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Nota de tradução (Sekhmet): Não costumo traduzir nomes e apelidos, preferindo

colocar a tradução em notas, mas como se tratam de personagens já conhecidos, tentarei


usar o nome dado nas traduções de Alice no país das maravilhas; e as notas terão o
nome original.
CAPÍTULO UM

OS OLHOS DO Chapeleiro1 estavam fechados, mas ele estava acordado. De fato, não
tinha dado uma piscadela no que parecia ser uma eternidade, mesmo que não pudesse ter
sido mais do que um mero quarto de eternidade que se passou. Ele ouviu o barulho da
fechadura e da porta da cela se abrir, pouco antes de uma grande mão o puxar rudemente
do beliche para o chão, onde o que parecia ser um pé de botas ligou-se às costelas. Seu
corpo instintivamente se curvou na posição fetal, como se só isso o protegesse, caso o
dono do pé decidisse fazer um espancamento completo, em vez de um único chute. A dor
passou por ele como um relâmpago, seus nervos gritando. Abrindo um olho, olhou para
o Guarda Vermelho que se aproximava e sentiu um pouco de alívio. Por uma vez, talvez,
a sorte estivesse, se não do seu lado, pelo menos não galopando completamente na direção
oposta.

Seu rápido vislumbre disse ao Chapeleiro que este guarda estava ficando um
pouco velho para administrar os espancamentos completos. Os espancamentos
apropriados exigiam uma grande quantidade de pisadas energéticas, assim como
vigorosas intimidações, chutes entusiasmados e xingamentos espirituosos. Havia um
molde decididamente rosado nesse guarda, como se ele tivesse passado muitos anos fora
patrulhando as fronteiras da Rainha, sua cor lentamente descorando sob o beijo brutal do
sol do País das Maravilhas2. Ele parecia cansado e desgastado, e o Chapeleiro notou uma
rachadura na armadura do joelho esquerdo. O Chapeleiro quase sorriu, decidindo-se
completamente, os espancamentos apropriados estavam bem além da capacidade desse
guarda. O Chapeleiro ficou imaginando o que acontecera com todos os guardas mais

1
Hatter
2
Wonderland
jovens, mais robustos e mais carmesins que a rainha costumava enviar para administrar
os estragos reais.

Talvez tivessem, de alguma forma, caído em desgraça com a rainha. Agora, esse
era um pensamento adorável que o animou consideravelmente, apesar da dor nas costelas.
Ele se perguntou se as cabeças vermelhas dos outros guardas ainda estavam presas a seus
corpos vermelhos, ou enfeitando uma série de cavilhas decorando o gramado dos jogos
de croqué3 da Rainha.

Seu dinheiro estava nas cavilhas.

Afinal de contas, nunca foi muito ofensivo para a Rainha chamar o Machado.
Seu temperamento era tão rápido que ele não ficaria surpreso se esse decadente velho
Guarda Vermelho fosse tudo o que ela tinha sob seu comando.

Nah. O Chapeleiro não teria tanta sorte.

Ainda assim, era bom sonhar.

– Levante-se.

Outro chute, embora não tão poderoso quanto o primeiro, mandou o Chapeleiro
se levantar. Ele foi tão rápido, pelo menos, quanto a dor em suas costelas permitiria.

O guarda apontou para a porta da cela. – Você foi convocado, correta e


adequadamente, foi sim.

– Uma intimação correta e adequada? Oh céus. Isso não vai acontecer. De modo
nenhum. Olhe para mim! – Ele limpou inutilmente a imundície que se agarrava ao casaco
e às pernas da calça. Dois dedos saíram cobertos por uma teia de aranha particularmente
horrível cravejada de pequenos cadáveres de moscas. Ele fez uma careta e afastou-a. –
Eu não estou vestido para uma intimação adequada. Não, de fato. Você simplesmente

3
deve voltar e pedir a Sua Majestade uma intimação correta e inapropriada. – Ele se sentou
na beira do beliche e cruzou as pernas. Puxou as luvas cinzentas sem dedos, um pouco
sujas e gastas, e socou a cartola sobre a cabeça. – Não se preocupe comigo. Vou esperar
aqui mesmo.

Por um longo momento, o Guarda Vermelho pareceu confuso. Era quase


doloroso ver como sua expressão se transformava em vários graus de incerteza enquanto
obviamente tentava atrapalhar seu caminho para o entendimento. Confusão, curiosidade,
mistificação e perplexidade progrediram, cada uma por sua vez, para espanto e
estupefação, que aconteceram em rápida sucessão, antes de finalmente culminar em total
descrença, que, após um breve momento, se aprofundou em intensa irritabilidade. Uma
mão musculosa se abaixou e arrancou o Chapeleiro do beliche como se ele não pesasse
mais do que um ratinho, depositando-o não muito gentilmente, em pé.

O Guarda Vermelho poderia estar desbotado, mas ainda era tão forte quanto
qualquer um que o Chapeleiro conhecia. Ele se perguntou, por um breve momento, se os
guardas eram escolhidos por sua força, ou se eram de alguma forma, infundidos com isso
quando aceitavam o trabalho. Ele não ficaria surpreso se fosse o último. Os médicos da
rainha tinham uma gama enorme de remédios medicinais à sua disposição.

– Nada dos seus jogos de palavras, Chapeleiro. Vamos em frente, eu digo! A


rainha está esperando, está sim. – O Guarda Vermelho deu um empurrão em Chapeleiro
na direção da porta.

Ele revirou os olhos. Maravilhoso. A própria pessoa esperando por ele era a
primeira pessoa que o queria morto, de preferência com uma batida sobre a cabeça e
pescoço com seu próprio condenável martelo de croqué e a primeira pessoa que desejava
vê-lo morto, sem dúvida, de uma forma muito desconfortável, provavelmente envolvendo
óleo quente e lanças. Ter a Rainha Vermelha esperando por ele fazia as coisas, oh, muito
divertidas.

Se alguém fosse facilmente entretido por coisas como dor insondável e


decapitação final, claro.

Sua bengala bateu contra as lajes enquanto seguia ao longo das passagens
sinuosas do Castelo Vermelho. Ele na verdade não tinha problemas em andar; a bengala
era mais uma afetação, um acessório, não uma necessidade médica. Quando lhe era dada
a escolha, ele não ia a lugar nenhum sem ela. Era uma bengala bonita, como essas coisas
eram, esculpida em alguma madeira exótica dura e escura. Era tão retorcida e nodosa
quanto sua alma e senso de humor, e encimado por um diamante azul-cobalto do tamanho
de um ovo de ganso. Bastante impressionante, de fato. Bom para golpear também, o que
ele provou, quando de repente girou nos calcanhares e atingiu o Guarda Vermelho em
cima da cabeça com ela.

O guarda caiu como um suflê mal assado. O Chapeleiro contornou o corpo,


parando apenas o tempo suficiente para se curvar e endireitar as dragonas do Guarda
Vermelho - a arrumação era uma virtude, afinal de contas, e como o Chapeleiro possuía
muito poucas delas, sentia-se inclinado a praticar os raros méritos que tinha, antes de
decolar em um ritmo acelerado.

Contornou a Topiaria4 Real, mantendo a cabeça baixa para que os Jardineiros


Vermelhos, sempre armados com tesouras terrivelmente afiadas e temperamentos
extraordinariamente curtos, não o vissem, depois virou e correu por um beco estreito entre
os Estábulos Reais e o Curtume Real. O mau cheiro do estrume do primeiro e o fedor dos
tanques do último o forçaram a prender a respiração até que passasse pelos dois edifícios.
No momento em que saiu do beco, seus olhos escorriam lágrimas e seus pulmões ardiam
por oxigênio. Ele parou, curvou-se na cintura, enxugou os olhos com as mangas e engoliu
gananciosos e ruidosos bocados de ar abençoadamente doce.

O que, infelizmente, foi seu erro.

– Você aí! Chapeleiro! Pare! – Outro Guarda Vermelho, este, décadas mais
jovem e mais avermelhado do que a anterior, chamou de um pátio de jardim próximo. –
Agarrem-no!

4
O Chapeleiro não precisou se virar para ver a dúzia de Guardas Vermelhos
aproximando-se rapidamente dele por trás - ele podia ouvi-los vagando pelo pátio, soando
como uma manada de elefantes em sapatilhas. Quando eles se apressaram e o prenderam
ao chão, eles pareciam como uma manada de elefantes também. Porcos, todos e cada um
deles. Eles realmente precisavam largar as tortas.

Para adicionar insulto à injúria, um dos bastardos gordos peidou nele.

Passado o tempo suficiente – supôs que esperavam que, com o tempo e a pressão
de seu peso combinados o transformaria em um diamante e confiava que ficaram
completamente desapontados quando ele permaneceu descontroladamente carnudo – o
peso foi levantado e ele foi puxado para seus pés.

Suas costelas, doloridas devido aos primeiros chutes, doíam de novo, embora ele
se recusasse a deixar os guardas verem sua dor. O orgulho teimoso não era exatamente
uma virtude, mas estava próximo o suficiente para que ele contasse como tal,
especialmente porque tinha muito poucas autênticas. Ele roçou as lapelas, esperando que
sua indignação aparecesse tão bem quanto os hematomas que ele sabia estarem
florescendo em seu rosto. – Meu chapéu e bengala, por favor.

Sua resposta foi o punho de diamante de sua bengala empurrando em seu


estômago com força suficiente para forçar a respiração de seus pulmões... de novo.
Ofegando por ar, ele olhou para o guarda que segurava sua amada bengala. – Sinto-me
obrigado a avisá-lo sobre a maldição.

O guarda bufou, mas uma sombra de inquietação cintilou em seus olhos,


exatamente como o Chapeleiro esperava que acontecesse. Os Guardas Vermelhos eram
notoriamente supersticiosos, afinal de contas, assim como qualquer um que servisse à
rainha por qualquer período de tempo. Passavam a maior parte do dia cruzando os dedos,
batendo na madeira, cuspindo nas palmas das mãos e jogando grandes porções de seus
salários em fontes, desejando poços e outros pequenos corpos de água na esperança de
obter sorte suficiente para evitar seu descontentamento mais um dia, e manter as cabeças
vermelhas presas aos ombros vermelhos. – M-maldição?

– Céus, sim. Essa bengala tem uma maldição muito cruel. Olha o que aconteceu
comigo desde que a tenho! Preso em uma festa de chá interminável, então trancado na
masmorra da Rainha por tanto tempo, esquecido e abandonado com espancamentos
duradouros em intervalos regulares, apenas para ser arrastado em sua presença para o que
eu só posso supor ser uma decapitação, e com pouca esperança em qualquer coisa, que
não seja o meu pescoço encontrando meu próprio machado. – Ele puxou a gola para
completar.

Os olhos do guarda se arregalaram. – Oh sim. É para ser uma decapitação, tudo


bem. Vi o machado na pedra de amolar esta manhã. Eu aposto que você está certo sobre
ser seu pescoço no bloco também. – Ele jogou a bengala para outro guarda. – Eu não
quero isso. Você leva.

Aquele guarda imediatamente jogou para outro. – Eu não! Eu não quero ser
amaldiçoado!

– Eu tenho bastante dificuldade! Eu não vou pedir mais emprestada. – O terceiro


guarda lançou-o em um quarto, que rapidamente atirou de volta ao primeiro.

O Chapeleiro assistiu a esse estranho jogo de batata quente por um tempo, mas
logo ficou entediado, pois parecia não haver esperança de um vencedor claro até que três
dos quatro Guardas Vermelhos morressem de velhice. Desde que ele realmente não queria
esperar tanto tempo, estendeu a mão e arrancou a bengala em pleno ar entre os
lançamentos. – Bem. Sendo a alma bondosa que sou, vou levar uma pela equipe, por
assim dizer.

– Obrigado! – Os rostos dos Guardas Vermelhos mantinham idênticas


expressões de alívio e gratidão. – Você é um cavalheiro, você é, Chapeleiro.

– De fato. Tudo o que peço por este grande sacrifício é o retorno do meu chapéu.
Temo que meu cabelo fique frio sem isso.

– Ah, claro! Por favor, pegue-o. – O primeiro guarda apresentou a cartola do


Chapeleiro, um pouco amassada e um pouco arranhada, mas, além disso, ilesa. Ele
esfregou um ponto na copa com a bainha de sua túnica antes de oferecê-la ao Chapeleiro.
– Apenas mantenha essa bengala longe de nós.

Ele pegou a cartola, socando-a no alto da cabeça com um tapinha afetuoso. – Ah,
querida. Como eu senti sua falta!
– Perdoe-me, Sr. Chapeleiro, mas...

– Só ' Chapeleiro ', por favor.

– Como quiser. Chapeleiro. Desculpe, especialmente desde que você teve a


gentileza de nos salvar dessa bengala amaldiçoada, mas nós decidimos levá-lo agora. Ela
terá nossas cabeças se não o fizermos. Você entende, não é?

O Chapeleiro revirou os olhos e soltou um longo suspiro de sofrimento. – Isso


ligado às suas cabeças, são vocês? Não podem ficar sem elas? Muito bem então.
Continuem. – Ele acenou para os quatro guardas em frente.

Eles se empurraram, formando uma linha reta, então começaram a marchar para
oeste, através do pátio em direção às portas abertas além dela.

O Chapeleiro bateu com os pés ao mesmo tempo, marchando até os guardas


chegarem às portas. Então deu três longos passos para o lado, onde um par de arbustos
crescia, e se abaixou em meio à vegetação.

– Esperem! Onde ele... Chapeleiro! – chamou o Guarda Vermelho. – Apareça,


apareça, onde quer que esteja!

Certo. Como se um pouco de diversão infantil como esconde-esconde pudesse


levá-lo a se revelar. Eles o achavam tão tolo? Ele revirou os olhos, embora não houvesse
ninguém para apreciar o gesto, além dos pulgões que marchavam ao longo dos caules das
plantas.

No final, a coisa que ele mais amava era o que o entregara. – Lá está ele, nos
arbustos de hortênsias! Eu posso ver sua cartola espiando através das folhas!

Mais uma vez, mãos grandes e musculosas o agarraram em um aperto


inquebrável, arrastando-o para fora dos arbustos do pátio. Ele lutou contra elas tanto
quanto suas costelas feridas permitiriam, mas sem sucesso.

Oh, por que, ele se perguntou pela centésima milésima vez, eu decidi me tornar
um Chapeleiro? Se eu tivesse ouvido meu pai e me tornado um peixeiro, isso nunca teria
acontecido. Um peixe nunca teria revelado a minha posição. Um peixe frio poderia ter
feito meus atacantes se sentirem desconfortáveis, e um peixe escorregadio poderia ter
facilitado minha fuga. De fato, um arenque, particularmente da variedade vermelha,
poderia ter levado meus perseguidores a uma direção falsa, mas nenhum peixe em que eu
possa pensar teria me exposto aos guardas.

Maldito por ter um toque de moda e um amor profundo e duradouro por todas as
coisas!

Ele fez outra tentativa desanimada de escapar, mas sua contorção só fez com que
os Guardas Vermelhos aumentassem o controle sobre ele. Eles o arrastaram pelo pátio e
pelas portas duplas do outro lado, o que levou a um longo corredor interno do castelo.
Para seu desalento, talvez mais do que sua captura, estava o conhecimento de que sua
bengala permanecera para trás, jogada na terra atrás dos arbustos, e os guardas,
convencidos de sua maldição, recusaram-se a voltar para ela.

Isso iria ensiná-lo a convocar maldições a torto e a direito, quer existissem ou


não…

O corredor era familiar para ele. Papel de parede de veludo vermelho cobria as
paredes, e um tapete grosso e carmesim listrava o chão de laje em linha reta, lembrando
ao Chapeleiro de uma língua longa e vermelha. Ele franziu o nariz, pensando - não pela
primeira vez - que andar naquele corredor em particular sempre fazia com que se sentisse
como um produto descartado passando pelo trato digestivo do castelo. Através dos dentes
e passando pelas gengivas...

Retratos de rainhas e reis anteriores, cada um com um corpo mais curto e


redondo sustentando uma cabeça maior e mais bulbosa do que a anterior, todos usando o
vermelho real e testas franzidas idênticas, pendurados em molduras douradas por toda a
extensão da parede. A coroa de cada geração sucessiva era maior e mais vistosa que a
anterior, até que finalmente, no único retrato restante, a coroa tinha quase a mesma altura
que o corpo do rei. Os retratos continuavam em uma linha longa e curvilínea de pretensão
no comprimento do corredor.

Chapeleiro sabia onde o corredor terminava. Era o caminho que conduzia à sala
do trono. Ele também sabia o que havia em um pátio externo ao lado da sala do trono, e
foi isso que levou seus joelhos a virarem gelatina.
O bloco do carrasco - lar do Machado5.

Os ossos pareciam fugir de sua carne, e ele caiu nos braços de seus captores, a
cabeça caindo para frente enquanto seus dedos arrastavam sulcos no carpete vermelho.
Ele estava condenado.

Ele pensara que era uma bênção a princípio, quando ele, Arganaz e Coelho
Branco6 tinham conseguido literalmente irritar o Tempo7, e foram amaldiçoados a reviver
a mesma hora do chá repetidas vezes, particularmente quando ele descobriu que A Festa
do Chá, enquanto durasse, manteria o dom da juventude. Agora, ele achava simplesmente
um desperdício. Depois de todos esses anos passados na prisão, ele ainda parecia tão
jovem quanto era quando tomou seu primeiro gole de chá, mas que bem faria ele? Sua
cabeça, jovem ou não, ainda rolaria. Ele só esperava que a maldição da Imortalidade
desaparecesse quando sua cabeça deixasse seus ombros. Ele odiaria ser uma cabeça sem
corpo; talvez preso em uma lança na sala do trono, condenado a entreter convidados de
festas e servir como um porta-chapéus.

Dois Guardas Vermelhos adicionais estavam de sentinela nas portas da sala do


trono. Movendo-se em uníssono, eles abriram as portas pesadas. O guarda de honra do
Chapeleiro arrastou-o para dentro e para baixo ao longo do corredor até o palco da rainha.
Lá, eles o largaram como uma meia suja, para cair como lixo no chão.

– Cortem sua cabeça!

Chapeleiro conhecia aquele grito horrível. Isso sempre fazia com que quisesse
limpar seus ouvidos com atiçadores de ferro quentes. Havia apenas uma criatura no País
das Maravilhas que poderia fazer esse som.

A Rainha Vermelha.

Sem sair de seu lugar no chão, ele tocou os dedos na aba da cartola, inclinando-
a levemente. – Majestade. Você está parecendo tão atraente quanto antes. Seria pedir
demais para os cães reais levá-la de volta para onde quer que eles a tiraram?

5
Axe
6
Dormouse e White Rabbit
7
Time
Seu grito de indignação ecoou, tornando-o três vezes mais doloroso nos ouvidos.
– Chamem o Machado!

Uma nova voz interveio – felizmente para a cabeça do Chapeleiro – antes que o
Machado respondesse ao chamado da rainha. – Majestade, uma palavra, se eu puder?

A rainha dirigiu-se ao recém-chegado com a mesma consideração que ofereceu


a todos os outros, o que, naturalmente, não era nenhuma. – O que é agora, Gato8? Fale
agora ou fique em silêncio! Estamos perdendo a luz e quero que a cabeça dele role antes
do jantar.

O Chapeleiro também conhecia a segunda voz e gostava de seu proprietário


apenas um pouquinho mais do que da rainha. Evidentemente, a voz era definitivamente
mais fácil para os ouvidos do que era ela – ronronava e retumbava em tons agradáveis –
mas falava em enigmas irritantes sempre que possível. Maldito Gato. O que ele estava
fazendo no Castelo Vermelho e como conquistara os bons grados da rainha? Da última
vez que o Chapeleiro ouviu, ela odiava o felino quase tanto quanto odiava o Chapeleiro.

Contra seu bom senso, o Chapeleiro inclinou a cabeça para poder ver o palco. A
rainha, redonda, verticalmente desfavorecida e com cabeça grande como qualquer de seus
antepassados, sentava-se no trono, os saltos de seus pés minúsculos tamborilando uma
irritante melodia contra as pernas da cadeira. Seu vestido de seda vermelha, enfeitado
com um tecido fofo de arminho tingido de vermelho, envolvia-a em ondulações e dobras,
deixando apenas a cabeça, as mãos e os pés expostos. Ela segurava um cetro de ouro em
sua mão, que era, o Chapeleiro pensou maliciosamente, não tão impressionante quanto
sua bengala agora perdida.

O rosto da rainha não era tão bonito quanto impressionante, da mesma forma que
uma cobra venenosa era atraente – interessante de se olhar, sim, mas muito melhor
quando visto à distância. Seu rosto era oval, os olhos de um tom curioso de amarelo que
se aprofundava em laranja quando seu temperamento explodia, o que era basicamente o
tempo todo. Empilhadas no alto da cabeça, havia mechas intrincadas de cabelos da cor

8
Cat
do sangue, presos no lugar por muitos alfinetes de cornalina 9. Um diadema de ouro
cravejado de rubi circundava a base de sua touca alta.

Em um banquinho colocado ao alcance de sua mão direita estava uma enorme


coroa de ouro e preciosas gemas que a superavam em altura e peso. Era tão grande que
se ela realmente tentasse usá-la, o peso provavelmente quebraria seu pescoço como um
osso de galinha. Quando ela precisava vestir-se – para aquelas raras ocasiões especiais,

como decapitações familiares reais e afins – fios a suspendiam do teto e a posicionavam


para parecer estar colocada em sua cabeça. Na verdade, ela simplesmente sentava-se
embaixo dela.

Chapeleiro notou o trono do Rei Vermelho na lateral da sala, coberto de poeira


e teias de aranha. Ela tinha deixado seu marido maluco, eles disseram. Ele simplesmente
saiu do castelo um dia e nunca mais voltou. Eles nunca encontraram o corpo, então havia
uma chance de ele ainda viver. Claro, havia a possibilidade distinta de que a rainha tivesse
a cabeça do rei cortada em segredo e o corpo enterrado profundamente. De qualquer
forma, a menos que se provasse o contrário, tecnicamente o rei estava vivo e permanecia
no poder, e a rainha governava em seu lugar, sem oposição.

Pessoalmente, o Chapeleiro, que sempre achara o Rei Vermelho uma figura


agradável, esperava que o rei permanecesse entre os vivos e nunca fosse encontrado. Era
muito bom pensar que ele escapou da rainha. O Chapeleiro tinha grande prazer em
imaginar o rei vivendo uma vida cheia de perigo e excitação, talvez como um pirata ou
bandido, embora fosse muito mais provável que seus restos mortais estivessem mofando
sob a terra em algum lugar do terreno do castelo, a cabeça enfiada firmemente sob o seu
braço.

Mais perto do trono, à esquerda da Rainha, completamente sem apoio de nada


além de ar, estendia-se o Gato de Cheshire. Peludo, rechonchudo, laranja e branco, ele

9
tinha os maiores olhos verdes e os dentes mais brancos e afiados que Chapeleiro
conseguia se lembrar de ter visto em um felino. Ele abriu os membros em um longo e
preguiçoso alongamento, depois rolou de lado e deu um sorriso largo e cheio de dentes.
– Não deve ser muito apressada, Majestade. Sem cabeça, onde o chapéu do Chapeleiro
descansaria? Não seria bom ter um chapéu perdido rolando sobre o reino, querendo ou
não, tropeçando nas pessoas. As pessoas podem nos achar desalinhados.

Ela atirou-lhe um olhar fulminante. – Você nunca fala claramente? Talvez fosse
a sua cabeça que eu deveria mandar cortar.

O sorriso do Gato ficou mais largo quando seu corpo desapareceu, deixando
apenas a cabeça para trás. Era uma visão muito desconcertante, o que, é claro, era o
motivo pelo qual Chapeleiro suspeitava que o Gato fazia isso com tanta frequência. –
Receio que isso já tenha sido tentado, Majestade, e sem muito sucesso, se bem me lembro.
– O resto dele reapareceu tão gordo e peludo como sempre. – Pense por um momento,
sua mais alta vermelhidão. Sem a cabeça, ninguém saberia que ele é o Chapeleiro.
Acredito - e por favor, corrija-me se estiver errado - a figura agora no País das Maravilhas
busca o Chapeleiro, não apenas o Chapéu. Simplesmente não faria sentido enviar um
Chapeleiro sem cabeça para... nosso convidado.

O rosto da rainha ficou vermelho como as muralhas do castelo. Uma mão apertou
o braço de seu trono até que suas articulações estalaram. A outra mão apertou o cetro de
ouro que ela carregava com tanta força que deixou marcas de dedos embutidas no metal.
– Intruso! Intruso! Invasor! Não será permitido! Fora com a cabeça dele!

– Agora, Alteza, nós concordamos que a cabeça dele deve permanecer ligada ao
corpo até descobrirmos como ele chegou aqui e o que ele quer, não é?

Seu lábio inferior se projetava em um magnífico beicinho, digno da realeza e ela


assentiu quase imperceptivelmente. Seus olhos dispararam de volta para o Chapeleiro,
seus lábios se abriram em um sorriso malicioso e ela apontou um dedo gorducho. – Então
fora com a cabeça dele.

– Majestade, nós acabamos de passar por isso. Temo que você não possa
decapitá-lo também. Ainda não, pelo menos.
O Chapeleiro fez uma careta. O Gato não poderia simplesmente deixar de
decapitá-lo? Era realmente necessário adicionar a parte “ainda não”?

A rainha saltou em seu trono. – Claro que posso! Eu sou a rainha. Posso fazer o
que quiser. Fora com a cabeça dele! Fora com sua cabeça! Fora com todas as suas
cabeças! – Os olhos dela se arregalaram tanto que o Chapeleiro temia que eles pudessem
sair de seu crânio e voar através da sala como um par de ervilhas jogadas por crianças
mal comportadas na mesa de jantar.

A voz do Gato permaneceu aveludada, imperturbável, como se sua fúria


enlouquecida não fosse mais do que uma birra de temperamento de criança. – Agora,
agora, Majestade, se você colocar todo mundo no machado, quem seria deixado para
governar?

A rainha se irritou por um momento, abanando e bufando, claramente querendo


que todas as cabeças do reino rolassem e não querendo admitir que o Gato tinha razão.
Ela soprou uma mecha de cabelo de seus olhos e fez beicinho. – Bem, a cabeça de alguém
tem que sair.

– É por isso que estamos enviando o Chapeleiro para nosso convidado, para atraí-
lo para interrogatório.

– E cabeças rolando! Não se esqueça disso!

O sorriso do Gato cresceu um pouco predatório demais para o gosto do


Chapeleiro. – Claro, Majestade. Eles vão se ajoelhar diante do Machado... em boa hora.
Por enquanto, precisamos que as cabeças deles permaneçam onde estão se quisermos que
nossas perguntas sejam respondidas. Lembra?

Ela tentou fazer uma barganha e apontou para o Chapeleiro. – Mas este está
pedindo por um bom corte. Talvez apenas um pequeno arranhão, então? Um corte em seu
pescoço com a lâmina? Apenas um arranhão. Ninguém vai notar. Ninguém vai se
importar. Vou me contentar com um barbear rente neste momento.

O Gato estalou a língua para ela. – Não, majestade, não agora. Você conhece as
regras. Fora ou não, nada ao meio.
– Ah bem… caramba. – Aquilo foi o mais próximo que a rainha chegou a um
palavrão. Ela poderia pedir decapitações suficientes para inundar o País das Maravilhas
com um oceano de sangue, mas ter uma palavra de quatro letras passando por seus lábios
era simplesmente muito para seu estomago digerir. Até mesmo o leve xingamento que
ela conseguiu fez com que os que estavam na sala do trono respirassem em choque,
incluindo o Gato e o Chapeleiro. – Então, ambas as cabeças vão rolar o mais rápido
possível!

– Esse é o espírito, sua vermelhidão. – Ronronou o Gato.

Chapeleiro piscou e, esquecendo-se por um momento que era a cabeça dele,


recentemente em perigo, ergueu-se do tapete. – De quem é a cabeça que estamos falando
agora? A minha ou de outra pessoa? Está saindo ou permanecendo? E por quê? Estou
muito confuso.

– Sim, estamos falando sobre sua cabeça. Está ficando por agora. O porquê disso
é... é... – A Rainha franziu os lábios por um momento. – Gato, me diga de novo porque
devo manter a cabeça dele em seus ombros?

– O menino Alice pergunta por ele e, por sua vez, precisamos que ele nos traga
o visitante para interrogatório.

A Rainha gritou e bateu as mãos sobre os ouvidos, derrubando o seu diadema.


Seus pés chutaram uma batida rápida contra as pernas da cadeira. Ela apontou para o
Gato. – Você sabe que é contra a lei dizer esse nome na minha presença! Fora com a sua
cabeça!

O corpo do Gato desapareceu novamente e ele revirou os grandes olhos verdes.


– Majestade, tente manter o foco, sim? Acabamos de discutir isso.

Fazendo beicinho, suas bochechas manchadas de fúria vermelha, a rainha ergueu


o queixo em desafio. – Oh, bem, então com a cabeça dele, ao invés disso!

O Chapeleiro se apoiou em um cotovelo e perguntou de novo, mais confuso do


que nunca. – De quem é a cabeça?
– Ele! Ele! –A rainha deu um pulo e bateu os pés minúsculos. Seu vestido girou
em torno dela como uma inundação de vermelho. Ela mostrou os dentes, sua voz
deslizando entre eles em um sussurro venenoso. – Garoto Alice!

Agora o Chapeleiro estava intrigado o suficiente para se colocar sentado. Ele


enfiou a mão no bolso e tirou uma xícara cheia de chá quente fumegante, em seguida,
bebeu ruidosamente. Afinal de contas, eram quase quatro e ele nunca perdia a hora do
chá se pudesse evitar. A culpa é da longa prática que ele teve na interminável Festa do
Chá com Arganaz e o Coelho. – Posso perguntar quem é esse 'Garoto Alice'? Isso não
parece um nome adequado, para mim.

O Gato rolou de costas, arranhando alegremente o ar. – Então, diz aquele


nomeado em homenagem à um manequim louco. – Ele rolou para trás e sorriu para o
Chapeleiro. – Não é a panela chamando a chaleira de frigideira?

O Chapeleiro franziu a testa, esvaziou a xícara e cuidadosamente a colocou no


bolso. Ele preferiu ignorar a observação em vez de admitir que Cat tinha razão. – Quem
é essa pessoa chamada 'Garoto Alice' e por que ele estaria perguntando por mim?

– Majestade, cubra suas orelhas. – O Gato esperou até que a Rainha terminasse
de lhe atirar sua mais sombria e feroz carranca, e bateu as palmas das mãos contra as
orelhas novamente. Ela começou a cantarolar uma música que poderia ser cativante se
não tivesse sido tão terrivelmente desafinada. O Gato virou-se para Chapeleiro. – Nós
não sabemos o seu nome verdadeiro ainda. Ele é, como nossa patrulha de reconhecimento
nos diz, o irmão de Alice, e é por isso que nos referimos a ele como “Garoto Alice”.

Os olhos do Chapeleiro se arregalaram e sua boca se abriu. – Você quer dizer...


a Alice?

O Gato assentiu. – Você conhece alguém mais com esse nome no País das
Maravilhas?

– Eu não sabia que ela tinha um irmão.

– Bem, parece que ela tem, e agora ele está aqui, e perguntando por você.

– Eu? Por que eu? – O Chapeleiro franziu a testa, seus dedos se preocupando
com um dos grandes botões roxos em seu colete de brocado ligeiramente gasto e
ligeiramente brilhante. – Eu não o conheço. Nunca conheci o sujeito. Mal conhecia sua
irmã quando ela estava aqui. Tudo parece um pouco à frente, não acha?

– Ah, essa é a questão, não é? Nós não sabemos por que ele está aqui ou por que
está perguntando por você. Ele se recusa a responder a qualquer pergunta. Nem mesmo
da Largarta10, e você sabe, a Pillar tem maneiras de fazer as pessoas falarem.

O Chapeleiro sorriu e assentiu. – A mais poderosa erva daninha ao norte da toca


de coelho, e nem me faça começar a falar sobre os cogumelos. – Ele olhou para a rainha.
Seu canto ficou mais alto e mais desafinado do que antes. Suas bochechas estavam tão
vermelhas quanto seu vestido, e sua carranca estava tão profunda que você podia esconder
o tesouro nas dobras de sua testa. Ela estava claramente tão frustrada que um parente da
tão odiada Alice se atreveu a pisar no País das Maravilhas, e que o parente, novamente
como a odiada Alice, se recusou a ser franco sobre seus negócios no reino ou seguir o
protocolo visitando primeiro o Castelo Vermelho, como ela estava em sua própria
incapacidade de ter a cabeça de alguém cortada.

Ele olhou para o Gato esperando por respostas. – Então, nós não temos a menor
ideia do nome dele, porque está aqui, ou o que quer comigo?

– Não. – O Gato gesticulou em direção à rainha. – Majestade acha que ele quer
a mesma coisa que ela achava que Alice queria, principalmente derrubar seu regime. Se
você se lembra, pouco antes de deixar o País das Maravilhas, Alice foi a Rainha... por um
curto período de tempo.

Ele lembrava. Provavelmente foram os melhores e mais felizes cinco minutos


que o reino jamais conheceu.

Ele olhou para a rainha novamente. Se ela ficasse mais irritada, o Chapeleiro
estava preocupado que sua cabeça pudesse explodir. Não que isso fosse necessariamente
uma coisa ruim, pensou o Chapeleiro, mas ela faria uma bagunça horrível, e estou na
zona de respingo. Ele era mais esperto do que dar voz a esse pensamento em particular,

10
Pillar.
e sabiamente manteve dentro de sua cabeça onde pertencia. – O que Sua Majestade deseja
que eu faça?

Como se incapaz de conter a ira, a rainha atacou e golpeou o Chapeleiro na


cabeça com o cetro. Isso fez uma marca feia em sua cartola. – Imbecil! Queremos que
você encontre o menino Alice e corte a cabeça dele!

O Gato a silenciou. – Agora, agora, majestade. Pense. O que dissemos antes?

A rainha revirou os olhos, depois virou a cabeça, recusando-se a fazer contato


visual com o Gato e murmurou baixinho. – As pessoas não podem falar quando suas
cabeças são removidas.

– Correto. E o que queremos que o Chapeleiro faça?

Ela suspirou pesadamente. – Encontre o Garoto Alice e traga-o aqui para que
possamos fazer perguntas a ele. – Ela arqueou uma sobrancelha e curvou os lábios em um
sorriso malicioso. – E depois corte a cabeça dele!

– E o Chapeleiro? – O Gato cutucou. – Ocorre-me que ele deveria receber algum


tipo de recompensa por trazer o Garoto Alice, senão ele pode não ser muito receptivo.

A rainha bufou e fez uma careta, como se as palavras fossem amargas o


suficiente para sufocá-la. – Oh, muito bem. Se ele trouxer o Garoto Alice para mim, ele
poderá manter a própria cabeça.

– E...? – O Gato a cutucou.

Ela mostrou os dentes. – E eu lhe concederei um perdão total por seus crimes.

– Excelente. Você é muito magnânima, majestade. – O Gato virou o sorriso para


o Chapeleiro. – Entendido?

– Estou louco, não surdo.

A rainha recompensou-o com outra batida de seu cetro. – Então por que você
ainda está aqui?

O Chapeleiro tirou o chapéu e, depois de dar batidinhas para desfazer as marcas,


curvou-se. Seu chapéu - para não mencionar seu corpo - havia levado uma surra suficiente
por um dia. – Eu estou saindo.
O Gato riu, rolando de costas. – Você pode dizer isso de novo.

Sério, às vezes ele odiava aquele Gato maldito.

O Chapeleiro estreitou os olhos e endireitou o chapéu, passando os dedos com


força sobre a aba. Ele saiu da sala do trono, de costas e cabeça erguida. Ele tentou não se
preocupar muito, mas foi difícil. Ele não tinha ideia do tipo de problema que o Gato e a
Rainha estavam enviando para ele encontrar naquele momento. Quando conheceu Alice,
embora a conhecesse por pouco tempo, ele quase perdeu a cabeça como resultado. O que
ele poderia estar em perigo de perder com o irmão de Alice?
CAPÍTULO DOIS

HENRY FICOU de pé, esfregando a cabeça. Doía, não como se tivesse batido
nele, mas como se estivesse doente, embora, pelo seu conhecimento melhor, ele não
estivesse. Ele olhou para a luz do sol brilhando para ele, mas rapidamente desviou os
olhos antes da intensidade queimar suas córneas. Quando o sol nasceu e onde ele esteve
enquanto estava subindo? A última coisa de que ele se lembrava é que era noite, e ele
estava se sentindo bem.

Onde ele esteve? Ele tentou pensar, lutando através das teias de aranha em sua
mente que obscureciam suas memórias. Ah sim. Ele estava começando a lembrar, embora
tudo ainda estivesse nebuloso. Houve uma festa. Foi um jantar, oferecido por sua irmã,
Alice, não foi? Ele franziu a testa, tentando lembrar mais.

Havia pizza, ele lembrava claramente disso, mas queijo e calabresa não
causariam perda de memória, causaria? Nunca o fez antes.

Não houve uma discussão? Bem, claro que houve. Isso pode não ser uma
lembrança tanto quanto um bom palpite. Ele e Alice sempre brigavam. Na verdade, era
uma ocasião rara quando eles não trocavam farpas. Às vezes punhos voavam. E, em uma
ocasião memorável, enviaram meia dúzia de finos pratos de porcelana zunindo na cabeça
um do outro.

Este não tinha sido apenas a velha briga de irmão/irmã, no entanto, tinha? Não,
tinha sido uma briga, a mesma que eles tinham desde que eram crianças, de uma forma
ou de outra. Ela insistia que tinha caído em uma toca de coelho e, mais tarde, atravessou
um espelho para um mundo fabulosamente confuso chamado “País das Maravilhas”.

Ele insistia que a mãe deve ter repetidamente a deixado cair de cabeça quando
criança, e se ela continuasse insistindo que coelhos usavam coletes e arganazes davam
festas do chá, ele só precisaria falar com o marido de Alice, Phillip, sobre arranjar umas
boas e longas férias para ela no asilo de loucos local. Talvez algumas centenas de volts
de eletricidade entre suas orelhas fossem suficientes para espalhar seu cérebro.

Honestamente, ele não podia esperar por junho, quando finalmente alcançaria
dois de seus objetivos de vida dentro de dias um do outro - seu décimo oitavo aniversário
e sua formatura do ensino médio. A combinação o libertaria, e ele planejava deixar a casa
de seus pais, sua irmã e seu passado compartilhado em sua poeira, enquanto se
aproximava de um futuro livre de contos lunáticos de coelhos que usavam relógios de
bolso e Rainhas Vermelhas.

Um futuro onde ele estaria livre para ser ele mesmo, onde não haveria
esconderijo, sem abaixar a cabeça, sem fingir que não ouvia os sussurros e insultos sobre
sua irmã maluca, e nenhum remorso por deixar tudo para trás.

Então Alice pediu desculpas por deixá-lo chateado e entregou-lhe um copo de


ponche. Ele quase não pegou. Era tão fora de sua personalidade ela desistir e renunciar
da briga tão rapidamente, que ele sentiu fortemente que algo estava errado. Ele não
duvidava que ela pudesse tentar envenená-lo. Não havia amor entre ele e Alice, não desde
que ela desapareceu e voltou com aquelas histórias selvagens.

Ele tinha certeza de que as histórias inacreditáveis de Alice eram gritos


grosseiros por atenção, toleráveis em uma menina de sete anos, talvez, mas não em uma
garota crescida e na adolescência, e certamente não agora, de uma mulher casada em seus
vinte e poucos anos. Ela era sua irmã mais velha por vários anos - ela deveria estar dando
um bom exemplo. Ele tinha idade suficiente para lidar com a verdade de qualquer coisa
horrível que tivesse acontecido com ela quando desapareceu.

Mesmo que ela realmente acreditasse em suas mentiras audaciosas, ele sentiu de
todo o coração, seus desaparecimentos e sua recusa em dizer a verdade, o que tinha levado
o pai deles para a bebida, e a mãe deles para uma sepultura prematura.

Hoje em dia, seu pai raramente saía de sua suíte, permanecendo em um estado
de entorpecer inebriado. Ele não se importava se a casa pegasse fogo desde que sua bebida
fosse entregue. Henry duvidava de ter visto seu pai mais de meia dúzia de vezes no ano
anterior. Ouvi-lo, sim. As tiradas bêbadas do pai eram praticamente lendárias. Mas ver?
Não, quase nunca. Era igualmente bom - papai era um bêbado malvado que costumava
deixar seus punhos falarem por ele. Outra razão pela qual Henry contava os minutos até
que pudesse sair de casa para sempre.

Henry colocou a culpa pela condição de seu pai diretamente nos delicados
pezinhos de Alice. Para Henry, o pai deles era um gigante inacessível que sempre
governou sua casa com uma vontade de ferro inflexível e inabalável. Certamente ele
nunca teria afundado tão baixo se não fosse pelo peso das mentiras ridículas de Alice
puxando-o para baixo.

Depois havia o tio Leonard, o irmão da mãe, que chegara há vários anos, logo
após a morte da mãe, e não saíra desde então. Tio Leonard era gentil o suficiente, Henry
supôs, mas até ele acreditava nos contos de Alice. Essa era a extensão da família de Henry,
e ninguém, nem uma única alma na casa, ficou do lado dele contra Alice.

Henry não só não conseguiu acreditar no absurdo de Alice, como também nunca
conseguiu perdoar Alice. Houve muitas vezes em que ele mal conseguiu permanecer na
mesma sala que ela. Se ela pedisse desculpas, contasse a verdade sobre o País das
Maravilhas, admitisse que era um sonho ou uma invenção e contasse o que realmente
havia acontecido com ela, então talvez. No entanto, contanto que ela insistisse que suas
mentiras eram a verdade, ele não queria fazer parte dela. Na verdade, ele só concordou
em participar da festa porque o marido de Alice, Phillip, convidou. Phillip era um sujeito
bastante simpático e Henry sempre gostara dele. Afinal, não era culpa de Phillip que Alice
fosse maluca.

Ontem à noite seu sorriso parecia genuíno, e ele pegou a bebida da mão dela.
Agora parecia que ele deveria ter escutado seus instintos. O que ela colocou nela? Parecia
um ponche e cheirava a ponche, mas definitivamente não tinha gosto de ponche.
Lembrou-se de um gosto complicado enchendo sua boca, o sabor lembrando-o de
caramelo, pudim de figo, fígado, cebola, e repolho tudo misturado em uma combinação
singularmente horrível. Antes que ele pudesse reclamar, porém, o gosto foi rapidamente
seguido por uma sensação de que o mundo estava mudando de eixo, e então... nada.

Nada, isto é, até que ele acordou em uma cama macia de musgo, com picos de
dor em sua cabeça e o gosto de pés sujos em sua boca. Cuspiu no chão e enxugou os
lábios com as costas da mão - por tudo de bom que isso fez. O gosto se agarrava a sua
língua como uma criança assustada às saias da mãe.

Um olhar superficial ao redor lhe disse que estava em um jardim, mas ele não
tinha a menor noção de a quem o jardim pertencia ou onde estava localizado. Nada parecia
nem um pouco familiar para ele. Não era o lindo e cuidadoso jardim de rosas na casa de
seus pais, onde ainda morava, nem o canteiro de margaridas e miosótis mais distante do
quintal de Alice. Também não era um jardim em qualquer parque que ele frequentasse,
nem pertencia a nenhum dos seus amigos e conhecidos. Ele nunca tinha visto isso no
terreno da escola, ou em qualquer lugar da cidade. Ninguém que ele conhecesse teria um
jardim como este, ligado às suas casas. Era muito estranho, muito estranho, muito...
muito.

Por um lado, a flora aqui era ridícula. Cada planta era escandalosamente enorme,
ostentando flores enormes e pesadas, flores com cheiro adocicado e brilhantemente
coloridas, e grossas hastes de vegetação que pairavam bem acima de sua cabeça. Elas
formavam uma área retangular grande e aparentemente impenetrável de folhagem, e ele
teve que esticar o pescoço para ver o topo. Espinhos do tamanho de baionetas impediam-
no de subir ou empurrar as paredes florais.

Por outro lado, havia uma grande criatura parecida com uma lagarta nas
proximidades de um enorme cogumelo. O inseto tinha o tamanho de um pequeno pônei
e estava coberto com um pelo azul brilhante e pontudo, manchado de amarelo pálido.
Pior, estava fumando de um enorme cachimbo de narguilé roxo. Um caracol de fumaça
azulada preguiçosa se enrolava em torno de sua cabeça, e um cheiro doce e picante
pairava pesado no ar, fazendo Henry se sentir um pouco tonto.

Maravilha. Apenas o que ele precisava. Uma viagem alucinógena.

– Garoto Alice, estamos entediados. Talvez você nos divirta. Diga-nos... por que
você é?

Ótimo. Ele estava ouvindo coisas, assim como as vendo e cheirando. Garotos de
dezessete anos poderiam ter derrames? Talvez ele teve um desses. Ele colocou um dedo
na garganta, sentindo o pulso. Estava forte e estável, e não dava nenhuma explicação do
motivo pelo qual ele estava delirante.
A lagarta respondeu ao seu silêncio, soprando uma série de anéis de fumaça em
sua direção.

Henry tossiu, acenou com a mão na frente do rosto em um esforço inútil para
afastar o ar esfumaçado e tentou não inalar. – Porque eu sou…?

– Sim, menino maçante. Por que você é?

– O que?

– Tão burro quanto sua irmã, nos atrevemos a dizer. Perguntamos por que você
é e você responde que é o que é. – A lagarta deu uma tragada funda em seu cachimbo.
Depois de um momento ou dois, ela soltou outro longo fluxo de fumaça que envolveu a
cabeça e o pescoço de Henry como um laço de carrasco. – Por que devemos nos importar
com o que você é? Você é você e nós somos nós. Nosso único interesse é por que você é.

Henry tossiu novamente. – Por que estou tendo essa conversa? Você não é real.
As lagartas não crescem até o tamanho dos móveis de jardim, e mesmo se o fazem, não
falam, e definitivamente não fumam. Você é uma alucinação. – Ele gesticulou ao redor
dele, batendo em uma margarida do tamanho de um pneu de caminhão. – Eu tive algum
tipo de ruptura psicótica. Tudo isso faz parte de uma ilusão, provavelmente provocada
por qualquer coisa que Alice me fez beber ontem à noite. Ela me envenenou, a pequena
idiota!

– Quem é a idiota11? Um parente, talvez, de Tweedledum e Tweedledee?

– Quem? – Ele balançou a cabeça. – Deixa pra lá. Não importa. Eu preciso ir
para casa.

– E onde é isso, Garoto Alice? – A lagarta fez um giro com seu cachimbo. – Em
que direção você deveria ir?

– Casa é… é… bem, eu não sei exatamente o caminho. Eu não sei onde estou.

– Deveria ser óbvio. Você está aqui conosco.

– Mas... mas onde você está?

11
Twit, no original.
– Novamente, a resposta é óbvia. Estamos aqui, com você. – A lagarta inalou de
novo, depois soltou outro grosso fluxo de fumaça azul. – Realmente, você deve prestar
mais atenção à conversa.

A cabeça de Henry estava começando a girar agradavelmente. Ele resistiu à


vontade de respirar fundo ou, melhor ainda, pedir uma tragada no cachimbo da lagarta. –
Olha, tudo que eu sei é que Alice me fez beber algo que me derrubou. A última coisa que
eu lembro é a voz dela me dizendo para encontrar o Chapeleiro. Havia algo mais também,
mas...

Aquele nome ampliou os olhos da lagarta. Ele se inclinou, apontando para Henry
com seu cachimbo de narguilé, cortando Henry. – O Chapeleiro, você diz? Por que ele?

– Eu não sei por que. Eu nem sei se existe tal pessoa, ou como ele poderia me
ajudar.

– Ah. – A lagarta deitou-se e fumou por um momento. – O Chapeleiro existe, ou


pelo menos, ele existia. – Você?

– Eu o que?

– Existe.

Henry enfiou os dedos pelos cabelos, puxando com força o suficiente para trazer
lágrimas aos olhos, quase ao final de sua sagacidade com a criatura irritante. Ou
alucinação. Ou seja, lá o que diabos isso fosse. – Claro que eu existo! Estou bem aqui.

– Talvez você seja uma invenção da nossa imaginação. – A lagarta soprou uma
fita especialmente espessa de fumaça em Henry. – Não seria a primeira vez que
conversamos com nós mesmos. Nós gostamos bastante, na verdade. Somos bem
espirituosos, sabe.

– Você é louco!

A risada da lagarta soou molhada, como tubos gorgolejando. – Mas é claro.


Todas as melhores pessoas são. Apenas pergunte ao Chapeleiro.

Henry cerrou os dentes, tentando manter seu nível de voz e seu temperamento
sob controle. Ele quase conseguiu. – Foda-se o Chapeleiro!
– Por favor. Nós poderíamos nos importar menos sobre com quem o Chapeleiro
escolhe dormir com ou não. Nós poderíamos acrescentar, nem deveria importar a
ninguém.

Ele franziu a testa e balançou a cabeça, depois deu as costas para a lagarta.
Depois de um momento ou dois, ele se iluminou. – Talvez eu ainda esteja inconsciente,
e tudo isso seja um sonho. Talvez o que quer que Alice tenha me dado tenha me derrubado
e eu ainda esteja dormindo. – O humor dele se deteriorou rapidamente em medo. – Por
outro lado, talvez eu esteja morto, e isso seja o inferno. Não pode ser o paraíso, porque
duvido que lagartas irritantes e gigantes sejam permitidas ali, drogadas ou não. Eu não
me sinto morto, entretanto, não com essa dor de cabeça tão forte. – Ele começou a
massagear suas têmporas. – Embora se estou no inferno, é lógico que eu seria condenado
a suportar todo tipo de sofrimento. Ambas: as dores na cabeça, – ele olhou de volta para
a lagarta. – E a dor de aguentar pessoas chatas.

Ele abaixou as mãos, determinado a ignorar a dor. Focando sua atenção, ele
andou de um lado para o outro na área retangular do jardim, procurando por buracos na
folhagem espessa o suficiente para se espremer sem ser furado pelos espinhos, mas não
encontrou nenhum. Ele não podia escalar pela mesma razão. Escavar não era uma opção,
não sem uma pá. Finalmente, em desespero, ele se voltou para a lagarta. – Como faço
para sair daqui?

A lagarta deu uma tragada profunda em seu cachimbo, parecendo contemplar a


questão. – Bem, nós supomos que você poderia voar. – Ele olhou para Henry por cima
do tubo. – Você pode voar?

– Eu pareço que posso voar?

– Você não parece que pode fazer muita coisa. Essa não foi a nossa pergunta.
Estamos bem conscientes de que as aparências enganam, por isso perguntamos se você
pode ou não voar.

Henry apertou os molares, apertando a mandíbula. – Não. Eu não posso voar.

– Pena. Seria um talento muito comercializável.


Henry sorriu. – Eu diria que você está voando o suficiente por nós dois. Vamos
lá, deve haver alguma saída daqui!

– Hmm. – A lagarta gesticulou em direção às espessas paredes da folhagem. –


Você não pode simplesmente passar para o outro lado?

– Não. Vai doer. – Henry deu um passo para longe da parede de vegetação e
espinhos, só para estar seguro.

– Talvez a dor não seja tão terrível quanto você teme que seja.

– E talvez seja pior. Você já viu o tamanho desses espinhos? Tem que haver
outro jeito!

A lagarta fumou por algum tempo, aparentemente perdida em pensamentos.


Então, de repente, sentou-se para frente e apontou o cachimbo para Henry, parecendo
severa. – Foge do Jaguadarte, o que não morre! Garra que agarra, bocarra que urra! Foge
da ave Jubjub, meu filho, e corre do frumioso Capturandam!12

Henry ficou boquiaberto com a lagarta. – O Jagua quem? Eu nunca ouvi falar de
um pássaro Jubijubi e 'frumioso' não é nem uma palavra. Você quer saber o que penso?
Eu acho que a erva fedorenta que está fumando apodreceu seu cérebro. Ou isso ou aquilo,
tudo ainda é uma alucinação, uma que é atribuída ao absurdo total.

A lagarta recuou, batendo o queixo com o cachimbo. – Hmph. Interessante. Alice


também não entendeu. Nós só podemos supor que a estupidez em sua família é genética.

Henry já tinha tido o bastante. Encontrando alguns cantos e recantos no


cogumelo gigante para servir de pé e apoio para as mãos, ele subiu até a cabeça larga e
lisa. Estendendo a mão, puxou o cachimbo de narguilé da mão da lagarta e o manteve
fora do alcance dos seus braços curtos e magros.

A lagarta guinchou um som fino, frágil e desesperado. – Não! O que você está
fazendo? Oh, seu garoto mal. Você é um menino terrível! Devolva para nós! Devolva!

12
Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
The frumious Bandersnatch!
– Absolutamente. Assim que você me disser como sair deste jardim! Tem que
haver um caminho. Você entrou. Eu entrei. A lógica diz que, se há uma entrada, deve
haver uma saída. – Ele balançou o cano, provocando a lagarta.

– Tudo bem, tudo bem! Mentiras lógicas. A saída é ilógica.

– Isso não faz qualquer sentido!

– Agora você está entendendo. Talvez haja esperança para você depois de tudo.
Nós te contamos o segredo, garoto! Devolva-nos agora!

– Você não me disse nada além de bobagem! Como faço para sair daqui?

A lagarta bateu os punhos ineficazes contra a superfície ligeiramente


escorregadia da cabeça do cogumelo. – Para subir, é preciso descer. Para voltar, é preciso
ir em frente. Para sair, é preciso entrar!

– Entrar? Se eu entrar, os espinhos me fatiarão!

–Isso! Isso! – A lagarta bateu no cogumelo com mais força. – Isso permitirá que
você entre.

O lábio de Henry se curvou quando olhou para o fungo gigante no qual eles
estavam. – Você quer dizer que eu tenho que comer um pouco dessa porcaria? Eu odeio
cogumelos.

– Bem. Então fique. É escolha sua. Agora respondemos sua pergunta. Dá-nos o
nosso cachimbo! – A lagarta aproximou-se de Henry, todas as dezesseis mãos fazendo
movimentos de agarre para o cano, o rosto dela contorcido num grunhido.

– Bem! Mas se comer não funcionar ou me deixar doente, eu vou voltar aqui e
enfiar esse narguilé na sua bunda! – Ele não sabia se a lagarta realmente tinha uma bunda,
ou se tinha, onde estava localizada, mas parecia uma boa ameaça para Henry de qualquer
maneira. Ele jogou o cano na lagarta.

A lagarta agarrou o cachimbo e segurou-o junto ao peito, protegendo-o


avidamente de roubos ilícitos de rapazes terríveis ou de imprevistos inesperados.
Henry encontrou uma borda da cabeça de cogumelo que era macia, e foi
facilmente capaz de quebrar um pedaço pequeno, do tamanho de uma fatia de pão. Parecia
um pouco viscoso e cheirava a sujeira, mas ele conseguiu dar uma pequena mordida.

– Tão estúpido quanto sua irmã! – A lagarta rosnou atrás dele. – Chato, irritante
e bravo! Saia do nosso cogumelo e saia da nossa Toca!

Henry sentiu algo bater em suas costas, empurrando-o sobre a borda do


cogumelo. Ele inclinou-se descontroladamente por um momento, seus braços girando,
mas perdeu a luta com a gravidade e despencou, caindo indefeso no espaço. Seu último
pensamento foi que parecia muito, muito mais longe do que ao subir. Tinha que ser a
lagarta. O maldito inseto deve ter feito alguma coisa com ele. Ele esperava que não
quebrasse uma perna ou suas costas na queda, então assim que terminasse de cair, seria
capaz de subir de novo e estrangular a lagarta com sua própria mangueira de narguilé.
CAPÍTULO TRÊS

A VIAGEM do Castelo Vermelho para a Toca da Lagarta transcorreu sem


problemas, além de uma enxurrada de pedras lançadas na carruagem real pelos aldeões,
uma conversa próxima com um Capturandam13 furioso, e o movimento geral de chocalho
de osso, de dentes e espinha as rodas da carruagem de madeira batendo em estradas de
terra infestadas de pedras e cheias de buracos.

Ainda assim, o Chapeleiro pensou, acho que é melhor do que andar. Por mais
desconfortável que o passeio fosse, eliminou pelo menos um dia e meio de meu tempo de
viagem. Também provavelmente eliminou um centímetro inteiro de minha altura
comprimindo minha espinha, mas a pessoa não pode ter tudo.

Os aldeões que atiravam pedras estavam a par da rota. Ele teria ficado mais
chocado se eles não tivessem aparecido e jogado pedras em seu transporte. Afinal de
contas, ele estava andando na carruagem real ridiculamente vermelha, uma
monstruosidade ostensiva e pretensiosa sobre rodas, se é que havia uma, um veículo que
praticamente gritava: – Aqui vem a Rainha Vermelha, a Causa de Todas as Suas Aflições.
– Os aldeões não lhe tinham nenhuma queixa pessoal - eles esperavam que a Soberana
estivesse dentro, não o Chapeleiro. Os aldeãos simplesmente pensaram que tinham uma
chance de acertarem a Rainha diretamente em sua cabeça carmesim com um de seus
mísseis rochosos. Eles ficariam muito desapontados ao descobrir que nunca tiveram uma
chance, já que a Rainha estava em segurança abrigada em sua sala do trono no castelo. O
Chapeleiro não queria ser o único a desiludi-los, e emitia um som alto, gritos estridentes
de vez em quando apenas para ouvir a onda de gritos que inevitavelmente o seguiam.

O Capturandam era outra história. Criaturas imundas, cheias de dentes e garras


e atitudes amargas, mas surpreendentemente saborosas se bem salgadas e cozidas longa

13
Bandersnatch
e lentamente. O Chapeleiro desejou ardentemente que o que quase lhe deu uma mordida
já estivesse temperado e assado em fogo baixo. A coisa feia poderia ter conseguido encher
a boca do Chapeleiro, se um dos pés não tivesse sido atingido por uma raiz que a lançou
em um pântano próximo. Ele esperava fervorosamente que um crocodilo maltratado que
morasse naquele pântano, achasse que o Capturandam faria uma refeição excelente e
saborosa. A aversão do Chapeleiro por Capturandams não conhecia limites.

Estava se aproximando da hora do chá no segundo dia, quando o cocheiro


finalmente parou violentamente na frente de um retângulo de vegetação espessa. As
paredes da folhagem subiam tão alto que, se estivesse inclinado, teria que esticar o
pescoço para ver o topo delas. Tendo as costas e o pescoço torturados pelas estradas
irregulares e o passeio mais violento do último dia e meio, e tendo visto os topos das
sebes em ocasiões anteriores, o Chapeleiro manteve o olhar colado ao chão enquanto saía
desajeitadamente da carruagem. Seu rosto se enrugou em uma careta de dor quando sua
coluna lentamente, e ruidosamente, retornou ao seu estado original, desarrolhada e sem
compressão.

Um cartaz colocado na parede mais próxima tinha a palavra “Toca” escrita em


caligrafia requintada, cheia de redemoinhos e arabescos delicados. Ao lado do letreiro,
pendia um cordão de veludo roxo com berloques.

A Toca da Lagarta, conhecido por todos que viviam no País das Maravilhas
como um lugar para evitar entrar a qualquer custo, era também um dos locais menos
favoritos do Chapeleiro. Não porque fosse tão difícil escapar como uma armadilha de
dedo chinesa - afinal, ele era uma das poucas pessoas a par do segredo de escapar dela -
mas por causa de seu dono tagarela.

A lagarta, com suas perguntas absurdas, induzidas por drogas e seu hábito de
sempre se referir a si mesma à maneira plural ‘nós’, era o suficiente para fazer com que
qualquer um que entrasse em sua Toca se empalasse em um dos espinhos gigantescos,
melhor do que permanecer em sua companhia, o Chapeleiro incluído.

Ainda assim, ele não tinha escolha se queria encontrar o Menino Alice, ou
qualquer que fosse o nome verdadeiro do sujeito, e, ao fazê-lo, esperançosamente
eliminaria seu próprio encontro com o Machado. Para não mencionar alimentar sua
própria curiosidade, que era, às vezes, mais uma fera voraz do que a mais frívola
Bandersnatch, e provavelmente ainda mais provável que fosse o meio de sua morte. Ele
suspirou e estendeu a mão para puxar gentilmente o cordão de veludo roxo.

De algum lugar no fundo das paredes verdes, um delicado sino musical soou.
Parecia uma gargalhada de cristal, tão delicada, frágil e doce que quase dava uma dor de
dente ao Chapeleiro ao ouvi-la.

– Quem vem à nossa porta?

– É o Chapeleiro, Lagarta. Alguém chamado “Menino Alice” está aí com você?

A risada molhada da Lagarta fez o Chapeleiro trincar os dentes. – Ora, ora. Nós
temos regras, como você está bem ciente. Nós fazemos as perguntas.

– Vamos lá, Lagarta. Não seja um idiota. Apenas responda a pergunta para que
eu possa continuar com a minha vida, e você possa continuar com... er, seja lá o que for
que está fazendo aí além de chupar esse maldito narguilé.

– Regras, Chapeleiro! Sem regras, o mundo é o caos. Sem regras, a civilização


cai. Sem regras, ficamos entediados e tiraremos uma soneca.

Chapeleiro rangeu os dentes com força suficiente para machucar sua mandíbula.
– Bem. Qual é a sua pergunta?

Ele podia ouvir dezesseis mãos minúsculas batendo palmas em antecipação


alegre de uma rodada enérgica de enigmas, e revirou os olhos.

O som de Caterpillar limpando sua garganta flutuou através das folhas. Parecia
que ele estava gargarejando vidro. – O que é frio às vezes e quente em outras, e vermelho
para todos, apesar de alguns Vermelhos acharem que eles são azuis?

Deuses, como eu odeio esses jogos estúpidos! Ele pensou por um momento,
depois suspirou. Era tão óbvio! A Lagarta deve estar perdendo seu toque. Ele costumava
inventar enigmas que realmente testavam o intelecto.

– A resposta é sangue, claro. Mamíferos são de sangue quente, répteis são de


sangue frio, e a realeza diz que seu sangue é azul. – Ele podia praticamente sentir o cheiro
do desapontamento da Lagarta porque ele tinha conseguido a resposta tão rapidamente. –
Minha vez, agora. O Menino Alice está aí?

– Não, não! Não há vezes. Nós fazemos as perguntas, não você. Você conhece
as regras, Chapeleiro!

– Lagarta...

– Vamos dormir. Não deve ser uma soneca longa... apenas três ou quatro dias.

– Não! Não, não durma. Vá em frente, me pergunte outra! – As mãos do


Chapeleiro se fecharam em punhos enquanto ele lutava para conter seu temperamento.
Os cochilos da Lagarta eram mais parecidos com comas induzidos por drogas, e a última
coisa que ele queria era esfriar os calcanhares do lado de fora da Toca, esperando que a
Lagarta passasse por dias de desintoxicação auto-induzida.

A voz da Lagarta estava cheia de presunção. – Muito bem. Outro enigma, então.
Nós vemos longe, vemos perto, temos espíritos, contamos horas. O que nós somos?

Chapeleiro tocou a ponta de um dos enormes espinhos. Picou o dedo dele,


aparecendo uma gota brilhante de sangue. Ele xingou e enfiou na boca. Tão afiado quanto
me lembro deles. Sem empurrar a vegetação, então. Enquanto o Chapeleiro sabia de uma
porta secreta através da qual uma pessoa poderia sair da Toca, ele também sabia que era
apenas uma via. Havia apenas dois modos de entrar, dos quais ele estava ciente - o
primeiro era cair do céu e o segundo era esperar o convite da Lagarta. Como ele não tinha
asas, o primeiro estava fora; ele não tinha escolha a não ser optar pelo segundo.

Maldita Lagarta e esses enigmas estúpidos! Ele sentou-se na grama, observando


o padrão irregular de voo de uma borboleta. Pense, Chapeleiro! Longe, perto, espíritos,
horas... – Oh, claro! – Ele deu um pulo e foi até a parede. – A resposta é vidro, claro. Os
vidros dos óculos de proteção veem longe, os vidros das lupas veem de perto, os vidros
das garrafas contêm espíritos de álcool e os das ampulhetas contam o tempo.

Ele teve pouco prazer no gemido frustrado de Caterpillar. Ele simplesmente não
tinha tempo para mais tolices. Havia, percebeu, uma maneira de obter respostas sem
entrar na Toca. Era um truque sujo e um pouco dissimulado, mas ele estava desesperado.
Ele enfiou a mão no bolso, afundando até o cotovelo, procurando um objeto em particular.
Um sorriso iluminou seu rosto enquanto seus dedos se fechavam em volta e o retiravam.
– Você sabe o que estou segurando agora, Lagarta?

– Sem perguntas! Sem perguntas! Você conhece as regras.

– Oh, eu diria que você vai querer a resposta para esta aqui, Lagarta. Está tudo
bem. Eu não vou te forçar a jogar. Eu vou te dar a resposta. É um palito de fósforo. Um
adorável palito de madeira com ponta vermelha. Um golpe contra a sola do meu sapato e
vou queimar sua preciosa Toca até o chão.

– O que? Não, você mente!

– Minto? Você deveria me conhecer melhor que isso. Posso estar louco e, de vez
em quando, posso fazer a verdade parecer uma rua tortuosa em uma cidade retorcida, mas
não sou mentiroso. – O Chapeleiro levantou um pé e raspou o fósforo sobre a sola do
sapato. Uma pequena chama irrompeu em vida, piscando no final do bastão de madeira.
Ele segurou-a em direção à parede de vegetação e suavemente soprou a fumaça subindo
da chama, observando a fina serpente entre as folhas na Toca. – Cheira isso? Isso é
simples fumaça, meu amigo, mas como eles dizem, onde a fumaça está, o fogo não pode
estar muito atrás.

O Chapeleiro sabia que, ao contrário do que muitos pensariam, as ervas que


Caterpillar absorvia não embotavam seus sentidos, mas o faziam hiperconsciente das
menores mudanças em sua Lair. A lagarta perceberia a fina nuvem de fumaça de fósforo
aceso como uma nuvem turva e nociva. O Chapeleiro sorriu para si mesmo e esperou a
inevitável explosão.

Houve um grito repentino de – Fumaça! – Seguido por uma cacofonia de


estrondos, gritos, pancadas e batidas de dentro da Toca. O Chapeleiro podia imaginar a
Lagarta em estado de confusão, sem saber o que fazer, todas as dezesseis mãos se
debatendo em pânico. Deixar o Chapeleiro entrar? Responder a pergunta do Chapeleiro?
O que fazer? O que fazer?

O Chapeleiro aproveitou o momento para pressionar. – Onde está o Menino


Alice, Lagarta?

– Foi! Ele se foi. Ficou pequeno e saiu!


Ah não. Não, não, não! – Você não o fez comer o maldito cogumelo, não é?
Lagarta, você é mais esperto que isso. A rainha proibiu você de alimentar alguém com
um pedaço daquele cogumelo novamente!

A voz da Lagarta diminuiu para um gemido. – Nós precisamos, Chapeleiro! Ele


estava nos perturbando. Ele se recusou a jogar pelas regras. Ele ergueu a voz para nós,
Chapeleiro.

A chama comeu o resto do bastão de madeira, queimando os dedos do


Chapeleiro. Ele sacudiu e soltou, empurrando os dedos levemente queimados na boca.
Sua voz soou um pouco distorcida quando tentou enunciar em torno de seu polegar e
indicador. – Você é uma lagarta adulta, Lagarta. Eu pensaria que você poderia se sustentar
em uma discussão sem recorrer a alimentar pessoas pobres e desavisadas com pedaços
do seu fungo viscoso. Para qual caminho ele foi?

– Você apagou o palito?

– Responda-me e eu lhe direi.

– Ele foi... para baixo.

Bem, claro que ele foi. A única outra direção era para cima e, a menos que o
Menino Alice mantivesse um canhão no bolso com o qual pudesse se atirar na estratosfera
superior, sua única opção seria descer. – E então, para onde?

– Nós não sabemos. Nós não assistimos. Nós não nos importamos.

O Chapeleiro percebeu que a Lagarta estava dizendo a verdade. Se o Menino


Alice fosse parecido com sua irmã, ele provavelmente era irritante na melhor das
hipóteses, desagradável na pior das hipóteses, e positivamente frustrante se o clima o
atingisse. As chances eram boas. A Lagarta não podia esperar para se livrar dele, daí
porque ele arriscou a ira da Rainha fazendo o Menino Alice comer o cogumelo.

Comer o fungo não era o único recurso da Lagarta. Havia uma maneira muito
mais fácil e segura de deixar a Toca - através de uma porta secreta na folhagem que apenas
a Lagarta, o Chapeleiro e alguns outros conheciam. Fazer o Menino Alice comer o
cogumelo era uma indicação de quanto a Lagarta não gostava dele.
– Você apagou a chama, Chapeleiro? Por favor, Chapeleiro?

O Chapeleiro suspirou. Por mais que a Lagarta fosse irritante, ele era em essência
uma criatura simples e inofensiva, que cuidava de seus próprios negócios, a menos que
você cometesse o erro de invadir sua Toca, ou o deixasse convencê-lo a compartilhar de
seu cachimbo. Seus enigmas eram incômodos, mas benignos. Ele também não fizera
nenhum mal ao Chapeleiro dessa vez e respondera à sua pergunta. Só porque o Chapeleiro
não estava feliz com a resposta, não significava que a Toca da Lagarta deveria queimar.
– Sim, está apagado. Você está seguro.

O alívio na voz da Lagarta foi bastante audível. – Nós te agradecemos. – A


fumaça roxa novamente começou a sair de entre as folhas das paredes enquanto o cheiro
de erva enchia novamente o ar.

O Chapeleiro voltou sua mente para o problema em questão, a saber, encontrar


o Menino Alice. O melhor lugar para começar sua busca, de fato, o Chapeleiro supôs, o
único lugar, já que agora ele sabia com certeza que o Menino Alice havia comido o
cogumelo da Lagarta, era o chão sob o enorme cogumelo. Isso significava que a busca
iria começar com o Chapeleiro de joelhos, já que era provável que o Menino Alice
estivesse - se ele sobreviveu ou não à queda do cogumelo, no chão da Toca.

Se ele estivesse morto, o cadáver machucado e quebrado do Menino Alice estaria


em algum lugar na grama, à sombra do cogumelo. Se ele tivesse vivido o que era
certamente um pouso extremamente difícil, estaria vagando - provavelmente machucado,
sangrando e mancando - entre a selva de talos de grama, sem dúvida tentando permanecer
vivo.

Experimentar o cogumelo da Lagarta fazia o comedor se encolher ao tamanho


de um fiapo largo de dente-de-leão. Era assim que se dizia que o Rei Vermelho encontrou
seu destino - ele comeu o cogumelo da Lagarta e um vento forte o levou embora. Eles
ainda tinham que encontrar o corpo do pobre homem.

É claro que o rei poderia estar vivo, ponderou Chapeleiro, não pela primeira vez.
Fingir a própria morte seria uma maneira brilhante de escapar da vida com a rainha.
De qualquer forma, foi por isso que a Rainha proibiu a Lagarta de alimentar
qualquer outra pessoa com seu cogumelo. Se ela descobrisse que o Menino Alice comeu
um pouco, ela teria a cabeça da Lagarta. Embora o Chapeleiro não nutrisse nenhum
carinho especial pela Lagarta, ele não gostava mais da rainha. Não haveria mais cabeças
para ela, não se ele pudesse ajudar.

– Lagarta? Deixe-me entrar, por favor.

– Nós temos regras...

– Não comece de novo. Eu tenho um pacote inteiro de fósforos. Devo acender


outro?

– Entre, Chapeleiro.

Exatamente assim - porque, afinal de contas, é assim que funciona a magia – o


Chapeleiro se viu capaz de atravessar as grossas paredes verdes da Toca até o interior
sem ganhar um único arranhão dos espinhos semelhantes a baionetas. Ele sabia, porém,
que voltar do mesmo jeito seria impossível sem que o espetassem. Essa magia era
unidirecional.

O Chapeleiro caiu de joelhos e começou a procurar pela grama na base do


cogumelo. Não era como procurar uma agulha no palheiro. Ah, não, isso teria sido muito
mais fácil porque a agulha raramente tentava se esconder, o que ele suspeitava ser
realmente o caso do Garoto Alice.

Encolhido ao tamanho de um grande ácaro de pó, a melhor tática de


sobrevivência do Garoto Alice seria se esconder de tudo, inclusive do Chapeleiro, que
pareceria um gigante do ponto de vista do Garoto Alice.

O olhar atento do Chapeleiro lentamente varreu o chão. Ele encontrou bolotas,


penas, uma pedra em forma de amendoim, um amendoim em forma de pedra e uma chave,
que ele embolsou porque você nunca sabia quando poderia tropeçar em uma fechadura e
precisar desesperadamente de uma. Ele também encontrou uma meia coroa, uma coroa
inteira e uma tiara faltando apenas dois ou três diamantes, os quais também foram para
seu bolso.
Ele viu centopeias correndo em marcha com sua centena de pés e Diplópedes,
tendo dez vezes mais pernas, passando rapidamente por elas, fazendo com que as
centopeias soltassem palavrões. Havia formigas em abundância - formigas vermelhas,
pretas, formigas elif, formigas gi, formigas de pique, formigas ascendentes,
descendentes14, formigas e formiguinhas, e ele pensou que poderia ter visto uma formiga
clarividente, mas deve tê-lo sentido vindo porque desapareceu antes que ele pudesse ter
certeza. Ele encontrou tampinhas de garrafas, chocolates, tampões e gorros, bem como
joias, flores, carpete e erva ardente15 que queimaram os dedos quando ele acidentalmente
tocou.

A única coisa que ele não encontrou foi Menino Alice.

Ele se sentou e se espreguiçou, sentindo sua espinha estalar como milho no fogo.
Parecia que ele estava procurando por dias, mas uma olhada em seu relógio de bolso
mostrou que menos de uma hora tinha passado. Por que o Tempo diminuía ou acelerava
adversamente para o que quisesse? Se ele queria que o Tempo passasse rapidamente, o
relógio arrastava as mãos em volta do rosto com a velocidade de um caracol morto.
Quando ele queria que o Tempo diminuísse, acelerava, passando por ele em um borrão.
O Tempo, ele decidiu, tinha uma natureza decididamente contrária, e ainda carregava
rancor contra o Chapeleiro de todo o desastre da Festa do Chá.

O Chapeleiro empalideceu e imediatamente tentou apagar o pensamento de sua


mente por medo de que ele irritasse o Tempo novamente e acabasse procurando no
maldito pedaço de grama para sempre, assim como ele quase passou sua vida em eterna
hora do chá da última vez que o amaldiçoou. O Tempo era muito sensível e muito cheio
de si mesmo, no que dizia respeito ao Chapeleiro.

– Garoto Alice! Isso seria muito mais fácil se você apenas aparecesse! – Seu
olhar aguçado examinou a área gramada ao pé do cogumelo gigante, então lentamente se
dirigiu para a imensa parede verde. A área dentro da Toca não era tão grande, talvez um

14
Nota de tradução (Sekhmet) - Intraduzível. No original, formiga = ants, então seriam: Elif ants (elefantes),
gi ants (gigantes), pique ants (picantes), Ascend ants e descend (sobem e descem), e a clairvoy ant
(clarividente).
15
bottlecaps, snowcaps, hubcaps, e nightcaps. Jewelweed, hawkweed, carpetweed, e fireweed.
mero quarto do tamanho do salão de baile da Rainha, mas se ele tivesse que vasculhar
tudo em suas mãos e joelhos, ele provavelmente seria um velho barbudo no momento em
que terminasse. Ou pelo menos teria as mãos e joelhos extremamente doloridos.

Ele poderia alegar que o Menino Alice estava morto. Marche até a rainha e diga
a ela que a Lagarta o comeu. Ou fumou, o que pode ser mais crível.

Nesse ponto, ela faria uma das duas coisas: pediria a cabeça da Lagarta, ou
entraria em uma raiva profunda por perder a chance de matar ela própria o Menino Alice,
e cortaria a cabeça do Chapeleiro como um substituto inferior.

Talvez mentir não fosse o melhor dos planos, afinal de contas.

Suspirando pesadamente, ele retomou sua busca.

Ele abaixou-se para que seu nariz praticamente tocasse a terra, procurando no
chão por qualquer sinal do Menino Alice. Por fim, depois de ter procurado uma área tão
ampla quanto o Menino Alice poderia ter coberto nas poucas horas desde que comera o
cogumelo e encolhera, ele viu um par de pequenas pegadas pequenininhas em um monte
de sujeira macia.

Muitas centenas de pegadas ligeiramente maiores os cercavam. Então as


pequeníssimas pegadas desapareceram, e tudo o que restou, afastando-se do suave monte
de terra, foram as impressões ligeiramente maiores.

O Chapeleiro conhecia aquelas outras impressões e amaldiçoou em voz alta


quando as viu.

As formigas, ao que parece, haviam capturado o Menino Alice.

Ele olhou em volta novamente, pisando cautelosamente para que não esmagasse
inadvertidamente a Colina das Formigas e o Menino Alice com ela. Ali, a cerca de trinta
centímetros, parecia o provável culpado. Um formigueiro subia como uma espinha da
terra preta.

Ele se abaixou novamente e olhou de perto para o Formigueiro. Algumas


formigas restantes desapareceram pelo buraco em seu centro.
Formigas vermelhas, para ser preciso, o que atraiu outra maldição dos lábios do
Chapeleiro. Claro que teria que ser Formigas vermelhas. Elas eram muito mais cruéis e
sanguinárias que qualquer outro grupo de formigas, marchando em exércitos bem
treinados e regidos por uma feroz e cruel Rainha Vermelha formiga.

Chapeleiro enfrentou outra escolha: voltar para a Rainha Vermelha Não-Formiga


e dizer a ela que a Rainha Vermelha Formiga tinha o Menino Alice em sua Colina, e ele
estava tão bom quanto morto, ou ficar pequeno e entrar no Formigueiro Vermelho e tentar
resgatá-lo.

O primeiro cenário, sem dúvida, resultaria na cabeça do Chapeleiro rolando do


Bloco do Carrasco, já que a Rainha provavelmente colocaria a culpa pelas Formigas
comendo o Menino Alice totalmente no Chapeleiro. O segundo provavelmente o veria
comido e descartado como um cocô do Formigueiro Vermelho.

Embora nenhuma opção fosse particularmente atraente, ele admitiu que poderia
ter pelo menos uma chance minúscula de sobreviver se escolhesse o segundo.

Revirando os olhos para o céu e proferindo uma oração meio lembrada de sua
infância, Chapeleiro voltou-se para o cogumelo da Lagarta e se preparou para ficar
pequeno.
CAPÍTULO QUATRO

HENRY INSTINTIVAMENTE respirou fundo quando percebeu que não havia


nada sob seus pés, a não ser ar. Se foi em antecipação de um pouso forçado ou um grito,
ele não sabia. Em ambos os casos, ele esperava atingir o fundo logo depois de cair da
beira do cogumelo da lagarta, mas, em vez disso, continuou a cair livremente, o ar
passando por suas orelhas em um rugido.

O cogumelo da lagarta estava situado na beira de um penhasco? Henry achava


que não, mas parecia a única explicação racional. Talvez a lagarta tivesse uma espécie de
alçapão secreto instalado na base do caule de cogumelos através do qual Henry agora
caía. Era improvável, mas realmente, alguma coisa tinha sido lógica desde que acordou?

Ao cair, ele percebeu algo estranho. Embora tivesse considerado as flores e as


folhas do covil da lagarta enormes antes, agora elas pareciam enormes, como se um
gigante as cultivasse no jardim de um Titã. Rosas Repolho16 eram maiores que cabeças
de repolho. Elas pareciam crescer ainda mais conforme ele caia. Agora eram maiores que
as poltronas, maiores que as casas! Como poderia ser? Era realmente estranho, e ele
ponderou a possibilidade enquanto continuava a cair.

Levou um bom tempo para concluir que, ao contrário do que ele pensava
originalmente, as folhas e flores das plantas que envolviam o grande cogumelo da lagarta

16
não tinham crescido até tamanhos gigantescos, mas em vez disso, ele havia encolhido até
o tamanho de um grande ácaro de poeira.

Esta não foi uma conclusão a que ele chegou facilmente. De fato, um argumento
internalizado sobre o assunto guerreou dentro dele por um tempo. Nenhum homem, muito
menos Henry, iria querer admitir que ele era pequeno, iria? Pequeno, fraco, franzino,
frágil e indefeso... pelo menos, é isso que o pai de Henry diria. O que seu pai, que mal
podia suportar Henry agora, pensaria dele se Henry tivesse encolhido?

Não, ele não acreditaria. Nunca. Ele não ficou menor. Até onde sabia, ele era do
mesmo tamanho normal e saudável que sempre fora. Deve ser que todo o resto tenha
aumentado para proporções inacreditáveis.

Quando caiu, porém, uma coisa curiosa aconteceu. Começou a questionar por
que o tamanho deveria importar tanto para ele. Ele tinha amigos que eram mais baixos e
outros que eram mais altos. Algumas pessoas que conhecia eram mais magras, algumas
mais gordas. Eles eram todos de boa qualidade, pessoas sólidas, generosas e confiáveis.
Seu tamanho físico certamente não tinha nada a ver com o tamanho de seus corações.

Então era nisso que seu pai acreditava? Que seu tamanho só faz um superior?
Claro que não. Ele tinha um amigo, Marcus, que mal chegava ao ombro de Henry, mas
ainda segurava uma faixa preta no tae kwon do, e podia facilmente derrubar Henry em
sua bunda. Outra amiga, Mallory Ames, era delicada e frágil, mas possuía uma mente tão
nitidamente brilhante que se formara dois anos antes do resto do círculo de amigos e já
estava bem encaminhada para obter seu diploma universitário.

O pai de Henry acreditava que grande era melhor em todas as coisas. É claro
que, estando bêbado a maior parte do tempo, seu pai dizia muitas coisas que eram mais
mentira do que verdade. As coisas que Henry já suspeitava serem lixo, como a crença de
seu pai de que a cor da pele, ou onde a pessoa estudava, quanto dinheiro a família tinha
ou quem amava, tornava a pessoa melhor ou inferior a outra. Talvez fosse a hora de Henry
reexaminar mais suas convicções, em vez de acreditar cegamente no que quer que seu pai
lhe dissesse.

A verdade neste caso, ele percebeu, era que o tamanho do corpo não importava
muito no esquema das coisas. Era o tamanho do espírito, a profundidade do coração e o
poder da mente que contava mais do que centímetros de ossos e quilos de carne. Seus
amigos valiam mais do que ouro para ele, independentemente de seu tamanho, cor ou
origem.

O argumento era irrefutável e parecia resolver a questão de quem ou o que


crescera ou encolhera. Por alguma estranha razão, de alguma maneira estranha, ele ficou
muito, muito menor. Para ele, este era um planeta recém-dimensionado, onde havia
zangões do tamanho de helicópteros e formigas do tamanho de cavalos Clydesdales17,
mas ele sabia que, qualquer que fosse seu tamanho, ele se adaptaria. Heroicamente, em
grande parte e sem problemas, e se adaptando perfeitamente, porque dentro de seu peito
batia o coração de um gigante.

Pelo menos, era isso que ele esperava que fosse verdade.

Um problema colocado pelo encolhimento ocorreu a ele. Enquanto agradecia


que as roupas que vestia tivessem encolhido, percebeu que, se permanecesse pequeno,
precisaria de um guarda-roupa inteiramente novo quando finalmente voltasse para casa.
Nada pendurado em seu armário caberia mais nele. A proposta de substituir todas as suas
camisas, jaquetas, calças, jeans e roupas íntimas era cara - mesmo que ele pudesse
encontrar roupas para o tamanho de ácaros e não precisasse ter tudo feito sob medida -
mas esse ainda não era seu problema mais imediato.

A queda era, porque não parecia querer acabar. Poderia uma pessoa cair para
sempre? Quanto tempo antes que ele morresse de sede ou fome, e apenas seus ossos
continuassem a cair?

17
Ele fechou os olhos com força enquanto mergulhava em direção à terra,
preocupado que quando finalmente chegasse ao fundo, ele se quebrasse em um milhão de
pedaços como uma garrafa de cristal caindo sobre um chão de ladrilhos. Portanto, o
primeiro quicar o pegou de surpresa.

Um momento ele estava caindo, no seguinte ele ricocheteou numa folha como
se fosse um trampolim e deu uma cambalhota no ar. Ele pousou em outra folha e quicou
naquela também. Depois de mais alguns saltos involuntários, ele começou a se divertir,
saltando de uma folha para outra com uma mira surpreendentemente boa.

Ele saltou mais algumas vezes, apontando para uma folha mais baixa a cada vez,
até que se sentiu confiante de que estava perto o suficiente do chão para pular para ele
sem se machucar. Sua sorte resistiu - uma cobertura das folhas caídas do ano passado
cobria a terra dura. Foi surpreendentemente suave e amorteceu sua aterrissagem.

Henry fez uma pausa por um momento, com as mãos nos joelhos, respirando
com dificuldade, com os sentidos oprimidos enquanto observava seu novo ambiente.
Tudo parecia excessivamente brilhante e perfumado - o verde da grama, o marrom da
terra, os amarelos, vermelhos e laranjas de folhas caídas, e os cheiros elementares da terra
e da vegetação. Era incrivelmente adorável, doce e pouco sofisticado, e o fez sorrir apesar
de suas circunstâncias.

Este era um novo mundo para ele, um lugar onde tudo era gigante. Muito em
breve, percebeu que isso significava problemas de tamanho gigantesco também. Ele tinha
encolhido para aproximadamente o mesmo tamanho de um ponto no final de uma
sentença, e não importava o quão forte era seu coração, ou indomável sua vontade, ou
afiada sua mente, isso significava que sua vida poderia estar em perigo simplesmente
porque seu corpo era muito, muito pequeno.

Apenas a poucos passos de distância de onde ele estava, uma aranha do tamanho
de um pequeno carro pendia de uma teia tão grossa quanto o cabo de uma ponte. Os
múltiplos olhos vermelhos do aracnídeo o observavam com cuidado, com paciência,
como se a criatura estivesse certa de que Henry, mais cedo ou mais tarde, se convidaria
para sua rede para o almoço.
Um formigueiro se erguia como uma pequena montanha ao longe. Ele podia ver
as formigas trabalhadoras subindo e descendo os lados, carregando folhas e outros
pedaços de matéria vegetal em suas mandíbulas incrivelmente fortes, e quase podia
imaginá-las levando-o para dentro, apresentando-o à rainha como uma espécie de manjar.

Muito acima de sua cabeça, pássaros do tamanho de aviões bombardeiros


zuniam entre as árvores, sem dúvida vasculhando o chão em busca de pequenas porções
como ele para pegar com suas garras afiadas.

Perto dali, vislumbrou através das imensas folhas de grama, uma forma dourada
deslizante, sinuosa e marrom que parecia ter quase dois andares de altura. Ele podia ouvir
o chocalho da cauda fazendo vibrar em seus ossos como um trovão, e congelou, agachado
contra uma raiz até ter certeza de que tinha ido embora.

Até mesmo criaturas inofensivas, aquelas que normalmente não picam, mordem
ou bicam, podiam ser mortais para ele em seu tamanho atual. Uma borboleta pousou em
uma lâmina de grama próxima e tremulou asas tão grandes quanto flechas de tenda de
circo. A brisa que elas causaram quase o derrubou.

Um sapo do tamanho de um tanque quase lhe deu um ataque cardíaco pulando


sobre ele, aterrissando com um baque que fez a terra sob os pés de Henry tremer, e
arrancando uma libélula do tamanho de um biplano do ar com sua língua incrivelmente
longa e vermelha.

Henry logo percebeu que era uma situação de vida ou morte, e ele estava em
uma desvantagem distinta sobre a fauna local. Ele não tinha armas, presas, veneno, garras
ou pinças. Ele não podia voar para longe, nem se esconder debaixo da terra para escapar
de predadores, ou habilmente mudar sua cor para se misturar com o fundo.

Como estava, lá em uma floresta de folhas de grama e insetos enormes e


monstruosos, ele pela primeira vez considerou seriamente a possibilidade que não estava
envolvido em algum tipo de fantasia drogada trazida por qualquer coisa que estivesse no
copo que Alice lhe deu na noite anterior, mas bastante acordado e perfeitamente são.

Se estivesse, isso poderia significar apenas uma coisa: ele estava em uma grande
e profunda merda.
Um som chamou sua atenção e ele inclinou a cabeça, escutando. Tramp. Tramp.
Tramp. Ele percebeu que era o som de muitos pés marchando, como um exército em
movimento. Tramp. Tramp. Tramp. E estava se aproximando.

Girando, ele sentiu o pânico arranhando sua garganta enquanto examinava a área
imediata, procurando por um possível esconderijo. Ele era pequeno - minúsculo, na
verdade. Ele deveria ser capaz de se esconder em qualquer lugar, certo?

Errado.

A área ao redor dele, enquanto espessa, com altas e finas lâminas de grama e
muitos seixos altos, provia cobertura tão escassa quanto uma floresta de palmeiras poderia
no mundo que ele deixou para trás, tinha palmeiras realmente crescidas nessa floresta, ele
receava.

Em outras palavras, pouca a nenhuma cobertura.

Finalmente, ele viu uma noz enorme e seca no chão. Do tamanho de um grande
pedregulho, a casca rachada e enegrecida da noz poderia fornecer um lugar para se
esconder. Ele correu e se escondeu atrás dela. Sua sorte pareceu durar. Ela provou ser
apenas meia concha, rachada e o fruto comido há muito tempo por alguma criatura, a
meia concha vazia descartada. Ele se encolheu no espaço vazio deixado pelo fruto que
faltava, esperando que a concha pudesse fornecer cobertura suficiente para protegê-lo de
qualquer coisa que estivesse marchando em sua direção.

Tramp. Tramp. Tramp.

O som estava mais perto agora. Tremores ondulavam no chão sob a casca. Ele
podia ouvir sons estranhos de cliques além do pisoteio de muitos pés. Parecia que um
exército inteiro estava em marcha.

A curiosidade ergueu sua cabeça feia, ignorando completamente o velho ditado


sobre matar gatos, obrigando-o a deixar de lado seu medo por um momento e espiar por
trás da casca de noz.

Formigas.
Formigas vermelhas enormes, cada uma do tamanho de um ônibus urbano,
haviam se reunido perto da noz, de pé em uma linha reta e arregimentada que se estendia
até onde ele podia ver. Suas mandíbulas enormes clicavam enquanto antenas parecidas
com chicotes acenavam no ar.

Seu medo, tão recentemente deixado de lado por sua curiosidade, deu uma
cotovelada no caminho de volta à sua consciência, como um valentão da quarta série
através de uma multidão de estudantes de jardim de infância, congelando a respiração em
seus pulmões. Infelizmente, sua respiração não ficou congelada. Descongelou
rapidamente, fluindo como um rio passando por seus lábios na forma de um grito
estridente e áspero.

Todos os pares de mandíbulas pararam de clicar e cada par de antenas girou em


sua direção. Henry recuou para o buraco da concha, as mãos apertadas sobre a boca
traidora, esperando que as antenas das formigas não fossem sensíveis o bastante para
ouvir o som de seu coração.

A próxima coisa que soube, foi que sentiu a concha elevando-o no ar. Olhando
para a borda da concha, viu que uma formiga havia colocado suas mandíbulas em volta e
estava carregando-a, e ele, para fora.

Para sua surpresa, a formiga levou-o através da vegetação espessa que formava
as paredes do covil da lagarta - ele e as formigas eram tão pequenos que os espinhos não
representavam perigo para eles. Eles passaram bem debaixo deles sem sequer um
arranhão.

Agora o que ia fazer? Era um longo, longo caminho. Ele não podia pular, não se
não quisesse arriscar quebrar uma perna ou ser esmagado sob os pés da formiga.
Tampouco queria alertar as formigas para sua presença dentro da casca. Elas podiam
decidir que seria um bom lanche rápido na estrada. Sua única escolha parecia ser esperar
até que, com sorte, a formiga baixasse a concha e conseguisse escapar.

A formiga o carregou pelo que lhe pareceu ser muito tempo, e ele quase foi
embalado para dormir pelo balanço uniforme da formiga. Então o mundo subitamente se
inclinou em um ângulo agudo, e ele deslizou um pouco antes de seus pés baterem no lado
oposto da concha. Espreitando por cima do lado novamente, ele percebeu que a formiga
estava descendo em um túnel de algum tipo.

Não, não era um túnel.

Uma colina. Um formigueiro.

Oh cara. E ele pensou que estava em apuros antes.


CAPÍTULO CINCO

O caminho íngreme da formiga nivelou novamente depois de um tempo. Henry


tentou acompanhar as voltas e reviravoltas que a formiga fez para que pudesse encontrar
sua saída novamente caso uma oportunidade de escapar se apresentasse, mas havia tantas,
que logo ficou confuso. Mais e mais fundo no chão eles foram, toda a luz desaparecendo,
até que a escuridão se tornou espessa e sufocante. Ele podia ouvir as formigas ao seu
redor, clicando e batendo.

Finalmente houve um pequeno solavanco quando a formiga colocou a casca no


chão. Ele congelou, o pânico cavando garras geladas em suas entranhas enquanto
esperava a formiga encontrá-lo dentro de seu esconderijo oco, mas depois de alguns
momentos, percebeu que a formiga tinha ido embora.

Agora era a hora, talvez sua única chance de escapar! Mas como? Estava tão
escuro que ele não conseguia ver a mão na frente do rosto.

– Psst.

Henry inclinou a cabeça. O que era esse som? Não soou como as formigas. Soava
como um sussurro rouco.

– Psiu. Menino Alice.

Agora definitivamente não eram as formigas. As formigas podem clicar e bater


de vez em quando, mas nunca usaram palavras, particularmente o nome de sua irmã. –
Quem é você? Onde você está?

– Eu sou o Chapeleiro. Dê dois passos à sua direita, depois mais quatro passos à
frente.

– Eu te conheço?
Não havia como confundir o sarcasmo no tom da voz sussurrada. – Oh, peço
desculpas. Talvez devêssemos ter uma introdução formal enquanto as formigas nos
comem! Isso satisfaria sua necessidade de convenção social?

Henry engoliu uma réplica brusca para a resposta sarcástica e deu dois passos
para a direita e quatro para frente. Ele mal sufocou um grito quando uma mão segurou
seu ombro.

Surpreendentemente, um suave brilho amarelo iluminou o dono da mão. O


homem que se chamava “Chapeleiro” era um centímetro ou mais, mais alto que Henry, e
tinha longos cabelos negros pendurados como emaranhados de seda em seus ombros. Seu
rosto era bonito de um jeito meio áspero, seu maxilar forte sombreado pelo crescimento
de um dia de barba, seus olhos tão escuros quanto os cabelos. Impossivelmente, ele usava
uma cartola, um colete e luvas sem dedos. Em uma mão em concha, uma bola de luz
parecia pairar, a fonte da luz pálida.

Henry estendeu a mão para tocar um dedo no orbe brilhante. – Como você está
fazendo isso?

– Mesmo? Estamos cercados por formigas vermelhas famintas e você quer


perder tempo com uma aula de ciências? É uma lanterna básica de emergência de vaga-
lumes. Todo aluno pode operar uma. A Largarta estava certa. Você é realmente tão idiota
quanto sua irmã.

Henry sentiu seu último nervo esticar e estalar. Ele deu um empurrão em
Chapeleiro. – Eu não sou nada como minha irmã!

– Shh! Você quer que nos comam? Olha, eu estou saindo daqui. Você está vindo
ou quer ficar para trás e descobrir se as formigas preferem carne escura ou clara?

Henry estalou, tão zangado que quase se esqueceu de como estava assustado.
Quase, mas não completamente. – Não, vamos. – Ele colocou a mão no ombro do
Chapeleiro. – Mas quando sairmos, você vai me dizer como pode fazer isso com vaga-
lumes e como você conhece minha irmã.

– Claro, claro. Vamos, antes que percebam que seu almoço está fugindo.
O Chapeleiro levou Henry por um longo túnel. Eles abraçaram o lado barrento,
ficando abaixados, mergulhando em uma das muitas alcovas sempre que uma formiga
chegava perto demais deles. Gradualmente, a escuridão diminuiu até que o orbe brilhante
que Chapeleiro segurava não era mais necessário. Ele soltou e se afastou.

Pareceu demorar uma eternidade, mas o caminho finalmente deu uma guinada
para cima, levando à superfície. – Agora o que? – Henry olhou para onde o sol - e
liberdade - acenava. – Nós tentamos sair?

– Não é necessário. – O Chapeleiro tirou a cartola e enfiou a mão nela.


Surpreendentemente, ela foi até o cotovelo do Chapeleiro e depois até o ombro dele. Ele
torceu por um tempo, mas finalmente puxou o braço para fora. Na mão, ele segurava um
guarda-chuva.

Henry revirou os olhos. – Caso você não tenha notado, o sol está brilhando.

Chapeleiro lançou-lhe um olhar duro. – Você vai nos tirar daqui? Não? Então
me deixe trabalhar. – Ele segurou o guarda-chuva e abriu. O guarda-chuva se abriu,
protegendo os dois. Chapeleiro pegou a mão de Henry no momento em que o guarda-
chuva começou a girar loucamente, girando como um pião. Inacreditavelmente, começou
a subir o túnel, carregando o Chapeleiro e Henry com ele. Eles flutuaram para cima e para
fora do formigueiro, e sobre um campo cheio de flores silvestres.

Os olhos de Henry se arregalaram quando examinou o chão bem abaixo deles. –


Puta merda! Que tipo de guarda-chuva é esse?

Parecia ser a vez do Chapeleiro revirar os olhos. – Guarda-chuva? Não, não, não
seja bobo. Este é um Sobre-chuva. Você é realmente muito idiota, não é?

– Eu não sou idiota!

– Idiotice é o que idiota faz. Você pode se lembrar disso.

Henry teve o suficiente. Ele puxou a mão do Chapeleiro e imediatamente


começou a cair... de novo. Desta vez, não havia folhas parecidas com trampolins para
amaciar sua queda. Ele caiu como uma pedra e aterrissou tão duro quanto uma derrubando
todo o ar fora dele.
Chapeleiro pousou levemente ao lado dele. – Vê? Assim como eu disse. Idiotice.

– Pare de me chamar de idiota.

– Então pare de tentar se matar. Comendo cogumelos desconhecidos, permitindo


que as formigas vermelhas o carreguem, sem mencionar cair do céu na Toca da Lagarta...
Realmente, você está tornando meu trabalho extremamente difícil.

– Quem é você?

– Eu te disse. Eu sou o Chapeleiro. Agora você pode me dizer por que está aqui
e por que estava perguntando à Lagarta sobre mim.

Henry sentou-se, sentindo os braços e as pernas em busca de ossos quebrados


que ele tinha certeza que encontraria. Ele se sentia sólido e ininterrupto, se mal
contundido. – Alice me disse para encontrar o Chapeleiro. Você está dizendo que é ele?
Isso é ridículo - ele não existe. Onde estamos, afinal? Eu perguntei à lagarta, mas ele não
me disse. Sério, acho que tem algo errado com ela. Você sabe, na cabeça.

– Bem, claro que há algo errado com a cabeça dela. Ele fuma erva
continuamente. Essa coisa não faz exatamente de você um estudioso, sabe. – Chapeleiro
bateu no lado de sua cabeça. – Mata a massa cinzenta. Mas não diga a Lagarta que eu
disse isso. – Ele dobrou seu Sobre-chuva e o armazenou dentro de seu chapéu antes de
recolocar o chapéu na cabeça, colocando-o em um ângulo bacana. – Eu acho que é óbvio
que você está no País das Maravilhas. E claro que existo. Estou aqui, não estou? Agora
respondi suas perguntas. É justo que você responda a minha.

– País das Maravilhas? Você quer dizer o lugar que Alice sempre fala? Isso é
ridículo. Não há tal lugar!

– Ainda assim, mais curioso e mais curioso, aqui você está exatamente no centro
dele. E essa é outra questão, a propósito. Realmente, preciso explicar as regras de novo?

A frustração fez Henry querer gritar. “Todo mundo fala em enigmas por aqui?”
– Quais regras? Do que você está falando?

– Tsk, tsk. Essas são mais duas perguntas! Realmente, você é tão grosso quanto
lama. Estou começando a pensar que Alice é a pessoa mais brilhante da sua família.
Desta vez, um som frustrado se libertou do controle de Henry. Começou como
um estrondo profundo em seu peito, rolou pela garganta e explodiu através de seus lábios
em um grunhido feroz.

Os olhos escuros do Chapeleiro se arregalaram, embora não houvesse medo


neles, apenas interesse. Seus lábios se curvaram em um meio sorriso. – Então, então.
Alice certamente nunca rosnou. Vou te dar pontos pela originalidade. Muito feroz. – Ele
inclinou um dedo para Henry o seguir e começou a andar. – Tudo bem, já que obviamente
você tem uma triste falta de compreensão sobre as regras, deixe-me explicar. – Suas mãos,
envoltas em luvas finas e sem dedos, tinham dedos longos e elegantes, e traçavam padrões
no ar enquanto falava. – Aqui no País das Maravilhas, existem regras que devemos seguir.
Essas regras mantêm o universo em movimento, os planetas alinhados e o cosmos livre
do caos. Regras devem ser seguidas em todos os momentos, sem desvio… a menos que,
suponho, a regra seja quebrar as regras, caso em que, seguir as regras pode realmente ser
considerado como quebrar elas. Assim diz a Rainha. Você entende agora?

Henry sacudiu a cabeça. – Não.

O Chapeleiro sorriu. – Eu não deveria ter esperado nada menos que isso. – Ele
acenou para Henry acelerar seu passo. – Vem, vem. Deve estar por aqui em algum lugar.
Ah, espere... aí está! Isso é o que eu tenho procurado. Graças a Deus, aquelas criaturas
Mimsicais e as Pintalouvas18, não conseguiram. Nós teríamos um tempo demoníaco para
conseguir isso de volta daqueles pássaros sombrios.

– Mimsicais? Pintalouvas? – Henry sacudiu a cabeça. – Você está inventando


isso. Assim como Alice fez.

– Eu? Com licença. Eu nunca falo nada além da verdade. Às vezes pode ser
flexível, talvez um pouco floreada, mas ainda assim, no final, sempre a verdade. – O
Chapeleiro levou Henry a uma garrafa grande, facilmente do tamanho de um Buick. A
garrafa era verde e estava deitada de lado na grama. – Mimsicais, para sua informação,
significa algo que é miserável e frágil. Os Pintalouvas certamente se encaixam nessa
descrição, posso lhe dizer. Pássaros frouxos e desajeitados, eles são, e propensos a

18
Mimsy e Borogroves
arrebatar qualquer coisa que encontrem, de modo que quem o tenha perdido esteja fadado
a ficar tão deprimido quanto eles. – O Chapeleiro olhou para Henry. – Me dê uma mão
com isso. Precisamos virar isso.

Eles colocaram as mãos no lado frio e liso da garrafa e empurraram até que seus
dentes rangessem e suas espinhas estourassem. Assim que Henry tinha certeza de que a
garrafa nunca se moveria, começou a rolar, centímetro por centímetro. Eles continuaram
empurrando até que um rótulo dourado fosse revelado. Estava sujo de seu tempo gasto
deitado na terra, mas as palavras impressas eram perfeitamente legíveis.

Dizia: “Beba-me”.

O Chapeleiro riu e deu um tapa na garrafa com a palma da mão. – Esta é a mesma
garrafa que sua irmã bebeu, se não me engano, e parece que sobrou muita coisa. Agora,
você repetidamente disse que não é nada como sua irmã. Em outras palavras, você é o
oposto dela. Se for esse o caso, então a poção nesta garrafa deve ter o efeito oposto sobre
você do que a ela e fazer você crescer. – Ele deu um empurrão em direção ao pescoço da
garrafa. – Continue. Entre lá.

A abertura redonda na ponta do gargalo da garrafa era larga o suficiente e alta o


suficiente para Henry atravessar tão facilmente quanto se fosse o Arco do Triunfo,
considerando seu atual estado verticalmente desafiante. Ele correu pelo longo pescoço
até o barril da garrafa, o que acabou sendo uma caminhada muito mais longa para ele do
que imaginava. Quando chegou ao fundo da garrafa, onde havia uma pequena poça de
líquido roxo, estava exausto.

Ele deu uma fungada e quase vomitou. Cheirava a uma combinação do vestiário
da escola depois de um jogo de futebol especialmente difícil, e a lixeira atrás do Mickey
D's19 em um dia quente de verão. Ele olhou de volta para a boca da garrafa. O Chapeleiro
realmente esperava que ele bebesse essa porcaria desagradável?

A voz do Chapeleiro chamou-o da boca da garrafa, como se tivesse ouvido seus


pensamentos. – Continue! Tome um gole!

19
McDonald’s
– E você?

O riso flutuou pelo longo gargalo, o som crescendo cada vez mais alto até que
estrondeava como um trovão. De repente, um par de olhos enormes e escuros estava
olhando para ele através do vidro da garrafa verde. Uma boca se esticou em um sorriso
tão largo quanto um vagão de trem. – Eu sou o Chapeleiro. Eu não preciso de poções.
Magia está no meu sangue. Vá em frente agora. Tome um gole. Nós não temos o dia todo.

Parecia que Chapeleiro de alguma forma o enganara, o que o deixou irritado de


novo, mas não havia nada que pudesse fazer sobre isso enquanto ainda era muito pequeno,
e o Chapeleiro agora era muito grande. Ele sentiu que não tinha escolha a não ser beber
da pequena poça de fealdade líquida flutuando no fundo da garrafa, mas ele fez uma
promessa. Assim que ficasse grande novamente, ia socar o Chapeleiro na boca. Ver como
aquele sorriso funcionava para ele com alguns dentes desaparecidos.

O pensamento de alguma forma o fez se sentir um pouco melhor.

Segurando seu nariz com dois dedos, ele mergulhou a mão no líquido roxo,
juntando um pouco na palma da mão. Ele colocou nos lábios e bebeu o mais rápido que
pôde, tentando muito não provar enquanto deslizava por sua língua e garganta abaixo.

Tentou, mas falhou.

O gosto era tão ruim quanto parecia, viscoso e nojento ao mesmo tempo, mas
felizmente, ele não teve muito tempo para explorar o horrível sabor, porque naquele
momento, coisas começaram a acontecer, que tiraram sua mente de sua boca.

Tão logo engoliu a sujeira, começou a crescer. Seu corpo expandiu-se em todas
as direções - para cima, para baixo, para os lados - enchendo rapidamente a garrafa. Por
um instante ele ficou preso ali, incapaz de se mexer, incapaz de respirar, com o rosto
contra o vidro. Ele podia sentir a pressão se formando enquanto seu corpo insistia em
continuar a se expandir, e o vidro que não se dobrava, se recusou a dobrar. Então…
smash! A garrafa se fragmentou em milhões de minúsculos pedaços de vidro, explodindo
para longe dele em uma chuva de fragmentos brilhando ao sol.

Libertado do vidro, ele cresceu ainda mais rapidamente, como se alguém


estivesse usando um tornado para explodir um homem em forma de balão. Em poucos
segundos, ele tinha crescido até sua altura e peso anteriores, ou o mais próximo disso que
ele podia dizer, de qualquer maneira.

E encontrou-se diante de um par de olhos escuros e brilhantes.

Ele mal sentiu os dedos se curvando em um punho, ou seu braço puxando para
trás para dar um soco no rosto bonito e sorridente do Chapeleiro.
CAPÍTULO SEIS

O CHAPELEIRO mal teve tempo de piscar quando o punho duro de Henry o


pegou logo abaixo de sua mandíbula, a força do soco levantando-o de seus pés e o plantou
em sua bunda no chão. Esfregou a mandíbula, sentindo-se - pela primeira vez em um
bom, longo tempo, se alguma vez - completamente atordoado. – Você... você me
surpreendeu!

Henry, ocupado dançando com a mão que usara para golpear Chapeleiro debaixo
da axila, murmurando todos os tipos de epítetos, lançou-lhe um olhar mortal, como se
todo o incidente fosse culpa do Chapeleiro.

Era mais do que um pouco irritante. Afinal de contas, quem estava no chão na
extremidade traseira, com uma mandíbula dolorida e o que parecia um dente solto, e quem
ainda estava em pé? Ele lutou para ficar de pé, ainda segurando seu queixo. – Com o que
você está tão bravo? Sou eu quem foi atingido!

Isso parou Henry em sua dança. Sem aviso, ele soltou um grito meio
estrangulado e se lançou em Chapeleiro. A combinação de seu peso e gravidade achatou
o Chapeleiro no chão novamente.

O Chapeleiro lutou para se libertar, mas Henry o manteve firmemente preso ao


chão. O medo fez seu sangue bater em seus ouvidos enquanto observava Henry levantar
um punho que ele sabia por experiência que era muito duro. – Hum, você gentilmente
consideraria não me bater de novo? Dentes, infelizmente, não crescem em árvores. Pelo
menos, não mais, não desde as Guerras Molar, e eu teria um tempo difícil tentando
substituí-los. – Ele deu um sorriso de alta potência para Henry.

– Você me fez entrar na garrafa. E me fez beber aquela gosma roxa, quando todo
o tempo você tinha o poder de ficar grande! Por quê? Por que você faria isso? O que eu
fiz para você?
O Chapeleiro sacudiu a cabeça. – Você não entende. Sim, eu posso trabalhar um
pouco de magia, mas apenas em mim mesmo. Até eu tive que comer o cogumelo da
Lagarta para ficar pequeno. Eu não tenho o poder de te tornar grande. Se eu fizesse, eu o
teria voltado ao normal no Formigueiro Vermelho, em vez de arriscar seu pescoço - e o
meu próprio, eu poderia acrescentar - escapando do jeito que fizemos.

– Bem, então, por que você não ficou grande e me levou para fora?

Chapeleiro piscou. – Porque... porque... – A pergunta o surpreendeu,


principalmente porque não tinha uma resposta. Ele honestamente não tinha pensado nisso,
não que admitisse isso. Levou-lhe meio minuto para recuperar o equilíbrio. – Porque
então você teria perdido uma Grande Aventura e uma Lição Importante! Sim, é por isso!
Claro, é por isso! – Ele finalmente conseguiu empurrar Henry e ficar de pé. Observou
Henry com o canto dos olhos enquanto limpava a sujeira das calças e do casaco,
endireitava a lapela e puxava os punhos. – Que tipo de pessoa eu seria se negasse a você
essa experiência?

Henry bufou. – O tipo que não seria golpeado por me fazer beber aquela porcaria
roxa. Grande Aventura e Lição Importante? Eu praticamente posso ouvir as letras
maíusculas. Que monte de bobagens. – Ele desviou o olhar por alguns instantes, depois
se voltou para o Chapeleiro. – Eu acho que te devo desculpas. É só esse lugar. Está me
afetando! Primeiro a lagarta, depois encolher e cair, depois as formigas, depois ter que
beber a poça roxa... – Ele enfiou os dedos no cabelo, torcendo os fios loiros. – Eu ainda
não tenho certeza de onde estou ou como cheguei aqui, e não tenho ideia de como voltar
para casa!

– Falando nisso, a Lagarta disse que você estava perguntando por mim.

Isso fez Henry piscar novamente. – Um, sim. Sim. A última coisa que lembro
antes de desmaiar foi da minha irmã me dizendo para procurar o Chapeleiro. É você,
certo?

– Assim parece. Embora existam muitas outras criaturas aqui que alegam estar
loucas ou que foi provado, eu sou o único Chapeleiro no País das Maravilhas.
Todo o ar parecia escapar de Henry, deixando-o tão vazio quanto um balão
antigo. – Então é verdade? Isso é o País das Maravilhas? Alice não tem mentido todos
esses anos?

O Chapeleiro deu um tapinha reconfortante no ombro de Henry. – Mentido? Por


que você acha isso da sua irmã? Por tudo o que eu não gostava dela e achava que era
chata, ela não era de inventar inverdades. Este é o País das Maravilhas, em toda a sua
glória turbulenta, de dentro para fora, de frente para trás.

A expressão no rosto de Henry era descaradamente derrotada. – Ótimo. Então, o


que faço agora? Como chego em casa?

O Chapeleiro sorriu novamente e então estremeceu com a dor em sua mandíbula.


– Estou tão feliz por você ter perguntado. Acontece que fui enviado para levar você à
Rainha Vermelha com o propósito expresso de me livrar de você.

Não era mentira, afinal de contas. Não exatamente. Ele apenas deixou de fora o
fato de que quando ela livrasse o País das Maravilhas de Henry, ele estaria em duas partes
distintas.

Henry franziu a testa. – Alice costumava falar sobre a Rainha Vermelha. Ela não
parecia gostar muito dela.

– Ninguém gosta. Receio que sua irmã tenha sido um incômodo.

– Eu quis dizer que minha irmã não gostava da Rainha Vermelha. Alice disse
que ela era louca.

O Chapeleiro ofegou e seus olhos se arregalaram. Ele bateu a mão na boca de


Henry. Ele baixou a voz em um silvo rouco. – Shh! Seus espiões estão por toda parte.
Nunca fale mal da Rainha em voz alta enquanto estiver a céu aberto, onde pode ser
facilmente ouvido!

Henry tirou a mão do Chapeleiro. – Ela não é minha rainha.

– Enquanto você estiver no País das Maravilhas, ela é. Ela é a autoridade


suprema aqui, seu único rival é sua irmã, a Rainha Branca. Ela pode te trancar até que
esteja tão velho que tropece em sua própria barba, ou não te dar comida até você não ser
nada além de ossos e nervos, ou te cobrir de mel e te dar como comida para um
Bandersnatch. – Sem contar cortar a cabeça, mas desde que isso era o que realmente
estava reservado para Henry, o Chapeleiro pensou que seria mal mencionar isso. Por que
arruinar a surpresa?

– A rainha Branca? E ela, então? Ela me mandaria para casa? Talvez possamos
ir até ela.

– Não posso.

– Por que não?

– A Rainha Vermelha mandou cortar sua cabeça logo depois que Alice saiu pela
última vez. A cabeça do Rei Branco também rolou.

Henry engoliu em seco e agarrou o pescoço como se quisesse impedir que sua
cabeça rolasse. – Sua própria irmã e cunhado? Por mais que eu deteste a minha às vezes,
nunca tentaria decapitar Alice. Isso é horrível!

O Chapeleiro deu de ombros. – Não, isso é política. Isso causou um grande


escândalo, se bem me lembro. As duas rainhas se encontraram no mesmo tabuleiro de
xadrez em que sua irmã ganhou a coroa; ambas acusando a outra de ajudar e encorajar
Alice em sua busca para se tornar uma rainha do País das Maravilhas. O desafio foi
lançado. – Chapeleiro suspirou. – Alguém poderia pensar que depois de passar a vida
inteira com uma relação de sangue com a Rainha Vermelha, a Rainha Branca saberia o
quanto ela trapaceia e estaria preparada para isso. Mas não, a Rainha Branca
estupidamente tentou jogar de acordo com as regras. – O Chapeleiro fez um movimento
cortante com um dedo na garganta. – E bem, no final, vieram as cabeças dela e do marido.

– Você faz parecer que ela estava errada em querer seguir as regras. Regras
trazem ordem. Você mesmo disse isso.

O Chapeleiro elevou o volume de sua voz, como se quisesse que alguém que
espionasse a conversa o ouvisse melhor. – Sim, eu disse isso, claro. A Rainha Vermelha
ordenou que todos obedecessem às regras. Muito sábia da parte dela. – O Chapeleiro
olhou ao redor e baixou a voz para um sussurro de novo. – Mas que diversão há em ser
ordenado? Nenhuma. Regras são apenas um punhado de enigmas, obstáculos e barreiras
amarrados e torcidos juntos com o único propósito de sugar o último pedaço de diversão
de cada experiência. Eu acho que elas estariam crivadas de rachaduras por quantas vezes
foram quebradas, e se eu descobrisse que um idiota as fica colando novamente, eu daria
a ele uma boa surra com minha bengala.

Henry sacudiu a cabeça. – Sem regras, haveria o caos!

– Não, não. Sem regras, haveria liberdade.

– Não faz meia hora, quando eu era pequeno, você ficou lá e me disse que as
regras deveriam ser seguidas a todo custo!

– Acredito que minhas palavras exatas foram ‘diz a rainha’. Isso não significa
que eu acredite.

– Sabe o que? Você é maluco e acho que ficarei melhor sozinho. – Henry ergueu
o queixo e começou a andar em outra direção, como se soubesse para onde estava indo.
– Eu vou encontrar o meu próprio caminho para casa, não graças a você.

O Chapeleiro sabia muito bem que Henry não duraria meio dia no País das
Maravilhas sem ele. Nem ele duraria metade de um dia se voltasse para o Castelo
Vermelho sem Henry a reboque. – Eu não iria por aí se fosse você.

Henry olhou por cima do ombro e fez um barulho rude, mas continuou andando.

Homem teimoso. Não, modifique isso. Tolo cabeça dura é uma descrição mais
apropriada, pensou o Chapeleiro. Ele ignorou a pequena voz em sua cabeça que se
perguntava se o Chapeleiro não achava a qualidade um pouco atraente. Em voz alta, ele
reiterou: – Eu realmente não iria por esse caminho.

– Pare de falar comigo. – Henry continuou andando, e não se virou novamente.

– Bem. Mas quando se encontrar afundado no queixo no Grande Afundamento20


de Areia do País das Maravilhas, não chore por ajuda.

20
Great Sinking Sands
O passo de Henry vacilou, diminuiu a velocidade e parou. Ainda assim, ele não
se virou. – Afundamento de Areia? Você quer dizer areia movediça 21?

– Ha! Não há nada rápido sobre isso. Ele o suga lentamente, centímetro por
centímetro aterrorizantes, até que finalmente o puxa para baixo da superfície e enche seus
pulmões com areia grossa e úmida. É uma maneira horrível e dolorosamente lenta de
morrer, e, francamente, não é uma escolha que eu escolheria se fosse minha escolha.

Henry deu um pequeno passo para trás, na direção do Chapeleiro. – Talvez eu


tenha sido um pouco precipitado.

Os lábios do Chapeleiro se levantaram em um meio sorriso confuso. – Então ele


pode ser ensinado! Talvez sua estupidez não seja uma condição permanente. Excelente.

Finalmente, a cabeça de Henry girou na direção do Chapeleiro. – Mas você quer


me levar para a Rainha Vermelha. Ela é uma vilã, de acordo com Alice. Inferno, de acordo
com você, ela é praticamente o mal encarnado! Ela matou sua própria irmã.

– Ela também tem o poder de mandar você para casa. Alice não encontrou
magicamente o caminho de casa nem uma, mas duas vezes, sabe. – Essa foi a magia da
rainha. – O Chapeleiro não tinha ideia se estava dentro do poder da Rainha Vermelha ou
não. Por tudo que ele sabia, o retorno de Alice para casa não era nada além de um par de
acidentes felizes.

Mesmo que a rainha possuísse tal magia, ele duvidou que ela levantasse seu dedo
mindinho para ajudar Alice. Na verdade, agora que o Chapeleiro pensava sobre isso, se a
Rainha Vermelha poderia enviar Alice para casa, ela teria feito imediatamente no inicío,
mas ele também sabia que admitir isso, tão somente serviria para empurrar Henry para
tentar suas chances sozinho nos Grandes Afundamentos ou com outro dos arredores
igualmente mortais do País das Maravilhas. Ir ver a Rainha Vermelha realmente era a
escolha mais segura para o estrangeiro desarmado e não iniciado. Além disso, ainda havia
a cabeça do próprio Chapeleiro e sua tênue ligação com o resto dele a considerar. Afinal
de contas, ela lhe prometera imunidade se ele entregasse Henry.

21
No original quicksand, “areia rápida”.
Henry parecia estar pensando também. Mudou o peso de um pé para o outro,
mordeu o lábio inferior e lançou longos olhares na direção do Afundamento de Areia.
Finalmente, ele se voltou para o Chapeleiro. – Ok. Acho que não tenho escolha. Eu vou
com você... por enquanto.

O Chapeleiro sorriu, sacudiu o chapéu, deu a Henry uma reverência bastante


sarcástica e gesticulou para o oeste com a mão livre. – Seu guia - por enquanto - ao seu
serviço. Esse caminho por favor.

Ele se endireitou quando Henry deu alguns passos hesitantes naquela direção,
depois recolocou o chapéu e deu um baque para acertar sua coroa. – Tudo bem então.
Vamos.

O Chapeleiro levou Henry ao redor do lado oeste da Toca da Lagarta. Ele


examinou a área, mas não havia nenhum vestígio da carruagem da rainha. Ele xingou algo
tão repulsivo que assustou uma libélula próxima que cuspiu uma pequena corrente de
chamas. Motorista estúpido. Acho que nunca lhe ocorreu que eu poderia precisar de uma
carona de volta para o Castelo! Ele se virou para Henry. – Enquanto eu esperava que
tivéssemos um meio de transporte para acelerar nossa jornada, parece que estamos sem
sorte. Nós vamos ter que andar.

Henry parecia surpreso e irritado, como se a distância não tivesse ocorrido antes,
e ele estava irritado agora. – A que distância fica o castelo da Rainha Vermelha?

Chapeleiro considerou sua resposta. – Não tenho certeza. Mais do que uma
bagatela, mas certamente mais curta que uma cólera.

– Por que é que tudo o que você diz não faz sentido, ou é misturado em um nó
gigante e complicado?

Chapeleiro encolheu os ombros. – É um dom, suponho. Bem, vamos embora. –


Ele deu um passo à frente e começou a liderar o caminho em direção ao oeste,
atravessando um prado coberto de flores silvestres que se estendia em direção ao
horizonte, além do qual ficava o castelo da Rainha Vermelha.

Ele esperava.
Direção nunca foi realmente o seu forte. O Chapeleiro uma vez se perdeu em seu
próprio armário, e poderia ter passado fome se não fosse pelos biscoitos que guardava
nos bolsos do casaco.

Sabiamente, ele se absteve de compartilhar essa informação com Henry.

Falando em biscoitos, ele se lembrou de que fazia muito tempo desde a última
vez que comeu. Enfiou a mão no bolso e procurou um pouco antes de pegar alguns
bolinhos adoráveis. Ele graciosamente ofereceu um a Henry, que, depois de alguns
momentos de hesitação, aceitou. Mastigando, seguiram em frente.

A escuridão estava caindo quando chegaram a uma cerca baixa de ripas rachadas,
correndo em ambas as direções, até onde podiam ver. O Chapeleiro interrompeu e espiou
por cima da cerca. Aquelas árvores, aquelas flores... sentiu o vento soprar contra seu rosto
quando, apenas um momento antes, estivera às suas costas e sabia onde estavam, embora
não tivesse percebido que precisariam atravessar a área para chegar ao castelo da rainha.
Ele certamente não se lembrava de tê-lo passado no caminho para a Toca.

Ainda assim, lá estava. Melhor lidar com isso de manhã.

– Acamparemos aqui a noite. Começaremos de novo pela manhã.

– Por quê? Ainda não está escuro.

Chapeleiro resistiu em puxar algo pesado do bolso - ele tinha uma edição em
capa dura do Etiqueta da Hora do Chá em algum lugar - e daria uma surra em Henry.
Como alguém tão bonito poderia ser tão estúpido? – A escuridão vem rapidamente no
País das Maravilhas, e todo tipo de feios saem. Goblins. Trolls. Fidgits. Você não quer se
deparar com um Fidgit no escuro da noite, acredite em mim! Agora, vamos nos acomodar
da melhor forma possível e dar algumas piscadelas, hein? Além disso, esta cerca marca o
início de Etnerf22. Não é uma terra fácil de atravessar e só um tolo tentaria sem uma boa
noite de sono.

Ele se ajoelhou no chão e começou a cavar no bolso novamente. Em pouco


tempo, ele trouxe utensílios de jantar para dois, uma panela cheia com um ensopado forte,

22
Nota de tradução (Sekhmet): Frente, lido de trás para frente. No original: Drawrof
uma jarra de pedra de chá gelado e uma pequena fogueira crepitante que cuspia faíscas
verdes e púrpuras. Ele colocou a panela para aquecer no fogo e serviu chá para os dois.

– Como você faz isso? – Henry ficou boquiaberto com a coleção que o
Chapeleiro tirou do bolso.

– Fazer o que?

– Carrega todas essas coisas no seu bolso? Você é um mago? É isso aí, não é?
Você é como Copperfield ou Criss Angel23.

– Nunca ouvi falar deles. Eles vivem no País das Maravilhas?

– Não. Eles são mágicos. Eles fazem truques... enganam com as mãos.

– Eu não posso imaginar o que o tamanho das mãos tem a ver com qualquer
coisa.

– Não, não tamanho… engano. – Henry bufou uma mecha de cabelo dos olhos
e parecia frustrado. – Eles fazem mágica.

– Como alguém faz mágica? Magia apenas é.

– Não de onde eu venho, não. Em casa, a magia é apenas um direcionamento


errado e um truque de mágica. Enganos.

Chapeleiro inclinou a cabeça. – Hmm. Algo muito maçante. Isso explica muito
sobre você e sua irmã, no entanto. No País das Maravilhas, a magia é tão parte de nós
quanto a nossa pele. É possível viver sem isso, mas seria muito desconfortável. Veja. O
guisado está pronto.

Ele colocou em tigelas para os dois. Por ora, Henry parecia mais inclinado a
alimentar sua boca do que exercitar a língua, e como o Chapeleiro também estava com
fome, o silêncio desceu sobre o pequeno acampamento.

Depois, cada um deles se estendeu na grama, fazendo-se o mais confortável


possível. O Chapeleiro procurou no bolso até encontrar um par de cobertores limpos e

23
Mágicos famosos que se apresentam, principalmente, em Las Vegas.
puídos e deu um para Henry. Enrolando-se no segundo, fingiu dormir até ouvir os roncos
suaves de Henry.

Espreitando debaixo das pálpebras, observou Henry cochilar, pensamentos


girando em sua própria mente muito rápido para permitir o sono.

O Chapeleiro notou que o rosto de Henry era bastante atraente quando o sono
atenuava sua expressão quase constantemente rude. Seu cabelo era tão loiro quanto o de
sua irmã Alice, com um ligeiro movimento nos fios sedosos que faziam as mãos do
Chapeleiro inexplicavelmente coçarem para tocá-los. Pestanas compridas e castanhas
cintilavam nos olhos que ele já sabia serem da cor de um céu de verão. As linhas de suas
maçãs do rosto salientes e mandíbula quadrada e afiada eram indiscutivelmente
masculinas, mas ainda assim muito bonitas. O Chapeleiro podia ver a teimosia de Henry
no conjunto de sua mandíbula, mesmo enquanto dormia.

Os lábios de Henry eram cheios para um homem, de aparência suave, embora o


Chapeleiro já soubesse por experiência a língua afiada que estava atrás deles. Barba de
um dia espanavam a mandíbula de Henry, tão pálidos que eram praticamente
imperceptíveis, exceto quando vistos de perto. Mais alguns dias, o Chapeleiro pensou,
talvez até uma semana, e ele ostentaria o início de uma barba loiro morango.

Em suma, Henry era mais do que agradável aos olhos, um fato que o Chapeleiro
sabia que faria com que viajar com ele fosse interessante e extraordinariamente perigoso,
porque, se havia uma coisa que o Chapeleiro mais amava no mundo, era a beleza. Ele era
atraído para isso, se queria ser ou não. Mulheres bonitas, homens bonitos, ambos
incendiavam um fogo dentro dele que, muitas vezes, o colocava em apuros mais cedo ou
mais tarde.

Um pensamento borbulhou no fundo de sua mente. O que Henry faria se o


Chapeleiro tentasse beijar aqueles lábios macios e gorduchos?

Provavelmente socaria o Chapeleiro diretamente no rosto.

Novamente.

O Chapeleiro rangeu os dentes e deu as costas para Henry.


Não seja idiota, Chapeleiro. Nem pense em tais coisas. Um beijo inevitavelmente
leva a um segundo, então antes que você perceba, suas emoções se envolvem, e as coisas
ficam intoleravelmente complicadas. Você precisa entregá-lo à rainha, lembra? Tal
envolvimento, por mais agradável que fosse, só serviria para deixá-lo quebrado no final
e, possivelmente, sem cabeça.

Ele ainda estava tentando falar algum sentido quando finalmente adormeceu.

Naquela noite, enrolado em um cobertor puído em uma cama de grama, o


Chapeleiro sonhou com olhos azul-celeste, barba de fios loiros morango e lábios quase
cheios demais.
CAPÍTULO SETE

Eles quebraram seu jejum com uma refeição rápida de chá e biscoitos tirados do
bolso do Chapeleiro, durante o qual o Chapeleiro mal falou mais do que um punhado de
palavras.

Henry se perguntou por que isso acontecera, o que mudara, já que no dia anterior
ele temia que a única maneira de conseguir que o Chapeleiro calasse a boca seria pregar
os lábios do Chapeleiro juntos. Ele orou por silêncio ontem, mas hoje, agora que estava
aqui, achou um pouco desconcertante, embora não quisesse admitir isso. O silêncio o
deixou desconfortável, e ele se viu imaginando se havia dito ou feito algo errado, apenas
se perguntava por que isso deveria ser importante para ele, mesmo que tivesse feito.
Portanto, foi uma espécie de alívio quando o Chapeleiro finalmente se dignou a falar,
apenas para acalmar as vozes desconcertantes em sua cabeça.

Até que, isto é, ele tentou entender o que o Chapeleiro estava dizendo.

O Chapeleiro empacotou tudo, depositando cada item, um de cada vez, no bolso


- um feito que Henry ainda não conseguia descobrir - e pulou a cerca de ripas. Ele estava
de frente para Henry e fez sinal para se juntar a ele antes de dar alguns passos para trás.
– Otiej o ragep riugesnoc ecov éta licífid é iuqa radna, Yrneh, etnaligiv ajes 24.

Henry inclinou a cabeça. – Por que você está falando assim? Você está falando
bobagens, Chapeleiro.

Chapeleiro olhou para ele. – Odiputse otorag. – Ele se virou e caminhou de volta
para a cerca novamente, em seguida, subiu de volta. – Você não estava ouvindo ontem à
noite? Eu te disse que isso marcava o limite de Etnerf.

Henry apenas sacudiu a cabeça e encolheu os ombros. – Nunca ouvi falar disso.

24
Nota de tradução (Sekhmet): leiam de trás para frente.
Chapeleiro revirou os olhos. – Eu deveria saber. Diga-me, Henry, o que eles
ensinaram na escola? Você foi para a escola em algum momento, não foi?

– Claro que sim! Eu estava me preparando para me formar em junho, espero que
com honras.

– Bem, que tipo de escola era essa? Escola de peixe? Porque certamente não
poderia ter sido uma escola de aprendizado se você nunca ouviu falar de Etnerf antes!

Henry apertou os molares, tentando não ceder à tentação e socar Chapeleiro. –


Era de segundo grau e estou disposto a apostar que ninguém na minha sala já ouviu falar
desse lugar antes. Apenas me diga o que está acontecendo.

– Certo. Tudo em Etnerf é para trás. Uma vez que você pule a cerca, precisa falar
para trás, andar para trás, pensar para trás, comer para trás, fazer xixi para trás e
praticamente se inclinar para trás ou os Snilmerg, os guardiões de Etnerf, vão mandá-lo
de volta para o começo, forçando você a fazer tudo de novo.

– Para trás. Tudo? Como você pensa para trás? – Ele realmente não queria pensar
em como alguém poderia fazer xixi para trás. Ele prometeu a si mesmo que seguraria até
que seus olhos ficassem amarelos antes de descobrir também.

O Chapeleiro pareceu considerar isso por um momento. – É melhor não pensar


em tudo. Agora, você está pronto?

Henry suspirou. Ele realmente não viu onde tinha uma escolha. Ele assentiu. –
Eu suponho que sim.

– Então, vamos embora! A luz do dia, como dizem, está sendo desperdiçada. –
O Chapeleiro pulou a cerca novamente e começou a andar de costas. Depois de um
momento ou dois, Henry se juntou a ele.

Era desconcertante andar para trás por território desconhecido, para dizer o
mínimo. Surpreendentemente, no entanto, ele não bateu ou tropeçou. Talvez tivesse a ver
com a magia do País das Maravilhas. Certamente, se ele tentasse isso em casa, teria
quebrado um tornozelo ou sido atropelado por um carro muito antes. Novamente, não
tinha visto nada maior do que um esquilo, então ser pisoteado não era uma grande ameaça.
Ele ainda achava que era enervante não ser capaz de ver onde estava indo. Ficou
claro para ele que nunca realmente apreciara o dom da visão antes. Ele sempre aceitou
isso como garantido, mas agora que ele não podia ver a estrada diante dele, sentia falta
disso, e estava muito grato por sua visão perfeita.

O Chapeleiro escolheu esse momento para deixar para trás seu tratamento
silencioso e falou. O que ele disse e o que Henry ouviu foi: – Oçomla od setna odal ortuo
ao ragehc someved són. Ogral otium é oãn Frente etnemzilef. – mas o que Henry entendeu
foi: – Felizmente Etnerf não é muito largo. Nós devemos chegar ao outro lado antes do
almoço.

Bem, o que você sabe? Parecia que, enquanto em Etnerf, o cérebro de uma
pessoa corria para trás também, permitindo que alguém facilmente entendesse a fala para
trás. Isso facilitou muito as coisas e incentivou Henry a continuar a conversa. Ainda era
estranho ter seus lábios formando as palavras para trás, embora estivesse confiante de que
o Chapeleiro o entenderia quando dissesse: – O castelo da Rainha Vermelha fica do outro
lado de Etnerf? – mas saiu: – Frente ed odal ortuo od acif Alhemrev Ahniar ad oletsac o?

O Chapeleiro concordou com a cabeça e, é claro, Henry entendeu que o gesto


significava ‘não’. – O país das Maravilhas geralmente é um lugar muito grande. Duvido
que nossa jornada seja tão curta.

– Geralmente? Como um lugar pode ser geralmente grande?

– Como não pôde? Pergunte a si mesmo: há sempre o mesmo número de lâminas


de grama em um campo, ano após ano? O mesmo número de pássaros no céu, ou veados
na floresta, ou o mesmo punhado de garotas Bandersnatch?

– Hum, não?

– Claro que não! Assim, portanto, a área em que eles vivem deve, às vezes, ser
maior e, em outros momentos, menor. É apenas lógico.

– Eu... mas isso...

– É melhor não pensar muito nisso. A lógica pode ser tóxica se tomada em
grandes doses. Basta dizer que nos levará algum tempo para chegar ao castelo da rainha.
Eles caminharam por um tempo em silêncio enquanto Henry tentava arduamente
não pensar na lógica complicada e completamente falha do Chapeleiro, e se maravilhava
com a forma como o País das Maravilhas, cheio de tais regras, conseguia não entrar em
colapso como uma estrela moribunda, deixando um buraco negro escancarado para trás.

Ele encontrou distração com bastante facilidade, observando a fauna nativa


cuidando de seus negócios ao seu redor. As abelhas voavam para trás e depositavam o
néctar da colmeia na flor. Sapos saltavam em lagoas e transformaram-se em girinos.
Pássaros voaram para trás, pegando minhocas de seus filhotes e entregando-os ao chão.
Ele descobriu rapidamente que a areia aqui estava molhada, mas a água estava seca, e as
rosas fediam como pés sujos, enquanto os dentes-de-leão cheiravam muito bem.

Era tudo muito confuso. E estranhamente lindo ao mesmo tempo. As cores eram
todas tão luminosas, embora também fossem ao contrário. O céu era um trecho
perfeitamente único de verde esmeralda, enquanto a grama, as árvores e os arbustos
apareciam em todos os tons de azul, de marinho à azul claro. Flores pintadas em tons de
cinza empalideciam ao lado de ervas daninhas de cores vibrantes, enquanto as borboletas
usavam capas sombrias de cinza e preto, mas traças, besouros e aranhas ofuscavam os
olhos com um arco-íris de tons.

Foi então que ele percebeu algo tão estranho que, uma vez percebido, destacou-
se entre todas as outras peculiaridades do lugar. – Chapeleiro? Este lugar é muito bonito.
Eu acho que as pessoas gostariam de morar aqui. Onde estão? Eu não vi ninguém desde
que passamos por cima da cerca. Na verdade, até agora, você é a única pessoa que eu
conheci desde que cheguei aqui.

Chapeleiro pareceu chocado. – Claro que não há pessoas! E as pessoas dizem


que sou louco.

– O que você quer dizer? Por que está me olhando como se eu fosse louco?

– Só quando eu estava pronto para admitir que você poderia não ser tão chato e
sem sentido como sua irmã... A maioria das pessoas aqui, evidentemente eu mesmo
excluído, sabem ficar longe da Toca da Lagarta, para não passarem seus dias em um
nevoeiro alucinógeno. E aqui? Pense nisso, Henry. Tudo em Etnerf está para trás! As
pessoas nasceriam velhas aqui, e progressivamente ficariam mais jovens à medida que
crescessem. Que tipo de pais as crianças fariam, eu me pergunto? Que tipo de bebês
adultos fariam, engatinhando em fraldas, chupando chupetas? Quão difícil seria para uma
criança adulta fazer arrotar uma criança-adulto? E crianças em meio aos terríveis dois
anos! Porque, a primeira birra pode acabar em derramamento de sangue!

A boca de Henry formou uma perfeita letra O. – Oh. Eu não pensei sobre isso.
Suponho que isso não funcionaria bem para ninguém, né?

– Não, de fato. Na verdade, quando chegarmos à cerca do outro lado de Etnerf,


seremos mais novos do que quando entramos pela primeira vez. Infelizmente, uma vez
que você cruza a cerca, os efeitos começam a desaparecer e você começa a envelhecer
normalmente novamente. Há aqueles no País das Maravilhas que visitam aqui
regularmente apenas com o propósito de raspar alguns anos de sua idade.

– Você vem aqui frequentemente? Quantos anos você tem?

– Bah. Como um homem sábio disse uma vez, eu sou tão velho quanto a minha
língua e um pouco mais velho que meus dentes, e isso é bom o suficiente para mim. Eu
não preciso ser mais jovem, obrigado. A idade é apenas um número, de qualquer forma,
e um bom por um tempo muito curto, então por que se preocupar em acompanhar? Além
disso, sou um caso especial. Eu já fui amaldiçoado pelo Tempo, e não há como reverter
seus efeitos, mesmo que eu quisesse.

– Você não respondeu a minha pergunta.

– Eu sou mais velho que você, mas mais jovem que a sujeira debaixo dos seus
pés. Satisfeito?

Henry jogou as mãos para o ar. – Gah! Você torna tudo complicado, até mesmo
as perguntas mais simples.

– Ora, obrigado! – O Chapeleiro lançou-lhe um sorriso largo e satisfeito.

– Isso não foi um elogio!

– Claro que foi. Por que alguém procuraria intencionalmente ser maçante e
sucinto? Isso faria uma pessoa horrivelmente chata, eu deveria pensar. Não, é muito
melhor, na minha opinião, ser grande e deliciosamente intrincado o máximo possível.
De repente, ambos entraram em contato com um objeto duro e imóvel, fazendo
com que a caminhada deles - e a conversa deles - parasse de repente.

– Ah! Bom. Estamos do outro lado. – O Chapeleiro começou a rastejar como um


caranguejo pela parede.

Henry revirou os olhos e começou a se virar para subir a cerca, mas Chapeleiro
o deteve.

– Não! Você ainda está no Etnerf! Você deve se mover para trás ou os Snilmerg
o obrigará a voltar para onde cruzamos pela primeira vez!

Henry congelou, seu corpo meio girado. Pelo canto do olho, pensou ter visto
vagamente figuras de chifres ameaçadores, movendo-se pela grama azul alta. Ele
rapidamente virou para trás e cuidadosamente escalou a cerca para trás, prendendo a
respiração até que caiu do outro lado.

– Você pode se virar agora. Estamos longe de Etnerf. – O Chapeleiro deu um


tapinha no ombro dele. – Você fez bem. Nós não fomos enviados de volta uma vez. Isso
é raro para um marinheiro de primeira viagem.

– Obrigado. – Henry se virou lentamente; ele meio que esperava que pequenas
mãos com garras o agarrassem e o arrastassem de volta por cima da cerca. Diante dele,
espalhava-se uma área pantanosa que parecia muito menos convidativa do que Etnerf. –
Onde estamos agora?

– Um lugar que nunca planejei revisitar. – O Chapeleiro tirou o chapéu e passou


o braço sobre a testa, que parecia úmida de suor. – Bem-vindo, meu amigo, se é que
alguém pode realmente ser bem recebido em um lugar tão desagradável quanto este, à
Clareira do Nunca25.

25
Clareira do Nunca
CAPITULO OITO

O cheiro era nauseante e avassalador.

Era o odor do esgoto, do molhado, do lodo, do mofo e do limo, das coisas mortas
inchadas e estufadas. O Chapeleiro mexeu no bolso e pegou um lenço perfumado, usando-
o para cobrir o nariz. Felizmente, era um dos perfumados com chocolate. O último lenço
que ele puxara para fora era perfumado por trutas, embora até o fedor de peixe velho fosse
preferível ao fedor da Clareira do Nunca. Ele encontrou um sobressalente e entregou a
Henry. Ele pegou um leve aroma de morango quando ele passou por cima do ombro.

A voz de Henry soou ligeiramente abafada pelo lenço. – O que é esse cheiro
horrível? Cheira à açougue.

– É a Clareira do Nunca. Assim chamado porque algumas coisas entram, mas


nunca saem.

– Nunca? E nós? Talvez devêssemos voltar.

– Não há caminho de volta. Olhe. – O Chapeleiro apontou para trás deles. Não
havia nada além de uma tela semi-sólida de árvores e membros emaranhados, lianas,
raízes e trepadeiras. A cerca que acabaram de subir se foi.

– Merda!

– Oh, sim, sem dúvida, e de todos os tamanhos, formas e densidades. Eu


observaria meus passos com cuidado se fosse você.

Henry agarrou o braço do Chapeleiro, seus dedos cavando desconfortavelmente


na carne do Chapeleiro. – Por que você nos traz aqui?

– Você disse que queria ir ao castelo da Rainha Vermelha.

– Assim? Eu nunca disse para nos levar pelas entranhas do inferno.


O Chapeleiro fungou alto, embora mais para cobrir o fedor da Clareira do Nunca
do que para qualquer efeito dramático. – O caminho para o castelo da rainha muda. É
uma medida de segurança que ela colocou depois da última visita de Alice. Você nunca
chega lá da mesma maneira duas vezes, a menos que você esteja em sua carruagem
pessoal.

– Legal você mencionar isso!

– Teria feito diferença? Não? Nada mais a declarar.

– Mas você disse que as coisas nunca saem daqui!

– Abra seus ouvidos. Eu disse que algumas coisas entram, mas nunca saem. Nem
todas as coisas. Há uma chance de conseguirmos passar.

– Uma chance? – Henry agarrou o outro braço do Chapeleiro, sem dúvida


fazendo um machucado no braço com os dedos parecidos com garras.

– Uma boa chance. Embora, se ficarmos aqui por muito mais tempo, isso irá
rapidamente cair em nenhuma chance. As criaturas que vivem na Clareira do Nunca
tendem a reivindicar quaisquer objetos suficientemente lentos para serem pegos como
jantar. – Ele acenou com a cabeça em direção a uma longa e escamosa besta que estava
quase submersa em um lago salgado. Apenas as narinas e os olhos vermelhos espiavam
acima da linha d'água. O Chapeleiro sabia que logo abaixo da superfície havia uma boca
larga cheia de dentes muito afiados.

Ia lentamente à deriva em direção a eles. O Chapeleiro quase podia sentir seu


sorriso reptiliano. – Esse crocodilo, por exemplo. Está nos olhando como se fôssemos um
par de costeletas de primeira classe.

Ele agarrou a mão de Henry e a removeu do seu braço. Mantendo firme o


controle - ele não confiava em Henry para não ficar para trás, e não imaginava as
probabilidades do homem jovem se fosse deixado com o crocodilo - ele puxou Henry
enquanto ele caminhava pelo pântano.

A sujeira negra agarrava-se a seus sapatos e bainhas de suas calças.


Escorregadias, coisas escamosas, algumas barbatanas, alguns dentes, nadavam pela água
salobra, escorregando entre as pernas e roçando suas panturrilhas.
Morcegos pequenos e peludos voavam acima de suas cabeças, alimentando-se
dos enormes mosquitos que chamavam o pântano de lar. Ele podia ouvir o zumbido de
asas de couro, e os sentia batendo perto o suficiente de sua cabeça para causar uma brisa.
De vez em quando, um morcego se assentava em cima de seu chapéu, como se o
reivindicasse para seu abrigo pessoal, e ele acenava com um braço para afugentá-lo.

– Chapeleiro... – A voz de Henry soou grossa de medo.

Ele apertou tranquilamente a mão de Henry, embora admitisse não se sentir


muito seguro.

A luz era sempre cinzenta nas Clareiras do Nunca, escura, como se fosse um
crepúsculo perpétuo, prejudicando a visão e impedindo o movimento, exceto para os
habitantes que faziam do pântano sua casa. O Chapeleiro sabia de muitos além dos
crocodilos e morcegos, e todos eles eram igualmente perigosos e famintos.

Formas indistintas se moviam através dos galhos e raízes de árvores retorcidas e


emaranhadas ao redor, algumas parecendo musculosas e astutas, outras sinuosas e
inteligentes, mas todas potencialmente mortais. Ele começou a falar, mantendo a voz alta
e firme, como se o som fosse um amuleto audível para manter o mal à distância. – As
criaturas na água não são as únicas bestas famintas na Clareira do Nunca. Fique de olho
em uma barbatana triangular cortando as folhas acima de nós, Henry. Os tubarões das
árvores fazem a sua casa aqui. Criaturas curiosas, elas podem nadar através dos bosques
de folhas, correndo para dar uma mordida em qualquer criatura que se detenha por muito
tempo abaixo delas.

– Os crocodilos espreitam na beira de águas mais profundas, esperando que


alguma pobre alma desavisada vagueie muito perto da borda. Macacos piranha, ursos do
pântano e tigres-pigmeus também vivem aqui, todos eles muito felizes em arrastá-lo para
seus covis para fazer um lanche em seu lazer. A chave para a sobrevivência na Clareira
do Nunca é manter os olhos abertos e sempre seguir em frente.

– Tudo bem comigo. Não tenho vontade de passar mais tempo aqui do que o
necessário. Nós poderíamos correr, não poderíamos? Quanto mais rápido melhor.
– Não, isso não é uma boa ideia! Quanto mais rápido você se mover, mais ruim
será a lama e a sujeira em seus pés, tentando atrasá-lo. Mova-se rápido demais e você se
verá parado, um alvo perfeito para qualquer uma das criaturas famintas que vivem aqui.

– Você sabe, eu estou começando a realmente, realmente odiar o País das


Maravilhas.

Chapeleiro estalou a língua. – Não julgue todo o País das Maravilhas pelos
poucos lugares que você viu até agora. A maior parte é muito bonita. Por exemplo, os
Campos de Diamantes são particularmente brilhantes na época da colheita, quando os
frutos de diamante brilham como um milhão de fadas ao luar.

– Há o lago congelado, sempre gelado mesmo no calor mais alto do verão. É um


local de férias favorito, assim como o Rio Carmelo, com suas águas suavemente fluidas
e totalmente cremosas. Há muitas cidades agradáveis, também, cheias de pessoas e
criaturas interessantes. O País das Maravilhas faz jus ao seu nome, em geral.

– Bem, com base no que eu vi até agora, é uma merda.

– Exatamente o meu ponto. Você nos viu apenas no nosso pior. Você deveria
nos dar uma chance antes de julgar. – Ele avistou uma barbatana cinza triangular nas
folhas acima de sua cabeça e se abaixou, puxando Henry para baixo com ele, e bem a
tempo. Uma mandíbula pontuda cheia de dentes afiados e levemente angulados caiu para
eles das árvores, fechando-se com o som de uma centena de tesouras cortando, perdendo
a cabeça por centímetros. Ele retornou ao bosque de vegetação tão rapidamente quanto
apareceu. O Chapeleiro assistiu em alívio quando a nadadeira se moveu rapidamente
pelas folhas, indo para o sul.

O Chapeleiro deu a mão de Henry outro aperto. – Talvez devêssemos discutir


isso mais tarde e apenas nos concentrar em andar em um ritmo constante. Quanto mais
cedo sairmos daqui, melhor, e eu gostaria muito de sair sem nenhum pedaço de mim
faltando.

ELES CAMINHARAM pela lama grossa por horas, ou pelo menos se sentiam
assim. O Chapeleiro não podia ter certeza. A luz nunca escurecia ou iluminava-se na
Clareira, mas permanecia um cinza constante, e ele certamente não podia ver o sol ou a
lua através da espessa cobertura de vegetação acima de sua cabeça. Podia ser madrugada,
meio-dia ou meia-noite, ou algum dia no meio. Não tinha como saber quanto tempo havia
passado desde que entraram no pântano e, portanto, não faziam ideia de quanto tempo
demoraria antes que saíssem novamente.

Ele ainda segurava a mão de Henry. Estava quente, o aperto forte. Era uma mão
boa, robusta, criada para trabalho duro e perfeita para segurar as mãos em geral. Ficou
imaginando quantas outras mãos ela mantinha, e se algum de seus proprietários era
especial para Henry.

Para sua surpresa, ele se viu esperando que não houvesse um conjunto particular
de mãos esperando em casa por Henry. Ele gostava da sensação da mão de Henry na sua,
e mais, encontrava-se começando a gostar do resto de Henry também. Talvez ele tivesse
julgado mal Henry quando se conheceram no Formigueiro. Talvez Henry não fosse tão
parecido com Alice quanto o Chapeleiro supusera.

Ele tentou soar casual. – Então, Henry, você vê muito a Alice? Vocês se dão
bem?

Henry bufou. – Alice e eu somos como cebolas e sorvete. Nós não nos
misturamos com frequência e, nas raras circunstâncias em que o fazemos, geralmente é
um desastre.

Ah! Ele estava certo. Henry não era próximo de Alice e parecia não gostar dela
quase tanto quanto o Chapeleiro. Isso foi um pouco de alívio, embora o Chapeleiro não
tivesse certeza de por que deveria se importar.

– Eu sei porque eu não gosto da minha irmã - eu tenho uma vida inteira de razões,
na verdade - mas o que ela fez com você, Chapeleiro?

O Chapeleiro decidiu ser honesto, algo que ele geralmente se esforçava para
evitar sempre que possível. Tão diferente de mim, ele pensou, talvez eu tenha pegado uma
doença de algum tipo. Preciso ver o médico, suponho. Ele mergulhou de qualquer
maneira. – Muitos, muitos anos atrás, fui amaldiçoado pelo Tempo para passar a
eternidade vivendo e revivendo uma Festa do Chá com Arganaze e o Coelho Branco. De
novo e de novo, bebendo a mesma maldita xícara de chá, comendo os mesmos bolos
velhos... Foi horrível, mas acho que me acostumei com isso.

– O que isso tem a ver com a minha irmã?

– Oh, bem, ela tropeçou na nossa Festa do Chá, você vê, e rudemente se convidou
para se juntar a nós. Então, ela criticou e replicou terrivelmente, indo e vindo sobre os
erros mais simples, perguntando pergunta após pergunta, tanto que ela até conseguiu
perturbar Arganaz, um feito difícil, porque, como eu tenho certeza que você já sabe,
arganazes estão praticamente em coma de pé. Então ela saiu, deixando o resto de nós para
resolver o problema. E porque? Porque eu fiz a ela um simples enigma. O tempo ficou
tão perturbado com o comportamento dela que ele esqueceu a maldição e nos deixou ir.

– Mas isso não seria uma coisa boa? Livrar-se da maldição?

Chapeleiro sacudiu a cabeça tristemente. – Você pensaria assim, e talvez um


tempo eu sentisse o mesmo, mas eu estive naquela maldita Festa do Chá por tanto tempo,
a maioria das pessoas que eu conhecia e importava estavam mortos há muito tempo!
Minha família, meus amigos... Eu teria ficado mais feliz se tivesse ficado para tomar chá
pela eternidade.

Algo sombreou os olhos de Henry, algo que parecia suspeitamente com simpatia
para o Chapeleiro. – Desculpe, Chapeleiro. Ela é uma verdadeira idiota às vezes. Pelo
menos, ela era quando ela era pequena. Ela mudou um pouco desde que se casou. – Henry
corou, como se de algum modo fosse culpado pelas deficiências de sua irmã.

– Não se preocupe. Eu me ajustei bem, eu acho. – Exceto pela parte em que


quase perdi a cabeça, é claro, mas não era preciso sobrecarregar Henry com tudo isso. O
Chapeleiro convocou um sorriso.

– Então, qual foi o enigma?

Chapeleiro piscou. – Que enigma?

– Aquele que você perguntou a Alice. O que foi?

– Oh aquilo. Por que um corvo é como uma escrivaninha?

– Hã. Isso é fácil. Estou surpreso que Alice não tenha sabido a resposta.
– Já estabelecemos que você é muito mais esperto que sua irmã. – O Chapeleiro
olhou para Henry com o canto do olho para ver sua reação ao pequeno elogio e ficou
satisfeito ao ver um sorriso curvar os lábios de Henry. – Então, qual é a resposta?

– Ah. Porque ambos produzem notas.

O Chapeleiro piscou novamente. – Hã. Sim, acho que funciona, não é? Bom
show.

Henry puxou as mãos unidas, mas Chapeleiro se recusou a soltar. – Então, qual
é a resposta real?

– A verdadeira resposta?

– Para o enigma. Qual foi a resposta original?

– Hum, você adivinhou. – O Chapeleiro pigarreou e se recusou a encontrar os


olhos de Henry.

Os olhos de Henry se estreitaram e o Chapeleiro soube que tinha sido descoberto.


– Você não sabia a resposta quando você fez o enigma, não é? Foi isso que deixou Alice
tão brava.

– De que lado você está, afinal? – O Chapeleiro resmungou, mas ele se iluminou
alguns momentos depois. – Veja! Estamos quase fora da Clareira do Nunca!

Com certeza, a luz à frente foi lentamente se tornando mais brilhante, cortando
a densa escuridão do pântano da Clareira do Nunca e afastando as sombras. O Chapeleiro
acelerou o ritmo, ansioso para deixar o pântano e todos os seus residentes mortais e cheios
de dentes para trás.

Só depois de passar pelo último trecho do pântano sombrio e ficar sob o brilhante
sol do País das Maravilhas, o Chapeleiro se deu conta de que ainda segurava a mão de
Henry. Henry pareceu perceber ao mesmo tempo, porque eles soltaram as mãos um do
outro e deram um passo para longe, sem encontrar os olhos um do outro.

O Chapeleiro aproveitou o momento para examinar a área, tentando descobrir


onde estavam. Ele soube em um instante. O cheiro doce, meloso e levemente agudo da
brisa a entregava ainda mais do que os montes levemente inclinados à distância. Eles
estavam nas Planícies do Açúcar, o que levava às Montanhas da Confecção.

– Temos algumas horas restantes antes do pôr do sol. Melhor continuar andando.
– Ele esperava que eles tivessem luz suficiente para subir nas colinas suaves antes de
precisar acampar. A área adjacente ao pântano era relativamente plana e salpicada de
flores silvestres de cheiro adocicado. Isso seria um alívio depois de todo o tumulto que
eles sofreram desde que saíram da Toca da Lagarta, mas o Chapeleiro sabia que ainda
tinha seus próprios perigos.

Um olhar para a fumaça cinzenta que soprava suavemente das montanhas


indicava que os fornos estavam aquecidos e prontos para assar nas Montanhas da
Confecção. Se fosse esse o caso, não importaria se era meia-noite ou meio-dia. O
problema viria para eles de qualquer forma, e também não haveria como negar a saída.
Os padeiros não eram muito racionais quando se tratava de exercer seu ofício.
CAPÍTULO NOVE

– O que é esse cheiro? – Henry ergueu o nariz no ar e cheirou. – Eu não consigo


identificar, mas isso me lembra da cozinha da minha avó.

– Não é nada. Sua imaginação. Continue caminhando.

– Não, não é. Eu posso sentir o cheiro. Cheira quente, picante, açucarado... e


familiar. – Henry respirou fundo mais uma vez. – Eu sei! Biscoitos! É isso que é. Sinto
cheiro de biscoitos assando.

– Você é maluco. Estamos no meio do nada. Você vê uma padaria em algum


lugar próximo? Continue caminhando.

Henry olhou para o Chapeleiro e depois deu uma olhada mais demorada. O
Chapeleiro estava mastigando o interior de sua bochecha e linhas de preocupação
vincaram sua testa. Ele parecia assustado, embora sobre o que, Henry não podia
adivinhar. Depois de escapar das formigas monstruosas do Formigueiro Vermelho, e
administrar a natureza retrógrada de Etnerf, e de navegar pela traiçoeira Clareira do
Nunca, a caminhada deles pela campina coberta de flores com a brisa perfumada de
padaria foi quase uma viagem. Que terror poderia ter o cheiro de um doce assado no
forno? – Chapeleiro? O que é isso? Você precisa me dizer. Você parece praticamente
assustado em suas calças.

Os olhos do Chapeleiro se arregalaram e ele engoliu em seco. – Você não sabe


onde estamos, não é? Essas são as Montanhas da Confecção que estamos nos
aproximando!

– Então? O que há de tão assustador nisso? Elas não parecem difíceis de escalar.

– As montanhas não são o problema. São os Padeiros com os quais precisamos


nos preocupar. Seus fornos estão construídos naqueles contrafortes.
– Então? Eu gosto de biscoitos e bolo. Gosto particularmente de pão de gengibre,
embora também aprecie biscoitos de chocolate, mas...

O Chapeleiro ofegou e parou, apertando a mão na boca de Henry. – Shh! Você


não pode tomar partido! Essa é uma maneira certa de morrer!

Henry tirou a mão do Chapeleiro da boca. – Por favor, pare de fazer isso? – Ele
franziu a testa e cruzou os braços sobre o peito. – Estou enjoado e cansado de sua conversa
fiada, enigmas e tagarelice sem sentido. Diga-me o que está acontecendo ou não vou dar
outro passo.

O Chapeleiro torceu as mãos e mudou o peso de um pé para o outro. – Não temos


cobertura aqui. Eu esperava passar pelos contrafortes e subir a montanha antes que os
fornos fossem acessos, mas eu estava errado. Precisamos encontrar um lugar para nos
esconder. Talvez pudéssemos colher algumas dessas flores e usá-las como camuflagem.
– Ele estendeu a mão e pegou uma margarida, segurando-a até o rosto. – Você consegue
me ver?

– Sério? – Henry levantou uma sobrancelha. – Claro que eu posso. É uma maldita
margarida.

– Droga. – O Chapeleiro jogou fora, e examinou o chão. – Então talvez possamos


cavar um buraco. Eu posso ter uma pá em algum lugar. Ele enfiou a mão no bolso e
começou a procurar ao redor.

Henry agarrou os braços do Chapeleiro e deu-lhe uma pequena sacudida. – Não!


Sem camuflagem, sem cavar buracos, sem esconderijo. Não até você me dizer o que está
acontecendo! – Ele gesticulou em direção ao prado vazio e as colinas além. – Não há nada
aqui fora além de nós!

Os olhos do Chapeleiro eram enormes e praticamente brilhantes de medo. – Os


Padeiros devem estar em guerra novamente. Essa é a única razão pela qual os fornos
seriam acesos a esta hora do dia.

– Os Padeiros?
O Chapeleiro assentiu. – Eles são uma raça de gigantes que vivem nas montanhas
e fornecem à todo o País das Maravilhas produtos assados. Biscoitos, bolos, tortas… Cada
mimo assado vem daqui. Seus enormes fornos estão construídos nos contrafortes.

– Então?

– Você não entende? Os fornos nunca são acessos no final do dia. Eles só são
operados nas primeiras horas da madrugada! Os Padeiros vão trabalhar no meio da noite.

Henry levantou um ombro. – Então eles decidiram dormir e assar no final do dia.
E daí?

O Chapeleiro amaldiçoou baixinho, como se Henry fosse um idiota que não


compreendesse as mais rudimentares explicações. – Os Padeiros são dedicados ao seu
ofício. Cada clã tem suas próprias receitas, e cada um deles insiste que é a melhor.
Normalmente, o Tribunal de Confiança resolve as disputas, mas às vezes a guerra irrompe
entre eles. Em seguida, os fornos das montanhas fervem dia e noite assando seus
exércitos. É a única razão pela qual os fornos estariam quentes no meio do dia!

O pobre Chapeleiro parecia aterrorizado, mas na verdade... um exército de


biscoitos? Que tipo de dano isso poderia causar? Tudo o que você precisa é de um copo
de leite para derrotá-los! Uma risada borbulhou entre os lábios de Henry antes que ele
pudesse pará-la.

– Não é engraçado!

– Bem, sim, meio que é. Chapeleiro, acabamos de sair de um pântano cheio de


tubarões das árvores, crocodilos e outros dentuços e famintos para os quais eu nem tenho
nome, e mesmo assim você está aqui, tremendo sobre um monte de biscoitos! – A risada
se aprofundou em uma risada verdadeira que sacudiu os ombros de Henry e trouxe uma
lágrima aos seus olhos.

O Chapeleiro balbuciou de indignação. – Não ria! Não há nada engraçado sobre


guerra, biscoito ou qualquer outra coisa. – Ele olhou para a distância, mas seu olhar
pareceu girar para dentro. Quando ele falou de novo, foi em um sussurro. – Eu era apenas
uma criança pequena durante a última Guerra de Confecção, mas você nunca esquece
algo assim, nunca. O barulho. A fumaça. O glacê. Um arrepio visível correu por seus
ombros.

Henry mordeu com força a língua para parar de rir. O Chapeleiro estava
verdadeiramente aterrorizado. – Eu estou, hum... sinto muito, Chapeleiro.

O Chapeleiro desviou o olhar e ergueu o queixo. – Como se eu acreditasse em


você.

– Não, sério. Sinto muito. – Ele realmente se sentiu mal e colocou a mão no
braço do Chapeleiro. Henry sabia por experiência que ser ridicularizado não era
agradável. As pessoas riram dele toda a sua vida por causa dos contos de Alice. – Por
favor me perdoe. Eu estava fora de linha. Deve ter sido horrível para você.

– Isso foi. Os padeiros não são conhecidos pela compaixão.

Henry pegou a mão do Chapeleiro e deu um tapinha nela. Ele acenou com a
cabeça em direção às colinas. – Isso não é uma enorme cadeia de montanhas. Talvez
possamos encontrar uma maneira de contorná-las.

– Não. Não há outro caminho a percorrer. – O Chapeleiro sacudiu a cabeça. – A


Clareira do Nunca está atrás de nós, e voltar atrás não nos fará bem de qualquer maneira.
Para o leste encontra-se o Deserto de Areia de Açúcar Sem Fim. As pessoas raramente
vão lá, e apenas alguém com um desejo de morte tentaria atravessá-lo a pé.

– Se ninguém vai lá, como você sabe que é interminável?

O Chapeleiro lançou-lhe um olhar sombrio e afastou a mão. – Primeiro, está bem


aí no nome. Não é o Deserto de Areia de Açúcar praticamente sem fim, você sabe.
Segundo, ninguém que tentou atravessá-lo voltou. Eles estão mortos ou ainda estão
andando. De qualquer forma, não parece particularmente agradável para mim.

Henry sorriu. – Talvez eles tenham chegado ao outro lado e gostado mais de lá,
e é por isso que eles nunca voltaram. Você nunca pensou nisso?

– E talvez estejam deitados em algum lugar na areia escaldante e açucarada, sem


nada a não ser uma confusão de ossos branqueados. Prove-me errado, e eu vou
alegremente liderar o caminho.
– Ponto tomado.

– Realmente, eu moro aqui, você sabe. Por que você deve questionar cada
palavra que sai da minha boca?

Henry pensou sobre isso. Por que? Ele tinha a suspeita de que era porque o
Chapeleiro - e o País das Maravilhas em geral - estava tão intimamente ligado a Alice.
Desde que ele passou quase a vida inteira não acreditando nela, duvidar do Chapeleiro
parecia uma progressão natural. – Desculpe. Você está certo. Eu acho que tenho
problemas com qualquer coisa relacionada ao País das Maravilhas. Eu nunca acreditei
nas histórias de Alice, você sabe. Eu sempre pensei que ela fez tudo para chamar a
atenção. Acho que lhe devo desculpas quando voltar.

– Hmph. – O Chapeleiro assentiu. – Ela era totalmente irritante, uma dor na


bunda de praticamente todo mundo, e ninguém lamentou vê-la sair daqui, mas a única
coisa que ela não era, era uma mentirosa.

Henry assentiu e tentou mudar de assunto. Ele achou que falar sobre as virtudes
de Alice era um passatempo desconhecido e desconfortável. Ele apontou para o oeste. –
O que é lá?

– Rio Venom. É uma hidrovia que começa nas Cachoeiras Sem Cabeça, a oeste
do Toca da Lagarta. Ela corta as Montanhas da Confecção e deságua no Lago Morto-
Vivo. A água é venenosa e ácida. É um rio de pedras, águas turvas ásperas e turbulentas
e vórtices rodopiantes que derreterão sua jangada debaixo de você e a carne de seus ossos
dentro de cinco minutos depois de embarcarem nela. E isso é só se você conseguir navegar
pela costa para chegar à água em primeiro lugar. As margens são o local de alimentação
e reprodução das cobras venenosas, dos basiliscos, das aranhas e de uma espécie
especialmente feroz de fogo de fava.

Henry reprimiu um estremecimento. – E você realmente chama este lugar de


'País das Maravilhas', hein?

– Sim, claro. É chamado assim porque muitas partes são maravilhosas, mas
também porque é uma maravilha que alguém alguma vez sobreviva a algumas delas. – O
Chapeleiro pegou a mão de Henry e começou a puxá-lo para as colinas. – Nossa única
escolha é passar por cima das colinas. Quando estivermos nas montanhas, haverá bastante
cobertura para nos manter escondidos dos exércitos de Padeiros quando os cruzarmos.
Vamos. Mantenha a cabeça abaixada, e se você ouvir alguém gritar 'fogo'… abaixe-se.

O PRADO gradualmente se tornou mais íngreme, flores silvestres e grama


diminuindo, moitas de arbustos espinhosos se tornando mais abundantes e mais próximos
à medida que se aproximavam da base da primeira colina. Era o maior em um grupo de
seis. Os montes suavemente ondulados eram a porta de entrada para as Montanhas da
Confecção, que se erguiam nitidamente atrás deles. O Chapeleiro disse que as pessoas os
chamavam de Seis Mamães Cadelas.

– Eles são apropriadamente chamadas. – Disse o Chapeleiro enquanto olhavam


para elas. – Porque cada uma é uma cadela por direito próprio.

O gelo cobria a primeira e maior colina em um esmalte liso e escorregadio. O


Chapeleiro disse que nunca derretia, nem mesmo quando o enorme forno enterrado dentro
dele ficava quente. O gelo tornava quase impossível escalar.

A segunda colina era um vulcão, continuamente lançando lava em rios sinuosos


e fumegantes, e expelindo nuvens cinzentas de cinzas e gás no ar. O Chapeleiro disse que
o ar perto daquela cheirava a enxofre e matava pássaros que cometiam o erro de voar
muito perto de suas nuvens venenosas. Vários caíram do céu enquanto Henry observava,
horrorizado.

Um exuberante jardim tropical cobria a terceira colina. Mesmo à distância,


Henry podia ver árvores pesadas com frutas coloridas e fitas de água cintilante que
penetravam a folhagem e formações rochosas incomuns. Ele sorriu. – Vamos escalar essa.
Eu estou com fome.

– Você está maluco? Essa é a Colina do Esquecimento. Coma qualquer coisa,


beba qualquer coisa naquela colina e você instantaneamente esquecerá tudo que já
conheceu. Não apenas assuntos difíceis como arithgebra e quadrometria, mas coisas
simples, como quem você é, como andar, como falar, como comer e como respirar.
– Então, não vamos comer nem beber nada. Ainda parece mais segura que
qualquer das outras colinas.

O Chapeleiro sacudiu a cabeça. – Você realmente não acha que seria tão simples
assim, acha? As flores na Colina do Esquecimento produzem um pólen narcótico. É
grosso no ar e inevitável. O pólen é tóxico e é tão poderoso que você não será capaz de
resistir a comer ou beber tudo à vista. – Ele apontou para a colina. – Vê aquelas coisas
pálidas e irregulares espalhadas pela colina?

Henry assentiu. – Você quer dizer aquelas formações rochosas? Sim, eu as vejo.

– Essas não são pedras. Esses são os corpos calcificados de pessoas que
estupidamente acreditaram que a bonita e pequena colina era segura.

– Oh. – Henry mordeu o lábio e considerou as três colinas restantes.

O Chapeleiro apontou para a próxima colina. A colina parecia flutuar dentro de


uma enorme bola de água. – Essa é a Colina dos Tubarões. Importa-se de arriscar um
palpite por que foi dado esse nome?

Henry não tinha que adivinhar. Ele podia ver tubarões de todos os tamanhos
diferentes nadando através da água, incluindo várias espécies que ele conhecia e muitas
outras que ele não conhecia. Tubarões martelo, tubarões-tigre, tubarões-touro e pelo
menos três grandes tubarões brancos circulavam continuamente a colina, junto com
tubarões-roxos, tubarões listrados e um que parecia quase tão grande quanto uma baleia
e comia vários tubarões enquanto nadava.

O Chapeleiro chamou a atenção de Henry para a quinta colina. Parecia inchar e


encolher aleatoriamente, como se algo estivesse encapsulado dentro dele e se esforçando
para se libertar. Considerando tudo o que ele tinha visto até agora, Henry estava inclinado
a acreditar que isso estava acontecendo.

– Essa é a Colina Ovo. Ninguém tem certeza do que está incubando lá dentro,
mas seja o que for, estamos todos bastante confiantes de que será feio e faminto quando
chocar. Que, pela aparência das rachaduras que cruzam a superfície, pode ser a qualquer
momento.
Isso deixou a colina final e maior. Uma escova espinhenta cobria-o, mas Henry
não conseguia distinguir nada vivo, pulsante, saliente, nadando, jorrando, mordendo ou
brilhando nele. – O que é isso?

– Colina Picante. Está coberto de arbustos que picam como vespas. – Ele olhou
para Henry. – Você é alérgico a picadas de abelha?

– Não. Não que isso signifique que eu goste de ser picado, no entanto.

– Ha! Eu espero que não. Eu pergunto, porque os arbustos contêm pequenas


quantidades de veneno, muito parecido com picadas de abelha. Em qualquer caso, é
Colina Picante ou uma das outras. Faça sua escolha.

Henry olhou novamente as seis colinas. Enquanto escalar a Colina Picante


poderia ser uma experiência possivelmente dolorosa, parecia ter a menor probabilidade
de matá-los. – Talvez, se corrermos rápido o suficiente, não seremos picados.

– Suponho que coisas estranhas tenham acontecido. Então, Colina Picante.


Lembre-se, mantenha a cabeça baixa e os olhos abertos para os exércitos dos Padeiros.
CAPÍTULO DEZ

ERA MUITO mais difícil do que o Chapeleiro lembrava. Então, novamente, ele
não estava na área desde que era criança, e as crianças eram notoriamente ágeis. Não
importa o quão cuidadosamente eles pisavam, a escova espinhenta pegava suas calças,
atravessando o tecido para arranhar a pele por baixo. Isso não era como tomar algumas
picadas de abelha. Isso parecia como se eles estivessem atravessando uma piscina cheia
até a borda com vespas chateadas.

– Ai! Ai, ai, ai, ai. – Ele levantou os joelhos para o alto enquanto caminhava,
esperando dar pelo menos a uma perna de cada vez uma pausa dos espinhos mordedores,
ainda que temporário.

Henry adotou uma abordagem diferente. Ele dava longos e desajeitados pulos
pelos espinhos, parecendo um coelho que fumava erva. Seu método não parecia melhor
sucedido do que o do Chapeleiro, mas o Chapeleiro admitiu que era muito mais divertido
de assistir.

Ou seria, se Chapeleiro estivesse em algum estado de espírito para se divertir.


Do jeito que estava, suas pernas começavam a ficar esfoladas, deixando seus músculos,
nervos e terminações nervosas cruas e gritando, deixando-o com um humor ligeiramente
menos jovial.

– Nós deveríamos ter arriscado com a Colina Ovo. – Henry parecia um pouco
ofegante, sem dúvida de todos os saltos intensos que ele estava fazendo. – O que quer que
saia daquela colina - ai - não pode ser pior do que esses espinhos.

– Nunca diga nunca. Ai. Eu aprendi que a única coisa que todas as criaturas
grandes e pequenas, sejam elas humanas ou animais, têm em comum ao nascerem é a
fome. Eu preferiria ser picado do que servir como a primeira refeição de um pesadelo
recém-nascido.
– Você não pode saber que iria querer nos comer. Ai. Talvez o que esteja nesse
ovo seja vegetariano.

Chapeleiro olhou para ele com desconfiança. – Depois de ver tudo o que você
tem visto do País das Maravilhas até agora, você realmente acha que as coisas
funcionariam desse jeito? Ai.

Henry bufou. – Talvez, ai, mas eu provavelmente iria automaticamente me


transformar em uma abobrinha gigante e ser comido de qualquer maneira, não seria?

– Ai. Agora você está entendendo.

– Você vai me perdoar, mas até agora o País das Maravilhas é um saco, de bolas
grandes, gordas e peludas de macaco.

De alguma forma, apesar da dor aguda, o Chapeleiro riu. – Isso é, meu amigo.
Às vezes, isso acontece.

ELES SUBIRAM o morro e pararam no topo para recuperar o fôlego e um breve


alívio de pisotear os arbustos. Diante deles, no sopé da colina, havia um vale estreito.

Dentro dos limites do vale, havia filas e mais fileiras de figuras parecidas com
humanos. Um olhar disse a Henry que eles não eram humanos. Suas cabeças, mãos e pés
eram muito grandes e redondos demais, e seus corpos, quando vistos de lado, eram muito
planos.

Ele cutucou o Chapeleiro. – Quem, ou o quê, são eles?

O Chapeleiro tirou o chapéu e passou o braço pela testa, enxugando a


transpiração. – Esse é o exército de gengibre. Eles são a primeira linha de defesa para a
Tribo dos Padeiros de Melaço. Na batalha, eles são destemidos e mortais. Praticamente
imparáveis, realmente.

O movimento de longe no vale atraiu o canto do olho. Uma nuvem de poeira


estava girando à distância. Henry se virou, apertando os olhos para ver. – O que é aquilo
lá embaixo?
O Chapeleiro enfiou a mão no bolso e retirou uma luneta telescópica. Ele puxou-
a para o seu comprimento total e colocou-o nos olhos, estudando a poeira agitada. Ele
xingou e removeu a luneta, entregando-a a Henry. – Dê uma olhada. É a Milícia de Açúcar
do Padeiro Chocolatier. Parece que a Cavalaria Gelatina está na liderança.

Henry olhou através da luneta, balançando-a na direção da nuvem de poeira.


Formas indistintas começaram a surgir; Cavaleiros de doces em tons de pedras montados
em cavalos de marshmallow inchados cavalgavam lentamente em direção ao Exército
Homens de Gengibre, com filas de soldados de chocolate marchando atrás deles. Eles
pararam na metade do vale, e tudo ficou mortalmente quieto.

De repente, um estrondo trovejou no silêncio e ecoou pelo vale. Henry assistiu


com horror quando uma bola marrom voou pelo ar e fez um buraco no meio do peito de
um dos soldados de gengibre. O soldado caiu para a frente e ficou imóvel.

O Chapeleiro agarrou o braço dele e puxou-o para o chão. – Mantenha a cabeça


abaixada a menos que você queira que uma bala de canhão de malte de chocolate a tire.
A batalha começou!

Uma figura comprida saiu da linha de frente dos soldados de gengibre. Ele usava
dragonas amarelas de alcaçuz e carregava uma espada de balas de chocolate. Ele levantou
e apontou para a Milícia do Açúcar. Sua voz era surpreendentemente profunda e
rudimentar para um biscoito. – Carregar!

Um rugido surgiu no vale quando o Exército de Homens de Gengibre avançou.


Avançando em uma corrida de pernas duras e desajeitadas, eles dispararam suas armas
de gelo contra a Milícia do Açúcar. Fluxos de glacê branco pegajoso atingiram a
cavalaria, fazendo com que os cavalos de marshmallow e seus cavaleiros gelatinosos se
espalhassem.

Lanças adicionais soaram em resposta, seguidas por mais soldados de gengibre


soprados em migalhas de bolachas por balas de canhão mortíferas de malte de chocolate.
Os soldados de chocolate marcharam em duplas, avançando pelo vale, espetando os
soldados de gengibre com lanças afiadas de doces. De vez em quando, um soldado de
gengibre lançava uma granada de mão Red Hots em um arco sobre as cabeças da Milícia
do Açúcar, onde explodia em um spray de chocolate derretido.
Enquanto eles observavam, um cavalo de marshmallow pegou fogo, galopando
para longe da luta até que escureceu e caiu no chão em uma poça de marshmallow
borbulhante e derretida.

O Chapeleiro puxou o braço de Henry. – Vamos! Esta é a nossa chance, enquanto


os exércitos estão ocupados tentando matar um ao outro.

– O que? Nós não podemos ir lá embaixo! Nós vamos nos matar.

– É a nossa única chance. Eles estão ocupados demais tentando destruir um ao


outro para nos ver. Se esperarmos, provavelmente seremos capturados por qualquer lado
que vencer essa escaramuça. Agora vamos! – Ele começou a correr pelo lado da colina
até o vale, arrastando Henry junto com ele.

O cheiro de fumaça e canela pesava no ar no fundo do vale. Henry teve que


engolir em seco ao ver os soldados de gengibre caídos espalhados pelo chão, a maioria
com membros que faltavam, e todos com ferimentos terríveis. Balas de canhão de malte
de chocolate estavam aqui e ali, cobertas de migalhas de pão de gengibre.

A guerra, até mesmo da variedade de confeitos, era o inferno.

O Chapeleiro puxou-o, contornando poças de glacê, chocolate derretido, pão de


gengibre e corpos pegajosos. O ar esfumaçado dificultava ver onde eles estavam indo, no
entanto. Mais de uma vez, as solas dos sapatos de Henry ficaram presas em algo grudento,
puxando cordões de gosma quando ele finalmente se libertou. Ele não queria olhar para
as poças muito de perto. Elas cheiravam fortemente a marshmallow.

Um assobio chamou sua atenção. Antes que Henry pudesse reagir, o Chapeleiro
empurrou-o para o chão e caiu em cima dele. Por cima do ombro do Chapeleiro, Henry
viu uma bola de chocolate do tamanho de uma bola de boliche cair, atingindo o chão ao
lado deles.

– Meu Deus! Isso poderia ter nos matado! – O medo congelou o peito de Henry,
dificultando a respiração. Foi muito próximo. Se Chapeleiro não o tivesse empurrado para
baixo, a bola poderia ter tirado a cabeça de Henry. Ele virou o olhar para encontrar o
Chapeleiro. – Você salvou minha vida.
O canto da boca do Chapeleiro se curvou em um sorriso indiferente, mas desde
que ele permaneceu deitado sobre Henry, ele realmente não podia esconder seu medo.
Henry podia sentir o coração do Chapeleiro acelerado. – Não foi nada.

O Chapeleiro não fez nenhum movimento para se levantar. Quanto mais Henry
ficava ali, a pressão do corpo do Chapeleiro prendendo-o ao chão, mais os sons da batalha
pareciam se desvanecer. Ele começou a notar como a mandíbula do Chapeleiro acentuava
seu lado esperto. Como os olhos do Chapeleiro eram de um marrom quente e escuro, não
totalmente negros como Henry pensara. E principalmente, como os lábios do Chapeleiro
eram cheios e macios. Ele se perguntou se eles se sentiriam quentes, e que gosto teriam.

Como é que com a guerra tão perto, com balas de canhão de malte de chocolate
voando e armas de gelo queimando, que eu posso estar pensando em beijá-lo? Este
maldito lugar finalmente me empurrou para o limite. Eu devo estar maluco. Louco. Com
certeza. Por que estamos apenas deitados aqui? Precisamos sair daqui antes de sermos
mortos!

Em sua cabeça, ele se repreendeu ferozmente, mas não falou uma única palavra
em voz alta. Em vez disso, ele levantou a cabeça e tocou os lábios no do Chapeleiro.

No fim das contas, eram tão macios e duas vezes mais quentes quanto Henry
imaginara, e tinham gosto de chá de hortelã.

Nada o surpreendeu mais do que quando Chapeleiro o beijou de volta, sua língua
provocando o lábio inferior de Henry. Exceto talvez pelo fato de que por um longo e feliz
momento, Henry estava perfeitamente contente em ficar ali no campo de batalha no País
das Maravilhas, com pedaços de soldados de gengibre e Milícia de Açúcar ao seu redor,
balas de canhão de malte de chocolate voando, sendo beijado por Chapeleiro.

Foi o Chapeleiro quem finalmente quebrou o feitiço.

Ele limpou a garganta e rolou de cima de Henry, levantando-se. – Hum,


desculpe. Bem, acho que devemos ir. Lá. Longe.

Henry sorriu e se pôs de pé. – Definitivamente. Devíamos ir. – O Chapeleiro


parecia positivamente aturdido e, de alguma forma, isso fez Henry sentir-se como se
tivesse vencido uma escaramuça.
Outra bala de malte de chocolate zumbiu por eles, atingindo o chão nas
proximidades. Os dois pularam e soltaram gritos meio sufocados. Foi todo o ímpeto de
que eles precisaram para colocá-los em movimento.

Começaram a correr, dobraram-se quase pela metade, mantendo a cabeça baixa


e rapidamente atravessaram o vale para o outro lado.

Na frente deles, a primeira das Montanhas da Confecção ergueu-se abruptamente


do chão do vale. Ele e o Chapeleiro levaram um momento para olhar para a sua presença
intimidadora. Um caminho estreito e bem trilhado de migalhas de biscoito cream-cracker
firmemente empilhadas começava em seu pé, serpenteando até a face da montanha.

O Chapeleiro quebrou um pequeno pedaço de rocha do pé da montanha e


colocou-o na boca. – Eles são feitos de doces de rocha, você sabe. As montanhas, quero
dizer. Ouvi dizer que o açúcar de confeiteiro cobre os picos em montes de dois a três
metros. Diz a lenda que os Padeiros construíram as montanhas para impedir que os
inimigos roubassem suas receitas, mas são tão paranoicos com seus segredos que
frequentemente suspeitam que um ou mais de seus próprios irmãos tentam roubá-los. É
quando essas guerras surgem. – Ele bateu palmas, balançando a poeira dos doces voando.
– Bem, é melhor subirmos. Eu gostaria de chegar ao outro lado das montanhas antes de
escurecer.

Eles escalaram o que parecia ser uma eternidade para Henry. O caminho era
íngreme e, em pouco tempo, os joelhos e as costas doíam. Ele olhou para trás uma vez e
viu o vale divididos pela guerra espalhados muito abaixo. Eles vieram mais longe do que
ele pensava.

Um estrondo ensurdecedor o assustou, tão profundo que ele podia sentir as


reverberações em seus ossos. Ele agarrou o braço do Chapeleiro. – O que é que foi isso?

O Chapeleiro olhou em volta descontroladamente, depois puxou Henry para uma


fenda apertada na parede da montanha. Eles mal cabiam dentro, peito a peito. Os olhos
escuros do Chapeleiro estavam arregalados e o medo brilhava neles. – Shh. Não faça
barulho.
Henry prendeu a respiração e esperou enquanto os sons dos estrondos se
aproximavam, ficando mais altos a cada minuto. Uma enorme sombra, aparentemente
quase tão grande quanto a própria montanha, caiu sobre eles. Era como se a noite tivesse
caído de repente. Henry não podia mais ver o rosto do Chapeleiro, apesar de estar a
poucos centímetros do seu.

Os sons crescentes continuaram, crescendo mais longe, e em poucos momentos


a sombra passou e o sol voltou. O Chapeleiro os fez esperar mais cinco minutos antes de
sair lentamente de seu esconderijo.

Henry ainda estava com medo de falar. Ele podia ver uma figura gigantesca
bloqueando o sol no outro extremo do vale. Ele baixou a voz para um sussurro. – O que
é que foi isso?

– Um dos Padeiros gigantes. Eles não são especialmente pessoas de boa


vizinhança. Todo mundo é um espião em potencial para eles. Se ele tivesse nos
encontrado, ele provavelmente teria nos triturado e nos adicionado como aromatizante
para o próximo lote destinado ao forno.

Henry continuava lançando olhares por cima do ombro enquanto continuavam a


subir, mas finalmente, na ausência de mais Padeiros gigantes, sua mente começou a vagar.
Uma vez liberto do medo, fez um caminho direto de volta ao seu beijo.

Nenhum deles mencionou em voz alta, mas pelo menos para Henry, o beijo deles
nunca saiu de sua mente, nem mesmo quando o Gigante passou tão perto que Henry podia
sentir a loção pós-barba do Gigante - um pouco picante e noz-moscada, como a torta de
abóbora de sua avó. Ele achou a lembrança quase tão agradável quanto o beijo em si, mas
não pôde deixar de se perguntar o que o Chapeleiro pensava sobre isso.

O Chapeleiro parecia contente em fingir que nada havia acontecido. Henry podia
entender isso, até certo ponto. Ele não era tão estúpido a ponto de acreditar que todo
mundo estava fora e confortável em sua própria pele. Algumas pessoas negavam a atração
que sentiam.

Não foi a primeira vez que Henry beijou um menino. Ele teve um namorado uma
vez. Ele e James namoraram por quase seis meses no segundo ano, e fizeram mais do que
simples beijos. Um sorriso lascivo enrugou sua bochecha enquanto se lembrava. Ele tinha
saído com Sarah antes de James, e Rachel depois, e nenhuma das meninas usava anéis de
pureza também.

Ainda assim, nenhum deles tinha sido o que Henry consideraria relacionamentos
“sérios”. Eles tinham sido divertidos, mas ele não ficara com o coração partido quando
eles terminaram. Durante toda a sua vida ele se sentiu como se estivesse procurando por
algo, que algo estava faltando e que ele nem sabia o nome, mas ele sabia que não tinha
sido nem James nem nenhuma das garotas.

Poderia ser que ele devesse estar procurando no País das Maravilhas o tempo
todo? Mesmo quando ele repreendeu Alice por contar mentiras e acreditou que não
poderia existir? Pela primeira vez, ele começou a questionar seus próprios motivos para
não acreditar em Alice. Teria sido porque ele realmente pensava que ela estava mentindo,
ou tinha alguma parte pequena e feia dele com ciúmes de seus contos?

Ele não sabia. Era tudo muito confuso. O que ele sabia era que ninguém que ele
namorou antes o beijou cegamente na poeira de um campo de batalha, enquanto balas de
canhão de malte de chocolate assobiavam no alto, e o cheiro de pão de gengibre pairava
pesado no ar. Nenhum de seus beijos tinha queimado tanto em sua memória que nem
mesmo os passos trovejantes de um gigante poderiam desalojá-los.

Nenhum deles o beijou como o Chapeleiro.

Ele estava sorrindo enquanto seguia o Chapeleiro pelo caminho da montanha.

CAPÍTULO ONZE

Surpreendentemente, nunca ficou mais frio, não importando o quanto mais alto
eles subissem. A temperatura ficou quente por causa dos enormes fornos no sopé das
montanhas. Calor viajava para cima, e eles produziam o suficiente para aquecer até
mesmo os picos das montanhas mais altas.

O caminho íngreme serpenteava ao redor da face ocidental da montanha, a noite


fora por um tempo antes de começar sua descida do outro lado. A neve - que na verdade
era de açúcar de confeiteiro, em pó e seca -, embora não tão profunda quanto nas regiões
mais altas da montanha, ainda era suficiente para retardar sua viagem. Estava em alguns
lugares até os joelhos, e a brisa a elevava no ar, soprando-a em seus rostos, tornando a
respiração difícil. O Chapeleiro enfiou a mão no bolso para pegar os lenços, que
amarraram em volta do rosto para manter as finas partículas de seus narizes e bocas.
Cabeças inclinadas para o vento, elas seguiram em frente.

O caminho ficou muito mais fácil quando chegaram ao topo da montanha, e o


caminho desceu novamente. Enquanto deixavam para trás as pesadas oscilações do
açúcar de confeiteiro, a trilha os levou a belas florestas de pirulitos finos e arbustos de
chicletes gordurosos, intercalados com alguns arbustos de marzipã.

A vida selvagem, visivelmente ausente no lado das montanhas dos Padeiros


Gigantes, reapareceu. Pássaros coloridos dispararam entre as árvores em estrias de arco-
íris. O Chapeleiro avistou um cervo tímido escondido na folhagem, uma família de
guaxinins observando cautelosamente o progresso e um coelho branco usando um relógio
de bolso e um colete de brocado desavergonhado...

Espere. O que?

– Coelho! – O Chapeleiro praguejou e deu uma sacudida violenta na cabeça. –


Não. Absolutamente não.

O Coelho engasgou e pulou para o Chapeleiro, empurrando um grande relógio


de bolso dourado no rosto. – Você tem alguma ideia de que dia é hoje? Que horas? Onde
você esteve? Você está atrasado, Chapeleiro. Muito, muito atrasado. Você deixou a rainha
com um temperamento muito perturbador. – Ele olhou para o relógio novamente, seu
pequeno nariz rosado se contorcendo, e começou a choramingar. Seus pés
excessivamente grandes batiam nervosamente no chão. – Oh, olhe a hora! Vou
acompanhá-lo diretamente ao Castelo Vermelho, Chapeleiro. Sua sentença está marcada
para esta tarde e você não deve se atrasar para isso. Céus, não. Seria muito desagradável.
– Condenação? Coelho, do que você está falando?

– Sua Majestade acusou você do crime de matar o Tempo. Novamente.

– O que? Oh, de novo não! Ora, eu nem vi o tempo em...

– Não importa. A rainha acredita que você fez isso. Oh, seu julgamento foi
espetacular, eu ouso dizer. Argumentos se prolongaram por tanto tempo que a Rainha
realmente bocejou. Eu nunca vi tal exposição. Claro que, no final, você foi considerado
culpado.

O Chapeleiro cruzou os braços sobre o peito e olhou furioso para o Coelho. –


Claro que eu fui.

– Muito sensato de você concordar. Agora, se você não se importa, o que diz de
nos apressamos, sim? Estamos atrasados. – O Coelho mostrou ao Chapeleiro a cara do
relógio de bolso de novo, como se para provar a ele o quão atrasados eles realmente
estavam.

O Chapeleiro gentilmente empurrou o relógio do coelho para longe. – Eu não


estou atrasado. Eu não matei o tempo. Eu mal toquei um pouco. Eu tenho estado muito
ocupado assegurando a presença de Henry, também conhecido como Menino Alice, e
indo a grandes e exaustivos esforços, mantendo-o fora de perigo, enquanto escoltava-o
para o Castelo Vermelho. Um projeto muito cansativo e extenuante, pelo qual não posso
esperar recompensa, posso acrescentar.

Henry franziu a testa para ele, mas o Chapeleiro fingiu não notar, mantendo sua
atenção no Coelho. Ele lidaria com os sentimentos feridos de Henry mais tarde.

Os olhos do Coelho se arregalaram. – Céus, esse é realmente o Menino Alice? –


Ele se aproximou e olhou atentamente para o rosto de Henry, os bigodes se contorcendo.
– Por que, sim, posso ver a semelhança da família agora. Bem, se ele é parecido com a
irmã dele, isso explica por que você está atrasado, Chapeleiro.

– Eu não sou nada como Alice! – Henry olhou para o Coelho, seu lábio enrolando
sobre os dentes.
O Chapeleiro deu um passo para a esquerda, efetivamente se colocando entre
Henry e o Coelho. – Entende? Existem circunstâncias atenuantes. Ele é muito
desagradável. De maneira tão barulhenta. Eu não matei o tempo. Se qualquer coisa, eu
salvei, fazendo ele se apressar, apesar de sua natureza argumentativa.

– Ei! Você está do lado de quem? Eu não sou argumentativo! – Henry colocou.

O Chapeleiro sorriu para Henry por cima do ombro. – Obrigado por provar meu
ponto.

O Coelho acenou com a mão para os dois. – Não importa. Você sabe como é
com a rainha. Ela nunca muda seus veredictos.

O Chapeleiro franziu o cenho. – Besteira. Esta é apenas a maneira dela de sair


de sua promessa para mim, isso é tudo.

Henry puxou seu ombro. – Que promessa? Você não disse nada sobre uma
promessa da Rainha, Chapeleiro.

O Chapeleiro se amaldiçoou em silêncio por ter escorregado. – Er, não é nada.


Deixa pra lá. Você ouviu o coelho! Estamos atrasados! Vamos. Vamos duas vezes.

– Você acabou de dizer que não estamos atrasados! – Henry gritou, suas
bochechas ficando muito vermelhas.

– Eu menti. – O Chapeleiro virou-se, não querendo ver a dor e raiva nos olhos
de Henry. Mentindo sobre mentir sobre mentir. Foi uma nova baixa, mesmo para ele. Ele
tentou não se livrar do peso da culpa pressionando seus ombros enquanto seguia o Coelho
pela floresta em direção ao castelo da Rainha Vermelha.

Henry agarrou seu braço e o puxou para uma parada. Eles observaram o Coelho
pular na distância, nunca desacelerando, obviamente convencido de que os dois iriam se
apressar atrás dele agora que ele havia provado o quão atrasados eles estavam. – O que
você quis dizer quando disse que mentiu? Sobre o que você mentiu?

– É realmente nada. Olha, os planos mudaram. Não podemos ir ao castelo da


rainha.
Apertando o chapéu, o queixo de Henry caiu. – Do que você está falando? Claro
que nós podemos. Você disse que ela era a única pessoa que poderia me mandar para
casa!

– Sim, sobre isso... essa seria a parte em que eu menti.

Henry cruzou os braços sobre o peito. O olhar em seu rosto era positivamente
assassino. Era óbvio para o Chapeleiro que Henry não estava dando um passo até ter uma
explicação.

Deuses, como Chapeleiro odiava a verdade. Quase nunca era agradável, e


geralmente bastante dolorosa, e é por isso que ele geralmente gostava de dobrar e torcer
em formas mais palatáveis. Ele suspirou. – A rainha acredita que você está aqui para
executar um golpe contra o regime dela. Quando Alice se tornou rainha, mesmo que por
apenas algumas horas, a Rainha Vermelha quase perdeu a cabeça, se não literalmente.
Ela não vai deixar isso acontecer novamente. Ela pretende questioná-lo e depois decepar
sua cabeça como um aviso para outros intrusos.

– Decepar... você quer dizer... – A mão de Henry foi para o pescoço como se
para proteger sua garganta macia. – Eu não pretendo nada disso! Estou aqui por acaso.
Eu só vou explicar as coisas para ela e...

– Explicar? Para a Rainha Vermelha? – O Chapeleiro não pôde evitar que uma
risada sardônica escapasse de seus lábios. – Ninguém explica nada para a rainha. Ela é
construída apenas com maldade e teimosia unidas por alguns fios de narcisismo e uma
boa dose de presunção. Ela cortaria sua cabeça se você tentasse convencê-la a cortar sua
cabeça.

Pálido como leite, Henry começou a andar de um lado para o outro, com as mãos
presas aos lados da cabeça, como se para impedir que seu cérebro escapasse por suas
orelhas. – Por quê? Porque você mentiu para mim?

– Eu não fiz. Não de verdade. Se você se lembra, eu disse que a rainha queria
que eu te levasse para o castelo, e essa era a verdade. Simplesmente omiti a parte de
perder a cabeça. – O Chapeleiro sentiu-se vazio por dentro. Ele soou como um idiota até
para si mesmo. Então, novamente, ele nunca esperou ter sentimentos por Henry, além de
gratidão por fornecer uma maneira de manter sua própria cabeça presa aos ombros. As
novas acusações contra ele por matar o Tempo eram falsas; a rainha tentava garantir que
o Chapeleiro - e, por sua vez, Henry - fossem entregues a ela pelo Coelho. Ele não estava
preocupado com eles, mas estava preocupado com Henry. – Escute-me. A rainha não é
uma boa esportista, mas não precisamos vê-la para chegar em casa.

– Oh? Por que eu deveria acreditar em uma palavra que você diz de novo?

– Não há razão. Você está certo em duvidar de mim. Me comportei


abominavelmente e por isso lamento muito. – O Chapeleiro engoliu sua culpa como uma
pílula amarga e ficou de pé. – Mas eu não estou mentindo agora. Se você for ao Castelo
Vermelho, perderá a cabeça.

Henry parou de andar e encarou Chapeleiro. – Então o que eu devo fazer? Ficar
aqui para sempre? Eu tenho uma vida em casa! Amigos. Família. – Ele pegou sua camisa
e calças, que estavam imundas de sua passagem pela escalada de Clareira do Nunca e
Montanha das Confecções. – Roupas limpas!

– Família? Eu pensei que você odiava Alice.

– Eu não posso! Ela é minha irmã e, além disso, devo desculpas a ela. Eu estava
errado. Ela estava dizendo a verdade todos esses anos. Eu tenho outra família além de
Alice, você sabe. Lá está meu pai... Ele bebe, mas ainda é meu pai. Além disso, há o
irmão de minha mãe, Leonard, que apareceu alguns anos atrás. As pessoas dependem de
mim. Eu tenho que voltar!

– Bem, como eu disse - se você estivesse ouvindo, o que obviamente não estava
- existe outro jeito. Eu sei onde está o espelho mágico, o que Alice usou na última vez
que veio ao País das Maravilhas. – O Chapeleiro se permitiu um pequeno sorriso
triunfante. – É lógico que se ela usou para chegar aqui, então você pode usá-lo para chegar
em casa. – Seu sorriso escorregou, e ele sussurrou, quase sob sua respiração. – A não ser
que seja mágica de mão única, como a porta da Toca da Lagarta.

– O que é? Eu não ouvi você.

– Nada, nada. O espelho está localizado no castelo da Rainha Branca.


Henry inclinou a cabeça e estreitou os olhos. – Você não me disse que a Rainha
Branca estava morta?

– Oh, bem morta, sim. – O Chapeleiro assentiu. – Perdeu a cabeça no tabuleiro


de xadrez, e é muito raro que alguém sobreviva a isso! No entanto, o castelo dela
permanece. Vazio, claro, e alguns dizem assombrado, mas não obstante... E em algum
lugar dentro dele está o espelho.

Colocando as mãos atrás das costas e colocando o queixo para baixo, Henry
recomeçou a andar. Era óbvio para o Chapeleiro que ele estava pensando nas coisas. – Eu
suponho que se o espelho não estiver lá, então eu não estou pior do que estou agora. Eu
sempre posso voltar para o Castelo Vermelho, certo?

– Bem, sim, embora o resultado seja o mesmo, garanto-lhe. As decapitações são


o passatempo favorito da Rainha Vermelha.

O Chapeleiro observou o pomo de Adão de Henry balançar quando ele engoliu


em seco. – Ok. Vamos para o Castelo Branco, mas eu te aviso, Chapeleiro... não minta
para mim de novo.

– Você tem a minha palavra. – O Chapeleiro solenemente cruzou sobre seu


coração, imaginando o quanto sua palavra realmente valia no mercado nos dias de hoje.
Não o suficiente para comprar os buracos no queijo suíço, ele imaginou, mas, novamente,
Henry não precisava saber disso. Ele ouvira dizer que o espelho estava no Castelo Branco;
ele não mentiu. Se funcionaria ou não, estava em debate. No momento, no entanto,
certificar-se de que a cabeça bonita de Henry permanecesse onde ela pertencia bastava
para o Chapeleiro. Isso e manter a sua própria apegada também.

Ele olhou para longe, onde o Coelho não era mais do que um ponto no horizonte,
depois virou para o noroeste. Sua voz soava muito mais animada do que ele se sentia. –
Por este caminho! Vamos, vamos nos animar. Temos quilômetros a percorrer antes do
anoitecer. Quilômetros para ir. – Ele partiu em um ritmo acelerado, com Henry ao seu
lado.

Eles caminharam em silêncio por vários quilômetros, cada um perdido em seus


próprios pensamentos. Então Henry finalmente quebrou o silêncio com uma pergunta.
– Você disse que Alice foi a Rainha do País das Maravilhas? Como poderia ser?
Aliás, se o País das Maravilhas é um só país, como poderia haver uma Rainha Vermelha
e uma Rainha Branca?

– Alice foi rainha uma vez. Ela não contou? – O Chapeleiro suspirou e começou
a andar. Como ele suspeitava, Henry manteve o ritmo com ele. – Foi anos atrás, no final
da última visita de Alice aqui. Claro, há aqueles que acreditam que é verdade, outros que
insistem que não era nada mais do que um sonho do Rei Vermelho, e outros que acreditam
que Alice era a única a sonhar, mas desde que eles se foram há anos, não há como verificar
de qualquer maneira. Eu nem tenho certeza de como isso aconteceu, já que é
singularmente incomum para alguém que não nasceu para a coroa usá-lo. Tudo o que sei
é que supostamente envolveu um jogo de xadrez, um Cavaleiro Branco e algum tipo de
bolo.

– Bolo? Que sabor?

– Você sabe, eu não tenho certeza. – O Chapeleiro bateu com o dedo no queixo.
– Certamente nada tão comum quanto bolo de baunilha. Talvez fosse algo da variedade
invertida, uma vez que certamente transformou a monarquia em alvoroço por um tempo.
Claro, então Alice desapareceu novamente, e as coisas voltaram ao normal, ou para o que
é normal aqui na maioria dos dias, então eu suponho que isso realmente não importa.

– Espere um minuto. – Henry colocou a mão no braço do Chapeleiro. Ele podia


sentir o calor encharcado através da manga do casaco. – Se minha irmã era rainha, o que
isso faz de mim? Eu sou um príncipe?

O Chapeleiro franziu a testa, pensando. Ele não tinha pensado nisso antes. – Eu
não sei com razão. Alice não nasceu para a realeza - ela era uma plebeia que ganhou a
coroa. Ainda assim, ela a segurou por um tempo, mesmo que fosse apenas uma questão
de horas, e desapareceu sem nunca renunciar formalmente. Você é do sangue dela, mas,
francamente, eu não sei o que isso faz de você.

O silêncio desceu por mais alguns minutos antes de Henry falar de novo. – Alice
e sua coroação duvidosa de lado, e a minha outra pergunta? Como pode haver duas
rainhas em uma terra?
– Essa é outra história.

– Bem, nós temos tempo, certo? Eu não vejo o Castelo Branco em nenhum lugar
por aqui.

O Chapeleiro soprou um fio de cabelo dos olhos. – Anos e anos atrás, irmãs
gêmeas nasceram para a rainha governante. Uma era pura, doce e gentil com todos. Nunca
uma palavra aguda passou por seus lábios. Ela era amada por todos que a conheciam. A
outra gêmea era tão crua e cruel quanto sua irmã era boa. Ela tinha um sorriso torto e uma
alma distorcida.

– Deixe-me adivinhar. A boa era a Rainha Branca, e a ruim era a Rainha


Vermelha.

– Hmph. – O Chapeleiro parou e cruzou os braços sobre o peito, irritado. – Você


já ouviu essa história antes?

– Hum, não.

– Então, gentilmente, permita-me contar.

– Por favor, por favor. – Henry disse, com apenas um leve indício de sarcasmo.

O Chapeleiro, um tanto apaziguado, continuou a história e sua caminhada. – O


atual rei e rainha decidiram que a doce gêmea herdaria a coroa. Isso, é claro, não se
encaixava bem com a outra gêmea. Ela teve uma birra tão ruim que derrubou pássaros do
céu e murchou cada flor por quilômetros ao redor.

– Quando seus pais se recusaram a mudar de ideia, ela planejou sua vingança
com cuidado. Primeiro, ela tomou um marido, um bom companheiro, que realmente
deveria ter sabido melhor. Poucas semanas depois do casamento, e antes que eles
pudessem declarar oficialmente sua irmã Sucessora ao Trono, seus pais morreram em
circunstâncias suspeitas - eles morreram sufocados com torta de corvo, um prato que
ninguém sabia apreciar.

A recém-casada, sendo a mais velha por meros minutos, reivindicou o trono para
si mesma sob as Regras do País das Maravilhas para a Real Progressão, que permite que
a criança mais velha herde a coroa a menos que seja decretado o contrário formalmente
pelo rei e rainha. Seu primeiro pedido foi banir sua irmã para o outro lado do País das
Maravilhas, proibida de entrar no Castelo Vermelho novamente.

Quando sua irmã se declarou a Rainha Branca desafiando o governo da Rainha


Vermelha, a Rainha Vermelha fervilhou e ferveu de raiva, até que finalmente se vingou
no tabuleiro de xadrez.

– Então é por isso que ela quer minha cabeça? Porque Alice se tornou rainha?

– É isso em poucas palavras. – Chapeleiro tirou o chapéu e se abanou com ele.

– Por que ela te odeia tanto?

– Eu? Porque o tempo me amaldiçoou. – O Chapeleiro recolocou o chapéu na


cabeça e socou-o. – O tempo, você sabe, é o único inimigo real da Rainha Vermelha.
Nada escapa dos estragos do Tempo. Exceto eu. Porque o Tempo me amaldiçoou, eu não
envelheci e ela está consumida pela inveja. Minha própria existência lembra-lhe que ela
envelhece enquanto eu permaneço o mesmo. Como eu disse antes, não é uma bênção - é
horrível ver todos que você conheceu e amou morrer enquanto continua - mas ela não vê
dessa maneira. Ela não poderia se importar menos se todos que ela conhece partisse,
contanto que ela continue assim como ela é.

– Uau. Ela é uma cadela total.

– Realmente, chamando-a assim insulta as cadelas em todos os lugares.

O silêncio desceu mais uma vez enquanto continuavam a caminhada até o


Castelo Branco. O sol rompia no céu e estava longe ao longo do caminho para o horizonte,
quando finalmente viram quatro torres reluzentes à distância.

Henry gritou e apontou. – É isso? Esse é o Castelo Branco?

O Chapeleiro assentiu, sem sentir o mesmo júbilo. – É isso aí. Nós estaremos lá
antes do anoitecer.

Antes de a noite cair, ele descobriria se poderia mandar Henry para casa através
do espelho, ou se Henry estava preso aqui no País das Maravilhas. Nenhuma das opções
fez o Chapeleiro muito feliz. Se Henry fosse para casa, o Chapeleiro sentiu que sentiria
falta de algo maravilhoso antes que tivesse a chance de apreciá-lo. Se Henry ficasse, os
dois viveriam fugindo da Rainha Vermelha, ou pior, perderiam a vida por causa da ira
malévola dela. A dele era, como dizia o velho País das Maravilhas, uma situação de perder
e perder.

Suspirando profundamente, ele apressou o passo para acompanhar Henry.


CAPÍTULO DOZE

UM PRADO VERDE se espalhava diante deles. Ele era o lar de incontáveis


espécies de flores, todas produzindo flores brancas, desde os gigantescos Guarda-Sóis
brancos, cuja cor rivalizava com a dos maiores carvalhos, até a pequena Miniaturia, cujas
delicadas pétalas de marfim não eram maiores que um ponto de exclamação, e cada
tamanho e forma de flor no meio. Visto de longe, os prados pareciam macias ondas de
neve se estendendo em todas as direções.

Do centro do prado erguia-se as quatro torres do castelo da Rainha Branca,


reluzindo brancas sob o sol, mas, quando o Chapeleiro e Henry se aproximaram,
começaram a ver que a decadência caíra sobre o castelo após a morte de sua ama.

Todos os lindos vitrais do castelo, que o Chapeleiro lembrava ter contado a


história do País das Maravilhas em cores brilhantes contra o fundo todo branco das
muralhas do castelo, desapareceram, deixando os quadros parecendo olhos negros e sem
vida. O mofo cinzento crescia em grandes manchas peludas nas paredes do castelo,
descolorindo a rica brancura dos maciços blocos de pedra usados em sua construção.

Não havia fosso – o Chapeleiro lembrou-se de que a Rainha Branca era muito
receptiva a todos que procuravam uma audiência com ela -, mas mesmo de longe podiam
ver as altas portas de entrada dupla pendendo de suas dobradiças. A totalidade do castelo
tinha uma aparência angustiante, triste e de alguma forma insuportavelmente solitária,
como se o propósito fosse abrigar a vida, mas agora era casa apenas para fantasmas.

O Chapeleiro fez uma pausa, olhando para as quatro torres. Os restos da bandeira
da Rainha Branca ainda ondulavam de um poste no alto da torre nordeste. Embora
estivesse rasgado e cinza de exposição, ele ainda podia distinguir a rosa branca em seu
centro.

– O lugar parece estar deserto há muito tempo. – Disse Henry. – Você tem
certeza que o espelho ainda está aqui?
O Chapeleiro encolheu os ombros. – Espero que sim. Estava aqui da última vez
que passei por esta área, mas a Rainha Branca estava muito viva naquela época.

– Ótimo. Ótimo. O que eu faço se não estiver aqui? – Henry começou a bufar e
resmungar, com as mãos fechadas em punhos ao lado do corpo. – Chapeleiro, responda-
me. O que eu vou fazer?

O Chapeleiro revirou os olhos. – Primeiro, você pode parar de se preocupar com


coisas sobre as quais não temos controle. Ou está aqui ou não está. Se estiver, então tudo
bem. Se não, vamos nos preocupar com isso então. Eu juro, você é a preocupação mais
preocupante que eu já...

Sua voz sumiu quando ele avistou algo ao longe, aproximando-se da borda leste
do prado. Seus olhos se arregalaram e seu estômago revirou. – Henry?

– Sim? O que é? – A resposta de Henry foi curta, seu temperamento ainda


saboreando em sua voz.

– Corre.

Henry se virou e olhou para o leste, onde uma forma escura se espalhava pelas
flores brancas como sangue derramado na água. – O que é isso?

– A Guarda da Rainha Vermelha. Corra! – O Chapeleiro pegou a mão de Henry


e começou a correr em direção ao Castelo Branco, puxando Henry ao seu lado. – Ou o
Coelho nos ouviu conversando e disse à Rainha para onde estávamos indo, ou ela
simplesmente descobriu depois que desaparecemos. Eu juro, se eu descobrir que foi o
Coelho, vou fazer picadinho dele quando eu colocar minhas mãos nele novamente!

Eles passaram correndo pelas portas duplas tortas e entraram no castelo,


encontrando-se em um imenso hall de entrada. O teto alto e arqueado era atado com
longas e reluzentes tábuas de madeira polidas brilhantes. Blocos de mármore branco,
cobertos por rosa pálido, compunham as paredes. Sob seus pés, um tapete grosso cobria
o chão de laje. O carpete estava cinzento de mofo - as portas abertas haviam permitido o
pior do tempo lá dentro -, mas podiam dizer que, certa vez, ele fora branco-cremoso.
Diante deles, duas escadarias curvas se erguiam majestosamente para o segundo
andar. O Chapeleiro se aproximou delas, subindo dois degraus de cada vez. Henry o
seguiu tão perto quanto uma sombra enquanto corriam para o andar seguinte.

Confiando em sua memória, O Chapeleiro levou Henry por um longo corredor


para mais um lance de escadas. Essa escada era simples em comparação com a grandeza
da primeira. Como o Chapeleiro se lembrava, era a escadaria de um criado e levava a um
corredor no final do qual estava o boudoir da Rainha, onde ele havia visto o espelho
mágico pela última vez.

Enquanto fugiam, ele notou que quase nenhuma decoração foi deixada no
castelo. Não havia estátuas, poucas pinturas e apenas um par ou dois de móveis. Foi bem
e devidamente saqueado. Ele começou a duvidar que o espelho ainda estaria lá, embora
ele não desse voz ao seu medo. Eles descobririam em breve.

Ele podia ouvir vozes fracas agora. A Guarda da Rainha Vermelha deve ter
entrado no castelo. Colocando uma nova rajada de velocidade, ele agarrou a mão de
Henry novamente e correu pelo longo corredor. Finalmente chegando ao fim, ele tentou
a alça da porta do quarto da rainha.

Estava trancado.

Ele mexeu, torceu, puxou e xingou, mas a maçaneta não se moveu. – Droga!
Está trancado.

– Use sua mágica!

– O que?

– Sua mágica. Certamente você pode abrir uma porta com ela, certo? Quero
dizer, você podia se tornar grande, e você tinha a luz do raio, e você tem um bolso que
provavelmente tem um elefante em algum lugar. Diga-me que não pode abrir uma porta
simples! – A voz de Henry era estridente e oscilava à beira da histeria.

– Eu... eu não sei como... – O Chapeleiro fez uma pausa. Magia. Poderia ser a
porta guardada por um simples feitiço? Ele encolheu os ombros. Valia a tentativa. Afinal
de contas, não poderia doer, e parecer tolo se não funcionasse era a menor de suas
preocupações agora. Olhando diretamente para a maçaneta, ele disse: – Abra.
Nada.

– Hum, desbloqueie? Escancare. Desative. – Ele começou a sacudir a maçaneta


novamente. – Abra, maldita você!

Henry rosnou e empurrou o Chapeleiro para o lado. Colocando a mão na


maçaneta, ele disse em uma voz que soava muito mais calma do que parecia: – Abra, por
favor.

Houve um breve vislumbre de luz dourada ao redor da maçaneta antes que


houvesse um clique suave da fechadura destravando, e a porta se abriu para dentro.

O Chapeleiro ficou boquiaberto com Henry. – Como você fez isso?

– Por favor. Até eu sei que essa é a palavra mágica, Chapeleiro. – Os lábios de
Henry se curvaram em um pequeno sorriso satisfeito, apesar da dúvida de sua situação.

O Chapeleiro sentiu-se inexplicavelmente satisfeito por Henry ter finalmente


aceitado a existência da magia, mas cobriu-a com uma resposta sarcástica. – Bem, Mestre
Mago, se você já terminou com seus feitos fenomenais, vamos nos mover, vamos? Os
Guardas Vermelhos estarão aqui a qualquer momento!

Eles entraram no quarto da Rainha Branca e fecharam a porta atrás deles. –


Tranque, por favor. – Disse o Chapeleiro para a maçaneta. Ele não sabia se funcionaria,
mas sentiu que não poderia doer, e ficou satisfeito ao ouvir outro clique suave quando a
fechadura se encaixou.

Não que uma mera fechadura mágica pudesse manter os Guardas Vermelhos
fora do quarto por muito tempo - eles simplesmente iriam quebra-la para entrar, mas
compraria para o Chapeleiro e Henry mais alguns momentos preciosos.

O quarto da Rainha Branca não parecia pertencer ao castelo. Ao contrário do


resto do castelo, havia pouco branco para ser visto. Em vez disso, um arco-íris de cores
brilhantes espirrava nas paredes, no chão e nos móveis. Tons de joias ricos abundavam
em todos os matizes... exceto vermelho. O vermelho era a única cor não representada no
boudoir da rainha. Não era preciso ser um gênio para descobrir o porquê.

Vermelho era a cor de sua gêmea e, sem dúvida, a Rainha Branca detestava.
Talvez o feitiço da fechadura tivesse feito o seu trabalho, porque ao contrário do
resto do castelo, esta sala parecia intocada. Sob os pés deles, um tapete de cores brilhantes
e retorcidas amortecia seus passos. Um grande leito de cisnes dominava uma parede,
coberto de travesseiros fofos e um edredom grosso da cor das esmeraldas. Outras grandes
peças ornamentadas de mobília: um armário, uma cômoda e uma penteadeira, estavam
espalhadas, sua madeira brilhando como se fossem polidos naquele mesmo dia. Nem uma
partícula de poeira estragava suas superfícies.

Seja qual fosse o feitiço de limpeza que a Rainha Branca tenha lançado, ainda
devia estar em vigor, pensou o Chapeleiro, olhando ao redor do quarto. Então ele
congelou, apontando. – Olha, Henry, ali! Na esquina. É isso!

O Chapeleiro e Henry atravessaram o tapete de colcha de retalhos em direção a


um espelho imponente, esculpido e ornamentado. Tinha facilmente sete metros de altura
e pelo menos três metros de largura, mas a superfície espelhada não era reflexiva. Estava
nublado, como se estivesse em um banho fumegante.

– Uau. É enorme. Por que não consigo me ver nele? Está tudo enevoado. – Henry
estendeu a mão para limpar a superfície, mas o Chapeleiro segurou sua mão.

– Não é esse tipo de espelho. – Disse o Chapeleiro. – É um espelho de viagem.

– Espere um minuto. – Henry arqueou uma sobrancelha para o Chapeleiro. –


Você quer dizer que você tem um espelho mágico que liga o meu mundo a este? Por que
as pessoas não viajam de um lado para o outro o tempo todo?

O Chapeleiro bufou e olhou para ele como se fosse um idiota. – Porque toda vez
que alguém passa pelo espelho, eles levam um pouco de magia com eles. Se muitas
pessoas fizerem a viagem muitas vezes, toda a magia do País das Maravilhas
desaparecerá. Então onde nós estaremos? É por isso que a Rainha Branca o manteve aqui,
vigiado em todos os momentos.

Fazia sentido, de uma maneira estranha e distorcida - como quase todo o resto
no País das Maravilhas, Henry percebeu.
Houve uma batida repentina na porta do quarto. Os Guardas Vermelhos haviam
chegado. As portas estremeceram como se algo pesado estivesse sendo batido contra ele
do outro lado.

O Chapeleiro agarrou os ombros de Henry e virou-o para o espelho. – Rápido,


Henry. Passe pelo espelho!

Henry assentiu e fechou os olhos com força. Ele respirou fundo várias vezes e
fez alguns falsos começos.

Atrás deles, o som de madeira lascada chamou sua atenção. Eles se viraram e
viram um painel quebrado de madeira no centro da porta com um machado alojado nele.
Enquanto observavam, uma mão invisível soltou a cabeça do machado. Outro golpe brutal
ampliou a fenda na porta.

Eles ofegaram e se voltaram para o espelho.

O Chapeleiro agarrou o braço de Henry. – O que você está esperando? Eles vão
romper a qualquer minuto!

– Está bem, está bem! Não me apresse.

– Pare de procrastinar e vá!

Um estrondo trovejou no quarto enquanto o resto da porta cedia. Eles arriscaram


um olhar para trás. Os guardas vermelhos, todos armados com machados e espadas,
estavam entrando no quarto através da porta quebrada, avançando sobre ele e o
Chapeleiro. De suas expressões sombrias, parecia que as cabeças iam rolar ali mesmo no
boudoir da Rainha Branca.

Respirando fundo, o Chapeleiro empurrou Henry para o espelho.


CAPÍTULO TREZE

Era como caminhar por uma poça de xarope de milho. Essa era a única maneira
de Henry descrever a sensação de entrar e sair pelo espelho. O não bastante fluido era
claro, mas gelatinoso, e enchia cada fenda do corpo - as orelhas, o nariz, e ele suspeitava,
os olhos e a boca, se não os tivesse instintivamente apertados. Levou apenas um momento
para passar pelo líquido viscoso, mas isso era bastante longo, no que dizia respeito a
Henry.

Surpreendentemente, quando ele entrou no outro lado, ele estava tão seco quanto
antes de entrar no espelho. Qualquer substância que envolvesse a membrana entre os
mundos, secava instantaneamente quando atingia o ar.

Henry agradeceu pelos pequenos favores. Ele teria odiado ser atolado pelo
xarope, pingando longas filas de espelhos por todo o lugar.

Havia uma parede branca diante dele, que ele rapidamente percebeu ser um
lençol. Empurrando-o para o lado, ele saiu da frente do espelho. Ele estava em um sótão,
cheio de caixas de lixo e troncos e brinquedos descartados. Ele só esperava que o sótão
estivesse na casa de Alice. Ele teria odiado ter que explicar sua presença para outra
pessoa.

– O que é este lugar?

Henry parou ao som da voz familiar. Girando ao redor, ele ficou cara a cara com
Chapeleiro.

– O que você está fazendo aqui, Chapeleiro? – Henry deu-lhe um empurrão. –


Por que você me seguiu aqui?

– Por que não? Minha única outra opção era ficar para trás e permitir que a rainha
cortasse minha cabeça por deixar você escapar. Simplesmente escolhi a opção menos
dolorosa e, pelo geral, permanente. – Ele tocou a ponta de uma cadeira de balanço e tocou
a poeira deixada em seu dedo indicador. – Eu pergunto de novo... onde estamos?

– Acho que estamos na casa de Alice. – Henry respondeu distraidamente, com a


mente embargada de perguntas. O que ele faria com o Chapeleiro aqui no mundo real? O
que Alice diria quando visse o Chapeleiro? Ou pior, vice-versa? Acima de tudo, por que
ele sentiu uma enorme sensação de alívio por não ter deixado o Chapeleiro para trás?

Ele fez sinal para o Chapeleiro segui-lo. A única saída do sótão era uma escada
que dava para o teto. O único problema era que não era construído para ser aberto de
dentro do sótão - apenas do corredor abaixo. Ele imaginou que os construtores não
tivessem contado com ninguém que aparecesse magicamente no sótão por meio de um
espelho encantado.

Ele levou o Chapeleiro a uma das duas únicas janelas do sótão. Era pequena e
redondo, mas grande o suficiente para cada um deles passar. Henry destrancou e abriu-a.
Havia um grande carvalho que se aproximava da casa de Alice e seus galhos se
espalhavam pela janela. Ele pulou da janela para uma pequena saliência e pulou para um
largo membro. – Vamos lá, Chapeleiro. É fácil.

O Chapeleiro olhou para o emaranhado de galhos e folhas. – Você tem certeza


de que não há tubarões de árvores aí?

– Juro. Nenhum tubarão. Apenas alguns pardais, e eles não vão te machucar.

Não demorou muito para descer usando os galhos robustos do carvalho. Foi
apenas um pequeno salto desde o mais baixo até o chão. Henry pegou o Chapeleiro pela
mão e atravessou uma passagem limpa, passou por uma fileira de sebes bem aparadas e
subiu a escada da varanda até a porta de Alice. Havia uma pequena campainha redonda
ao lado da maçaneta da porta e ele a apertou. De dentro da casa, soaram sinos delicados.

Eles não tiveram que esperar muito. A porta se abriu para revelar Alice, vestindo
uma camiseta azul clara e jeans. Seus gêmeos de dois anos de idade, Carol e Louis,
ficaram de joelhos. Seu sorriso era sardônico, na melhor das hipóteses, quando os viu. –
Henry! Eu não esperava você de volta tão cedo. E olha quem o Gato arrastou! Ou melhor,
olhe quem o Gato cuspiu. Eu teria dificuldade em imaginar o Gato querendo levá-lo a
qualquer lugar, Chapeleiro.

O Chapeleiro apertou os olhos, depois enfiou a mão no bolso e tirou um par de


óculos. Ele os empoleirou na ponte do nariz e apertou os olhos novamente. – Alice? Pode
ser? Isso é realmente você? Por todos os Gullywhomps em Git, você é positivamente
velha. O que aconteceu com você? Você foi amaldiçoada?

Para surpresa de Henry, Alice riu e abriu a porta. – É bom ver você também,
Chapeleiro. Por favor entre.

Henry seguiu o Chapeleiro para dentro, imaginando a relação entre sua irmã e o
Chapeleiro. Ele pensava que se odiavam pelo modo como falavam um do outro, mas
Alice estava rindo, e o Chapeleiro também não parecia muito chateado.

– Quem são esses? Gremlins? – O Chapeleiro apontou para os filhos de Alice.

– Estes são meus gêmeos, Carol e Louis. – Alice acariciou seus cachos loiros.
Eles pareciam exatamente com a mãe deles. – Eles têm dois anos de idade.

O Chapeleiro ficou boquiaberto. – Você quer dizer que você os gerou? Eu acho
que um de vocês é o bastante para os dois mundos, muito obrigado.

Alice riu novamente e levou os dois para sua sala de estar. – Fiquem à vontade.
Vou pegar algumas bebidas e depois pode me dizer o que achou do País das Maravilhas,
Henry, e por que diabos você trouxe o Chapeleiro aqui. – Ela atravessou uma porta em
arco que levava à cozinha.

Por alguma razão, Henry sentiu como se tivesse que se defender. Ele gritou
depois de Alice. – Eu não o trouxe! Ele só… me seguiu para casa. Como um cachorrinho.

Ele ouviu a fungada altiva do Chapeleiro e ofereceu-lhe um sorriso de desculpas.


Com apenas uma única frase, Alice o fez sentir como se ele tivesse nove anos de novo e
tentasse explicar como ele veio para quebrar o vaso de sua avó. Era um talento que todas
as irmãs mais velhas tinham, ou ele era apenas o sortudo? – Desculpa. Ela me deixa louco
às vezes. Ouça, o que há com vocês dois? Do jeito que você falou no País das Maravilhas,
fiquei com a impressão que você odiava Alice.
– Odiar Alice? Eu? – O Chapeleiro pareceu afrontado, como se alguém o tivesse
acusado de fazer a barba em gatinhos. – Quão absolutamente ridículo.

– Mas você falou mal dela o tempo todo...

– Claro que sim. Eu precisei. Os espiões da rainha estão em toda parte. Eu te


falei isso. Como você acha que os guardas sabiam para onde estávamos indo? O Coelho
deve ter dedurado nós. A Lagarta também responde a ela. É preciso ter muito cuidado
com o que se diz, especialmente quando se trata do Criminoso Mais Procurado do País
das Maravilhas.

– Alice é a criminosa mais procurada? Minha irmã? Por quê?

– Ela desafiou a Rainha Vermelha e mais tarde pegou a coroa, mesmo que fosse
por pouco tempo. A Rainha Vermelha adoraria ver sua cabeça rolar. É por isso que ela te
queria tanto. Se ela não conseguisse arrancar a cabeça de Alice, o do seu irmão seria um
substituto satisfatório. – O Chapeleiro tirou o chapéu e alisou o cabelo. – Alice e eu
concordamos em falar mal um do outro a todo custo, então ninguém suspeitaria que
éramos amigos. Fui jogado na prisão para apodrecer porque a rainha suspeitava que eu
não odiava Alice tanto quanto eu dizia, mas sem qualquer prova definitiva, ela não podia
ordenar que minha cabeça rolasse - pelo menos não enquanto eu ainda pudesse ser útil.
para ela, de qualquer maneira.

De alguma forma, saber que o Chapeleiro e Alice realmente gostavam um do


outro fez Henry se sentir estranhamente aliviado... e um pouco ciumento. Exatamente o
quanto o Chapeleiro gostava de Alice? Não que isso importasse - Alice era uma mulher
casada com filhos, afinal de contas -, mas ainda assim se agitava nele, como uma coceira
persistente que ele não conseguia alcançar.

– Aqui vamos nós! – Alice colocou uma bandeja sobre a mesa de café em frente
ao sofá, e serviu-lhes copos altos de chá gelado. – Limão?

– Por favor. – Disse o Chapeleiro. Seu chapéu estava em seu joelho e suas costas
estavam eretas. Quando ele pegou o copo para tomar um gole, seu dedo mindinho se
estendeu graciosamente. – Excelente chá. Arganaz ficaria muito satisfeito.
Alice se acomodou em uma poltrona. Os gêmeos se sentaram em ambos os lados
dela, observando Henry e Chapeleiro com grandes olhos azuis e sombrios. – Como está
Arganaz?

O Chapeleiro encolheu os ombros. – Bem, suponho. Ainda servindo chá e


desejando a si mesmo um feliz desaniversário.

Um olhar triste roubou o sorriso de Alice. – Ele ainda está amaldiçoado? Ele não
escapou quando você fez?

– Infelizmente não. O tempo ainda o tem.

A expressão de Alice ficou dura. – Isso é horrível. Pobre Arganaz! É tudo culpa
da Rainha Vermelha. Foi ela quem acusou você e o Arganaz de matar o Tempo. Vocês
eram ambos inocentes também.

– Eu sei. Ela só piorou desde que você saiu. Você não acreditaria no caos que
ela causou. Ela é bem maluca, você sabe. Sem o Rei Vermelho para temperar suas birras,
cabeças rolaram por todo o País das Maravilhas. – O Chapeleiro tomou um gole de chá
novamente. – Há hortelã nisso? É muito delicioso.

Por um momento os olhos de Alice se arregalaram, então ela se sentou em sua


cadeira com um olhar de derrota em seu rosto. – Isso é horrível. Pensei que poderia ajudar,
mas agora vejo que foi errado de minha parte. – Ela se levantou e colocou o copo sobre a
mesa. – Observe os bebês por um momento, Henry. Eu volto já.

Sem outra palavra, ela correu para a escada e subiu para o segundo andar. Ela
desapareceu por um corredor.

Henry se virou para Chapeleiro. – Que diabos está acontecendo aqui? Ela está
agindo estranhamente? Quero dizer, mais estranhamente do que o habitual? Você tem
alguma ideia do que está acontecendo?

– Bem, essa boca parece estar emitindo algum tipo de líquido glutinoso por toda
a sua calça.

Henry olhou para baixo e enxugou a baba de Louis do joelho com um


guardanapo. – Não com os gêmeos. Com você e Alice. O que está acontecendo?
– Oh aquilo. Eu não tenho a menor ideia. Suponho que logo descobriremos o
suficiente... – A voz do Chapeleiro diminuiu e seus olhos de repente ficaram grandes e
redondos. Seu copo escorregou de seus dedos e caiu no tapete, derramando chá sobre o
tapete grosso, quando ele ficou de pé, com o olhar colado na escada. Seu rosto
empalideceu e sua mandíbula se abriu.

Henry olhou para cima. Um cavalheiro alto, vestindo uma jaqueta escarlate,
estava na escada. Alice pairou logo atrás dele. – Oh, olá, tio Leonard. Eu não sabia que
você estava ficando com Alice. Chapeleiro, este é o irmão da minha mãe, Leonard.

A boca do Chapeleiro se abriu até que sua mandíbula quase tocou seu peito. Ele
fechou e curvou-se na cintura, a testa quase batendo contra a mesa de café. Quando ele
se endireitou novamente, a expressão mais estranha de admiração iluminou seus olhos. –
Não, Henry. Este é o Rei Vermelho.
CAPITULO QUATORZE

– CHAPELEIRO! Tão bom ver você de novo, e com a cabeça ainda presa! Como
você conseguiu isso? Eu teria pensado que a rainha teria decepado isso anos atrás. – A
voz de Leonard era forte e vibrante, embora o cabelo e a barba bem aparada fossem
prateados. Ele desceu a escada com um passo leve e sentou-se em uma poltrona estofada
na sala de estar. – Por favor sente-se. Nós não somos de cerimônias neste mundo.

Alice empoleirou-se numa cadeira de balanço de aspecto espigado, e Chapeleiro


baixou-se lentamente para o seu lugar anterior no sofá, mas Henry permaneceu de pé. Sua
mente estava rodopiando de confusão. O rei vermelho? Como isso foi possível?

– Henry, meu filho, sente-se antes que você caia. – Leonard arqueou uma
sobrancelha branca e espessa. Ele inclinou a cabeça. – Você está bem, Henry? – Ele se
virou para Alice. – Ele está bem? Talvez devêssemos chamar um médico. Eu sabia que
deveríamos ter contado a ele mais cedo.

– Ele não teria acreditado em nós então, Sua Majestade. – Alice respondeu. Ela
se levantou e foi até Henry, pedindo que ele se sentasse no sofá. – Eu conheço meu irmão.
Ele não teria acreditado até ver tudo com seus próprios olhos. – Ela sorriu para Henry. –
Meu irmão é muito obstinado para fazer o contrário.

Ele acreditava, é claro, e relutantemente concordou que Alice estava certa sobre
sua teimosia, mas não conseguiu perder a expressão de choque e descrença em seu rosto.
– Ele... Ele…

– Sim, Henry. O tio Leonard é realmente o rei vermelho. Bem, na verdade, ele
não é nosso tio, é claro. Nós só dissemos isso para explicar sua presença em nosso lar ao
Pai. Felizmente, o pai nunca conheceu a maioria dos parentes da mãe, então a mentira se
sustentou. – Alice deu um tapinha no ombro de Henry. – Você entende agora porque
guardamos o segredo de você, não é?
– Não, Alice. Eu não entendo. Eu não entendo nada disso! – Henry afastou a
mão de Alice. Ele se virou para Chapeleiro. – Você estava nisso? Você sabia que ele
estava aqui? É por isso que você me seguiu pelo espelho?

O Chapeleiro sacudiu a cabeça. – Não, claro que não, Henry. Juro pela minha
honra que não sabia. – Ele olhou para o Rei Vermelho. – Todo mundo no País das
Maravilhas acha que você está morto, senhor. Eu pessoalmente sempre esperei que você
simplesmente tivesse fugido, mas nunca suspeitei que você poderia ter vindo com Alice
através do espelho.

Leonard suspirou. – Fugir. Eu nunca pensei nisso dessa maneira. Eu sempre


pensei nisso como minha grande fuga, mas agora eu me pergunto. Talvez eu fosse um
covarde. Você diz que a rainha se foi - como eles dizem isso aqui, Alice? Pisou na batata?

– Pirou, Sua Majestade. – Respondeu Alice. – Ela pirou na batatinha.

– Ah, sim. – Leonard assentiu. – Talvez sair fosse tomar o caminho do covarde.

– Bobagem. – Alice balançou o dedo para Leonard. – Ela teria encontrado uma
maneira de fazer sua cabeça rolar. Estou certa disso.

Henry ficou de pé novamente. Enfiando as mãos em punhos, ele estava


visivelmente tremendo. – Alguém por favor pode me explicar o que está acontecendo? –
Sua voz era estridente, quase histérica. Ele sentiu como se estivesse perdendo a cabeça.
Foi quase engraçado, de certa forma. Ele nunca se sentira tão perto de perdê-lo quando
estava no País das Maravilhas, nem mesmo com lagartas falantes, Padeiros gigantes e
tubarões de árvores, mas aqui na sala da irmã, entre coisas simples e comuns como jarras
de chá gelado e cadeiras de balanço. Ele sentiu como se estivesse ficando louco.

– Sente-se, Henry. Vou explicar tudo. – A autoridade na voz de Leonard fez mais
para convencer Henry de que Leonard era quem Alice e Chapeleiro alegavam que ele era
do que qualquer outra coisa. Henry sentou-se.

– Na segunda vez que Alice veio ao País das Maravilhas, eu já tinha decidido
deixar o Castelo Vermelho. Eu não podia suportar o que minha esposa estava se tornando,
ou o que ela estava fazendo para o mundo que eu amava. Eu também não conseguia pará-
la. Talvez eu fosse muito fraco ou... Bem, eu a amei uma vez, você sabe. Em todo caso,
pensei que tirar uma licença sabática me ajudaria com as decisões difíceis que eu
precisava tomar. Ele se virou e sorriu para Alice. – Então a querida Alice ganhou a coroa
e tornou-se rainha. Ela se ofereceu para me levar para casa com ela, para que eu pudesse
ter uma folga dos meus problemas, e eu concordei. Nós viemos através do espelho no
castelo da Rainha Branca. Eu pretendia retornar. Eu realmente pretendia. Eu até trouxe
um raro feitiço de retorno engarrafado comigo para o caso de algo acontecer ao espelho
do Castelo Branco na minha ausência. – O Rei Vermelho suspirou, e dentro dele estava
todo o desgosto que ele sofreu. – Eu não contei com o fato de ser tão legal aqui. Ninguém
gritando dia e noite, sem cabeças rolando pelo carpete... Eu queria ficar para sempre.

– E você seria muito bem-vindo para ficar, Sua Majestade. – Disse Alice. Ela
sorriu para ele. O carinho entre eles era evidente para todos.

– Obrigado, minha querida. – Ele olhou para Henry. – Você foi um rapaz muito
rude, como eu me lembro. Sempre duvidando das histórias de sua irmã, menosprezando-
a, ameaçando tê-la trancada… Você deveria ter vergonha.

Henry tinha vergonha, e isso aparecia em seu rosto. – Eu sei disso agora. – Ele
se virou para Alice. – É uma das razões pelas quais eu não podia esperar para chegar em
casa. Desculpar-se. Mana, eu sinto muito, sinto muito por tudo que eu disse e fiz. Eu perdi
tantos anos que poderíamos ter desfrutado juntos por ser um idiota estúpido e tolo. – Seu
rosto queimava com a sua confissão, mas ele se forçou a olhar Alice nos olhos. – Você
estava certa o tempo todo. Sobre tudo. Você pode me perdoar?

Alice sorriu para ele e deu um pulo, jogando os braços ao redor do pescoço dele.
Ela o abraçou com força e, pela primeira vez desde que Henry pôde se lembrar, ele a
abraçou de volta. – Claro que eu te perdoo. Se você me perdoar por mandar você para o
País das Maravilhas despreparado.

Henry sorriu. – Bem, tem isso. Por que você fez isso? Fico feliz que tenha feito,
porque eu era muito tonto para acreditar em você do contrário, mas o que fez você fazer
isso agora?

– A ideia foi minha, Henry. – Leonard tocou no peito e fez uma breve reverência.
– Mea culpa. Minha culpa totalmente. Eu senti que a animosidade entre vocês dois
precisava terminar, e a única maneira de fazer isso era você ver o País das Maravilhas
com seus próprios olhos, então eu usei o feitiço de retorno engarrafado em você. –

O Chapeleiro limpou a garganta. – Posso perguntar, Majestade, por que meu


nome foi trazido para essa trama?

O Rei Vermelho sorriu para o Chapeleiro. – Porque eu sabia que de todos os


meus súditos, você seria o mais propenso a manter Henry através do País das Maravilhas
ileso.

O Chapeleiro se gabou com o elogio do Rei Vermelho. – E você estava certo,


senhor. Consegui ele de volta sem um único arranhão nele.

Henry deu uma cotovelada em Chapeleiro. – Não por falta de tentativa, no


entanto. Montanhas de Confecção, Clareira do Nunca… Estou surpreso por termos
sobrevivido para chegar ao espelho das ruínas da Rainha Branca.

Leonard ergueu os olhos, o sorriso desaparecendo de seus lábios. – Ruínas? Que


ruínas?

O Chapeleiro mordeu o lábio e olhou para Henry. – Ele não sabe. Ele saiu com
Alice, lembra?

Henry sentiu-se mal. Obviamente, Leonard se importava com a Rainha Branca


como sua cunhada. Ele deixou escapar notícias, no entanto indiretamente, que deveria ter
sido dadas à Leonard gentilmente, com respeito e gentileza. – Eu sinto muito, Leonard.
A Rainha Branca... – Ele parou, incapaz de terminar.

O Chapeleiro pegou a mão de Henry, acariciando-a e deixou-a cobrindo-a. – A


Rainha Branca se foi, Sua Majestade. Ela foi encontrada no tabuleiro de xadrez por sua
esposa e derrotada.

Leonard empalideceu. – Diga-me que minha esposa não... nem mesmo ela
poderia ser tão horrível a ponto de colocar sua própria irmã no machado.

– Ela fez. Sinto muito, senhor. Os olhos do Chapeleiro pareciam molhados, e


Henry também se sentia triste.
Alice se moveu para colocar os braços ao redor de Leonard. – Oh, senhor, isso é
tudo minha culpa. Eu nunca deveria ter sugerido que você viesse comigo!

– Não, Alice. Você não tinha como saber o quão insana minha esposa se tornaria.
Se alguém é culpado, sou eu, por me esquivar do meu dever e deixar o País das Maravilhas
desprotegido. – Leonard engoliu em seco e enxugou os olhos, depois olhou para o
Chapeleiro e Henry. – Você diz que ela está fora de controle agora?

– Completamente, meu soberano. Há decapitações frequentes e pelas menores


transgressões - ou nenhuma transgressão. Parece que a Rainha Vermelha realmente não
precisa de muita razão. Acredito que ela acha as execuções divertidas, assim como
costumava gostar de croqué.

– Aquela bruxa doentia! Já é suficiente. Ela foi longe demais. – Leonard


levantou-se, fervendo de raiva. Por toda a sua idade, a jaqueta carmesim não escondia a
maneira como seus músculos se agrupavam sob o tecido. Ele ainda era um homem forte,
apesar de seus anos. – Eu devo voltar. Eu recuperarei o reino e cuidarei para que a Rainha
Vermelha não fira a mais ninguém. Chapeleiro, você sempre foi fiel ao meu trono. Você
vai me ajudar?

Para seu crédito, o Chapeleiro hesitou apenas por um momento. – Claro, Sua
Majestade.

– Eu vou, senhor. – Alice colocou a mão no ombro do Rei Vermelho. Seu sorriso
era trêmulo, mas ela levantou a cabeça.

– Não, Alice. Você tem filhos agora. Sua responsabilidade está com eles e seu
marido. – Leonard deu um tapinha na mão dela e olhou para Henry. – E você, Henry?
Você viu o País das Maravilhas. Você vai me ajudar a salvá-lo?

Voltar? Ele tinha acabado de fazer uma jornada que ele não tinha certeza se
sobreviveria para chegar em casa, e Leonard queria que ele voltasse?

Então, novamente, havia partes do País das Maravilhas que eram lindas, e até
mesmo as partes assustadoras tinham uma certa singularidade que deveria ser preservada.
Além disso, se ele não voltasse, provavelmente nunca mais veria o Chapeleiro.
Esse pensamento fez com que ele se sentisse um pouco enjoado, embora não soubesse
por que deveria. Ele não gostava muito do Chapeleiro, não é?

A lembrança de seu beijo encheu sua mente, junto com o gosto do Chapeleiro
em sua língua. Oh, aquele beijo, aquele beijo miserável, horrível e maravilhosamente
surpreendente! Isso o perseguiria para sempre?

Havia apenas uma maneira de descobrir.

– Sim. – Disse Henry. Ele sentiu o Chapeleiro apertar sua mão. – Eu vou voltar
e ajudar. – Ele se virou para o Chapeleiro e viu um sorriso no rosto do Chapeleiro que
queimou Henry até os dedos dos pés. Ele devolveu com um dos seus próprios.

Ele não viu Alice e Leonard trocarem um olhar conhecedor, mas ouviu Leonard
dizer: – Excelente. Vamos sair de manhã.

– De manhã. – Disse o Chapeleiro. – De volta ao País das Maravilhas nós vamos.

De manhã, Henry pensou. O que significa que temos a noite toda aqui. Ele não
questionou por que o pensamento de passar tempo com o Chapeleiro em seu próprio
mundo o fez feliz, mas o fez.

HENRY PERSEGUIU o Chapeleiro no centro da cidade, ondo o Chapeleiro se


maravilhava continuamente com tudo o que via - uma vez que conquistara seu medo.

Quando saíram da casa de Alice pela primeira vez, a rua estava silenciosa, mas
quando chegaram à rua principal, o tráfego era muito mais pesado. O Chapeleiro apertou
o braço de Henry, seus olhos escuros arregalados e redondos. – Que tipo de bestas são
essas? Meu Deus, olhe! – Ele apontou para um ônibus escolar amarelo brilhante. Esse
comeu dúzias de crianças! A expressão dele ainda estava assustada, e ele continuou
olhando os veículos na rua como se pudessem pular para o meio-fio e engoli-lo. – Oh, o
horror!
– Relaxe, Chapeleiro. Isso é só um ônibus. São carros, caminhões e táxis. Eles
são máquinas, não animais. Mais ou menos como carruagens. As pessoas os dirigem e
andam neles para se locomoverem mais rápido. Eles funcionam com um motor a
combustão e são abastecidos com gasolina, embora alguns sejam híbridos e usem uma
combinação de eletricidade e gás.

O Chapeleiro piscou para ele, obviamente completamente perdido. – Gasolina?


Isso é parecido com um trampolim? Tweedledee e Tweedledum tinham um desses. Eu
lembro do som que fez. Boingy, Boingy, Boingy.

– Não, não é a mesma coisa. A gasolina é feita de petróleo, que é um combustível


fóssil.

– Para onde vão os fósseis quando são abastecidos?

– Não, não. Você não entende. Os fósseis não vão a lugar algum.

– Então por que alimentá-los? Isso não é um desperdício?

Henry soltou um suspiro exasperado. – Deixa pra lá. Apenas entenda que eles
não vão te machucar desde que você não pule na frente deles. Se algum bater em você,
isso pode te matar.

– Ah. Foi assim que eles comeram todas aquelas pessoas? Eles correm suas
presas para baixo, e depois devoram isso? Quão medonho.

Henry bateu com a mão no alto da cabeça como se quisesse evitar que a dor de
cabeça que ele estava desenvolvendo escapasse dos limites de seu crânio e decidiu deixar
as explicações para mais tarde. Era muito frustrante. Ele se perguntou se ele parecia tão
denso quando apareceu no País das Maravilhas, e deu um sorriso tímido quando admitiu
para si mesmo que provavelmente teria sido ainda pior. – Se você confia em mim, eu
prometo que nada aqui vai te machucar.

O Chapeleiro olhou longa e duramente para Henry, depois sorriu e acenou com
a cabeça e pareceu relaxar. Sua curiosidade era interminável, assim como suas perguntas.
Pelo menos, parecia assim para Henry.
Ele insistiu que os arranha-céus, subindo quarenta ou mais andares acima da rua,
tinham que ser obra de gigantes. Henry tentou pacientemente explicar sobre arquitetos,
equipes de construção e os gigantescos guindastes usados para construir os prédios, mas
ele sabia que o Chapeleiro não acreditava nele.

– Você realmente quer que eu acredite que homens do tamanho de você e de


mim fizeram isso? – Chapeleiro perguntou, apontando para um dos edifícios mais altos
da cidade.

– Sim.

– Besteira. Você está tirando sarro de meu cotovelo.

– A expressão é ‘tirar sarro da cara’ e não estou.

O Chapeleiro cruzou os braços e olhou para Henry, desconfiado. – Como você


pôde tirar sarro26 da minha cara? Eu não fumo.

Henry riu e puxou a jaqueta do Chapeleiro, levando-o para outro prédio. –


Vamos. Você vai gostar disso.

Comprou dois ingressos no quiosque e levou Chapeleiro ao cinema. Embora


estivesse quente lá fora, o ar frio dentro deles atingiu os dois no rosto quando entraram
no cinema. – Ar condicionado. – Explicou Henry.

– Ar condicionado? Incrível. – O Chapeleiro moveu os dedos pelo ar, como se


para sentir isso. – Parece o mesmo que o ar do País das Maravilhas, mas é tão frio quanto
os picos das Montanhas da Confecção, embora seja muito quente lá fora! Surpreendente.

Henry comprou para eles um saco de pipoca - que, depois da degustação, o


Chapeleiro imediatamente apelidou de a comida mais perfeita do mundo - e o levou para
a sala de projeção marcada em seus ingressos. Eles escolheram dois assentos centrais na
fila a meio caminho do corredor. Na frente deles, a gigantesca tela branca estava em
branco.

26
Nota de tradução (Sekhmet): Eu tive que adaptar. No original é: puxar a perna, e ‘como você pode puxar
minha perna. Eu estou em cima dela’. Então usei tirar sarro da cara. Sarro também é Resíduos de nicotina
acumulados no tubo de cachimbos, então pensei que se adequava.
– Este é um estabelecimento de comer estranho. – Comentou o Chapeleiro. Ele
tirou o chapéu e colocou-o no joelho antes de enfiar outro punhado de pipoca na boca. –
Seria muito melhor se estivéssemos frente a frente, não é?

– Este não é um restaurante, Chapeleiro. Apenas observe a tela.

As luzes diminuíram e as próximas atrações começaram. No instante em que as


imagens apareceram na tela, o Chapeleiro soltou um grito e deu um pulo. – Gigantes! –
Ele apontou para a tela. – Corra, Henry!

Ao redor deles, as pessoas o mandaram ficar quieto e diziam para ele se sentar.

Henry riu e puxou o Chapeleiro de volta ao seu lugar. – Shh! Eles não são
gigantes. São apenas imagens em movimento de pessoas projetadas em uma tela.

O Chapeleiro pareceu duvidoso. – F-fotos? Você quer dizer que eles não são
reais?

– Não. É tudo um show. Como teatro. Eles têm isso no País das Maravilhas, não
têm?

– Temos trupes de atores viajantes, sim. Eles vão de cidade em cidade realizando
grandes obras, como a Ode a um Pássaro Jubjub, e Oh, Jabberwock, eu dificilmente
conheci Ye.

– Isso é igual. Pense neles como pinturas que podem se mover e falar. Eu
prometo que eles não podem te machucar.

Contorcendo-se um pouco na cadeira, o Chapeleiro brincou com a aba da cartola


e recusou-se a fazer contato visual com Henry. – Eu sabia disso.

– Claro que você sabia. – Henry sorriu para ele e ofereceu-lhe mais pipoca.

Triturando em voz alta, o Chapeleiro pareceu relaxar, e logo foi apanhado no


que ele mais tarde proclamou – uma maravilhosa história de magia e desordem mecânica
lutada nos céus muito além da visão de meros mortais.

– Você sabe que é apenas um filme, certo? – Henry jogou o recipiente vazio de
pipoca no lixo ao sair do cinema. – Star Wars existe desde antes de eu nascer. É um
clássico.
– Você quer dizer que é uma fábula, como as contadas por contadores de
histórias viajantes no País das Maravilhas?

– Sim. Exatamente.

– Tudo parecia tão real! Parece que seu mundo também é um lugar de
maravilhas, Henry.

– Eu suponho que sim. Eu nunca pensei nisso dessa maneira antes. Eu cresci
com coisas como arranha-céus, carros e filmes. Nunca pensei neles como algo que não
fosse comum antes.

– Assim como eu nunca pensei em tubarões-árvore ou gigantes como sendo nada


além de partes normais do meu mundo, até você aparecer.

– Você tem um ponto. – Henry riu e levou o Chapeleiro para fora do cinema.
Enquanto caminhavam pelo quarteirão, o Chapeleiro congelou de repente e apontou para
a rua em direção a um pequeno restaurante de fast food White Castle27.

Era um castelo branco.

– Isso é… não, não pode ser. É muito pequeno!

Henry deu um tapinha no ombro do Chapeleiro. – Castelo Branco Errado. Este


serve apenas hambúrgueres.

– Oh? O que isso serve para os hambúrgueres? E o que exatamente são


hambúrgueres? Por que esse castelo serve apenas a eles? Esses hambúrgueres são algum
tipo de realeza?

– Não, hambúrgueres são comida, e o Castelo Branco os serve para as pessoas.

27
Castelo Branco.
Chapeleiro sacudiu a cabeça. – Eu acredito que eu nunca vou entender o seu
mundo, Henry.

– Eu moro aqui e nem sempre entendo isso. – Henry sorriu. – Falando de comida,
quer experimentar algo que é incrível?

O Chapeleiro sorriu e acenou com a cabeça.

– Ok. É aqui. – Ele levou o Chapeleiro para a torre inclinada de Pizza, e pediu
uma grande pizza com queijo extra e pepperoni. – Se você pensou que a pipoca era boa,
espere até provar isso!

Uma vez que a pizza foi servida, nenhuma outra palavra foi dita além de
pequenos grunhidos alegres enquanto eles devoravam a coisa toda. A boca do Chapeleiro
estava coberta de molho de tomate, e havia um pouco de queijo pendurado em um fio
fino de seu queixo. – Seu mundo é incrível, Henry! Primeiro milho estalado e imagens
em movimento de gigantes, então este Pete Ah. É maravilhoso!

– Pizza. Uma palavra. E eu concordo, é muito bom. Mas assim foi a comida que
você fez no País das Maravilhas. E eu não posso tirar uma fogueira e uma panela do meu
bolso aqui.

O Chapeleiro deu um aceno solene. – Verdade. Eu posso entender como isso


seria uma dificuldade. Quando eu voltar para o País das Maravilhas, vou precisar aprender
a fazer pizza e encontrar espaço no bolso para o equipamento e ingredientes necessários.

Alguém deve ter introduzido moedas na jukebox no outro extremo da pizzaria,


porque os primeiros acordes pungentes de “Bohemian Rhapsody” começaram a tocar. As
orelhas do Chapeleiro imediatamente se animaram, sua cabeça girando para examinar a
sala.

– Você tem trovadores neste mundo? Onde eles estão? Eu não posso vê-los. –
Ele se levantou, tentando obter uma visão melhor. – Também tínhamos músicos
itinerantes no País das Maravilhas. Eles cantariam sobre a história do País das Maravilhas,
indo de cidade em cidade. Pelo menos, eles fizeram antes que a Rainha Vermelha cortasse
suas cabeças. Ela nunca gostou muito da história. Ainda assim, gostava de ouvir os
trovadores e os bardos.
– Hum, se você quer dizer música, então sim, nós temos bandas e cantores. Rock
and roll, baby.

A cabeça do Chapeleiro ergueu-se, as sobrancelhas franzidas. – Você quer dizer


que cantores de pedra não são bem versados em seu ofício? Isso parece um pouco duro.

– Não. Rock and roll é o estilo da música. Este é o Queen28 que você ouve tocar.

– Qual rainha? Não a vermelha. Eu a ouvi cantar e ela soa como um Capturandam
presa numa armadilha para ursos.

Henry sorriu. – Não esse tipo de rainha. É o nome de uma banda, o grupo de
pessoas que você ouve cantando.

– Ah. Um nome estranho, mas boa música. Bastante cativante. Eu gosto disso.
Agora, onde estão esses mestres de melodias régios? Ainda não os vejo.

– Eles não estão realmente aqui. O que você está ouvindo é apenas uma gravação
em uma caixa, mais ou menos como o filme que fomos ver.

– Oh! Compreendo. Que maravilha ter música ao seu alcance! O dono deste
estabelecimento deve ser muito rico para ter essa magia em seu empório de pizza.

Henry sacudiu a cabeça novamente e riu. – Pizzaria, e você não precisa ser rico
para possuir música. Quando voltarmos para Alice, lembre-me de lhe apresentar um MP3
player.

– Isso é um instrumento? Este MP3? Como se toca isso?

Henry riu novamente. – Você vai ver. – Ele olhou para o relógio de pulso e
suspirou. – Desculpe, Chapeleiro. Está ficando tarde. É melhor voltarmos para a casa de
Alice. Eu acho que o tio Leonard... er, o Rei Vermelho quer começar cedo de manhã.

Eles saíram da pizzaria e voltaram para o bairro de Alice. Eles tinham acabado
de virar a esquina para o quarteirão de Alice, quando o Chapeleiro agarrou a mão de
Henry e o puxou para uma parada.

28
Rainha.
– Acabei de perceber que provavelmente não ficaremos sozinhos novamente
depois disso. Henry, eu queria dizer... quero dizer... – A língua do Chapeleiro parecia
estar tropeçando em palavras do jeito que um bêbado tropeça nas curvas. – Você e eu,
nós… oh, por que nos incomodar. Às vezes as palavras não são suficientes de qualquer
maneira.

Os olhos de Henry se abriram quando Chapeleiro o puxou para um beijo


profundo, mas logo se fechou novamente. Sentimentos incomuns passaram por ele como
relâmpagos pulando de nuvem-para-nuvem, eletrificando-o de dentro para fora. Os
braços do Chapeleiro, fortes e duros com músculos, envolveram o corpo de Henry e o
seguraram perto. A pele de Henry ficou quente enquanto seu corpo respondia à
intensidade do beijo do Chapeleiro.

O beijo pareceu durar para sempre e não quase o suficiente ao mesmo tempo. O
Chapeleiro se afastou muito antes que Henry quisesse. Sua respiração era quente e
cheirava levemente ao alho da pizza, mas fez Henry sentir-se um pouco tonto, como se
estivesse girando em círculos por muito tempo.

– Eu não sei quando terei a chance de te beijar novamente. Eu tenho pensado em


pouco mais desde aquele momento no campo de batalha nas Montanhas da Confecção. O
Chapeleiro suspirou e puxou Henry um pouco mais perto, até que seus corpos estavam
nivelados um contra o outro. Henry podia sentir cada centímetro do corpo do Chapeleiro
pressionado contra ele e percebeu que o Chapeleiro estava aproveitando o momento tanto
quanto Henry.

– Posso contar um segredo? – Os braços de Henry estavam em volta da cintura


fina do Chapeleiro e ele trancou os dedos, sem vontade de soltar. – Estou feliz por voltar
com você. Toda vez que eu pensava em você voltar ao País das Maravilhas sem mim,
senti uma espécie de mal-estar no estômago.

– Eu me sinto da mesma forma. Suponho que teremos que pensar em nos separar
em algum momento. Mas não esta noite.

– Não, não esta noite. – Henry inclinou o rosto para Chapeleiro e ficou encantado
quando Chapeleiro procurou seus lábios novamente.
Por um breve momento, Henry se perguntou quando parou de não gostar
ativamente do Chapeleiro... Talvez no campo de batalha nas Montanhas da Confecção,
ou enquanto caminhava pelo Clareira do Nunca. Ou talvez Henry nunca realmente não
gostasse do Chapeleiro, apenas tinha a ideia de não gostar muito dele. Então o pensamento
se foi e Henry se perdeu de novo na eletricidade de seu beijo.

O beijo deles dessa vez teve uma sensação mais gentil e ansiosa. Fez Henry
desejar mais, mas ambos sabiam que já era hora de voltar para casa.

– É melhor voltar antes que Alice chame a polícia para nos procurar. – Henry
relutantemente se afastou. Eles começaram a caminhar de volta para a casa de Alice.

Henry estava consciente de que estavam de mãos dadas e, pelo olhar no rosto do
Chapeleiro, ele também estava. Henry se perguntou por que o pensamento de deixar o
Chapeleiro para trás o incomodava tanto.

Posso pensar nisso mais tarde, como o Chapeleiro disse, Henry pensou,
apertando ainda mais a mão do Chapeleiro. – Por enquanto, tudo o que devemos nos
preocupar é com a Rainha Vermelha, e como vamos derrubá-la sem perder a cabeça.

Mas pensar no beijo deles era muito mais divertido do que pensar em estratégias
de guerra, e logo todos os pensamentos da Rainha Vermelha foram empurrados para fora
da cabeça de Henry, substituídos pela lembrança de lábios quentes, bafo de alho e
relâmpagos em seu corpo.

CAPÍTULO QUINZE

Na manhã seguinte, o sol nascente os encontrou já reunidos na cozinha de Alice


para o café da manhã e uma reunião de estratégia. O marido de Alice, Phillip, e os filhos
eram os únicos ausentes, provavelmente ainda dormindo na hora ímpia.
Leonard vestiu-se com toda a sua vestimenta do Rei Vermelho, presumivelmente
o mesmo guarda-roupa que estava usando quando atravessou o espelho com Alice no
mundo de Henry. Uma pequena coroa de ouro cravejada de rubis rodeava a coroa de
cabelos sua cabeça. Ele usava uma longa túnica de carmesim profundo, com leggings
combinando e botas de cano alto. Uma pesada capa de veludo vermelho brilhante,
enfeitada com caudas de arminho brancas e pretas, jogadas sobre os ombros, o fazia
parecer duas vezes mais largo do que realmente era e varria o chão atrás de si. Ele teria
parecido bastante real se não fosse pelos gatos de Alice, Romeu e Julieta, que perseguiam
a cauda de pele do robe, pulando e arranhando-o. Talvez eles achassem que era um gato
rival, ou mais provavelmente divertido. De qualquer jeito, Leonard achou necessário
mexer nas bordas de seu manto continuamente, tentando soltá-las. Ele finalmente
resolveu o problema, sentando-se à mesa e empilhando o manto na cadeira ao lado dele.
Os gatos pularam no peitoril da janela e ficaram olhando para ele, obviamente irritados.

Alice colocou garrafas de café quente e chá na mesa, junto com um prato de ovos
mexidos e outro de bacon crocante. Acrescentou ainda outro prato cheio de torradas e
colocou alguns potes pequenos de compotas e geleias sobre a mesa antes de se sentar. –
Bem, estamos todos aqui. Quais são seus planos, Sua Majestade?

Leonard serviu-se dos fofos ovos amarelos e algumas tiras de bacon antes de
passar os pratos para o Chapeleiro. – Bem, contanto que o espelho nos permita retornar
ao Castelo Branco, e não nos despeje no meio do Grande Afundamento de Areia, ou do
Deserto de Areia de Açúcar Sem Fim, nossa primeira prioridade será encontrar o caminho
para o Castelo Vermelho.

– O que você quer dizer? O espelho mandou Alice para o Castelo Branco, e você
e nós aqui de lá. Por que não deveria nos mandar de volta? – Perguntou Henry, com a
boca cheia de torrada e geleia de laranja.

– Depende de a Rainha Vermelha ter movido o espelho. – O Chapeleiro serviu-


se de outra xícara de chá e acrescentou um pouco de creme. – Ele mandou Alice para o
Castelo Branco e nós para cá do mesmo lugar, porque é onde os espelhos gêmeos estão
localizados. Se a Rainha Vermelha mandou o espelho do País das Maravilhas ser
removido do Castelo Branco e ser despejado, digamos, no meio da Clareira do Nunca,
então, quando atravessarmos, nos encontraremos na outra extremidade em meio aos
tubarões de árvores e trolls do pântano.

Leonard assentiu. Ele passou manteiga em um pedaço de torrada, enfiou várias


fatias de bacon e um pedaço de ovos mexidos, dobrou-o ao meio e deu uma grande
mordida. Ele esperou para falar até depois de ter engolido, e embora ele tenha limpado os
lábios com um guardanapo, migalhas de pão e pedaços de bacon ainda salpicavam sua
barba. – Também é verdade, Chapeleiro. Vamos esperar que permaneça no Castelo
Branco, ou melhor ainda, que minha esposa tenha mudado para o Castelo Vermelho, o
que nos pouparia bastante tempo e esforço.

– Meu palpite é que ela deixou onde está, e talvez tenha colocado uma guarda. –
Alice acrescentou. – Você vai me desculpar, Sua Majestade, mas a Rainha Vermelha
nunca foi conhecida por ser muito brilhante ou ter muita iniciativa.

– Tudo bem, Alice. Eu concordo. – Os olhos de Leonard assumiram um olhar


um tanto sonhador e distante, como se ele estivesse vendo imagens que Alice, Henry e
Chapeleiro não conseguiam, algo do passado. – Quando ela era jovem, ela era muito
bonita, sabe, e poderia ser extremamente charmosa quando lhe convinha. Sua risada era
contagiante e seus beijos eram mais doces do que qualquer coisa que os Padeiros da
Montanha de Confecção pudessem preparar. Eu me casei com ela, afinal. No entanto, os
anos não foram gentis com ela. Nós nunca tivemos filhos, embora quiséssemos herdeiros,
é claro. Ela odiava a ideia de que sua coroa poderia ir para alguém que não fosse um
descendente direto de sua linhagem, e se tornava amarga e ciumenta, e mais implacável
e desprezível a cada dia que passava. Eu descobri que havia algo distorcido em sua alma,
algo perverso que uma vez desencadeado, cresceu sem controle, enquanto, ao mesmo
tempo, cada fragmento de decência e humor que ela uma vez teve, enrugou e morreu. –
Ele piscou e olhou para Alice, Henry e Chapeleiro, por sua vez. – Ela não é mais a mulher
com quem me casei. Ela se tornou um monstro e deve ser detida antes de finalmente
destruir o País das Maravilhas.

– Como? – Henry perguntou. – Como podemos pará-la? – Ele não tinha pensado
sobre o Rei Vermelho e a Rainha como um casal, como seus próprios pais devem ter sido
uma vez, antes de sua mãe morrer e seu pai começar a beber. Colocou um novo giro em
sua opinião sobre a Rainha Vermelha. Não mudou exatamente o que ele pensava dela -
ele ainda concordava que ela era um monstro e precisava ser parada antes de cortar a
cabeça de todo mundo no País das Maravilhas - mas ele percebeu que ela era, afinal de
contas, apenas humana. Ou o que se passava por humano no País das Maravilhas, de
qualquer maneira.

– Essa seria a pergunta, senhor. – O Chapeleiro colocou sua xícara no pires com
um toque suave. – Ela mesma não representa uma ameaça física, mas ainda comanda os
Guardas Vermelhos. Enquanto a maioria deles está ficando um pouco velho, ainda há
muitos bons anos restando neles. Nós três não poderíamos superar todos eles.

– Não vamos precisar. – Leonard esticou o braço e bateu a coroa de ouro em sua
cabeça. – Eu ainda sou o Rei Vermelho, não sou? Os Guardas Vermelhos são meus para
comandar.

O Chapeleiro deu de ombros e desviou os olhos. – Bem, senhor, você meio que
desapareceu no ar. A maioria do País das Maravilhas acredita que você morreu, e o resto
acha que você abdicou e fugiu com uma das camareiras.

Os olhos de Leonard se arregalaram e suas bochechas se avermelharam. –


Absurdo! Estou obviamente bem vivo e nunca fugi. Eu estava em... er, licença sabática.
Eu certamente nunca renunciei ao meu trono.

– Oh, eu acredito em você, senhor. – O Chapeleiro foi rápido em dizer. – O


problema é como convencer os Guardas Vermelhos.

Henry contemplou o problema. Ele não tinha certeza de que Leonard não tivesse
fugido. Na verdade, ele tinha certeza de que era exatamente o que Leonard havia feito.
Então, como alguém conseguia convencer um exército a seguir um líder que eles
acreditavam tê-los abandonado? A resposta veio a ele como um puxão de uma vara afiada.
Ele realmente pulou. – Claro! Ao explicar que a saída de Leonard era necessária para
derrubar a rainha.

Os outros olharam para ele com expressões confusas e vazias. Finalmente, o


Chapeleiro fez um gesto para que Henry continuasse. – Explique por favor. Receio que
estamos todos um pouco confusos com a sua estratégia. Como, exatamente, era necessário
que o Rei Vermelho deixasse o País das Maravilhas aos ataques de raiva da Rainha
Vermelha?

Henry tentou explicar. – Suponha que houvesse algo neste mundo que o Rei
Vermelho precisasse, algo que asseguraria a vitória sobre a Rainha Vermelha. Ele
precisava sair para pegá-lo, mas sempre pretendia voltar.

– Então, você acha que a melhor maneira de ganhar a confiança dos Guardas
Vermelhos é mentir para eles? Henry, eu tenho vergonha de você. – Alice franziu o cenho
para ele, como só uma irmã mais velha era capaz.

Normalmente, esse olhar faria Henry se contorcer, mas não dessa vez. Ele sabia
que ele estava certo. – Não, você não entende! Ele veio até aqui para encontrar algo de
que precisava para enfrentar a rainha - sua coragem, seu orgulho e sua determinação. –
Henry sorriu e deu um tapinha no braço de Leonard. – Depois de viver com a loucura da
Rainha Vermelha por todos esses anos, você simplesmente perdeu o seu caminho, Sua
Majestade. Você precisava vir aqui para encontrá-lo novamente.

O Chapeleiro riu e bateu na mesa com a mão, fazendo sua xícara chacoalhar em
seu pires. – Isso é brilhante, Henry! Você não estaria mentindo, senhor e conhecendo a
Rainha Vermelha, duvido que alguém a culpasse por isso.

– Você não acha que estaria admitindo fracasso? – Leonard mordeu o lábio
inferior, fazendo a barba dele balançar. – Um rei não pode parecer fraco.

– Admitir uma verdade, mesmo quando é dolorosa, nunca é um fracasso, Sua


Majestade. – O sorriso de Alice foi gentil. – É uma força que muitas pessoas não têm.

– Então, é aprender com seus erros e superá-los. – Acrescentou Henry.

O Chapeleiro assentiu. – Eu concordo sinceramente, Sua Majestade. Acredito


que os Guardas Vermelhos entenderiam e respeitariam essa admissão.

Leonard pareceu pensar, depois suspirou e colocou o guardanapo sobre o prato.


– Eu suponho, então, que nós teremos que... – Ele olhou para Alice. – Como eles dizem
isso aqui, Alice? Impropriar?
Alice riu e balançou a cabeça. – Eu acho que a frase que você está procurando é
‘improvisar’, senhor.

– Ah sim. Improvisar. De fato. Teremos que improvisar quando chegarmos lá. –


Leonard sorriu agradecido a Alice. – Quero agradecer a você, minha querida, por me
permitir acompanhar você ao seu mundo e por me encontrar um lugar e proteger minha
identidade por todos esses anos. O tempo certamente voou para nós, hmm?

– Bem, com certeza, quando o Tempo gosta de você. – Disse o Chapeleiro. Ele
olhou para Henry, que riu quando o Chapeleiro revirou os olhos. – Mas fique do lado
ruim do Tempo apenas uma vez, e isso vai te deixar em uma Festa do Chá interminável
com um Arganaz psicótico.

– Chapeleiro! – Alice admoestou, sacudindo o dedo em raiva zombeteira para


ele. – Você devia se envergonhar. Arganaz não era psicótico. Ele era só um pouco... er,
tímido e reservado.

– Tímido e reservado? – O Chapeleiro jogou a cabeça para trás e riu. – Você


deveria ter ouvido ele depois que você deixou a festa, Alice. Sua linguagem era tão
empolada que pôs o centro da mesa em chamas.

– Bem. – Disse Alice. – Talvez ele fosse um pouco peculiar. Mas, novamente,
eu era uma criança petulante e detestável, não era?

O Chapeleiro levantou-se e socou o chapéu na cabeça, com os lábios inclinados


num sorriso irônico. – Eu aprendi que nunca é prudente discutir com uma rainha, ex ou
não.

Todos riram, embora a piada não fosse tão engraçada assim. Henry supôs que se
sentia bem porque proporcionava uma liberação da tensão que vinha se formando
lentamente. Ele estava muito ciente, como ele tinha certeza de que todo mundo estava,
do perigo do plano deles.

Eles não sabiam ao certo onde o espelho os levaria, ou se os Guardas Vermelhos


estariam esperando, e se assim fosse, se os guardas aceitariam a reivindicação de Leonard
ao trono. De fato, eles não sabiam se Leonard seria capaz de fazer a reclamação antes que
todos os guardas os enchessem de flechas.
Mesmo que eles tivessem desembarcado no Castelo Branco, e os Guardas
Vermelhos aceitassem Leonard como Rei, eles ainda teriam provas para enfrentar na
marcha de volta ao Castelo Vermelho, e o confronto final com a Rainha prometia ser tudo
menos agradável.

Henry largou a xícara e fez algo que não fazia há anos. Ele pegou Alice em seus
braços e abraçou-a com força. – Eu te amo, irmã. Me desculpe, se eu não acreditei em
você antes, e por ser tão idiota sobre isso.

Para sua surpresa, havia lágrimas nos olhos de Alice quando ela finalmente se
afastou de seu abraço. – Eu sei, e eu sinto muito por ser tão teimosa sobre tudo, e por
mandar você para o País das Maravilhas despreparado.

– Está tudo bem. – Disse Henry. – Tem sido uma aventura, com certeza. Quando
eu voltar, planejo fazer as pazes com você. Eu prometo.

– Claro. – As lágrimas ameaçadoras escaparam, rolando lentamente pela


bochecha de Alice, embora um sorriso trêmulo tocasse em seus lábios. – Quando você
voltar.

Henry franziu a testa. Por que ele teve a sensação de que Alice não achava que
ele voltaria? Ele se sacudiu. Não seja idiota. Claro que ela acredita que você vai voltar.
É o estresse, só isso. Todo mundo está no limite. Ele devolveu seu sorriso trêmulo e
recuou enquanto os outros se despediam.

Alice levou-os até as escadas para o segundo andar da casa, alertando-os para
ficarem quietos para não acordarem o marido e os filhos. Ela pegou uma corrente em um
painel do teto do corredor, puxando uma escada para o sótão.

Eles subiram, um após o outro, e Henry e o Chapeleiro se viram de volta ao


espaçoso loft do teto de vime onde haviam chegado. Caixas, malas e alguns baús estavam
guardados no lado mais distante da parede. Um modelo de costura estava nu, apenas uma
fina camada de poeira o cobrindo. Um antigo armário ee máquinas de costura, a cadeira
de balanço faltando alguns fusos e vários brinquedos empoeirados ocupavam o resto do
espaço. Em um canto, um objeto alto e chato estava sozinho e separado da outra bagunça.
Alice gesticulou em direção ao espelho, gêmeo do que ele e o Chapeleiro tinham
passado no Castelo Branco. Ela deu um passo para o lado e sorriu um sorriso que ela
claramente não sentia. – Aqui está. Boa sorte e boa viagem. Prometam encontrar uma
maneira de me dizer como isso se saiu.

– Do que você está falando? Vou lhe contar tudo quando voltar. – Henry franziu
a testa e sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Alice não acreditava que ele voltaria?

O mesmo sorriso trêmulo retornou para levantar os lábios de Alice novamente.


– Claro. Que bobo de mim. Eu te amo, irmãozinho.

– Também te amo. – Respondeu Henry, ainda intrigado.

– Bem, é melhor irmos embora. – O Chapeleiro tirou o chapéu e fez uma


reverência profunda. – Muito obrigado, Alice, por tudo.

– E obrigado, Chapeleiro, por cuidar de meu irmão através do País das


Maravilhas. Dê o meu melhor para a Lagarta e o Gato de Cheshire. – Alice beijou o
Chapeleiro na bochecha.

– Bah, o Gato? Ele merece uma bota rápida no traseiro peludo, não um
agradecimento. – O Chapeleiro bufou. – Nunca conheci uma fera mais contrária e
frustrante na minha vida.

Alice acenou com suas preocupações. – Oh, dê a ele uma chance. Algo me diz
que você mudará de ideia.

O Chapeleiro fungou e levantou o queixo. – Não é provável. Ele é todo de garras


e dentes, unidos com rancor e um senso de humor maligno. – Ele se afastou para Leonard
para dar um último adeus a Alice.

– Cuide deles, tio. – Ela jogou os braços ao redor do pescoço de Leonard e o


abraçou. – Eu sei que você é o Rei Vermelho, mas você sempre será o tio Leonard para
mim também.

Leonard abraçou-a de volta, lágrimas brilhando em seus olhos. – A honra é


minha, querida Alice. Você é a filha que eu nunca tive. Eu sentirei sua falta, mas quem
sabe? Talvez um dia eu volte para uma visita ou você venha para o País das Maravilhas.
Alice não respondeu, mas acenou com a cabeça e caminhou alguns passos,
enxugando os olhos com as costas das mãos. – Vá em frente, agora, antes de eu começar
a chorar tudo de novo.

Leonard levantou a mão em uma despedida final e encarou o espelho. Trocando


um olhar ansioso com o Chapeleiro e Henry, ele pareceu prender a respiração ao entrar
no espelho e desaparecer.

O Chapeleiro olhou para Henry. – Juntos?

Henry assentiu com a cabeça e pegou a mão do Chapeleiro, e juntos eles


entraram no espelho.
CAPÍTULO DEZESSEIS

Uma vez mais, passaram pelo denso e viscoso líquido que compreendia a
passagem entre os mundos. Era desconfortável, mas não doloroso, embora Henry não
estivesse ansioso para revê-lo no caminho de volta para casa depois que a missão estivesse
concluída.

Ele empurrou e saiu do espelho, batendo nas costas do Chapeleiro. – Oomph.


Chapeleiro, mova-se. Por que você está aí parado?

– Shh. Não se mexa, não fale. – O Chapeleiro sussurrou, mas não se virou.

Henry sentiu um arrepio de medo e baixou a voz para um silvo. – O que é isso?
São os guardas vermelhos?

A cabeça do Chapeleiro deu uma pequena balançada. – Se ao menos fossem os


guardas! É uma guarda de Capturandams. Há quatro deles bloqueando a saída. Até agora
não acho que eles nos viram, mas...

Um grito repentinamente perfurou o ar, tão estridente que as mãos de Henry


voaram até os ouvidos, como se quisesse manter o grito afiado. Ele nunca tinha ouvido
nada parecido antes. Parecia um cruzamento entre Godzilla e um apito de trem estéreo.
Três outros gritos igualmente ensurdecedores se juntaram a ele, aumentando em uma
cacofonia dolorosa, agravada por um eco que repetia os sons excruciantes de volta.

– O que vamos fazer? – Henry subiu lentamente até a ponta dos pés e espiou por
cima do ombro do Chapeleiro. Ele nunca tinha visto um Capturandam, e se eles não
conseguissem passar pelas criaturas, nunca teriam a oportunidade de ver um - ou qualquer
outra coisa - novamente.

Eram todas criaturas grandes, embora duas delas fossem um pouco menores.
Uma família talvez, pensou Henry. Mãe, pai e dois descendentes. Seus corpos eram
robustos, mas segmentados como os de uma formiga, apoiados por seis pernas
semelhantes a elefantes e terminando em caudas sinuosas com ponta de espinhos. Suas
cabeças eram longas e estreitas, principalmente mandíbulas cheias de um número
assustador de dentes longos e irregulares. Ele achava que seus pescoços eram
ridiculamente curtos, quase inexistentes, até que um deles disparou como um telescópio,
trazendo aquelas mandíbulas aterrorizantes, quase a pouca distância de Leonard.

Um dos Capturandams começou a se mover ao redor do perímetro da sala,


ficando baixo no chão. Outro se separou do outro lado. Eles estavam tentando cercar
Henry, o Chapeleiro e Leonard.

O Chapeleiro enfiou a mão no bolso, tentando não se mover muito depressa ou


demais. Ele puxou um objeto e jogou-o no Capturandams. Atingiu o chão e rolou,
chegando a parar ao pé de uma das criaturas. A cabeça do Capturandam baixou e cheirou
o objeto. Então ele abriu suas mandíbulas e o levantou, engolindo-o. Uma longa língua
negra serpenteou e lambeu as costeletas.

– Uma maçã? Elas são venenosas para os Capturandams? – Henry perguntou.

– Não, droga. Eu pensei que era uma esfera explosiva. – A mão do Chapeleiro
escorregou de volta em seu bolso.

O grupo de Capturandams uivou de novo, seus músculos se amontoando. Eles


se aproximaram, suas cabeças disparando em seus pescoços telescópicos, as mandíbulas
estalando. Suas pernas pesadas, cada pé com longas garras afiadas, rasgavam o chão de
mármore e pisoteavam os pedaços de mobília que encontravam em palitos de fósforo. As
caudas dos Capturandams racharam como chicotes, entalhando fissuras profundas nas
paredes.

– Chapeleiro, eles vão atacar! – Em seu terror, Henry esqueceu de sussurrar. Não
que isso importasse - os rugidos de Capturandam quase o afogaram de qualquer maneira.

– Espere! – Leonard deu um tapa na testa com a palma da mão. – Eu quase


esqueci. Que estupidez de mim!
– O que é isso, senhor? Agora seria um bom momento para compartilhar com o
resto da turma. – O Chapeleiro tirou uma banana do bolso. – Droga. – Ele jogou no
Capturandam mais próximo, que, fiel ao seu nome, pegou-o29.

– Como alguém derrota o Capturandam? Pense, Chapeleiro. Está bem ali, em


uma das maiores músicas da nossa história. Lembra? – Cuidado com o pássaro Jubjub e
evite o frenético Capturandam! – Evitar é a resposta.

O Chapeleiro soltou uma risada. – Claro! É óbvio agora, não é? Você é um gênio,
Sua Majestade.

O peito de Leonard estufou um pouco. – Oh, bem, eu só prestei atenção na aula


de história, só isso.

Henry olhou entre eles, totalmente confuso. Teriam eles esquecido que estavam
sendo cercados pelos frenéticos Capturandams em seu poema estúpido? Antes que ele
pudesse dizer qualquer coisa, tanto Leonard quanto Chapeleiro viraram as costas para os
Capturandams.

– Dê a volta, Henry. Rápido! – Leonard acenou com as mãos para Henry,


pedindo que ele se virasse. Dê-lhes as costas e feche os olhos.

– Evite eles, Henry. Ignore-os. Eles não aguentam. Eles vivem do medo e
atenção. Não mostre nada, e eles vão embora. – Explicou Chapeleiro.

Bem, Henry raciocinou, se não funcionar, pelo menos eu não verei os


Capturandams mordendo minha cabeça. Ele se virou, encarou a parede e fechou os olhos
com força.

Os sons ao redor deles se intensificaram, os rugidos subindo a um nível que fez


os ouvidos de Henry soarem. Também havia sons estridentes, como se os Capturandams
estivessem determinados a trazer as ruínas do Castelo Branco para os ouvidos.

Então, de repente, abençoadamente, tudo parou e o silêncio desceu...

29
Bandersnatch no original. Snatch, quer dizer abocanhar.
Henry sentiu um tapinha no ombro e quase saltou da calça jeans. Ele abriu os
olhos para ver Leonard e o Chapeleiro sorrindo para ele.

– Eles foram embora! Nós vencemos nossa primeira batalha, mas acho que
devemos sair rapidamente antes que eles decidam voltar e dar outra chance. – Disse
Leonard. Ele liderou o caminho em direção à porta.

O Chapeleiro seguiu, com Henry se arrastando atrás com pernas trêmulas. Onde
quer que a família Capturandam tivesse desaparecido, não estava dentro das ruínas do
castelo, pelo menos não à vista das áreas pelas quais o trio se apressava, a menos que
encontrassem um esconderijo em algum lugar. Henry não viu nada ou ouviu deles na
saída do Castelo Branco, não que ele estivesse reclamando. Ele ficaria feliz se ele nunca
mais visse um. De todas as coisas loucas e assustadoras que ele tinha visto no País das
Maravilhas, ele classificou os Capturandams como o número um na lista. Ainda assim,
ele teve que admitir que eles eram os mais fáceis de derrotar, uma vez que Leonard se
lembrara de como fazer isso. Como muitos valentões, Capturandams perdiam o interesse
quando ninguém prestava atenção a eles. Ele teve a sensação, no entanto, de que a
mordida do Capturandam teria sido ainda pior do que seu latido ensurdecedor.

Uma vez fora do castelo, Leonard conduziu-os através de um amplo e ondulante


campo florido, ao lado do qual um rio preguiçoso serpenteava. Captou o olhar de Henry,
a forma como a água brilhava como seda, serpenteando de uma cascata nas colinas
imediatamente ao norte do Castelo Branco, e fluindo para o sul, diminuindo até se tornar
não mais do que um fio prateado à distância.

A água tranquila e de aparência fria parecia extremamente convidativa para


Henry desde o momento em que a viu, como se estivesse chamando-o. Nunca um rio
parecia tão convidativo. Do nada veio o pensamento: eu deveria ir nadar. Melhor ideia
que tive o dia todo. De repente, ele se sentiu completamente sujo e fedido. Ele não podia
suportar a sensação de sua roupa contra sua pele, ou o fedor que parecia estar emitindo
como uma névoa. Ele se virou e começou a correr em direção ao rio. Um mergulho rápido,
depois de volta aos trilhos, certo? Parecia ótimo para mim.

– Henry! Henry, não! – O Chapeleiro gritou para ele, correndo em sua direção.
Maldito Chapeleiro. Um desmancha-prazeres de proporções cósmicas. – Eu
preciso de um banho, Chapeleiro. Só vai levar um minuto. – Ele correu em direção à água,
tirando a camisa e tirando os sapatos enquanto corria.

– Henry, pare! – A voz de Leonard chegou a ele apenas um momento antes de a


mão do Chapeleiro agarrar seu braço. – Você não sabe o que está fazendo.

Ele tentou afastar o Chapeleiro. Ele tinha que chegar à água. Tinha. Se ele não o
fizesse, ele morreria. Ele sabia disso. Sentiu em seus ossos. Ele se virou para o Chapeleiro,
mostrando os dentes. – Me deixe ir!

– Não! Henry, é uma das bruxas do rio. Ela colocou um feitiço em você. Se você
entrar na água, ela vai te puxar para baixo e te afogar antes de te comer. Nós teremos sorte
de encontrar alguns de seus ossos deslizando a jusante quando ela tiver terminado. – O
Chapeleiro passou os braços ao redor de Henry, puxando-o para perto, segurando-o com
força, recusando-se a soltar, por mais que Henry lutasse.

– Você está mentindo! Você quer que eu morra! Me deixa ir. Eu tenho que ir
para a água!

Leonard os alcançou e passou os braços ao redor do Chapeleiro e Henry. Eles


começaram a se afastar lentamente do rio em direção aos campos floridos. Henry lutou
contra eles a cada passo do caminho, completamente convencido de que, se não
mergulhasse nas águas sedosas do rio, ele morreria.

Lentamente, à medida que se afastavae do rio, sua compulsão por nadar começou
a diminuir e, por fim, desapareceu completamente, deixando-o imaginando por que ele
achava que era uma boa ideia para começar. Ele cheirou suas axilas. Ele não fedia. Bem,
não mais do que o habitual, de qualquer maneira. E nem estava muito quente lá fora -
havia uma brisa fresca soprando.

– Sinto muito, Henry. – Leonard deu um tapinha no ombro de Henry. – Eu pensei


que estávamos longe o suficiente do rio para estar seguros.

Henry sorriu. – Está bem. O que aconteceu? O que é que foi isso? Eu realmente
senti que ia morrer se não fosse ao rio.
– Era uma das Bruchas do Rio. – O Chapeleiro tirou o chapéu e se abanou com
ele. Evidentemente tinha sido uma fuga apertada. – Existem vários tipos diferentes,
nenhuma deles é boa. Nem todo rio tem uma, mas o Rio Branco tem sido o lar de uma
escola deles há séculos. Eles lançam feitiços do rio como redes de pesca e, uma vez que
capturam alguém, convencem-no de que é a morte permanecer seco. A menos que seja
contido e removido do alcance do feitiço, a pessoa geralmente corre para a água, onde a
bruxa vai pegá-los, puxá-los para baixo, afogá-los e depois comê-los à vontade.

– Eu acho que te devo meus agradecimentos. Você salvou minha vida, os dois
de você. – Henry olhou de Leonard para o Chapeleiro. – Eu continuo esquecendo como
as coisas são diferentes e quanto eu não sei sobre nada no País das Maravilhas.

O Chapeleiro sorriu. – Assim como eu não sabia nada sobre o seu mundo. Se
você se lembra, eu pensei que seus carros eram monstros com barrigas transparentes, que
tinham comido pessoas.

Henry tinha que admitir que a admissão do Chapeleiro fez com que ele se
sentisse um pouco melhor em ser apanhado no feitiço da Bruxa do Rio. Ele devolveu o
sorriso ao Chapeleiro.

– Você também achou isso, Chapeleiro? Eu também, no começo. Quase deu a


Alice um olho roxo na primeira vez que ela tentou me fazer dar uma volta em seu carro.
Eu pensei que ela estava tentando me alimentar com isso. – A risada de Leonard limpou
o ar da última tensão causada por sua fuga. – Bem então. Acho melhor seguir em frente.
Eu não gosto de nada nos pegar ao ar livre quando a noite cai, e acho que podemos
encontrar abrigo não muito longe daqui. Se a memória não me engana, Tweedledee e
Tweedledum mantêm uma casa de verão um pouco além daquelas colinas. – Ele sorriu e
deu uma cotovelada a Henry bem-humorado. – Nós vamos para a cama com as galinhas,
marque minhas palavras.
CAPÍTULO DEZESSETE

As colinas em questão eram suaves, nenhuma unida a pontos mais íngremes


como o sopé das Montanhas da Confecção. A grama sob os pés era espessa, luxuosa e,
para o País das Maravilhas, surpreendentemente livre de qualquer tipo de perigo. Foi uma
caminhada fácil, e o trio estavam livres assim que o sol começou a pintar faixas roxas e
vermelhas no céu azul.

Leonard mostrou-se correto quando, depois de ultrapassar a última colina,


avistaram um par de casas à distância. Ao aproximar-se delas, revelaram-se idênticas em
todos os sentidos - desde o esquema de cores vermelho e amarelo, enfeitados por
arabescos de gengibre até as caixas de petúnias e margaridas debaixo de cada janela. Cada
um tinha um quintal pequeno e cuidadosamente cuidado, cercado por uma cerca branca
alta e um caminho de ardósia colorida que levava à varanda da frente.

Henry começou a descer pelo caminho mais próximo, mas o Chapeleiro


rapidamente o deteve.

– Espere! – O Chapeleiro manteve a mão no braço de Henry e olhou para


Leonard. – Isso teria sido um terrível faux pas30.

– O que é um foe pah31? – Henry perguntou, franzindo a testa.

– Um faux pas é um erro, um erro social, e você quase fez um comum. – O


Chapeleiro guiou Henry de volta até o caminho onde Leonard esperava. – Tweedledee e
Tweedledum são os embaixadores oficiais da etiqueta do País das Maravilhas, intitulados
pela Rainha Vermelha antes de ficar completamente louca. Eles esperam um certo grau
de pompa e circunstância quando as pessoas chamam. Além disso, eles ficam muito
insultados quando um é favorecido acima do outro.

30
Passo em falso.
31
Inimigo pah.
– Está correto. – Disse Leonard. – Tocar uma campainha antes da outra é um
erro terrível. Eles nunca nos permitiriam ficar, se isso acontecesse.

– Permitir-nos ficar? – O Chapeleiro riu. – Eles teriam nos acusado de violação


de etiqueta. Não há pior crime no que diz respeito aos gêmeos. A punição é alcatrão e
emplumação. Eles usam penas de Jubjub e fazem com que os culpados as arranquem
diretamente do pássaro. Acredite em mim, geralmente não há o suficiente do criminoso
para atacar quando os Jubjubs terminam com eles.

Henry parecia confuso. – Então, o que fazemos?

O Chapeleiro explicou o protocolo. – Fácil. Dois de nós devem andar um dos


caminhos ao mesmo tempo e tocar os sinos no mesmo momento. Nem um segundo mais
cedo ou mais tarde do que o outro, lembre-se! Então, quando Tweedledum e Tweedledee
atendem a porta, nós nos apresentamos e conversamos educadamente por alguns
momentos.

Leonard colocou a mão no ombro de Henry e pegou de onde o Chapeleiro parou.


– Sim. Tente escolher um assunto de conversa interessante para o gêmeo com quem você
está falando. Lembre-se, os gêmeos são idênticos, exceto quando são diferentes.

– Sim. Dum gosta de falar sobre o clima, em especial o bom tempo, o céu limpo
e os dias ensolarados. – Disse o Chapeleiro. – Dee também gosta do clima, mas prefere
falar de chuva e noites tempestuosas, céus negros divididos por raios.

– Ou tortas. – Leonard ofereceu. – Ambos gostam de tortas e bolos. Claro, Dee


prefere chiffon de limão, enquanto Dum gosta de seda de chocolate. Os dois gostam de
maçã, embora Dum goste de passas em sua torta de maçã, enquanto Dee os odeia, e
nenhum gosta muito de noz-moscada, mas amam canela.

– Oh! Eu quase me esqueci, e é muito importante. – Disse o Chapeleiro. – Um


nunca está certo se o outro estiver sempre errado. Você entendeu?

Henry parecia bastante aturdido. Seus olhos continham uma espécie de olhar
enevoado e vazio que preocupou o Chapeleiro um pouco. – Não importa, Henry. Talvez
Leonard e eu devêssemos fazer isso. Você espera aqui.
O Chapeleiro e Leonard ficaram em frente a um dos caminhos gêmeos que
levavam às casas. Bloqueando olhares com Leonard, o Chapeleiro contou. – Um... dois...
três! – Eles saíram com o três, cada um dando um passo quase idêntico em seu caminho.

– Passo. – Disse Leonard, e ambos deram um.

– Passo. – Repetiu o Chapeleiro, e os dois deram outro, e assim por diante, até
chegarem às portas da frente das respectivas casas ao mesmo tempo. – Dedo na
campainha. Empurrar no três! – Disse o Chapeleiro. – Um, dois, três!

O Chapeleiro ouviu os sons altos ecoando na casa à sua frente, e um fantasma


do mesmo toque vindo ao mesmo tempo da casa ao lado. A batida dos pés alcançou seus
ouvidos - pés com algum peso atrás deles pelo som - e soube que Leonard estava ouvindo
o mesmo.

A porta se abriu e ele se viu de frente para Tweedledee.

Ou Dum.

Ele não sabia qual. Ele sempre teve dificuldade em diferenciá-los. Não era
realmente culpa dele - eram gêmeos idênticos, afinal de contas. Ambos eram quase tão
largos quanto altos, calvos como um ovo de Dodô, e usavam camisas listradas de
vermelho e amarelo combinando com macacões desbotados. Andavam descalços, no
verão e no inverno, e as solas dos pés estavam negras de sujeira e brilhantes de calos.
Olhos azuis esbugalharam por trás de óculos sem armação, enquanto mãos do tamanho
de um presunto foram plantadas em seus quadris largos.

– Shim? – Ambos tinham a língua presa, de modo que não ajudou na


identificação, também.

– Tweedle! Sou eu, Chapeleiro! – Do outro lado, ele ouviu Leonard dizer a
mesma coisa para o outro gêmeo. – Bom te ver, meu velho! Tem sido um tempo, não é?

– Chapeleiro? – Tweedledee (ou Dum) pareceu pensativo por um momento,


antes de seu rosto irromper em um largo sorriso. A fonte da língua presa de Tweedle foi
exposta no amplo espaço causado por dois dentes da frente ausentes. Seu gêmeo, claro,
tinha a mesma lacuna. Dizia a lenda que um deles perdeu os dentes em um ataque de
Capturandam, e o outro ficou tão abalado com o estrago de uma imagem espelhada que,
de outro modo, era perfeito, e que ele nocauteou seus próprios dois dentes naquela mesma
tarde. – Entre, entre! É bom para ti.

– Eu aprecio a oferta, Tweedle, mas Leonard está visitando seu irmão, e nós
temos um extra. – Ele apontou para Henry com o queixo, e soube que Leonard estava
passando pela mesma rotina com o gêmeo de Tweedle. – Nós sabemos como você se
sente sobre terceiras rodas, então talvez pudéssemos nos visitar do lado de fora, todos
nós.

Tweedledum (ou Dee) torcia as mãos do tamanho de um presunto. – Oh céus.


Três é um número ruim. Um número terrível e horrível. Afiado e pontudo. É estranho e
isso torna você perigoso.

– Sim, eu sei, mas você se lembra de Alice?

– Rainha Aliche?

– A primeira e única. Bem, o Henry é o irmão da Alice. É verdade! Juro pela


minha vida e você sabe como eu me preocupo, Tweedle. Ele até parece com ela. Isso faz
dele um duo, como você e seu irmão. Então, na verdade, seriam seis de nós lá fora.

Tweedledee (ou Dum) espiou pela porta para Henry. – Ele se parece com Aliche.
Tudo bem. Faça-o entrar. Tomaremos chá.

– Não, não. Se eu fizesse isso, só haveria três de nós aqui! – Ele apontou para
Tweedledum (ou Dee), depois para si mesmo, depois para Henry. – Um, dois, três. Viu?
Precisamos nos encontrar do lado de fora para que seja um número redondo.

Tweedledee (ou Dum) parecia confuso, apontando lentamente para si mesmo,


depois para o Chapeleiro, depois para Henry, depois para si mesmo de novo. – Eu... trêx,
você?

―Shim. Quero dizer sim. Seis. Você, eu, Leonard, seu irmão, Henry e Alice.

– Mas Aliche não está aqui.

– Tweedle, eu já expliquei isso antes. Henry é irmão de Alice. Como você e seu
irmão. Isso faz com que seja seis.
– Você ele… Aliche... – Tweedledum (ou Dee) pareceu que por um momento
sua cabeça de melão tremendo poderia explodir, o que fez o Chapeleiro considerar se ele
deveria ou não arrancar um guarda-chuva do bolso. Mas então Tweedledee (ou Dum)
pareceu chegar a uma decisão. – Ok. Isso é lógico.

O Chapeleiro escondeu o suspiro aliviado que tentou passar por seus lábios e
sorriu. – Muito bom. Devemos ir?

Todos os quatro – o Chapeleiro, os dois Tweedles e Leonard - desceram a escada


até a passarela, dirigindo-se a Henry em uma procissão imponente e precisa. Eles ficaram
em um círculo leve, olhando um para o outro por alguns minutos antes do Chapeleiro
falar novamente. – Henry, estes são os Tweedles. Tweedles, este é Henry, o irmão de
Alice.

– Princhípe Henry. Prazer em conhecê-lo. – O Tweedles falou em uníssono,


começando e terminando ao mesmo tempo. Era estranho, ou teria sido, imaginou o
Chapeleiro, se tivesse estado em outro lugar que não fosse o País das Maravilhas.

– Hum, Príncipe? – Henry olhou para o Chapeleiro.

O Chapeleiro deu um pequeno aceno de cabeça. Melhor deixar os Tweedles


pensarem o que eles queriam. Afinal, eles seriam menos propensos a rejeitar a realeza do
que os camponeses. – Sim, príncipe Henry. Está tudo bem. Os Tweedles são leais à rainha
Alice. – Ele se virou para os Tweedles. – Você são, não é?

– Oh, shim! Aliche nos salvou do corvo, você sabe! – Tweedledum (ou Dee)
exclamou.

Tweedledee (ou Dum) assentiu vigorosamente de acordo. – Nós íamos ter uma
batalha porque ele... – Ele apontou para seu irmão gêmeo – ...quebrou meu chocalho.

– Eu não! Você continua dizendo isso, mas eu não fiz isso!

– Shim, você fez!

– Não, eu não fiz! – Tweedledum (ou Dee) estendeu a mão e deu um empurrão
no irmão.
– Retire! – Tweedledee (ou Dum) retribuiu o favor, empurrando com força
suficiente para balançar seu irmão em pé.

– Meninos! – A voz de Leonard trovejou, abafando os dois Tweedles. –


Suficiente!

Ambos os Tweedles pareciam arrependidos. – Dexculpe, Sua Majestade.

– De qualquer forma. – Disse o Chapeleiro, uma vez que o silêncio desceu


novamente. – O príncipe Henry precisa de um lugar para passar a noite.

– Oh, ele pode ter a minha cama. – Disse Tweedledum (ou Dee), sorrindo seu
largo sorriso dentado.

– Não, ele pode ter minha cama. – Insistiu Tweedledee (ou Dum). Seu sorriso
combinava com o do irmão.

– Meninos, meninos. O príncipe Henry não pode ficar em nenhuma das suas
casas. Lembra? Isso faria três em cada casa. Nós passamos por isso antes. Não, o príncipe
Henry gostaria de passar a noite no seu celeiro. – O Chapeleiro apontou para um grande
celeiro vermelho que se estendia para o lado das casas.

– O celeiro? – Henry perguntou, olhando para o Chapeleiro com uma expressão


desconfiada.

– Sim, o celeiro, Sua Alteza. Lembra-se? – O Chapeleiro piscou para Henry.

– Oh! Sim, o celeiro. Nós podemos? – Henry perguntou aos Tweedles.

– Maix é claro, Princhípe Henry. – Os Tweedles responderam imediatamente,


embora ambos ainda parecessem confusos. – Nosso celeiro é o seu celeiro.

– Bom. Vejos vocês de manhã, então. – O Chapeleiro pegou o cotovelo de Henry


e, seguido por Leonard, liderou o caminho até o celeiro. Passaram por uma vaca solitária
que piscou os olhos enormes para eles e baixou suavemente. – Shh, Bessie. Há espaço
para você também, tenho certeza.

As portas duplas do celeiro eram enormes, quase do tamanho de um gigante, mas


havia uma porta menor, do tamanho de um homem, no meio da porta da direita. O
Chapeleiro abriu e levou Henry e Leonard para dentro.
O Chapeleiro riu do olhar de surpresa de Henry quando ele tirou uma lanterna
do bolso e a acendeu. Meias paredes separavam o celeiro em uma dúzia de amplas
cabines, cada uma segurando uma grande cama fofa coberta por uma colcha de retalhos
grossa. Duas vacas ocupavam duas das barracas, as cabeças e chifres dos residentes
descansando em travesseiros grossos. Um mugiu baixinho durante o sono e rolou. Outra
baia tinha uma dúzia de pequenas camas, cada uma segurando uma única galinha gorda,
todas dormindo.

– Quem coloca camas no celeiro para o gado? – Henry perguntou.

– Todo mundo. Eles não fazem isso da mesma maneira em seu mundo? O que
eles fazem... deixam os animais dormirem no chão? – Leonard e Chapeleiro riram do
absurdo disso. – Eu lhe disse que íamos dormir com as galinhas. – Respondeu Leonard.
– O que você acha que eu quis dizer? Vamos, vamos bater o feno.

Os três escolheram uma barraca e se deitaram, despindo-se no escuro e


deslizando sob grossas colchas. As camas eram macias, as cobertas eram quentes e elas
adormeceram quase instantaneamente.

De repente, o Chapeleiro estava bem acordado e olhando de olhos abertos para


a escuridão. A maldita lanterna deve ter apagado, ele pensou. Eu pensei ter ouvido algo...
ele sentou-se em silêncio, ouvindo, mas não ouviu nada a não ser o ronco de Leonard e o
mugido suave das vacas. De vez em quando uma galinha arranhava, mas fora isso, ele
não ouviu nada.

Ele estava prestes a rolar e tentar voltar a dormir, quando o barulho que o
assustara voltou. Era um som estridente, metal contra metal. Não foi o volume do som
que o acordou - o barulho não era excessivamente alto. Era o fato de não pertencer ao
celeiro. Era um barulho estranho, diferente. Metal contra metal. Como uma espada
deslizando livre de uma bainha.

O Chapeleiro saltou da cama e vestiu as roupas enquanto pulava


desajeitadamente para a baia de Henry. Ele sacudiu o ombro de Henry até que os olhos
de Henry se abriram. – Henry, acorde!
Ele correu para a barraca de Leonard e acordou o Rei Vermelho. – Sua
Majestade, eles estão aqui. Os guardas vermelhos. Eles nos encontraram.

Leonard acordou e vestiu-se antes que Henry saísse da cama. O Chapeleiro


voltou à baia de Henry e sacudiu-o novamente, depois arrancou a colcha da cama. Ele
pegou as roupas de Henry e as colocou em seus braços. – Depressa!

Assim que terminaram de se vestir, as enormes portas duplas do celeiro se


abriram, revelando uma dúzia de grandes figuras iluminadas pelo luar. A escuridão
escondeu a cor vermelha, mas o Chapeleiro sabia que estaria lá. Seus casacos, suas calças,
suas armaduras, a cor de seus cabelos e pele seriam brilhantes de vermelho-rubi. Era a
Guarda Vermelha da Rainha, e ela não teria enviado nada além do seu melhor atrás deles.

Ele se perguntou se ela sabia que seu marido estava de volta ao País das
Maravilhas. Ele só podia esperar que ela não o fizesse. Seus planos dependiam disso.
Surpresa era realmente sua única arma contra ela. Ele saberia em poucos minutos, assim
que os guardas avistassem Leonard.

Ele se perguntou como ela poderia saber que eles estavam de volta, ou onde eles
estavam. Ela deve ter tido alguém vigiando o Castelo Branco, ele pensou. Um guarda
deixado para trás para relatar se voltássemos. Se ela soubesse que nós viemos através
do espelho, ela saberia que o único lugar na área para procurar abrigo seria no
Tweedles. Ele xingou baixinho. Eu não teria acreditado que ela fosse tão inteligente. Eu
faria bem em lembrar disso. Ela é louca, não é idiota.

Ele e Henry estavam ombro a ombro, encarando os guardas. O Chapeleiro


carregou a lanterna e, depois de tirar uma caixa de fósforos do bolso, tirou um fósforo e
jogou-o contra a sola do sapato. A minúscula chama se acendeu e ele a usou para acender
a lanterna. Ele lançou um suave brilho amarelo sobre eles.

– Oi! Você, Chapeleiro! E você... er, Menino Alice. Você está preso por ordem
de Sua Majestade, a Rainha Vermelha. – O maior guarda, um gigante vermelho, explodiu.
Ele deu um passo à frente e produziu um pergaminho. – Você é acusado de desprezo
duvidoso e insultos de primeiro grau. A punição é a morte.
– Oh, querido. – Disse o Chapeleiro. – Deixe-me adivinhar como... por
decapitação?

O Guarda Vermelho fungou. – Como se houvesse qualquer outro tipo de


punição.

O Chapeleiro encolheu os ombros. – Bem, ela poderia nos aprisionar. Ela já fez
isso antes. – Ele sabia muito bem. Suas costas doíam, lembrando-se do colchão fino que
cobria o catre em que ele dormiu em sua cela por tantos anos.

– Não, suas cabeças devem rolar. Essa é a sentença. – O guarda pareceu


pensativo e moveu a espada de mão em mão. – De fato, verdade seja dita, decapitação é
a punição agora para todo crime.

O Chapeleiro estremeceu. Era pior do que ele pensava. – Você é um homem


bom, muito leal à coroa.

– Claro. – O guarda olhou para os homens atrás dele e baixou a voz. – Fazer de
outra maneira significaria que minha cabeça rolaria.

– Suponho que seria muito inconveniente. – O Chapeleiro assentiu com simpatia.

– De fato. – O guarda concordou. – Então, se você não se importar, nós


deveríamos estar nos movendo agora. Ela está esperando, e você não quer manter Sua
Majestade esperando por mais tempo do que você precisa. Ou pelo menos, eu não quero.
– Ele inconscientemente tocou a garganta e engoliu em seco, depois apontou a espada na
direção do Chapeleiro e deu um passo à frente.

– Eu ordeno que você se afaste. – A voz de Leonard gritou de trás do Chapeleiro


e Henry, ecoando no celeiro. – Eu disse: ‘Para trás!'

O guarda apertou os olhos, olhando além do Chapeleiro e Henry para as sombras.


– Quem está aí? Quem disse isso? Interferir com uma prisão real é um crime punível por
decapitação. Venha aqui onde eu possa te ver!

Com a cabeça erguida e os ombros para trás, a coluna ereta como uma flecha,
Leonard entrou na luz vestido com toda a sua elegância real. Sua coroa de ouro brilhava
na luz da lanterna.
– Q-quem é você?c– O Guarda Vermelho segurou sua espada na frente dele, e
deu um passo para trás. – U-um fantasma?

– Garanto-lhe que não sou um fantasma. Eu sou o Rei Vermelho e exijo sua
lealdade! – Leonard aproximou-se do guarda, olhando para seu longo nariz.

Ele é muito bom em intimidações reais, pensou o Chapeleiro, sorrindo para si


mesmo. Ele deu uma cotovelada em Henry e acenou para Leonard. – Veja isso? Há um
talento que só a experiência pode lhe dar. Olhe para ele. Ele os deixou intimidados com
apenas um único olhar.

Henry assentiu sem tirar os olhos de Leonard e do guarda.

– O-o rei vermelho? Mas você está morto! A Rainha Vermelha disse isso. – O
guarda estava obviamente aturdido. Ele deveria acreditar ou não deveria? Seu dilema era
óbvio em sua expressão confusa.

– Ele não parece morto. Ele está respirando, não é? – Outro guarda, apenas um
pouco menor que o primeiro, disse. Ele fungou, obviamente orgulhoso de suas
habilidades dedutivas e totalmente confiante que ninguém poderia refutar sua conclusão.

– Isso não significa nada. Pode ser que ele esteja apenas fingindo respirar. – O
primeiro guarda olhou para Leonard. – Você está? Fingindo?

– Garanto-lhe que não estou. – Leonard cruzou os braços sobre o peito. – Eu


estou vivo e bem, e respirando muito bem.

– Por que deveríamos acreditar em você? – O segundo guarda se recusou a ser


influenciado tão facilmente. – Caras mortos podem não querer dizer a verdade sobre estar
morto.

O primeiro guarda assentiu. – Ele tem um ponto aí.

O Chapeleiro decidiu que já tinha o suficiente. – Talvez, mas isso não importa.

Os guardas pareciam chocados. – O que? Claro que isso importa!

– Por quê? – Perguntou o Chapeleiro. – Por que importa se ele está morto ou
não, se ele está bem aqui na sua frente? – Ele examinou as unhas, em seguida, poliu-as
contra a lapela enquanto esperava que os guardas respondessem.
– Porque... porque... – Os guardas olharam um para o outro, suas expressões se
contorcendo em olhares gêmeos de confusão frustrada.

– Vivo ou morto, não importa. Tudo o que importa é que este é o Rei Vermelho,
e você jurou obedecê-lo. O Chapeleiro virou-se para Leonard. – Sua Majestade. Acredito
que esses guardas podem ser culpados de traição, recusando-se a aceitar sua palavra sobre
a questão de você estar vivo ou não.

O segundo guarda foi mais rápido para entender as implicações do que o


primeiro guarda foi. Ele se curvou diante de Leonard. – Oh, Sua Majestade, me perdoe.
Eu só estava seguindo suas ordens. – Ele apontou para o primeiro guarda. – Ele é o único
que realmente não acredita em você. Talvez sua cabeça devesse rolar, mas não a minha.
Você não pode colocar um homem no machado só por seguir ordens, pode?

– Ele está mentindo! – O primeiro guarda finalmente percebeu que o segundo


guarda estava tentando jogá-lo sob a carruagem. – Eu acreditei em você o tempo todo. Eu
estava... eu estava testando-o! É isso aí. Testando e ele falhou!

– Parem com isso, vocês dois! Fale mais uma palavra sobre o assunto, qualquer
um de vocês, e eu enviarei vocês dois para o Machado. Se vocês me obedecerem a partir
deste momento sem hesitação, tudo será perdoado. – Ele olhou para a tropa de guardas e
dirigiu-se a todos eles. – Como seu rei, ordeno a todos que embainhem suas armas. Sua
fidelidade foi para minha esposa na minha ausência, mas seu rei voltou. O Chapeleiro é
meu tenente e Henry, Menino Alice, é meu convidado de honra. Vocês vão obedecer ao
Chapeleiro e protegê-los tanto quanto você faria a mim. Está claro?

Os dois guardas fizeram uma saudação, e o resto dos guardas, hesitantes,


seguiram o exemplo de maneira confusa. – Sim, Sua Majestade. – Eles ficaram em
atenção, aguardando o próximo pedido de Leonard.

O sorriso do Chapeleiro escapou de seu controle. Ele jogou o braço em volta dos
ombros de Henry e acenou para Leonard. – Excelentemente feito, senhor. Vamos marchar
sobre o Castelo Vermelho agora?

Leonard retribuiu o sorriso. – Ah sim. Sim, nós devemos.


Com Leonard à frente, seguido pelo Chapeleiro, Henry e os Guardas Vermelhos,
eles começaram a jornada em direção ao Castelo Vermelho.
CAPÍTULO DEZOITO

A MARCHA fácil pegou Henry de surpresa. Ele estava esperando pântanos mais
aterrorizantes, ou atrasados, ou gigantes mal-humorados atirando canhões de doces para
bloquear seu caminho, mas em vez disso ele se viu caminhando por um caminho bem
viajado sem obstáculos à vista. A vegetação exuberante cobria os dois lados do caminho,
mas nada parecia ameaçador de forma alguma. Tudo o que ele podia ver eram árvores,
arbustos, flores e a ocasional abelha ou coelho da variedade que não usava colete. Nada
parecia ter dentes ou garras ou ser perigoso.

Foi bastante enervante. Ele ficou esperando que algo horrível acontecesse, tanto
que quando nada aconteceu, ele ficou ainda mais ansioso. Finalmente, ele não aguentou
mais a normalidade.

– Chapeleiro? – Henry agarrou o cotovelo do Chapeleiro e o puxou para uma


parada. – O que está acontecendo aqui?

O Chapeleiro piscou para ele e olhou em volta. – Onde? Eu não vejo nada.

– É só isso. Não há nada aqui - nenhum tubarão de árvore, nenhum exército de


pão de gengibre, nenhum cogumelo gigante e lagartas que fumam narguilé. É muito
quieto. Continuo pensando que algo realmente ruim está prestes a acontecer. – Henry
continuou examinando a vegetação, como se esperasse que algo surgisse para ele.

– Relaxe, Henry. Esta é a floresta neutra. Nada aqui é prejudicial... ou benéfico,


na verdade. Não há nada perigoso ou gentil, nada muito barulhento ou muito suave, muito
alto ou muito baixo. Tudo é perfeitamente médio, um meio absoluto. – Ele passou o braço
em um amplo gesto. – Olhe em volta! As folhas das árvores não são nem verdes escuras
nem verdes claras, mas sim uma sombra precisamente entre as duas. As bagas naquele
arbusto não são nem carmesim nem rosa, mas um agradável tom de vermelho. A grama
sob os pés é apenas macia o suficiente, a temperatura é quente o suficiente e o céu acima
é azul o suficiente. Nada aqui vai te machucar. Nada é capaz disso.
Henry continuou a olhar em volta, mas sabia que o Chapeleiro estava certo. E
isso, Henry percebeu ainda, era exatamente o problema. Tudo aqui era neutro ao ponto
de ser chato. Não havia nada para capturar a imaginação ou despertar a curiosidade. A
única coisa que a floresta tinha em abundância era uma grande, enorme dose acumulada
embotamento. Era tão antinatural quanto qualquer outra parte do País das Maravilhas que
ele visitou.

Ele se viu forçado a ser chato. Ele tentou gritar, mas tudo o que conseguiu foi
um tom monótono. Ele tentou correr, mas foi incapaz de se mover mais do que um passo
vagaroso. Até mesmo a escolha de palavras dele era entediante. Ele não podia xingar além
de um “raios” sincero, embora ele repetidamente tentasse. Era enervante. Ele não sabia
que tipo de magia o estava controlando, ou como conseguia fazê-lo, mas o deixou muito
desconfortável.

– Qual é o tamanho desta floresta? – Perguntou ele ao Chapeleiro. – Parece que


estamos andando... er, um tempo. Este lugar é... tudo bem. Espere. – Isso não era o que
ele queria dizer! Ele queria reclamar de quanto tempo eles estavam andando, não queria?
Sobre o quão triste a floresta era, e como era chata, mas tudo o que ele conseguia dizer
era “um tempo” e “tudo bem”.

O Chapeleiro assentiu. – É de tamanho médio, como florestas, suponho. Não


muito grande, nem muito pequena.

Como se Henry esperasse alguma coisa além de uma resposta mediana nesse
lugar mediano. Ele suspirou e resignou-se a manter o ritmo sem pressa.

Ao meio-dia, ele percebeu que as árvores estavam ficando mais esparsas, até que
finalmente o caminho se alargou em um prado largo cheio de flores de cores brilhantes.
Todos os sentidos de Henry foram atacados ao mesmo tempo, como se saindo da Floresta
Neutra, a terra mergulhasse de cabeça em modo excessivamente estimulante.

As cores eram tão brilhantes que ele mal podia olhar para elas sem seus olhos
fecharem. Idem para o sol; Ele brilhava tão intensamente que ele podia sentir sua pele
queimando através de sua camisa, e ele temia que seu cabelo pudesse explodir em chamas,
se ele não encontrasse algo para cobri-lo em breve. Embora excessivamente quente, o
vento era rápido o suficiente para que ele se inclinasse um pouco para continuar
avançando. A grama sob os pés estava rígida e áspera; elas se agarravam às pernas da
calça como cactos em miniatura. Até o canto dos pássaros parecia errado. Era alto e
chocante, e fez Henry querer tapar as duas orelhas com os dedos.

Ele plantou as duas mãos na cabeça para tentar evitar que o sol derretesse o
pouco cérebro que ele retinha e virou-se para o Chapeleiro. – Onde estamos agora? – Ele
teve que gritar para ser ouvido sobre o vento.

– Planícies do excesso. – O Chapeleiro enfiou a mão no bolso e tirou um boné


achatado, entregando-o a Henry. – Aqui, coloque isso antes que o sol cozinhe seu cérebro
em uma torta.

Henry pegou o boné com gratidão e colocou-o na cabeça. – Obrigado. Deixe-me


adivinhar... tudo aqui é demais, certo? Muito sol, muito vento, muito caranguejo, muito
de tudo. Certo?

– Você está certo demais. – Chapeleiro respondeu e riu. – Faça o que fizer, não
beba licor aqui. Uma vez eu cometi o erro de pedir uma cerveja com o Gato de Cheshire
em uma taverna localizada logo acima da fronteira ocidental das Planícies do Excesso.
Adormeci no meio do caminho e não acordei por uma semana.

– Eu vou manter isso em mente. – Respondeu Henry. Ele inclinou a cabeça para
o vento. – Ainda está longe do Castelo Vermelho?

– Não. Está do outro lado das Planícies do Excesso. Alguns dizem que é por isso
que a rainha é tão horrível. Eles alegam que o quarto dela fica de frente para as planícies,
e o vento leva o excesso de poeira para dentro dele todas as noites. Torna-a
excessivamente teimosa.

– Eles precisam explicar seu comportamento, e é uma razão tão boa quanto
qualquer outra, suponho. – Disse Leonard. Ele estava tão quieto que Henry quase
esquecera que estava com eles. – Eu gosto de acreditar que nossos problemas começaram
quando ela não conseguiu conceber uma criança, mas eu sei que não é a verdade. Muitos
casais não têm filhos por várias razões. Alguns não podem ter filhos, e alguns optam por
não os ter, mas, em ambos os casos, raramente resultam em decapitações descontroladas.
Não, minha esposa era má antes disso - apenas me recusei a ver. Eu queria tanto que ela
fosse a mulher dos meus sonhos que esqueci ou expliquei os sinais de alerta. Eu dei
desculpas para o comportamento dela até que progrediu a um ponto em que até eu não
conseguia mais ficar cego aos defeitos dela. Foi quando saí. Eu não deveria. Saí e deixei
o País das Maravilhas desprotegido da loucura da minha esposa.

– Não se culpe, Sua Majestade. Você teve dificuldades todos esses anos. Ela
voltou muito de sua agressão em você. – Disse o Chapeleiro.

– Os homens geralmente não gostam de admitir que foram abusados, pois não?
O que eu entendi é que não há vergonha em dizer isso. – Respondeu Leonard. – Eu
percebi que isso não me faz menos homem. Demorei muito tempo para poder dizê-lo, e
ainda mais antes de acreditar, e até agora apenas deixei para trás e seguir em frente.

As orelhas de Henry se animaram com a confissão de Leonard. Houve ocasiões


em que Henry teve motivos para pensar o mesmo, momentos em que o pai de Henry bebia
e usava os punhos para conversar. Henry nunca contou a ninguém, nem mesmo para
Alice. Na verdade, ele corou de vergonha, lembrando-se de como culpava Alice pelo
consumo e comportamento de seu pai. Ele tinha tudo errado. A única pessoa a quem
culpar por tudo era o pai deles. – E agora?

Leonard ofereceu a Henry um sorriso fraco. – E agora sei que a culpa é


principalmente da minha esposa. Ela era o agressor. Ela levou sua raiva para mim, tanto
verbal quanto fisicamente. Deixá-la foi a coisa mais difícil que já fiz. Foi assustador, mas
achei que era a coisa certa a fazer. Eu não tenho tanta certeza agora. Depois que eu fui
embora, ela virou sua frustração para todo o País das Maravilhas. Eu acredito com todo
o meu coração que voltar agora é além da coisa certa, a coisa responsável para eu fazer.

Era como se Leonard confirmasse os pensamentos de Henry, deixando Henry


mais leve; uma carga que ele não sabia que ele estava carregando se foi. – Eu acho que
você estava certo em ir embora quando você fez, senhor. Você não pode se culpar pelo
que a Rainha Vermelha fez ao País das Maravilhas.

– Sim. – Disse o Chapeleiro. – Senhor, você estava muito perto da situação. Você
sofreu nas mãos dela, mas não viu como ela estava afetando seus assuntos. Demorou para
colocar tudo em perspectiva.
Leonard parecia estar mais ereto e seu sorriso ficou um pouco mais ousado. –
Você está certo. Eu posso ver isso agora. Mas eu devo muito a vocês dois. Obrigado a
vocês dois. Se você não tivesse ido ao mundo de Alice, eu poderia ter me convencido a
nunca mais voltar ao País das Maravilhas.

– Eu não acredito nisso, Sua Majestade. – O Chapeleiro acenou a confissão de


Leonard com uma das mãos. – Você teria chegado à decisão certa, eventualmente. – Ele
olhou para a distância e sorriu. – Ah, olhe! Estamos chegando ao fim das planícies do
excesso.

Henry ficou emocionado. Ele teve uma introspecção excessiva o suficiente para
durar uma vida inteira. Foi incômodo e embaraçoso, e o deixou sentindo um pouco
choroso, algo que ele definitivamente não estava propenso a ser. Ele fungou e acelerou o
ritmo, ansioso para deixar as Planícies do Excesso atrás dele.

ELES CHEGARAM à uma divisão no caminho. Um caminho para o leste, o


outro para o oeste. Além da divisão estendia-se uma densa floresta escura que não
encorajava a exploração. Nada sobre a floresta parecia convidativo - não suas cores
escuras, ou galhos de teia de aranha, não as fungadas e uivos de animais invisíveis que
pareciam vir de suas profundezas. Passar por isso seria perigoso na melhor das hipóteses
e letal na pior das hipóteses. Eles precisariam tomar um caminho ou outro.

Um poste de sinalização continha dois cartazes em forma de flechas. O que


apontava para o leste dizia: “Sucesso”. O outro, apontando para o oeste, dizia: “Ruína”.

– Bem, normalmente eu acho que é óbvio que devemos ir para o leste, mas com
este ser o País das Maravilhas, eu questiono se essa seria a escolha mais sábia. – Disse
Henry.

O Chapeleiro sorriu para ele e deu um tapinha nas costas dele. – Agora você está
pensando como um verdadeiro País das Maravilhaser, meu filho! – Ele apontou para a
estrada que levava ao sucesso. Era liso e cheio de flores de cheiro adocicado e graciosas
árvores de sombra. – O sucesso nunca é um caminho tão fácil de percorrer quanto parece,
e raramente tão doce quanto se espera. Em Ruínas, no entanto, pode-se encontrar algo
que vale a pena, seja uma lição ou algo mais tangível. Veja as ruínas do Castelo Branco,
por exemplo. Tudo foi destruído, mas a única coisa que precisávamos era o espelho.

– Eu nunca realmente pensei sobre isso antes. – Henry olhou para a estrada para
Ruínas. Era cravejado de rochas, e rachaduras profundas ondulavam através dela, o que
tornava a caminhada traiçoeira. A vegetação que a margeava era marrom, murcha e
apodrecida. As árvores tortas de ambos os lados do caminho estavam sem folhas e
manchadas. No geral, parecia desolada e implacável. Ele não podia ver ninguém tomando
aquela direção voluntariamente.

O que, claro, era o ponto principal. A Rainha Vermelha não queria que ninguém
que ela não quisesse visitando o Castelo Vermelho o encontrasse. Somente aqueles que
descobriram o segredo dos caminhos iriam até lá.

– Inteligente, hein? – O Chapeleiro suspirou, soando quase admirado da astúcia


da rainha. – Inteligente, mas louco. Não pode esquecer isso. – Ele agarrou a mão de
Henry e começou a descer pelo caminho para Ruína.
CAPÍTULO DEZENOVE

O CAMINHO era tão difícil de navegar quanto o nome prometera. O Chapeleiro


tropeçou em pedras e pisou em buracos, perdendo o equilíbrio em mais de uma ocasião.
Foi muito angustiante. Ele achou ridiculamente embaraçoso parecer tão incrivelmente
deselegante, particularmente na frente de Henry. Realmente não era como ele em tudo.
Geralmente ele era bastante leve em seus pés. Na verdade, ele era conhecido por dançar
“Vórtice Galufante” tão bem quanto ninguém, o que, é claro, estava dizendo bastante, já
que ninguém era melhor dançarino do que o Chapeleiro.

Ajudou um pouco, que todos os outros estavam tendo o mesmo problema que o
Chapeleiro. Os Guardas Vermelhos, por exemplo, nunca as criaturas mais graciosas,
começaram a cair uns sobre os outros. Até mesmo Leonard teve que percorrer devagar e
cuidadosamente o caminho para evitar acabar em uma pilha indigna de veludo vermelho
e arminho. O problema era que o caminho continuava mudando com pouco ou nenhum
aviso. Olhar para o futuro para ver aonde você estava indo não adiantava nada, porque
quando seus pés alcançavam a parte do caminho que seus olhos viram, a estrada se
alterara. Os buracos apareciam e desapareciam; pedras se moviam, balançando e rolando
sob seus pés, jogando-o fora de equilíbrio.

Henry, no entanto, parecia estar se divertindo um pouco. Ele pisava de uma rocha
escarpada para outra, pulando sobre as rachaduras mais profundas da terra como uma
gazela loira. Mesmo quando uma pedra ou buraco o jogava fora de equilíbrio e ele
cambaleava, ele sorria e continuava. O Chapeleiro sorriu para si mesmo, admirando os
movimentos enérgicos de Henry e sua forma esbelta, mas claramente bem musculosa...
particularmente a última.

O corpo de Henry não era excessivamente volumoso, como os dos Guardas


Vermelhos, mas magro e esbelto, mas o Chapeleiro conhecia a força que havia no corpo
de Henry. Ele sentiu aqueles músculos duros cercando-o em um abraço, e lembrou de
todo o corpo de Henry pressionado contra o seu.

Ele nunca esteve mais feliz do que quando Henry concordou em acompanhá-los
de volta ao País das Maravilhas. Não era porque o Chapeleiro sentia que a causa era
perdida sem a ajuda de Henry - embora o Chapeleiro estivesse contente por ajuda -, mas
porque não queria se despedir de Henry. Ele queria mais tempo com Henry, mais
oportunidades para refletir sobre como ele se sentia em relação a Henry e vice-versa, e
por que era tão difícil compreendê-los nunca mais estar juntos novamente.

O Chapeleiro era um homem inteligente e experiente, e ele tinha uma ideia, por
mais absurda que fosse. Ele suspeitava que não estava apenas atraído por Henry, mas que
em algum lugar durante suas viagens juntos, na verdade, ele começou a se apaixonar pelo
Menino Alice.

Pelo menos, ele pensou que poderia ser amor. Por tudo o que ele sabia, o que ele
estava sentindo poderia ser o início de uma estranha e letal febre do pântano, algo captado
durante sua jornada mal-humorada pela Clareira do Nunca.

É assim que estar apaixonado se parece? O Chapeleiro se perguntou. Ele


realmente não tinha experiência no assunto, nada para avaliar. O amor fazia com que
alguém sentisse que tinha um cobertor quente enrolado em torno dele em um dia frio de
inverno, ou como se estivesse sendo enchido de seus pés até a linha do cabelo com suco
borbulhante, grudento e efervescente? Será que estar apaixonado fazia sentir como se sua
próxima respiração dependesse da pessoa que ele adorava estar perto deles?

Além disso, era possível que ele amasse? Poderia ser verdade? Ele, o Chapeleiro
Maluco do País das Maravilhas, Mestre Mago, amaldiçoado pelo Tempo, Conhecedor de
Chá Extraordinário, e mais recentemente a Mão Direita do Rei Vermelho? Poderia ser
possível que ele tivesse finalmente se apaixonado? Ele nunca teve antes, ele tinha certeza
disso. Então por que agora? Por que Henry?

Igualmente importante, se não mais, era a questão de saber se Henry havia


desenvolvido sentimentos por Chapeleiro em troca?
O Chapeleiro de repente engasgou e entrou em um buraco particularmente
profundo, quase caindo quando outra pergunta lhe ocorreu. Se Henry não me ama de
volta, o que então? E se o que eu suspeito que sinto por Henry for apenas unilateral? O
Chapeleiro mordeu o lábio inferior, sentindo uma dor gelada no coração. O que farei
então?

O mero pensamento de viver sem Henry fez seu estômago sentir como se tivesse
tomado uma queda longa e rápida com uma parada repentina no final. Havia opções, é
claro, mas nenhuma delas era nem um pouco atraente. Poções de amor estavam
disponíveis se alguém soubesse onde perguntar, mas elas eram notoriamente não
confiáveis. Ele odiaria usar uma e acabar sendo o interesse amoroso de um pássaro Jubjub
ou de uma Morsa, ou alguma outra criatura igualmente terrível.

De qualquer forma, ele não gostou muito da sensação de obrigar Henry a amá-
lo. Seria como se eu fosse obrigado a comer uma padaria inteira cheia de bolos, ele
pensou. Oh, as primeiras mordidas podem ser doces, mas no final, é provável que eu
esteja vomitando cheesecake de chocolate em meus sapatos.

O que ele deveria fazer? O que ele deveria dizer? Deveria arriscar confessar seus
sentimentos a Henry ou guardá-los para si mesmo? Eles estavam se aproximando
rapidamente da última parte de sua jornada juntos. Logo eles estariam no Castelo
Vermelho e, para melhor ou pior, um confronto com a Rainha Vermelha. Se o confronto
terminasse favoravelmente para eles, e suas cabeças não rolassem, então o que? E se
Henry quisesse retornar ao seu próprio mundo?

Os olhos do Chapeleiro se arregalaram com o próximo pensamento entrando em


sua mente, perto dos últimos saltos. E se Henry me deixar para trás no País das
Maravilhas e eu nunca souber se o que realmente sinto é amor ou se Henry devolve esses
sentimentos de forma igual?

O Chapeleiro supôs que poderia seguir Henry de volta para a casa de Alice
através do espelho, mas e depois? Se Henry não quisesse o Chapeleiro, não estaria melhor
do que estava aqui. Pior, porque ele estaria em um mundo estranho que ele não entendia,
sozinho. Eu também posso permitir que um daqueles monstros automobilísticos rolantes
me devore e acabe com isso, então. Ele engoliu em seco, sem saborear um futuro gasto
rolando na barriga de uma fera de metal.

Era em momentos assim que ele desejava que sua vida fosse um livro só para
que ele pudesse virar para a última página para ver como tudo acabava.

A ESTRADA para Ruína logo mostrou como ela ganhou seu nome e, como se
viu, as rochas e os buracos eram problemas menores.

A vegetação que revestia os dois lados do caminho começou a diminuir,


substituída por estruturas de todos os tipos, construídas com uma variedade de materiais.
Henry avistou cabanas pitorescas mais adequadas a uma comunidade litorânea do que
uma trilha no meio do nada, palafitas empoleiradas de gorgorão, retângulos achatados,
sem pintura, com janelas de caixilhos e arranha-céus altos e multifolhados. Os espaços
entre eles estavam cheios de cabanas rústicas, minúsculas casas de tábuas, galhos, iglus,
cabanas de colmo, e algumas para as quais Henry não tinha nome. Os edifícios eram tão
diferentes um do outro quanto os flocos de neve, com apenas um elemento em comum -
eles estavam totalmente destruídos.

Nenhuma janela estava intacta. Em vez disso, pedaços irregulares de vidro


brilhavam como adagas brilhantes no sol. Nenhuma superfície pintada estava sem riscos
ou sem ser desfigurada por pichações. Uma pintura particularmente colorida dizia: “O
tempo voa ou morre, mas nunca fica parado”. Henry olhou para o Chapeleiro de lado,
imaginando se o Chapeleiro tivera uma mão na pintura

Henry não viu uma única porta que não estivesse pendurada de forma torta nas
dobradiças, ou totalmente ausente. As paredes ostentavam grandes e pequenos buracos;
as varandas da frente caíram e faltavam degraus. Os telhados, planos e inclinados,
ostentavam buracos onde telhas haviam sido arrancadas, e grandes buracos haviam sido
perfurados por elas. O paisagismo em torno das estruturas era ou selvagem e
descontrolado ou marrom e meio morto, muitas vezes crescendo em janelas quebradas ou
portas abertas, como se a terra estivesse tentando se mudar, o mais novo inquilino de uma
aldeia agonizante.

Ao passarem, Henry viu sinais pequenos e desbotados na frente de alguns dos


prédios, a maioria com letras arranhadas: Taberna Pratos e colheres; O Restaurante de
Jack Espadilha; Chapéus da senhorita Bolinho; Pousada da Mãe Hubbard; Livraria de
Ratos e Animais; e o Leiteiro de Mary Contrary.

– Bem-vindo à ruína. – Disse o Chapeleiro. Ele apontou para os edifícios em


ruínas. – Lugar horrivelmente deprimente, e eles servem um pudim de figo incrivelmente
bom.

Henry ficou boquiaberto de queixo caído para ele. – Você quer dizer que as
pessoas moram aqui? Por escolha? Por que eles não consertam o lugar?

– Consertar! – O Chapeleiro pareceu chocado. – Pelo amor de Deus, por que eles
iriam querer fazer isso depois de terem gasto todo o tempo e dinheiro para destruí-lo tão
bem?

Henry voltou-se para as ruínas. – Você quer dizer que eles fizeram isso de
propósito? Eles gostam desse jeito?

– Claro. Ruína tem os melhores destroços do País das Maravilhas. Você não vai
encontrar melhor em qualquer lugar, eu prometo. Ora, eles foram eleitos como “O melhor
Destroço” pela Associação de Arquitetos do País das Maravilhas durante vinte anos
seguidos. – O Chapeleiro enfiou as unhas na lapela e sorriu. – Eu, é claro, tive o prazer
de experimentar o ambiente terrível várias vezes. Nem todo mundo pode dizer isso, hein?

– O Chapeleiro está certo, Henry. Só as melhores pessoas passam as férias no


pior lugar do País das Maravilhas. – Acrescentou Leonard. – Eu nem sequer fiquei aqui.
– Ele suspirou. – Talvez um dia, quando nossas tribulações atuais chegarem ao fim e eu
possa administrar um feriado.

Henry não entendia tudo, mas encolheu os ombros e atribuiu-o a algo que só um
nativo do País das Maravilhas poderia apreciar. Isso realmente não o incomodava tanto
assim. Afinal de contas, ele também não entendia mais nada nesse mundo estranho. O
País das Maravilhas quase parecia projetado para ser estranho. Se assim for, conseguiu
esplendidamente, na sua opinião.

Enquanto eles continuavam pelo caminho, ele notou que cada ruína estava
consistentemente dilapidada e em estados apropriados de aflição. Henry também viu
pessoas se movendo entre os prédios. Ele não ficou surpreso ao descobrir que os
moradores da Ruína pareciam tão decadentes e negligenciados quanto suas casas. Todos
estavam vestidos em tons de cinza empoeirados, as calças, os casacos, os vestidos e os
aventais adequadamente surrados e remendados, os sapatos usados e gastos. Ninguém
sorria ou ria; todos pareciam usar expressões tristes idênticas em seus rostos, até mesmo
as crianças.

A ruína parecia exatamente um lugar tão miserável para se viver quanto sua
aparência implicava. Ele se perguntou por que alguém escolheria morar em Ruína, então
percebeu que talvez sua residência não fosse por escolha. A rainha, por reputação, era um
tipo implacável. Era possível que ela forçasse essas pessoas a viver aqui?

Henry ficou mais impressionado com Ruína do que ele esperava ser. Parecia que
era preciso muita dedicação para que toda uma aldeia fosse tão diversa, mas tão decrépita.
Enquanto pensava sobre isso, ele se perguntou se poderia ficar morando lá. Certamente
não por um período prolongado de tempo. Pense nisso! Isso exigiria uma tremenda
quantidade de trabalho manter esse lugar. Todos os prédios, os altos, os curtos, os
compridos e os atarracados, devem ser cuidadosamente cuidados, garantindo que todas
as superfícies estivessem bem cobertas de poeira e teias de aranha artisticamente cobertas
em cada canto. Cada um deve ser arquitetonicamente sadio para não desmoronar na
cabeça de seus moradores, mas parecer tão frágil quanto uma folha de papel de seda em
uma tempestade de vento. Todos os jardins precisariam ser plantados a cada estação com
capim e musgo, e cuidadosamente podado de qualquer linda flor silvestre que possa criar
raízes. As árvores devem ser enfeitadas com mortalhas gotejantes de musgo espanhol e
envoltas em vinhas. Qualquer nova folha de desbaste deve ser arrancada e descartada.

E isso era apenas para manter a aparência externa da cidade. Os habitantes


precisariam de trabalho igual.
Todas as roupas novas precisariam ser espancadas e batidas, lavadas e relavadas
até que estivessem adequadamente desbotadas e desgastadas. Cada par de sapatos e botas
novos, desgastados até o brilho desaparecer, e novos tênis surrados até a tela se partir e
ser rasgada.

A higiene pessoal exigia atenção constante também, supôs. O cabelo nunca deve
ser uniformemente aparado, mas deixado para crescer selvagem e despenteado, não
importa o quanto o vento o enrole em emaranhados engordurados. Barbas e bigodes
devem poder crescer, por mais que coçam. As unhas ou crescerão selvagens ou mordidas,
e devem estar constantemente sujas em todos os momentos. Os sorrisos nunca devem ser
brancos, mas amarelados e de preferência faltando um dente aqui e ali.

Era realmente cansativo pensar nisso, para não mencionar totalmente


deprimente.

Henry puxou o cotovelo do Chapeleiro. – Por que essas pessoas moram aqui?
Eles parecem positivamente infelizes.

O Chapeleiro olhou para a cidade e assentiu. – Eu suponho que eles são. Eu sei
que as pessoas que nascem em Ruína frequentemente deixam de sair, e algumas que não
nascem em Ruína às vezes acabam morando lá. Há aqueles que afirmam que Ruína é
necessária para que outras partes do País das Maravilhas possam florescer. Seu
pensamento é, sem os miseráveis pobres, como pode haver os outros privilegiados? Com
quem eles se comparariam sem os que moram na Ruína?

Henry franziu a testa, pensando nisso. Não parecia certo para ele. – Você acredita
nisso?

O Chapeleiro pareceu refletir um momento antes de responder. – Eu acho que os


que dizem, acreditam nisso. O problema é que aqueles que acreditam, estão entre os ricos
e poderosos, como a Rainha Vermelha, e nós sabemos como é difícil se opor a ela.

Enquanto Henry ponderava as palavras do Chapeleiro, imaginando se Ruína


poderia se beneficiar se conseguissem derrubar a Rainha, a estrada os levou além dos
limites da cidade. Floresta novamente tomou posse dos lados da estrada quando deixaram
a cidade para trás. Enquanto andavam, ele temia que ele devesse ter ficado de pé, porque
algo interessante - e um tanto perturbador - acontecera sem que ele percebesse.

Tudo, das árvores aos pássaros que esvoaçavam entre eles, dos arbustos às
tímidas criaturas da floresta que espreitavam sob seus galhos, tudo se transformara em
uma única cor.

Vermelho. Tudo estava vermelho. Até o céu e as nuvens tinham assumido um


tom rosado. Era como se algum artista louco tivesse pintado o mundo inteiro em tons de
vermelho.

Eles haviam chegado ao território da Rainha Vermelha, e subindo a distância,


passando por algumas colinas vermelhas suavemente onduladas, sangrando contra o céu
rosa, ficava a silhueta formidável do Castelo Vermelho.
CAPÍTULO VINTE

LEONARD ergueu a mão, sinalizando para que o resto parasse. O Guarda


Vermelha da retaguarda não recebeu o memorando em tempo. Ele esbarrou no guarda na
frente dele, e aquele guarda caiu para a frente no seguinte, até que todo o esquadrão caiu
como dominós. A cota de malha e a armadura pareciam se entrelaçar, solidificando-os
juntos. Leonard suspirou e revirou os olhos.

– Precisamos passar por cima do nosso plano antes de avançar no Castelo


Vermelho. – Ele se virou para o Chapeleiro. – Qual é o plano?

O Chapeleiro piscou e olhou de lado a lado, sua expressão intrigada. Ele


finalmente apontou hesitantemente para si mesmo. – Eu? Eu não tenho um plano. Eu
pensei que você tivesse um plano.

– Eu? – Os olhos de Leonard se abriram amplamente, o choque brilhando em


suas profundezas. – Eu sou o rei.

O Chapeleiro assentiu e encolheu os ombros, como se Leonard tivesse


simplesmente concordado com ele. Tirou o chapéu e limpou a aba com o punho da manga.
– Exatamente.

– Não, não, você entendeu mal. Eu sou o rei vermelho. Eu tenho pessoas que
fazem coisas para mim, como polir minha coroa, e afofar meus travesseiros, e elaborar
planos e tal.

– Eu não tenho um plano. – Disse o Chapeleiro, parecendo um pouco confuso.


Ele se virou para Henry. – Você tem um plano?

Henry sacudiu a cabeça. – Eu não tenho um plano. Eu não saberia como começar
a fazer um.

Leonard fez uma careta para eles. – Bem, alguém tem que ter um plano.
Chapeleiro, eu ordeno que você formule um imediatamente.
– Eu? Você não pode simplesmente... eu... – Gaguejou o Chapeleiro, olhando
para frente e para trás entre Henry e Leonard, e finalmente socou o chapéu de volta e
xingou. – Bem, de todos os idiotas sujos! – Ele começou a andar de um lado para o outro,
parando de vez em quando para dar um olhar a Leonard tão sombrio e sujo que fez com
que várias moscas involuntariamente zumbissem em seu caminho para cair como
pequenas pedras, mortas. – Bem. Vamos pensar sobre isso. Não podemos invadir os
portões da frente agora, podemos? – Ele apontou o polegar na direção dos Guardas
Vermelhos, os quais ainda tentavam se desembaraçar e se levantar. – Não com esse lote.

ELES SE ATRACARAM atrás de uma parede baixa formada de pedras de


campo, espiando por cima da entrada do Castelo Vermelho. As imensas portas duplas de
madeira, ambas pintadas de vermelho, eram altas o suficiente para um gigante passar sem
precisar se abaixar e estavam fechadas, sem dúvida barricadas por dentro.

As portas, no entanto, eram o menor dos seus problemas. Chegar às portas seria
muito mais difícil do que abri-las assim que o Chapeleiro e seus amigos chegassem lá. Se
eles chegassem lá.

– Peço perdão, Majestade. – Começou o chefe da Guarda Vermelha, fazendo


uma pequena reverência a Leonard, um feito muito mais estranho pelo fato de que o
guarda já estava agachado atrás de uma parede. – O que fazemos agora?

Leonard limpou a garganta e deu outra olhada na parede. – Bem, er… suponho
que devamos entrar.

– Sim, senhor. – Disse o guarda. – Mas, hum, como?

– Por meios comuns, eu deveria pensar. Através das portas. – Leonard fez sinal
para o guarda avançar. – Você primeiro, então. Continue. Nós estaremos bem atrás de
você.

O guarda começou a se levantar, mas depois parou e afundou ainda mais do que
antes. – Eu acho que você deveria nos liderar, Sua Majestade. Vendo você na frente daria
coragem aos homens.
O Chapeleiro revirou os olhos. – Sua Majestade, parece óbvio que devemos
pensar em uma tática diferente de apenas entrar pela porta da frente como se estivéssemos
atendendo a rainha para o chá.

– Por que não? – Henry perguntou. – Não é isso que ela menos espera que
façamos?

– Eu acho que ela acredita que nós estamos mortos, na verdade. Ela certamente
não teria colocado os guardas para vigiar nosso retorno pelo espelho do Castelo Branco
se ela não achasse que nos matariam. O problema, Henry, é o fosso. – O Chapeleiro
apontou para a pequena ponte levadiça que levava às portas do castelo. Para cima, proibia
a viagem segura através dele para o castelo. Embaixo, águas barrentas se agitavam com
espuma vermelha. – Está cheio de crocodilos famintos.

– Como você sabe que eles estão com fome? – Henry perguntou.

– Porque os crocodilos estão sempre com fome. Eles são principalmente apenas
dentes e estômago, você sabe. Leva muito para preenchê-los. – O Chapeleiro sentou-se e
encostou as costas na parede. – Mesmo se conseguimos atravessar o fosso, as portas da
frente são patrulhadas por um Jaguadarte, e esse é o nosso maior problema.

Henry bufou e fez uma careta para o Chapeleiro. – Espere um minuto. Alice me
disse que um garoto matou o Jaguadarte com uma espada...

– Vorpal. Ele a matou com uma espada vorpal. – O Chapeleiro deu um tapinha
no braço de Henry. – Boa tentativa, no entanto. E é verdade, mas este é um Jaguadarte
diferente, um filhote do antigo, criado e alimentado pela mão da rainha, ou assim é dito,
e portanto especialmente vil.

– É verdade. – A voz de Leonard soava cansada e sua expressão era de desgosto.


– Ela manteve a maldita coisa na coleira quando era pequena. Levou-o para todo lado,
alimentou-o com dedos de frango e dedos do pé, e tentou deixá-lo dormir em nossa cama
até que se tornou aparente que Jaguadartes não pode ser domesticados. Não há nada pior,
digo a você, do que rolar em seu sono de cara em uma pilha de excrementos de Jaguadarte.
Ela então construiu uma pequena casa para a fera e certificou-se de que comesse as
melhores partes de quem conhecesse o Machado naquele dia. Quando cabeças rolaram,
elas rolaram direto para a boca do Jaguadarte!

– E a única coisa que pode matar é uma espada vorpal?

– Tanto quanto qualquer um sabe, é. É algo no modo como a lâmina é feita, veja
você. – Explicou Leonard. – O processo torna-o especialmente afiado e quase
inquebrável. A lâmina de vorpal é a mais forte conhecida no País das Maravilhas.
Qualquer outra coisa iria apenas se chocar contra a pele da armadura de Jaguadarte.

Henry suspirou e sentou-se ao lado do Chapeleiro. – Eu não suponho que você


tenha uma espada vorpal no seu bolso, hein?

O Chapeleiro riu. – Não. Está na minha cabeça há algum tempo encontrar uma,
mas até agora não tive sorte. Eu tenho um abridor de cartas vorpal e um conjunto completo
de facas de bife vorpal, mas espadas de vorpal são poucas e distantes entre si. – Ele deu
um tapinha na perna de Henry. – Entretanto, sendo meu eu maravilhosamente inventivo
e incrivelmente engenhoso, tenho um plano. Nós simplesmente vamos para trás.

– Para trás? – Henry levantou uma sobrancelha. – O que isso significa? Por favor,
me diga que não tem nada a ver com Etnerf! Eu realmente odiei esse lugar.

– Não, não, claro que não. Se isso acontecesse, eu estaria falando ao contrário,
não estaria? Então eu teria dito, 'vamos para a frente, o que não faria sentido. – O
Chapeleiro bateu na testa de Henry com o dedo indicador. – Bobo, menino bobo. Não,
vamos entrar, ou seja, pela porta dos fundos, que normalmente só é usada para sair do
castelo. Ele está localizado perto da masmorra, onde tive a infeliz sorte de estar
encarcerado por algum tempo.

Um largo sorriso lentamente enrugou as bochechas de Leonard. – Um plano


brilhante, Chapeleiro! Ela nunca consideraria qualquer um tentando entrar na masmorra,
ela iria? Não quando tantas pessoas passam o tempo todo tentando fugir disso!

– Exatamente! – O Chapeleiro tentou não soar tão cheio de si mesmo, mas ele
simplesmente não podia evitar. Quando ele tinha momentos de gênio como esse, ele
simplesmente não conseguia se manter dentro de sua pele, onde ele pertencia. Era
inevitável que um pouco dele escapasse. – Agora, todos mantenham a cabeça baixa.
Seguiremos esse muro até a parte de trás do castelo. – O Chapeleiro inclinou o corpo ao
meio, tentando manter sua metade superior mais baixa que a parede e sua metade inferior
mais alta que o chão. Não foi tão fácil quanto parecia.

Henry deu um tapinha nas costas do Chapeleiro. – Chapeleiro, o fosso não vai
até o fim?

– O que? Ah sim. O fosso. Claro que sim. Caso contrário, não seria um fosso.
Seria apenas um lago lamacento e infestado de crocodilos. – O Chapeleiro pôs a mão no
alto do chapéu para evitar que caísse para a frente sobre os olhos.

Mais uma vez, Henry bateu no Chapeleiro, derrubando o chapéu. – Bem, não há
crocodilos na metade traseira do fosso também?

O Chapeleiro suspirou. – Sim, mas há apenas um Jaguadarte, e está acorrentado


na frente do castelo.

Mais uma vez, o dedo de Henry cutucou o Chapeleiro. Seu chapéu desceu sobre
os olhos novamente. Estava realmente ficando muito chato. – Mas Chapeleiro, nós ainda
não temos que descobrir um caminho além dos crocodilos?

O Chapeleiro parou, sentou-se e tirou o chapéu. Ele remexeu no bolso por um


momento antes de puxar um grande rolo de fita amarela brilhante. Medindo um
comprimento, ele colocou o chapéu e usou a fita para prendê-lo na cabeça, fazendo uma
volta por toda a parte superior do chapéu e sob o queixo. – Você é feito inteiramente de
perguntas, Henry? Sério, eu começo a pensar que não há nada dentro de você, exceto
perguntas e mais perguntas, todas esperando a menor abertura de sua boca para escapar.
– Ele testou seu chapéu, e fez um pequeno ajuste até ter certeza de que iria ficar parado.
– Nós vamos lidar com os crocodilos quando chegarmos lá. Pelo menos não teremos o
Jaguadarte para enfrentar, o que era muito mais do que metade da batalha se fôssemos
pela frente. Portanto, a lógica nos diz que já ganhamos mais da metade da batalha, e aqui
está você, preocupado com alguns crocodilos.

Henry piscou e ainda parecia confuso, mas pelo menos suas perguntas haviam
cessado... no momento. Considerando que era Henry, o Chapeleiro não tinha dúvida de
que o alívio seria momentâneo. Ele grunhiu e juntou os pés embaixo dele, depois
continuou o seu embaralhamento meio dobrado, seguindo a parede ao redor da parte de
trás do castelo.

Foi uma longa caminhada, muito mais longa do que Chapeleiro se lembrava, e
ele se perguntou se a distância aumentara em sua ausência. Talvez o castelo tivesse tido
um surto de crescimento. Quando chegaram ao canto mais distante do castelo, as costas
do Chapeleiro estavam de mau humor por terem ficado agachadas por tanto tempo. Na
verdade, estavam gritando com ele. Não com palavras, lembre-se, mas com grandes
sobressaltos pontiagudos de dor que talvez fossem ainda mais eficazes do que a fala real
e o deixaram com uma sensação de mimetismo. Ele não era tão jovem quanto costumava
ser. Ou tão flexível, parecia.

Ele deu uma rápida espiada pela parede para se certificar de que não havia
Guardas Vermelhos patrulhando a parte de trás do castelo, o que, é claro, não havia. Ele
não esperava que houvesse algum. Como Leonard observou antes, ninguém jamais tentou
entrar na masmorra, apenas sair dela. Levantando-se, ele estremeceu quando sua espinha
se realinhou ruidosamente. Parecia que um punhado de pedrinhas caíam sobre um prato
de porcelana.

– Agora o que? – Henry perguntou. Ele estava se inclinando para trás, com as
mãos na parte baixa das costas, como se tentasse impedir que suas vértebras inferiores
escapassem.

O Chapeleiro removeu cuidadosamente a fita que segurava seu chapéu na


cabeça. Enrolando a fita usada, ele a colocou no bolso antes de calçar o chapéu de volta.
– Agora, atravessamos o fosso e entramos no castelo.

– E como vamos fazer isso? Eu odeio apontar isso, mas não há ponte levadiça
deste lado. – Henry gesticulou em direção ao fosso. – Duvido que nadar seja uma opção.
– Mesmo a distância da parede, as costas enrugadas dos crocodilos flutuando na água
barrenta e avermelhada eram óbvias.

– Nadar? Que ridículo! Claro que não podemos nadar. – Disse o Chapeleiro. Ele
riu e balançou a cabeça. – Realmente, Henry, o que você poderia estar pensando? – Ele
colocou uma mão em cima da parede baixa de pedra e pulou para o outro lado. – Nós
vamos caminhar.
Os olhos de Henry se abriram e ele balbuciou um pouco. – Andar! Como?

– A maioria das pessoas usa os pés para realizar a tarefa. Como isso. Observe de
perto. – O Chapeleiro apontou para as botas e colocou um pé na frente do outro. – Viu
como é feito? – Ele riu com a expressão frustrada nublando o rosto de Henry. Henry,
Chapeleiro decidiu, era positivamente adorável quando estava confuso. Ele sorriu e
curvou um dedo para Henry o seguir enquanto se dirigia para o fosso.

Henry alcançou-o. – Eu sei andar!

– Eu posso ver isso. Muito talentoso de você.

– Você está começando a me irritar, Chapeleiro.

O Chapeleiro sorriu e notou que, quando os olhos de Henry brilharam de fúria,


viram o tom mais interessante de verde-azulado. – Me desculpe. Eu nunca pretendi
sugerir que você não tinha os fundamentos da locomoção. Eu simplesmente respondi sua
pergunta. Você perguntou como íamos atravessar o fosso e eu respondi.

– Você sabe muito bem que eu quis dizer como íamos andar sobre a água, já que
não há ponte!

– Andar na água? – Leonard se meteu na conversa, sua expressão de profundo


interesse. – Você pode fazer isso em seu mundo? É impossível aqui, a menos que você
tenha um feitiço, que eu não tenha, ou que seja uma divindade de algum tipo, o que eu
não sou.

Henry se virou para Leonard. – Não, não podemos andar sobre a água no meu
mundo! Isso é ridículo!

– Então, por que sugerir isso? – Perguntou o Chapeleiro. Ele balançou sua
cabeça. – Realmente, Henry, às vezes você não faz sentido algum. – Ele apontou para o
fosso. – Vamos usar os degraus, é claro.

Henry olhou na direção indicada por Chapeleiro. – Você é maluco? Aqueles não
são degraus - são crocodilos!

– Claro que eles são. Em que você faz degraus em seu mundo? – Perguntou o
Chapeleiro.
Henry jogou as mãos para o ar. – Feito de… pedras. O quê mais?

Leonard e o Chapeleiro, e alguns dos Guardas Vermelhos perto o suficiente para


ouvir a conversa, riram.

– Pedras! – O Chapeleiro deu uma cotovelada em Leonard. Ele se virou para


Henry. – Que bem as rochas lhe fariam? Eles só afundariam no fundo da água! – Ele
apontou o polegar para o fosso. – Os crocodilos flutuam.

– Sim, eles flutuam e mordem, se você se esqueceu. – Henry apontou. – Eles vão
comê-lo se você pisar neles.

– Comerem-me? O rei vermelho? Não seja bobo, Henry. – Os olhos de Leonard


escorriam de lágrimas, e ele limpou-os com um canto da capa de veludo vermelho. – Eu
pareço o tipo que coloca crocodilos soltos em seu fosso sem ensiná-los a me proteger e
aos que estão sob sua responsabilidade?

– Uh, não, eu acho que não. – Henry parecia envergonhado e desajeitadamente


arranhou a parte de trás do seu pescoço. – Eu continuo esquecendo que tudo é diferente
aqui. Você pensaria que eu teria aprendido agora.

O Chapeleiro passou o braço pelos ombros de Henry e deu-lhe um aperto. – Tudo


bem, Henry. Você vai aprender, e se não, você me trouxe aqui para lembrá-lo. – Ele
decidiu que teria enfrentado cem crocodilos famintos pelo sorriso que Henry lhe deu em
troca.

Leonard levou-os para o fosso. Os grandes crocodilos, alguns com mais de seis
metros de comprimento, flutuavam como troncos mortais na água turva e vermelha. Suas
mandíbulas se abriram, mostrando bocados de dentes brancos longos, afiados e
brilhantes. – Agora, deixe-me pensar. Qual era a música que liga o feitiço? – Ele assobiou
algumas notas. – Não, não é isso. – Ele bateu o queixo com um dedo, então sorriu e
estalou os dedos. – Ah sim! Eu me lembro agora. Vocês vão ter que me desculpar. – Ele
disse para Henry e Chapeleiro. – Já faz um tempo desde que eu tive que usar a porta dos
fundos. – Ele assobiou novamente, baixo, depois alto, e depois de alguma forma para os
lados.
As mandíbulas dos crocodilos se fecharam como uma dúzia de portas se
fechando, e seus corpos maciços manobraram em um caminho improvisado que ia da
margem do rio até uma pequena doca nos fundos do pátio do castelo. Suas bocas
permaneceram fechadas, mas seus olhos rolavam, observando Leonard e o resto da festa.

– Muito bom, homens, er… crocodilos. Vocês devem permitir que eu e meus
convidados passemos ilesos. – A voz de Leonard era alta e autoritária. Ele apontou um
dedo para um dos maiores crocodilos do grupo. – Isso vale para você também, Ervilha.
Tire um pedacinho de alguém, e vou fazer um par de botas. Veja se eu não sei.

O crocodilo revirou os olhos e bufou, mas a boca permaneceu fechada.

Leonard olhou para Henry e Chapeleiro. – Ele comeu um Guarda Vermelha na


última vez que passamos. Apenas um pequeno, é verdade, mas na verdade, eu não posso
ter meus degraus comendo meus guardas, independentemente de quão grandes eles sejam.
– Ele deu um tapinha no ombro de Henry. – Oh, não fique tão apavorado, Henry. Eu
reforcei o feitiço desde então. Agora vamos embora, antes que minha esposa descubra
que estamos aqui.

Arrastando a parte de baixo da capa sobre a dobra do braço, Leonard pisou com
cuidado na parte de trás do crocodilo mais próximo, depois saltou para o próximo, e assim
por diante, até que finalmente chegou ao cais. Ele se virou e fez sinal para o Chapeleiro
e Henry. – Vamos, pare de chorar!

O Chapeleiro pegou a mão de Henry. – Pronto?

– Na verdade não. – Disse Henry, olhando para os crocodilos cheios de dentes.


– Mas eu suponho que não temos escolha.

– Vai ficar tudo bem. Confie em mim. – Disse o Chapeleiro. – Eu já te guiei


errado?

Henry afastou a mão dele. – Sério? Você quase me deixou doido na Colina
Picante, explodiu nas Montanhas Confecção, comido pelos tubarões-das-árvores na
Clareira do Nunca, e nem vamos falar sobre...

– Tsc-tsc. – Disse o Chapeleiro, colocando um dedo sobre os lábios de Henry,


efetivamente silenciando-o. – Quase só conta na luta de unicórnios e na isca de
Capturandam. Você está de pé aqui, todo em um só pedaço, nada pior para o desgaste,
não é?

Henry bufou, o que fez o Chapeleiro tirar a mão, passando os dedos na frente do
casaco. – Ai credo. Eu faria bem sem um punhado de seu ranho, Henry, muito obrigado.

– Então não coloque a mão debaixo do meu nariz. – Henry deu de ombros e
sorriu, seus olhos brilhando.

O Chapeleiro não pôde deixar de devolver o sorriso de Henry. – É uma coisa boa
que eu gosto de você.

– Sim, bem, eu também gosto de você.

O Chapeleiro se perguntou por que aquelas palavras o fizeram sentir como se


pudesse voar através do fosso. Uma pequena voz em sua cabeça sussurrou, porque você
está feliz que ele gosta de você, já que você está começando a sentir mais por ele do que
a simples amizade.

Ele sorriu mais largo, e não se incomodou em fingir que discordava de si mesmo.

De mãos dadas, eles atravessaram as costas dos crocodilos e alcançaram o outro


lado sem que nenhum dos dois recebesse um olhar sujo de qualquer um dos crocodilos.

O guarda os seguiu, um por um. Ervilha se comportou direito até o último guarda
que estava cruzando. Então ele ergueu a grande cabeça para fora da água e bateu na bota
direita do guarda.

O Chapeleiro podia jurar que Ervilha estava rindo quando o guarda soltou um
grito horripilante e perdeu o equilíbrio. Girando os braços, o guarda caiu para trás na
água. Em meio a muitos respingos e xingamentos, o guarda conseguiu nadar até o cais e
seus colegas guardas o tiraram da água.

Leonard balançou o dedo para Ervilha novamente, mas estava rindo demais para
admoestar o crocodilo. Em vez disso, ele tentou controlar suas risadas enquanto
caminhava até a porta do castelo.
Era uma pequena porta, ao contrário das gigantes e ricamente esculpidas portas
na frente do castelo. Aquelas eram para mostrar; estas era puramente para uso ordinário.
Estava trancada, mas se abriu com o som da voz do Rei Vermelho.

Abrindo-o, Leonard conduziu todos eles para dentro do Castelo Vermelho.

Agora, nada ficava entre eles e a Rainha Vermelha. Era hora do espetáculo.
CAPÍTULO VINTE E UM

Uma vez dentro, o grupo se encontrou na masmorra do Castelo Vermelho.


Parecia tão sombrio, sujo e sem esperança quanto Henry imaginava que as masmorras
seriam. Nada estava limpo; não os pisos, as paredes, as barras, as celas, nem os poucos
prisioneiros que viram nos recessos escuros dos cubículos úmidos e estreitos. O cheiro
era positivamente nocivo, espesso com o fedor de feno mofado, comida rançosa e outros
odores melhor deixados não identificados. A maioria dos internos parecia tão ruim quanto
as celas e, a julgar pelo comprimento de suas barbas, como se estivessem ali há muito,
muito tempo. Henry até comentou sobre isso com o Chapeleiro.

O Chapeleiro sacudiu a cabeça. – Oh, eu posso dizer que eles não estão aqui há
muito tempo. Aqueles são Pelosface32, de uma vila no nordeste. Grupo engraçado de
pessoas. Todos na sua tribo têm barba, até as mulheres e crianças, exceto os bebês mais
novos. Eles usam suas barbas como moeda. Precisa comprar um novo par de botas? Solte
uma ou duas polegadas do seu bigode para pagar por elas. O vendedor trança aquele
pedaço de cabelo em sua própria barba, tornando-a mais longa e mais cheia e, portanto,
mais rica. Além disso, durante o meu infeliz encarceramento aqui, eu era o único
prisioneiro. Eles devem ter vindo depois que eu saí. Engraçado isso. A rainha geralmente
não se incomoda com sentenças de prisão problemáticas, quando um rolar rápido de
cabeça serve.

Um dos prisioneiros magros e peludos veio até as barras de sua cela, olhando
atentamente para eles. – Abençoe minha barba! Pode ser? Isso é realmente… é! – Ele
virou a cabeça e assobiou para seus companheiros de prisão. – Dê uma joelhada e mostre
algum respeito pelo nosso rei! – Ele mergulhou em um joelho, inclinando a cabeça. Sua

32
Furface.
longa e cheia barba roçava o chão, recolhendo pedaços de poeira como um esfregão. –
Sua Majestade! Todos pensamos que você estava morto!

Leonard se aproximou e acenou formalmente para o homem barbado. – Por


favor, fique de pé. Como você pode ver, eu ainda estou entre os vivos. Estive em férias
sabáticas nos últimos anos, estudando matérias de grande importância e relevância para
todo o País das Maravilhas. – Leonard lançou a Chapeleiro um olhar de advertência, como
se o alertasse para não dizer nada em contrário. Pela primeira vez, o Chapeleiro aceitou a
sugestão e permaneceu em silêncio. – Diga-me, como os homens da Tribo Pelosface
vieram à ficar na minha masmorra?

O primeiro homem peludo falou. – Eu sou o Barba de Pescoço, Ancião Tribal.


Desculpe, senhor, mas foi sua esposa quem nos colocou aqui. A rainha nos considerou
culpados de traição e nos condenou ao machado. O Machado, no entanto, estava sem
corte devido ao recente uso excessivo, e fomos colocados aqui até que estivesse
suficientemente afiado novamente.

As sobrancelhas grossas e pálidas de Leonard se ergueram. – Eu nunca soube


que a Tribo Pelosface fosse a causa de dificuldades antes. O que você fez para ser
considerado culpado de um crime tão hediondo?

– Ela... – O rosto de Barba de Pescoço - o pouco que podia ser visto sob seus
pelos faciais - empalideceu, e lágrimas vieram aos seus olhos. – Oh, foi horrível, Sua
Majestade! Ela ordenou que nós, o povo Pelosface do Norte... nos barbeássemos!

Os homens atrás dele gemeram em voz alta como se sentissem dores e juntaram
as barbas, segurando-as protetoramente nas mãos.

– Grande Deus! – Leonard engasgou e pôs a mão no peito. – O que ela estava
pensando? Seria mais fácil fazer com que o Gato de Cheshire mudasse as suas listras do
que convencer um Pelosface a raspar a barba! Eles são parte de quem você é, como a cor
dos seus olhos, ou a forma dos seus ouvidos. Como se atreve a condená-los pelo simples
ato de ser como a Natureza queria que você fosse? – Ele se virou para o Chapeleiro e
Henry. – Isso sela isso. Não posso mais duvidar da incompetência da minha esposa. Ela
é uma ameaça e perigo para todos no País das Maravilhas que eu não posso e não vou
tolerar por mais um momento.
– Oh, Sua Majestade! Eu sabia que você não abandonaria o seu povo! – Barba
de Pescoço arrancou uma mecha de cabelo de bom tamanho, estremecendo ao fazê-lo. –
Por favor, aceite este pequeno sinal de nosso apreço. – Ele estendeu-o para Leonard, que
graciosamente aceitou o cacho de cabelos prateados e enfiou-o em um bolso.

– Seu presente é generoso, assim como o seu espírito. – Leonard tocou a


fechadura da porta da cela, que imediatamente se abriu. – Por ordem do Rei Vermelho,
você e seus homens estão livres, Barba de Pescoço. Vá em paz, e saiba que sua tribo
estará a salvo de toda e qualquer tesoura, e mantida em alta estima pelo Trono. – Ele se
voltou para o Chapeleiro e Henry. – Vou dizer aos crocodilos que permitam que Barba
de Pescoço e seus homens cruzem o fosso com segurança. Então vamos encontrar minha
esposa e resolver esse absurdo de uma vez por todas!

Henry observou os Pelosface enquanto seguiam Leonard pela porta dos fundos
e distraidamente esfregou a penugem no próprio queixo. Imagine, condenando alguém
por simplesmente se recusar a fazer a barba! Não fazia sentido para ele. Qual era o motivo
da Rainha Vermelha em meter o nariz nas barbas dos Pelesface? Ninguém estava dizendo
que ela tinha que ter uma também.

Pessoalmente, ele estava com um pouco de ciúmes dos Pelosface. Segundo o


Chapeleiro, até as crianças da tribo tinham barba. Ele sempre pensou que ele gostaria de
ter uma, um cavanhaque, talvez, ou pelo menos um bigode agradável e cheio.
Infelizmente, era difícil para ele crescer algo mais do que um pó esparso em suas
bochechas, e quando ele fez, era tão vermelho-claro-loiro que era quase imperceptível.
Ele raspou mais por uma questão pelo barbear do que qualquer necessidade real, embora
nunca admitisse isso. Sua falta de pelos faciais era um ponto dolorido para ele, e ele estava
mais do que com inveja das barbas grossas dos Pelesface.

Até mesmo o Chapeleiro tinha um sombrio e escuro restolho sombreando sua


mandíbula. Não era espesso o suficiente para Henry chamá-lo de barba, mas também não
era escasso ou irregular. Na verdade, agora que Henry pensava nisso, a barba por fazer
do Chapeleiro combinava perfeitamente com ele, e fazia o Chapeleiro parecer um
pouquinho perigoso e selvagem.
– Há quanto tempo você esteve na masmorra, Chapeleiro? – Perguntou ele, como
uma maneira de se distrair da noção tentadora de tocar as bochechas do Chapeleiro e
sentir aquela barba por fazer na palma da mão. Ele quase se arrependeu de ter perguntado
quando o sorriso do Chapeleiro caiu e o cenho franziu.

– Muito tempo. – Ele pareceu considerar a pergunta um pouco. – Há quantos


anos Alice voltou ao seu mundo depois de sua segunda viagem ao País das Maravilhas?

Henry pensou por um momento. – Ela tinha sete anos e meio, acho, e agora tem
vinte e dois anos. São quatorze anos e meio. Eu tinha apenas dois anos e meio quando ela
voltou. Eu cresci ouvindo suas histórias do País das Maravilhas.

A voz do Chapeleiro era muito suave. – Quatorze anos e meio? Pareceu muito
mais tempo.

Henry se virou para ele, com a boca aberta em choque. – Você foi trancado aqui
por tanto tempo? Alice disse que você já era adulto quando ela conheceu você na Festa
do Chá. Quantos anos você tem?

Um pequeno e triste sorriso levantou os lábios do Chapeleiro. – Mais velho que


ontem e mais novo que amanhã.

– Vamos lá, Chapeleiro. Eu preciso de uma resposta melhor do que essa.

– Você? – Chapeleiro suspirou. – Eu suponho que você está certo. A verdade é


que não sei. Eu tinha vinte anos quando a rainha me achou culpado de assassinar o Tempo,
e o tempo me amaldiçoou na infindável Festa do Chá. Eu realmente não sei por quanto
tempo estive lá, mas quando eu escapei, todos que eu conhecia pareciam muito mais
velhos para mim, e sabemos que 14 anos e meio se passaram desde a última visita de
Alice. O problema é que eu não envelheci nada. Eu não posso. Mesmo que eu tenha
escapado da Festa do Chá, o tempo não levantou sua maldição. Eu vou ter vinte anos para
sempre.

– Bem, isso é legal, não é? Nunca envelhecer?

– Você pensaria assim, não é? Eu também pensava assim, no começo. Eu tive


tempo de considerar o assunto, e não acho a proposta tão maravilhosa, afinal. Henry, há
uma razão pela qual é chamada de maldição. Eu não vou mudar, mas eventualmente,
todos que eu conheço e amo envelhecerão e morrerão, e eu ficarei aqui sozinho. Vou
conhecer novas pessoas, suponho, e começar a amá-las, talvez, mas depois vou perdê-las
para o Tempo e para a morte também, de novo e de novo, para sempre.

O verdadeiro alcance da maldição do Chapeleiro atingiu Henry como um soco


no estômago, e ele engasgou. Ele espontaneamente jogou os braços ao redor do
Chapeleiro, dando tapinhas nas costas, embora não soubesse se estava consolando o
Chapeleiro ou a si mesmo. Ele não pôde evitar. O Chapeleiro parecia tão incrivelmente
triste, lamentava ter trazido o assunto à tona. Que horrível ver todos que você ama
envelhecer e morrer! O Chapeleiro nunca encontraria alguém com quem envelhecer
porque o Chapeleiro nunca envelheceria. – Sinto muito, Chapeleiro.

O Chapeleiro inclinou-se para ele por um minuto, apoiando a bochecha no ombro


de Henry antes de se afastar. – Você não tem por que. Está tudo bem. Eu quase me
acostumei com a ideia. – O sorriso que ele tentou convocar foi tão triste e resignado que
só fez Henry se sentir pior, no entanto.

O Chapeleiro apontou para a terceira cela à sua esquerda. – Aquela foi minha.
Gah! Eu esperava nunca mais ver isso novamente. – Ele riu, mas Henry não achou que
ele parecia muito divertido.

Leonard voltou de guiar os Pelesface e ficou esperando em um arco de pedra. –


Vamos, anime-se agora, Chapeleiro. Você é livre e eu vou ter certeza de que você nunca
mais verá o interior de uma cela.

Leonard desapareceu pelo arco e eles correram para alcançá-lo. – Obrigado, Sua
Majestade. – Disse o Chapeleiro. – Isso vem como um alívio.

– Eu que o diga. – Acrescentou Henry. Ele estremeceu, pensando em si mesmo


forçado a passar algum tempo em uma das celas apertadas e imundas. Ele duvidava que
as prisões em seu próprio mundo fossem muito melhores, e prometeu a si mesmo que
quando voltasse - se voltasse - não infringiria a lei. Não mais do que atravessar a rua fora
da faixa. Não havia como ele ir para a prisão se tivesse algo a dizer sobre isso, não em
seu próprio mundo e definitivamente não neste.
Eles se viram em pé em um corredor estreito. As paredes eram sebes altas,
crescidas a muitos metros acima da cabeça do mais alto do Guarda Vermelhos. Eram
paredes espessas e impenetráveis de verde, cheias de muitos espinhos longos e afiados.
Olhando para cima, Henry percebeu que ele podia ver o céu. As sebes eram cultivadas
em algum tipo de pátio aberto dentro das muralhas do Castelo Vermelho.

– Ah, o Grande Labirinto de Sebe. Eu sempre amei fazer longas caminhadas lá


dentro. Tão pacífica. – Leonard sussurrou. – Uma vez me perdi por mais de uma semana.
Foram os melhores sete dias do meu casamento na memória recente.

– Nunca tema. – Disse o Chapeleiro. Ele remexeu no bolso, retirando vários itens
- uma caneca, uma moldura fotográfica e o guarda chuva que Henry lembrava da fuga do
Formigueiro Vermelho - e os entregou a Henry para segurar, antes de puxar um pedaço
de papel dobrado. O papel parecia velho, vincado e amarelado com a idade. Ele
cuidadosamente desdobrou-o, segurando-o na frente dele.

Henry fez malabarismos com os itens que o Chapeleiro lhe entregara quando se
inclinou para ver o que era o papel. Era um mapa.

– Eu sempre soube que isso viria a calhar. – O Chapeleiro apontou para uma seta
no mapa, que ostentava grandes letras brancas que diziam: “Você está aqui”. – Só
precisamos seguir este mapa para passar pelo labirinto.

– E se não estamos aqui, onde a flecha está apontando? – Henry perguntou,


tocando o local no mapa com o dedo. – E se estamos em outro lugar?

– Absurdo. Pense nisso. Não importa onde estivéssemos, estaríamos lá, o que, é
claro, faria isso aqui para nós, não é? – O Chapeleiro estalou a língua. – Realmente,
Henry, eu pensei que você entenderia o País das Maravilhas um pouco melhor agora.

Ele estava certo, é claro. Henry deveria ter sabido melhor do que perguntar. Era
muito mais fácil no País das Maravilhas apenas seguir o fluxo e não examinar as coisas
de perto. Na verdade, agora que ele pensava sobre isso, ele pensou que poderia ser o que
fazia todo o trabalho mágico - você tinha que acreditar que o mago estava realmente
tirando um coelho de um chapéu vazio. Sem acreditar, era apenas um cara louco com uma
cartola e um coelho de estimação.
Foi isso que tornou Ruína uma realidade? As pessoas acreditaram que alguém
precisava viver na Ruína para que os outros pudessem aproveitar mais? Se fosse, ele não
achava que estava certo. Parecia algo que a Rainha Vermelha poderia ter inventado, um
plano que não era um plano, mas uma outra maneira de punir as pessoas e mantê-las sob
seu calcanhar. E as pessoas de Ruína? Por que eles ficaram? Eles também acreditavam?

Ele arquivou as perguntas para refletir sobre isso algum tempo depois, e voltou
sua atenção para o labirinto em si. Seu olhar percorreu os lados frondosos e viu espinhos
pontiagudos que cobriam as paredes verdes dos arbustos grossos. Isso lembrou muito a
Henry do covil da lagarta. Talvez as sementes da sebe da lagarta tivessem semeado as
que formavam o labirinto, ou vice-versa. Em ambos os casos, não havia chance de ele
abrir um atalho através das paredes sem se espetar.

Ele percebeu que o grupo já estava marchando e correu para alcançar o


Chapeleiro. As voltas e reviravoltas dentro do labirinto enquanto o Chapeleiro
corajosamente os guiava através dele, seguindo o curso marcado no mapa, logo fez a
cabeça de Henry girar. Ele tentou acompanhar, mas rapidamente ficou tão perdido que
não tinha ideia de onde estava ou como refazer seus passos, se necessário. Confiar no
mapa do Chapeleiro para guiá-los era tudo o que ele podia fazer, e ele esperava que sua
crença fosse forte o suficiente, e que sua fé não fosse deslocada, especialmente quando
ele viu uma caveira cinzenta empoeirada sobre uma pilha de ossos em um canto do
labirinto.

Nem todos os que entraram no labirinto, evidentemente, saíram novamente. Ele


teve que se perguntar quantos outros encontraram suas mortes vagando pelos corredores
estreitos de verde verdejante, e fez uma oração silenciosa para que ele não estivesse entre
eles.

Seu medo revelou-se desnecessário em breve, pois, depois de contornar outra


esquina numa linha aparentemente inesgotável de zigue-zagues, viu um arco esculpido
no centro de uma parede alta e verde. Além disso, tudo o que ele conseguia ver era uma
paisagem abençoadamente larga e plana.

Eles saíram do labirinto, e todos respiraram aliviados, até mesmo o Chapeleiro,


que depois confidenciou a Henry que não estava tão confiante em seu mapa quanto ele
dizia estar. – Afinal, o mapa, – Explicou Chapeleiro, – foi desenhado por um elfo que era
muito menos confiável do que a maioria das pessoas e muito mais inebriado do que
alguns. Pelo que eu sabia, talvez não fosse um mapa para o labirinto, mas um detalhado
desenho do canal auditivo interno de um hipopótamo.

Henry ficou muito feliz pela confissão do Chapeleiro ter vindo depois que eles
saíram do labirinto.

Leonard passou por eles e sorriu. – Eu sempre amei essa parte do jardim. Um
empolgante jogo de xadrez era exatamente o que eu precisava nos dias em que minha
esposa se ocupava em tornar minha vida miserável.

Henry olhou para baixo, para o gigantes quadrados vermelhos e brancos


alternados pintados na grama, e depois para as peças de xadrez em tamanho natural que
ficavam em duas linhas majestosas de cada lado do tabuleiro. Cada peça era uma topiaria
- um arbusto, cuidadosamente aparado e recortado em formas - os reis e rainhas, os bispos,
os cavaleiros em seus cavalos, as torres e os peões. Todos parados em absoluto silêncio,
sem nenhum indício de vida sobre eles. Todos pareciam tão maciços e pesados, o peão
mais curto em pé, muito mais alto do que Henry, que se perguntava como alguém poderia
manobrá-los através do tabuleiro de xadrez do tamanho de um campo. Ele decidiu
perguntar, então imediatamente deu um chute mental na cabeça assim que as palavras
passaram por seus lábios, já que ele realmente deveria ter sabido melhor. A resposta foi
a mesma que sempre recebia quando ele fazia perguntas ridículas, mas já era tarde demais.
Ele não conseguia mais puxar as palavras de volta para sua boca do que rescindir um
peido uma vez solto.

– Como mais? – O Chapeleiro respondeu com um encolher de ombros. – Magia.

– Claro. Que estúpido de minha parte. – Henry suspirou, pegou uma folha de
uma topiaria de um cavaleiro e a ergueu diante dos olhos, examinando-a. Parecia uma
folha comum, verde e em forma de ponta de flecha. Cheirava verde também, ou teria
cheiro de verde, ele imaginou, se as cores tinham odores. O verde cheiraria assim, como
um dia quente e preguiçoso de verão.

Esta folha em particular era idêntica a qualquer uma de um milhão de folhas que
ele tinha visto em árvores em seu próprio mundo, completamente normais, exceto que ele
realmente acreditava que esta era imbuída de algum tipo de magia mística e incognoscível
que lhe permitiria mover-se quando jogador deu uma ordem. Por que ele não deveria
acreditar? Não era mais estranho do que qualquer outra coisa que ele tinha visto no País
das Maravilhas. – Cavaleiro para F3. – Ele murmurou, jogando a folha de lado.

Houve um estrondo sob seus pés, que lembrava um ligeiro terremoto, e um


farfalhar soou no ar como se um forte vento soprasse através das árvores. Então a topiaria
do cavaleiro a seu lado cambaleou para a frente. O cavalo do Cavaleiro saltou no ar, os
cascos do cavalo arrastando raízes longas e irregulares, navegando sobre a cabeça de um
peão e aterrissou exatamente onde Henry o havia dito, no quadrado F3 do tabuleiro.

– Henry! – Leonard estalou a língua. – Realmente, não temos tempo para jogar.
Agora, coloque o cavaleiro de volta e vamos em frente.

Henry ficou boquiaberto com o Cavaleiro por um momento - que parecia


estoicamente à frente, imóvel, como se fosse feito de pedra em vez de arbustos - e então
sorriu. É a crença. Ele concluiu. Eu acreditava que a peça iria se mover e aconteceu!
Esse é o segredo do País das Maravilhas. Acreditar. É o que alimenta a magia. Ele se
sentiu muito satisfeito consigo mesmo e presunçoso, como se tivesse descoberto um
grande segredo.

Talvez ele tivesse. Ele certamente se sentia mais confortável no País das
Maravilhas agora que acreditava, do que antes, quando passava todo o tempo
questionando e duvidando de tudo ao seu redor. Seu sorriso ainda estava em seu rosto
quando ele passou pelo Cavaleiro e disse: – Cavaleiro para o G1. – Ele mal notou o
Cavaleiro saltando de volta sobre o mesmo Peão para seu quadrado original, como se
topiarias saltitantes fossem tão comuns quanto moscas domésticas.

Não havia mais tempo para refletir sobre a magia, ou crença, sobre a natureza da
Ruína, ou sobre qualquer uma das inúmeras outras questões que rondavam na mente de
Henry depois que sua descoberta recém-descoberta se encaixou. Todo o grupo,
Chapeleiro, Leonard, Henry e os Guardas Vermelhos, todos pararam completamente
depois que passaram pelo lado mais distante do tabuleiro de xadrez.

Diante deles havia uma longa faixa de grama, não muito larga, mas bastante
exuberante e cravejada de postigos de croqué. No outro extremo, um bando de flamingos
cor-de-rosa salpicava, cada pássaro descansando confortavelmente em longas e finas
pernas negras. Seus pescoços longos e graciosos se enrolavam sobre as costas, com as
cabeças bem arrumadas sob as asas.

Um leve ruído os despertou e eles ergueram os olhos quando Henry, Chapeleiro,


Leonard e os guardas se aproximaram, mas logo voltaram a cochilar quando ficou
evidente que ninguém queria um jogo de croqué.

O Chapeleiro se afastou do grupo e correu para um plantio próximo de arbustos.


Henry franziu a testa enquanto observava o Chapeleiro cair de joelhos e começar a fuçar
entre as raízes sob os arbustos.

– Sim! Eu encontrei você! – O Chapeleiro levantou-se, segurando algo longo e


fino em seus braços. – Eu pensei que você estivesse perdido para sempre!

Henry viu uma esfera azul brilhante brilhar em uma extremidade do item. – O
que é isso, Chapeleiro?

– Minha bengala! – O Chapeleiro sorriu e segurou-a. Era esculpida em madeira


escura e oleosa e coberta com um diamante azul cintilante do tamanho do punho de
Henry.

– Bem… bom. Estou feliz. – Henry piscou.

– De fato! – O Chapeleiro parecia estar em um clima muito mais alegre. Ele


voltou para Henry e ergueu a bengala como um tambor principal que liderava um desfile.
– Avante!

Apenas do outro lado do gramado de croqué, a área do pátio aberto terminava.


Na parede vermelha do castelo, eles avistaram outra porta.

Henry deu um tapinha no braço do Chapeleiro. – Para onde essa porta leva?
Outra masmorra? A cozinha?

– Não, receio que não. – O Chapeleiro pegou a mão de Henry e apertou-a. – É


isso, Henry. O final da nossa jornada. Além dessa porta há um corredor que leva à sala
do trono.
Henry não achava que ficaria especialmente assustado ou nervoso quando
chegassem ao seu destino final, não quando estiveram caminhando tanto tempo, por
estradas com tantos desvios perigosos que fizeram a cabeça dele girar. Agora que haviam
chegado ao Castelo Vermelho e sua presa esperada lá dentro, ele sentiu o batimento
cardíaco acelerar e um suor frio molhar a testa. Era isso! Mais um momento ou dois e ele
ficaria cara a cara com a Rainha Vermelha. Depois de ouvir todas as histórias sobre ela,
ele estava convencido de que ela era a criatura mais sinistra, desprezível e perigosa que
conseguia respirar, e o iminente encontro deles cara a cara o deixava fraco nos joelhos. A
Rainha Vermelha era uma mulher que condenava as pessoas a morrer com a mesma
facilidade com que outras pessoas golpeavam moscas incômodas. Será que ele seria capaz
de se opor a ela com o Chapeleiro e Leonard, ou ele se desonraria fugindo?

CAPÍTULO VINTE E DOIS

LEONARD SINALIZOU para um dos Guardas Vermelhas para abrir e segurar


a porta para que ele e o resto do grupo pudessem entrar no castelo propriamente dito. Era
mais escuro do que o ensolarado pátio aberto, embora muitas velas acesas em arandelas
de parede projetassem ao vestíbulo uma luz adequada. Mesmo assim, mal conseguiam
distinguir as formas de dois homens enormes diante deles enquanto seus olhos se
ajustavam.

Dois imensos Guardas Vermelhos bloquearam o caminho, com as espadas


desembainhadas. – Pare! Quem vem lá?

– Quem vem aonde? – Perguntou Chapeleiro. – Lá ou aqui? Estamos todos bem


aqui, mas vocês dois estão lá. Você realmente deve ser mais específico.

Os guardas se entreolharam. – Uh, aí. Bem ali. – Ele apontou a espada para os
pés do Chapeleiro.
– Aqui mesmo? – Perguntou o Chapeleiro, apontando para o mesmo lugar. – Isso
não está lá. Está aqui. Você está propositadamente tentando nos confundir?

O primeiro Guarda Vermelho pensou. Observá-lo tentando dar sentido a isso era
positivamente doloroso. Finalmente, ele pareceu encontrar uma solução. – Tudo bem,
então, quem vai aqui? Isto é melhor?

Chapeleiro encolheu os ombros. – Se por 'aqui' você quer dizer lá onde você está,
então não. Por outro lado, se por 'aqui' você quer dizer aqui onde estamos, então sim, é
melhor. Para responder sua pergunta, nós vamos aqui.

– Quem é você? – Gritou o Guarda Vermelho. Ele parecia bem confuso e meio
confuso, e continuou se voltando para o segundo Guarda Vermelho em busca de ajuda.
O segundo não parecia entender o que o Chapeleiro estava falando também, então não
tinha absolutamente nenhum valor para o primeiro.

– Receio que 'quem' não é meu nome. Na verdade, não conheço ninguém
chamado 'Quem'. – O Chapeleiro virou-se para Henry. – Você conhece alguém chamado
Quem? – Ele se virou para o guarda. – Não há quem aqui.

– Oh, Chapeleiro, desista de confundir meus guardas. – Leonard riu quando


passou pelo Chapeleiro e ficou na frente dos dois guardas. – Eu sou o Rei Vermelho.

Talvez os dois guardas fossem leais a Leonard, ou então estavam tão aliviados
de não ter mais que tentar descobrir a conversa dupla do Chapeleiro que se ajoelharam e
abaixaram a cabeça. – Senhor! Nós pensamos que você estava morto!

– Sim, isso parece ser um equívoco popular. Eu não estou, como você pode ver.
Nem um pouco. Nunca estive. – Leonard fez sinal para que eles se levantassem. – Estou
aqui para destronar minha esposa.

Os dois guardas soltaram um suspiro horrorizado em perfeita harmonia em duas


partes. – Você tem certeza, Sua Majestade? Você parece estar indo tão bem sem estar
morto, e ainda tem a cabeça presa aos ombros e tudo mais. Seria uma pena você se
levantar agora.
Leonard sacudiu a cabeça. – Eu aprecio sua preocupação, mas eu me decidi. O
reinado de terror da Rainha Vermelha deve terminar. Venham agora. Caiam atrás dos
outros. – Ele apontou para os guardas que estavam com eles desde o Castelo Branco.

Os dois novos guardas olharam para seus companheiros, depois um para o outro.
– Isso é uma ordem, senhor?

Leonard cruzou os braços sobre o peito. – Sim. É uma ordem.

Não pareciam inclinados a acreditar que Leonard os estava comandando ou, mais
provavelmente, esperavam que não fosse o caso. – Isso é uma ordem oficial, senhor, ou
é mais como um pedido?

Leonard fez uma careta para o guarda. – É uma ordem oficial. Um comando. Ele
suspirou e revirou os olhos quando o guarda ainda hesitou. – Faça isso agora.

– Sim, senhor. – Nenhum dos guardas parecia particularmente entusiasmado em


se juntar à comitiva de Leonard, mas eles eventualmente fizeram como Leonard instruiu,
ocupando postos na parte traseira. Talvez se lembrassem a quem deviam sua lealdade, ou
talvez simplesmente se consolassem com o fato de que Leonard, o Chapeleiro, Henry e
os outros guardas formavam uma boa barreira espessa e carnuda entre eles e a ira da
Rainha Vermelha.

Henry se inclinou e sussurrou para o Chapeleiro. – Hum, você tem algum tipo
de arma no seu bolso? Eu me sinto um pouco inútil aqui. Acho que me sentiria melhor se
tivesse alguma coisa com que nos defender quando formos para a sala do trono.

– Hmm. Armas, hein? – O Chapeleiro enfiou o braço no bolso até o cotovelo,


remexendo. – Eu não tinha pensado em armas antes. Não tenho certeza do que tenho…
Ah sim! Olha. Você aqui. Não é a arma mais eficiente, suponho, mas será fácil. – Ele
pegou o guarda-chuva e ofereceu a Henry.

– Chapeleiro, isso é um guarda-chuva. A única coisa que vai ser bom é se eu for
atacado por uma chuva repentina.

– Eu sei! Essas chuvas repentinas são particularmente problemáticas. Eles se


aproximam de você e, antes que você perceba, está encharcado, tossindo, febril e
morrendo de alguma doença desprezível causada pela chuva. Com isso em mãos, você
não precisa se preocupar com nada disso. De nada.

– Ha! Se eu perder a cabeça, não precisarei me preocupar com isso também. –


Ele fez uma prática com o guarda-chuva fechado, e se perguntou se era possível cutucar
alguém até a morte.

O Chapeleiro ou não ouviu Henry, ou mais provavelmente optou por ignorar o


comentário sarcástico. Em vez disso, voltou a remexer no bolso antes de retirar um
canudo muito comprido e muito fino. Ele levantou e sorriu.

– Um canudo? De repente, não me sinto tão mal com o meu guarda-chuva. –


Disse Henry. – O que vai fazer de bom para você, a menos que você seja atacado por uma
bebida gaseificada gigante?

O Chapeleiro lançou-lhe um olhar sombrio. – Os ataques de refrigerantes não


são nada para se rir, Henry. Primeiro de tudo, eles raramente atacam sozinhos.
Refrigerante sempre trazem suas mães de refrigerante, juntamente com seus filhos de
soda, filhas, sobrinhos, sobrinhas, tias, tios e vizinhos ao lado. Um Ataque Maciço de
Soda é uma coisa séria. – Ele brandiu o canudo. – Este não é um canudo comum. É um
Sugador de Alma. Com isso, posso sugar a alma de qualquer coisa. Não por muito tempo,
lembre-se. As almas são notoriamente territoriais, e vão fugir de volta para seus barcos
originais depois de pouco tempo, mas enquanto isso, seus donos ficam congelados, dando
ao usuário tempo para destruir o navio ou escapar da vizinhança.

Henry arqueou uma sobrancelha e examinou o canudo. Não parecia diferente de


qualquer um que você encontraria em um posto de gasolina que vendia refrigerantes
muito grandes, mas ele não duvidava que faria exatamente o que o Chapeleiro alegou.
Ele tinha visto muitas coisas estranhas e bizarras no País das Maravilhas para questionar
isso.

Eles continuaram seguindo Leonard pelo longo corredor acarpetado de


vermelho. Henry olhou com os olhos redondos para os retratos de reis e rainhas
pendurados em ambos os lados, e notou as coroas de cada quadro, que ficavam maiores
e maiores à medida que avançavam em direção à sala do trono. Ele sussurrou para o
Chapeleiro, sentindo-se desconfortável em erguer sua voz tão perto da sala onde
suspeitavam que a Rainha Vermelha esperava. – Por que cada um deles precisa de coroas
cada vez maiores?

– Cabeças maiores. Parece que a cada geração, suas cabeças incham um pouco
mais. É a vaidade cada vez mais espessa no sangue deles. A vaidade é uma coisa inchada
e desagradável e ocupa um bom espaço dentro do crânio. Cada novo Príncipe ou Princesa
Vermelha parece ter maior do que seus pais. Eu deveria saber. Uma vez, eu era o
Chapeleiro Real. – O orgulho brilhou nos olhos do Chapeleiro. – O pai da rainha não
usaria chapéu que não viesse da minha loja.

– É verdade. – Disse Leonard. – O avô da minha esposa usava um tamanho 8 e


seu pai, tamanho 8 1/2. Sua própria cabeça não poderia caber um chapéu menor do que
um 9, embora ela vai jurar que ela é apenas um 6 1/2. O novo Chapeleiro Real - ele não
era tão talentoso quanto você, Chapeleiro - cometeu o erro de colocar seu tamanho real
no rótulo interno de um de seus chapéus de inverno. Eu suponho que você pode adivinhar
o que ela fez com ele. – Ele fez um barulho rude e cortou um dedo em sua garganta. –
Sua vaidade é superada apenas por sua crueldade.

– Eu me pergunto se a cabeça dela inchou mais desde a última vez que a vi. Eu
sempre achei que, se ficasse ainda maior, iria estourar como um balão e poupar muitos
problemas para nós. – Disse o Chapeleiro ao chegarem ao final do corredor. Um par de
imensas portas duplas esculpidas estava entre elas e a sala do trono. – Eu suponho que
ela não seria tão complacente a ponto de se auto-explodir, não é?

– Não é provável. – Respondeu Leonard. – Pode-se sempre esperar, é claro. –


Ele apontou para dois dos Guardas Vermelhos. – Abra as portas para a sala do trono, por
favor.

Nenhum dos dois parecia muito ansioso para obedecer, e ambos se certificaram
de ficar escondidos em segurança atrás das portas enquanto eles lentamente as abriram.

– O que é isso? Quem está aí? – A voz da rainha, aguda e afiada como vidro
quebrado, ecoou na sala do trono. – Coelho! Descubra quem se atreve a entrar na minha
sala do trono sem um anúncio formal. É rude. Fora com suas cabeças!
– Erm, se a cabeça deles devem ser removidas antes ou depois de descobrir quem
é, Majestade? – A voz do Coelho era muito mais tímida que a da rainha, embora ainda
audível. A acústica na sala do trono era excelente para esse propósito.

Uma voz diferente respondeu pela Rainha Vermelha. – Eu deveria pensar que
pedir depois que suas cabeças rolassem resultaria em uma resposta menos que satisfatória.

O Chapeleiro reconheceu a voz do Gato de Cheshire e franziu a testa. Ele


esperava que o maldito Gato tivesse ido embora agora. O Gato tendia a tornar tudo mais
complicado e confuso do que precisava ser.

Leonard empurrou as portas e corajosamente avançou pelo corredor em direção


ao palco onde estavam os tronos reais. Bem, um trono estava lá, de qualquer maneira. Ele
notou seu próprio trono jogado para um lado da sala, deitado de lado, coberto de teias de
aranha e uma camada grossa de poeira. – Não precisa, Coelho. Nenhuma cabeça irá rolar
hoje. Eu, o Rei Vermelho, volto para reivindicar meu trono!

O Coelho engasgou e chiou, e apertou seu coração, em seguida, pareceu decidir


contra morrer de um ataque cardíaco e, em vez disso, caiu sobre um joelho, inclinando a
cabeça. – Sua Majestade!

O Chapeleiro, Henry e os Guardas Vermelhos seguiram Leonard até a sala do


trono. Tudo parecia exatamente como o Chapeleiro se lembrava de sua última visita. A
Rainha Vermelha estava sentada em seu trono, com uma completa birra. Sua enorme
coroa real pairava sobre a cabeça, suspensa no teto por um fio. Perto dali o Gato de
Cheshire flutuava no ar, sorrindo com um sorriso travesso.

O Chapeleiro teve que admitir que Leonard tinha uma figura imponente e não
pôde deixar de admirá-lo. Leonard estava alto, sua expressão real e orgulhosa, seus olhos
brilhando como chamas azuis. Até mesmo o Chapeleiro sentiu-se tentado a se ajoelhar,
embora tenha se convencido ao contrário disso em breve.

O Gato de Cheshire ficou em silêncio, uma condição em que o Chapeleiro nunca


havia visto o Gato. O Chapeleiro decidiu que gostava bastante e esperava que continuasse
no futuro previsível.
Não houve tal sorte com a Rainha Vermelha, no entanto. Olhando para Leonard,
por um momento, sua língua pareceu se recusar a funcionar adequadamente. Seus olhos
ficaram muito grandes e redondos, saltando para fora da cabeça de uma maneira pouco
atraente, e sua boca ficou muito pequena e enrugada, como se tivesse acabado de chupar
um limão. O choque de ver o marido em pé na sala do trono, vivo e respirando, pareceu
passar rapidamente, porque ela respirou fundo e soltou um guincho que quebrou dois
tímpanos dos Guardas Vermelhos e seis vidraças de vidro de janela. – Você! O que você
está fazendo aqui? Mandei minha Guarda para as ruínas do Castelo Branco para ter
certeza de que você nunca voltaria do espelho. Você deveria ser bom e ter ido embora!

Leonard fez um gesto para si mesmo. – Como você pode ver, eu não estou nem
um pouco longe. Eu estou totalmente aqui.

A rainha rangeu os dentes e agarrou os braços do trono com tanta força que suas
unhas se enterraram na madeira. – Bem, então eu te sentencio ao Machado. Fora com a
sua cabeça! Eu ordeno isso!

Leonard se inclinou um pouco para frente. Ele não gritou, nem sequer levantou
a voz, mas a palavra ecoou pelo quarto de qualquer maneira, trazendo um suspiro coletivo
de todos, talvez simplesmente porque ninguém nunca tinha ouvido a palavra na Presença
da rainha antes.

– Não.

A rainha soltou um grito diferente de qualquer outro ouvido em todo o País das
Maravilhas. Ele rasgou a sala do trono, quebrando as vidraças restantes, todos os copos
de vinho na sala e o par de óculos do Coelho. Ele ricocheteou nas paredes como uma
coisa viva, derrubando cadeiras, arrancando o material de todas as almofadas reais e
fazendo a gigantesca coroa pendurada acima da cabeça da rainha balançar. – O que você
disse?

Leonard parecia completamente indiferente e sem medo diante de sua fúria.


Talvez, desde que ele se casou com a rainha por tantos anos, o efeito de seu terrível
temperamento passou despercebido para ele. Ele deu de ombros, como se não se
importasse. – Eu disse não.
– Machado! Venha aqui agora! Fora com a cabeça! – A rainha saltou
furiosamente em seu trono, batendo os punhos e chutando os pés. – Fora com a cabeça!

A porta lateral, que dava para o pátio, abriu-se e Machado entrou na sala do trono
ao chamado da rainha. Machado era apenas isso - um enorme Machado de duas lâminas,
animado por magia poderosa, e encantado para fazer o lance da Rainha. Sua borda afiada
brilhou brilhante enquanto balançava através do ar em arcos maciços.

Cada cabeça se voltava para olhar para o Machado, as mãos imediatamente


voando para suas gargantas como se pudessem proteger seus pescoços da lâmina do
Machado.

Cada cabeça, isto é, exceto a de Leonard. Ele subiu os poucos degraus até o
tablado e ficou ao lado do trono. Ele ignorou o Machado e sorriu presunçosamente para
a esposa, como se soubesse algo que ela não sabia. Como se viu, ele sabia. – Você
governou todos esses anos porque eu era muito fraco ou muito indiferente para fazer o
meu dever. Esse é o meu pecado e eu viverei com ele para sempre. Não mais vou me
esquivar da minha responsabilidade. Você pode ser real pelo sangue, enquanto eu sou
meramente real pelo casamento, mas você, minha querida, é um monarca terrível e um
ser humano terrível. Eu declaro um golpe, aliviando sua coroa.

A Rainha Vermelha gritou novamente e se levantou em seu trono, olhando com


raiva para Leonard. Ela apertou as mãos em punhos apertados e seu rosto ficou vermelho
como o cabelo dela. Veias se destacavam em sua testa como vermes gordos e furiosos. –
Você ousa falar comigo desse jeito? Fora com a sua cabeça! Eu digo! Aqui está ele,
Machado. Pressa!

O Machado, encantado para obedecê-la como sempre, girou.

Leonard, no entanto, fez algo inesperado. Ele se recusou a ficar parado e ter a
cabeça cortada corretamente. Quando o Machado cortou o ar em direção ao pescoço de
Leonard, ele se abaixou.

Em vez de cortar a carne de Leonard, O Machado passou por cima de sua cabeça
e cortou o arame que segurava a enorme coroa sobre a cabeça da rainha.
A pesada e sólida coroa de ouro caiu diretamente para baixo, como uma
protuberância latejante, cobrindo completamente a rainha da cabeça aos pés. Ele tombou
do trono com o mesmo som estridente e rolou alguns metros pelo chão antes de parar.
Tudo o que viram da rainha eram as pontas dos sapatos vermelhos.

O Machado caiu no chão, batendo ruidosamente, antes de cair imóvel. Ficou ali
muito desiludido, como um Machado comum. O Chapeleiro tentou se aproximar com a
ponta do sapato.

O silêncio caiu na sala do trono.

– Bem. – Disse Chapeleiro. – Isso foi inesperado.

A mão de Henry escorregou na dele. – Ela está... ela está morta? – Seu rosto
estava pálido, mas seu aperto era quente e firme.

O Chapeleiro apertou a mão dele. – Olhe o Machado. Sua magia se foi. Era
encantado em obedecer à Rainha Vermelha apenas, então eu diria que as chances são de
que ela tenha se ido. Não posso dizer que sinto muito, e também não acho que ninguém
mais sinta. Ela não se apegou exatamente a ninguém, com o corte da cabeça das pessoas
a torto e a direita.

Leonard afastou a almofada de veludo do trono e sentou-se. – Eu reconheço meu


trono e tenho o direito de governar o País das Maravilhas. Alguém desafia meu direito de
fazer isso?

Ninguém se adiantou. O Chapeleiro não achou que alguém fosse. Era muito
trabalho, administrar um reino do tamanho de País das Maravilhas. Pelo menos, era
quando foi feito certo, e o monarca não gastava todo o seu tempo ordenando que cabeças
rolassem. Havia muitos detalhes para tratar - brigas para arbitrar, disputas de propriedade
para resolver, magia para dispensar ou dispersar conforme necessário. Certamente, havia
muito trabalho e não havia benefícios suficientes no que dizia respeito ao Chapeleiro.
Com grande poder vinha grande responsabilidade e dores de cabeça ainda maiores.
Leonard foi bem-vindo a isso. Todos os outros, Henry, os Guardas Vermelhos, o Coelho
e o Gato de Cheshire, todos pareciam concordar, já que ninguém se ofereceu.
Leonard sorriu. Ele lançou um olhar penetrante para a coroa gigante e as pontas
dos sapatos de sua ex-mulher. – Bem então. Isso está resolvido. Eu suponho que precisarei
encomendar uma nova coroa. Nada pesado e de metal, mesmo ouro, é muito
desconfortável de usar. Estou pensando em algo em um bom derby, talvez. Acha que
consegue criar um para mim, Chapeleiro?

– Claro, Sua Majestade. Seria o meu prazer. – O Chapeleiro sorriu.

O Gato de Cheshire flutuou mais perto do trono, ainda sorrindo. – É muito bom
ter você de volta, Sua Majestade.

Leonard devolveu o sorriso do Gato. – Obrigado, Gato. Você fez bem. Lembre-
me de recompensá-lo mais tarde. Por acaso sei onde há uma quantidade substancial de
catnip de um excelente ano armazenado.

– Espere... o que? – O Chapeleiro balançou a cabeça, em seguida, enfiou os


dedos nos ouvidos, balançando-os como se fosse limpá-los. – Você sabia que Leonard
estava no mundo de Alice?

O Gato bocejou e começou a se arrumar. – Claro que sim. Alguém tinha que
ficar para trás para garantir que a rainha não destruísse completamente o País das
Maravilhas.

O Chapeleiro virou-se para Leonard, incrédulo. – Você disse ao Gato que você
estava saindo, mas não eu? A rainha quase me matou!

– Absurdo. Eu tinha tudo sob controle em todos os momentos. – Disse o Gato. –


Eu consegui que ela enviasse você atrás de Henry, não é?

O Chapeleiro engasgou, incapaz de decidir se queria estrangular o Gato ou


agradecê-lo. Ele decidiu, no interesse da justiça, não fazer nenhum dos dois.

Leonard assentiu e se virou para Henry. – Henry, meu rapaz, quero agradecer-
lhe por voltar aqui para me apoiar. Eu suponho que é óbvio que não voltarei ao seu mundo,
mas e você?

Henry mordeu o lábio e olhou para o Chapeleiro. – Não tenho certeza. Eu tenho
que decidir agora?
– Claro que não. – Leonard piscou para ele. – Você é bem-vindo para ficar no
País das Maravilhas pelo tempo que desejar. Tenho certeza de que o Chapeleiro não se
importaria em abriga-lo. A suíte Royal do Chapeleiro é bastante espaçosa.

Isso foi o suficiente para afastar a mente do Chapeleiro do Gato quando ele
percebeu que tinha coisas muito mais doces a considerar. Coisas como Henry, e seu beijo,
e se haveria mais beijos como esse no futuro. Ele sorriu e apertou a mão de Henry
novamente. – Eu ficaria muito feliz por Henry ficar comigo. Enquanto ele quiser
permanecer aqui.

Ele sentiu o calor fluir de sua testa até os dedos dos pés quando Henry sorriu e
apertou a mão de volta. – Eu acho que eu gostaria disso, tio Leonard... er, Sua Majestade.

O Chapeleiro não conseguiu mais se conter. Alegria borbulhava da vizinhança


de seu coração e transbordou. Estendendo a mão, ele puxou Henry em um beijo ardente
que enviou faíscas pelo ar ao redor deles. Uma acendeu a cauda do Gato, fazendo o Gato
assobiar para eles e levou todos os outros a rir.

– Finalmente. – Disse Leonard. Um largo sorriso iluminou seu rosto. – Alice


estava certa, então. Ela disse que vocês dois foram feitos um para o outro. Foi uma das
razões pelas quais ela e eu conspiramos para trazê-lo para o País das Maravilhas em
primeiro lugar, Henry. Bem, isso, e porque nós dois sentimos que era a única maneira de
convencê-lo de que ela estava dizendo a verdade todos esses anos.

O Chapeleiro parecia ter beijado Henry até deixa-lo bobo, já que um sorriso mal-
humorado permanecia no rosto de Henry e ele não conseguiu desafiar a confissão de
Leonard. O Chapeleiro nem sabia se Henry ouvira. – Bem, eu, por exemplo, acho que
País das Maravilhas ficou um pouco mais maravilhoso quando Henry chegou. Agora, se
você não se importa, Sua Majestade, eu acho que você tem alguma limpeza para fazer.
Então você terá anúncios para fazer, mensageiros enviados para o restante do País das
Maravilhas, assim por diante e assim por diante. Henry e eu temos algumas coisas para
conversar também, então nos retiraremos para a Suíte do Chapeleiro Real até que você
precise de nós novamente.

Leonard acenou com a mão e assentiu, dispensando-os. Quando o Chapeleiro


levou Henry para fora da sala do trono, ele pôde ouvir Leonard começar a emitir ordens
reais. – Bem, nós podemos também torná-lo oficial. Eu, por meio deste, considero a
Rainha Vermelha culpada de crimes contra o País das Maravilhas e seu povo. Leve essa
coroa ridícula e a rainha ao médico real. Simplesmente não faria sentido enterrá-la a
menos que ela estivesse realmente morta. Os fantasmas da Cripta Real teriam ataques. Se
o médico real achar que ela está viva, então ela pode ter a antiga cela do Chapeleiro.
Enquanto isso, suponho que precisarei do Escriba Real para poder apresentar alguns
anúncios e proclamações, esse tipo de coisa.

O Gato dirigiu-se a Leonard. – Desculpe, Sua Majestade, mas a posição do


escriba real está atualmente aberta. A rainha mandou o último para o Machado.

– Por que não estou surpreso? Acho que vou ter que substituir quase todo o
pessoal, hmm? Bem, as primeiras coisas primeiro. Eu preciso de um novo escriba real.
Minha caligrafia é como um arranhão de frango. – Disse Leonard. – Coelho, como está
sua caligrafia?

O gole nervoso do coelho foi audível. – E-eu, senhor?

– Não, o coelho invisível ao seu lado. Sim, você.

– Oh céus. Eu... receio estar muito atrasado para um compromisso, Sua


Majestade. Sim, de fato, estou ficando sem tempo. Eu devo...

Leonard fez uma careta para o Coelho. – A única coisa que você deve correr
atrás é uma pena e um pergaminho. Agora, Coelho, antes que eu tenha um súbito desejo
por ensopado de coelho.

O Coelho deu um pequeno guincho. – Imediatamente, senhor. Apenas o que eu


tinha em mente. De volta em um instante. Uma pena. Onde alguém encontraria uma pena?
O Coelho correu em volta, checando todos os cantos e recantos da sala do trono, apesar
de ter dado à coroa da rainha um grande espaço. Quanto mais ele ia sem encontrar uma,
mais chateado ele parecia se tornar. Sem dúvida ele estava se imaginando na Panela Real.

– Não deixe que ele sofra, Chapeleiro. – Henry sussurrou. – Você não tem uma
caneta ou algo nesse seu bolso?

O Chapeleiro fungou. – Hmph. Ajudá-lo? Ele trabalhou para a rainha! Tentou


nos levar de volta ao castelo, lembra?
– Claro, eu lembro. Eu também lembro que você trabalhou para a Rainha, pelo
menos quando nos conhecemos. Ou você achou que eu tinha esquecido? – Henry franziu
o cenho para o Chapeleiro, mas um pequeno sorriso brincou em seus lábios.

O Chapeleiro se encolheu. – Eu disse que sentia muito. Muito bem. – Ele enfiou
a mão no bolso e retirou uma grande e branca pena, um pequeno pote de tinta e um pedaço
de pergaminho amarrado com um laço vermelho. Ele os entregou ao Coelho. – Não diga
que eu nunca te dei nada.

O Coelho arrancou-os das mãos do Chapeleiro. – Bem, já está na hora. Imagine,


deixando-me correr como uma pessoa louca enquanto você tinha uma pena, tinta e
pergaminho em sua posse o tempo todo! Eu sou o novo escriba real, caso você não tenha
ouvido. Eu tenho o ouvido do rei. Eu deveria trazer-te acusações com ele. Na verdade,
creio que ainda há uma excelente para você que a Rainha emitiu. O Coelho bufou,
erguendo o pequeno nariz rosa no ar.

A voz de Leonard trovejou, fazendo com que o Coelho guinchasse e deixasse


algumas minúsculas bolinhas marrons no chão. – Coelho! Pare de fazer cocô no chão da
minha sala do trono antes de eu pedir que você coloque fraldas. Estou esperando para
proclamar as coisas. Vamos continuar com isso.

– Imediatamente, Sua Majestade! – O Coelho corou um tom pouco atraente de


rosa, virou-se e correu para o palanque, já desenrolando o pergaminho e preparando seu
pote de tinta e pena.

Leonard olhou por cima da cabeça do Coelho. – Chapeleiro? Henry? O que vocês
ainda estão fazendo aqui?

O Chapeleiro e Henry deram de ombros e riram quando saíram da sala e


desceram o corredor.
EPÍLOGO

Três meses depois….

Henry dobrou uma camisa e colocou-a na pequena pilha de outras em sua nova
mala. Uma mochila, o Chapeleiro chamou. Era de couro marrom e tinha alças para mantê-
la fechado. Era extremamente antiquada, mas era tudo o que ele podia encontrar nas lojas
fora do Castelo Vermelho.

Ele foi até a cômoda estreita e tirou dois pares de calças, mas quando se virou
para a mala, estava vazia. Ele se virou para ver o Chapeleiro colocando suas camisas em
uma gaveta da cômoda.

Agarrando as camisas da gaveta, ele as segurou atrás das costas para que o
Chapeleiro não pudesse recuperá-las. – Chapeleiro! Eu continuo fazendo as malas e você
continua descompactando. Eu nunca terminar assim.

– Esse é o ponto principal. Além disso, você não precisa empacotar. Você não
está saindo realmente.

Henry suspirou e sentou-se no pé da cama. – Chapeleiro, já faz três meses. Eu


tenho que voltar agora.

– Por quê? Você gosta daqui, não é? Você gosta de mim, não é?

Os lábios de Henry se ergueram em um sorriso suave e triste. – Claro que eu


gosto. Mas ainda tenho que voltar para casa.

O Chapeleiro sentou ao lado dele, parecendo que alguém tinha acabado de matar
seu filhote. – Por que, Henry? Por que não ficar aqui comigo? Esta é a sua casa também.

– Eu tenho que voltar porque Alice merece saber o que aconteceu e que eu estou
bem. Além disso, ela, Phillip e as crianças são toda a família que deixei no mundo além
do meu pai. E meu pai... ele precisa de ajuda, e eu preciso ver que ele entenda.

O Chapeleiro fungou e se virou, mas Henry viu uma lágrima brilhar em seus
olhos escuros. – Eu sei.
– Eu ficaria se pudesse. – Disse Henry. Ele colocou a mão no braço do
Chapeleiro. – Esses três meses foram ótimos e eu amei todos os lugares que você me
levou. Cachoeiras Diamante, a incubadora de Jubjubs, a Caverna Gelo Fogo... – Ele
balançou a cabeça e lutou contra as próprias lágrimas. – Só estar com você foi uma
aventura que nunca vou esquecer.

O Chapeleiro apoiou os cotovelos nos joelhos e olhou para o chão. – Eu não


quero que você saia, Henry. Eu vou sentir muito sua falta.

– Então venha comigo.

– O quê? – O Chapeleiro olhou surpreso.

Henry sorriu. – Venha comigo! Há tantos lugares no meu mundo que eu quero
te mostrar. Cidade de Nova York. O grande Canyon. Os oceanos Atlântico e Pacífico.

– E pizza? – Malícia brilhou nos olhos do Chapeleiro.

Henry riu. – Toda a pizza que você puder comer.

O sorriso do Chapeleiro desapareceu e sua expressão escureceu. – Não, eu não


posso, Henry. Você é engraçado. Antes de te conhecer, eu não teria dado a mínima para
a responsabilidade. Eu vim e fui como quis, fiz o que queria. Minha única preocupação
era salvar minha própria pele. Eu errei mais vezes do que me lembro, e perdi tudo o que
tinha. Mas estar com você me fez crescer e perceber o que é realmente importante.

– Eu sou o Chapeleiro Real novamente. Leonard me deu um novo começo. Eu


não posso abandoná-lo agora que ele está apenas se instalando. Ele depende de mim para
todas as suas necessidades de chapéus, você sabe. Chapéus de festa. Chapéus
diplomáticos. Chapéus da Audiência Real. Chapéus da corte. Chapéus de sol e bonés de
noite, boliche, chapéus de festa, quepes, panamás... a lista continua e continua.

– Ele não pode se contentar com os chapéus que você já fez por um tempo?

– Oh, eu não sei. Um rei precisa manter as aparências. Não seria bom que as
pessoas o vissem no mesmo chapéu com muita frequência. As pessoas começariam a
falar. Eles diriam que seu Chapeleiro Real é insuficientemente suficiente para fornecer
armarinhos reais. Além disso, não é realmente sobre os chapéus, Henry. É sobre
responsabilidade e honrar minha palavra.

Henry suspirou. – Compreendo. Acho que tenho que voltar sozinho. – Ele
devolveu as camisas à mala e fechou a tampa, prendendo as correias, depois olhou para
o Chapeleiro. – Eu vou sentir sua falta, horrivelmente. – Ele estendeu a mão para um
abraço, e eles ficaram lá por um longo tempo, encostados um no outro como se ambos
pudessem tirar força do outro. Inclinando a cabeça para trás, ele deu um beijo suave nos
lábios do Chapeleiro, depois se afastou e pegou sua mala. – É melhor eu ir embora. É um
longo caminho de volta ao Castelo Branco. Eu gostaria de alcançar o Tweedledee e o
Tweedledum antes do anoitecer.

– Tchau, Henry. – A voz do Chapeleiro rachou de emoção.

Henry não confiava em sua própria voz para responder. Ele apenas balançou a
cabeça e saiu do quarto sem olhar para trás novamente.

LEONARD INSISTIU no fornecimento de Henry com uma escolta da Guarda


Vermelha para sua própria segurança, embora Henry tentasse recusar. Ele não queria
ninguém ao seu redor enquanto viajava de volta ao Castelo Branco e ao espelho mágico.
Ele não estava com disposição para companhia ou conversa fiada. Embora acreditasse de
todo o coração que precisava voltar ao seu próprio mundo, deixar o Chapeleiro para trás
tinha sido uma das coisas mais difíceis que ele teve de fazer em sua vida.

Por mais difícil que fosse, ter o Chapeleiro escolhendo sua responsabilidade para
com Leonard acima de ir com Henry era ainda pior. Ele pensou que ele queria mais o
Chapeleiro do que isso. Descobrir que ele estava errado era como uma faca no coração
que continuava a empurrar mais fundo e torcer cada vez que ele pensava sobre isso.

Ele limpou uma lágrima irada com as costas da mão. Ele estaria em casa em
breve - ele podia ver as torres quebradas do Castelo Branco à distância - e ele trabalharia
para esquecer tudo sobre o Chapeleiro e o País das Maravilhas. Em seu mundo, havia
outras pessoas, pessoas mais parecidas com ele. Ele encontraria outra pessoa para amar.
Alguém que não falava em conversa fiada o tempo todo. Alguém que não tirava
todos os tipos de coisas malucas de um bolso mágico. Alguém que sabia o que era um
motor de combustão, e que não acreditava em selar um dragão, era o meio de transporte
mais rápido disponível.

Alguém que não era o Chapeleiro.

Porque não há ninguém como o Chapeleiro, ele pensou vagamente, com a cabeça
baixa enquanto caminhava. Não no meu mundo ou no País das Maravilhas.

– Henry! Henry!

Henry sorriu. Eu quase posso ouvir sua voz. Eu me pergunto quanto tempo vai
demorar até eu esquecer como ele soa? Esquecer como ele é? Ou como seus beijos me
fizeram sentir?

– Henry! Pelo amor das bolas brilhantes de Jaguadarte, espere!

Henry piscou e levantou a cabeça. Ele se virou, examinando o caminho atrás


dele. Uma figura corria na direção dele, com uma das mãos no alto da cabeça, como se
tentasse impedir que um chapéu voasse. Depois de um momento, um rosto entrou em
foco.

– Chapeleiro? O que você está fazendo aqui? – Henry sentiu um dedo hesitante
de excitação cutucar sua barriga. – Você tem me seguido todo esse tempo?

O Chapeleiro alcançou-o e inclinou-se na cintura, ofegando enquanto ainda


segurava o chapéu na cabeça. Levou um momento para recuperar o fôlego suficiente para
falar. – Eu quase alcancei você depois que você passou por Ruínas, mas me vi incapaz de
me apressar na Floresta Neutra. Isso fez com que eu diminuísse meu ritmo para um mero
rastejar, como se eu tivesse todo o tempo do mundo.

– Por que você estava me seguindo? Nós nos despedimos. – Henry sentiu suas
bochechas queimarem e desviou o olhar. – Você deixou perfeitamente claro que sua
responsabilidade com Leonard era o que importava.

O Chapeleiro agarrou Henry pelos ombros e forçou Henry a olhá-lo nos olhos. –
Escute-me. Eu sou um homem muito estúpido. Meu dever com Leonard é importante, e
não posso simplesmente esquecer, mas você também é importante para mim. Mais
importante do que qualquer compromisso real ou qualquer chapéu que eu pudesse ser
chamado para fazer para o rei. Achei que Leonard iria ressuscitar o Machado quando
soube que te mandei sozinho. Ele me disse para pegá-lo, mesmo que eu tivesse que correr
todo o caminho. Na verdade, pediu-me que me dissesse que não voltaria até que você
estivesse doente e cansado de me ter por perto. – Ele sorriu e puxou Henry para perto, em
um abraço de urso. – Então você vê, eu tenho que ir com você. Se eu não fizer isso, vou
estar em violação direta de uma ordem real.

O sorriso de Henry gerenciou um sorriso largo e satisfeito. – Bem, não podemos


ter isso, agora podemos?

– Não, nós certamente não podemos. – O Chapeleiro colocou as mãos nas


bochechas de Henry, e o beijou bem, longo e forte. Tão longo e forte, na verdade, que os
Guardas Vermelhos começaram a limpar suas gargantas e tossir para lembrá-los de que
não estavam sozinhos.

Henry riu e afastou-se do Chapeleiro. Ele pegou a mão do Chapeleiro e segurou-


a. – Então suponho que devemos ir. Nós não queremos ser acusados de perder tempo.

O Chapeleiro deu um estremecimento falso. – Não, de fato! O tempo, como


tenho certeza de que mencionei uma ou duas vezes, não tem senso de humor.

O tempo não deve ter sido ofendido porque voou enquanto eles conversavam e
riam, subindo a colina até o Castelo Branco, e subindo para o quarto onde o espelho
mágico esperava.

– Pronto? – Henry perguntou ao Chapeleiro.

– Juntos. – Respondeu o Chapeleiro, segurando as mãos unidas.

Sorrindo um para o outro, eles atravessaram para o outro lado para o futuro deles
no mundo de Henry.
SOBRE A AUTORA

DAKOTA CHASE escreve histórias de fantasia, de fantasmas e monstros e


viagem no tempo. Ela mora na fronteira do Normal, e é conhecida por fazer viagens
rápidas até a próxima cidade, Loucura, embora ela normalmente encontre seu caminho
de volta para casa sem problemas. Ela compartilha sua casa com Nibbles, sua cadela de
raça mista Shar-Pei/Labrador que pode ou não ser um lobisomem disfarçado, e um marido
que definitivamente não é um lobisomem, embora ele seja conhecido por ser desgrenhado
e uivar de tempos em tempos. Ela tem quatro filhos adultos, um dos quais gerou,
resultando em dois netos que ela adora. Quando ela não está escrevendo, Dakota gosta de
fazer crochê de coisas estranhas, como sapatilhas de tubarão e bonecas de caveiras. Ela
adora sushi, alimentos condimentados e uvas, mas é altamente alérgica a qualquer forma
de matemática.

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