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Sinopse

Mariel Spark sabe que não deve confiar em um demônio,


especialmente um que quer sua alma, mas o que uma
bruxa pode fazer quando ele não sai do lado dela – e ela
meio que não quer que ele saia?
Mariel Spark é profetizada como a bruxa mais poderosa vista
em séculos da famosa família Spark, mas para o desgosto da
mãe, ela prefere cozinhar a preparar poções e jardinagem a
lançar feitiços. Quando um feitiço para convocar farinha dá
muito errado, Mariel se vê encarando um demônio – um que
ela convocou inadvertidamente para uma barganha de alma.
Ozroth, o Impiedoso, é uma lenda entre os demônios.
Poderoso e implacável, ele faz barganhas duras para coletar
almas mortais. Mas sua reputação tem sofrido desde que uma
barganha deu errado – se conseguir fazer uma barganha com
Mariel, ganhará de volta sua reputação mortal. Ozroth não
pode sair de perto da Mariel até que eles concluam uma
barganha, o que ela se recusa a fazer (é que alguns humanos são
apegados às suas almas).
Mas a bruxa é engraçada. E curvilínea. É repugnante, mas
cativantemente alegre. Se tornarem colegas de quarto
desconfortáveis muda rapidamente quando Mariel, com medo
de confessar a convocação inadvertida para sua mãe, deixa
escapar que está namorando Ozroth. Enquanto Ozroth e
Mariel lutam com seus objetivos opostos e mantêm um
relacionamento falso, uma verdadeira atração floresce entre
eles. Mas Ozroth tem um tempo limitado para fazer o acordo
e, se Mariel desistir da sua alma, ela perderá todas as suas
emoções – incluindo o amor – o que só significará um desastre
para os dois.
Aos meus pais: obrigada por estimularem minha curiosidade,
criatividade e por me encorajar, não importando as coisas
estranhas que eu decida escrever. (Por favor, leiam apenas a
versão editada que entreguei a vocês.)
Tabela de Conteúdos
Sinopse
Tabela de Conteúdos
Aviso – bwc
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e Um
Vinte e Dois
Vinte e Três
Vinte e Quatro
Vinte e Cinco
Vinte e Seis
Vinte e Sete
Vinte e Oito
Vinte e Nove
Trinta
Trinta e Um
Trinta e Dois
Trinta e Três
Trinta e Quatro
Trinta e Cinco
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Um

— Ai, não. — Mariel Spark olhou para a galinha assustada que


havia se materializado no balcão da cozinha. — Não era isso que
eu pretendia fazer.
Na mesa da cozinha, Calladia Cunnington quase engasgou
com o chá.
— Bem, isso é surpreendente. Pelo menos, os dois têm asas.
Mariel deu um olhar para a amiga. Ela recitou um feitiço de
convocação para um duende do ar, não para aves.
— Literalmente, a única coisa que eles têm em comum.
— Pontos pela criatividade? — Apesar da piada, a careta de
Calladia foi simpática. Como bruxa e amiga de longa data de
Mariel, ela sabia como era perturbador para Mariel estragar um
feitiço mais uma vez.
— É um feitiço de invocação básico, não uma pintura de
Jackson Pollock. — Mariel soprou um cacho perdido de seu
rosto, franzindo a testa para o convidado aviário surpresa que
atualmente eriçava suas penas ao lado de sua torradeira. Seus
feitiços muitas vezes saíam pela culatra, mas este era um novo
nível de merda.
— Bem, eu acho que é fofo — sua outra amiga Themmie –
abreviação de Themmaline – Tibayan disse de onde ela estava
sentada de pernas cruzadas, flutuando no ar. As asas
iridescentes da fada tremulavam enquanto ela tirava fotos do
pássaro com seu celular.
— Claro, mas o que eu faço com isso? — A galinha agora
estava arranhando o pentagrama escrito a giz abaixo dela. O que
acalmaria um pássaro assustado que foi teletransportado para a
cozinha de uma bruxa?
— Você pode enviá-la de volta para o lugar de onde veio? —
Calladia perguntou, apertando seu rabo de cavalo loiro. Ela
parecia repugnantemente serelepe para uma manhã de sexta-
feira, sua regata azul úmida de suor de uma recente visita à
academia.
Mariel mordeu o lábio, tentando não surtar. Calladia era a
melhor pessoa do mundo, mesmo que ela estabelecesse padrões
de condicionamento físico irracionais, mas ela nunca teve
dificuldades com a magia do jeito que Mariel tinha.
— Talvez. Se eu tivesse alguma ideia de onde veio.
Ela não tinha certeza de como havia convocado uma galinha
para começar. Realmente, sua mente vagou para sua lista de
compras enquanto desenhava o feitiço, mas tinha sido uma
breve distração, dificilmente digna de nota. E por que uma
galinha viva, em vez de filés de frango ou couve de bruxelas ou
um galão de leite?
Themmie arrulhou para a galinha enquanto tirava mais
fotos.
— Olhe para a câmera, gracinha. Faça uma pose! — Como
influenciadora de mídia social, a fada filipina-americana
documentava tudo e seu visual mudava constantemente. Esta
semana, seu cabelo preto e liso tinha sido enfeitado com verde
e rosa, e um piercing no nariz refletia à luz do sol que entrava
em cascata pela janela da cozinha.
Calladia revirou os olhos.
— O que é isso, America’s Next Top Frango?
America’s Next Top Bruxa era um programa nacional de TV,
popular entre humanos mágicos e não-mágicos. O spin-off,
America’s Next Top Model, se concentrava mais em lingerie do
que em feitiços, mas as modelos ainda lançavam ilusões ou
mudavam de forma durante as sessões de fotos. Mariel gostava
do show até que ela percebeu como uma adolescente que ela
estava muito, muito atrás até mesmo daqueles desastres de
reality shows em termos de competência mágica.
— Olhe pelo lado bom — disse Themmie — você
provavelmente a resgatou do mundo cruel da criação em
cativeiros. — O ativismo ambiental nunca esteve longe da
mente de Themmie, e seu rosto se iluminou. — Podemos
construir um galinheiro.
— Não vou ficar com ela — disse Mariel. Mesmo que a
galinha parecesse adorável enquanto olhava para a fritadeira.
— Tente inverter os símbolos — sugeriu Calladia. — Isso
deve enviá-la de volta.
Normalmente suas amigas não participavam de suas sessões
de prática de feitiçaria, mas, neste caso, Mariel estava feliz por
elas terem vindo. Elas não a julgavam por estragar a magia do
jeito que sua família fazia.
Mariel respirou fundo, depois marcou novamente o balcão
com giz. Um pentagrama, então as marcas de invocação
invertidas em cada braço da estrela invertida. Sua caligrafia
vacilou com a tentativa. Hécate, por que era tão difícil escrever
de trás para frente? Pelo menos esta era uma convocação
bastante simples e não exigiria nenhuma das grandes armas de
bruxaria como sal, sálvia ou esperma de salamandra. Quanto
mais complexo o feitiço, mais oportunidades de estragar tudo.
Pela bilionésima vez, Mariel desejou que a magia fosse tão
fácil quanto assar ou cuidar do jardim. Mas, embora Mariel
tivesse aperfeiçoado uma torta de framboesa matadora e
cultivado lindas flores, ela não conseguia fazer nem mesmo um
simples feitiço de limpeza sem cometer um erro terrível.
Vergonhoso para qualquer bruxa, mas duplamente para a
herdeira Spark da profecia. Antes do nascimento de Mariel, o
vento, a terra e as estrelas deram sinais de que ela seria a bruxa
mais forte em gerações da famosa família mágica.
Eles erraram feio, pensou Mariel enquanto marcava outra
runa irregular no pentagrama. Eu sou péssima.
A galinha se debateu desajeitadamente, depois caiu no chão
em um farfalhar de penas. Começou a cacarejar, bicando
perigosamente perto de seus tornozelos.
Mariel fechou os olhos e pensou em seu feitiço.
Encantamentos mágicos não eram falados em latim, para seu
desgosto, já que pelo menos o latim tinha uma estrutura lógica.
A magia tinha uma linguagem própria – uma que era
frustrantemente complexa. Era cheia de raízes extraídas de
dezenas de idiomas, bem como algumas que pareciam lorota, e
as regras de gramática e conjugação eram caóticas, na melhor
das hipóteses. Às vezes, ela se sentia tentada a colocar fogo no
dicionário.
— Uh, Chanticleer acabou de cagar no seu chão —
Themmie disse.
— Chanticleer1 tinha um galo — disse Mariel, com os olhos
ainda fechados.
— Com licença, entusiasta de Chaucer. E, eca, essa galinha
aparentemente come muita fibra.
Ótimo. Mariel torceu o nariz e procurou as palavras que
mandariam a galinha de volta para casa antes que sujasse ainda
mais sua cozinha.
— Adolesen di pullo! — ela proclamou.
A galinha explodiu.

1
Referência ao time de basquete feminino.
•••

— Aufrasen — Calladia disse gentilmente enquanto Mariel


esfregava o chão. — A palavra correta era aufrasen.
— Tarde demais. — Lágrimas picaram os olhos de Mariel e
seu estômago revirou com náusea. Ela geralmente lidava bem
com sangue, mas ela acabou de explodir uma galinha muito
fofa, e parecia diferente. Para não mencionar as partes,
cartilaginosas... ossos... que foram pulverizadas por todas a sua
bancada. Sua magia parecia mais com uma pintura de Jackson
Pollock do que ela pensava. Mariel tinha uma fornada de
muffins para fazer para a Sra. Rostow que morava no fim da rua,
mas ela não tinha certeza se seria capaz de aguentar.
Themmie também parecia nauseada. Ela estava pairando
perto do teto, o mais longe possível da carnificina.
— Pelo menos ela morreu rapidamente.
E pelo menos, Themmie havia parado de documentar a
cena. Seus seguidores provavelmente não iriam gostar da
gravação disso.
Mariel sentou-se sobre os calcanhares e enxugou a testa. Sua
mão voltou manchada de sangue, e ela gemeu, percebendo que
provavelmente havia pedaços de frango em cima dela também.
— Eu sou péssima.
— Você não é péssima — Calladia disse, vindo em defesa de
Mariel como ela sempre fazia. — Aprender a convocar leva
tempo. E você é incrível com magia da natureza.
Claro, demorou, mas as duas bruxas tinham a mesma idade
e, embora Calladia invocasse com sucesso há mais de uma
década, Mariel tinha vinte e oito anos com as habilidades de
uma garota de quinze. Exceto quando se tratava de plantas,
mas...
— Você sabe que minha mãe não se importa muito com a
magia da natureza — Mariel disse melancolicamente. Era o
eufemismo do século.
— O gosto da sua mãe em geral é questionável. Quem se
importa, desde que isso te faça feliz?
— Eu me importo. Mamãe diz que só vai pagar minha
especialização quando eu melhorar em teletransporte e
transmogrificação.
Sua mãe, Diantha Spark, era uma das melhores
teletransportadoras do mundo e não conseguia entender por
que Mariel tinha dificuldades com essa habilidade,
especialmente considerando a profecia. Embora Diantha
tivesse insistido em pagar a faculdade e uma casa para Mariel (na
verdade, foi uma batalha convencê-la de que Mariel só precisava
de um pequeno bangalô, em vez de uma mansão com uma pista
de boliche), ela recusou a ideia da especialização. E não porque
era muito caro – um dragão com um problema de acumulação
e um Amex preto não poderia nem sonhar em afetar os fundos
que os Sparks vinham acumulando há séculos. Não, Diantha
simplesmente não queria financiar "magia chata". Mariel levou
muito tempo para convencê-la de que um DoF – doutorado em
feitiçaria – em Herbologia Mágica era uma boa ideia, já que sua
mãe não achava que a magia das plantas era chamativa o
suficiente. Eventualmente, elas chegaram a um acordo: se
Mariel pudesse mostrar melhorias em sua feitiçaria não baseada
na natureza, sua mãe liberaria alguns dos vastos fundos dos
Spark para pagar as mensalidades.
Calladia fez um barulho rude.
— Ela está nadando em ouro. Ela deveria apoiá-la sem
amarras.
— Sim, bem, diga isso ao banco Sallie Mae. — Mariel
suspirou. — De qualquer forma, explodir coisas não vai ajudar
no meu caso.
— Talvez o problema seja que você está invocando coisas
chatas — Themmie sugeriu do alto. — Quem se importa com
algum duende do ar? Você deveria invocar um namorado.
Mariel revirou os olhos.
— Só porque não estou namorando não significa que eu
queira.
Themmie deu de ombros.
— Então conjure um amigo de foda. Sério, você está muito
tensa sobre todo esse legado da família Spark. — Themmie
ainda estava na faculdade, mas mesmo com os olhos grudados
no telefone o dia todo, ela conseguiu acumular muito mais
experiência mundana do que Mariel ou Calladia, com parceiros
de todos os gêneros e espécies.
— Transar não vai me deixar melhor em invocar.
— Não, mas vai ser um grande alívio de estresse.
Calladia se agachou ao lado de Mariel e estendeu a mão
como se fosse dar um tapinha em seu ombro. Ela hesitou, então
puxou a mão para trás e sim, definitivamente havia pedaços de
frango por toda Mariel.
— Eu sei que você está preocupada em cumprir a profecia.
Mas você dominará as habilidades no seu tempo, não no da sua
mãe.
Mariel suspirou.
— Espero que sim.

•••

Embora Calladia tivesse se oferecido para limpar a cozinha com


um feitiço, esfregá-la à mão parecia uma penitência. Calladia e
Themmie a deixaram, prometendo se encontrar em breve. No
momento em que elas estavam fora de casa, Mariel deixou
algumas lágrimas escaparem pela querida falecida.
— Desculpe — ela sussurrou para a bagunça nojenta em sua
lata de lixo. Sendo uma galinha e espetacularmente morta, ela
não respondeu, mas quem saberia? Talvez houvesse um plano
espectral separado para aves mortas e a alma da galinha estivesse
olhando através do véu agora, cacarejando a versão de pássaros
equivalente a Que porra é essa.
Depois de um banho longo e nojento, Mariel se sentiu um
pouco melhor. Ela encheu um regador e foi para o quintal,
onde havia uma pequena estufa em meio a canteiros de ervas. A
casa de vidro era seu lugar favorito no mundo.
A jardinagem era uma área em que Mariel se destacava, tanto
magicamente quanto não magicamente. No ano anterior, ela
ganhou o prêmio de Melhor da Classe na categoria das flores
Cravina e Astromélia no Campeonato de Flores do Noroeste
Pacífico – Divisão Sobrenatural, que foi um dos eventos
principais no Festival Anual de Outono de Glimmer Falls. Em
apenas algumas semanas, Mariel estaria concorrendo como
Melhor do Evento em uma exibição de flores magicamente
aprimoradas.
Milhares de turistas de todas as espécies iam até Glimmer
Falls para o Festival de Outono, uma das épocas do ano favoritas
de Mariel. As sombras ardentes do outono varriam as
majestosas Montanhas Cascade, e a cidade aninhada no sopé
das colinas brilhava com shows de mágica.
Glimmer Falls teria sido como qualquer outra cidade
americana do século XXI – principalmente humana, com uma
subcultura viva e visível de bruxas e outros seres sobrenaturais
– exceto por uma rara confluência de linhas ley que infundiam
a terra com magia. Como resultado, a cidade atraía uma vasta
gama de humanos mágicos e outras criaturas. Havia humanos
não-mágicos também, é claro, já que a sociedade havia sido
integrada por toda a história registrada, mas enquanto bruxas e
feiticeiros representavam quinze por cento da população
humana mundial, em Glimmer Falls era mais de setenta por
cento... e isso sem considerar os centauros, duendes, sereias,
lobisomens e outras espécies que chamavam a cidade de lar.
Glimmer Falls era emocionante, imprevisível e
maravilhosamente estranha, e Mariel amava sua cidade natal
com todo o coração.
Seus ombros relaxaram assim que ela inalou o ar quente e
perfumado dentro da estufa.
— Oi, bebês — ela disse às plantas. Ela começou a regá-las,
testando o solo em cada canteiro com o dedo para garantir que
nada ainda estivesse úmido. Conforme ela passava, as flores se
inclinavam em sua direção como se ela fosse o sol. — Boa
menina — ela murmurou para seu lírio de fogo enquanto ele
acariciava seus dedos com as longas pétalas vermelhas. Ela podia
sentir o contentamento da planta, uma suave felicidade por ter
suas necessidades atendidas.
A magia do jardim carecia do drama da transmogrificação
ou teletransporte, mas era a única habilidade mágica que Mariel
adotara instantaneamente. Mesmo quando criança, as plantas
se inclinavam para ela, e seu primeiro animal de estimação foi
uma roseira. Enquanto Mariel caminhava para cima e para
baixo nas fileiras de plantas, ela infundia cada uma com um
toque de magia, alimentando as raízes com vida. Graças à sua
habilidade, suas plantas floresciam o ano todo, sem serem
afetadas pelo clima externo. Outubro já estava cavando seus
dedos gelados em Glimmer Falls, mas dentro da estufa, o tempo
parecia ter parado.
Seu telefone tocou em seu bolso e Mariel grunhiu. Hora do
check-in diário de sua mãe. As plantas recuaram em
solidariedade. Mariel atendeu o telefone, já temendo o
interrogatório que viria.
— Oi, mãe.
— Como vai sua feitiçaria? — A voz estridente de Diantha
Spark irrompeu pelo alto-falante e Mariel afastou o fone do
ouvido. — Você invocou um duende do ar corretamente?
— Eu invoquei — disse Mariel, omitindo vários fatos
importantes.
— Ah, que bom. Coisas inúteis, sempre esvoaçando por aí,
mas são úteis quando você precisa de uma brisa forte para
soprar a saia de alguma vadia. Falando em vadias, eu te disse que
encontrei Cynthia Cunnington no outro dia? — Cynthia era a
mãe de Calladia, e também a inimiga e rival mágica de Diantha.
— Ela queria que eu soubesse tudo sobre a prática de
transmogrificação da filha dela. Você ainda está saindo com
aquela garota?
— Sim, mãe. — Mariel apertou a ponte do nariz. Ela e
Calladia – que rimava com Cascadia – eram melhores amigas
desde o ensino fundamental. Superficialmente, eram uma
dupla estranha – a briguenta Calladia fora suspensa mais de
uma vez por brigar, enquanto a sonhadora Mariel passava os
recreios brincando com ervas daninhas no parquinho –, mas
elas se encaixavam. Adicione o estresse de um par de mães
autoritárias e não havia como separá-las.
— Bem, fique de olho nela — disse Diantha. — Mantenha
seus inimigos próximos, mas não próximos o suficiente para
trocar fluidos, é o que eu sempre digo.
Mariel fez uma careta.
— Calladia não é minha inimiga.
— Todo mundo é seu inimigo quando você é a melhor. Eu
sei que você ainda não sabe como é se sentir assim, mas não
houve nenhuma profecia entregue no nascimento de Calladia,
então tenho certeza que você mostrará isso em breve. Afinal,
você é a filha da melhor teletransportadora em trezentos anos.
— Duzentos e oitenta — disse Mariel, sentindo uma alegria
secreta em repetir o fato menos favorito de sua mãe. — Griselda
Spark foi melhor.
Diantha fez um barulho rude.
— O registro histórico está cheio de imprecisões.
Se sua mãe começasse a reclamar sobre a história da família,
não haveria como escapar da ligação tão cedo.
— Eu adoraria conversar — disse Mariel, apertando o
telefone entre a orelha e o ombro enquanto acariciava as folhas
da sua trepadeira de jade —, mas estou no meio de cuidar do
jardim.
— Você e suas plantas. É uma maravilha você manter o foco
com isso, mas não para cumprir seu destino. As estrelas não
falaram nada sobre margaridas, sabe.
Mariel revirou os olhos.
— Gosto de jardinagem. Ganhei dois prêmios por isso no
ano passado, se você se lembra.
— Fitas — Diantha disse com desdém. — Você sabe o que
eles dão para o Melhor Feiticeiro Nacional? Um troféu de ouro
cravejado de joias preciosas.
— Sim, estou ciente. — Havia uma vitrine de troféus no hall
da entrada da casa dos seus pais, um lembrete constante do
legado familiar que ela não estava cumprindo. Sair daquela casa
para ir a faculdade foi um grande alívio, até porque ela não
precisava mais olhar para aqueles troféus estúpidos toda vez que
entrava ou saía.
— Você vai conseguir um este ano, tenho certeza. Você
apenas teve um início tardio. Seu pai diz que às vezes gênias
funcionam assim. Uma bruxa parece uma idiota inútil por
anos, e então algo se encaixa. Já experimentou Ritalina? Ouvi
dizer que faz maravilhas para melhorar o foco.
— Eu não tenho TDAH, mãe.
— Sim, eu sei, mas o abuso de drogas pode ser
surpreendentemente útil. Uma vez eu fiz a maior farra de
limpeza depois de cheirar coca com seu pai na faculdade...
Mariel deixou sua mãe tagarelando, sabendo que não havia
como parar a menos que ela desligasse. Diantha Spark era uma
força da natureza, conhecida por suas opiniões estridentes, usos
alarmantes de teletransporte e limites questionáveis. Ela era
amada e temida em Glimmer Falls.
Conversar com a mãe, assim como jardinagem e panificação,
exigia paciência e precisão. Mariel esperou seu tempo,
aguardando o momento perfeito para escapar.
— ...e você sabe que ela banca a sabe-tudo para cima de mim,
a cadela invejosa. Melhor torta, não importa que eu
teletransportei chocolate da Bélgica e perdi duas horas do meu
tempo tentando mostrar a ela.
Mariel revirou os olhos. Ela ouvia falar da torta de ruibarbo
levitante de Cynthia Cunnington desde o Festival de Outono
do ano passado. Engraçado como sua mãe zombou de cozinhar
até que sua "amiga" – também conhecida como nêmesis mágica
– decidiu tentar encantar uma torta.
— Assar está abaixo de mim — disse Diantha —, mas ela
disse aquela coisa desagradável e eu tive que destruí-la de
alguma forma, e seu pai não me deixou transportá-la para um
vulcão. Você acha que ela subornou o juiz do festival?
— Não.
— Você confia muito nas pessoas. Você deveria trabalhar
nisso. De qualquer forma, este ano eu vou com tudo. Uma torta
trufada de chocolate com trufas importadas da França, coberta
com folha de ouro autêntica e enfeitiçada para disparar fogos de
artifício. — ela cacarejou. — Deixe-a tentar vencer isso!
Mariel aproveitou o momento.
— Falando em teletransportar trufas, odeio interromper
essa conversa, mas preciso assar alguns muffins.
— Ugh. Eu cozinho por despeito; de outra forma, eu nunca
me sujeitaria voluntariamente a isso. — Diantha suspirou. —
Tudo bem, querida. Certifique-se de teletransportar os
ingredientes do exterior.
— Pode deixar.
— Só o melhor para os Sparks, é o que sempre digo.
— Sim.
— Você vai viver de acordo com a reputação da família em
breve, tenho certeza disso. — Diantha fez sons de beijo estalado
no telefone. — Adeus, querida Mariel, deixe seus ancestrais
orgulhosos hoje.
— Tchau, mãe. — Mariel desligou, então se apoiou contra a
parede de vidro. — Estou exausta — ela disse a suas tulipas. —
São dez da manhã e estou exausta só de ouvi-la.
As tulipas assentiram em solidariedade.
— "Deixe seus ancestrais orgulhosos hoje" — imitou Mariel.
Era a despedida padrão de sua mãe. — Josiah Spark era um
bruxo de jardinagem, e ninguém zomba dele por isso. —
Porque ele estava morto há três séculos, provavelmente.
Diantha Spark, apesar de todas as suas falhas, levava o passado a
sério. Legado era tudo para ela. — Talvez ela fique orgulhosa de
mim se eu for atropelada por um ônibus. — Mariel suspirou
quando a videira de jade roçou sua bochecha. — Eu não quis
dizer isso. Estou cansada de nunca ser boa o suficiente, sabe?
Suas plantas não sabiam, no entanto. Elas, ao contrário de
Mariel, eram perfeitas. Ela as havia feito dessa forma, mas não
tinha talento para fazer a mesma coisa consigo mesma.
— Tanto faz — Mariel murmurou, ficando ereta
novamente. — Eu tenho muffins para fazer. E ao contrário das
tortas da mamãe, eles vão ficar bons.
Dez minutos depois, Mariel tinha um avental laranja
brilhante amarrado na cintura e uma tigela na frente dela. Ela
pegou a farinha, então hesitou. Embora ela gostasse de manter
a confeitaria separada da magia – era bom ter um hobby
totalmente desconectado do legado dos Spark –, ela disse à mãe
que importaria os ingredientes.
Ela bufou e pegou o giz. Desta vez, ela desenhou o
pentagrama no chão, não querendo ocupar um precioso espaço
no balcão. Qual era a runa para comida mesmo? Ela desenhou
uma linha vacilante com três cruzetas no ponto superior,
depois preencheu o resto do pentagrama com sinais de
convocação e mais detalhes sobre o que ela queria. Então ela
fechou os olhos, alcançando sua magia.
Magia é parte intenção, sua mãe a ensinou. Você tem que
querer algo para que aconteça.
O que Mariel queria era se sentir menos fracassada. Ela
queria flores, muffins e o contentamento de ser exatamente o
suficiente para alguém.
Ela vasculhou o cérebro, tentando criar o feitiço. Conspersa
era latim para farinha, mas isso não estava certo. Harina
também não estava certo. Esta era uma daquelas estranhas
palavras mágicas que não tinham sua raiz em qualquer idioma
conhecido. Ozro, talvez? Ou algo assim para o substantivo.
Depois de longa consideração, ela finalmente resolveu o
feitiço.
— Ozroth din convosen — ela disse, infundindo as palavras
com um desejo de acertar, pela primeira vez. Ela venderia sua
alma pela chance de viver de acordo com seu estúpido legado.
Ela estava cansada de ser a Spark fracassada.
O estalo de um raio cortou o ar e Mariel saltou, abrindo os
olhos. Uma coluna de fumaça subiu do pentagrama,
espiralando em direção ao teto. Então desapareceu, revelando...
um homem?
Mariel gritou e pulou para trás. Ela estendeu as mãos
enquanto o homem a encarava. Ele deve estar tão assustado!
— Sinto muito, senhor. Foi um acidente. Eu pretendia
invocar um pouco de farinha e devo ter errado o feitiço, embora
não saiba como estraguei tanto. Mas você não explodiu, então
isso é uma boa notícia! — Ela estremeceu. Ela balbuciava
quando estava nervosa. — Eu provavelmente não deveria ter
dito isso.
A testa do homem franziu. Mariel piscou, observando os
detalhes de sua aparência. Ele era alto e musculoso, com a pele
bronzeada e cabelos negros como azeviche. Seus jeans pretos e
camiseta combinavam com a intrincada tatuagem envolvendo
seu bíceps esquerdo. Ela tinha subconscientemente canalizado
a sugestão de um amigo de foda de Themmie? Mas então ele
inclinou a cabeça e, espere, aquilo eram chifres fluindo em
elegantes linhas de ônix ao longo da lateral da sua cabeça?
A apreciação se transformou em pavor. Eu venderia minha
alma...
— Oh, não — ela disse, percebendo a verdadeira extensão do
seu erro. — Isso não é nada bom.
Dois

Ozroth, o Impiedoso, já foi o melhor em seu trabalho. Ele


coletou almas humanas durante séculos, fazendo negociações
tão duras que até mesmo demônios com milênios assobiavam
em apreciação. O plano demoníaco estava cheio de evidências
de seu trabalho, as esferas douradas de almas vagando pelo ar,
enchendo o plano com magia e vida. Ele era temido e
respeitado, e gostava disso.
Agora, um pequeno deslize depois, ele perdeu tudo. Ozroth,
o Impiedoso, era motivo de chacota. O único demônio a
acidentalmente ganhar uma alma, ao invés de tomar uma. Ele
podia sentir aquela alma em seu peito agora, um calor
incômodo e ameaçador. Ele manteve isso sob rígido controle,
mas sempre havia a ameaça de que a alma pudesse agir. Que ele
pudesse – um pensamento horrível – sentir demais.
Ele encarou a bruxa que o convocou para Glimmer Falls. Era
raro alguém o solicitar especificamente para uma barganha. A
maioria das bruxas e bruxos desesperados lançam uma ampla
rede com seus feitiços, supondo que qualquer demônio sirva –
uma ideia que Ozroth zombou. Algumas barganhas eram mais
complicadas do que outras, e alguns demônios eram mais
densos que outros. Por que usar um instrumento contundente
para trabalhos de precisão?
Ozroth havia construído uma reputação assustadora
principalmente com suas barganhas de vingança. A última vez
que alguém o convocou pelo nome, foi porque o feiticeiro
tinha ouvido falar de sua barganha com um xerife cuja esposa
havia sido morta por mafiosos. Os cinco assassinos morreram
em desastres naturais bizarros, sem ninguém para quem culpar.
Esta mulher não parecia do tipo que faria um pacto de
vingança. Sua expressão era alarmada, em vez de desesperada,
furiosa ou astuta. Suas curvas generosas estavam envoltas em
um avental laranja, seu cabelo castanho cacheado estava
emaranhado e cheio de folhas, e sua bochecha estava manchada
de sujeira. Ela era chocantemente bonita.
— Sinto muito, senhor — disse ela, lançando-se em uma
explicação tagarela que fazia pouco sentido. Ela estava
invocando... farinha? Ela estava feliz por ele não ter explodido?
E que tipo de bruxa chamava um demônio de "senhor"? Ozroth
inclinou a cabeça, ficando mais intrigado.
Então seus olhos se desviaram para a cabeça dele, e o medo
tomou conta de seu rosto.
— Ah, não — disse ela. — Isso não é bom.
Isso estava mais de acordo com as reações às quais Ozroth
estava acostumado. Ele saiu do pentagrama e abriu as mãos.
— Sou eu — ele entoou, a experiência o ensinara que as
bruxas preferiam seus demônios com um lado dramático —
Ozroth, o Impiedoso. Diga-me pelo que você negociaria sua
alma.
Ela freneticamente cruzou as mãos na frente dela no sinal
universal para não.
— Não é isso que eu quero. Sem barganha. Não, não
comigo. Hum, vá embora?
Bem, isso era confuso.
— Você não pode me dizer para ir embora — disse ele, muito
perplexo com a ideia. — Você me convocou pelo meu nome. —
E para Glimmer Falls, nada menos, que era conhecido em todos
os planos por ser um ponto de acesso a magia. Toda vez que
uma invocação genérica de barganha emanava daquela cidade
ou de uma das dezenas de outros pontos mágicos na Terra, os
demônios quase se derrubavam em sua urgência de se
teletransportar para a Terra e, esperançosamente, ganhar uma
alma poderosa. Nesse caso, a bruxa solicitou Ozroth
especificamente, quando a maioria das bruxas nem sabia que
poderia escolher um negociante preferido.
— Não, convoquei a farinha pelo nome — ela corrigiu. —
Você apareceu.
— Não é assim que funciona. — Ele cruzou os braços, e os
olhos dela dispararam para sua tatuagem. Ele havia sido
marcado por seu mentor quando criança, as runas explicando
sua responsabilidade como negociador de almas. — Agora me
diga pelo que você trocaria sua alma, mortal.
— Nada.
Ele encolheu os ombros.
— Uma escolha ruim, mas se você quiser dar para mim...
— Não! — ela gritou. — Minha alma não está em jogo.
Volte para o Inferno ou... ou seja lá de onde você veio.
Ele semicerrou os olhos para ela.
— O que eles estão ensinando nas universidades hoje em
dia? — ele perguntou, muito chocado para manter o ato de
demônio dramático por mais tempo. Humanos e seres mágicos
viviam lado a lado por todo o tempo registrado, e mesmo as
escolas que não ensinam magia deveriam oferecer cursos básicos
de Relações Interespécies. — Não existe inferno. Eu vivo num
plano demoníaco.
— Bem, volte para lá, então! — Ela plantou as mãos nos
quadris, parecendo mais furiosa a cada momento. Isso também
era incomum. Ninguém respondia a um demônio, muito
menos a Ozroth, o Impiedoso.
— Eu não posso — disse ele com os dentes cerrados. Ele deve
suportar o desrespeito dos mortais também? — Como
expliquei antes, você me convocou pelo meu nome. Estou preso
aqui até que você conclua o pacto.
— Oh, Hécate — ela disse, batendo o pé. — Por que nada
pode ser fácil? — Ela abriu o armário, tirando um pacote de
sálvia, um saleiro e vários frascos pequenos.
Ele a estudou atentamente enquanto ela arrumava os itens
na bancada. Havia algo estranho nela – bem, havia um monte
de coisas estranhas nela, mas algo estava fazendo sua pele
formigar. Um movimento próximo chamou sua atenção, e ele
observou uma planta no parapeito da janela estender uma
gavinha como se fosse acariciá-la.
Ele não podia sentir a magia de nenhuma outra criatura,
incluindo demônios, mas a magia das bruxas brilhava como um
farol. Ainda assim, ele normalmente não a sentia dessa forma –
não sem que precisasse focar. Ele fechou os olhos e se
concentrou naquela energia formigante, abrindo todos os seus
sentidos para ela.
Poder. Poder puro e bruto. Os pelos de seus braços se
eriçaram e ele estremeceu em apreciação. A bruxa estava cheia
de magia dourada e brilhante como ele não via há séculos.
Embora a bruxaria viajasse por linhagens familiares, era raro
alguém herdar não apenas o talento inato para feitiçaria, mas o
poder bruto para realizar trabalhos substanciais. Sua alma seria
uma fonte brilhante de energia para o plano demoníaco
crepuscular.
Seus olhos se abriram.
— Você — disse ele — é muito interessante.
Seu pulso acelerou enquanto a excitação aumentava.
Ninguém mais acreditava que ele fosse capaz de fechar negócios
difíceis. Para reivindicar uma alma tão poderosa...
Você é inútil para mim assim, seu mentor, Astaroth dos
Nove, cuspiu quando Ozroth voltou pela primeira vez com
uma alma mortal inconveniente alojada em seu peito. Eu preciso
de você frio e eficiente.
Honra e dever eram conceitos importantes para os
demônios, e a honra de coletar almas para beneficiar o reino dos
demônios – seja por meio de barganhas diretas ou mais
complicadas, exigindo truques, ameaças ou violência – era o
maior de todos. Com a alma da bruxa em mãos, Ozroth
provaria seu valor e recuperaria a honra que havia perdido.
— Eu não sou interessante — disse a bruxa, balançando a
cabeça enquanto desenhava um pentagrama vacilante na
bancada com giz, então circulou com sal. Uma das folhas de seu
cabelo se soltou e voou em direção ao chão, mudando sua
trajetória parcialmente para baixo para que pudesse se agarrar a
sua canela. — Sou muito chata. Gosto de jardinagem e de assar,
e não sou nem um pouco interessante, e agradeceria muito se
você perdoasse esse pequeno... passo em falso e voltasse para o
Inferno. O plano demoníaco. — Ela acenou com a mão. —
Onde quer que isso seja.
Ozroth definitivamente não iria embora, mesmo que
pudesse. Essa bruxa baixinha, curvilínea e estranha era
exatamente a alavanca de que ele precisava para recuperar sua
reputação temível. Barganhada por acidente ou não, sua alma
poderia iluminar o plano demoníaco por conta própria.
— Não.
Ela fez um som baixo que era quase um grunhido enquanto
salpicava óleo pungente nas pontas do pentagrama. Então ela
acendeu o fogão a gás e acendeu a salva nas chamas.
— Desapareça, praga — ela disse, acenando com a sálvia
fumegante em sua direção. — Em nome de Hécate, eu te
expulso deste reino! Relinquosen e' daemon!
Ozroth espirrou.
A bruxa esperou alguns segundos, olhando para ele como se
esperasse que ele desaparecesse. Então ela sacudiu sal em um
novo padrão sobre o pentagrama.
— Destruoum te ollasen!
O bule em seu fogão quebrou, e Ozroth protegeu os olhos
enquanto cacos de cerâmica o atingiam como estilhaços. As
peças caíram no chão em uma cacofonia musical.
A bruxa olhou para os restos de seu bule, o rosto pintado de
tragédia.
— Eu realmente gostava desse bule — ela sussurrou. Então
ela olhou para Ozroth. — Isto é culpa sua.
Ozroth tirou pedaços de cerâmica de seu cabelo, fazendo
uma careta para as alegres flores amarelas pintadas na porcelana.
— Não vejo como.
— Ugh! — Ela ergueu as mãos e saiu pisando duro, então
começou a vasculhar uma estante no corredor fora da cozinha.
Ele cruzou os braços e recostou-se no balcão dela,
começando a se divertir. Não que negociadores de almas devam
gostar das coisas, ele lembrou a alma indesejada em seu peito,
que aparentemente estava determinada a ter sentimentos sobre
tudo. Ainda assim, uma convocação acidental era pelo menos
intrigante.
Ela murmurava para si mesma enquanto jogava os livros por
cima do ombro. Eram principalmente livros de culinária, junto
com alguns livros de autoajuda: Nunca Boa o Suficiente? e A
Magia do Namoro: Um Guia Prático Para Bruxas Solitárias.
Finalmente, ela se endireitou com um "Ah!", um grosso tomo
encadernado em couro em sua mão. Ela o carregou para a
cozinha, deixando-o cair sobre a mesa com um baque. A
Enciclopédia Omnibus de Criaturas Mágicas estava escrito na
capa em letras douradas. Ela apontou para Ozroth.
— Vou descobrir como sair dessa.
Ele observou enquanto ela virava as páginas, murmurando
para si mesma. Foi um exercício inútil, mas ele tinha que
apreciar sua determinação. Ele teve pessoas tentando sair de
barganhas antes – depois de receberem qualquer benefício que
ele concedesse em troca, é claro – mas não assim. Ela nem havia
pedido nada a ele.
— Tem certeza de que não há nada que eu possa lhe dar? —
ele perguntou. — Dinheiro, amor, vingança contra seus
inimigos?
Ela revirou os olhos.
— Você é tão clichê.
Seu queixo caiu.
— Como é?
Ela o ignorou, continuando a folhear o livro. Ela parou em
uma página com a ilustração de um ser com chifres. Ozroth se
aproximou para ler por cima do ombro dela. A imagem foi
claramente desenhada por alguém que nunca conheceu um
demônio. As pernas eram articuladas para trás e os chifres
esticados para cima, em vez de seguir a curva da cabeça e
apontar para trás. As presas eram muito exageradas também.
Seus caninos eram longos, mas não tão longos, e ele nunca tinha
babado assim em sua vida. Era realmente assim que os mortais
viam sua espécie?
Ele deu uma olhada no texto. Demônio: uma espécie
humanoide que reside em um plano físico separado. Eles podem
oferecer qualquer benefício a uma bruxa ou feiticeiro, mas a um
preço alto. Em troca de dar a uma bruxa o desejo de seu coração,
o demônio come sua alma.
Ele bufou.
— Nós não comemos almas. Quem escreveu esse lixo?
Ela olhou para ele com grandes olhos castanhos.
— O que faz com as almas que você pega, então? — Sua testa
franziu. — Eu nem tenho certeza do que é uma alma, para ser
honesta.
— É a faísca interior. O lugar de onde vem a magia. — A
parte pulsante, vibrante e sensível que tornava os humanos
poderosos, mas frágeis... e impossíveis de prever. Todos os
humanos possuíam esse núcleo caótico e apaixonado, mas
apenas bruxas e feiticeiros produziam magia a partir dele... ou
tinham a capacidade de negociá-lo.
— Você tira a magia das pessoas? — Ela parecia horrorizada.
A magia também vinha emaranhada com a emoção – depois
de fechar um acordo, os humanos se tornavam frios e
totalmente racionais –, mas ela não precisava saber disso.
— A escolha é deles — disse Ozroth. — Em troca, eles
conseguem tudo o que sempre quiseram — supondo que ele
não conseguisse encontrar uma maneira de distorcer as palavras
do acordo a seu favor. Os humanos tinham uma tendência a
desejar coisas idiotas e logisticamente intensivas, e era uma
marca de orgulho na comunidade demoníaca sempre que
alguém contornava um negócio particularmente selvagem.
Outros podem achar estranho que uma espécie tão
obcecada pela honra elogie a astúcia e o engano, mas quando o
engano manteve uma comunidade viva, que vergonha havia
nisso?
— Você ainda não me contou o que faz com as almas — ela
disse.
Para ser honesto, ninguém nunca havia perguntado isso a
ele. Historicamente, as pessoas ficavam muito envolvidas na
angústia de "negociar minha alma" para se preocuparem com o
que acontecia com a dita alma.
— As almas fornecem energia e luz ao nosso reino.
Ela piscou.
— Não era o que eu esperava.
— O que você estava esperando? — ele perguntou,
pensando no desenho com as presas, pernas esquisitas e
copiosas gotas de saliva.
Ela acenou com a mão pequena.
— Rituais sombrios, tortura eterna, orgias de sangue... o de
sempre.
Foi a vez de ele ser pego de surpresa.
— Esse é o seu de sempre?
— Não o meu. — Ela fez uma careta. — As orgias de sangue
são mais coisa da minha mãe.
Ozroth estava distraído demais com a energia que emanava
dela para se importar com a mãe. Para seus sentidos
demoníacos, a magia dela brilhava como um pequeno sol em
seu peito. A bruxa queimava com possibilidades.
Percebendo que estava olhando para ela, para sua alma, na
verdade, ele se sacudiu.
— A coisa da tortura eterna é um absurdo mitológico —
disse ele. — Alguma bruxa com meio pé no mundo humano
estragou tudo, e agora todo mundo pensa que demônios
roubam almas, bebem sangue e rasgam os pedaços delicados das
pessoas na vida após a morte.
— Então não há punição na vida após a morte?
Ele zombou.
— Ainda estou vivo, da última vez que verifiquei.
— Bom ponto. Então, o quê, as almas humanas alimentam
sua rede elétrica?
— É difícil de explicar. — O plano demoníaco não tinha sol
visível, apenas uma espessa camada de nuvens que limitava o
céu a tons de cinza, roxo e preto. As orbes douradas flutuantes
das almas mortais forneciam iluminação, mas era mais do que
isso. Os demônios não podiam produzir sua própria energia
mágica – além da barganha da alma ou outros tipos de magia
que alguns poucos herdaram – então eles tinham que pegá-la
de outros. Sem essa magia, o reino demoníaco escurece
lentamente, seus habitantes perdendo a vida e energia com isso.
Eventualmente, tudo se desintegraria em pó.
Ela balançou a cabeça, os cachos cheios de folhas
balançando.
— Essa coisa toda é estúpida.
— Com licença — ele retrucou, o temperamento crescendo.
— Você sabe quem eu sou? — Ele foi o arquiteto de incontáveis
negócios importantes, incluindo o assassinato de nada menos
que doze líderes mundiais. Claro, sua reputação estava em
frangalhos no plano demoníaco, mas havia capítulos inteiros de
necronomica dedicados a ele.
— Uma inconveniência — ela rebateu. — Eu já sou a bruxa
mais incompetente que já existiu. Eu não preciso invocar
acidentalmente um demônio para somar a isso.
— Incompetente? — Ele balançou a cabeça. — Posso sentir
sua magia, bruxa.
— Sim, as estrelas, o vento e a terra também, e olhe para nós
agora. — Ela suspirou e encostou a testa na mesa. — Então, o
que acontece agora? Você vai ficar por aqui até que eu lhe dê
minha alma?
Esta era uma experiência única. Normalmente, as bruxas
ansiavam por lhe dar suas almas, desesperadas por quaisquer
prêmios que ele pudesse oferecer em troca.
— Bem... sim.
Ela levantou a cabeça e olhou para ele.
— Nunca vai acontecer.
Ele encolheu os ombros.
— Eu sou imortal. Eu tenho tempo.
Ela abriu os lábios, provavelmente para dizer alguma outra
coisa rude, mas o momento foi interrompido pelo toque de
uma campainha.
— Mariel, querida! — Uma voz feminina chamou, o som
abafado. — Venha dar um beijo na sua mãe!
O nome da bruxa era Mariel. Bonito.
Ozroth observou com interesse enquanto a cor se esvaía das
bochechas de Mariel, destacando suas sardas.
— Ela não pode saber que eu invoquei você — ela sussurrou,
o pânico estampado em seu rosto.
Ozroth sentiu uma abertura.
— Se você me der sua alma, não vou contar a ela.
— É, não, obrigada. — Mariel se levantou e disparou para o
armário do corredor, retornando com um gorro de tricô rosa,
que ela puxou sobre a cabeça dele antes que ele pudesse impedi-
la. Ele estremeceu como o tecido esticado sobre seus chifres
sensíveis. — Use isso, e não se atreva a se mover. Estarei de volta
em alguns minutos.
Ela correu pelo corredor quando a campainha tocou
novamente. Ozroth passou a mão pelo gorro, que sem dúvida
tinha a intenção de esconder seus chifres. O que havia de errado
com essa bruxa? Seus chifres eram considerados muito bonitos
no plano demoníaco, e ninguém ousava chegar perto deles sem
sua aprovação. Esta bruxa tinha acabado de pisar em um dos
limites mais sagrados da raça demoníaca, assim como pisoteou
o básico da educação.
Mas Ozroth precisava que Mariel se entusiasmasse com a
ideia de um pacto de alma, então ele manteve o gorro, apesar da
maneira como isso fazia seus chifres coçarem.
Ele seguiu Mariel, observando enquanto ela penteava o
cabelo bagunçado com os dedos e esfregava a sujeira em sua
bochecha. Ela respirou fundo e abriu a porta.
— Oi, mãe! Realmente não é um bom momento...
As palavras foram interrompidas quando uma mulher de
meia-idade em um terninho branco forçou sua entrada. Ela era
magra e rija, com o cabelo castanho cacheado como o de Mariel
e o rosto de predador com traços marcantes. Seus lábios
estavam pintados de vermelho sangue e um par de óculos
escuros de grife descansava no topo de sua cabeça.
— Querida — ela balbuciou, beijando o ar em ambos os
lados do rosto de Mariel com sons altos de estalo. — Eu sei que
acabamos de conversar, mas eu estava na área e mal podia
esperar para ver como seria sua invocação.
Mariel parou na frente de sua mãe, ficando entre ela e a
cozinha, onde Ozroth observava da porta.
— Não posso conversar agora.
— Oh, quieta — a mulher disse. — Onde está o seu feitiço?
Sua caligrafia melhorou? Eu não consigo te dizer o quanto eu
me arrependo de mandá-la para a escola pública para a segunda
série.
— Mãe, não...
Não adiantou. A pequena mulher deslizou ao redor de
Mariel como óleo. Ela deu dois passos em direção à cozinha,
então parou com a visão de Ozroth. Seus olhos se arregalaram.
— Quem é esse? — ela exigiu, apontando uma unha longa e
bem cuidada para ele.
Ele sorriu, expondo seus caninos afiados.
— Na verdade, eu sou...
— Meu namorado! — Mariel gritou antes que Ozroth
pudesse terminar a frase.
O silêncio se estendeu depois desse anúncio.
Ozroth ficou boquiaberto com Mariel. Ele era o quê?
E então a mãe de Mariel começou a chorar.
Três

— Finalmente — Diantha Spark lamentou. — Eu quase desisti


de ter netos.
Mariel compartilhou um olhar alarmado com o demônio,
embora ela suspeitasse que eles estivessem alarmados com coisas
diferentes. Ozroth, o Impiedoso, também conhecido como
Ozroth, a Enorme Inconveniência. Seus olhos dourados – uma
cor que ela nunca tinha visto em um ser humano – estavam
arregalados e, pela primeira vez no curto espaço de tempo em
que se conheciam, ele parecia sem palavras. O gorro rosa se
estendia desajeitadamente sobre seus chifres, mas ela esperava
que Diantha estivesse muito distraída para notar.
— Sim, estamos muito felizes — disse Mariel, correndo em
direção ao demônio. Ela envolveu a mão em torno de seu braço,
embora sua pele tivesse arrepiado com o contato com sua pele
muito quente. Ela ficou na ponta dos pés como se fosse beijar
sua bochecha. — Se você não entrar no jogo — ela sussurrou
—, eu vou explodir você.
Mariel não achava que ela seria capaz de explodir ninguém –
animal, demônio ou qualquer outra coisa – de propósito, mas
ele não sabia disso. Ela o encarou tão ferozmente quanto pôde,
e o demônio engoliu em seco, então assentiu.
Mariel voltou sua atenção para sua mãe.
— Então, como eu disse, estou ocupada agora e não posso...
— Me conte tudo — Diantha disse, correndo para frente.
Ela agarrou a mão livre de Ozroth e Mariel estremeceu. —
Como você conheceu minha filhinha? Você tem um emprego
estável? Qual é o seu nível de habilidade mágica? Eu sei que ela
é incompetente, mas ela está tentando, Deus a abençoe.
— Mãe!
— Nós nos conhecemos recentemente — Ozroth disse, a
voz suave como seda. Ele tinha um sotaque muito interessante
– como britânico misturado com australiano e temperado com
algo arcaico. Embora ele não pudesse ter gostado de ser
agarrado, seu sorriso era caloroso e largo quando ele concentrou
sua atenção em Diantha. — Mariel é uma mulher adorável, e
isso é tudo crédito seu, Sra...
Ele parou, mas felizmente, Diantha estava muito animada
para questionar.
— Oh, por favor, me chame de Diantha! Ela nunca
namorou antes, sabe. Uma garota tão estranha! Mas a
profecia... — Ela estremeceu e um sorriso feliz surgiu em seus
lábios vermelhos. — Bem, quando isso acontecer, você será um
homem de muita sorte, de fato. — Ela deu um tapinha na mão
dele. — Apenas tente aguentar até lá, certo?
As bochechas de Mariel queimaram. Já era embaraçoso o
suficiente ter invocado acidentalmente um demônio. Sua mãe
encontrando o dito demônio e depois envergonhando Mariel
na frente dele era um nível extra de humilhação. A galinha
explodida estava se tornando o ponto alto do dia.
— Já sou sortudo — disse o demônio, soltando sua mão da
de Diantha. Ele agarrou os dedos de Mariel, então levou a mão
dela aos lábios. Sua boca, como seus dedos, era quente, e seus
olhos arderam com malícia enquanto ele beijava as costas de sua
mão.
Mariel tossiu. Claro que ele era capaz de ser encantador. De
que outra forma ele seduziria as almas dos desavisados? Mas
Mariel não era ingênua para ser enganada por lábios macios e
doces elogios – o conhecimento de sua mãe sobre o histórico de
namoro de Mariel estava felizmente limitado por uma mistura
elaborada de lábia e sorte cega – e ela sabia o que inflamava por
trás daqueles lindos olhos dourados. Demônios eram monstros
enganadores, o que significava que ela não podia confiar em
uma palavra que saía de sua boca.
— Agora, me conte sobre você — Ozroth disse, voltando
sua atenção para Diantha. — Já posso dizer que você é uma
mulher fascinante.
•••

Uma hora depois, Mariel estava em sua segunda caneca de chá


de camomila, imaginando por quanto tempo um homem – ou
melhor, um demônio – conseguia parecer interessado em uma
conversa. Eles foram para a sala de estar, onde Ozroth estava
sentado em um sofá com sua mãe enquanto Mariel se
acomodava em uma poltrona com estampa floral. Diantha
presenteou Ozroth, o Impiedoso, com toda a história de sua
vida e mais algumas, mas ele ainda se inclinou para frente e
sorriu, embora ela nem tivesse perguntado o nome dele.
— E você ganhou o troféu pela décima vez — Ozroth disse
em voz baixa, como um ronronar. — Que realização incrível.
Diantha se arrumou, afofando o cabelo.
— Não é tão incrível, considerando minha habilidade.
Ozroth assentiu.
— Você é poderosa. Eu posso sentir isso.
Isso chamou a atenção de ambas as bruxas.
— Você pode sentir o poder mágico? — Diantha
perguntou, sentando-se ereta.
Ele ainda estava sorrindo como um maldito anúncio de
pasta de dente. Seus caninos eram afiados e ligeiramente longos
demais, e Mariel se perguntou se ele alguma vez mordia sua
presa.
— Meus próprios talentos como feiticeiro são mínimos —
disse ele —, mas minha principal habilidade é sentir a magia.
Mariel é excepcionalmente poderosa. — Ele acenou com a
cabeça para Diantha. — Bons genes.
Mariel mordeu a língua. Ele deveria acrescentar mentir e
puxar saco das pessoas à sua lista de habilidades.
Diantha lançou um olhar condenatório para Mariel.
— Infelizmente, ela não aprendeu a controlar esse poder.
Mariel se encolheu.
— Sim, obrigada. Você só disse a ele um milhão de vezes o
quão terrível eu sou.
Diantha fez beicinho.
— Só estou tentando ajudar. Um pouco de pressão pode ser
útil.
Um "pouco de pressão" arruinou a vida de Mariel. Ela não
fazia terapia à toa.
— Sua filha — Ozroth disse —, tem a aura mágica mais
brilhante que já encontrei. Ela está destinada a grandes coisas.
— Seu olhar deslizou para Mariel, e um sorriso malicioso
inclinou seus lábios detestáveis. As "grandes coisas" que ele
estava imaginando provavelmente envolviam o sacrifício de sua
alma imortal para alimentar seu Wi-Fi.
— Falando em destino — disse Mariel, aproveitando o
momento e se levantando —, preciso fazer algumas pesquisas.
Sinto muito por ir embora, mas realmente acho que isso vai me
ajudar a melhorar meu feitiço.
Diantha assentiu.
— Vá estudar, querida. Seu namorado pode me entreter.
Mariel estava imaginando coisas ou Ozroth estremeceu?
— Na verdade — ele disse, levantando-se do sofá —, eu
preciso ir... alimentar meu gato. — Ele assentiu. — Sim, meu
gato está com muita fome.
— Eu não sabia que você tinha um gato — Mariel disse em
um tom meloso. — Tem certeza que não pode ficar?
— Sim, fique — Diantha disse, fazendo beicinho com os
lábios vermelho-sangue.
— Eu tenho um gato — confirmou Ozroth. — E não, eu
tenho que ir. — Ele passou um braço em volta da cintura de
Mariel, e Mariel quase engasgou com a própria saliva. — Tenho
certeza de que você também tem lugares muito importantes
para ir.
— Oh, sim! — Diantha se levantou, abanando-se com uma
mão bem cuidada. — Nunca há tempo suficiente durante o dia,
não é?
Levou mais vinte minutos para tirar sua mãe da casa.
Quando ela se foi, Mariel caiu contra a porta da frente fechada.
Ozroth arrancou o gorro rosa e jogou-o no chão, depois passou
a mão pelo cabelo escuro, afofando-o de volta a perfeição
anterior. Era longo o suficiente para esconder parte dos chifres
de ônix que se curvavam ao longo de sua cabeça.
— Isso foi... intenso — disse.
Mariel gemeu.
— Bem-vindo a minha vida.
— Ela é sempre assim?
Mariel fez uma careta.
— Ela ficou mais intensa ao longo dos anos. Quando eu era
criança e ela achava que eu seria a melhor bruxa em mil anos, ela
só me elogiava. Foi só quando comecei a falhar que ela ficou
assim... — Ela fez uma pausa, tentando pensar em uma
descrição apropriada para sua mãe. Obsessiva? Rude?
Aterrorizante? — Autoritária.
Ele inclinou a cabeça novamente, os olhos traçando sobre
ela. Seu olhar era estranhamente intenso, como se ele estivesse
olhando sob sua pele. Talvez ele estivesse – Mariel sabia merda
nenhuma sobre demônios.
— Você é poderosa — ele disse. — É fácil de ver.
Mariel estava cansada de ouvir sobre seu suposto poder. As
plantas a amavam, mas tudo o que ela conseguia fazer era
explodir coisas e invocar objetos inapropriados, e ela não queria
pensar nos encantamentos acidentais. Os feitiços de amor não
eram tão divertidos quando Mariel acidentalmente se distraiu
com o estado de seus pepinos enquanto tentava ajudar uma
amiga com sua paixonite.
— Tente dizer isso à minha magia — ela disse amargamente,
passando pelo demônio para voltar para sua cozinha. O livro
estava aberto sobre a mesa, provocando-a com conhecimento
fora de seu alcance. Eles podem oferecer qualquer benefício a
uma bruxa ou feiticeiro, mas a um preço alto. Sim, mas como ela
se livrava de um demônio?
Ela pisou em um caco de bule e estremeceu quando ele
cravou em seu calcanhar. Mais uma vítima da falta de talento de
Mariel.
O roçar das folhas em seu rosto a fez suspirar. Ela virou a
cabeça para sua planta gravatinha, que a acariciou com suas
longas folhas.
— Você pode se livrar de um demônio? — ela perguntou
suavemente. — Talvez a macieira possa ajudar. — A imagem de
Ozroth preso em um emaranhado de raízes antes de ser sugado
para o subsolo era atraente, mas, infelizmente, Mariel não
achava que poderia ser tão cruel. Mesmo com um demônio.
— Então você tem problemas com sua magia. — Ozroth
encostou-se na geladeira e Mariel se distraiu com o quão grande
ele era. Ele era alto e largo e, quando cruzava os braços, seus
bíceps ficavam tensos contra a camiseta preta. Aparentemente
malhar era uma coisa no inferno.
O plano demoníaco, ela se corrigiu. Embora isso a fizesse
pensar em um avião2 cheio de demônios taciturnos, todos
reclamando da falta de espaço para as pernas.
Ele estalou os dedos e Mariel voltou à consciência.
— O quê? — ela perguntou, as bochechas esquentando
quando ela percebeu que tinha se distraído enquanto olhava
para o peito dele.

2
Em inglês, avião é "airplane" e plano, "plane" assim fazendo uma piada com
as duas palavras.
— Você está tendo problemas com sua magia — Ozroth
disse. — Posso ajudar com isso.
Ela zombou.
— Deixe-me adivinhar, pelo preço da minha alma? Eu teria
o controle da minha magia, e então você a tiraria de mim
imediatamente.
Ele fez uma careta.
— Eu não deveria ter dito a você que funcionava desse jeito.
— Sim, bem, você disse. — Ela pegou uma vassoura no
armário e começou a varrer os restos de seu bule. Em que
confusão ela se meteu.
Uma grande mão se fechou ao redor do cabo da vassoura e
Mariel se encolheu.
— Permita-me — disse o demônio.
Ela largou a vassoura, recuando. Ela não gostou de como o
ar estava quente ao redor dele ou a maneira como sua pele
formigava com sua proximidade.
— Eu não estou contratando seus serviços de limpeza — ela
disse enquanto esbarrava na mesa. — Só para deixar claro.
Ele fez um som bufante quando começou a varrer. Ele estava
rindo dela?
— Sabe — ele disse casualmente enquanto juntava os cacos
do bule em uma pilha —, eu posso te ajudar com sua magia de
qualquer maneira. Sem a alma.
— Por que você faria isso?
Ele encolheu os ombros.
— Isso vai me entreter enquanto você descobre que favor
deseja.
Ele estava realmente convencido de que ela faria um acordo
com ele. Mariel pode não ter herdado mais nada de Diantha
Spark, mas ela só se dobrava quando desafiada. Quando Mariel
tomava uma decisão, ela não mudava.
— Nunca vai acontecer. Não há nada que eu queira o
suficiente para dar minha alma a você. — Deixando o legado de
lado, manter sua alma – e, portanto, sua magia – significava
manter seu jardim vivo. Significava a vibração quente e
aconchegante de poder em seu peito. Significava a chance de
algum dia deixar sua família orgulhosa.
Ozroth sorriu.
— Veremos.
Quatro

Mariel estava dando a ele o tratamento do silêncio.


Depois da última rejeição a sua oferta, ela se recusou a
reconhecer sua presença de qualquer maneira. Em vez disso, ela
marchou pela casa, limpando e reorganizando as coisas com um
propósito furioso. Considerando toda a confusão,
aparentemente não era uma ocorrência comum. A própria toca
de Ozroth em casa era minimalista e arrumada; ele não
conseguia se imaginar vivendo nesse tipo de caos.
Ele estremeceu quando passou a ponta do dedo sobre sua
estante e levantou poeira.
— Como você vive assim?
Ela fez um barulho de raiva, mas por outro lado o ignorou.
— Posso ver a raiz do problema — disse Ozroth enquanto a
seguia pelo corredor, onde ela pegou lençóis limpos do armário.
— A magia requer especificidade, precisão e ordem. Se você
errar um único movimento, runa ou sílaba de encantamento,
todo o feitiço se desfaz. E isso antes de levar em consideração os
pensamentos e intenções do conjurador.
— Não consigo ver o que isso tem a ver com a minha estante
— ela murmurou baixinho.
— Se você é desorganizada em uma parte da sua vida, você é
desorganizada em outra. — Ele a seguiu até o quarto, recuando
ao ver as roupas empilhadas no canto. — Estão limpas ou sujas?
Ela o ignorou enquanto tirava os lençóis da cama. Os lençóis
eram amarelos, e um sopro de perfume floral explodiu no ar
quando ela os jogou de lado. Ozroth respirou fundo,
imaginando se tudo em que ela tocava cheirava assim. Ele vagou
até a pilha de roupas, pegou uma camisa e cheirou.
— Ei! — Aparentemente, ele a havia alarmado o suficiente
para falar diretamente com ele novamente. — O que você está
fazendo com minhas roupas?
— Descobrindo se elas estão limpas ou sujas. — Estas
cheiravam à limpeza, com uma leve nota de detergente. — Qual
é o sentido de lavar suas roupas se você não guarda elas? — ele
resmungou enquanto dobrava uma camiseta. — Elas ficarão
amassadas e você terá que lavá-las novamente.
— Eu não me importo se elas estão amassadas.
— Bem, eu me importo. — Ozroth começou a vasculhar as
gavetas, tentando descobrir seu sistema de organização. Não
havia um, até onde ele sabia. Os tecidos grudavam, e ele
estremeceu com um choque de eletricidade estática de um
puxador de gaveta. Ela ao menos usava lenços umedecidos? —
Onde as camisas ficam?
— Clauseyez il pectum! — A gaveta fechou tão rápido que
ele quase perdeu os dedos. Ela olhou para ele, uma mão no
quadril e outra apontando para a gaveta. — Você não pode
mexer nas minhas coisas. — Então seus olhos se arregalaram. —
Eu fechei a gaveta.
Suas sobrancelhas se juntaram.
— E? — Pequenas magias como essa eram tão simples que
uma bruxa não precisava do impulso de poder fornecido por
rituais físicos como giz ou tecer linhas.
Pela primeira vez em sua breve e estranha interação, um
sorriso surgiu nos cantos da boca dela. Era uma boca bonita, ele
percebeu, com um furo preciso no topo e um lábio inferior
cheio. Combinava com a beleza suave de seus outros traços.
— Não explodiu.
— Você normalmente não consegue nem controlar um
feitiço tão simples? — Ozroth perguntou incrédulo.
Seu rosto caiu.
— Babaca — ela murmurou antes de voltar sua atenção para
a cama.
Uma pontada de culpa atravessou o peito de Ozroth. Ele
estremeceu, esfregando seu coração. De jeito nenhum, disse ele
à alma que palpitava de simpatia pela moça. Pare de funcionar.
Ser um excelente negociador de almas exigia frieza emocional e
clareza de visão: coisas com as quais Ozroth não havia tido
dificuldades antes da barganha que deu errado. Agora, era uma
luta diária não se envolver em reações emocionais mais
adequadas à breve vida dos mortais.
Ele suprimiu a simpatia e se concentrou em questões mais
práticas. Quanto mais forte fosse a alma da bruxa quando ele a
pegasse, melhor seria para sua reputação.
— O que foi diferente dessa vez? — ele perguntou enquanto
carregava uma braçada de vestidos berrantemente coloridos
para o armário. Felizmente, ela pelo menos possuía cabides. —
Por que funcionou?
— Só Hécate deve saber. — Quando ela se virou para vê-lo
pendurando seus vestidos, ela fez uma careta. — Por que você
está guardando minhas roupas?
— Porque alguém precisa. Estou prestes a ter urticária. — O
caos de Mariel o deixava com coceira, e ele estava ali há apenas
algumas horas.
— Demônios têm urticária? — ela perguntou.
— Este aqui vai ter se você deixar roupas empilhadas no
chão.
Ela se aproximou, arrancou um vestido roxo das mãos dele e
o jogou no chão.
— Pronto — disse ela, cruzando os braços. — Se não gosta,
não fique.
Implacável, Ozroth pegou o vestido e continuou
organizando.
— Você não pode me impedir. A menos que você queira
fazer uma barganha?
— Ugh! — Ela ergueu as mãos e pegou os lençóis azul-claros
limpos. — Você é impossível.
Eles trabalharam em silêncio por alguns minutos, e a tensão
lentamente se esvaiu de Ozroth. Ele gostava das coisas em seus
devidos lugares. Sem ordem, não havia sentido. Nenhum
propósito. Astaroth havia lhe ensinado isso desde cedo, quando
Ozroth era uma criança demoníaca insegura, desesperada para
provar seu valor. As posses materiais devem se manter no
mínimo possível e meticulosamente organizadas. Ao assumir o
controle do mundo ao seu redor, ele também assumiu o
controle de si mesmo.
Considerando o estado do quarto da bruxa, não era de
admirar que ela lutasse com a magia.
— Sério — ele disse —, o que foi diferente dessa vez que você
usou magia?
Seus movimentos diminuíram enquanto ela considerava a
pergunta.
— Não sei. Eu não pensei nisso.
— Você normalmente pensa sobre isso?
Ela bufou.
— Obviamente. Todo mundo está sempre tagarelando
sobre a importância da intenção, e a linguagem da magia é
repugnantemente complicada.
Ozroth considerou as palavras.
— Então você agiu por instinto e funcionou melhor do que
quando você faz as coisas de forma mais deliberada.
Ela olhou para ele.
— Eu também estava com raiva de você. Normalmente eu
não tenho um demônio pé no saco mexendo nas minhas coisas.
Ele se perguntou se algum dia se acostumaria com o
desrespeito dela.
— Você sabe que ninguém fala com demônios assim, certo?
— Bem, eu falo. — Ela voltou sua atenção para dobrar o
lençol.
O horror o encheu com a visão.
— Você já ouviu falar em cantos de hospital 3?
— Sim — ela disse, continuando a enfiar o lençol sob o
colchão em partes aleatórias. A cabeça dela se ergueu, e ele
estava começando a reconhecer a expressão que ela usava
quando estava prestes a fazer uma pergunta aleatória. — Espere,
os demônios têm hospitais? Você não é imortal?
Isso foi demais.
— Mova-se — ele estalou, entrando em seu espaço.
— Ei! — Ela deu um tapa no braço dele quando ele a
empurrou para o lado. — Pare de tocar nas minhas coisas!
Ele a ignorou em favor de alinhar as coisas novamente. Logo,
o lençol estava bem ajustado, os cantos perfeitamente dobrados.
Ele recuou, esfregando as mãos com satisfação.
Quando ele se virou, ele a encontrou boquiaberta para ele.

3
Em inglês, "hospital corners" é um modo de dobrar lençóis criado no século
XIX, sendo uma forma de deixar a cama arrumada e bem feita. Inicialmente, era
usado por enfermeiras na guerra para facilitar a troca e deixar os pacientes
confortáveis.
— O quê? — ele perguntou.
— Um demônio acabou de fazer minha cama. — O nariz de
Mariel enrugou. — Isso é... bizarro.
— Pelo pequeno preço da sua alma, limparei toda a sua casa.
— Não seria a barganha de alma mais patética já feita, embora
chegasse perto.
— Tentador — ela disse —, mas não.
Ela saiu e Ozroth a seguiu, nunca deixando que ela se
afastasse mais do que alguns metros. Se ela planejava tentar
durar mais que ele, ele planejava ser o mais irritante possível. A
propósito, ela continuou resmungando e olhando para ele,
estava funcionando.
Ele a seguiu até uma pequena estufa, então parou na
entrada. A vida explodia em todos os cantos, e o ar estava
pesado com o rico aroma floral que ele sentiu nos lençóis dela.
— Isto é surpreendentemente organizado — disse ele,
notando a maneira como ela arrumou as plantas em filas
perfeitas.
Em resposta, ela mostrou o dedo do meio.
Ele observou enquanto ela vagava pelas plantas, sussurrando
para elas e acariciando-as. Elas acariciavam de volta,
entrelaçando-se em seu cabelo e dando tapinhas em seus
ombros como se a confortassem.
Uma dor aguda nas costas da mão o fez pular. Ele olhou para
a ofensora – uma roseira que estava puxando seus espinhos
afiados para trás.
— Usando sua magia de jardim para o mal? — ele chamou
por cima do ombro.
Ela bufou.
— Elas estão apenas me protegendo.
— Percebe que a intenção vem de você, certo? Elas não estão
agindo por conta própria.
Ele se perguntou quantos olhares feios dela ele acumularia
antes que sua barganha fosse encerrada. Cada um enviava um
calor fervilhando através dele, um lampejo de diversão
misturado com indignação por sua irritação.
— Não fale sobre minhas plantas assim — ela retrucou. Um
lírio roçou as pétalas contra sua mão. — Elas fazem o que
querem.
Outra sensação desagradável e indesejável o atingiu. Ela
estava claramente tentando se acalmar com as plantas e
aparentemente se convenceu de que elas eram suas amigas. Na
realidade, elas se importavam tão pouco com ela quanto uma
pedra. Ela era o motor que alimentava seus movimentos.
— Vou parar de falar sobre as plantas se você...
— Não — ela disse, virando-se.
O dia progrediu assim, com Ozroth tentando cansar Mariel
e Mariel alternando entre ignorá-lo e ser totalmente rude.
Tornou-se um jogo estranho – quantas coisas ele poderia
oferecer em troca de sua alma?
Uma orquídea rara. Uma reforma na cozinha. Um carro
esportivo para substituir sua bicicleta.
Ela rejeitou tudo. Enquanto Ozroth a seguia, sua mente se
agitava com a pergunta do que Mariel Spark queria mais do que
qualquer outra coisa no mundo.
Normalmente era uma resposta clichê: dinheiro, amor, sexo,
vingança ou poder. Às vezes, bruxas e feiticeiros tinham
necessidades mais pessoais, como a ressurreição de um ente
querido ou a cura de uma doença terminal. Ele tinha a sensação
de que Mariel seria mais atraída pela última categoria do que
pela primeira.
— Alguém que você ama morreu recentemente? — ele
perguntou.
Ela estava debruçada sobre livros de feitiços na mesa da
cozinha e, ao ouvir as palavras, sua cabeça se ergueu.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Eu posso ressuscitá-los. — Exigia muito esforço, e
cadáveres reanimados cheiravam horrivelmente no começo,
mas se isso fosse necessário para ganhar a alma de Mariel para o
plano demoníaco, ele o faria com prazer.
Um olhar de desgosto cruzou seu rosto.
— Essa é uma oferta terrível.
— É mesmo?
— Eu certamente não gostaria de ser trazida de volta à vida.
E a decomposição?
Tudo bem, nada de reanimar parentes mortos.
— Você gostaria de uma cesta de gatinhos? — ele
perguntou, tentando outra abordagem. — Pense em que boa
companhia eles seriam.
Ela balançou a cabeça, fazendo seus cachos balançarem.
— Apenas... cale a boca um pouco, está bem?
Foi a vez de ele encará-la.
— Você é o ser humano mais rude que já encontrei.
— Que pena — disse ela, batendo o ombro no dele quando
ela saiu da cozinha. — Você merece muito pior do que isso.

•••

Naquela noite, Ozroth observou Mariel praticar invocação. Ela


estava na cozinha, que parecia ser seu cômodo favorito da casa,
olhando carrancuda para o pentagrama que havia desenhado
com giz na bancada. A cozinha, como a estufa, era muito mais
organizada do que o resto da casa, e Ozroth suspeitava que
Mariel só se esforçava por coisas com as quais ela se importava
profundamente. Por que sua magia não estaria nessa categoria
era um mistério que ele planejava resolver.
— As linhas não estão retas — ele disse, olhando seu
pentagrama.
— Muito útil — ela murmurou. Então ela suspirou e
limpou as linhas. — Como alguém faz isso?
— Prática.
Ela pegou uma régua da despensa, colocou-a no balcão e
passou giz ao longo dela.
— Eu sou uma piada de bruxa. Não consigo nem traçar uma
linha reta.
Ele não respondeu, em vez disso se encostou na geladeira
com os braços cruzados enquanto esperava para ver o que ela
faria ou diria a seguir.
— Minha mãe diz que as estrelas disseram a ela que eu tenho
potencial para ser uma soberana. — Ela riu amargamente. —
Ela deve ter ouvido mal. Tenho potencial para ser uma super
anta. — Ela pontuou as palavras com uma batida da régua
contra o balcão.
Ficou claro que Diantha Spark havia prejudicado a
autoconfiança de Mariel. Talvez esta fosse a chave para sua alma.
Ozroth não poderia usar seu poder para torná-la melhor em
magia – isso contradizeria o requisito necessário para pegar sua
magia – mas talvez ele pudesse aproveitar uma dessas
inseguranças e cavar até encontrar seu ponto de ruptura.
— Você acha que ela te ama? — ele perguntou.
Seu corpo inteiro estremeceu.
— Claro que sim. — Ela piscou rapidamente. — Certo? —
A última palavra foi sussurrada tão baixinho que ele sabia que
não era para ele.
— Hmm — foi tudo o que ele disse. Ele estremeceu quando
uma dor começou em seu peito. Sua alma estava determinada a
ter consciência, apesar do fato de Ozroth ter feito coisas bem
piores para forçar uma barganha no passado, desde sequestro de
entes queridos até tortura leve. Ele ignorou a emoção e se
concentrou em observar o trabalho da bruxa.
Mariel murmurava para si mesma enquanto continuava
desenhando o pentagrama. Ele pegou apenas palavras perdidas,
demônio e idiota entre elas.
Era verdade – Ozroth era um idiota. Manter o plano
demoníaco e seu povo vivo significava usar toda e qualquer
tática para explorar vulnerabilidades. Ameaças, coação,
chantagem, sedução...
Ele considerou a última, os olhos traçando sua forma. Ela era
linda, não havia dúvida sobre isso. Curvilínea também, com
quadris largos e coxas grossas feitas para agarrar. Ela tinha
alguém para lhe dar prazer? Diantha Spark parecia pensar que
não, então talvez esse fosse outro caminho que ele pudesse
explorar.
— Alguém está fodendo você? — ele perguntou.
O giz se partiu ao meio. Mariel se virou, apontando a peça
irregular para ele.
— Isso não é da sua conta.
Ele podia ler a resposta na forma como os olhos dela
encontraram os dele, então dispararam para longe.
— Você gostaria de ser fodida? — Seria um novo ângulo para
Ozroth, o Impiedoso, que construíra uma reputação com
negócios mais agressivos, mas não se importava com a ideia. Na
verdade, ele pensou, enquanto olhava aqueles quadris, era mais
do que atraente.
— Você tem modos terríveis — ela disse, voltando-se para
seu pentagrama. Suas bochechas estavam rosadas.
— Então você quer ser fodida.
— O que eu quero — ela disse, rabiscando agressivamente
—, é que você cale a boca e me deixe trabalhar na minha
feitiçaria!
— Eu calo a boca se você...
— Não! — Ela fechou os olhos e beliscou a ponte do nariz.
— Honestamente, é como ter um filho pequeno.
Essa foi a coisa mais ofensiva que ela disse até agora.
— Tenho mais de duzentos anos — disse ele, parecendo
irritado até para si mesmo. — Dificilmente uma criança.
Ela o ignorou, riscando as runas mais rápido. Então ela
fechou os olhos e respirou fundo.
— Volupto e ayorsin!
Houve um flash de luz...
E um pau de borracha roxo gigante se manifestou no balcão.
Ambos olharam para ele por um momento longo e
silencioso. Ozroth observou as veias, o brilho, o tamanho
absoluto da coisa e decidiu que Mariel era, se não realista, pelo
menos ambiciosa. Mesmo ele não era páreo para aquela
monstruosidade.
— Oh, não. — As palavras saíram da boca de Mariel em um
tom anormalmente alto. Ela rapidamente começou a apagar e
inverter os símbolos. — Não, não, não.
Os lábios de Ozroth se contraíram.
— Isso responde à questão de saber se você quer ou não ser
fodida.
Giz raspou sobre o balcão.
— Não estamos discutindo isso. — Mariel fechou os olhos.
— Aufrasen e volupto!
O pau de borracha desapareceu em uma nuvem de fumaça.
Mariel olhou para o espaço vazio no balcão.
— Funcionou — disse ela, parecendo chocada. — Isso
nunca funciona.
— Nunca?
Ela balançou a cabeça.
— Então, o que foi diferente desta vez? — Ozroth
pressionou. Deixando de lado o pau de borracha, ele estava
fascinado pela vasta magia da bruxa e aparente incapacidade de
controlá-la.
— Eu realmente, realmente queria essa coisa longe daqui —
ela murmurou.
— Intenção — Ozroth disse. — E foco. Você só se importava
com uma coisa: desmanifestar o pau de borracha. — Ele bateu
os dedos em seu bíceps, considerando o quebra-cabeça que era
a bruxa. Ela tinha tanto poder bruto – talvez o problema fosse
que ela não tinha capacidade de usá-lo com precisão. — Você
precisa trazer estrutura para sua magia. Quando sua mente e
seus rituais estiverem mais organizados, você se sairá melhor
nisso.
— Eu não quero seu conselho mágico. — Ela pressionou as
palmas das mãos nos olhos. — Eu não quero nada de você.
Por alguma razão, as palavras doeram. Ozroth esfregou o
peito, imaginando com o que sua alma indesejável havia se
ofendido agora.
Ele não tinha entendido na época daquele negócio fatídico
exatamente no que ele estava se metendo. Ele vinha fazendo
acordos há centenas de anos, afinal de contas, e nunca se saiu
mal em nenhum. Então, mesmo que o pedido do feiticeiro
moribundo alguns meses atrás tenha sido estranho, ele não
pensou nada sobre as palavras esquisitas.
Minha alma para uma passagem sem dor, e que ela passe
então para onde houver dor. Solum te aufrasil.
Típica besteira enigmática de feiticeiro. Ozroth, o
Impiedoso, era frio como gelo desde que começara seu
treinamento com Astaroth séculos atrás; qual a importância do
ato benéfico que o velho tolo pensava estar fazendo com sua
alma? Havia dor em todos os planos da existência. Essa alma
iluminaria o plano demoníaco como todo o resto.
Exceto que não foi isso que aconteceu.
Depois que o velho feiticeiro deu seu suspiro final e indolor,
a alma se ergueu do cadáver, uma orbe dourada visível apenas
aos olhos do demônio. E então, para o choque de Ozroth,
aquilo afundou em seu próprio peito, enchendo-o de calor e de
uma enciclopédia inteira de sentimentos com os quais ele não
tinha ideia do que fazer.
Um demônio com uma alma humana. Nunca houve tal
coisa nos registros históricos.
Mariel estava remexendo na geladeira agora, tirando carne e
vegetais. Ela derramou azeite em uma frigideira de ferro
fundido e ligou o fogo antes de começar a picar cebolas e
descascar alho. A cebola fez um som sibilante ao atingir o óleo
quente.
Logo a cozinha cheirava a tempero e alho, e o estômago de
Ozroth roncou. Ele franziu a testa para baixo em seu abdômen.
Os demônios comiam com menos frequência que os humanos
e apenas para sustento. Por alguma razão, a alma do feiticeiro
também aprimorou seu paladar e olfato. Em vez de comer uma
vez a cada duas semanas para manter suas forças, agora Ozroth
não conseguia passar mais de um dia sem comida. Da mesma
forma, ele também precisava dormir todas as noites, o que
estava provando ser uma enorme perda de tempo.
A refeição tomou forma – macarrão com molho de tomate
rico e carnudo. Enquanto Mariel mexia, Ozroth olhava, com
água na boca ao pensar no sabor daquele molho. Talvez ele
pudesse dar uma mordida quando ela terminasse...
— Onde você vai ficar? — Mariel perguntou.
Ele saiu de seu foco intenso na comida.
— O quê?
— Onde você vai passar a noite?
Sua testa franziu.
— Eu disse a você, não posso sair até que façamos um
acordo.
— Sim, mas eu pensei... Não há um hotel para o qual você
possa ir ou algo assim?
Sinceramente, Ozroth provavelmente poderia encontrar um
hotel próximo o suficiente para estar dentro dos parâmetros de
seu novo vínculo com ela – ele não precisava estar no mesmo
cômodo, apenas dentro de um raio de alguns quilômetros –
mas isso exigia esforço e significaria menos tempo gasto
tentando descobrir qual era o desejo mais profundo de Mariel.
Quanto mais tempo demorasse para fazer essa barganha, pior
ele pareceria aos olhos de Astaroth.
— Não — disse ele.
— Ótimo — ela disse sem nenhum entusiasmo, voltando a
mexer na comida. — Um hóspede demoníaco indesejado.
— Foi você quem me convocou — disse ele, ofendido com a
dispensa.
— E acredite em mim, foi o pior erro da minha vida.
O peito de Ozroth estava apertado e seu estômago estava
começando a doer, então ele se virou e saiu da cozinha. Lúcifer,
por que tantas emoções humanas parecem doenças físicas? Era
uma maravilha que os humanos não visitassem o médico de
hora em hora. Então, novamente, Glimmer Falls estava
localizada na América do Norte, e as notícias dos horrores do
sistema médico estadunidense chegavam até mesmo ao plano
demoníaco.
— Admirável — Astaroth disse uma vez. — Poderíamos
aprender algumas coisas sobre manipulação implacável e
negociações unilaterais das seguradoras de saúde americanas.
Ozroth estava sentado no sofá da sala escura, olhando pela
janela para as luzes dos faróis que ocasionalmente passavam. Era
tolice sentir-se ofendido. Tolice dar às palavras de uma bruxa o
poder de feri-lo. Mas sua alma aparentemente gostava de sofrer,
porque a dor em seu peito não diminuía.
Alguém já quis tê-lo por perto?
Ele nunca havia considerado a questão antes. Barganhas
eram transações: ele era escolhido por bruxas desesperadas por
causa do que ele poderia fazer, não por quem ele era. Ele
socializava a quantia normal para um negociante no plano
demoníaco – ou seja, quase nada – mas as amizades lá eram
mais como alianças.
Ou talvez fosse assim que ele as enxergava.
Os demônios não eram totalmente sem emoção, é claro; seu
alcance era apenas mais limitado do que o dos humanos. Se ele
tivesse que descrever a experiência, seria como comer carne e
batatas a vida toda e, de repente, ser exposto a um bufê repleto
de culinária de todo o mundo. Novos sabores, novas sensações,
novas nuances de experiência.
Talvez a transformação tenha sido especialmente
surpreendente porque Astaroth gostava que Ozroth fosse frio,
como todos os lendários colecionadores de almas. Para os
poucos da elite que mantiveram seu reino vivo, os sentimentos
eram uma fraqueza a ser erradicada por meio de treinamento e
punição rigorosos. Outros demônios podiam expressar
emoções ou formar relacionamentos, mas Ozroth foi treinado
desde a infância para não reconhecer ou permitir tal
vulnerabilidade. O sentimento era facilmente explorado pelos
inimigos – um fato que os negociantes conheciam melhor do
que ninguém, já que essa exploração era seu arroz com feijão.
O rangido de uma tábua do assoalho desviou sua atenção da
janela. Mariel estava na porta, recortada pela luz quente da
cozinha. Ela segurava uma tigela fumegante na mão.
— Jantar? — ela disse hesitante.
Ele estava confuso.
— Sim, você vai jantar.
Ela suspirou e colocou a tigela no chão.
— Tudo bem, coma aqui se quiser.
Ele olhou para a tigela depois que ela voltou para a cozinha.
A comida era para ele? Por quê?
O cheiro era bom demais para resistir. Ele se aproximou para
pegar a tigela, levando-a ao rosto para inalar profundamente.
Um grunhido de contentamento vibrou da sua garganta ao
sentir o cheiro forte e picante. Ele girou o macarrão no garfo e
deu uma mordida, reprimindo um gemido de como estava
bom.
Ele se juntou a ela na mesa da cozinha, comendo em silêncio.
Por mais que tentasse saborear o prato, era impossível comer
devagar. Tinha um gosto incrível e era a primeira vez que
alguém fazia comida para ele.
— Uau — disse ela, observando-o acabar com a massa. —
Você deve estar com muita fome.
Ele fez uma pausa, então sorveu o espaguete pendurado na
boca.
— Por que você fez isso? — ele perguntou.
— Fiz o quê?
— Cozinhar para mim.
Ela brincou com o garfo, sem olhar nos olhos dele.
— Porque você é meu convidado.
— Indesejado — ele rebateu. — O pior erro da sua vida. —
As palavras ainda o irritavam, embora a massa ajudasse bastante
a acalmar seu temperamento.
— Você ainda é meu convidado — ela repetiu. — Agora cale
a boca e coma sua comida.
Ozroth fez isso, sentindo-se confuso, grato e alguma outra
coisa brilhante e indefinível que ele não sabia como colocar em
palavras. Eventualmente, ele parou de tentar. Ainda havia uma
alma a reivindicar, mas, por enquanto, havia espaguete.
Cinco

O demônio era estranho.


Mariel contemplou a estranheza do demônio enquanto
trocava o vaso de um filodendro. Barganha demoníaca
acidental ou não, ela não queria fugir de seu emprego de meio
período no Empório das Plantas do Ben. Enquanto ela ainda
esperava pelos fundos da família Spark para a pós-graduação, ela
estava economizando cada centavo que podia.
Já que Ozroth aparentemente precisava estar preso a ela pelo
quadril, ele a estava perseguindo a um corredor de distância
(Não haverá barganha se você continuar pisando em mim, ela
retrucou depois que ele esbarrou nela pela milionésima vez
quando ela parou para regar uma planta), mas ela estava muito
ciente de sua presença por perto.
Sua presença quente, horrível e estranha.
Ozroth, o Impiedoso, provou ser, até agora, Ozroth, o
Muito Irritante, Ozroth, o Indesejável Tutor de Magia, e
Ozroth, o Devorador de Jantar Voraz. Quando ele comeu o
espaguete dela ontem à noite, ele parecia alarmado e surpreso,
como se ninguém nunca tivesse o alimentado antes. Ele não
agradeceu, mas lavou a louça, então olhou para ela com os olhos
arregalados antes de praticamente correr para dormir no sofá.
Mariel não tinha certeza de como o plano demoníaco
funcionava, mas o pouco que ela ouviu sobre acordos com
demônios não a preparou para isso. Ela esperava fogo, risadas
malignas e uma eternidade no Inferno. Agora até a existência
do Inferno estava em questão. O demônio era arrogante, ficava
facilmente ofendido e irritado, mas ele não riu loucamente nem
uma vez, e quando Mariel chamou a invocação dele de o pior
erro da sua vida, ele pareceu... magoado?
Mas sério, o que ela deveria fazer? Entregar sua alma – e sua
magia – para fazê-lo ir embora? Absolutamente não.
— Paciente para você, Mariel — seu chefe, Ben Rosewood,
gritou, tirando Mariel de seu devaneio. Ela se levantou,
enxugando a testa com a mão suja de terra.
Trabalhar no Empório a deixava feliz, mas ela se preocupava
com as plantas que iam para casa com os clientes. Muitas delas
eram frágeis, exigindo cuidados precisos, e as infelizes acabavam
com donos que lutavam para fazê-las prosperar. Foi por isso que
ela montou o Hospital das Plantas da Mariel em um canto da
loja para que ela pudesse melhorar com magia as plantas que
foram para casa e estavam com dificuldades.
Ben ergueu os olhos de seu caderno quando Mariel se
aproximou do balcão da frente. Porque ele insistia em registros
em papel na era da internet era um mistério, mas Mariel
rabiscava pentagramas, então ela dificilmente poderia julgar. O
lobisomem era notoriamente sério, mas parecia um pouco
bobo na opinião de Mariel, com óculos de armação dourada
empoleirados em seu nariz aquilino e seu peito enorme
testando os limites de um colete de malha com losangos. Seu
cabelo castanho estava tão desgrenhado quanto seus pelos
estariam na lua cheia.
— Qual é o dano? — Mariel perguntou.
— Parece bem morta para mim.
Mariel virou-se para a voz familiar e sorriu ao ver Calladia.
Ela claramente tinha acabado de sair da academia, seus longos
cabelos loiros presos em um coque úmido e suas bochechas
rosadas do exercício. Uma planta de casa desidratada estava
enfiada debaixo do seu braço. Calladia não possuía nenhuma
planta de casa além de um cacto, então isso deve ser um resgate.
Calladia colocou a planta no balcão.
— Não tenho certeza se você pode consertar, mas achei que
valia a pena tentar.
Mariel concentrou-se na planta: um pothos cujas folhas em
forma de coração haviam escurecido e murchado.
— Como você mata uma pothos? — ela murmurou. — Elas
são, tipo, a planta mais fácil de cultivar. — Ela colocou um dedo
em uma folha e fechou os olhos, estendendo a sua magia.
Felizmente, ela sentiu núcleos de vida escondidos nos caules,
esperando para serem atraídos. — Não é terminal.
— Apenas uma ferida superficial? — Calladia perguntou
secamente.
— Pegue um pouco de água, por favor? — Mariel
perguntou, e Ben apareceu imediatamente com um jarro. —
Obrigada. — Ela molhou o solo um pouco de cada vez,
arrulhando elogios ao pothos. — Bebê bonzinho. Você vai ficar
bem. Mal posso esperar para ver suas lindas folhas!
Ben bufou e balançou a cabeça.
— Menina estranha das plantas.
Ela torceu o nariz.
— Lobisomem bastardo e mal-humorado.
As palavras eram ditas com carinho. Nos anos que ela passou
trabalhando no Empório, a natureza severa de seu chefe se
tornou uma piada entre eles. E sob seu exterior ranzinza, mas
nerd, Ben realmente era um cara legal.
Sua outra colega de trabalho, uma linda náiade chamada
Rani, passou carregando um vaso de palmeira. Ela tinha
acabado de fazer sua pausa matinal para hidratação: sua pele
marrom estava úmida e brilhante, e as escamas de arco-íris ao
longo da raiz do cabelo ainda eram vívidas.
— Uau, como alguém conseguiu acabar com uma pothos?
— Rani perguntou enquanto se dirigia para os fundos.
— Não é? — Mariel alimentou a planta com magia, e um
rubor verde rastejou gradualmente sobre o marrom. As folhas
cresceram e logo a planta estava prosperando novamente. —
Vou levar você para casa comigo — ela disse o pothos. — Chega
de proprietários negligentes. — O pothos roçou uma folha
contra sua mão em gratidão.
— Não acredito como isso é fácil para você — disse Calladia.
— Você nem precisava dizer um feitiço! Toda vez que tento
mexer nas plantas, acabo com pólen no rosto e um bando de
abelhas furiosas atrás de mim.
Lançar um feitiço sem falar era difícil, mas não impossível,
se uma bruxa fosse naturalmente inclinada para um dom ou o
tivesse praticado extensivamente. Mariel precisaria da
linguagem da magia para trabalhos maiores, mas sua magia da
natureza era instintiva e era fácil dar um pouco de sua energia
às plantas para ajudá-las a prosperar.
— Obrigada por trazê-la para mim — disse ela. — Onde
você a encontrou?
— Em uma lata de lixo na rua da mamãe. — Calladia
estremeceu. — Depois que tivemos uma conversa muito
desconfortável sobre o resort.
— Ufa. Como foi?
Como Diantha, a mãe de Calladia estava entusiasmada com
o investimento em um resort e spa que deveria ser construído
na floresta fora da cidade. Como prefeita de Glimmer Falls,
Cynthia Cunnington foi a instigadora do acordo com os
incorporadores imobiliários, e nem Calladia nem Mariel a
perdoaram por isso. Ambas se opuseram veementemente à
construção, que prejudicaria o ecossistema local.
Calladia fez um barulho rude.
— Me coloque em um barril cheio de pregos e role-me de
um penhasco, e garanto que será mais divertido do que tentar
fazer minha mãe ver a razão. — Seus olhos se arregalaram. —
Ah, esqueci de te contar! Themmie organizou um protesto hoje
na prefeitura. A construtora deve começar a construção esta
semana.
— Já vão cavar? — A ideia fez o estômago de Mariel revirar.
— Ainda nem tivemos uma reunião geral sobre isso.
As reuniões gerais de Glimmer Falls eram... algo. Porque
tantas famílias mágicas viviam lá, você nunca sabia quem
poderia invocar um raio ou teletransportar algo indesejado para
a reunião. Em um evento particularmente memorável, Diantha
Spark decidiu acrescentar um pouco de força à sua petição para
que a cidade cuidasse de uma colônia de guaxinins selvagens.
Quando vinte guaxinins loucos foram lançados na reunião,
Diantha rapidamente ganhou o voto popular para realocá-los.
— Estou trabalhando para mudar a data da reunião — disse
Calladia. — Há muitas perguntas sobre a venda do terreno.
O terreno em questão ficava em uma colina arborizada a
leste da cidade. Era pontilhada de fontes termais e cachoeiras
fumegantes desciam pelas partes rochosas da encosta.
Salamandras cuspidoras de fogo e peixes brilhantes e
translúcidos viviam nas piscinas, e outras criaturas exóticas
faziam suas casas na terra e nas árvores. Era um ecossistema raro
surgido da magia tecida na terra.
Aquele pedaço de terra pertencia a alguém morto há muito
tempo, cujo nome estava ilegível na escritura, e vários
impostores surgiram ao longo dos anos, alegando que a
assinatura pertencia a um parente. Essas petições sempre foram
rejeitadas – até que Cynthia Cunnington foi eleita prefeita,
alegou que a escritura finalmente foi interpretada para deixar a
terra para a cidade e imediatamente concedeu direitos a um
proeminente incorporador imobiliário não-mágico. A partir
daí os planos de inauguração do resort avançaram a passos
largos.
— Quando é o protesto? — Mariel perguntou. — Estou
saindo do trabalho em trinta minutos.
— Daqui uma hora. — Os olhos castanhos de Calladia se
moveram sobre o ombro de Mariel, então se arregalaram. —
Minha nossa — ela sussurrou. — Não olhe, mas um homem
sexy está parado ao lado das calêndulas. — Sua testa enrugou.
— Ele está meio que... olhando feio para você?
Mariel gemeu. Ela sabia exatamente quem era.
— Ignore-o — disse ela, movendo-se para o corredor de
fertilizantes.
— Hum, isso é suspeito pra caralho — disse Calladia,
lançando olhares por cima do ombro. — Você conhece ele?
— Sim.
— Ele é um esquisitão? Eu posso bater nele.
A história de namoros de Calladia a deixou com um gatilho
quando se tratava de homens de merda, e ela adorava brigar,
especialmente quando defendia uma amiga, mas Mariel não
tinha certeza se queria lançar Calladia sobre o demônio ainda.
Ela olhou por cima do ombro, franzindo a testa para Ozroth,
que estava se demorando, de forma suspeita, perto de uma
phlox branca que ela usou magia para que florescessem fora da
estação. O chapéu preto de abas largas que ela comprou para ele
em um brechó naquela manhã cobria seus chifres, mas o fazia
parecer um figurante em Westworld. Vá embora, ela murmurou
para ele.
Em resposta, ele abriu as mãos como se dissesse: O que mais
devo fazer?
— Mariel. — Calladia agarrou seu ombro. — Ele está
perseguindo você ou algo assim?
— Sim e não...
— É o seguinte. — Calladia puxou um novelo de linha do
bolso e começou a tecer um desenho entre os dedos. — Vou
acabar com ele.
A magia normalmente exigia três coisas: intenção,
linguagem precisa e foco. Para trabalhos complexos, um foco
físico como runas com giz ou barbante trançado costumava ser
usado para manter a atenção de uma bruxa fixa no feitiço.
Mariel estava aprendendo a técnica do giz agora, mas Calladia
era uma bruxa de barbante incrível. Se ela dissesse que ia acabar
com uma pessoa, ela estaria em perigo real.
— Não, espere — disse Mariel, agarrando o pulso de
Calladia antes que ela desse um nó que cortasse o pau do
demônio ou algo assim. — É minha culpa. Ele não tem escolha
sobre me seguir.
As sobrancelhas de Calladia se ergueram.
— Foi isso que ele disse a você?
— É complicado...
— Bem, é melhor você descomplicar antes que eu acabe na
cadeia por brigar de novo.
Mariel não queria explicar o que estava acontecendo, mas
Calladia era uma bisbilhoteira de alta classe e sempre conseguia
farejar uma mentira. Eventualmente, ela precisaria confessar.
— Não aqui — Mariel sussurrou. — Em algum lugar onde
possamos criar um escudo. Sua caminhonete? — Mariel não
possuía um carro, preferindo andar de bicicleta para todos os
lugares.
Elas se dirigiram para o estacionamento do shopping center
e Calladia acenou para Mariel pular no banco do passageiro de
sua velha caminhonete vermelha. Uma vez lá dentro, Calladia
tricotou um feitiço para um escudo de silêncio.
— Silente a veiliguz.
Todos os sons do lado de fora da cabine da caminhonete
cessaram. O feitiço garantiria que ninguém pudesse ouvir nada
de dentro também. Ozroth as havia seguido; ele se encostou no
carrinho de compras do pequeno boticário ao lado do
Empório, os braços cruzados e o rosto franzido em uma
carranca feroz.
— Agora — disse Calladia. — Diga-me por que um caubói
gostoso e de aparência maligna está perseguindo você.
Mariel respirou fundo e contou a Calladia sobre os muffins,
os ingredientes convocados e sua busca pelo feitiço correto.
— Então eu errei a palavra para farinha — disse ela,
encolhendo-se internamente —, e, em vez disso, invoquei
acidentalmente, uh, um demônio.
— O quê?! — Calladia gritou.
— O nome dele é Ozroth, o Impiedoso, e...
— Você convocou Ozroth, o Impiedoso? — Calladia parecia
que ia desmaiar. — Ele não comeu, tipo, um bilhão de almas ou
algo assim?
— Eles não as comem. Acho que tem algo a ver com a rede
elétrica deles?
Calladia balançou a cabeça.
— Garota, você está com tantos problemas. Como você vai
se livrar dele?
— Bem, esse é o ponto. — Os dedos de Mariel se retorceram
na sua saia verde-menta. — Aparentemente, eu o invoquei para
um pacto de alma, e ele não pode ir embora até que eu dê a ele
minha alma.
A boca de Calladia abriu e fechou algumas vezes.
— Isso é... huh.
— Sim.
— Uau.
— Sim.
Calladia contemplou o demônio parado a alguns metros de
distância.
— Eu pensei que ele teria presas — ela disse. — E pele
vermelha e uma cauda.
— Aparentemente não. — De certa forma, Mariel desejou
que ele tivesse. Se ele parecesse um monstro de verdade, talvez
fosse mais fácil contemplar medidas extremas como explodi-lo.
Claro, sendo imortal, ele poderia se recompor de qualquer
maneira – ela não tinha ideia de como essa logística funcionava.
Mas Ozroth era um homem alto, taciturno e um completo
gostoso, com chapéu de caubói e tudo.
— Ele é horrível?
— Ele é... estranho. — Ele parecia absurdo, carrancudo ao
lado de uma fila de carrinhos de compras vermelhos. Um
homem tentou devolver o carrinho, viu Ozroth e abandonou o
carrinho no meio do estacionamento. — Ele supostamente tem
centenas de anos e é incrivelmente fodão, mas continua
tentando fazer os acordos mais ridículos comigo. E ele
genuinamente tentou me ajudar com minha magia sem
segundas intenções, e acho que o ofendi ontem à noite quando
disse que ele era um hóspede indesejável?
— Hóspede? — A cabeça de Calladia girou. — Não me
diga...
— Sim — disse Mariel, prolongando o i. — Os termos do
acordo exigem que ele fique perto de mim até que concluamos
um contrato.
Calladia parecia escandalizada e fascinada.
— Então ele está dormindo na sua cama?
— Não! — Mariel cruzou as mãos com veemência. — Claro
que não. Ai, credo. Ele está dormindo no sofá. Mais ou menos.
— Ozroth era tão grande que mal cabia nele. Mariel saiu de seu
quarto naquela manhã para encontrá-lo esparramado de costas,
uma perna dobrada sobre o apoio de braço, a outra plantada no
chão. Seus braços também estavam na cintura, e ele parecia em
perigo de cair do móvel.
Ele parecia tão inofensivo – e desconfortável – que Mariel
fez uma viagem matinal cheia de culpa à loja para comprar
roupas de tamanho gigante e um chapéu capaz de esconder
aqueles chifres. Afinal, não era culpa dele estar na casa dela, e
Mariel havia sido criada pela perfeita anfitriã de Glimmer Falls.
Embora os jantares de Diantha Spark fossem coloridos,
ninguém poderia culpá-la quando se tratava de oferecer o
melhor de tudo.
— Uau. — Calladia olhou para o demônio. — Então, deixe-
me ver se entendi: agora você é colega de quarto de um demônio
que invocou acidentalmente, e o demônio não pode ir embora
até que você faça uma barganha para desistir da sua alma?
Mariel bateu a cabeça contra o encosto algumas vezes.
— Isto resume tudo.
— Bem, merda.

•••

— Dois, quatro, seis, oito, o que nós apreciamos? A floresta! Ei,


ei, a floresta!
Mariel gritou as falas junto com os outros manifestantes.
Havia apenas nove deles marchando em frente à Prefeitura, mas
o protesto estava chamando a atenção. Os transeuntes
diminuíram a velocidade ou paravam para assistir.
Mariel levantou mais alto a sua placa. PROTEJA A
FLORESTA! PROTEJA A MAGIA! estava escrito em tinta roxa.
— Pare o spa! — ela gritou. — Preserve nossa floresta
mágica!
Um adolescente balançou a cabeça ao passar.
— Estranhos.
— Apatia não é legal! — Calladia o chamou.
Mariel abafou uma risada.
— Ele tem, tipo, dezesseis anos. Acho que ele consegue um
passe livre.
Calladia suspirou.
— Eu só queria que as pessoas que realmente precisam ouvir
esse protesto estivessem aqui.
— Como nossas mães? — Mariel perguntou secamente.
Ao lado delas, Themmie distribuía panfletos detalhando
por que o resort seria desastroso para o meio ambiente local.
Seu cabelo rosa e verde estava preso em tranças, e ela havia
pintado pequenas salamandras pretas nas maçãs de suas
bochechas marrons.
— Existem animais naquela floresta — ela disse a um
homem que havia encurralado. — O resort destruirá seu
habitat.
— Huh — disse ele, segurando o panfleto, os olhos
disparando como se estivesse procurando uma rota de fuga.
Themmie torceu o nariz.
— Gostaria de uma selfie? — Ela pegou o telefone antes que
ele pudesse responder. — Ooh, ficou fofa! Obrigada por apoiar
a causa!
Mariel olhou para Calladia e sutilmente revirou os olhos.
Mas, honestamente, sem a ajuda de Themmie, esse protesto
não ganharia força. Assim que ela postasse em seu Fadagram, o
apoio viria – ou assim esperava Mariel.
O homem finalmente escapou e Themmie concentrou sua
atenção em outro lugar.
— Oi! — ela gorjeou, saltitando em direção ao seu novo
alvo. — Você apoia a natureza?
Mariel gemeu ao ver quem Themmie havia abordado:
Ozroth, que estava encostado em um poste de telefone, braços
cruzados sobre o peito e chapéu abaixado sobre o rosto, como
se não quisesse que ninguém soubesse que estava associado ao
protesto. Mariel tentou fazer com que ele segurasse uma placa,
mas ele recusou, dizendo: Há um conceito no plano demoníaco
do qual não tenho certeza se você já ouviu falar. Chama-se
dignidade.
E sim, isso doeu um pouco, mas Mariel se importava mais
com o bem-estar de Glimmer Falls e seu ecossistema
circunvizinho do que com as mudanças de humor de um velho
demônio agitado, então ela o ignorou e começou a marchar.
— Não — Ozroth disse, olhando para a fada. O topo da
cabeça de Themmie chegava apenas ao esterno dele.
Themmie franziu o cenho.
— Isso não é muito legal.
Ozroth deu de ombros.
— A salamandra de fogo está extremamente ameaçada —
disse Themmie, implacável. — Ela vive apenas aqui e em outra
confluência de linhas ley na França. E o resort vai transformar
essas nascentes em ofurôs.
— Parece um ambiente interessante — disse Ozroth. — As
salamandras são um bônus?
Mariel se intrometeu.
— Não — ela retrucou. — As salamandras morrerão ou
serão "transferidas", provavelmente para algum zoológico
horrível onde também morrerão. Elas precisam da magia da
terra e da água.
Ozroth voltou sua atenção para ela.
— Você se importa com essas salamandras.
— Obviamente.
Sua boca se curvou de um lado, e Mariel não iria se
concentrar em como seus lábios pareciam macios.
— Se você conhecesse alguém que pudesse ajudar a salvá-las.
Parecia que a respiração havia sido arrancada dela.
— Isso não é justo — ela sussurrou.
— A vida não é justa — ele rebateu.
Themmie olhou entre eles, testa franzida em confusão.
— Hum, vocês se conhecem?
— Sim. — Ozroth sorriu. — Ela é minha namorada.
Mariel ia socá-lo, ia mesmo.
Themmie ficou boquiaberta com Mariel.
— Você tem um namorado? Desde quando? Por que você
não nos contou sobre ele ontem?
Mariel estremeceu. Maldito seja o demônio intrometido. Ela
confessou o acidente de convocação para Calladia, mas Calladia
tinha visto praticamente todos os erros mágicos que Mariel
havia cometido ao longo dos anos, então o constrangimento foi
um tanto atenuado. Ela era amiga de Themmie há alguns anos,
mas a fada não havia testemunhado a verdadeira extensão dos
fracassos de Mariel como bruxa. E com certeza, Themmie a
apoiava infinitamente, mas o pingo de orgulho que Mariel
tinha doeu, e ela não queria admitir a verdade ainda. Não até
que ela tivesse uma maneira de consertar isso.
— Eu não queria contar a ninguém até que fosse oficial —
disse Mariel, estreitando os olhos para Ozroth. — Você não
acha que isso é precipitado, querido?
Ele deu de ombros, presunçoso e despreocupado.
Themmie olhou entre eles, claramente captando as
vibrações estranhas.
— Ok, obviamente precisamos conversar após o protesto,
mas, por enquanto, deixe-me dar a ele uma placa extra...
— Não — Ozroth interrompeu. — Sem placas.
A surpresa de Themmie rapidamente se transformou em
indignação, e ela deu um tapinha no braço de Ozroth.
— Você não pode namorar Mariel e não marchar com ela,
senhor Namorado Surpresa Precipitado. — Suas asas bateram
rapidamente com irritação. — Ei, Calladia — ela chamou. —
Me traga uma placa.
— Qual delas? — Calladia perguntou.
Os olhos de Themmie se estreitaram com alegria vingativa.
— A rosa choque.
Ozroth enrijeceu quando Calladia correu com uma placa
rosa coberta de letras brilhantes. EU SALAMANDRAS DE
FOGO estava escrito nela.
— Absolutamente não.
Themmie pegou a placa e a empurrou para ele.
— Hora de participar, senhor. Prove que você é mais do que
um rostinho bonito.
Os ombros de Mariel tremeram com o riso reprimido.
Hécate, ela amava suas amigas.
Ozroth ficou boquiaberto com a fada, aparentemente
atordoado e sem palavras. Themmie empurrou a placa para ele
novamente, então começou a bater em seu peito com ela.
Calladia olhou entre eles.
— O que está acontecendo?
— O namorado de Mariel não apoia a causa — Themmie
retrucou.
Calladia tossiu.
— Namorado? — Ela lançou um olhar arregalado para
Mariel, que se encolheu.
— É uma longa história — disse Mariel.
— Ele não vai ser namorado dela por muito tempo se não
marchar conosco — disse Themmie. — Vou terminar com ele
por você, Mariel.
Oh, Themmie, se ao menos você pudesse. Mas as fadas eram
criaturas de baixa capacidade mágicas cujas habilidades eram
limitadas a voar e alguma mágica de limpeza ágil. Perfeitas para
arrumarem uma casa, menos perfeitas para banirem um
demônio.
— Está tudo bem — Mariel disse. — Ele não precisa
marchar.
Calladia cruzou os braços.
— Estou com Themmie — ela disse, fixando Ozroth com
um olhar condenatório. — É melhor seu... namorado...
participar se ele quiser ficar em suas boas graças.
A garganta de Ozroth tremeu enquanto as três mulheres o
encaravam.
— Tudo bem — ele disse finalmente, agarrando a placa.
Themmie comemorou e pegou o telefone.
— Selfie pela causa! — ela cantou, tirando uma foto dos
quatro juntos.
E oh, o olhar de ultraje perplexo no rosto de Ozroth valeu
tudo isso. Selfie? Ele murmurou para Mariel enquanto
Themmie voava para longe.
Ela deu de ombros.
— Tem que acompanhar a modernidade, velho. — Então
ela levantou a voz. — Dois, quatro, seis, oito, o que nós
apreciamos?
Ozroth não disse nada, então Mariel deu uma cotovelada nas
costelas dele.
— Ai — ele disse. Quando ela apenas olhou para ele, ele
soltou um suspiro pesado. — A floresta — ele murmurou.
Mariel sorriu.
— Assim é melhor. Ei, ei, a floresta!
Seis

Ozroth sabia que o inferno não existia, mas no momento, ele


estava começando a questionar isso.
Ele estava sentado espremido no canto de uma mesa em um
bar sujo e barulhento, olhando para seu copo de uísque. Mariel
sentou-se à sua esquerda, enquanto Themmie e Calladia
sentaram-se à frente deles. Themmie havia superado seu
ressentimento anterior e estava cheia de sorrisos, embora a
maneira como Calladia estava lançando punhais com os olhos
fez Ozroth pensar que ela estava bem ciente de seu status de
demônio.
Se ao menos ele não tivesse pegado aquela placa ridícula.
Então ele não teria que marchar com elas, encolhendo-se e
resmungando através de seus cânticos estúpidos. E então ele
não teria se encontrado envolvido nos gritos estridentes do
"Happy hour!" pós-protesto. Mesmo que ele quisesse ir
embora, não conseguiria se livrar de Themmie, que se agarrou
a seu braço e o arrastou até o bar com uma força surpreendente.
"Reformar o namorado de Mariel" havia se tornado sua causa
favorita, e ela estava abordando-a com a intensidade de um
general liderando uma campanha militar.
As fadas não deveriam ser mansas e doces? Mas como as duas
bruxas, que deveriam saber que os demônios eram
intimidadores e perigosos, com os quais não se devia foder, ela
aparentemente havia perdido o memorando.
Themmie deu um tapa na mesa, fazendo Ozroth pular. Ele
olhou para cima para encontrar as três mulheres olhando para
ele.
— O quê? — ele perguntou.
Themmie revirou os olhos castanhos escuros.
— Eu disse, você nunca se apresentou. Você está namorando
minha amiga, estamos na segunda bebida e não tenho ideia de
qual é o seu nome.
Ele nunca deveria ter repetido a mentira que Mariel havia
contado a sua mãe sobre o namoro deles. Parecia uma boa
maneira de provocá-la na época, mas levou a esse pesadelo.
Bem, se a fada tivesse lido algum livro de história mágica, ela
poderia reconhecer o nome. Deixe Mariel explicar isso.
— Meu nome é...
— Oz! — Mariel declarou em voz alta. Ela colocou a mão
em seu cotovelo. — É Oz.
A atenção de Ozroth estava dividida entre o apelido ofensivo
que ela lhe dera e a mão dela em seu braço. Duas margaritas
aparentemente foram suficientes para relaxar Mariel, porque
ela ficou mais barulhenta e divagando à medida que a noite
avançava. Agora ela o estava tocando?
— Oz — repetiu Calladia, cruzando os braços musculosos.
E sim, ela definitivamente sabia exatamente quem ele era. Se os
olhares pudessem matar, Ozroth seria um pilar de fogo agora.
— Que nome criativo.
— Shhhh — Mariel disse, nada sutilmente. Ela fez o
movimento de fechar os lábios.
— Oz é um nome tão fofo! — Themmie gritou. Ela ergueu
seu daiquiri em um brinde. — À redenção de Oz, o pior
namorado do mundo. — Felizmente, ninguém mais bebeu
para isso. Themmie arrotou, depois bateu no esterno com o
punho. — Se meus seguidores pudessem me ver agora.
— Eles ainda te amariam — Mariel disse seriamente,
balançando até que seu ombro pressionou contra o de Ozroth.
Ele ficou perfeitamente imóvel, sem saber qual era a estratégia
certa. Em toda a história dos demônios, ninguém que ele
conhecesse acabou em uma situação como esta.
Então, novamente, ninguém acabou com uma alma
também. Uma alma que estava formigando, quente e – ugh –
sentindo coisas sobre o contato do ombro. E seu cérebro seguia
logo atrás, imaginando quando alguém o havia tocado pela
última vez com gentileza – ou, pelo menos, embriaguez. O
toque era melhor do que deveria.
— Você está certa — Themmie disse, apontando para
Mariel. — Vamos testar. — Ela afofou seu cabelo vibrante,
então posicionou o telefone na frente dela e deu um sorriso
cheio de dentes. — Eiiiiiii — ela disse. — Como estão minhas
pessoinhas do Fadagram esta noite? Estou com vocês ao vivo do
meu bar favorito em todo o mundo, Le Chapeau Magique.
Ozroth virou a cabeça para murmurar no ouvido de Mariel.
— Isso é realmente necessário?
— Hum? — Ela piscou sonolenta para ele. — Ah,
Themmie? Você só tem que se acostumar com isso.
— Eu absolutamente não vou. Você precisa escolher uma
barganha.
Ela se endireitou e deu um soco leve no ombro dele.
— Você é um pé no saco, sabia disso?
— Sim, bem, há uma maneira muito simples de me fazer ir
embora. — Seus olhos traçaram suas sardas, então caíram para
sua boca.
— Desculpe, está barulhento aqui — Themmie disse,
assustando Ozroth de seu intenso foco na curva dos lábios de
Mariel. — Meus amigos estão conversando. Eles são, tipo, um
casal super fofo. Esteticamente, pelo menos. — Ela arrotou. —
Deixe-me te mostrar!
— Espere — disse Mariel ao mesmo tempo em que Ozroth
disse:
— Nem pensar.
Não adiantou. Themmie sorriu, apontando o telefone para
eles.
— Acenem para a câmera, queridos!
Mariel acenou sem entusiasmo, mas Ozroth fez uma careta.
— Guarde essa coisa — ele retrucou.
Themmie bufou.
— Tudo bem, ninguém quer ver sua cara mal-humorada de
qualquer maneira. — Ela se afastou, retomando seu monólogo
para a câmera.
Ozroth rasgou seu guardanapo de coquetel.
— Fadagram — ele murmurou. — Nunca ouvi falar de uma
coisa tão estúpida.
— Sim, você está velho e fora de alcance — disse Mariel. —
Nós sabemos.
— Isso é humilhante. Mais de duzentos anos aterrorizando
a humanidade e acabei em uma... coisa das redes sociais.
— Pode ser bom. — Mariel enrugou o nariz, e ele se distraiu
com suas encantadoras sardas. — Você pode construir sua
marca. Ozroth, o Guru da Mídia Social.
— Não, obrigado.
Ela fez beicinho.
— Oh, vamos lá. Tem potencial. Ozroth, o Impiedoso, é tão
do século XVIII. — Então ela pulou na cadeira. — Ai! — Ela
olhou para Calladia do outro lado da mesa. — Isso foi
desnecessário.
As sobrancelhas de Calladia estavam prestes a desaparecer na
linha do cabelo.
— Foi? Porque me parece que você está flertando.
— Não! — Mariel disse, acenando freneticamente com as
mãos do jeito que ela fez quando ele perguntou pelo que ela
queria trocar sua alma. — Sem flerte. Zero flerte. Nojento.
O estômago de Ozroth deu um mergulho estranho que não
foi nada bom. Ele bebeu o resto do uísque.
— Estou indo embora.
— Por quê? — Mariel perguntou em um tom açucarado. —
Tem que alimentar seu gato?
— Ele tem um gato? — Calladia perguntou. — O que,
como um gato do inferno?
— O inferno não é real — disse Mariel. — Tem tipo, um
avião... — Ela parou e riu. — Oh, cara, posso ver você com os
joelhos pressionados contra o peito, olhando feio para os
comissários de bordo.
— O quê? — Ozroth e Calladia perguntaram em uníssono.
Eles trocaram um olhar perplexo antes que Calladia
aparentemente se lembrasse de que o odiava. Ela realmente
mostrou os dentes.
— Minha margarita está vazia — Mariel disse tristemente,
olhando para o fundo de seu copo. Então ela se animou. —
Devemos pegar outra rodada?
— Não — Ozroth disse veementemente. A última coisa que
queria era passar mais uma hora na noite das garotas. — Vamos
para casa. — Ele passou a mão ao redor do braço de Mariel para
ajudá-la a se levantar.
— Não é a sua casa — Calladia estalou.
— Sua opinião foi anotada e considerada irrelevante —
rebateu Ozroth.
— Que idiota do caralho. — Ela estendeu a mão para a de
Mariel. — Você quer dormir na minha casa? Você pode ficar na
minha cama e ele pode dormir no quintal ou algo assim.
— Vai estar frio — Mariel disse tristemente. — Que tipo de
anfitriã eu seria?
— Uma anfitriã? — Calladia zombou. — Mariel, você está
basicamente sendo mantida em cativeiro por esta negociação de
almas. Você não é uma anfitriã.
— Você sabe que ela me invocou, certo? — perguntou
Ozroth. — Na verdade, ela está me mantendo como refém.
— Besteira. Você está tentando fazer com que ela desista de
sua alma...
— Sobre o qual não tenho escolha, e você sabe disso...
— Só para você ter eletricidade ou algo assim...
— É mais complicado do que isso...
— Você é insuportável! Por que você não pode cair fora de
uma vez?
O bar ficou em silêncio com as palavras altas de Calladia.
Themmie olhou alarmada.
— Uh oh, meus amigos estão brigando — disse ela. —
Tenho que ir!
Ozroth morreria antes de sofrer outro interrogatório de três
contra um ou uma selfie indesejada. Além disso, ele tinha a
sensação de que Calladia estava a cerca de cinco segundos de
socá-lo, e brigar com mortais em um bar decadente seria
degradante.
Sua tatuagem começou a formigar e ele estremeceu. Era um
momento simultaneamente ótimo e terrível.
— Eu tenho que atender uma ligação — ele disse,
esgueirando-se ao redor de Mariel. Ele correu para o banheiro
quando o formigamento se transformou em uma dor aguda. A
tatuagem era o preço da orientação – no momento em que ele
entrou no castelo de Astaroth, ele foi marcado para que
Astaroth sempre pudesse contatá-lo.
Ele se trancou no banheiro, fazendo uma careta para as
paredes manchadas, depois apagou as luzes. Ele respirou fundo
e limpou a garganta.
— Eu estava à sua espera, Mestre.
A dor parou quando uma figura se manifestou na frente
dele. Era uma projeção astral – o corpo de seu mestre estava no
plano demoníaco – mas Ozroth jurou que podia sentir um eco
do calor ardente que emanava de Astaroth.
Astaroth era de estatura mediana e magro, com maçãs do
rosto salientes, pele pálida e cabelo louro-claro que contrastava
nitidamente com seus chifres negros. Ele usava um terno preto
impecável com um relógio de bolso dourado, e sua bengala
preta era encimada por uma caveira de cristal. Ao contrário de
Ozroth, Astaroth vivia meio período na Terra e gostava do
cenário da moda mortal, alegando que sua barganha era
aprimorada por ter uma marca pessoal com uma estética
distinta.
Ozroth sentiu uma mistura de medo e admiração, como
sempre sentia quando confrontado por seu mestre, embora o
medo só tivesse piorado desde que a alma chegara. Astaroth
quebrou o menino fraco que Ozroth havia sido e o
transformou em um demônio poderoso, mas a visão de seu
mentor ainda fazia o estômago de Ozroth revirar. Ele baixou os
olhos, não querendo que o demônio visse qualquer traço de
emoção em sua expressão.
— Ozroth. — A voz de Astaroth era tão dura e sofisticada
quanto o resto dele, com um forte sotaque britânico que
adquiriu ao longo de muitos anos fazendo barganhas na Terra.
Ele reivindicou a Inglaterra como seu território exclusivo. —
Faz um dia desde que você foi invocado. Por que você ainda não
fechou um acordo?
Ozroth se mexeu.
— É um caso incomum.
Astaroth ergueu uma sobrancelha pálida.
— Como?
Não havia como essa conversa acabar bem. A única coisa a
fazer era passar por isso o mais rápido possível.
— Ela me invocou por acidente. Ela não quer fazer um
acordo.
Houve alguns momentos de silêncio excruciante... e então
Astaroth zombou.
— Então você tem uma bruxa incompetente. Encontre o
ponto de ruptura dela e acabe com isso.
— Eu estou trabalhando nisso.
Os olhos azuis claros de Astaroth eram como gelo.
— Esta é uma tarefa simples. Você é indigno disso?
— Não! — O pânico aumentou no peito de Ozroth com o
pensamento de que Astaroth poderia achar que ele não era
capaz. Astaroth o havia treinado em tudo, desde linguagem
dupla até arrancar unhas, e a culpa por desapontá-lo foi uma
das primeiras emoções de Ozroth depois de ganhar a alma. Mas
a bruxa era estranha e difícil, e ele precisava de tempo para
encontrar as rachaduras fundamentais em sua psique.
A inspiração surgiu – uma maneira de agradar Astaroth
enquanto ganhava mais tempo.
— Ela é poderosa — disse ele. — Mais do que qualquer
outra bruxa ou feiticeiro que conheci. Quanto mais difícil a
luta, melhor a recompensa.
— Hum. — Astaroth estreitou os olhos. — Se ela é
poderosa, por que convocou você por acidente?
— Ela ainda não sabe como usar seu poder. Ela não tem
disciplina.
— Isso vai ser bom para você. — Astaroth inclinou a cabeça.
— O que ela ama? Quais são as fraquezas dela?
Ozroth pensou na bonita, estranha e caótica Mariel. Ele
nunca conheceu ninguém como ela, e uma parte terrível e fraca
dele não queria que Astaroth soubesse de nenhum de seus
segredos. Uma vez que Astaroth aprendia um segredo, ele o
usava impiedosamente.
Ozroth sabia qual era sua própria fraqueza: a alma. Um
verdadeiro demônio responderia sem hesitar.
— Ela ama a natureza — ele disse, empurrando para baixo
sua culpa muito humana. Ele havia explorado segredos muito
piores do que este em negócios anteriores. — Ela tem uma
estufa cheia de plantas que personifica. Tem um resort sendo
construído perto da cidade, e ela está protestando para proteger
o ecossistema local.
— Tedioso. — Astaroth verificou as horas em seu relógio de
bolso, que insistia em usar, embora sempre tivesse um
smartphone no bolso. — Me dê a parte boa de verdade.
Ozroth respirou fundo, ignorando a sensação de enjoo no
estômago.
— A mãe dela é cruel com ela. Ela passou a vida inteira
tentando ser uma bruxa melhor, e sua família a menospreza por
seus fracassos. Ela teme que eles não a amem.
— Aprofunde-se nisso — disse Astaroth. — Faça-a sofrer.
Prometa que você pode fazer a família dela valorizá-la, então
pegue sua alma em troca. — Seu sorriso era afiado. — Depois
do acordo, ela não vai se importar de qualquer maneira.
A ideia fez Ozroth se sentir mal, mas ele assentiu mesmo
assim. Era assim que as coisas aconteciam. A necessidade de ser
implacável ao proteger sua espécie era exatamente o motivo
pelo qual Astaroth havia ensinado Ozroth a ser frio e insensível.
— Eu farei isso — ele jurou.
— Bom. — Astaroth bateu com a bengala na bota. — Há
mais do que sua reputação dependendo disso. Há uma aposta
em você.
Um calafrio percorreu a espinha de Ozroth.
— Que tipo de aposta?
— Se você vai voltar a ser um demônio de verdade ou não.
— Astaroth olhou para as unhas enquanto dava as notícias
condenatórias. — Aposto que você terá sucesso em sua próxima
negociação de almas, apesar das minhas reservas, então você
precisa ter sucesso. — Senão não foi dito.
Ozroth engoliu em seco. O alto conselho consistia em nove
arquidemônios que estavam entre os mais antigos e experientes
de sua espécie. Se eles estivessem apostando em suas
habilidades, Ozroth estaria em sérios apuros se falhasse – o tipo
de problema que separava a cabeça de um corpo, que era a única
maneira de matar um imortal.
— Eu vou entregar. Eu juro.
— Você vai — Astaroth disse, então desapareceu.
Os ombros de Ozroth cederam e as pontas de seus chifres
atingiram a parede grosseira do banheiro. O choque relâmpago
de dor não era nada comparado com as emoções horríveis e
doentias da alma que o faziam sentir-se febril e congelado ao
mesmo tempo.
— Porra.
•••

Ozroth invadiu o bar.


— Estamos indo — ele disse enquanto se aproximava da
mesa.
— Huh? — A cabeça de Mariel apareceu de onde ela a havia
apoiado em seus braços. Ela olhou para ele com os olhos turvos.
— Onde estamos indo?
Uma terceira margarita quase vazia estava à sua frente.
Maldita seja a bruxa e a fada por conseguirem outra bebida
quando ela claramente passaria mal. Ozroth olhou para
Calladia.
— Ela não estava bêbada o suficiente?
A bruxa loira saltou de seu assento, aparentemente ansiosa
pela luta.
— É a porra da noite das garotas — ela disse, estalando os
nós dos dedos. — Se você não estivesse aqui, não haveria
problema.
— Se eu não estivesse aqui, ela ainda estaria bêbada demais
para funcionar.
— Eu posso funcionar — Mariel protestou. — Eu só estou
cansada.
— E do que você está cansada? — Calladia perguntou. — É
do demônio no seu sofá, deixando você tão preocupada que
não consegue dormir?
Themmie engasgou, então saiu da cabine, as asas batendo
enquanto ela se lançava em direção ao teto.
— Um demônio? — ela gritou.
— Sim, um demônio. — Calladia olhou para Ozroth. —
Um dos piores também.
— Com licença? — Como essa bruxa podia falar assim dele
e sua espécie sem saber nada sobre eles? Você costumava gostar
de inspirar medo mortal, seu cérebro apontou, mas a lógica
ficou em segundo plano.
Themmie voou de volta para o chão.
— Mas se há um demônio no sofá dela — ela falou arrastada
—, certamente Oz pode cuidar disso? Ele parece que sabe lutar.
Mais uma vez Ozroth e Calladia compartilharam um olhar
de descrença com a ignorância de Themmie, que rapidamente
voltou a ser uma competição carrancuda.
— Estou cansada — Mariel anunciou, levantando-se
abruptamente e então apoiando-se contra a parede. — Eu
quero ir para casa.
— Finalmente — Ozroth murmurou.
Calladia passou o braço em volta da bruxa bêbada.
— Você vai para a minha — ela disse com firmeza. — E é
isso.
— Espere — disse Ozroth. — Eu...
Calladia lançou um olhar venenoso para ele.
— Eu não dou a mínima para o que você quer.
— Mas...
— Ela está certa — disse Themmie, asas zumbindo
novamente. — Mariel está bêbada e precisa dormir em algum
lugar seguro.
— Você não acha que sou seguro? — Ozroth perguntou,
embora soubesse muito bem que não.
Themmie torceu o nariz.
— Uh, lembra do demônio no sofá dela? E além disso, você
é homem. Então, não.
Ozroth tinha visto o suficiente da história humana para
saber que infelizmente era verdade. Mesmo assim, sentiu uma
vontade incômoda de carregar Mariel para casa, fazê-la beber
água e depois colocá-la na cama. A barganha da alma começaria
no dia seguinte, é claro, mais implacável do que antes.
O conselho de Astaroth de muito tempo atrás soou em sua
cabeça. Tente embebedar os feiticeiros. Você não vai acreditar nos
negócios que eles farão.
Ozroth... não poderia fazer isso.
— Tudo bem — ele rosnou. — Leve-a para casa com você.
Você tem um sofá sobrando?
— Não — disse Calladia.
— Eu tenho! — Themmie cantou. — Embora você vá
dividi-lo com três gatos. E eu tenho spray de pimenta na minha
mesa de cabeceira, só para você saber. E uma adaga.
— Por mais atraente que pareça — disse Ozroth —, acho
que vou ficar bem.
O lábio superior de Calladia ergueu-se com escárnio.
— Espero que não.

•••

Uma hora depois, Ozroth estava deitado no gramado dos


fundos de Calladia, enrolado em cobertores. Os cobertores
foram ideia de Mariel – mesmo bêbada e na casa de outra
pessoa, ela sentiu a necessidade de ser uma boa anfitriã. E
embora Calladia tivesse encarado Ozroth como se esperasse que
ele tivesse uma morte horrível e dolorosa, ela concordou.
Dito isso, Ozroth podia sentir as proteções ao redor da casa.
Calladia tinha ido além para reforçar sua segurança. Se ele
ousasse entrar, tinha certeza de que seus testículos explodiriam.
Essa era uma habilidade demoníaca – sentir o poder e o
significado geral de um feitiço. Mas a linguagem da magia era
complicada e uma grande parte da feitiçaria era interna, ligada
à emoção e à intenção, então apenas bruxas e feiticeiros sabiam
exatamente como criar esses feitiços.
A magia da barganha demoníaca era diferente. Não havia
componente verbal, e a magia era tão rara que ninguém sabia
inteiramente como funcionava. Se Ozroth tivesse que descrevê-
la, diria que era como separar mil fios invisíveis, cada um
conectado a um futuro possível. Com intenção, ele poderia
escolher quais fios seguiriam: uma morte prematura para uma
pessoa, uma série de infortúnios para outra. Ele também
poderia criar novos fios, como ao conceder beleza ou riqueza a
um mortal. Depois de séculos de prática, o processo era rápido
e quase impensado.
A magia mortal sempre exigia reflexão, e ele podia sentir a
raiva nas proteções de Calladia. Ela era poderosa. Não tão
poderosa quanto Mariel, mas o suficiente para que Ozroth
passasse alguns momentos contemplando se ele poderia de
alguma forma negociar por sua alma em vez disso. Claro, isso
significaria interagir com a megera novamente, então ele
descartou a ideia.
Ele tinha que admitir que estava relutantemente
impressionado com a bruxa alta e atlética. Ela havia se colocado
como protetora de Mariel, e nem mesmo sua reputação
sombria era suficiente para fazê-la ceder.
Mariel claramente precisava de proteção. De sua mãe, sua
própria magia caótica... e agora do próprio Ozroth.
Seu peito doeu com o pensamento.
Acima, as estrelas brilhavam como diamantes fixados em
veludo negro, tantas delas que mesmo um imortal como
Ozroth jamais seria capaz de contá-las. Não havia estrelas no
plano demoníaco, apenas um céu escuro, névoa cinza e as luzes
flutuantes das almas humanas. Sua casa era absolutamente
linda, mas havia algo atraente sobre o vibrante e confuso
mundo humano. As cores eram mais vivas, os aromas mais ricos
e havia tanto para ver que Ozroth frequentemente se sentia
sobrecarregado. Ele não conseguia se lembrar de se sentir assim
nas outras vezes em que visitou o plano humano. Outra
consequência de sua nova alma, então.
Ele estremeceu. A temperatura havia despencado e a grama
estava úmida. Ele se perguntou se Mariel estava quente no
alegre bangalô amarelo. Ele se perguntou se ela estava
dormindo.
E do que você está cansada? É do demônio no seu sofá,
deixando você tão preocupada que não consegue dormir?
Ele odiava pensar que sua presença em sua casa havia
custado o sono de Mariel. Ele era uma figura de seus pesadelos?
O que quer que as bruxas pensassem sobre demônios, eles
não eram monstros. Ou se fossem, Ozroth não entendia o que
fazia dele um monstro. Demônios faziam parte de um
ecossistema mágico, só isso. Não havia tortura, nem fogo
eterno. Apenas uma troca – magia humana e emoção por
prêmios raros que apenas poderes demoníacos poderiam
oferecer.
As leis da magia de invocação aparentemente nunca
consideraram uma situação como essa. Ninguém convocava
um demônio acidentalmente. E como as apostas eram tão altas,
não havia saída para nenhuma das partes. O demônio prestava
o serviço. O humano fornecia a alma.
Ozroth cobriu os olhos com o antebraço, apagando as
estrelas. Ozroth pode não se considerar um monstro, mas
Mariel certamente o faz.
O que acontecia quando o monstro não tinha escolha?
Sete

Mariel acordou com o rosto esmagado em um travesseiro


amarelo familiar. Ela e Calladia dormiram uma na casa da outra
inúmeras vezes. Elas moravam perto o suficiente para que
pudessem voltar para casa depois de uma noitada, mas era mais
divertido ficarem juntas.
Ela se sentou e bocejou, esfregando os olhos. A bebedeira da
noite anterior havia deixado uma leve dor de cabeça, mas nada
que uma garrafa de café e um café da manhã não resolvessem.
Calladia forçou Mariel a comer e beber água na noite anterior,
o que havia evitado o pior da ressaca.
Por um momento, a vida parecia do jeito que sempre foi.
Apenas Mariel e Calladia, tendo uma festa do pijama pela
enésima vez desde que eram duas crianças estranhas em uma
desesperada necessidade de amizade. Calladia já estaria
acordada – ela sempre se levantava para o treino matinal, não
importava o quanto tivesse ficado bêbada na noite anterior – e
assim que Mariel saísse cambaleando, elas fariam o café da
manhã juntas. Uma típica manhã preguiçosa de domingo.
Os olhos de Mariel desviaram-se para a janela e ela enrijeceu.
Ozroth estava andando no gramado do lado de fora, uma figura
alta e obscura que a lembrava de todas as coisas ruins que
aconteceram nos últimos dias. Seu chapéu de caubói preto
estava jogado na grama e suas mãos estavam enfiadas nos
cabelos escuros acima dos chifres. Parecia que ele estava
murmurando para si mesmo.
Mariel começou a passar mal de novo, e não era por causa da
ressaca. O que ela deveria fazer? Ela estava tão ligada a um
demônio que ele teve que dormir no chão para estar perto dela.
Era horrível e sufocante, e ela ainda se sentia culpada por ele ter
ficado desconfortável.
Houve uma batida na porta e Calladia irrompeu,
carregando café e um prato cheio de ovos com bacon.
— Bom, você está acordada. — Calladia parecia
repugnantemente animada em seu short de lycra cor-de-rosa
com o cabelo úmido preso em um coque. — Achei que onze da
manhã era um pouco demais, até para você. — Ela colocou o
prato na mesa de cabeceira e cruzou os braços. — Coma um
pouco de bacon e depois vamos conversar.
— Sim, senhora — Mariel disse, saudando. Ela mergulhou
na comida, enfiando os ovos na boca antes de morder o bacon
perfeitamente cozido de Calladia. — Mmm — disse ela,
fechando os olhos em êxtase. — Isso está muito melhor do que
eu dou para você comer.
— Você está brincando comigo? — Calladia perguntou. —
Você me alimenta com rolos de canela caseiros. Eles são um
milhão de vezes mais difíceis de fazer.
Mariel deu de ombros; sua boca estava tão cheia que ela não
conseguia responder. Ela engoliu o bacon com café,
estremecendo quando ele queimou sua boca.
Calladia caminhou até a janela e olhou para fora. Mariel
sabia o que ela veria: um demônio mal-humorado fazendo uma
trilha em seu quintal.
— Você acha que um exorcismo funcionaria? — Calladia
perguntou.
Mariel quase engasgou com o bacon.
— O quê, você é um padre católico agora?
— Não, mas aposto que eu seria mais eficaz.
Mariel colocou o resto da tira de bacon no prato.
— Oz me disse que todo o conceito cristão de demônios e
inferno é besteira.
— E você confia em um demônio?
— Você era ateia, tipo, ontem. De repente você acredita na
condenação eterna?
Calladia suspirou.
— Não, eu não acredito. Demônios são apenas uma espécie
diferente que vive em um plano diferente. Mas eu não gosto
dele. E eu não gosto do que ele quer de você.
— Minha alma. — Mariel brincou com o pedaço de bacon.
— Ele me disse que é de onde vem minha magia.
— Então ele quer levar sua magia também? — Quando
Mariel assentiu, Calladia soltou um grunhido irritado. — Tem
que haver uma maneira de contornar isso.
Mariel olhou pela janela novamente. Oz estava encostado
em uma árvore agora, os braços cruzados. Seus olhos vagaram
pela casa, depois pousaram na janela dela e ali permaneceram.
— Ele não é tão ruim assim — disse Mariel, encarando Oz
de volta. — Ele é irritante mais do que tudo. — Irritante,
estranho... e gostoso.
— E arrogante — disse Calladia. — E rude como o inferno.
Mariel revirou os olhos.
— Você foi tão rude quanto ele.
— Sim, bem, ele quer a magia e a alma da minha melhor
amiga. Então, me processe.
Mariel colocou o prato na mesinha, a porcelana tilintando
contra a madeira.
— É minha culpa. Se eu não fosse uma bruxa tão terrível...
— Você não é uma bruxa terrível — interrompeu Calladia.
— Você cometeu um erro. Não há razão para que isso tenha
consequências tão íngremes. — Ela mordeu o lábio. — Eu
odeio dizer isso, mas...
— Não. — Mariel já sabia para onde Calladia estava indo.
— Ela tem mais experiência...
— Uh-uh. — Mariel balançou a cabeça com veemência. —
Prefiro perder minha alma do que sofrer a humilhação de
contar a mamãe. Ela vai me envergonhar por décadas se
descobrir.
— Poderíamos contar para minha mãe em vez disso?
— Que diria imediatamente à minha mãe, em seguida para
toda a cidade. — Cynthia Cunnington, como Diantha Spark,
odiava que a roupa suja de sua própria família fosse lavada, mas
adorava fofocar sobre suas rivais e seus filhos. Ela ficaria muito
feliz em compartilhar uma história humilhante sobre os Sparks.
Calladia estremeceu.
— Bem... sim.
Mariel aninhou o café contra o peito, absorvendo o calor.
— Tem que haver outros recursos.
— Livros de feitiços, registros históricos, outras bruxas?
— Eu estava pensando no Google.
Calladia riu.
— Bem, não pode doer.

•••

Muitas, MUITAS pesquisas no Google depois, Mariel não


estava mais bem informada sobre como fazer um demônio ir
embora. Ela estava, no entanto, bem versada na sensibilidade
dos chifres demoníacos, no tamanho impressionante do pênis
de um demônio e em todas as maneiras pelas quais uma bruxa
poderia solicitar um encontro sexual do plano demoníaco (uma
transação que aparentemente não exigia uma barganha de alma,
vadias sortudas). Na realidade, os pornôs de demônios eram
claramente humanos fortemente maquiados, projetados para
se parecerem com os desenhos do livro de criaturas mágicas de
Mariel, mas certamente até a pornografia continha uma
semente de verdade?
— A internet é quase inteiramente pornografia? — Mariel
perguntou depois da enésima busca fracassada.
Calladia riu.
— Você já não sabia disso?
Elas estavam sentadas em cadeiras com rodinhas no
escritório de Calladia. Ozroth ainda estava andando do lado de
fora, embora fizesse pausas frequentes entre ficar emburrado e
olhar feio pela janela.
— Estou muito familiarizada com a pornografia — disse
Mariel, ofendida com a insinuação de que ela era uma inocente
de olhos arregalados. — Só não entendo por que não
encontramos nenhum fato legítimo sobre demônios.
Parte dela se perguntava sobre o impressionante pau dos
demônios. Isso era real? Ou era coisa mitológica, como os
joelhos articulados para trás? Ela realmente não tinha prestado
atenção na virilha de Ozroth – ok, não prestava muita atenção
(certamente alguns olhares furtivos e culpados não contavam)
– mas ele parecia ter uma protuberância impressionante.
— Eu odeio dizer isso a você — disse Calladia —, mas você
provavelmente deveria ir para a biblioteca.
Mariel fez uma careta. A biblioteca de Glimmer Falls era um
recurso incrível, mas a bibliotecária-chefe era uma das amigas
de sua mãe. O que significava que qualquer livro que Mariel
pegasse seria relatado.
— Você não pode fazer isso por mim? — ela perguntou,
arregalando os olhos suplicantemente.
Calladia cruzou os braços.
— Garota, eu te amo, mas é a sua alma. Se você não pode se
arriscar a se sentir desconfortável por causa disso, pode muito
bem entregá-la ao demônio.
Mariel suspirou, os ombros caídos.
— Você tem razão. Vou para casa me refrescar e depois
enfrentar as estantes. — Se ela aparecesse na biblioteca com
roupas do dia anterior e amassadas, sua mãe nunca pararia de
falar em sua orelha.
Calladia deu-lhe um abraço.
— Nós vamos encontrar uma maneira de sair disso. Eu
prometo.
Mariel piscou com força para conter as lágrimas que
queriam se formar.
— Espero que sim.
— E se não... — Calladia deu de ombros. — Tenho uma
serra elétrica, uma pá e um grande quintal.
Mariel deu um tapa no braço da amiga.
— Sem assassinato!
— Eu não prometo nada — Calladia murmurou, olhando
pela janela.
Quando Mariel saiu da casa, Ozroth endireitou-se de sua
posição contra a árvore.
— Já era hora — disse ele acidamente. Ele estava uma
bagunça – camisa amassada, cabelo despenteado e olhos
sombreados de exaustão.
— Sinto muito — disse Mariel, sentindo-se culpada por
deixá-lo do lado de fora. Então ela imaginou o que Calladia
diria e endireitou os ombros. Por que ela deveria se sentir
culpada? Não era como se ela tivesse escolha. — Sabe o quê?
Não, não sinto muito. — Ela marchou até ele, então enfiou um
dedo em seu peito. Seu peitoral era deliciosamente firme sob
seu dedo. — Você arrumou uma briga com minha amiga ontem
à noite, você é rude e autoritário, e está agindo como se fosse
minha culpa você ter que dormir na grama.
Ele estreitou os olhos.
— Foi culpa sua.
— Porque você está preso comigo? — Ela balançou a cabeça.
— Se você não tivesse sido tão idiota com Calladia, talvez ela
tivesse deixado você dormir dentro da casa.
Ele zombou.
— Duvido.
Sim, era improvável, mas Mariel estava cansada de vê-lo agir
como uma criança emburrada.
— Olha, nós estamos nisso juntos. Em vez de ser um enorme
rabugento, você poderia realmente trabalhar comigo para
tentar encontrar uma brecha que nos deixe sair deste acordo.
— Não há brechas.
— Como você sabe?
Ele a olhou incrédulo.
— Porque não há registro de uma em toda a história dos
demônios?
— Sim, e você também não ouviu falar de uma invocação
acidental, ouviu?
Sua boca abriu e fechou.
— Não — ele finalmente disse.
Mariel sentiu uma onda de triunfo. Ela finalmente
conseguiu superar o demônio.
— Então pare de ser tão presunçoso e condescendente e me
ajude — disse ela, dirigindo-se para a rua. — E por falar nisso
— ela disse por cima do ombro —, você tem grama no cabelo.
Ozroth balançou a cabeça como um cachorro, fazendo voar
pedaços de grama em todos os lugares. Então ele correu para
alcançá-la, enfiando o chapéu preto na cabeça.
Eles caminharam em silêncio por alguns minutos. Mariel
olhava para ele de vez em quando, incapaz de resistir à
curiosidade. Ele exalava calor, um brilho quente contra sua pele
que a fazia pensar nas noites de inverno passadas em frente à
lareira. Seu perfil era forte, com um queixo pontudo e um nariz
ligeiramente grande demais.
— Todos os demônios são quentes? — ela perguntou antes
que pudesse pensar melhor. Sua boca funcionava assim às vezes
– ok, mais do que às vezes – disparando pensamentos antes que
seu cérebro raciocinar. Suas bochechas imediatamente ficaram
quentes, mas não havia nada a fazer a não ser não ficar
envergonhada.
Ozroth olhou para ela com desconfiança.
— Tipo... a nossa temperatura corporal?
— … Claro. — Deixe-o interpretar dessa maneira. Ele não
precisava saber que Mariel tinha uma queda por narizes
grandes.
— Nosso âmago é mais quente que o dos humanos, sim.
Pelo menos eles se desviaram da expressão inapropriada de
atração sexual de Mariel, mas sua resposta trouxe mais
perguntas.
— Você ainda sente febre quando está doente? Os demônios
ficam doentes? — Ela imaginou Ozroth com catapora ou
espirrando em um lenço – um preto, é claro, para combinar
com sua estética sombria.
— Sua mente — ele murmurou.
Mariel torceu o nariz.
— O que tem?
— Você pula de um assunto para outro tão rápido que é
difícil acompanhar.
— Calladia diz isso também — admitiu Mariel. — Ela diz
"Esquilo!" sempre que perco o fio da meada.
— Esquilo?
— Você não viu o filme Up: Altas Aventuras, viu? — Com
seu olhar incrédulo, ela revirou os olhos. — Isso é um não,
então.
— A maior parte do entretenimento humano é pueril e
insípido, serve apenas para distraí-los de suas breves vidas.
— Uau. — Ela bufou com o tom afetado dele, então usou a
mão para imitar um telefonema. — Um-nove-zero, gostaria de
relatar um roubo. Debbie Downer quer sua esquete de volta.
Ozroth semicerrou os olhos para ela.
— O quê?
— Deixa para lá.
Mariel estava se sentindo mais animada por provocar o
demônio. Provocando o Demônio – isso soou como um dos
pornôs que ela pesquisou no Google. Ela teve uma visão de
Ozroth amarrado e carrancudo em sua cama, o que foi... hum.
Mariel forçou sua mente para longe daquele caminho
perigoso e se concentrou na paisagem. Muitas das ruas
residenciais em Glimmer Falls eram pavimentadas com tijolos
vermelhos, incluindo essa. Galhos de árvores entrelaçados em
um arco acima, e Mariel sorriu quando uma folha amarela caiu
para descansar em seu ombro. O fogo do outono estava em toda
parte, e logo os galhos estariam nus, galhos entrelaçados como
filigranas delicadas. Tudo parte do ciclo constante da natureza.
Mariel gostava do caos previsível do mundo natural. O
ecossistema de Glimmer Falls era complexo, mas sempre se
podia confiar em algumas coisas. As folhas mudavam, o ar ficava
fresco e, durante as poucas semanas do Festival de Outono,
toda a cidade cheirava a abóboras e especiarias enquanto a
magia iluminava cada esquina.
Eles atravessaram a extremidade sul da rua principal. O
centro da cidade ficava a quinze minutos a pé ao norte:
prefeitura, incontáveis cafeterias, lanchonetes, lojas... e a
Biblioteca de Glimmer Falls, onde ela tinha um encontro
próximo com algumas pesquisas demoníacas.
— Existem bibliotecas no plano demoníaco? — Mariel
perguntou.
— Claro — disse Ozroth. — Por quê?
— Talvez haja livros que possam ajudar na nossa situação. —
Se alguém tivesse a chave para escapar de uma invocação
acidental, seria um historiador de demônios. Ela imaginou uma
vasta e dramática biblioteca cheia de tochas bruxuleantes e
tomos misteriosos encadernados em couro de origem
questionável. Então, novamente, as tochas provavelmente não
eram a melhor escolha com tanto papel. Talvez a biblioteca fosse
iluminada por eletricidade gerada por almas.
— Energia almal — ela murmurou baixinho, então riu da
própria piada.
Ozroth a olhou com desconfiança.
— Eu treinei por décadas antes da minha primeira
negociação de almas. Eu li todos os livros que existem sobre o
assunto.
Isso parecia improvável. Claro, ele aparentemente tinha
séculos de idade, mas havia muitos livros no universo.
— Mesmo aqueles escritos por humanos?
Ele zombou.
— Você viu aquele desenho na sua enciclopédia. Você
realmente acha que os livros humanos são um recurso confiável
quando se trata de demônios?
— Então você é um esnobe. Ótimo ter isso confirmado
novamente.
Ozroth parecia tão desconcertado que Mariel não pôde
deixar de sorrir. Ele era tão fácil de abalar. Se ela tinha que estar
ligada a ele 24 horas por dia, 7 dias por semana, ela poderia se
divertir um pouco com isso.
Eles viraram na rua dela e Mariel congelou.
— Oh, não. — O conversível vermelho estacionado do lado
de fora da sua casa era tão familiar quanto a sensação de aperto
em seu estômago.
— O que é?
— Minha mãe está aqui. — E também, ela percebeu, muitas
outras pessoas. O gramado da frente estava cheio de bruxas,
feiticeiros e alguns humanos comuns comendo, bebendo e
conversando. Aparentemente, Diantha Spark decidiu dar uma
festa, mas por que tinha que ser no gramado da frente de
Mariel, ela não tinha ideia.
Seu tataratatara (muitos tatara) avô, Alzapraz, pairava
desajeitadamente ao redor da festa, comendo queijo de palito e
parecendo que preferia estar em qualquer outro lugar. Seu traje
era sempre dramaticamente estranho, e hoje não era diferente:
ele usava uma túnica de veludo vermelho e orelhas de coelho.
Sua barba branca chegava à cintura e seus olhos pretos e
redondos mal eram visíveis sob as sobrancelhas brancas
eriçadas.
A maioria dos conjuradores eram generalistas, mas Alzapraz
era o raro feiticeiro que aperfeiçoou um elemento da feitiçaria:
estender seu tempo de vida. Infelizmente, ele não aprendera a
estender sua saúde física para igualá-la e parecia tão velho
quanto era, com as costas curvadas, pele manchada pela idade e
mais rugas do que um pug. Ele vinha reclamando de suas
articulações doloridas há séculos.
O velho feiticeiro notou Mariel e mancou até ela.
— Suas articulações ainda funcionam — disse ele com uma
voz trêmula. — Por que você não está correndo?
Mariel não era a única que temia os eventos da família Spark.
Ela se inclinou para dar um abraço no antigo feiticeiro,
tomando cuidado para não apertar demais.
— Como mamãe convenceu você a aparecer para... o que
quer que isso seja?
Ela gostava de Alzapraz, com sua rabugice e tudo. Ele parecia
inofensivo, mas ela tinha ouvido histórias sobre seus primeiros
séculos selvagens, cheios de travessuras criminais e excessos
bacanais.
Alzapraz fez uma careta.
— Ela disse que você estava pronta para sua lição na
linguagem da magia.
Mariel franziu a testa. Embora melhor do que sua mãe,
Alzapraz também ficou perplexo com sua incapacidade de
transformar os genes Spark em feitiços de sucesso, então ela
geralmente evitava procurar a ajuda dele. Os tutoriais on-line
do GhoulTube não estavam fazendo o suficiente para
aprofundar sua memorização da linguagem da magia, e ela teve
um momento de fraqueza depois de explodir seu último
iPhone no jantar em família.
— Talvez outra hora.
A última coisa que ela queria era discutir magia com
qualquer um dos membros de sua família, mas se sua mãe
estivesse aqui, não haveria como evitar. Seu estômago parecia
vazio com o pensamento. Essa profecia estava sempre pairando
sobre sua cabeça como uma bigorna, pronta para esmagá-la de
forma caricatural.
Alzapraz olhou Ozroth de cima a baixo. As rugas em sua
testa se aprofundaram.
— Huh.
Um assobio cortou o ar.
— Yoo-hoo, querida! — Diantha chamou do jardim da
frente, acenando animadamente. — Venha aqui!
Não haveria como escapar agora.
— Merda. — Mariel forçou-se a se mexer, o medo gelando
em suas entranhas.
Diantha os encontrou na calçada. Ela vestia um terninho
lilás e salto alto vermelho e segurava uma taça de champanhe.
— Mariel, querida, onde você esteve? Achei que você
perderia sua própria festa.
— Por que estou dando uma festa? — Mariel perguntou
com o que considerava uma calma notável, dada a situação.
Tudo o que ela queria fazer era tomar banho e se trocar, depois
ir para a biblioteca. Agora ela teria que entreter os amigos de sua
mãe enquanto enfrentava perguntas indesejadas sobre seu
treinamento.
Diantha riu, então beliscou a bochecha de Mariel.
— Para comemorar seu novo relacionamento, bobinha.
Achei que esse dia nunca chegaria!
— Oh, não — Ozroth disse, olhando para a reunião com
uma expressão de alarme crescente.
— Pessoal! — Diantha bateu uma longa unha contra sua
taça de champanhe. A conversa diminuiu enquanto os
convidados reunidos olhavam. — Eu gostaria de apresentar...
— Ela parou, então olhou para Ozroth, aparentemente
percebendo que ela nunca perguntou o nome dele.
— Oz — disse Mariel.
— Oz! — Diantha ergueu a taça em um brinde. — O novo
namorado da Mariel!
Oito

Com mais de quarenta mortais olhando para ele como um


animal de zoológico, Ozroth se castigou por suas escolhas de
vida. O relacionamento falso não parecia grande coisa no
começo – claro, deixou a mãe irritante de Mariel e a amiga
irritante Themmie pensarem que eles estavam namorando –
mas se transformou em algo completamente fora de controle.
— Ao Oz! — Diantha gritou, levantando a taça bem alto.
A festa animou. Mariel parecia querer afundar no chão e
desaparecer – um sentimento com o qual ele se identificava
fortemente.
O gramado da frente de Mariel foi transformado. Os
convidados estavam em torno de mesas redondas com toalhas
de prata, e os garçons moviam-se entre a multidão carregando
bandejas de champanhe e canapés. Em frente à janela da sala,
havia uma mesa com uma fonte de chocolate. Ilusões de
pássaros e borboletas voavam acima, deixando rastros de magia
brilhante para trás. Mariel pegou uma taça de champanhe e
bebeu metade de um só gole enquanto os convidados se
aproximavam deles.
— Parabéns! — Um homem rechonchudo com um rosto
corado disse, batendo no ombro de Ozroth. — Não é todo
homem que consegue namorar uma Spark.
Ozroth grunhiu em resposta.
— Como vocês se conheceram? — Uma bruxa perguntou,
e o cérebro de Ozroth parou. Lúcifer, como ele deveria
responder?
— Bumbelina — disse Mariel, pensando mais rápido do que
ele. — Um deslizar de sorte.
Ozroth não tinha ideia do que ela estava falando.
— Bumbelina? — ele perguntou baixinho assim que a bruxa
se afastou, mas não houve tempo para ela responder antes que
alguém os cumprimentasse. Ele conheceu uma vereadora, um
policial, membros do clube mágico de duelos de Diantha e
muito mais, até que os rostos e nomes se misturaram. A
maneira como os convidados bajulavam Diantha enquanto
elogiavam Ozroth e Mariel fez ele fazer uma careta. Claramente,
Diantha era uma figura influente em Glimmer Falls, embora ele
não soubesse por que tantas pessoas a achavam charmosa.
Diantha acabou se afastando, felizmente, e a maior parte da
multidão se moveu com ela como aqueles peixinhos que se
agarram a tubarões. Mariel soltou um suspiro.
— Uau. Minha mãe realmente se superou desta vez.
— Esse tipo de ocorrência é comum? — perguntou Ozroth.
Mariel esvaziou a taça e o abaixou.
— Qualquer coisa dramática é uma ocorrência comum
perto dela, especialmente se for algo que eu considero
pessoalmente mortificante.
Ele fez uma careta para onde Diantha se juntou a um grupo
de mulheres bem vestidas.
— Ela deveria considerar seus sentimentos.
Mariel riu alto.
— Diantha Spark considerando quaisquer sentimentos
além dos dela? Que piada.
Agora seria o momento ideal para explorar suas inseguranças
e torná-la mais vulnerável, mas Ozroth não gostou da amargura
nos olhos de Mariel.
Ele podia imaginar a voz zombeteira de Astaroth em sua
cabeça. Você está amolecendo?
Ele não era mole. Ele estava apenas ganhando tempo.
— Oh, não. — Mariel agarrou seu antebraço. — Minha mãe
está trazendo Cynthia Cunnington.
Ele olhou onde os pequenos dedos dela pressionavam sua
pele. Era difícil pensar quando ela o tocava.
— Cunnington?
— A mãe de Calladia. Ela é como a versão rainha do gelo da
minha mãe.
Ozroth fez uma careta.
— Eu não acho que posso lidar com duas da sua mãe.
— Então prepare-se.
Ozroth plantou suas botas na grama como um soldado
enfrentando um inimigo que se aproxima. Quando Mariel
pegou uma segunda taça de champanhe do garçom que passava,
ele pegou uma também. Mariel ergueu as sobrancelhas e ele
ergueu o copo em resposta.
— Quando se está na Terra — ele murmurou antes de tomar
um gole. O líquido explodiu em sua boca, uma cacofonia de
doçura ácida que ameaçou dominar suas papilas gustativas. Ele
estava tenso, cada sentido no limite enquanto as cores, sons e
sabores do mundo mortal o envolviam.
— Aqui estão! — Diantha caminhou na direção deles,
cambaleando enquanto seus saltos faziam buracos na grama.
Ela estava de braços dados com uma mulher alta de meia-idade
em um terninho azul. O cabelo loiro da outra mulher estava
preso em um coque, e as pérolas em seu pescoço e orelhas eram
o acessório perfeito para sua expressão altiva. — Este é Oz, o
namorado de Mariel — disse Diantha. — Lembre-me, querida
Cynthia, Calladia está saindo com alguém?
— Não no momento — disse Cynthia em uma voz rouca,
arqueando uma sobrancelha perfeita. — Ela está muito
ocupada dominando a feitiçaria.
Diantha soltou uma risada frágil.
— Bem, espero que ela não se arraste demais. Eu sei que ela
sempre foi... opinativa... mas a juventude e a beleza são
passageiras.
Cynthia olhou Diantha de cima a baixo.
— São mesmo. — Ela sorriu, então levantou a mão na frente
de Ozroth, exibindo um diamante grande o suficiente para
arrancar o olho de alguém. — Cynthia Cunnington, prefeita de
Glimmer Falls.
— Só porque eu não concorri ao cargo — Diantha
murmurou.
Ele podia ver a semelhança na altura de Calladia e Cynthia,
o cabelo loiro amanteigado e rosto oval, mas isso era tudo. Seus
olhos eram azuis e frios, ao contrário do castanho quente de
Calladia, e ele não conseguia imaginar essa mulher levantando
pesos ou tentando começar uma briga de bar com um demônio.
Estava claro que ela esperava que ele beijasse as costas da
mão, mas Ozroth não queria chegar tão perto. Em vez disso, ele
agarrou as pontas dos dedos dela e apertou, soltando a mão dela
imediatamente.
Cynthia pareceu surpresa, mas se recuperou rapidamente.
— Então, como nossa pequena Mariel conquistou seu
coração?
Seu tom de descrença educada irritou Ozroth. Ele olhou
para Mariel com uma expressão destinada a transmitir O que há
de errado com essas pessoas? Ela deu de ombros e deu um
pequeno sorriso. Ele forçou sua atenção de volta para Cynthia.
— Nós nos conhecemos em Bum... — Merda, qual era o
nome de qualquer coisa sobre a qual Mariel estava falando
antes?
— Bumbelina — ela felizmente interrompeu.
— Sim, Bumbelina. — Ele assentiu. — Um deslizar de sorte.
— O que diabos isso significava?
— Esse é um daqueles aplicativos de namoro? — Cynthia
perguntou com claro desgosto. — Na minha época,
conhecíamos as pessoas pessoalmente antes de combinarmos
um encontro.
— Sua época foi há muito tempo, querida — Diantha disse
com doce veneno. — Fico feliz que Mariel esteja usando todas
as ferramentas à sua disposição para encontrar o amor.
Mariel fez um som sufocado.
— Ah, é um pouco cedo para jogar essa palavra por aí, mãe.
Oz conseguia pensar em muitas palavras que resumiam
como Mariel se sentia por ele. Desdém encabeçava a lista,
seguido de perto por aborrecimento. Já que os demônios eram
normalmente temidos e odiados, isso não deveria tê-lo
incomodado tanto quanto incomodava.
A testa de Diantha franziu.
— Por quê? Seu pai e eu sabíamos que estávamos
apaixonados na primeira vez que fizemos sexo e todos os objetos
no quarto levitaram. Isso foi três horas depois de nos
conhecermos na Competição Nacional de Feiticeiros. Eu tinha
acabado de ganhar o troféu e...
— Sim, estamos todos muito familiarizados com esta
história — interveio Cynthia. — Embora alguns possam
argumentar que é cafona revelar os detalhes da vida sexual de
alguém em público.
— Falou como alguém sem vida sexual. — Diantha afofou
seu cabelo encaracolado, sorrindo para Cynthia. — Como está
o velho e querido Bertrand ultimamente? Ele está levantando,
mas ouvi dizer que há um médico muito bom na cidade,
especializado em todos os tipos de doenças relacionadas à...
problemas de idade.
O sorriso de Cynthia era afiado.
— Às vezes me pergunto como nós duas nos tornamos tão
boas amigas, Diantha.
— Oh, querida — Diantha disse, envolvendo seu braço no
de Cynthia. — Isso é o que as melhores amigas fazem! Nós
provocamos porque nos importamos.
Ozroth trocou um olhar cético com Mariel. Se essas duas
eram melhores amigas, ele era um duende do ar. Ela revirou os
olhos e balançou a cabeça.
Ele tomou outro gole de champanhe, quase estremecendo
com o sabor intenso. Foi um daqueles momentos em que tudo
parecia muito brilhante e nítido – a bebida em sua boca, o sol
em sua pele, a tagarelice desses detestáveis mortais. Como eles
suportavam serem dominados por sensações o tempo todo? O
suor nervoso desceu por sua espinha e ele se mexeu
desconfortavelmente.
— Então — disse Cynthia. — O que você faz, Oz?
Ele congelou com a taça a meio caminho dos lábios.
— Perdão?
— Qual é o seu trabalho?
Merda. Sua mente zumbia enquanto tentava pensar em algo
plausível, mas não fácil de verificar. Claro, ele poderia ter dito a
elas que era um demônio que colecionava almas para viver, mas
os olhos arregalados de Mariel imploravam para que ele não o
fizesse, e ele queria preservar qualquer terreno que tivesse
conquistado com ela. Afinal, o desdém era uma melhoria do
ódio.
— Eu... — Ele limpou a garganta, desejando que o zumbido
em sua cabeça desaparecesse para que ele pudesse voltar ao seu
eu frio e afiado. — Eu sou...
— Um historiador! — Mariel cantou. A mão dela envolveu
o braço dele, os dedos pressionando em seu bíceps.
Estranhamente, isso fez Ozroth se sentir mais estável em meio a
todo aquele barulho e cor. — Oz é muito inteligente.
— Um historiador. — Os olhos de Cynthia mergulharam
em seu peito. — Não me lembro de ter visto um historiador
tão... fisicamente apto.
O olhar era educado demais para ser malicioso, mas Ozroth
ainda se sentia desconfortável.
— Eu malho, às vezes.
Ele malhava mais do que às vezes, verdade seja dita. A vida
ficava monótona entre as barganhas, e agora que sua alma
continuava empurrando sentimentos indesejados para ele, ele
estava se exercitando para abafá-los.
— Você é professor? — perguntou Cynthia. As duas bruxas
mais velhas o olhavam como leoas avaliando uma gazela, e ele
sabia que aquele título lhe daria prestígio aos olhos delas. Ele
conheceu muitos mortais assim: ricos, privilegiados e altamente
educados, que viam essas características como o que separava a
elite da ralé. Elas o lembravam de uma famosa atriz bruxa com
quem ele fez um acordo, levando sua alma em troca da admissão
de sua filha em uma das dez melhores universidades.
— Sim — disse ele. — Em período sabático.
— Onde você ensina? — Os olhos de Diantha brilharam de
emoção. — Mariel sempre quis um pouco de disciplina
acadêmica. — Ela lambeu os lábios, olhando-o de cima a baixo.
— E você parece ser excelente em disciplina.
Ele engasgou com a boca cheia de champanhe.
— Ele leciona na Nova Zelândia — disse Mariel, ignorando
a insinuação de alguma forma. Anos de prática, ele supôs. —
Na Faculdade de Bruxaria das Antípodas.
Ozroth reprimiu um bufo. De onde ela tirou isso?
— Mesmo? — As sobrancelhas de Cynthia se ergueram. —
Nunca ouvi falar dessa instituição. Não deve ser muito
prestigiosa.
— Pelo contrário — disse Ozroth. — É tão prestigiosa que
sua existência é mantida em segredo. Nosso processo de seleção
é rigoroso e os alunos precisam ser convidados a se inscrever.
As mentiras estavam fluindo com mais facilidade agora que
ele havia encontrado o equilíbrio. Ele olhou para Mariel, que
estava claramente lutando para não sorrir. Uma covinha
aparecia e sumia em sua bochecha, e ele teve o impulso mais
estranho de colocar os lábios nela, como se pudesse saborear sua
alegria.
Ele se esbofeteou mentalmente. Por que ele estava se
entregando a esse tipo de pensamento sobre o alvo da sua
barganha de alma? Isso só poderia terminar de uma maneira e,
quando terminasse, todo o humor e o fogo que ele achava
atraente em Mariel teriam desaparecido.
O pensamento o deixou enjoado.
Diantha estava falando de novo, e ele voltou à conversa.
— Não pode ser tão exclusiva. Como pode não ter me
escolhido? Ou Mariel? Ou algum dos nossos ancestrais? Os
Sparks são a principal dinastia mágica. Podemos traçar nossas
raízes até Stonehenge!
— Tenho certeza que não é assim que a genealogia funciona
— Mariel murmurou baixinho.
— Ou os Cunningtons — disse Cynthia, parecendo
igualmente ofendida. — Também é a principal dinastia mágica.
— Tenho certeza de que não é assim que a palavra principal
funciona — Ozroth sussurrou para Mariel. Ela riu, então
colocou a mão sobre a boca. Ele sentiu uma onda de prazer com
a resposta, como se seu peito tivesse inchado duas vezes.
— Pelo menos de Alzapraz deve ter ouvido falar. — Diantha
acenou com a mão. — Venha aqui, Alzapraz querido!
Na beira do gramado, o pequeno feiticeiro de aparência
antiga recuou visivelmente. Ele começou a se apressar em
direção à calçada, mas não conseguiu se mover tão rápido, e
Diantha logo o pegou e o arrastou de volta. Ela colocou o
feiticeiro na frente de Ozroth.
— Alzapraz é meu tataratataratataratataratatara...
— Por favor, pare — disse Alzapraz.
— ...dor na minha bunda — Diantha terminou. Os dois se
encararam. — De qualquer forma, ele está fazendo hora extra
no mundo, embora provavelmente não no sentido eufemístico,
dado... tudo isso. — Ela apontou para a longa barba do
feiticeiro, as vestes de veludo e as costas curvadas. — Mas ele
certamente saberia sobre a Faculdade de Bruxaria das
Antípodas.
— O quê? — Alzapraz levou a mão em concha ao ouvido.
— A Faculdade de Bruxaria das Antípodas — Diantha
repetiu em voz alta. — Aparentemente uma das escolas de
magia de elite do mundo, onde Oz ensina. Francamente, tenho
minhas dúvidas. Como uma escola de prestígio poderia omitir
os Sparks?
Alzapraz olhou para Ozroth, depois para Diantha, depois
para Ozroth novamente. Seus olhos se estreitaram sob aquelas
sobrancelhas de lagarta antes de voltar para Diantha.
— Sim — disse ele com a voz trêmula. — Já ouvi falar dessa
escola. Eu mesmo recebi um convite antigamente. Mas, sabe, os
fusos horários, especialmente quando tínhamos que viajar em
um navio Viking...
Mariel tossiu no punho.
Diantha pareceu surpresa.
— Mas se você foi convidado, por que eu não fui?
Alzapraz deu de ombros.
— Se você tem que perguntar, já sabe a resposta.
As bochechas de Mariel estavam rosadas, e agora havia duas
daquelas covinhas cativantes. Quando ela olhou para Ozroth,
seus olhos estavam cheios de alegria.
O sorriso dela estava fazendo algo engraçado dentro dele. Ele
se sentiu quente, e os cantos dos lábios dele queriam subir para
combinar com a expressão dela. Era como se ele estivesse em
uma gangorra, suas emoções novas e instáveis oscilando entre a
culpa, algo que parecia engolir o sol, e o desejo de se trancar em
um lugar escuro e silencioso e nunca mais sair.
Não é de se admirar que os humanos fizessem acordos tão
irracionais. Suas almas eram caleidoscópios de sentimentos e
impulsos, mudando à menor provocação.
— Mariel ainda pode receber um convite. — Diantha olhou
para Ozroth suplicante. — Ela está apenas florescendo tarde.
Talvez seja exatamente o que ela precisa para cumprir seu
destino.
— Você continua falando sobre esse destino — Cynthia
demorou. — Tem certeza de que não teve alucinações por causa
das drogas?
Diantha ofegou, parecendo indignada.
— Quero que saibam que estava muito sóbria quando as
estrelas, a terra e o vento entregaram a profecia. Eu estava na
minha trigésima sexta hora de trabalho de parto... Deus te
abençoe, Mariel, mas você tinha uma cabeça grande... e o
médico estava pronto para me abrir quando implorei às estrelas
por um presságio para me fazer aguentar.
Mariel estremeceu.
— Você tem que contar essa história? Meu aniversário é
daqui a sete meses.
— Ela conta essa história no seu aniversário? — Ozroth
perguntou, horrorizado.
— Todo ano — Mariel disse tristemente.
Ao redor deles, as pessoas estavam ouvindo. Suas expressões
eram uma mistura de tédio estiloso e adulação bajuladora –
provavelmente coincidindo com quem tinha mais capital social
a ganhar.
— Você só implorou às estrelas porque estava dando à luz lá
fora como um animal de celeiro — disse Cynthia.
Diantha fungou.
— Prefiro um parto natural ao ar livre do que sua cesariana.
Estou convencida de que a experiência aprofundou o vínculo
entre Mariel e eu.
Os dedos de Mariel se contraíram no bíceps de Ozroth.
— Não — ela murmurou.
Diantha respirou fundo e Ozroth sentiu uma pontada de
pavor, pressentindo a chegada de um monólogo.
— Acho que poderia ter ido para o hospital — disse ela —,
mas queria que os primeiros momentos de Mariel estivessem
conectados à magia, e é difícil acessar a magia enquanto as
máquinas estão apitando e um médico está enfiado até o
cotovelo na sua vagina.
— Por favor, pare de falar sobre sua vagina — disse Mariel.
Diantha olhou para ela com carinho.
— Querida, não sei como você se tornou tão puritana.
Somos todos adultos aqui e pelo menos metade de nós tem
vagina. É o mesmo que falar de cotovelos.
— É mesmo? — Cynthia perguntou cética.
Ozroth se inclinou para sussurrar no ouvido de Mariel.
— Se você me der sua alma, vou garantir que ela nunca mais
fale sobre a vagina dela.
Ela revirou os olhos.
— Eu estava me perguntando quando você voltaria a
oferecer acordos bobos. — Então ela suspirou. — Mas esse é
tentador.
— Foi um parto na água a céu aberto — disse Diantha,
ignorando a angústia palpável da filha. — Eu tinha três doulas
bruxas ao meu lado e um cirurgião esperando por perto – por
insistência de Roland... você sabe como ele se preocupa – e
lançaríamos um feitiço para o sucesso. As doulas cercaram a
banheira com um pentagrama de velas, depois banharam
minha vagina três vezes com sangue de cordeiro. Depois comi o
coração do cordeiro.
Ozroth fez uma careta.
— Não é tarde demais — ele sussurrou para Mariel. — A
oferta ainda está de pé.
— Desculpe, eu não posso ouvi-lo — disse ela. — Estou me
desassociando do meu corpo.
— Eram três da manhã quando ela finalmente começou a
aparecer. — Diantha balançou a cabeça. — Mariel, querida,
você sabia que eu tive que levar dez pontos depois? Você me
rasgou. Não fiz xixi direito por uma década.
— Sim — Mariel engasgou. — Você me disse várias vezes
exatamente como eu arruinei seu corpo.
— Bem, acho justo que as crianças saibam como suas mães
sofreram por elas. — Ela piscou algumas vezes, olhando ao
redor. — Para onde foi Alzapraz? Ele sabe que não deve sair
quando estou no meio de uma história.
Ozroth também não notou o pequeno feiticeiro saindo.
Talvez devesse encontrá-lo e pedir dicas de como desaparecer.
— Tenho certeza de que foi uma emergência — ele disse,
aplicando charme demoníaco apesar do seu desconforto
pessoal. Ele tinha a sensação de que contradizer Diantha só iria
arrastar as coisas. — Suas histórias são tão fascinantes.
— Oz é um diplomata. — Cynthia fez um sinal para o
garçom e demorou-se a examinar o champanhe. — Claro — ela
disse, tirando uma taça da bandeja —, algumas pessoas podem
preferir o termo mentiroso.
Diantha bufou.
— Oh, por favor. Você sabia que eu era a campeã de
discursos e debates no ensino médio?
— Sim — Cynthia e Mariel disseram em uníssono. Elas
também beberam em uníssono.
— Eu apenas falava e falava, e meus oponentes nunca
conseguiam dizer uma palavra. — Ela sorriu. — De qualquer
forma, naquela noite fatídica, a cabeça de Mariel começou a
emergir entre minhas coxas ensanguentadas. Enquanto a
agonia me consumia, invoquei minha magia e gritei para as
estrelas. Eis uma nova Spark! Chorei. Dê-me um sinal do seu
futuro. E sabe de uma coisa, o céu se iluminou com uma cascata
de estrelas cadentes, o vento rodou em uma rajada poderosa e a
própria terra tremeu. E uma palavra ecoou na minha cabeça:
Poder.
Houve alguns momentos de silêncio e então os convidados
de aparência mais obsequiosa começaram a aplaudir.
— Incrível — disse uma bruxa. — As próprias estrelas!
Ozroth contemplou a história. Podia ser besteira, mas
Diantha tinha a convicção de uma fanática sobre o destino de
Mariel, e isso devia ter vindo de algum lugar. Ele tinha ouvido
falar de outras bruxas e feiticeiros nascidos de presságios
místicos, então por que não Mariel?
— Então ela saiu — disse Diantha, quebrando o momento.
— Me rasgou de ponta a ponta. Você deveria ter visto aquela
coisinha gorda e sangrenta! Chorando como se quisesse rastejar
de volta para dentro. — Ela sorriu. — Ela sempre foi a filhinha
da mamãe.
Mariel estava olhando para sua taça de champanhe como se
ela tivesse respostas para os mistérios do universo.
— Eu não estou aqui — ela sussurrou. — Este é um sonho
terrível e vou acordar a qualquer momento.
Ele agarrou a mão livre dela, apertando-a na dele. Ela ergueu
a cabeça e olhou para ele com surpresa.
— Querida — disse ele —, você não prometeu me mostrar
seu jardim?
Sua testa enrugou, e então seus olhos se arregalaram com
entendimento.
— Oh, sim! Obrigada por lembrar, amor. — A mão dela
apertou a dele enquanto ela olhava para Diantha. — Oz está
muito interessado nos meus lírios de fogo. Eu realmente acho
que tenho uma chance de ser a Melhor do Evento no
Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico este ano.
— Você e suas plantas. — Diantha olhou para as mãos deles
entrelaçadas e sua expressão se suavizou. — Tudo bem,
pombinhos. Vão se divertir no jardim. — Eles estavam a meio
caminho da casa quando Diantha os chamou: — E não usem
proteção!
Quando a porta se fechou atrás deles, Mariel caiu no chão.
Ela envolveu as pernas dobradas com os braços e enterrou o
rosto nos joelhos.
— Estou mortificada. Toda vez que penso que ela não pode
me humilhar mais, ela de alguma forma supera seus esforços
anteriores.
Ozroth se abaixou no chão ao lado dela. Estava
abençoadamente quieto e fresco na casa, e seus músculos
relaxaram sabendo que a festa estava trancada com segurança
do lado de fora.
— Por que você deixa?
Sua cabeça levantou, e ela olhou para ele.
— O que, como se eu devesse apenas sorrir para as histórias
dela e fingir que não me humilham?
— Não — disse ele. — Por que você não diz a ela para parar?
Mariel gemeu.
— Eu disse. Nunca funcionou.
Havia uma solução simples para isso.
— Então pare de vê-la.
— Ela é minha mãe — disse Mariel. — Não posso
simplesmente ignorá-la.
— Por que não, se ela te deixa infeliz?
Mariel inclinou a cabeça para trás contra a porta.
— Talvez os demônios não entendam sobre famílias.
Ele zombou.
— Você acha que emergi totalmente formado de algum
abismo de fogo? É claro que os demônios têm família.
— Sério? — ela perguntou, se animando. — Como é a sua?
Porra. Ozroth realmente não deveria ter comentado disso –
ele conhecia o gosto de Mariel por perguntas. Ele olhou para o
hall de entrada, observando o carpete em tons de arco-íris e as
pinturas de flores emolduradas na parede. Como ele poderia
explicar sua criação para alguém tão jovem e cheia de otimismo?
— Eu não tenho mais uma família — ele finalmente disse.
— Oh, sinto muito. — Ela descansou a mão em seu braço, e
ele estremeceu com o contato. — Você é órfão?
Ele balançou a cabeça.
— Não, eu tenho uma mãe por aí em algum lugar. Só não
sei se a reconheceria ou se ela me reconheceria.
Houve uma longa pausa. Ele olhou para a frente, embora
sua visão periférica lhe dissesse que Mariel o estava estudando
de perto.
— Você não pode parar por aí — disse ela. — Vamos lá, você
deu uma espiada na minha dinâmica familiar fodida.
Ele se mexeu desconfortavelmente.
— Nossa sobrevivência como espécie depende das almas,
então ser um negociador é uma posição de prestígio. Apenas
alguns demônios podem fazer isso – você precisa de um talento
mágico inato para fazer coisas impossíveis acontecerem.
Encontrar crianças demoníacas capazes disso é um grande
negócio.
— Existem crianças que levam almas?
Ele nunca questionou a prática, mas sua expressão
horrorizada o fez perceber que outras pessoas podem se sentir
diferentes sobre isto.
— Elas não levam almas como crianças — explicou ele,
precisando que ela entendesse a enorme responsabilidade do
que ele fazia —, mas precisam ser treinados. A magia é sutil. E é
preciso um certo tipo de demônio para fazer barganhas sem
vacilar. Você tem que ser calmo e frio.
Seja gelo, Astaroth disse a ele mais de uma vez. Dessa forma,
nada pode tocá-lo.
— Então sua família treinou você?
— Meu pai era um negociador — disse Ozroth, chegando à
resposta pelo caminho indireto. — Muito bem-sucedido.
Minhas únicas lembranças são dele me contando a importância
do que fazia. — Na verdade, havia pouco a extrair dessas
migalhas. Nenhuma voz remanescente para associar com o pai
de Ozroth, nenhum rosto, nada além de uma impressão
borrada de significado. — Ele morreu em 1793, quando eu era
muito jovem.
— Isso é horrível — Mariel disse, parecendo angustiada. —
Pensei que os demônios fossem imortais.
— A decapitação mata um — disse Ozroth. — Ele não ia ao
plano humano há alguns anos e tinha ouvido falar que havia
alguma agitação, então ele tirou férias na França para recuperar
tudo o que havia perdido.
— Em 1793? — Mariel estremeceu. — Péssimo momento.
— De fato. Especialmente porque sua estratégia com
mortais envolvia parecer rico e sofisticado. — Aquelas férias
foram muito curtas, por assim dizer. — Foi uma maneira
humilhante para um demônio morrer.
— Sinto muito pela sua perda. — As pontas dos dedos de
Mariel roçaram seu braço novamente. — Mas não vejo por que
é humilhante.
Ele riu sem humor.
— Você passa séculos como um herói para seu povo, apenas
para ter sua cabeça decepada por mortais porque escolheu o
destino turístico errado? Se meu pai tivesse morrido coletando
almas, pelo menos haveria alguma honra nisso.
Isso era algo que Astaroth regularmente o lembrava. Ozroth
carregava o peso do legado do pai em seus ombros... mas ele
também tinha que superar a vergonha do pai.
— Eu não gosto dessa maneira de pensar — Mariel disse,
lábios carnudos virados para baixo.
— Você seria um péssimo demônio, então — Ozroth disse.
— A honra é um dos nossos valores mais importantes. — Os
negociadores carregavam o fardo da sobrevivência de sua
espécie nos ombros. Descumprir esse dever era se envergonhar.
Ela bufou.
— Oh, eu sei que seria um demônio terrível. — Ela esperou
alguns momentos, então o cutucou. — O que aconteceu com a
sua mãe?
— O sumo conselho já estava de olho em mim por causa do
meu pai — disse Ozroth. Sua garganta parecia fechada, como se
seu corpo não quisesse que as palavras escapassem. Essa nunca
foi uma lembrança confortável, mesmo antes de a alma quebrar
seu controle. Agora ele não podia deixar de pensar nas pequenas
fatias daquela velha vida que ele conseguia lembrar. Os chifres
cor de mogno da mãe e o cabelo preto. O calor da cama dela
antes de um incêndio violento. A sensação de pertencer a algum
lugar. — Os barganhadores precisam ser treinados desde cedo e
parecia um bom momento para me mandar embora, já que a
família estava passando por uma transição de qualquer
maneira.
— Ela mandou você embora? — Mariel parecia chocada. —
Quantos anos você tinha?
— Seis. — Honestamente, ele não sabia se a mãe o havia
mandado embora de bom grado ou por dever. Um dia, ele
estava chorando em sua aconchegante toca subterrânea da
família, sentindo falta do pai, e no outro, ele foi levado para um
castelo de pedra fria fora da cidade. Não havia travesseiros
macios em seu novo quarto, nem lareira crepitante e, depois
daquele primeiro dia, Ozroth fora ensinado a nunca mais
chorar. — Eu tive sorte. O demônio que me treinou era um dos
membros do alto conselho, os nove demônios mais poderosos.
Astaroth me criou, me ensinou como ser um homem.
Ela estremeceu.
— Parece que já ouvi esse nome.
— Você provavelmente ouviu. — Astaroth já era famoso
séculos antes de Ozroth nascer. — Ele me ensinou a manifestar
desejos, mesmo os mais impossíveis. Ele me ensinou sobre
negociação e manipulação. Eu sou o demônio que sou hoje por
causa dele.
E Astaroth apostou no sucesso de Ozroth. O pensamento
fez seu humor despencar ainda mais. Ele não havia prometido
que seria mais implacável hoje? Mas ele estava cansado e
oprimido pela constante estimulação do plano humano, e não
seria capaz de fazer um acordo difícil. Em breve, prometeu a si
mesmo. Assim que ele conseguisse submeter sua alma
caprichosa.
Mariel se mexeu, cruzando as pernas sob si. Seu vestido de
verão amontoou no colo, e Ozroth foi distraído pela visão
melhorada de suas coxas cremosas.
— Isso soa como uma infância difícil — disse ela.
Ele desviou o olhar das pernas dela.
— A sociedade demoníaca é diferente da humana. Foi um
dever e uma honra.
— E a sua mãe? — ela perguntou suavemente.
— Não sei. — Ele engoliu a espessura na garganta. — Eu
nunca mais a vi.
O silêncio caiu, quebrado apenas pelo tique-taque do
relógio na parede. Tinha um rosto caprichoso: meio sol, meia
lua, com os dois lados sorrindo enquanto as mãos giravam sem
parar, contando o tempo que os humanos tinham tão pouco e
Ozroth tinha muito. Ao lado do relógio havia um armário de
curiosidades cheio de estatuetas estranhas e vasos delicados,
nenhum dos quais parecia servir a qualquer propósito prático.
A vida de Mariel estava repleta de coisas. Em sua própria toca
no plano demoníaco, ele tinha pouco além de livros e
equipamentos de ginástica. Olhando para a desordem caótica
de Mariel, ele se perguntou pela primeira vez com quais itens
ele poderia decorar sua casa. Com o que ele se importava o
suficiente para se cercar todos os dias?
Em mais de duzentos anos, ele acumulou menos do que este
humano em vinte e oito. Havia algo de vazio no pensamento.
— Essa é uma história triste — disse Mariel. Quando ele
olhou para ela, seus olhos estavam cheios de compaixão. —
Você nunca teve uma família. Nunca pode ser uma criança.
— Não posso sentir falta do que não conheço — disse ele.
— E eu consegui mais do que muitos outros poderiam sonhar.
Prestígio, honra, um propósito... Posso me orgulhar de ajudar
meu povo.
Os dedos dela se entrelaçaram com os dele, e ele olhou para
baixo, surpreso. Um dia atrás, ela o odiava, e agora estava
segurando sua mão.
Ela provavelmente ainda o odiava. Ela era uma boa pessoa;
isso era o que as pessoas boas faziam. Elas ofereciam conforto
até mesmo para seus inimigos. Seu orgulho exigia que ele
rejeitasse a piedade dela, mas Ozroth parecia não conseguir
soltar a mão dela.
— Você quer sair daqui? — O polegar dela esfregou os nós
dos dedos dele. — Eu posso te mostrar a floresta. Embora eu
queira um banho primeiro.
Era uma estranha conclusão, mas a ideia de estar do lado de
fora era atraente. Seu peito estava muito apertado, e o
murmúrio de vozes além da porta da frente era uma coceira no
cérebro. Permitir-se aproximar de Mariel era uma faca de dois
gumes – ele poderia aprender o que ela queria mais do que sua
magia, mas também corria o risco de se apegar demais a ela. Era
um risco que ele nunca teve que considerar antes.
Mais um dia não faria mal. Certo?
Ele assentiu.
— Eu gostaria disso.
Nove

Mariel se sentiu melhor depois de tomar banho e se trocar. Essa


era a chave para a vida como a Spark fracassada: a capacidade de
afastar as coisas. Sua mãe não parava de falar coisas
constrangedoras, e a semente da ansiedade plantada no peito de
Mariel estava ali desde sempre, então ela sabia viver em torno
dela.
Algum dia, em breve, Mariel descobriria sua magia e
ganharia o apoio financeiro de sua mãe para o seu DoF. Dada a
agitação residual do estômago, esse dia não seria hoje. Além
disso, ela preferia se concentrar em mostrar a floresta a Oz.
O ar era cortante, então ela usava um moletom com capuz
aberto sobre o vestido e meias grossas de lã sob as botas de
caminhada. Ela levou Oz para o quintal, parando um momento
para sussurrar para suas plantas. Então eles pularam a cerca,
esgueirando-se pelo quintal do vizinho para chegar à próxima
rua.
— Sua mãe virá procurá-la? — perguntou Oz.
Mariel fez uma careta.
— Não quando ela tem networking para fazer no meu
gramado da frente. — Ela suspirou. — A pobre grama. Vou ter
que melhorar a magia depois que eles forem embora. — Pelo
menos os saltos altos de sua mãe eram um serviço de aração
gratuita, ela supôs, e a grama estava escurecendo com o outono
de qualquer maneira.
Ele grunhiu em resposta. Mariel o estudou enquanto
caminhavam, adicionando essa imagem dele na cabeça. Ele
parecia grande e perigoso, com seu bíceps tatuado e uma eterna
carranca, embora o chapéu do Velho Oeste tirasse um pouco do
seu glamour mortal. A camisa amassada e os jeans manchados
de grama também não ajudavam.
— Vamos comprar mais roupas para você hoje mais tarde —
disse ela. — Droga, eu deveria ter oferecido a você um banho
também. E uma escova de dentes. Os demônios escovam os
dentes?
— Não, preferimos deixar o sangue e a saliva escorrer das
nossas presas. — Quando ela lançou um olhar incrédulo para
ele, ele bufou. — Sim, nós escovamos os dentes.
Seu humor astuto era algo que ela não esperava quando ele
se manifestou na cozinha. Oz era um cínico, mas engraçado.
Um pouco danificado também.
Ela não conseguia acreditar na história que ele havia
contado. Perder o pai ainda jovem e depois ser separado da mãe
para ir estudar a arte de roubar almas... Você tem que ser calmo e
frio, ele disse a ela. Astaroth realmente ensinou essa lição a uma
criança de seis anos? Com um apelido como Ozroth, o
Impiedoso, ela tinha a sensação de que ele aprendera isso e
coisas piores ao longo dos anos.
O estranho era que ele não parecia calmo e frio com ela. Ele
contava piadas e não tinha realmente se esforçado para forçá-la
a negociar depois das primeiras horas juntos. Em vez de ser
impiedoso, ele parecia perplexo. Estava claro que ele também
não sabia o que fazer nessa situação.
— Você está me encarando — disse ele.
— Sim — ela admitiu. Era difícil negar isso.
— Por que você está me encarando?
— Por que você não está? — Quando ele lhe lançou um
olhar perplexo, ela decidiu provocá-lo. — Você não gosta do
meu vestido? — Ela girou, fazendo o tecido azul com
margaridas se espalhar ao redor dela. Era um dos seus vestidos
mais fofos, com um decote em forma de coração que mostrava
o colo apenas o suficiente para torná-lo impróprio para o
trabalho.
Seus olhos moveram-se para cima e para baixo em seu corpo,
fixando-se por um momento muito longo no decote. Então ele
virou a cabeça e limpou a garganta.
— É um vestido bonito. Eu gostei dessas... coisas de flores.
— Margaridas. Eu cultivo uma rara variedade roxa na minha
estufa.
— Hmm — ele disse em resposta.
Eles estavam indo em direção ao limite do bairro, que dava
para a encosta que levava às lendárias fontes termais de
Glimmer Falls. Essa trilha terminava em uma fileira de árvores,
onde um caminho de terra os levaria para dentro da floresta. Ela
mal podia esperar para tirar Oz da cidade e entrar na natureza.
Era para lá que ela ia quando estava chateada e, embora
definitivamente precisasse de algum consolo, esperava que a
magia da natureza o acalmasse também.
Por que ela queria acalmar seu hóspede demoníaco
indesejado era uma questão que ela analisaria em outra ocasião.
No momento em que passaram sob a copa da floresta
brilhante de outono, Mariel deu um suspiro de alívio. O ar
estava mais fresco aqui, zumbindo com magia. As árvores se
inclinaram para ela em saudação, e uma trepadeira se soltou
para enrolar-se em seu cabelo molhado. Ela riu enquanto a
desvencilhava dos cachos.
— Você vai ser enroscada lá dentro, e então ficaremos presos
aqui para sempre.
Oz estava olhando para ela de forma estranha.
— Você realmente acha que elas estão agindo por vontade
própria.
Ela se irritou com a insinuação de que as estava forçando a
fazer qualquer coisa.
— Elas gostam de mim — ela disse defensivamente.
— Hmm — ele disse novamente, virando-se para continuar
subindo o caminho.
Decidida a mostrar a ele o que acontecia quando ela fazia
uma planta fazer alguma coisa, ela sussurrou baixinho:
— Ascensren ta worta. — A linguagem da magia era muito
mais fácil de lembrar quando as plantas estavam envolvidas.
Uma raiz se ergueu do solo na frente de Ozroth. Ele
tropeçou, evitando cair ao colocar a mão no tronco de uma
árvore. Ele olhou por cima do ombro.
— Isso era necessário?
— Não sei do que você está falando. — Ela mordeu a
bochecha para não rir enquanto o alcançava.
A floresta continha uma mistura de árvores perenes e de
folha caduca, incluindo pinheiros tsugas, pinheiro ponderosa,
amieiro vermelho, abeto Douglas, bordos de folhas grandes e
muito mais. Flores raras, samambaias e trepadeiras se
entrelaçavam entre as árvores, alimentadas pelos minerais das
fontes termais e pela magia entrelaçada na terra.
Mariel amava a vida nas plantas, mas podia apreciar a beleza
da estação da morte. Como uma fênix, essas plantas
ressuscitariam na primavera. O amassar das folhas laranjas e
amarelas sob os pés, o frio no ar e o rico aroma de decomposição
juntos em uma bela mistura de outono, e Mariel suspirou de
felicidade.
Ela se abaixou para passar por um galho baixo, saindo do
caminho e conduzindo Oz para o arbusto. Essa trilha de cervo
estava tão bem escondido que ninguém, exceto Mariel (e os
cervos e alguns perítios) parecia usá-la. Ela a levava a um de seus
lugares favoritos na floresta.
Oz abriu caminho desajeitadamente pelos arbustos, depois
praguejou e bateu em uma videira que prendeu seu chapéu.
— Pare com isso — disse ele, pegando o chapéu de volta.
— Isso não foi eu. — As plantas sempre ganhavam vida
própria ao seu redor. — Seja legal com as plantas e elas serão
legais com você.
Ele resmungou, então tirou o chapéu e o enfiou debaixo do
braço. Mariel olhou para seus chifres, imaginando qual era o
propósito deles. Eles pareciam bonitos sob a luz do sol que
vazava pelas folhas, todo preto, lustroso e liso.
— Por que você tem chifres? — ela perguntou.
— Por que você faz tantas perguntas? — ele perguntou de
volta. Ele ergueu a mão, roçando um chifre com a ponta do
dedo. — Há uma fera noturna no plano demoníaco que ataca
pelas costas. É nosso único predador natural, então
desenvolvemos chifres como uma forma de adaptação. Se a fera
te derrubar, você joga a cabeça para trás e apunhala. Há uma
proteína no revestimento externo que é tóxica para elas, então
as afasta.
— Oh. — Mariel gentilmente afastou um galho, pedindo-
lhe que, por favor, não voltasse e batesse no rosto de Oz. Ela só
usava a linguagem da magia às vezes quando lidava com plantas
– na maioria das vezes, um pedido educado ou uma centelha de
magia de seus dedos faria o truque. O galho obedeceu com
relutância, permitindo que o demônio passasse. — Eu não
esperava uma resposta tão científica.
— O quê, você acha que os demônios vivem na Idade
Média? — Quando ele tropeçou em outro galho, uma folha
derramou orvalho em seu cabelo, e ele xingou antes de colocar
o chapéu de volta.
Sinceramente, ela não tinha pensado nisso. Mas agora que
ele mencionou...
— Acho que estava imaginando algo de baixa tecnologia.
Tribunais demoníacos, rituais antigos e tudo isso.
— Não temos o nível de tecnologia da Terra, mas não
precisamos. Nossas vidas são simples, e qualquer coisa além do
que temos pode ser alcançada no mundo humano.
— Você tem geladeira? — Mariel perguntou. — Micro-
ondas?
— Geralmente, não. Os demônios só precisam comer de vez
em quando, então ocasionalmente pegamos delivery. —
Quando ela o encarou sem compreender, ele elaborou. — Nós
vamos para a Terra e pedimos algo.
Ela riu.
— Você não cozinha sua própria comida?
— Qual é o sentido quando você não precisa comer todos os
dias?
Isso não parecia certo.
— Você jantou ontem à noite. E eu peguei você roubando
meu cereal depois que saí do banho.
Ele parecia envergonhado.
— Eu, uh, preciso de mais calorias do que a maioria dos
demônios. A coleta de almas é desgastante.
— Mas você não coletou minha alma.
Ele semicerrou os olhos para as árvores.
— Que tipo de pássaro é esse?
Ela arquivou a distração para mais tarde fazer uma análise
mais aprofundada. Era mais uma coisa que não combinava com
o que Oz disse a ela sobre como um demônio deveria ser.
Ela olhou para cima, então engasgou ao ver um grande
pássaro vermelho com uma cauda dourada empoleirado no
topo de um abeto Douglas.
— Ah, uma fênix! Estou tão feliz por termos visto uma. Elas
são raras e se sacrificam no inverno, então esta pode ser a última
que veremos este ano.
— Não parece uma maneira divertida de passar o inverno —
disse Oz.
Ela deu de ombros.
— Se eu pudesse me sacrificar e me regenerar alguns meses
depois, parecendo mais jovem do que nunca, por que não?
Além disso, seria uma excelente maneira de escapar dos jantares
da minha mãe. Desculpe, mãe, serei um monte de cinzas pelos
próximos três meses. — Então ela gemeu. — Droga, é domingo,
não é? Isso significa jantar em família. — O evento menos
favorito de Mariel da semana. Seu peito apertou e ela esfregou
o esterno para aliviar a dor.
Uma pedra que chegava a altura da cintura estava
bloqueando o caminho. Mariel se preparou para subir, então
guinchou quando as mãos de Oz cercaram sua cintura. Ele a
ergueu, depositando-a no topo da rocha, então escalou depois.
— Obrigada — ela disse enquanto pulava para o outro lado.
Ela ainda podia sentir o calor onde os dedos dele pressionaram
em sua cintura.
Por que ele estava sendo tão legal com ela? Esta era uma
maneira estranha de tentar entrar em sua cabeça?
— Por que você não pula o jantar? — Oz perguntou, como
se sua demonstração de cortesia – e força – não valesse a pena
reconhecer. — Se ela é rude e você odeia, você não é obrigada a
ir.
— Se eu não aparecer, ela vai teletransportar algo terrível
para minha casa. — Uma vez foram convites, o que não teria
sido tão ruim se sua mãe não tivesse passado de enviar um de
cada vez para enviar cinco mil de uma só vez. A casa de Mariel
transbordava de convites de todos os tipos até que ela
finalmente cedeu. Ela pensou que isso era ruim... até a próxima
vez que ela tentou faltar e um texugo de mel apareceu em sua
sala de estar.
— Alguém precisa controlá-la — Oz murmurou. — Por que
seu pai não intervém?
Mariel riu da ideia absurda.
— Meu pai aprendeu há muito tempo a ficar quieto e a
deixar que ela faça o que quer. Ele a ama, mas é apenas um Spark
por casamento, então ela tem a palavra final em tudo.
— É assim que o casamento funciona no reino humano hoje
em dia? Quando visitei pela primeira vez em 1800, os homens
tinham a palavra final em tudo.
Graças a Hécate, não era mais o século XIX.
— Tenho a firme convicção de que as opiniões de ambas as
partes são válidas e devem ser respeitadas — disse Mariel.
O caminho ganhou elevação e a folhagem ficou mais densa.
Durante o verão, esta trilha era ladeada por vegetação
verdejante e selvagens rosas azuis do tamanho de pratos de
jantar, mas com o outono em andamento, as árvores ficavam
tão ardentes quanto penas de fênix. As folhas caíram, algumas
delas mudando de caminho para enfeitar seus ombros e cabelos.
As plantas sempre a amaram, não importava o que Oz
pensasse. Uma de suas primeiras lembranças era dos amores-
perfeitos no jardim de seu pai virando o rosto para ela. Ela
sempre voltava das brincadeiras com folhas e grama
entrelaçadas no cabelo e grudadas na pele, para desespero de
seus pais. Não que Mariel fosse particularmente selvagem – as
plantas simplesmente gostavam de estar perto dela.
O caminho parecia terminar em um denso emaranhado de
arbustos.
— Chegamos! — Mariel anunciou. Ela estendeu a mão para
o arbusto, infundindo seu toque com magia enquanto
sussurrava: — Aviosen a malei. — O arbusto se abriu,
deixando-os passar.
À frente havia um pequeno oásis. Uma fonte termal
borbulhava no centro de uma clareira, suas bordas laranja-
minerais contornando a água azul-turquesa turva. O vapor
subia no ar fresco. As flores dessa clareira desabrochavam o ano
todo, alimentadas pela magia e pelas fontes, um caleidoscópio
de cores cercava a piscina.
Oz ficou boquiaberto.
— Tudo bem? — Mariel perguntou.
— Isso é... legal — ele finalmente disse.
— É mais do que legal. — Mariel cutucou-o com o ombro.
— Vamos, me diga que não é uma das coisas mais bonitas que
você já viu.
Ele estendeu a mão para arrastar os dedos sobre uma flor
roxa escura. Querendo recompensá-lo por sua gentileza, Mariel
enviou um fio de magia em sua direção, encorajando-a a
acariciar sua mão. Seu pomo de Adão balançou quando as
pétalas roçaram sua pele.
— Não estou acostumado a ficar entusiasmado com as
coisas — disse ele. — Mas, sim. É lindo.
Com mais de dois séculos de idade, e não sabia se emocionar
com alguma coisa? O coração de Mariel doía por ele. Como
seria passar a vida inteira com frio, negar a beleza e constranger
os sentimentos? Ela teria murchado dentro de um ano no plano
demoníaco.
Talvez nem todo o plano demoníaco fosse assim. Talvez
fosse apenas a maneira como ele foi treinado.
— Vamos — disse Mariel, inclinando-se para tirar as botas
de caminhada e depois as meias de lã. A grama era macia sob
seus pés, a magia e o calor a mantinham exuberante mesmo no
auge do inverno. — Mergulhe os pés na água.
Quando ela se ergueu, ela jurou que o pegou olhando para
sua bunda. Ele rapidamente desviou o olhar, e Mariel escondeu
um sorriso enquanto caminhava até a beira da piscina. Ela
sentou na rocha raiada de minerais, depois mergulhou os dedos
dos pés nela, sibilando com o prazer/dor da água quente contra
os pés frios. Oz veio para ficar ao lado dela, as botas ainda
amarradas enquanto a observava abaixar lentamente os pés na
água.
— Oh, vamos lá. — Ela deu um tapinha na rocha ao lado
dela. — Sua dignidade demoníaca pode sobreviver ao tirar seus
sapatos.
Ele resmungou, então se curvou para desfazer os cadarços.
Ele cuidadosamente dobrou as meias pretas, colocou-as e o
chapéu no chão, então enrolou as bainhas de seus jeans escuros,
expondo panturrilhas salpicadas de pelos. Ele se abaixou
desajeitadamente até a rocha, então submergiu a parte inferior
das pernas na água.
— Oh, uau — disse Mariel. — Entrando com tudo? — Ela
ainda estava acostumando os tornozelos, embora o calor já
estivesse fazendo maravilhas por sua tensão residual da festa.
— Demônio — ele disse como explicação. — Nós somos
quentes.
Aposto que sim, pensou ela, olhando para as panturrilhas
musculosas e a elasticidade da calça jeans sobre as coxas. Ela era
uma garota curvilínea, mas se sentia praticamente pequena ao
lado dele.
— Todos os demônios são grandes? — ela deixou escapar.
— ...Em que contexto? — ele perguntou depois de uma
pausa estranha.
As bochechas de Mariel ficaram quentes. Hécate, ela não
quis dizer isso, mas agora era tarde demais. Seu cérebro
começou a correr por esse caminho, imaginando quão grandes
eram os paus dos demônios. Eles tinham farpas? Ela tinha lido
um romance que os descrevia assim. Algumas fanfics também.
E se os demônios se uniam às suas companheiras? Havia
mordidas envolvidas no sexo? Como os chifres entravam em
jogo?
Sua mente estava tão ocupada perseguindo-se em círculos
sedentos que ela não percebeu que tinha ficado vidrada
enquanto olhava para sua virilha até que ele limpou a garganta.
Ela piscou algumas vezes – e tudo bem, sim, aquilo era
definitivamente uma protuberância, e... estava ficando maior?
– antes de erguer os olhos de novo.
— Grande — ela deixou escapar. — Você. Alto, quero dizer.
E tipo... largo. — Ela gesticulou para os ombros dele. — Tipo,
você poderia jogar na NFL4. — Outro pensamento perdido a
assaltou. — Vocês têm uma NFL demoníaca?
Sua boca abriu e fechou algumas vezes.
— Sua linha de pensamento — disse ele, balançando a
cabeça.
— O que tem? — Ela sabia que era propensa a pensamentos
fantasiosos e tangentes repentinas, mas o que mais ela deveria
fazer quando havia tantas coisas interessantes para pensar?
Como o pau de um demônio, por exemplo.
— É como assistir a um cão infernal tentando decidir qual
dos oito tipos de presas matar — disse ele. — Correndo por
todos os lados.
— Cão infernal? — ela perguntou. — Não deveria ser cão
do plano demoníaco?
Ele suspirou.
— A palavra inferno existia em Velho Demonish muito
antes dos humanos se apropriarem dela. Significa "leal".
— Como eles se parecem?
— Tem três cabeças, olhos vermelhos, presas. — Ele
encolheu os ombros. — Eles são um animal de estimação
comum.
Ela queria perguntar sobre Velho Demonish e animais
domésticos demoníacos, mas ele ainda não havia respondido
suas perguntas anteriores, e ela não ia conseguir acompanhar.

4
Liga esportiva profissional de futebol americano.
— Então vocês todos são grandes? E os esportes?
— Sem NFL — disse ele, inclinando a cabeça para trás para
olhar para o céu. — Temos muitos esportes. Alguns você
reconheceria, a maioria não. E sim, os demônios tendem a ser
maiores em comparação com os humanos, mas isso varia.
— Você é o maior?
Ele deslizou-lhe um olhar de soslaio, então sorriu.
— Depende do que você está perguntando.
O demônio era astuto. Primeiro piadas, depois insinuações
– o que viria a seguir? Ela queria tanto perguntar se os paus
demoníacos tinham farpas, mas perguntar às pessoas sobre seus
órgãos genitais definitivamente não era educado. Ela
mergulhou o resto de suas panturrilhas na água de uma só vez
para se distrair, sibilando quando a água quente atingiu sua
pele. Alguns segundos dolorosos depois, ela se acostumou e o
calor começou a ficar incrível. Ela riu quando um peixe curioso
mordiscou seus dedos dos pés.
Ozroth estremeceu, espirrando água por toda parte.
— O que foi isso? — ele exigiu, olhando para a água
turquesa.
— Mordidas no dedo do pé? — ela perguntou. Quando ele
assentiu, ela explicou. — Tem peixes que vivem nessas piscinas
e comem pele morta. É melhor do que uma pedicure.
Ele fez uma careta.
— Isso é nojento. — Mas ele não tirou os pés. — Temos
peixes de água quente no plano demoníaco, mas não sabia que
os humanos os tinham.
— Este é um dos únicos lugares no mundo onde você pode
encontrá-los. A maioria das fontes termais são hostis demais
para a vida. Mas há magia em tudo aqui, das árvores à água e aos
peixes. — Ela olhou em volta, tentando localizar outras
criaturas. Um tordo se enfeitava em um galho próximo e uma
borboleta azul esvoaçava em torno de uma das flores. — Espero
que vejamos uma salamandra de fogo — disse ela. — Elas são
ainda mais raras que as fênix.
— Eu posso ver porque você gosta daqui — disse ele. — É
colorido, mas não esmagador. É tranquilo.
— Por agora. — Sua boca se contorceu. — Quando eles
construírem o resort e o spa, tudo estará arruinado.
Oz franziu a testa.
— Eles vão construir aqui?
— Não exatamente aqui — disse Mariel, girando os pés na
água. — Há um aglomerado de piscinas interconectadas mais
acima na encosta. Eles vão nivelar a terra ao redor, cortar as
árvores e revestir as piscinas com ladrilhos. Nada mais de peixes
ou salamandras então.
O projeto de construção a manteve preocupada por muitas
noites. Glimmer Falls sempre foi um oásis – um lugar onde a
magia prosperava e as bruxas se misturavam com humanos
comuns e criaturas místicas em harmonia. Havia um equilíbrio
em tudo, desde as pessoas até o meio ambiente, e ela ficava grata
por morar em um lugar onde a rápida expansão e os arranha-
céus de concreto das grandes cidades ainda não haviam se
intrometido.
Então Cynthia Cunnington foi eleita prefeita, e suas
ambições de fazer de Glimmer Falls um destino turístico não
ficaram claras até muito tarde. A comunidade mágica deveria
ter se levantado em protesto, mas os Sparks e Cunningtons
eram os pilares da comunidade, e bruxas ricas como Cynthia e
Diantha só pensam no próprio umbigo para poder perceber o
dano que o capitalismo desenfreado causaria a este paraíso. As
bruxas mais pobres e menos prestigiosas não tinham força para
enfrentá-las.
Mariel desejou que sua mãe e Cynthia pudessem sentir a
terra do jeito que ela sentia. Como muitas outras bruxas,
porém, seu poder era chamativo. Elas não sentiam uma conexão
com o mundo natural. A teia de magia sob Glimmer Falls era
densa, mas delicada, e Mariel sabia que se a paisagem fosse
removida, ela rapidamente começaria a se desfazer.
— Eu entendo o protesto agora — disse Ozroth. — Lugares
com tanta magia são raros. — Ele fungou algumas vezes. —
Você pode praticamente sentir o cheiro no ar.
— Você pode sentir o cheiro de magia?
— Eu posso sentir. E ver quando eu abro meus sentidos
demoníacos. A magia humana é como uma luz dourada. — Ele
olhou para ela, os olhos passando por seu rosto, depois
baixando. — É como eu sei que você é poderosa. Sua alma
brilha como o ouro mais brilhante.
Ela fez uma careta.
— Poderosa, mas incapaz de usá-la.
— Você usou hoje — disse ele. — Quando você me fez
tropeçar. E mais tarde, quando você fez o arbusto nos deixar
passar. — Sua testa franziu. — Talvez algumas outras vezes,
embora eu não tenha ouvido você falar um feitiço.
— Eu nem sempre preciso. Só quando quero forçar um
resultado específico. Na maioria das vezes eu apenas alimento
as plantas com magia e peço gentilmente.
— É raro uma bruxa ser capaz de usar magia sem falar as
palavras. Sua família sabe que você pode fazer isso?
— Eu não sei — Mariel admitiu. — Eles nunca pensaram
muito na magia das plantas, então não fazem muitas perguntas
sobre isso. Mas eu estava trabalhando com plantas antes mesmo
de aprender a linguagem da magia, então talvez? De qualquer
forma, minha mãe pode teletransportar algumas coisas sem
usar as palavras, então não é exatamente especial.
Ele a estava estudando atentamente.
— É especial. E eu acho que chamar de magia de plantas é
limitante. É todo o mundo natural com o qual você está
sintonizada.
Ouvir sua magia elogiada pela primeira vez foi uma sensação
inebriante, e Mariel se contorceu de prazer.
— Você diz as coisas mais legais.
Ele bufou.
— É a verdade.
Ela se virou para encará-lo, plantando uma mão na rocha
para poder se inclinar. A outra mão segurou sua bochecha. Sua
pele estava quente como quando tem febre.
— Oz — ela disse séria. — Você pode estar aqui para roubar
minha alma, mas foi mais gentil com minha magia no último
dia do que qualquer um, além das minhas amigas, em anos.
— Não é um roubo — ele resmungou. — O ponto principal
é que é uma troca. — Ele moveu a cabeça, pressionando mais
fundo em sua palma, e Mariel engasgou quando seus lábios mal
roçaram sua pele.
— Cale a boca e deixe-me agradecer — disse ela sem fôlego.
A energia estava crescendo entre eles, não a da magia, mas algo
mais elementar. Ela se aproximou sem perceber e sentiu
arrepios quando a respiração dele soprou contra seus lábios.
Seus olhos estavam arregalados, as íris douradas quase engolidas
por pupilas negras. A mão dele pousou na cintura dela, e Mariel
estremeceu.
Essa atração não era unilateral. Ela sabia disso, com tanta
certeza quanto conhecia a ferida mágica nas raízes.
— Você não deveria ter que agradecer as pessoas por dizerem
a verdade — ele murmurou. Seu peito subia e descia
rapidamente. Seus olhos moveram-se para os lábios dela e
voltaram para cima.
Havia duas vozes na cabeça de Mariel. Uma era de Calladia,
gritando: Que porra você está fazendo?! A outra a incitava. Feche
a distância. Beije o demônio. Descubra em primeira mão o quão
grande ele é.
Ela lambeu os lábios e se inclinou...
Um pequeno, mas feroz rugido foi seu único aviso. Ela se
encolheu para o lado, e o jato de fogo roçou seu braço ao invés
de pousar direto nas suas costas.
— Filho da puta! — ela xingou, saltando para ficar em pé.
Oz levantou tão rápido que quase caiu na piscina. Ele a
empurrou para trás, posicionando-se entre ela e a ameaça.
— O que é? — ele demandou. — O que há aqui?
— Olhe para baixo — disse ela, segurando a queimadura em
seu braço.
— O que é isso? — perguntou Oz.
Ela olhou ao redor dele para ver o atacante. Alguns metros à
frente de Oz, uma salamandra laranja do tamanho de um gato
doméstico estava em posição de ataque, com os pés bem
abertos. Sua cauda se contraiu e ela rugiu novamente. Uma
nuvem de fogo saiu de sua boca, envolvendo os pés descalços de
Oz.
— Oh, não! — Mariel chorou. Ela tentou puxá-lo de volta,
mas ele se manteve firme. — Você está bem? — Um golpe direto
como aquele a teria deixado com bolhas, mas ele nem sequer se
encolheu.
— Demônio — disse ele secamente. Ele olhou para a
salamandra como se estivesse prestes a arrancar suas entranhas.
— E esta é uma salamandra de fogo, presumo. Você estava
protestando para salvar isso?
— Elas estão extremamente ameaçadas. — Mariel puxou o
braço dele novamente, apreciando a sensação de aço de seu
bíceps. — E não foi culpa dela. Estamos no seu território, e ela
deve ter soltado alguns silvos de alerta ao sair da piscina, mas eu
não ouvi. — Porque ela estava distraída com o pau, peito e a
boca do demônio.
Ele olhou por cima do ombro.
— Estou inclinado a esmagar essa coisa por te queimar, mas
algo me diz que você não gostaria disso.
— Não esmague ela! — Por dentro, porém, ela sentiu uma
emoção estranha com a ideia de que ele mataria algo por
machucá-la. A voz de Calladia estava gritando algum tipo de
conselho horrorizado em sua cabeça novamente, mas Mariel
ignorou em favor de envolver o outro braço em torno da
cintura dele, mordendo o lábio quando ela encontrou os cumes
duros de um abdômen de seis gominhos. Hécate, isso não era o
que ela deveria estar fazendo com um demônio que queria sua
alma, mas Mariel tinha um autocontrole muito fraco na melhor
das hipóteses, e ela não transava há anos. — Precisamos recuar
lentamente — disse ela. — Se você virar e correr, ela vai te
perseguir.
— Ridículo — Oz murmurou. Ele recuou, porém, e Mariel
moveu-se com ele. Era um tipo estranho de dança, já que ela
estava pressionada contra suas costas, mas ela não queria abrir
mão do seu bíceps ou do abdômen. A salamandra observou-os
partir, olhos negros redondos de alguma forma transmitindo
indignação.
Mariel parou abruptamente.
— Ai! — ela disse quando Oz pisou em seus pés.
— Desculpe. — Então ele fez uma careta por cima do
ombro, aparentemente lembrando que ele deveria ser mal-
humorado e intimidador. — Se você não quer ser pisada, não
pare quando eu não puder vê-la.
Mariel desviou dele para se aproximar da salamandra. Ela se
livrou de Oz quando a mão dele pousou em seu ombro.
— Algo está errado — disse ela. A queimadura em seu braço
latejava, mas ela ignorou a dor.
Os olhos da salamandra tinham uma película fina, e o
mosqueado vermelho que deveria ter na pele era marrom
opaco. Ela abriu a boca, mas o rugido foi mais um bufo desta
vez, e apenas uma chama fina saiu. Sangue vermelho escuro
começou a escorrer de sua boca.
— Ela está doente — disse Mariel, sentindo-se mal. Ela
nunca tinha visto um animal doente nesta floresta. Tudo tinha
seu tempo de vida, mas as criaturas aqui morriam de velhice,
não de doença.
— E? — perguntou Oz. — Mariel, volte. Vai queimar você
de novo.
Ela o ignorou, agachando-se para inspecionar o animal mais
de perto.
— Nada fica doente aqui.
Ela fechou os olhos, abrindo seus sentidos para a floresta.
Folhas farfalhavam, as árvores ganhavam força balançando ao
vento, e a rica tapeçaria da vida era tão densa e selvagem como
sempre. Mas então sua mente roçou em um pedaço de terra que
parecia... errado. Em vez de verde e rico, parecia escuro e vazio.
Ela se levantou e começou a correr, sem se preocupar em
pegar as botas. Curar um animal era uma magia complicada
que ela ainda não havia aprendido, então não havia nada que
ela pudesse fazer pela salamandra, mas talvez ela pudesse fazer
algo pela floresta.
Oz gritou, mas ela o ignorou, mergulhando nos arbustos.
Eles se separaram, sentindo sua necessidade, mas ela ouviu Oz
xingar quando eles se fecharam atrás dela. Ele estava seguindo
de qualquer maneira – os sons de estalos e o ultraje latejante das
plantas diziam isso a ela – mas Mariel não conseguia parar. Ela
precisava descobrir o que havia de errado com sua floresta. Seus
pés descalços pisavam em raízes e folhas caídas enquanto ela
procurava a sensação de vazio e enjoo.
Ela encontrou a fonte da escuridão: um abeto Douglas
gigante. Seu tronco estava preto e apodrecido, com uma
reentrância na casca de trinta centímetros mais larga e mais alta
que Mariel. A grama em suas raízes era preta e a escuridão se
espalhava em gavinhas sobre o solo ao redor, seguindo a
estrutura da raiz.
Mariel caiu de joelhos, então pressionou a mão contra uma
fatia escura da grama. Sob a terra, a raiz estava apodrecendo. Ela
alimentou magia à raiz sofrida... e nada aconteceu.
Mariel fechou os olhos e se concentrou.
— Cicararek en arboreum. — Cure a floresta.
Com a linguagem da magia emoldurando o feitiço, ela
sentiu a decadência negra retroceder. Não o suficiente, no
entanto. Ela disse de novo, de novo. As raízes se curaram
gradualmente, mas algo sujo ainda se aninhava dentro do
tronco.
Oz finalmente a alcançou, ofegante e com as folhas grudadas
no chapéu.
— Mariel, o que em nome de Lúcifer você está fazendo?
Ela o ignorou, colocando a mão no tronco.
— Cicararek en arboreum. — A podridão encolheu
novamente. Ela se sentiu repentinamente tonta e caiu sobre os
calcanhares. — A floresta está doente — disse ela. Manchas
pretas nadavam na frente dos seus olhos. — E minha mágica
está apenas consertando pequenos pedaços.
Oz se agachou ao lado dela.
— Isso não é normal?
— Não, não é — Mariel estalou. — Posso curar qualquer
planta. — Sua cabeça doía e ela sentia vontade de desmaiar e
vomitar ao mesmo tempo. A podridão não havia sumido, mas
ela não tinha certeza se conseguiria fazer outro feitiço. — Minha
magia deveria ter consertado.
Os olhos de Oz moveram-se para cima e para baixo no
tronco da árvore. Ele enfiou um dedo no solo, depois cheirou o
ar.
— Eu não sinto a magia de bruxas.
— Não pode ser natural. — Mariel passou os braços em
volta do tronco, não se importando em sujar seu vestido mais
fofo. — Cicararek en arboreum! — Ela gritou o feitiço,
imaginando a magia saindo da sua pele e entrando na árvore.
Ela enviou cada grama de seu amor pela natureza para o feitiço,
desejando desesperadamente que fosse o suficiente.
A podridão negra desapareceu, mas as manchas escuras em
sua visão se expandiram. Então não havia mais nada.
Dez

Ozroth assistiu horrorizado enquanto Mariel caía no chão. O


tronco da árvore parecia saudável, mas o rosto de Mariel estava
pálido.
Ele a pegou, embalando-a em seu colo.
— Acorde — disse ele, tirando os cachos emaranhados com
folhas do rosto dela. Suas sardas se destacavam fortemente
contra sua pele, e sua palidez enviou uma onda de medo através
dele. Ela estava doente? Os humanos eram tão frágeis, suas vidas
delicadas como teias de aranha. E se ela morresse?
Se ela morresse, Ozroth estaria livre do pacto da alma, mas
ele não queria isso. Não era apenas porque ele não queria falhar
com Astaroth, ele percebeu – ele não estava pronto para se
despedir de Mariel ainda.
Esse pensamento era quase tão aterrorizante quanto a ideia
de ela morrer. Ele sentiu como se tivesse pisado em areia
movediça e estivesse afundando cada vez mais, não importando
o quanto ele lutasse.
— Vamos — disse ele, batendo levemente em sua bochecha.
Ela ainda estava respirando, pelo menos. Ele a moveu até que
pudesse pressionar sua orelha no peito dela. Seu batimento
cardíaco batia em um ritmo constante. Aquilo era um bom
sinal.
Como as pessoas tratavam humanos doentes? Os demônios
tinham pequenas doenças, mas nunca algo devastador, e os
encontros de Ozroth com humanos, embora variados, não se
concentravam em muito além dos detalhes dos acordos.
Sanguessugas não eram apropriados hoje em dia, ele sabia disso.
Ele deveria colocar uma compressa fria na testa dela? Eles
estavam em uma fonte termal – uma compressa quente
funcionaria?
Ele a ergueu nos braços, sentindo um arrepio de prazer
apesar do medo. Ela era macia e curvilínea, e ele se sentiu forte
enquanto a carregava de volta para a fonte termal. Ela era
vulnerável, mas ele a protegeria.
As plantas se separaram para eles facilmente, embora uma
videira espinhosa tenha cortado seu ombro como se o castigasse
por abrir caminho através do matagal enquanto perseguia
Mariel. O comportamento das plantas era estranho. Mariel
estava inconsciente, então ela não poderia estar lançando
magia, mas agiam como se ela estivesse.
Felizmente, a salamandra de fogo havia desaparecido
quando ele colocou Mariel na beira da piscina, apoiando a
cabeça dela em um tufo de grama. Ele tirou a camisa e
mergulhou o tecido em água quente antes de colocá-la sobre a
testa dela. Então ele se sentou sobre os calcanhares, olhando
para ela.
E agora?
A única outra técnica da medicina humana moderna com a
qual ele estava um pouco familiarizado era a RCP, mas ele não
tinha ideia se era aplicável nessa situação ou exatamente como
fazê-la. Hesitante, ele colocou a mão no centro do peito de
Mariel e pressionou levemente. Parecia desconfortavelmente
como se ele a estivesse a apalpando enquanto ela estava
inconsciente, então ele removeu a mão. A pressão no peito
provavelmente era para batimentos cardíacos ruins, então talvez
ele não precisasse fazer isso.
A respiração dela parecia superficial, então ele se inclinou
sobre ela, sentindo-se um arrepio enquanto olhava para seus
lábios rosados. Eles estavam ligeiramente separados, e ele podia
sentir o sopro suave de sua respiração.
Ele não a estaria beijando, disse a si mesmo. Ele estaria
soprando ar em seus pulmões para ajudar a curá-la. Por que isso
iria curá-la, ele não sabia, mas tinha visto um episódio de Grey's
Anatomy uma vez durante a noite em um hotel humano, e isso
foi algo que um dos médicos tinha feito.
Ele abriu a boca e abaixou a cabeça.
Os cílios dela se abriram quando ele estava a alguns
centímetros de distância. Ela piscou, então fez um som de grito
alarmado.
Ozroth se jogou para trás, caindo de bunda na borda
rochosa da fonte termal. Ele se impulsionou demais, porém, e
caiu na piscina. Ele cometeu o erro de respirar assustado
quando a água quente o cercou. Seus pés bateram na rocha e ele
se endireitou, tossindo e cuspindo quando sua cabeça emergiu
da superfície.
Mariel estava sentada agora, olhando para ele com os olhos
arregalados.
— Você está bem?
Ele estava muito ocupado tossindo um pulmão para fora
para responder. Porra, aquilo queimou.
Ela se aproximou, estendendo a mão para ele.
— Você está se engasgando com um peixe? Você precisa de
uma manobra Heimlich?
Ele não tinha certeza do que era o Heimlich, mas
provavelmente não o queria. Ele balançou a cabeça.
— Inspirei — ele engasgou entre tosses secas.
Por fim, a tosse diminuiu, embora a garganta e o peito
doessem. Ele enxugou a água dos olhos e afastou o cabelo
ensopado da testa.
— Você está bem? — ele perguntou, caminhando em
direção à borda da piscina.
Mariel ficou sentada ali, parecendo confusa.
— Eu acho que sim. O que aconteceu? Tudo o que me
lembro é de tentar curar a árvore.
— Você desmaiou. — Ozroth tossiu novamente. — Eu não
sabia o que fazer, então trouxe você de volta aqui e coloquei
uma compressa quente na sua testa.
— Isso foi legal da sua parte — disse ela, embora estivesse
olhando para ele suspeitosamente. — Por que você está sem
camisa? E por que você estava a sete centímetros do meu rosto
quando acordei?
Ele estremeceu.
— Eu pensei... talvez fazer RCP? E a camisa era a compressa.
— No momento, ela era uma pilha triste e molhada na grama.
Suas sobrancelhas se ergueram.
— Você tentou RCP em mim? E eu perdi?
— Eu não diria que tentei com sucesso — disse ele. — Eu
não sabia o que fazer. Eu estava pensando nisso quando você
acordou.
Algo subiu pela perna de sua calça jeans, e ele gritou e saiu
da piscina. Ele arrancou o jeans sem pensar, empurrando-o
pelas coxas e sacudindo-o. Uma pequena cobra branca caiu de
volta na água com um plop.
— O que foi isso? — ele exigiu.
Quando ele se virou para Mariel, porém, ela não estava
olhando para a piscina ou para a cobra. Os olhos dela eram
redondos como pires enquanto disparavam entre seu peito e
sua virilha.
Ozroth olhou para si mesmo. Oh. A única coisa que ele
usava era uma cueca boxer preta e, graças a estar ensopada,
deixava pouco para a imaginação. Ele se virou, não querendo
alarmá-la.
— Desculpe — ele engasgou. — Havia uma cobra nas
minhas calças.
— Eu percebi — ela murmurou.
Isso era mortificante. Seu pau estava, contra todas as
probabilidades, se interessando na situação. Ele entrelaçou as
mãos na frente de sua virilha, mantendo-se de costas para ela.
Talvez se ele se concentrasse na cobra novamente, sua ereção
receberia o memorando de que este não era o momento
apropriado.
— O que era aquela cobra? — ele perguntou. — Era branca
e tinha cerca de 12 centímetros de comprimento.
— Uma cobra albina de fontes termais. Não são venenosas,
mas tendem a gostar de carinho.
Ele fez uma careta. Aquela cobra tinha a missão de acariciar
seus testículos, considerando a rapidez com que se movia.
— Não é uma característica que eu aprecie em uma cobra.
Ela riu.
— Oh, as cobras são adoráveis. Você deveria tentar acariciá-
las com mais frequência.
Ele balançou a cabeça.
— Não, obrigado. — Por sorte, sua ereção começou a
diminuir, então ele se virou, ainda mantendo uma mão sobre a
virilha, e pegou seu jeans na grama. Ele se esforçou para vesti-lo,
estremecendo quando o tecido molhado grudou na pele.
Quando terminou, percebeu que Mariel ainda o encarava
com avidez. Ele fez uma careta.
— Gostando do show?
Mariel desviou os olhos.
— Apenas distraída. — Ela parecia mais saudável agora, a
cor restaurada em suas bochechas.
— Então, o que aconteceu? — Ozroth perguntou,
recolhendo sua camisa e puxando-a sobre a cabeça. Mariel fez
um barulhinho triste enquanto ele se cobria. — Você estava
curando a árvore, e então ficou inconsciente.
— Eu me esforcei demais. Dei muito poder ao feitiço. — Ela
balançou a cabeça. — Isso nunca aconteceu antes.
— O que quer que seja essa podridão deve ser forte. —
Parecia antinatural, mas ele não havia sentido nenhuma magia.
Então, novamente, a única magia que ele podia sentir era a
humana – mesmo a magia demoníaca era imperceptível para
outros demônios – então talvez outra criatura sobrenatural
fosse a responsável. Ele ajudou Mariel a se levantar. — Você
consegue andar?
Ela revirou os olhos.
— Não sou frágil.
Ela era, no entanto. Uma infecção, uma pancada na cabeça,
genética azarada... Qualquer coisa poderia matá-la tão
facilmente. Caso contrário, humanos saudáveis poderiam
morrer de um aneurisma em um instante. A espécie andava no
fio de uma faca, mas os humanos não tinham ideia de quão
delicadas eram suas vidas.
Isso o deixou com raiva, embora ele não pudesse articular o
porquê.
— Vamos levar você para casa — disse ele. — Você deveria
descansar.
— Eu me sinto bem — ela argumentou, mas vacilou
quando deu um passo em direção às árvores. Ele pegou seu
cotovelo, apoiando-a.
— Cama — ele ordenou. — Agora.
Ela estremeceu.
— Sim, senhor.
Ozroth gostou demais dessa resposta.
— Finalmente, um pouco de respeito — ele murmurou.
A covinha dela apareceu.
— Não conte que isso vá continuar.
Estranhamente, Ozroth não se importou.
Eles caminharam de volta pela floresta, movendo-se mais
devagar do que antes. Ozroth manteve a mão no cotovelo de
Mariel para o caso dela cair novamente. Suas roupas molhadas
esfolavam sua pele, esfriando rapidamente, e seus passos
ficaram desajeitados.
Mariel notou.
— Você está bem?
— Tudo bem — ele disse através dos dentes batendo. —
Demônios não foram feitos para sentirem frio, só isso.
— Oh, não! — Ela parecia aflita. — Você vai tomar um
banho quente no momento em que chegarmos em casa.
Essa frase fez uma coisa engraçada em seu estômago. No
momento em que chegarmos em casa. Ozroth nunca havia feito
parte de um "nós" antes.
No momento em que voltaram para a rua, Ozroth estava
experimentando tremores de corpo inteiro enquanto Mariel
cambaleava. Agarraram-se nos braços um do outro,
caminhando embriagados de volta à casa de Mariel. Felizmente,
a festa se dissipou, então eles puderam entrar pela porta da
frente.
— Cama — ele ordenou.
— Chuveiro — disse ela com a mesma firmeza. Ela o
arrastou para o banheiro com uma força surpreendente. Ele
observou enquanto ela girava as torneiras, segurando a mão sob
a água. Então ela olhou por cima do ombro. — Eu acho que
você não se importa se estiver escaldante.
Ele balançou a cabeça, os dentes batendo muito forte para
responder.
Ela girou o botão totalmente e mudou o fluxo para o
chuveiro. Ele pensou que ela iria embora, mas em vez disso, ela
puxou a bainha de sua camisa encharcada.
— Tira.
Ela queria despi-lo? O pau de Ozroth teria tido interesse
nisso se não estivesse parecendo um pingente de gelo. Ele a
deixou puxar o tecido para cima, levantando os braços para que
ela pudesse tirá-la pela cabeça.
Ambos estavam respirando com dificuldade quando ela
terminou. Arrepios formavam sobre a pele exposta de Ozroth.
Mariel lambeu os lábios, então alcançou o botão da calça jeans.
Sinos de alarme soaram em sua mente. Algo estava
acontecendo aqui que ia além de acordos demoníacos ou um
relacionamento falso, mas sua mente estava muito confusa para
entender isso. Ele estava congelando, ela estava doente, e um
deles tinha que acabar com isso. Infelizmente, parecia que tinha
que ser ele.
Ele colocou a mão no pulso dela.
— Vá descansar — ele disse, mais suavemente do que antes.
Seu rosto caiu.
— Certo — ela disse, virando as costas para ele. — Tente não
se afogar.
Depois que ela se foi, Ozroth tomou o banho mais longo da
sua vida. A primeira metade foi ocupada aquecendo sua
temperatura central de volta ao normal enquanto se castigava
por todo o catálogo de seus fracassos. Ele não estava mais perto
de fazer um acordo de alma e, pior, estava ficando
desconfortavelmente próximo do alvo de sua barganha – tão
próximo que se perguntou o que teria acontecido se tivesse
deixado Mariel desabotoar sua calça jeans.
Esse pensamento inspirou a segunda metade do banho.
Uma vez que seu pau voltou à temperatura adequada, não
houve razão sobre isso. Ele finalmente teve que se masturbar,
apoiando-se contra o azulejo enquanto se entregava a fantasias
obscenas. Mariel nua no chuveiro, a água alisando suas curvas
generosas. Mariel de joelhos, olhando para ele com grandes
olhos castanhos. A boca de Ozroth entre suas coxas enquanto
ela gemia e se contorcia.
Ele nunca foi um ser excessivamente sexual, embora
Astaroth o tenha encorajado a ganhar experiência caso
precisasse usar a sedução para fazer uma barganha. Ozroth
nunca gostou da ideia de fazer sexo com os alvos de suas
barganhas de alma, entretanto, todos os seus encontros foram
com outros demônios, e nunca houve muito nesses encontros
além da liberação mútua. No final das contas, ele perdeu o
interesse e fazia décadas desde que teve uma parceira.
Agora ele sentia esses impulsos mais fortes do que nunca.
Eles queimavam através dele, fazendo-o ofegar e arquear os
quadris. Quanto disso era a alma e quanto era Mariel? Mariel
com seus olhos grandes e lindos, suas covinhas e sua fodida
obra-prima em forma de corpo. Mariel com o riso brilhante,
que o provocou, então segurou sua mão.
O clímax atingiu forte e rápido, e ele abafou o grito com a
mão livre.
Quando acabou, seu corpo formigou com endorfinas, mas a
culpa e a auto recriminação o inundaram. Ele estava
fantasiando sobre a mulher que iria transformar em uma casca
sem emoção e sem magia. Ele era uma piada de demônio, tão
patético que começou a ter sentimentos por uma mortal.
Astaroth teria vergonha dele se soubesse. Não, mais do que
envergonhado. Indignado e revoltado.
Enquanto Ozroth limpava a parede do chuveiro, ele
também sentiu nojo de si mesmo. O que ele estava fazendo? Isso
só poderia terminar de uma maneira.
Foi uma fraqueza única, disse a si mesmo. Uma única
punheta para se livrar disso. Depois que ele saísse do chuveiro,
ele estaria de volta ao que era antes e pronto para começar suas
tramoias.
As roupas ainda estavam em uma pilha encharcada no chão,
então ele as jogou no cesto antes de enrolar a toalha na cintura
e sair do banheiro.
A porta do quarto de Mariel estava aberta. Ele hesitou,
imaginando se ela estava brava com ele. Então ele se deu um
tapa mentalmente. Quem se importava se ela estava brava com
ele? Ele era Ozroth, o Impiedoso, pelo amor de Lúcifer. As
pessoas sempre ficavam bravas com ele.
Ele provavelmente deveria se certificar de que ela não
desmaiou novamente. Ele precisava dela consciente para uma
barganha de alma, afinal.
Ele espiou com a cabeça para dentro do quarto. Mariel
estava enrolada na cama com as cobertas puxadas até o queixo.
Suas bochechas estavam rosadas e sua respiração era baixa e
regular. Dormindo, então. Seu cabelo estava emaranhado na
fronha, folhas e galhos ainda entrelaçados nos cachos
castanhos.
O coração de Ozroth apertou de forma alarmante e o calor
encheu seu peito. Ele se afastou rapidamente, então se apressou
pelo corredor, colocando tanto espaço quanto podia entre ele e
a suave mulher adormecida.
— Frio e racional — ele murmurou para si mesmo. — Seja
implacável.
Mas o calor persistiu, e seu estômago se juntou à
conspiração, e de repente ele entendeu por que os humanos
falavam sobre sentir frio na barriga. Seu corpo inteiro era um
tumulto de sensações, e seu coração e cabeça estavam cheios de
um desespero estranho e vertiginoso.
— Porra — disse ele, caindo no sofá.
Ele estava com tantos problemas.
Onze

Naquela tarde, Mariel abriu a porta da frente para encontrar


Calladia na soleira. A bruxa loira fez uma careta enquanto
segurava um saco de papel.
— Aqui — disse ela. — Mas eu fiz isso por você, não por ele.
Mariel sorriu.
— Obrigada, linda. — Ela acenou para Calladia entrar,
colocando o dedo na boca. — Ele está dormindo — ela
sussurrou.
Calladia olhou enquanto elas passavam pela entrada da sala
de estar, e então sua cabeça se voltou para Mariel.
— Ele está sem camisa — ela disse categoricamente.
— Eu disse a você — disse Mariel enquanto guiava Calladia
pelo corredor até a cozinha. — Ele caiu na fonte termal.
— E você não poderia dar a ele um dos seus moletons
enormes para se cobrir?
Sinceramente, Mariel provavelmente tinha algo que serviria
nele – ela adorava moletons grandes e aconchegantes. Mas
quando ela o viu estirado no sofá, uma toalha branca amarrada
na cintura e quilômetros de músculos à mostra, ela
experimentou um momento de fraqueza. Sua pele era lisa e
dourada, sem pelos, exceto pelo rastro de felicidade que
espreitava por cima da toalha.
Ela tentou parecer inocente.
— Acho que me escapou totalmente.
Calladia bufou.
— Claro. O V sagrado não influenciou em nada o seu
pensamento.
"O V sagrado" era como elas chamavam aquele corte
aparentemente mítico de músculos que se projetavam para a
virilha de um homem. Frequentemente visto em anúncios de
revistas, mas nunca na vida real... até que Oz apareceu. As
bandas de músculos eram tão pronunciadas que a fez querer
mordê-las.
— O V teve muito pouco a ver com isso — Mariel disse
afetadamente. — Mas os peitorais...
Calladia deu um tapa em seu braço.
— Pare com isso. Ele está aqui para roubar sua alma, não
para te encher de amor.
Mariel colocou uma chaleira para ferver, lutando contra a
bola de decepção que se instalou no estômago. Ela pegou o chá
favorito de Calladia: laranja e gengibre.
— Se minha alma está em perigo, pelo menos me deixe dar
uma espiadinha enquanto isso.
— Sua alma não está em perigo — disse Calladia quando
Mariel se juntou a ela na mesa. — Você não vai fazer um acordo.
— Eu sei. Mas e daí? Ele apenas... poderia ficar por aqui pelo
resto da minha vida? — A perspectiva não parecia tão terrível
quanto deveria. — Ele tem um trabalho para voltar. Amigos e
uma vida. — Embora ele não tivesse mencionado nenhum
amigo, apenas aquele mentor terrível. Ainda assim, não era
justo esperar que ele a seguisse para sempre.
Calladia ergueu as sobrancelhas incrédula.
— Você realmente trocaria sua alma para que ele pudesse sair
com os amigos novamente?
— Não. Eu me sinto péssima com toda a situação.
Ela realmente sentia. Oz estava preso aqui por causa dela. Foi
ela quem pediu um acordo, e agora ele tinha que andar atrás
dela, forçado a tolerar Diantha Spark, cobras nas calças e
imersão em fontes termais.
E por falar naquela cobra na calça... Uau. Sua cueca boxer
tinha se grudado indecentemente quando ele saiu da piscina,
dando a ela uma boa visão do que o demônio estava carregando.
Faria muito esforço, mas Mariel estava disposta a se arriscar.
— Você não deveria se sentir mal. Ele é um idiota. —
Calladia apertou seu rabo de cavalo no alto. Dada a aparência
imaculada do cabelo e top de treino azul, ela ainda não havia
voltado para a academia, mas iria para lá em breve para sua aula
de treinamento pessoal.
A chaleira assobiou.
— Ele realmente não é — Mariel disse enquanto ela se
ocupava servindo duas canecas de chá. — Ele é rude, e vocês
dois definitivamente começaram com o pé esquerdo, mas na
verdade, ele é meio... doce.
Ela pensou na maneira como ele elogiou sua magia e nas
preocupações que expressou sobre como sua família a tratava.
A maneira como ele entrou em pânico quando ela desmaiou,
aparentemente agonizando sobre se deveria ou não aplicar
RCP. A maneira como ele tocou timidamente as pétalas de uma
flor naquela clareira, parecendo surpreso quando a flor o
acariciou de volta.
Então ela pensou em como ele a impediu de tirar as calças, e
suas bochechas queimaram de vergonha. Ela não tinha certeza
do que estava pensando – ela não estava realmente pensando,
sinceramente, apenas agindo com tesão por impulso. Ser
rejeitada doeu, mas havia algo doce nisso também. Ele queria
que ela descansasse.
— Terra para Mariel. Volte, Mariel.
Mariel voltou a atenção. Ela ficou vidrada enquanto mexia o
chá, lembrando o quão perto seus dedos chegaram de descobrir
tudo sobre o pau do demônio. Ela trouxe as xícaras para a mesa.
— Desculpe. Fiquei distraída.
— Pensando nos peitorais dele de novo? — Calladia
perguntou acidamente.
— Não. — Na verdade, na protuberância no jeans dele. —
De qualquer forma, ele não é tão ruim assim. Definitivamente,
não é impiedoso. E ele tem sido muito gentil com a minha
magia.
Calladia parecia compreensiva.
— Querida, eu odeio dizer isso, mas sua família tem sido tão
rude com sua magia que acho que você aceitaria como bondade
qualquer coisa que não fosse um insulto direto.
Mariel escondeu seu vacilo atrás da xícara erguida.
— Duro, mas verdadeiro. — O chá escaldou sua língua
quando ela bebeu, e cuspiu de volta com um ganido.
Calladia já estava bebendo o dela. Ela nunca teve
dificuldades com beber café ou chá muito quente – uma
semelhança que ela compartilhava com Oz. Ele provavelmente
gostaria se bebesse lava.
— Você acha que há lava no plano demoníaco? — Mariel
perguntou.
— Esquilo!
— É uma pergunta legítima — Mariel protestou. — Existem
cães do inferno, afinal.
— Cães do inferno? — Calladia perguntou incrédula.
Mariel revirou os olhos.
— Eu sei. Aparentemente, inferno significa "leal" em Velho
Demonish.
— Não existe inferno — Calladia zombou em uma voz
comicamente baixa. — Exceto quando eu, Ozroth, o
Impiedoso, disser que existe. — Ela voltou à sua voz normal. —
Então ele está dando uma aula sobre Introdução aos Demônios
ou o quê?
Mariel encolheu os ombros enquanto mexia o chá. Ela
poderia tentar um feitiço para baixar a temperatura, mas
conhecendo sua sorte, ela provavelmente iria transformá-lo em
lava de verdade, já que ela estava pensando nisso.
— A gente conversa muito. Ou, pelo menos, eu falo muito
e ele responde a todas as minhas perguntas.
— Ele deve ser muito paciente — disse Calladia.
Mariel mostrou a língua.
— Idiota.
— Só estou dizendo, até mesmo uma Bola Oito Mágica se
jogaria de um penhasco se tivesse que responder a todas as suas
perguntas.
— Como ela chegaria ao penhasco? Não tem pernas.
Calladia apontou para ela.
— Viu? Mais perguntas.
Mariel sentiu-se mais relaxada do que há dias. Isso era bom.
Só ela e Calladia, tirando sarro uma da outra como sempre
fizeram. Ela caiu para trás na cadeira, segurando a xícara contra
o peito.
— Como você tem passado esses últimos dias? — ela
perguntou. — Eu sinto que meu drama demoníaco está
ofuscando tudo.
— Como deveria. — Calladia pousou a xícara e se inclinou.
— Eu consegui mudar a reunião geral, para o grande
aborrecimento de minha mãe. É amanhã à noite às seis da
tarde...
— Isso vai ser estranho. — Cynthia e Calladia
frequentemente batiam cabeça, mas raramente tão
publicamente.
— Eu não dou a mínima. Ela é quem prioriza as pedicures
ao invés do bem-estar da comunidade. — Calladia deu um soco
ameaçadoramente na palma da mão. — Espero que o
empreiteiro também esteja lá, para que eu possa executar um
projeto de construção na cara dele.
— Eu gostaria de ver isso. — A conversa lembrou Mariel do
que ela tinha visto antes, e seu estômago ficou azedo. — Algo
mais está errado na floresta. Encontrei uma salamandra de fogo
doente.
Ela explicou a sequência de eventos, deixando de fora o
momento em que estava tão distraída com a ideia de beijar Oz
que perdeu os sibilos de alerta. A queimadura agora estava
enfaixada, mas a pulsação surda lembrou o quão tola ela tinha
sido.
— Eu curei aquela árvore — disse Mariel no final da história
—, mas e se houver outras?
A testa de Calladia estava franzida de preocupação.
— Eu não consigo acreditar que precisou de tanta magia
para curá-la. Você é como um reator nuclear para a magia das
plantas.
— Certo? — Mariel estremeceu. — E não parecia uma
podridão normal de árvore. Parecia mais mágica, mas não de
qualquer tipo que eu já encontrei antes.
— Eu me pergunto se há um feiticeiro na equipe de
construção. Talvez eles estejam tentando justificar o corte das
árvores?
— Talvez. — O pensamento deixou Mariel mal. — Mas
precisaria ser um feiticeiro forte. E Oz disse que não parecia
mágica humana.
— E você acredita nele? Demônios são mentirosos notórios.
— Calladia enrijeceu, arregalando os olhos. — Mariel, e se Oz
fez isso?
— O quê? — Ela rejeitou a possibilidade instantaneamente.
— Claro que ele não fez isso. Ele ficou preocupado quando
gastei tanta magia tentando curá-la.
— Demônio — disse Calladia. — Mentiroso. O que você
está perdendo sobre esse conceito?
Mas Oz não parecia um mentiroso – história de fundo falsa
para sua mãe à parte. Mentirosos experientes eram bons, e Oz
era tudo menos isso.
— Você simplesmente não gosta dele — Mariel disse,
colocando sua xícara sobre a mesa tão forte que o líquido
espirrou na borda.
— Claro que não gosto dele. Ele está tentando roubar a alma
da minha amiga.
— Não é roubo...
— Discutir semântica não melhora nada. — A voz de
Calladia aumentou. — Mariel, eu te amo, mas você está sendo
obtusa sobre isso. Toda a existência dele gira em torno de fazer
barganhas de almas, mas você espera que eu pense que ele é
realmente um cara doce e honesto? — Ela zombou. — Vamos.
Se eu estivesse tentando induzi-la a desistir da sua alma, a
primeira coisa que eu faria seria ameaçar a coisa que você mais
ama. Você deixou claro o quanto ama aquela floresta.
Mariel recuou.
— Não diga coisas assim.
— Por quê? Por que pode significar que o demônio gostoso
no seu sofá é na verdade seu inimigo? — Calladia enfiou os
dedos no cabelo, parecendo não se importar que estava
bagunçando o rabo de cavalo. — Sua mãe fez uma lavagem
cerebral em você para aguentar qualquer coisa, e agora você está
tentando transformar essa situação horrível em uma espécie de
conto de fadas...
— Pare com isso! — Mariel ficou de pé. Seus olhos ardiam.
— Você não pode falar sobre minha família assim.
Calladia também se levantou.
— Devo parar de dizer a verdade só porque você não gosta
de ouvir? Não é isso que amigas fazem.
Mariel não suportava pensar em Oz destruindo a floresta
pelas suas costas enquanto era charmoso na cara dela. O que
significou aquele quase beijo?
— Você não sabe do que está falando.
— Por que é tão difícil acreditar que Ozroth, o Impiedoso,
está fazendo tudo o que pode para levar sua alma? — perguntou
Calladia.
As lágrimas transbordaram.
— Porque isso significaria que tudo o que ele me disse é uma
mentira.
O olhar frustrado de Calladia disse a Mariel que ela não
entendia.
— E daí?
Como ela poderia explicar a dor de pensar que todo elogio,
todo olhar demorado, todo momento de estranha
camaradagem era uma encenação? Que ele a teria beijado de
bom grado, então agarrado sua magia sem um momento de
arrependimento?
— Ninguém nunca me valorizou — Mariel disse
amargamente. Ela ergueu a mão para interromper o protesto de
Calladia. — Você sim, mas isso não torna o resto mais fácil de
aceitar.
— Você acha que o demônio valoriza você?
Estranhamente, Mariel realmente começou a acreditar nisso.
— Eu não sei — ela sussurrou com a voz entrecortada.
A expressão de raiva de Calladia se transformou em pena.
— Oh, querida. — Ela contornou a mesa para envolver
Mariel em um abraço. — Sinto muito por ter chateado você.
Você é valiosa. Você não precisa de um demônio para te dizer
isso.
— Mariel? — A voz baixa e sonolenta veio da porta. Oz ficou
ali parado de toalha, o cabelo preto despenteado em torno dos
chifres e olhos turvos por causa do cochilo. — Ouvi choro.
Você está bem?
Mariel chorou ainda mais. Como alguém poderia atuar tão
bem?
Dois séculos de experiência, lembrou a si mesma. Ele viveu
oito vezes mais do que ela.
Ozroth deu um passo à frente, então parou quando Calladia
olhou por cima do ombro, e Mariel se perguntou o quão
assassina era a expressão da amiga.
— Ela está bem — disse Calladia. — A melhor coisa que
você pode fazer é deixá-la em paz.
Ele se encolheu. Aqueles olhos cansados e tristes
encontraram os de Mariel novamente.
— É isso que você quer?
Mariel assentiu. O nó em sua garganta parecia que iria
sufocá-la.
— Tudo bem. — Ele passou a mão pelo cabelo, puxando
como se quisesse arrancá-lo. — Eu vou deixá-la sozinha. Mas se
você estiver ferida, poderia me contar? Por favor?
Mariel assentiu novamente, depois enterrou o rosto no
ombro de Calladia.
A cozinha ficou em silêncio por um tempo, quebrado
apenas pelos soluços abafados de Mariel e pelos sussurros
calmantes de Calladia. Eventualmente, ela recuperou o
controle de si mesma.
— Desculpe — ela disse, fungando. — Não sei por que
estou tão emotiva com isso.
— É uma coisa grande e assustadora. — Calladia entregou a
Mariel um lenço para que ela pudesse assoar o nariz. — Você
corre o risco de perder sua magia, mas o cara que está
ameaçando fazer isso é gostoso e está sendo legal com você. —
Ela abriu a porta de tela para o quintal, gesticulando para que
Mariel a seguisse. — Vamos. Hora da fitoterapia.
As árvores ao redor da propriedade de Mariel ficaram laranja
e carmesim com a estação. A luz do sol do outono projetava
sombras finas sobre a grama marrom e ricocheteava nas paredes
de vidro da estufa. O mundo exterior estava morrendo, mas era
reconfortante saber que as plantas dentro da estufa
prosperariam, não importava o que acontecesse. Elas eram a
única constante em uma vida sobre a qual ela às vezes sentia que
não tinha controle.
Assim que Mariel entrou na estufa, ela foi cercada por
gavinhas de plantas curiosas. Uma rosa vermelho-sangue
escovou seu rosto molhado com as pétalas, e Mariel sorriu
apesar de si mesma.
— Eu posso ver o que você quer dizer sobre o demônio. —
Calladia parecia preocupada enquanto olhava para a casa, seus
dedos acariciando distraidamente a videira de jade. — Ele é
realmente convincente.
Mariel assentiu.
— Eu entendo o que você está dizendo, mas toda vez que
falo com ele parece tão genuíno.
— Além disso, você tem uma queda por ele.
Mariel recuou com a acusação.
— Eu não tenho. — Uma grande mentira.
Calladia revirou os olhos.
— Mariel, é óbvio. Você o olha como se ele fosse um pedaço
de bolo de chocolate e está gastando mais energia defendendo-
o do que tentando descobrir como sair desse negócio.
Merda. Mariel disse que iria à biblioteca, não disse?
— Farei mais pesquisas, prometo. Mas fomos surpreendidos
pela minha mãe a caminho de casa, e então Oz ficou chateado,
e pensei que a floresta seria boa para ele...
— Oz estava chateado — repetiu Calladia. — Você está
priorizando as necessidades dele sobre as suas. Por que ele estava
chateado?
— Além de estar preso na Terra com uma bruxa
incompetente? Ele me contou sobre sua infância de merda.
Calladia suspirou.
— Deixe-me adivinhar. Você acha que aquele exterior
grande e taciturno está escondendo um coração ferido, e tudo
que ele precisa é de amor e compreensão.
Isso parecia uma armadilha.
— Talvez.
Calladia agarrou a mão dela e a levou para dentro da estufa.
Ela parou em frente a uma pequena árvore com uma trepadeira
enrolada no tronco.
— Homens tóxicos têm um truque muito inteligente —
disse ela com a amargura da experiência. — Eles desculpam seu
mau comportamento contando suas vulnerabilidades. Como é
difícil obter confissões emocionais dos homens, nos sentimos
lisonjeadas por eles confiarem em nós e, como somos
cuidadoras naturais, queremos ajudá-los. Então, perdoamos e
desculpamos o comportamento porque é um sintoma do dano
emocional de nosso ente querido. — Ela gesticulou para a
videira. — Então eles se enrolam em torno de nós, enfiando
seus ganchos na nossa casca, e nos gabamos de que eles vão
desmoronar sem nós. E eles lentamente nos dominam.
— Oz não é o Sam — Mariel disse suavemente. O horrível
ex-namorado de Calladia a deixou inclinada a pensar o pior dos
homens.
Calladia fez uma careta.
— Talvez não, mas não são todos iguais? Uma vez que
encontram uma fraqueza, a exploram.
Mariel agarrou as mãos de Calladia.
— Ele não está me menosprezando. E ele não está se
comportando mal, exceto por ser mal-humorado. Ele nem tem
pressionado para que eu troque minha alma recentemente.
— Isso não significa que ele não vai. — O medo brilhou nos
olhos castanhos de Calladia. Suas cicatrizes eram profundas e
Mariel sabia que o trauma era o argumento para ela. Calladia
fingia que se dedicava demais ao preparo físico e ao estudo da
bruxaria para namorar, mas essa era uma desculpa engessada
sobre o verdadeiro motivo. Ela estava com medo.
— Eu prometo a você — Mariel disse com veemência —, se
Oz me insultar ou começar a me tratar mal, eu vou te contar. Se
ele fizer alguma coisa para me machucar, eu vou te contar.
Calladia engoliu em seco, então assentiu.
— E se ele fizer isso... posso bater nele?
Mariel sorriu.
— Sim, você pode bater nele.
— Bom. — Calladia suspirou, os ombros caídos. —
Desculpe o sermão. Estou no modo mamãe ursa.
— Compreensível. — Mariel esfregou uma trilha de sal na
bochecha. — Eu vou para a biblioteca depois do trabalho
amanhã. Se pudermos desfazer isso, tudo ficará bem. — Ela
balançou a cabeça. — Eu nem tenho certeza se Ozroth quer
minha alma, para ser honesta.
Mariel podia ver que Calladia queria discutir, mas sua amiga
fechou a boca.
— Talvez — foi tudo o que ela disse.
Era uma concessão tão boa quanto Mariel conseguiria de
Calladia. Elas estavam brigando – e fazendo as pazes – há anos.
E embora suas brigas pudessem ser tempestuosas, elas sempre
vinham de um lugar de amor e terminavam rapidamente.
A luz que entrava pelo vidro da estufa tinha o rico tom
dourado do final da tarde.
— Ugh — disse Mariel. — Preciso me preparar para o jantar
de domingo. — Ela lançou um olhar ansioso para o início da
exibição para o Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico, no
qual ela preferia gastar seu tempo trabalhando.
— Você acha que pode faltar, considerando seu "novo
namorado"? — Calladia fez aspas aéreas. — Tipo, certamente
você merece alguma felicidade conjugal.
— Bem que eu queria. — Mariel fez uma careta. — Mamãe
simplesmente soltaria um exército de caranguejos no meu
quarto ou algo assim.
— Oz tem que ir?
Mariel ainda não havia considerado isso. Ela sabia a resposta,
porém.
— Absolutamente sim. Minha mãe me teletransportaria
para aquela caverna de guano do Planeta Terra se eu não o
levasse para jantar.
O sorriso de Calladia era maligno.
— Coloque-o para sentar mais perto dela. E certifique-se de
que Diantha saiba que ele adora receber perguntas intrusivas.
Mariel riu.
— Calma aí, Sra. do Mal. Não há necessidade de ser sádica.
Elas saíram da estufa lado a lado e Calladia se dirigiu para o
portão lateral de madeira. Ela fez uma pausa com a mão no
trinco.
— Eu te amo, sabia?
Mariel sorriu.
— Eu também te amo. Agora vá destruir uma máquina de
remo.
Calladia fez uma saudação e saiu.
Mariel caiu contra o portão. Ela se sentia emocionalmente
esgotada e ainda tinha que aguentar um jantar em família de
mais de três horas.
Uma cortina se moveu e ela olhou a tempo de ver Oz
espiando-a. Ele recuou rapidamente e a cortina voltou ao seu
lugar.
— Ozroth, o Impiedoso, de fato — ela murmurou. Ainda
assim, a questão permanecia – uma possibilidade sombria que
não sairia da sua mente agora que Calladia havia tocado no
assunto.
Quão bom mentiroso Oz era?
Doze

Ozroth fez uma careta para o espelho.


— Não.
Já era ruim o suficiente ele estar preso na Terra,
pateticamente ansiando pela bruxa que deveria estar
aterrorizando ou manipulando para uma barganha de alma.
Ruim o suficiente ele ter sido dispensado como se não fosse
nada quando ela claramente estava chateada e precisando de
ajuda. Mas isso? Isso já era demais.
— Sim — disse Mariel. — É a única opção. — Ela ficou ao
lado dele, um pouco atrás e o reflexo mostrou uma covinha
aparecendo sob a mão que ela pressionou contra a boca. Ela
estava rindo dele.
Por uma boa razão.
A camisa também parecia encará-lo no espelho, uma
monstruosidade tingida com um desenho repetido de
papagaios e palmeiras. De alguma forma, era grande demais
para seu corpo largo, solto na cintura. Ozroth se perguntou
quantos brechós Calladia havia visitado em busca da roupa
perfeita para humilhá-lo.
— Ela fez isso de propósito — disse ele acusadoramente.
Mariel finalmente cedeu e começou a rir.
— Com certeza.
Aparentemente, ele não receberia nenhuma simpatia
daquele bairro. Pelo menos a cueca serviu, embora ele pudesse
ter seguido sem o desenho de coração. As meias eram... algo...
mas os jeans eram longos o suficiente para cobrir o padrão de
gatinho. O jeans combinava com o tamanho que ele usava, e ele
se perguntou se Mariel havia olhado para as etiquetas enquanto
ele dormia. Suas roupas originais estavam na máquina de lavar,
girando devagar demais para o seu gosto.
— Podemos esperar até que a máquina de lavar termine —
disse ele.
— E voltar a usar aquelas roupas encharcadas? — Mariel
balançou a cabeça. — Eu me recuso a deixar meu demônio
congelar até a morte.
Ele franziu o cenho ainda mais com a maneira como seu
coração batia forte. Meu demônio. Se ele fosse o demônio dela,
teria deixado que ele a confortasse quando ela estava chorando.
Ele poderia ter massacrado o que quer que estivesse causando
sua dor.
— Parece que você quer jogar essa camisa em um vulcão —
disse Mariel. — Não é tão ruim. — Com seu olhar
tempestuoso, ela esclareceu. — Bem, talvez seja tão ruim assim,
mas é apenas uma noite.
— Uma noite com sua família.
— E? Você viu como Alzapraz se veste.
E sim, isso não era tão ruim quanto orelhas de coelho, mas
esse não era o ponto.
— É o princípio da coisa. Qualquer namorado seu deve
tentar ter uma boa aparência ao conhecer sua família. Até
mesmo um namorado falso.
Ela olhou para ele como se tivesse descoberto uma nova
espécie de planta.
— Oz, isso é absolutamente doce.
— Não é doce — ele resmungou, arrastando o pente dela
por seu cabelo. — É a coisa mais honrada a se fazer. — Ele
estremeceu quando puxou um emaranhado com tanta força
que o pente bateu em um de seus chifres, causando um
relâmpago de dor.
— Vocês, demônios, e sua honra. Eu juro que vocês são
Klingons secretamente.
— O que é um Klingon?
— Deixa para lá. — Quando ele puxou outro emaranhado,
Mariel arrancou o pente de sua mão. — Você não pode pentear
assim ou vai danificar seu cabelo.
— Ele volta a crescer.
— Mas é tão bonito. — Ela arrastou os dedos sobre os fios
ondulantes. — Seria uma pena danificá-lo.
Ele ficou momentaneamente atordoado em silêncio por
qualquer parte dele ser considerada "bonita". Mariel aproveitou
para começar a passar o pente pelos cabelos dele, começando
pelas pontas. Ele se curvou para tornar mais fácil para ela. Talvez
ele devesse ter recusado a ajuda, mas ele nunca havia tido
alguém penteando o seu cabelo antes – não que ele pudesse se
lembrar – e era surpreendentemente bom.
Ele observou no espelho enquanto ela trabalhava
metodicamente. Havia uma ruga em sua testa, como se ela
quisesse fazer isso perfeitamente. Ele raramente tinha a chance
de olhar para ela por longos períodos de tempo, então ele
aproveitou o foco dela e deixou os olhos vagarem sobre ela. Ela
era tão linda, com seu rosto em forma de coração e olhos
castanhos sonhadores. Ela trançou o cabelo, mas alguns cachos
escapavam para se curvar contra sua testa, e uma flor vermelha
foi enfiada na trança. Ela parecia suave e doce, e ele se perguntou
qual seria o gosto da pele pontilhada de sardas. Rosas e
baunilha, talvez. Sol com um toque de canela.
Ela trabalhou cuidadosamente em torno de seus chifres.
— Eles são sensíveis? — ela perguntou, passando um dedo
sobre um do jeito que ela acariciaria uma planta amiga.
Um arrepio de prazer disparou do chifre para sua virilha, e
ele fez um som inarticulado.
— Desculpe! — Ela puxou a mão de volta. — Isso doeu?
— Não — ele resmungou. Imaginar o gosto dela havia
iniciado sua ereção, mas com aquele toque, ele agora estava
testando a capacidade do seu novo jeans.
— Então o que foi isso... oh. — Seus olhos fixaram na parte
debaixo do seu corpo no espelho.
— Desculpe. — Ele tentou inclinar seu corpo para que ela
não visse sua ereção. — Eles são sensíveis. Em... Dessa forma.
— Oh! — Mariel riu, parecendo corada. — Mesmo quando
você está esfaqueando aquela besta noturna no plano
demoníaco?
— Não nessa hora. É, ah, uma situação específica. — Bater
em qualquer coisa com seus chifres doía, mas toques suaves
eram algo completamente diferente.
Ele tentou virar a pélvis para ainda mais longe de sua visão,
mas ela agarrou seu braço, parando o movimento.
— Está tudo bem — disse ela. — É apenas biológico. Acho
que seria o equivalente a você enfiar a mão no meu vestido,
certo?
Ele gemeu e fechou os olhos, não querendo pensar no que
havia por baixo da saia dela. Ela estava usando outro vestido
inocentemente sexy. Este era xadrez vermelho e branco, com
renda falsa na frente e um lindo laço vermelho entre os seios.
Não era o vestido mais revelador, mas enfatizava sua exuberante
figura de ampulheta.
A saia não era apertada. Ele poderia colocar a mão na coxa
dela e deslizá-la para cima...
— Existe lava no plano demoníaco? — Mariel perguntou.
Ele abriu os olhos, despertado de seu devaneio.
— Perdão? — Ele geralmente conseguia seguir as mudanças
de assuntos dela, mas ele estava perdido nessa.
Mariel estava penteando o cabelo dele novamente, passando
os dedos pelas mechas para arrumá-las.
— Eu estava pensando em jogar aquela camisa em um
vulcão, e a questão surgiu mais cedo quando eu estava
conversando com Calladia. Lava parece um clichê, mas os cães
do inferno também, então quem sabe?
Será que ela não percebeu o que havia feito com ele ao tocar
em seu chifre e depois mencionar casualmente enfiar a mão sob
seu vestido? Ela estava conversando normalmente, parecendo
totalmente à vontade. Então seus olhos piscaram para sua
virilha e voltaram novamente, e ele percebeu que ela estava
tentando superar o momento estranho.
Ele limpou a garganta e tentou controlar seus pensamentos.
— Sim. Lava. Temos alguns vulcões.
— Você nada neles?
Ele riu.
— Somos quentes, mas não quentes como rocha derretida.
— Isso realmente soa excessivo. — Ela mordeu o lábio e
sorriu, e ele se sentiu tonto. O que estava acontecendo com ele?
Oh, quem ele estava enganando? Ele sabia exatamente o que
estava acontecendo, mesmo que nunca tivesse experimentado
isso antes. Os livros humanos estavam cheios dessas coisas e,
embora ele lesse principalmente não-ficção histórica e livros
didáticos sobre assassinato, ele se aventurou por outra
literatura. Havia vários termos para a emoção tonta, vertiginosa
e horrível que apoderava seus órgãos internos com mão de ferro,
e se ele nunca havia entendido o conceito antes, agora entendia.
Aquela porra de alma em seu peito estava absolutamente louca
para se deitar no altar do amor.
Não que ele estivesse apaixonado; isso era um passo longe
demais. Mas o altar da paixão não era tão poético. Nem o altar
da masturbação ilícita no chuveiro.
Como quer que ele chamasse a doença, ele nunca imaginou
que o início dos sintomas seria tão rápido. Ele a conheceu há
dois dias e já estava uma bagunça completa. Então, novamente,
a alma era humana, e os humanos tinham um curto tempo de
vida – fazia sentido que eles fizessem tudo o mais rápido
possível.
— Pronto — disse Mariel com um golpe final em seu cabelo.
Ela o separou com cuidado, arrumando os fios sobre os chifres
dele com delicada precisão. Então ela franziu a testa. — Droga,
esqueci daquele chapéu horrível.
— Tanto trabalho para nada. — Quando ela olhou feio para
ele, ele cedeu. — Obrigado. Por não danificar meu cabelo.
O sorriso dela aqueceu seu interior melhor do que o grogue
demoníaco flamejante, e ele percebeu que estava à beira do
vício.
— De nada — ela disse. — Agora, vamos. Temos um jantar
para ir.
Treze

Mariel e Oz viraram na rua que levava à casa da família Spark. A


lua erguia-se grande e branca no topo da colina, lançando sua
luz sobre as elegantes casas. Comparado a essas mansões, o
bangalô de Mariel poderia muito bem ser um barraco, mas ela
adorava ter um espaço só dela.
— Quais são seus objetivos de vida? — perguntou Oz.
Mariel piscou.
— Tentando descobrir minhas fraquezas, demônio?
Ele fez uma careta.
— Estou curioso.
— Quero fazer meu doutorado em Herbologia Mágica.
Adoraria ser professora. — Ela fez uma careta. — Minha mãe
preferiria que eu obtivesse um DoF em outra disciplina, mas
tive uma média sete durante minha graduação estudando Artes
Mágicas Gerais.
— E sete... é bom? — perguntou Oz. — As universidades
demoníacas não têm um sistema de classificação.
— Sete significa mediano, mas se você ouvir minha mãe,
parece que é um fracasso total e absoluto. — Ela olhou para ele.
— Se lá não tem um sistema de classificação, como funciona a
escola?
Sua testa franziu.
— Como assim?
— Como vocês sabem quem se saiu bem?
— Nossas escolas ensinam jovens demônios até que eles
entendam as coisas. Todos eles se saem bem.
Sua risada soou desequilibrada.
— Então não é uma meritocracia hipercompetitiva que não
leva em conta estilos de aprendizagem individuais? Em seguida,
você vai me dizer que não há empréstimos estudantis no plano
demoníaco.
— Por que os alunos fariam empréstimos? — Oz parecia
perplexo.
Mariel estava igualmente perplexa.
— Para pagar a mensalidade? Como vocês pagam os salários
dos professores e mantém os prédios se não cobram dos alunos?
— Não parece justo fazer os jovens pagarem pela educação
de que precisam. E a sociedade demoníaca opera no sistema de
troca em sua maior parte, mas se alguém está com dificuldades
e não pode trocar tempo ou recursos, toda a comunidade
contribui.
Huh. Confie em literalmente demônios para serem mais
gentis com suas crianças do que o sistema educacional
americano.
Eles passaram por uma exibição de Halloween que incluía
várias abóboras com luzes elétricas e um recorte de um demônio
vermelho com presas e um ancinho. Mariel escondeu um
sorriso ao suspiro pesado de Oz.
— Por que os professores ensinam se não recebem salário?
— ela perguntou.
— Nós vivemos para sempre. Os demônios são livres para
seguir um interesse, depois outro. Se valorizam a educação dos
jovens, por que não deveriam gastar seu tempo assim?
Obviamente, os barganhadores não podem mudar de carreira,
mas muitos outros mudam.
— Gosto que os demônios ajudem os outros porque
querem, não porque precisam de dinheiro. — Ela chutou uma
pedra, fazendo-a cair em um arbusto. O arbusto grasnou e um
pássaro com seis asas e muitos olhos subiu no ar. — Desculpe!
— Mariel disse enquanto voava para longe.
— Há tantas criaturas diferentes aqui — disse Oz.
— A magia os atrai. — Mariel apontou mais maravilhas
enquanto andavam. Um corvo de três patas bicava um gramado
moribundo e, em todos os lugares que ele pulou, a grama ficou
dourada. Fitas cobriam os galhos retorcidos de uma árvore,
cada uma representando um desejo ou encanto. Um grifo
empoleirado em um telhado triangular, a cauda chicoteando
enquanto olhava para longe.
— É tão vivo — disse Oz.
Mariel girou, fazendo seu vestido se abrir.
— Eu amo isso aqui. Não consigo me imaginar indo
embora. — Quando ela parou, ela viu os olhos de Oz se
erguerem rapidamente das suas coxas.
— Você é a coisa mais viva de todas. Você vê tanta alegria no
mundo. — Uma expressão sombria caiu sobre suas feições com
as palavras.
A noite estava linda demais para quaisquer pensamentos
sombrios que Oz estivesse entretendo.
— Não fique tão taciturno — Mariel disse. — Vamos lá,
tente fazer uma barganha idiota comigo.
Oz fez uma careta, mas quando Mariel olhou para ele com
expectativa, ele cedeu.
— Tudo bem. Se você me der sua alma, eu lhe darei seu
próprio grifo para montar.
Mariel cantarolou.
— Voar seria divertido, mas eles são fedorentos de perto.
— Se você me der sua alma, vou garantir que suas botas de
caminhada estejam sempre novas.
Mariel olhou para suas botas gastas.
— Botas novas têm que ser usadas. Eu ficaria com bolhas.
Eles estavam se aproximando do topo da colina. À esquerda
havia uma mansão de pedra cinza com telhado de duas águas e
uma guirlanda de outono na porta – a casa dos Cunnington. À
direita havia uma construção estranha e confusa que era um
emaranhado de diferentes estilos arquitetônicos. Mesmo que
Mariel não quisesse particularmente entrar, ela sorriu ao ver o
prédio excêntrico. A porção central de mármore era neoclássica,
com pilares frontais na fachada. Uma ala era de pedra calcária,
esculpida com elaboradas e inquietantes sensações góticas,
enquanto a outra ala tinha uma aparência Tudor, com suas
paredes brancas rebocadas e vigas pintadas de preto. Uma torre
se erguia de cada asa e uma bandeira roxa ondulava no topo da
mais central.
— Bem-vindo a quase dois séculos de escolhas
arquitetônicas questionáveis! — Mariel anunciou.
Oz parecia estarrecido.
— Esta é a casa da sua mãe?
— A casa da família Spark — confirmou Mariel. — A parte
central foi construída por um dos fundadores de Glimmer
Falls, Galahad Spark, em 1842. Vários parentes a melhoraram
desde então.
— Se você me der sua alma, vou jogar essa monstruosidade
abaixo.
Mariel deu uma risadinha.
— Na verdade, eu gosto. Eu sei que é cafona, mas tem
personalidade.
— Certamente tem alguma coisa.
— Os Cunningtons moram em frente — disse Mariel. —
Casper Cunnington, outro cofundador da Glimmer Falls,
tinha um estilo muito mais moderado.
Mariel olhou para o outro lado da rua a tempo de ver uma
cortina cair de volta no lugar. Cynthia Cunnington,
provavelmente, ansiosa para espionar sua "amiga". Por que
aquelas duas mulheres escolheram passar tanto tempo juntas
quando claramente se odiavam, Mariel nunca entenderia.
Um vitral cobria o terço superior da porta da frente e um
brasão pendurado abaixo: um grifo e um perítio rampante, com
um sol e bastões cruzados no meio. A fita no topo do escudo
dizia NOS IMPERARE SUPREMA. Nosso governo é supremo.
— Ninguém pode acusar sua família de ser humilde — disse
Oz.
— Nem me fale. — Mariel agarrou a aldrava de latão – presa
nos dentes de um dragão – e bateu três vezes. — Esse brasão
remonta aos tempos medievais, quando Gorvenal Spark era o
mais proeminente mago da corte da Europa.
A porta se abriu, revelando Diantha. Ela usava um vestido
roxo, luvas de ópera pretas e um colar de opalas negras.
— Queridos! — ela chorou. — Bem-vindos.
Oz estendeu uma garrafa de vinho do estoque de Mariel.
Diantha pegou a garrafa, olhou o rótulo e jogou-a por cima do
ombro. Oz se encolheu, mas Mariel apenas suspirou.
— Vintno a returnsen. — O vinho sumiu e reapareceu na
mão da sua mãe. — Apenas um truque de festa. Entrem,
pombinhos!
Eles entraram, e tanto a jaqueta de couro de Oz quanto o
suéter de Mariel voaram e se penduraram em ganchos. O hall
de entrada era revestido de madeira clara com um tapete
oriental, e retratos de bruxas e feiticeiros de aparência estranha
cobriam as paredes. Lizetta Spark, com um olho só, brilhava de
seu retrato, um papagaio empoleirado na cabeça. No próximo,
um feiticeiro posava dramaticamente com a camisa
desabotoada e os cabelos ao vento: Phineas Spark, que poderia
ter conquistado o mercado de capas de romances se tivesse
nascido um século depois.
— Esses jantares são a melhor parte da semana — disse
Diantha. — Nada como a família para manter o ânimo, é o que
eu sempre digo.
Ao lado de Mariel, Oz olhou de soslaio para o retrato de um
feiticeiro de aparência sombria com um facão e uma tatuagem
no rosto.
— Esse é o tio-avô Trenton — Mariel sussurrou. — Não
falamos sobre ele.
— Sua mãe não fala sobre algo? — ele perguntou em voz
baixa. — Que chocante.
— Se você tivesse um parente assassino que passou seus
últimos anos na prisão pesquisando a magia da ressurreição,
você também não falaria muito sobre ele.
— Aqui estamos! — Diantha os guiou até a grande sala de
jantar. Era decorada como um pavilhão de caça, com vigas
expostas no teto, velas bruxuleantes e cabeças de animais raros
montadas nas paredes. — São falsos — disse Diantha quando
pegou Oz olhando com horror para a cabeça de um dragão
branco em extinção. — Mas são divertidos. — Ela acenou com
a mão na frente do focinho do dragão, e ele virou a cabeça e
soltou uma baforada de fumaça pelas narinas. — Meu irmão
mais novo, Wallace, gosta de animatrônicos. Ele se mudou para
Pasadena no ano passado, o que foi uma escolha terrível, se você
me perguntar, o que ele não fez.
— Embora ela tenha dito a ele de qualquer maneira —
Mariel sussurrou. — Muitas vezes. — Ela sentia falta de Wally e
do marido dele, Hector, mas ligava para eles com frequência e
estavam prosperando na Califórnia.
— Wallace é especialista em criar animatrônicos impossíveis
que combinam máquinas e magia. — Diantha estalou os dedos
e uma cabeça de basilisco sibilou. — Eles estão na moda nos
parques temáticos hoje em dia, então pelo menos ele é rico.
A longa mesa de jantar podia acomodar vinte pessoas,
embora apenas quatro estivessem sentadas. O pai da Mariel
estava sentado à cabeceira da mesa, lendo um jornal, com os
cabelos grisalhos bem penteados, jogados para o lado, como
sempre, e os óculos quadrados empoleirados na ponta do nariz.
À sua esquerda estava sentado Alzapraz em vestes cor-de-rosa e
um chapéu pontudo azul, olhando melancolicamente para o
vinho. Em frente a Alzapraz estava Lancelot, primo de Mariel,
um adolescente de aparência emo com esmalte roxo, cabelo
preto e uma camiseta da banda My Alchemical Bromance.
Mariel parou ao ver o convidado ao lado de Lancelot.
— Themmie?
A fada de cabelo rosa e verde saltou da cadeira e voou com as
asas em tons de arco-íris.
— Mariel! — Themmie chorou enquanto a abraçava. —
Estou tão feliz que você está aqui. Seu pai nos manteve
entretidos lendo notícias sobre o mercado de ações em voz alta.
— Tolos — o pai de Mariel murmurou. — Perder tempo
com especulações quando eles poderiam contratar um
prognosticador decente. É o viés anti-magia corporativo no seu
melhor.
Mariel abraçou Themmie de volta, embora ela estivesse
confusa.
— O que você está fazendo no jantar em família?
— Sua mãe me disse que eu poderia vir a qualquer hora, e
meu professor nos deu a tarefa de concluir um estudo
etnográfico sobre um evento na nossa comunidade local. —
Themmie piscou. — Estamos aprendendo sobre a dinâmica de
grupo entre metamorfos, e meu projeto final se concentrará nos
metamorfos de hiena, então achei que aqui seria uma boa
prática.
Mariel ficou surpresa com o comentário. Claro, Themmie
sabia que sua família era difícil, mas hienas?
— Olá, Oz! — Themmie o abraçou, para sua óbvia
consternação. — Você está sendo um bom namorado?
— Ele viu uma salamandra de fogo hoje — disse Mariel,
afastando sua ofensa pelo comentário da hiena. Themmie
estava claramente brincando, e Mariel facilmente se ofende
quando se tratava da sua família. — E ele me carregou para um
lugar seguro quando desmaiei na floresta.
— Oh, isso é tão romântico! Ele te acordou com um beijo?
— Foi mais como uma tentativa falha de RCP.
— Você desmaiou? Por quê? — A mãe de Mariel correu para
sentir sua testa. — Você não está com febre.
Felizmente, Oz interveio antes que Mariel tivesse que falar
sobre o ponto morto na floresta.
— Ela estava praticando feitiços e usou muita magia.
Mariel lhe lançou um olhar agradecido.
Sua mãe deu um tapinha em sua bochecha.
— Eu já passei por isso, querida. Tudo faz parte do processo
de aprendizagem. — Ela sorriu para Oz. — Nunca a vi tão
dedicada ao ofício! É incrível como um bom pau pode ser
motivador. Não é, querido? — ela chamou por cima do ombro.
O pai de Mariel não levantou os olhos do jornal.
— Tudo o que você disser, querida.
Themmie pegou um caderno e começou a rabiscar.
— Isso é ótimo — disse ela. — Você sabia que a mãe hiena é
a dominante?
Mariel enterrou o rosto nas mãos.
Diantha já estava correndo para a mesa.
— Roland, guarde esse papel. Oz, Mariel, se sentem ao lado
de Alzapraz. Lancelot, você tem que parecer tão triste? Vamos
comer bife!
Oz sentou-se ao lado de Alzapraz e Mariel sentou-se à sua
esquerda. Havia uma rosa cor-de-rosa em um vaso ao lado do
centro de mesa em forma de candelabro. Mariel geralmente não
gostava de cortar flores, mas quando ela estendeu a mão, esta
parecia contente em mostrar suas pétalas vibrantes.
Alzapraz encarou Oz por um tempo desconfortavelmente
longo, as sobrancelhas brancas se contorcendo como lagartas
peludas.
— Você deveria investir em um chapéu mais moderno — ele
finalmente disse com sua voz ofegante. — O século XXI não
tem imaginação suficiente.
Mariel cutucou Oz e gesticulou para o adolescente do outro
lado da mesa.
— Lancelot é meu primo. Seu pai, Quincy, é o irmão mais
novo da mamãe, e sua mãe, Lupe, vem de uma importante
família mágica do Novo México. — Lancelot acenou
desajeitadamente e Mariel sorriu. Ela gostava do garoto de
dezessete anos. Ele era uma criança quieta e sensível, e foi um
prazer vê-lo crescer e se tornar um jovem artístico e atencioso.
— Gosto do seu esmalte — disse ela.
Ele penteou com os dedos a mecha de cabelo preto que
quase cobria seus olhos, parecendo envergonhado.
— Obrigado.
— Onde estão os queridos Quincy e Lupe? — Diantha
perguntou. — Não é típico deles faltar. — Ela se sentou na
outra extremidade da mesa em frente ao marido e murmurou
alguma coisa. A mesa encurtou abruptamente, arrastando seu
assento na direção deles rápido o suficiente para fazer Mariel se
encolher. Logo a mesa tinha o tamanho normal.
— Mamãe está com problemas estomacais — disse Lancelot.
— Papai também. — Enquanto Diantha lançava uma lista de
remédios mágicos para gripe estomacal, Lancelot olhou para
Mariel com olhos tristes. — Eu vou ter semana que vem.
— A velha técnica do ritual de sacrifício. — Eles tinham
visto muitas coisas com Wally e Hector antes de se mudarem.
Era incrível a frequência com que um deles ficava "doente".
— Sabe, fontes termais podem fazer maravilhas para a saúde
— Diantha disse, alheia à conversa paralela. — Quincy e Lupe
simplesmente precisam se tornar membros do spa, assim que o
resort for construído.
Mariel enrijeceu.
— Mãe, já conversamos sobre isso. O resort vai danificar a
floresta...
— Ah, bobagem. Temos tão poucos luxos em Glimmer
Falls, e minha pele está morrendo de vontade de ser mimada.
— Você já faz manicure uma vez por semana.
— Sim, mas este spa vai ter todo tipo de comodidades.
Banhos de lama, massagens, tratamentos faciais,
microagulhamento, desmanifestação capilar... — Diantha
suspirou sonhadoramente. — E eu sou uma investidora, então
vou ganhar dinheiro com o sucesso.
— Você já tem muito dinheiro — disse Mariel. — Não vale
a pena destruir o ecossistema local. — Uma bola quente de raiva
estava crescendo em seu estômago. Ela relaxou o aperto na haste
de sua taça de vinho para não a quebrar inadvertidamente.
Diantha fez um barulho rude.
— Por favor. São apenas algumas árvores. — Ela inclinou o
copo para Mariel. — Sabe, se você passasse metade do tempo
que passa naquela floresta estudando feitiçaria, você seria uma
bruxa de verdade.
Mariel se encolheu. Rapidamente, a raiva se transformou em
ansiedade. O jantar mal havia começado e sua mãe já estava
tagarelando sobre magia. Mariel sabia por amarga experiência
que em noites como esta, só pioraria. Era ruim o suficiente em
tempos normais, mas esta noite havia testemunhas.
Oz estava olhando para ela com uma expressão muito
próxima da pena para o gosto dela.
— Você está bem?
Mariel forçou um sorriso.
— Estou. — Ela só tinha que abaixar a cabeça e passar por
isso.
Roland Spark pigarreou.
— Então — disse ele, olhando para Oz por cima dos óculos.
— Você é o namorado.
— Eu sou. — Oz parecia nervoso.
— Vocês se conheceram em um desses aplicativos.
— Sim. Um deslizar de sorte. — Pela maneira hesitante
como ele disse isso, Mariel percebeu que ele ainda não tinha
ideia do que isso significava.
Seu pai estudou Oz por mais alguns segundos, então
assentiu.
— Trate-a bem, ou vou transformar seus intestinos em uma
pilha de ratos.
— Pai! — Hécate, havia uma razão para ela nunca ter
contado a seus pais sobre sua vida amorosa.
— Oz, o que você está vestindo? — Diantha perguntou
abruptamente.
Ele olhou para a camisa havaiana.
— É dia de lavar roupa.
— Não isso. — Ela acenou. — Você deveria ver as roupas
com as quais Alzapraz apareceu. Em uma ocasião memorável,
ele usou nada além de protetores de mamilo deslumbrantes e
uma sunga apertada.
Mariel estremeceu. Ela se lembrava daquele incidente
vividamente.
— E ainda assim ela não me expulsou — disse Alzapraz
tristemente.
— Estou falando do chapéu — disse Diantha. — Por que
você está usando um chapéu dentro de casa? Alzapraz tem uma
estética definida, por isso permitimos, mas normalmente é falta
de educação usar chapéus à mesa de jantar.
— Sim — Alzapraz repetiu, tomando outro gole de vinho.
— Por que você está usando um chapéu dentro de casa?
Mariel olhou para Oz, imaginando como ele sairia dessa.
— Eu tenho... uma condição — disse Oz após uma pausa.
— Que tipo de condição? — Diantha acenou com o copo.
— Posso lhe dar conselhos médicos.
— É hereditário. E, infelizmente, a linhagem do meu avô foi
amaldiçoada com a incapacidade de falar sobre qualquer
detalhe.
Demônio inteligente. Mariel escondeu um sorriso. Alzapraz
bufou e bebeu mais vinho.
— Suponho que podemos permitir isso. — Diantha franziu
o cenho. — Espero que sua condição não seja muito feia.
Queremos os melhores genes para a linha Spark.
Mariel odiava quando sua mãe a importunava sobre
procriar.
— É horrível — disse ela. — Seus netos vão parecer pessoas-
lagarto.
Diantha parecia horrorizada, mas quando a expressão solene
de Mariel finalmente se quebrou, seu rosto relaxou.
— Não seja cruel com sua querida mãe — disse ela. — Eu
me recuso a permitir que qualquer Spark seja um lagarto. — Ela
voltou sua atenção para Oz. — Mas realmente, quão ruim é a
sua aflição em uma escala de um a dez?
— Maldição — disse Oz. — Não consigo falar.
Diantha fez uma careta.
— É claro que o primeiro solteiro elegível que gosta de
Mariel vem com uma pegadinha. — Seu olhar prometia a
morte. — Se você fizer meus netos serem defeituosos, eu vou te
teletransportar para a lua.
Mariel ficou boquiaberta com a mãe. Defeituosos?
— Esses netos são hipotéticos — disse Oz com uma voz de
aço —, mas eu nunca toleraria que alguém tratasse mal meus
filhos. E eu nunca aceitaria que alguém os chamasse de
defeituosos.
Um silêncio incômodo caiu sobre a mesa. O coração de
Mariel saltou quando ela olhou para o perfil severo de Oz.
Impiedoso, uma ova. Por um momento, ela o imaginou com
uma criança nos ombros, andando pela casa. Nenhum filho
dele jamais teria um quarto bagunçado, mas ele os manteria
seguros, e ela apostaria que eles sempre se sentiriam bem o
suficiente.
Uma dor começou atrás do esterno de Mariel.
— Bem. — Diantha girou sua taça de vinho vazia. — Ele tem
potencial de ser um bom pai, suponho. Roland?
O pai de Mariel pegou a garrafa de vinho do aparador e foi
até Diantha para encher sua taça.
— Diantha, amor, mal posso esperar para provar o que você
preparou. De onde vem a refeição desta noite?
Seu rosto se iluminou.
— Oh, sim, eu deveria trazer o jantar! — Ela lançou um
feitiço e uma refeição completa se materializou na mesa. —
Hoje o bife vem de um restaurante com estrela Michelin em
Los Angeles, a salada é da Grécia, o pão é da França e o cabernet
é de um vinhedo particular em Malta.
— Tenho certeza de que isso é roubo — murmurou
Lancelot, mexendo no esmalte e olhando carrancudo para o
copo d'água.
— Não é roubo. É usar meus dons naturais para garantir o
bem-estar e a felicidade da minha família. — Diantha ergueu o
copo. — Aos Sparks! Nos imperare suprema.
Mariel repetiu o brinde junto com sua família, então viu a
expressão perplexa de Themmie. Ela deu de ombros, que
Themmie retribuiu.
— Nos imperare suprema — disse a fada antes de arrancar
um pedaço de pão.
O bife estava perfeitamente cozido, com um centro rosa.
Mariel deu uma mordida, suspirando de prazer quando o sabor
se instalou em sua língua.
— Isto é muito bom. — Oz estava olhando para seu bife
com um olhar de admiração.
— Deixa você muito satisfeito — disse Alzapraz. Sua cabeça
mal batia no ombro de Oz, embora o chapéu compensasse a
diferença. Ele estava tendo problemas para manipular o garfo e
a faca sobre a borda alta da mesa, e seu garfo soltou um guincho
horrendo quando ele o arrastou sobre o prato. — Você
provavelmente não precisará comer novamente por algumas
semanas.
Mariel semicerrou os olhos para Alzapraz. O que ele estava
falando?
O garfo guinchou novamente, mais alto desta vez, e todos
estremeceram.
— Você precisa de um assento elevado, querido Alzapraz?
— Diantha perguntou com uma voz doce como veneno.
Alzapraz pousou os talheres e olhou para ela.
— Eu poderia lançá-la em órbita, se quisesse.
Ela deu de ombros.
— Eu me teletransportaria de volta para baixo.
— Eu poderia transformá-la em um sapo.
— Eu poderia colocar você em uma casa de repouso.
O silêncio caiu depois dessa ameaça, pontuado apenas pelo
raspar dos talheres e pelos rabiscos da caneta de Themmie. Ela
ergueu os olhos do caderno, encontrou os de Mariel e
murmurou: Que porra é essa?
Hécate, isso era embaraçoso. Ela estava acostumada com o
caos antagônico dos jantares de domingo dos Sparks – ou pelo
menos resignada a isso – mas Themmie provavelmente nunca
interagiu com uma família que não fosse estável e amorosa.
Os pais de Mariel a amavam, ela dizia isso a si mesma. Eles
apenas expressavam isso de forma estranha.
Ela esfregou o esterno, tentando dissipar a dor que persistia
ali. Desejar uma vida diferente era inútil. Esta era a que ela
tinha, e ela deveria ser grata por isso.
Ela comeu com determinação diligente, tentando terminar
o mais rápido possível para que pudessem sair antes que sua
mãe começasse outra conversa sobre feitiçaria. Era um assunto
popular no jantar em família, mas os nervos de Mariel já
estavam em frangalhos por apresentar Oz e Themmie a esse
show de merda. Ela preferia ouvir a história do seu nascimento
pela centésima vez do que chegar perto do assunto de seus erros
mágicos.
Assim que Mariel começou a pensar que ela escaparia
impune, Diantha falou novamente.
— Mariel, conte-nos sobre sua feitiçaria. O que você tem
praticado?
Seu estômago caiu e ela se concentrou intensamente em seu
prato. A verdade obviamente não serviria.
— Todo tipo de coisa.
— Detalhes, querida.
Bem, valeu a pena tentar. Mariel limpou a garganta.
— Hum, um pouco de teletransporte. Transmogrificação.
Coisas assim. — Se ela se mantivesse vaga, talvez sua mãe
seguisse em frente.
— Excelente! — Diantha bateu palmas e uma cabeça de
grifo na parede rugiu. Oz saltou. — Mostre-nos um pouco do
que você aprendeu.
— Prefiro comer. — Mariel cortou seu bife com força,
embora seu apetite estivesse diminuindo.
Diantha fez beicinho.
— Oh, vamos lá. Algo pequeno. Traga o sal até o seu prato.
O saleiro estava ao lado do seu pai. Ele recostou-se na
cadeira, observando os acontecimentos.
Mariel estremeceu.
— Eu tenho que fazer isso? — Seu estômago estava cheio de
borboletas, mas não do tipo bom. Elas estavam bêbadas e
empunhando lâminas de barbear.
— Eu insisto. — As unhas de Diantha tamborilaram na
mesa. — Se você quer que a família financie sua graduação de
jardinagem, você precisa provar que está disposta a trabalhar
para se tornar a bruxa que as estrelas disseram que você seria.
— Não é uma graduação de jardinagem — Mariel
murmurou, embora a ansiedade cravasse suas garras nela com a
menção do DoF em Herbologia Mágica. Ela queria ir para a
pós-graduação sem dívidas, mas sua mãe dava a palavra final
sobre isso.
O estômago de Mariel doía; definitivamente não haveria
mais bife para ela esta noite.
Lancelot fez uma cara simpática, enquanto Themmie
parecia curiosa. A fada sabia sobre as frustrações de Mariel com
seus fracassos mágicos, mas ela nunca tinha testemunhado
muito disso em primeira mão – além da galinha explodindo.
O que quer que acontecesse não poderia ser pior do que isso,
pelo menos.
Oz sussurrou em seu ouvido.
— Podemos ir embora.
Ela balançou a cabeça.
— Confie em mim, não podemos — ela disse amargamente.
— Pombinhos! — Diantha bateu palmas novamente,
provocando outro rugido estridente. — Vocês podem ficar de
chamego mais tarde. É essencial que Mariel progrida em sua
magia. Não é mesmo, Roland?
— Com certeza, meu amor.
Mariel há muito havia parado de procurar um aliado
naquela parte. Seu pai sempre ficou do lado de sua esposa, não
importava o quê.
O suor escorria das suas palmas. Ela as esfregou na saia,
depois respirou fundo e endireitou os ombros. Era um
pequeno feitiço. Tudo ficaria bem.
— Zouta en liikulisen — disse ela, com a voz trêmula.
O saleiro lançou-se no ar, cravando-se no teto. Lancelot deu
uma gargalhada, então parou rapidamente quando Oz olhou
feio para ele.
Diantha olhou para o saleiro.
— Dramático, mas não o que eu esperava. Você pode invocá-
lo de lá?
Mariel cerrou os punhos com tanta força que suas unhas
cravaram nas palmas das mãos. Não era tarde demais para
consertar isso. Ela fechou os olhos, procurando a palavra certa.
Vamos, estrelas, me deem uma dica. Se elas insistiram em
estabelecer expectativas irrealistas, poderiam pelo menos ajudar
um pouco.
— Zouta en lekuzessen.
— Ah, não — disse Alzapraz. Foi o único aviso antes que o
saleiro começasse a vibrar com intensidade crescente.
Finalmente, ele se estilhaçou, fazendo chover sal e cacos de vidro
sobre a mesa. Oz agarrou Mariel, protegendo-a contra seu peito
enquanto o vidro tamborilava contra seu chapéu.
— Mariel! — Diantha parecia furiosa. — O que você fez?
— Salgou demais o bife — disse Alzapraz suavemente,
pegando um copo do vinho. — Gosto não se discute, suponho.
Mariel não conseguia parar de tremer. Ela era um fracasso de
bruxa, uma decepção para sua família, as estrelas... e ela mesma.
Incompetente, inútil, nunca boa o suficiente para ninguém.
Lágrimas brotaram e ela enterrou o rosto na camisa de Oz. Por
que ela não podia ser a filha perfeita que sua mãe queria? Ou
pelo menos uma filha medíocre? O desespero queimava como
ácido em seu peito. Ela queria desaparecer, mas se não
conseguia nem mover um saleiro, não havia como se
teletransportar.
Oz acariciou seu cabelo suavemente.
— Está tudo bem — ele murmurou. — Eu estou com você.
Ele não estava, né? Seria fácil adquirir o hábito de confiar
nele, mas ele era outro sintoma do seu fracasso.
Talvez ela devesse trocar sua alma. Livrar-se da magia de uma
vez por todas, falhando com sua mãe tão completamente que
ela desistiria totalmente de Mariel.
Mariel sentiu uma leve onda de preocupação da rosa no
centro da mesa. Ela respirou fundo, estremecendo. Ela poderia
realmente desistir da sua conexão com a natureza?
Não. Ainda assim, Mariel não sabia como enfrentar uma
vida inteira como a Spark fracassada.
Quando ela levantou a cabeça, a camisa de Oz estava úmida.
— Desculpe — disse ela, enxugando os olhos. — Eu só
queria comer.
Diantha estava de pé, examinando a mesa com indignação.
— Bem, nenhum de nós pode comer agora, graças a você.
Tem vidro por toda parte.
— Você poderia teletransportá-lo — disse Lancelot.
Diantha olhou para ele.
— Esse não é o ponto.
O suspiro de Roland foi longo e sofrido. Ele se inclinou,
entrelaçando as mãos sobre a toalha de mesa.
— Mariel — ele disse solenemente —, você sabe que nós
amamos você. Mas você pode, por favor, tentar mais? Isso é
muito decepcionante.
Sua silenciosa desaprovação doía quase tanto quanto a
indignação da mãe. Mariel se curvou como se pudesse se tornar
tão pequena quanto se sentia por dentro.
Oz se levantou abruptamente.
— Se não quer vidro na comida, não exija que seus
convidados façam truques para você.
As luzes piscaram no alto enquanto a energia aumentava,
mas Mariel não sabia de qual bruxa ou feiticeiro vinha. Talvez
viesse das próprias emoções desordenadas.
Diantha acenou com a mão desdenhosa.
— Oz, tenho certeza que você tem boas intenções, mas nesta
casa, temos a responsabilidade de produzir bruxas excepcionais.
Mariel está envergonhando a família, e se ela não conseguir fazer
um simples feitiço de invocação, ela pode machucar as pessoas.
Machucar as pessoas. Hécate, ela não tinha pensado nisso. E
se o frango explodido fosse apenas o começo?
— Aposto que ela conseguiria lançar um feitiço se você não
a pressionar — disse Oz. — Eu a vi usar magia sem esforço.
— Cuidado com o tom — o pai de Mariel disse com uma
carranca. — É com minha esposa que você está falando.
— E é a sua filha chorando porque todo mundo a trata
como um pônei mal treinado — Oz retrucou.
Mariel se encolheu com as palavras duras.
— Eu gosto desse cara. — Alzapraz tomou um gole de
vinho, com vidro e tudo.
Mariel puxou a camisa de Oz, as bochechas queimando.
— Por favor, sente-se. — Era mortificante tê-lo defendendo-
a. Por que ele deveria, afinal? Não havia como negar que ela era
um fracasso.
— Não precisa ser assim — disse Oz, embora estivesse
sentado. — Magia não é um truque de festa para ser executado
sob comando. É uma teia complexa de intenção e ritual que
requer foco e comprometimento.
Ótimo, agora até Oz estava explicando magia para ela.
— Exatamente. — Diantha apontou para Mariel. — Ela não
tem foco.
— Não era onde eu queria chegar com isso — Oz rosnou.
— Tem que ser algo que ela queira fazer.
— Por que ela não iria querer fazer isso? — Roland
perguntou. Suas sobrancelhas estavam desenhadas em um
olhar de aborrecimento. — É o legado da família.
— Ela pode querer fazer magia em seus próprios termos —
disse Oz. — Não se vocês a estiverem forçando.
Themmie parecia chocada, mas ela ainda estava escrevendo.
Mariel olhou para o bloco de notas, que agora continha todos
os detalhes sórdidos do desastre. Seu estômago revirou com
uma mistura tóxica de raiva e mortificação, e ela sentiu ondas de
calor e frio. Ela queria gritar, estou bem aqui. Parem de falar de
mim como se eu não estivesse.
Diantha zombou.
— Fui forçada a realizar todos os tipos de truques para meus
tutores e terminei sendo fabulosa.
— Questionável — Lancelot murmurou.
— A magia de Mariel é poderosa — Oz disse —, mas sua
abordagem claramente não está funcionando. Você precisa
considerar quem ela é, não quem você gostaria que ela fosse.
E oh, isso cortou como uma faca. Porque quem Mariel era
nunca seria o que sua mãe desejava.
Suas emoções transbordaram e ela se levantou tão
abruptamente que derrubou a taça de vinho.
— Vocês podem, por favor, parar de falar de mim como se
eu não estivesse aqui? — ela gritou.
Todos olharam para ela. O vinho encharcou a toalha de mesa
branca como sangue derramado.
Sua boca abriu e fechou algumas vezes, mas nenhuma
palavra saiu.
Mariel virou-se e correu.
Quatorze

A batida da porta da frente seguiu a partida de Mariel.


— Bem, eu nunca fiz isso — disse Diantha. — Tão rude! E
ela vai perder o bolo de chocolate que convoquei da Bélgica.
Ozroth ficou de pé instantaneamente. Ele ignorou os
protestos de Diantha enquanto corria atrás de Mariel.
Themmie o alcançou quando ele agarrou seu casaco e o
suéter de Mariel, então escancarou a porta.
— Eu não quero mais ficar lá — Themmie disse, parecendo
angustiada enquanto pairava ao lado dele. — Achei que Mariel
estava exagerando sobre a mãe.
— Ela não estava — Ozroth rosnou. — Na verdade, ela tem
sido gentil demais.
Pais demônios terríveis existiam, mas como filhos de
demônios eram raros, bairros inteiros criavam essas crianças. As
espécies prosperavam ou falhavam juntas. Ozroth não
experimentou a ajuda da comunidade quando criança, mas isso
aconteceu porque ele foi criado para o dever.
Mariel aparentemente foi criada para se sentir péssima
consigo mesma.
Ele queria estrangular alguma coisa. Esse era o tipo de
humor que se traduziria bem na elaboração de uma barganha
de vingança. Ele arrancaria de bom grado os intestinos de
alguém se isso curasse a dor no rosto de Mariel.
Themmie voou ao lado dele enquanto descia a rua. Mariel já
estava na metade da colina.
— Espere! — ele chamou.
— Foda-se todos vocês! — ela gritou de volta. Ela tropeçou
e caiu, soltando um grito de dor.
Ele correu em direção a sua forma encolhida.
— Deixe-me ver seu tornozelo — ele ordenou.
Ela recuou de sua mão estendida.
— Me deixe em paz.
Por que ela estava com raiva dele?
— Você está machucada?
Em resposta, ela virou o rosto.
Themmie ajoelhou-se ao lado de Mariel.
— Vamos, querida. Fale conosco. — Ela acariciou a trança
de Mariel, e Ozroth viu com uma pontada de dor que a flor
estava esmagada. — Aquilo foi uma merda, mas se você está
ferida, precisamos ajudá-la.
— Por que você não transmite ao vivo minha humilhação?
— Mariel perguntou, maldosamente. — É para isso que você
estava aqui, certo? Para documentar minha família fodida?
Você pode contar aos seus seguidores tudo sobre isso.
Themmie pareceu magoada.
— Isso não é justo. Meu professor nos disse para encontrar
um evento comunitário.
— E você pensou na coisa mais parecida como um bando de
hienas, certo? — Mariel riu amargamente. — Deixe-me saber o
que as hienas fazem com os membros mais fracos do bando,
sim?
— Você não é fraca — Ozroth disse.
Mariel olhou para ele.
— Oz, eu realmente gostaria que você parasse de falar. Não
era sua função me defender.
— Então de quem é, Mariel? — ele rebateu, raiva
derramando desordenadamente. — Você não se defendeu. —
Essa foi a parte mais inacreditável – que Mariel apenas ficou
sentada lá e aceitou.
— Você não sabe como é. O que você viu lá dentro? Aquilo
não foi nada.
— O que eu vi lá dentro foi terrível.
— E da próxima vez vai ser pior porque você fez de nós dois
um espetáculo. Agora minha mãe vai tagarelar sobre como
preciso ser mais resistente.
— Eu fiz um espetáculo? — Ele estava ficando realmente
puto. O poste de luz acima piscou, então explodiu com um
estalo alto. — Sua mãe é um espetáculo.
— E você me conhece há três dias — Mariel estalou. —
Então, gentilmente cale a boca sobre minha família.
Themmie estendeu a mão para acariciar o cabelo de Mariel
novamente, mas ela se afastou.
— Vamos, Mariel — Themmie disse. — Estamos tentando
ajudar.
— Você poderia ter ajudado não transformando minha
família em um projeto de ciências.
As asas de Themmie bateram de um modo agitado.
— Não é tão profundo. Eu devia fazer anotações sobre um
evento, e a coisa da hiena foi uma piada. Na maior parte.
Mariel olhou para fada.
— Sim, uma piada hilária. Certifique-se de tuitar sobre isso.
Themmie disparou do chão.
— Olha, o que aconteceu lá foi uma droga, mas você não
precisa ser uma vadia com as pessoas ao seu lado. — Ela olhou
para Ozroth. — Estou fora. — Com isso, Themmie decolou,
suas asas levando-a sobre o telhado da casa mais próxima.
Ozroth nunca tinha visto Mariel assim. Seu rosto estava
vermelho de raiva, mas seus olhos eram poças de tragédia. Ela
fungou e limpou o nariz.
— Aí — disse ela —, mais uma pessoa que acha que não
estou à altura.
Ozroth podia entender a raiva que sentia da família, mas essa
tensão de autopiedade não era produtiva.
— Ela vai superar isso. Além disso, você fez isso consigo
mesma.
— Caramba, valeu. O namorado mais solidário do mundo.
— Eu não sou seu namorado — ele retrucou. O ar parecia
carregado e pesado, como se estivessem à beira de uma
tempestade elétrica.
— Não — ela rebateu. — Você é o demônio que quer roubar
minha alma. Tenho certeza que suas motivações são muito
nobres. Em que ponto você vai tirar proveito da minha
humilhação para conseguir um acordo comigo?
A acusação doeu. A barganha da alma não tinha sido nem
mesmo uma parte remota do processo de pensamento quando
ele confrontou a família dela. Ele só queria protegê-la.
Estava claro que ela não queria a proteção dele.
— Você está certa — disse ele. — Eu sou um monstro
horrível sem compaixão. Tudo bem. Aqui está minha proposta
de acordo: se você me der sua alma, eu lhe darei coragem, porra.
Com isso, ele se afastou.

•••

A tatuagem de Ozroth começou a formigar quando ele estava a


meio caminho da casa de Mariel.
— Agora não — ele rosnou. Não adiantou. A tatuagem
começou a queimar, e Ozroth parou debaixo de um ácer quase
esquelético. Ele deu um soco no tronco, depois sentiu remorso
quando as folhas mortas caíram no chão. Que plantas estavam
confortando Mariel agora? — O quê? — ele exigiu quando
Astaroth brilhou à vista.
As sobrancelhas pálidas de Astaroth se ergueram.
— Isso é maneira de cumprimentar seu mentor?
O demônio estava vestido tão bem como sempre em um
terno cinza-aço com colete preto e gravata. Seu prendedor de
gravata era uma cruz de cabeça para baixo, o que Mariel
definitivamente teria achado um clichê. A luz do fogo cintilava
sobre o cabelo louro-claro de Astaroth, o que significava que ele
provavelmente estava nos aposentos do conselho. Os
arquidemônios desfrutavam da dramática luz do fogo.
— Desculpe — Ozroth resmungou. — É um momento
ruim.
— Dado o seu histórico recente, eu me pergunto se você tem
algum momento bom. — A mão de Astaroth flexionou-se na
ponta do crânio da bengala. — Você não me atualizou sobre o
andamento do acordo.
— Eu estou trabalhando nisso.
— Não está muito empenhado, aparentemente. — Astaroth
olhou Ozroth de cima a baixo, e o horror pintou seu rosto. —
O que é essa monstruosidade que você está vestindo?
— Uma camisa.
— É nojenta. — Astaroth fez uma careta. — Eu sei que
Glimmer Falls não é Londres, mas certamente existem opções
de roupas que não gritam pai de meia-idade que perdeu a
vontade de viver.
— Você me convocou para falar sobre meu guarda-roupa?
— perguntou Ozroth. — Ou há um motivo para esta conversa?
O olhar de Astaroth era penetrante. O arquidemônio não
era particularmente grande – Ozroth tinha alguns centímetros
e muitos músculos a mais – mas havia uma antiga astúcia por
trás daqueles olhos azul-gelo.
— Você desenvolveu uma boca e tanto desde que entrou no
reino humano — Astaroth disse. — Os mortais estão afetando
suas maneiras ou você está perdendo o controle dos seus
impulsos?
— Não estou perdendo o controle — disse Ozroth, embora
fosse exatamente isso que estivesse acontecendo. — Eu
simplesmente não gosto de ser microgerenciado.
— Confie em mim. Se eu estivesse microgerenciando, você
saberia. — Astaroth bateu com a bengala na bota. — Então?
Ozroth sabia o que o demônio queria ouvir. Infelizmente,
ele não poderia dizer.
— Ela ainda não quer fazer um acordo.
— Sério? Quão difícil pode ser essa bruxa?
— Você não tem ideia. — A bonita, obstinada e
enlouquecedora, Mariel.
— Talvez eu devesse fazer uma visita a ela. — Astaroth
agarrou a ponta da bengala, então puxou uma espada de prata
fina da bainha. Ele olhou criticamente, virando a lâmina para
um lado e para o outro. — Ela pode responder melhor às
minhas técnicas.
— Não! — O pânico encheu Ozroth ao pensar em Astaroth
empunhando aquela lâmina mortal contra Mariel. Havia
rumores sobre como Astaroth havia tomado o poder. A
sociedade demoníaca era mais feudal quando ele subiu ao topo,
e o que lhe faltava em tamanho, ele compensou em brutalidade.
— Eu cuidarei disso.
— É bom mesmo. — Astaroth embainhou sua lâmina. —
Eu não te pressiono por crueldade. Essa alma no seu peito é um
risco, e precisamos descobrir o quanto isso afetará seu
desempenho.
— E você quer ganhar a aposta. — Ainda o irritava que
Astaroth tivesse apostado em seu sucesso.
Astaroth inclinou a cabeça.
— Pense nisso como uma motivação extra. Você tem até o
final do mês mortal.
Ele desapareceu.
Ozroth caiu contra a árvore, olhando cegamente para a
cidade adormecida. Alguma criatura feérica trinava acima, e
espíritos do rio cantavam suas melodias solitárias à distância.
Ele foi criado com um propósito: proteger o reino dos
demônios fazendo barganhas difíceis. Se ele falhasse nessa
tarefa, ele falharia com o demônio que o criou e orientou, então
para que foram todos aqueles anos de solidão e labuta?
Mas dentro de Ozroth, um fogo queimava, aquecendo os
lugares escuros em sua psique que haviam sido negligenciados
por tanto tempo. Se ele pudesse arrancar sua alma para iluminar
o plano demoníaco, ele teria, mas os demônios só podiam
colher as almas dos mortais.
Se ele pegasse a alma de Mariel, o que aconteceria com esse
oásis de magia? As árvores e plantas ainda prosperariam?
Alguém se importaria o suficiente para interromper a
construção do resort?
Mais importante, o que aconteceria com Mariel? Ela era
jovem em termos humanos, embora tivesse uma vida
dolorosamente curta para um demônio. Ela passaria as décadas
restantes da vida como uma casca fria: sem sentir nada, sem
querer nada, sem esperar nada.
Ela se tornaria a pessoa que ele era há séculos.
Quinze

Mariel voltou para casa uma hora depois do colapso, sentindo-


se uma merda. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar e o
estômago estava embrulhado. Suas emoções eram uma
confusão de vergonha, tristeza, raiva... e arrependimento.
Sinto muito, ela mandou uma mensagem para Themmie.
Themmie não respondeu.
Oz não tinha telefone, e Mariel não tinha certeza do que ela
mandaria se ele tivesse.
Você é um idiota por me dizer para ter coragem, mas você
também me defendeu, mas eu não pedi, então ainda estou
chateada?
Você está certo, eu não tenho coragem, mas você não tem
permissão para dizer isso?
Fico brava quando você age como se se importasse porque sei
que só está aqui para roubar minha magia e minha alma, mas
estou criando sentimentos por você e isso dói?
Sinceramente, esta noite a tinha bagunçado muito. Ela
estava acostumada com sua mãe menosprezando-a. Todo
domingo à noite, ela chegava em casa sentindo-se com meio
metro de altura. Mas ela nunca teve ninguém fora da família
testemunhando sua humilhação, e ela estava mortificada que
Themmie e Oz tinham visto. Quando Oz explodiu com seus
pais, ela quis afundar no chão. Ela já era uma bruxa
incompetente, e agora ela seria a bruxa que não conseguia lutar
suas próprias batalhas. Quando Oz começou a discutir a magia
de Mariel com seus pais, foi demais para aguentar. Por que
todos achavam que sabiam exatamente o que ela precisava para
melhorar em magia?
Mas Oz parecia tão magoado depois que ela gritou com ele.
Como se ele realmente... se importasse.
Se ele se importava, em que posição isso os deixava?
— Hécate, isso é uma bagunça — ela disse a um álamo ao
passar. Suas folhas farfalharam em resposta.
Ao chegar em casa, ela se preparou para ver Oz, mas ele não
estava no sofá nem na cozinha. Preocupação a preencheu. E se
ele estivesse vagando pelas ruas e uma mantícora desonesta o
pegasse? E se ele estivesse tremendo em algum beco? Era uma
noite fria – não demoraria muito para a primeira geada.
Uma silhueta alta na estufa, iluminada pela lua chamou sua
atenção. Ela correu para fora e abriu a porta de vidro. O calor
úmido se espalhou – ela mantinha alguns aquecedores
funcionando o tempo todo.
— Oz? — ela perguntou, a voz rouca de tanto chorar.
Ele não respondeu por alguns momentos.
— Estou aqui — disse ele finalmente.
Ela caminhou em direção a ele, os olhos se ajustando ao
escuro. Ele estava na frente de seu lírio de fogo, observando a
chama que tremeluzia lá dentro, fraca como a ponta acesa de
um cigarro.
— Nós temos isso no plano demoníaco — ele disse. — Eu
reconheci o cheiro de canela.
— Sério? Comprei as sementes pela internet. — Mariel
parou ao lado dele, olhando para seu rosto em vez do lírio. Ele
parecia mais velho, mais cansado de alguma forma, embora sua
imortalidade o tivesse congelado, parecendo ter trinta anos no
máximo. Ele estava suspenso no tempo, como um inseto preso
em âmbar.
Insetos em âmbar nunca mudavam. E se ele era Ozroth, o
Impiedoso, não foi essa pessoa que ela veio a conhecer. Talvez
Oz fosse um bom mentiroso, mas Mariel tinha uma mente, um
coração e instintos aguçados, e ela não podia acreditar que ele
fosse capaz de enganá-la tão bem e tão cruelmente.
— No plano demoníaco — disse Oz —, elas só florescem na
noite mais escura e fria no meio do inverno. Naquela noite, as
mães contam aos filhos histórias da tenra idade, quando tudo
era frio e negro como obsidiana. — Ele parecia distante, como
se estivesse perdido em um conto de fadas. — Era um plano
primordial então, cheio de caos bruto e nada para domá-lo.
Então o primeiro demônio chegou, trazendo luz com ele.
Lenta, mas seguramente, nossa espécie floresceu na escuridão
como lírios de fogo.
— Isso é lindo — disse Mariel.
— Minha mãe me levou para ver os lírios queimarem. Eu
tinha me esquecido disso até ver este. Mas ela pegou minha mão
e me levou para fora na noite mais longa e negra do ano e disse
que enquanto houvesse luz, havia esperança.
Porém, havia tudo menos esperança em seu rosto, e Mariel
teve a sensação inquietante de que algo mais do que a briga deles
o estava incomodando.
— Me deixe te mostrar algo. — Oz virou-se para a roseira
mais próxima e pressionou o polegar contra um espinho, e
Mariel fez um barulho de protesto enquanto o sangue brotava.
Ele voltou para o lírio de fogo, então inclinou a mão. A gota de
sangue tremeu, depois deslizou por sua pele e caiu no centro da
flor. Imediatamente, a chama se fortaleceu e faíscas de ouro
explodiram de dentro como fogos de artifício em miniatura.
Mariel engasgou.
— Eu não sabia que eles podiam fazer isso.
— Demônios alimentam nosso mundo com tudo em nós.
Nosso trabalho, nossa dor, nossos corpos... Sem o nosso
cuidado e a luz que levamos, as plantas não podem prosperar.
Sem elas, os insetos não se alimentam, o que significa que os
sapos e lagartos também não, e o efeito cascata até que todos
fiquem com fome.
Do lado de fora da estufa, o vento açoitava as copas das
árvores. Salpicos de chuva batiam no vidro. Mariel imaginou
um campo de lírios de fogo, pequenas faíscas retendo a
escuridão.
— Sinto muito — disse ela. — Você só estava tentando
ajudar.
Ele acordou de seu devaneio e olhou para ela com uma
expressão sombria.
— Não, eu sinto muito. — Havia um peso nas palavras,
como se ele estivesse se desculpando por mais pecados do que
ela imaginava.
— É difícil ter pessoas de quem gosto me vendo no meu
ponto mais baixo — disse ela. — Quero ser forte, mas não sou.
Então eu ataquei.
O lírio de fogo lançava um brilho vermelho na lateral do
rosto de Oz, realçando seus ângulos escarpados. O queixo
quadrado, o nariz grande, as maçãs do rosto salientes. Ele era
lindo, ela percebeu. Não perfeito, mas bonito, como uma
paisagem agreste e indomável.
— Você é forte — ele disse. — Você aguentou tanta merda
por anos, mas continua lutando. Você ainda sente esperança.
Você ainda sorri. — Ele disse isso como se sorrir fosse uma
vitória e não uma coisa cotidiana, e talvez para ele fosse. Oz
suspirou. — Lamento que Themmie tenha visto você assim. Eu
sei que você se importa com ela.
Ele achava que ela só estava chateada por estar vulnerável na
frente de Themmie?
Mariel sentiu a vertigem doentia de estar à beira de uma
longa queda. Foi como quando sua família visitou o Novo
México para conhecer a família de Lupe em Taos antes do
casamento de Lupe com o tio Quincy. Eles caminharam até a
ponte do desfiladeiro do Rio Grande, 200 metros acima do rio,
e o estômago de Mariel, de nove anos, quis trocar de lugar com
seu cérebro quando ela olhou para o lado.
Alguns impulsos eram irresistíveis, porém, e Mariel nunca
foi boa em resistir a impulsos de qualquer maneira. Foda-se a
queda.
— Não apenas Themmie — disse ela, aproximando-se de
Oz.
Sua testa franziu, então clareou.
— Lancelot. De verdade, sua família tem alguns dos nomes
mais absurdos...
Como ele ainda não estava entendendo, e como Mariel não
tinha certeza se poderia produzir palavras articuladas para se
explicar, ela fez a única coisa razoável. Ela ficou na ponta dos pés
e beijou o demônio.
Quando seus lábios se encontraram, Oz fez um som
assustado. Ele se afastou, olhando para ela com olhos selvagens,
então xingou e puxou-a em seus braços. Sua boca caiu sobre a
dela, quente e áspera. Mariel se derreteu nele, envolvendo seus
braços ao redor do pescoço. Ele era quente em todos os lugares,
seu corpo e lábios febris.
Isso era o que ela estava precisando. Ele a enfurecia, colocava
de castigo, desafiava e encorajava, e havia uma atração
magnética entre eles que ela não conseguia explicar. Enquanto
Mariel o beijava, ela o puxou para mais perto, envolvendo uma
perna ao redor dele como uma trepadeira. Em resposta, Oz
agarrou sua bunda com as duas mãos enormes e a ergueu do
chão como se ela não pesasse nada. Mariel prendeu os
tornozelos nas costas dele enquanto ele a carregava para a casa,
as bocas unidas o tempo todo. Suas costas bateram na lateral e
ela engasgou quando Oz se moveu para chupar seu pescoço.
— Mariel — ele sussurrou contra sua pele. Seu nome foi
seguido por uma mordida no lóbulo da orelha. — Porra. Como
posso querer tanto isso?
— Eu também quero. — Sua voz saiu ofegante.
Oz pressionou seus quadris com mais força contra ela, e
Mariel gemeu. Sua saia havia deslizado para cima, revelando
suas coxas nuas para a noite fresca, mas ela mal notou o frio. Os
lábios dele traçavam rastros de fogo sobre o seu pescoço antes
de voltar para a boca para beijos mais profundos e
entorpecentes. Ele estava duro sob a calça jeans, e ela se esfregou
contra ele o máximo que pôde enquanto estava presa contra a
parede.
Mariel choramingou quando ele atingiu o ponto perfeito,
enviando um raio de prazer através dela.
— Sim — ela engasgou, agarrando seus ombros.
Ele xingou, então apertou sua bunda com mais força,
movendo-se contra ela em um ritmo forte e urgente. Hécate, ele
era forte. Seus bíceps eram como aço quando ela passou as mãos
sobre eles. Como seria ter seu corpo grande em cima dela, sua
respiração quente em seu ouvido enquanto ele empurrava para
dentro dela?
O pensamento deixou Mariel mais molhada. Ela não fazia
sexo há anos, e nunca com alguém que a excitasse tanto. Ela o
beijou desesperadamente, deslizando sua língua sobre a dele,
então mordiscando seu lábio inferior. As folhas de outono
caídas giravam em fúria enquanto seu prazer crescia, e
relâmpagos azuis dançavam no céu noturno.
— Oz, por favor — ela implorou contra seus lábios. — Me
leve para a cama.
Ele gemeu.
— Você está me atormentando, Mariel.
— Você é o demônio — ela brincou. — Você não é o
atormentador profissional?
Oz parou abruptamente. Um segundo depois, Mariel caiu
de pé. Ela caiu contra a parede, tentando recuperar o fôlego
enquanto Oz se afastava. Sua expressão era de agonia quando
ele enfiou as mãos no cabelo, puxando as mechas escuras.
— Merda.
— O que houve? — Ela só pretendia provocá-lo, mas ele
parecia verdadeiramente magoado. Quando ele virou as costas
para ela, a dor atravessou seu coração. — Oz, por favor, fale
comigo.
Ele balançou a cabeça.
— Isso foi um erro. — Sua voz era crua e irregular. — Isso
não pode acontecer de novo. — Então ele abriu o portão lateral
e desapareceu na noite.
Mariel foi deixada sozinha e latejando com uma necessidade
insatisfeita. Ela estremeceu quando o ar frio a envolveu. O que,
em nome do plano demoníaco, acabou de acontecer?
Dezesseis

O sino tocou quando a porta do restaurante 24 horas se abriu.


Mariel ergueu os olhos do prato de batatas fritas e ficou surpresa
ao ver Themmie e Calladia. Ela só mandou mensagem para
Calladia.
Calladia estava vestida normalmente, mas Themmie usava
um macacão de unicórnio com uma abertura nas costas para
que suas asas saíssem. Seus chinelos de coelho eram fofos, mas
sua carranca era tudo menos isso.
— Que seja de conhecimento geral que estou aqui
relutantemente — Themmie anunciou enquanto deslizava
para a cabine oposta a Mariel. Como a maioria dos
estabelecimentos da cidade, havia um espaço entre o assento e
o fundo para que as pessoas que voavam pudessem acomodar
suas asas confortavelmente.
— Sinto muito — disse Mariel. — Eu mandei uma
mensagem para você.
Themmie fungou.
— Não foi um pedido de desculpas muito específico.
— Sinto muito por ter brigado com você — Mariel disse,
engolindo seu orgulho. — E desculpe por ter dito coisas ruins
sobre as redes sociais. Eu estava me sentindo humilhada, então
ataquei. — Ela deslizou as batatas fritas pela mesa, olhando para
Themmie com ar arrependido. — Estou perdoada?
Themmie pegou uma batata frita e a mordeu.
— Agora você está — ela disse. — E se isso fizer você se sentir
melhor, decidi escrever sobre um evento diferente para a aula.
Então vamos lá, que emergência requer terapia à uma da
manhã?
A mensagem de Mariel para Calladia foi reconhecidamente
vaga, digitada em pânico enquanto ela corria pela rua tentando
encontrar Oz: Talvez eu tenha feito algo ruim? Ou bom? Mas
estou enlouquecendo e você também vai ficar com muita raiva de
mim.
Calladia respondeu quase imediatamente. The Centaur
Cafe, vinte minutos.
Havia apenas um outro cliente àquela hora: um cara com
aparência de professor em um chapéu fedora que estava lendo
um livro mágico. Talvez Mariel devesse perguntar a ele se
continha algum conselho sobre namorar demônios.
Calladia estava sentada à esquerda de Themmie, de braços
cruzados.
— Sim, me diga por que estou prestes a ficar com raiva de
você.
Mariel não tinha pensado nisso. Ela estava em pânico, com
tesão e confusa, e tudo o que sabia era que precisava desabafar
com alguém. Agora, com Themmie e Calladia olhando para ela,
ela se perguntou como iria confessar o que tinha feito.
Calladia arqueou uma sobrancelha loira.
— Bem?
— EubeijeioOz — disse Mariel, muito rápido e agudo.
Themmie torceu o nariz.
— O quê?
Mariel respirou fundo.
— Eu beijei o Oz. — Ela se encolheu em antecipação à
repreensão de Calladia.
— Você não fez isso! — Calladia exclamou, sentando-se
ereta. — Mariel, sua catástrofe excitada.
Themmie ainda parecia confusa.
— Por que isso é importante? Ele é o namorado dela.
Mariel estremeceu. Certo. Themmie ainda não sabia sobre
os detalhes de seu "relacionamento".
— Isso é... complicado.
Themmie revirou os olhos.
— Se você não me contar o que, em nome da Sininho, está
acontecendo, eu vou embora. Eu tenho que fazer live de manhã.
— Sim — disse Calladia, sorrindo para Mariel. — Por que
você não conta a Themmie exatamente o que está acontecendo
com Oz? Tenho certeza que ela ficará fascinada em saber.
Mariel olhou para Calladia. Isso poderia ter sido evitado se
Calladia não tivesse convidado a fada. Então, novamente,
Mariel não havia mencionado que o problema era sobre Oz, e
as três tiveram muitas outras sessões de aconselhamento tarde
da noite ao longo dos anos desde que conheceram Themmie no
Clube de Proteção Ambiental de Glimmer Falls.
Themmie pegou outra batata frita, mergulhando-a no
ketchup de Mariel.
— Isso tem que ser bom.
— Então, sobre Oz — disse Mariel. — Eu sei que disse que
ele é meu namorado, mas... ele não é.
Themmie torceu o nariz.
— Então, o que ele é? Um amigo com benefícios?
— Também não. — Embora depois desta noite, ela não
tivesse ideia do que eram. — Basicamente, minha mãe nos viu
juntos e entrei em pânico.
— Fale logo — disse Calladia. — A notícia não vai melhorar
com o tempo.
Ela estava certa. Mariel decidiu mergulhar de cabeça.
— Você se lembra do demônio que mencionei? Aquele no
meu sofá?
— Sim, você, tipo, tem um intruso? Achei que Oz fosse
bater nele. — Os olhos de Themmie se arregalaram e Mariel viu
o momento em que a fada percebeu. — Espere, não.
— Sim. Oz é um demônio.
Themmie saltou de seu assento, da mesma forma que tinha
feito quando o assunto foi mencionado pela primeira vez no Le
Chapeau Magique. O movimento jogou o capuz do unicórnio
para trás, revelando seu cabelo despenteado pelo sono. Suas asas
ficaram borradas e ela se ergueu a vários metros do chão.
— Eu o abracei! — ela sussurrou-gritou.
— Jantamos juntos! Que porra é essa, Mariel?
— Sente-se — disse Calladia. — Fica pior.
Themmie recostou-se no banco, com os olhos arregalados.
Mariel enfiou três batatas fritas na boca. Se ao menos o sal e
a gordura pudessem curar todos os males da vida.
— Eu estava assando — ela disse em volta da comida —, e
tentei invocar farinha. Mas eu meio que estraguei o feitiço e
invoquei um demônio em vez disso.
— Doce Flora, Fauna e Primavera — disse Themmie. — Eu
sei que a linguagem da magia é incompreensível para o resto de
nós, mas certamente as palavras para farinha e demônio não são
tão parecidas.
— Quando você fode tudo, elas são — Mariel murmurou.
— Então Oz apareceu na sua cozinha? Tipo puf, aqui está
um demônio gostoso?
— Sim. — Mariel fez uma careta. — E ele não pode voltar
para o plano demoníaco até que eu dê a ele minha alma em troca
de algum favor impossível.
Themmie ficou boquiaberta com ela.
Mariel se mexeu desconfortavelmente.
— Olha, podemos passar para a parte em que eu fiquei com
ele? Preciso de conselhos.
— O que é mesmo uma alma? — perguntou Themmie. —
Achei que fosse uma metáfora religiosa.
— Aparentemente é a nossa magia. Demônios não
produzem a própria. — Mariel franziu a testa. — Exceto que
alguns têm magia de barganha, mas acho que não conta.
— Outros humanos não têm magia. Eles têm alma?
— Talvez seja uma questão de palavreado. Como inferno
significa "leal" em Velho Demonish. Talvez alma signifique
"magia de bruxa", e o inglês estragou tudo.
Calladia bateu com a mão na mesa.
— Podemos parar de especular sobre etimologia e focar no
assunto em questão? Você deu uns amassos com um demônio.
Themmie se inclinou, os olhos castanhos brilhando de
interesse.
— Sua tarada. Foi bom?
— Ugh. — Mariel enterrou a cabeça nos braços. — Tão bom
— ela murmurou. — Eu quase gozei.
— Ei, ei, ei — disse Calladia. — Eu pensei que você estava
apenas dando uns amassos.
Mariel ergueu os olhos timidamente.
— Quero dizer, sim, mas eu me esfreguei um pouco nele...
Themmie fez sinal ao garçom pedindo um milk-shake de
morango.
— Conte-nos tudo.
Mariel resumiu a situação enquanto Themmie ouvia
absorta, chupando ruidosamente o canudo do seu milk-shake.
— Ele é tão forte — disse Mariel, girando uma batata frita
em ketchup e olhando sonhadoramente para longe. — Ele
provavelmente poderia ter me carregado por dias sem suar a
camisa.
— Ugh, isso é tão quente — disse Themmie.
Calladia golpeou a cabeça de Mariel com um guardanapo
enrolado.
— Vá para a prisão do tesão. — Ela bateu em Themmie em
seguida. — Você também. Você não deveria estar encorajando
isso.
— Por que não? — perguntou Themmie. — Mariel não
transa há... Quanto tempo?
— Cinco anos — Mariel forneceu imediatamente. Ela teve
alguns relacionamentos curtos na faculdade e imediatamente
depois, mas ela estava em um período de seca direto do plano
demoníaco.
— Uau. — Themmie fez uma careta. — Você pediu a
ginecologista para verificar se tem teias de aranha? — Mariel
jogou uma batata frita nela e Themmie riu. — De qualquer
forma — disse a fada, enfiando a batata frita na boca —, se ele
vai ficar por aqui para sempre, é melhor Mariel se dar bem com
ele. — Ela balançou as sobrancelhas. — Qual é o tamanho do
pau dele?
— Grande — disse Mariel. — Quero dizer, eu não consegui
colocar a mão nem nada, mas ele é um cara grande. E eu vi a
marca do pau dele quando ele mergulhou na fonte termal.
Calladia tapou os ouvidos.
— La la la, não consigo te ouvir.
— Sabe, a coisa do demônio me assustou — disse Themmie
—, mas ele parece decente. Agora, quero dizer. Ele foi meio
idiota no começo.
— Acho que ele é decente — disse Mariel. — Não é como se
ele quisesse ser invocado. Ele nem está se esforçando tanto para
conseguir minha alma.
Themmie piscou.
— Parece que ele está tentando conseguir outra coisa.
— Mas é isso. Ele surtou e disse que não podíamos fazer isso
de novo. — Ela nem sabia onde ele estava, embora ele tivesse
que estar em algum lugar perto dela. Ele estava sentado em um
banco no parque? Dormindo em um beco? Oz era um
demônio grande e durão, mas estava frio e já era tarde, e ela se
preocupava com ele.
Calladia brincou com seu rabo de cavalo.
— Ele está retendo sexo até que você faça uma barganha? Se
assim for, ele deve achar que o pênis dele é incrível.
— Eu duvido. — Mariel mordeu o lábio entre os dentes. —
Ele fugiu depois que eu disse uma coisa.
— O quê?
Mariel agarrou o guardanapo enrolado de Calladia e o
rasgou, observando os pedaços caírem como neve em seu colo.
— Ele disse que eu o estava atormentando. E então eu disse
que como ele é um demônio, ele é o atormentador profissional.
E bem assim, acabou. — Ela imaginou a expressão devastada
dele, e seu estômago revirou. — Ele parecia muito chateado.
Calladia considerou, com os lábios franzidos.
— Parece que ele não gostou de ser chamado de
atormentador. Isso é estranho. Ele é literalmente chamado de
Ozroth, o Impiedoso.
Themmie bufou.
— Homens, seus egos e ridículos apelidos. Eu vi o jeito que
ele olha para você, Mariel. Esse demônio é fofo como um
gatinho. — Ela sugou ruidosamente a última gota de milk-
shake, em seguida, sinalizou para o garçom, pedindo outro.
Fadas eram notórias viciadas em açúcar, seus metabolismos
aparentemente funcionavam no mesmo nível dos beija-flores.
Mariel não tinha certeza se Oz poderia ser chamado de fofo
como um gatinho, mas obviamente havia alguma atração entre
eles.
— Então eu machuquei os sentimentos dele ao chamá-lo de
atormentador? Isso não é justo. Ele me chamou da mesma
coisa.
— Você já considerou que ele pode se sentir culpado por
estar aqui?
Calladia semicerrou os olhos para Themmie.
— O que você quer dizer? Coletar almas é o trabalho dele.
Themmie pegou o novo milk-shake, agradeceu ao garçom e
começou a beber aquele também.
— Só estou dizendo — ela disse, uma gota de shake de
morango escorrendo pelo queixo —, negócios de almas não são
geralmente consensuais? Este foi um acidente, mas ele não pode
escapar mesmo que queira. Além disso, ele se sente atraído por
você, o que é difícil quando ele é obrigado a tomar sua magia.
— Ela deu de ombros. — Você não se sentiria uma merda se
fosse ele?
O silêncio caiu, pontuado apenas pelos sons de sucção de
Themmie. Até mesmo Calladia pareceu chocada com o
pensamento.
— Eu não tinha considerado isso — a bruxa loira finalmente
disse.
Mariel sentiu-se ainda mais culpada.
— É minha culpa — ela disse, desejando que seu copo de
água fosse um copo de vodca. — Eu o invoquei. Ele não teve
escolha.
— Foi um acidente — disse Themmie. — E só se passaram
alguns dias, certo? Você vai resolver.
— Talvez. — Mas se Oz nunca tivesse ouvido falar de uma
situação como essa em centenas de anos, como Mariel deveria
tirá-los dela?
— E se não, por que não ficar mais amorosa com ele? —
Themmie suspirou, parecendo melancólica. — Talvez ele seja
sua alma gêmea, e vocês devem ficar juntos para sempre. Talvez
vocês nunca tivessem se conhecido se não fosse pela barganha.
— É difícil ter uma alma gêmea quando apenas uma pessoa
tem alma — resmungou Calladia.
Era uma bobagem ridícula, estilo Disney, mas Mariel ainda
sentia uma pontada de vontade. Ela basicamente enganou Oz
para ficar com ela, mas a parte romântica dela desejava que o
que Themmie estava dizendo fosse verdade – que Mariel e Oz
tinham uma conexão tão grande onde eles nunca iriam precisar
ou querer serem separados. Ela nunca se sentiu particularmente
amável, e a ideia de um cara forte e bonito que a adorasse e
nunca quisesse sair do seu lado era inebriante.
Oz queria sair do lado dela. E, logisticamente falando, um
ou o outro acabaria por se cansar da proximidade forçada. Até
o coração romântico de Mariel podia reconhecer isso.
E mesmo que fosse algum amor selvagem e lendário que
desafiava a razão... ainda assim terminaria em tragédia.
— Oz é imortal — disse Mariel. — Você realmente quer que
ele me siga até uma instalação de cuidados de memória daqui
setenta anos, quando eu não tiver ideia de quem ele é?
— Oh. — O rosto de Themmie caiu. — Esqueci essa parte.
Mais silêncio se seguiu. Mariel descansou a cabeça em seus
braços almofadados novamente. A mesa cheirava a molho de
churrasco velho.
— Você não precisa entender tudo agora — disse Calladia
gentilmente. — São duas da manhã e nenhuma de nós está
pensando direito. Você pode ir à biblioteca amanhã.
— Eu tenho que trabalhar e depois ir à reunião geral.
Calladia perguntou.
— Você tem pelo menos três horas entre o trabalho e a
reunião. Você pode ficar alternando entre impotência e tesão,
mas eu, pessoalmente, gostaria de encontrar uma solução para
o seu problema.
Mariel levantou a cabeça para encarar a amiga.
— Você é horrível.
— Culpada. — Calladia estendeu a mão por cima da mesa
para acariciar o lado da cabeça de Mariel. — Vamos. É tarde e
você está exausta.
Mariel suspirou.
— Tudo bem. — Então ela olhou entre suas duas amigas,
sentindo uma vontade inexplicável de chorar. — Obrigada. Por
estarem aqui e me ouvirem.
— Obrigada você — disse Themmie com veemência. — Esta
é uma fofoca deliciosa. — Mariel deu um tapa em seu braço e
Themmie riu. — Mas sério, me ligue quando quiser. Essa
merda é selvagem.
Elas se separaram para caminhar (ou voar, no caso de
Themmie) para suas respectivas casas. Enquanto Mariel se
arrastava para casa, ela manteve os olhos abertos em busca de
sinais de Oz. Ela não tinha certeza de quão perto ele tinha que
ficar, e ela esperava que ele não estivesse enrolado sob algum
arbusto, morrendo de frio.
Ela finalmente encontrou Oz sentado na calçada do lado de
fora de sua casa. Seus chifres brilhavam na luz suave do poste de
hera. Ele não ergueu os olhos quando ela se aproximou.
Mariel sentou-se ao lado dele e limpou a garganta.
— Você não é um atormentador. Acho você uma pessoa
adorável.
Ele fez uma careta.
— Categoricamente falso, e você mal me conhece.
— Eu sei que você é gentil e solidário. E sei que você não
quer fazer uma barganha mais do que eu.
— Sim, eu quero — ele foi rápido em dizer. — Fazer
barganhas é meu único objetivo na vida. — Ele não parecia
convincente, no entanto. Se ele franzisse a testa com mais força,
seu olhar mortal poderia abrir um buraco no asfalto.
— Não acho que você deva ser definido pelo seu trabalho.
— Mas é, quando se é um negociador. — Ele passou a mão
pelo cabelo, puxando-o. Ela estava aprendendo os sinais dele;
ele mexia no cabelo quando estava chateado. — Se eu falhar,
isso afeta mais do que apenas a mim. O plano demoníaco
depende da magia que eu levo.
— Mas você não quer pegar minha magia porque sabe que
não quero perdê-la. Eu coloquei você em uma situação
impossível quando te invoquei.
Ele fez uma careta.
— Um demônio de verdade não se importaria com o
resultado de uma barganha.
— Então fico feliz que você não seja um demônio de
verdade.
— Diga isso a Astaroth. Tenho certeza que ele ficará muito
feliz.
Mariel contaria muitas coisas a Astaroth com prazer,
nenhuma delas educada. Ela estava prestes a dizer isso quando
Oz estremeceu.
— Vamos — disse ela, cutucando-o com o ombro. — É
tarde e você está com frio.
— Eu não estou com frio — ele disse teimosamente, embora
ele tenha estremecido novamente.
— O que você vai conseguir, ficando sentado do lado de
fora a noite toda? Isso fará você se sentir melhor?
— ...Não.
— Então venha. — Ela se levantou e estendeu a mão,
mordendo o lábio com o olhar mal-humorado de Oz. — Você
está a um passo da autoflagelação, e isso é medieval demais para
um demônio elegante como você.
Ele bufou enquanto se levantava, os dedos roçando os dela
em reconhecimento à oferta de ajuda.
— Você é muito irritante às vezes — ele disse enquanto se
dirigiam para a casa.
— Estou encantada em ouvir isso — ela disse enquanto
destrancava a porta. — Eu estava ficando cansada de ser perfeita
o tempo todo.
Quando Oz tentou entrar na sala, Mariel agarrou seu braço.
— Esse sofá não deve ser confortável.
Ele grunhiu.
— É bom.
Que mentiroso. Mariel puxou seu braço até que ele a seguiu
pelo corredor.
— Você vai dormir em uma cama adequada esta noite sob
uma pilha de cobertores.
— Onde você vai dormir?
Seu coração disparou. Talvez fosse uma péssima ideia,
considerando o que havia acontecido, mas ela não queria que
ele ficasse frio e desconfortável. Ela estava sendo caridosa, certo?
— Ao seu lado.
— Mariel... — Ele disse o nome dela como um aviso. — Eu
disse que não podemos fazer aquilo de novo.
Foi o primeiro reconhecimento do beijo deles, e a rejeição
doeu tanto quanto na segunda vez. Mas Calladia estava certa,
nada seria resolvido esta noite.
— Só para dormir — disse ela. — Estou exausta e amanhã
vai ser um longo dia.
Apesar dos resmungos dele, ela insistiu para que ele
escovasse os dentes com a escova que Calladia trouxera antes, e
depois se despisse para ficar apenas com a cueca boxer com
estampa de coração. Ele se sentou na beira da cama dela,
parecendo desconfortável. Ela olhou de soslaio para os pés dele.
— São meias de gatinho?
Ele imediatamente colocou as pernas na cama e deslizou os
pés sob as cobertas.
— Você pode agradecer a Calladia por isso. E a cueca.
Mariel definitivamente faria. Ela tomou um momento para
admirar a visão de Oz se aconchegando. Seus músculos
ondularam quando ele puxou o cobertor até os ombros, e seus
chifres pareciam lustrosos e afiados contra a fronha de cetim
azul. Ele ocupava a maior parte do espaço, e Mariel sentiu-se
estranhamente triunfante por ter um demônio tão grande e
viril em sua cama.
Ela saiu para escovar os dentes e vestir uma camiseta preta
enorme que caía quase até os joelhos. Ela a comprou em um
show da banda grunge local As Fadas (Não, Não Aquelas), e era
sua favorita para dormir. Quando ela voltou descalça para seu
quarto, ela sorriu ao ver que Oz havia pegado mais cobertores
do armário de linho. Ele era um grande caroço debaixo das
cobertas, cabelo preto e as pontas de seus chifres mal
aparecendo.
Ela deslizou para a cama ao lado dele e apagou a luz. Estava
deliciosamente quente debaixo das cobertas. Quem precisava
de um cobertor aquecido quando podia dormir ao lado de um
demônio?
Mariel bocejou, a exaustão atingindo-a como um caminhão.
Pela respiração de Oz, ela percebeu que ele estava acordado, mas
estava caindo rapidamente no sono.
— Boa noite, Oz — ela murmurou. — Tente não ficar
acordado por muito tempo sendo taciturno.
As cobertas farfalharam quando ele se mexeu.
— Irritante — ele murmurou, embora a palavra carecesse de
qualquer mordacidade real.
Mariel sorriu enquanto caía no sono.
Dezessete

Ozroth acordou gradualmente, os sonhos borrando antes de


desaparecer. Ele estava quente e confortável, envolto em algo
macio e fofo. Ele se enrolou mais apertado em torno do
travesseiro.
O travesseiro soltou um murmúrio suave e feminino, e seus
olhos se abriram.
Mariel estava deitada de costas para ele, o cabelo castanho
espalhado sobre o travesseiro que compartilhavam. O braço de
Ozroth estava em torno do estômago dela, e ele percebeu com
uma mistura de alegria e consternação que a bunda dela estava
aninhada contra sua ereção matinal.
Ela fez outro som digno de uma gata e se contorceu,
afundando o rosto no travesseiro. Ozroth sibilou quando a
bunda dela esfregou o pau dele. Ele deveria ter saltado da cama,
afastando-se da fonte da tentação, mas seu corpo se recusou a
obedecer. Ela era tão suave em seus braços, a pele fria em
comparação com seu calor, e ele não queria nada mais do que
abraçá-la e mantê-la aquecida para sempre.
Seu quadril se moveu novamente, e sinos de alarme soaram
em sua mente. Ele estava a segundos de empurrar contra ela, e
seria errado fazer isso com uma mulher dormindo. Ele deslizou
a mão de seu estômago, pretendendo parar de tocá-la, mas seus
dedos roçaram a pele nua, e ele congelou. Sua camisa de dormir
havia se enrolado durante a noite e estava ao redor da cintura.
Ele arrastou seus dedos suavemente sobre seu quadril, xingando
baixinho quando roçou a borda da calcinha de algodão.
De verdade, quanto autocontrole um demônio deveria ter
quando confrontado com uma tentação insuportável?
A respiração de Mariel falhou e ela se contorceu novamente.
Seus quadris balançaram sob sua mão uma vez, então
novamente, sua bunda se arrastando lentamente sobre seu
pênis. Que não estava dormindo, no entanto, e também não
querendo parar com isso.
Ozroth deveria ter se levantado. Ele deveria ter negado os
dois. Mas era fácil fingir, aqui neste quarto escuro com a luz da
manhã entrando por uma fresta nas cortinas, que era assim que
as coisas eram entre eles. Ele inspirou o perfume de seu cabelo,
os dedos apertando seu quadril enquanto a guiava contra ele.
Foi um esfregar lento e sensual. Ozroth tirou a outra mão
debaixo do travesseiro, deslizando sob ela para poder segurar
um de seus seios. Ela fez um ruído suave e arqueou as costas,
pressionando contra a palma da mão dele. O seio dela encheu
perfeitamente a mão dele, e a ponta do mamilo se destacava sob
a camisa de algodão.
Esta mulher era um paraíso de curvas. Ele deslizou a mão de
seu quadril sob a camisa dela, acariciando a curva suave da
barriga. Seus dedos brincaram com o cós da calcinha, e Mariel
se moveu contra ele com mais urgência. Seus olhos ainda
estavam fechados, os cílios escuros caindo contra sua bochecha,
mas ela estava respirando irregularmente.
Era assim que um demônio se desfazia. Ozroth ofegou em
seu cabelo, esfregando-se contra ela. Seu mindinho traçou mais
baixo, roçando seu monte, e ela estremeceu em seus braços. Ela
estava molhada?
— Oz — ela respirou. A mão dela foi até o pulso dele,
guiando-o até a calcinha. Seus dedos roçaram grossos cachos, e
seu coração estava tão acelerado que ele pensou que poderia
desmaiar. Ele jurou fazê-la gozar com tanta força que ela nunca
esqueceria a sensação de seus dedos dentro dela.
BIP BIP BIP BIP BIP
Ozroth pulou como um gato assustado com o som alto e
estridente. Ele caiu da beirada da cama, estalando os chifres
contra a mesa de cabeceira. A dor passou por ele, e ele se enrolou
de lado com um gemido.
— Oh, Hécate! — Mariel gritou. Ele a ouviu mexendo nas
cobertas, então o som dela mexendo em algo na mesa de
cabeceira. — Alarme estúpido de merda. — O barulho
finalmente parou. — Você está bem?
Ele olhou para cima para vê-la espiando por cima da cama, a
testa franzida em preocupação.
— Ugh — ele disse, incapaz de articular a mistura de
excitação, terror e dor que estava sentindo no momento.
Mariel saiu da cama e se ajoelhou ao lado dele.
— Seus chifres estão bem? — Seus dedos pairaram sobre
um, e ele ficou feliz por ela não o tocar, já que seu pau estava
confuso o suficiente.
— Sim. — Ele soava muito mal, mesmo para seus próprios
ouvidos.
— Posso pegar alguma coisa para você? Gelo? Ibuprofeno?
— Apenas... me dê um momento. — Ozroth fechou os
olhos, respirando fundo. Sua ereção estava enfraquecendo,
graças ao barulho alto e à dor repentina, e com a névoa de
excitação longe, ele podia pensar com mais clareza.
O que ele estava pensando, se esfregando em Mariel como
um humano hormonal? Ele não havia dito a ela nem doze horas
atrás que isso nunca poderia acontecer novamente? No
entanto, aqui estava ele, entregando-se à sua luxúria, embora
eventualmente fosse a ruína dela.
Ele bateu a testa contra os joelhos uma vez, depois de novo.
— Ei. — A mão de Mariel pousou em seu ombro. — Você
está bem?
— Estou. — Este soou ainda menos convincente.
— Converse comigo.
Ela sempre queria conversar, como se isso resolvesse alguma
coisa. Ozroth queria brigar com ela, mas seu mau humor não
era culpa dela, então ele se conteve.
— Vamos seguir em frente, tudo bem?
Houve alguns momentos de silêncio. Então ele ouviu um
farfalhar quando Mariel se afastou.
— Tudo bem. — Ela parecia chateada, o que provavelmente
ela tinha todo o direito de estar, mas Ozroth não tinha energia
para prosseguir. Eram apenas sete e meia da manhã e ele já
estava sobrecarregado pelo dia inteiro.
Ele ficou no quarto enquanto ela tomava banho, só usando
o banheiro quando ela foi para a cozinha. Ele se sentia como um
covarde andando na ponta dos pés e esperando que ela não o
confrontasse sobre isso, mas o que mais ele deveria fazer?
— Eu estou indo para o trabalho — Mariel gritou. — Eu
não me importo com o que você faz. — A porta da frente bateu
atrás dela.
Quando Ozroth entrou na cozinha, sentiu uma pontada no
peito ao ver uma tigela intocada de cereal com uma caixa de leite
ao lado. Irritada ou não, Mariel o estava alimentando.
Seu estômago roncou, e ele olhou feio para sua barriga.
— Como os humanos conseguem fazer alguma coisa com
toda essa fome e sono? — ele reclamou. A culpa cresceu quando
ele se sentou para comer. Ele estava uma bagunça, incapaz de
agir como um demônio de verdade. As emoções que surgiram
ao ganhar uma alma eram mais fáceis de controlar no plano
demoníaco, mas desde que ele chegou à Terra, tornou-se
impossível controlá-las. Impulsos ilógicos o assaltavam – como
se esfregar contra a mulher cuja alma ele deveria coletar – e ele
oscilava loucamente entre a luxúria, raiva e culpa. Como se sua
própria paisagem interna não fosse caótica o suficiente, o
mundo exterior parecia tão cru, colorido e barulhento que era
difícil lidar com isso. Até o sabor de canela do cereal que ele
estava colocando na boca o fez querer chorar.
— Ter uma alma é terrível — ele murmurou.
Houve uma sensação de puxão sob seu esterno, como se
alguém tivesse enrolado um fio em volta de suas costelas e
estivesse puxando até o limite. Mariel havia se afastado o
suficiente para que a magia da barganha exigisse que ele a
seguisse. Ele terminou o cereal e saiu de casa, seguindo a atração
mística.
Glimmer Falls era uma cidade bonita, cheia de casas
coloridas com telhados em ângulo agudo. Após quinze
minutos de caminhada, Ozroth chegou ao centro da cidade,
onde havia um relógio dourado na entrada de um pequeno
parque cercado por lojas e restaurantes. O relógio tinha uma
infinidade de ponteiros apontando para diferentes números e
runas. Alguns símbolos ele reconhecia – era início da tarde no
plano demoníaco, por exemplo – mas os outros eram um
mistério. Uma mão circulava implacavelmente, acelerando e
desacelerando em intervalos irregulares. Quando as finas listras
azuis de energia elétrica começaram a dançar ao redor do
mostrador do relógio, Ozroth saiu correndo.
As pessoas que vagavam pelas ruas não eram menos
coloridas. Ele passou por uma bruxa idosa de cabelo verde e um
rato no ombro, depois por uma artista de rua que lançava um
show de fogos de artifício. Asas de arco-íris brilhavam do outro
lado do parque quando uma fada macho pousou do lado de
fora de uma sorveteria. Que outros tipos de pessoas Ozroth
veria aqui? Lobisomens? Centauros? Selkies?
A fonte no centro do parque era uma escultura de mármore
de dois feiticeiros com as mãos levantadas. A água escorria das
pontas dos dedos e se acumulava na bacia. CASPER
CUNNINGTON E GALAHAD SPARK, dizia uma placa.
FUNDADORES DE GLIMMER FALLS. 1842. Ozroth observou os
olhos profundos e o elaborado bigode de Galahad Spark. Não
havia nada de Mariel em seu rosto estreito, mas também não
parecia haver muito dela no resto da família.
Algo saiu da água, e Ozroth praguejou e saltou para trás.
Uma mulher estava flutuando na água – quão profunda era
esta fonte? – e olhando para ele. Seu cabelo preto era tecido com
algas marinhas e sua pele marrom brilhava com escamas de arco-
íris ao redor de seu cabelo e pescoço. Uma náiade, então, uma
espécie de ninfa que transita facilmente entre terra e água. Suas
brânquias eram pouco visíveis agora que ela mudou para
respirar ar.
— Você é novo — disse ela.
Ozroth ergueu a mão para se certificar de que o chapéu
ainda estava na cabeça.
— Mudei para cá recentemente.
Ela deslizou em direção à borda da fonte.
— Você é gostoso. Está solteiro? — Quando ela se levantou,
Ozroth ficou alarmado ao perceber que ela estava nua.
Ele virou as costas. O que Mariel pensaria se o visse
conversando com uma náiade nua?
— Não. Nadar nu em fontes é um comportamento normal
por aqui?
Ela riu.
— Não existe comportamento normal em Glimmer Falls.
— Estou começando a entender isso.
Ele ouviu um farfalhar.
— Está seguro — a náiade gritou.
Quando ele se virou, ela estava vestida com jeans e uma
camiseta folgada do Salve os Celacantos. Ela torceu o cabelo e
prendeu-o no alto da cabeça.
— Estou na minha pausa para hidratação — disse ela. — O
rio fica muito longe do trabalho.
— Certo. — Por que os mortais insistem em manter
conversa fiada com estranhos? — Estou indo agora — ele disse
depois de uma pausa desconfortável.
— Oi, Estou Indo Agora — disse a náiade. — Eu sou a Rani.
Ele a encarou sem expressão.
Rani revirou os olhos.
— Sem piadas de pai para você, hein? — Agora que ela estava
fora d'água, as escamas coloridas ao longo da linha do cabelo
estavam desaparecendo. — Tudo bem, vou deixar você em paz.
— Ela se afastou, assobiando.
— Este lugar é estranho — disse Ozroth. A maioria das
cidades ao redor do mundo tinha um contingente
sobrenatural, mas Glimmer Falls havia monopolizado o
mercado de esquisitices mágicas.
— Estranho! — O grito ecoante veio de uma árvore
próxima, e Ozroth viu um tufo de penas vermelhas entre as
folhas de outono e o brilho dourado de escamas serpenteando
ao redor do tronco.
Ele não tinha ideia do que era aquela criatura e não tinha
nenhum desejo de descobrir. A magia estava puxando suas
costelas novamente, e ele não queria se envolver com ninguém
além de Mariel, humana ou não.
Uma faixa com os dizeres FESTIVAL DE OUTONO DE
GLIMMER FALLS pairava sobre a rua principal. O festival já
tinha começado? O tempo parecia estar passando muito
devagar e muito rápido ao mesmo tempo. Ozroth parou para
olhar uma caixa de jornal. 24 de outubro.
As palavras de Astaroth ecoaram em sua cabeça. Você tem até
o final do mês mortal. Seu estômago despencou. Uma semana
para conquistar a alma de Mariel. Não era tempo suficiente.
Ozroth sabia que estava mentindo para si mesmo. Ele usou
ameaças, manipulação e violência para forçar acordos de
feiticeiros que se arrastaram ou tentaram mudar os termos no
último minuto. Havia todos os tipos de maneiras para motivar
um humano a fazer o sacrifício final, desde que você soubesse
com o que eles mais se importavam ou temiam.
Deixá-la com medo estava fora de questão, mas Ozroth sabia
com o que Mariel se importava. Seus amigos e a natureza,
certamente. Mas o desejo profundo, aquele que cortava seu
coração, era o desejo de ser boa o suficiente. Ser amada como ela
era.
Enquanto Ozroth observava uma criança pintando uma
abóbora do lado de fora de uma loja de artesanato, ele pensou
nos negócios que poderia fazer com Mariel.
Posso fazer de você a bruxa mais famosa do mundo.
Posso fazer sua mãe ficar orgulhosa de você.
Eu posso fazer alguém te amar.
O coração de Ozroth doeu. Qualquer coisa que ele trouxesse
para Mariel acabaria sendo uma mentira. O universo se
ramificaria, como já havia feito muitas vezes antes, pessoas
mudando para novas trajetórias sem ninguém além de Ozroth
para saber de que outra forma suas vidas poderiam ter ido. Isso
nunca o incomodou antes, mas o pensamento de forçar alguém
a amar Mariel o deixou doente. Ela merecia ser amada por ela
mesma.
E o que aconteceria com as pessoas forçadas a amá-la depois
que suas emoções desaparecessem? Elas estariam presas amando
uma concha, irremediavelmente devotados ao pálido eco de
quem Mariel havia sido. A maioria das bruxas e feiticeiros com
quem ele lidou no passado já era fria e calculista, mas Mariel era
o oposto disso: amorosa, vibrante e merecedora de muito mais
do que uma existência puramente cerebral.
Danos colaterais, Astaroth disse a Ozroth quando ele
recusou uma barganha de amor um século atrás. O feiticeiro
escolheu este caminho; você é apenas o instrumento para suas
ambições. Uma arma não é culpada pelas ações da pessoa que a
empunha.
Ozroth estava cansado de ser uma arma ou o meio para os
fins de outra pessoa. Ele queria ser a pessoa a tomar as decisões.
E se ele tivesse a escolha... ele poderia muito bem escolher ficar
acorrentado a Mariel para sempre.
Folhas deslizaram por suas botas com uma rajada de vento.
Ozroth se perguntou se elas também estavam indo na direção
dela.
Essa estagnação era intolerável, mas Ozroth não suportava
vê-la acabar. Ainda assim, Astaroth estava certo: a escolha não
era uma opção para um negociante.
Mas ele não tinha certeza se sua alma – ou seu coração –
conseguiriam suportar o que precisava ser feito.
Dezoito

Mariel fez uma careta enquanto regava uma íris. A planta


encolheu e ela deu um tapinha nas folhas em forma de desculpa.
— Não é você — ela explicou. — É o Oz.
A audácia daquele demônio! Se esfregando com ela no
colchão e depois se escondendo como um covarde.
— O quê? — Ben ergueu os olhos de seu livro-caixa. Ele
parecia um lenhador nerd em uma camisa xadrez e jeans
surrados.
— Eu disse à planta que não estava brava com ela. Ela estava
preocupada.
— Se você diz — disse ele com ceticismo, levantando os
óculos de armação dourada no nariz.
Mariel desceu a fileira de flores, regando-as e acariciando-as.
Ao fazê-lo, um pouco do aperto em seu peito diminuiu. Ela
caiu no ritmo familiar e meditativo do trabalho, deixando os
movimentos levarem embora seus pensamentos preocupados.
— O que quer dizer com não há serviço VIP? — A voz
familiar quebrou a concentração de Mariel. Ela colocou o
regador de lado e correu para a frente.
Ben estava de pé com as mãos nos quadris e batendo com o
pé. De frente para ele estava Cynthia Cunnington, parecendo
tão Wasp5 como nunca em um vestido rosa com cinto na
cintura, aumentado por pérolas, uma bolsa branca de grife e
óculos de sol enormes empoleirados em seu penteado loiro.
— Esta loja é minha — disse Ben, apontando para a placa do
EMPÓRIO DAS PLANTAS DO BEN pendurada sobre a caixa
registradora, que Mariel havia pintado à mão como presente.
— Isso é o mais VIP possível.
Cynthia fungou e olhou-o de cima a baixo.
— Então me traga begônias de diamante.
— Eu já te disse, estão esgotadas.
As begônias de diamante eram uma variedade rara e
brilhante que tinha um efeito de aumento da libido quando
ingerida. Durante os meses em que estavam na estação, elas
eram arrematadas quase ao mesmo tempo em que eram
colocadas nas prateleiras.
— Você não entende. Eu preciso delas hoje.
— Parece que você procrastinou para assar sua torta do
festival — Mariel gritou. Era o dia de abertura do Festival de
Outono, e a competição culinária aconteceria naquela tarde –

5
WASP é o acrônimo que em inglês significa "Branco, Anglo-Saxão e
Protestante". Com frequência usada em sentido pejorativo, presta-se a designar
um grupo relativamente homogêneo de indivíduos de religião protestante e
ascendência britânica que supostamente detêm enorme poder econômico,
político e social.
algo que as frenéticas mensagens de texto de sua mãe deixaram
bem claro. Mariel ainda não havia respondido a essas
mensagens, uma parte tola dela esperava que sua mãe pelo
menos reconhecesse, se não se desculpasse, pelo desastre do
jantar.
— Mariel — disse Cynthia. — Estou tão feliz em ver você
aqui. — Seu tom deixou claro que ela sentia tudo, menos
felicidade.
— Temos outras flores comestíveis, como amores-perfeitos
e calêndulas — disse Ben. — Se você vier por aqui...
Cynthia o interrompeu com um movimento brusco da
mão.
— Não quero outras flores. — Ela se virou para Mariel. —
Este homem é inútil. Certamente você pode me dar begônias
de diamante?
Mariel cruzou os braços, olhando para Cynthia.
— Ben é o dono desta loja. Se ele disser que não as temos,
não as temos.
Cynthia fungou.
— Eu sou a prefeita. — Ela disse isso como uma palavra
mágica que abriria um esconderijo secreto de begônias.
— Confie em mim, nós sabemos — disse Ben secamente.
Cynthia virou as costas para ele.
— Eu odeio falar com trabalhadores braçais. Mariel?
Ben parecia perplexo e ofendido, e o temperamento de
Mariel aumentou. O que Cynthia esperava que ela fizesse,
invocasse algo do nada? Como havia plantas envolvidas, havia a
possibilidade de Mariel acertar, mas ela não tentaria.
— Não — ela disse.
— O quê?
— Eu disse não. — Mariel apontou para a porta. — Agora
saia.
Cynthia engasgou.
— Como é?
— Diga o que quiser para mim, mas não seja rude com meus
amigos.
— Você sabe o que posso fazer com esta loja? — perguntou
Cynthia. — Eu poderia fechá-la hoje.
Ben fez um som angustiado.
Mariel ergueu o queixo para poder olhar para baixo – ou
para cima – do nariz para a bruxa mais alta.
— Temos câmeras de segurança com áudio, o que significa
que suas ameaças e comentários desagradáveis podem se tornar
virais. — Ela tocou o telefone no bolso do vestido. — Na
verdade, minha amiga é uma influenciadora. Devo mandar uma
mensagem para ela?
As palavras pareciam estimulantes, mas também nauseantes.
Ela nunca tinha brigado com Cynthia Cunnington dessa
maneira. Cynthia era como Diantha: seu poder implacável, sua
influência inquestionável. Mariel apertou as mãos nos bolsos
para parar de tremer.
O sino da loja tocou e Mariel sentiu uma mistura de raiva e
alívio ao ver uma figura alta e taciturna com um chapéu de
cowboy. Aparentemente, Oz havia parado de se acovardar.
Cynthia não reconheceu o recém-chegado.
— Todos os dias agradeço às estrelas por ter Calladia como
filha em vez de você — disse ela em voz baixa e dura.
Mariel se encolheu.
— Cuidado — Ben rosnou.
— Você é motivo de chacota — Cynthia continuou. — A
bruxa mais poderosa em séculos, por favor. — Ela riu. — Todo
mundo faz piada sobre isso quando Diantha não está por perto.
O estômago de Mariel se contorceu com as palavras cruéis,
mas ela manteve a coluna reta. Ela estava cansada de deixar as
pessoas passarem por cima dela.
Uma grande mão pousou no ombro de Cynthia e ela deu
um pulo.
— Hora de ir — disse Oz secamente, conduzindo-a em
direção à porta.
— Não me arraste! — Cynthia o afastou. — Você não sabe
quem eu sou?
— Sim. Infelizmente.
Cynthia pegou suas pérolas e começou a trabalhar as contas
em seus dedos, sussurrando baixinho.
O alarme disparou através de Mariel.
— Oz, cuidado...
Uma onda de choque atingiu o peito de Mariel quando Oz
foi lançado para trás. Eletricidade azul se bifurcou no alto
quando ele colidiu com as prateleiras que continham
suculentas. As prateleiras desabaram sobre ele, fazendo as
plantas voarem enquanto os vasos de terracota se
despedaçaram. Mariel gritou com a dor repentina das folhas
machucadas.
Ela correu para Oz, que estava cambaleando de volta para
ficar de pé.
— Você está bem? — Seu nariz queimava com o cheiro acre
de ozônio.
Ele grunhiu.
— Eu vou ficar bem.
Mariel passou as mãos por ele, procurando ferimentos. Ele
não parecia estar sangrando, mas quando ela tocou seu ombro,
ele estremeceu. Ele agarrou seus pulsos, acalmando-a.
— Estou falando sério — disse ele, sua expressão
surpreendentemente suave. — Sou mais forte do que pareço.
Ele deveria ser a porra de um tanque, então, porque Oz já
parecia muito durão. Mariel girou sobre Cynthia. Uma raiva
quente floresceu em seu peito, e o ar ficou pesado com a magia
incipiente. Plantas se debatiam em seus vasos, e uma trepadeira
estendeu um galho em direção ao pescoço de Cynthia. Os olhos
de Cynthia se arregalaram quando Mariel se aproximou.
— Você nunca vai tentar machucá-lo novamente — Mariel
disse com os dentes cerrados. — E você também nunca mais
pisará nesta loja. Você me entendeu? — A bomba de fúria em
suas veias era inebriante, e Mariel cerrou os punhos,
imaginando golpear a bruxa mais velha.
A boca de Cynthia funcionou.
— Bem, eu nunca...
— Bocca en fechersen! — As palavras explodiram de Mariel
sem pensamento consciente. A boca de Cynthia se fechou, e ela
fez um ruído abafado de alarme por trás de seus lábios selados.
O poder zumbia nas veias de Mariel, e a alegria a encheu ao
perceber que o feitiço funcionou. Não precisou de giz, apenas
pura raiva.
— Saia.
Cynthia gesticulou para os lábios selados, com os olhos
arregalados.
Mariel deu de ombros.
— Encontre outra pessoa para desfazer o feitiço. Eu sou
motivo de chacota, não é mesmo?
Ela virou as costas e começou a arrumar a loja. Um grito
abafado foi seguido pelo tilintar do sino quando a porta se
abriu. Quando Mariel olhou por cima do ombro, Cynthia
havia sumido.
Mariel encostou-se na prateleira mais próxima, respirando
fundo. A pontada de magia no ar diminuiu.
— Uau. — Ben esfregou o queixo barbudo. — Isso foi algo.
— Desculpe. Eu fiquei com raiva.
— Eu percebi. — O lobisomem bagunçou o cabelo dela,
sorrindo torto. — Lembre-me de não te irritar, pequenina.
De repente, Oz se inseriu entre eles. Ele cruzou os braços, os
olhos estreitados.
— Quem é você?
Mariel revirou os olhos.
— Ben é meu chefe. — Ela tentou tirar Oz do caminho, mas
ele não se mexeu. A testosterona praticamente saía dele.
Ben não parecia impressionado.
— Quem é você?
— Eu sou o namorado dela — Oz disparou.
— Desde quando?
— Sexta-feira.
O lobisomem riu.
— E você já está andando como um homem das cavernas
possessivo? — Por sorte, Ben era do tipo descontraído,
balançou a cabeça e deu um passo para trás, aliviando a tensão.
— Fique de olho nele — disse ele a Mariel. — Namorados
superprotetores envelhecem rápido.
Mariel bufou.
— Muitas coisas envelhecem rápido, estou aprendendo. —
Como o ioiô emocional de um namoro falso com um demônio
que não conseguia decidir se queria beijá-la ou arrancar sua
alma eterna. Com o pensamento, um pouco de sua raiva
residual acendeu.
Oz ainda parecia tenso. Ele franziu a testa para ela.
— Você está bem?
— Não fui eu quem foi lançado do outro lado do cômodo.
— Mas as coisas que ela disse...
— Não quero pensar nisso. — Tudo o que ela queria pensar
era em seu feitiço bem-sucedido e em arrumar a loja novamente.
Ela se agachou diante da confusão de terra derramada, vasos de
terracota quebrados e plantas desgastadas e flexionou os dedos.
Ela murmurou um feitiço, e a magia fluiu dela facilmente
enquanto curava folhas quebradas e persuadia plantas expostas
a puxar a terra derramada de volta para suas raízes. Enquanto
ela curava as plantas, Ben varria os cacos dos vasos quebrados.
O sino tocou e ela olhou para cima para ver sua colega de
trabalho, Rani, parada na porta. Os longos cabelos negros da
náiade estavam úmidos de um dos seus banhos diários. Ela
piscou para a cena.
— Parece que uma bomba explodiu aqui.
— Cynthia Cunnington, na verdade — Mariel disse.
Rani fez uma careta.
— Ai credo. Achei que ela era muito da alta sociedade para
um lugar como este. — Diante da carranca de Ben, Rani deu de
ombros. — Ser da baixa sociedade não é uma coisa ruim. — Seu
olhar vagou, então encontrou Oz. Ela gritou. — O recém-
chegado gostoso!
— O quê? — Mariel perguntou. — Você conhece Oz?
— Ele me viu me hidratando — Rani disse alegremente.
Uma semente feia de ciúme plantou-se no peito de Mariel.
Sua cabeça girou e ela olhou para Oz.
— É mesmo?
Ele estendeu as mãos de forma apaziguadora.
— Eu estava olhando para a fonte. Eu não esperava que
alguém estivesse dentro dela.
Mariel bufou.
— Você deveria presumir que há alguém em cada fonte.
— Espera. — Rani olhou entre eles. — Vocês estão
namorando?
Mariel se mexeu desconfortavelmente.
— Sim.
O queixo de Rani caiu.
— Você não estava namorando com ninguém na semana
passada.
Talvez não fosse uma acusação, mas para a consciência
culpada de Mariel, parecia uma.
— Foi muito rápido. — Ela fez uma careta para Oz, que
estava olhando para a porta, claramente querendo escapar. Ele
poderia pelo menos fingir que queria estar perto dela? — Ele
simplesmente me deixou caidinha.
— Espero que de uma maneira menos violenta do que como
Cynthia Cunnington acabou de fazê-lo cair — disse Ben
suavemente.
Oz olhou feio para ele.
— Eu poderia tê-la parado.
O lobisomem ergueu as sobrancelhas.
— Sério? Por que não fez?
— Eu escolhi não fazer. — Oz enfiou as mãos nos bolsos da
calça jeans, uma das botas batendo furiosamente.
Ben se afastou de Oz, sutilmente olhando para o teto.
— Boa sorte — ele murmurou para Mariel.
— O quê? — perguntou Oz.
Ben voltou a replantar as plantas.
— Nada. Apenas desejando o melhor a Mariel enquanto ela
navega no mundo da masculinidade tóxica.
Oz enrijeceu.
— Com licença?
Ben acenou com a mão, ainda focado nos destroços.
— Pode passar.
O peito de Oz inchou.
— Agora olhe aqui, essa é a minha mulher...
— Pare. — Mariel agarrou o antebraço de Oz. — Você
realmente acabou de dizer que sou sua mulher? Eu não sabia
que você poderia viajar no tempo para uma era menos
iluminada, mas se você puder, por favor, volte para esta manhã
e para como você foi idiota. — Ela estava farta do jeito que ele a
puxava para perto em um momento, então a afastava em outro.
Ele ficou boquiaberto com ela.
— Um idiota? Como?
Rani e Ben estavam observando atentamente, e as bochechas
de Mariel coraram. Ela não queria desistir da briga, no entanto.
— Você me dispensa quando somos só nós, então fica
irritado e me chama de sua mulher algumas horas depois. — Ela
perfurou um dedo no peito de Oz. — Eu não pertenço a você.
— Eu não disse que você pertencia.
— Então o que foi essa merda de minha mulher?
Ele fez um barulho frustrado.
— Eu não quis dizer isso.
— Então, o que você quis dizer?
Seus olhos dispararam.
— Eu... uh...
Mariel jogou as mãos para cima.
— Os homens já ouviram falar de comunicação emocional?
Sua testa franziu.
— O quê?
— Obviamente não. — Mariel apertou o nariz, lutando para
se acalmar. — Olha. Você está sendo um grande rabugento e
parece que não consegue decidir o que sente por mim, então
peço que vá para outro lugar e deixe a mim e meus amigos em
paz por algumas horas.
O rosto de Oz caiu.
— Tudo bem — disse ele, girando nos calcanhares. — Vou
remover o meu eu censurável da sua presença.
A porta bateu atrás dele.
Rani olhou entre Mariel e a porta.
— Nunca ouvi você levantar a voz antes.
— Sim, bem, ele desperta o pior de mim. — Mariel começou
a recolher as plantas novamente. — Desculpe, Ben. Ele não é
tão ruim assim quando você passa a conhecê-lo.
O lobisomem bufou.
— Que elogio vibrante.
Ela fez uma careta.
— Acho que podemos dizer que estamos passando por uma
fase difícil. — O que a querida Sphinxie do Jornal de Glimmer
Falls diria sobre um relacionamento falso/negociação de almas
que deu errado?
— Depois de três dias? — Ben pergunta com ceticismo.
— Eu não acho que ele desperta o pior de você — disse Rani.
— Ele precisava ser colocado em seu lugar. Você fez isso. — A
náiade deu de ombros. — Eu digo que isso é muito foda.
Mariel nunca havia sido chamada de foda antes. Ela gostou.
— De qualquer forma, isso vai nos dar tempo para esfriar a
cabeça. — Ela olhou para o relógio e percebeu que só tinha
trinta minutos restantes em seu turno. — Você se importa se eu
sair alguns minutos mais cedo? — ela perguntou a Ben. —
Depois que isso estiver limpo, é claro.
Ben acenou para ela sair.
— Pode ir. Não há muito o que fazer.
— Você é o melhor. — Mariel beijou sua bochecha. — Até
depois!
Hora de acertar as coisas.
Dezenove

Mariel prendeu sua bicicleta em frente à biblioteca de Glimmer


Falls. Era um edifício excêntrico, com uma torre de tijolos
contendo textos mágicos e uma pirâmide de vidro contendo
livros comuns.
Mariel dirigiu-se para a torre. As paredes curvas eram
forradas de livros e uma escada subia e descia por trilhos em
espiral. A escada passou zunindo enquanto ela subia, tendo
sido invocada por alguém mais acima na rampa.
Ela parou na seção dedicada às criaturas mágicas.
— Escalen a veniresen. — Para sua alegria, a escada dourada
apareceu, parando na frente dela. Ela subiu com cuidado,
examinando as prateleiras. Mantícoras, Súcubos, Dragões...
Demônios.
O primeiro na prateleira tinha Introdução à Demonologia.
O couro parecia velho e malcuidado, com rachaduras como o
leito de um riacho seco. Um problema para uma cidade
pequena com uma enorme biblioteca mágica era que não havia
pessoas suficientes para cuidar dos livros. Mesmo uma bruxa
com afinidade com a literatura ficaria nisso por anos, já que a
coleção se estendia profundamente no subsolo. Alguns níveis
eram proibidos para qualquer um sem as credenciais de
segurança para acessar os tomos de magia sombria, e havia
rumores de que alguns níveis só apareciam uma vez por século
para uma bruxa ou feiticeiro escolhido.
Pequenas áreas de estar foram esculpidas nas paredes grossas,
nichos aconchegantes iluminados por vitrais. Mariel carregou
uma pilha de livros para uma mesa e, com a luz do arco-íris
caindo em cascata sobre as páginas, começou a ler.

Capítulo 1: Cosmologia Demoníaca


No começo, o vazio esperava pela centelha da vida.
Assim começa o Origatorium.

Seus braços formigaram.


— Ooh, drama.

De acordo com o texto fundamental do folclore demoníaco,


Lúcifer, o Brilhante, foi banido da Terra por um feiticeiro
maligno por ajudar um mortal a alcançar uma morte indolor.
Ele foi enviado para um vazio escuro como breu. Mas a alma do
humano acompanhou o demônio e, ao ver como ela brilhava,
Lúcifer convocou seus irmãos para fazerem seu lar naquele plano
sombrio, livre da perseguição mortal.

Mariel folheou as páginas, procurando algo menos


mitológico.

Capítulo 6: Negociadores de Almas


A barganha da alma é o dever mais importante que
um demônio pode ter. Muito poucos nascem com o talento
para coletar almas e, sem seus esforços, acredita-se que o
plano demoníaco retornará à escuridão e todos os seres
dentro dele morrerão.

Caramba. Ela sabia que as almas forneciam algum tipo de


poder no reino dos demônios, mas será que os demônios
realmente morreriam sem elas? Nesse caso, isso colocava a
obsessão de Oz com o dever em perspectiva – embora não
explicasse por que ele não estava se esforçando muito para
conquistar a alma dela.

Esta é a maldição dos demônios – eles dependem da


magia de bruxas e feiticeiros para viver, mas são incapazes
de produzi-la sozinhos. Assim, ser um negociador é uma
posição que merece o mais alto respeito. Eles devem ser
treinados como negociadores astutos e implacáveis, pois
qualquer fraqueza emocional ou intelectual pode resultar
em uma negociação que não dá certo. Uma vez que um
demônio foi invocado para cumprir um acordo, ele deve
cumpri-lo, o que significa que os termos ocasionalmente
precisam ser negociados por horas ou dias seguidos para
garantir que ambas as partes fiquem satisfeitas.

Seu estômago afundou. Por que isso era uma regra? E o que
seria necessário para quebrá-la?
Havia um subtítulo: Exemplos de negócios famosos. Em
frente ao texto havia um esboço de um demônio. Era
razoavelmente preciso, com uma estrutura humanoide e chifres
menores, mas os chifres apontavam para cima em vez de para
trás, e as presas eram... excessivas.

No décimo século D.C, Olga de Kiev pediu ajuda a um


demônio depois que uma tribo vizinha, os Drevlians,
torturaram e assassinaram seu marido. Juntamente com a
negociadora de almas Blednica, ela planejou uma
vingança violenta. Elas sitiaram a cidade onde seu
marido havia sido morto. Depois de um ano, Olga
prometeu misericórdia se todas as casas da cidade
enviassem três pombos e três pardais em sua homenagem.
Blednica produziu enxofre, que Olga então amarrou aos
pássaros com pedaços de pano. Blednica incendiou o
enxofre e, quando os pássaros voltaram para seus poleiros,
a cidade – e todos os seus residentes – foi totalmente
destruída pelo fogo.

As sobrancelhas de Mariel se ergueram. Aquilo era bem


esquisito. Ela folheou mais algumas entradas, encontrando
figuras históricas que trocaram por dinheiro, poder e vingança.

Um exemplo famoso de trapaça relacionado a um


acordo envolve Astaroth dos Nove, visto como um dos
melhores barganhadores de todos os tempos devido à sua
língua de prata e prazer em subverter as expectativas
humanas. Quando o presidente dos Estados Unidos,
Richard Nixon, pediu para ser reeleito e ter seu nome
registrado nos livros de história, Nixon conseguiu mais do
que esperava.

Ela olhou com raiva para o nome de Astaroth. Era chocante


perceber que os demônios afetaram tantos eventos na história
humana. Então, novamente, um humano solicitou cada
barganha.
Mariel avançou e parou com o dedo em uma página
promissora.

Capítulo 10: Fisiologia Demoníaca

— Por favor, tenha uma seção sobre pau — implorou


Mariel.

Os demônios são imortais, embora possam ser mortos


por decapitação e, como mencionado anteriormente, pela
perda de toda a magia em seu plano natal (uma hipótese,
mas apoiada por séculos de pesquisa, incluindo o mal-estar
sofrido pela espécie quando os barganhadores tentaram
visar sociedades igualitárias em vez de meritocracias).
Os demônios são mais altos em alguns centímetros em
média do que os humanos e têm temperaturas internas
mais altas. Seus chifres servem para deter predadores.
— Eles também são uma zona erógena. — Mariel folheou a
capa interna e suspirou ao ler a biografia do autor. — Claro que
é um cara. Imaginação zero.

Os demônios comem a cada duas ou três semanas. Eles


dormem uma ou duas vezes por semana, mas não mais.

Claramente este livro foi escrito por alguém que não sabia
do que estava falando, então Mariel o fechou e pegou o
próximo.

Demônios são limitados em suas emoções. O negociante


é o exemplo perfeito de propósito frio e cruel, oferecendo
nada além de truques maliciosos para sua vítima.

Mariel jogou o livro de lado.


— Próximo.

Os demônios são criaturas violentas e malévolas que se


vangloriam do sofrimento humano e se alimentam dos
moralmente impuros a cada três semanas. Suas presas
infestadas de raiva...

— Próximo!

Callidus daemonium busca sustento a cada duas ou


três semanas. Eles dormem aproximadamente uma vez
por semana. À medida que a vida é prolongada, também
o é o tempo entre as funções necessárias.
Ok, isso era estranho. Este livro foi escrito por um professor
de demonologia, mas Oz não era nada parecido com o que foi
descrito.
O próximo volume era fino, sua capa carmesim estampada
com letras douradas. Negociadores de almas dignos de nota. O
ano de publicação era 1953.
Os demônios foram listados em ordem alfabética, e Mariel
folheou até chegar ao O.

Ozroth, o Impiedoso
Um protegido de Astaroth dos Nove, Ozroth é um
negociador notoriamente eficaz. Sua primeira barganha
foi ajudar Napoleão em sua fuga de Elba – e distorcer as
palavras para garantir que Napoleão tomaria a França,
mas não necessariamente a manteria. Quando o mafioso
Al Capone trocou sua alma para evitar ser processado por
vários crimes, Ozroth se esqueceu de incluir a evasão fiscal
no negócio. Sua inteligência só é igualada por sua
crueldade, e negociações de vingança e assassinatos são sua
especialidade.

Mariel franziu a testa. Isso não soava como o Oz que ela


conhecia.
Alguém limpou a garganta e Mariel olhou para cima. Um
homem vagamente familiar vestindo um suéter quadriculado
entrou na alcova enquanto ela estava absorta em pesquisas. Ele
era magro, com cabelo loiro claro, óculos de aro de tartaruga e
um chapéu de feltro. Suas maçãs do rosto eram afiadas como
facas.
— Desculpe-me — disse ele com um sotaque britânico. —
Não pude deixar de notar que você está pesquisando sobre
demônios.
— Eu estou — ela disse cautelosamente. O estranho era
bonito como um modelo de passarela, mas os homens que
abordavam as mulheres do nada não tinham necessariamente
intenções amigáveis. Além disso, este homem era muito mais o
tipo de Calladia – Mariel sempre brincava que Calladia
procurava homens que ela pudesse quebrar como um galho.
— Estou escrevendo um livro sobre psicologia humana e a
diferença entre desejos, necessidades e impulsos inegáveis.
— O... ok?
Ele ajeitou os óculos.
— Bem, parece-me que as barganhas demoníacas são a
maneira perfeita de determinar como os humanos veem os
desejos essenciais versus os não essenciais. Há uma escala
deslizante quando se trata do que as pessoas mais valorizam. O
que a motivaria a trocar sua alma, por exemplo?
Mariel queria rir, ou talvez chorar. Se ao menos se esse cara
soubesse em que pepino ela se meteu.
— Eu nunca trocaria minha alma.
— Hum. — Ele franziu os lábios, parecendo pensativo. —
Acho que para mim teria que ser algo grande. Salvar o planeta,
talvez.
— Ok, se estamos falando de extinção planetária, claro. Já
que a alternativa seria a morte.
— Ou salvar uma espécie em extinção. — O homem
assentiu. — Acho que posso ser convencido por isso.
Isso atingiu um ponto muito sensível, considerando suas
preocupações com as salamandras de fogo, então Mariel
mudou de assunto.
— Você veio ver o Festival de Outono?
— Oh! — Ele saiu do seu devaneio acadêmico. — Sinto
muito, estou sendo terrivelmente rude. Divagando com uma
estranha sem motivo. — Ele estendeu a mão. — Meu nome é
James Higgins e sou jornalista, estou aqui para fazer uma
reportagem sobre o festival, mas também estou fazendo minha
própria pesquisa original, como você pode ver.
A mão dele era quente. Mariel a apertou, imaginando com
uma pontada onde Oz estava. Ele tinha ficado irritado o
suficiente com Ben; ele provavelmente ficaria louco se a visse
conversando com outro estranho bonito.
— Mariel — ela disse, meio que desejando que Oz aparecesse
para que eles pudessem gritar um com o outro um pouco mais.
— Prazer em conhecê-lo.
James sorriu.
— O prazer é todo meu. Se você pudesse recomendar um
livro sobre barganhas, eu ficaria muito grato.
Mariel entregou a ele Negociadores de almas dignos de nota,
já que ela não queria mais ler sobre o passado sombrio de Oz.
James agradeceu e se sentou em sua mesa.
Mariel suspirou e pegou outro livro.
Uma hora e uma montanha de livros depois, Mariel
recostou-se com um gemido. Ela aprendeu muitas curiosidades
sobre demônios: seu núcleo a temperatura é de 38,5° em média,
eles têm fortes laços comunais e os nove arquidemônios estão
engajados em uma batalha contínua pela supremacia. Nada
disso lhe disse como sair de um acordo.
— Criaturas fascinantes — disse James.
Mariel havia esquecido a presença do jornalista.
— O quê?
— Demônios. — James apontou para um livro. — Sabemos
tanto, mas tão pouco sobre eles. Você sabia, por exemplo, que
há casos deles se apaixonando por humanos?
Mariel sentou-se ereta.
— Sério?
James assentiu.
— Alguns humanos pedem a imortalidade em troca de suas
almas para que possam passar a eternidade com seus amantes
demoníacos.
Mariel não sabia o que dizer sobre isso.
— Huh.
— Coisas interessantes. — James juntou seus pertences,
sorrindo para ela. — Acho que ficaria tentado. Nunca mais ficar
sozinho... Que presente, de fato.
Ele se afastou, deixando Mariel sozinha com seus livros. Ela
olhou para as capas de couro, pensando em possibilidades que
ela nunca havia considerado.
Ela trocaria sua alma para salvar uma espécie em extinção? E
se ela pudesse parar as guerras ou acabar com a fome mundial?
Ela faria isso por amor?
O que assustava Mariel era... ela não sabia.

•••

Faltando uma hora e meia para a reunião geral, Mariel pedalou


até a floresta. A trilha que ela pegou levava a uma das fontes
termais mais magníficas.
Folhas mortas farfalhavam na brisa, e gotas de chuva caíam
nas pétalas vermelhas das flores da fênix. Pássaros tagarelavam
acima, e o chamado distante de uma serpe ecoou nas colinas.
Ela não havia passado tempo suficiente na floresta desde a
chegada de Oz. Cada passo mais fundo na região selvagem
aliviava um pouco seu estresse.
A trilha se achatou e serpenteou em torno de um
afloramento rochoso. A fonte termal estaria depois da curva.
Ao contrário do oásis secreto de Mariel, esta era uma piscina
popular, e ela apostava que haveria alguns humanos e náiades
desfrutando de um banho à tarde.
Mariel virou a curva e engasgou.
Não havia ninguém na piscina fumegante. Em vez disso,
havia equipamentos de construção perto dela, amarelos, sujos e
pesados. O canto dos pássaros foi substituído pelo zumbido
alto das máquinas. Enquanto Mariel observava, uma
escavadeira cavou o solo, revirando terra e rocha.
— É muito cedo — ela sussurrou. Eles não deveriam
começar a construção até depois da reunião. — Parem! — ela
gritou, mas as máquinas a abafaram. Uma retroescavadeira
escavava o solo perto das raízes de uma árvore e os pássaros
irrompiam dos galhos, grasnando.
A dor apunhalou o peito de Mariel e ela caiu de joelhos. Um
som alto de estalo foi seguido por um baque enorme, e seus
olhos se encheram de lágrimas ao ver uma antiga árvore
orgulhosa agora caída no chão. Eles estavam destruindo a
floresta, e sua magia pulsava com a dor refletida do mundo
natural.
As plantas morriam naturalmente o tempo todo. Essas
mortes não machucavam Mariel. Mas isso... isso foi cruel.
Ela enfiou as mãos no solo, sussurrando um feitiço
enquanto enviava magia através da terra ferida. Caules
quebrados e folhas esfarrapadas costuradas de volta. Não havia
nada a ser feito pela árvore, mas ela confortou o toco de
qualquer maneira.
— Você vai crescer de novo — ela sussurrou.
À medida que seu alcance se expandia, sua magia roçava em
algo feio, escuro... e familiar. Além dos cruéis dentes de metal
do equipamento de construção, algo mais estava comendo a
floresta.
Mariel não podia parar a construção sozinha, mas ela podia
lutar contra este outro inimigo. Ela se levantou, enxugando as
lágrimas, e se dirigiu para o interior da floresta. Ela pisou com
cuidado, tocando gentilmente os galhos que se estendiam em
sua direção. Havia uma necessidade cega e urgente na forma
como a procuravam, e ela fez o que pôde para acalmá-los e curar
seus pequenos ferimentos.
O barulho desaparecia quanto mais ela se afastava da piscina,
mas permanecia no fundo, um zumbido que a deixava tensa.
Sua cabeça latejava e ela se sentia mal do estômago.
Alguns minutos depois, ela o encontrou.
Um riacho escorria por uma encosta rochosa; ao lado dela,
uma podridão negra se espalhava de uma árvore no topo da
colina. Enquanto Mariel observava, horrorizada, um dedo
ramificado de escuridão se estendia em direção à água. Quando
tocou a margem, o riacho começou a ficar preto. Um peixe
saltou para fora da água e caiu no chão, suas escamas
escurecendo até que ele ficou imóvel.
Mariel correu em direção à árvore, tropeçando no terreno
irregular. A podridão estava se espalhando mais rapidamente
agora, o riacho levando-a para áreas anteriormente não
infectadas. Mariel ajoelhou-se e apertou as mãos contra a
árvore, estremecendo com a energia malévola que pulsava sob a
ponta dos dedos. Ela invocou sua magia, enviando todo o amor
e determinação que possuía para o tronco.
— Cicararek en arboreum. — ela repetiu o feitiço várias
vezes.
A podridão começou a diminuir, mas estava se movendo
muito devagar. Ela estava suando e tonta, mas se parasse agora,
qualquer que fosse a magia malévola, continuaria.
Ela se lembrou das palavras do homem na biblioteca: salvar
uma espécie em extinção. Um arrepio gelado desceu por sua
espinha. Ver sua amada floresta sofrendo doía em um nível
primitivo. Sua magia das plantas era seu único sucesso em uma
vida de fracassos, e a floresta era seu maior conforto, o único
lugar onde ela realmente se sentia livre e segura. Ela não
suportaria vê-la ser destruída.
Mas ela daria sua alma para salvá-la? E se ela não o fizesse... o
que isso dizia sobre ela?
Mariel fechou os olhos e viu a teia de magia dançando atrás
de suas pálpebras, listras verdes e douradas onde as linhas ley
encontravam poços naturais de poder. Esta mancha preta era
como um buraco em uma bela tapeçaria.
Ela se imaginou juntando as bordas daquele buraco,
persuadindo a magia do solo a subir e se juntar ao seu próprio
poder. Ela podia não ser capaz de consertar isso sozinha, mas se
aprendeu alguma coisa com a natureza, era que cada parte do
ecossistema é importante. Das raízes à copa, das minhocas aos
pássaros, a natureza era uma sinfonia que contava com a
contribuição de cada peça.
Mariel também fazia parte dessa sinfonia. Ela alimentou o
solo com magia e convocou sua magia para crescer em troca. As
raízes se entrelaçaram em seus dedos, prendendo suas mãos no
chão. Quando ela abriu os olhos, engasgou ao ver mil brotos
minúsculos atravessando a terra enegrecida. Como Mariel deu
à floresta tudo o que tinha, a floresta retribuiu e a magia foi
crescendo e crescendo. A podridão recuou e logo a encosta
estava inundada de vegetação. Quando a mancha preta final
desapareceu, Mariel deu um suspiro de alívio.
— Obrigada — ela sussurrou.
As raízes acariciaram suas mãos, depois afundaram na terra.
Mariel ficou de joelhos, observando os frágeis brotos se
desenrolarem. Eles não durariam muito quando o inverno
chegasse, mas era um lembrete reconfortante de que sempre
havia vida no solo, esperando para florescer.
Ela se levantou, então se apoiou contra a árvore enquanto
sua cabeça girava. Não era tão ruim quanto quando ela tentou
curar a primeira mancha preta sozinha, mas ela ainda se sentia
esgotada.
Havia um zumbido em seus ouvidos: o som áspero da
construção que não deveria estar acontecendo sem a aprovação
da cidade. Era um lembrete sombrio de que mais de uma coisa
estava errada com a floresta.
Mariel caminhou de volta para a piscina, determinada a tirar
algumas fotos como prova de que a construção estava
ocorrendo ilegalmente. Se Cynthia Cunnington e seus
comparsas pensavam que poderiam construir o resort sem
nenhuma consequência, ela estava prestes a descobrir o
contrário.
Vinte

Ozroth andava na orla da floresta. Ele sabia que Mariel estava


naquelas colinas, e a barganha da alma o havia acorrentado tão
perto, mas ele não queria se intrometer em sua privacidade. Ela
odiou vê-lo em seu trabalho, afinal, ele não podia imaginar que
ela gostaria de vê-lo aqui também.
Ele estava arruinando a vida dela. Mesmo sem a barganha da
alma pairando sobre suas cabeças, ele a deixava infeliz, mas não
conseguia parar o desejo incessante de estar com ela.
Minha mulher. Ele se encolheu com a memória das palavras.
Ele estava a dois segundos de bater no peito enquanto gritava
"Minha!" Agora que a onda de possessividade... o que quer que
fosse... havia se dissipado, ele se sentiu envergonhado.
Mariel tinha razão em repreendê-lo. Ele a viu sorrindo para
aquele homem gigante e peludo – um lobisomem, ele apostaria
– e uma onda de ciúme inundou seu processo de pensamento
racional. Ele agiu por instinto.
Como os humanos administravam esses impulsos e
sentimentos horríveis? O fato de não haver mais homicídios na
Terra era chocante.
A frustração de Ozroth consigo mesmo precisava de uma
válvula de escape. Seu ombro latejava por ter sido jogado contra
uma parede, mas ele merecia uma dor pior do que essa. Ele
passou as mãos pelos cabelos, puxando com força pela raiz,
depois enfiou um de seus chifres no tronco de uma árvore.
— Ai! — Ele recuou. Aquela árvore era mais dura do que
parecia.
— É casca de ferro.
Ele saltou, então girou para encontrar Mariel de pé na base
da trilha, os braços cruzados.
— O quê?
Ela suspirou, então se aproximou e estendeu a mão como se
fosse tocar seu chifre latejante. Ela aparentemente pensou
melhor e baixou a mão para o lado, e Ozroth sentiu uma
pontada de decepção.
— Casca de ferro — ela repetiu. — Há uma bruxa na cidade
que gosta de experimentar novos materiais de construção. A
madeira de casca de ferro é entrelaçada com metal.
— Oh. — Ozroth mudou de um pé para o outro,
envergonhado por ela tê-lo visto dando uma cabeçada em uma
árvore. — Sinto muito.
Seus olhos se estreitaram.
— Pelo quê?
Lúcifer, pelo que ele não sentia muito? Por ser invocado, por
planejar roubar sua alma, por ser um demônio de merda, por se
afogar em emoções instáveis...
— Eu me comportei mal.
— Você se comportou. — Seu rosto ainda estava fechado.
Ele precisaria fazer melhor do que isso para conseguir que
ela o perdoasse. Não que ela devesse perdoá-lo. Lúcifer, isso era
uma bagunça.
Ozroth era desprezível e instável, mas Mariel era uma boa
pessoa que merecia o melhor que todos os planos tinham a
oferecer. No mínimo, ela merecia saber como ele se sentia,
mesmo que isso não ajudasse a situação. Então Ozroth respirou
fundo e tentou... comunicação emocional.
— Não estou acostumado a sentir as coisas — admitiu. — É
impressionante. Tudo sobre este plano é impressionante,
honestamente. Os sons, as cores e os sabores já são ruins o
suficiente. Mas então há você, e você é muito mais...
— Ruim? — ela perguntou, as sobrancelhas levantadas. —
Que diabos de pedido de desculpas você está fazendo?
— Não! — Ele fechou os olhos, tentando organizar as
palavras para explicar o que ela era. — Brilhante — ele decidiu.
— Você é vibrante, interessante e tão bonita que me mata, e se
não estivéssemos nesta situação horrível, eu iria...
— O quê? — ela perguntou quando ele parou. Ela pousou
a mão em seu antebraço e Ozroth estremeceu com o contato.
— O que você faria, Oz?
Sua voz era tão bonita quanto o resto dela, musical e
expressiva como um riacho caudaloso. Ele também não era
propenso a comparações exageradas antes da alma. E nunca,
nunca tinha sido vítima de um impulso como aquele, que só
poderia complicar ainda mais as coisas.
Mas Ozroth já havia ido longe demais nesse caminho. Não
havia como esconder a verdade.
— Eu cortejaria você — ele admitiu calmamente.
— Cortejar? — A compreensão invadiu sua expressão. —
Você quer dizer namorar comigo?
Namorar não parecia uma palavra boa o suficiente. Isso
trouxe à mente mortais sentados lado a lado em um cinema
escuro, segurando mãos nojentas e amanteigadas.
— No plano demoníaco, o cortejo é diferente do que aqui.
A expressão de Mariel ficou mais suave, e o estômago de
Ozroth deu uma reviravolta desconfortável. Ele estava suando,
embora o ar estivesse frio. Normalmente era preciso estar perto
de uma abertura de lava para fazê-lo suar, mas aqui estava ele,
suando na frente da bela mulher que segurava seu coração em
seu pequeno punho.
— Como é o cortejo no plano demoníaco? — Mariel
perguntou. A mão em seu antebraço deslizou até que os dedos
dela se entrelaçaram com os dele, e ele sentiu uma palpitação no
coração. Se os franceses chamam o orgasmo de petit mort, então
se apaixonar deve ser le grand mort. Ele provavelmente acabaria
no hospital no final do dia.
Amor. Era uma palavra tão humana – pequena, mas
imbuída de um significado desproporcional.
Aterrorizante.
— Quando alguém encontra o demônio que deseja cortejar,
começa com pequenos presentes. — Ozroth procurou flores
em volta, mas não havia nenhuma tão longe das fontes termais,
então ele se abaixou, ainda agarrado à mão dela enquanto
pegava um galho de frutas silvestres de outono. Ele se deteve
antes de quebrar o galho do arbusto – isso seria um presente
terrível para uma bruxa das plantas – e, em vez disso, pegou uma
pedra irregular com pedaços de quartzo brilhando em sua
superfície cinza. — Aqui. — Ele se endireitou e deu a ela.
Ela parecia confusa.
— Uma pedra?
Ele gesticulou ao redor deles.
— Eu não tenho exatamente muitas opções. E pedaços do
mundo natural são presentes de cortejo comuns, simbolizando
nossa conexão com a terra. — Ele teria preferido dar a ela uma
rara opala de lava, mas isso teria que servir.
Seus lábios rosados se curvaram e as covinhas apareceram.
— Isso é fofo.
Ozroth percebeu que estava prendendo a respiração. Ele
exalou, trêmulo.
— Também realizamos tarefas para o parceiro em potencial.
Cozinhar, limpar, comprar suprimentos. Dessa forma,
provamos nossa desenvoltura.
— Presentes e atos de serviço. — Mariel deu uma risadinha.
— Eu não sabia que os demônios conheciam as cinco
linguagens do amor.
— Perdão? — Ele pensava que o cortejo mortal era direto –
alguns encontros levando ao sexo, seguido de coabitação, então
casamento ou uma parceria de outra forma obrigatória para
evitar que o companheiro desejado escapasse. Os humanos
realmente aprenderam novos idiomas enquanto cortejavam?
Ela deve ter visto o pânico em seu rosto, porque balançou a
cabeça.
— É uma piada. Não se preocupe com isso.
— Oh. — Ozroth não sabia por que ela estava fazendo
piadas quando ele estava prestes a morrer de estresse por causa
da comunicação emocional, mas pelo menos ela não estava
gritando com ele.
— Você limpou minha casa no dia em que apareceu — disse
Mariel. — Você estava me cortejando então?
Lúcifer, ele a estava cortejando? Ele tinha quase certeza de
que estava apenas tentando enganá-la para que entregasse sua
alma, mas nunca havia limpado a casa de um de seus alvos antes,
então claramente algo estava errado.
— Eu... não sei.
Ela mordeu o lábio, o que evocou uma visão dele mordendo-
o. Se a tivesse nua e esparramada em sua cama, passaria horas
provando cada centímetro dela. Ao pensar em suas mordidas
de amor marcando a curva suave do seu seio, o jeans ficou
desconfortavelmente apertado.
— O que mais os demônios fazem quando estão cortejando?
— Mariel perguntou.
Ele voltou a se concentrar no assunto em questão.
— Bem, ao longo dos próximos anos...
— Anos? — ela gritou.
— Somos imortais — ele a lembrou. — Não há necessidade
de apressar as coisas.
— Certo. — Seu rosto caiu. — Às vezes eu esqueço.
Ela parecia tão abatida que Ozroth sentiu uma pontada de
alarme.
— Qual o problema? — ele perguntou, apertando a mão
dela.
— Mesmo se você estivesse me cortejando, você viveria para
sempre. Eu não.
As palavras atingiram Ozroth como um soco. Ele estava
acostumado a ver o mundo humano passar enquanto sua vida
permanecia basicamente a mesma, mas ele não se permitiu
imaginar Mariel morrendo. Ele se concentrava no futuro
imediato e no conflito entre seu dever para com o plano
demoníaco e seu desejo obsessivo por Mariel.
Muito cedo, porém, Mariel envelheceria. Sua pele sardenta
enrugaria; seus cabelos castanhos ficariam brancos. Suas juntas
iriam inchar, a artrite dificultando o trabalho no jardim. Ainda
assim, ele podia imaginá-la sorrindo ao longo das décadas, a
alegria estampada permanentemente nas linhas profundas do
seu rosto.
E então ela morreria, e o mundo ficaria mais escuro.
— Sim — ele disse, a voz áspera. O peso de anos
intermináveis o pressionava. Depois que ela se for, o que ele
teria? O dever era suficiente para mantê-lo vivo século após
século?
Mariel puxou a mão da dele.
— Isso é uma fantasia — ela disse sem rodeios. — Você disse
que me cortejaria se não estivéssemos nessa situação. Mas
estamos nessa situação e, mesmo que não estivéssemos, não há
futuro para nós.
A verdade brutal não era nada que Ozroth já não soubesse.
Ainda assim, parecia que algo vital havia sido arrancado do seu
peito.
O trovão estalou acima; as nuvens haviam baixado enquanto
eles conversavam, e agora raios azuis cortavam o céu cinzento,
tão irregulares quanto as emoções de Ozroth. A chuva começou
a bater em seu chapéu.
— Oh, Oz — Mariel sussurrou. — O que nós vamos fazer?
Ao longe, um sino tocou. Mariel tirou o telefone do bolso.
— Droga. Vamos nos atrasar para a reunião geral.
Ozroth não dava a mínima para a reunião, mas Mariel já
estava se afastando.
— Eu tenho que ir — ela disse, sem olhar nos olhos dele
enquanto destrancava sua bicicleta. — Sinto muito, mas esta é
a última chance de parar a construção.
O projeto do spa. Certo. Ele se forçou a assentir.
— Vou te seguir até lá.
— Você pode ficar do lado de fora, se quiser. Vá tomar um
sorvete ou algo assim. — Sua testa enrugou. — Tem sorvete no
plano demoníaco?
Lá estava aquela curiosidade incessante e encantadora.
— Sem sorvete. E eu vou sentar com você. Se você quiser,
claro. — Ele já havia ultrapassado os limites de Mariel o
suficiente.
Seus olhos estavam suaves novamente quando ela olhou
para ele.
— Eu gostaria disso.
Vinte e Um

A sala de conferências da prefeitura estava lotada.


Ozroth correu por um corredor lateral, sentindo-se
desconfortável enquanto dezenas de olhos o seguiam. Cynthia
Cunnington estava sentada em uma plataforma elevada na
frente da sala, brilhando em um terno branco enfeitado com
diamantes.
A conversa já havia começado.
— Você é nojenta e corrupta! — gritou um feiticeiro de
cartola. — Concorreu a um cargo para representar todos nós,
depois vendeu a cidade para encher seus bolsos.
Mariel e Calladia estavam sentadas juntas perto do final de
uma fileira, e Ozroth ocupava a cadeira vazia no corredor. A sala
parecia mais uma mistura entre uma igreja e um bordel do que
uma instalação do governo. As paredes eram cobertas de
brocado de veludo vermelho e vitrais marchavam ao longo de
uma parede. Candelabros elaborados forneciam iluminação e,
além das fileiras de cadeiras dobráveis, poltronas carmesim se
alinhavam no perímetro da sala.
Cynthia inclinou-se para o microfone na mesa à sua frente.
— Essa linguagem não é apropriada.
— Você pode pegar o que for apropriado e enfiar no seu cu!
Murmúrios se espalharam pela sala, junto com algumas
exclamações contendo as palavras Cunnington e respeito. A
mistura de pessoas era eclética – havia bruxos e bruxas com
túnicas, um contingente de mulheres idosas não mágicas com
vestidos roxos e chapéus vermelhos, um grupo de centauros e
até mesmo uma fada bêbada vestindo apenas um fio dental e
protetores de mamilo em forma de salamandra de fogo. O
lobisomem, chefe de Mariel, fez uma careta do outro lado da
sala, enquanto Themmie pairava acima da multidão, sentada de
pernas cruzadas no ar enquanto filmava os procedimentos em
seu smartphone.
— Quando concorri ao cargo, prometi proteger os interesses
de Glimmer Falls — disse Cynthia. — Isso significa garantir
que estejamos acompanhando as novidades.
— Acompanhando as novidades? — Rani se levantou, sua
camiseta com os dizeres Salve os Celacantos substituída por uma
que dizia Direitos das Salamandras de Fogo! Algas marinhas
estavam trançadas em seu cabelo preto. — Você quer dizer
acompanhar a paisagem infernal capitalista das grandes
cidades?
— O resort trará os negócios necessários. Com esses fundos,
podemos enfrentar os principais projetos de infraestrutura...
— Bobagem — disse Rani. — Atraímos muitos negócios e,
se você realmente trabalhasse com minha organização sem fins
lucrativos, o Projeto de Resiliência de Glimmer Falls,
aprenderia que há muitas maneiras de melhorar a
infraestrutura que não envolvem a destruição das nossas
florestas para atender a um por cento!
— O resort não é para um por cento — Cynthia disse
friamente. — Eu pretendo me tornar um membro, e os
Cunningtons são apenas três por cento.
— Acho que ela encontrou alguém para acabar com o seu
feitiço — Ozroth murmurou. — Eu gostava mais dela com a
boca colada.
Mariel parecia homicida enquanto olhava para Cynthia.
— Acha que devo lançar de novo?
— Com certeza.
Mariel bufou e balançou a cabeça.
— Isso violaria as regras de liberdade de expressão da reunião
geral. Mesmo as vadias coniventes têm direito a fala. — Ela
olhou para Calladia se desculpando. — Desculpe.
Calladia deu de ombros.
— Se ela grasna como uma vadia...
Rani falou novamente.
— Você realmente acha que se gabar de sua riqueza fará com
que a cidade pareça mais favorável com o spa? Não será um
recurso da comunidade.
— Não é culpa deste governo que você é pobre — disse
Cynthia.
— Eu não sou pobre. Eu só tenho empatia.
A troca desencadeou uma onda de comentários da
assembleia. Um jato de chama verde anunciou o
descontentamento de alguém, e o candelabro vibrou, enviando
sinos trêmulos pelo ar.
— Não se trata de favorecer os ricos — disse Cynthia. — Os
lucros que obtivermos irão diretamente para a comunidade.
Calladia ficou de pé.
— Depois de encher os seus bolsos, certo? Não pense que
não sabemos quem é o investidor da empresa, mãe.
— Sente-se, Calladia — Cynthia estalou.
As bochechas de Calladia estavam rosadas.
— Já falamos sobre isso inúmeras vezes. Você sabe por que o
resort é uma péssima ideia...
— Eu sei que você é egoísta e não quer deixar ninguém
desfrutar de coisas boas.
Calladia recuou quando um silêncio desconfortável caiu
sobre a sala. Era a primeira vez que Ozroth via a feiticeira loira
parecer magoada, e ele sentiu uma estranha vontade de protegê-
la. O que havia de errado com esses mortais que tratavam suas
crianças com tanta crueldade?
— É isso — Mariel murmurou. Ela levantou. — Calladia
não é egoísta. A única coisa egoísta é apoiar a destruição das
nossas florestas apenas para que você possa desfrutar de um
tratamento facial uma vez por semana. — Sua voz era forte, mas
suas mãos agarravam sua saia com força. Ozroth cutucou seu
punho cerrado e ficou satisfeito quando ela agarrou a mão dele.
Um centauro de peito nu pisou com o casco e faíscas voaram
do chão de pedra.
— Isso mesmo.
Um homem idoso com lantejoulas da cabeça aos pés falou.
— Esta cidade está atolada no passado. Estamos tão focados
em nosso legado mágico que negligenciamos pensar em
construir um futuro para Glimmer Falls.
— Você não pode construir um futuro destruindo o
ecossistema — disse Mariel.
Cynthia olhou furiosamente para Mariel.
— Estamos trabalhando em estreita colaboração com
consultores ambientais e eles têm certeza de que não haverá
efeitos nocivos.
— Grande merda — Themmie chamou de sua posição
perto do teto. Suas asas eram um borrão de arco-íris agitado. —
Qual é o nome da consultoria ambiental com a qual você está
trabalhando?
Cynthia limpou a garganta.
— Everwell.
Os polegares de Themmie dançaram sobre seu telefone.
— Uma busca rápida diz que o CEO é filho do dono da
construtora que você contratou.
— Corrupção! — Rani chorou. Chamadas semelhantes
ecoaram de metade da assembleia, enquanto membros da outra
metade gritavam de volta, defendendo o projeto. A sala
explodiu em um barulho ensurdecedor, e fogos de artifício
estouraram sobre a multidão enquanto os centauros batiam
seus cascos.
— Ordem — Cynthia chamou. — Ordem! — Quando isso
não bastou, ela levou o colar de pérolas aos lábios e começou a
murmurar. Ozroth estremeceu, lembrando-se de quando ela o
lançou em uma prateleira. Ele disse a Mariel que estava bem,
mas, francamente, isso ainda doía.
Um enorme gongo apareceu no estrado. Cynthia agarrou o
martelo e o golpeou.
GONGGGGGGG.
Ela deve ter amplificado o som com magia, porque sacudiu
Ozroth até os ossos. Ele estremeceu, a cabeça latejando. A dor
se somou à dor do ombro machucado e do chifre danificado.
Demônios curavam rapidamente, então era estranho o quanto
ainda doía.
À medida que o som reverberava, os participantes ficaram
em um silêncio chocado. Cynthia assumiu o centro do palco.
Ela parecia uma rainha do gelo em seu traje branco, o cabelo
brilhando como ouro enquanto diamantes gelados brilhavam
em seus pulsos e pescoço.
— Quando meu ancestral Casper Cunnington fundou esta
cidade, ele sabia que ela cresceria e mudaria. Ele esperava por
esse crescimento – que nos tornássemos um marco importante
no mapa mágico global. — O olhar de Cynthia varreu a plateia
e Ozroth entendeu como ela havia se tornado uma figura tão
influente. Além de seu dinheiro, legado e poder, ela se portava
com autoridade real. — Neste momento — continuou ela —,
temos a oportunidade de adicionar um pouco de luxo à nossa
vida diária e, ao mesmo tempo, aumentar o turismo. O spa
receberá pessoas mágicas de todos os tipos, e os residentes terão
um desconto na taxa de entrada.
— Que generoso — Calladia rebateu. — Destrua nossa
floresta e nos dê um desconto de dez por cento.
— Oh, por favor. Quaisquer efeitos na floresta serão
mínimos.
Mariel enrijeceu. Ela tirou a mão da de Oz e plantou os
punhos nos quadris.
— Já vi esses efeitos em primeira mão e eles estão longe de
ser mínimos.
— Espere — Themmie disse de cima. — Em primeira mão?
O projeto não está programado para começar até a próxima
semana.
Mariel olhou para Cynthia.
— Eles já estão cavando.
Cynthia limpou a garganta.
— Apenas uma investigação preliminar do local.
Mariel virou-se para Calladia.
— Você pode projetar algumas imagens? — Quando
Calladia assentiu, Mariel pegou o telefone, deslizou algumas
vezes a tela e o entregou à amiga.
Calladia equilibrou o telefone no colo, depois puxou um
novelo de linha do bolso e começou a dar nós, os lábios se
movendo silenciosamente. O ar acima do telefone ficou turvo e
uma imagem se formou, crescendo à medida que Calladia
trabalhava. Com um movimento final de seus dedos, ele
disparou em direção à parede, cores e ângulos se solidificando
até parecer tão real quanto uma obra de arte emoldurada.
Suspiros soaram ao redor da sala. A imagem mostrava um
pedaço de terra cheio de crateras coberto por equipamentos de
construção. Árvores caídas ao fundo, e Ozroth sentiu uma
pontada ao pensar em Mariel tendo que testemunhar aquela
destruição.
Calladia passou por mais fotos. A quarta era um close-up de
um animal morto na terra batida, seu corpo meio esmagado,
com uma poça de sangue embaixo dele. Ozroth o reconheceu
como um jackalope, uma rara criatura da Baviera com cabeça
de coelho, corpo de esquilo, asas de faisão e uma pequena
prateleira de chifres.
O centauro fez um som angustiado e sacudiu o rabo.
— Assassinos!
— Algumas baixas são esperadas. — Cynthia não parecia
incomodada com a imagem horrível. — Mas a vida de um
jackalope é insignificante em comparação com os benefícios
que colheremos do spa.
Calladia passou para a próxima foto: um arbusto perto de
um buraco que havia sido escavado no solo. Suas folhas verde-
esmeralda estavam murchas e marrons perto da construção.
— Estamos em uma nascente de linhas ley, e as plantas se
alimentam da magia do solo — disse Mariel. — A escavação está
interrompendo essa mágica.
— Qualquer efeito será localizado. Vamos continuar.
— Qual é o sentido de uma reunião geral se você não ouve
seus eleitores? — A voz de Mariel estava cheia de frustração. —
A teia de magia já está se desfazendo – eu posso sentir isso!
— Com que habilidade mágica? — Cynthia perguntou com
desdém. — Você é um fracasso de uma bruxa.
— Mãe! — exclamou Calladia. — Não a trate assim.
Ozroth corria o risco de quebrar os dedos se cerrasse os
punhos com mais força. Palavras furiosas ficaram presas em sua
garganta, mas Mariel disse a ele para não a defender e ele tinha
que obedecer ao desejo dela.
— Não dê ouvidos a ela — ele murmurou. — Você é
brilhante.
— Pela primeira vez, o demônio e eu concordamos. — A
expressão de Calladia era tempestuosa. — E eu sinto muito por
minha mãe. Ela está sendo a pior versão de si hoje.
— Mas ela está certa — Mariel sussurrou. Seus olhos
estavam lacrimejantes. — Ninguém vai acreditar no que sinto
com minha magia.
Uma veia na têmpora de Ozroth pulsou. Ele estava tão bravo
que queria jogar sua cadeira dobrável pela sala.
— Se o melodrama acabou, podemos encerrar essa
discussão? — perguntou Cynthia. — Os contratos estão
assinados; o projeto vai para frente.
— Por que eles foram assinados antes que a cidade tivesse a
chance de votar? — perguntou Themmie. — Seja específica,
porque estou transmitindo isso ao vivo.
Pela primeira vez, Cynthia parecia desconfortável.
— As reuniões gerais são a oportunidade da comunidade se
manifestar. Elas não são um voto formal. Agradeço sua
honestidade e entendo suas preocupações. A construção será
realizada com o mínimo de danos possível.
Mariel respirou fundo. Por mais vulnerável que ela se
sentisse, ela não havia parado de falar.
— Já aconteceu muitos danos. Tem que parar.
Cynthia zombou.
— Por que deveríamos ouvir a idiota da aldeia?
Ozroth viu vermelho. Ele se levantou em um salto quando a
raiva finalmente explodiu em seu tênue controle.
— Mariel é uma bruxa brilhante — ele disse ferozmente.
Um pulso de energia afiada vibrava sob sua pele, e os pelos de
seus braços se arrepiaram. — E ela é muito mais poderosa do
que você.
Várias pessoas caíram na gargalhada, e palavras de escárnio
filtraram através do barulho:
— Mais poderosa que Cynthia Cunnington?
— Que piada.
— Todo mundo sabe que a garota Spark é um desastre.
— Ela está inventando isso para chamar a atenção.
— É uma maravilha que os Sparks ainda não a tenham
deserdado.
— Silêncio! — Ozroth explodiu. Um raio azul rachou do
teto ao chão, chamuscando uma mancha preta na frente dos
pés de Cynthia. Ela gritou e pulou para trás.
Ozroth olhou em choque enquanto o caos enchia a sala. Isso
tinha sido uma coincidência, certo? Algum feiticeiro decidiu
fritar o traseiro conivente de Cynthia bem quando Ozroth
estava falando. Mas sua pele formigava com uma energia
estranha e, quando ele ergueu a mão, faíscas azuis dançaram
entre seus dedos.
— O que em nome de Lúcifer?
— Ele me atacou — Cynthia gritou. — Leve-o para fora!
Ozroth estava atordoado demais para protestar quando um
segurança corpulento o levou embora. Mariel também parecia
pasma. Ela se moveu para segui-lo, mas Ozroth balançou a
cabeça.
— Eu vou esperar por você lá fora. — Isto é, supondo que
os mortais não o prendessem. Ele não achava que o que ele –
aparentemente – fez era digno de prisão, mas a América gostava
demais de seu sistema prisional.
Felizmente, o segurança o deixou do lado de fora.
— Não é a coisa mais estranha que aconteceu em uma
reunião geral — disse o homem com um encolher de ombros.
— E, além disso, ela mereceu. — Ele piscou antes de voltar para
dentro.
Ozroth examinou sua mão na luz sangrenta do pôr do sol.
As faíscas azuis haviam desaparecido e parecia o mesmo de
sempre.
Algo tinha acontecido, no entanto. Ele sentiu a eletricidade
crescendo dentro de seu corpo antes de ser liberada tão
espetacularmente. Também não era a primeira vez que ele
sentia aquela energia formigando e estremecendo.
Os barganhadores tinham magia, mas não assim. O que
estava acontecendo?
As portas da Prefeitura se abriram e as pessoas saíram, ainda
discutindo. Ozroth encostou-se à parede de pedra, observando
os postes de luz piscarem e as pessoas caminharem, voarem ou
galoparem para casa.
Mariel e Calladia foram algumas das últimas a sair. A
expressão de Mariel relaxou quando ela viu Ozroth espreitando
nas sombras.
— Graças a Hécate — ela disse, se apressando. — Eu pensei
que eles iriam prendê-lo.
— Por que eles iriam prendê-lo? — Calladia perguntou. —
Ele errou. — Ela cruzou os braços, batendo o pé agitadamente.
— Não que eu necessariamente apoie eletrocutar minha mãe,
mas ela foi horrível lá dentro.
— Eu não... ou eu não queria... — Ozroth parou, sem saber
como explicar o que tinha feito quando ele mesmo não tinha
ideia.
— Isso era magia demoníaca? — Mariel perguntou.
Ozroth balançou a cabeça.
— Não sei o que era.
Ambas as bruxas o estudaram – Mariel com preocupação
contemplativa, Calladia com olhos estreitos de suspeita.
— O que você quer dizer? — Calladia perguntou.
— Eu não faço ideia do que aconteceu. Fiquei com raiva e
então houve um raio.
— Bruxas e feiticeiros costumam ter explosões mágicas
quando estão aprendendo onde e como conjurar suas
habilidades — disse Calladia. — Mas você não é um feiticeiro.
O estômago de Ozroth escolheu aquele momento para
roncar alto. Ele não havia almoçado, percebeu. Maldita seja essa
estranha nova fisiologia com a qual ele estava sofrendo: comer,
dormir, se emocionar e agora relâmpagos?
Mariel tocou seu antebraço.
— Vamos arrumar um jantar para você e depois resolvemos
isso.
— Espere — disse Calladia. — Você não deu espaguete para
ele algumas noites atrás?
Ozroth sentiu um medo crescente. Calladia aparentemente
sabia mais sobre demônios do que Mariel – o que significava
que ela estava começando a perceber que algo estava errado.
A testa de Mariel franziu.
— E?
— Demônios comem, o quê, a cada duas semanas? Então,
por que ele precisa comer agora?
Mariel balançou a cabeça.
— Ele faz três refeições por dia. Eu li sobre demônios na
biblioteca, e você não acreditaria em algumas das bobagens
naqueles livros.
— Certo. — Calladia encarou Ozroth com um olhar
determinado. — Oz, quero que você seja completamente
honesto agora. Pode fazer isso?
A garganta de Ozroth estava seca. Ele engoliu em seco
algumas vezes, folheando suas opções. Ele sabia o que Astaroth
diria – Se não estiver relacionado a uma barganha, sempre
minta para os mortais, e se você não pode mentir, faça a verdade
parecer uma piada – mas mentir para Mariel não parecia certo,
e Calladia parecia capaz de farejar mentiras a um quilômetro de
distância. Mas se ele confessasse suas anormalidades, isso
poderia minar sua missão. Não que ele já não a tivesse
prejudicado...
Mariel voltou os olhos suplicantes para ele e, rapidamente, a
decisão foi tomada. Ele não podia negar nada a ela quando ela
o olhava daquele jeito.
— Eu serei honesto.
— Os demônios como espécie mentem com frequência para
os humanos — disse Calladia. — Verdade ou mentira?
Ozroth hesitou antes de responder. Ele não precisava dar
motivos para Mariel desconfiar dele, mas havia prometido ser
honesto.
— Verdade.
— É exatamente isso — disse Calladia, apontando para ele.
— Ou você está jogando xadrez 3D, ou você é um demônio
estranho.
— Ele é estranho — Mariel confirmou antes que Ozroth
pudesse se defender. Quando ele fez uma careta para ela, ela
encolheu os ombros. — Você não pode negar os fatos.
— Verdade ou mentira? — disse Calladia. — Demônios só
comem a cada poucas semanas.
— Nem todos os demônios — Ozroth disse em uma
tentativa indiferente de desorientar.
Calladia não se deixou enganar.
— Os demônios, como uma espécie, comem a cada poucas
semanas, fora os estranhos chamados Ozroth, o Impiedoso?
Ela teria se destacado como interrogadora nas altas cortes
demoníacas. Ozroth suspirou.
— Verdade.
Mariel estava olhando entre eles, e se perguntou o que ela
estava pensando. Ela o julgaria por não ter contado a ela sobre
seus problemas antes?
— Verdade ou mentira? Demônios, não os chamados
Ozroth, dormem com menos frequência do que os humanos.
Ozroth olhou por cima do ombro, imaginando se poderia
escapar. O gramado em frente à prefeitura era ladeado por
caminhos de concreto que se espalhavam como raios de sol, e
curiosos permaneciam entre a folhagem, provavelmente
esperando por mais anomalias eletromagnéticas.
— Verdade. — ele disse entredentes.
— Verdade ou mentira? Você, Ozroth, o Impiedoso, come e
dorme todos os dias, mesmo que não seja assim que qualquer
outro demônio viva.
— Suas perguntas são redundantes — Ozroth disparou.
Calladia não vacilou.
— Diga.
O ar da noite o envolveu, cheirando a canela e enxofre. Ele
puxou a gola da camisa.
— Verdade.
— Verdade ou mentira? — Os olhos castanhos de Calladia
o perfuravam como uma broca. — Algo está errado com você.
Ozroth mal ouviu o protesto de Mariel sobre o quão rude o
inquérito era. Seus ouvidos zumbiam. Esse era o problema que
ele vinha contornando desde que a alma do feiticeiro estava
ancorada em seu peito, em vez de se mover pacificamente para
o plano demoníaco. Estou quebrado? Ele se perguntou inúmeras
vezes. É este o fim da minha utilidade?
Estou errado?
O suor escorria por sua têmpora. Ele fechou os olhos e
respirou fundo, perguntando-se por que o oxigênio nunca
parecera um recurso raro antes.
— Verdade.
O silêncio se estendeu. Então Calladia falou novamente.
— Bem? O que é?
Pequenos dedos entrelaçados aos dele.
— Você quer falar sobre isso quando estivermos sozinhos?
— Mariel perguntou.
Ele abriu os olhos com uma onda de gratidão e assentiu.
— Estamos indo para casa — disse Mariel a Calladia.
— Ah, vamos. Estávamos prestes a obter respostas.
— Ele tem sentimentos, sabe. Aposto que você também não
gostaria de falar sobre seus problemas em público.
Calladia jogou o rabo de cavalo por cima do ombro.
— Que problemas? Eu sou perfeitamente normal.
Mariel bufou.
— Claro. Você é um indivíduo totalmente equilibrado que
definitivamente não precisa de terapia.
Calladia mostrou a língua.
— Cadela.
— Vaca.
As duas mulheres se abraçaram e Ozroth se perguntou se
algum dia entenderia os humanos. Eles eram inconstantes em
seus humores, mas constantes em seus amores. Suas vidas eram
curtas, mas brilhavam intensamente.
— Vem. — Mariel apertou seus dedos. — Vamos para casa.
Vinte e Dois

Mariel sentou Oz à mesa da cozinha com uma caneca de chá de


camomila. O chá era um bálsamo para muitos males, e Oz
parecia que precisava dele. Ele agarrou a caneca com tanta força
que ela corria o risco de quebrar.
Mariel pegou um tubo da massa de biscoito comprada para
caso de emergência, cortou-a em círculos e colocou no forno.
Ela se sentou em frente a Oz, seu próprio chá perto do cotovelo.
— Bem?
Oz piscou e ela admirou o movimento dos seus cílios
escuros. Ele era tão duro em alguns aspectos, mas os toques de
suavidade a intrigavam. Era óbvio que ele estava vulnerável e
fora do seu espaço.
— Está tudo bem — Mariel encorajou quando ele não disse
nada. — O que quer que esteja acontecendo, não vou julgar.
Seu peito se expandiu em uma respiração profunda.
Quando ele soltou, um pouco da tensão em seus ombros
afrouxou.
— Algo aconteceu seis meses atrás.
Mariel tomou um gole de chá, dando-lhe tempo para
encontrar as palavras.
— Fui invocado para um acordo. Normalmente as pessoas
invocam demônios de forma genérica, mas dessa vez usaram
meu nome. — Ele inclinou a cabeça. — Como você fez.
Ozroth din convosen. As palavras que os colocaram neste
caminho complicado.
— O velho feiticeiro estava morrendo de câncer. Era
doloroso, ele me disse, e ainda lhe restavam meses de morte. Ele
queria fazer uma barganha: em troca de sua alma, eu lhe daria
uma morte imediata e indolor.
— Deve ter sido difícil — disse Mariel.
Oz balançou a cabeça.
— No que diz respeito às barganhas, foi o mais fácil possível.
Sem negociações prolongadas, sem tarefas impossíveis. Eu
perguntei por que ele me escolheu quando qualquer demônio
faria. Ele disse que seu avô me invocou há muito tempo para
salvar as colheitas quando sua comunidade estava morrendo de
fome. Depois disso, o avô nunca mais foi o mesmo.
— Por que não?
Oz hesitou.
— É uma grande coisa desistir de sua alma. Isso muda você
de maneiras que não antecipa. De qualquer forma, o feiticeiro
desenvolveu uma obsessão por demônios depois de ver a
mudança no avô. Ele cresceu e se tornou um estudioso
respeitado, mas nunca se esqueceu de Ozroth, o Impiedoso, e
da barganha que deu vida à sua comunidade, mas também tirou
algo dela. — Ele apertou os lábios, olhando para o chá.
— Então ele queria conhecê-lo? — Mariel perguntou.
— Queria saber o que o avô dele passou. — A boca de Oz se
contorceu. — Não que tenha durado muito tempo.
— E você fez uma barganha para ajudá-lo a passar. — Mariel
passou o polegar pela alça da caneca. — Isso parece gentil.
— Não foi gentil. Era meu dever.
Oz foi tão rápido em discordar que Mariel se perguntou se
esse era um ponto sensível. Astaroth provavelmente o treinou
para desprezar a bondade como fraqueza.
O cronômetro disparou e Mariel correu para o forno. Os
biscoitos estavam dourados e a cozinha se encheu do delicioso
aroma.
— Precisamos deixá-los esfriar — disse Mariel. Então ela
olhou para Oz e reconsiderou. — Na verdade, você
provavelmente vai gostar de gotas de chocolate quente
derretidas.
Ela colocou um prato de biscoitos fumegantes na frente
dele. Oz olhou para eles, parecendo manter um debate interno,
então pegou um e enfiou na boca.
— Tão bom — ele gemeu com a boca cheia. — Obrigado.
— De nada. — Mariel sentiu o rubor de orgulho que vinha
de cuidar de outra pessoa. — Então, o que aconteceu a seguir?
Oz engoliu em seco.
— Ele não estava fazendo sentido no final: misturando
passado e presente, tagarelando sobre preços e presentes. Ele
disse que queria que eu entendesse, mas não disse o quê. — Oz
fez uma careta. — Em retrospecto, eu deveria ter pedido
esclarecimentos, mas queria acabar com o negócio e voltar para
minha toca.
— Você mora em uma toca? — Mariel perguntou, a
curiosidade capturada. — Como... uma toca de texugo? Os
texugos têm tocas?
Os lábios de Oz se contraíram.
— Você e suas perguntas.
— Desculpe. — Mariel voltou a se concentrar. — Conte-me
sobre a toca mais tarde.
— Pedi a ele que formulasse sua metade do acordo — disse
Oz com outra mordida de biscoito —, mas não estava
prestando tanta atenção aos detalhes quanto deveria. Ele ainda
estava divagando, e pensei que fossem apenas palavras
desconexas de um homem velho e confuso. Minha alma para
uma passagem sem dor, disse ele, e que ela passe então para onde
houver dor.
Mariel torceu o nariz.
— O que isso significa?
— Não sei. Ele recitou um feitiço depois disso. Eu pude
entender a intenção geral – ele queria que sua alma fosse para
algum lugar que fizesse bem – então não questionei. Afinal,
todas as almas vão para o plano demoníaco.
A forma de tudo o que aconteceu com Oz era muito
nebulosa para Mariel entender, mas pelo jeito que ele estava
respirando rapidamente, eles estavam perto da revelação. Ela
colocou a mão na mesa com a palma para cima e, depois de um
momento, Ozroth a cobriu com a sua.
Mariel ficou perplexa que uma vez ela achou sua pele quente
revoltante. Ela adorava agora. Era como se enrolar sob um
cobertor em uma noite fria, a tensão em seus músculos se
desfazendo quando ele a tocava.
— Diga-me — ela insistiu. E então, como suborno nunca
dava errado, ela acrescentou em tom bajulador: — Vou fazer
mais biscoitos.
Sua boca se inclinou para um lado.
— São bons biscoitos.
— E estes são comprados em lojas. Vou assar biscoitos do
zero usando minha receita secreta.
— Você barganha muito bem. — Ele estremeceu. — Não
esse tipo de barganha. Isso não foi o que eu quis dizer.
— Tudo bem. — Mariel passou o polegar pelo dedo
mindinho dele. — Eu sei o que você quis dizer.
Pobre Oz. Ele não poderia ser mais diferente do demônio
descrito naqueles livros da biblioteca. Ele estava suando e seus
olhos disparavam como se estivesse traçando rotas de saída de
sua cozinha aconchegante. O que quer que ele estivesse prestes
a confessar devia ser realmente terrível.
— Quando a alma flutua para fora de um corpo, eu abro um
portal para o reino dos demônios, onde a alma se junta a
milhares de outras flutuando no ar. — Sua voz tornou-se
reminiscente. — É uma bela vista. O céu é mais escuro lá, em
um tom que vai de cinza ao roxo ao preto, e as almas brilham
douradas enquanto passam flutuando.
— Como vaga-lumes — disse Mariel. Por mais aterrorizante
que fosse a ideia de perder sua alma, o visual era lindo.
— Você já esteve na China? — perguntou Oz. Mariel
balançou a cabeça. Ela nunca tinha viajado para fora do estado
de Washington. — Já fui algumas vezes, e o mais próximo que
vi do que parece é o Festival das Lanternas. Toda primavera, eles
criam lanternas de papel e prendem uma vela. Ao soltá-las, o ar
quente faz voar as lanternas. O céu noturno se enche delas,
queimando em amarelo e laranja.
— Parece lindo.
Ele assentiu.
— As almas emitem luz, mas também emitem energia.
Sentimo-nos mais alertas, mais saudáveis, mais em paz com cada
nova alma. — Ele esfregou a mão sobre o coração. — Elas
preenchem algo que está faltando fundamentalmente.
Mariel se perguntou quantas outras pessoas receberam essa
visão íntima do plano demoníaco.
— Eu adoraria ver isso — ela disse honestamente.
— Talvez eu possa levá-la algum dia. — A expressão de Oz
era de saudade.
A palavra algum dia fez seu coração disparar. Implicava um
futuro entre eles. Ela apertou a mão dele.
— Então você abriu o portal, e a alma flutuou, e... — Ela se
interrompeu quando Oz balançou a cabeça.
— Não. — Ele fechou os olhos. — Em vez disso, flutuou
para dentro de mim.
O tique-taque do relógio do corredor pareceu alto no
silêncio que se seguiu. Era isso, aparentemente. A revelação que
ela estava esperando.
— Eu não entendo. Foi para dentro de você? Tipo... você
engoliu? — Isso levava a perguntas sobre como passar por uma
alma engolida, mas Mariel estava determinada a permanecer no
caminho certo, então ela esperou que ele entendesse.
Quando Oz abriu os olhos, parecia cansado.
— Não, ela afundou no meu peito e desapareceu. — Ele fez
uma careta. — Aí comecei a sentir coisas. Medo, a princípio.
Mariel tentou entender o que ele estava dizendo.
— Você normalmente não sente medo?
— Não desse jeito. Foi tão forte que caí de joelhos. Então
fiquei com raiva daquele cadáver na cama por tudo o que ele fez
comigo.
Mariel lembrou-se de uma frase de um livro que havia
folheado:

Demônios são mais cerebrais que humanos. Embora os


demônios sintam uma ampla gama de emoções, essas
emoções são silenciosas em comparação com a experiência
humana e carecem das reações emocionais mais intensas
de nossa espécie aos estímulos.
Oz era uma rainha do drama tão mal-humorada que ela
havia descartado isso como um absurdo, mas talvez não fosse.
— Nos dias seguintes, as coisas pioraram — disse Oz. — Eu
podia sentir a alma no meu peito, brilhando, quente e horrível.
Em um momento, eu estava à beira das lágrimas sem motivo, e
então via algo bonito e me sentia feliz. Era uma gangorra de
emoções. — Ele passou a mão pelo cabelo. — Depois vieram as
mudanças físicas. Comecei a precisar comer e dormir todos os
dias. Os sons eram mais altos, as cores mais nítidas, os sabores
mais intensos. — Ele estremeceu. — Foi... É... avassalador.
Os lábios de Mariel se separaram. Ela o encarou, juntando as
peças do quebra-cabeça que era Oz. Não é de admirar que ele
nunca tenha parecido particularmente impiedoso. Não é à toa
que ele tinha mudanças de humor. Ele nunca havia sentido
emoções tão intensamente antes.
— Não consigo imaginar como confuso isso é — disse ela.
— Depois de mais de duzentos anos, me sentir uma pessoa
completamente diferente. Ter que mudar a forma como você
vive.
Ele assentiu.
— Quase morri de fome antes de perceber o que estava
errado. Eu me tranquei no meu escritório, lendo livros para
tentar descobrir o que havia acontecido, e fiquei cada vez mais
fraco nos dias seguintes. Quando comecei a engatinhar, percebi
que era fome, mas estava fraco demais para fazer qualquer coisa
a respeito. — Ele estremeceu. — Então liguei para Astaroth.
— Como ele reagiu?
— Ele ficou horrorizado — disse Oz sem rodeios. —
Absolutamente chocado por ter desenvolvido essa fraqueza.
Mariel franziu a testa.
— Sentir as coisas não é uma fraqueza.
— Para um negociante? É a pior fraqueza imaginável. Como
posso cumprir meu dever se ceder à raiva ou... ou culpa?
Era uma pergunta justa. Mariel não conseguia imaginar
pegar a magia de outro ser, mesmo que o ganho líquido fosse
bom.
— Isso parece difícil.
Ele esfregou a mão no rosto.
— E é.
E agora ele estava preso em outra negociação de almas. A
própria culpa de Mariel se intensificou.
— Esta é a primeira barganha que você teve que fazer desde
que ganhou uma alma?
Ele olhou para sua caneca como se ela contivesse as respostas
para os mistérios do universo.
— Houve outros dois. Uma mulher queria ser uma
supermodelo. Isso foi ok. Mas um homem queria se vingar do
pai. — Ele fechou os olhos com força. — Tive que usar minha
magia para arruinar a vida de um homem, desde sua conta
bancária até sua saúde.
Mariel engasgou.
— Isso é horrível.
— Fiz inúmeras barganhas de vingança ao longo dos anos e
nunca perdi o sono — disse Oz. — Mas quando voltei para o
plano demoníaco depois daquela... eu chorei. — Seu rosto se
contorceu de vergonha. — E Astaroth viu.
Havia um peso em suas palavras que causou um arrepio na
espinha de Mariel.
— Ele te machucou?
Ele balançou a cabeça.
— Não do jeito que você acha, ele nunca me puniu
fisicamente. Mas ele me atacou, disse que eu era um fracasso,
que eu era uma vergonha para os demônios. Ele disse que se eu
não conseguisse me recompor, o conselho teria que me tirar do
cargo.
Se Mariel tivesse a chance, ela colocaria Calladia atrás de
Astaroth para reorganizar os testículos do demônio. Ela
mordeu o lábio inferior.
— Deixar seu cargo seria tão ruim assim? — Se a barganha
trazia sofrimento a Oz, certamente seria melhor para ele
encontrar outro emprego?
— Seria um desastre — disse ele asperamente. — Sem meu
dever, não tenho propósito, não tenho razão para estar vivo.
— Oh, querido. — O carinho escapou de Mariel sem
pensamento consciente. Ela circulou a mesa em direção a Oz.
Ele parecia quebrado, olhando para ela como se ela pudesse
condená-lo. Por falta de ideias melhores, Mariel se sentou no
colo dele e enlaçou os braços no pescoço, brincando com as
pontas macias do cabelo.
Seus olhos se arregalaram e ele respirou fundo.
— O que você está fazendo?
— Confortando você. — Mariel pressionou o ouvido contra
o peito dele, ouvindo a batida constante do seu coração. Ele
cheirava bem, como o sabonete dela, mas com uma nota
picante e esfumaçada por baixo. Como uma sobremesa comida
em frente a uma lareira crepitante. — Você tem motivos de
sobra para estar vivo — disse ela. — E você não deveria ter
vergonha de chorar.
A mão dele pousou em sua cintura, segurando-a perto.
— Demônios não choram — ele disse, a respiração roçando
o cabelo dela. — Principalmente não os barganhadores de
almas.
Ela cutucou o peito dele com o nariz.
— Eu não acho que importa o que os demônios fazem.
Acho que importa o que você faz.
— Essa é a questão. Estou fazendo algo anormal. Sou uma
piada de demônio, dificilmente digno do título de negociador
de almas.
Ela sentou-se ereta e pressionou o dedo nos lábios dele.
— Quieto. — Sua boca trabalhou em torno de palavras não
ditas, e os braços de Mariel se arrepiaram quando seus lábios
roçaram sua pele. — Minha vez de falar.
Ele estreitou os olhos, mas não protestou. A outra mão dele
abandonou um biscoito para descansar na cintura dela
também. Mariel gostou da sensação de ser abraçada por ele, suas
mãos firmes, suas coxas sólidas sob ela. Apesar de todas as
probabilidades, ele a fazia se sentir segura.
— Então você tem uma alma — ela começou. Realização
bateu, e seus olhos se arregalaram. — Ooh, deve ser isso que
causou o raio! Você me disse que uma alma é a centelha interior,
certo? A magia? — Quando ele assentiu, ela sorriu, satisfeita
por ter resolvido um mistério. — Então você tem a magia do
feiticeiro agora. É por isso que se manifestou. — Agora que ela
pensava sobre isso, houve alguns outros incidentes estranhos
com Oz: luzes piscando, lâmpadas estourando, flashes de
eletricidade estática do mesmo tom de azul do relâmpago.
Ele lambeu os lábios e a ponta de sua língua roçou o dedo
dela.
— Você é brilhante. Deve ser isso.
Ela se deleitou com o elogio.
— Então você tem uma alma — ela disse —, e isso o tornou
um pouco mais humano. Os sentimentos, a magia... Você não
é mais apenas um demônio.
Ela sabia que ele ia discutir, então ela colocou a palma da
mão sobre a boca dele.
— Mmph mmph — ele disse, estreitando os olhos em uma
ameaça tão morna que ela não prestou atenção.
— Você pode continuar se odiando — disse ela —, mas não
vejo nada remotamente digno desse ódio. Você é diferente dos
outros demônios agora, e daí? Você é único. Para mim, isso te
deixa mais bonito.
Sua expressão suavizou. Ele mordiscou suavemente a palma
da mão dela, e ela finalmente a ergueu para deixá-lo falar.
— Você acha que eu sou bonito?
A necessidade e a dúvida em sua voz fizeram o coração de
Mariel doer. Ela sabia exatamente como ele se sentia. Quantas
vezes ela esteve tão desesperada por palavras gentis que mal
ousou acreditar nelas quando eram pronunciadas?
Mariel beijou a ponta de seu nariz.
— Oz, eu acho você mais do que bonito. Você é forte e
inteligente. Você deveria estar colhendo minha alma, mas em
vez disso, você continua me animando e me protegendo. —
Outro beijo em sua sobrancelha, que ganhou uma exalação
trêmula. — Você é único em todos os mundos e me sinto
sortuda por conhecê-lo.
Ele a agarrou perto, enterrando a cabeça no espaço onde seu
pescoço encontrava o ombro.
— Eu não quero fazer a barganha — ele disse, as palavras
abafadas por sua pele. — Eu não quero, Mariel. Não suporto
machucar você.
A preciosa e insuportável dor em seu peito estava se
espalhando. Seus olhos ardiam enquanto as lágrimas brotavam.
— Eu sei — ela murmurou em seu cabelo. — Eu também
não quero fazer isso. Na verdade, eu... — Ela lambeu os lábios,
imaginando se poderia, se deveria, confessar essa coisa preciosa
e perigosa. Mas Mariel não era de meias medidas quando se
tratava das pessoas com quem se importava. Ela devia a ele essa
honestidade. — Eu quero que você fique — ela disse através de
uma garganta grossa. — Eu quero namorar você, cortejá-lo. —
Talvez fosse impossível, mas ela estava se apaixonando de
qualquer maneira, seu coração surdo à lógica.
— Mariel — Oz respirou. Ele a puxou para mais perto,
fazendo-a sentar em seu colo. As pernas dela balançavam
desajeitadamente de cada lado das coxas dele, mas antes que ela
pudesse se mover, falar ou mesmo pensar, a boca dele
pressionou contra a dela.
Ele a beijou com a boca aberta, uma paixão desesperada, a
pressão quase machucando. Mariel estremeceu, abrindo os
lábios para recebê-lo. Sua língua estalou sobre a dele, e ele
encontrou sua lambida com a sua própria.
Sua boca estava quente. Quente como o ar acima de uma
vela, como água fumegante, como ficar na beira de um vulcão e
se perguntar como seria cair nele. Mariel não era virgem, mas se
sacrificaria de bom grado por mais essa necessidade ardente. Ela
se balançou sobre seu colo, esfregando-se contra a dureza sob
sua calça jeans.
— Oz — ela sussurrou quando ele se separou para beijar sua
garganta. — Me leva para a cama.
Ele parou com os lábios sobre o pulso dela.
— Tem certeza?
Mariel estava pegando fogo, todo o seu corpo sensível e
ansiando pelo dele. A umidade se acumulou entre suas coxas, e
quando ela se mexeu no colo dele, uma centelha de prazer
passou por ela. Sentindo-se ousada, ela traçou o chifre dele com
o dedo indicador. Ele estremeceu, fazendo um som áspero e
faminto.
Isso era inevitável desde o momento em que ele apareceu em
sua cozinha. E, por mais impossível e errado que fosse, Mariel
não iria mais resistir.
— Tenho certeza.
Vinte e Três

Mariel não tinha certeza do que esperava depois daquela


afirmação. Que Oz a jogasse por cima do ombro como um
homem das cavernas antes de arrebatá-la, talvez. Algo feroz,
ardente e agressivo.
O que ela não esperava era seu suspiro suave e o roçar suave
dos seus lábios. Ele embalou suas bochechas, beijando-a como
se ela fosse delicada e preciosa. Sem arrebatamento nos planos,
aparentemente.
— Eu quero que você saiba que isso é muito especial para
mim — ele murmurou contra sua boca.
— Ah, Oz. — Ela inexplicavelmente sentiu vontade de
chorar com sua doçura áspera. — Você também é especial para
mim. — Oz às vezes a enfurecia e assustada, mas ela se
apaixonou por ele mesmo assim.
Ele descansou sua testa contra a dela, e suas respirações se
misturaram, úmidas e apressadas.
— Eu vou lhe dar tanto prazer — ele jurou, e um arrepio
percorreu a espinha de Mariel. Ele a beijou mais uma vez, então
se levantou, as mãos ancoradas sob sua bunda. Mariel gritou
com o movimento repentino e se esforçou para envolver as
pernas em volta da cintura dele. Talvez houvesse algo
arrebatador, afinal?
Oz caminhou pelo corredor, navegando com precisão
admirável para alguém que estava chupando sua língua. Ele
massageou seu traseiro, e ela mal podia esperar para sentir
aquelas mãos grandes e capazes sobre ela.
Ozroth entrou no quarto escuro.
— Aí. — Seus passos vacilaram quando ele chutou alguma
coisa.
— Desculpe. Esqueci que estava experimentando sapatos
esta manhã. — Ela comparou alguns pares enquanto ele se
escondia no banheiro após a sessão cancelada deles se
esfregando, embora no final ela tivesse ido com suas confiáveis
botas de caminhada.
Agora Mariel estava ansiosa por uma transa decididamente
molhada. Ok, talvez essa não fosse a maneira mais sexy de
colocar isso, mas sua capacidade de pensamento racional estava
diminuindo a cada segundo.
— Como você vive neste caos está além de mim — Oz
murmurou enquanto caminhava em direção à cama.
Ela beliscou sua orelha.
— Você gostaria de continuar me castigando sobre a
limpeza, ou prefere me foder no colchão?
— Bom ponto. — Ele a jogou na cama e Mariel riu. Ele a
seguiu, ajoelhando-se entre suas pernas dobradas. Seu vestido
estava amarrotado, e ela se contorceu ao sentir o jeans dele
contra a parte interna de suas coxas sensíveis.
Ele se inclinou e houve um clique quando puxou a corrente
do abajur de cabeceira. A suave luz dourada inundou o quarto.
Os olhos de Oz ficaram com as pálpebras pesadas enquanto
ele olhava para ela. Quando ele lambeu os lábios, Mariel
estremeceu.
— Eu quero ver cada centímetro de você — disse ele. — Eu
quero ver você desmoronar.
Uau. Os livros da biblioteca não mencionavam nada sobre a
conversa suja dos demônios. Encorajada por seu desejo óbvio,
Mariel descansou as mãos no travesseiro ao lado da cabeça e
arqueou as costas, pressionando os seios contra o decote cavado
de seu vestido com desenhos de girassol.
Oz gemeu e suas mãos cobriram os seios dela.
— Maravilhosos — ele murmurou enquanto os acariciava.
Seus dedos traçaram a borda do tecido. — Mal posso esperar
para colocar minha boca em você.
Mariel se sentia a mulher mais sexy do mundo.
— O que você está esperando? — ela perguntou sem fôlego.
Oz rosnou, então a virou de bruços. Mariel agarrou o
travesseiro enquanto ele desfazia o laço da cintura, afrouxando
a faixa. Ele puxou o zíper para baixo lentamente, o som áspero
excessivamente alto no quarto silencioso. Mariel o ajudou a
tirar o tecido, deixando-a de sutiã e calcinha, ambos verde
limão.
— Se eu soubesse que isso estava acontecendo, teria usado
renda — disse ela.
As mãos dele traçaram sua cintura, então seus quadris
cheios.
— Isto é perfeito. — Ele arrastou um dedo por sua espinha,
então começou a trabalhar no fecho de seu sutiã. Ele xingou
enquanto se atrapalhava com ele, e Mariel conteve uma risada.
Algumas coisas eram universais em todos os planos,
aparentemente.
Ele finalmente tirou o sutiã e o jogou pela sala como um
estilingue. Antes que Mariel pudesse protestar contra o
manuseio arrogante da lingerie, ele a virou de costas
novamente, e então ela não conseguiu pensar em nada além do
fato de que estava deitada quase nua na frente dele.
Seus olhos dourados pareciam mais escuros, as pupilas
dilatadas de desejo. Ele esfregou a mão trêmula sobre a boca.
— Linda — disse ele, olhando para seus seios nus. —
Lúcifer, como você é real?
Mariel se contorceu sob seu olhar de admiração. Ele tinha
mais de duzentos anos, mas os seios dela conseguiram atordoá-
lo. Ela estendeu a mão para cobri-los, sacudindo os polegares
sobre os mamilos rosados.
Oz afastou as mãos dela e assumiu. E oh, suas mãos eram
muito melhores que as dela. Seus dedos eram calejados e
quentes, e o toque suave sobre sua pele fez arrepios aparecerem
por toda parte. Ele massageou seus seios, olhando para seu peito
com algo parecido com admiração.
Quando ele beliscou seu mamilo, Mariel engasgou e
inclinou a cabeça para trás.
— Bom? — ele perguntou, puxando o outro mamilo e
enviando uma pontada de prazer por seu corpo. Ela acenou
com a cabeça freneticamente, apertando os lençóis em seus
punhos. — Bom — ele confirmou. Mariel teve um vislumbre
do seu sorriso presunçoso antes que ele abaixasse a cabeça e
apertasse os lábios em torno de um mamilo.
Se os dedos dele eram bons, a boca era totalmente mágica.
Ele a lambeu, então chupou, e o calor de sua boca intensificou
a sensação. Mariel passou as mãos pelo cabelo dele, depois
esfregou os chifres para encorajá-lo. Eles eram quentes e macios,
e tocá-los o fazia rosnar e chupar com mais força, então ela
continuou fazendo isso.
Ele passou longos minutos beijando, acariciando e
mordiscando seu pescoço e seios, deixando marcas vermelhas
que Mariel esperava que durassem. Ela queria vê-las no espelho
amanhã: prova de que alguém a queria além da razão.
Oz beijou do esterno até o estômago, e Mariel riu quando
ele traçou a língua ao redor do seu umbigo. Quando ele
mergulhou para dentro, ela tentou se esquivar. Ele sorriu contra
sua pele, e Mariel prendeu a respiração. Ela já o tinha visto tão
feliz e animado? Cada centímetro dela que ele explorava parecia
trazer-lhe uma alegria sem fim.
Não parecia justo que ele a beijasse inteira, mas ela não teve
a chance de tocá-lo em troca.
— Tire a camisa — disse Mariel.
Ele se ajoelhou e tirou a camisa, e Mariel suspirou em
apreciação. Seu peito era liso, a pele esticada sobre os músculos.
Ela seguiu os cumes do abdômen com os olhos, lambendo os
lábios com o rastro de felicidade acima da sua cintura. Os
demônios não pareciam tão peludos quanto os humanos, o que
era bom em alguns aspectos – sem queimaduras de barba – mas
aquela pitada de pelos pubianos a deixou com água na boca. Ela
queria segui-los com a língua.
Ela tentou se sentar e colocar o plano em ação, mas Oz a
segurou.
— Ainda é a minha vez.
Ela esfregou as coxas, muito consciente da umidade na sua
calcinha. Ela estava chocantemente excitada, e ele ainda não a
havia tocado abaixo da cintura.
— Depressa, então.
Ele sorriu, lento e sensual, então lambeu o lábio inferior.
— Vocês, humanos, não sabem saborear uma experiência.
Hécate, e se ele a fizesse esperar por horas? E se isso fosse uma
coisa de cortejo e a terceira base estivesse a anos de distância?
Mariel não seria capaz de suportar esse tipo de gratificação
atrasada.
— Estou saboreando — ela argumentou. — Eu apenas
saboreio mais rápido do que você.
Ele riu e apertou seus quadris.
— Impaciente.
— Excitada — ela o corrigiu. Um pensamento perdido a
assaltou, e ela sufocou uma risada na palma da mão.
— O quê? — ele perguntou, os dedos traçando círculos
sobre a pele dela.
— Eu estava pensando que você é o excitado 6. Sabe, por
causa do... — Ela gesticulou para sua cabeça.
Ele bufou.
— Já acabou de fazer piadas? Se sim, eu gostaria de lamber
você.
— Oh. — Mariel corou. — Uh... sim. Faça isso.
Ele deslizou para ela outro daqueles sorrisos maliciosos antes
de descer da cama. Ele puxou sua calcinha, então enganchou
suas pernas sobre seus ombros. Mariel cobriu o rosto com as
mãos, excitada e mortificada ao mesmo tempo.
— Não — disse Oz. Sua respiração soprou quente contra
seus lábios. — Olhe para mim enquanto eu provo você.
Mariel gemeu. Ela não iria sobreviver à noite. Mas ela
levantou as mãos e olhou para o rosto de Oz entre suas coxas.
Ele parecia perverso, com aqueles olhos dourados e chifres
grossos. Como toda essa fantasia que ela nunca soube que era
possível.

6
Em inglês, a escrita das palavras "excitado" e "chifres" são similares.
Ele soprou uma corrente quente de ar sobre seu clitóris, e
Mariel estremeceu. O ar foi seguido por uma lambida vagarosa.
Ele a provou completamente, sua língua girando sobre seus
contornos como se estivesse mapeando-a. Sons gaguejados
escalaram a garganta de Mariel enquanto ele circulava seu
clitóris. Ela agarrou o travesseiro como se isso pudesse impedi-
la de levitar. Não estava em seu conjunto de habilidades mágicas
antes, mas se alguma coisa poderia mandá-la para a estratosfera,
era a boca de Oz.
Ele não estava indo rápido, mas também não estava sendo
gentil. Esse tinha sido o problema de Mariel com oral antes – os
homens tendiam a mexer a língua ineficazmente, não
fornecendo pressão suficiente enquanto também claramente
esperavam que o ato pudesse ser feito o mais rápido possível.
Mas Oz a devorava com intensa dedicação, chupando os lábios
vaginais e depois mordendo a parte interna de suas coxas.
Quando ele arrastou os dentes levemente sobre seu clitóris, um
raio de sensação fez as costas de Mariel arquearem para fora da
cama.
Oz enfiou um dedo dentro dela e Mariel gemeu com o leve
alongamento.
— Hécate, você é bom nisso. O melhor, totalmente... oh! —
Oz aproveitou aquele momento para intensificar seus esforços,
e as palavras voaram da cabeça de Mariel enquanto ele a
devorava como um homem faminto presenteado com um
banquete.
O primeiro dedo foi unido por um segundo, e ele os abriu
antes de enrolá-los para acariciar sua parede interna.
— Apertada — ele grunhiu entre lambidas. — Preciso
deixar você pronta para me tomar.
Mariel fez um som estrangulado em resposta. Seu peito
arfava e a tensão crescia na barriga. Ela nunca tinha gozado com
uma oral antes, mas definitivamente estava subindo aquela
ladeira. Seus quadris balançavam sem pensamento consciente,
inquietos com a necessidade.
Ele bombeou os dedos enquanto chupava o clitóris dela, e
Mariel gritou. Um orgasmo a invadiu em uma onda quente e
pulsante de prazer. Ela estendeu a mão cegamente, agarrando
seus chifres e puxando-o com força contra ela enquanto se
curvava, perseguindo o êxtase trêmulo.
Finalmente, o latejar aliviou e Mariel voltou à terra. Oz ainda
estava indo, rosnando entre lambidas famintas, e Mariel tirou
as mãos dos seus chifres para pressionar sua testa.
— Puta merda — ela respirou, olhando atordoada para Oz
enquanto ele se ajoelhava entre suas pernas e passava o
antebraço sobre a boca. Suas bochechas e queixo estavam
brilhantes com a umidade dela, e as coxas de Mariel tremeram
quando ela olhou para ele. — Isso foi... uau.
Ele sorriu, mostrando até os dentes brancos e aqueles
incisivos ligeiramente longos que pareciam incríveis cavando na
parte interna das coxas dela.
— Você é deliciosa. — A palavra soou deliciosamente
pecaminosa em seu sotaque.
Ela se empurrou para uma posição sentada, lembrando-se de
como maltratou os chifres dele.
— Eu machuquei seus chifres? Eu não queria agarrar com
tanta força.
Ele gemeu e jogou a cabeça para trás.
— Você pode pegar meus chifres sempre que quiser. Foi
bom pra caralho.
Definitivamente não havia nenhum capítulo sobre
cunilíngua demoníaca na biblioteca, mas Mariel estava pronta
para escrever um maldito livro inteiro sobre o assunto.
— Eu estou pegando você para mim — ela deixou escapar.
Então seus olhos se arregalaram. Merda, ela realmente disse isso
em voz alta?
A expressão dele suavizou.
— Mariel...
Desesperada para mudar o assunto de seu futuro incerto,
Mariel alcançou o cós de suas calças.
— Tira.
— Mandona e impaciente — disse ele com um sorriso. Seus
dedos arranharam o botão de sua calça jeans, abrindo-o antes
de puxar para baixo sua braguilha. Ela estava muito impaciente
para esperar que ele tirasse o jeans, então ela enfiou a mão
dentro do tecido solto e envolveu o pau dele.
Grande.
Mesmo que seu toque fosse limitado pelo jeans e pelo
ângulo desajeitado, era óbvio que Oz era dotado.
— A internet estava certa — Mariel respirou enquanto
puxava suavemente para cima e para baixo, sentindo a coluna de
aço de seu pau através do tecido de sua cueca. Ainda não estava
claro se ele tinha farpas no pênis ou algo estranho assim, mas ela
mal podia esperar para descobrir.
— A internet? — ele engasgou quando ela o apertou.
— Deixa para lá. — Oz não precisava saber sobre o
mergulho profundo de Mariel na pornografia demoníaca. —
Tire suas calças.
Sua risada era ofegante quando ele se livrou de seu aperto e
tirou a calça jeans.
— Agora deite-se e me deixe olhar para você.
— Você está dando muitas ordens — ele disse enquanto se
espreguiçava sobre o edredom.
— É a minha vez — disse Mariel, aproximando-se para que
ela pudesse arrastar as mãos pelo peito dele. Ele era lindo, com
um peitoral enorme e tanquinho. O V sagrado conduzia a cueca
boxer preta, que estava marcada com uma ereção.
Mariel precisava colocar seus olhos, mãos e boca naquele
pau, nessa ordem. Ela se curvou e agarrou o cós da cueca dele
com os dentes, puxando-a para baixo. Ele fez um som surpreso
e Mariel sentiu uma onda de orgulho. Ele podia ter mais de
duzentos anos de experiência, mas ela tinha alguns truques na
manga.
Ela finalmente teve que usar as mãos para tirar a cueca
totalmente. Nesse ponto, Mariel sentou-se sobre os
calcanhares, os olhos grudados no que já era seu pau favorito no
mundo. Não havia farpas ou qualquer coisa de aparência
alienígena, mas era grosso e longo, a pele mais avermelhada e
escura do que seu tom de pele naturalmente dourado. A boca
de Mariel encheu-se de água quando ela olhou para as veias se
retorcendo na lateral. Talvez seus olhos fossem maiores que seu
estômago metafórico, mas ela ia sugar o plano demoníaco
daquele pau.
— Não é tão grande quanto aquele vibrador que você
invocou — disse Oz, e espere, ele realmente parecia
constrangido?
Os olhos de Mariel se fixaram nos dele.
— Oz — ela disse muito séria —, este é o pênis mais perfeito
que eu já vi na minha vida. Realmente, o ideal de Platão de
pênis.
Seus olhos se enrugaram enquanto ele ria.
— Você tem jeito com as palavras.
— Eu tenho jeito com mais do que apenas palavras. —
Mariel tinha lido em pânico muitos artigos sobre boquetes
antes de fazer seu primeiro na faculdade, e ela gostava de pensar
que era boa. E se ela não fosse boa, pelo menos era
entusiasmada, o que contava para alguma coisa, certo?
Só havia uma maneira de saber se Oz concordava. Mariel
mergulhou na teoria das formas com a boca de Platão, abrindo
os lábios para sugar a cabeça de seu pênis.
— Porra! — Ele latiu o xingamento, seu torso saindo da
cama. Mariel se moveu até que ela estava montando sua coxa,
então levou seu pênis mais profundamente na boca. Ele tinha
um gosto bom, uma mistura almiscarada de sal, fumaça e
especiarias. Ela envolveu um punho ao redor da base,
bombeando no ritmo com a cabeça – ela era ambiciosa, mas
não ambiciosa o suficiente para tentar engolir aquele pau
inteiro sem muita prática.
Oz estava enlouquecendo. Ele xingava e se mexia, fazendo
barulhos sensuais e desesperados enquanto ela o chupava. A
mão dele pairou sobre o cabelo dela, então ela o agarrou e
pressionou contra a cabeça, piscando para que ele soubesse que
podia puxar o cabelo dela se quisesse. Quando ele apertou as
raízes, Mariel gemeu e apertou com mais força contra ele.
— Irreal — Oz rangeu os dentes. Os tendões em seu pescoço
estavam rígidos quando ele apertou a mandíbula, mostrando os
dentes. — Porra, tão bom.
Mariel enroscou sua língua ao redor dele como se estivesse
chupando um pirulito. Sua mandíbula estava começando a
doer, mas ela não desistia. Se ela pudesse fazer esse demônio
desmoronar, ela o faria.
Abruptamente, ele puxou seu cabelo para afastá-la. Seu
pênis escorregou para fora de sua boca com um estalo suave
quando a sucção acabou, e Mariel fez beicinho por tê-lo tirado
dela.
— Eu quero que você goze na minha boca — ela reclamou.
Oz estremeceu todo.
— Da próxima vez, velina.
Ela não estava familiarizada com a palavra.
— Vel... O quê?
Ele esfregou a palma da mão no rosto.
— É Velho Demonish — ele murmurou, parecendo
envergonhado por ter escapado. — Um termo carinhoso.
Mariel gostou do som disso.
— Você também é meu velina?
— Velina é a versão feminina. Mas eu poderia ser seu velino.
A versão neutra em termos de gênero é veline.
— Meu velino. — Ela tentou a palavra. — Nesse caso, meu
velino, por que não posso te chupar?
Seu peito subia e descia com respirações irregulares, e suor
brilhava em sua pele.
— Porque eu quero te foder agora.
Ela ofegou uma respiração. Ok, Mariel poderia embarcar
nesse plano.
— Entendido — ela disse, então se encolheu internamente.
Ela não tinha a afinidade demoníaca com conversa obscena.
Oz não parecia se importar – ou mesmo notar – sua falta de
jeito. Ele a olhou como se ela fosse o centro de seu universo, os
olhos cheios de promessas sombrias.
Mariel não tinha capacidade ou paciência para pesquisar o
potencial de problemas interespécies, então abriu a mesinha de
cabeceira e pegou uma camisinha. Ela sempre foi otimista,
então havia algumas Magnums espalhadas com preservativos de
tamanho normal. O demônio era definitivamente digno de um
Magnum.
Ela mordiscou o lábio, olhando para a longa e linda extensão
do seu corpo.
— Que posição você quer? — Ela adoraria tê-lo em cima
dela, empurrando-a contra o colchão, mas também gostava da
ideia de poder observar todos os seus músculos. E ela não diria
não para ser comida por trás...
— Eu quero que você me monte — ele disse imediatamente.
— Pelo menos no começo. Até você se acostumar com o meu
pau.
Mariel estremeceu.
— E depois?
— Depois — ele disse, lambendo os lábios —, eu faço o que
quiser com você.
Era um sentimento arrogante, mas Oz era um demônio
arrogante, e Mariel estava excitada demais para protestar. Ela
nunca se considerou excêntrica antes, mas se Oz queria
arremessá-la um pouco enquanto rosnava imundície em seu
ouvido, ela estava mais do que disposta. Ela montou sobre ele,
os dedos tremendo enquanto abria o pacote da camisinha. Fazia
anos, e ela nunca quis ninguém tanto quanto ela o queria. Ela
alisou o preservativo sobre seu eixo, então mudou até que a
ponta de seu pênis estivesse pressionada contra ela.
— Você não dá nó, não é? — ela deixou escapar.
Sua testa franziu.
— O que é um nó? — ele perguntou, claramente lutando
para se conter. Seus dedos flexionados em seus quadris.
Ela nunca teve que explicar isso a ninguém antes, já que era
um conceito comum nos cantos esquisitos da fanfic online –
cantos que ela havia visitado muitas, muitas vezes. Afinal, o
tesão não desaparecia quando você era solteira; apenas exigia
outras saídas.
— É uma coisa de fanfic que envolve paus inflados, e já que
você é de outra espécie...
— Paus inflados? — Ele parecia horrorizado.
— Não o pau inteiro. Só a base, então a mulher não pode...
— Mariel se interrompeu ao ver seu alarme se intensificar. —
Sabe de uma coisa? Vamos fingir que eu nunca disse isso.
Ele acenou com a cabeça freneticamente.
— Sim, por favor.
Confie em Mariel para tornar as coisas estranhas a meros
milímetros da penetração. Ela respirou fundo, então colocou
seu melhor sorriso sensual.
— Você está pronto?
— Sim! — Oz latiu.
Mariel agarrou seu pau para posicioná-lo.
— Faz alguns anos que não faço isso.
— Não faço isso desde meados do século XX. — Ele parecia
à beira de um colapso. — Por favor, faça isso agora.
Mariel se sentiu poderosa enquanto arrastava seu pênis para
frente e para trás sobre sua boceta, aparentemente única em um
século.
— E quanto à gratificação adiada? — ela provocou. — Você
deveria saborear a experiência.
— Porra! — Ele fechou os olhos com força. — Esqueça tudo
o que eu já disse.
— Com prazer. — Mariel começou a afundar e, oh, o
alongamento era excelente. Ele era quente, duro e grosso, e cada
centímetro ameaçava deixá-la sem fôlego. Quando ela estava
totalmente sentada, Mariel exalou com força. Ela tentou falar,
mas apenas um gemido saiu.
Oz não parecia estar melhor.
— Dê-me um momento — ele engasgou.
Mariel poderia usar um momento para si mesma. Ela estava
tão esticada, que jurou que podia senti-lo pulsar dentro dela.
Ela mexeu os quadris experimentalmente, e o gemido de Oz a
estimulou. Depois de uma pausa de cortesia para deixá-lo se
recompor, Mariel apoiou as mãos em seu peito e começou a
cavalgar, saboreando o arrasto pesado de seu pênis.
Os dedos de Oz cavaram em seus quadris, e seus músculos
flexionaram enquanto ele combinava com seu ritmo. Sim,
Mariel gostava muito deste ponto de vista.
Ele murmurou coisas baixinho, elogios e palavrões. Mariel
pegou referências a seus seios, quadris, lábios, suas... botas de
caminhada? Havia muito que Oz apreciava nela,
aparentemente, mas ele não era coerente o suficiente para
Mariel obter os detalhes.
Ela agarrou a cabeceira da cama para alavancar e o montou
com mais força. Quando ele manuseou seu clitóris, ela
engasgou.
— Sim!
Ele atingia um ponto perfeito dentro de si com cada
estocada, e seu olhar de determinação de aço disse a ela que isso
não terminaria até que estivesse totalmente satisfeita. Mariel
relaxou com o conhecimento, fechando os olhos enquanto se
movia como uma onda do mar. Ela já sentia o aperto revelador
de um orgasmo iminente.
Oz a ergueu de cima dele e a cabeça de Mariel girou.
— O qu...? — A pergunta foi respondida quando ele a
posicionou sobre as mãos e os joelhos. — Sim — ela ofegou
quando ele se ajoelhou atrás dela. Ela se acostumou com seu
pau, e agora ele faria o que quisesse com ela.
— Você é minha — ele rosnou, reentrando nela em um
impulso rápido.
Mariel gritou com a penetração aprofundada. Oz passou um
braço por baixo dela, apertando seu seio enquanto se curvava
sobre ela, o abdômen suado pressionando contra suas costas.
Sua outra mão caiu para trabalhar em seu clitóris, e Mariel
soltou um som estridente e choroso que ela nunca tinha feito
antes em sua vida.
— Sim, sim, sim — ela cantou. Seus seios balançavam com
cada impulso pesado, e a pressão em seu clitóris iria mandá-la
através do telhado. Então ele beliscou seu clitóris entre dois
dedos calejados, e o prazer cresceu em algo incontrolável.
Seu orgasmo explodiu em uma onda de calor. Enquanto sua
boceta tremulava ao redor dele, Mariel gritou, os braços
cedendo até que o antebraço dele entre seus seios era a única
coisa que a sustentava.
Oz continuou empurrando, murmurando imundície e
elogios em seu cabelo.
— Apertada e molhada. Bruxa perfeita. Velina, quero te
foder para sempre. — Mas até mesmo os demônios eram
vítimas de sua biologia, e ele gozou depois de mais algumas
estocadas, gritando tão alto que os ouvidos de Mariel
zumbiram.
Ele caiu de lado, levando Mariel com ele. Ela ofegou,
sugando o ar como se tivesse corrido uma maratona. Sua cabeça
girava com hormônios vertiginosos, feromônios,
neurotransmissores e Hécate sabia o que mais, como se um
fogo de artifício mágico tivesse explodido em seu cérebro. Seus
dedos das mãos e pés formigavam.
— Porra — disse Oz.
— Uau — ela disse em resposta.
— Isso foi...
— Sim.
Parecia que ela tinha recebido luz do sol direta. Mariel sorria
tanto que suas bochechas doíam. Ela finalmente fez sexo com
seu demônio, e a única coisa que ela queria saber era quando
poderiam fazer isso de novo.
Vinte e Quatro

Haviam algumas experiências tão profundas, tão perfeitas, que


não podiam ser colocadas em palavras. Ozroth respirou o
cheiro do cabelo de Mariel, sentindo-se feliz.
Ele já esteve tão relaxado? Ele poderia ter derretido nos
travesseiros.
— Os demônios têm que esperar para funcionar?
A pergunta de Mariel o tirou do estupor.
— Hum? — Como ela era capaz de juntar palavras?
Ela se contorceu contra ele. Lúcifer, havia uma mulher mais
sexy em todos os planos? Suas curvas eram tentadoras sob as
roupas; completamente nua, ela era uma deusa.
— Eu estava me perguntando quando você podia ir de novo
— disse ela.
Ozroth gemeu. Ela o fazia se sentir capaz de feitos
impossíveis, mas isso estava um pouco além do seu poder.
— Você pode esperar vinte minutos ou fazer uma barganha
por uma ereção instantânea.
Mariel riu, e um sorriso de resposta surgiu em seus lábios. A
barganha da alma ainda era um assunto delicado, dolorido
como uma contusão quando pressionada com muita força, mas
ser capaz de brincar tornava mais fácil de suportar.
Mariel aninhou-se mais perto dele.
— Existe um cronograma para quando precisamos fazer um
acordo?
Ozroth ainda estava com morte cerebral por ter gozado com
tanta força que via manchas. Ele inspirou profundamente,
esperando que o oxigênio ajudasse.
— Hum — ele disse. Não é um bom começo.
Mariel se contorceu para encará-lo.
— Eu estava pensando.
Pelo menos um deles estava.
— Sobre o quê? — Ele foi cativado pelas sardas em seu nariz
e pelo brilho rosado pós-coito de suas bochechas. Talvez vinte
minutos fosse uma estimativa exagerada.
— Terra para Oz. — Ela cutucou o peito dele. — Sobre o
acordo, é claro.
— Certo. — Como ele nunca percebeu quantos tons de
verde e dourado havia em seus olhos castanhos? Eram um
caleidoscópio de cores terrosas, como os bosques que ela tanto
amava.
— Demônios vivem para sempre, certo?
Onde ela queria chegar com isso?
— Sim.
— Então seus cronogramas são mais longos que os nossos,
certo? Tipo, você disse que o cortejo leva anos.
Ele assentiu. Sua mão se moveu para a bunda dela, onde ele
agarrou um punhado de carne macia e sexy. Sim, ele
definitivamente poderia superar a estimativa de vinte minutos.
Como ele deveria comê-la a seguir? Contra a parede?
— Entããão... — Ela desenhou a palavra. — E se você ficar
aqui por um tempo? Assim, podemos pesquisar como sair do
negócio. E se não conseguirmos encontrar uma saída, talvez
você possa ficar mais tempo. Tipo... setenta anos ou mais.
Isso colocou seu foco de volta no lugar.
— O quê?
Ela parecia envergonhada, mordiscando o lábio enquanto
suas bochechas ficavam ainda mais vermelhas.
— Eu sei que é uma proposta grandiosa, mas você não quer
tirar minha alma, e eu também não quero abrir mão dela.
Então, e se mantivermos o acordo até que eu esteja pronta para
morrer?
O pensamento de Mariel morrendo era como água gelada
despejada sobre sua cabeça. Ele a agarrou com mais força, até
que o nariz dela ficou pressionado entre os peitorais dele.
— Eu não quero pensar em você morrendo — ele disse
ferozmente.
— Eu também não — disse ela, a voz abafada. Ele relaxou
seu aperto desesperado, dando-lhe espaço para respirar. — Mas
é inevitável. Então, e se você ficar na Terra comigo e levar minha
alma quando eu estiver pronta para desistir dela? Não
estaríamos ignorando o acordo, apenas adiando-o.
Ele revirou sua proposta na cabeça. Astaroth ficaria
extremamente descontente. Mas Mariel estava certa: os
cronogramas dos demônios eram longos.
A indignação se agitou no peito de Ozroth ao pensar na
aposta de Astaroth. Por que ele deveria sacrificar esta bela
mulher – e seu próprio coração – apenas para que Astaroth
pudesse ganhar pontos na eterna competição de mijo em que
os demônios anciões se engajavam? A luta interminável pelo
poder não significava nada para ele, afinal, e Mariel significava
muito.
Ele imaginou: ficar em Glimmer Falls, talvez se mudar para
uma casa perto de Mariel (ele tinha muito dinheiro humano
depois de séculos economizando e investindo). Ele poderia vê-
la todos os dias, se ela quisesse. Ele poderia aprender a cozinhar,
preparar o café da manhã para ela, limpar a casa dela. Ele podia
garantir que ela sempre dormisse em lençóis bem dobrados.
Setenta anos não era tanto tempo para um demônio,
embora observar ela envelhecendo fosse uma agonia. Ozroth
passou mais tempo do que isso em êxtase, sua vida imutável,
exceto a cada novo acordo. Era, no entanto, um tempo muito
longo para os humanos.
— Você se cansaria de mim — disse ele.
— Não, eu não cansaria.
— Eu teria que ficar perto de você. Não à vista, mas perto o
suficiente para que você me veja o tempo todo.
Ela se contorceu para conseguir mais espaço para olhar para
ele.
— Você odiaria isso? — A vulnerabilidade em seus olhos
ameaçou quebrá-lo.
— Lúcifer, não. Eu amo estar perto de você. Mas você
merece mais da vida do que ser sobrecarregada com um
demônio mal-humorado quando poderia estar com alguém
normal. — Quando a palavra amor saiu de sua boca, seu
coração disparou e ele de repente entendeu por que os
humanos davam tanta importância às menores palavras. Ele
não tinha confessado amá-la, mas estava perto o suficiente, e
essas palavras seriam inevitáveis se ele ficasse perto dela.
Era uma loucura. Como ele pode ter se apaixonado tanto,
tão rápido?
Mariel torceu o nariz.
— Eu não quero alguém normal.
— Mas você merece alguém normal — ele argumentou. —
Alguém que pode fazer feitiços com você, que vai te dar filhos e
envelhecer ao seu lado.
— Você pode fazer feitiços. Esqueceu?
Na névoa pós-orgásmica, ele realmente havia esquecido seu
bizarro novo talento mágico.
— Não é a mesma coisa.
Ela estava desenhando um padrão em seu peito com a ponta
do dedo, mas sua mão parou.
— Não há problema em dizer que você não quer ficar preso
a mim — ela disse calmamente. — Você não precisa dar
desculpas.
Essa era a última coisa que ele queria que ela tirasse disso.
— Não! Não é isso.
— Então, o que é? Por favor, seja honesto comigo.
Ele respirou fundo, tentando pensar na melhor forma de
expressar tudo em sua cabeça. Havia uma razão para ninguém
pedir aos homens que executassem tarefas complexas
imediatamente após o orgasmo. O sangue se acumulou no pau
dele, não no cérebro.
Ele sabia uma verdade fundamental, no entanto.
— Eu não sou bom o suficiente para você.
Mariel sentou-se, parecendo indignada.
— Besteira — disse ela, cutucando-o no braço. — Você é
incrível.
Ele balançou a cabeça.
— Tudo o que fiz em toda a minha vida foi tirar a alma das
pessoas. Não tenho amigos de verdade, nem família, poucos
hobbies. Eu estive infeliz por tanto tempo, e você... você é como
o sol saindo de trás de uma nuvem. Você torna tudo brilhante e
quente. — Os poucos dias que ele a conhecia foram alguns dos
melhores de sua vida, mesmo com suas discussões e a ameaça
existencial da barganha pairando sobre eles.
— Isso é muito fofo. — Seus lábios tremeram em seu sorriso.
— Mas você me faz sentir brilhante e quente também.
Ele bufou.
— Acho isso difícil de acreditar. — Ela se cansaria dele
rapidamente.
— Você está questionando meu julgamento? — O tom de
Mariel se aguçou.
Os olhos de Ozroth se arregalaram. Ele se sentou para
encará-la.
— Não, isso não é...
— Porque eu não preciso que você fale por mim. — Ela
cruzou os braços.
Lúcifer, ele estava bagunçando tudo.
— Eu não estava – ou não queria...
— Se você não quer ficar comigo, diga — ela disse, falando
sobre seu protesto gago e meio formado. — Se você preferir
continuar tentando levar minha alma, diga-me. Precisamos
estar na mesma página.
— Eu poderia me esconder. — As palavras explodiram dele.
— Assim que você se cansar de mim. Talvez eu possa construir
túneis subterrâneos para que você não precise me ver. —
Setenta anos no subsolo não seriam tão ruins. Ele poderia trazer
seus livros para cá, recriar sua toca. Perto o suficiente para ter
certeza de que ela estava bem, mas longe o suficiente para que
ela não tivesse que tolerar vê-lo o tempo todo.
Uma dor aguda em seu braço o fez pular.
— Ai! Você me beliscou?
Ela não parecia nem um pouco arrependida.
— Você estava em parafuso. Por que você acha que eu iria
querer que você se escondesse no subsolo?
— Eu te disse. — Sua voz estava ficando mais alta. — Você
merece mais do que eu.
Ela acenou com a mão.
— Ignore esse sentimento ultrajante por um momento.
Concentre-se em seus sentimentos. Se você pudesse ficar aqui
na Terra comigo em vez de levar minha alma imediatamente...
Você gostaria de fazer isso?
A pergunta caiu pesadamente entre eles, uma linha de
demarcação entre o que era e o que poderia ser.
— Sim. — A confissão foi tão silenciosa que foi menos que
um sussurro.
Mariel ouviu, no entanto. O rosto dela se transformou com
uma alegria tão brilhante que o deixou sem fôlego.
— Então arrisque — ela disse, subindo em seu colo e
envolvendo seus braços ao redor de seu pescoço. — Fique
comigo. Talvez encontremos uma maneira de sair do acordo,
mas aconteça o que acontecer... eu quero dar uma chance a isso.
Ficar na Terra. Desafiar a ordem de Astaroth de entregar a
alma de Mariel até o final do mês. Seria um escândalo no plano
demoníaco e arruinaria o que restava de sua reputação – que
tipo de negociante abandonava sua posição por amor a uma
mortal? A reputação era delicada de qualquer maneira,
facilmente perdida por uma série de razões. Quando ele ganhou
uma alma, os mesmos negociadores que o elogiavam foram
rápidos em considerá-lo um fracasso. Por que o julgamento
deles deveria moldar suas ações?
A ideia de arriscar a segurança de seu povo era mais difícil de
aceitar, mas havia outros negociadores de almas para continuar
o trabalho. Ozroth voltaria em algumas décadas, assim que
Mariel morresse. Sem ela, ele não teria nada pelo que viver a não
ser o dever.
— Então? — Mariel perguntou, com covinhas nas
bochechas e olhos brilhando. O que quer que aconteça em
setenta anos, agora ela estava vibrante e sorridente em seu colo,
e isso era tudo que ele precisava. — O que você diz?
Pela primeira vez, Ozroth não sentiu o peso do dever ou da
honra pressionando-o. Setenta anos passariam rápido demais, e
talvez ela pedisse a ele para se mudar para o subsolo e sair de vista
em alguns anos, mas Ozroth aceitaria o tempo que pudesse.
Com Mariel em sua vida, os dias, meses e anos seriam mais ricos
do que ele jamais imaginou.
— Sim. — A boca dele se esticou em um sorriso que
combinava com o dela. — Eu digo sim.
Mariel gritou, então plantou um beijo alto e estalado em
seus lábios. Ele riu e a beijou de volta, exalando suas esperanças
hesitantes na boca dela. Seu coração disparou e o frio na barriga
estava de volta, enchendo seu peito com a vibração de mil
possibilidades brilhantes.
Ozroth, o Impiedoso, existia há mais de duzentos anos.
Hoje à noite, ele finalmente começaria a viver.
— Então — Mariel disse contra seus lábios depois que seus
beijos ficaram desesperados. — E aquele período de espera para
um demônio?
Em resposta, Ozroth a virou, perseguindo sua risada
brilhante até a cama.
Vinte e Cinco

— O que você acha disso?


Ozroth aceitou o sorvete que Mariel estava empurrando em
seus lábios. Ele lambeu a colher de plástico rosa e fez uma careta.
— Que sabor é esse?
— Expresso. O que, você não gostou?
Eles pararam perto de um caminhão de sorvete na
extremidade sul da praça da cidade. A rua estava fechada para o
tráfego, e tendas coloridas desabrochavam como flores em
todos os lugares que ele olhava. O Festival de Outono de
Glimmer Falls estava em andamento e Mariel ficou muito feliz
em mostrar a Ozroth uma variedade de comida, artesanato e
competições mágicas bizarras na última semana.
Ela era uma visão hoje, seus cachos castanhos presos com um
prendedor de ouro, suas curvas embaladas em um vestido
decotado e transpassado cor de vinho. Cada vez que olhava para
aquele cinto, ele se imaginava soltando-o com os dentes.
Ele arrastou sua atenção de volta para o assunto em questão.
— Tem gosto de terra doce — ele disse honestamente.
Ela revirou os olhos.
— Algum dia eu vou fazer você gostar de café.
Ela dizia coisas assim facilmente agora. Algum dia. Toda vez
que ela mencionava o futuro tão casualmente, Ozroth sentia
uma onda de felicidade. Esta semana inteira foi como andar nas
nuvens. Com essa leveza, porém, veio o medo insidioso de que
não poderia durar, de que eventualmente ele cairia no chão.
Ela inclinou o queixo para o copo dele.
— Como está o seu?
Ele levou a colher aos lábios dela, sentindo um aperto
familiar abaixo da cintura enquanto ela envolvia a língua
lascivamente antes de piscar para ele. Eles não conseguiam tirar
as mãos um do outro desde a primeira noite. Agora que a
questão da barganha havia sido deixada de lado, Ozroth se
dedicou a aprender exatamente como ela gostava de ser beijada
e tocada, e Mariel retribuiu ansiosamente.
Mariel cantarolou com a boca cheia de sorvete.
— Xarope de abóbora? Uma escolha incomum para um
demônio grande e mau.
— Gosto do sabor. — Ele gostava do sabor de todos os tipos
de coisas doces, estava descobrindo: biscoitos, bolo, mel, chá,
torta e, sim, qualquer coisa com sabor de abóbora e especiarias.
Ele se inclinou, roçando os lábios em sua orelha. — Mas eu
gosto ainda mais do seu gosto.
Ela deu um tapa no peito dele de leve.
— Galanteador.
As bochechas de Ozroth doíam de tanto sorrir. Isso era uma
coisa? Alegria tão potente que invadia a pele e os músculos?
— De qualquer forma — ela disse, virando-se para olhar
para uma performance no gramado —, você pode ser uma vadia
básica, mas você é minha vadia básica.
— Eu sou sua... o quê?
— Não se preocupe com isso. Vamos assistir os malabaristas!
Ela o arrastou até o gramado, onde uma trupe de
malabaristas se apresentava em frente à fonte. Ozroth olhou
para a água com desconfiança, imaginando se alguém estava
nadando nu.
Um dos malabaristas estava jogando pinos de boliche em
chamas para o alto. Ozroth estendeu a mão com seus sentidos
demoníacos e ficou surpreso ao perceber que o homem era um
humano comum. Como ele estava fazendo isso sem lançar um
feitiço? Verdadeiramente, os humanos podem ser
incrivelmente maravilhosos.
Os outros malabaristas tinham inclinações mágicas. Eles
jogavam bolas de luz crepitantes uns nos outros, misturadas
com facas, cadeiras, bolas de futebol e... Aquilo era um gato? O
público aplaudia enquanto os itens giravam acima, às vezes
mudando de trajetória no ar. Quando uma bola de futebol saiu
do curso em direção à fonte, alguém saiu da água.
— Cabeçada! — A náiade de topless – Rani, ele lembrou –
gritou enquanto dava uma cabeçada na bola de volta ao jogo.
Bem, isso respondia à questão de saber se alguém estava ou
não tomando banho nu. Um tentáculo azul manchado saiu da
água em seguida, e Rani deu um high-five nele. Ninguém na
multidão piscou.
— O que é aquilo? — Ozroth perguntou alarmado.
Mariel olhou para o tentáculo agora se debatendo.
— Ah, é só Jenny — disse ela. — Monstro tentacular local,
amigável.
Ozroth olhou de soslaio para as fileiras de otários.
— Se você diz.
Glimmer Falls estava cheia de esquisitices semelhantes, e
Mariel o arrastou para uma variedade de eventos e
apresentações incomuns nos últimos dias. Houve um
equilibrista, um prognosticador, uma trupe de fadas dançando
no ar, uma peça de pantomima representada por metamorfos e
muito mais. Entre os eventos, eles experimentaram muffins,
vinho quente, sidra com especiarias e guloseimas de inúmeras
competições de culinária. Quando ele perguntou por que
Mariel não competia, ela disse que cozinhava por prazer, não
para ganhar algo.
— E além disso — ela disse, piscando para ele —, o
Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico é meu evento
principal.
O concurso das flores aconteceria no dia 31 de outubro,
último dia da festa. Mariel estava se preparando para isso
febrilmente, visitando sua estufa várias vezes ao dia para
sussurrar para as plantas, regá-las e alimentá-las com magia. Ela
estava trabalhando em sua vitrine agora – uma mistura
brilhante e colorida de flores em vasos pintados à mão que
repousavam sobre uma mesa coberta por um tecido dourado
brilhante.
Ele ficou surpreso com a habilidade dela em pintar os potes.
Cenas realistas de plantas e animais pareciam saltar da cerâmica,
os pigmentos infundidos com um brilho de pó mágico.
Themmie forneceu o pó, sacudindo as asas sobre uma tigela
enquanto reclamava em voz alta sobre aquilo ser indigno. O pó
tornava os pigmentos ainda mais vibrantes e adicionava
dimensão, fazendo com que as imagens parecessem se mover.
Mariel tinha paciência infinita e atenção aos detalhes para
cozinhar, jardinagem e pintar – então por que ela tinha
dificuldade para trazer a mesma atenção para sua magia?
Mesmo praticando todos os dias, seu feitiço era imprevisível, e
Ozroth precisou encurralar mais de um animal assustado que
apareceu em sua cozinha.
Comer biscoitos, rir e reunir gansos assustados não era como
ele imaginava passar seus dias, mas agora ele não queria fazer
mais nada.
— Quer visitar a floresta? — Ozroth perguntou, olhando
para o sol poente. Mariel ia todos os dias com suas amigas para
protestar contra a construção em andamento, separando-se
para procurar áreas mortas. Ela encontrou várias, infelizmente;
a podridão negra parecia estar se espalhando, escorrendo dos
tocos das árvores e transformando trepadeiras verdes em
emaranhados enegrecidos. Embora ela tenha sido capaz de
curar todos os pontos com sua magia – uma área na qual ela
nunca teve dificuldades – o esforço estava cobrando seu preço.
Foi a única desvantagem da semana passada, além da
crescente paranoia de Ozroth de que essa felicidade não poderia
durar. Mas Mariel ignorou seus argumentos de que ela
precisava descansar.
— A floresta é como minha família — ela disse a ele quando
a incentivou a fazer uma pausa, alarmado com as olheiras
exaustas sob seus olhos. — Até descobrirmos o que está
causando isso, preciso fazer tudo o que puder para ajudar.
Mariel trabalhava de manhã, então Ozroth dedicava essas
horas para pesquisar na biblioteca. Mariel o informou que ele
estava sendo um esnobe sobre os livros humanos, então ele
concordou em investigar as possíveis causas da podridão negra
– bem como continuar sua busca por uma maneira de encerrar
a barganha.
— Não é que eu queira que você vá embora — Mariel havia
explicado. — É que eu quero você aqui por sua própria
vontade. Eu quero que seja sua escolha de verdade.
Já era uma escolha. Ele estava escolhendo ir contra tudo o
que havia aprendido sobre o propósito de sua vida. Mas ele
sabia o que ela queria dizer. Se a questão da barganha fosse
resolvida, não haveria nada pairando sobre eles. Bem, nada além
dos problemas inerentes de um imortal cortejando um mortal,
mas Ozroth se recusava a pensar nisso. A vida já era complicada
o suficiente.
Agora Mariel olhou para o relógio alto.
— Oof, sim. Acho que Themmie já está lá.
Eles seguiram para o leste a pé, serpenteando pela multidão
de foliões. Quando uma voz familiar interrompeu a conversa,
Ozroth estremeceu.
— Yoo-hoo! Mariel, querida! Oz! Olááá!
Mariel gemeu.
— Eu esperava que não tivéssemos que vê-la até o jantar em
família.
— Nós temos que ir para isso de novo? — Ozroth
perguntou com medo crescente. Era sábado, o que significava
apenas mais um dia livre da loucura da família Spark.
— Acontece toda semana. Não é opcional. — Ela andou
mais rápido.
— É opcional se você tornar opcional — ele argumentou,
alongando seus passos para acompanhá-la. Ela estava quase
correndo agora. — Você só precisa dizer não.
— É mesmo? — Mariel parou abruptamente na calçada. —
Então você diz a ela.
— Espere...
Era tarde demais. Diantha Spark estava sobre eles, uma
pequena, mas aterrorizante figura, em um terninho azul claro e
stilettos roxos.
— Eu pensei que vocês não tinham me ouvido! — ela
exclamou. Safiras do tamanho de ovos de tordo pendiam de
suas orelhas, e uma boina roxa encimada por um dragão em
miniatura ancorava seus cachos castanhos. Ela estalou os dedos
ao lado dele, e o dragão abriu a boca e ejetou um pequeno jato
de chamas. — Você gosta do meu chapéu? Wally me mandou.
— Qual foi a ocasião? — Mariel perguntou.
— Ele se sentiu péssimo por ter perdido o Festival de
Outono deste ano, então enviou isto como um presente de
desculpas. Eles o mantêm tão ocupado com esses parques
temáticos, mas tenho certeza que ele vai conseguir vir no ano
que vem.
Mariel e Ozroth trocaram um olhar compreensivo. Parecia
que o tio de Mariel havia entregado menos um presente e mais
um suborno para manter Diantha longe.
— Agora. — Diantha plantou as mãos nos quadris e lançou
um olhar severo a Mariel. — Ouvi dizer que você causou uma
cena na reunião geral.
Mariel gemeu.
— Mãe, deixa para lá.
— Eu não vou — ela disse indignada. — Cynthia me disse
que você foi rude com ela na frente de todo mundo.
— Oh, você se preocupa com os sentimentos de Cynthia
agora? Ela não ganhou a competição de tortas de novo?
Diantha ofegou e pressionou a mão no peito.
— Isso é um golpe baixo. Eu a peguei moendo Viagra para
colocar em sua torta "totalmente mágica" para aumentar a
libido, sabe. Típico dela quebrar as regras para que ela possa
vencer. — Ela deu a Mariel um olhar compreensivo. —
Alzapraz diz que ela é uma empreendedora tóxica sem noção de
limites.
— Tem certeza de que ele disse isso sobre Cynthia? —
Ozroth murmurou.
— Querido Oz. — Diantha sorriu quando ela se lançou e
envolveu seus braços ao redor do pescoço dele. Ele cambaleou
para trás, alarmado. — Ouvi dizer que você quase eletrocutou
Cynthia. — Ela o soltou, então beliscou sua bochecha. — E
você disse que não era poderoso.
— Não sou — disse Ozroth, esfregando a bochecha para
limpar a sensação residual. — Só fiquei com raiva. — Ele não
tinha conseguido outra exibição daquela magnitude desde a
reunião, apesar das tentativas de Mariel de lhe ensinar algumas
palavras da linguagem da magia.
— Então está tudo bem ele atirar um raio em Cynthia, mas
se eu responder, é rude? — Mariel cruzou os braços. — Isso são
dois pesos e duas medidas.
Diantha deu de ombros.
— As regras de etiqueta não se aplicam a demonstrações de
poder. E Cynthia precisa de uma boa eletrocussão, embora eu
concorde com ela sobre o spa. Mal posso esperar para receber
uma massagem adequada. — Ela rolou os ombros, então olhou
Ozroth de cima a baixo lascivamente. — Você tem mãos
grandes. Talvez eu possa recrutar você para me esfregar
enquanto esperamos que abra?
A última coisa que Ozroth queria era um contato
prolongado com Diantha, especialmente contato que
envolvesse fricção. Lúcifer, ele desprezava a mulher egocêntrica.
— Você sabe por que eu estava com raiva de Cynthia? — ele
perguntou. — Ela chamou Mariel de fracassada.
Mariel fez um ruído suave e pousou a mão no antebraço de
Ozroth. Ele cobriu a mão dela com a dele, apertando
suavemente.
Diantha tirou um fiapo invisível da manga.
— Mariel, querida, as pessoas não diriam essas coisas se você
se esforçasse mais.
— É isso? — Ozroth ficou horrorizado. — Você não acha
que foi "rude" da parte dela insultar sua filha?
— As pessoas me insultam o tempo todo — disse Diantha.
— Normalmente por ciúmes, mas ainda assim. Ser uma Spark
significa chamar muita atenção, tanto para o bem quanto para
o mal. — Ela deu um tapinha no ombro de Mariel. — A melhor
maneira de silenciar seus odiadores é usar magia para intimidá-
los até que se sintam como os vermes inferiores que são.
Mariel estava dando a Ozroth um olhar que ele poderia
interpretar como um pedido para parar de defendê-la. Era
difícil não brigar com Diantha sobre os padrões hipócritas e
exigentes que ela aplicava à filha, mas ele mordeu a língua. Nada
mudaria na dinâmica familiar de Mariel até que ela realmente
se defendesse.
— Isso tem sido adorável — disse Mariel —, mas precisamos
ir.
Diantha fez um beicinho.
— Vocês não vão assistir as batalhas? Vamos competir em
uma hora do lado de fora do Mercado de Cogumelos do
Mothman. Todos os combatentes vão ficar nus e tomar
cogumelos mágicos.
— Isso soa como uma receita para o desastre.
— Vai ser um tumulto. Tenho tomado alucinógenos a
semana toda para praticar e aprendi um novo feitiço para
transformar meus inimigos em lagartos espirrentos. — Diantha
afofou o cabelo e os reflexos de sua aliança de casamento
ameaçaram cegar Ozroth. — Roland vai filmar para o
GhoulTube, então enviarei o link para vocês dois. Oz, qual é o
seu endereço de e-mail?
Ele ainda estava lutando com a imagem mental de um bando
de bruxas nuas e alucinadas se transformando em lagartos.
— Eu não tenho um.
— Absurdo. Qual é o e-mail institucional para aquela
faculdade mágica em que você ensina? O antípoda alguma coisa
ou outra.
— O Colégio de Bruxaria Antípoda — Mariel disse,
entrando na conversa quando ficou claro que Ozroth não iria
inventar uma mentira rápido o suficiente. — Eles não usam e-
mail tradicional. As mensagens são enviadas por, uh, corvos.
Corvos? Ozroth murmurou para Mariel enquanto Diantha
começava a explicar por que basiliscos e outras criaturas mágicas
eram mensageiros muito mais confiáveis.
Mariel deu de ombros.
— Acabei de assistir Game of Thrones. — O sorriso
malicioso dela era inebriante, e Ozroth olhou para a boca dela,
imaginando em quanto tempo ele poderia prová-la novamente.
— ... ficaria feliz em teletransportar um oozlefinch da base
militar mais próxima para que você possa escrever para mim —
Diantha estava dizendo. — Eles são muito rápidos e sua
capacidade de mísseis é útil para dissuadir os piratas da varanda.
Ozroth voltou à consciência bem a tempo de perceber que
Diantha estava tentando criar algum tipo de cenário horrível de
amigos por correspondência com ele.
— Não, obrigado — disse ele, lutando para encontrar uma
maneira de detê-la. — Cartas são tão, uh, impessoais. — Seus
olhos dispararam, procurando uma rota de fuga. Ele deveria
mergulhar sob a barraca de maçã caramelada? Talvez ele
pudesse se esconder atrás de um dos andadores...
— Você é um amorzinho, Oz — disse Diantha. — Sim,
simplesmente devemos passar mais tempo juntos.
Não era isso que Ozroth pretendia propor.
— Espere...
Diantha passou direto por cima dele.
— O jantar amanhã vai ser adorável. Vou importar paella de
Valência e mojitos do bar mais exclusivo de Nova York. Diga
que chegará cedo para que possamos conversar mais. — Ela
agarrou o antebraço de Ozroth enquanto batia os cílios. Suas
unhas bem cuidadas o lembravam de garras.
— Cedo não é possível — disse Ozroth, o pânico crescendo.
— Então no horário normal. — Diantha ficou na ponta dos
pés – nem salto agulha a deixavam perto da altura de Ozroth –
e fez sons altos e estalados de beijo perto das bochechas dele. —
Vejo vocês amanhã à noite, queridos! Com certeza contarei
tudo sobre a batalha.
Ela se afastou, os saltos estalando nos paralelepípedos.
Ozroth piscou atrás dela, sentindo como se tivesse sido
atropelado por um caminhão. Como uma mulher tão pequena
era capaz de tanta destruição?
Mariel cruzou os braços.
— Ótimo trabalho dizendo não ao jantar em família.
Ele gemeu e beliscou a ponte do nariz.
— Ela passou por cima de mim.
— Com certeza. — Mariel cutucou-o com o dedo do pé. —
Calma, acontece com todos nós. Que tal um cupcake de
abóbora com especiarias a caminho da floresta?
— Você está me subornando para me juntar ao seu protesto?
Ela piscou.
— Não, eu sei que você vai se juntar ao protesto. Eu só gosto
de ver você ficar animado com comida.
Ozroth estava tão perdido em Mariel, ele faria
absolutamente qualquer coisa que ela mandasse. Ele passou o
braço em volta da cintura dela e a puxou para um beijo rápido.
— Então vamos pegar um cupcake, velina.
Vinte e Seis

— Dois, quatro, seis, oito, vai se foder, bastardo sombrio!


Mariel sufocou uma risada com o último canto de protesto
de Themmie. A fada estava com outros manifestantes em frente
a uma escavadeira, gritando com o operador, que parecia querer
se teletransportar para longe. Ela usava uma camiseta belíssima
de Salve as Salamandras! e estava exibindo um novo corte em
seu cabelo rosa e verde.
— Ficando sem rimas? — Mariel perguntou.
As asas de Themmie aceleraram, levantando-a do chão.
— Apenas ficando mais criativa. — Ela levou as mãos à boca
e gritou. — Dois, quatro, seis, oito, a prefeita C deve abdicar!
As fileiras de manifestantes aumentaram desde a reunião
geral, e dezenas de bruxas, fadas, centauros e humanos comuns
gritavam e acenavam cartazes condenando a construção. A
PREFEITA CUNNINGTON É UMA MENTIROSA SUJA, lia-se em
uma placa. PARE O SPA! lia-se em outra.
Mariel sentiu um calor no peito ao ver os habitantes da
cidade tomando posição. Com figuras poderosas como
Diantha Spark e Cynthia Cunnington apoiando a construção,
era difícil encontrar alguém disposto a protestar.
Aparentemente as imagens da destruição na floresta – e a
revelação de que a construção havia começado antes da
prefeitura discutir o assunto – causou impacto. A construção
havia parado, com criaturas noturnas assumindo o protesto
assim que o turno do dia terminava. Cynthia havia prometido
que a construção continuaria no Halloween, não importava o
que acontecesse, mas se eles pudessem manter essa paixão, a
prefeita e seus capangas não teriam chance.
Calladia subiu correndo, balançando o rabo de cavalo alto.
— O que eu perdi?
— Themmie está ficando inventiva — disse Mariel.
Na hora, a fada cantou outro cântico.
— O que queremos? Salamandras de fogo! Quando nós as
queremos? Sempre!
As palavras lembraram Mariel da salamandra de fogo
doente, e seu estômago revirou. Quando olhou para Oz,
percebeu que ele estava pensando da mesma forma. Seus olhos
percorreram a floresta e seu rosto estava tenso.
Mariel ainda não havia contado a ninguém além de Calladia
e Themmie sobre os trechos mortos na floresta. Ela não
conhecia mais ninguém que se destacasse na magia baseada na
natureza e, embora confiasse plenamente em suas duas amigas,
temia que, se a notícia se espalhasse, Cynthia a usaria como
desculpa para destruir mais a floresta. No momento, ela estava
contendo o problema, verificando diariamente novos pontos,
mas isso não era sustentável. Em algum momento, ela precisaria
trazer outras pessoas para descobrir o que estava acontecendo.
— Já volto — disse ela a Calladia.
— Onde você está indo? — Calladia olhou entre Mariel e
Oz, então gemeu. — Não me diga que vocês vão se pegar contra
uma árvore.
Ela manteve Calladia e Themmie atualizadas sobre os –
aham – desenvolvimentos em seu relacionamento com Oz.
Themmie ficou encantada, pressionando por um nível de
detalhe que Mariel se recusou a dar, e até mesmo Calladia
parecia ter aceitado, a contragosto, o novo estado das coisas.
Mariel sorriu para Oz, que parecia adoravelmente
envergonhado.
— Não posso confirmar nem negar.
Calladia balançou a cabeça e fez um movimento de enxotar.
— Vá embora. Vá afirmar a vida ou brincar de etiqueta
genital ou qualquer outra coisa.
Mariel arrastou Oz para as árvores. Ela não estava realmente
planejando ficar com ele – ou ela não estava planejando isso até
agora – mas ela gostava de sua expressão encantadoramente
perturbada. Quando ela olhou para a virilha dele, ficou
encantada ao ver uma protuberância.
— Já está pronto para ir? — ela brincou, suas preocupações
sobre a floresta desaparecendo no momento.
Oz olhou por cima do ombro para se certificar de que eles
estavam fora da vista dos manifestantes, então a pegou e a jogou
sobre o ombro. Mariel cacarejou enquanto ele a carregava mais
fundo na floresta, sua mão plantada firmemente em sua bunda.
— Acho que sim — ela disse ofegante enquanto o sangue
subia para sua cabeça. — Com você? Sempre.
Oz a abaixou para ficar em pé sobre uma rocha, e Mariel
aproveitou o aumento de altura que isso lhe deu. Dada a
maneira como ele estava olhando avidamente para os seios dela,
agora na altura dos olhos, ele também gostou. Ele
abruptamente enterrou o rosto em seu decote, esfregando o
nariz para frente e para trás e pressionando beijos em sua pele
enquanto ela ria.
— Peitos lindos — disse ele, a voz abafada.
— Só os peitos? — Mariel perguntou brincando. Ela nunca
se sentiu tão bonita em sua vida como na última semana, seu
ego alimentado com um fluxo interminável de elogios e
orgasmos.
Ele apertou a bunda dela.
— Tudo lindo. — Ele olhou para cima, olhos dourados
cheios de malícia. — Então, vamos realmente nos pegar contra
uma árvore?
Mariel mordeu o lábio. Ela planejou procurar áreas podres
primeiro, mas Oz era tão grande e bonito, e seu estômago
revirava sempre que ele olhava para ela.
— Uma rapidinha — decidiu Mariel. — E então eu preciso
dar uma checada na floresta.
— Uma rapidinha? — Ele balançou sua cabeça. — Vocês
humanos e sua impaciência. Você merece uma longa e lenta
sedução.
— Ou — disse Mariel, arrastando um dedo para baixo entre
seus peitorais —, eu preciso ser tomada tão forte e rápido que
vou sentir você por uma semana. — Ela se inclinou, os lábios
roçando sua orelha. — Teremos que ficar quietos, é claro. Não
posso deixar que todos ouçam você me fazendo gritar.
Ele estremeceu.
— Você é uma ameaça. — Mas seus dedos estavam
flexionados nos quadris dela, e Mariel já sabia que havia
vencido.
Ela mordeu sua orelha.
— Vamos. Eu te desafio.
Dois minutos depois, Mariel se viu presa contra uma árvore
enquanto Ozroth a penetrava com golpes profundos e duros.
A casca arranhava suas costas, mas seu vestido fornecia alguma
proteção, e ela não se importava com a leve picada de qualquer
maneira. Ela se sentia brilhantemente viva, os nervos cantando
de prazer enquanto Oz a enchia e subjugava.
Sua magia vibrava em harmonia com a natureza, a paixão
alimentando seu poder. Sementes adormecidas encontraram
nova vida no solo e flores desabrocharam até que Oz estava de
pé em um tapete rosa e vermelho. Uma trepadeira estendeu
uma gavinha de um galho acima, tirando seu chapéu antes de
acariciar sua cabeça afetuosamente.
Ele grunhiu.
— Não deixe as plantas me molestarem.
— Elas estão apenas – ah! – animadas por mim. — Mariel
cravou os dedos nos ombros de Oz, agarrando-se a ele com tanta
força quanto a videira queria. A umidade escorria por suas
coxas – ele mal precisou tocá-la antes que ela estivesse pronta,
seu corpo sintonizado com o dele.
Ele apertou sua bunda com força, suas mãos enormes dando
apoio enquanto ele dobrava os joelhos e empurrava para dentro
dela.
— Clitóris — ele disse rispidamente.
Mariel manteve um braço em volta do pescoço dele
enquanto deslizava a mão entre eles. Era difícil ser precisa, dado
o quão forte ele estava transando com ela, mas com os dedos
dela imprensados entre eles, cada estocada fornecia uma pressão
deliciosa contra seu clitóris. Ela cravou os calcanhares na bunda
dele, encorajando-o a ir mais forte. Ela definitivamente sentiria
isso mais tarde, mas ela amava seus gemidos ferozes e a
intensidade esmagadora da paixão dele.
— Goza para mim — disse ele com selvageria. — Me deixe
ouvir.
Mariel mal teve tempo de lembrar que havia um grupo de
pessoas a uma curta distância a pé. Ela colocou a mão sobre a
boca, gemendo na palma da mão enquanto seu corpo
convulsionava. Oz xingou, segurando-a ainda mais forte
enquanto bombeava nela descontroladamente.
Ele grunhiu, então caiu para frente, ofegante. Mariel traçou
os chifres dele, sorrindo quando ele estremeceu.
Oz gentilmente a colocou de pé.
— Talvez a rapidinha tenha alguns méritos — ele disse sem
fôlego. Um sorriso pateta inclinou seus lábios, e isso
surpreendeu Mariel, com o quanto ele havia mudado desde o
demônio mal-humorado que ela conheceu. Ele parecia uma
pessoa completamente diferente.
Ele amarrou a camisinha e então, por falta de outras opções,
colocou-a no bolso com uma careta antes de se enfiar de volta
nas calças. O controle de natalidade hormonal fazia Mariel ter
espinhas e ganhar peso e, enquanto ela procurava feitiços
anticoncepcionais, ela não queria explodir acidentalmente seus
ovários. Pares humanos-demônios eram raros, pelo que Oz
havia dito a ela, mas havia algumas crianças meio-demônios por
aí.
Mariel estava curiosa sobre aquelas crianças híbridas. Não
porque ela estivesse pensando em ter o bebê de Oz – os bebês
estavam bem no futuro para ela, muito obrigada – mas porque
ela queria saber quais características elas adotavam de cada
espécie. Oz disse a ela que era uma aposta aleatória – algumas
crianças híbridas tinham chifres completos, algumas sem
chifres, algumas intermediárias. Algumas eram imortais e
viviam no plano demoníaco, mas outras, por razões
desconhecidas, assumiam a mortalidade dos pais humanos e
viviam vidas relativamente normais na Terra.
— Onde os humanos encontram demônios? — ela
perguntou. — Lista de bruxas?
— É comum que os demônios passem férias na Terra —
explicara Oz. — As coisas acontecem, especialmente quando o
álcool está envolvido.
As coisas certamente aconteceram. Mariel alisou a saia,
deleitando-se com o brilho de algumas dessas coisas. Ela se sentia
vibrante e viva, tão conectada com sua feminilidade quanto
com o mundo natural.
Ela entrelaçou os dedos nos de Oz.
— Vamos. Vamos inspecionar a floresta.
Eles caminharam mais longe do canteiro de obras.
Enquanto as plantas mais próximas da construção tinham
dificuldades, era um alívio ver árvores e arbustos saudáveis
crescendo mais fundo na floresta. Uma fonte termal fumegava
no ar fresco do fim da tarde e os pássaros tagarelavam nos
galhos.
Mariel sentiu a escuridão antes de vê-la. Sua magia estava
saltando sobre raízes e pedras, misturando-se com o poder
natural da terra, mas a magia cintilante da natureza
abruptamente deu lugar a algo sombrio e insidioso. Ela se
sentiu enjoada ao roçar aquela energia malévola.
— Por ali — ela disse, soltando a mão de Oz e correndo na
direção de um matagal de amoreiras.
Oz estava lá antes que ela pudesse abrir caminho através do
arbusto espinhoso. Ele cuidadosamente separou os galhos,
segurando-os de lado para abrir caminho. Mariel passou por ele.
O que ela viu do outro lado a fez ofegar.
O que antes era uma fonte termal turquesa agora parecia um
barril de alcatrão borbulhante. Gavinhas de podridão se
espalhavam ao redor dela como uma infecção, estendendo-se à
distância. Parecia que um incêndio florestal havia varrido a
floresta, escurecendo o solo e as árvores.
— Eu nunca vi uma área afetada tão grande — disse Mariel,
com o coração afundando.
Oz juntou-se a ela, tirando folhas e espinhos da camisa.
— Consegue consertar isso?
— Não sei. — Mariel olhou para a floresta moribunda com
desespero. Consertar as manchas à medida que apareciam era
como um jogo horrível de Acerte a Toupeira. Toda vez ela se
sentia esgotada a ponto de quase desmaiar.
Mas ela tinha que tentar. Ela se ajoelhou na beira da
podridão e plantou as mãos no solo.
— Cicararek en arboreum — disse ela, pedindo à terra que
se juntasse a ela. A magia cresceu, brilhante e bela, e o limite da
corrupção recuou. — Cicararek en arboreum.
Após cinco minutos, Mariel estava suada e tonta. Sua visão
ficou turva enquanto ela alimentava mais magia na terra. A
floresta estava adicionando seu próprio poder, mas ela podia
sentir o esgotamento de sua energia. Entre a construção e a
estranha podridão mágica, a teia de magia tecida nas linhas ley
abaixo do solo estava se desgastando.
Mariel sentou-se de joelhos, enxugando a testa com as costas
da mão, então gemeu ao perceber que só havia curado metade
da infecção.
— Não posso fazer isso, Oz — ela disse, uma onda de
desespero ameaçando afogá-la. — Eu não sou forte o suficiente.
Ele se agachou ao lado dela, esfregando suas costas em
círculos.
— Não se esforce demais.
— Eu tenho que me esforçar. — Exaustão fez seu tom ficar
afiado. — Ninguém mais pode fazer isso.
— Tem que haver outra solução. Algo que não exija que
você se esgote.
— Até descobrir o que é essa magia, não sei o que mais posso
fazer. — Ela se sentiu mal do estômago, e não apenas pelo
esforço de lançar o feitiço de cura repetidamente. Ela sempre
esteve em contato com o que a floresta estava sentindo, e a
corrupção no solo estava sangrando em seu corpo.
Ela fechou os olhos, lutando para regular sua respiração.
Essa era a única área da magia em que ela deveria se destacar. A
única coisa que ela tinha para oferecer ao mundo, e ainda não
era o suficiente.
— Eu sou um fracasso — ela sussurrou. — Sempre serei um
fracasso.
— Isso é um absurdo. — Oz acariciou seu cabelo. — Você é
tudo menos um fracasso.
Seus olhos ardiam.
— Você não sabe como é. Venho tentando viver de acordo
com a profecia há anos, mas nunca serei boa o suficiente.
Ele ficou quieto por um momento.
— Quando ganhei minha alma — ele disse finalmente —,
Astaroth me disse que eu era uma piada de um demônio. Uma
decepção. Eu me senti tão envergonhado.
Mariel deveria ser uma boa pessoa e simpatizar com Oz, mas
mesmo assim uma pontada de irritação passou por ela. Era
mesquinho, e Oz estava tentando ajudar, então ela conteve sua
frustração.
— Astaroth é um idiota, e ele não deveria ter dito essas coisas
para você. — Ela fez uma pausa para formar suas palavras na
forma que ela precisava que ele entendesse. — Mas Oz... você
só foi julgado por, o quê, seis meses depois de centenas de anos
sendo um sucesso incrível?
Seu silêncio foi resposta suficiente.
Lágrimas escorreram sob as pálpebras fechadas de Mariel.
— Fui um fracasso minha vida inteira. E agora a única coisa
que posso fazer não é boa o suficiente, e o lugar que eu mais
amo no mundo vai morrer por causa disso.
— Não é sua culpa.
— Eu não causei isso, mas se não posso consertar, também
sou responsável. Eu sou a protetora da floresta.
— Quem disse? — perguntou Oz. — Você é uma bruxa com
um talento incrível para a magia da natureza, mas só porque
você é boa em algo não significa que seja sua responsabilidade.
A garganta de Mariel estava apertada e seu peito doía. Como
ela poderia dizer a Oz que queria que fosse sua
responsabilidade?
— Se eu não tiver isso, não tenho nada.
— Isso não é verdade — disse Oz, alheio ao modo como ela
havia aberto seu coração. — Você tem Calladia, Themmie, eu,
seu jardim, e...
— Pare! — O grito de Mariel o interrompeu. — Apenas...
pare — ela disse mais calmamente. — Não me diga como me
sentir.
— Eu não estou dizendo a você como se sentir — ele disse
teimosamente. — Mas você tem mais poder do que imagina, e
não é apenas mágico. Você tem pessoas que te amam e te
respeitam. Amigas que fariam qualquer coisa por você. Não é
sua responsabilidade ser a única guardiã mágica da floresta.
Demônio cabeçudo. Ele parecia quase tão frustrado quanto
ela.
— Mas é. E estou falhando nisso, como falho em tudo. —
Toda a vida de Mariel foi definida pela profecia e seu
subsequente fracasso em cumpri-la. Agora, confrontada com
uma grave responsabilidade, ela fodeu tudo novamente.
Oz apertou o nariz e sentou-se sobre os calcanhares.
— Vou dizer uma coisa e você provavelmente não vai gostar.
Mariel riu, embora não houvesse alegria no som.
— É melhor me chutar quando eu estiver caída. — À
distância, ela podia ver a magia negra se aproximando
novamente, manchando o solo previamente curado.
Eventualmente, ela comeria essas madeiras inteiramente.
Oz respirou fundo.
— Você já pensou que talvez sua dúvida em si mesma tenha
se tornado uma profecia autorrealizável?
O queixo de Mariel caiu. Ele estava certo: ela não gostou
nem um pouco disso.
— Como é?
— Você é tão dura consigo mesma quanto sua mãe é — ele
disse, perseverando como o demônio teimoso e idiota que ele
era. — Quando você não pode salvar o mundo inteiro sozinha,
você vê isso como uma falha pessoal. Talvez você tenha
dificuldades com a magia porque está colocando uma pressão
irracional em si mesma.
Ela sentiu como se tivesse levado um tapa.
— Então é minha culpa eu ser péssima?
Ele estremeceu.
— Não é isso que estou dizendo. Eu estou dizendo... Você é
incrível do jeito que você é, e quando não consegue consertar
algo, talvez haja mérito em pedir ajuda... Tirar um pouco da
pressão que você coloca em si mesma.
— Eu me recuso a pedir ajuda à minha mãe. — A ideia era
abominável.
Oz fez uma careta.
— Ela não. Mas Mariel... eu posso ver o quão forte é a sua
magia, e eu vejo as coisas incríveis que você é capaz. Mas você se
convenceu de que nunca terá sucesso e, mesmo quando faz
coisas incríveis, diz a si mesma que nunca é o suficiente. E se
você abrir mão dessas expectativas? Parar de tentar atingir
padrões impossíveis?
Mariel piscou rapidamente enquanto todo o seu ser rejeitava
a ideia de esquecer as expectativas.
— Os padrões não são impossíveis. O legado dos Spark...
— Foda-se o legado dos Spark — disse Oz com veemência.
— Você não é sua mãe ou qualquer outra pessoa com quem está
se comparando.
Mariel sentiu-se perdida. O que quer que eles estivessem
falando no começo, não era sobre o que eles estavam falando
agora.
— Então devo desistir e deixar a floresta morrer? É isso que
você está dizendo?
Ele passou as mãos pelos cabelos.
— Eu não estou dizendo isso da maneira certa.
— Existe uma maneira certa de dizer isso? — Seu orgulho
ferido exigia uma refutação. Ele disse a ela que ela era incrível,
mas o resto de suas palavras pareciam uma acusação.
Oz estava claramente lutando por paciência.
— Estou dizendo que não importa o quão boa você seja com
a magia da natureza, talvez esse problema seja grande demais
para você resolver sozinha. Talvez ninguém consiga fazer isso
sozinho, e você está se torturando com a culpa em vez de pedir
ajuda ou encontrar soluções alternativas.
Seu temperamento ainda dominava sua língua.
— Um demônio oferecendo uma solução alternativa. Que
chocante.
Ele apertou a mandíbula e um músculo flexionou na
bochecha.
— Isso é injusto.
E sim, era. Ele não havia oferecido a ela um acordo; ele
apenas disse algo que a colocou na defensiva. Mariel respirou
fundo, lutando para se acalmar.
— Desculpe. Preciso de alguns minutos para pensar.
Ele assentiu.
— O que você precisar.
— Fico na defensiva — disse ela, sentindo a necessidade de
se explicar. — Não sei por quê.
— Você passou a vida inteira ouvindo que havia algo errado
com você — disse ele com sua franqueza característica. — Claro
que você fica na defensiva.
— Você provavelmente está apenas tentando ajudar. — Oz
olhou para ela, então Mariel corrigiu sua declaração. — Ok,
você definitivamente está tentando ajudar. Você não merece
que eu brigue com você porque não gosto que me digam coisas
desconfortáveis sobre mim.
— Mariel — ele disse, puxando um de seus cachos —, eu
também disse coisas boas sobre você. Você se lembra de alguma
delas?
Sua mente ficou em branco. Ele disse que ela estava se
sabotando, que estava tentando cumprir padrões impossíveis,
que deveria pedir ajuda...
— Não? — ela disse em voz baixa.
— Foi o que eu pensei. — Oz beijou sua têmpora e um
pouco do aperto no peito de Mariel diminuiu. — Você está
vendo o pior, não o melhor. Então, você vai tirar alguns
minutos para pensar, mas antes de fazer isso, quero que você
ouça. Ouça de verdade.
Mariel olhou para ele, cativada por sua expressão feroz.
— Mariel — ele disse sério —, você é linda, inteligente e
engraçada. Você traz tanta alegria para o mundo. Além disso,
você é uma bruxa extremamente poderosa que pode fazer coisas
incríveis. Precisar de ajuda às vezes ou não ser perfeita não muda
nada disso, e eu gostaria que você fosse tão gentil consigo
mesma quanto é com suas amigas.
Suas bochechas coraram. Oz aparentemente dominava
palavras de afirmação como uma linguagem de amor. Uma
emoção terna cresceu atrás de seu esterno, algo que parecia
avassalador e delicado, tudo ao mesmo tempo. Mariel não sabia
como expressar isso a não ser jogando os braços em volta do
pescoço de Oz.
— Obrigada — ela sussurrou na curva entre seu pescoço e
ombro. Ele cheirava a especiarias e fumaça, e o calor de seu
corpo encharcou-a. Ele era como sua própria fonte termal
pessoal – algo para afundar quando ela se sentia maltratada pelo
mundo.
Ele esfregou suas costas e beijou seu cabelo. Eles se
ajoelharam juntos em silêncio, apenas abraçados e respirando.
Finalmente, Oz se mexeu.
— Vou percorrer o perímetro desta mancha escura. Eu volto
em breve.
Ele estava dando a ela tempo para organizar seus
pensamentos. Mariel observou suas costas largas enquanto ele
se afastava, a cabeça inclinada para baixo enquanto estudava o
chão. Ela apreciava isso nele – sua diligência, sua disposição de
ser útil. A fachada de grande e mau demônio havia sido
totalmente removida, e Mariel gostou do que viu por baixo.
Ela suspirou e se concentrou no problema em questão: a
crescente corrupção na floresta.
Ela gostava da ideia de consertar tudo sozinha. Tinha sido
uma fantasia: levantar-se em um jantar em família e informar a
todos que havia uma grave ameaça mágica a Glimmer Falls, mas
Mariel conseguiu detê-la. Ela teria sido a protagonista de uma
história, pela primeira vez, em vez de a companheira ou o alívio
cômico.
Oz estava certo. Se o problema era grande demais para
Mariel resolver sozinha, não era uma acusação a sua magia. Isso
significava que ela precisava pedir ajuda. Themmie e Calladia
não podiam fazer nada, mas havia uma pessoa que vivera o
suficiente para saber qual era o problema – e como resolvê-lo.
— Vou chamar Alzapraz — disse Mariel quando Oz voltou
para o seu lado dez minutos depois.
Oz assentiu.
— Quer que eu o encontre?
— Não precisa. Ele virá à minha casa amanhã de manhã
para uma aula de linguagem mágica.
Normalmente, as aulas de feitiçaria faziam Mariel se sentir
pior consigo mesma, mas a intervenção de Oz havia abalado
algo nela. Ela amava sua magia. Ela adorava poder alimentar
parte de si mesma com o mundo natural. Ela tinha orgulho dessa
magia e estava cansada de deixar sua família fazê-la se sentir mal
porque ela não se encaixava no molde do herdeiro perfeito dos
Spark.
Talvez o problema não fosse que Mariel era ruim em magia...
era que ela nunca havia defendido a si mesma e aquilo em que
era boa.
Oz estendeu a mão, ajudando Mariel a se levantar.
— Vamos, velina. Temos um protesto para participar. —
Seu sorriso tornou-se perverso. — E então eu tenho algumas
ideias de como passar a noite...
Vinte e Sete

— Ayorva en Tigasium — disse Alzapraz com a voz trêmula,


batendo com a bengala no chão da cozinha. — O final - um em
tigasium indica que é sua frigideira, não de outra pessoa. Se
você quiser aquecer a frigideira de Oz, precisará terminar com -
il. Ou -sen, se você estiver abordando a frigideira diretamente.
Só que às vezes é -sol. Ou -sinez, para objetos múltiplos. — Ele
deu um tapinha no nariz bulboso, os olhos brilhando sob as
sobrancelhas brancas e espessas. — Existem outras variantes, é
claro. Se a frigideira é sua, mas já pertenceu a Oz, você pode
terminar com -silum.
Ozroth observou Mariel bater na testa com a palma da mão.
— Por que os sufixos mudam tanto?
Eram dez horas da manhã de um domingo chuvoso, e o
pequeno feiticeiro – enfeitado com um manto de veludo roxo
e tiara de plástico – estava fazendo uma atualização sobre a
linguagem da magia. Oz estava sentado à mesa, ouvindo,
enquanto Alzapraz e Mariel estavam perto de um balcão
coberto por uma série de objetos mágicos. Ozroth estava
fazendo anotações – as anotações de Mariel eram aleatórias, se
é que ela fazia alguma – mas as palavras complicadas já o
estavam confundindo. Como ele deveria soletrar esse absurdo?
— Eles nem sempre são sufixos — o feiticeiro antigo disse
alegremente. — Às vezes eles vão no começo, ou você pode
adicioná-los ao verbo. Rotkva en iyiltransformen é uma forma
aceitável de dizer "Eu transformo o grupo de vocês em
rabanetes", mas você também pode dizer transforma a rotkviyil.
E tigasi a ayorvum é outra maneira de aquecer sua frigideira. —
Ele encolheu os ombros curvados, então estremeceu quando
suas costas estalaram ruidosamente. — O que for mais fácil de
lembrar.
— Nada disso é fácil de lembrar — disse Mariel. — Esse é o
problema.
Ozroth tomou um gole de seu chá de especiarias de abóbora,
fascinado pela discussão. A linguagem da magia era
notoriamente complicada, sua gramática mudando de forma
arbitrária e ilógica que combinava as estruturas de múltiplas
linguagens. Pouquíssimas pessoas além de bruxas ou feiticeiros
se importavam em aprendê-la, além de professores de
linguística ou masoquistas – uma distinção redundante, ele
supôs.
Sua incompreensibilidade era parte do motivo pelo qual
poderosos usuários de magia eram tão raros. A maioria dos
conjuradores de baixo nível aprendiam o que precisavam para
tornar suas vidas mais fáceis – feitiços para limpar a casa ou fazer
o leite voltar a ficar bom, por exemplo – enquanto apenas os
mais excêntricos e dedicados se importavam com feitiços mais
arcanos. E como parte da magia era intenção e foco, mesmo
sendo fluente na linguagem da magia não poderia garantir um
lançamento bem-sucedido.
— Experimente o giz — disse Alzapraz, segurando uma
protuberância branca para ela.
— Achei que era só para grandes trabalhos. Convocações e
coisas do gênero.
— Bem, sim. Mas anexar uma atividade ritual a um feitiço
ajuda enquanto você está aprendendo. Eventualmente, você
não precisará do giz ou de qualquer outro foco físico para
pequenos feitiços.
Mariel resmungou, então desenhou linhas no balcão.
Algum glifo que deve indicar frigideira, com linhas onduladas
emanando dela.
— Tigasi...
— Espere! — Alzapraz avançou, limpando o glifo com a
manga. — Glifo errado, a menos que você queira derreter a
frigideira.
Mariel soltou um grito frustrado e jogou o giz. Ele quebrou
contra a geladeira, enviando fragmentos brancos no ar. Um
pousou no chá de Ozroth, e um líquido quente respingou em
seu rosto e chapéu.
O rosto de Mariel caiu.
— Desculpe — disse ela, correndo para enxugar as gotas em
seu rosto. — Eu não deveria ter perdido a paciência.
— Eu também ficaria bravo — disse Ozroth. — E além
disso, foi bom. Como uma chuva quente.
Ele teria contado a ela sobre as tempestades quentes que
varreram o plano demoníaco – embora cheirassem vagamente
a enxofre, não a tempero de abóbora –, mas Alzapraz não sabia
que Ozroth era um demônio, e Ozroth particularmente não
queria que esse fato viesse à tona no jantar em família.
Alzapraz suspirou e murmurou um feitiço baixinho,
acenando com a mão. O giz se recompôs e voltou a flutuar sobre
o balcão.
— Sem giz, então. — Ele acariciou sua longa barba branca,
olhando para Mariel pensativo. — Não entendo por que isso é
tão difícil para você.
— Você não está exatamente facilitando as coisas — disse
Ozroth, eriçado com a insinuação de que a culpa era de Mariel.
— Você acabou de contar a ela um monte de maneiras confusas
de dizer a mesma coisa.
— Não acho que seja o idioma. — Alzapraz semicerrou os
olhos para Mariel. — Há algum desleixo de técnica com o giz,
sim, mas acho que é um problema de intenção. Você não quer
fazer isso.
Ozroth se levantou, pronto para defender Mariel ainda
mais, mas a mão de Mariel em seu braço o deteve.
— Você está certo — disse ela. — Eu não quero fazer isso. —
Seu tom era de dúvida, como se ela tivesse surpreendido até ela
mesma com a admissão. Ela soltou um suspiro, os ombros
relaxados como se um fardo tivesse sido tirado deles. — Não me
importo em usar um feitiço para aquecer minha frigideira
porque, na verdade, eu gosto de cozinhar e não preciso de
atalhos. — A voz dela ficou mais forte. — Eu não gosto de aulas
de mágica em geral. Na verdade, eu as odeio.
Alzapraz pareceu escandalizado, tanto quanto uma pessoa
com noventa por cento de vestes dramáticas e dez por cento de
sobrancelhas desconfortavelmente longas poderia parecer
escandalizada, mas Ozroth sentiu uma onda de orgulho. Sua
bruxa estava finalmente se defendendo.
— Diga mais a ele — ele a encorajou.
Mariel ergueu o queixo.
— Eu odeio sempre quando me dizem que não sou boa o
suficiente. Eu odeio que todos me vejam como um fracasso
porque não respeitam a magia da terra. Eu odeio como
ninguém está nem remotamente interessado no que eu sou boa.
— Ela riu sem fôlego. — Você provavelmente nem sabe no que
sou boa, porque nunca perguntou!
O feiticeiro se inquietou, mexendo na franja dourada em
suas mangas.
— Os Sparks sempre foram bons em grandes magias.
Invocação, teletransporte, transmogrificação...
Mariel apontou para ele.
— É exatamente disso que estou falando. Apenas o estilo de
magia da mamãe é "importante" nesta família. Minha magia da
natureza é considerada "menor", embora eu possa curar seções
inteiras da floresta e manter as plantas florescendo o ano todo.
A planta de aranha em sua janela farfalhou, e um vaso de
samambaia pendurado no teto estendeu uma folhagem
ondulada em direção a Alzapraz. O feiticeiro pulou quando a
samambaia roçou sua tiara. Ele se afastou, olhando-a com
desconfiança. Ozroth não o culpou. Se as plantas podiam ser
ameaçadoras, aquela samambaia estava dando o melhor de si,
eriçada como um gato raivoso.
— Você tem que admitir, fazer as flores desabrocharem não
é tão dramático quanto conjurar um duende para fazer o que
você quiser — disse Alzapraz.
— Você quer drama? — Mariel perguntou. — Eu vou te dar
um drama. — Ela caminhou em direção a Alzapraz, e o
feiticeiro recuou até que suas costas bateram no balcão. — Você
sabe o que eu poderia fazer agora? — Pela janela, Ozroth viu as
folhas de outono espiralando em mini ciclones no gramado dos
fundos, respondendo ao seu humor. As bochechas de Mariel
estavam coradas e seu peito subia e descia rapidamente. Ela era
cativante, absolutamente linda em sua raiva. — Eu poderia
chamar aquelas árvores lá fora para levantar suas raízes do solo.
Eu poderia pedir a elas para enrolarem seus tornozelos e arrastá-
lo para o subsolo para sufocar, e não precisaria de giz para fazer
isso.
— Eu sou imortal — Alzapraz guinchou.
— E? Elas manteriam você lá para sempre se eu quisesse. —
Mariel mostrou os dentes. — Eu poderia pedir para as raízes
crescerem dentro de você, um milímetro de cada vez. Você
passaria a eternidade em agonia, respirando sujeira enquanto as
raízes penetravam em sua pele.
Ozroth provavelmente não deveria ter achado sua crueldade
excitante, mas ele não foi considerado "o Impiedoso" por nada.
Com alma ou sem alma, ele podia apreciar uma exibição de
poder, e seu jeans ficou mais apertado. No momento em que
Alzapraz saísse, Ozroth iria arrastar Mariel para a cama.
Ainda assim, ele a conhecia. Se ela atacasse com raiva, ela iria
se arrepender. Ozroth deu um passo em sua direção.
— Velina...
Ela ergueu a mão para detê-lo.
— Mas quer saber, Alzapraz? — ela perguntou, o olhar fixo
no velho. — Eu não vou fazer isso. — Alzapraz caiu contra o
balcão, alívio escrito em seu rosto enrugado. — Não vou fazer
isso porque não sou como mamãe ou nossos gloriosos
ancestrais. Celebro a vida e a bondade. Gosto de fazer as coisas
crescerem e não quero causar dor a ninguém. — A samambaia
agarrou a manga de Alzapraz e ele pulou. Mariel sorriu. — Mas
você deve saber que eu poderia.
A respiração ofegante de Alzapraz era alta no silêncio que se
seguiu. Então o medo em seu rosto se transformou em
vertigem.
— Então você é uma Spark, afinal — ele disse, sorrindo. —
Eu não ouvi um discurso tão bom desde que Malevola Spark
disse ao marido que transformaria o pau dele em um tritão na
próxima vez que ele o enfiasse em algum lugar ao qual não
pertencia.
Ozroth limpou a garganta.
— Você realmente vai responder ao que ela disse?
Alzapraz assentiu.
— Confesso, Mariel, nunca pensei realmente sobre sua
magia da natureza. Você tem razão; todos nós descartamos isso
como chato em comparação com tudo em que os Sparks se
destacaram historicamente. — Ele estremeceu. — Mas essa
ameaça dramática me convenceu de que você é uma força a ser
reconhecida.
— A magia pode ser apreciada por mais do que seu potencial
dramático — disse Mariel. — Você sabia que a floresta está
morrendo? Algum tipo de podridão mágica está matando as
árvores e envenenando os animais.
As sobrancelhas de besouro de Alzapraz se juntaram.
— Isso não soa bem.
— Não. A magia é tecida no ecossistema. O que você acha
que vai acontecer se todas as árvores, flores e animais morrerem?
— Caminhadas pela natureza certamente serão menos
interessantes. — Diante do olhar indignado de Mariel, Alzapraz
ergueu a mão murcha. — Não, eu entendo o que você quer
dizer. Ao contrário de sua mãe, fiquei alarmado com o rumo
que esta cidade está tomando. Quando você vive tanto quanto
eu, você reconhece como pequenos pedaços se encaixam no
todo.
— A menos que a pequena peça se chame Mariel — ela
rebateu.
— Você não é uma pequena peça — disse Ozroth. — Você é
uma rainha. — Quando ela lançou um olhar de adoração para
ele, o calor se espalhou em seu peito.
Alzapraz semicerrou os olhos para Ozroth.
— Estranho — ele murmurou. Então ele se concentrou em
Mariel novamente. — Eu sei que as linhas ley são sensíveis. Elas
precisam de criaturas vivas tanto quanto nós precisamos delas.
Eu esperava que a construção fosse adiada depois daquela
desastrosa reunião. — Ele franziu a testa. — Você acha que a
construtora está semeando essa podridão?
— Talvez — disse Mariel. — Ou alguém que se beneficie de
destruir a floresta. Até agora, minha magia é a única coisa capaz
de pará-la, mas ontem encontrei uma parte grande demais para
consertar sozinha. Eu estava esperando que você pudesse me
ajudar. Sem envolver minha mãe.
— Não sei se você notou — disse Alzapraz secamente —,
mas tento evitar sua mãe sempre que possível. — Ele bateu com
a bengala no chão e o cristal em cima brilhou. — Vou consultar
meus livros. Você pode me enviar uma mensagem com a
localização da podridão? — Diante do olhar incrédulo de
Ozroth, Alzapraz soltou uma gargalhada ofegante. — Eu posso
ser mais velho que a sujeira, mas posso entender uma tela
sensível ao toque.
Enquanto Alzapraz se arrastava em direção à porta da frente,
ele estendeu a mão para dar um tapinha na bochecha de Mariel.
— Você é uma boa menina que merece muito mais do que
demos — disse ele. — E eu sinto muito por não fazer mais para
defendê-la.
Ela suspirou.
— Obrigada, Alzapraz. Você acha que pode convencer
minha mãe a se desculpar também?
Alzapraz fez uma careta.
— Vou trabalhar nisso. Mas você sabe como ela é.
— Sim. — Mariel olhou de soslaio para Oz, os lábios se
inclinando em um sorriso que fez suas covinhas aparecerem. —
Mas também sei como sou.
Ozroth estava desesperado para pegá-la e cobri-la de beijos.
Ele queria deixá-la nua e enterrar a cabeça entre suas coxas,
lambendo orgasmo após orgasmo dela. Mariel merecia apenas
coisas boas, e ele estava tão orgulhoso dela por finalmente traçar
um limite.
Alzapraz virou-se na porta da frente, olhando para onde
Ozroth e Mariel estavam na entrada da cozinha.
— Estou de olho em você — disse ele, apontando dois dedos
para os olhos e depois apontando para Ozroth.
Ozroth sentiu um pico de paranoia. Alzapraz suspeitava do
que ele era, ou era uma ameaça genérica dirigida ao novo
namorado? Mas então a porta se fechou atrás do feiticeiro e
Ozroth se esqueceu dele. Ele finalmente tinha Mariel para si e
planejava fazer bom uso do tempo.
Ele a ergueu em seus braços, levando-a de volta para a
cozinha enquanto ela ria, então a depositou em uma bancada.
— Aquilo foi tão sexy — disse ele enquanto puxava a saia
dela para cima. Ele lambeu seu pescoço, chupando sua pele
macia. O sabor dela era inebriante, com notas de baunilha e
flores doces, e ele estava rapidamente se tornando um viciado.
Mariel inclinou a cabeça para trás, dando-lhe mais acesso.
— Eu não posso acreditar que eu o enfrentei — ela disse sem
fôlego. — Foi bom.
— Assistir você ameaçá-lo me deixou duro — Ozroth
admitiu, mordiscando o decote de seu vestido vermelho cereja.
Mariel riu.
— Pervertido.
Ozroth agarrou as coxas dela sob a saia, amassando a carne
macia. Ele adorava como ela era – macia e forte ao mesmo
tempo, suas curvas o suficiente para fazer sua cabeça girar. Ela
foi feita para a paixão.
— Tudo em você me deixa duro. — Ele traçou com os
polegares a dobra entre a barriga e as coxas dela, e ela
estremeceu.
— Estou molhada — ela disse a ele.
Essa era toda a provocação que Ozroth aguentou. Ele
empurrou a bainha do vestido até a cintura.
— Segure aí. — Quando ela obedeceu, ele caiu de joelhos e
enterrou a cabeça entre as coxas dela.
— Oh! — Mariel cravou os calcanhares em suas costas
enquanto ele lambia o tecido de sua calcinha. Ele podia sentir o
cheiro dela, almiscarado e feminino, e o cheiro o deixou ainda
mais duro. Ela não tinha mentido; estava molhada, sua
excitação ácida já umedecendo o tecido.
Quando ele deslizou a língua sob a borda da calcinha, Mariel
gemeu. O gosto dela era como uma droga. Querendo mais,
Ozroth puxou a virilha da calcinha para o lado, então
mergulhou, lambendo e chupando com entusiasmo.
Lúcifer, ele amava isso. Amava o jeito que ela gemia quando
circulava seu clitóris, amava como era escorregadia, amava sua
respiração repentina quando ele pressionava sua língua dentro
dela. Ele usou todo o rosto para dar prazer a ela, cutucando seu
clitóris com o nariz e deixando a excitação dela por todas as
bochechas e queixo. Ele poderia fazer isso para sempre, ele
decidiu.
Mariel balançou contra seu rosto, usando os calcanhares
contra suas costas como alavanca. Ele mal conseguia respirar,
mas a respiração era superestimada. Ele finalmente se afastou
um pouco, mas apenas para poder deslizar um dedo dentro dela
enquanto batia em seu clitóris com a língua.
Mariel gritou, e a boceta dela pulsou em torno de seu dedo.
Ela já estava gozando? Ele continuou tocando e lambendo-a
durante os espasmos. Em algum momento, ela deixou cair a
bainha do vestido para segurar o cabelo dele. Quando ela
envolveu os chifres dele com as mãos, Ozroth quase gozou nos
jeans. Ele gemeu quando o prazer quente derretido o
atravessou.
Ozroth se levantou e capturou a boca de Mariel em um beijo
forte e desesperado. Ela o beijou de volta com fervor enquanto
se atrapalhava com o botão e o zíper da calça jeans dele. Ele
pescou uma camisinha do bolso de trás e abriu o pacote
enquanto sua calça jeans e cueca boxer se acumulavam em
torno dos pés. Ozroth não perdeu tempo tirando as roupas
descartadas. Ele rolou a camisinha, então puxou a calcinha dela
para o lado, encaixou a ponta de seu pênis contra ela e
empurrou para dentro.
Eles soltaram gemidos ao mesmo tempo.
— Você é tão boa — disse Ozroth. Ele estava muito agitado
para ir devagar, mas Mariel não parecia precisar de tempo para
se ajustar. Ela agarrou sua bunda, incitando-o.
Ozroth a fodeu com golpes profundos e duros. Mariel
apoiou os braços no balcão, inclinando-se para trás para que ela
pudesse ver onde ele a penetrava. Ozroth olhou também, e a
visão de seu pênis entrando e saindo de sua boceta molhada foi
quase o suficiente para acabar com ele.
— Você está me tomando tão bem — ele gemeu.
— Mais forte — ela ordenou, apertando os quadris dele com
suas coxas.
Ozroth obedeceu, estabelecendo um ritmo brutal. Ele
agarrou a bunda dela com uma mão, ancorando-a, e bateu com
a outra contra um armário. As colheres grandes que ela
guardava em uma jarra chacoalharam, e quando uma estocada
particularmente forte fez Mariel ofegar e reposicionar as mãos,
ela derrubou uma lata de metal. Açúcar derramou dela,
brilhando com a luz do sol que entrava pela janela.
A pressão no pênis de Ozroth estava aumentando, mas ele
precisava que ela gozasse novamente. Felizmente, Mariel
parecia estar na mesma página. Ela deslizou a mão entre eles,
esfregando seu clitóris em círculos ásperos. Ele manteve o ritmo
furioso, as pontas dos dedos cavando em sua bunda.
— Goze, velina — disse ele. — Eu não posso... Eu vou...
A pressão atingiu o ponto sem retorno. A visão de Ozroth
ficou turva e ele gritou quando a tensão foi liberada de uma só
vez. A lâmpada em cima quebrou. Mariel gritou, gozando com
ele.
Ozroth sentiu como se tivesse transcendido a um plano
superior, onde momentos perfeitos desabrochavam como
flores.
— Eu te amo — ele ofegou contra seu pescoço.
Mariel enrijeceu. O cérebro confuso de prazer de Ozroth
levou alguns segundos para entender o que ele havia dito.
Merda.
Ele sabia que amava Mariel – o que mais poderia ser esse
sentimento doloroso, emocionante, vertiginoso e
maravilhosamente terrível? – mas talvez os humanos não
fizessem confissões de amor imediatamente. Ozroth se
endireitou, olhando preocupado para Mariel. Seus olhos cor de
avelã estavam arregalados e seus dentes estavam cravados em seu
lábio inferior. Difícil dizer o que ela estava pensando.
— Desculpe — disse ele. — Talvez isso fosse inapropriado
de acordo com os costumes humanos.
Para sua surpresa, ela riu.
— Oz, não acho que os costumes humanos se apliquem a
nós. Eu só nunca tive um parceiro dizendo isso antes.
— Nunca? — ele perguntou incrédulo. A noção de que
alguém com quem ela namorou no passado não teria se
apaixonado por ela era incompreensível. — Como alguém pode
te conhecer e não te amar?
Os olhos dela ficaram lacrimejantes e ela jogou os braços em
volta do pescoço dele.
— Talvez seja muito cedo — ela disse, as palavras abafadas
contra o peito dele —, mas Oz... Eu também te amo.
— Sério? — A felicidade efervescente instalou-se em suas
entranhas como o champanhe mais requintado. Ele sentiu
como se pudesse lutar contra cem bestas noturnas com as
próprias mãos. Ele sempre pensou no amor como uma
fraqueza, mas com o amor de Mariel se estabelecendo sobre ele,
parecia mais uma armadura.
Mariel assentiu, esfregando a bochecha sobre o peito.
— Eu não esperava. Quando você apareceu na minha
cozinha, parecia que minha vida havia acabado. Como eu
poderia lidar com um demônio que estaria por perto o tempo
todo até que ele me manipulasse para tirar minha alma? — Ela
colocou um beijo diretamente sobre o coração dele. — Agora
estou animada para ter você por perto o tempo todo.
Ozroth também. Ainda havia culpa sob a alegria, uma
pontada de arrependimento por esta situação ter sido imposta
a Mariel, mas se ela nunca o tivesse invocado, ele nunca a teria
conhecido. Ele não teria aprendido a amar.
— Eu odiava minha alma — disse Ozroth. — Sentir as coisas
era desconfortável e eu achava que isso me deixava mais fraco.
Mas agora não consigo imaginar a vida sem essas emoções. —
Ele a apertou com mais força. — Sem você.
O caminho deles estaria longe de ser fácil. Ozroth teria que
explicar sua decisão de adiar o acordo para Astaroth, e quem
sabia quais seriam as consequências disso? Além disso, havia
outras questões. Como eles lidariam com a necessidade de
proximidade constante, por exemplo. E, finalmente, o que fazer
com o fato de Mariel ser mortal e Ozroth não.
Seu amor por ela não iria desaparecer, ele tinha certeza disso.
E ele não se importava se ela tivesse rugas ou se seu cabelo ficasse
grisalho. A alma dela seria tão brilhante, seu coração tão grande.
Mas a realidade de vê-la envelhecer quando ele não... Ele não
queria pensar nisso.
— Isso vai ser difícil — ele disse a ela.
— Eu sei. — Ela olhou para ele, os olhos brilhando com
paixão e propósito. — Mas eu quero ver aonde isso vai.
— Eu também.
Ela riu e balançou a cabeça.
— Sabe, Calladia estava preocupada que você estivesse
mentindo para mim, mas você é quase dolorosamente honesto.
— Eu nunca mentiria para você — disse ele.
O sorriso dela era suave e doce.
— Promete?
— Prometo.
Vinte e Oito

— Queridos! — Diantha exclamou, abrindo a porta da frente.


— Vocês chegaram!
O sorriso de Mariel parecia mais uma careta enquanto
abraçava a mãe.
— Nós literalmente não podíamos perder isso.
Sua mãe estava usando um vestido amarelo com uma gola
intrincadamente dobrada. Ametistas pontilhavam seu cabelo e
brilhavam em seus dedos, combinando com sua manicure roxa.
Praticamente a única coisa que Mariel havia herdado de
Diantha – um complexo debilitante não contava – era seu amor
por roupas coloridas.
Mariel ainda estava usando o vestido vermelho cereja com
decote redondo que ela usou enquanto Oz fazia o que queria
com ela. Ela estava deliciosamente dolorida entre as coxas e
saboreou a lembrança do que eles fizeram... o que eles vinham
fazendo quase sem parar desde que decidiram dar uma chance
ao relacionamento.
Mariel se sentiu eletrificada da cabeça aos pés, e não por
causa da magia recém-descoberta de Oz. Ela nunca
experimentou uma paixão tão intensa, e nem tudo era luxúria.
Oz era inteligente, solidário e engraçado à sua maneira seca. Ela
ansiava por estar perto dele, e ele parecia sentir o mesmo. Ele
estava obcecado em vê-la preparar sua exibição de flores para os
campeonatos, comentando sobre seu talento como artista e a
beleza das flores.
Mariel se sentia como uma dessas flores, abrindo suas pétalas
ao sol. Ou às nuvens, na verdade, já que se dirigiam para o
inverno chuvoso do noroeste do Pacífico, mas Mariel sabia
melhor do que ninguém que não havia regras quando se tratava
de floração.
Ela observou Oz aceitar o abraço de Diantha com claro
desconforto. Ele ainda usava seu surrado chapéu de cowboy
preto, mas a camisa azul e os jeans pretos eram novos. Eles
estavam lentamente construindo seu guarda-roupa, e ele até
abriu um pequeno portal para o reino dos demônios para pegar
roupas de sua toca. Ela deu uma olhada em seu quarto e não
ficou surpresa ao ver que era esparso e utilitário. Oz confessou
que nunca se importou com arte ou decoração até
recentemente. Astaroth o criou para acreditar que os apegos a
qualquer coisa, sejam pessoas ou objetos, o tornavam fraco.
Se Mariel conhecesse Astaroth, ela daria ao demônio um
pedaço de sua mente – começando com um gosto de seus
dedos. Ela nunca socou ninguém antes, mas tinha certeza de
que faria um bom trabalho. Ou talvez ela pedisse a Calladia para
fazer isso, já que doeria mais.
— Entrem, entrem. — Diantha os chamou para o corredor
dos retratos. Como sempre, Mariel evitou o olhar penetrante
do tio-avô Trenton. Entrar na casa da família Spark era como
enfrentar o desafio, cercado por todos os lados por parentes que
eram mais talentosos do que ela.
Mariel era talentosa, porém, lembrou a si mesma. Ela
simplesmente não era talentosa da maneira que Diantha Spark
queria que ela fosse. Mas, pela primeira vez, Mariel sentiu-se
tentada a perguntar à mãe: Quem se importa? Ela finalmente
estava se sentindo confortável em sua pele.
A mesa estava posta, mas apenas seu pai e seu primo
Lancelot estavam sentado sob as cabeças dos autômatos de
Wally.
— Eu pensei que você ficaria doente esta semana? — Mariel
perguntou a Lancelot enquanto ela se sentava em frente a ele.
Lancelot jogou a cabeça para trás para tirar uma mecha de
cabelo preto dramaticamente esvoaçante dos olhos.
— Mamãe e papai me prometeram um novo console se
ficarem doentes o mês inteiro.
— Vale a pena? — Mariel perguntou em dúvida.
— Eles também dobraram minha mesada. — Ele encolheu
os ombros. — Além disso, a comida é muito melhor do que a
comida do papai. — Ele apontou seu telefone para mostrar a
tela de Mariel, que estava cheia de ghouls animados. — E estou
fazendo grandes progressos em Poltergeist Go.
— Sem sussurros na mesa de jantar — disse Diantha,
sentando-se. Ela usou seu feitiço usual para encurtar a mesa, e
Oz se contorceu quando Diantha disparou na direção deles. —
Agora só falta o Alzapraz. Onde está o velho rabugento?
Roland, você viu ele?
Roland balançou a cabeça, sem se preocupar em abaixar o
jornal.
Diantha murmurou um feitiço e os mojitos apareceram na
frente dos adultos. Mariel tomou um gole. Estava perfeito,
cítrico e menta suavizando o ardor do álcool.
Ela observou Oz provar o coquetel. Suas sobrancelhas se
ergueram e ele olhou para a bebida como se fosse ambrósia.
— Incrível. — Ele o levou aos lábios e deu um gole.
Mariel estremeceu.
— É mais forte que vinho, sabe.
Os olhos dourados de Oz se arregalaram sobre a borda de
seu copo agora vazio.
— Quanto mais forte?
— Tipo... três ou quatro vezes?
— Oh. — Ele olhou tristemente para o copo vazio. — Eu
deveria ter guardado.
— Não se preocupe, vou convocar outro — Diantha disse
alegremente.
Um segundo mojito apareceu na frente de Oz. Ele olhou
para a taça com clara vontade, e Mariel sorriu.
— Tudo bem ficar tonto — ela disse a ele. — Nós viemos
caminhando até aqui, afinal. — Francamente, ela adoraria ver
Oz bêbado. Ele a tinha visto depois de margaritas, então seria
justo.
— Tem um gosto tão bom — disse Oz. — Como cores
explodindo na minha boca.
Esse tipo de frase normalmente faria Mariel questionar o
quão alta uma pessoa estava, mas Oz tinha confiado mais nela
desde que oficializaram o relacionamento. Sons, cheiros e
sabores podem levá-lo à superestimulação.
— Beba devagar — ela aconselhou. — Saboreie.
Seus lábios se curvaram.
— Oh, agora você gosta de ir devagar e saborear as coisas?
— Fique quieto. — Suas bochechas queimaram; ela podia
se lembrar de todas as vezes que ele insistiu em saboreá-la.
— Só estou dizendo que você deve ser consistente em suas
opiniões.
Mariel se inclinou e deu um beijo estalado em sua boca.
— E eu só estou dizendo que você deve considerar as
consequências de me provocar.
— Existem consequências? — Ele levou a boca ao ouvido
dela. — Diga.
Mariel sentiu o rubor familiar da excitação, e ela teria
delineado algumas dessas consequências, mas este não era o
local para isso. Diantha já os observava como um louva-a-deus
caçando, e eles não precisavam dar mais espetáculo à família.
— Vocês pombinhos são adoráveis — disse Diantha. —
Alguma atualização sobre procriação?
— Mãe! — Mariel disse enquanto Oz engasgava com a
bebida. — Isso não é apropriado.
Diantha acenou com a mão.
— Você não precisa ser tão reservada sobre sua vida sexual.
E você não quer me dar netinhos? — Ela piscou, mas se havia
uma coisa em que ela não era boa era bancar a ingênua.
Mariel normalmente teria desviado ou concordado em fazer
o momento constrangedor terminar, mas uma brasa de
indignação se instalou atrás de seu esterno. Ela endireitou os
ombros.
— Se eu tiver filhos — ela disse à mãe —, será quando eu
quiser. E não terá nada a ver com você, então não quero ouvir
você mencionar procriação novamente.
O silêncio caiu, até mesmo o dedo de Lancelot parou sobre
a tela do smartphone.
Diantha piscou.
— Somos uma família. Compartilhamos tudo.
— Não, nós não compartilhamos. — A voz de Mariel ficou
mais confiante. — Meu relacionamento é da minha conta. Meu
útero é da minha conta. Então, por favor, pare de agir como se
você fosse minha dona.
— Oh, merda — Lancelot disse baixinho, os olhos castanhos
arregalados.
O jornal caiu das mãos de Roland. Mariel encontrou o olhar
chocado de seu pai com o queixo erguido. Ele deixava Diantha
pisar nele, mas Mariel estava cansada de alimentar essa
dinâmica.
Diantha se levantou, fazendo sua cadeira raspar no chão.
Mariel se preparou, imaginando que coisa horrível sua mãe iria
invocar para puni-la.
— Você — Diantha disse, apontando para Mariel —, é uma
pirralha ingrata.
Oz fez um barulho de protesto, mas Mariel encontrou seu
olhar e balançou a cabeça.
— Minha briga — ela sussurrou.
Sua mandíbula se apertou e um músculo cintilou em sua
bochecha. Então ele assentiu.
Mariel apertou seu braço em um agradecimento silencioso,
então se levantou.
— Não sou ingrata — disse ela a Diantha. — Estou
estabelecendo limites.
— Depois de tudo que fiz por você? — perguntou Diantha.
— Anos pagando as melhores escolas, o melhor treinamento, o
melhor de tudo, e você me retribui com acusações infundadas?
Eu não ajo como se fosse sua dona.
— Age sim. — O coração de Mariel disparou, bombeando
adrenalina em suas veias. Ela nunca havia confrontado sua mãe
dessa maneira, e era tão aterrorizante quanto emocionante. —
Você entra na minha casa sem ser convidada. Você mexe nas
minhas coisas. Você fica de olho na minha magia.
— Alguém tem que fazer isso. — Os dedos de Diantha
ondularam agitados na superfície da mesa, as unhas batendo
em um ritmo como o aviso de uma cascavel. — Apesar de todo
o dinheiro e tempo gastos com você, você é preguiçosa. Seu
feitiço é terrível. Eu dediquei anos de esforço para fazer de você
uma Spark adequada, e ainda assim você falha todas as vezes.
Uma mistura familiar de raiva e vergonha agitou-se no
estômago de Mariel, e seu peito se apertou. Todos olhavam para
ela – Oz com preocupação, Lancelot com surpresa e seu pai
com uma expressão de resignado desapontamento. Esta era a
parte em que ela deveria murchar e se desculpar.
Algumas semanas atrás, Mariel teria feito isso.
Ela respirou fundo e plantou os pés, imaginando a terra
entre os dedos. Abaixo da fundação, a terra jazia rica e escura.
Minhocas se entrelaçavam na terra, enquanto raízes esticavam
dedos finos, ancorando-se profundamente. Você não vai me
mover, disseram aquelas raízes. Eu pertenço aqui.
Mariel também não se comoveu. Não dessa vez.
— Eu não sou um fracasso — disse ela. — Eu sou incrível na
magia da natureza – você simplesmente não a respeita.
Diantha zombou.
— Brincar com flores não é tão importante quanto outras
habilidades mágicas.
— Que utilidade prática tem o teletransporte? — Mariel
perguntou. — Posso combater doenças nas plantas, fazê-las
florescer no inverno, manter viva a natureza. Você pode se exibir
nas festas.
— Cuidado com o tom — disse seu pai. — Sua mãe está
tentando ajudar.
— Cuidado com o meu tom? — Mariel soltou uma risada
descontrolada. — Não, eu não acho que vou ter.
Diantha parecia horrorizada.
— O que deu em você esta noite? Eu sei que não gastamos
milhares de dólares em aulas de etiqueta para você acabar assim.
— Ela gesticulou na direção de Mariel, e o dragão autômato
acima de sua cabeça soltou uma baforada de vapor.
— Eu não pedi aulas de etiqueta — Mariel rebateu. — Você
insistiu, como tem insistido em controlar todos os outros
aspectos da minha vida. Estou cansada disso.
— Cockatrice din convosen! — Diantha gritou.
Mariel se encolheu quando um pequeno dragão do
tamanho de um Dogue Alemão apareceu no centro da mesa.
Tinha duas pernas, uma cauda em forma de serpente e a cabeça
de um galo. Ele grasnou estridentemente, um ruído metálico
horrível que deixou todos tapando os ouvidos.
Dizia-se que as cocatrizes matavam com um olhar, mas isso
era um mal-entendido que se originou nos tempos medievais,
quando eram usadas para torturar prisioneiros. O que elas
faziam era emitir sons tão insuportáveis que ninguém
suportava ficar perto delas. Eventualmente, os ouvidos de um
ouvinte começariam a sangrar. Diantha estava tentando calar
Mariel por todos os meios necessários.
Quando Mariel viu os olhares de dor de Oz e Lancelot, que
tapavam os ouvidos sem sucesso, a fúria tomou conta dela.
Diantha estava prejudicando mais do que apenas a autoestima
de Mariel. Ela traçou um pentagrama no tampo da mesa com o
dedo.
— Aufrasen di cockatrice! — ela gritou sobre o crocitar
implacável.
A cocatrice desapareceu.
Mariel ficou boquiaberta olhando para o local onde o
animal estava. Seus ouvidos zumbiam e demorou um pouco
para entender o que Diantha estava dizendo. Sua mãe, contra
todas as probabilidades, de repente estava radiante.
— Eu sabia que você iria conseguir eventualmente — ela
cantou. — Você só precisava de um empurrãozinho.
Mariel encontrou os olhos de Oz.
— Eu fiz isso — ela disse maravilhada. — Eu o bani.
— Você fez. — Sua expressão era orgulhosa.
— Você só precisava ouvir uns gritos — Diantha estava
dizendo, e Mariel instantaneamente voltou à conversa. — Posso
ser mais dura com você, se produzir resultados como este.
— Não! — Mariel bateu com a mão na mesa. A cabeça do
grifo rugiu. — Aquele feitiço não teve nada a ver com você.
Diantha fungou.
— Obviamente eu fiz parte disso. Você nunca convocou ou
baniu nada com sucesso antes.
— Se consegui, não foi graças a você — Mariel estalou. —
Essa magia veio de mim.
Um raio de compreensão atingiu, e o queixo de Mariel caiu.
Pela primeira vez, ela percebeu porque sua magia às vezes
funcionava perfeitamente e falhava em outras.
Ficou claro que ninguém mais havia experimentado uma
epifania semelhante. Sua mãe ainda tagarelava sobre como
"moldar" o talento de Mariel, enquanto Oz rangia os dentes e
cerrava os punhos, claramente tentando não intervir. Lancelot
havia conseguido um mojito sobrando de alguma forma e o
estava sugando, olhando furtivamente para a saída.
Testando sua teoria, Mariel traçou outro pentagrama
invisível sobre a mesa.
— Aufrasen en mojitoil — ela murmurou.
O mojito desapareceu, deixando seu primo menor de idade
chupando ruidosamente por um canudo vazio. Ele gritou e se
jogou para trás na cadeira.
Mariel apontou o dedo para ele.
— Mais quatro anos antes que você possa beber isso.
Ele fez uma careta.
— Você não é minha mãe. — Então sua boca se curvou em
um sorriso. — Banimento legal, no entanto.
— Obrigada. — Mariel sorriu. Ela ainda estava com raiva,
mas a maravilha de sua compreensão era estimulante. Ela
endireitou a postura e encarou a mãe.
— Será uma pena se eu tiver que invocar um cocatrice toda
vez que você fizer um feitiço — disse Diantha —, mas se isso for
necessário...
— É a minha vez de falar — Mariel disse em voz alta.
Diantha fez uma pausa no meio da frase.
— Sobre o quê? Descobrimos a chave para a sua magia.
Precisamos praticar.
Mariel balançou a cabeça.
— Não, eu descobri a chave da minha magia. Você sabe por
que meu feitiço falha perto de você? Porque você está me
mandando fazer isso. O impulso não vem de mim.
— E? — A testa de Diantha enrugou. — É assim que todo
mundo aprende.
— Não quando você me intimidou a ter um complexo sobre
isso! — Mariel estava se sentindo mais confiante a cada
momento. — Parte da magia é intencional, certo? A intenção
não estava vindo de mim. Eu estava com tanto medo de estragar
tudo que se tornou uma profecia autorrealizável.
Oz entrelaçou os dedos nos dela, e ela olhou para ele. Ele
estava sorrindo, seu rosto enrugado transformado pelo deleite.
Linhas de riso se espalhavam de seus olhos, e Mariel queria
realçar essas linhas sempre que possível.
— Expulsei a cocatrice porque estava cansada de que me
mandassem calar a boca — disse ela. — Expulsei o mojito
porque foi ideia minha. E às vezes minha magia funciona em
torno de Oz porque foi meu desejo moldando o feitiço, não o
seu.
— Eu sempre tentei pressionar você a ser a melhor bruxa que
poderia. — Diantha colocou a mão contra o peito e sua pulseira
refletiu a luz. As ametistas eram brilhantes e duras, como ela. —
Você não pode me culpar por aprender devagar.
Agora que Mariel havia começado esse confronto confuso,
ela não conseguia parar. As palavras brotavam dela, o
descontrole de décadas de ressentimento e dor.
— Você consegue se ouvir? — ela perguntou. — Você
sempre tenta me derrubar. Durante toda a minha vida você me
menosprezou, dizendo que sou lenta ou sem talento, que sou
uma decepção e uma vergonha para o legado dos Spark. Talvez
você tenha pensado que isso me inspiraria a trabalhar mais, mas
não importa o quanto eu tenha trabalhado, nunca foi o
suficiente para você. E eu não sou uma aprendiz lenta em tudo
– minha magia da natureza tem sido poderosa desde o início.
— Há mais na magia do que plantas — argumentou
Diantha, normalmente ignorando qualquer crítica dirigida a
ela. — Você precisa ser boa em tudo isso. As estrelas, o vento e
a terra concordaram...
— Eu não dou a mínima para as estrelas, o vento e a terra,
porra! — Mariel gritou. — Eu não me importo com o que você
ouviu ou pensou que ouviu. Eu não quero ser como você. Eu
quero ser eu.
— Olha a língua! — Roland disse depois de alguns segundos
de silêncio chocado.
— E você — disse ela, virando-se para o pai. — Você a deixou
passar por cima de você e de mim durante anos. Sempre que ela
me insultou, você a apoiou. De certa forma, isso doeu mais. —
Mariel sabia como sua mãe era: dramática, narcisista e cega para
suas próprias falhas. Mas seu pai era uma pessoa relativamente
normal e nunca defendeu Mariel das críticas mais duras de
Diantha.
Ele suspirou e empurrou os óculos para beliscar a ponte do
nariz.
— Mariel, você sabe que nós amamos você.
— Sei? — ela perguntou, sentindo a dor de uma ferida
profunda e desconhecida. Oz trouxe à tona essa dor quando ela
o conheceu. Você acha que ela te ama? ele perguntou, quando
ele ainda estava tentando encontrar vantagem sobre ela. Ele
tinha atingido devastadoramente perto do alvo. — Amar é
apoiar alguém — disse ela. — Levantá-los, não derrubá-los.
Amá-los como eles são, não como você quer que eles sejam. —
Oz era um demônio carrancudo e emocionalmente instável
com um passado duvidoso, e ela gostava dele do jeito que ele
era. — Oz me mostrou mais amor em poucas semanas do que
eu senti em anos dos meus próprios pais.
— Por que você está nos atacando assim? — Os olhos de
Diantha estavam secos, mas seu lábio inferior tremia
teatralmente. — Depois de tudo que fizemos por você. A
despesa...
— Dinheiro não é amor — disse Mariel. — Se fôssemos
pobres e você me tratassem com paciência e gentileza, eu teria
acabado muito mais feliz.
Diantha começou a soluçar. Em um instante, Roland estava
de pé e correu para envolvê-la em seus braços.
— Olhe o que você fez — ele disse a Mariel enquanto
acariciava o cabelo de sua esposa. — Você fez sua própria mãe
chorar.
— Questionável — disse Mariel. — Mas mesmo se eu
tivesse, vocês dois me fizeram chorar inúmeras vezes. Estou
cansada de me calar e aceitar.
Lancelot deu um soco sutil e ela sorriu para o primo. Ela não
estava sozinha nesta família – ela tinha Lancelot, Alzapraz,
Lupe e Quincy, para não mencionar Hector e Wally, os parentes
que Diantha já havia afugentado.
Mariel estava finalmente pronta para se juntar a eles.
— Não virei mais aos jantares de domingo — disse ela.
Diantha soluçou mais forte.
— Então você pode esquecer que eu pague pela sua pós-
graduação.
O sonho de um DoF em Herbologia Mágica pairava diante
de Mariel, frágil e fervorosamente desejado. Sem o fundo da
família Spark, ela precisaria se desfazer, economizar e lutar para
pagar as mensalidades.
A ameaça era estranhamente libertadora. Como
administradora do fundo, Diantha sempre manejara o dinheiro
como uma arma contra sua família. Uma vida livre de
empréstimos estudantis valia a pena ser tratada terrivelmente?
Não, não valia. Mariel era adulta; ela resolveria.
— Tudo bem — disse ela. — Vou trabalhar para estudar,
fazer empréstimos. Não vou deixar você manter meu futuro
como refém. — Oz apertou sua mão e Mariel acolheu o gesto
reconfortante. Ela respirou fundo. — Na verdade, eu não vou
te ver até que mude seu comportamento. Pare de me controlar.
Pare de me insultar. Pare de menosprezar a magia da natureza.
Eu sou uma adulta e sua filha, e mereço respeito.
— Eu só queria que você fosse poderosa. — A voz de
Diantha estava aguada o suficiente para que Mariel pudesse
finalmente acreditar que ela estava chorando. — Seu futuro
parecia tão brilhante; achei que você ficaria feliz se pudesse
cumprir a profecia.
Mariel puxou a mão de Oz. Ele se levantou e Mariel se
apoiou nele.
— Meu futuro é brilhante. E estou feliz. — Ela sorriu para
Oz. — Quer sair daqui?
— Com certeza — ele rosnou, e ela poderia dizer pelo olhar
em seus olhos que ele iria tomá-la contra a superfície horizontal
ou vertical mais próxima no momento que pudesse. Era
emocionante como ele ficava excitado quando ela se afirmava.
A porta da sala de jantar se abriu com um estrondo e uma
nuvem de fumaça roxa. Mariel deu um pulo e se virou para ver
que nova abominação sua mãe havia invocado.
Não era uma abominação. Era Alzapraz, o manto sujo de
lama, a barba cheia de gravetos. Ele estava suando e parecia
furioso enquanto apontava para Oz.
— Você!
Oz parecia confuso.
— O quê?
— Afaste-se dela, demônio. — Alzapraz murmurou um
feitiço e gesticulou violentamente, e Oz foi arremessado pela
sala. Mariel gritou quando ele atingiu a parede e foi preso pela
magia de Alzapraz.
— Deixe-o em paz — disse ela, movendo-se em direção a Oz.
Seu corpo congelou, porém, a magia de Alzapraz se estendeu
para mantê-la no lugar.
O velho feiticeiro raramente exibia sua habilidade, mas
praticava magia há séculos. Embora Mariel se esforçasse, ela não
conseguia se mover um centímetro e não conhecia um feitiço
para sair da armadilha mística.
— O que você quer dizer com demônio? — Diantha
perguntou, olhando para cima de onde seu rosto havia sido
esmagado no peito de seu marido.
Alzapraz riu sombriamente.
— Você não percebeu? Eu soube no segundo em que o vi.
— Ele executou outro feitiço e o chapéu de Oz voou, revelando
seus chifres. Diantha engasgou e Lancelot se afastou da mesa
tão rápido que sua cadeira caiu.
— Você está namorando um demônio? — Diantha gritou.
— Por favor — Mariel disse através de uma mandíbula
apertada. — Ele não é como os outros demônios. Ele é gentil e
bom, e ele me ama...
— Besteira — Alzapraz interrompeu. — Eu estava na
floresta, investigando a podridão.
— Podridão? — perguntou o pai de Mariel.
— É ruim — disse Alzapraz, ignorando a pergunta. — Está
piorando também. Eu só consegui limpar pequenos trechos, e
a magia sombria os comeu novamente imediatamente.
— O que isso tem a ver com Oz? — Mariel perguntou,
esforçando-se para chegar ao seu amado. Ele estava tentando,
também, ela podia ver a protuberância de seus músculos
enquanto ele empurrava contra o feitiço. Um raio azul estalou
acima de sua cabeça como uma auréola.
— Já vi essa podridão antes. — As sobrancelhas espessas de
Alzapraz se juntaram enquanto ele olhava com raiva para Oz.
— Séculos atrás, quando um demônio estava tentando forçar
uma bruxa da floresta a fazer um acordo.
O estômago de Mariel se contraiu com um medo crescente.
— O que você está dizendo?
— A floresta está sendo envenenada, mas não por magia
humana. — Alzapraz apontou um dedo trêmulo para Oz. —
Por magia demoníaca.
Mariel olhou para Oz, incapaz de acreditar.
— Ele não faria isso comigo. — Mas Alzapraz não tinha
motivos para mentir.
Os avisos anteriores de Calladia ecoaram em sua cabeça.
Demônios são notoriamente mentirosos.
Se eu estivesse tentando induzi-la a desistir de sua alma, a
primeira coisa que faria seria ameaçar a coisa que você mais
ama.
E se Oz fez isso?
O coração de Mariel se partiu. Lágrimas inundaram seus
olhos e escorreram por suas bochechas, e ela não conseguiu
enxugá-las.
— Você mentiu para mim — ela soluçou.
Oz parecia atormentado. Um raio caiu ao seu redor,
chamuscando o piso de parquet. Ele ainda não sabia como
controlar sua magia.
Ou isso também era mentira? Ele a estava manipulando o
tempo todo, mentindo sobre ganhar uma alma para se
aproximar dela? Ele havia construído toda uma identidade para
apelar para tudo o que Mariel queria – validação, amor, um
protetor que ela poderia proteger em troca?
— Não fui eu. — Os tendões do pescoço de Oz se
destacaram enquanto ele se esforçava para escapar. — Por favor,
Mariel, você tem que acreditar em mim.
O domínio de Alzapraz sobre ela afrouxou. Mariel enxugou
os olhos e o nariz, deixando um rastro de ranho nas costas da
mão. Ela se sentia vazia, seu estômago doendo com a perda.
— Eu não tenho que fazer nada — disse ela. — Não para
meus pais, nem para você.
Ela girou nos calcanhares e correu.
Ela estava descendo a colina quando ouviu os gritos de Oz
atrás dela. Alzapraz aparentemente liberou o demônio.
— Mariel, espere!
Como diabos ela faria isso. O que foi que os médicos
disseram? Se você ouvir cascos, não espere um unicórnio? Bem,
Mariel olhou para Oz, ouviu sua história e decidiu que ele era
um unicórnio: o único demônio em todo o universo com uma
alma, que convenientemente se apaixonou perdidamente pela
bruxa que não iria trocar sua alma. Nas últimas semanas, ele
alimentou sua solidão e falta de autoestima, construindo sua
confiança enquanto destruía algo que ela amava.
Como teria terminado? Com a floresta morrendo e Oz
prometendo que poderia trazer tudo de volta e parar a
construção se ela fizesse um acordo? Ele provavelmente diria a
ela que a amava com ou sem sua magia, e ela teria acreditado
nele.
Enquanto Mariel estava se apaixonando... Oz estava
tramando contra ela.
Ela pescou o telefone do bolso. Ela mal conseguia ver a tela
em meio às lágrimas, mas navegou para as ligações recentes.
Tocou três vezes antes de Calladia atender.
— Ei, querida!
— Você estava certa. — A voz de Mariel estava distorcida por
ranho e lágrimas.
— Uau, o que está acontecendo?
— Oz. — Mariel não conseguiu mais contar a história: sua
garganta estava sufocada e ela respirava com dificuldade por
correr.
— Ah, merda. Você está em casa?
— Daqui a pouco.
— Eu estarei lá. Vamos definir um círculo de proteção tão
poderoso que as bolas dele explodirão até Marte se ele tentar
entrar.
Depois que desligaram, Mariel levou as pernas e os pulmões
ao limite. Ela era uma ávida caminhante, mas corridas de longa
distância nunca foram seu forte. Ela deveria ter andado de
bicicleta e deixado Oz caminhar até o jantar, mas como uma
tola obcecada, ela não queria se separar dele. Do demônio
tentando roubar sua alma.
Como ela pode ter sido tão ingênua? A vida não era um
conto de fadas cheio de amor verdadeiro e vilões redimidos. Os
vilões eram chamados assim por um motivo.
Mariel nunca esperou que seu coração fosse a arma
empunhada contra ela.
Vinte e Nove

— Mariel! — A voz de Ozroth falhava enquanto ele a perseguia.


Ela teve uma vantagem decente, mas as pernas dele eram mais
longas, e ele estava determinado a alcançá-la antes que ela se
trancasse dentro de casa. — Por favor, me escute.
Ele estava cambaleando com o que Alzapraz havia dito. A
praga foi causada por demônios? Os demônios não podiam
sentir sua própria magia da mesma forma que sentiam a magia
humana e, até onde sabia, ele era o único demônio em missão
no noroeste do Pacífico, então ele nem havia considerado a
possibilidade.
Agora Mariel pensava que ele era um monstro.
Sua tatuagem começou a formigar e ele rosnou de
frustração.
— Agora não...
A convocação foi insistente, porém, e o formigamento se
transformou em queimação e depois uma dor como ser
esfaqueado com facas quentes. Ele tropeçou até parar ao lado
de uma casa com uma série de lanternas piscando na frente. Os
rostos esculpidos faziam caretas para ele, as chamas mágicas
dentro fazendo os rostos parecerem se mover.
Ele estendeu as mãos trêmulas, com a palma para cima.
— Eu te espero, Mestre. — E é melhor você falar rápido.
Astaroth apareceu, vestindo um terno branco e carregando
sua arma em forma de bengala.
— Onde está a alma da bruxa? — Ele demandou.
— Preciso de mais tempo — disse Ozroth. — Muito mais
tempo, na verdade.
— Eu te dei até o final do mês.
— Que não é até amanhã. Independentemente disso, não
vou terminar a tempo de você ganhar a aposta.
Astaroth enrijeceu, e a ameaça em sua expressão fez com que
um suor frio escorresse pelas costas de Ozroth.
— Como é?
Ozroth precisava consertar as coisas com Mariel, o que
significava que seu plano de permanecer na Terra não mudou.
— Vou ficar aqui até que ela esteja pronta para desistir de sua
alma. Provavelmente mais setenta ou oitenta anos. — Muito
pouco tempo para passar com a pessoa que amava, mas aceitaria
qualquer coisa que pudesse conseguir. Mesmo mais um
minuto em sua presença seria um presente, considerando do
que ela achava que ele era culpado.
— Absolutamente não. — Astaroth bateu sua bengala no
chão. — A aposta...
— Não é minha. — Era o tom mais rude que ele já havia
usado com seu mentor, mas se Mariel podia enfrentar sua mãe
abusiva, ele poderia muito bem estabelecer um limite com
Astaroth. — Você fez; portanto, pode lidar com as
consequências.
O vento açoitava as copas das árvores, soltando as folhas
mortas. Os olhos de Astaroth fixaram-se em Ozroth.
— Você se apaixonou pela mortal — disse ele em tom de
desgosto.
— Não há vergonha nisso. Você terá a alma – apenas no
tempo do meu cronograma.
— Há vergonha quando você coloca sua espécie em risco
porque uma mortal abriu as pernas.
— Não fale dela assim. — Ozroth se aproximou. Astaroth
era uma projeção, mas ele gostaria de poder socar o desdém na
cara do demônio. — O reino pode esperar mais algumas
décadas pela alma dela.
— Não, não pode — Astaroth estalou.
Ozroth recuou.
— O quê?
— Existe uma... situação.
— O que está acontecendo? — Outro negociador morreu
na linha de ação? Havia algo errado no plano demoníaco?
Ozroth estava cansado de ser um negociante de almas, mas
ainda se preocupava com sua casa.
— Eu não fui totalmente honesto com você — Astaroth
disse. Tap tap fez a bengala contra sua bota. Tap tap. — Você
tem feito um trabalho incrível ao longo dos anos – falhas
recentes à parte – mas cada vez menos demônios estão nascendo
com o nível de poder e controle necessários para serem
negociantes. Não estamos substituindo as perdas nas fileiras
com rapidez suficiente.
O pavor rastejou pela espinha de Ozroth.
— O que você quer dizer?
— O plano demoníaco está morrendo — Astaroth disse sem
rodeios. — Pouco a pouco, as luzes estão se apagando. O sumo
conselho tem encoberto isso, mas chegará um momento muito
em breve quando todos perceberão o que está acontecendo.
Depois disso... não vai demorar muito para perder tudo.
Uma sensação pesada e horrível tomou conta do estômago
de Ozroth, como se ele tivesse engolido uma pedra. Ele podia
imaginar sua casa agora – os elegantes edifícios de pedra, as
passarelas sobre os rios fumegantes, as esferas douradas que
flutuavam como enormes vaga-lumes, iluminando o
crepúsculo perpétuo.
Os negociantes precisavam ser estoicos e insensíveis, mas o
resto da espécie tinha mais liberdade para estabelecer conexões.
Se ele estivesse no plano agora, veria evidências dessas amarras.
Casais caminhando ao longo do rio, de braços dados. As
crianças brincando nas fontes de fogo, rindo enquanto as
chamas faziam cócegas em seus pés e caíam sobre suas cabeças.
À medida que o crepúsculo se aprofundava nos tons negros da
noite, os demônios se reuniam em suas tocas para jantar e
depois cantavam canções mais antigas do que a memória dos
demônios mais antigos.
Os demônios podem não sentir emoções com a mesma
intensidade caótica e avassaladora que os humanos sentiam,
mas eles ainda às sentiam. Eles ainda viviam e amavam. Eles
ainda valorizavam seus vizinhos.
Quando a magia morresse, todos aqueles demônios
morreriam também. O plano era um ecossistema de vida
entrelaçada; nada poderia sobreviver sem tudo isso.
Como a floresta de Mariel.
Seu coração parecia que estava se partindo em dois.
— Você precisa de mais almas.
Astaroth assentiu.
— Não apenas mais almas – almas poderosas. E precisamos
delas agora.
A mensagem era clara. A alma de Mariel era muito poderosa.
Seria o suficiente para evitar o desastre enquanto os demônios
negociavam o que pudessem conseguir.
— Entendo — disse Ozroth, sentindo-se arrepiado. Tinha
que haver uma saída para isso, mas ele precisava de tempo para
pensar.
— Queixo para cima. — O sorriso de Astaroth era tão afiado
quanto o resto dele. — Quando você voltar com a alma da
bruxa, você será um herói.
Astaroth desapareceu e Ozroth caiu de joelhos. Ele enterrou
a cabeça nas mãos e gritou em suas palmas. Como ele deveria
escolher entre seu povo e seu amor? Não importava o que ele
fizesse, ele seria um monstro. Trocar tantas vidas imortais por
uma mortal equivaleria a genocídio... mas como ele poderia
trair Mariel forçando-a a fazer um acordo?
Era uma situação impossível, mas muitas outras coisas
também eram. Era impossível para um demônio ter uma alma.
Impossível para uma bruxa invocar um demônio por engano.
Impossível que um negociante de almas e uma bruxa se
apaixonem.
Ele cambaleou de volta a seus pés, determinado a encontrar
um caminho a seguir. Passo um: encontrar Mariel... e convencê-
la de que ele não havia danificado a floresta.
Mas quem tinha feito isso?
Trinta

Mariel não tinha ideia de como Oz não a alcançou quando ela


chegou em casa. Ela estava respirando com dificuldade, seus
pulmões queimando de tanto correr. Calladia ainda não havia
chegado, mas chegaria a qualquer minuto, então Mariel correu
pela casa e saiu pelos fundos, precisando do conforto de suas
plantas. Ela estava muito trêmula e desfocada para tentar um
feitiço de proteção, mas Calladia seria capaz de expulsar Oz
facilmente se ele chegasse primeiro.
Oz...
Mariel desabou na frente de sua estufa e começou a chorar.
A grama morrendo se enrolou sobre seus dedos, e a macieira
estendeu um galho nu para tocar seu cabelo. As plantas se
entregavam tão livremente, tão abnegadamente, mesmo que as
pessoas as pisoteassem, arrancassem ou cortassem para dar lugar
a construções.
Mariel também queria se dar livremente. Apresentar seu
coração pulsante a alguém e, pela primeira vez, fazer com que o
honrem e guardem. Ela se desnudou para Oz literal e
figurativamente, compartilhando seu corpo, seus pensamentos,
suas inseguranças – tudo. Ela pensou que ele tinha se
desnudado em troca.
Pena que tudo tenha sido uma mentira.
— Mariel.
A voz baixa definitivamente não era de Calladia. Mariel
levantou-se e virou-se para Oz, sua silhueta na porta da cozinha.
— Vá embora — disse ela com a voz trêmula.
Ele parecia estar em agonia.
— Por favor, apenas ouça. Eu não fiz nada com a floresta.
Ela zombou.
— Claro, deve ter sido outro demônio preso em uma
barganha de almas com uma mulher que ama a floresta.
— Parece ridículo, mas é a verdade. — Ele deu um passo à
frente, então congelou quando uma roseira enrolou um caule
espinhoso em volta de seu pescoço, ameaçando machucar se ele
continuasse. — Você está fazendo o arbusto fazer isso?
— Sim. — Mariel cruzou os braços. — E eu não tenho medo
de rasgar sua garganta. — Essa última parte não era verdade,
mas Mariel estava muito devastada para pensar além da dor. —
Você me disse que tinha uma alma. Que você era o único
demônio a sentir emoções tão intensamente. Você disse que me
amava. — Sua voz falhou na última frase.
— Eu amo — ele jurou. — Eu te amo tanto, Mariel.
— Mentiroso. — A acusação era tão perversa quanto as que
ela lançara contra os pais. — É o que todo mundo faz, não é?
Eles me veem e acham que vai ser fácil mentir para mim, me
machucar, me manipular como quiserem.
— Mariel...
— Não terminei.
Sua boca se fechou.
— Diga-me a verdade — disse Mariel. — Se eu pedisse para
você... você seria capaz de consertar a praga na floresta em troca
da minha alma?
Sua boca abriu e fechou. Finalmente, ele assentiu.
Mariel riu amargamente.
— Você estava esperando eu baixar a guarda. Ficar tão
desesperada que pediria para você salvar a floresta. Deixe-me
adivinhar, você ainda me amaria sem minha magia?
A boca de Oz se contorceu.
— Eu amaria, mas não fiz isso. Juro.
— Então quem foi?
Ele começou a encolher os ombros, então parou quando a
videira apertou seu pescoço, pressionando as pontas dos
espinhos em sua pele.
— Outro demônio. Eu preciso fazer alguma pesquisa,
perguntar por aí...
Ela zombou.
— O quê, você não conseguiu perceber que era magia
demoníaca desde o início?
— Não funciona assim. Sentimos a magia humana porque
a colhemos. Não consigo sentir o trabalho de outro demônio.
— Que conveniente — disse Mariel. — Você tem uma
resposta para tudo.
Algo chacoalhou no beco além de seu quintal, como um pé
batendo em uma lata de refrigerante. Mariel olhou por cima do
ombro, mas ninguém apareceu. Calladia ainda estava a
caminho, aparentemente.
— Eu não tenho todas as respostas — Oz disse, e o olhar de
Mariel se voltou para ele. — Não sei quem está fazendo isso ou
por quê. Mas eu sei de uma coisa. — Ele respirou fundo. —
Você é a melhor pessoa em todos os mundos e eu quero estar
com você. É apenas... complicado. Preciso resolver algumas
coisas.
— Como o quê? — ela perguntou maliciosamente. — O
que mais você pode ameaçar? Minha estufa é a próxima na lista?
— Não é isso que estou fazendo. Mas algo ruim está
acontecendo no plano demoníaco. — Sua garganta balançou.
— O plano está morrendo. Eles precisam de mais almas.
Mariel zombou. Se ela precisava de mais provas de que ele a
estava manipulando, aí estava.
— Tentando usar a culpa como tática? Todos aqueles pobres
e inocentes demônios que vão morrer sem minha única alma
miserável?
— Não é miserável — disse Oz —, e vou encontrar uma
maneira de ajudá-los. Mas eu quero buscar uma solução com
você. — Ele fez uma careta. — Não faço ideia do que está
acontecendo na floresta. Eu não sei como consertar isso. Mas eu
preciso que você acredite em mim quando digo que te amo, e
eu não planejei roubar sua alma. Não depois dos primeiros dias,
pelo menos.
— Mariel? — A voz de Calladia veio de dentro da casa. —
Onde você está?
— Na parte de trás — ela chamou. — Com o demônio.
— Filho da puta. — Calladia saiu furiosa e se posicionou
entre Oz e Mariel. — Eu não sei o que você fez, mas você precisa
sair agora.
— Eu não fiz nada. — Oz levantou as mãos defensivamente.
— Houve um mal-entendido.
Calladia apontou para a casa.
— Saia.
— Não posso. — Ele olhou por cima do ombro de Calladia
para Mariel. — Por favor, Mariel. Me dê uma chance. Podemos
resolver isso.
— Não — disse Mariel. — E não para te dar minha alma. Eu
não me importo quanto tempo eu tenho que procurar por
bruxas da natureza suficientes para consertar a praga – eu vou
encontrá-las. Mesmo que demore décadas, mesmo que a
construção quase mate a floresta, darei um jeito de trazê-la de
volta. — Ela se levantou o mais alto que pôde, colocando os
ombros para trás. — Você não pode me machucar, Ozroth, o
Impiedoso.
Ele se encolheu.
Um milissegundo depois, um raio incandescente caiu dos
céus. A terra tremeu e o som de vidro quebrando seguiu-se a
um trovão ensurdecedor. Mariel ficou momentaneamente
cega. Ela piscou, tentando recuperar a visão... e viu uma
cintilação laranja reveladora.
— Não — ela disse, o horror atingindo tão forte e rápido
quanto o raio. — Não!
Sua preciosa estufa estava pegando fogo. As paredes de vidro
foram quebradas, a armação de metal escureceu e dobrou, e as
plantas lá dentro choravam enquanto queimavam e morriam.
— Apague — ela gritou, correndo em direção às chamas. —
Apague! — A pele dos seus braços ardia, e o sangue marcava
onde pequenas lanças de vidro a atingiram.
— Mariel, pare! — Oz gritou. — Você vai se queimar.
— Afaste-se dela, idiota. — Calladia deu um soco em Oz,
que cambaleou para trás, com a mão em concha no olho. A
bruxa loira começou a tecer fios entre os dedos, e uma nuvem
negra cobriu a lua. A chuva torrencial começou a cair, ardendo
na pele de Mariel. Ela chorava e tremia, os braços em volta de si
mesma enquanto observava a fumaça espiralar onde a chuva
encontrava o fogo.
Logo as chamas se extinguiram, embora as cinzas
continuassem a arder. Calladia avançou para Oz, seu cabelo
girando em um vento antinatural enquanto ela dava um nó na
linha e murmurava um feitiço. Oz foi arrancado do chão como
se por uma mão invisível, então arremessado para longe, seu
grito desaparecendo em nada.
— Vou colocar proteções — disse Calladia.
Mariel assentiu, então tropeçou nos restos de sua estufa. O
vidro estalou sob suas botas. Ela tocou todas as plantas pelas
quais passou, pulsando magia nelas e tentando encontrar a
centelha de vida escondida lá no fundo. Algumas responderam,
folhas fuliginosas se mexendo. A maioria não.
Na parte de trás da estufa, Mariel encontrou sua exibição
para o Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico. A mesa
estava rachada no meio e marcas pretas espiralavam sobre o
chão de cimento ao redor dela. Foi aqui que o ferrolho atingiu
– bem em seu orgulho e alegria.
Não sobrou nada além de cinzas.
Mariel caiu, ignorando a dor aguda quando um caco de
vidro cavou em seu joelho. A dor não chegava perto do que ela
sentia por dentro. Em trinta minutos, ela perdeu o namorado,
as ilusões... e agora as plantas amadas que ela cultivou por tanto
tempo.
As que restaram ficaram gravemente feridas e Mariel sentia
sua dor. O que antes fora seu retiro do mundo agora estava em
ruínas.
Como o coração dela.
O som de passos sobre o vidro veio de trás dela, e então a
mão fria de Calladia pousou na cabeça de Mariel.
— Sinto muito — disse ela. — Sinto muito mesmo.
— Ele as matou. — A garganta de Mariel estava tão inchada
que era difícil empurrar as palavras para fora.
— Maldito bastardo. Espero que ele bata em algo afiado. —
Calladia se agachou ao lado de Mariel. — Vamos te limpar. Você
precisa fazer mais alguma coisa aqui?
Mariel enxugou os olhos, não que isso ajudasse muito a
conter as lágrimas.
— Algumas ainda estão vivas. Mas elas estão sofrendo.
A boca de Calladia era uma linha sombria.
— Faça o que você puder. Vou pegar o kit de primeiros
socorros e preparar algumas bebidas fortes.
O silêncio após a partida de Calladia parecia estranho depois
de uma noite de gritaria. Tudo o que Mariel ouvia era o
gotejamento silencioso da água.
— Eu sinto muito — ela sussurrou. — Eu não deveria ter
confiado nele.
Mas ela tinha, e agora suas plantas pagaram o preço. Seus
joelhos queimavam e suas entranhas estavam atadas, mas Mariel
se forçou a ficar de pé e começar a cuidar das plantas feridas. Ela
derramou sua magia e amor nelas, desejando que os caules
enegrecidos e as folhas carbonizadas voltassem a ser verdes.
Levaria tempo para elas se curarem em qualquer lugar perto de
onde estavam antes do raio, mas Mariel jurou fazer tudo o que
pudesse para salvá-las.
Ozroth, o Impiedoso, tinha como alvo onde mais doía, mas
Mariel não lhe daria a satisfação de implorar para salvar o que
havia destruído. Ela iria construir de novo, começando com as
paredes ao redor de seu coração.

•••

Mariel acordou e encontrou Calladia dormindo ao lado dela.


Era o final da manhã; Calladia deve ter gastado muita energia
convocando a tempestade e – lançando o demônio no próximo
condado –, como ela disse.
O uísque também pode ter culpa. A cabeça de Mariel
latejava, mas ela não sabia dizer se era uma ressaca ou os efeitos
colaterais de uma noite de choro aparentemente interminável.
Calladia havia feito para as duas old fashioneds enquanto
Mariel abria o coração e, quando foram para a cama, bem
depois da meia-noite, Mariel estava vendo em dobro.
Ela sentou-se lentamente. Tudo doía. As pernas e a bunda
por causa da corrida, o joelho e os braços dos cacos de vidro.
Calladia havia enfaixado Mariel, mas os cortes ainda doíam.
Os olhos de Calladia se abriram.
— Que horas são? — ela perguntou turvamente.
— Onze.
Calladia gemeu.
— Maldito seja aquele uísque.
Mariel levantou-se e caminhou até a janela. Algumas
famílias estavam em seus passeios diários, e ela quase conseguiu
sorrir quando uma garota em uma fantasia de princesa passou,
acenando com sua varinha de plástico.
Então ela se lembrou.
— É Halloween.
Calladia estava lentamente saindo da cama.
— Themmie nos convidou para algum tipo de rave de fadas
hoje à noite. — Ela fez uma careta. — Ou podemos cuidar da
ressaca no Le Chapeau Magique.
— Halloween foi quando sua mãe disse que a construção
iria recomeçar.
Os olhos de Calladia se arregalaram.
— Você tem razão.
Mariel mordeu o lábio entre os dentes. Se este fosse um
Halloween normal, ela já estaria na praça central, montando
sua exibição para o Campeonato de Flores do Noroeste
Pacífico. Seu coração doía com a memória das suas plantas
queimadas. Ela precisava varrer o vidro e começar a construir
uma nova estufa, mas não achava que conseguiria enfrentar
aquela sala escurecida ainda.
A raiva aumentou muito rápido. Oz havia tirado muito dela;
ela se recusava a deixar a ganância de Cynthia durar mais.
— Estou indo para o canteiro de obras.
O rosto de Calladia estava tenso de preocupação.
— Eu não acho que mamãe estava blefando. Eles não vão
deixar os protestos continuarem.
— O que eles vão fazer, passar por cima de mim?
— Quero dizer, estamos falando sobre minha mãe aqui.
— Bom ponto. Ainda assim, é mais provável que eles me
prendam. — No momento, Mariel não dava a mínima para essa
possibilidade. Ela já havia perdido tanto; por que não
continuar?
Calladia suspirou.
— Como acabamos com duas mães gananciosas que não
conseguem pensar além de suas contas bancárias e seus troféus?
— É mais sobre como elas acabaram conosco?
— Rebelião adolescente? — Calladia sugeriu. — Nós nos
prendemos ao tentarmos ser boas pessoas.
Mariel passou os braços em volta da cintura e encostou-se na
parede.
— Ser bom é uma merda.
Calladia assentiu.
— Você não tem ideia de quantas vezes eu pensei em lançar
aquelas escavadeiras sobre as montanhas, mas isso não seria
justo com os trabalhadores da construção.
Mariel bufou.
— Definitivamente não é justo. Mais como assassinato. —
Ao contrário de Oz, os trabalhadores da construção eram
mortais. Ele acabaria abatido e machucado pela magia de
Calladia – Mariel não tinha ilusões de que estava livre do
demônio para sempre – mas os humanos acabariam achatados
como uma panqueca.
As palavras de Calladia enviaram um pensamento à cabeça
de Mariel, e de repente ela soube exatamente o que faria hoje.
Ela se afastou da parede.
— Estou cansada de ser boa. Prefiro fazer o que é certo.
Calladia a olhou com cautela.
— Eu reconheço esse olhar. Você está tramando alguma
coisa.
O coração de Mariel voltou a bater com determinação. Ela
se recusava a ceder a outra forma de mal.
— Vou parar a construção.
— Legal — disse Calladia. — Mas... como?
— Ainda estou descobrindo isso. — Mariel começou a pegar
as roupas da cômoda. — Quer vir?
— Mais do que tudo, mas vou almoçar com minha
bruxinha. Posso ir depois?
Calladia era mentora da Grandes Feiticeiros e Bruxas, uma
organização que juntava jovens feiticeiros com os mais velhos,
que forneciam orientação e conselhos. Era uma obrigação que
ela levava muito a sério.
— Sim, passe por aqui depois — disse Mariel. — Eu preciso
ter a distribuição do terreno de qualquer maneira.
Calladia se espreguiçou.
— Entendi. Só não faça nada imprudente antes de eu chegar
lá, ok?
— Claro — disse Mariel, sem falar sério nem um pouco. Ela
estava sem forças para falar, e o plano demoníaco não tem fúria
como uma bruxa desprezada.

•••

Mariel espiou a construção por entre as árvores. Rani e alguns


outros manifestantes estavam no caminho do maquinário,
parecendo inquietos. Policiais montados cercaram a clareira,
seus pegasus pisando furiosamente no chão.
— Essa reunião é ilegal — disse um policial, com a voz
magicamente amplificada. — Quem ficar está invadindo
propriedade privada e será preso.
Feiticeiros e bruxas se dispersaram diante da ameaça. Logo
tudo o que restou foram Rani e o centauro da prefeitura.
— Não vamos cair sem lutar — disse Rani. Ela usava
joelheiras, uma mochila da Pequena Sereia e um capacete de
bicicleta – aparentemente seu equipamento de motim.
O centauro pisoteou um casco.
— Esta construção é ilegal. Foi decidido por capricho de
nossa prefeita corrupta e...
— Último aviso — disse o policial.
— Me morda — Rani zombou.
O policial sorriu, revelando presas.
— Com prazer. — Ele acenou, e a polícia entrou, cassetetes
e algemas em punho.
Mariel se ajoelhou e enfiou as mãos no solo, alcançando sua
magia.
— Gabbisinez en machina. — Ela pesquisou uma variedade
de feitiços em seu smartphone enquanto espionava, e este foi o
que mais a atraiu. — Gabbisinez en machina.
As plantas ao redor da clareira se mexeram. Arbustos
rastejavam sobre a grama, estendendo os braços espinhosos
para o equipamento de construção. Raízes ondulavam no solo
e lançavam gavinhas em direção à superfície. Um pegasus da
polícia empinou quando uma trepadeira se espalhou em seu
caminho.
— Quem está fazendo isso? — O policial exigiu quando as
videiras serpentearam sobre a garra do trator.
Rani olhou em volta. Quando ela viu Mariel nos arbustos,
ela sorriu.
Corra, Mariel balbuciou.
Rani cutucou o flanco do centauro e ficou na ponta dos pés
para dizer algo a ele. Ele olhou para o arbusto em que Mariel
estava, então assentiu.
— Monte — disse ele, dobrando as patas dianteiras para
aproximar as costas do chão.
Rani subiu nas costas do centauro e eles partiram a galope.
A polícia tentou persegui-los, mas a vegetação rasteira crescia
rapidamente e raízes e trepadeiras impediam seu avanço.
A escavadeira agora estava quase coberta por uma treliça
verde.
— Gabbisinez en machina — Mariel disse novamente,
alimentando mais poder no solo. Ela estava ficando tonta, mas
se recusava a desistir. Esta floresta era dela.
A floresta respondeu ao seu chamado ansiosamente. As
plantas também ficaram zangadas com a intromissão na
paisagem. A raiva cega delas reverberou no peito de Mariel,
misturando-se com a dela, até que ela não sentiu nada além de
uma fúria quente.
— Vai se foder, Cynthia Cunnington — disse ela, cravando
as unhas na terra. — Vai se foder também, mãe. E acima de
tudo, um grande e caloroso vai se foder para Ozroth, o
Impiedoso.
A memória de suas flores queimando fez pender a balança.
Mariel gritou quando uma represa cedeu em seu peito. Cada
dor que ela experimentou ao longo da vida se misturou, e a
onda de emoção alimentou uma onda de magia tão forte que as
árvores balançaram na onda de choque. Os arbustos se
entrelaçaram, prendendo rodas e pás, e os trabalhadores da
construção civil fugiram enquanto a floresta tomava conta do
local.
Mariel se levantou com o cabelo chicoteando em um vento
mágico. Ela entrou na clareira, rindo quando o policial mais
próximo afastou a montaria dela.
— Você não pertence aqui — disse ela. Sua voz soava
diferente – ecos de pedras caindo e galhos quebrando estavam
sob as palavras, e cada respiração que ela soltava tinha gosto de
sempre-viva.
A floresta pulsava em suas veias, sua magia se misturando
com a dela até que se sentisse como uma extensão das raízes
abaixo.
— Pare com isso — disse o policial, apontando um taser para
ela.
Mariel inclinou a cabeça para trás e riu. Ela nunca havia
sentido esse tipo de poder antes. Quanto mais ela dava à
floresta, mais ela retribuía, um ciclo infinito de magia furiosa.
Era inebriante.
Uma videira arrancou o taser da mão do policial. Ele
desmontou e avançou em direção a ela, com as presas à mostra
e o bastão erguido.
— Vou te levar para a cadeia.
Mariel estava cansada de se curvar para qualquer um. Ela
firmou os pés e abriu os braços.
— Eu gostaria de ver você tentar.
Trinta e Um

Ozroth cambaleou de volta para Glimmer Falls por volta do


meio-dia do Halloween. Ele foi abatido e machucado por ter
sido lançado a um local que estimava estar a quarenta e oito
quilômetros de distância. Felizmente, ele pousou em um lago,
não em uma rocha, mas ainda doía. Apesar de seus melhores
esforços, ele não conseguiu pegar carona de volta para a cidade
– algo sobre um demônio grande e pingando água não atraiu os
transeuntes – então aqui estava ele, com os pés inchados e
doloridos enquanto se arrastava por uma sorveteria a caminho
da casa de Mariel.
Ela ficaria horrorizada ao vê-lo novamente, mas o puxão em
seu peito o atraía para ela. Era insuportável estar tão longe da
cidade, a dor só diminuindo a cada quilômetro que ele
caminhava.
A culpa também era uma dor latejante em seu peito. Ele não
havia causado o raio de boa vontade, nem mesmo sentiu o
formigamento que normalmente o alertava para uma explosão
mágica, mas, querendo ou não, ele destruiu a estufa de Mariel.
Ele nunca esqueceria o grito dela.
Como ele poderia ter feito isso? Certamente não houve
intenção; era a última coisa que ele gostaria de fazer. No
entanto, ele tinha visto isso com seus próprios olhos, o raio
branco ofuscante ao explodir a estufa. Dominado por uma
onda de ódio de si mesmo, ele parou para enfiar seus chifres na
fachada de tijolos da sorveteria.
— Ei — disse uma voz feminina. — Qual o problema?
Ele se virou para encontrar Themmie segurando um copo
de sorvete de morango. Seus olhos se arregalaram quando ela
percebeu sua aparência.
— Puta merda, o que aconteceu com você?
Ele olhou para si mesmo e fez uma careta. Enquanto se
secava, suas roupas estavam amassadas e empoeiradas, e ele
tinha certeza de que estava com um olho roxo. Ele se sentiu mal
de exaustão.
— Fiquei do lado errado de uma bruxa.
— O que você fez? — perguntou Themmie. — E onde está
o seu chapéu?
Ele esfregou a mão constrangida sobre o chifre direito.
— O chapéu também ficou do lado errado de uma bruxa. —
Do outro lado da rua, um casal olhava abertamente,
boquiabertos. Um pai que se dirigia para eles na calçada deu
uma olhada nele, então pegou seu filho e atravessou a rua.
— Não vemos muitas pessoas com chifres por aqui —
explicou Themmie. — E quando vemos, normalmente são
problemas.
A risada de Ozroth foi oca.
— Você pode me adicionar a essa lista.
Para sua surpresa, Themmie agarrou seu cotovelo e o puxou
para uma mesa de café.
— Sente-se e me diga exatamente o que aconteceu.
Dez minutos depois, quando Ozroth terminou sua história
desconexa e angustiada, Themmie ficou boquiaberta. Seu
sorvete havia derretido, mas ela não pareceu notar.
— Você está dizendo que há outro demônio na cidade?
Ozroth fez uma careta.
— Parece que sim.
— Sem ofensa — ela disse, recostando-se na cadeira —, mas
eu não culpo Calladia por lançar você. Tem que admitir que
parece terrivelmente culpado.
— Eu sei. — Ele enfiou as mãos no cabelo. — E não ajuda
que eu acidentalmente tenha explodido a estufa de Mariel.
Ela assobiou.
— Isso é fodido. E você disse que não sentiu isso chegando?
Ele balançou sua cabeça.
— Nenhum indício. Surgiu do nada. — Seus olhos ficaram
embaçados por mais do que apenas exaustão, e ele apertou os
nós dos dedos neles. — Eu faria qualquer coisa para desfazer
isso. Qualquer coisa.
— É estranho que isso tenha acontecido para começar —
disse Themmie. — Mariel explode coisas o tempo todo, mas
apenas quando ela está realmente tentando feitiços. Você atirou
um raio na Cynthia durante a reunião, mas foi porque estava
com raiva dela. Você não estava com raiva da Mariel.
— Claro que não. Eu nunca a machucaria.
— Olha, eu ficaria tentada a chamar de besteira e chutar sua
bunda — disse Themmie —, mas não tenho os problemas de
controle de impulso de Calladia. — Ela enfiou a mão na bolsa.
— Além disso, tenho dever de casa de etnografia. Então, vamos
considerar isso uma entrevista.
Ele gemeu.
— Não é uma piada, Themmie. Eu machuquei Mariel sem
querer, e agora ela nunca vai acreditar que não estou
envenenando a floresta.
— Definitivamente não é nada bom — disse ela, sacando
um caderno verde-limão brilhante e uma caneta. Ela rabiscou
Entrevista: Oz, o demônio apaixonado (ou mentiroso?) no topo
da página. — Conte-me novamente. Quando você tem uma
explosão mágica, o que você sente antes?
Ele não sabia por que Themmie queria essa informação, mas
ela era seu único elo com Mariel e ele precisava de ajuda.
— Formigamento por toda a minha pele. As luzes piscam e
o ar parece... não sei. Diferente.
— Tem algum sinônimo para diferente?
— Pesado? Ou como se estivesse esperando. — Ele balançou
sua cabeça. — Isso não faz sentido.
Ela acenou com a caneta.
— Magia naturalmente não faz sentido. Parece que você
pode sentir a eletricidade antes de invocá-la. Então, por que
você não sentiria isso com um raio tão grande? Você disse que
quase fritar Cynthia foi um grande trabalho para você, e foi
muito maior do que isso.
Ozroth franziu a testa, procurando em suas memórias. Ele
estava parado com Calladia de frente para si e uma roseira
prestes a cortar sua garganta, e Mariel acabara de chamá-lo de
Ozroth, o Impiedoso. Aquilo doeu mais do que ele teria
imaginado. O ar parecia pesado? Sua pele formigou?
— Não teve nada — disse ele. — Nenhuma dica. Eu nem
estava pensando em magia. E então houve esse clarão branco...
— Espera. — A cabeça de Themmie levantou de seu
caderno. — Um clarão branco?
— Sim. O relâmpago.
Themmie bateu com a caneta na mesa.
— Oz... seu raio não é azul?
A pergunta fez seus pensamentos pararem bruscamente. Ele
olhou estupidamente para suas mãos, percorrendo as memórias
de sua magia. Cada choque estático ou raio era azul elétrico.
— Lúcifer — ele respirou. — É azul.
Themmie fechou o caderno e recostou-se na cadeira.
— Acho que sei o que está acontecendo.
— Você sabe? — Ele com certeza esperava que alguém
soubesse.
— Outro demônio está mirando em Mariel e tentando
incriminar você.
A testa de Ozroth franziu.
— Por quê? Demônios não interferem nas barganhas dos
outros. É uma questão de honra.
A menos que um demônio tivesse algo importante a
perder...
Ele engasgou quando a resposta explodiu em sua mente
cansada.
— É Astaroth. Ele está tentando forçar Mariel a fazer uma
barganha.
Ele deveria ter percebido isso antes. Ozroth até disse ao seu
mentor o quanto Mariel amava a floresta e suas plantas. E
enquanto o demônio havia achado isso chato... E se Astaroth
tivesse decidido concentrar seus esforços lá enquanto Ozroth
trabalhava em sua insegurança e desejo de afeto? Ele estava
jogando com os dois – ameaçando e culpando Ozroth para
oferecer uma barganha enquanto atormentava Mariel para que
ela aceitasse.
— Legal. — Themmie pegou um pouco de sorvete
derretido. — Quem é Astaroth?
Ozroth se levantou tão abruptamente que quase derrubou
a mesa.
— Precisamos encontrá-la antes que Astaroth faça algo
ainda pior. — O plano demoníaco estava mesmo em perigo, ou
era tudo sobre a aposta de Astaroth com o conselho superior?
— Ela provavelmente está protestando. — Themmie
checou o telefone. — Droga, eu deveria encontrar todo mundo
ao meio-dia.
— No canteiro de obras?
Themmie assentiu.
— Hoje é o dia em que Cynthia Cunnington cumpre sua
ameaça. Ou ela nos atropela ou vencemos.
A ideia de Mariel enfrentando uma escavadeira era quase tão
aterrorizante quanto a ideia dela enfrentando Astaroth.
— Você pode me carregar enquanto voa? — ele perguntou.
Fadas eram mais fortes do que a maioria das pessoas esperava.
Themmie fez uma careta.
— O quê, carregar como um bombeiro? Você é muito
grande, não vou conseguir ver para onde estou indo. — Ela o
olhou de cima a baixo. — Mas se pudéssemos colocar você em
uma bolsa ou algo assim...
Foi assim que Ozroth se viu amarrado em uma tipoia feita
de sacos de batata roubados, pendurado abaixo de uma fada
tecnicolor enquanto eles voavam em direção à floresta e à
mulher que Ozroth amava mais do que tudo.
Trinta e Dois

Mariel mal podia ver através da névoa de magia. Ela estava indo
além das suas exibições anteriores de poder, mas sua magia
estava presa em um loop de respostas com a floresta,
amplificando a cada segundo que passava.
Uma parede de arbustos a cercava. O policial estava batendo
com o cassetete, mas os arbustos ficaram mais densos. O
equipamento de construção estava completamente enterrado
agora, e um tapete de flores brilhantes se estendia em todas as
direções.
Com a ajuda de Mariel, a floresta retomava as terras
roubadas.
Sua magia roçou manchas de podridão à distância. Elas
derreteram lentamente, novos brotos repelindo a decadência.
Mas quanto mais sua magia viajava, mais manchas de escuridão
ela encontrava, e mesmo esse excesso de magia pode não ser
suficiente.
O policial estava gritando.
— Invasão de propriedade, vandalismo, agressão a um
oficial, e isso é apenas o começo!
— Interessante — disse uma voz britânica.
Mariel deu um pulo e quase caiu, mas as amoreiras
gentilmente a corrigiram. Com sua concentração
interrompida, o fluxo de magia diminuiu e a névoa se dissipou
de sua visão.
Um homem loiro vagamente familiar usando um chapéu
fedora preto estava dentro de sua fortaleza de amoreiras,
examinando a treliça de vegetação.
— Quem é você? — Mariel perguntou.
Então ela se lembrou – ela o conheceu na biblioteca. James
Higgins, o jornalista. O chapéu era o mesmo, embora ele não
usasse mais os óculos, e o colete fora substituído por um terno
branco imaculado. Ele parecia um professor distraído antes,
mas seu sorriso agora a fazia pensar em um tubarão.
Ele tirou o chapéu, revelando chifres pretos.
— Astaroth dos Nove — ele disse, curvando-se. — Prazer
em conhecê-la oficialmente.
Ela ficou boquiaberta. Este era o mentor do mal de Oz? Ela
esperava alguém... maior. Não um britânico elegante com gosto
duvidoso para chapéus.
— Vai se foder — ela cuspiu.
Ele se endireitou, parecendo imperturbável. Ela viu agora
que ele carregava uma bengala com uma caveira de cristal na
ponta, que ele batia ritmicamente contra seu sapato branco
brilhante.
— Agora, o que eu fiz para que você me despreze tanto?
— Lavagem cerebral e atormentar uma criança indefesa, por
exemplo. — Ela se lembrou tardiamente de que essa parte da
história de Oz também podia ser besteira, mas o que quer que
tenha acontecido, esse monstro ajudou a transformar Oz em
sua forma atual.
Astaroth riu.
— Eu suponho que você esteja falando de Ozroth? O que
quer que ele tenha dito, garanto que ofereci a ele o melhor de
tudo. O melhor treinamento, as melhores acomodações, a
melhor posição que ele poderia sonhar na sociedade
demoníaca.
As palavras irritaram; elas a faziam pensar em seus pais. O
melhor de tudo, mas nada do que uma criança realmente
precisava.
— Por que você está aqui? — ela perguntou. — E por que
você estava na biblioteca? — Do outro lado das silvas, o policial
ainda gritava, mas ela estava muito mais preocupada com a
ameaça à sua frente.
Ele ainda estava batendo aquela bengala. A caveira de cristal
era demais, e seu prendedor de gravata era uma cruz de cabeça
para baixo; se ela pensou que Oz era um clichê no começo, isso
era um nível totalmente diferente.
— Chegou ao meu conhecimento que Ozroth não tem se
saído bem — disse Astaroth. — E eu sei uma maneira de sair de
uma barganha demoníaca.
Mariel sugou uma respiração chocada.
— Sabe?
Seu sorriso era afiado.
— Fazendo uma barganha com um demônio diferente.
A centelha de esperança se apagou. A ideia de fazer um
acordo com Astaroth era abominável.
— Não, obrigada. Uma barganha é suficiente.
— Tem certeza? Você se meteu em problemas. Posso fazer a
polícia esquecer esse incidente.
— E roubar minha magia em troca? — Ela balançou a
cabeça. — Não.
O demônio fez uma careta.
— Ozroth disse isso a você?
— Sim, e ele já tentou me intimidar para fazer uma
barganha. — Ela plantou as mãos nos quadris. — Se ele não teve
sucesso, você também não terá.
Astaroth a estudou com estranhos olhos azul-gelo. O
chapéu de feltro e a bengala de caveira seriam ridículos para
qualquer outra pessoa, mas havia algo perturbador na maneira
como o demônio se comportava. Ele estava parado, exceto pelo
toque implacável de sua bengala, e havia algo em seus olhos que
deixou Mariel desconfortavelmente ciente de que este era um
ser antigo em um corpo jovem.
— Ozroth não foi direto com o assunto — Astaroth disse.
— Ele não ofereceu algo que você realmente precisasse.
Ela fez uma careta.
— Ele explodiu minha estufa.
As pálpebras de Astaroth piscaram ligeiramente.
— Eu posso consertar isso, sabe. Eu posso consertar muitas
coisas.
Desconforto crescia no estômago de Mariel a cada segundo
que passava. O policial gritava obscenidades, mas ela não ousava
desviar a atenção do demônio. Ele foi muito rápido em oferecer
uma solução para a estufa dela.
Oz se ofereceu para consertá-la? Ela tentou se lembrar se ele
disse alguma coisa depois do raio. Ele gritou para ela parar, que
ela iria se queimar.
Seu estômago afundou. Magia demoníaca na floresta, raios
demoníacos em seu quintal... tudo parecia tão claro quando
havia apenas um demônio em Glimmer Falls. Agora ela estava
enfrentando um segundo demônio – um que não parou antes
de oferecer o que ela queria. Alguém que já havia percebido que
ela poderia trocar sua alma por algo durante a conversa na
biblioteca.
— Não — Mariel disse, tentando evitar que sua voz
tremesse. — Não quero sua ajuda.
— Acho que você está subestimando exatamente o quanto
poderia ganhar com uma barganha. — Astaroth se aproximou
e Mariel se preparou, tentando não recuar para o abraço das
amoreiras. — Você não precisa trocar uma alma por apenas
uma coisa. Eu poderia mantê-la fora da prisão, consertar sua
estufa e ressuscitar suas plantas, interromper a construção
permanentemente e curar a praga na floresta. Tudo isso e muito
mais. — Ele gesticulou ao redor deles. — Sacrificar sua magia
não vale a pena salvar tudo isso?
Astaroth estava prometendo tudo o que ela queria, mas
Mariel sentiu frio.
— Eu não te contei sobre a praga — ela disse com os lábios
dormentes.
Astaroth deu de ombros.
— Eu conversei com Ozroth. Fungo desagradável, não é?
No entanto, tão facilmente curável.
Isso era tudo que Mariel precisava ouvir para entender
completamente que ela e Oz haviam sido manipulados. Não era
um fungo; ela acreditou em Alzapraz nisso. Era magia
demoníaca.
Este, então, era o rosto de um verdadeiro mentiroso: calmo
e sorridente, prometendo coisas maravilhosas, impossíveis. Sem
carrancas ou respostas mal-humoradas, sem charme grosseiro.
Apenas uma barganha boa demais para ser verdade.
— Sabe — disse Mariel com um nó de raiva em seu
estômago —, já ouvi propostas melhores de vendedores de
carros usados.
Seu sorriso não caiu, embora seus cílios tremulavam.
— O quê?
— Seu discurso. O melhor negócio da minha vida, blá-blá-
blá.
— Não é um discurso. — Um músculo sob seu olho se
contraiu. — É uma oferta para resolver todos os seus
problemas.
— Quero meus problemas resolvidos — disse Mariel —,
mas definitivamente não por você.
Os dedos de Astaroth flexionaram na ponta da bengala. A
pele de Mariel formigou.
— Tão egoísta — ele disse com uma crueldade suave que fez
Mariel se encolher. — Tudo o que você ama pode morrer, mas
você não se importa, desde que tenha sua magia.
A culpa invadiu o coração de Mariel. O demônio era um
manipulador especialista, ela sabia disso. Ele era a razão pela
qual as coisas que ela amava estavam morrendo. Mas se Mariel
pudesse salvar Glimmer Falls e a terra ao seu redor, mesmo que
isso significasse perder algo que ela amava... uma pessoa
verdadeiramente boa não faria esse sacrifício?
— Mariel! — O grito veio de cima, assustando-a da auto
recriminação. Um momento depois, um grande saco de tecido
caiu no chão, aterrissando com um baque. — Ai!
O saco se debateu e Oz tentou sair.
— Você poderia ter voado mais baixo — ele gritou para
alguém acima.
Mariel nunca ficou tão feliz em ver alguém. Ela se ajoelhou
ao lado dele, ajudando a remover o tecido. Suas roupas estavam
amarrotadas, seus chifres empoeirados, mas a visão de seu rosto
familiar – mesmo com um olho roxo – foi o suficiente para fazer
seu coração pular uma batida.
— Você realmente não machucou a floresta, não é? — ela
perguntou. — Ou minha estufa.
Ele balançou a cabeça, os olhos fervorosos.
— Eu nunca machucaria nada que você ama.
Mariel queria chorar.
— Me desculpe por ter acusado você. Era Astaroth o tempo
todo.
— Você não tem nada para se desculpar. — Oz olhou para o
outro demônio enquanto ele lutava para ficar de pé. — Esse
bastardo, no entanto...
— Então meu aprendiz teimoso finalmente aparece —
Astaroth falou lentamente. — Para finalmente fazer uma
barganha digna do seu treinamento?
Oz cerrou os punhos.
— O plano demoníaco está realmente morrendo? Ou foi
outra mentira para me forçar a fazer uma barganha?
— Sim, está morrendo — Astaroth disse. Mas Mariel estava
observando o trapaceiro de perto, e ela notou outro tremor em
sua pálpebra.
— Ele está mentindo — disse Mariel. — O olho dele
estremeceu.
— Oh, por favor — Astaroth disse com o desdém
fulminante que os britânicos faziam tão bem. E espere, por que
o demônio era britânico? — Tem assistido muitos dramas
policiais, não é?
— Você teve o mesmo tremor quando mencionei Oz
destruindo minha estufa. No pôquer, isso se chama blefe. —
Essa era reconhecidamente a única coisa que Mariel sabia sobre
pôquer.
— Você tem grandes opiniões para uma mortal tão
insignificante.
— Se eu sou apenas uma insignificante mortal, por que você
está tão desesperado para forçar esta barganha? — Mariel
perguntou. — Por que infectar a floresta, por que destruir
minha estufa, por que vir aqui para oferecer uma nova
barganha?
A cabeça de Oz virou na direção dela.
— Ele ofereceu uma nova barganha?
— Aparentemente, é a única maneira de quebrar um acordo
existente, embora eu não acredite em uma palavra que sai da
boca desse idiota.
Astaroth estava rangendo os dentes.
— Os mortais se esqueceram do respeito?
— Sim — disse Oz. — E honestamente? Bom para eles.
— Você não negou ter feito nenhuma dessas coisas — Mariel
disse a Astaroth. — Você está tentando forçar minha mão, mas
incriminou Oz para fazer isso. — Os espinhos de amora se
eriçaram com sua indignação, e uma gavinha alcançou o sapato
de Astaroth.
— Se Ozroth tivesse algum juízo — disse Astaroth,
desviando-se da trepadeira rastejante —, ele teria feito o mesmo.
— Sua bengala estava batendo mais rápido agora. — Você é
uma tola por invocar um demônio e se recusar a tratar com ele.
O que você esperava, que ele fosse seu cachorrinho subserviente
para sempre?
— Não — Mariel disse ao mesmo tempo em que Oz disse:
— Eu seria. — Ela lançou um olhar carinhoso para ele, então
agarrou sua mão.
— Não um cachorrinho — ela disse a ele. — Um parceiro.
— Eca — Astaroth disse.
Os olhos de Oz se enrugaram quando ele olhou para Mariel.
— Então, de volta ao plano A? Se o plano demoníaco não
está morrendo, não há urgência em fazer a barganha. — Ele
lançou um olhar fulminante para Astaroth. — A aposta dele
com o sumo conselho não é minha responsabilidade.
— Plano A — ela concordou. Seria difícil, mas ela não estava
disposta a desistir de um futuro com Oz.
Quando ela olhou para Astaroth, ela ficou alarmada ao ver
que seus olhos estavam negros. No momento seguinte, Oz deu
um salto para a frente, caindo de joelhos na frente de Astaroth.
Embora seus músculos estivessem tensos, ele não se moveu.
— Solte ele! — Mariel tentou avançar, mas a magia
demoníaca a deteve como um campo de força.
Astaroth agarrou o topo de sua bengala e puxou uma
espada. Abaixo do pomo do crânio, o punho era preto como
breu e listras de iridescência serpenteavam pela lâmina de prata.
Mariel gritou quando Astaroth nivelou a lâmina no pescoço de
Oz.
— Aqui está um teste — Astaroth disse, fixando aqueles
olhos escuros em Mariel. — Você é egoísta o suficiente para
deixar a floresta morrer para manter sua magia. Você é egoísta o
suficiente para deixá-lo morrer?
— Não faça isso — Oz disse com os dentes cerrados. — Não
é apenas a sua magia, Mariel. São suas emoções.
Ela engasgou.
— O quê?
Astaroth deu um tapa no rosto de Oz.
— Você vai calar a boca?
— A alma — disse Oz, cuspindo sangue. — Olha o que
aconteceu comigo.
A alma do feiticeiro entrou no corpo de Oz, dando-lhe
magia e emoção. Como Mariel nunca percebeu a conexão
antes? Estava bem na frente dela.
— O que acontece? — ela perguntou.
— Você vai se tornar fria e racional. — Astaroth disse que
isso era uma coisa boa. — Livre das fragilidades humanas, seu
julgamento livre de emoções. Algumas das figuras mais
influentes do mundo negociaram suas almas e passaram a viver
vidas plenas.
Não seria uma vida plena sem risos ou lágrimas. Ser humano
era confuso, mas Mariel não conseguia pensar em nada pior do
que perder esse núcleo emocional.
— Você não pode matar Oz — ela disse. — Ele é o seu
melhor negociador.
Astaroth zombou.
— Não mais. — Ele pressionou a lâmina e o sangue escorreu
pelo pescoço de Oz.
— Pare — Mariel disse, o pânico apertando sua garganta. Ela
não podia perder Oz. Ele tinha seu coração, suas esperanças, seu
futuro.
— Você sabe como parar isso — Astaroth disse calmamente.
— Faça um acordo.
Mariel ficou congelada, incapaz de pensar além do medo.
Tinha que haver uma saída para isso; ela só precisava de tempo
para pensar...
Astaroth suspirou.
— Muito bem. — Ele puxou a espada de volta. — Cortem-
lhe a cabeça.
— Espere! — Mariel gritou quando a lâmina de prata cortou
o ar. Ele congelou a uma polegada do pescoço de Oz. — Vou
fazer um acordo.
— Mariel, não! — Oz lutou contra a magia que o prendia
no lugar, os músculos inchados enquanto seu corpo tremia.
— Finalmente. — Astaroth arqueou uma sobrancelha
sardônica enquanto olhava para Oz. — Parece que ela quer
muito alguma coisa para negociar, afinal.
Oz olhou para Mariel com olhos desesperados.
— Por favor, velina, não faça isso. Você vai perder tudo.
Mariel engoliu em seco.
— Eu sei. — Sua magia, suas emoções... sem sua alma,
Mariel seria uma casca oca. Mas, se Oz morresse, ela nunca seria
capaz de viver consigo mesma. Ao fazer um acordo, ela salvaria
Oz, mas também poderia salvar a floresta e todas as criaturas
vivas nela.
Um vislumbre de uma ideia surgiu através da névoa de
pânico. Ela não queria dar nada a Astaroth. E se ela conseguisse
acertar as palavras, Oz sempre teria um pedaço dela.
— Não tenho o dia todo. — Astaroth verificou seu relógio
de bolso. — O sumo conselho se reunirá em uma hora para
anunciar a aposta.
Mariel olhou para ele.
— Desculpe-me por tomar alguns segundos para
contemplar o fim da minha vida como eu a conheço.
— Me deixe morrer — implorou Oz. — Por favor, Mariel.
Já vivi o suficiente.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Não — ela disse. — Você estava existindo. Você acabou
de começar a viver.
Ele estava chorando também. Depois de passar a vida inteira
entorpecido, ele tinha pouca prática com a dor, mas ela sabia
que ele lamentaria a perda de quem ela tinha sido. Mariel não
queria causar-lhe aquela dor, mas não havia outra opção.
— Vou trocar minha alma — disse Mariel —, mas tenho
condições.
Astaroth acenou com a mão.
— Prossiga.
— Você vai me liberar do acordo com Oz. Então você vai
parar a construção do resort e spa, e a terra ao redor de Glimmer
Falls nunca mais será destruída ou usada para um projeto de
construção.
— Muito fácil. — Ele fechou os olhos. — Hmm — disse ele,
os lábios se transformando em um sorriso. — Parece que a
identidade da proprietária original da terra foi finalmente
descoberta, e ela deixou um testamento estipulando que a terra
permaneça uma reserva natural em perpetuidade. O gabinete
da prefeita está em alvoroço e eles estão prestes a ligar para o
capataz para interromper a escavação. — Ele riu. — Embora
você mesma tenha parado com bastante sucesso. Acrescentarei
limpar a cena e fazer a polícia esquecer tudo, só para você. —
Seus olhos se abriram, e ele prendeu Mariel com aquele
misterioso olhar negro. — Agora para a troca...
— Eu disse condições, plural — Mariel estalou. — Você
pode tentar ouvir com mais atenção.
— Atrevida. — Astaroth brandiu a espada. — Mas estou de
bom humor.
Mariel o ignorou e olhou para Oz, desejando que ele visse
tudo o que ela sentia por ele em seus olhos. Ele lhe dera coragem
e risadas e a ensinara a se valorizar por quem ela era, em vez dos
padrões impostos a ela pelos outros. Ele a fez se sentir bonita e
forte.
Ela poderia ser forte o suficiente para fazer isso.
— Você vai limpar a podridão mágica e nunca mais fará nada
parecido. Além disso, você consertará minha estufa e trará todas
as plantas de volta à vida. E consertar minha exibição para o
Festival de Outono. E você libertará Oz imediatamente.
Astaroth resmungou.
— Chato, mas bom. Algo mais?
— Mais uma coisa. — Ela sustentou o olhar de Oz. — Que
minha alma passe para onde há amor.
Os olhos de Oz se arregalaram.
— Mariel...
Ela sorriu com os lábios trêmulos, depois respirou fundo e
se concentrou, formando as palavras do feitiço mais importante
de sua vida.
— Almaum en vayrenamora. — Minha alma vai para o meu
amado. Ela abaixou a cabeça. — Estou pronta.
Astaroth zombou.
— Que bobagem foi essa?
Ela olhou para ele.
— Você quer a troca ou não?
— Onde há amor — murmurou para si mesmo. — Grande
bobagem. Humanos são ridículos.
Oz estava tremendo. Suas bochechas estavam molhadas e
mais lágrimas começaram a cair.
— Velina — ele sussurrou, e ela se perguntou se ele sabia o
que ela estava fazendo.
Claro que sim. Ele era Oz e a conhecia melhor do que ela
mesma.
Astaroth levantou a mão e Mariel se preparou. Sentiu um
puxão no peito, depois uma sensação aguda de dilaceramento.
Ela gritou de dor.
Mariel não pôde ver o momento em que sua alma deixou seu
corpo, mas ela sentiu. Seu peito ficou frio e o formigamento
familiar da magia desapareceu. Quando ela caiu de joelhos, as
flores viraram seus rostos para longe dela.
Então Mariel sentiu nada.
Trinta e Três

Ozroth gritou quando Mariel caiu no chão. Seu rosto ficou


calmo e imóvel, a faísca apagada.
Ozroth sentiu muitas emoções desde que a conheceu, mas
nunca algo assim. A dor era um redemoinho em seu peito, a
tempestade tão poderosa que ele pensou que poderia morrer
dela.
Ele queria morrer. Mariel estava certa – ele só existia antes de
conhecê-la. Mas o que ela não entendia era que ela era a fonte e
o significado de tudo. Uma vida sem ela não valia a pena ser
vivida.
Sua alma pairava no ar, uma orbe dourada tão brilhante que
doía olhar. Astaroth estendeu a mão para pegá-lo.
— Minha nossa — disse ele. — Que bonita essa é. — A alma
vagou em direção à mão estendida de Astaroth... então passou
por ele. A testa de Astaroth franziu. — O que...
Ozroth se preparou enquanto a alma afundava em seu peito.
Foi mil vezes mais intenso do que quando a alma do feiticeiro o
preencheu. O calor branco queimou suas entranhas, e a onda
de magia fez sua pele formigar com eletricidade. Ele podia sentir
o pulso do mundo, a centelha dentro de cada flor e árvore, a
expansão faminta das raízes abaixo do solo. Quando as flores se
viraram para olhar para ele, percebeu que Mariel estava certa –
as plantas a amavam.
Agora que ela estava dentro dele, elas também o amavam.
Ozroth lutou para respirar após a inundação de magia. Não
é à toa que ela via o mundo com tanta esperança. Sua alma era
brilhante e linda, cheia de emoções cintilantes que se
misturavam como pedras preciosas. Ele estava cheio de sua
essência.
Ozroth achava que não conseguiria viver assim. Ele não
queria viver assim.
— Estranho. — Astaroth embainhou sua espada. —
Suponho que foi para o criador da barganha original. Você a
enviou para o plano demoníaco, certo?
Aparentemente, Astaroth só notou a alma desaparecendo,
não para onde ela havia ido. Ozroth assentiu entorpecido, não
querendo arriscar colocar a mentira em palavras quando estava
tão perturbado. Ele olhou para Mariel com os olhos turvos pelas
lágrimas. Ela parecia diferente – quieta e solene, quando antes
as emoções dançavam em seu rosto em uma sucessão animada.
Ela poderia muito bem ser uma estátua.
Astaroth a ajudou a se levantar.
— Como você se sente, minha querida?
Ozroth queria arrancar as entranhas de seu mentor por
ousar falar com ela, muito menos tocá-la. No momento em que
se libertou, Astaroth estaria praticamente morto.
Mariel olhou para suas mãos.
— Vazia.
Ozroth sofria por ela. Ele tinha estado entorpecido antes,
mas nunca completamente sem sentimento. A maioria das
pessoas com quem ele fez acordos eram sociopatas ansiosos para
fazer qualquer coisa por poder ou vingança. A maior parte do
resto estava morrendo de qualquer maneira e percebeu que
tinham pouco a perder. Mariel, no entanto... Ela era a pessoa
mais gentil e vibrante que ele já conhecera. Ela deveria ter
décadas de amor e riso pela frente. Agora até a grama a seus pés
se afastava dela.
Astaroth sorriu para Ozroth.
— Eu sei como seu amante está se sentindo. Ele parece
pronto para arrancar minha cabeça com as próprias mãos. Ele
não terá a chance, é claro.
Ozroth sabia que Astaroth iria matá-lo. Mariel pediu ao
demônio para libertá-lo, mas ela não especificou o que
aconteceria depois. Ele não teria se importado em morrer, mas
com a alma de Mariel dentro dele, ele precisava de tempo para
descobrir o que fazer. Se ambos morressem, suas almas gêmeas
acabariam vagando sem rumo no plano demoníaco, e ele ainda
não estava pronto para desistir de Mariel.
Uma videira roçou sua bochecha, confortando-o de uma
forma limitada. Ele se concentrou na magia de Mariel, deixando
sua consciência afundar na teia da vida. Ela havia sacrificado
tanto por ele e pela floresta que amava – ele não deixaria tudo
isso ser em vão.
Tinha que haver uma maneira de trazê-la de volta. Talvez ele
pudesse roubar outra alma para ela. Ela não teria mais sua magia
da natureza, mas como ele não podia fazer uma troca para
devolver sua alma...
Ozroth respirou fundo, lembrando-se de uma época
imediatamente após ter ganhado a alma. Ele perguntou a
Astaroth se ele poderia barganhar, e o demônio balançou a
cabeça.
— Apenas os mortais podem negociar almas. Além disso,
não seria uma troca igual. Você está muito ansioso para se livrar
da alma. Não seria um sacrifício.
Ozroth tinha acreditado nele. É claro que demônios não
podiam fazer acordos do outro lado – eles não tinham magia
humana.
Mas Ozroth tinha magia. Já pertencera ao feiticeiro, mas
agora era dele, o que significava que talvez ele pudesse fazer uma
barganha, afinal. E desta vez, seria uma troca igual.
Uma folha voou até seu ombro, pousando ali como um
pequeno pássaro vermelho. Mesmo com a floresta afundando
na morte e decadência do outono, a promessa de renascimento
jazia profundamente no solo.
— Quero fazer um acordo — disse Ozroth.
Astaroth piscou para ele.
— Você não pode. Já conversamos sobre isso.
— Isso foi antes de eu querer algo, igual a uma alma. — A
convicção o preencheu. Mesmo que a tentativa falhasse e ele
acabasse morto ou entorpecido, pelo menos ele teria tentado.
— Você não é um feiticeiro — Astaroth disse em um tom
paciente, como se estivesse explicando fatos básicos para uma
criança. — Demônios só podem fazer acordos com mortais. É
assim que a magia funciona.
Ozroth não tinha tanta certeza de que não era um feiticeiro
agora.
— Eu quero tentar. Você é obrigado a negociar quando um
acordo é solicitado.
Astaroth lançou os olhos para o céu de chumbo, beliscando
a ponte do nariz como se estivesse evitando uma dor de cabeça.
— Deixe-me adivinhar. Quer reverter o acordo dela?
Devolver a alma e fingir que isso nunca aconteceu? Porque isso
não vai funcionar quando eu já realizei os desejos dela. — Ele
gesticulou, e a parede de amoreira recuou. Os policiais se foram
e o terreno estava inteiro e intacto mais uma vez. Os laços
mágicos que mantinham Ozroth no lugar se afrouxaram.
— Não — Ozroth disse, ganhando confiança a cada
segundo. Ele pode estar ajoelhado diante de seu antigo mestre,
mas o poder o preenchia, conectando-o à teia da vida. Ele tinha
uma força que Astaroth só poderia sonhar. — Quero trocar
minha alma.
Era um truque de semântica, do tipo que Astaroth o treinou
para empregar. Como Mariel havia lhe dado sua alma, ela
pertencia a ele agora, o que significava que ele tinha duas almas.
Ambas as almas queimando em seu peito eram dele para fazer o
que quisesse... e ele não especificou qual estava negociando.
Astaroth era um demônio muito antigo e muito poderoso,
mas nunca havia lidado com uma situação como essa antes. Ele
não conhecia as regras melhor do que Ozroth – e
provavelmente as conhecia menos, já que não sabia que Ozroth
podia fazer mágica.
— Não vai funcionar. — Astaroth suspirou. — Mas se você
insiste...
— Eu quero.
A última magia que segurava Ozroth no lugar cedeu e ele se
levantou cambaleando. Ele estendeu a mão para Mariel, mas ela
olhou para ele inexpressivamente, parada congelada na grama
caída. Seu amor por ele também se foi.
Não se foi, disse a si mesmo. Foi deixado com ele por
segurança.
— Quero trocar minha alma pela minha segurança e de
Mariel — disse ele. — Sem assassinato, sem tortura, sem
assédio, nada. Você e seus lacaios nos deixarão sozinhos para
ficarmos juntos, e você corta o vínculo que permite que me
invoque.
— Claro — Astaroth disse sarcasticamente. — Estar junto
com sua concha vazia em forma de namorada. — Ele bateu com
a bengala na bota. — E quando este acordo falhar, vou tirar sua
cabeça dos seus ombros.
— Que assim seja. — Ozroth respirou fundo. — Desejo que
minha alma vá para onde há amor — disse ele, repetindo as
palavras de Mariel.
— Sério? — As sobrancelhas de Astaroth arquearam.
Ozroth ignorou Astaroth, concentrando-se em suas
intenções para o feitiço. Em sua mente, ele repetiu as palavras
que Mariel havia dito, sabendo que isso poderia dar muito
errado se ele cometesse um erro. O que Alzapraz disse sobre a
linguagem da magia? –um era o final de "meu", então quando
Mariel disse almaum, ela deve ter dito "minha alma". Mas havia
uma variante para algo que era dele, mas já pertenceu a ela. Ele
vasculhou seu cérebro, tentando se lembrar das anotações que
havia feito durante a aula de linguística de Alzapraz na cozinha
de Mariel.
Se a frigideira é sua, mas já pertenceu a Oz, você pode
terminar com –silum.
Com as palavras mágicas definidas e suas intenções claras,
Ozroth fechou os olhos e respirou fundo.
— Almasilum en vayrenamora. — Ele não tinha ideia do
que significava, mas tinha uma esperança fervorosa de que
almasilum significasse "a alma que é minha, mas que já foi
dela".
Astaroth deu uma gargalhada.
— Você perdeu a cabeça? Você está tentando realizar um
feitiço?
— É uma homenagem a ela. — Ozroth encarou
estoicamente o olhar incrédulo de seu mentor. Deixe o
demônio pensar que ele é um tolo obcecado. Se ele tivesse
calculado direito, este seria o maior truque realizado na história
da barganha.
Astaroth balançou a cabeça.
— Então morra como um tolo sentimental.
Olhando entre o rosto vazio de Mariel e o sorriso presunçoso
de Astaroth, Ozroth se perguntou por que ele deixou esse
demônio cruel e vaidoso moldar tanto sua vida. Ele havia
perdido a essência de quem era, o garotinho que segurou a mão
da mãe enquanto observava os lírios florescerem na noite mais
escura do ano. Ele ficou entorpecido, sem nada para viver,
exceto dever e orgulho.
Agora ele tinha muito mais pelo que viver.
— O acordo está fechado. — Os olhos de Astaroth ficaram
negros e Ozroth se preparou, imaginando se havia cometido o
maior erro da sua vida.
Trinta e Quatro

Mariel observou desapaixonadamente a cena que se desenrolava


na frente dela. Ozroth estava negociando com Astaroth. Seus
olhos dourados brilhavam com lágrimas, e ele olhava para
Mariel como se estivesse desesperado por alguma coisa.
Mariel sabia que uma vez teve sentimentos por ele.
Intelectualmente, ela sabia que tinha sentimentos sobre muitas
coisas, mas não conseguia se lembrar como era. Ela
evidentemente se importava com algo o suficiente para fazer
uma barganha demoníaca, mas olhando entre Ozroth e as
árvores no outono, ela não conseguia entender o que havia de
tão especial nelas.
Independentemente disso, foi feito. A barganha estava
completa.
Ela estremeceu. Seu corpo estava frio, mas o frio não vinha
de fora; emanava de um lugar oco dentro do seu peito. Alguma
coisa esteve lá uma vez, mas ela só podia adivinhar a forma disso
por causa da falta que fazia.
Ozroth estava dizendo algo agora – um feitiço. Ele nunca
havia tentado nenhum feitiço antes. Preguiçosamente, Mariel
se perguntou se ele treinaria como feiticeiro nos próximos
séculos.
Astaroth riu. O demônio destacava-se nitidamente na
paisagem outonal, uma barra branca entre a casca e as folhas cor
de fogo. Ela pensou em gelo e neve e um frio tão profundo que
nunca derretia.
— O acordo está fechado.
Ozroth gritou e apertou o peito. Ela não podia ver nada
acontecendo, mas presumivelmente Astaroth estava mandando
a alma embora. Então Ozroth seria como ela.
Era mais fácil ser assim. Ela não sentia nenhum tormento,
nenhum conflito, apenas calma.
— Espere… — Astaroth se virou para encarar Mariel,
parecendo chocado.
De repente, parecia que um pequeno sol estava afundando
em seu peito. Ela gritou quando o calor queimou seus ossos.
Estava vivo, formigando com energia, e quando Mariel caiu de
joelhos, o calor se espalhou até preencher o espaço vazio em seu
peito.
As emoções explodiram como fogos de artifício, uma onda
de medo, dor, esperança, ódio e amor quando tudo o que estava
faltando voltou. Seus olhos ficaram borrados com as lágrimas, e
quando ela piscou para afastá-las, o mundo parecia mais
brilhante. As cores eram mais vivas e, o melhor de tudo, ela
podia sentir a pulsação do coração do mundo. As árvores
sussurravam e as flores de outono que haviam murchado a seus
pés voltaram a florescer.
— Oh — ela engasgou, segurando seu peito.
— O que você fez? — Astaroth gritou.
Oz o ignorou, caminhando em direção a Mariel e
agachando-se ao lado dela.
— Como você está se sentindo? — ele perguntou, os olhos
brilhando de preocupação.
Uma onda avassaladora de amor a inundou.
— Você me salvou — ela soluçou, jogando os braços em
volta do pescoço dele. — Você é tão inteligente, velino.
Almasilum en vayrenamora. Minha alma que uma vez
pertenceu a ela vai para minha amada. Oz havia manipulado a
linguagem da magia para manter sua alma original enquanto
devolvia a dela.
Ela salpicou suas bochechas e testa com beijos, então recuou
para estudá-lo.
— Como você está se sentindo? Você está bem?
Ele acenou com a cabeça, sorrindo tão amplamente que
esculpiu linhas profundas em suas bochechas.
— De volta ao normal.
— O que você fez? — Astaroth exigiu, atacando. Ele bateu a
ponta de sua bengala no chão ao lado de Mariel, mas ela não
vacilou. O demônio havia concordado em nunca mais
machucar nenhum deles. — Você trapaceou de alguma forma.
— Não — Oz disse, ajudando Mariel a ficar de pé com ele.
Ele encarou seu mentor com o queixo erguido e os ombros para
trás, o orgulho estampado em seu belo rosto. — Fiz uma
barganha, justa e honesta.
— Apenas mortais podem fazer barganhas — Astaroth
gaguejou. — Você nem tem magia.
Oz olhou para Mariel e ela sabia o que ele queria. Ela
vasculhou o cérebro, então ficou na ponta dos pés e sussurrou
algumas palavras em seu ouvido.
Ele assentiu e se concentrou em Astaroth.
— Spalitisin di canna — ele disse, apontando para a espada
em formato de bengala de Astaroth.
Um raio azul saiu de sua mão e rachou a caveira de cristal.
Astaroth xingou e saltou para trás, caindo em uma pilha de
folhas em decomposição.
— O quê, em nome de Lúcifer?
Alguém passou zumbindo por cima, e então uma rede
contendo uma pessoa caiu no chão.
— Ai! — Calladia disse enquanto se arrastava para fora.
Themmie pousou nas proximidades.
— Você está machucada? — ela perguntou, esvoaçando até
Mariel. — Oz me disse que outro demônio é responsável por
tudo o que está acontecendo.
Mariel sorriu e apontou para a pilha de folhas que xingava.
— Conheça Astaroth dos Nove, que acabou de perder uma
aposta com o alto conselho demoníaco.
O demônio ficou de pé, limpando as folhas de seu terno
agora sujo de terra.
— Ainda dá tempo de fazer um negócio melhor — disse
freneticamente. — Você quer uma mansão? Um bilhão de
dólares? Sua própria ilha particular?
Mariel sorriu para Oz.
— Não há nada que você possa me dar que eu queira mais
do que já tenho.
— Esse filho da puta é Astaroth dos Nove? — Calladia
perguntou. — Onde você conseguiu o fedora – num bordel?
— Eu não aceito críticas de roupas de pessoas que usam
elastano — Astaroth zombou de volta.
— Oooh, merda — disse Themmie, recuando.
Calladia estalou os nós dos dedos e caminhou em direção a
Astaroth. Ela usava leggings com estampa de margaridas, tênis
amarelo e uma regata azul que dizia Transpire Como Uma
Garota.
— Então você é o demônio que está destruindo a floresta?
— Calladia perguntou, pegando um elástico do pulso e
começando a prender o cabelo.
— Ela está fazendo o rabo de cavalo de briga de bar — disse
Themmie. — Ele está frito.
— Ela realmente vai brigar com ele? — Oz perguntou a
Mariel em tom incrédulo.
— Apenas observe — disse Mariel alegremente.
— O demônio que destruiu a estufa da minha melhor amiga
— Calladia continuou. — Aquele que está tentando forçar Oz
e Mariel a fazer uma barganha.
Astaroth manteve sua posição, aparentemente sem perceber
o perigo que corria.
— Que alma boa e brilhante — ele disse, olhando Calladia
de cima a baixo. — Você quer se tornar uma princesa? Possuir
uma mina de diamantes? — Ele nivelou aquele sorriso afiado
nela. — Diga, e é seu.
Calladia parou na frente dele.
— Eu quero algo, mas não consigo por meio de um acordo.
Ele acenou com a mão.
— Absurdo. Posso lhe dar qualquer coisa.
— Mmm, não, obrigada. — Calladia sorriu docemente para
ele. — Eu pego o que eu quero.
Ela o socou na garganta.
Themmie cantou quando Oz engasgou. Mariel riu,
sentindo-se mais leve do que há muito tempo. Ela estava livre
de uma barganha e prestes a assistir Astaroth levar uma surra.
— Puta merda — Astaroth ofegou, segurando sua garganta.
Calladia não tinha terminado. Enquanto ele ainda estava
cambaleando com o golpe, ela deu um chute na lateral do corpo
dele, então agarrou seus ombros para alavancar e deu uma
joelhada na virilha dele.
Oz estremeceu e fez o barulho masculino universal de
simpatia involuntária, mas Themmie gargalhou e bateu palmas
enquanto Astaroth se curvava com um som de dor.
— Quem diabos é você? — Astaroth perguntou com uma
voz mais aguda do que o normal.
— A bruxa chutando sua bunda. — Calladia jogou o rabo
de cavalo por cima do ombro. — Você sabia que lancei Oz no
próximo condado quando pensei que ele estava por trás de
tudo? Deveria ter sido você. — Ela tirou a linha do bolso e
começou a dar nós.
Os olhos de Astaroth se arregalaram.
— Espere...
Calladia murmurou algumas palavras baixinho, então deu
um soco no nariz do demônio.
A última vez que Mariel viu Astaroth, ele era um pontinho
gritando e desaparecendo no topo da montanha.
Calladia limpou as mãos e se juntou aos outros.
— Isso foi satisfatório.
Oz ficou boquiaberto com ela.
— Eu não posso acreditar que você fez isso. Você sabe
quantos inimigos Astaroth venceu ao longo dos séculos?
Calladia fingiu tirar a poeira dos ombros.
— Nunca subestime uma bruxa com um gancho de direita
maldoso e problemas com controle da raiva.
Themmie cumprimentou Calladia.
— Bom trabalho. Ele não vai esquecer isso tão cedo.
— Ele com certeza não vai. — A expressão de Calladia
suavizou quando ela olhou para Oz. — Desculpe por jogar você
no meio do caminho para o Oregon.
Ele encolheu os ombros.
— Você defendeu sua amiga e o amor da minha vida. Estou
feliz que fez isso. — Ele estremeceu e cutucou seu olho roxo. —
Feliz em partes.
Calladia envolveu Mariel em um forte abraço.
— Estou tão feliz que você está segura.
Mariel fungou contra o ombro de Calladia.
— Eu também.
— Então — Themmie disse quando eles se separaram. —
Sou só eu ou parece totalmente diferente por aqui? Por que os
tratores estão indo embora?
Mariel riu.
— É uma longa história. — Então seus olhos se arregalaram.
— Espera, que horas são?
Themmie consultou o telefone.
— Duas da tarde.
O coração de Mariel disparou. Ela pediu que sua estufa fosse
restaurada, mas Astaroth cumpriu o acordo?
— O Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico é às três
— disse ela ao Oz. — E se ele cumpriu a barganha...
Ele sorriu e agarrou a mão dela.
— Vamos pegar seu expositor.
Trinta e Cinco

Ozroth estava ao lado da mesa de exibição de Mariel, tonto de


animação. Eles foram posicionados no lado norte do gramado,
oposto ao final no sentido horário, e os juízes quase
contornaram a linha de arranjos florais.
Mariel brincava com o vestido de veludo verde que havia
colocado para a ocasião.
— Eu pareço bem?
— Você está perfeita — Ozroth disse a ela. Themmie havia
feito a maquiagem e o cabelo de Mariel, e ela parecia pronta
para a passarela. Suas bochechas estavam rosadas e seus cachos
brilhavam em um castanho brilhante à luz do sol da tarde que
periodicamente atravessava as nuvens. A curva carmesim de sua
boca era tentadora.
Mariel o pegou olhando para os lábios dela.
— Você pode estragar meu batom depois que os juízes
passarem.
— É melhor eles chegarem aqui rápido — ele rosnou,
agarrando-a pela cintura e puxando-a para perto de modo que
pudesse farejar seu cabelo. Ela cheirava a prados de primavera e
bosques de outono.
Ela se contorceu livre, rindo.
— Me deixe verificar tudo novamente.
Ele observou enquanto ela checava duas e três vezes sua
exibição. Astaroth havia cumprido todos os termos do trato, e
as flores estavam radiantes como sempre. Quando Mariel viu
sua estufa ressuscitada, seu grito de alegria fez a alegria florescer
no coração de Ozroth.
Como era possível que eles tivessem chegado aqui depois de
tanto desgosto? Duas horas atrás, Ozroth estava convencido de
que havia perdido o amor de sua vida. Mas aqui estava ela:
inteira, saudável e ainda possuindo uma alma.
Astaroth não estava aqui, e esse pensamento tornou o
sorriso de Ozroth perverso. Ele esperava que o demônio tivesse
pousado em algo duro. Ele não sabia qual seria o preço por
perder a aposta, mas, francamente, não se importava. Em
seguida, em sua agenda estava uma visita a um especialista em
remoção de tatuagem. Ozroth não queria mais contato com seu
mentor.
Ele pode ter terminado completamente com a coleta de
almas, na verdade.
— Isso desperta alegria? — Themmie perguntou a ele
enquanto eles estavam montando a vitrine e, embora fosse uma
maneira estranha de expressar, a pergunta fazia todo o sentido.
A alegria brilhava em seu coração como bolhas de champanhe
sempre que olhava para Mariel. Quando pensou em voltar a
negociar, sentiu o coração frio e pesado.
— Não importa — ele disse a ela.
Themmie deu de ombros.
— Então faça como Marie Kondo nessa merda.
Ele piscou para ela, confuso.
— O quê?
— Jogue fora. Descubra o que desperta a faísca da alegria
real para você e mantenha isso.
Ele sorriu ao observar Mariel elogiando uma pequena flor
até que suas pétalas se abrissem mais.
— Que tal uma Spark7 literal?
Themmie colocou as mãos em concha em volta da boca e fez
um barulho de sirene.
— Oouuiiwiooui, alerta de piada de tiozão!
Ozroth ainda não tinha certeza do que era uma piada de
tiozão, mas tinha certeza sobre uma coisa: Mariel o fazia feliz. E
ele, contra todas as probabilidades, também a fazia feliz.
— Eles estão vindo — Mariel disse animadamente,
agarrando sua manga.
Ozroth enfiou a mão no bolso e pegou a agulha que havia
tirado do material de costura de Mariel. Ele a enfiou na ponta
do dedo indicador, depois colocou a mão sobre o lírio de fogo.
A chama começou a piscar dentro da flor.
— Sua mão! — Mariel agarrou-o. — Eu não quero que você
se machuque.

7
"Spark" significa faísca.
Ele encolheu os ombros.
— Demônio. Vai sarar em alguns minutos.
Os juízes se aproximaram, embora alguns gaguejassem ao ver
seus chifres. Ele sorriu agradavelmente, sabendo que levaria
tempo para as pessoas se acostumarem com a visão de um
demônio em Glimmer Falls. Um dos juízes era o chefe
lobisomem de Mariel, que piscou para ela antes de olhar para
Ozroth com desconfiança. Ozroth acenou para ele em
reconhecimento. Este amigo de Mariel levaria tempo para
conquistar, mas Ozroth não tinha nada além de tempo.
Essa era a única coisa que enfraquecia sua felicidade: o
conhecimento de que ele viveria muito depois da morte de
Mariel. Ainda assim, ele estava determinado a aproveitar a
alegria de cada momento que tivesse com ela.
— Extraordinário! — Um dos juízes delirou enquanto se
inclinava sobre a exibição vibrante para olhar a pirotecnia do
lírio de fogo. — Que feitiço você usou?
— Sem feitiço. — Mariel parecia confiante, mas seus dedos
estavam cerrados em sua saia. — Existe uma técnica secreta de
jardinagem para fazê-los queimar.
— Amo uma boa técnica secreta — disse o juiz. — Conte-
me sobre o resto das flores.
Mariel fez um discurso apaixonado sobre as variedades que
cultivou. Ozroth ouviu, um sorriso curvando seus lábios. A
exibição de Mariel foi de longe a mais bonita – ele fez as rondas,
imaginando se havia algum competidor que ele precisava
eliminar – e seu entusiasmo era contagiante. Ele não tinha
dúvidas de quem venceria.
Os juízes passaram para a próxima mesa, e os ombros de
Mariel caíram quando soltou um suspiro.
— Ufa. Que bom que acabou. — Ela se virou para Ozroth.
— Você...
Ozroth interrompeu a pergunta com um beijo intenso e
apaixonado. Ele a curvou para trás, o antebraço pressionado na
base de sua espinha, e quando Mariel passou os braços em volta
do pescoço dele e o beijou de volta, aplausos e vaias irromperam
ao redor deles.
Quando finalmente a ergueu, o batom dela estava borrado
no seu queixo. Ele devia estar parecido, porque Mariel riu,
então limpou a borda de sua boca com o polegar.
— Vermelho fica bem em você.
— Mariel, querida, chegamos! — A voz de Diantha Spark
era inconfundível, e Ozroth e Mariel compartilharam um olhar
de alarme antes de enfrentar o tornado que se aproximava.
Diantha parecia mais moderada do que o normal. Com o
braço dobrado no de Roland e Alzapraz atrás – Mariel havia
ligado para o velho feiticeiro antes para deixá-lo saber que
Ozroth era inocente – Diantha se aproximou hesitante.
— Você nunca olhou minhas exibições antes — disse Mariel.
Sua mandíbula estava rígida.
— Eu sei — disse Diantha. — E eu sinto muito.
Ozroth foi pego de surpresa. Mariel também devia estar,
porque seu queixo caiu.
— Você o quê?
Diantha estremeceu.
— Sinto muito — ela repetiu. — Por tudo isso. Ignorar seu
gosto por jardinagem e pressionar demais. Você está certa, eu
não prestei atenção nas coisas que você amava ou nas quais era
boa.
— Uau — Mariel disse, piscando rapidamente. — Isso é...
inesperado.
— Tivemos uma reunião de família — disse Roland. —
Alzapraz nos disse que você teve uma conversa semelhante com
ele e que fomos muito duros com você. — Ele suspirou. —
Sinto muito, também. Nós amamos você.
— E essas... coisas... são maravilhosas! — Diantha exclamou,
apontando para uma flor. — O que é isso, uma margarida?
— Uma ave-do-paraíso — disse Mariel.
— E isto. — Ela se inclinou sobre o lírio de fogo. — Você
colocou fogo?
— Mais ou menos.
Enquanto Diantha arrulhava sobre as flores, Alzapraz
mancou até Ozroth.
— Desculpe — o feiticeiro disse. — Em minha defesa, você
era o único demônio na cidade que eu conhecia. — Ele
estendeu a mão. — Trégua?
Ozroth balançou suavemente, não querendo quebrar
nenhum osso frágil.
— Você deve sempre defender as pessoas que ama. — Ele
inclinou a cabeça para Mariel. — Eu faria o mesmo por ela.
— Então você a ama. — Alzapraz estudou Ozroth com
olhos escuros e antigos. — Um demônio e uma humana
apaixonados. Raro, mas não impossível. — Ele balançou a
cabeça, fazendo a borla dourada de seu chapéu balançar. — Mas
estranho.
A palavra domingo chamou a atenção de Ozroth, e ele se
concentrou no que Diantha estava dizendo a Mariel.
— Talvez possamos jantar como nos velhos tempos...
— Não — Mariel disse gentilmente, mas com firmeza. —
Ainda não me sinto confortável em voltar para o jantar em
família. E quando ou se eu estiver confortável novamente, não
quero que seja como nos velhos tempos.
Diantha começou a discutir, mas um leve empurrão do
cotovelo de Roland – e um cutucão menos sutil de Alzapraz –
a fez fechar a boca. Ela apertou os lábios, então assentiu.
— Limites — disse Alzapraz com aprovação. — Não vi
muitos desses nesta família.
Depois de mais algumas trocas desajeitadas, os Sparks
passaram a olhar para outras flores. Mariel estufou as bochechas
e exalou.
— Isso foi mais fácil do que o esperado.
Ozroth passou os braços em volta dela.
— Estou orgulhoso de você.
Mariel sorriu.
— Também estou orgulhosa de mim. E eu quero que o que
minha mãe disse seja verdade... mas terei cuidado. E mesmo que
não seja verdade, eu me sinto poderosa sozinha. — Ela encostou
a cabeça no ombro dele. — Obrigada. Por me apoiar e por me
ajudar a ver meu próprio valor.
— Eu poderia dizer a mesma coisa — disse ele. — Você é um
milagre, Mariel. Meu milagre.
— Tem milagres no inferno? — ela meditou. Quando ele
golpeou sua bunda levemente, ela riu.
Um toque de trombeta interrompeu a conversa. Os juízes se
reuniram no centro do parque, onde um fauno empunhando
uma trombeta presidia uma mesa cheia de fitas e troféus.
— Temos nossos vencedores! — O lobisomem anunciou.
Mariel gritou e agarrou a mão de Ozroth, puxando-o para se
juntar à crescente multidão.
— Começaremos com Melhor do Evento, depois
passaremos para os prêmios de categoria. Em terceiro lugar no
Campeonato de Flores do Noroeste Pacífico – Divisão
Sobrenatural: Miras Muratov!
Enquanto um feiticeiro de meia-idade usando tênis
vermelhos brilhantes dançava até o pódio, Mariel se inclinou
para o lado de Ozroth, mordiscando suas unhas.
— Ele tinha dálias muito boas. E você viu as flores da lua
dele?
— Ainda não era tão bom quanto a sua exibição — ele a
tranquilizou.
— Em segundo lugar: Rani Bhaduri!
Mariel gritou e bateu palmas enquanto sua colega de
trabalho – a desafortunada banhista nua – pegava seu troféu.
— Sei que todos vão acusar Ben de ser tendencioso, mas,
honestamente, ela é uma jardineira incrível.
Quando as palmas cessaram, Ben pigarreou.
— E agora, para Melhor do Evento – Divisão Sobrenatural,
o troféu vai para... Mariel Spark!
Mariel gritou e pulou para cima e para baixo, enquanto
Ozroth comemorava e aplaudia o mais alto que podia. Ele
sorriu quando Mariel se dirigiu para receber seu prêmio, um
troféu de vidro em forma de flor de lótus.
Quando ela voltou para o lado de Ozroth, ele não pôde se
conter. Ele a pegou e a girou, então investiu em outro beijo.
Quando ele terminou, não havia um pingo de batom na boca
dela.
— O que devemos fazer depois da cerimônia? — Mariel
perguntou.
— Eu tenho algumas ideias — ele rosnou em seu ouvido. —
Elas envolvem minha língua e...
— Milk-shakes comemorativos! — A exclamação os
separou, e Ozroth se virou para ver Themmie e Calladia
sorrindo para Mariel. — Obviamente milk-shakes — disse
Themmie.
Mariel olhou para a expressão irritada de Ozroth, então riu.
— Milk-shakes primeiro — disse ela. — Língua depois.

•••

Uma hora depois, os quatro estavam sentados espremidos em


uma mesa no Centaur Cafe. Ozroth tomou um gole de seu
milk-shake de chocolate – que era indecentemente bom – e
ouvia as mulheres fofocarem sobre o festival. Uma série de
troféus estava na frente de Mariel: Melhor do Evento, é claro,
mas também Melhor da Classe: Flor Exótica para o lírio de fogo,
Melhor da Classe: Cravina, Melhor da Classe: Ave-do-Paraíso e
categoria com nome confuso Melhor da Classe: Parece
Saboroso.
— Os centauros votam nessa — Mariel disse a ele. — Eu dei
a eles alguns amores-perfeitos para comer depois.
— Que dia — disse Calladia, recostando-se na mesa e
segurando um milk-shake de baunilha. — Oz fez mágica,
Mariel entregou sua alma e eu soquei um demônio.
— Não se esqueça do importante papel do transporte —
disse Themmie. Ela estava em seu terceiro milk-shake de
morango e parecia estar vibrando.
— Precisamos conversar sobre seu método de largar as
pessoas.
Themmie bufou.
— Olhe, se eu tenho que sofrer a indignidade de voar com
você por toda a cidade, você pode sofrer a indignidade de ser
carregada em uma bolsa.
— O carregamento não é o problema — Ozroth concordou.
— Mas a queda.
Themmie apontou uma unha amarela para ele.
— Nem um pio. Quem você acha que convenceu Calladia a
não refogar suas bolas?
Ele estremeceu.
— Bom ponto.
— Eu não ia refogá-las — disse Calladia, roubando uma das
batatas fritas de Mariel. — Eu ia liquefazê-las.
— Não é melhor — Ozroth ofegou, segurando-se
reflexivamente. Ao fazê-lo, seu dedo roçou o botão da calça
jeans e uma pequena pontada de dor o atravessou. Ele estudou
seu dedo, que ainda continha uma pequena alfinetada vermelha
por alimentar o lírio de fogo. — Huh — disse ele.
— Você está bem? — Mariel perguntou.
— Ainda dói — disse ele, olhando para a mancha vermelha.
Seu rosto ainda doía também.
Mariel agarrou seu pulso e beijou a ponta do dedo.
— Tudo melhor.
— Não, mas sério. Isso é estranho.
— O que é estranho? — Calladia perguntou.
Ele virou a mão para mostrar às mulheres o pequeno
ferimento.
— Eu espetei meu dedo antes. Normalmente, uma lesão
como essa cicatrizaria em alguns minutos.
— Ooh. — Themmie pegou seu telefone para tirar uma
foto. — O mistério do dedo demoníaco — ela disse com uma
voz sepulcral.
— Não coloque isso nas redes sociais — ele a advertiu.
Ela revirou os olhos.
— Tudo bem. Mas você me deve uma selfie.
— Já tiramos um milhão de selfies — apontou Mariel.
— Sempre dá tempo de mais uma! Mas realmente, por que
seu dedo ainda está machucado? — Themmie perguntou a
Ozroth.
— Eu não faço ideia. — Ele gentilmente cutucou a pele ao
redor do olho. — O olho roxo parece melhor?
Calladia estremeceu.
— Pior, na verdade.
Muitas coisas haviam mudado em sua vida recentemente,
mas isso era novo.
— Poderia ser a alma? Ela causou todos os tipos de outros
sintomas.
Os olhos de Mariel se arregalaram e ela engasgou.
— Oz, espere. — Ela lambeu os lábios, parecendo nervosa.
— Lembra o que Astaroth disse? Que demônios só podem
fazer acordos com mortais?
— Astaroth não tinha ideia do que estava falando — disse
Ozroth. — Como nenhum demônio havia feito isso antes, ele
assumiu que não poderia ser feito.
— Oh, merda — Calladia disse, aparentemente entendendo
o que quer que fosse a linha de pensamento de Mariel. — Você
acha...
Mariel começou a pentear o cabelo de Ozroth como um
macaco procurando por piolhos.
— O que você está fazendo? — ele perguntou, perplexo.
Ela engasgou novamente quando alcançou sua têmpora.
— Olhem — ela disse às mulheres, puxando um fio de
cabelo.
Ozroth ficou parado enquanto Calladia e Themmie se
inclinavam para olhar o que quer que Mariel estivesse
mostrando a elas.
— Tem alguma coisa no meu cabelo?
Themmie tirou uma foto.
— Não no seu cabelo. Na verdade, é o seu cabelo.
— Isso não faz sentido... — Ele parou quando ela virou o
telefone para encará-lo, mostrando a imagem que ela capturou.
Os dedos de Mariel estavam pálidos contra seu cabelo preto
azeviche, e ela estava segurando...
— Não — ele disse incrédulo. Mas lá estava, claro como o
dia: um cabelo branco.
— Isso já existia antes? — Mariel perguntou.
Ozroth balançou a cabeça. Seu cabelo sempre foi totalmente
preto.
— Eu tenho uma teoria — Mariel disse, soltando seu cabelo
e se movendo no banco para encará-lo —, e eu não sei dizer se
você vai gostar ou não.
— O que é? — ele perguntou, embora ele mesmo tivesse
uma suspeita.
— Eu acho que ganhar uma alma mortal... te tornou mortal.
Seu coração estava acelerado demais. Mortal? Ele sempre
soube que viveria para sempre, ou pelo menos até se cansar de
existir e mandar alguém cortar sua cabeça. Mas se ele fosse
mortal...
— Pense nisso — disse Mariel. — Você tem uma alma e
magia humana. Você também não começou a comer e dormir
com mais frequência, como um humano faria? E se suas feridas
estão cicatrizando lentamente e seu cabelo está ficando
grisalho...
— Estou envelhecendo — disse ele, mal conseguindo
acreditar. A perspectiva era aterrorizante, mas conforme se
desenrolava em sua mente, abria um novo mundo de
possibilidades. — Posso envelhecer com você — disse ele, com
o coração na garganta enquanto olhava para Mariel.
Ela parecia à beira das lágrimas.
— Você quer isso? Envelhecer é assustador e ninguém quer
morrer.
Ele imaginou uma vida humana para eles: viajar pelo
mundo, casar, talvez ter filhos um dia. O cabelo dela ficaria
grisalho junto com o dele, seus corpos cada vez mais frágeis. E
sim, ambos morreriam.
Mas Mariel sempre iria morrer, e Ozroth não tinha certeza
se iria querer continuar sem ela de qualquer maneira. Agora,
em vez de vê-la envelhecer enquanto ele permanecia saudável e
forte, ele embarcaria na jornada da vida com ela.
Ele inclinou a cabeça para trás e riu, tonto com a perspectiva.
— Essa é uma boa resposta? — Calladia perguntou.
— Não sei dizer — disse Themmie.
Mariel ainda parecia ansiosa, então Ozroth se inclinou e a
beijou.
— Mal posso esperar para envelhecer com você — ele disse
contra seus lábios.
Com isso, Mariel começou a chorar, mas ele sabia que eram
lágrimas de felicidade, então ele apenas a abraçou, sentindo
como se seu coração fosse explodir de alegria. Nada mais de
barganha; chega de uma existência fria, insensível e
interminável. Em vez disso, uma vida humana confusa, vivida
plenamente em todos os momentos. Vivida ao lado da pessoa
que mais significava para ele.
— Vamos comprar bengalas iguais quando for difícil andar
— ele disse a ela.
— Sem espadas nelas. — Os lábios de Mariel se curvaram
contra sua camisa. — Ou espere, talvez eu queira uma espada.
— Definitivamente uma espada. — Themmie assentiu. —
Aterrorizar o asilo dos velhinhos.
Mariel enxugou os olhos e sentou-se ereta.
— Vai ser uma aventura — disse ela. — E mal posso esperar.
— Nem eu. — Ele ergueu o milk-shake em um brinde. — A
nós.
Mariel sorriu e bateu seu próprio milk-shake de chocolate
contra o dele.
— A nós... e ao que a vida nos der.

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