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GISELE CARMONA
Título original
TIFERETH: A QUEDA DOS ANJOS
Primeira publicação em
São Paulo, SP, Brasil.
2023
1ª Edição
Já era madrugada no mundo humano quando pousou, mas, ainda assim, tomou cuidado para não
ser visto. Não queria ter que explicar nada para algum curioso ou ser pego por alguma câmera.
Não seria a primeira vez que pararia no tal Youtube, mas toda vez que isso acontecia precisava
mudar - ou de endereço ou de rosto.
Não era muito legal.
Ficou observando o movimento do pequeno círculo prateado. Ele estava flutuando, parecendo
procurar por algo.
Começou a tomar um rumo em direção a um grupo de pessoas em situação de rua que dormia.
Alguns estavam acordados e Lúcifer ficou prestando atenção se eles demonstraram alguma
reação com o objeto brilhante que se aproximava flutuando.
Nada. Não podiam vê-lo.
A esfera então, sozinha, resolveu se partir em três.
“O que ela está fazendo? Essas coisas podem decidir sozinhas?”
Um dos pedaços começou a se mover. Era ainda menor agora que estava dividida, mas ainda
brilhava o suficiente para ser enxergada.
Havia uma mulher deitada em um colchão velho e sujo. Ela estava largada com sinais claros de
uso de drogas, no entanto, não foi isso que realmente chamou a atenção do anjo desgarrado. A
mulher estava grávida, de pelo menos uns oito meses, imaginou Lúcifer.
― Você só pode estar de brincadeira comigo.
A luz se aproximou da mulher e, sem delongas, penetrou em sua barriga. E lá ela ficou.
― Puta merda. O que tudo isso significa?
A mulher acordou em um salto, assustada e com dores. Era claro que aquele bebê estava vindo
ao mundo. Prematuro e, de alguma forma, abençoado com algum dom especial.
A gritaria da mulher acordou seus companheiros que começaram a correr para ajudá-la.
Nesse processo, as esferas de luzes prateadas que tinham sobrado vieram até Lúcifer e se
esconderam no bolso lateral de seu terno.
― O que? Sou guardião agora, é?
― Hei, cara! ― um homem que estava com a mulher aos gritos pediu ajuda. ― Você
pode dar uma mão aqui. A mulher está morrendo.
Ele fechou o bolso e correu até eles.
― Ela não está morrendo. Só está tendo um bebê. É que a dor é quase a mesma.
Uma das questões de viver muito tempo é que você aprende muitas coisas, muitas mesmo, e
sempre acha que não vai precisar usar, até que precise.
Não que ali fosse necessária muita coisa.
Pediu que alguém procurasse uma pessoa com celular para ligar para a emergência - ele se
recusava a ter um desses aparelhos idiotas. Depois alguém teve que apoiar a cabeça da moça que
ainda estava gritando e pediu que outro desse a mão para que ela pudesse apertar.
Esse com certeza foi o que mais sofreu.
A mulher gritava e xingava, o que parecia extremamente normal, então estava indo tudo bem.
Ele só precisava esperar a criança sair.
― Respire fundo e empurre!! Só assim isso vai acabar. Vamos lá!
Ela começou a fazer o que o homem estranho estava pedindo.
Lúcifer sentiu pena dela. Entre as lágrimas de dor e os gritos conseguiu ver que era apenas uma
menina. Devia ter uns vinte anos no máximo e devia ser bonita quando não estava entregue ao
vício.
O bebê chegou ao mundo.
Ele passou de forma tranquila direto para os braços de Lúcifer. Era um menino. A criança não
chorou, mas abriu seus olhos.
Aquele instante. Aquele breve instante. Os olhos azuis o encararam e Lúcifer teve a impressão de
ter sido reconhecido de alguma forma.
― O bebê…
A voz da mulher trouxe ele de volta à realidade do mundo.
― Claro, moça. Ele está aqui. Parece bem e saudável. Você tem um menino lindo agora.
Parabéns!
Entregou o menino ao colo da mãe e escutou a sirene da ambulância ao fundo.
O menino ainda estava quieto.
― Ele não é meu. ― comentou a moça enquanto olhava para o próprio filho. ― Ele é do
mundo!
Lúcifer pensou nessas palavras.
O pessoal da equipe de saúde já estava saindo da ambulância agora. Logo ela e o bebê estavam
sendo preparados para ir ao hospital.
― Venha com a gente, moço. Por favor! ― ela pediu a Lúcifer.
― O senhor é o pai?
― Não, com certeza não. ― a pergunta do agente de saúde pegou ele de surpresa.
O homem pareceu desconfiado. Talvez achasse que Lúcifer estava mentindo, como tantos
homens fazem quando se veem diante de tal responsabilidade.
― Ela tem direito a um acompanhante na ambulância. Talvez seja bom fazer essa
gentileza para a menina.
Lúcifer foi, mas, na verdade, não tinha muita certeza do que estava fazendo. Como exatamente
tinha se metido naquilo?
A mulher olhava para o bebê com um sorriso triste.
― Ele parece brilhar! Esses olhos, essa pele. Com certeza é uma benção que eu não
mereço.
O anjo olhou com mais cuidado para a criança. Notou uma leve marca em seu braço direito.
― Ele tem uma marca de nascença. ― segurou o braço com cuidado e viu que a mancha
lembrava a marca de uma espada. ― Interessante! ― o menino estava mais uma vez o
encarando.
Se afastou, sentindo um incômodo. Nunca, em nenhum reino, nenhuma criatura havia feito com
que ele se sentisse assim. Era um sentimento novo que ele não sabia bem definir qual o nome.
― Cristóvão.
― O que? ― mais uma vez ele se viu obrigado a sair do olhar hipnótico daquela criança.
― O nome dele. Quero que seja Cristóvão.
― Claro. É um nome bonito. E parece bem conveniente para toda essa situação. ―
Estranha foi a palavra que ficou na cabeça dele, mas não foi dita. ― E o seu nome, moça bonita?
Qual é?
― Simone.
― Simone, olhe bem nos meus olhos.
A moça fez o que ele pediu.
― Você agora tem um filho que vai precisar muito do seu apoio. Parece que ele foi
escolhido para uma missão bem difícil. Por isso, preciso que você largue seus vícios. Você tem
que estar completa para ele, entendeu? Você precisa esquecer todos os seus vícios agora mesmo.
― Esquecer os meus vícios…
― Vou ajudá-los no que puder, mas preciso de você nesse processo. Estamos
entendidos?
Teria que ficar de olho nessa criança, pelo menos até ter certeza do que se tratava tudo aquilo que
estava acontecendo. Até ter respostas que fizessem sentido.
As esferas prateadas restantes estavam quietas no bolso dele. Pareciam ter ido dormir.
Capítulo 6
Lahael estava desesperada trancada naquele apartamento. Não tinha notícias de Lúcifer há horas
e começava a pensar no pior.
O que faria se ele não voltasse?
Será que poderia ficar escondida ali para sempre? Mas não haveria para sempre caso a sua
premonição se concretizasse.
Provavelmente seria caçada pelos demônios vencedores e aniquilada de alguma forma tortuosa.
Eles eram muito bons em fazer isso.
Droga, até ela era boa em fazer isso quando estava fora de controle.
Por que não podia simplesmente ser como os outros? Invadir corpos, corromper almas, levar
pessoas à loucura e não sentir um pingo de remorso por fazer isso? Seria tudo tão mais simples.
Não, ela tinha que ser diferente. Tinha que ter “consciência”. Era um demônio quebrado, de fato.
Não prestava para nada. Não tinha coragem o suficiente para fazer coisas boas e nem para fazer
coisas ruins. Uma completa inútil.
A porta se abriu de repente. Ela respirou aliviada quando viu Lúcifer entrar. Ele estava com a
roupa completamente amarrotada e suja, mas pelo menos estava inteiro.
― Ufa, pensei que seu Pai tinha o desintegrado.
― Por que você pensou isso? Ele jamais chegaria a tanto. ― ele deu um sorrisinho.
― Eu não sei. Não o conheço. Dizem que é uma criatura muito cruel com os inimigos.
― Vocês demônios inventam demais. ― ele se jogou no sofá, realmente cansado.
― Então você conseguiu impedi-lo de fazer o tal anjo?
― Não. Ele tem a cabeça muito dura. Quando cisma com alguma coisa é difícil fazer
mudar de ideia. Talvez o Miguel tivesse conseguido, mas…se eu chegasse perto do Miguel para
falar qualquer coisa ele me mataria sem pensar duas vezes. ― o tom final da frase saiu mais
triste do que o normal.
― Então…acabou? É o fim?
― Minha nossa, não seja tão pessimista, mulher. ― ele se sentou no sofá. ― Escute,
aconteceu algo engraçado - por falta de uma palavra melhor, vai essa mesmo - enquanto eu
estava voltando para o mundo dos homens.
― Tenho medo de saber o que pode ser engraçado no meio de tudo isso.
― Uma parte do material de criação do novo anjo veio para o mundo dos homens
também. Uma esfera prateada pequena, é verdade, mas eu nunca tinha visto isso acontecer antes.
Era como se ela tivesse vontade própria.
― E o que isso tem a ver com o nosso problema?
― O equilíbrio, minha querida. É o equilíbrio. Pelo jeito ele é natural. Não é definido por
trevas e luz, como sempre acreditamos.
― Lúcifer, me desculpa, mas eu ainda estou boiando.
― Depois que a luz se fez, foi inevitável o surgimento das sombras. As trevas criaram
raízes e se multiplicaram, encontrando poder dentro da criação mais frágil do meu Pai: os
humanos. Desde então, essas forças opostas batalham tentando conseguir mais poder, trazendo
mais humanos para seus lados. Anjos e demônios tentam ser mais poderosos para conseguir mais
“fiéis”.
― Como um maldito jogo de damas?
― Essa é uma boa comparação. Para que ninguém “roubasse” no jogo usando vantagens,
foi combinado um pacto entre trevas e luz. Existem regras.
― Conheço o pacto. Eu não deveria existir, segundo ele.
― Eu sei. E sei também que um material como aquele que desceu para a terra comigo
não poderia fazer aquilo. Também é uma quebra de pacto.
― Você acha que o pacto está se quebrando sozinho?
― Tenho certeza de que as trevas não pensaram em te criar de propósito só para quebrar
o pacto. E também sei que aquela esfera prateada parecia pensar sozinha enquanto vagava pelo
mundo dos homens.
― O equilíbrio…
― Acho que estamos caminhando para uma guerra. Uma inevitável. Acho que as forças
do universo já perceberam isso e estão tentando…equilibrar as coisas para todos os lados.
― Oferecer as mesmas oportunidades, você diz?
― Algo assim.
― Interessante. Mas isso não responde como essa esfera prateada nos ajuda com o nosso
problema.
― Eu também não sei a resposta ainda. Ela se dividiu em três. Uma já encontrou seu
lugar, mas estou com duas ainda no meu bolso. ― ele abriu e mostrou para Lahael.
A mulher demônio, no momento em que colocou os olhos nas esferas adormecidas,
imediatamente revirou os olhos e começou a flutuar.
― Eita, cacete! Acionei algum botão dela.
Uma aura levemente branca a cercava. Com certeza estava prestes a ter outra premonição.
― Os três para a balança equilibrar. Os três para a estrela que mata apagar.
Lahael soltou essas palavras e, em seguida, despencou. Lúcifer se preparou para pegá-la.
― O que aconteceu? ― ela estava um pouco tonta.
― Você respondeu a sua própria pergunta. Agora sabemos o motivo dessas esferas
existirem.
Lúcifer olhou pela janela, a lua estava começando a aparecer novamente.
Ele pensou na mãe e no bebê que deixou no hospital. Prometeu que a encontraria assim que
tivesse alta e levaria os dois para um lugar seguro. Mas quanto seguro poderia ser, agora que
sabia que o destino daquela criança realmente estava selado?
E quem mais entraria nessa confusão, tentando salvar anjos, demônios e humanos, que talvez
nem merecessem tanto esforço. Sua cabeça estava a mil.
Capítulo 7
Simone estava com seu bebê no colo. O menino era muito quieto - muito mesmo - e passava boa
parte do tempo encarando as pessoas com aqueles olhos azuis expressivos.
A enfermeira tinha entregado os documentos de alta dos dois e agora estava no corredor lotado
sem saber muito bem o que fazer ou para onde ir.
O homem que tinha ajudado em seu parto tinha prometido que iria encontrá-la, mas talvez fosse
apenas mais uma promessa vazia feita por tantos homens que havia conhecido em sua vida. Eles
costumam mentir com muita facilidade.
Ela caminhou devagar até o hall de entrada e respirou fundo. O que faria agora?
O menino em seu colo se agitou bastante. Seu pequeno rosto parecia querer buscar algo à sua
volta, mesmo que ainda não tivesse forças para isso.
― O que foi, Cristóvão? O que houve, filho?
― Oi, Simone!
O homem tinha cumprido a promessa, estava mesmo lá. Ele não tinha mentido.
― Ufa! Pensei que tinha me enganado.
― Eu não faço essas coisas. As pessoas que colocam na minha conta mentiras que não
são minhas.
Ela ficou confusa com a resposta, mas não se atreveria a questionar. Não queria que ele fosse
embora.
― Tenho que registrar o bebê. E encontrar um lugar para ficar. Uma criança tão pequena
não terá a menor chance na rua.
― Concordo! Vou te ajudar com tudo isso. Você vai para uma pensão temporariamente,
mas eu pretendo te levar para uma casa muito legal para que possa criar seu filho tranquilamente.
― Por que está nos ajudando?
― Não tenho certeza também. Mas acho que eu e o Cristóvão criamos algum tipo de elo.
― essa era uma meia verdade, mas servia para tranquilizar a mulher. ― Eu tomei a liberdade de
comprar algumas peças de roupa para ele e para você. Pelo menos para te ajudar até que possa
comprar sozinha. Já deixei na pensão onde você vai ficar.
― Não perguntei seu nome ainda, me desculpe.
― Me chamo Samael.
― Quero que seja o padrinho do meu filho, Samael. Você aceita?
Lúcifer engoliu seco. Tinha que manter o jogo para saber o que aconteceria com esse menino no
futuro, mas não esperava que tivesse que se aproximar tanto.
― Bem…é claro…parece que eu já estou meio que sendo, né?
Simone sorriu feliz. E o garoto em seus braços também emitiu um leve sorriso.
Ele fez o que prometeu. A levou ao cartório para registrar o garoto e depois até a pensão em que
a deixaria por uns dias, até conseguir a casa.
A dona da pensão mostrou a ela o quarto em que ficariam e explicou as regras sobre o café da
manhã, almoço e jantar. Disse que os demais hóspedes já estavam avisados sobre o bebê, então
que ela não se preocupasse com o barulho.
― Se precisar da minha ajuda para cuidar dessa gracinha é só me chamar querida, eu
amo crianças.
― Muito obrigada! E obrigada mil vezes a você, Samael. Que Deus pague toda essa sua
bondade.
― Ah, ele me paga todos os dias, acredite! Você nem faz ideia. Vai descansar e amanhã
conversamos sobre a sua nova vida. Prometo que vai gostar.
Simone, feliz como nunca, se despediu de todos e entrou no seu quarto. Fazia muito tempo que
ela não tinha um cantinho confortável para descansar.
Assim que ela não estava mais presente, a dona da pensão se virou para ele.
― Certo! O que você está aprontando, Lúcifer? A menina e o bebê me parecem dois
inocentes.
― Não começa, Jezebel. Você estava me devendo uma.
Conhecia Jezebel há séculos. A maior parte de seus hóspedes, incluindo ela mesma, eram
demônios disfarçados entre os humanos. Ela dava abrigo e ajudava aqueles que não queriam
matar, iludir e nem torturar, que queriam apenas viver.
― Não vou deixar você machucar esses dois.
― E você acha que eu tenho cara disso, mulher? Eu sou um completo idiota quando se
trata dos humanos. Senão não estaria aqui hoje, estaria lá no Paraíso, voando e tocando harpa.
Jezebel riu.
― Certo. Tem razão. Mas qual é o segredo ali? Ele é seu filho?
― Aff, sério? Pensou logo nisso? É claro que o moleque não é meu filho.
― Estou tentando entender…
― Esse menino. Tem alguma coisa predestinada a ele. Algo sobre o futuro de todos nós.
Eu preciso acompanhar de perto para ter certeza do que vai acontecer. Talvez mexer os meus
pauzinhos para fazer as coisas se tornarem mais fáceis.
― Tão pequeno…e já com um destino tão pesado?
― É… assim como acontece com os anjos…e os demônios. Nunca sabemos exatamente
por que somos destinados, mas ele está sempre lá, nos esperando.
Mais tarde, Lúcifer se juntou a Lahael para conversar sobre a situação e sobre seus planos.
― Então, terá que acompanhar todos os passos desse menino?
― Eu tenho certeza de que tudo isso está interligado, Lahael. Nada disso está sendo por
acaso. Esse menino recebeu mais do que uma benção, ele recebeu parte dos poderes de um anjo.
E de um anjo superpoderoso. Parece que o universo está tentando equilibrar as coisas, mas, se
não tomarmos cuidado, ele pode sair do controle e aí sim estaremos todos lascados.
― Entendi. Mas você também entende que esse menino pode morrer nessa guerra, não é?
― É claro que eu sei. Todos podemos.
― Está bem. Então estou com você. Vai precisar de ajuda. Se eles são três, podemos
reforçar o time com os nossos poderes.
― Está falando sério?
― Claro que sim, parece que eu estou brincando.
― Lahael, você não escutou nada do que eu falei. Podemos TODOS morrer.
― Sim, eu ouvi. Podemos morrer. Eu morro todos os dias um pouco, Lúcifer. O dia em
que encontrei algum significado para a minha vida, foi quando você me encontrou. Então, me
deixa viver o que eu puder.
― Não vou conseguir fazer você mudar de ideia, certo?
― Nunca. Eu sou teimosa.
Ele respirou fundo.
― Está bem. Preciso te arrumar um corpo falso então, para que possa seguir entre as
pessoas.
― O grande Lúcifer usa um corpo falso, quem diria?
― O que? Você acha que eu andaria entre os humanos com o meu corpo real? Eles não
aguentam tanta beleza.
Eles começaram a rir.
― Além disso, tirando apenas algumas exceções, os humanos não podem nos ver sem
isso. E se você quiser me ajudar, vou precisar de uma semi-humana ao meu lado, para não
assustar as crianças.
Ela deu um sorriso de leve.
― E onde vai conseguir isso?
― Ah, tem um cara especializado. Ele faz corpos falsos há muitos séculos,
principalmente para demônios. Eles descobriram que disfarçados conseguiriam enganar mais
gente.
― Tem muitos?
― Nossa, você nem imagina. Eles, ao longo da história, já ocuparam cargos de reis,
pastores, presidentes, mas sempre com a mesma intenção…conquistar almas para o inferno.
Você se surpreenderia com o que os humanos são capazes de fazer quando são incorretamente
encaminhados.
― Alguém já viu sua verdadeira forma? Quer dizer, fora seu Pai e seus irmãos? ―
Lahael não sabia dizer bem o motivo dessa curiosidade, mas algo dentro dela pedia por essa
resposta.
― Só uma pessoa. Mas ela não está mais aqui para contar essa história. ― o semblante
dele ficou triste. Em seguida se levantou e foi para o banheiro.
A conversa, claramente, tinha acabado.
Capítulo 8
― Lembre-se, o cara não é nosso amigo. Ele vai fazer parecer que sim, mas está mais
interessado em tentar arrancar informações que ele vende para outros depois, entendeu?
― Você já disse isso, Lúcifer, e eu já entendi. Estou mais preocupada com as pessoas
olhando para você “falando sozinho” enquanto caminha.
Sim, ele tinha esquecido por um momento que as pessoas, ou a grande maioria delas, não podiam
ver Lahael, portanto, parecia que ele tinha enlouquecido.
Notou alguns olhares em sua direção e eles pareciam de pena.
Estava tenso. Odiava visitar o velho construtor de corpos. Ele estava no mundo desde os
primórdios. Tinha uma habilidade gigantesca em criar o material usado por tantos demônios e
usava dessa capacidade para se manter.
Não era um demônio, tão pouco um anjo. Era somente uma alma velha e perdida há muito
tempo, que nem o céu e nem as trevas querem em seu território. Um traidor esquecido.
O cara sabia ser convincente e sabia como arrancar informações. Só se preocupava com o seu
próprio umbigo. Um egoísta narcisista do pior tipo.
Tinha medo de que Lahael pudesse acabar revelando, mesmo que sem querer, sua visão para o
homem, ou mesmo as informações sobre o moleque que nasceu, isso poderia colocá-los em
situação de verdadeiro perigo. Poderia ser um desastre em mãos erradas. Precisavam da
vantagem surpresa que tinham conseguido.
― Lúcifer, relaxe, eu sei como as criaturas do submundo podem ser traiçoeiras. Eu sou
de lá, lembra? Os conheço melhor do que você.
― Esse desgraçado é de um lugar muito mais fundo do que esse.
Agora era Lahael quem estava intrigada. Quem era, afinal, o tal criador de corpos?
Eles caminharam por mais uns 30 minutos em silêncio total e, então, finalmente pararam em
frente a uma alfaiataria. Era elegante.
― Vamos entrar.
― Aqui? Mas, parece uma loja normal de playboys com grana.
― Own, eu compro muitas das minhas roupas aqui.
― Desculpa, não queria ofender, mas é verdade. ― ela segurou um pouco uma leve
risada. ― Caso você não saiba, não é todo mundo que anda de terno por aí.
― Eu sei. Sou estiloso, tenho bom gosto. Vamos entrar logo!
Assim que colocou o primeiro pé no estabelecimento, um funcionário já se aproximou com um
sorriso largo de satisfação. Ele era um cliente que deixava boas gorjetas pelo atendimento.
― Senhor Samael, que bom vê-lo novamente. Precisando de novas peças para o seu
guarda-roupa.
― Talvez depois, meu jovem. Hoje eu preciso muito falar com o seu chefe.
― Own. ― o sorriso foi morrendo aos poucos. ― Eu não sei se ele está disponível,
senhor. ― agora ele parecia até mesmo um pouco assustado.
Lahael sentiu um pouco de pena do rapaz. Para ele ficar tenso daquele jeito, deveria haver bons
motivos.
― Diga que sou eu, tenho certeza de que ele irá me receber. Fale que é para um trabalho
especial, ele vai entender.
O rapaz ainda estava travado no mesmo lugar, provavelmente analisando se deveria ou não ir
chamar o chefe.
Para Lahael, ele estava avaliando qual dos dois homens seria o mais perigoso.
Ela se aproximou dele e chegou perto de seu ouvido. Falou de leve em suas orelhas com uma voz
doce e melodiosa.
― Não tenha medo. Nada pode te machucar agora. Eu estou aqui com você. Apenas vá e
faça o que deve ser feito.
Imediatamente o rapaz aliviou a tensão. Parecia que tinha acabado de acordar de um sonho muito
bom. O sorriso voltou ao seu rosto.
― Claro, senhor Samael, só um momento.
Mas o menino nem precisou atravessar a porta que levava aos fundos da loja. O chefe já estava a
atravessando para encontrá-los.
― Ora, ora, veja só quem resolveu vir me visitar.
Tudo que Lahael estava vendo era um homem que aparentava ter algo entre 60 anos, levemente
barrigudo e com cabelo e barba por fazer. Usava óculos de armação, extremamente antigo, e seus
olhos eram verdes escuros. Nem de longe parecia assustador ou ameaçador como todos estavam
demonstrando.
Qual era a pegadinha ali?
― Já que pediu para me chamar, acredito que necessita dos meus serviços especiais,
certo?
― Infelizmente, não conheço nenhum outro capaz de me ajudar, senão eu não estaria
aqui, pode ter certeza.
― Sempre tão simpático. Venham comigo. ― ele deixou a porta aberta para que os
convidados entrassem e o funcionário não deixou de notar, com uma cara estranha, que o chefe
tinha se dirigido ao cliente no plural.
Observou enquanto entravam e o homem deixou a porta aberta por um tempo que poderiam ter
passado duas pessoas. Será que ele estava finalmente caducando?
― Cuida da sua vida. Já sabe o que eu faço com curiosos, não é?
― Sim, senhor, é claro. ― o rapaz imediatamente saiu da vista do homem, indo limpar o
balcão que já estava brilhando.
Assim que fechou a porta atrás de si, o homem apontou para o longo corredor, sinalizando que
deveriam continuar caminhando.
― Que bela espécime você trouxe contigo, Lúcifer. Uma Súcubo, certo? Eu senti a
energia dela quando enfeitiçou o meu funcionário.
Lahael olhou torto para ele.
― Não fale como se ela fosse um animal. Além do mais, ela sabe falar. Se quiser, dirija-
se diretamente a ela. Lahael pode escolher se quer responder ou não.
― Ah, sim, esqueci que você é o grande e maravilhoso Lúcifer, protetor dos oprimidos.
Eles finalmente chegaram a uma sala ao final do corredor. Era grande e bem iluminada. Estava
decorada com grande bom gosto.
― Sim, eu sou uma Súcubo. ― Lahael aproveitou para responder. ― Mas eu não
enfeiticei o seu funcionário, apenas dei a ele um pouco de prazer para que não se sentisse tão
tenso. Se eu quisesse enfeitiçar alguém, pode ter certeza que essa pessoa até mataria por mim. Eu
só precisaria pedir…com jeitinho.
― Abusada. Eu gosto disso. ― o homem a encarou com malícia.
― Vamos falar de negócios. Não estamos aqui para fazer amizades, ainda mais com
você.
― Ai, que chorão. Você me cansa, Lúcifer. ― ele se sentou em uma larga e confortável
poltrona.
― Então, continua me atendendo por quê?
― Porque nem todo mundo sabe fazer dinheiro com as mãos, meu filho. Eu preciso
ganhar e seu dinheiro é muito bem-vindo aqui. Além disso, eu não tenho lado, trabalho para
qualquer um que pague bem.
― Você nunca teve escrúpulos, Caim.
― Caim? ― Lahael imediatamente olhou com surpresa para o homem sentado. ―
Aquele Caim? ― ela olhou para Lúcifer agora.
― Sim, o Caim monstruoso e assassino. ― foi o próprio quem respondeu. ― O
renegado. A alma largada. Aquele que viverá para sempre sem nunca ter a liberdade da morte.
Lahael ainda estava em choque com a informação.
― Mas Caim era um jovem quando…
― Ninguém disse que eu não irei envelhecer. Apenas não irei morrer. Eu envelheço
beeeem lentamente. E um dia estarei caduco, mas ainda vivo. ― ele riu. ― Mas talvez, até lá o
mundo já tenha acabado.
Lahael e Lúcifer se encararam.
― Alguém com o destino ferrado, mas que ainda consegue fazer piadas. ― Lúcifer
comentou.
― Bom, pelo menos estou vivendo, diferente de você que fica igual a uma sombra se
escondendo de um lado para o outro.
― Olha, eu não preciso dos seus conselhos, eu quero um corpo.
― De novo? Já ferrou com esse outra vez?
― Não é para mim, seu imbecil.
Caim olhou para Lahael e sorriu.
― Oba, finalmente alguma coisa interessante. Consigo pensar em um corpo lindo para
essa moça de língua afiada. Talvez ela até atraia mais clientes depois disso.
Lahael pensou em responder malcriada, mas mudou de ideia.
― Me passe o valor que eu pago.
― Olha só, mocinha, que generoso. Você deve ter passado uma boa impressão…ou será
que tem alguma coisa em você que interesse ao bom moço?
Lahael sentiu algo estranho. Os olhos verdes estavam a fitando de um jeito diferente,
compenetrados, quase que sugando-a por dentro.
Sentiu um desejo de falar, de dizer várias coisas que estava sentindo, seus medos, seus desejos,
suas raivas, sua recente descoberta de que poderia se interessar de fato por alguém.
Entendeu o medo de Lúcifer nesse momento. Caim era capaz de arrancar informações das
pessoas, elas poderiam ser impelidas a contar tudo. Ele era mesmo perigoso.
Por sorte, para conseguir controlar um Súcubo ou um Íncubos, você precisaria ser mais forte do
que isso. Afinal, esse tipo de poder era algo que ela mesma usava.
― Foi assim que convenceu Abel a esperar a morte?
A pergunta dela desconcertou todos na sala. Caim deu um sorriso sem graça.
― A sua sorte é que Lúcifer é um cliente que paga muito bem. Ou então eu poderia te
ensinar bons modos agora mesmo.
Caim entrou em uma sala isolada. Ele disse que os processos não deveriam ser vistos por
ninguém, deveriam esperar ali.
Lúcifer já estava acostumado com isso, então eles esperaram.
― Ele tentou sugar informações de você, não foi?
― Sim, ele é mesmo perigoso. Qualquer outro demônio teria falado. O azar dele é que eu
uso o mesmo truque.
― Me desculpe, eu devia ter confiado mais nas suas habilidades.
― Está tudo bem, tem vezes que nem eu acredito.
Demorou cerca de duas horas. Lúcifer parecia tranquilo sentado, enquanto Lahael circulava
impaciente pela sala olhando todas as obras de arte escondidas ali. Nem queria imaginar o que
Caim tinha feito durante sua trajetória na Terra para acumular tantas coisas incrivelmente lindas
e, aparentemente, únicas.
Finalmente a porta reservada se abriu e Caim saiu de lá suado, mas satisfeito. Estava arrastando
uma maca que carregava o volume de um corpo por baixo de um pano branco.
― Ah, minha cara, consegui para você uma obra-prima, que talvez nem seja de seu
merecimento. ― ele não perdeu a oportunidade de cutucar. ― Mas o seu protetor paga muito
bem, então, aqui está.
O homem parou a maca diante deles e retirou o lençol de cima.
A mulher que estava deitada na cama era simplesmente estonteante. Para o demônio, que via um
corpo falso vazio pela primeira vez, era como se fosse uma humana dormindo profundamente.
Em paz.
Lahael se atreveu a passar de leve a mão sobre o rosto macio e depois pelos longos cabelos loiros
repletos de cachos.
― Ela é linda.
― Ela agora será você, minha cara. Só precisa vestir o corpo.
― Como você faz isso?
― Digamos que eu tenho um dom. ― Caim puxou um maço de cigarros do bolso. ―
Mas não conto como faço, senão teria concorrentes. ― O último engraçadinho que tentou ver o
processo não viveu muito para contar para os outros. ― ele acendeu o cigarro e se sentou. ―
Vamos lá, vista! Vamos ver se fica mesmo bom em você. Eu não costumo errar, mas estou
ficando velho, sei lá, uma hora pode ser que eu comece a falhar.
Ela olhou assustada para Lúcifer,
― Eu não sei como…
― Está tudo bem, eu vou te ajudar. Já fiz isso mais vezes do que gostaria. Você precisa
subir na maca e se deitar por cima do corpo. Por um momento vai parecer estranho, porque você
vai apenas atravessá-lo.
― Não sei se gosto dessa ideia.
― O Caim é um completo imbecil, mas é mestre em fazer esses corpos, não se preocupe.
― Puxa, Lúcifer, a sua gentileza toca fundo o meu coração que não bate mais. ― o
sorriso tinha um tom de crueldade e loucura.
― Quando estiver deitada ali, pense no rosto dela, pense em você sendo ela, dando
movimento a ela. Aos poucos você se conectará ao corpo e poderá usá-lo.
Lahael assentiu, mas não estava completamente confiante.
― Leve o tempo que precisar. Pode demorar um pouco na primeira vez.
Ela respirou fundo e subiu na maca. Olhou mais uma vez para o rosto daquela mulher, tão linda,
e tentou se lembrar que ela não estava viva, era apenas uma boneca. Esse sentimento trouxe um
pouco mais de conforto.
Fez como Lúcifer mandou e se deitou sobre o corpo inerte.
De fato, a sensação foi muito estranha. Tudo ali era frio, gelado e desconfortável. Fechou os
olhos e tentou se concentrar. Conseguia ouvir a voz de Lúcifer dizendo para ficar calma, que as
sensações desagradáveis passariam assim que conseguisse se ligar ao corpo, mas a voz parecia
tão distante.
Conforme relaxou, sentiu como se não estivesse mais naquela sala. Era como não estar em lugar
nenhum. O silêncio. Era tudo silêncio.
Então abriu os olhos.
Estava flutuando em um completo vazio. Não havia cores, não havia luz, apenas ela, flutuando,
contemplando o nada. Devia se sentir apavorada, mas não estava. Ali havia paz, tranquilidade,
algo que Lahael nunca conheceu.
Algo brilhou ao seu lado. Ela virou o rosto naquela direção.
A moça bonita estava lá. Agora tinha os olhos abertos e sorria para ela. Era um sorriso doce,
gentil, convidativo. Quando ela esticou o braço tentando alcançá-la, Lahael não pensou duas
vezes antes de esticar o seu também.
Assim que seus dedos tocaram os dela, tudo se tornou luz, e Lahael precisou fechar os olhos de
novo para não desmaiar.
Quando os abriu novamente, Lúcifer estava segurando a sua mão sorrindo.
― Muito bem, você conseguiu.
Ela mal acreditou. Olhou para os seus braços e eles não estavam mais verdes.
― Nossa, que viagem.
Caim, acostumado com a reação dos novatos, trouxe um espelho para ela.
― Sim, querida, você está lindíssima. Eu acertei novamente.
Ignorando a arrogância de Caim, Lahael pegou o espelho e encarou sua nova eu no espelho. Seus
olhos verdes sorriam para ela, mostrando satisfação com o que viam.
― Uau, Lúcifer, isso é…
― De nada! ― ele sorriu para ela. ― Vou pagar esse velho idiota e vamos cair fora
daqui. Ainda temos muita coisa para fazer hoje. Consegue se levantar?
― Acho que sim. ― ela ainda estava encarando o espelho.
― Comprei algumas roupas daqui para você só para não sair nua por aí. Não fica bem
entre os humanos. ― ele apontou para as peças em um dos sofás.
Só então ela se deu conta que estava apenas coberta com o lençol. Ficou um pouco vermelha.
Os dois se viraram para dar um pouco de privacidade para que ela pudesse se trocar. Enquanto
isso, Lúcifer passou um maço generoso de notas para Caim.
― Acredito que seja suficiente.
― Você é um ótimo cliente. Espero que precise trocar de corpo novamente em breve.
― Para o seu azar, estou sendo mais cuidadoso.
― Se você diz…
― Estou pronta! ― Lahael avisou para que eles pudessem se virar.
― Você está incrível, vai conseguir sugar a energia de muitos humanos tolos.
Lahael fechou a cara para Caim, mas não disse nada. Sabia quem era, de onde tinha vindo e de
tudo que tinha feito para sobreviver até ali. Não se orgulhava, mas também não dava para apagar
a verdade.
― Vamos, temos que alugar um carro ainda hoje. ― Lúcifer comentou com ela.
― Olha só, que demônio sortuda. A última vez que eu vi o Lúcifer querer brincar de
família as coisas não terminaram muito bem para todos. ― Caim soltou, mas logo se arrependeu
de suas palavras, pois viu que os olhos de Lúcifer ficam imediatamente vermelhos.
O anjo caído não demorou nem meio segundo para ter o pescoço de Caim preso em sua mão.
― O que eu disse sobre falar demais?
― D…descul…pa. ― Caim estava ficando sem ar.
Lahael se aproximou de Lúcifer e, tentando manter a calma, segurou seu braço de leve.
― Deixe esse idiota para lá. Temos assuntos mais importantes para resolver, lembra?
Ele largou o outro, que caiu molenga no chão. Seus olhos voltaram aos negros habituais.
― Tem razão. Vamos embora daqui logo.
Eles atravessaram o corredor, deixando Caim lá, passando a mão em seu pescoço e xingando a
existência de Lúcifer baixinho.
Antes de sair da loja, Lúcifer acenou de leve para o atendente, que não disfarçou o quanto estava
boquiaberto com a saída surpresa de Lahael, agora plenamente visível para ele.
Capítulo 9
Conforme decidido, primeiro passaram em uma agência de carros e alugaram um veículo
discreto. Nada que chamasse muito a atenção.
Sabia que precisaria arrumar documentos para Lahael, mas essa parte era mais fácil e podia ser
organizada depois. Humanos muito bem pagos podiam conseguir várias coisas burocráticas por
baixo dos panos.
Ele e a sua nova parceira abasteceram o carro com alimentos e roupas, tudo que acreditaram
poder ser necessidades básicas de um bebê e de uma jovem mãe. Depois partiram para a pensão
de Jezebel.
Assim que estacionaram, a anfitriã veio recebê-los na porta.
― Sua protegida já está pronta e te esperando. ― ela soltou assim que eles se
aproximaram.
― Foi muito difícil cuidar dela?
― Que nada. Todas as sombras que a acompanhavam se afastaram. Você deve ter
assustado aquelas sangue-sungas com seu “jeitinho meigo”.
Lahael riu do comentário e acabou chamando a atenção de Jezebel.
― E essa belezinha que eu nunca vi? Conheço praticamente todos os da minha raça, mas
você é uma novidade.
― Eu me chamo, Lahael. Estou usando um…corpo falso.
― Ah, isso eu sei querida. Conheço bem o trabalho do Caim. Mas estou falando da sua
energia, nunca a senti. Você é uma Súcubo bem diferente dos seus irmãos.
― E isso é bom? ― ela perguntou, com verdadeira curiosidade.
― Vai saber… ― foi a única coisa que Jezebel respondeu antes de emitir um sorriso e
mudar de assunto. ― Vou chamar a Simone, ela já está pronta.
Jezebel sumiu escadas acima e, quando voltou, trazia uma pequena mala.
Lahael finalmente conheceu Simone e a achou tão frágil quanto uma boneca de porcelana.
Conseguia ver na jovem as marcas dos demônios que a perturbaram por tanto tempo.
Já o bebê em seus braços era forte, vigoroso e até parecia iluminar o ambiente. Nunca tinha visto
uma criança com aquela energia.
Por um momento, olhando para aquele bebê, ela sentiu sede. A necessidade de saciar seus
desejos surgiu do nada. Começou a suar frio. Como um bebê poderia ter tanta energia assim?
Como se estivesse entendendo o que estava acontecendo, o pequeno olhou em sua direção,
diretamente em seus olhos. E foi com esse olhar que sua sede foi saciada. O desejo de sugar
aquela energia desapareceu.
Lúcifer tinha razão. Aquele menino tinha algo de diferente nele. Ninguém, nunca, tinha
conseguido controlá-la daquela maneira.
― Simone, essa é a minha parceira, Lahael.
― Que nome diferente e bonito. Muito prazer, Lahael.
Sendo trazida de volta pelas vozes que falavam seu nome, Lahael finalmente olhou nos olhos de
Simone.
― Me desculpe, me distraí com o seu lindo bebê. Muito prazer também.
― Ah sim, esse é o meu Cristóvão. ― a mãe o apresentou toda orgulhosa.
― Simone, nós compramos algumas coisas no caminho. Já estão no carro. Agora vamos
te levar para a sua nova casa. Sua e do Cristóvão.
A jovem era só alegria. Estava plenamente grata, dava para perceber em seus olhos.
Lahael a ajudou a levar as coisas para o carro enquanto faziam amizade.
Lúcifer ficou para pagar Jezebel.
― Não preciso do seu dinheiro, rapaz. Eu cuidei da moça de boa vontade.
― Tem certeza?
― Claro, só quero que me prometa uma coisa.
Ele a olhou um pouco desconfiado, mas assentiu com a cabeça.
― Cuide deles, Lúcifer, de verdade. Eu vi a marca no braço do menino. Eu sei que aquilo
significa alguma coisa grande, ainda mais com você envolvido nisso. Cuidado! Sinto um grande
sofrimento no caminho daquela criança.
Ele suspirou fundo.
― Fique tranquila. Estou cuidando de tudo. ― ele já estava saindo, quando escutou
Jezebel chamar mais uma vez.
― Eu sei que você acha que todos os seus sentimentos morreram junto com ela. Mas isso
não é verdade. Eu acho que eles ficaram até mais grandiosos.
Isso ele não respondeu. Apenas se despediu com a cabeça e seguiu para o carro, onde os demais
já estavam devidamente acomodados.
― Está tudo bem? ― Lahael perguntou quando viu o semblante dele um pouco diferente.
― Está ótimo. Vamos entregar essa família para seu devido lugar. ― ele tentou sorrir,
mas dessa vez parecia ter se esforçado para conseguir fazer isso.
No caminho escutaram música e conversaram. Simone contou sobre sua história triste. Sobre
como ficar sozinha no mundo tinha mexido com a sua cabeça. Sobre as vezes em que tentou se
matar. E sobre sua ida para o mundo das drogas.
Contou que, nas ruas, tinha sido estuprada diversas vezes, que aquela não tinha sido sua primeira
gravidez, mas que tinha perdido os outros bebês em abortos causados pelo alcoolismo e por
overdoses.
Lahael chegou a chorar com alguns dos depoimentos e pensou que adoraria sugar os malditos
violentadores até a morte se tivesse a oportunidade.
E, assim, nesse clima de laços sendo formados, eles chegaram finalmente ao litoral.
Lúcifer havia arrumado uma casinha charmosa bem perto da praia. Era espaçoso o suficiente
para uma criança crescer de forma saudável, mas não tão grande para parecer uma mansão.
― Jura mesmo que você está dando essa casa para a gente? ― foi a primeira coisa que
Simone disse assim que desceu do carro com Cristóvão nos braços.
― Sim, é claro. Estou com a escritura aqui no carro e vou te entregar. Se precisar cuidar
de detalhes burocráticos pode deixar que eu resolvo.
― O que eu fiz para merecer toda essa bondade? ― ela abraçou Lúcifer, que ficou um
pouco desconfortável. ― Deve ter sido Deus que te mandou.
― De certa forma… ― ele pensou no bebê que carregava algo importante descido do
paraíso. ― Mas pare de ficar pensando nisso e vai conhecer a sua nova casa. Eu e a Lahael
vamos descarregar o carro.
Simone entrou toda feliz e dava para ouvir os gritinhos de felicidade conforme foi encontrando a
mobília.
― Ela está mesmo emocionada. Você pode deixar de ser tão durão de vez em quando.
― Você sabe por que estamos fazendo isso. Eu não gosto muito da ideia de enganar essa
moça.
― Retribuir o abraço não seria enganar ninguém.
― Mas eu estaria dando uma falsa esperança de que me importo. E estamos aqui somente
para entender quem é essa criança e o que vai acontecer com ele.
― Tem certeza de que é só por isso mesmo?
― É claro que é.
Lahael ficou quieta e continuou tirando as coisas de dentro do carro.
Simone veio correndo de repente chamando por ela.
― Samael, segura o bebê para mim, por favor. ― e entregou a criança nas mãos de
Lúcifer. ― Vem, Lahael, eu preciso de você aqui rapidinho.
― O que? Não pode ser ao contrário?
― Não, preciso da Lahael.
Então Lúcifer ficou sozinho com o bebê em seu colo.
O menino não parava de olhá-lo.
― Eu ainda não sei o que você é, mas não ache que pode mais do que eu, entendeu? Eu
sei bem o que está tentando fazer, está tentando ler a minha energia. Só que você não vai
conseguir, é só um bebezinho cagão.
Cristóvão riu, parecendo entender o que estava sendo dito.
― Quem é você, afinal, Cristóvão. Por que nossos caminhos se cruzaram?
Simone e Lahael voltaram.
― Prontinho. Era coisa de meninas. ― a jovem sorriu. ― Vem, meu amor. ― ela pegou
o bebê e o levou para dentro. ― Ele deve estar com fome.
Lahael observou Lúcifer e comentou:
― Eu vi você falando com o bebê.
― Ué, só estava chamando-o de cagão, o que ele é mesmo.
― Sei… ― ela deu um sorriso de leve e depois em silêncio contemplou a casa.
Tantas coisas aconteceram nos últimos dias. Sua vida tinha mudado de cabeça para baixo desde
que se encontrou com Lúcifer. Estava aprendendo coisas novas, conhecendo pessoas, sentindo
sentimentos novos e, pela primeira vez em muito tempo, tinha um propósito.
― Lahael, você está bem?
― Sim. ― ela respondeu prontamente. ― Estou muito feliz. ― e sorriu. Um sorriso
genuíno de felicidade.
Lúcifer sorriu de volta.
― Vamos entrar com as coisas. Temos uma família para proteger.
VELHO TESTAMENTO
Capítulo 1
Dez anos humanos haviam se passado.
O tempo para os anjos passava diferente para o envelhecimento, mas nem tanto. O que acontece
é que eles alcançam uma idade adulta máxima e, depois disso, seguem sem grandes alterações
em sua aparência.
Tifereth, que aparentava ser apenas uma criança - apesar dos cabelos brancos e das asas sempre
presentes - observava os humanos com o irmão Miguel.
Seu coração estava intrigado. Tinha muita curiosidade sobre o comportamento dos homens, mas
recebia somente respostas prontas e evasivas.
A todo momento ficava a amarga sensação de que estava sendo enganado. Escondiam alguma
coisa, todas as suas observações pareciam selecionadas demais, eram freiras, voluntários em
abrigos, padres, homens e mulheres de extrema valor, nunca podia escolher o que assistir na
Terra.
Diziam que havia sido criado para salvar os humanos das trevas e liderar seus irmãos em uma
batalha, mas nunca viu nenhuma situação de fato perigosa. Tudo que era mostrado sempre
parecia em completa harmonia.
Um verdadeiro cenário de paz e amor para todos os lados.
Algo estava errado.
― Miguel? ― os olhos azuis estavam atentos aos domínios do Pai.
O Arcanjo foi designado para o treinamento do irmão novato e, embora se achasse um péssimo
mestre, aceitou na mesma hora a ordem do Pai. Ele nunca questionava as ordens que recebia,
pois as considerava sempre perfeitas.
Olhou para o aprendiz meio de lado. De vez em quando perdia a paciência com as perguntas
infinitas que o pequeno fazia, principalmente porque algumas delas iam de encontro com coisas
que ainda não podia conhecer.
Miguel, conhecido por desmaterializar demônios com sua espada de forma rápida e fria, sentiu
um leve frio na espinha quando a pergunta chegou.
― Por que devemos proteger os humanos? Eles são merecedores desse amor que o Pai
oferece?
Como sempre, uma pergunta de difícil resposta.
Nem mesmo ele, com toda sua sabedoria e conhecimento, saberia respondê-la sem esbarrar em
várias outras que viriam em seguida.
― Tifereth, eu sou um Arcanjo, fui criado por causa dos humanos e luto porque acredito
neles. Acredito nos corações bons que existem naquele lugar. Sei que, mesmo sem poder nos ver,
muitos homens, mulheres e crianças nos pedem ajuda todos os dias. No dia em que todos os
demônios forem destruídos, tenho certeza de que tudo vai ser muito mais claro para você.
Mais uma resposta vaga. Bonita, mas sem muito conteúdo.
Tifereth suspirou e continuou a sua observação completamente entediado. Nesse momento, um
grupo de freiras oferecia sopas para alimentar pessoas desabrigadas que pareciam extremamente
gratas.
Ele queria saber por que aquelas pessoas estavam nas ruas? Por que tinham fome? O que tinha
acontecido com as famílias delas? Só que de nada adiantava as perguntas em sua cabeça,
ninguém queria dar as respostas.
Outro Anjo se aproximou. Era Mihael.
O anjo, pertencente à categoria dos Tronos, não era tão imponente fisicamente quanto Miguel,
mas possuía uma mente capaz de criar os melhores ataques conhecidos na história da divindade.
Quando se juntavam, Miguel e Mihael eram imbatíveis. No entanto, só o faziam quando assim
eram ordenados. Não havia entre eles qualquer motivo para se admirarem.
― Miguel, o Pai o chama!
O Arcanjo olhou de forma seca para o Trono, sem se dar ao trabalho de responder.
De fato, não confiava muito naquele irmão. Não devia ter esses sentimentos relacionados aos
seres celestiais, só que não conseguia evitar. Se contasse a alguém sobre isso, poderia ser
chamado de traidor e ter o mesmo destino dos caídos. Guardava apenas para si.
Falou com seu aprendiz.
― Me espere aqui, Tifereth.
― Sim, Miguel!
Assim que o grande Arcanjo se afastou dos dois, Mihael se aproximou do menino anjo. Aquele
que havia sido criado para criar mudanças no mundo.
Eram tão poucas as oportunidades de aquilo acontecer que precisava aproveitar e saber um pouco
mais sobre o Serafim misterioso.
― Os filhos queridos do Pai.
Embora as palavras tivessem sido pronunciadas diversas vezes por vários anjos diferentes, o
menino sentiu um pouco de ironia nas palavras de Mihael.
Parecia alguém disposto a ser sincero.
― Fiz uma pergunta agora a pouco a Miguel e vou fazê-la a você também, Mihael. Por
que protege os humanos?
― Porque o Pai assim deseja. ― a resposta foi tão rápida que assustou o menino.
― Só por isso?
― Quando conhecer os humanos entenderá o porquê da minha resposta.
― Então não é de seu desejo protegê-los?
― São poucos os que podem desejar de verdade por aqui, Tifereth. Eu apenas sigo ordens.
― por segundos, os olhos prateados do Anjo mais velho pareceram ficar vermelhos. ― Aqueles
que desejaram diferente foram morar entre os humanos como caídos. Não estamos em uma
democracia.
― Como posso desejar algo se ninguém me diz a verdade?
― A verdade não se explica, apenas se conhece. Se quiser conhecer a verdade deve ir ver
seus protegidos pessoalmente. Só assim saberá quem realmente são os filhos adorados de nosso
Pai. ― ele ficou em silêncio por alguns segundos. ― Depois disso você poderá responder sozinho
se eles merecem ou não todo esse amor.
― Mas... Como eu faço isso?
Os olhos cor de prata de Mihael brilharam e um sorriso surgiu em seu rosto.
― Se estiver disposto e com coragem para enfrentar as ordens do Pai, eu ensinarei como.
Sem que ninguém soubesse, Mihael levou Tifereth aos limites do Paraíso. Entre eles e a Terra,
havia a imensa fenda criada pela fuga de Samael, agora Lúcifer, em sua última e definitiva visita
aos homens.
― Essa é... A Boca do Inferno?
Tifereth havia escutado histórias assustadoras sobre aquele lugar e sabia que somente os
fortes e corajosos eram capazes de atravessá-la. Seus olhos azuis observavam a escuridão
daquela fenda com uma mistura de medo e curiosidade.
― Eu disse que se quisesse ir deveria ser corajoso, não foi? Bom, eu te mostrei o lugar. Se
vai atravessar ou não, depende somente de você. Aparentemente, você é livre para escolher! ― o
sorriso no rosto de Mihael estava cada vez mais largo. ― Juro que só atravesso isso quando me
ordenam. Ninguém gosta desse lugar.
― Os demônios podem...?
― Não! Eles não podem nos ferir quando estamos atravessando a fenda. Faz parte do
acordo feito no pacto. Eles não invadem nosso lar, nós não invadimos o deles. Dessa forma, a
nossa luta fica somente para a terra dos humanos, sem que eles nunca saibam que estão sendo
protegidos e, ao mesmo tempo, ameaçados.
Mihael deu uma pausa na tentativa de ser dramático, mas logo continuou. Sim, estava testando
aquela criança, queria saber o quanto ele estava disposto a saber a verdade.
― No entanto, a simples presença de seus olhos sem vida nos assusta e nos enfraquece.
Por isso, somente os mais fortes são chamados para ir à Terra.
Tifereth parecia perdido em seus pensamentos.
― Não estou obrigando ninguém, Tifereth. Sei que é de grande valor ao Pai, que te criou
para ser o defensor supremo da humanidade, para ser aquele que vai mudar as coisas para todos.
Para enfrentar Lúcifer e sua corja de demônios. Mas, como você disse que queria saber mais
sobre os protegidos… vou deixá-lo decidir sozinho. Até mais!
Mihael saiu do local antes que pudesse ser impedido pelo garoto. Não podia ser visto ali com ele,
ou acabaria se dando muito mal.
― Pai, me perdoe. ― tomando toda a coragem que existia em seu coração, Tifereth voou
sobre a Boca do Inferno em direção ao mundo dos homens. ― Tenho que descobrir a verdade.
Tenho que ter certeza de que os seres humanos merecem o seu amor. Vou deixar que minha
intuição me leve ao lugar certo.
Capítulo 2
Cristóvão estava sentado em uma das mesas daquele bar mequetrefe que não pedia identidade
para seus clientes pagantes. O garçom sempre exigia que ele se escondesse caso visse um carro
de polícia se aproximando.
Ele tinha apenas dez anos, mas sabia beber melhor do que a maioria daqueles cachaceiros que,
com apenas algumas garrafas, já saiam cambaleando pelas ruas.
Ridículos.
Aproveitava o dinheiro que deveria gastar no intervalo da escola para esses momentos que
considerava o verdadeiro lazer para sua vida. Odiava as crianças de sua idade e seus papos
chatos sobre heróis e sonhos para o futuro.
Ele sabia que o mundo era uma merda e que de nada adiantava ficar perdendo tempo com
sonhos.
Preferia conversar com os adultos e suas realidades.
Hoje tinha escolhido um idoso que estava sozinho e bebendo como se pretendesse morrer
naquela mesma noite.
Fumava bastante.
Sem pensar muito, sentou-se em uma das cadeiras e começou a puxar conversa. O homem
resistiu a conversar com a criança intrometida, mas soltou a língua quando percebeu que aquele
garoto era diferente. Era um ser perdido, assim como ele.
― Você já parou para pensar se existe vida em outros universos? ― estava olhando para
as estrelas.
― Quer filosofar agora, garoto?
Cristóvão sorriu e levou o copo à boca.
― Claro que não, que sentido faria ficar filosofando sobre a vida? Só queria saber se
existem seres tão miseráveis quanto a gente por aí?
― Vai saber, espero que não. Vai ver que o abandono tem um sentido diferente em
mundos diferentes.
― Talvez. Quem sabe um lugar onde essa palavra nem exista.
― Pode ser um lugar de milagres.
― Engraçado você dizer isso. Minha mãe vive dizendo que eu sou um milagre que a
salvou, porque, por minha causa, ela conheceu meu padrinho e a vida dela mudou
completamente. Mas eu nunca me imaginei como um milagre. Definitivamente não seria essa a
palavra que eu usaria para definir a minha vida.
― Palavras amargas para um menino tão novo. ― o homem apagou o cigarro que estava
fumando e já sacou mais um.
Cristóvão percebeu que gostava do cheiro e que, talvez, quisesse fazer aquilo também. Quem
sabe no futuro.
― Eu não sabia que existia uma idade para se tornar amargo.
― Ah, normalmente isso acontece com pessoas adultas, principalmente as velhas, como
eu. A vida vai perdendo o sentido, sei lá.
― A minha nunca fez sentido. Vai ver é isso!
Ele sempre soube que era diferente. Mesmo sem ninguém dizer, podia sentir nos ossos. Havia
uma sensação de vazio por dentro, da falta de algo. Ele jamais saberia explicar, era complexo até
para ele.
― Coitada da sua mãe. Talvez ela devesse pensar em te levar a um psicólogo.
― Ih, tio. Vai querer bancar o meu pai agora, é? ― ele riu de forma sarcástica. ― Perdeu
sua chance. Meu padrinho já ocupa bastante esse espaço de “pé no saco”. Amanhã já vai ralhar
comigo de novo porque eu saí para beber.
― E ele está certo, moleque. Sua mãe também deve estar preocupada.
― A culpa é dela, ué. Uma ex-drogada. Passou essas porcarias para o meu sangue ou
alguma coisa assim. Dessas paradas chatas científicas. Provavelmente ela vai morrer antes do
que eu e depois vou ficar sozinho no mundo. Ninguém vai com a minha cara por aí.
De fato, ele não estava mentindo. Havia algo no garoto que incomodava. Causava até arrepios
em alguns. Seus olhos azuis eram de um mistério profundo.
As outras crianças das escolas em que estudou acreditavam que, devido a isso, Cristóvão tinha
mais vantagens no mundo de sociedade capitalista e sem coração. Era mais fácil ajudar um
menino bonito e com cara de coitadinho.
Era como se conseguisse hipnotizar alguns adultos.
Por isso, vivia apanhando.
E apanhava calado, pois sabia que eles tinham razão. Apesar das pessoas não ficarem muito
tempo ao seu lado, já tinha tido mais oportunidades de se integrar à sociedade do que a maioria
deles, e havia recusado todas
― Você não tem medo de ficar como eu no futuro? Sozinho de vez.
― Que futuro? Tenho certeza de que sequer chegaria na sua idade.
― Pelo jeito é um garotinho que não tem nenhum medo, nem mesmo da morte….
Cristóvão ficou calado pela primeira vez desde que a noite começou. Costumava ter respostas
prontas para tudo, mas tinha coisas que era melhor guardar em seu coração. É claro que tinha
medo, embora não fosse necessariamente da morte.
As sombras que estavam em volta do homem eram muito mais assustadoras. Aparentemente
aquele senhor não precisaria se preocupar em ficar sozinho por muito mais tempo.
― Sabe, acho que está chegando a hora de deixar o senhor com suas bebidas e seus
cigarros.
― Já o deixei entediado? Me perdoe, esse é um dos problemas de ser uma pessoa velha.
― Não, eu só preciso seguir o meu caminho mesmo. E também sei que daqui a pouco
começa uma ronda policial nas redondezas e daria uma baita dor de cabeça se encontrassem um
moleque tomando cerveja.
O velho riu, o menino parecia uma alma muito velha, muito velha mesmo.
― Boa sorte, garoto!
― Para o senhor também. ― olhou novamente para as sombras atrás dele. Sentiu um
pouco de pena do homem, mas não tinha nada que pudesse fazer. Tinha que seguir seu caminho.
Antes de sair da área do bar, ele achou que seria uma boa ideia dizer umas palavras de incentivo
para a moça bonita que estava com cara de triste. Ela, sem dúvida, se sentiria melhor com algum
elogio.
― Você é uma gata, sabia? Tenho certeza que sorrindo deve parecer uma deusa.
A moça imediatamente secou as lágrimas do rosto e sorriu com o comentário galanteador do
garoto intrometido.
O único problema é que seu acompanhante da noite não gostou nem um pouco do comentário
abusado. Era um homem truculento que estava acompanhado de mais dois colegas igualmente
fortes.
― Você está dando em cima da minha mulher?
― Deixa para lá, Jorge. É só uma criança.
― Cala a boca, sua vadia! ― Jorge encarou o garoto. ― Já que quer crescer mais cedo,
vou te ensinar a apanhar como um homem.
E, de repente, Cristóvão tinha três homens bem grandes indo para cima dele.
Capítulo 3
Lúcifer observava Cristóvão.
Não achava mesmo que aquele ambiente fizesse algum sentido para uma criança, mas como ele o
impediria de fazer aquilo? Chegaria no moleque malcriado e mandaria seguir seu caminho? Que
direito ele tinha em fazer aquilo?
Além do mais, poderia ser mal interpretado pelas pessoas em volta, como sempre, e arrumaria
uma dor de cabeça ainda maior.
Parar na cadeia sob suspeita de pedofilia não estava em seus planos.
O jeito era vigiar de longe, prestar atenção ao movimento em volta e só entrar em ação se fosse
necessário. Quase sempre era necessário, o garoto tinha um dom natural para se envolver em
encrencas.
― Chega a ser bonitinho ver você bancando o paizão. ― Lahael estava escondida entre as
sombras, mas ele sabia que ela estava sorrindo.
― Se liga, né? Você sabe muito bem porque estamos fazendo isso.
― Sim, é claro que eu sei.
Lahael estava o acompanhando a bastante tempo. Tinha se tornado sua maior aliada, sua grande
amiga, o que era um pouco estranho quando pensava assim, já que estava completamente
apaixonada por aquela criatura.
Mas sabia que havia algo no passado de Lúcifer que não permitia que se abrisse para outros
seres.
― E o que o nosso pequeno encrenqueiro está aprontando dessa vez?
― Por hora, nada. Está conversando com um idoso beberrão.
Ela se aproximou para ver a cena mais de perto. Seus longos cachos loiros balançavam de leve
com o vento.
― Até que ele é um amorzinho quando quer.
― O problema é que na maioria das vezes ele não quer.
― Não seja tão duro com o menino, Lúcifer. Você sabe que a vida dele não tem sido
nada fácil e ela vai piorar muito logo, logo. Deixe que ele curta da maneira que quiser.
― O problema é que precisamos desse pestinha vivo!
― Eu sei, e ele ficará, acredite em mim. O problema é o que vem depois, além daquilo
que eu pude ver através da minha visão.
Lúcifer pensou sobre isso. Realmente, estava protegendo o garoto agora, mas não tinha como
saber o que aconteceria em seu futuro. Ele não conseguia ter previsões do futuro, mas pressentia
que todo o sofrimento desse garoto estava apenas começando e isso era algo bem triste.
― Hei, Lúcifer, acorda. Acho que o nosso pequeno está prestes a ter problemas.
Ele viu os três grandalhões começando a se aproximar.
― Droga, eles são imensos. Não vou conseguir tirar o garoto de lá sem arrumar ainda
mais confusão. Vou acabar chamando muito a atenção. ― ele olhou para a parceira pedindo
ajuda.
― Ah, não. Fala sério.
― Eu sei que você odeia fazer isso, mas é o jeito mais fácil e menos chamativo de
resolver o problema. E foi você mesma que acabou de mencionar que o menino precisa viver a
vida enquanto pode.
Ela suspirou.
― Isso foi golpe baixo.
Lahael saiu das sombras em direção ao bar. Conforme se aproximava todas as cabeças
masculinas em volta imediatamente se direcionaram a ela, parecia um imã.
― Hey, rapazes. ― ela falou com os três que estavam ameaçando Cristóvão. ― Acho que
eu perdi as chaves do meu carro, será que poderiam me ajudar a encontrar?
Cristóvão a reconheceu de imediato e revirou os olhos. De novo estava sendo espionado por seu
padrinho. Ele com certeza estava por perto.
Para Lahael ser atendida não precisou de muito, a maioria dos homens - incluindo o senhor idoso
que estava conversando com Cristóvão antes - começaram a revirar o local em busca das tais
chaves que sumiram.
Ela não precisava matá-los, apenas mantê-los distraídos o tempo suficiente para que o moleque
escapasse. Lúcifer seguiria Cristóvão para mantê-lo em segurança no restante do caminho e ela
colocaria os bêbados para dormir.
― Vocês são todos tão gentis por me ajudarem.
― Não se preocupe. ― um gritou.
― Logo sua chave vai aparecer. ― o outro disse.
As mulheres presentes no lugar estavam muito bravas e indignadas com toda atenção que
aquelazinha estava recebendo. Pena não ter um Incubus de parceiro, seria de grande valia
naquele momento.
Eles costumavam trabalhar em conjunto, mas Lahael não era bem-vista entre seus irmãos para ter
direito a uma companhia.
Como cachorrinhos treinados, os homens continuariam procurando até que ela ordenasse que
parassem e fossem dormir.
Olhou em volta. Lúcifer e Cristóvão já tinham desaparecido de suas posições, então estavam a
salvo.
― Está tudo bem, meus queridos. Eu já a encontrei. ― colocou a mão no bolso e de lá
tirou uma chave. ― Que distraída que sou, não é? ― deu um lindo sorriso para completar. ―
Obrigada por toda ajuda de vocês. Acho que vocês ficaram muito cansados de tudo isso. Melhor
irem para casa descansar.
Sorrindo, sem questionar, os homens se despediram uns dos outros e tomaram seu caminho. Até
mesmo os garçons e o dono do bar se preparavam para fechar tudo bem mais cedo do que o
esperado, mesmo sob os protestos de algumas mulheres, que não estavam entendendo nada do
que estava acontecendo.
― Essa bruxa chegou e a nossa festa acabou.
Lahael estava acostumada a ser ofendida por mulheres, nem se importava, mas o que a
incomodou de verdade foi outra coisa. Um dos grandalhões, o parceiro da mulher triste, não
parecia tão enfeitiçado assim.
Um demônio estava ao lado e sussurrava algo em seus ouvidos. O olhar do homem era de puro
ódio.
― Essa não!
Ele se aproximou de sua mulher e começou a gritar algo com ela. Aos prantos, a moça indicou
uma direção. Com certeza ele ainda pretendia ir atrás de Cristóvão.
Mas não tinha como alcançá-lo agora, certo? Ou tinha?
O homem, seguido pelo demônio, foi em busca do menino.
O demônio, antes de ir embora, ainda deu uma boa olhada nela e sorriu maliciosamente.
Capítulo 4
Rebeca estava sentada naquela poltrona novamente. Toda semana a mesma coisa. O objeto havia
sido criado para ser extremamente confortável, mas nunca era assim que se sentia dentro daquela
sala.
A psicóloga falava algo com ela, mas sua cabeça mais uma vez tinha viajado enquanto olhava
para a janela. Coitada da mulher, não era culpa dela. Rebeca a achava até mesmo legal, só que
não conseguia se concentrar em suas palavras.
― Rebeca, você está me ouvindo?
― Me desculpe, eu acho que me distraí com o balanço daquelas árvores lá fora. É bonito
ver elas dançando com o vento.
― Devo fechar as cortinas para te ajudar?
― Não precisa, eu vou prestar atenção agora.
Estava há alguns meses sendo atendida naquele consultório depois das aulas. No começo
disseram que poderia ficar tranquila, que poderia contar tudo que estava acontecendo, tudo que
estava sentindo, que aquele era um local seguro, e ela acreditou.
No entanto, o comportamento da psicologia mudou bastante conforme contava sobre os
demônios.
Ela, como uma criança comum cheia de vontade de entender o mundo, abriu seu coração, como
fazia com seu falecido pai. Contou que eles vinham infernizá-la a noite, que diziam coisas ruins,
que a alertaram que ela iria terminar como ele, que não demoraria a dar um tiro na cabeça
também.
Esse era o motivo de todo aquele acompanhamento, afinal. Seu pai não tinha aguentado a
realidade e acabou com a própria vida. Ela o encontrou morto no chão da garagem.
Não gritou. Não chorou. Apenas foi chamar a mãe.
Os demônios já tinham sussurrado em seus ouvidos que o pai tinha desistido e que ela seria a
próxima.
Rebeca tentou avisar a todos o que tinha acontecido, tentou pedir ajuda para a mãe, para os
professores, para os colegas, mas sempre era motivo de chacota ou de preocupação pelos
motivos errados.
A direção da escola foi chamada e eles aconselharam a mãe a levar a menina ao psicólogo para
trabalhar o trauma vivido. E assim ela foi parar naquela poltrona.
Ninguém queria ouvir a verdade, ninguém queria saber dos fatos, pois eles eram assustadores
demais. Todo mundo preferia a calma da mentira e ela aprendeu isso cedo.
― Você ainda está vendo os demônios?
― Não.
― Tem certeza? E os pesadelos?
― Não tenho mais nada. Estou ótima. ― sabia que não era aquela mulher que a salvaria
dos monstros. Ninguém podia, precisaria encontrar um jeito sozinha.
― Entendo. ― a psicóloga anotou mais alguma coisa. ― E a sua mãe? Ela está bem?
― Ainda muito triste. Tem ido bastante à igreja para pedir salvação para o meu pai.
― Salvação?
― Sim, ele é um suicida. Todo mundo sabe que os suicidas vão direto para o inferno.
― E você acha que seu pai não pode ser salvo?
― Não sei, não faço as regras.
Mais um monte de anotações.
Rebeca olhou para o relógio na parede e, por dentro, respirou aliviada. Estava acabando a tortura.
Ela foi conduzida para o lado de fora da sala, onde sua mãe a aguardava na recepção.
― Oi, meu amor. Tudo bem? ― a mãe deu um beijo carinhoso na filha.
― Sim, claro. Podemos ir embora?
A psicóloga apareceu na porta e chamou a mãe para entrar rapidinho. Queria ter uma conversa
particular com ela.
É claro que Rebeca, apesar de sua pouca idade, sabia que aquilo só poderia significar encrenca.
Será que tinha respondido alguma coisa de maneira errada?
Aguardou alguns minutos, mas não demorou para que sua mãe saísse de forma brusca da sala.
Não deu tempo nem da menina pensar, de repente a mulher já a estava puxando para fora da
recepção espumando de raiva.
Só quando já estavam do lado de fora que Rebeca teve coragem de perguntar o que estava
acontecendo.
― Esquizofrenia. Essa louca estava querendo dizer que você está ficando esquizofrênica.
Rebeca não fazia ideia do que aquilo significava, mas do jeito que a mãe estava brava, imaginou
que não deveria ser algo bom.
― Disse que você precisa consultar um psiquiatra, que medicações poderiam te ajudar.
Ah, me faz o favor, viu? Está querendo ajudar outro médico a fazer receitas e te drogar com
remédios. Isso não vai acontecer.
Enquanto isso ela só conseguia pensar: Existem remédios que me ajudariam a não ver mais os
demônios?
― Você nunca mais volta aqui. Tenho uma solução melhor do que isso.
Por um lado, sentiu alívio por saber que nunca mais precisaria voltar a sentar naquela poltrona
desconfortável, mas por outro um pouco triste por não ter nem ao menos se despedido.
A mãe continuou a arrastando por uma boa parte do caminho, mas diminuiu a pressão conforme
foi se sentindo um pouco mais calma. Ela conseguia ver o quanto os olhos da mulher estavam
fundos e tristes. A morte do pai tinha sido muito impactante para ela, mas imaginar que a filha
podia estar seguindo pelo mesmo caminho era terrível.
Pararam em frente a uma igreja.
― O que estamos fazendo, mãe?
― Buscando ajuda de verdade para você.
Alguns demônios estavam do lado de fora e riam delas. Eles estavam debochando.
― Olha isso, agora a sua mãe vai te exorcizar! Nem ela te aguenta mais.
― Acho que você deveria se entregar, menina. Você não vai escapar. Sua morte está
mais próxima do que imagina.
As risadas eram ensurdecedoras. Queria gritar para que calassem a boca, mas isso assustaria sua
mãe e ela já tinha comentado com os adultos que não estava vendo mais nada.
Elas entraram. Rebeca já tinha ido algumas vezes com a mãe assistir missas ali, mas nunca tinha
entrado em um dia comum, com a igreja praticamente vazia.
Pensou se aquela situação poderia ser tão desconfortável quanto o consultório.
― Padre Uriel, preciso de ajuda! ― a mãe fez o sinal da cruz muito rápido e correu atrás
do sacerdote, para garantir que não o perderia de vista.
― Irmã, o que aconteceu?
― É minha filha, eu preciso muito que me ajude. Ela está com ideias estranhas
O homem simplesmente sorriu e, em seguida, se abaixou para olhar a menina que tentava se
esconder entre as pernas da mãe.
― Olá, mocinha.
― Oi. ― Rebeca respondeu tímida. Não sabia o que esperar agora.
― Quantos anos você tem?
― Oito.
― Acho que seremos grandes amigos e você não vai mais precisar ter medo de nada.
Aquelas palavras poderiam não fazer sentido para os outros, mas para ela fizeram
completamente. Não queria mais ter medo. Queria saber o que fazer para enfrentar aquelas
coisas. Se aquele homem santo pudesse ajudá-la, ela aceitaria a oferta.
Capítulo 5
Alexandre estava quietinho em seu quarto, brincando com seus blocos de montar enquanto
aguardava seus pais chegarem do trabalho.
A parte boa deles trabalharem juntos no mesmo laboratório era que sempre chegavam juntos. A
parte ruim, é que quando um se atrasava, os dois se atrasavam.
Essa era a situação do momento.
A empregada que cuidava dele e da casa enquanto os pais estavam fora já tinha o chamado para
jantar diversas vezes, mas ele se recusava. Queria aguardar os pais.
Seu estômago estava doendo de fome, mas esperaria. Seria forte.
― É melhor você ir logo, dá para escutar o seu estômago roncando daqui.
― Cala a boca, o que você entende de fome? Nem come.
― Ué, de fome eu não sei, mas se esse barulho não é fome, então você engoliu um
monstro.
O menino acabou sorrindo com o comentário do Velho. Ele era inconveniente, mas sabia como
ser engraçadinho. Além do mais, era a única companhia que tinha para conversar.
Seus pais nunca tinham tempo para ele. Na maior parte do tempo estavam conversando sobre o
trabalho - que ele não entendia, então não podia participar - ou estavam quietos, lendo alguma
coisa.
Quando finalmente davam atenção, era para perguntar sobre notas, desempenho na escola,
comportamento, nada de divertido. Eles não perguntavam sobre amigos, sobre os desenhos que o
menino fazia, sobre as brincadeiras novas que tinha aprendido.
A mulher que devia cuidar dele passava mais tempo cuidando da casa e isso ocupava o dia
inteiro dela. Conversavam o mínimo. Coisas triviais.
Não tinha irmãos. Não tinha primos.
Mas tinha o Velho.
Um dia se atreveu a contar sobre ele para a mamãe e o papai. Foi a pior decisão de sua vida. Seus
pais o ridicularizaram. Disseram que estava ficando maluco, que precisava parar com aquilo,
senão eles mesmos iriam interná-lo. Que somente bebezinhos tinham esse tipo de amigos.
Seu pai foi de longe o que mais ficou bravo.
― Amigos imaginários são coisa de gente doente, Alexandre. E você NÃO É UM
DOENTE! Meu filho nasceu para ser inteligente, não um qualquer.
Depois daquele dia guardou o Velho só para ele. Não conversavam quando seus pais estavam por
perto - mesmo que muitas vezes ele não parasse de falar do seu lado.
― Para onde você vai quando eu crescer e deixar de te ver? ― Alexandre sabia que
podia perguntar qualquer coisa para aquele seu amigo. Ele era sincero e, às vezes, até um pouco
grosseiro.
― Você acha que isso vai acontecer?
― É claro que sim. Os adultos não ficam vendo pessoas que não existem.
― Olha, você ficaria surpreso em descobrir como está enganado.
― Conversa sua, só está querendo me enganar.
― Eu não minto, Alexandre, mas os adultos mentem o tempo todo. Mentiras que
consideram inofensivas, só para se protegerem do que não entendem.
― Você é um adulto.
― Só porque tenho a aparência de um velho, não significa que seja um adulto. Além do
mais, você mesmo disse, se eu não existo, como posso ser um adulto?
O menino fez uma careta. A conversa estava começando a ficar chata.
― Tá, tanto faz.
― Eu vou te responder. Se você deixar de me ver, eu não faço a menor ideia do que vai
acontecer comigo.
― Parece triste isso…
A empregada surgiu na porta naquele instante.
― Alexandre, seus pais estão chegando. Acabei de ver o carro estacionando.
― Oba! Finalmente. ― ele largou os blocos.
― Estava falando sozinho de novo?
― Ah…eu…
― Melhor parar com isso agora mesmo, você sabe como seu pai fica quando te pega
fazendo isso. Comporte-se!
― Claro! Pode deixar. Posso ir para a mesa agora?
― Vá lavar sua mão e depois vá para a mesa.
O menino correu para o banheiro e a empregada fechou a porta com cuidado, sentindo um
arrepio ao dar uma última olhada para dentro.
Capítulo 6
Cristóvão tinha corrido demais e precisava descansar.
Olhou para os lados e esperou um pouco. O lugar estava silencioso. Pelo jeito tinha despistado os
caras grandões.
Se permitiu respirar aliviado.
Precisava ir para casa - sua mãe já devia estar preocupada - mas agora ele só queria mesmo era
uns minutos de paz. Nada para incomodá-lo, apenas as estrelas e o vento que subia do penhasco
um pouco à frente, trazendo consigo o cheiro do mar.
Sentou-se por ali.
À noite era o momento perfeito. De manhã aquela era uma região pesqueira e as pessoas iam e
vinham o tempo todo. À noite todos tinham medo daquela trilha por ser isolada demais. Ele já
estava acostumado.
Sempre que podia dava uma parada naquele lugar.
Sabia inclusive que, naquele momento, a maré começava a retroceder e era possível ver todas as
pedras existentes ao redor do penhasco. Uma queda dali seria fatal para qualquer um.
Cristóvão gostava do vento em seus cabelos, que balançavam em sua testa ao sabor da brisa.
Ficou pensando na encrenca que tinha arrumado no bar.
― Todos nós vamos morrer um dia. Qual o problema de ser hoje? ― disse ele para si
mesmo, enquanto olhava as estrelas.
Aquela frase estava sempre na ponta de sua língua, mas, dessa vez, algo diferente aconteceu ao
pronunciá-las.
Um aperto no peito.
Sentiu um calafrio percorrer sua espinha de ponta a ponta.
Ele fechou com um pouco mais de vontade o casaco que estava vestindo, atribuindo a sensação
aos possíveis ventos gelados que vinham do penhasco a sua frente, embora não houvesse ventos
fortes que justificassem essa sensação.
― Acho que estou mais bêbado do que pensei.
Parecia disposto a esquecer disso, dar risada e voltar para seguir o seu caminho, no entanto, um
vento frio e arrepiante tornou a envolvê-lo, só que dessa vez pelas costas.
Instintivamente, Cristóvão se virou.
O que viu naquele momento era algo que jamais se esqueceria.
Ele não sabia muito bem definir o que era o ser que estava parado ali.
Tinha o costume de ver coisas estranhas que não pareciam daquele mundo. Homens e mulheres
que, de vez em quando, mostravam olhos vermelhos ou dentes em formatos diferentes.
Sombras que se esgueiravam entre as pessoas e sussurram em seus ouvidos. Ou aquelas que
pareciam estar aguardando pacientemente a morte de alguém, como as que estavam junto com o
homem no bar.
Eram criaturas assustadoras, com auras escuras à sua volta. Seres malignos.
Aquele era diferente. Parecia um rapaz, embora o rosto, repleto de traços femininos, pregasse
peças nos mais desatentos. Parecia jovem, mas seus cabelos eram longos e brancos.
Olhando melhor, Cristóvão percebeu que tinham cor de prata.
Como se não bastassem essas características marcantes, o ser parado à sua frente tinha a pele
levemente cor de bronze, os olhos azuis mais profundos que poderiam existir e tinha longas asas
acinzentadas. Ele era luz!
― O... Que... É você? ― Cristóvão mal conseguia ouvir o som da própria voz.
E se Deus ouviu suas preces e resolveu dar o momento de misericórdia? Talvez fosse saltar do
precipício, embora não sentisse necessidade disso.
Teria Deus mandado um Anjo especialmente para se livrar daquela vidinha inútil e sem graça
que estava tumultuando a Terra?
Mas ele nunca acreditou em Deus. Muito menos em Anjos.
― Você pode me ver? ― a voz da criatura soou como música junto à natureza.
Tifereth estava diante de um autêntico espécime humano, e, sem entender por que, se sentia
atraído de forma poderosa por ele.
Neste momento agradecia internamente Miguel por tê-lo ensinado a falar com os homens, não
queria perder a chance de se comunicar com esse em especial, ainda mais sabendo que podia ser
visto.
― Quem é você? ― Cristóvão se sentiu mais forte para repetir a pergunta. ― Está
fantasiado ou algo assim? ― apontou para as imensas asas acinzentadas que tomavam parte do
cenário.
― Desculpe. Elas incomodam você? ― no mesmo momento Tifereth as fechou, fazendo
com que desaparecessem. ― Normalmente não as mostramos diante dos humanos, mas não
esperava que você tivesse a capacidade de me ver. O Pai nos disse que estes são dons de alguns
poucos humanos, para evitar que nosso trabalho seja desvalorizado.
― O Pai? ― sentia um tremor crescente por dentro. Aquela criatura estava se referindo a
Deus? Até que ponto havia enlouquecido?
― Qual seu nome, humano?
Sem que nenhum dos dois percebesse, ou mesmo soubesse explicar, crescia neles uma
inexplicável curiosidade sobre o outro.
Cristóvão teve que desviar seus olhos dos olhos azuis profundos do Anjo. Sentia-se sugado por
eles.
― Diga-me seu nome, humano. ― mais uma vez o pedido da voz doce e melodiosa que
causava arrepios e, ao mesmo tempo, embriagava.
Quando o rapaz resolveu responder, mesmo que por impulso ao som da pergunta, algo se
aproximou, causando agitação a ambos.
― Não sei quem é você e nem o que quer, mas acho melhor partir agora. Tem um
problema bem grande se aproximando.
Tifereth também sentia a aproximação daquela força, mas não pretendia se afastar. Não pretendia
deixar o rapaz enfrentar sozinho o dono daquela aura carregada de maldade. Era um Anjo, seu
dever não era proteger os humanos?
―Eu não irei. Ficarei aqui! Proteger vocês é a minha missão.
Ambos se olharam sérios como se quisessem se intimidar, o que, naturalmente, não aconteceu.
― Ele chegou!
Cristóvão desprendeu seus olhos dos de Tifereth. Diante dele estava o mesmo homem com quem
comprou briga no bar algumas horas antes, tinha um toco de madeira nas mãos. Seu olhar estava
sinistro.
Para o Anjo, somente uma coisa se destacava. Aquele homem não estava sozinho. Era guiado por
um demônio.
Capítulo 7
― Miguel, o encontrou? ― o Pai não se fazia presente naquele momento, mas sua voz
estava em todo Paraíso.
― Não, meu senhor.
― Procurou em todos os lugares?
― Sim, meu Pai.
Uma ideia terrível surgia em sua mente. Havia um lugar que ainda não havia tentado.
― Peço a gentileza de me deixar ir ao mundo dos homens.
― O quê? Acredita que Tifereth tenha atravessado a Boca do Inferno?
― Temo que sim, Pai.
― Se essa é a verdade, vá imediatamente e o encontre, filho Miguel. Ainda é muito cedo
para que Tifereth conheça aquele lugar.
― Sim, irei imediatamente.
Miguel deixou que suas belas asas acinzentadas surgissem em suas costas e alçou voo com
urgência para atravessar para o mundo dos humanos.
Mihael observava à distância a pressa com que o irmão viajava para fora do reino de luz.
― É tarde, caro irmão Miguel.
Capítulo 8
Lúcifer observava a distância novamente.
Com certeza, se Lahael não tivesse confundido os encrenqueiros e liberado a brecha para a fuga
bem-sucedida do rapazinho, agora teria que recolher os pedaços dele que estariam espalhados
pela avenida principal.
Ele nunca havia sido a criança mais comportada do mundo, mas quanto mais velho ficava, mais
difícil se tornava a missão de protegê-lo.
Se não tivesse escutado aquela premonição, não se preocuparia em cuidar de um moleque que
nem sequer queria viver.
A vida realmente pregava peças.
Não que fosse de todo uma perda de tempo. Afinal, tempo era o que ele mais tinha.
Estava ali, servindo de babá de um humano que não queria acreditar nem em Anjos, nem em
Demônios, mas que em breve teria que conhecer a todos eles, e provocar um desfecho sem
previsão para sua história neste mundo.
Era irônico ele não querer aceitar as coisas invisíveis do mundo, sendo que ele conseguia vê-las
quase o tempo todo, mesmo sem ter certeza do que estava acontecendo.
Viu Cristóvão se levantar e caminhar até a beira do precipício e isso o agitou.
― O que esse maluco vai fazer dessa vez?
Tinha medo de que o menino saltasse, mas não sentia nele nenhum desejo de cometer suicídio.
Pelo menos não naquele momento.
Isso provava que, mesmo sem acreditar, Cristóvão conhecia algumas regras, como a dos
suicidas, que vão direto para as mãos dos demônios, tendo que repetir eternamente tudo aquilo
que causava dor e sofrimento, enquanto as trevas se alimentam de suas lágrimas e dor, se
divertindo como em um programa ao vivo.
Ainda assim, Lúcifer sentiu uma angústia dominá-lo.
Algo se aproximava de Cristóvão, e ele conhecia essa mistura de luz e bênção. Era um Anjo, sem
dúvida.
― O que eles querem aqui?
Mal havia acabado o seu questionamento isolado e viu Tifereth pousar atrás do garoto.
O Anjo não parecia ameaçador e nem duvidoso, somente admirado e curioso com a criatura que
tinha acabado de encontrar, mas, para Lúcifer, aquilo parecia um problema grande demais para
se desconsiderar.
― O que Tifereth faz aqui? Pai está vendo isso?
Ele olhou para o céu em um impulso e voltou a falar.
― Ainda é muito cedo... ― voltou a olhar para os dois garotos que estavam, agora, cara a
cara. Repetiu baixinho. ― Ainda é muito cedo para esse encontro.
Pretendia interferir imediatamente, tirar Cristóvão dali, no entanto, outra presença o segurou.
Aquela energia, para ele, tinha até mesmo nome. Não somente por ser a de uma das mais antigas
criaturas nascidas, mas também pelo grande amor que nutria por ele.
― Miguel...
Um Anjo forte e marcado pelo tempo se apresentou à sua frente.
― Lúcifer.
Miguel e Gabriel eram as criaturas em quem o Pai mais confiava e os Anjos mais velhos
sobreviventes ao ataque das trevas, ocorrido logo depois que ele foi expulso.
Sentia saudades desses irmãos, mas para Miguel era difícil perdoá-lo. Já com Gabriel nunca mais
teve contato, o esperto sempre soube como evitá-lo.
― Vai me dizer que também sentiu saudades minhas? ― disse o ex-anjo vestido de
homem, com um sorriso sincero no rosto. ― Porque eu sempre sinto saudades sua.
Os olhos de Miguel mostraram desprezo.
― Não me importo com você, Lúcifer. Não há vagas para um traidor em meu mundo.
Vim atrás de Tifereth. E espero que não tenha vindo fazer o mesmo. Não tenho tempo para isso
agora, mas nada me impede de lhe dar uma lição.
Diante das palavras frias de Miguel, Lúcifer escondeu seu sorriso.
― Também não me importo com Tifereth. Não, por enquanto. Você costumava ser mais
cuidadoso na minha época, Arcanjo Miguel. Ou pelo menos eu te ensinei a ser assim. Como
deixou um pequeno como aquele atravessar sem permissão?
Embora tenha tentado disfarçar, a face de Miguel corou de constrangimento.
― Isso não é da sua conta!
― Tifereth é um anjo poderoso demais para ficar sem supervisão. Espero que jamais se
esqueça disso, Miguel.
No mesmo instante as mãos fortes agarraram a camisa cor verde e extremamente limpa que
Lúcifer usava.
― O que você quer dizer com isso?
― Apenas não se esqueça…
― Se eu fosse você não me provocaria hoje, Lúcifer. ― a mão livre de Miguel desceu
instintivamente até a altura da poderosa espada de Arcanjo.
Depois da primeira batalha da luz contra as trevas, o Pai ficou tão satisfeito com o desempenho
de seu filho, que resolveu presenteá-lo com a mais poderosa de todas as espadas de luz.
Desde então, se ela é retirada da bainha, tem somente um objetivo, destruir o inimigo
definitivamente.
Não há outro destino para aquele que provoca a fúria do Arcanjo Miguel.
― Vai me destruir com a sua espada agora, Miguel? ― o homem não fazia esforço para
se libertar. Seus olhos observavam o poderoso irmão com tristeza. ― Se fizer isso... Talvez
consiga se sentir vingado... E finalmente me perdoe.
A mão de Miguel estava sobre a bainha. Se a retirasse de seu descanso perderia o controle e
destruiria Lúcifer com apenas um golpe.
Mas descobriu que não conseguiria destruir o irmão que um dia tanto havia amado. Não estava
pronto para isso ainda.
Miguel simplesmente soltou a camisa de Lúcifer e tentou se acalmar, sem olhar o irmão nos
olhos mais.
― Miguel. ― antes que Lúcifer pudesse fazer qualquer comentário, uma poderosa
energia trouxe os dois de volta a suas missões.
― Essa energia. ― Miguel olhava a sua volta com espanto.
― É um demônio. ― concluiu Lúcifer, disfarçando o quanto havia ficado emotivo por
alguns instantes e tentando alisar a camisa que Miguel tinha amarrotado com suas mãos fortes.
Precisava manter o mínimo de dignidade em um momento como aquele. ― Está influenciando
um humano.
― Não. ― corrigiu Miguel. ― Está CONTROLANDO o humano. Está usando o ódio
para mover o homem. Ele está atrás de vingança.
Lúcifer sentiu um calafrio por dentro.
― Cristóvão!
― Tifereth!
Falaram ao mesmo tempo e se olharam. Havia mais segredos entre aqueles olhares preocupados
que se cruzaram do que jamais existiria entre céu e terra.
― Também estamos com problemas. ― disse Miguel, lamentando ter que fazer Tifereth
aguardar mais um pouco.
Lúcifer também estava sentindo a presença e não estava gostando nada daquilo. Não apenas
Cristóvão e Tifereth que estavam sendo observados, eles também. Aquele não era um demônio
comum, de baixa classe, estava muito bem guiado por um líder inteligente e perigoso.
Miguel também sabia de quem se tratava, mais um irmão que havia se perdido durante a
caminhada.
― Que cena mais comovente de se ver... Dois irmãos... Dos mais poderosos... Juntos em
uma conversa calorosa! ― havia cinismo e maldade na voz aveludada que atravessava o local.
Para confirmar as suspeitas de Lúcifer e Miguel, surgiu o Anjo Caído Hamael, expondo suas asas
negras abertas e um sorriso malicioso. Seus olhos, que um dia tinham sido azuis, brilhavam
agora em vermelho.
― Alguém o chamou para essa conversa, Hamael? ― a pergunta de Lúcifer foi direta e
sem rodeios.
― Que criatura mal-humorada que você é, Lúcifer! Só estava me divertindo um pouco
com meus servos. E aí eu os vi. Fiquei curioso, afinal, não é sempre que se sente a presença de
um anjo de luz no mundo dos homens. Arcanjos não costumam se misturar com a gentalha. ― o
olhar de Hamael e Miguel se cruzaram.
― Não tenho tempo para perder com uma criatura insignificante e traidora como você,
Hamael! Existem coisas mais importantes para fazer!
Miguel já estava dando as costas para o Anjo Caído, mas não conseguiu, pois Hamael se colocou
em sua frente novamente com uma velocidade descomunal.
― Não ensinaram que é muito feio dar as costas para os outros? ― Hamael tinha a
mesma idade espiritual de Miguel. Haviam pertencido à mesma época e, portanto, haviam sido
criados juntos. Lúcifer também havia sido seu professor, mas, diferente de Miguel, Hamael
jamais conseguiu entender o amor celeste pelos humanos. ― Por que você ficou lá? Por que não
veio conosco?
― Se você não entendia as decisões do Pai, também não vai entender as minhas
explicações. ― Miguel parecia perturbado com a situação. Encontrar dois irmãos importantes em
sua vida em um mesmo dia era muito. Por isso raramente vinha à terra dos homens.
Lúcifer sabia que, logo depois de ser expulso e ficar perdido na Terra, os Anjos enfrentaram a
profundeza da Boca do Inferno. No fim dessa batalha alguns Anjos seguiram as trevas com a
intenção de colocar ordem no mundo dos homens a seu modo. Estes eram os Anjos Caídos.
Só que aquela conversa estava levando tempo demais e ele estava mais preocupado em pensar no
perigo que Cristóvão poderia estar correndo.
― Isso tem que terminar logo. ― resmungou para si mesmo. ― Tem que terminar logo.
A conversa perigosa entre Miguel e Hamael continuava independente das aflições de Lúcifer.
― Quanto forte você acha que fiquei, Anjo Miguel?
― Eu não sei, Hamael. E para ser sincero, acho que nem me interessa.
― Lembro-me bem do seu estilo de luta, Miguel. O Gabriel também. Gabriel era a
defesa, você o ataque…
― E você nos dava cobertura.
― Sim. É verdade.
O silêncio pairou entre eles naquele instante.
― As coisas mudaram. ― de repente os olhos vermelhos de Hamael brilharam
assustadores. ― Agora estou aqui para evitar que você atrapalhe a diversão dos meus soldados!
Do nada, Hamael fez surgir uma lança.
O Arcanjo sabia que aquele era o momento de usar sua espada, mas fazer aquilo, além de colocar
em risco Lúcifer também, gastaria um tempo que eles não tinham.
A mão de Miguel descia vacilante para a bainha da espada. Seus olhos azuis sentiram uma
imensa vontade de derramar lágrimas.
― Medo de me enfrentar, Arcanjo? ― provocou Hamael.
Miguel encontrou coragem e segurou com firmeza a bainha da espada.
― Espero que se arrependa dessa atitude, criatura maligna.
A luz da espada se mostrava aos poucos conforme deixava a bainha, no entanto, uma imensa
energia paralisou os dois antes que começassem aquela batalha.
Miguel retornou imediatamente a espada para a bainha e Hamael tornou a esconder a lança.
― AGORA JÁ CHEGA! ― era Lúcifer quem falava e que liberava a carga de força em
volta dos dois. Seus olhos negros tornaram-se vermelhos e sua expressão, sempre calma, parecia
furiosa.
― Lúcifer. ― Miguel mal conseguia acreditar em como o ex-anjo havia desenvolvido
sozinho tanto poder.
― Anjo Caído Hamael! Agora é uma ordem! Tire imediatamente seus demônios deste
local e não continue essa batalha inútil contra Miguel.
― Mas... Lúcifer, eu... ― ele parecia tremer.
― Não fui claro o suficiente?
― Foi. Mas... Só estávamos nos divertindo. O pacto diz que se os humanos forem fracos
e permitirem a aproximação dos Demônios, então...
A energia em volta pareceu ficar ainda mais agressiva. Algumas plantas em volta começaram a
morrer, secas e amareladas como se tivessem ficado sob um sol escaldante.
Os olhos vermelhos e fixos de Lúcifer se tornavam mais assustadores a cada minuto, era difícil
não se sentir intimidado.
― Há coisas mais importantes em jogo do que a diversão das suas criaturas…
Capítulo 9
Cristóvão sabia que aquele homem por si só representava problemas, mas havia algo mais. Havia
uma sombra em volta dele.
Seu novo amigo de pele cor de bronze e asas que apareciam e desapareciam parecia ver muito
além daquilo.
― O que foi? ― ele perguntou à criatura cor de bronze. ― Fuja se está com medo.
― Você não o vê?
― Quem? O homem? Claro que vejo…
― Não. O homem, não... Você não vê o demônio?
― Demônio? ― mais uma vez olhou o homem, a sombra parecia dançar em volta dele.
Era disso que o Anjo estava falando? ― É isso que aquela sombra é então?
― Olha só, o moleque está com tanto medo de que está falando sozinho. ― o estranho
riu alto enquanto mantinha sua postura ameaçadora.
Havia algo de sobrenatural naquele som, Cristóvão sabia, sentia, mas só ouvia a voz dele.
Tifereth protegeu os ouvidos com as mãos para não escutar aquele som assustador.
― Deve estar conversando com a morte. Porque eu vou garantir que ela o leve hoje, sem
falta!
O homem tinha os olhos vermelhos. Estava tão bêbado e drogado que nem deveria estar se
mexendo daquela forma.
― Você precisa vê-lo, senão não vai conseguir se defender! ― advertiu Tifereth, ainda
com as mãos sobre os ouvidos.
― Fala como se fosse algo simples, né? Só vejo sombras, nenhum deles tem definição
para mim.
― Precisa se esforçar. Você tem essa capacidade.
― É só desejar com muita vontade, ter pensamentos felizes e sair voando, Sininho?
― O que?
Obviamente o Anjo não entenderia sua referência e eles não tinham tempo para isso agora. O
colega cor de bronze ainda estava com as mãos nos ouvidos, parecendo sofrer.
― Por que eu deveria ouvir um conselho seu? Você nem tem coragem de ouvir o que
essa criatura está dizendo!
Tifereth e Cristóvão se encararam por alguns segundos.
― Tem razão! ― Tifereth tirou as mãos das orelhas e olhou para frente, encarando aquilo
que estava vendo. ― Vou ouvi-lo!
Cristóvão sentiu a coragem brotar em Tifereth como se fosse uma semente de crescimento
rápido, e sabia que devia demonstrar que podia ser igual.
Olhou seu adversário, sem medo.
Se concentrou. Se podia ver a sombra, talvez conseguisse ir além daquilo. Aceitou o desafio. O
Anjo ao seu lado parecia deixá-lo mais forte.
E lá estava. Ainda não havia definição completa, mas conseguia ver algo. Conseguia ver uma
criatura de pele chamuscada.
Quando chegou, era um homem forte e chapado. Agora, além dele, havia esse ser difícil de
descrever. Era magro e comprido, com pernas e braços tão finos que pareciam bambus. Os olhos
eram pretos, sem expressão. Tinha um sorriso no rosto deformados, se é que podia se dizer
assim. Parecia se divertir com aquilo.
Assim que sentiu os olhos de Cristóvão a observá-lo e os ouvidos de Tifereth a compreendê-lo,
imediatamente deixou a cara de alegria e passou a se mostrar agressivo. As presas na boca se
estamparam.
Estava pronto para matar.
Agora Cristóvão sentia e sabia que era visto e sentido também. E a sensação era horrível.
O homem ficou mais agitado.
― Tá encarando por quê? ― perguntou. ― Está mesmo pedindo para morrer.
Correu para acertá-lo com o pedaço de madeira, provavelmente na intenção de um golpe fatal na
cabeça.
Cristóvão estava se sentindo tão perdido com a visão que acabara de ter, que nem sequer se
lembrou de se proteger.
Quando o objeto estava prestes a acertá-lo, Tifereth se colocou na frente e estendeu os braços.
As asas do Anjo ressurgiram no mesmo instante. A força protetora emitida foi tão poderosa que
o homem foi empurrado com força.
― Não vou deixar nenhum de vocês machucar este garoto!
A semente da coragem havia funcionado melhor do que o esperado em Tifereth. O olhar estava
mais determinado e a voz mais imponente, como se outra criatura tivesse acabado de despertar.
O demônio se encolheu tentando não enxergar a imensa luz que o jovem anjo expelia de seu
corpo.
Provavelmente seria eliminado, se Hamael não tivesse surgido.
Embora a luz de Tifereth fosse muito superior para sua idade espiritual, ainda não era suficiente
para enfrentar um Anjo Caído, portanto, quando Hamael se aproximou, conseguiu neutralizar
facilmente o poder do Anjo de Luz.
Os olhos vermelhos e maldosos encararam Tifereth com desprezo.
― Então, você é o famoso Serafim? O tal salvador?
Para o Anjo tudo estava acontecendo rápido demais. Havia conhecido Humanos, Demônios e,
agora, um Anjo Caído. Não conseguiu emitir sequer uma palavra para falar com aquela criatura.
Hamael observou o humano que estava protegido pelas asas de Tifereth e sorriu com maldade.
Estavam ali os interesses de Miguel e Lúcifer, juntos.
― Interessante. Vamos ver o que acontece. ― virou as costas para os dois e fez sinal
para o demônio que ainda estava caído.
No mesmo momento todos eles se retiraram do local.
Tifereth recolheu suas asas e voltou sua atenção a Cristóvão.
― Você está bem?
― Sim, obrigado. ― o garoto passou a mão pela cabeça e, em seguida, olhou para o
homem caído. ― Se não fosse você, seria eu ali no chão agora.
― Tive medo de que se machucasse.
― Você é forte, hein? ― Cristóvão sorriu ainda encabulado por não ter conseguido se
defender.
― Um dia vou ser forte que nem o Arcanjo Miguel, aí sim, nenhum Anjo Caído vai
poder neutralizar a minha força. E todos vocês serão salvos.
― Acho que ainda preciso me acostumar com a ideia de ouvir esses nomes bíblicos como
se fossem reais.
― Mas são reais.
O encrenqueiro se levantou. Estava com a mão na cabeça, como se sentisse dor, mas já não
andava como se fosse uma marionete.
― Bom, está vivo o desgraçado.
― É claro que está, eu não tinha nenhuma intenção de matá-lo. ― disse Tifereth um
pouco assustado com a ideia. ― Agora os demônios já não o controlam mais. O que está ali é
somente a alma do ser humano.
― Vou ajudá-lo, ver se precisa de um médico. Fica aí, está bem? Precisamos conversar.
― Eu adoraria.
Cristóvão se aproximou do homem.
― Hei, você está bem? Quer uma ajuda? ― o garoto esticou o braço para ajudá-lo a se
apoiar.
O homem o segurou e o puxou para mais perto.
― Eu não disse que você ia morrer hoje, garoto?! Eu não estava brincando!
― Puta merda.
Tifereth entrou em desespero quando viu a cena, o homem já não era dominado, a única coisa
que restava ali era seu próprio coração.
Mas se aquele coração cheio de maldade era do próprio humano? Então para que o demônio
estava o controlando?
Por mais que doesse, Tifereth sabia a resposta. O demônio havia contado quando tirou as mãos
das orelhas, mas não queria aceitar aquilo.
Não queria acreditar que a essência da criatura mais amada do Pai era o próprio mal.
Cristóvão tentava se libertar em vão. O homem era muito mais forte do que ele.
― E se eu me desculpar, já não está bom? ― o garoto perguntou em meio aos gemidos
de dor.
― Não aceito desculpas, seu pirralho folgado! ― com a mão livre o homem acertou um
murro no rosto de Cristóvão.
― NÃO! ― Tifereth observava a tudo sem poder fazer nada. Sobre a forma de Anjo não
poderia jamais atacar um ser humano, seria o mesmo que ir contra as leis do Pai. Mas, se não
fizesse nada, o humano por quem sentia empatia apanharia até a morte.
Enquanto pensava em uma maneira de ajudar o amigo, um segundo soco acertou o estômago do
garoto.
― Tenho que fazer algo. Mas o que?
Diversos ensinamentos começaram a passar em questão de segundos pela mente de Tifereth.
Tinha que se lembrar de alguma coisa que pudesse ser usada para salvar a vida do humano que
estava em desvantagem.
Com uma força assombrosa, a lembrança de Miguel explicando o mais difícil de todos os testes
veio à sua mente. Talvez fosse a única forma de salvar a vida de seu novo amigo.
― Me perdoem, mas terei que fazer algo proibido.
A Solidificação havia sido uma das últimas técnicas ensinadas por Miguel. Ela tornava um
Anjo ou Demônio em corpo físico, para que, assim, todos os humanos pudessem vê-los. Era
usado somente em casos muito extremos, normalmente para converter mentes ateias da
existência das divindades ou para impedir que algum humano cometesse um erro muito grave.
Todos prefeririam o uso de corpos humanos falsos para disfarces. Era mais prático e não tinha
efeitos colaterais, mas ele não tinha como arrumar um agora, tão rápido assim.
Tifereth havia sido alertado mais de uma vez que esta técnica só era permitida desde que
houvesse autorização de criaturas com elevado cargo espiritual, como os Arcanjos, Anjos
Mestres ou o próprio Pai, pois a prática podia levar a um dos mais graves crimes.
No entanto, naquele momento não temia o castigo do Pai e nem a bronca de Miguel, só queria
salvar o garoto que começava a perder os sentidos com os golpes que levava.
― Em nome do Pai. ― ele se aproximou do homem e provocou, com suas mãos rápidas,
um corte pequeno no pescoço.
Ele se concentrou e começou a sugar o sangue humano com suas mãos. Para o tanto de tempo
que ele precisava, só um pouco era mais do que suficiente.
Em questão de segundos uma imensa roda de energia azul o cercou, dando carne ao corpo que
até então era feito de matéria espiritual.
A energia azul se dissipou e a forma de Tifereth agora era visível a qualquer humano.
Assim que a imensa energia de Tifereth foi liberada e que o seu corpo se tornou visível, o
homem que esmurrava Cristóvão cessou seus golpes e o encarou com medo e desconfiança.
Apareceu do nada um rapaz cor de cobre e com asas imensas.
Ele também levou a mão ao pescoço e percebeu que estava sangrando.
Cristóvão continuava vendo o Anjo, não havia parado de vê-lo em nenhum momento. Viu,
inclusive, o momento em que o mesmo se rodeou por uma luz azul e, depois, quando a luz se
tornou apenas um tipo de aura fraca em volta dele.
Ele percebeu que o homem agora também via.
― Vá embora... ― disse o menino com a boca sangrando e a impressão de que nenhum
dos dentes estava no lugar. ― Esse cara não está brincando! Ele é mal, Anjo! Vá embora…
O homem, ouvindo o pedido do garoto ao outro, sentiu uma súbita vontade de rir.
― Anjo?? ― a risada era estridente. ― Qual é? Vocês dois são namorados? ― o homem
olhava para o Anjo o desafiando. Estava completamente fora de qualquer limite. ― Mais um
motivo para acabar com vocês, seus merdinhas!
― Por favor, humano! Não maltrate mais esse garoto. Não quero ter que te machucar.
― Que besteira é essa que você está dizendo? ― mais uma vez a risada cruel. ― Você
me machucar?? Eu é que vou te machucar! ― o homem tirou do bolso uma faca, que
provavelmente estava guardando para o final. Jogou Cristóvão no chão e disparou a correr em
direção ao Anjo.
Tudo aconteceu muito rápido para Cristóvão.
― CUIDADO!
Ele se levantou e, mesmo sentindo a dor se espalhar por cada membro de seu corpo, fez uma
imensa força para correr na mesma velocidade que o agressor.
Quando se encontrou perto o suficiente, saltou em direção ao pescoço do homem e o agarrou
com força, fazendo com que os dois se desequilibrassem.
― Saí de cima de mim, seu moleque! ― o homem gritava com ele, tentando se soltar.
― FUJA! ― segurava o pescoço do homem com um braço e a mão que estava com a
faca com o outro.
Os pés dançantes do homem, que tentava se livrar de Cristóvão, não perceberam o fim do chão
de terra. O barranco se encontrava no meio do caminho deles e, com um passo em falso, os dois
foram arrastados para o fim.
― NÃO! ― Tifereth saltaria em busca do humano que esteve protegendo, mas os braços
fortes e rápidos de Miguel o agarraram, impedindo que qualquer coisa fosse feita.
Tifereth, ainda atordoado com tudo que estava acontecendo, olhou cheio de piedade e tristeza
para seu mestre.
― Arcanjo Miguel, temos que salvar aquele garoto!
Miguel abriu as asas e, carregando Tifereth, partiu daquele lugar com uma velocidade poderosa.
Observou que o poder da Solidificação já estava desaparecendo. Respirou aliviado, o jovem anjo
não tinha ido tão longe.
― E o garoto?
― Não há mais nada que possamos fazer por ele.
Tifereth já não discutia, não tentava se livrar dos braços de seu mestre, apenas se deixou levar
pelo anjo mais velho, enquanto pedia perdão mentalmente ao humano que não poderia salvar.
Capítulo 10
O Pai observava tudo que acontecia naquele momento envolvendo seus filhos, anjos e humanos.
Algo lhe dizia que uma coisa muito importante estava prestes a começar por causa daquele
incidente.
Uma intuição, talvez.
Ou talvez fosse pelo fato de que, assim que Miguel agarrou Tifereth para trazê-lo de volta para
casa, Lúcifer saltou do barranco para salvar o garoto humano.
― O que você pretende dessa vez, Lúcifer? Quem é esse garoto?
As perguntas do Pai ficariam sem resposta, pois, neste momento, Lúcifer não poderia ouvi-las.
Estava ocupado, se concentrando em impedir que Cristóvão morresse na queda.
Capítulo 11
Assim que caíram, o garoto e o homem se separaram indo em direção às pedras do rio.
Cristóvão só teve uma certeza quando sentiu seu corpo despencando e a voz do Anjo que o
protegia gritando de desespero: morreria.
Ninguém sobreviveria a uma queda daquelas. Finalmente pagaria por todos seus pecados em
vida. Lamentava que tivesse que ser tão cedo, mas estava estranhamente contente por saber que o
suposto amigo estava bem.
Chegou até mesmo a esboçar um leve sorriso no rosto quando esse pensamento o invadiu.
Era uma pena não poder se despedir da sua mãe - ou do irritante do seu padrinho - que havia
cuidado dele. Pelo menos ela ficaria livre de todas as suas encrencas e problemas.
Fechou os olhos para que não pudesse ver a morte de tão perto. Aguardava somente o impacto da
queda e a escuridão definitiva. No entanto, o que sentiu foi a força de uma mão que o segurava
com determinação.
Seu corpo parou de cair em seguida. Ele estava voando.
O homem saiu da casinha simples, sentindo-se mais aliviado e, ao mesmo tempo, assustado.
O encontro repentino de Tifereth e Cristóvão havia acelerado as coisas.
Quando o momento chegasse todos seriam testados, criaturas do céu e do inferno teriam que
tomar suas decisões e não haveria como ficar em cima do muro, como muitos faziam
ultimamente.
Haveria sacrifícios e muitas lágrimas, mas tudo fazia parte do processo que estava se
desenvolvendo desde a criação do novo Anjo Tifereth.
Alguém se aproximava.
― Sinto muito, Lúcifer. Eu tentei impedi-lo, mas ele conseguiu me despistar.
― Não se preocupe, Lahael. O que tinha que acontecer, aconteceu....
― Então começou?
Lúcifer riu.
― Sempre tão apressada. Esse é o problema de nascer com dons de adivinhação. O
futuro não visto se transforma em ansiedade.
― Bem que eu queria não ser assim. ― ela se aproximou e deu um beijo suave em seu
rosto.
― Como fez para que ele não o reconhecesse?
― Foi fácil. Um truque para embaçar a visão. Ele só viu borrões. Conseguiu prever o que
vai nos acontecer?
― Você sabe que não. Ele está fugindo da minha capacidade de previsão desde aquela
última. Sabemos que haverá uma guerra e que ambos estarão nela, mas nada além disso.
― Lahael, vamos enfrentar a pior de todas as batalhas, você quer mesmo estar ao meu
lado quando isso acontecer?
Ela entrelaçou sua mão à dele.
― Você sabe que sim, não preciso dizer novamente.
Lúcifer ainda estava com a mão entrelaçada à dela quando seu bolso começou a brilhar e se
mexer. Sempre levava as esferas restantes com ele, para ter certeza de que estavam protegidas e
para saber em qual momento usá-las.
― Elas acordaram. ― ele soltou suas mãos de Lahael e ficou observando o brilho que
saia de seu bolso.
Eles se encararam.
― É, agora não tem mais volta mesmo.
Ele abriu o bolso devagar e as esferas saíram flutuando, brilhantes e fortes, como se nunca
tivessem se apagado.
― Então, que a sorte seja lançada! ― ao dizer isso, a luz se tornou ainda mais forte e elas
foram embora, vagando pela noite, cada uma seguindo o seu destino.
― O que fazemos agora? ― Lahael perguntou.
― Esperamos. E nos preparamos.
Capítulo 13
Rebeca orava por proteção ajoelhada diante de uma imagem, onde um homem de rosto sofrido
estava morto em uma cruz de madeira.
O padre havia recomendado que ela fizesse isso todas as noites junto com o terço que havia dado
de presente a ela. Afirmou que assim os demônios iriam parar de perturbá-la.
Ele garantiu que o terço tinha poder suficiente para afastá-los e ela acreditou.
E até que tinha funcionado por hora. Parecia que quando rezava com o terço nas mãos o
ambiente de fato se tornava mais leve.
Fazia muito calor, por isso estava com a janela aberta para refrescar. Pretendia fechá-la assim
que terminasse sua oração para, em seguida, ir dormir.
Um vento mais forte tirou a sua concentração.
A menina sentiu seu corpo arrepiar, abriu os olhos devagar e os desviou em direção à janela.
Não soube explicar bem o que sentia naquele momento, mas alguma coisa nova acontecia em sua
vida. Parada entre ela e a janela estava uma pequena esfera de luz prateada que dançava
suavemente pelo ar.
― Um vaga-lume? ― ela sabia que não era um vaga-lume, já havia os estudado na
escola e aquele era grande e brilhante demais para ser uma das criaturinhas que voavam nas
noites.
Rebeca se levantou para se aproximar, curiosa.
Estendeu a mão para segurar aquilo que flutuava.
Assim que sua mão se encontrou com o ponto de luz, uma força muito grande percorreu seu
braço e ele simplesmente desapareceu, como se tivesse sido absorvido por sua pele.
Uma marca no braço se formou, exatamente no ponto em que a luz a tocou, um símbolo que
lembrava uma cruz. Quem olhasse pensaria se tratar apenas de uma marca de nascença.
― Isso é... Deus? ― a menina juntou suas mãos próximas do peito e depois se ajoelhou.
― Essa é uma mensagem, Deus? Finalmente vou conseguir enfrentar essas criaturas
assustadoras que me perturbam? Obrigada! Seja o que for, prometo não o decepcionar.
Ela fechou a janela e, satisfeita, deitou-se em sua cama. Passou a mão pela marca e sorriu.
Enrolou o terço em seu braço. Pela primeira vez em muito anos se sentia realmente protegida.
Capítulo 14
Em outro lugar, distante de Rebeca, Alexandre tinha acabado de invadir o quarto dos pais aos
berros.
― PAI!
― O que você quer, Alexandre? ― o pai estava de mau humor, havia acabado de pegar
no sono e aquela gritaria o acordou assustado. Sentiu que a cabeça começava a doer de novo.
― Uma estrela cadente entrou no meu quarto! ― o menino parecia estar em frenesi com
a novidade.
― O QUÊ? ― até mesmo a mãe resolveu se sentar na cama e ouvir a novidade.
― Que besteira é essa que você está falando agora, garoto?
O menino respirou fundo e começou a sua defesa, sabia que o pai não acreditaria nele, mas sentia
necessidade de contar.
― É verdade! Eu estava fechando a janela para ir dormir, mas de repente um vento forte
trouxe essa estrela cadente para dentro do meu quarto. Ela era prateada. E quando a toquei, ela
entrou pela minha pele e desapareceu na minha mão. TEM UMA MARCA AQUI NO MEU
BRAÇO. OLHEM!
― VOCÊ ESTAVA SONHANDO, AGORA VÁ DORMIR! ― o pai cobriu-se
novamente com o cobertor e fingiu não mais ouvir aquelas barbaridades.
― Mas é verdade, pai! ― Alexandre sentiu os olhos encherem de lágrimas, não estava
mentindo, só que os pais nunca o levavam a sério.
― Amanhã explicaremos o que são as estrelas-cadentes, querido! Pode ter certeza de que
você não viu uma, de jeito nenhum. ― a mãe deu um sorriso compreensivo, mas que
demonstrava claramente a sua falta de crença naquela informação que o filho trazia. ― Quando
explicarmos, você vai ter certeza de que apenas imaginou isso, ou que viu o reflexo de alguma
fonte de luz. Deixe isso para amanhã. Por enquanto, vamos dormir.
― Está bem, mãe.
Vencido, como sempre, Alexandre saiu do quarto dos pais. Na saída ainda escutou o pai
resmungando sobre ter que trocá-lo de escola, pois essa “não estava fazendo o seu trabalho
direito”.
― Onde já se viu achar que uma estrela-cadente entrou no quarto?
Ele voltou para o seu quarto sentindo-se um idiota por ter acreditado naquilo que viu.
― Droga!
― Eu também vi a luz. ― disse o Velho para tentar animá-lo.
― Como se isso me ajudasse de alguma forma. Você existe tanto quanto aquela luz
esquisita.
― Tá, não precisa acreditar nas minhas palavras, até porque ninguém mais pode me ouvir
além de você. Mas e a marca no seu braço?
Ele olhou para ela e começou a analisá-la. Era circular, mas tinha uma forma incompleta. Quem
não o conhecia poderia dizer que ela esteve lá desde o seu nascimento.
― Eles nem quiseram ver.
― Pode ser que amanhã isso seja diferente. Quem sabe quando a olharem eles comecem
a acreditar pelo menos um pouco.
― Acho que é mais fácil eles acharem que eu me queimei com alguma coisa de propósito
só para dar uma justificativa para a marca.
O Velho se calou. Havia algum sentido nas tristes palavras do garoto.
― Luz idiota! Só fez meu pai se decepcionar comigo de novo! ― fechou a janela com
força e foi se deitar.
Capítulo 15
Havia algum tempo que Simone havia ido se deitar.
Cristóvão a esperou sair do quarto para abrir os olhos. Não estava querendo conversar naquele
momento. Seu corpo inteiro doía, mas a cabeça era a parte que estava mais preocupando.
Não sabia mais o que havia sido real e o que era apenas ilusão.
Tinha mesmo conversado um anjo ou tinha imaginado tudo depois de tomar umas pancadas
daquele homem grandalhão?
Não se lembrava de estar tão bêbado assim, e não estava drogado também, por que aquela
alucinação havia sido tão forte?
Teria mesmo caído daquele barranco?
Se tivesse caído estaria morto. E não se sentia morto.
Alguém o tinha agarrado. Lembrava-se de uma mão forte que o segurou durante a queda. Asas.
Havia voado por alguns segundos, sendo resgatado por alguém cujo rosto não conseguia se
lembrar.
Sua cabeça estava girando, não tinha certeza de mais nada. Provavelmente tinha tomado alguma
bebida batizada e isso era um castigo por ter sido tão descuidado.
Talvez ainda estivesse sob o efeito dessa poderosa droga, pois, neste momento, estava
enxergando a sua cicatriz brilhar com uma luz prateada. A espada em seu braço nunca esteve tão
visível como naquele momento.
― Vocês não vão mais me deixar em paz, não é? ― ele disse, com um tom de ironia e
piada.
Sem nem mesmo perceber o que estava fazendo, estendeu a mão e tocou sua marca. A luz se
estendeu por todo seu corpo e depois aquietou. Sentiu que estava ficando quente.
Seus olhos por um momento mudaram de cor e passaram a ser dourados, mas isso ele não viu.
Instantes depois estavam azuis novamente.
A sensação foi de que tudo finalmente estava em seu devido lugar e Cristóvão adormeceu.
Capítulo 16
Miguel, tão logo desceu Tifereth de seus braços, começou um sermão gigantesco, que o jovem
anjo não ouviu sequer uma palavra. Havia algo em seu coração, algo dolorido. Havia ali um
sentimento de ódio, que Tifereth nem mesmo conhecia direito.
― Vou avisar o Pai que chegamos! E você, fique aqui!
Essas foram as únicas palavras que Miguel pronunciou que Tifereth realmente compreendeu.
Ficaria sozinho por algum tempo para finalmente poder pensar.
O menino. O menino humano não deixou sua mente nem por um segundo.
Tinha alguma coisa diferente na energia daquele humano, algo que chamava sua atenção.
Por minutos sentiu algo parecido com aconchego. Era um sentimento diferente do que tinha
perto dos outros anjos, eles apenas o respeitavam por se tratar de um ser poderoso escolhido pelo
Pai, mas a verdade é que ninguém parecia amá-lo. Ali ele era apenas um ser celestial com uma
missão e ponto.
Mesmo assim, Miguel não havia escutado suas súplicas quando pediu que salvasse o menino da
morte.
O humano que os atacou era uma criatura fraca de espírito e má de coração. Aqueles realmente
eram os filhos amados do Pai? Aqueles para quem Tifereth estava sendo criado? Aqueles para
quem deveria arriscar a própria existência?
Caiu de joelhos e começou a chorar.
― Tem alguma coisa errada! Não tinha que ser assim. Eu estou tão…confuso!
Mihael se aproximou furtivamente. Não tinha nenhuma intenção de consolar o anjo-menino, mas
sim de descobrir até que ponto Tifereth tinha sido atingido pela maldade dos humanos.
― Difícil de acreditar, não é?
Tifereth rapidamente enxugou as lágrimas e o encarou.
― O que você quer aqui, Mihael? Disse-me para ir até lá e agora... Por que não me
avisou que os humanos eram assim?! ― as palavras saíram engasgadas em algumas lágrimas.
― Você não acreditaria em mim. Tinha que ver com seus próprios olhos.
― Não foi isso que eles me disseram. Contaram-me coisas diferentes.
― Eu sei, acontece com todos nós, sabe? Somos ensinados a proteger e cuidar desses
filhos rebaixados, que nem sequer se lembram do Pai. Ensinam-nos que são criaturas de almas
boas, que, devido suas curtas existências, merecem nosso respeito por sua coragem e dinamismo.
Depois conhecemos quem são eles de verdade.
― Eu não queria... Não queria que ele morresse.
― Os humanos são assim mesmo, matam uns aos outros sem se importar com mais nada.
― respondeu sem saber ao certo sobre quem ele se referia. Torcia para ter acertado no
comentário.
Aparentemente fez algum efeito.
Tifereth ficou em silêncio. Sentia seu espírito em rebuliço com tantos sentimentos novos.
― Pena que somos assim. ― continuou Mihael, finalmente jogando sua cartada final. ―
Somos todos programados para cumprir nossas missões.!
Finalmente uma chama se acendeu dentro de Tifereth, uma chama que começou a arder em seu
coração em pequenas brasas, mas que logo faria um grande estrago.
Nenhuma palavra mais foi dita, nem por Mihael e nem por Tifereth, apenas as asas de Miguel
faziam algum som quando este se aproximou.
― Mihael, o que faz aqui? ― uma pergunta com tom de desconfiança.
― Nada, estava apenas tentando animar o garoto. ― com a cabeça, Mihael apontou de
maneira pouco expressiva em direção a Tifereth, que ainda não havia se movido do lugar de
onde estava.
Miguel achava que tinha algo mais do que apenas uma tentativa frustrada de animação, mas não
tinha tempo para Mihael agora.
― Tifereth, o Pai quer vê-lo. Venha comigo, por favor!
O menino se levantou, sem dizer nenhuma palavra. Seus olhos pareciam perdidos em
pensamentos que talvez nem mesmo o Pai fosse capaz de descobrir.
Os olhos dourados do Pai se encheram de possíveis lágrimas assim que viu Tifereth se
aproximar.
O menino se ajoelhou em frente ao Pai, ainda em silêncio. Aguardava mais um sermão que,
provavelmente, não ouviria também.
― Tifereth! ― as palavras de trovão eram assustadoras, mas estavam tristes.
― Sinto muito, Pai. ― o garoto Anjo disse o que devia dizer, mas estava no modo
automático, somente para aliviar a culpa que inevitavelmente se abatia sobre ele.
― Não diga nada, apenas me ouça!
O menino se calou, assim como foi ordenado. Olhou na direção daqueles olhos dourados que
diziam nada e tudo ao mesmo tempo.
― Sou eu quem sente muito. Sinto muito pelo humano que se tornou seu amigo, mas
que, infelizmente, não pudemos salvar.
As palavras do Pai atormentaram ainda mais o coração de Tifereth, que ao invés de se sentir
confortado e mais tranquilo, sentiu-se traído.
― Por que não puderam salvá-lo? ― o menino perguntou entre os dentes. ― Miguel
estava lá, bastava ter saltado e…
― Existem algumas coisas que você não conseguiria entender, Tifereth. Você era nossa
prioridade naquele momento, não poderia deixar que nada de ruim acontecesse a você, e
estávamos em um local que não deveríamos, em um momento não muito apropriado.
― Então, o deixaram morrer porque eu era prioridade?
― Você é uma criatura especial, meu filho! Sacrifícios podem ser necessários para que
cumpra com a sua missão de proteger todos os filhos humanos.
Todas as imagens daquela nova experiência passaram pela mente de Tifereth em questão de
segundos e sua lógica trabalhou aquelas informações sobre as chamas que cresciam dentro de seu
peito.
Não demorou muito para que o Anjo se levantasse e, tentando transparecer tranquilidade na voz
e nas atitudes, sorriu para o Pai.
― Tem razão, Pai! Quem sou eu para achar que seu julgamento está errado. Entendo a
minha missão e meu valor, por isso, entendo a sua atitude.
― Verdade?
― Claro! Não me afastarei de meus treinamentos e nem de minhas obrigações por causa
disso.
― Obrigado, Tifereth. Pode se retirar agora.
Havia verdadeiro agradecimento nos olhos do Pai. Até mesmo um sorriso se formou. Mas, assim
que Tifereth se retirou, a expressão de surpresa tomou conta de seu rosto.
Miguel tinha a mesma expressão estampada.
― Será que ele realmente entendeu, Miguel?
― Só saberemos com o tempo, mas a expressão dele me convenceu de que estava sendo
sincero.
― O que faremos agora?
― Acompanharei o comportamento dele, Pai. O avisarei caso perceba alguma coisa
diferente.
― Eu agradeço, Miguel. Confio em você!
O Arcanjo se retirou após fazer uma reverência, deixando o Pai sozinho, pensando nos
problemas que aquilo poderia acarretar. Se Tifereth se transformasse em um rebelde, como
Lúcifer, teria que destruí-lo antes que se unissem.
Mas como destruir um filho depois que você aprende a amá-lo? Até hoje ele não havia
encontrado uma resposta para essa pergunta.
― Não pode acontecer a mesma coisa. Não tudo de novo.
Capítulo 17
Tifereth estava parado no mesmo local de onde costumava observar os humanos durante as aulas
de Miguel. Seus olhos estavam perdidos em algum ponto daquela imensidão.
No entanto, dessa vez havia algo de sagaz e perturbador naquele olhar.
Por um segundo o garoto fechou os olhos, como se farejasse o ar, e depois sorriu malicioso.
Tornou a abrir os olhos.
― Pare de me espionar e se aproxime, Mihael! ― o tom de voz já não parecia de um
garoto assustado, muito menos de um aprendiz. Era o tom de voz de um líder.
O Anjo mais velho se sentiu envergonhado por ter sido descoberto de forma tão rápida, mas
surpreso com o desenvolvimento rápido do garoto.
― Não estava o espionando. ― respondeu Mihael, tentando se justificar. ― Estava
apenas observando o quanto se interessa por eles. ― apontou para a terra dos humanos.
― Sim, assim como você.
― O que quer dizer?
― Tenha paciência, Mihael. Se souber ter paciência e jogar as peças certas, no momento
certo, pode ter certeza de que vai conseguir fazer aquilo que sempre teve vontade de fazer.
― E o que você sabe sobre os meus desejos?
― Sei que são os mesmos que os meus.
Mihael sentiu aquilo. Sim, tinha certeza de que havia sentido. Realmente tinham os mesmos
desejos, a mesma ânsia por mudança, por renovações urgentes em toda aquela bagunça chamada
Terra.
― Tifereth…
― Vá embora agora! Miguel se aproxima e não é bom que nos veja juntos. Poderá
desconfiar de algo.
― Como sabe que ele...?
― Saiba aguardar e quando o momento chegar, eu vou chamá-lo, pode ter certeza. Só
tome cuidado para não ser pego antes de isso acontecer. Não me responsabilizarei por fracos que
não sabem aguardar seu momento de triunfo.
― Não. Prometo que vou me comportar. ― aquele menino já não era mais o mesmo,
com certeza. E era por essa liderança que Mihael estava aguardando há tantos séculos.
― Então vá agora, e só volte a falar comigo quando eu o procurar. Lembre-se que
estaremos sob vigilância daqui para frente.
― Certo! ― Mihael abriu suas asas e foi sem deixar nenhum vestígio para trás.
Tifereth sabia agora que poderia contar com alguns dos anjos para ficar ao seu lado quando tudo
tivesse que ser revelado. Mas, por enquanto, ainda tinha que ser um garoto comportado, assim
como havia prometido.
Sentia a presença de Miguel mais próxima agora. A qualquer momento estaria pousando ao seu
lado para ver se estava tudo bem.
― Os humanos. Realmente fui criado para eles. Fui criado para ser aquele que vai
provocar uma grande mudança no destino dos filhos desgarrados do Pai.
E após isso, quinze anos se passaram muito rápido.
NOVO TESTAMENTO
Capítulo 1
― Acorde, Cristóvão!
O rapaz não teve tempo de reação e tomou uma paulada nas costas por ter se distraído mais uma
vez.
Caiu no chão e, por alguns segundos, pensou em fingir um desmaio. Não aguentava mais aqueles
treinos constantes desde os seus 10 anos. Samael não dava pausas.
Seu padrinho era um cara chato e insistente.
― Me deixa caído aqui de uma vez. Já ficou claro quem de nós dois é o mais forte.
― Moleque, você anda muito molenga. Eu não vou poder te proteger sempre. Se quer
arrumar as suas brigas todo mês, precisa pelo menos aprender a lutar para se defender.
Ele se virou de frente para olhar para o padrinho.
― Eu sou ótimo nas minhas brigas. Apanho com estilo e estou vivo até hoje. Isso já
deveria ser suficiente.
Lúcifer pegou o cabo de madeira de Cristóvão do chão e jogou em sua barriga.
― Sua autopiedade é cansativa. Levanta logo.
― Cara, por que estamos fazendo isso? Me coloca logo em um curso de esgrima, isso vai
te deixar feliz?
― Você precisa aprender a lutar, Cristóvão.
― É só me comprar um revólver e me levar para um stand de tiro. Pronto!
Deu para ver o momento em que ele perdeu a paciência e segurou Cristóvão pelo colarinho da
blusa e o ergueu.
― Sinto muito, garoto, mas as soluções bestiais dos humanos não vão protegê-lo. Eu sou
o único que pode ajudá-lo.
O garoto ficou assustado, nunca tinha visto o homem daquele jeito.
O que aliviou a tensão foi a tosse extremamente alta que Simone soltou dentro de casa. Ela
estava tendo mais uma daquelas crises.
Lúcifer o soltou.
Cristóvão ficou alguns instantes olhando para ele e depois falou.
― A Simone passa pano para muita coisa sobre você, padrinho, por causa de toda
gratidão que ela sente, mas eu vejo as coisas. Você não envelheceu um dia sequer desde que te
conheço, não te vejo falando sobre trabalho, mas sempre tem dinheiro e, Lahael, que só aparece
de vez em quando, também me parece suspeita pelos mesmos motivos. Vocês sempre cuidaram
da gente, mas tem coisas que eu não posso ignorar. E aí vem essa coisa de luta, treino, esse
desespero todo…O que está escondendo?
Se arrependeu de não ter pedido algum tipo de mudança para o Caim. Acabou se esquecendo
dessa questão do tempo para os humanos. Nunca tinha ficado tão próximo de um.
― Nada. ― ele respondeu. ― Cremes caros, botox e herança são as respostas que você
precisa para as suas dúvidas.
Cristóvão fez cara de desdém e se sentou no chão do quintal. Mais uma vez Simone estava
tossindo, dava para sentir o sofrimento dela ao completar esse ato.
― Você pode salvá-la? ― ele perguntou, entre sério e triste.
― Eu não sou nenhum gênio dos desejos, se é o que você está pensando.
― Que pena. Seria um padrinho mais útil.
Lúcifer também se sentiu mal com aquilo. Sentou-se ao lado dele. O treino de hoje não tinha
mais condições de continuar.
― Eu fiz tudo que eu pude. Médicos, remédios, tratamentos. Mas, infelizmente, não sou
capaz de milagres desse tipo.
― E alguém é?
― Quando se trata da mortalidade humana? Eu acho que não.
― Você fala como se não fizesse parte disso.
Lúcifer ficou calado. Cristóvão era um rapaz esperto e estava cada vez mais perto da verdade.
Ele tinha certeza de que o garoto já estava farejando o seu lado inumano.
― Tem muitas coisas que você ainda precisa aprender, garoto.
― Vai me contar?
― Não há nada para saber nesse momento. Você ainda não está pronto para muitas
coisas.
― Você precisa de alguma coisa de mim, mas não somos capazes de confiar um no outro.
É isso que eu entendo. Você não nos ajudou por bondade. Você não está me treinando à toa.
Espera que eu me sacrifique por algo que eu nem sei o que é baseado em um monte de mentiras
que vem contando durante todos esses anos?
― Eu queria que fosse simples assim, mas não é.
― É, NÓS, HUMANOS, complicamos demais, certo? ― ele se levantou. Estava na hora
de cuidar de sua mãe, que estava deitada aguardando seus remédios.
Lúcifer segurou a sua mão.
― Garoto, se mantenha firme, eu vou precisar viajar por alguns dias, mas assim que
puder eu volto.
Cristóvão riu com ironia.
― Eu sei que você volta. Pelo jeito não pode se livrar de mim. Senão já tinha feito isso.
Ele entrou e Lúcifer permaneceu sentado. Sua relação com Cristóvão nunca tinha sido a mais
fácil, mas nos últimos tempos estava muito difícil.
― Ai, Pai, como eu queria um conselho seu agora.
Ele ficou olhando para o céu, esperando por uma resposta que acabou não vindo.
Capítulo 2
Rebeca estava voltando do trabalho. Era caixa em um mercado pequeno em seu bairro, o que
ajudava nas contas da casa, já que sua mãe havia adoecido há alguns meses e só tinham a
pequena aposentadoria.
Era uma noite fria e estava muito cansada.
Trabalhava em dois turnos e, quando terminava, corria para casa e ficava de olho na mãe, para
garantir que tudo estava bem.
Morando no centro de uma grande cidade, para quem não tinha nascido em berço de ouro, a
situação financeira andava complicada. Sabia que mais cedo ou mais tarde os cobradores
tomariam tudo que tinham, mas não perdia a fé em Deus, a fé que a ajudava a se levantar todos
os dias e continuar batalhando.
Enquanto caminhava, notou que as ruas estavam mais desertas que nos dias anteriores, o que
para ela não era um bom sinal.
Desde o dia em que a luz misteriosa entrou em seu quarto, sua capacidade de ver os demônios
havia aumentado. Agora conseguia identificar todos eles, incluindo os que vivem disfarçados
como homens e mulheres comuns.
Eram uma raça maldita que brotava em todos os lugares.
No entanto, a luz também trouxe uma arma. Um poder especial. Ela conseguia exorcizá-los de
volta para o buraco de onde tinham saído.
Na manhã seguinte ao evento, foi à igreja para orar e contar ao padre, em segredo, o que tinha
acontecido. Achou melhor não envolver sua mãe, isso só traria mais angústia ao seu coração.
O padre acreditou nela e disse que deveria receber aquilo como um presente de Deus e guardar
segredo de todos os demais, pois ela poderia ser penalizada por pessoas ruins de coração.
― Use o terço. ― ele disse apontando para a marca em seu braço. ― O terço que eu te
dei vai ajudá-la a canalizar esse poder que você ganhou dos céus e te ajudar a se livrar das
criaturas cruéis.
Com aquele mesmo terço, à noite, quando os espíritos zombeteiros escorregavam pelas paredes
de seu quarto e sussurravam coisas ruins em seus ouvidos, ela conseguiu mandar todos de volta
para o inferno.
Ela mal acreditou em seu poder quando terminou. E, a partir daí, entendeu que a sua missão era
se livrar daquelas pragas.
Só queria ter ganhado esse dom antes de seu pai enlouquecer e acabar se matando. Queria ter
conseguido livrá-lo desse pecado tão pesado.
Parou a caminhada e levantou um pouco a manga da blusa para olhar a marca que tinha passado
a acompanhá-la. A cruz levemente marrom ainda estava lá.
Quando perguntavam, dizia que era uma marca de nascença.
Sua mãe sabia que aquilo não era verdade, mas jamais havia questionado nada. Tinha medo
demais para se aprofundar. Preferia pensar apenas que a filha tinha sido abençoada de alguma
forma.
Abaixou a manga e juntou os braços em frente ao peito, na tentativa de se esquentar um pouco.
Tentava não olhar para os lados, mas a rua estava extremamente deserta.
Ela sabia, podia sentir, algo estava vigiando os seus passos o dia inteiro.
De fato, Lúcifer acompanhava a menina de longe. Depois de deixar Cristóvão cuidando de sua
mãe na parte da manhã, tinha se dirigido até ali para observar a garota.
Sentia o grande poder espiritual que emanava dela, no entanto, tinha que ter certeza de quanto
poderoso poderia ser, afinal, o que estava por vir era muito mais intenso do que meia dúzia de
demônios enganadores de almas.
Lahael vinha fielmente ao seu lado.
Arrastava um caixote de ferro, de onde podia se ouvir urros de ódio. Estava apreensiva.
― Acho que esse é o momento. Solte-o!
― Lúcifer... ― ela não pretendia contestá-lo, mas soltar aquela criatura seria o mesmo
que colocar aquela menina diante da morte. ― Você sabe o que tenho aqui, não é mesmo?
― Se fui eu quem te mandou trazer. ― ele a encarou e percebeu que ela queria a
confirmação ainda assim. Ele revirou os olhos e completou. ― É um Devorador de Almas. Um
dos demônios mais fortes vindos do submundo. Foram proibidos pelo pacto entre Luz e das
Trevas de atravessarem para o mundo dos humanos por se tratarem de bestas selvagens que não
obedecem ninguém. Hoje em dia alimentam-se apenas das almas fracas que os demônios não
querem e isso os tornou ainda mais sedentos. ― quando acabou de falar pareceu pensativo.
― Tem certeza de que devo soltá-lo? Se aquela menina é tão importante como diz, acho
que não deveria expô-la a tal risco. ― a caixa presa à corrente que Lahael arrastava se mexia
com uma força assustadora. Parecia saber que estava prestes a se libertar e a ansiedade o tomava.
― Confie em mim, minha querida! ― ele se aproximou e segurou uma das mãos do
demônio louro. ― Jamais deixaria que nada acontecesse com essa menina. Só quero ter certeza
da capacidade do grupo que estará do nosso lado. Acredite, eles vão enfrentar coisas muito mais
terríveis do que esse Devorador.
Lahael respirou fundo.
― Eu confio em você. ― ela disse, por fim.
Os dois foram para trás da caixa e, com apenas um movimento gracioso de mãos, Lahael abriu a
tampa que aprisionava a fera.
O que saiu era uma mistura do concreto com o abstrato.
Tinha um tom de pele tão negro, que quase se misturava com as sombras. Andava sobre quatro
patas, compridas e arqueadas. Um rabo longo e sem pelos descia de seu dorso, causando
repugnância. O corpo era do tamanho de um lobo e a cabeça lembrava a de um cachorro com
raiva. Tinha os olhos vermelhos e salivava um líquido grosso e branco. Os caninos eram tão
longos que seriam capazes de estraçalhar sem fazer o menor esforço.
Sem precisar ser ordenada, a criatura avistou a alma que se aproximava, saudável e cheia de luz,
como há muito tempo não via. Deu um rugido assustador de uma besta selvagem e partiu para
cima de sua vítima com uma velocidade inimaginável.
― Acabamos de quebrar uma das regras de trégua entre o céu e o inferno. ― Lúcifer
ponderou com calma, preparando-se para usar o seu poder caso a garota não fosse capaz de dar
conta do recado.
― E temo que essa não seja a única regra que quebraremos daqui para frente. ― concluiu
sabiamente Lahael.
Lúcifer ainda estava surpreso com a força que a menina havia acabado de demonstrar. Tinha um
poder espiritual assustador.
Ela havia criado sozinha um portal para mandar o Devorador de Almas de volta ao inferno com a
facilidade de um exorcista experiente. Isso demandava uma quantidade absurda de energia. E,
ainda assim, se levantou.
― Ela é impressionante. ― Lahael fez o comentário que trouxe Lúcifer de volta para a
realidade.
Foi quando viu que a menina não pararia por ali. Estava preparando outro ataque rápido que
visava atingir Lahael. Provavelmente por ter sentido sua aura de demônio.
― CUIDADO! ― Lúcifer segurou o demônio louro em seus braços e abriu suas asas
bem a tempo de tirá-la do ponto de ataque.
Nem imaginava o que seria de sua fiel amiga se aquela energia de purificação a tivesse atingido.
Do alto, voando nos braços daquele que seguia há muito tempo, Lahael ainda se mostrava
admirada.
― Uma bruxa. Achei que elas estavam proibidas.
― E estão. Pelo jeito as regras estão se quebrando naturalmente. Demônios com visão do
futuro, humanas bruxas. A coisa vai mesmo ficar louca. ― tinha visto o suficiente, e tinha
acabado de rasgar mais uma camisa novinha com o seu voo repentino. Não tinha mais nada para
fazer naquele lugar. Rebeca saberia se defender sozinha até que o momento chegasse.
― Vamos embora!
― Mas já? E ela?
― Ficará bem. Temos mais coisas para fazer.
Sem retornar ao solo, Lúcifer levou Lahael em seus braços para longe de Rebeca.
Rebeca soube que não havia conseguido atingi-lo, mas com certeza havia afastado aquela
energia.
Sentiu-se mais aliviada quando percebeu isso.
Estava perto de casa e sua mãe estava a aguardando. Precisava tomar os remédios.
Deu uma rápida olhada para os lados, para ter certeza de que ninguém havia visto nada. Já a
achavam estranha o suficiente, sem precisar vê-la gritando palavras enquanto empunhava um
terço.
Uma vitrine de loja refletia sua imagem. Por alguns segundos sentiu-se estranha por encarar seu
aspecto. O cabelo vermelho e curto estava todo despenteado. Aquele terço em suas mãos tornava
sua figura ainda mais desconjuntada. Com certeza ela não pertencia ao mundo das pessoas
comuns.
Guardou mais uma vez sua arma de paz no bolso da blusa e suspirou.
Recolheu todas as coisas que havia deixado cair no chão e voltou a caminhar. Agora a noite já
não parecia tão gelada, apenas silenciosa.
Capítulo 3
Alexandre estava sentado em frente à sua mesa de trabalho, no laboratório improvisado no
quintal para seus estudos em casa.
O ensino médio já tinha ficado para trás há algum tempo e estava se preparando para ser aceito
por alguma faculdade renomada, assim como tinha acontecido com seus pais.
Infelizmente estava demorando mais tempo do que havia previsto e os pais já tinham começado a
deixar bem claro o tamanho de suas decepções.
Enquanto isso, para não se sentir ainda mais inferior do que já se sentia, ele passava boa parte do
tempo trancado naquele cantinho, fazendo experiências que normalmente não levavam a nada,
mas que tinham o poder de mantê-lo ocupado e longe dos pais.
Estava pensando se valeria ou não a pena gastar tempo e material em mais uma tentativa
totalmente sem propósito, quando percebeu seu companheiro não comum ficar agitado.
― O que aconteceu, Velho?
O bom de ter envelhecido é que não precisava mais de babás, passava a maior parte do tempo
sozinho e podia conversar tranquilamente com seu amigo invisível, que não sumiu mesmo com o
passar dos anos.
― Tem algo estranho no ar lá fora. Acho que estamos sendo vigiados.
― Vigiados? ― ele foi até a porta do laboratório e saiu no quintal. Olhou em volta.
Depois voltou para dentro para continuar sua conversa em segurança. ―Está doido, não tem
ninguém lá fora.
― Ninguém que você possa ver.
― Velho, não começa. Eu já tenho a minha própria assombração para ter que me
preocupar com outras.
A criatura se calou. Permaneceu no seu lugar de costume, perto de Alexandre.
Não passou muito tempo a mãe bateu na porta.
― Querido, chegamos, venha comer alguma coisa.
Ele abriu a porta para responder de forma educada.
― Já vou, mãe. ― ele sorriu e depois voltou a se concentrar em seu trabalho quase
inexistente.
― Está tudo bem, filho?! Você anda tão pensativo ultimamente.
― Acho que me perdi, mãe. Não sei o que devo fazer. Simplesmente não sei se estou
fazendo algo bom para o mundo, ou se estou apenas vegetando.
― Filho, no mundo da ciência não temos tempo para ficar pensando se é bom ou não é.
Crie. Talvez você descubra a utilidade conforme sua obra comece a tomar forma.
― É, pode ser.
― Venha jantar logo, está bem? ― em seguida se retirou.
― Você anda muito bitolado. Talvez devesse parar de pensar em ciência um pouco. ― o
Velho respondeu.
― Não sou o único bitolado por aqui. Você mesmo esqueceu que precisava ir embora faz
tempo.
― Você mora em uma cidade linda, cheia de praias, cheia de vida e nunca sai desse
bendito laboratório. Podia ir pegar um sol de vez em quando.
― Não preciso, minha pele está ótima. Meu bronzeado é natural. ― ele fez questão de
mostrar os braços com cor de jambo. ― Além disso, eu não gosto de praia, de areia, tudo isso é
uma baita perda de tempo. Estou muito bem aqui, no meu ar-condicionado, fazendo o que eu
gosto.
― Deixando de viver.
― Ai, Velho, para de me atrapalhar.
Alexandre sentia que não tinha tempo para coisas de jovens bobos. Tinha que estudar e provar
para seus pais que podia ser tão bom quanto eles. Principalmente para seu pai.
― ALEXANDRE! ― como se adivinhasse os pensamentos do filho, o homem gritou da
porta de casa. ― Venha logo jantar ou sua mãe vai me deixar louco!
O rapaz se levantou da cadeira em um salto. Nunca se atrevia a desrespeitar uma ordem direta do
pai.
― Estou indo! ― gritou de volta com as pernas tremendo de leve.
Abriu a porta e notou que havia escurecido.
Quando entrou no laboratório naquele dia, o sol ainda estava quente sobre sua cabeça.
― Puxa, nem vi o tempo passar. ― respirou fundo e se espreguiçou.
Em seguida, colocou os pés para fora, fechou a porta e a trancou. Seu estômago começava a dar
sinais de vida, então, estava mesmo na hora de comer alguma coisa.
O Velho já estava ao seu lado. Ele nunca ia muito longe e Alexandre tinha se acostumado a
conviver com ele.
Lúcifer o observava. Tinha um sorriso suave nos lábios.
― Não vai tentar nada para testá-lo? ― Lahael perguntou curiosa.
― Não será necessário. Ele ainda tem muito que aprender. Não está tão desenvolvido
quanto a garota, mas logo chegará lá.
― Ufa, ainda bem que não teremos que usar nada que possa prejudicá-lo. Estava ficando
com medo do que poderia acontecer em uma dessas loucuras.
― Eu sei o que estou fazendo, Lahael. Não pense que sou imprudente. ― embora tenha
sido firme nas palavras, seu tom continuava calmo. ― Além do mais, ele tem sua própria força
espiritual, diferente da garota.
― Não parece tão forte assim. É só um nerd magrelo e necessitado de uma garota o
quanto antes.
― Nunca julgue alguém somente pela aparência. Um demônio como você já deveria
saber disso.
― Não estou julgando! ― Lahael fez um bico de indignação para o comentário de
Lúcifer. ― Apenas acho estranho que ele não demonstre tão claramente quanto a menina.
― Está bem, você me convenceu. Vamos fazer um teste! ― ele decidiu de repente.
― O que?! Mas eu não queria... Achei que... Oh, droga! Você fez isso de propósito, não
foi?
Ele ignorou o comentário, apesar de ter sorrido.
― Será um teste simples. Assim saberemos o quanto o poder espiritual dele está elevado
e você terá a resposta para as suas dúvidas.
― Se for algo como o que você fez antes, é melhor nem... ― ela fez menção de se afastar
do amigo.
― Fique calma e confie em mim.
Ela odiava quando ele falava daquele jeito. Era impossível negar qualquer coisa a ele quando
dizia aquilo, especialmente para ela.
― Está bem! ― ela respirou fundo. ― O que pretende fazer?
― Quero que tente se aproximar da casa.
― Não estou entendendo.
― Apenas faça o que estou pedindo.
Lahael continuava sem entender aonde Lúcifer queria chegar. Devia ir até lá, tocar a campainha e
dizer o que? Oi, tudo bem, sou um demônio e queria ver se seu filho é forte o suficiente para
enfrentar algo terrível que está por vir.
Não fazia sentido.
De qualquer forma, atendeu ao pedido do Anjo Caído e começou a caminhar em direção a casa.
O rapaz em questão ainda estava na porta do laboratório. Tinha acabado de trancá-lo e, nesse
momento, parou um segundo para observar as estrelas.
Enquanto se aproximava, Lahael podia sentir as forças espirituais daqueles que estavam na casa.
Eram de fato céticos, o que os tornava mais difíceis de serem alcançados. Mas o garoto era
diferente. Embora não assumisse, tinha medo daquilo que não sabia explicar através de uma
fórmula matemática ou de uma experiência científica.
Portanto, ele era atingível. Ele poderia ser alvo das energias que o rodeavam. Ele tinha o corpo
aberto.
Havia alguém mais com ele, ela podia sentir também, alguém sem forma física, alguém que não
pertencia a esse mundo.
Quando parava para cheirar as almas humanas, elas a atraíam magneticamente. Sentia
necessidade de tocá-las, de senti-las, até mesmo de invadi-las para experimentar um pouco do
prazer da carne.
Tinha vergonha daqueles sentimentos, não gostava de se sentir assim, no entanto, muitas vezes
não podia evitar. Estava em sua essência ser assim. Tratava-se de instinto.
O rapaz ainda estava ali, no quintal da casa, e se aproximar dele começou a ser uma necessidade
física. Queria experimentar um pouco daquele corpo e mostrar a ele que podia ser um homem
desejável. Essa necessidade fez com que começasse a correr até ele.
Quando se atreveu a se aproximar do portão - que pretendia arrombar, aliás - uma força
esmagadora tomou conta de seu corpo e a forçou a se afastar.
Depois a jogou com violência para longe da propriedade.
Lúcifer a aparou.
― E então, o que me diz? ― ele perguntou sorrindo.
― Foi aquele menino quem fez isso? ― ela retrucou assustada e ainda envergonhada por
seus instintos.
― Sim, embora ele não tenha nem ideia de como, mas foi ele quem fez isso sim.
― Puxa, acho que você tinha razão. ― Lahael ainda estava atordoada. A pressão só não
estava mais forte porque o coração do garoto apresentava muitas dúvidas e medos. ― Está
formando um time e tanto.
― Eu sei.
Lúcifer se afastou de Lahael e tornou a caminhar.
― Hei, não me deixe para trás.
― Vamos logo, então. Temos uma longa viagem para fazer e uma difícil tarefa a
cumprir.
― Qual?
― Convencer Cristóvão de sua missão.
Sem dizer mais nada, Lahael acompanhou Lúcifer.
Alexandre sentiu um frio intenso na espinha quando algo tentou atravessar para dentro de sua
casa. É claro que isso ele não sabia. Não via, não escutava, apenas sentia.
Odiava quando tinha essas sensações.
Isso era coisa para pessoas supersticiosas, coisa que não queria ser, que não podia ser. Era um
cientista agora e para aquele arrepio só existiam duas explicações: ou estava doente ou o tempo
estava mudando.
No entanto, por algum motivo, nenhuma das opções o satisfaziam naquele momento. No fundo
estava com medo.
Olhou para o Velho, ele sorria. Parecia satisfeito.
― Você deveria valorizar mais os seus talentos.
― Fica quieto. Não há nada acontecendo aqui. Não há nada para acontecer aqui. Estou
apenas eu, em meu quintal. Não há mais nada neste lugar, além de você, para variar.
Sua respiração estava acelerada. Não sentia isso desde que era criança e se via obrigado a ficar
sozinho no quarto controlando seus medos para que o pai não gritasse com ele o chamando de
covarde.
Decidiu que pensaria nisso depois.
Tinha que entrar em casa e jantar com os pais, antes que o homem gritasse seu nome novamente,
furioso por ter sido ignorado no primeiro pedido.
Capítulo 4
Cristóvão estava odiando ficar naquele lugar.
Não via seu padrinho há dias e, para variar, ele nunca estava quando era realmente necessário.
Lahael tinha passado mais cedo para abraçá-lo, tinha tentado consolá-lo de uma forma estranha,
mas ainda assim carinhosa. Pelo menos ela tinha tentado. Disse que avisaria Samael e pediria
que ele viesse o quanto antes. E se foi.
As pessoas, que o observavam ora com piedade, ora com condenação, estavam incomodando.
Queria apenas sair correndo sem olhar para trás.
Conseguia ver alguns anjos e demônios circulando em volta. Fazendo o seu trabalho, que deveria
ser árduo em um cemitério. Alheios à dor dos humanos que ficaram sem seus entes queridos,
simplesmente continuavam seu caminho fazendo tudo como se fossem apenas robôs
programados.
Malditos!
Estava ali para ficar de olho em seus movimentos perto do caixão, se algum deles se atrevesse a
se aproximar, aí sim teriam noção de com quem estavam mexendo.
Talvez as pessoas o mandassem internar, mas e daí? Não faria muita diferença agora.
Esse pensamento corroía sua mente como um animal selvagem, enquanto tentava encontrar
milhões de razões, pouco convincentes, para não sentir o que estava sentindo.
Para as pessoas a sua volta era impossível definir o que seu olhar estava transmitindo: medo,
indiferença, tristeza?
Seu coração não transparecia com tanta facilidade os seus sentimentos e ele preferia que fosse
assim.
Agora o padre dizia as últimas palavras e finalmente o caixão descia para sua última parada. Um
lugar de onde Simone jamais sairia para puxar sua orelha quando aprontasse alguma coisa ou
para passar a mão em seus cabelos quando percebesse que ele estava triste.
Cristóvão se sentia traído.
Traído pela mulher que o havia criado e que agora o deixava daquela forma repentina. Traído por
seus sentimentos.
“As pessoas simplesmente nos abandonam. Vão embora ou morrem... sempre do mesmo jeito...
não vale a pena nos apegarmos a elas. Você já sabia disso, Cristóvão!”
Ele se repreendeu mentalmente.
Algumas pessoas naquele lugar choravam tão alto que faziam um barulho irritante, outras
simplesmente se mostravam resignadas diante das “leis de Deus”, outras estavam comovidas.
Aquilo tudo o deixava angustiado.
Odiava cemitérios, odiava sentimentalismo barato, odiava saber que metade das pessoas que
choravam sobre o corpo de Simone nem sequer haviam se dado ao trabalho de visitá-la quando
começou a apresentar sinais de doença.
Quando a primeira pá de terra começou a cobrir o caixão ele simplesmente virou as costas e saiu,
sem dar atenção aos comentários das pessoas, indignadas com sua falta de respeito.
E daí que não ficaria para ver a terra cobrir todo o caixão?
Já não bastava tê-la perdido?
Ainda tinha que ficar para ver aquela cena de terror até o fim e com isso mostrar que realmente a
respeitava?
Tinha certeza que não. Ela não o obrigaria a isso.
Foi embora sem olhar para trás.
O fato é que Simone estava morta, não havia mais ninguém com quem pudesse contar. Ela não
tinha parentes, ele não tinha amigos.
Desde aquele seu episódio estranho entre sonho e realidade passou a ver coisas que não queria, a
ouvir demais e, então, se tornou extremamente caseiro. Não fez amigos durante sua vida, eles
sempre traziam problemas.
O lado bom disso é que passou a conhecer melhor Simone e deu alguns anos de tranquilidade
para a mulher.
A casa que antes dividiam agora era sua, um advogado havia dito isso antes do enterro, era o que
constava no testamento da sua cliente.
Não que se importasse muito com a casa, até gostava dela e não se surpreendeu com a decisão de
Simone, mas sabia que ficar ali traria com força o peso da solidão.
Quando abriu a porta da casa e entrou, pela primeira vez, sem ter a companhia da velhota que
sempre o esperava vendo televisão, teve certeza absoluta disso.
Sentou-se no sofá com três caixas de cerveja de um lado e vários maços de cigarro de outro.
Evitava esse tipo de coisa quando Simone estava por perto. Preferia fumar e beber no quintal
para não incomodá-la, mas agora não tinha mais com quem se preocupar.
Deveria se sentir feliz, estava finalmente livre, mas não era esse o sentimento.
Começou a virar o líquido das garrafas para dentro de sua garganta com rapidez, e a cada golada
dava um trago no cigarro que acompanhava.
Em apenas uma hora já tinha perdido as contas de quantas garrafas de cerveja tinha entornado,
embora tivesse certeza de que haviam sido mais de vinte.
Pensava que talvez devesse ter comprado algo mais forte. Algo que o levasse também, que o
fizesse esquecer que teria que enfrentar a vida daqui para frente. Trabalhar, olhar e interagir com
as pessoas, ver os demônios e os anjos, essas coisas insuportáveis.
Quanto aos cigarros, havia pelo menos cinco maços amassados na mesinha de centro, onde havia
repousado seus pés nesse momento.
Sentia-se embriagado. A sensação até era boa, mas não ótima. Pelo menos tornava tudo
morbidamente divertido.
E pensava nisso porque algo o observava e ele sabia. Estava atrás dele, na entrada do quarto de
Simone.
Cristóvão começou a rir, exatamente como um bêbado faz nestes momentos em que não quer
entender o que está acontecendo.
― Olha só quem resolveu aparecer. Pelo jeito você gosta de se livrar de situações
desconfortáveis, não é, padrinho? - o tom de voz foi debochado, mesmo falando embaralhado.
― Não esperava que a doença progredisse tão rápido. Sinto muito. ― na verdade,
Lúcifer sabia que as coisas estavam começando a ficar fora de controle e agradeceu ao Pai por
não precisar se envolver em todo aquele sentimentalismo. Gostava de Simone, mas não fazia
ideia de como poderia consolar alguém em um momento como aquele.
― Quem é você, Samael? Está pronto para me responder essa pergunta finalmente? ―
Cristóvão ainda não havia se virado e nem pretendia. Não queria encará-lo.
― Não importa quem eu sou, mas sim quem você é. Acha que vai melhorar as coisas se
morrer de câncer de pulmão ou úlcera?
― Talvez não, mas pelo menos ninguém vai precisar se incomodar comigo.
― Você acha que está agindo de forma correta? Só está demonstrando mais uma vez a
sua fraqueza e o seu egoísmo.
― QUEM É VOCÊ PARA ME CHAMAR DE EGOÍSTA?!
― Alguém que já foi fraco e egoísta uma vez, e que paga até hoje por isso.
Cristóvão deu de ombros.
― Então, não me enche o saco! Já ouviu falar em: cada um com seus problemas? ―
disse, por fim, levando o gargalo de mais uma garrafa à boca.
Um vento sobrenatural e furioso invadiu a sala e o sofá onde Cristóvão estava sentado
simplesmente foi virado de ponta cabeça.
O rapaz, com o susto, permaneceu caído no chão, com os olhos embaçados pela bebida e com a
respiração rápida e dolorida. O ar estava frio e parecia entrar gelo em seus pulmões em meio a
uma manhã de verão do litoral.
Antes que pudesse pensar em se levantar, o homem se aproximou e pisou com força sobre seu
estômago.
― ACHA MESMO QUE EU ME ARRISQUEI ATÉ HOJE PARA TE MANTER VIVO
E VOU DEIXAR VOCÊ SE MATAR COM UMA BEBIDA TÃO INFERIOR COMO ESSA
CERVEJA E ESSES CIGARROS IDIOTAS?!
Cristóvão ainda conseguia ver o rosto do seu padrinho, bem ali, sobre ele, com uma cara furiosa,
no entanto, em suas costas havia imensas asas brancas esticadas e assustadoras. Os olhos
estavam vermelhos.
Com apenas um movimento das mãos, Lúcifer explodiu todas as garrafas de cerveja que
restavam e incinerou os últimos maços de cigarro.
― Se quer mesmo morrer, pelo menos faça isso com honra! ― a voz agora parecia a de
um trovão.
Cristóvão fechou os olhos para não ver mais nada. Queria acreditar que tudo não passava de um
pesadelo horrível.
A força do pé sobre seu estômago sumiu.
― Cristóvão, vou aguardá-lo. Por favor, não demore. As coisas serão ainda mais
complicadas se você desistir desse jeito.
O ar já não estava gelado e o único som que Cristóvão ouvia na sala era o do seu próprio coração
batendo descompassado.
O rapaz abriu os olhos devagar.
Não havia mais ninguém em sua sala, pode perceber isso mesmo embriagado.
Deixou a cabeça girar um pouco para o lado, onde os estilhaços das garrafas cobriam o chão,
dando a impressão de que uma briga pesada tinha acontecido ali. O cheiro da cerveja estava
forte.
Não conseguia levantar-se, estava sem forças. Lágrimas começaram a escorrer.
Seu corpo cansado desmaiou.
Alexandre não estava entendendo mais nada, só estava agindo por impulso, uma coisa que
raramente fazia.
― O que você vai fazer? ― perguntava o Velho, tentando manter o pique ao seu lado.
― Sei lá. Empurrar aqueles idiotas dali?
Desde que desceu daquele táxi - o que havia de certa forma sido um alívio, pois o taxista era um
homem extremamente mal-humorado e de pouca educação - esteve pensando se não seria melhor
voltar imediatamente para sua casa.
Já tinha ligado para os seus pais do aeroporto mesmo avisando que estava tudo bem e que em
breve estaria instalado, mas sempre havia a possibilidade de mudar de ideia.
Que lugar louco era aquele?
Logo de cara já havia uma briga séria acontecendo e não tinha policiais por perto para parar os
dois homens que começavam a se matar.
As pessoas se amontoavam em volta extremamente decididas a assistir a um massacre e ninguém
parecia verdadeiramente preocupado com a situação.
Só um rapaz se mostrou levemente diferente.
Era mais ou menos da mesma altura que ele, fumava um cigarro tentando inutilmente parecer
calmo e observava tudo à sua volta com certa urgência.
Por alguns segundos chegou a pensar que o rapaz pudesse ser algum assaltante tentando se
aproveitar da situação, mas, quando seus olhos se encontraram com os dele, soube
imediatamente que estava errado.
Ninguém havia dito nada, o rapaz não havia direcionado sequer um sorriso, mas sabia que ele
não desejava fazer nenhum mal e que não precisava se preocupar com isso.
Alexandre ficou perdido em seus pensamentos, mesmo quando o rapaz que observava desviou os
olhos e passou a olhar em direção à igreja que estava do lado oposto.
Quem seria ele? Por que não estava agindo como os outros?
O rapaz, de repente, fez cara de assustado, como se acabasse de receber uma notícia ruim e,
vagarosamente, levantou seus olhos para o topo do prédio que estava à frente da multidão.
Alexandre não perdeu tempo e olhou na mesma direção.
Seu mundo se transformou. Viu o para-raios se soltando, fazendo posição de ataque a todas
aquelas pessoas que estavam envolvidas na briga logo abaixo.
E o mais assustador? Ele parecia levitar sozinho.
Rapidamente olhou para o rapaz que havia dado a dica.
Não precisava dizer mais nada, seus olhos já disseram tudo, eles precisavam avisar a todos o que
estava para acontecer.
Agora estava ali, gritando aos quatro ventos, com um fantasma do seu lado, pedindo para as
pessoas parassem aquela briga e se salvassem de uma tragédia anunciada.
Rebeca sabia que não era a primeira vez que havia uma briga por ali.
Pelos ruídos, a confusão havia atraído a atenção de muitos curiosos, mas nada daquilo era
novidade.
Só que dessa vez havia demônios demais envolvidos.
Quando sentiu o ar da rua em seu rosto, um arrepio percorreu seu corpo. Havia uma energia
maligna extremamente poderosa presente naquele lugar, algo muito ruim estava para acontecer.
Não demorou a localizar a briga.
Um número significativo de pessoas estava próximo e isso não era um bom sinal, com certeza.
Ela se atentou a observar possíveis presenças no lugar. Até conseguia enxergar alguns pequenos
demônios em volta, mas não era deles que vinha a energia. Aqueles eram apenas incitadores.
Seus olhos foram de repente atraídos para o lado.
Um rapaz estava a observá-la e algo nele era assustadoramente intimador.
Em qualquer momento teria dito que era só mais um jovem perdido, que estava ali fumando seu
cigarro. Só que não diria isso dele, não daquele rapaz que trazia consigo um espírito poderoso.
O rapaz desviou os olhos dela e mais uma vez atentou-se à briga que acontecia à sua frente.
Notou que em certo momento os olhos claros mostraram pavor. Havia a sombra de um homem
atrás dele. Um homem muito bem-vestido, mas que não era humano. Esse homem sussurrou no
ouvido do rapaz e, em seguida, apontou para o topo do prédio que estava a sua frente.
A garota rapidamente olhou na direção apontada e finalmente descobriu de onde vinha tamanha
energia ruim. No topo do prédio havia demônios muito mais fortes e violentos do que aqueles
que incitavam o povo no chão.
Dois deles empurravam com força o para-raios imenso em direção à multidão lá embaixo.
Quando tornou a olhar o rapaz misterioso, o homem de rosto bonito já havia desaparecido e o
rapaz a observava com um olhar inquietante.
Sabia que não precisaria dizer nada, os dois estavam pensando a mesma coisa, era preciso avisar
com urgência aquelas pessoas que estavam prestes a serem atingidas.
Junto dele, e de mais um rapaz que estava do outro lado, Rebeca saiu gritando e pedindo para
que todos se afastassem daquele prédio imediatamente.
Os gritos de aviso surtiram efeito, as pessoas olharam para cima, mais por curiosidade do que por
crença nos gritos dos três malucos.
Imediatamente a correria começou.
Homens e mulheres correndo de um lado para o outro tentando salvar a sua vida de uma forma
extremamente egoísta.
Os três se encontraram no meio dessa confusão, sem saber muito bem o que fazer.
― O que faremos? Será que dá para impedir aquele troço de cair? Chamar os bombeiros,
talvez? ― foi a conclusão de Alexandre.
― Temos que dar um jeito de controlar a situação por aqui primeiro. Não sei se os
bombeiros conseguem chegar antes daquilo descer. ― Cristóvão havia jogado seu cigarro fora,
mas já tinha se arrependido.
Alguns demônios ainda estavam no lugar e exigiam que as pessoas ficassem onde estavam,
olhando para o objeto que cairia. Elas estavam petrificadas, hipnotizadas.
― Por que esses tontos ainda estão parados aí? ― Alexandre estava indignado.
― Você não os vê, por isso não entende. ― Rebeca finalmente falou. ― Tenho uma
ideia. Você. ― Apontou para Alexandre. Ajude os desorientados, arraste-os daqui.
Provavelmente vão chiar, mas parecem hipnotizados demais para lutar contra. Os demônios
erraram um pouco na dose dessa vez. Devem estar desesperados por isso.
― O que?
― Nada. Só faça isso. E tente avisar aqueles que estão passando por aqui ainda e que
ainda não entenderam a situação.
― Por que eu? ― perguntou, se sentindo estranho por estar recebendo ordens de uma
garota que nem conhecia.
― Você me parece mais organizado. ― ela respondeu com sinceridade. ― Além disso,
você tem companhia, ele pode tentar te ajudar.
Alexandre ficou quieto por um momento e olhou discretamente para o Velho. Ela estava mesmo
se referindo a ele, ou achou que ele e o outro rapaz estavam juntos? Ficou confuso e assustado.
O Velho deu de ombros.
― Estou entendendo tanto quanto você. Mas acho que não temos tempo para isso.
― Está bem. Tem razão.
― E você... ― os olhos dela se encontraram com os do Cristóvão. ― Vem comigo,
preciso da sua ajuda!
― O que você vai fazer?
― Vem logo!
Alexandre achou que no meio daquela confusão ninguém iria reparar em seu hábito de falar
“sozinho”, então, assim que os dois se afastaram, indagou.
― Cara, ela estava mesmo falando de você? Ela te viu?
― Vai ajudar as outras pessoas, Alexandre, pensamos nisso depois.
― Odeio quando você tem razão. ― e ele correu para tirar os zumbis dos seus lugares,
completamente dopados sabe-se lá de que. ― Isso só pode ser algum tipo de pesadelo.
Enquanto isso, Rebeca se posicionou bem embaixo do ponto de ataque dos demônios.
― O que vai fazer? ― Cristóvão começou a achar que a moça era uma maluca e que não
deveria tê-la seguido.
― Você consegue vê-los também, não é?
O rapaz sentiu um arrepio. Então ele não era o único.
― Apenas não permita que eles cheguem perto de mim e que tentem me impedir de fazer
o que vou fazer, está bem? Consegue ser o meu escudo por um tempinho?
― Por que eles tentarão te atacar? Estão ocupados atazanando todos em volta.
― Você vai entender.
Quando ela tirou do bolso um terço, ele teve certeza de que ela era uma maluca.
― Ah, não acredito... ― ele já fazia menção de se retirar. Uma oração era o que ele
menos queria escutar no momento.
Ela o segurou pelo braço.
― Escute! ― os olhos dela eram extremamente expressivos e ele se sentiu sem graça. ―
Confio em você. Não sei bem por que, e talvez seja melhor nem saber, mas confio em você.
Ele acabou concordando, mais pela força com que ela o olhou do que por acreditar que aquilo
surtiria algum efeito.
― Farei o que me pede, mas não sei como poderei ajudar.
― Você saberá...
Imediatamente a garota juntou as mãos em volta do terço e começou sua oração.
O rapaz não acreditava muito nessas coisas, no entanto, sentiu naquele momento uma estranha
energia o envolver também, como se aquela oração o inspirasse.
Não demorou muito para que sentisse algo se aproximando.
Um dos demônios. E estava muito nervoso. As longas garras nas mãos longas e manchadas
estavam correndo em direção à garota com o terço. O que quer que ela estivesse fazendo, com
certeza já tinha surtido algum efeito.
Ok. Ele podia vê-los, podia sentir sua carga cheia de ódio.
Outros começaram a sentir a garota e se aproximavam também. Só que como poderia impedir
aquela corja de se aproximar demais?
― O que faço agora?
A voz voltou a tocar seu coração.
“Não se desespere, garoto. Você pode vencê-los. Sempre pôde. São fracos como formigas, são
criaturas muito abaixo do seu poder. Vamos lá! Destrua-os!”
― Você de novo? Eu não consigo fazer nada disso, não entende? Isso vai além da minha
compreensão. Eu nem sei como consigo ver esses malditos.
“Use suas mãos. Nelas está o poder que precisa para vencer aqueles que querem destruir”.
― Não posso. Não sei nem do que está falando. Por que você não está aqui comigo,
caramba?
“Faça algo... Ou eles também irão sofrer as consequências”.
Ele olhou para o rapaz que tentava, a todo custo, arrastar as pessoas e levá-las por um melhor
caminho, sem desespero.
Era mesmo alguém impressionante, pois ele conseguia manter um tom de paciência e
organização mesmo diante de uma situação como aquela.
Depois olhou para a garota que continuava a orar, ela havia dito que confiava nele, mesmo sem
conhecê-lo. Era forte e corajosa, sem nenhuma dúvida. Uma aura cheia de cores estava em volta
dela naquele momento.
Tinha todo o acesso para simplesmente fugir e deixar aquela confusão para lá. Não era um
problema dele, ele sequer tinha começado aquilo. Mas sabia que não podia abandoná-los nessa
situação.
Pensou em Simone, pensou na tal missão e, sem nem mesmo se dar conta, olhou para o braço
com a marca da espada. Uma marca de guerreiro que ele não pediu para ter, mas que estava ali.
Agora era tudo ou nada.
― Vocês não vão encostar um dedo nela, seus imundos! ― ele movimentou as mãos
diante de seu corpo e sentiu que conseguiu cortar o ar. Fez de novo. Estava criando lâminas
invisíveis com os seus braços.
Um sorriso escapou de seus lábios.
― Talvez essa marca idiota finalmente faça algum sentido, afinal.
E ele simplesmente passou a fatiar cada demônio que se aproximava, fazendo com que cada um
dos pedaços se transformasse em cinzas que desapareciam com o vento.
Enquanto ele batia de frente com os pequenos demônios insistentes, Rebeca finalmente
terminava a oração.
Quando abriu as mãos, o terço brilhava sobrenatural, estava totalmente carregado. Ela precisava
de um golpe forte para aqueles maiores que estavam no alto do prédio e isso levava um tempo.
Dificilmente enfrentava aquele tipo de demônios, aliás, nunca os tinha visto entre os humanos.
Ela o ergueu até um ponto em que pudesse alcançar pelo menos uma das criaturas que tentavam
derrubar o para-raios.
― Adeus, seus desgraçados!
Um raio finalmente se desprendeu do terço e atingiu seu objetivo. Os dois que estavam ali não
tiveram nem mesmo tempo de fazer escândalo. Quando se deram conta tudo já havia acontecido.
A garota se sentiu feliz com sua vitória, mas não teve tempo para comemorar. Os demônios que
haviam sobrado, diante da derrota, não demoraram a revidar o ataque.
Teria sido atingida, talvez de uma maneira extremamente física, se não fosse pelo rapaz das mãos
de lâminas, que saltou em sua direção.
A garota foi jogada ao chão e só então percebeu o que havia acontecido. O rapaz, que havia a
protegido desde então, rebateu o ataque com o movimento de suas mãos. Estava usando o efeito
do ar com a força e rapidez de uma espada.
O demônio que atacou aparentemente era o chefe daquela gangue.
Olhou para o garoto que o desafiou diretamente nos olhos e, em seguida, sentiu um arrepio em
sua espinha.
― Mate-o agora! ― foi a única ordem que conseguiu dar.
Um outro demônio, com pelo menos oito braços visíveis, subiu muito rápido até o topo do prédio
e terminou o serviço. O imenso emaranhado de aço caiu em uma velocidade vertiginosa em
direção ao chão.
Cristóvão era o alvo. Ele era o ponto de impacto.
A garota gritou assustada.
Alexandre, que até então mantinha a ordem e conseguiu tirar todas as pessoas da área de perigo,
viu a cena em pânico e correu até Cristóvão.
― Garoto, o que você vai fazer? ― foi a última coisa que o Velho gritou.
Cristóvão, que estava prestes a ser esmagado em poucos segundos, não conseguia pensar em
mais nada. Ouviu o grito da garota, ouviu os apelos do rapaz que pedia para sair dali, no entanto,
sentia que só poderia ser salvo por um milagre.
Fechou os olhos e esperou morrer - de novo.
Ouviu o som horrível que o para-raios fez quando se chocou contra o chão e escutou vários
gritos vindos de todos os lados. Não sabia bem ao certo o que havia acontecido e estava com
medo de abrir os olhos e descobrir.
“Muito bem! Vocês conseguiram”.
A voz mais uma vez. Dessa vez ele soube que não estava morto, não ainda.
Abriu os olhos e o céu estava bem azul.
Estava caído no chão e o para-raios não estava sobre seu corpo. Na verdade, quem estava sobre
seu corpo era o rapaz que havia conhecido no começo da confusão.
― O que aconteceu?
Ele se ergueu devagar, o rapaz tinha desmaiado.
A garota não demorou a se aproximar.
― Graças a Deus! Graças a Deus está vivo! E ele?
― Está apenas desmaiado.
― Não dá para acreditar.
― O que aconteceu?
― Eu tinha certeza de que você morreria quando esse negócio caiu. Mas então esse cara
veio correndo e se colocou na sua frente. Não sei como. O para-raios errou por muito pouco o
local onde vocês estavam. Foi como se uma leve rajada de vento pudesse ter mudado seu curso.
― Ou como se um milagre tivesse acontecido…
― É. Ou isso. Vocês voaram com a pressão da queda, mas pelo jeito estão bem. ― os
olhos dela estavam um pouco úmidos. ― Eu fiquei tão assustada. Nunca vi eles tentarem
machucar pessoas fisicamente como hoje.
― Fique tranquila. Estamos bem.
O som de sirenes se aproximava.
― A polícia. Vamos embora antes que cheguem. ― ela se levantou e pegou as malas do
rapaz do chão. No meio da confusão ninguém havia se preocupado em roubá-la, o que tinha sido
uma sorte.
Cristóvão segurou a sua mochila.
― Por quê? ― ele parecia intrigado. Nunca gostou da polícia, só que queria que ela
tivesse aparecido mais cedo para ajudá-los.
― Porque não temos nada para explicar. Ou temos?
Pensou bem nas palavras dela. Como explicar que havia sido avisado sobre o problema com o
para-raios por uma voz misteriosa que falava aos seus ouvidos e que haviam lutado contra
demônios para proteger a todos?
Ele se ergueu também e colocou o garoto desmaiado em suas costas.
― E para onde vamos?
― Para minha casa. Até essa confusão toda acabar.
― Qual seu nome, garota?
― Rebeca. E o seu?
― Cristóvão.
Os dois começaram a caminhar.
― Espera um pouco. E aí, tio, você vem com a gente?
Cristóvão olhava diretamente para o Velho, que se surpreendeu com o chamado.
― Ah, sim, é claro, eu sempre vou aonde o Alexandre está.
― Ótimo, agora sabemos o nome dele também. Vamos nessa então.
― Você sabe que ele não é humano, não é? ― Rebeca comentou.
― É claro que eu sei, mas não parece ser um demônio também, e parece gostar bastante
do nosso amigo aqui. Além do mais, você nem sabe se pode mesmo confiar em mim, Rebeca.
― Não sei, sinto que era para nos encontrarmos. Nada disso foi coincidência.
No resto do caminho ninguém disse mais nada.
Capítulo 16
Alexandre estava sentindo sua cabeça pesada.
Se lembrava um pouco do que havia acontecido, mas nada que justificasse tamanho cansaço.
Lembrou-se de quando percebeu que o rapaz fumante seria esmagado pelo para-raios e tomou a
louca decisão de se colocar entre os dois, como se isso fosse resolver todos os problemas do
mundo.
Escutou o Velho gritando. Havia sido uma ideia estúpida, sem dúvida.
A última coisa que sentiu foi uma forte pressão na cabeça, provavelmente a junção de todo
aquele estresse de uma única vez.
Mas agora que conseguia se mexer novamente e sentir cada pedacinho de seu corpo dolorido,
tinha certeza de que não tinha morrido no impacto.
Seus olhos estavam fixos em um teto branco encardido de possíveis infiltrações de água e que
não via há muito tempo uma pintura nova.
― Onde eu estou?
O Velho rapidamente se colocou ao seu lado. Estava com os olhos grandes e lacrimosos de
preocupação.
― Oi, Velho. Pelo jeito nem essa pancada na cabeça foi suficiente para deixar de te ver,
não é?
O homem fez uma careta, mas parecia mais aliviado do que bravo por ouvir o rapaz falar.
― Até que enfim você acordou.
A voz que falava com ele, longe de ser áspera como a do Velho, parecia música para seus
ouvidos.
Deixou que seus olhos procurassem devagar a dona da voz e, em meio a uma mobília gasta e
espalhada sem muito cuidado, um anjo de cabelos vermelhos curtos fazia brilhar tudo à sua
volta.
Era a moça que tinha pedido que ele ajudasse as pessoas, que as organizasse.
Ela já era bonita assim antes e ele não tinha percebido?
― Espero que tenha conseguido descansar. ― ela deu um sorriso cansado.
― Quem é você?
― Já se esqueceu de mim? Estava junto com você e com aquele outro garoto no meio da
confusão.
― Eu lembro, mas… O que está acontecendo? Onde estou?
― Na minha casa.
― Deveria ter mais cuidado com quem você traz para a sua casa. Qual seu nome?
Ela riu antes de responder.
― Rebeca. E o seu?
― Alexandre.
― E o seu amigo? Como se chama? Tentamos descobrir, mas ele se recusa a falar. Acho
que está com medo.
― Que amigo? ― Alexandre sentiu um frio na espinha. Será que? Não, não podia. Ou
podia?
― Ué, esse senhor que está te acompanhando. Ele não é seu amigo?
Ela estava olhando para o Velho? Alexandre o olhou espantado e ele simplesmente demonstrou
também não estar entendendo nada.
― Eu o chamo de Velho, porque desde que o conheço ele sempre foi assim, um velhote.
― Eu não tenho nome.
― Olha só, agora resolveu falar.
Alexandre estava assustado. Ela não somente o vê, como escuta também. Será que no fim das
contas estava mesmo morto?
― Eu não estou acreditando. Você consegue mesmo vê-lo?
― Todos nós conseguimos. ― Cristóvão estava na porta do quarto observando a cena. ―
Que bom que você está bem. Não queria ter que me sentir culpado por ter te matado ou alguma
coisa assim.
― Você também? Eu estou ainda mais confuso. Tem certeza de que não estamos todos
mortos?
― Ah, pode ter certeza de que eu saberia se estivéssemos. ― Rebeca estava tentando
ajeitar algumas imagens de santos no armário em volta.
― Ninguém nunca me viu antes, só o Alexandre. ― o Velho dessa vez falou por si.
― Ainda não sabemos direito o que você é, mas com certeza nenhuma pessoa “normal”
seria capaz de te ver. Deve ser um fantasma ou alguma coisa do tipo. ― Cristóvão estava com
um cigarro na mão. Rebeca tinha o proibido de acender lá dentro, então estava brincando um
pouco com o objeto antes de sair para fumar.
― Fantasmas não existem. ― Alexandre rebateu.
― Interessante você dizer isso quando tem o seu próprio fantasma de estimação.
― Ele não é um fantasma, é só…― se engasgou com as próprias palavras. ― Parte da
minha imaginação.
― Uau! Interessante. Eu e a Rebeca devemos ter a capacidade de ler mentes então, já que
estamos enxergando - e conversando - com algo que foi criado pela sua cabeça.
Alexandre se sentiu irritado por não ter muitos argumentos. Era um cara de ciência, não queria
ficar debatendo sobre o que existia ou o que deixaria de existir. No entanto, o fato de as duas
pessoas naquele quarto conseguirem enxergar o Velho o deixava sem defesas.
― Vocês estão zombando de mim. Me viram falando sozinho lá na praça e agora querem
tirar um sarro.
― Eu não perderia tempo com piadinhas. ― Rebeca comentou.
― Alexandre, acho que eles estão falando a verdade. Estão olhando para mim.
― Provem!! Diga alguma coisa, Velho, alguma coisa que somente eu posso saber. Algo
da minha infância, sei lá. E quero ver eles replicarem.
O homem ficou sem saber o que falar por uns minutos. Precisava ser algo muito marcante. E,
então, soube exatamente qual deveria ser o assunto. Quase como um sinal.
― Quando Alexandre era criança, uma pequena luz prateada entrou no quarto dele. Ele
achou que fosse uma estrela cadente ou algo assim - foi fofo na verdade. Aquela pequena luz
entrou no braço dele e formou um tipo de cicatriz, uma mancha que ele carrega até hoje em seu
braço. Tem uma forma arredondada. Os pais nunca acreditaram nele. E ele tentou não acreditar
mais em si mesmo também desde então.
Alexandre olhou para o Velho furioso pela história que trouxe à tona. Não gostava de lembrar
daquilo.
No entanto, Rebeca e Cristóvão se olharam tensos.
― Não sabem o que ele falou, não é? São dois farsantes, isso sim. Querem me aplicar um
golpe. ― Alexandre já estava se levantando da cama.
― Espere. ― Rebeca falou. ― Eu também vi a luz. Ela também entrou pela minha
janela.
― O que?
Rebeca mostrou seu braço e lá estava a mancha em formato de cruz.
Cristóvão suspirou profundo, odiando voltar a esse assunto também.
― Está bem, se todo mundo vai ficar feliz em mostrar seus braços, o meu está aqui. ― a
mancha em forma de espada era bem definida.
― Isso é impossível. ― Alexandre sentiu tonturas novamente. Segurou o braço e
levantou aos poucos a blusa. Lá estava sua marca também.
Eles podiam ver e conversar com o Velho. Eles tinham visto a luz. Eles tinham marcas como
ele.
Quem eram aquelas pessoas?
Era algum tipo de pesadelo. Só podia ser isso.
Capítulo 17
Cristóvão se sentou ao lado do rapaz assustado e pensou no que dizer naquele momento. Sabia
que palavras tinham uma tendência a piorar as coisas, mas o silêncio parecia não confortar muito
também.
― Bom, pela sua cara acho que ninguém nunca acreditou em você, não é? Isso que dá ser
um bocudo e ficar falando para todo mundo o que está vendo. A melhor coisa é guardar segredo.
Rebeca se viu obrigada a concordar com ele.
Alexandre olhou firme para Cristóvão.
― Um especialista. ― soltou irônico.
― É, digamos que eu já vi mais demônios na minha vida do que você deve ter olhado
para o seu próprio pau.
― Hei, sem baixar o nível aqui dentro da minha casa, está bem? Não precisamos desse
tipo de linguajar. E eu tenho certeza de que nenhum de vocês entende mais de demônios do que
eu, que estou sempre enfrentando esses desgraçados.
― Do que é que vocês dois estão falando? Virou uma competição? Se for assim eu tô
fora. Não bato muito bem da cabeça, mas está óbvio que vocês fugiram de algum hospício.
― Olha, crianças, eu sei que estou sobrando aqui, mas parece que estão focando nos
detalhes errados. Agora a pouco vocês estavam juntos lá fora, enfrentando alguma coisa estranha
e tentando ajudar pessoas. Aquilo foi legal da parte de vocês, então porque não tentam ser um
pouco mais aquilo e menos isso aqui. ― o Velho parecia entediado.
Cristóvão suspirou.
― O Velho tem razão. Vamos começar do começo. Primeiro quero agradecer por você
ter tentado morrer enquanto me salvava. ― ele quis parecer sarcástico, mas não foi muito bom
dessa vez.
― É, foi realmente uma loucura. ― Alexandre concordou. Vai ver eu pensei que era
capaz de bloquear aquele troço. Devo ter batido a cabeça lá no avião, desde lá estou imaginando
coisas demais.
Os três começaram a rir.
― Então nós dois somos viajantes recém-chegados nesta cidade de loucos?!
Alexandre concordou com um aceno de cabeça.
― Minhas malas!
― Relaxa, trouxemos tudo para cá. ― Cristóvão apontou para um canto do quarto.
― Já que tocamos nesse assunto, o que os dois rapazes faziam naquele local?
― Estou aqui para estudar e trabalhar em um projeto de estágio. Recebi um convite de
uma empresa. Vou colaborar com pesquisas.
― Pesquisas? ― Rebeca estava realmente curiosa.
― Gosto de ciências.
― Ora, ora, um cientista? ― Cristóvão completou. ― Isso explica muita coisa sobre
você.
Poderia ser motivo para outra encrenca entre os dois, mas Alexandre escolheu ignorar, ainda
mais depois de ver o olhar enfezado de Rebeca.
― Não, ainda não. Mas pretendo me tornar um.
― E você, Cristóvão?! ― Rebeca manteve o tom da conversa.
― Acho que a minha história não é boa o suficiente para ser contada. A única coisa que
sei é que recebi uma proposta de trabalho e pretendo ir procurar o lugar o mais rápido possível.
― Gosta de bancar o misterioso, senhor perturbador de demônios? ― dessa vez
Alexandre quis cutucar também.
― Não. Só que não vale a pena falar sobre o passado.
― E você? ― Alexandre perguntou a Rebeca. ― ― Mora aqui sozinha?
― Minha mãe morreu há alguns dias, então, podemos dizer que sim.
O silêncio tomou conta do lugar. Até mesmo o Velho pareceu se sentir incomodado com aquilo.
― Sinto muito! ― os dois disseram, quase ao mesmo tempo...
― Não se preocupe. ― ela ensaiou um sorriso. ― Eu já passei, vi e senti coisas que... A
morte é só uma criança travessa perto de tudo que temos à nossa volta.
Mais uma vez o silêncio.
― Rebeca, acho que eu preciso ir. ― Cristóvão não queria continuar esse assunto. Não
queria falar sobre Simone ou sobre coisas que o fizessem lembrar dela.
― Mas já? Por que não fica aqui até se estabelecer direitinho? ― a verdade é que se
sentia sozinha e aqueles dois - ou três - estavam sendo uma ótima forma de preencher o seu
vazio.
― Não quero dar trabalho. Além disso, estou precisando fumar um pouco. ― ele se
levantou e estava colocando a mochila nas costas.
Havia realmente simpatizado com aqueles dois, mas ficar ali só traria mais problemas.
Envolveria mais gente em sua vida desorganizada e - aparentemente - agora perigosa.
Tinha que encontrar seu padrinho o quanto antes também e entender o que estava acontecendo.
― Mas não seria trabalho nenhum, Cristóvão. E você pode fumar no quintal.
― Se você não se importa, Cristóvão, irei com você, assim posso procurar a empresa
para onde fui chamado.
― Os dois vão embora? Desculpa, Velho, os três. ― ela tinha esperanças de ter
companhia por mais tempo.
― Agradecemos muito a sua hospitalidade, Rebeca. Não me esquecerei disso. ―
Alexandre, sempre educado, deu um abraço na garota.
Ela retribuiu o abraço com tristeza.
― Espero que se cuide! ― foi a única coisa que Cristóvão disse, sem sequer se
aproximar para apertar a mão da garota.
― Claro, fique tranquilo quanto a isso. Você sabe bem que eu sou capaz. ― a resposta
dela também foi mais séria agora.
Os dois caminharam até a porta e a olharam mais uma vez antes de ir embora definitivamente.
― Bom, foi ótimo conhecê-la. É provável que nos encontremos por aí.
― É. Por algum motivo eu tenho certeza que sim.
Os olhares entre Rebeca e Cristóvão estavam começando a perturbar Alexandre.
― Escuta… ― ele segurou as mãos dela junto das suas. ― Assim que eu estiver
instalado na empresa, na minha primeira folga prometo vir até a sua casa para te fazer uma visita,
está bem?!
Ela sorriu com a proposta.
― Está ótimo!
Mas antes que Cristóvão conseguisse colocar o primeiro pé para fora da casa, a porta
instantaneamente se fechou sozinha, assim como todas as janelas e cortinas.
A casa ficou fria.
― O que está acontecendo? ― Alexandre parou assustado. Ele olhou para o Velho, que
tinha se escondido atrás de um sofá. ― O que você está fazendo aí? Está se escondendo do que?
Rebeca e Cristóvão podiam sentir, não estavam mais sozinhos.
E aquilo que estava presente era muito mais forte do que as criaturas que enfrentaram há algumas
horas atrás.
Capítulo 18
― Droga! Ele me encontrou. ― foram as palavras que Cristóvão murmurou enquanto
sentia a presença dentro da casa.
― Ele quem?
― Esquece. Tenho que encontrar uma forma de sair daqui, para o bem de vocês. ―
Cristóvão tentou forçar a porta, mas ela sequer balançava. Parecia concreto.
― Posso saber do que vocês estão falando? ― Alexandre não estava entendendo nada,
mas sentia medo mesmo assim.
― Escute, Cristóvão! ― Rebeca estava tentando se manter calma. ― Mesmo que esse
seu “amigo” tente entrar nessa casa, ele jamais conseguiria, pois eu criei uma barreira que os
impedisse de entrar. A não ser que … ― nesse momento ela se calou.
― A não ser que ele fosse muito mais poderoso do que os Demônios com os quais você
está acostumada a lidar.
Os olhos dos dois se encontraram.
― Os Demônios mais fortes não perdem tempo com humanos, normalmente estão em
batalha com os Anjos.
― Diga isso a ele, então.
Tudo dentro da casa estremeceu.
Um homem vestido em um belo terno azul estava sentado em uma cadeira de frente para eles.
Fumava um cigarro e tinha um sorriso galanteador no rosto perfeitamente emoldurado.
― Sabe, Cristóvão, até que esse negócio aqui acalma mesmo os nervos. ― disse o
homem olhando para o cigarro. ― Deve ser por isso que você usa tanto, mesmo sabendo que vai
te matar logo.
― Quem é você? ― foi Rebeca quem teve coragem de falar primeiro. Estava muito
brava com o homem folgado que se atrevia a espalhar fumaça em sua casa.
― Ah, não se preocupe senhorita. Essa fumaça irá sumir junto comigo em breve. Não
vou deixar a sua casa fedorenta. Mas não o deixe acender o dele. O cigarro desse rapazinho fede
de verdade.
― Por que está aqui? Era só esperar eu ir embora. Eu estava seguindo a trilha de pães
que você deixou. ― Cristóvão estava irritado com tamanha exposição.
― Temos muito o que conversar.
― Eu até concordo, mas eles não têm nada a ver com isso.
― Como é que esse cara veio parar aqui? Ele saltou pelo teto? ― Alexandre sentia que
seu cérebro estava prestes a derreter. Tinha informação esquisita demais no ar. Além disso, o
Velho agora parecia tremer de verdade. ― Cristóvão, você o conhece?
― É o meu padrinho, Samael. Pelo menos foi isso que ele me contou até hoje, mas acho
que tem algumas coisas que o meu protetor esqueceu de me contar.
― Espera, você disse Samael? ― Rebeca arregalou os olhos.
O sorriso não abandonou aquele rosto. O homem simplesmente olhou gentilmente para ela e,
então, falou.
― Por que não conta para esses patetas quem eu sou de verdade, Rebeca? Eu não tenho
nenhuma dúvida que a mais inteligente aqui nesse ambiente é você. ― a frase que saiu de sua
garganta estava pacífica, até mesmo um pouco divertida.
Ela travou um pouco.
O cigarro havia acabado e o filtro que sobrou naquelas mãos simplesmente queimou e
desapareceu. Um montinho de chamas surgiu e sumiu nas mãos do forasteiro. Assim como
prometido, também não havia cheiro de fumaça.
― NÃO FALE COM ELA! A CONVERSA É ENTRE NÓS. ― Cristóvão se colocou na
frente dos dois e começou a se aproximar do homem, que ainda permanecia sentado e com a
aparência de quem está apenas conversando com velhos amigos. ― Da última vez você me
pegou desprevenido, em um momento de fraqueza, mas agora estou sóbrio e bem desperto.
Alexandre pretendia acompanhá-lo, mas foi impedido por Rebeca.
― Não se aproxime dele, Ale!
― Por que não? Rebeca, esse cara pode ser algum tipo de bandido ou qualquer coisa
perigosa.
― Acredite em mim, ele é a “qualquer coisa perigosa”. Não vai querer um problema com
esse cara.
Sem entender muito bem as palavras dela, mas se conscientizando de que talvez fosse mesmo
melhor ficar e protegê-la, Alexandre procurou o celular no bolso.
Discou para o telefone da polícia. Para sua surpresa, estava sem linha.
― O que aconteceu com esse negócio? ― balançou o aparelho na tentativa inútil de fazê-
lo funcionar, mas nada aconteceu. ― Meu celular parou de funcionar. ― ele parecia
desesperado.
Rebeca estava com semblante de quem parecia conformada. Era como se já soubesse daquilo.
― O que faremos?
― Vamos rezar para que Cristóvão consiga resolver seu problema com esse homem.
― O que? Ficar aqui parados e esperar, sei lá, ele sacar uma arma do bolso? ―
Alexandre fechou a cara e correu para a porta. Tentou abri-la de todas as formas, mas ela estava
simplesmente travada. ― O que está acontecendo aqui?
― Alexandre...― ela segurou as mãos dele e por um momento ele se acalmou de
verdade. ― Sinto muito. Para você vai ser muito mais difícil compreender. Vamos só ouvir o
que ele tem a dizer. Tenho a impressão de que ele nos libertará depois disso.
Contrariado e um pouco mais calmo, Alexandre continuou de mãos dadas com a misteriosa
Rebeca enquanto observava Cristóvão chegar até o homem que havia invadido aquela casa.
Ele agora se levantava da cadeira.
Cristóvão era bem alto, mas perdia para o homem que estava a sua frente.
― Deixe-os em paz.
― Não posso, Cristóvão. Tenho que alertá-los sobre o que está por vir. Depois não vou
ficar mais correndo atrás de ninguém.
― Eu já disse para você que não quero me envolver com seja lá o que for que você
inventou.
― Então por que veio para cá? Por que aceitou a passagem? Você sabia que isso também
fazia parte do plano, não é?
― Sim, sabia. Mas esperava que você se dignasse a me procurar quando eu chegasse aqui
para que pudéssemos conversar direito. Eu não esperava esse circo todo.
― Sabia que estava em seu destino fazer essa viagem de volta ao lugar onde nasceu.
― Mas isso não quer dizer que farei o que você me pedir.
― Eu nem te pedi nada. Só te contei o que está marcado em seu caminho.
― Faço meu próprio caminho.
― Sei disso. Sempre soube, foi assim desde que nasceu. ― o sorriso se tornou paterno.
― Na verdade, eu espero mesmo que você faça seu caminho, que decida um futuro melhor do
que aquele para qual está destinado.
― Você já se intrometeu bastante na minha vida, não acha? Escolheu onde eu deveria
morar, as pessoas com quem eu deveria me envolver, me treinou sei lá para o que, e nem o seu
nome verdadeiro você teve a coragem de me contar. Pelo menos a Lahael se chama Lahael
mesmo?
― Sim, e é um lindo nome. Diferente do meu. Mas você com certeza já sabe quem eu
sou, só está com medo de confirmar. Agora, eu preciso que todos vocês me escutem.
― Me deixa em paz. Apenas abra essa bendita porta e saia da casa da Rebeca.
O olhar do homem à sua frente mudou. Tornou-se mais duro e o sorriso sumiu de seu rosto.
― É claro que vai ouvir. ― ele levantou um dedo e tocou no peito de Cristóvão.
O rapaz voou de onde estava, sendo amparado pelos braços dos demais que acompanhavam a
conversa.
― Como Cristóvão não quis me apresentar, faço isso eu mesmo, afinal, não é justo que
somente eu saiba seus nomes, não é verdade, Rebeca e Alexandre?
― Diga seu nome de uma vez, Demônio! ― ela sabia agora. Sabia que havia sido ele
quem estava a seguindo nos últimos meses e que foi ele que trouxe aquela criatura assustadora.
― Não fale assim, Rebeca. Não sou um Demônio - embora algumas pessoas insistam em
me ver assim. Na verdade, se você quiser me classificar, acho que estaria mais para um Anjo
Caído. O primeiro deles, se prefere entender assim.
As mãos que seguravam Cristóvão vacilaram. Ela sentiu que estavam suando.
― Meu verdadeiro nome é Lúcifer. ― o sorriso singelo voltava ao rosto do homem. ―
Mas eu gosto de Samael, então uso entre os homens. É menos assustador.
― Sua mãe tinha um péssimo gosto para nomes. ― foi a única coisa que Alexandre
conseguiu dizer no meio de toda aquela conversa maluca.
Lúcifer começou a rir de verdade, com gosto.
― Culpe o meu pai. Não gosto muito desse nome também, mas estou proibido de usar o
meu original. Meu Pai com certeza está bem bravo com isso. Bom, Ele está bem bravo comigo
há séculos, então acho que não faz muita diferença. Meu amigo, saia de trás desse sofá, pelo
amor do Pai. Não vou fazer nenhum mal a vocês. ― ele se dirigiu ao Velho agora.
O Velho se remexeu um pouco, ainda sem ter muita certeza do que fazer.
― Qual é? Agora todo mundo te enxerga, é? Por que não usou esse superpoder antes?
― O que quer conosco? ― Rebeca tentava manter seu autocontrole.
― Disse ao Cristóvão que precisava dele, mas esse garoto teimoso não sabe conversar.
― ele novamente se sentou em sua cadeira. ― Será que podemos ter uma conversa decente?
Sentem-se, por favor!
Os três se olharam, não pareciam ter muita escolha.
Rebeca e Alexandre ajudaram Cristóvão a se recompor, mas o garoto não moveu sequer um
músculo para se aproximar do homem que os chamava.
― Estão vendo sobre o que eu estou falando. Ele, às vezes, pode ser chato. Já aviso
vocês, não esperem um amigo fofinho. Esse cara é o rei das patadas. ― ele pediu que se
aproximasse com as mãos. ― O tempo é curto e preciso muito da atenção de vocês.
A garota se aproximou.
Rebeca se sentou ao lado dele em uma cadeira que puxou sem perder por nenhum segundo o
olhar sério. Vasculhou o bolso em busca de seu terço. Ele estava lá.
Não tinha muitas chances contra Lúcifer, mas não cairia sem lutar.
― Não precisa me olhar desse jeito, garota. Eu disse que está tudo bem! Seu terço não
precisará ser usado dessa vez.
Ela arregalou os olhos. Ele sabia demais.
Mais uma vez o sorriso encantador surgiu naquele rosto perfeito.
― Agora vamos esperar seus amigos terem a mesma coragem.
Alexandre decidiu que, se estavam mesmo todos loucos como parecia, era melhor não contrariá-
los. Ouviria o que aquele homem tinha a dizer e depois partiria para sempre, esquecendo as
confusões daquela tarde que não faziam nenhum sentido. Aproximou-se e se sentou no sofá em
que o Velho estava se escondendo.
Cristóvão não tinha para onde fugir.
Conhecia bem aquela figura e tinha certeza de que não o deixaria em paz enquanto não o
ouvisse. Embora achasse que Samael, ou Lúcifer, não tinha nenhum motivo para machucar nem
Rebeca e nem Alexandre, não queria ter que partir com a consciência pesada por ter abandonado
aqueles dois.
Ele se aproximou a contragosto e ficou em pé, ao lado do sofá onde Alexandre estava.
― Não vai se sentar? ― foi a pergunta suave de seu padrinho.
― Estou bem em pé. ― foi a resposta seca de Cristóvão.
― Pois bem. Se prefere assim… ― Lúcifer respirou fundo e se preparou para começar a
contar. ― Acredito que todos vocês já tiveram, mesmo que o mínimo, algum contato com a
história da minha criação, não é mesmo?! Embora todas as histórias que possam ter lido em seus
textos humanos não cheguem a verdadeiramente revelar aquilo que aconteceu do meu
nascimento até a minha queda, mas pelo menos vocês sabem que sou o Anjo que foi expulso da
casa do Pai para viver entre os Demônios das Trevas.
O silêncio permaneceu, mas ele sabia que estava se fazendo entender.
― Certo! ― ele continuou. ― Há alguns anos meu Pai achou que seria uma ótima ideia
fazer uma nova criação. Um Anjo tão ou mais forte do que eu. A ideia era simples e até fofa, me
destruir e conseguir manter os humanos sob uma proteção invencível. Uma ideia cheia de boas
intenções.
― De boas intenções o inferno está cheio. ― foi a frase que saiu da boca de Cristóvão.
― É verdade, o ditado nunca fez tanto sentido como nesse caso, Cristóvão. O Anjo se
rebelou, e está decidido a fazer com que os humanos, que na opinião dele não merecem o amor
do Pai, paguem por seus pecados e sejam aniquilados de uma vez. Aquele que deveria ser o
salvador dos homens acabou por se tornar seu algoz. O nome dele é Tifereth.
― Está nos dizendo que existe um Anjo tentando destruir os humanos? Isso é um
absurdo! Então, nesse caso, ele já se trata de um Anjo Caído. ― Rebeca tinha os conhecimentos
que aprendeu na igreja.
― Não, ainda não, mas falta pouco para que isso aconteça e, acredite, vamos torcer para
que demore um pouco mais, pois quando ele se tornar um Anjo Caído será muito mais poderoso
do que já é.
― Um perigo desses à solta e ninguém fez nada até agora? O que Deus anda fazendo que
não tem tempo para resolver esse problema que ele mesmo criou? ― Cristóvão estava sem
paciência para aquela conversa. Tinha sido enganado durante todos esses anos. Se sentia como
um animal que estava prestes a ser mandado para o abate.
― Respeito quando falar do Pai, garoto! ― o tom de voz de Lúcifer foi frio e, por um
momento, eles puderam ver uma leve luz vermelha naqueles belos olhos. ― Existe uma regra
criada entre as trevas e a luz. Quando uma batalha estiver para acontecer, os criadores não podem
se intrometer.
― Os criadores? ― agora Rebeca parecia confusa.
― Nem Deus e nem o Senhor das Trevas, nenhum dos dois. A batalha deve ser decidida
entre seus guerreiros. Deve existir um equilíbrio entre Luz e Sombras para que o mundo continue
existindo, por esse motivo foi feito esse pacto.
― Mas pelo menos estão formando um grupo de batalhas para enfrentá-lo, não é?! ―
Rebeca estava começando a captar os pensamentos de Cristóvão e não estava gostando nada da
ideia.
― Não sei, acredito que sim. Não tenho conhecimento sobre as atitudes dos Anjos de
Luz, mas posso garantir que vários Demônios já sabem sobre os planos desse rebelde e
pretendem se juntar a ele o mais rápido possível. Se ninguém fizer nada, isso será um massacre
dos bons.
― As criaturas na praça…
― Exatamente, Rebeca. Já estão seguindo as ordens desse Anjo.
― Mas ele tem poder para matar pessoas?
― Por enquanto não, Cristóvão, por isso está mandando os Demônios para causar
acidentes e desastres, mas logo terá e ele não vai poupar ninguém.
Uma luz de compreensão iluminou o rosto do garoto por um momento. Logo em seguida sua
reação foi se arrepiar de cima a baixo pelo corpo.
Sua mente trouxe algumas lembranças, principalmente de conhecimentos que não fazia ideia de
como havia adquirido.
― A Solidificação. ― as palavras saíram da boca de Cristóvão como se fossem feitas de
material perigoso.
Rebeca encarou Lúcifer. Ela já tinha lido sobre isso em alguns livros que falavam sobre magia,
mas achava que era só lenda para assustar crianças.
― O que ele diz pode acontecer? Esse Anjo tem a capacidade de usar a Solidificação??
― Ele foi treinado pelo melhor de todos os Arcanjos, com certeza tem esse poder. Eu
mesmo já o vi começar a magia uma vez.
― Alguém pode me explicar do que vocês estão falando? ― Alexandre agora parecia
impaciente.
― A Solidificação. É uma magia ensinada aos Anjos mais poderosos para ser usada só
em caso de extrema urgência. ― Lúcifer, com toda paciência, tentava encontrar uma forma de
explicar ao descrente garoto como aquilo poderia trazer problemas. ― Quando é usada, o Anjo
tem o poder de atacar o corpo dos seres humanos diretamente, de serem vistos por todos eles em
sua forma original e até mesmo de serem destruídos pelos seres vivos. Normalmente é usada para
trazer luz aos homens que estão perdidos nas trevas. Quando conseguem enxergar um Anjo,
encontram o caminho para a luz mais rápido.
― E por que não a usar o tempo todo, então? Assim ninguém mais acharia que eles são
imaginação de crianças. ― o garoto descrente parecia começar a se interessar. Pensava se o
Velho não estava usando algo assim agora.
― O custo de seu uso pode ser muito alto, é preciso ter cuidado. Se ficar por muito tempo
o corpo se recusa a deixá-lo. Então, as trevas tomam conta do Anjo e ele se torna mais um Anjo
Caído. Aconteceu com muitos dos meus irmãos. ― Lúcifer ficou triste lembrando daqueles que
se deixaram levar. ― Mas se Tifereth usá-lo, teremos problemas gigantescos.
O silêncio ocupou o lugar, vários pensamentos diferentes se cruzavam naquele momento.
― Eu só não entendo por que está envolvendo esses dois nisso. ― Cristóvão se referia a
Rebeca e Alexandre. ― Me perturbou para vir para cá, me seguiu que nem um policial e agora
enche a cabeça de quem não tem nada a ver com isso. Qual é a sua, hein?!
― Não tem nada a ver com isso? Tem certeza, Cristóvão? Acha mesmo que o encontro
de vocês no meio daquela confusão foi mero acaso? Acredita mesmo nisso?
As palavras de Lúcifer fizeram com que os olhares de Rebeca e Alexandre se encontrassem.
― Mesmo que não fosse, não quero envolver mais ninguém.
― Essa não é uma decisão que cabe a você, meu rapaz.
Rebeca mais uma vez tomou a frente da situação.
― Bom, se você é mesmo quem diz ser, e se toda essa história é verdade, então, me
explique uma coisa. Tifereth pretende se associar aos Demônios para conseguir alcançar seus
objetivos?
― Acredito que nesse momento ele os vê apenas como possíveis escravos, mas mesmo
que as criaturas das trevas se neguem a ajudá-lo, pode ter certeza de que existem Anjos Caídos o
suficiente para começar uma guerra terrível.
― Não é possível que sejam tantos assim. ― Rebeca tentava se apegar a alguma
esperança de que aquilo não passasse de um exagero. ― Eles não podem simplesmente decidir
acabar com tudo de uma hora para a outra e ir contra as ordens de Deus.
― Gostaria de poder dizer que você tem razão. Mas acontece que até mesmo os poderes
do Pai são limitados quando se trata de vontade. Algumas vezes os desejos acabam falando mais
alto.
Alexandre tinha as mãos sobre a cabeça, como se essa fosse uma forma de protegê-la e impedir
que toda aquela loucura penetrasse de vez em sua mente.
― Certo. ― Alexandre concluiu. ― Escutei tudo que nos disse, embora ainda ache que
se trata de um louco que fugiu de algum hospício. Mas já que entramos nessa loucura, me
responda uma coisa. O que nós temos a ver com isso, afinal de contas?
― Hum. Pensei que nenhum de vocês fosse fazer essa pergunta. ― um largo sorriso se
formou no rosto de Lúcifer. ― Fico feliz que tenha sido você a fazê-la, Alexandre.
Mais uma vez o silêncio. Era como se sentissem que estavam presos naquela teia por uma aranha
extremamente astuta.
― Quando o jovem Tifereth nasceu, das sobras de seu véu prateado algo criou vida e
desceu ao mundo dos homens em busca de abrigo. Eu segui esse rastro, o guardei em segurança
e quando a hora chegou, ele encontrou cada um de vocês.
― A luz. ― Alexandre soltou quase que sem querer.
― As marcas. ― Rebeca imediatamente olhou para o seu braço.
― Podemos dizer que vocês foram tocados por uma bênção divina e que possuem um
pedacinho de anjo em seus corpos. Não é incrível?
Chocados. Foi como todos eles ficaram.
Cristóvão finalmente se sentava, só que no chão mesmo.
― Não sei exatamente de que forma o dom do Pai vai funcionar em vocês que não são
Anjos, mas tenho certeza de que se foram escolhidos, é porque podem ajudar de alguma forma.
O equilíbrio natural nunca erra. O universo está tentando manter as coisas mais justas.
― Ajudar como? ― Rebeca secava as lágrimas que haviam escorrido pelo rosto e
continuava a encará-lo com desconfiança.
― Impedindo Tifereth de completar sua missão. Dando a chance aos humanos de
continuarem vivendo. ― nesse momento Lúcifer respirou fundo, pois sabia que a reação não
seria a das melhores. ― Enfrentando a legião de Tifereth, sejam eles Anjos ou Demônios.
Todos quietos. Era quase como respirar um gás mortal. Ninguém fazia movimentos, como se
cada segundo contasse para o resto da vida.
Capítulo 19
Alexandre se levantou de onde estava e se dirigiu ao banheiro sem falar nada a ninguém. O
Velho rapidamente se ergueu e o seguiu.
Mas, quem se importava com isso?
As portas estavam trancadas e, ele apostava, as janelas também. Não tinha para onde fugir.
Seu estômago revirava e tinha certeza de que vomitaria a qualquer momento.
Até algumas horas, antes de encontrar esse bando de malucos, tinha uma vida normal, de um
garoto normal, alguém que estudava muito para deixar os pais orgulhosos, que se dedicava a
coisas que faziam sentido.
A única coisa desregulada em sua vida era o Velho - que o encarava preocupado agora -, mas ele
já tinha se acostumado com esse limite de doidera.
Agora estava preso naquele banheiro desconhecido, com o estômago embrulhado e com um
grupo de baderneiros que, provavelmente, estavam tirando um sarro da sua cara.
― Você consegue me explicar essa loucura toda? Como é que esse povo consegue te
ver? Que assunto mais maluco é esse?
O Velho deu de ombros.
― Eu não sei também. Não faço ideia do que está acontecendo, mas parecia importante.
― É sério? ― Alexandre estava irritado.
Isso não podia continuar assim. Não permitiria que eles o fizessem de bobo, achando que não
entendia das coisas e que poderiam tratá-lo como um moleque inocente.
Só precisava esperar alguns segundos para se recompor e voltaria lá.
Voltaria até aqueles malucos e daria um basta na brincadeira. Exigiria ser liberto, caso contrário
os entregaria à polícia.
Olhou para o celular. Ele continuava sem sinal, mas daria um jeito.
Sim, ninguém o trataria mais como um moleque bobo. Se fosse preciso ele gritaria por socorro
até algum vizinho aparecer.
Rebeca tinha os olhos fixos em um retrato de sua mãe.
O que ela diria se estivesse junto deles?
Será que colocaria todos para correr, dizendo que chamaria a polícia se não deixassem sua casa e
sua filha em paz? Será que mandaria a filha nunca mais se envolver com esse tipo de gente?
Não. Provavelmente sua mãe acreditaria na história do homem. Ela sabia que as histórias que
vinham de Deus eram reais. Tanto que a tirou das mãos da psicóloga e a colocou nas mãos de um
padre.
Ela diria: “Rebeca, cada um tem seu destino nessa vida. Deus colocou uma missão na mão de
cada um. Você acaba de encontrar a sua. Não tenha medo dos planos de Deus.”
Mãos. Olhou para as suas nesse momento e para a marca em seu braço.
Ela havia acreditado que Deus a havia enviado uma mensagem. Que aquilo fazia parte de sua
missão.
Estaria errada?
Quem trazia notícias agora era Lúcifer, o Anjo que aprendeu a odiar por se opor a Deus. O
mentiroso.
Se esta era sua missão dada por Deus, então por que Lúcifer é quem a trazia?
Olhou ao redor, viu o rapaz chamado Cristóvão ainda sentado no chão. Ele parecia tão pensativo
quanto ela, mas provavelmente via as coisas de uma forma diferente, já que tinha passado mais
tempo ao lado do Anjo Caído, pelo jeito sendo treinado para esse momento.
Escutou os barulhos que vinham do banheiro. Como estaria o “menino-ciência” aceitando toda
essa história?
Seu terço! Ele continuava no bolso de sua blusa.
Segurou-o entre os dedos por alguns segundos e pensou sobre seu dom de exorcismo e sobre
todos os acontecimentos que marcaram sua vida.
Sabia que aquele era um caminho sem volta. Sabia qual era o final para essa missão. Mas
também sabia que não conseguiria simplesmente escapar daquilo que sempre esteve com ela.
Já tinha tomado sua decisão. Agora era esperar que Cristóvão e Alexandre fizessem o mesmo.
Cristóvão estava sentindo-se quente. Antes era apenas o braço, mas agora tinha se espalhado por
todos os seus membros e órgãos.
Era um péssimo momento para ficar doente.
Ainda estava jogado no chão, não podia nem dizer que estava sentado daquele jeito, encolhido
contra a parede como se fosse uma criança de cinco anos com medo do escuro.
Sua mente vagava em pensamentos perdidos e totalmente fora de ordem.
Olhou para Rebeca. Ela havia perdido a mãe recentemente e aquela casa era tudo que tinha. Por
mais que ela pudesse enfrentar criaturas daquele tipo, poderia enfrentar sozinha aquele montante
sem sair seriamente ferida?
Lúcifer estava lá fora para enfrentar todos sozinho. E Lahael? Será que ela estava bem? Tinha
tido pouco contato com a moça, mas ela sempre foi gentil com ele. Muito mais que o seu próprio
padrinho.
O que fazer? O que fazer?
Aquela pergunta estava rondando sua mente como se fosse um pernilongo nas orelhas em uma
noite quente.
De repente, o outro garoto, o chamado Alexandre, voltou do banheiro pisando firme.
― Me soltem agora, ou então eu vou chamar a polícia!
― Vai em frente, se você conseguir chamar alguém sem parecer um maluco. ― Rebeca
respondeu, parecendo estar com pouca paciência.
― Ou vocês são loucos ou estão ajudando aquele cara a me enlouquecer. Jamais vão
conseguir me fazer acreditar nessas coisas sem sentido. Isso desafia completamente a lógica. ―
ele tentava enfrentar os olhos determinados da bela ruiva a sua frente, mas sentia que a qualquer
momento perderia a batalha.
― Tem razão. Isso desafia a lógica. ― ela se aproximou dele o suficiente para que seus
rostos ficassem tão juntos que era possível sentir a respiração um do outro. ― Mas várias coisas
nessa vida fazem isso...
Rebeca se afastou novamente, enquanto Alexandre se esforçava para manter o controle.
Cristóvão observava tudo isso perturbado. Quem eram esses que estavam cruzando seu caminho?
Não queria mais ninguém se envolvendo em sua vida, não tinha tido boas experiências com as
pessoas.
Simone. Pensava nela agora. Ela deveria estar ali o ajudando a pensar, o ajudando a decidir.
“Abra seu coração para essas pessoas, meu filho”.
Era a voz de sua mãe de repente. Sim, tinha certeza.
Mas por que ela pedia isso?
Lembrou-se do Anjo. O primeiro Anjo que viu. O primeiro ser que realmente teve vontade de
chamar de amigo.
Aquele Anjo tentou protegê-lo, mesmo sem conhecê-lo. Aquele Anjo o havia tratado como um
igual, mesmo sendo tão diferentes. Aquele Anjo havia indicado o que era coragem, e ele se
mostrava um perfeito covarde.
Cristóvão se levantou de repente. O calor em seu corpo havia se intensificado, mas agora não
incomodava mais. Sentia-se forte.
Rebeca parou de discutir com Alexandre assim que Cristóvão se levantou.
Não foi apenas o susto da reação dele, mas também a força da imensa aura que o envolvia.
Cristóvão estava rodeado de luz.
― Alexandre, você consegue ver isso?
― Ver o quê?
Não adiantava, Alexandre não tinha o dom para ver as coisas. Mas ela tinha. Ela via claramente a
imensa luz que rodeava o corpo daquele rapaz.
― Quem é você, Cristóvão?
Sem ouvir os comentários dos novos companheiros, Cristóvão deu dois passos em direção à
porta.
Antes de prosseguir, pareceu se lembrar de alguma coisa que estava faltando.
Olhou para suas mãos, como se tentasse adivinhar o que faltava.
Um sorriso preencheu seu rosto. Já sabia o que estava faltando.
Como se respondesse a um chamado, uma pequena luz prateada se formou em sua cicatriz no
braço e saltou para fora de seu corpo como se tivesse vida própria. Depositou-se em suas mãos e
rapidamente começou a tomar forma.
Em questão de segundos, uma espada bela e afiada estava nas mãos do rapaz.
Agora sim estava pronto para a batalha.
Sem nem mesmo olhar para trás, Cristóvão aproximou-se da porta, a abriu e partiu ao encontro
de seus inimigos.
Lahael viu o momento em que o demônio preparou o tiro e com o restante de suas forças segurou
os braços de Lúcifer.
― Eles vão atirar flechas em nós!
Antes que ele pudesse olhar para trás, a arma fez seu percurso, passando de raspão por seu rosto.
Quando viu a direção da flecha já imaginava que Misty havia percebido tudo afinal.
A ferramenta de ataque se desfez tão logo atingiu a parede da casa, mas no mesmo instante a
barreira que impedia a entrada deles também se desfez.
― Misty, que desperdício de munição, eu já pretendia desfazer a barreira para conseguir
entrar com Lahael. ― Lúcifer ironizou, ainda sem olhar para trás.
― Agora eu entendi. Lahael não tentava proteger você, mas sim o que você está tentando
esconder dentro dessa casa, não é?!
― Não gaste o meu tempo e nem o seu, demônio tolo. Melhor voltar, antes que seja
tarde.
O sangue de Misty ferveu de raiva. Maldito petulante.
― Demônios! Destruam tudo naquela casa, não permitam que nada saia inteiro.
Um grito de guerra e muitos passos. Os guerreiros de Misty se aproximavam, prontos a se saciar
de sangue e morte.
― Lúcifer! Eles vão matá-los! ― os olhos de Lahael demonstravam verdadeira
preocupação.
― Se isso acontecer, doce Lahael, é porque eles não poderiam vencer a batalha, afinal.
― ele se afastou da porta de entrada, deixando o caminho livre para a invasão de seus inimigos.
― Lúcifer...
Eles já estavam em frente à porta de entrada. Ela brilhou por alguns segundos e, em seguida, foi
aberta de forma brusca.
Todos os demônios pararam diante da nova situação que se formava. Ninguém havia pedido que
fizessem isso, mas algo dentro de seus corpos avisava que aquele era um momento perigoso e
que o mais sensato seria reconsiderar.
Um rapaz caminhou até eles. Não parecia forte e intimidador como Lúcifer.
Os seres das trevas não têm muita facilidade em pensar. Suas mentes limitadas permitem apenas
que obedeçam às ordens das criaturas que nascem mais inteligentes. Talvez por esse motivo
existam tão poucos líderes demônios. O fato é que eles apenas aceitam o que vêem e não tentam
imaginar. Apenas enxergam.
O que viram foi um rapaz. Embora mostrasse estar de mau humor, era apenas um rapaz com
traços femininos e uma espada na mão. Apenas UM garoto contra todos eles.
Após algumas risadas, voltaram a se preparar para o massacre. A sensação de insegurança havia
passado.
Como dito antes, não são muito inteligentes.
Poucos tiveram tempo de perceber que havia algo de errado com aquele garoto.
Nem todos, no calor da batalha, conseguiram notar que os olhos azuis de Cristóvão tinham
momentos de oscilação com o dourado.
A espada em suas mãos deslizava com facilidade. Parecia parte dos braços do rapaz.
Sem nenhum medo, atravessava os corpos de seus inimigos com destreza, e a arma santa,
desconhecida até então, tinha um efeito muito próximo aos danos causados pelas espadas dos
Arcanjos.
Lúcifer entrou na casa e pediu licença para colocar Lahael na cama.
― Você trouxe um demônio para dentro da minha casa? ― Rebeca não conseguiu pensar
em impedir, estava chocada demais para protestar.
― Ela está do nosso lado. É uma boa amiga. Extremamente fiel. ― ele a deitou com
cuidado na cama. Olhou os ferimentos por cima e eles não pareciam graves, mas com certeza ela
precisava de descanso.
― Vocês estão me dizendo que essa mulher é um demônio? Só pode ser uma brincadeira
mesmo. ― Alexandre riu debochado e olhou para o Velho. Ele parecia estar concordando, um
pouco envergonhado, com a cabeça. ― Gente, que pesadelo é esse?
― Alexandre, eu entendo que você não consegue ver as coisas além dos seus olhos por
causa da maneira como seus pais o trataram. Mas sua capacidade está aí e nós precisamos dela
agora. É urgente. ― Lúcifer se levantou e se aproximou de Alexandre. Esticou a sua mão e
colocou em sua cabeça. ― Liberte-se!
Alexandre já tinha se encolhido quando Lúcifer o tocou, mas nada o preparou para o que sentiu
depois. Sua cabeça parecia ter sido chacoalhada e arremessada para longe, voltando igual a um
bumerangue. Sentiu náuseas e tontura. A vista ficou completamente turva.
― Sinto muito por isso, amigo. Não temos tempo para terapia. Você terá que lidar com
isso de forma bruta. Velho, por favor, leve o garoto até a janela, mas fique de olho para que ele
não seja atingido por nenhum daqueles demônios escrotos.
O Velho rapidamente obedeceu, pegando Alexandre pela mão e o levando, ainda zonzo e um
pouco cego, até a janela. Ficou atrás dele, mas estava atento.
Não havia perigo, os demônios estavam ocupados demais tentando sobreviver.
Alexandre olhava pela janela ainda embaçada, mas seus olhos estavam começando a se
acostumar. A náusea tinha passado e a tontura tinha ido embora, só que ameaçaram voltar com
força quando passou a enxergar de novo. O que estava vendo do lado de fora daquela janela era
simplesmente surreal.
― O que é isso?
Criaturas assustadoras eram eliminadas uma a uma pelo rapaz com a espada.
― Alguém me tira desse pesadelo.
O Velho colocou a mão sobre o ombro do seu amigo.
Lúcifer passou por eles.
― Cuidem do novato, eu vou buscar o Cristóvão.
Misty viu o perigo assim que o garoto abriu a porta. Aqueles olhos o apavoraram.
Não se tratava apenas de um moleque idiota com uma espada na mão.
Aquela era uma espada de juízes, tinha certeza disso. Uma cópia exata da Espada do Julgamento,
usada por Miguel.
E o menino? Ele não era um qualquer.
Os azuis dos seus olhos se apagaram e uma forte cor dourada invadiu sua íris.
Uma sensação desagradável incendiava o Demônio Líder. Era como lutar com alguém que já
conhecia e, apesar de todos os esforços, sabia ser muito mais poderoso. Uma aura infinitamente
magnânima o envolvia.
Gritou para seus guerreiros voltarem, mas era tarde. Eles não conseguiriam ouvi-lo, pois já
estavam dominados pela sede de guerra.
Os poucos que perceberam o perigo, trataram de voltar para junto de seu líder, que - todos eles
respiraram aliviados por isso - já pedia que se reagrupassem para uma retirada de emergência.
Finalmente estava livre. O sol, o ar, o vento. Não cairia mais nessas loucuras, havia aprendido a
lição.
Segurou suas malas com força e apertou o passo. A única coisa que lhe interessava naquele
momento era encontrar o seu novo local de trabalho e começar suas experiências, que podiam
facilmente ser provadas pela ciência. Nada de besteiras supersticiosas e sem nenhum sentido.
Faria um teste sanguíneo também. Provavelmente tinha sido drogado enquanto estava
desmaiado.
― Malucos!
No meio do caminho Alexandre percebeu que seu celular finalmente estava funcionando. Havia
uma mensagem de sua mãe perguntando se ele tinha encontrado o lugar de trabalho.
Ele respondeu que tinha dado um passeio pela cidade antes e que isso o atrasou um pouco, mas
que estava tudo bem. Pequenas mentiras para deixar sua mãe mais tranquila.
Ela ainda estava se sentindo incomodada com aquela ideia, e talvez tivesse razões para isso no
fim das contas.
Conseguiu finalizar a conversa dizendo que estava ocupado e que precisava se enturmar com as
pessoas da empresa. Ela pareceu satisfeita com isso.
A verdade é que ele só queria muito deixá-los felizes.
Estava dentro do táxi, mas conseguia sentir o olhar julgador do Velho ao seu lado. Ele estava
estranhamente quieto e Alexandre agradeceu internamente por isso. Não queria ter que ficar
ouvindo palestrinhas agora.
Quando o táxi parou em frente ao prédio que estava no endereço do cartão, ele pagou o homem,
desejou bom dia e saiu do veículo cheio de esperanças de que agora as coisas dariam certo.
Olhou para o outro lado da rua e três demônios pareciam conversar com um homem de cara
emburrada que esperava o sinal fechar para atravessar a rua. Eles com certeza estavam se
divertindo com o que faziam.
Ele desviou o olhar e se concentrou.
― Não tem nada lá. É só da sua cabeça ainda drogada. Apenas entre e faça o que tem que
fazer.
Assim que entrou no prédio notou que estava dentro de um laboratório farmacêutico.
Interessante. Nunca tinha pensado em trabalhar nesse ramo, mas parecia algo que deixaria seus
pais orgulhosos. Ajudaria a produzir medicamentos que salvariam vidas, quem não queria isso.
Chegou até a recepcionista.
― Oi. Não sei bem com quem devo falar, mas recebi essa carta aqui me convidando para
trabalhar com vocês.
A moça, muito simpática, pegou o documento e, assim que o leu, abriu um largo sorriso.
― Sim, é claro, estávamos aguardando você, Alexandre. Vou preparar o seu crachá. Me
empresta o seu documento, por favor.
Ele pegou sua carteira e entregou o documento para ela com toda felicidade do corpo.
Finalmente as coisas estavam fazendo sentido no meio de toda aquela loucura inicial.
Tinha certeza de que acordaria no dia seguinte renovado e que todo aquele pesadelo estaria
esquecido no passado. A cidade era grande demais, não correria risco de encontrar os malucos de
novo.
Apesar que pensar nisso dava um pouco de tristeza.
― Alexandre?
A voz da moça o trouxe de volta. Ela estava oferecendo um crachá para ele.
― Esse é provisório, logo terá o oficial. Suba até o quinto andar, o dr. Rafael já está
esperando pela sua chegada.
― Obrigado.
Subiu com o elevador e o Velho ao seu lado. Mas isso não importava mais, tinha certeza de que
lá ninguém diria que o vê. Estava seguro finalmente.
Assim que a porta se abriu no quinto andar, um homem negro e sorridente o aguardava. Era
muito bonito e o jaleco branco trazia um ar de imponência que ele mesmo esperava ter um dia.
― Ora, ora, se não é o meu aguardado assistente. ― o homem se aproximou e deu um
abraço apertado. ― Estamos felizes em finalmente recebê-lo em nosso departamento.
Alexandre olhou para os lados e viu que estava em um laboratório muito bem equipado. Aquilo
era como descobrir que os sonhos eram reais.
― Uau. Isso é incrível.
― Não é? Eu também acho. Essa é a minha casa, podemos dizer assim. ― Rafael riu.
Um riso gracioso e feliz. ― Trabalhamos em novas curas todos os dias e tenho certeza de que
você poderá me ajudar com um projeto grande que estamos desenvolvendo.
― Quantos são?
― Aqui? Eu, meu outro assistente e, agora, você.
― Só?
― Sim, somos equipes enxutas, mas muito competentes. As contratações são muito bem
selecionadas. Só os melhores podem estar entre nós.
O rapaz corou.
― Bom, vou aproveitar e te apresentar para o Igor. Afinal, vocês vão ficar juntos no
mesmo dormitório, então eu acho justo. Igor! Cadê você, rapaz?
Um barulho alto veio de uma das portas e um rapaz todo atrapalhado surgiu. Ele estava
segurando uma caixa e a outra estava esparramada no chão. O cabelo era ruivo como o de
Rebeca e todo despenteado também, o que fez com que Alexandre pensasse nela imediatamente.
― Opa, desculpa doutor, ainda bem que nada aqui era quebrável.
― Bom, esse é o Igor. Boa sorte em dividir apartamento com ele.
― Ah, Alexandre! ― Igor largou a caixa restante no chão e veio abraçá-lo também. ―
Nossa, estou muito feliz que tenha vindo. Faz um tempão que espero um colega de quarto. Pode
ser chato ficar muito tempo sozinho. E olha que eu nunca pensei que acharia isso, tenho um
monte de irmãos.
― Muito prazer.
Sim, finalmente o mundo voltava a fazer sentido para Alexandre. Agora sim ele estava em casa.
Capítulo 25
Tifereth olhava para o corpo de Miguel, adormecido de cansaço e dores, com irritação.
Já não conseguia sentir a energia de seus guerreiros.
Há muito havia pressentido uma explosão de uma aura extremamente poderosa e, depois disso, a
imensa energia negativa que fora enviada simplesmente se dissipou.
Mihael estava nesse momento em campanha com outras criaturas das trevas, tentava conseguir
mais aliados, e Hamael preparava um exército de Anjos Caídos e Demônios para um ataque em
massa.
Estava sozinho e sem notícias. Isso o enfurecia.
Soube com antecedência quando os guerreiros se aproximaram, mas, para sua surpresa, era um
número muito reduzido dos que haviam sido enviados.
― Misty, o que houve? ― não havia compaixão pelas perdas naquela voz. Estava muito
mais próxima da impaciência.
― Senhor Tifereth, algo muito estranho aconteceu. Lúcifer está contra nós. ― o líder,
assim como o que sobrou de seus guerreiros, postou-se de joelhos diante do comandante.
― Lúcifer. ― já esperava a represália do Anjo Caído. Provavelmente, imaginava ele,
dominado pelo ciúme de perder o cargo de filho mais poderoso do Pai. A represália de Lúcifer
não o assustava. Pelo menos não até aquele momento. Seria ele tão poderoso a ponto de destruir
um exército sozinho? ― Não foi a energia de Lúcifer que senti quando o encaminhei para lá,
soldado.
― Eu sei, meu senhor. Também estranhei a presença dele no local. Acontece que Lúcifer
estava escondendo uma arma secreta.
― Arma secreta? ― finalmente Tifereth demonstrava verdadeiro interesse na conversa.
A possibilidade de uma arma secreta indicava que Lúcifer estava se preparando há muito tempo
para isso. Como? ― E do que se trata essa “Arma Secreta”?
― Um rapaz. ― Misty quase gaguejou ao dizer as palavras.
― Um humano? Está de brincadeira comigo, soldado? Porque se for isso, é melhor saber
que meu humor não anda dos melhores!
― Não, senhor. Não se trata de brincadeira. Era de fato um humano, mas era um humano
estranho. Trazia em suas mãos uma espada, igual a dos Arcanjos, e os olhos, eles, às vezes,
ficavam dourados.
― Um humano, com uma espada e olhos dourados? ― Tifereth tentava imaginar um
humano com esse poder. Era quase como ver um Anjo sem asas. ― Isso é impossível.
― Ele nos enfrentou sozinho, senhor. E como pode ver, destruiu quase todo o meu
exército.
Tifereth encarava os Demônios com uma expressão sombria, mas de repente começou a rir.
― Perfeito! Perfeito mesmo! Lúcifer é muito sutil, devo admitir. ― seus olhos voltaram
a apresentar uma chama que poderia ser identificada como determinação ou loucura. ― Em um
momento como este, em que um Anjo pretende castigar os humanos, um humano se ergue em
defesa dos seus, treinado por um Anjo Caído que é famoso por levar os mesmos humanos à
ruína. ― agora seus lábios mostravam um sorriso malicioso, que embora bonito, assustava. ―
Interessante, tudo ficou muito mais divertido agora. Vou ter diversão, afinal.
O Anjo abaixou-se até aproximar seu rosto do de Misty.
― Obrigado pela informação. Por causa disso vou deixá-los viver. Mas quero que fique
bem claro uma coisa, não haverá outra oportunidade. Se deixarem que Lúcifer e seu pupilo
escapem da próxima, é melhor não voltarem para me encontrar e, é claro, torcer para que eu não
os encontre. Estamos entendidos?
― Sim, senhor!