associação masculina um


pouco depois das duas da manhã. Mesmo que eu estivesse
hesitante em segurar a mão de Asher, uma vez que a
fumaça perolada se dissipou, seus dedos se entrelaçaram nos
meus.
— Não temos nada a esconder, levsheh.
— Não estou acostumada a andar de mãos dadas.
— E eu estou? A única mão que segurei foi a de Naya. Da
mesma forma que eu só abracei vocês duas.
Eu não conseguia imaginá-lo sem abraçar suas parceiras
sexuais anteriores, mas como eu não queria imaginar isso, afastei o
pensamento.
O eixo de quartzo do canal brilhava com fogo de anjo, e
ressoava com o filete de água próximo e a doce canção do pardal.
Como todas as associações, essa seria feita de quartzo e o céu
falso do Elysium, e conteria as mesmas salas encontradas em
outras associações, mas dispostas de forma diferente.
Como comprovação disso, em vez de um corredor, o canal se
abria para o átrio onde videiras cor de esmeralda pulverizadas com
flores azuis em forma de sino escalavam as paredes da altura da
catedral, injetando o cheiro sensual de sândalo e seda sobre a
fragrância mineral das sete fontes.
Quando avistei dois jovens com pele clara e cabelo loiro em pé
perto de uma das fontes, o instinto me fez puxar a mão da de Asher,
mas novamente, ele a apertou mais, mantendo nossas palmas
unidas.
— Boa noite, Plumas. — O alemão vienense de Asher era
perfeito, assim como o meu seria, embora eu nunca o tivesse
falado.
Quando se recuperaram da surpresa de ver um Arcanjo, eles
baixaram a cabeça.
— Boa noite, Seraph Asher — o mais magro dos dois disse, sua
voz granindo um pouco.
O outro olhou para mim. Sua curiosidade era tão espessa que
flutuou no topo da música dos pardais e alisou minha pele. Suas
asas cor de safira não tinham a ponta de metal, mas eram muito
mais densas que as minhas. Suspeitei que ele não estava a mais de
cem penas da ascensão.
Asher pigarreou.
— Quer conhecer o Tobias hoje?
Desviei o olhar do menino e olhei para o firmamento iluminado
pelas estrelas. Embora não fosse real, indicava a hora do dia e,
atualmente, Viena estava nas horas mais profundas do crepúsculo.
— Ele não está dormindo?
Asher sorriu.
— Acredite em mim, se estiver, ele não vai se importar de ser
acordado. Não para encontrar a Pluma com que enchi seus ouvidos
no mês passado.
Umedeci os lábios, sentindo meu estômago se apertar como se
estivesse sendo amassado.
— Tudo bem. Me apresente ao homem da sua vida.
Asher bufou com a minha frase, assim que novos passos
ecoaram contra o quartzo.
— Pensei ter ouvido a sua voz rabugenta. — Um homem com
cabelo castanho escuro e olhos claros cintilantes saiu do escritório
em frente à porta da associação.
Um sorriso curvou a boca de Asher, mas ele o escondeu
rapidamente, provavelmente por causa dos Plumas.
— Te aconselho a mostrar respeito ao seu superior, Ophan
Tobias.
— Ou então você vai colocar fogo nas minhas sobrancelhas de
novo?
— Você queimou as sobrancelhas dele? — sussurrei.
— Por acidente. — A boca de Asher se curvou novamente.
Desta vez, o sorriso se manteve. — Tínhamos acabado de receber
nosso fogo e estávamos aprendendo a manejá-lo.
Tobias parou bem na nossa frente e sorriu, revelando uma faixa
de dentes brancos que faria uma equipe de marketing de pasta de
dente babar.
— Fiquei sem sobrancelhas por três meses.
Não pude deixar de rir, mas minha risada congelou quando notei
que as asas cor de laranja de Tobias tinham pontas douradas.
Nunca tinha visto um Ophanim Verity. Nem tinha ouvido falar de um.
— Você é um Verity — eu disse, um pouco ofegante.
O sorriso de Tobias suavizou.
— Sou um anjo, Celeste. Como você. Como ele. — Ele projetou
seu queixo quadrado em direção a Asher, que era mais alto que
ele... mais alto que a maioria das pessoas. — É um prazer
finalmente conhecê-la. E se não estiver com muita pressa, adoraria
te oferecer chá e doces no refeitório. Temos a melhor sachertorte de
toda a Áustria, preparada com geleia de damascos do Elysium e
grãos de cacau colhidos na terra. O melhor de dois mundos.
Meu estômago, que eu ainda não tinha alimentado, soltou um
grunhido ansioso.
— Devo interpretar isso como um sim. — O sorriso de Tobias
cresceu e ele estendeu o braço.
Asher soltou minha mão.
— Vá em frente com o Tobias. Vou colocar sua mala no escritório
e passar na sala de classificação para encontrar um pecador
interessante para você.
— Temos muitos deles em nossa cidade — Tobias disse
enquanto me conduzia em direção a um corredor.
Olhei por cima do ombro para onde Asher estava, nos
observando recuar, os músculos ao longo de seus braços e ombros
finalmente mostrando relaxamento.
Tobias deu um tapinha na minha mão.
— Ele estará conosco em breve, Celeste.
Eu não estava preocupada em ficar sem ele, estava
simplesmente preocupada com ele, mas guardei isso para mim
mesma, não querendo sobrecarregar Tobias.
— Vocês dois cresceram juntos?
— Colegas de quarto desde que tínhamos três anos.
— E melhores amigos por todo esse tempo?
— Irmãos. — Quando levantei uma sobrancelha, ele elaborou: —
Irmãos da Associação.
Em outras palavras, seu vínculo não era biológico, mas
sentimental. Como o de Leigh e o meu.
— Almas gêmeas também?
Os olhos de Tobias cintilaram de curiosidade ou foi diversão?
— Vejo que o Asher está revelando alguns dos segredos mais
bem guardados do Elysium. — Ele se aproximou e sussurrou: —
Mas se certifique de manter isso em segredo. A mecânica da união
da alma deve ser uma recompensa para os ascendidos.
— Por quê?
— Assim, os jovens se concentram em suas asas e não nos
corações.
A fragrância de pão fresco, pratos picantes e confeitos de dar
água na boca aumentou quando entramos no refeitório, uma sala
circular gigante com colunas de quartzo segurando uma cúpula de
vidro pintado. Eu me peguei olhando boquiaberta, porque todas as
associações que visitei favoreciam uma visão desobstruída do céu.
— O teto — sussurrei. — É magnífico.
— O vidro foi pintado pelo primeiro Ophanim vienense. — Sua
voz vibrou com orgulho.
— Com certeza contarei a Ophan Mira sobre isso. Talvez ela
considerasse pintar o nosso.
— Ah, ela já viu. Mas não ficou impressionada.
Eu sorri. Isso era a cara de Mira. Sempre azeda do lado de fora.
Se não fosse por nossas interações recentes, eu nunca teria
descoberto seu lado molenga.
— Então, como é que um Verity decidiu se tornar um Ophanim?
— Amor. Amor por educar mentes jovens e por um outro
Ophanim.
Arqueei uma sobrancelha.
— Que não angelical, Tobias. Deixar seu coração ditar seu
dever.
Ele deu uma risadinha.
— Aprendi a abraçar minhas falhas e a me esforçar para ensinar
meus Plumas a abraçar as deles.
— Gostaria que nossas Ophanim fossem tão rebeldes.
— É mais fácil para mim, Celeste. — Quando eu fiz uma careta,
ele apontou para suas asas. — Sou um Verity, o que infelizmente
me permite maior liberdade de expressão.
Eu me perguntei se isso tinha influenciado a decisão de Asher de
deixar Adam aqui. Na verdade, Tobias provavelmente poderia
oferecer melhor proteção ao menino.
— Soube que você teve um filho. Estou ansiosa para conhecê-lo.
Seus olhos brilhavam tão intensamente quanto as pontas das
asas contra as paredes de quartzo iluminadas. Embora eu não
pudesse ver sua alma, aposto que também brilhava.
— Ah, meu orgulho e alegria lindamente temperamentais.
Um meio sorriso surgiu em meus lábios, porque, embora eu não
tivesse usado adjetivos tão adoráveis para descrever o ex-mafioso
parisiense, lindamente temperamental parecia ser muito preciso.
— Ele comparecerá à cerimônia amanhã à noite. — Tobias
gesticulou para uma mesa, e eu soltei seu braço para me sentar. —
Como está a pequena Naya? Ouvi dizer que ela gostou de você.
Como ele ainda estava de pé, inclinei minha cabeça.
— Fofa. Muito fofa.
— Claro, o Asher ficaria com a fofura. Não que eu esteja
reclamando. Eu não trocaria meu filho por todas as riquezas e
honras do mundo. — Ele piscou para mim antes de caminhar em
direção ao bufê, suas asas dobradas lançando pontinhos de luz
sobre sua túnica azul-marinho justa e calças combinando.
Voltei minha atenção para a cúpula adornada com anjos –
híbridos e verities, jovens e velhos – parados ao pé do Arco
Perolado. Atrás do arco iridescente vertiginoso se estendia uma
cidade tão clara que parecia esculpida em ossos.
— A capital celestial. — Asher se sentou na cadeira ao lado da
minha.
Me inclinei para ele, apoiando a parte de trás da cabeça em seu
ombro para que eu pudesse admirar melhor o mural. Sua beleza me
lembrou da viagem de longa data a Versalhes com Leigh. Por dias,
fiquei com câimbra no pescoço de olhar para os tetos opulentos do
palácio francês.
— É assim mesmo?
— Uma cópia carbono — Asher falou.
— Exceto pelas crianças.
— Exceto pelas crianças. Tobias lhe contou sobre o Ophanim
que o pintou? Você teria admirado o homem.
Eu me virei para encará-lo.
— Ele morreu?
— Infelizmente. — Asher olhou para cima, para as crianças
parecidas com querubins brincando no que parecia ser um
desfiladeiro, provavelmente o Desfiladeiro do Julgamento. — Ele
militou pelos Sete para mudar a lei sobre a separação dos filhos dos
pais ao nascer. Dizia que seria uma sociedade mais saudável se
fossem criados por suas famílias em Elysium e só se mudassem
para as associações depois que os ossos das asas se formassem.
— E os Sete o mataram por isso?
— Não. Eles simplesmente se recusaram a considerar mudar a
lei e para mostrar seu descontentamento, ele pediu que suas asas
fossem queimadas.
— Nosso mundo sofreu uma grande perda naquele dia. — O tom
de tristeza na voz de Tobias me fez virar para ele. O anjo empurrou
dois pedaços de bolo de chocolate em camadas sobre a pedra
branca translúcida. — Vamos falar de coisas mais agradáveis
enquanto comemos bolo. — Tobias acenou com a cabeça em
direção à confecção vitrificada. — Quero ouvir sua opinião sobre
nossa delicadeza nacional, mas se esses pensamentos forem de
alguma forma negativos, lamento informar que você e eu não
podemos ser amigos, Celeste.
Imaginei que ele não estava falando sério, mas verifiquei a
expressão de Asher, só por garantia. Quando vi os cantos de sua
boca se inclinarem em um sorriso, decidi que Tobias era minha mais
nova alma gêmea. Espere... poderíamos nos tornar almas gêmeas
ou tínhamos que nascer almas gêmeas? Já que ele me pediu para
manter o segredo do Elysium, guardei minha pergunta para Asher.
Peguei um garfo, comi um pedaço e... uau.
Tobias se recostou na cadeira, parecendo muito satisfeito.
— Maravilhoso, não é?
Asher passou o braço em volta da minha cintura e me puxou
para mais perto.
— Mesmo que ela odiasse, Tobias, você não teria escolha a não
ser gostar dela. — Contra a curva do meu pescoço, ele murmurou:
— Ela é a minha neshahadza.
O sorriso presunçoso de Tobias congelou.
— Neshahadza? Achei que você não tinha certeza.
— Agora tenho. Não só ela não pode parar de arder em chamas
na minha presença, como ela pode mover minha alma.
— O que arder em chamas tem a ver com isso? — perguntei
com a boca cheia.
Tobias se moveu para frente.
— Almas metades mais jovens não conseguem controlar sua
atração e as exibem quase todas as vezes que se encontram na
presença de sua outra metade. Asher costumava tirar sarro de mim,
porque eu abria as asas para Gabriel o tempo todo quando ainda
era um Pluma desajeitado.
— Eu nunca tirei sarro. — A alegria de seu tom de voz me fez
perceber que aquele homem solene já havia sido um menino
despreocupado.
— Só riu até as asas abrirem. — Tobias passou a mão pelo
cabelo ondulado. — A propósito, antes que você tenha uma ideia
errada, nada de desagradável aconteceu enquanto eu ainda era
estudante. Além da abertura de asas incontrolável.
Engoli outro pedaço de sachertorte.
— Gabriel ensina aqui?
— Sim. — Em voz baixa, ele acrescentou: — Neshahadzas não
ficam bem longe um do outro.
Isso fez as mãos de Asher apertarem meu abdômen, o que, por
sua vez, fez minha alma se enterrar nas costelas que ele tocou. Me
perguntei como passei vinte anos sem senti-la.
Raspei a última garfada de bolo.
— Como ele encarou a sua paternidade?
— Um pouco contencioso. Ele não ficou muito satisfeito por eu
ter engravidado uma mulher, mas com o tempo, mudou de ideia.
Agora, ele ama o Adam como se fosse seu.
Presumi que essa era a história com a qual Asher e Tobias
concordaram, que os dois geraram essas crianças com mulheres
mortais. Eu me perguntei se Tobias havia compartilhado a verdade
sobre a existência do menino com Gabriel, mas guardei essa
pergunta também. Seria melhor perguntar isso fora da residência
angelical.
Arrastei o prato de Asher em minha direção e comecei a comer
seu pedaço.
— A minha garota realmente gosta do seu bolo, Tobias. — Os
dedos de Asher subiam e desciam na minha coluna.
— E eu gosto da sua garota. Porque ela gosta do meu bolo. —
Tobias piscou para mim, o que fez meu coração transbordar de
gratidão.
Gratidão porque nesta nova vida, Adam foi abençoado com
alguém tão amoroso quanto Mimi. Depois de comer a segunda fatia,
me reclinei contra Asher e escutei extasiada enquanto os dois
homens me deleitavam com histórias e mais histórias de sua
infância.
Foi só quando os Plumas começaram a aparecer no refeitório
para o café da manhã que me endireitei, temendo que se alguém
nos denunciasse e Asher fosse repreendido por desperdiçar seu
horário de trabalho comigo.
A mão de Asher saiu do meu corpo.
— Precisamos ir.
— Espere só mais um minuto. — O olhar de Tobias se desviou
para um espaço além de nós. Quando ele gesticulou para que
alguém se aproximasse, me virei, esperando um Ophanim de
aparência um pouco mais velha. Em vez disso, me vi olhando para
um garotinho.
Um garotinho com cachos castanhos claros e pele combinando,
o que tornava seu olhar verde profundo ainda mais intenso.
Ao contrário de Naya, o andar de Adam era medido, cuidadoso,
assim como seu olhar. Senti sua mente me avaliando, determinando
se eu era amiga ou inimiga. Quando ele finalmente nos alcançou,
não consegui decifrar a conclusão a que ele havia chegado.
Tobias apoiou a palma da mão na nuca do menino.
— Bom dia, Apa. Seraph. — Ele deu a Asher um aceno lento.
Eu me agachei e estendi a mão.
— Eu sou Celeste.
— Celeste. — Ele pronunciou meu nome de uma forma que me
fez pensar se ele se lembrava. Ele olhou para minha mão e depois
para o rosto de seu pai.
Quando Tobias sorriu de forma encorajadora, Adam colocou
seus dedos nos meus e apertou. Seu aperto era firme, mas fugaz.
Rapidamente, ele afastou a mão de volta para o lado do corpo e a
fechou com firmeza.
Quando ele era Jarod, nós nos tolerávamos por causa de nosso
amor mútuo por Leigh. Eu esperava que, desta vez, pudéssemos
nos tornar amigos. Para o bem de Naya, mas também para o de
Mimi. Pensar nela me fez engolir em seco. Como ela deveria estar
impaciente para vê-lo novamente.
Asher aqueceu minhas costas com a frente do seu corpo.
— Vamos.
Ele passou o braço em volta da minha cintura e me puxou para
longe do garotinho, que tinha roubado minha melhor amiga e, ainda
assim, por quem eu não sentia ódio.
Apenas esperança.
Esperança de que desta vez, tudo fosse diferente.
48

E nquanto Asher me acompanhava pelas ruas coloridas de


sua infância, fiz as perguntas que me atormentavam:
Gabriel conhecia a verdadeira linhagem de Adam e as
almas gêmeas eram determinadas no nascimento?
— Você pode encontrar almas gêmeas por toda a sua vida. Em
relação a Gabriel... — ele apertou os olhos em direção a uma igreja
barroca de pedra calcária com um telhado curvo de zinco que havia
se tornado verde com o tempo —, o Tobias optou por não contar a
ele.
— Por que não confia nele?
— Porque quer protegê-lo. Você não pode se encrencar por algo
que não sabe.
— Ele é maravilhoso. O Tobias, quero dizer. Tenho certeza de
que o Adam também será.
Asher me olhou de soslaio.
— O Adam é um pouco reservado. E não é meu maior fã.
— Você era a competição.
— Eu era o carrasco.
Fiz uma careta para ele.
— Não diga isso. Não é verdade.
— Não é?
Eu o puxei até parar, e minha mala, que o Arcanjo decidiu
carregar em vez de puxar, balançou.
— Eles fizeram aquilo para si mesmos. Tudo o que você fez foi
tentar ajudá-los.
— Se eu não tivesse intervindo...
— As almas deles teriam murchado naquela cripta. — Um
arrepio gelado percorreu minha coluna como se eu estivesse de
volta ao cemitério de Montparnasse. — Leigh e Jarod estavam
condenados desde o momento em que suas almas se conheceram.
Especialmente se eles forem o que você suspeita. Quer dizer, se eu
te perdesse...
Ele pressionou um dedo nos meus lábios, me silenciando.
— Você está presa a mim pelo resto de sua vida
interminavelmente longa.
Engoli em seco. Minha vida ainda estava longe de ser
interminável.
— Me conte sobre a minha missão.
Enquanto caminhávamos, ele me deu informações básicas sobre
minha pecadora, seu passado e sua situação atual, e em seguida, a
sua pontuação: 28.
— Se eu pudesse enfrentar dois Triplos. Ou quatro. Eu
terminaria...
— Sem Triplos. — Seu tom não admitia argumentos. — Já que
teremos que nos mudar a cada dois dias para o meu trabalho, você
vai assumir principalmente os que tem entre dez e vinte. Talvez,
trinta aqui e ali, dependendo do pecado deles.
Apesar de ser fim de semana e ainda ser muito cedo, Viena
estava começando a acordar, e me vi virando o pescoço como uma
turista, tentando absorver tudo. Especialmente porque essas eram
as ruas que Asher havia trilhado. As paredes pelas quais ele
marchou. O ar que ele respirou.
— Devia se parecer bem diferente há um século — ponderei em
voz alta.
Ele assentiu, perdido em suas próprias contemplações.
— Era um mundo totalmente diferente. Quando voltei depois do
meu período sabático...
Levantei uma sobrancelha.
— Período sabático?
— Parece melhor do que confinamento de um século, não é?
Suspirei, desejando que os Sete redigissem uma nova
constituição.
— Então, o que aconteceu quando você voltou?
— Voei sobre Viena, voltei para a associação e me recusei a ver
minha cidade novamente por anos. Eu não conseguia engolir o
quanto ela tinha mudado. Como minha bäckerei favorita foi
transformada em um prédio do governo deprimente e cinza.
A arquitetura opulenta e as avenidas largas me lembravam as de
Paris, que por sua vez, me lembravam de Mimi. Como eu gostaria
de poder vê-la, mesmo que por apenas um dia. Como eu gostaria
que os canais não fizessem a tinta desbotar ou tornassem as torres
de celular e os holo-fones das associações inúteis.
Poucos minutos depois, entramos em um hotel cinco estrelas
ostentoso que lembrava um palácio grego com suas colunas
brancas, pisos polidos e acabamentos dourados.
— Madame e Monsieur Asher, willkommen. — O concierge de
terno cinza deu a volta em sua mesa, estendendo a mão para
Asher. — Posso levar isso para você?
Asher colocou minha bolsa no chão, e o homem estalou os
dedos para um carregador. Foi tudo um pouco ridículo, mas deixei
acontecer, porque Asher sussurrou:
— Deixe que eles se sintam úteis, levsheh.
O concierge alisou a lapela.
— Sua suíte está pronta.
— Madame Asher? — murmurei enquanto seguíamos o alegre
concierge até a fileira de elevadores.
— Eu poderia ter dito Monsieur Celeste, acho. Ser mais
moderno.
Dei uma cotovelada de leve nas suas costelas.

A que estaria de volta às seis para me buscar, mas


passou das seis, e ele não apareceu, nem respondeu às
mensagens de texto que enviei depois de deixar a clínica de cirurgia
plástica onde minha pecadora operava humanos que não
precisavam de conserto.
Me senti entusiasmada quando saí de seu escritório, confiante
de que consegui alterar o curso de lucratividade que ela escolheu –
aquele que a fazia estimular seus clientes a mudarem mais e mais –
encorajando-a a aceitar pacientes menos afortunados, aqueles que
precisavam de cirurgia reconstrutiva, mas não podiam pagar por ela.
Uma vez que ações falavam mais alto que palavras, pesquisei
pessoas com extrema necessidade de sua habilidade e entreguei a
ela três perfis detalhados, completos com fotos e histórias que
teriam derretido até o coração gelado de Eliza.
Verifiquei a hora no telefone e tentei ligar para Asher novamente.
Minha chamada foi direto para a caixa postal. Bati o telefone na
coxa enquanto olhava para o horizonte, onde o sol estava se pondo
sobre o rio Danúbio, deixando a cidade estrangeira em sombras.
Com a alma em nós, me afastei do pôr do sol e caminhei pela
varanda pavimentada – tão grande quanto a suíte que Asher
reservou – em direção ao quarto. Se ele não desse sinal de vida nos
próximos dez minutos, eu iria para a associação. Enquanto eu
puxava a tira do roupão, tentei me lembrar de pontos de referência
pelos quais passamos. Havia uma pequena igreja, embora eu
imaginasse que não ajudaria, considerando o número de igrejas por
quilômetro quadrado nas cidades europeias.
Estava prestes a tirar o roupão quando a porta do quarto se
abriu.
Uma grande sacola de compras vermelha balançou dos dedos
de Asher.
— Sinto muito, aheevaleh. A vendedora demorou uma
eternidade para preparar minha compra. E depois meu celular
morreu. Tecnologia humana. — Seu olhar deslizou pela faixa de
pele exposta, coberta apenas por um fio dental preto.
— Eu não tinha certeza do que vestir esta noite.
— Então você decidiu que uma calcinha fio dental e um roupão
seriam adequados?
Bati em seu braço antes de passar os dedos através do debrum
de couro acentuando o decote e os punhos da túnica preta elegante
que ele usava sobre a calça justa.
— Você deu um novo significado a alto, moreno e bonito esta
noite, Seraph. Só está faltando sua coroa de ouro.
— Eu a deixei em Elysium. Temi que isso me trouxesse muitos
olhares curiosos de mortais.
— Boa decisão.
Asher sorriu.
— Pensando bem... na verdade, nunca vi você usá-la. — O
único Arcanjo que conheci foi Seraph Claire na cerimônia dos ossos
das asas de sua filha. A coroa dos Sete, um círculo de penas
douradas, brilhava em seu cabelo escuro.
— Não sou fã de como isso me faz parecer.
— Régio, você quer dizer?
— Superior. — Ele me entregou a sacola de compras. — Aqui.
Vista-se. A cerimônia não começará sem nós, mas não vamos fazer
o pobre garoto esperar muito. Eles estão sempre muito animados
para comemorar.
Olhei para dentro da sacola e vi um tecido envolto em papel de
seda.
— Você comprou uma roupa para mim?
— Não te dei muito tempo para fazer as malas na noite passada.
Peguei a sacola e a coloquei na cama. Dentro havia um
macacão de seda preta com um top sem mangas de couro de
decote acentuado.
— Olhe para isso. Nós vamos combinar.
Asher puxou o roupão e jogou-o sobre o pé da cama. Enquanto
ele olhava para o meu corpo, seus dedos deslizaram sobre minhas
curvas escassas.
Quando ele prendeu as laterais da minha calcinha e a puxou
pelas minhas pernas, eu disse:
— Achei que eu deveria me vestir...
— Em um minuto. — Sua voz parecia ter perdido uma oitava
completa.
Ele me apoiou na cama até meus joelhos dobrarem, e eu tombei
para trás no edredom em forma de nuvem. Então ele se ajoelhou
entre minhas pernas, colocou meus joelhos sobre seus ombros
largos e me beijou.
49

C hegamos à associação meia hora depois, o que foi


impressionante, considerando o número de orgasmos que
Asher tirou do meu corpo. Depois que devolvi o favor -
apenas uma vez, porque estávamos com pressa – ele fechou o
zíper do macacão que se encaixava tão perfeitamente que percebi
que ele conhecia a forma do meu corpo de cor.
As botas de couro com saltos pontiagudos e muito altos que ele
comprou para mim ecoaram no chão de pedra brilhante do átrio e,
em seguida, do refeitório, de onde vazava um nível de som que eu
não ouvia desde o The Trap.
Meu coração acelerou com tristeza. Só havia se passado uma
semana desde que vi Jase pela última vez, mas parecia uma
eternidade. Levei a mão ao pescoço e acariciei a cicatriz fina. O
hematoma havia desaparecido rapidamente, mas a marca da
lâmina, embora fraca, ainda marcava minha pele.
Quando os habitantes da associação nos viram, o nível de ruído
diminuiu tão rápido que o silêncio ameaçou me fazer corar.
Felizmente, os pardais continuaram circulando pela sala, entoando
suas árias, sem se importarem com a chegada de um arcanjo e sua
acompanhante.
De mãos dadas, avançamos em direção a Tobias e um homem
com asas híbridas citrinas, um rosto oval comprido e cabelos loiros
cortados rente ao couro cabeludo. Imaginei que fosse Gabriel, já
que Adam estava colado aos dois homens. Os Plumas mais jovens
saíram do nosso caminho. Enquanto os mais velhos deram
pequenos passos para trás, aparentemente menos intimidados pelo
Seraphim.
O excesso de testosterona me lembrou do baile do qual
participei no meu último ano na associação. Coincidiu com o dia em
que ganhei cento e oitenta penas. Eu estava tão animada que exibi
minhas asas com orgulho. Até que um menino com a sombra de um
bigode perguntou se eu sofria de alopecia de penas. Dei um soco
nele, e seu nariz sangrou. Perdi uma pena que ganhei com
dificuldade, mas fui embora com a cabeça erguida.
Minhas asas não estavam em exibição esta noite, e mesmo
assim, enquanto eu caminhava através da multidão densa de
Plumas vestidos de forma extravagante, senti seus olhares
grudarem nas minhas costas, como se eles olhassem por tempo
suficiente, eles as vislumbrariam.
— Desculpe nosso atraso, Tobias — Asher disse assim que
alcançamos seu amigo.
Tobias olhou entre nós com um sorriso conspiratório em sua
boca.
— Tenho certeza de que você tem um motivo perfeitamente
válido para o seu atraso.
Como eu gostaria de poder desaparecer na sombra de Asher.
— Celeste, Gabriel. Gabriel, Celeste. Vocês dois podem se
conhecer melhor enquanto eu peço emprestado nosso Arcanjo
favorito para oficiar a cerimônia.
Soltei a mão de Asher.
Antes de seguir Tobias, ele beijou minha têmpora e murmurou:
— Eu já volto. Por favor, evite cintilar alguém na minha ausência.
Revirei os olhos.
— Venha, ó Grande e Poderoso Seraph. Temos um menino para
acabar com sua miséria.
Asher não riu, mas balançou a cabeça enquanto seguia seu
amigo em direção a um menino que usava uma túnica branca tão
grande que fazia seu corpo pequeno desaparecer.
Depois de cumprimentos rápidos, parei ao lado de Gabriel.
— Ouvi muito a seu respeito.
Sem desviar o olhar da atração principal, ele respondeu:
— Tudo exagero, tenho certeza. Meu marido gosta muito de
aprimorar meus talentos e aparência. — Embora os lábios de
Gabriel não tenham se encolhido, seus olhos de obsidiana franziram
nos cantos.
Eu sorri para ele.
— Tenho certeza de que nada foi exagerado.
As rugas se aprofundaram, desta vez acompanhadas por um
sorriso discreto.
— Isso te lembra de sua própria cerimônia?
Voltei minha atenção para Asher e Tobias. Eles estavam tocando
os ossos recém-formados do jovem Pluma, que se projetavam do
tecido, desejando-lhe uma viagem segura pelo mundo humano e
uma conclusão bem-sucedida de suas asas.
— Foi o dia mais assustador da minha vida... eu tinha apenas
dez anos, mas pelo menos minha melhor amiga estava lá. Ela
segurou minha mão durante toda a provação e então me ajudou a
escolher minha primeira missão.
— Parece uma garota maravilhosa.
Engoli em seco.
— Ela era.
— Era? — Gabriel ergueu uma sobrancelha tão loira que era
quase transparente.
— Leigh morreu há alguns anos.
— Ah.
Silêncio.
Gabriel pigarreou.
— Não sabia que ela era a amiga de quem você estava falando.
— Você já ouviu falar dela?
— Todas as associações já ouviram falar dela. — Sua voz soava
baixa, provavelmente para que seu filho não nos ouvisse falando
sobre as escolhas erradas que alguns anjos fizeram.
A menos que fosse baixo porque o destino dela o ofendia. Eu
esperava que fosse o tipo de homem que ele era. Para o bem de
Adam.
Meu olhar se desviou para a reencarnação de Jarod.
Fragmentos de sua vida passada assombravam Adam como faziam
com Naya? Como seus olhos estavam grudados nos mestres da
cerimônia e no objeto corado de suas bênçãos, eu não poderia dizer
se ele tinha me ouvido falar o nome de Leigh.
De repente, eu queria uma reação, ao mesmo tempo que não
queria. Eu queria que ele se lembrasse e esperava que não.
— Também soube que você desistiu por causa do que aconteceu
com sua amiga. — Depois de um tempo, ele acrescentou: — Estou
feliz que você tenha mudado de ideia.
— Infelizmente, um pouco tarde demais.
Tentei afastar a dor que dominava meu coração, mas entre a
multidão solene, as árias emocionantes e a visão dos ossos curvos
e simétricos do menino, minha garganta apertou. Fechei meus
olhos. Cabelo cor de pêssego e olhos esmeralda chamejaram atrás
das minhas pálpebras, então eu os abri e não ousei piscar. Nem
uma vez. Nem mesmo quando eles começaram a arder.
Ela existe. Ela existe. Ela existe. Talvez se eu repetisse o
suficiente, começaria a acreditar.
— O que você acha dos nephilim, Gabriel?
Ele inclinou seu rosto fino na minha direção.
— Que pergunta carregada.
Talvez este não fosse o lugar ou a hora de perguntar, mas desde
que descobri que Mira estava do nosso lado, me perguntei se outros
também estariam.
Ele ficou mudo por tanto tempo que desisti de receber uma
resposta, mas de repente, sua boca se moveu em um murmúrio.
— Damos aos pecadores a chance de se redimirem. Por que
não a nosso próprio povo?
— A sua crença é compartilhada com muitos Ophanim?
— Mudaria alguma coisa se fosse?
— Talvez se muitos de vocês levantassem suas vozes.
O arrependimento esculpiu sulcos em sua testa forte.
— Elysium não é uma democracia, criança.
Eu geralmente me irritava quando alguém me chamava de
criança, mas sua inflexão não era condescendente.
Ele voltou sua atenção para o Pluma da noite.
— Não é o melhor tópico de conversa para um evento tão alegre.
Ele estava certo.
Uma ovação soou ao redor da sala, e as feições do garoto
brilharam de excitação. Seus amigos se fecharam em torno dele,
dando tapinhas nas costas ou lhe oferecendo abraços rápidos e um
pouco desajeitados com um braço só.
Adam inclinou a cabeça para cima.
— Você se lembra da sua cerimônia, Papa?
O sorriso de Gabriel voltou enquanto ele alisava os cachos
rebeldes de seu filho.
— Como se fosse ontem.
— Havia dinossauros?
— Dinossauros — Gabriel zombou. — Vou conversar com
Ophan Michael sobre o que ele está ensinando as jovens mentes de
vocês.
Adam deu a seu pai um sorriso torto que fez aparecer uma
covinha. Uma única covinha. Não duas como as minhas.
— Eu sei que você não é tão velho. É um jovem de duzentos e
setenta e nove anos.
— Isso mesmo, meu rapaz. — Gabriel continuou alisando o
cabelo do filho, mas os cachos apertados eram como juncos e
saltavam para trás no momento em que não estavam mais sendo
alisados. — Agora, vamos dar boa noite ao Apa e ir para a cama. —
Ele se agachou e o pegou nos braços. — Diga boa noite para
Celeste, aheevaleh.
Adam colocou sua bochecha contra o ombro de seu pai e olhou
para mim, realmente olhou para mim, e por um minuto mais fugaz,
pensei ter detectado reconhecimento, mas então ele esfregou as
mãos nos olhos e bocejou.
Quando ele olhou para mim novamente, o lampejo de
reconhecimento se foi.
— Bonsoir, Celeste.
Minhas omoplatas se contraíram ao ouvi-lo falar francês.
— Boa noite, Adam.
Gabriel reajustou seu controle sobre o menino de quatro anos.
— Ele adora falar francês. — Ele parecia se divertir com essa
peculiaridade.
Eu duvidava que ele se divertiria se soubesse o motivo disso.
Apostava que Tobias não achava graça. Que ele tremia em sua
túnica azul marinho toda vez que Adam usava palavras em francês.
Procurei o Ophanim, encontrei-o parado com Asher na periferia da
multidão, os dois bebendo o que parecia ser Bolhas de Anjo e
conversando baixinho. Não achei que eles estivessem discutindo
sobre as crianças, mas o que quer que fosse, lhes deu um ar grave.
Enquanto Gabriel carregava seu filho em direção a Tobias, meus
olhos encontraram os de Asher sobre o mar de cabeças balançando
e penas multicoloridas. Todos aqueles com asas as colocaram para
fora.
Todos, exceto eu.
O olhar de Asher era tão suave quanto as penas da parte inferior
de suas asas e, de repente, ficou duro. Duro como metal resfriado.
Fiz uma careta para sua rápida mudança de semblante.
Até que ouvi uma voz feminina dizer:
— Quase seiscentas penas. Fiquei impressionada.
Paralisei enquanto Asher fazia exatamente o oposto. Ele quase
se lançou para frente, as pernas longas o levando em minha direção
muito rapidamente.
Quando ele me alcançou, envolveu seu braço ao redor da minha
cintura e me girou para longe do outro Arcanjo na sala, e então, com
expressão inabalável, perguntou:
— Seraph Claire, o que te traz de Elysium?
Dois Ishim a cercavam, uma das quais eu odiava mais do que as
leis obsoletas de Elysium e que eu esperava que tivesse sido
rebaixada.
Perdi uma pena.
Asher deve ter percebido por que respirou fundo e seus olhos se
fecharam. Quando suas narinas dilataram, percebi que ele não tinha
visto. Tinha sentido. Ainda estava sentindo. Ele estava revivendo a
memória. Logo, seus olhos reabriram, e ele estava de volta, seu
humor pressionando contra mim, espesso e elétrico como nuvens
carregadas prestes a desencadear uma tempestade com raios.
50

M esmo sabendo que os anjos não envelheciam em


Elysium, era assustador ver o quanto Seraph Claire se
parecia com a filha. Eu quase a teria confundido com
Eve se não fosse por sua tiara dourada e olhos verdes. Além disso,
Eve ficaria presa em Elysium pelos próximos noventa e seis anos.
— Vim dar os parabéns a Pluma Celeste pela impressionante
reviravolta. — As penas cor de fúcsia com ponta de platina de Claire
se moveram para trás de um vestido tecido com pérolas douradas.
Eu não agradeci. Não disse nada. Simplesmente olhei entre a
Arcanjo e sua fiel cachorrinha ranqueadora para descobrir sua
verdadeira intenção, porque me elogiar com certeza não era o
motivo.
— É maravilhoso ver como um pouco de motivação pode ajudar
alguém a chegar tão longe. — Os lábios vermelhos de Claire
arquearam em um sorriso deslumbrante. — Vamos vê-las.
Quando Abaddon congelar.
— Vamos lá, Pluma. Não seja tímida.
Quando não fiz nenhum movimento para ceder, ela bateu palmas
e disse:
— Lehatsamehot!
Os ossos de minhas asas vibraram, em seguida se abriram,
exibindo todas as penas que eu possuía. Meus pulmões, meu
coração, tudo em mim parou.
— Nunca tenha vergonha de suas asas, Pluma. Nem todo
mundo consegue tê-las. — Os olhos de Claire brilharam como os
rastreadores esmeralda em suas orelhas. — Ou mantê-las.
A fúria subiu pelo meu pescoço e inundou minhas bochechas.
Tentei escondê-las, mas elas estavam presas. Presas para que
todos pudessem ver. Para todos rirem. Eu as forcei em minha
espinha o máximo que pude, então desejei que elas fossem
embora, mas elas permaneceram.
Como?
Como ela fez isso?
— Habamehot! — Asher grunhiu, vencendo o peso insubstancial
nas minhas costas. — Você não tem o direito de forçar os anjos a
exibirem suas asas sem o consentimento deles.
Embora uma centena ou mais de Plumas nos cercassem,
nenhum emitiu um único som.
Claire deu uma risadinha. Riu mesmo.
— Se não temos o direito, então por que possuímos o poder?
Isso não foi explicado com clareza no dia em que o tornamos parte
dos Sete, Seraph Asher? Um de nossos deveres é fazer com que os
Plumas abracem o dom que são suas asas.
— Não. Contra. A. Vontade. Deles. — Asher rugiu, me
segurando contra si como se estivesse preocupado que eu pudesse
quebrar. Ou dar um soco na Arcanjo.
O último era muito mais provável.
— A paternidade o tornou extremamente tolerante, Seraph.
Meus dedos se fecharam em seu antebraço porque, desta vez,
eu estava preocupada que ele pudesse socar Claire. Era essa a sua
intenção? Incitar Asher para que ele cometesse uma transgressão?
Uma vez que ele já estava em período probatório...
Uma manga roçou meu ombro rígido, e então Tobias deu um
passo na minha frente, seu corpo obscurecendo o meu e parte do
de Asher.
— Seraph Claire, bem-vinda! — Sua voz era como uma corrente
quente no ar frio.
— Ora, olá, Ophan Tobias. Como está seu querido filho? —
Havia algo em seu tom que esticou os tendões do antebraço de
Asher e enrijeceu os das costas de Tobias.
— Crescendo como uma flor. Você deveria visitá-lo quando ele
estiver acordado. Eu adoraria que vocês fossem devidamente
apresentados.
Um arrepio que nem a pele aquecida de Asher, nem as veias
iluminadas das pedras ao redor poderiam temperar, percorreu minha
pele. O que Tobias estava fazendo? Convidar a Arcanjo para
conhecer Adam era arriscado.
— Eu adoraria — Claire respondeu agradavelmente. —
Disseram que ele é tão adorável quanto a Naya.
— Eles nasceram em um dia auspicioso — Tobias falou.
— Eu ouvi dizer. E o mesmo dia. Que... improvável.
— O Asher gosta de me copiar. Sempre gostou, por falar nisso,
embora eu o encoraje incessantemente a cultivar alguma
originalidade.
— Copiou você em sua escolha de companheiro. Nenhum dos
dois escolheu Verities.
Cada resposta foi selecionada e entregue com cuidado, como
uma partida de badminton jogada com uma granada.
— A alma quer o que quer. — O tom agradável de Tobias estava
desaparecendo. — Já que você está aqui, Seraph, posso apresentá-
la ao Pluma da hora? Estávamos celebrando seus ossos de asas
recém-formados e, embora Seraph Asher já o tenha abençoado,
tenho certeza de que Felix ficaria entusiasmado por receber os
votos de boa sorte de outro Seraphim. Afinal, benção nunca é
demais.
— Acho que posso dispensar um momento.
Tobias gesticulou para que ela fosse à frente dele.
Seus saltos afiados como agulhas estalaram duas vezes na
expansão brilhante antes de parar. Olhando por cima das asas de
platina, ela disse:
— Seraph, não saia antes de eu voltar. Não vim apenas
parabenizar a sua híbrida.
Asher não respondeu, nem mesmo com um aceno de cabeça,
mas a tensão em seu corpo aumentou novamente. Não que tivesse
se estabilizado. Provavelmente não diminuiria até que a Arcanjo e
seus dois Ishim canalizassem de volta para Elysium.
Eliza estava olhando para Asher, não mais como uma mulher
olhando para o objeto de seu desejo, mas como uma Verity
examinando um híbrido – com um lábio franzido e um olhar de nojo.
— Qual é a verdadeira natureza desta visita, Ish Eliza? — a
pergunta de Asher quase não era audível sobre as árias dos
pardais.
O classificador de pé ao lado de Eliza baixou o olhar para suas
botas de sola macia e engoliu em seco enquanto seu pomo de adão
se movia.
Eliza, por outro lado, não desviou o olhar.
— Fomos informados de que Seraph Claire precisava de escolta,
e Ish Jonah e eu nos oferecemos como voluntários.
Logo, Claire estava de volta em nossa direção, com Tobias a
reboque. Peguei seu olhar sobre as penas rosa extravagantes e o
brilho inquietante nele fez meus dentes rangerem.
— Peço desculpas, Pluma Celeste — Claire falou. — Embora eu
tenha feito a viagem para te parabenizar e dar uma olhada nessas
suas lindas asinhas...
Ah, os xingamentos se acumulavam na minha garganta. Eu os
engoli para longe da minha mente, mas um deve ter se libertado,
porque minhas asas jogaram outra pena fora. Desta vez, não atingiu
Asher. Apenas passou por seu braço e pousou na minha bota preta
pontuda.
Ele colocou a boca na minha têmpora.
— Shh.
Claire olhou para minha pena roxa.
— Eu também vim pegar seu acompanhante emprestado para
um referendo que precisa da voz dele. — Ela ergueu o olhar para
mim e os cantos de sua boca se curvaram. — Não há descanso
para os Sete.
Eu não tinha certeza se ela pretendia ser engraçada, mas
ninguém riu.
— Eu o trarei de volta em breve. — Como se os Ishim
estivessem enganchados em seu corpo, os três se viraram ao
mesmo tempo.
Um grito cresceu em meus pulmões. Ganhou tração. Arranhou
minha traqueia. Apertei meus molares e o forcei de volta,
preocupada que minha raiva fizesse mais mal do que bem.
O olhar semicerrado de Asher seguiu sua companheira Arcanjo,
mas seu corpo permaneceu preso ao meu.
Claire deve ter percebido que ele não estava seguindo, porque
se virou.
— Seraph, se Elysium não vier mais em primeiro lugar, outro
referendo que não exigirá sua voz terá que ser convocado.
A ameaça latejava dentro de meus ossos. No de Asher também.
Ele vibrou com um antagonismo mal contido.
— Tobias — ele retrucou.
— Não vou sair do lado dela, irmão.
Ofeguei com as palavras não vá.
Asher gentilmente tirou meus dedos de seu braço.
— Eu já volto, levsheh. Prometo.
Me esforcei para me agarrar a ele, mas ele já tinha se afastado.
Enquanto ele seguia atrás de Seraph Claire, retrucou:
— Vamos acabar com isso logo.
Caí de encontro a Tobias, cujo braço, sólido como o de Asher,
envolveu meu corpo trêmulo.
— Ele vai voltar, Celeste. Você sabe que vai.
A única coisa que eu sabia era que não tinha sido forte o
suficiente para aguentar.
— Vá com ele, Tobias. Vá com ele e se certifique... se certifique
de que ele... se comporte.
Tobias me conduziu em direção a uma das mesas que havia sido
empurrada para o lado para abrir espaço para a festa.
— O Asher se comportar mal? — ele murmurou pelo canto da
boca como se fosse a coisa mais ridícula que ele já tinha ouvido.
— Ele quase a estrangulou quando ela fez minhas asas
aparecerem. — Como eu não sabia que os Arcanjos podiam
manipular asas?
Tobias puxou uma cadeira e me ajudou a sentar.
— Como você disse, ele quase a estrangulou. Ele tem
temperamento forte, mas conhece os riscos de deixá-lo escapar.
— Por favor, Tobias... por favor, vá.
O Ophanim apertou os lábios como se considerasse meu pedido.
— Michael! — ele gritou, e um anjo com cabelo raspado, pele
negra e asas azuis do meio-dia se aproximou. — Você poderia, por
favor, ir ao Elysium e descobrir sobre o que é esse novo referendo?
O olhar de Michael voou para mim, depois de volta para Tobias.
— É claro. As crianças estão dormindo. Vou ficar até que a
votação seja feita, se estiver tudo bem para você.
— Obrigado. — Quando Michael saiu, com as penas azul claras
se mexendo, Tobias se sentou e segurou as mãos que fechei com
força. — Vai dar tudo certo, Celeste.
Se eu compartilhasse um pouco de sua confiança...
51

U ma hora se passou. Duas...


O refeitório foi esvaziando até que as únicas pessoas
que restaram foram Tobias, Gabriel, que voltou sem
Adam, e eu. Os homens falavam em tons abafados, mas mesmo
que eu tivesse me esforçado para ouvir algo além do barulho em
meus ouvidos, eles usaram angélico, a única linguagem que eu não
entendia. Imaginei que eles estivessem discutindo cenários
desagradáveis.
Passos ecoaram no corredor, e então um homem alado
apareceu. Minha coluna ficou ereta, com as vértebras se fundindo
até que a forma do corpo e a cor das asas se infiltraram em minhas
córneas.
Não era meu anjo.
Michael caminhou em nossa direção, o corpo magro como uma
lâmina vindo para cortar os restos desgastados de nossa
esperança, e disse algo na língua celestial que fez Tobias congelar e
Gabriel sibilar.
— O que houve? — Minha voz tremeu.
Os olhos de Michael, tão azuis quanto suas asas, se fixaram em
mim.
— Eles apreenderam a chave do canal de Asher.
Meu corpo ficou dormente.
— Por quê? — Tobias rugiu.
— Disseram que ele havia sido avisado e que violou os termos
de seu período probatório. Mas também disseram que era
temporário.
Tobias empurrou sua cadeira para trás de forma tão abrupta que
as pernas rangeram no quartzo.
— Quanto tempo?
— Apenas dois meses.
— Apenas dois meses? — Balançando os braços, Tobias saltou
da cadeira. — Aqueles idiotas emplumados.
— Tobias! — Gabriel ofegou, lançando um rápido olhar pelo
refeitório deserto.
— Dois meses não é um número aleatório! É o tempo que falta
para a Celeste! Eles o estão mantendo longe de propósito.
— Talvez, mas insultá-los fará com que eles mantenham você
longe. — O peito de Gabriel arfou.
Minha garganta e as pálpebras queimaram. E ainda assim o
resto do meu corpo parecia vidrado no gelo. Um soluço empurrou
meu queixo, saindo dos meus pulmões doloridos. O som desolado
ecoou na cúpula pintada e a pedra brilhante. Pressionei a mão
contra a boca e mordi os nós dos dedos.
Tobias se agachou ao meu lado, segurando meu corpo trêmulo
em seus braços.
— Eu vou até lá, Celeste. Vou falar com eles.
Eu me afastei.
— Você não pode.
— Eu...
— Adam — murmurei. — Pense no Adam.
Ele franziu os lábios.
— De toda forma, o Asher não pode me ajudar. Nas missões,
quero dizer. — Minhas emoções distorceram o som da minha voz e
a visão do rosto de Tobias. A sala parecia brilhar um pouco mais
forte e depois escurecer com a mesma rapidez. Segurei a borda da
mesa para evitar cair. — Preciso... ir para o hotel, fazer as malas...
e...
— O Michael vai com você.
Entorpecida. Eu estava entorpecida.
— Preciso escolher minha próxima missão.
— Agora não, não precisa. — Tobias apoiou as mãos grandes
em minhas coxas trêmulas. — Depois de uma noite de descanso,
você vai se vincular.
— Não posso ficar aqui. Eu sou uma garota.
— Ah, danem-se eles e suas regras.
— To-bi-as — Gabriel resmungou o nome de seu marido.
— O quê? Você quer colocá-la na rua?
— Não. Claro que não. Ela pode até ficar com a nossa cama.
Mas quero que você fique quieto.
— Talvez seja esse o problema. Que todos nós fiquemos quietos
demais! O silêncio é a ruína de nossa existência. Acho que está na
hora de todos pararmos de pisar em ovos em torno dos Sete e
transformar essa autocracia em uma democracia, porque com todo
o seu coração e intenção, Asher é apenas um homem. Alguém que
precisa de nós. Que precisa dela. — A mão de Tobias cortou o ar
em minha direção. — Sem falar que a Naya precisa de um pai. Você
pode imaginar se eles nos tirassem o Adam, Gabriel? Pode imaginar
o que isso faria ao nosso menino?
Gabriel empalideceu.
— Michael, você pode pegar a bolsa dela no hotel? — Tobias
perguntou.
— Agora mesmo.
— Michael, por favor, não... — Gabriel gesticulou para Tobias, a
preocupação cobrindo seu rosto. — Por favor, não comente sobre o
que você ouviu aqui...
— Eu tenho voz, Gabriel.
A cabeça de Gabriel se inclinou para trás.
— Pequena, mas pretendo me juntar a do Tobias quando chegar
a hora.
Gabriel piscou para seu colega professor da associação
enquanto Tobias sussurrava:
— Obrigado.
Assim que o anjo de asas azuis se foi, Gabriel perguntou:
— O que exatamente você pretende contestar, Tobias?
— Ah, tantas coisas.
— Tobias... — Gabriel sussurrou, e isso me lembrou de todas as
vezes que Asher tinha usado meu nome como uma frase completa.
Um novo arrepio atormentou meu corpo, e por mais que eu
endurecesse minha coluna e cerrasse meus dedos, estremeci.
— Não me venha com essa, Gabriel. É injusto e você sabe
disso.
Gabriel colocou a mão sobre seu cabelo loiro cortado.
— Sim! Sim, eu sei que é, mas não quero perder você e não
quero perder o Adam.
— Se não ajudarmos o Asher, perderemos nosso filho.
— Do que você está falando?
Balancei a cabeça, mas os lábios de Tobias se moveram.
— Você realmente acha que eu te traí?
Todas as feições de Gabriel enrijeceram.
— Eu... eu...
— O Asher me confiou o Adam. Confiou a nós.
— Tobias, não... — murmurei.
Seus olhos se fecharam.
— Não posso mais guardar isso. Não posso, Celeste. Eu quero
levar o Adam até Elysium e gritar para que olhem para e vejam sua
linda alma.
— Mas eles não vão fazer isso — sussurrei.
— Não entendo — Gabriel falou. — O Adam é filho do Asher?
— Não.
— Ele é filho de quem?
Os olhos límpidos de Tobias se abriram.
— Nosso. Ele é nosso filho.
52

D epois que Tobias explicou como Adam nasceu, Gabriel


ficou quieto.
Assustadoramente quieto.
Me lembrei de quando Asher compartilhou seu segredo comigo.
O quanto eu fiquei atordoada.
Gabriel ainda não tinha dito uma palavra ou se movido quando
Michael voltou, puxando minha mala de rodinhas.
— Se me esqueci de alguma coisa, é só avisar que volto lá.
— Obrigado, Ophan Michael. — Eu me levantei da cadeira. —
Posso pedir outro favor?
O homem assentiu.
— Pode me levar pelo canal de volta para Nova York?
— É claro.
Coloquei a mão no ombro de Tobias.
— Por favor, não invada Elysium sem mim.
Os olhos avermelhados de Tobias se ergueram.
— Me prometa, Tobias. Prometa que vai esperar.
O Ophanim teimoso não disse uma palavra.
— Ele vai. — Os olhos de Gabriel clarearam sua névoa.
Tobias cruzou os braços e lançou ao marido uma carranca.
— Vamos esperar, porque precisamos nos preparar. — Gabriel
passou a mão pelo rosto. — Não podemos simplesmente ir lá em
cima e levantar o Abaddon.
Isso desmantelou parte da tensão.
O que desmontou a outra parte foi Gabriel arrastando sua
cadeira para mais perto de Tobias, agarrando o rosto de seu marido
e encostando a testa na dele.
— Chega. De. Segredos. Somos uma equipe.
Meu coração doeu enquanto eu os observava, desejando que
meu companheiro de equipe não tivesse sido arrancado de meus
braços. Foi assim que Leigh se sentiu no dia em que ascendeu?
Como se seu coração e alma tivessem sido partidos em dois?
Sussurrei um adeus baixo e segui Ophan Michael para fora do
refeitório.
— Eles sempre fazem as pazes. — Ele sorriu. — No caso de
você estar preocupada. Você provavelmente tem centenas de outras
coisas com que se preocupar.
Não cem. Apenas três. Asher, Naya e minhas mais de
quatrocentas penas faltantes.
— Fico feliz em ouvir isso.
Uma vez dentro do canal, ele estendeu a mão e eu a segurei.
Meu cabelo se ergueu enquanto disparávamos em direção ao céu
na luz forte de Elysium.
A viagem durou apenas alguns segundos. Quando a fumaça cor
de lavanda se dissipou, o gentil Ophanim me entregou minha mala.
— Você pode ficar de olho em...
— Tobias?
— Eu ia dizer Adam.
— Vou ficar de olho nos três. — Outro sorriso enfeitou os lábios
do homem.
O que havia me possuído para desprezar os Ophanim? Eles não
eram insensíveis, máquinas de lavagem cerebral que voltaram à
Terra para tirar a diversão e a vida de jovens anjos. Eles eram
aqueles que tinham retornado. Os que ficaram. Que se dedicaram a
cuidar de crianças que nem eram suas.
Durante toda a minha vida, quis me tornar Malakim, mas
enquanto observava a nuvem cintilante borrar o corpo escuro de
Michael, decidi que, se conseguisse, quando o fizesse, treinaria
para me tornar Ophanim.
— Celeste? — A voz de Mira me tirou da minha contemplação, e
eu me virei.
Um olhar para o meu rosto manchado de lágrimas fez o dela
empalidecer.
— O que aconteceu?
— Tiraram a chave dele do canal. — Minha voz saiu baixinha.
Ela franziu a testa, mas então entendeu.
— Por quanto tempo?
— Dois meses. Por minha causa, a Naya...
— Você tirou a chave do canal dele?
— Não. Eu quis dizer...
— Sei o que você quis dizer. — Suas asas vermelhas se
eriçaram. — Mas não vou permitir que uma de minhas Plumas se
culpe por algo que ela não fez.
Meu coração estava tão apertado que deu um baque patético.
— De quantas penas você ainda precisa?
— Quatrocentas e trinta e duas.
— E você está vinculada a um pecador?
Engoli em seco, mas minha garganta estava tão seca que doeu.
— Sim, mas terminei a missão.
— Bem, então vamos para a Sala de Classificação.
Minhas sobrancelhas se ergueram.
— Juntas?
— Quando a sua mãe te trouxe aqui, você se tornou minha
responsabilidade, e até o dia em que se formar na minha
associação, continuará sendo. — Ela segurou meu cotovelo e me
conduziu pelos corredores da minha infância.
Ao contrário de Viena, onde a noite tinha caído há horas, o céu
sobre nossas cabeças estava apenas começando a escurecer.
— Quando você era bebê, seus pulmões eram muito fortes. —
Sua boca se curvou em um sorriso raro. — À noite, a pobre Pippa
perdia o sono tentando evitar que você acordasse as outras
crianças. Morria de pena dela. Você não vai se lembrar disso, mas
no primeiro ano de sua vida, fiquei ao lado do seu berço todas as
noites e contei a você pedaços de nossa história e da história
humana até que seus olhos e lábios se fechassem.
Não só não me lembrava, mas mal conseguia imaginar.
— Talvez seja por isso que eu gostava tanto das suas aulas de
história.
Ela soltou um bufo curto e nada parecido com o que imaginei
que faria.
— Você dormia nelas.
— Em minha defesa, se você usou o assunto para me embalar
quando era bebê, foi uma resposta pavloviana.
Ela me olhou de lado, o que me fez sorrir. Não durou muito.
Cedo demais, a noite passou pela minha mente e sumiu com o meu
sorriso.
Para evitar cair em lágrimas de novo, redirecionei meu foco para
ela.
— Você já teve um filho?
Seu olhar caiu para o chão de pedra, que estava começando a
brilhar.
— Tive.
— Ele ou ela está em Elysium?
— Ele. E, não. Meu filho escolheu seguir seu coração em vez de
seu chamado.
Quase escorreguei.
— Ele se apaixonou por uma garota mortal pouco antes de sua
ascensão. — Seus olhos escuros traçaram as veias de fogo no
quartzo. — Eu disse a ele que cuidaria dela e que, quando ela
morresse, acompanharia pessoalmente um Malakim para colher sua
alma. Ele concordou, mas depois de um ano no Elysium, ele pousou
na minha associação. Sua pele estava descascando onde os ossos
das suas asas estiveram. Ele a encontrou novamente. Se casou
com ela. Ficaram felizes por um tempo, mas então sua mente... —
Ela inspirou profundamente, mas a respiração mal levantou seu
peito estreito. — Quando as asas dos anjos são queimadas, o
mesmo ocorre com o conhecimento de nosso mundo. Eles não
esquecem instantaneamente, mas progressivamente. É por isso que
eles perdem a cabeça.
E eu que pensei que era outra mentira.
— Ele se matou?
— Não. Acabou em um hospício, e ela... ela teve que continuar.
Retornar para um novo corpo. Amar de novo. Viver de novo. Eu a
perdi de vista depois de sua sétima reencarnação.
Sempre acreditei que o coração de Mira era impenetrável, mas
não era. Estava apenas com crostas.
— Chega de falar sobre mim, Pluma. — Ela soltou meu cotovelo
quando chegamos à Sala de Classificação. — Ligue um desses e
procure Ophelia Simmons.
Fiz uma careta.
— Posso ter ouvido que ela era... receptiva.
Me sentei em um dos banquinhos e pressionei a palma da mão
no painel de vidro frio. O holo-classificador ligou. Localizei o nome
de Ophelia. Uma senhora idosa de cabelo roxo apareceu diante de
mim. Examinei seu perfil. Pecado: aconselhamento matrimonial.
Número de plumas previamente vinculados a ela: 23, sendo 10 de
nossa associação. Quase todos conseguiram tirar um ponto de sua
pontuação.
— Meus Plumas têm comentado sobre ela, então a pesquisei.
Ela é inofensiva, e ouvi dizer, bastante divertida.
— Por que ela está no sistema?
— Ah. Porque a maioria de seus clientes acaba se divorciando,
mesmo quando não querem. Infelizmente para ela, o efeito cascata
de sua orientação equivocada sobre essas famílias afeta sua
pontuação. — Quando meus olhos inchados se levantaram um
pouco, ela acrescentou: — Ela está tentando mudar seu método.
Ela acenou para o painel de vidro, e eu pressionei a palma da
mão nele. Assim que meu nome apareceu no rosto de Ophelia,
desliguei o holo-classificador e segui Mira para fora.
Mantendo a voz baixa, perguntei:
— O que você vai dizer a Naya?
— Uma versão da verdade. Que o pai dela tem muito trabalho
em Elysium.
— Por quanto tempo ela vai comprar isso?
Seu olhar pousou em uma das estátuas de anjo do átrio.
— Vamos mantê-la distraída.
— Qual foi o maior tempo que ele ficou longe?
— Uma semana.
A culpa cobriu minha dor. Por minha causa, Naya não veria seu
pai por várias semanas. Mesmo que Mira me apontasse diversos
pecadores de trinta pontos, ainda demoraria para conseguir as
penas. Claro, alguns poderiam ser direcionados para um caminho
melhor em um dia, mas a maioria exigiria dois ou três. Sem
mencionar que precisaria fazer pausas ou não teria energia e
recursos mentais para ajudar ninguém.
— Vou falar com meus Plumas sobre suas missões mais fáceis
durante o jantar esta noite. Eu devo ter um novo pecador pronto
para você amanhã.
— Obrigada, Ophan. Eu realmente aprecio sua ajuda. — Minha
voz falhou engoli em seco. Eu não ia me despedaçar. Aqui, não.
Mira roçou meus dedos com sua pele fina como papel. Embora
ela fosse imortal, nasceu na Itália no século XV. Seiscentos anos
haviam afetado seu corpo.
— Celeste, essa ainda é sua casa. Posso encontrar um quarto
só para você, se não quiser compartilhar.
O riso veio de duas garotas entrando na associação. Uma delas
piscou ao me ver, depois deu uma cotovelada discreta em sua
amiga, que ainda estava rindo. Ela ficou séria. Enquanto elas
passavam rapidamente por nós, as duas olharam por cima dos
ombros e então, embora baixo, ouvi meu nome ser sussurrado.
Não. Eu não poderia mais morar aqui. Ser motivo de fofoca ou
olhada como a pagã com poucas penas que todos me
consideravam. Em vez de explicar isso a Mira, usei outra desculpa,
igualmente verdadeira.
— Se eu ficar aqui, vou me encontrar com a Naya. Mesmo se eu
contornar a verdade, ela vai adivinhar que algo está errado.
Mira apertou os lábios.
Eu me virei e comecei a caminhar em direção à porta da frente,
com as rodinhas da mala sussurrando sobre a pedra polida. Antes
de sair, gritei:
— O refeitório da associação vienense tem um teto adorável.
Ela zombou, o que trouxe um sorriso aos meus lábios. Demorou
um momento, mas desapareceu como o último. Quando cheguei em
casa, meia hora depois, e olhei para minha cama desarrumada, me
perguntei como meus lábios conseguiram se curvar.
53

P assei a noite no antigo quarto de Mimi, enrolada entre


lençóis que não cheiravam a Asher, e acordei tão exausta
que me perguntei se tinha dormido. Com a mente
confusa, me levantei e segui em frente, pegando as roupas da mala
para não ter que voltar para o meu quarto. Eu teria que enfrentar o
espaço que compartilhei com Asher em algum momento, mas não
me senti corajosa o suficiente esta manhã, da mesma forma que
não me senti corajosa o suficiente para apertar os botões da
cafeteira.
Boba... tão boba.
Peguei um cachecol grosso do armário do vestíbulo e o enrolei
no pescoço, sentindo meus dedos tremerem conta a lã cor de vinho,
depois troquei minha jaqueta por uma grossa de inverno. Ainda
assim, estremeci, porque nenhuma quantidade de tecido ou
isolamento poderia aquecer corações e ossos.
Chamei um Uber e introduzi o endereço de Ophelia no Brooklyn
no aplicativo. No momento em que ela me conduziu a sua casa
geminada, entendi o que Mira quis dizer sobre a mulher ser
receptiva. Tive algumas missões fáceis, mas esta parecia trapaça.
Como aquelas aulas que estudantes universitários faziam para obter
créditos fáceis.
Depois de me passar por uma especialista em vender um novo
tipo de terapia, pedi licença para usar o banheiro e, embora ainda
detestasse ver minhas asas, fiz com que aparecessem por magia.
Achei que seria capaz de dizer se consegui, mas as penas de
ontem ainda estavam tão fofas que eu não conseguia distinguir os
novos crescimentos das do dia anterior. Por precaução, passei mais
uma hora com Ophelia, que parecia encantada demais com minha
companhia. Como nosso sistema de classificação era estranho...
que eles tivessem atribuído uma pontuação tão alta a esta mulher.
Alguns afirmavam que as escalas celestiais eram infalíveis, mas
Ophelia... Jarod... eles provavam que nosso sistema tinha falhas.
Depois de sair da casa de Ophelia, fui para a associação.
Mesmo que eu quisesse procurar por Naya e tomá-la em meus
braços, seu toque me faria desintegrar como uma pena caída e
enchê-la com todas as memórias odiosas de minha noite em Viena.
Manter distância não era uma escolha, era uma necessidade.
Por ela e por mim.
Parei na recepção e pedi a minha ex-professora de etiqueta,
Ophan Greer, que informasse a Mira que eu havia chegado. Ela não
perguntou o que eu precisava de sua colega mais velha, apenas me
ofereceu um sorriso cordial e saiu pelo átrio em busca da mulher
que me colocou sob sua proteção.
Enquanto esperava, segui os avanços preguiçosos dos pardais e
os observei abrir as asas cor de arco-íris. Ah... nascer com todas as
nossas penas. É verdade que dez anos foram generosos e cada
pena que ganhamos foi um verdadeiro prêmio, mas ainda assim, me
peguei invejando os bichinhos de estimação das associações como
invejei os pombos da cidade.
Penas vermelhas apareceram em minha visão periférica. Me
afastei dos pardais e encontrei o olhar desgastado de Mira.
Suspirando, fui em direção a ela.
— Acho que terminei com a Ophelia.
— Vamos verificar.
Caminhamos lado a lado em direção à Sala de Classificação. A
Pluma Verity que encontrei no The Trap estava apoiada na frente de
um holo-classificador. Ela observou a mim e Mira nos aproximarmos
de um sem dizer uma palavra, enrolando um de seus longos cachos
castanhos em volta do dedo.
Pressionei a palma da mão no painel e verifiquei minha
pontuação primeiro. Meu coração se ergueu ao vê-la: 601.
— Ótimo. Agora procure Harold Newman — Ophan Mira
sussurrou.
Digitei seu nome no painel. Um homem careca apareceu junto
com uma pontuação que não era muito atraente: 8.
— Não tem alguém com pontuação mais alta?
— Ele será rápido.
Suspirei e estava prestes a pressionar o painel quando a morena
com as penas azuis com pontas douradas deixou escapar:
— Milo Jenkins.
Quando Ophan Mira e eu nos viramos para olhar para ela, ela
corou e limpou a garganta.
— Ouvi dizer que você estava tentando encontrar pontuadores
altos. Milo Jenkins vale trinta e uma penas. — Sua mão caiu da
mecha de cabelo com que ela estava brincando. — Comecei com
ele no início da semana. Ele está... maduro. Basta procurar o nome
dele.
Foi o que fiz. O rosto de um jovem com moicano e mais piercings
do que pele apareceu no lugar do mais velho que Mira sugeriu. Ela
olhou para sua ficha de pecados.
— Você ainda está vinculada a ele, Pluma Liv.
— Eu sei. Mas se a Celeste quiser assumir, vou me desvincular.
Talvez porque minha mente estava confusa e dolorida, não
compreendi imediatamente o que ela estava oferecendo, mas
quando entendi, meus lábios se entreabriram em um suspiro
superficial.
— Você fez todo o trabalho duro, Liv. Merece a recompensa.
Ela torceu os dedos nas coxas cobertas pelo jeans.
— Tenho quatro anos pela frente.
— Isso é muito generoso, Pluma. — O cabelo cortado na altura
do pescoço de Ophan Mira cortou o ar quente enquanto ela se
virava em minha direção.
— Não parece certo usurpar a missão dela — murmurei.
— Muitas coisas não estão certas nesta situação, Celeste, então
aceite a oferta da Liv. — Como se ela tivesse mordido um limão,
rugas marcavam a pele ao redor de sua boca.
A voz de Liv soou pela sala:
— Me diga quando.
Mira colocou a mão no meu ombro e, mesmo através do tecido
espesso e fofo da minha jaqueta, senti o aperto de seus dedos
delgados.
— Você não tem tempo a perder.
Suspirei e posicionei minha mão sobre o painel de vidro.
— Estou pronta.
No segundo que o holo-classificador de Liv apitou, pressionei a
palma da mão contra o vidro e as palavras: ATRIBUÍDO PARA
CELESTE DA ASSOCIAÇÃO 24 apareceram como um selo no rosto
de Milo.
Enquanto olhava para o meu nome e número da associação,
falei:
— Eu nem sei qual é o pecado dele.
— Pecados. — Liv se virou no banquinho e as asas azul com a
ponta dourada formaram um halo em seu corpo.
Mira se levantou.
— Vou deixar vocês duas com isso. Assim que você sentir que
acabou, volte e se vincule ao Harold. Sei que ele não vale muito,
mas tive a garantia de que ele não demoraria muito.
Toquei seu braço.
— Obrigada, Ophan.
Na voz mais suave que já a ouvi usar, ela murmurou:
— Sei que quer proteger a Naya, mas na noite passada, deixar
você ir embora sozinha... — Seu olhar se desviou para Liv, que se
ocupava buscando por pecadores. — Caso mude de ideia, tenho um
quarto preparado para você. Número trinta. É para uma pessoa e
vai ficar vago até que suas asas estejam completas — ela
murmurou antes de sair pelas portas de correr, me deixando sozinha
com Liv.
Liv, que me deu seu pecador sem reclamar.
A luz da projeção 3D atingiu as pontas douradas de suas lindas
asas.
Argh. Quando comecei a considerar as asas verities bonitas?
Desde Asher. A resposta foi um soco no coração.
Desliguei meu holo-classificador e atravessei a sala. Me
acomodando no assento ao seu lado, perguntei:
— Já se vinculou a Ophelia Simmons?
Suas pupilas se dilataram e depois de quase um minuto
completo de silêncio, ela balançou a cabeça. Movi a cabeça para
sua tela, e Liv traçou o nome da minha ex-pecadora. A mulher com
quem passei a maior parte do dia apareceu em toda a sua glória,
com um ponto a menos.
— Se vincule a ela.
Liv pressionou a palma da mão no painel de vidro sem sequer
olhar para o cartão de Ophelia, e meu coração disparou, porque me
lembrei de todas as vezes que Leigh recomendou alguns pecadores
agradáveis para mim.
Depois de explicar do que Ophelia era culpada e o que eu tinha
feito, pedi a ela que me falasse sobre Milo. Nos separamos com
sorrisos hesitantes. Eu não estava procurando uma amiga,
especialmente alguém que eu não veria nos próximos anos, mas
era bom saber que, talvez, eu não fosse completamente
desprezada. Mas as pessoas não gostavam do que não entendiam
e não tinham entendido minha decisão de renunciar às minhas asas.
Agora que voltei ao vagão celestial, não era mais um enigma.
Enquanto a porta verde se fechava atrás de mim, me perguntei
se da próxima vez que voltasse seria para ficar, porque, além de
uma cama desarrumada que cheirava a Asher, o que eu ainda tinha
no mundo humano?
54

D epois de passar uma tarde inteira dentro do loft de tijolos


que Milo dividia com outros seis artistas em dificuldades,
todos contribuindo para o negócio de falsificação de obras
de arte que Milo havia criado, voltei para casa. Stanley me disse que
recebi uma entrega da qual ele não teve a menor vontade de pegar.
Depois que ele a tirou da sala dos fundos, disse a ele como estava
orgulhosa.
A caixa era longa e larga, mas delgada o suficiente para que
coubéssemos dentro do elevador. Enquanto subíamos em direção à
cobertura, ele perguntou para qual time de futebol eu estava
torcendo nesta temporada. A menção do Superbowl arrepiou minha
pele. Assisti ao jogo do ano passado no The Trap com Leon e Jase.
A percepção de que eu realmente não tinha mais ninguém no
mundo humano me fez pensar o que eu pensava ter construído fora
da associação. A resposta desanimadora foi: nada. Aprendi e
experimentei muitas coisas, claro, mas essas eram todas as coisas
que eu levaria comigo. Eu não deixaria nada para trás... além de
uma trilha de penas roxas presas no sistema de esgoto parisiense
ou flutuando sobre as águas turvas do Hudson.
Depois que Stanley colocou a caixa encostada no rodapé da
cozinha, ele esfregou as mãos.
— Quer ajuda para abri-la, srta. Moreau?
O brilho em seus olhos, o que desmentia sua emoção de
desempacotar, me fez concordar. Usando uma das facas da
cozinha, ele abriu a madeira.
Paralisei ao ver o que estava lá dentro: o horizonte de nossa
cidade, aquele feito de versos.
Stanley olhou entre a pintura e meu rosto.
— Você está... bem?
Tentei falar, mas não consegui, então abri um sorriso com os
olhos cheios de lágrimas, o que fez o pobre homem se mexer como
se quisesse me oferecer um abraço ou um lenço de papel, mas não
tivesse certeza se nenhum seria bem-vindo. Antes que o
constrangimento pudesse se espalhar, tirei uma nota de vinte da
carteira e entreguei a ele. Minha mão tremia tanto que a nota verde
balançou.
Ele balançou a cabeça.
— Apenas fazendo o meu trabalho.
— Por favor — murmurei.
Ele enfiou a nota no bolso da calça e se ofereceu para remover a
caixa.
Ao ficar sozinha, me ajoelhei em frente à obra de arte. Embora
não houvesse nenhuma nota, eu sabia que era um presente de
Asher. Provavelmente a razão pela qual ele foi falar com o dono da
galeria. O quanto o nosso mundo era cruel? Me enviando um
lembrete do homem que perdi quando estava mais fraca.
Corri o dedo ao longo das linhas de texto, as palavras borradas e
oscilantes como a cidade durante o auge do verão quando as
temperaturas se elevavam muito e o concreto esquentava. Se eu
tivesse sorte, nunca teria outro verão em Nova York.
Pelo menos, não neste século.
Meu coração parecia muito destroçado para abrir um sorriso.
Enquanto eu limpava as lágrimas, finalmente decidi sobre meus
arranjos de moradia.
Eu me levantei e fiz as malas.
Uma hora depois, cheguei na frente da associação com apenas
uma mala e meu novo quadro. Eu não poderia levá-lo para o
Elysium, mas poderia mantê-lo dentro da associação. Claro, isso me
faria ganhar olhares e o cenho franzido de Ophan Mira, afinal,
Plumas não deveriam decorar seus quartos com coisas materiais,
especialmente aquelas encontradas no mundo humano, mas eu
desafiava qualquer um a arrancá-lo de meus dedos quentes e
cheios de vida.
Como esperado, recebi minha cota de olhares arregalados
enquanto seguia pelo átrio e, em seguida, pelo corredor em direção
à porta entalhada com o número trinta. Eu a abri e embora
soubesse exatamente o que esperar – paredes e piso de quartzo,
um teto de vidro abobadado com vista para o falso céu do Elysium,
cama queen-size ao lado de uma mesa de cabeceira também
talhada em quartzo e um banheiro adjacente feito de... que rufem os
tambores... a pedra branca celestial – meu coração deu um
pequeno salto de alívio. Tudo mudou, inclusive eu, mas isso, não.
As portas se abriram e se fecharam, seguidas por conversas
animadas e passos vagarosos. Depois do silêncio gritante e do
vazio do meu apartamento, fiquei feliz com o barulho. A conversa
perdeu volume quando minhas colegas passavam pela minha porta
aberta e depois morria completamente quando eu sorria para elas.
Quem teria pensado que um anjo com asas híbridas atrofiadas
poderia inspirar tanto medo?
Inclinei a pintura contra a parede ao lado da cama, em seguida,
abri o zíper da mala e tirei as coisas de dentro. Primeiro, a pintura
de penas roxas de Naya e o desenho de papagaio, depois as
roupas e sapatos que estavam por baixo. Eu tinha acabado de jogar
a calcinhas em uma gaveta quando uma onda de braços e cabelos
loiros ondulados explodiram dentro do meu quarto.
— Celeste! — Naya se lançou sobre mim, quase me derrubando.
— Ouvi duas garotas dizerem que você estava aqui, e...
— Pluma Naya! — Pippa ofegou, se esgueirando contra o
batente da minha porta. — Você não pode simplesmente fugir
assim.
Reajustei meu aperto em Naya, que mordeu o lábio, um rubor
profundo tingindo seu rosto.
— Sinto muito, Ophan, mas eu queria ver a Celeste.
Alisando um emaranhado do cabelo de Naya, meu olhar
encontrou o de Pippa.
— Eu a levarei de volta antes de dormir.
— Não! — Naya voltou seus olhos escuros para mim. — Quero
ficar com você. Por favor. — Ela segurou meu queixo com suas
mãozinhas. — A menos que o Apa esteja vindo...
O caroço que inchava e encolhia, mas nunca desaparecia, ficou
tão grande que mal consegui engolir.
— Talvez você pudesse ficar comigo esta noite. Se estiver tudo
bem para a Ophan Pippa, claro.
Pippa engoliu em seco, respiração após respiração, como se
tivesse acabado de correr uma corrida olímpica em vez de perseguir
uma criança de quatro anos.
— Eu, ah... precisaria perguntar a Mira, mas... — outra
inspiração profunda —, mas talvez...
— Eu realmente gostaria da companhia de Naya esta noite.
— Tudo bem. — Pippa passou as mãos pelos longos cabelos
castanhos. — Tudo bem. Vou informar a Mira que você está aqui e
que a Naya vai ficar com você esta noite.
— Sim! — Naya ergueu a mão no segundo em que a porta se
fechou.
Eu ri e dei um beijo em sua bochecha quente e macia. Não era a
de Asher e ainda assim, de alguma forma, era como se fosse um
pedaço dele. Quando meus olhos começaram a formigar, pressionei
minha bochecha na lateral de sua cabeça e a abracei com força
para que ela não notasse o brilho das lágrimas. E então fechei os
olhos e respirei até que a dor diminuísse.
Quando me senti forte o suficiente para falar, disse:
— Lembra daquela pintura de que te falei? A que eu queria que
fizéssemos juntas?
Ela se afastou e seus olhos grandes percorreram meu rosto.
— Sim.
— Eu a trouxe. — Inclinei a cabeça em direção à parede contra a
qual ela estava encostada, então a coloquei no chão.
Ela se aproximou e a estudou com tal foco que brotou
minúsculos vincos em seu rosto.
— O que está escrito?
Eu me agachei ao lado dela. Verdade, ela ainda não sabia ler.
Então li para ela o longo poema, tropeçando algumas vezes, não
porque o texto não estivesse claro, mas por causa das memórias
que a tela trouxe.
Quando terminei, Naya colocou um braço em volta do meu
pescoço.
— Por que isso te deixa triste?
Sem desviar os olhos da palavra amor, que moldava a antena no
topo do prédio da Chrysler, eu disse:
— Porque seu pai a deu para mim.
— Mas você ama o Apa, então isso deveria te deixar feliz.
Engoli em seco.
— Por que você está chorando?
— Porque em breve, vou ter que deixá-la para trás... não posso
levá-la para Elysium.
— Os canais são tão estúpidos.
— São mesmo.
— Bem-vinda ao lar, Pluma. — Mira abriu a porta e parou ali, o
quartzo brilhante destacando as bordas de suas asas vermelhas. —
Soube que a Naya vai ficar com você esta noite. Você está satisfeita
com este acordo?
Sorri, entendendo que ela estava me dando a chance de me
livrar.
— Sei que isso vai contra as diretrizes da associação, mas
adoraria que a Naya ficasse comigo.
Depois de um tempo, Mira ergueu um pouco mais o queixo.
— Ah... as diretrizes da associação. Elas exigem alguma
atualização.
As implicações dessas palavras passaram despercebidas por
Naya, mas não por mim. A mudança estava acontecendo. Começou
no topo, com um Arcanjo indo contra seus valores arraigados, e se
espalhou para a base. O estrondo na base seria forte o suficiente
para fissurar a pirâmide de poder ou nosso sistema era tão
indestrutível quanto o quartzo Elysium?
O olhar de Mira se desviou para a pintura. Se ela desaprovou,
não deixou transparecer.
— Não vão para a cama tarde demais. Vocês duas têm muito
trabalho a fazer pela manhã.
Naya gemeu.
— Começando com minha aula de história, Pluma Naya.
Outro gemido.
Minhas covinhas ficaram pronunciadas.
— História era minha aula favorita. — Em um sussurro,
acrescentei: — Mas não deixe a Ophan Mira saber ou suas asas
ficarão inchadas.
Em voz extremamente baixa, Naya perguntou:
— Por que elas vão ficar inchadas?
Mira soltou um bufo tão ofegante que me perguntei se tinha
imaginado, mas seus olhos estavam brilhando, então talvez a
professora austera tivesse produzido tal som.
— Vou deixar vocês duas com seus sussurros, mas se a Naya
vier até mim com a ideia revolucionária de pintar sobre a claraboia
do refeitório, saberei de onde veio.
Eu sorri.
Mira tamborilou com as unhas sensíveis – sem pintar e curtas –
no batente de pedra da porta, depois se virou em seus saltos
sensíveis – baixos e quadrados – e foi embora, me deixando com
Naya e a sensação de que o amanhã seria um pouco mais claro.
Achei que ainda estava afundando, mas talvez eu tivesse
chegado ao fundo do poço e estava lentamente subindo de volta.
Levantei meu olhar para o céu escuro além da cúpula de vidro, uma
projeção do mesmo que Asher estava olhando.
Estou indo, neshahadzaleh.
55

O sol girou trinta vezes em torno da Terra e do Elysium e,


embora tenha visto a perda de seis penas, também viu o
nascimento de duzentas e oitenta e sete novas.
Eu estava a cento e dezoito penas de me juntar à minha alma
metade.
Uma alma metade que enviou notícias por meio de Tobias.
Mesmo que o Verity vienense tivesse prometido não se envolver,
dois dias depois de trancarem Asher no Elysium, Tobias viajou para
a capital celestial quase todos os dias e entrou em contato com Mira
através do sistema interassociações com a mesma frequência.
Asher estava se comportando e rastreando meu progresso na sala
de classificação celestial. Ele ainda era membro titular dos Sete,
mas não era mais membro ativo. Os referendos e decisões diárias
eram realizados sem a sua contribuição ou voto. De acordo com
Tobias, Claire estava tentando removê-lo do Conselho, mas os
Arcanjos disseram que sua infração não era um motivo grave o
suficiente para destituí-lo. De forma egoísta, desejei que ele não
fosse mais um Seraphim, mas então olhava para Naya e me
lembrava de todos os motivos pelos quais ele precisava manter sua
posição.
A ausência do pai estava começando a afetar a criança. Seus
olhos estavam menos brilhantes, seus sorrisos menos frequentes,
sua energia menor. Até mesmo seu cabelo loiro selvagem parecia,
de alguma forma, mais domesticado. Foi como se no espaço de um
mês, ela tivesse alcançado a verdadeira idade de sua alma. Ela
ainda sorria ou beijava minha bochecha quando eu a encontrava
entre minhas missões, mas a tristeza se apegou a ela como o frio no
ar outonal.
— Ela é minha aluna. Minha responsabilidade. — A voz de Mira
tirou minha atenção das botas que eu estava tentando limpar. —
Você não pode aparecer em minha associação e encurralar minhas
Plumas!
Um rosto detestável apareceu além das asas vermelhas
trêmulas de Mira. Somente o vento ou emoções fortes tinham o
poder de fazer tremer as asas. Uma vez que nem mesmo uma brisa
soprava pelo ar sempre morno do átrio, eu estava supondo que
minha professora de história estava verdadeiramente indignada.
A exaustão de ter empreendido três missões em um dia
evaporou e a energia rugiu por mim.
— Quem a Eliza encurralou, Ophan?
— Ish Eliza — a classificadora resmungou seu título.
Eu nem mesmo a gratifiquei com um sorriso amargo.
— Quem a classificadora encurralou? — Senti que sabia, mas
queria uma confirmação antes de fazer ou dizer qualquer coisa que
arruinasse o trabalho duro de hoje.
— Naya — Mira respondeu.
Desta vez, olhei para a Ishim.
— E por que você encurralou uma criança?
Eliza ergueu o queixo pontudo.
— Isso não é da sua conta, Pluma.
— Naya é da minha conta, agora que você tirou o pai da vida
dela. — Com os dedos curvados ao meu lado, dei um passo em sua
direção.
Embora fosse vários centímetros mais alta e suas penas
brilhassem, ela recuou.
Uma mão pousou no meu antebraço, me puxando para trás.
— Vá para o seu quarto, Pluma. — Abri a boca para protestar
quando Mira acrescentou um inflexível: — Agora.
Olhando furiosamente para Eliza, fiz o que me foi dito, mas não
sem me visualizar arrancando punhados das penas da Ishim. E sim,
a fantasia me custou uma das minhas e fez a expressão já azeda de
Mira coalhar um pouco mais, mas valeu a pena a dor aguda.
Em vez do meu quarto, fui em busca de Naya, que encontrei
encolhida ao lado de Ophan Pippa em um canto da sala de jogos
infantil, atrás da estante de quartzo cheia de livros coloridos.
Quando cheguei até elas, a supervisora das crianças me lançou um
olhar preocupado, mas se levantou e foi ficar de guarda na porta.
Me ajoelhei na frente de Naya.
— Oi, anjinho.
Naya tirou a cabeça do joelho, e seus olhos estavam tão
vermelhos que as íris pareciam douradas em vez de castanho
escuro.
— Me diga o que aconteceu. O que aquela classificadora fez?
Seus lábios tremeram e novas lágrimas desceram por suas
bochechas manchadas.
— Ela m-me d-disse que o Apa estava com problemas. Que eu
p-poderia tirá-lo dos problemas se respondesse a algumas de s-
suas perguntas.
Meus batimentos cardíacos aceleraram, se transformando em
um longo e ininterrupto som estridente.
— Que perguntas?
— Ela perguntou se eu... se eu co-conhecia Lee.
Calor e frio me atingiram em ondas alternadas. Lee? Ela quis
dizer Leigh? Raras eram as pessoas que pronunciavam o nome da
minha amiga da maneira que ela preferia: Ley.
— E o que você disse, querida?
Ela enxugou o nariz na manga.
— Que não conheço nenhum Lee.
Não perguntei se ela se lembrava do nome pronunciado de
forma diferente, com medo de que se lembrasse e ainda mais medo
de que despertasse uma memória.
— E então e-ela perguntou se eu go-gostava de Paris. — Naya
fungou, e eu a puxei para o meu colo. — Não sei se go-gosto de P-
Paris.
— Como você poderia saber? Você nunca foi lá.
Ela pressionou o lado da cabeça no meu peito. Eu esperava que,
apesar das camadas de tecido, ela não pudesse ouvir minha
pulsação furiosa.
— E então ela perguntou — ela respirou lentamente — se eu
ainda amava Jarod Adler.
Mantive a calma, embora por dentro fosse um gêiser prestes a
explodir plumas.
— Essa é uma pergunta boba. Você não conhece nenhum
menino chamado Jarod. — Minha voz soou tão estrangulada quanto
parecia?
Um tremor sacudiu seu pequeno corpo.
— Naya? — Parei de mover a mão para cima e para baixo em
sua coluna curvada. — O que você disse a Ishim?
— Eu disse a ela que o único homem que eu amava era o Apa.
Boa menina.
— Quem é Jarod, Celeste?
— Ninguém, querida.
— Por que esse nome faz meu coração doer se ele não é
ninguém? — Ela limpou a bochecha e estava tão escorregadia de
lágrimas que a fricção a fez chiar.
— Talvez você tenha lido uma história triste sobre ele?
Ela olhou para mim.
— Não sei ler.
— O que eu quis dizer é que talvez a Ophan Pippa tenha lido
para você uma história sobre um garoto chamado Jarod? — Sorri,
embora minhas entranhas parecessem estar sendo destruídas. —
Você não disse a classificadora que isso fazia seu coração doer, não
é?
Naya tirou uma mecha de cabelo da testa.
— Disse?
— A Ophan Pippa diz que mentir é muito ruim.
Ah... não...
Naya fungou.
— Fiz algo de errado? Eu só queria ajudar o Apa. — Seus lábios
tremeram. — Ele está com problemas por minha causa?
— Não, Naya. — Limpei algumas de suas lágrimas com o
polegar. — Ele está com problemas por minha causa.
— Sua?
Um sorriso amargo contorceu minha boca.
— A Seraph Claire quer que ele se concentre em seu trabalho
em vez de nas minhas asas.
— Pluma Celeste! — A voz estridente de Mira ecoou pela sala
de jogos. — Uma palavra.
— Nossa... não sou surda — murmurei, o que fez um sorriso
aparecer no rosto de Naya. Beijei sua testa, coloquei-a no chão e
me levantei. — Volto já. Não vá a lugar nenhum.
Mira inclinou a cabeça para o corredor, e eu a segui.
— Você precisa ganhar penas, não perdê-las.
Sua reprovação vinha de um bom lugar, mas sério?
— Eliza é uma lixeira gigante.
Ela respirou fundo e ficou boquiaberta com o ar ao redor das
minhas coxas.
— Relaxe, Ophan. Essa descrição não me custou nada.
Experimentado e testado.
Seus ombros ficaram em eretos. Ela não achou graça.
— Você sabe onde a Seraph Claire passou a tarde? — Ela fez
uma pausa. — Em Viena.
Eu também não estava mais achando graça.
Mira suspirou.
— O Tobias diz que não devemos nos preocupar. Que o Adam
não disse nada a Arcanjo.
Abaixando o volume da minha própria voz, sussurrei:
— Talvez ele não tenha feito isso, mas a Naya disse a Eliza que
o nome Jarod fazia seu coração doer.
— Ela tem quatro anos e é extremamente sensível. Muitas
coisas fazem seu coração doer.
— A Claire sabe, Ophan! Ela não estaria bisbilhotando por aí
se...
— Ela suspeita, mas não sabe — ela sibilou. — Ninguém sabe.
— Você sabe.
— Eu suspeito. Mas fique tranquila, suspeitas não são
admissíveis no tribunal dos Sete.
Mordi meu lábio. Talvez suspeitas não fossem admissíveis, mas
iriam estimular Claire a procurar e, em algum ponto, ela encontraria
evidências concretas. Provas admissíveis.
— Eve! — suspirei. Apesar de todas as suas falhas, ela amava
Leigh, e o amor era uma arma poderosa.
— O que tem a filha da Arcanjo? — Mira perguntou.
— Você precisa falar com ela. Ela era a melhor amiga de Leigh.
Ela...
— Não! — Sua tez ficou tão escarlate quanto suas asas. — De
jeito nenhum! Você enlouqueceu, Pluma? — De repente, sua boca
se fechou quando seu olhar caiu para algo atrás de mim.
Alguém.
Naya.
— Pippa! — Mira gritou. — Por favor, faça o seu trabalho.
— Desculpe, Mira. — Pippa persuadiu Naya a sair da porta.
Assim que a porta se fechou, ela disse:
— A única coisa com que você precisa se preocupar são suas
asas. Quanto mais rápido você chegar ao Elysium, mais rápido ela
terá seu pai de volta.
Encarei a porta fechada da sala de jogos, sentindo meu pulso
finalmente acalmar. Não porque eu estivesse aliviada, mas porque
Mira estava certa: quanto mais rápido eu ascendesse, mais rápido
Asher seria capaz de viajar novamente. Com muita adrenalina, me
virei e caminhei para a sala de classificação. Fiz uma varredura de
perfis, só havia de um ou dois dígitos. Muito baixo. Todos eles muito
baixos.
Respirando fundo, parei de rolar a tela e digitei um nome que
memorizei e, em seguida, apliquei a palma da mão contra o vidro do
holo-classificador.
Leigh havia reformado um Triplo e o marido de Seraph Claire
também. Já que não era a motivação que me faltava, não pude ver
uma única razão para o meu fracasso.
Barbara Hudson. Advogada na Hudson & Mintz. 100.
Aqui vou eu.
56

D epois de uma noite animada por mais pesadelos do que


sonhos, cheguei na frente de uma estreita casa de tijolos
pintada em um lindo tom de azul esverdeado, espremida
entre uma loja de música empoeirada e um prédio de apartamentos
com unidades de ar-condicionado. Joguei meu copo vazio de café
em uma lata de lixo, limpei as migalhas de donut dos meus dedos e
toquei a campainha sob a placa de ouro que dizia Hudson & Mintz,
Direito da Família.
Nada de arranha-céus extravagante para essa Triplo e seu
associado, um jovem advogado com pontuação de um dígito. Decidi
após visualizar seu baixo número, que ela não poderia ser tão ruim
se seu associado era tão bom.
Uma mulher usando um vestido azul-marinho elegante, sapatos
de salto baixo e cabelo curto grisalho abriu a porta. Seus óculos
bifocais deslizaram para a ponta do nariz enquanto ela me olhava.
— Bem-vinda a Hudson e Mintz. Você tem hora marcada?
— Não, mas estou em uma situação difícil. Uma da qual a sra.
Hudson aparentemente pode me ajudar a sair.
— A sra. Hudson vai demorar mais uma hora para chegar e sua
agenda está lotada, mas você pode se sentar na sala de espera.
— Obrigada.
Ela me levou a uma pequena e confortável sala de espera cor de
creme com uma grande mesa de vidro coberta de panfletos que
variavam de sexo seguro à adoção e sprays nasais antialérgicos.
A secretária saiu da sala e voltou um momento depois com uma
prancheta de plástico.
— Você poderia preencher este formulário?
Peguei a prancheta oferecida e li o questionário de duas
páginas.
A senhora mais velha me observou por um segundo, então me
instruiu a levar o formulário preenchido para seu escritório do outro
lado do corredor. As perguntas eram um pouco estranhas, mas nada
que fizesse soar o alarme, como: Você pode construir uma bomba
radioativa? ou Em uma escala de 1 a 10, como você se sente sobre
ser torturado?
Eram mais na linha de: Você ainda tem algum parente vivo?
Você está atualmente em um relacionamento? Quando foi a última
vez que você esteve em contato com um ente querido? Você usa
drogas? Você está grávida atualmente? Por que deveríamos aceitá-
lo gratuitamente?
Li artigos sobre a benevolência da Hudson e Mintz – a maioria
de seus clientes eram adolescentes fugitivos ou mulheres em
casamentos ruins. Mas Hudson tinha que ter um lado sombrio. Meu
palpite é que ela fingia que seus casos eram gratuitos, mas na
verdade fazia seus clientes pagarem por seus serviços de outra
maneira... alguma forma ilegal... uma forma que seu parceiro não
percebeu, já que sua alma era tão pura.
Quando deixei a prancheta com a secretária, um homem com
calça de veludo cotelê bege e uma camisa azul com manchas de
pasta de dente na gola entrou no prédio. Empurrando os dedos pelo
cabelo despenteado, ele me lançou um sorriso rápido e ligeiramente
exausto, como se tivesse rolado para fora da cama e batido no
chão.
— Bom dia, Griff — a secretária falou. — Sua cliente das nove
horas acabou de telefonar para dizer que chegaria dez minutos
atrasada.
— Excelente. — Seu cabelo caiu na testa. — Excelente. Pode
mandá-la entrar quando ela chegar. — Outro sorriso rápido em
minha direção, e então ele subiu um lance de escadas para o que
imaginei que deveria ser onde ficavam os escritórios dele e de
Barbara, já que a área do saguão era do lado apertado.
Eu tinha lido todos os panfletos no momento em que uma mulher
loira vestida com jeans escuro, camisa de linho branca e botas de
cowboy apareceu na porta, olhando para o formulário que eu havia
preenchido.
— Olá, Celeste. Eu sou a Barbara. — Um sorriso de avó
impresso em uma infinidade de rugas profundas. — A Maisie disse
que você não tinha hora marcada.
Eu me levantei.
— Me desculpe. Não tenho. Você ainda pode me ver?
— Acabei de cancelar o horário que estava agendado, então
acho que é seu dia de sorte. Venha comigo. Vamos conversar no
meu escritório. — Ela gesticulou para uma porta na outra
extremidade do saguão, que presumi que levava a um banheiro ou
um armário.
Eu a acompanhei até lá. Com certeza, isso levava a um porão,
mas não era assustador. Pelo contrário. Era meio aconchegante,
decorado em tons de bege e creme com iluminação forte e uma
estante na parede cheia de livros de direito. Ela gesticulou para uma
das cadeiras, então se apoiou contra a mesa, suas mãos agarrando
frouxamente a borda.
— Em que posso ajudá-la? — Seu rosto estava sem maquiagem
e as unhas sem sangue.
Sim, eu verifiquei. Afinal, ela estava no sistema celestial há 400
meses. Ela podia não ter passado os trinta e três anos como Triplo,
mas ainda assim...
Dobrei meu casaco nas costas da cadeira e me sentei.
— Ouvi dizer que você aceita trabalho pro bono e fiquei me
perguntando se havia algum tipo de pegadinha.
— Pegadinha?
— Oferecer seu tempo parece muito generoso e estou meio
preocupada em acabar com uma surpresa ruim.
Ela franziu o cenho.
— Você quer dizer taxas ocultas?
— Sim. — Olhei ao redor da sala em busca de tijolos de pó
branco ou pilhas de dinheiro, mas não encontrei nenhum. Por que o
Ishim não poderia ser mais descritivo?
— Por que você não começa me dizendo para o que você
precisa da minha ajuda?
— Hum. Bem, morei sozinha por um tempo, mas depois me
envolvi com um cara, porém ele teve problemas e teve que voltar
para casa. A sua família... eles são muito rígidos, então
basicamente eles o prenderam e estou tentando libertá-lo, mas
implorar não funcionou, achei que talvez uma ação legal pudesse
libertá-lo.
— O seu namorado é menor de idade?
— Não.
Ela juntou as mãos, quase me cegando com seu enorme anel.
— Então não tenho certeza se sou a pessoa certa para o
trabalho.
— Não tenho mais ninguém a quem recorrer, sra. Hudson.
Ela olhou para o questionário jogado em sua mesa.
— Você não tem ninguém? Nem mesmo um amigo próximo que
possa... te ajudar?
Balancei a cabeça, esperando que o Ishim não considerasse
minha farsa uma mentira e arrancasse minhas asas. Tecnicamente,
havia verdade em tudo o que eu disse.
Ela suspirou.
— Certo. Bem, me deixe pensar sobre o seu caso. Se eu
acreditar que é certo para mim, ligarei para você mais tarde. — Ela
estendeu a mão e eu apertei.
Eu esperava que algo acontecesse. Algo terrível. Algo que
explicasse por que essa senhora era Triplo.
Ela me conduziu escada acima, abriu a porta e me mandou
embora com um sorriso caloroso e um pequeno aceno.
Enquanto eu estava na rua em frente a Hudson & Mintz, a
adrenalina de me vincular a um Triple diminuiu e meu humor
avançou para o desespero. E se ela não me ligasse de volta? Ou e
se ela ligasse, mas fosse para dizer que ela não me aceitaria? Os
pecadores nem sempre eram fáceis de ler, mas nunca um deles me
confundiu tanto quanto Barbara Hudson.
Comecei a me afastar, resolvendo tentar novamente, mesmo que
ela me recusasse. Talvez a chave para ver o lado maligno de sua
natureza fosse irritá-la até que tudo saísse dela.
Então esperei, matando as horas vagando pela vizinhança,
comprando coisas para Naya: roupas coloridas, bandanas fofas e
presilhas brilhantes, um unicórnio turquesa com um chifre dourado e
livros com lindos desenhos e histórias para combinar. Eu estava na
caixa registradora da livraria quando meu telefone finalmente tocou
com um número desconhecido.
Mudei todas as minhas compras para uma mão e o peguei.
— Alô?
— Celeste? É a Barbara. — Uma pausa. — Pensei sobre isso e
não acho que serei a pessoa certa para o trabalho. Porém...
Prendi minha respiração.
— Griff, meu associado, é um homem extremamente inteligente
e dedicado. Se você estiver interessada, terei prazer em encaminhá-
la para ele. Gostaria que eu fizesse isso?
Não. Não. E não. É você que eu quero, não ele.
— Hum, isso é muito gentil... mas não me sinto confortável
trabalhando com um homem.
— Posso garantir que você não tem nada com que se preocupar.
— Papéis farfalharam em sua mesa. — De qualquer forma, estarei
em meu escritório até as seis da tarde. Se mudar de ideia, basta
ligar de volta para o número de nossa empresa e pedir a Maisie
para conectá-la a mim.
A frustração fez meus dedos se curvarem ao redor do telefone.
— Certo. Obrigada por me ligar de volta.
Assim que a linha ficou muda, joguei um grande pacote de nozes
torradas em cima das minhas compras, paguei, voltei para o prédio
azul e me sentei na varanda do outro lado da rua. A neve começou
a cair, espalhando o pó na calçada como açúcar de confeiteiro. Li
todos os livros ilustrados que comprei para Naya, olhando para cima
de vez em quando. Às cinco e meia, a secretária saiu, seguida
alguns minutos depois por Griff. As luzes ainda estavam acesas,
então imaginei que Barbara ainda estava lá.
Limpei a neve das minhas coxas e atravessei a rua. Eu estava
prestes a tocar quando a porta se abriu, revelando um homem com
cabelo preto seboso preso em um rabo de cavalo.
Ele olhou para mim enquanto fechava o zíper de uma jaqueta de
couro.
— Posso ajudar?
— Eu esperava ter a chance de falar com a sra. Hudson antes
de ela ir embora.
— Ela está ocupada.
— Só vai demorar um minuto.
Seus olhos pequenos se desviaram para o unicórnio fofo
espiando da minha sacola de compras, depois de volta para mim.
— Espere aqui.
— Posso esperar aí dentro? Está muito frio.
Ele deu um passo para o lado para me deixar passar, me
lançando um olhar que me deixou feliz por ter tido a precaução de
trazer o spray de pimenta.
Não que isso tenha me salvado da última vez... mas ajudou. Um
pouco.
Depois que ele voltou para a porta do porão, coloquei minhas
sacolas de compras no chão e transferi a lata da bolsa para o bolso
do casaco. Um momento depois, ele estava de volta com minha
pecadora.
— Celeste. — Barbara apagou meu nome, claramente
descontente por eu ter retornado. — Você voltou.
— Não quero o conselho do seu associado. Quero o seu, sra.
Hudson.
Seu olhar caiu para minhas sacolas de compras, e pude ver as
rodas girando. Eu disse que não tinha ninguém na minha vida, mas
aqui estava eu com brinquedos fofinhos e roupas de criança.
— Acho que trabalharmos juntas pode ser benéfico. — Abra seu
armário para mim. Me mostre esses esqueletos. Vamos...
Seus olhos castanhos voltaram para o meu rosto.
— O que você acha, Fred?
— Por que importa o que ele acha? — perguntei.
— Porque o Fred é meu ex-marido.
Ex-marido? Tentei me lembrar se tinha lido sobre ele em um dos
muitos artigos que encontrei sobre Barbara, mas seu nome não me
lembrava nada.
Fred inclinou a cabeça para o lado.
— Ela não parece uma fugitiva.
— É porque ela não é — Barbara disse. — Mas ela perdeu
recentemente seu único parente vivo... Muriel Moreau.
— Você me pesquisou? — Umedeci os lábios enquanto
deslizava meu dedo indicador sobre o gatilho do spray de pimenta.
— Acha que eu atenderia alguém que não verifiquei? — Ela
inclinou a cabeça para as sacolas de compras. — Também sei que
você está estudando na Columbia e não tem filhos. Então, quem é o
sortudo destinatário de todos esses brinquedos?
Minha mente lutou para encontrar uma explicação que não me
custasse penas ou esta missão.
— Uma menina que está crescendo no mesmo orfanato onde
passei minha infância. — Eu me preparei para perder uma pena.
Não aconteceu.
— Como você é magnânima.
— Olha, você não precisa me atender pro bono.
— Eu não tenho que atender você de forma alguma. — Ela se
virou e foi em direção ao escritório no porão. — Fred, por favor,
mostre a saída a garota.
— Eu sei sobre o lado sombrio dos seus negócios e quero ajudar
— deixei escapar, desesperada.
Ela parou e olhou por cima do ombro.
— Lado sombrio dos meus negócios? — Ela riu, mas eu sabia
que atingi um ponto nevrálgico, porque foi um pouco estridente.
Sem mencionar que a testa quadrada de seu ex franziu. — Não
tenho a menor ideia do que você está falando.
Ele não estava ciente do que a ex-esposa estava fazendo? Ou
talvez soubesse, e foi por isso que se divorciaram.
Meu coração acelerou, socando a lateral da minha garganta.
— Acho que você sabe.
Ela não estava mais rindo.
— Fred, reviste-a.
O homem estava em cima de mim mais rápido do que uma
mosca no esterco.
— Eu não sou o inimigo! Só vim ajudar. — Empurrei suas mãos,
mas ele prendeu meus pulsos, então abriu meu casaco e passou a
palma da mão no meu corpo, provavelmente procurando por uma
escuta ou arma.
Quando sua mão intrusiva afundou nos bolsos do meu casaco,
um sorriso apareceu em seu rosto quadrado. Ele removeu meu
spray de pimenta e o jogou para Barbara, então vasculhou minha
bolsa, pegou meu telefone e o jogou no chão.
O barulho do vidro sob sua bota me fez grunhir. Ah, se eu tivesse
fogo de anjo... as coisas que eu faria com ele.
— Melhor não me morder. — Ele sorriu, então enganchou seu
braço em volta dos meus ombros e me girou, pressionando minhas
costas contra seu corpo. — Porque eu mordo de volta. — Quando
seus dentes roçaram a minha orelha, um estremecimento me
sacudiu.
Quando Barbara se aproximou de mim, mantive a cabeça
erguida, o peso dos ossos das minhas asas invisíveis me lembrando
que eu estaria segura, não importava o que esses dois psicopatas
tivessem reservado para mim.
Ela traçou o formato do meu rosto com a ponta do dedo.
— Os humanos são incríveis. Você dá a eles uma saída, e eles
não aceitam.
— Não aceitei porque, como você disse, os humanos são
incríveis... mesmo que façam coisas terríveis, são capazes de
mudar.
Ela inclinou a cabeça para o lado.
— Capazes, talvez, mas dispostos? Essa é a questão.
— Você está disposta a mudar, sra. Hudson?
— Depende. O que está oferecendo?
— Redenção.
Seus lábios se curvaram, fazendo sua pele enrugar.
— Redenção? Você é muito doce, Celeste Moreau. Doce e muito
ingênua.
Eu me arrepiei.
— Só porque sou jovem, não significa que sou ingênua.
— Ser ingênua não é uma falha. Deus, eu gostaria de ser
ingênua, mas você pega o caminho errado e, de repente, não
importa quantas voltas você dê, simplesmente não consegue sair da
vala. Então você aproveita ao máximo estar dentro dela.
— Eu posso te ajudar a sair da sua vala.
Ela estava desconfortavelmente perto. Tão perto que pude sentir
seu hálito.
— Mas você vê, Celeste. Eu gosto da minha vala. — Ela abriu a
cúpula de seu anel de ouro e uma agulha brilhou.
Fred empurrou minha cabeça para o lado, expondo meu
pescoço.
— Não faça isso — gritei. — Não me machuque. Vou
voluntariamente.
Barbara acariciou minha pele uma vez. Duas vezes.
— Não posso correr o risco de você ver para onde estamos indo.
— Vou manter os olhos fechados.
— Com certeza, vai. — Ela deu uma risadinha e pressionou a
agulha no meu pescoço.
Sibilei com o golpe afiado.
Ela cambaleou. Ou talvez eu tenha vacilado.
O solo balançou, se liquefez e eu derreti nele.
57

T um. Tum. Tum.


O som rítmico me fez gemer e acordar. Minha testa
latejava como na noite em que tomei vodca. A noite em
que Asher me carregou para fora de um bar.
Ah, Asher...
— Oi.
Fiquei quieta.
— Olá? — A voz baixa fez minhas pálpebras se abrirem.
Fui atacada por uma luz tão forte que pensei estar de volta à
associação, mas logo meus olhos se ajustaram e divisaram um teto
listrado com tubos de halogênio.
Tum. Tum. O som de metal batendo em metal fez minha cabeça
girar. Equipamentos médicos enchiam a sala. Ah, anjos... eu estava
em um hospital? Tentei me virar, mas meus tornozelos e pulsos
estavam imobilizados.
— Você está acordada?
A voz baixa chamou minha atenção para outra cama, onde uma
figura solitária estava deitada sob um lençol branco. O cabelo da
pessoa era curto e uma faixa de gaze foi enrolada em torno de seus
olhos, obscurecendo parte de seu rosto pálido.
— Sim. — Minha garganta parecia estar cheia da mesma lã
áspera que preenchia minha cabeça. — Onde estamos?
— Você também está presa?
Novamente, tentei levantar as mãos.
— Sim.
O som de passos se aproximando chamou minha atenção para
uma porta com painéis de vidro. A única porta do quarto.
— Onde estamos?
— Eles chamam de Fazenda — meu vizinho sussurrou, assim
que dois rostos familiares apareceram no painel de vidro.
Quando a porta se abriu, o garoto com a gaze respirou fundo.
Barbara Hudson entrou, suas botas de cowboy rangendo contra
o piso de linóleo.
— Passou rápido. Achei que você ficaria fora por mais uma hora
pelo menos.
— O que é este lugar? — Encarei o homem de jaleco que entrou
atrás dela. Fred. Seu ex.
Ela se sentou ao pé da minha cama.
— Este é o lugar onde os milagres acontecem.
— Milagres?
Ela olhou para o garoto com os olhos enfaixados.
— Sim, milagres.
— Que tipo de milagres?
— Achei que você soubesse tudo sobre meu pequeno negócio
secundário. — A melodia em sua voz fez minha pele arrepiar.
— Sei que é um negócio amoral.
Ela franziu o cenho.
— Amoral? Nossa, isso é incrivelmente duro. Salvamos vidas
aqui, Celeste.
— É isso que você está fazendo com aquele garoto? Salvando a
vida dele?
— As córneas daquele garoto acabaram de ajudar um homem a
recuperar a visão.
Fazenda...
— Você tirou as córneas dele?
— Ele vai ficar bem.
— Como? Você tirou as córneas dele! — repeti. — O que há de
errado com você?
Seus olhos semicerraram.
— Talvez eu tire a sua também. Ou talvez um de seus rins.
Acabamos de receber um pedido de um rim.
Me sacudi, minhas correntes chacoalhando, assim como meu
cérebro. O que em Abaddon ela injetou em mim?
— Fred vai verificar seu tipo de sangue e prepará-la para a
cirurgia se você for compatível. E não se preocupe. Meu ex tem
licença médica. Você terá anestésicos e cicatrizes discretas.
— Você não vai tirar meu rim!
— Prefere que eu pegue seu coração, Celeste? Eles estão em
alta demanda. Na semana passada, colhemos um para a sobrinha
do presidente venezuelano. A criança teria morrido sem nós.
A repulsa guerreou contra a aversão absoluta.
— Você tirou o coração de alguém?
— Para salvar uma criança.
— E a pessoa de quem você tirou sobreviveu também, suponho?
— O doador não tinha ninguém e a sobrinha do presidente...
bem, ela tinha muitas pessoas.
— Você é louca.
Ela brincou com seu grande anel de ouro, abrindo a tampa e
fechando-a. Clique. Clique.
— Isso não é muito bom. E bem mentiroso. Eu salvo pessoas.
— Matando outras! — grunhi.
Ela pairou sobre mim, com olhos assustadoramente arregalados.
— Que teriam morrido mais cedo ou mais tarde. A maioria
dessas crianças são vagabundos sem perspectivas.
— Isso não te dá o direito de roubar seus órgãos! — E eu me
perguntei por que ela era Triplo.
Ela se levantou e caminhou em direção à porta.
— Todos aqui me procuraram. Não o contrário. Eu não rapto
pessoas inocentes.
— Você não rapta pessoas? Eu não entrei em sua pequena
Fazenda!
— Não, mas entrou no meu escritório. Duas vezes. E então se
ofereceu para vir. De boa vontade. — Ela pescou um cartão-chave
do bolso da calça jeans e passou-o na fechadura eletrônica. —
Deveria ter aceitado quando a deixei ir embora.
— Você é um monstro!
Antes de sair, ela me lançou um sorriso arrepiante que fez
Seraph Claire parecer uma nuvem de pólvora. Gritei, sentindo minha
garganta tão rouca que minha voz quase não saiu, mas talvez...
talvez alguém me ouvisse. Talvez um Malakim estivesse vagando
pelo lugar, coletando almas perdidas.
Gritei mais alto quando Fred empurrou uma bandeja de metal em
direção à minha cama, o rabo de cavalo seboso balançando. Ele
amarrou um elástico em volta do meu bíceps e passou o polegar na
parte interna do meu braço até minha veia inchar.
— Não faça isso — eu disse.
Ele nem olhou para mim, apenas pegou um cateter e colocou-o
dentro da minha veia, e então me prendeu em um soro.
— Você não tem que fazer isso — resmunguei.
Seu olhar se voltou para a bolsa transparente em que ele me
prendeu. Conforme o líquido frio fluía para dentro de mim, os
contornos de seu rosto ficaram cada vez mais nebulosos, seus
traços se tornando meras manchas antes de se dissolverem
completamente.
58

O feguei quando senti a dor.


— Ela está acordada, doutor. — Um par de olhos
cobertos por óculos cirúrgicos apareceu diante dos meus.
— Impossível. A dose que dei a ela era adequada para um
cavalo.
Frio.
Eu estava com muito frio.
Outra cabeça apareceu na minha linha de visão. Mesmo ele
usando uniforme e óculos, reconheci Fred.
— Dê outra dose a ela.
Abri a boca para falar, mas minha respiração superficial
simplesmente saltou de volta para o meu rosto, impotente.
Lágrimas desceram pelas laterais do meu nariz.
Murmurei o nome de Asher.
Por que eu não te escutei?

O minhas veias e iluminou minha cintura.


— Nunca vi nada assim, caralho. Não consigo passar pelo tecido
subcutâneo. Ligue para a Barbara.
— Pare — sussurrei.
Algo estremeceu.
Talvez meu coração?
— Quantas doses você deu a ela? — A voz de Fred estava tão
alta que ecoou dentro da minha cabeça.
— Asher — resmunguei. Me encontre.
Mas ele não ia m encontrar, porque estava trancado em Elysium,
e eu na versão humana do purgatório.

A com a ressonância rítmica de bipes. Me mexi e a violência


da dor que riscou minha cintura parecia como ácido mastigando
minha pele.
Era essa a dor que eu sentiria quando perdesse minhas asas?
Eu tinha perdido minhas asas? Ah, anjos, que dia era? Não poderia
ter se passado mais do que um dia, certo? No máximo dois.
Procurei uma janela ou um relógio, mas tudo que vi foram máquinas
e o menino com os olhos cobertos de gaze.
— Ei — resmunguei.
O garoto se mexeu, virando o rosto na direção da minha voz.
— Qual o seu nome?
— Will.
— Eu sou Celeste. — Puxei minhas restrições, mas isso só fez
as correntes chacoalharem. — Há quanto tempo você está aqui?
— Não sei. — Sua voz estava tão fraca que tive que me
concentrar em sua boca para entender o que ele estava dizendo. —
Meu rosto dói muito.
— Gostaria de poder tirar sua dor, Will. — Meus olhos
aqueceram de raiva. Raiva de mim mesma por ser tão estúpida,
raiva daquele médico sem alma e de sua chefe malvada.
— Meus pais disseram que eu estava morto para eles. Eles não
virão. Ninguém... — Sua voz falhou. — Ninguém virá atrás de mim.
— Suas correntes chacoalharam. — Nós vamos morrer aqui, não
vamos?
— Não. Alguém virá atrás de nós. — Mira ou Naya notariam
minha ausência, verificariam meu perfil e veriam meu nome ao lado
de Barbara Hudson.
E se isso levasse dias? E onde é que estávamos? Debaixo da
casa? Perguntei a Will.
— Não sei. Ela me deu algo, apaguei e acordei aqui.
Pensei no humano cujo coração Barbara havia colhido. Se eles o
mataram aqui, então um Malakim tinha vindo. Outra realização me
atingiu. Se um Malakim tivesse vindo, os anjos sabiam sobre este
lugar, essa fazenda. Como meu povo pôde deixar isso continuar?
Mesmo que Barbara ou aquele médico tivessem apenas uma vida,
como isso poderia ser certo? Ou justo?
Eu sabia que não éramos deuses e que deveríamos ensinar os
humanos a lutar suas próprias batalhas, mas como poderíamos
fechar os olhos?
A porta zumbiu.
Barbara empurrou o cabelo loiro atrás das orelhas.
— Ouvi dizer que você está nos deixando tristes, srta. Moreau.
Will gritou:
— Socorro!
— Silencie-o!
Uma mulher de uniforme caminhou até o lado de Will da sala e
apertou um botão.
— Não! — Will lamentou, as correntes tilintando. — SOCORRO!
Socorro — ele soluçou. E então seus soluços se transformaram em
fungadas que se transformaram em gemidos, e então... em nada.
Barbara se aproximou de mim.
— O que é você?
Tentei deslizar minhas mãos pelas restrições, mas as pulseiras
de metal estavam muito apertadas.
— Eu era sua passagem para fora do Inferno.
— Não fale em enigmas. Sua pele se rompe e você sangra, mas
Fred não consegue cortar sua carne. Ele tentou com uma furadeira,
e ela quebrou. Como?
— Eu sou um anjo. — Minhas omoplatas se contraíram quando
minha confissão me custou uma pena.
Ela franziu a boca, fazendo cada ruga parecer mais profunda.
— Você trabalha para o governo? Você é algum projeto
ultrassecreto deles?
— Não.
— Nós vamos estudar você.
— Que dia é hoje?
— Por quê?
— Quero saber há quanto tempo estou aqui.
— Ninguém virá atrás de você. Pelo menos, não aqui.
— O mínimo que você pode fazer é me dizer que dia é hoje.
— Sexta-feira.
Estive fora por dois dias. A menos que...
— Sexta-feira o quê?
Ela recuou para deixar seu ex passar.
Eu me debati. Devo ter batido na minha pena porque desabei em
uma velha memória. Quando acordei, uma serra brilhou entre as
mãos enluvadas de Fred.
— O que você vai fazer com isso? — resmunguei.
— Nós vamos estudar você. — Barbara voltou para a porta, que
abriu com um bipe.
— Não! — Torci meu corpo de um lado para o outro, tentando
quebrar as correntes, mas não possuía magia, apenas músculos
submissos de Pluma. — Não!
A porta se fechou no momento em que Fred posicionou a serra
no meu pulso. Tentei puxar a mão para trás, mas tudo o que fiz foi
fazer a algema se enfiar em minha pele. E então a lâmina serrilhada
começou a rasgá-la.
Gritei e meus ouvidos rugiam com os batimentos cardíacos.
— PARE!
O médico não parou.
— Asher — solucei. — Asher, me ajude...
De repente, ele estava ali. Bem ali.
Ele me ergueu em seus braços e me tirou do chão, seguindo
para o teto, que não era um teto, mas o céu aberto. Com estrelas.
Muitas estrelas.
Estendi a mão para pegar uma, mas a dor me rasgou. Gritei até
que diminuiu e as estrelas sumiram, uma após a outra.
Pop. Pop. Pop.
— Asher — sussurrei.
— Ela não para de repetir esse nome — ouvi alguém dizer, mas
não ouvi mais nada.
G . Gritos não humanos me arrancaram de um sonho. Um
sonho em que eu estava perseguindo Naya através da associação,
e ela não parava de se transformar em Leigh, e eu continuava
sibilando para ela parar, temendo que alguém visse.
Abri os olhos e o teto com seus halogênios brilhantes inundou
meus olhos. Tentei erguer o braço para protegê-los, mas uma dor
como nunca senti irradiava pelos meus ossos, e eu choraminguei.
O calor úmido invadiu meus olhos, turvando a sala. Fechei-os
com força e as lágrimas escorreram por minhas têmporas.
Alguém gritou novamente. Will.
Fred grunhiu algo para a enfermeira sobre anestésicos. Houve
um farfalhar de papel plástico e então Will ficou quieto.
Eu era inútil.
Lamentável demais.
Como poderia salvar humanos se não podia nem salvar a mim
mesma?
— Então? — A voz de Barbara ressoou pela sala silenciosa.
Mantive os olhos fechados, esperando que ela não visse os
rastros molhados ao longo das minhas têmporas.
Ela cutucou meu pulso e eu estremeci.
— A mão dela ainda está aí. Como a mão dela ainda está presa?
Me dê aquela serra, seu idiota inútil.
Meus olhos se abriram.
— Não.
— Como a sua mão ainda está presa?
— Tire as algemas e eu vou te contar tudo.
— Boa tentativa, srta. Moreau, mas, não. O quê. — Ela cutucou
meu pulso e eu cerrei os dentes. — É. — Outro estímulo. — Você?
Eu não choraria. Nem gritaria.
— Eu sou uma mulher paciente. Podemos esperar. Semanas.
Meses. O que for preciso...
Eu não tinha meses. Eu nem tinha certeza de quantas semanas
eu tinha.
Grunhidos e tiros soaram do lado de fora do quarto do hospital.
Abri os olhos.
— O que foi isso? — Barbara saltou em direção à porta.
A esperança de que alguém tivesse vindo, humano ou anjo, me
atingiu, entorpecendo a dor atroz. Quando um jato de balas atingiu a
parede do quarto do hospital, ela balançou a serra encharcada de
sangue à sua frente. Gemidos ecoaram do lado de fora e então o
painel de vidro da porta se encheu de uma visão que fez o resto do
mundo desaparecer.
Asher.
Asher veio.
Pisquei, porque era uma ilusão. Ele estava trancado em Elysium.
Ele não podia ter vindo.
Após a terceira vibração dos meus cílios, ele ainda estava lá.
A porta caiu. Bateu no chão. E lá estava ele, com suas belas
asas vibrando com fúria desenfreada. A enfermeira gritou, mas Fred
puxou uma arma de seu jaleco e atirou. A bala atingiu o bíceps de
Asher.
Ele olhou para o homem, depois estendeu a palma da mão e
disparou contra o médico, que se jogou sobre a enfermeira
implorando por ajuda. Eles caíram em uma confusão de membros e
chamas.
— O que é que vocês são? — Barbara gritou de onde estava
com a serra.
Baixando o rosto, Asher avançou em direção a ela, e vi as
chamas zunindo ao longo de seus dedos. Ela balançou a serra. Ele
pegou a lâmina e a derreteu. O choque fez seus dedos se soltarem
e a alça retiniu contra o chão. Ela cambaleou para trás, mas ele a
prendeu pelo pescoço e a ergueu. Barbara se contorceu, chutando.
Vi animais e humanos ferozes, mas nunca um anjo feroz, e os
olhos extremamente sombrios de Asher... foi a coisa mais
aterrorizante e hipnotizante que já vi. Era uma expressão que
prometia retribuição.
Justiça.
— Desvie o olhar, Celeste — ele grunhiu.
Não desviei.
— Desvie. O. Olhar.
— Não.
Ele me encarou, mas ainda assim não desviei o olhar quando ele
pressionou a palma da mão contra o abdômen da Triplo e extraiu a
alma de seu corpo ainda se contorcendo. Ela olhou para a orbe
brilhante vazando de seu corpo e então ofegou como se ele a
tivesse socado e revirou os olhos.
Ele jogou o corpo dela e fechou os dedos ao redor da alma
brilhante. Uma fumaça escura e brilhante começou a se formar em
seus dedos cerrados. Algo estourou, não como uma bolha, mas
como um osso deslocado.
Ele tinha...?
Os olhos de Asher se fecharam, e seu peito... seu peito ficou
quieto. Ele arrastou o punho para o lado e lentamente separou os
dedos, liberando um fino rastro de cinzas.
Quando seus olhos se abriram novamente, se fixaram em mim.
Ele caminhou em direção à cama, agarrou as correntes e as
liquidificou. Ele fez o mesmo com as algemas. Quando viu o
massacre em meu pulso, semicerrou os olhos. A violência que vi
dentro deles... me fez encolher. Não de medo, mas de vergonha.
Vergonha do que provoquei a mim mesma.
Mordi o lábio com força para que ele não o visse oscilar.
Asher passou a palma da mão feroz sobre o corte, remendando
a pele e queimando um pouco do sangue seco, depois direcionou o
fogo para a algema, aqueceu-a e separou-a como se fosse
massinha de modelar. Ele repetiu o processo nas outras três
restrições e então, ainda em completo silêncio, me pegou em seus
braços.
— Will — sussurrei. — Precisamos ajudar o Will. — Inclinei a
cabeça em direção ao menino com a gaze.
— Erel Brutus! — ele gritou.
Um anjo vestido de branco voou para dentro da sala. Um Erelim
havia descido do Elysium? Os sentinelas celestiais raramente
visitavam o reino humano.
— Liberte a criança — Asher rugiu. Seus batimentos cardíacos
pulsavam contra o meu corpo enquanto ele girava e saía da câmara
de tortura.
Olhei para a parte inferior de sua mandíbula rígida e, em
seguida, para o mundo que nos rodeava. Um armazém escuro cheio
de corpos alados e não alados – humanos em uniformes. Policiais.
Equipe de Emergência.
— Me perdoe — sussurrei.
Ele olhou para mim e, embora não tenha pronunciado uma única
palavra, sua dor, sua fúria, seu alívio... escoou para fora dele e
entrou em mim. De repente, estávamos do lado de fora. Estava
nevando e mesmo que tudo que eu estivesse usando fosse uma
bata de hospital, não sentia frio.
Flocos de neve grudaram em seus cílios.
Derreteram.
Coloquei a mão em volta de seu braço, incapaz de chegar mais
para cima. Apertei uma vez, mas então meus dedos trêmulos se
abriram, moles. Ele me reajustou, agarrou meu pulso flácido e o
enfiou entre nossos peitos, em seguida abriu suas belas asas, se
enrolou em mim e saltou para a tempestade de neve.
59

N ão olhei em volta enquanto sobrevoávamos a cidade.


Não que eu pudesse ter visto muito. A neve caía forte e
rápido, batendo em nossos corpos, nos empurrando para
o lado. O movimento de balanço me lembrou de uma viagem de
barco que fiz há muito tempo com Mimi, onde o oceano estava cheio
e agitado, nos jogando de um lado para outro com tanta violência
que passei a terrível viagem esparramada no chão de nossa cabine.
Meu estômago revirou quando uma rajada de vento atingiu
minha pele e fez Asher subir mais. Se houvesse algo em meu
estômago além das drogas que injetaram em mim, teria sido
colocado para fora.
Eu me perguntei para onde ele estava me levando: meu
apartamento ou a associação? O vento soprava com tanta força que
mesmo que eu tentasse perguntar, as palavras teriam se perdido na
torrente gelada. Contanto que Asher permanecesse comigo, não
importava para onde fôssemos.
Ah, anjos... e se ele me deixasse na terra dos Plumas e depois
voltasse para a terra dos anjos? E se esses fossem os termos de
sua libertação de Elysium? Salve sua alma metade incompetente e
volte depressa. Engolindo em seco, tentei olhar para ele, mas flocos
de neve atingiram meus olhos, então enterrei meu rosto em seu
peito e guardei minhas perguntas para quando não estivéssemos
mais expostos aos elementos adversos.
Um empurrão forte provocou uma pontada de dor na lateral da
minha coluna, onde os monstros tentaram retirar um dos meus rins.
Eu ainda estava sangrando ou apenas machucada? Rangendo os
dentes, tirei o rosto da roupa de camurça do Seraphim. Meu medo
de termos batido em um arranha-céu diminuiu com o brilho do
quartzo branco, a melodia dos pardais e o cheiro da madressilva.
Vozes soaram ao nosso redor. Penas balançaram. Brilhantes,
lustrosas.
— Pluma Celeste! — Ah... aquela voz estridente e anasalada. A
tez de Mira fez seu rosto ficar borrado contra suas asas vermelhas.
— Um Triplo! O que deu em você para se vincular a um Triplo? —
Seus olhos estavam brilhantes de... lágrimas? Não, não podiam ser
lágrimas. Esta mulher nunca chorava. — O que ela fez com você?
— Ela tirou meu pulso do torso de Asher.
— Está... — franzi o nariz enquanto ela cutucava minha pele
arroxeada e inchada — melhor do que parece.
Ela ficou carrancuda, e então a coisa ainda mais estranha
aconteceu. Uma lágrima rolou por sua bochecha.
— Ophan, está tudo bem.
Ela colocou meu pulso machucado de volta entre o meu corpo e
o de Asher.
Asher que ainda não havia dito uma palavra, mas seu torso
estava vibrando com adrenalina.
Ele se virou, caminhando pelo corredor do dormitório.
— Diga a Naya que a Celeste está em casa, mas a mantenha
longe até de manhã!
— Imediatamente, Seraph. — Foi Pippa quem respondeu, com o
tom agudo de nervosismo.
Ela também estava preocupada comigo? Eu sabia que Naya e
Mira se importariam, mas as outras? Claro, abduções de Plumas
eram incomuns, mas era de mim que estávamos falando... eu, que
abandonei a todos há quatro anos e meio. Eu, que sempre tive
opinião sobre tudo. Eu, que enfeitei o chão da associação com
penas roxas.
— Que dia é hoje? — resmunguei quando Asher abriu minha
porta.
Seu cabelo solto e molhado bateu em seus ombros.
— Domingo.
— E ainda é novembro?
— Sim.
Soltei um suspiro de alívio.
Ele chutou a porta do quarto. Achei que ele fosse me jogar na
cama e me repreender, mas, em vez disso, ele entrou direto no
chuveiro e o ligou.
— Suas roupas!
Enquanto o jato quente fumegava ao nosso redor, os olhos
brilhantes de Asher correram pelo meu rosto.
— Você aguenta ficar de pé?
— Tenho pés, então não vejo por que não. — Minha piada
reciclada não o fez sorrir. — Me coloque no chão, vou tentar.
Ele me colocou no chão com muito cuidado. Quando as solas
dos meus pés atingiram o quartzo, a sensação de lâminas cortando
minha carne me fez soltar um gemido suave. O olhar de Asher
disparou para meus tornozelos, que estavam cercados de
hematomas. Eu não disse a ele que a dor não era dali. Ele já estava
preocupado demais. Não precisava ouvir que eles tentaram remover
um dos meus rins.
Mantendo o outro braço ao redor das minhas costas, ele soltou
as tiras da camisola hospitalar, em seguida retirou suavemente o
tecido úmido do meu corpo. O vestido caiu no chão como uma cobra
morta, avermelhando a água ao redor das botas do Arcanjo.
As memórias de pesadelo me vieram a cabeça enquanto eu
observava o sangue escorrer pelo ralo. Estremeci e inclinei a testa
em seu ombro, a camurça encharcada grudando na minha pele
úmida. Sua mão deslizou delicadamente sobre meus ombros e
coluna, a fragrância floral de sabonete amenizando o cheiro
adocicado de sangue e couro úmido.
Quando seus dedos encontraram meus ferimentos, endureci e
respirei fundo. Ele paralisou, juntou meu cabelo comprido e o
ergueu. Ele deve ter olhado por cima do meu ombro, porque sua
postura rígida se solidificou até que senti como se estivesse
tomando banho em uma fonte do átrio com um anjo de pedra.
Ele não perguntou o que fizeram. Achei que a ferida fosse
autoexplicativa. Enquanto o calor crepitante atingia minha pele
arruinada, fechei os dedos. Gradualmente, a pontada diminuiu e se
tornou uma dor surda. Como eu gostaria que ele pudesse usar seu
fogo em minha mente, me livrando dos últimos cinco dias. Não...
todo o último mês. Eu não queria me lembrar de um único dia sem
ele.
— Senti tanto a pluma da sua falta. — Coloquei os braços ao
redor de sua cintura e o segurei para que ninguém – nem anjo, nem
mortal – pudesse tirá-lo de mim novamente.
Sem palavras, ele voltou aos movimentos lentos, ensaboando
minha pele e cabelo e, em seguida, me virou para que pudesse
lavar a frente do meu corpo. Seu toque era gentil, mas não como o
de um homem e sim como de um enfermeiro cuidando de seu
paciente. Não que eu estivesse com vontade de fazer sexo, mas
queria que ele me visse... a mulher que ele amava, as curvas que
ele valorizava, a pele que ele beijava.
— Asher, diga alguma coisa...
Seu olhar desviou da espuma deslizando pelo meu estômago.
Quando ele voltou a mover a esponja em silêncio, acrescentei:
— Grite comigo. Diga que sou idiota, mas fale alguma coisa.
Sua garganta se moveu enquanto ele passava o sabonete em
meus quadris e depois nas minhas pernas, aliviando o toque quando
alcançou meus tornozelos.
— Como você me achou?
— Quando a Mira me alertou que você não voltou... depois de
cinco dias — ele grunhiu — fui verificar seu perfil na Sala de
Classificação celestial e vi quem você escolheu.
— Ela deve ter presumido que eu tinha voltado para o meu
apartamento.
— Foi o que ela me disse, mas não deveria ter esperado cinco
dias para me avisar. E eu deveria ter visitado a Sala de
Classificação celestial mais cedo. — Ele se levantou, com os
cabelos grudados em suas feições tensas. — Eu disse para você
não escolher aquela mulher.
— Eu sei, mas estava tentando chegar até você mais rápido.
Não achei que ela seria... — Mordi o lábio. — Eu não pensei —
admiti.
A água tamborilava contra nossos corpos, contra a corda
sinuosa de tecido úmido que se estendia entre nós.
Depois de muito, muito tempo, ele disse:
— Nunca usei meu fogo para matar.
Meu coração quase parou.
— Sinto muito.
— Eu não sinto. Eu os mataria novamente se pudesse. Você me
chamou de monstro uma vez, e demorei até essa noite para
perceber que realmente sou um. E do tipo mais perigoso. O tipo que
tem sede de livrar o mundo de toda alma feia e que possui o poder
para fazer isso.
Segurei seu rosto.
— Você não é um monstro. Essas pessoas que você matou...
eles eram os monstros. Não você.
— Acredito que meu apelido vai mudar depois que a história
sobre a minha vingança desenfreada se espalhar. Não serei mais o
Garoto de Ouro de Elysium, mas o Anjo da Morte, ou talvez eles
apenas mudem meu nome para Satanás.
— Cale a boca, Seraph.
— Odeio quando você me chama assim.
— Eu sei.
— Claro que sabe. É por isso que você continua. Para me irritar.
— Na maioria das vezes, mas estou usando agora para lembrá-
lo de quem você é. Um Arcanjo. Alguém que entregou a morte esta
noite, mas que trouxe a vida de volta há quatro anos. Aquele que
me salvou hoje. Asher, se você não tivesse vindo...
— Não. Não diga isso.
— Não diga o quê? Que devo minha vida a você? Eu devo. Devo
minha vida a você. Minha vida eterna.
— Cento e vinte penas e vinte e cinco dias.
— Eu posso conseguir — sussurrei, porque podia mesmo.
Seus dedos se enroscaram em minhas mechas molhadas e se
enrolaram na minha nuca.
— Ah, você pode e vai. E quer você goste ou não, estarei
segurando sua mão durante cada uma de suas missões.
Meu pulso acelerou.
— Você vai ficar?
— Vou.
— E quanto a Claire?
— Eu disse a ela que poderia me colocar em julgamento por
meu comportamento indigno dos Sete depois que você ascendesse.
Eu queria sorrir, mas o pavor apertou meus lábios.
— Julgamento?
— Sim... julgamento.
— Então ela sabe?
— Que eu te amo? Todo o Elysium sabe. E certamente, a maior
parte de Abaddon. Não há fofoqueiros maiores do que os Erelim.
Interessante, e eu definitivamente voltaria a isso mais tarde, mas
primeiro...
Umedeci os lábios.
— Eu quis dizer...
— Sei o que você quis dizer. — Ele encostou o nariz no meu e
inclinou a boca sobre a minha. Antes de me beijar, ele disse: — Ela
vai trazer o assunto à tona, trazer eles à tona, mas não tem provas.
60

A cordei virada de lado, com um braço pesado envolto em


meu peito, uma mão sobre meu estômago e algo espesso e
quente endurecendo na parte de trás das minhas coxas. Se
eu fosse viver para sempre, era assim que eu queria acordar todas
as manhãs – corpo e alma encasulados contra este gigante, às
vezes rabugento, mas sempre glorioso, homem alado.
Enquanto o céu ilusório além da cúpula de vidro se iluminava
com o tom lilás empoeirado da madrugada, pensei no que Asher me
disse enquanto o chuveiro lavava a noite do meu corpo maltratado.
Que ele teria que ser julgado. Depois disso, ele me beijou. E embora
houvesse necessidade e fome naquele beijo, senti que ele usou sua
boca para silenciar a minha.
Ele se mexeu, o que fez seu comprimento pesado subir pela
parte interna da minha coxa. Por mais ávido que nosso beijo tenha
sido na noite passada, por mais forte que ele tenha me abraçado, se
manteve fora do meu corpo, alegando que eu precisava descansar.
E era verdade. Eu realmente precisava, mas meu corpo também
precisava dele. O sono infelizmente me atingiu antes que eu
pudesse vencer meu Arcanjo teimoso.
Mas esta manhã...
Eu não deixaria essa cama até que recuperássemos o tempo
perdido. Me movi em um ângulo para acomodar sua ereção.
Quando comecei a me esfregar contra ele, sua mão apertou minha
barriga, acalmando meus movimentos.
— Celeste. — Havia algo mais sexy do que a voz rouca de sono
de Asher? — Você está machucada.
— Não entre as pernas. — Tentei deslizar mais nele, mas seu
aperto aumentou, interrompendo meu progresso.
Por um momento dolorosamente longo, ele manteve meu corpo
imóvel, esticando minha entrada, mas não o resto de mim. Anjos,
como eu queria que ele esticasse o resto do meu corpo. Se ele se
afastasse, eu…
Ele se moveu, e santos bebês demônios, nosso mês separados
devo ter voltado a ser virgem, porque minhas paredes internas
grudaram em seu pênis como o brilho nas pontas das asas dos
verities.
Totalmente dentro, ele parou:
— Você está bem? Está tensa.
— Posso garantir que você ficaria tenso também se nossas
posições fossem invertidas. — Virei o pescoço para olhar para ele.
Seus olhos estavam semicerrados, mas a profundidade ciano
era muito mais brilhante do que na noite anterior.
— Se você estiver muito desconfortável, posso parar.
Aproximei mais meu rosto até que nossas bocas quase se
tocaram.
— É totalmente tolerável. — Meus quadris cederam um pouco.
Ele capturou minha boca e assumiu meus movimentos
desajeitados, lentamente empurrando nossos corpos em direção à
felicidade.

D banho e nos vestirmos, caminhamos em


direção ao refeitório. Cabeças viraram, muitos olhares pararam em
nossas mãos entrelaçadas. Trazer garotos para a associação era
contra todas as regras celestiais, mas o livro não mencionava
Arcanjos, o que provavelmente era o motivo pelo qual eu não estava
perdendo penas. Aposto que Seraph Claire estava traçando
algumas novas diretrizes para tornar isso ilegal, para que ela
pudesse atribuir mais um crime a seu companheiro Seraphim.
— Você está se sentindo pronta para uma missão? — Asher
perguntou quando passamos pela Sala de Classificação.
Eu preferia ter passado o dia na cama com ele, mas o tempo era
crucial.
Respondi puxando-o para dentro da sala circular e ligando um
holo-classificador.
— Já tem alguém em mente?
Ele se inclinou sobre mim, prendendo meu corpo entre seus
braços nus que cheiravam a sabão, homem e fogo. O desejo de
acariciar as depressões e protuberâncias de seus bíceps, os
tendões esticados em seus antebraços bronzeados, o...
— Precisa que eu escreva para você?
— Hã? — Inclinei a cabeça para cima e dei um sorriso triste. —
Me desculpe. Eu estava distraída. O que você disse?
Ele balançou a cabeça, mas seus olhos brilharam quando ele
moveu a boca para o meu ouvido.
— O nome é Timothy Granger, e você está ardendo em chamas
para mim.
Ah. Isso explicava suas íris brilhantes.
— Tecnicamente, estou ardendo em chamas por seus braços.
Você tem braços muito bons.
— Timothy Granger. Recupere o homem, e eu deixo você
admirar meus braços pelo tempo que quiser. Talvez eu até deixe
você acariciá-los.
Ha.
— De novo com os subornos.
— Depois do que fiz ontem à noite, não estou mais acima do
suborno.
Meu sorriso se distorceu e o ardor saiu da minha pele.
— Por favor, pare de dizer isso.
Ele se afastou da bancada.
— Timothy...
— Granger. Entendi. — Soltei um pequeno bufo enquanto
rastreava o nome do pecador.
Pontuação: 12. Seu pecado: etiquetar novamente produtos
vencidos em seu supermercado. Imaginei que o pior que poderia
acontecer comigo nesta missão seria pegar a bactéria E. coli.
Apoiei a mão na tela, aplicando meu nome sobre o rosto fino do
homem, então pulei do banquinho e enfiei o dedo indicador no torso
de Asher.
— O que você fez na noite passada se chama justiça. Justiça de
verdade. Você salvou a mim e a muitas crianças indefesas. Suas
vidas podem nunca serem perfeitas, mas pelo menos, eles têm a
chance de viver.
Ele envolveu meus dedos e os puxou para baixo, mas em vez de
soltar, os segurou. E não apenas meus dedos, mas toda a minha
mão.
— Aquela mulher cuja alma você queimou, tirou o coração de
alguém para dar de presente para a sobrinha do presidente
venezuelano.
— Não é meu trabalho fazer justiça no mundo humano.
— Deveria ser! Deveria ser o trabalho de todo Arcanjo. —
Balancei a cabeça quando uma pena foi arrancada de minhas asas
e flutuou como um floco de neve roxo, se acomodando ao lado das
botas que trouxe de casa quando voltei para a associação. O couro
era duro e tinha mais fivelas do que o último – meu par favorito,
aquele que tinha morrido junto com minha calça de couro favorita e
meu telefone celular. — Preciso de um telefone — resmunguei,
irritada por meu zelo ter me custado algo que estava se tornando
uma mercadoria inestimável.
Asher curvou um dedo embaixo do meu queixo e ergueu meu
rosto.
— Guarde suas opiniões subversivas para Elysium, aheevaleh.
Vou me certificar de amplificar sua voz lá, mas até então... shh. —
Ele pressionou o dedo contra a minha boca para me silenciar, em
seguida o substituiu pelos lábios.
O beijo foi fugaz, mas acalmou um pouco da minha raiva. O que
desarmou o resto foi o som da voz de Naya chamando por seu pai e
a visão do seu rosto corado quando ela parou em frente à Sala de
Classificação. Ela se espremeu entre as portas curvas de vidro que
estavam se abrindo devagar demais para o seu gosto, então parou
na nossa frente, com lágrimas brilhando em seu rosto. Ela olhou
entre mim e Asher, como se incapaz de decidir quem abraçar
primeiro. No final, ela envolveu um braço ao redor de uma das
pernas dele e o outro em uma das minhas e nos abraçou.
61

O s dias se passaram.
Novembro se transformou em dezembro, que avançou
em direção à data de validade dos ossos das minhas asas.
E embora eu não estivesse mais preocupada em conseguir, tendo
ganhado noventa e uma penas desde o retorno de Asher, eu
também não estava abrindo champanhe com um sabre.
Eu poderia estar a 29 penas da vida eterna e de Mimi, mas
também estava a 29 penas de deixar Naya. A dor da minha partida
iminente rivalizava com a que cortou meu peito na noite em que
acreditei que ela estava morta para sempre.
— Por que você está me olhando assim? — Naya largou o garfo
com que lutava contra o monte de ervilhas.
Asher, que estava sentado à nossa frente no refeitório, levantou
uma única sobrancelha.
Engoli o caroço que obstruía minha garganta.
— Assim como?
Raven, a mais nova amiga de Naya, uma garotinha de sete anos
com olhos azuis claros e cabelos loiros quase brancos tirou os olhos
da história que estava lendo para Naya, um capítulo de um livro
sobre irmãs matadoras de dragões que eu tinha visto em uma
livraria no caminho de volta de uma missão.
— Como se fosse chorar — ela respondeu.
— Eu? Chorar? — Expirei.
Asher se moveu para frente, enfiou a mão por baixo da mesa, a
apoiou em meu joelho e o apertou.
Mordi o lábio com força antes de deixar escapar:
— Não quero te deixar.
Naya piscou seus grandes olhos para mim. Ela não percebeu
que, uma vez que minhas asas estivessem inteiras, eu teria que ir
embora?
— O Apa é um Seraphim.
Fiz uma careta.
— Ophan Pippa diz que os Seraphim são todo-poderosos.
Ela achava que a posição dele me daria um passe especial?
Olhei para ele em busca de ajuda para explicar que não estava
acima da lei.
— Infelizmente, motasheh — sua mão escorregou do meu joelho
—, a Celeste não vai poder voltar.
Sua boca se abriu.
— O quê?
Ao nosso redor, as conversas no jantar cessaram e os olhos se
voltaram para nós, me lembrando das primeiras refeições que Asher
e eu compartilhamos com Naya. E depois com Raven. Às vezes,
outros jovens Plumas se juntavam a nós. Especialmente quando
Asher entrava no modo de contador de histórias.
— Eu... eu... — O lábio inferior de Naya tremeu mais. — Como
você pôde não me dizer isso? — Ela saltou da cadeira.
Ela atingiu meu coração já agonizante com um olhar de angústia
antes de correr pelo corredor em direção à seção infantil da
associação. Olhei boquiaberta para Asher, então de volta para o
corredor de pedra branca.
Chocada, gaguejei:
— Eu, ah... eu...
Raven fechou o livro e se levantou.
— Vou vê-la, Celeste. Quando ela estiver calma, virei te buscar.
— Tudo bem. — Depois que Raven se foi, apoiei os cotovelos na
mesa e agarrei minha testa, que pulsava. — Não posso acreditar
que ela achou que eu ia voltar.
— Isso explica o entusiasmo dela por suas missões.
Fechei os olhos.
— Isso já foi difícil, mas argh... — Sim, foi o melhor que consegui
dizer: argh. Agarrei meu cabelo, suspirei profundamente e abri os
olhos.
— Entendo por que não podemos voltar para a Terra, mas não
faz sentido não poder visitar as associações. — Os ossos das
minhas asas se arrepiaram como se me avisassem para parar por
aí.
— A razão para isso é técnica — ele disse baixinho.
Levantei uma sobrancelha.
— Temos chaves de canal, mas não das associações.
Eu pisquei.
— Você quer dizer que estamos presos em Elysium por que os
Sete temem que possamos vagar pelo mundo humano se tivermos
permissão para retornar às associações?
Ele assentiu.
— Você percebe como isso é louco, certo? — Os Ishim
roubaram uma pena em sua esperança eterna de me domar. — Eles
nunca ouviram falar do sistema de honra? Se você for desonesto,
está fora. Os Sete poderiam implementar a mesma regra para os
anjos. A primeira infração poderia custar um ano de viagens pelo
canal. Uma segunda poderia custar dez anos. E...
Asher estendeu a mão e pegou as minhas.
— Levsheh, não é a mim que você precisa convencer.
Levantei meus olhos para a cúpula clara e o céu noturno.
— Apenas o resto do seu grupo — suspirei.
Ele assentiu.
— Depois do meu julgamento, seja como for, você deve trazer
isso à tona.
Pressionei meus lábios. Embora eu estivesse tentando
ativamente não pensar em seu julgamento, ele nunca esteve longe
da minha cabeça. Fui poupada de pensar nisso ao ver Raven
voltando de mãos dadas com Naya, que estava com o rosto úmido.
Eu me levantei e caminhei em direção às duas meninas.
Em seguida me ajoelhei na frente de Naya e segurei suas mãos.
— Mesmo que eu me recuse a fazer uma promessa que não
posso cumprir, juro que vou lutar com unhas, dentes e plumas pelo
direito de visitá-la.
— Não — ela resmungou —, nada de luta.
Franzindo a testa, eu me afastei.
— Não quero que te machuquem.
— Me machuquem?
— Tirem suas asas — ela murmurou.
Empurrei uma mecha loira de suas bochechas molhadas.
— Ah, querida... ninguém vai tirar minhas asas.
Um movimento ao meu lado me fez desviar o olhar.
— Vou me certificar de que fiquem presas às costas dela,
motasheh. — Nossa espécie não tinha anjos da guarda e, ainda
assim, nunca teve um homem que cuidasse dos outros com tanto
fervor.
Naya fez beicinho de novo.
— Jura de mindinho, Apa? — Ela estendeu seu dedinho e isso
me levou de volta há alguns anos para a associação em Paris, onde
fiz Leigh jurar que ela ficaria com Jarod para ganhar suas asas e ir
para Elysium para se casar com Asher.
Fiquei tonta de repente, me sentei sobre os calcanhares e
observei Asher envolver seu dedo mindinho no de Naya e sacudir.
Se ela tivesse cumprido sua promessa de ascender e se casar com
o Arcanjo... minha alma-metade...
— Celeste? — Naya estava acenando com a mão na frente do
meu rosto.
Eu pisquei.
— O quê?
— Quer jogar um jogo?
— Eu, uh... — O rosto de Leigh se sobrepôs ao de Naya, como
se eu estivesse olhando para uma imagem iluminada do holo-
classificador.
— Na verdade, preciso pegar Celeste emprestada por um tempo.
— Asher roçou em meu ombro. — Mas prometo que amanhã de
manhã, vou deixar vocês duas brincando enquanto vou visitar
algumas associações.
Embora ele não tivesse voltado para Elysium desde que me
libertou do armazém de Barbara Hudson, toda vez que eu estava de
folga, ele voltava a trabalhar, visitando casas de Plumas em todo o
planeta.
— Certo. — Naya deu de ombros. — Eu queria mesmo saber se
a madrasta dragão colocou fogo na casa de Penny. — Ela se virou
para Raven, e as duas voltaram para a mesa.
Eu me levantei em câmera lenta e saí do refeitório ao lado de
Asher. Achei que ele estava me levando para a Sala de
Classificação, mas acabamos voltando para o meu quarto. Embora,
na maioria das noites, usássemos meu apartamento, por uma
questão de privacidade, o quarto da associação permanecia sendo
meu, assim como Mira havia prometido.
Ele fechou a porta.
— Parece que você viu um fantasma.
Mordi o lábio. Ele o libertou.
— Jura de mindinho. Isso era uma coisa que eu fazia com a
Leigh o tempo todo.
Ele acariciou a lateral do meu rosto.
— Quer saber qual foi a nossa última?
— Só se você quiser falar sobre isso.
— Eu a fiz jurar que não iria se desvincular do Jarod.
— Não se culpe.
Balancei a cabeça.
— Isso não é... — Inspirei e recomecei. — Eu a fiz jurar que não
iria se desvincular dele para que ela pudesse ganhar suas asas e se
casar com você. Eu estava imaginando uma realidade alternativa
onde ela não tivesse se apaixonado por Jarod. Onde ela se
apaixonasse por você. E isso... doeu muito. — Estudei suas íris
brilhantes. — Asher, por um segundo, me senti feliz por ela ter ido
embora. Fiquei feliz... — minha voz falhou. — Eu sou uma pessoa
horrível.
Ele passou os braços ao meu redor e me puxou para seu peito.
— Você não é uma pessoa horrível.
— Você não ouviu o que eu acabei de dizer? — Empurrei seu
peito para me afastar.
Suas mãos flutuaram para a base da minha coluna, me dando
espaço, mas me mantendo perto.
— Achei que você finalmente gostasse dos meus abraços.
Eu o encarei, surpresa que depois de uma confissão tão sórdida,
ele ainda quisesse me abraçar. Muito menos fazer piada sobre isso.
E só para constar, eu adorava seus abraços.
— Se o Jarod fosse sua alma metade, no momento em que se
tocaram, nada nem ninguém poderia separá-los. Da mesma forma
que nada nem ninguém poderia nos separar agora.
— E se não tivessem se tocado quando eu a fiz jurar de
mindinho? E se ela tivesse se vinculado a outra pessoa e...
— E se a Muriel não tivesse morrido quando morreu? — Seu tom
foi tão brusco que prendi a respiração. — Desculpe. Não queria que
tivesse saído tão duro assim. — Ele engoliu em seco. — No
momento em que sua alma e a minha colidissem, nos tornaríamos
inseparáveis. Quer tenha acontecido aqui ou em Elysium, quer eu
fosse casado ou não. Você pode reescrever essa história de um
milhão de maneiras diferentes, Celeste, mas sempre terminará da
mesma forma. Vai terminar com nós dois juntos.
62

Q uatro dias.
Eu tinha quatro dias para ganhar nove penas.
No passado, eu poderia ter achado isso assustador,
mas aprendi a acreditar em mim mesma e não tinha
dúvidas de que conseguiria.
Embora a fé de Asher em mim nunca tenha vacilado, havia uma
energia nervosa sobre ele. Algo compartilhado por todas as
Ophanim da associação. Só Naya não estava nervosa, muito triste
para se preocupar. Ela me fez prometer – promessa de mindinho –
que assim que minhas asas estivessem completas, eu passaria
cada segundo das minhas últimas vinte e quatro horas na Terra com
ela.
Cada batida do meu coração parecia o tique de uma bomba, que
deixaria uma confusão de lágrimas quando explodisse.
Especialmente porque a detonação também marcaria o início do
julgamento de Asher.
Olhei para ele, para a linha forte de sua mandíbula que só tinha
ficado mais forte na semana que passava e que provavelmente não
iria amolecer até que minhas asas se ligassem aos meus ossos e os
Sete emitissem seu veredicto. Ele devia ter sentido meu olhar,
porque me encarou enquanto atravessávamos a rua em direção ao
meu penúltimo pecador, um rapaz de quatro penas.
Ele queria que eu me vinculasse a alguém com dez penas, mas
implorei a ele por mais um dia.
Só mais um.
Ele apertou minha mão enluvada, mas não usava as dele. Sim,
ele estava sem luvas, porque, qual a necessidade de um homem
feito de fogo usar luvas? Em breve, eu teria fogo também. Não no
momento em que ascendesse, mas um ano ou mais depois. Meu
fogo não seria quente o suficiente para queimar almas, mas seria
para selar feridas, limpar sujeiras e manter meu corpo quentinho
para sempre.
O telefone vibrou no meu bolso. Tive que comprar um aparelho
novo, mas mantive o número. Não que eu tivesse recebido ou feito
muitas ligações.
Há uma semana, depois de topar com o perfil de Fernanda e
descobrir que sua pontuação havia melhorado em oito pontos,
enviei uma mensagem a ela me desculpando por como agi na última
vez em que nos falamos. Ela mudou seus hábitos e, embora minhas
asas não tenham se beneficiado disso, minha alma e meu coração,
sim. Ela não me respondeu, mas contanto que continuasse se
aprimorando, não importava.
Fiz uma careta quando vi MOUNT SINAI iluminar minha tela. Por
que um hospital estaria me ligando? Parei de andar e tirei a luva
com os dentes para atender.
— Oi, é Celeste Moreau? — uma mulher perguntou.
— Sim.
As sobrancelhas de Asher baixaram.
— Você está listada como contato de emergência de Jason
Marros, e... — Todo o resto veio para mim de forma desconexa. —
Overdose. Heroína. Estável.
Levei a mão enluvada para minha boca aberta.
— Posso vê-lo?
Ela disse sim, mas eu teria ido mesmo se ela tivesse negado.
Assim que a ligação terminou, informei Asher.
— Preciso vê-lo.
Asher olhou para a fachada de vidro do banco onde meu
pecador trabalhava. Eu podia sentir seu desejo de que eu entrasse
e completasse a missão, mas mesmo se eu quisesse, não seria
capaz de ajudar ninguém.
Ele suspirou. Não reclamei quando ele me pegou e jogou um
punhado de pó de anjo para cobrir nossos corpos antes de voar pela
calçada coberta de lama para o céu perolado. Eu ainda não era fã
de ser transportada assim, mas pelo menos meu estômago não
ficava mais no fundo do poço. Progresso.
Minutos depois, estávamos pousando. E então eu estava
correndo pelo saguão do hospital em direção à recepção para
descobrir qual era o quarto de Jase. Embora Asher não tenha
corrido, ele me acompanhou. Foi comigo até a porta do quarto meu
amigo.
Segurei a maçaneta.
— Acho melhor você esperar aqui.
Mesmo que parecesse exigir tudo dele aceitar, ele assentiu. Ele
estava ansioso, não com a minha afeição mudando para outra
pessoa – o entrelaçamento de nossas almas garantia que isso fosse
impossível – mas que isso atrasasse minha ascensão.
Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo.
— Não se preocupe.
Ele grunhiu em resposta.
Entrei no quarto sem bater e fechei a porta, me separando da
minha alma metade inquieta, que sem dúvida começaria a andar
pelo corredor e faria as enfermeiras desmaiarem com sua beleza.
As solas molhadas das minhas botas rangeram quando me
aproximei da cama do hospital, tentando não pensar naquela em
que fui algemada não muito tempo atrás.
Jase virou a cabeça e o tempo... simplesmente parou.
— Celeste? — As maçãs do seu rosto formavam uma tenda em
sua pele amarelada, e seu cabelo escuro, que ele sempre teve
grande orgulho em mantê-lo arrumado – cortado nas laterais e com
gel na parte superior – caía de forma desordenada ao redor de seu
rosto.
Tentei livrar minha expressão de choque, mas ele viu, porque
sua garganta balançou e ele desviou o olhar.
Brinquei com um botão do meu casaco.
— O hospital me ligou. Você não me tirou da sua lista de
contatos de emergência.
Seus cílios baixaram, protegendo seus olhos castanhos.
— Me desculpe.
— Isso não é... você não precisa se desculpar. — Me aproximei
da cabeceira da sua cama.
Seus olhos se abriram e o ódio que emanou deles foi tão intenso
que dei um passo para trás.
— Eu queria tirar seu nome, mas a única pessoa da minha lista
está na prisão, então — ele deu uma risada amarga — não teria
dado muito certo. Duvido que eles deixem os condenados fazerem
visitas ao hospital.
A acusação de Jase torceu meu coração da mesma forma que
meus dedos estavam torcendo o botão do casaco. Eu me perguntei
qual desabaria primeiro.
Olhei para a porta. Eu poderia sair e desejar a ele uma boa vida,
ou...
— Seu irmão foi para a cadeia, da mesma forma que você parou
neste hospital. Ele fez escolhas ruins na vida e você também. —
Soltei o botão, cansada de me sentir culpada. Pelo que fiz. Pelo que
ele fez. Pelo que dissemos.
Jase precisava de uma chamada para acordar, e talvez o choque
de uma overdose fosse o suficiente para tirá-lo de sua depressão,
mas e se não fosse? E se a próxima o matasse? Qual era a
pontuação dele agora? Eu duvidava que tivesse diminuído, mas
será que teria aumentado?
— Agora me escute, Jason Marros. Não me importo se você vai
me odiar pelo resto da sua vida. O que me importa é você assumir a
responsabilidade pelo que deu errado. Você roubou das pessoas.
Você roubou de mim! De mim, Jase. Sua melhor amiga. Seu contato
de emergência. — Joguei a mão no ar, exasperada. — E depois
você jogou minhas coisas fora. Jogou fora a nossa amizade.
— Você nos largou primeiro.
— Como? Quando? — gritei. — Quando tentei colocar algum
juízo na cabeça do seu irmão?
— Quando você mentiu!
— Sobre o que eu menti? — gritei de volta.
— Aquele cara! Abercrombie. Você disse que ele não significava
nada para você.
Recuei, surpresa.
— Achei... — Seus lábios pálidos se fecharam, uma fina linha
branca no mar de sua escura barba por fazer. — Achei que
tínhamos uma chance. No dia em que pegaram o Leon, eu ia dizer a
ele que queria sair, mas você estava nos braços do Abercrombie, e
você... foi embora. Com ele. Você foi embora com ele. — Ele cobriu
o rosto com a mão, empurrando os tubos presos ao seu braço e
soltou um uivo de dor que me fez afundar em seu colchão.
— Eu nunca tive a intenção de te enganar. — Lágrimas rolaram
pelo meu rosto. — Mas juro, naquela época, eu não estava com ele.
— Você também não estava comigo.
Minha garganta se apertou.
— E agora? — Ele abaixou a mão, olhando para mim. — Você
está com ele agora?
Pesei a consequência de contar a verdade a ele ou mentir. Em
quatro dias, eu teria partido. Se eu dissesse não, perderia uma
pena, mas ganharia um amigo. Mas e daí? O que aconteceria
quando eu desaparecesse no ar e Jase ficasse sozinho novamente?
Quem seria seu contato de emergência? Embora eu tivesse
recuperado pecadores de alta pontuação em um dia, ele precisava
de apoio de longo prazo.
— Chega para lá, tá?
Ele o fez, e eu me enrolei ao seu lado.
— Vou te contar uma história. Uma história que não tenho
permissão para contar. E você não vai acreditar em uma palavra
disso, tenho certeza. Vai pensar que estou louca. Provavelmente até
vai me chamar assim. E tudo bem. Mas você tem que prometer
ouvir. Cada palavra. E talvez um dia, você veja algo acontecer, você
sentirá algo acontecer, algo inexplicável, e vai perceber que sua
amiga pode não ter sido tão boba quanto você imaginou.
Respirei fundo. E então, palavra por palavra, fiz um resumo de
onde vim e para onde estava indo. E para cada segredo que contei,
uma pena caiu. Os ossos das minhas asas doeram, mas meu
coração doeu mais.
Por Jase.
Mas também por Asher.
Eu não só arranquei penas das minhas asas, mas também os
segredos de nosso povo.
Não contei quantas penas perdi. Não ousei.
Simplesmente fechei meus olhos e rezei para ter tempo
suficiente para compensar a perda antes que fosse tarde demais.
63

J ase ficou muito tempo sem falar depois que terminei.


Abri os olhos para me certificar de que ele não estava
dormindo.
Seus olhos estavam bem abertos.
— É por isso que você usa tantas expressões estranhas...
Mordi o interior da minha bochecha.
— Velhos hábitos.
— E em quatro dias, você vai para o céu?
— Elysium. — Outra pena. Cerrei meus dentes.
— Por cem anos? — Seu tom ainda era muito frágil.
— Esse é o plano.
Uma instante se passou.
— Ainda estou chapado, certo? Isso... você... está tudo na minha
cabeça?
— Não. — Me recusei a lamentar minha confissão. Me recusei a
realmente me preocupar. — Você não está chapado, estou
realmente aqui e tudo o que eu disse é verdade.
Silêncio. Muito silêncio.
— Por favor, diga alguma coisa, Jase.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Por que me contou tudo isso?
— Porque eu quero que você pare de fazer merda. — Cerrei os
dentes quando outra pena caiu.
Ele olhou para mim.
— Sabe quantas merdas de déjà-vus eu tive quando morávamos
juntos?
Meu coração disparou. Ele estava começando a acreditar em
mim?
— Perdi muitas penas naquela época.
Suas feições estavam sobrenaturalmente imóveis, embora não
houvesse nada de outro mundo nele.
— Continuo perdendo. Há um monte de penas no chão.
— Há?
— Não tenho permissão para compartilhar segredos proibidos.
— Você não está mesmo me zoando, Cee?
— Não estou, não.
— Puta merda.
— Sim.
— Estou delirando.
— De felicidade?
Um sorriso apareceu em seus lábios.
— Mais como em estado de choque. Você é a porra de um anjo.
— Ele timidamente roçou minha bochecha como se para verificar se
eu era real. — Como é que compartilhar o que você é, é proibido?
— Não tenho certeza, mas imagino que seja como aquela coisa
de galinha com consciência coletiva.
Ele ergueu uma sobrancelha grossa.
— Coisa da galinha com consciência coletiva?
— Provavelmente não é o termo certo.
Seus lábios se curvaram novamente, trazendo um pouco de cor
de volta para suas bochechas.
— Me esclareça sobre sua teoria avícola.
Sorri também, porque seus olhos não estavam mais com ódio ou
desolados.
— Parece que havia os trilhos de uma ferrovia que cortavam um
campo, e o dono daquele campo tinha galinhas que ele deixava
vagar livre durante o dia. E algumas das galinhas foram
esmagadas...
— Pobres galinhas. — Seus olhos brilharam.
— Não tire sarro delas.
— Eu não estava tirando.
Eu o sacudi, mas isso simplesmente intensificou o brilho.
— De qualquer forma, avance alguns anos e não há mais trem,
mas ainda há galinhas.
— Aquelas que não se espatifaram.
Fiz uma careta, e ele riu. E o som... foi um bálsamo para os
ossos delicados das minhas asas.
Devo ter ficado muito tempo olhando para ele sem falar, porque
ele mudou para o lado e disse:
— O suspense está me matando, Cee. O que aconteceu com as
galinhas?
— Elas não cruzaram os trilhos.
Ele franziu a testa.
— Elas não cruzaram porque, de alguma forma, se lembraram
do que aconteceu com seus ancestrais.
— As esmagadas?
— Gerações mais tarde, mesmo os trilhos cobertos de grama ou
tendo acabado, não me lembro, as galinhas ainda não se
aproximam da área.
— Sério, Cee?
— Sim. Sério. — Mas era isso? Olhei por cima do ombro para
verificar se a pilha havia ficado mais densa. Se fosse mentira, os
ossos das minhas asas teriam ejetado outra pena. Talvez tivessem.
— O que você está olhando?
— O monte roxo debaixo da sua cama.
Ele se apoiou no cotovelo para olhar por cima do meu corpo.
— Eu não vejo isso.
— Você não pode ver se não tiver sangue de anjo, lembra?
Ele balançou as pernas para fora da cama.
Me sentei.
— O que você está fazendo?
Ele segurou o soro e deu um passo, depois outro, mas então
vacilou, tropeçando no colchão antes de cair no chão, o que
disparou um monte de alarmes. Corri ao redor da cama enquanto as
enfermeiras entravam, perguntando por que ele tinha saído da cama
e me lançando olhares azedos como se fosse minha culpa.
Enquanto elas o ajudavam a voltar para o colchão e silenciavam
as máquinas, me virei em direção à porta. Surpreendentemente,
Asher não entrou junto com as enfermeiras. Ele estava a caminho?
Eu me preparei para a agonia que passaria por seu rosto quando
visse as penas dizimadas.
As duas enfermeiras me pediram para sair. Jase grunhiu um não
que fez as expressões das duas mulheres se contraírem.
Depois que elas foram embora, suspirei.
— Graças a você, estou na lista de observação do Monte Sinai.
Sua alegria anterior foi substituída por aborrecimento,
provavelmente pela fraqueza de seu corpo.
— O que exatamente você estava tentando conseguir? Além de
me fazer parecer um contato de emergência inadequado?
— Estava tentando chegar às suas penas.
— Ah. Por que não pediu?
— Porque você me disse que elas desapareciam assim que
fossem tocadas.
— Somente se tocado pela pele nua. — Tirei uma luva do bolso
e enfiei os dedos nela, depois me agachei, peguei um punhado de
penas e joguei no colchão ao lado dele. — Palma para cima, sr.
Marros.
Ele abriu a mão e coloquei uma pena. Seus olhos se fecharam e
suas narinas dilataram. Alguns segundos depois, a penugem roxa
se transformou em poeira cintilante.
Uma pequena ranhura vertical se formou entre suas
sobrancelhas.
— De novo.
Lhe dei outra. Ele não veria as memórias completas, mas sentiria
algo.
— Outra.
Eu estava prestes a fazer uma piada sobre ele ser um viciado e
eu uma facilitadora quando me lembrei de porque ele estava aqui.
Segurei a pena fora de seu alcance.
— Só se você me prometer que nunca mais usará drogas.
— Feito. Me dê.
— Não estou brincando, Jase. Quero que você viva uma vida
longa e plena para que, quando se juntar a mim no Elysium, tenha
muitas histórias para contar. Eu não suporto pessoas chatas.
Os cantos de sua boca se arquearam.
— Combinado.
— Está falando sério?
— Estou. Vou me encontrar com um conselheiro esta tarde. Para
avaliar minha necessidade de reabilitação.
— E?
— Só cheirei heroína uma vez. O médico acha que estava
misturado com alguma coisa por causa da minha reação a isso... —
Ele estremeceu.
— Certo. — E eu imaginando que ele passou os últimos dois
meses se furando com agulhas debaixo das pontes da cidade. — A
propósito, não conte isso, ou eles podem me mandar para Abaddon.
— E se eu chamar de ficção de fantasia?
— Eu acho... acho que tudo bem.
Ele sorriu novamente.
— Calma, Cee. Eu estava brincando. Ainda quero ser advogado.
— Você ainda está matriculado na Columbia?
— Eu não frequento aulas ou respondo e-mails há algum tempo,
mas não desisti. — Ele passou a mão pela mandíbula áspera. — Eu
só preciso me inscrever para um dormitório e espero que tenham
um de graça. O apartamento estava alugado no nome do Leon,
então foi devolvido.
O choque entreabriu meus lábios.
— Onde você está morando?
— No sofá da Alicia, mas ela me disse para me recompor, como
uma certa pessoa... — Ele lançou um olhar quase brincalhão na
minha direção. — E ao invés... bem, eu fiz o oposto disso.
— Você tem dinheiro?
A vergonha cintilou em seus olhos.
— O trabalho duro não me assusta.
— Não foi isso que perguntei.
— Não tenho, tá? — ele grunhiu.
Toquei seu antebraço, um redemoinho de tatuagem em forma de
rosa, e ele se encolheu.
— Não estou te julgando.
— Não?
Me sentei novamente.
— Se lembra que eu disse que vou embora por um tempo?
— Um tempo? — Ele bufou. — Você quer dizer um século?
— E se lembra do meu apartamento?
Ele me olhou de lado.
— Vai ficar vazio. Você acha que pode cuidar dele?
Suas pupilas se dilataram.
— Cee, isso é...
— Vou deixar dinheiro em uma conta para cobrir todas e
quaisquer despesas.
— Não posso me mudar para o seu apartamento.
— Por que não?
— Porque não posso.
— Se vai ser advogado, precisa melhorar o seu jargão de
apelação. Porque não posso é fraco.
Ele ficou boquiaberto.
— Olha, isso não seria um empréstimo. Eu realmente preciso de
alguém para cuidar dele pelos próximos cem anos.
Seus dedos tremiam enquanto ele coçava o queixo.
Levantei a palma da mão como se estivesse pesando alguma
coisa.
— Esbanjar sua vida e destruir sua alma. — Levantei a outra
mão. — Ou ser responsável e elevar sua alma. O que vai ser?
— Cee...
— Certo. Vou mandar o Asher verificar você uma vez por
semana. Espero que você esteja ansioso por sua babá celestial. —
Estranhamente, os ossos das minhas asas nem vibraram.
Jase fez uma careta.
— Presumo que você vai escolher o apartamento. Estou certa?
Um sorriso apareceu em seu rosto.
— Tudo bem. Mas tenho uma regra. — Peguei o chaveiro e
coloquei em sua mesa lateral, já que eu poderia entrar pela varanda.
— Nenhum sofá de couro fedorento pode passar pela porta.
Combinado?
Ele me deu um sorriso fraco.
— Combinado.
Me inclinei para abraçá-lo.
— Preciso ir agora, Jase. Me deixe orgulhosa, certo?
— Vou sentir muito a sua falta — ele murmurou enquanto eu me
afastava. — Tanto quanto Abaddon é grande.
Os contornos de seu rosto ficaram borrados.
— Vou enviar ao advogado da minha família um e-mail com suas
informações de contato. Ele vai cuidar de tudo. — Me levantei e
caminhei em direção à porta, lambendo as lágrimas salgadas dos
meus lábios. — Uma última coisa. Quando meu povo vier para te
ajudar, porque virão... — Eu me certificaria de que alguém se
vinculasse a ele imediatamente. Talvez Liv... — Seja legal com eles,
certo? E faça o que fizer, não diga que sabe nada sobre nós ou
nosso mundo. Eles terão que negar e mentir...
— E isso custa penas. Entendi. Serei o pecador perfeito. — Ele
pressionou dois dedos na testa em uma pequena saudação.
Mais uma vez, nenhuma pena caiu. Era porque eu estava
apenas reiterando coisas que já havia dito?
— Ei, Cee?
— Sim?
— Desde o primeiro momento em que te vi, soube que você era
um anjo.
Revirei os olhos.
— Eu não estava muito angelical naquela época.
— Não se venda por pouco. Você pode não ter uma auréola,
mas sempre teve a aura.
Revirei os olhos de novo.
— Meus olhos nunca vão se nivelar se você continuar dizendo
essas merdas.
Ele deu uma risadinha.
— Amo você, seu idiota. Se cuide.
— Você também.
Olhei para ele uma última vez antes de sair. Qualquer que fosse
o tênue controle que eu tinha sobre minhas emoções, estourou e as
lágrimas escorreram, fazendo com que o corredor ficasse turvo.
Depois de esbarrar em uma enfermeira e em uma maca, caí contra
a parede. Alguém se aproximou de mim para perguntar se eu estava
me sentindo bem.
Sem pensar, disse que sim.
Uma mentira gigante, mas o Ishim não embolsou uma pena. Que
estranho. Talvez estivessem em uma pausa para o almoço.
Minhas omoplatas se contraíram e uma coceira começou no topo
dos ossos das minhas asas e se curvou até as pontas.
Falei cedo demais. Não há descanso para os ímpios.
— Celeste! — As linhas do corpo forte de Asher e as asas
brilhantes entraram e saíram de foco.
Mantendo uma mão na parede, estendi a outra para ele.
— Sinto muito.
Sussurrei ao mesmo tempo que ele disse:
— Por favor, não fique com raiva de mim.
— É você quem vai ficar furioso.
Uma carranca tocou sua testa.
— Asher, eu disse coisas ao Jase. Coisas sobre nós. Nossa
espécie. Pensei que se ele soubesse que havia algo mais depois
desta vida, ele se levantaria novamente. Isso me custou — minha
voz falhou — me custou muitas penas, mas eu estava desesperada
para salvar sua alma.
Seus lábios se apertaram, não tanto de raiva, mas de cautela.
Abri a boca para me desculpar novamente, mas um soluço
escapou. Passei os braços em volta de sua cintura e descansei
minha bochecha contra seu torso.
— Sinto muito, Asher. Não vou dormir. Não vou comer. Não vou
fazer nada além de recuperar pessoas para compensar...
Ele me envolveu em seus braços, enroscou seus dedos em meu
cabelo e, embora não tenha dito que eu estava perdoada, seu
abraço me fez sentir absolvida.
De repente, fiz uma careta e inclinei a cabeça para cima.
— Espere. Por que você me pediu para não ficar com raiva de
você?
Ele abaixou o queixo e seus olhos focaram em algo além do meu
ombro. Segui sua linha de visão, franzindo o nariz ao ver minhas
asas. Eu estava tão perdida em minha angústia que não o ouvi
murmurar o encantamento para fazê-las aparecer.
— Tem muitos buracos nelas?
Ele ergueu a cabeça.
— Buracos?
— Perdi muitas penas.
Seu cenho franziu.
— Eu não estou brava, Asher. Eu entendo por que você as fez
aparecer sem meu consentimento. Você estava tentando avaliar os
danos.
Seu aperto no meu cabelo aumentou.
— Celeste, eu não fiz suas asas aparecerem.
— Não? — Eu as fiz aparecer? — Já que elas estão aparentes,
pode dizer quantas penas perdi ou temos que voltar para a
associação para descobrir?
— Aheevaleh. — Ele soltou meu cabelo para acariciar o topo de
uma asa, traçando sua forma até minha coluna.
Estremeci com a sensação deliciosa e estranha. Ninguém jamais
as tocou. Eu mal tocava nelas. Sua outra mão desceu pela borda
externa da segunda asa. E outro tremor profundo percorreu minha
espinha, fazendo as hastes vibrarem.
Uma carícia, e eu já não queria que ele parasse. Que perigo.
Graças a Elysium, eu não tinha descoberto sobre isso antes, ou
teria passado muito tempo com minhas asinhas de fora.
— Elas são incríveis, Celeste. — Ele encostou a testa e o nariz
nos meus. — Você é incrível.
Queria ignorar seu elogio, mas envolvia meu ego e... bem, isso
não me deu asas, já que eu já tinha um par, mas quase me fez batê-
las.
Seus dedos desceram sobre o V invertido, e o prazer que
passou por mim foi tão potente que dei um passo para trás.
— Estamos em público. Em um corredor. O Ishim vai arrancar o
que sobrou das minhas penas.
Suas sobrancelhas se juntaram como se eu fosse o espécime
celestial mais estranho que já havia encontrado, e então se
separaram.
Desviei o olhar para o piso, esperando encontrar pelo menos
uma pena vagando lá.
— As regras não se aplicam ao apalpamento arcangélico?
Ele piscou para mim, e então uma risada explodiu de sua boca.
Não era alta e não era às minhas custas. Na verdade, eu não sabia
o porquê dele estar rindo.
Coloquei as mãos nos quadris.
— O que é tão engraçado, Seraph?
Ele emoldurou meu rosto, curvando-o ainda mais para cima.
— Acabou, levsheh. Elas estão seladas.
O sangue latejando dentro dos meus ouvidos deve ter distorcido
sua voz, porque eu acabei de ouvi-lo dizer que estava acabado. O
que era impossível.
— Enquanto você estava lá com o Jase, voltei para a
associação. — Seus polegares percorreram minhas bochechas
como se estivessem brincando de ligar os pontos com minhas
sardas. — Eu te desvinculei do banqueiro e te vinculei ao Jase.
— Você fez o quê?
Ele moveu a mandíbula de um lado para o outro.
— Sinto muito. Eu não queria tirar a decisão de suas mãos, mas
eu estava... eu estava preocupado.
Minha boca começou a se abrir.
— Eu sabia que você gostaria de passar um tempo com o cara
antes de partir, e estava voltando para dizer para você ficar à
vontade. Que ele seria seu último pecador. Mas você, a pessoa
maravilhosa que é — seus polegares pararam — você conseguiu
recuperá-lo em uma hora. Não tinha dúvidas de que você baixaria a
pontuação dele, mas achei que levaria pelo menos um ou dois dias.
Achei que teria a chance de avisá-la. De te preparar.
Levantei minhas mãos para as dele.
— Você está tremendo.
— Eu estou... minhas... elas estão... — Meus lábios começaram
a tremer tanto quanto o resto de mim. — Terminadas?
— Estão. Você terminou.
Meus cílios piscaram descontroladamente, afastando lágrima
após lágrima.
Asher franziu a testa.
— Não sei dizer se você está feliz ou com raiva agora.
— Feliz — resmunguei. — Estou feliz. Estou muito feliz. — Uma
respiração percorreu minhas vias aéreas congestionadas. —
Achei... perdi tantas penas. Pensei que... — Segurei sua nuca com
minha mão enluvada. — Eu consegui!
Estendi minhas asas e as enrolei ao nosso redor. Seu alcance
não era metade da de Asher, mas sua densidade era a mesma, tão
espessa que nos protegeu do mundo agitado ao redor.
Um sorriso lento se abriu em sua boca, carregando tanto orgulho
e amor que a emoção ameaçou sufocar minha alma. Claro, a chama
de adoração em seus olhos me fez arder, por dentro e por fora. Eu
realmente precisava aprender a controlar toda essa coisa
flamejante. O bom era que agora eu tinha uma eternidade para fazer
isso.
Uma eternidade...
Com o rosto brilhando, Asher estendeu suas lindas asas e, sem
pressa, sem... pressa nenhuma, as bordas cor de bronze se
dobraram, roçaram nas minhas roxas e as ultrapassaram.
— Você está pronta para o resto de nossas vidas,
neshahadzaleh?
— Estou — murmurei, ficando na ponta dos pés para selar
nossos lábios da mesma forma que minhas penas finalmente se
fixaram em meus ossos.
64

U ma batida fez o pincel derrapar na tela em que eu estava


trabalhando com Naya.
— Celeste, temos que ir.
— Não estou pronta.
Asher caminhou em direção ao canto da sala de arte, onde Naya
e eu estávamos agachadas. Tinta manchava nossas roupas e
provavelmente nossos rostos. Ele acariciou o topo da minha asa
direita, e eu estremeci.
— Sinto muito, levsheh. Se eu pudesse te dar mais tempo, eu
daria, mas suas asas precisam ser expostas à atmosfera Elysiana
para se prenderem adequadamente ao seu corpo.
— Tem certeza de que essa não é outra regra infundada?
— Testemunhei os efeitos de ascensões atrasadas – penas que
embaraçam, asas que arrebentam ou às vezes... não podem ser
fixadas.
Naya, que estava tentando ser corajosa desde que voltei para a
associação ontem, com as asas descobertas para todos verem,
soltou um gritinho, que se transformou em um gemido, que me deu
um soco bem no coração. Quando soltei um som semelhante, mais
como uma combinação de buzina e soluço, seus braços travaram
em volta do meu pescoço com tanta força, que ela cortou meu ar.
— Eu vou voltar. Vou encontrar um jeito, está bem, anjinho? —
sussurrei.
Ela assentiu ou talvez sua cabeça balançando fosse apenas uma
extensão de seu tremor convulsivo.
— Não cresça muito rápido.
— Não consigo controlar isso.
Sorri e inspirei seu perfume. Então me levantei, pegando-a no
colo e a carreguei por todo o caminho até o canal, murmurando um
milhão de vezes sobre o quanto eu a amava.
— Posso ganhar um abraço também, motasheh? — Asher
gentilmente soltou seus braços do meu pescoço.
Como se fosse mais um macaco do que uma criança, ela se
lançou em seus braços e umedeceu a roupa de camurça com suas
lágrimas. Ele falou baixinho em seu ouvido, então a colocou no chão
e beijou sua bochecha.
Mira abraçou a garotinha. A Ophanim de asas vermelhas nunca
havia feito isso com nenhuma outra Pluma. Em vez de ciúme, o
alívio fervilhou dentro de mim por Naya ter nossa velha professora
excêntrica em sua vida. Seu pai voltaria assim que seu julgamento
terminasse, mas até então, ela poderia se apoiar em Mira. Em
Raven também.
A amiga de Naya devia ter ficado sabendo que estávamos
saindo porque ela apareceu com Pippa no corredor, junto com um
bando de Plumas.
O cabelo quase branco de Raven caiu como leite fresco por cima
do ombro quando ela se aproximou de Naya e pegou sua mão.
— Tchau, Celeste.
Outro soluço apertou meu peito. Coloquei a palma da mão sobre
a boca para abafar, caso ele conseguisse escapar. Por que eu não
podia ser estoica como Leigh foi?
Asher deslizou seus dedos pelos meus e murmurou:
— Completar suas asas a tornou assustadoramente suave,
aheevaleh. — Seu hálito quente agitou meu cabelo comprido.
— Suave — resmunguei, batendo em seu grande bíceps.
A inspiração coletiva me fez olhar ao redor. Exceto por Naya,
que finalmente estava sorrindo, parecia que as outras me olhavam
como se eu tivesse destruído um dos anjos de quartzo no átrio.
O átrio que eu não veria novamente.
Esses corredores que eu não pisaria.
O refeitório onde eu não comeria mais.
O céu estúpido e falso que eu não iria mais olhar.
Meus lábios tremeram e o choro recomeçou. Dava para
recomeçar algo que não tinha parado?
— Espere. — Eu me afastei de Asher e caminhei em direção a
Mira, a quem abracei ferozmente. — Obrigada — sussurrei.
Seus braços demoraram a me envolver, mas acabaram me
puxando.
— Isso não é um adeus, Celeste.
— Eu sei. — Mas parecia que sim.
Ela me apertou e depois me soltou.
— Vou te visitar. — Ela sorriu. Mira. Sorriu. Que visão
inesperada. — Eu prometo.
Inspirando a madressilva, voltei para Asher, que me colocou ao
seu lado.
Asas azuis com pontas douradas tiraram minha mente da minha
nostalgia crescente. Liv sorriu para mim e deu um leve aceno de
cabeça. Um aceno que prometia que ela tinha tudo sob controle.
Essa garota que conheci no The Trap há meses não apenas aceitou
se vincular a Jase, mas também verificá-lo até que fosse sua hora
de ascender. Eu não acho que ela havia percebido a profundidade
da minha gratidão, mas um dia, ela perceberia.
Asher me afastou e me guiou para o canal. Enquanto a fumaça
lavanda enrolava ao nosso redor, ele pegou minhas mãos e inclinou
seu rosto para o meu, me transportando de um mundo para outro
com um beijo suave e prolongado.
65

— E u não estou perdida, Erel. — A voz rouca e feminina fez


minha boca se afastar da de Asher e minhas mãos abanarem a
fumaça brilhante que ainda não havia passado.
— Mimi!
Ela se virou para longe de uma sentinela vestida de branco que
estava voando, com os olhos brilhando de alegria.
— Celeste!
Ela abriu os braços, e eu caí neles enquanto novas lágrimas
escorriam sobre as que ainda não haviam secado.
— Ah, Mimi — solucei.
— Como senti sua falta, minha linda garota. Como eu senti sua
falta. — Seus braços me apertaram contra si, evitando
cuidadosamente minhas asas, e me dei conta de que ela tinha
braços, que tinha um corpo. Foi quando tudo que aprendi sobre o
mundo celestial ao longo dos anos se encaixou e me lembrei que,
uma vez que as almas chegassem em Elysium, elas poderiam
escolher a forma que quisessem.
Me afastei para ver qual forma ela havia escolhido.
— Você se parece... com você, mas...
— Mas mais jovem? — Ela ergueu uma sobrancelha finamente
arqueada. — Fiz questão de manter algumas rugas para que você
me reconhecesse.
Ela manteve algumas, é verdade, mas em vez de sessenta,
parecia duas décadas mais nova. Ela prendeu o cabelo em um
coque elegante que brilhava com um ruivo mais rico do que
qualquer tinta que ela já havia usado na Terra.
— Você pode mudar sua aparência à vontade?
— Não. Não à vontade. Estarei permanentemente presa aos
trinta e oito anos, o que achei uma idade razoável, a menos que eu
decida retornar à Terra. — O alarme deve ter sido registrado em
meu rosto, porque ela disse: — O que não tenho intenção de fazer.
Seus olhos cor de oceano me observaram das asas à bota, e o
sorriso que floresceu em seu rosto me fez estender a mão para
outro abraço. Embora eu tenha deixado um pedaço do meu coração
para trás, recuperei um pedaço perdido.
— Ma chérie — ela murmurou. — A família está quase reunida.
Meu pulso quase parou.
— Quase. — Apesar de todas as garantias de Asher de que tudo
ficaria bem, o medo me revestiu como uma película oleosa.
— Muriel, que bom te ver de novo. — A voz de Asher era tão
leve que parecia luz do sol e queimou alguns dos resíduos viscosos
que me envolviam. Infelizmente, nem todos.
— É bom te ver também, Seraph. Você me deixou preocupada
quando não voltou com notícias. Felizmente, o Tobias se lembrou da
minha velha alma.
Tobias. Claro, ela conhecia Tobias.
— Minhas mais profundas desculpas.
— Você trouxe minha Celeste, então está perdoado.
Eles sorriram um para o outro, e aquele sorriso fez meu coração
balançar de alegria. Inclinei a cabeça para cima, e enquanto eles
trocavam algumas gentilezas, absorvi meu mundo, de sua
fragrância salgada e cítrica a pedra branca brilhante, seu insondável
céu cerúleo e o iridescente Arco Perolado.
Um peso leve se estabeleceu na minha cintura e um hálito
quente em meu ouvido.
— Então, o que você acha, levsheh?
— É... celestial.
Duas criaturas peludas de cor pastel escalaram as paredes do
desfiladeiro, perseguindo uma à outra.
— Haccouls. A versão celestial dos gatos selvagens — Asher
explicou. — Eles habitam aquelas fendas salpicadas de paredes
rochosas e raramente saem do Desfiladeiro.
— Haccouls — repeti, acrescentando-a à pequena relação de
palavras em Angélico que Asher já havia me ensinado. E pensar
que, em breve, eu seria fluente.
— Tentei domesticar um — Mimi disse, chegando ao meu lado.
— Presumi que depois de domesticar o Jarod e a você, seria
moleza.
Bufando, encontrei sua mão nas dobras de sua calça azul-
marinho elegante e a agarrei com força, embora eu não pudesse
mais perdê-la para a morte... apenas para a vida, se um dia ela
mudasse de ideia sobre dar outra volta no carrossel terreno.
— Asher! — A voz de Claire ecoou pelo desfiladeiro. — Você
voltou. — Seguida por uma dúzia de Erelim, ela voou em nossa
direção com uma mancha cinza com asas lilás e cabelo loiro
encaracolado ao seu lado.
Ah, Eliza... como senti falta dela. O sonho de amarrá-la a uma
placa de quartzo e arrancar cada uma de suas penas vagou por
minha mente, abrindo um sorriso tão branco quanto as paredes
vertiginosas entrincheirando nosso alegre grupo. Especialmente
quando nem uma única pena caiu.
— Eu disse que voltaria. Não quebro minhas promessas, Claire.
— Apenas seus votos — ela respondeu em um tom de voz
agradável.
Os dedos de Mimi se apertaram, mas os de Asher, não. Eles
permaneceram apoiados no do meu quadril, protetores e gentis.
— Bem-vinda, Celeste. Você chegou na hora certa.
— Espero que você não tenha apostado contra mim.
— Anjos não apostam nem jogam. — Quando Claire pousou na
nossa frente, seu vestido de chiffon rosa enfeitado com fitas e
ilhoses de platina se enrolou em suas pernas.
— O que eles fazem para se divertir?
— Eles? — Ela inclinou a cabeça para o lado, fazendo sua tiara
de ouro brilhar contra seus cabelos negros. — Você é uma de nós
agora.
Concordei.
— É verdade.
— Você tem cem anos para se aclimatar à vida celestial. Não
tenho dúvidas de que descobrirá muitos passatempos divertidos. —
Ela fechou um pouco suas asas fúcsia, suas pontas brilhavam tão
intensamente quanto os ilhoses de seu vestido. — Ah. Daniel
chegou. Podemos proceder à remoção de suas chaves do canal.
Suas mãos, por favor, Asher.
Enquanto ele soltava o braço que estava em volta da minha
cintura, um homem de pele negra usando tiara dourada e túnica
combinando com tiras sobrepostas de couro preto, pousou ao lado
de Seraph Claire. Como Leigh, o homem possuía o tipo mais raro de
asas, inteiramente metálicas – um Verity puro. Ao contrário de
Leigh, as dele eram douradas.
— Parabéns pela sua ascensão, Celeste. — Mesmo que seu
rosto tivesse menos rugas do que o de Mimi, Daniel era um dos
Arcanjos mais antigos. Pelo menos isso eu lembrava das aulas de
história de Mira. Mais de seiscentos anos ou seriam setecentos?
Asher estendeu as mãos, com as palmas voltadas para cima.
— É realmente necessário remover a chave dele do canal,
Claire? — Daniel perguntou. — Nosso irmão voltou como prometeu
que faria.
As pontas de seu cabelo preto se levantaram na brisa com
cheiro do mar.
— Ele não estava em julgamento antes. Apenas em período
probatório.
O Arcanjo suspirou.
— Muito bem.
Claire passou a mão sobre uma das de Asher e Daniel sobre a
outra.
Segurei os dedos de Mimi com tanta força que provavelmente os
estava estrangulando até ficarem sem sangue. Ou o que quer que
corresse em suas veias. Elas sequer tinha veias? Talvez eu devesse
ter prestado mais atenção nas aulas de biologia celestial.
Duas barras apareceram entre as palmas das mãos de Asher e
seus companheiros Arcanjos, e então duas chaves douradas –
chaves de portas esculpidas e de aparência antiga – deslizaram
para fora da pele de Asher e cintilaram para Daniel e Claire. Pisquei,
não tanto pelo processo de extração, mas pelo fato de que as
chaves do canal eram chaves reais. Assim que desapareceram, os
três baixaram as mãos.
— Seu julgamento começa ao pôr do sol. Isso lhe dará tempo
para mostrar o Elysium a Celeste, ensiná-la a usar suas asas e
instalá-la no Hadashya, como tenho certeza de que você está
ansioso para fazer. — Claire recuou, estendendo suas asas para a
decolagem.
As sobrancelhas de Asher baixaram, obscurecendo seus olhos.
— Que generoso da sua parte, Claire. — Ele sorriu, mas era
mais apertado do que o cinto de Daniel. — Para fins puramente
práticos, estou informando que a Celeste não se mudará para o
Hadashya. Ela vai morar comigo no Shevaya.
A tiara de Claire brilhou ao sol Elysiano.
— No Shevaya? Ela não é sua consorte.
— Não. Ela é minha neshahadza, e almas metades estão
legalmente autorizadas a morarem juntas, a menos que essa lei
tenha sido alterada na minha ausência.
Claire pareceu ficar mais reta, mais rígida.
— Você gostaria que eu provasse ou minha palavra basta?
Claire olhou para Daniel, que já havia voado.
Suas grandes asas cintilavam como se tivessem sido banhadas
em ouro real.
— Não exijo nenhuma prova.
Os olhos cor de esmeralda de Claire semicerraram para mim.
Claro, minhas asas não brilhavam como as dela, mas eu merecia
um olhar tão condescendente? Semicerrei os olhos de volta.
— Que sorte você ter encontrado a sua alma metade. Poucos
conseguem. — Ela inclinou a cabeça para cima, bateu as asas e
disparou para o céu.
Os Erelim, que permaneceram no ar durante todo o tempo,
seguiram atrás dos dois Arcanjos como os rastos de um jato.
Apenas Eliza permaneceu, com as feições contraídas de nojo, mas
os olhos brilharam com outra coisa... desapontamento. Ela ficou
desapontada por eu ter conseguido ou por ser a alma metade de
Asher?
Asher entrou na minha frente, obscurecendo minha visão de
Eliza e me envolvendo em sua sombra.
— Hora de voar.
Mimi soltou minha mão e saiu do caminho, e então ela estava
pairando sobre mim. Meu estômago revirou, embora minhas botas
ainda estivessem firmemente plantadas no chão.
Um lento sorriso ergueu os cantos dos lábios de Asher.
— Muriel, você pode dizer a Celeste como é maravilhoso voar?
— É possivelmente a melhor coisa sobre a vida após a morte.
Perde apenas para ser capaz de conjurar qualquer comida que você
deseje. Embora nada supere a arte de cozinhar. — Quando não abri
minhas asas, ela franziu a testa. Primeiro para mim, depois para
Asher. — Celeste? O que foi, ma chérie?
— Celeste tem vertigem. — Asher falou com tanta presunção
que revirei os olhos.
Como eles ardiam… Isso me fez olhar por cima do ombro para o
canal, para os filamentos brilhantes que ainda escapavam. E pensar
que a Naya estava a um batimento de distância, e ainda assim
completamente longe do meu alcance.
Dedos seguraram meu queixo, virando meu rosto da única saída
deste mundo de quartzo e seres emplumados.
— Abra suas asas, aheevaleh.
Como se ele tivesse comandado minhas próprias asas, elas se
abriram.
Ele segurou minhas mãos e as colocou entre nossos corpos.
— Não vou te soltar.
— Tudo bem — murmurei.
— Preparada?
— Não.
Ele se inclinou e, embora Mimi estivesse esperando muito mais
alto, fora do alcance da voz, sussurrou:
— Eu realmente gostaria de mostrar meu quarto, Celeste.
Principalmente a minha cama. É redonda. Já mencionei isso?
Engoli em seco.
— Não.
— Hum. — Ele se endireitou, girando os ombros e suas asas
ondularam. — Gostaria de vê-lo?
Umedeci os lábios, sentindo o estômago apertado, em seguida
bati as asas uma vez e subi tão rápido que meus dedos foram
arrancados dos de Asher.
Ofeguei e retraí minhas asas assim que Asher gritou:
— Mantenha-as abertas.
Muito tarde. Despenquei como um objeto inanimado, mas gritei
como um muito animado. Enquanto o chão vinha em minha direção,
fechei os olhos. Ainda bem que eu não poderia morrer.
Oompf.
Dois braços fortes me arrancaram do ar e, de repente, eu estava
voando novamente.
— Estou orgulhoso do seu entusiasmo.
Eu bufei.
Ele riu baixinho.
— Agora vou deixar...
— Não! — Apertei seu pescoço.
Ele se inclinou para trás até que suas costas estivessem
paralelas ao chão e eu estivesse apoiada nele.
— Me dê suas mãos.
Cometi o erro de olhar para o arco, que parecia uma ponte de
brinquedo.
— Em breve, terei que comparecer a um Conselho e defender
minha escolha de ter salvado duas almas. Antes disso, por favor,
encha meu coração de paz e meus olhos de beleza. Me deixe te ver
voar alto, aheevaleh.
Como exatamente eu poderia resistir a tal pedido?
Especialmente quando solicitado dessa forma? Meu medo de altura
podia ser real, mas empalideceu em comparação ao meu medo do
julgamento que viria e de seu desfecho.
Respirando fundo para criar coragem, eu o deixei mexer minhas
mãos e puxá-las entre nossos corpos. Seus dedos deslizaram pelos
meus, unindo nossas mãos.
— Agora abra suas asas e não as feche até que esteja pronta
para pousar.
Bastante fácil. Eu as abri, sentindo os músculos doendo com a
estranha flexão.
— Bata uma vez. Devagar e gostoso.
— Isso parece sacana.
Um sorriso apareceu em seus lábios.
— Espero que você não dê muitas aulas de voo, Seraph.
O sorriso se transformou em algo melancólico.
— A única pessoa que ensinei a voar foi a Leigh.
— Aposto que ela pegou rápido. — Leigh era tão descontraída,
tão disposta a aprender coisas novas.
— Tão rápido quanto você tem que pegar.
— Tenho?
Asher tinha baixado um pouco mais, mas eu não, e uma fina
divisão de ar separou nossos corpos. Meus dedos agarraram os
dele, que riu novamente.
— Quantas vezes devo dizer até que você acredite? Eu não vou
te soltar. — Um fio dourado cintilou em sua mandíbula forte,
serpenteou em seus olhos que brilhavam como joias antes de
soprar para o lado. E suas asas, suas asas magníficas, tão vívidas e
brilhantes, cintilavam como a alma trancada dentro do corpo deste
homem. Uma alma que pertencia a mim. — Você está ardendo em
chamas, Celeste.
Levantei minhas asas um centímetro e depois baixei, repetindo
os movimentos, o que foi aprofundando minha confiança.
— Só quero ter certeza de que tenho a atenção do meu instrutor
de voo só para mim.
Seu rosto suavizou e seu sorriso voltou com força total.
— Achei que a visão de seu corpo nu se desfazendo fosse
espetacular, mas vê-la voar... isso é uma verdadeira beleza.
Meu coração batendo forte ameaçou sair do peito.
— É a ardência.
— É a mulher que está ardendo em chamas. — Mal batendo as
asas, ele puxou minhas mãos e meu corpo para baixo e se inclinou
para me beijar.
Levou tudo em mim, e queria dizer tudo mesmo, para me
lembrar de não dobrá-las e afundar nele, corpo, coração e alma.
66

— A h, o amor jovem — alguém murmurou em algum lugar à


minha direita. Mimi.
Eu libertei minha boca sorridente da de Asher.
— Os guias turísticos daqui são muito úteis.
Mimi riu. Asher apenas sorriu, nem um pouco triste.
Ele se abaixou novamente.
— Vou precisar me virar se você quiser fazer um tour.
Quando Asher olhou para nossas mãos, entendi que ele
precisava que eu o soltasse.
— Vou ficar bem embaixo de você, Celeste.
Olhei para o alcance das suas asas, adivinhando que voar de
mãos dadas não era uma opção.
— Está bem. — Relaxei meu aperto e enrijeci a coluna.
Uma vez que nossos dedos se soltaram, ele não se virou de
imediato. Continuou planando, inspecionando a linha do meu corpo,
a largura das minhas asas.
— Se você quiser ir mais rápido...
— Isso nunca vai acontecer.
Seus olhos brilharam com diversão.
— Só por garantia, impulsione suas asas para cima e para baixo
mais rápido. É muito parecido com nadar. Se você mantiver as asas
abertas e imóveis, irá flutuar. Se inclinar seu corpo para baixo, você
mergulhará. Para cima, vai subir.
Mordi o lábio enquanto ouvia suas instruções e as guardava. De
repente, ele dobrou suas asas e seu corpo mergulhou. Eu suspirei.
Como uma lâmina rotativa, ele girou, abriu suas asas emplumadas e
a força do movimento o levantou.
Não fui eu quem quase caiu e, ainda assim, meu sangue estava
jorrando como se eu tivesse.
— O que, em Abaddon, foi isso?
Ele esticou o pescoço até que eu pudesse ver seu perfil.
— Não queria bater em você.
— Espero que você não se importe de ser espancado, porque eu
nunca farei isso.
— Você também disse que nunca pegaria um Verity.
O Arcanjo realmente tinha acabado de fazer uma brincadeira
sexual? Na frente de Mimi? Olhei para onde ela flutuava, sem asas
e alegre.
— Não precisa corar, ma chérie. Não nasci ontem. Além disso,
aprovo seu Verity. Definitivamente, é o melhor do rebanho. — Ela
piscou, depois flutuou para mais perto e passou os dedos pelo meu
cabelo esvoaçante. — Roxo combina com você.
Olhei por cima do ombro, depois de volta para ela.
— Você sempre soube o que eu era?
— Minha alma sabia.
— Senhoras, o passeio está prestes a começar — Asher
anunciou quando dois anjos passaram por nós e, em seguida, outro
mergulhou para sair do nosso caminho.
Todos olharam. Imaginei que o Arcanjo passear com uma híbrida
e uma alma humana era uma visão estranha.
— Precisamos voar um pouco mais baixo. Acha que pode fazer
isso?
Respirei fundo, olhando para um lago pontilhado com lírios
d'água iridescentes e sete colossos alados lançando água de suas
mãos abertas. Achei que se houvesse um lugar para testar minhas
habilidades de paraquedismo, acima da água seria o ideal.
Engolindo meus nervosismo, dei uma espécie de nado de peito.
— Você precisa puxar suas asas, Celeste. Só um pouco.
— Quanto é um pouco? — perguntei.
— Você vai sentir. E quando seu corpo começar a se inclinar,
faça o que fizer, não as estique, ou você vai subir.
Certo. Sem me alongar. Checado. Recuei um centímetro e
depois outro. Quando meu corpo começou a inclinar, o instinto de
abrir as asas era muito forte, mas lutei, e então eu estava
mergulhando, e Asher estava dizendo:
— É isso! — Mimi estava me acompanhando, e eu tive a mais
rápida compreensão de que estava suspensa sozinha no ar e,
embora definitivamente houvesse algum surto acontecendo em uma
parte do meu cérebro, em outra parte, havia comemoração, porque
eu estava voando!
Eu ri.
— Asher, estou voando.
— Estou vendo, levsheh. — Ele desviou para o lado e estava
olhando para mim com aquela mistura inebriante de amor e orgulho.
— Agora pressione suas asas de volta lentamente.
Segui suas instruções e meu corpo se estabilizou.
Surpreendente. Isso era incrível.
— Como está o enjoo?
— Bem. Por quê? Oh. — Pisquei para a expansão prateada
abaixo, para as estátuas de anjos tão altas que devo ter parecido
um pardal ao lado delas. Lentamente, meus lábios se esticaram em
um sorriso. — Se foi!
— Presumi.
Quando Mimi perguntou o que havia acontecido, contei a ela
sobre meu enjoo. E então fiquei quieta enquanto Asher apontava
vários marcos, começando com a fonte abaixo de nós – o Lev – o
coração da capital. Claro que teria uma fonte aqui. E é claro que
seria descomunal. O que brilhava dentro não era líquido, mas era
água, o tipo celestial – ayim – gasoso em vez de líquido.
Ao redor da fonte se estendia uma parede de quartzo em forma
de ferradura pela qual desciam sete cachoeiras. Aberturas
semelhantes a janelas salientes foram esculpidas na rocha.
— Moro lá embaixo. Ao lado do restaurante com as mesas de
ouro maciço. — Mimi gesticulou para a camada mais baixa da
rocha. — O Neshamaya. É o bairro da alma, também chamado de
Kefimya, que significa bairro divertido em Angélico. Ele faz jus ao
nome. É onde todos os anjos mais novos passam suas noites.
Especialmente porque eles vivem bem acima do Kefimya, no
Hadashya.
Onde eu deveria morar.
Asher não estava mais voando embaixo de mim, mas ao meu
lado. Muito longe para tocar com minhas mãos, mas de vez em
quando, a ponta de sua asa roçava a minha.
— O terceiro nível é o Yashanya, onde os anjos mais velhos
residem até que decidam se retirar para as Montanhas do Nirvana
que circundam o Mar do Nirvana.
— E onde é sua residência, Seraph?
— Nossa. — Outro roçar de suas asas.
Dei um sorriso para ele.
— E onde é a nossa residência?
— Acima do Emtsaya.
— O Emtsaya?
— Onde os anjos são classificados por chamado e treinados.
— Você decidiu o que vai se tornar, Celeste? — Mimi perguntou.
— Eu estava pensando... — Umedeci os lábios. — Ophanim.
Asher desviou um pouco como se minha revelação o tivesse
atingido.
— Ophanim?
Mimi deu um tapinha no meu pulso.
— Você será uma professora maravilhosa. Não concorda,
Asher?
— Acredito que a Celeste será maravilhosa em tudo que ela
quiser fazer.
— Muito tendencioso?
— De jeito nenhum.
— Bem, vou me retirar um pouco e deixar vocês dois
descansarem. Te vejo no desfiladeiro. — Mimi olhou para Asher. —
Estarei lá antes do pôr do sol.
— Obrigado, Mimi.
— Não. Obrigada a você. — Ela segurou minha bochecha e senti
sua pele macia em vez de áspera pelo tempo e pela água da louça.
— Vejo você mais tarde, mon amour. — Com os olhos brilhando
como lápis-lazúli polido, ela baixou a mão e depois o corpo,
vagando como uma flor de dente-de-leão em direção às margens da
fonte antes de deslizar por uma trincheira entre duas cachoeiras.
Sem nem perceber, meu corpo ficou vertical e balançava,
pisando no ar.
Asher apareceu na minha frente, com as pontas cor de bronze
de suas penas e cabelos dourados refratando cada partícula de luz
do Elysium, fazendo-o parecer como se tivesse sido mergulhado no
sol.
— Pronta para ver aquela cama de que eu estava falando?
— Está se referindo àquela redonda?
Ele sorriu devagar e então o sorriso se alargou. Como ele
poderia exalar tanta alegria quando tanto estava em jogo? A
confiança fazia parte de seu caráter, mas ele não estava nem um
pouco ansioso? Ele passou o polegar pela minha testa,
provavelmente para suavizar uma ruga.
— Se eu soubesse que o formato da minha cama causaria tanta
ansiedade, teria pedido para fazer uma quadrada.
— Não é a cama.
— Eu sei. — Ele enroscou seus dedos nos meus e me puxou até
que meu corpo esbarrou no dele. — Confia em mim?
— Com minha alma.
— Então confie que tenho tudo sob controle. — Ele beijou meus
dedos antes de se soltar e afundar debaixo de mim. Como
nadadores sincronizados, subimos em direção ao topo do penhasco
em forma de ferradura, de onde se erguia um edifício de quartzo de
sete pontas.
A estrutura pendia no topo do ayim esfumaçado como uma
estrela solta, o ponto mais alto da capital, mas não de Elysium. As
montanhas além do Mar do Nirvana alcançavam tão alto que seus
picos perfuravam as nuvens finas.
Graças a Mimi, pude viajar para muitos lugares exóticos na
Terra, mas nunca tinha visto nada como aqui. Este reino de fumaça
prateada, quartzo cintilante e céu cobalto pontilhado por penas
extravagantes.
Asher deslizou embaixo de mim, de cabeça para baixo
novamente, e pegou minhas mãos.
— Venha. Vou te ensinar a pousar. O segredo é descer o mais
baixo possível na horizontal e, em seguida, puxar o corpo para cima,
para que os pés toquem primeiro.
— Parece que vou estourar muitas rótulas.
Ele deu uma risadinha.
— Seus joelhos ficarão bem. — Não devo ter parecido
convencida, porque ele acrescentou: — É intuitivo. Você vai ver.
E eu vi. Foi menos assustador do que minha mente evocou
durante sua explicação. Admito, porém, que ele segurou minhas
mãos durante todo o processo.
— Cada um desses triângulos alongados é uma morada de
Seraphim.
— Como você sabe qual é de quem? Todos parecem iguais.
Depois de fechar nossas asas, ele me puxou em direção ao
centro da estrela – um anfiteatro. No centro ardia uma fogueira
cercada por sete tronos. Embora todos fossem esculpidos na
mesma pedra leitosa, cada assento trazia uma letra dourada
diferente. Um A brilhava no trono mais próximo de onde estávamos.
— Efetivo. Então, como vamos entrar em sua casa de formato
estranho com sua cama de formato estranho?
Asher sorriu.
— Temos que descer para o deck que envolve o lugar.
— E como nós...
Minha frase morreu em uma exalação sibilante quando Asher
saltou do telhado espelhado, rebocando meu corpo com o dele.
Aterrissamos no convés de quartzo.
— Alternativamente, você pode voar para baixo.
Meu pulso estava batendo no pescoço muito rápido para eu
gritar com ele que eu preferia muito o método alternativo. Enquanto
me endireitava, testando para ver se tinha ossos quebrados –
surpreendentemente tudo parecia no lugar, além do meu coração
que estava alojado na garganta – me vi olhando para uma porta de
ouro maciça emoldurada por flores pesadas em forma de glicínia,
mas iridescente como os lírios da fonte.
Assim como no trono lá embaixo, um A estava gravado no centro
de uma estrela de sete pontas que se estendia de ponta a ponta da
porta. Enquanto Asher a abria, passei os dedos ao longo do entalhe,
maravilhada com a sutileza do trabalho, mas fui distraída pelo
espaço brilhante que se abria diante de mim. Como Asher havia
avisado, uma cama redonda estava embutida no chão de quartzo,
coberta com seda cinza e travesseiros de cetim, variando de
esmeralda a ametista.
Estiquei o pescoço, percebendo que o teto era na verdade um
espelho meio prateado. Asher pressionou a mão contra a base da
minha coluna, me guiando por uma das paredes cônicas e na ponta
da estrela havia um banheiro com uma banheira tão grande quanto
a cama.
— Um apartamento chique de solteiro, Seraph. Espero que você
não o tenha mostrado para muitas garotas.
Ele passou o dedo na parede e a mesma água prateada que
enchia a fonte do Lev começou a subir do fundo da banheira.
— Há vinte anos, estou esperando por você, Celeste.
— Desde o meu nascimento — murmurei.
— Minha alma deve ter sentido a existência de sua outra
metade.
Falacioso, mas muito romântico.
Ele colocou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
— Faça suas asas desaparecerem com magia, Celeste.
— Já está cansado de vê-las?
— Cansado? Nunca. — Asher abriu um sorriso tão sensual que
desacelerou meu pulso. — Quero você nua, e só depois quero você
alada. — Ele já tinha desaparecido com a sua, junto com a túnica de
camurça e botas. A calça foi tirada antes mesmo de eu descartar
minha jaqueta favorita e abrir o zíper das minhas botas.
Com os músculos ondulando como uma armadura polida, ele me
despiu até que fiquei nua como no dia em que fui expulsa do ventre
de minha mãe, exceto pelos dezesseis anéis que brilhavam sempre
em meus dedos.
— Traga as asas de volta, levsheh.
Elas pularam de seus ossos. Enquanto seus braços enlaçavam
minha cintura, sua boca alcançou meu pescoço, depositando beijos
que me fizeram inclinar a cabeça para trás. Meus olhos começaram
a se fechar, mas então vi uma meada de anjos voando sobre onde
estávamos. Meu corpo deve ter travado, porque Asher parou.
— Eles não podem ver aqui dentro, Celeste. Nem mesmo à
noite, quando o céu escurece e o quartzo brilha.
Murmurei de alívio e depois de novo quando suas mãos
acariciaram o V invertido na base das minhas asas. Embora suas
mãos não estivessem perto do meu núcleo, ele aqueceu como se
Asher tivesse posto fogo.
Mantendo uma mão naquele delicioso v emplumado, ele deslizou
a outra por baixo da minha bunda e me levantou. Envolvi as pernas
em sua cintura e o encaixei dentro de mim. Quando sua ereção me
penetrou, suas carícias aceleraram. Do nada, um orgasmo explodiu
com tanto poder que agarrei seus ombros e gritei seu nome para
que todo Elysium ouvisse.
Santa. Pluma. O que havia de errado comigo? Eu tive este ponto
V por uma década e nunca o explorei? Esse foi o meu último
pensamento lúcido antes de outro orgasmo me atingir com força. Eu
não tinha certeza se tinha vindo do meu clitóris ou das minhas asas,
mas caramba, encheu minha visão com fogos de artifício
Segurei o rosto firme de Asher e o puxei contra o meu, unindo
nossos lábios assim como nossos corpos. Gemidos escaparam de
sua boca enquanto seus quadris se moviam mais rápido e seus
dedos se tornaram quase desajeitados antes de cair das minhas
asas para segurar minha bunda, levantando-a antes de me estocar
profundamente.
Meu corpo pulsava ao redor de seu comprimento duro como aço,
vibrando com seus grunhidos roucos e, em seguida, se tornando
escorregadio com o jato de calor que jorrou para fora dele e dentro
de mim com tanta violência que sua força me empurrou direto para
um novo precipício de prazer.
67

A sher e eu passamos a tarde batizando cada centímetro de


sua casa, do chão ao teto. Sim. Teto. Embora eu não tenha
feito objeções, presumi que ele estava usando o sexo para
nos distrair.
Quando o sol começou a desaparecer por trás dos picos do
Nirvana, tirei meu corpo dolorido do colchão que parecia uma
nuvem para caçar minhas roupas.
— Aqui. — Asher abriu um dos armários ao longo da parede
cônica, revelando uma fila elegante de roupas que variava de peles
a sedas, vestidos a calças, simples a complicadas, justas a fluídas.
— Não sabia que você gostava de se travestir, Seraph —
provoquei, passando os dedos em uma blusa bordô bordada.
Ele balançou a cabeça e sorriu, mas seu sorriso estava marcado
pela tensão, provavelmente porque o azul sobre nossas cabeças
agora estava manchado de pêssego e ouro.
— Esse lado do armário é todo seu. — Ele veio por trás de mim,
já vestido com suas roupas de camurça arcangélica e pegou um
vestido branco. — Acho que você deveria usar este. — Ele o ergueu
na minha frente.
— Para me fazer parecer mais pura?
— Não. — Ele beijou minha clavícula. — Você estava de branco
na primeira vez que nos beijamos e você estava... não há palavras
que façam justiça a sua aparência.
Uma emoção engrossou meu sangue, fazendo-o desacelerar.
— Seu desejo é uma ordem, ó grande governante.
Enquanto eu arrancava o vestido de seus dedos, ele bateu na
minha bunda de brincadeira.
Eu coloquei o vestido, o corpete escorrendo para o lugar sobre
minha pele sensível.
— Onde está sua tiara?
— Em uma gaveta.
— Não deveria estar na sua cabeça?
— Prefiro que minhas ações me definam, não meu status.
Anjos, este homem. Este homem maravilhoso e extraordinário.
Puxando meu cabelo da tira do vestido que amarrava no pescoço e
colocando minhas asas para fora novamente, eu me aproximei dele
e o puxei para um beijo.
Uma ária soou ao nosso redor, doce e comovente. No começo,
pensei que estava tocando na minha cabeça, mas quando ficou
mais alto, estiquei o pescoço. Liderados por uma dúzia de pardais
com asas de arco-íris, um enxame de Erelim voou sobre o teto de
vidro com as inconfundíveis asas fúcsia de Claire e as douradas de
Daniel no meio. Achei que os outros quatro anjos que não estavam
vestidos de branco eram os membros restantes do Conselho.
— Hora de ir. — A voz profunda de Asher parecia ter ficado mais
rouca. Apesar de toda a sua confiança, seus nervos deviam estar
levando a melhor sobre ele. — Preparada?
Não.
Ele estava?

O D do Julgamento estava cheio de anjos. Alguns no


ar, outros em pé, mas todos vestidos com roupas tão elegantes que
você pensaria que estavam participando de um baile de gala.
Quando nos aproximamos do desfiladeiro, pescoços esticaram,
cabeças inclinaram, penas agitaram e vozes abafaram. Os seis
Arcanjos estavam alinhados abaixo do Arco Perolado, a coroa
dourada que Asher se recusava a usar brilhando no topo de suas
cabeças inclinadas. Suas asas estavam bem fechadas, as mãos
cruzadas na frente de seus corpos e suas expressões solenes como
se fossem parte de um cortejo fúnebre.
Mesmo que Asher parecesse não se importar com a melancolia
deles, minha pele se arrepiou. Na verdade, eu estava tão perplexa
que estraguei majestosamente minha aterrissagem, batendo direto
nas asas do meu amado que se retraiam. Felizmente, não o
derrubei, só eu caí. Com os ouvidos zumbindo, mal registrei as
risadinhas no início. Mas então eu as ouvi e, em vez de corar, sorri
de forma depreciativa, feliz por ter animado a multidão deprimente.
Asher me ajudou a ficar de pé e vi a preocupação passar por sua
expressão.
— Você está bem?
— Meu traseiro imortal está, Seraph.
Grunhindo, ele tirou uma mecha de cabelo dos meus olhos.
— Fique com a Muriel. — Ele inclinou a cabeça para a direita,
em direção ao local onde Mimi estava desviando da multidão de
corpos sem asas, em vez de tentar voar através da horda mais
densa de corpos pairando.
A expressão dela se alarmou.
— Deixe-a comigo, Seraph.
Ele me entregou aos cuidados de Mimi, então me beijou de
forma casta, provocando suspiros – não costumavam fazer
demonstrações públicas de afeto por aqui? – antes de seguir em
direção aos seus colegas.
— Bela entrada, asinha. — A voz familiar fez meus ombros e
asas se contraírem.
Sem olhar, descartei Eve com a mão. Achei que ela tivesse
entendido a mensagem, mas, de repente, ela estava bem ao meu
lado, sorrindo.
Rindo. Pra. Pluma.
— Achou que eu estava fazendo sinal para te chamar? —
perguntei.
— Quanto tempo tem? Quatro anos? Cinco?
— Não o suficiente.
Seu sorriso se alargou, empurrando as maçãs do rosto já
salientes.
— Está prestes a começar — Mimi comentou, pondo fim à
reunião inimiga.
O olhar de Eve foi para Muriel, para sua mão em volta do meu
braço em apoio e carinho. Mesmo que o ar estivesse tão agradável
quanto o da associação, eu estremeci.
— Silêncio. Silêncio. — A voz de Claire ressoou contra o quartzo
em chamas, amplificado pela forma do desfiladeiro. — Como todos
devem ter ouvido, Seraph Asher foi colocado em período probatório
há dois meses por negligenciar seus deveres como arcanjo a fim de
ajudar uma Pluma. No mês passado, lhe mostramos clemência e
permitimos que ele voltasse para a Terra, porque a Pluma em
questão — ela gesticulou para mim, e todos os olhos se voltaram
em minha direção — se encontrou em extrema necessidade de
resgate.
Uau... ela poderia me fazer soar mais como a donzela em
perigo? Eu estava aflita, mas também envergonhada por ela por
transformar minha situação em um espetáculo.
— Ouvi dizer que você se vinculou a Barbara Hudson. — Eve
manteve a voz baixa. — Não consigo decidir se você é destemida
ou imprudente. Todo mundo sabe que se vincular àquela açougueira
é um enorme não-não.
— O Ishim deveria ter rotulado melhor o pecado dela. — Não
estremecia mais com a memória, mas meus ossos ainda esfriavam.
— Advogada era enganoso.
Claire continuou:
— Embora o Seraph Asher tenha prometido retornar assim que
ela estivesse segura, ele permaneceu na Terra por mais um mês,
até que sua protegida conseguisse ascender, deixando a nós seis
para supervisionarmos seus deveres celestiais.
Eve assoprou um pouco de ar.
— Ela pode ser mais dramática?
Olhei de esguelha para a filha da Arcanjo. No típico estilo
celestial, Claire não esteve muito presente na vida de Eve, mas
imaginei que uma vez que ela tivesse ascendido, as duas teriam se
reconectado devido às personalidades de víboras e insípidas
complementares.
— No final, o nosso irmão cumpriu a sua palavra de voltar, por
isso, o Conselho, votamos por perdoar sua negligência. Porém... —
Claire deixou sua voz sumir.
Asher estava de costas para mim, então não pude ler sua
expressão, mas havia uma frouxidão em seus ombros, uma
flexibilidade em sua postura. Como ele podia estar relaxado? Sim,
transamos muito e muitas endorfinas ainda se espalhavam pelo meu
organismo, mas meu estômago era um buraco de cobra.
Examinei a linha de Arcanjos alados brilhantes, tentando
discernir suas expressões no brilho refratado do arco para saber
quem era amigo ou inimigo. Exceto por Daniel, que tinha um sorriso
plácido e Claire que estava claramente em busca de sangue, as
expressões dos outros eram sinistramente enigmáticas.
— No entanto — Claire repetiu e sua voz estrondosa assustou
um par de pardais cantando no poleiro de madrepérola. — Temos
dois assuntos para discussão. O primeiro, tenho certeza, será
tratado rapidamente. O segundo, bem, o segundo é a verdadeira
razão desta audiência pública.
Eve cruzou os braços sobre o vestido azul neon.
— A primeira questão diz respeito à decisão de Asher de
extinguir uma alma quando permitimos que ele viajasse de volta
para a Terra. Como todos sabem, os Arcanjos não têm como papel
queimar almas. Especialmente almas de Triplos, que, geralmente –
ela colocou grande ênfase na palavra, como se para preparar a
multidão para a segunda parte do julgamento – se eliminam. Mas
este Triplo torturou a protegida de Asher, então sua reação não foi
incongruente por si...
— A alma de Barbara Hudson estava pútrida, Claire. Quantas
vezes debatemos para removê-la do sistema de classificação das
Associações? Se não me falha a memória, Gideon tocou no assunto
novamente no ano passado. — Seraph Daniel balançou o pulso em
direção ao arcanjo de cabelos claros com asas da cor de cranberry
brilhantes e que usava um macacão como o de Elvis.
— Eu não sabia que eles podiam remover pecadores
manualmente do sistema — murmurei para ninguém em particular.
Eve bufou.
— Claro que não. Os Ophanim gostam de manter tudo distinto e
vago. O privilégio da ascensão.
— Claire, se fosse a sua filha nas garras deste Triplo — se
açúcar tivesse um som, seria a voz de Gideon —, você certamente
teria feito o mesmo.
O olhar de Claire pousou em Eve.
— Você tem razão. Eu teria acabado com a vida da mulher.
— Até parece. — Eve grunhiu baixinho.
Sua voz não poderia ter chegado a Claire, mas sua expressão
sim, porque a garganta delgada de Claire se moveu.
— Achei que vocês duas se amavam — sussurrei.
— A Leigh sacrificou suas asas porque minha mãe não quis
ouvir falar de dar a Jarod uma chance de redenção. Eu nunca vou
perdoá-la por isso.
— Isso realmente não é problema, Claire — Daniel continuou. —
Mas se o Conselho deve colocar a atitude de nosso irmão em
votação, então vamos fazê-lo agora e encerrar o assunto de uma
vez por todas. Todos aqueles a favor de uma ação contra a decisão
de Asher de eliminar uma alma, que teria se eliminado em algum
momento, por favor, falem agora.
Nenhum Arcanjo – nem mesmo Claire – falou.
Fiz uma careta. Por que ela fez tanto espetáculo por essa
questão se ela estava do lado de Asher? Ela se sentiu intimidada
em absolver minha alma metade do crime dele? Sua expressão era
suave e sua postura, relaxada. Nada sobre ela falava de
intimidação. Na verdade, ela parecia satisfeita com o resultado.
Ah, anjos... isso tudo fazia parte de seu plano, a transição
perfeita para o evento principal. Sua exibição de clemência a pintou
como sensata enquanto o crime pintava Asher como cabeça quente,
um anjo que entregou a morte por um capricho.
— Agora, o ponto crucial deste julgamento. — Claire deu um
passo em direção a Asher, como um promotor se aproximando do
banco das testemunhas. — Um Ishim recentemente chamou minha
atenção para algo verdadeiramente problemático, algo que o
Conselho tem deliberado há várias semanas. — Ela fez uma pausa
dramática. — Nosso irmão salvou não um, mas dois nephilim
falecidos recentemente, transferindo suas almas nocivas para
corpos infantis, bebês que foram raptados e deixados em nossas
associações.
Isso arrancou vários suspiros.
— Com as nossas crianças — ela continuou.
O ar ficou cheio de tensão.
Daniel bateu palmas.
— Quietos por favor!
A multidão se acomodou, silenciando tão completamente que
pude ouvir o Mar do Nirvana espumando contra a costa distante do
desfiladeiro. A menos que fosse o som da minha pulsação batendo
contra meus tímpanos.
— A conduta absurda de Seraph Asher é suficiente para repudiá-
lo do Conselho, e vamos, é claro, resolver isso, mas antes de mais
nada, precisamos abordar o destino desses anjos caídos. Eu vi e
entrevistei as duas crianças, uma a quem Asher está criando como
sua filha, e a outra a quem ele confiou a Ophan Tobias de nossa
associação vienense, e a quem Ophan Tobias e seu consorte estão
criando como filho. As duas crianças de quatro anos carregam uma
quantidade alarmante de memórias de suas vidas passadas,
memórias que me preocupam pelas emoções violentas que
provocam nos dois nephilim. Sim, eles são jovens e relativamente
inofensivos, mas o que acontecerá quando eles se tornarem
adolescentes e descontarem essa violência em seus colegas? Em
seus filhos?
— Quem? — A voz de Eva estava mais leve do que a brisa
quente remexendo os longos fios de seu cabelo preto.
Ela não tinha sido informada...
— Quem? — ela repetiu, desta vez me encarando com seus
intensos olhos castanhos.
— Quem perdemos há quatro anos, Eve?
Ela franziu a testa, mas então suas sobrancelhas se ergueram.
— Leigh? Ele salvou a Leigh?
— Salvou.
— Puta merda — ela murmurou. — Caramba. — Um longo
instante se passou. — Quem é o outro?
— Jarod.
Os lábios brilhantes de Eve se abriram enquanto sua mãe
retomava o monólogo.
— Coloquei o destino das crianças em votação no Conselho,
mas como os Sete são atualmente seis, e o Conselho está dividido,
não fomos capazes de tirar uma conclusão.
O sorriso de Daniel se intensificou. Certo, eu gostava dele.
Gostava mesmo. Claramente, ele estava do lado de Naya.
— Naturalmente, Seraph Asher não pode votar sobre o assunto.
— Naturalmente — ouvi Asher repetir, o que fez com que Claire
o fuzilasse com os olhos.
Os cinco Arcanjos ao lado de Claire se moveram. Dois se
aproximaram de Daniel – Gideon, de cabelos claros, e um homem
de cabelos negros com asas verde limão com pontas douradas,
usando uniforme de camurça preta. Os outros dois babacas se
alinharam ao lado de Claire.
Uau. Eu tinha acabado de chamá-los de babacas e os ossos das
minhas asas nem arderam. Mesmo que agora não fosse a hora de
me alegrar, não pude deixar de sentir uma pontada de prazer.
— Por isso solicitamos sua ajuda. No entanto, apenas vozes
angelicais serão levadas em consideração. Não pretendemos
ofender nossos maravilhosos Neshamim, mas seu veredicto
certamente seria tendencioso, já que estamos lidando com almas
humanas. E...
— Me perdoe por interromper, Seraph Claire, mas não estamos
lidando com almas humanas. Estamos lidando com seres celestiais.
— Asher lentamente se virou para enfrentar o mar de pessoas no
desfiladeiro. — Já que meu pecado foi desmascarado, que seja
desmascarado totalmente. As almas que salvei pertenciam a Leigh,
filha de Sofia e Raphael.
Um gemido de dor soou na borda da multidão, vindo de uma
loira com penas rosas com pontas prateadas. Sofia, imaginei.
— E Jarod — Asher continuou —, filho de Mikaela, uma nephlim
que trocou suas asas para ficar com seu amante mortal. Agora,
Seraph Claire falou sobre o temperamento violento dos dois. Posso
assegurar-lhes que nenhum dos nephilim reencarnados possui uma
veia violenta. Mas vocês podem achar que sou tendencioso, e talvez
eu seja. Portanto, para tranquilizá-los, convidei os Ophanim das
associações das duas crianças para virem esta noite como
testemunhas de sua personalidade. Antes de votar, imploro que
vocês os escutem. E, por último, nenhum dos que concordaram em
testemunhar sabe da origem das crianças.
Claire bufou.
— Você realmente espera que acreditemos nisso?
Asher lançou um olhar por cima do ombro. Pelo sutil
alargamento das narinas de Claire, presumi que continha bastante
farpa.
— Não espero que você acredite em nada, Claire, mas espero
que nossos constituintes acreditem. Ophan Gabriel, poderia deixar
os Ophanim das duas associações saberem que estamos prontos
para recebê-los?
Me inclinei sobre Mimi para encontrar um dos pais de Adam
entrando no canal. Tobias também estava aqui? Procurei por ele,
mas se estava presente, não consegui localizá-lo. No fundo, eu
esperava que ele tivesse ficado com Adam.
Por um momento, a fumaça lavanda que havia saído do canal no
rastro de Gabriel se dissipou, então engrossou novamente e os
anjos que conheci apenas brevemente durante minha viagem para a
associação vienense apareceram da cavidade esculpida na parede
de rocha. Um momento depois, as Ophanim da Associação 24
saíram com Gabriel.
Procurei Mira, mas assim como Tobias, ela estava ausente, e
sua ausência aliviou meu pulso trovejante. Não acreditava que
Claire fosse capaz de entrar na associação e jogar Naya na rua,
mas ainda assim, preferia saber que ela estava com um adulto.
Alguém de pleno direito.
Asher caminhou devagar até eles, cumprimentando cada um
com palavras, exceto por Gabriel cujo ombro ele apertou.
— Ophan Gabriel, como eu, não irá falar, pois recentemente foi
informado da origem de seu filho.
O pobre Ophanim estava branco como giz.
— Claire, gostaria de interrogar os Ophanim ou eu deveria? —
Asher perguntou.
— Pode continuar. — Ela estendeu o braço em direção aos vinte
professores, cujas expressões variavam de confusão a desconcerto.
— Ophan, como vocês devem ter ouvido, fui acusado de
negligência nos últimos meses, mas os Seraphim graciosamente
votaram em me perdoar por isso. No entanto, Seraph Claire, Seraph
Hillel e Seraph Louis levantaram um novo motivo para o processo,
que afeta dois Plumas. Eu e Tobias pedimos que vocês
comparecessem, porque esses dois Plumas são nossos filhos, Naya
e Adam.
— Naya — Eve murmurou, rolando o novo nome de Leigh em
sua língua. — Amanhecer.
— O quê?
— Naya significa amanhecer em Angélico.
— Ah. — Olhei para sua expressão. Encontrei surpresa, mas
não repulsa.
— Antes de explicar o motivo pelo qual nossos filhos estão
sendo julgados esta noite, gostaria que vocês falassem sobre eles,
as personalidades e sociabilidade. E, por favor, estejam cientes de
que suas opiniões não afetarão seu trabalho nem sua posição social
em Elysium. — Essa garantia pareceu acalmar a desconfiança
deles. — Se algum de vocês quiser começar, por favor, levante-se,
em corpo e voz, para que a assembleia os ouça.
Pippa foi a primeira a bater as asas.
— Sou a guardiã das crianças, o que significa que tenho Naya
sob minha tutela desde que ela nasceu. Não tenho certeza do que
está acontecendo esta noite — seu olhar passou sobre a multidão
enquanto seus cílios batiam no ritmo de suas asas —, mas posso
garantir que ela é uma das Plumas mais doces que tive o prazer de
ensinar em minha longa carreira centurial e amada por todos os
seus pares. E eu realmente quero dizer todos eles. Vocês não
encontrarão uma única garota na Associação 24 que não tenha uma
queda por nossa pequena Naya. Até minha colega Mira, que tenta
não se apegar às Plumas, gosta da criança. Tão afeiçoada, na
verdade, que quando nosso colega veio nos buscar, ela se recusou
a deixar Naya sozinha.
— Bem, isso é... inesperado — Eve murmurou. — Não achei que
aquele morcego velho se importasse nem um pouco com a Leigh.
— Ela não é um morcego velho.
Eve franziu o cenho, mas depois o suavizou quando Ophan
Greer voou para o céu para compartilhar sua opinião – também
brilhando. E em seguida Michael, o anjo de asas azuis deu uma
guinada. Mimi pareceu se endireitar quando o anjo, que me
transportou da associação vienense de volta para Nova York, falou
de Adam com o mesmo carinho de Pippa. O orgulho exalou de
Mimi, mesmo que Michael não usasse as palavras doce ou amado,
escolhendo em vez disso, curioso e inteligente. Estava claro que o
Ophanim gostava de seu pupilo. Dois outros anjos de sua
associação se seguiram, e então o restante das minhas professoras
apresentaram suas opiniões sobre Naya. Todas elas, amáveis.
Eu não esperava que palavrões fossem falados sobre a
garotinha, mas o fato de que nada de ruim foi falado sobre nenhuma
das crianças me aliviou profundamente.
— Obrigado. Tanto pelo endosse de vocês quanto pela gentileza
para com Naya e Adam. Só posso esperar que o que estou prestes
a revelar não altere a visão de vocês a respeito de qualquer um. —
Asher esfregou a mandíbula. — Ophanim da Associação 24, há
quatro anos e meio, vocês perderam uma de suas Plumas. Ela
decidiu, depois de ascender, retornar ao mundo humano, e eu —
sua voz vacilou — queimei suas asas.
As Ophanim estavam com olhos arregalados e de bocas abertas.
— Caso vocês não tenham adivinhado, estou falando da Leigh.
Greer deu um tapa na boca e Pippa ofegou.
— A Naya é... ela é...?
— Sim. A Naya carrega a alma de Leigh dentro de si. — Asher
se virou para enfrentar a multidão Elysiana novamente, com seus
pés ainda presos ao quartzo aceso. — E antes que eu possa ser
acusado de roubo de corpo, a forma de Naya pertencia a um
natimorto, assim como a de Adam. Revivi as duas, uma vez que
guiei suas almas para dentro – almas que fiz o meu melhor para
limpar as memórias. Como qualquer Malakim pode atestar, algumas
são impossíveis de extrair sem causar danos irreparáveis. Talvez
essas sejam as memórias às quais Claire estava se referindo.
— E Adam? Quem era? — Um dos Ophanim vienenses
perguntou.
— A alma dele pertencia a um homem chamado Jarod Adler. Ele
e Leigh eram... acredito que eram almas metades. Ele foi a razão
pela qual ela abandonou nosso mundo.
Pelo canto do olho, peguei Eliza caminhando até Claire e
murmurando algo em seu ouvido. Algo que fez o olhar de Claire
vagar sobre a assembleia. Elas estavam revisando sua estratégia
ou procurando por suas próprias testemunhas?
— Claire, o palco é seu para mais questionamentos — Asher
anunciou. — A menos que você prefira que a Ish Eliza tome a
frente. Ela parece gostar muito de ser sua lacaia.
A sucção coletiva de ar foi épica, e se eu não estivesse
preocupada sobre como isso poderia prejudicar a votação esta
noite, teria sorrido. Foi o que Eve fez.
— Não gosta do animal de estimação da sua mãe? — perguntei.
— Eu nutria algumas fantasias de queimar suas sobrancelhas e
cabelos, já que meu fogo, infelizmente, não atinge penas.
— Você tentou?
— Talvez. — Ela me deu um sorriso enviesado.
Eu nunca tinha entendido a amizade de Leigh e Eve, mas talvez
Eve não fosse tão terrível. Afinal, ela parecia uma ótima juíza de
caráter. Eu daria meu veredicto final assim que ela votasse.
Claire passou um braço em volta dos ombros curvados de Eliza.
— Como você se atreve a rebaixar um dos nossos desta
maneira? Ish Eliza é uma classificadora diligente e fiel que, ao
contrário de certos anjos, nunca mostrou desrespeito por nossas
leis.
— Ish Eliza recentemente encurralou minha filha, a interrogou e
a fez chorar. — Asher rugiu, fazendo com que as asas de todos
enrijecessem. Mesmo os anjos ainda pairando pareceram quase
cair. — Sem mencionar que ela desrespeitou abertamente minha
alma metade em mais de uma ocasião, então me perdoe por não
me sentir mais compassivo no momento.
— Alma metade? — Eve ofegou, junto com um monte de gente.
Claro, isso fez com que todos se voltassem para mim. Também
fez os dedos de Mimi cravarem um pouco mais forte no meu
antebraço. Ninguém poderia se concentrar na parte mais
significativa do que ele disse? A parte sobre Eliza ser uma
majestosa vaca com a Naya?
— Bem, isso explica tudo — Eve disse.
— O quê? Você achou que ele não poderia se sentir atraído por
uma híbrida?
— Ah, não. Não duvido da atração do nosso residente mais
suave por você, mas se você não fosse sua alma metade, ele teria
sido expulso do Conselho.
Claire pediu que todos pousassem para que a votação pudesse
começar.
— E o que exatamente estamos votando? — alguém gritou.
— Ora, o desligamento das crianças de suas respectivas
associações — Claire respondeu. — Todos aqueles a favor de
repudiar os nephilim de nosso meio, se elevem. Todos aqueles a
favor de deixá-los coexistir com nossos filhos, fiquem de pé.
Mesmo que eu tivesse sentido, o golpe de suas palavras
silenciou meu coração e gelou meu sangue. Olhei para Asher, cujos
olhos já estavam nos meus.
Mimi tirou a mão do meu braço.
— Vá ficar ao lado do seu homem, ma chérie.
Pisei com cautela sobre o quartzo brilhante até chegar ao seu
lado. Ele estendeu a mão e eu a peguei, e então esticamos nossos
pescoços para ver quantos se elevariam para fazer dois inocentes
caírem.
68

C laire, Eliza e os outros dois Arcanjos foram os primeiros a se


elevar, mas muitos os seguiram.
Tantos que meus olhos começaram a arder. Isso não
poderia estar acontecendo. Eles não ouviram uma única palavra do
que os Ophanim haviam dito? Os neshamim permaneceram de pé,
mas seus votos não contavam, então, mesmo se eles se
manifestassem por solidariedade, não alteraria o destino das
crianças.
Os pés de Eve estavam no chão. Eu ficaria eternamente grata a
ela por isso.
Eternamente...
Se eles expulsassem Naya e Adam, não haveria eternidade para
Asher ou para mim. Eu não ficaria em um mundo onde julgassem as
crianças por faltas cometidas em vidas passadas.
Mesmo tentando permanecer quieta, um soluço começou a
vibrar em meu peito.
Asher soltou minha mão para envolver o braço na minha cintura
e me puxar para o seu lado.
— Vai ficar tudo bem.
— Como vai ficar tudo bem? — resmunguei. — Como?
Ele não respondeu, e seu silêncio fez meu pavor aumentar,
porque ele era minha rocha, e por toda a conversa de Mimi sobre a
areia se tornar vidro, eu não queria minha rocha pulverizada em
areia ou transformada em qualquer coisa que não fosse ele.
De repente, ouvi Tobias xingando os eleitores que pairavam, sua
voz tão rouca de emoção que fez mais lágrimas transbordarem. Eu
não tinha certeza de quando ele havia chegado, mas odiava que ele
estivesse aqui testemunhando essa crueldade gratuita, porque,
quem eram essas pessoas para julgar crianças que eles nem
conheciam?
É isso! Eu me afastei de Asher, passando as mãos por minhas
bochechas molhadas.
— Precisamos adiar essa votação. Todas as pessoas que estão
votando contra Naya e Adam precisam viajar para as associações e
conhecê-los. Se os conhecessem, não votariam a favor... de...
Seu polegar acariciou minha cintura.
— Shh. — Mesmo que suas sobrancelhas estivessem franzidas,
Asher ainda estava tentando me tranquilizar.
— Eu concordo com a Celeste. — Os olhos de Tobias estavam
vermelhos.
— Vocês que estão em pé, ainda estão indecisos? — A voz de
Claire soou bem acima de nossas cabeças.
Achei que Barbara Hudson era má, mas Claire era feita do
mesmo tecido impiedoso. Em vez de bisturis e brocas, ela torturava
com palavras e condenações.
— Filha?
Eve inclinou o pescoço para trás.
— Leigh era a minha melhor amiga e está morta por sua causa.
Sei que você me acha preguiçosa, mas tenha certeza de que esta
noite, meu corpo não está em movimento porque não me importo de
me esforçar.
Claire mordiscou os lábios e repetiu o movimento quando um
homem, que tinha os olhos castanhos de Eve e era alto, se
aproximou da jovem e colocou um braço em volta de seus ombros.
Mesmo que parecesse um pouco mais velho que ela, a semelhança
era tão impressionante que assumi que ele era seu pai, já que Eve
não tinha irmãos.
Ele nos lançou um sorriso triste que não tive força para retribuir.
Embora ele também tivesse minha gratidão, ainda havia muitos
anjos enxameando o céu e não o suficiente acumulado no
desfiladeiro.
— Bem, Seraph Asher, Elysium falou. — Embora Claire não se
regozijasse, eu ainda a odiava pelo que ela e Eliza haviam
conquistado esta noite.
Eu esperava que elas apodrecessem em Abaddon por causa
disso. Não, eu esperava que apodrecessem no mundo humano,
com duas cicatrizes em forma de lua crescente nas costas.
Os braços de Asher se apertaram em volta da minha cintura,
com os olhos tão vermelhos que suas íris brilhavam como os
letreiros de néon do The Trap e embora ele não estivesse chorando,
seu rosto estava tão desbotado quanto o quartzo abundante. Era a
aparência de um coração partido, de um homem se despedaçando.
— Esperem! — A voz de Seraph Daniel soou através do
Desfiladeiro do Julgamento, e a força de seu comando me fez pular.
— Esperem! Nem todo Elysium votou.
— Elysium todo está aqui, Daniel.
— Não. Mas estão chegando.
O canal começou a se enevoar, lançando um fluxo interminável
de cintilação e fumaça através da qual se materializaram anjo após
anjo.
— Você se esqueceu dos Ophanim — Daniel disse —, mas os
Ophanim, apesar de toda a sua conversa sobre negligência, não se
esqueceram de nosso irmão.
Milhares de anjos saíram do canal.
— Eles ao menos sabem para que se juntaram a nós? — Claire
perguntou enquanto os professores das associações se juntavam
aos outros.
— Sabem! — Gabriel estava correndo de volta para Tobias. —
Mira e eu ligamos para todas as associações para explicar o que
estava acontecendo.
— Onde está o Adam? — foram as primeiras palavras que
saíram da boca de Tobias.
— Michael desceu novamente. Eu precisava estar aqui.
Tobias agarrou a mão de seu marido da mesma forma que Asher
agarrou minha cintura, como se fosse a única coisa que os impedia
de flutuar e se afogar.
— E nós apoiamos Seraph Asher! — um punhado de Ophanim
gritou.
Alguns não resistiram. Alguns flutuaram, mas a maioria ficou no
chão.
Eu não tinha certeza de quanto tempo levou para o canal parar
de soltar fumaça cintilante e aparecerem professores, mas quando
apenas fios claros lambiam as paredes brilhantes do desfiladeiro,
Daniel falou:
— Acredito que todo Elysium está presente agora, Claire. — Ele
gesticulou para o oceano de penas coloridas enchendo o lugar. —
Gostaria que fizéssemos uma contagem de asas ou acha isso tão
desnecessário quanto David, Gideon e eu?
Claire balançou.
— No passado, os votos de Verities contavam o dobro. Não vejo
por que a votação de hoje deve ser tratada de forma diferente.
Então, sim, vamos proceder à contagem de asas.
— Você é tão odiosa — sibilei. — Eles são crianças.
— Eles são nephilim — ela grunhiu.
— Isso não está certo, Claire — seu consorte falou.
— É a lei! Quanto aos votos de Verities contados em dobro, é a
lei também.
Corri meu olhar sobre a multidão. Não precisei contar para ver
que havia tantos híbridos quanto verities, o que significava que se
os votos do último contassem o dobro...
Fechei a mão.
— Não é justo.
Um dos Seraphim que havia se elevado com ela disse:
— Claire, nós perdemos. Admita.
— Olhe em volta, Hillel. Nós ganhamos.
— Porque você não para de mudar as regras — Tobias disparou.
— Cuidado com a língua, Ophan — ela retrucou.
— Neste caso, você perdeu meu apoio. — Seraph Hillel pousou
ao nosso lado. — O que significa que o Conselho não está mais
dividido e este referendo é nulo e sem efeito.
Os cílios de Claire subiram, fazendo seus olhos parecerem
enlouquecidos.
— Você não pode mudar seu voto.
— Posso. E mudei. Conceda.
O tempo parou.
Não ousei esperar que ela tivesse deixado de lado sua vingança
e orgulho, e ainda assim, a esperança abriu caminho dentro de mim.
Acima das conversas que haviam desencadeado como
pequenas fogueiras por todo o desfiladeiro, Claire grunhiu para que
todos ouvissem:
— Embora eu ainda acredite que seja um erro que vai custar
caro ao nosso povo, deixo Naya e Adam para os Ophanim e seus
pais. Espero que eles os criem adequadamente.
Joguei os braços em volta do pescoço de Asher. Embora as
lágrimas ainda escorressem pelo meu rosto, agora eram de alegria
e não de tristeza.
Naya e Adam viveriam.
Eles teriam a chance de provar o valor de suas almas e a justiça
do que Asher fez.
A vibração estourou. Um falatório alto e feliz.
Claire desceu ao chão do desfiladeiro.
— Vocês estão estabelecendo um precedente perigoso, irmãos.
— Não é um precedente. É um experimento — Gideon, o anjo de
cabelos claros, disse. — Algo que não se repetirá até que Naya e
Adam ganhem suas asas. Esses foram os termos do nosso apoio ao
Asher. Vamos revisar a lei amanhã, os Sete. Desejo a todos uma
boa noite.
Antes que eu pudesse agradecê-lo, suas grandes asas da cor de
cranberry com as pontas douradas o carregaram para o céu
estrelado.
— A chave dele, Claire — Daniel falou.
Asher me soltou para que os dois arcanjos pudessem devolver
sua chave do canal.
Seu rosto estava repleto de tantas emoções que eu nem tinha
certeza se ele registrou o acesso ao canal lhe sendo devolvido. Ele
apenas executou os movimentos, estendeu as palmas das mãos e
absorveu os raios.
— Posso ter sua atenção por um último minuto? — A voz de
Tobias aumentou no ritmo de seu corpo. — Mesmo que as origens
de Naya e Adam não sejam mais um segredo em Elysium,
gostaríamos de preservar a inocência das crianças por mais um
tempo, evitando que o como elas passaram a existir se espalhe nas
associações. Esperamos poder contar com sua discrição sobre o
assunto.
Asher beijou minha têmpora, então dobrou as pernas para se
juntar a Tobias no céu.
— Ophanim! Pessoas de Elysium que estiveram ao meu lado
esta noite! Vocês ganharam minha gratidão eterna. — Seu timbre
era profundo, mas claro. — Obrigado por juntar suas vozes às
nossas para salvarmos nossos filhos. — O ar se agitou em torno de
suas asas, soprando mechas do meu cabelo nas minhas bochechas
úmidas. — Aos que votaram contra nós, entendemos as reservas. E
embora preferíssemos que ninguém interrogasse nossos filhos,
ficaremos felizes em organizar visitas para que vocês os conheçam.
— Outro breve silêncio ecoou por todo o desfiladeiro. — Obrigado.
— Sua voz falhou, e ele pressionou a palma da mão contra o
coração. — Obrigado.
E então ele desceu junto com Tobias. Assim que pousaram, os
dois se abraçaram.
Mimi tocou o braço de Gabriel para chamar sua atenção.
— Ainda não tivemos o prazer de nos conhecer. Eu sou a Muriel.
— Ele ergueu uma sobrancelha, o que contorceu seu rosto cansado.
— Eu era a Mimi para o Jarod.
Suas sobrancelhas se nivelaram.
— A mulher que criou nosso filho na vida passada — ele
sussurrou com reverência.
— Cuide bem dele para mim. E no dia em que ele descobrir, por
favor, diga a ele o quanto eu o amo. — Mimi sorriu. — E que o estou
esperando.
Ele assentiu.
Duas verities se aproximaram de Tobias e Asher. Quando avistei
as asas rosa e o brilho das asas totalmente metálicas, me movi em
direção à minha alma metade.
— Seraph. — As penas de Sofia tremeram como sua voz.
Asher inclinou a cabeça em direção à mãe de Leigh.
— Sofia. Rafael.
Segurei o braço de Asher, temendo que ela e o marido tivessem
vindo reivindicar Naya.
— Você salvou a nossa filha — Raphael disse.
Ela não é mais sua. Mordi o lábio para evitar que as palavras
saíssem. Vocês nem se importavam muito com ela quando ela era
de vocês.
Os tendões sob a pele de Asher se esticaram como se seus
pensamentos estivessem alinhados com os meus.
— Era o mínimo que eu podia fazer depois de condená-la.
Apertei seu braço, odiando que ele ainda se culpasse.
— Ela se condenou, Seraph — Raphael disse.
Sofia ergueu os olhos para o marido.
— Existir sem ele teria condenado sua alma, quer ela
mantivesse as asas ou não.
Encarei Asher, as linhas nítidas de seu rosto, o brilho intenso de
seus olhos, seu nariz aquilino e testa forte. Amava sua forma
corpórea, porque era o que eu podia ver, mas o amava por tudo que
não podia.
— Peço desculpas por ter impedido vocês de se divorciarem. —
Asher inspirou profundamente. — Agora que sabem que ela está
viva, se vocês ainda quiserem...
— Não. Tentamos viver vidas separadas, mas éramos mais
infelizes separados do que juntos. — Raphael apertou os dedos de
sua consorte e seus olhos brilharam. — Obrigado por salvar a alma
de nossa filha. — Ele levou os nós dos dedos de Sofia à boca e os
beijou. — Por nos salvar.
Sofia bateu piscou e seus olhos eram tão verdes quanto os de
Leigh.
— Sofia e eu também gostaríamos...
— Por favor, não me peça para não ser o pai dela. — A dor na
voz de Asher esculpiu o ar.
Os lábios de Raphael se apertaram.
Não se atreva. Não se atreva. Minhas unhas e anéis cravaram
no antebraço de Asher.
— Nunca te pediríamos isso — ele finalmente disse.
O alívio encheu meu peito, minhas asas, minha cabeça e minha
própria alma.
— Mas gostaríamos de conhecê-la. Desta vez, antes de ela
ascender.
— Não precisa dizer a ela quem somos — Sofia acrescentou.
Asher assentiu.
— Me digam quando e providenciarei a visita.
— Assim que for conveniente para você, Seraph. — As asas
prateadas de Raphael se abriram e fecharam, como um coração
batendo. — Você sabe onde nos encontrar.
Ao contrário da maioria dos anjos ali, eles caminharam, e eu
entendi o motivo assim que alcançaram a parede de rocha do lado
oposto ao canal da associação, e entraram em uma cavidade
similar. Esta, no entanto, exalava fumaça escura que subiu por seu
couro preto e asas brilhantes antes de os engolir inteiros. Me
lembrei de Leigh me dizendo que seus pais eram sentinelas do
submundo, então presumi que o canal levasse a Abaddon.
— Bem, é melhor eu ir. — Tobias segurou o ombro de Asher, que
retribuiu o gesto do amigo. — Mande notícias.
Asher sorriu, o primeiro sorriso verdadeiro desde o início do
julgamento.
— Celeste, cuide bem desse homem para mim, certo? Fique de
olho para que ele não infrinja muitas leis. Sempre estaremos ao lado
dele, mas não me importaria de um pouco de descanso primeiro.
Eu ri. Ah, como era bom rir.
— Chega de infringir leis, ele só poderá emendá-las.
Um sorriso iluminou o rosto abatido de Tobias.
— Que dupla política terrível vocês dois formarão.
— Elysium vai tremer — Gabriel acrescentou para Mimi ao seu
lado. — Para casa? Prometi ao Adam uma história muito longa para
dormir.
— Vamos contar essa história para ele. — Tobias pegou a mão
de seu marido. Antes de se virar, ele acrescentou: — Jantar na
próxima semana?
Meu sorriso desapareceu com todas as coisas que eu perderia
por estar confinada aqui.
— Em Elysium, Celeste — Tobias falou. — Jantar em Elysium.
Ah.
— Muriel, diga que você vai se juntar a nós? — Gabriel sorriu. —
Quero ouvir suas memórias de Jarod. Todas elas.
— Será um prazer.
Soltei o braço de Asher para segurar a mão dela, esta alma
extraordinária que foi mãe de dois filhos, nenhum deles biológico.
Mas a biologia não importava quando se tratava de afeto. Veja
minha mãe verdadeira.
Meu olhar desviou para o canal da associação. Ela tinha vindo
esta noite?
Depois que Tobias e Gabriel foram embora, e Mimi nos desejou
uma boa noite, Asher se virou para mim e colocou uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha. Seus dedos tocaram a minha pele, se
curvaram em volta do meu pescoço e desceram pelo tecido do meu
corpete branco.
— Vou encontrar uma maneira de você ver a Naya novamente.
Abri um leve sorriso.
— Sei que vai. Mas não era isso que eu estava pensando.
— E o que era?
— Na minha mãe. Queria saber se ela fez a viagem para nos
apoiar essa noite.
Ele inclinou a cabeça.
— Eu não a vi, mas havia muitos Ophanim. Ela pode ter vindo.
Mas ela não teria me procurado? Eu realmente não significava
absolutamente nada para ela? Naya não era minha filha, mas eu
moveria Elysium e a Terra por aquela garotinha. Decidi que não
importava. Eu já tinha família.
Sorri para Asher e, embora sua preocupação tenha demorado
um pouco para se dissipar, eventualmente seus olhos recuperaram
o brilho deslumbrante.
— Ouço a maioria das histórias de amor humanas terminar com
a frase viveram felizes para sempre. — Suas asas começaram a se
curvar ao nosso redor.
— Não temos sorte de ser anjos, então?
Seus dedos se entrelaçaram em meu cabelo e ele inclinou minha
cabeça para trás.
— E por que, neshahadzaleh?
— Porque a nossa história de amor — toquei meus lábios nos
seus — começa assim.
69

A cerimônia dos ossos das asas de Naya foi há dois dias, e


nossa filha brilhante de 13 anos já tinha saído para ganhar
suas primeiras penas.
Sim, nossa.
Minha e de Asher.
Não havia papéis formais de adoção, porque não havia
necessidade disso em nosso mundo, mas todos conheciam Naya
como a filha de Asher e Celeste. A princípio, foi estranho, mas
depois a estranheza desapareceu e eu não conseguia me imaginar
sendo outra coisa para Naya.
Especialmente depois que ela me chamou pelo nome angelical
de mamãe: Ama. A primeira vez que ela disse isso, na minha
segunda viagem de volta para a associação, chorei tanto que ela
mordeu o lábio e se desculpou. Eu a abracei, colocando sua
cabecinha loira sob meu queixo, e disse que queria que ela me
chamasse de Ama por toda a eternidade.
Após o julgamento, Asher esperou alguns meses para
apresentar a Lei do Sistema de Honra da Associação aos Sete e,
embora não tenha sido uma votação unânime, a maioria foi
favorável a ela. Surpreendentemente, Claire fez o desempate, mas
seu voto teve um custo: um erro e eu estava fora. E não fora do
canal, mas fora de Elysium e suas associações terrenas.
Eu estava convencida de que Claire havia concordado na
esperança de que eu violasse a lei. Ao me punir, ela puniria o
homem que a fez perder o respeito em Elysium, porque ela sabia
que Asher não poderia mais existir sem mim. Minha alma metade
não acreditava que Claire era tão perversa, mas ele era magnânimo
ao extremo e acreditava que cada alma angelical era redimível. Por
outro lado, eu acreditava que algumas almas – essencialmente as
de Claire e Eliza – estavam além de serem salvas.
Queimei a tinta azul que cobria meus dedos antes de pressioná-
los na placa de vidro do holo-classificador. Assim que ganhou vida,
localizei o nome de Naya.
Eu estava checando sua pontuação sem parar para ver se ela
havia terminado, o que me rendeu um olhar de reprovação de Mira.
Apesar de ela fingir que meu comportamento era absurdo e repetir
“deixe a Pluma”, toda vez que eu voltava para o refeitório onde
estava pintando a cúpula de vidro, ela passava e ficava até eu dizer:
“Ainda não”.
E então ela ficava por perto e franzia o cenho para o teto que eu
estava profanando, mas o brilho em seus olhos e a inspeção
demorada do meu mural traíam seus verdadeiros sentimentos: ela
não o odiava. Ela simplesmente se recusava a reconhecer isso por
medo de incitar outros a profanar sua associação.
O rosto angelical de Naya apareceu na tela, junto com sua
pontuação: 4.
Meu coração parou e depois retornou, batendo tão
freneticamente que pensei que teria uma parada cardíaca a
qualquer momento. Corri para fora da sala e gritei o nome de Mira.
Ela saiu depressa do escritório.
— O que foi?
— Ela conseguiu. A Naya terminou!
Mira ergueu o queixo como se a excitação estivesse abaixo dela,
mas seu silêncio me disse que estava orgulhosa. Nós nos
encaramos, e então eu saí do átrio e corri para o canal. Alguns
segundos depois, caí na associação vienense, para onde enviei
minha alma metade depois de pegá-lo tentando escapar da
associação para ir atrás de Naya esta manhã.
Por mais que Asher desejasse envolver nossa filha com uma
bolha, ela precisava aprender a andar na Terra e recuperar os
humanos por conta própria. Então, coloquei Tobias no comando de
distraí-lo até que ela voltasse para casa.
Encontrei os dois no refeitório: Tobias sentado, Asher andando
de um lado para o outro.
— Ela terminou!
— Obrigado a tudo que é angelical. — Tobias bocejou. — Nosso
Arcanjo favorito estava deixando o quartzo fino.
Asher parou no meio do caminho.
— Ela – a Naya – terminou?
— Sim, irmão. Sua linda e extraordinária filha cumpriu sua
missão de quatro pontos em menos de 36 horas. — Tobias apertou
meu ombro. — As primeiras penas dela estão crescendo enquanto
você está aqui, boquiaberto como um peixe encalhado.
Eu ri. Asher, não. Minha pobre alma metade estava chocado
demais para reagir à provocação.
— Apa? — a voz me fez dar um passo para o lado. — Posso
jogar mais uma partida de sinuca?
Observei o menino que Asher fez na mesma noite em que fez
Naya, com seu cabelo encaracolado castanho, pele em um tom
oliva e olhos verdes incisivos.
— Algum sinal dos ossos das asas?
— Estou surpreso que você esteja perguntando, Celeste. — Sua
voz ainda estava falhando, mas eu já poderia dizer que seria
profunda. — Você não conhece meus pais? Acha que meus ossos
apareceriam sem que eles fizessem um anúncio público para todas
as associações?
Eu sorri.
Ele não, mas seus olhos verdes brilharam.
— Ouvi dizer que a Naya ganhou as dela há alguns dias.
— Sim! E ela acabou de cumprir sua primeira missão.
Enquanto Naya já possuía as curvas de uma jovem, Adam ainda
era desengonçado, mas havia uma sombra de bigode em seu lábio
superior.
— Diga a ela que mandei os parabéns.
— Pode deixar.
Às vezes, eu não conseguia acreditar que eles nunca tinham se
visto, mas os Plumas não podiam viajar pelo canal até que os ossos
de suas asas se formassem e, mesmo assim, eles só podiam viajar
para associações que abrigavam anjos do mesmo sexo.
Asher, ferozmente protetor como era, esperava que as crianças
não se encontrassem até que completassem suas asas e
ascendessem para Elysium. Ele não queria nenhum dos dois
distraídos, especialmente porque temia que eles realmente fossem
almas metades, e não havia nada em nosso mundo mais
perturbador do que esse tipo de vínculo.
Tobias soltou o ombro de Asher.
— Uma partida e cama, Adamleh.
— Obrigado, Apa. — Adam saiu do refeitório.
— O que vocês dois ainda estão fazendo aqui? Vá e dê à sua
garota meus mais calorosos parabéns. — Tobias empurrou Asher.
— Ah, e Celeste, ficarei feliz em cuidar do nervosismo do Asher
novamente, mas com uma condição: se for menino, ele vai crescer
na minha associação.
Segurei minha barriga enorme quando Asher finalmente se
aproximou de mim com os olhos turquesa brilhando de alegria.
— Não sei, irmão... a associação masculina de Nova York tem
uma mesa de air hockey e uma de sinuca.
Tobias fez uma careta enquanto eu ria, e Asher encaixava seus
dedos nos meus. Em seguida, ele acariciou meu abdômen, onde
minha alma tinha aberto espaço para um novo ser. Alguém que
criamos juntos e que chegaria a qualquer momento.
— Se for um menino, ele virá para você, Tobias — prometi.
Ele piscou para mim enquanto eu levava o amor da minha vida
eterna pelos corredores de sua juventude em direção aos
corredores da minha.
Quando pousamos de volta na Associação 24, Mira estava
saindo do refeitório.
Em sua voz mais arrogante, ela disse:
— O mural de Celeste está ficando terrível, caso você esteja se
perguntando, Seraph.
Asher sorriu.
Revirei os olhos.
— Ah, Mira, você adora meu mural. — Segurando a mão de
Asher, puxei-o para o átrio assim que a porta da frente se abriu. —
Naya!
Ela pulou, aparentemente não esperando o comitê de boas-
vindas – como ela não imaginou que a esperaríamos era um
mistério.
Asher estudou a parte de rosto visível por trás das ondas
douradas de seu cabelo, caçou as profundezas aveludadas de seus
olhos de obsidiana.
— Então, motasheh? Como foi?
— Incrível. — Seus lábios se curvaram. — Acho até que posso já
ter cumprido minha missão.
— E o que te faz supor isso? — ele perguntou, fingindo que não
sabia que ela havia conseguido.
Eu queria balançar a cabeça, mas deixei que ele continuasse
com sua farsa.
— Bem, primeiramente, a Mirabelle ligou para o meio-irmão e a
madrasta antes de eu sair e pediu perdão na minha frente. Em
segundo lugar — Naya enrolou o braço para alcançar as costas —,
a menos que eu tenha pegado fiapos do sofá em que me sentei a
maior parte do dia, há algo macio crescendo bem... aqui.
Fiquei na ponta dos pés como uma criança, a palavra vitória
balançando na ponta da minha língua.
— E, por último, a Ama parece prestes a explodir, e não estou
me referindo ao bebê.
Asher me olhou de soslaio.
— Ela parece, não é? — Ele apoiou os dedos na minha cintura
inchada, recebendo uma pequena vibração em troca.
Cobri sua mão com a minha.
— Se você não contar a ela, eu conto.
O sorriso de Naya se alargou.
— Eu completei minha missão, não completei?
— Sim, Nayaleh — falei.
Nosso filho ainda não nascido cutucou a mão de Asher com
tanta força que ele não podia mais confundir a batida minúscula com
minha alma.
— Ahhhhh! — Naya girou, fazendo o cabelo se espalhar como
as lâminas de ouro que as Erelim usavam amarradas às coxas. —
Eu completei minha missão, Ophan!
— Já estava na hora, Pluma — Mira falou em um tom irritado
que não enganava mais ninguém. — Bem, vamos vê-las.
Naya se virou, com os ossos das asas saindo de sua blusa
preta. Meu olhar correu os ossos curvos em busca de penas
coloridas. Precisei dar duas olhadas demoradas para pegar os
pequenos tufos que cresciam no topo de cada osso.
Naya olhou por cima do ombro.
— Então? De que cor elas são?
Meus olhos encontraram os de Asher e depois os de Mira antes
de finalmente voltarem para os de Naya.
Seu sorriso vacilou.
— O que foi? — Ela segurou seu cabelo rebelde e o afastou do
ombro. Quando seus olhos finalmente pousaram nas novas
protuberâncias felpudas, ela respirou fundo e seu olhar se voltou
para o pai.
Em choque.
Em questão.
Em angústia.
Não tínhamos contado a Naya sobre sua origem e, o que é
surpreendente, todos os Ophanim ficaram em silêncio, mas por
quanto tempo mais poderíamos manter isso em segredo, agora que
havia manchado suas penas?
Imagino que até que as asas de Adam aparecessem, minha
teoria era pura especulação, mas se suas penas também fossem
pretas...
Asher engoliu em seco.
— Elas são magníficas, motasheh. Absolutamente magníficas.
Soltei a mão de Asher para entrelaçar meus dedos nos de Naya.
— Eu estou com muita inveja. Você fica com a minha cor favorita
enquanto eu estou presa a um tom que não combina com quase
nada do meu guarda-roupa.
Mira apertou os olhos para as penas de Naya, os cílios tremendo
de leve.
— Elas brilham.
Naya fez uma careta.
— Mas são pretas. Que, aliás, nem é uma cor.
— Sim, sim — eu disse. — É a ausência de luz. Me lembro de
você me ensinar sobre isso quando tinha quatro anos, asinhas
espertas.
— Já mencionei o quanto estou orgulhoso? — O timbre de Asher
ficou rouco de emoção. Minha alma metade estava quase
chorando? Possivelmente. Seus olhos estavam muito brilhantes, e
eu não estava queimando em chamas para ele – pela primeira vez.
— Por ganhar penas pretas? — Naya desvencilhou os dedos
dos meus para dar um abraço no pai.
— Por ganhar quatro penas em sua primeira aventura pelo
mundo.
Ela colocou a bochecha em seu peito.
— Por que elas são pretas, Apa?
Até que as penas de Adam surgissem, nossa resposta seria pura
especulação.
— Elas não são pretas, motasheh. São da cor do céu estrelado.
— Essa é uma maneira mais agradável de dizer preto — ela
murmurou. — Eu realmente queria asas de arco-íris.
— E eu queria que a sua mãe pegasse leve durante a gravidez.
Algumas coisas estão fora de nosso controle. — Ele a abraçou e
então emoldurou suas bochechas. — Mas lembre-se sempre disso,
motasheh, as penas definem quem você é, não a cor ou brilho
delas.
Ela mordeu o lábio.
— O que eu digo quando as pessoas me perguntarem por que
são pretas?
— Mande-as falar comigo.
— Estou falando sério, Apa.
— Você vai dizer, Estrela, que suas asas são pretas porque seu
pai te fez assim.
Ela abriu um sorriso.
— Vai ser assim agora? Vai passar a me chamar de Estrela em
vez de bonequinha?
— Sim. Vai ser assim. Espero que você goste.
— Como se diz em Angélico?
— Kalkohav.
Ela torceu o nariz.
— Gosto mais no meu idioma.
— Assim será então, minha querida menina. Minha estrelinha.
EPÍLOGO
ADAM

E nquanto eu bebia a cerveja, enrolei o rabo de cavalo da


minha namorada nos meus dedos. Seu cabelo era tão fino e
elegante que escorregou como seda. Eu e Emmy nos
conhecemos quando me vinculei para recuperá-la há dois meses.
Depois de completar minha missão, continuei vinculado, porque ela
era divertida. Sua mente não era particularmente fascinante, mas
seu corpo e habilidade no quarto mais do que compensavam isso.
Depois que a selecionei, meu melhor amigo, Noah, me criticou
por usar o holo-classificador como aplicativo de namoro, mas eu o
peguei mais de uma vez se demorando nos perfis de pecadoras
bonitas. Enquanto ele sempre se obrigava a ir na direção de
pessoas pouco atraentes com pontuações mais pesadas, eu
selecionava as minhas com base em critérios superficiais –
geralmente sua aparência ou pecados simples, às vezes divertidos.
Meus pais não gostavam muito do meu sistema, mas enquanto
eu ganhasse minhas penas e não perdesse muito tempo entre
missões, eles não interferiam. Mas assim que ultrapassava a marca
de um mês, era o que eles faziam. Normalmente, eles ameaçavam
pedir a Seraph Asher que escolhesse todos os meus pecadores, já
que os Seraphim todo-poderosos podiam fazer isso. Mas nunca
levei essa ameaça a sério.
O Arcanjo estava tão ocupado preparando sua filha para se
tornar a mais jovem ascendida que duvidei que ele perderia tempo
comigo. Eu ainda não conhecia a garota e já sabia tudo sobre ela:
desde a cor de suas asas – pretas como as minhas, porque nós dois
éramos o resultado de casos extraconjugais, mas brilhantes, ao
contrário das minhas – até o quanto ela era precoce – ela já tinha
ganhado mais de novecentas penas. Até ouvi sua mãe tagarelar
sobre como a voz de Naya rivalizava com os pardais da associação.
Eu estava tão cansado de ouvir sobre suas realizações que,
recentemente, quando meus pais me compararam a ela para me
motivar a melhorar minhas formas de conseguir penas, perdi a
calma e me transferi para outra associação, onde não tinha que
ouvir sobre a preciosa princesa do Arcanjo.
Mas depois de um tempo, voltei para eles. Apesar de toda a
minha irritação, eu amava demais os dois para prolongar a
infelicidade deles, e Elysium, como aqueles dois ficavam tristes
quando eu os desprezava.
No momento, eu estava me aproximando de um mês de
conclusão da minha missão, o que significava que era hora de dar
adeus a Emmy. O problema era que eu não queria ir embora. Eu
estava realmente curtindo a vida em Londres. Seu bairro era
colorido na medida certa, o pub da esquina fazia o melhor peixe
com batatas fritas e o sexo era farto.
Falando nisso...
— Vamos para casa — murmurei em seu ouvido.
Ela voltou seus olhos azuis para mim e riu, um som agitado e
estridente que me lembrou das ovelhas que se espalhavam pelo
interior da Inglaterra. Beijei sua boca para parar, deixei libras
suficientes para cobrir nossas bebidas e refeição e a levei para fora
do King's Whistle.
Enquanto eu segurava a porta aberta para ela, uma loira saiu de
um táxi preto. Meu olhar se fixou em sua bunda e depois subiu pelo
seu corpo até o rosto que espiava por trás de longos cachos
bagunçados. Ela seguiu em direção à entrada do pub, cuja porta eu
ainda estava segurando.
— Obrigada — ela disse baixinho, provavelmente imaginando
que eu estava sendo cavalheiro e a segurando para ela.
Meus pais me ensinaram boas maneiras, mas não era por isso
que eu estava agindo como um porteiro inanimado.
Eu não tinha certeza de porque estava fazendo isso.
— Adam, vamos lá — Emmy resmungou.
A loira olhou por cima do ombro enquanto tirava uma jaqueta
com asas de anjo prateadas, mas não para mim.
Para Emmy.
Fiz uma careta.
Depois de quase um minuto, seu olhar se voltou para mim, e um
pequeno sulco se formou entre suas sobrancelhas.
O que, em Abaddon, havia de errado comigo? Por que eu estava
olhando? Ela não era particularmente bonita nem nada. Quer dizer,
seu cabelo... ela não tinha escova?
A cor subiu por sua garganta e se espalhou por suas bochechas
com o meu escrutínio persistente. Então, de repente, ela perguntou:
— Emmy Rogers?
Droga, aquela voz... veludo puro.
Emmy bateu um de seus tênis brancos com impaciência.
— Sim?
— Pensei ter te reconhecido. Conversamos sobre um
apartamento que você estava alugando. — A loira passou por mim e
estendeu a mão para apertar a de Emmy. — Eu sou a Naya.
Meus dedos paralisaram na maçaneta da porta. Naya? Como a
Naya de Asher e Celeste?
Balancei a cabeça com firmeza. O que é que eu estava
pensando? Não havia só uma Naya na porcaria dos mundos.
Emmy deu uma longa olhada em Naya e um sorriso malicioso
surgiu em seus lábios.
— Eu e meu namorado estávamos voltando para lá.
Destravei meus dedos e finalmente pisei na calçada, desejando
que a porta batesse em vez de parar silenciosamente. Olhei para
Emmy até que o sorriso desaparecesse de seu rosto e então olhei
para Naya, que deu um passo para trás. A irracionalidade da minha
agressividade para com essa estranha estimulou meu
comportamento estranho.
Semicerrei os olhos.
— Qual é o seu sobrenome, Naya?
Ela colocou as mãos nos quadris.
— Moreau. Qual é o seu, Adam?
Meu coração se acalmou. Anjos não tinham sobrenomes, então
esta não poderia ser a princesa impecável do Elysium. Olhei para o
chão em busca de uma pena caída no caso de ela ter mentido.
Só havia cocô de cachorro amassado e chiclete pisoteado.
Aliviado, só os anjos sabiam o porquê, voltei a olhar para ela.
Quando alcancei seu peito, inclinei a cabeça para trás.
Minha respiração parou.
Puta.
Merda.
Fiz uma careta quando a expressão me tirou uma pena.
Seu olhar seguiu o movimento enquanto o meu traçou as asas
enroladas ao seu redor, asas que pareciam como se alguém tivesse
arrancado um pedaço do céu noturno estrelado e o encaixado em
sua espinha.
Quando seus olhos encontraram os meus, brilhantes e negros
como suas penas, murmurei:
— E então, finalmente nos encontramos.

E , A N :
ESTRELA
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AGRADECIMENTOS

Quando comecei a escrever Pluma, pretendia que fosse um livro


único, não o primeiro livro de uma série. Mas o final de Jarod e
Leigh arrasou tantos dos meus leitores beta que eu incluí aquele
epílogo, o que levou a um segundo livro.
Adorei voltar para o Elysium com Celeste e Asher, embora a
história deles tenha sido difícil de escrever. A pressão para contar
uma história de amor digna do meu primeiro casal me fez querer
desistir muitas vezes. Sem mencionar as complexidades da trama,
que tinha que mostrar não só as inúmeras missões de Celeste, mas
a batalha agonizante de Asher.
Sei que muitos de vocês esperavam encontrar Jarod e Leigh em
suas formas originais, mas essa nunca foi minha intenção. Nem
mesmo quando eu ainda estava me questionando se deveria
escrever Celestial. Saiba que Naya e Adam crescerão e se tornarão
tudo o que vocês amam em minha anja e seu pecador no livro
deles, Estrela.
Sim, estou escrevendo um terceiro livro.
E era para Pluma ser um livro único...
Obrigada aos meus leitores beta incríveis: Theresea, Katie,
Astrid, Maria. Vocês, meninas, transformaram Celestial em sua
melhor versão.
Becky Barney, esta foi nossa primeira colaboração na edição,
mas não a última.
Kate, como sempre, nada passa por seus olhos atentos.
Para minha preciosa família, amo vocês daqui ao Elysium, ou
como meus anjos diriam: Ni aheeva ta.
E por último, mas nunca menos importante, obrigada, caro leitor,
por se perder em meu mundo louco e fantástico. Eu realmente
espero que esta história tenha feito jus à sua antecessora e que
você tenha se divertido e se emocionado.

Com carinho,
Olivia
OUTROS LIVROS DA AUTORA

Série Anjos de Elysium


PLUMA
CELESTIAL
ESTRELA
SOBRE A AUTORA

A autora bestseller do USA TODAY, Olivia Wildenstein, cresceu na


cidade de Nova York e se formou em literatura na Brown University.
Depois de projetar joias por alguns anos, Wildenstein trocou suas
ferramentas pela vida de escritora, o que fazia mais sentido,
considerando seu diploma universitário.
Quando não está sentada em frente ao computador, ela está
psicanalisando todos que encontra (Sim. Todos), espionando
conversas para juntar material para seu próximo livro e tentando não
esquecer um de seus filhos na escola.
Ela tem uma leve obsessão por romance, que pode ser a razão
pela qual ela os escreve. É uma autora híbrida, com mais de uma
dúzia de histórias de amor Young Adult.

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