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Individuação
24 de agosto de 2009 — Grupo Papeando
*Por Paulo Urban
Não é por acaso que os 22 Arcanos Maiores do Tarô acham-se numerados. Suas cartas,
perfiladas tal qual os capítulos de uma novela, retratam uma história verdadeira, a do ser
humano em sua senda iniciática, repleta de experiências transcendentes e desafios que se
nos apresentam como oportunidades para o autoconhecimento.
Desde a antigüidade, espalhados por distintas culturas, incontáveis são os mitos que
abordam a imagem do homem colocado à prova, chamado a enfrentar perigos e resolver
enigmas, a ultrapassar seus próprios limites e escolher o rumo certo nas encruzilhadas do
caminho.
Foi o médico psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), inicialmente seguidor de Freud, e
que desenvolveu sua própria teoria para a compreensão do psiquismo, a psicologia analítica,
quem cunhou o nome de “individuação” para esse processo ininterrupto de aprimoramento
pessoal, destinado a orientar a personalidade para algo maior e transcendente, a cumprir
psicologicamente o mesmo papel a que se destinavam os rituais de iniciação dos povos
antigos.
A questão fulcral da psicologia junguiana esbarra num dos principais mistérios da existência,
o da consciência em busca da fonte primordial, inconsciente em sua essência, de onde se
desprendeu originalmente. Para Jung, o ego poderia ser comparado ao inconsciente na
mesma proporção que uma ilha estaria para o oceano à sua volta. Outra analogia seria a do
planeta Terra, pequenina morada da civilização humana (a consciência), comparado ao
universo desconhecido no qual estamos inseridos (o inconsciente).
O si mesmo seria o órgão regulador de todo o psiquismo, dotado de qualidades abissais que
ultrapassam as dimensões do simples ego. Paradoxalmente, o si mesmo, ponto central da
psique, preenche toda a sua circunferência, abarcando todos os fenômenos anímicos
possíveis, a incluir portanto, os do próprio ego. Nicolau de Cusa, monge filósofo do século
XV, já usara imagem semelhante ao referir-se à onisciência divina: “Deus é uma esfera cujo
centro está em toda parte e cuja circunferência não se delimita em parte alguma”.
Como veremos, as alegorias dos 22 Arcanos Maiores, ainda que veladas por intrincado
hermetismo, de caráter particularmente medieval no baralho de Marselha, representam nada
mais que as situações comuns, reservadas a todos aqueles que se dediquem a explorar seu
mundo psicológico mais profundo. Os que partem em busca de si mesmos em geral abrem
suas vidas para o amadurecimento pessoal, e sofrem experiências consideradas arquetípicas,
de cunho propriamente iniciático.
Aqui convém explicar, arquétipo é palavra de origem grega, primeiramente usada por Platão,
a significar “padrões arcaicos” (arqui = antigo, arcaico + typos = padrão, matriz), e Jung se
valeu do termo para denominar certos padrões registrados no comportamento da
humanidade, que vêm sendo manifestos ao longo de sua história pelas mais diversas
culturas. Embora semelhantes entre si, expressam-se pela variedade dos mitos, religiões,
lendas ou folclore; e através de padrões também identificáveis em nosso mundo onírico,
quer no cerne de nossos sonhos, quer sob a forma das fantasias.
O arquétipo serve, portanto, como matriz comportamental herdada por todo ser humano,
como arcabouço capaz de selecionar nas experiências da vida os elementos significativos que
estejam em sintonia com o processo inato da individuação. Os arquétipos, verdadeiras
potências imateriais, surgem como entidades impalpáveis e incognoscíveis, mas se
manifestam por meio de idéias e imagens, e vestem-se com as mais distintas roupagens de
acordo com as culturas que os representam.
O Louco nos prende assim em sua mágica, na paradoxal leitura de seu sentido. Se pode
ser visto como um bobo que nada sabe sobre si, caminhando a esmo, por outro lado é ele o
sábio que, tendo mergulhado no abismo de si mesmo, ressurge renascido, disposto a
retomar sua senda. E não há monotonia nem repetição nesse processo; embora as
experiências mais fortes sejam arquetípicas, elas são inusitadas no modo como acontecem e
nos propiciam leituras sempre novas do livro da vida. Também os passos do Louco nunca
são lineares, pois a individuação pressupõe voltas e rodeios até que nos aproximemos do si
mesmo, ou até que tropecemos em algo e caiamos dentro dele.
Consoante os preceitos básicos da magia, O Mago posiciona-se como elo entre os planos
humano e divino, surge como centro e medida de todas as coisas. Quatro objetos, dentre
outros, despertam-nos a atenção. São eles a moeda e a baqueta que traz em suas mãos,
além dos copos e da adaga postos sobre a mesa. Aludem claramente aos quatro naipes do
baralho, ouros, paus, copas e espadas, que representam a inteireza do caminho ora
descortinado. Isto porque o 4, assim como o 12, são números que por excelência expressam
a totalidade, haja vista serem quatro as estações do ano e doze o número de seus meses,
também as constelações do zodíaco por onde o sol passeia ao longo de um ciclo. Quatro e
doze sempre nos dão a idéia de algo completo.
Jung escolheu as mandalas (nome sânscrito a designar “círculo mágico”) como símbolos da
integridade psíquica, visto que são geralmente representadas por formas circulares (ou
outras que insinuem a presença de um centro); de mesmo modo podemos perceber em cada
um dos 22 Arcanos uma mandala oculta. No Mago ela se mostra tanto pelos instrumentos
dos quatro naipes citados como pela mesa de três pés e quatro cantos, números estes cujo
produto nos leva ao 12. É como se O Mago já tivesse diante de si o tesouro que deseja
encontrar pelo caminho, o que, aliás, lhe permite seguir viagem mesmo que não saia do
lugar onde se encontra, até porque a individuação é processo essencialmente espontâneo de
nosso psiquismo.
Pois bem, tendo à frente uma senda que se desdobra em quatro caminhos, O Mago,
resoluto, entende que precisa percorrer simultaneamente todos eles, sob pena de nunca
alcançar a transcendência, razão pela qual se divide ele próprio no quatérnio que lhe sucede,
formado pelos próximos quatro Arcanos, A Papisa, A Imperatriz, O Imperador e O Papa.
Estes representam uma diferenciação a mais da “ciência dos opostos”, já insinuada pelos
braços do Mago que ligavam o em cima ao embaixo. Observemos que as quatro cartas se
casam muito bem, são duas figuras femininas e duas masculinas; há da mesma forma uma
dupla de imperadores e outra de sacerdotes; e é no equilíbrio de cores de suas vestes que o
baralho de Marselha oculta outros mistérios. O detalhe mostra que as mulheres vestem
mantos azuis sobre os vermelhos, ao passo que os homens trazem a composição contrária,
com vestes vermelhas por cima das azuis. Aqui as cores também têm significado; o
vermelho associa-se ao lado consciente, ao aspecto racional do psiquismo. O azul representa
o inconsciente, a irracionalidade, os processos intuitivos de percepção.
Nas personagens femininas (A Papisa e A Imperatriz), a intuição prevalece sobre a
razão; já na dupla masculina (O Imperador e O Papa), são os processos racionais que estão
por cima. A psicologia analítica identifica, além disso, tanto o aspecto feminino no interior do
psiquismo masculino, ao qual Jung batizou de anima (no caso, definido pela Papisa), bem
como a relação contrária, a essência masculina no psiquismo feminino, denominada animus,
no Tarô, melhor representado pelo Papa.
A Papisa é antes de tudo o complemento do Mago. Guarda tudo aquilo que lhe falta, sendo
portanto o verdadeiro moto de sua busca. Se o mago é movimento, ela é repouso; se ele é
ativo, ela é a receptividade em pessoa. Ele é ação; ela, reflexão. Em suma, todo o desenrolar
do baralho a partir do Mago é a Papisa, pois tudo aquilo que estiver em seu caminho servir-
lhe-á como complemento. A relação Mago-Papisa no Tarô é correlata do binômio Yang-Yin
dos chineses; aliás não poderia faltar no esoterismo do Ocidente o arquétipo da “ciência dos
opostos”.
Uma vez feito alquimista, pode agora nosso herói experimentar as provações mais duras,
reservadas aos que penetram no Diabo, Arcano XV, ou na Casa de Deus, Arcano XVI.
Tais estações referem-se ao mundo sombrio, aos aspectos mais críticos de nossa
personalidade, produtos que são de partes pouco exploradas ou desconhecidas de nós
mesmos. O demônio nada mais faz do que escravizar a nossa consciência, prendendo-a em
seu altar, exigindo de nós o auto sacrifício da extinção de nossas buscas. É por meio dele (o
intelecto) que nos sentimos separados da fonte primordial. Por conta dessa mesma
consciência é que podemos refletir acerca da única certeza que temos, a de nossa morte, de
onde nasce uma natural angústia capaz de nos prender em temores pessoais. O Mago
descobre que a única forma de evitar o demônio é enfrentá-lo! Se por um lado não devemos
negar os méritos de nosso intelecto, por outro, de alguma forma, precisamos transcendê-lo.
Vencida a noite negra, o Sol do Arcano XIX é quem traduz o momento áureo da jornada,
quando a consciência comunga do si mesmo, inspirado instante em que ela se ilumina. A
energia agora se espalha pelo sistema, e as duas crianças (consciência e inconsciente) que
se tocam para cá do muro que antes as separava, descobrem-se idênticas, visto que
nenhuma diferença deveria mesmo haver entre instâncias de um mesmo psiquismo. No
contato mútuo das crianças, a ponte para o si mesmo se apresenta, e a iluminação preenche
esta mandala.
Mas não por isso o caminho chega ao fim. Restam ainda a análise e a síntese alquímica do
processo, previstos pelos últimos dois Arcanos, O Julgamento, XX, e O Mundo, XXI. Juntos
simbolizam o ajuste da mandala pessoal, momento em que o herói procura reorganizar seu
mundo psicológico, transformado que está por tudo aquilo que sofreu. No Mundo, a síntese
(a mandala) se define claramente. O herói está liberto no núcleo da carta, em sintonia com o
universo à sua volta. As figuras nos quatro cantos da carta são alusão aos quatro naipes em
que se desdobra o baralho. Mas o Mundo é apenas o fechar de um ciclo. Serve para
impulsionar o herói, nós mesmos, para frente. Afinal, somos sábios apenas em relação àquilo
que vivemos, e completamente Loucos frente ao que nos é desconhecido.