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Análise de Contos de Clarice Lispector 1

UMA GALINHA exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois,


nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha
mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou,
respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as
penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de
um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo
estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela
pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam
mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta
não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste,
não era nada, era uma galinha. O que não sugeria
nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque olhavam já há algum tempo, sem propriamente um
não passava de nove horas da manhã. pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa
canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém brusquidão:
olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando — Se você mandar matar esta galinha nunca mais
sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se comerei galinha na minha vida!
era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe,
anseio. cansada, deu de ombros.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a
de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, galinha passou a morar com a família. A menina, de volta
alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a
— o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele
desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos,
deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o
chamada com urgência e consternada viu o almoço junto terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de
de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla apatia e a do sobressalto.
necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e Mas quando todos estavam quietos na casa e
de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena
resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo
cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado
trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição como num campo, embora a pequena cabeça a traísse:
tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua
percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a espécie já mecanizado.
uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que Uma vez ou outra, sempre mais raramente,
decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos
adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se
de conquista havia soado. fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, muito mais contente. Embora nem nesses instantes a
arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma
galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no
por um momento. E então parecia tão livre. começo dos séculos.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria Até que um dia mataram-na, comeram-na e
um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que passaram-se anos.
fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não
se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única
vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma
surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a
mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar
sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi
presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa
através das telhas e pousada no chão da cozinha com
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em
cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu.
De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida,
Análise de Contos de Clarice Lispector 2

(...)
FELICIDADE CLANDESTINA E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a
adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como
se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia
diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às
vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde,
mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a
outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as
olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e
enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora
criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai achava cada vez mais estranho o fato de não estar
dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife
mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que E o pior para essa mulher não era a descoberta do
vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha
como “data natalícia” e “saudade”. que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de
perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma
menina devia nos odiar, nós que éramos para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande
humilhações a que ela me submetia: continuava a ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
Até que veio para ela o magno dia de começar a estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
exercer sobre mim uma não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
tortura chinesa. Como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
casualmente, informou-me livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o
que possuía As reinações de peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
Narizinho, de Monteiro pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
Lobato. Era um livro grosso, pensativo.
meu Deus, era um livro para
se ficar vivendo com ele, Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
comendo-o, dormindo-o. E não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
completamente acima de depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
minhas posses. Disse-me novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
que eu passasse pela sua pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
casa no dia seguinte e que livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
ela o emprestaria. mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
Até o dia seguinte eu me transformei na própria para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No rainha delicada.
dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não
morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com
mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher
voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí com o seu amante.
devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava
toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o
meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.

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