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LADY ESCÂNDALO

SÉRIE DAMAS DE AÇO - LIVRO 4


KARINA HEID
Copyright© 2020 Karina Heid Rocha
Todos os direitos dessa obra são exclusivos da autora.
É expressamente proibida sua distribuição ou cópia, parcial ou inteira.
Editoração: Karina Heid Rocha
Revisão: Fabiano Jucá
Capa: Larissa Chagas

Created with Vellum


Dedico esse livro a você, leitora que se apaixonou por Wilhelmine
no momento em que ela invadiu o bordel da Alemannenstrasse.
INTRODUÇÃO (E CURIOSIDADES!)

Olá, leitora! Se você chegou até aqui, acredito que leu Lady
Audácia, Lady Malícia e Lady Romance. Se sim, está familiarizada
com muitas coisas que serão faladas no livro. Se não, não deixe de
conhecer as Ladies 1, 2 e 3!
Como sempre, deixo aqui algumas informações adicionais caso
achem estranho alguns assuntos tratados no livro.

1) Sobre Wilhelmine e Alexander Friedrich


Confesso a você, leitora, que não tinha a menor pretensão de
escrever sobre os dois quando escrevi as duas primeiras ladies.
Alexander sequer existia na minha cabeça. Eu via a Wilhelmine
como alguém subitamente livre na viuvez; alguém que ainda tinha
vida para viver, e viveu. Mas quando cheguei no livro três, as coisas
mudaram. Eu quis falar dela. Então, quando comecei a escrever a
história de amor deles, senti que precisaria ser infiel ao que havia
sido escrito antes. Não conseguiria escrever se não alterasse dois
ou três pontos (pouca coisa) do que já tinha sido dito antes (o duque
parecia um homem frio — e o que acabou saindo… ai ai ). Portanto,
se algo não bater 100%, peço perdão. Eu e as betas discutimos
bastante sobre isso, e tentei entregar o melhor sem desvirtuar a
personagem e o romance.

2) Sobre o livro se passar na Alemanha de 1839


Todos nós lemos livros de época passados na Inglaterra e na
Escócia durante a Regência ou época Vitoriana, e aprendemos
como a realeza inglesa funcionava. Quando nos deparamos com a
complexa (e confusa) estrutura alemã, é normal não entender quase
nada!
Para começar, a Alemanha na época de Wilhelmine e Alexander
era uma colcha de retalhos.

Mapa: Wikipedia.
A Confederação Alemã era composta por reinos (como o de
Württemberg), ducados, grão-ducados, principados (como o de
Schaumburg—Lippe, apontado pela setinha vermelha no mapa),
cidades estado e até condados. Cada um deles tinha seus próprios
regentes, famílias de linhagem centenária que passavam suas
terras e títulos adiante de maneira bem diferente da inglesa. Vocês
imaginam a confusão que era transitar ou comercializar produtos
entre todos eles, e como brigas levavam à ameaças de anexação?
Cada um desses Estados tinha seu próprio exército, e precisava
constantemente se defender de atritos com os vizinhos.
1) Sobre os conflitos descritos na trama
O solo sob a Europa, na época, era bastante instável, e o
continente era dominada por algumas potências (o império Austro-
Húngaro ao Sul, a França ao Oeste, a Rússia ao Leste e a Prússia
na região central, toda essa extensão em azul). As alianças entre
eles estavam sempre mudando. Quando um deles se unia a outro,
os outros dois se aproximavam — e assim seguia o baile.
A tensão em Schaumburg Lippe foi inspirada em uma situação
real (algumas décadas antes, eles precisaram se armar por causa
de uma ameaças vizinha), e a dissolução do exército foi
posteriormente cogitada por causa das dívidas que isso causou.
Tento, na maioria das vezes, me ater a cada fato histórico e ser o
mais fiel possível à época e seus costumes, e só invento algo se for
absolutamente necessário e, claro, couber de certa forma ao
momento que eles viviam.
2) Um ducado poderia ser maior que um principado?
Sim (veja na imagem por exemplo do ducado de Sachsen-
Meinigen, três vezes maior que o principado de Schaumburg-Lippe
e o principado de Lichtenstein juntos). Vale lembrar, também, que
poderia haver um ducado dentro de um reino (como no caso do
ducado de Alexander), e alguns condes e duques mais ricos que
alguns príncipes.
3) Inspirações para o personagem e sobre amantes mais
conhecidas que as esposas
Na procura por personalidades da época, deparei-me com
algumas histórias muito interessantes. Alexander foi basicamente
inspirado no Conde de Schaumburg-Lippe, um nobre estrategista de
guerra que acabou treinando até mesmo o exército português. E
enquanto procurava mais personalidades curiosas, parei no
verdadeiro duque de Württemberg — o que mandou construir
Solitude — , e descobri bem mais sobre sua amante do que sua
esposa (a inspiração veio na hora rsrs)
4) Sobre coups d’état e afins…
Espero que o FBI ou a ABIN não batam na minha porta. Mas
sim, parece que a coisa não é das mais complexas :)

Obrigada a todas por estarem aqui <3

Karina
CONTENTS

Stuttgart, Dias Atuais

1
2
3
PRESENTE
5
6
7
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9
PRESENTE
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12
13
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15
PRESENTE
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PRESENTE
TEMPLATES

Agradecimentos
Outros livros da autora
Sobre mim
STUTTGART, DIAS ATUAIS

Os corredores do castelo de Solitude mantinham o glamour das


épocas áureas. Imensas janelas clareavam a galeria, e lustres
dourados adornavam tetos rebuscados. As pinturas dos antigos
duques enfeitavam as duas paredes, um rol de homens
uniformizados e imponentes em poses grandiosas e expressões
severas, retratos de uma época em que Baden-Württemberg ainda
era um reino, e aquela região, um ducado.
Franziska sempre percorria o corredor do começo. Os olhos
passeavam de quadro a quadro, fixos nos detalhes mais ínfimos. A
curva dos queixos. O tom dos cabelos. A cor dos olhos. Ela parou
na frente do mais elegante deles e inclinou a cabeça. Teria sido
aquele duque, no auge dos seus dias, a imagem da compostura que
o retrato mostrava?
A pele do homem era discretamente mais escura que a dos
outros, resultado de um casamento entre o duque anterior e uma
nobre italiana. O cabelo, preto, havia sido retratado com tanto
detalhe que chegava a brilhar. Nas pontas, cachos discretos davam
a sensação de maciez ao toque, e Fran quase podia senti-los.
Ela levou a mão até os próprios cachos que caíam como molas
sobre os ombros. Sempre se perguntou se aquele traço específico
tinha vindo dele. Pelo que os retratos mostravam, o oitavo duque de
Württemberg, Alexander, havia sido o primeiro a ter cabelos
escuros. Antes dele a grande maioria era loira e pálida, de tez
leitosa e rosada. Além do cabelo, havia também os olhos: de um
azul profundo, quase escuros, ele devia ser o único na linhagem
com aquele tom de azul.
Olhando para os lados, Fran deslizou o celular para fora do bolso
e mirou a câmera no busto coberto de medalhas. Não seria a
primeira foto do duque que roubaria, mas era a primeira depois que
melhoraram a iluminação da galeria.
— Keine Photos, bitte. — Ela ouviu a voz monocórdica do vigia
soar atrás dela antes mesmo que ouvisse o clic da câmera.
Ela olhou para trás com um sorriso amarelo. O rapazinho de
pulôver azul e crachá desbotado apontou para a placa onde uma
câmera aparecia cortada por uma faixa vermelha.
— Desculpe. — Fran voltou a enfiar o celular no bolso.
— E aí? Achou alguma coisa que ainda não tivesse visto?
A voz de Alice, misturada ao croc croc das batatinhas chips
sendo mastigadas, a fez virar. Fran balançou a cabeça fazendo que
não.
— Sua boca está suja.
Alice olhou para trás, varrendo com pressa o farelo do canto da
boca antes que o vigia reclamasse. Depois enfiou discretamente o
pacote no bolso do casaco.
Ali e Fran voltaram a olhar a imponente pintura do duque.
— Eles já desconfiam normalmente da gente. Se nos pegarem
comendo, já viu — Fran murmurou.
— Depois de dezoito visitas à Solitude, qualquer coisa que
fizermos chamará a atenção. — Ali olhou para o retrato, tirando uma
batatinha do bolso. — Alguma coisa nova? Ele parece o mesmo da
vez anterior.
Fran riu. Não havia nada de novo na pintura do antepassado
bonitão.
— Nada de novo. Só a frustração de sempre.
— Ainda acho que deveria conversar de novo com o comitê.
Invente uma história. Diga que sua avó se lembrou de algo que sua
bisavó contava. Se a duquesa realmente escrevia em diários, eles
estão em algum lugar desse castelo.
Fran entortou a boca.
— Eles não se interessam por ela. Dizem que não há provas de
que ela escrevia. Que "tudo que há para saber sobre ela está no
museu do primeiro andar".
— Bando de chatos. — Ali enfiou devagar os dedos no bolso e
roubou outra batata. — Não existe quase nada sobre ela no museu.
— A cidade de Stuttgart está bem pouco interessada em velhas
histórias. Infelizmente, eles são os donos de Solitude, agora.
O croc croc fez Fran se contrair. O vigia apareceria a qualquer
minuto para reclamar delas outra vez.
— Eu não entendo. — Fran cruzou os braços, intrigada. — Como
alguém pode não se interessar por esse mistério? Sei que ela
escrevia, está tão óbvio nas pinturas. Ela sempre aparece com um
diário ao fundo ou no colo.
Ali deu de ombros. Também não entendia.
— Hey — o vigia atrás delas disse. — É proibido comer na
galeria!
Ali puxou a amiga.
— Venha, vamos para a cafeteria. Os vigias estão insuportáveis
hoje.
Fran olhou pela última vez para a imagem do duque. Onde eles
estão, Alexander? Ela perguntou em silêncio para o antepassado
distante. Você sabia que ela escrevia, não sabia?
Onde a duquesa Wilhelmine tinha guardado aqueles diários?
Ali e Fran escolheram a mesa mais distante da cafeteria. Em
algum lugar atrás delas a máquina de expresso soltava vapor e
gorgolejava, e o cheiro aconchegante de café flutuava no ar. Grupos
de asiáticos conversavam em uma língua estrangeira na mesa ao
lado, enquanto uma turma de indianos deixava a cafeteria em
direção ao jardim coberto de neve. O tempo havia virado de repente
e o céu tinha ganhado a cor de chumbo.
— Parece que começou a nevar mais forte — Ali comentou. Fran
chegou a ouvi-la, mas os pensamentos continuavam perdidos nas
pesquisas dos últimos anos.
Franziska levou a xícara à boca, sentindo o capuccino descer
quente. Ela não entendia o mistério. Também não entendia por que
nos últimos tempos se sentia tão atraída pelo assunto. Nem mesmo
tinha descendência direta com o herdeiro do ducado — esse ramo
na família se separara do dela um século e meio atrás. Do ramo ao
qual pertencia restara apenas o nome, e mesmo assim, um bem
diferente do sobrenome inicial. Von Württemberg-Winnental havia se
transformado em algum ponto do último século em Württemberger.
Era divertido pensar que muitos anos antes, quando a Alemanha
ainda era uma colcha de retalhos formada por reinos, ducados,
principados, eleitorados e cidades-estado, alguém cujo sangue
ainda corria em suas veias caminhara por ali. Era um pensamento
tolo, mas que fazia Fran se sentir em casa entre aquelas paredes.
Uma besteira, claro. Quem se sentiria em casa tendo que pagar
uma fortuna de ingresso para entrar no castelo?
— Posso te fazer uma pergunta, Fran? — Ali amassou a sacola
de batatinhas vazia e colocou ao lado da xícara de café. — Quais
são as provas de que esses diários realmente existiram? A
administração de Solitude afirma que nada foi retirado ou
encontrado aqui. De onde vem essa certeza de que a esposa do
oitavo duque deixou diários?
— Das histórias contadas pelas mulheres da minha família —
Fran respondeu, sabendo que aquilo não podia ser considerado
uma prova. — E nos quadros em que é retratada junto com eles.
Não estou louca, Ali. A duquesa Wilhelmine escrevia.
— Acredito em você. Mas você já pensou que esses diários
podem ter sido destruídos em algum incêndio, enchente, ou terem
se perdido no tempo? Ou então, pior. — Alice riu. — Eles podem
estar recheados de tolices.
— Duvido. Mas sim, já cheguei a pensar nisso.
— Claro, qualquer tolice escrita por uma nobre do século XIX faz
parte da história, mas você fala deles como se eles contivessem
algo grandioso.
— Alguém como ela só poderia escrever sobre coisas
grandiosas — Fran rebateu, segura. Os historiadores da família
ducal nunca deram a devida importância à duquesa. Consideravam
os duques muito mais interessantes, e geralmente só sabiam uma
ou outra coisa sobre as mulheres com quem se casavam. As que
ficavam conhecidas deviam sua fama aos motivos errados — como,
por exemplo, por terem se casado com libertinos notórios, ou terem
flagrado as escapadelas do marido. Era tão difícil assim acreditar
que entre essas mulheres houve uma que pensava diferente? Que
fez coisas consideradas escandalosas para a época porque se
indignou com o tratamento destinado às mulheres?
Mas Ali não merecia a resposta que Fran reservava aos
historiadores.
— A bisavó da minha bisavó já contava sobre os feitos dela —
Fran amenizou a resposta. — Ela não era uma mulher comum, Ali.
Era digna e corajosa. Enfrentou a sociedade da época de todas as
maneiras que conseguiu. Ela merecia ser mais do que "a segunda
esposa do oitavo duque".
— Embora o duque fosse um pedaço de mau caminho. Eu não
ligaria em ser conhecida como esposa daquilo.
As duas riram.
— Até parece. Você teria enlouquecido naquela época. — Fran
terminou o capuccino e voltou a olhar para o lado de fora, onde a
neve parecia ter aumentado.
— Acha que ela escreveu mesmo os tais folhetins eróticos que
creditam a ela? — Ali perguntou.
— Os historiadores têm dúvidas quanto a isso, como têm quanto
a tudo. Mas acha que se deram ao trabalho de investigar?
— Já sei a resposta para essa pergunta.
Ali e Fran observaram o grupo de chineses pagar pelo lanche e
deixar a cafeteria em debandada a fim de pegar o último ônibus
para Stuttgart. Aos poucos anoitecia, e a neve discreta já podia ser
chamada de nevasca.
— Enfim. — Fran se levantou, juntando os pacotes vazios de
açúcar e os guardanapos usados. — Ela era uma mulher à frente de
seu tempo e eu queria poder provar. Vamos, Ali, é melhor a gente ir.
O tempo virou.
— Sabe no que pensei? — Ali olhou para a amiga. — E se os
diários não estiverem aqui? Eles podem estar escondidos em outro
castelo. A família tinha muitos.
Fran fez que não.
— Wilhelmine gostava de Solitude. Faz sentido que ela tenha
escondido eles aqui. A gente só não os encontrou.
Ali também se levantou, enrolando o cachecol ao redor do
pescoço.
— Contou para a administração sobre a sua escrivaninha? —
perguntou.
— Contei. Escrevi à comissão que eu tinha essa escrivaninha
que pertenceu a Wilhelmine. Um presente da própria duquesa para
a nora. — Fran olhou para a amiga. — Você sabe, o ramo da minha
família descende do filho mais novo dos Württemberg. Johannes, o
que era lutador e mais tarde virou empresário.
— O que não herdou nada — Alice brincou.
— Só a escrivaninha — Fran adicionou, divertida. — Mas
pergunte se a comissão me respondeu? Certamente acharam que
eu estava tentando vender uma relíquia falsa. Nem se deram ao
trabalho de me contactar.
Fran olhou para fora, com a cabeça no artefato especial.
— O móvel é fantástico, Ali. Cheio de nichos secretos. Ele só
abre com uma combinação específica de aberturas de gavetas,
você precisa ver. Ela era uma mulher esperta, a duquesa. — Fran
pausou. — Conhecia todas as câmaras secretas desse palácio.
Acha que não mandaria construir um nicho para guardar seus
segredos?
— Talvez as noras tenham ficado com esses diários. — Ali deu
de ombros. — Eram três moças da mesma família, não eram?
— Sim, as Thiessen. Das antigas indústrias Thiessen, que
fecharam depois da Segunda Guerra. Mas não acho que as noras
herdaram seus diários.
— Por quê?
— Elas teriam feito algo com eles. Passado adiante, mostrado
para o mundo. Não há nada sobre eles em lugar algum. Na verdade,
não sabemos nada sobre a duquesa porque ela — ou alguém —
escondeu tudo. O que descobri sobre Wilhelmine foi vasculhando
sozinha bibliotecas de Württemberg e do antigo principado de
Schaumburg-Lippe.
— E foi assim que você chegou à história do escândalo.
Franz assentiu, sentindo um eriçar conhecido de pelos ao
lembrar do assunto.
Jamais esperaria encontrar aquilo, e até hoje não entendia os
eventos que chacoalharam Bückeburg entre os anos de 1837 e
1839.
Fran ainda ajeitava o cachecol no pescoço quando as luzes do
fundo da cafeteria se apagaram. A funcionária parecia estar
encerrando o dia.
O escândalo envolvendo o nome de Wilhelmine von
Württemberg foi o estopim de tudo. Desde que Fran se deparara
com uma nota na antiga coluna de jornal do antigo principado,
desenvolvera um tipo de obsessão pela antepassada. Ela já
conhecia seus feitos e a admirava, mas descobrir algo sobre ela —
algo que ninguém sabia — trouxe novidade aos seus dias
tristonhos.
A notinha amarelada no canto de uma página de fofocas dizia
que no ano de 1837, dois anos antes do seu enlace com o duque,
Wilhelmine fora o pivô de um enorme escândalo. A coluna foi
discreta ao mencionar o que aconteceu, e Fran quase deixou passar
que "W.H." eram as iniciais de Wilhelmine von Hoefsted, seu nome
de solteira. A "filha de um não tão notável membro da corte", que
mais tarde se casou com um “proeminente nobre do Sul” aparecera
não menos que dez vezes no folhetim.
Die Skandal-Dame, a coluna a chamara.
Lady Escândalo.
— Ela é Lady Escândalo — Fran repetiu, tirando as luvas
acolchoadas do bolso. — Exatamente na data em que correram as
proclamas de seu casamento com o duque, a mesma coluna
publicou uma notinha dizendo que "Lady Escândalo seria agora um
termo impronunciável, já que um titulo ainda maior e mais
'escandaloso' havia sido atrelado ao nome". O que seria mais
escandaloso que o título de duquesa?
— Acho que nada — Ali ergueu os ombros, concordando. —
Uma mulher à frente do seu tempo sempre se envolveria em
escândalos.
Elas empurraram as cadeiras de volta ao lugar e levaram as
xícaras vazias até o balcão.
— É isso que me move no momento. Descobrir o que aconteceu.
— Espero que o conteúdo desses diários alegre você — Alice
disse. — Tenho medo de que ela apenas escrevesse o que se
passava no coração.
As amigas se entreolharam. O questionamento era inocente,
mas importante. E se a grande busca da vida de Franziska
culminasse na descoberta de diários repletos de sentimentos? Nada
importante, nada escandaloso, nada grandioso?
Fran não sabia como reagiria.
— Estamos fechando — a funcionária avisou do fundo da
cafeteria. — Acabei de ouvir o alerta de que a nevasca irá piorar.
Franz e Ali agradeceram. Elas abotoaram os botões do casaco e
recolocaram os gorros. Mal conseguiam ver os jardins devido à
neve, e nenhuma delas estava particularmente animada para correr
até o carro.
Enquanto caminhavam para a saída principal, Fran pensou pela
última vez na duquesa. Será que algum dia descobriria o que a
levara às páginas de fofocas dos jornais? E mais: como a filha de
um visconde sem importância, com a reputação em frangalhos,
acabaria desposando um duque tão importante?
Seja lá o que fosse, Franz descobriria. Sonhava tanto com isso
que sentia as paredes de Solitude sussurrarem a verdade: os diários
da duquesa estão aqui.
Ela só precisava de uma chance para descobrir onde.
1
BÜCKEBURG, 1839
W
que iluminavam o salão de bailes e inspirou fundo. Hora de
enfrentar o covil.
Enquanto era anunciada, lembrou-se da época em que, ainda
criança, costumava ficar extasiada com a opulência do palácio real.
Em como caminhava com o rosto para cima, tropeçando nos tapetes
enquanto tentava identificar as cenas pintadas no teto.
A sensação boa havia sido substituída por uma desagradável
náusea causada pela expectativa. No momento, os nós apertados
da barriga eram intensificados pelo cheiro morno da iluminação a
gás. Tudo naquela noite revirava seu estômago.
Ela entrou atrás da prima, a princesa de Schaumburg-Lippe.
Atrás delas, como uma sombra, vinha a condessa de Wuperthal,
acompanhante das duas jovens na temporada.
Wilhelmine mantinha o rosto erguido e as feições geladas. Os
olhos, duros, estavam nos rostos que iam se inclinando à medida
que passavam, enquanto os ouvidos tentavam se concentrar no
farfalhar da saia no chão. Infelizmente os mexericos se sobressaíam
a ele. Nem mesmo os instrumentos musicais eram capazes de
abafá-los.
— Aguente firme, Winy — Christine murmurou.
— Estou tentando — Wilhelmine respondeu.
Cada mesura dos convidados vinha acompanhada de uma
olhadela indiscreta. A princesa foi imprudente o bastante para
convidar a prima para o baile? Sim, ela foi. E para o choque de
todos, a carrancudíssima condessa de Wuperthal, conhecida por
seu gênio forte e postura ilibada, aceitara acompanhá-las. Aquilo era
uma afronta de muitas formas, e um deleite para a corte.
Era uma pena que Wilhelmine se sentisse fisicamente mal.
Queria encarar cada um daqueles rostos com bem mais atrevimento
do que apenas o descaso usual, mas mal conseguia controlar a
vontade de vomitar.
— Amanhã sequer se lembrarão de mim — Christine resmungou
girando o rosto para olhá-las. — Tudo que comentarão é sobre Winy
e seu vestido absurdamente vermelho.
— Quieta. Não é hora para mexericos — a condessa ralhou.
— Não acha irônico dizer isso para nós? — Christine olhou ao
redor, floreando um gesto irritado com as mãos. — São eles que
estão falando dela.
— Respirem fundo e continuem andando.
Respirar fundo foi a coisa que Wilhelmine mais fez nos últimos
anos. Pelo menos desde a noite fatídica, quando foi flagrada em
uma situação constrangedora nos jardins daquele mesmo castelo, e
vira sua vida virar de pernas para o ar.
Era respirar fundo ou bater a cabeça na parede.
Ou bater a cabeça de alguém na parede.
— Perto de mim, Wilhelmine — a condessa ordenou com voz de
aço. — Eu avisei que era péssima ideia vir de vermelho.
Wilhelmine sentia centenas de olhos sobre ela — cinquenta
pares de mordidinhas afiadas que machucavam-lhe os cantos, tão
cortantes que chegavam a doer. Só duvidava que aquilo tivesse a
ver com a escolha do vestido: eram os antigos rumores o motivo da
atenção. Mas se achavam que ela ia se encolher como fez anos
atrás, estavam enganados. Aquele tempo havia passado.
Ela ergueu o queixo e continuou andando.
A condessa arrumou um canto para as jovens enquanto o
imenso salão se enchia no aguardo de Phillip, irmão de Christine. O
aniversário de um ano de sua coroação havia atraído centenas de
nobres até o principado. Aquela seria a noite mais memorável da
temporada e a condessa estava disposta a varrer os rumores
nocivos para longe. Seu intuito ia além: ela arrumaria um bom
casamento não apenas para a princesa, mas também para o
problema da corte: Wilhelmine.
— Costas arqueadas, Christine — lembrou a condessa.
— Por que Wilhelmine não precisa arquear a dela? — a princesa
reclamou.
A condessa nem se deu ao trabalho de olhar para Wilhelmine.
— Wilhelmine já parece carregar uma coroa na cabeça.
— Não conseguirei andar amanhã de dor nas costas, isso sim.
— Christine projetou sem vontade o peito para a frente. Sua
constituição franzina não permitia curvar-se demais sem parecer um
arco pronto para atirar, e a ironia da comparação não fugia a
Wilhelmine. Christine era, de fato, uma pequena arma.
— "Os espartilhos estão aí para nos ajudar na postura" —
Wilhelmine cochichou no ouvido da prima só para aborrecê-la.
Christine respondeu com uma careta de socorro.
— Pois eles servem, mocinha — a condessa interrompeu o
gracejo das duas, passando discretamente as mãos pelo estômago.
— Vocês precisam lembrar um pombo — ela disse suave,
desenhando no ar uma figura que de forma alguma parecia humana.
— Busto prospectado, costas em arco, queixo para cima.
Cavalheiros não gostam de moscas mortas de ombros caídos. Nem
de damas de língua frouxa. — Ela olhou para as duas.
As duas obedeceram prontamente. Tão logo a condessa olhou
para o lado, Christine voltou a curvar as costas.
— Isso é insano. Por que deveríamos nos parecer com pombos?
— Shh. A indireta da língua frouxa foi para você, sabia? —
Wilhelmine falou.
— Sou uma moça, não uma ave. Se algum cavalheiro quiser se
casar com um pombo, que se sirva nas praças. Elas estão cheias
deles.
O leque da condessa bateu sobre a barriga de Christine, que
voltou a empinar o corpo. Em seguida, ela apontou a pequena arma
para Wilhelmine:
— Quanto à senhorita, não quero vê-la sorrindo.
Wilhelmine fechou a cara. Não tinha mesmo o direito de se
divertir. Para falar a verdade, nem queria. Com a reputação
chamuscada, arruinou todas as chances de um bom casamento,
dilacerando o coração de seu bom pai. Parecer feliz não era um
direito seu.
— Não ligue para ela — Christine disse quando a condessa
virou-se para cumprimentar o duque e a duquesa de Steinbeck. —
Você a conhece. Ela é dura, mas uma boa pessoa.
— Eu a entendo.
Nenhuma outra acompanhante teria aceitado sua presença ao
lado de Christine ou tomado seu retorno à vida social como um
projeto pessoal. A condessa de Wuperthal era o tipo de mulher que
não se dobrava a nada nem a ninguém. Embora não tivesse
perdoado os eventos que culminaram no exílio de Wilhelmine, não
aceitaria que ditassem quem ela podia ou não acompanhar. Severa
até o último fio de cabelo, a condessa casaria Wilhelmine a qualquer
custo. Com qualquer um, se precisasse.
Wilhelmine não gostava dela, mas a respeitava.
— Se quiser diminuir o tempo ao lado dela, arrume rápido um
marido — Christine suspirou.
— Não será fácil. As pessoas ainda me olham com cara feia.
— Elas não podem mudar isso. São naturalmente feias.
Wilhelmine suprimiu um sorriso.
— No mais, não acho que ainda se lembrem do ocorrido, Winy.
— Ninguém jamais esquecerá o que aconteceu — Wilhelmine
respondeu, resignada.
— Devia aproveitar seu retorno e revelar o nome do canalha que
arruinou seu bom nome. — Christine pausou. — Dos canalhas.
Nunca entendi por que os protegeu.
Wilhelmine voltou a crescer a coluna.
— Não vamos recomeçar o assunto.
— Você sobreviveu à fofoca da década. — Christine desistiu de
vez da postura altiva. — Se tivesse dito o nome dos homens que a
molestaram, você…
Wilhelmine interrompeu a prima.
— Quantas vezes precisarei explicar que não fui molestada?
Ninguém me tocou. A serpente venenosa que nos viu no jardim e
espalhou os boatos reconheceu o erro e voltou atrás. Quantas
vezes terei que repetir que nada de errado aconteceu?
Christine não gostava quando Wilhelmine a olhava daquela
forma: sobrancelhas pesadas sobre os olhos, narinas dilatadas,
maxilar trincado.
— Pare de me olhar assim — a princesa reclamou. — Você
congelaria metade da Europa com essa expressão. Algo aconteceu,
eu sei. É você quem nunca quis dizer o quê.
Wilhelmine revirou os olhos, cansada daquilo.
— E a "serpente venenosa" só voltou atrás porque papai
ameaçou impor sanções a quem cometesse perjúrio. — Christine
encostou o leque no peito da prima, desafiando seu argumento. — E
porque meu irmão reforçou a ameaça quando foi empossado. Mas
isso não impediu que você nunca mais fosse convidada para nada e
que seu bom nome caísse na lama. Você podia ter limpado seu
nome e da sua família.
— Sua língua é realmente frouxa — Wilhelmine respondeu.
— Irrito-me por você, oras! Ontem mesmo, durante o chá, a
marquesa de Bellevue-Nassau insinuou que sua companhia
prejudicaria minha temporada. Mandei-a cuidar de sua vida. Não
com toda essa gentileza, claro.
Wilhelmine olhou com o rabo de olho para a prima.
— Não foi bem assim que aconteceu, me disseram.
Christine aumentou a velocidade com que abanava o leque.
— Realmente, perdi a compostura. Disse que se um cavalheiro
deixasse de me cortejar por causa de injúrias, estaria melhor sem
ele.
—… e que de tolos, a corte já estava bastante cheia… —
Wilhelmine a estimulou com um gesto de mãos a contar o resto.
— Ah, é. Teve essa parte também.
— E foi nessa parte que sua mãe quase desmaiou…
Christine riu.
— Na verdade, foi depois. Nessa hora a marquesa rebateu que
"prudência não era tolice" — Christine fechou a boca em um
biquinho, imitando a marquesa — e eu respondi que, para quem
administra um marquesado tão próximo da França, aquelas eram
preocupações bastante frívolas.
— E aí, nessa hora, você soltou outra coisa… — a condessa a
lembrou.
— Ah, sim. Disse que o principado deveria agradecer a você
pela confirmação em massa de presença em nosso baile. Há nobres
aqui de pelo menos três reinos diferentes. Sucesso como esse
Schaumburg-Lippe nunca viu. Foi aí que mamãe quase desmaiou.
Wilhelmine inspirou fundo.
— Uma hora matará sua mãe.
Christine fez um gesto de desmerecimento com as mãos.
— Ela vem me matando de vergonha e horror há anos. Aquela
tem cordas no lugar de nervos, e um tambor oco no lugar do
coração. Dificilmente morrerá antes de mim ou Phillip.
Wilhelmine sorriu sem vontade, olhando ao redor.
— Ninguém pode acusá-la de falta de coragem, Christine.
— Acredite, acusaram-me de tudo, menos de corajosa.
Wilhelmine suspirou.
— Obrigada por me defender. Detesto ter que ser defendida tão
agressivamente por todos.
— Pare de bobeira. Sem você e o seu escândalo, o reino teria
morrido de tédio. Aliás, quero ver os reinos ao redor nos acusarem
agora de insignificância.
Mesmo sorrindo, os olhos de Wilhelmine baixaram. Tentava
constantemente dizer a si mesma que não sofria mais com o
assunto, mas lá estava a sensação pesada e oleosa no estômago
de novo. Até hoje sentia as consequências do evento infeliz.
Cavalheiros paravam de conversar quando ela passava. Seu nome
era dito baixo, entre risadas, e virara motivo de vergonha. Os que
conseguiam segurar o riso mostravam seu desprezo com o olhar.
Doía-lhe ter causado dor em seus pais e piorado os negócios da
família, já bastante ruins. Seu pai teve o nome afundado com o dela;
envelheceu décadas em poucos meses.
Se Phillip não tivesse intervindo, ela não sabia o que seria deles.
Dois rapazes uniformizados passaram por elas e um deles
ergueu o canto da boca, soltando um daqueles sorrisos maliciosos
que fazia o sangue de Wilhelmine ferver. Eles estavam por toda a
parte, mas por puro rancor gravou o rosto deles. Um dia, e ainda
não sabia quando, os faria pagar por aquilo. Faria todos pagarem.
— Ah, meu Deus. — Christine parou de agitar o leque, os olhos
fixos em um ponto do salão. — Não acredito que ele está aqui.
Wilhelmine despertou dos devaneios, voltando ao momento.
— Ele quem? — ela perguntou.
— O duque de Württemberg-Winnental. Que ousadia a dele
aparecer!
A condessa e Wilhelmine olharam para Christine.
— Por que seria ousadia do duque estar aqui? — a condessa
quis saber.
— Ele foi casado com Elsa, nossa prima — Christine respondeu.
— Que Deus a tenha. Levou a pobrezinha daqui para morrer de
tristeza no Sul.
— De tristeza? — A condessa levou a mão enluvada ao peito. —
Pobrezinha.
— Tristeza? — Wilhelmine questionou. — Elsa não morreu no
parto?
— Oras, Winy. Elsa era uma jovem romântica. O duque estava
sempre viajando e eles nunca se viam. Ela definhou até morrer.
Wilhelmine franziu o nariz.
— Imagino um camponês faminto definhando até morrer. Uma
duquesa?— Wilhelmine olhou para a frente. — Por favor.
Se havia algo que sabia sobre duquesas, era que não
definhavam.
— Wilhelmine, você é detestável — Christine falou.
— Certas mulheres definham de tristeza sim. — A condessa
levou o monóculo ao rosto para investigar o tal duque.
Wilhelmine tentou enxergar entre as cabeças o viúvo da prima,
mas como não sabia quem era, desistiu. Não chegou a conhecê-lo.
Na verdade, mal soube do noivado na época. O escândalo com o
seu nome havia acabado de estourar e ela ouviu sobre o enlace em
meio a uma névoa de agonia. A próxima coisa que ouviu sobre o
pobre casal foi que Elsa morreu ao dar à luz.
Um burburinho ao lado fez as três girarem a cabeça. Duas
senhoras abanavam-se furiosamente enquanto olhavam para o
outro lado do salão.
— Acha que ele está à procura de uma nova esposa? — uma
delas perguntou à outra sem se preocupar em abaixar a voz.
— A maioria das mães presentes espera que sim. — A outra riu.
— Embora, se estiver, poderia tentar ser mais amistoso. Quem se
aproximaria daquela carranca?
Wilhelmine escorregou os olhos até a direção em que as duas
olhavam, sem ver ninguém digno de nota.
— Não acho que as mais jovens se sintam intimidadas pela
fisionomia sombria do duque — a primeira voltou a comentar. — O
salão inteiro está em polvorosa. A trincheira entre as mães
casamenteiras e jovens viúvas já foi formada.
— Pode julgá-las? — a outra disse. — O duque é um homem no
mínimo enigmático. Experiente, rico como Midas, bem-visto em
todos os reinos do Sul e do Norte. Sua tentativa de parecer distante
só atiça as moças.
— E agora deve estar em busca de uma nova esposa. Daqui a
pouco teremos desmaios ao seu redor, anote.
— Tudo por um ducado — a senhora respondeu, encerrando o
assunto.

A C W . A
princesa olhou de cara feia para as duas senhoras, sem acreditar no
que tinha acabado de ouvir.
Ela se virou para a prima com expressão ofendida.
— Isso é um completo absurdo. Elsa mal esfriou no caixão!
— Bem, ele é um duque — Wilhelmine disse. — Em algum
momento terá que se casar novamente.
— Para matar uma segunda esposa de infelicidade? — Christine
voltou a se abanar, frustrada. — As cartas que recebi de Elsa
durante o casamento eram de chorar. Ela só reclamava dele.
Segundo rumores, ele mantinha uma amante em uma residência
perto do castelo. Que desrespeito.
A condessa de Wuperthal arregalou os olhos.
— Não confie tanto em rumores — Wilhelmine alertou. — Você
conhece a extensão dos mexericos.
— Você não leu as cartas que ela trocava com as amigas,
Wilhelmine. É verdade.
— Você leu cartas particulares da falecida duquesa? — a
condessa perguntou.
— Sim, quando fomos a Württemberg para o enterro. Estavam à
vista, qualquer um podia lê-las.
— Pois não devia ter feito isso — a senhora ralhou empertigada,
perguntando mesmo assim: — Mas já que leu, o que diziam?
— Que não foi um casamento por amor.
— Poucos são. — Wilhelmine deu de ombros.
Christine ignorou-a.
— Não gosto que ele esteja aqui como se de alguma forma
ainda pertencesse à família, entende?
— Oras, por quê?
— Ele acha que precisa aconselhar Phillip sobre as defesas do
reino. Ele era amigo e conselheiro de papai, e um dos homens de
confiança da Prússia no Sul. Mas papai se foi, e Phillip interessa-se
por outras coisas.
— Talvez ele tenha mesmo vindo atrás de uma nova esposa. —
Os olhinhos da condessa reluziram, como se ela tivesse
subitamente pensado em algo maravilhoso.
— Você não se prontificaria? — Wilhelmine encostou o ombro no
da amiga. — Você daria uma ótima duquesa.
Christine soltou um gritinho:
— Winy!
— Parem já com isso — Lady von Wuperthal disse, severa.
Então olhou para o salão e perguntou, mal escondendo o interesse:
— Quão desagradável é a fisionomia do duque?
As bochechas de Christine ficaram vermelhas.
— Não vejo a menor relevância nessa pergunta.
— Oh, querida. Não estamos falando de um conde ou um
marquês, estamos? — a condessa cantarolou. — Estamos falando
de um duque.
— Um que prefere seu regimento à esposa! — Christine
reclamou.
— Isso não faz dele menos duque.
Wilhelmine precisou tapar a boca para não rir.
— Pois não responderei à pergunta — Christine emburrou. — A
aparência do duque não interessa. Ele é velho.
— Ah, interessa sim. — A condessa parecia cada vez mais
interessada na presença do duque viúvo no baile. — Preferiria vê-la
casada com um cavalheiro bem-afeiçoado do que com um desses
homens de aparência aguada. Imagino-o tendo filhos vistosos, e
não garotinhos feios e barrigudos.
— Casada? — Christine interrompeu a condessa, arregalando os
olhos. — De onde tirou que eu e o duque… — Christine parou de
falar ao notar que alguns convidados as olhavam. Abaixando a voz,
completou, vermelha de raiva: — Recuso-me a comentar sobre
Alexander. Ele é como um tio para mim! Um tio desagradável.
— Pelo modo como você fala, ele parece ter oitenta anos — a
condessa desmereceu a fúria da garota.
— Talvez não oitenta, mas uns… quarenta? — Christine
respondeu, como se quarenta e oitenta fossem a mesmíssima coisa.
— Um homem que provoca um cisma em um baile não pode ser
tão desagradável assim — Wilhelmine comentou.
Christine virou-se para ela.
— Você ouviu as mulheres, Winy. Ele é carrancudo e mal-
humorado. Talvez não inteiramente horrível, mas seu rosto parece
feito de pedra e seus olhos costumam disparar uma eletricidade
estranha nas moças.
Wilhelmine olhou-a, curiosa.
— Eletricidade?
— A do tipo ruim, que provoca calores desconfortáveis. —
Christine voltou a abanar o leque com força. — Ele causa esse
efeito, não é culpa das moças. Encobre suas cabeças de névoa a
ponto de parecerem os picos de uma montanha.
— Calafrios e vapores… Que incomum! — a condessa estava
cada vez mais entusiasmada.
— Não desvirtuem minhas palavras! — Christine reclamou. — O
que estou dizendo é que ele devia ter sido um marido melhor. Que
divida o salão em trincheiras e provoque desmaios é apenas um
sinal de que estamos rodeadas de gente tola e desajuizada!
— Tem certeza de que ele não daria um bom marido? —
Wilhelmine provocou, fazendo de tudo para não rir. — Causar
desmaios não faz dele menos duque.
Christine estreitou os olhos em sua direção.
— Winy, você está me aborrecendo.
Wilhelmine tentou recuperar a seriedade, mas era difícil.
— Desculpe, Christine. Confesso que fiquei curiosa. Pelo jeito
que as senhoras falaram, imaginei damas tombadas no chão depois
de um abalo sísmico. Culpa da minha imaginação fértil.
— Cavalheiros não gostam de mulheres com imaginação fértil —
a condessa não perdeu a chance de alfinetar.
Wilhelmine concordou. Prendendo o riso, claro.
Christine empunhou o leque na direção do duque, aborrecida:
— Se acham que estou exagerando, vejam vocês mesmas. Ele
está logo ali. Olhem e me digam se esse homem não podia ser meu
pai, ou uma estátua de pedra, tanto faz.
Wilhelmine duvidava que houvesse um homem capaz de lhe dar
choques, anuviar suas idéias ou roubar seu chão — ela não se
considerava uma moça tola. Mas precisava admitir, agora que
olhava adiante, que um certo duque uniformizado roubara todas as
atenções que até então estavam voltadas para ela.
— Se não achá-lo inquietante, não me chamo mais Christine.
Wilhelmine aceitou o desafio.
— Está bem. Em algum momento ele virá cumprimentá-la e
monitorarei como ficará o chão sob meus pés, que tal?
— Não diga depois que eu não avisei.
2

O W
aquilo. Ele aguardava em fila o momento de cumprimentar o
príncipe, enquanto se perguntava no que Phillip estaria pensando.
Não era possível que as ações de seu pai deixassem de valer tão
pouco tempo depois de sua morte. Um principado não podia se dar
ao luxo de dispensar suas defesas — e Alexander não estava
falando da guarda real ou da polícia. Estava falando de exército.
Homens treinados e mantidos à disposição para eventuais conflitos.
Que um reino em meio a uma Europa sobre brasas dispensasse
esse cuidado era inadmissível.
Mas, ao invés de encontrar o príncipe em uma reunião com seus
generais, estava em um baile.
Alexander deveria ter parado de insistir nos Schaumburg-Lippe
depois da morte de Peter, o antigo regente, mas tinha verdadeira
consideração pela família e certa dívida com eles. Não que pudesse
ter evitado a morte de Elsa, sua falecida esposa e uma das muitas
sobrinhas do antigo príncipe. Ele apenas sentia que sua dispensa
como conselheiro para assuntos estratégicos era uma vingança.
Uma pirraça, na verdade.
Alexander tinha que se lembrar constantemente o quanto Phillip
era jovem — só não achava que sua juventude fosse desculpa para
a imprudência. Por sorte o valete de Alexander havia trazido um
uniforme de gala e ele estava com o humor tolerável. Como faria
para falar a sós com Phillip em meio a um baile, não sabia.
Mais adiante, o conde e a condessa de Sternberg aguardavam
sua vez de saudar o anfitrião, seguidos de dois rapazotes
uniformizados — muito provavelmente companheiros de exército de
Phillip. Os cumprimentos eram discretos e breves, e a pequena fila
estava andando rápido. Com exceção de Alexander, ninguém
esperava ter uma conversa difícil ou longa com o príncipe na
entrada do baile.
O secretário de Alexander o seguia, ombros eretos e semblante
carrancudo.
— Deveria reconsiderar a conversa, Vossa Graça — ele disse
atrás do duque. — O príncipe não lhe dará ouvidos.
— Sei que não aprova minha insistência, Herr Wallinger, mas
sinto-me no dever de fazer isso. Por Peter.
— Vossa Graça não deve nada a eles.
Havia muitos significados para o "nada", mas seu secretário era
discreto demais para comentá-los. Em outras palavras, dizia: não
precisa ajudá-los por causa da morte de Elsa e da criança. Não fora
sua culpa.
Alexander enrijeceu ao pensar neles. Estava sendo persistente
ou intransigente, insistindo em Phillip e no principado? Cauteloso ou
insolente? Não se questionava decisões de um regente, não
importava quão amigo da família tenha sido.
— Concordo que não é hora de arrastar o rapaz para uma sala e
discutir assuntos sérios, mas avisarei que espero um convite para
os próximos dias — Alexander falou. — E que não aceitarei ser
dispensado.
Os dois cavalheiros da frente, elegantes em seus trajes
enfeitados do exército do Norte, tagarelavam de excitação.
Alexander achava aquela animação jovial ligeiramente irritante.
Queria resolver logo o assunto e retornar para casa. Ficara
semanas demais afastado. Mas era melhor resolver tudo que tinha
para resolver ali antes de partir.
Um dos jovens na frente do duque soltou, sem se preocupar em
falar baixo:
— Ouvi dizer que ela passou dois anos afastada sem qualquer
aparição pública. E que a meia dúzia de pretendentes que tinha
virou zero. Mesmo os afoitos desapareceram.
O tom de desdém chamou a atenção de Alexander e seu
secretário.
— Poderia julgá-los? — o outro garoto disse. — Não é todo dia
que uma dama se envolve em um escândalo daquela proporção.
— Que tipo de dama acompanharia dois rapazes até os jardins?
— O outro balançou a cabeça.
— A do tipo imprudente.
Alexander olhou para o secretário. O secretário alisou o bigode,
investigando os dois jovens com expressão taciturna.
— Lady von Hoefsted sempre foi orgulhosa e impulsiva — o
rapaz continuou a falar, alheio — ou indiferente — ao fato de
estarem sendo ouvidos. — Não me admira que tenha protagonizado
o escândalo da temporada.
— Da década, você quer dizer? — o outro respondeu, e ambos
riram.
Alexander coçou a sobrancelha com o polegar. A audição era
realmente um sentido indisciplinado. Para um homem acostumado a
controlar tudo, não controlar o que ouvia era irritante. Nem mesmo
sua vontade férrea o impedia de ouvir o papo fiado.
A conversa prosseguia, inconveniente e grosseira:
— Não entendo como nunca soubemos o nome dos dois
cavalheiros. Por que motivo uma dama assumiria o escândalo
sozinha?
— Porque era culpada? — o outro emendou, e os dois puseram-
se a rir. — Ora, os rapazes provavelmente queriam se divertir.
Ninguém contava que alguém os flagrasse e acabasse contando o
que viu.
— Ouvi dizer que a testemunha também foi punida. Como
podem punir uma pessoa por contar o que viu?
— Lady von Hoefsted é muito querida pela família real.
O secretário de Alexander soltou som de impaciência atrás dele.
— Adoraria ter a chance de discipliná-los — comentou baixo.
Alexander assentiu. Os rapazes mal desconfiavam, mas os
estrategistas das guerras em que provavelmente lutariam estavam
atrás deles, e bastante desconfortáveis com a descortesia do
assunto.
— Espero que o evento tenha ensinado a ela uma lição — o
jovem soldado continuou, em tom rancoroso. — Ou ao menos
diminuído sua soberba.
— Nada conseguiria essa proeza.
— De qualquer maneira, lady von Hoefsted está de volta. — O
rapazote localizou-a do outro lado do salão. — Tenho dúvidas de
que algum cavalheiro a cortejaria a essa altura.
Alexander olhou para a direção que o jovem apontava, sem ver
ninguém em especial.
— Ninguém quer levar pra casa uma mercadoria defeituosa, caro
amigo… Ninguém…
Alexander decidiu que bastava para o momento. Limpando
ruidosamente a garganta, mostrou aos dois jovens que não estavam
alheios ao assunto. Os rapazotes olharam para trás, encontrando os
olhos de Alexander e o secretário, ambos fardados com uniformes
de patentes mais altas. Encolhidos, os garotos viraram para a frente
e não disseram mais nada. Tarde demais. Alexander agora estava
bastante interessado em saber o nome deles. Um tempo nas
trincheiras os ajudaria a domar a língua.
Por sorte os dois rapazes finalmente deram um passo adiante e
um assessor os guiou até o príncipe. O silêncio da partida deles caiu
como uma bálsamo.
— Herr Wallinger? — O duque inclinou discretamente a cabeça
para o lado, ouvindo o "pois não" do secretário. — Descubra o
regimento dos dois, por favor.
— Devo interpelá-los assim que deixarem a companhia do
príncipe?
— Sim. Não tenho apreço por soldados de língua solta.
— Como quiser, senhor.
Alexander e o secretário estudaram em silêncio a interação entre
Phillip e os dois rapazes.
— Sempre podemos colocar esses tipos na linha de frente — o
secretário comentou.
— Vejo como uma economia dos bons — Alexander concordou.
Ao ver a presença do duque no aguardo dos cumprimentos
formais, o príncipe dispensou rápido os rapazes.
O assessor de Phillip guiou Alexander até o regente, que mal
escondeu o desapreço em vê-lo ali.
— Alexander — Phillip grunhiu.
— Alteza. — Alexander fez uma mesura rígida, tipicamente
militar. — Gostaria de parabenizá-lo pelo ensejo. Um ano é um
marco.
— Obrigado. Não achei que viesse ao baile.
— Não sabia que havia um baile — Alexander respondeu, seco.
— Não me demorarei no reino, mas queria garantir um encontro
amanhã. Estarei no principado até o fim da tarde.
O príncipe olhou ao redor, impaciente.
— Esta não é a hora, nem o lugar.
— Não há realmente uma hora boa para falar sobre as tropas
que pretende dissolver, há? — Alexander perguntou para o jovem
que viu crescer. — Seu pai discordaria da sua decisão.
O príncipe estalou o pescoço, olhando ao redor.
— A época das guerras passou, Alexander. Não vamos manter
tropas inativas por causa de um tempo que não voltará. Esses
homens precisam ser devolvidos à sociedade.
— Eles estão na sociedade, e no lugar em que precisam estar. E
engana-se se acha que o período de paz se estenderá.
— Está envolvido demais com exércitos, meu caro amigo. A
ponto de enxergar guerras em qualquer lugar.
— Seu pai compartilhava da minha opinião.
— Meu pai não está mais aqui. — Phillip se aproximou,
pousando a mão sobre o ombro de Alexander. Por mais que
pesassem assuntos não ditos entre eles, eram praticamente família,
e as animosidades nunca iam longe demais. — Por que não tenta
se divertir um pouco? Não precisa pensar em desgraças o tempo
todo.
Alexander exalou baixo. Era claro que aquela conversa jamais se
daria ali.
— Tentarei me "divertir" — o duque disse polido, sem a menor
intenção de tentar. — Desde que me receba amanhã.
— Sabe o que acho? — Phillip o ignorou. — Que talvez seja a
hora de pensar em um novo enlace. Precisa arrumar um herdeiro
para o seu ducado.
As feições de Alexander, naturalmente duras, tornaram-se
férreas.
— Sabe que não estou aqui para isso. Pode me receber
amanhã? — Alexander insistiu, o semblante sério e determinado. —
Não gostaria de partir sem falar antes com você.
Com a mão do príncipe ainda em seu ombro, Alexander sentiu
que ele o empurrava em direção ao baile.
— Por que não estende a permanência e fica mais alguns dias?
— Phillip sugeriu. — Sairemos amanhã para caçar e adoraria tê-lo
conosco. O que me diz?
Alexander não pretendia socializar nem caçar, mas também não
desistiria de dissuadir Phillip. Estava na cara que estava sendo
dispensado. Mas talvez, depois de uma cavalgada pelos arredores
de Bückeburg, o príncipe se convencesse de que manter os homens
no exército sairia mais barato do que perder território para batalhas
imprevisíveis.
— Tente aproveitar a noite, caro amigo. — O olhar do príncipe
trazia um discreto sentimento de pesar. — Já faz um ano.
— Um ano e um mês. — Alexander curvou-se em despedida. Ao
levantar-se da mesura, era novamente o epítome da indiferença. —
A propósito. Como é o nome dos dois cavalheiros que o
cumprimentaram antes de mim?
— Os uniformizados? São filhos do barão de Waldungen.
— Obrigado.
— Não deixe de falar com Christine — Phillip soltou,
arrependendo-se em seguida. Ele mordeu os lábios e voltou a
atenção ao assistente, que já trazia o próximo convidado para os
cumprimentos formais.
Alexander respirou fundo, procurando a filha mais nova de Peter,
lady Christine. Não tinha a intenção de cumprimentá-la, mas não
podia partir sem falar com ela. Christine nunca digeriu a morte de
Elsa, e desde o funeral suas relações com a princesa tinham
deixado de ser cordiais e passaram a ser constrangedoras.
O secretário do duque encontrou-o mais adiante.
— Tenho o nome dos rapazes e o regimento onde servem —
disse.
— Ótimo.
— Pretende permanecer no baile, senhor?
Alexander respirou fundo.
— Partiremos depois de cumprimentar o resto da família.
Herr Wallinger assentiu.
— Acha que o príncipe estará disposto amanhã? As pessoas
não costumam se lembrar do que prometem durante bailes.
— Querendo ele ou não, estarei em seu palácio logo cedo. — O
duque olhou ao redor, procurando Christine. — Por um acaso viu a
irmã de Phillip? Seria indelicado partir sem cumprimentá-la.
— Ela está do outro lado do salão.
Alexander e o secretário atravessaram o salão rosado,
cumprimentando alguns rostos conhecidos. Assim que cruzou um
grupo de senhoras, deparou-se com a princesa, acompanhada de
outras duas damas.
Christine já o tinha visto, e fazia cara de poucos amigos. Longe
da aparência frágil que mostrara na ocasião do enterro de Elsa, a
irmã mais nova de Phillip parecia, naquela noite, altiva e segura.
Igualmente altiva e segura parecia a jovem loira ao seu lado.
Alexander não costumava olhar duas vezes para damas em
bailes. Não gostava das reações femininas ao serem observadas —
às vezes afetadas demais, outras vezes, arrogantemente
indiferentes —, mas a dama ao lado da princesa atraiu seu olhar.
Não se recordava de tê-la visto antes. Ela estava longe do ideal
feminino esbelto e vulnerável que parecia reinar entre as mais
jovens; era quase tão alta quanto ele, curvilínea nos lugares certos e
trajava um vestido vermelho que realçava o pescoço elegante e
comprido. Os olhos profundamente azuis o fitavam de volta, duros
demais para uma moça.
Disperso, Alexander voltou a se concentrar em Christine.
— Alteza — ele disse, polido. Christine estendeu-lhe a mão e o
duque a levou à boca, sem encostar os lábios na luva.
Eles se encararam de maneira fria até que a jovem limpou a
garganta e disse, com voz falhada:
— É um prazer tê-lo conosco, Alexander.
— O prazer é todo meu, Alteza.
Virando-se para a condessa, Christine fez as apresentações:
— Miladies, este é Alexander, duque de Württemberg-Winnental.
E esta é Cornélia, condessa de Wuperthal, e minha prima lady
Wilhelmine von Hoefsted.
Lady von Hoefsted.
Alexander ignorou a senhora e fixou a atenção na jovem ao lado,
lembrando-se de um comentário de Elsa, meses antes de sua
morte. Algo sobre uma prima em comum com os Schaumburg-Lippe
e um escândalo que abalou o principado.
O duque sentiu um repuxar discreto no rosto. A conversa entre
os rapazes desrespeitosos veio para juntar os dois fatos.
Lady von Hoefsted o olhava de volta, e ele concluiu que ela não
era especialmente bonita ou atraente, mas desafiadora à sua
própria maneira. Uma de suas sobrancelhas erguia-se mais alta que
a outra e a postura era de quem não tombaria por pouca coisa. Ele
podia ouvir dentro da cabeça as vozes insolentes dos soldados ao
falarem dela. Ouvia também sobre as enfadonhas conversas com a
esposa sobre nomes e títulos de pessoas que não conhecia ou se
interessava em conhecer. Por motivos que desconhecia, Alexander
sentiu-se irritado.
— Está de passagem pelo principado? — Christine perguntou a
ele, fazendo-o despertar do escrutínio à jovem loira de vermelho.
— Sim. — O duque voltou-se para a princesa. — Estou vindo de
Berlim e resolvi fazer uma parada.
Alexander estava longe de entender por que seus olhos queriam
se arrastar de volta para a jovem. Era a primeira vez que sentia o
olhar puxado por um rosto.
— Phillip está fazendo um bom trabalho — Christine falou
ríspida. — Papai ficaria orgulhoso.
— Tenho certeza que sim — Alexander respondeu.
A voz da condessa fez a conversa fria ficar gelada:
— Sinto muito pelo falecimento de sua esposa, Vossa Graça.
Deve ter sido um ano difícil.
Alexander inclinou o rosto, moendo os molares. Certamente não
era a intenção da senhora deixá-lo constrangido, mas não era
prudente falar de Elsa na frente de Christine.
— Obrigado, senhora. Foi realmente muito difícil.
Ele sentia os olhares das três sobre ele, investigando sua reação
à menção da falecida esposa. Um par, no entanto, estava mais
atento a outros pormenores seus. Eles o vasculhavam de maneira
discreta, movendo-se pelos detalhes que Christine ou a senhora não
pensariam em olhar. A medalha de bravura sobre o seu peito. As
insígnias de sua dragona. A veia que pulsava discreta no canto de
sua testa. Lady von Hoefsted não era uma jovem arrogante, pensou.
Era uma jovem atenta, e isso costumava causar inseguranças em
rapazes mais novos.
Em homens experientes, aquele escrutínio trazia outro tipo de
reação.
— Pretende permanecer em Bückeburg ou está só de
passagem? — a condessa perguntou excessivamente gentil.
— Ficarei alguns dias até conseguir conversar com Phillip,
milady. Então partirei.
— Ah, que pena — a senhorinha fez um muxoxo.
Enquanto ouvia a condessa contar algo sobre o reino, Alexander
continuava a perceber a dama na periferia da visão: a pele
acetinada e uniforme, quase translúcida, em contraste com a borda
do vestido. As curvas harmoniosas do pescoço. A sobrancelha
arqueada e desafiadora.
A condessa perguntou algo e ele assentiu — não teria coragem
de dizer que não ouviu o que foi perguntado —, esforçando-se para
parecer atento. Estava intrigado por não conseguir ignorar a moça.
Era como se uma neblina espessa tivesse se deitado sobre um
campo de batalha, impedindo tomadas de decisões racionais. Ele
não confiava em nenhum de seus sentidos no momento — todos
pareciam instáveis demais. Qualquer soldado sabia que a falta de
visão representava perigo — afinal, névoas escondiam algo.
Alexander só não sabia dizer se era algo que temia ou desejava.
3

W
impacto da chegada do duque. Para começar, havia Christine. Ela a
havia alertado que ele era um homem incomum, e Wilhelmine havia
achado graça.
O segundo motivo era que ela de fato sofrera um impacto,
mesmo tendo sido avisada.
O duque era um homem marcante no geral — alto, forte,
majestoso —, mas avassalador no particular. Wilhelmine riscou da
cabeça o adjetivo bonito: ele não era bonito. Todo ossos e vincos,
estava mais para sombrio do que charmoso. Também não tinha
carisma nem mostrava a cortesia polida que a nobreza tanto
cultivava. Algo naquele homem — e esse algo estava longe das
vistas e abaixo da superfície — causava o tipo de furor que
precisava ser mantido escondido. Sensações proibidas como sentir
o corpo quente ou as pernas moles como argila úmida não deveriam
ser nomeadas.
Quando Christine fez as apresentações, olhos de um profundo
azul oceânico encontraram os dela. Você sentirá correr uma
eletricidade estranha por você, a voz de Christine ecoou na cabeça,
e Wilhelmine subitamente lembrou que precisava se curvar.
Ela taxou os raios elétricos que estouraram na barriga de
discretos, e confirmou com a sola das sapatilhas que o chão não
tremia. Mas entendia por que algumas damas desmaiariam aos pés
do duque. A soma do todo que ele aparentava, misturada ao
altíssimo grau nobiliárquico, fazia dele um homem memorável.
Christine e o duque iniciaram uma conversa e a condessa quis
saber mais sobre sua permanência no reino. Wilhelmine aproveitou
para entender que tipo de energia era aquela que ela, de fato,
sentia. Eram os olhos? Poderiam ser. Ele tinha olhos
extraordinários, claros e ao mesmo tempo escuros, que pareciam
dissecar as pessoas que olhava.
Ou talvez fosse a elegância altiva. Engessado em sua postura de
comando, o duque tolerava as provocações de Christine inalterado.
Se a condessa não tivesse feito uma pergunta indiscreta e bastante
pessoal sobre sua falecida esposa, Wilhelmine acharia que ele era
mesmo feito de pedra. Mas ele reagiu. Por um segundo ou menos,
ela teve a sensação de que alguma emoção escapara de sua
armadura.
Ela correu os olhos pelo uniforme negro e sem vincos, atenta
aos detalhes. As dragonas douradas e as condecorações reluziam
sob a luz dos castiçais. Sou um herói, era o que toda aquela
ostentação dizia, e sem dúvidas se portava como um. Mas não sou
imune a assuntos pessoais.
A inspeção foi interrompida pela segunda frase constrangedora
da noite:
— Por um momento achei que estivesse no baile atrás de uma
nova esposa, Alexander.
A frase, obviamente, veio de Christine.
— Engana-se, milady — o duque respondeu, tranquilo.
— Seria cedo demais, não é mesmo?
A ponta ossuda do cotovelo da condessa acertou o braço de
Christine. A princesa ignorou a acompanhante.
— Sim, seria cedo. — O homem olhou de relance para
Wilhelmine. Christine poderia estar agindo como uma mimada, mas
Wilhelmine fez questão de parecer constrangida. Não compactuava
com as pirraças da prima, muito menos com perguntas pessoais na
frente de estranhos.
Christine ignorou o mal-estar geral e voltou a se abanar.
— Alexander, sei que não desistirá de convencer Philip de seus
planos, mas peço que deixe meu irmão tomar suas próprias
decisões.
— Isso é um assunto que tratarei com o príncipe — o duque
respondeu, educado.
— Estamos em época de paz — Christine continuou, apontando
o leque para o salão. — Queremos trazer vida ao principado, e
não… preocupações. Papai pensava demais em tragédias.
Wilhelmine podia sentir a complacência do duque. Visivelmente
mais velho que elas — mas ainda dentro daquele espaço em que
um homem mais velho é considerado perigosamente atraente —,
ele parecia um professor paciente frente a uma estudante enjoada.
Mesmo que Wilhelmine pudesse apostar que ele era um homem
bem pouco paciente — e de pouquíssimas palavras.
— Christine. — Wilhelmine deu o braço à prima, deixando claro
que ela estava falando demais. — Por que não deixamos Sua Graça
aproveitar o baile?
— Não o estou segurando aqui — Christine rebateu. — Aliás, o
que acha, Winy?
Wilhelmine suspirou. Já estava arrependida de ter se intrometido
no assunto.
— Acho o que, querida?
— Acha que Phillip deve manter os exércitos ociosos ou
dissolver as tropas? Mantê-las vale realmente a pena?
Jesus. A pergunta inapropriada não tinha qualquer relevância no
momento.
— Acho que Phillip e o duque devem discutir isso sozinhos —
ela respondeu, gentil.
Wilhelmine sentiu os olhos do duque deslizarem até ela.
— Mas há décadas estamos em paz! — Christine bradou para
ninguém em especial. — Por que manter tropas ociosas em tempos
de paz?!
Wilhelmine alisou o braço da prima.
— Ninguém se prepara para guerra apenas quando ela é
iminente, Christine. Estamos na Europa.
Wilhelmine não tinha a menor intenção de tomar partido do
duque, mas a discussão inteira era estapafúrdia. Eles estavam em
um baile, pelo amor de Deus. O que entenderia ela sobre guerras?
— Exato, milady. Guerras espreitam atrás das fronteiras.
A resposta aborreceu Christine.
— Ninguém presta atenção a Schaumburg-Lippe! Temos ótima
relação com nossos vizinhos, e já nem me lembro quando foi a
última guerra!
Wilhelmine pensou em responder a data, mas os olhos do duque
estavam nos seus, firmes e silenciosos. Ela não sabia se continuava
a olhar para frente — para o peito cheio de medalhas — ou para os
pés. Christine exalou, aborrecida por Wilhelmine ter concordado
com o duque — ou ele com ela. Para a prima, aquela era a primeira
trincheira da noite.
Educado, o duque encerrou a conversa constrangedora com
uma mesura.
— Miladies. Espero que aproveitem a noite.
As três se inclinaram e só então Wilhelmine percebeu que tinha
parado de respirar. Enquanto o via se afastar, ela encostou a
bochecha no ombro tentando entender se o rosto queimava do lado
de fora como o sentia queimar por dentro.
Ela mal teve tempo de digerir a partida do duque. Christine virou-
se para ela com o rosto crispado.
— Quanta petulância! Você viu, Winy? Era daquela arrogância
que eu estava falando. Elsa a descreveu bem nas cartas que me
enviou. Aquele casamento era uma tragédia anunciada. Estava
claro que ele partiria o coração dela!
Wilhelmine não respondeu, vendo o duque se afastar por entre
os convidados. Com uma coisa ela concordava: toda aquela
austeridade, arrogância e intensidade indicavam exatamente aquilo:
as qualidades indispensáveis para partir o coração de uma dama.
Uma dama frágil, ela completou em silêncio.

A C
— o simples pensamento era absurdo. No entanto, conhecia o
motivo de sua mágoa e não era imune à circunstância como um
todo. Fora de fato um marido ausente para a prima querida da
princesa. Mas, em sua defesa, não fizera mal algum a Elsa.
Ele havia saído do salão e já não devia estar mais pensando no
assunto, mas continuava incomodado. Por terem mencionado Elsa e
a criança? Claro, mas também por outra coisa. Sentia-se como um
rio revolto depois da chuva: turvo e inquieto. Sensações
sedimentadas no fundo, evitadas com resolução férrea, estavam por
toda a parte. O mal-estar podia ser explicado pelas lembranças da
morte dos dois, mas de alguma forma tinha a ver com a jovem de
vermelho ao lado de Christine.
Mas o quê?
O fato de saber que estava envolvida em um escândalo e era
alvo de comentários ferinos? Algo físico na boca do estômago dizia
que sim.
O duque atravessou a enorme porta que dividia o salão dos
corredores do castelo, seguido pelo secretário. Imensas pinturas de
imagens sacras, emolduradas em dourado, cobriam as paredes de
ambos os lados. Embora costumasse apreciar a vasta coleção do
antigo amigo, naquela noite suas atenções estavam voltadas para
dentro. Sentia-se incomodado como poucas vezes esteve na vida.
Como não era homem de sentir e sim de agir, Alexander
estancou no lugar e se virou.
— Herr Wallinger?
— Sim, milorde.
— Quero que descubra algo para mim.
Sua curiosidade sempre fora uma característica positiva. Ele
sempre soube de tudo antes mesmo que os outros perguntassem, e
não havia nada de errado ou pessoal em querer saber mais.
— Quero saber quem é a moça ao lado de lady Christine.
— A de vermelho? — o secretário perguntou para confirmar. —
Acho que é a dama sobre quem os rapazes conversavam, milorde.
Alexander fez que sim com as feições pesadas. Era ela.
— Descubra o que puder sobre ela. Aguardarei no salão de
fumo.
Confuso, o secretário deu meia-volta e retornou ao salão.
Alexander procurou uma poltrona no fundo do cômodo e aguardou.
Quando ouviu os soldados falarem da tal moça de maneira
desrespeitosa, a imagem de um coelho assustado viera à mente.
Imaginou-a miúda e injustiçada, uma pobre alma envolta em um
escândalo de proporções incontornáveis. Era mais fácil saquear um
reino que apagar uma história escandalosa da memória da corte, e
a pobre criatura estava fadada à solteirice ou algum jovem de
poucas posses.
Para a sua surpresa, a jovem não lhe parecera acuada. Ao
mesmo tempo em que desafiava a sociedade estando ali, no baile
mais importante do ano, viera de vermelho. Alexander conhecia a
simbologia das cores. Uma bandeira vermelha significa orgulho, e
era hasteada em muros de cidades e torres de castelos sob ataque
em uma clara declaração de não rendição. Havia mais sob a
superfície daquela jovem que a camada superficial mostrava.
Alexander aceitou a bebida que um criado lhe entregou,
pensando no que a camada superficial mostrava. Olhos azuis
celeste, cabelos louros, curvas sinuosas. Ele podia ver, mesmo sob
as mangas bufantes e a saia armada, que ela não tinha uma
estrutura frágil. Não tinha, na verdade, nada de mais.
Ao mesmo tempo, tinha.
Alexander levou a bebida à boca, sentindo o líquido rascante
arder na garganta. O que fazia o rosto de alguém atraente? A
largura entre os olhos? A simetria das formas? O queixo bem-
definido em completa harmonia com o nariz atrevido? Ele não
saberia definir o que exatamente no rosto dela chamara sua
atenção. O que sabia é que ela era jovem demais. Talvez tivesse
metade de sua idade.
Meia hora depois, seu secretário retornou.
— Consegui descobrir três ou quatro coisas sobre a moça —
disse.
Alexander se levantou, deixando metade da bebida no copo.
— Ótimo. Pode me contar quando deixarmos o castelo.
Durante o trajeto de carruagem até a mansão de um amigo,
onde estavam hospedados, o secretário explicou que a jovem era a
filha mais nova de um visconde que havia perdido prestígio e fortuna
nos últimos anos, e que era muito amiga dos primos, o príncipe e a
princesa de Schaumburg-Lippe. Contou ainda que há dois anos,
durante um baile, ela fora flagrada "entre dois rapazes em posição
comprometedora", e aquilo foi tudo que descobriu sobre o assunto.
O escândalo tomou proporções absurdas, arrasou seu pai e a
retirou do mercado de casamentos pelos dois anos seguintes — e
muito provavelmente, para sempre. A família, que já vinha passando
por dificuldades com os moradores da vila que administravam, ficou
arruinada. O próprio príncipe interveio, deixando claro que não
perdoaria quem continuasse a espalhar a história falsa sobre a
moça.
— Algo que claramente não está sendo respeitado — Alexander
comentou.
O secretário assentiu.
— O que ela alegou em defesa? Conseguiu descobrir algo sobre
isso?
— Apenas que não fez nada impróprio.
— Mas ela estava realmente entre… — Alexander pausou,
olhando pela janela. A paisagem passava escura em velocidade
morosa, enquanto a imagem inquietante dela entre dois homens se
formava na mente. — Entre dois homens?
— Não posso afirmar, Vossa Graça.
Alexander ouvia a tudo extremamente sério. Passando a palma
sobre o peito coberto de medalhas, lembrou-se da jovem e a forma
como investigou suas insígnias. Ela havia descoberto mais dele
naqueles poucos segundos do que ele sobre ela, mesmo enviando
alguém para fazer perguntas.
Ela não parecia tola. Isso não significava, no entanto, que
saberia fugir de situações comprometedoras.
O rosto do duque endureceu um pouco mais.
— A moça que flagrou a cena poderia confirmar o que viu?
— A testemunha? — Herr Wallinger franziu a testa.
A estranheza do secretário começava a ficar visível. Primeiro,
teve que circular pelo salão atrás de fofocas. Agora precisaria correr
atrás de uma jovem para descobrir se tinha realmente visto o que
alegou ter visto?
— Quero que descubra isso amanhã para mim — Alexander
falou.
Alexander acompanhou o bigode farto do secretário vincar para
baixo.
— Isso é relevante para a nossa estadia, milorde? — o
secretário perguntou. Não havia nenhum tipo de desafio em sua
voz, apenas um sincero desejo de entender se havia uma ligação
entre o exército do principado e a moça que fora pivô do escândalo.
Se havia, ele não compreendia.
— Nenhuma. Só estou pensando em uma forma de ocupar a
cabeça. Algo me diz que as conversas com Phillip serão muitas, e
gostaria de saber a extensão do interesse do príncipe em lady von
Hoefsted.
O secretário assentiu, sem vontade.
— Claro, como quiser.
Alexander voltou a olhar pela janela da carruagem enquanto
cruzavam a capital do minúsculo principado. Os olhos estavam na
paisagem; os pensamentos, por outro lado, haviam ficado na festa.
Mais especificamente, no olhar desafiador e azul da moça.
Azul desafiador, ele repetiu em silêncio. Esse era um bom nome
para chamar aquele tom.
PRESENTE

P , F A
observavam a nevasca cair. O jardins de Solitude estavam
completamente cobertos por um manto branco de aspecto
aveludado. Flocos gordos, mais leves que o ar, flutuavam caóticos e
estatelavam-se no vidro, escorrendo até os cantos. Fran apertou o
casaco ao corpo. Onde estava a coragem para correr até o
estacionamento metros abaixo? Toda vez que elas se sentiam
prontas, alguém deixava o castelo e uma lufada de vento invadia o
saguão, penetrando por entre as fibras dos casacos como mil
agulhas afiadas. A coragem ia imediatamente embora.
Ao lado, alguns turistas italianos vociferavam impropérios contra
o tempo. Claramente despreparados para a nevasca, saltitavam de
frio e se perguntavam de que lado tinham estacionado o carro. Um
deles soltou um palavrão — ao menos, pareceu um palavrão — e
avisou irritado à namorada que correria até o carro e tentaria
estacioná-lo mais perto. Ele sequer esperou a moça responder. O
grupo inteiro seguiu atrás dele em debandada, correndo encolhido
pelos caminhos cimentados.
— Eles não vão conseguir enxergar um palmo na frente do nariz
— Ali comentou com as mãos encolhidas nos bolsos e o pescoço
enfiado dentro da gola alta.
Assim que sumiram depois de virar à esquerda, os italianos
voltaram. Haviam errado o caminho.
— Se acharem o carro — Fran adicionou.
As risadas de Alice foram interrompidas pela chegada de alguns
funcionários. Eles pediram licença e as duas se afastaram da porta.
— Espero que não tenham perdido o último ônibus, meninas — o
mais alto deles falou, enfiando o gorro na cabeça. — Vamos fechar
cedo, hoje.
— Estamos de carro — Fran explicou.
Eles abriram a porta e alguns flocos de neve invadiram o local,
molhando o tapete. Engolidos pelo frio, os três rapazes
uniformizados tomaram a direção do estacionamento dos
funcionários e sumiram no meio da confusão branca. Em breve não
restaria mais ninguém e as duas precisariam se arriscar também.
Embora a viagem até Stuttgart fosse tranquila, qualquer um com um
pingo de experiência sabia que sair no meio de uma nevasca
significava ficar parada no acostamento — e torcer para não ter o
para-choque amassado por um motorista desavisado.
Franz ajeitou o gorro sobre a cabeça e checou o relógio.
— Eles devem fechar em vinte minutos, quando o último ônibus
partir.
— Vamos torcer para a nevasca melhorar até lá.
As duas deram licença novamente para um outro grupo de
funcionários passar. O chiado do rádio de um deles ecoou no
saguão: "Ala sul, liberada". A porta voltou a se fechar e o vento frio
cessou.
As duas continuaram a olhar para fora, saltitando no lugar.
Ambas duvidavam que em vinte minutos alguma coisa fosse
melhorar.
— Quer arriscar? Tenho medo que a nevasca piore — Ali disse
olhando para fora.
Fran apertou os olhos, pensando em outra coisa.
— E se a gente aproveitasse esse tempo para dar mais uma
olhada no quarto da duquesa?
Alice se virou com os olhos arregalados.
— Li no site do castelo que eles reformaram os pés da cama. —
Fran deu de ombros.
Ali fez uma careta. Não parecia empolgada em ver a reforma do
pé da cama. Mas era usar esses últimos minutos caminhando ou
tiritar de frio na frente da porta.
— Acha que nos deixarão zanzar pelo corredor tão perto da hora
de fechar? — perguntou.
— Se não pudermos, voltamos. Pagamos para ficar o dia todo,
ainda temos alguns minutos.
As duas caminharam até a escadaria que levava ao segundo
andar. O corredor estava vazio, e só as luzes principais continuavam
acesas.
Elas seguiram em silêncio, estranhando a falta de gente.
— É tão estranho não esbarrar em um turista a cada cinco
passos — Ali comentou.
As duas subiram as escadarias e cruzaram os corredores
compridos. Ao chegarem na frente do quarto da duquesa, olharam
para os lados. Ninguém.
Elas olharam para dentro do cômodo escuro, e em seguida uma
para a outra.
— Onde está a vigia?
— Sei lá. Deve ter ido embora também. — Ali olhou com as
sobrancelhas vincadas para Fran. — Será que vão brigar com a
gente se nos virem ali dentro?
— Oras, claro que não — Fran respondeu, desenrolando o
cachecol do pescoço. — O castelo ainda está aberto.
Elas caminharam devagar pelo cômodo. Um cheiro antigo de
madeira encerada e tecido velho pairava no ar. Ao redor, tudo era
pomposo e dourado, mesmo sem iluminação. Os quartos reais eram
mantidos como na época das antigas duquesas, em todos os seus
detalhes.
— Como sabe que esse era o quarto de Wilhelmine, e não da
duquesa que se seguiu a ela?
— A duquesa seguinte, Emma, compartilhava o quarto com o
duque.
— Que raridade.
Fran concordou.
— Acha que Wilhelmine e o oitavo duque não se davam bem? —
Ali voltou a perguntar, parando na frente da penteadeira.
— Não sei. Pessoas de gênio forte tendem a ser difíceis de
conviver — Franz respondeu, rodeando devagar a escrivaninha
encostada na parede. Ela tirou a câmera do bolso e fez uma foto. O
flash iluminou o quarto escuro por um instante.
— Se algum vigia estivesse aqui, estaríamos ouvindo: "Nada de
fotos!" — Ali imitou a voz grossa de um deles.
— Ninguém liga se fotografarmos aqui — Fran respondeu. —
Fotos só devem ser evitadas em quadros e ilustrações, porque os
flashes danificam a cor das pinturas.
— Então aproveite e faça todas as fotos que conseguir.
Fran já tinha feito milhares de fotos daquele quarto. Ela parou ao
lado da corda vermelha que isolava a mobília e investigou a
escrivaninha. Ela parecia ter sido arrumada pela criada naquela
manhã, deixando-a pronta para a escrita da tarde. Ou talvez a
duquesa escrevesse à noite, pensou. Ela correu os dedos pelas
cordas vermelhas, fazendo um compilado de tudo que sabia sobre a
antepassada. Wilhelmine havia entrado em uma delegacia de polícia
e soltado uma de suas noras, acusada de estar metida com
contrabando de folhetins proibidos. Havia se envolvido em causas
que hoje seriam consideradas feministas. Fran podia sentir o
perfume da duquesa no ar. Conseguia visualizar os livros que lia.
Como podia, já em 1839, ano em que se mudou para Solitude, ter
ideias tão à frente de seu tempo?
Que os historiadores nunca tivessem investigado a sua vida
irritava Franziska. Ela levou meses para colocar as mãos naquelas
informações, mas por algum motivo nada daquilo interessava ao
mundo. Se não encontrasse os diários da duquesa, jamais saberia
quem foi aquela mulher.
Fran levou a foto feita ao rosto sem grandes expectativas, mas
um detalhe estranho a fez franzir as sobrancelhas. O que era aquilo
atrás da escrivaninha, correndo ao redor do painel de estuque? Uma
fenda?
— Ali, dê uma olhada nisso.
Ali inclinou o rosto sobre o ombro da amiga, investigando a foto.
Na imagem, camadas e camadas de tinta apareciam sobrepostas
sobre a madeira. O estado de Baden-Württemberg, sempre em
contenção de despesas, não tinha fundos para contratar
restauradores para todas as suas centenas de castelos.Claramente
não tiveram para a reforma daquele quarto.
— O que está vendo exatamente aqui? — Fran ampliou a
imagem e correu o dedo pela linha escura.
— Um trabalho mal feito de pintura.
— Vê uma fenda correr ao redor do painel, como se ele tivesse
se descolado da parede? Ou estou ficando doida?
Fran afastou a câmera do rosto e inclinou a cabeça para Ali ver
também. O quarto estava na penumbra e, com exceção da luz da
tela, quase não enxergavam mais nada.
— Parece realmente um rasgo.
— Não parece? — Franz se animou. Ela levou novamente a
imagem até o rosto, certa de que atrás daquele painel poderia haver
algo. Podia ser um pequeno nicho, um tipo de cofre, uma
reentrância escondida no painel de madeira.
Fran desligou o celular, pulou as cordas e se ajoelhou ao lado do
painel.
— O que está fazendo, sua doida? — Ali guinchou.
— Só um instante — Fran respondeu, tateando a parede. —
Acho que senti algo.
— Saia já daí, criatura. Estamos sozinhas em uma ala sem
vigias! — Ali cochichou baixo. — Não é hora de dar uma de
Sherlock!
— Agora é a única hora para dar uma de Sherlock. — Fran bateu
com o punho na madeira, esticando o ouvido em direção à madeira.
O som era oco. — Ali, pode me fazer um favor?
A amiga esfregou o rosto de nervoso, balançando a cabeça que
sim.
— Poderia ver se há alguém no corredor? — Fran pediu.
Ali andou até a porta, não gostando nem um pouco das
batidinhas que Fran estava dando contra o painel.
— Quando os alarmes começarem a soar, juro que sairei
correndo — Ali avisou. — Espero que me entenda.
— Não estamos no Louvre. Nada irá disparar aqui. — Fran
ajustou as mãos ao redor do detalhe cravado no painel, forçando-o
para o lado. — Me ajude a empurrar a escrivaninha, por favor.
Ali soltou um "Ai meu Deus" enquanto ajudava Fran a empurrar o
móvel. A mobília pesada se moveu, fazendo um barulho de madeira
correndo contra madeira.
— Agora volte até a porta e continue a vigiar o corredor — Fran
pediu.
Ali obedeceu. Se fossem pegas ali, estariam em uma enrascada
sem tamanho.
Do quarto da duquesa elas conseguiam ouvir ruídos de
conversas no primeiro andar, portas se abrindo e fechando, gente se
despedindo. Até que um som inacreditável rasgou o silêncio do
cômodo escuro. Algo parecido com desencaixe de madeira.
Fran caiu sentada para trás. O detalhe do painel se soltou e uma
portinhola se abriu, revelando uma passagem.
As duas tamparam a boca.
— Oh, meu Deus — Ali sussurrou entre os dedos. — O que você
fez?
Fran havia conseguido. Ela tinha achado o cômodo escondido no
quarto da duquesa.
5

O B
que à noite. Construído no estilo renascentista, era repleto de salões
pomposos, cúpulas douradas que costumavam deixar os visitantes
boquiabertos e de imensas galerias ricamente ornamentadas,
repletas de obras de arte. Além disso, o exuberante castelo dos
Schaumburg-Lippe era rodeado por extensos jardins e abrigava, não
muito longe da entrada, estábulos centenários que acomodavam
dezenas de cavalos de raça.
Alexander pediu que a carruagem o deixasse perto dos
estábulos ao invés de parar na entrada principal. Gostava dos
cavalos de Peter e costumava negociar exemplares com o príncipe
quando ele estava vivo. No mais, estava um dia perfeito para
caminhadas.
Enquanto andava por entre as baias, notou que pouco havia
mudado por ali no último ano. As dependências continuavam
impressionantemente limpas e os cavalos, em condições
imaculadas. Ele alisou o focinho de um enorme corcel, se
perguntando se Phillip daria aos animais a mesma importância que
o pai dava.
— Vejo que ainda gosta de cavalos — Alexander ouviu a voz
conhecida atrás de si. O conde de Hagen, amigo de longa data, se
aproximava. — Eles me lembram do tempo na infantaria.
Alexander suprimiu um sorriso. Lembrava-se perfeitamente do
dia em que Wolfgang, ainda bastante jovem, apareceu no regimento
ao lado do pai. O antigo conde, seu pai, queria que seu herdeiro, um
jovem tímido e introvertido, aprendesse a lutar. Miúdo e bastante
calado, Wolfgang mostrou cedo que dava mais para a diplomacia do
que para o combate, uma qualidade que Alexander admirava
particularmente mais que atirar bem ou saber manejar um canhão.
— Bons tempos — O duque comentou estendendo a mão para o
amigo.
— Um tempo de poucas responsabilidades. — O conde riu. —
Veio para a caçada?
— Sim e não — Alexander respondeu. — Não me interesso por
caça. Mas gosto da cavalgada.
— Você continua o mesmo. — Wolfgang balançou a cabeça
sorrindo, como se conhecesse o amigo. — Nunca gostou de mortes
em vão.
Alexander aquiesceu. Quando se via um bom número delas,
tornava-se indiferente ou compreendia o quanto deveriam ser
evitadas.
O conde passou a acompanhar o duque pelo passeio pela
cavalariça.
— E você? — Alexander retribuiu a pergunta. — Lembro-me que
não gostava muito de cavalgadas.
O amigo avermelhou ao ponto de parecer-se com uma pimenta
exótica. Ele pigarreou, tapando a boca com a mão enluvada.
— Eu… estou aqui por motivos bem menos recreativos.
Alexander esperou que ele contasse por qual motivo estaria ali,
mas Wolfgang costumava ser atrapalhado com as palavras.
Alexander precisava confessar que tinha dificuldades para
entender o amigo. Em sua eterna e titubeante luta contra a
insegurança, as palavras do conde costumavam falhar. Quando
vinham, pareciam conter uma imensa carga de assuntos que não
interessavam (por exemplo, sentimentos). Muitas vezes fingira ouvi-
lo — o que não era difícil, dada a falta de energia na voz do amigo
— e raramente sabia como responder às confidências.
— Bem, eu estou aqui por causa de uma dama — o amigo
finalmente disse.
Aquele seria o momento de perguntar algo, mas Alexander
queria encurtar o assunto, e não delongá-lo.
Infelizmente, o conde não precisava de estímulo para continuar:
— Há anos sou encantado pelos seus dons. Ela é uma jovem
vibrante e milagrosamente solteira. Tentei cortejá-la antes, sem
sucesso. — O conde levou os dedos à frente e contou, franzindo o
cenho. — Mais precisamente, por quatro temporadas. Antes mesmo
que ela fosse oficialmente apresentada à corte eu já desejava
desposá-la. Ela é sempre tão vivaz… Eu mal consigo juntar sílabas
para cumprimentá-la apropriadamente.
Era sobre coisas assim que Alexander não tinha comentários.
— Mas esse ano sinto minha disposição revigorada. — O conde
estufou o peito magro. — Acredito que dessa vez me aceitarão
como um par digno dela.
Alexander coçou a sobrancelha. Pensou em perguntar alguma
coisa — qualquer coisa. Talvez o que mudou nessa temporada em
relação à anterior, mas um pensamento o fez parar. De que dama
Wolfgang estava falando?
A imagem de uma jovem vivaz, vibrante e milagrosamente
solteira lhe veio à cabeça.
Eles caminharam até a entrada do castelo em silêncio. A
experiência do duque não lhe permitia aconselhar o amigo — as
únicas conquistas que conhecia eram as geográficas —, mas sentia
que não queria ajudá-lo. Na verdade, os pés pareciam mais
pesados, e o centro do peito também. E, verdade fosse dita, embora
Wolfgang fosse um conde, era do tipo que fazia pouco sucesso
entre o público feminino. Ele só teria verdadeiras chances com uma
jovem tão especial se a jovem em questão estivesse em
dificuldades.
— Meu bom e velho amigo — o conde suspirou em tom de
confissão. — Aprendi com você que guerras longas não são
inteligentes e que talvez tenha "cercado a cidade por tempo demais"
— ele riu sozinho, sem notar que o cenho do duque continuava
pesado. —… e não há inteligência em cercos longos — Wolfgang
concluiu. — Mas eu lhe digo: a dama a quem pedirei a mão vale a
pena.
O duque estalou o pescoço. Falar sobre aquelas coisas o
deixava desconfortável. Na verdade, no momento sentia algo além
do desconforto. Sentia irritação. E uma estranha vontade de
perguntar a Wolfgang por que diabos ela se casaria com ele.
Pare com isso, Alexander demandou a si mesmo.
— Não acha que é hora de dar o passo derradeiro? — o
inseguro conde perguntou.
— Não sou a pessoa certa para aconselhá-lo — o duque
respondeu, seco. Não queria ouvir sobre as tentativas do conde em
cortejar lady von Hoefsted, assim como não tinha a intenção de ser
pego nas teias daquele feitiço: o feitiço do interesse.
— Pois eu acho. As condições da temporada estão perfeitas. —
O homem riu. — Quem sabe não ouve falar, ainda durante sua
estadia, sobre o meu enlace?
Assim que o conde sorriu, Alexander desejou erguer o punho e
promover um encontro entre seus dedos e o nariz do amigo. A
vontade veio e passou. O duque endireitou a coluna, crescendo
alguns centímetros. E visto que Wolfgang costumava perder-se
tanto nos detalhes como no panorama geral das coisas, Alexander
foi o mais objetivo possível:
— Acredito que não ouvirei. Estou indo embora amanhã de
Schaumburg-Lippe.
— Oras, espere! Quem sabe não…
Alexander parou no lugar. Os olhos cravaram nos de Wolfgang,
uma cabeça mais baixo que ele. Com voz firme e baixa — a voz de
um comandante que alerta para a impertinência de um subordinado
—, disse:
— Não me interesso por enlaces. Boa sorte e nos vemos na
cavalgada.
Mesmo que estivessem indo para o mesmo lugar, Alexander
deixou o conde para trás e pediu ao mordomo que o recebeu na
entrada para ser anunciado ao príncipe.
Durante todo o caminho, o duque sentiu os passos baterem
duros contra o piso de mármore. Alguns conhecidos o
cumprimentaram no caminho; outros fingiram não vê-lo ou sumiram.
O duque foi levado até o salão de chá, onde um buffet aguardava os
convidados que permaneceram no castelo após a festa. O salão
dourado, parte da construção que teve início setecentos anos no
passado, era sustentado por colunas altas de mármore rosado e
mostrava pinturas no teto, circundados de estuques ricamente
trabalhados.
— Sua Alteza o receberá em breve — um criado de peruca
branca disse depois de indicar ao duque uma mesa.
Alexander assentiu, mas não se sentou. Estava inquieto pela
conversa na cavalariça, e pelo modo brusco com que tratou o
amigo. Na verdade, não queria aceitar que fora rude com o pobre
Wollfgang por causa de… da…
Ele passou a mão pelo rosto, olhando ao redor. Que diabos tinha
acontecido com ele? Tinha trinta e sete anos, não podia se dar ao
luxo de agir como um rapazote. Destratar um velho conhecido por
causa de suas aspirações grandiosas era um golpe baixo.
Foi enquanto corria os olhos pelo salão que a viu. Sentada
sozinha em uma mesa afastada, escrevendo em um diário enquanto
um criado lhe servia chá. Sob a luz do dia, longe da parca
iluminação das velas, lady von Hoefsted parecia ainda mais…
O duque ajeitou o casaco, incomodado com o próprio
desconforto. Era um homem estudado e bastante versado em
mulheres, e reações esquisitas não combinavam com ele. Por
exemplo, desconhecia a sensação de sentir como um instrumento
vibrando em seu interior, produzindo sons em formato de estrelas.
Ela era apenas uma mulher.
O pequeno nicho que ela escolhera para tomar seu desjejum
dava vistas para o jardim, e a mesinha redonda, decorada com
flores frescas, comportaria no máximo duas pessoas. Uma escolha
pensada: ela não queria tomar o desjejum com os outros
convidados.
Convencido de que podia impor controle às próprias reações —
ao mesmo tempo em que sabia lutar para manter um semblante de
indiferença —, Alexander caminhou até ela. Para provar a si mesmo
que era imune e que tolices deviam ser enfrentadas de frente? Ou
para mostrar algo a Wolfgang? Alexander sabia que era competitivo,
mas aquilo excedia à lógica.
De longe, ela parecia a lady da casa. Até mesmo os criados lhe
tratavam com tal reverência, e ela não hesitava em responder como
se fosse, de fato, reverenciável.
Atraída pela figura que se aproximava, a jovem se virou.
Enormes olhos azuis encontraram os dele: gelo em água.
Lady von Hoefsted inclinou a cabeça com graciosidade.
O duque aproximou-se devagar. Quem se sentava ali não
pretendia ser incomodado, e ele não pretendia incomodar.
Ela fechou o diário e ergueu as vistas. Do cabelo bem penteado
não escapava um fio, e suas bochechas tinham um tom
discretamente rosado.
— É cedo para uma dama estar de pé — Alexander comentou.
Algo lhe dizia que era assim que conversas agradáveis
começavam.
— Não costumo dormir depois que o sol nasce. — O rosto da
jovem se iluminou com um sorriso polido.
— Por algum motivo em especial? — ele perguntou. Acordar
junto com o sol era bastante cedo, até mesmo para a rotina
espartana do duque. — A nobreza não é conhecida por madrugar.
— Sinto vontade de me mover. — Ela o encarou, tranquila. — E
gosto de caçadas.
Alexander moveu a cabeça, admirado. Dali ele podia ver a curva
de seu pescoço esguio e bem desenhado terminar acima do decote.
A pele exposta parecia tão macia que o lembrou creme de leite.
— É raro encontrar uma dama que goste delas.
— Bem, acabou de encontrar uma que gosta.
Alexander observou-a levar a xícara até a boca. Ela bebericou
um pouco do chá, sem parecer incomodada com sua presença.
Está bem, ele disse a si mesmo. Última pergunta, e então parta.
— Presumo, então, que participará do evento de hoje.
À simples chance de ouvir um sim, o passeio lhe pareceu mais
atraente. A jovem pousou a delicada xícara de porcelana sobre o
pires sem fazer barulho.
— Ah, sim. Sempre participo.
— E milady sabe manejar algum tipo de arma?
— Arco e flecha — ela respondeu, como se aquilo não fosse
nada de mais.
A resposta conseguiu deixar Alexander ainda mais intrigado.
Embora tivesse mandado a si mesmo encerrar a conversa, viu-se
perguntando:
— E é boa no esporte?
Wilhelmine ergueu uma sobrancelha, investigando os trajes do
duque. Não havia medalhas ou indicações visíveis de quem era ou
fazia, desta vez. Apenas que seu alfaiate era excepcionalmente
bom.
— Não. Não sou nada boa.
— Bem, o importante é praticar.
— Hm. — Ela ergueu um pãozinho do prato e parou-o na frente
da boca, o canto dos lábios se erguendo em um sorriso requintado:
— É isso que diz quando um de seus homens não sabe atirar? Que
o importante é praticar?
Alexander abaixou a cabeça, sorrindo também.
— Não — admitiu. — Para eles digo que o importante é acertar.
Mas milady não é um dos meus homens.
A resposta fez Wilhelmine soltar uma risadinha.
— Realmente, milorde. Nem homem, nem…
A jovem se calou antes de terminar.
…nem sua.
Alexander observou-a colocar o pãozinho na boca e limpar o
canto dos lábios com o dedo delicado, vendo suas bochechas
ganharem um tom de rosa diferente. Por motivos desconhecidos até
de si mesmo, sentiu um estranho calor na região do peito em vê-la
corar.
Hora de ir. Com um gesto educado, o duque se despediu:
— Espero que tenha um ótimo dia, senhorita. Nos vemos
durante a caçada.
Ela assentiu, sem olhá-lo.
O duque caminhou até a mesa tentando afugentar as coisas
estranhas que rebentavam no peito. Reações absurdas que o
faziam se sentir energizado, mas também estranhamente jovem.
Ele mal teve tempo de se sentar. O secretário do príncipe o
abordou antes que chegasse à mesa, avisando que Sua Alteza iria
recebê-lo agora. Alexander acompanhou o secretário refreando a
vontade de olhar para trás. Se olhasse, o que veria?
Ele só saberia olhando.
Antes de sair do salão, o duque olhou para trás. Lady von
Hoefsted continuava a olhar para fora enquanto comia
tranquilamente seu desjejum. Coluna ereta, queixo erguido, olhos
nos jardins do lado de fora. O diário estava novamente aberto e o
lápis girava entre os dedos.
Ele voltou a olhar para a frente, afugentando a curiosidade.
Assuntos sérios o aguardavam.
Assim que pisou no escritório de Phillip, encontrou o príncipe
prostrado sobre uma poltrona. Um criado havia acabado de trocar
um pano úmido sobre a cabeça, que ele arrancou assim que
Alexander foi anunciado.
Alexander pegou ar. A família era dada ao drama e ele precisava
ter paciência.
— Ah, você — o príncipe grunhiu como se estivesse esperando
qualquer um, menos ele. Ele tinha duas enormes olheiras
arroxeando a região dos olhos e parecia ter sido exaurido de forças.
— Espero que não se aborreça por não conseguir conversar essa
manhã, meu amigo. Fui acometido por um mal-estar terrível. Tenho
quase certeza que foram as ovas de peixe. Está quente demais para
comê-las.
O secretário do príncipe, atrás dele, franziu o cenho. Não haviam
sido as ovas.
— Tentarei acalmar a cabeça e o estômago até a tarde — Phillip
continuou. — Se puder retornar à noite, poderá juntar-se ao
pequeno jantar que darei para os convidados. Teremos a caçada
daqui a pouco, mas sei que não gosta delas. Quem sabe…
— Acho que me juntarei aos convidados para a caçada —
Alexander respondeu, de pronto.
Phillip não entendeu.
— Achei que não gostasse de caçar.
— E não gosto. Mas apreciarei a cavalgada.
— Bem, sendo assim… ótimo. — Phillip deu de ombros. —
Tenho certeza que melhorarei até a noite. Nos vemos mais tarde,
então.
6

O A ,
aguardando sozinho o cavalariço preparar seu animal. O duque
mantinha-se longe do grupo barulhento de aristocratas que
trocavam ideias sobre que tipo de caça seria considerada boa
naquela época do ano, com quantos cervos retornariam e quem
conseguiria caçar o quê. Era raro misturar-se com eles; a maioria
parava de falar quando ele se aproximava.
Herr Wallinger aproximou-se do duque e os dois caminharam até
o fim do recinto, longe dos ouvidos dos criados.
— Conseguiu mais alguma informação? — Alexander perguntou.
O secretário estendeu as anotações que fez sobre o que
descobriu. Alexander abriu a folha e correu os olhos pelos números.
Eram dados sobre as finanças da família Von Hoefsted, anotada na
letra bem desenhada do secretário.
— Estão falidos — o duque comentou. Era aquilo que as
anotações mostravam.
— Completamente.
O duque dobrou o papel ao meio, depois de novo, e guardou-o
no bolso interno da jaqueta. A situação financeira desesperadora
faria o casamento da jovem com um conde desesperado cair como
uma dádiva.
— E quanto à testemunha? Descobriu alguma coisa?
— Infelizmente não consegui contato com a família.
Aquilo era muito, mas nem de longe o suficiente. Alexander
queria saber mais. Sua inquietação em saber mais do que os
números mostravam entrava em embate direto com a necessidade
de ignorar o assunto.
— E sobre lady von Hoefsted? — O duque limpou uma sujeira
imaginária na lapela. A tentativa de soar desinteressado não
enganaria o secretário. — O que mais ouviu?
— Apenas algumas informações adicionais.
Que Alexander estivesse tão interessado nos adicionais o
aborrecia.
— O que descobriu?
— Que o pai está doente, e tem se mostrado inapto em
administrar as terras. Talvez por isso, o dote da senhorita von
Hoefsted tenha sido esvaziado. A moça terá sorte se for contratada
como preceptora de uma família abastada, e mesmo assim daqui a
alguns anos… No momento, ninguém quer contato com ela.
Os olhos de Alexander se apertaram. Seu secretário estava
errado.
— Há rumores sobre o príncipe e lady von Hoefsted também —
o secretário adicionou.
— Phillip? — Alexander olhou para ele. Aquilo era uma surpresa.
Mas agora que o secretário havia mencionado, havia realmente algo
a mais entre os dois. Por que um regente ameaçaria alguém de
perjúrio por causa de um mexerico?
— O príncipe e lady von Hoefsted passam muito tempo juntos.
Isso gera… elucubrações — o homem adicionou.
— Acha que estão de alguma forma envolvidos
emocionalmente? — a pergunta de Alexander saiu formal, mas seu
interesse era puramente pessoal. Se Phillip e ela estivessem
envolvidos, ele deveria encerrar ali aquela investigação sobre a
moça.
Quase torcia para ser esse o caso. Queria deixar aquilo para lá,
mas não conseguia.
— Talvez — Herr Wallinger respondeu. — É incomum que um
príncipe se envolva pessoalmente em querelas do tipo. A
testemunha e sua família sequer foram convidados para o baile de
ontem, tamanho o mal-estar entre eles. E lady von Hoefsted era
considerada uma dama muito promissora nas temporadas
anteriores ao escândalo.
Alexander aprumou as costas.
— Algum nome conhecido chegou a cortejá-la? — quis saber.
— Curiosamente, um dos rapazes que ouvimos no baile ontem.
Ele chegou a visitar a residência do visconde von Hoefsted, mas as
conversas não prosseguiram.
Alexander lembrou-se da conversa, moendo os molares. Os
comentários realmente tinham o tom das rejeições.
Os latidos do lado de fora anunciavam que os cães estavam a
postos e a caçada para começar. Um criado avisou a Alexander que
o grupo sairia em breve.
— Preciso ir — Alexander falou. — Obrigado pelas informações.
Nos vemos na volta.
O secretário assentiu.
Alexander montou no cavalo e recebeu de um criado seu rifle.
Ajustando o pé nos estribos, estudou a arma. Era um rifle Jäger,
uma arma de caça um pouco mais curta que os mosquetes militares
que costumava manusear. Embora não planejasse usá-la, ergueu o
braço e testou seu peso: ela devia ter por volta de quatro quilos.
Enquanto estudava a decoração do cabo, perguntou-se se veria
lady von Hoefsted durante a cavalgada. E o que, exatamente, ela
estaria fazendo lá.
Enfiando a arma no suporte, partiu em direção à movimentação
do lado de fora, onde os cachorros agitavam-se e latiam. O plano
era cavalgar até a campina particular da propriedade, cruzando os
bosques fechados ao redor. Fora naquelas campinas que haviam
sido avistados mais cedo as corças e os faisões.
O duque seguiu o grupo à distância, mantendo-se longe o
suficiente para que nenhum dos convidados de Phillip puxasse
conversa — mas próximo o bastante para parecer um deles. Mais
adiante, aguardando a passagem do grupo, ele reconheceu a
silhueta feminina de lady Wilhelmine e, ao lado, sua acompanhante.
A dama vestia a pesada vestimenta escura das cavalgadas e seus
cachos estavam escondidos sob o chapéu de abas curtas.
Observava o grupo passar com placidez estudada, sentada sobre o
cavalo em sua postura de amazona. Sua reticência e descaso por
eles era visível — uma retribuição à altura à maneira arrogante com
que a olhavam. Ela sabia bem que embora a cumprimentassem de
maneira educada, voltariam a comentar sobre ela assim que se
afastassem.
Que ela quisesse se unir ao grupo intrigava o duque.
O duque tocou na aba do chapéu ao passar pelas duas. Era
intrigante que ela se interessasse em alimentar os mexericos.
Qualquer outra dama suspenderia sua vinda se soubesse que seria
alvo de fofocas.
Qualquer outra dama, mas não aquela.
Lady von Hoefsted respondeu ao cumprimento com uma
inclinação discreta. A saudação foi breve e sem sorrisos, prova de
que, para ela, Alexander fazia parte do grupo como qualquer outro.
O grupo seguiu por um caminho estreito que cortava o bosque e,
embora a conversa seguisse animada — tamanho de caça abatida
no ano anterior, disputa entre números de animais caçados e outras
tolices —, Alexander não estava interessado nela. Ele foi ganhando
distância do grupo até se ver sozinho na mata, cada vez mais
aliviado pelo silêncio.
— Falastrões — resmungou em voz alta, arrependido por ter
vindo.
Para sua completa surpresa, uma voz feminina saltou dentre a
folhagem:
— De fato. Tolos falastrões.
Lady von Hoefsted se aproximava a cavalo. A sombra do bosque
escurecia sua presença luminosa, mas não sua expressão curiosa.
— Além de barulhentos — ela complementou, erguendo um
canto da boca. — Acham mesmo que caçarão qualquer coisa
falando tão alto?
O cavalo branco da jovem parou atrás do seu. Sua
acompanhante chegou logo depois, gemendo e bufando enquanto
tentava se equilibrar sobre a sela lateral.
— Espantarão qualquer caça em um raio de muitos metros —
Alexander concordou.
— Sorte da caça — ela disse passando por ele. O sorriso
silencioso da jovem teve efeito de um anzol: o duque tocou a barriga
do animal com os calcanhares e o corcel pôs-se em movimento,
como se tivesse sido fisgado.
— Acha que conseguem perceber isso? — Ela olhou para trás,
conferindo se ele estava prestando atenção ou seguindo-a.
Alexander estava fazendo as duas coisas. — Que estão
atrapalhando a própria caçada?
Alexander sorriu.
— Não, milady. Eles costumam ser limitados em compreender o
que os rodeia.
A resposta agradou-a, e ela permitiu que aos poucos ele
cavalgasse ao lado dela. Juntos, seguiram devagar pelo bosque
sombreado.
— O resultado já conhecemos — ela comentou enquanto
vasculhava os arbustos atrás de algo. — Haverá briga durante o
jantar quando alguém culpar os barulhentos por terem estragado a
caçada. Os barulhentos, por sua vez, reclamarão que não havia
caça, e só por isso conversavam.
— E como prova, mencionarão o único coelho alvejado por três
ou quatro caçadores diferentes, em meio a um alarido que
espantará por dias qualquer criatura da campina.
Lady von Hoefsted soltou um riso genuinamente divertido.
— Eles sempre têm justificativa para tudo — ela concordou.
— E, quando não têm, usam de malabarismos para torcer a
verdade — ele adicionou.
Ela olhou para o duque com um sorriso de lado.
— Farei questão de observar sua reação quando o grupo tentar
explicar a falta de caça.
— Será um deleite compartilhar meu divertimento com milady.
Ela suprimiu um sorriso. Segundos depois, voltou a olhá-lo:
— Acha que alguém questionará a verdade? — perguntou,
curiosa. — Eles parecem um grupo bastante coeso.
— Não — Alexander respondeu com sinceridade. — O mundo
costuma fazer tantas concessões àqueles senhores que eles
obviamente acreditam receber as mesmas da natureza. Se não
encontraram caça, foi apenas porque a caça estava indisponível.
O rosto de lady von Hoefsted estava virado para a frente, mas
ele via em seu perfil um sorriso provocativo.
— Fala como se não fosse um deles — ela comentou.
— Se me compara com eles, ofende-me.
Ela guardou o riso discreto, ciente de que estava sendo
observada. Eles cavalgaram por mais algum tempo. A
acompanhante de lady von Hoefsted havia ficado para trás, e o
grupo adiante havia desaparecido.
De repente, o cavalo dela parou. Alexander virou-se, vendo que
ela olhava em silêncio para um lugar do bosque. Ele parou o cavalo
sem dizer nada, mas mesmo assim lady von Hoefsted levou o dedo
enluvado à boca, indicando que o o duque deveria fazer silêncio.
Acima da cabeça ouvia-se pássaros e o farfalhar das árvores, e
nada mais.
Alexander olhou para a direção que ela olhava e soltou uma
lufada de ar. Mais adiante, camuflado em meio à folhagem, estava
um enorme cervo galhado. O animal tinha os imensos olhos
lustrosos fixos nos deles, imóvel como uma estátua. O duque
esperou que a jovem levasse a mão às costas e puxasse
lentamente o arco, mas, para sua surpresa, tudo que ela fez foi
observar, com os lábios levemente curvados para cima, a
tranquilidade do animal.
O enorme cervo aguçou as orelhas e moveu o rosto. Então
pareceu desistir deles e voltou a procurar pinhas no solo como se
não devesse sentir medo ou preocupação pela presença dos
estranhos.
Durante todo o tempo em que lady von Hoefstedt observou o
animal, Alexander fez o mesmo com ela. Seus olhos percorreram a
curva do queixo e o volume voluptuoso dos seios, descendo pela
barriga reta até as costas rígidas. Tudo nela era gracioso e real.
Real em mais de um sentido: ela tinha traços nobres, bem mais
impressionantes do que muitas rainhas que ele conhecera.
Mas foi a nobreza do gesto de apenas observar o animal que o
enfeitiçou. Alexander conhecia a morte de perto, e ela raramente
vinha por mãos nobres.
Sem dizer uma palavra, lady von Hoefsted puxou as rédeas do
animal e o colocou novamente em movimento. Alexander precisou
de um instante para despertar dos muitos em que passou perdido.
— Ele teria sido uma presa fácil — ele comentou depois de um
tempo.
— Um bom motivo para não caçá-lo — ela respondeu, seca.
Ele a seguiu, sem entender o que ela estava fazendo ali, então.
— Acha que eles acreditarão se eu contar que avistei um cervo?
— Ela virou-se para olhá-lo.
— Não, milady. Não acreditarão.
Ela riu.
— Vossa Graça é testemunha de que vimos um.
— É bem capaz de duvidarem de mim também, caso voltem de
mãos abanando.
— Espero que voltem.
— Eu também — ele respondeu.
Algum tempo depois ela perguntou:
— O senhor não acha, às vezes, que há uma nuvem pairando na
frente da visão das pessoas?
A pergunta era inusitada, e ele não via ligação com o assunto
anterior.
— Como assim?
— Como explicaria o que as impede de ver as coisas? — Ela o
olhou. — O cervo galhado foi avistado mais cedo, e muitos estão
aqui por causa dele. Ele estava bem ali, debaixo do nariz de todos,
e ninguém o viu.
— A emoção costuma fazer isso com os homens — Alexander
respondeu. — O alvoroço os cegou.
Ela o olhou, pensativa.
— O senhor disse homens. Não acha que faz o mesmo com as
mulheres?
— Com as mulheres também, claro.
— Hm. — Ela pensou por um instante. — Se me permite
discordar, não acho que sejam emoções o que embaçam nosso
julgamento.
Ela disse aquilo olhando para a frente, o corpo ajustando-se
delicadamente à marcha do cavalo. Alexander não estava
acostumado com conversas femininas, nem com discordâncias
acompanhadas de sorrisos charmosos e olhares atrevidos. Por isso,
ao responder, tentou não soar duro demais, como geralmente
soava.
— Se não são elas, quem seriam?
— Arrogância. Privilégio. Falta de interesse pelo mundo e pelas
pessoas em geral. São traços de caráter e personalidade, não
emoções. Adquiridas na educação ou na falta dela.
— As pessoas só enxergam o que querem.
Ela o olhou, desafiadora: — Mas eles queriam o cervo.
— Eles queriam a euforia da caçada — Alexander a corrigiu.
— Vossa Graça também enxerga apenas o que quer enxergar?
— Ela olhou curiosa para ele. Foi um olhar breve, mas que causou
em Alexander um incomum aquecimento no centro do peito. — Não
parece um homem passional.
Ele olhou para a frente, menos pensativo do que intrigado com a
própria reação.
— E realmente não sou. Gosto de pensar que vejo as coisas por
trás da névoa.
— Sempre acabamos ofuscados por alguma coisa. — Ela deu de
ombros, plácida, voltando a olhar para a estrada. — O que muda é o
tipo de ilusão. O que turva a visão de um pode não turvar a do outro.
— Por isso devemos evitar os sentimentos. Sem sua
interferência, salvamos a razão.
A resposta de lady von Hoefsted foi imediata:
— Talvez essa seja a sua ilusão, milorde. Teria que ter nascido
de outra espécie para não sentir. A nossa foi comprometida pelo
coração.
Ele a olhou de esguelha.
— Alguns de nós são mais racionais que outros.
— A racionalidade é uma falácia — ela discordou novamente
dele, olhando para a frente. — Se não fosse, tomaríamos melhores
decisões. Em vez disso, estamos sempre nos metendo em
encrencas.
Alexander demorou-se mais no rosto dela do que devia. Do que
ela falava? Do evento que a colocou em uma enrascada? Uma
decisão tomada com o coração a teria metido com cavalheiros de
péssima índole, por certo. Ele não pôde deixar de sentir algo
desconfortável na boca do estômago. Reagir fisicamente a ela, no
entanto, era prova de que ela estava certa, e ele, errado.
— Bem, foi uma conversa agradável, milorde, mas precisamos
seguir o grupo — ela disse. — Eles tomaram a dianteira.
A melhor maneira de manter a razão, a vida havia lhe ensinado,
era partindo. Pelo jeito, ela também tinha aprendido essa lição.
— Não sou um amante das mortes desnecessárias. — Ele olhou
para o grupo, que parecia ter achado um animal e agora o perseguia
pela campina.
Pela primeira vez ele se sentiu intensamente observado por ela.
Um segundo depois veio a proposta:
— Talvez queira me seguir, então.
Ela virou o cavalo, lançando em sua direção um sorriso
enigmático que era pura névoa.
Ela não precisou convencê-lo. Ele cavalgou atrás dela, forçando
a acompanhante a acelerar atrás deles para manter o ritmo.
Lady von Hoefsted não era apenas uma boa amazona: ela era
espantosamente boa. Alexander se surpreendeu ao vê-la cavalgar
cada vez mais rápido, seguindo o grupo.
À frente, a matilha perseguia a corça. Atrás dos cachorros
vinham os nobres e suas armas em punho, uma massa de homens
atrapalhados que passava como um borrão no horizonte. Alexander
esperou que ela fosse desistir, dada a distância que estavam deles,
mas viu lady Von Hoefsted bater as botas na barriga do animal,
forçando-o a galopar mais rápido. Os olhos dela estavam fixos na
trajetória da corça.
Então, como se tivesse visto algo que ele não via, ela embicou
para a direita, pegando uma trilha paralela. Alexander não entendeu
a decisão. Seguia em linha reta para alcançar os companheiros ou
ia atrás dela?
Alexander apertou a barriga do animal, e o belíssimo corcel
acelerou atrás do cavalo dela, cruzando a campina na diagonal. Ele
não entendia o que ela estava fazendo — ou ele. Estava tentando
alcançá-los por outro lado? Se continuasse naquele caminho,
seriam separados mais adiante por um pedaço de mata e perderiam
o bicho.
Ela continuava a forçar o cavalo a galopar cada vez mais rápido.
Estavam agora ao lado da matilha, mas em outra estrada. Alexander
viu a moça tirar o arco das costas e puxar uma flecha do suporte.
Não era possível acertar o animal daquela distância. Havia
folhagens entre eles e o grupo; ele mal enxergava onde estava o
animal perseguido!
O cotovelo elegante de lady von Hoefsted ergueu-se, as mãos
seguindo o trote, os olhos afiados estudando através da ponta da
lança a trajetória em toda as suas improváveis variações. O vento
soprava leve e o sol incidia sobre as árvores. A corça continuava a
fugir em disparada pela campina, renteando a floresta.
Quando surgiu uma clareira entre eles e o grupo, lady von
Hoefsted abriu a mão. A flecha zuniu sobre a campina em um
ângulo estranho. Em seguida, ela puxou com força a rédea do
cavalo vendo a flecha passar voando a poucos metros da corça,
cruzando tão rápido seu caminho que o animal, ao ouvir o zunido,
mudou a rota. Embicando à esquerda, deu um salto sobre os
arbustos e sumiu na mata; se tivesse imbicado à direita teria
encontrado o duque e a atiradora. Os arbustos se remexeram e
então se aquietaram. A corça havia sumido atrás do matagal alto
que bordejava a floresta.
Alguns cães aventuraram-se entre os arbustos, mas a maioria
parou, latindo, achando que não valeria a pena atravessar o
espinhal.
Alexander mal entendeu o que viu. Wilhelmine guardou o arco e
diminuiu o galope até parar por completo, vendo os homens
chegarem tarde demais. Eles amaldiçoaram a mudança de rota do
bicho e ninguém parece ter visto a flecha que causou tudo.
Alguém soou o apito, chamando os cães. Os que estavam na
floresta também retornaram, juntando-se aos outros. A caça estava
terminada.
De longe ele viu a jovem olhar para a floresta, vendo o último
dos cães reunir-se à matilha. Só então ela olhou para ele com as
bochechas coradas e um sorriso de vitória no rosto.
Por um tempo Alexander e ela se encararam. Era impossível não
sentir as coisas que estava sentindo. Admiração, ele nomeou uma
das muitas. Não costumava sentir aquilo por muitas pessoas, e não
se lembrava da última vez que sentiu aquilo por uma mulher.
A dama puxou o arreio e cavalgou de volta até onde ele estava.
Passando por ele, deu de ombros.
— É por isso que me mantenho longe — ela comentou sem olhá-
lo. — Minha mira é péssima. Nunca consigo acertar nada.
Alexander a seguiu, sabendo que aquilo era uma inverdade.
Ele tinha sido acertado.
7

— D , R ! —
Wölpinghausen para o amigo marquês, quase derrubando com o
cotovelo a bandeja de um criado. — Era ou não era o maior cervo já
visto por essas bandas?
— Realmente imenso — o marquês respondeu, mais interessado
em provar as codornas recheadas que discutir a enfadonha caçada
da manhã. — Pena que embrenhou-se na floresta e não pudemos
pegá-lo.
— Mais uma vez, o perdemos no último momento.
— Imbicou para o lado sem aviso — um outro disse ao lado. —
Os cachorros não conseguiram alcançá-lo.
Phillip, sentado à cabeceira, riu:
— Não é a primeira vez que contam a mesma história… Estou
achando que os cervos do meu bosque são mais espertos que
vocês.
O marquês parou de destrinchar a codorna e olhou ao redor:
— Vocês não tiveram a sensação de que ele foi assustado por
alguma coisa?
O duque de Württemberg, sentado perto de Phillip, ergueu os
olhos do prato. O canto erguido da boca indicava diversão pelo
rumo da conversa.
— Um tiro? — alguém cogitou. — Teríamos ouvido se alguém
tivesse atirado.
— Não. — O conde de Wölpinghausen balançou a cabeleira
cacheada. — Certamente teria dado para ouvir. Algo o assustou.
Mas o quê?
Os nobres ergueram os ombros, sem saber ou se interessar. A
diversão efêmera havia ficado no passado. Interessavam-se no
momento pela comida farta e bebida abundante. Quem estava
preocupado com um animal estúpido?
Wilhelmine olhou outra vez para o duque, e dessa vez os olhos
azul-escuros já a esperavam.
— As campinas já não são mais as mesmas — o conde
suspirou, voltando ao prato. — Foi-se o tempo em que víamos
cervos galhados por lá.
A troca de olhares com o duque evoluiu para um sorriso
cúmplice, mas não durou muito. Ela voltou a dar atenção ao conde
de Hagen, designado a se sentar ao seu lado, enquanto tentava
amansar o estranho rebuliço que trazia caos ao seu interior.
Christine tinha razão: o duque tinha algo de enérgico em si. Uma
força interna, potencializada pelos traços duros e poder ilimitado.
Ela o olhou de relance uma última vez, murmurando "sim" para uma
pergunta qualquer do conde. Como pôde não tê-lo achado bonito na
noite anterior? O cabelo preto, bem penteado para trás, deixava à
mostra um rosto anguloso e severo, mas de muitas formas, único. O
queixo imponente exibia a determinação férrea dos grandes. Sua
figura inteira exalava comando, e causava nela calores.
— Acha então que… — o conde de Hagen hesitou, tímido. —
Que lady Christine poderia aceitar um convite para uma visita à
queijaria de minha família?
Wilhelmine acordou. Precisava dar atenção ao pobre coitado ao
lado, já que ninguém tinha muita paciência para ele.
— Tenho certeza que sim, milorde. Christine provavelmente
fingirá não gostar dos cabritos, mas sei que aprecia bastante os
queijos de cabras que envia regularmente ao palácio.
A figura pálida do conde reluziu ao ouvir aquilo. Tadinho, pensou
Wilhelmine. Na verdade, Christine fazia um escândalo toda vez que
a cesta de queijos chegava espalhando o cheiro intenso de curral ao
redor, não importa quão enfeitada ou envolta em laços e fitas
coloridas vinha. Mas como partir o coração do conde, eterno
pretendente recusado de sua prima geniosa? Wilhelmine não tinha
coragem.
— Tentarei falar com ela esta noite. — O conde limpou a boca,
esticando os olhos até sua amada.
Boa sorte, Wilhelmine o desejou em pensamento, voltando a
prestar atenção à conversa de Phillip com o duque.
— Espero que tenha se divertido hoje, Alexander — Phillip falou
da ponta da mesa.Quando o príncipe falava, as conversas paralelas
paravam. Wilhelmine aguardou com estranha expectativa a resposta
do convidado.
— A cavalgada foi extremamente prazerosa, Alteza. Quanto às
campinas, elas me parecem fartas de animais, como sempre.
O príncipe virou-se para o conde de Wölpinghausen e, em
seguida, para o marquês. Aquilo era o oposto do que tinham
afirmado.
— Acredito que apenas Vossa Graça tenha tido sorte, então — o
marquês disse educado, mas o tom de zombaria era nítido. — Para
a sorte da caça, não faz questão de caçá-las.
— Não é de fato um esporte do meu agrado — o duque
respondeu, tranquilo. — Mas sim, acredito que tive sorte.
O marquês continuou, alheio ao sorriso discreto do duque: —
Perto das emoções do seu dia a dia, a caça deve lhe parecer um
esporte tolo.
— Desnecessário, eu diria.
Wilhelmine sentia os olhos de todos na conversa dos dois. O
marquês era conhecido por sua incapacidade de segurar a língua; o
duque, pela impaciência com os tagarelas.
O comentário do duque causou furor entre os defensores do
esporte.
Wilhelmine acompanhava as respostas sábias e serenas do
duque a cada provocação. "Mas se não os caçarmos, morrerão de
fome devido à competição!"; "são pragas para a colheita!" e "a
tradição não deve morrer!". Para cada afirmação, o homem
respondia com fatos que mostravam o contrário. Ele os estava
cansando com respostas sempre simples e educadas. Não
alimentava a discussão nem retrocedia nos argumentos — o que
irritava os mais agitados. Um homem inteligente, Wilhelmine
pensou, descendo os olhos até as mãos masculinas paradas ao
lado do prato. Ele continuava a argumentar com tocante placidez
contra o esporte que silenciava cada vez mais as matas. Nenhum
dos outros conseguia rebatê-lo — não sem parecer estúpido ou
erguer a voz. Embora muitos ali fossem verdadeiras toupeiras,
manter uma boa impressão era necessário.
Wilhelmine desistira até mesmo de comer. A discussão ficava
cada vez mais acalorada, e até seu pai, o visconde de Hoefsted,
sentado ao final da mesa — e que geralmente comia em silêncio e
nunca emitia opiniões —, arriscou dizer que via um ponto nos
argumentos do duque. O marquês tentara de tudo para vencer o
oponente, mas seus esforços foram patéticos e em vão. Wilhelmine
já não estava mais prestando atenção aos despautérios do grupo
nem às respostas monossilábicas ou irônicas do duque. Ela corria
os olhos por ele. Pelos ombros maciços e mãos de aspecto áspero
que, comparadas às dos apáticos nobres ao lado, pareciam
impressionantemente fortes.
Ela se assustou ao ouvir o próprio suspiro. Voltou a olhar para o
copo, sem saber de onde estavam vindo aquelas ideias. Voltando a
comer, decidiu dar novamente atenção ao pobre conde e suas
tediosas explicações sobre a arte da produção de queijo. Certas
coisas eram mais seguras que outras.
Quando o jantar acabou, ela viu o duque se levantar e se dirigir
sem nem mesmo olhar para trás para o salão de fumo junto com os
outros. A ela restou acompanhar a princesa e a comitiva feminina
até a sala de visitas, acreditando que aquela seria a última vez que
o veria.

— N , ?
— Phillip perguntou aborrecido quando o duque o interpelou no
corredor.
— Não — Alexander respondeu, sem dar margem a objeções.
Eles tomaram o caminho para o escritório, afastando-se do
barulho das conversas e do discreto cheiro de fumo e conhaque. As
lâmpadas a gás iluminavam os corredores onde criados se
curvavam à sua passagem. A temperatura naquela época do ano
costumava enervar o duque, e naquela noite estava particularmente
quente.
Alexander detestou o jantar, e pretendia partir o mais breve
possível. A discussão sobre a caça fora a única coisa boa da noite
— jamais perdia a oportunidade de irritar nobres inúteis —, mas não
gostara de ver o conde de Hagen ao lado de lady von Hoefsted.
Sentia vontade de perguntar a ela se era cega. Ou fazer a mesma
pergunta ao conde: não se enxergava? Então voltava a trazer a
cabeça para o lugar sem saber por que, em nome de Deus, seria
rude com qualquer um dos dois. Não tinha motivos. Ficou satisfeito
quando o maldito jantar acabou e se retiraram do salão. O ácido do
vinho já lhe subia a garganta e ele sabia que quando isso acontecia,
estava irritado.
Era questão de tempo até o almofadinha pedir a mão da jovem.
Bom para ele, Alexander pensou. E para ela também.
— Tem certeza de que não deseja ficar até o fim de semana? —
o príncipe perguntou olhando para a gárgula que era o rosto do
duque, no momento. — Você pareceu ter se divertido durante o
jantar.
— Pretendo partir amanhã — Alexander respondeu.
O príncipe deu de ombros.
— Se insiste. Mas sejamos breves, eu peço. Pretendo voltar aos
meus convidados.
— Serei breve.
Um criado abriu as portas do escritório, duas gigantescas
estruturas que iam até o teto adornado por estuques dourados. Eles
entraram e fecharam a porta.
— Por favor. — Phillip indicou a cadeira da frente para o amigo.
O imenso corredor até ali havia dado a Alexander tempo de
pensar. Quando chegou ao escritório, já havia expulsado os
pensamentos absurdos da cabeça e recolocado as prioridades no
lugar. Não estava ali para pensar em mulheres; estava ali para falar
de guerra. De exércitos. De estratégia e futuro.
Se tinha curiosidade em saber que tipo de relação aquela jovem
tinha com o príncipe, era apenas uma curiosidade, e curiosidades
podiam ser mortas. A moça era uma criatura admirável — embora
envolta, no momento, em um escândalo —, mas era jovem e tudo
aquilo um dia ficaria para trás. Se fosse esperta, desposaria o conde
e começaria um novo capítulo da vida.
Alexander não tinha nada a ver com aquilo.
— Conhaque? — Phillip ofereceu, levantando o dedo para o
criado. Alexander recusou. O príncipe aceitou o copo com um
suspiro desanimado, sabendo o que viria. — Vamos lá, Alexander.
Sei que quer falar sobre o meu exército.
Alexander queria. E era o que faria.
A conversa começou bem, apesar do insistente incômodo que a
gola apertada e engomada causava. Rijo como um totem, com o
pescoço vermelho por causa de um tipo de coceira que não coçava,
ele listou os motivos pelos quais o pai de Phillip havia recrutado
aqueles homens.
Os conflitos próximos ao principado. A provável expansão da
Prússia no futuro. A importância da segurança territorial.
A conversa seguia junto com o incômodo. Phillip compreendia
sua posição e tinha seus argumentos. Era um homem inteligente, ao
contrário dos amigos. Por que não se encantaria, portanto, pela
dama tão próxima da família? Alexander descruzou as longas
pernas e cruzou-as novamente. O assento da poltrona era macio
demais, talvez por isso não achasse posição. Maldita sensação de
quem quer dizer uma coisa e não se permitia.
Alexander não saberia dizer por que diabos, entre assuntos
sobre batalhões e orçamento, o nome de Wilhelmine von Hoefsted
surgiu. Saiu, como quem cospe o que o impedia de respirar. E
embora a conversa tenha começado como planejara, ela terminou
de forma radicalmente diferente.
Em que momento fez o que fez? O duque não fazia ideia.
O queixo de Phillip cedeu quando as palavras saíram da boca do
duque. Chegou a abrir e fechar duas vezes a boca, talvez para
perguntar se Alexander tinha certeza do que acabara de propor,
mas então se calou.
— Devo chamar o visconde von Hoefsted? — o príncipe
perguntou com os olhos arregalados.
Alexander tirou o relógio do bolso e conferiu as horas. Estava
tarde para uma conversa daquela natureza, mas algo interno — que
ele nomeara vontade, mas era maior e bem mais forte que um
simples querer — o impelia a selar o acordo ainda aquela noite.
Antes que outro o fizesse.
— Por favor.
Phillip tocou a sineta, hesitante.
O secretário abriu a porta, perguntando:
— Pois não, Alteza?
Phillip olhou para o duque, inerte. Que alguma coisa ali dentro
pulsasse e batesse parecia surpreendê-lo. — P-precisamos falar
com o visconde von Hoefsted. Chame-o, por favor.
O secretário saiu e retornou minutos depois com o pai de
Wilhelmine.
Em seguida, foi a vez de Wilhelmine ser chamada.

C
no salão e interrompeu o jogo de cartas, solicitando a presença de
Wilhelmine no escritório do príncipe. A princesa insistiu para ir junto,
mas o secretário falou que apenas lady von Hoefsted fora chamada.
Wilhelmine caminhou desconfiada atrás do secretário,
estranhando o convite. Alisou o estômago rezando para que não
tivesse nada a ver com a maldita noite de anos atrás. Nunca havia
estado antes no escritório de Phillip, e definitivamente assustou-se
ao ver, ao entrar, o pai sentado na frente do príncipe, separados
pela enorme mesa de mogno.
Surpresa ainda maior teve ao ver a figura esguia e maciça do
duque à janela, virado para os jardins. Mãos unidas para trás, olhos
na noite. Fagulhas explodiram em seu estômago.
Assim que ela foi anunciada, o duque se virou. Ele a olhou sem
reação, a expressão inteira um enigma intraduzível. Não parecia
feliz nem surpreso com sua chegada. Não parecia nem mesmo o
homem que cavalgou ao seu lado naquela manhã.
— Winy — Phillip disse, levantando-se.
Seu pai levantou-se com dificuldade também.
— Pai? O que está fazendo aqui? — Wilhelmine murmurou. Não
entendia a presença do pai no escritório do príncipe, mas toda a
confusão era desbotada pela consciência do terceiro homem no
cômodo. Não era possível que estivesse enrascada outra vez.
— Querida — o pai disse com voz embargada. — Aproxime-se,
por favor. Temos assunto a tratar, e ele diz respeito a você.
Só se ouvia o farfalhar das saias de Wilhelmine movendo-se pelo
chão. Ela caminhou em silêncio até a poltrona encarando cada um
deles com tranquilidade. Seu coração, no entanto, batia em
compasso enlouquecido no peito. As tentativas de manter-se de pé
e aparentar calma drenavam sua energia. As mãos, frias,
apertavam-se uma na outra, mas ainda assim ela era o retrato da
indiferença. Vítimas de vexames públicos precisavam sempre
parecer indiferentes.
O pai a levou pelas mãos até uma cadeira e ela se sentou.
Sentiu pena ao vê-lo tão cansado ao lado de cavalheiros tão
jovens e bem-arrumados. O visconde ainda contava com o único
valete, velho demais para abdicar de seu trabalho, mas ele deixara
de ser bom uma década atrás. Wilhelmine forçou um sorriso para
ele.
— Acho que já sabe por que foi chamada, não sabe? — o pai
perguntou.
Talvez. Ela não tinha certeza, porque parecia improvável. Seus
cílios batiam rápidos, enquanto a ideia descia como uma corredeira
gelada por ela.
Pela periferia da visão ela viu o duque caminhar até eles e parar
ao lado de Phillip. A saliva de Wilhelmine mal conseguiu descer pela
garganta.
— Sua Graça, o duque de Württemberg, e sua Alteza
conversaram comigo — o visconde disse devagar, pegando na mão
da filha. — Sua Graça solicitou minha presença aqui porque gostaria
de pedir autorização para a corte.
A coluna de Wilhelmine enrijeceu. Não, ela se consertou;
enrijecer era um termo brando para o que aconteceu com sua
coluna. Suas vértebras e todos os ossos ao redor viraram pedra.
— Winy… — o príncipe disse sem nem mesmo saber como
começar. Ele pegou ar, sorrindo para ela. — Acredito que é de
interesse de todos um enlace entre as duas famílias.
A língua de Wilhelmine parecia ter se esquecido como se mover.
Por que seria do interesse do duque…
Ela não conseguia sequer olhá-lo.
O duque limpou a garganta, acordando o visconde.
— O duque pediu sua mão em casamento, querida — seu pai foi
mais claro.
Como era possível que a frase a atingisse com força total, se já
havia entendido do que se tratava a reunião?
— Não haveria cortejo prolongado — o duque explicou em tom
frio, forçando Wilhelmine a olhá-lo. — Moro longe demais para isso.
Eu lhe daria um tempo para preparar um casamento com toda a
pompa que desejasse. — A voz rouca e modulada continuava a
preencher o cômodo. — A senhorita disporia de todos os recursos
que julgasse necessários.
— Quanto tempo? — Wilhelmine perguntou com um fio de voz.
O duque não entendeu a frase, ou não a ouviu. Ela repetiu: —
Quanto tempo teria até o casamento?
— Um mês — a resposta veio direta.
Sedada, Wilhelmine lembrou-se de algo. Ela supostamente não
deveria saber daquilo — e muito menos mencionar o assunto, já que
damas não falavam de dinheiro —, mas não toleraria que o duque a
pedisse em casamento sem saber de tudo. Já era humilhante o
suficiente ser um produto no mercado de casamentos. Ser um de
qualidade tão ruim era insuportável.
— Papai — ela se inclinou, dizendo baixo. — O senhor precisa
falar do dote.
Fazia questão que ele soubesse de tudo, e já. Preferia que
desistisse de tudo naquele instante, e não mais tarde, quando os
mexericos voltassem a correr pela corte.
— Conversamos sobre isso, querida — o visconde disse com os
ombros baixos, a derrota exposta para quem quisesse ver. — O
duque abre mão do dote. Na verdade, ele propôs um acordo
vantajoso para a vila de Hoefsted.
Wilhelmine voltou a erguer a coluna. As mãos tremiam
discretamente, e ela as firmou no colo. Era humilhante não ter dote.
Estava sendo comprada, essa era a verdade. Comprada por um
homem de recursos infinitos. Devia se sentir péssima, mas não se
sentia completamente péssima. Não de todo. Ao virar o rosto na
direção do duque e encontrar seus olhos, tudo que sentiu foi um
choque percorrer sua coluna. Um choque longe de ser sentido como
péssimo.
Wilhelmine balançou a cabeça fazendo que sim.
Ela pôde ouvir o príncipe exalar ao lado.
— Christine a atacará, Winy — Phillip a alertou. — Ela era muito
ligada a Elsa.
Wilhelmine o ignorou. Ainda estava tentando entender o que o
duque vira nela, mas até o momento não tinha conseguido. Ele era
mais velho que ela — ao menos quinze anos. Era também
inteligente e poderoso. Era frio, sabia, mas não a ponto de ser cruel.
E era um duque.
Aquilo era suficiente para esvaziá-la de argumentos.
— Deixe que eu me entendo com ela — Wilhelmine respondeu a
Phillip. Então, olhando para o duque, disse com integridade
renovada: — Sinto-me lisonjeada, milorde. Minha resposta é sim.
8

A ,
silêncio. Wilhelmine não conseguia saber se Phillip estava aliviado
ou apavorado pela ideia de vê-la casada com o duque. Seu pai
ainda não havia recuperado as palavras, e as feições do duque
eram uma incógnita. De qualquer maneira, estava feito.
Ela não entendia como o dia, que começara de um jeito,
terminara assim. Sabia que o nobre do Sul estava no reino para
convencer Phillip a manter as tropas, e não para arrumar uma noiva
— embora aquilo fosse algo com o qual ele precisaria lidar em
algum momento. Com quase 38 anos, o duque precisava de
herdeiros.
Wilhelmine era jovem, saudável e disponível. Era horrível admitir,
mas sua posição no momento praticamente a forçava a aceitá-lo.
Ele era a solução para o seu nome manchado. Ninguém ousaria
dizer uma só palavra da esposa do duque de Württemberg-
Winnental, sob o risco de parar — ou ver seus filhos e conhecidos
pararem — na infantaria de algum exército distante. Apenas ele
poderia prescindir do dote que lhe faltava e suplantar a humilhação
da família por tê-lo esgotado. O acordo que acabara de ser fechado
garantiria à família dela alguns anos de benesses financeiras e
restauração da antiga honra.
Se estava sendo vendida como mercadoria, chegava à
conclusão, era por um bom preço. Pior do que casar-se era não
casar-se, e o problema que até ontem parecia insolúvel estava
resolvido.
O duque precisava de uma esposa. Ela, de um marido.
Recuperada do choque, as mãos de Wilhelmine pararam de se
apertar sobre o colo e relaxaram. Ao contrário da tensão ainda
estampada no rosto dos cavalheiros, ela se recompôs. Ninguém
escondia ali os sentimentos tão bem como ela.
— Cavalheiros. — Wilhelmine olhou para o pai e o príncipe. —
Gostaria de um momento a sós com Sua Graça, se me permitirem.
O príncipe e o visconde se levantaram, avisando que os
aguardariam entre os outros convidados. Precisavam dar as boas
novas ao grupo, e um jantar era sempre uma boa ocasião para isso.
A porta se fechou, e Wilhelmine e Alexander foram deixados a sós.
Assim que os passos se afastaram, o duque caminhou até a
porta e a abriu. Wilhelmine o acompanhou com os olhos, cada
pelinho do corpo eriçado por uma sensação gelada que irradiava da
barriga. Embora estivessem "noivos", o duque era um cavalheiro e
estar trancado em uma sala com ela não ajudaria em sua reputação.
Ao voltar, ele parou a uma distância decente. Os olhos azuis
estavam novamente escuros.
— Pois não, milady.
Lá estava aquela coisa emanando dele outra vez. Aquela
sensação de algo potente e masculino. Além de confiança, certeza e
certa… satisfação. Ela se levantou, afugentando os pensamentos
tolos — satisfação pelo quê? — enquanto se repreendia por
responder, em imagens, a satisfação que maridos podiam ter com
as esposas.
— Por quê? — ela perguntou, direta. Estavam sozinhos, não
tinham por que mentir um para o outro.
— Por que não? — ele respondeu. — Preciso de uma esposa.
— Não veio para cá tratar disso.
Não havia aversão ou desafio na voz dela. Ela só queria
entender por que um duque escolheria o problema da corte para
desposar. Gostava de sofrer e queria atrair problemas para si? Ou,
por mais que soasse improvável — afinal, o duque não era um
rapazote inconsequente —, sentia-se incapaz de conseguir um
casamento melhor? Talvez fosse do tipo que confundisse piedade
com bondade, e a caçada da manhã o tivesse impressionado.
Homens estavam sempre procurando virtudes estranhas nas
mulheres: doçura, mansidão, pureza.
Wilhelmine não era uma mulher doce. Nem mansa.
— Aproveitar a viagem para fazer as duas coisas economizou-
me tempo — ele respondeu, tranquilo.
Ela balançou a cabeça que não. Embora a voz de veludo macio
a aquietasse, havia algo mais.
— Se o comovi com a cena da campina, saiba que aquilo não foi
nada. — Ela ergueu os olhos. — Não sou uma mulher bondosa.
— Bondade não é um requisito para ser minha esposa.
A resposta causou o impacto que deveria causar. Wilhelmine
engoliu em seco, sentindo o coração bater nos ouvidos.
— Sabe dos rumores que cercam meu nome.
— Sim — ele afirmou sem titubear. Era de seu feitio ser franco e
ela já tinha notado isso.
— Mentiras, é claro. — Ela voltou a apertar as mãos. — Ainda
assim, malignas o suficiente para causar dores de cabeça não
merecidas em minha família.
O duque assentiu, sério. Ele concordava com ela e via bastante
seriedade naquilo.
Ela umedeceu os lábios, incapaz de retornar ao evento e encará-
lo ao mesmo tempo.
— Fui acusada de estar em meio a uma situação indecorosa na
companhia de não apenas um, mas dois cavalheiros — Wilhelmine
falou, sem conseguir encará-lo. Salvar sua reputação era
importante, mas manter a dignidade também. Homens francos não
suportavam mentiras — e nem ela.
Ela limpou a garganta, ergueu o queixo e continuou:
— A história foi contada com requintes de maldade e enfeitada
por detalhes inexistentes — ela complementou. — Mas é contada.
Constantemente.
— Isso é tudo que preciso saber.
Ela apertou os olhos em sua direção. Tanto zelo e indiferença
não a enganavam. O assunto não lhe era indiferente, ela sabia que
não era. Não podia ser.
— Gostaria de caminhar comigo pelas galerias? — o duque
perguntou.
Wilhelmine assentiu.
Eles caminharam lado a lado até o início da galeria. O imenso
corredor estendia-se indefinidamente até terminar a construção. O
duque vinha ao lado, com a coluna ereta; a condessa von Wuperthal
certamente daria a ele nota máxima em postura. Wilhelmine se
endireitou também, entendendo naquele instante a importância de
arquear as costas.
— Fico satisfeito que tenha sido direta a respeito dos
comentários — o duque quebrou o silêncio. Suas mãos estavam
unidas atrás do corpo e seus olhos corriam pelas imagens na
parede. — Saiba que não a julgo por nada. Nem mesmo se não
quisesse me contar sobre os rumores.
— O senhor teria que ser surdo para não ouvi-los — ela
resmungou baixo.
O duque não sorriu, mas quase.
— Sei que é astuto, e percebeu que os cavalheiros comentam
sobre mim — Wilhelmine murmurou.
— Verdadeiros cavalheiros não comentam sobre damas.
— Há uma enorme falta deles no reino — ela o advertiu, sem
humor.
Eles continuaram andando. Por algum motivo, o duque se
interessava pelas pinturas. Wilhelmine se cansara de olhá-las no
decorrer dos anos; as imagens de santas e santos nunca a atraíram,
ou conversaram com ela. Eram modelos inacessíveis demais para o
seu gosto.
— Não é interessante que em um principado maciçamente
luterano, o monarca disponha de uma coleção tão vasta de pinturas
sacras católicas? — o duque perguntou.
— O príncipe era um grande apreciador desse tipo de arte. Não
lhe interessava de qual religião.
— Gosta de arte? — Ele a olhou.
— Bastante. Gosto de pintar.
Por algum motivo, ele gostou da resposta dela. Wilhelmine teve
dificuldades em sustentar o olhar no dele. Por baixo de todo aquele
verniz de sobriedade havia um homem diferente, e ela não era
imune a ele. E, em breve, ele seria o seu esposo.
Por que justamente ela? A pergunta continuava a martelar sua
cabeça. O que faria aquele homem tão importante escolhê-la? Não
era a mais bela das criaturas, e Deus o ajudasse, nem a mais
adequada. Era possível que seu útero valesse tanto?
A fim de afastar os pensamentos que a acaloravam, ela
continuou:
— Estou estranhamente aliviada por termos conversado sobre o
assunto. E se, apesar de tudo, decidir seguir adiante com o pedido
de casamento, prometo ser uma esposa boa o suficiente.
Ele a olhou, divertidamente intrigado.
— Não apenas "boa", nem "excelente"? — ele perguntou
suprimindo um sorriso.
— Achei que estivéssemos sendo francos. Não me imagino
sendo excelente em nada.
Ele riu. Ela sentiu necessidade de explicar:
— Faço muitas perguntas, e normalmente retruco quando algo
não está certo. Isso me remove da categoria de esposas excelentes.
— Não me importo em responder perguntas, ou ver meus
argumentos retrucados. — Ele riu. — Se os seus forem mais fortes
que os meus, sou capaz de mudar de ideia.
— Isso traz o senhor para a categoria de maridos excelentes —
ela brincou.
Ele agradeceu com uma inclinação jocosa. Então continuou:
— Sei que está sendo sincera ao dizer isso, mas acho que será
boa o suficiente. Não é uma posição fácil, preciso avisá-la. São
muitos os deveres de uma duquesa. Mas terá séquitos de
assessores e criados para ajudá-la nas tarefas.
Ela parou no lugar.
— Justamente por estarmos sendo tão sinceros, volto a
perguntar. — Os olhos dela encontraram os dele. — Por que
justamente eu?
Não foi porque ele estava ali e queria aproveitar a viagem. Não
foi apenas porque ele precisava de um herdeiro. Aquele poderia ser
considerado um casamento morganático. Não muitas décadas
antes, ela se lembrava dos boatos, um duque do sul se casara com
uma baronesa e quase perdera o direito ao ducado. Havia algo mais
ali, e ela estava intrigada.
O duque exalou, voltando a endireitar as costas. Ele se virou
para o quadro ao lado, deixando-a com a visão de seu perfil. Ele
tinha um nariz reto e bastante orgulhoso. As costeletas escuras
eram bem-aparadas e nenhum fio do cabelo saltava do lugar. O
quadro que observava mostrava a imagem de uma mulher
sofredora, coberta por um manto vermelho. Durante todo o tempo
em que ela aguardou ele observar a pintura, a pergunta ecoava
dentro dela: por quê?
A voz do duque pegou-a de surpresa:
— Sabe por que alguns santos são pintados envoltos em mantos
vermelhos?
Wilhelmine piscou, olhando para as imagens. Ela fez que não.
Não fazia ideia.
O duque voltou a caminhar, e ela o acompanhou. Ele não
respondeu à pergunta dela, nem ela a dele. Eles continuaram pela
galeria em silêncio, analisando as imagens. Para Wilhelmine, era
como se de súbito várias das pinturas lhe saltassem à vista. Nunca
tinha reparado quantas santos e santos se cobriam de vermelho.
— Sei que quer saber os meus porquês, e lhe direi com prazer.
— Ele a olhou de relance. — Mas antes gostaria de dizer que
também não gosto do fato de que paire sobre mim alguns rumores.
Foi clara quanto aos seus. Talvez precise ouvir de mim sobre a
morte de Elsa. Há algo que deseje saber?
Wilhelmine enrijeceu. Sabia que precisava mencionar aquele
assunto com cautela. Christine havia contado histórias sobre ele;
sobre uma amante fixa e seu desinteresse pela esposa. Sobre suas
longas ausências e frieza glacial.
Ela molhou os lábios, precisando pensar depressa. Poderia
tolerar uma amante? Ela achava que sim. Não o amava, e quanto
menos a visitasse à noite, melhor. Ela toleraria bem o descaso dele
— bastava que nada os unisse para que nada a machucasse.
Poderiam ser respeitosos um com o outro desde que entendessem
seus deveres: no caso dela, gestação de um herdeiro,
administração da propriedade, criação dos filhos. Em troca, ela teria
o mundo. Seu nome limpo, sua honra restabelecida e as dívidas do
pai, pagas.
Por tudo isso, ela falou com cautela:
— Elsa era sobrinha de uma irmã de Peter. Não a conhecia bem.
Não éramos próximas.
— Sei que Christine se aborreceu com os rumores que ouviu em
Württemberg. As relações com a família nunca mais foram as
mesmas depois do velório.
— Dou aos rumores a importância devida, milorde: nenhuma.
O duque a investigou. Ela não queria saber sobre a amante que
morava próxima? Sobre as viagens constantes e ausências
prolongadas?
Não. Wilhelmine não queria saber de nada.
Os motivos para o duque desposá-la, pensando melhor, eram
irrelevantes. Ela guardaria seu amor em uma caixinha. Trancaria
seus sentimentos longe dos olhos e do mundo. Isso se um dia
viesse a descobrir o que é, de fato, amar. Nunca sentira amor por
ninguém e duvidava muito que viesse a sentir. Amava seu pai,
Christine, sua liberdade. Amava o suficiente, para falar a verdade.
— Sei que ouviu algo de mim, e gostaria que pudesse ter a
chance de me explicar.
— É justo, já que me deu a chance de fazer o mesmo — ela
respondeu. — Disseram-me que não foi um marido presente. Foi
isso que ouvi.
O duque assentiu, sério.
— Não serei de fato um marido presente. Sou muito demandado
tanto nos reinos do Norte como nos do Sul. Mas garantirei que
tenha tudo que quiser ou necessitar.
— Não exigirei nada.
O duque observou-a por um segundo, então perguntou:
— Mas gostaria?
Wilhelmine achou o tom empregado pelo duque ambíguo.
— Do quê? — perguntou. — Que me desse tudo que necessito?
— Não — ele respondeu, devagar. — Que eu fosse mais
presente.
A resposta de Wilhelmine veio rápida:
— Sinto-me lisonjeada com o pedido de casamento, mas não me
imagino exigindo que mude sua rotina por minha causa.
Ela não saberia dizer que tipo de mudança ocorreu nas feições
do duque. Os olhos dele perderam a placidez usual, e correram
brevemente pelo rosto dela. Um segundo, e ele era novamente a
estátua que costumava aparentar.
O que supostamente deveria falar? Estava realmente lisonjeada.
O duque tinha assuntos sérios a tratar, e ela não gostaria de ser um
estorvo. No mais, quanto menos ele passasse ao lado dela, mais
tempo ela teria para dedicar-se às suas coisas. Como poderia exigir
que ele mudasse sua vida para acomodá-la?
Eles continuaram a andar. Por um bom tempo nenhum dos dois
disse nada. Alguma coisa estava incomodando-o, Wilhelmine sabia;
só não sabia o quê. Havia sido franca demais?
Ou franca de menos?
Dessa vez foi Wilhelmine quem parou ao lado de uma santa de
manto vermelho. Precisava falar alguma coisa. Qualquer coisa era
melhor que o silêncio.
— Por que o manto deles é vermelho? O senhor me perguntou
isso ali atrás e não soube responder.
— O vermelho indica que eles se rebelaram. Por isso foram
perseguidos e flagelados.
A resposta fez o canto da boca de Wilhelmine arquear. Ela sabia
que a escolha do vestido no baile renderia todo tipo de interpretação
— e ela precisava confessar que gostava de todas —, mas aquela
era nova.
A voz do duque chegou baixa, encontrando seus ouvidos bem
mais perto do que ela esperava. Ele estava atrás dela, perto o
suficiente para que ela sentisse seu cheiro — uma mistura de
aromas exóticos e masculinos:
— Desconfio, milady, que em algum nível longe da consciência
já soubesse disso.
Uma sensação gelada desenrolou-se pela coluna dela.
Ela se virou, e ele esperava que ela se virasse. Estavam tão
próximos que, se inclinassem o rosto, beijariam-se. Mas estavam às
vistas de todos. Criados circulavam pelo andar, ruídos de
convidados chegavam de perto. Além disso, mal se conheciam. Não
havia por que se beijarem.
— Voltarei hoje para Württemberg — ele disse baixo, os olhos
nos dela. — Iniciarei assim que chegar os preparativos por lá.
Gostaria de firmar uma data para a sua partida?
O coração de Wilhelmine não batia nem baixo, nem fraco. Mas
ela conseguiu firmar a voz e responder acima das batidas:
— Quanto mais cedo, melhor.
Não saberia explicar por que a frase fez correr nela disparos
elétricos, ou por que os olhos do duque, tão misteriosos, cintilaram.
Ela teria tempo para dissecar aquelas sensações quando se
reencontrassem — e bastante tempo para livrar-se delas.
— Será cedo — ele avisou.
9

— V ?? — C
ao seu lado se encolherem. Wilhelmine esticou a mão até a da
prima para acalmá-la, mas levou um tapinha. — Não ouse tocar em
mim, Wilhelmine! Não me venha com "por favor, entenda"!
— Você não está sendo razoável, Christine.
— Algum dia fui?! — A voz de Christine saiu aguda. — O que
poderia ser pior do que desposar aquele bloco de gelo!?
— Não desposar ninguém — a condessa de Wuperthal rebateu.
Ela mexia compenetrada a colherinha na xícara, inteiramente
desinteressada pela perplexidade da pupila. — Estava pensando no
duque para você, querida, mas o pedido de casamento pegou a
todos de surpresa.
A condessa fitou Wilhelmine por cima da xícara com um
assombro discreto.
— Não estávamos mirando sequer acima de um baronete para
ela.
— Você sabe o quanto ele fez Elsa infeliz. — Christine virou-se
séria para Wilhelmine. — Eu contei pra você.
— Não sou Elsa — Wilhelmine respondeu, firme.
— Deus queira que não seja, realmente — Christine bufou. —
Espero de coração que seja o oposto dela. Que não se deixe
envolver por aquele… — Christine encheu a boca para falar coisas,
mas a condessa limpou a garganta.
— De todos os pretendentes que poderia arrumar, Winy, ele é o
pior — Christine continuou. — Ele é frio, ausente, idoso!
Wilhelmine suspirou. Lá vamos nós outra vez.
— Ele tem trinta e sete anos — a condessa a corrigiu, sem
paciência. — Céus, o próprio conde de Hagen, com quem você
tanto simpatiza, tem apenas cinco anos a menos que o duque!
Aquilo foi a gota d'água para Christine.
— Eu não simpatizo com o conde! Jesus amado, eu quero
distância do conde!Christine aceitou a nova xícara de chá que a
criada lhe estendeu, mirando o líquido cor de âmbar em completo
horror.
— O conde tem milhares de defeitos — céus, ele cria cabras! —,
mas Alexander tem muitos mais!
— Ele é um duque — a condessa revidou. Aquilo apagava
qualquer defeito.
— Eu não estava falando sobre títulos, e sim sobre o homem
com quem Wilhelmine terá que conviver para o resto da vida.
— Pois eu o achei bastante charmoso — a condessa respondeu.
— Um homem de beleza peculiar, inteligente e bastante educado.
Wilhelmine olhou para as mãos. O duque era, de fato, dono de
uma beleza bastante peculiar. Mas gostava, mesmo, de saber que
outros também o achavam inteligente. Seria capaz de morrer se
precisasse se casar com um idiota.
— Espere até Wilhelmine virar uma peça de mobília naquele
castelo silencioso, depois conversaremos. Ele é famoso por não se
importar com nada. Quanto tempo Wilhelmine conseguirá aguentar
suas ausências?
— Sendo duquesa? — a condessa perguntou. — Para sempre.
— Sinto muito por não estar feliz por você, Winy — Christine
disse, desgostosa. — Vejo a situação se repetir sem que eu possa
fazer nada. Foi simplesmente inacreditável quando ele escolheu
Elsa — nossa doce Elsa — e a levou daqui. Só se falou nisso na
época… — Christine fez uma pausa. —… Então lembraram do seu
escândalo, e voltaram a falar de você.
— Pois então — Wilhelmine aproveitou a oportunidade para
encerrar o sermão — em Württemberg estarei longe dos mexericos.
Terei a chance de ser novamente eu mesma, e não… o comentário
na boca do povo.
— Isso é verdade. Estará longe dessa gente pequena e
mexeriqueira — Christine concordou com um muxoxo irritado. —
Espero que entenda que quero o seu bem. Mas eu queria seu bem
longe dele.
— Nós já entendemos isso, querida — a condessa resmungou.
— Quando se sentir sozinha, me escreva — Christine olhou para
Wilhelmine. — Prometo que não escreverei de volta "eu avisei." Mas
inventarei um código para isso. Um pequeno "E.A." no final da
página. Ou no verso.
Wilhelmine fez que sim, e as primas sorriram uma para a outra.
— Terei muito o que descobrir por lá. Muitos livros para ler,
muitas benfeitorias para fazer no ducado. E logo virão os filhos, eu
espero — Wilhelmine falou sentindo novamente um frio na barriga.
Todas ali sabiam que filhos não preenchiam os dias vazios da
nobreza, e que para fazê-los eram necessárias tentativas íntimas. —
Terei o suficiente para fazer. Ouvi dizer que o castelo é muito bonito.
— Ele realmente é — Christine confirmou. — Sabe como ele se
chama?
Wilhelmine assentiu. O castelo se chamava Solitude.
Solidão, era a tradução. Mais uma vez a palavra aparecia para
ela, e já não dava mais para fingir que não a via ou deixar de notá-
la.

E W . A
criada que costumava servi-la quando se hospedava em Bückeburg
abriu a porta. Um segundo depois, ela voltou correndo até a cama,
aparentando tensão:
— Milady. A senhora tem visita.
A essa hora? Quem a visitaria? Wilhelmine vestiu o robe sobre a
longa camisola de algodão e caminhou até a porta.
Parado sob o batente, o príncipe a aguardava.
Wilhelmine evitou suspirar, irritada. Virando-se para a criada,
pediu:
— Poderia nos dar licença por alguns instantes?
A criada passou curvada por eles, desaparecendo
silenciosamente no corredor. Phillip a observou se afastar, e só
então entrou no quarto da prima.
Ele fechou a porta e se virou. Wilhelmine e ele se encararam.
— Não vou me demorar — ele disse. — Sei que é tarde.
Ela assentiu. Bem tarde.
Wilhelmine caminhou até a cama e se sentou, cruzando as mãos
sobre o colo. Olhando para o primo, perguntou-se onde tinha ido
parar a amizade dos primeiros anos. Onde estavam o amor e o
carinho que compartilhavam? Nos últimos dois anos aqueles
sentimentos haviam se desintegrado devagar, como uma escultura
de barro sob a chuva. Hoje era uma coisa disforme, que a qualquer
momento poderia ser destruída. Não faria sequer falta.
O príncipe sentou-se ao lado dela na cama, e ambos
observaram por um tempo a parede adiante.
— Sinto muito — ele falou depois de algum tempo.
Ela olhou para ele, sem responder de imediato.
— Credo, Christine tem razão. — Ele estremeceu, dramático. —
Voce congelaria a Europa com esse olhar.
— Oras, pare com isso.
— Juro que sinto muito, Winy. Vi que ficou chocada com a
proposta, e que foi praticamente encurralada a aceitar o pedido do
duque. Mas, por outro lado, fiquei feliz. Ele é um duque.
— Ele é um duque — Wilhelmine concordou voltando a olhar
para a frente. Ser um duque parecia algo muito importante para
todos ao seu redor.
— Com uma fortuna inestimável e reputação ilibada — Phillip
adicionou.
Ela balançou a cabeça, indicando que tinha ciência disso.
— E um homem bom. Relativamente bom.
— Está tudo bem, Phillip, sério — ela cortou aquele diálogo sem
sentido. — Espero apenas que não tenha pedido a ele para fazer
isso. — Wilhelmine pausou, pensativa. — Embora desconfie que
aquele homem não seja o tipo que possa ser forçado a nada.
— Deus, não — Phillip bufou. — O interesse partiu dele. Na
verdade, nada poderia dissuadi-lo a pedir sua mão depois que se
decidiu.
Wilhelmine arqueou as costas, tentando entender que tipo de
coisa sentia subir por ela. Parecia-se com ramos de um roseiral, que
trazia o aroma irresistível dos elogios, mas também os espinhos
afiados das tentações. Ela se sentia perigosamente envaidecida.
— Tem alguma ideia de por que eu? — ela quis saber. Não tinha
conseguido roubar aquela informação dele.
— Nenhuma. Foi ele quem mencionou seu nome. A ideia partiu
dele.
Saber que o interesse partira do duque acendeu fagulhas
incandescentes em seu estômago.
— Christine não gosta dele — ela comentou.
— Minha irmã está tomada pela emoção. Acha que sofrerá na
mãos dele como Elsa sofreu.
— Não sou Elsa.
— Sei que não. Mas preciso advertir que Elsa não era a dama
sensível que Christine gosta de pintar. Ela era difícil, e ele a
destruiu.
O tom de alarme de Phillip a irritou. Uma mulher podia ser
destruída de muitas formas por um homem — falta de amor e
atenção, entre elas —, mas isso só aconteceria com Wilhelmine se
ela deixasse acontecer. Não daria a ele a chance de fazer isso com
ela. Bastava não amá-lo de volta.
— Elsa queria romance — Wilhelmine comentou com vaga
desaprovação. — Atenção, amor, floreios. Não quero nada disso.
Sequer acredito nisso. O que eu preciso, esse casamento pode
prover.
Phillip pareceu ter algo a dizer, mas mudou de ideia.
Aquela visita desnecessária já tinha aborrecido Wilhelmine o
suficiente. Não cairia na armadilha do amor, e se não corria aquele
risco, todos os outros eram evitáveis.
Ela pensou em encerrar ali a conversa, mas Phillip comentou
antes:
— Seu pai se emocionou durante a conversa. Queria que
pudesse ter visto.
Wilhelmine sentiu os olhos arderem, e as mãos se apertaram um
pouco mais. Não era de chorar, mas se fosse, teria vertido uma ou
duas lágrimas. Era típico do pai emocionar-se por ela.
— Finalmente o livrarei da vergonha.
— Sim, Winy. — Phillip olhou-a, penalizado. — O casamento
restaurará seu respeito. O acordo financeiro que o duque propôs é
melhor do que qualquer regente ao redor poderia oferecer.
Durante o longo e desconfortável minuto de silêncio seguinte,
cenas passaram diante dela. A noite fatídica, o escândalo que a
arrasou, os meses de choro contido, a força hercúlea exigida para
reerguer-se e não deixar que os rumores a fizessem desgostar de si
mesma e da vida. Em momento algum se arrependeu do que fez.
Mas teria feito tudo outra vez?
— Talvez esse casamento se mostre mais benéfico que as
aparências mostram — ela concluiu, querendo que Phillip fosse
embora. Não eram mais amigos.
— Mantenha seu coração bem guardado e aproveite a nova vida
— o príncipe disse, levantando-se. Ela sabia que seu desejo era
verdadeiro, mas ainda assim ouviu tristeza sob sua voz. — Você
será a duquesa de Württemberg-Winnental. Seus filhos serão
infinitamente mais ricos e importantes que os meus, e isso me
alegra.
Eles sorriram sem vontade um para o outro, então o príncipe se
foi.
PRESENTE

U , . U
baixa como as que dão acesso a sótãos. Fran se ajoelhou na frente
do buraco sentindo o coração socar tão forte o peito que parecia
fazer eco ao redor. Um tipo de cômodo anexo, escondido há pelo
menos um século e meio, revelava-se para elas. Alice acendeu a
lanterna do celular, boquiaberta. Nenhuma das duas conseguia
emitir um único som. Pelo giro da luz branca, elas tinham adiante
um quarto grande, dez ou doze metros quadrados, abarrotado de
mobília e caixas e coberto por um século de camadas de pó.
— Fran? — Ali perguntou com os olhos no cômodo.
— Sim? — Fran respondeu, sedada.
— Você sabe que seremos presas, não sabe?
Fran balançou lentamente a cabeça que sim. Era inevitável.
Alguém veria as filmagens e as denunciaria. Elas seriam levadas
para a delegacia e sabe Deus a que tipo de processo responderiam.
Mas a sorte estava do lado delas: aquilo só aconteceria amanhã.
— Precisamos de mais luz. — Fran olhou ao redor. — A lanterna
vai acabar com a bateria do celular.
— Acho que vi um abajur na mesinha do vigia — Ali respondeu,
correndo até o canto do quarto.
Fran caminhou até a porta do quarto para ver se estavam
realmente sozinhas no andar. O castelo aos poucos se silenciava
completamente, e as luzes iam sendo apagadas. Alice desconectou
o pequeno abajur da parede e voltou apressada, o fio arrastando no
chão fazendo barulho.
— Precisamos de uma tomada.
Elas ligaram a luz na tomada ao lado da escrivaninha e
pousaram o pequeno abajur no chão, virando a lâmpada para dentro
do cômodo. Um espectro assustador esticou a sombra das duas
para dentro do local. Infelizmente o fio curto só permitia que o abajur
iluminasse um pouco da entrada do cômodo, mas era o suficiente
para caminhar entre os objetos sem derrubá-los.
Fran entrou primeiro. Passou pelo vão ajoelhada, voltando a ficar
de pé dentro do quarto. Alice a seguiu.
Era fascinante e assustador. O cheiro era de ar viciado e coisas
antigas, uma mistura de odores característicos de cômodos
trancados há anos. Quadros empoeirados recostavam-se na
parede. Caixas de madeira fechadas equilibravam-se sobre baús
trancados. Tapetes enrolados empilhavam-se nos cantos,
desmoronando aos poucos, e um lustre a gás pendia do teto. Cada
detalhe, item e objeto estava ligado a outro por finíssimas teias de
aranhas.
Franz e Ali haviam descoberto um tipo de cofre da duquesa.
As duas caminhavam pelos espaços livres do cômodo com a
mão na frente da boca para não gritarem de excitação. Fran
avançava testando a solidez das tábuas, esticando a lanterna do
celular para os lados. Era um quarto até grande, mas não
suficientemente grande para que dessem falta na planta. O castelo
era gigantesco, e logo ao lado ficava o vão da escadaria. Ninguém
sabia da existência daquele lugar.
— Como podem ter ignorado esse espaço por tanto tempo? —
Fran perguntou. O som da própria voz voltou para ela
fantasmagórico, e ela riu.
— Acho que o Estado não tem essa obsessão pela família como
você — Alice respondeu. — Eles nem mesmo te ouviram quando
contou sua teoria sobre os diários! Só você desconfiava disso,
amiga.
Fran mal conseguia falar de tanta emoção. Nem mesmo ela
imaginava algo assim. Estava excitada, exultante. Havia descoberto
aquilo sozinha, seguindo uma trilha de migalhas que não parecia dar
em lugar algum.
Poderia ir presa, mas iria feliz. E não sem antes ler os benditos
diários que procurava.
— Olhe, Alice. Não há canos ou fiação visíveis. — Fran apontou
o foco de luz para as paredes. — Esse lugar nunca foi renovado.
Alice não estava muito preocupada com canos ou fiações.
— Deus, isso são teias de aranha? — A amiga se encolheu ao
vê-las despencando dos cantos. Teias e mais teias dançavam das
quinas como a renda mais fina, descendo do teto como enfeites
macabros. Uma velha cadeira de balanço rangeu quando o joelho
de Ali esbarrou em seu braço. Fran empurrou um baú descascado,
revelando em um canto um cavalinho de madeira que dormia seu
sono de cem anos. Pintado sobre ele, em vermelho, estava escrito:
Dieter.
— O nono duque — Fran comentou. Ali assentiu; ela conhecia o
outro bonitão da galeria.
As duas continuaram o giro pelo quarto escuro. Nenhum lençol
empoeirado cobria nada; o cômodo não foi isolado e então deixado
para lá. Ele nunca foi descoberto. Uma porta mostrava que ele havia
sido selado pelo lado de fora. Pela localização, sua entrada ficava
onde hoje estava encostada a escrivaninha. Por algum motivo a
porta foi escondida e só uma portinhola mantida, feita para se
parecer com um dos detalhes da parede.
Ao terminarem a volta pelo cômodo, depararam-se com um
quadro gigantesco escorado na parede. Fran precisou se corrigir:
nada estava tapado com lençóis, com exceção do quadro. Um
enorme lençol puído e perfurado por traças as impedia de ver a
pintura.
— Me ajude a mover esse móvel — Fran pediu à amiga. —
Preciso ver o retrato.
Ela tentou achar caminho por entre as caixas, mas os baús de
madeira eram pesados; mal conseguiu mover um, e mesmo assim,
usando toda a sua força.
— Acha que o baú sustenta meu peso? — Ela olhou para trás.
Alice deu de ombros, mas seu medo indicava que talvez a madeira
podre não resistisse.
Fran tentou esticar o braço até o lençol e puxá-lo, mas ele
rasgou em sua mão, envolvendo-a de poeira e cheiro de tecido roto.
Ela desistiu de arrancá-lo pela ponta.
— Tente levantar o pano — Alice sugeriu.
Fran acendeu a lanterna do celular e ergueu a ponta rasgada do
lençol. Seu coração quase parou de bater.
— Ai meu Deus. Olhe isso.
Fran apontou para o canto da pintura. Pelo pouco que podiam
ver, pareciam livros. Criteriosamente pintados de forma a parecerem
discretos e ao mesmo tempo para mostrar que existiam.
— São livros ou são diários? — Alice perguntou.
Fran tentou se esticar, mas se tentasse mais um pouco, tombaria
para a frente — e sabe-se lá sobre o que cairia. Aquilo era tudo que
conseguia ver sem rasgar o resto do tecido. Mas uma coisa ela
notou: não eram livros.
— Não são livros, Ali. Olhe.
Havia dois ou três deles empilhados sobre um móvel ao fundo,
com uma pena e mata-borrão ao lado. O de cima estava aberto,
como se alguém estivesse escrevendo neles.
Franziska desceu da caixa e tentou com toda a força afastar os
baús da frente do quadro. Conseguiu movê-los alguns centímetros,
o suficiente para subir em um deles outra vez. Ela tapou o nariz com
a gola da camisa para não espirrar e conseguiu levantar um pouco
mais do lençol.
Ela estava certa: era a duquesa.
Não dava para ver tudo, apenas parte do braço e do rosto. As
mãos de Wilhelmine apareciam descansando sobre uma almofada e
a ponta do rosto, mais acima, provava que era ela. Ela estava
sentada sobre um tipo de divã, mãos ao lado do corpo, cabelos
soltos.
— Traga a luz para cá, Alice.
Lá estava a prova de que ela escrevia.
A duquesa gostava de registrar seus feitos e, mais uma vez, uma
pintura era a prova. Era incrível como ninguém jamais tinha
percebido — com exceção de Franziska — que as mãos da
duquesa mostravam não apenas anéis enormes e de valor
incomensurável, mas as pontas dos dedos discretamente
manchadas. Quem pintou aquele quadro sabia que a duquesa
escrevia, porque manchou a ponta de seus dedos de tinta.
Franz não teve tempo de pensar demais. Ali começou a abrir os
baús do outro lado, levantando outra nuvem de poeira. Sob elas, o
assoalho rangia enquanto algumas caixinhas se esfarelavam
quando abertas.
— Vamos encontrar esses diários, amiga. Temos que ler e
registrar tudo antes de irmos para o xilindró.
Ignorando a prisão iminente, as aranhas e a sujeira, elas
investigaram caixa atrás de caixa. Chegaram a abrir três delas, mas
vestidos e mais vestidos carcomidos por traças as fizeram fechá-las
imediatamente.
Ali abriu o quarto baú, soltando um grito:
— Fran, livros!
Fran parou ao lado dela com os olhos arregalados.
— Manuseie com todo cuidado — ela pediu à amiga enquanto
apoiava o celular sobre uma moldura. Ela pegou alguns exemplares
nas mãos. A capa estava desbotada, e os cantos haviam sido
comidos por algum tipo de bicho. Reconheceu em um dos primeiros
que trouxe à vista um pirata e uma mulher. Eles se abraçavam em
uma posição bastante apaixonada, em pose bastante sensual para
a época.
— O que está escrito? — Ali virou o rosto.
— O Pirata e a don… — Fran limpou a poeira de cima, estalando
a língua ao ver que o exemplar estava se esfarelando —… donzela,
eu acho.
— Quem é o autor? — Ali perguntou. Fran limpou a parte de
baixo.
— Lady alguma coisa. Deve ser Lady Malícia. Não dá pra ler.
Os olhos de Fran reluziam enquanto ela descolava as folhas
gentilmente umas das outras, vendo a escrita gótica impressa em
preto cheirando a papel antigo e tempo encapsulado.
— Eu sabia que a duquesa escrevia esses romances — Fran
murmurou.
— Ou os lia. — Ali deu de ombros.
— Talvez tenha pertencido às duquesas seguintes. — Fran olhou
ao redor, pensativa. — Já pensou nisso? Que talvez alguma delas
resolveu guardar os pertences de Wilhelmine nesse quarto?
— Quem veio depois de Wilhelmine?
— Emma. A esposa de Dietrich.
— E depois?
— Theresa. Casada com Fritz, o penúltimo duque antes que
estourasse a Primeira Guerra.
— Talvez nem elas soubessem da existência desse cômodo —
Alice comentou.
Fran concordou.
— Vamos ver o que mais temos aí. — Ela ajeitou a luz da
luminária para que pudessem ler o que pegavam. Fran se sentou ao
lado do baú com as revistas enquanto Ali mexia em uma caixinha.
— Fran, olhe para cá.
Ao olhar para Alice, viu que ela tinha o pescoço coberto de
colares.
— Jóias! — Alice riu, divertida. — Estamos ricas!
— Se virarmos ladras e fugitivas, sim — Franz respondeu, séria.
— Coloque-as de volta no lugar, por favor.
— Se irei presa, quero fazer pelo menos algumas fotos — Ali
falou, fazendo uma selfie com um colar pesado de pérolas.
O flash iluminou o quarto.
— Voce irá presa se não devolver as jóias — Franz a assegurou.
Mas os flashes continuaram, acendendo de quando em quando o
cômodo. Alice só parou de fotografar quando começou a espirrar
sem parar.
— Pelo menos alguma coisa interessante aconteceu na minha
vida — Ali comentou sem interromper a procura por mais
curiosidades.
Fran riu. Assim como a amiga, nunca tinha feito nada de
extraordinário. Não era rica, bem-sucedida, nem mesmo bonita. Não
sabia falar bem em público e definitivamente não era referência para
nada ou ninguém. Talvez por isso sentisse tanta curiosidade por
Wilhelmine. Sentia profunda admiração por ela ter sido quem foi.
Por estar ligada de alguma forma a ela. Aquela mulher havia
conquistado o mundo enquanto Fran havia apenas falhado. Seu
emprego burocrático não lhe dava prazer; seu namorado de anos
havia deixado o apartamento que compartilhavam na primeira crise
que tiveram. Fran buscara consolo para o fim do relacionamento nas
pesquisas sobre os Württemberg-Winnental, e o motivo estava
escancarado ali. Queria saber sobre as batalhas infinitamente mais
significativas que aquela mulher tinha lutado e esquecer que nada
tinha dado certo para ela.
Fran abriu uma caixa caindo aos pedaços e tirou algo de dentro.
— Olhe isso.
As duas levaram a caixa até o lado de fora para ver melhor. O
castelo estava em completo silêncio, agora inteiramente vazio. Nada
fazia ruídos naquele andar ou no andar de baixo, todos tinham
partido. Se quisessem, as duas podiam deitar-se na imensa cama
de dossel. Pular em cima dela, passear pelo castelo inteiro. Mas
preferiram se sentar no chão, ao lado da passagem, e usar a luz
para clarear o embrulho nas mãos de Fran. O tecido, de tão velho,
se dissolvia em sua mão.
— Adicione mais alguns meses de cadeia por destruir essa
relíquia — Ali murmurou enquanto Fran desenrolava o pedaço do
pano e ele ia se desintegrando. Fechado como um envelope, o pano
ia ficando mais bem conservado à medida que as camadas
empoeiradas externas iam sendo removidas. Quando ela puxou a
última aba, diários de capa de couro foram revelados.
Fran levou a mão ao peito.
Em seu colo estava o que ela procurava há anos: os diários da
duquesa. Cheirando a tecido podre e papel velho. Áspero pelo
acúmulo dos anos e camadas de sujeira. Fran mal conseguia parar
de sorrir, e Ali aproveitou para fazer uma foto dela.
Franziska respirou fundo, pousou os diários sobre os joelhos e
levou as mãos à cabeça. Ela não conseguia achar as palavras.
Precisava se concentrar em respirar ou desmaiaria. Não conseguia
nem começar a explicar o que estava sentindo, e se existiam
palavras para aquela emoção, desconhecia.
— Eu sei, amiga. — Ali passou os braços ao redor dela, beijando
a lateral do seu rosto. — Eu sei. São os diários dela. Você encontrou
os diários da duquesa.
Fran fez que sim, enxugando uma lágrima com as costas da
mão. Ela sabia que eles existiam, e agora haviam chegado nas
mãos dela.
— Arrume um lugar confortável para deitar e dormir, Alice —
Fran avisou. — Lerei a noite inteira.
— Acha que vou conseguir dormir? Chega pra lá. Quero ouvir a
história dela também.
Fran espalhou os três diários sobre o colo, alisando as capas. O
couro não era mais macio ao toque, mas deve ter sido um dia.
— Por onde começo?
— Abra e veja se eles trazem data.
Ela abriu o primeiro deles. Lá estava a letra da duquesa em
caligrafia bem-desenhada, em entradas que iam de duas a três
folhas, cada. Infelizmente, sem data.
— Comece por qualquer um, então.
Fran removeu o pano empoeirado do colo e o pousou com
cuidado ao lado, planejando mais tarde voltar a embalá-los naquilo.
Ela tentava manusear os diários com o máximo de cuidado para não
estragar nada. Tentou achar uma ordem para eles, mas acabou
decidindo no uni-duni-tê. Ela virou a lâmpada do abajur na direção
das folhas e as duas recostaram-se na parede.
Alice tossiu quando Fran abriu a primeira página e uma nuvem
de poeira subiu no ar.
"Die Hochzeit", ela leu.
O casamento.
Casamentos eram um bom lugar para começar.
11

D — ,
menos suntuosos que o primeiro casamento do duque —, os
convidados permaneceram em uma das alas de Solitude enquanto
os noivos rumaram para a ala íntima da família. O motivo é porque o
noivo viajaria no dia seguinte e o casal precisaria de um tempo a
sós.
Em suma, o casamento precisava ser levado a termo.
Enquanto seguia o mordomo, Wilhelmine observava as paredes
daquela ala sentindo o estômago arder. Embora tivesse tido acesso
aos mais belos castelos durante a vida, nada a tinha preparado para
aquilo.
Havia dezenas de cômodos apenas naquela parte do castelo, e
outros tantos como aqueles ramificavam-se pela construção. Os
corredores eram tão largos que duas dela poderiam esticar os
braços e caminharem lado a lado, sem tocarem-se ou tocarem as
paredes. De onde viera todo aquele mogno, quem pintara todas
aquelas paisagens? Ao passar por uma galeria de quadros
emoldurados em dourado, deixou escapar um som de admiração.
As riquezas daquele único corredor talvez sanassem as dívidas
acumuladas de sua família. Ela não conseguia conceber tanta
riqueza, tantos bens, tanto ouro, prata, madeira, obras de arte,
espaço.
Eles subiram um lance de escadas atapetadas e pararam diante
de duas enormes portas. Wilhelmine se aprumou, empurrando para
longe o nervosismo.
— Aqui estamos, Vossa Graça. Sua criada pessoal a aguarda —
o mordomo avisou.
Em algum momento ela precisaria se acostumar a ser chamada
com tanta deferência. No momento, precisava digerir o fato de que
tinha dezenas de criados — e entre eles, uma criada pessoal. Sua
mãe tivera uma nos tempos áureos: alguém para organizar sua
roupa, vesti-la e penteá-la. Ela cresceu vendo esses pequenos luxos
desaparecerem aos poucos, até quase por completo. Ela mesma só
tinha uma camareira da família para ajudá-la a se vestir e se
pentear.
— Este é o quarto do casal? — Wilhelmine perguntou tentando
parecer indiferente. Duas enormes portas brancas erguiam-se até o
teto, e a expectativa de ficar a sós com Alexander no mesmo quarto
voltava a ruborizá-la.
— Não, esses são os aposentos de milady. O quarto de Sua
Graça fica mais adiante.
Wilhelmine piscou. Claro, no que estava pensando? Certos
nobres optavam por dormirem separados. Que tolice perguntar
aquilo. O duque era um homem reservado e certamente dormia
separado de Elsa também. Wilhelmine devia ter perguntado a
Christine alguns detalhes sobre o enlace do duque com Elsa — por
exemplo, se dormiam juntos —, mas Christine estava tão impossível
que achou melhor deixar para lá.
A porta se abriu e uma jovem uniformizada, com um rosto
redondo e simpático, a recebeu. Com uma mesura e um meio-
sorriso, ela foi apresentada pelo mordomo.
— Essa é Fräulein Schmidt, milady. Sua camareira.
A criada se inclinou em uma mesura graciosa e deu um passo
para trás. Wilhelmine entrou no quarto, correndo os olhos pelo
cômodo. As paredes eram pintadas em um tom claro de azul e
adornadas em alguns pontos por painéis de madeira dourada. Havia
um nicho para leituras perto da janela, uma enorme cama de dossel
envolta em veludo rebuscado e uma penteadeira ao lado. Mais
adiante estava o quarto de banho, uma câmara vazia e o cômodo
onde ficariam seus vestidos.
Ela viu duas criadas terminarem de ajeitar suas poucas posses,
pedirem licença e partirem. Vendo agora a opulência de Solitude,
Wilhelmine paulatinamente entendia que os poucos vestidos que
trouxera de casa não poderiam mesmo ser usados ali. Seria
confundida com as criadas.
— Vou pedir para prepararem seu banho, milady — a senhorita
Schmidt disse. — Volto em alguns segundos para ajudá-la a
desfazer o penteado.
A jovem sorriu, e Wilhelmine gostou imediatamente dela.
Assim que ela sumiu, Wilhelmine olhou-se no espelho da
penteadeira. Mil grampos reluziam no cabelo, e o vestido pinicava
seu pescoço. Em breve ela e o duque…
Ela chacoalhou a cabeça de olhos fechados. Era difícil não
pensar na noite. Alisando o estômago, olhou para a cama, vendo-se
ali.
Vendo-o ali.
Ela era agora dele, e ele teria mais direitos sobre ela do que ela
jamais teria sobre si mesma. Por sua linhagem, cederia seu corpo.
Em troca, ele lhe daria coisas que nunca sonhou na vida. Tudo que
teriam seriam contatos físicos esporádicos. Noites aqui e ali, até que
os filhos viessem e ele não aparecesse mais.
Por que, sendo o futuro tão sombrio, ela sentia aquela estranha
excitação a respeito dele? Um fervilhamento sem forma ou
tamanho, um borbulhento nas veias… Ela voltara várias vezes à
conversa na galeria, onde há um mês ele a olhara de perto e ela
percebeu que seus olhos eram a mistura perfeita do céu noturno
com o mar profundo. Aquela sensação elétrica voltou a passear por
ela quando eles se reencontraram na igreja, ao vê-lo parado diante
dela em silenciosa espera.
Não eram borboletas no estômago, como ouvira damas
explicarem antes. Borboletas traziam um floreio inexistente à coisa
inteira; era um calafrio que percorria o corpo toda vez que ele a
olhava. Era algo vicejante, luxurioso, sensual. Não passava pelos
caminhos rosados de qualquer paixonite; não se assemelhava a
nada que ouvira damas contarem. Era mais primitivo, e Wilhelmine
sabia que tinha raízes eróticas.
Só de pensar que em breve as mãos morenas deslizariam por
ela, seu corpo aqueceu. Sinais de alarme, disse a si mesma. Seu
esposo era tanto salvação quanto perigo, e ela só sobreviveria ao
casamento se mantivesse aquele homem longe do coração.
D , A
se ainda podia afirmar que não havia espaço para uma mulher em
sua vida. Nada explicaria, já que não havia, por que sentiu a
respiração falhar quando ela entrou na nave da catedral.
Ela estava linda de maneiras que ele não saberia exprimir.
Parecia irreal, como as figuras dos sonhos que evitava ter.
Talvez nunca tivesse tido vontade de ter uma companheira
porque não conhecera alguém como ela. Sempre tivera, claro,
espaço para uma mulher em alguma cama — não necessariamente
a sua — e divertira-se com elas. Estava intrigado que tivesse
surgido nele, vinda de um lugar desconhecido, a vontade de estar
com aquela.
Ele abotoou o punho da camisa branca com as feições pesadas.
Ansiava pela noite, e agora arrependia-se de ter marcado a próxima
viagem para o dia seguinte. Não chegara a pensar demais quando
planejou aquela partida. Seu trabalho sempre veio em primeiro
lugar, e ele agiu como sempre agia. Mas agora que a noite se
aproximava, não queria mais ir.
Queria ficar.

S ?N ?E ?
Wilhelmine esperava que sim. E se ele…?
— Perdoe-me o atraso.
Wilhelmine saltou no lugar. O duque entrou pelas portas abertas
do salão trajando um casaco escuro e calças claras. O cabelo
estava penteado para trás, e a barba tinha acabado de ser refeita.
Ele cheirava a banho e colônia masculina, e parecia menos rígido
do que durante o casamento.
— Imagine — ela respondeu engolindo a saliva acumulada. —
Acabei de chegar.
— Tentarei jamais me atrasar para os nossos jantares — ele
falou passando por ela. Ela sentia o rosto arder de vergonha por ter
sido pega de surpresa pensando na noite.
Ele parou a uma distância apropriada, como sempre.
— Prezo por esses momentos. Espero que com o tempo anseie
por eles, como eu.
As pernas moles de Wilhelmine eram um aviso de que ela talvez
passasse a gostar daqueles jantares também.
— Estarei todas as noites aqui, milorde — ela disse baixo.
Ele ergueu um lado da boca, mas não sorriu. Ou ela achava que
não — nunca tinha certeza. Sentia-se tão tola perto dele.
O duque diminuiu a distância entre eles, pedindo sua mão. Ela
lhe estendeu a mão sem luvas, esperando que ele não percebesse
seu nervosismo — ela sentia seu coração batendo nas pontas dos
dedos. Ele segurou seus dedos com firmeza e indicou o caminho
até a ponta da mesa comprida.
— Essa será nossa sala de jantar pessoal. Há outra no primeiro
andar que usamos quando damos jantares maiores, mas esta é
mais íntima.
E perto dos quartos, ela notou.
— Ainda não tive a oportunidade de conhecer todos os cômodos
— Wilhelmine disse.
— Se visitar um por dia, na metade do ano terá conhecido todos
— ele brincou.
Ela riu.
— Impressionante — Wilhelmine disse, acomodando-se quando
ele puxou a cadeira para ela se sentar. Após ajustar-se, ele lhe
estendeu o delicadíssimo guardanapo de linho.
— Essa é a sua casa agora. Pense em festejos, encontros, o
que quiser. Quero que ocupe seus dias. — Ele caminhou até o outro
lado da mesa. A mesa, bem menor do que as dos salões de
Bückeburg — mas o dobro da que os pais tinham em casa —, os
permitia conversar a uma distância agradável.
— Farei isso, milorde.
Alexander se sentou. Wilhelmine podia vê-lo entre as chamas
acesas das velas e dos ornamentos que compunham a decoração.
Dali, seus olhos pareciam joias, e sua pele morena, puro bronze.
Era difícil contornar os pensamentos sobre a noite que viria.
— Acredito que podemos nos tratar a partir de agora pelo
primeiro nome — ele sugeriu. — Gosto do seu.
Ela balançou a cabeça, fazendo que sim.
— Chame-me de Alexander, por favor.
— Sim, senhor.
Dessa vez a boca do duque se ergueu e Wilhelmine teve certeza
que ele sorria.
— Sinto-me velho quando me chama de senhor.
— Não o acho velho — ela disse sorrindo também, agradecendo
quando uma criada colocou o prato à frente. — Pelo menos não tão
velho como Christine o pintou.
Ele riu alto, e ela adorou que tenha feito ele rir.
— Apenas dezesseis anos mais velho — ele respondeu bem-
humorado. — E não trinta, como Christine deve tê-la feito acreditar.
— Ouço Christine com bastante parcimônia — Wilhelmine
respondeu olhando para o pedaço de perdiz e frutas secas que
compunham algo bastante rebuscado e pequeno no centro do seu
prato. Aquilo não daria para disfarçar nem a mais sutil das fomes.
Mas não esperava assustar o duque com seu apetite logo na
primeira noite. Ele não tinha se casado com uma dessas moças que
beliscam migalhas nos cantos dos pratos, mas talvez ainda fosse
cedo para apresentá-lo àquele lado seu.
Ela colocou um pedaço de comida na boca e quase desmaiou
quando o gosto de manteiga misturou-se ao sabor da carne
derretida.
— Acredito que a comida esteja do seu agrado — ele disse,
atento a ela. — Pedi que meu secretário se informasse sobre suas
preferências com sua família e orientasse nossos cozinheiros.
Aquilo era surpreendentemente doce.
— Oh, meu Deus — ela respondeu sem pensar, tapando a boca
com o guardanapo. Recompôs-se assim que viu que ele observava
seu prazer, mas estava bom demais para desculpar-se por sua
espontaneidade. — Está muito bom. — Ela deu outra garfada. Todo
o protocolo sobre não avançar sobre a comida e não parecer uma
interiorana foram por água abaixo. Ela quase fechou os olhos
quando a acidez das frutas misturou-se ao resto do prato.
Podia jurar, assim que recuperou-se do espetáculo de sabores,
que o duque a olhava de forma licenciosa por cima da borda do
copo. Talvez, por vergonha, ela tenha se sentido mais quente.
Inteiramente quente.
Ele não comentou, mas ela teve certeza que gostou de vê-la
comer.
— O que achou de seus aposentos? Espero que sejam do seu
agrado — ele disse quando retiraram a entrada para dar vez ao
prato seguinte.
— Eles são.
— Pode mudar-se para outro quarto, se quiser. — Ele ergueu os
olhos até ela. — Temos muitos. Posso mandar ajeitá-los para ter a
vista que quiser da região.
— É muito gentil de sua parte. Mas estou perfeitamente bem-
acomodada.
Ele ficou sério e ela imediatamente soube: aquele era o quarto
da ex-esposa.
— Não me incomodo de ficar onde Elsa ficou — ela adiantou,
firme. E realmente não ligava. Nunca pensou em competir com a
antiga esposa do duque ou tomar o seu lugar. Tampouco gostaria de
apagar sua breve existência ali.
— Pensei em simplesmente fechar o quarto. — Ele pausou,
honesto. — Mas confesso que Elsa fez um bom trabalho ali. O
ambiente é fresco no verão e a lareira fica a uma boa distância da
cama. Solitude não é um castelo velho, mas quando foi construído,
não havia recursos como temos hoje.
— A memória de Elsa não me incomoda — ela falou, sincera.
— Fico feliz em ouvir isso.
Wilhelmine sentiu agradecimento em sua voz.
A segunda entrada chegou e eles voltaram a comer. Wilhelmine
se perguntou se ele sentia a falta dela. Um dia perguntaria a ele
sobre o casamento, mas ainda estava longe de se sentir à vontade
com o esposo. Ele era um estranho. Um belo estranho. Poderoso
além de seus sonhos mais loucos e seu esposo — mas ainda
assim, um estranho.
E ela lhe cederia sua virgindade naquela noite.
— Gostaria de um copo de vinho — Wilhelmine soltou de
rompante, espremendo os dedos sob a toalha. Ela precisava
urgentemente refrear todos aqueles pensamentos.
Alexander fez um sinal para que o criado lhe trouxesse uma
garrafa. Ela observou com os olhos arregalados quando o duque se
levantou e caminhou até ela. Ele parou ao seu lado, alto e
perfumado, e entornou com cuidado o líquido escuro na taça
finíssima.
Ela podia jurar que ele fez tudo aquilo enquanto observava suas
reações. Podia jurar, também, que ele lera seus pensamentos.
Todos, sem exceção, revolviam-se ao redor do que viria.
Alexander lhe estendeu a taça. Assim que ela tocou na haste,
seu dedo pousou sobre o dela, macio e quente. Um roçar de dedos.
O contato da pele e o olhar que acompanhou o gesto foram tudo
que precisou para ela se sentir sem ar.
O duque voltou ao lugar e ela bebericou o vinho, procurando
coragem. Assim que o jantar terminasse eles se deitariam juntos.
Ela pousou a taça sobre a mesa, tremendo discretamente.
O resto da refeição correu tranquila, com conversas esporádicas
sobre características do castelo, da região ou dos criados. Ela ficou
sabendo que a maioria era bastante fiel, e trabalhava há anos para
o duque. Wilhelmine tentou não gemer mais de prazer a cada
garfada, já que a cada ruído que ela emitia, ele a olhava
interessado. Às vezes achava que ele estava se divertindo; noutras,
que se deixava levar por pensamentos impróprios. Nessas horas ela
sentia seu olhar caminhando por ela como dedos.
No fim do jantar, após a sobremesa arrancar dela um último
gemido, ele a ajudou a se levantar.
— Deseja tomar um licor na biblioteca? — ele perguntou.
Ela pensou nos dois, sozinhos, em um lugar fechado, e
enrijeceu. — Duas taças de vinho foram suficientes, milorde. — Ele
a olhou, e ela se corrigiu: — Quero dizer, Alexander.
Eles caminharam para fora do salão. Tanto os passos dele como
os dela pareciam pesados. Havia tantas coisas não ditas (mas
sentidas) no ar que ela parecia estar cruzando um oceano delas.
Em breve ouviria a proposta — ou sentiria seus avanços —, e
esperava não estragar tudo com seu nervosismo.
— Wilhelmine — Alexander disse seu nome, parando no lugar.
— Espero que a comida tenha estado do seu proveito. E que a noite
tenha sido agradável, no geral.
— Estava tudo maravilhoso — ela respondeu sentindo
comichões sob a pele.
Os olhos dele estavam mais escuros, e sua pele, mais morena.
O próprio corredor perdera as cores avermelhadas e douradas de
antes e parecia empurrá-los para o fim da noite.
Ela conseguia sentir o toque da boca dele sobre a sua.
Sentir suas mãos sobre ela.
— Gostaria de solicitar sua presença no meu quarto essa noite.
— A voz rouca do esposo ecoou ao redor. Não ao redor do castelo:
ao redor dela, um eco em uma gruta escura. Uma avalanche gelada
desceu pela sua coluna e os pés perderam a firmeza. Ela fez que
sim. Era sua obrigação dizer sim.
Eles continuaram andando até a porta do quarto dela. O corpo
inteiro de Wilhelmine estava arrepiado, e incomodava-a por baixo da
roupa. O silêncio no corredor era completo, e o ar que atravessavam
parecia sólido. Ela abriu a porta esperando que ele entrasse com
ela, mas ele parou no batente.
— Posso enviar uma criada para buscá-la quando estiver pronta
— ele disse baixo.
— Não precisa — Wilhelmine respondeu, o calor no peito
espalhando-se de maneira dramática pelo rosto. — Posso caminhar
até seu quarto. Sei o caminho.
Por alguns segundos o homem não respondeu. Então assentiu.
Antes que ele perguntasse quanto tempo ela precisaria para chegar
lá, ela adicionou:
— Dê-me apenas alguns minutos.
O coração de Wilhelmine batia tão violentamente no peito que
ela achou que fosse cair. A penumbra dourada do corredor fazia
tudo aquilo parecer um sonho. Ele, ela, a noite que viria. Ela só
precisaria de alguns minutos para se despir, vestir algo menos
complicado e… ir.
Eles se despediram e ela fechou a porta, precisando se escorar
na madeira até entender o que estava acontecendo. Ela estava
nervosa. Muito, muito nervosa. Sentia-se absurdamente atraída por
aquele estranho, e nada mais andava conforme os planos. Era para
encarar aquela noite como algo contratual, mas estava quente e
desejante. A junção entre as suas pernas pulsava, como se tivesse
sido chamada a comparecer. Quanta curiosidade e interesse
poderia conter naquela situação inusitada? Quanta intensidade
podia haver em um só homem?
Ela em breve descobriria.
12

A
combinava perfeitamente com seu tom de pele. O quarto estava na
penumbra, iluminado por uma única lamparina dourada. O ar
cheirava a ele: uma mistura de homem, madeira encerada e
vapores do banho tomado mais cedo.
Wilhelmine deu um passo adiante quando ele lhe deu passagem.
Deus, ele era assustadoramente atraente. Ela não via nele os
trejeitos infantilizados dos jovens que conhecia; não enxergava
inseguranças ou receios comuns da juventude. Ele era experiência
e calma. Certeza do que queria e fazia em cada gesto pensado.
Ela sentia tanta vergonha que precisou lutar para ter força nas
pernas e atravessar a distância que separava os dois quartos. Ainda
bem que dispensara a criada, ou haveria mais uma testemunha de
sua aflição. Tentou se acalmar achando algo para dizer, mas não
conseguiu pensar em nada. Eram estranhos um para o outro.
Trocaram poucas palavras.
Eles se tocariam intimamente sem se conhecerem.
Para a surpresa de Wilhelmine, nada precisou ser dito.
Assim que ele fechou a porta, caminhou até ela. Wilhelmine viu
seu rosto se aproximar, tranquilo, e colar ao dela. Mãos fortes e
mornas envolverem seu rosto enquanto recebia um beijo de boas
vindas. E enquanto a boca experiente do duque aquecia o canto de
seus lábios, os dedos deslizavam até os ombros, como um desejo
tátil de que relaxassem.
O beijo instantaneamente a acordou, deixando-a totalmente
ciente de cada elemento ao redor dele — seu cheiro, sua
temperatura, sua presença sólida e alta.
Quando ele se afastou minimamente para olhá-la, ela só
conseguiu encará-lo até o queixo. Não estava conseguindo governar
as sensações. Sentia calor e frio. Sentia-se mole e rígida. A barriga
cintilava como se alguma coisa dentro dela queimasse e ardesse, e
o perfume morno de sabonete fazia carícias em seu nariz. Ao
abaixar os olhos, notou que da fenda aberta da camisa escapavam
fios escuros e crespos cuja textura ela quase podia sentir na ponta
dos dedos.
As mãos do marido percorriam caminhos por ela, sentindo-a sem
pressa. A massagem fez o tecido fino do roupão bordado ceder e
despencar aos pés de Wilhelmine.
Wilhelmine estremeceu. Vestia uma camisola simples de algodão
que trouxe de casa. Não conseguiu colocar a outra que ganhou no
enxoval; não queria ser vista nua e suspeitava que as camisolas das
modistas fossem fáceis demais de tirar. Não que se sentisse mal
com o próprio corpo, mas tinha consciência de suas curvas. Não
conhecia ainda as preferências do duque, não sabia o que acharia
delas. Em dúvida, preferia manter a roupa no corpo.
Talvez para silenciar a mente, ela inclinou insegura o rosto,
oferecendo a boca como retribuição pela carícia. Queria que ele a
beijasse e finalmente calasse seus medos. Colou a boca à dele sem
saber direito o que fazer, sentindo o coração dar vexame no peito.
Películas de suor se acumulavam entre seus seios e na nuca, e
tinha começado a achar que aquela expectativa era outro nome
para tortura.
Ele aceitou seu avanço desarticulado com calma. Beijou-a de
volta — e bem —, envolvendo-a com os braços. A pressão deles em
suas costas a fez tropeçar para a frente e os corpos, antes
separados, se colaram. Ele era uma massa firme de músculos, e
seus seios ajustaram-se macios contra ele. Wilhelmine já havia
beijado antes. Um beijo casto, nada comprometedor, mas conhecia
mais ou menos o movimento das línguas: sua textura e calidez, e
todas as reações que causavam. Mas beijar aquela boca era
diferente. Não havia por que parar de beijar, por que se afastar, por
que dizer que não podiam seguir adiante; estava ali justamente para
seguir adiante. Por isso o beijo avançava por trilhas novas e
surpreendentes, e exigia dela movimentos como retribuição da
língua e dos braços.
Claro que naquela noite o beijo escalaria para algo maior. Só não
esperava que sua boca estivesse ligada a tantas outras partes do
corpo e que, de súbito, sentisse um calor interno e desconhecido
avançar por ela. Ele tinha um cheiro de boca peculiar, perfumado
pela bebida. Além disso, uma nota masculina envolvia tudo que a
tocava: sua pele, seu peito. Era inebriante e assustador. Não fazia
ideia do porquê cheiros eram importantes, mas eles começaram a
dançar ao redor dos seus sentidos — couro e homem, madeira e
homem, suor e homem —, e suas pernas foram ficando fracas.
Suas língua se entenderam, embora a dele fosse certeira e
vigorosa e a dela, tímida. Ele ajeitou o rosto para moldar-se ao dela
enquanto dedos fortes embrenhavam-se pelo seu cabelo, eriçando-
a. Então gemeu. Do jeitinho que ela gemeu quando a comida
derreteu em sua língua. Foi assim que ela soube que ele estava
tirando prazer do beijo.
Aquilo a fez entrelaçar os dedos atrás do pescoço dele.
Ele era mais gentil do que queria que soubessem, ou deixava
transparecer em público. Era estranho pensar nisso — que estava
nos braços de um homen tão duro com tudo e todos. A maneira
como ele estava conduzindo tudo até ali mostrava gentileza e
cuidado, e uma face que o mundo não via.
Ela quase derreteu quando os dentes do duque beliscaram o
canto de sua boca, e uma parte enrijecida e de volume considerável
arrastou-se contra sua virilha, passando de uma coxa para a outra e
então de volta, demorando-se entre elas. Alerta, Wilhelmine se deu
conta de que não ficariam só nos beijos. Quando soltou um som
ansioso, ele a mordeu em resposta. No pescoço, quase na nuca.
Ela abriu os olhos, enxergando o quarto na penumbra. Seus dedos
congelaram no cabelo dele, e o coração voltou a dar saltos. A
mordida não foi forte. Não doeu, só foi... intensa. Fogos estouravam
em algum lugar dela, espantando-a. Jamais esperou gostar de uma
mordida. Jamais esperou sentir a umidade crescer entre as coxas
por causa de uma.
E enquanto sentia o eco de seus dentes em sua pele, entendeu
que faria sexo sem ter a mínima ideia do que sexo era.
Então as coisas mudaram, e a mudança assustou Wilhelmine.
Ele soltou suas costas e ela sentiu um discreto toque sobre seus
seios. O cavalheiro respeitoso que sempre parava à distância
estava fazendo círculos leves sobre seus mamilos. Em seguida ele
os envolveu com as mãos, os dois, e apertou-os, soltando uma
imprecação baixa. Ela se encolheu, sem saber por quê. Parte sua
ansiava o toque, a outra achava estranho. Eles mal se conheciam.
Amanhã teria que conversar com aquele homem, encará-lo, e não
queria a lembrança de seus dedos apalpando suas partes íntimas.
Alguma coisa crescia em seu marido em proporções diferentes
ao que crescia nela. Seus toques já não estavam mais nos seios;
eles migraram para baixo, para as suas nádegas. Então, suas mãos
estavam em todas as suas partes. Entre suas coxas, sua barriga,
seus seios outra vez. Ela parou de retribuir o beijo, com medo. Os
olhos do duque estavam cada vez mais escuros e cheios de desejo.
Nunca vira tanta intensidade na vida, e aprendeu, ali, que o desejo
transformava um cavalheiro.
— Preciso deitá-la.
Os eventos estavam acontecendo rápidos demais para ela.
Wilhelmine e o esposo estavam em lugares diferentes: ele a queria
em exagero; ela o queria devagar. Aquilo era íntimo e assustador, e
não queria que as carícias prosseguissem. Ao mesmo tempo,
precisava consumar aquele casamento sob o risco de retornar ao
malfadado principado onde seu destino era ser nada.
Ela fechou os olhos, sem entender como alguém podia pensar
tanto numa hora daquelas. Sua cabeça estava atrapalhando tudo!
Ele a empurrou com o corpo em direção a cama, a boca e os
beijos fazendo as vezes da mão. Ela olhou para a porta querendo
desistir, mas precisava suportar a noite. Todas as mulheres
suportavam o sexo. Amanhã ele não estaria mais no reino, e ela
precisava se tornar sua esposa.
As mãos de Alexander embrenharam-se em seu cabelo solto
outra vez. Seus beijos estavam endurecidos, os rosnados curtos
que ele dava cada vez mais seguidos por arfares pesados. Aquilo
era desejo. Sentia-se lisonjeada por ser desejada com aquela
intensidade, mas odiava que não estivesse conseguindo retribuir.
Mal um pensamento cruzava sua mente, outro o seguia. Seria
sempre assim? A cabeça vinha conosco para a cama?
Ela caiu de costas na cama com ele por cima. Os beijos
continuavam vindo e ela agora repetia incessantemente que
precisava parar de pensar. É apenas sexo, repetia. Mas o que era
sexo? Ninguém a tinha preparado para aquilo. Sexo era submissão?
Era permitir que alguém a invadisse?
Os dedos de Alexander ergueram a lateral do seu cabelo,
revelando o pescoço alvo. Sua língua passeou pela pele sensível,
distribuindo beijos sobre ela, e Wilhelmine titubeou. Não odiava a
sensação. Na verdade, queria estar ali até há pouco. Sabia que
estava na companhia de um cavalheiro, que assim que
demonstrasse inquietação, ele se afastaria. Por que então não
interrompia aquilo, se podia?
Porque queria gostar e saber o que a esperava. Mas não só isso:
porque tinha medo de ser ignorada, como Elsa fora. Porque lembrou
da mãe, sempre tão rígida, e como ela e o pai não pareciam se
suportar. Porque os olhares do duque queimavam a sua pele e
esquentavam o meio entre suas pernas, e aquilo a intrigava. Ela
tentou acariciá-lo e ele gemeu em resposta, mostrando que gostou
da carícia. Mas então ela sentiu algo encaixar-se entre suas coxas e
congelou.
— Desejo-a, Wilhelmine. Muito — Alexander disse em frente à
sua boca, o corpo inteiro ansiando por mais contato.
Seu olhar era agora um céu noturno e sem estrelas, e a
rouquidão da voz fez o couro cabeludo de Wilhelmine formigar. Ela o
achou tão belo naquele instante que quase disse aquilo em voz alta.
Não o trocaria por homem algum no mundo. Ela daria tudo para
conseguir relaxar. Para sentir algo que não fosse medo.
Ele abriu suas pernas enquanto se livrava do próprio roupão.
Wilhelmine não conseguia se mover, apenas tentava não parecer
indiferente. Não estava preparada. A cabeça voltava ao escândalo,
à mãe, à suposta amante que o duque mantinha. Sabia mais ou
menos o que podia acontecer, mas a verdade é que nunca chegara
a dimensionar o tamanho de um órgão reprodutor masculino.
Quando ele tirou a roupa, sentiu um calor inchado encaixar-se
entre as suas pernas. Graças ao bom Deus estava escuro demais
para vê-lo, ou teria saído correndo. Não sabia que formato aquilo
tinha, só que tocava próximo demais do lugar que ela fazia força
para fechar, e o encaixe parecia impossível.
— Você é tão linda — Ele disse em seu ouvido, sem notar que
um turbilhão de dúvidas girava dentro dela. Ela paralisou com os
dedos em seus ombros quando seu membro se encaixou entre as
pernas dela. — Tão, tão bonita....
Ela mal conseguiu entender o significado do elogio: uma pressão
íntima a fez contrair, seguido de um ardor sem precedentes. Ele
estava entrando nela.
As mãos de Wilhelmine espalmaram o peito do duque. Feche os
olhos e pense em qualquer coisa. Ela precisava aguentar; esposas
aguentavam, não? Alexander afundou a cabeça entre seu ombro e
sua orelha, movimentando-se sobre ela. Ele cheirava bem, era tão
macio e ao mesmo tempo tão duro. Por que sua cabeça parecia um
redemoinho?
Ela segurou um gemido quando a ardência ficou insuportável.
— Desculpe, querida — ele parou de empurrar o corpo para
dentro dela e a olhou. — Sei que deve estar doendo. Quer que eu
pare?
Ela fez que não, e ele acariciou seu rosto.
— Quer que eu vá mais devagar? — ele insistiu, falando
baixinho.
Ela chacoalhou a cabeça de novo que não. Seus olhos estavam
inundados e ela queria que tudo acabasse logo.
Ele não disse mais nada. Apenas continuou indo e vindo sobre
ela. Claro que ele percebeu que ela congelara sob ele, e por duas
vezes parou para olhá-la. Talvez tenha pensado em interromper, e
por duas vezes quase parou. A cabeça de Wilhelmine tinha
estragado a experiência, fazendo seus músculos endurecerem,
deixando tudo mais dolorido. Era involuntariamente um cubo de gelo
sob o marido e queria morrer de vergonha por ter deixado aquilo
ficar óbvio. Lágrimas rolaram pela sua bochecha molhando seu
ouvido, o cabelo ao redor, o travesseiro. Como podia uma sensação
ardida entre as coxas deixá-la sentimental?
Uma dor um pouco mais aguda a fez contrair, e então estava
feito.
Ela mal podia respirar. Os olhos de Alexander, tão bonitos e
antes tão nublados de prazer, se fecharam. Ele retesou sobre ela,
os músculos definidos do braço apertados ao lado de sua cabeça, e
então ela sentiu um jato quente inundá-la.
O duque saiu de dentro dela deixando-a com uma sensação
molhada. Ele se levantou contra a luz caminhou até a bacia sobre a
cômoda. Ele era tão alto. Tão másculo e glorioso em sua nudez. Ela
puxou a camisola para baixo, perguntando a si mesma qual era o
seu problema.
Ele voltou com uma toalhinha molhada e por um tempo eles se
olharam. Estava na cara dos dois que a noite havia sido um
fracasso.
— Imagino que... tenha doído — ele disse, esticando a toalha até
ela.
Ela balançou a cabeça que sim, pegando a toalha.
— Sinto muito — ele se sentou na cama, olhando-a de um jeito
curioso quando ela secou as lágrimas com o tecido. — Eu deveria
ter ido com mais calma.
Ela se ajeitou no encosto tentando aparentar tranquilidade. Por
que precisava de uma toalha tão grande pra secar as lágrimas? E
por que estava chorando, pelo amor de Deus? Ele era seu marido, e
aquela era a sua noite de núpcias. Por que estava tão ridiculamente
emotiva com a coisa toda?
Ele tirou a toalhinha de suas mãos, perguntando:
— Posso limpá-la?
Ela arregalou os olhos, entendendo a função da toalhinha. Só de
pensar nele limpando-a, ficou horrorizada.
— Não — Ela puxou a camisola até os tornozelos. — Não
precisa.
Arrastando-se para fora do colchão, ela se levantou. Precisava
se recompor e comportar-se de maneira graciosa. Era uma dama,
não uma garota tola. Mentira. Era uma garota tola e agora os dois
sabiam disso.
Sem conseguir encará-lo, despediu-se com um boa noite baixo.
Que desastre. Seus joelhos estavam fracos de tanto tremer, seu
coração batia como um insano e o cheiro do corpo dele estava por
todas as partes dela. Ela subestimou a intimidade do ato, assim
como sua capacidade de controlar a proximidade.
— Wilhelmine — Alexander a chamou antes que ela alcançasse
a porta. Ela pousou a mão na maçaneta, mas não se virou. — Não
será sempre ruim.
Sua voz soou infinitamente compassiva, e Wilhelmine teve
vontade de enfiar a cabeça em um buraco.
— Obrigada — ela disse virando-se para trás, tentando sorrir.
Agradecer por aquilo foi demais para ele. Ele se levantou, nu em
pelo, e caminhou até ela. Parando na sua frente, envolveu seu rosto
com as mãos fortes e a olhou.
— Está consumado — Ele disse firme, talvez como forma de
compensá-la pela experiência. — Não que isso importe para mim,
mas importa para o reino. Você é a minha esposa. Minha duquesa.
Ela fez que sim, exalando, aliviada. Qualquer um conhecia os
rumores sobre casamentos desfeitos por não terem sido
consumados. Seu laço com Schaumburg-Lippe fora cortado. Ela era
sua duquesa.
Mas nada daquilo parecia realmente importar ao duque.
— O que importa para mim é que sinta prazer em compartilhar
algumas noites comigo — ele a olhou.
Ela tentou se livrar delicadamente de suas mãos, mas ele não
deixou.
— Não meça essas noites pela primeira. — Ele se inclinou e deu
um beijo gentil em sua testa. Wilhelmine segurou seus pulsos,
incerta se o afastava ou se pedia um abraço. Precisava
desesperadamente de um, e sabia que cabia perfeitamente em seus
braços.
— Sexo melhora com a proximidade — ele continuou. — Se
desejar ficar mais, posso mostrar outras faces da experiência.
Ela balançou a cabeça fazendo que não. Aquilo fora o suficiente
para a noite.
Ele assentiu, roçando delicadamente os lábios nos dela. O toque
singelo a desarmou. Ela segurou seus braços de leve, respondendo
ao beijo de maneira tímida.
O beijo seguinte amoleceu sua força de vontade. Ele insinuou a
língua entre os lábios dela, segurando a lateral do seu rosto. Seu
corpo nu era uma caldeira, e se ela não estivesse tão assustada,
teria retribuído.
Ela alisou seu peito, surpresa pela sensação quente e
convidativa. Seus dedos migraram para os braços, gostando dos
músculos duros e pela forma como eles se uniam ao tronco largo
sob axilas cobertas de pelos.
O passeio dos dedos rendeu a ela outra mordidinha no canto da
boca. Um raio primitivo cruzou a coluna dela, despertando-a para
algo diferente. O centro entre suas pernas umedeceu e os bicos dos
seios cresceram. Ela estava sentindo desejo por ele.
Desejo que, talvez, a levaria à cama dele outra vez.
Quando ele a largou, ela precisou se equilibrar para não cair.
— É uma pena que a gente não tenha tido tempo para se
conhecer melhor — ele disse dando um passo para longe.
Wilhelmine estava desnorteada demais para retrucar. Havia muita
pele nua em seu campo de visão. Muitos sinais acesos dentro dela.
Alexander continuou:
— Não parece, mas conversar antes do sexo pode mudar tudo.
Vermelha, ela mal percebeu que balançava a cabeça que sim.
Ela deixou o quarto apressada, correndo até o seu, desejando
enfiar-se sob as cobertas e sumir. Mais um segundo e teria indicado
que estava pronta para começar tudo outra vez.

A . A
vontade de imergir em água quente depois do sexo havia
evaporado.
A noite fora ruim. Sua esposa havia detestado a experiência
inteira, cada segundo dela. Por um mês ele pensou em como seria
ter o corpo dela sob o dele. Em como sua altivez, atrevimento e
charme deixariam o sexo interessante. Mas, na hora, as coisas
degringolaram; ele teve dúvidas se estava sendo bom o suficiente,
se estava sendo tradicional demais, se estava correspondendo às
expectativas dela. No fim, Alexander não soube lidar com uma
mulher gelada e imóvel sob ele, e uma sequência de erros se seguiu
— falta de intimidade, olhares desencontrados, um salto entre as
carícias e a penetração. Foi péssimo. O oposto do que desejou para
si e para ela.
Ele vestiu o roupão e caminhou até a porta, disposto a ir até o
quarto dela e pedir desculpas. Chegou a tocar na maçaneta de
metal, mas perdeu a coragem. Aparecer em seu quarto a apavoraria
mais.
Ele arrancou o roupão, jogou-o no chão e imergiu na banheira,
arrastando as mãos pelo cabelo enquanto lembrava da pele dela
sob a sua. Em alguns momentos, teve a impressão de que seus
beijos a relaxaram, e que seus olhares mostravam alguma entrega.
Em outros, seu toque a retraía e ela evitava olhá-lo. Pensando em
retrospecto, ela não odiou todas as sensações. Mas odiou toda vez
que foi surpreendida pela intimidade.
Foi então que Alexander entendeu que Wilhelmine não fazia
ideia do que era sexo.
Ela não soube o que fazer com a toalhinha. Ela se assustou com
o ato carnal. Tentou parecer indiferente, mas estava claro que ela
não fazia ideia do que acontecia entre quatro paredes, na intimidade
de um casal. Não, pelo menos, o que era o ato real, despido do véu
ilusório das historinhas de cegonhas e abelhas. Como conseguiria
se envolver, se entregar, e, óbvio, gostar do que aconteceu? No fim,
o medo a paralisou, causando ainda mais dor.
O problema é que ele partiria amanhã sem poder dizer a ela que
a entendia e que sua inadequação era normal. Sem poder mostrar,
em gestos, que sentia muito por terem encerrado a noite daquela
maneira. Infelizmente, precisaria esperar semanas até poder
desfazer a péssima impressão que causou.
13

A ,
Wilhelmine recebeu com alívio a notícia da partida. Não conseguiria
encará-lo aquela manhã.
Enquanto aguardava o mal-estar passar para tomar o desjejum,
perguntava-se como um homem experiente e poderoso como ele,
que poderia ter qualquer mulher do mundo, acabou na noite de
núpcias com um cadáver em sua cama. Afinal, ela fora um na noite
passada: fria, dura e silenciosa. Não sabia que tipo de mulher ele
esperava, mas sabia que fora uma enorme frustração.
Wilhelmine tamborilou os dedos sobre a mesa. Como podia ter
tido uma experiência tão ruim, se existiam casais no mundo que
tiravam prazer do que fizeram ontem? Ela ajeitou o guardanapo
sobre o colo, irritada. Ele fora um perfeito cavalheiro, como sempre.
Respeitoso, deu a ela chances de rejeitá-lo. Poderia até mesmo
apostar que, caso tivesse parado o ato, ele consideraria o
casamento consumado de qualquer maneira.
Por que, então, sentia-se mal?
Ela exalou, identificando rapidamente o culpado. Sentia-se mal
porque vivia em uma sociedade onde escondiam o sexo das
mulheres. Não faziam idéia, até dias antes do casamento, do que se
tratava aquilo. Prazer? A conjunção carnal existia estritamente para
a concepção de bebês. Eram proibidas de ler, falar ou mesmo
pensar sobre o assunto! E ai de quem perguntasse sobre o que
acontecia na intimidade de um casal: acabaria trazendo a sombra
de um escândalo para si. A mesma sociedade que a transformou
em pária, dois anos atrás, agora insinuava-se em sua residência
para estragar sua vida íntima.
Agora que sabia quem era o verdadeiro culpado, conseguia
tomar o desjejum.
A programação do dia exigia que ela socializasse com os
convidados que ainda estavam acomodados no castelo, mas ela
não queria. Fora avisada de que sua presença era aguardada, mas
mandou avisar que estava indisposta. Desconfiava que usaria o
subterfúgio muitas e muitas vezes no futuro, e desde já se recusava
a se sentir mal por isso. Um dos assistentes do duque chegou a
sugerir que sua ausência geraria especulações, mas ela o ignorou.
Não daria satisfação a todo tempo para todo mundo. Aquele era seu
primeiro dia como duquesa e já se sentia pouco dona de sua vida.
Wilhelmine decidiu, ao invés, caminhar pelos corredores vazios
de sua ala, sentindo uma imensa necessidade de silêncio. Andou
por eles por um tempo, tocando em cada objeto de valor inestimável
que encontrou no caminho — e o caminho estava cheio deles.
Relógios de ouro. Vasos de porcelana finíssima. Quadros e mais
quadros de pintores conhecidos e desconhecidos. Sentia-se
frustrada e bastante solitária. Suas partes íntimas latejavam da
experiência da noite anterior — pouca coisa, apenas um sinal de
que alguém esteve dentro dela — como um lembrete incômodo.
Mesmo assim, latejavam menos que os pensamentos na cabeça.
O duque devia estar arrependido de tê-la desposado.
Ao parar na frente do retrato do marido, uma pintura gigantesca
(e ligeiramente megalomaníaca, como as outras da galeria),
esperou sentir asco, e não o oposto. Até aquele momento se
perguntava por que, em nome de Deus, fornicava-se tanto no
mundo. Mas ao olhar para os enigmáticos olhos oceânicos do
quadro, foi tomada por uma onda de calor. Aquele calor acordava
exatamente as mesmas partes que pulsavam nela.
As memórias das mordidinhas delicadas em sua nuca e de seu
olhar faminto a fizeram estremecer. Droga, Alexander. A
insegurança encontrou a inexperiência na noite passada e a partir
de então deu tudo errado.
Wilhelmine voltou a caminhar sozinha, abrindo os cômodos por
onde passava para investigar o que havia dentro. Tomara que
pudesse desfazer a péssima impressão em breve. Ou mesmo
gostar da companhia do marido no futuro — e fazê-lo gostar da sua.
Seu corpo garantia em uma língua própria que desejava dar uma
nova chance às mãos morenas e aos beijos lascivos.
Ela só esperava que ele retornasse em breve para isso.

Q , , W
viu-se verdadeiramente sozinha. E por não ter com quem conversar,
começou a escrever.
À noite, quando dispensava a criada e os únicos sons eram os
estalos do velho castelo, ela colocava seus pensamentos no papel.
Escreveu sobre a experiência ruim da noite de núpcias e a sua
inexperiência. Sobre a dificuldade dos casamentos em que dois
estranhos precisavam se relacionar. Sobre como seria experimentar
a mesma coisa sem medo. E escrevia, principalmente, sobre como
a sociedade isolava as mulheres de assuntos que lhe diziam
respeito — ou sexo não envolvia a participação delas? — enquanto
exigia que fossem damas leves e sorridentes.
Será que algum dia isso mudaria? Ela não sabia, mas sabia que
estava escrevendo coisas perigosas, e que precisava dar um jeito
de escondê-las de olhos curiosos.
Certa noite, enquanto procurava um lápis apontado na
escrivaninha, deparou-se com uma gaveta travada. Ela se
deslocava apenas alguns centímetros ao ponto de deixar uma fresta
aparecer, mas então alguma coisa impedia sua abertura. Wilhelmine
tirou o xale comprido e se ajoelhou no chão, tentando entender o
que estava travando a gaveta.
Ela tateou o fundo, procurando alguma trava. Chegou a sentir
com as pontas dos dedos algumas peças frias endentarem-se por
trás do móvel, entendendo que existia um dispositivo impedindo a
abertura. Ali? Por quê? Ajustando os ombros, encolheu-se até que o
braço tivesse o ângulo certo para mexer nas peças. Era algo
curiosamente engenhoso. Ela ainda tateava a madeira, tentando
formar uma imagem mental do que existia ali, quando ouviu o clic.
Wilhelmine sorriu e se levantou.
O dispositivo não destravou a gaveta, e sim outra coisa. Era um
tipo de tampo secundário debaixo do tampo da mesa, uma gaveta
chata como uma lâmina que se estendia até o fundo da
escrivaninha. E que, uma vez aberta, revelou pelo menos uma
dezena de cartas amareladas pelo tempo.
Wilhelmine trouxe o lampião que ficava ao lado da cama até o
móvel. Ela girou as cartas, constatando estupefata que pertenciam a
Elsa. Algumas nunca haviam sido enviadas, enquanto outras eram
respostas da irmã às cartas da antiga duquesa.
Wilhelmine olhou para os lados, ciente de que leria algo bastante
pessoal. A curiosidade para saber o que a antiga esposa de
Alexander escrevia era grande. Maior que a necessidade de
devolver as cartas à família?
Maior.
Ela abriu uma que parecia nunca ter sido mandada. A letra
bonita e bem desenhada de Elsa ocupava todo o papel. Ao começar
a ler, quase pôde ouvir a voz doce da jovem flutuar no ar:

"Meu amor, quanto tempo levará até que eu sinta novamente a pele arrepiada
de prazer pelo seu toque? O choque que percorre o corpo, a intensa e
profunda consciência física de sentir você dentro de mim?"

Wilhelmine recostou na cadeira com os olhos arregalados.


Cartas de Elsa para o duque? Ela chacoalhou a cabeça,
consertando: cartas eróticas de Elsa para o duque?
Ela voltou a ler, notando as mãos trêmulas pela euforia e
nervosismo:

"Sinto a pulsação da música que os corpos fazem quando me toca. O


magnetismo inegável que cresce toda vez que me olha. Sinto falta de seu
acalento suave depois de nossas noites. Do calor e aconchego que encontro
em seus braços. Amo você, e dizer uma só vez não basta. Amo, amo, amo
você. Sinto tanto sua falta. Não demore a voltar para mim."

Wilhelmine largou a carta como se tivesse sido picada por algo.


E tinha sido, de certa maneira, picada pelo ciúmes. Elsa era tão
apaixonada assim pelo esposo? Se era, estava explicado por que
definhou longe dele. Há quinze dias Wilhelmine não ouvia falar do
duque. Se era difícil viver solitária sem amá-lo, como seria se
nutrisse sentimentos por ele?
Ela olhou para as outras cartas sobre a mesa, pensando no
homem que as duas — ela e Elsa — haviam desposado.
Ele teria amado Elsa com a mesma intensidade?
Wilhelmine fechou a gaveta, incomodada com a sensação ruim
dentro dela. Imagens de noites tórridas começaram a importuná-la:
Elsa nos braços de Alexander, serpenteando de prazer a cada
toque. Juras de amor ditas baixinho ao pé do ouvido. Carícias
cheias de mordidinhas e significados. Ela até tinha curiosidade em
saber o que as outras cartas traziam, mas no momento não queria
mais ler nada.
Wilhelmine caminhou até a penteadeira, achando ter visto da
janela um cavalo galopar na estrada escura. A estrada que trazia a
Solitude era uma linha reta que ligava o castelo à cidade, a onze
quilômetros de distância. Era impossível chegar ou partir do castelo
sem ser avistado, e por acaso notou a pressa do cavaleiro.
Aborrecida, sentou-se na frente do espelho e encarou-se, brava.
Os olhos desceram pelo rosto, percorrendo o pescoço até a curva
dos seios, discretamente expostos pelo decote da camisola nova.
Perto de Elsa, tão esbelta e feminina, o que era ela? Uma mulher
como tantas outras, sem os atributos desejados em outras damas. E
agora que visualizara o marido com outra nos braços, sentia-se pior
do que antes. Odiava que sentisse ciúmes de uma jovem que se foi
tão prematuramente, mas precisava admitir: estava enciumada.
Ela voltou a escovar o cabelo pesado, vendo-o reluzir sob o
brilho bruxuleante da lâmpada. Quinze dias depois, os traços dos
dedos do marido haviam desaparecido de seu corpo e ela passara a
ansiá-los outra vez. Esse desejo, unido ao ciúmes, era mau sinal.
— Não tem nada a ver com sentimentos — disse à própria
imagem, como se pudesse convencê-la do contrário.
Não o amava, só desejava seu toque. Era estranho desejá-lo
assim? Não parecia complexo em sua cabeça, mas devia ser. Não
era para a cabeça dos homens.
Uma batida discreta na porta a fez colocar a escova sobre a
penteadeira. Ela fechou o roupão, respondendo para a criada:
— Não precisa bater, Fräulein Schmidt. Já falei que pode entrar.
Quando a porta abriu, viu que não era a criada.
A silhueta de Alexander contra a luz tomava todo o espaço entre
os batentes. Ela se levantou sentindo o coração ribombar,
caminhando com as pernas fracas até ele.
— Alexander?
Sua farda tinha um aspecto amassado e o cabelo estava revolto,
como se tivesse cavalgado durante horas. Uma barba discreta
enegrecia a lateral de seu maxilar. Embora seu aspecto geral fosse
cansado e soturno, ela nunca o vira mais atraente. Era como se
outro homem, mais rústico e misterioso, estivesse na sua frente.
— Quando chegou? — ela quase gaguejou. Estava escuro para
ver seus olhos, mas ela sabia que estavam nela. Ela fechou o
roupão fino por cima da camisola longa, sentindo a seda roçar sobre
os pés descalços. — A última coisa que ouvi foi que ainda estava
acampado a quilômetros daqui.
Com três passos, Alexander se pôs diante dela.
— Senhora. — Ele buscou a mão de Wilhelmine. Ela soltou as
bordas da vestimenta, zonza. O duque levou sua mão à boca, olhos
nos dela. — Fico feliz que ainda esteja acordada.
Wilhelmine tinha se esquecido de quão sensual sua voz soava.
— É bom tê-lo de volta — ela murmurou.
— Não tenho muito tempo — ele disse. — O regimento continua
acampado em Heilbronn. Preciso partir amanhã cedo, mas
precisava vê-la.
A rouquidão indicava que sua garganta não tinha visto água por
horas, e mesmo assim sua voz soava branda e segura. Algum dia
pararia de estremecer ao ouvi-la?
A mensagem, no entanto, fez as sobrancelhas de Wilhelmine se
apertarem.
— Precisa retornar? Pensei que…
— Mais cinco dias, e então estarei de volta.
Wilhelmine não entendeu.
— Se em cinco dias estará de volta, como pode estar aqui?
Os olhos dele brilharam na penumbra. Ele havia cavalgado até
ali por horas para passar uma única noite com ela — e então
retornaria. Quando Wilhelmine entendeu sua presença na porta do
quarto, sentiu uma onda de calor sem precedentes tomá-la inteira.
Dos dedos dos pés às orelhas, passando por cada centímetro de
pele, tudo se arrepiou.
— São três horas de cavalgada — ela murmurou com a
respiração sufocada.
— Que percorri com prazer apenas para jantar com você.
As pernas de Wilhelmine amoleceram. Ela fez que sim,
ignorando que fossem dez da noite, que já tivesse jantado e que
pretendia manter todas aquelas sensações afastadas de si mesma.
— Preciso me banhar. — Alexander olhou para si mesmo, e ela
quase murmurou que não o fizesse. A lembrança da mordida em
sua nuca e no canto de sua boca lhe diziam que o queria
exatamente como ele estava ali: rústico. Não polido. Não depois. Ela
nem entendia como podia querer aquilo, mas decidira que sua
cabeça não era a melhor conselheira no momento. Seus instintos
eram bem mais afiados.
Ela fez que sim, e avisou que se aprontaria para ele.
Eles ainda se olharam por um segundo e Wilhelmine desejou
que ele a beijasse ali mesmo. Queria sentir seu gosto. O cheiro do
ar noturno em seu cabelo. Mas ele não a beijou. Assim que ele se
foi, ela olhou para a escrivaninha e mordeu os lábios. Se pretendia
manter seu coração trancado, precisaria equipá-lo com dispositivos
mais elaborados do que uma simples fechadura. Hoje, Alexander
poderia abri-la com um só sopro.
Mas como reforçar seus cadeados se ele tinha a perícia para
escancará-la?
Wilhelmine se sentia cada vez mais vulnerável.
14

A
suas funções ou perturbando sua mente noite e dia. Não precisava,
mas era aquilo que estava acontecendo. Da hora em que acordava
à hora em que ia dormir, era em sua bela e jovem esposa que
pensava.
O motivo? A frustrante noite de núpcias. As cenas dos
movimentos desconjuntados giravam em sua cabeça como uma
roda de tortura. Enquanto treinava o batalhão do rei nos arredores
de Heilbronn, sua péssima performance o assombrava. Diabos. Ele
não era um jovem inexperiente. Sabia dar prazer a uma mulher e
precisava desfazer, justamente por saber dar prazer, a má
impressão que causara.
Foi por isso que decidiu, faltando poucos dias para encerrar os
trabalhos, ausentar-se durante uma única noite e cavalgar até
Solitude.
Seu secretário quase tombou morto quando foi informado de que
o nobre estava partindo. Com a face tomada de um preocupante
tom de vermelho, Herr Wallinger questionou a decisão do duque.
Tentou mobilizar alguns homens para acompanhá-lo, chegou a
insinuar que o casamento o mudara. Alexander partiu antes que ele
terminasse de falar.
Durante as três horas em que cavalgou sozinho entre a cidade
do norte e o palácio, chegou a se recriminar por estar fazendo
aquilo. Ela não conseguiu tolerá-lo na noite de núpcias, e ele se
perguntou por quê. Seu coração pertencia a outro? Não estava
preparada para desempenhar o papel de ser sua esposa? Mas
então o peito foi tomado por uma certeza monstruosa de que todos
aqueles pensamentos estavam errados. Ela era uma jovem
inexperiente, e não a imagem da Artemis que formou na cabeça. O
problema estava nele: ele achou que se deitaria com a mulher que
enganou, com uma flecha, vinte nobres avoados. Mas viu amolecer
em seus braços uma jovem virgem e assustada pela intensidade do
sexo.
Desde o momento em que percebeu aquilo decidiu que
precisava revê-la, e agora forçava o cavalo a galopar mais rápido.
Tudo que queria era sentir a pele de Wilhelmine em contato com a
sua outra vez. A alva e suave da barriga; a virgem e aveludada do
meio das coxas. Em sonhos, sua mão a havia acariciado
repetidamente sobre os montes dos seios, nuca, coxas, sempre
lenta e diligentemente, desvendando suas formas no escuro,
provando cada uma delas com os lábios. Ele não conseguia parar
de pensar nas próprias mãos sobre o corpo dela e, por não
conseguir, cavalgava com o membro duro — o que era um suplício.
Quando chegou já era tarde, e tinha decidido encarar a situação
inteira com frieza. Provera uma primeira noite absurdamente
insatisfatória e gostaria de substitui-la por uma melhor. Deveria ser
só isso, mas no fundo sabia que era mais. Havia um fulgor
inesperado nos olhos dela quando ele a beijou antes de partir, e
esse fulgor manteve algo dentro dele aceso como uma fogueira
ardendo na escuridão. Era por causa daquela chama que estava em
Solitude, caminhando em direção ao quarto dela com os passos
firmes.
Alexander parou em frente à porta fechada abrindo e fechando
as mãos, tentando relaxar os dedos. Suas costas estavam suadas,
e não era por causa da cavalgada. Mesmo sabendo que seu desejo
não se arrefeceria com uma só noite, precisava retornar a campo no
dia seguinte. Mas quando abriu a porta, desejou não precisar
retornar.
Imensos olhos azuis o fitaram surpresos. O cabelo solto caía liso
como uma cortina de ouro até a cintura, e a camisola era fina e
revelava as curvas da perna. Eles se olharam por um tempo. Ele
estava em completo desalinho pela cavalgada. Farda suada, rosto
cansado. Alerta, só os olhos, que faiscavam à visão dela.
Estava ali para desfazer a péssima impressão, Alexander disse a
si mesmo, mas a verdade era que sentia o corpo inteiro hesitar,
oscilando entre a necessidade de ser um perfeito cavalheiro e a
vontade crua de tomá-la nos braços, beijá-la e deitá-la ali mesmo,
sobre o tapete.
Como (ainda) era um homem civilizado, usou o resto das forças
para ser o cavalheiro de sempre. Um jantar, uma conversa.
Qualquer outro movimento precipitado levaria à repetição da noite
passada, e ele sabia agora em que pontos precisaria melhorar.

D ,
sala de jantar, trocando amenidades sobre como foram os dias dela
no castelo. Ela não comentou sobre o tédio ou a solidão, e deixou
que ele contasse sobre o acampamento e o tipo de treinamento que
estava implementando. Pelo que Wilhelmine havia entendido,
Alexander prestava ajuda para nobres e seus exércitos. Suas
especialidades eram táticas e estratégia, disseram-lhe. Não era
mais o homem que se movia por entre batalhas, mas um dos que as
organizava. Um homem inteligente, ela pensou enquanto se sentava
na sua frente.
Ela gostava que ele fosse inteligente. Sentia-se segura ao lado
de pessoas assim. Elas tinham menos superstições, costumavam
ouvir o outro lado e desenvolviam respeito pelas visões que
ampliavam as suas. Nos dois anos em que sofreu sozinha e em
silêncio por algo que não fez, aprendeu que a avalanche de
preconceito e desdém costumava vir dos mais obtusos, dos tolos e
dos broncos. Os sábios aceitavam com cautela informações sem
verificação, mas os idiotas corriam para compartilhá-las. Wilhelmine
sempre desejou pertencer ao primeiro grupo.
Mas o que a enchia de deleite, no momento, era saber que ele
havia cavalgado três horas para estar com ela naquela noite. Aquilo
jogava areia em todos os seus planos de não se envolver com ele.
— E como Solitude a vem tratando? — o duque perguntou. —
Ouvi dizer que continua apreciando a comida de nosso cozinheiro.
— Solitude e seu cozinheiro vêm me tratando muito bem — ela
respondeu, sorrindo.
Quando o criado colocou seu prato adiante, os olhos dele se
iluminaram.
— Espero que não se importe por eu ter perguntado ao chef
sobre suas preferências — ele disse, e ambos olharam para o prato
de sopa de cebolas francesas que um criado colocou à frente deles.
Wilhelmine segurou um suspiro.
— Essa sopa, em especial, me fez perder um ou dois espartilhos
— ela comentou, inalando o cheiro maravilhoso que subia da tigela.
Já havia jantado, mas agora teria que fazer esse esforço terrível de
degustar um pouco mais do prato maravilhoso.
Ao erguer os olhos, o duque tinha um sorriso no rosto.
Wilhelmine não se lembrava de tê-lo visto sorrir antes, por isso
sorriu também. Ach, Mensch, ela amaldiçoou a si mesma sem
conseguir esconder as bochechas vermelhas. Ele a deixava tonta
com a mesma eficiência que uma taça de vinho. Quando sorria,
como duas.
— Fico feliz em ouvir isso — ele falou.
— Que eu tenha perdido espartilhos? — Ela abriu um sorriso
maior. Esperava de coração que suas novas curvas o agradassem,
porque as curvas pareciam ter vindo para ficar.
— Podemos providenciar novos espartilhos.
A olhadela que ele a lançou a fez corar.
É, talvez fosse melhor pedir um cálice de vinho por garantia.
— Não preciso de mais roupas — ela respondeu. — As modistas
que trouxe da França costuraram o suficiente para dez de mim.
— Apenas não se prive de nada. Quero que se sinta feliz aqui.
Eles trocaram olhares, e Wilhelmine se lembrou da carta de Elsa.
Lá estava a cabeça dela atrapalhando a noite perfeita.
— Obrigada — ela respondeu baixo.
— Importa-se de se sentar mais perto? — ele pediu. — Gostaria
de tê-la ao meu lado.
Ela fez que sim, sentindo faíscas crepitarem no estômago. Dois
criados se apressaram em ajeitar a cadeira ao lado do duque para
ela, mas foi ele quem se levantou, andou até ela e puxou,
cavalheiresco, a cadeira para ela se levantar. Ela o acompanhou até
seu novo lugar ao seu lado, onde ficariam bem mais próximos —
próximos o suficiente para que visse os vincos de cansaço em seu
rosto e o olhar exausto. Tudo que desejou foi poder correr a ponta
dos dedos por aqueles riscos e aliviá-los.
Pela próxima hora eles comeram e bebericaram um vinho
maravilhoso que era servido sempre que seu copo esvaziava. Ele
não parecia estar com pressa em carregá-la para o quarto e aquilo a
inquietava. Por mais que estivessem apreciando a comida e a
presença um do outro, ela sabia o que ele viera fazer ali. O olhar
febril que ele dispensava a ela sussurrava aquilo.
Durante a noite, Wilhelmine concluiu que gostava de muitas
coisas no duque, e entre elas, sua voz. De como ela deslizava pelo
ouvido e a aquecia de maneira estranha. Gostava também da
maneira como ele organizava os pensamentos e os expunha. De
suas ideias e argumentos para justificar o seu trabalho. Segundo
ele, se seu trabalho fosse bem-feito, vidas eram poupadas. E
enquanto ele a explicava de maneira nobre tudo aquilo, ela se
perguntava o que tinha mudado desde a noite em que tudo deu
errado. Sentia-se diferente nos últimos dias. Mais de uma vez
pegou-se pensando nele à noite, ou ao acordar. Às vezes espremia
sem perceber o travesseiro contra o peito, desejando que o tecido
fosse pele. Que fosse a pele dele — rica em cor, perfumada, coberta
de fios escuros.
Ela sentiu vontade de se tocar, e só de lembrar disso sua
respiração falhava.
Ao terminarem a janta, levantaram-se. Wilhelmine sentia nós
apertados na barriga pela expectativa, e quando ele abriu a boca,
achou que ouviria sua proposta. Mas ele não estava com pressa:
— Gostaria de lhe mostrar algo.
— Claro. Mas estou com medo de estar cansando-o — ela
respondeu, verdadeiramente preocupada com sua aparência. —
Você parece exausto.
Ele pousou a mão quente sobre a dela e fez um carinho. Sua
mão era áspera e dava a ela uma sensação de proteção.
— Estou exausto. Mas também feliz por estar aqui. Com você.
Wilhelmine odiava admitir o quanto queria ouvir aquela resposta.
Como resistir àquele interesse dilacerante? Ela não conseguia. A
espera ansiosa pela noite fazia o corpo dela queimar.
— Se afirma estar bem, eu acredito. — Ela tentou não parecer
agitada. — O que quer me mostrar?
Ele demorou um tempo para tirar a mão de cima dela. Seus
olhos estavam incríveis naquela noite. Ela podia ver a mesma
energia que corria por ela correr por eles.
Ele respondeu baixo:
— Algo que não pratico há tempos, mas desejo ardentemente
voltar a praticar. Você me trouxe a vontade de volta.
Entorpecida pela resposta inesperada, Wilhelmine falhou em
notar que ele a aguardava. Ela enlaçou o braço ao dele, e eles
caminharam lado a lado, pegando a esquerda ao invés da direção
dos quartos. O estômago de Wilhelmine se revirava. Afastar-se dos
quartos aumentava a expectativa.
Eles desceram as escadas até o primeiro andar. Ela sequer tinha
investigado aqueles cômodos. Limitara-se a ficar perto do que
conhecia e não fazia ideia do que iria encontrar.Quando ele parou
diante de duas enormes portas de madeira e as abriu, Wilhelmine
segurou a respiração. Alexander acendeu as luminárias laterais e
um enorme atelier se revelou diante dos seus olhos. Quadros, telas,
carrinhos cheios de tintas e pincéis, tecidos e lonas espalhavam-se
por todos os cantos, assim como quadros prontos e telas ainda em
execução.
O duque que comandava guerras e organizava exércitos gostava
de pintar.
Ela olhou para o quarto, sem fala. Se soubesse que havia todos
aqueles cavaletes, telas e tintas à disposição no castelo, teria
passado dias menos entediantes. E enquanto corria os olhos
boquiaberta pelas telas ao redor, concluiu que o duque era não
apenas um artista, mas um excelente artista.
Eles caminharam por entre os cavaletes e ela quis que fosse dia
para poder absorver tudo que via. Ao ver um retrato de Elsa sobre
um suporte, parou.
— Você pinta maravilhosamente bem — ela disse olhando a
figura da mulher alta e esguia que olhava de maneira séria para
eles. A parte de cima do retrato estava pronta, mas a de baixo havia
sido nitidamente interrompida.
— Tenho um bom olho — Alexander assentiu, observando a
pintura.
Ela o olhou de soslaio, se perguntando se gostava do que via
nela. Voltou a olhar para a pintura inacabada, estranhamente tocada
por ele, pelas pinturas, por ele pintar.
— Ela era muito bonita — Wilhelmine murmurou.
Ele concordou, discreto.
— Ela era. Mas não gostava de posar para mim.
Eles se olharam. Cada vez que seu olhar encontrava o dele, seu
coração se agitava. Sua pele continuava a queimar, e os calafrios na
espinha iam e vinham, resfriando suas vértebras.
— Talvez você também não goste — ele disse, adicionando em
seguida: — E não espero que goste. É realmente entediante.
— Se conversar comigo como conversou essa noite, posaria
com prazer — ela se viu respondendo. — A paciência vem com a
conversa agradável.
— A de hoje foi do seu agrado?
Eles se encararam. Então ela fez que sim, sentindo todo o seu
ser cheio de espera.
Os olhos de Alexander continuavam o mistério de sempre: dia e
noite ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Ela mal viu quando o rosto
dele escureceu o seu e sua boca pousou sobre a dela. Os lábios se
encontraram, delicados. As mãos dela envolveram seus braços,
mostrando o quanto o queria.
Infelizmente, o beijo foi breve. Foi também casto e doce. Talvez
ele quisesse sentir se ela responderia a ele ou corria o risco de se
deparar com a mulher fria com quem se deitou da primeira vez.
Wilhelmine esperava que ele a desejasse o suficiente para convidá-
la de novo. Faria tudo diferente.
Ele se afastou para perguntar:
— Posaria um dia para mim?
Ela balançou lentamente a cabeça fazendo que sim.
— Será uma honra — disse.
Pelo modo como seu esposo a olhava, era como se já estivesse
pintando-a.
Ele levou as costas das mãos até o rosto dela. Foi como se uma
pluma deslizasse pela face quente: leve e suave. Seus olhos
estavam baixos de desejo, e provavelmente assim estavam os dela.
Ela sentiu uma estranha onda de afeto por ele crescer dentro dela.
A resposta dele veio em voz baixa e rouca:
— Gostaria de visitá-la essa noite.
O coração de Wilhelmine trovejou no peito. Raios irromperam
por seus membros, eriçando os fios do corpo. Antes que pudesse
pensar no que responder, fez que sim. Foi um gesto discreto, mas
que rendeu outro beijo cálido — e muitos outros arrepios.
— Gostaria muito que me visitasse — ela murmurou quando a
boca dele se afastou. — Realmente adoraria.
15

O .U
e lavanda, de corpo feminino feito para lábios e mãos. Havia algo
diferente ao redor, ele notou dando um giro no quarto. O cômodo
havia ganhado a marca de sua nova esposa. Ela estava impressa
nos tecidos escolhidos para a colcha e o dossel, na cor tranquila
que cobria as paredes e na simplicidade convidativa que não existia
antes.
— Gosto do que fez aqui — ele comentou quando a porta se
fechou atrás deles.
— Fico feliz que tenha gostado — Wilhelmine respondeu. A voz
dela havia saído falha e as mãos não sabiam se seguravam o
roupão ou abraçavam o corpo.
A criada que a havia ajudado a se despir se despediu com uma
mesura, passando discretamente atrás deles e desaparecendo por
uma saída anexa ao quarto de banho. Eles estavam finalmente
sozinhos.
— Pode e deve fazer o que quiser nesse quarto — ele falou. —
E em qualquer outro cômodo do castelo. Ele é seu.
Ela olhou para trás, para o cômodo reservado para as posses
que acabou não trazendo de casa. Ele jazia estranhamente vazio
em meio a opulência dos outros, convidando-a de maneira estranha.
— Talvez mais tarde faça algumas alterações naquele quarto ali
— ela olhou para o cômodo.
Os olhos de Alexander ignoraram o quarto. Ele só tinha olhos
para ela.
— Essa é a sua casa, agora.
Ela pareceu estranhar o som daquilo. Talvez não soubesse, mas
era dona de diversos castelos, não apenas aquele. Tudo que sua
vista alcançava — e um pouco mais de terra além do alcance dos
olhos — pertencia a ela.
Ela fitou Alexander sem saber o que responder. Ele gostava que
ela fosse modesta, mas gostaria que soubesse que não precisava
ser.
— Senhor...
— Alexander — ele a corrigiu.
— Alexander — Ela sorriu, ficando logo séria outra vez. Suas
mãos apertavam-se, um hábito de quando ficava nervosa. —
Gostaria de pedir desculpas pela última noite.
Alexander caminhou até ela, colheu suas mãos e as trouxe entre
as suas até o peito. Gostou que ela tivesse mencionado a noite
antes dele. Que também tivesse sentido que foi um começo ruim —
mas um que poderia ser corrigido.
— Eu que peço perdão — ele disse. Um calombo desceu pela
garganta delicada dela, e Alexander chegou ainda mais perto. Suas
testas agora quase se tocavam. — Você estava nervosa e eu me
deixei levar pela necessidade de consumar o casamento. Sinto
muito que não tenha sido bom.
Os braços de Wilhelmine enfraqueceram. Os traços do rosto,
antes tenso de ansiedade, abrandaram.
Mas embora ela ficasse cada vez mais relaxada, outro tipo de
tensão crescia entre eles. Alexander estava usando todo o se
autodomínio para falar tudo antes que a beijasse. Depois que
beijasse, não queria mais conversa.
— Devia ter preparado você para o que viria — ele continuou
com a voz baixa e tranquila. — Ou poderíamos ter esperado.
Nossas obrigações acabaram desapontando você.
Ele aguardou que ela dissesse alguma coisa — qualquer coisa
—, mas ela não disse. Os olhos de Wilhelmine correram por ele,
descendo até seu queixo e subindo, passeando pelo seu rosto sem
que da boca saísse uma palavra. Sobre o que pensava, ele não
sabia. O que sabia era que a achava linda, mas que hoje estava um
pouco mais. Havia tanta delicadeza e força em seu rosto que seu
peito não se aquietaria se não a beijasse.
Ainda sem dizer nada, ela puxou a mão de dentro das dele e
Alexander pensou que seria educadamente dispensado.
Ela levou as mãos até as fitas do próprio roupão e as
desamarrou. As bandas da peça de seda fina escorregaram pelos
ombros, revelando a pele perfeita dos ombros e braços. Os olhos
dela subiram até os dele enquanto o tecido se amontoava no chão.
Ao contrário da camisola simples de algodão da primeira noite, o
que ela vestia naquela era rico em rendas e babados. E era fácil de
tirar.
As mãos de Alexander a trouxeram até ele, gentis. Seus lábios
se inclinaram e tomaram os dela de maneira delicada, enquanto ela
se entregava com coragem. Alexander tomara a responsabilidade
da experiência ruim para si. Estava em suas mãos fazer melhor. Em
sua língua.
E em seus braços.
Ele a abraçou de um jeito novo até para ele, querendo que ela se
sentisse segura. Querendo fundir-se a ela. Não existia nada entre
eles ainda — nem amor, nem confiança, nem intimidade — mas
poderia haver segurança.
Era um começo.

D , W . S
toque, por que não o guiaria até ela? Queria aquela segunda noite,
queria saciar os sonhos que teve com ele. Por isso deixou que os
beijos avançassem e que a língua dele dançasse com a dela.
Juntos, os braços se ajustaram, puxando o outro para mais perto.
Os lábios dela desceram em direção ao pescoço de Alexander,
pousando no exato ponto onde uma veia pulsava. A textura do
pescoço era áspera e cheirava a loção, e ela adorou ver a pele
morena encrespar ao contato com sua língua.
Quando a trilha de beijos chegou ao fim e ela se afastou, eles se
olharam.
Wilhelmine sentia o rosto quente e a respiração irregular.
Calafrios ondulavam através dela, fazendo sua carne formigar.
Alexander avançou sobre ela. Mãos fortes a seguraram por trás
da cabeça e a puxaram sem delicadeza. Ele colou a boca à dela
outra vez com força e pressão, querendo mais. Mais beijos. Mais
contato. Sons pesados da respiração encheram o ar. Wilhelmine
soltou um gemido baixo de prazer e seus dedos deixaram de ser
toques leves para agarrarem com força os braços musculosos do
marido. Estava respondendo ao arroubo apaixonado com um desejo
que vinha do corpo, e não mais da cabeça, unindo-se a ele por
pernas e barriga, seios comprimidos contra o peito morno e o toque
do membro volumoso no ventre.
Lá estava a energia que sentiu ao conhecê-lo mostrando sua
verdadeira face: aquilo chamuscava seu interior, subia queimando
através da coluna e esquentava seu centro. Aquilo liberava suas
amarras, a cegava e se chamava desejo.
Ela enlaçou os braços atrás da cabeça dele de maneira
apaixonada, incendiando o marido.
As mãos dele pararam de passear afoitas por ela e a firmaram.
Pareciam querer marcá-la sua. Seu corpo, no momento, era dele;
seus beijos eram dele, e ela seria dele — inteira. Ele a desejava de
uma forma crua e masculina, de um jeito que nem Wilhelmine sabia
poder existir. Aquele homem tão cavalheiro podia deixar de ser
civilizado e parecia cada vez mais ansioso em dar prazer a ela. Ela
o queria exatamente assim.
Com um grunhido rouco ele a ergueu do chão, e Wilhelmine foi
carregada até a cama em poucos passos. Ela quase caiu
novamente na armadilha de se perguntar se as noites com Elsa
haviam sido tão intensas assim. Quase. Dessa vez, ela afugentou
os pensamentos da cabeça e se entregou inteira. Ela o queria; não
importava o que teve antes dela. Desejava apenas que com o tempo
o conquistasse de tal forma que passasse a pensar apenas nela.
Por que sentia aquela ânsia crescente por seus dedos e beijos, não
entendia.
Ele não esperou ela se ajeitar sobre a cama: assim que a deitou,
deitou-se por cima dela, cobrindo-a com seu corpo quente. Uma das
mãos ergueu sua coxa e ela gemeu, lânguida, quando seus corpos
se encaixaram.
— Avise se eu estiver sendo incivilizado demais — ele pediu em
tom de aviso, como se ele mesmo não confiasse em suas ações. —
Está difícil não ser.
Ele só podia estar brincando. Ela o segurou pela lapela do
casaco, respondendo:
— Quero você assim.
Os olhos do duque escureceram, e um espasmo correu por
regiões sensíveis dela. Queria desesperadamente aquele homem
dentro dela outra vez. Queria mudar a opinião sobre sexo, e a
experiência de ser conduzida ao prazer
E queria aquela mordida de novo.
Ele voltou a colocar o peso do corpo sobre o dela e ela enlaçou
seu pescoço. A ereção do esposo estufava a frente da calça e
pressionava firme seu estômago, avisando que em breve estaria
dentro dela.
— Não faz ideia de como desejei esse momento — Ele
murmurou em seu ouvido, afastando delicadamente as mechas de
seu cabelo com o nariz. Ele estava entre as pernas dela, mãos
apoiando o peso do corpo na cama, lábios em sua pele. Ela
murmurou de volta:
— Eu faço.
Ele se moveu e beijou-a sobre a camisola. Ela fechou os olhos, e
o primeiro reflexo foi querer se encolher. Mas aquele único toque de
língua a relaxou. Os beijos continuaram a descer. Ele a acariciou na
barriga, cheirou seu umbigo. Wilhelmine inclinou a cabeça para trás,
acariciando os ombros fortes. Ele era tão largo e masculino. Tão
certo do que fazia.
As mãos continuaram o passeio: ele alisou sua cintura, e sem
que ela visse como, suspenderam sua camisola e acharam sua
pele. O toque quente fez a respiração dela disparar. Sentia o corpo
dele quente entre suas pernas. As mãos masculinas sabiam o que
fazer e a despiram em poucos gestos. Ele sabia como tirar cada
uma das peças de roupa dela.
A experiência sempre foi uma atração para Wilhelmine. Ter
prazer enquanto um homem experiente acariciava seu corpo era
uma ideia irresistível. As mãos dela, bem menos conhecedoras do
processo, começaram a puxar seu casaco, querendo que ele se
despisse também. O duque tirou o casaco e o lançou de lado; voltou
a deitar sobre ela e afundou o rosto em seu pescoço. Seus lábios
roçaram ali de leve, levantando seus pelos. Ela sorriu quando sentiu
seus dentes rasparem a pele apenas o suficiente para atiçá-la.
Então ela começou a lutar para tirar a camisa dele, que saiu de
qualquer jeito, revelando o corpo moreno — e a visão do peito forte
a fez perder o ar. Ela alisou seus músculos sem dizer uma palavra,
porque se falasse qualquer coisa, gaguejaria. Tinha visto-o sem
roupa na noite de núpcias, mas estava nervosa demais para
aproveitar a visão. Erguendo a cabeça, beijou-o bem no centro, ali
onde os fios escuros se uniam de maneira linda, e suspirou ao ver
que em resposta os músculos dele retesaram. Estava tudo tão
diferente da formalidade da primeira noite, tão perfeito.
Alexander ajustou-se sobre ela. Os joelhos firmaram-se na cama
ao lado do quadril para que ele olhasse a barriga exposta da
esposa. Então levantou o tecido, e as mãos de Wilhelmine foram
junto, tentando abaixá-lo. Ele não deixou. Ele removeu
delicadamente o tecido por um braço, depois por outro, até que tirou
a peça pela cabeça, esparramando o cabelo dela sobre a colcha.
Então foi vez de remover as mãos que tapavam os seios.
Ele tinha o lábio inferior preso entre os dentes quando retirou a
primeira. Ao afastar a mão dela do outro seio, exalou. Wilhelmine
desejou não estar tão arrepiada e visivelmente excitada por causa
dele, mas o olhar ardoroso para os seios expostos mostrava que ele
ficara excitado por eles. Levando as mãos até eles, Alexander
massageou-os em movimentos circulares, sem tirar os polegares
dos mamilos. Ela tinha seios grandes, montes alvos e bem formados
que excediam o tamanho de suas mãos. Pelas expressões de
prazer, o tamanho deles agradara o marido.
Então ele desceu a boca e tomou um dos bicos contra a língua.
Primeiro um, chupando-o com delicadeza, fazendo um movimento
de sucção que acordou todas as partes do corpo dela. Arrepiada,
Wilhelmine percebeu que observá-lo lhe dava prazer. Ele soltava
sons deliciosos enquanto movia o quadril contra o dela, como se
não estivesse conseguindo se conter. Ele largou o bico vermelho e
pontudo e passou para o outro, que endureceu imediatamente em
sua boca. As sensações eram enlouquecidamente boas.
Ela gemeu quando o movimento ficou intenso. Suas mãos
acariciavam ora o cabelo dele, ora a pele quente do ombro. Seus
olhos abriam e fechavam, suas forças pareciam se esvair e então
voltar. Ela desejou erguer os braços e arquear as costas, mas ficou
com vergonha de demonstrar o tamanho de seu êxtase. Ele a
soltou, descendo a boca até o laço que prendia as pantaletes. Hábil,
livrou-a da peça e agora ela estava nua para ele.
— Queria ter feito você atingir o ápice naquela noite — ele disse
pousando um beijo casto em seu umbigo.
— Não teria conseguido — ela admitiu com um murmúrio. — Eu
estava nervosa demais para gostar da experiência. Por isso me
comportei daquela maneira. Não queria que achasse que... senti
falta de desejo.
Ele a olhou, sério.
— Não precisa pedir desculpas.
Ela fez que sim, deslizando a ponta dos dedos pelos seus
ombros e cabelo. Ele se levantou e desabotoou as próprias calças.
Enquanto observava o duque se desnudar, Wilhelmine pensou em
Christine. Talvez ela estivesse enganada, e aquele pudesse ser um
desses casamentos em que o casal entendia-se na intimidade. Não
queria que as palavras da prima se tornassem profecias; ela podia
tirar do esposo algum carinho, e ter uma existência sem grandes
tristezas e intercorrências em Württemberg, certo?
Quando o membro dele surgiu, ereto e inchado, ela parou de
pensar e voltou a se concentrar em outras coisas.
Ele se deitou sobre ela, esquentando-a outra vez. Seus braços
se entrelaçaram, assim como as pernas, e ela ergueu as coxas para
fazê-lo caber melhor. As mãos dele continuavam a correr por ela,
cada toque cheio de desejo contido, cada olhar uma promessa de
momentos incríveis.
— Há muito para mostrar, querida — ele disse beijando
gentilmente seu braço em um caminho íntimo em direção aos seios.
— Mas temo que não seja possível fazer tudo que quero em uma
noite tão curta.
— Mostre-me o que puder — ela murmurou de volta, deliciada
pelos lábios que desciam por ela como pura seda. — E depois volte
para me mostrar o resto.
Ele gostou da resposta dela, porque encaixou o membro rijo
entre as pernas dela e forçou delicadamente adiante com um
pequeno sorriso. Wilhelmine o encarou, tensa, a respiração por um
fio. Ela esperou que ele a penetrasse, mas ele parou. Seu membro
continuava em sua entrada, belo e grande, e ela o queria. Por isso o
acariciou, incentivando-o com os dedos sobre o peito dele. Não
entendia sua demora. Sua expectativa era tanto que ela tremia.
— Não está pronta ainda para mim — ele disse.
Ela não entendeu. Sentia-se pronta, ao contrário da vez
passada. Ela se colocou sobre os cotovelos quando ele saiu de
cima dela e desceu por suas pernas. Mal acreditou quando
Alexander a puxou para a beirada da cama e a abriu com lascívia.
Wilhelmine retesou, a respiração entrando em suspiros rasos e
rápidos. O duque ajoelhou na frente de suas pernas, indicando que
levaria a boca até o centro delas.
— Alexander... — Ela teve tempo de falar, mas ele a
interrompeu.
— Você é a mulher mais intrigante que já conheci, Wilhelmine, e
merece ser tratada com a devida reverência.
Quando sua língua encontrou sua intimidade, ela tombou na
cama, tapando a boca. Olhou com os olhos arregalados para o
dossel dourado sobre a cabeça, assustada por estar sendo beijada
lá embaixo. Era um beijo, pelo menos era sentido como um, mas
muito mais erótico que todos os beijos na boca que recebeu. Tinha
mais língua e mais saliva. Fazia seu corpo inteirinho tremer.
Alexander espalmou suas coxas e a abriu, acariciando de diferentes
formas. A cada movimento lá em baixo, ela se movia de maneira
sinuosa sobre a cama, sem entender como algo assim podia existir.
Aquilo era tão bom que se não fosse pecado, estranharia. Ele
continuava a deslizar a língua pela sua carne enquanto ela só
pensava em como soaria se implorasse a ele que continuasse. Que
não parasse. Que repetisse em breve.
Mas se dissesse isso soaria bastante desavergonhada.
Quando ele tocou com a língua em um ponto íntimo, choques
minúsculos a fizeram espremer os lençóis entre os dedos. Mal notou
que seus gemidos agora eram rítmicos, e que um calor cálido e
manso se espalhava por seu ventre, pelos seus membros e seus
joelhos. Com a constância das lambidas, algo apoderou-se dela de
um jeito novo. Uma sensação morna, relaxante, crescente. Quando
as estrelas rebentaram sob a pele, ela arqueou o corpo e desabou
sem forças sobre o colchão.
Era como se momentânea e magicamente tivesse desfalecido.
Ele subiu sobre ela com os olhos atentos e os cantos da boca
úmidos. Ela abriu os olhos primeiro, vendo como ele a observava
com um sorriso enigmático. Ele sabia que havia sido ótimo para ela.
Sabia exatamente o que sua moleza indicava. Ela abriu os braços e
recebeu aquele homem em seu corpo, relaxada e agora molhada o
suficiente para ser invadida sem resistência. Ele era mesmo um
estrategista, Wilhelmine pensou antes que ele procurasse sua boca
e a beijasse enquanto a penetrava. Ela entrelaçou as pernas nas
costas dele, sentindo seu gosto misturado ao dela. Ele a expandiu
para caber dentro dela e coube.
As estocadas que vieram a seguir eram firmes e seguras, cheias
de vontade. As mãos de Alexander embrenharam-se entre as
mechas dela, tomando o que queria tomar. Não havia centímetro de
seu corpo que não estivesse bem preso ao dele, inteiramente
colado e seguro em seu abraço. Então, sem aviso, ele a puxou de
lado; eles rolaram. Wilhelmine agora estava sobre ele. Subitamente
desperta, alerta para aquela nova posição que a colocava como
dominante, ela se encaixou sobre ele. O marido acariciou um dos
seios com a mão direita, e com a esquerda puxou a nádega dela
para frente e para trás, estimulando-a a se mexer. O corpo de
Wilhelmine ganhou reflexos próprios, indo e vindo, entrando e
saindo, enquanto ela observava o rosto de traços fortes endurecer.
Logo os dois eram uma só coisa e essa coisa era magnífica e
poderosa.
O corpo de aço de Alexander retesou depois de um tempo, e ele
gemeu. Havia atingido o ápice dentro dela. Ela estremeceu com a
respiração pesada, vendo como as linhas tensas no rosto dele
relaxaram.
Ela se deitou sobre ele para acalmá-lo ou se acalmar, não sabia
mais. Aquilo fora o oposto da noite anterior e ela se sentia feliz
como nunca se sentiu. Estava suada, cansada, alerta e mole ao
mesmo tempo. Seu peito parecia que ia estourar de tanta emoção,
até ela perceber que as pancadas que ouvia e sentia vinham do
peito dele, e não do dela.
Wilhelmine apoiou o queixo em seu peito, olhando para a forma
como a respiração dele aos poucos pausava. Sua robustez causava
nela uma atração reverente e inédita, e agora entendia melhor por
que Elsa havia se apaixonado por ele: porque ele sabia ser galante,
mas também um vulcão. Quase deixou escapar que sentiu sua falta
naqueles dias e que o castelo era solitário demais, mas pensou
melhor. Seria estranho se dissesse aquilo. Não era uma saudade
íntima que sentira, ainda não tinham tido tempo de deixar que a
intimidade florescesse entre eles. Mas sentia falta da segurança que
ele passava. Onde ele chegava, os ânimos ajustavam-se, porque
ele trazia ordem.
Eles permaneceram um tempo abraçados enquanto os minutos
passavam, mansos.
— Não vá — ela pediu sonolenta.
— Preciso ir — ele beijou sua testa.
Ela ergueu o rosto.
— A situação está assim tão ruim?
Ela sabia que havia tensões no Norte. Tinha ouvido rumores
envolvendo o novo rei de Hannover, um inglês conservador com
pouco interesse pelos alemães e muito a ganhar com anexações.
Como Hoefsted ficava na fronteira de Schaumburg-Lippe — bem no
caminho da maior mina de carvão da região —, qualquer
movimentação a assustava.
— Um pouco — Alexander respondeu, desvencilhando-se de
maneira gentil do abraço. — E é só por isso que preciso voltar.
Ele se levantou. Parecia relaxado, e sorriu de volta quando ela
sorriu para ele.
— Quer que eu pegue uma toalha para você? — ele correu os
olhos pelo corpo de Wilhelmine. Se seu olhar não a tivesse deixado
tão quente, ela teria rido. Da última vez que ele estendeu uma
toalha para ela, ela a usou para secar as lágrimas.
— Não precisa — ela o garantiu. Viraria-se depois que ele se
fosse.
Ele se abaixou e catou a roupa, enfiando uma das pernas dentro
da calça.
— Espero que volte em breve — Ela murmurou.
— Eu também. — Ele fechou os botões da calça, nem um pouco
feliz por estar deixando a cama.
— A criada estará aqui em breve para ajudá-la no que precisar
— ele falou, começando a colocar a camisa. Wilhelmine não teria a
companhia da criada. Queria a dele.
Ele se inclinou e beijou sua testa, encerrando o momento.
— Fico feliz que a sombra da outra noite tenha sido apagada.
Era exatamente isso que eu desejava.
Wilhelmine recebeu seu beijo inquieta. O que ela desejava era
que ele ficasse ao lado dela. Não esperava que ele partisse tão
bruscamente. Aliás, sabia que sua passagem pelo castelo fora um
rompante — e simplesmente amara isso — mas queria dormir ao
seu lado. Abraçá-lo no meio da noite. Talvez repetir tudo outra vez.
— Foi maravilhoso. Infelizmente preciso voltar — ele exalou,
cansado. — Preciso voltar ao acampamento antes do amanhecer.
Já não sei mais se estou treinando exércitos ou evitando que
regiões se incendeiem. Minha presença é necessária.
Wilhelmine fez que entendia, sem conseguir achar as palavras.
Alexander deu-lhe as costas e caminhou até a saída, hesitando
antes de abrir a porta. Ela sabia que ele queria ficar. Ela queria que
ele ficasse. Mas ele não podia.
Então, sem aviso, seu esposo se virou e voltou todos os passos
para beijá-la uma última vez. Ela foi arrebatada por braços que a
suspenderam do colchão, e por uma língua tão ansiosa por ela que
ela quase perdeu o fôlego. Para sua tristeza, o beijo foi breve. Ele a
largou parecendo que ia dizer alguma coisa, mas não disse. Ela
puxou a coberta sobre o corpo, zonza pela rapidez com que o fim
chegou.
— Retornarei em cinco dias, no máximo — ele disse cheio de
esperança, mas com um pouco menos de certeza. — Voltarei a
campo feliz que as coisas entre nós estão melhores.
— Estarei esperando — ela respondeu.
Então ele se foi e Wilhelmine se viu novamente sozinha.
O silêncio caiu sobre o quarto luxuoso, trazendo também frio e
escuridão. E enquanto a duquesa puxava a colcha sobre a qual
tinham acabado de fazer amor, teve medo do que crescia dentro
dela. Um vazio sem tamanho ou forma, que só se satisfaria com a
presença do marido.
Talvez fosse dessa solidão que Elsa falasse.
PRESENTE

"I , ,
retornou ao campo e eu fiquei sozinha outra vez…"

F , . C ,
passagem se encerrava daquele jeito? Ela fechou o diário e estalou
o pescoço. Que horas eram? Da janela ela via a lua alta e branca
em contraste com o céu escuro. Devia passar das nove. Queria
poder ler sob uma luz melhor, ou sobre a mesa, com a ajuda de uma
lupa. Não estava conseguindo entender todas as palavras do diário
e isso a aborrecia. A escrita era rebuscada e intrincada demais, e os
avanços eram lentos.
— Por que parou de ler? — A voz de Alice chegou de dentro do
cômodo. — Estava tão bom te ouvir!
— Pareço uma criança aprendendo a soletrar — Fran
resmungou de volta. — Não imaginava que seria tão difícil decifrar a
caligrafia da mulher. E esse vocabulário arcaico?
Fran havia lido em voz alta as anotações da duquesa sobre o
casamento e entendido sua solidão. O duque nunca estava por
perto. Leu também sobre as riquezas de Solitude, os sentimentos
íntimos da duquesa, o nome cada vez mais frequente de Alexander
nas anotações e sobre sua visita intempestiva durante uma de suas
estadias nos reinos vizinhos. Fran podia jurar que notou um certo
tom romântico na maneira como a duquesa descreveu aquelas
horas. Mas então ele partiu novamente e ela voltou a ficar sozinha.
— Dê um tempo na leitura e venha aqui. Achei mais coisas.
Fran riu, sentindo as costas doerem ao se levantar. Ela retornou
ao quartinho, encontrando a amiga sentada sobre um baú, rodeada
por caixas abertas. Ela tampou o nariz por causa do pó suspenso no
ar. Sem as joias pesadas, os livros e alguns diários, Ali havia
conseguido mover uma das caixas e se aproximado do quadro.
Ainda não dava para puxar o lençol sobre a imagem, mas estavam
quase lá.
Fran bateu a canela contra um móvel imprensado entre as
caixas e Ali a ajudou a mover o que podia, acenando com a mão na
frente do rosto para afastar a poeira.
— Estava tateando o fundo das caixas e descobri uma coisa.
Elas retiraram da caixa uma colcha rendada e um chapéu velho,
vendo ambos esfarelarem-se em suas mãos. O espaço era apertado
e elas raspavam o braço toda hora em coisas que não queriam —
basicamente, teias de aranhas —, até que Fran sentiu o formato
retangular no fundo da caixa.
— Livros. — Os olhos delas brilharam.
Elas pegaram três ou quatro do fundo do baú e levaram até a
luz. Eram os livros da duquesa. Os títulos eram diversos: havia um
de uma poetisa alemã do século XIX em capa preta e letras
douradas; um exemplar de A Sujeição das Mulheres, de Stuart Mill
— em uma edição que hoje seria considerada raríssima—, e uma
belíssima edição de A Odisséia, de Homero.
— Aí estão as referências que você queria. — Ali sorriu para
Fran. Fran continuava com os olhos arregalados para as relíquias
nas mãos.
Embaixo deles, no fim da pilha, alguns contos de fadas antigos
unidos por uma fita desbotada chamaram sua atenção. Sob
camadas e camadas de pó, estava escrito sobre a capa de um:
"Arabella von Württemberg-Winnetal".
A emoção foi demais para Fran. Ela abraçou os livros e fechou
os olhos, sentindo uma ardência tomar conta do rosto. Realmente
havia encontrado aquilo?! Aqueles livros entre os seus braços
haviam pertencido à sua tataravó.
Por um tempo ela e Alice se olharam. Por que diabos estava
chorando? Fran se perguntou. Ela não sabia, mas estava.
— Há mais coisa aqui — Ali disse, tocada ao ver as lágrimas
descerem do rosto da amiga. — Mais exemplares de Lady Malícia.
— Ela girou as revistas nas mãos. — Dessa vez, com o nome
"Charlotte von Urach". Eu te disse, a Charlotte não enganaria
ninguém com aquela carinha de santa.
Fran continuava abraçada aos livros antigos, mas a curiosidade
foi maior que a nostalgia. Ela limpou o rosto com as costas das
mãos e olhou os exemplares:
— Ela nunca teve cara de santa, só de brava — Fran falou,
investigando a pilha de livros. — Por que esses exemplares
estariam com o nome de Charlotte? Ela parece ter sido tão
comedida… Casou-se tarde com o segundo filho de Wilhelmine
depois de ter ficado viúva… Sobre ela quase não sabemos nada, só
sobre o lance da delegacia.
Ali tamborilou os dedos sobre o baú. Ela também não conseguia
pensar em um porquê. As pesquisas de Fran não haviam avançado
muito por aquele ramo da família. Sabia na verdade muito pouco
sobre a filha mais velha do primeiro grande industrial do aço. Havia
uma foto dela no museu do castelo ao lado do marido, o conde de
Urach, e da filha. Com exceção daquela foto, nada se sabia sobre a
condessa. Talvez tivesse passado a vida em uma existência serena
cuidando da casa, criando filhos e realizando tarefas domésticas
como era o costume. Nessa foto, a mão do conde apertava seu
ombro em um gesto de possessividade (ou amor, nunca dava para
saber). Improvável que fosse amor, Fran pensou olhando para o
diário de Wilhelmine. O conde certamente era um daqueles homens
que tratavam a esposa com distância e mantinham amantes para
diversão.
No entanto, sabia que ela fora, sim, solta por Wilhelmine ao ser
acusada pela polícia de estar envolvida com a impressão de
impressos ilegais.
Fran olhou para os livros.
— E se…
Fran pousou os contos de fadas sobre um dos baús e abriu o
pacote com os livros para vê-los melhor. Girou um deles no ar,
tentando enxergar na pouca luz algo que não estivesse conseguindo
ver. Havia uma outra possibilidade: e se a duquesa tivesse tentado
esconder aquele material para proteger alguém que amava? E se
sua nora fosse realmente a escritora e ela soubesse?
Ao girar a revista, notou a ilustração da mulher no verso. Na
parte de trás, a ilustração do rosto de uma mulher mascarada
indicava que era um livro de Lady Malícia. Todos tinham aquela
ilustração na contracapa.
Aquele rosto poderia ser o da condessa?
Fran chacoalhou a cabeça. Sua imaginação a estava levando
longe demais.
— Olhe isso!!! — Alice praticamente gritou.
Fran acordou do devaneio e olhou a amiga, que divertia-se a
valer ali dentro.
— Artigos pessoais! — Ali vibrou. — Já achei uma escova de
cabelo feita em prata trabalhada, coisa mais linda. Tem certeza de
que não podemos pegar nadinha?
— Tenho — Fran respondeu.
— Ah, que dó. Me ajuda a mover essa outra caixa, então.
Elas trouxeram com alguma força a caixa para o lado. Ainda
havia uma dezena delas para serem movidas, mas a noite era
longa. Para a alegria de Ali, a caixa estava cheia de artigos
reluzentes.
— Bem, divirta-se aí, que voltarei a ler os diários — Fran avisou.
— Tá bom! Mas leia em voz alta porque tenho medo de ficar aqui
dentro sozinha.
Fran se sentou na entrada do cômodo e folheou o diário até
achar onde parou. Ela deslizou o dedo pelo papel amarelo até a
entrada seguinte. Uma anotação breve, datada de alguns dias
depois da visita surpresa do duque, mostrava que uma tempestade
pairava sobre Solitude:

"Alexander partiu alegando voltar em breve, mas restou-me, nas semanas


seguintes, ouvir sozinha cada estalo, gemido e uivo do vento daquele castelo
maldito. Cheguei a escrever uma carta para Christine, mas omiti a história
absurda que fiquei sabendo. Era humilhante demais e preferi não pensar
mais do fato. Mas a verdade é que minha dor tinha nome, e não saber o
tamanho de sua importância corroeu pouco a pouco minhas entranhas
durante aqueles dias. Não falei de Rosalie, isso preocuparia Christine.
Mas no fim da carta à minha prima, bem no cantinho, escrevi: você me
avisou."
Fran leu o texto com o peito apertado. Ao terminar, abaixou o
diário, sem entender por que sentia-se triste por alguém que se fora
há tanto tempo. Até nisso a história havia falhado com Wilhelmine.
— Ali? — ela chamou a amiga, fechando o diário.
— Tô aqui — Ali respondeu do outro lado.
— Eu queria saber por que as amantes chamam tanto a atenção
dos historiadores.
— Desejo incontido? Um tipo de tesão masculino? — ela
respondeu.
Coitada da duquesa, Fran pensou. Em algum momento depois
da noite romântica, Wilhelmine descobriu que não era a única na
vida do duque. Sabe-se-lá-como, ficou sabendo sobre Rosalie, a
notória amante de Alexander. Certamente as coisas degringolaram a
partir daí.
Fran ficava triste toda vez que se lembrava que o mundo hoje
conhecia muito mais sobre a colorida vida de Rosalie Weber do que
sobre a mulher com quem o duque foi casado por trinta anos. A
amante, famosa na época, ocupava hoje quase dois metros de
vitrine no museu do castelo. Presença constante em festas e
saraus, sua existência foi narrada em cartas e colunas de fofocas, e
sua beleza, exaltada. Há quadros sobre ela. Relatos sobre ela. Até
mesmo na Wikipedia ela estava.
Qualquer um que visitasse o castelo pensaria que ela existiu
mais do que a duquesa.
— Esqueça Rosalie e volte a ler! — Ali sugeriu, abrindo outra
caixa e dando gritinhos de alegria. — Vou continuar esvaziando os
baús! Até o final da noite chegaremos ao quadro!
Franz fez que sim, sozinha no quarto escuro. Ainda abraçada
aos contos de fadas da antepassada, ela abriu o diário no chão e o
folheou até encontrar o trecho onde parou.
Havia muito o que descobrir sobre Wilhelmine, e se tudo desse
certo, ela voltaria a existir para o mundo depois daquela noite.
Depois da descoberta da amante do duque, o que viria? Tiros,
porrada e bomba? Ou uma convivência tranquila, mas amarga e
indiferente?
Ela precisaria ler para descobrir.
17

A ,
Wilhelmine pensou, mas parecia maior em Solitude. Se estivesse
em seu quarto, na antiga casa, poderia ser contida pelas paredes
estreitas? Ela não sabia. Tudo que sentia é que em Solitude tudo
era amplificado e nada parecia ter fim.
Há dias tentava abrir a escrivaninha e não conseguia. Não era
possível que o equipamento atrás dela fosse tão engenhoso a ponto
de trancá-la para sempre. Queria continuar a ler as cartas e saber o
que a antiga esposa do duque havia feito para conquistar — ou
afastar — o marido. Talvez ela conseguisse aprender uma ou duas
lições sobre como controlar a solidão naquele lugar, ou entender
melhor Alexander. Wilhelmine parou de mexer nas gavetas ao
pensar na noite fabulosa. O calafrio conhecido passou varrendo a
pele, eriçando tudo no caminho. Ela suspirou, metade ansiedade,
metade solidão.
— Iulia? — Wilhelmine chamou a criada.
Duas semanas atrás, pedira à senhorita Schmidt que passassem
a se chamar pelo primeiro nome. Era insuportável toda aquela
pompa de "Alteza" e "Vossa Graça", e só colaborava para
Wilhelmine se sentir mais e mais sozinha. Havia dado à criada a
liberdade para chamá-la de Wilhelmine longe das outras, mas
velhos hábitos demoravam a morrer.
— Sim, senhora?
— Quero que chame um marceneiro — Wilhelmine disse com as
mãos na cintura, analisando o móvel. — Peça para ele trazer tudo
que precisa para realizar um desmanche. Também quero mandar
fazer uma dessas para mim. — Ela olhou da escrivaninha para a
moça. — Não pode ser qualquer carpinteiro. Quero o mestre mais
talentoso de Stuttgart.
— Sim, senhora. — Iulia saiu correndo.
Wilhelmine mexeria no artefato pela última vez. De quatro no
chão, ela engatinhou até debaixo do móvel e tentou enxergar como
aquilo funcionava. Foi enquanto tateava entre as reentrâncias da
madeira que achou um segundo dispositivo atrelado às gavetas
laterais. Ao ouvir um clic, saiu ligeira de ré, vendo que uma das três
gavetas havia sido destrancada.
Ao ver a quantidade de cartas reveladas, levou a mão à boca.
Ela pegou todas e caminhou até a cama, abrindo-as com os
dedos gelados. Pousou cada uma delas sobre o travesseiro,
organizando-as por data. A maioria delas vinha da irmã de Elsa e
eram respostas às cartas escritas pela então duquesa. Não eram a
mesma coisa que ler declarações de amor escritas em primeira
pessoa, mas era algo.
Wilhelmine abriu a primeira, provavelmente o rascunho de uma
carta endereçada a Christine:

"Querida Christine,
Sinto muito que só esteja escrevendo agora. Fico feliz que se interesse
em saber como estou, e mais feliz ainda em respondê-la.
Os dias são tão tediosos em Solitude que passam por mim como borrões.
Quem diria que não veria graça nas riquíssimas coleções do duque, ou que
sua presença fosse se tornar tão rara que ontem me surpreendi com sua
presença no jantar? Senti como se estivesse vendo um visitante em minha
casa. Mas esta não é minha casa, nunca será. Sou mais um item em sua
coleção, é assim que me vejo. Mais uma aquisição para o que parece não ter
fim. Confesso que já não quero mais estar com ele. Rezo para que essa
criança venha logo, que seja um menino e que possa voltar para casa. Não
serei a primeira a criar um herdeiro longe do pai.”

O W . E
acreditava que estava vivendo as mesmas coisas que a esposa
anterior de Alexander viveu, e que Elsa chegou ao ponto de
considerar a volta para Schaumburg-Lippe.
Ela abaixou a carta, pegando outra. A segunda havia sido
enviada pela irmã de Elsa:

"Sobre a decisão de não deixá-lo mais tocá-la, entendo-a. Como não


desenvolver asco por ele? Se mal aparece, não sente interesse pela
paternidade ou mesmo pelo lar que compartilham, ele é um estranho — e o
será, também, na cama."

"… Diz que sente-se triste pelas reações de seu marido, mas por que
desejaria seu conforto agora que descobriu tudo? Talvez seja melhor que não
se toquem mais, realmente. Ignore os rumores sobre a amante — amantes
são apenas isso: amantes. Em breve terá seu bebê e muito com o que se
ocupar. E lembre-se: tente não se importar com ele ou ninguém desse lugar.
Em breve terá seu herdeiro e é isso que importa."

U W .
Dessa vez a sensação ruim veio acompanhada por outra. Era como
se alguém segurasse sua garganta e a impedisse de respirar.
Era verdade, então. Alexander tinha uma amante.
Wilhelmine tentou achar data na carta, mas o envelope havia
sido danificado. Ela espalhou as cartas nervosamente sobre as
almofadas. Alguma coisa havia acontecido no breve tempo que Elsa
e o duque passaram casados, e então ela deixou de amar
Alexander e passou a detestá-lo. E como não detestaria?
Ela parou as mãos sobre o papel ao pensar nele com outra.
Sabia que muitos nobres tinham mulheres fora de casa, só nunca
imaginou que sentiria tanta agonia ao pensar que aquilo poderia
estar acontecendo com ela.
Oh, meu Deus. Wilhelmine sentiu os olhos arderem. Elsa,
coitada de você. Como pode ter se apaixonado tão perdidamente
por ele? Ele até retribuiu seu amor no começo, mas você descobriu
tudo sobre a outra, e então se afastaram…
Talvez você o tenha achado irresistível, como o acho. Se havia
algo que Alexander mostrou, era que sabia ser indecorosamente
irresistível entre quatro paredes.
Wilhelmine juntou as cartas em uma pilha concluindo que não
havia como questionar a veracidade delas. Ela era testemunha de
que ele era um visitante em sua própria casa. Que Elsa havia sido
vítima de descaso. Pobre prima Elsa. No começo, o amava; no fim,
o odiava.
Wilhelmine colocou as cartas de volta na gaveta e voltou a
trancá-la, assustada pela forma como as mãos tremiam. As outras
não diziam nada de relevante e ela não queria ler sobre as fofocas
de Schaumburg-Lippe — achara até mesmo comentários a seu
respeito dentro de uma delas. Assim que ouviu o clic da gaveta se
fechando, suspirou. Havia pedido um sinal de que não deveria abrir
seu coração e ali estava.
Quando Iulia retornou, Wilhelmine pediu que a criada se
sentasse. A criada se sentou, claramente desconfiada.
— Iulia, você se tornou nesses poucos dias, aqui, uma criada
leal — Wilhelmine começou. — Confio em você. Voce confia em
mim?
A jovem balançou a cabeça que sim.
— Se eu perguntar algo, promete me contar a verdade?
Iulia já não balançou a cabeça com o mesmo vigor, mas mesmo
assim Wilhelmine reconheceu um "sim".
— Ótimo — a duquesa assentiu. — Pois conte-me: o que
aconteceu entre Elsa e o duque?
A jovem abaixou a cabeça e começou a mexer nos cantos da
unha. Estava claro que havia acontecido algo.
— Você era a camareira dela, não era?
Iulia respondeu que sim.
— Ela me parecia bastante apaixonada por ele no começo —
Wilhelmine comentou como se tivesse apenas uma leve curiosidade
no assunto. — Mas não tanto no final. O que exatamente os
afastou?
Talvez, se a criada soubesse que Wilhelmine já tinha
conhecimento desse afastamento, contasse algo. A criada pegou ar,
dizendo em tom nervoso:
— Senhora, não sei se posso…
Wilhelmine a olhou, dura. Era o mesmo olhar que Christine e
Phillip odiavam, e foi o suficiente para Iulia abrir a boca:
— Ela era uma dama m-muito diferente da senhora — a moça
gaguejou.
Era incrível como o olhar gelado sempre funcionava.
— Diferente como?
— A antiga duquesa era uma mulher… difícil — Iulia falou quase
sem voz.
Elsa — a doce Elsa —, uma mulher difícil? Aquilo era difícil de
acreditar.
— Mais do que eu? — Wilhelmine deu de ombros.
— Com o duque, sim — Iulia respondeu.
A duquesa estava chocada.
— Como assim? — Wilhelmine ajeitou-se na cadeira, tentando
parecer calma para acalmar a pobre criatura trêmula ao seu lado. —
Quero saber mais. Conte-me tudo que souber.
A cautela da criada era compreensível. Falar da antiga duquesa
era um assunto complicado — o duque poderia não gostar. Ao
mesmo tempo, a duquesa demandava saber, e Iulia estava entre o
fogo e o caldeirão.
— Não acho que eles tenham se dado bem — Iulia disse baixo,
e Wilhelmine precisou esticar o ouvido para ouvi-la. — Nunca. Nem
mesmo no começo.
— Pois se davam — Wilhelmine a corrigiu. — Achei algumas
cartas dela para o duque. Ela o amava.
Iulia olhou para baixo, amassando os dedos. Não respondeu,
nem questionou a patroa.
— Diga-me. O que sabe sobre a amante? — Wilhelmine
endireitou os ombros ao falar sobre aquilo. — Elsa comentou algo
sobre uma amante mantida por Sua Graça.
Iulia olhou para a porta. Wilhelmine podia jurar que ela contava
os passos para sair correndo, apavorada.
Umedecendo os lábios e a ponto de chorar, a criada falou:
— Não sei nada sobre isso, senhora.
— Iulia, ele nunca saberá que me contou — Wilhelmine
prometeu, e estava falando sério. Mesmo se questionasse
Alexander, colocaria a culpa nas cartas.
Vermelha como uma beterraba, Iulia falou:
— Não podemos falar sobre isso, senhora, ou…
— Ou o quê?
— Ou corremos o risco de sermos mandados embora.
— Isso não acontecerá — ela assegurou de maneira firme. —
Mas se não me falar o que sabe, colocarei sua fidelidade em
cheque.
Elas se encararam por um segundo.
— Existe uma mulher — a criada soltou, baixo. — Ou pelo
menos houve uma por muito tempo… — O coração de Wilhelmine
galopava no peito. Ela assentiu, incentivando Iulia a continuar. — A
senhora sabe, o duque só se casou com Elsa poucos anos atrás.
Mas todos sabiam sobre essa senhorita que mora perto daqui… Ela
nunca chegou a vir em Solitude. Era ele que sempre ia até ela.
Wilhelmine sentia uma confusão gelada em seu estômago.
Mesmo assim perguntou:
— Ela mora por perto, é?
Iulia fez que sim.
— O duque a mantém em uma residência perto de Stuttgart — a
moça praticamente sussurrou.
Wilhelmine respirou fundo.
— Como é o nome dela?
— Rosalie, senhora.
Rosalie. O nome chegou a doer fisicamente nela, e Wilhelmine
levantou em um ímpeto. Ela saiu da frente da criada para que seu
desconforto não tivesse testemunhas, mas o fato é que jamais
sentiu na vida um incômodo tão afiado. Era interno; não podia ser
melhorado afrouxando o espartilho ou a gola ao redor do pescoço.
Rosalie. O oitavo duque mantinha uma mulher chamada Rosalie
perto de Stuttgart. Ele provavelmente a visitara depois que se
casaram. Talvez estivesse lá naquele exato momento.
— Se diz que ele a mantém por perto, isso significa que essa
mulher ainda existe na vida dele? — Wilhelmine perguntou de
costas.
A criada não sabia. Wilhelmine alisou a saia, empertigada.
Andando até o closet, demandou:
— Ajude-me a desabotoar esse vestido, por favor. Quero saber
onde ela mora e ver onde ele a mantém.
A camareira quase desmaiou ao ouvir a patroa. Wilhelmine
ignorou-a, lançando ordens a torto e a direito:
— Quero saber como mora. Quero detalhes. Saber através de
cartas não me basta.
Céus, talvez até mesmo encontrasse o marido por lá. Ou ela
acreditaria que ele ficaria quinze dias sumido e não passaria nem
uma vez para visitá-la?
Wilhelmine tinha ouvido falar muitas vezes sobre a existência
desta suposta amante, mas encarou tudo como um rumor. Talvez
tenha apenas afastado a idéia da cabeça, já que não queria
começar aquela loucura com o pé esquerdo, e não dado ao fato a
importância devida. Agora que sabia da verdade — que havia
realmente uma mulher fixa, mantida por ele, com moradia próxima
—, sentia seu coração trincado. Não conseguia nem explicar o que
sentia. Sentia-se tola, magoada. Odiava todo aquele
sentimentalismo. E queria jogar algo no chão. Quebrar um vaso,
chutar alguma coisa, arranhar um rosto. Como pode ter achado que
Alexander ficaria apenas com ela?
— Iulia? — Wilhelmine olhou para trás. — O que está fazendo aí
parada? Ajude-me!
Iulia ajudou a duquesa a se trocar, em seguida correu atarantada
até a lavanderia, de onde trouxe uma criada que conhecia a vila
onde a amante do duque morava. A moça, que precisou vir
arrastada, trabalhava passando roupas no castelo e falava tão baixo
que Wilhelmine precisou chegar perto para escutá-la. Ela contou
que Rosalie morava na mesma vila que ela e que por lá todos
sabiam que ela era protegida do duque. Era exclusiva, a moça
complementou, fazendo Wilhelmine corar.
— Bonita? — a duquesa quis saber.
A mulher fez que sim, sem coragem de encará-la.
— Iulia, peça ao cocheiro para arrumar minha carruagem. Agora
— Wilhelmine explodiu. — Daremos uma volta na vila dessa
mocinha. — Olhando para a jovem passadeira, disse: — Você vem
comigo. Quero saber onde ela mora.
Wilhelmine contou até cem enquanto vestia as luvas. Precisava
se acalmar, ou mataria Iulia e a outra criada do coração. Não era
uma surpresa, disse a si mesma. Sabia que havia rumores antes
mesmo de casar-se com o duque. Homens como ele mantinham
amantes caríssimas, e conviver com essa ideia era algo com a qual
precisaria se acostumar. Mesmo assim — mesmo pensando
racionalmente —, sentia um frio assentado no estômago que não
sumia por nada. Onde estavam os planos de ser indiferente a ele?
Wilhelmine decidiu, enquanto chacoalhava dentro da carruagem
rumo à pequena vila, que deveria transformar aquilo em sua meta.
Ser indiferente ao marido. Quanto mais, melhor. Assim como Elsa
foi no final.
Eles seguiram em silêncio até a vila. Ela não ficava longe de
Solitude, aproximadamente vinte minutos de cavalgada. A jovem
criada apontou da janela da carruagem para uma enorme casa
branca, isolada das outras no fim de uma estrada. A pedido de
Wilhelmine, a carruagem passou devagar na frente da residência
enquanto ela via com o corpo gelado o jardim bem cuidado e as
janelas decoradas por cortinas luxuosas.
Nada indicava que ali morava alguém com capacidade de
esmagar tão eficientemente seus sentimentos. Mas havia, e os
esmagou.
Por um tempo ela olhou a casa, então ergueu o queixo e decidiu
que bastava.
— Podemos voltar — ela disse ao cocheiro com as sobrancelhas
arqueadas e feições impassíveis, ignorando o silêncio das criadas
ao lado.
Ela só precisava saber — e soube.
18

C ,
infelicidade do duque.
Várias vezes desejou ser um nobre indolente e sem grandes
preocupações para poder desfrutar do ócio ao lado da esposa.
Infelizmente não era esse homem, e jamais seria. No momento,
sequer podia.
As tensões do Norte haviam chegado ao Sul e uma intervenção
austríaca ou francesa já não podia ser descartada. Era assustador
como o solo sob a Europa se remexia, e como prestar atenção a
esses movimentos era crucial. A cada mudança, alianças
precisavam ser refeitas. Apoios, redefinidos. Desde a união
aduaneira acordada alguns anos antes — que juntou alguns reinos
mas excluiu a Áustria —, as tensões nunca abrandavam. Sem uma
unificação política, aqueles tolos se matariam defendendo as linhas
imaginárias da manta de retalhos que era o continente. Alexander
precisava estar presente em alguns lugares e em algumas épocas,
sob o risco de ver tudo pelo que batalhou ruir. Na verdade, sob risco
de ver tudo que ensinou ser usado na prática. Não mais para
defesa, mas ataque. Por isso, quando Frederico Guilherme o
convocou, ele deixou Heilbronn faltando pouco para retornar para
casa e rumou para a Prússia. Quanto mais cabeças colaborassem
para encontrar soluções diplomáticas para o momento, menos
soldados morreriam em conflitos desnecessários.
Durante todos os dias em que passou em reuniões entre
generais, capitães, ministros e até mesmo o rei, Wilhelmine se
infiltrou em seus pensamentos. Esteve com ele entre um discurso
inflamado e outro e no enrolar e desenrolar de mapas sobre as
mesas. Esteve com ele nas longas e enfadonhas noites e nos dias
cheios de discussões. A verdade era que Alexander pensava dia e
noite nela. Na noite passada com ela. Na vontade de ganhar asas e
voltar para casa. Quanto mais desejava estar com ela, mais os dias
se arrastavam.
Quando as reuniões finalmente se encerraram, ele rumou para o
Sul parando apenas nos postos de trocas para dar descanso aos
cavalos. Chegou cedo para encontrar Wilhelmine antes do jantar,
mas ao se olhar no espelho, quase um mês depois de ter partido,
viu um homem cansado, com linhas profundas no rosto e olheiras
sob os olhos. Haviam sido dias difíceis, de negociações
atravancadas. Parecia muito mais velho do que era. Não pretendia
assustá-la com sua aparência exausta. Precisava se barbear, tomar
um banho demorado, pedir ao valete que escolhesse algo elegante
para vestir. Ele queria causar boa impressão.
Pronto, partiu em busca da esposa.
— Onde está a duquesa? — perguntou para dois criados
diferentes. Para a sua irritação, ninguém sabia dizer. Só sua
camareira pôde informar que a duquesa saíra a cavalo algumas
horas antes e provavelmente — apenas provavelmente — estava na
clareira do bosque que se estendia por meio quilômetro além do
castelo.
Restou ao duque voltar ao cavalo e procurá-la.
A clareira ficava sobre um pequeno morro gramado. De cima era
possível ver a floresta e o castelo erguer-se branco contra o
horizonte. Alexander amarrou o cavalo em uma árvore e subiu
devagar, com o coração batendo forte, sentindo as botas de
montaria cederem sobre a grama úmida. Era fim de tarde e o sol
estava ameno, elevando um pouco a temperatura típica daquela
época do ano.
Ele ouviu os zunidos antes mesmo de vê-la, e esperou que as
setas que cruzavam o ar não estivessem vindo em sua direção. Ao
chegar no topo, encontrou-a parada, arco e flecha na mão, olhos
concentrados em um imenso alvo de madeira posicionado a 20
metros de distância.
Um calor indefinido tomou conta do peito.
— Wilhelmine?
Os cotovelos no alto se abaixaram discretamente, mas a mão
permaneceu firme na seta. O rosto dela sequer se mexeu.
Alexander se aproximou devagar, ciente do momento complicado.
Ela abriu os dedos e a seta de madeira cortou o ar com um silvo,
aterrissando bem no meio do ponto pintado de azul.
No alvo.
Ela abaixou o arco e se virou, séria. Ver finalmente seu rosto
depois de tantos dias causou um estremecimento discreto no duque.
Ele sentiu as mãos suadas e uma vontade crescente de se
aproximar. Já o que ela sentia era outra história. Hostil, parecia
impor um controle de ferro sobre as expressões. Seja lá o que
sentiu ao vê-lo depois de tanto tempo, não demonstrou.
— Onde está sua acompanhante? — Ele olhou ao redor,
preocupado por encontrá-la sozinha.
— Uma mulher armada não precisa de acompanhante — ela
respondeu, seca.
Ele podia ter sorrido, mas decidiu que estava cedo. A voz dela
ainda tinha farpas demais.
— Gostei do que fez. — Ele olhou para os alvos com os braços
cruzados.
O que podiam ser chamados de alvo, no caso.
Três enormes telas do seu atelier estavam dispostas sobre
cavaletes de pintura, cada uma delas afastada a determinada
distância. O centro azul era uma confusão furiosa de pinceladas.
Seja lá quem pintou aqueles círculos, estava bravo. Ou brava.
— Está tudo bem? — Alexander perguntou caminhando até uma
manta estendida adiante. Sobre ela, havia uma cesta cheia de
frutas. Alexander sentou-se, esticando as pernas.
— Tudo ótimo — ela respondeu, fria.
O duque tirou uma maçã na cesta.
— Você parece tensa. Aconteceu alguma coisa?
—Nada — ela praticamente cuspiu, buscando uma nova seta na
aljava. Ela acompanhava com o canto de olho cada gesto do
marido. Seu orgulho disfarçado de desinteresse não o enganava.
— Ah, então fico feliz. — O duque esfregou a maçã no casaco.
— Não recebi resposta da carta que escrevi. Pensei que tivesse
acontecido algo.
— Não tive tempo para escrever de volta. — Ela encaixou a nova
seta na corda do arco e a esticou. O barulho da mastigação de
Alexander fez ela fechar os olhos, incomodada. Ela mirou outra vez,
mas toda vez que pretendia largar a seta, ele mordia de novo a
maçã.
— Poderia, por favor, parar com isso? — ela explodiu, irritada.
— Claro. — Ele pousou a fruta sobre a manta e limpou as mãos
na calça. — Gostaria de saber se tem algo programado para hoje.
Vejo que está de bom humor e adoraria a sua companhia no jantar.
Wilhelmine o encarou, mastigando as paredes internas da
bochecha.
— Não jantarei — ela respondeu. — Estou pensando em me
trancar no quarto para bordar.
Ela se virou para o alvo, mirou e atirou. O cavalete bambeou
pelo impacto. A seta desapareceu na campina, deixando outro
rombo no tecido.
Alexander se levantou. Estava claro que ela sabia. O que ela não
sabia é que ele já sabia que ela sabia. Ele se aproximou devagar,
ciente de cada pensamento que girava na cabeça dela. Cada um
deles. Era impressionante como a esposa o encantava.
Estava louco para beijá-la.
Ela se virou e o encarou, a própria Artemis parada na frente dele,
ameaçando alvejá-lo caso ele chegasse mais perto. Alexander era o
maldito dono de tudo ao redor, mas não dela. Na verdade, ela agia
como se fosse superior a ele. Talvez por que, a cada dia que
passasse, se tornasse, mesmo, maior.
— Senti sua falta, Süsse. Gostaria que tivesse escrito para mim.
— Você estava ocupado — ela respondeu, inclinando-se para
trás quando ele tentou fazer um carinho. — E não me chame de
doçura.
Ele recolheu a mão.
— Ocupado? Não, não estava ocupado ao ponto de negligenciar
uma carta da minha esposa.
Wilhelmine franziu a boca, como se segurasse as palavras.
Alexander sabia quais palavras segurava. Não seria um maldito
articulista se não mantivesse tudo e todos sob vigilância, e
soubesse de antemão tudo que acontecia em seu castelo.
Mas ainda era cedo para ouvir o que ela tinha a dizer, e eles
teriam muito tempo para conversar. No momento ele estava
simplesmente arrebatado pela visão daquela mulher sozinha em
cima daquele monte, destruindo suas telas de pintura a flechadas.
— Agora que estou de volta, estou pensando em voltar a pintar
— ele disse próximo o suficiente para ver os olhos azuis dela
faiscarem. — Podemos pintar juntos. Há paisagens belíssimas ao
redor do castelo.
Ela apertou os olhos, desconfiando daquela conversa.
— Disse-me que eu poderia pintá-la — ele a lembrou.
— Por que iria querer me pintar? Para me colocar em uma das
suas galerias, onde serei ignorada? Já me sinto um quadro em
Solitude.
Alexander acariciou seu rosto, e dessa vez ela não se esquivou.
Ele traçou o desenho dos seus lábios, depois a linha tensa
estacionada entre suas sobrancelhas. Aos poucos ela hesitava. A
proximidade trazia respirações mais profundas, e os ombros
perdiam a dureza. Ela estava brava — e com razão —, mas permitiu
seu toque. As chances estavam a seu favor.
— Por que não me conta o que a deixou tão brava?
— Só estou entediada. — Ela afastou sua mão. — Todo dia
parece ter sido ontem. Todos os dias são como amanhã. Nada
muda.
Alexander chegou mais perto e beijou sua orelha. De leve,
apenas um toque nos lóbulos macios. Ela segurou um suspiro, mas
tentou disfarçar. Queria antes algumas explicações. Ele a trouxe
para perto outra vez e abraçou com força, de um jeito que pudesse
senti-la quase inteira. Ela finalmente suspirou contra sua jaqueta, e
ele encostou a lateral do rosto no topo de sua cabeça. Sentira sua
falta, e dissera isso na carta que ela nunca respondeu.
Que ela tivesse aceitado seu abraço não os desobrigava da
conversa, claro, mas Alexander nunca discutia com alguém de
cabeça quente. Quando o coração dela pareceu mais calmo, ele se
afastou apenas para erguer o queixo dela com o indicador e o
polegar.
Ele encarou seus olhos para que ela sentisse a honestidade em
suas palavras:
— Uma das coisas que ensino às tropas por onde passo,
Wilhelmine, é sobre a importância da informação. — O coração dela
voltou a bater forte contra o dele. Ele estava contando cada batida,
e suas palavras dependiam daquelas reações discretas. — Mas não
qualquer informação, você entende? — ele perguntou tranquilo,
esperando que ela entendesse.
Ela não se moveu.
— Apenas a informação correta importa — ele continuou. —
Informações erradas levam a decisões erradas, e decisões erradas,
na guerra, levam à morte. Por isso, sou um homem bem-informado.
Preciso ser. Gostaria de falar comigo sobre o que a aborreceu antes
que eu aborde o assunto?
Ela o olhou de soslaio. Ele sabia o que a estava aborrecendo?
Sim, ele sabia. Provavelmente muito mais do que ela imaginava,
porque sabia a quem recorrer quando precisava de informações e
quase nunca punia aquele que decidia contar toda a verdade.
Infelizmente para Wilhelmine, seu olhar gelado podia funcionar com
lavadeiras imprudentes e camareiras matraqueiras, mas não com
ele.
Ele só não era exatamente imune a ela.
— Quer dizer que sabe sobre…
— Sei.
— Eu nem terminei de dizer o quê.
— Sei de quase tudo que acontece em minha residência, e
presto especial atenção a você, mesmo longe. Podíamos ter
poupado o mal-estar se tivesse conversado comigo. — Ele acariciou
novamente seu rosto, morto de vontade de beijá-la. — Poderia ter
perguntado se os rumores sobre uma amante eram verdadeiros. Eu
lhe dei a chance de me perguntar qualquer coisa em Bückeburg no
dia em que fiz a proposta a seu pai, lembra-se?
Ela segurou seus braços:
— Responda-me, então. Desde quando mantém uma amante?
— Mantive uma por muito tempo — ele respondeu sincero, sem
hesitar. — Como sabe, ela mora naquela vila que visitou.
Os olhos de Wilhelmine se arregalaram.
— Como sabe que eu…
— Eu sei de quase tudo.
Os olhos dela embaçaram, ganhando um brilho molhado.
— Você a visita com regularidade? — ela perguntou baixo.
— Você quer saber se eu a visitei depois que nos casamos, é
isso? — Ele olhou para ela.
Ela balançou a cabeça que sim.
— Não — ele respondeu, firme. — Encerrei as visitas a Rosalie
antes do meu casamento com Elsa, pouco mais de dois anos atrás.
Nunca mais retornei.
Wilhelmine continuava inquieta. Sabendo disso, Alexander
continuou:
— Eu e Rosalie nos conhecemos quinze anos atrás. Eu era um
homem solitário que passava mais tempo salvando exércitos de
regentes ineptos do que atentando às próprias necessidades. Nunca
gostei de casas de facilidades, vi soldados demais morrerem de
doenças horríveis contraídas em lugares impróprios. Ter uma
pessoa exclusiva foi um modo de ter companhia sem colocar em
risco a saúde.
Wilhelmine tentou baixar os olhos, mas ele não deixou. Suas
mãos continuavam abraçadas ao seu rosto bonito, e ele queria ver
suas feições alegres outra vez. Desde que recebera a carta de um
dos seus secretários contando que o cocheiro a levara até Rosalie,
Alexander soube que era a hora de colocar a situação às claras.
Deviam ter conversado a respeito, mas nem ele, nem ela sabiam
que se envolveriam daquela forma. Era para ser um casamento
como tantos outros — prático e desprovido de emoções. Desde o
começo deixou de ser.
— Ainda pago as contas de Rosalie — ele continuou. —
Provavelmente precisarei pagar pelo resto da vida. Cortesãs não
são bem-vistas no reino, e geralmente acabam em bordéis de quinta
categoria por causa da idade. Quando começamos nosso acordo,
prometi que cuidaria dela e de seus pais quando terminássemos.
Wilhelmine tentou se soltar. Estava odiando ouvir aquilo, ele
sabia.
Alexander enlaçou sua cintura.
— Ela teve filhos seus? — Wilhelmine cravou os dedos em seus
braços.
— Não. Ela não pode ter filhos.
Ela exalou aliviada, como se um peso terrível tivesse saído de
seu peito. Mas eles estavam longe de se acertar.
— Elsa não acreditava em você. — Ela espalmou seu peito,
tentando se desvencilhar. — Sentia-se sozinha. Afeiçoou-se a você.
Wilhelmine finalmente se soltou, dando um passo para trás.
— É estranho imaginar que mantém uma mulher logo ali, como
uma… uma sobressalente para o caso da esposa do momento não
funcionar.
Alexander concordou. Entendia sua posição. Não era
exatamente assim que via a coisa, mas se era assim que ela via,
precisava tentar entendê-la.
— Ela não precisa morar em Württemberg — ele disse. — Se a
presença dela a incomoda, eu…
Wilhelmine o interrompeu:
— Como conseguiu se relacionar tanto tempo com ela e não se
apaixonar?
Na cabeça de Alexander, o contrário parecia mais improvável.
Ele não soube responder à pergunta. Tinha um acordo com ela, não
um relacionamento.
Apaixonar-se por sua esposa, no entanto, fora infinitamente mais
fácil.
Wilhelmine continuava tensa, dando passos para lá e para cá.
— Conheço histórias assim, Schaumburg-Lippe era cheio delas!
Quantos nobres casados intitulavam suas amantes baronesas, ou
sabe-se lá que tipo de acrobacia nobiliárquica inventavam, só para
desposá-las depois que suas esposas morriam no parto? Por que
trazer Elsa até aqui para partir seu coração?
Ela disse Elsa, mas Alexander se perguntou se incluía-se na
pergunta. Jamais teria trazido Wilhelmine para Württemberg para
partir seu coração. Ele o queria para si.
— Nunca houve coração partido algum, Wilhelmine.
Ela fechou os olhos e balançou levemente a cabeça, como se
discordasse.
— Diz que é um bom estrategista, mas não conseguiu ver que
Elsa se apaixonou por você. Isso me lembra uma de nossas
primeiras conversas, sobre as ilusões que nos cegam. Não
conseguiu enxergar o óbvio!
Ele se aproximou, correndo os olhos por ela. Em uma coisa
Wilhelmine tinha razão. Quando se tratava dela — e apenas dela —,
tateava ao redor sem ver nada. Sequer confiava em seu
discernimento.
— Fui fiel a Elsa, e serei fiel a você. Por que tenho a impressão
de que afirmar isso não basta?
Ela não soube responder. Parecia agoniada, como se quisesse
dizer algo e não soubesse como.
— Diga, Wilhelmine — ele insistiu. — O que realmente deseja
ouvir de mim?
Ele queria tanto saber o que ela queria que chegava a sentir a
boca seca. Seca como o maldito Saara, ou como se tivesse sede de
alguma coisa.
Ela fechou os olhos. Pensou um instante, então os reabriu.
— Já que perguntou, responderei o que queria ouvir. Queria
ouvir que não tinha uma amante. Que não pensasse ou desejasse
outra mulher além de mim. E queria não me sentir tão tola por
confessar isso em voz alta. — Ela soltou um som furioso misturada
ao riso seco: — Detesto parecer tola.
Ela virou-se para o alvo, indignada consigo mesma por ter falado
tanto.
— Sei que, sendo quem é, pode fazer o que bem deseja. — Ela
se abaixou e pegou o arco no chão, tirando uma seta da aljava
pendurada nas costas. — Mas perguntou o que eu desejo, e fui
sincera.
Alexander sentiu o pulmão finalmente expandir. Ele avançou um
passo, confiando que as palavras que ela tinha dito tivessem peso.
Não eram palavras leves. Não haviam sido lançadas ao vento por
frivolidade. Não lhe soaram desnecessárias, inoportunas,
ameaçadoras, exigentes demais. Aquilo era o mais próximo que
desejava ouvir dela.
Seu passado podia não lhe agradar, mas era o seu passado.
Sempre foi ético e responsável com todos que cruzaram seu
caminho, e ninguém — ele repetiria isso quantas vezes precisasse
— podia acusá-lo de infidelidade ou leviandade.
Ele encostou nela por trás, inspirando o cheiro bom de sua nuca
e acariciando sua cintura. Era um homem desarmado aproximando-
se por trás de uma mulher armada, e conhecia os riscos. Mas era
impossível não abraçá-la.
Ela se virou, e seus olhos se encontraram.
— Não amo nem nunca amei Rosalie, Winy — ele disse baixo.
— Não tenho mulher alguma fora do casamento. Respeito meus
votos. E não, você nunca parece tola aos meus olhos.
Por um tempo ela manteve o arco nas mãos, os cílios pesados
subindo e descendo sobre os olhos brilhantes. Então ela soltou o
arco e ele caiu no chão. Ela percorreu os centímetros finais que
faltavam para colar o corpo ao dele e se entregou, exatamente
como ele sonhava. Alexander ansiara desesperadamente por
aquele beijo. Ansiaria todos os dias por muitos deles, mas no
momento teve seu maior desejo realizado: saber que ela o queria.
Que gostava dele.
— Senti sua falta — ele disse dentro da boca dela. Ela
respondeu abraçando-o mais, gemendo baixo.
— Eu também — ela respondeu.
O beijo acabou, mas eles permaneceram abraçados por um
tempo.
— Desculpe por ter ido até a casa dela — Wilhelmine disse com
a testa encostada à dele. — Poderia realmente ter evitado o
aborrecimento se tivesse perguntado.
Ele a beijou entre as sobrancelhas, desejando que a ruguinha
assentada ali se desfizesse.
— Você é jovem, e passou tempo demais sozinha. Eu entendo
você.
Ela voltou a beijá-lo, dessa vez mais ansiosa. Os arroubos, por
outro lado, eram uma vantagem da juventude.
— Não foi apenas a solidão — Wilhelmine confessou quando
seus lábios se descolaram. Ela continuava abraçada a ele. Seus
braços ao redor do seu pescoço, os dele, ao redor de sua cintura. —
Encontrei algumas cartas de Elsa, e elas falavam de você.
— Cartas? — ele perguntou.
— Sim. Cartas de amor para você. E depois… algumas bastante
amargas.
Alexander a olhou por alguns instantes, então afastou alguns fios
de cabelo da frente do seu rosto.
— E você achou que meu relacionamento com Elsa havia sido
abalado pela presença de Rosalie?
Wilhelmine fez que sim.
Ele beijou sua face em resposta. Uma, duas, três vezes.
Arrastou a ponta do nariz pelo dela, e tomou seus lábios para um
outro beijo, porque não conseguia se fartar dela. Quando voltou a se
afastar, disse:
— Elsa não gostava de mim, querida.
A revelação pareceu chocar Wilhelmine, e a linha entre as
sobrancelhas retornou.
— Como assim, ela não gostava de você?
— Não sou o homem naquelas cartas. Não, pelo menos, nas
cartas de amor.
Alexander tentava se manter sério — o assunto pedia seriedade
—, mas estava sendo divertido observar a expressão da esposa. A
imagem do marido cruel e insensível que destruiu os sentimentos da
doce Elsa finalmente ruía. Tudo aquilo podia ter sido explicado se
tivessem tido tempo para conversar. Mas não tiveram, e a culpa era
inteiramente sua. Foi ele quem a pediu em casamento de rompante.
Quem moveu mundos e fundos para trazê-la o mais rápido possível
para o seus braços. E por causa dele e das demandas de sua
ocupação, continuavam estranhos um para o outro, porque seu
trabalho não o deixava permanecer em Württemberg.
Alexander só desejava, do fundo do coração, ter mais tempo
para ficar com ela.
Wilhelmine chacoalhou a cabeça.
— O que quer dizer com “não sou o homem naquelas cartas?”.
— Quer dizer exatamente isso. O homem é outro.
— Quem!?
— Desconfiei logo depois do casamento que Elsa teve alguém
em Schaumburg-Lippe. Nunca descobri quem era. Seu pai, o
marquês de Brünswick, deve ter encerrado o relacionamento deles
de maneira discreta quando o casamento foi negociado. Elsa
chegou aqui com o coração partido, e não pude fazer nada.
Wilhelmine mordeu os lábios, pensativa.
— Eu nunca ouvi nada sobre isso.
— Ela sempre foi discreta — Alexander concordou. — Mas
nunca me tolerou.
Eles se encararam por um tempo. As sobrancelhas de
Wilhelmine caíram, penalizada pela situação como um todo. Para
Alexander, aquilo havia sido uma questão no começo do casamento,
quando seu orgulho foi ferido. Depois ele esqueceu o assunto. Ele e
Elsa tinham pouco em comum, apenas o interesse mútuo em gerar
um herdeiro para o ducado.
— E mesmo assim não visitou Rosalie? — ela questionou,
intrigada.
Alexander fez tranquilamente que não.
— Quando um acordo assim é rompido, não deve ser retomado.
Estava difícil para ela assimilar tudo.
Ela finalmente exalou. Alisando seus braços, disse:
— Você me perguntou certa vez se gostaria que ficasse mais em
Solitude, lembra-se?
— Lembro — ele respondeu. — Você disse que não queria
mudar minha rotina.
— Quero mudar o que respondi. Quero que fique mais aqui.
Comigo.
Alexander fez que sim, sentindo o peito expandir mais que o
colete justo permitia.
— Darei um jeito de ficar — ele respondeu baixo.
Outro beijo se seguiu, e dessa vez as mãos deles não foram
mais tão castas. Ele acariciou sua cintura e a lateral das pernas. Ela
encostou o corpo nele, querendo sentir sua virilha. Logo estavam
sobre a manta, e a jaqueta dele foi jogada de lado.
Não importava a nenhum dos dois que estivessem ao ar livre,
que o sol descesse manso sobre eles, que o dia começara ruim e
terminara com os dois unidos sobre a relva. Ele a desejaria ali, na
floresta, na cama, em qualquer lugar. Sentira falta dela. Muita.
— Alexander — ela murmurou, mole em seus braços.
— Fale, querida.
— Preciso contar uma coisa.
Ele parou sobre ela. O cabelo dela havia se desprendido do
coque e se espalhava ao redor do rosto bonito. Sua mão estava
pousada delicadamente em seu peito, e seus olhos tinham mais
brilho que o sol.
Alexander engoliu em seco, desejando que fosse algo bom.
— Sou todo ouvidos.
— Acho que estou grávida.
Ele paralisou sobre ela. Um segundo, talvez dois, e uma
explosão de sentimentos sem nome tomou posse de seu coração.
— Tem certeza?
— Nunca atrasei na vida.
Eles se olharam, incertos. Por um lado, Alexander estava
surpreso — e exultante. Por outro, um terror sem forma fincava, ali,
as garras em seu peito. Memórias antigas retornaram. Elsa, a
criança, a notícia do pior. A vida sempre trazia a possibilidade de
sua contraparte.
Ele respondeu ao anúncio voltando a beijá-la, agora com um
pouco de medo. Mas Wilhelmine ainda era jovem e não acumulava
um décimo de suas experiências ruins. Ela o enfeitiçou com seu
entusiasmo, e ele esqueceu que as coisas davam errado.
O beijo evoluiu para um esfregar sôfrego de corpos, e a próxima
coisa que ele notou foi que estava se despindo. Alexander
desabotoou a calça, ela ergueu a saia, e logo eram um só corpo em
movimento sobre a campina.
Era como alcançar finalmente o céu. Ele deslizou para dentro
dela sentindo suas paredes molhadas, em êxtase pela sensação
dos beijos que molhavam seu pescoço.
Durante todo o tempo em que a amou, não conseguiu desviar o
olhar. Em meio ao vai e vem do ato, as costas de seus dedos
roçaram sua face. Ele gostava dela. Gostou no minuto que a viu.
O sol se punha sob a mata e o dourado recaía sobre eles. Linda,
sua esposa. Perfeita em cada gesto, frase, ato e pensamento. Não o
tipo de perfeição rosada que transformava mulheres em bonecas;
perfeita como a natureza ao redor. Indomável, inquieta, intensa. Eles
trocaram olhares enquanto ele ia e vinha, um olhar comprido e cheio
de significados.
As mãos dela se entrelaçaram em seu pescoço e ele sentiu
vontade de soltar as três palavras. Não teve tempo. Ela o beijou
novamente, e ele se esqueceu do porquê precisava delas.
19

A W A .
Ele encerrou provisoriamente as campanhas pelos reinos alegando
precisar de tempo para o próprio ducado, mas a verdade era que
queria passar os dias — e as noites — ao lado da esposa. Jamais
sentiu tanta necessidade em estar com alguém. Queria saber tudo
sobre ela; conhecê-la em cada detalhe. Queria saber que tipo de
vestimenta a agradava ou a cor dos tecidos que fazia seus olhos
brilharem. Se pintava com constância, se cavalgava com frequência.
Era como se tudo que se revolvesse ao redor dela tivesse cores
absurdamente fortes. Seus gostos, leituras, opiniões: ele queria
conhecer tudo. Nem sempre concordava com ela — paixões não
costumavam amansar convicções —, mas só entenderia seu
encantamento por ela se conhecesse sua causa. A causa era ela.
Todos os dias, ele e Wilhelmine tomavam café da manhã juntos
e se reencontravam à tarde para o chá. Durante essas horas,
conversavam sobre o dia e preparavam-se para as noites.
Usualmente jantavam na mesma saleta íntima, discutiam sobre as
questões do ducado, ele explicava sobre a longa linhagem da
família e ela sobre a vida pacata no interior do seu principado natal.
Então eles caminhavam até o atelier, onde ele mostrava a ela algum
projeto que gostaria de começar. Ali falavam sobre tintas, telas,
pincéis e modos de pincelar. Ela contava sobre o que ele gostava e
não gostava na arte, e compartilhava com ele sua experiência em
pinturas.
Então, no fim da noite, ele a beijava.
E onde quer que estivessem, se amavam.
Com a gravidez avançando do segundo para o terceiro mês, os
enjoos encerraram os idílicos cafés da manhã. Até o meio-dia, a
duquesa passava recolhida em seus aposentos, sentindo-se abatida
justamente quando era mais dinâmica. Durante esse tempo,
Alexander aproveitava para resolver os assuntos do ducado, mas
sempre voltava para o chá da tarde.
Em uma tarde gelada, ele a encontrou no salão de chá,
escrevendo. Não se anunciou imediatamente; ficou parado na
entrada, olhando para ela e investigando a maneira potente com
que seu corpo reagia e ela. Era como se descobrisse algo raro e
fascinante várias vezes ao dia. Ainda sentia por ela a mesma
excitação de quando a encontrou sozinha no palácio de Bückeburg,
absorta em pensamentos. Naquela ocasião, ela também escrevia
em um diário.
Ele desencostou da porta e entrou, dizendo:
— O que tanto escreve?
Wilhelmine interrompeu a escrita e pousou a caneta no suporte.
Seu sorriso se alargou enquanto o via caminhar em sua direção.
— Sentimentos, pensamentos… — ela respondeu, fechando os
olhos quando Alexander se inclinou e seus lábios tocaram sua testa
—… e sobre você.
Ele deslizou o dedo pela face bonita.
— Sobre mim?
— Indiretamente. — Ela deu de ombros.
Ele se sentou ao lado dela. O criado pousou uma xícara na
mesinha da frente, e o cheiro perfumado do chá misturou-se ao
dela. Gostava do perfume da esposa à tarde. Ela cheirava a talco.
— De maneira discreta, você aparece por trás de cada
pensamento — ela confessou.
— Estou cada vez mais interessado no que escreve.
— É por isso que preciso de um lugar para esconder os diários.
Preciso tirá-los das vistas de olhos curiosos.
— Como os meus, por exemplo?
Ela riu, assentindo. Ele esticou os olhos até as páginas.
— Admito que fiquei curioso para saber o que escreve sobre
mim.
— Coisas secretíssimas. Estou até pensando em alterar aquela
alcova em meu quarto. Transformá-lo em um esconderijo.
— Com passagens escondidas e tudo o mais? — o duque
brincou.
— Sim — ela respondeu devagar, avaliando a reação dele. —
Aliás, você acabou de me dar uma ideia. Gosto de coisas
escondidas. De portas falsas, passagens secretas, estantes que se
movem de lugar e revelam entradas… Sabe do que estou falando?
— Claro. — Ele deu um gole no chá. — Mas precisa de tudo isso
para esconder um diário?
Ela sorriu, maliciosa.
— Quem disse que é só um?
Não foi ali que Alexander teve certeza de que sua esposa era a
mais encantadora das criaturas, mas poderia ter sido. O sorriso de
Wilhelmine se transformou em uma mordida sensual de lábios, e um
convite a algo mais. Ela já tinha ouvido a porta bater e entendido
que estavam sós; ele demorou um pouco para acompanhar o
raciocínio, porque se perdeu outra vez nos imensos olhos azuis que
prometiam desafios. Estavam tendo noites perfeitas ao lado um do
outro. Seria ótimo adicionar também uma tarde entre elas.
Com gestos precisos, o duque puxou a esposa até seu colo,
encaixando-a sobre seu membro. Então ele a beijou
apaixonadamente. Ali mesmo, sobre o sofá, sem se importar com a
entrada dos criados. Ela respondeu envolvendo seu rosto com as
mãos, gemendo baixo quando ele acariciou suas curvas cada vez
mais bonitas. Dos seios à cintura, tudo nela havia ficado
esplendoroso naqueles primeiros meses de gestação. Só de olhar
para ela o corpo de Alexander acendia.
— Sinto sua falta no café da manhã — ele reclamou.
— Ando tão enjoada que não consigo nem mesmo olhar para a
comida — Wilhelmine confessou, beijando seu nariz. — É uma pena
que esteja deixando de olhar para você.
Ela se ajustou melhor sobre o marido, lutando contra a saia. Já
imaginava o que fariam, por isso andava escolhendo modelos
menos armados para as ocasiões. Aprendeu logo que ele era um
marido passional, que seus desejos eram urgentes e que adorava
agarrá-la nos lugares mais improváveis. Atelier, biblioteca, escritório,
quarto, varanda, salão de jantar e até a clareira do bosque: eles
haviam inaugurado todos. No começo ela se enfeitava com vestidos
bonitos, achando que ele a admiraria mais por isso — nada mais
distante da realidade. Ela era o seu tesouro; os adornos só serviam
para afastá-los. Alexander a queria sem nada. Por isso sugeriu,
certo dia — e da forma mais cavalheiresca possível —, que optasse
por vestimentas mais fáceis de serem tiradas.
Quando Wilhelmine pressionou o centro íntimo contra a virilha
estufada de Alexander, soube que ela tinha acatado sua sugestão.
Ela não vestia nada sob a saia. Ele desabotoou de maneira ágil e
certeira os botões que o afastavam dela e, com o membro liberto,
ajeitou-a para que ela descesse sobre ele. Ela sentiu o encaixe
úmido exalando alto.
A fricção entre eles andava aprendendo caminhos. Se no
começo havia sido horrível e dolorido, as mesmas trilhas, hoje,
davam a ambos prazeres indescritíveis.
— É sobre isso que escrevo — ela sussurrou em seu ouvido
quando ele gemeu de prazer. Sem interromper os movimentos,
Alexander sorriu.
— E que palavras usou para isso? — ele perguntou de olhos
fechados, perdido nas sensações que o contato entre as peles
provocava.
— Sobre caminhos que ficam mais fáceis com o tempo… — ela
respondeu baixinho — … e sobre as trilhas até o céu serem
muitas…
— Se algum dia lerem isso, acharão que está falando de alguma
experiência religiosa.
Ela riu de olhos fechados, deliciada.
— Imagino o que dirão quando lerem sobre explosões sob a
pele.
Alexander gargalhou, trazendo-a cheio de carinho até seu peito,
acolhendo-a em um abraço que pedia para não ter fim. Ele inalou
seu cheiro, arrastando a face na maciez sedosa da sua, procurando
sua boca para se fundir a ela da última maneira que restava.
Eles se beijaram demoradamente enquanto ela ia e vinha sobre
ele.
Quando o beijo parou, ele correu a língua pelo pescoço da
esposa. Liberando seus seios do decote — um do tipo fácil de
descer, cuidadosamente escolhido para o chá —, chupou-os com
delicadeza. Eles estavam inchados e haviam ganhado um tom
vermelho e absurdamente bonito. Ele beijou-a entre os montes
alvos, dizendo coisas que a fizeram corar. Mais tarde, na cama, faria
uso deles para outros tipos de pecados.
A complexa composição de lenço/colete/casaco que o valete do
duque montara tão laboriosamente foi desarrumada com pressa e
lançada longe. Wilhelmine o segurou pela gola da camisa, urgente,
quando o ajuste divino se aproximou do intolerável.
Ele chegou ao ápice junto com ela, e os dois se recompuseram
entre risadas antes que a criada voltasse para recolher a bandeja.
Havia sido um mês agitado em Solitude.

W
buffet, observando a barriga quase inexistente. Já não vestia mais
espartilhos. Decidiu, sem informar ou explicar a ninguém, que seu
filho cresceria livre. Se não pudesse decidir isso sendo duquesa, de
que lhe servia o título?
Ela deixou o canto da sala e voltou ao lugar, vendo o ponteiro do
relógio mover-se com morosidade. Alexander estava atrasado. Ela
já tinha pedido uma das maravilhosas sopas do chef, e não sabia se
esperava mais ou se simplesmente jantava sozinha.
Estava quase decidindo encerrar a noite quando Alexander
entrou pela porta. Pela expressão cansada em seu rosto e
desarrumação do cabelo, havia sido uma tarde atribulada. Ele viera
cavalgando, não de carruagem.
— Desculpe-me pelo atraso — disse. — Espero que não tenha
me esperado para jantar.
Seu marido não fazia ideia de como ela amava quando ele
surgia suado, com o cabelo alvoroçado pelo vento, simplesmente
por ter cavalgado com pressa para chegar mais cedo em casa.
Aquilo incendiava Wilhelmine de maneiras difíceis de explicar.
Ela caminhou até ele. Sentiu vontade de continuar andando até
que seus corpos se colassem, mas os criados parados no canto da
sala a inibiram.
— Muitos problemas?
Ele não respondeu de imediato. Pareceu pensar, então disse:
— Cada vez maiores.
Ela não insistia quando ele não contava por vontade própria o
que o aborrecia. A solicitação para se encontrar com o rei pegara a
todos de surpresa. Como aquela era a hora em que ele relaxava,
deixava a farda fora do cômodo e se tornava seu marido, ela não
puxou assunto, embora estivesse curiosa.
— Acabei aceitando a sopa — ela disse. — Mas adoraria lhe
fazer companhia até que termine de comer.
— Não quero jantar.
Ele a olhou de forma intensa, como se estivesse ali atrás de
outro tipo de alimento. Wilhelmine fez que sim, sentindo uma onda
de calor varrer seu ventre. Queria qualquer coisa que ele quisesse.
Alexander indicou o corredor:
— Dê-me apenas alguns minutos para tomar um banho e…
Ela pousou o dedo sobre seus lábios, balançando a cabeça de
um lado para o outro. Não o queria depois. Queria agora. Queria a
aspereza da barba. O gosto de terra na língua. O suor que envolvia
seu pescoço e o fazia cheirar mais homem do que qualquer outro
homem no mundo. Ela o queria cru, e que o corpo dele, ao tocar o
dela, estivesse suado. Que as mãos dele cheirassem a ela, e ela, no
fim, cheirasse a ele. Mal conseguia entender por que o queria sem a
aura riquíssima que o circulava — bem, ela o queria assim também
—, mas queria muito mais o homem sob tudo aquilo.
Ela queria o homem que a fazia escrever coisas proibidas nos
diários.
Alexander entendia olhares como ninguém, e entendeu
imediatamente o dela. Ele a puxou para fora do salão e a carregou
até o corredor. Ela quase tropeçou pela pressa, mas ao saírem das
vistas dos criados, ele a ergueu no colo e desceu as escadarias,
alternando entre prestar atenção aos degraus e beijar seu pescoço.
Ela enlaçou seu pescoço, sorrindo enquanto ele inspirava seu
cheiro e mordia de leve o lóbulo de sua orelha. Acomodada ao
corpo forte, sentiu-se incrivelmente feliz. Feliz, plena, completa.
À luz dos candelabros, os olhos de Alexander clareavam e sua
pele parecia mais dourada e atraente. Oras, que pensamento tolo,
ela se corrigiu. Ele era atraente o tempo inteiro. Às vezes
Wilhelmine o olhava e tinha certeza de que se apaixonara no
segundo em que o viu no salão de baile. Às vezes, mudava de ideia.
O que viu no primeiro dia foi um homem maduro exalando certezas.
Só o conheceu realmente mais tarde, e aos poucos. Apaixonara-se
primeiro pelos olhos claro-escuros, que combinavam com a farda
azul. Depois, e quase secretamente, pela boca larga e bem-
delineada que quase nunca sorria — mas sabia mordê-la de um
jeito que fazia seus joelhos falharem. Mais tarde veio um sentimento
acalorado pelo peito largo e convidativo que a acolhia depois das
noites longas e suadas. E, por fim, veio a certeza de que o amava
por sua inteligência e astúcia.
Era difícil admitir, mas Wilhelmine se sentia domada. E, ao
contrário do que pensava, não era humilhante confessar aquilo. O
que sentia por Alexander a aumentava.
Eles cruzaram por alguns criados, que fingiram não ver os
patrões trocando sussurros e risadas ao pé do ouvido. Wilhelmine
sabia para onde ele estava levando-a. Ele abriu com alguma
dificuldade a porta do atelier, e só então a colocou no chão.
A lareira já estava acesa e as luzes deixavam o cômodo da cor
do outono. Alexander caminhou até a porta e a fechou. Só então
caminhou até Wilhelmine. Os olhos dele estavam nela. Nela, no
vestido, no cabelo, no olhar cheio de expectativa.
— Quer conversar sobre o que está acontecendo? — Ela tentou
fazer a coisa certa, espalmando seu peito antes que fosse atacada.
— Não — ele disse firme. — Quero que tire a roupa.
O ar de Wilhelmine estancou no pulmão.
— Tem certeza que não quer compartilhar comigo o que está
acontecendo?
Alexander não era homem de repetir ordens, mas repetiu outra
vez:
— Tire a roupa. Quero ver sua barriga.
Aquilo era de paralisar os nervos de qualquer mulher. Uma
quantidade imensa de saliva desceu pela garganta dela, e ela pôde
jurar que ele acompanhou a onda descer por cada centímetro do
pescoço dela. Ela mal conseguia respirar. Seu estômago crepitava,
aceso, e sua intimidade pulsava.
Ele a circulou devagar, olhando para ela como se já estivesse
despida. Ela não conseguia dar nomes àquele magnetismo sexual.
Não conseguia imaginar nada tão potente. Ela poderia se entregar a
ele ali mesmo, de pé.
— Quer que eu a dispa? — A voz profunda chegou de trás, e ela
fechou os olhos, arrepiada, fazendo que não.
Ele parou perto o suficiente para que ela sentisse o hálito dele
esquentar sua nuca.
— Adoraria despi-la. Mas quero que faça sozinha.
A consciência de que precisaria tirar a própria roupa sob o olhar
dele era ao mesmo tempo embriagante e assustadora. Curioso que
tivesse chegado ali disposta a manter o coração afastado daquele
homem. Seu coração foi o território que capitulou mais cedo.
Ela desabotoou com as mãos trêmulas cada um dos botões
dianteiros do corpete que escolhera para a noite, mas não parecia
rápida o suficiente. O duque ajudou-a, os olhos nos minúsculos
botões saindo de suas casinhas, os dedos ásperos roçando nos
dela. Eles às vezes se olhavam, tensos. Ela mal conseguia parar de
olhar para o maxilar duro e a barba discreta que crescia no fim do
dia — ela tinha sonhos em que era pinicada em superfícies macias
por aqueles pelos. Os ombros largos, ainda maiores dentro do
uniforme sóbrio, lhe causavam tremeliques.
— Maldição, Wilhelmine — ele disse depois do décimo ou
décimo primeiro botão. — O quanto gosta desse vestido?
— Muito. — Ela riu. Ele se afastou, impaciente, esperando que
ela terminasse sozinha. Não era culpa dela se ele não tinha
paciência.
Depois de algum tempo o vestido finalmente caiu aos seus pés,
e ela saiu do meio do tecido embolado no chão. Alexander olhou
para o chemise que restara. Queria que ela o tirasse logo. Estava
agoniado para tocá-la.
— Não uso mais espartilhos — ela explicou, olhando para a peça
solta sobre o corpo. — A barriga cresceu e eles me apertam.
— Não faço questão que use — ele respondeu rápido.
Ela abraçou a barriga, esticando o tecido fino sobre a curva
discreta do ventre.
— Gosto de observar as mudanças. — Ela investigou as
mudanças do próprio corpo. Os seios estavam agora perfeitamente
redondos, os quadris mais femininos, a barriga arredondada. Pelo
olhar que parecia furar a camisola fina, Alexander também gostava.
— Ficará um pouco mais linda quando eu arrancar essa
camisola — ele falou.
Wilhelmine arregalou os olhos. Esse tipo de coisa a incendiava e
ele sabia.
— Não pode me despir aqui — ela o desafiou, entrando no jogo.
— Estamos no seu atelier.
— Quer ver como posso?
Ela esperou tranquila que ele tentasse. Das outras vezes em que
as idas até lá se transformaram em encontros íntimos, não houve
remoção de muitas peças. Mas agora ele estava propondo despi-la
inteira. Queria vê-la. Verdade fosse dita? Ela tiraria todas as peças
de roupa que ele quisesse, porque amava testemunhar o fogo em
seus olhos quando a observava.
Sem que ele precisasse pedir duas vezes, ela levou a mão até o
laço da camisola e começou a desamarrá-la. Era um laço
complicado e Wilhelmine queria desatá-lo com graciosidade, mas
ele tinha pressa. Embrenhando os dedos entre as casinhas
minúsculas dos enfeites, ele a puxou, rasgando a musselina. O
tecido se partiu emitindo um som alto, e Wilhelmine saltou no lugar.
Aquilo foi inesperado. Ela mal teve tempo de se tapar: os braços
dele a envolveram e sua boca procurou a dela para um beijo
urgente. Ela sentiu o corpo rígido colar ao dela: barriga, seios,
ventre.
— Minha duquesa — ele grunhiu em seu ouvido, mordendo a
pontinha de sua orelha. — Diga-me, o que andou escrevendo sobre
mim?
— Coisas boas. — Ela sorriu, enigmática. Ele morreria sem
saber.
— Como o quê? — ele perguntou rouco.
— Sobre como, por exemplo, seu fogo me deixa úmida e faz os
bicos dos meus seios doerem de desejo…
Alexander a afastou, quente. Sua respiração parecia lutar para
sair do corpo.
Aquilo era mentira de Wilhelmine. Jamais escreveria coisas
assim, mas tinha coragem de dizê-las só para ver Alexander exalar
fumaça pela pele.
— Já arrumou um modo de escondê-los? — Ele a trouxe de
volta até as correntes que eram seu abraço.
— Nem você seria capaz de achá-los.
— Ah, é? — Ele riu. — Isso teria a ver com o marceneiro que fez
aquela escrivaninha cheia de segredos?
Wilhelmine fez que sim. As mãos dele agora corriam atrevidas
por ela.
— Quer saber como me refiro a você nas páginas? — Ela se
afastou para olhá-lo.
— Como?
— Fritz.
Ele a olhou de lado.
— Quer dizer que se descobrirem seus diários, acharão que está
aprendendo sobre as delícias do sexo com um homem chamado
Fritz?!
Ela riu.
— Exatamente. Não estava preocupado com o que estava
escrevendo sobre você? Resolvi me referir a você pelo seu segundo
nome, só por garantia.
Ele voltou a beijá-la.
— Achei carinhoso. — Ela aceitou o retorno de seus beijos. —
Gosto do som desse apelido.
Ele também pareceu gostar, porque voltou a beijá-la.
As línguas voltaram a se explorar enquanto as mãos faziam
rondas nas periferias. Nádegas, braços, barriga. Beijaram-se
enquanto ele a livrava dos restos da camisola e as mãos dela
bagunçavam os cachos de sua nuca. As mãos que alisavam as
curvas das costas desceram até a bunda, e os beijos prosseguiram
até que os dedos descobrissem os pelos íntimos da esposa. Ela
gemeu quando ele roçou a ponta do indicador pela fenda dela.
Ele a deitou no divã com a barriga para cima, braços
descansados ao lado. O joelho de Alexander apoiou-se entre as
pernas dela, então ele se abaixou. Wilhelmine gemeu ao sentir o
calor do seu hálito contra a pele macia da coxa. O marido mostrou a
ela mais uma vez as delícias da intimidade, e depois que ela se
saciara, saciou-o recebendo-o dentro dela. Os corpos deslizaram
suados sobre o outro em movimentos profundos. As pernas
encontraram posições renovadas. Os pés se entrelaçaram, as
lambidas burlaram o pudor e as mordidas finalmente antecederam
as explosões.
Por muitos segundos, estiveram entre o céu e os sonhos.
Mais tarde, já entrelaçada ao marido enquanto a mão dele
acariciava suas costas, ela perguntou:
— Acha que será um menino?
Ele olhou preguiçoso para baixo, para a barriga coberta pela
manta.
— Será um garoto. Um agitado.
— Se for agitado não vai conseguir pintá-lo.
— Podemos amarrá-lo à cadeira.
Wilhelmine beliscou Alexander, e ele riu.
— Ele será obediente, você verá. — Alexander pousou a mão
sobre o ventre da esposa.
— E virtuoso — ela desejou. — Sério. Responsável como você.
Alexander olhou para a lareira, pensativo.
— Já que estamos fazendo pedidos, pediria que ele escapasse
da indolência generalizada da classe e tivesse algum propósito.
— Um que não fosse a libertinagem? — ela perguntou para
provocá-lo.
Alexander concordou, rindo. A quantidade de nobres envolvidos
em indolência e libertinagem era digna de nota.
Eles voltaram a olhar para cima, encolhidos nos braços um do
outro. A lareira crepitava mansa, e o som das toras em brasa
ajustando-se quebrava, de tempos em tempos, o silêncio.
A voz de Alexander soou, repentina:
— E se puder desejar uma última coisa, desejaria um continente
sem guerras para ele.
Wilhelmine ergueu os olhos, encontrando os de Alexander.
— Se isso acontecesse, perderia seu trabalho.
— Eu o perderia com todo o prazer.
Ela fez que sim, desejando o mesmo. Não apenas para si, mas
para todas as outras mães do mundo.
Alexander cruzou um dos braços atrás da cabeça, olhando para
o teto.
— Mesmo sabendo que nosso primogênito será um exemplo de
virtuosidade e propósito e que jamais verá uma guerra, preferiria
contratar um profissional para pintá-lo. — O duque olhou pensativo
para as pinturas ao redor, muitas delas inacabadas. — Não gosto de
todos os meus traços.
— Eu gosto. — Ela inclinou o pescoço para vê-las também. —
São precisas e ricas em detalhes. Sei que se importa com sombras,
e que pode melhorar nos esfumaçados. Mas seus rostos são
melhores que os de Herr Pesne, por exemplo.
O duque riu. O famoso pintor da corte prussiana, Antoine Pesne,
dava a todos os seus retratos as mesmas feições. Dezenas de
quadros pendiam hoje em galerias pelos reinos vizinhos mostrando
uma geração inteira de nobres exatamente iguais.
Ela moveu o rosto preguiçosamente sobre o peito dele para olhá-
lo. Por um tempo ficou pensativa, então confessou:
— Quando o conheci, pensei que fosse um.
— Um indolente? — Alexander perguntou.
— Um libertino.
Ele acariciou seu rosto. Pelo jeito, já sabia disso também.
— Christine o pintou como um homem frio e indiferente — ela
falou. — Contou sobre uma amante como se ela ainda existisse.
Quando todas as viúvas e mães casadoiras de Bückeburg
começaram a rondá-lo, achei que fosse verdade. Homens muito
disputados costumam achar que podem tudo.
— E, ainda assim, você aceitou meu pedido de casamento na
noite seguinte.
Wilhelmine soltou uma risada alta. Alexander riu também.
— Um duque libertino, arrogante e misteriosamente indiferente
ao escândalo ligado ao meu nome não me pareceu um mau
negócio.
— Na minha arrogante opinião, quem saiu ganhando desse seu
lapso momentâneo fui eu. Só me sinto ofendido por ter me achado
um libertino.
— Por quê? Libertinos parecem gozar de ótima reputação entre
vocês.
— Os libertinos geralmente são uns fracos, Süsse. Escondem-se
atrás da indolência e da promiscuidade porque não lidam bem com
responsabilidades. O mesmo vale para quem se gaba de beber
demais, ou leva a vida em completo ócio. — Ele se ajustou a ela. —
A perspectiva de responsabilidades os apavora.
Wilhelmine pensou algum tempo a respeito.
— Costuma avaliar todos assim?
— Sem exceção.
Ela sorriu para ele.
— Fico feliz que não seja nenhuma dessas coisas.
— Se tivesse me perguntado em Bückeburg, teria dito a você.
Mas você não perguntou. Achei que não se importasse.
Ela pensou bastante antes de reponder:
— Achei que não me importaria.
— E quando passou a se importar?
Beijando o peito do marido, ela respondeu:
— Quando me apaixonei por você.
A resposta não o pegou desprevenido, mas abrandou suas
feições. Alexander era um homem experiente. Certamente teve
jovens apaixonadas em sua vida, e saberia reconhecer uma.
Ele se deitou de frente para ela, puxando-a novamente para
perto. Seus corpos colaram como margens de um rio estreito.
Ela se importava agora com ele. Muito.
Ele também se importava muito com ela.
Ele segurou sua mão perto do peito. O coração dos dois batia
calmo depois da explosão de há pouco.
— Quer que eu diga como me sinto em relação a você? — ele
perguntou.
— Se quiser — Wilhelmine deu de ombros, desejosa que sim.
Ele correu os olhos por ela, então disse:
— Você me mantém sob feitiço constante.
A voz rouca se infiltrou pelos poros de Wilhelmine, como se ela
fosse inteiramente permeável a ele.
— Acordo pensando em você — ele continuou. — Durmo
pensando em você. Trabalho pensando em você. Isso responde à
sua pergunta?
Ela fez que sim.
— Então que tal me contar, agora, o que está causando essa
linha fina entre suas sobrancelhas?
Era incrível como nada fugia a ele.
— Há quase um mês não era chamado para nenhuma reunião, e
hoje foi — ela disse. — Está acontecendo alguma coisa. Eu sinto.
Demorou algum tempo até que Alexander finalmente falasse.
— Frederico Guilherme da Prússia está envelhecendo. Os
liberais mal veem a hora dele ser ser substituído, e todos apostam
em uma unificação alemã. Isso faz com que França e o império
Austro-Húngaro se agitem.
— E essa agitação mexe com tudo — ela murmurou.
— Sim.
Wilhelmine abriu e fechou os dedos, sentindo os pelos macios do
peito do marido fazerem cócegas entre eles.
— O que me leva sempre à questão de Schaumburg-Lippe —
ele entrou no assunto.
Eles se entreolharam e o coração de Wilhelmine acelerou. Ela
sabia. Ela sabia! Alexander preocupava-se com seu pequeno
principado, como ela. Ela, por motivos muito mais pessoais.
— Um principado pequeno como aquele, cravado entre reinos e
eleitorados assustados, pode ser anexado em um piscar de olhos —
ele continuou, com cuidado. Não queria apavorá-la, mas também
não podia mantê-la no escuro. — Assim que os vizinhos souberem
que Phillip planeja desarmar o estado, algo acontecerá.
— Por que Phillip não ouve você? — Wilhelmine irritou-se.
— Porque acredita que os casamentos entre a família deles e a
casa de Hanover garantirão estabilidade.
— Não quando temos minas produtivas no território! —
Wilhelmine reclamou, voltando a deitar sobre o peito de Alexander.
Ela pensou na pequena vila de Hoefsted, cravada no caminho das
minas. Seu estômago ardeu ao pensar no pai e no futuro de seu
irmão.
Alexander acariciou seu cabelo, sem responder. Não precisava.
Ela já sabia o que estava deixando ele tenso, e ele sabia o que a
estava deixando nervosa.
Ele podia oferecer a ela tudo, menos um continente em paz.
Infelizmente, era justamente de paz que ela precisava.
20

S . C ,
quarto do imenso castelo hoje transformado em museu estava
mergulhado na escuridão.
Fran se levantou, estalando o pescoço. Alice adormecera na
cama de Wilhelmine abraçada a um dos livros de Lady Malícia,
coberta dos pés à cabeça de joias empoeiradas. Pensou em acordá-
la para reclamar da letra da duquesa e perguntar se ela queria
esticar um pouco as pernas, mas mudou de ideia ao ver que a
amiga ressonava. Deixou-a dormir.
Ela desceu em silêncio até o primeiro andar, surpresa por não
ver câmeras nos corredores nem portas trancadas. Por ser um
castelo distante e relativamente pouco visado, Solitude tinha pouca
vigilância. Ela caminhou pelos corredores escuros até a máquina de
café, procurando algo forte. Da janela, viu que a neve cobrira
absolutamente tudo na paisagem. Tudo ao redor parecia protegido
por uma colcha fofa e branca.
Bocejando, inseriu algumas moedas na máquina e escolheu um
expresso, esperando que a cafeína a mantivesse acordada. Ela
estava com os olhos cansados.
A preocupação sobre o que aconteceria a elas no dia seguinte
sumira. Não estava preocupada se seria punida com trabalho
comunitário ou receberia uma multa de valor impagável. Fran
concluíra, em algum momento da noite, que se ela não tivesse feito
o impensável, o quarto secreto de Wilhelmine teria continuado
secreto — pelo menos durante sua vida. Acabaria morrendo sem
saber sobre sua antepassada mais notável, sem saber que era uma
mulher sensível, apaixonada pelo marido, dona de tiradas irônicas e
nobreza inigualável. Amanhã, quando fosse levada à administração
do castelo (ou para a delegacia), diria a verdade. Ela agora sabia a
verdade — e só isso importava. Do que adiantaria ver seus diários
expostos dentro de uma redoma de vidro, sem poder ler nas
entrelinhas seu humor, suas paixões? Ou saber sobre seus escritos
através de análises feitas por homens e mulheres que não se
interessavam verdadeiramente por ela?
A máquina soltou um barulho preguiçoso e o líquido aguado caiu
no copo de papel.
No momento, Fran estava mais preocupada com Wilhelmine. Os
eventos de cento e cinquenta anos atrás pareciam estar
acontecendo naquele momento, com ela. Pelo que leu até ali,
Wilhelmine e Alexander estavam bem. Tinha quase — quase —
certeza que algumas passagens sobre "estrelas" e "explosões"
tinham algo de erótico em seu sentido, mas teria que perguntar a Ali
o que achava. E embora saber de tudo aquilo a enchesse de
alegria, sabia que naquela época o mundo ao redor não estava
bem.
Ela fez uma nota mental enquanto sentia o cheiro de café flutuar
ao redor. Precisava dar um pulo até o antigo atelier do duque. Tinha
lido em algum lugar que ele havia sido transformado em um quarto
de música nas décadas seguintes, mas esperava reconhecer no
ambiente o lugar exato onde Alexander e Wilhelmine confessaram
seus sentimentos.
Só uma coisa a inquietava. Se Dietrich, o primogênito, tinha por
volta de trinta anos em 1871, quando se casou com Emma, o bebê
que a duquesa esperava em 1839 não poderia ser ele.
O apito da máquina cortou o silêncio, indicando que o café
estava pronto. Fran pegou o copo de café quente e retornou ao
segundo andar, cruzando os corredores e escadarias vazios com o
coração angustiado pelo que viria.
21

A A
desprevenido. Embora tivesse pedido dispensa dos treinamentos
para passar mais tempo em Württemberg — pelo menos até o ano
seguinte, quando o filho nascesse —, não encontrava maneiras de
dizer não àquele chamado.
— Não pode dizer não para ele — Herr Wallinger apontou para a
carta enviada pelo escritório do rei da Prússia, aberta sobre a mesa
do escritório.
— Não posso me ausentar. — Alexander arrastou as mãos pelo
rosto. — Qualquer viagem me afastaria daqui por um mês ou dois.
— Talvez seja algo simples dessa vez — o secretário devolveu.
— Não acho que o rei tenha chamado apenas o senhor. Mais
comandantes estarão presentes. É perigoso deixar tudo nas mãos
dos generais do Norte, e Vossa Graça sabe. Eles não se importam
com o Sul.
Alexander exalou, balançando a cabeça que não.
Ele já havia perdido uma esposa e uma criança antes. Só de
pensar que o mesmo poderia acontecer a Wilhelmine, suas
vértebras congelavam. Não era o mesmo medo que sentiu quando o
médico informou que sua esposa e a criança não estavam bem. Era
um medo diferente. Uma sensação ominosa, pequena mas
incômoda, que o acompanhava desde que Wilhelmine informou
estar esperando um filho seu. Talvez esse fosse um sentimento
acessório ao amor. Você só saberia da existência dele quando o
amor estivesse instalado.
E, céus, como amava sua esposa.
Gostava da companhia dela. De conversar com ela. Não se
cansava nunca de olhá-la. Havia virado especialista nela, no que ela
amava, no que gostava de comer, fazer, falar. Ele sabia de tudo.
Chegara ao ponto de não conseguir mais se afastar dela, e passara
a dormir em seu quarto só para que ela fosse a primeira coisa que
visse ao acordar.
Alexander não conseguiria partir como antes. Solitude deixara de
ser um imenso espaço sem significado e se tornara sua casa. Ele
queria ficar ali, com ela. Observar seus cuidados na escolha dos
criados que cuidariam dos filhos, no futuro. Na escolha de novas
flores para os jardins. Sua preocupação com as famílias da vila mais
próxima. Seu gosto por música, artes e até política.
Ele sabia que seu secretário reprovava seus novos interesses,
mas Alexander não tinha mais a mesma disposição para
campanhas pelo continente. Não, pelo menos, no momento.
— Vossa Graça sabe que precisa ir. — A voz do secretário o
trouxe de volta.
— Posso mandar um representante — Alexander sugeriu. —
Você.
— Eles querem você — o secretário rebateu. — Frederico está
morrendo. É importante que sonde seu substituto. Pelo bem do
ducado, do reino e dos estados vizinhos.
Wallinger tinha razão; era ele quem estava odiando a ideia de se
ausentar.
O duque se levantou, e o secretário se levantou também.
— Preciso falar com minha esposa sobre isso — o duque
informou.
Herr Wallinger franziu o rosto, como se o duque tivesse dito a
coisa mais esdrúxula do mundo.
— Dê-me alguns minutos.
O duque deixou o escritório e rumou para o salão de chá. Ela
deveria estar com a Christine, que chegara para uma visita alguns
dias atrás. Encontrou as duas conversando animadamente;
Christine gesticulava e contava uma de suas histórias, mas parou de
falar quando ele entrou.
O sorriso de Wilhelmine fez seu peito se apertar.
— Gostaria de falar com a duquesa a sós por um momento —
ele pediu.
Christine fez um muxoxo.
— Justamente no melhor momento de minha história — a
princesa reclamou dramática, deixando o salão. Alexander esperou
que Christine se afastasse e só então se sentou ao lado de
Wilhelmine.
Sua esposa não sorria mais. Seu rosto estava crispado e parecia
se segurar para não começar a falar antes dele.
— Como está se sentindo? — ele perguntou.
— Bem — ela respondeu rápida, como se sua saúde não fosse
tão importante quanto o que precisava dizer. — Precisamos
conversar, Alexander.
Alexander segurou as mãos dela entre as suas. Chegou até ali
para falar com ela, mas era Wilhelmine quem tinha algo a dizer.
— O que está aborrecendo você?
— Phillip — ela respondeu. — Christine me disse que ele
continua resoluto. Anunciará a dissolução do exército mês que vem.
Alexander estalou o pescoço. Sabia que Phillip dispensaria as
tropas em breve, mas não tão cedo.
— Precisa conversar com ele mais uma vez, Alexander — ela
suplicou. — Estou cada vez mais preocupada com meu pai.
— Sei que está, meu amor. — Ele levou a mão dela até os lábios
e a beijou. Conhecia a angústia da esposa. Sabia que, sem
exércitos, uma anexação era questão de tempo.
— Ele não enxerga — Wilhelmine reclamou. — Acho que às
vezes quer desfazer o que o pai fez. Não está pensando nas
consequências.
— A questão é financeira — Alexander explicou. — Exércitos
consomem uma fatia considerável do orçamento anual. Phillip quer
deixar sua marca no principado. Quer construir, reformar, expandir.
Melhorias impactam em sua aprovação entre a população. Para
isso, precisa de dinheiro.
— A que custo? — ela respondeu, indignada. — Teatros e
palácios se constróem no decorrer dos anos, não no segundo ano
de reinado! Ele quer abraçar o mundo com um orçamento que não
tem!
Wilhelmine olhava fixamente para um ponto da sala, irritada.
Alexander detestava ver a linha de preocupação entre seus olhos.
Odiava que ela se angustiasse com isso, e pensasse nisso sem
parar.
— E não gosto de Ernesto Augusto — ela adicionou, olhando
para o marido.
O rei de Hannover havia acabado de assumir o trono, um
movimento que acendeu os alarmes nos territórios ao redor. De
descendência inglesa, pairavam rumores sobre sua índole.
Alexander chegou a ouvir os boatos de que ele assassinou o próprio
valete, teve um filho com a irmã e pretendia assumir o trono
britânico matando sua prima, Victoria. Além disso, havia ainda a
polêmica envolvendo os Sete de Göttingen, em que ele silenciou
sete professores que reclamaram sobre a extinção da constituição
de Hannover — entre os sete, estavam dois famosos filólogos
alemães, responsáveis por coletarem contos de fadas pela
confederação. Nem mesmo aderir à união aduaneira alemã, o reino
tinha aderido.
— Desculpe-me — ela pediu. — Veio até aqui para falar comigo,
e eu só consigo pensar no meu pai.
Alexander contou a ela sobre a carta do rei e sua vontade de
negar o pedido. Sobre suas preocupações em deixá-la sozinha, e
como essa ida ao Norte poderia demorar.
Ao contrário do que imaginava, os olhos da esposa brilharam de
esperança.
— Você precisa aceitar — ela disse. — Precisa conversar com
Phillip. Ele está contando que os casamentos das primas com as
famílias vizinhas irão protegê-lo, mas sabemos que na crise nada
disso importa. São as alianças com os grandes, como a Prússia,
que impõem medo. — Wilhelmine o encarou. — Você passaria por
Schaumburg-Lippe na volta, não passaria?
Alexander fez que sim. Ainda não queria ir, mas cada vez mais
achava que deveria.
Wilhelmine fechou os olhos, aliviada. Quando voltou a abri-los,
sentia indignação.
— Sinto tanta raiva dele. Preciso me controlar para não falar
disso com Christine.
— Não sinta raiva. — Ele acariciou seu cabelo. — Sei que teme
por seu pai. A região de Hoefsted atrairá a atenção de Hannover e
de qualquer outro estado. Entendo seus medos.
— Por favor, quando se encontrar com Philip, dê um soco nele
por mim.
Alexander riu, deslizando o polegar pela pele dela. Então colheu
seu rosto entre as palmas e beijou-a com ternura, desejando poder
continuar ali. Mas agora partia com um propósito mais importante
que manter a paz: aquietar o coração da esposa.
Talvez fizesse mesmo uma visita aos reinos vizinhos. Até mesmo
a Ernesto Augusto, para investigar suas intenções e tentar descobrir
algo.
Não queria sequer pensar no que poderia descobrir.

O . D ,
despediu-se da esposa prometendo retornar cedo.
— Você vai ficar bem? — ele perguntou a ela com o coração
pesado pela decisão.
— Ficarei melhor sabendo que colocará juízo na cabeça-oca do
príncipe.
— Já tentei uma vez. Tudo que consegui foi voltar para casa com
uma esposa.
Wilhelmine riu.
Por um breve instante Alexander desejou esquecer suas
responsabilidades. Sua vida se tornara tão perfeita nos últimos
meses.
— Pois volte sem outra esposa dessa vez — Wilhelmine
ameaçou.
Foi fácil prometer a ela que não faria aquilo.
Alexander achou estranho forçar o corpo adiante e senti-lo
hesitar. Não conseguia afugentar a sensação de que não deveria ir.
— Winy…
— Vá — ela o incentivou, querendo ao mesmo tempo que
ficasse. — Mas volte logo.
O duque pousou um dos pés no degrau da carruagem. Antes de
pegar impulso, parou. Ao se virar para vê-la pela última vez, ela
acenou com um sorriso plácido. Uma sensação ominosa tomou
conta do peito. A de que partir poderia não ser tão bom quanto
pensava.
Infelizmente, suas desconfianças mostraram-se verdadeiras. Dez
dias depois, um mensageiro enviado de Württemberg chegou à
Prússia, trazendo a notícia de que a duquesa havia perdido o bebê.
22

D B ,
Alexander havia virado gelo. Nunca sentiu tamanha fadiga mental,
ou a sensação de que havia um punhal enterrado em seu peito.
Ele só voltou a respirar quando os criados o avisaram, ao
irromper em Solitude, que Wilhelmine estava bem. Ele cruzou os
corredores com passadas largas, deixando os criados que tentavam
acompanhá-lo para trás. Nos últimos metros, correu. Tinha tanta
coisa a dizer. Tanta coisa para viver com ela. Que ela pudesse não
estar bem dilacerava seu coração. Por que teve que se ausentar?
Por que não estava ali, ao lado dela, para segurar sua mão?
E o que seria dele se ela morresse também?
Ao abrir a porta do quarto, encontrou-a na cama, por ordens
médicas. Assim que ela virou o rosto em sua direção e sorriu, o que
o mantinha em pé cedeu.
Alexander cruzou os metros que faltavam com poucos passos,
tombando de joelhos ao lado da cama dela. Seus olhos arderam.
Ela o recebeu com um abraço forte.
— Meu Deus — ele murmurou respirando fundo como se
quisesse absorvê-la inteira. Ele a imaginou doente, com a vida em
risco. Loucuras de sua cabeça, no fundo sabia, mas que impediam
seu coração de desacelerar. Sua mão foi parar na testa dela,
temendo sentir a pele quente. Mas a pele dela estava morna e
suave, e só então seu peito expandiu, depois de dias constrito. —
Você está bem, amor? Está bem de saúde?
Até aquele momento havia apenas sonhado em reencontrá-la.
Em sua cabeça as imagens da morte prematura de Elsa se
confundiam à figura de Wilhelmine. Presente e passado haviam se
misturado em uma só tristeza, com a diferença de que ele não
conseguia mais sequer ver um futuro sem ela.
Ela pousou a mão sobre a dele e sorriu.
— Estou bem. Que bom que está aqui.
Ela estava pálida, e tudo que Alexander conseguiu foi abraçá-la
e jurar nunca mais sair de perto dela. Ela o abraçou de volta e eles
permaneceram assim por um tempo.
Sem perguntar se ela se importava, ele se deitou do lado dela.
Sujo da viagem, cansado, emocionalmente fatigado.
— Conte-me como aconteceu — ele pediu.
— Senti dores e logo depois veio o sangue — ela disse baixo.
Os olhos dela estavam contornados de vermelho, sinal de que havia
chorado mais cedo. — Mandamos trazer imediatamente o médico,
mas infelizmente…
Alexander desejou poder roubar toda a dor que ela sentia para
si. Carregaria tudo sozinho para que ela não precisasse carregar
nada.
— Não deu tempo para nada, Alexander. Nada — ela explicou,
sufocando um soluço.
— Eu sei, meu amor. Perdoe-me por não ter estado aqui. Por
nunca estar aqui — ele disse com raiva.
Ela voltou a abraçá-lo e ele beijou sua cabeça.
— Sinto muito — ele disse baixo. — De verdade.
— Eu sei que sente. — Ela o apertou mais forte. — Eu sinto
também.
Então ele a beijou de leve nos lábios. Jamais poderia dizer a ela
o quanto se achava sortudo por não tê-la perdido. Só ele e Deus
sabiam da dor que era perder uma esposa e um filho no parto.
Jamais suportaria passar por aquilo outra vez.
Depois do beijo ela se encolheu em seus braços.
— Obrigada por vir tão rápido — ela falou. — Espero que não
tenha atrapalhado seu propósito, no fim das contas. Estou tão farta
de me preocupar. Sinto como se minha preocupação tivesse feito
mal ao bebê. Há dias rumino o assunto. Estressei-me, preocupei-me
com meu pai. — Sua voz estava atormentada. — Queria tanto não
ter medo.
Então ela se agarrou a ele, ajeitando-se contra o corpo do
marido como se precisasse desesperadamente de sua força. Ele
entregou a ela toda a força que tinha. E por ela, tinha muita.
— Não teve culpa de nada. De onde tirou isso?
— Não sei. Eu sinto. — Ela ergueu a cabeça. — Diga que traz
notícias boas do Norte. Você falou com Phillip?
— Conversaremos sobre tudo quando estiver melhor, que tal? —
Ele a aconchegou nos braços, e ela se aninhou contra ele. — Por
agora peço apenas que não pense mais em ameaça alguma. Estou
aqui, e prometo resolver tudo.
Só depois que Wilhelmine adormeceu, Alexander se levantou,
ajeitou-a na cama, puxou a coberta para cobri-la e saiu do quarto.
Ele conversou com as criadas que ajudaram naquela tarde e com
seu mordomo, que chamou o médico. Então rumou para os
aposentos de Christine para saber tudo sobre o ocorrido.
Christine contou como aconteceu e reforçou o que ele já tinha
ouvido do mordomo, que por sua vez repetiu as palavras do médico:
Wilhelmine estava bem. Infelizmente perdera o bebê, mas ela era
uma jovem forte e saudável e infortúnios como aquele não eram
incomuns.
— Eu deveria ter estado aqui. — Alexander arrastou as mãos
pelo cabelo, tão exausto que poderia dormir por uma semana. Seu
arrependimento tinha gosto de fel. Não devia ter partido. Não devia
ter ouvido o secretário. A Europa era uma idosa ranzinza e irritadiça
com forças suficientes para se virar sozinha; não precisava dele.
Wilhelmine, sim, precisava dele.
— Não devia ter ido.
— Precisarei discordar.
Alexander não esperava ouvir a frase de Christine.
A princesa mexia seu chá com delicadeza, enquanto o olhava de
modo duro e frio.
— Esteve com Phillip, não esteve? — ela perguntou. — Sei que
esteve. Como sei que estamos correndo sérios riscos por lá.
Ela levou a xícara à boca, fazendo uma careta ao constatar que
faltava açúcar.
Alexander aguardou ela continuar.
— Wilhelmine me disse que conversou com você antes de partir.
Que não confiava no novo rei de Hannover, que estava preocupada
com a família. A posição da vila de seu pai é preocupante. Fica
exatamente entre Hannover e a maior mina de carvão da região.
Os olhos de Alexander se apertaram. Ele balançou a cabeça que
sim. Ele sabia disso.
— Phillip acredita no bom relacionamento com Ernesto Augusto,
mas sinceramente? Acho que meu irmão não quer ver o tamanho do
problema. Ele queria a parte boa de reinar: festas, arte, cultura. Não
estava preparado para herdar uma ervilha que pode ser engolida
pelos vizinhos.
— Como já aconteceu antes — Alexander a lembrou. O ataque
do condado vizinho, décadas antes, fora o motivo pelo qual o pai
deles havia montado o exército.
Christine assentiu.
— Eu estava enganada, Alexander — ela continuou. — Quando
apareceu no baile, meses atrás, querendo falar sobre assuntos
sérios, fui a primeira a hostilizá-lo. Era um momento de celebração e
eu queria pensar em coisas boas. Em um futuro positivo.
Alexander não a culpava e ela sabia.
Christine ergueu os olhos.
— Aliás, eu estava enganada em mais de um sentido. Peço que
me perdoe por ter sido contra o casamento no começo. — A
princesa levou a xícara à boca. — Ainda bem que Winy não me
ouve.
Alexander fez um gesto de que entendia. Não havia nada a ser
perdoado.
Eles se entreolharam, novamente apreensivos. O momento do
pedido de desculpas já havia passado. Tinham coisas mais sérias
para discutir no momento, e uma delas era algo que Christine não
sabia.
O duque ajeitou-se na cadeira, colocando a verdade na mesa:
— Não visitei apenas Philip, dessa vez. Também solicitei uma
audiência com Ernesto Augusto.
Christine arregalou os olhos.
— Assim que Wilhelmine expôs sua preocupação, ela passou a
ser minha. As suspeitas dela estavam certas. O general de Ernesto
Augusto confessou que todos já sabem dos planos de Phillip.
Ninguém assume o interesse de se aproveitar do fato, mas a ideia
foi plantada. A harmonia no Norte é tênue: assim que uma aliança
mais forte surgir, quem sabe o que pode acontecer?
Toda a preocupação que Christine não demonstrou em
Bückeburg estava visível no rosto dela. Ela estava pálida.
— Não há um único motivo para Hannover, Hesse ou mesmo a
Prússia nos deixarem quietos — ela sussurrou.
Realmente, não havia. Dispensar um exército contando com
casamentos de conveniência era de uma inocência preocupante.
— É uma questão de tempo até o primeiro dar um passo —
Christine pensou alto.
— Na verdade, mais importante que reivindicar um principado
para si seria não deixar que algum inimigo o reivindicasse primeiro
— Alexander se certificou de que Christine estava entendendo a
complexidade do assunto. — Uma mina de carvão valeria uma
anexação.
Christine ajeitou-se na cadeira, inquieta.
— Mas como nosso pequeno exército poderia nos salvar caso
Hannover decidisse nos atacar?
— Um exército manteria os mais afoitos distantes. No caso de
uma ameaça, todos ao redor se uniriam a ele. Todos esperam ajuda
semelhante.
Christine largou o chá sobre a mesa e recostou na poltrona,
finalmente — e devidamente — abalada. Ela olhou para Alexander.
— Disse isso a Phillip?
— Todas as vezes em que me encontrei com ele.
— E ele não mudou de ideia?
— Ele não tem recursos para manter um exército e fazer o que
pretende.
Christine balançou a cabeça, explodindo de rompante:
— Aquele cabeça-dura! Por que não nos ouve?!
— Porque ainda não sentiu a ameaça.
— O que ele acha? — Christine perdeu a paciência. — Que o
avisarão com antecedência que planejam nos invadir? Que afagarão
sua cabeça como papai fez com ele a vida inteira? — Christine
estalou os dedos, irritada: — Quando Phillip piscar, o principado terá
sido reduzido novamente a um condado, tendo que obedecer às
cartas que sabe-se-lá-quem der!!
Alexander assentiu. A história de Schaumburg-Lippe era
basicamente essa: foi só depois da Confederação do Reno, em
1807, que o pequeno condado foi elevado a principado.
Christine tinha razão em estar preocupada.
— Quando Winy souber disso, subirá pelas paredes. É capaz de
embarcar para o Norte para arrancar o fígado de Phillip.
— Talvez não devamos preocupá-la com isso — Alexander
decidiu. — Não até ela estar plenamente recuperada.
— Boa sorte em esconder isso de sua esposa.
O duque apenas assentiu. Não tinha a intenção de contar a ela
que a reunião com Hannover o deixara preocupado, mas sabia que,
quando ela perguntasse, não conseguiria mentir.
E quando contasse a verdade, precisaria controlar sua fúria.
23

C W ,
indicando à pobre moça o que fazer:
— Abra essas cortinas e areje todos os cômodos. Depois peça à
senhorita Schmidt que sirva meu chá aqui. Não é bom deixar Winy
solitária por tempo demais. Chega de tristeza! — A prima bateu
palmas, acelerando a pobre moça. Olhando para Wilhelmine,
paralisada com a bandeja do desjejum sobre o colo, continuou: — O
médico disse que devemos forçá-la a fazer o que gosta. Para
alegrá-la, você sabe. Então decidi acordar cedo — na verdade,
muito cedo — e tomar café com você.
Wilhelmine abaixou o pãozinho, franzindo a testa.
— O médico não disse isso, não.
Ignorando-a, Christine entrou no cômodo anexo. Wilhelmine
pousou o pão sobre a bandeja em seu colo e suspirou.
O grito que a prima deu não chegou a assustá-la.
Christine voltou com passos rápidos até o quarto, vermelha
como um salame.
— Mein Gott. Por que não disse que…
Alexander saiu do cômodo amarrando o roupão. Wilhelmine
olhou para o marido — lindo como só ele conseguia ser de manhã
— e suprimiu uma risada. Tudo na face dele mostrava que estava se
divertindo com a reação de Christine. Ela virava o corpo para o lado
a cada passo do duque, escondendo o rosto como se vê-lo no
cômodo fosse a coisa mais escandalosa do mundo.
— Não deu tempo de avisar — Wilhelmine disse.
Christine usou as mãos para montar uma barreira para os olhos
e não ver que o duque caminhou até Wilhelmine, inclinou-se sobre a
cama e correu o nariz pelo pescoço da esposa, soltando um som
rouco e indecente de satisfação.
— O médico não tinha proibido encontros íntimos? — Christine
gritou com voz estridente.
Ela virou-se para a parede para não ver a longa demonstração
indecorosa de afeto, virando-se outra vez quando Alexander
caminhou até a saída.
— Há maneiras e maneiras de se ter encontros íntimos —
Alexander respondeu ao passar por ela.
Christine soltou um gritinho, correndo até o outro lado do quarto.
— Winy!
— Não tenho culpa. — Wilhelmine deu de ombros. — Você
deveria ter me perguntado se eu estava sozinha antes de invadir o
quarto.
Christine a olhou, corada até o último fio de cabelo.
— Oras, por que não estaria sozinha? São dez horas da manhã!
Enquanto a prima resmungava sobre o ocorrido, dessa vez no
closet, Wilhelmine tombou sobre os travesseiros. As coisas
andavam agitadas com Christine ao redor.
— Que horror, Winy!
Wilhelmine suprimiu uma risada. A presença dela, no entanto,
animava seus dias.
— O que é um horror?
— Seus vestidos! Aliás, deixe-me corrigir: onde estão eles? Tudo
que você tem aqui são… — ela contou alto: — Um… dois… três,
quatro, cinco… seis vestidos formais! Onde estão os outros?
— Não tenho outros.
O rosto de Christine apareceu na porta.
— Estou falando sério, Winy. Nem em Hoefsted você tinha tão
pouca roupa.
Porque não estava precisando de muita roupa quando estava
sozinha com meu marido, Wilhelmine pensou.
— Onde estão os vestidos de festa?
— Ainda não fui a nenhuma — ela respondeu. — A única vez
que precisei de algo especial foi quando fui apresentada à família
real. Depois disso, não precisei mais deles.
Christine voltou até o quarto.
— Deus, o que fez nesses meses em que passou casada?
Wilhelmine desejou poder contar a ela tudo o que fez, mas
suspeitou que a chocaria. Ao invés, pousou a mão sobre o livro ao
lado e respondeu, plácida:
— Eu li.
Christine marchou até a cama e pegou o livro nas mãos.
— A Ilíada? O que pretende, lendo essas coisas? Morrer de
tédio?
— Esse é um dos livros mais excitantes que achei na biblioteca
de Alexander.
— Alexander precisa urgentemente de livros novos. — Christine
jogou o livro sobre a cama.
Christine tinha razão. Wilhelmine nem comentou, mas a Odisseia
estava em sua gaveta, à espera da leitura.
Nessa hora Iulia bateu na porta, e um séquito de criadas entrou
trazendo o café da manhã. Wilhelmine saiu da cama e vestiu o
roupão, sentando-se com Christine no sofá enquanto o café era
servido.
Quando finalmente ficaram a sós, Christine disse:
— Quando ia me contar sobre Alexander?
Wilhelmine não entendeu.
— Contar o quê?
— Que estão felizes. Mais do que felizes, até. — Christine
mordeu os lábios, suprimindo uma risada. — Não sei que tipo de
feitiço lançou sobre aquele homem, mas ele parece outra pessoa.
Dia desses o vi sorrir. Achei que estivesse vendo coisas.
Wilhelmine abaixou os olhos, mirando o líquido cor de âmbar da
xícara.
— Nós nos entendemos bem.
— Muito bem, pelo jeito. — Christine levou a xícara à boca,
olhando para a prima por cima da borda.
Wilhelmine riu.
— Sim, nós nos damos muito bem.
Christine pousou o pires sobre a mesa e limpou a garganta.
— Winy, sei que agi mal com você. Acabei insinuando que ele
tinha uma amante, sem pensar que isso poderia ter trazido um
problema para vocês. Mil perdões, prima querida. Muita coisa
mudou do verão passado para cá. Não tinha a intenção de fazer mal
algum. É só que Elsa…
— Ele tinha uma amante — Wilhelmine respondeu, tranquila,
interrompendo Christine. — O que me disse era verdade, mas não a
verdade inteira. Alexander foi fiel à Elsa. Eles só não se davam bem.
Frente à surpresa da prima, Wilhelmine pousou a mão sobre a
dela.
— Não pense mais nisso.
— Não entendo como Elsa passou a detestá-lo com tanta força
— Christine resmungou. — Acreditei em suas cartas. Por isso fui
contra o seu casamento.
Wilhelmine assentiu. Então se levantou e andou até a
escrivaninha.
— Já mostrei para você essa preciosidade? — Ela mostrou o
móvel, que chegava a brilhar por causa do verniz.
— Preciosidade? Parece uma escrivaninha.
— Não é uma escrivaninha comum — Wilhelmine disse abrindo
uma das gavetas até a metade. Então fez o mesmo com a segunda,
apenas um centímetro, e depois o mesmo com a terceira. As duas
ouviram um clic, e a quarta gaveta abriu-se como se tivesse sido
impulsionada por uma mola.
Christine arregalou os olhos.
— O que é isso?
— Mandei fazer. Ela é cheia de dispositivos assim. Nada nesse
móvel se abre com facilidade. — Ela tirou de dentro da gaveta dois
maços de cartas e entregou um deles para Christine.
— O que é isso?
— Cartas de Elsa. — Wilhelmine sentou-se ao lado dela. —
Cartas que você escreveu para ela, cartas que a irmã dela
escreveu.
Christine abriu o primeiro maço. Leu uma por uma,
emocionando-se toda vez que encontrava algo que reconhecia ou
se lembrava. Por fim fechou cada uma delas, o choro entalado na
garganta.
— Que lindas, Winy. — Ela olhou para o segundo maço nas
mãos da prima. — Sobre o que são essas outras?
Wilhelmine hesitou em mostrá-las. Aquelas eram muito mais
íntimas e bastante sensuais. Mas Christine sempre foi amiga e
confidente de Elsa. Tinha mais direito em lê-las do que ela.
— Essas não são cartas comuns. São cartas íntimas que nunca
foram enviadas. Elsa arrumou um jeito de colocar seus sentimentos
para fora em papel, como faço em meus diários.
— Cartas íntimas?
Wilhelmine esticou o maço até Christine.
— Achei-as dentro da escrivaninha antiga que pertencia a Elsa.
Não tinha a intenção de ser desrespeitosa, mas fui vencida pela
curiosidade.
— Eram para Alexander? — Christine perguntou, com uma leve
sensação de que já sabia a resposta.
— Leia — Wilhelmine a incentivou.
Christine abriu a primeira, os olhos passando pelas linhas cada
vez mais rápidos.
A cada linha lida, mais sua boca entreabria.
— Santa Maria mãe de Deus — Christine murmurou. — Eu não
fazia ideia desse…
— Furor? — Wilhelmine perguntou.
— Sim… Elsa não estava apenas apaixonada, Winy… Ela
estava loucamente apaixonada quando escreveu isso. Parecia em
chamas!
Wilhelmine fez que sim.
— Você as mostrou para Alexander?
A duquesa balançou a cabeça fazendo que não.
Christine olhou para as cartas, então para a prima. Em seguida
juntou-as, devolvendo-as em um maço, como as recebeu.
Wilhelmine deu a ela tempo para que a informação se assentasse.
Ela também precisou de um tempo para entender tudo.
— Winy?
— Sim, Christine.
Elas se entreolharam.
— Você notou que o nome de Alexander não aparece em
nenhuma delas?
Wilhelmine fez que sim.
A constatação chegou de vez, varrendo todas as certezas de
Christine. Em nenhuma delas havia o nome de Alexander. O
motivo? Não era por Alexander que Elsa estava apaixonada.
— Eu não sabia — Christine murmurou.
— Acho que ninguém sabia.
— Quem era o rapaz?
— Alexander não sabe. Mas afirma que o homem nunca a
procurou. Segundo ele, chegou a pedir que seus funcionários
observassem as correspondências que chegavam e saíam, mas
Elsa só enviava e recebia cartas da família. Seja lá quem ela amou,
esqueceu-a.
Christine abriu a boca para dizer algo, então pausou. Como não
costumava segurar a língua, disse assim mesmo:
— Acha que o filho que ela estava esperando…
Wilhelmine balançou a cabeça que não.
— Elsa e Alexander já estavam casados há três meses quando
ela engravidou.
Christine olhou para a prima, pensativa.
— Isso é tão estranho. Elsa não parecia estar apaixonada por
ninguém.
— Não é fácil ver quando a pessoa não quer mostrar —
Wilhelmine respondeu.
Christine olhou-a, triste.
— Eu disse que ela tinha definhado por amor, não disse?
Wilhelmine balançou a cabeça que sim. Só não tinha sido por
causa de Alexander.
As duas voltaram a tomar o café.
— Nem mesmo livros a pobrezinha tinha — Christine exalou,
triste, olhando para a chatice de livro que Wilhelmine estava lendo.
— Como aguenta ler aquilo, Winy? Nunca li nada tão enfadonho na
vida.
Wilhelmine precisou concordar. Já lera coisas mais
interessantes.
— Homero assumia que seus leitores conheceriam todos
aqueles mitos! Nem mesmo os motivos românticos por trás daquela
guerra bizarra são explicados. É só guerra!
— Foi exatamente por isso que o escolhi — Wilhelmine
respondeu, absorta em esfarelar o pão no prato. — É um poema
bélico. Passei a tomar gosto pela coisa. — Ela ergueu brevemente
os olhos para encarar a prima: — Por algum motivo ando me
interessando bastante por estratégias e jogos mentais.
Christine fez uma careta.
— Meu único interesse seria conhecer a história romântica por
trás de tudo — Christine falou. — Helena foi sequestrada pelo
príncipe de Tróia ou fugiu com ele?
— Não foi rapto — Wilhelmine opinou.
Christine arregalou os olhos.
— Acha que ela fugiu com Páris por amor?
— Nem rapto, nem fuga — Wilhelmine colocou um pedaço de
pão na boca. — Corações partidos não provocam guerras. O motivo
da guerra de Tróia foi outro.
— Bem, Homero discordava de você, porque gastou todo o seu
grego escrevendo vinte e sete mil versos sobre isso.
Wilhelmine soltou uma risada. Não iria discutir com Christine
sobre os motivos da guerra de Tróia; nem ela mesma sabia por que
começara a ler aquilo. Precisava confessar que a história de Helena,
por algum motivo, reverberava nela. Mas era aquele jogo de xadrez
disputado pelos deuses do Olimpo, milhares de anos atrás, que
lembrava vagamente os tempos perigosos pelos quais a Europa
estava passando. E se Wilhelmine sabia algo sobre motivações
humanas, era que elas jamais mudavam — e sempre se repetiam.
— Aliás, a Odisseia me enerva. — Christine enfiou um bolinho
na boca, limpando as pontas dos dedos no guardanapo. — Quem
levaria dez anos para achar o caminho de volta para casa?
Wilhelmine riu.
— Um homem.
As duas caíram na risada.
— Ah, Winy. — Christine pousou a mão sobre a da prima. —
Estou tão feliz que está melhor. — Wilhelmine sentiu o polegar da
prima deslizar sobre seus dedos. — Não sabe como a situação me
entristeceu. Ao mesmo tempo, meu coração fica aliviado por saber
que estava aqui para te apoiar quando… Você sabe.
Ninguém ao redor conseguia falar a palavra — ou achar uma
metáfora satisfatória para a perda que Wilhelmine sofreu. A própria
palavra bebê era evitada. Ela nunca entendeu por que nem mesmo
a palavra gravidez era proferida naturalmente entre mulheres.
Mulheres estavam indispostas. Precisavam “se recolher”.
O silêncio ao redor do assunto fazia o evento doer mais. Quase
perguntou para Christine se ela também estranhava aquilo, mas
mudou de ideia. Apenas apertou seus dedos e assentiu. Tinha
ficado aliviada por não passar por aquilo sozinha, mas recorria ao
diário com frequência. Sem metáforas, sem ocultação de verbos.
Ela escrevia cada sentimento que girava por ela — e nunca deixaria
de questionar os porquês.
— Estava pensando — Christine continuou. — Quando achar
que é a hora, o que acha de darmos um baile? Abrir finalmente as
portas de Solitude para a sociedade, deixar entrar um pouco de
música e cor aqui dentro?
A ideia de Christine pegou Wilhelmine de surpresa. Era cedo
para falar em festejos, mas se viu estranhamente atraída pela ideia.
Nunca foi uma pessoa triste e não gostaria de se tornar uma. Era
nova demais para ser feliz apenas quando seu marido estava
presente, e talvez fosse mesmo hora de procurar companhias. Não
conhecia ninguém no Sul, e Christine em algum momento partiria.
Por muito tempo escondeu sua tristeza do olhar sondador da
prima, mas dessa vez sorriu com vontade.
— Acho uma ótima ideia.
Christine soltou um gritinho, batendo palmas.
— Podemos convidar todos os nobres da região! Seria uma
ótima maneira de apresentar você a eles. Também podemos chamar
algumas pessoas de Schaumburg-Lippe, o que acha?
Wilhelmine apertou os olhos, fazendo que não.
— Talvez seja melhor deixar Schaumburg-Lippe de lado, dessa
vez.
— Ah — Christine amuou. — Que pena. O conde de Hagen
gosta tanto do duque…
Christine esticou como podia a palavra “tanto”.
— Podemos fazer uma exceção para o conde — Wilhelmine
sugeriu, vendo o rosto da prima se iluminar.
— Ele adorará ser convidado, aposto! E sei por que não quer
chamar aquelas pessoas horrorosas que a desmoralizaram no
passado — Christine suspirou. — Está tentando manter longe os
mexeriqueiros, eu entendo. Mas posso falar o que eu faria? Eu
esfregaria na cara deles essa felicidade que eles não terão em mil
anos. E esse castelo também. Eu os faria morrer de inveja!
Wilhelmine preferia ignorar Christine em alguns momentos, e
aquele era um deles.
— Acha que meus pais viriam? — ela perguntou ao invés. —
Não sei se a viagem faria bem a eles.
— Mesmo se não vierem, ficarão felizes de saber que está
dando uma festa, Winy.
Wilhelmine fez que sim. Isso os alegraria.
— Acha que Alexander gostará da ideia? — Christine sondou. —
Ele não é muito “festivo”.
— Ele adorará a idéia — Wilhelmine garantiu. — Está fazendo
tudo para me ver feliz outra vez.
Christine prensou a boca, segurando um sorriso.
— Sei que não devo me meter nos assuntos do ducado, mas
existem coisas que são um desafio à compostura. — Ela chegou
mais perto. — Acabei ouvindo algumas conversas nos corredores.
Juro, Winy, não foi minha culpa, os resmungos do secretário de
Alexander são discretos como tiros de canhões. Seus sussurros?
Vazam as paredes e chegam ao outro lado do cômodo!
Wilhelmine abaixou o pão, atenta. Christine continuou:
— Alexander está negando todos os convites de treinamento que
recebe. Quando a solicitação vem de condados e ducados, ele nem
mesmo explica o porquê da negativa.
O peito de Wilhelmine aqueceu por um sentimento bom. Ela
inteira se sentia quente de amor.
— Ele não quer mais sair de perto de você. — Christine deu um
sorrisinho. — O que é fofo, na verdade. E inédito.
Wilhelmine suspirou, feliz. Chegou a questionar por que certos
infortúnios aconteciam, e o que fizera para merecê-los. Mas aquele,
em particular, veio para trazer seu marido de volta, e por isso ela só
conseguia ser grata.
24

W
ajuda de Christine. A prima conhecia a complexa organização
exigida pelas festividades, e cada detalhe — das flores às velas, da
comida aos mínimos pormenores relativos a convites, confirmações
e regras de etiqueta — foi feito porque Christine estava por trás,
comandando tudo.
Como a gravidez não havia sido anunciada, o preto fora
descartado. Para a aristocracia, Wilhelmine era uma jovem vibrante
e educada, recém-chegada ao Sul, que finalmente seria
apresentada à sociedade.
Faltando apenas um dia para o grande acontecimento, os
ânimos estavam elevados e os nervos, corroídos. Um plantel de
servos corria para lá e para cá, cruzando os corredores com vasos,
flores, espanando a mobília, lustrando a prataria. Carroças
carregadas de mantimentos e bebidas iam e vinham pela longa
estrada que ligava o castelo a Stuttgart. A neve fora escassa
naquele ano, o que facilitou o abastecimento para a festa.
Wilhelmine e Christine caminhavam pelo salão de bailes,
conferindo os últimos arranjos. Tudo ao redor brilhava. Os espelhos
estavam impecáveis, o chão reluzia, e cada peça da decoração
havia sido polida até poderem ver seus reflexos nos objetos.
— Winy, é tudo tão lindo. Tudo ao redor parece incrustado de
ouro!
— Porque é — Wilhelmine comentou, ajeitando um vaso no
lugar. Ela mesma às vezes se assustava com a opulência de
Solitude. Até hoje tinha medo de esbarrar o cotovelo em alguma
peça ou acabar tirando sem querer uma lasca do revestimento
dourado que recobria quase tudo.
— Maravilhoso, perfeito. — Christine girou no salão vazio,
animadíssima. — Consegue se ver dando muitas festas aqui? — ela
perguntou, cheia de animação. — Vestindo os vestidos mais
fabulosos, girando nos braços do seu marido durante uma valsa,
escolhendo as melhores filhas da nobreza para o seu herdeiro?!
Wilhelmine acompanhou a animação exuberante de Christine,
pensativa. Infelizmente, nenhuma imagem veio à cabeça.
— Acho que ainda não absorvi completamente a ideia de que
estou dando um baile — ela respondeu. — Na verdade, estou um
pouco tensa. — Wilhelmine nunca tinha dado um baile antes.
Aquela era a sua inauguração como anfitriã. — Não estou
acostumada a toda essa pompa e ostentação.
Christine fez um gesto de desmerecimento com as mãos.
— Oras, siga algumas regras simples e dará tudo certo.
— E que regras seriam essas? — Wilhelmine perguntou.
— Esteja sempre com o vestido mais bonito da noite. Jamais
abra a boca quando não dominar o assunto. Quando desafiada ou
aborrecida, erga a sobrancelha. E sempre, sempre — Christine
enfatizou — considere-se a pessoa mais inteligente do salão.
Provavelmente, será. É infalível.
Wilhelmine riu.
— Guardarei seus conselhos, Christine.
— Esse é o segredo do sucesso social. Aliás, esqueci de
comentar: as colunas voltaram a falar bem de você em
Schaumburg-Lippe. Sua reputação está restaurada. Mais do que
isso: ela parece ter sido lustrada. Brilhando e resplandecendo mais
que prata polida. Pode aprontar mais um escândalo. — Ela deu um
tapinha na mão de Wilhelmine. — Já estamos entediados outra vez.
Wilhelmine fez força para não rir.
— Você é uma duquesa, agora. — Christine fez uma careta
antipática, como se essa fosse a melhor vingança de Wilhelmine. —
Nós, quase nada. Se amanhã desaparecêssemos do mapa, quem
notaria? Ninguém. Talvez, um dia, alguém se perguntasse: "E
aquele escândalo, hein? Onde foi mesmo que aconteceu?".
Wilhelmine riu, envolvendo a prima em um abraço. Não era de
grandes declarações de afeto, mas sentiu vontade de expressar seu
carinho pela sua amiga mais leal. Wilhelmine verdadeiramente a
amava. A vida ao lado de Christine nem sempre foi fácil, mas muito
divertida.
Christine a abraçou de volta, sem jeito. Expressões sentimentais
não combinavam muito com as duas. Elas rapidamente se soltaram.
— Obrigada — Wilhelmine murmurou, sincera.
— Oras, pare com isso. — Christine varreu o sentimentalismo
com um gesto de mãos. — Agradeça ao seu marido. Até os jornais
de fofoca sabem que mexer com ele é loucura. Todos esses anos
por aí treinando exércitos o transformaram em uma lenda. Ele é
considerado um herói, Winy. Onde ele vai, é saudado como líder.
Enquanto Christine tecia elogios a Alexander, Wilhelmine
conseguiu finalmente ver-se no salão. E na imagem via-se nos
braços do marido. Sorriu ao pensar no peito cheio de medalhas e
nos olhos amorosos e afogueados. A sensação de segurança que
ele passava era quente, sólida, e seu amor por ele cada vez maior.
Estava perdidamente apaixonada pelo homem com quem se casou.
Louca e perdidamente apaixonada.
Seu devaneio foi interrompido pela última fala de Christine:
— … se esse homem resolvesse dar um golpe de estado sobre
qualquer regente, exércitos o apoiariam. Pode anotar.
A imagem feliz deu lugar a outra. Por um segundo — apenas um
breve instante — Wilhelmine sentiu a força das palavras de
Christine. Ela nunca tinha pensado no poder do marido daquela
forma. Ou mesmo compreendido a extensão de seu alcance.
E se…
— Acha que o conde de Hagen chegará hoje? — Christine
interrompeu seu devaneio. — Sua confirmação chegou semanas
atrás. Acha que ele deve estar perto?
— Não sei — Wilhelmine respondeu, curiosa pelo interesse cada
vez maior de Christine pelo conde. — Mas estamos aguardando
para hoje a chegada de quem vem do Norte.
Christine suprimiu um sorriso.
— Conte-me sobre ele — Wilhelmine a incentivou. — Ele ainda
leva queijo de cabra a Bückeburg?
— Hm… — Christine a olhou suspeita. — Por que acho que
estou sentindo um leve sarcasmo em sua voz? Queijos de cabra
podem até feder, mas saiba que são deliciosos depois que seu
paladar se acostuma.
— Tenho certeza que são — Wilhelmine respondeu. —
Especialmente quando são feitos com amor e entregues tão frescos.
— Cuidado com o que diz, Wilhelmine. Ele pode estar trazendo
um carregamento de queijo do Norte.
Wilhelmine soltou uma risada alta.
— Tomaremos cuidado para estacionar sua carruagem bem
longe das outras, caso o cheiro esteja forte demais.
Foi a vez de Christine gargalhar.
— Como pode um jovem tão especial ter ficado solteiro por tanto
tempo? — a prima se perguntou com os olhinhos brilhando. — Tão
dinâmico…. Um ótimo partido. Que ninguém tenha visto isso nele
me surpreende.
— Acho que existem dessas coisas — Wilhelmine suspirou,
enlaçando o braço de Christine. — As pessoas não enxergam direito
certas coisas quando há muita emoção envolvida. Então um dia a
névoa se dissipa e as vemos…
— Você fala coisas engraçadas, sabia? — Christine fez uma
careta. — Quase arqueei minha sobrancelha para você, agora.
Wilhelmine a olhou, rindo. Estava feliz que estivessem ali, juntas.
— Sentirei sua falta, Christine.
Christine suspirou.
— Não sei o que Phillip quer falar de tão urgente comigo. Não
queria ter que partir tão rápido. Mal terei tempo para descansar
depois do baile!
Wilhelmine a soltou.
— Confesso que ficarei mais tranquila com você de olho em
Phillip. Ando aborrecida com suas decisões. Será bom você estar lá
para colocar juízo na cabeça dele.
— Phillip não me ouve. Seria preciso acontecer algo muito
extraordinário para ele me ouvir.
A entrada do mordomo fez a conversa cessar. O criado
caminhou até elas, equilibrando uma pequena bandeja na mão.
— Correspondência para milady. — Ele inclinou-se, deferente.
Wilhelmine pegou a carta lacrada sobre a bandeja de prata.
Haviam recebido todas as confirmações, mas talvez estivesse
faltando alguma. Ao girar o envelope, viu que era uma mensagem
de seu pai.
Ela pediu licença a Christine e caminhou até o quarto, condoída
por não ter a chance de vê-lo. Ele não tinha forças para aguentar a
viagem até o Sul, por isso planejava viajar em breve para revê-los.
Só quando fechou a porta, quebrou o lacre. Desdobrando o
papel, começou a ler as palavras escritas em letra cuidadosa antes
mesmo que se sentasse.
Foi bom ter se sentado. Ao terminar de ler a carta do pai, sentia
o joelho tão fraco que não conseguiria sustentar-se em pé.
Maldito.
25

A , ,
Wilhelmine invadiu o escritório. Não se importou em encontrar
Alexander entre Herr Wallinger e seus dois outros secretários; o
duque desconfiou que nem os notara.
Alexander abaixou o monóculo e ergueu as vistas dos
documentos. Ela marchou irritada até a mesa, segurando o vestido
com uma mão e chacoalhando uma carta na outra. Suas bochechas
estavam em fogo.
— Ele fez, Alexander! — ela explodiu. — Ele dispensou o
exército!
Os secretários deslizaram os olhos da duquesa até o duque.
— Quem fez o quê, querida?
— Phillip! — Wilhelmine pressionou os lábios, como se
precisasse segurar uma imprecação que provavelmente feriria a
sensibilidade de seus generais. — Aquele Trottel dispensou o
exército! Ele realmente fez!
Alexander pediu em voz baixa que seus secretários lhes dessem
licença. Dois deles se levantaram, mas Herr Wallinger hesitou.
— Vossa Graça. — Ele olhou para o duque.
Alexander sabia o que o olhar de Wallinger indicava. Phillip era o
soberano de um principado irrelevante, mas que detinha soberania
sobre suas ações. O ducado de Württemberg não tinha nada a ver
com aquilo. Alexander não precisava do secretário para entender
isso. O que Herr Wallinger não entendia era a importância que isso
tinha para a duquesa, e que a duquesa era a coisa mais importante
para Alexander.
Assim que eles saíram, Alexander deu a volta na mesa e
encontrou Wilhelmine no meio do aposento. Ela estava quente,
agitada, inquieta. Ele traçou uma linha com o polegar pela face dela,
aguardando que ela conseguisse voltar a falar. Ele via que ela lutava
para não despejar uma tonelada de impropérios sobre o primo.
Como era uma dama, apenas entregou a carta ao marido.
Ele passou os olhos pelas linhas, sabendo o que estava escrito
ali. A carta do pai contava sobre a recente dissolução do exército e
sobre rumores que começaram a correr pelas fronteiras. Vilarejos
que faziam limites com outros reinos sempre sofriam antes as
ameaças de anexações.
Alexander dobrou a carta ao terminar de ler.
— Um mau movimento — ele avaliou, sucinto. — Um que já
sabíamos que aconteceria.
— Você precisa falar com Phillip!
— Winy…
Alexander já tinha falado com ele, e mais de uma vez.
— O que acontecerá agora? De onde virá a ofensiva? — ela
perguntou, nervosa. — Acha que Ernesto Augusto não passará por
cima de Hoefsted para pôr as mãos nas minas? Meu pai morrerá de
infelicidade! Meu irmão perderá o viscondado!
Wilhelmine andava de um lado a outro, destrinchando cada uma
das consequências que a decisão de Phillip traria. Ela parou na
frente do marido e falou, séria:
— Precisamos cancelar o baile.
— Não podemos cancelar o baile. Até o rei confirmou, querida.
— Quem está ligando para o rei? É a vida do meu pai que está
em jogo!
— Está pensando muito além, Wilhelmine — Alexander rebateu,
calmo. — Ninguém sabe se haverá invasão, se avançarão sobre
Hoefsted, se alguém tomará as terras de seu pai. Você não tem
como saber.
— Phillip está aprontando alguma coisa. Eu sinto.
— Venha cá. — Ele tentou puxá-la, mas ela o afastou.
— Não está mais dando importância à questão — ela murmurou.
— Por quê?
Talvez Alexander realmente não estivesse. Ele tentou por um
tempo, mas precisava finalmente dar um passo para trás e deixar
que o que tivesse que acontecer, acontecesse. Wallinger tinha
razão: seu papel deveria ser apenas de conselheiro. Não podia
fazer nada.
— Tudo que podemos fazer agora é usar a diplomacia — ele
disse. — Amanhã, durante o baile, conversaremos com algumas
pessoas. Sondaremos a opinião delas. Talvez estejamos nos
preocupando à toa.
Wilhelmine franziu o rosto em horror.
— Como pode dizer isso? Você foi até lá duas vezes para alertá-
lo! Você sabe que o risco é real.
— Não posso fazer mais do que já fiz, Wilhelmine.
Wilhelmine continuava a balançar a cabeça que não. Não, não,
não.
Então ela parou no lugar e olhou para Alexander como se não
acreditasse na ideia que teve.
— Você é um herói para os exércitos ao redor — ela disse,
encantada pela própria idéia que teve. Alexander franziu a testa. —
Pode pedir que ameacem Phillip! Que inventem algum motivo para
assustá-lo! Você mesmo disse que só um susto o faria cair em si!
— Wilhelmine, por favor. — Alexander massageou a testa.
— Você conhece as tropas de Hesse-Castel, não conhece? —
ela perguntou. — Ou as da Prússia Ocidental? Eles não marchariam
até Bückeburg por você?
— Ouça o que está falando. — Ele parou de alisar os vincos de
cansaço. — O que está sugerindo? Que eu ataque Schaumburg-
Lippe?
— Sim. — Ela chacoalhou a cabeça. — E não.
Eles se encararam. Ela, estoica. Ele, confuso.
— Amor — ele disse, condescendente. — Por que motivos eu
faria isso?
— Assustá-los! Mostrar que pode ser deposto com um sopro! A
história está cansada de mostrar que reinos caem por muito menos!
Veja a tomada do trono da Rússia! Ou o que aconteceu na
Revolução Gloriosa da Inglaterra!
Alexander suspirou, paciente.
— Em todas essas ocasiões existiam interesses maiores por
trás. Políticos, econômicos. Não é tão simples como parece.
Aquilo irritou profundamente sua esposa.
— Acho que se esqueceu com quem se casou, Alexander. —
Wilhelmine endureceu o tom. Ela ergueu o dedo, quase encostando
em seu peito. — Amanhã, quando um dos reinos vizinhos derrubar
os portões de Bückeburg e arrancar Phillip do trono, contará a
história que desejar. Que livrou o principado de um indolente. Que
“forças econômicas” ou “tumultos sociais” os levaram a agir. Quem
conta a história é quem vence, o resto só engole o que é falado!
Wilhelmine se afastou dele. Ela entendia o jogo que jogavam.
Sabia que qualquer narrativa poderia ser criada para justificar
conflitos. Alexander não fazia ideia, até ali, como ela estava
familiarizada com as mentiras que incentivavam, mantinham e
cessavam batalhas.
Mesmo assim, estava fora de sua alçada se intrometer em
assuntos de um reino distante.
Para fazê-la entender o absurdo que estava sugerindo, ele falou:
— Digamos que eu mobilizasse um exército até lá — o que não
farei, para deixar claro. Sem motivo concreto. Sem um intuito por
trás. Qualquer um dos vizinhos do principado se sentiria ameaçado
e poderia tomar partido. Teríamos uma guerra desnecessária
causada por motivo algum!
Wilhelmine fez rapidamente que sim. Tinha os olhos fechados,
mas estava atenta a cada palavra. Ela entendeu que sua ideia fora
uma tolice. Um ato de desespero frente ao medo de um ataque.
— Sem um motivo que convencesse o resto da região, pareceria
que o ataque teve interesses econômicos. Ninguém quer ser o
próximo. Poderíamos começar uma guerra.
Wilhelmine sabia que ele tinha razão, mas ainda assim, relutava
em aceitar.
— Os motivos são criados, Alexander — falou. — O que estou
pedindo é que me ajude a pensar em um. Um que assuste Phillip.
Que mantenha, ao mesmo tempo, os reinos vizinhos afastados. Um
que não pareça econômico. Que seja plausível, heróico, necessário!
Você é o articulista, me ajude!
Alexander fez que não.
— Está deixando a emoção falar mais alto, Winy. Não está
vendo as coisas com clareza.
Ele se aproximou dela quando ela afundou o rosto nas mãos. Ele
a entendia, mas o que ela estava propondo era absurdo. Que
motivos teria para ameaçar um amigo com um exército?
— Entendo o que quer. — Ele a puxou com ternura. Ela deixou
que ele a envolvesse e acalentasse, porque estava emocionalmente
exausta. — Guerras são planejadas com muita antecedência,
Süsse. Esse tipo de situação exige dezenas de cabeças, centenas
de horas de debates com generais experientes em táticas de guerra.
Mas eu entendo você. — Ele beijou seu cabelo. — Quando estamos
emocionalmente envolvidos, não vemos as coisas direito.
Ele a afastou para olhá-la.
— “A emoção nos coloca em encrenca”, lembra-se? Aprendi isso
com uma dama fascinante que conheci certa vez, no Norte.
Ao contrário do que esperava, Alexander não encontrou um rosto
banhado em lágrimas, nem um sorriso de agradecimento pelas
palavras.
O rosto da esposa era uma pedra.
— Não acontecerá nada de ruim, acredite em mim — ele disse.
— Você parece muito seguro disso.
— Eu estou.
Ela apertou os olhos. Onde estava o homem que visitou mais de
uma vez o principado tentando fazer Phillip mudar de opinião?
Ele se inclinou para beijá-la, mas ela afastou sua boca com o
dedo.
— O que está sabendo que eu não sei?
Alexander desistiu de tentar se aproximar. Não arrancaria nada
dela naquele momento.
— Recebi uma mensagem de Hesse.
Wilhelmine pousou a mão sobre a barriga, como se algo pesado
se remexesse ali dentro. O eleitorado de Hesse era vizinho do
Principado. Os herdeiros, velhos conhecidos.
— Phillip está assegurando a paz com diplomacia.
— Diplomacia? — Wilhelmine questionou devagar, como se mil
pensamentos girassem por sua cabeça. — O que quer dizer,
Alexander?
Alexander sabia que não deveria contar o que ouviu, mas se isso
servisse para acalmar o coração da esposa, falaria.
— Precisa me prometer que manterá o assunto entre nós. É
importante que mantenha segredo sobre isso.
Wilhelmine não se moveu. Seu silêncio dependeria do que ele
dissesse.
— Phillip acertou o casamento de Christine com um dos filhos de
Guilherme II. Ele arrumou uma maneira de garantir aliados.
Uma onda de choque varreu as feições de Wilhelmine. Seu peito
começou a subir e descer, e suas mãos procuraram o encosto de
uma cadeira. Por longos segundos ela manteve os olhos fixos em
um ponto do cômodo, vagos de vida.
Então ela finalmente perguntou:
— Qual dos filhos?
— O mais velho, Gustav — Alexander respondeu, estranhando
as reações dela. — Isso unirá dois reinos. Será um bom casamento
para Christine.
Ao olhar para Wilhelmine, Alexander viu que estava pálida.
Como se todo o sangue tivesse abandonado seu corpo.
Mas quando ela o olhou de volta, o sangue já havia retornado e
injetado seus olhos. Eles estavam vermelhos de puro ódio.
— Phillip não tem esse direito.
Alexander não discutiria com ela sobre direitos. Ele mesmo
achou a solução satisfatória. O casamento traria prestígio a
Christine. Resguardaria Schaumburg-Lippe, de certa forma. Não
conseguia ver a falha do projeto.
— Christine não gosta do príncipe — ela disse devagar. — E eu
lhe garanto, Alexander, que o príncipe não gosta dela.
— Eles podem vir a se gostar. Aconteceu entre a gente, não
aconteceu? — Ele tentou se aproximar, mas ela o parou antes que
ele chegasse perto. Um abismo os dividia. Já não era mais ela
quem o afastava, era algo que ele não sabia nomear. A frieza dela
era glacial.
— Winy, amor… Talvez seja a hora de cortar os laços com o
Norte. Essa é a sua casa, agora. Suas terras. Precisa se concentrar
na sua vida e no que temos aqui.
Ela deu um passo para trás.
— Não pode salvar todo mundo — ele insistiu. — Precisa se
concentrar em você.
A resposta de Wilhelmine veio curta e direta:
— Olhe quem está me dando esse conselho.
Alexander podia ouvir os dentes da esposa rangerem. Seu rosto
inteiro estava transformado.
— Phillip não tem o direito de fazer isso com Christine — ela
rosnou. — E definitivamente não pode fazer isso com o meu pai.
— Ele pode, querida. Ele é o regente.
Wilhelmine balançou a cabeça que não.
— Não pode. Não depois de tudo que fiz por ele.
Alexander a viu pegar a carta e dar meia-volta. Ela saiu como
entrou, batendo portas, e o duque se perguntou o que não estava
entendendo naquela história.

W
desconhecida. Ela aquecia seus membros, incendiava sua face e
queimava suas entranhas. Phillip e ela tinham assuntos mal
resolvidos no passado, e chegara a hora de acertá-los.
O plano era arrogantemente simples. Não havia sido elaborado
em conjunto com dez cabeças brilhantes, nem sido discutido horas
a fio com burocratas insensíveis. Fora arquitetado de rompante por
uma mulher no auge do ódio.
O plano mataria os dez burocratas do coração, caso o ouvissem,
mas chegou tão permeado de certezas que assustou Wilhelmine.
— Iulia — ela disse ao passar pela camareira no corredor. —
Venha comigo.
Iulia a seguiu com pressa.
Wilhelmine invadiu o próprio quarto, caminhou até a escrivaninha
e retirou de uma das gavetas um convite para o baile. Tirando a
caneta do suporte, molhou-a no tinteiro e rabiscou algumas
palavras.
Aquilo era uma loucura, mas a do tipo certo. Tinha aprendido
uma ou duas coisas durante os dois anos em que passou
escondida, sofrendo as consequências de um escândalo que não
provocou. Para começar, tinha aprendido que era mais forte que
qualquer escândalo e suportaria as consequências de um segundo.
A outra coisa que aprendeu era ainda mais interessante.
Escândalos eram fenômenos curiosos. Mereciam, por seu poder
de mobilização, ser destrinchados. E foi isso que ela fez: naqueles
dois anos destrinchou tudo que aconteceu para aprender sobre sua
potência. Havia um lado bom em atrair para si todas as atenções
negativas? Ela aprendeu que sim. Os olhos do povo eram uma
distração eficiente. Tudo podia ser feito — ou deixado de ser feito —
se as atenções migrassem para determinados lugares e
determinadas épocas. Quem dominava a atenção, dominava a
situação.
Wilhelmine terminou de escrever o nome no envelope, pousou a
caneta no suporte e afundou o rosto entre as mãos. O que faria era
loucura, mas precisava ser feito.
Era o tipo de escândalo que derrubava peões, mas salvava o rei.
Não que se importasse com o rei, ela dobrou o papel e o enfiou
no envelope. Era com o tabuleiro que se preocupava.
— Entregue isso para o meu cocheiro e diga que espero total
sigilo.
Iulia pegou o envelope nas mãos. A criada não sabia ler direito,
mas reconheceu o nome escrito no envelope. Seus olhinhos se
arregalaram.
— M-milady, tem certeza que…
— Rápido — Wilhelmine ordenou, sem condições de explicar a
ninguém o que estava fazendo. — Esse convite deve chegar às
mãos dela ainda hoje.
Iulia saiu correndo do quarto, e só então Wilhelmine exalou.
Os dias de calmaria haviam acabado.
26

N , ,
vestida que Wilhelmine. Quando Alexander foi buscá-la no quarto
para que chegassem juntos ao baile, quase perdeu o ar. Ela estava
simplesmente deslumbrante. O vestido prateado tinha tantas pedras
bordadas que caía pesado sobre o corpo. Os ombros alvos estavam
descobertos, a manga era bufante, e o pescoço trazia as maiores
joias que a vasta coleção da família possuía.
— Está encantadora. — Alexander curvou-se para beijar sua
mão. Encantadora sequer começava a descrevê-la. Ela parecia uma
valquíria saída de uma saga lendária. Uma deusa perfeita. A rainha
de todas as rainhas.
Sua boca não chegou a tocar seus dedos; imensos anéis
impediram seus lábios de se aproximar.
— Obrigada.
O duque estava impressionado com a confiança que sua esposa
inspirava naquela noite. Aquela era sua mulher — e todos os dias
agradecia por isso —, mas, ao mesmo tempo, não era. Havia algo
diferente nela. Ela não era a jovem arqueira que o encantou nas
campinas de Bückeburg. Também não era a jovem apaixonada que
ria alto durante suas conversas e se derretia em seus braços entre
quatro paredes. Naquela noite, Wilhelmine era outra coisa. Uma
mulher absolutamente linda e assustadoramente segura, que
parecia saber que estava prestes a ascender ao panteão da
nobreza alemã.
O silêncio entre eles era mau sinal, e o estava inquietando.
— Ainda está chateada pelo assunto de ontem? — ele
perguntou.
Ela não respondeu. Virando-se para o corredor, começou a
andar. Ele que apressasse o passo para alcançá-la.
— Por que não abriu a porta ontem?
— Não quero falar disso agora.
Ele tinha tentado conversar com ela à noite, mas ela não o
atendeu. Ele a ouviu caminhar pelo quarto, preocupada. Sentia
muito que estivesse sofrendo, mas não podia fazer nada.
— Sei que a decisão de casar Christine com o herdeiro de Hesse
a aborreceu. Mas acredite, Winy. Christine achará a felicidade ao
lado do novo marido. Quando isso acontecer, você também ficará
em paz e verá que seus temores eram infundados.
Ela parou no lugar e o encarou, fria.
— Você pode saber de muitas coisas, Alexander, mas não sabe
de tudo.
— Conte-me o que não sei, então.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Peço apenas que me entenda.
— Eu sempre tento.
— Hoje precisará tentar com mais afinco.
Ele não sabia do que Wilhelmine estava falando, mas ela estava
tão bonita que se perdeu em pensamentos. Sentiu ciúmes. Ao
mesmo tempo em que se orgulhava dela e a queria ao seu lado,
queria escondê-la dos olhos do mundo. Queria-a apenas para si.
— Do que está falando, amor? — Ele se inclinou para beijá-la,
mas ela pousou a mão em seu peito. De maneira gentil, o manteve
à distância.
— Não importa o que aconteça essa noite, confie em mim.
As sobrancelhas do duque se apertaram.
— Confiar no quê?
— Você entenderá na hora certa — ela respondeu, adicionando
baixo: — Eu espero.
Alexander não gostou da resposta, mas as portas do salão se
abriram e um salão cheio de convidados surgiu adiante.

***
— W , ! — C
aproximou, voltando a vestir as luvas enquanto terminava de
mastigar. Ela e Wilhelmine não tinham tido tempo de conversar. Pela
última hora, o duque e a duquesa cumprimentaram uma pletora de
nobres, a maioria desconhecida. Havia conversado até mesmo com
a rainha, esposa de Guilherme I, que a chamou para um chá.
Christine levou as mãos ao peito, profundamente tocada.
— As cozinheiras de Bückeburg são garotas despreparadas
perto do seu chef.
— Eu sei — Wilhelmine respondeu com os olhos na paisagem
do lado de fora.
— Essas tortinhas derretem na boca quando encontram a língua
— a prima suspirou, lambendo os cantos dos lábios. — Uma festa
para os sentidos. O que tanto olha pela janela?
— Estou esperando a chegada de alguém.
— Está?
Wilhelmine olhou para a longa estrada que se estendia em linha
reta até Stuttgart. Àquela hora, ela estava completamente às
escuras. Apenas nos duzentos metros antes de chegar ao castelo,
archotes haviam sido acesos nos dois lados da estrada para
iluminá-la.
— Sabe o que dizem sobre a estrada que une Solitude até a
cidade? — Wilhelmine perguntou.
— Não, o quê? — Christine olhou pela janela.
— Dizem que ela foi feita assim para que o 6º duque pudesse
ver a duquesa se aproximando e tivesse tempo de dispensar as
amantes.
Christine franziu o rosto, pensando no comentário.
— Juro, Winy. As coisas que os homens fazem para as suas
amantes são assombrosas.
— Não são? — Wilhelmine comentou de maneira vaga, vendo
que ao longe uma carruagem se aproximava.
Wilhelmine se virou para o salão, alisando a barriga gelada.
Christine já tinha esquecido o assunto e tinha toda a sua atenção
voltada para o conde de Hagen. Ele conversava adiante com
Alexander e seus secretários. Miúdo, franzino e simpático, o conde
havia até mesmo conseguido arrancar um sorriso minúsculo de seu
marido.
— Ele não está elegante essa noite, Winy? — Christine suspirou,
apaixonada.
— Sim, está, querida.
— Olhe só para mim. — Ela soltou uma risadinha atrás do leque.
— Cá estou eu, tentando parecer um pombo para agradar um conde
criador de cabras. A condessa de Wuppertal ficaria orgulhosa.
A atenção de Wilhelmine não estava mais na conversa. A
sensação gelada havia se espalhado do estômago para os
membros. Seus dedos estavam gelados dentro da luva, e suas
pernas, um pouco fracas.
Mesmo assim, seu peito estava quente. Aquecido por
sentimentos complexos. Ela olhou para o marido, sabendo que ele
foi a coisa mais perfeita que lhe ocorreu na vida. Não conseguia
imaginar o coração comportando mais amor por ele.
Evitá-lo na noite passada fora um tormento, mas um gesto
cuidadosamente pensado. Não podia se dar ao luxo de ser distraída
por noções românticas, nem queria que seu amor atrapalhasse sua
completa devoção pelo pai e o carinho sem fim pela prima.
Alexander jamais concordaria com o seu plano. Portanto,
precisava ser mantido no escuro até que as engrenagens tivessem
começado a girar.
— Sua coluna também está perfeita, Winy — Christine
continuou. — Embora você tenha nascido naturalmente empinada.
Christine olhou para a direção em que a prima olhava.
— Quem está esperando, Wilhelmine?
Naquele exato momento, Rosalie Weber foi anunciada.
Assim que o nome da antiga amante do duque foi dito alto, todos
que a conheciam fizeram silêncio — e, pelo silêncio, todos sabiam
quem ela era. Quase que de imediato a alegria leve que circulava
pelo baile se transformou em algo sólido e pesado. Conversas
paralelas foram interrompidas. Corpos paralisaram.
Entre os paralisados estava Alexander. Ele tinha uma taça na
mão e os olhos de águia na entrada.
Mesmo com o coração aos saltos, Wilhelmine usou os últimos
segundos de paz para admirar o marido. Ele se elevava aos outros
homens e ela se orgulhava tanto dele. Sua figura digna trazia uma
energia potente ao cômodo. Suas medalhas eram prova de sua
bravura, entrega e determinação.
Sem contar sua beleza de roubar o ar. Amava seu rosto cortado
pelas linhas da experiência. A boca generosa, o nariz romano, os
ombros maciços que sempre preenchiam a farda. Ele parecia
autoritário e autoconfiante em excesso, mas só ela sabia que,
quando estavam sós, era perfeitamente seu.
Ela o amava tanto que se sentia nauseada.
Os olhos azuis do duque se viraram para ela. Sondavam tudo ao
mesmo tempo — a reação de todos, a chegada de Rosalie, o
silêncio constrangedor —, mas também ela. Sua antiga amante
estava no baile em que ele apresentava Wilhelmine à sociedade.
Como aquilo pôde acontecer?
— Quem é? — Christine perguntou, notando a comoção.
— O nome dela é Rosalie Weber — Wilhelmine respondeu
tranquila.
O nome não dizia nada a Christine, por isso Wilhelmine explicou:
— Essa é a antiga amante de Alexander.
O grito da prima fez algumas senhoras saltarem de susto.
— Ela é o quê?!
Rosalie era muito bonita, Wilhelmine achou. Ruiva, alta,
curvilínea. Tinha o tipo de beleza segura que vinha com a idade, e
placidez mesmo frente aos olhares desconfiados. Era uma mulher
que tinha se acostumado a chamar atenção de forma negativa, por
isso vestia-se para provocar mulheres e homens. Wilhelmine
duvidava que soubesse quem, exatamente, a convidara. Mas
admirava a coragem de comparecer.
— Que ousadia! — Christine murmurou, vermelha como uma
pimenta. — Como ousa invadir seu baile?
Wilhelmine sentia tudo dentro de si tremer. O coração, as
entranhas, os ossos que a seguravam em pé. O punhal da culpa
doía, enterrada em seu peito.
— Winy?
A voz masculina do marido fez Wilhelmine se virar.
— Preciso falar com você — ele disse sério. Seu rosto era uma
carranca petrificada.
Ele tocou seu cotovelo, querendo que ela o acompanhasse, mas
ela permaneceu onde estava — exatamente no centro da atenção
de todos.
— Preciso falar com você a sós — ele insistiu.
— Não sem antes me explicar o que quer — ela respondeu,
tranquila.
Alexander pegou ar. Então disse, calmo:
— Lembra-se da mulher sobre quem conversamos aquele dia na
campina?
Wilhelmine e ele trocaram olhares. Um amálgama de confusão,
incompreensão e raiva girava pelas feições de Alexander. Tudo em
sua postura mostrava que ele não sabia como sua ex-amante —
conhecida por toda a sociedade, mas jamais esperada em um
evento ducal — havia parado ali. Ele jamais a teria convidado.
Ninguém da sua confiança faria aquilo.
Ou faria?
A face de Wilhelmine trazia uma confusão de coisas diferentes.
Inocência, ingenuidade, compostura e dignidade.
— O que tem ela? — Wilhelmine perguntou.
O duque umedeceu os lábios, constrangido.
— Ela está aqui.
Wilhelmine e Alexander se encararam. Ela sentia os olhos de
todos voltando-se lentamente na direção deles.
Ela se virou com a face estóica para a entrada, fingindo olhar a
ruiva alta como se a estivesse vendo pela primeira vez. Os olhos da
mulher encontraram os seus, e por um único segundo as duas se
encararam.
— Pedirei a Herr Wallinger que a acompanhe até a porta —
Alexander disse baixo. — Não sei como ela entrou ou teve a
coragem de vir até aqui. — Ele ergueu os olhos até o salão,
abaixando mais o tom ao ver que eram observados. — Não se
preocupe, amor. Resolverei tudo com discrição.
Se não fosse pela intuição de que estava fazendo a coisa certa,
Wilhelmine teria desistido ali. Mas ela sabia, no fundo de sua alma,
que precisava fazer o que faria.
Ela se virou para Alexander cheia de fúria nos olhos. A essas
alturas, estava além da intimidação.
— Como pôde fazer isso comigo?! — disse, alto.
Não chegou a ser um grito, mas foi alto o suficiente para parar as
conversas paralelas, e varrer a cor da face do marido.
Wilhelmine afiou os olhos, afundando os punhos cerrados no
vestido.
— Como ousa permitir que ela venha até aqui?
Os olhos de Alexander se abriram em espanto.
— Não a convidei — ele se explicou. — E tenho certeza que
nenhum dos meus convidados a traria aqui. Pedirei que Herr
Wallinger…
— Por quê?!
Dessa vez, a voz saiu bem alta.
Alexander estava chocado.
— Não sei por que diabos ela está aqui — ele respondeu ríspido,
entre os dentes. — Acalme-se. O que está…
Os olhos de Wilhelmine caíram, como se pedissem em silêncio
perdão.
— Como pôde? — ela repetiu, dando um passo para trás sob o
olhar investigador do marido. A confusão de Alexander não o
permitia ver.
Veja, Alexander. Veja.
Uma sombra cruzou os olhos do marido. Efêmera, assustadora.
Pelo olhar que lançou à esposa, duvidou dos pontos que uniu. A
resposta estava diante dele. Ele só precisava ver.
Quando finalmente entendeu tudo, as feições dele se
transformaram. O estupor deu lugar à completa incredulidade.
Talvez em choque, o duque não conseguiu achar palavras
quando Wilhelmine sussurrou:
— Voce confia em mim?
Só Deus e ela sabiam que, quando ela falava, ele ouvia. Estava
estupefato, assombrado, perplexo, furioso — tudo isso e muito mais
—, mas ainda assim, ele a ouvia.
Ela tinha encontrado uma forma de realizar o impossível, mas
precisaria da ajuda dele. Se ele aceitasse, eles teriam alguma
chance. Para fazer o que estava fazendo, Wilhelmine precisava
estar inteiramente certa de seu amor. Não podia ter uma única
dúvida de que ele enfrentaria o mundo por ela.
Para quem nunca ouviu as três palavras do marido, confiava
bastante nele.
— Do que está falando, Wilhelmine? — ele precisava ter certeza.
— Confia? — ela repetiu a pergunta.
O olhar dela estava no dele, tão fundo que por um tempo ele não
conseguiu se mover. Todos ao redor olhavam para eles. Nem
mesmo os sons da orquestra ao fundo ouviam mais.
Alexander moveu a cabeça, fazendo discretamente que sim.
Os olhos dela encheram-se de água. Então ela ergueu a mão e
bateu a luva na face bonita do marido.
Um oh conjunto ressoou ao redor.
O impacto do tecido contra o rosto não chegou a marcá-lo, ou
mesmo doer. Mas causou a comoção necessária.
— Winy? — Christine gritou atrás dela. — O que está fazendo?
Wilhelmine olhou com o queixo erguido para Rosalie, que
observava estuporada a cena no centro do salão. Com a coluna
rígida e o queixo erguido, a duquesa voltou-se para Alexander. Os
olhos dele não chegavam a ser um ponto de interrogação completo.
Havia dúvida, claro — ela ficara insana? —, mas havia
decididamente bem mais espanto.
— Não venha atrás de mim — ela murmurou para ele, dura.
Então adicionou branda, um pouco mais baixo: — Não até amanhã.
Wilhelmine deu meia-volta e saiu arrastando a longa saia atrás
dela, causando o frenesi que planejara. Ela atravessou o grupo de
aristocratas a quem tinha acabado de ser apresentada como uma
seta, pronta a atropelar qualquer um que se colocasse em seu
caminho.
Christine correu atrás dela, sem fôlego.
— O que acabou de fazer, sua maluca? — a prima perguntou em
desespero, sem entender ou acreditar que Wilhelmine havia
estragado o próprio baile, batido a luva na cara do marido, na frente
de todos, e agora o abandonava.
Wilhelmine olhou para ela.
— Christine, junte o que puder, o mais rápido possível. — Sua
voz era firme, e seu tom, final. — Estamos partindo para
Schaumburg-Lippe.
27

O A
dependências da duquesa. Não precisou bater à porta, porque uma
comitiva saía do quarto carregando os baús já arrumados para a
viagem.
Ele precisou esperar um criado sair com o terceiro para
conseguir entrar. A duquesa estava terminando de vestir as luvas ao
lado de Iulia, que acabara de fechar sua bolsinha de mão.
— Milady. — Herr Wallinger se aproximou. — Sua Graça pediu
que eu viesse até aqui para…
Wilhelmine sequer olhou para ele.
— Onde ele está? — ela perguntou ajeitando o chapéu na frente
do espelho.
O secretário pigarreou.
— Sua Graça está lidando com a confusão que milady criou. Os
convidados estão em polvorosa.
Um canto da boca de Wilhelmine se ergueu.
— Preciso corrigi-lo, Herr Wallinger: criei apenas metade da
confusão. A outra foi criada por ele, quando instalou uma amante
nos arredores do castelo que um dia abrigaria sua família.
O secretário não devia estar acostumado a mulheres que
rebatiam suas frases, porque ficou da cor de um presunto. Ele alisou
a farda, carrancudo:
— Se conhece seu marido, sabe que…
— Sim, eu sei. — Ela ergueu os olhos, finalmente pronta. Iulia
colocou um xale sobre o seu ombro e plantou-se ao lado da patroa.
Olhando para a criada, Wilhelmine perguntou:
— Suas coisas estão prontas?
— Sim, senhora.
— Ótimo.
Herr Wallinger continuou:
— Sou testemunha de que Sua Graça rompeu com a senhorita
Rosalie anos atrás. Antes mesmo do primeiro casamento.
— Foi o que ele me disse — ela respondeu tranquila.
— Se sabe disso, poderíamos retornar ao baile — o homem
disse entre os dentes, irritado pela cena que presenciou. — Pode
não parecer, mas as funções de um baile vão além da diversão.
Espera-se da duquesa de Württemberg-Winnental que se porte
exemplarmente. Vossa Graça entende quantas vidas dependem de
seu marido? Como ele é importante para a Europa, no momento?
Wilhelmine olhou para Iulia.
— Acha que me porto apropriadamente, Iulia?
— Perfeitamente, milady.
A pergunta teve o intuito de irritar o secretário, e irritou. A pele do
homem parecia ter sido mergulhada em água fervente.
A situação entre ela e Herr Wallinger tinha sido boa até que ele a
conheceu melhor. Então, ele passou a detestá-la. Ela entendia. Seu
marido não queria mais viver longe de casa, nem cruzar a Europa
treinando exércitos. Queria ficar com ela, e isso tornava a existência
do secretário obsoleta.
Embora Wilhelmine tivesse pressa, precisava falar duas ou três
coisas a Herr Wallinger antes de partir.
— Herr Wallinger — ela começou. — Preciso admitir que gostava
do senhor no começo, quando cheguei aqui. Achava que o senhor e
meu marido eram perfeitamente alinhados em seus propósitos, e me
trazia paz saber que ele era escoltado por alguém tão fiel.
Herr Wallinger a ouvia com as feições pesadas.
— … até que, algumas noites atrás, intrigada por algumas coisas
que não faziam sentido, decidi que daria outra olhada na
escrivaninha de Elsa.
O rosto do secretário aos poucos deixava de parecer um
pimentão e ganhava cada vez mais a tonalidade de um nabo.
— Pedi a Iulia um martelo, e na próxima hora desmontamos o
móvel inteirinho. Não foi, Iulia? — Ela olhou para a criada.
— Foi sim, milady — Iulia assentiu.
— Algo não batia naquela história. — Wilhelmine tamborilou o
indicador no queixo, intrigada. — Christine não achava que Elsa
estava apaixonada quando deixou Schaumburg-Lippe, e Christine é
muito perspicaz. Sabíamos pelas cartas, no entanto, que Elsa
estava apaixonada por alguém. E Iulia me confirmou que os criados
sempre reportaram tudo que chegava a Solitude ao duque. Cada
carta, cada telegrama. Como o senhor mesmo sabe, o duque é um
homem muito bem informado.
Herr Wallinger empertigou-se. Se sabia onde Wilhelmine queria
chegar, estava fingindo bem.
— Foi quando me deparei, escondido entre peças
aparentemente sólidas de madeira, com um terceiro maço de cartas.
Agora sim, Herr Wallinger entendeu onde ela queria chegar. As
sobrancelhas cabeludas do homem se apertaram. Ele voltou a
ganhar a cor de um tomate despelado.
— Nesse maço encontrei cartas e mais cartas destinadas a Elsa.
Cartas bastante apaixonadas, verdadeiras declarações. O curioso?
Elas não tinham assinatura, como também não tinham selo dos
correios nos envelopes. Isso me fez concluir que o amante de Elsa
não poderia estar longe. As cartas eram entregues em mãos.
Wilhelmine podia ouvir o coração do secretário ecoar no quarto.
— Assim que descobri o "quem", fui atrás do “quando". E foi
traçando uma linha do tempo — Wilhelmine apontou para pontinhos
aleatórios no ar, como se eles corressem em ziguezague — que
cheguei ao momento em que Elsa se apaixonou. Quer saber em
que momento foi?
Pela mastigação interna de bochechas, Herr Wallinger já sabia.
— O senhor já sabe. — Ela sorriu. — Tudo começou quando
Alexander enviou seu secretário particular para buscar a noiva no
Norte. Três dias em uma carruagem, mesmo na presença de damas
de companhia e uma escolta a cavalo, não impediram uma paixão
de surgir.
Ela apertou os olhos na direção do homem agora inteiramente
sem cor.
— O proibido é sempre tentador, não é?
Wilhelmine encerrou a revelação e pediu sua bolsinha, que Iulia
entregou-lhe prontamente.
— Preciso ir andando. Se não percebeu, sou uma esposa em
fuga.
O secretário inflou o peito. Seu rosto parecia pronto a explodir:
— A senhora é realmente uma criadora de escândalos! Uma
mancha ocupando o posto de esposa!
— E quem seria um exemplo de virtude, Herr Wallinger? — ela
rebateu. — O senhor?
Wilhelmine sabia que as palavras seguintes doeriam nele.
— Talvez Elsa?
O homem deu um passo na direção de Wilhelmine. Como ela era
quase tão alta quanto ele, não se moveu.
— Não ouse falar de Elsa — ele disse, baixo.
Wilhelmine viu tanta tristeza e dor nos olhos dele que quase —
quase — sentiu pena.
— Ela era uma dama — ele murmurou.
— Sei que era. — Wilhelmine contornou o homem e caminhou
para a saída. — Mais um motivo para tê-la respeitado.
Antes que Iulia e Wilhelmine deixassem o quarto, ela ouviu:
— A senhora é uma desgraça para o duque! Dá mais trabalho a
ele do que toda a Europa!
Se não estivesse tão tensa, Wilhelmine teria rido.
Ele não sabia o que era dar trabalho. Mas se tivesse coragem de
permanecer no cargo depois do que fez, testemunharia que o
verdadeiro trabalho estava para começar.
28

W . E
dramas, mas como leitura. Quando mal interpretadas, até uma peça
de Shakespeare se transformava em um martírio constrangedor.
Mas sua opinião tinha mudado drasticamente depois da cena na
festa. Era incrivelmente difícil encenar. Valorizava agora bem mais a
capacidade que atores e atrizes tinham de interpretar um papel.
Quatro dias tinham se passado do ocorrido e Wilhelmine estava
confortavelmente instalada no palácio de Bückeburg, a convite de
Christine e desespero de Phillip. Ela precisou contar seu plano à
prima, e usou os três dias de viagem para convencê-la de que
precisava de sua discrição para fazer dar certo. A tarefa mais difícil
foi convencer Christine a encenar junto com ela. A princesa parecia
firme no propósito de arrancar os olhos do irmão.
Para sorte de Wilhelmine, Christine entendeu o que planejava e
que a história que contariam, ao chegar, seria suficiente para
enlouquecer o príncipe.
Era hora do chá e Wilhelmine mexia a colherinha na xícara,
dissolvendo o açúcar. Sabia que, ao tentar endireitar o caos
sozinha, podia piorar tudo. Algumas coisas estavam além do seu
controle. Por exemplo, não sabia se a criada tinha deixado as cartas
do Sr. Wallinger sobre a cama do duque, conforme pedira. E se,
junto delas, havia colocado a Ilíada aberta na página pedida, com
uma flor marcando a passagem sobre Helena:

Encontrou-a no palácio: ela tecia uma grande trama,


de dobra dupla, resplandecente, e inseria muitos desafios
de troianos, domadores de cavalos e acaios vestidos
de bronze, que por causa dela tinham sofrido às mãos de Ares.

C . C . N
poder de mobilização. Ao fiar a trama daquele conflito, esperava que
ele agisse como o homem da guerra que era, e confiava que ele
agiria.
Ela mal teve tempo de provar o chá. Antes que os lábios
tocassem a borda da xícara, ouviu as trombetas.
O alvoroço veio em seguida. Vozes masculinas discutiam em alto
volume nos corredores. Portas bateram, passos marcharam de um
lado para o outro. Wilhelmine se levantou, atenta, olhando para a
porta. Mais argumentos. Discussões. Então ouviu a voz de Phillip
bradar:
“Os couraceiros? Por quê? O que querem aqui?”
Mais vozes, seguidas do grito estridente:
“Por causa dela!?!”
Os brados viraram gritos furiosos. Wilhelmine estreitou os olhos,
ouvindo algo do outro lado da porta se espatifar no chão.
“Como assim, estou mantendo-a cativa? Alexander
enlouqueceu? Mandem Wilhelmine embora daqui!!!”
Wilhelmine levou a mão à boca, segurando o riso.
Os couraceiros do exército prussiano eram a unidade de
cavalaria mais bem-treinada e organizada da Europa. Eram também
a de maior prestígio, e cada um de seus regimentos era composto
por quatro esquadrões de cento e cinquenta homens. Imponentes,
geralmente liderados por membros da aristocracia, eram um grupo
fechado, visualmente majestoso e absolutamente leal aos seus
comandantes.
Ela caminhou até a janela com o coração aos saltos, finalmente
confiante de que se tornara o problema de proporções
incontornáveis que planejou se tornar. A vista dava para o imenso
jardim que enfeitava a entrada do castelo, e se estendia por
centenas de metros até o começo da cidade.
Talvez Alexander não tivesse muitos amigos entre nobres
indolentes que passavam o tempo caçando, mas definitivamente os
tinha nos exércitos espalhados pelo país. E eram aqueles homens
de farda azul-escuro e capacetes com pontas de ferro douradas,
montados em cavalos brancos e bem-treinados, que alinhavam-se
na frente do castelo naquela manhã gloriosa.

O A
guardas que vigiavam a entrada do castelo. Eles entregaram as
armas, e Alexander entrou sozinho.
Ele cruzou o enorme salão de entrada cumprimentando o
mordomo pelo nome, subindo a escadaria de dois em dois degraus
até chegar à ala da família. Durante todo o tempo que caminhou
pelos corredores atrás de sua esposa, precisou de esforçar para
não deixar os músculos da face afrouxarem e rir.
Wilhelmine, o que tinha aprontado?
No momento em que recebeu a Ilíada e leu a passagem em que
Homero sugeria que Helena tinha fiado, com seu rapto, todo o
destino grego, entendeu o plano dela.
Então gargalhou sozinho, no quarto.
Aquilo foi a coisa mais inusitada que já lhe acontecera.
Nas próximas horas, Alexander enviou mensagens para dois
cantos diferentes da Confederação Alemã. A primeira foi para Berlin,
onde solicitava ao exército de Frederico Guilherme o uso dos
regimentos estacionados em Münster, na Prússia Ocidental, para
um exercício militar. O motivo ele preferiu ocultar. Apenas garantiu
ao imperador que o soldo e a alimentação da tropa durante o tempo
em que marchassem seria pago pelo ducado.
A segunda mensagem foi um pouco mais divertida. Ele escreveu
a um grande amigo, comandante do regimento na Prússia
Ocidental, dizendo que precisava resgatar sua esposa em
Bückeburg. Longa história, escreveu ao final. Considere um
exercício de demonstração de força, sem o uso de armas. Em
seguida, vestiu a farda, aprontou os cavalos e rumou para Münster,
a cento e trinta quilômetros de Bückeburg, deixando ordens de que
sua carruagem seguisse viagem e o aguardasse em Schaumburg
Lippe até segunda ordem.
Mandou também a orquestra do baile continuar tocando, e que
os copos fossem constantemente trocados e as bandejas nunca
ficassem vazias.
E agora ele estava ali, do outro lado da confederação, cruzando
os mesmos corredores que cruzou na noite em que pediu a mão da
esposa em casamento.
Alexander encontrou Christine no meio do corredor. A princesa
parecia esperá-lo, vestida para ocasiões especiais, Parecia de bom
humor.
— Olá, Alexander. Veio nos atacar?
— Onde está minha esposa? — Alexander perguntou, educado.
— Naquele cômodo ali — ela apontou alegre para um cômodo
de portas fechadas.
Ao ouvir a voz de Alexander, Phillip irrompeu no corredor. Deixou
seu escritório seguido por três secretários franzinos, que se
encolheram ao ver o duque. Phillip também parecia bastante
assustado: olhos arregalados, cabelo desgrenhado, gotas de suor
cobrindo o rosto vermelho.
— Alexander, você enlouqueceu? O que significam aqueles
homens do lado de fora?
Ao ver que ele se aproximava, Alexander levou a mão o coldre.
— Afaste-se — disse, duro.
Phillip levou a mão ao cabelo, desarrumando-o outra vez.
— O que está fazendo?? — Ele deu dois passos para longe do
amigo. — Por que está agindo assim?
— Está planejando tomar o governo, Alexander? — Christine
esticou o rosto atrás deles para ver a reação de todos.
— Só quero reaver a minha esposa — Alexander respondeu.
— Não tenho nada a ver com a vinda dela! — Phillip agitou as
mãos. — Por tudo que é mais sagrado, alguém traga Wilhelmine
para ele!
Alexander o ignorou.
— Ouvi dizer que está mantendo-a no palácio. Estou aqui pela
minha honra, e também pela dela — disse.
Phillip ganhou a cor de uma vela.
— Por que diabos iria querer segurar Wilhelmine aqui? Não a
estou mantendo em Bückeburg! Você sabe disso, não sabe?
Alexander afiou os olhos em direção ao amigo.
— Não sei o que ouviu por aí, mas não fiz nada — Phillip se
explicou.
Ambos ouviram a língua de Christine estalar, e ela dizer, irritada:
— Como pode deixar Wilhelmine levar a culpa sozinha, Phillip?
Phillip parecia prestes a desmaiar.
— Foi para isso que trouxe um exército? — O príncipe apontou
para o lado de fora, e Alexander notou que seu dedo tremia. — Por
que achou que eu lutaria com você por causa dela?
— Trouxe a tropa para o caso de encontrar resistência — ele
respondeu.
Alexander estava impassível. Nada daquilo fazia sentido ou era
verdade. Era apenas divertido.
— O que está planejando, Alexander?!
Christine interrompeu o irmão, dando um passo adiante.
— Talvez ele tenha vindo a meu pedido — Ela sugeriu antipática,
arqueando uma das sobrancelhas. — Se por acaso quisesse tomar
o poder do meu irmão desmiolado e assumir o principado, não seria
isso que eu precisaria fazer, Alexander?
O duque assentiu, impávido.
— Tomar o governo? — Phillip olhou para Christine horrorizado.
— Foi assim na Rússia, não foi? — Christine perguntou.
— E em muitos outros lugares — Alexander respondeu, olhando
para a princesa. — Tudo que precisa para tomar um governo
desprotegido é de apoio militar.
— Ah, esse é o segredo? — Christine fingiu-se de boba. —
Apoio militar?
— Basicamente — Alexander investigou o choque que tinha
paralisado Phillip.
— E apoio popular? É importante? — Christine provocou.
— Certamente milady. Mais relevante que a satisfação, no
entanto, é a insatisfação popular.
Phillip acompanhava o bate-volta sem entender onde eles
queriam chegar.
— Do que estão falando?! Não há insatisfação popular alguma!
Alexander e Christine o ignoraram.
— E há, claro, a questão da comunicação — Christine fingiu se
lembrar. — Um bom coups d’état cessa todo tipo de comunicação
do governo, não é? Imagino que, a essa altura, tudo possa ser feito
aqui, e ninguém saberá de nada.
Alexandre assentiu.
— Mas não só isso — O duque adicionou, preocupado que
Christine se entusiasmasse demais. — Ele usa os meios de
comunicação para garantir às potências vizinhas que agora está
tudo bem, e que o novo governo resolverá o problema que vêm
desgastando a relação entre eles.
Phillip ergueu as palmas, sem entender.
— Que desgaste? Não há desgaste algum entre o principado e
os vizinhos!
Christine olhou inocente para o duque.
— E quando não há desgaste? — ela perguntou.
— Inventamos um — O duque respondeu.
Phillip olhou estarrecido para Alexander. Nada em suas feições
de aço mostravam indícios de que teria consideração pela amizade
deles. O tempo dos conselhos havia passado. Ele alertou Phillip.
Então voltou a alertar. Agora era tarde demais.
— Diga-nos, Alexander — Christine cruzou os braços. — Como
tudo isso poderia ter sido evitado?
Ela aguardava a resposta com os olhos bem fixos no irmão.
Alexander também esperava que ela perguntasse isso. Embora a
mensagem já tivesse sido compreendida, era sempre bom salientar:
— Tendo um exército. Uma tropa leal, paga em dia e satisfeita
com o governo. — Alexander virou-se para Christine, lembrando-a:
— Nesse caso, essas tropas capturariam milady e a levariam presa
por planejar um golpe.
Christine suspirou, dramática.
— Ufa. Ainda bem que não me interesso por esses assuntos.
Tudo que pretendo no futuro é me casar com Sua Graça, o conde
de Hagen, e me assentar em sua linda propriedade no Sul.
Alexander pressionou os lábios, olhando por curiosidade a
reação de Phillip. Havia de tudo em sua expressão — inclusive
choque.
Com a encenação chegando ao fim e o príncipe entendendo o
recado, era hora de resgatar Wilhelmine.
— Bem, agora que sabemos como evitar um golpe de estado,
peço licença aos dois. Preciso ver alguém.
O duque caminhou decidido até a porta. Então, erguendo a bota,
chutou-a com toda a força. As bandas de madeira bateram nas
paredes, e o som seco do choque foi seguido pelo gritinho de susto
de Christine.
Assim que entrou no salão de chá, encontrou sua esposa
sozinha, no seu aguardo.
Ela estava parada no exato salão onde, meses atrás, haviam
trocado as primeiras palavras. Vestia um vestido adorável, casto e
bem comportado, azul da cor do céu. Nos olhos brilhavam a luz de
mil estrelas.
Alexander se deu conta de algo que nunca tinha pensado antes.
Sua esposa era um belo mistério. Um complexo e ardiloso
mecanismo de abertura complicada, que por algum motivo resolvera
abrir-se para ele. A sensação que tinha era que havia desposado
uma esfinge — a mítica figura com garras de leão, asas de pássaro
e face de mulher. A quem se aventurava, ela propunha um enigma.
Aos tolos, o fim; aos sortudos, a benevolência da passagem. Ele
se sentia como se tivesse passado por uma grande prova.
— Não precisava chutar a porta — ela disse tranquila.
Ele caminhou alguns passos.
— Ajuda a assustar. Não posso chegar aqui com um exército e
bater educadamente perguntando se posso entrar.
Ela pensou a respeito, então concordou. Eles continuaram a se
encarar, sérios.
— Se esse fosse um jogo de xadrez, minha cara, esse seria o
cheque-mate. De onde tirou a ideia?
— Ah — ela desmereceu o comentário. — Daqui e dali. Não
deveria deixar uma mulher entediada ter acesso a sua biblioteca.
Ela pode ter ideias.
Ele suprimiu um sorriso.
Ela apontou o polegar para a janela:
— É um exército e tanto, esse que você arrumou.
Alexander olhou para fora, como se tivesse acabado de se
lembrar que cem homens aguardavam suas próximas ordens.
— O comandante é um velho amigo — respondeu. — Servimos
juntos algumas vezes.
— E vieram sem questionar o que queria?
O duque olhou para a esposa com os olhos afiados.
— Estavam parados a cento e trinta quilômetros daqui, bastante
entediados. Aceitaram na hora.
Ela sorriu, feliz que tudo tivesse dado certo. Já imaginava que,
na falta de conflitos que os ocupasse, daria.
— Tive medo que não entendesse a referência. — Wilhelmine
confessou. — Ao deixar a Ilíada no seu quarto, temi que encarasse
a passagem de forma errada.
— E qual seria a forma errada? — Ele perguntou por
curiosidade.
— Muitos vêem Helena como uma perdição. Não só de um, mas
muitos homens.
— Então encarei das duas formas — Ele respondeu galante,
dando mais um passo para perto dela. — Você é a minha perdição.
Ela sorriu, derretida.
— Gostei da forma como interpretou Helena — ele comentou,
atento a cada detalhe dela. — De como ela teceu a trama inteira
daquela guerra, sozinha.
— E ainda assim, tudo que se fala mil anos depois é sobre a
guerra.
— A história não costuma fazer justiça às mulheres, não é
mesmo? — Ele chegou mais perto. Quase tocando-a, perguntou,
com voz calibrada:
— Está preparada para as consequências do que aconteceu?
Não haverá um só aristocrata desse continente que não conhecerá
seu nome.
Ela revirou os olhos, resignada.
— A coisa escapou de minhas mãos. Não pretendia que fosse
tudo tão dramático. Mas se eu lhe contasse os planos, você
concordaria com eles?
Alexander fez calmamente que não.
— Eu não podia deixar o castelo sem um motivo real, senão
você não conseguiria justificar a presença das tropas. Como aprendi
que a honra de um homem sempre recebe a complacência de
outros — ela olhou para fora com discreta indignação — Sabia que
todos lhe perdoariam se resolvesse usá-las.
— Por isso mandou um convite para Rosalie — Ele questionou.
— Espero que ela tenha aproveitado a festa — Wilhelmine
suspirou.
— Deve ter aproveitado. Não fiquei para ver, precisei sair para
organizar algumas coisas.
Ela riu, continuando:
— O que eu sabia é que as pessoas só prestariam atenção ao
que estava acontecendo em Schaumburg Lippe se eu o colocasse
no centro de uma confusão. Eu só queria dar um susto em Phillip —
ela olhou para o marido — e, pelo jeito, dei.
O duque estava parado a uma distância segura. Se não
estivesse, a tomaria nos braços e a beijaria ali mesmo, sem chegar
ao fim da conversa.
A linha de preocupação voltou à testa da esposa.
— Diga que me perdoa, Alexandre. Por favor.
Alexander endureceu o olhar.
— Sabe, Wilhelmine — ele disse baixo. — Sei lidar com
batalhões e suas demandas. Sei controlar hordas de homens
indisciplinados. Já encerrei rebeliões com pulso firme e, às vezes,
com violência. Participei de mais conflitos do que gostaria, e perdi
gente no processo. Mas com você, eu juro… — Ele olhou para ela
muito sério. — …com você, não faço ideia do que fazer.
Ela voltou a amassar os dedos das mãos.
— Sei que te dei trabalho — ela murmurou. — Espero que não
tenha sido em vão.
Cansado de controlar as reações e fingir que estava bravo,
Alexander deixou o peito à própria sorte. Ele que batesse de forma
violenta por quem queria bater. Ele se rendia.
Arqueando um canto da boca, perguntou:
— Já pensou em trabalhar para mim? Juntos conquistaríamos a
Europa.
Foi como se todo o peso do mundo tivesse saído das costas
dela. Wilhelmine finalmente sorriu, aliviada.
— Não quero conquistar nada. Tudo que quero já é meu.
Alexander deu o passo final. Os olhos correram o rosto dela,
encantados demais para continuar a encenação. Ela havia pensado
em tudo. Chamado sua antiga amante para o baile para provocar
um motivo. Partido em uma carruagem real, escoltada pela guarda
da princesa, para garantir uma chegada rápida e segura ao Norte.
Destruído os planos de Phillip de casar a irmã com um homem que
não amava, e forjado um tipo de exílio que justificaria — desde que
não muito explicado ou contado em pormenores — a movimentação
de uma pequena tropa até ali. Tropa essa que seria em breve
dispensada com um gordo pagamento e a notícia de que a rodada
de cerveja da noite era por conta do ducado.
Mas, principalmente, ela tinha dado em Phillip o susto que
Alexander, por falta de imaginação, não conseguira dar.
Sua esposa tinha sido mais inteligente (e insensata) que dez
generais juntos, e era sem sombra de dúvida sua jóia mais preciosa.
Para o bem da Europa, deveria ser mantida cativa em Solitude. De
preferência, em sua cama.
Ele roçou as costas dos dedos pela face dela, fazendo um
inventário de seus traços. Olhos, curvatura da sobrancelha, ponta
do nariz, formato das orelhas. Se ela soubesse o quanto a amava,
faria dele seu prisioneiro e escravo. Por medo, preferiu não deixá-la
saber o quanto. Não até carregá-la dali.
Wilhelmine enlaçou a cintura do marido e o puxou. As bocas
voltaram a se tocar, lentas e curiosas, matando a saudade em beijos
fracionados. Um eu-te-amo solto entre beijos bastaria? Alexander
sabia que não. Teria que explicar que parecia mais, já que a palavra
amor não comportava o que o movia. Podia dizer que o que sentia
não cabia em quatro letras, mas ainda assim seria insatisfatório.
Para Alexander, existia o exército, o povo, a nobreza, a realeza e
o céu.
Acima de tudo e todos, ela.
Ele a apertou contra o peito e a beijou de verdade. Com língua,
apertos e rosnados. Ela o recebeu inspirando seu cheiro, como
gostava de fazer, e suas línguas dançaram juntas, reconhecendo-
se, enquanto as mãos passeavam pelas costas do outro. Ao final do
beijo, sorriram.
— Alexander?
— Sim, querida.
— Precisamos pensar em um plano B, caso Phillip não aceite.
Alexander riu.
— Acho que Christine proveu a ele uma novo motivo para ter
medo. Cheguei a pensar, por um instante, que ela queria realmente
tomar o trono do irmão. É melhor casá-la logo com Wolfgang.
Melhor para o país, quero dizer.
Wilhelmine deu uma risada alta. Ela concordava com ele. Era
melhor casar Christine logo com o conde.
Alexander ergueu o queixo da esposa, intrigado por uma coisa.
— Christine disse algo lá fora sobre Phillip e você. Nunca me
interessei em saber sobre o escândalo que aconteceu aqui, dois
anos atrás, mas fiquei curioso. O que aconteceu? E por que Philip
“deve isso a você”?
Wilhelmine retirou os dedos dele do queixo. Havia chegado a
hora de contar o que aconteceu para alguém.
Ela pegou ar, começando:
— Jamais contaria o que fiz naquela noite. Fiz uma promessa de
que manteria segredo e arquei com todas as consequências pelo
bem de Phillip, do povo e do principado. Prometi que poderiam
confiar em mim, e honrei a promessa. Mas confio em você, e sei
que jamais usará o que eu contar contra ele.
O duque assentiu. Claro que podia confiar nele.
— Nunca me arrependi de minha decisão — ela explicou. — Mas
quando soube que Phillip pretendia casar Christine justamente com
o homem com quem o flagrei naquela noite, decidi que quebraria
minha promessa.
As sobrancelhas de Alexander se ergueram.
— Não tinha a intenção de acobertar Phillip e o príncipe Gustaf,
nem de me meter em algo escandaloso. Eu apenas cheguei ao
lugar errado, na hora errada. Precisei pensar rápido. Eles estavam
nos braços um do outro, sem roupa, e um grupo de moças
caminhava na direção deles. Então eu simplesmente … — Ela
fechou os olhos e massageou a testa, como se detestasse lembrar-
se daquilo. — A coisa inteira saiu do controle. Fiz o que podia fazer
para parecer outra coisa. Fiz por amor à família deles, e porque
conhecia a maldade das pessoas. O pai de Phillip morreria de
desgosto. Phillip carregaria o estigma de gostar de homens pelo
resto de seu reinado. Fiz o que achei certo.
Alexander a trouxe de volta ao peito, olhando ao redor. Aquilo
era bastante informação para absorver.
— Sempre encontrei alento no fato de que o escândalo faria
menos mal a mim do que a eles. — Ela apertou o marido com força.
— Deve ser tão horrível não poder se casar com quem se ama —
ela disse com a voz abafada pelo abraço. — Não poder viver a vida
que deseja ter. — Ela olhou para Alexander. — Justamente por isso
Phillip não podia fazer aquilo com Christine. Como podia pensar em
casar sua irmã com o homem que ele ama?
Alexander apertou-a com força, concordando com ela. Ela tinha
toda a razão.
Talvez Phillip tenha feito aquilo para aproximar-se de Gustav.
Talvez, para endurecer o coração e forçar-se a esquecê-lo. De todo
modo, não estava certo. Não quando o coração de todos sairia
quebrado.
— Perdão por ter causado outro escândalo — Wilhelmine ergueu
o rosto. — Achei que isso poderia amenizar a situação para você,
caso questionassem por que mobilizou uma tropa até aqui. Não
cheguei a me preocupar com sua reputação em Württemberg. Acho
que destruí nossa vida social.
O duque beijou sua testa, tranquilizando-a.
— Não se destrói o que não existe.
— Duvido que a rainha vá querer minha companhia para o chá
— ela mordeu os lábios, condoída.
— Ela é enfadonha — ele cochichou no ouvido dela. — Palavras
do próprio rei, não minhas.
Eles riram.
— Como faremos agora? — Ela perguntou. As feições estavam
novamente pacíficas, e o corpo, relaxado. — Devo parecer
transtornada ao sair? Relutante em voltar? Afinal, sua ex amante
invadiu o nosso baile. Temos que manter a encenação.
— Sairemos de mãos dadas, que tal? Direi que me ajoelhei e
implorei por perdão. E você, magnânima, me perdoou.
Alexander viu o sorriso voltar ao rosto bonito.
— Ajoelhou-se para pedir o meu perdão? Que romântico.
— Essa será a história que contaremos: "minha esposa, a
duquesa, inconformada com a presença da amante em seu próprio
baile, é levada para o Norte sem aviso. Acreditando que sua honra e
seu casamento estivessem em perigo, o duque de Württemberg
mobiliza céus e terra para recuperá-la.”
— Gostei — Ela respondeu. — Embora saibamos que as
pessoas distorcem as histórias com o tempo. Será divertido ouvi-la
daqui a alguns anos.
— Sim, será — Ele concordou. — Poderá, inclusive, usá-la como
exemplo ou como conto cautelar, se quiser.
— Você pensa em tudo — ela piscou, e ele roçou o nariz no
dela, feliz por ter dado tudo certo.
— Mas o futuro não interessa no momento — ele disse, decidido.
— Hoje, tudo que quero é levá-la para casa.
29

A
seguida por duas outras. Alexander e Wilhelmine vinham sozinhos
em uma, e o séquito de criados, nas outras.
Wilhelmine tinha uma cesta de cerejas no colo, comprada de um
camponês que levava um carregamento para a cidade. Gemia de
prazer toda vez que colocava uma na boca. Toda vez que gemia,
Alexander a encarava. WIlhelmine não podia fazer nada: as cerejas
estavam doces e polpudas, as melhores que já havia provado na
vida.
— Antes de deixar Württemberg, mandei Herr Wallinger
acomodar Rosalie em outro estado.
A frase de Alexander despertou Wilhelmine do êxtase em que se
encontrava.
Ela desceu a cereja que poria na boca.
— …e pedi que não me dissesse onde. Ela terá proventos
modestos para recomeçar a vida. Se quiser, recomeçará em um
novo lugar sem o estigma que recai sobre as amantes. O melhor
que posso lhe oferecer é devolver seu anonimato. Ela saberá
aproveitar isso, se for esperta.
Wilhelmine assentiu, voltando a olhar para fora.
Algum tempo depois, seu marido adicionou:
— Disse também a Herr Wallinger que depois dessa tarefa
estava dispensado.
Wilhelmine segurou o ar nos pulmões. Sabia que teria que falar
sobre aquilo com Alexander, só não imaginava que seria agora.
— Como descobriu? — ela perguntou.
— Demorei a entender por que deixou as cartas do amante de
Elsa no meu quarto antes de partir. Então eu as li, e entendi tudo.
— Por causa da ausência de selos? — ela perguntou.
— Não — Alexander olhou para fora. — Reconheci a letra dele.
Wilhelmine também olhou para fora, imaginando sua decepção.
— Sinto muito, amor.
— Sei que não deveria, mas senti pena dela — o duque disse,
melancólico. Havia algo de triste na história que a entristecia
também. Aliás, Wilhelmine sentia muito por todos os envolvidos
naquela tragédia. Um pouco mais pelo marido, duplamente traído.
Alexander continuou:
— Não posso fazer nada por Elsa agora, mas sei o que fazer
com o meu secretário. Confiei minha segurança a ele, e ele me
traiu. — Alexander exalou, voltando a olhar para fora. — Não posso
sequer afirmar que meu filho era realmente meu.
Wilhelmine estendeu a mão para ele. Eles deram as mãos e
assim permaneceram por algum tempo.
— Quem ficará no lugar de Herr Wallinger?
— Estou pensando em contratar o Sr. Winkel. Ele é jovem, mas
competente e disciplinado. Acho que pode dar certo.
Wilhelmine não reconheceu o nome, mas confiava nas decisões
do marido.
O silêncio retornou à carruagem, e Wilhelmine voltou a comer.
Haviam deixado para trás as construções da cidade e cruzavam
agora uma região de fazendas isoladas. Ela sentia o olhar de
Alexander nela, correndo seu rosto e seu corpo, como se quisessem
algo.
— Está me olhando há minutos — ela comentou. — Não estou
entendendo o escrutínio.
— Estava pensando em você — ele cruzou uma perna sobre a
outra, relaxado.
— Ah é? Sobre os eventos dos últimos dias?
— Coisas maiores que eles.
Ela ergueu uma sobrancelha, intrigada.
Ele pausou por um momento, então se inclinou, perguntando da
forma mais cavalheiresca que conseguia:
— O que está vestindo sob a saia?
Ela corou violentamente ao ver o brilho malicioso nos olhos dele.
Calculando de forma rápida tudo o que vestia sob a gigantesca saia
de tafetá, respondeu:
— Saia, anágua, outra anágua, pantalettes… — Wilhelmine
suspirou ao se lembrar de tudo. — Céus, estou trajando mais
camadas que uma alcachofra. Por quê?
— Porque quero beijá-la, e gostaria de saber contra o que
precisarei lutar para conseguir.
Os olhos de Wilhelmine se arregalaram, e o duque apreciou o
espanto.
— E embaixo disso tudo? Está molhada?
Wilhelmine quase derrubou as cerejas do colo.
— Alexander!
— Está?
— Bem, agora estou.
— Ótimo — ele voltou a se recostar no assento, fingindo
indiferença. — Ainda estamos perto demais da cidade. Quando
chegarmos na estrada, arrancarei sua roupa e farei amor com você.
Wilhelmine olhou para ele em choque. Um frio gelado percorreu
sua coluna, enquanto sentia algo borbulhante invadir as veias.
— É sério — ele a alertou.— Farei muitos atos indecentes com
você nesse carro, querida. A viagem é longa.
Wilhelmine correu os olhos pelo corpo másculo e tentador do
marido. Então burlou os botões do vestido e insinuou os dedos pela
abertura, alisando a pele macia do monte dos seios.
— Só quando chegarmos na estrada?
Alexander acompanhou a trajetória dos dedos, umedecendo os
lábios.
— As janelas da carruagem são baixas, e mostrariam mais do
que estou disposto a mostrar. — Eles se olharam, então ele
explicou: — Praticamente seria o meu traseiro a ficar exposto.
Wilhelmine voltou a sorrir, achando o súbito bom humor do
marido a coisa mais interessante do mundo.
Um remexer sob as saias fez Alexander olhar para baixo.
Wilhelmine havia descalçado as sapatilhas e levava, sob o olhar
interessado do marido, o pé até o meio de suas pernas. Eles
estavam a uma distância perfeita um do outro. A curvatura do seu
pé deslizou pela frente inchada, causando nele uma contração
involuntária.
Alexander alisou a maciez das formas cobertas pela meia de
seda, mordendo o lábio inferior. Wilhelmine tinha achado uma
solução melhor: não precisavam esperar a chegada do campo para
começar.
Ele facilitou o acesso, abrindo o botão oculto da calça.
O pé dela encaixou-se sobre o volume coberto pelo tecido,
forçando-o para baixo. Ele ajudou um pouquinho, abaixando a calça
e revelando o membro viril e lustroso. Wilhelmine precisou buscar
por ar. Só de pensar no que estavam fazendo, seu coração batia
enlouquecido. Estava morta de saudades dele. Dele, do seu corpo
quente e duro, das suas pernas de viking, de seu vigor indecente,
da força de seus dedos em sua pele. Ela o queria dentro dela.
Debaixo dela. Em cima dela. Mas enquanto não podia,
massageava-o com a planta do pé. Para cima e para baixo. De lado.
Na base e na ponta, até que sua meia umedecesse pela paixão que
esvaía dele.
Alexander respirava de maneira profunda, os nós dos dedos
brancos pela força com que seguravam o assento.
— Isso é provocação, Winy.
— Achei que gostasse.
— Não quando não posso atacá-la e tratá-la como merece.
Ela continuou, adorando a conversa.
— E como mereço ser tratada?
— Com devoção — Ele ergueu o pé dela e o levou até os lábios,
aproveitando para dar uma olhada mais íntima sob as saias. — E
um pouco de safadeza.
— Se mereço tanto, tome-me agora — ela provocou. — Ou
consegue esperar?
Ela baixou os olhos para a nudez do marido, fazendo-o soltar
uma imprecação.
— Você… — Ele disse com um meio gemido, pedindo seu outro
pé. Ela o entregou, e ele ajustou os dois ao redor do membro. —
Você devia ter vindo com um aviso para incautos.
Ambos os pés agora moviam-se para cima e para baixo contra a
pele aveludada do membro. Alexander encostou a cabeça na
parede da carruagem, deliciando-se com a sensação de atrito.
Wilhelmine observava em êxtase o prazer que provocava nele, mas
precisava corrigi-lo: ela veio com um aviso.
— Se lesse as colunas dos jornais, saberia que eu era conhecida
como Lady Escândalo. Deveria ter bastado para manter distância.
— Não leio colunas de fofocas — Ele gemeu.
— Que bom, porque me chamarão disso outras vezes.
Ele fez que não. Escândalo não era um aviso satisfatório. Os pés
dela continuavam a se mover ao redor da intimidade dele, não mais
juntos; quando um subia, o outro descia, alternando em lhe dar
prazer. Às vezes ela o girava, movendo a pele macia que parecia
recobrir o mais puro aço.
— O aviso deveria ser outro — ele grunhiu. — Violentamente
excitante. Feiticeira. Capaz de matar um homem de prazer.
Ela sorriu.
— Se não fosse um bloco de gelo, diria que está apaixonando
por mim.
Ele abriu os olhos, continuando a alisar agora, ele mesmo, o
membro túrgido.
— Meus sentimentos são um mistério para mim também, Süsse
— confessou. — Não os entendo. Sequer consigo enxergá-los para
ver seu tamanho. — Ele parou o movimento de vai-e-vem e a puxou
até seu colo. Wilhelmine sentou-se sobre ele, o bonnet amarrado
com um laço sob o queixo atrapalhando o caminho da boca do
duque até a dela. Ele arrancou aquele chapéu idiota e o jogou no
chão. Então livrou o cabelo dela das presilhas para que caíssem
soltos e rebeldes ao redor deles.
Desabotoando a capa curta de veludo, procurou algum
centímetro de pele da esposa. Wilhelmine arrependeu-se de ter
colocado tanta roupa para a viagem. Estava frio do lado de fora,
mas dentro da carruagem parecia uma caldeira.
— Você me ocupa inteiro — ele disse afundando o nariz em seu
pescoço quando a capa foi lançada longe. — Todas as partes de
mim.
Wilhelmine mal respirava. Ela tateava seu corpo, sentindo as
mordidinhas do marido em sua pele. Precisava tanto de seu amor
que agarrava-se a ele como se precisasse dele para viver. E
precisava.
Eles se beijaram, as línguas em uma união profunda,
chacoalhando quando a carruagem passava por buracos. Só
ouviam a respiração um do outro. Só sentiam o calor do outro.
Alexander afastou o cabelo de Wilhelmine da frente da roupa
para procurar os botões do vestido. Tinham tido pouco tempo juntos
desde que se reencontraram. Durante a visita à vila da família
Hoefsted, foram acomodados em um quarto anexo ao dos pais dela,
e a cama rangia de tal modo que Wilhelmine fez Alexander
comportar-se castamente por duas noites inteiras, sob ameaça de
punição.
O duque encerrou a visita no terceiro dia e apressou a viagem
para o Sul, louco para puni-la por fazê-lo arder daquela forma.
Conferindo se já estavam distante de tudo, ele afastou o vestido
aberto, revelando o decote profundo da chemise sob a roupa. Em
seguida, abaixou a peça transparente, revelando os seios da
esposa.
Ele afundou o rosto entre eles, lambendo sua junção. Ela
agarrou seu cabelo, louca, respirando de maneira profunda.
Alexander beijou-os com paixão. Afundou os dentes na lateral de
um deles, na pressão exata para fazê-la arquear as costas e jogar a
cabeça para trás. A pele áspera do rosto arrastou contra a maciez
translúcida e Wilhelmine gemeu.
— Quer que eu beije seus seios? — ele perguntou.
Ela ofegou que sim.
— Que os chupe?
— Sim, sim, sim.
— Então coloque-os na minha boca, amor. Um de cada vez.
Ela soltou um gemido longo quando esfregou o bico em seus
lábios e ele o tomou. Primeiro, distribuindo sobre a ponta sensível
alguns beijos delicados. Depois, encaixando-o bem preso à língua,
para que o sugasse até que ela pedisse para parar. Os dedos de
Wilhelmine eram garras na pele do marido. Ela o beijou no pescoço,
puxou seu cabelo, mordeu de leve o lóbulo de sua orelha. Gostava
de seu cheiro. Queria que ele se esfregasse nela para que ela
inteira cheirasse a ele.
Wilhelmine se afastou para desabotoar o colete de Alexander. A
peça saiu com a jaqueta, e ela quase arrastou a camisa junto. Ele
mesmo desabotoou os botões finais ou ela o deixaria sem roupa. A
carruagem sacolejou ao chegar em uma parada; eles fecharam as
cortinas e continuaram.
Ela o ajudou a puxar a manga da camisa pelos braços —
primeiro por um, depois pelo outro, até que ela também pudesse ser
lançada ao banco do lado. Estavam quase nus, quentes pelo
contato com a pele do outro, ansiando pelo toque do outro.
O vestido dela proveu a cobertura ideal para que se deitassem
no chão da carruagem. Uma loucura sem precedentes subiu por ela
quando ele a cobriu com seu corpo quente e moreno. Fome, anseio,
desejo, luxúria. Ela arrastou os dedos possessivos pelo corpo do
único homem que desejou em sua vida. Ele arrastou as mãos por
suas curvas como se a achasse perfeita, um banquete para seus
desejos e um perigo para o seu autocontrole.

***

A , ,
encaixando-se entre elas. Não era só desejo o que movia
Alexandre; era fome. Sua mente estava tomada por ela. Poluída por
desejos indecentes.
Na maioria das vezes, Alexander esforçava-se para fazerem
amor, mas daquela vez a queria como a criatura selvagem que era.
Ele queria possui-la de todas as formas e jeitos, algumas indecentes
demais para serem pronunciadas alto. E quando a desejava demais,
deixava de ser um cavalheiro e tornava-se um bruto. Que ela
sorrisse quando seu outro lado vinha à tona o deliciava.
Ele mordeu seu pescoço enquanto firmava sua cintura, os dedos
pressionados fundo em sua pele. Raspou os dentes sobre o mamilo.
Então a penetrou fundo, até o final, fazendo-a gritar.
Os olhos de Alexander passearam pelo rosto da esposa
enquanto a tomava. A boca entreaberta de Wilhelmine soltava sons
angustiados. Ela estava suada, marcada por dedos, descabelada.
Estremecendo, jogou o cabeça para trás quando a carruagem
chacoalhou e ele enterrou-se inteiro dentro dela.
Ele saiu antes do ápice, dolorido a ponto de latejar, louco por
mais. Ele abriu as pernas dela e as apoiou sobre os bancos, uma de
cada lado. Disse que a beijaria, e agora ia beijá-la. Ela sufocou um
gemido quando ele mergulhou a língua entre as bandas inchadas de
sua intimidade e se fartou com seu cerne rosado. As lambidas
rítmicas deslizavam pela carne macia, umedecendo-a, acariciando-
a, pressionando a língua contra a carne sensível e inchada. Então
introduziu um dedo nela para ver como ela se arqueava
desarrumando o próprio cabelo. Ela respondia a cada investida e
avanço acariciando-o, puxando seu cabelo e arranhando suas
costas. Quanto mais selvagem era, mais dele se tornava. Só uma
mulher como ela responderia daquela forma.
Alexander esfregou a barba áspera na parte mais macia das
coxas sem interromper o movimento dos dedos. Deixou nelas
marcas de beijos e rastros de saliva. Mordeu-a de leve porque ela
adorava. Ela estava chegando lá. Sentia, pelo vibrar do corpo, que
estava sendo atingida por choques elétricos. Suas pernas tremeram.
Uma onda quente a varreu ao mesmo tempo em que ela soltou um
grito que fez a carruagem parar.
Alexander bateu no teto do veículo e ordenou que continuassem.
Sua esposa estava desmaiada no chão da carruagem, sem
forças, arfante, sensível. A carruagem voltou a chacoalhar pela
estrada, e ele subiu em cima dela, forçando-a a olhá-lo.
— Está viva? — perguntou, safado.
Ela fez que sim, sem forças. Não conseguia acolhe-lo. Não
precisava: ele sabia o caminho.
Antes que pudesse entrar nela, ela espalmou seu peito.
— Não.
Ela sustentou o corpo com o cotovelo e pediu:
— Deite-se ao meu lado.
— O que está planejando?
— Deite-se — ela ordenou.
Ele se deitou ao lado dela. Ela se sentou, então subiu em cima
dele.
Ele sorriu, deslizando as mãos pelas coxas macias.
— O que está fazendo?
— Amando você.
Ele observou o corpo sinuoso de Wilhelmine ajeitar-se sobre o
dele, deslizando por suas pernas até a boca descer delicada sobre
seu membro. Alexander sentiu os pulmões expandirem, como se
foles o enchessem. Um calor úmido envolveu o órgão sensível e ele
quase gemeu alto. Não podia perder nenhum segundo daquela
cena. Não importava se sentia um tremor tomar conta de seu corpo
e a vontade de deitar e aproveitar fosse imensa.
Ele observou, porque observar era erótico.
Não havia nada mais sensual do que ver a boca que amava
subir e descer sobre seu membro, os dedos femininos segurando
com força a haste, o peso dos seios sobre suas pernas. A língua
dela brincando com ele. Provocava-o.
Ele usou as mãos para movimentar sua cabeça. Para cima e
para baixo. Para cima, para baixo. Que prazer indescritível era vê-la
descer sobre ele, engolindo-o inteiro, o oco morno da boca
agasalhando seu órgão.
Seus dedos bagunçaram as mechas loiras, e seu gemido
indicava que não ia aguentar por muito tempo.
Então ela deu uma última lambidela em toda a extensão e
soprou a ponta, despedindo-se da ousadia. Ela olhou para o marido
e limpou a boca com as costas das mãos. Como a divindade
perfeita que era, sentou-se sobre seus joelhos, movendo-se de
maneira provocativa. A barriga ondulava pela força da respiração.
Os olhos cintilavam, os seios fartos subiam e desciam.
Ele queria mergulhar nela. Beijá-la inteira.
Ela envolveu a intimidade de Alexander com ambas as mãos e,
sem tirar os olhos dele, movimentou-o até que chegasse ao ápice.
Seu prazer jorrou por entre seus dedos, enquanto o peito explodia
em um gemido quebrado.
A carruagem quase parou outra vez.
Quando ele se recuperou, ela olhava para ele com descarada
satisfação. Sabia que tinha sido ótimo. Foi ótimo para ela também.
Ele a ajudou a limpar a mão em uma meia, e decidiram parar na
próxima vila para se lavarem.
Quando já estavam vestidos, ela sentou ao seu lado e encostou
a cabeça em seu ombro. Alexander a acolheu, pensando no que
tinha acabado de acontecer.
Nem todo sexo era bom, ele não tinha essa ilusão. Certas noites
assemelhavam-se a espetáculos ensaiados, e não possuíam brilho
ou a dose necessária de realidade. Algumas noites eram
interrompidas por pensamentos demais; os movimentos
desconjuntavam-se, os olhares se perdiam e certos movimentos se
tornavam constrangedores. Havia ainda o outro tipo: sexos amenos,
performáticos ao mínimo, meramente formais e desanimadores.
E havia aquilo.
E, por trás daquilo, a razão de tudo.
30

— O ? — W ,
redor.
Eles pareciam estar em lugar nenhum. Talvez estivessem no
principado de Waldeck, ou quase na divisa com o grão-ducado de
Hessen. A duquesa terminou de lavar as mãos na fonte e olhou para
o vilarejo. Ao largo da praça, casinhas estreitas e antigas
amontoavam-se coloridas, coladas às outras. Ela viu algumas lojas
miúdas — um açougueiro, uma pequena casa de chá, um sapateiro
— e depois, mais nada. O vilarejo acabava.
Alexander havia caminhado até a segunda carruagem para
investigar o estado dos cavalos e informar sobre o caminho. Com a
neve que caía fraca, eles precisariam continuar devagar. Wilhelmine
continuava a olhar para a pequena rua principal, procurando alguma
indicação do nome do vilarejo. Não encontrou.
A chegada de uma caravana chamou sua atenção.
Puxadas por cavalos, cinco carroças exóticas passaram por eles,
em direção à saída da cidade. Elas eram feitas de madeira,
decoradas nas laterais, e tinham teto alto e abaulado. Eram ciganos.
Quatro carroças seguiram viagem; uma parou na frente do
sapateiro. Enquanto um dos ciganos descia e entrava no
estabelecimento, uma jovem de cabelo preto, amarrado por um
lenço vermelho, saltou do veículo. Ela riu alto quando um dos
homens fez uma troça em dialeto, e respondeu atravessado, o que o
fez gargalhar. A jovem caminhou com seu vestido colorido até a
parte de trás da carroça e entrou.
Wilhelmine ouviu um tilintar agradável de sininhos, como um
chamado.
A duquesa terminou de colocar as luvas, curiosa. Dando alguns
passos adiante, tentou ler o que uma plaquinha pendurada na lateral
da carroça dizia.
“Madame Raschig - Handleserin.”
— Winy? — A voz do marido a fez parar. — Onde está indo?
Ela mal tinha notado que caminhava em direção à carroça. Ela
estendeu o braço para ele, chamando-o para vir junto. Estava
curiosa pela presença dos ciganos e queria ver o que faziam. Além
disso, um descanso era necessário para todos.
— É uma leitora de mãos — Wilhelmine disse quando o marido
enlaçou o braço ao seu. — Tenho curiosidade por essas coisas.
— São ciganos, amor — Alexander disse com tom de cautela,
como se ciganos devessem ser temidos.
— Sim, ciganos. Não monstros com garras afiadas.
Ela o forçou adiante e Alexander cedeu. Qual era o problema em
perguntar que tipo de leitura de mãos faziam? Quem sabe alguma
cigana poderia prever o seu futuro? Wilhelmine gostava de tudo que
era diferente.
— Boa tarde — Alexander cumprimentou um dos homens. Ao se
virar, o cigano fechou o cenho. Um casal de aristocratas,
cumprimentando-os em público, causava surpresa. A moça que
Wilhelmine havia visto antes saltou da carroça e voltou, olhando-os
com curiosidade.
— A Sra. Raschig se encontra? — Wilhelmine apontou para a
plaquinha.
— Sim, ela se encontra — a moça de pele escura e olhos
astutos respondeu.
— Gostaria que ela lesse minha mão.
A cigana sorriu.
— Sou madame Raschig — Ela fez uma mesura floreada. —
Claro que posso ler sua mão.
Alexander apertou o braço da esposa, mas ela o ignorou.
— Madame Raschig é muito talentosa — um dos ciganos disse
atrás da carroça. Alexander se virou, assentindo, educado.
Wilhelmine caminhou atrás da cigana, que subiu ágil na carroça.
Alexander ajudou Wilhelmine a subir, subindo logo atrás. Dentro do
veículo era escuro, mas só no começo. A jovem abriu as cortininhas
de uma janela minúscula e a luz mostrou paredes cobertas por
lenços coloridos, pinturas de paisagens, enfeites de latão. O cheiro
perfumado de velas aromáticas e ervas desidratadas pairava no ar,
trazendo ao ambiente um ar místico.
A cigana apontou para um banco forrado por almofadas
coloridas e Wilhelmine se sentou. A jovem tomou lugar na frente
dela, apoiando as mãos sobre uma minúscula mesinha.
Alexander manteve-se afastado.
A cigana esticou o lenço sobre a pequena mesa e perguntou:
— Gosta de cartas? Se quiser, posso deitar o baralho para
vocês.
Wilhelmine removeu a luva e estendeu-lhe a mão.
— Gosto da sua arte — ela disse educada, sorrindo. — Mas hoje
ficarei apenas com a leitura de mãos.
A moça pegou a mão alva e macia da duquesa, alisando-a como
se estranhasse a textura.
— Vejo que não são daqui — a jovem correu os olhos pelo
vestido vistoso, a capa de veludo e o cabelo bem tratado de
Wilhelmine.
— Somos de Württemberg, ao sul.
— Uma rainha, presumo — a cigana brincou.
Wilhelmine fez divertida que não.
Nos próximos minutos a jovem falou uma série de coisas que,
Wilhelmine sabia, fariam o marido revirar os olhos. Sobre destino,
fortuna e amor. Disse que previa fartura e abundância para os dois,
que via felicidade sem fim e muitos filhos. O pequeno cômodo
abafado já não parecia tão assustador depois das palavras de
otimismo.
— Terá uma vida longa e feliz — A moça concluiu algum tempo
depois, pousando a mão sobre a de Wilhelmine. A mão da cigana
era morna e delicada, mesmo coberta de calos.
Wilhelmine recolheu a mão e olhou para Alexander. Como ele
mal via a hora de partir, já tinha tirado a moeda do bolso.
A cigana olhou para a moeda que o duque depositou sobre a
mesa e franziu a testa. Então, estendeu novamente a mão para
Wilhelmine.
— Posso dar uma última olhada nas suas linhas?
— Melhor não — Alexander disse. — Vamos, querida?
— É que esqueci de ver uma coisa — A cigana olhou para a
duquesa.
O serviço estava pago, mas a curiosidade de Wilhelmine
persistia. Ela voltou a entregar a mão para a jovem.
— Minha avó me ensinou recentemente uma coisa e esqueci de
olhar — ela explicou, olhando-os como se pedisse perdão pela
desatenção juvenil. — Acho que vi algo a mais em suas linhas.
O dedo da moça contornou uma pequena linha que unia as
linhas do destino, do amor e da vida.
— Chamamos essa linha miudinha aqui de linha do sono.
— Do sono? — Wilhelmine perguntou, esticando os olhos para
enxergar o que ela estava mostrando.
— Sim. Tem a ver com o sono de cem anos de uma velha lenda
— a moça desmereceu a explicação. — Achei a sua curiosa.
A jovem olhou para a duquesa.
— A senhora não é de dormir, é?
Wilhelmine pensou a respeito. Então fez que não. Não era.
A cigana assentiu.
— Imaginei que não. Para que alguns durmam, outros precisam
estar eternamente alertas.
Wilhelmine olhou para trás, sorrindo para o marido. Alexander
sorriu discreto de volta.
A cigana suspirou, intrigada.
— Sabe, as mensagens que recebo são estranhas — disse. —
Vejo muita coisa acontecendo na sua vida. Não vejo imagens — ela
explicou. — Só sinto coisas. E quando olho para a senhora, sinto
algo curioso. A impressão é que, se os eventos dos últimos dias
compusessem uma sinfonia, tocariam uma música estranha. Faz
sentido?
Wilhelmine segurou uma risada.
— Bem, enfim. — A cigana acariciou a mão da mulher. — Não vi
nada ruim. Tenha uma ótima vida, senhora. Bom retorno para casa.
Wilhelmine se levantou. O duque saltou primeiro, virando-se para
segurar a mão da esposa e ajudá-la a descer. Mas antes que
Wilhelmine saísse da carroça, madame Rauschig comentou:
— Só tem uma coisa que preferi não dizer na presença do
cavalheiro.
Wilhelmine parou e olhou para trás. A feição da cigana era
sóbria, e seu tom, certeiro. Sequer parecia a menina de antes.
— Ah é? — Wilhelmine respondeu. — E que coisa é essa?
— É sobre a perda da sua filha. — Ela olhou para o ventre de
Wilhelmine. — Ela será recompensada.
A mão do duque continuava estendida, mas Wilhelmine não se
moveu. Filha? A sensação de vazio que morava em um cantinho do
peito inflou.
— A senhorita disse filha?
— Sim. A que não chegou a nascer — a moça disse sincera,
com um gesto de quem sentia muito.
Os olhos de Wilhelmine chegaram a arder, mas ela conseguiu,
com alguma força, controlar a lágrima.
— Obrigada — ela murmurou de volta.
Então, como se desobedecesse à cautela, a cigana revelou em
um rompante:
— Filhos virão.
A leitura já havia sido paga, a cliente partia feliz. Por que, então,
a jovem continuava a falar? Nem mesmo a cigana sabia. O fato era
que sabia muito mais do que contava — sempre sabia mais — , e
agora, por algum motivo, precisava falar.
— Eles virão em breve, e trarão tudo que os filhos trazem.
Wilhelmine viu a saliva descer pela garganta delicada da moça.
A leitora de mãos estava se esforçando para procurar as melhores
palavras, ao mesmo tempo que parecia querer parar de falá-las.
— …mas, mais tarde, quando a vida trouxer solidão… — os
olhos escuros deslizaram até o lado de fora, onde Alexander
aguardava a esposa — …ela lhe recompensará com filhas.
Elas se entreolharam. Um único segundo, e a cigana pegou a
moeda da mesa, guardou-a entre os seios e voltou a sorrir.
Wilhelmine saltou da carroça com o coração atribulado.
Caminhou ao lado de Alexander em silêncio, repetindo mentalmente
as últimas palavras da mulher.
— Convenceu-se de que nada daquilo faz sentido? — Ele
perguntou.
Wilhelmine suspirou.
— Acho que sim.
— O que ela disse no final?
A duquesa espantou a sensação estranha, voltando a sorrir. Não
precisava preocupá-lo com bobagens.
— Oh, nada. Disse que teremos filhos. No plural.
Aquilo pareceu agradar o duque.
Alexander aproximou a boca no ouvido dela, sussurrando:
— No plural? Então acho que precisamos treinar mais…
PRESENTE

D , F
estava arrepiada. Ela fechou o último diário sentindo algo espantoso
correr por ela. Uma adrenalina que só conheceu quando terminou
de correr a maratona de Berlim, ou quando viu o rostinho da filha
recém nascida da irmã. Era aquele tipo de espanto grandioso que
sentimos nos momentos imensos da vida. Naqueles em que
percebemos que somos gigantes e, ao mesmo tempo, um sopro de
nada.
Estava tudo ali. Todas as felicidades e preocupações da duquesa
nos trinta anos em que foi feliz ao lado do marido. O nascimento dos
filhos, as viagens, a influência de Alexander sobre ela — e a dela
sobre ele. Eles foram felizes.
Os primeiros raios de sol já entravam pela janela do quarto,
banhando o cômodo de luz. Tudo brilhava e reluzia. Tudo ganhava a
aura dourada das manhãs. Estava chegando a hora de se despedir
de Wilhelmine e Fran simplesmente não conseguia.
— Fran?! — O grito de Alice a despertou. — Consegui!
Fran levantou sentindo as pernas formigarem. Ela pousou com
cuidado o último diário sobre a pilha. Tinha lido dezesseis deles
durante a noite. Dos vinte e um até os sessenta, tudo que
Wilhelmine escreveu, ela leu.
Ela engatinhou de volta até o cômodo. Alice tinha afastado o
último baú vazio da frente do imenso quadro e aguardava, com as
mãos na cintura, coberta por teias e rosto tomado por pó, que Fran
se unisse a ela. Um sorriso de vitória iluminava a bagunça que ela
estava.
— Não quis puxar o lençol sem você — informou. — A honra é
sua.
Fran deu um passo adiante com a respiração em suspenso.
Seus olhos estavam inundados de lágrimas. Ela pousou a mão
sobre o quadro e olhou para cima. O tecido que recobria a pintura
estava tão roto que parecia prestes a se esfacelar. Ela segurou nele
e o puxou: uma nuvem de poeira fez as duas fecharem os olhos e
tossirem. Partículas entraram nos olhos de Fran, e ela precisou de
um tempo para voltar a enxergar.
A poeira baixou. O quadro surgiu em todo o seu esplendor.
Ao olhar para a pintura, as lágrimas começaram a descer em
cascata. Era uma pintura imensa, gigantesca, e ela só se deu conta
do que estava retratado quando a revelou inteira.
Wilhelmine no divã da biblioteca, vestida de vermelho. Uma mão
sobre o divã, a outra segurando um arco. Espalhados no chão,
dezenas de setas. No rosto bonito, pintado com impressionante
detalhe, um sorriso enigmático de Monalisa e olhos no pintor, como
se não conseguisse amar nada no mundo com tanta força.
A pintura era uma declaração de amor em forma de imagem.
As lágrimas ainda desciam pelo rosto de Fran quando ouviram
os passos no corredor. Para quem tinha lido sua história até agora,
ela fechava a noite mais improvável de sua vida com chave de ouro.
Fran deixou o cômodo ao lado de Ali, ambas com caminhos de
lágrimas pelas bochechas empoeiradas. Fran fechou os olhos
naqueles últimos segundos, tentando desesperadamente ouvir de
novo a voz que vinha de longe. Mas o que ouviria do passado?
Ela queria ouvir qualquer coisa.
Que ninguém deveria sumir da história.
Que a história mostrava que, mesmo depois da morte, a vida
continuava, desde que restassem palavras.
Mas as vozes se foram. As únicas que ouviam, agora, era dos
vigias ordenando que ficassem no lugar enquanto eles chamavam a
polícia.
TRÊS MESES DEPOIS

E F
condenação. Estava proibida de sair do estado, mas isso não
importava: a avó morava dentro da divisa. Ela dirigiu uma hora até o
pequeno vilarejo nos arredores de Stuttgart e estacionou o carro.
Ela desligou o veículo e o barulho cessou. As folhas novas das
árvores mostravam que os dias cinzentos do inverno tinham ficado
para trás. A primavera estava começando, trazendo flores e todos
aqueles insetos enjoados que ela precisava espantar da frente do
rosto enquanto cruzava o jardim.
Sua avó a aguardava na porta.
— Fran, querida! — A idosa a recebeu com um abraço. —
Estava com saudades!
Ninguém ficou mais feliz com a revelação do quarto secreto da
duquesa do que sua avó. Ela tinha sido a pessoa que plantou a
sementinha da curiosidade na cabeça da menina quando, durante
as férias, contou a história da antepassada que escrevia livrinhos
infantis e coletava contos de fadas da região e do mundo. Que tinha
sido ela a herdar a velha escrivaninha que hoje repousava em sua
sala, herança da bisavó de sua bisavó, e que um dia Fran herdaria.
Sua avó esteve com ela em cada etapa do processo que se
seguiu à noite no castelo — desde pagar um bom advogado para a
neta até dar entrevista a uma rede de TV falando como a história
havia sido ingrata com a duquesa, e ela, descendente direta, sentia
orgulho de Fran.
— Ouviu as últimas? — Fran tirou a jaqueta e pendurou no
cabide da entrada. — Irão reformar toda a parte do museu destinada
à família. Agora que sabem quem foi Wilhelmine, ela terá o espaço
que lhe é de direito.
— Tudo isso graças a você — a avó disse orgulhosa.
— Diga isso para os meus pais. Eles estão furiosos comigo até
hoje.
— Esqueça-os — a avó pegou na mão da neta, levando-a até a
sala.
O cômodo estava escuro por causa das cortinas cerradas. A
casa da avó sempre cheirava a móvel antigo e tapete velho, e
alguma coisa no cheiro trouxe a sensação de estar novamente
presa no castelo. Sua avó caminhou até as janelas e abriu-as,
deixando a luz entrar. Ao lado do piano, servindo de apoio para
vasinho de violetas e um jardim de suculentas, estava a
escrivaninha de Wilhelmine.
Era a primeira vez que Fran a via depois do que aconteceu. Ela
caminhou devagar até o móvel, tentando enxergar na peça sua
grandiosidade. Hoje via as gavetas, as portinhas da frente, os
nichos da parte de cima com outros olhos.
Fran ajoelhou-se ao lado do móvel. Deslizou a palma sobre a
madeira, suspirando. Sua avó se sentou na poltrona ao lado.
— Mal dá para acreditar, não é mesmo?
Fran fez que sim, em silêncio.
— Por que acha que ela doou a peça para Arabella Thiessen? —
Fran perguntou à avó. — Ela podia ter colocado a escrivaninha no
quarto que descobrimos.
A avó exalou, pensativa.
— Não sei. Talvez soubesse que a Europa estava mudando.
Quando morreu, em 1897, os rumos da militarização da Alemanha
já estavam claros. Talvez tenha tentado proteger o móvel, já que
sabia que, se houvesse uma guerra, invadiriam Solitude e
colocariam fogo em tudo.
— Mas e o quadro? As jóias, os diários? Por que justamente a
escrivaninha foi retirada de Solitude?
— Não sei, querida. Estou só confabulando — a avó respondeu.
Então ela ergueu o nariz, sentindo o cheiro do bolo. — Vou tirar o
bolo do forno e já volto. Pode procurar o que quer achar — a
senhorinha disse, rumando para a cozinha.
Fran se sentou diante da escrivaninha e cruzou as pernas.
Durante todo o processo exaustivo de ser levada presa, contratar
advogado, explicar o acontecido, passar pela chateação das
entrevistas e dos curiosos inundando suas redes sociais até reverter
a multa em trabalho comunitário, Fran pensou na escrivaninha. Não
conseguia tirá-la da cabeça. Pensava nela o dia todo, como se ela a
chamasse.
Sabia, no fundo, que não tinha descoberto tudo.
Ela se abaixou e entrou sob o móvel, acendendo a luz do celular.
As intrincadas entranhas da mobília estavam cobertas por poeira.
Fran tirou algumas teias dos cantinhos, procurando o mecanismo.
Sentiu um metal tocar a ponta dos dedos, e entendeu o dispositivo.
Ela apertou e algo se abriu.
Fran saiu de ré de dentro do móvel, derrubando o vasinho da
avó. Infelizmente, era só uma gaveta cheia de almofadinhas de
costura e rolos de linhas emboladas.
— E aí? — A avó perguntou da cozinha.
— Nada, ainda.
O vai-e-vem para dentro do móvel durou uma hora. Nada de
novo aparecia. Nada novo se abria.
A avó voltou com o bolo, depois o café.
Mais tarde, voltou com a caixa de ferramentas.
— Tem certeza? — Fran perguntou olhando para ela.
— Tenho. — a avó respondeu, firme.
Deu pena desmontar um móvel tão antigo. Fran tentou causar o
menor dano possível, mas só um restaurador experiente conseguiria
recolocar as peças de volta no lugar. Durante todo o tempo em que
destrinchou a escrivaninha centenária, Fran contou à avó o que
tinha descoberto naquele noite espetacular.
— Que mulher fascinante, vó. Ela escreveu tudo que viu na vida.
— Mais uma peça descolou da madeira. — Sobre como enviuvou,
sofreu, quase morreu de preocupação com os filhos enviados para a
guerra… — Fran olhou para a avó. — Até buscar o mais velho em
um bordel ela buscou.
A avó bateu palmas, morrendo de rir.
Fran voltou a se concentrar no desmonte.
— Segundo ela, saiu tudo nas colunas de fofocas do jornal da
época. Foi quando ela decidiu casá-lo com a primeira que
encontrasse.
— E foi assim que os três Winnentals conheceram as irmãs
Thiessen.
Fran interrompeu o desmanche para sorrir.
— Sim.
Dentro do peito uma vontade urgente a iluminava. Uma certeza
tão clara como a luz do dia: ela também queria viver coisas assim.
Queria poder escrever sobre a vida que teve, mas antes precisava
viver alguma coisa.
— Ela foi uma mecenas na arte — Fran martelou uma peça até
sair, continuando: — Dirigiu sociedades literárias. Resgatou Hans de
um ringue de lutas, enfrentou a polícia por causa da nora. E você
precisa ver o seu humor fino, vó… Que delícia ler. Cheguei a anotar
algumas tiradas na mão, à caneta, para não esquecer — Fran
suspirou. — Descobrir tudo isso faz a vida da gente parecer
pequena, não faz?
A avó a olhou com candura.
— Não, Fran. Não faz. Você percorreu essa Alemanha inteira
atrás dessas histórias. Por causa da sua persistência, o mundo hoje
sabe sobre ela.
— Dá uma tristeza pensar na própria vida — Fran riu de maneira
triste, desencaixando uma parte do móvel e pousando-a ao lado. —
O que mamãe fez da vida? No máximo entrou em uma festinha para
ver se eu estava aprontando. O que eu fiz? Chorei três meses
quando meu ex me largou.
Ela saiu de dentro da escrivaninha, cruzando as pernas.
— Ela era a realeza, vó. Mantinha contato com a esposa de
Bismarck. Usava o que tinha à mão a seu favor. Foi feminista
quando o feminismo ainda não existia. Colocou os três filhos no eixo
e encontrou para eles três noivas a quem, mais tarde, chamava de
filhas.
— Ela foi o próprio cupido, não foi? — a avó perguntou.
Os olhos de Fran se fixaram, vagos, em um ponto qualquer da
sala.
— Ela foi.
— Quando inaugurarão a nova ala em Solitude? — a avó
perguntou.
Fran olhou desanimada para a escrivaninha, desistindo de
destruí-la.
— Daqui a um ou dois meses. Parece que removeram Rosalie
para uma vitrine menor — ela olhou para a avó. — Eles colocarão
Wilhelmine onde ela sempre mereceu estar: no centro. E tenho
certeza que aquela declaração de amor em forma de quadro
ocupará toda a parede do lugar.
A avó estendeu a mão para ajudar Fran a se levantar.
— Dê um pulinho na inauguração — a avó disse. — A
administração do castelo não te expulsará se aparecer. Tem dedo
seu na descoberta.
Fran concordou. Ela tentaria estar lá na inauguração.
Assim que elas caminharam até a mesa para terminar o bolo,
ouviram um crec. Os pés da escrivaninha, frouxos, soltaram-se, e o
móvel caiu causando estrondo.
Fran e a avó se viraram. A bela escrivaninha de Wilhelmine
estava reduzida a um monte de peças soltas, umas sobre as outras.
Fran olhou para a avó, penalizada. Havia um certo brilho de
arrependimento no rosto dela também.
Mas entre as peças, uma quina de papel amarelado se
destacava. A ponta de um envelope salpicado de pontos marrons,
unido a outros por uma tira de couro, agora amassados entre a
madeira.
Um último maço de cartas.
Quando Fran o resgatou dos escombros, viu que eram de
Alexander.

A O .
Era composta de painéis imensos que chegavam ao teto e
reproduziam as páginas dos diários em passagens escritas entre os
anos de 1830 e 1885. Cinquenta e cinco anos de informações sobre
escândalos, eventos, curiosidades, detalhes sobre a vida marital.
Um registro histórico de valor imensurável.
Era de encher os olhos d'água ver a pintura de Wilhelmine
ocupar finalmente o centro do salão — o mesmo que um dia serviu
para apresentar seu filho herdeiro à sua duquesa. Vestida de
vermelho, olhando altiva para quem a olhava de volta, linda em sua
juventude. Os dedos sujos de tinta, sempre; o arco de Diana ao
lado, o sorriso de quem sabia que era a mulher mais inteligente do
lugar.
Fran precisou puxar o ar com força.
— Olá, tataravó — ela disse baixo. — Está onde deveria estar,
agora.
Ela olhou para os lados, vendo que estava sozinha na frente do
quadro. Tinha vindo no final do dia para evitar as multidões, e
conseguido.
— Achei as cartas que escondeu na escrivaninha — Fran
murmurou baixinho. — Não brigue comigo, mas precisei desmontá-
la. Acho que sei porque escondeu aquelas cartas. Cartas do duque
são registros raros.
Fran olhou discretamente ao redor. Ninguém ao lado.
— Não contei ainda sobre elas para o museu — ela continuou a
cochichar para o quadro, fingindo coçar o nariz. — Quero decorá-las
primeiro. Aprendê-las de cor. Mais tarde elas virão para cá — Fran
olhou orgulhosa para a sala inteira dedicada a ela. — E,
provavelmente, a escrivaninha também. Não temos dinheiro para
reformá-la.
Wilhelmine parecia sorrir de volta. Fran quase podia ouvi-la
dizer: o que fez com o meu móvel, sua maluca?
— Achei as cartas do duque muito bonitas — Fran estalou a
língua, impaciente, ao notar que ia se emocionar outra vez. — “Você
foi a dama mais perfeita.” — ela começou a recitar uma delas: —
“Não foi fácil unir duas criaturas de natureza temperamental por um
laço eterno, mas eu e você conseguimos. Fomos Marte e Vênus sob
o mesmo teto.”
“Sinto tanto que não pude mudar o mundo por você. Mas vou
contar algo que percebi: o mundo pode não permitir grandes
passos, mas não nota os pequenos. Dê pequenos passos todos os
dias. Conheço seu coração feroz, sei que poderia fazer muito mais,
mas ninguém precisa de guerras para mudar nada.
Avance passo a passo. Mova-se pelos lados. Talvez seu nome
não entre na história (ela não costuma fazer justiça às mulheres,
nós sabemos) mas ela está cheia de heróis e heroínas
desconhecidos que evitaram, com persistência, que mais trincheiras
e covas fossem cavadas…”
Fran abanou a mão na frente dos olhos.
— Vocês foram um casal e tanto — disse , tentando secar as
lágrimas.
Nenhuma novidade, ali: Wilhelmine sabia disso.
Fran olhou para o arco e as flechas ao lado da pintura. Estava na
cara que o pintor tinha sido acertado. Como não seria?
— Sonho de consumo — Fran confessou, desanimada. —
Encontrar um duque para chamar de meu.
Infelizmente, ambas sabiam que aquele era um sonho
impossível. Duques andavam em falta no século XXI.
Fran desistiu de ser doida e caminhou até as redomas onde os
apetrechos encontrados estavam agora expostos. Era a hora de
encerrar as visitas a Solitude e fazer algo da vida. Não queria mais
trabalhar no mesmo lugar, nem passar tanto tempo sozinha. Queria
mudar de vida. Fazer coisas novas. Ter motivo para se orgulhar da
vida.
Muitas das joias expostas foram usadas por Alice naquela noite.
Os vestidos foram reformados, os itens pessoais, polidos. Tudo
brilhava outra vez, agora que o pó do tempo havia sido removido.
Fran parou na frente da vitrine onde os livros de Arabella
estavam expostos. A pequena coletânea de contos de fadas que
reunia contos de Württemberg e alguns de além-mar estavam
dispostos com o respeito que mereciam. Fran amaria tê-los consigo,
mas sabia que estavam melhores ali, sob a luz e a temperatura
adequadas. Talvez nem todo mundo desse a eles a importância que
ela dava, mas certas coisas mereciam estar em museus, e não em
gavetas. Só não conseguia evitar de sentir melancolia ao vê-los.
Queria ter ficado com eles. Ela tirou o celular da bolsa e mirou nos
contos. Antes que pudesse fazer a foto, ouviu atrás dela:
— Não são permitidas fotografias.
O sotaque não era do Sul. Não era nem mesmo alemão.
Ela se virou esperando encontrar um dos vigias, mas deparou-se
com um rapaz de pele escura, olhos amendoados e cabelos negros
e compridos. Franz piscou, surpresa demais para disfarçar o
impacto da visão.
— … e os vigias aqui são bem chatos — o rapaz completou.
Fran foi ofuscada por uma carreira de dentes perfeitos e
lustrosos.
O rapaz de aparência exótica passou por ela, chegando mais
perto do vidro. Fran o acompanhou com os olhos.
— Mesmo assim, a foto sairia estranha porque o reflexo da
vitrine atrapalharia. — Ele a olhou novamente, explicando: — O que
é bom. Impede que o flash danifique a tinta do papel.
Fran sentiu a saliva descer grossa. Ela correu os olhos pelo
cabelo liso, pelos braços de aparência robusta e os ossos largos do
rosto. Uau.
Ele riu ao perceber que estava sendo escaneado como um
documento.
— Desculpe se a assustei — ele virou o rosto para olhá-la. —
Não foi minha intenção.
Fran acordou.
— Não assustou — ela guardou o celular. — Nem sei por que
quero fotografar esses diários outra vez. É uma velha mania.
Fotografar cada centímetro desse castelo para sonhar com ele
quando chego em casa.
Sabe Deus por que, o rapaz achou aquilo engraçado.
— Seu interesse é pelos diários encontrados ou pelo castelo em
geral? — ele ficou intrigado.
— Por tudo. E você? — Fran devolveu.
— Por tudo também — ele voltou a olhar para os livrinhos
amarelados sob o vidro.
Fran conseguia sentir, dali, o cheiro dele. Ele cheirava a coisas
verdes e frescas; a ar livre e aventura. Ela se perguntou de que
etnia seria. Não era asiático, nem africano. Seria Lapão? Não, ele
era moreno demais para ser do norte da Finlândia.
Ela estava agora curiosa.
— Conhece a história dela? — Fran apontou para o quadro da
duquesa, sem dúvidas o ponto alto da exposição.
Para sua total surpresa, o estrangeiro fez que sim.
— Ela conheceu meu tataravô. Na verdade — ele olhou para
cima, fazendo as contas, e Fran concluiu que jamais vira homem
mais lindo em sua vida. —… o avô de meu tataravô.
Fran sorriu, olhando para Wilhelmine.
— Pois ela era a avó da minha tataravó.
Enquanto os olhos amendoados do turista abriam-se de espanto,
ela concluiu erguendo a mão, sem jeito: — Sou a visitante avoada
que descobriu o cômodo secreto.
Fran nem tinha falado aquilo para se vangloriar. Fora descrita em
tudo quanto é blog e mídia social como a tonta que não percebeu
que o museu ia fechar, e acabou ficando trancada no castelo.
Contar aquilo era como dar um atestado de trouxa.
Mas, por algum motivo, o rapaz abriu um sorriso lindo que
clareou a sala já clara.
— Não acredito.
— Pois acredite — ela respondeu, sem mencionar a dor de
cabeça que a aventura trouxe.
Ele encostou no vidro e apontou para o terceiro volume que
estava entre os outros.
— Sabe esse livro aqui? — Ele a olhou divertido. Claro que Fran
sabia que livro era aquele. — Meu tataravô colaborou com algumas
histórias que estão nele.
O sangue sumiu do rosto de Fran.
Só então ela reparou melhor os traços marcantes do rosto, o
cabelo comprido, os olhos puxados. De súbito, soube quem era o
seu ancestral.
— Por isso voei até aqui — o rapaz voltou a olhar para o livreto,
ignorando que Fran ainda não tinha conseguido parar de olhar para
ele. — Curso História em Berkeley, na Califórnia. Sempre me
interessei pelas histórias da minha família, e dessa em especial.
Assim que os diários foram revelados, planejei essa viagem.
O homem parou de falar, ciente de seu lapso.
— Que falta de educação a minha — ele estendeu a mão até
Franziska. — Sou Kai.
Fran estendeu a mão fria até a dele, respondendo baixo:
— Franziska.
— Franziska — ele pronunciou o nome dela de maneira
adorável, como se tivesse gostado do som das letras em sua língua.
— Você teria um tempinho? Adoraria saber tudo sobre a noite em
que ficou trancada aqui. — Ele abriu outro sorriso largo. — Você não
faz ideia de como ficou famosa em nosso departamento. O que
aconteceu com você é o sonho de dez entre dez apaixonados por
História.
Fran pegou ar. Olhou para a exposição, então para Wilhelmine,
que ainda parecia sorrir, e respondeu, sem pensar demais:
— Claro.
Ela não tinha mesmo nada para fazer depois da visita.
— Tem uma cafeteria no primeiro andar — ele apontou para fora,
divertido. — Mas você provavelmente já sabe. Sua imagem
caminhando pelo castelo à noite viralizou pelo mundo.
Fran riu, corando.
Eles caminharam em direção à saída, enquanto ela sentia o
coração querer saltar fora do peito. Não era possível.
Não podia ser.
— Sempre ouvi histórias sobre esse meu ancestral — Kai olhou
para ela. Ele era pelo menos uma cabeça mais alto do que Fran. —
Esse meu antepassado morou um tempo em Stuttgart, com um
amigo que fez na América. O filho mais novo da duquesa,
Johannes.
Fran mordeu os lábios, espantando os pensamentos tolos.
Não me venha com histórias, coração sonhador. É só uma
coincidência.
Eles passaram pelos vigias, mas como eram novos, sequer
olharam para ela. Fran olhou para o alto, para as câmeras
apontadas para eles. Seria dali que vinha a sensação de estar
sendo vigiada?
Então olhou uma última vez para trás.
Wilhelmine despedia-se deles com aquele estranho sorriso que
parecia saber de tudo. As setas continuavam no chão, mas não
todas: uma havia sido lançada.
— Você não vai acreditar quem era o meu ancestral — Fran
comentou, pensando em coisas sem sentido, como coincidências,
destino e acasos fortuitos.
— Quem?
Ela disse o nome — o mesmo que ele — , e a risada deles
ecoou entre as glamorosas paredes de Solitude, onde homens
uniformizados e imponentes, em poses grandiosas e expressões
severas, acompanhavam, hoje silenciosos, o encantamento juvenil
frente a uma grande descoberta.

Fim
TEMPLATES
AGRADECIMENTOS

Como sempre, agradeço a você, leitora, que vibra quando escrevo


algo e me recomenda por aí. Agradeço às betas Nariane, Daiane e
Lorena, e ao grupo Bagunceiras, sempre um fonte de suporte.
Agradeço aos amigos que, ainda bem, são fartos, e o carinho e
apoio da minha família.
Se cuidem,
cuidem de quem vocês amam,
e até o próximo livro!

Karina
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