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184 3 EDGAR ALL AN P O E

O Coração
Delator E OUTROS
CON TOS

TO S
3 CON
IAIS
ESPEC
S
D I A DA
S
BRUXA

TRAD U ÇÃO DE 1
CAM ILA F E R NA ND E S
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Camila Fernandes

Preparação:
Karen Alvares
Revisão:
Karine Ribeiro
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Mari Morgan

2022 ISBN 978-85-67566-42-9


Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
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publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.

2
A I N DA
NESTE MÊS

O e-book do
semestre chega
em outubro!
Eu acredito em fadas!
Acredito! Acredito!

4
ESPECIAL
HALLOWEEN

CONTOS SELECIONADOS
DE EDGAR ALLAN POE

I LU ST R AÇ Õ E S D O M I O LO P O R H A R RY C L A R K E
Sinopses
No mês do Halloween, convidamos
o mestre do terror para contar três
histórias arrepiantes!

O Coração Delator
Incomodado com o olho de vidro
de um idoso, este insano narrador
decide tomar uma atitude
brutal para que nunca mais seja
incomodado. O que ele não esperava
era que um singelo coração revelasse
seu segredo sombrio.

6
Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar
No leito de morte, o Sr. Valdemar
é submetido a um experimento de
mesmerismo que se transforma
em uma macabra e perturbadora
experiência para todos os envolvidos.

O Barril de Amontillado
Uma vingança planejada para ser
executada durante o carnaval levará
dois homens para uma degustação de
vinho que promete ser fatal.

7
Escritos por Edgar Allan Poe,
O Coração Delator, Os Fatos no
Caso do Sr. Valdemar e O Barril
de Amontillado compõem a
tríade que chega para abalar até
os leitores mais apaixonados
por terror.

Alerta de gatilho:
Violência

8
Sumário
O Coração Delator 10

Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar 36

O Barril de Amontillado 80
O C O R AÇÃO
D E L AT O R
11
O Coração
Delator
Edgar Allan Poe, 1843

É
verdade! Nervoso, muito
e terrivelmente nervoso
estive e estou, mas por
que você diria que estou louco? A do-
ença aguçou meus sentidos — não
os destruiu, não os embotou. A au-
dição aguçou-se acima de todos os
outros. Eu ouvia todas as coisas no
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céu e na terra, e ainda muitas coisas
no inferno. Como, então, estou louco?
Preste atenção! E observe com que
saúde, com que calma sou capaz de
lhe contar a história completa.
É impossível dizer como foi que
a ideia chegou à minha mente, mas,
uma vez concebida, assombrou-me
dia e noite. Propósito, não havia.
Paixão, tampouco. Eu amava o velho.
Ele nunca havia me ofendido nem
me fizera mal. Por seu ouro eu não
tinha nenhuma cobiça. Acredito que
foi o olho dele! Sim, foi isso! Um de
seus olhos se assemelhava ao de um
13
abutre — um olho azul-claro, coberto
por uma película. Sempre que aquele
olhar caía sobre mim, meu sangue
gelava; e assim, aos poucos — muito
aos poucos —, decidi tirar a vida do
velho, e dessa forma livrar-me do
olho para sempre.
Agora, esta é a questão: você ima-
gina que estou louco, mas os lou-
cos nada sabem. Devia ter me visto.
Devia ter visto com quanta sensatez
procedi, com que cautela, com que
prudência, com que dissimulação
passei a trabalhar! Nunca fui mais
gentil com o velho do que durante
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toda aquela semana antes de ma-
tá-lo. E todas as noites, por volta da
meia-noite, virava o trinco de sua
porta e a abria — ah, com muita de-
licadeza! Depois, quando já abrira o
bastante para passar minha cabeça,
enfiava por ela uma lanterna furta-
-fogo, fechada, toda fechada, para
que nenhuma luz escapasse, e por
fim passava a cabeça. Ah, você teria
rido ao ver com que astúcia eu agia!
Mexia a cabeça devagar — muito,
muito devagar, para não perturbar o
sono do velho. Demorava uma hora
para passá-la inteira pela abertura
até vê-lo deitado na cama. Ha! Um
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louco demonstraria tamanha sensa-
tez? E depois, quando ela estava toda
dentro do quarto, abria a lanterna
com cuidado — ah, muitíssimo
cuidado —, e com cuidado (pois as
dobradiças rangiam) abria apenas
o bastante para que um único raio
fino de luz caísse sobre aquele olho
de abutre.
Fiz isso por sete longas noites —
todas as noites, à meia-noite —, mas
encontrei o olho sempre fechado, e
por isso foi impossível fazer o ser-
viço, pois não era o velho que me im-
portunava, e sim seu mau-olhado.
16
E todas as manhãs, quando o dia
raiava, eu entrava com coragem no
quarto, e com coragem me dirigia
a ele, chamando-o pelo nome num
tom caloroso e perguntando se havia
dormido bem. Então, você entende
que ele precisaria ser, de fato, um
velho muitíssimo perspicaz para
desconfiar que, todas as noites, exa-
tamente à zero hora, eu o espiava
enquanto ele dormia.
Na oitava noite, tomei um cui-
dado ainda maior ao abrir a porta.
O ponteiro dos minutos de um reló-
gio avançava mais depressa do que
17
minhas mãos. Nunca, antes daquela
noite, tinha percebido a extensão de
meus próprios poderes — de minha
sagacidade. Mal consegui conter
minha sensação de triunfo. E pen-
sar que lá estava eu, abrindo a porta,
pouco a pouco, e ele nem mesmo
sonhava com meus atos e pensa-
mentos secretos. Ri um bocado ao
pensar nisso, e talvez ele tenha me
ouvido, pois de repente se mexeu na
cama, como se assustado. Você pode
imaginar que recuei — mas não. O
quarto estava escuro como breu na
noite espessa (pois as janelas esta-
vam totalmente fechadas, por medo
18
de ladrões); por isso, eu sabia que ele
não conseguiria ver a abertura da
porta, e continuei a empurrá-la —
firme, sempre firme.
Passei a cabeça para dentro e
estava prestes a abrir a lanterna
quando meu polegar escorregou no
fecho de latão e o velho deu um pulo
na cama, gritando:
— Quem está aí?
Fiquei imóvel e não disse nada.
Passei uma hora inteira sem mexer
um músculo e, nesse ínterim, não o
ouvi deitar-se. Ele continuou sentado
na cama, atento — tal como eu tinha
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feito, noite após noite, escutando os
insetos que viviam dentro da parede1.
Logo ouvi um leve gemido e en-
tendi que era o som do terror mortal.
1 No texto original em inglês, Poe se refere a esses insetos
como “death watches in the wall”. Há discordância entre os
estudiosos do autor quanto à identidade de tão intrigan-
te insetinho: alguns acreditam que se trate do Xestobium
rufovillosum, ou deathwatch beetle (algo como “besouro-
-relógio-da-morte” em tradução livre, uma vez que não
tem nome comum no Brasil), um inseto que costuma fi-
car dentro das paredes mastigando madeira e produz um
som agourento de tique-taque ao bater a cabeça na parede
para chamar seus pares. É um inseto grande e produz um
barulho que se assemelha ao tamborilar de um lápis em
séries irregulares de seis a oito batidas; Poe, entretanto,
descreve o som como “baixo, fraco e ligeiro”, numa alusão
ao próprio bater de um coração, portanto alguns estudio-
sos consideram que se trate do Liposcelis divinatorius, co-
nhecido no Brasil como piolho-de-livro, um inseto menor
que produz um ruído semelhante ao descrito no conto. De
qualquer forma, é um bichinho dos mais interessantes,
afinal, foi o responsável por fomentar um debate entre a
tradutora e a preparadora de quase meia hora, cujo resul-
tado é esta nota. [N. T. e N. P.]

20
Não foi um gemido de dor nem de tris-
teza — ah, não! Foi o lamento baixo
e sufocado que emerge do fundo da
alma quando tomada pelo espanto.
Eu o conhecia muito bem. Em mui-
tas noites, exatamente à meia-noite,
quando todo o mundo dormia, aquele
som aflorava do meu próprio âmago,
aprofundando, com seu eco pavoroso,
os terrores que me distraíam. Digo
que o conhecia bem; assim, eu sabia
o que o velho sentia e tive pena dele,
embora, no íntimo, eu risse. Sabia
que ele estivera acordado desde o
primeiro leve barulho, quando ti-
nha se virado na cama. Desde então,
21
seus medos assomavam sobre ele.
Havia tentado imaginá-los infunda-
dos, mas não conseguia. Dissera a si
mesmo: “não é nada além do vento
na chaminé”, “é só um rato correndo
pelo chão” ou “é meramente um grilo
que cricrilou uma única vez”. Sim, ele
tentara se confortar com essas supo-
sições, mas fora tudo em vão. Tudo
em vão, porque a Morte, ao se aproxi-
mar, tinha avançado com sua som-
bra escura diante dele e envolvido
a vítima. E foi a influência pesarosa
da sombra despercebida que o levou
a sentir — embora não tenha visto
22
nem ouvido — a presença da minha
cabeça dentro do quarto.
Quando eu já tinha esperado um
bom tempo, com toda a paciência,
sem ouvi-lo se deitar, resolvi abrir
uma pequena fresta — uma fresta
muito, muito diminuta na lanterna.
E assim a abri — você nem imagina
com que furtividade, muito furtivo
— até que, finalmente, um único raio,
pálido e fino como a teia de uma ara-
nha, saiu da fresta e caiu sobre aquele
olho de abutre.
Estava aberto — bem, bem ar-
rega lado — e f iquei f u r ioso ao
23
contemplá-lo. Eu o vi com nitidez
absoluta — todo de um azul opaco,
coberto por um véu hediondo que ge-
lou a própria medula dos meus ossos.
Mas não consegui ver nada mais do
rosto nem da pessoa do velho, pois
havia dirigido o raio, como que por
instinto, precisamente sobre o mal-
dito local.
E então, já não lhe disse que o que
confunde com loucura é apenas o
aguçamento intenso dos sentidos?
Naquela hora, estou dizendo, chegou
aos meus ouvidos um som baixo,
fraco e ligeiro, tal qual o que faz um
24
relógio quando envolto em algodão.
Aquele som eu também conhecia
bem: era o coração do velho a bater.
Isso aumentou minha fúria, tal como
o bater de um tambor estimula a co-
ragem do soldado.
Mesmo assim, me contive e conti-
nuei imóvel; mal respirava. Sustentei
a lanterna sem o menor movimento
e tentei com toda a firmeza possível
manter o raio de luz sobre o olho.
Enquanto isso, o rufar infernal do
coração cresceu. Ficava mais e mais
rápido, e mais e mais alto a cada ins-
tante. O terror do velho devia ser
25
imenso! O som ficava mais alto, estou
dizendo, mais alto a cada momento!
Está prestando atenção? Eu disse que
estou nervoso; de fato, estou. E àquela
hora, na calada da noite, em meio ao
silêncio medonho daquela casa velha,
tal som tão estranho me lançou num
terror incontrolável. Entretanto, por
mais alguns minutos me contive e
continuei imóvel. Mas as batidas fi-
cavam mais e mais altas! Achei que o
coração explodiria. Então, uma nova
inquietação me arrebatou — algum
vizinho ouviria aquele som! A hora
do velho havia chegado.
26
Com um grito ruidoso, abri toda
a lanterna e pulei para dentro do
quarto. Ele gritou uma vez — uma
vez somente. Num instante, arras-
tei-o para o chão e puxei a cama
pesada por cima dele. Depois, sorri
alegremente ao ver meu feito se com-
pletar. Mas, por muitos minutos, o
coração continuou a rufar com um
som abafado. Isso, no entanto, não
me importunou; ele não se faria ou-
vir através da parede. Por fim, cessou.
O velho estava morto. Empurrei a
cama e examinei o cadáver. Sim, es-
tava feito pedra, morto. Pousei a mão
sobre aquele coração e a mantive ali
27
por muito tempo. Não havia pulsa-
ção; estava totalmente morto. Seu
olho não me atormentaria mais.
Se ainda acha que estou louco, não
pensará mais assim depois que eu
descrever as sábias precauções que
tomei para ocultar o corpo. A noite
minguou e trabalhei com pressa,
mas em silêncio. Primeiramente, des-
membrei o cadáver. Cortei a cabeça,
os braços e as pernas. Depois, tirei três
tábuas do piso do quarto e depositei
tudo entre as vigas. Por fim, substituí
as placas com tanta destreza e astú-
cia que nenhum olho humano — nem
28
mesmo o dele — poderia identificar
alguma coisa errada. Não havia nada
para lavar — nenhuma mancha de
tipo algum, nem mesmo uma gota
de sangue, tamanha fora minha cau-
tela. Uma tina coletara todo o sangue
— ha, ha!
Quando terminei essas tarefas,
eram quatro da manhã — ainda es-
tava tão escuro quanto à meia-noite.
Quando o sino deu as horas, ouviu-se
uma batida na porta da casa. Desci
para abri-la de coração leve, pois o
que tinha a temer então? Entraram
três homens, que se apresentaram,
29
com a mais absoluta serenidade,
como oficiais da polícia. Durante a
noite, um vizinho ouvira um grito e
suspeitara de uma ilegalidade; infor-
mações foram apresentadas à polícia,
e eles, os policiais, foram destacados
para investigar a área.
Eu sorri, pois o que tinha a temer?
Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O
grito, expliquei, fora meu, enquanto
sonhava. O velho, comentei, tinha
ido para o campo. Conduzi meus vi-
sitantes por toda a casa. Pedi-lhes
que investigassem — e investigassem
muito bem. Levei-os, por fim, para o
30
quarto dele, do velho. Mostrei-lhes
seus tesouros, seguros, intocados.
No entusiasmo da minha confiança,
levei cadeiras para o quarto e as ofe-
reci para que, ali mesmo, os policiais
descansassem de sua fadiga, en-
quanto eu, na audácia desvairada de
meu triunfo perfeito, punha minha
própria cadeira sobre o mesmíssimo
ponto debaixo do qual jazia o cadáver
da vítima.
Os oficiais ficaram satisfeitos.
Meu comportamento os convencera;
eu estava particularmente tran-
quilo. Sentaram-se e, enquanto eu
31
respondia alegremente, conversaram
sobre assuntos familiares. Contudo,
dentro em pouco, senti que empalide-
cia e desejei que partissem. Minha ca-
beça doía, e eu imaginava um tinido
nos ouvidos; mas os policiais não se
levantaram nem deixaram de con-
versar. O tinido ficou mais distinto
— continuou, e ficou mais distinto;
falei com mais espontaneidade para
me livrar da sensação, mas ela per-
sistiu e ganhou um caráter definitivo
— até que, finalmente, descobri que o
barulho não estava dentro dos meus
ouvidos.
32
Sem dúvida, eu já estava muito
pálido — mas falei com ainda mais
fluência e a voz elevada. Contudo, o
som aumentava — e o que eu have-
ria de fazer? Era um som baixo, fraco
e ligeiro, tal qual o que faz um relógio
quando envolto em algodão. Arfei, sem
fôlego, e ainda assim os oficiais não
o ouviram. Falei mais depressa, com
mais veemência — mas o barulho
continuava a aumentar. Levantei-me
e discuti sobre futilidades, em tom
estridente e com gestos violentos
— mas o barulho continuava a au-
mentar. Por que não se retiravam? Eu
andava de um lado para o outro com
33
passos pesados, como se exaltado à
fúria pelos comentários dos homens
— mas o barulho continuava a au-
mentar.
Ah, meu Deus! O que eu haveria de
fazer? Espumei, vociferei, praguejei!
Sacudi a cadeira na qual estivera sen-
tado e a raspei sobre as tábuas, mas
o barulho sobrepujava a tudo e insis-
tia em aumentar. Ficou mais alto…
mais alto… mais alto! E os homens
não paravam de conversar, alegres,
e sorrir. Seria possível que não o ou-
vissem? Deus Todo-Poderoso! Não,
não! Eles ouviam… desconfiavam…
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sabiam! Zombavam do meu horror!
Foi isso o que pensei, e é o que acho.
Mas qualquer coisa era melhor do
que aquela agonia! Qualquer coisa
era mais tolerável do que aquele es-
cárnio! Eu não podia mais suportar
aqueles sorrisos hipócritas! Senti que,
se não gritasse, morreria! E então…
de novo! Escute! Mais alto! Mais alto!
Mais alto! Mais alto!
— Patifes! — berrei. — Parem de
fingir! Admito o ato! Arranquem as
tábuas! Aqui, aqui! São as batidas da-
quele horrendo coração!

FI M DO PR I M E I RO CO NTO

35
O S FAT O S N O
CASO DO SR.
VA L D E M A R
36
37
Os Fatos no
Caso do sr.
Valdemar
Edgar Allan Poe, 1845

É
claro que não fingirei
crer que a discussão ge-
rada pelo extraordinário
caso do sr. Valdemar seja de se admi-
rar. Teria sido um milagre se tal coisa
não acontecesse — principalmente,
38
dadas as circunstâncias. Em razão da
vontade de todas as partes envolvidas
de não revelar o assunto ao público,
pelo menos por enquanto, ou até que
tivéssemos mais oportunidades de
investigar — por meio de nossos es-
forços para lograr tal feito —, um re-
lato deturpado ou exagerado chegou
à sociedade e se tornou fonte de mui-
tas distorções desagradáveis e, muito
naturalmente, de grande descrença.
Agora, faz-se necessário que eu
narre os fatos — até onde os compre-
endo. Eles são, em suma, estes:
Minha atenção, durante os últimos
39
três anos, fora atraída repetidas vezes
ao assunto do mesmerismo2, e, cerca
de nove meses atrás, ocorreu-me,
muito de repente, que, na série de
experimentos feitos até então, havia
uma omissão das mais espantosas e
inexplicáveis: ninguém ainda havia
sido mesmerizado in articulo mor-
tis3. Restava saber, primeiro, se, nessa
2 No final do século XVIII, o médico alemão Franz An-
ton Mesmer criou o conceito de “magnetismo animal” ou
“mesmerismo”, que consiste na utilização da hipnose no
tratamento e cura de doenças em seres humanos. Ele acre-
ditava que todos os seres vivos possuíam uma espécie de
campo magnético ou força natural invisível que poderia
ter efeitos físicos, incluindo propriedades de cura, e que
esta força poderia ser transmitida através das mãos pelo
corpo. A prática é precursora do passe na doutrina espíri-
ta. [N. P.]
3 Na iminência ou na hora da morte. [N. T.]

40
condição, havia no paciente alguma
suscetibilidade à influência magné-
tica; e, segundo, se, caso existisse, a
condição a diminuía ou ampliava;
terceiro, em que grau, ou por quanto
tempo, o processo poderia deter a
ação da Morte. Havia outras questões
a determinar, mas essas eram as que
mais instigavam minha curiosidade
— em especial, a última, pelo caráter
imensamente importante de suas
consequências.
Ao procurar uma cobaia por meio
da qual pudesse verificar tais porme-
nores, fui levado a pensar em meu
41
amigo, sr. Ernest Valdemar, o célebre
organizador da Bibliotheca Forensica
e autor (sob o  nom de plume  de
Issachar Marx) das versões polone-
sas de Wallenstein e Gargântua. O sr.
Valdemar, que morou principalmente
no Harlem, em Nova York, desde o
ano de 1839, é (ou era) especialmente
notável pela extrema magreza de
sua pessoa, tendo os membros in-
feriores muito semelhantes aos de
John Randolph, e também pela bran-
cura de suas costeletas, em contraste
violento com a escuridão do cabelo
— este, por consequência, sendo ami-
úde confundido com uma peruca.
42
Seu temperamento era notoriamente
nervoso, tornando-o uma boa cobaia
para experimentos mesméricos. Em
duas ou três ocasiões eu o pusera
para dormir sem dificuldade, mas fi-
quei decepcionado com outros resul-
tados que sua constituição peculiar
me levou a antecipar naturalmente.
Sem sombra de dúvida, em nenhum
momento sua vontade ficou comple-
tamente sob meu controle; e, em re-
lação à clarividência, não obtive com
ele nada de confiável. Sempre atribuí
meu fracasso nesses aspectos ao seu
estado de saúde perturbado. Durante
alguns meses, antes de eu conhecê-lo,
43
seus médicos o haviam diagnosti-
cado com tísica crônica. Era costume
dele, na verdade, falar calmamente
de seu declínio vindouro como um
assunto que não deveria ser evitado
nem lamentado.
Quando as ideias a que me referi
me ocorreram pela primeira vez, é
claro que foi muito natural para mim
pensar no sr. Valdemar. Eu conhecia
bem demais a filosofia firme do ho-
mem para recear quaisquer escrúpu-
los da parte dele, e o sr. Valdemar não
tinha parentes no país que pudessem
interferir. Falei com ele francamente
44
sobre o assunto, e, para minha sur-
presa, seu interesse pareceu desper-
tar vividamente. Digo para minha
surpresa pois, embora ele sempre te-
nha cedido sua pessoa de bom grado
aos meus experimentos, nunca me
dera nenhum sinal de afinidade com
o que eu fazia. A doença que o afli-
gia era daquela natureza que admi-
tia calcular com exatidão a época de
seu término em morte. Desse modo,
por fim, decidimos entre nós que ele
mandaria me chamar cerca de vinte e
quatro horas antes do período anun-
ciado por seus médicos como o de seu
falecimento.
45
Passaram-se mais de sete me-
ses desde que recebi do próprio sr.
Valdemar o bilhete anexo:
“MEU CARO P…,
“Já pode vir agora mesmo. D… e
F… acreditam que não hei de aguen-
tar até amanhã à meia-noite, e creio
que devem ter acertado o horário.
“VALDEMAR.”
Recebi o bilhete dentro de meia
hora depois que foi escrito, e com
mais quinze minutos já estava no
quarto do moribundo. Eu não o via
fazia dez dias e fiquei horrorizado
com a transformação terrível que o
46
breve intervalo havia operado nele.
Seu rosto exibia um tom de chumbo,
os olhos estavam completamente
sem brilho e a emaciação era tão ex-
trema que a pele fora rompida pelos
ossos malares. A expectoração era
excessiva. Mal se percebia o pulso. Ele
preservava, no entanto, e de maneira
extraordinária, tanto a capacidade
mental quanto certo grau de força
física. Falou com distinção, tomou
alguns remédios paliativos sem pre-
cisar de ajuda e, quando entrei no
quarto, estava ocupado esboçando
memorandos a lápis num caderni-
nho, sentado na cama, apoiado em
47
travesseiros. Os médicos D… e F…
estavam presentes.
Depois de aper ta r a mão de
Valdemar, puxei aqueles cavalheiros
à parte e obtive deles um relato minu-
cioso da condição do paciente. Havia
dezoito meses que o pulmão esquerdo
chegara a um estado semiossificado
ou cartilaginoso e, é claro, tornara-
-se completamente inútil a todos os
propósitos de vitalidade. O direito,
na porção superior, também estava
parcial, se não completamente, ossi-
ficado, enquanto a região inferior não
passava de uma massa de tubérculos
48
purulentos, esbarrando uns contra
os outros. Havia várias perfurações
extensas, e, num ponto, ocorrera ade-
são permanente às costelas. Aquelas
aparições no lado direito eram de
uma data mais recente. A ossificação
havia prosseguido com uma rapidez
muito incomum; um mês antes, não
se descobrira nenhum sinal dela, e a
adesão só fora identificada durante
os três dias anteriores. Além da tísica,
suspeitava-se que o paciente sofrera
um aneurisma da aorta; mas, quanto
a isso, os sintomas ósseos impos-
sibilitavam um diagnóstico exato.
Ambos os médicos acreditavam que
49
o sr. Valdemar morreria em torno
da meia-noite do dia seguinte (do-
mingo). Eram, então, sete horas da
noite de sábado.
Ao deixar a cama do paciente para
travar uma conversa comigo, os dou-
tores D… e F… despediram-se dele
pela última vez. Não tinham a inten-
ção de voltar, mas, a meu pedido, con-
cordaram em visitar o paciente por
volta das dez horas da noite seguinte.
Quando eles se foram, falei sem
reservas com o sr. Valdemar sobre o
assunto de seu falecimento vindouro,
bem como, mais particularmente,
50
do experimento proposto. Ele ainda
se declarava disposto e até ansioso
por isso e pediu que eu começasse
o quanto antes. Havia uma enfer-
meira e um enfermeiro à disposição,
mas eu não me sentia totalmente
à vontade para realizar uma tarefa
daquela natureza sem testemunhas
mais confiáveis do que aquelas, em
caso de acidente repentino, poderiam
revelar que eram. Portanto, adiei os
procedimentos até cerca de oito horas
da noite seguinte, quando a chegada
de um estudante de medicina que eu
conhecia, o sr. Theodore L…l, aliviou-
-me de mais constrangimento. Meu
51
plano original fora esperar pelos mé-
dicos, mas fui induzido a prosseguir,
primeiro, pelas súplicas urgentes do
sr. Valdemar e, segundo, por minha
convicção de que não tinha um mo-
mento sequer a perder, pois era evi-
dente que ele decaía a toda pressa.
O sr. L…l fez a gentileza de aquies-
cer ao meu desejo e anotar tudo o
que acontecesse, e é a partir de seus
memorandos que aquilo que agora
tenho a narrar será, na maior parte,
condensado ou copiado verbatim.
Faltavam cerca de cinco minutos
para as oito quando, pegando a mão
52
do paciente, pedi-lhe que declarasse
ao sr. L…l, com as palavras mais ní-
tidas possíveis, se ele, o sr. Valdemar,
estava plenamente disposto a dei-
xar que eu fizesse o experimento de
mesmerizá-lo na condição em que se
encontrava.
Ele respondeu com voz fraca, mas
muito audível:
— Sim, quero ser mesmerizado.
— Logo em seguida, acrescentou: —
Receio que você tenha adiado demais
o procedimento.
Enquanto assim falava, comecei
os passes que já havia descoberto
53
serem mais eficazes em subjugá-
-lo. Ele foi obviamente influenciado
pelo primeiro gesto lateral da mi-
nha mão diante de sua testa; mas,
embora tenha empregado todos os
meus poderes, não houve nenhum
efeito perceptível até alguns minutos
após as dez horas, quando os douto-
res D… e F… chegaram, atendendo
ao compromisso. Expliquei-lhes em
poucas palavras o que planejava e,
como não fizeram nenhuma objeção,
dizendo que o paciente já estava na
agonia da morte, procedi sem hesitar
— trocando, no entanto, os passes la-
terais pelos movimentos para baixo
54
e dirigindo meu olhar inteiramente
para o olho direito do sofredor.

Àquela altura, seu pulso era im-


perceptível e sua respiração esterto-
rosa, ocorrendo a intervalos de meio
minuto.

Essa condição permaneceu quase


inalterada por um quarto de hora. No
fim desse período, contudo, um sus-
piro natural, embora muito profundo,
escapou do peito do moribundo, e a
respiração estertorosa cessou — isto
é, os estertores já não se faziam no-
tar; os intervalos não diminuíram.
55
As extremidades do paciente eram
de uma frieza gélida.
Aos cinco minutos antes das
onze, percebi sinais inequívocos da
influência mesmérica. O movimento
vítreo do olho foi substituído por
aquela expressão de investigação in-
terna e inquieta que nunca se vê, a
não ser em casos de sonambulismo,
e que é quase inconfundível. Com
alguns passes laterais rápidos, fiz as
pálpebras estremecerem, como no
sono incipiente, e com mais algumas
as fechei por completo. No entanto,
isso não me satisfez, e continuei as
56
manipulações com vigor e o má-
ximo empenho da vontade até haver
enrijecido por completo os braços e
pernas do adormecido, depois de dei-
xá-los numa posição aparentemente
fácil. As pernas estavam totalmente
esticadas; os braços, quase da mesma
forma, jaziam sobre a cama a uma
distância moderada dos quadris. A
cabeça estava levemente elevada.
Quando cheguei a esse resultado,
já era meia-noite, e pedi aos cavalhei-
ros presentes que examinassem a
condição do sr. Valdemar. Depois de
algumas experiências, admitiram
57
que ele entrara num estado excep-
cionalmente perfeito de transe mes-
mérico. A curiosidade dos médicos
estava muito atiçada. Na mesma
hora, o dr. D… decidiu ficar com o
paciente a noite toda, enquanto o dr.
F… se despediu com a promessa de
voltar ao raiar do dia. O sr. L…l e os
enfermeiros ficaram.
Só perturbamos o sr. Valdemar
por volta das três horas da manhã,
quando me aproximei dele e o encon-
trei exatamente na mesma condição
de quando o dr. F… partira — isto é,
deitado na mesma posição; o pulso
58
era imperceptível; a respiração, suave
(quase não se notava, a menos que se
aproximasse um espelho dos lábios);
os olhos encontravam-se fechados,
naturalmente; e os braços e pernas
estavam rígidos e frios como már-
more. Ainda assim, a aparência geral
sem dúvida não era a da morte.
Ao me aproximar do sr. Valdemar,
fiz uma espécie de tentativa de in-
fluenciar seu braço direito a acompa-
nhar o meu, enquanto o passava com
delicadeza para lá e para cá por cima
de sua pessoa. Em tais experimen-
tos com aquele paciente, eu nunca
59
tivera êxito perfeito e, com certeza,
dessa vez, também não tinha grande
esperança de sucesso; mas, para meu
espanto, seu braço, embora fraco,
acompanhou muito prontamente to-
das as direções que determinei com
o meu. Decidi arriscar a troca de al-
gumas palavras.
— Sr. Valdemar — chamei —, está
dormindo?
Ele não respondeu, mas percebi
um tremor nos lábios e, assim, fui
incentivado a repetir a pergunta, de
novo e de novo. Na terceira repetição,
um levíssimo tremor agitou todo
60
seu corpo, as pálpebras se abriram a
ponto de exibir uma linha branca do
globo ocular, os lábios se moveram
vagarosos e, dentre eles, num sus-
surro quase inaudível, emitiram-se
as palavras:

— Sim… estou dormindo. Não me


acorde! Deixe-me morrer assim!

Apalpei os braços e as pernas dele


e os encontrei mais rígidos do que
nunca. O braço direito, como antes,
obedeceu à direção da minha mão.
Questionei o sonâmbulo uma vez
mais:
61
— Ainda sente dor no peito, sr.
Valdemar?
Dessa vez, a resposta foi imediata,
mas ainda menos audível do que an-
tes:
— Não há dor… Estou morrendo.
Não me pareceu oportuno pertur-
bá-lo ainda mais por enquanto, e nada
mais foi dito ou feito até a chegada
do dr. F…, que chegou pouco antes
do amanhecer e expressou espanto
desmedido ao encontrar o paciente
ainda vivo. Depois de sentir o pulso
e aproximar um espelho dos lábios,
62
ele pediu que eu voltasse a falar com
o sonâmbulo. Foi o que fiz, dizendo:
— Sr. Valdemar, ainda está dor-
mindo?
Tal como antes, alguns minutos
se passaram antes que houvesse res-
posta; e, durante o intervalo, o mori-
bundo pareceu estar reunindo forças
para falar. À quarta repetição da
pergunta, falou com uma voz muito
fraca, quase inaudível:
— Sim, ainda estou dormindo…
morrendo.
Nesse momento, os médicos con-
sideraram, ou melhor, pediram que
63
o sr. Valdemar fosse deixado em paz
na sua condição aparentemente tran-
quila até que a morte sobreviesse — e
a opinião geral era de que isso acon-
teceria dentro de alguns minutos.
Decidi, contudo, falar com ele uma
vez mais, e limitei-me a repetir a per-
gunta anterior.
Enquanto eu falava, houve uma
mudança notável no semblante do
sonâmbulo. Os olhos se abriram de-
vagar, com as pupilas reviradas para
cima, desaparecendo; a pele adqui-
riu uma tonalidade cadavérica, pa-
recendo não tanto um pergaminho,
64
mas uma folha de papel branco; e as
marcas circulares de rubor que, até
então, eram muito visíveis no centro
de cada bochecha, apagaram-se num
instante. Uso essa expressão porque
a rapidez do desaparecimento me fez
pensar na chama de uma vela extinta
por um sopro de ar. Ao mesmo tempo,
o lábio superior se retorceu, revelando
os dentes, que antes cobriam por com-
pleto, enquanto a mandíbula inferior
caiu com um estalo audível, escanca-
rando a boca e exibindo a todos a lín-
gua inchada e escurecida. Presumo
que nenhuma das pessoas então pre-
sentes estivesse desacostumada aos
65
horrores do leito de morte, mas tão
horrenda e inconcebível era a aparên-
cia do sr. Valdemar naquele momento
que houve um movimento geral de
recuo da área da cama.
Agora creio ter chegado a um
ponto desta narrativa em que o cho-
que lançará cada leitor na mais abso-
luta descrença. A mim cabe, contudo,
simplesmente prosseguir.
Já não havia o menor sinal de vi-
talidade no sr. Valdemar; concluindo
que estava morto, estávamos entre-
gando-o aos cuidados dos enfermei-
ros quando se observou um forte
66
movimento vibratório na língua. Tal
ocorrência continuou por cerca de um
minuto. Ao final desse período, er-
gueu-se das mandíbulas distendidas
e inertes uma voz — e seria loucura
da minha parte tentar descrevê-la.
Há, na verdade, dois ou três epítetos
que se poderia aplicar a ela, em parte;
poderia-se dizer, por exemplo, que o
som era rouco, irregular e oco, mas a
totalidade hedionda é indescritível
pela simples razão de que nenhum
som semelhante jamais abalou os
ouvidos da humanidade. Havia dois
pormenores, no entanto, que consi-
derei então, e ainda considero, que
67
poderiam ser classificados como ca-
racterísticos da entonação — tão bem
adaptados estavam para transmitir
a ideia de sua peculiaridade sobre-
natural. Em primeiro lugar, a voz
parecia chegar aos nossos ouvidos
— pelo menos aos meus — de uma
vasta distância, ou de alguma ca-
verna profunda no interior da terra.
Em segundo lugar, impressionou-me
(receio, na verdade, que será impossí-
vel fazer-me compreender) tal como
a matéria gelatinosa ou pegajosa im-
pressiona o sentido do tato.
Falei tanto do “som” quanto da
68
“voz”. Digo agora que a separação
das sílabas era distinta — até mesmo
maravilhosa e esplendidamente dis-
tinta. O sr. Valdemar falou, obvia-
mente em resposta à pergunta que eu
lhe havia feito alguns minutos antes.
Eu perguntara, deve-se lembrar, se
ele ainda dormia. E ele disse:
— Sim… não… eu  estava dor-
mindo… e agora… agora…  estou
morto.
Nenhuma pessoa presente sequer
fingiu negar, nem tentou reprimir,
o horror inexprimível e trêmulo
que essas poucas palavras, assim
69
proferidas, foram tão bem calcula-
das para comunicar. O sr. L…l (o es-
tudante) desmaiou. Os enfermeiros
saíram do quarto imediatamente, e
foi impossível convencê-los a voltar.
Não tenho a pretensão de tornar mi-
nhas próprias impressões inteligíveis
para o leitor. Por quase uma hora,
ocupamo-nos, em silêncio — sem
pronunciar uma única palavra —
em tentativas de reanimar o sr. L…l.
Quando ele recobrou os sentidos, vol-
tamos a investigar a condição do sr.
Valdemar.
Permanecia em todos os aspectos
70
tal como a descrevi anteriormente,
com a exceção de que o espelho não
oferecia mais sinais de respiração.
Uma tentativa de extrair sangue do
braço fracassou. Devo dizer, também,
que esse membro não estava mais
sujeito à minha vontade. Esforcei-me
em vão para fazê-lo seguir a direção
da minha mão. Na verdade, naquela
hora, a única indicação real da in-
fluência mesmérica se via no movi-
mento vibratório da língua sempre
que eu dirigia uma pergunta ao sr.
Valdemar. Ele parecia estar se es-
forçando para responder, mas não
lhe restava vontade suficiente. Às
71
perguntas propostas por qualquer
outra pessoa que não eu, ele parecia
totalmente indiferente — ainda que
eu tentasse colocar cada um dos pre-
sentes em sintonia mesmérica com
ele. Acredito que agora narrei tudo
o que é necessário à compreensão do
estado do sonâmbulo naquele mo-
mento. Outros enfermeiros foram
convocados, e às dez horas saí da casa
em companhia dos dois médicos e do
sr. L…l.
À tarde, todos voltamos para ver
o paciente. Sua condição permanecia
exatamente igual à de antes. Tivemos
72
então um debate sobre a justeza e
a possibilidade de despertá-lo, mas
não tivemos muita dificuldade em
concordar que fazê-lo não serviria
a nenhum propósito bom. Era óbvio
que, até o momento, a morte (ou o
que geralmente se chama de morte)
fora detida pelo processo mesmérico.
Parecia claro para todos nós que des-
pertar o sr. Valdemar seria apenas
garantir sua decomposição instantâ-
nea, ou, no mínimo, ligeira.
Desse período até o final da se-
mana passada — um intervalo de quase
sete meses  — continuamos a fazer
73
visitas diárias à casa do sr. Valdemar,
acompanhados, de vez em quando,
de médicos e outros amigos. Por todo
esse tempo, o adormecido-desperto
permaneceu exatamente como já o
descrevi. Os cuidados dos enfermei-
ros foram contínuos.

Foi na sexta-feira passada que


finalmente decidimos fazer o expe-
rimento de despertá-lo, ou de tentar
despertá-lo; e foi o resultado (talvez)
lamentável de tal experimento que
gerou tanta discussão em círculos
particulares — e tanto do que não
74
posso deixar de ver como um senti-
mento popular injustificado.
Na intenção de a l iv ia r o sr.
Valdemar do transe mesmérico, re-
corri aos passes habituais. Estes,
por um tempo, não tiveram êxito. O
primeiro sinal de reavivamento foi
proporcionado pela descida parcial
da íris. Observou-se como especial-
mente notável que tal movimento
tenha sido acompanhado pelo derra-
mamento profuso de um icor ama-
relado (de baixo das pálpebras) com
um odor pungente e muitíssimo de-
sagradável.
75
Sugeriu-se então que eu deveria
tentar inf luenciar o braço do pa-
ciente, como outrora. Tentei e fracas-
sei. O dr. F… sugeriu que eu fizesse
uma pergunta. Foi o que fiz, tal como
segue:
— Sr. Valdemar, pode nos explicar
quais são seus sentimentos ou dese-
jos neste momento?
Na mesma hora, os círculos febris
de rubor voltaram às bochechas; a
língua estremeceu, ou melhor, sa-
cudiu-se violentamente na boca
(embora as mandíbulas e os lábios
permanecessem rígidos como antes);
76
e, por fim, a mesma voz hedionda que
já descrevi de lá irrompeu:
— Pelo amor de Deus!… Já!… Já!…
Ponha-me para dormir… ou… Já!…
Acorde-me!… Já!… Eu já lhe disse que
estou morto!
Fiquei absolutamente alarmado
e, por um instante, não consegui de-
cidir o que fazer. A princípio, fiz uma
tentativa de tranquilizar o paciente,
mas, falhando nisso por meio da
evasão total da vontade, refiz meus
passos e me dediquei com afinco a
despertá-lo. Nessa tentativa, logo per-
cebi que teria êxito — ou, pelo menos,
77
logo imaginei que meu êxito seria
total — e tenho certeza de que todos
no quarto estavam preparados para
ver o paciente despertar.
Para o que de fato aconteceu, po-
rém, é completamente impossível
que qualquer ser humano pudesse
estar preparado.
Enquanto eu repetia rapida-
mente os passes mesméricos, em
meio às exclamações de “Morto!
Morto!” que vertiam copiosamente
da língua e não dos lábios do sofre-
dor, de uma só vez, todo o seu corpo
— dentro de um único minuto, ou
78
ainda menos — murchou, desmo-
ronou e apodreceu por completo sob
minhas mãos. Na cama, diante de
toda aquela gente, jazia uma massa
quase líquida de putrescência repug-
nante — e detestável.

F I M DO S EG U N DO CO NTO

79
O BARRIL DE
AMONTILLADO

80
81
O Barril de
Amontillado
Edgar Allan Poe, 1846

A
s mil ofensas de Fortunato
eu suportara da melhor
maneira possível, mas,
quando ele se aventurou a passar do
limite, jurei vingança. Você, que co-
nhece tão bem a natureza de minha
alma, não vá supor, contudo, que dei
voz a uma ameaça. No devido tempo,
82
eu me vingaria; essa era uma questão
consolidada em caráter definitivo —
mas esse mesmo caráter anulava a
ideia do risco. Eu não deveria somente
punir, mas punir com impunidade. O
mal não se repara se a reparação se
voltar contra o reparador. Fica igual-
mente sem reparo quando o vingador
não consegue mostrar-se como tal
para aquele que o prejudicou.
Deve-se entender que nem por pa-
lavra nem por gesto dei a Fortunato
razão para duvidar de minha boa
vontade. Continuei, como de hábito, a
sorrir diante dele, e ele não percebeu
83
que eu passara a sorrir por pensar na
sua imolação.
Ele tinha um ponto fraco, esse
Fortunato, embora em outros aspec-
tos fosse um homem a se respeitar e
até a se temer: orgulhava-se de seu
conhecimento de vinhos. Poucos
italianos têm o verdadeiro espírito
virtuoso. A maior parte adota o entu-
siasmo para se adequar ao momento
e à ocasião, para exercer a impostura
perante os milionários ingleses e aus-
tríacos. Na pintura e na joalheria,
Fortunato, como seus conterrâneos,
era um charlatão, mas, em se tratando
84
de vinhos antigos, era genuíno. Nesse
aspecto, não éramos muito diferen-
tes um do outro; eu mesmo era um
hábil conhecedor das safras italianas
e adquiria muitos vinhos sempre que
podia.
Foi ao cair da noite, durante a lou-
cura suprema da época de carnaval,
que encontrei meu amigo. Ele me
abordou com excessivo regalo, pois
já bebera muito. Estava vestido de
bufão: usava um traje listrado em
algumas partes e ajustado ao corpo,
e sua cabeça estava coberta com
um gorro em formato de cone com
85
guizos. Fiquei tão feliz em vê-lo que
achei que nunca pararia de apertar
sua mão, dizendo-lhe:
— Meu caro Fortunato, que ale-
gria encontrá-lo. Com que bela apa-
rência está hoje! Mas recebi um barril
de algo que se passa por amontillado
e tenho cá minhas dúvidas.
— Como é que é? — retrucou ele. —
Amontillado? Um barril? Impossível!
E bem no meio do carnaval!
— Tenho cá minhas dúvidas —
respondi — e fui tolo o bastante para
pagar o preço total do amontillado
sem consultá-lo a respeito. Não
86
consegui encontrá-lo e tive medo de
perder a pechincha.
— Amontillado!
— Tenho cá minhas dúvidas.
— Amontillado!
— E preciso dirimi-las.
— Amontillado!
— Como você tem um compro-
misso, vou procurar por Luchesi. Se
alguém é capaz de perceber, é ele. Ele
poderá me dizer…
— Luchesi não consegue distin-
guir amontillado de xerez.
— A inda assim, cer tos tolos
87
acreditam que o paladar dele é páreo
para o seu.
— Venha, vamos lá.
— Aonde?
— À sua adega.
— Não, meu amigo; não vou me
aproveitar de sua boa vontade. Estou
vendo que tem um compromisso.
Luchesi…
— Não tenho compromisso ne-
nhum. Vamos.
— Não, meu amigo. Não é o com-
promisso, mas esse forte resfriado
que percebi que o aflige. A adega é
88
insuportavelmente úmida. Está in-
crustada de salitre.
— Vamos mesmo assim. O res-
friado não é nada. Amontillado! Eu
é que vou me aproveitar de você. E,
quanto a Luchesi, ele não consegue
distinguir xerez de amontillado.
Assim falando, Fortunato tomou
posse do meu braço. Colocando uma
máscara de seda preta e cobrindo-me
com meu capote, deixei que ele me
conduzisse depressa ao meu palazzo.
Não havia nenhum empregado
em casa; tinham escapulido para se
divertir, fazendo jus à época. Eu lhes
89
dissera que só voltaria na manhã do
dia seguinte, deixando ordens explí-
citas para que não saíssem de casa.
Essas ordens bastaram, como eu bem
sabia, para garantir o desapareci-
mento imediato de todos assim que
lhes dei as costas.
Tirei dos suportes duas tochas e,
entregando uma a Fortunato, fi-lo
curvar-se para atravessar diversos
cômodos até a arcada que levava
à adega. Desci uma escada longa e
sinuosa, pedindo-lhe que tomasse
cuidado ao me seguir. Chegamos, fi-
nalmente, ao pé da escada, e pisamos
90
juntos o chão úmido das catacumbas
dos Montresor.
O andar do meu amigo oscilava,
e os guizos em seu gorro tilintavam
enquanto caminhava.
— E o barril? — quis saber.
— Está mais adiante — respondi
—, mas observe a teia branca a cinti-
lar nessas paredes cavernosas.
Ele se voltou para mim e fitou
meus olhos com dois orbes turvos
que destilavam a reuma da embria-
guez.
— É salitre? — perguntou, por fim.
91
— Isso mesmo. Há quanto tempo
você tem essa tosse?
— Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof!…
Cof, cof, cof!… Cof, cof, cof!… Cof, cof,
cof!
Durante alguns minutos, meu po-
bre amigo foi incapaz de responder.
— Não é nada —disse ele, final-
mente.
— Venha — chamei, decidido. —
Vamos voltar; sua saúde é preciosa.
Você é rico, respeitado, admirado,
amado; é feliz, como já fui. Sentiriam
sua falta. Quanto a mim, não há pro-
blema; vamos voltar, ou você ficará
92
doente, e não quero ser responsável.
Além disso, Luchesi pode…
— Basta — insistiu ele. — A tosse
não é nada; não vai me matar. Não
morrerei de tosse.
— Verdade… verdade — respondi.
— E, além disso, eu não tinha inten-
ção de alarmá-lo sem necessidade,
mas você deveria tomar todo o cui-
dado possível. Um trago deste médoc
nos protegerá da umidade.
Nesse momento, abri o gargalo de
uma garrafa que tirei de uma longa
fileira de suas iguais, que jaziam so-
bre o mofo.
93
— Beba — falei, oferecendo-lhe o
vinho.
Ele o ergueu aos lábios com um
olhar de soslaio. Parou e abanou a ca-
beça para mim num gesto camarada,
enquanto seus guizos tilintavam, di-
zendo:
— Bebo aos que foram enterrados
e repousam ao nosso redor.
— E eu, à sua vida longa.
Mais uma vez, ele pegou meu
braço e prosseguimos.
— Esta cripta é profunda — co-
mentou ele.
94
— Os Montresor foram uma famí-
lia grande e numerosa — redargui.
— Esqueci seu brasão.
— Um enorme pé humano de ouro
em um campo azul; o pé esmaga uma
serpente feroz cujas presas estão cra-
vadas no calcanhar.
— E o lema?
— Nemo me impune lacessit.4
— Ótimo! — disse ele.
O vinho cintilava em seus olhos e
os guizos tilintavam. O médoc tam-
bém aqueceu minha imaginação.
4 Do latim: “ninguém me ataca impunemente”. [N. T.]

95
Havíamos passado por paredes de
ossos empilhados, intercalados de
tonéis e pipas, rumo aos recantos
mais íntimos das catacumbas. Parei
novamente e, dessa vez, atrevi-me a
pegar Fortunato pelo braço, acima do
cotovelo.
— O salitre! — exclamei. — Veja,
está cada vez mais abundante. Pende
do teto feito musgo. Estamos abaixo
do leito do rio. A umidade se infiltra
por entre os ossos. Venha, vamos vol-
tar antes que seja tarde demais. Sua
tosse…
— Não é nada — disse ele. Vamos
96
em frente. Mas, primeiro, mais um
trago do médoc.
Abri e entreguei-lhe um frasco de
vinho de Graves, que ele esvaziou de
uma vez só. Seus olhos irradiaram
uma luz feroz. Ele riu e jogou a gar-
rafa para cima com um gesto que não
entendi.
Encarei-o, surpreso. Ele repetiu o
movimento — que era grotesco.
— Não compreendeu? — pergun-
tou.
— Não — respondi.
— Então você não é da irmandade.
97
— Como assim?
— Você não é maçom.
— Sou, sim — afirmei. — Sou, sim.
— Você? Impossível! Você, ma-
çom?
— Maçom, sim.
— Então mostre um símbolo —
disse ele.
— Ei-lo — respondi, exibindo a co-
lher de pedreiro que levava debaixo
do meu capote.
— Está brincando! — exclamou
ele, recuando alguns passos. — Mas
vamos atrás do amontillado.
98
— Que assim seja — concordei,
guardando a ferramenta outra vez e
oferecendo-lhe o braço, no qual ele se
apoiou pesadamente.
Continuamos nossa rota em busca
do amontillado. Passamos por uma
série de arcos baixos, descemos, se-
guimos em frente e descemos outra
vez, chegando a uma cripta profunda,
na qual a impureza do ar fez com que
nossas tochas apenas incandesces-
sem, em vez de arder em chamas.
No canto mais remoto da cripta
havia outra menos espaçosa. As pa-
redes estavam revestidas de restos
99
humanos empilhados até a abóbada,
à moda das grandes catacumbas de
Paris. Três lados dessa cripta inte-
rior continuavam ornamentados
dessa maneira. Do quarto, os ossos
haviam sido arrancados e jaziam de-
sordenados sobre a terra, formando
um monte de tamanho considerável.
Dentro da parede exposta pela reti-
rada dos ossos divisamos outro ni-
cho interno, com cerca de um metro
e vinte de profundidade, quase um
de largura e de altura mais ou menos
dois metros. Parecia ter sido constru-
ído sem nenhum propósito em es-
pecial, formando apenas o intervalo
100
entre dois dos colossais suportes do
teto das catacumbas, e era apoiado
por uma das paredes de granito só-
lido que o cercavam.
Foi em vão que Fortunato, er-
guendo sua tocha quase apagada, es-
forçou-se para espiar as profundezas
do nicho. A luz fraca não nos permi-
tiu enxergar sua extremidade.
— Prossiga — anunciei. — Aí está
o amontillado. Quanto a Luchesi…
— Ele é um ignorante — inter-
rompeu-me o meu amigo, avançando
e lá entrando sem firmeza nos passos,
enquanto eu ia logo em seu encalço.
101
Num instante, ele alcançou o li-
mite do nicho e, vendo seu progresso
detido pela parede de rocha, parou,
estupidamente aturdido. Mais um
momento e eu já o tinha agrilhoado
ao granito. Na superfície da rocha
havia duas argolas de ferro, distantes
uma da outra cerca de meio metro, no
sentido horizontal. De uma pendia
uma corrente curta; da outra, um ca-
deado. Jogando os elos da corrente em
torno da cintura dele, fechar o cade-
ado foi tarefa de meros segundos. Ele
estava atônito demais para resistir.
Retirando a chave, saí do nicho.
102
— Passe a mão pela parede — fa-
lei. — É impossível não sentir o sali-
tre. Na verdade, é muito úmido. Mais
uma vez, deixe-me implorar para vol-
tarmos. Não? Então, sem dúvida, vou
deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-
-lhe todos os pequenos cuidados que
estiverem ao meu alcance.
— O amontillado! — exclamou
meu amigo, que ainda não se recupe-
rara do assombro.
— É verdade — respondi. — O
amontillado.
Ao dizer tais palavras, revolvi a
pilha de ossos que mencionei antes.
103
Jogando-os de lado, logo descobri
certa quantidade de pedras para
construção e argamassa. Com esses
materiais e o auxílio da minha colher
de pedreiro, comecei a cobrir vigoro-
samente a entrada do nicho.
Mal completara a primeira ca-
mada de alvenaria quando descobri
que a embriaguez de Fortunato ha-
via, em grande parte, se dissipado. O
primeiro sinal que tive disso foi um
lamento baixo vindo das profunde-
zas do nicho; não foi o lamento de um
bêbado. Em seguida, sobreveio um
silêncio longo e obstinado. Completei
104
a segunda camada, a terceira e a
quarta; então, ouvi a trepidação fu-
riosa da corrente. O som durou vários
minutos, durante os quais, para po-
der ouvi-lo com a máxima satisfação,
cessei meu trabalho e sentei-me sobre
os ossos. Quando, por fim, o barulho
diminuiu, retomei a colher e concluí
sem interrupção a quinta, a sexta e a
sétima camadas. A parede já chegava
quase à altura do meu peito. Mais
uma vez, parei e, segurando a tocha
acima da construção, lancei alguns
raios fracos sobre a figura no interior
dela.
105
Uma sucessão de gritos ruidosos e
estridentes, irrompendo, súbitos, da
garganta da figura acorrentada, pare-
ceu me empurrar violentamente para
trás. Por um breve momento, hesitei;
tremi. Desembainhando meu florete,
comecei a tatear com ele o nicho, mas
bastou pensar por um instante para
me tranquilizar. Pousei a mão sobre
a estrutura sólida das catacumbas e
fiquei satisfeito. Mais uma vez, apro-
ximei-me da parede. Respondi aos
gritos daquele que clamava. Eu os
reecoei, auxiliei-os, superei-os em
volume e força. Fiz isso, e aquele que
clamava silenciou.
106
Era meia-noite e minha tarefa
se aproximava do fim. Havia com-
pletado a oitava, a nona e a décima
camada. Também terminara uma
parte da última, a décima primeira;
restava apenas uma única pedra
para encaixar e fixar com reboco.
Esforcei-me para erguer o peso e dei-
xei-a parcialmente na posição desti-
nada. Mas, então, veio do nicho uma
risada baixa que arrepiou os cabelos
da minha cabeça. Foi sucedida por
uma voz triste, que tive dificuldade
em reconhecer como a do nobre
Fortunato. Disse a voz:
107
— Ha, ha, ha!… He, he, he!… Ótima
piada, sem dúvida… Excelente zom-
baria. Vamos rir à farta disso no pala-
zzo… he, he, he!… Tomando vinho…
he, he, he!
— O amontillado! — falei.
— He, he, he!… He, he, he!… Sim,
o amontillado. Mas não está ficando
tarde? Não devem estar nos espe-
rando no palazzo… a sra. Fortunato
e os outros? É hora de ir.
— Sim — respondi. — É hora de ir.
— Pelo amor de Deus, Montresor!
— Sim — repeti. — Pelo amor de
Deus!
108
Mas a essas palavras esperei em
vão por uma resposta. Perdi a paci-
ência e gritei:
— Fortunato!
Respondeu-me o silêncio. Gritei
mais uma vez:
— Fortunato!
Ainda, o silêncio. Passei a tocha
pela abertura que restava e a deixei
cair no interior do nicho. Veio em
resposta apenas o tilintar dos gui-
zos. Meu coração pesava — era por
causa da umidade das catacumbas.
Apressei-me a concluir minha obra
e empurrei a última pedra para sua
109
posição, fixando-a com reboco. De en-
contro à nova parede, reergui a antiga
muralha de ossos. Durante meio sé-
culo, nenhum mortal os perturbou.
In pace requiescat!

F I M DO TE RC E I RO CO NTO

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111
E X TR A: BIOGR AFIA

Edgar Allan Poe


Corvos, corações arrancados, assas-
sinatos macabros. A literatura nunca
mais foi a mesma depois que a caneta
de Edgar Allan Poe tocou o papel.
112
O mestre do terror nasceu em 19
de janeiro de 1809, em Boston, nos
Estados Unidos, filho de dois atores,
Eliza e David Poe. A matriarca pre-
cisou cuidar dos três filhos sozinha
após David abandonar a família, e
morreu cedo após contrair tubercu-
lose. Edgar ficou sob os cuidados de
John e Frances Allan, mas nunca foi
oficialmente adotado, tendo conflitos
constantes com o pai adotivo.
Poe estudou na Escócia e na
Inglaterra, onde recebeu uma educa-
ção clássica, e continuou seus estudos
em Richmond, nos Estados Unidos.
113
Ele frequentou a Universidade da
Virgínia durante o ano de 1826, mas
começou a enfrentar problemas fi-
nanceiros ao se envolver com jogos
de azar.
Sua carreira literária começou
com a publicação de uma coletânea
de poemas intitulada “Tamerlane
and Other Poems”, sob o pseudônimo
“A Bostonian", em 1827, mas o mundo
precisaria esperar alguns poucos
anos para conhecer o grande autor
que ele viria a se tornar.
Ainda novo, se juntou ao exército
sob o nome de “Edgar Perry” e se saiu
114
excepcionalmente bem, conseguindo
se tornar sargento em apenas dois
anos de serviço. Ele então foi para
West Point, onde mais uma vez se saiu
bem, agora academicamente, mas
voltou a ter problemas financeiros.
Ele então se mudou para Baltimore,
onde ficou por quatro anos, vivendo
com diversos familiares. Foi durante
seu período na cidade que começou a
escrever contos e a despertar o inte-
resse de periódicos literários.
O Southern Literary Messenger,
que ficava em Richmond, foi o pri-
meiro a contratá-lo e foi o veículo que
115
publicou suas primeiras histórias de
terror: “Metzengerstein” e “Berenice”.
Essa última foi considerada tão grá-
fica e aterrorizante que a revista
recebeu várias reclamações dos lei-
tores. O editor do periódico ofereceu
um emprego a Poe e ele retornou a
Richmond.
Poe convidou sua tia, Maria, e
prima, Virginia, para morar com ele
em Richmond e, um ano depois, Poe
e Virginia se casaram. Ela tinha 13
anos, ele 27, e há muito debate a res-
peito da natureza do relacionamento
deles. Poe muitas vezes se referia a
116
Virginia como irmã e Maria como
mãe. Segundo o The Poe Museum,
"embora muitas pessoas, hoje, pre-
sumam que seu relacionamento era
familiar, nunca saberemos o que
aconteceu em seu casamento a portas
fechadas". Segundo relatos, acredi-
tava-se que ele era mais responsável
e mais feliz durante os anos em que
ambas viviam com ele.
O autor saiu do Southern Literary
Messenge r e se mudou pa ra a
Philadelphia, onde começou a se
tornar o Edgar Allan Poe que co-
nhecemos hoje. Foi a partir dali que
117
histórias como “O Coração Delator”
e “Os Assassinatos da Rua Morgue”
foram escritas. Essa última é consi-
derada a primeira história moderna
de detetive, inspirando autores como
Sir Arthur Conan Doyle, criador de
Sherlock Holmes, que mudariam
para sempre o gênero.
Poe também abriu as portas para
a ficção científica e a comédia, mas
sua contribuição para a literatura
de terror e horror era a que o torna-
ria mundialmente reconhecido. “O
Corvo”, seu trabalho mais famoso,
o tornou um sucesso incontestável.
118
Mesmo tendo recebido pouco pela
publicação em si, a fama abriu as
portas para o autor e fez com que Poe
se tornasse o primeiro escritor esta-
dunidense a viver completamente de
seus ganhos com a escrita.
Edgar Allan Poe revolucionou as
histórias macabras da literatura e é
considerado um dos primeiros a tra-
zer mais profundidade às narrativas
do gênero e desenvolver um forte fa-
tor psicológico. Nas palavras do The
Poe Museum, "ele muitas vezes es-
creveu histórias em que o verdadeiro
monstro era a capacidade para o mal
119
que está dentro de cada pessoa, e o
que acontece quando esse mal é posto
em prática".
Da mesma forma que perdeu a
mãe, Poe perdeu a esposa para a tu-
berculose em 1847 e nunca mais se
recuperou emocionalmente da perda.
Após a morte da esposa, ele voltou
para Richmond, onde se envolveu
com Elmire Royster Shelton, um an-
tigo romance. Entretanto, sua saúde
estava fragilizada após um ataque
de cólera e sua noiva insistiu que ele
fosse até Baltimore para se consultar
com um médico.
120
Do dia 27 de setembro até o dia 3
de outubro não se tem registros de
Poe, mas ele foi encontrado delirando
em uma taverna, aparentemente bê-
bado e usando roupas de outra pes-
soa. Ele passou dias alternando em
um estado de consciência e delírio até
falecer no dia 7 de outubro de 1849.
A causa da morte ainda é discu-
tida e existem diversas teorias tão
enigmáticas quanto os mistérios
que Poe escreveu. Assim como suas
histórias, sua vida continua sendo
objeto de estudo e especulação e re-
força a grandeza do legado deixado
121
pelo autor. Edgar Allan Poe continua
sendo lembrado como um dos maio-
res nomes da literatura e, de forma
inegável, como o mestre da literatura
fantástica.

122
Profissionais
que trabalharam
neste conto

Camila Fernandes
TR A DUÇÃO

Autora de Reino das Névoas e A noite não


me deixa dormir, é também tradutora,
preparadora e revisora de textos, tendo
trabalhado para editoras como Wish,
Arqueiro, DarkSide e LeYa. @milaf.autora

123
Karen Alvares
PRE PA R AÇÃO

Karen Alvares é
escritora e trabalha com
preparação de textos e
diagramação há quase
dez anos.
Twitter: @karen_alvares

Karine Ribeiro
RE V ISÃO

Escritora premiada,
tradutora e revisora,
graduanda em Tradução
pela UFMG. @karineescreve

124
Mari Morgan
ILUSTR AÇÃO

Ilustradora de livros
e games desde 2018
e apaixonada por
experimentar cores e
composições gráficas.
@_marimorgan

Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO

Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@casatipografica
e @marinalivros

125
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
126
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração dos
contos The Tell-Tale Heart, The Facts in
the Case of M. Valdemar e The Cask of
Amontillado! A cada mês de assinatura,
a Wish continuará resgatando os tesou-
ros do passado em novas edições para
os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia 031/Out 2022

127
N O P R ÓX I M O M Ê S

Um romance
impossível com
clima gótico
Da mesma autora que fez
sucesso no período vitoriano
com romances de sensações

128

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