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Crônicas Artonianas II

Índice
Sobre este netbook - Agradecimentos - Créditos pag. 03

Introdução pag. 04

Contos:
1. A Última Flecha pag. 05
Autor: Jaimes “Quindallas” Faio
Ilustração: Leonel Domingos

2. Aprendiz de Cavillan pag. 12


Autor: Fernando Maia Jr. - Bilbo
Ilustração: Erica Girotto

3. Benção de Glórienn pag. 19


Autor: P.H.Silveira
Ilustração: Birous

4. Blodyjaws pag. 24
Autor: Cap. Hardman
Ilustração: Carla Henrique

5. Conversas de Taverna
Autor: B.J. Moraes
Ilustração: H-Minus
I. O Caso do Taverneiro Roubado pag. 54
II. O Conto da Noite de Chuva pag. 56
III. O Mago e a Assassina pag. 57

6. Indo para Casa pag. 62


Autor: Gabriel Sirqueira
Ilustração: H-Minus

7. Luz e Trevas pag. 74


Autor: Ivan Almeida da Silva - “Ivan Piro”
(Conto vencedor do concurso Crônicas Artonianas II)
Ilustração: Erica Girotto (incluindo ilustração de capa)

8. Possessão pag. 106


Autor: Cristiano “Leishmaniose” DeLira
Ilustração: Leonel Domingos

Apêndice pag. 114

Netbooks RedeRPG pag. 120

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Crônicas Artonianas II

Sobre este Netbook


O projeto Crônicas Artonianas foi Artonianas II ganharia o até então recente,
criado em Maio de 2002 com a iniciativa do Tormenta D20.
site http://luminys.tripod.com.br. Durante
o período de dois meses alguns contos foram Foram recebidos em média 22 contos
selecionados para compor um net-book diversos, alguns formavam pequenas sagas
somente contendo contos ambientados em em capítulos; todos foram avaliados e
Arton, o cenário de fantasia medieval do RPG somente 10 foram selecionados para este
brasileiro “Tormenta”. net-book.

O livro acabou sendo bastante Mais uma vez o intuito deste é


elogiado e uma segunda edição do projeto já contribuir para com a literatura brasileira
havia sido cogitada na introdução do no segmento do RPG, o qual é mais que um
primeiro volume do net-book. Um ano jogo com rolagem de dados e planilhas... É
depois, essa foi anunciada com uma um jogo de “faz-de-conta”; Não seria esta
novidade: O melhor conto dentre os expressão que serve como chave para que
selecionados para compor o Crônicas possamos entrar no fabuloso Mundo dos
Livros?

Agradecimentos
Desde já agradeço a todos os autores que Por último um agradecimento mais
colaboraram com este projeto, sem a que especial para Deus – esse mestra muito
imaginação deles e um dom para escrever bem – e para uma mulher que apesar de não
histórias que prendem o leitor nas páginas, jogar RPG é um exemplo de como um
este livro não seria possível. Os créditos são verdadeira pessoa deve agir nas mais
de vocês! diversas situações no maior jogo do mundo,
Ao suporte íntegro da Daemon o “RPG da Vida”, minha amada e querida
Editora, da equipe do site Rede RPG, das Mãe. Você é tudo pra mim!
listas de discussão (Lista-Tormenta e
Daemon) e de pessoas como Leishmaniose, Tales, O Efreet
Gizmo, Marcelo Telles, Álvaro “Jamil” Freitas
(O Sumido) e Douglas “D’Zilla” Reis.

Créditos
Site oficial do Projeto: http://cronicas.tripod.com.br
Realização do Projeto Crônicas Artonianas : Site Luminys
Coordenação Geral do Projeto: Tales “Efreet” Pereira
Apoio: RedeRPG, Luminys, Daemon
Jurados: Tales “Efreet” Pereira, Douglas “Mago D`Zilla” Reis, Álvaro “Jamil” Freitas
Realização do Netbook: RedeRPG
Editoração do Netbook: Adriana Almeida

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Crônicas Artonianas II

Introdução - O que você fará?


Manhã de sábado (bem, talvez não tão interessantes. Uma das formas de se estimular
de manhã assim, afinal é sábado!), e você sai a imaginação, a mais efetiva na verdade, é a
de casa para comprar pão e leite na padaria da leitura. Quando lemos um bom livro, corremos
esquina. O dia está claro, o sol não está quente os olhos pelas linhas traçadas por outra pessoa
demais e tudo leva a crer que este será um dia e imaginamos a cena que essa pessoa descreve.
perfeito. Mas tudo está prestes a mudar. Quando acompanhamos as falas das
personagens, em nossas mentes suas vozes
Você andou metade do caminho, talvez
soam conforme a impressão que suas descrições
tenha cumprimentado dois ou três vizinhos
causaram em nós.
pela rua, e então você avista um determinado
portão aberto. Mau sinal, pensa você, pois sabe Nunca duas pessoas reagirão da mesma
que o dono daquela casa cria cães enormes e forma a uma dada situação descrita, jamais dois
muito agressivos. E, como se provocado por leitores imaginarão a aparência de uma
este pensamento seu, um dos maiores daqueles determinada personagem do mesmo jeito. E
cães dispara através do portão aberto para a depois de assim exercitar a imaginação, leitores
rua, e começa a rosnar de forma ameaçadora mais vorazes começarão a imaginar alternativas
para a menininha que caminhava poucos para os enredos propostos. E se o mago tivesse
metros adiante de você. O ataque é iminente. lançado uma bola de fogo ao invés de um
relâmpago naquele monstro? E se o guerreiro
Independente da resposta que você
não tivesse avançado com tanta cobiça sobre
leitor possa ter à situação acima descrita, ela
aquela espada encantada? E se... ?
não foi real. Por mais verossímil que possa ter
sido a descrição, não passou de uma simulação, Crônicas Artonianas II pretende
um exercício de imaginação, ao qual sua proporcionar, além de diversão e lazer, esta
resposta pode dar vários encaminhamentos oportunidade aos leitores que por acaso sejam
diferentes a partir da proposta inicial. Este, caro também jogadores de RPG. Ambientadas no
leitor, é o princípio básico do jogo conhecido fictício mundo de Arton, os contos incluídos
como Role Playing Game, ou simplesmente nesta segunda coletânea vão levar ao leitor os
RPG. mesmos tipos de escolhas, dúvidas,
oportunidades e riscos que, em última análise,
Agora, a ambientação deste jogo não
ele pode encontrar em seu próprio cotidiano.
precisa se limitar ao mundo que conhecemos.
Em nosso íntimo somos todos guerreiros, ou
Das selvas pré-históricas do período Jurássico
sacerdotes, ou espiões, ou até mesmo magos,
ao futuro longínquo, das profundas fossas
às voltas com nossas aventuras diárias, e as
abissais oceânicas ao espaço interestelar,
decisões que tomamos afetarão definitivamente
qualquer lugar, qualquer tempo, qualquer
o desenrolar da grande aventura que é a Vida.
mundo pode se tornar palco de nossas
aventuras, assistir ao desenrolar da história que Assim, esperamos que o leitor divirta-
nossas decisões ajudarão a moldar, sofrer os se com as aventuras aqui narradas, mas mais
horrores ou alcançar a glória que nossa do que isso, se ele também tirar algum proveito
interferência proporcionará a este universo para sua própria aventura (fictícia ou real),
imaginário... Ou não. iremos nos sentir plenamente realizados.
Agora, a imaginação não é uma cartola Bonanças,
mágica, da qual pode-se tirar idéias sem fim
impunemente. Ela precisa ser alimentada,
estimulada, exercitada para que renda bons Mago D´Zilla
cenários, personagens cativantes e situações
(Caramba, onde guardei os meus sucrilhos?)

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Crônicas Artonianas II
- Ele não tem escolha Belleg e, a propósito,
A Última Flecha fique com isso. - disse Berforam, entregando-lhe
uma espada. - Sua deusa não acredita mais que
eu seja digno de usá-la, servo da traidora senhora
por Jaime “Quindallas” Faio dos elfos! - disse-lhe com sua voz carregada de
malícia e seus olhos demonstrando desprezo por
tudo que vem de Glórienn. E sem dizer mais
qualquer palavra entrou na tenda que lhe foi
proibida.

Belleg não respondeu. Sabia que começar


uma discussão não levaria a nada. Preferiu
permanecer fora da tenda observando a espada
que lhe foi entregue. Selledarienn era seu nome, a
sagrada espada de Glórienn com a qual a deusa
élfica presenteou a guerreira Ellynia, que fundou
a ordem dos Espadas de Glórienn. E isso o
Ele se afasta da estrada, embrenhando-se entristeceu. Aquela arma fora forjada em uma
na floresta. O cansativo dia faz seu corpo clamar época quando a deusa ainda era Senhora dos Elfos
por descanso, mas apesar de tudo ele se sente feliz: e uma das divindades mais poderosas dentro do
cumpriu seus deveres perante Glórienn e para ele Panteão, mas hoje tudo mudou, Glórienn está fraca
tudo o que importa é a satisfação de sua deusa. A e entristecida, e a cada dia mais e mais elfos lhe
floresta é antiga e nela ele se sente jovem viram as costas.
novamente. Os frondosos galhos de uma velha
árvore parecem um bom lugar para se passar a noite ·····
fria que logo virá.
- Eu disse que não queria vê-lo Berforam!
Ele se deita e começa a observar as estrelas e Você é senhor de si mesmo. Se quer virar as costas
a se recordar das antigas canções que escutava para Glórienn, não serei eu a fazê-lo mudar de
quando criança. De repente, lhe vem à mente a sua idéia, portanto, se veio aqui discutir isso
harpa, que há tanto tempo não é tocada. novamente é melhor saber que perdeu seu tempo!
Imediatamente ele sai em busca do instrumento, - disse Berforegh com sua voz fraca devido à
cuidadosamente guardado em sua mochila. Pouco avançada idade.
depois em meio a escuridão da floresta, a doce e
suave música irrompe, sua bela voz élfica se mistura - Não sacerdote, eu não vim discutir como
com os sons da natureza e, enquanto canta, a brisa das outras vezes, vim atrás de respostas. - disse
noturna o leva à antigas lembranças de um passado Berforam, com aquele estranho sorriso infeliz e
jamais esquecido. malicioso - Minha mente se enche de dúvidas e,
sendo você o sacerdote máximo de Glórienn,
····· acredito que possa me ajudar, afinal, essa é uma
de suas obrigações, não é?
Em uma noite sem lua, um elfo que um dia
fora conhecido como um dos maiores servos de Berforegh permaneceu calado por alguns
Glórienn adentra o acampamento de elfos segundos. Olhava fixamente para os olhos de
sobreviventes de Lenórienn. Seu nome é Berforam, Berforam, como se estivesse tentando descobrir as
mas ele não vem sozinho: muitos que nutrem de sua intenções daquela estranha pergunta, carregada
mesma dor e ódio o acompanham mesmo sem saber de cinismo. Até que suas palavras romperam o
o verdadeiro objetivo desta visita. silêncio:

- Ele não quer vê-lo Berforam! Se você e os outros - Eu conheço muito bem minhas
que o acompanham necessitam de ajuda, faremos o obrigações, Berforam, e se você tem alguma
que estiver dentro de nosso alcance para ajudá-los, pergunta, faça-a logo!
mas ele não o receberá! - disse Belleg, um jovem
Espada de Glórienn. - Perdoe-me se lhe ofendi sacerdote, não
era minha intenção. - disse Berforam se levantando

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Crônicas Artonianas II
da cadeira em que estava sentado - Como eu já lhe Berforam abandonara a caravana de
disse, algumas questões me perturbam todos os dias sobreviventes há muito tempo, depois de discutir
desde que Lenórienn caiu. São coisas simples e sem inúmeras vezes com Berforegh. Ele fora o maior dos
importância. Espadas de Glórienn, um líder nato, adorado tanto
pelos guerreiros da deusa, como pelos soldados dos
- Eu não sei o que você quer, Berforam, mas exércitos élficos. Teria lutado até a morte, se
diga logo. Eu não tenho tempo para perder com seus Berforegh não o tivesse convencido de que Lenórienn
cinismos. - disse Berforegh com severidade, se pondo estava perdida, e que ele deveria proteger aquela
de pé diante de Berforam. caravana de sobreviventes.
Naquela época, o coração de Berforam ainda
Berforam, por sua vez, o fitou nos olhos. Seu mantinha alguma fé em Glórienn e ele sempre havia
sorriso cínico desapareceu, dando lugar a uma escutado os conselhos de Berforegh, afinal de contas,
expressão de desprezo e, antes que mais qualquer ele era o sumo-sacerdote da deusa élfica e sua
palavra fosse dita, Berforam golpeou o velho elfo sabedoria era lendária. Mas não tardou para que o
arremessando-o contra um móvel. coração de Berforam se fechasse completamente para
a deusa dos elfos. Desde então, brigas e discussões
- Não me interrompa mais clérigo. Hoje você entre ele e Berforegh se tornaram cada vez mais
vai me escutar! - disse Berforam, quase sussurrando, comuns. Berforam sempre atacando e acusando
enquanto andava na direção de Berforegh. - Eu disse Glórienn e Berforegh sempre defendendo. Até que
que tinha dúvidas e você disse que as responderia, um dia Berforam se foi, sem que ninguém notasse, e
pois agora me escute! nunca mais tiveram qualquer notícia sua, até aquela
noite.
Berforegh se levantou com dificuldade.
Mantinha a mão esquerda sobre as duas costelas Belleg não conseguia imaginar o motivo da
quebradas tentando apaziguar a dor e, com sua mão repentina volta de Berforam e aqueles que o
direita, limpava o sangue que lhe escorria pelos acompanhavam. Estes também lhe causaram certa
cabelos, cegando seus olhos. suspeita, pois entre eles, Belleg reconheceu alguns
antigos sacerdotes e Espadas de Glórienn. O que eles
Berforam então falou: pretendiam com aquela visita? Que assuntos
Berforam teria para tratar com Berforegh? Essas
- Eu lutei como um louco em nome de perguntas tomavam os pensamentos de Belleg!
Glórienn e para quê? O que consegui? Meu filho Quando gritos lhe chamaram a atenção.
morreu lutando, defendendo os ideais tolos que lhe
ensinei e onde estava Glórienn quando eu implorei ·····
para que ela protegesse minha família?
Berforam ficou parado, esperando
- Você está vivo, não está? - disse Berforegh pacientemente a total atenção do acampamento.
após cuspir o sangue acumulado em sua boca. Alguns elfos, que sabiam lutar e tinham coragem
suficiente, tentaram ajudar Berforegh, mas um
Aquelas palavras enfureceram Berforam. círculo formado pelos elfos que acompanhavam
Ele saltou sobre o sacerdote e desta vez seus golpes Berforam os impediu. Usando, inclusive, de extrema
acabaram arremessando Berforegh para fora da violência, pois boa parte deles eram experientes
tenda. soldados.

····· Berforegh respirava com dificuldade, sentia


uma terrível dor em sua garganta, mas a verdade é
Belleg embainhou Selledarienn. “Ficar que seu corpo inteiro estava castigado. Escutava
admirando belas espadas e remoendo antigas alguns gritos e agitação, o acampamento inteiro se
lembranças de nada vai adiantar”, pensou ele, reunira, em volta daquela terrível cena. E isso era
enquanto voltava pra seu posto. Mas, por mais que tudo o que Berforam queria!
tentasse, não conseguia manter-se vigilante e
concentrado como de costume. Todos os seus Após ouvir os gritos, Belleg correu o máximo
pensamentos estavam voltados para a tenda de que pode em direção as tendas. Tropeçou duas vezes
Berforegh. em meio ao desespero, o coração parecia que iria
saltar de seu peito, tamanha era aquela estranha

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Crônicas Artonianas II
sensação de urgência, implorava a Glórienn para que irmão, um filho, ou qualquer outro ente querido?
a visita de Berforam não tivesse qualquer relação com Ou vocês já se esqueceram da dor e sofrimento que
aqueles gritos, mas nisso seu coração custava a passamos? E onde estava Glórienn quando nossa
acreditar. cidade era tomada por bestas deformadas? Quando
clamávamos seu nome e simplesmente éramos
A cena que Belleg viu era pior que a mais ignorados? Então, respondam-me? - gritou
terrível de suas suspeitas. Berforam estava parado, Berforam e, dessa vez, suas palavras mostraram
diante de Berforegh. O sacerdote se encontrava de algum efeito. Uma grande parte daqueles elfos
costas para Belleg, segurava o braço esquerdo, pois começou a refletir sobre aquelas palavras. Dor,
estava quebrado. Belleg também percebeu gotas de sofrimento e ódio, uma poderosa combinação de
sangue no chão seco e grandes manchas vermelhas sentimentos, manejados por mãos habilidosas como
no manto branco. Mas não houve tempo para as de Berforam, tem efeitos mais devastadores que
qualquer reação do jovem Espada de Glórienn: os de qualquer espada.
Mílliel, a maga, a um comando de Berforam, lançou
um de seus feitiços sobre Belleg que ficou imóvel, - Mas como eu lhes disse. A pessoa, que vem
feito uma estátua, e agora só podia ver e ouvir. nos iludindo há tanto tempo, se encontra aqui!
O silêncio tomou conta do acampamento. Berforegh é seu nome e durante séculos ele ajudou
a traidora cegar nossos olhos, transformando-nos
- Tenho certeza de que todos vocês sabem em seus brinquedos, para servi-la, sem
quem sou eu! Vocês me conheciam como Berforam, questionarmos! Porém esses tempos terminam aqui!
a Lâmina de Glórienn, General dos Exércitos Élficos, Mas talvez Berforegh seja uma simples vítima como
Líder dos Espadas de Glórienn! - disse Berforam, um nós, ou talvez também tenha se arrependido!
pouco mais alto que um sussurro, mas o silêncio Portanto, lhe daremos uma chance. - disse Berforam,
conquistado pelo medo o fez ser ouvido claramente. dessa vez a ironia voltou a estar presente em suas
palavras.
- Hoje vocês me conhecem como Berforam, a
Espada que se Partiu, o Espada de Glórienn que caiu - Você, Berforegh, filho de Thalladar,
em desgraça! Sei que muitos ainda se perguntam renegue o nome de Glórienn, demonstrando assim,
como alguém como eu, um dos mais fiéis devotos da todo seu arrependimento, se tornando digno de
deusa élfica, pôde se desviar do caminho! - disse receber o perdão de todos os elfos aqui presentes! -
Berforam, dessa vez um pouco mais alto e com um disse Berforam, alto e claramente.
tom de ironia.
Berforegh demorou-se a responder,
- Mas hoje, essa pergunta será respondida, encarou Berforam, em silêncio, durante alguns
vocês perceberão o que eu custei a ver. Não os culpo, segundos. Depois virou-se para todos os elfos que
pois todos estávamos cegos, agíamos sem questionar, o cercavam, sua face estava deformada graças aos
iludidos pelas palavras de uma pessoa presente aqui! duros golpes de Berforam. Enxergava somente com
- disse Berforam, dessa vez falando alto, de modo seu olho esquerdo e estava mais curvado do que de
firme e autoritário, como costumava fazer quando se costume, ainda segurando o braço quebrado.
pronunciava para seus soldados. Pois assim era a voz Pigarreou, antes de cuspir mais sangue, então disse:
de um grande líder, capaz de transformar um
camponês em um bravo guerreiro. - Você, Berforam, acusa Glórienn de ser
omissa! De cegar os olhos dos filhos que ela tanto
- Mas ele não agiu sozinho, ela, a traidora ama! De nos abandonar na hora em que tanto
Glórienn, nos cegou desde nossa existência, sempre precisamos! Mas, saberia me dizer que hora
nos exigiu que a adorássemos, prometendo e precisamos dela? A grande maioria de vocês deve
clamando ser nossa defensora, mas na verdade, estar dizendo que foi durante a Infinita Guerra,
sempre foi fraca e jamais se importou conosco! Para quando fomos derrotados nos campos de batalha.
ela, somos apenas uma bela criação, um de seus Mas essa não é a verdade!
muitos caprichos! - disse Berforam começando a notar
que suas palavras estavam tendo algum efeito, pois - Glórienn sempre esteve presente, vocês
também é um dom dos grandes líderes saber o que que preferiram ignorar os feitos de Glórienn, pois é
se passa no coração de seus soldados. mais fácil se esquecer daquilo que é bom e somente
lembrar do que é ruim! - disse Berforegh, e sua voz
- Quem aqui não perdeu um amigo, um era mais suave que a de Berforam, mas não menos

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Crônicas Artonianas II
poderosa. Pois Berforegh era também um grande disse:
líder.
- Como eu ia dizendo, antes de ser
- Não acreditam em minhas palavras? Pois interrompido. Glórienn jamais nos abandonou, ou
eu tenho provas! Basta vocês se recordarem de vários vocês já se esqueceram de certos fatos, como
fatos, ocorridos no passado desde antes da fundação quando plantávamos tão pouco, pois quase todas
de Lenórienn, até dias mais próximos. Se vocês ainda as nossas atenções estavam voltadas para guerra, e
não se lembram, eu os farei recordar! - disse nossas colheitas eram tão fartas que nem os mais
Berforegh, dessa vez falando de modo rígido como antigos de nossos anciões, conseguiam se lembrar
se estivesse os advertindo de alguma falha. de colheitas tão boas. Quando nossas árvores
carregavam-se com tantos frutos, que às vezes
- Todos vocês devem conhecer este fato, mas apodreciam nos galhos, pois não haviam mãos
eu o contarei novamente: suficientes para que fossem colhidos. - disse
Berforegh, que cuspiu novamente o sangue
- Quando nossos ancestrais ainda se acumulado em sua boca, mas antes que
encontravam no mar, perdidos, famintos e entregue prosseguisse, as palavras de Berforam o
às pestes, tão comuns em longas viagens feitas em interromperam:
navios, Thallas, o capitão daquela frota, também
duvidou de Glórienn e, em meio ao seu desespero, - Você nos conta histórias de passados
ergueu seu arco para os céus e desafiando a deusa longínquos e fatos que não tem como provar, por
élfica, disparou uma flecha com tamanha fúria que que não nos diz uma história mais recente! Mais
teria atravessado a mais resistente armadura. Mas digna de que a tomemos como verdadeira! - disse
para a surpresa de Thallas e dos outros elfos, aquela Berforam, acreditando que acabaria com o belo
flecha se incendiou desviando-se para o horizonte discurso de Berforegh, pois sabia que se perdesse a
e, como um meteoro, cortou os céus deixando seu cabeça novamente e atacasse o sacerdote, aqueles
rastro de fogo. - disse Berforegh, que era muito bom elfos do acampamento jamais iriam se aliar à sua
em contar velhas histórias. causa.

- E aquela flecha continuou, sempre para o Berforegh pela primeira vez se virou para
Leste, até que sua luz quase sumiu na noite escura. Berforam, havia um discreto sorriso, em seu rosto
Então ela explodiu! Mas não uma explosão qualquer, tão castigado. E aquilo preocupou Berforam, mas
não houve barulho e sim muita luz, uma tranqüila do que qualquer outra coisa naquela noite.
luz verde, que iluminou o horizonte para depois se
juntar em um único ponto e assim nasceu - Eu farei o que deseja Berforam! Pois todos
Selledarienn, que vem do antigo élfico, e quer dizer conhecem esse fato, principalmente você! - disse
Estrela Flecha. Thallas soube que era um sinal de Berforegh, com tanta firmeza e convicção que
Glórienn e, seguindo aquela estrela verde, os elfos parecia ter se esquecido de seus ferimentos.
encontraram Lamnor. É por issssss... - disse
Berforegh, mas não conseguiu concluir, Berforam lhe - Isso aconteceu há dezoito anos, duas
acertou um chute nas costas, jogando-o ao chão. tropas haviam se enfrentado em uma planície ao
sul de Lenórienn. Como vocês devem imaginar, era
- Responda somente o que lhe foi mais uma das muitas batalhas travadas entre nosso
perguntado velho! Renegue o nome de Glórienn! - povo e os exércitos hobgoblins. Os elfos venceram
disse Berforam, demonstrando uma frieza aquela batalha, pois eram liderados por Berforam,
desmedida. a Lâmina de Glórienn, mas o sangue de muitos elfos
tingiu aqueles campos de vermelho e não mais que
Berforegh ficou algum tempo caído no chão, doze elfos sobreviveram. Mas somente onze deles
muitos pensariam que ele estivesse morto, não fosse retornaram, após muito procurar pelo corpo de seu
pelo barulho de sua respiração quase engasgada pelo líder. Este, contudo, se encontrava debaixo do
sangue. Alguns elfos tentaram ajudá-lo, mas foram imenso corpo já sem vida de Gorrondar, o líder dos
violentamente contidos novamente. Belleg, que hobgoblins. Mortalmente ferido, Berforam não
continuava imóvel devido ao encantamento, não conseguiu se livrar daquela besta queeeeeeeee... -
conseguiu impedir que uma furtiva lágrima disse Berforegh, que novamente foi interrompido
deslizasse por sua face. Então, com muita por outro golpe de Berforam, que disse:
dificuldade, Berforegh se pôs de pé novamente e

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Crônicas Artonianas II
- Cale-se! Eu não quero mais escutar suas Ouviram-se gritos e choros abafados, pois
palavras, pois conheço suas intenções, quer nos cegar Berforegh era muito querido por boa parte
novamente! Agora quero que responda minha daqueles elfos. Berforam observou o corpo do
pergunta, renegue o nome de Glórienn ou aceite as sacerdote por alguns momentos, olhava
conseqüências! demonstrando desprezo, mas logo começou a
sorrir, um sorriso sádico e infeliz.
Berforegh não tinha mais forças para se
levantar. Permaneceu onde estava e, com muito - Vocês todos viram o que aconteceu, ele
esforço, conseguiu se virar, com o rosto para cima, morreu rezando para a deusa Glórienn e,
assim suas palavras sairiam mais claras. Então, como semelhante a tantos outros elfos foi traído, mesmo
que, desafiando Berforam, prosseguiu: sendo ele o seu sumo-sacerdote. Então respondam-
me: vocês acham que algum deus ainda protege
- Aquele Espada de Glórienn desmaiou e, em este povo? - disse Berforam, quase sussurrando
meio aos seus delírios, viu Glórienn, que lhe pediu novamente, mas elfo algum respondeu aquela
para que se reerguesse e prosseguisse liderando os pergunta. Uma estranha sensação tomava seus
exércitos élficos. E Berforam, a Lâmina de Glórienn, corações e, mesmo Berforam parecia surpreso com
se livrou das garras da morte e se levantou somente aquilo.
com uma cicatriz, deixada pela espada de Gorrondar.
Garanto que se Berforam não continuasse liderando Todos os elfos, quase que irracionalmente,
nossos exércitos, levantando a moral de nossos voltaram suas atenções para o mesmo ponto, um
soldados, Lenórienn teria tombado já há muito tempo. lugar sombrio entre algumas árvores, e foi das
- disse Berforegh, que depois se silenciou. sombras que Ela surgiu. Envolta em um manto tão
negro que parecia ser feito de pura escuridão, mais
Berforam não disse nada durante alguns leve que a própria seda, como se as próprias trevas
segundos. Tempos depois, ele ainda se perguntaria tivessem sido usadas em sua confecção. Ela
porque deixou Berforegh concluir aquela história, que caminhou para mais próximo deles, parecia flutuar
de fato era verdadeira. Então suas palavras romperam carregada pelas sombras e, enquanto se movia, as
o silêncio: tochas e fogueiras se apagavam até que restou
somente uma única tocha, mas, em se tratando de
- Você ainda não me respondeu Berforegh! elfos, era o suficiente para que enxergassem
Você renega o nome de Glórienn? claramente.

Em resposta Berforegh começou uma oração Ela não disse uma palavra sequer, mas
à deusa dos elfos e, aquilo irritou Berforam, que o todos sabiam quem era Ela. Era Tenebra, a deusa
agarrou pelo manto pondo-o de pé e gritando das trevas, seus corações sussurravam. Ela parou
raivosamente repetiu a pergunta: diante dos elfos. Estes estavam atônitos com sua
presença, sentiam medo e admiração ao mesmo
- Você Berforegh, filho de Thalladar, renega tempo e, de alguma forma, aquilo parecia agradar
o nome de Glórienn? Tenebra. Então delicadamente, Ela levantou seus
braços, como se quisesse os amparar, da mesma
- Para sempre seremos fiéis a ti, ó Glórienn. - forma que uma mãe faz com um filho. E naquele
Berforegh concluiu sua oração e depois sorriu, mas momento a noite pareceu mais escura do que
não um sorriso qualquer; mesmo conhecendo seu nunca.
destino, Berforegh sabia que apesar do discurso de
Berforam suas palavras haviam posto fim às A escuridão começou a tomar o coração
crescentes dúvidas dos corações daqueles elfos e que daqueles que não resistiram, suas mentes os
boa parte deles continuaria fiel a Glórienn, e aquilo obrigavam a reviver suas mais tristes lembranças,
alegrara seu coração, mas seu olhar demonstrava o ódio e a dor se tornaram quase insuportáveis e,
piedade e uma sutil tristeza. de alguma forma, Glórienn parecia ser a culpada
de todo o mal que lhes foi causado. Então vieram
E assim terminou a longa vida de Berforegh, as trevas e apaziguaram a dor, reconfortando-os,
uma morte sutil, um rápido golpe de Berforam com e agora quanto mais odiavam melhor se sentiam.
seu mortal aji cortou a garganta de sumo-sacerdote,
pondo fim a todo o sofrimento do velho elfo. Alguns fugiram, outros permaneceram,
pois aceitaram o presente que Tenebra lhes

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Crônicas Artonianas II
ofereceu. A escuridão acalmou a dor de seus momento algum.
corações e, em troca, aqueles elfos juraram
fidelidade eterna a Tenebra. Então ajoelharam-se e Belleg permaneceu calado, fitava os olhos
idolatraram sua nova deusa, dando-lhe um novo negros de Berforam, sentia o ódio e a escuridão
nome, Simbelmynë, que traduzido para o Valkar crescendo dentro de si.
seria algo como “dama das sombras”. E quando se
colocaram de pé novamente, perceberam algo que - O que foi? Não gostou do que nossa deusa
os fascinou, seus cabelos eram agora negros, assim fez conosco? Ou talvez não tenha gostado de ver
como seus olhos, o mais franco reflexo de suas que algum deus ainda se importa com esse povo? -
enegrecidas almas. disse Berforam ainda cínico.

Entre eles se encontrava Berforam, que após Belleg olhou mais fixo ainda nos olhos de
contemplar a face da deusa das trevas, foi o primeiro Berforam e por mais que tentasse resistir, o ódio o
a sussurrar o nome Simbelmynë, pois se lembrou tomava. Então ele rompeu seu silêncio:
da pequena e bela flor branca que se mostrava
apenas durante a noite. Então Berforam se - Por quê? - disse Belleg num tom baixo,
proclamou líder daqueles a quem ele chamou de mas claro e firme.
elfos negros, os filhos de Simbelmynë!
- O que quer dizer com “por quê”? É melhor
A deusa das trevas sorriu, agora podia-se ser mais claro, servo da traidora deusa élfica. - disse
ver seu rosto que durante todo tempo havia estado Berforam, dessa vez sem cinismos, pois queria
oculto. Era uma elfa negra, sua pele era tão clara demonstrar que realmente considerava Glórienn
quanto o eterno gelo das Uivantes, pois nenhum raio uma traidora.
de sol jamais a tocara, e seu rosto, que parecia conter
o pálido brilho das estrelas, era mais belo do que o - Porque você matou Berforegh? - disse
de qualquer outra elfa que andara sobre Arton ou Belleg, que não contendo mais sua fúria, retirou a
Lamnor, seus cabelos mais negros que a própria espada Selledarienn e a apoiou no chão. O brilho
noite e na escuridão de seus olhos podia-se enxergar verde da espada o iluminou e seu semblante não
o infinito. E esta imagem elfo algum esqueceu, mas conseguia mais esconder seu ódio, demonstrando
nenhum deles jamais conseguiu descrever tamanha o inevitável.
beleza e, mesmo seus melhores artistas, nunca
conseguiram retratar a imagem de Simbelmynë. Berforam sorriu, não por cinismo, seu
sorriso era verdadeiro e seu coração realmente se
Esquecido em um canto, Belleg observava alegrara, pois sentia que estava muito perto de
tudo em silêncio, o feitiço de Mílliel já se quebrara trazer desgraça a outro servo de Glórienn e nunca
há muito e o Espada de Glórienn não se moveu, houve algo que um elfo negro apreciasse mais!
preferiu observar tudo calado. Viu os elfos fiéis a
Glórienn fugirem, amedrontados pelo poder das - Quer saber porquê? Então faça por
trevas, mas ele ficou! A fé na deusa dos elfos o fez merecer! Levante sua espada, Belleg, filho de
resistir à sedutora escuridão, mas o poder de Berforegh e não se acovarde feito sua maldita deusa!
Simbelmynë se tornava mais forte conforme - disse Berforam, o cinismo em sua voz maior do
aumentava o ódio no coração de Belleg. E mesmo que nunca, o sádico sorriso voltara à sua maligna
que não quisesse, Belleg odiava Simbelmynë, por face e os olhos demonstravam toda a escuridão que
ter feito aquilo com os filhos de Glórienn, Belleg agora tomava conta de sua alma.
também odiava os elfos negros por terem se rendido
ao poder da escuridão e, principalmente, odiava - Porque você matou nosso pai? - gritou
Berforam por ter matado aquele que todos Belleg. Não conseguindo mais conter sua fúria,
chamavam de Berforegh, mas Belleg tinha outro atirou-se sobre Berforam, parecia ter perdido a
nome para ele, Nillel, que traduzido para o Valkar razão, como se houvesse esquecido de tudo o que
seria pai. havia aprendido e, naquele momento, a escuridão
quase tomou sua alma, mas havia algo dentro de si
- Vejo que ainda se encontra por aqui Belleg. que recusava deixar-se dominar pelo poder de
Então, apreciou a nova forma de nosso povo? - disse Simbelmynë.
Berforam de forma cínica, com aquele sorriso infeliz
no rosto, pois não havia se esquecido de Belleg em Berforam se desviou de Selledarienn com

10
Crônicas Artonianas II
extrema facilidade, e ainda sorria cinicamente. A verdade é que, no coração de Belleg, uma
Faziam anos que seu coração não se alegrava, tudo terrível batalha acontecia, a escuridão, movida pelo
parecia perfeito até aquele momento e, se conseguisse ódio, investia sobre o resquício de fé na deusa dos
abrir os olhos de Belleg, sua terrível felicidade se elfos, que teimava em resistir à superioridade do
tornaria completa. poder das trevas, mas essa batalha também estava
prestes a terminar.
- Vingança! Foi por vingança que matei o
maldito lacaio de Glórienn! - disse Berforam, sem - Sabe o que senti quando matei Berforegh?
demonstrar nenhum arrependimento; queria instigar Mesmo que quisesse não conseguiria descrever!
Belleg a odiá-lo ainda mais, pois somente assim Nunca fiz nada que trouxesse tanto prazer. Ver o
conseguiria destruir o pouco de fé em Glórienn que sangue dele escorrendo pela lâmina de meu aji, essa
restava no coração daquele elfo. foi a recompensa dele pelos anos de servidão a
Glórienn! - disse Berforam, aos sussurros, com um
- Ele nunca fez nada contra você assassino tom sádico novamente.
desgraçado, você o matou e agora desonra seu nome.
Vai pagar por isso maldito Berforam, pela alma de Belleg, mais furioso do que nunca, encostou
Berforegh eu destruirei você! - disse Belleg, Selledarienn no pescoço de Berforam, a afiada
demonstrando que as palavras de Berforam deram o espada perfurou a pele que recobria a garganta do
resultado esperado e o Espada de Glórienn apertou elfo negro. Uma gota de sangue escorreu pela
ainda mais o punho de Selledarienn, novamente lâmina da sagrada espada, forjada em tempos
investindo contra Berforam. imemoriais, e que, em toda sua existência, jamais
havia provado o sangue de um elfo.
O elfo negro por sua vez, utilizando-se de
um de seus aji, facilmente defendeu o golpe de Belleg, - Vamos Belleg! Não se acovarde! Faça o
pois o jovem Espada de Glórienn não era adversário que seu coração lhe manda! Mate-me maldito
digno. desgraçado ou, juro em nome de Simbelmynë, que
até o fim de meus dias, assassinarei todos aqueles
- O sangue de meus filhos, seus sobrinhos, que forem fiéis a Glórienn! - gritou Berforam, que
Belleg, netos dele, sujam as mãos desse maldito, pois depois sorriu, pois viu que algo acontecia com
se eu não tivesse lhe escutado, minha família ainda Belleg.
viveria, mas essa velha serpente, a mando da traidora
Glórienn, sussurrou malignos conselhos em meus Belleg segurou o punho de Selledarienn
ouvidos e eu, em minha tolice, segui suas palavras! - com mais firmeza, preparava-se para dar fim à mais
disse Berforam, defendendo-se e se desviando de desgraçada das criaturas, quando algo desviou sua
vários golpes de Belleg, sua voz carregada de atenção. A luz da lamina de Selledarienn se apagara,
ressentimento e amargura. pois naquele momento Glórienn amaldiçoou a
espada profanada pelo sangue de Berforam. Mas
- Cale-se maldito Alma Negra! - gritou Belleg, algo pior chamou a atenção do Espada de Glórienn,
atacando cegamente Berforam. O ódio queimando no pois a lâmina de Selledarienn era como a mais pura
peito atingiu o ápice de sua força e por pouco a prata e, naquele momento Belleg viu seu reflexo
escuridão não tomou completamente sua alma. refletido na espada. Seus cabelos estavam negros!

Berforam então percebeu que era chegada a Belleg entrou em pânico, olhou seu reflexo
hora que tanto esperara, defendeu mais alguns golpes por poucos instantes que para ele pareceram
de Belleg e depois deixou-se desarmar, então disse: séculos. “A escuridão venceu”, pensou ele antes de
soltar Selledarienn. Mas a espada não tocou o chão,
- Vejo que aprendeu bem jovem Espada de pois quando a mão de Belleg a soltou, a sagrada
Glórienn! Receba meus cumprimentos. Mas será que espada de Glórienn explodiu. Uma gigantesca luz
tem coragem suficiente para encerrar esta luta? - disse verde ofuscou todos os presentes, com exceção de
Berforam. A espessura de uma folha separava a Simbelmynë. Não houve estilhaços ou barulho, mas
espada Selledarienn de sua garganta. Belleg olhava demorou alguns minutos para que todos voltassem
fixamente para seus olhos, odiava Berforam mais do a ver. E o que viram os surpreendeu.
que tudo e, não entendia porque não conseguia matá-
lo. Belleg abraçava Berforam.

11
Crônicas Artonianas II
- Eu o perdôo meu irmão e tenho certeza de
que Glórienn e nosso pai também o perdoarão! E
quer você queira ou não, você é, e sempre será
Aprendiz de Cavillan
Berforam filho de Berforegh. Tenho certeza de que
sua esposa e seus filhos, juntos de nosso pai, o por Fernando Maia Jr. (“Bilbo”)
aguardam em Nivenciuén, o Reino de Glórienn. Até
algum dia meu irmão! - disse Belleg, com
sinceridade, pois amava Berforam novamente. A luz
de Selledarienn afastou a escuridão que por pouco
tempo dominara seu coração. Sua fé em Glórienn
nunca fora tão grande.

Belleg tomou o corpo de Berforegh,


colocou-o cuidadosamente sobre o dorso de um
cavalo e, antes de sumir na noite, fitou o rosto de
Simbelmynë, pois seu coração ainda a odiava, e
então desapareceu nas sombras.

Alguns elfos negros tentaram impedi-lo,


mas foram advertidos por Berforam que durante um
longo tempo observou a estrela Selledarienn, e seu Jogar é preciso.
brilho esverdeado na noite sem lua. Depois sorriu,
pois algo na estrela o agradou.
Viver não é preciso.
·····

Olhando para o leste, ele observa o céu “Aprendiz de Cavillan” é o título de um


noturno do alto da velha árvore, já parou de cantar conto ambientado no cenário de Tormenta
há muito tempo. Selledarienn, a Estrela Flecha, (Editora Talismã), desenvolvido para uso em
ainda se encontra presa ao véu da noite, mas seu jogos de RPG (Role Playing Game). Ele relata as
brilho jamais foi o mesmo desde aquele triste regras de um dos jogos dos baralhos de Ahlen, o
ocorrido. Cavillan. Este jogo utiliza um baralho que difere
do tradicional, conhecido simplesmente como
Ele é Belleg, líder da ordem dos Espadas baralho de Ahlen, por ser originário deste reino.
de Glórienn. Alguns o chamam de Belleg, a Espada Existem, no entanto, outros tipos de baralhos de
Trincada, isso por que seus cabelos, antes prateados, Ahlen, alguns nem originários do reino, mas que
hoje são negros, e também costumam dizer que a ganham este nome por diferirem do baralho
qualquer momento ele cairá em desgraça. Mas com tradicional. O Wyrt, por exemplo, é outro jogo que
essas pessoas Belleg não se importa, sabe que tem a utiliza estranhos tipos de cartas (bem como
confiança de Glórienn. Pois dentre todos os Espadas dados!), diferente das cartas do Cavillan, mas seu
de Glórienn ele é o único que não perdeu seus baralho também é chamado de baralho de Ahlen.
poderes. Apesar de a fama do reino de Ahlen ser
marcada pela trapaça, pela deslealdade e pela
E a Ordem dos Espadas de Glórienn confia corrupção, o Cavillan ganhou prestígio em alguns
em Belleg, pois dizem que em seus olhos verdes outros reinos próximos, destacando-se, aí, o reino
ainda é possível ver o brilho de Selledarienn. E estes, de Collen, que fica ao sul. O Wyrt, por sua vez, é
cuja fé em Glórienn ainda se faz presente, o chamam extremamente desconhecido, porque é
de Belleg, a Última Flecha. praticamente um jogo restrito à nobreza de Ahlen,
existindo, inclusive, leis no reino que proíbem a
prática do jogo por plebeus. Além disso, o
Cavillan é muito mais simples do que o Wyrt,
cujas regras são intrincadas e ainda utiliza dados!
Tanto o Cavillan quanto o Wyrt foram
primeiramente citados no conto O Preço, de J. M.
Trevisan, um dos criadores do mundo de Arton.

12
Crônicas Artonianas II
Jihlian coçou com a unha torta e feia a
O barulho de madeira rangendo invadiu
ponta do nariz de pele velha e bronzeada. Seu dedo
o quarto, e o velho homem de Ahlen observou a
trazia cheiro de metal antigo. Cheiro de moeda. Ele
porta, intrigado. Pisando o chão de madeira, um
sorriu e, enquanto se livrava da coceira, observou
garotinho adentrava o quarto. Vestido em roupas
melhor o lugar onde estava.
velhas e trapentas, panos sobre panos, certamente
era um filho de um camponês – parecia pobre
 Realmente... Nunca devemos julgar as
demais mesmo para o humilde povo de Collen.
coisas pelas aparências... – riu para si mesmo, com
Os cabelos rígidos de sujos ainda conseguiam cair
voz clara, mas envelhecida.– Quem diria que, numa
lisos pelas orelhas, finas cascatas de fios preto-
estalagem tão velha, eu fosse conseguir essa até boa
acinzentados muito mal cortados. Sem dúvida era
quantia... – e passou os dedos no conteúdo de um
um de Collen, pois seus olhos eram, um, de um
saco de couro em seu colo: moedas de cobre.
belo azul, claro como o céu, e o outro, castanho
Afundou mais os dedos na bolsa, tilintando os
escuro, trazia a cor da terra.
metais, e depois retirou a mão, cheirando-a e
sentindo prazer com o odor daquilo que ele havia
 O que quer, criança? – disse Jihlian,
ganhado em aposta. Jihlian riu outra vez.
um pouco grosso.
 Pobres homens de Collen. Belos, mas
 Eu... – começou a falar nervoso e
ingênuos... – disse, referindo-se ao reino de Collen,
engasgado. – Eu vi o senhor na taverna... Estava
onde os nativos costumam ser estranhamente
jogando com as cartas, não era? – agora dizia
bonitos, com seus olhos de cores diferentes.
apressado, falando com o interesse e a fluidez que
Certamente, Jihlian estava em Collen.
soam na voz de uma criança curiosa. Como Jihlian
Possivelmente numa estalagem velha duma aldeia
apenas semicerrou os olhos, ele continuou:
pequena: um lugar perfeito para um homem de
Ahlen agir. Pois assim era a maioria das pessoas
 É que... É que eu precisava, senhor,
do reino de Ahlen: espertas e trapaceiras – pouco
aprender o jogo de papel! – disse empolgado.
culpadas por isso, porque foram as memórias das
terras de Ahlen que as moldaram assim. Só um
 Aprender a jogar com o baralho de
corrupto consegue sobreviver em Ahlen. E, neste
Ahlen?! – surpreendeu-se o velho, rindo. – Você
momento, a face de Jihlian perdeu a alegria. Sempre
quer aprender a jogar Cavillan, é? – divertiu-se,
vivera assim. Ele tinha que sobreviver. Mas, agora,
pronunciando o nome do jogo. – Tem de ter um
ele estava cercado de pessoas boas e humildes.
bom moti...
Porque enganá-las, então?!... Porque Jihlian já
 Dinheiro! – interrompeu o garoto a
estava velho demais para aprender a viver de outra
frase de Jihlian. – Eu vi que o senhor ganhou
forma...
dinheiro da mesa... Foi, sim, do velho Tolhgard e
do bêbado Torhol.
As velas queimavam a escuridão do
quarto. Auxiliados por esta luz, os olhos cinzentos
 Então o motivo é dinheiro, é? Não
de Jihlian buscavam sua bolsa no chão. Quando a
nego ser um bom motivo... – Jihlian retrucou,
encontrou, ele nem se deu ao trabalho de levantar-
desinteressado nos nomes dos donos dos tibares
se da cama e, continuando sentado, puxou sua bolsa
que agora lhe pertenciam. – Mas um garoto tão
pela alça, com um pé, suspendendo-a e agarrando-
novo não precisa de dinheiro... Vá! Vá aborrecer
a, para depois guardar os humildes tibares – as
seu pai... Eu tenho que dormir...
moedas do Reinado, conseguidas dos camponeses
de Collen.
 Senhor, por favor... – pediu o menino
com uma sofrida cara de descontentamento. –
Retirou os pés mal cheirosos das botas
Papai está doente... Ele não está aqui... Eu só ajudo
amarronzadas, coçou a barba curta, feita havia
o taverneiro, mas ele paga muito mal... – disse a
poucos dias, e depois levou a mão à cabeça, repleta
criança, tão nova e já conhecedora das dores da
de cabelos curtos e brancos, coçando-a também.
vida. – Eu... Eu até pago o senhor! – e tirou do meio
Toda aquela coceira incômoda provinha de sujeira,
dos panos uma moeda de cobre, feia e pouco
talvez – mas Jihlian pouco se importava, estava com
valiosa.
sono e queria dormir. E a porta se abriu...
Jihlian retirou os olhos do garoto e os
lançou para um lado. A boca torceu-se. Ele estava

13
Crônicas Artonianas II
aborrecido. A inocência da criança só merecia sua  Este aqui é o Caminho da Rainha. Ele
indiferença. Pouco lhe importava a situação do pai fica ao lado do Caminho do Rei em poder, por isso
é o segundo mais forte, pois não há Rei sem Rainha.
do garoto. A vida não fora nada justa com A mulher nasceu para ficar ao lado do homem, e
ele – por que não com o garoto e seu pai, também? um homem nunca será de todo homem se nunca
Mas como queria ver-se livre daquela incômoda teve uma mulher ao seu lado... Lembre-se disso,
visita, arrancou a moeda dos dedos do menino e filho. – disse Jihlian para o garotinho que
concordou em ensinar-lhe, embora pretendesse concordava calado, para depois continuar:
apenas balbuciar-lhe algumas regras e dispensá-lo.
 Veja esta carta – e pousou o dedo sobre
Levantou-se da cama, agarrando com a primeira carta do Caminho da Rainha. – É a Coroa,
alguma raiva a bolsa que estava em cima dela. No o símbolo da Rainha; porque um rei não necessita
chão, ao lado de suas botas mal cheirosas, ele sentou- mostrar sua coroa para ter poder, mas a rainha quer
se, cruzando as pernas. Ansioso, o garoto fez o elevar acima da própria cabeça sua mais preciosa
mesmo, enquanto Jihlian remexia a bolsa de couro, jóia. Esta é a mais poderosa carta do Caminho da
procurando as cartas. Rainha – e bateu três vezes o dedo sobre a carta que
continha estampada unicamente uma belíssima
 Aqui estão – e pegou o maço de cartas coroa. – Abaixo dela, vêm os sete servos – e deslizou
grossas de tão velhas. O menino observou rapidamente o dedo nas sete seguintes cartas, todas
interessadíssimo. Jihlian continuou: enumeradas de sete a um, e trazendo, cada uma,
dois naipes vermelhos, simbolizando uma coroa. –
 A primeira coisa que você deve saber é Eis então que aparece o Punho Esquerdo, a mais
das cartas do baralho. Estas cartas são diferentes fraca carta do Caminho da Rainha – e deitou o dedo
daquelas que você está acostumado a ver, se é que na última e nona carta da fileira. – O Punho
você já conheceu algumas... O Cavillan utiliza um Esquerdo é a arma da rainha derrotada; na verdade,
baralho de Ahlen de trinta e seis cartas, sendo que a arma de qualquer mulher. Enquanto os homens
cada nove delas representam um de quatro prestam atenção em seus punhos destros, os punhos
Caminhos... – E, com grande habilidade, ele abriu esquerdos caminham sutis, prontos para abocanhar
sobre o chão o baralho, separando com a possível a presa como uma cobra faz ao rato lerdo...
rapidez as cartas de mesmo naipe. Depois organizou
em fila, numa ordem não muito estranha, as cartas Como o garoto nada dizia, apenas
de cada naipe, formando quatro fileiras paralelas. gesticulava com a cabeça, Jihlian passou ao terceiro
Logo voltou a dizer ao garoto: Caminho, uma fileira também de nove cartas de
naipes vermelhos.
 Veja. Este é o Caminho do Rei... – e
apoiou o comprido dedo numa carta que trazia um  O Caminho da Riqueza – disse
grande desenho de cetro. – O cetro representa a quebrando brusca e sutilmente o breve silêncio,
palavra do rei, sua liderança, e por isso mesmo este levantando uma sobrancelha e sorrindo. – Eis aqui
é o seu naipe. Esta é a mais poderosa carta do jogo. a mais poderosa carta deste Caminho e a terceira
Abaixo dela, vêm os sete soldados – e Jihlian deslizou mais poderosa carta do jogo – apontou Jihlian para
o dedo sobre as cartas enumeradas de sete a um, a primeira carta do Caminho, uma moeda grande,
cada uma delas trazendo, nos cantos superior e amarela. – Abaixo dela, mais sete cartas: os escravos.
inferior, um singelo naipe preto, composto por uma Porque a riqueza não possui soldados ou servos,
circunferência e uma haste, simbolizando o cetro. – mas faz escravo aquele que a possui, e aquele que a
A nona carta, a mais fraca do Caminho do Rei, é o possui faz escravos para si – disse, referindo-se às
Punho Direito. E representa a queda de um rei. Um sete seguintes cartas, enumeradas de sete a um
rei sem nada. como as outras, mas desta vez trazendo um naipe
simples, um círculo preenchido de vermelho. – A
O garoto balançou a cabeça, mostrando nona carta, apesar de parecer potente e forte, é a
entender. Jihlian então passou o dedo para a fileira mais fraca do Caminho da Riqueza: a Espada. Ela é
ao lado, uma composta de símbolos vermelhos, o símbolo do mercenário, aquele que se vende por
diferindo do Caminho do Rei, que era de símbolos dinheiro... E, apesar de ser lógico ela vencer os
pretos. Logo ele começou: Punhos nus do Rei e da Rainha, a Espada só vence
a Adaga, a mais fraca carta do jogo. Isso porque os
punhos mexem sutilmente as peças do grande

14
Crônicas Artonianas II
tabuleiro chamado reino, e a Espada está fadada ao um traído pela sorte – um desesperado.
combate direto e burro... Interrompendo os pensamentos do mancebo,
Jihlian disse:
 Ora, mas... – interrompeu o garoto,
logo depois parando, temendo ter feito algo errado.  Mas você se surpreenderá quando
Como Jihlian se calou, esperando que ele souber que a Adaga ainda pode vencer outras
continuasse, ele resolveu concluir sua idéia: cartas... – e Jihlian sorriu. – Porque a corrupção
mora nos corações dos mais fracos... Por isso a
 A Riqueza deveria ser a carta mais Adaga, que se espreita no manto, mata o
poderosa do jogo! Como um homem e uma mulher mercenário incauto. Mas a Espada, ativa e potente,
podem ser mais fortes do que a Riqueza? – disse o mata a mulher do inimigo... E o Punho Esquerdo,
garoto, convicto. sutil e cruel, faz do marido um inimigo derrotado...
E o Punho Direito é a derrota. É um rei sem nada...
 Heh! – divertiu-se Jihlian. – Realmente Eis a grande virada do Cavillan... – Jihlian sorriu,
deveria ser assim... Mas é justamente por causa deste como se admirando aquela filosofia. – Esta é a
pensamento que a riqueza faz-nos escravos... primeira lição, jovem. Espero que tenha aprendido.
Porque a elevamos acima de nós mesmos! Ora, meu
rapaz... Acaso você já viu riqueza sem homem ou  Oh, sim, senhor... – apressou-se em
dragão por detrás dela? – lembrou Jihlian dizer o pequeno. – O valor das cartas eu tinha
impaciente, não com raiva, mas por ser assim. – entendido mais ou menos ao observar os senhores
Lembre-se que é o homem quem faz a riqueza, é o jogarem na taverna... Mas há algo que até agora
homem quem domina a desgraçada! O maior erro eu não entendi... – Jihlian não quis perguntar o
do rico é pensar que a riqueza faz o homem, e aí ele quê. Quanto menos demorasse melhor. Mas o
já é um escravo infeliz. O maior acerto do esperto é garoto falou:
saber que o homem faz riqueza... E aí ele será um
eterno barão! Entendeu?  Por que estas quatro cartas – e
apontou para o Cetro, a Coroa, a Moeda e o Dado
 Sim... – emanam um certo brilho?

 Está bem. Então vamos ao próximo Jihlian estremeceu. Espantou-se.


Caminho. O último. O mais fraco. Mas que deveria Ofegou, mas não deu a perceber. O garoto via,
mesmo ser o mais forte: o Caminho da Sorte! – então! Como?! Ele já ouvira contos sobre
dizendo isto, Jihlian pousou a mão inteira em cima collenianos que tinham poderes fantásticos nos
da última fileira. Era composta de naipes pretos, olhos. Será que o garoto era um deles? Pois ele
como os do rei, e o garoto percebeu que o vermelho disse claramente que via brilho nas cartas,
estava no centro, na Riqueza e na Rainha, e o preto, justamente as encantadas! Aquelas cartas, de fato,
nos extremos, no Rei e na Sorte. Jihlian prosseguiu: há muito tinham sido encantadas por um feiticeiro.
O mesmo deu, também, um anel a Jihlian. E toda
 O Dado. O símbolo de Nimb. A sorte. vez que ele jogasse, se usando o anel, as poderosas
O aleatório. O Acaso! Eis a mais poderosa carta do cartas do Cavillan iriam parar em sua mão... “As
Caminho da Sorte. No entanto, ela perde para o Rei, boas cartas, às mãos do bom jogador retornam...”,
a Rainha e a Riqueza. Porque os mais fortes nunca, como dizia o ditado.
nunca confiarão na sorte. Só os loucos o farão. E,
por isso mesmo, abaixo do Dado, seguem os sete Chamando a atenção do garoto para si,
loucos... – e outra vez se fez presente uma seqüência Jihlian levou o dedo anelar à boca. Enfiou-o entre
de cartas de sete a um, todas com um naipe preto, os dentes e retirou o anel lentamente, babando o
quadrado, com um minúsculo ponto branco, dedo, enquanto a outra mão recolhia as cartas.
simbolizando o dado (ou a face número um do Com o anel entre os dentes, e agora as duas mãos
dado). – Por fim, chegamos a mais fraca carta do arrumando as cartas, Jihlian disse, pouco
jogo: a Adaga. A arma dos desesperados, dos nitidamente:
traidores. Dos traídos pela sorte! A mais desprezível
carta... – até o garoto fez ar de nojo ao olhar para a  Deve ser sua empolgação, rapaz... As
carta com um desenho de adaga, preferindo até cartas mais poderosas do Cavillan encantam
mesmo aquela que estava ao seu lado, a Espada, mesmo... – disse com o anel nos dentes
com um desenho até majestoso, mais honrado, mais atrapalhando a fala. – Veja se elas brilham aos seus
digno. Antes ser um escravo da riqueza do que ser

15
Crônicas Artonianas II
olhos agora – e Jihlian mostrou as cartas. O garoto cuidadosamente quatro cartas para Grillen, e
fez cara de estranhamento e negou: depois mais quatro para si. – Lembre-se de que
quem distribui deve ser sempre o último a receber.
 Não... – ele já não via mais brilho Isso é tradição. Não tente fazer diferente!
algum.
Grillen compreendeu e segurou suas
Jihlian cuspiu o anel dentro de sua bolsa quatro cartas. Depois disse:
a seu lado, acertando sem problemas a abertura do
saco de couro. Depois disse meio que rindo:  Senhor, mas quantos jogadores
podem entrar no Cavillan? É que só temos trinta e
 Heh! De qualquer forma, deveria seis cartas, né?
chamá-lo de Olhos Espertos... – o garoto não
entendeu muito, mas Jihlian continuou. – Aliás, qual  Bem notado. Você deve ser bom em
o seu nome, jovem? Numérica, não? – observou Jihlian, referindo-se à
matemática ensinada pelos sacerdotes de Tanna-
 É Grillen. Grillen, dos Gorgoriath – Toh, a deusa do conhecimento.
respondeu.
 Numérica? – intrigou-se Grillen. –
 Grillen Gorgoriath? Hyninn... – disse Não sei o que é...
Jihlian, chamando o nome do deus da trapaça. – Não
é um nome muito belo, sabe? Vou chamá-lo de  Ora, é ciência de entender os
Grillen Olhos Espertos... Ao meu ver é bem melhor! números! Como não sabe? Porque se é assim, nem
deve saber o que é um ou sete nas cartas do
 Parece mesmo... – disse Grillen sorrindo baralho! Acaso você não vai aos Templos do Saber,
acanhado, um pouco envergonhando pela crítica ao onde ensinam crianças?
nome de sua família, mas achando tudo meio
divertido.  N-não... – disse Grillen. – Não há este
tipo de templo na aldeia... Na verdade, ouvi falar
Depois de algumas palavras a mais, deles, mas foi numa conversa entre o taverneiro
Jihlian embaralhou as trinta e seis cartas. Antes de Drunkow e um viajante de Kriegerr – referiu-se
distribuí-las, lembrou-se: Grillen a uma importante cidade do reino de
Collen. – Mas eu sei entender os números... Quer
 Ah, sim... Uma partida de Cavillan dizer, é preciso saber quando você mexe com
nunca deve começar sem aposta. Você deve arriscar dinheiro, né?
um tibar por ter entrado na partida... Esse é o
primeiro risco para aqueles que se atrevem a jogar...  Tudo bem... Tudo bem... Há mesmo
mais coisas divertidas a se fazer do que passar
 Senhor, mas... Eu só tinha aquele tibar... metade da vida dentro de uma Casa de Erudição...
– disse Grillen, um pouco triste e confuso, referindo- – disse Jihlian, com certo escárnio.
se ao pagamento.
 Deve ser melhor do que agüentar o
Aborrecido, Jihlian devolveu o tibar, velho Drunkow! Ele cospe quando fala! Nem a
lembrando que ele ainda lhe pertencia, e que o mulher dele agüentou, que se foi embora com a
devolvera apenas para fazer valer uma falsa aposta. filha, fugida com um homem de outras terras. Mas
Sendo assim, ele colocou um tibar no chão, e Grillen é proibido tocar neste assunto aqui dentro da
fez o mesmo. Iniciava-se o Cavillan. estalagem – disse Grillen, abaixando a voz.

 Agora eu distribuo as cartas. Tenha  É, pode até ser. Talvez. Ou não... –


cuidado de, quando embaralhar, não deixar à mostra disse Jihlian em relação, não à infelicidade do
o fundo do baralho. De qualquer forma, você deve taverneiro Drunkow, mas a preferir uma Casa do
descartar a última carta – e Jihlian o fez, exibindo Saber ou as ruas, onde muito se aprende também.
um três de moedas – para que ninguém na mesa se Ele não sabia definir ao certo. Nunca estivera
sinta injustiçado por outros conhecerem uma das dentro de uma Escola Sagrada, cheirando a livro
cartas que ficou no monte. Agora, para distribuir, velho. A vida tinha sido sua escola. Mas ele decidiu
você deve tirar, de cima do monte, quatro cartas para esquecer o passado por enquanto e responder a
cada jogador – e Jihlian o fez, retirando dúvida do mancebo:

16
Crônicas Artonianas II
 Bem, mas você falava do número de  E então? Uma boa mão? – disse
jogadores... É verdade que temos um número irônico.
máximo. E é nove: afinal, quatro para nove
completam trinta e seis, que é o número de cartas do  Talvez – consertou-se Grillen.
baralho... Mas quando temos nove ou oito jogadores,
o Cavillan passa a ser regido por algumas regras  De que interessa se você tem a melhor
especiais que não cabe aqui explicar agora. Por mão do jogo ou não? Eu, com meu dinheiro,
enquanto, vamos nos ater ao jogo de dois a sete poderia aumentar a aposta; e você, sem mais nada,
jogadores, conhecido como o Cavillan dos 7 Tibares... seria forçado a desistir, pois não teria dinheiro para
É que, neste tipo de Cavillan, sobrarão cartas no me cobrir e exigir que eu mostrasse a minha mão...
monte. E isso é importante. Mas, antes, aprenda a
organizar as quatro cartas que você recebeu em suas  Como assim?
mãos.
 O Cavillan é um jogo de apostas,
Grillen olhou para as próprias cartas, filho. Você não deve entrar nele com pouco
temeroso que um adversário as visse, inseguro como dinheiro. Tenha pelo menos dez tibares consigo –
um principiante. Em suas mãos, estavam o Cetro, o aí sim você estaria seguro (para arriscar). Aqui na
quatro de coroas, o sete de dados e o cinco de cetros. mesa, ou melhor, no chão, temos dois tibares: um
Antes que ele perguntasse como organizar as cartas meu e um seu. Eu poderia pôr mais duas moedas,
em suas mãos, Jihlian lhe respondeu: porque é permitido ao apostador colocar até o
dobro daquilo que está na mesa por parte dele.
 Você deve primeiro organizar as cartas Como eu tenho uma moeda na mesa, por minha
de acordo com os naipes. Ponha as de cetros na parte, eu poderia colocar mais duas, aumentando
esquerda, e vá, assim, para a direita, na ordem cetros, a quantia. Você, intimidado, poderia desistir e
coroas, moedas e dados. Depois, organize por valores assim estaria fora do jogo, e eu venceria e ganharia
as cartas de mesmo naipe: primeiro as cartas líderes as moedas. Ou, então, você poderia me cobrir, isto
– o cetro, a coroa, a moeda ou o dado; depois os é, igualar a quantia por sua parte, colocando mais
soldados, ou servos, ou escravos, ou loucos – os duas moedas (caso as tivesse). Assim, eu estaria
números de sete a um; e por fim os zeros – os punhos, impossibilitado de aumentar a quantia porque
a espada ou a adaga. você apenas me cobriu, ou seja, pagou para ver
minha mão. Mas, ao invés de me cobrir, você
Grillen voltou à sua mão. Como Jihlian poderia ter posto mais de duas moedas, três, por
disse, ele organizou primeiro em ordem de naipe: o exemplo. Assim, estaria, na verdade, me
Cetro, o cinco de cetros, o quatro de coroas e o sete desafiando. Estaria pagando além do que eu
de dados. Como as únicas cartas de naipe igual eram coloquei, me obrigando ou a fugir, ou a cobrir a
o Cetro e o cinco de cetros, não havia dúvida de qual sua quantia, ou a arriscar ainda mais. Mas como
deveria vir primeiro. você é um pobre coitado, vou deixar a mesa como
está... – finalizou Jihlian, arrumando, entre as três
 Já o fiz – disse a Jihlian. cartas de sua mão, a nova que conseguira no
monte.
 Ótimo. Agora você e eu temos o direito
de trocar uma de nossas cartas. Uma única carta por O garoto também arrumou a sua. Ele
uma nova do monte. Obviamente você deve escolher havia se livrado de um quatro de coroas e obtido
a menor carta. E não me mostre! uma carta muito pior, o Punho Direito. Infeliz, ele
colocou o Punho ao lado do cinco de cetros, pois o
Assim, Grillen, julgando que seu quatro Punho também era considerado do Caminho do
de coroas era pequeno, desceu a carta, virada para Rei, o caminho do naipe de cetros, e deveria estar
baixo, e a colocou perto do monte. Jihlian fez algo antes das cartas de coroas, moedas e dados – no
parecido, mas deixando Grillen retirar uma carta caso da mão de Grillen, antes do sete de dados,
para si, primeiro, pois o carteador deve ser sempre o apenas.
último a agir.
Uma vez terminada a primeira partida,
A criança olhou ansiosa a carta: o Punho sem lances maiores na aposta, Jihlian mostrou sua
Direito. Ele desanimou e Jihlian sorriu, observando mão: ele exibia, feliz, a Coroa; hesitante, o cinco
as feições na face do inexperiente jogador. de coroas; infeliz, o Punho esquerdo; e indiferente,

17
Crônicas Artonianas II
mas esperançoso, o sete de moedas. Quando Grillen longe algumas muitas moedas. Certamente
desceu sua mão, ele riu indignado, mas bem- conseguidas através de apostas, através do
humorado. Porque o Cetro vence a Coroa. O cinco Cavillan! Enquanto isso, a moça o provocava,
de cetros vence o cinco de coroas. Mesmo o Punho rindo. E começou a mexer com algo que tinha na
direito vence o Punho Esquerdo. Apenas seu sete mão. Parecia um bolinho escuro. Ela o levou até a
de moedas vencia o sete de dados. Eram três pontos boca, e com o calor de seus lábios ele começou a
para Grillen contra um para Jihlian. O pupilo, derreter. Era um tipo de doce exótico e raro, mas
nervoso, não entendia muito bem. Mas Jihlian muito saboroso, conhecido como gorad.
pensava se muito tempo com aquele anel havia feito Certamente Grillen estava numa estalagem do
a sorte desacostumar com ele. Como deveria chamar reino de Hershey, famoso por essas suas
aquilo? Azar de veterano? Não, não... Sorte de guloseimas. Possivelmente, numa cidadezinha ou
aprendiz! Apenas uma estranha bênção de Nimb... vila bem provida e feliz... Grillen estava feliz! Não
tivera mestres como os renomados clérigos de
Assim sendo, Jihlian empurrou os dois Tanna-Toh, mas um único mestre lhe valera a
pobres tibares para Grillen. O garoto os tomou, quase felicidade: o velho Jihlian, agora falecido.
compreendendo – ficando feliz. Jihlian levou a mão
à bolsa, procurando às cegas suas moedas de cobre, Sem hesitar, lançou-se contra a moça,
pois seus olhos encaravam o filho dos Gorgoriath. aplicando-lhe um beijo inicialmente veloz, mas
Sua boca torceu-se, desta vez num sorriso. Já havia depois passou a agir lentamente, saboreando o
esquecido que a aposta era falsa. E, sem sono, pois o gorad, saboreando o momento, saboreando os
jogo o atiçava, ele falou sorrindo: lábios daquela filha de Valkaria, a bela deusa da
humanidade.
 A noite ainda começa e até que as velas
queimem, você, Grillen Olhos Espertos, ainda tem Ela começou a retirar-lhe as roupas,
muito a aprender... trazendo para cima suas muitas camisas. Quando
chegou ao pescoço, notou que Grillen usava um
*** ver apêndice*** colar. Como num impulso, ele se distanciou dela.
*** O Cavillan passo a passo*** O instante ficou tenso. Mas, percebendo o que
*** (regras do Cavillan) *** acontecia, Grillen sorriu outra vez,
apressadamente. Retirou o colar ele mesmo,
Parecia um quarto de estalagem muito porque não queria que a moça o visse. E tinha
simples, mas proporcionalmente confortável. As razão. Tinha, como pingente, o dedo
paredes pintadas de branco ajudavam as velas a misteriosamente conservado de seu falecido
iluminar bem o quarto. A música tocava feliz lá mestre, trazendo o Anel da Trapaça, aquele que
embaixo, e risos alegres de damas e de bêbados fazia as cartas Líderes brilhar a seus olhos. Embora
conseguiam fazer-se ouvir, atrapalhando qualquer Grillen tivesse tido Jihlian como mestre, sua
um que quisesse dormir naquele estabelecimento. personalidade boa e cativante se manteve, mas sua
Mas este não era o caso de Grillen. esperteza havia sido moldada com a perfeição das
esculturas de Zentura, a medusa artista de Vectora,
Aos beijos, risos e abraços, ele levava a o Mercado nas Nuvens.
bela donzela para a velha cama de madeira, coberta
de panos vermelhos... Era agora um belo rapaz, Passado o estranho momento, o rapaz
embora a expressão no olhar continuasse a mesma, jogou seu colar, embrulhado em suas camisas, no
a face ainda parecesse a de uma criança e os cabelos chão, próximo à cama. Semi despido, ele avançou
ainda se mantivessem mal cortados. E como outra vez para cima da jovem dama, como o Cetro
qualquer rapaz, era agitado, veloz, apressado. que vence sem esforço a Adaga.

Após alguns beijos inquietos, nervosos e A música ainda tocava feliz. Grillen
rápidos, ele fechou bruscamente a porta do quarto, estava feliz. Ele não se preocupava se Nimb ainda
ofegando e sorrindo para a moça que correra, sorria para ele, mas estava certo de que, a cada
lançando-se risonha na cama. partida de Cavillan, Hyninn sorria satisfeito. Não
que ele jogasse como seu mestre, impulsivamente.
O Olhos Espertos abriu um grande sorriso, Só quando o ouro lhe faltava. Todos sobrevivemos.
feliz e malicioso, e jogou, ali no chão, uma sacola de Grillen Olhos Espertos também...
couro pesada que se abrira ao cair, espalhando não

18
Crônicas Artonianas II
“Mesmo esses confusos combatentes se
A Benção de Glórienn considerando esquecidos pela Deusa que sempre
louvaram e já sem seus poderes, assumiam durante
cada combate um aspecto assustador para seus
por P.H.Silveira oponentes. A sua sobrevivência não podia ser ligada
à sorte ou à extrema habilidade em combate quando
até o mais feroz inimigo hesitava ao atacar um
esguio elfo ferido, faminto e cansado.

“Não, Lionell se lembrava de colher frutos


nos pomares de Lenórienn quando mal aprendera
a falar, frutos que por sua qualidade e tamanho não
podiam mais serem encontrados em nenhum lugar
depois de sua queda. A Deusa nunca os abandonara,
ela abençoara as plantações e colheitas durante toda
Lionell acordou como uma criança que a sua vida e a vida de muitas gerações antes dele, e
desperta para o calor dos braços da mãe, tranqüilo, ele parecia ser o único a perceber isso.
sem pressa, sentindo o alívio que seu corpo sabia que
há muito não sentia. Sua memória estava turva antes “Por causa disso ele ingressou ainda jovem
mesmo de acordar. Não se lembrava aonde estava, no Templo dos Espadas de Glórienn fundado por
por isso sua surpresa não poderia ser maior. Ao abrir Belleg, o Espada Trincada na Vila Élfica em
os olhos Lionell se deparou cercado por uma floresta Valkaria. E por sua enorme crença na deusa ele
que nem em sonhos imaginou existir, uma floresta escolhera as aulas de reforço religioso ministradas
com árvores que o faziam recordar do dia mais feliz por antigos Paladinos de Glórienn, às aulas de
de sua vida... combate armado aplicado como a maioria de seus
colegas.
O dia em que foi consagrado um espada de
Glórienn. Após anos de treinamento e lições de vida “Para Lionell não interessava ser o defensor
ele finalmente foi condecorado como Paladino da invencível de Glórienn, ele preferia ser o servo
Ordem dos Espadas de Glórienn: inabalável da deusa. Por isso foi um dos poucos a
concluir o antigo curso, apesar de saber que as
“Após fugir no colo de sua mãe do caos recompensas não eram as mesmas de antigamente.”
causado pela queda de Lenórienn, ele nunca mais foi
o mesmo. Mas ao contrário de outros elfos nunca Ainda absorto pela beleza das árvores que o
abandonou a crença em sua Deusa. Durante a viagem rodeavam, Lionell lembrou-se de onde as
foram perseguidos por bestas e monstros, mas todos reconhecia, elas eram idênticas à Árvore Sagrada
caíram em combate contra os poucos protetores que que estava plantada nos jardins do Templo de
lhes restavam. Para uma caravana com mais de Glórienn na Vila Élfica e que mal atingira três
duzentas pessoas eles partiram de Lenórienn com metros de altura. A Árvore que aplacara os raios
apenas doze espadas de Glórienn como escolta e oito de sol que incidiam na cabeça de Belleg quando este
deles haviam tombado durante a fuga do cerco que o entregara a espada símbolo do posto que estava
ainda se formava ao redor da cidade. assumindo: Paladino da Ordem dos Espadas de
Glórienn, não Guerreiro, mas Paladino e isso mais
“Mesmo assim esses quatro defensores os do que tudo encheu seu coração de alegria.
protegeram de investidas de grupos goblinóides,
ataques de lobos e grifos. E já dentro das fronteiras Sim elas eram da mesma espécie, mas estas
do Reinado, bandos de assaltantes e trogloditas foram tinham dezenas de metros de altura. Seriam
rechaçados sem que houvesse a perda um único civil. necessários centenas de anos para que atingissem
Muitos elfos abandonaram a fé em Glórienn durante aquele tamanho. E árvores dessa espécie só eram
a jornada. Incluindo sua mãe, típica esposa e filha de encontradas nos maiores templos de Glórienn, nem
simples camponeses. Mas não ele, não depois de Galrasia possuía este espécime de árvore.
presenciar o ataque de duas vintenas de orcs
selvagens ser rechaçada por combatentes feridos, Essa constatação repentina fez sua memória
cansados e desacreditados. E ainda com dois deles, a ir voltando aos poucos. “Depois de sua graduação
metade de sua guarda, sem mais fé em sua Deusa. como paladino de Glórienn ele encontrou com uma

19
Crônicas Artonianas II
bela elfa chamada Illanna em uma taverna nas - Ela fica em Valkaria. Estabelecemos uma
proximidades da Arena Imperial, apaixonou-se por comunidade lá depois da queda de Lenórienn.
ela. E em seguida entrou em um ciclo vertiginoso Mas, quem é Vanhulienn? O líder dos Espadas de
de confusões e aventuras. Fez muitos amigos, até Glórienn é Belleg, o Espada Trincada.
um anão, venceu preconceitos e mostrou que os
elfos não são arrogantes mas que apenas vêem o – Quer dizer que fundamos um novo reino?
mundo de forma diferente.” E que Vanhulienn já partiu para esse mundo?

E foi nesse momento que Lionell lembrou-se - Um novo reino? O que quer dizer ancião?
onde estava, ou melhor, onde deveria estar. Sempre existiu um único rein...
“Deveria estar em um antigo templo Sszzaazita nas
Uivantes que agora estava dominado por um bando Foi quando gritos estridentes chamaram a
de trolls do gelo que atacavam as vilas vizinhas. Para atenção desses interlocutores. Eles surgiam do
ser mais especifico ele deveria estar em uma das meio das árvores; Lionell sacou sua espada por
câmaras inferiores combatendo um Draco-Lich reflexo, enquanto ambos se voltavam para aquela
Branco.” direção. Normalmente os ouvidos aguçados dos
elfos captam ameaças com uma antecedência que
– Sim, eu devia estar estirado no chão depois muitas vezes representa a diferença entre a vitória
de saltar para proteger Illanna da baforada do e a derrota.
Draco-Lich...
Uma jovem elfa com uma criança ao colo
– Não meu jovem, seu lugar é aqui. – Lionell corria entre as árvores de um bando de hobgoblins,
se surpreendeu ao se deparar com um ancião élfico que pareciam estar se divertindo com a
a observá-lo entre as árvores, se surpreendeu ainda perseguição. Quando Lionell percebeu do que se
mais por não o ter percebido antes, pois ele se tratavam os gritos começou a correr, ao mesmo
encontrava quase na sua frente e ele havia tempo que o ancião proferia um mantra que ecoou
observado aquele local atentamente há apenas pela floresta. Pouco depois as copas das árvores
alguns segundos - Sim nem mesmo seu corpo jovem foram balançadas por uma forte rajada de vento.
e vigoroso pôde resistir a tamanho poder destrutivo
da criatura. Isso chamou a atenção das bestas, que
aumentaram o passo. Antes que Lionell pudesse
– Isso quer dizer que eu estou... intervir, as criaturas já haviam alcançado a jovem.
O berro de alerta de Lionell foi apenas um instinto.
– Morto? Não eu diria que não, na verdade Um instinto que não pode bloquear o golpe brutal
eu diria que você se encontra mais vivo do que de uma das criaturas.
nunca...
As folhas das árvores caiam lentamente
– Como assim? enquanto Lionell corria mais rápido do que algum
dia houvesse imaginado poder correr. Percorrendo
- Pelo que posso constatar por seus trajes e os últimos dois metros arrastando ambos os
por sua arma, você é um dos bravos Paladinos da joelhos pelo solo da floresta, ele aparou a jovem
nossa Deusa. antes que ela desfalecesse totalmente no chão. O
choro da criança ressoou pela floresta como se
– Sim, fui sagrado Paladino há dois anos no fosse a única coisa viva em todo aquele caos.
Templo Sagrado de Glórienn na Vila Élfica, pelo
próprio líder dos espadas de Glórienn. – Proferiu Com o bebê apoiado em seu braço e a jovem
Lionell sem tentar esconder o orgulho que sentia desfalecida em seu colo, Lionell não percebeu
ao dizer aquelas palavras. quando as folhas que caíam das árvores
começaram a rodopiar em volta dos hobgoblins
– Quer dizer que Vanhulienn continua a como se estivessem sendo envolvidos por um
sagrar todos os Paladinos de Deusa pessoalmente? tornado.
– Constatou o Ancião como se fosse algo que já
tivera uma importância perdida – Mas essa Vila Lionell constatou que se não fizesse nada a
Élfica, nunca ouvi falar dela meu jovem. jovem morreria rapidamente, absorto com esse
fato, não percebeu que naquele momento as folhas

20
Crônicas Artonianas II
que giravam em torno das bestas de tornaram-se – Vamos Paladino! Enfrente essas bestas que
cortantes, irritando e ferindo os agressores. meus companheiros protegerão as crianças. – As
palavras do ancião trouxeram Lionell de volta à
– Por Glórienn! Este ferimento é fundo demais realidade. Ele pegou a espada que havia deixado
para ser controlado com apenas meus ínfimos cair quando aparava a criança, se levantou e
conhecimentos de cura. – Foi quando Lionell marchou a passos firmes em direção às bestas.
inconscientemente começou a chorar, e junto com Enquanto isso os lobos restantes recuavam em sua
as lágrimas escorreu uma prece a sua deusa - Oh, direção e se postavam entre ele e as crianças.
Glórienn Deusa Mãe de infinito amor, ajude-me a
salvar essa filha inocente que foi vitima de criaturas Quando as criaturas perceberam sua
bestiais... aproximação, elas assumiram uma posição rígida
de combate, mas quando elas se atreviam a olhar
Nesse instante a mão que afagava a cabeça da em seus olhos, Lionell sentia o sangue delas esfriar
jovem começou a brilhar, um brilho opaco, mas um e suas pernas vacilarem. Foi apenas a criação
brilho com a força da própria face de Azgher. E foi altamente militar de exaltação à coragem e a
para espanto de Lionell mais do que para qualquer repulsa de sua raça aos covardes que manteve os
outro, que o ferimento profundo da jovem foi aos hobgoblins em posição de batalha, pois seus
poucos se fechando, se fechando até sobrar apenas corações estavam tomados pelo terror. “...Quando
um filete branco, como uma cicatriz bem tratada e lutávamos para proteger um elfo os corações de nossos
há muito tempo já curada. oponentes se enchiam de medo...”

Isso o fez lembrar de uma aula no segundo Lionell aproximou-se do primeiro


ano de treinamento quando o já aposentado Espada hobgoblin com a espada em riste. A criatura
de Glórienn Finderiell, explicara aos noviços alguns pensou duas vezes antes de atacar o elfo que
dos poderes que os Paladinos de Glórienn possuíam parecia encarnar a fúria dos deuses. Esses instantes
nos tempos áureos da ordem: “...podíamos curar foram os únicos necessários para Lionell aplicar
companheiros caídos de uma maneira diferente dos um golpe certeiro em sua garganta. Com a espada,
clérigos, a nossa fé e nosso amor eram tão poderosos quanto desviou a lâmina já sem vontade do machado que
qualquer cântico de cura...” descia em sua direção. Lionell encarou o hobgoblin
que atacara a jovem e a criança.
As lágrimas, dessa vez de felicidade, lhe
embaçaram os olhos de um modo que ele apenas O sangue fervia em suas veias e ele não
vislumbrou a jovem despertar. Ela segurou o bebê vacilou quando mais de uma dúzia de bestas
entre os braços e ainda com um olhar assustado correram na sua direção. Seu alvo era enorme,
disse: quase do tamanho de um bugbear, e o sangue na
lâmina de sua espada indicava sua qualidade
- Obrigado por salvar a mim e a meu irmão, como guerreiro. Ele havia matado mais de três
Guardião. – Depois ela mesmo limpou os olhos de lobos em poucos segundos, e apesar disso Lionell
Lionell secando as lagrimas que ainda escorriam por só pensava em acabar com a vil criatura.
sua face. Agora, com a visão clara, Lionell pôde
perceber que a jovem que julgara se tratar de uma Enquanto aplicava o golpe Lionell teve a
criança já atingira quase sua total maturidade e que impressão de ver a lâmina de sua espada
apesar de assustada ela sorria – Por que chora resplandecer, mas ele estava concentrado demais
Guardião? Eu e meu irmão estamos bem graças a no seu alvo para ter certeza disso. A espada atingiu
você. o peito da criatura abrindo uma enorme fenda em
sua armadura, instantes depois a criatura que
Nesse momento Lionell lembrou-se de quem parecia inabalável regava o chão da floresta com
causara tanto sofrimento, e erguendo o olhar pôde seu sangue imundo. “... Podíamos algumas vezes se
ver os malditos hobgoblins lutando contra uma já não aniquilar as mais poderosas criaturas malignas com
diminuta matilha de lobos. O batalhão de criaturas um único golpe, abalar sua constituição de um modo
tinha sofrido apenas umas poucas baixas e os que ela teria seus alicerces destruídos...”
membros restantes estavam feridos apenas
superficialmente. Lionell estava inspirado pela vontade de
puni-los de tal modo que nem sentiu quando a
boca pútrida de outra criatura mordeu fundo a sua

21
Crônicas Artonianas II
carne. A única coisa que continuou a fazer foi – O jovem Nazu já assumiu o trono? Estou
combatê-las, até que restassem apenas três, que aqui a tempo demais! – Exclamou o ancião entre
abaladas com a situação, debandaram. sorrisos de satisfação.

Agora, com a mente mais calma e o coração – Reinado? Nazulandell? Sobre o que vocês
mais tranqüilo por observar a criança descansar estão falando?
sossegada no colo da irmã, Lionell refletiu sobre sua
condição física. Ele não tinha saído incólume da - Eu tinha razão, a vinda dessas criaturas
batalha, a ferida que mais lhe preocupava era a perna, não foi coincidência. Você, meu caro amigo,
pois essas criaturas eram conhecidas por trazer quebrou a malha temporal, você veio de nosso
putrefação em sua mordida. passado ou futuro e isso não devia acontecer. Você
deve ter morrido em um local profanado pela
– “Mas de que adianta, eu já estou morto presença muito longa de um deus maligno ou por
mesmo”. – Pensou ele em voz alta. se encontrar em uma área a onde a magia é caótica
como a mente de Nimb...
– Não meu jovem. – Disse o ancião enquanto
cuidava dos arranhões das crianças e os ferimentos A conversa foi novamente interrompida,
dos lobos – Agora você esta mais perto de sua Deusa mas dessa vez porque Lionell começou a se tornar
do que imagina, e ela não gostaria de vê-lo ferido em etéreo aos poucos. E seu corpo etéreo desaparecia
seu próprio reino, alem do mais seus servos são progressivamente.
imunes a esse tipo de injúria não mágica. - “... e apenas
doenças de origem mágica ou divina podiam nos afetar...” – O que está acontecendo?

- Pois ainda somos seus leais servos e - Você esta voltando para sua casa, estão lhe
defensores. – Lionell murmurou completando o ressuscitando.
discurso – Você quer dizer ancião, que aqui meus
poderes funcionam? – Mas como eu vou saber se sou seu passado
ou seu futuro?
- E um dia eles lhe falharam? – Após uma
pequena pausa o ancião prosseguiu - Você deve estar - Me diga o nome do Rei que governa os
estranhando o fato deles se manifestarem tão elfos de seu tempo, se me lembrar de seu nome
prontamente aqui, pois não se surpreenda, como você você com certeza pertencerá a nosso passado.
deve imaginar, nossa Deusa não se encontra muito
longe. – No meu tempo não há reis... - Lionell já
desaparecera o suficiente para que suas palavras
– Glórienn... seguintes não fossem ouvidas mas ele consegui
captar a resposta:
– Para falar a verdade Ela está a apenas 20
léguas ao norte daqui. Eu adoraria acompanhá-lo, - Então você é de nosso futuro pois desde a
mas essas mudanças extra planares não costumam Guerra dos Clãs há um Rei no trono do Palácio
ocorrer sozinhas. Nunca tinha visto criaturas como Dourado, e foi o primeiro Rei Élfico que fundou a
aquelas, elas devem ter se extraviado de seu plano Ordem dos Espadas de Glórienn...
de origem e mais delas podem estar por aqui. Além
do mais devo explicar a essas crianças o porquê de ***
estarem aqui e guiá-las e um local seguro, no caso de
haver mais bestas perambulando pela floresta. Pois Lionell acordou novamente, mas dessa vez
morrer aqui representa o verdadeiro fim. ele se lembrava de tudo. Ele não estava mais na
grande floresta, estava de volta ao templo maldito
– Você nunca tinha visto um hobgoblin? Em cercado por seus amigos e pelos restos do Draco-
que ano acha que estamos? – A surpresa de Lionell Lich.
foi ainda maior por ser a jovem a responder essa
pergunta: – Eu disse que o pergaminho ia funcionar.
Não, não, Helionard Cigarrets não se engana duas
- Qüinquagésimo sexto ano lunar do reinado vezes – Esse era o bom e jovial ex-ladrão halfling
de Nazulandell. que Lionell aprendera a apreciar.

22
Crônicas Artonianas II
– Graças a Glórienn seu coração voltou a bater. – Sim, acho que sim. – Após um momento
– Lionell mal teve tempo de falar antes de ser de serenidade, Grag retrucou com um humor raro
sufocado pelo abraço de sua amada Illanna. na voz:

– Como é o mundo élfico dos mortos? É tão - E então, afinal você viu as Galerias
belo quanto as cavernas douradas da mitologia Anã? Douradas do Reino dos Mortos?
– Mesmo querendo bancar a rocha, o anão Grag
Tartoloonn deixou transparecer o alívio de ver seu - Não, mas estive na mais extraordinária
melhor amigo voltar a viver. floresta que já, vi. – A afirmação séria de Lionell
comoveu Doriel.
– Aposto que Lionell responderia com todo
prazer nossas perguntas se deixássemos ele respirar. – Então Allihanna o recepcionou bem em
Pelo amor de Lena, Illanna, eu sei que são amantes e Arbória?
que se amam, mas os pergaminhos de ressurreição
acabaram, portanto deixe-o respirar. – O tom de - Não caro amigo, não vi as magníficas
censura só ajudou a transmitir a preocupação do florestas de Arbória. Estive nos Jardins de
mago humano Iann “Juggernault” Felix. Glórienn, e lá encontrei primaveras que não voltam
jamais.
– Vamos, você não vai ficar parado ai feito um
cadáver depois que tive tanto trabalho para te - Como assim meu amado? Encontrou
ressuscitar. – O clérigo de Allihanna Doriel Q’uaw parentes seus?
podia ser um pouco ríspido, mas o fato de se
preocupar com Lionell significava que ele se - Não amada Illanna, o poder maligno do
importava o suficiente para parar de reclamar sobre Draco-Lich combinado com a energia profana
a falta de vegetação nos subterrâneos. desse templo, desviaram me da rota para
Nivenciuén , mas não o suficiente para afastar-me
Ao observar sua amada Illanna se afastar com da Deusa. Fui parar em Nivenciuén de outrora e
os olhos vermelhos de tanto chorar e as caras cheias encontrei almas de elfos há muito tempo
de preocupação de seus companheiros, Lionell quase reencarnadas. E contemplei pela primeira vez em
esqueceu da beleza da floresta da onde estivera até minha vida o beijo da deusa. Fui seu Paladino
agora pouco. Mas a memória de um elfo tem a como eram aqueles antes de mim, antes do dia
capacidade de recordar as cenas mais belas de sua fatídico quando os membros de minha ordem
vida mesmo que centenas de anos passem sem perderam seus poderes.
esquecer um único detalhe. E Lionell sabia que nunca
esqueceria aquela floresta nem esse momento de – Você quer dizer, que... - Balbuciou
preocupação sincera de seu amigos. Helionard.

– Só falta termos esquecido de regenerar a – Que curei os fracos, derrotei o mal e recebi
língua dele. Se esse pergaminho não o trouxe de volta o sorriso de alegria dos oprimidos. Tudo com a
são, eu juro que o aço do meu machado, que um dia Benção de Glórienn, exatamente como fora em dias
provou o calor das forjas de Doherimm irá se banhar passados.
no sangue de um certo Halfling... – O anão levantou
seu machado de forma ameaçadora, um gole seco – Diga-me amado, o beijo de Glórienn é tão
desceu pela garganta de Helionard. doce quanto meu?

– Não será necessário usar de violência Grag. - Glórienn colocou-a em meu caminho e fez
Eu estou bem. – Novamente todas as atenções nossos corações se unirem, por isso recebo seu
estavam voltadas para Lionell, o machado baixou tão beijo toda vez que estamos juntos. Não minha
rápido quanto surgiu uma expressão de alívio na face amada, não tive a felicidade de reencontrar a
de Grag. Deusa, apenas senti sua presença e seu amparo,
do mesmo jeito que os antigos Espadas de Glórienn
– Você está bem? – Perguntou Illanna com uma sentiram antes de mim.
voz preocupada.
– E agora? Essa presença continua com você?
– Questionou Juggernault.

23
Crônicas Artonianas II
– Ela sempre esteve comigo é só procurá-la e descontentes, ou ladrões menores tentando fazer
a encontrarei novamente, mas meu poderes me fama com os bens do Imperador-rei, mas os guardas
abandonaram se é isso que você quis saber. sempre bastaram para lidar com eles. Lorde
Niebling, o gnomo, estava visitando, o que dobra o
– E você se sente triste por isso? - Perguntou número de guardas no castelo. Ninguém esperava
preocupado Grag. qualquer ocorrência naquela noite de primavera...
Bem, Valkaria nunca teve piratas...
– Os poderes são apenas uma ajuda da deusa,
mas é a fé nela que me motiva. Não, eu não me sinto ***
abandonado, apenas sinto que por algum motivo a
Deusa não consegue me alcançar... – Sua voz calou- Melekashiro é um monstro de outro
se e Lionell assumiu uma atitude reflexiva. mundo, que veio a Arton por Vectora. Com quase
três metros de altura, com o corpo maleável como
– E então? O que você fará agora? – se fosse barro, cujas feições e formas se igualam às
Questionou Helionard. Depois de alguns minutos que seriam dadas por um escultor incompetente a
de silêncio total Lionell finalmente respondeu: um humano enorme e careca. Capaz, não somente
de projetar vários tentáculos afiados como lanças,
- Primeiro, vou acabar com as ameaças como também se reproduzir e mesclar, Melekashiro
contidas nesse templo, pois foi para isso que vim. possui fúria inigualável, e a mentalidade de uma
Depois, bem, depois vou continuar cumprindo a fera. Por isso está em cativeiro hoje.
missão que Glórienn me incumbiu: Achar um modo
de transpor a barreira que nos separa. Mas Melekashiro, acorrentado dentro de
uma Jaula em um porão de uma das torres do
– E você já tem idéia de por onde começar? – castelo de Valkaria, não parece ameaça. O Grande
Perguntou Illanna. Talude pessoalmente viria pegar a “aquisição” para
a grande Academia Arcana na manhã seguinte.
– Sim. – Respondeu ele depois de refletir um Melekashiro podia ser dissecado vivo, graças a sua
pouco – Beijando a mulher que eu amo. forma de barro, e ainda permanecer vivo. Desde
que chegara, suas histórias atormentavam os
guardas como se fosse um demônio da tormenta,
mas ele se manteve calmo e inerte. Alguns
Bloodyjaws acreditavam que era o estresse, mas na verdade,
naquele lugar isolado onde seus instintos eram
desnecessários, Melekashiro estava em paz.
por Cap. Hardman
Bem, Valkaria nunca teve piratas...

Melekashiro é despertado de seu sono por


ruídos de batalha. Algo rápido e mortal... Poucos
tilintares de espada e o silêncio dominava... Novos
sons, e novamente o silêncio. Este último som era
diferente. Um som metálico fraco...Quase um
clique... E a pesada porta metálica que isola sua
jaula do resto do castelo se abre. Melekashiro não é
brilhante o suficiente para perceber a arte dos
ladrões, mas seus instintos de sobrevivência o alerta
para o homem pequeno, com barba rala, olhos
negros sem brilho, que destrancara a porta.

- Por Hynin... Ele é grande! - Diz Sório


O Castelo do Rei Thormy costuma a ser Long, o mesquinho bucaneiro, membro da
silencioso em suas madrugadas de primavera. tripulação de Selakos.
Senão pelo respeito que o monarca inspira em todo
o reinado, pelo medo que seus guardiões inspiram - É isso mesmo que nosso capitão quer,
em possíveis ladrões. Sempre há alguns arruaceiros, Sório - diz altivamente o jovem loiro e alto que entra

24
Crônicas Artonianas II
junto com ele. Suas roupas finas, seu sabre veloz e se encontra no jardim... Sabe o que é jardim? Flores...
sua mão decepada trocada por uma cabeça de hidra Estátua de Rhana...
negra indica a identidade de sir Charles, um nobre
decadente que se tornou um pirata cruel. Melekashiro leva algum tempo
“processando” a informação de Charles. Mas acaba
- Charles... Melekashiro não vai ser distração compreendendo. Era hora de sair da prisão. Seria
tão grande quanto você e essa boca. - Fala o terceiro legal pegar o máximo de “guardinhas” no caminho.
homem. Sua voz é carregada de amargura, e suas Então, com um urro horrendo, Melekashiro corre
feições estão cobertos com um uniforme escuro, pela porta. Charles, Sório e Vortex ouvem os sons
ornamentado por esvoaçante cabelos negros e pela de toda a guarda do palácio sendo acordada.
capa mágica capaz de conceder a Vortex o dom do Melekashiro, com certeza, não era a criatura mais
teleporte. discreta do mundo.

- Gente... - chama a atenção Sório. - Cap. Charles e Sório dão as mãos para Vortex,
Selakos quer que a gente solte o bicho... Não acordem que envolve os três com sua capa mágica,
toda Valkaria... Vocês da costa não entendem nada teleportando todos para longe, em segurança...
de cidades grandes, não é?
Valkaria, definitivamente, nunca teve
- Por isso que mantivemos você vivo, piratas...
ladrãozinho... - comenta sarcástico Vortex.
***
Sório estende suas ferramentas até a primeira
algema de Melekashiro... Que estava preparado para Do outro lado do continente, em algum
atacar, mas prefere ver as intenções dos intrusos. lugar do oceano, um navio de contrabando está
Sório, mesmo trêmulo, enfia as mãos ágeis pelas terrivelmente agitado. Acmar, o capitão deste navio,
grades, e tira a primeira algema do monstro. aceitara transportar um passageiro, com uma carga
que ele alegava ser itens religiosos. Acmar
- Pronto, Melekão... - Diz Sório. - Você prometera não vasculhar os itens, mas só um tolo
praticamente está livre... acreditaria em suas palavras. E só Acmar poderia
desconfiar que todas aquelas peças eram feitas de
- Livre? Mim? Sim! Livre! ouro puro. Mais de cinqüenta quilos.

Animadamente, Melekashiro fica de pé. Seu Acmar tentou pessoalmente matar seu
corpo torna-se melado. As demais algemas passageiro em seu sono, mas o maldito era alerta
simplesmente escorregam por suas mãos e pés. Sório, como um dragão, e tão furioso quanto um. Mal deu
assustado, se joga para traz, e vê Melekashiro se para Acmar escapar e trancar a porta. Era de
espremer entre as grades como um fantasma, carvalho maciço, o passageiro não iria escapar
deixando para traz restos de seu corpo pastoso. mesmo com magia... Mas os sons produzidos pelos
impactos eram assustadores...Acmar ainda pensava
- Eu, hein? - exclama Charles. - Esse cara tava o que fazer... O clérigo era poderoso o bastante para
livre o tempo todo? castigar seus poucos homens.

- Só que ninguém disse para ele. - conclui Um navio se aproximava. Com a lábia de
Vortex. - Ele não parece ser muito esperto... Acmar seria fácil conseguir ajuda, mas, com menos
de duzentos metros, ele percebe a bandeira negra
- É? - Sorri Charles - então o capitão escolheu em seu mastro.
bem...
Bem, fazer o que? Há piratas no oceano...
Charles se volta para Melekashiro. O monstro
se ouriça, demonstrando três lanças-tentáculos Cap. Hardman fita com interesse a agitação
ameaçadoras. A “Hidra” de Charles rosna também. do navio que encontraram. Logo ele reconhece
Acmar, o pequeno contrabandista. Em geral ele
- Ei, Melekão! - fala Charles. - Somos Amigos, ignoraria, pois o trapaceiro era peixe pequeno... Sua
lembra? Nós que estamos libertando você. Os carga dificilmente valeria a pólvora usada nos tiros
guardinhas é que são maus. Pode ir embora. A gente de alerta. Mas Acmar estava realmente preocupado.

25
Crônicas Artonianas II
Preocupado demais para alguém que só iria perder - Yu-Hu!!! - comemora Bô. - O merdinha
algumas centenas de Tibares. tem carga!!!

Só um som poderia tirar Hardman de sua - Então, “Guerreiro etílico”... Vamos


concentração: abordar o navio?

- Brrrrruuuuuuppppp!!! - Claro, capitão duro... durão... durango...


É, penso em um apelido depois.
Hardman olha para baixo. Um homem
magro, vestido com trapos negros, e uma garrafa ***
de ferro fundido preso a uma corrente em seu cinto,
emanando forte cheiro de rum. Seu dono também Valkaria nunca teve piratas...
se move desengonçadamente como um bêbado.
Os dois cadetes que guardavam a porta do
- Puxa o carro, capitão... - fala Bô, o pirata quarto de hóspedes onde Lorde Niebling dormia
etílico, com a língua enrolada. - É só o merdinha do ouvem us ruídos e o alarme. Eles se precipitam a
Acmar. correr pelo corredor... Mas trombam com Arkan, o
grande Líder do Protetorado.
- Calma, marujo... - diz animado o capitão
pirata. 1 metro e 80, corpo esguio, com um - O que estão fazendo? - pergunta o
imponente chapéu de três bicos e uma espada em guerreiro.
sua bainha. - Olhe só o que o babaca vai fazer... Está
armando os dois canhõezinhos dele... Por que um - É, Ouvimos ruídos senhor... Pensamos
“merdinha” arriscaria sua vida por uma merreca? que o Melekas...
Ele tem carga ... E da boa...
- O Melekashiro se soltou mesmo, mas sua
- Eu Acho >hic< que ele sabe que está para missão é proteger Niebling! Melekashiro é
ser abordado pelo grande Capitão Hardman... - diz problema MEU.
o bêbado, se levantando desengonçadamente. -
Hardman... o ... o ... É, capitão... Qual seu apelido? Arkan corre pelas escadarias, rezando
encontrar Melekashiro logo... O rei em pessoa
- O que? - pergunta surpreso Hardman. estaria ameaçado...

- Seu apelido! - insiste Bô. - Todo grande - Rodolph, - diz um dos cadetes. - Eu vou
pirata tem um apelido... Will Scarr, o Cicatriz... ver se o andar da família real está seguro... Fique
Mino, a Lotus Negra... Selakos, o sinistro... Até eu, - aqui!
estufa o peito. - Bô, o Guerreiro etílico... O homem
forjado pelo aço... E pelo álcool!! - Mas... Breno... - sussurra o outro. - Você
vai desobedecer Arkan?
- Hmm... Não tenho apelido. - ri o capitão.
- Não. Não devo demorar mais que dois
- Temos >hic< que inventar um... minutos. Dê-me cobertura... Lembre de quando seu
irmão ficou doente... Quem te acobertou?
- Por que?
- Mas... Bem... É pelo rei, né?
- Para todos saberem como chamá-lo!
Rodolph corre escadaria acima. Breno
- Mas meu nome é bom... Hardman é ainda olha seu companheiro se afastar. Ao se virar,
homem duro em um antigo idioma anão... a figura pequena e enrugada do Gnomo está o
- Hmm... Anões não tem vez no mar... encarando.
Vamos bolar outro...
- Lorde Niebling... Eu... - fala nervosamente
A discussão não se prolonga. Um estrondo o cadete. - Volte por favor para seu quarto. Há um
do canhão de Acmar indica que a batalha vai monstro no castelo...
acontecer.

26
Crônicas Artonianas II
-Eu sei... Eu ouvi.- diz irritado o gnomo.- Mas mordida, dá fim à vida do guarda. Selakos friamente
não consigo dormir sabendo que só há você de guarda se curva sobre o corpo caído e pega as chaves. Seu
na minha porta! caminhar é solene...

- O que? Ah, Rodolph... Ele já volta. Lorde Niebling está perdido...

- Isto não basta! O rei Thormy vai ficar Provavelmente não há piratas de onde
sabendo disso se você não trouxer ele Lorde Niebling veio...
imediatamente... E mais outro, por segurança.
***
- Mas... O senhor vai ficar desprotegido...
Como Hardman previu, a luta nem deu
- Hmm... É mesmo. Dê-me seu gongo. Se o gosto. “Estou nessa apenas pela diversão”, ele dizia,
monstro chegar, eu posso chamar vocês tocando o mas após a primeira salva de canhões acertar os
gongo... mastros e as velas para o navio de Acmar içar
branca.
- Boa idéia - diz o guarda, tirando de seu
capuz um pequeno gongo mágico usado como - Ca-ca-capitão Leo Hardman... - gaguejava
alarme. Presente de Talude para a guarda do palácio. e chorava Acmar. - Eu... Bem... E... E - desculpe! Mil
desculpas. Não sabia que era você!
Breno corre nervosamente, até, cinco metros
depois ele se dar conta: a porta de Niebling está - Mesmo?
trancada por fora...
- S-Sim! Senão nunca me atreveria atacar
Breno saca a espada curta. Vira-se você...
violentamente, mas Niebling não está mais lá. Ele olha
todos os cantos... Se alguém está escondido naquele Hardman agarra as golas do homenzinho,
corredor, só poderia ser nas alcovas junto às colunas. gordo e mesquinho.
Um movimento indica a localização do invasor... Um
lance rápido e a espada encrava na parede. Ninguém - Foi SORTE sua ter sido eu, Acmar. - rosna
lá... ameaçadoramente o capitão pirata. - Outro pirata
teria afundado seu navio pela INSOLÊNCIA! Outro
- Tolo... - diz uma voz cavernosa e como... Bem... Bô...
ameaçadora. - Podia ter ido e poupado sua vida...
- Sim >hic< mi capitain?- responde
- Q-quem está aí? - pergunta o assustado prontamente Bô.
guarda.
- James K Não têm apelido!
- Depois eu sou o facínora... Dou chance a
minhas vítimas fugirem, e elas desperdiçam... - Mais hein? Depois sou eu que bebo...

- Apareça... Seu... Seu baixinho miserável... - Aquele papo no convés... - Hardman


esquece Acmar no chão. - Não preciso de apelido...
- Baixinho? Eu? - diz o invasor, se revelando. James não tem...
Com dois metros, vestido como um nobre corsário,
mas com uma cabeça enorme de tubarão ao invés de - Como não? - Sorri Bô, enquanto
sua natural. Mandíbulas enormes e olhos opacos desmunheca, em pose homossexual. - é “Jaqueline
congelam o cadete mal-preparado. K”....

- Mas o que é... Todos os homens Riem. Apesar de temido,


piadas sobre boatos de James K e da Bravaro eram
- Eu? Sou SELAKOS! lugar-comum no oceano. Mesmo Acmar esquece
sua tragédia e arrisca um sorriso, percebido por
Enormes mandíbulas de tubarão mágicas Hardman.
brotam do chão sobre o cadete, e com uma só

27
Crônicas Artonianas II
- Bem, Acmar... - enxuga uma lágrima. - - Senão mando todos vocês ao encontro de
Cadê o tesouro? Leen. - diz isso, afastando a espada de um dos
homens de Hardman.
- Q- Que tesouro?
- Sei... Olhe, meu caro. Somos vinte, e você
- O que queria esconder de mim. é só um...

- N- n-n-n- não tem te-te-tesouronenhum!!! - Tenho o Deus-Sol ao meu lado!

Hardman dá um suspiro, e arremessa - E eu, tenho Grande Oceano ao meu. - diz


Acmar contra a parede, que cai pesado contra o chão Hardman, tentando imitar a arrogância do
mais uma vez. Caminhando tranqüilamente para estranho. - Quer ver qual o melhor deus?
próximo de uma caixa de suprimentos amarrada no
convés, e, com um único golpe de espada, Hardman - Não brinco com meu deus! Nem comparo
arranca um tampo, fazendo o tesouro recém- com outros.
descoberto de Acmar correr pelo convés. Algumas
estátuas, coroas e moedas, tudo em ouro puro. - Ah... Mas eu adoro comparar. - diz
Gritos de comemoração enchem o convés, Hardman, sorridente. - Um gesto meu, e os meus
acompanhados pelas lamúrias do pequeno homens esquartejam você. Se for tão bom quanto
contrabandista. você pensa que é, pode pegar dois ou três... Mas
vai acabar perdendo.
- NÃO!!! LARGUE ISSO!!! - grita imponente
uma voz vinda de dentro do navio. - Está preocupado com isso, capitão? -
responde calmamente.- Porque EU não estou.
- Hum... Então o velho Acmar tem mais
surpresas para nós? - Fala Bô irônico. - Quem é, Ac? - Sim... Estou. Estou nessa pela diversão.
Sua namorada? Façamos um trato, Salin...

- É-é-é- é o dono desses troços... Digo... Be- - Alin é meu nome...


be-bem não sei quem... Mas está trancado... Não vai
sair de lá. Minha porta é feita de ... - Que seja. Alin. Lutaremos só nos dois. Se
EU vencer, bem, você estará morto, e não se
Uma explosão forte estraçalha madeira incomodará se levar seus donativos...
chamuscada e fumegante de dentro do convés. O
prisioneiro escapa. Um homem alto e forte, coberto - ... E se eu vencer?
por túnica e máscara do povo do deserto caminha
alheio às espadas que se encostam a suas costas. Ele - Bem... Você ganha um navio... E uma
só para diante de Hardman. tripulação cativa!

- Feitas de carvão, Ac? - Fala Hardman como - É... Cap... - interrompe Bô. - Cê bebeu?
se ignorasse o clérigo de Azgher, recolhendo um
dos pedaços da porta. - Hmm... Para um ladrão, o senhor é
honrado, capitão... - diz Alin.- Contudo, tolo. Sou
- Você é o capitão? - pergunta imponente o o melhor guerreiro viajante de minha tribo. Você
homem. está morto.

- Sim, sou. - responde Hardman. - É? - zomba Hardman.- Pelo menos terei


um funeral no oceano... Seu funeral será no Sol,
- Meu nome é Alin, dos Sar-Allan. Essas Salin?
peças de ouro são destinadas a um culto sagrado
de minha tribo. Peço-lhe que me deixe leva-lo Os dois se afastam, preparando-se para
comigo... lutar...

- Senão... ***

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Crônicas Artonianas II
- Você é Louco, Vortex! - Braceja Sório. - Nós - Mas... - fala Sório. - O capitão não vai
não marcamos para Melekashiro vir para o JARDIM gostar de você levar ele...
IMPERIAL? O QUE A GENTE ESTÁ FAZENDO NO
JARDIM IMPERIAL? Se ele sobreviver, O CARA VAI - Do mesmo modo que não gostou quando
CHEGAR LOGO! Por que não nos teleportou pra o convenci a poupar sua vida, Sório? - diz Vortex.
mais longe? O Capitão já deve ter ido embora com o
gnomo... - É mesmo... - fala Charles. - Por mim,
- Sório... Por favor... - fala Charles cortaria-lhe a outra mão por ter tentado pegar
calmamente apreciando uma escultura da bela minha Hidra Negra.
Princesa Rhana ao lado do Rei Thormy. - Vortex tem
direito a se divertir também. Ele quer provar algo... Sório aceita então o novo companheiro.
Melekashiro se incomoda com muita conversa, mas
- Não, Charles. - fala duramente Vortex. - não podia voltar para sua jaula...
Vocês prometeram a Melekashiro se encontrar com
ele aqui. Vamos aguardar... ***

- MAS QUE MANÉ AGUARDAR! - grita Não era à toa que Alin, o cavaleiro do
Sório. - A gente falou aquilo para ludibriar o Melekão. deserto estava tão confiante. Possuía força e
velocidade fantásticas, alem de uma resistência
- Se bem que não precisávamos de algo tão digna de um homem do deserto. Mas Cap.
elaborado... - ri Charles. - Ele praticamente age como Hardman não se surpreendeu. Pelo contrário, sua
uma porta. Mas, realmente esperar é perda de tempo. arma mais leve e sua perícia como espadachim logo
Ele já deve ter sido morto a esta altura... sobressaíram ao impressionado desafiante. Alin
jamais desistiria, principalmente quando sua honra
- Não... Morto mim não... Acho... - Diz uma e seus donativos a Azgher estavam em risco, mas
voz rouca e encolhida. Melekashiro, com o corpo nenhum de seus golpes acertava o maldito capitão
manchado de sangue, arrasta-se para onde os três pirata, que se movia com total liberdade naquele
estão. Sório se encolhe atrás das “pernas” da estátua tombadilho cheio de obstáculos.
de Rhana.
Os homens de Hardman Urravam
Charles Sorri para o vitorioso monstro. Não comemorando cada movimento de seu capitão, e
há como saber qual a expressão de Vortex, por causa foram ao delírio quando uma passada mais rápida
de sua máscara. de sua lâmina no peito do beduíno, fazendo verter
o primeiro sangue. Alin foi rápido, e evitou que o
- Você conseguiu, meu caro. - Comenta golpe fosse mais danoso, mas isso não importava
Charles. - Saiu de um castelo cheio de guardas e para a torcida de Hardman.
guerreiros.
Furioso, Alin ergueu sua Cimitarra e
- E saiu limpo! - se espanta Sório - Esse sangue desferiu violento golpe contra Hardman, que o
... Quase todo é dos guardas, né? aparou com seu sabre. Dois, três, quatro golpes
idênticos pouco fizeram em Hardman, que os
- Melekashiro não sangra. - diz Vortex. - Todo aparava, a não ser recuar perante a força de seu
o sangue que vê são de suas vítimas! oponente. No quinto Golpe, Hardman deixa a
lâmina passar e acertar o chão, enquanto desfere
- É... - funga Melekashiro, visivelmente um chute no estomago do beduíno, fazendo ele rolar
cansado. - Mas mim canso... Mim voltar para a jaula... pelo chão.

- Mas ... Você já saiu. - fala Vortex Alin estava furioso. Ofegante, o corte em
seu peito ardia e seu estômago doía. Ele esperava
- É? Mim sair? Ahm... O que fazer agora... vencer o pirata com sua força apenas, mas levaria
tempo, e com certeza, teria que passar pelos demais
- Venha conosco. - Fala Vortex. - Um marujos, que dificilmente honrariam a palavra de
guerreiro como você deve ser valoroso para cap. seu capitão.
Selakos. O guerreiro do Sol ergue sua cimitarra aos
céus. Faz uma rápida oração, e vê sua espada se

29
Crônicas Artonianas II
tornar a divina Espada em chamas dos Sar-Allan. Hardman se levanta, e estufa o peito,
Como um furioso coiote, ele investe contra desafiando o beduíno a atacar. Alin ainda encara,
Hardman, que apara mais uma vez seu golpe, mas sabendo que este ataque daria uma morte lenta e
as fortes chamas queimam seu corpo. dolorosa ao pirata, mas era em nome de Azgher. O
guerreiro do deserto lança sua bola de fogo.
Hardman fecha seu sorriso. Passa a
esquivar os ataques. A espada em chamas parece Ao ver o movimento, Hardman gira sobre
mais veloz, e seus ataques mais precisos, mesmo o seus calcanhares, correndo para a proa do navio.
alvo fica mais difícil de acertar. Hardman precisou Ele salta e se agarra em uma corda, balançando para
de um descuido de Alin para empurra-lo e ganhar fora do navio. Hardman desaparece engolido pelas
espaço. chamas. Os piratas se calam, olhando as chamas
ardendo no fundo do navio.
- Divertindo-se, pirata? - goza Alin ao ver a
surpresa do pirata. - Há mais em um guerreiro de Alin prepara outra, pois esperava que os
Azgher do que esperava? Bem... Admito que é o marujos atacassem.
canhoto mais difícil que já enfrentei.
De repente, os marujos gritam de alegria.
- Canhoto? - ri o pirata. - Ah, eu e minha Alin não é perspicaz o suficiente para imaginar que
cabeça! Não sou canhoto. Hardman sobrevivera à explosão, e agora balançava
na corda, atingindo-o pelas costas. Surpreso, Alin
Hardman troca a espada para a mão direita. rola no chão, e ergue o rosto só para ver a sabre
A nova investida de Alin não chega nem perto dele. veloz fazer um talho em sua túnica.
A lâmina do capitão pirata por três vezes poderia
ter encerrado o embate, praticamente brincando com A máscara de pano de Alin cai ao chão,
o beduíno, fazendo cortes nas roupas e brotando mostrando um homem de uns trinta anos, com
sangue em pontos não vitais do oponente. barba e cabelos negros e olhos azuis.

Um ataque furioso de Alin, e Hardman faz - Então... - fala Hardman, pegando fôlego.
sua espada girar em sua mão, e toma-a do guerreiro - Esse é o rosto dos servos do Sol? Se fiz bem minha
do sol. Alin, instintivamente se afasta, e vê o marujo lição de casa, o rosto de um sacerdote de Azgher é
brincando com as duas espadas, equilibrando a brilhante como o sol e jamais pode ser fitado, senão
cimitarra na lâmina de seu sabre, como se estivesse o clérigo fica sem poderes.
a enfrentar um oponente invisível. Hardman então,
pega a espada do guerreiro, que imediatamente Alin Ainda tenta investir com as próprias
apaga as suas chamas. mãos, mas novamente a sabre veloz de Hardman
age primeiro, enterrando sua ponta na perna do
- Ah, que pena... Acabou o efeito especial? - guerreiro que dá um gemido e volta ao chão.
fala jocosamente o capitão pirata.
- ... Sem magia... Sem espada... Sem
Os marujos comemoravam, como se a peleja mobilidade da perna. - Comenta Hardman,
tivesse acabado, mas Alin não estava disposto a repousando sua espada entre os olhos de seu
desistir. Somente Hardman percebeu uma coluna oponente caído. - Acredito que venci a luta, não?
de chamas sendo projetado dos dedos de Alin, e por
muito pouco não incinerou o pirata. Hardman rola - Ainda... Vê vida em meus olhos, pirata? -
no chão, ergue-se sobre seus joelhos, e sorri. fala dolorosamente o guerreiro do deserto para o
do oceano. - Se ainda vê, é porque ainda estou
- Assim é melhor... Algo para enfrentar... lutando. E não pararei até vencer... Ou morrer.

- Enfrente isto, shiagor! Hardman sorri diante da obstinação do seu


oponente, e guarda sua espada na bainha.
Alin estende o braço, formando uma
enorme bola de fogo repousada na palma de sua - Então pare, porque você venceu.
mão. Hardman sabe que não há espaço no navio
para esquivar de um ataque de área como aquele... Sussurros e cochichos entre os marujos.
Mas há fora... Mesmo Alin Parece surpreso.

30
Crônicas Artonianas II
- Venci? Hardman simplesmente sorri. E volta-se
para o timão. Ele provavelmente sabia. Alin vê o
- Sim. Eu nunca quis seu ouro. - fala Hardman homem, que, ao mesmo tempo é um
caminhando em volta de seu oponente e sorrindo. - despreocupado, mas com honra e controle de
Eu tenho um ... Digamos ... “Código de conduta”. Não situação que jamais vira fora de sua tribo. Talvez o
discuto, nem roubo coisas ligadas à religião dos guerreiro do deserto e o campeão do oceano não
outros. Ainda mais do Deus-sol, que é um dos que fossem tão diferentes afinal.
mais tenho contato.
Talvez haja uma alma pirata no deserto da
- Mas... Você jamais precisaria lutar então? perdição...

- Só estou nesta pela diversão. - ri o capitão ***


pirata.
Dois dias levaram para Alin chegar a
- E... Você disse que se perdesse me daria seu Tapisa. Os Minotauros responsáveis pela patrulha
navio e seus homens... costeira ficam felizes em receber os contrabandistas.
Eles recolhem o navio também, pagando justa
- Ah, não. Disse UM Navio e UMA recompensa a Alin pela captura, em ouro. Alin
TRIPULAÇÃO CATIVA. Referia-me a Acmar e seu guarda junto com seus pertences em uma urna que
navio. São seus. Donativo meu a Azgher. fazia vezes de um pequeno altar a Azgher, e então
passou a se deter apreciando a arquitetura dos
- Bem, - fala mais calmo Alin - e o que farei minotauros. Jamais esteve em um reino governado
com eles? por uma raça não-humana, exceto Sckharshantallas.
Assim fica o grande Alin, até que sente uma sombra
- Há uma recompensa por eles em Tapisa. - atrás dele.
continua Hardman. - E os Minotauros pagam em
ouro. Por mim entregava à Esquadra... Eles que - Eu fico com isso, Alin. - diz Raz-Al-Ballinn,
devem escolher entre uma vida de escravidão ou uma o sumo-sacerdote dos Sar-Allan, que, ao contrário
semana de prisão na Esquadra. de seu irmão Al-Baddinn, com quem divide o status,
viaja pelo reinado, atendendo a chamados feitos por
- Como assim só uma semana? - pergunta seus discípulos. Alin avisara de seu encontro com
Alin. o pirata na manhã anterior, e o sacerdote supremo
de Azgher atendeu.
- Bem... É a média de sobrevida no Nebula, o
navio-prisão. - Mestre. Eu não esperava encontrá-lo aqui.
- fala Alin, após as cordiais saudações.
Todos passam a rir, mesmo Alin esboça um
sorriso. Jamais faria ato tão desumano, mesmo com - Você foi sábio, Alin, ao me chamar. - Diz
aqueles ladrões sem honra, mas só em ver a expressão Al-Baddinn. Clérigos de Azgher podem contactar
de Acmar, encolhido no canto, face à possibilidade sumo-sacerdotes. - Seu donativo será entregue na
de ser entregue à Esquadra de Kurt Cannon. aldeia. Você será lembrado em nossas preces. Está
liberado então para pagar sua dívida.
Os homens de Hardman terminavam de
transportar o minguado contrabando de Acmar para - Dívida... Mas...
seu navio. Alin sentia sua perna melhorar, o que
indica que o golpe de Hardman não tinha sido tão Selakos gargalha baixo com cinismo.
terrível quanto ele pensou. Caminha pela porta afora, e fecha, deixando o pobre
gnomo sozinho, com uma decisão a tomar que
Hardman estava de seu navio, a olhar os poderá trazer guerra e morte a Arton.
marujos trazerem a bordo as últimas sacas de
especiarias. Alin não resistiu, e gritou: ***

- Capitão, se a situação fosse oposta, eu Hardman e seus homens resolvem rumar


possivelmente não pouparia sua vida! para Foz. É mais seguro rumar para Quelina, mas o
valor dos contrabandos roubados de Acmar são

31
Crônicas Artonianas II
- Um homem teve sua vida em suas mãos, Valkaria. Sua jornada pela madrugada fez várias
e libertou-o, mesmo sem merecê-lo. E ainda fez um paradas irregulares para não deixar pistas.
generoso donativo a nossa causa.
Chegaram juntos dos primeiros raios
- O pirata? Mas ele é um criminoso... Um solares até um navio de porte médio, ornamentado
ladrão... com uma carranca de Selaco e a bandeira negra dos
piratas, que estava ancorado em um porto
- A honra reside na alma, Alin. - fala o sumo- improvisado, às margens do majestoso Rio dos
sacerdote do sol. - mas a decisão é sua... Não minha. Deuses.
Que aquele que tudo vê ilumine vosso caminho,
pois agora pegarei o meu. Selakos estende o papel que estava
escrevendo. Niebling curioso agarra e lê.
Al-Ballinn apanha as peças de ouro de Alin,
e vai embora. Alin acompanha com os olhos seu guia - Mas isto é...
espiritual partir.
- Sim. Um pedido de resgate.
***
- Bem... Você deve saber de seus...
Niebling senta serenamente diante da mesa
de Selakos, em seu navio, dias depois de seu - O valor? Ah, não se engane, Gnomo. Sei
seqüestro. O terrível capitão termina de redigir uma que o valor não é grandioso quanto sua majestade
carta de resgate. Do lado de fora da Cabina, pagaria por você. Isso é só um estratagema. Não
Melekashiro, o novo marujo de Selakos, está a quero heróis me perseguindo ainda. Enquanto o rei
devorar um pedaço de carne seca. A forma simples acreditar que libertarei por essa razoável quantia,
e sem objetivos de vida do Melekashiro, aliado a ele evitará riscos enviando seus homens.
sua grande força e talentos foram argumentos
suficientes para Selakos atender o novo pedido de Lorde Niebling se perde em pensamentos
Vortex. Afinal, ele estava certo quanto a Sório, que enquanto ouve o plano de Selakos.
com seus talentos ladinos aliados à capacidade de
teleporte de Vortex, pouparam recursos em ações - Então, creio que o senhor tem outros
diversas. planos para mim, certo?

Charles está inconformado. Ainda se vê - Precisamente. - sorri Selakos. - Conheço


como segundo em comando de Selakos, mas as seus talentos, Lorde Niebling. E tive acesso a alguns
“iniciativas” de Vortex estão chamando a atenção de seus projetos. E me interessei por um. Acho que
de seu capitão. Charles deixou o condado de sua se pronuncia “vapaur”...
família por cansar de viver de aparência, não
permitiria que outro fizesse suas vezes, por mais - Vapor? A máquina a Vapor? - surpreende-
cômodo que essa idéia fosse. se Niebling. - mas este só foi mostrado ao rei...

Charles e Vortex possuem uma boa relação - Sim. E ele recusou por seu potencial
como parceiros. Com o “Hidra Negra” e o “demônio bélico. Sei disto tudo. Meus espiões vão do fundo
mascarado”, dezenas de navios e cidades portuárias do oceano até o palácio real. - Diz orgulhoso o
caíram. Selakos teve grandes lucros com seus dois pirata. - Quanto a tal Máquina poderia causar um
melhores capangas, podendo se dar ao luxo de não rastro de destruição terrível em mãos erradas...
comparecer em todas as ações de seu navio, o que é Como as minhas...
bom para sua “outra identidade”, seja lá qual ela
for. - Por que acha que farei algo tão terrível?

Selakos desperta de seus pensamentos. - Bem... Criadores adoram um desafio... Eu


Observa com seus olhos pequenos e sinistros seu estou pondo a sua disposição os recursos
visitante, que, apesar de firmemente amarrado, não necessários... Mas, se isso não for suficiente... Eu
demonstra desconforto. Niebling observa em ouvi falar que Gnomos são sensíveis à DOR...
silêncio seu captor, e permanecera assim desde

32
Crônicas Artonianas II
Selakos gargalha baixo com cinismo. - Realmente. - Diz Hardman. - Mas o
Caminha pela porta afora, e fecha, deixando o pobre apelido pode ser algo ligado à suas ações... Como...
gnomo sozinho, com uma decisão a tomar que poderá
trazer guerra e morte a Arton. - A-há! - Pula Bô ficando de pé, mesmo
balançando. - Conheço esse sorriso! Farejo uma
*** brilhante idéia do Cap. Hardman!

Hardman e seus homens resolvem rumar - Bem. Tem piratas que saqueiam cidades...
para Foz. É mais seguro rumar para Quelina, mas o
valor dos contrabandos roubados de Acmar são Bô parece visivelmente desanimado.
subvalorizados na ilha. Assim Oddie ganha mais que
os piratas pela segurança da transação. Em Foz, alem - Nós não somos desses... - disse. - Os navios
da vulnerabilidade de encontrar com uma patrulha, que vem pro mar sabem os riscos. Mas as cidades
a Guilda da Velha Cigana , ou mesmo a incômoda não tem culpa. Pô, Cap...
presença de Selakos, pode causar problemas. No
entanto, a pirataria andava fraca aqueles meses, e - É verdade... - continua Hardman. - Mas
Hardman queria aproveitar cada centavo que pensei em saquear uma cidade pequena... Aqui em
conseguisse, mesmo que fosse vender em Vectora. Petrínia mesmo. Eles devem fazer o resto. Espalhar
a história... Aumentar os eventos... E me dar um
O local onde encontraram Acmar e Alin era apelido legal.
muito ao norte, e o melhor trajeto para Foz e
Malpetrim era costurando o litoral. No percurso, eles - Mas uma cidade...
poderiam parar em uma vila pesqueira chamada
Yipsei, isolada por colinas e floresta, fundada por - A cidade não. - cogita Hardman. - Um
ciganos. A navegação provocou o contato com ambas estabelecimento comercial... Tavernas e lojas
as culturas, o que torna o porto agradável para piratas maiores e suspeitas... Nada que cause desgraça.
conseguirem suprimentos. Hardman nunca mais Quando apontarmos nossos canhões eles devem
aportara lá desde que se tornara capitão. Havia uma recuar... Fazemos uma grande entrada, algumas
Marina para barcos pequenos, uma taverna pilhagens, e partimos.
improvisada em casa de show, e as casas modestas.
Havia um acampamento cigano ao noroeste, mas os - Sem destruir a cidade... - Bô faz uma cara
locais não gostam muito deles. Os poucos ciganos que de pensador que arranca risos de Hardman. - seria
decidem morar na cidade se tornam ladrões ou interessante...
cantores na taverna.
- Que tal a vila Yipsei? Nós nunca passamos
Hardman e Bô ainda conversavam: nestas bandas... Podemos voltar alguns anos depois
para uma “apresentação”...
- Hardman Cara-de-anjo?
- Eles têm uma casa de shows... Música e
- Tá brincando, né, Bô! - resmunga Hardman. dança cigana... - fala Bô. - E ... VINHO CIGANO!!!
- que tal Intrépido Hardman? BORA SAQUEAR A YIPSEI!!!

O Marujo Bêbado leva a mão no queixo. - Todos gritam em frenesi de batalha.


Não, capitão. Complicado demais. E não marca tanto. Hardman passou a explicar o plano de ação a seus
Que tal “o salteador dos mares”? homens. Uma vila pequena, isolada, com poucas
defesas, daria alguma diversão e poucos riscos.
- Já existe um “Salteador”. - diz o capitão . -
Não quero referências ou comparações. ***

- Bem... Apelido não é requisito, né? E não é Jade não se lembra por quanto tempo
algo que a gente >hic< inventa, mas algo que os trabalhava para Arrães, o anão dono da casa de
outros dão. Cicatriz não gritou “olhe aqui na minha shows. Sem dúvida, as platéias que vinham todos
cara deformada! Não é legal?”... os fins-de-semana assistir seu sapateado e suas
castanholas eram bem mais do que a dívida deixada
por seu pai, um meio-elfo, que se casou com sua

33
Crônicas Artonianas II
mãe cigana. Os dois morreram em um incêndio, mas
o sangue cigano de sua mãe ainda corre em suas - Pô, Cap. Você pegou o Alin lá no navio...
veias. Para ela, as almas de seus pais não Deixe o grandalhão comigo!
descansariam até que a dívida deles fosse paga, mas
Arrães jamais aceitava a dívida paga. Hardman guarda sua espada e sorri. Bô
gira em seus calcanhares desengonçadamente. O
No início, Jade queria pagar a dívida, leão-de-chácara era enorme e musculoso, e
depois continuar dançando, dividindo os ganhos, carregava consigo um porrete, enquanto Bô puxava
mas o anão era ambicioso. Não dando a dívida como a grossa corrente que prendia sua moringa de ferro.
paga, ele garante que a inocente jovem A cena parecia lamentável: o gigante e saudável
permanecesse presa ao show, e ficaria com a segurança contra o franzino pirata bêbado.
totalidade de suas gorjetas.
Na primeira investida, Bô faz um
Jade aproveita a dança alucinante para movimento desengonçado, que permite que ele
pegar algumas bolsas de ouro dos clientes, e guarda esquive. O leão-de-chácara, que primeiro achava
para pagar sua dívida, mas as necessidades de que o pirata tivera sorte, não entende como alguém
roupas belas e alimento mantêm o dia da sua assim podia manter-se em pé, muito menos
libertação longe. Às vezes, os clientes roubados esquivar de seu furioso ataque. Mais dois e três
desconfiavam de Arrães, ou das dançarinas, mas o ataques na mesma, até que Bô gira sua pesada
sagaz proprietário pegava um mendigo na rua e moringa cheia de bebida enrolando no pescoço do
dizia que ele era o ladrão. Logo as coisas voltavam seu oponente. Ele fica sem ar alguns segundos, para
ao normal até o próximo cliente dar por falta de sua ser chutado longe pelo pirata.
bolsa.
O leão-de-chácara ainda se levanta. Seu
Era sexta-feira, e Jade dançava como porrete já estava fora de vista, enquanto o pirata
sempre. Um magistrado estava presente, mas cambaleava na sua direção, com punhos erguidos,
naquelas bandas isoladas o controle das ordens era com a moringa em mãos. O anão, vendo o inevitável
mínimo. O Magistrado era gordo e ostentava jóias desfecho da luta, puxa sua adaga e faz mira.
caras, e bebia a cerveja do anão em uma enorme Hardman viu a ação, e grita: “Bô, UM TIBAR!” Por
caneca. Um bigode de espuma se formava em sua muito pouco a adaga não atinge em cheio a cabeça
cara porca, e seus comentários libidinosos do guerreiro etílico, que se agachou como se fosse
indicavam que o álcool já fazia efeito. pegar uma moeda. “Um tibar” era um modo que
Bô e Hardman encontraram para avisar um ao
Jade batia as castanholas, acompanhada por outro sobre ataques traiçoeiros pelas costas. Arrães
um banjo e um violão. Suas danças, girando a nem pode praguejar sua falta de sorte, pois recebe
esvoaçante saia rendada de seu vestido vermelho um chute direto no queixo de um dos homens de
animava os clientes, de modo que, ao se debruçar Hardman que o leva a nocaute. O leão-de-chácara
sobre o Magistrado, a bolsa de ouro muda de dono já tinha se rendido há muito.
sem ninguém perceber. Ao fundo, podia-se ver
Arrães e seu leão-de-chácara, assistindo ao - Saudações, senhoras e senhores - gritava
espetáculo. Hardman, que pulou no palco, ao lado de Jade, com
a espada em punho. - Sou o Leo Hardman, capitão
Ainda era cedo na noite, quando o primeiro pirata, e proclamo que seus bens agora me
estopido dos canhões de Argos fizeram tremer as pertencem. Meu navio, armado de vinte canhões
paredes da taverna, que estava perigosamente estão voltados para este prédio, e a pequena guarda
próxima à baía que abrigava o poderoso navio da cidade já foi dominada. Qualquer tentativa de
pirata. Ouviu-se um breve som de batalha, mas logo, fuga ou de agressão a mim e a meus homens farão
gritos de “eu me rendo”, bem perto da porta. Arrães o teto cair, esmagando as nossas cabeças... E
abre a porta para espiar, e é derrubado pelo chute pretendo manter a minha...
certeiro de Bô, abrindo violentamente os portões do
estabelecimento. Silêncio na platéia, exceto por Bô, que
gargalha alto.
O leão-de-chácara se pôs entre o bêbado e
seu chefe. Hardman vinha logo atrás, com a mão na - Por favor, meu Imediato Bô, vai passar
espada, mas Bô o segurou. pelas fileiras, recolhendo seus donativos. - diz

34
Crônicas Artonianas II
Hardman, voltando-se para Jade que assistia As labaredas fizeram Jade recuar, dando o espaço
impressionada os eventos. - Milady, perdoe-me a que Bô queria para investir.
interrupção. Por favor, continue sua apresentação. Já
estou privando seus fãs de seus bens, não preciso Com um impulso, Bô se lança ao ar, com o
privá-los da diversão. pé na altura da cabeça da cigana, mas esta se abaixa,
girando seu corpo como uma complexa dança tribal,
Hardman desce do palco, ficando em pé, acertando Bô em cheio antes mesmo dele chegar ao
junto ao assustado magistrado. Jade fita-o com raiva. chão. Bô perde o equilíbrio e vai escorregando e
Sem dúvida Arrães iria descontar seu prejuízo nela e trombando contra os músicos.
nos músicos. Bô ia passando uma sacola, enchendo
com peças de ouro e jóias, enquanto Hardman assistia Jade estava convencida que venceria a luta,
fascinado a dança de Jade. quando ouve um grito histérico da platéia. Vira-se
a tempo de perceber Cap. Hardman com a espada
Em certa altura, Jade se aproxima da beirada em punho, sorrindo para ela, esperando que ela se
do palco. Hardman certamente baixara a guarda, virasse.
observando suas belas pernas rasgando o ar,
acompanhadas pelo leve pano da saia. Hardman Jade gira sua perna bem alto, com sua saia
ergue os olhos, buscando fitar os da dançarina. Foi o acompanhando o movimento. Hardman gira seu
momento certo de Jade girar um chute no rosto de sabre na altura do joelho dela, mal tocando sua
Hardman. Apesar da graça de seus movimentos, a perna, mas tirando uma tira do vestido, à qual ele
dança cigana também era uma forma de luta, e o pisa e puxa para si, fazendo Jade perder o equilíbrio
capitão pirata vai ao chão desorientado. Jade teve vindo ao chão, aos pés do capitão pirata.
ganas de ataca-lhe de novo, mas Bô já se posicionara
em prontidão, forçando Jade a recuar de volta ao Hardman se apóia em seu joelho,
palco. encostando a lâmina fria de sua espada no pescoço
da dançarina. Jade estava furiosa, mas qualquer
Bô vê um dos piratas ajudando Hardman a movimento mais brusco faria sua garganta ser
se levantar, então dá uma cambalhota subindo ao cortada. Bô se levantava dolorido e resmungando
palco, ficando frente-a-frente com Jade. A platéia, algo como “esse palco é muito estreito”.
assustada, estava imóvel, ainda sob ameaça dos
terríveis canhões. - Bravo, milady - sussurrava Hardman. - Foi
burrice arriscar sua vida e a de sua platéia em um
- Mas que malandrinha - falou Bô. - ato tão impensado, mas seu pé é bem pesado... Meu
Aproveitou que o cap. é legal com mocinhas pra queixo vai doer por dias.
maltratar o coitado...
Hardman faz ela ficar de pé. Bô amarra as
Jade nada falou. Seu ódio agora se mãos de Jade com um pedaço de corda e com a tira
direcionava ao ousado bêbado que a encarava. Ela da saia rasgada. Todos em pânico observam o
simplesmente fazia a posição de início da dança, capitão pirata correr a ponta de sua espada entre os
segurando as pontas da saia com as mãos, e se seios dela, e com um ato mais brusco, enfia a ponta
posicionando na ponta dos pés. no vestido.

Bô desferiu o primeiro ataque. Arremessou Contudo, Hardman tira a espada com um


sua moringa contra Jade, que ágil e ritmicamente saquinho de ouro, com o emblema de Kalmyr. O
sacudiu sua saia desviando o ataque. Imediatamente magistrado reconhece logo como sua.
ela lançava chutes rápidos contra Bô. Outro já teria “Vagabunda”, pensa ele, percebendo que lhe foi
sido acertado, mas Bô se movia cambaleante, não tomada sorrateiramente durante o espetáculo.
permitindo que Jade tivesse um alvo claro, contudo,
não conseguia espaço para o contra-ataque. - Vejo que não somos tão diferentes assim,
Milady. Eu apenas sou mais... Agressivo.
Bô então recolhe sua moringa para perto de
sua boca, enchendo-a com bebida. Uma baforada Jade vira-lhe a cara.
especial que aprendera com os drunker masters,
provocava uma bola de fogo explosiva entre os dois. - Taverneiro... Esta dançarina é escrava sua?

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Crônicas Artonianas II
- Não! - grita Arrães, que já se erguia, mas - Perdoe-me se não sou um bom negociante.
ainda seguro por um dos homens de Hardman. - - continua. - Mas acredito que este valor é justo,
Ela é uma ciganinha que vem aqui toda sexta-feira visto que por muitos anos trabalha naquelas
ganhar alguns... condições. Ah, enquanto chutava minha pobre
cabecinha... Reparei que há uma bolsa de moedas
- MENTIRA - grita Jade, finalmente falando. amarrada em sua coxa direita. Acredito que há mais
- Ele me mantêm aqui como uma escrava por uma que isso nela.
dívida que ele já recuperou há muito!!
- Você está me... Libertando, Capitão?
A explosão de revolta chama a atenção dos
espectadores e dos piratas. Jade sente-se diminuída - Não! Mancharia minha reputação. Só
e envergonhada por esse momento de fraqueza. estou cobrando sua dívida. Há qualquer momento
que você pagar ela, estará livre, mesmo agora. Se
- Quanto é a dívida? - pergunta então não pagar agora, terá que nos acompanhar no
Hardman, para Arrães. navio, viajando por cidades, vendo algumas
maravilhas do oceano. Perdeu tempo demais presa
- Bem... - coça a careca o ganancioso a esta vila medíocre, milady, ouso dizer. Mas, a
Taverneiro.- É difícil colocar preço.... Assim decisão é sua.
despreparado...
Jade enfia a mão por baixo de sua saia, e
- Não precisa... - fala Hardman. - Faça as puxa a bolsa. Ela agarra a moeda e fica apreciando
contas e compute no seu prejuízo com minha visita. a face coroada do deus do comércio por algum
Ela vai gostar de viajar em meu navio, animando tempo.
os meus homens.
- Pagarei minha dívida, capitão... - diz Jade,
Foi inevitável alguns aplausos de pessoas guardando sua moeda na bolsa. - Pagarei quando
sensibilizadas pela história da cigana. Jade via eu puder.
apenas a troca de um credor por outro. Bô terminou
o serviço de coleta de “donativos”, e todos correm Jade assume uma posição no escalé.
para o escalé. Nunca se sabe quando algo errado Hardman sorri e senta-se junto a ela.
pode acontecer. Jade vai com eles, seguidos de perto
pela lâmina vigilante dos dois homens que desceram ***
com Hardman e Bô, mas independente disso Jade
não fugiria. Poderia condenar a alma de seus pais. - Impossível! - protesta lorde Niebling. -
Admito que esse “Melekashiro” é forte, e rápido...
Já no escalé, os marujos e Bô sobem, mas Mas preciso de um grupo de trinta homens para
Hardman detém Jade. concluir a obra a contento, capitão!

- Milady... - diz o capitão pirata. - posso Selakos, seus homens e Niebling estão há
cobrar a dívida agora? um mês, ancorado em uma plataforma
improvisada, no meio do mar, próximo a Foz. A
- Mas... já? – pergunta espantada. estrutura mecânica se ergue, dando os primeiros
contornos de um navio. Ao redor da plataforma,
- Como seu credor antigo não me falou bóias despejando um líquido escuro que forma um
exatamente a extensão de sua dívida, devo deliberar anel negro extenso ao redor, a uma distância segura
o valor... da plataforma. Há duas léguas, uma ilhota coberta
por vegetação densa esconde Selakon, o navio do
Jade baixa a cabeça. cap. Selakos.

- Deixe-me ver... - Hardman conta os dedos - Infelizmente, Lorde Niebling, apesar de


da mão. - fixo em... Um tibar de prata. sua colaboração, este projeto é um tanto secreto. -
retruca Selakos, que acompanha o andamento com
- O que? - surpreende-se Jade. interesse. - Não posso popularizar nossa
localização. Só podemos contar com meus marujos
de confiança.

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Crônicas Artonianas II
- Esse Charles se recusa a fazer o mínimo - Ah... - suspira Jade. - Eu queria ver esse
esforço em prol da minha obra. - reclama o gnomo.- terrível capitão.
Até para buscar mais material ele só foi no protótipo
a vapor... E com o Vortex! - Acredite em mim, novata. - brinca Bô. -
Foi melhor assim... Capitão... Como é aquela piada
Selakos não pode conter uma risada. que você inventou sobre Selakos?

- Ah, Lorde Niebling. - suspira. - É divertido - Bem... - fala Hardman visivelmente


ver como se empolga em meu projeto. constrangido. -É mais um enquete. Supondo que
você está trancada em um quarto, com Selakos,
Niebling, como se desperto do transe, lembra Mestre Arsenal e um dos demônios da Tormenta.
dos propósitos sinistros que o pirata tem para sua Na sua mão, um cajado de Raio destruidor, mas só
obra. Desde sua chegada a Arton, o gnomo sempre pode lançar duas vezes. O que você faz?
trabalhou para facilitar o desenvolvimento de Arton,
mas seu trabalho atual pode levar aquela civilização Jade fica em dúvida, e dá com os ombros,
à ruína. pela resposta.

- Não se censure, lorde Niebling. - continua - Você atira em Selakos, Duas vezes! -
Selakos. - É um feito grandioso. O Rei Thormy foi responde Hardman, arrancando gargalhadas de
um tolo em recusá-lo. Sempre contando com os heróis seus homens. Jade ainda sorri, mas não acha a tirada
para proteger o mundo dos deuses negros... dos tão engraçada assim... ao menos até conhecer
monstros, de Mestre Arsenal... Mas o Selako vai Selakos.
surgir... Sorrateiro, mas poderoso... E vai tomar sua
preza com uma só bocada! - ri histérico o vilão. - COM Hardman e Bô dispensam seus homens.
UMA SÓ BOCADA! HAHAHA! Pagam ao pessoal do porto por um dia de estada,
prometendo partir na tarde seguinte. Jade estava
*** empolgada para conhecer Foz. Muitas das histórias
que Hardman contou aconteceram aqui, inclusive
Jade está feliz como nunca estivera antes. A o dia quando conheceu Cicatriz e se tornou Pirata.
viagem era mais agradável que jornadas montadas.
As paisagens eram paradisíacas. À noite, Cap. Hardman contudo não parecia gostar muito
Hardman contava histórias de suas aventuras, desde da cidade, realmente deplorável. Pessoas mal-
que era marujo de confiança do grande Will Scarr, encaradas circulando, bancas vendendo produtos
até sua ascensão como pirata. Logo Jade aprendeu roubados ao céu aberto. O Burgomestre Sidney se
sobre a Bravaro e James K, a Irmandade do Mar negro, tornara indolente e tolerante com a pirataria e com
De Foe e outros; sobre o torneio de Quelina, no qual o crime, o que fez a cidade cair nas mãos da Velha
ele ganhou o navio, e mesmo o recente encontro com Cigana. Uma mulher baixa, com cerca de noventa
Alin, o guerreiro dos Sar-Allan. Mais tarde da noite, anos, mas com olhos vívidos e astúcia para o crime.
Jade encantava os marujos com sua dança e cantiga. Selakos, seu protegido, se tornara o pirata mais
Bô ainda estava chateado por Hardman aceitar aquela influente do local. James K e outros grandes nomes
jovem que o humilhara antes, mas logo se acostumava da pirataria não passam naquela área mais do que
com a idéia de uma mulher a bordo. Jade dançava há cinco ou seis vezes em sua vida - “piratas de água-
anos, para platéias de nobres e guerreiros, mas doce”, falavam eles dos que se aventuravam pelo
aqueles marujos aplaudindo e gritando fizeram rio dos deuses. É claro que a animada Jade queria
dessas semanas as melhores de sua vida. conhecer a Velha Cigana também.

Finalmente seu navio chegou em Foz. A Os piratas e a cigana caminham carregando


cidade era sombria, e ficava espalhada pela área da alguns cestos contendo os ganhos com o ataque ao
foz do braço-sul do Rio dos Deuses pouco antes de navio de Acmar e o saque à casa de shows de Arrães.
Cala-cala. Barracas desordenadas de comércio e Eles se detém um segundo em um prédio
prédios sombrios cobrem toda a linha litorânea, condenado antigo, aparentemente deserto.
abrindo-se na região do Cais.
- O que foi? - Pergunta Jade. - É aqui?
- Que bom! - comenta Hardman, após
ordenar que aportem. - Selakos não está.

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Crônicas Artonianas II
Como se saídos das sombras, surgem dois - Ora! - fala a velha, com voz rouca de
homens pesadamente armados e usando elmos gralha. - Leo Hardman, marujo querido de Will
negros. Magia de Invisibilidade, com certeza. Eles Scarr. O que faz tão longe de Quelina, Leo
reconhecem Hardman, e abrem caminho. Hardman Hardman?
ainda puxa seu sabre e deixa com eles. Bô faz o
mesmo com suas espadas curtas e com a moringa. - A senhora deve saber que não mais
Quando Jade vai entrar, um dos homens se põe à respondo a Cicatriz, madame. - responde Hardman.
sua frente. - Sou capitão agora, e faço meus próprios negócios.
E agora vim ...
- A adaga, mocinha. - diz um deles.
- Eu sei disso. Sei tudo sobre você. -
Jade se assusta. Olha para Hardman, que interrompe a velha, apanhando um papiro - Quatro
acena com a cabeça. Jade, assustada, retira uma embarcações mercantes, um batedor da Esquadra,
adaga escondida em seu vestido, entre os seios. um navio de contrabando... saqueou uma vila há
poucos dias!
- Que audácia! - reclama Jade. - Como
aqueles homens perceberam? - Eu... Sim. - responde Hardman
visivelmente impressionado. - Essas atividades
- Não sei. - responde Hardman. - Eu nunca datam do início deste ano.
tento passar armas, mas soube que nunca alguém
conseguiu entrar armado. - E essa deve ser a donzela que salvou da
escravidão na casa de espetáculos... - diz olhando
- Eu sei - fala Bô. - Aqueles elmos concedem, para Jade.
entre outras coisas, visão através de roupas.
- Bem, não é assim que vejo...
- Roupas? - pergunta Jade. - Então eles ...
OLHAM ATRAVÉZ DA ROUPA? - Está tentando fazer negócios comigo, Leo
Hardman? - desconversa a Velha Cigana. - O
Hardman e Bô gargalham. Jade fica corada Senhor passou uns bons dois meses sem atividades,
de vergonha. segundo este relatório...

- Do que vocês dois estão rindo? - pergunta - Mas que diabo de relatório é esse que a
Jade. - Um daqueles dois me parecia meio... senhora arranjou? - explode Bô em raiva. - Esteve
estranho... nos vigiando este tempo todo?

- Estranho? - fala Hardman, sem rir. Os homens sacam as espadas diante da


atitude agressiva do pirata bêbado. Hardman e Jade
- É - continua Jade. - Especialmente aquele ficam apreensivos.
que ficou olhando o senhor, capitão.
- Calma, marujo Bartolomeu. - diz a velha,
Os dois marujos passam a sofrer as acenando para seus guardas se acalmarem. Bô bufa.
gozações de Jade. Detesta esse nome, e por isso mudou. - Eu soube
que o grande oceano conduzia Hardman às minha
No fim do corredor, uma cortina dá para praias. Costumo bisbilhotar a vida de pretensos
um salão. Dentro, a Velha Cigana, sentada em uma negociantes.
mesa. Seis capangas em pé no corredor assistem os
três entrarem. Um forte cheiro de incenso, um tapete Hardman, Bô e Jade se sentem mais à
de seda, um lustre desproporcionalmente luxuoso, vontade. Uma moça traz três taças de licor. Bô vira
bruxuleando a sala com luzes e sombras, um de vez, mas Jade e o capitão pirata apreciam
armário entupido de pergaminhos que devagar a forte bebida.
provavelmente levaria à ruína todo nobre criminoso
que pisara em Foz, e por fim uma mesa e cadeiras - A senhora está muito à minha frente. -
no canto da sala, com o emblema de Selakos, são os continua Hardman, segurando sua taça. - Então
móveis que ornamentam o salão. podemos ir aos negócios?

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Crônicas Artonianas II
- Hmm. Acmar era um bom fornecedor. E por - Só uma coisa, Leo Hardman - diz a velha
sua causa, ele se perdeu. - diz grave a velha. - É quando os três visitantes estavam de partida. -
provável que seus produtos viessem cair aqui se você Pretende ficar na cidade ainda mais um dia?
não se pusesse ante Acmar.
- Esse é meu plano... - responde Hardman.
- Se os negócios aqui forem bons, a senhora - ... Se não fizer objeção, Madame.
vai ganhar um fornecedor melhor que aquele verme.-
diz Hardman com descaso. - A senhora mesmo leu - Não. Diga-me, vai colher mais algum
meu... “Currículo”. E ainda conheço jovens piratas marujo para sua tripulação?
que não se aventuram por Quelina. Já ouviu falar de
Darksoul e Essex? - Dispensei meus homens. Minha tripulação
agora se resume a mim, Jade e Bô. Pretendia
A velha gargalha, mostrando os dentes da contratar um quarto homem, mínimo para fazer
frente que lhe faltam. meu navio andar. Por que? Tem algum marujo
querendo uma chance na pirataria?
- Permita-me ver as mercadorias, então. - diz
enfim a velha. - Eu não... Bem, deixarei os eventos
desenrolarem naturalmente. Desde que o senhor
Hardman vira alguns cestos sobre a mesa. fique na cidade esta noite. Sugiro que vão à Taverna
do Leviatã. Tem boa bebida para seu companheiro,
- Um miserável é Acmar por recolher esse boa música para sua nova amiga, e uma surpresa
lixo e pensar em trazer para mim. - bufa a velha. - para o senhor.
Mais miserável é você, Leo Hardman por efetivar a
entrega. Hardman sempre achou a Velha um tanto
senil. Mas realmente passar pela Leviatã estava nos
- Realmente quase tive um chilique ao ver planos turísticos de Jade. Se Bô não causasse
essas mercadorias. - completa Hardman. - Mas penso confusão como aquela em Malpetrim com o
eu que as jóias e tecidos que consegui na em Yipsei Troglodita Tork, seria um fim-de-noite agradável.
devem compensar.

- Bem, realmente estes tecidos me são ***


saudosos. Tenho raízes ciganas, como essa bela
jovem. Ficarei com alguns como minha parte. O resto, A taverna Leviatã estava cheia aquela noite.
sobretudo esse lixo, você pode negociar no mercado Dois bardos viajantes estavam fazendo dueto no
de pulgas. estabelecimento. Cantavam belas canções do mar,
e encenaram “A balada do triste fim”, de Kirat
- Ah, penso que a senhora poderia cuidar Farand. Jade estava impressionada. Era um novo e
disso para mim. - diz Hardman. - Minha cabeça está emocionante mundo, e graças a sua beleza cigana,
a prêmio. Pode tirar sua comissão à maior. Prefiro não lhe faltavam parceiros de dança. Bô fazia
ficar às escuras. competições de “quem bebe mais”, com os anões
locais. Por sempre parecer que já está bêbado,
- A minha taxa de atravessadora é muito alta, consegue apostas altas, contudo, a condição
Leo Hardman. - continua a Velha Cigana. - Você ainda “bêbado” de Bô se trata de uma maldição rogada
não é o meliante para se dar ao luxo de cobri-la. há muito tempo. Não importa quanto ele bebe ou
deixa de beber, ele sempre se mantinha naquele
- Só estou nesta pela diversão, madame. - estado. Jade, a início, desprezava aquele “estilo de
responde Hardman com um sorriso jovial. vida”, mas lembra que sua mãe falava sobre
“particularidades de cada um forjando seu caráter”.
Alguns minutos de discussão de preço
resultam em peças quase suficientes para encher uma Hardman pretendia não se misturar com a
arca média. A Velha Cigana ainda foi generosa em população. Nunca se sabe quem é só um mendigo,
sua taxa. Realmente queria que Hardman se ligasse ou um espião da Velha Cigana, ou ainda membros
ao mercado negro de Foz. A pirataria pouco tem da Esquadra disfarçados. Por isso, ficava no balcão,
contribuído no submundo, especialmente com assistindo seus tripulantes se divertir, e pensava
Selakos fora por tanto tempo, quase dois meses.

39
Crônicas Artonianas II
preocupado na “surpresa” que a Velha havia da tripulação de Selakos, e era mal visto mesmo
prometido. Bem, houve uma surpresa. entre os piratas.

- Capitão Hardman! Há quanto tempo! - Quem? Sório? Concordo que é companhia


mais participante que Vortex ali. - fala Charles,
Hardman gira lentamente, dando de Cara aceitando uma caneca de Rum que o taverneiro
com Charles, o “Hidra Negra”. Eles se conheceram estendia a ele. - Mas Vortex é mais inteligente do
em Quelina, durante o torneio. As regras do torneio que aparenta. E Sório é ... Bem, você sabe. Primo de
permitia que o participante sorteado escolhesse a John Long ... O “mestre do motim”.
forma de lutar. Hardman escolheu combate em
duplas, e escolheu o participante Charles. Os dois - Ei! - grita Bô, percebendo a chegada de
venceram seus oponentes e passaram para a fase Charles. - Chukie! Bem lembrado! Viu, cap.! John
seguinte. Charles enfrentou um homem chamado também tem apelido!
Strife em seguida, que usou de uma arma vorpal,
causando a morte de Charles, mas haviam - Sei, Bô - fala Hardman. - Mas esse tipo de
sacerdotes de Tyathis à postos para proceder apelido eu não quero para mim.
ressurreições de participantes acidentalmente
mortos. Hardman venceu aquele torneio, na final - Está procurando um apelido, Hardie? -
enfrentando Selakos, em combate de cavalheiros. brinca Charles. - Que tal Cap. “Calça-molhada”
Selakos possui grandes poderes mágicos, que não Hardman?
pode usar, mas sua esgrima era de alto nível, o que
garantiu a melhor luta do torneio. O Monstro - Muito engraçado... Vindo de alguém que
Melekashiro também conseguiu participar do já perdeu a mão... E a cabeça!
torneio, mas tinha sido desclassificado, na luta dele
contra Hardman, por desobedecer a regra, criando - Eu teria ganhado aquele Torneio,
uma “cópia”, para garantir vantagem. “Cópias” é Hardman! - fala Charles sério.- você jamais
um estranho poder que Melekashiro possuía de ganharia de mim ou do cap. Selakos em uma luta
fazer brotar de seu corpo pastoso um ser quase igual sem regras.
a o próprio.
- O torneio serve para avaliar a estratégia
- Charles? - respondeu Hardman, fingindo- também, Charlie. - ri Hardman. - Não perca a
se surpreso. - Não sabia que o circo havia chegado cabeça, por favor! Estou de camisa nova!
na cidade!
Todos ao redor riem, mesmo Charles.
- Engraçado como sempre, Leo. - Vortex percebe a agitação e começa a caminhar
continuou.- Não vi o navio de Selakos. Ele fazendo um círculo, como se fosse um soldado
finalmente criou juízo e te chutou? Aposto que está sempre em alerta. Hardman se intriga. Se as
com o pequeno Sório Long. histórias sobre a absurda velocidade dele forem
verdade, aliados a esse instinto sempre alerta,
- Não. Estamos envolvido em um grande fariam dele um terrível oponente no futuro.
esquema, que exige que nos espalhemos. Olhe na
porta. Aquele é Vortex. - Por isso é bom falar com Você, Hardman.
- diz Charles, bebendo um último gole de Rum. -
Vortex estava na porta. Hardman não havia sempre tem o que falar. Taverneiro! Põe minha
conhecido este pirata mascarado, mas já ouvira bebida na conta de meu amigo aqui! - grita, batendo
muito sobre seus feitos. Vortex estava parado à no ombro de Hardman, que, mesmo se quisesse,
porta, olhando Jade, que balançava seu corpo com não teria tempo de protestar.
a música. A primeira impressão que Hardman tivera
daquele misterioso homem era a de um porco Charles e Vortex vão embora. Jade e Bô se
sexista, mas por algum motivo de foro íntimo, ele aproximam para conversar. A noite segue sem
sentia que Vortex era mais que isso. problemas. Quando os Bardos se despedem, Jade
aceita ir embora.
- Trocou um rato pelo outro, Charlie? -
provocou Hardman, se referindo a Sório, o ladrão Na saída, contudo, Bô se aproxima de
Hardman, cutucando.

40
Crônicas Artonianas II
- Cap. - sussurra. - Estamos sendo seguidos. - É Selakos o Sinistro! - Reclama Bô. -
Olhe lá no beco. Quatro pessoas. Um é enorme, outro Famigerado é o Max Targett, da Esquadra!
é uma mulher.
- Chega de Apelidos, Bô! - fala Hardman. -
- Hmm. - Hardman disfarça, e percebe o vulto E, vocês acham que eu sou um marujo dele? Olhe
do grupo em um beco. - Será essa a surpresa que a meu chapéu... minha espada! Sou um capitão, e com
Velha Cigana falou? Ah, e o grandão... É um certeza não Selakos. Sou mais bonito.
minotauro.
O grupo se entreolha. Provavelmente não
- Minotauro? - exclama Bô. - Em nome de entende nada de marinhagem, nem de piratas.
Marina! Isso vai doer... Devem ser de um reino do interior. O aprendiz de
mago indicava de DÉeon. Eles estavam nervosos e
- Nem tanto. - Fala Jade. - Eles são discutindo muito entre si. Grupos assim são muito
desajeitados demais para serem assassinos. estourados. “Eles não iriam aceitar decidir isso sem
uma boa surra”, pensa Hardman.
- Reparei isso também, Jade - fala Hardman.
- Vamos nos afastar e ver o que eles querem... hmm... - Bô, Jade, - Sussurra Hardman. - fique
Minotauros costumam a serem maiores que aquele perto, mas não atrapalhe. Fiquem atentos,
ali... ele é grande, mas está para um adolesc... AH! especialmente à elfa.
- Mas cap. - fala Jade. - O minotauro é um...
Hardman sorri e caminha Um BOI!
despreocupadamente. Bô e Jade não conseguem
compreender a inesperada segurança de seu capitão. - Logo você, jade - comenta Hardman -
dando importância ao tamanho... Sim O chifrudinho
O mercado de pulgas é agitado à noite, mas deve ter uma pata pesada, mas não deve saber usa-
Hardman conduz todos até um trecho isolado, onde la. A elfa bate menos, mas deve saber um ou dois
havia a venda de verduras, então fechadas, truques.
certificando-se, de tempos em tempos, que seus
pretensos perseguidores não se perderam pelo - CAPITÃO - grita o guerreiro, decidindo
intrínseco labirinto de tendas, apesar de terem um sua ação. - Dou-lhe uma chance de rendição!!
Minotauro junto a eles.
- Para que? - pergunta Hardman. - Já disse
- Muito bem, moleques... - Fala Hardman, se que não sei nada de Selakos!
voltando para traz. - Está muito tarde para os garotos
saírem caçando piratas. O grupo novamente se reúne. O porta-voz
de armadura volta-se novamente para Hardman
O grupo de perseguidores se impressionam. instantes depois.

- Eu avisei, Prets. - fala o minotauro. - Suas - Quero que nos leve ... Digo, Ah! Você sabe
magias se silêncio não valem nada! como podemos encontrar Selakos!

O grupo aparece então. Era um jovem grupo - Não sei. - fala Hardman. - Mas, se pedir
de heróis novos. Um, guerreiro usando pesada “por favor”...
armadura que exigia grande esforço de seu usuário.
Um mago, provavelmente ainda aluno da academia - Por favor... AI! - diz o mago, sendo
Arcana, que nada sabe do mundo fora do prédio. O cutucado pelo minotauro.
Minotauro, como Hardman previa, era forte, mas
ainda um adolescente. O quarto membro era uma - NADA DE FAVORES! - Barda o
meio-elfa, encoberta com um manto. Provavelmente Guerreiro, desembainhando sua espada larga que
uma ladra, de competência razoável. mal consegue carregar. - Renda-se ou...

- Você, marujo! - Fala imponente o guerreiro Hardman percebe que o Elmo do guerreiro
de armadura. - Exijo que nos entregue o famigerado cobria-lhe a vista. O minotauro e o mago discutiam
Selakos. alguma implicância. A elfa tentava sorrateiramente
se separar do grupo. Era hora de agir.

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Crônicas Artonianas II
Hardman pega impulso e corre, na direção Uma sombra cai sobre o beco. Contra a luz
do grupo. O guerreiro não é rápido o suficiente para da lua, uma figura encapuzada surge na esquina.
interferir. Com um salto, Hardman chuta a cabeça Seria a elfa? Hardman se detém encarando,
da elfa e do mago simultaneamente. A elfa foi jogada esperando para desviar de um possível ataque à
ao chão, e o mago, mais frágil, cai inconsciente. distância.

O Minotauro encara Hardman, mas volta Com um movimento de mãos, uma coluna
antes seu olhar para o guerreiro, como se pedisse de fogo se estende, iluminando todo o beco. A
autorização. O guerreiro ainda ajeitava o elmo, coluna se choca contra a parede há dois metros de
deixando o indeciso minotauro diante do ágil Hardman, revelando a elfa, invisível, que cai ferida
capitão pirata. ante Hardman. A figura sombria se aproxima,
revelando se tratar de Alin, o guerreiro do Deserto
Ele ainda projeta um golpe de seu machado, da Perdição.
mas Hardman mantém-se um passo à frente,
enterrando sua espada no abdome do minotauro, ***
em uma região não-vital, mas que mina as energias
de um inimigo. No entanto, o Minotauro era - Salin? - Perguntou Bô, curioso.
bastante vigoroso, apesar de lento. Ele sente o golpe,
mas não desiste. Hardman passa então a cortar o - É... Alin. Por favor. - responde
minotauro, que assustado praticamente foge da luta. pacientemente o Sar-Allan.

O guerreiro finalmente assume a posição de - O que faz aqui, meu amigo? - pergunta
batalha. O minotauro, diante da vantagem contente e aliviado Hardman. - Pensei que ia para
numérica, retorna para lutar simultaneamente. ia para Tapisa.
Hardman não se intimida. A espada ágil e livre de
Hardman consegue bloquear e desviar os golpes - E fui. Lá percebi que devia-lhe.
desordenados dos dois oponentes. Jade fica aflita
com a aparente desvantagem. Bô se diverte com a - Ah! Não me deve nada!
aflição dos pretensos heróis desengonçados.
Hardman bloqueia a espada do guerreiro, e com um - Capitão, então anda perdoando dívidas
giro, faz ela escorregar da pesada manopla, mar adentro? - brinca Jade.
cravando no pé do Minotauro, que cai no chão de
dor. Hardman se diverte dando pancadas na placa - É. Na verdade... Só deixei de roubar... -
peitoral do guerreiro que vai se desequilibrando e explica o capitão. - Assuntos religiosos.
cai no chão indefeso como uma tartaruga virada. O
Minotauro tenta se levantar, mas Hardman teve - Mas também poupou minha vida. -insiste
tempo mais que suficiente para cravar a ponta fina Alin. - Isso faz de você um irmão do povo do
de seu sabre no brinco de argola, prendendo a deserto. E não regressarei até sentir que paguei
cabeça do minotauro no chão. minha dívida!

Hardman olha ao redor, verifica que a elfa - Você sabe que minha carreira não é a das
está sumida. - Bô! Jade! E a elfa? - grita para seus mais honradas...
companheiros. Jade e Bô se entreolham.
Esqueceram-se completamente das instruções de - A honra está nos olhos. Há honra em um
Hardman. O capitão pirata gira, atento aos menores guerreiro, que mata seus oponentes em uma guerra,
ruídos, mas, como ele imaginara, a elfa é mais Quem só vê as mortes, preferiria ser escravizado e
esperta e perigosa que os outros. Não havia onde morto a ter que participar da própria luta.
se esconder, nem para onde correr. A elfa devia ter
alguma forma de Invisibilidade. Hardman teria que - Lindo, >hic< - diz jocosamente Bô. - Mas
esperar a primeira ação da elfa, e sua espada servia prefiro o papo de “ajuda a economia, circulando
para prender o Minotauro. Com um chute, riquezas”!
Hardman pega a arma do Minotauro sem arriscar
seu pescoço se abaixando. - Não importa suas conjeturas. - barda Alin.
- Irei com vocês, mesmo que tenha de lutar de novo!
Mas desta vez vencerei!

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Crônicas Artonianas II
- Bem... - pensa Hardman. - Precisamos de - Claro. Tenho o pedido de recompensa
um quarto marujo... Você entende de marinhagem? junto com minhas anotações de estudos de
Vladislav. Estou estudando princípios de
- Aprendi um pouco com Acmar. E tenho necromancia...
disposição. Aprendo rápido.
- Tá! Tá! Entendemos. - diz Bô, pegando o
- Ah, capitão! - Diz Jade, fazendo charme. - pergaminho e correndo os olhos pelas letras. - Putz!
O senhor sabe marinhagem por nós três! Deixe ele Selakos, Vortex, Sório e Chukie fizeram a festa no
vir! Estou conhecendo o mar, mas nunca vi um palácio do Rei!!
deserto! Ele deve ter belas histórias!
- Que dizer, há piratas em Valkaria? -
- Ah, não posso negar assim. - diz Hardman Pergunta Alin.
sorrindo para Alin. - Venha, Marujo. Creio que não
mudará sua indumentária para o barco. Mas em sua - É... Houveram piratas em Valkaria... Mas
homenagem, faremos algo bom e nobre para o não sei por que esta frase me soa tão... Chata...
mundo: Melar o que quer que Selakos esteja
tramando. - Quanto é o resgate, Bô? - pergunta Jade.

*** - Hmm... O preço de um cão.

Prest, o jovem mago finalmente acorda. Só - Não entendi - diz Alin.


se lembra de um homem voando com o pé na cabeça
dele, enquanto o jovem mago tentava decidir entre - É uma gíria... Um jargão - informa
um feitiço de proteção ou levitar seu atacante. Abre Hardman. - “o preço de um cão” é quando nos
dolorosamente seus olhos, vendo seus amigos temos algo de valor e vendemos mais barato. Nunca
amarrados, sendo Miara, a elfa ladra, com vários rolos entendi esse jargão... Nunca soube de quem
de corda. Agora os inimigos eram quatro, somados a vendesse cães...
um homem alto e vestido com uma túnica dos Sar-
Allan. - O senhor sequestra também? - Pergunta
Alin, preocupado com seu futuro.
- Bem-vindo ao mundo dos vivos,
dorminhoco! - brinca Bô. - Não... Bem, sequestrei uma donzela... Mas
ela queria vir comigo. O marido era chato...
- De volta?!? Eu morri e fui ressuscitado? -
pergunta nervoso o mago. - Ah... -interrompe Prest. - Já podemos ir?
Temos que procurar Selakos.
- (...) aconselho cortar a cafeína, filho! - diz
Hardman para Prest. Hardman olha e sorri do inexperiente
mago.
- Sim, senhor. Só não me machuque... De
novo. - Só uma dica. Estão na cidade errada.
Selakos domina em Malpetrim!
- Bem, o minotauro é meio... Lento. O
“enlatado” tenta falar pomposo e embolado. A ladra - Malpetrim? - pergunta o guerreiro, até
sabe mentir... Então quem fala é você. O que quer então calado. - Mas lá não é James K?
com Selakos?
- Não! James K é em Gorendil!
- Como assim? O que todos os outros grupos
querem! - responde o mago. - Libertar Lorde Niebling! - Gorendil tem saída para o mar?

- Quer dizer que Selakos foi até Valkaria e - Vocês estão confundindo com a colina dos
seqüestrou Niebling? bons Halflings. Gorendil é um histo.

Hardman e seus companheiros deixam


para traz o confuso grupo de heróis. Houve ganas

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Crônicas Artonianas II
de levarem eles para procurar Selakos, mas seria - E eu tenho medo dos raios de luz, que
possível que eles só atrapalhassem. Hardman saem dos olhos dele... - fala Bô. - explodem, queima
suspeita que se Selakos pediu “o preço de um cão”, a carne... e ele fica invisível, e...
sequestro não estaria na sua cartilha. Ele se arriscou
demais, em Valkaria, pegando um nobre - Ele estava falando metaforicamente. -
importante, para pedir tão pouco. E datava de dois Reclama Jade.
meses quase, qualquer sequestro seguro dura uma
semana. - Caramba... Todo mundo está falando
jargão agora?
***
- Antes... Alin... Você falou com uma
- Já perguntei! - fala Hardman, rispidamente senhora, bem velha... Meio cigana?
com os portuários. - Para onde foram Vortex e
Charles “Hidra-negra”? - Quando cheguei aqui de manhã,
perguntando pelo senhor, me levaram a uma
- Não sei... Eu juro - diz o amedrontado mulher assim. Disse que o senhor estaria bebendo
interrogado. - Eles não estavam de barco! Se à noite neste pardieiro.
estivessem eu saberia. Só o porto é seguro o
suficiente para barcos de qualquer tamanho! - Então você era a surpresa que a Velha
Cigana me prometeu. - sorri Hardman.
- Eles não poderiam ir pela terra? - pergunta
Alin. - Esse é o nome dela mesmo? - se indaga
Alin. - Pensei que era uma referência ou algo...
- Olhe à sua volta, ô “pés-secos”! - diz Bô. -
Vê esses caras rodando que nem baratas? Aposto - Esqueça, amigo. Se vai conhecer o mar,
um barril de rum >hic< que metade deles é herói nomes serão apenas o começo das coisas estranhas
tentando resgatar Niebling, ou espião do que verá.
Protetorado... Ou coisa assim.
***
- Mas por que esses homens, Charles e
Vortex, se expuseram então? - Capitão!!! - Grita Bô -Tem lulas gigantes
por aqui!
- Charles é exibicionista - completa
Hardman. - Por isso Vortex estava tão Nervoso. Mas Eram cinco e meia da manhã. O sol estava
eles ... SIM! Vortex! - Hardman sorri, voltando-se despontando. Hardman e seus marujos
para o portuário. - É possível esconder um barco há aproveitavam os primeiros raios do sol para
cinco...Dez metros da praia? antecipar sua partida. O experiente capitão
imaginou que o mar aberto garantiria maior
- Bem... Sim... - responde o portuário.- proteção do que o Rio.
Ainda mais de noite. Mas a correnteza é forte! Nem
um Elfo-do-mar nadaria seguro por ela. - Impossível! - responde Hardman. - Aqui
é mar de Selakos, e é raso demais.
- Mas dois homens capazes de usar
teletransporte não sentiriam! - conclui Hardman. - - Olhe aqui! Essa tinta estranha! - diz Bô,
E, sendo visto na terra, não embarcando em nenhum mostrando a mão preta de um resíduo fedorento.
navio, Selakos estaria despistando perseguidores!
- Não é tinta! - diz Alin. - Já vi esse líquido
- Pensa bem, haitacf - diz Alin. - Se for escuro, ou algo parecido. Meu povo usa para fazer
verdade, tenho mais medo da mente desse Selakos fogo. Alguns bárbaros das sanguinárias usam como
do que dos punhos. explosivos.

- Eu tenho dos dois, Alin. - suspira - Não gosto de Selakos brincando com
Hardman. - Eu tenho dos dois. elementos químicos... - resmunga Bô. - Ainda mais
com acesso à mente imaginativa de Lorde Niebling.

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Crônicas Artonianas II
- Capitão!!! - grita Jade. - Mais à frente!!! Tem
uma bóia vertendo essa resina negra por buracos!!! - Ah, mas vou querer sim... e vou apreciar
cada uma como uma criança aprecia o gorad de
- (...) TODA A FORÇA NAS VELAS! BAIXAR Hershey. Vortex, Charles e Sório devem bastar para
VELAS!! LANÇAR ÂNCORA!!! cuidar dos intrusos.

Como se em uma emergência, todos correm - Que é que tem eu? - diz Sório, saindo de
pelo barco. Mesmo sem experiência, Jade e Alin uma passagem secreta no teto do navio.
ajudam Bô a parar bruscamente o navio, que
finalmente para. Estão diante de uma faixa da resina - Você está aqui, energúmeno? - reclama
negra de vários metros de espessura, que se estende Selakos. - Mas eles deviam ir em três... quem Charles
por vários quilômetros. À distância, pode-se ver uma levou?
grande estrutura de uma plataforma e um navio de
ferro, mesmo sabendo que navios de metal são A resposta de Sório foi uma horrível careta,
pesados demais para flutuar, Hardman sente acompanhada de risos de Selakos, e suspiros de
calafrios. Os canhões desse eram exageradamente pena de Lorde Niebling.
grandes e compridos, e se tivessem o poder de fogo ***
que aparenta, esfarelaria uma montanha sem
dificuldades. - Cap. Leo Hardman! - exclama Charles. -
Não esperava ver você tão cedo.
- Aposto meus barris de rum como Selakos
está naquele lugar... - Cedo demais, Charles! - replica Bô. - O que
vocês estão cozinhando, meninos? E no que um
Mal Bô falou essas palavras, toda a resina gnomo ajuda na receita?
negra entra em combustão. O calor da primeira
explosão lança uma corrente de ar forte o suficiente - Sabe de Niebling, Hardman? - pergunta
para empurrar o navio alguns metros para traz Se o Charles. - Mais um motivo para você não viver!
navio de Hardman tivesse chegado um pouco mais
perto, estaria ardendo em chamas assim como o mar - Eu não sou imbecil... Vortex, não? -
à sua frente. Um pequeno navio a vapor passa do pergunta Hardman - Vocês são osso duro, mas não
outro lado das labaredas. Dentro, a destacável figura vão nos vencer. Só querem nos atrasar, certo? Cadê
de Vortex. Há mais dois com ele, mas a sombra do o cabeça-de-bacalhau do seu capitão?
fogo distorce a imagem, mesmo que não suficiente
para evitar que a tripulação da Argos visse Vortex - Mas que coisa! - sorri jocosamente Charles.
esvoaçar sua capa, fazendo todos desaparecer. - dá uma bola dentro nos achando e pensa que é o
grande detetive! Nós somos mais que suficiente
- Olho vivo, Bô! - grita Hardman. - Os caras para limpar o convés com suas cabeças!
já devem ter chegado no nosso...
- Alin, você pega Vortex. Bô, você esquiva
O capitão pirata não consegue terminar sua melhor. Pegue Charles, que vou atrás de Selakos.
frase. Logo, percebe Vortex e Charles, cercando-os.
- Eu vou junto, Capitão! - fala Jade.
***
- Não Jade! Dizem que Vortex pode carregar
- Fogo... - exclama Lorde Niebling. - Algo está dois com ele. Aposto que trouxeram Sório Long.
errado. Não vacilem como fizeram com a ladra.

Selakos bufa furiosamente. - Agora não. A - Sório? - sorri Charles. - Ele é um coringa.
máquina está pronta! Só falta aquecer essas Só usamos em ações especiais. Já nosso novo
“cadeiras”... marujo...

- Caldeiras, capitão. - corrige Niebling. - Mas Todos se viram para traz das velas. O
eu rogo-lhe que desista desse plano insano! Aparecer monstruoso homem de barro se revela então,
com este navio vai atiçar as nações a uma guerra! O urrando como uma besta feroz. Não há vantagem
senhor terá que provocar mortes que não quer! numérica quando se enfrenta Melekashiro. Logo
que se vê frente tantos inimigos, ele borbulha. De

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Crônicas Artonianas II
seu tronco brota uma segunda cabeça, que se destaca derrota no Torneio de Quelina. Hardman mal
até se formar outro monstro igual. consegue se esquivar, ou bloquear com sua espada
os incessantes ataques do monstro, sendo atingido
- Mudança de planos. Bô, você e eu por alguns que passavam por sua guarda.
pegamos Melekashiro. Alin, Vortex e Jade, Charles. Melekashiro só para o ataque ao receber um golpe
da moringa de Bô, que faz sua cabeça deformar.
- Pro favor, Hardman. - diz Charles. - Não
luto com mulheres. - Ei, Grandão! - provoca Bô. - Você é grande,
mas não é dois!
Dizendo isso, Charles lança sua hidra negra
contra Alin. Ela se estica furiosamente, mas Alin As palavras de Bô provocam fúria em
ergue as mãos em uma coluna de fogo, que Melekashiro. Sua massa corporal duplica, e depois
carboniza a hidra. Charles berra de dor, enquanto se parte ao meio. Bô assiste congelado de horror
recolhe a hidra. quando ambas assumem formas de Melekashiro.
Melekashiro sorri, e desfere um ataque que seria
- Eu também não luto com mulheres, mortal, se Hardman não se jogasse sobre o pasmo
haitacf. - diz Alin. pirata bêbado, salvando-o por um triz. Hardman e
Bô rolam no chão, se recompondo, e se
Charles sorri. Ele assiste sua hidra se posicionando para a luta. Os Melekashiros circulam
regenerar em segundos. Alin observa assustado a os dois, como se instintivamente fizessem um cerco,
criatura reassumir a forma de outrora. Mesmo o
valente guerreiro do deserto recua assustado, dando - Bô... - fala ofegante o capitão. - Temos que
espaço para a lâmina fina de Charles rasgar o ombro chegar junto dele. À distância somos alvos fáceis!
do guerreiro de Azgher.
- Perto?!? - exclama Bô. Ele sabia que seu
Vortex encara Jade. Ele já havia visto na capitão tinha razão. Alin teria mais chances com
Taverna leviatã. sua magia, mas Hardman não teve tempo de pensar
melhor. Charles e Vortex eram esperados, mas
- Hardman confia em suas habilidades, Melekashiro não. Hardman e Bô investem
moça. - comenta Vortex. - Surpreenda-me! pesadamente contra os Melekashiros, mas os
monstros estavam prontos, e lançam novas
Jade assume a posição de dança, e começa investidas de seus tentáculos. Hardman golpeia
a bater suas castanholas. Vortex solta um riso seco, furiosamente com sua espada, abrindo caminho, e
enquanto guarda sua espada. Bô dança cambaleante, limitando-se a esquivar.

- Confiante, gaijin? - pergunta Jade Melekashiro então reúne seus tentáculos


desafiadora. em seu braço, e estica-o contra Hardman, que tenta
bloquear ou cortar, mas a resistência era maior.
- Com o flamenco? Um pouco. - responde Hardman é agarrado pelo braço direito e erguido
Vortex, que com um gesto de sua mão faz sua capa no ar. Melekashiro ainda tenta golpear com o outro,
cair ao chão. Ele posiciona na posição de dançarino mas Hardman habilmente troca a espada de mão,
homem do flamenco, acompanhando as batidas das deixando ela cair na esquerda, e crava-a no braço,
castanholas com palmas e pisadas. - Ah, não sou mantendo-o firme e afastado. Bô estava sendo
tão gaijin quanto você pensa. acuado, contra a beirada do navio pelo segundo.

Jade gira seus chutes ritmados contra Hardman estava preocupado. Melekashiro
Vortex, que segue a dança com bloqueios e esquivas, se debatia com o braço preso pela espada, mas não
e procedendo alguns ataques com competência. podia fazer nada com a outra mão firmemente
Jade há muito não tem um “parceiro de dança”. Será presa. Pendurado, não havia ponto de apoio para
páreo difícil. desvencilhar ou chutar seu monstruoso oponente.
Então, olha ao redor, e vê uma corda que mantém
- Har-MAAAAN!!! - Berrava Melekashiro, a vela presa. O vento faria o barco balançar e o
tentando dizer o nome de seu oponente. Seus braços suporte da vela giraria em seu eixo.
se tornam tentáculos projetados com velocidade
contra aquele que ele julga responsável por sua

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Crônicas Artonianas II
Hardman percebe Melekashiro crescendo de Vortex vira-se para sua adversária. Jade
novo. Ele, na época do Torneio, só podia criar um enxuga o sangue que corre de seu lábio e reassume
clone, mas agora parece que ele desenvolveu seu a posição de luta.
poder, e está preste a fazer brotar um outro. Hardman
não tinha tempo. Retira a espada encravada do - Estou furioso, menina... -diz Vortex,
monstro e corta a corda da vela com um vigoroso desembainhando sua espada. - Pior para você.
golpe.
***
- “Bô! UM TIBAR!” - Grita Hardman, dando
o aviso. Bô se joga ao chão, enquanto o mastro é Hardman e Bô nadam debaixo da água
liberado, acertando a cópia de Melekashiro em cheio, morna. Acima é possível ver as chamas ardendo.
lançando-o ao mar. Hardman usou a capa mágica instintivamente e com
pressa, o que fez eles ressurgirem abaixo da água.
Bô só tem alguns segundos. Por experiência Bô quase se afogou, mas agora os dois emergem
percebeu que o monstro demora a sentir os golpes, e metros à frente das chamas, próximos do estranho
logo dois estariam lá para confrontá-los. Hardman barco que Vortex e Charles usaram para chegar.
vê seu companheiro correr para longe, e sente que o
outro braço de Melekashiro, livre da espada de - >Gasp!< Cap! - grita Bô, cuspindo água. -
Hardman, agarra-lhe a garganta. Desorientado, Nunca bebi tanta coisa não-alcoólica na minha vida!
Hardman permite que a outra mão de Melekashiro
salte seu braço, e passe a apertar o pescoço também. - Não reclame! - Fala Hardman, alcançando
Hardman se debate, mas seu próprio peso fazia força o barco. - Você quase me matou!! Que história é essa
contra. O segundo Melekashiro estaria pronto em de me colocar em um canhão?
questão de segundos.
- Hardman “bala-de-canhão”... É o melhor
Algo surge abaixo de Hardman. Ele apóia o que conseguimos!
pé e ameniza o enforcamento. Ao olhar para baixo,
ele vê horrorizado que Bô acendeu um dos canhões e - Não é hora para apelidos, Bô!
o colocou embaixo de Hardman, com a boca virada
para Melekashiro. Os dois piratas assumem a pequena
embarcação. Um calor forte vinha da estrutura da
- Bô, SEU MALUCO... proa, provavelmente obra de Lorde Niebling.
Hardman e Bô lembram que Charles e Vortex
O barulho faz tremer o convés. A violência chegaram em grande velocidade.
do canhão sem apoio lança Hardman alguns metros,
mas manda Melekashiro vários metros mar adentro. Uma bola de fogo de Alin provoca barulho,
Os quatro outros lutadores ainda cessam o ataque que relembra Hardman e Bô de seus companheiros
com o susto. Bô abre um sorriso de criança travessa e abandonados à própria sorte contra a dupla de
fala algo que Hardman não ouve por causa dos piratas de Selakos.
ouvidos sensibilizados pela explosão. Tentando se
levantar, ele escorrega em um pedaço de tecido... Na - Alin é forte. - comenta Hardman. - Pode
verdade, a capa mágica de Vortex. Ele ainda vê o dar conta de Charles, se tomar cuidado com a hidra.
mascarado abandonar a luta com Jade e investir
contra ele e Bô. - A guria também sabe dar uns chutes... -
Fala Bô. - Mas o Vortex pareceu durão...
Por mais que Hardman quisesse enfrentar ele
e Charles “Hidra-negra”, sabia que Selakos e o - Teremos que confiar neles, Bô. Estão em
misterioso navio eram a prioridade. Então, agarra a situação melhor que a nossa.
capa e roda, cobrindo ele e Bô. Vortex ainda mergulha
no vazio, ao perceber que Hardman e seu - Será que o Melekashiro sobreviveu?
companheiro não estavam mais lá, teleportando para
além das chamas. - Não sei... Não vi se o tiro atingiu ele. Se
ele sobreviveu, deve chegar logo...

47
Crônicas Artonianas II
- Mas um motivo para essa geringonça amarrado a uma plataforma improvisada para a
funcionar... - diz Bô, dando um chute na estrutura construção. Fumaça negra vinha de uma chaminé
de ferro. do navio. Uma inscrição podia ser lida na polpa do
navio: Bloodyjaws. “Mandíbulas de Selako
Uma alavanca treme com o chute, e desce sangrento”, em um antigo idioma anão. Hardman
um pouco, fazendo a barcaça se mover. Bô então a sabia porque é o nome de um totem de uma das
baixa de vez, o que faz ela se mover ainda mais tribos de piratas das montanhas sanguinárias que
rápido. ele conheceu quando ainda era tripulante do
Maelstron.

*** - Bô! Diminui a velocidade! - grita


Hardman, por causa do barulho da máquina a
Jade estava com problemas. Vortex era vapor que os conduzia.
ainda mais rápido que ela, e sua espada era tão
rápida quanto. Ela imagina esse guerreiro usando - Não dá, capitão! - Grita de volta Bô. - Eu
o poder do teleporte deveria ser imbatível. já levantei a alavanca, puxei tudo quanto é treco,
mas nada dela parar! Vamos Pular!!!
Mas Vortex acaba, por fim, subestimando
a dançarina cigana. Um gesto rápido das mãos, e - Não! - Grita Hardman. - Tive uma idéia
ela saca a adaga que não fora capaz de esconder melhor!
dos guardas da Velha Cigana. Com ela, ela apara a
Lâmina de Vortex e o desarma. Jade então, com sua Hardman segura Bô com uma mão, e a capa
lâmina, passa a atacar Vortex. Ele conhecia os de Vortex na outra. Com um gesto, a capa faz os
movimentos do Flamenco, o que dificultava a dois se teleportarem para o convés do navio.
investida de Jade. Abaixo, eles vêem o barco se chocar pesadamente.
A parte de ferro se desprende, caindo ao mar,
Alin ainda enfrentava Charles. O jovem levantando uma nuvem de vapor, mas a parte de
loiro dava problemas para o guerreiro do deserto, madeira ainda flutuava. Hardman amarra a capa
pois sua espada era afiada e precisa. A esgrima dele de Vortex ao pescoço. Nunca se sabe quando ela
era boa, mas Alin já lutara com Hardman, e seria útil, ainda mais contra Selakos. Bô descobre
percebeu que o “Hidra Negra” não tinha o mesmo um alçapão de ferro, que os conduzem para o
controle que seu capitão, o que deu uma boa chance interior do navio, este feito de tábuas de madeira, e
de Alin erguer uma coluna de chamas, que atinge iluminado com lampiões com a resina negra, do
com violência seu oponente, levando-o ao chão. mesmo modo que Alin disse que seu povo usava.
Eles caminham na direção de um forte som metálico
Alin recita os cânticos de Azgher, tornando e barulho semelhante ao de uma espada em brasa
sua espada uma espada flamejante. Caminhando sendo mergulhada na água.
serenamente na direção de Charles, que estava a se
levantar, apontando sua hidra para o guerreiro do Os dois correm e se deparam com duas
deserto. Alin prometera a si mesmo que aquela portas. Uma de aço, no fim do corredor, e outra,
aberração não o surpreenderia novamente, mas pequena, de madeira, entreaberta. Bô checa a porta
estava enganado. de madeira, que parecia um armário embutido,
muito pequeno. Hardman tenta a maçaneta e
A Hidra urrou. Urrou como uma besta constata que a porta esta trancada.
infernal, capaz de afugentar um Leão. Alin, de
sobressalto, larga sua lâmina. Charles projeta sua - Capitão! Use a capa de Vortex! - fala Bô.
hidra uma vez mais. Alin tem tempo de erguer uma
barreira de fogo, mas a Hidra a trespassa com - Mas, não sabemos o que está aí, a nossa
velocidade reduzida, e crava seus dentes no braço espera... e não sei se vai funcionar. Não tenho a
de Alin. prática de Vortex.

*** Hardman passa a olhar o armário, e repara


sulcos na parede, como se fossem uma escada.
Hardman aprecia a obra de Selakos e Então repara que há uma passagem de ar estreita
Niebling. Um navio totalmente de ferro, flutuando naquele lugar, mas muito apertada para um homem
grande como ele ou Bô.

48
Crônicas Artonianas II
Hardman então percebe como é a estrutura - Cadê o “grande homem” agora, hein,
do teto. Observa entre as tábuas colocadas às pressas, porco bêbado?
e percebe um brilho metálico... Um pequeno tremor...
Sório corre na direção da máquina, quase
- Bô! Cuidado! - exclama Hardman, sacando desaparecendo entre as imensas estruturas de ferro
seu sabre e cravando na madeira do teto fumegante. Bô, tomado pela fúria, vai em seu
imediatamente acima deles. Bô não percebe até seu encalço. Hardman e Selakos se encaram.
capitão forçar a tábua até quebrar, fazendo um
homem pequeno cair pesadamente a seus pés. - Que tal uma revanche do Torneio,
Selakos? - propõe Hardman. - Mesmas regras, sem
- Ora, ora... Estava me perguntando onde magia, sem trapaças... Só nossas espadas?
andaria o verme do Sório Long! - exclama Bô.
Selakos ri, enquanto desliza seu dedão pela
- E então, Sório? Como anda nosso velho lâmina de sua espada, fazendo-a brilhar como se
amigo cap. Selakos? - brinca Hardman. fosse feita de luz. Uma gota de sangue cai no chão.
Hardman iria enfrentar Selakos com seus poderes
*** totais.

- Por que agora! - exclama furioso Selakos. - - ... Era o que temia... – pragueja Hardman.
Passamos dois meses sem interferência nenhuma, por
que, com a obra concluída, surgem invasores? ***
Malditos sejam os dados de Nimb!
O chute de Vortex arremessa Jade no chão,
- Capitão... - fala Niebling, encolhido atrás entre os barris de suprimento vazios. Com a queda,
de uma máquina. - É, é melhor desligar a alimentação Jade larga a adaga. Jade se levanta velozmente, mas
de vapor, ou a caldeira vai explodir. não consegue ver seu oponente. De repente, tudo
escurece para Jade.
Selakos têm ganas de agredir o pequeno e
insosso gnomo, quando vê sua porta de ferro ser Alin está sangrando. Um ferimento
escancarada. Sório, sob ameaça da espada de profundo em seu braço, e o jovem habilidoso
Hardman, usou seus talentos ladinos para ultrapassar investindo contra ele, fazem o guerreiro do deserto
o último obstáculo. Finalmente, Hardman e Bô recuar até a borda estibordo. Charles tenta um
encaram o terrível capitão Selakos. último golpe, mas Alin consegue segurar sua mão,
junto ao cabo da espada. A mão da hidra negra é,
- Vocês são os invasores? - pergunta Selakos em seguida, imobilizada. Os dois oponentes lutam
com descaso. - Vocês dois? Lembro-me do rapaz para superar a força um do outro.
Hardman... Marujo de Cicatriz, certo?
Alin olha para traz de si, e vê várias cordas,
- Entregue-se, Selakos! - Brada Hardman. - pendendo para fora do navio, e se lembra de quando
Esta insanidade não vai continuar! lutou contra Hardman e ele balançou para fora, e
isso lhe dá uma idéia. O guerreiro do deserto reúne
- Insanidade? - ri Selakos. - Isto é suas forças e puxa seu corpo e o de Charles para
CONQUISTA! Um ser desprezível como você não fora do navio.
entenderia a grandiosidade, nem se ela MORDESSE
SUAS PERNAS! Os dois caem entre as cordas. Charles e Alin
conseguem se agarrar nelas. Charles ainda ri, pois
Selakos faz um gesto firme. Hardman e Bô caiu em situação mais favorável que o guerreiro do
percebem que se trata de alguma magia, e por pouco deserto. Alin começa a rir também, e Charles então
não são abocanhados por uma mandíbula de tubarão percebe que sua hidra estava roendo a corda.
que surge embaixo deles. Charles cai no oceano.
Alin aproveita o momento para descansar,
Com o salto, Hardman perde o controle sobre mas percebe que sua corda estava sendo puxada.
Sório, que saca uma adaga e crava na perna de Bô. Logo, ele Vê que Vortex trouxe-o de volta a bordo.
Este cai de joelhos, e leva um soco do pequeno ladrão. O pirata mascarado chuta a espada de Alin para
perto do guerreiro, e saca a própria espada.

49
Crônicas Artonianas II
- E Jade? - pergunta Alin. Bô e Niebling correm para a parte principal
do salão, onde Hardman era castigado pelos
- Dentro de um barril. - responde o ataques de Selakos. Hardman ainda consegue se
mascarado, caminhando para onde os dois teriam defender e fazer um corte no ventre de Selakos, mas
mais espaço para lutar. o final da batalha está claro.

*** - Fique aqui, baixinho, eu vou lá! - fala Bô.

Selakos dá o primeiro ataque, na forma de - Espere - segura Niebling. - Na luta,


um clarão. Hardman se joga para traz, e espera Selakos esqueceu de liberar o excesso de vapor! A
poder ver o capitão. Mas sua visão clareia caldeira vai explodir se não liberarmos logo! Preciso
permitindo a ele ver dois piratas com a cabeça de de você!
Selakos.
- Mas... O capitão...

- Essa idéia foi me dada por Melekashiro - - Vai morrer se a caldeira explodir.
Ri um deles. - Prático, não?
- Não tem como liberar o vapor E ajudar o
Hardman aproveita de sua velocidade e capitão?
corre para o meio. Esquiva de uma das espada
iluminadas, e bloqueia o ataque da outra com seu - Hmm - pensa o gnomo. - Traga aquela
sabre. Um giro rápido, e ele enterra a espada no mangueira grossa...
peito de um dos Selakos, que desaparece. Era uma
ilusão. Tarde demais para Hardman se refazer do Bô estica o braço trazendo uma grossa
erro, ele é golpeado nas costas por Selakos. mangueira de borracha. Niebling prende em um
cano.
Bô percebe que Sório é mais perigoso do que
aparenta. Ele se enfia em um espaço estreito entre - Vou liberar o vapor nesta sala. - explica o
as máquinas, o que reduz a mobilidade de Bô. Em gnomo. - Vai sufocar todos nós. Mas se ficarmos
seguida, ele apóia os pés nas paredes e nas com o rosto colado ao chão ainda teremos ar...
máquinas, e passa a atacar o pirata etílico. Bô ainda
contra-ataca com sua moringa, mas Sório está - Capitão! UM TIBAR!!! - Grita Bô, dando
claramente na vantagem. sinal para Niebling abrir o vapor.

De repente, Sório larga seu corpo, caindo Selakos se vira para ver o que estava
em cima de Bô, levando-o ao chão. O ladrão pisa no acontecendo. Hardman não tenta entender, se joga
peito dele e ergue a faca, preparando-se para o golpe no chão.
final.
Em segundos a sala é inundada pelo denso
- Isso é para, na outra vida, você não vapor escaldante. Selakos se debate, tentando
subestimar o tamanho de seu oponente! - brada respirar. Hardman sente sua pele cozinhar, mas
Sório. ainda respira com alguma dificuldade. Fica
impossível ver qualquer coisa na sala.
Bô só ouve uma pancada seca, e vê Sório
caindo inconsciente no chão. Acima da máquina Uma explosão seguida do som de um cano
onde eles estavam, Lorde Niebling, segurando uma metálico indo ao chão.
enorme chave de ferro com a qual acertara a cabeça
do ladrão. - Não foi suficiente! Isto aqui vai explodir!!!
- grita Niebling, tentando correr, mas sendo
- É, ele estava certo - diz Bô, ajudando o agarrado por alguém, invisível pelo vapor.
pequeno gnomo a descer. - não subestimo mais
tamanho! Hardman e Bô conduzem o gnomo para o
convés, e para o ar fresco. Uma explosão violenta
- Ele não contava com alguém MENOR que faz todo o navio tremer, mas os três já estavam
ele! - diz orgulhoso o gnomo. - Agora seu amigo... seguros.

50
Crônicas Artonianas II
- Dá-lhe, baixinho! - comemora Bô, erguendo - Mais rápido! - ordena Hardman. - Temos
o gnomo no ar. que nos afastar!

- ME LARGUE! - protesta Niebling, - Ainda Melekashiro se divide em três, e a barca


não acabou! Aquilo foi só a caldeira! Quando atingir começa a se mover em velocidade espantosa, mas
o tanque de combustível, tudo num raio de ainda há o fogo...
quinhentos metros vai queimar!
- Baixinho - fala Bô para Niebling. - Como
- Combustível? - pergunta Hardman. - A é que para esta coisa?
resina negra?
- Parar? - pensa Niebling. - Bem que Vortex
- É! - Estamos condenados! falou de uma ... Falha...

Hardman não se abate. Ele segura Niebling O Barco vai velozmente contra as chamas
e Bô, e usa mais uma vez a capa de Vortex, que Selakos usou para manter intrusos afastados.
ressurgindo no pequeno barco a motor. Hardman segura a capa de Vortex, e olha. Agora
são quatro que devem ser transportados... seis se
- Lorde Niebling - fala o capitão pirata, contar com as cópias de Melekashiro.
puxando o gnomo. - Da para consertar esse barco?
- Vai! - grita Melekashiro. - Fogo mim
- Consertar o que? - pergunta Niebling. - O “guenta”!
motor afundou! Não tem remos, mesmo se tivessem,
não daria tempo! Hardman fica chocado com o fato.
Dificilmente, mesmo Melekashiro, resistiria às
Bô se arrasta para o lugar onde havia a chamas, mas aquela era a decisão mais acertada.
estrutura de vapor. Tudo o que resta são os pistões Ele calcula o teleporte para voltar à bordo do seu
que a máquina movia. Instintivamente, ele os agarra navio...
com as mãos e começa a movimentá-los. O navio
anda, com velocidade de um quelonte. ***

- Capitão... Me ajude aqui! Niebling, Bô e Hardman ressurgem no


convés. Quase tropeçam em um barril. Hardman
Hardman nem tem tempo de responder. O sente algo lhe puxar atrás. Era Vortex, que lhe
barco é sacoleja com o peso do corpo de alguém que tomava a capa. Ele estava em estado deplorável.
vem à bordo.
- Isso não se faz, Hardman - Fala Vortex.
- Har-MAAAAN!!! - berra Melekashiro, de Hardman prepara-se para contra-atacar, quando
ódio e dor ao ver o capitão e seu companheiro. Vortex se vira, voltando-se a tempo de aparar um
golpe de espada de Alin. atrás deles, podia-se ver
Hardman e Bô se preparam para lutar, Charles, todo molhado, lutando contra Jade. Com
quando uma explosão menor no Bloodyjaws lança um olho roxo.
estilhaços de ferro fundido perigosamente próximo
do barco. - PODE PARAR O PARDIEIRO! - grita Bô
autoritário, chamando a atenção dos quatro. Que
- Melekashiro... - implora Niebling. - Agora se enfrentavam.
Não! Se esse navio explodir e nós estivermos perto,
Vamos morrer!!! - O Navio de aço vai explodir - fala
Niebling. - Mesmo neste navio seremos pegos pela
- Morrer... - fala Melekashiro. - Morrer não explosão!
bom...
- Vortex! - fala Charles nervosamente. - Nos
O monstro enorme caminha, fazendo o barco teleporte para bem longe daqui!
Balançar. Ele empurra Bô para traz e passa a fazer o
mesmo movimento, só que com mais velocidade. - Para onde, Charles? - pergunta Vortex. -
Só há água! Meu poder não é infinito.

51
Crônicas Artonianas II
Um barulho seco é ouvido na proa. A mão entre eles, quebrado por um grito estridente vindo
de Melekashiro, preta quase carbonizada, se estica, de fora.
trazendo o monstro à bordo.
- CHARLEEES!!! VORTEEEEX!!!!
- Mim “guentou” o fogo, Har...man! - falou
ofegante o monstro. - Mim falou, mim guentou. Era Sório Long. Ele estava no Selakon. Cap.
Selakos estava à frente. De algum modo os dois
- Melekão ajudou vocês? - pergunta sobreviveram ao desastre. A magia de Selakos deve
impressionado Charles. Vortex e Charles se ter garantido a fuga.
entreolham. O Monstro provavelmente estava certo.
Para sobreviverem, teriam que trabalhar juntos, - Bem, capitão... - diz enfim, Charles a
como uma tripulação. Hardman, enquanto Vortex ajudava Melekashiro
a se levantar. - Foi divertido! Podemos repetir outro
Foi quase meio minuto em silêncio, como dia. Acredito que em breve as patrulhas e a
se esperando uma manifestação de qualquer das esquadra virão averiguar a explosão. Aconselho o
partes. Hardman quebra o silêncio. senhor partir!

- Bô, Para o timão! - grita Hardman, Com um gesto, Vortex teleporta a si,
assumindo como capitão. - Vortex, tente alcançar a Charles e Melekashiro, ressurgindo no Selakon.
vela principal! Melekashiro, ajude! Alin, Charles, a Selakos gira o timão na direção do mar aberto. O
âncora! Jade, venha comigo amarrar o barlavento! Selakon ainda tinha capacidade para uma batalha
Niebling, Opiniões são bem-vindas! náutica, mas as palavras de Charles continham a
verdade. Todo atraso seria prejudicial.
Não há questionamento. Vortex se teleporta
para cima do mastro. - E agora, capitão? - perguntou enfim Bô. -
Quelina tá longe demais, mas acho que dá para
Melekashiro o acompanha. Alin e Charles chegar em Cala-cala...
juntam esforços fazendo levantar a âncora. Bô
habilmente direciona o navio, para seguir com os - Tenho uma idéia melhor, Bô... - fala
ventos para a costa. Hardman, com um sorriso, olhando Niebling.

O Navio segue velozmente mais de um - A-há! - exclama. - Sinto o cheiro de mais


minuto, e, por fim, vem a explosão. O céu fica rubro uma grande idéia do Cap. Hardman!
com as chamas que sobem, e se espalham como um
círculo. O navio é atingido, e pequenos focos de ***
incêndio se espalham pelo convés. O mastro onde
Melekashiro e Vortex estavam cai perante a Arkan era um homem de ação. Jamais se
violência da explosão. perdoou ter perdido Lorde Niebling com tanta
facilidade. O líder do protetorado do reinado
*** deveria cobrir falhas dos outros. Ser enganado em
um estratagema tão infantil, independente das
Todos estirados no chão. Hardman é o palavras de conforto de Talude e do Rei, era como
primeiro a se levantar. O mastro principal caiu, e uma faca cravada em seu orgulho.
uma das velas está em chamas. Todo dolorido,
Hardman ajuda Jade, que estava soterrada por Se dependesse de Arkan, o protetorado
pedaços de madeira. Logo, Charles e Vortex sairia imediatamente atrás de Selakos e seus
ajudavam Melekashiro, que jazia inconsciente, mas homens. Mas a chegada do pedido de resgate
vivo. Aquela batalha lhe exigira tudo, e finalmente reconfortou o rei, que ordenou que nada que
o monstro de barro chegou a seu limite. Bô e Alin pudesse por em risco as negociações. Assim foi nas
também se levantam, retirando dos escombros primeiras semanas. Após um mês, o rei Thormy já
Lorde Niebling. havia autorizado Arkan a fazer como achasse
melhor.
Os oito se detiveram, em silêncio, sentados,
repondo o fôlego perdido. O navio ainda flutuava, Arkan sabia que sua presa tinha um mês à
impulsionado por um único mastro e vela. Silêncio sua frente, mas era fácil conseguir informações

52
Crônicas Artonianas II
sobre Selakos. Ele fez vigília em Foz, atrás de pistas.
- Não tão rápido, guerreiro. - ameaça
Charles e Vortex tinham sido vistos dois dias antes,
Selakos. - Vê a caixa presa ao gnomo? É uma bomba.
o que renovaram sua esperança, mas assim como eles,
Qualquer movimento brusco, ela explode. O
mas assim como vieram, eles se foram.
dispositivo mágico que detona pode estar comigo,
ou com um dos meus capangas.
Mais uma semana sem notícias, até o
mensageiro de DÉeon chegar com o valor do resgate
Arkan olha os demais homens esperando.
e uma carta. Selakos iria entregar Niebling. Selakos
Contra o sol, só podia ver a silhueta, mas um usava
exigiu que um único homem estivesse em um porto
máscara e pesado manto, provavelmente era Vortex.
isolado no Pântano dos Juncos, no final da tarde.
O outro, encostado contra uma árvore, devia ser
Chegar atrasado ou cedo demais provocaria a morte
Charles “Hidra Negra”.
do Gnomo. Um último aviso foi que Selakos espalhara
espiões por toda parte.
- Vocês eram quatro... - fala Arkan, olhando
ao redor.
Arkan tratou de levar o resgate. Mesmo
cumprindo o solicitado, ele analisa o mapa. O ponto
- Ah, sim - fala Selakos. - Sório Long, o
de encontro era muito próximo a um braço de rio
furtivo. Ele está traz da moita. O problema é: Qual
navegável, que deságua no rio dos Deuses. O resgate
moita?
cabe todo em um saco. Realmente seria apenas uma
troca, mas se Selakos desse a chance, ele sentiria o
Nesse momento, três moitas sacodem
poder do guerreiro de braço metálico.
simultaneamente. Arkan pega sua maça de ferro,
atento a tudo.
Na hora marcada, Arkan sai do
acampamento sozinho. Se algo acontecesse a Lorde
- A troca é simples, Arkan. Você joga o saco
Niebling por desrespeitar as condições, o Rei Thormy
com o resgate, e eu lhe digo onde escondi a chave
iria responsabilizá-lo. “Antes permitir a fuga do
que desarma a bomba.
pirata a por em risco a vida de Lorde Niebling”, ele
disse. Nada de espiões invisíveis ou voadores.
Selakos ergue a mão, Arkan, relutante,
Selakos é organizado demais para ser pego em tais
lança o saco para o pirata. Este abre e examina o
termos.
conteúdo.
Arkan caminha devagar. Não quer chegar
- “O preço de um cão”... - sussurra Selakos
antes, mas também não quer ser surpreendido por
para si mesmo. - Você está familiarizado com esse
armadilhas. Não demora muito para ver ao longe,
termo, Arkan?
na direção do rio, um Navio. E logo, três silhuetas
contra o sol poente.
O guerreiro do braço metálico sua. Ele
temia que Selakos desistisse da troca.
- Selakos? - pergunta Arkan, forçando a vista
para perceber quem eram os três. - Onde Está Lorde
- Eu sei que esse valor é pouco para Lorde
Niebling?
Niebling, Guerreiro. - Fala Selakos diante do silêncio
do campeão do protetorado. - Não se preocupe,
Um dos três puxa uma corda. Detrás de uma
estou nesta só pela diversão.
árvore, Lorde Niebling, amarrado as mãos, com uma
estranha caixa de madeira escura amarrado em seu
- A chave, Selakos! - ameaça Arkan.
ventre. Arkan então vislumbra o sinistro Cap.
Selakos. As histórias faziam ele parecer um
- Em um bloco de barro... Na árvore atrás
licantropo, mas o guerreiro do protetorado percebe
de você. - diz Selakos, dando um tapa na caixa de
que se trata de uma máscara malfeita.
Niebling, que passa a produzir um som seco e
repetitivo. - Tem dez segundos!
- Eu sou Selakos. Arkan, Não? - Fala o
mascarado, com a voz abafada. - Deveria ter
Arkan vê Selakos se virar e correr. Niebling
manifestado isso na carta.
estava fora do perigo imediato do pirata. Ele ousa
um ataque. “Destravar”, grita ele. Seu braço
- Liberte Lorde Niebling, pirata! - fala Arkan,
metálico voa na direção de Selakos, que se joga no
duramente.

53
Crônicas Artonianas II
chão agilmente, recebendo apenas parte do impacto, melhor modo do que recebendo algumas moedas
mas continuou correndo. “Retornai”, grita o em troca.
guerreiro, trazendo seu braço de volta.
***
Não há mais tempo para mais um ataque.
Arkan corre para a árvore apontada por Selakos. - Lorde Niebling - diz Arkan, se virando
Vê o bloco de barro seco, que se esfarela em sua para o pequeno Gnomo. - Eles não conseguiriam
mão metálica, revelando a chave. Arkan ainda fazer essa brincadeira sem sua ajuda!
tropeça ao se levantar, correndo na direção do
estático gnomo. Para seu horror, a chave não Niebling apenas sorri, e conduz Arkan no
encaixava na fechadura. A amarra era resistente caminho de volta.
demais para ser rasgada.
- Sinto muito, meu amigo! - disse Niebling.
- Sinto muito, Amigo Arkan... - fala Niebling - Eu devia isso a eles. Vamos. O caminho de volta é
quase sem voz. longo. Eu vou contar a história de dois capitães
pirata. Um maligno e insano chamado Selakos, e
A caixa preta se abre violentamente. Arkan outro, nobre e valente chamado Hardman. Se vocês
entra em fúria ao ouvir a doce melodia de uma dois se encontrarem no futuro, talvez não sejam em
caixinha de músicas, com uma pequena bailarina lados opostos.
dançante.

Arkan ainda corre, a tempo de ver uma


quarta pessoa saindo das moitas. Uma explosão
forte dos canhões do navio fazem Arkan cessar a
Conversas de Taverna
perseguição diante de uma coluna de lama e água
que se ergue alguns metros à frente do líder do por B.J.Moraes
protetorado. Arkan vê impotente o navio se afastar,
e os quatro sequestradores acenar para ele.

***

- Ai, minhas costas! - Reclama Hardman,


tirando a máscara de tubarão. - Eu é que não quero
encarar aquele Arkan de mal humor!

- Alias, mina... - fala Bô para Jade. - Como


você fez essa máscara tão rápido? I
- Aprendi com minha avó - diz a cigana. - O Caso do Taberneiro Roubado
Assim como ela me ensinou a fazer aquele arranjo
com cordas. Realmente Arkan pareceu assustado Eis que em uma pequena vila perdida nos
pensando que Sório estava em todo o lugar. confins do Reinado, há uma taverna conhecida como
a Caneca Rachada, um lugar como outros tantos
- Me senti inútil. - comenta Alin. - Fora me pelo mundo; e lá, muitos vagabundos e heróis já
passar por Vortex, não colaborei em nada! passaram, e continuam passando até hoje. E esses
visitantes, ilustres ou não, sempre foram bem
- Você é nobre, amigo. - fala Hardman. - Não recebidos, pois Ellon, o taverneiro, e Miludda, sua
tem a malícia para enganar alguém. Isso vem com a mulher, são bons anfitriões e bons atendentes.
prática. Vai querer sua parte em ouro, não? Poucas foram as vezes em que a confusão ou a
violência entraram por aquelas grandes e fortes
Hardman abre o saco e conta as moedas. O portas de madeira.
verdadeiro Selakos teve o trabalho de sequestrar
Niebling, fazer os contatos e pedir o resgate. A Caneca Rachada era (e continua sendo),
Hardman tinha que devolver Lorde Niebling, que uma casa de pedra, com telhado de palha grossa.

54
Crônicas Artonianas II
As portas e janelas foram feitas de madeira nobre, a espada, e todos se desesperaram. A correria foi
como em poucos lugares ou reinos se encontra hoje terrível, gritos e mesas caindo para todo o lado. Mas
em dia. E dizem os freqüentadores mais antigos, depois de algumas tentativas de estocar o outro, o
como o velho Haggam, que a casa da taverna tinha homem com a espada foi nocauteado com um soco
sido construída há mais de cem anos. Lá dentro, um bem dado no queixo; afinal de contas, estava mais
grande salão era aquecido por uma lareira sempre bêbado que o primeiro.
bem mantida nos dias frios. Duas mesas com muitos
lugares eram compartilhadas pelos freqüentadores, As coisas começaram a acalmar e um grupo
principalmente quando a jovem Fellas, filha de Ellon, de homens levou o coitado desmaiado para fora.
o taverneiro, servia sua comida saborosa ou a famosa Foi quando me dei conta que alguns sacos de tibares
cerveja feita ali mesmo. O balcão também servia de foram levados na confusão... Alguém se aproveitou
mesa, quando necessário, e as cadeiras e bancos se e roubou nosso dinheiro. Eu jamais teria esperança
amontoavam quando Laurinell, o Elfo, que já era de recuperá-lo ou de descobrir quem o roubara se
velho mesmo para sua raça, contava as histórias dos não fosse pelo que aconteceu no dia seguinte...
tempos idos, ou quando um dos presentes
compartilhava de suas próprias histórias. - E o que foi que aconteceu, Ellon? –
perguntou um viajante de roupas vistosas.
E entre essas histórias contadas por lá, está a
que começará a seguir, e eis que foi contada pelo - Meu bom viajante, muitos aqui sabem o
próprio Ellon, dono do lugar, em uma noite estrelada que aconteceu e seria mais engraçado se não fosse
e quente de verão. Viajantes e habitantes da vila tão trágico. Morwen, a mulher de Broda, veio
estavam por lá, bebendo e descansando, conversando correndo e gritando pela rua bem cedo. Acho que
sobre seus assuntos, até que um dos homens, um tal ela mesma pode contar melhor o que viu.
de Broda, pediu a Ellon para que divertisse a todos
contando o caso de quando fora roubado. A taverna Morwen, uma mulher bela, de longos
inteira calou-se e só se pôde ouvir o som incessante cabelos negros e olhar penetrante, sorriu e levantou-
dos grilos lá fora; Ellon coçou a sua grande barba se. Todos se viraram para prestar atenção.
grisalha, quase branca, como se tentasse lembrar de
tudo com clareza. Ainda com a testa franzida, deu - Eu havia saído cedo de casa para buscar
um passo a frente e sorriu a todos que o olhavam água no poço, quando vi algo estirado no chão. Eram
quietos. E foi assim que começou a contar: três corpos de homens mal vestidos, mortos a golpes
de espada. Chamei a todos e o próprio Ellon os
- Bom, que eu me lembre, era uma noite reconheceu como alguns que estavam na taverna
parecida com essa, há poucos verões atrás. Lembro durante a noite passada, e entre eles, os próprios
bem do cheiro das flores e do barulho dos grilos. que armaram uma briga... Todos se perguntavam o
Muitos viajantes estavam por aqui, e tudo aconteceu que, em nome dos deuses, havia acontecido com os
pouco tempo depois que a filha de Edgar, o sujos, embora poucos o lamentassem. Foi quando
jardineiro, adoeceu e foi levada pelos deuses (que achamos um bilhete em fina caligrafia, como poucos
esteja em paz). Então, poucas pessoas da cidade sabem fazer. E eis que dizia... Como era mesmo,
estavam por aqui, pois todos estavam abatidos, e os Ellon?
poucos que saíram de casa estavam consolando o
pobre Edgar e sua mulher. - Eu tenho o tal bilhete guardado aqui,
Morwen! Tenho pensado em mandar Viggo, o
Comentei com Miludda que estava com marceneiro, colocar uma moldura e fixá-lo na
medo, pois muitos mal-encarados chegaram naquela parede, como aviso. – todos riram.
noite. Não demorou muito para que a bebida subisse
à cabeça deles, como vocês já sabem que acontece Ellon desdobrou o bilhete em um papel
muito por aqui. – uma risada sincera de todos meio amarelado, escrito em tinta negra.
interrompeu brevemente o silêncio, antes que os
homens e mulheres presentes voltassem a prestar - Diz assim: “não sabemos de onde vieram
atenção no bom Ellon. esses gatunos, mas a julgar pela tentativa de roubar
nosso grupo, não eram muito inteligentes. Não
Começaram então a brigar dois dos sabiam, pois, que éramos aventureiros a passar no
vagabundos; desarrumados e mal penteados que meio da noite em uma viagem! Não tivemos escolha
estavam, pensei que eram mendigos. Mas um sacou senão matar esses bandidos. Deixamos ainda com

55
Crônicas Artonianas II
eles os sacos de tibares que tinham e que Negro, tinham um brilho tristonho, melancólico, e
provavelmente não os pertencia. Assinado, Will quem o olhava naqueles instantes parecia poder ver
Manto-Verde, o mago “. a chuva refletindo neles.

- Coitados! – disse o viajante de roupas finas - que Poucos estavam lá dentro, como aqui já foi
sorte infeliz! Mas não posso dizer que não foi dito, sentados no balcão, não mais que seis, além
merecida. de Ellon, o bom taverneiro; Miludda, sua mulher, e
Fellas, sua filha. Conversavam em voz baixa, talvez
- Parece que Nimb rolou bons dados para Ellon, intimidados pela quietude da chuva. Viggo, o
afinal. – disse Morwen. marceneiro, notou Laurinell na mesa ao lado da
janela e não se acanhou em chamá-lo.
- Mas dados ruins para os ladrões! - disse Ellon,
seguido de risos dos homens e mulheres presentes; - Laurinell, velho elfo, o que em nome de
e completou, como que em desabafo sincero - e não Glórienn e todos os deuses você está pensando aí
digo que não é assim que tem que ser. no canto, calado? – os outros também se viraram e
olharam para Laurinell. O som da chuva e o cheiro
Era tarde então, e aos poucos a Caneca de terra molhada entraram pela janela aberta,
Rachada foi esvaziando. Muitas noites como aquela trazidos por um vento amigo. Ele sorriu, e lhes
se repetiriam pelos anos que se passaram, e muitas dirigiu a palavra com cortesia e nobreza, à maneira
são as histórias e canções que se ouviram por lá. dos elfos de Lenórienn.
Todos voltaram para suas casas ou seus quartos, e
a noite terminou quieta, com o som dos grilos e dos - Lembranças, Viggo. Lembranças tristes e
pássaros que começavam a cantar, anunciando a maravilhosas, trazidas pela chuva.
aurora que em algumas horas chegaria, banhando
com o sol aquela taverna no meio do Reinado. - E que maneira melhor de torná-las mais
agradáveis - disse Ellon - do que compartilhá-las
conosco?
II
O Conto da Noite de Chuva - Você está certo - disse o elfo, levantando-
se e caminhando até os outros - posso contá-las a
vocês, e talvez assim não morram comigo, como eu
Laurinell, o elfo, era antigo mesmo para a sua temia que acontecesse.
raça. Seu corpo continuava jovem e belo, seus cabelos
ainda eram loiros e longos. Mas era em seus olhos Todos se calaram, pois viram que havia dor
que se podia ver os anos que se passaram. Tinha um no peito do amigo. Dor e vontade de compartilhar
olhar quieto, porém furioso quando necessário. Ele, aquilo que lhe afligia. Respeitaram-no, portanto, e
que antes andava sempre com uma longa faca e uma o escutaram atentos.
armadura feita de couro, hoje trajava roupas finas,
porém leves. E ele mesmo que antes passava às vezes - Foi há muitos anos atrás, quando nosso
na Caneca Rachada entre suas viagens, hoje tinha reino ainda existia e a cidade entre as árvores ainda
uma casa em um ponto afastado da vila. Preferia a resplandecia, com suas torres e suas artes, mesmo
conversa à ação, as longas histórias às notícias. que em guerra. Pois era a época da Guerra Infinita,
a longa batalha dos elfos contra as criaturas do sul
E foi por isso que, naquela noite, ele lembrou- distante. Eu era jovem e temia poucas coisas, por
se de acontecimentos passados há séculos atrás... A isso não abandonava as batalhas enquanto ainda
noite estava chuvosa e silenciosa. Poucos trovões se pudesse me manter sobre minhas pernas. Ah, vocês
ouviam enquanto as poucas pessoas dentro da precisavam ver as armas e armaduras de outrora,
taverna conversavam e bebiam. Lá fora se ouvia feitas nas forjas e ateliês dos elfos. O brilho, a força!
apenas o som triste das goteiras, e o acariciar da chuva Críamos em Glórienn, em sua beleza, e não
nos telhados das casas simples e aconchegantes. A queríamos deixar que tudo que foi feito de belo fosse
chuva trazia memórias há séculos esquecidas. Ele destruído por criaturas corrompidas e más, que
estava encolhido em um canto, perdido em seus guerreavam não para defender, mas para matar e
pensamentos aconchegado em seu manto ricamente quebrar apenas; para fazer sofrer.
bordado por artesãos élficos como não mais existiam.
Seus cabelos loiros espalhavam-se sedosos sobre seus Alguns ali podiam não saber que Laurinell
ombros e seus olhos azuis, escuros como o Mar vivera tanto assim, a ponto de ter lutado na Guerra

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Crônicas Artonianas II
Infinita, mas nada disseram; deixaram que escorreu pelos galhos e as árvores choraram, como
continuasse seu relato. nunca tinham feito. E aquela chuva, lágrimas da
- Era um dia escuro, de nuvens pesadas. própria Glórienn em sua tristeza por seu povo,
Mas não chovera em momento algum até então; era lavou nossas feridas, curou nosso desespero e foi
como se a desgraça pairasse sobre nossas cabeças, cruel com nossos inimigos.
enquanto esperávamos impacientes em nosso posto.
Havia uma tropa de hobgoblins se aproximando. A água límpida queimou a pele grossa dos
As nuvens eram mau agouro e ainda sabíamos que hobgoblins e derreteu todo o metal de suas armas
eles estavam em maior número. Entre as árvores, e armaduras. A maioria deles morreu em poucos
esperávamos em silêncio, três centenas de elfos bem minutos, e os que sobraram correram
armados; mas era quase o dobro o número de enlouquecidos pelas árvores; mas jamais
hobgoblins. Pouco ou nenhuma esperança havia em encontraram o caminho de volta para suas casas.
meu coração, mas se tivesse de morrer para impedir Dos trezentos soldados que ali estavam comigo,
que eles chegassem a Lenórienn, eu morreria de bom somente um terço sobreviveu, mas nesse dia nossa
grado. deusa nos salvou de uma desgraça e dor muito
piores.
- Ouvimos então o clangor dos tambores, e
suas vozes cruéis gritando blasfêmias; e o primeiro - Que história maravilhosa e triste,
trovão foi ouvido: forte, ecoando entre as folhas. Os Laurinell - disse Ellon, com os olhos cheios de
galhos balançaram desesperados quando o vento lágrimas, colocando a mão sobre o ombro do elfo.
começou a soprar. Os passos pesados dos inimigos Por sua vez, o elfo olhava saudoso para a chuva lá
avançando sobre a floresta matavam a grama e fora.
assustavam os animais, e cada um de nós sentia no
peito a agonia da vida se acabando. Lentamente, - É uma pena - disse ele - que essa história
cada elfo retirava a espada da bainha, o aço tenha se perdido com a queda de Lenórienn. Essa
reluzindo no brilho frio das nuvens da tempestade. e tantas outras belas histórias daquele tempo.
Os arcos retesavam-se, com flechas apontando à
frente. Os vultos monstruosos começavam a serem - Não tento entender sua dor, Laurinell -
vistos, e mais uma vez eles gritaram insultos a disse Miludda, olhando-o nos olhos - mas espero
Glórienn e seu povo, em sua própria língua suja. que pelo menos aqui você possa se sentir em casa
Novamente um trovão foi ouvido. também.

Logo eles chegaram e começaram a avançar Laurinell sorriu e olhou para todos, que
em fúria profunda. Os elfos gritaram seus gritos de emocionados o ouviram e agora sentiam um misto
guerra também. E avançamos implacáveis sobre de compaixão e pena. Um trovão foi ouvido lá fora,
eles, com toda a revolta e esperança que ainda mais fraco que antes, porém mais constante.
tínhamos. O aço com aço se encontrou e armaduras
e corpos foram quebrados. A confusão comum das - Eu estou em casa. – disse ele, com um
grandes batalhas aconteceu, todos se banharam em sorriso.
sangue e ferro. E eu juro, em nome de todos os elfos,
que no momento em que nosso capitão foi morto III
pela ponta envenenada de uma lança, o maior de
todos os trovões foi ouvido. Olhei em volta e vi
O Mago e a Assassina
outros elfos jovens como eu terem suas vidas
retiradas pelas mãos de inimigos desleais e - É estranho. – disse Viggo, mexendo na
traiçoeiros. Chorei porque vi que morreríamos ali e caneca de hidromel pela metade.
de nada impediríamos o avanço deles.
- O quê? – perguntou Ellon, limpando
- Mas algo aconteceu, não é? – disse Fellas, alguns pratos com seu pano meio surrado.
filha de Ellon, nervosa - você está aqui hoje, então
alguma coisa aconteceu. - Uma noite como essa. – respondeu o
- Sim, aconteceu - e pela primeira vez desde marceneiro, sem tirar os olhos de sua caneca. – sem
que começou seu relato, o elfo sorriu - a chuva histórias, sem barulho.
começou a cair. Escorreu furiosa pelas folhas,
pingou pesada no chão coberto de sangue e morte, A Caneca Rachada era normalmente um
lugar tomado pelos habitantes da vila, conversando

57
Crônicas Artonianas II
sobre o dia, o tempo, as fazendas, os boatos sobre o Apenas o som dos pratos e canecas, junto
Reinado; mas hoje estava vazia, quase deserta. O com o crepitar da madeira, quebrava o silêncio
fogo crepitava solitário na lareira ao lado, enquanto daquela noite quieta. Entre um suspiro e outro do
Ellon e Miludda, o casal de taverneiros, organizava desanimado marceneiro, entretanto, fez-se ouvir o
os pratos e canecas na estante atrás do balcão. Afora bater na porta de madeira da taverna, três vezes
o casal, apenas Viggo bebia numa mesa. A porta e seguidas.
as janelas estavam fechadas, pois o vento estava frio
naquela noite. O inverno se aproximava com seu Os três se olharam brevemente.
hálito de neve e quietude.
- Não entrou? – disse Ellon, surpreso - deve
- Bom, já era de se esperar, não é mesmo? – ser um viajante, então.
disse Miludda, esticando-se para ajeitar uma caneca
numa prateleira alta. - Um viajante educado, pelo menos. – disse
Miludda.
- Como assim? – perguntou Viggo.
Assim que o taverneiro abriu a grossa porta
- Ora, nessa época as coisas ficam assim. Já de madeira antiga, o vento violentamente entrou
é tarde, está frio e tudo o mais. – respondeu a no salão, fazendo as chamas das tochas balançarem,
taverneira. – Aliás, homem, o que você está fazendo nervosas. Uma nuvem de poeira e folhas secas
aqui? E a sua mulher? entrou junto com o frio, que fez por sua vez Viggo
arrepiar-se. Pelo vão, entrou um homem alto e
- Ah, bem... – o homem coçou a cabeça, meio magro, enrolado em um comprido manto verde-
envergonhado – ela não gosta muito de vir até a musgo, com o capuz lhe cobrindo a face. Ellon
taverna, e além disso, nós tivemos uma pequena fechou a porta com algum esforço e voltou-se para
briga hoje mais cedo.. Eu queria matar um pouco o visitante.
de tempo antes de voltar para casa.
- Posso ajudá-lo, amigo?
Ellon e Miludda riram, sem se distraírem
de seus afazeres. Viggo riu também, um pouco - Por Valkaria! – exclamou o viajante,
corado. tirando o capuz do rosto e sacudindo o manto para
tirar as folhas secas. – como está frio! Não esperava
- Há tempos que não recebemos a visita de encontrar essa ventania por essas terras...
um bardo trazendo as notícias, não é? – pergunto
Miludda. O homem aparentava ter quase quarenta
aos, a julgar pelo rosto já um pouco enrugado. Seu
- É verdade. – disse Ellon - Eu pagaria olhar de olhos negros, entretanto, abrigava muita
alguns tibares por umas noites de música e notícias... determinação e inteligência, como Miludda logo
É impossível que nada esteja acontecendo pelo percebeu ao fitá-lo atentamente. Poucas coisas
Reinado! conseguiam passar pelo olhar agudo da taverneira.

Miludda e Viggo concordaram com um Ele não tinha cabelos, mas seu couro
murmúrio. A Caneca Rachada era aconchegante e cabeludo ostentava uma engendrada tatuagem
quase familiar, pois os freqüentadores quase sempre negra nas têmporas. Sua orelha esquerda tinha não
eram os mesmos. As mesas de madeira escura e as menos que cinco pequenas argolas de ouro, e sua
paredes de pedra pareciam abrigar um local ele era clara, apesar dele ter um bronzeado típico
extremamente vazio naquela noite de outono. daquelas pessoas que passam muito tempo
Algumas nuvens passavam pelo céu, levadas pelo viajando. Não mostrava muita força física ou porte,
vento forte que arrastava a poeira das ruas da vila, mas era alto e carregava na cintura uma espada
fazendo-a dançar com folhas perdidas das árvores. curta simples. Suas roupas eram coloridas e um
A lua estava quase cheia e derramava sua luz fria pouco gastas: uma camisa de algodão com
sobre os telhados de palha. Poucas casas tinham luz bordaduras em azul e verde, e uma calça com botas
de tochas e lamparinas escapando pelas frestas das surradas até os joelhos.
janelas de madeira, e a Caneca Rachada era uma
delas. - Por favor, meu amigo. – disse ele para
Ellon. – meu cavalo está lá fora com a minha
bagagem. Eu ficaria muito grato se o senhor

58
Crônicas Artonianas II
pudesse levá-lo até seus estábulos, e trouxesse - Talvez você possa nos ajudar. – disse Ellon
minha bagagem, pois planejo passar a noite aqui. ao mago. – estávamos entediados com o silêncio e
adoramos ouvir histórias. Por acaso o senhor tem
- Claro. Eu já volto. – Ellon abriu a porta uma para compartilhar?
novamente e a fechou atrás de si.
- Ah, o que é isso, senhor... Não tenho
- Boa noite. – disse o viajante para Viggo e muitas histórias, uma vez que passei a maior parte
Miludda. – espero não tê-los incomodado a esta da minha vida metido entre pilhas de livros e
hora. pergaminhos...- disse Alatar, embaraçado.

- De modo algum, senhor. – disse Miludda, - Mas você veio de Valkaria, a capital do
sorrindo ao homem. – estamos acostumados a fechar Reinado. – disse Viggo - ouvi dizer que tudo pode
mais tarde, e o senhor o comprovaria, se não fosse acontecer por lá. É impossível que não exista uma
essa noite fria. história que você possa contar...

- Entendo! Meu nome é Alatar, mago por Nesse momento, quando Alatar erguia o
formação e viajante por ocasião. – disse ele, com um braço par sorver uma colher de ensopado, uma
sorriso. delicada corrente de prata brilhou entre suas
roupas, revelando um pequeno pingente no
- Olá, Alatar. – disse Viggo, acenando – eu formato de uma lua crescente, feito em uma pedra
sou Viggo, o marceneiro, e essa é Miludda, a verde, estranha e bela.
taverneira, mulher de Ellon, que o atendeu quando
chegou. - Belo colar, senhor. – disse Ellon.

- Prazer em conhecê-los, senhor e senhora. - Oh... é verdade. É feito de jade.


– disse Alatar. – seria pedir demais se eu requisitasse
um ensopado com pão e vinho? Estou faminto pela - Jade? Jade, como nas histórias sobre o
viagem. longínquo reino de Tamu-ra?

- De modo algum, Alatar. – Disse Miludda, - É mesmo. Esse pingente é uma lembrança.
retirando-se para a cozinha. Alatar sentou-se na Dolorida e permanente, como a cicatriz de um
mesma mesa de Viggo. antigo ferimento. – O mago assumiu um ar distante,
enquanto contemplava o fogo na lareira.
- Então, de onde você vem, Alatar?
- Se for fazê-lo sentir-se melhor, pode
- De Valkaria! Minha cidade natal. compartilhar essa lembrança conosco, se quiser. –
Atualmente viajo pelo Reinado em busca de disse Ellon.
conhecimento e aprimoramento para minha arte.
- Deve ser melhor que ir para o quarto
- Aventureiro? depois e ficar lembrando sozinho, olhando para o
teto. – disse Viggo.
- Ocasionalmente. Prefiro chamar a mim
mesmo de “estudioso itinerante”. - É, provavelmente. – riu o mago. – Pois
bem. Esse pingente me foi dado por uma mulher,
O jeito solícito de Alatar logo fez que Viggo a mais bela que já vi em toda vida...
dispersasse seu desânimo, e os dois puseram-se a
conversar animadamente sobre o Reinado, magia e
aventureiros. Ellon voltou do quarto, onde deixara Naquela época eu ainda vivia em Valkaria,
a bagagem de Alatar, e Miludda retornara com o estudando magia por minha conta. Havia há uns tempos
ensopado que lhe fora pedido. Os quatro me formado na Academia Arcana, mas receava mais que
conversavam na mesma mesa. À sua volta, a luz a tudo uma vida itinerante. Na minha mente, entendia
lareira e dos archotes bruxelava, projetando sombras que havia muito para ser estudado nas bibliotecas da
nos cantos vazios do salão. Capital e da Academia; então passava todo o tempo
soterrado de livros.
Alguns minutos depois, fez-se um momento
de silêncio.

59
Crônicas Artonianas II
Não havia nada em mim que me destacasse da Impulsionei o corpo pela janela, e em um só salto,
multidão de comerciantes, mendigos, artesãos e ladrões alcancei o telhado da casa dos Olag. O vulto ia longe,
que caminhava sob a sombra da Grande Estátua. Vocês correndo e saltando, misturando-se com a noite.”
devem ter ouvido falar de Valkaria e seus inúmeros
prédios, guardas, a multidão que caminha pelas ruas, o Eu corri pelos telhados atrás do assassino o mais
Palácio Imperial, a Vila Élfica e Ni-Tamura... Todos rápido que minhas pernas e a magia puderam me
ouvem falar desses lugares. Mas nada faz jus à realidade. conceder. Mesmo assim, o assassino era rápido e ágil.
A vida na Capital é diferente de tudo que se possa Ele corria, percebi, na direção de Ni-Tamura. Hesitei por
imaginar. Tanta coisa pode acontecer em pouco tempo... um instante, pois jamais tinha estado naquele bairro, e
já tinha ouvido falar dos costumes diferentes daquele
Era outono, como agora; embora na Capital não povo.
faça tanto frio quanto aqui. Eu havia passado horas
debruçado sobre livros. Por sorte, eu vivia bem, graças a Pensei em parar, mas já estava perto demais ara
uma herança deixada por meu pai, outrora um rico voltar atrás. O vulto corria e saltava pelos prédios, comigo
mercador. A janela do escritório dava para uma ruela atrás, cerca de dois metros à minha frente. Os telhados
sombria, mas bem vigiada pelos guardas. Apenas a chama subitamente focaram diferentes, assumindo a curvatura
de uma vela iluminava meus livros e pergaminhos sobre única que caracterizava Nitamu-ra. Estávamos a poucos
a mesa, e lá fora o silêncio reinava sob um céu estrelado e metros do chão, e por isso me joguei na direção do
sem lua. assassino, fazendo com que nossos corpos amontoados
rolassem pelos telhados, em direção ao solo.
Eu ouvi gritos, e olhei pela janela. na casa em
frente à minha viviam os Olag, conhecida família de ricos A queda não foi grande, mas a dor era. Mas
comerciantes. O Senhor Olag havia retornado há alguns mesmo essa dor se dispersou quando eu senti um aroma
dias de uma bem-sucedida viagem de negócios em terras suave e adocicado de flores. Olhei para aquele que eu
distantes, trazendo consigo grande fortuna, e – diziam – perseguia, e vi na minha frente não um cruel assassino,
um item mágico de grande poder. Boatos, eu os mas a mulher mais linda que eu já vira em toda a minha
considerava, até ouvir os gritos da mulher de Olag, vida.
pedindo por socorro; ela dizia, aos prantos, na porta de
sua casa, que Olag tinha sido assassinado. Seus cabelos eram negros e lisos, chegavam à
altura dos ombros. Seus olhos amendoados e sua pele
clara pareciam conter em si o próprio brilho de Laurina,
- Que horror! – exclamou Miludda. Na a deusa das estrelas. Sua roupa era toda negra, e nas
lareira, o fogo começava a apagar-se, e Ellon foi costas ela trazia uma estranha espada curta de lâmina
reavivá-lo. Enquanto isso, Viggo foi servir-se de recurvada. Seu olhar me fulminava com um misto de
mais hidromel no barril atrás do balcão. Uma das surpresa, medo e ódio.”
janelas balançou com o vento, que cantava entre suas
frestas. Dois dos archotes que iluminavam o salão - Quem é você? – ela me perguntou, com nítido
se apagaram, e a taverna ficou ainda mais sombria sotaque de Ni-Tamura.
e quieta.
- Alatar. – respondi.- Eu sou Alatar. – Eu só
- Muitas pessoas começaram a aparecer na conseguia olhar em seus olhos e tentar adivinhar seu
porta da casa de Olag, onde a mulher chorava nome, ler sus pensamentos. Sua boca contraía-se
copiosamente – continuou Alatar –. Mas eu vira algo levemente, nervosa. – Quem é você? – perguntei.
que ninguém mais tinha visto: um vulto correndo
pelos telhados. - Keiko.

- Você matou aquele homem...


Fui tomado por um impulso estranho. Eu tremia.
Havia passado o dia inteiro estudando feitiços de todo - Sim, eu o matei. – disse ela, friamente. Algo
tipo, complexos e simples, e muitos vinham à minha cabeça em sua voz e em sua coragem me encantou.
naquela hora. Sem hesitar muito mais, conjurei encantos
que me fariam momentaneamente mais forte e mais rápido. O som de passos pesados – tão diferentes dos de
Talvez tivesse sido impulsionado pela vontade de fazer Keiko, chegou até nós. Os guardas estavam procurando
justiça ao velho Olag, que conhecia a mim e à minha por ela, pois as pessoas viram nossa perseguição sobre os
família há muitos anos; muito embora eu o achasse telhados. O rosto de Keiko mudou completamente,
avarento e ambicioso demais.

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Crônicas Artonianas II
assumindo uma expressão de súplica, enquanto ela se comigo, e todos que me conheciam me olhavam como
curvava à minha frente, fazendo uma reverência. um criminoso, e de certo modo, eu era. Julgavam-me
cúmplice do assassinato. E, honestamente, eu não me
- Senhor, por favor. Esse item que eu roubei tem importava, pois vi que não havia mais nada para mim
a cura para a doença de meu irmão. Por favor, não me em Valkaria: fechei minha casa, e parti em viagem pelo
entregue para os guardas, ou ele morrerá. mundo. Tenho estado pelas estradas desde então.

Ela ergueu o rosto e me olhou nos olhos, e eu me - Você nunca mais a procurou? – perguntou
agachei para olhá-la mais de perto. O cheiro de flores que Miludda, o rosto entre as mãos.
vinha ela me embriagou como fariam várias taças do mais
fino vinho élfico, e eu concordaria com tudo que ela - Sim, muitas e muitas vezes. Mas por mais
dissesse naquele momento. Ela me olhou profundamente que tentasse, Keiko estava certa. Seu povo e seu
nos olhos, e embora nosso olhar não tenha durado mais clã não aprovavam nossa reação e não queria que
do que alguns segundos, me pareceram séculos. Era quase eu a visse de novo. Eu sabia que as mulheres em
como se nos conhecêssemos. Foi quando eu soube que Ni-Tamura eram tratadas como inferiores aos
jamais a entregaria aos guardas. Nenhuma mulher era homens, então presumi que, além dos
como Keiko, e nenhuma era tão bela e doce e forte ao mesmo impedimentos das tradições, Keiko não era uma
tempo. Keiko continuava a me olhar, enquanto o som dos mulher comum, mesmo entre eles, e sua identidade
guardas em uma rua próxima ficava mais e mais alto. de assassina parecia estar sendo escondida. Fui
tratado com desrespeito e expulso da Ni-tamura.
- Você é um homem honrado. – disse ela. – Desisti e parti. Enquanto pudesse lembrar dela e
quisera eu que todos fossem como você, e que a tradição carregar comigo a corrente e o pingente que ela
de meu clã permitisse que eu o conhecesse profundamente. me dera, estaria feliz. Parti, e jamais, nesses quatros
Há algo em você, Alatar. Algo diferente dos outros. aos que se passaram, retornei para casa.

Os guardas viraram a esquina, e gritavam A taverna tinha agora apenas a luz da


enlouquecidos algo e que eu não prestava a mínima lareira se jogando sobre eles. Haviam se envolvido
atenção. Começaram a correr em nossa direção, tochas e tanto com a história que não perceberam os
lanças em punho. archotes se apagando um a um.

- Vá. – Eu disse. Porém, me doía deixá-la ir. Sabia - Bom, devo deitar-me. Estou cansado da
que nunca mais a veria. viagem e há muito anseio por uma cama. Obrigado
por sua hospitalidade. – disse o mago, levantando-
Keiko não respondeu. Tirou do pescoço uma se.
delicada corrente de prata com um pingente em forma de
lua, feito de jade, e o colocou em minha mão, envolvendo- - Alatar? – disse Miludda.
a com as suas. Depois aproximou-se e tocou meus lábios
com os seus em um beijo que nunca esqueci. Eu a olhei os - Sim?
olhos uma última vez, e então, antes que eu percebesse,
ela tinha saltado de volta as sombras da noite e - Você realmente nunca se arrependeu?
desaparecido na escuridão.
- De tê-la deixado partir? - Alatar sorriu. -
- Mas e os guardas? – perguntou Viggo. Não. Jamais. Se eu a tivesse segurado, ela seria
morta. Conhecer Keiko, mesmo que naqueles
- Os guardas me prenderam como cúmplice, por breves instantes, foi a melhor coisa que já me
tê-la deixado partir. Eu passei seis meses trancado em aconteceu.
uma cela escura em uma masmorra. Mas jamais me
arrependi. Algo despertou naquela noite, e a lembrança Miludda tinha lágrimas nos olhos. Passou
de Keiko não me deixava dormir nem comer direito. Fiquei a mão sobre eles discretamente, sentindo um misto
sabendo, depois que saí, que Keiko havia pedido a Olag o de pena e admiração pelo viajante. Alatar foi para
tal item mágico que ele trouxera de sua viagem, para seu quarto, enquanto Ellon levava os pratos e
salvar seu irmão. Ele recusou, e riu-se dela. Keiko voltou canecas e volta para a cozinha. Viggo, por sua vez,
à noite, roubou o item e vingou-se da ganância do saiu correndo pela porta da taverna, voltando para
mercador, sem sentir piedade alguma. Depois que fui casa e para os braços da mulher que o esperava.
solto, não é preciso dizer que os Olag cortaram relações

61
Crônicas Artonianas II
- Então fique com tudo! Pode fuçar o
Indo para Casa quanto quiser, eu vou para casa! – esbravejou. E
dizendo isso saltou fora da carroça, pondo-se a
caminhar. Não parecia, mas era robusto. Tinha
por Gabriel Sirqueira vigor para caminhar longos trechos, embora não se
exercitasse muito. Deu uma última olhada para a
carroça que acabava de abandonar. Nada de grande
valor de fato, mas um grande volume de coisas que
levava consigo para entreter a filha. Eram
artesanatos em madeira, brinquedos, tudo feito por
ele nos seus tempos livres para diverti-la. Deixaria
tudo para trás, paciência, mas não podia esperar
mais. Cruzou a fronteira ignorando as palavras do
soldado, que gritava a ele que voltasse e cumprisse
o protocolo. Outras terras, outras leis. Não estava
- Desculpe senhor, mas não tem permissão mais em Yuden. E dane-se o protocolo.
para sair deste reino com toda essa bagagem. – disse
o soldado encarregado da fiscalização fronteiriça, Enquanto a silhueta de Vermont sumia no
com acentuada monotonia na voz. Era como se horizonte, o soldado olhava incrédulo para todo o
dissesse aquilo dezenas de vezes ao dia, enferrujado volume de bagagens abandonado. Um cavaleiro
pelo hábito. vindo de Bielefeld, ostentando o símbolo da Ordem
da Luz, o abordou:
- O que há de errado com ela? – perguntou
o homem, resignando-se e exibindo claramente uma - O que houve aqui, meu bom soldado?
de suas constantes feições duras e ameaçadoras.
Havia viajado por toda a Yuden e até ali, ao - Nada importante, sr. Templeton. Só um
contrário do que se espera da nação mais homem muito estranho. – respondeu ainda atônito
militarizada do Reinado, não havia tido o guarda.
contratempos. Até ali. Engraçado que seus - O que quer dizer com isso? – perguntou
problemas fossem começar justamente no fim de sua intrigado o cavaleiro.
viagem, às portas do Reino da Ordem da Luz.
- Eu pedi a ele que me deixasse fiscalizar a
- A carroça está lotada de caixas e malas. bagagem e ele simplesmente a abandonou, dizendo
Teremos que fiscalizar tudo. Pode demorar dias até que ia para casa...
que seja aprovado seu aval de partida.
- Ia para casa? – o Paladino da Luz ficou
- Não tenho todo esse tempo, devo chegar em silêncio, ouvindo o eco dessas palavras,
a Roschfallen em doze dias, de preferência antes. pensativo. Por fim, chacoalhou a cabeça,
Não há nada de especial nas malas, estou só indo espantando o assunto e com um aceno partiu
passar uns dias com minha filha. Não há nada além cavalgando de volta, com velocidade. – Não há de
de roupas, alguns livros, todas posses minhas! – ser nada mesmo, colega, preciso partir! Até!
impacientou-se Alex Vermont, segurando com
inquietude as rédeas do cavalo. Não poderia ser ***
parado ali, precisava chegar à capital de Bielefeld o
quanto antes. Vermont percorreu vários
quilômetros naquele dia, por terrenos planos, que
- Sinto muito senhor – continuou o soldado não exigiam muito esforço. Gramados muito verdes
- mas minhas ordens são para barrar a passagem de com árvores esparsas, poucas falhas geográficas.
qualquer carregamento que pareça suspeito. Está Um sol forte, que lhe fatigava corpo e mente. Tudo
havendo muitos casos de furtos e comércio ilegal isso sem encontrar uma viva alma. Sua mente se
ultimamente. Ordens superiores. Mesmo que seja ocupava com lembranças de sua família, um álbum
tudo seu e esteja correto, terá de esperar a de memórias que não raramente folheava.
autorização do comandante. Lembranças dos primeiros anos de vida de sua filha,
os sorrisos, as primeiras palavras que pronunciou...
Não! Não tardaria a chegar. Estava indo vê-los. E o

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Crônicas Artonianas II
sol escaldante. E sua mente perdida em pensamentos senhor vem de terras distantes e se acha no direito
e memórias. E a fadiga. E abstenção de água e de cobrar esse preço na sua estalagem? O senhor
provisões, havia esquecido de trazer alimentos e rouba trabalho de gente boa nossa e cobra tais
outros suprimentos. Suportou o dia. Quando preços?? Não deveria nem custar vinte tibares!
anoiteceu ele viu fogo de tochas e presumiu ter
encontrado uma vila. Dirigiu-se para lá. Estava O tamuraniano farejando problema,
enormemente exausto, vinha sem se exercitar desde correu atrás do balcão e apanhou um bastão grosso
muito tempo. Encontrou uma estalagem, uma de madeira. Gritando, ordenou ao homem que
construção um tanto rústica porém bem apanhada. pagasse o preço. Mas Vermont foi mais rápido.
Lá pousou a noite. Havia combinado com o dono de Nem bem o velho apanhou a arma, o guerreiro
pagar o quarto pela manhã. Dormiu um sono estava por cima dele. Com um veloz giro de corpo
perturbado, mesmo cansado como estava, não do atacante, o bastão foi tomado das mãos do
conseguiu tirar as preocupações da mente. Levantou- estalajadeiro. O nativo de Tamu-ra estava
se cedo. O dono tinha uns 50 anos e era nativo de desarmado.
Tamu-ra, a atualmente extinta civilização oriental.
Iniciou-se o diálogo: - Então é isso? – Vermont andava no
saguão, ameaçadoramente brandindo o bastão,
- Quanto devo pelo quarto? – perguntou o quase que irracional. – É assim que trata seus
guerreiro de vestes de couro e placas metálicas nos clientes??
ombros.
- Pegue dinheiro. Pegue. Leve tudo... – O
- Quarenta tibares. – o dono da estalagem tamuraniano tremia, encolhido junto a parede.
falava com muita rapidez e embaralhava as palavras, Apontava para uma caixa de madeira sobre o
entremeando seu discurso com palavras de sua balcão.
língua nativa. Aparentemente não sabia falar bem
Valkar, idioma padrão de todo o Reinado. - Pensa que sou ladrão? Eu sou o ladrão??
Não... Ladrão aqui é o senhor, com tais preços! –
- O quê? Quarenta tibares por uma noite?? – Vermont se dirigiu para as mesas, onde tomou café.
retrucou pasmo, Alex. – Quanto custa a refeição?

- Não ser noite comum. Senhor ocupou - Tre-treze tibares... – falou relutantemente
quarto especial, mais conforto. A refeição manhã não o velho.
conta preço. Total é 53 tibares, senhor.
- Está caro! – e decretando isso aos berros,
- Isso é loucura! Eu não pedi o quarto quebrou os pratos e louças com o bastão. Se dirigiu
especial. Não pedi café da manhã! Achei que estava ao bar, fechado por ser muito cedo ainda. – Quanto
incluído no preço da diária!! – bradou custa uma caneca bem tirada de cerveja?
inconscientemente o freguês.
- Err... – o tamuraniano hesitou.
- Sintosenhor. Mas regrasdacasa. – vendo o
nervosismo do cliente, o tamuraniano embaralhou - QUANTO CUSTA? – Alex urrava em
mais ainda estas palavras, de forma que ficaram fúria.
incompreensíveis.
- Cinco... – disse finalmente.
- O quê? – Vermont quase gritava, de tão
estupefato que estava com aquela situação, isso - Resposta errada! – E se ouviu o estilhaçar
aliado ao fato de que não havia entendido nada do de copos e garrafas vindo do quarto ao lado. –
que o homem na sua frente tinha dito. Agora, me diga... Hospedagem no quarto especial,
com café da manhã, QUANTO FICA? – pôs uma
pesada ênfase nas duas últimas palavras, com um
- Regrasdacasa! Regradacasa! Lei!! – falou o leve chacoalhar do bastão no ar. Ele estava em
velho, encolhendo-se um pouco. frente ao pobre tamuraniano, que estava pálido e
tremia incontrolavelmente. O velho tentou
- I-NA-CEI-TÁ-VEL! – e berrando a plenos responder, mal ousava erguer os olhos, gaguejava.
pulmões andava de um lado para outro no salão – o

63
Crônicas Artonianas II
- Cinq... VINTE! Fica vinte! – respondeu - Por que chama o atacante de doido? –
apressadamente ele. perguntava o paladino, levantando uma
sobrancelha, com um ar interessado.
- Ahh... Esse preço é bem mais aceitável... –
e dizendo isso, Vermont baixou o bastão. Sorriu, - Por que foi muito esquisito! Ele destruiu
como se nada houvesse acontecido, como se todo o lugar, dizendo que os preços eram caros.
ignorasse toda a destruição que havia provocado. Quando meu amigo apavorado concordou em
Havia grande alívio em seu semblante. Pagou, cobrar menos da metade do preço original ele ficou
agradeceu e saiu, levando a arma consigo. satisfeito, pagou, agradeceu e saiu sem mais uma
palavra. – o sotaque carregado do taverneiro
*** contribuiu para dar mais ênfase e uma impressão
exótica ao que acabava de dizer.
Edgar Templeton, um paladino da Ordem
da Luz, sagrado cavaleiro em Norm, devoto de - Realmente... – sorriu Templeton, num
Khalmyr. Vestia uma armadura dourada que devaneio curto – Bom, a conversa está muito boa
ostentada um ornamento com o desenho de uma mais eu tenho que me deitar por que amanhã cedo
balança, símbolo da justiça e dos ideais de seu deus. parto à cavalo para Roschfallen. Até, companheiro.
Era moreno, de cabelos curtos, forte e imperioso, – dizendo isso o paladino levantou-se e saiu da
porém, jovial e delicado. Tinha grande amor por sua taverna. Conferiu se o cavalo estava sendo bem
função e levava suas obrigações com máxima tratado e se estava bem preso e subiu de volta para
severidade. ir dormir.
De passagem por Lisbell, um vilarejo ao
Norte de Bielefeld, ouviu numa taverna o caso do
homem que se recusou a pagar a conta. Ao ouvir-lo, ***
não pôde evitar um riso zombeteiro.
Vermont saiu da vila de Nullim,
- Heh... – abriu um sorriso suave, baixando sob o olhar acusador de todos, inabalável, como se
a cabeça, rindo dessas pequenas coisas da vida que a justiça houvesse sido feita. Caminhou todo o dia,
nunca mudam. Histórias de taverna serão sempre sem nenhum incidente especial. Esta estrada que
cômicas e duvidosas. tomava era bem mais movimentada, por certo,
porém não foi incomodado em todo seu percurso.
- Meu bom paladino, o senhor melhor do que Ao dormir numa floresta, quando era quase de
ninguém deveria saber que eu falo a verdade. – manhã, percebeu passos próximos. Acordou. Eram
retrucou o homem bonachão de vastos bigodes que dois homens, vestidos com couro batido e roupas
administrava a taverna. leves e surradas.

- Desculpe-me, Raftur... – concordou o - Ora... – Um deles falou ao outro, com um


homem, ainda rindo – Essas histórias que contam breve sorriso de satisfação e fúria. – O que temos
aqui dentro são divertidas, mas a maioria é pura aqui? Um invasor...
invencionice... Mas me diga, então, por que está tão
convicto de que esta é verdade? - É, é o que parece... – concordou o outro,
com uma malícia no olhar. Lentamente eles
- Eu conversei com o dono da estalagem que avançavam até se posicionarem em frente de
foi atacada. Numa vila a dois dias a pé daqui, chama- Vermont.
se Nullim. Passei por lá em meu caminho de volta.
Você deve conhecer o lugar. - O que querem de mim? – respondeu um
pouco dormente o terceiro homem.
- Sim, uma vila muito pequena. – anuiu o
cavaleiro de armadura dourada. - Queremos saber o que faz em nosso
território. – falou novamente o primeiro deles, com
- Pois então. O dono é um tamuraniano, que aspereza na voz.
me mostrou os estragos e contou sobre o doido que
apareceu lá... - Eu não sabia que a floresta pertencia a
vocês. – respondeu um tanto sério o guerreiro.

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Crônicas Artonianas II
- Ohh coitado... Não sabia? Nas nossas leis descansar. Vindo em alta velocidade, uma carroça
isso não livra você da punição. – firmou a voz, agora cruzou a entrada da vila. Nela estavam os dois
sarcástico o segundo combatente. homens que o haviam abordado logo cedo, com
mais dois companheiros.
- Desculpa, vamos com calma. Não é preciso
violência. O território é de vocês? Tudo bem, eu vou Estavam armados com bestas. Aos gritos
embora. – Vermont terminou a frase, como se assim de “Foi aquele ali! Pega!!” dispararam uma
desse por terminada a discussão, levantando saraivada de virotes sobre Vermont. Este se
devagar. Evitava movimentos bruscos, para não escondeu num pulo, já bem alerta devido a todo o
conseguir ainda mais problemas. estardalhaço que fizeram antes de chegarem a ele.
Pelo susto dos gritos e explosões de frascos
- O que você acha, deixamos ele ir embora? incendiários, os cavalos dispararam e a carroça
– pergunta o homem ao companheiro, trocando um chocou-se contra uma parede, arremessando um
olhar, cada um sabendo o que o outro diria a seguir. dos homens para longe, outros ficaram prensados
entre os destroços. Vermont saiu de onde havia se
- Humm... Não. Vai ter que primeiro pagar escondido, ileso. Calmamente se dirigiu ao homem
uma taxa. caído no chão, apanhando a arma ao seu lado.

- Isso! – concorda o primeiro, - Você errou. – sussurrou secamente


entusiasticamente. – Vai ter que nos entregar sua próximo ao corpo do agressor. E disparou um
mochila. – e com isso saca do bolso um punhal, dando virote na perna dele. Os que ficaram presos nos
um passo a frente, aproximando a arma do guerreiro. destroços estavam como que mortos, agonizantes.
Apanhou o máximo de virotes que conseguiu
- Ah, entregar a mochila, é? – Vermont não carregar, guardando-os na mochila, junto com a
tinha mais um tom benevolente na voz. Sua voz soava besta, que era pequena e leve. Ele notou entre os
áspera, destilando ironia. Seus olhos estavam destroços uma sacola com frascos bem vedados e
furiosos. – Estou indo pegá-la. – falou rouca e com um líquido alaranjado no interior. Por sorte,
ameaçadoramente. Fossem mais espertos, aqueles intactos. Levou-os consigo. Virou-se, indiferente e
combatentes teriam se preparado contra qualquer caminhou, seguindo seu curso. A vila teria muito
possível revide, mas não eram. do que falar dali para frente.

Vermont então se dirigiu para onde havia ***


deixado a mochila, sua armadura de couro com
placas metálicas reluziu com a luz que se filtrava das Templeton chegou em Roschfallen
árvores. Ele apanhou a mochila e embaixo dela estava quatro dias depois disso. Fez uma pausa longa para
a arma que havia conseguido na estalagem. Com um descansar ao fim da exaustiva viagem. Depois
movimento rápido, acertou com o bastão o ombro desceu as escadarias da estalagem, se dirigindo
do primeiro homem. Ele caiu, segurando um grito para a taverna, onde aproveitaria para rever velhos
de dor na garganta e derrubando o punhal no chão. amigos, além de se inteirar das notícias. Enquanto
O bastão desceu novamente, desta vez na cabeça do Templeton treinava para ser paladino, um grande
infeliz. O outro, que estava desarmado, correu para companheiro e homem de fé inabalável lhe ajudou
longe. a suportar os momentos mais críticos. Esse homem,
hoje em dia mais curvado pela idade e com a fala
- Isso! Corre covarde! É o que merece pela mais pausada, se dirigiu imediatamente ao
arrogância!! – gritava Vermont, tomado pela fúria, guerreiro da luz assim que este adentrou o salão
arremessando o bastão na direção do homem. O da famosa estalagem anã Espada de Khalmyr.
outro que ele tinha derrubado havia se arrastado para
longe. Eles não incomodariam mais. Alex então - Bendito seja Khalmyr! Templeton? Ora
apanhou o punhal no chão e guardou num bolso. vejam! Há muito não nos víamos! – exclamou
aquele senhor já de cabelos grisalhos, de asseados
Vermont seguiu viagem, trajes azuis e cajado prateado nas mãos.
terminando a travessia da floresta e chegando à vila
de Lisbell por volta das onze da manhã. Não - Fenderin! Que alegria encontrá-lo aqui
conversou com praticamente ninguém, somente se depois de tanto tempo! Mas me diga o que fez você
sentou num banco que encontrou e tratou de sair de Norm? Não é comum vê-lo por estas terras.–

65
Crônicas Artonianas II
respondeu o paladino de armadura dourada, sem - Senhora Vermont... – inclinou-se para
esconder a satisfação de rever o amigo. frente compreensivo Fenderin, começando uma
longa explicação. E não pôde continuar, foi
- Realmente. Na verdade vim para resolver interrompido.
alguns assuntos de pequena importância. Casos
meramente burocráticos. Estou velho agora. Só me - Não sou mais a mulher dele... – falou
sobra esse serviço! Foi-se o grandioso tempo em que impaciente a bela dama de cabelos castanhos. O
intercedia nas rixas populares e fazia prevalecer a sofrimento que passou por certo havia deixado
vontade de Khalmyr. – e dizia isso com um tom marcas, mas nada que apagasse dela charme e
levemente entristecido, tomado pela saudade. mistério, dons comuns entre as mulheres, que ela
havia especialmente desenvolvido.
- Ora, Fenderin! Vamos, que saudosismo é
esse? Você viverá mil anos ainda! – exclamou - Desculpe. Por que acha que ele voltará
Templeton. agora, sendo que já se passaram três anos? –
indagou o inabalável servo da justiça.
- Se essa for a vontade de Khalmyr... Ouça,
amanhã mesmo parto de volta. Só me resta mais - Por que é o aniversário da minha filha.
uma visita, a uma senhora e sua filha. Parece-me Ela está fazendo sete anos. Está na idade de
que é algum desentendimento com o marido. Como começar a ser educada nos templos. Sabe?
eu disse, serviço burocrático! Não resta mais nada a Tínhamos planos para esta data. Uma grande
fazer, o homem não ameaça mais a esposa, ele foi festa... Sei que ele vai pôr na cabeça que deve vir
expulso da cidade e do reino a uns três anos. Só e... Não sei o que ele é capaz de fazer... – agora a
colher algumas informações e preencher papéis. mulher havia baixado a cabeça e seu tom de voz
Triste tarefa! Não estudei teologia por doze anos era seco, manchado de dor.
para preencher papéis... Bom, Khalmyr ainda há de
me conceder casos interessantes e desafiadores para - Oh, entendo... – fez-se uma pausa longa,
julgar! o clérigo estava pensativo – Ele agredia a senhora?
– falou, finalmente.
- É assim que se fala! Sinto, mas não irei
acompanhá-lo. Amanhã devo me apresentar no - Não, na verdade nunca chegou a fazê-lo,
Templo da Justiça, onde receberei novas ordens. – mas creio que fosse capaz... – lágrimas se
falou com severidade no olhar, ambos sabendo que represavam nos olhos da moça, recusando-se a cair.
aquele era um encontro solene e havia regras rígidas
de conduta e comportamento que deveriam ser - Como foi a expulsão de seu marido? –
respeitadas numa apresentação formal. perguntou Fenderin, mais interessado.

- Que sua espada destrua o mal e sua força - Ele sempre foi agressivo, briguento. Não
de espírito ilumine o caminho que escolher seguir, havia um dia que não arranjasse uma confusão.
Templeton. – com essas palavras despediram-se Fiquei com tanto medo de que ele se descontrolasse
demoradamente. e me batesse... Rezei muito para Khalmyr e Marah...
Acho que me concederam o desejo. Um dia discutiu
com Janz, o regente da cidade, tomando-o por uma
*** pessoa comum. Acabou expulso e saiu do reino.
Uma punição até que branda por suas atitudes...
- Não meu senhor, não é tão simples assim. Ninguém mais se lembra dele, mas para mim foi
– falou já um tanto nervosa a mulher. um consolo vê-lo partir... Oh, não sabe o que eu
passava todas as noites, dormindo ao lado desse
- Qual é o problema? Basta que confira estes homem... – seus olhos se crisparam e uma lágrima
papéis. – falou calmo o clérigo. desceu-lhe pela face, ela olhava para baixo,
querendo esconder sua dor, tendo vergonha de se
- Não estou falando disso! O problema é que mostrar frágil.
ele vai voltar para vê-la. – retrucou ela, de forma
ríspida. - Desculpe se a fiz sofrer com essas
lembranças. Se você quiser, posso indicar um ou
dois servos da Ordem para que vigiem sua casa

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Crônicas Artonianas II
durante o período. Isso seria o bastante para a - Eu digo o mesmo, grande Iriel. – falou
senhora? – o tom de voz dele era estranhamente respeitosamente o paladino, curvando-se em
reconfortante e inspirava confiança, falava pausada reverência.
e eloqüentemente.
- Levante-se. Não é preciso tanto. – disse o
- Sim. Seria um grande alívio... – ela já clérigo, com um gesto relaxado, até ali ambos
recuperava o controle e se recompunha, com a haviam comportado como mandavam os bons
respiração forte e entrecortada. – Obrigada. – sorriu costumes. Fazendo as necessárias mesuras e
por fim, e um peso pareceu lhe sair dos ombros. cumprimentos, sem exagerarem ao se curvarem ou
imporem a voz.
- Por nada, esse é meu serviço! Até mais
ver! Que Khalmyr olhe por você! – despediu-se - Pois bem. Quais são minhas ordens? –
Fenderin, com um aceno jovial e compaixão nos disse, se erguendo suavemente o paladino, com os
olhos. olhos fixos no superior.

- Cinco dias atrás, no vilarejo de Lisbell


*** três pessoas morreram num acidente com uma
carroça, uma quarta pessoa ficou ferida e contou
Vermont cruzava uma vila. Não pretendia uma história bastante estranha.
parar, mas viu um vendedor que comercializava
globos mágicos de vidro, cujo desenho se alterava - Que história seria essa, meu senhor? –
cada vez que eram chacoalhados. Artigos disse o paladino, interrompendo seu mestre. Iriel
relativamente simples e divertidos. Comprou um e fez uma pausa em seu discurso, direcionando um
guardou cuidadosamente na mochila, para que não olhar muito severo ao impaciente interlocutor.
se quebrasse. Ia ser um presente adorável! Já era Templeton baixou a cabeça, desviando os olhos dos
possível ver o sorriso se abrindo no rosto da menina. de seu mestre. Deve saber quando é hora de ouvir
Estaria ela muito diferente? Três anos haviam se e quando é hora de perguntar, seu tolo! –
passado sem que ele a visse... repreendeu a si mesmo mentalmente. Por fim,
satisfeito, seu mestre prosseguiu a narrativa,
Ele guardava um grande amor pela inabalável:
garotinha. Pensar nela era uma das poucas coisas
que o fazia sorrir. Fazê-la feliz era uma das poucas - Ele contou que um homem os havia
coisas com que realmente se importava. A filha era ameaçado, e que o mesmo com algum poder arcano
a única coisa que adorava em todo o mundo. Era fez a carroça arrebentar-se contra o muro de uma
possível ver claramente isso nos seus olhos, um casa, matando seus companheiros. Como se não
deslumbramento que era puro amor. fosse o bastante, ainda foi alvejado um virote de
besta na perna esquerda, desferido pelo assassino.
- Ah, minha filha. Seja bem comportada, Não interroguei isso pessoalmente, eu saberia se
papai já está chegando para lhe ver. – murmurava ele disse a verdade ou não, mas de qualquer forma,
para si mesmo muitas vezes, olhando para cima, o tal homem foi mesmo visto na vila, conforme me
enchendo-se de esperança e apertando o passo. foi relatado. Quero que você desvende esse caso e
prenda o responsável. – disse Iriel.

*** - Há alguma descrição física do suspeito?


– indagou Templeton, um tanto receoso, mas sem
- Ah, agrada-me vê-lo novamente e com alterar a voz.
saúde, Sr. Templeton. – cumprimentou-o o clérigo
regente do majestoso Templo da Justiça de - Tudo que sei é que ele veste uma
Roschfallen. O homem era imponente e tinha uma armadura de couro com placas de metal. Sei que é
poderosa voz grave. Era sem dúvida um excelente uma descrição bastante comum, mas é só o que
líder. Feições duras e marcadas, fruto de trabalho sabemos. Parta. – falou imperiosamente Iriel.
árduo, e cabelos castanhos e cortados
impecavelmente na altura do pescoço. - Imediatamente. – concluiu Templeton,
fazendo novamente a reverência. Saiu, a passos
rápidos, sem jamais dar as costas a seu mestre.

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Crônicas Artonianas II
Deixou a sala caminhando para trás, como lhe foi tomado pela ira, Vermont atira mais um frasco de
ensinado que fizesse. fogo grego, que explode sobre o fazendeiro, jogando
seu corpo inerte e incendiado para longe. Estava
morto.
***
- Isso é o que acontece com quem se mete
Dois dias depois de sair de Lisbell, Vermont no meu caminho! Será que é tão difícil entender que
resolveu pular a cerca de uma fazenda e cruzá-la só quero ir para casa? Por que todos ficam contra
para cortar caminho. Na metade do caminho ouviu mim? – urrou Vermont, mas não havia ninguém
alguns latidos seguidos de ordens nervosas. Parou. mais para ouvi-lo. – Só quero ver minha filha... Só
Era o dono das terras, que havia soltado os cães e isso... – e ajoelhou-se cobrindo o rosto com as mãos.
pretendia defender sua propriedade. Vermont Dor e sofrimento. Ninguém jamais viu uma lágrima
armou a besta com virotes, caso precisasse usá-la. correr por seu rosto, mas não havia mais ninguém
Sua outra mão acariciava um dos frascos que havia ali...
apanhado dos agressores da floresta. Era hora de
descobrir qual o verdadeiro poder daqueles frascos. ***

- O que você faz aqui? Saia já! São as minhas Templeton partiu a toda velocidade a
terras! – gritou o fazendeiro halfling, armado com cavalo, rumo à pequena vila de Lisbell, naquele
uma enxada e uma funda. Os cães o circulavam, a trote a viagem demoraria três dias. Tempo que,
espera de uma ordem. Era birrento e rabugento para pensava ele, não tinha. Se o relatado por Iriel havia
um halfling, sendo de senso comum que esse povo ocorrido a cinco dias, era de se esperar que o
é alegre e brincalhão. Este parecia estar começando assassino já estivesse bem longe da vila. Orava a
a envelhecer, com alguns fios de cabelo grisalhos, Khalmyr para chegar a tempo. Não podia deixar-
sobretudo, sua irritabilidade parecia lhe consumir se desesperar, mesmo sabendo que não havia
a energia, adiantando o processo. tempo! Sabia que o deus da justiça havia de valer
por ele.
- Calma, colega! Só estou de passagem. O
caminho é mais curto através da sua propriedade. – A providência lhe sorriu. No segundo dia
respondeu o homem, segurando alguns frascos atrás de viagem encontrou-se com Raftur, taverneiro de
das costas. Lisbell, que estava a caminho de Roschfallen para
buscar um carregamento novo de bebidas. Quando
- Calma uma ova! Esta é a minha ele se ausentava por muito tempo o filho cuidava
propriedade! Você não tem o direito de atravessá- do lugar, mas o rapaz era molenga e ele não achava
la. Eu paguei pelo terreno! Isso é meu! E não é que trabalhava direito, sempre tinha pressa de
permitida entrada! Suma! – com um sinal ordenou voltar e medo do que iria encontrar... Conversaram
aos cães que atacassem. rapidamente:

- Foi você que pediu! – Vermont arremessou - Raftur, que alegria encontrá-lo! – disse o
um frasco, ansioso para descobrir o que suspeitava, paladino, vendo nele sua esperança.
eles provocavam explosões de fogo ao atingir o alvo. - Uma verdadeira surpresa vê-lo de novo
Atirou no chão, a explosão jogou todos os cães longe, tão cedo, eu digo! Julgava que estivesse na capital.
feridos, talvez mortos. – respondeu com sua voz forte e animada o
taverneiro.
O halfling ficou cego de raiva e susto ao ver
seus cães ganindo e sangrando, arrastando-se - E estava, parti de lá há dois dias.
arduamente para longe em chamas, e exclamou:. Encarregaram-me de desvendar o caso do
“Vai me pagar por isso!”. Ele apanhou uma pedra assassinato dos três rapazes na sua cidade.
grande e atirou com toda a força na direção de
Vermont, que mal teve tempo de se virar, usando a - Oh, isso foi um acontecimento e tanto... –
mochila como escudo. A pedra se choca contra a exclamou gordamente, acariciando os vastos
mochila, dentro se ouve o barulho de vidro se bigodes.
quebrando. O presente de sua filha estava em cacos!
Ele ouviu o estilhaçar e estremeceu, sentindo a raiva - Confio em você, Raftur. Preciso saber
lhe explodir pelos tímpanos. Completamente exatamente o que aconteceu para poder pegar a

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Crônicas Artonianas II
pista certa. Temo que ele já esteja longe demais de ***
Lisbell e perderei seu rastro se me atrasar demais. –
falou Templeton, denotando grande nervosismo na Norma Lakes vivia cada dia mais
voz. apavorada com a possibilidade de seu ex-marido
retornar para ver a filha. Em seu íntimo sabia que
- Sim, já faz quase uma semana! Digo-lhe ele viria. Pena que ninguém parecia acreditar no
que segue a pista errada. Ele partiu a pé rumo à que ela dizia. Dois paladinos em treinamento foram
capital, já deve estar bem perto da cidade, se não destacados para vigiar a casa. Realmente o fizeram
sofreu nenhum atraso. por três dias, sendo dispensados em seguida,
embora a mulher sofresse, sabia que eles tinham
- Como eu imaginava... Quem eram os outras ocupações. E tentou distrair-se, preparando
rapazes que morreram? – argüia o paladino, muito a festa da filha. Mas a cada momento espiava a
interessado. janela, temendo vê-lo surgir de repente, mal
dormindo de tanto medo. O pior era a angústia!
- Não se preocupe com eles, eram vândalos! Não, não era. Sabia que não. O medo de tê-lo ao
Viviam próximos à floresta, amedrontando e lado e viver sem saber se estaria viva no dia
roubando as pessoas que passavam por ali. seguinte era pior. Dez, cem vezes! Nada parecia
Provavelmente buscavam vingança contra o consolá-la.
homem. Eu vi tudo. Perderam o controle da carroça
e se mataram. Mas o sujeito se apoderou de suas ***
armas e atirou nas pernas do que ficou vivo.
Vermont estava num gramado imenso,
- Então não foi assassinato! Interessante. muito próximo à entrada da cidade de Roschfallen.
Como ele estava vestido? – raciocinava rapidamente Podia avistar algumas construções dela de onde
o servo dos deuses, e as perguntas lhe viam em estava. A construção mais evidente por perto era
torrente. uma mansão que se erguia imponente a uns trinta
metros dele. Aparentemente aquele descampado
- Comum, armadura de couro com placas onde estava era o jardim da casa. Tanta ostentação
de metal nos ombros. fútil! Para que alguém precisaria de toda aquela
casa enquanto pessoas como ele mal tinham onde
- Isso condiz com o que me disseram. O que dormir? Caminhou pelo jardim um pouco
mais? O que mais? impressionado com tudo aquilo, até que viu um
homem saindo de trás da casa. Não iria se deixar
- Acalme-se que já lhe conto! – impacientou- ser expulso dessa vez, armou a besta. Não precisou
se Raftur. - Ah, uma coisa estranha. Ele falou algo falar coisa alguma. O homem o viu e se entregou.
bem vago sobre ir ver a filha e ir para casa...
- Não atire! Eu estou desarmado. – ele
- Ir para casa?? Raftur... Ele disse mesmo estava bem nervoso, por pouco gaguejava e tremia,
isso?? Fale! – o paladino olhava-o com tanta incisão pego de surpresa.
que era até constrangedor.
- Você é o dono deste lugar? – perguntou
- Sim, disse! Por quê? O que há de mais? – Vermont.
indagou surpreso o taverneiro.
- Por quê? Porque eu acho que acabo de - Não, não. Sou só o jardineiro. Eu vivo
desvendar o mistério! Obrigado por tudo, amigo! aqui. – sua mulher e filhas apareceram para saber
Prometo visitá-lo para tomarmos uma caneca de o que acontecia e se renderam também.
cerveja juntos. Agora tenho que correr! Até breve! –
Templeton virou-se e tocou o cavalo à toda - Quem mora nessa casa? – pergunta o
velocidade, voltando para a capital. Foi um tanto guerreiro, em tom ameaçador.
brusco e rude com o amigo, mas não havia tempo
para formalidades, muito menos na excitação em - Um membro da nobreza da cidade. –
que se encontrava, orgulhoso por ter desvendado respondeu o apreensivo jardineiro. – Por favor, não
os crimes. Cavalgava com o vento a favor, as machuque... Leve a mim se for necessário.
impulsionado por sua determinação de ver a justiça
sendo feita.

69
Crônicas Artonianas II
- Não!! – gritou sua mulher, correndo para presente a cada instante. Controlando-se, ela pôde
perto dele, em desespero. e foi interrompida por dizer: – Mamãe não tem nada.
Vermont.
- Não faria isso. O que pensa que sou? - Então por que está triste? Eu não fiz nada
Algum lunático? – ele fez uma pausa, deixando pra você ficar triste. – a garota tinha toda a graça
escapar algum rancor e dor da alma. - Sou como da mãe, e muito da compaixão e adoração do pai,
você, por que pensa que eu faria mal a você ou... ou linda em sua ingenuidade.
a alguém da sua família? Eu... – ele parecia não se
entender como um agressor – Eu também tenho - Realmente não filhinha. – ela dirigiu a
minha família. Tenho mulher e filha. Da idade dessa atenção para a filha, enfim. – Venha cá, vem. Dá
sua menor. Eu só vou visitá-la. Estou voltando para um abração bem gostoso na mamãe.
casa finalmente. Minha pequena garotinha vai fazer
aniversário. – seus olhos brilharam complacentes, - Mamãe? Posso perguntar uma coisa? – a
seu semblante não era mais duro, agora era criança estava mais radiante agora, envolvida nos
carinhoso e tenro, sentou-se na grama e baixou a braços calorosos da mãe.
arma.. – Minha pequena garotinha, de que tamanho
será que está? Meu deus! Foram-se três anos já... É - Claro, querida. – disse docemente a mãe.
muito tempo longe. Eu... Ohh... – baixou o rosto, e
engoliu a dor, que lhe pesou o estômago. - Papai vem pro meu aniversário este ano?
Ele limpou o rosto na manga da camisa e – olhou para a mãe com toda a inocência do mundo.
continuou:
- Err... – a mãe baixou a cabeça. Fizeram-se
- Acha justo que um homem seja privado segundos de apreensão. A mãe hesitava, o medo
do que mais ama no mundo? Acha isso justo? Um trespassando-lhe a espinha.– Filha, por que você
nobre ter esse casarão e viver contente com sua não brinca com seu presente, hein? Olha que lindo
família enquanto outros nada têm? Que mundo esse este cavalinho!
o nosso... – ele fez uma pausa e ouviu-se o silêncio
por alguns intermináveis segundos. ***

*** Sim! O paladino de Khalmyr estava enfim


pisando no solo de Roschfallen. Ignorando a
- Ah, que Khalmyr me seja bom! Preciso exaustão do animal e sua própria rumou veloz para
chegar o quanto antes à cidade. Corra, cavalo! Corra o Templo da Justiça, onde pretendia encontrar Iriel.
como nunca correu! O tempo urge! Chegando lá, um outro paladino o abordou, falando
rapidamente sobre a morte de um fazendeiro
Em resposta, o vento os lambeu e parecia halfling. Uma aldeã que trabalhava naquelas terras
arrastar-lhes mais para frente, dando nova força ao ouviu explosões e encontrou seu patrão morto. Foi
cavalo. A montaria, antes fatigada, pareceu recobrar- rápida em comunicar o ocorrido à Ordem.
se, impondo mais velocidade aonde parecia não
mais ser possível. - Então agora se qualifica como assassinato
o crime... É, ele precisa ser detido urgentemente.
*** Iriel já está a par desses acontecimentos? –
perguntou Templeton.
Finalmente era o dia em que a garotinha
Miana faria sete anos. Acordou bem disposta mas - Sim, eu estou. – Iriel surgia vestindo seu
não recebeu os calorosos abraços e cumprimentos melhor manto azul celeste. – Mas não sei o que você
da mãe. Somente um Feliz Aniversário seco e sabe. Suspeito que sua vinda aqui significa que o
inexpressivo. A mãe parecia muito preocupada. homem está em Roschfallen.

- Mamãe? Você está doente? – perguntou a - Está. E preciso encontrá-lo urgentemente,


garotinha. ele é perigoso. – disse ansioso o paladino, em meio
a uma longa mesura.
- Não, filha. – ela parecia dispersa, porém
vigilante, com uma sombra que lhe apertava o - Isso tudo eu sei. – cortou-lhe o mestre. -
coração, um eterno medo que se fazia mais e mais Como pretende encontrá-lo?

70
Crônicas Artonianas II
- Abra a porta, Norma! Sou eu, Alex! Vim
- Encontrando sua casa. Preciso falar para a festa de aniversário. – disse Vermont, como
imediatamente com Fenderin. Há algum meio, se estivesse sendo esperado. E de fato, estava sendo
mágico, o que quer que seja, para nos comunicarmos esperado, porém não era bem-vindo. A resposta
com ele? – o servo divino parecia muito ansioso. foi o silêncio.

- Venha comigo. Eu posso realizar uma - Abra! – ele insistiu, percebendo


magia que permitirá a você falar por alguns movimentação na casa. – Abra a porta ou terei que
segundos com ele. Mas seja breve que meu poder é derrubá-la!
limitado.
- Mamãe... – falou a filha enquanto
Ao dizer as palavras arcanas retiradas de cruzavam a porta dos fundos. – É a voz do papai,
um velho grimório, nuvens rosadas surgiram das vamos voltar! Não é bandido! Ele veio para a festa!
mãos de Iriel e moldaram um círculo irregular no Vamos voltar! – a mãe fez uma expressão de choro,
ar, flutuando à altura do peito dos homens. A toda sua dor explodindo num pranto incontrolável,
fumaça repentinamente ficou plana tal um espelho arrastou mais forte ainda a menina, correndo para
e dentro dela era possível ver Fenderin. Ele a praça central.
caminhava tranqüilamente pelas planícies, no
caminho de volta a Norm. Templeton julgou que A porta foi derrubada com um pontapé de
poderia falar com ele e iniciou o diálogo: Vermont. Estava exasperado, mas ao entrar na casa
sua expressão mudou. Foi tomado pela saudade e
- Fenderin! Sou eu Templeton! por lembranças dos bons tempos que viveu junto
com sua família. Lembrou-se de todas as festinhas
- Templeton, o paladino? Khalmyr! Não te que fez com a filha, lembrou-se de suas risadas.
percebi! Aonde está você? – ele olhava em volta, De quando ela falou “papai” pela primeira vez...
intrigado. Quanta coisa tinha sido deixada para trás! Que
crueldade afastar um homem de sua filha...
- É magia, Fenderin. Estou em Roschfallen.
– esclareceu o paladino dourado. ***

- Ahh... Coisas do grande Iriel, aposto. Ele Norma só parou de correr quando chegou
é dado a essas investigações mágicas. à praça central, ali a movimentação de pessoas era
- Tenho pressa, a magia não dura muito. maior e caso ela fosse apanhada por ele haveria
Preciso saber o nome e onde fica a casa da mulher muitas testemunhas. Não poderia fugir para
que você visitou. A que tinha uma filha. – a imagem sempre. Olhou em volta e não viu nem uma milícia
parecia estar se esvaindo lentamente. – Rápido! nem membro da Ordem da Luz. Nada. Sentiu-se
desamparada, uma das poucas vezes na vida em
- Sim! Claro. Nem vou querer saber por que simplesmente não via saída nem caminho a
quê... Fica três ruas abaixo da Biblioteca de Aurinos. percorrer. Estava com a mente nublada de tanto
A mulher se chama Norma Lakes, ex-senhora nervosismo.
Vermont. E...
***
- Obrigado! Tenho que ir! – ele saiu do
templo como um raio, na direção da Bilbioteca. Recobrando-se Vermont vasculhou toda a
casa e não encontrou ninguém. Julgou que estariam
- De nad... – a magia se interrompeu. na praça, dirigiu-se para o local, com alguma
ansiedade. Encontrou a mulher e a filha. Abriu um
*** largo sorriso e seguiu para cumprimentar as duas.

Batidas na porta. Norma arregala os olhos - Olá, meu bem! – ele agarrou à força a
em total pavor. Como não percebeu antes sua mulher e a beijou, como se fosse a coisa mais
chegada? Estava tão atenta... Agarrou a filha e natural e esperada do mundo. – Como tem
correu com ela para os fundos da casa. As batidas passado? – a mulher fez uma cara de ódio, mas
na porta se intensificaram, junto com os gritos: preferiu não reagir ainda para não assustar a filha.

71
Crônicas Artonianas II
- Mas que belo nome! – concordou o
- Olá, filhinha! – continuou ele. – Tudo bom homem.
com a minha gatinha? Hein? – a garota sorriu, com
uma grande expressão de alegria no rosto. - Desculpe, mas não vê que queremos ficar
sozinhos? – falou um tanto ameaçadoramente
- Sim, papai! Tudo bom! – Foi a resposta. A Vermont.
mãe interrompeu a conversa, afastando Alex da
filha. - Não pretendo me demorar. Sabe? Eu
também gosto muito de uma moça. Lembra a sua
- O que pensa que está fazendo voltando mulher, só que mais alta. Pretendo me casar com
aqui depois de todo esse tempo? – ela o fulminava ela. – o homem andava de um lado para outro,
com o olhar. – Você foi banido! Não deve nunca procurando distrair pelo maior tempo possível a
voltar a esta cidade! atenção de Vermont.
- Ora, meu amor, eu vim para o aniversário O pai estava agachado, com a besta
da minha filha. Não estava ansiosa para que esta apoiada no chão, junto com a sacola de frascos. Ele
data chegasse logo? – e com um movimento dele segurava a filha junto ao corpo com as duas mãos.
ela pôde ver que estava armado, um calafrio A mãe estava ao lado, encarando o desconhecido.
percorreu sua espinha... Ele estava armado e ela não Uma luz atravessou o rosto dela quando o homem
sabia do que ele era capaz. Encolheu-se um pouco, abriu levemente o manto, revelando a ela o símbolo
receosa, controlando novamente seu pranto. O pai da balança de Khalmyr. Então, Templeton
voltou a conversar com a filha. continuou seu discurso:
- Filha, eu fiquei fora um tempo, mas agora - Seremos felizes e teremos muitos filhos.
tudo vai dar certo. Vamos estar sempre juntos e São grandes planos esses que tenho.
brincar bastante. Nunca vou me afastar de você. –
prometeu Vermont. Vermont se levantou levemente, deixando
a filha e dirigindo a palavra ao paladino:
- Eu ganhei um cavalinho da mamãe. – disse
a garota. – Mas ficou em casa. - O senhor está nos atrapalhando, poderia...
– disse, agora mais nervoso, mas foi interrompido.
- Ah, é? Que legal... – e era sincera toda sua Com um sinal do paladino, Norma chuta a besta
admiração. para longe e corre apanhar o saco, deixando
Vermont desarmado. Ele percebeu isso tarde
Para o desespero de Norma a conversa demais, Templeton tinha sacado sua espada e ela
durou muito tempo. Ela estava impotente diante do estava apontada para seu pescoço. A mãe a filha
ex-marido. Não queria assustar a filha, que não sabia se afastaram do local em segurança.
do problema entre eles e não queria uma tragédia.
Nisso um homem se aproxima caminhando - Alex Vermont, o senhor deve ser preso
calmamente. Um manto marrom cobre todo seu em nome da Ordem da Luz, a milícia da cidade já
corpo. Somente sua cabeça fica exposta. É alto e está a caminho. – falou imperativamente o paladino,
moreno. Fala com determinação e coragem. fiel a sua função. – Renda-se, não tente nada e será
melhor para você.
- Vocês formam uma bela família. –
introduziu-se na conversa o desconhecido. A mulher - Então eu sou o bandido? Eu sou o vilão
o encarava, com um misto de desconfiança e de da história? – perguntava incisivamente Vermont.
esperança. – realmente de causar inveja. Que idade
tem a garota? - Você cometeu uma série de crimes nos
últimos dias, Vermont. – respondeu Templeton.
- Sete, feitos hoje. – responde um pouco
contrariado o pai. - E você chama a este reino de Reino da
Justiça... Que grande piada! Só o que vi na minha
- Ora, meus parabéns, garotinha. Como se jornada foram pessoas intolerantes e injustas!
chama? – aproxima-se o desconhecido.

- Miana. – respondeu a menina.

72
Crônicas Artonianas II
- Estou certo que tem seus próprios motivos final das contas, você vai estar julgando uma vítima
para afirmar isso, mas você não está acima da Lei! do mundo. Como condenar aquele cuja sociedade
corrompeu? Mata-se o fruto? Ou corta-se a árvore?
- Lei! Lei! Lei! Foi só o que me disseram Eu deveria receber um prêmio, pois eu fui um mero
desde que cheguei aqui! Cada pessoa que encontrei instrumento para alertar a você e a todos o estado
tinha suas próprias leis, paladino! Não fiz nada de de podridão da nossa sociedade! Se eu caí
errado! – afirmava pleno de convicção e ódio Alex. tropeçando na pedra foi para avisar aos que
caminham atrás de mim que há no chão a pedra
- A lei das pessoas não é maior do que a lei traiçoeira. E se caí foi para avisar os que já foram
de Khalmyr, pois Khalmyr é a ordem e a Lei na minha frente que eles não foram vivos o bastante
máxima. Você matou e destruiu segundo suas para perceber que aquela pedra era um perigo aos
próprias leis, Vermont! Isso é crime. de trás... Um fruto não apodrece sem o delicado
consentimento de toda a árvore...
- Eu sou o culpado? Seus nobres têm
casarões com jardins imensos e eu mal tenho onde - A justiça... – Templeton foi interrompido.
dormir. Todos vivem para si próprios e segundo
suas próprias regras e você vem me falar de lei maior - Paladino! Em vez de rebater meus
de deus! Não vi Khalmyr em nenhuma das pessoas argumentos ponha um fim nisso! Eu tenho uma
que encontrei. Onde está a justiça nessa sua arma, um punhal em meu bolso. Eu o desafio para
sociedade? Aonde?? Pode você me julgar culpado um duelo. – e Vermont não esperou resposta. Saltou
por ser injusto àqueles que o foram para comigo? para cima do paladino, com uma violência sobre-
humana contida. Templeton foi pego de surpresa,
- Todos somos capazes de julgar e ser não teve outra saída se não desferir uma fatal
arbitrários nas questões da vida. Basta que espadada.
exercitemos o Bom Senso. – o paladino lutava para
rebater os argumentos metralhados do outro. Na outra extremidade da praça ouviu-se
um grito e lágrimas por parte da ex-esposa. A filha
- Palavras vãs! Todos julgam segundo seus não presenciou a luta, estava brincando com seus
próprios umbigos! Bom Senso é falso! É uma grande brinquedos, numa parte gramada mais para trás.
piada! Com o peito aberto, sangrando muito, Vermont
sorriu. Era tão estranho e irônico que as coisas
- Ser verdadeiramente justo é a maior das acabassem como acabaram.
verdades. Nada poderia ser maior e nenhum
objetivo poderia ser tão nobre. O dever de todos é - Vo-você me forçou a isso, Vermont! – o
sempre buscar a justiça, mesmo que todos à sua paladino disse, muito surpreso e assustado com a
volta tropecem na corrupção. ação de Vermont e até mesmo sua própria reação,
não suportava mortes desnecessárias, tolas como
- Isso é viver sem viver. Sua justiça é tão esta havia sido.
inalcançável quanto o dia de ontem, que não volta
jamais. Como você quer ser justo num mundo - Sim, mas você consentiu. Haha... Onde
entregue ao Caos? – Vermont argumentava está sua justiça agora? Eu não saquei meu punhal.
trovejando palavras e frases, num fluxo assustador Sabia o desfecho. Você matou um inocente e um
e violento. homem desarmado. Se devo partir, que minha lição
não seja esquecida... Vou para casa, enfim! E quanto
- Caos nada mais é do que uma ordem não a você, boa jornada de penitência, ex-paladino de
percebida. “Caos” é uma palavra que indica as Khalmyr!!
limitações da mente humana e a pobreza dos fatos
da observação. As palavras “caos”, “acidental”, (Este conto baseou-se no filme “Um dia
“imprevisível”, “sorte” são conveniências através de fúria” do diretor Joel Schumacher)
das quais escondemos a nossa ignorância. –
respondeu mais uma vez o paladino.

- Você me culpa por seguir meu próprio


senso de justiça. Estarei tão errado assim? Como
pude ser tão cego todo o tempo? Não, paladino! No

73
Crônicas Artonianas II
– Por favor, não! – clamava a jovem com
Luz e Trevas toda a força dos pulmões.
Três homens a cercavam. Um deles deu-
por Ivan Almeida da Silva (Ivan Piro) lhe um tapa, arrancando mais um grito de dor.
Entre lágrimas e soluços, ela suplicou:
– Eu me rendo! Por favor, chega de
violência... – abaixou a cabeça, sem esperanças.
– Cale a boca, vadia! – bradou o bandido.
Rasgou as suas puras vestes brancas, transparentes
por conseqüência da chuva, revelando doces e
virgens seios, com gotas de água escorrendo pelos
mamilos. Excitado, já abaixava as calças para
satisfazer sua vontade, quando uma adaga acertou-
lhe a cabeça.
Assustados, desembainharam suas espadas
NOTA: Este conto é uma espécie de continuação curtas e procuraram com o olhar quem havia feito
do Sangue e Areia, pertencente à primeira versão aquilo. Os breves segundos de tensão e aparente
do netbook Crônicas Artonianas. silêncio, em que apenas a chuva fazia-se ouvir,
foram quebrados por um dos criminosos:
– Venha seu covarde! Ou vai ficar se
Pegadas marcavam o barro negro da escondendo nas sombras?
tempestade noturna que caía. Uma figura solitária
andava pela estrada. Oculto por uma capa de Justifer sorriu pois, sendo um sacerdote de
viajante tão escura quanto à noite, Justifer, o Espada Keenn, não tinha medo de nada. Era imune ao
Mortal, viajava para a capital do Reinado, Valkaria. sentimento dos covardes.
Recebera ordens de seu templo, o da Os homens puderam ver o imponente
Primeira Espada de Keenn, em Petrynia, para guerreiro adentrar a cena lastimante e a face de
interceptar um pergaminho de um outro clérigo de felicidade e gratidão da jovem. Sua espada ainda
Keenn em uma taverna previamente marcada da estava embainhada e a chuva continuava a cair. Pelo
cidade, pergaminho esse que apresentava as menos a água limparia o sangue de sua arma, caso
próximas ordens. a utilizasse.
Ao que parecia, Justifer participava de uma – E então? Não vai sacar sua espada?
grande missão. Não coube a ele discutir, uma vez – Não, eu não preciso fazê-lo para derrotar
que lhe disseram que a ordem fora passada por uns fracos e covardes como vocês, que se
escrito de próprio punho pelo Sumo-Sacerdote, aproveitam de uma garota inocente e combatem em
Mestre Arsenal. vantagem numérica. Se bem que irão morrer de
Justifer respirou fundo. Estava ensopado e qualquer maneira...
ansioso por entrar na cidade, cujo símbolo, a já – Seu desgraçado! Será você que morrerá
visível estátua de Valkaria, tocava os céus. Pensava aqui!
em uma boa caneca de hidromel barato e uma cama
de palha. Não, talvez só o hidromel... – Acho que não...

Nesse momento a chuva diminuiu e o Os dois correram na direção de Justifer.


guerreiro apressou a marcha. Como de costume, sua Pretendiam aplicar um golpe de arremetida. Para o
mão estava próxima do cabo de seu tesouro, a sacerdote, bastou pular, segurando-se em um galho
espada bastarda. de árvore, e chutar, ao mesmo tempo, o rosto dos
dois homens, que caíram inconscientes na lama, tal
O som das passadas misturava-se ao do fora o impacto, semelhante a uma maça. Seus
ambiente, quando um grito despertou-lhe a atenção narizes haviam sido quebrados, escorrendo muito
– um grito feminino. sangue.
** – Eles ficarão bem? – ainda com lágrimas
escorrendo, perguntou.

74
Crônicas Artonianas II
Justifer fez um sinal de positivo. Marie notou a mudança de postura
repentina do acompanhante e resolveu mudar de
Mas era mentira, pois o impacto fora muito
assunto:
forte. Eles nunca mais seriam os mesmos. Isso se
escapassem da morte. – E você? Como se chama?
Silenciosamente, andou na direção da jovem – Justifer.
e a ajudou a se levantar. Como os seios continuavam – Justifer do quê?
à mostra, Justifer retirou sua capa e cedeu a ela,
exibindo uma armadura negra e de aspecto agressivo, – Só Justifer. – pretendia não revelar sua
com alguns espinhos. Ela ficou meio assustada ao origem, para não magoá-la.
ver o símbolo de Keenn costurado na peça de Foi o suficiente para silenciar a conversa de
vestuário. maneira pouco usual.
– Então... Você é um servo da guerra. **
Justifer nada disse. Retornava à estrada Há anos Josh era um dos que guardavam
quando, de costas para ela, respondeu: uma das entradas da cidade de Valkaria. Já havia
– E você é uma sacerdotisa de Marah. Suas visto todo tipo de ser, e não se intimidava
vestes brancas e seu desejo de paz me disseram tudo. facilmente. Somente a chuva, terminada há algum
tempo, irritava-o, pois não gostava de passar a noite
– Sim. – sorriu. – O meu nome é Marie
ensopado. Quando dois vultos negros surgiram-lhe
LeBlanc. Posso acompanhá-lo?
à frente, forçou a vista para reconhecer traços
– Posso proteger você até a cidade; depois peculiares. O coração quase lhe saltou pela boca
você se vira. Tenho prioridades a tratar, e eu não quando vagamente reconheceu um servo da guerra
gostaria de envolver ninguém nelas. – disse, sem e pior, uma mulher envergando uma capa também
olhar para trás. da Ordem!
Marie correu até acompanhar o passo firme – As coisas estão mudando por aqui...
de Justifer. Estava ao mesmo tempo admirada e Mulheres sacerdotisas da guerra, quem diria... –
apreensiva com o sacerdote. Era diferente dos outros coçou a cabeça.
que havia conhecido. E o melhor: aparentemente não Barrou a passagem dos dois com uma lança.
era sanguinolento, característica tão comum aos Pretendia indagá-los sobre seus objetivos na cidade.
servos da guerra.
Justifer apenas emanou um olhar
– Fique perto de mim e não se afaste. Como
intimidante com seu olho esquerdo. Ao virar a face,
você pôde ver, as estradas daqui não são das mais
a luz das tochas iluminou-lhe vagamente, revelando
seguras. Alguns dias atrás, lutei contra uns Gnolls,
uma cicatriz vertical de corte no olho direito. A
por isso é recomendável você fazer o que eu mando.
iluminação conferia um aspecto sombrio à face do
Apesar do comportamento rude, no fundo clérigo.
Justifer nutria um senso do dever para com as
O guarda reconheceu o olhar, após um frio
mulheres. Seguia seu código de honra à risca, o que
na espinha, e recolheu a lança. As mãos lhe tremiam,
incluía, no momento, proteger a serva de Marah de
causando certo desconforto. Permaneceu calado,
qualquer perigo. Isso explicava a violência do golpe
pensando em nunca mais desafiar um sacerdote de
aplicado nos dois homens.
Keenn. Falou consigo mesmo:
– Você tem um nome de nobre... – observou – Pelos deuses, eu já vi de tudo. Mas aquele
Justifer. olhar turvo... Não sabia que ainda existiam homens
– Sim. Eu era uma nobre de Lenórienn. assim.
Quando Marie citou a cidade dos elfos do sul, **
o sangue de Justifer correu mais rápido. Apenas
Justifer e Marie pararam numa praça vazia,
agora tinha notado as orelhas pontiagudas dela,
a alguns quarteirões da entrada da cidade:
indicando sua origem. Nascido no reino de Yuden,
aprendeu desde cedo a nutrir raiva por essa raça. – Pois bem, está segura agora. Pode cuidar
Felizmente, seu autocontrole superava o sentimento de sua vida.
negativo, que era bem diminuto nele por motivos de Ele queria cumprimentá-la, beijar-lhe o
sangue. rosto ou abraçá-la, mas tinha que manter as

75
Crônicas Artonianas II
aparências, pois era um clérigo-guerreiro. Talvez ela – Marie? Não acredito!
achasse que ele era um viciado em guerras, mas ela
– Tia Larinda!
não podia entender, e nem adiantaria explicar.
Talvez fosse melhor se afastar logo. Estava em uma As duas se abraçaram longamente e se
missão importante, e não poderia envolvê-la nisso. beijaram. Ao observar o estado de Marie, Larinda
Por Keenn, como ela era bonita... levou as mãos à face:
– Adeus. Pode ficar com a capa. – virou-se e – O que houve com você? Olhe só o seu
começou a andar. estado!
– Espere! Está de noite! Será que você não – Enfrentei alguns problemas na estrada,
poderia me acompanhar até a casa de um parente mas esse homem me salvou. – apontou para Justifer.
meu? Ainda mais com essa capa, posso arranjar – Quem é ele? – perguntou, impressionada
problemas... com a estatura e postura do guerreiro.
– Isso não é problema: é só tirá-la. – disse, – Seu nome é Justifer. Ele é um sacerdote de
sem olhar para trás. Keenn e foi quem me trouxe até aqui, protegendo-
Percebendo que era uma brincadeira, Marie me.
levou as mãos à cintura e lançou um olhar e sorriso Justifer acenou a cabeça de maneira
irônico. educada, na intenção de cumprimentá-la. Larinda
Em retribuição, Justifer esboçou um sorriu.
pequeno sorriso no canto da boca. O sacerdote – Venham, entrem! Eu ainda tenho um
retornou o sorriso por conveniência, pois pouco de guisado da janta. Com certeza devem estar
normalmente não era acostumado a demonstrar famintos, depois dessa viagem cansativa...
muitos sentimentos.
– Claro que estamos! Venha, Justif...
– Não sabia que clérigos de Keenn
brincavam. – Não, obrigado. Tenho assuntos pessoais a
tratar na cidade. – disse, interrompendo-a.
– Somente alguns.
Marie não conseguiu esconder sua tristeza
Justifer suspirou lentamente e virou-se para ao ouvir essas palavras. A julgar pela educação do
Marie. sacerdote ao cumprimentar sua tia, esperava que,
– Tudo bem, eu te levo até sua casa. Onde com a refeição, pudesse conhecê-lo melhor. Mas já
fica? sabia o suficiente para julgá-lo um insensível, assim
como todos os outros.
– No bairro élfico.
– Venha, tia. Deixe-o com sua missão. –
– No bairro élfico... – engoliu em seco – Pois disse, enfatizando a última palavra ironicamente.
bem, que seja.
Fechou a porta vagarosamente, dando uma
**
chance para fazê-lo mudar de idéia, o que não
A maior aglomeração de elfos conhecida aconteceu. Numa última tentativa, abriu a porta.
após a queda de Lennórien, o bairro élfico emanava
– Justifer! Pegue sua capa!
uma beleza singular, com suas casas de arquitetura
única em meio à metrópole. O bairro era conhecido Jogou-a para o sacerdote, que a pegou e
também por ser um dos mais arbóreos da cidade, e vestiu, num movimento rápido. Com isso, Marie,
a noite fazia com que certas plantas exalassem um sem perceber, ficou com parte do corpo à mostra,
aroma suave, transmitindo tranqüilidade ao lugar. inclusive os seios, outrora cobiçados pelos bandidos.
A iluminação da casa conferia uma imagem mística
Marie bateu suavemente na porta de a elfa, com sua suave pele branca, olhos
madeira antiga. Justifer esperava, com os braços amendoados azuis e cabelos lisos e loiros que
cruzados, observando a rua e ansiando por poder deslizavam conforme o leve vento úmido.
sair dali o mais depressa possível.
Justifer engoliu em seco com a visão. Ele
A porta foi aberta, revelando uma elfa de
desejava aquele corpo puro, mesmo sendo uma elfa.
meia idade, envolta com simples vestidos da raça,
Mas não a conhecia; era apenas um desejo carnal.
os olhos amendoados de cor roxa e os cabelos cinza
Além disso, a missão vinha em primeiro lugar.
presos a um rabo-de-cavalo.

76
Crônicas Artonianas II
– Com licença, eu tenho que ir. – disso, qualquer espadachim com um ou dois combates de
virando-se na direção contrária e andando experiência.
vagarosamente.
Justifer fez um cumprimento para John com
Com o barulho da porta se fechando atrás, ela. Mais do que um cumprimento, era o dever de
Justifer observou o estrelado céu noturno e a um clérigo saudar o seu superior.
suplicante Valkaria, respirou fundo e começou a
Justifer, extremamente musculoso, com
andar na direção da taverna.
suas feições duras e rudes, pele parda e cabelos
** castanhos cortados em um corte militar, possuía
A vida toda John desejava ingressar na Igreja idade aparente superior a John, com seus longos
de Keenn. Desde pequeno apresentava uma cabelos loiros, olhos azuis e pele branca. Entretanto,
compleição física melhor do que outros garotos de Justifer não galgara muitos postos na Ordem por
sua idade e uma afeição ao lema da Ordem. Além uma simples questão de postura moral: seu código
disso, nascera no Reino de Yuden. de honra.
Em verdade, o clérigo simpatizava com os
Recomendado para essa missão especial por
preceitos da Ordem. A crença de que “apenas em
seus superiores, aparentava mais do que felicidade.
batalha provamos nosso valor” penetrava fundo em
Era satisfação. Para completar, iria conhecer o
sua alma. Sempre gostava de citar “o bom
vencedor do torneio anual de Gallienn, realizado com
combate”, palavras que utilizava em todas as
a presença do próprio Mestre Arsenal.
situações de sua vida.
Estava à paisana, por isso não arranjara
Entretanto, associava suas crenças bélicas
confusão, apesar de seu porte físico e da espada na
apenas aos homens. Não concebia a idéia de a
cintura, indicando que era um guerreiro.
guerra ser também para as mulheres e crianças, por
Discretamente saboreava o hidromel num isso tentava proteger todas, e isso incluía não bater
canto da taverna, quando notou a aproximação, nelas. Algumas pessoas o tachavam de machista,
através da janela, de outro sacerdote. mas ele não se importava.
Justifer leu na placa de madeira iluminada O clérigo também não gostava de covardia
por uma tocha, “Taverna da Espada Flamejante”. Um e era adepto dos combates honrados, no mano a
nome sugestivo para um estabelecimento conhecido mano. Muitas vezes já fora repreendido por seus
por suas brigas memoráveis e por seus superiores por não atacar homens caídos ou em
freqüentadores atípicos. A guarda já se cansara de ir desvantagem numérica no campo de batalha.
até o local acabar com embates e prender pessoas,
Para piorar sua situação perante a Ordem,
uma informação desconhecida pelo sacerdote.
em várias ocasiões ajudava os pobres e outras
O lugar estava bastante animado: pessoas tidas como “fracas” pela Igreja da Guerra.
aventureiros, bêbados e camponeses batiam canecas
Apenas sua habilidade com a espada o
de madeira e cantavam ao som dos bardos. Uma noite
mantinha numa posição melhor perante os
singular. Outros, mais carrancudos, disputavam
sacerdotes-guerreiros.
quedas de braço. Justifer procurava com o olhar o
emissário, quando todos os olhares mal encarados Era devido a esses motivos que o clérigo
viraram-se para ele. ocupava o comando da Segunda Lâmina de Keenn,
Ao que parecia, o povo não gostava muito no templo da Primeira Espada de Keenn, em
de clérigos da guerra. Petrynia, um dos únicos templos da Ordem no
Reino. Um templo em que até pouco tempo faziam
Mas não ligou para isso. Quando o parte expoentes como o famoso Erup Filho da
encontrou, após um aceno de John, andou Guerra, Messias de Keenn (apelido este ganho após
vagarosamente em sua direção sem se importar com a Operação Armadura Negra).
os olhares desconfiados e de desaprovação. Antes de
Já John subira na Ordem por puro
se sentar, desembainhou sua espada, a espada obra-
merecimento. Era quase que fanático aos
prima excelentemente forjada por mestres armeiros
ensinamentos de Keenn, e gostava do que fazia. Ao
do plano de Werra.
contrário dos outros sacerdotes, não era conhecido
Com a visão da arma, a maioria desviou o por sua rudeza, e sim por seu senso de humor.
olhar, num reconhecimento à provável perícia de Exceto quando se tratava de elfos.
Justifer, dada a qualidade da espada, reconhecida por

77
Crônicas Artonianas II
– Não é preciso fazer o cumprimento, O sacerdote permaneceu calado.
soldado. Estou à paisana.
– Justifer, se me permite fazer outra
– Desculpe senhor, é o hábito. pergunta...
– Devia tomar mais cuidado quando ostenta – Pois não, senhor?
nosso símbolo para esses fracos. – disse, sorrindo. – – Essa sua cicatriz de corte no olho direito.
Uma armadura desse porte não é algo que se vê todo Em que batalha a conseguiu? Como sabe, cicatrizes
dia... Faça um favor a si mesmo e não tire a capa, se são um grande motivo de orgulho entre nós. Eu
não quiser arrumar confusão. – esboçou um bom mesmo tenho várias marcas de queimadura no
sorriso, como se quisesse começar uma briga tronco, devido a um pequeno inconveniente com
naquele exato instante. um projétil de artilharia, fora os cortes... – disse,
– Senhor, o pergaminho... – disse Justifer, orgulhando-se.
insensivelmente.
Justifer ficou em silêncio por alguns
– Espere um pouco, soldado. Vamos à segundos, e respondeu:
apresentação formal e, só depois de uma boa caneca
– Recebi-a na guerra, como o senhor e todos
de hidromel, cuidaremos disso.
os de nossas fileiras. Fui cegado por um exército
Justifer fez um gesto para o estalajadeiro, rebelde nas terras do oeste. Os filhos da mãe
pedindo uma bebida. mataram meus antigos comandados, mas eu os
– Bom, meu nome é John. Eles me vinguei.
mandaram diretamente de Yuden justamente para Justifer contara uma mentira a John. Fora
essa missão. Pode se considerar um sortudo, Sr.... – cegado em decorrência de um treinamento com a
fez um gesto com a boca e a mão, na intenção do espada, ainda adolescente. Os mais antigos sabiam
sacerdote revelar o nome. que Justifer ingressara na Ordem já com essa
cicatriz, mas deixaram os boatos inofensivos. Porém,
– Justifer de Yuden. Ou Justifer, o Espada
a história da morte da antiga Lâmina era verdadeira.
Mortal, se preferir, senhor.
– Notei que você tem a pele um pouco mais
– Justifer, sim! Bom, pode se considerar um
escura que um yudeniano típico...
sortudo, Sr. Espada Mortal. Após o torneio de
Gallienn, todos ficaram impressionados com sua – De fato, não sou um “yudeniano puro”.
vitória e perícia com a espada. Aliás, eles cresceram Tenho o sangue dos antigos bárbaros do norte do
os olhos pra cima de você. Tem muito boato sobre a reino, senhor. O senhor é racista?
sua pessoa circulando na Ordem. – Não. Sou um “yudeniano puro”, por isso
– Eu apenas fui bem treinado, senhor. a pergunta. Apenas uma curiosidade. Mas, uma vez
dentro da Ordem, somos todos iguais perante
– Eu não sei por que o Alto Escalão te
Keenn. Exceto os elfos, claro.
mandou para o oeste, naquele fim de mundo de
Petrynia, mas agora você foi escolhido para uma John ameaçou tomar outro gole, mas viu
grande missão, pode crer, conterrâneo. – tomou que o hidromel acabara.
outro gole de hidromel.
– Droga, minha bebida acabou. Termine sua
– Talvez eles tenham feito isso por pura caneca, Justifer, para começarmos nossos negócios.
política, senhor. Rapidamente Justifer deitou a caneca em
– Pode ser. Mas você não gostaria de saber sua boca. Mas havia algo errado. Aquele não era
o que falam de você por aí? um hidromel comum. Estava deixando-o tonto, com
a conhecida vista dupla e tontura dos bêbados.
Justifer consentiu com a cabeça, mas sem
ligar muito. Não se interessava muito por sobre o – Merda, o que está acontecendo? – Justifer
que diziam de si mesmo. baixou a cabeça e piscou fortemente os olhos. – Tem
alguma coisa nesse hidromel...
– Eles divergem sobre como teria surgido a
sua alcunha, o Espada Mortal. Uns dizem que você John sorriu, pois a droga estava começando
a teria recebido após sair intocado de uma grande a fazer efeito.
batalha. Outros falam que matou três generais com – Sim. Você achou que eu ia entregar o
a própria espada em uma única guerra. Mas agora pergaminho a você sem testá-lo? Tolo!
vejo que sei a verdade...

78
Crônicas Artonianas II
John subiu na mesa e chamou a atenção de John era mesmo um bom clérigo. Paralisara-o para
todos: que a guarda o deixasse inconsciente com “alguns”
golpes na cabeça. Apesar de tudo, fora um bom
– Este homem de capa negra, este clérigo da
combate, mesmo estando sob efeitos adversos. Mas
guerra, provocou todos vocês! Disse que suas mães
se pudesse utilizar sua espada...
são umas mulas mancas, umas meretrizes e, quem
quiser provar o contrário, que o mate! Ouviu passos no corredor. Era John, ainda
à paisana:
Seis homens levantaram-se furiosos, pois
maldizer a mãe era o pior insulto possível para uma – Acorde, Justifer!
pessoa. Justifer levantou-se e prestou uma
O primeiro, um truculento vestido em couro continência, o modo de cumprimentar quando se
e sem armas à mão, correu na direção do sacerdote. está desarmado.
Todos puderam ouvir seus palavrões, em meio a seus
– Senhor...
rosnados.
Um silêncio permaneceu por alguns
Justifer não poderia matar, pois estava na
segundos entre os dois. Depois, começaram a sorrir,
cidade. Se o fizesse, seria preso e a missão acabaria,
aumentando gradativamente o volume. Logo o
pois não sairia de lá tão cedo. Talvez aquele “teste”
sorriso tornou-se gargalhada, acordando alguns
servia para averiguar o raciocínio dele também. Mas
presos.
aquele maldito hidromel...
De fato, outras pessoas não entenderiam o
O homem socou o peito de Justifer. Sem porquê daqueles dois guerreiros estarem rindo.
resultado, pois o clérigo usava armadura. O sacerdote
ainda estava meio tonto, mas quando conseguiu – Foi um bom combate, senhor.
focalizar a cabeça do adversário, aplicou uma forte – Eu sei, bêbado. Principalmente porque eu
cabeçada, seguida de uma joelhada no órgão genital. paguei aqueles homens para tentarem dar uma
O homem gritou de dor, tempo suficiente para que surra em você.
Justifer o pegasse e jogasse na direção de mais dois
que corriam a sua direção. Justifer havia passado no teste.

Ouvindo o barulho de um desembainhar de – Agora sim, podemos conversar...


espada, Justifer pegou uma banqueta, a tempo de O guarda abriu a cela e John jogou uma
aparar o golpe do inimigo com ela. Deu um chute espada longa normal e roupas para Justifer.
para afastá-lo. O homem caiu numa mesa,
– Senhor, minhas coisas...
quebrando-a. Ainda teve tempo de jogar a banqueta
no quinto homem. – Por enquanto você não vai mais precisar
usar sua armadura de sacerdote e sua espada. Não
Com essa manobra, não havia tempo para
usará nem mesmo um amuleto de Keenn. Para essa
atacar o último homem que vinha em sua direção.
missão, usará trajes mais normais e trabalhará
Nesse momento rogou em pensamento para que
disfarçado.
Keenn lhe apurasse o reflexo. Num rápido
movimento de tronco e braço, pegou-o pelo peitoral Saíram das masmorras. Justifer agora
da armadura de malha e, com apenas uma mão, estava vestido com calça de couro com as barras
jogou-o pela janela da taverna. O barulho fez com enfiadas dentro de um par de coturnos. Trajava
que a guarda aparecesse. também uma grossa camisa de manga comprida de
algodão, que ficava justa devido aos músculos do
**
guerreiro, e um colete de couro. A espada
Quando os primeiros raios do sol entraram descansava na cintura. Recebera também de John
pelas frestas das grades da janela, iluminando a uma adaga.
pequena cela, Justifer abriu os olhos e levantou-se
– John, se estamos em uma missão secreta,
parcialmente da cama de pedra. Nem quis utilizar o
por que fazemos tanto alarde? Tenho certeza de que
buraco que servia para abrigar os dejetos e lavar o
aquele guarda da masmorra ouviu que eu
rosto na minúscula pia suja. Por sorte, encrenqueiros
trabalharia disfarçado e tudo mais. Sem falar nas
apenas passavam a noite nas masmorras.
pessoas da taberna...
Justifer ficou sentado na cama, relembrando
– Na verdade os homens que vigiam
os acontecimentos da noite anterior. Realmente fora
detentos encontram-se tão privados da liberdade
besteira beber aquele hidromel. O desgraçado do

79
Crônicas Artonianas II
quanto eles. E as pessoas da taverna, bem... a olhou para John. Afinal, de acordo com o que fora
maioria não sabe de nada. São homens comuns, dito, seria ele quem entregaria o pergaminho.
aventureiros de poucas habilidades. Venha, vamos
– A minha missão era só testá-lo e levá-lo
para o templo de Keenn da cidade.
até aqui. Com licença... – abriu a porta e ficou de
** guarda no lado de fora do recinto.
O templo da Sagrada Fúria de Keenn, com Justifer desenrolou-o e começou a lê-lo,
suas altas muralhas de pedra, era a Igreja do deus silenciosamente:
da guerra. Um paraíso em meio ao caos, pelo menos Justifer,
na visão de Justifer. Afinal, todos eram conhecidos
pela férrea disciplina militar e organização. Vi sua atuação no torneio. Você tem uma grande
habilidade com a espada e emprega-a pela Ordem com
Antes mesmo de entrar no templo, o
excelência. Por isso, escrevo estas linhas com o pouco
barulho do tilintar de armas já podia ser ouvido de
tempo que tenho disponível, para convocá-lo para mais
fora da fortaleza.
uma missão em nome de nosso senhor Keenn.
– Ouça, Justifer. Nossos corajosos homens
Não há tempo para rodeios, então vamos direto
estão treinando nesta terra inimiga. Este forte é o
ao ponto: quero que você vá atrás da Arma Dourada.
nosso tesouro aqui.
...Há muito tempo atrás, um antigo ser criou o
Dois vigilantes da entrada prestaram que se pode chamar de O Exército das Armas Douradas.
cumprimento com as alabardas que carregavam Uma tropa em que cada homem carregava consigo um
consigo, quando John e Justifer entraram. Dirigiram- exemplar de armas forjadas por seres poderosos e
se a sala do oficial comandante. esquecidos pelo tempo. Entretanto, por razões que vocês,
Uma pequena sala, com simples mortais, desconhecem, elas foram parar em lugares
escrivaninha, três cadeiras de madeira, um armário diferentes e distantes da Criação.
com livros de tática e estratégia, alguns quadros
Agora estou atrás destas armas. De acordo com
bélicos na parede e enfeites de armas. O oficial
as lendas, cada uma tem poderes que fogem à imaginação.
estava sentando examinando um papel, quando a
Eu já tenho algumas comigo, através de missões pessoais
porta se abriu.
e enviados especiais. Você será um deles. Sua missão é ir
– Rambor, quanto tempo! – John até o plano de Tenebra. Um mago contratado por mim
desembainhou sua espada e prestou o irá ajudá-lo nessa parte. Uma vez teleportado para o ponto
cumprimento. determinado em Sombria, deverá encontrar o portador
de uma das Armas Douradas, e vencê-lo em combate. Só
– Ah! John! – levantou-se, afastando a
assim a arma será conquistada. Quando conquistá-la,
cadeira. – Estava esperando por sua chegada. Sua e
NÃO a utilize!
do outro sacerdote.
– O nome dele é Justifer, senhor. – disse PS: Dado a risco da missão, você poderá montar
John. – E foi ele quem ganhou o torneio anual de uma equipe de aventureiros que não pertençam a Ordem.
Gallienn. Mestre Arsenal,
Justifer prestou atenção em Rambor. Era um Sumo-Sacerdote de Keenn
homem também de duras feições, na casa dos
– Então é por isso que tenho que trabalhar à
quarenta, com cacheados cabelos castanhos. O porte
paisana... Para buscar a equipe que tomará parte
atlético sugeria um corpo musculoso, apesar da
nesta missão, além do mago.
pequena barriga protuberante, fruto das bebidas.
Trajava roupas negras e coturno, estando a – Sim. Esta missão é a primeira parte da
armadura em um suporte no canto da sala. Operação Secreta Arma Dourada.
– Venha cá e sente-se, Justifer. – disse – Entendo...
Rambor. – Você tem alguém em mente? Se quiser,
O clérigo caminhou até a mesa e sentou-se tenho bons clérigos...
numa das duas cadeiras vagas em frente a Rambor. – Não, obrigado. Vou dar uma chance a uns
O oficial abriu uma gaveta, pegou um velhos conhecidos... Os Lobos Solitários.
pergaminho e entregou a Justifer que, ao receber, – Os Lobos Solitários? Nunca ouvi falar.

80
Crônicas Artonianas II
– Eles não são muito famosos, mas têm boas Lestak retirou as adagas da árvore e
habilidades. Além disso, meu antigo discípulo os reclamou:
lidera.
– Eu não entendo porque ainda
– Lancelot, aquele que saiu da Ordem? continuamos lutando, Lancelot. Desde a aventura
em que nos tornamos imortais e o Gayllant morreu,
– Sim, uma vez ele já foi um clérigo de Keenn.
tudo está piorando. Pra começo de conversa, nós
Agora, é só um mercenário...
abrimos com aço e sangue nosso caminho na volta
Rambor fechou a mão direita e socou a mesa. para o Reinado, a começar pelo fato de que tivemos
– Você vai chamar um homem que que lutar novamente e fomos “gentilmente”
abandonou sua honra? Que bobagem! escoltados para fora do Deserto da Perdição por
aqueles salteadores desgraçados. Mas pelo menos
– Fui eu quem o ensinou a manejar a espada. não fomos pegos pelas tempestades de areia, não é
Ele é bom e talvez um dia se torne melhor do que eu. mesmo? – ironizou. Como não recebeu resposta,
Rambor suspirou rudemente. continuou. – Isso sem falar o combate anterior
contra o dragão vermelho, em que eu morri. Você
– E quem mais faz parte desse grupo?
não tem idéia de como dói morrer!
– Há um elfo. – engoliu em seco. – Seu nome
Lancelot ficou em silêncio, ouvindo as
é Louis. Ele era um nobre de Lenórienn, e hoje é um
palavras do companheiro de aventuras. Esperou
arqueiro de ótima proficiência na arma. Pelo que ouvi
que terminasse:
falar, seu arco mescla-se à escuridão.
– Quando alcançamos os reinos do norte,
– Um elfo que utiliza uma arma de covarde!
depois de lutar contra algumas tribos da Grande
Só você mesmo pra chamar essas pessoas! – Rambor
Savana, lutávamos por dinheiro em cada aldeia.
não gostava da idéia de Justifer chamar os Lobos.
Dormíamos ao relento, ora caçando para comer, ora
– Calma, ainda há outro. Outro elfo, chamado bebendo em tavernas de beira de estrada.
Lestak. Apenas um ladrão e, dizem, um espadachim Finalizando: a gente só se deu mal até agora. Até o
de grande velocidade, habilidoso com a espada curta. Louis mudou sua mentalidade. Deturpou sua
– Um ladrão!? Com certeza outro covarde... mente com esse papo de “conhecimento é poder”.

– Por último, um anão das terras do norte. Ao ouvir Lestak citar seu nome, Louis
Dizem que, por causa de sua fúria e sanguinolência fechou o livro, levantou-se e entrou na conversa:
excessivas, foi expulso de seu povo. – Lestak, acho que você não entendeu que
– Talvez o único que preste seja este último. temos todo o tempo do mundo agora. Ou você
Pois bem, eu te dou alguns meses para encontrá-los, vai continuar como um ladrão aventureiro? Não,
tempo mais do que suficiente para o mago preparar- talvez você fique até mesmo como Lancelot:
se para a viagem. Você o conhecerá depois. Tenho “viver sem se importar com nada”. – ironizou. –
certeza de que será surpreendido por ele... Somente agora eu percebi. O poder mortal, que
eu ansiava, é transitório, mas o conhecimento dos
** segredos do universo... esse é o verdadeiro poder.
O machado de lenhador cortou o ar e partiu Mais do que minha habilidade com o arco ou
a tora de madeira. Lancelot pegou-a e jogou junto seus talentos ladinos. Começo a crer que os
das outras. magos estejam corretos...
Apoiou a ferramenta no ombro e esfregou a – Besteira, cara!
costa da mão esquerda na testa, limpando o suor. Em Enquanto os dois discutiam, Lancelot
seguida, olhou para Louis e Lestak. O primeiro estava pensava nos acontecimentos passados. Não ligava
sentado numa pedra, entretido num livro, enquanto para as palavras contundentes de seu companheiro.
o outro brincava com adagas, arremessando-as num Sabia apenas que tinha que continuar lutando e
tronco próximo. sobrevivendo. Era isso que importava. Com certeza
– Ei! Por que vocês não vêm me ajudar? Gayllant faria o mesmo, embora com mais lâminas
Afinal, se vendermos essas toras arranjaremos tibares e sangue envolvido no meio.
suficientes para minha inscrição no torneio de espada Resolveu interromper a discussão dos dois:
e, se eu vencer, teremos dinheiro suficiente para
continuarmos viajando. – E então? Não vão me ajudar a cortar
lenha?

81
Crônicas Artonianas II
Lestak e Louis se entreolharam, arregalando – Pois saiba que tempos atrás nós fomos a
os olhos, surpreendidos com a pergunta do ex- um e nos tornamos imor... – antes de terminar a
clérigo da guerra. Não sabiam o que responder. palavra, levou um tapa de Louis na nuca.
Repentinamente, ouviram o barulho de um – Imensamente poderosos! – completou o
galopar de cavalo. Justifer o montava. arqueiro. Tempos atrás o grupo fez um acordo de
não revelar a ninguém sua nova condição.
– Eu te ajudo, jovem Lancelot.
– Mestre! – disse, surpreendido. – Pois bem, se vocês dizem... – mordeu outro
pedaço de carne. – Por falar nisso, onde está o anão?
** Perdido por aí?
Justifer passou o resto da tarde ajudando – Ele morreu enfrentando uma fera do
seu discípulo com a lenha, enquanto Lestak e Louis deserto, há mais de um ano atrás. – respondeu
caçavam o jantar. Ao anoitecer, armaram fogueira Lancelot.
e sentaram-se à beira dela para comer coelhos e
– Uma pena, pois agora ficaremos
conversar.
desfalcados para a missão.
– Vejo que você continua na luta, discípulo.
– Que missão? – perguntaram os três juntos.
– Sim, desde que abandonei as fileiras de
– Vocês já ouviram falar no Reino dos
Keenn, passo o tempo lutando, numa tentativa de
Deuses?
encontrar respostas e um sentido para minha vida.
– Sim. Se não me engano, nada mais é do
– Que sentido, Lancelot? Devia saber que a
que uma dimensão para cada um dos Deuses do
guerra é a única via, até o final dos tempos! –
Panteão. – disse Lancelot.
revoltou-se. – Para mim, você é um covarde!
Somente o seu treinamento incompleto me prende – Mas, se quer saber, nunca visitamos
a você! nenhum desses Reinos. Deve ser lenda. – com a boca
– Então você veio para finalmente completar cheia, disse Lestak.
o treinamento... – Você quer que o acompanhemos para um
desses Reinos, não é mesmo? – perguntou Louis.
– Não, ainda não. Não chegou a hora do
nosso duelo final. Vamos mudar um pouco de – Para um elfo, até que você é razoavelmente
assunto... – mordeu a carne do espeto. – Sabia que esperto, garoto. Não é assim que meu discípulo o
alguns ainda o mencionam com respeito e até chama? Ou seria criança?
admiração na Ordem? Você não era nenhum
Louis, incomodado, respondeu, apontando
fanático, mas fazia as coisas da maneira correta.
o dedo:
Garoto, você teria uma carreira brilhante se tivesse
permanecido conosco. Eu me lembro de que, – Ei! Quando você estava nas fraldas eu já
quando você oferecia sua espada aos exércitos em era um aventureiro!
tempos de guerra, eles lhes davam cargos de – A garotinha não precisa ficar ofendida. Se
comando. Não era raro você comandar toda a quiser responder, responda com sua espada.
infantaria contra o inimigo.
Louis se levantou, desembainhando sua
– Foi o senhor quem me ensinou a comandar espada longa, quando foi interrompido por
homens, mestre. Lancelot.
– Não. Eu o ensinei a lutar como um – Pare, Louis. Vamos ver o que exatamente
verdadeiro guerreiro, sem nunca ter medo do ele quer.
inimigo e nunca recuar de uma batalha.
– O ex-clérigo da guerra impedindo
– Obrigado. combates?
– Que seja. Agora chega de elogios. – O que você quer, mestre? – fitou-o
– Justifer. – chamou Lestak. – Você já viu severamente.
um deserto? Justifer fez um gesto de aprovação para com
– Não. a atitude do discípulo.
– Agora sim está falando que nem homem.
– olhou para cima, observando a noite, e dirigiu o

82
Crônicas Artonianas II
olhar para a fogueira. – Eu escolhi vocês para me – Justifer, você terá que levar o John com
acompanharem até o Reino de Tenebra. Lá, vamos você. Preciso conversar com você. Acompanhe-me.
atrás de uma arma mágica para o Sumo-Sacerdote – fez um gesto com a mão e Justifer o seguiu.
de minha Ordem.
À medida que os dois sacerdotes se
Os Lobos ficaram pensativos por alguns distanciavam, Lestak disse:
minutos, enquanto a fogueira crepitava.
– Acho que não causamos boa impressão...
Justifer mudou de assunto para acalmar os – Não se preocupe. – disse Lancelot. –
ânimos. Clérigos da guerra são assim mesmo. Eles acham
– Vocês me disseram que saíram do deserto. que são os guerreiros mais poderosos do mundo.
Dizem que há cidades erguidas no meio da areia, Eu não os culpo, afinal, que guerreiro enfrentaria
lugares em que há boa música, mulheres misteriosas um adversário que desconhece o medo? Já parou
e guerreiros honrados. Gostaria de conhecer o deserto pra pensar nisso?
um dia.
– Seria uma máquina de matar, um soldado
– Eles têm um bonito céu, mestre. Azgher não perfeito. Uma visão macabra, com certeza. –
mediu esforços para protegê-los. completou Louis.
– Falando em Azgher, por acaso alguém tem – Pelo menos ganharemos algo. –
medo do escuro? conformou-se Lancelot. – Eles podem ser rudes, mas
Todos riram. sabem recompensar aqueles que os ajudam. Depois,
voltaremos a novamente andar por aí. – disse, com
– Nós nos juntaremos ao senhor nessa missão, mentalidade mercenária.
mestre. – disse Lancelot.
– Que tal se, depois de tudo isso, voltarmos
– Pode contar com o meu arco. Quem sabe a Malpetrim, na Taverna da Biscate Malhada? – com
posso aprender algo nessa jornada? uma expressão de felicidade, perguntou Lestak. –
– Não estou nessa pra aprender como o Afina, foi a única coisa decente que vocês fizeram
Louis diz, mas acho que não deve ser pior que as com o pouco dinheiro juntado em aventuras. Faz
terras do sul. tempo que não vou a um prostíbulo!

– Sabia que não recusariam uma – Prefiro chamar de “casa de diversões


oportunidade de um bom combate. – disse Justifer. noturnas.” – corrigiu Louis. – Aliás, não sei por que
o Lancelot chama o estabelecimento de “taverna.”
– O senhor fica engraçado em roupas
comuns, mestre. Estou acostumado a vê-lo apenas – Simplesmente porque foi de minha
de armadura ou farda... autoria a idéia de comprarmos aquele casarão
caindo aos pedaços e reformá-lo.
**
– Mudando de assunto, durante a viagem
O sacerdote abriu a porta e avisou Rambor: John disse que, nesta missão, seríamos
– Senhor, eles chegaram. acompanhados por um poderoso mago... – disse
Lestak, que não gostava de magos, mas achava a
Rambor desceu a escada que separava sua
magia necessária, como uma ferramenta.
sala do pátio, atravessou-a e correu ao portão
Pensamento compartilhado também por Lancelot.
principal, lugar onde os Lobos e Justifer aguardavam.
– Pra você ver que não se pode resolver
– Eu lhe apresento os Lobos Solitários. – disse,
tudo com lâminas. – retornou Louis, defendendo a
após a continência.
classe mágica.
– Você tem certeza de que não é nenhum
A sentinela pôde ouvir os Lobos começarem
engano? Quase três meses de ausência, e você me
a discutir novamente. Não entendia como Justifer
traz isso?
os chamara para uma missão daquele calibre.
Os Lobos se entreolharam.
– Calem a boca um pouco! – Lancelot elevou
– E o anão sanguinário? o tom de voz firme e autoritário. – O que será que
– Ele morreu. – respondeu Lancelot. eles estão conversando lá em cima? – olhou para a
sala de Rambor.
– Mais essa agora... – Rambor balançou a
cabeça em sinal negativo.

83
Crônicas Artonianas II
Alguns minutos depois, Justifer, John e negro manto, parecido com uma mortalha. Mãos
Rambor apareceram no final da escada e cadavéricas empunhavam uma foice, à semelhança
atravessaram o pátio. da Morte. Virou-se para Lestak, que parecia estar
meio surpreendido com a cena.
– John, estes são os Lobos Solitários.
Lancelot, Louis e Lestak. – disse Justifer, apontando – O que foi? Nunca viu um esqueleto?
para cada integrante.
– Não um que falasse!
John lançou um olhar malicioso. Lancelot notou os pontos luminosos que
Desacreditava que os Lobos fossem úteis. Lembrou- serviam de olhos ao morto-vivo.
se de um detalhe importante e dirigiu-se
discretamente a Rambor: – Um lich. – concluiu o ex-clérigo.
– Senhor, o mago... ele já está aqui. No – Um lich que usou de invisibilidade por
porão. precaução. – acrescentou Louis. – Típico de magos.
– O feiticeiro? – perguntou Lestak. O ladino – Creio que a palavra clérigo defina melhor
possuía ótima visão e audição. quem eu sou.
– Ele é um mago. – corrigiu John. – Um clérigo de Tenebra... – disse Justifer. –
Então era por isso que o senhor (referindo-se a
– É tudo a mesma coisa!
Rambor) disse que eu seria surpreendido por ele...
**
Rambor sorriu.
Barris velhos e garrafas de bebida – Já estou ficando meio cansado de
amontoadas em prateleiras ou no chão, sacerdotes. Será que sou o único normal por aqui?
juntamente com um arsenal de armas dispostas – perguntou Lestak.
em suportes, um grande mapa da cidade aberto
sob uma grande mesa, e um escudo de ferro do Todos, inclusive o lich, olharam para o
símbolo de Keenn pendurado na parede, ladino.
descoravam o empoeirado porão. – Ei, lich. Qual o seu nome? – perguntou
Guiados por John, abriram o alçapão de Louis.
metal, escondido debaixo de um tapete, desceram – Nomes têm poder. Nas mãos de pessoas
a escura escada de madeira e chegaram ao lugar. certas, podem causar estragos. Você deveria saber
Rambor apressou-se em recolher papéis disso. Mas, se precisa me chamar de algo, Lich está
prejudiciais a Ordem se contemplados por olhos de bom grado.
de não sacerdotes. – Pensei que seres como você não
Após a ação de Rambor, entraram no precisassem de armas. – disse Lancelot.
aposento. Ao ver o lugar, Lancelot lembrou-se dos – A magia é uma força caprichosa. Nunca
tempos de guerra. Era em lugares como esse que se sabe quando você vai ficar com “as calças na
ele participava do planejamento de ações bélicas mão”, por isso é imprescindível o manejo de pelo
que mudavam o rumo de Reinos. Despertou de menos uma arma. Eu poderia escolher uma menor
seu devaneio ao ouvir o barulho de madeira e mais discreta, mas preferi a foice por combinar
sendo quebrada. Uma cadeira caia ao chão com mais com minha aparência. Além disso, sou bem
um golpe de machado. treinado em seu uso.
– Droga! Cadê o mago, John? – ainda com – Como é lutar com uma foice? – perguntou
a arma na mão, irritou-se Rambor. John, entrando na conversa.
– Ele deveria estar aqui, senhor! – Sempre pronto para aprender sobre
– E está. Eu sinto sua presença. – disse armas... – acrescentou Justifer. – Já enfrentei alguns
Lestak, atento a tudo. que a utilizavam.
Um riso fantasmagórico ecoou pelo ar. Um – Então você sabe como é a técnica. – disse
riso que causaria pânico a pessoas mais sensíveis. o Lich.
– O elfo é bastante perspicaz. – a voz não – Sim. É uma mistura de bastão, machado e
menos assustadora soou, juntamente com o lança, boa para defesa e desarme. Mas, por
aparecimento de uma fina silhueta envolta em um

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Crônicas Artonianas II
geralmente ser uma arma pesada, abre um bom – Não precisa se preocupar. Conheço esse
espaço para contra-golpes. poder de diminuir e aumentar objetos e não preciso
dessa sacola. Tudo que preciso é desse saquinho
– O clérigo está certo, embora tenha feito uma
na minha cintura, que contém os reagentes para
explanação simplista demais de tal arma. A foice
minhas magias.
nada mais é que uma arma longa, pesada e não
balanceada, que precisa das duas mãos e abre espaço À medida que Rambor citava cada um dos
para contra-golpe se usada para atacar. Utiliza itens, Lestak examinava-os com atenção:
basicamente a mesma técnica que um machado ou
– Espera! Cadê o cobertor?
maça de duas mãos, mas um ataque de perfuração é
difícil de ser executado com ela. Entretanto, eu – Dormiremos ao ar livre e usaremos as
aprimorei o ataque de minha foice em todos os mochilas como travesseiro... – sussurrou Louis.
sentidos, diminuindo também o tempo de contra – Prossiga, Lich. – disse Rambor, assumindo
golpe. posição de descansar.
– Gostaria de duelar com você qualquer dia Com movimentos sombrios, o morto-vivo
desses. dirigiu-se à cabeceira da mesa, ao lado de Rambor.
– Quem sabe quando retornarmos, Justifer. – O plano de minha deusa é um lugar
SE retornarmos. incompreendido por seres como vocês. Durante
– Esse lugar parece uma adega. Lancelot, anos tenho vagado pelo Reino, tentando descobrir
você que é gosta de beber, quer uma bebida? – coisas novas e entender segredos. Foi em uma
ofereceu Lestak. dessas viagens que vi sua suposta arma dourada.
O portador com certeza é um ser bastante poderoso,
– Chega de conversa fiada! Vamos ao que pois uma arma como aquela, cuja simples
interessa: a missão. Sentem-se. luminosidade mata alguns seres das trevas, atrai
Todos, exceto Rambor e o Lich, sentaram-se bastante atenção. Por isso, fui contratado por seu
na grande mesa retangular. De aspecto rude, nada Sumo-Sacerdote para levá-los até o plano, no ponto
mais era do que uma grande e grossa tora de madeira aproximado onde o encontrei. Uma vez feito isso,
mal cortada. não ajudarei vocês a conseguir a arma,
provavelmente matando a criatura. Não fui pago
Rambor andou até um canto da sala, pegou
para isso. Mas é meu dever levá-los de volta a
algo, voltou e jogou-o na mesa. Era uma pequena
Arton.
mochila utilizada para viagens, negra e com o
símbolo de Keenn costurado nela. Lestak levantou-se revoltado, afastando a
cadeira.
– Essa é a nossa pequena mochila para
viagens. – Merda! É uma missão suicida!
– Senhor, não seria melhor utilizarmos a – A elfa está com medo? – desafiou John. –
mochila de guerra? – perguntou John. Pensei que os Lobos fossem os melhores.
– Não. A mochila de guerra é muito grande, – E somos! – afirmou Lestak.
usada apenas em grandes batalhas e marchas para
Lancelot ficou em silêncio, talvez já tendo
distâncias enormes. Além disso, vocês usarão
conhecimento do porvir.
equipamentos leves.
– Então prove! – exclamou John.
– Eu gostaria de levar apenas um alforje,
senhor. – disse Justifer. – Quando você quiser! – retornou o elfo.
– Pode levar, Justifer. Agora ouçam! Cada um Ao sinal positivo de Rambor, John se
de vocês levará o equipamento que está dentro da levantou, foi até um suporte de armas, pegou uma
mochila da mesa. Estes serão os itens que utilizarão espada longa embainhada e chamou Lestak:
na operação. Tochas, pederneiras, uma faca de – Venha comigo. – disse, enquanto ajeitava
sobrevivência, bandagens, ração concentrada para a bainha em sua cintura.
uma semana e diminuída com magia, cantis com
água, um galão de água também diminuído de **
tamanho, além de pergaminhos com essa magia para O elfo foi levado ao pátio dos fundos do
eventualidades. Não se esqueçam de racionar água templo. Uma área de treinamento pouco menor que
e comida! Também levarão uma pedra luminosa. um campo de futebol, onde clérigos e aspirantes

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Crônicas Artonianas II
praticavam exercícios físicos nos diversos aparelhos Além de ser um ótimo ladrão aventureiro,
e treinavam combate armado e desarmado. Lestak era um mestre com a espada curta. Sua arma,
após o episódio do Deserto da Perdição, tornou-se
– Ali. – John apontou para um lugar rodeado
mágica, conferindo grandes poderes. Um deles era
por arame farpado, de tamanho semelhante a um
a grande velocidade de ataque.
ringue de boxe. – A pequena arena.
– Estamos juntos nessa. – disse, estendendo
Enquanto andavam, Lestak observava tudo
a mão. – Vamos acabar com esse combate sem
e John explanava:
sentido.
– Como você pode ver, o pátio da frente é
usado apenas em ocasiões sociais. Aqui é a – Não, ainda não acabou.
verdadeira casa da guerra em Valkaria. John desferiu um forte soco na cara de
Lestak, que caiu no chão. Desnorteado, tentava se
Lestak já não estava mais tão animado
levantar quando recebeu um chute no estômago.
quanto no porão. Sabia que o duelo seria inevitável
mas, mesmo assim, tentou adiar o combate: O clérigo afastou com o pé a arma do
adversário. Em seguida, pegou-o e o levantou pela
– Temos mesmo que lutar?
camisa:
– “Apenas em combate provamos...
– O que me diz disso, elfo?
– ... Nosso valor.” – completou o elfo. – Sim,
– Você está fora de si, seu merda. – cuspiu
eu sei. Seu amigo Justifer praticamente nos
sangue na cara de John.
catequizou em nossa viagem até aqui.
O sacerdote, apenas piscou os olhos,
– Então você já sabe o que fazer, elfo. – disse
concentrando a raiva para o próximo golpe. Jogou
John, também sério, pois tinha ódio de elfos.
selvagemente Lestak para o arame farpado.
Lestak observou o semblante dele; viu que
não estava de brincadeira. Atravessou – Vamos resolver isso na mão. – disse,
cuidadosamente o arame primitivo e pisou no chão enquanto limpava o rosto de sangue e recebia o
de areia da arena. Alguns clérigos pararam seus apoio da torcida.
afazeres apenas para assistir a luta. Lestak caiu de costas no arame. Suas costas
escorriam bastante sangue, através dos vários
John entrou rudemente no ringue,
machucados, e sua camiseta estava rasgada.
acompanhado por gritos de apoio. Com a espada
Desprendeu-se do arame e a retirou, exibindo
em mãos, desafiou:
músculos consideráveis, com as costas cheias de
– Venha, elfo. Você verá do que é feito um cicatrizes, pois já fora escravo de um navio em
verdadeiro guerreiro. tempos passados. Entrou em posição de luta
Lestak não sabia que John era um característica de artistas marciais.
yudeniano. Seria um combate sem regras. – Eu aprendi um pouco de luta com um
– Não é você o desafiante? nativo de Tamura. Não vai me vencer assim tão
facilmente.
John olhou para a bainha de Lestak.
John desprezou as palavras do inimigo.
– Você vai lutar com uma espada curta? Mas Avançou agressivamente em sua direção, pronto
que covarde... Agora terei mais prazer em acabar para atacar. Levou alguns golpes, mas não sentiu
com você. nenhum deles. Desferiu um soco na barriga de
O sacerdote, iniciando o estado de frenesi, Lestak, pegou-o pelo pescoço e o levantou
correu em direção ao ladino. O elfo desembainhou novamente.
sua espada curta tão rápida quanto um piscar de – Agora não vou ter piedade de você, elfo!
olhos e o desarmou antes que pudesse pensar em Você não irá para essa missão!
aplicar um golpe. Tudo fora tão rápido que alguns
espectadores nem entenderam o que aconteceu. Lestak sentia seu pescoço quase se quebrar.
Não ouvia mais a torcida. À beira da inconsciência,
A espada longa de John perfurou a areia, refletiu: se golpes normais não surtiam efeito
ficando em pé. naquele lutador, que utilizava a força bruta como
– Como? Mas você é só um elfo... – arma, somente acertando os pontos vitais venceria.
surpreendeu-se, saindo do frenesi.

86
Crônicas Artonianas II
Como suas pernas estavam meio dormentes, – Senhor?
acertou suas orelhas com suas duas mãos. O clérigo
– Eu o mandei atrás de uma sacerdotisa de
o largou e recuou, levando as mãos à área atingida.
Marah.
Com alguma dificuldade, ainda teve tempo de aparar
uma voadora de Lestak, pegando-o pela canela e – A deusa da paz? – surpreendeu-se John.
arremessando-o. O ladino caiu rolando no chão, mas – Sim. O Lich nos avisou agora de que
levantou-se rapidamente. precisaremos de alguém que conjure magias de
– Droga, você não desiste? – disse, cura, por causa dos mortos-vivos... Como Justifer
ofegantemente. engoliu em seco, suspeitei que estava escondendo
algo e, através da hierarquia, arranquei-lhe a
– Eu NUNCA recuo de um combate! Ainda informação.
mais contra um elfo!
– Por que não utilizamos outra pessoa? É
Quando John se aproximou novamente,
tão fácil...
Lestak abriu totalmente as pernas, deixando-as
paralelas em relação ao solo e socou seu órgão genital. – Não há tempo. Além disso, gosto de
Antes que o sacerdote pudesse gritar ou reagir, provocar clérigas da paz. Sempre tão puras e
derrubou-lhe com um golpe de pernas. Levantou-se inocentes com seus ideais...
com uma cama-de-gato e pisou em seu peito: John consentiu com a cabeça.
– E então? Desiste? – Justifer conhecendo mulheres? Ele, que é
– Nunca! mais rude do que nós, sem falar na cicatriz...
John já se preparava para derrubar Lestak, – Todos somos durões, John. Mas ele se
quando foi interrompido por Rambor, que chegara diferencia por sua postura moral. – riu. – Você
há pouco: deveria ver a cara daqueles aventureiros
mercenários quando ficaram sabendo dessa
– O elfo já provou que sabe lutar! Agora
mulher...
levante, John! Temos coisas importantes a tratar! –
olhou para os desocupados. – E vocês? Voltem ao **
treino! Justifer bateu na porta de Larinda. Ela
Lestak ajudou John a se levantar, auxílio este abriu.
aceito a contragosto. – Justifer, o que o traz aqui? – perguntou,
John retirou a espada longa cravada na areia franzindo o cenho.
e apontou para Lestak: – Marie está?
– Nossa luta fica pra outra hora. – Não, está trabalhando no Grande
“Espero que pra nunca mais, seu clérigo de Templo de Marah.
merda.” Pensou consigo mesmo. Agachou-se e pegou Justifer virou-se para ir embora, sem dizer
sua espada curta e sua camiseta, jogando-a sob o nada.
ombro.
– Preciso falar com você, servo de Keenn. –
– Lestak, vá para o porão. Os Lobos Solitários em tom severo, disse a elfa.
estão lá, junto com o Lich.
Justifer parou de andar. Sem virar para trás,
A medida em que o ladino deixava a área de disse:
treino, John aproximou-se de Rambor.
– Não tenho tempo agora. Talvez outra
– O desgraçado do elfo é bom de briga! Como hora...
será que devem ser os outros?
– É sobre Marie.
– Não faço idéia. Só espero que Justifer
cumpra as ordens. **

– Se não cumpri-las, eu o farei, senhor. Entraram na sala. O chão de madeira era


bem tratado, e havia um tapete de urso nele. As
– Por isso irá acompanhá-los. De qualquer paredes exibiam plantas e quadros da Lenórienn.
maneira, fique de olho neles. Principalmente no Justifer sentou-se numa cadeira, ajeitando a
Justifer.

87
Crônicas Artonianas II
espada embainhada para não atrapalhá-lo. – Para um lugar onde as noites demoram
Mesmo sentado sua postura era firme. muito a passar...
– Vou buscar um copo d’água. Larinda suspirou.
Larinda andava calmamente em direção à – Muito bem, eu permito que ela faça mais
cozinha, quando perguntou, ainda em movimento: essa viagem. Afinal, já tem idade suficiente para
– O que você quer com minha sobrinha? isso. Além disso, nesses meses de sua ausência,
minha sobrinha não parava de falar em você.
– Eu... quero levá-la para uma viagem.
Justifer não esboçou nenhuma reação. Mas
– Você conseguiu uma folga? Afinal, está à no fundo gostara da notícia.
paisana...
– O que você quer exatamente com ela,
– Sim. – sua voz era grossa e firme. Justifer?
Larinda voltou com dois copos. – Só quero levá-la para viajar.
– Como você sabe, Marie é uma clériga de – Tem certeza?
Marah. Ela é o orgulho da família. – quando citou
– Senhora, tenho que ir. – disse, levantando-
os parentes, segurou-se mas, após alguns instantes,
se.
não pôde conter as lágrimas que escorriam pelo
semblante. – Armas não são permitidas no templo de
– Sabe, Marie morava em Lenórienn. Ela Marah.
perdeu a família na invasão goblinóide. Eu morava – Então deixarei a minha aqui. – disse,
em outra cidade na época, pois meu marido era um retirando a bainha armada da cintura e colocando-
comerciante viajante... a na cadeira.
– Você é viúva... – afirmou o sacerdote... Larinda olhou com desdém para a espada.
Eram armas como essa que semeavam a dor em
– Infelizmente sim. Mas, como eu ia
Arton. Uma verdadeira ofensa à sua filosofia
dizendo... Marie chegou aqui muito triste e jovem,
pacífica.
e eu a criei. Com a morte de meu marido, senti a
mesma tristeza que ela. Foi aí que procuramos a À medida que o sacerdote se afastava da
Igreja de Marah. Ela nos deu a paz necessária e hoje casa, a elfa disse consigo mesma:
Marie trabalha com afinco como enfermeira e – Marie, Marie... Será que você está fazendo
clériga, ajudando enfermos no templo da Paz. a coisa certa?
– Então você é como uma mãe para ela.
**
– Sim. Devido ao seu trabalho, muitas vezes
Justifer ficou impressionado com a beleza
ela escolhe ser transferida para os mais diversos
do lugar. Em todas as vezes que estivera em
lugares, com o único intuito de ajudar as pessoas.
Valkaria nunca havia visto o Grande Templo de
Por isso, muitas vezes passo meses sem vê-la. Uma
Marah. Um templo-hospital, com um grande jardim
vez passei mais de um ano sem receber notícias dela.
na frente.
E agora você quer levá-la para outra viagem...
Pela primeira vez em anos o guerreiro
– Senhora, eu sei que você me conhece há sentiu-se um pouco mais tranqüilo, pois o ar era
apenas um dia, mas, apesar de eu ser um clérigo da puro e o lugar transmitia uma sensação estranha,
guerra e ela da paz, pode ter certeza de que, de agora diferente de todas que havia sentido. Talvez era isso
em diante, protegerei você e ela com a minha que os homens contavam nas histórias.
espada. Posso ser um caolho, posso não ter uma
aparência muito agradável, mas lhe dou minha O sacerdote percorria o caminho de pedra.
palavra de que não ninguém a fará mal. Cruzava com enfermos e sacerdotisas, todas
impressionadas com o guerreiro. Mas ele sabia que
Larinda sentiu confiança nas palavras
elas tinham medo e até asco, pois sua aparência de
firmes do sacerdote. A elfa sabia que por trás
soldado, apesar de estar à paisana, era evidente,
daquele aparentemente lacônico sacerdote havia um
principalmente pela cicatriz.
bom homem.
Marie o avistou perto da fonte e o chamou:
– E pra onde você irá levá-la?
– Justifer!

88
Crônicas Artonianas II
Aproximou-se dele: Marie pensou o motivo daquele homem ser
tão rude a ponto de amargurar-se com as mulheres.
– Quanto tempo! O que está fazendo aqui?
Mas ela não entenderia.
– Eu... Vim convocá-la para uma missão.
Em toda a sua vida, o sacerdote tivera
Marie ficou surpresa. Esperava que o relações com apenas uma mulher: Cathyn. Ela mais
sacerdote a convidasse para jantar ou algo parecido, tarde casou-se com um mago da Academia Arcana,
e não que a “convocasse para uma missão”. e Justifer ficou solitário. Desse amor perdido,
– Missão? Que missão? formou a base de seu código de honra. Ainda hoje
ele a ama e protege, como um anjo de guarda.
Após as explicações, a elfa se manifestou:
E agora, sem saber, Marie roubava essa
– Deixe-me ver se entendi direito... Você quer atenção. Justifer não entendia o fato dela sentir-se
que eu vá num lugar tão perigoso quanto a Tormenta atraído por ele. Afinal, embora conservado, estava
pra buscar uma ARMA para seu SUMO- com quase quarenta anos, e havia também a cicatriz
SACERDOTE? Não, pior! Você quer que eu seja a no olho, em contradição a LeBlanc, na flor da idade.
sua enfermeira particular nessa missão, não é Apesar de ser elfa, Justifer gostava dela, o que
mesmo? significava uma verdadeira traição ao seu povo.
– Fale mais baixo. Está fazendo escândalo. E Tudo estava ficando bastante complicado.
sim, precisaremos de suas magias de cura.
**
– Por quê...? – perguntou, inconformada,
quase chorando. Enquanto andava para o templo de Keenn,
Marie pensava:
– Você acha que estou aqui de livre e
espontânea vontade? Eu cumpro ordens, e elas “Marah, proteja-me dos perigos dessa
suplantam tudo, inclusive meus sentimentos! jornada. Não estou acostumada com lâminas e
combates. Só estou ingressando nesse perigo pelo
– Que sentimentos? – perguntou Marie, com Justifer e por ter uma oportunidade de propagar
um sorriso jovial nos lábios que substituiu as sua doutrina de paz, minha Deusa. Esta arma que
lágrimas. estou carregando agora” – olhou para a espada
– Não importa! De qualquer maneira, serei bastarda que Justifer deixara na casa de sua tia –
obrigado a levá-la se não vir comigo por bem. “pertence a um sacerdote da guerra e não será
utilizada por mim em hipótese alguma. Que eu não
– Aqui não são permitidas armas...
te decepcione, Marah. Ah! Permita também que
– Tenho uma adaga escondida comigo. minha tia não fique sabendo disso. Larinda,
– Tente me levar à força, então. desculpe ter que mentir para você, mas é por uma
boa causa.”
Justifer tentou sacar a adaga, mas não
conseguia. Uma força sobrenatural o impedia de fazê- A elfa avistou de longe a grande fortaleza
lo. Era a aura de paz, comum aos templos da deusa. de Keenn, que parecia mais sombria à noite.

– Por que não consigo...? A sentinela arregalou os olhos quando viu


uma bela elfa se aproximar das portas do templo.
– Agora você entendeu que a paz supera Devia ser algum engano. Barrou-a com seu
tudo? machado:
Justifer nada respondeu. Para ele, somente – Alto lá! Quem ousa adentrar nossos
sua crença importava. portões? – perguntou com voz firme. Apesar de
– Justifer, Justifer... – suspirou. – Está bem, tentar manter postura, a beleza da elfa fazia com
irei com você, já que deseja tanto... que o soldado ficasse melindrado.
– Partiremos ao anoitecer. – disse, virando- – Marie LeBlanc de Lenórienn, sacerdotisa
se. da Deusa da Paz, Marah.
– Tão cedo? O clérigo estranhou, afinal, servas da paz
não podiam portar armas. Apenas deixou-a passar
– Eu já avisei sua tia. Quando for para lá, por
quando notou o símbolo de Keenn na arma que ela
favor, pegue minha espada, traga bastante material
carregava.
médico e apareça lá no templo...

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Crônicas Artonianas II
Marie pisou no primeiro pátio descoberto, Rambor saiu de propósito. Sabia que algo
rodeado pelas paredes das dependências do templo, acontecera entre Justifer e Marie. O sentimento
uma escada e uma porta que levava ao outro pátio. revelado pelo clérigo ao ter que falar sobre ela no
Olhou para cima, admirando a grande lua cheia. porão o denunciava. Além disso, deixaria que ele
Abaixando lentamente o olhar, observou as tochas explicasse os detalhes sujos. Rambor achava tudo
das paredes que iluminavam o pátio com um grande isso divertido, embora preferisse uma batalha.
símbolo da guerra pintado no chão.
O par se entreolhou por alguns segundos,
Um clérigo se aproximou: sem dizer uma palavra. Quando voltou a si, Justifer
foi até o armário e retirou um pacote de lá. Jogou-o
– Senhorita. – cumprimentou-a com
na mesa:
respeito. – Eles estão no vestiário. Acompanhe-me.
– livrou-a do peso dos equipamentos. – Esta roupa pertencia a um antigo clérigo
Marie surpreendeu-se com o sacerdote. daqui, morto em ação. Você ficará meio
Talvez ela tivesse uma idéia errada deles, pois os masculinizada com ela, mas foi o tamanho mais
achava todos brutos e mal-educados. parecido com você que encontrei.
– Justifer, sua espada e meus equipamentos
Subiram a escada que levava à sala de
ficaram com um sacerdote no pátio.
Rambor. Marie estranhou, enquanto o soldado batia
na porta e abria. – O pessoal daqui é eficiente. Já estão
preparando tudo.
A elfa foi recepcionada por Rambor, que fez
um gesto para o sacerdote da porta se retirar. – Será você que irá comandá-los?
– Então você é a clériga da paz... – disse, – Digamos que sim. Embora John seja o
examinando-a dos pés a cabeça. Oficial-em-Comando, pois ele é de patente superior,
ficarei na frente, desempenhando o papel de
Enquanto Rambor a examinava, Marie
Homem-Ponto.
olhava para Justifer, sentado na mesa de seu
superior escrevendo uma carta. O sacerdote sequer – Homem-Ponto?
levantou a cabeça para cumprimentá-la; parecia
Justifer sorriu. Esqueceu-se de que Marie
estar ocupado com seu afazer.
não compreendia o vocabulário militar.
– Você não poderá utilizar esse manto – Nossa Ordem não dá ênfase apenas à
branco, elfa. Por isso, temos uma roupa sob medida guerra no campo de batalha, mas a todos os tipos
para você, igual a que nosso amigo Justifer está de guerra. Sendo assim, somos capacitados a lutar
usando. Levante-se Justifer! com muitos ou poucos homens, como é nosso caso.
O clérigo levantou a cabeça, largando a pena Por isso, os grupos especiais, para operações desse
que utilizava, afastou a cadeira e se levantou, porte, são divididos assim: na frente fica o Homem-
ficando de postura marcial, revelando uma Ponto, eu. É ele quem lidera o caminho ao objetivo,
vestimenta totalmente negra, com coturnos, colete mantendo os olhos abertos para os inimigos, dando
e luvas de couro. Um kilt também o adornava. as ordens e cobrindo o Oficial-em-Comando que,
nesse caso, será John. O Oficial-em-Comando
– Senhor, terminei de escrever minha carta.
cuidará do meu traseiro e também ajudará na busca.
Você poderia enviá-la na minha ausência?
Atrás dele, virá Lancelot, que desempenhará um
– Sim, Justifer, pode deixar. – olhou para o papel de Soldado. Você virá atrás do Lancelot, como
kilt do sacerdote. – Elfa, você usará uma roupa médica e, atrás de você, Louis e Lestak a protegerão.
semelhante à dele, exceto o kilt... Esta será nossa ordem de marcha, entendeu?
Rambor andou até a porta. – Marcharemos em linha reta?
– Agora tenho que conferir os últimos – Mais ou menos. Embora nossas próprias
detalhes com John e seus mercenários. roupas nos garantam uma boa camuflagem, ainda
Antes de bater a porta, ainda advertiu o há uns sinais que treinamos para nos orientarmos
clérigo: em silêncio. Creio que Lancelot ainda saiba de
alguns desses sinais, por isso não se preocupe. Será
– Justifer, vê se não bagunça minha sala, com eles que mudaremos de formação e tudo mais.
senão eu te arrebento.
– Quem é esse Lancelot?

90
Crônicas Artonianas II
– É o meu discípulo. Depois vai conhecê-lo e – Sabe, meu pai é um oficial do exército. –
o resto da equipe. Será de vital importância para o disse, com os olhos brilhando, lembrando-se do
cumprimento da missão. Vamos nos esforçar para passado.
fazer dessa a nossa melhor missão.
– Então está no sangue. – disse, sorrindo
Marie não reconhecia o sacerdote. Seu carinhosamente e até inocentemente.
comportamento militar a estava deixando
Justifer pegou seu alforje que estava ao lado
incomodada.
da mesa.
O sacerdote notou a desatenção da elfa e – Vou inspecionar os soldados. Enquanto
calou-se, observando-a por alguns segundos. Seus isso, você pode trocar de roupa tranqüilamente.
olhos ternos o convidavam ao beijo. Parecia que ela
o estava enfeitiçando. O Espada Mortal andava até a porta,
quando foi interrompido por LeBlanc:
Antes que pudesse beijá-la, num ato de forte
força de vontade, deu-lhe um tapa na própria face. – Será que você poderia me ajudar?
Marie ficou decepcionada. Antes que o sacerdote pudesse responder,
a porta foi aberta, seguida de um aviso:
– O que você está fazendo?
– Senhor, eles o chamam.
– Ahn... estou te mostrando uma técnica para
manter-se acordada. Precisaremos disso. – Sim, já estou indo. – olhou para Marie. –
Preciso ir.
O clérigo viu que seu argumento não a
convenceu. Voltou ao tom sério e disse: Justifer deixou a sala, abandonando mais
uma vez a elfa.
– Desculpe por envolvê-la nisso. Fui obrigado
a fazê-lo. É uma missão tão perigosa que talvez nem – O que há de errado comigo... – refletiu
voltemos mais. Não que eu tenha medo, mas nós a Marie.
protegeremos. E se John se meter pra cima de você... **
– Justifer, você está sendo machista. Justifer desceu vagarosamente as escadas,
O clérigo não soube o que responder. Para refletindo a respeito de Marie e, no pátio, encontrou
mudar de assunto, Marie apontou para a carta da os integrantes da equipe, juntamente com o Lich.
mesa: Toda vez que o avistava, um frio percorria-lhe a
espinha, embora não o demonstrasse. Ficaria de
– Escrevendo para alguém? olho nele...
– Estava escrevendo uma carta para meu pai,
– Quer dizer que os sacerdotes de Tenebra
Rauren.
só podem ser vistos à noite... – concluiu Lestak.
– Ele mora longe?
– Sim. Por isso ninguém me viu quando o
– Um pouco. Em Yuden... digo, Yuvalland, inimigo de minha Deusa vigiava os céus. Somente
uma pequena cidade no reino de Malpetrim. – em lugares fechados, como aquele porão, eu
“corrigiu” rapidamente, para não magoar a elfa, que poderia arriscar uma aparição minha.
pareceu não se importar com o “erro”. Justifer chamou todos:
Rauren, pai de Justifer, era um velho oficial
– Agora prestem atenção! Confiram o
da reserva do exército de Yuden, instituição essa que
equipamento!
Justifer pretendia ingressar quando jovem. Apesar
de ser forte, arrogante e orgulhoso, infelizmente era Durante alguns minutos os mercenários
magro e já tinha a cicatriz no olho. Treinou muito cumpriam a ordem sob os olhos atentos do
para ganhar peso, mas não conseguiu realizar seu sacerdote, quando John devolveu a espada para
sonho. Quando desejou ingressar na Ordem da Justifer.
Guerra, não teve o apoio da família e do pai. Teve -– Tudo em ordem, Justifer. E a elfa? Já se
que vencer seu próprio progenitor em um duelo de acovardou? – perguntou, desdenhando.
espada para ser liberado. Quando entrou para a Igreja
da Guerra, abandonou seu próprio orgulho, – Eu não permitiria que vocês partissem
nacionalismo e arrogância comum aos Yudenianos, sem a minha companhia. – sua voz feminina
uma vez que o exército de seu próprio Reino não o alcançou a todos.
aceitara.

91
Crônicas Artonianas II
Marie desceu as escadas. Exceto por alguns – Cale a boca, elfo! Estou falando com meu
detalhes que ajeitava, já estava trajada em tempo comandado!
recorde para a missão. Ela não portava nenhuma
Antes que o elfo pudesse começar uma
arma.
discussão, Lancelot o impediu. Estavam numa
Lestak gargalhou ao ver como a roupa caia situação delicada demais para se darem ao luxo
desajeitada nela. Justifer apenas olhou duramente disso.
para o elfo, que se calou na hora.
John olhou para Justifer:
– Agora sim estamos prontos. – afirmou o – E então? Onde ele está?
sacerdote.
– Não sei, senhor. Só sei que temos que sair
– Ótimo. Fiquem próximos uns dos outros.
daqui, senão teremos problemas. – respondeu o
Enquanto isso vou preparar a magia.
clérigo.
O Lich abriu a pequena sacola de couro em
John concordou.
sua cintura e começou a retirar umas ervas
desconhecidas pelos presentes. Eram os reagentes Justifer assumiu a ponta do grupo e fez um
necessários para o teleporte planar. sinal com a destra para andarem em fila reta, pois a
marcha ajudava na contagem da distância
Justifer prestou atenção em Lancelot. O ex- percorrida. Assumiram as posições na formação,
clérigo, como de costume, estava quieto demais. conforme explicado anteriormente.
Talvez ele sabia que aquela não era uma missão
comum. – Prestem atenção! Protejam-se uns aos
outros! De resto, já sabem o que fazer! – orientou o
Lestak assobiava enquanto o morto-vivo
sacerdote.
recitava as palavras arcanas, Louis examinava
cuidadosamente seu arco, John ficava em postura Embora acostumados com a escuridão,
firme e Justifer permanecia do lado direito de Marie, ninguém esperava que ela fosse tão intensa, mesmo
para protegê-la. com a grande lua cheia parcamente iluminando seus
passos.
Num piscar de olhos, foram teleportados.
Justifer particularmente não gostava do
Rambor, que acompanhara toda a cena, escuro. Preferia lutar à luz do dia, assim poderia
cruzou os braços e olhou o símbolo de Keenn no ver a face de seu oponente para o bom combate.
chão do pátio.
– E se utilizássemos a pedra luminosa? –
– Que o senhor da guerra esteja com vocês.
perguntou Louis.
– disse, prestando cumprimento com a espada que
carregava consigo. – Não. Ela chamaria atenção demais.
Melhor permanecermos incógnitos. – respondeu
**
Lancelot.
A paisagem era formada de sombras e – Ou o elfo não consegue atirar no escuro?
escuridão, numa região indefinível na linguagem – desafiou John.
artoniana. O solo pedregoso constituía a crosta
irregular da grande planície tortuosa. Os horizontes Louis não respondeu, pois tinha plena
perdiam-se ao longe, nas linhas escuras do quadro confiança em sua habilidade. Com certeza acertaria
melancólico, na paisagem da noite eterna. John a dois quilômetros de distância, mesmo se a
lua não brilhasse em Sombria.
Fazia frio, agravado por um forte vento
úmido que levava os uivos dos condenados, quando – Que Keenn nos ajude... – disse Justifer
surgiram do teleporte. consigo mesmo.
Olharam para todos os lados, procurando **
acostumarem-se à paisagem. Andaram até sentirem-se extremamente
– Justifer! – gritou John. – Cadê o Lich? Ele sonolentos e abatidos. Não tinham noção do
sumiu! tempo transcorrido, mas sabiam que deveriam
dormir. Além disso, a penosa travessia da grande
– Isso não estava nos planos. – disse com
planície pedregosa fez com que o moral do grupo
certa dificuldade Louis, encolhendo-se para
baixasse. Estavam tão cansados que não
minimizar os efeitos do clima.

92
Crônicas Artonianas II
conseguiam sequer levantar o olhar para a forte – Não acha melhor eu usar um pouco a
tempestade que começava a cair. pedra luminosa para vermos o que há a nossa volta?
Com esse escuro todo não estou conseguindo
Andavam em silêncio, lutando contra o
enxergar direito e você sabe que nós, elfos, podemos
cansaço. Louis prestava atenção em Marie, pois a elfa
enxergar as coisas quando há uma iluminação
fora levada muito além dos limites. Lestak protegia
mínima.
a retaguarda e Lancelot a dianteira deles, enquanto
John seguia à frente do ex-clérigo e atrás de Justifer. – Está bem, elfo. Mas use-a por debaixo do
casaco, pois assim chamará menos atenção. Depois
O clérigo sentia-se responsável por toda a
vá dormir. – disse, enfrentando o sono.
equipe, por isso não demonstrava sinais de cansaço,
embora o sentisse. Vez por outra respirava fundo Lestak fez o que havia proposto, olhando
para recuperar o fôlego da marcha, quando avistou, toda a área ao seu redor. A face atenciosa deu lugar
a muito custo, uma floresta de árvores mortas, com ao terror:
seus galhos retorcidos e sem folhas, uma vez que – Droga, saiam daqui! São árvores
diziam não haver vegetação nesse plano. assassinas!
– Vamos dormir ali! – apontou com a espada
– Saiam daqui! – gritou Justifer. O clérigo
em mãos para o lugar. – Encostaremos nos troncos
pulava da árvore, quando foi pego por um dos
das árvores, usaremos nossos casacos como proteção
galhos em forma de garra.
e eu ficarei de vigia. Isso é uma ordem incontestável!
Louis acordou a tempo de desviar de um
ataque da criatura. Lancelot pegou rapidamente
– Mestre, acho melhor deixarmos o Louis ou
Marie e desembainhou sua espada. John acordou
o Lestak de prontidão. Afinal, são eles que possuem
gritando algo relacionado a batalhas, quando a
os sentidos mais apurados...
árvore o atacou e perfurou-lhe o pé, na parte mais
– Pelo visto, ao sair da Ordem, você frágil do coturno, prendendo-o no misto de terra
amoleceu, Lancelot! Não conhece mais o significado molhada e lama, pois a chuva persistia.
da palavra disciplina? Não estou pedindo que vocês Sons bestiais emanados por outras árvores
durmam; estou mandando! Agora vamos, porque já pareciam pedir a morte do grupo. Ao ouvi-los,
estamos mais do que ensopados! Louis conseguiu avistar a boca deformada que se
– Eu me enganei. Apenas esta floresta é muito abria no tronco dela, armou uma flecha e a
mais sombria do que as terras do sul. Droga, tremo disparou. Mas o ataque não dera resultados.
ao pensar o que será o resto desse plano... – desabafou
Justifer aplicou um golpe de espada,
Lestak, enquanto andavam.
cortando o galho que o prendia.
De fato, as árvores ocupavam uma grande
– Cortem os galhos!
área, tão distante quanto à vista alcançava. As pedras
foram dando lugar ao barro e terra negros, quando John imediatamente seguiu a ordem do
se aproximaram dela. sacerdote. Ao custo da dor, fez uma difícil manobra
para cortar a garra que o atava ao chão. Enquanto
Adentraram algumas centenas de metros isso, Marie dormia profundamente.
dentro das árvores e relaxaram numa delas,
circulando-a. Justifer subiu nela e ficou agachado, Louis desembainhou sua espada e ajudou
observando a imensidão sombria, com as gostas Justifer e John a acabar com aquele monstro,
d’água a escorrer por sua face. Olhou para a grande desviando habilmente dos ataques enquanto
lua e, apesar da difícil situação em que se encontrava, cortava seus galhos. Lestak cumpria a arriscada
sorriu internamente. Sorriu porque estava em uma tarefa de pegar o equipamento e Lancelot mantinha
missão importante para seu Deus, lutando o bom Marie jogada em seu ombro, com a espada na mão,
combate contra os elementos e porque agora tinha ao mesmo tempo em que ouvia o barulho
alguém especial para proteger. ensurdecedor das outras criaturas que desejavam
alimentar-se deles.
Louis dormia sentado, com o arco na sua
frente, Marie dormia tranqüilamente, após receber Nesse momento a elfa acordou, ainda nos
uma magia de sono de um pergaminho, Lancelot a braços do ex-clérigo:
protegia e John dormia com a espada ao lado. – O que está acontecendo? – perguntou,
Lestak subiu silenciosamente na árvore e horrorizada.
perguntou para Justifer:

93
Crônicas Artonianas II
Com o cabo da espada, Lancelot a acertou, conhecido por sua perícia e não por sua origem. Para
fazendo-a desmaiar. Ele não batia em mulheres, mas ele, apenas a família, a Ordem e sua Honra
a acertara por ser extremamente necessário. importavam. Esses três conceitos representavam seu
triângulo de salvação, pois:
– Vamos sair daqui! – ordenou Justifer.
Família. Muitos se tornaram aventureiros
Eles correram cuidadosamente por entre as
com a perda dos parentes. Felizmente, Justifer ainda
árvores, vez por outra levando cortes e arranhões
conservava seu pai, mãe e irmãos.
das tentativas frustradas de pegá-los, e aplicando
golpes que salvavam suas vidas. John corria Ordem. Inicialmente Justifer desejara entrar
mancando e com grandes dificuldades, mas para o exército yudeniano para proteger as pessoas.
conseguiu chegar à velha planície, juntamente com Mas agora, ao tornar-se um sacerdote de Keenn,
os outros. simpatizara com seus preceitos. Se antes ele poderia
Fatigados, sentaram-se para respirar. ter o respeito de seus conterrâneos à possibilidade
Justifer agachou-se, olhando para o horizonte negro de ser um soldado, agora, como um guerreiro sem
e vazio que se avultava: pátria, possuía o respeito de TODOS os exércitos
do mundo.
– Vamos, não podemos ficar parados. Estas
Honra. Uma série de preceitos que se
árvores não saem do lugar, mas com certeza
mantinham constantes em um mundo caótico.
chamam a atenção de outras criaturas.
Muitas vezes seu comportamento entrara em
Ninguém respondeu nada. Apenas conflito com a ordem vigente, fazendo com que
respiravam para recuperar as energias. John fazia fosse repreendido, mas não pretendia abandonar
um curativo com um tecido trazido por Marie em suas crenças pessoais.
seu equipamento médico.
Após algum tempo, Justifer ordenou que
– Bem que a elfa podia me curar agora. Não parassem e dormissem. Desta vez, Louis ficou de
foi pra isso que a trouxemos? – ironizou. vigia.
– Vamos deixá-la dormir, John. Você **
agüenta esse ferimento. Além disso, você sabe muito
Lestak abriu os olhos, numa nítida
bem que essas magias têm efeito mínimo em nós. –
impressão de abatimento, como se não quisesse
respondeu o sacerdote.
encarar a realidade. Virou a cabeça na mochila que
– Justifer, desta vez andaremos sem servia de travesseiro e viu Louis sentado e
formação. Quero ter liberdade para atirar em quem bocejando, com o arco apoiado ao lado.
aparecer. – reclamou Louis.
– Ah, você acordou, Lestak...
– Pois bem, que seja.
O ladino levantou-se parcialmente,
– O barulho dessas árvores já está me tomando cuidado para não fazer barulho com sua
deixando irritado. Será que não poderíamos sair roupa úmida, esfregou o rosto e também bocejou.
logo daqui? – reclamou Lestak.
– Sabe, Lestak, eu estava pensando... –
Voltaram às pedras. Andavam sem divagou, olhando calmamente o horizonte. – Não
formação definida, mas Justifer seguia à frente deles, entendo como Justifer pode ser uma pessoa tão dura
enquanto John esforçava-se para andar sozinho, a ponto de levar uma criatura tão inocente e pura
pois a última coisa que queria era a ajuda de elfos. às piores provações...
Ainda conservava seu orgulho yudeniano.
– Acho que ele não escolhe esse tipo de
Justifer via John desprezar os elfos presentes coisa. Você mesmo viu no porão: eles só obedecem
e, internamente, sentia vergonha. ordens. – olhou afetivamente para Marie. – Mas você
Uma vez ele já fora assim mas, ao ser tem que concordar que ela parece um anjo
recusado pelo exército de sua pátria natal, revoltou- dormindo.
se contra ela, questionando seus verdadeiros – Tome cuidado, Lestak. Se Justifer ouve
valores. Não concebia a idéia de que uma terra forte isso, ele te mata.
como aquela pudesse virar as costas para um de seus
– Sejamos coerentes: o que uma mulher
filhos. Por isso, ao entrar para a Ordem da Guerra,
como ela quer com um cara como Justifer?
abandonou seu orgulho e agora tentava não revelar
não citar sua terra natal a ninguém, preferindo ser

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Crônicas Artonianas II
– Pare de ser pessimista. Ela deve ser uma – Droga, eu não gosto de cemitérios... –
pessoa bem samaritana e otimista e deve ter reclamou Lestak consigo mesmo enquanto entrava.
encontrado no rígido sacerdote a verdadeira face
– Mestre, não acho que iremos encontrar
dele. Talvez ela queira ajudá-lo, sei lá.
algo ai dentro dessas milhares de tumbas, a não ser
– Talvez... Você tem razão. Devemos ver o riscos desnecessários.
lado positivo de tudo.
– Você pode dar a volta, discípulo. –
– Sim. Veja você mesmo: quando estavam ironizou Justifer.
dormindo, pude observar uma sombra na escuridão. Lancelot ficou parado alguns momentos,
Não pude abatê-la, pois estava além do alcance de olhando o caminho. Estava com medo de entrar,
meu arco, mas acho que vi a direção em que ela foi. embora lutasse para não demonstrá-lo. A escuridão
– Tem certeza? era tão intensa que poderia jurar que até sua alma
estava negra.
Louis expressou sua afirmação com um leve
aceno de face. Justifer notou a apreensão de Lancelot e
perguntou:
– Ótimo. Então agora temos uma direção a
seguir. – disse uma terceira voz. – Está com medo, discípulo?
Os dois se surpreenderam ao ver Justifer – Não senhor. – respondeu firmemente.
deitado. A cabeça levemente inclinada encostada no
Ao tentar entrar no cemitério, foi barrado
alforje contemplava a lua e ele bebia um bom gole
pela lâmina de Justifer.
de água do cantil, escorrendo pelo canto da boca.
– Preciso conversar com você. – olhou para
Antes que pudessem se explicar, o sacerdote
os outros. – Fiquem alerta, que eu já volto.
adiantou-se:
Os dois se afastaram até que suas vozes não
– Eu tenho sono leve. pudessem ser ouvidas e se sentaram.
**
– Lancelot, sei que está com medo. Mas
Retomaram a jornada, seguindo a direção deixe-me dizer-lhe uma coisa: ontem, no episódio
indicada por Louis. Em poucas horas avistaram um das árvores assassinas, pensei que ia morrer quando
grande cemitério, maior e mais sombrio do que uma delas segurou minha perna. Eu estava
qualquer um em Arton. Jazigos, mausoléus e criptas, tremendo e suando frio também. Sabia que não era
desde as simples covas às mais majestosas, que a chuva que estava fazendo isso comigo.
ocupavam quarteirões, enchiam os olhos dos ali
– O que quer dizer, mestre?
presentes. O lugar cobria o horizonte. Levaria um
tempo indefinido para cruzá-lo. – Nosso Senhor Keenn não tem influência
neste plano. Suas graças concedidas não chegam a
Marie caiu de joelhos, desesperada e com nós aqui. Uma prova disso é que, pela primeira vez
lágrimas nos olhos: em anos, estou sentindo medo.
– Esse tormento nunca vai acabar?
Lancelot surpreendeu-se. Desde que o
Ao ouvir esse lamento, Justifer sentiu um conheceu, nunca viu Justifer demonstrar covardia
aperto no coração. Afinal, era dele a culpa da diante de nenhuma situação. Era um lutador frio e
presença da elfa ali. Endureceu seu semblante, benevolente. Agora não sabia o que dizer.
franzindo o cenho, para escapar de reflexões mais
– Lancelot, o mesmo acontece com minhas
profundas e se concentrar na missão. Particularmente
magias. Elas estão mais fracas. Eu vi isso quando
evitava o pensamento do florido e pacífico jardim
tive que empregar uma grande energia apenas para
do Grande Templo de Marah.
fazer Marie dormir. Teremos problemas aqui, com
– A elfa está entregando os pontos! Vamos certeza...
deixá-la aqui! – reclamou John. – Mestre, se Tenebra é a única que tem
Lancelot ajudou-a a se levantar, enquanto poder aqui, isso quer dizer que os deuses não estão
Justifer parecia refletir para tomar uma decisão. vendo o que você está fazendo aqui, certo?
– Vamos atravessar o cemitério! – indicou, – Sim.
com a espada em mãos.

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Crônicas Artonianas II
– Então por que não damos uma arma para John, com um sorriso no rosto justificado
Marie? Assim ela vai ficar pelo menos um pouco pelo combate iminente, ia seguir Justifer, quando
mais segura. uma mão rasgou o solo e segurou sua canela.
Embora ela aparentasse estar muito ferida, sua força
– Negativo, ela pode se machucar. Agora
era descomunal.
vamos, chega de conversa. – disse, levantando-se.
A mão o apertava com tal intensidade que
Lancelot respirou fundo, juntando forças
o coturno oferecia pouca proteção. Enquanto o
para o porvir, e se levantou.
sangue escorria de seu pé ferido anteriormente, John
** gritou de dor e pediu ajuda.
Um cheiro de morte tomava conta de tudo. Louis rapidamente sacou sua espada e
Atentos a qualquer movimento, andavam cortou a mão que prendia John. Tentou ajudá-lo a
vagarosamente, prestando atenção para não se levantar, mas o sacerdote o afastou, negando
tropeçarem. Lestak cheirava sua própria roupa, auxílio:
impregnada com o odor pútrido. Marie, lutando
– Tire as mãos de cima de mim!
contra um medo inexprimível, andava ao lado de
Lancelot. Louis protegia a retaguarda e Justifer a Enquanto John mancava, o elfo ironizou:
dianteira, com John atrás dele.
– De nada! Não era você que estava pedindo
Algumas horas de caminhada depois, ajuda?
resolveram descansar um pouco. Justifer chamou Marie:
Justifer sentou-se no chão, retirou um
– Venha!
pergaminho de seu alforje e leu as palavras arcanas
contidas nele, fazendo com que a ração voltasse ao – Não dá... – a elfa estava paralisada de
tamanho normal. O sacerdote levou as mãos ao saco medo.
e começou a comer. – Então eu te carrego! – correu na direção
– Alguém quer? – ofereceu com a ração na dela e a apoiou sob o ombro, juntamente com o
mão. Alguns grãos caíram no chão. equipamento que carregavam.
Marie esboçou uma cara de vômito. Lestak e Lancelot observaram que não havia
só aquele que ferira John. Na verdade, centenas
Lancelot viu a expressão da clériga e pensou
deles erguiam-se vagarosamente dos túmulos,
que seu mestre não estava fazendo a coisa certa.
numa visão que encheria de horror o mais audacioso
Todos, exceto John, percebiam que o clérigo parecia
guerreiro.
ignorar a acompanhante. Por sorte, a escuridão
escondia suas faces pouco satisfeitas, com seus olhos – Vamos morrer se ficarmos aqui! Corram!
cabisbaixos descontentes da situação. – ordenou Lancelot.
Justifer sabia que ninguém estava feliz. Mas – Merda! – desabafou Lestak,
precisava cumprir sua missão a qualquer custo, acompanhando o companheiro.
assim, poderiam voltar para casa. Entretanto, de – Não deixem eles encostarem em vocês!
maneira nenhuma quebraria sua promessa de não Pode ser fatal! E cuidado para não tropeçarem! –
proteger Marie. Afinal, estava apenas se advertiu Justifer.
alimentando!
Os minutos pareciam uma eternidade.
Repentinamente, Louis, sentado com o arco Apesar da fadiga, continuavam a correr. Todos
à sua frente e com sua canhota ao queixo, fez um achavam estar num pesadelo interminável e
gesto com a destra para que Justifer parasse de agradeciam aos deuses pelo ambiente não estar
comer, cessando o barulho. Seus olhos examinaram iluminado; não queriam ver a verdadeira aparência
a noite e franziu o cenho com a revelação. do que enfrentavam.
– Estou ouvindo alguma coisa... – Não há para onde fugir! Todos os lugares
Lestak também forçou os ouvidos para são iguais! – concluiu Lestak, esbaforido. – Só nos
ajudar o amigo. resta lutar! – encorajou, levantando sua espada
curta.
– Sim. São grunhidos!
– Mortos-vivos! – gritou Justifer, levantando
a espada e abandonando o saco de ração.

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Crônicas Artonianas II
– Até que enfim disse algo que preste, elfo! – Não conseguiu mais visualizar nada. Caiu
felicitou John. Lançou-se corajosamente contra a no chão sorrindo, como se Keenn aprovasse aquele
horda. combate.
Justifer não engajara no combate por ter a – Droga, é o fim! – gritou Lestak. O elfo já
prioridade pessoal de proteger Marie. Se estivesse tinha lutado na Grande Guerra, mas uma
em Arton com certeza perderia temporariamente gargalhada insana indicava que logo acompanharia
seus poderes concedidos por fugir de uma John.
oportunidade de peleja, desobedecendo assim a uma
Louis ouviu o lamento do elfo,
obrigação direta de seu deus. Não seria a primeira
desprezando-o. Ao desviar a atenção no combate,
vez.
notou um vulto rapidamente se movendo nas
Mas é um engano pensar que Justifer era um sombras.
covarde. Ao ver John combater, botou Marie no chão – Homem nas trevas!
e gritou:
Um moribundo de longas e desgrenhadas
– Círculo!
barbas e cabelos, portando uma peculiar arma,
A ordem da formação foi prontamente grande como uma lança, cujas extremidades eram
reconhecida por todos. compostas por uma ponta de lança e uma lâmina
de machado de dois gumes, pulou de um mausoléu
Marie ficou no centro do círculo que resistia
em cima dos zumbis. Seus trapos seguiam seus
bravamente a uma situação não muito favorável.
movimentos, que rapidamente limpavam uma
Antes, apenas abriam caminho. Agora, lutavam para
grande área, com movimentos mais semelhantes a
sobreviver.
uma dança – uma dança macabra, uma dança da
A luta tomava um rumo selvagem. A custa morte.
das próprias e escassas energias, Marie abençoava,
dava força e proteção aos combatentes além de lutar – Graças a Marah! – agradeceu Marie de
contra o próprio horror. John manejava furiosamente joelhos.
sua arma, enquanto Lestak, entre velozes golpes, O estranho fez um gesto para o seguirem.
arrependia-se de cogitar o combate.
O grupo abriu caminho até ele, que
Louis utilizava ora o arco, ora a espada, destampou um túmulo, revelando uma escada.
ambos com grande maestria e Lancelot lutava Rapidamente entraram nela.
corajosamente, por pouco não avançando sozinho.
Como não havia tempo de pegar o corpo
Apenas a orientação de Justifer, utilizando
de John, Justifer prestou um último cumprimento
firmemente a espada bastarda e protegendo a elfa,
com a espada e desceu às escadas escuras.
mantinha-o unido a eles.
Quando o homem fechou a entrada,
Ninguém conversava. Apenas o barulho dos puxando uma alavanca, a escuridão tornou-se total.
mortos-vivos, das lâminas e das preces de LeBlanc
podiam ser ouvidos. Entretanto, embora não o Do lado de fora, uma nova mão levantava-
fizessem, sabiam que não mais conseguiriam sair se para se juntar aos mortos vivos. A mão de John,
dali. Ou a pilha de corpos alcançaria o céu, ou agora um deles, pronto a agonizar eternamente na
morreriam. escuridão.
Desconheciam o tempo transcorrido mas, **
extremamente fatigados, esbaforiam. A resignação e – Sentem-se, descansem um pouco. –
o torpor começavam a tomar conta, quando, uma vez disse o homem.
mais, John foi ferido. Desta vez, fatalmente.
Respirando ofegantemente, obedeceram-
John cuspiu um sangue negro e seus sentidos no.
enfraqueceram. Olhou para baixo e viu o buraco que
uma garra retorcida fizera em seu tronco – Quem é você? – perguntou Justifer,
supostamente protegido por um colete de couro, encostado na parede, com a mão na cintura e a outra
indicando que os favoritos de Tenebra possuíam uma na espada.
força sobre-humana. Em seguida, levantou o olhar e – Sou a pessoa que salvou suas vidas.
contemplou o horizonte infinito. Realmente, a horda
Louis retirou de seu equipamento a pedra
era incontável...
luminosa e viu o cenário. A escada de pedra, que

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Crônicas Artonianas II
terminava muito abaixo num grande corredor de – Obrigado por nos dizer que estamos
terra batida, possuía uma largura considerável, presos. – disse Lancelot, coçando o cavanhaque. –
apesar da curta entrada. O homem recuou um passo Mas não há mesmo nenhum meio de fugir?
assustado ao ver o objeto, cerrando a visão com a
O homem gargalhou. Se estivesse claro,
mão.
todos veriam seus dentes podres.
– Não se preocupe. É uma luz falsa. Não
– Vocês nem viram minha maravilhosa terra
pode feri-lo. – disse, observando-o minuciosamente.
natal! Nosso Rei, o Lorde Vampiro Sanvidroth,
Lestak, que estava sentado perto de Aquele Que Comanda Os Esqueletos, é um dos mais
Lancelot e Marie, também o viu e surpreendeu-se benevolentes destas terras! Raramente se alimenta
com a aparência assustadora. O homem tinha uma e até diverte o povo com jogos na arena!
face encardida, com os olhos vazios. Seus trapos Quando citou o anfiteatro sua fisionomia
fedorentos pareciam esconder algo além de sua mudou, como se maquinasse algo.
aparente magreza. Entretanto, o homem possuía
uma agilidade e força fora do comum, demonstrado – Claro... como não pensei nisso antes? –
pelo hábil manejo da arma. virou-se para eles. – Há uma única maneira de
saírem daqui. Sejam meus campeões e, se vencerem
O elfo entendeu que a escuridão de Tenebra
o Principal Torneio do Lorde Vampiro, terão
era muito importante para o mundo, pois escondia
permissão para viajar até a próxima Necrópole.
coisas que não deveriam ser vistas, ou seriam
prejudiciais se o fossem. – Há maldade em suas palavras, homem!
Você diz isso para todos! – disse firmemente Justifer,
O homem ficou de costas e começou a descer
levantando o homem pelo fino pescoço.
as escadas. Eles se apressaram para acompanhá-lo.
– Largue-me... cof... Não estou brincando...
– Guiarei vocês até a Necrópole de – Justifer o largou. – Ack! – cuspiu no chão. – Se
Gabikansedom. fosse brincadeira minha, deixaria vocês morrerem
Marie arriscou um agradecimento: lá em cima! Além disso, não sou um oponente
medíocre! Mas me parece que vocês também são
– Obrigada por salvar nossas vidas.
habilidosos, pois poucos sobreviveriam a um
– Não agradeçam. Foi só seguir os mortos- embate com os mortos-vivos. Acho que têm poder
vivos para eu os encontrar. Sou uma das centenas suficiente para enfrentar seres de outras Necrópoles
de homens que são pagos para rotineiramente andar e até outros planos! O que me dizem?
pelos cemitérios e pelos subterrâneos a procura de
**
fugitivos. É o meu trabalho.
– Não somos fugitivos! – afirmou Lestak. A Necrópole era imensa. De fato, o homem
não mentira: um grande muro a cercava. Além disso,
– Eu sei disso. Sei que vocês são de outro havia uma muralha que se perdia de vista,
plano. Entretanto, devo lhes dizer que, uma vez dividindo a terra entre antes e depois de
dentro da Necrópole, não mais poderão sair. Gabikansedon.
– E se não quisermos entrar nessa maldita Um grande portal de metal enferrujado, tão
cidade? – perguntou Lestak. alto quanto à estátua de Valkaria, permanecia
– Dizem que há portais no cemitério, mas fechado, com dois vultos o protegendo. O homem
nunca ninguém os alcançou. Fora isso, este apontou para eles:
subterrâneo é enorme; morreriam se eu não os – Olhem nossos guardas...
guiasse. Além disso, há a floresta negra, protegida
por ninfas corrompidas e árvores assassinas. Lestak forçou a vista e reconheceu dois
Também temos o mar e a planície... mortos-vivos:
– São esqueletos!
– Poupe-nos de suas explicações. Já
entendemos que a Necrópole está cercada por esses – Eu nunca vi esqueletos com movimentos
elementos. – disse Justifer. tão... humanos... – impressionou-se Lancelot.
– Sim, mas ainda não terminei. Um grande Justifer, ao avistar os negros mortos-vivos,
muro, tão grande quanto à vista alcança, impede pensou em como seria difícil fugir da Necrópole,
que fugitivos avancem para a única direção restante. ainda mais com aqueles guerreiros a protegendo.
O homem levantou a destra para pararem.

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Crônicas Artonianas II
– Muito bem, agora vistam os mantos que eu Um rangido ensurdecedor do velho portão,
lhes dei no cemitério. cujas lascas do metal enferrujado dançavam na
melancolia, tristeza e sofrimento, anunciava a
Marie desajeitadamente manipulou a
chegada do grupo a Gabikansedon.
vestimenta, tentando vesti-la. Ao avistar um inseto
nela, jogou a roupa longe. Só havia uma palavra para definir aquilo:
Inferno. Sujas ruas, ora de terra, ora de pedras,
– Ai! São aqueles insetos que tivemos que
levavam a casas de madeira, em sua maioria.
comer!
Algumas casas de alvenaria também faziam parte
O homem sorriu, debochando da inocência da Necrópole que transformava a Favela dos
da elfa. Goblins, em Valkaria, em um lugar imaculado.
– Eu falei que levaria tempo para chegarmos Outra coisa que assustava era o tamanho
aqui. do lugar. Assim como Valkaria, a cidade se perdia
– Sim, tanto que nossa comida acabou! – de vista. Apenas as muralhas que a cercavam
reclamou Lestak. indicavam as fronteiras, e elas estavam longe, muito
longe.... na verdade, eles não conseguiam vê-las.
– Ora, se não fosse por mim, não saberiam
que alguns dos pequenos insetos que andam debaixo Por si só, esse fator já era preponderante
das pedras da planície são comestíveis! Vocês teriam para se esgotarem todas as esperanças de saírem
olhos para avistá-los? dali, mas não! Ainda havia os habitantes. Alguns,
jogados nas ruas, imploravam pela verdadeira
Lestak sorriu em retribuição. morte. Outros, vestidos com farrapos, andavam a
– Agora silêncio, pois estamos chegando esmo pelas ruas, enquanto uma pequena parcela
perto. parecia não se importar com a presença dos
aventureiros. A maioria tentava apenas sobreviver.
Ao se aproximarem do portão, perceberam
que o lugar era diferente dos outros. O ar parecia ser Em suma, era um ambiente visivelmente
mais pesado e difícil de respirar, trazendo uma perigoso, condenado à marginalidade eterna. Só
tristeza indefinível. Apenas duas tochas, uma de cada havia trevas e seres decadentes. Todo o cuidado
lado do portal de entrada, iluminavam o ambiente. era pouco.
Eles só tinham conseguido distinguir os esqueletos Impressionado com tudo, ainda assim
pela difusa silhueta que a fraca luz emitia. Justifer notou que, com exceção do homem, poucos
Um dos guardas interpelou o homem. Ao portavam armas. Pelo menos aparentemente.
contrário dos esqueletos, ele não tinha nenhum ponto Perguntou o motivo a ele, que respondeu:
luminoso no olho, e portava apenas uma lança. No – Aqui somente os Esqueletos e pessoas
entanto, a visão de seus movimentos causava grande autorizadas por Sanvidroth, como eu, têm
desconforto no grupo envolto em mantos. permissão para portarem armas. Mas isso não tem
O homem encarou o morto-vivo e disse: importância. Apenas escondam suas armas e tudo
sairá bem, mesmo porque agora vamos ir para o
– Eu trago campeões para o Grande Torneio
grande anfiteatro, pois estamos no dia do Torneio.
de Lorde Vampiro Sanvidroth.
– esclareceu, fazendo sinal para uma carroça que
O esqueleto andou na direção de Justifer, no andava pela rua.
intento de examiná-lo. Enquanto o circulava, o clérigo
– Subam! Demos sorte de chegarmos a
encarava o outro esqueleto, que parecia retribuir o
tempo!
olhar.
Após algumas horas de transporte, em meio
A um aceno positivo do guarda-lanceiro, o
ao que parecia ser o movimentado centro de
outro esqueleto dirigiu-se a uma pequena abertura
Gabikansedon, chegaram à arena. Os Lobos, Marie
na porta e emitiu um som que eles não
e Justifer se surpreenderam com o tamanho do
compreenderam.
lugar. Com certeza ele abrigava milhares de
– O que está acontecendo? – sussurrou ao pessoas, ocupando um espaço equivalente a uma
homem Lestak, temeroso. cidade de porte médio.
– Eles vão abrir o portão. Afastem-se. Eles sentiram medo. Era muita pressão.
** Felizmente, os gritos dos mendigos e transeuntes
abafavam seus pensamentos mais profundos e

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Crônicas Artonianas II
faziam-nos se preocupar em sobreviver, pois não Repentinamente, uma grande
havia mais volta. movimentação os surpreendeu.
– Pelos deuses, o lugar é enorme! – – O que está acontecendo? – perguntou
desabafou Lestak. Lestak.
– Aqui não há apenas simples combates, – Eles abriram os portões! Vamos! –
mas sim combates de grandes proporções. – respondeu Justifer, andando junto com a leva.
explicou o homem. – A primeira fase do Torneio **
consiste em dividir todos os participantes em dois
mini-exércitos e degladiá-los na arena. Após um O Grande Torneio fazia jus ao nome. Era
tempo determinado pelo Lorde e de acordo com o uma noite de glória. A medida em que entravam na
divertimento do público, os sobreviventes lutam areia da arena, saudados pela multidão de milhares
entre si em lutas de um contra um. Finalmente, os de pessoas, observaram que aquele era um dos
que restarem enfrentarão o desafio final. lugares mais iluminados de toda Necrópole, com
suas tochas que circulavam todo o lugar.
– E qual seria esse desafio? – perguntou
Lancelot. Os mini exércitos se posicionaram cada um
em um dos cantos da arena e ficaram em silêncio,
– Não há mais tempo para respostas! Sigam-
assim como todos, aguardando a chegada do Lorde.
me! – disse, correndo no meio do povo, entrando
na arena para colocá-los nos jogos. O vampiro possuía uma presença
sobrenatural, com seu porte elegante. Uma pele
– Pelo jeito, qualquer um pode se inscrever branca como a neve contrastava com seus antigos
para esses combates. – concluiu Justifer. – Será uma olhos vermelhos e cabelos cor de ébano. Seus
carnificina. movimentos lentos mas precisos indicavam que
– Vamos ficar juntos e nada nos ocorrerá. sempre estava preparado para algo.
Minutos depois, eles estavam nos Ao sentar-se no trono de prata cravejado de
corredores e salões internos, lugar onde os inscritos rubis, tambores ecoaram por toda a arena, indicando
ficavam esperando pela morte iminente. Justifer o início do Torneio. Porém, antes, Lestak forçou a
rogava para que Keenn lhe desse a permissão de vista e reconheceu alguém familiar ao lado do Lorde
lutar o bom combate, Lancelot movimentava a Vampiro:
cabeça para aliviar a tensão, enquanto Louis conferia
– Ei, é o Lich! Desgraçado!
a integridade de seu arco e preparava sua aljava.
Lestak tentava acalmar Marie que suava frio, uma – Não há tempo para isso Lestak! – gritou
façanha difícil pois, no meio da semi-escuridão do Justifer, de espada em punho.
lugar onde estavam, não era de se estranhar à Lancelot ultrapassou Justifer, afim de ajudá-
presença de pessoas atípicas e caras antipáticas. lo a proteger Marie.
– Vocês ficarão aqui, junto com este primeiro A elfa estava desnorteada. Justifer pegou em
grupo; o outro estará num outro salão, sendo que sua mão e rudemente a puxou junto dele. Ela
vocês o encontrarão na hora do combate. Bom, agora transpirava medo e seus sentidos se desnorteavam.
eu tenho que ir. Boa sorte. Antes de desmaiar, rezava desesperadamente para
– Ei, espere! Qual é o seu nome? – perguntou sua deusa. Louis ficou encarregado do corpo.
Marie. Quando as duas tropas se encontraram,
– Riojei. – disse, afastando-se. houve agitação na torcida, mas não havia tempo
para glórias. Somente o combate se fazia presente
A elfa começou a chorar. na mente de todos.
– Vamos morrer... – ela nunca tinha visto a
Era uma batalha selvagem. Alguns
morte tão de perto quanto agora. Sim, ela já tinha
sobressaíam nos combates, enquanto outros eram
tratado de feridos de combate, mas nunca
massacrados rapidamente e impiedosamente. Os
PARTICIPADO realmente de uma verdadeira
Lobos e Justifer figuravam entre os destaques.
batalha.
Louis, pouco distante, disparou três flechas
– Marie, haja o que houver, NÃO se afaste
de uma vez, acertando três alvos diferentes. Ao tirar
de mim! – afirmou com severidade Justifer. A clériga
outra flecha da aljava, um homem correu em sua
consentiu com a cabeça e enxugou as lágrimas.
direção. O elfo esquivou-se facilmente girando sobre

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Crônicas Artonianas II
os calcanhares e, com a mão, enfiou sua flecha na duelos em que os Lobos e Justifer participavam
nuca do inimigo, que caiu inerte no chão. Para não eram os mais emocionantes. Marie não tomou parte
gastar muitas flechas, arremessou sua adaga em dessa fase; Justifer não o permitiu.
outro inimigo e desembainhou sua espada não para Conseqüentemente ela não disputaria a final, mas
entrar no meio do embate, mas sim para proteger Justifer daria um jeito para que ela os
Marie. acompanhasse.
Lancelot aparava os golpes de dois Quando o último semi-finalista caiu no
oponentes, quando um terceiro tentou aplicar-lhe um chão, com a cabeça decepada por um golpe de
golpe pelas costas. O ex-clérigo morreria se, por sorte Justifer, o público foi ao delírio. Enquanto isso Lich
do destino, não tropeçasse num cadáver, a tempo de e o Lorde assistiam a tudo, impassíveis.
enfiar sua espada no estômago do atacante. Retirou
A medida em que a areia da arena absorvia
rapidamente o corpo com o pé, aparou mais uma vez
o sangue, Justifer os encarava. Sua cabeça há tempos
o golpe de um dos homens e cortou sua perna. Rolou
doía e seus olhos apresentavam uma profundidade
no chão, escapando de uma estocada do guerreiro
tal; era o efeito de matar demais. Além disso, sua
restante, e aplicou-lhe uma rasteira, fazendo-o cair
audição estava fraca, tanto que não ouvia direito a
no chão. Num golpe desesperado, enterrou sua
platéia.
espada no peito do inimigo.
Enquanto auxiliares e esqueletos pegavam
Já que os outros já estavam sem os mantos, os corpos dos mortos para amontoá-los com os
Lestak jogou o seu no adversário e o chutou. Aparou demais, Lich desceu à arena para cumprimentá-los
um golpe de outro e, rapidamente, cortou sua barriga. e anunciar o desafio final.
Olhou para os lados e viu o clérigo da guerra lutando.
Os Lobos estavam cansados mas, assim que
Muitos sequer conseguiam se aproximar de
o morto-vivo levitava a eles, acompanhado por
Justifer, tal sua maestria com a espada bastarda. Ele
guardas-esqueletos no solo, sentiram raiva por
não era um dos mais rápidos do mundo, mas sua
estarem naquela situação.
técnica consistia em economizar movimentos. Além
disso, incorporava seu estilo militar à luta, para o – Ora, ora... Se não são os Lobos e Justifer...
verdadeiro bom combate. Acostumado com batalhas, – O que você quer? – perguntou o sacerdote,
o clérigo controlava a respiração e parecia não pensar friamente.
em nada além da luta; mantinha sua mente
totalmente concentrada nisso. Ele só não pensava em – Eu só quero assistir a um espetáculo, mas
Marie pelo motivo de Louis assumir a a pergunta não seria “o que vocês querem?”
responsabilidade. Tinha o costume de confiar nas – Queremos a sua cabeça! – respondeu
pessoas, apesar de aparentemente mostrar-se Louis. Apontou uma flecha para o Lich mas,
lacônico e reservado, meio frio até. Ao ouvir as imediatamente, guardas-esqueletos ameaçaram
trombetas, anunciando o final da primeira fase do matá-lo.
Torneio, não se preocupou em procurar os
– Estou desarmado. – disse o clérigo de
companheiros de jornada. Olhou para a vibrante
Tenebra, gesticulando levemente. – Além disso, não
torcida e, entre lenta respiração, pensou:
seria um bom combate. Com licença... – disse,
“Por Keenn, como esse lugar é grande! Todo caminhando até o corpo de Marie, pegando-a.
esse povo...” olhou para os sobreviventes, que
– Ei! Pra onde vai levá-la? – protestou
levantavam as armas, saudados gloriosamente pelo
Lestak.
público, e para os corpos espalhados pela arena. “Foi
um bom combate, mas ainda não terminou. Não – Não se preocupe com ela, mas sim com
posso dispersar meus pensamentos com a torcida. vocês... – pegou-a e, enquanto levitava de retorno a
Tenho que manter o foco, vencer isso e sair daqui, de Sanvidroth, apontou para o céu.
preferência com a arma dourada.” olhou para o Lich. Todo o público olhou para o céu. Sob a
“To indo aí te pegar, seu filho da mãe!” apertou o grande lua de Tenebra, um vulto humanóide pulava
cabo da espada com mais força. para a arena. Portava duas foices totalmente
** douradas, uma em cada mão, que refletiam sob a
luz da lua, num brilho momentâneo tão forte que
A segunda fase do Torneio foi rápida. Havia
muitos fecharam os olhos.
mais de 100 sobreviventes, mas os combates não
duravam um ou dois minutos. Particularmente, os

101
Crônicas Artonianas II
As tochas iluminavam a face sombria de não havia nada de natural naqueles olhos vazios e
Justifer e seu sorriso ante o verdadeiro bom fisionomia insensível. Ele não possuía nariz ou boca
combate. Olhava com satisfação para seu oponente, e sua pele cinza, aliada à sua altura, pouco maior
que deslizava pelo céu. que um humano mediano, faziam dele um
verdadeiro alienígena.
Lestak agachou-se e pegou um punhado de
areia: Entretanto, o povo não estava surpreendido.
Apesar de ser a primeira vez que o viam, já se
– Temos que vencer, senão viraremos
acostumaram a estranhos seres de outros planos.
apenas sombras e pó...
Louis sorriu, pois Lestak estava sendo “Terei que tomar cuidado com o poder
movido pelo sentimento imediato. Sorriu porque daquelas armas.” pensou Justifer.
eram imortais. Fez um cumprimento com sua espada
bastarda e correu para o embate. Não era mais hora
– Não há tempo para brincadeiras. Olhem!
de fugir, pois um combate de vida ou morte
– gritou Lancelot, apontando para os portões de
apresentava-se diante dele.
entrada da arena.
Ao verem o gesto do clérigo, os Lobos
Mais do que nunca, o público saudou os
também se engajaram na luta.
novos oponentes que surgiam no campo de batalha.
Muitos concordavam que seria um massacre, mas – Louis, fique com um deles. Eu e o Lestak
adoravam assisti-los. ficaremos com o outro! – gritou Lancelot.
Dois seres, com movimentos robóticos, – Da última vez em que distrai o inimigo eu
adentraram a arena. Carrancudas faces humanas e quase morri! – reclamou, fazendo alusão ao combate
carecas contrastavam com um corpo totalmente no Oásis do deus da ressurreição, há mais de um
metálico. Os antebraços pareciam esconder ano atrás. Rapidamente armou uma flecha e chamou
compartimentos com armas secretas, mas logo se a atenção do golem, enquanto seus companheiros
podia ver garras em suas mãos. Eles eram quase se posicionavam para combater o outro.
tão grandes quanto um gigante pois certamente
Os olhos da criatura refletiam a corrida de
tinham, no mínimo, dois metros e meio. Suas
Justifer. Quando o clérigo chegou perto, ela pulou
engrenagens rangiam enquanto se moviam.
e jogou uma das foices em sua direção.
– Que armadura esquisita... – observou
Justifer facilmente desviou da arma, mas
Louis.
não esperava que ela voltasse como um
– Não são armaduras. São os corpos deles... bumerangue. Se não agisse a tempo, ela o partiria
– corrigiu Lancelot. no meio. Por sorte, ele apenas sofreu um corte
– Pelos deuses! Não sabia que eles faziam superficial nas costas, seu ponto fraco em sua técnica
coisas assim... Que tipo de ser teria coragem de fazer com a espada. Levou a mão ao ferimento,
tais experiências? constatando que sangrava, e empunhou mais uma
vez sua espada. A foice retornou automaticamente
Lancelot olhou para o Lich. Sabia que aquilo ao dono que, se possuísse uma boca, estaria rindo.
era obra dele.
Lancelot e Lestak correram
– Nunca se pode confiar em mortos-vivos... simultaneamente ao inimigo. O elfo ameaçou um
Quando o portador das armas douradas ataque para confundir o adversário, mas sem efeito:
encostou as patas no solo, Justifer gesticulou para ele e o ex-clérigo levaram um poderoso golpe do
que os Lobos combatessem os “golens”, pois não golem. Caíram na areia, rolando alguns metros no
havia condições para ele gritar, uma vez que o chão.
barulho da torcida era ensurdecedor diante do Louis atirava várias flechas, inutilmente,
entusiasmo da batalha final. pois não ultrapassavam o corpo metálico. O elfo
Justifer estralou o pescoço e encarou seu amaldiçoou-se e atirou outra flecha mas, desta vez,
oponente. Enganou-se ao achar que era humano: na face de seu oponente. Porém, antes que o projétil
embora apresentasse a parte superior semelhante a o atingisse, uma estranha luz brilhou no meio da
um, seus membros inferiores, com suas pernas que testa do golem, fazendo com que a flecha retornasse
dobravam para trás, como um canguru, garantiam ao elfo, que desviou facilmente.
a ele a habilidade de dar grandes saltos. Além disso,

102
Crônicas Artonianas II
A criatura pulou novamente para atacar. Louis observou rapidamente as duas cenas,
Justifer sabia que não poderia ficar parado. Apesar enquanto estava a uns dez metros de seu inimigo,
de possuir o enfraquecido poder mágico de seu Deus, distraindo-o nesse tempo todo. Mas agora era hora
recitou umas palavras a Keenn, e levitou alguns de atacar, e já sabia como.
metros.
Assim como seu companheiro, firmou os
Percebendo a ação de seu adversário, o pés no chão e leu as runas inscritas no seu arco de
portador caiu em sua direção. Ambos trocaram guerra. Entretanto, enquanto Lancelot possuía o
alguns velozes golpes antes de alcançarem o chão. poder do fogo, Louis controlava o das trevas. Atirou
Justifer caiu desajeitadamente e violentamente, tal a uma flecha no chão, abrindo um buraco de
proficiência de seu inimigo. escuridão, e mergulhou dentro dele.
– Preciso pensar em algo. – disse, Enquanto o golem andava rapidamente na
recuperando fôlego. – Pelo jeito nem lutando à direção da magia, o elfo surgiu em outro buraco
maneira dele adianta. Mas não posso desistir. Que atrás dele. Não cometeria o mesmo erro de estar
seja no mano a mano! exposto àquela pedra, certamente o motivo de seu
Mais uma vez correu inclinadamente na poder.
direção da criatura, que novamente arremessou uma Largou o arco e a aljava, desembainhou sua
das foices. O clérigo desviou dela e continuou espada e aproximou-se rapidamente e
correndo. Faíscas emanavam dos sucessivos sorrateiramente por suas costas. O golem só
encontros das lâminas quando a arma arremessada percebeu quando o elfo pulou em seu pescoço e
retornava, conforme Justifer planejara. Mas, desta forçou a retirada da pedra da testa. Furioso, pegou-
vez, estava preparado. Jogou-se um segundo antes o e o jogou metros de distância à frente dele.
para não ser atingido. Entretanto, o portador tinha o
Para não se machucar, antes da queda,
total controle da situação. Pegou a foice e tentou
Louis arremessou sua espada longe. Caiu de bruços
golpear Justifer com ela.
no chão, pois já estava sem forças para amenizar o
O clérigo rolou no chão, escapando dos impacto. O cheiro de sangue misturava-se à areia
ataques, mas um dos golpes acabou acertando-o de quando se levantou lentamente e viu que o golem
raspão ao lado da cintura. Justifer não recuou: apenas não parava.
se levantou e cuspiu sangue.
Lancelot observou a ação do companheiro
Lancelot e Lestak se levantaram, quanto à pedra e viu que seu oponente a possuía
medianamente tontos e, desta vez, o golem corria ao não na testa, mas no meio do peito. Enquanto
encontro deles. recuavam lentamente, discutiram uma tática:
– Lancelot, use o poder de sua espada! – – Lancelot, e se você lançasse novamente
gritou Louis. sua bola de fogo mas, desta vez, na cara desse
desgraçado? – perguntou Lestak.
O guerreiro firmou os pés no chão e começou
a ler as runas forjadas na lâmina de sua espada – Não... ele já sabe como a coisa funciona.
bastarda, a espada afundada no lago do oásis. Uma
– Ei! E se eu corresse na direção dele
luz flamejante surgiu, desde o começo da lâmina,
simultaneamente ao seu ataque? – mal terminou de
passando pelas runas, até a ponta dela, revelando
falar e começou a correr na direção do golem, não
uma bola de fogo que fez o golem recuar um passo
abrindo espaço para discussões.
com o impacto.
Corajosamente o elfo corria na direção do
A criatura viu enquanto o guerreiro golem, quando Lancelot lançou a bola de fogo.
conjurava as chamas e, nesse instante em que ela Agora, não havia como desviar de ambos.
virou a cabeça, Justifer aplicou-lhe um violentíssimo Entretanto, o golem também estava preparado. Sua
golpe, fazendo-a cair no chão. Porém, antes que ele pedra brilhou e ele também soltou um disparo
pudesse aplicar um golpe final, ela juntou as duas mágico, o que Lestak não esperava.
foices e também invocou uma bola flamejante, que
acertaria Justifer em cheio, se não fosse sua espada Juntando suas forças e rapidez, fez um
para diminuir o impacto. O clérigo foi jogado para esforço sobre-humano para desviar do ataque,
trás e caiu novamente no chão. girando sobre os calcanhares, e continuando a
correr. O elfo tinha visto a morte de perto nessa.
– Isto já está ficando chato... Mas agora deu
pra ver que essas foices douradas imitam os poderes
de outras armas.

103
Crônicas Artonianas II
A bola de fogo acertou em cheio a cabeça apenas quebraram as pedras, fazendo com que o
do golem, que começou a pegar fogo. Desnorteado, poder dos golens cessasse.
ele desferiu um novo ataque. Os compartimentos
Quando os últimos rangidos acabaram, o
de seus antebraços se abriram e lâminas retráteis,
público foi ao delírio.
através de um mecanismo, foram disparadas a
esmo. Para Lestak não havia perigo, uma vez que já Justifer pensou:
estava próximo ao corpo. O elfo pulou e, com sua “Estranho. Não foi tão difícil assim. Ele nem
espada, arrancou a pedra do golem, enquanto mesmo utilizou a técnica correta da foice. Na
Lancelot se jogou no chão para desviar dos projéteis. verdade, ele só ficou arremessando-as pra cima de
Algumas lâminas retráteis acertaram o mim. Mestre Arsenal poderia derrotá-lo
golem que enfrentava Louis, lâminas essas que facilmente... Não. Não há tempo para reflexões
faiscaram na armadura dele, desviando sua atenção. agora. O que importa é que conseguimos!”
Louis aproveitou a situação e correu **
desesperadamente para alcançar seu arco e a pedra,
que estavam atrás do oponente. Quando se Imediatamente Justifer bradou:
aproximou dele, utilizou uma técnica semelhante – Marie! – olhou para Lich.
ao de seus companheiros: jogou sua espada na cara
O morto-vivo desceu novamente até eles.
do golem, ao mesmo tempo em que rolou
Desta vez, com Lorde Sanvidroth em seu longo
acrobaticamente por entre suas pernas para passá-
manto negro, vinho e vermelho escarlate. Marie
lo, desviando de seu ataque. Pegou suas coisas e
entrou na arena correndo:
juntou-se ao restante dos Lobos.
– Justifer!
Enquanto combatiam os golens, Justifer
sofria para tentar acertar o portador. Porém, tinha – Marie! – abraçaram-se fortemente.
encontrado uma tática arriscada que, se desse certo, – O amor é lindo. – brincou Lestak.
com certeza acabaria com a luta.
– Cale a boca, Lestak. – disse Louis.
– Até agora fui eu quem tomei a iniciativa e
sempre me dei mal. Utilizarei minha técnica secreta. – Enrolem as armas em panos para que
possamos sair daqui logo. – ordenou Lancelot.
Fechou os olhos e, com a espada em punho,
começou a rezar. – Eu não tenho a obrigação de fazer isso. –
retornou o Lich.
A criatura pulou novamente para aplicar o
golpe final. Ainda no ar, arremessou uma das foices O clérigo de Tenebra foi interrompido pela
em Justifer. voz majestosa do Lorde:
O clérigo, com ajuda dos poderes mágicos – Vós ganhastes o Torneio. Pois bem, tens
relacionados ao ar, pulou numa velocidade incrível permissão para deixares minha Necrópole.
e, girando rapidamente sua espada como um O Vampiro apenas se virou calmamente e
redemoinho, venceu a arma, que caia no chão, começou a andar, escoltado por guardas-esqueletos.
enquanto Justifer continuou subindo
impiedosamente. A criatura entendeu que aquele Lich esboçou o que parecia ser um sorriso,
seria o ataque final e aplicou toda a sua força para como se tivesse algo maléfico em mente. Seus
descer com poder total. Nesse momento, o clérigo pensamentos foram interrompidos por Justifer.
ficou em posição e desferiu seu mais poderoso golpe – Lich, preciso falar com você.
vertical que, aliados ao poder da subida, à sua
Os dois se afastaram do grupo. Justifer foi
lâmina afiada e técnica perfeita, cortou o portador
breve:
ao meio.
– Preciso que você teleporte os Lobos para
Quando alcançou o chão, Justifer cuspiu no
um lugar bem distante no Reinado.
chão, e olhou para as armas douradas enfiadas no
chão. Não as tocaria até que o combate terminasse. – Você tem algum motivo especial?
Olhou para os Lobos. – Sim. Em verdade, recebi orientações para
Num provável último e desesperado golpe, matá-los ao término da missão, por estarem
os golens se juntaram e correram na direção dos participando de uma operação secreta de minha
Lobos e de Justifer. Porém, antes de alcançá-los, eles Ordem. Mas não gostaria de fazer isso; chega de
mortes desnecessárias.

104
Crônicas Artonianas II
– Assim será. Andaram durante algum tempo até os
fundos do templo-hospital, percorrendo um
Após a saudação para a torcida, foram
caminho de atmosfera calma e belas árvores com
levados a uma sala reservada do anfiteatro. Envoltos
odores divinos. Justifer sentiu-se encabulado de
em sombras, esperaram o Lich preparar os reagentes
andar num ambiente como aquele. Parecia o paraíso
para a grande magia. Enquanto isso, despediram-se
louvado pelos poetas.
de Riojei, que lhes entregou as mochilas utilizadas
anteriormente. As duas foices também já estavam Minutos depois, chegaram ao cemitério da
preparadas para a viagem. Ordem de Marah. Diferentemente do de Sombria,
este era muito mais simples e belíssimo. Flores
Justifer, abraçado com Marie, encarou os
descansavam em cada cruz branca e na grama e o
Lobos. Não sabia se iria vê-los juntos novamente, mas
piar dos pássaros garantia a tranqüilidade da
queria crer que eles ainda lutariam muitos bons
atmosfera.
combates, do mesmo ou em lados opostos.
Enquanto o clérigo de Tenebra recitava as Caminharam lentamente até uma das
palavras arcanas, Lestak já não mais assobiava ou cruzes. Marie agachou-se e leu o inscrito:
ria como da primeira vez, mantendo a cabeça baixa Aqui jaz Larinda,
e o semblante melancólico. À diferença de seu
Elfa de Lenórienn e Amante da Paz
companheiro, não havia como distinguir a face de
Louis. O elfo parecia apenas refletir e raciocinar. Seus – Tia... – lamentou, com lágrimas nos olhos.
pensamentos estavam confusos, mas não dava mais – Foi tudo culpa minha. Por que você tinha que
peso à sua filosofia de conhecimento quanto no início morrer doente durante o tempo em que estive
da jornada. ausente?
Lancelot olhava firme e respeitosamente seu Justifer, de postura marcial e quepe na mão,
Mestre. Tinha a intuição de que havia algo errado e tentou consolá-la:
de que tornaria a ver Justifer somente num tempo – Marie, a culpa não foi sua, mas minha.
distante. Talvez ele já soubesse o que iria acontecer. Eu realmente não queria envolver você naquilo
Lançou um olhar de adeus para Justifer e Marie, antes tudo. Sabia que você me acompanharia apenas para
de desaparecer. ajudar quem quer que você encontrasse. – suspirou,
** ouviu brevemente um cantar de pássaro e
continuou. – Já me falaram que você é uma voz
Por sua bravura em ação, Justifer recebeu da
muito ativa aqui, trazendo a consolação das dores
Ordem a Medalha Espada de Ferro, outorgada por
do mundo e a verdadeira paz. – viu que a expressão
Mestre Arsenal e entregue por Rambor. Também
da elfa permanecia inalterável e continuou. – Não
como recompensa, teve a permissão de pedir
foi culpa sua. Apenas a realidade mostrou-se muito
transferência para qualquer lugar onde a Igreja da
mais cruel do que o esperado.
Guerra se fizesse presente. Arrumou suas coisas,
pegou seu alforje e partiu para o templo de Marah – Mas eu já tinha enfrentado coisas piores!
para cumprir um último itinerário. Por fim, recebeu Justifer agachou-se, colocou seu quepe no
a orientação de ficar sempre alerta a futuras chão e apoiou a cabeça de Marie em seu ombro.
convocações para operações do gênero.
– Não... cuidar de pessoas é uma coisa, mas
Apesar do clérigo estar fardado, permitiram- causar-lhes mal é outra completamente diferente.
no que entrasse. Na mesma fonte em que convocara
Marie para a missão, encontrou-a novamente. Os dois – Como você consegue? –
se cumprimentaram abraçando-se, causando certo perguntou, tentando entender como ele mantinha-
espanto nos que passavam. se com a fisionomia distante diante da paz e tristeza
da elfa.
– Venha Justifer.
O clérigo pousou a mão na cabeça de Marie.
Antes de seguí-la, o clérigo olhou para seu
reflexo na água da fonte. Observou seu rosto rude e – Tem muita coisa ruim acontecendo no
sofrido e notou que Azgher, apesar de tudo, mundo. Tudo o que podemos fazer é tentar sermos
continuava a brilhar no céu artoniano, com sua luz fortes.
também refletida pela límpida água. Olhou para – Matando pessoas? – perguntou,
cima. tentando entender o que Justifer pensava.

105
Crônicas Artonianas II
– Ao contrário do que você pensa,
eu não mato pessoas indiscriminadamente, e sim
por um ideal. Não espero que você entenda, mas
Possessão
sei que o que faço é pelo bem de todos e para
proteger as pessoas, de uma certa forma. Esse é o por Cristiano “Leishmaniose” DeLira
meu caminho: eu escolhi me sacrificar, dedicar
minha vida para que as outras pessoas sejam felizes,
talvez não de uma maneira que elas aceitem, mas
isso é problema meu...
Justifer desviou o olhar para a cruz,
refletindo suas próprias palavras, tendo certeza de
suas convicções.
Marie depositou as flores que trouxera e
voltou a olhar carinhosamente, esperando uma
reação por parte do clérigo.
– Também tenho que deixar minha
oferenda. Aconteceu em Petrynia, no pequenino
vilarejo de Kizna no norte do reino. Era verão e o
O clérigo se levantou, apanhando o quepe, manto negro de Tenebra já havia caído em Arton.
vestiu-o, retirou sua medalha do peito esquerdo e a Iluminando o local, apenas o “Sorriso de Tenebra”,
colocou em cima da cruz. Por fim, prestou como é conhecida a fase da lua crescente em muitos
continência. reinos. Já viram que em algumas épocas do ano,
– É ela quem merece essa medalha. – em vez de surgir verticalmente, a lua crescente
completou. surge horizontalmente formando um sorriso?
Muitos gostam disso, pois acreditam que a deusa
Marie se levantou. esteja de bom-humor. Era uma noite fria, devido
– E Lancelot, Louis e Lestak? às correntes de vento vindas das Montanhas
Uivantes. O vilarejo de Kizna tinha somente uma
– Eles estão bem longe daqui. Mas uma
taverna, mantida pelo burgomestre da cidade,
coisa é certa: continuarão lutando por seus ideais.
Anderson Foca.
Você deveria fazer o mesmo. – disse, virando-se para
ir embora.
Era um homem pacato, o velho Foca.
– Justifer, fique comigo! – disse, com a voz Contam que ele já foi aventureiro, embora as
mais carinhosa do mundo. – Se permanecermos línguas de Sszzaas costumem dizer que a maior
juntos, podemos nos ajudar e melhorar as coisas. aventura de Foca foi lutar com um bom pedaço de
O clérigo parou de andar, ficou alguns gorad. Mas isso não vem ao caso... A taverna do
segundos em silêncio e, de costas, respondeu: Foca, como era conhecida, proporcionava alguma
diversão aos cansados fazendeiros após um dia
– Você ainda está muito abalada com tudo. exaustivo no campo. Pra muitos, isso era o
Procure sua paz para ajudar os outros. Eu seria suficiente. Mas como todo caso tem exceção, a
apenas um fardo para você. Fique em paz, Marie. exceção maior encontrava-se na pessoa de Kendall
Ao ouvir essas palavras, o coração de Marie Fauno.
doeu, assim como o de Justifer ao proferi-las, pois
ele também lutaria contra seus conflitos interiores. Kendall Fauno era um jovem adolescente
Talvez fosse melhor para os dois. A paz e a guerra com 18 estações¹. Era um pouco alto, possuindo
sempre foram antônimas, ainda mais nesses tempos cerca de 75 pedras² de peso distribuídas em 1,75
difíceis. galhos³ de altura. Tinha os olhos castanhos escuros,
a pele parda e os cabelos negros. Seu sonho era
Somente o tempo irá dizer qual irá triunfar.
tornar-se um aventureiro viajante em Arton,
Enquanto isso, Justifer continuou andando conhecer a grande cidade de Valkaria, comprar
lentamente, abandonando mais uma vez a elfa, em armas em Zakharov e nadar nos mares de Khubar.
meio à paz, as flores e ao canto dos pássaros. Locais que ele conhecera através das narrativas de
seu avô, que fora um aventureiro em sua juventude.

106
Crônicas Artonianas II
De seu avô, além do espírito viajante, ele herdou um — Então, vamos indo. — falou Khalil.
bastão feito de Tollon puro. Bastão esse que o
acompanhava durante suas peregrinações na floresta Kendall apenas olhou para Khalil e
que cercava Kizna no leste e no norte, a Floresta começou a caminhar em direção à taverna, que
conhecida como Arbóreas. Às portas da morte, seu ficava a exatas três ampulhetas prateadas4. Quando
avô o fizera prometer que ficaria na cidade até que se aproximavam da taverna, uma jovem mulher saia
alguém viesse para substitui-lo. Mesmo sem entender da mesma. Era Marlu, a cozinheira da taverna.
o motivo do pedido, Kendall cumpria a promessa Vendo os dois jovens aproximando-se, ela
feita. E, por isso, não abandonava aquele vilarejo que cumprimentou:
tanto o entediava, por aparentar tanta tranqüilidade
quanto o reino de Hershey. — Boa noite, jovens.

Naquela fria noite, Kendall fitava as estrelas — Boa noite, Marlu. — respondeu Khalil
tentando, novamente, entender a promessa que seu com um sorriso cordial. Kendall acenou com a
avô pedira. Estava encostado a uma estátua de cabeça.
Cyrandur Wallas, o grande herói de Petrynia.
Mantinha seu inseparável bastão preso às costas por — Viram as senhoritas Veroni e Marceli?
uma corda de tecido. Estava entediado. Seu amigo
Khalil o convencera a ir essa noite à taverna, onde — Não, não tivemos essa felicidade. —
um viajante narrava histórias recentes do Reinado. respondeu Khalil.
Boatos do avanço da Tormenta, uma tempestade
rubra e demoníaca que dizem surgir do nada e ser — Elas não estão na taverna? — perguntou
pior que a Aliança Negra, no leste do Reinado e a Kendall, intrigado.
tomada de Khalifor pelo exército de goblinóides da
selvagem Lamnor. Kendall não queria saber o que — Não, não. Eu fui lá em cima, no quarto
ocorria lá fora, ele queria estar lá. E ouvir essas delas, mas as camas estavam completamente
histórias poderia inquietar mais ainda o seu espírito, vazias... Por Marah! Tomara que não tenham ido
aumentando seu sofrimento interior. Mas Khalil encontrar o Cyrandur Wallace. Ele estava esquisito,
conseguira convence-lo a ir essa noite. sabem. Rondou as duas a tarde todinha, junto com
Silenciosamente, um vulto começou a aproximar-se aquele grupo dele.
por trás da estátua de Cyrandur. Seu andar era furtivo
e silencioso, como o de um visitante da noite. — O Cyrandur Wallace? — murmurou
Kendall involuntariamente.
—Boa noite para você também, Khalil. —
proferiu Kendall com grande serenidade. — Está — Exato. Sabe, embora tenha um nome
atrasado. Muito atrasado mesmo. derivado do grande Cyrandur Wallas, ele não age
de acordo com o nome. Agora, vou ter que procura-
— Pra quem não queria vir, até que você las, antes que o pai note a falta das duas... Já até
reclama demais. imagino a confusão. Que Marah reine nessa taverna,
caso o senhor Foca descubra a ausência das duas.
Khalil aproximou-se olhando para as árvores — disse Marlu, apresentando nervosismo ao
existentes na praça Wallas. Era um pouco mais baixo esfregar as mãos no avental.
que Kendall, umas 10 folhas e devia pesar a mesma
quantidade de pedras². Ao contrário de Kendall, — Não, se preocupe, senhora. Eu e Khalil
Khalil tinha os olhos castanho-claros e cabelos de as encontraremos. — falou Kendall.
mesma cor, sendo sua pele branca. Trazia preso às
suas costas um pequeno bandolim, caso precisasse Marlu permaneceu surpresa, não
dele na taverna. Ao contrário de muitos que andam disfarçando a surpresa por ouvir aquilo de Kendall.
à noite, Khalil não trazia armas, pois aprendera o Afinal, ele não era de conversas como Khalil. Aliás,
Kharpo com um khubariano viajante. Um estilo de muitos se perguntavam o motivo de duas pessoas
luta com mãos nuas, utilizando apenas movimentos opostas, fisicamente e na personalidade, andarem
das mãos e das pernas, combinados com gestos juntas.
acrobáticos. É bastante difundido na ilha de Khubar.
Kendall olhou para Khalil com um olhar irônico, — É que meu amigo não quer que nada de
devido ao comentário do mesmo. mal aconteça a Veroni e a Marceli. E nós dois

107
Crônicas Artonianas II
poderíamos vasculhar o vilarejo mais rápido que a ao domínio do tirano. Três deles estabeleceram-se
senhora. E ficaríamos bastante contentes em prestar na região, sendo um deles, o avô de Kendall. Os
esse serviço à senhora, que sempre é tão bondosa outros dois partiram de volta a Valkaria, por um
conosco. — adiantou-se Khalil, ocultando a surpresa motivo ignorado até os dias atuais. Seppet tornou-
presente nele também. se apenas ruínas com o passar das estações¹. Um
local temido pelos mais velhos e alvo de chacotas
— Então, está bem. Khalil e... Kendall, por parte de alguns dos mais jovens, como Wallace.
confio em vocês. Por favor, tragam as senhoritas Kendall desconhecia o que havia no castelo, mas
Marini de volta, sãs e salvas. E que Marah esteja estava intimamente ligado ao fato de seu avô ter
com vocês. ficado na cidade e com a promessa que seu avô
pedira. Isso era um fato. O fato de Seppet ser
— O mesmo, senhora Marlu. — respondeu perigosa e não um local para jovens adolescentes foi
Khalil com seu sorriso habitual. o que impulsionara Kendall a agir.

Marlu entrou de volta na taverna. Podia-se — O rastro deles segue para a estrada
ouvir uma música tocando e muitas risadas. Khalil antiga, como eu previra. — falou Kendall,
voltou-se para Kendall, surpreso e perguntou: levantando-se após analisar os rastros existentes na
saída do vilarejo.
— O que deu em você?
— Droga! O que é que Wallace tem na
— Como assim? — retrucou Kendall. cabeça? Dejetos de trobo? Levando aquelas duas
garotas para Seppet a essa ampulheta da noite! Se
— Esse tipo de coisa não é natural em você. algo acontecer a elas... — Khalil começava a
— falou Khalil. — Se oferecer prontamente a acompanhar Kendall na caminhada em direção a
resolver as coisas, ainda mais em aberto. Digo, você Arbóreas.
costuma fazer algumas coisas em prol da vila, mas
nunca revela que foi o autor. Todo mundo pensa Khalil era um dos poucos bardos de Arton
que o espírito de Cyrandur Wallas habita a região que não flertava com jovens garotas, pois seu coração
por causa desse seu segredo à moda Swachbuckler. já estava entregue a jovem Marceli Marini. E só em
imaginar ela sozinha com o Wallace e sua turma em
— Não temos muito tempo, Khalil. Se Seppet, sentia uma grande angústia, que o
minhas suspeitas se confirmarem, o reinado de impulsionava cada vez mais rápido entre as árvores
Marah não reinará na taverna do Foca. — Kendall de Arbóreas. Kendall também possuía um motivo,
começou a caminhar rápido em direção ao leste da além da promessa feita ao seu avô. Veroni, a única
praça. pessoa que sempre o tratava bem, mesmo sabendo
que ele era sisudo e pouco sociável. Ele resolvera
— Você está sabendo de algo que eu não demonstrar sua gratidão, de certa forma,
sei? — perguntou Khalil intrigado, acompanhando- protegendo-a. Mesmo acreditando que nunca teria
o. o amor dela, não se importava... O bem-estar e
felicidade dela já bastavam o sacrifício. Por isso, os
— Do que Wallace mais se gaba dois jovens corriam tão velozmente pela floresta, em
atualmente? — perguntou Kendall, esperando que direção às abandonadas ruínas.
o amigo chegasse à mesma conclusão.
Não acenderam tochas para não chamarem
— Ora, de ir freqüentemente à Seppet. E o atenções indesejadas de algum grupo de ladrões ou
que isso tem a ver com... — Khalil parou orcs. A luz da lua entre as folhas iluminava o
subitamente ao fitar o olhar de Kendall, exclamando suficiente até chegarem à antiga estrada, utilizada
logo em seguida. — Por Tanna-toh! Kendall, se eles antigamente pelo Barão de Seppet. Na antiga
foram às ruínas de Seppet, vai haver muita estrada, puderam manter velocidade constante, sem
confusão... arriscar-se a bater de frente com uma árvore. O
silêncio entre os dois falava por si só. Nem mesmo
Antes da fundação de Kizna, havia na região Khalil conseguia esconder o ar de preocupação de
um castelo habitado por um tirano, cujo nome deu- sua face.
se ao seu castelo e hoje, às ruínas do mesmo. Seppet.
Um grupo de cinco aventureiros conseguiu pôr fim

108
Crônicas Artonianas II
A aproximação de um vulto correndo de — Pegue isso, Gargul! — falou Kendall
forma desajeitada mais à frente fez os dois pararem pegando um comprido galho de árvore do chão. —
de forma brusca, mal dando tempo de Kendall puxar Vai servir como bengala. Vá para a cidade e traga
o bastão para um possível ataque surpresa pelos ajuda!
flancos. O vulto corria desajeitadamente, caindo e
tropeçando bastante. Poderia ser um truque de algum — Está... (arf! arf!) bem! — falou Ronald
grupo de ladinos, que poderiam estar cercando os levantando-se com a ajuda de Khalil e apoiando-se
dois naquele exato momento. O vulto aparentava um na improvisada bengala. — Tomem... (arf! arf!)
certo desespero ao correr, mas podia ser só cuidado e que Nimb role bons dados para vocês...
fingimento. Mas, ao ver aquelas duas pessoas
paradas em frente à estrada antiga, ele tentou parar Os dois nem esperaram Ronald começar a
e correr pra dentro da mata. Um escorregão o levou caminhar em direção a Kizna, estando eles já
ao chão, numa queda feia. Pode-se ouvir um estalo distantes quando este proferiu a última frase. O que
ecoar entre as árvores. Ele quebrara algo, certamente. antes era uma situação de tensão tinha tornado-se
Kendall e Khalil colocaram-se em prontidão, uma situação de emergência. Ronald Gargul não era
aproximando-se do vulto caído. Ele agitava as mãos, de fugir de uma briga e sempre era o mais valente
golpeando o ar, enquanto ofegava. do grupo, nunca tendo sido visto em pânico, antes
daquela noite. E isso agravara visivelmente a
— Não vão me pegar... (arf! arf!) criaturas situação, no parecer de Kendall e Khalil. Em pouco
de Sombria! (arf! arf!) Nunca! menos de cinco ampulhetas prateadas4, os dois
cruzaram o portal de entrada das ruínas de Seppet.
— É o Ronald... — falou Khalil O castelo se encontrava mais à frente, distante e
aproximando-se. imponente no alto do morro. O que restou de suas
torres podiam ser vistos sobre as copas das
— Graças a Lena! (arf! arf!) Khalil... (arf! retorcidas árvores. Os dois jovens aventureiros iam
arf!) é você?! (arf! arf!) matou-me de susto! (arf! arf!) prosseguir subindo o morro, quando ouviram o que
eu pensei que... (arf! arf!) que eram servos daquela... parecia ser um grito. Entreolhando-se, os dois
(arf! arf!) daquela... (arf! arf!) daquela coisa maldita! pararam.
(arf! arf!) Obrigado, Lena! (arf! arf!) Obrigado, Lena!
— disse Ronald. — Era o Gary... — falou Khalil.

— O que houve, Gargul? — perguntou — Veio da direita! — completou Kendall.


Kendall, com um forte receio.
Mal pararam e retornaram a correr entre as
— Ranger... (arf! arf!) Você... (arf! arf!) você árvores, numerosas naquela parte de Seppet.
também está aqui? (arf! arf!) Ótimo! (arf! arf!) Pararam em frente a um muro de mármore, sujo,
Quantos mais estão? Quantos mais... (arf! arf!) com visgos e trepadeiras. Um portão duplo estava
Quantos mais vieram com vocês? Têm que... (arf! arf!) na entrada, com uma metade do portão no chão e a
destruí-la! — bradou Ronald, tentando levantar-se outra empenada, ainda presa ao muro por seus
para olhar ao redor. ferrolhos. Do outro lado do muro, podia-se ver um
templo, também já em ruínas, mas identificava bem
— Fique quieto aí Ronald! Você quebrou a função daquela área. Um cemitério com um
uma costela... — falou Khalil. templo consagrado a Tenebra. Tenebroso em
qualquer situação, ele era muito mais no meio da
— Só estamos eu e Khalil, Gargul. Ninguém noite, quando a lua estava no alto do céu.
mais. O que houve? Onde estão os outros? —
perguntou Kendall. — Sagrado Unicórnio de Allihanna! —
exclamou Kendall.
— Eu... (arf! arf!) não quis esperar... (arf!
arf!) Eu sabia que... (arf! arf!) o Wallace estava... (arf! — Será que o vento não criou uma ilusão?
arf!) estranho. Foi... (arf! arf!) Foi aquela coisa! Ela — perguntou Khalil, receoso.
controlou o Wallace... (arf! arf!) Para nos levar lá! (arf!
arf!) Para levar as meninas lá... (arf! arf!), (arf! arf!).

109
Crônicas Artonianas II
Uma pancada no muro, fazendo-o balançar, ainda mantendo Marceli no ar, estreitou os olhos e
seguido de um abafado som, confirmou o receio dos disse:
jovens. Como se fosse um sinal para adiantarem-
se, os dois entraram no cemitério. Ao atravessarem — Saiam daqui enquanto é tempo!
o portão, algo passou por eles voando. Parecia ser Desobedeçam-me e morrerão também...
um corpo humano. Era um garoto. Um garoto
robusto e alto, bastante parecido com Ronald — Ora, sua... — bradou Khalil.
Gargul. Khalil e Kendall reconheceram logo Gary
Bugbear, que se chocou contra o muro do lado norte, — Espera, Khalil. — falou Kendall. —
caindo no chão. Um vento frio circulava no local, Escute, vamos nos retirar, mas eles vêm conosco...
como um fraco furacão. A fim de procurarem o que
tinha atirado aquele robusto rapaz, que deveria — São eles que vocês querem? Podem
pesar mais de 98 pedras², os dois voltaram-se à Pegar! — disse Veroni.
direção sul do cemitério. De onde Bugbear tinha
vindo. Estavam prontos para um combate, prontos Veroni arremessou Marceli em direção aos
até mesmo para enfrentar um dragão, como o faria dois de forma inesperada. Khalil saltou, pegando-a
qualquer ser cuja juventude corresse nas veias. Mas no ar entre os braços. Com o impacto, Khalil caiu
não estavam prontos para presenciar aquela cena... no chão, arrastado alguns galhos³ de distância.
Veroni estendeu a mão e uma lufada de vento foi
Mais adiante, a mais velha das irmãs Marini atirada contra os dois, levando muitas pedras.
erguia a mais nova pelo pescoço com uma só mão. Kendall saltou para trás de um tumulo, enquanto
Além de demonstrar uma força maior que a Khalil ficou de costas, servindo como escudo de
aparente, ela possuía uma aura verde ao redor de Marceli. As pedras atingiram suas costas, fazendo-
seu corpo. Os antigos olhos castanhos de Veroni o gemer de dor. Quando a lufada de vento cessou,
Marini estavam totalmente brancos e as veias se Khalil levantou-se. Precisava chamar a atenção de
destacavam com uma cor azulada, na pele que Veroni para distante de Marceli.
estava pálida. Marceli Marini encravava as unhas
no pulso de Veroni, tentando soltar-se. Seu rosto — Agora, você vai ver... — bradou Khalil
estava vermelho, e sua respiração bloqueada. Pedras avançando contra Veroni.
e pedaços de gramíneas flutuavam num
redemoinho ao redor de Veroni. Do lado oposto a Khalil levou um golpe no estômago antes
Kendall e Khalil, estava um jovem, amigo de de chegar a Veroni, com a força do golpe, ele foi
Wallace. O jovem orava devotadamente a todos os arremessado próximo ao muro. O golpe fora muito
deuses, hábito pouco comum em suas atividades forte, mas Veroni não fizera nem sequer um gesto,
diárias. Há alguns galhos³ no chão, próximo de nem um piscar. E isso intrigava Khalil. O que o
Veroni, havia um outro corpo. O braço do jovem acertara? Ao abrir os olhos, ele viu Wallace erguer
nocauteado estava visivelmente quebrado. um enorme pedaço de galho em sua direção. Os seus
Observando tudo isso, Wallace estava impassível, olhos estavam vazios, sem brilho. Ele estava sendo
como uma estátua humana. controlado por Veroni, ou o que estivesse possuindo
o corpo dela. Com toda a força, Wallace deu o golpe
— Ve... Veroni... Por... Favor... Não... — com o galho, mal vendo quando o galho foi parar
suplicou Marceli com um último suspiro. no chão por trás dele. Além de bloquear, Kendall o
desarmara com o seu bastão. Girando rapidamente,
— Não adianta mortal! — falou Veroni, ele acertou Wallace jogando-o no chão, próximo a
com um tom gutural na voz. — Sua irmã não está Veroni. Khalil levantou-se com um salto.
mais aqui! Vai perecer...
— Ela está possuída, Khalil. — murmurou
— Solte-a! Kendall fitando Veroni nos olhos.

A voz de Khalil ecoou como um despertador — Eu percebi, irmãozinho. O que vamos


naquele cenário tenebroso. Maxwell, o jovem que fazer? Não temos nenhum clérigo aqui... —
orava levantou os olhos, enquanto Veroni voltava perguntou Khalil.
seu olhar para os recém-chegados. Kendall fitava
Khalil com surpresa, nunca o vira com tanta raiva Veroni fitou aqueles dois aventureiros com
antes. Apenas Wallace manteve-se imóvel. Veroni, um certo interesse, suas sobrancelhas arquearam-

110
Crônicas Artonianas II
se ao ver o bastão de Tollon... Sua expressão mudou No cemitério, utilizando-se da agilidade
rapidamente, demonstrando uma face mais adquirida no treinamento da luta khubariana, Khalil
humana. Seus lábios murmuraram uma palavra que esquivava-se dos golpes desferidos por Wallace.
Kendall e Khalil puderam ler claramente nos lábios Pedaços de lápides e estátuas voavam ao chão, com
dela: cada soco desferido por Wallace e esquivado por
Khalil. Khalil levava Wallace até os fundos do
— Fauno... cemitério, para que nada de mal ocorresse a Marceli.
Ele nunca iria se perdoar caso algo acontecesse a
— Como me conhece, espírito? — bradou ela. Ele não podia permitir. E só em pensar que a
Kendall. culpa fora toda de Wallace que a trouxera ao
cemitério, seu sangue fervia. Um soco acertou-lhe o
— Não importa! — falou Veroni voltando ombro e o impacto o jogou para trás, alguns passos.
à face furiosa. — Mate os dois! Girando sobre si mesmo, utilizando a força que fora
jogado para trás, ele golpeou o queixo de Wallace
Wallace ergueu-se e avançou em direção a com as pernas fazendo um arco no ar. Sentiu seu pé
Kendall e Khalil. Simultaneamente, Veroni criou direito doer como se tivesse golpeado uma rocha.
uma forte lufada de vento que foi em direção aos Quando pôs o pé no chão, ele pôde sentir que seu
dois, jogando-os contra o muro. Quando Wallace pé estava quebrado.
aproximou-se velozmente e com o punho erguido,
Khalil desviou-se do golpe. Um pedaço do muro Chegando ao topo do morro, Kendall fitou
caiu no chão com o soco desferido pelo rapaz. as negras ruínas. Não havia como não fazê-lo,
mesmo cheio de vontade de entrar lá e coragem, seu
— Ele está forte, hein... — falou Khalil, corpo parecia hesitar. O que antes era um castelo,
surpreso. agora estava aos pedaços, apenas com algumas
partes em pé, ainda. Nem mesmo trepadeiras e
— Cuidado! Lá vem ela! — falou Kendall. outras plantas cresceram nas ruínas daquele castelo
com o passar do tempo. As paredes das ruínas eram
Veroni saltou o muro por cima dos dois, se negras, como se tivessem sido queimadas no plano
embrenhando entre as árvores. Kendall olhou de Thyatis. E, mesmo assim, erguia-se majestosa, no
surpreso para Khalil, que desviando-se dos golpes topo daquele morro, impondo respeito, impondo
de Wallace, disse: medo. Um brilho no final do morro, mais a noroeste
chamou a atenção de Kendall. Um brilho rápido,
— Vai atrás dela, irmãozinho! Eu cuido fusco e verde entre as folhagens das árvores, vindo
desse capanga aqui! provavelmente do chão. Deveria ter sido Veroni...
Sem pensar duas vezes, e até sentindo um certo
— Pode deixar! Que Allihanna esteja com alívio, Kendall desceu o morro, correndo entre as
você! — falou Kendall. árvores.

Khalil desviou-se de um outro golpe, dando Khalil fitou novamente Wallace, já não
um salto mortal para trás. Wallace continuou conseguia mais por o pé no chão, depois de ter
avançando, desferindo rápidos golpes contra o ágil tentado golpear tantas vezes a Wallace. Seu pé
Khalil que continuava a se esquivar. Aproveitando latejava de dor e um corte se abrira em seu
a deixa, Kendall saiu do cemitério atravessando os tornozelo... Ia precisar de uma boa clériga de Lena
portões. A situação se mostrara para ele pior do que quando saísse dali. Ou melhor, se saísse... Pensando
o esperado, o espírito tinha possuído o corpo de nisso, Khalil fitou novamente Wallace, cujo rosto
Veroni, a quem jurara proteger. E no momento ele mostrava-se impassível. Um rosto vazio, sem
não tinha nem idéia de como fazê-lo. Mas, nenhuma expressão facial. Estava sendo controlado,
primeiramente, deveria encontra-la. Após sair do era óbvio... Era tão vítima quanto Veroni ou Marceli.
cemitério Kendall fitou a floresta à sua frente, não E Khalil estaria muito preocupado com as seqüelas
havia nenhum sinal de Veroni ou algum rastro que desse combate, em Wallace, caso a pele do
indicasse o rumo que tomara. Um calafrio percorreu adversário não estivesse tão dura quanto uma rocha.
o corpo de Kendall, quando instintivamente ele Ele tinha que pensar em algo inteligente e que
soube para onde se dirigir. Respirando fundo, pôs- pudesse ser eficaz contra Wallace, sem ferir a
se a correr em direção às ruínas do castelo de nenhum dos dois preferivelmente. E tinha que ser
Seppet... rápido, ele estava se cansando, enquanto Wallace

111
Crônicas Artonianas II
parecia estar apenas se aquecendo. Tinha um certo Uma grande explosão saiu de dentro do
receio em sua alma, ao ver aquela figura movendo- túnel, indo em direção a Kendall e Veroni.
se de forma tranqüila, em direção a ele. Enquanto
recuava, Khalil esbarrou numa lápide, que o fez Agindo com mais velocidade do que o
olhar para trás. Seu rosto iluminou-se de forma normal, Khalil esquivou-se, indo para a direita de
indescritível, ele já sabia o que fazer. Pegou uma Wallace, onde, agachado no chão, girou, apoiado
pedra de pura rocha e atirou em Wallace. com a perna boa e golpeou a dobra dos joelhos de
Wallace com a perna direita. Mesmo com aquele
Kendall chegava a escorregar levemente, corpo invulnerável, o impacto flexionou o joelho
enquanto corria entre as árvores, morro abaixo. de Wallace fazendo-o perder o equilíbrio e cair em
Correra rápido, chegando em um curto período de uma cova com cerca de 3 galhos³ de altura.
tempo no local onde acreditara que havia visto o Respirando mais aliviado, Khalil sentou-se e
brilho. Era uma entrada de um pequeno corredor contemplou sua obra. Prendera Wallace, agora só
no subsolo, uma pequena, mas profunda, caverna. tinha que descobrir como dissipar o feitiço que o
Embora não tivesse a menor intenção de fazê-lo, dominava. Um grande estrondo foi ouvido,
Kendall parou para respirar um pouco. Estava seguido de um leve tremor de terra que quase
bastante ofegante. As ruínas daquele castelo levou Khalil para dentro do fosso. Ele olhou para
causavam uma sensação difícil de controlar e as ruínas do castelo de Seppet, enquanto em sua
Kendall só a controlara enquanto acreditava que alma apenas esperava que estivesse tudo bem com
Veroni lá estava, mas após mudar sua crença, não seu amigo e Veroni. O pensamento em Veroni o
pôde mais conter-se e afastou-se das ruínas o mais lembrou Marceli, saltitando num pé só, ele dirigiu-
rápido que podia. Ela causava pânico, um pânico se em direção à entrada do cemitério.
sobrenatural. Antes que pudesse controlar
novamente a respiração, ele ouviu um ruído Kendall levantou-se confuso, sentia sua
crescente vindo do túnel. Uma luz verde estava cabeça latejar levemente. Ainda um pouco
vindo rapidamente na direção dele, era Veroni. desnorteado, as lembranças demoravam a retornar
à sua mente... Sua visão começava a voltar ao
Wallace nem sequer bloqueou o ataque, normal, permitindo-lhe visualizar o Lago Analee,
tendo sua testa cortada levemente pela pedra. Ao existente ao norte de Kizna, após Arbóreas e a oeste
ver Wallace aproximando-se, Khalil recuou mais de Seppet. Acreditava estar do lado da margem
um pouco. Wallace não reagira como ele previra, perto das Montanhas Kenoras, pois não podia vê-
não enfurecendo-se e nem avançando nele com toda las à sua frente, o que só era possível na margem
Fúria. Tinha que usar outro plano, então recuou norte, de costas pra elas e de frente pro lago. Mas
mais um pouco e esperou Wallace aproximar-se. uma pergunta latejava-lhe a mente: O quê ele
Tinha que ser mais rápido e preciso que o habitual, estava fazendo ali? Com sua mente trabalhando,
estava com o pé direito quebrado e só teria uma sua memória começou a retornar e ele lembrou-se
oportunidade, sem precisar sacrificar-se. Caso do que acontecera e da explosão. A explosão o
falhasse, teria que arriscar com os dados de Nimb... jogara tão longe, assim? E por que ele não estava
Quando Wallace estava a poucos passos, avançou queimado? Ao olhar para a direita viu Veroni, com
em Khalil, tentando desferir um soco. a aura verde menor e parada, olhando para o lago.
Ela estava ficando mais parecida com a Veroni
Kendall nem pôde puxar o bastão de Tollon, normal, o que indicava que o espírito estava
pois Veroni saíra rapidamente do fosso. Trazia um partindo. Ele levantou-se. Fitando o lago, Veroni
embrulho negro em seu braço esquerdo. Ela fitou o falou:
ranger, surpresa e deixou escapar:
— Eu havia me esquecido da beleza
— Fauno?! desse local. — a voz era amena e Veroni sorria
levemente. Kendall apenas observava. — Não há
— Como sabe... — Kendall tentou florestas de onde venho, nem natureza. Essa
perguntar, sendo interrompido pela visão de uma paisagem me traz muitas lembranças... Mas isso
onda de fogo vindo do túnel. não importa mais, já fiz o que vim fazer aqui nessa
terra. É chegada a hora de partir...
— Idiota! — Veroni se atirou contra ele.

112
Crônicas Artonianas II
— Quem é você? — perguntou Kendall, as respostas de tais perguntas. Porque será um sinal
arriscando-se. — E o que fez? de que o domínio de Marah estará ameaçado em
Kizna... Adeus, Fauno. Ou no pior dos casos... Até
— Se acreditar nos deuses, mortal. — breve”. Olhando para o sereno rosto de Veroni,
Veroni fitou Kendall, estava séria novamente. — enquanto voltava a caminhar, Kendall murmurou
Reze. Reze para que nunca venha a descobrir as para si mesmo:
respostas de tais perguntas. Porque será um sinal
de que o domínio de Marah estará ameaçado em — E farei o possível para impedir que
Kizna. — Veroni voltou a olhar para as estrelas tenha sido um até breve...
refletidas no lago. — Não se preocupe. Nada vai
acontecer à sua amiga... Quando eu deixar esse ***
corpo, ela acordará como se tivesse apenas caído
em um sono profundo. Não vai lembrar-se do Notas:
houve, muito menos do que fiz. — Veroni olhou
¹ Estações: medida de tempo equivalente a anos;
para as mãos, sujas de terra e sangue. — É hora de
partir. Adeus, Fauno. Ou no pior dos casos... Até ² Pedras: medida de peso equivalente a quilos;
breve. ³Galhos: medida de comprimento equivalente a
Metros;
— Espere! Como sabe meu nome? — 4
Ampulhetas: medida de tempo, onde as douradas
Kendall indagou. indicam horas, as prateadas, minutos e as de bronze,
segundos;
Veroni respirou fundo e fechou os olhos. 5
Ritmo de Lena: equivalente às pulsações;
Um vento gélido agitou as folhas das árvores 6
Marah fizera morada em seu coração: estava em paz,
próximas ao lago, causando um calafrio em Kendall. tranqüilo.
Ao cessar, cinco ampulhetas de bronze4 após surgir,
Veroni caiu na areia. Kendall correu até Veroni,
tirando o seu rosto da areia e colocando no seu colo
enquanto analisava o Ritmo de Lena5 no pescoço
de Veroni. Estava normal, o Ritmo de Lena5. As veias
azuladas tinham voltado ao normal, não aparecendo
mais na pele dela e a aura verde sumira por
completo. Estava mais que óbvio que o espírito
partira do corpo da jovem Veroni Marini. Sua
temperatura e cor tinham voltado ao tom normal.
Ela tinha as roupas sujas de muita terra e sangue e
parecia apenas dormir. Olhando para o delicado
rosto da adormecida Veroni, ele sorriu. Ela estava
sã e salva. Fitando o rosto da jovem, Kendall
acariciou os cabelos dela. Estava feliz, pois Marah
fizera morada em seu coração6. Um coelho saindo
da floresta chamou a atenção de Kendall,
despertando-o de seus devaneios. Erguendo Veroni
nos braços, Kendall começou a caminhar em direção
a Kizna.

O coelho o despertara também para as


dúvidas criadas por aquela noite. Muitas dúvidas,
que aumentavam o imenso mistério que envolvia
Kizna e Seppet. Seppet... Esse nome o lembrou das
ruínas, para as qual voltou o olhar. O castelo estava
lá, imponente, negro, destacando-se na aurora que
surgia no céu. Sentiu um pressentimento, seguido
do eco em alto e em bom som das palavras do
espírito, em sua mente... “Se acreditar nos deuses,
mortal, reze. Reze para que nunca venha a descobrir

113
Crônicas Artonianas II

Apêncice
O CAVILL AN
AVILLAN PASSO A PASSO

O Cavillan é, sem dúvida, um jogo simples. E não podia ser diferente. Ele é um jogo para tavernas,
para bêbados, para espertos. É um jogo para os marginais da sociedade. Ou para aqueles que estão próximos
às margens dela. A nobreza não joga Cavillan. Os cleros de muitos deuses não jogam. Ele é um jogo de
sorte. De dinheiro. Somente aqueles que são mais chegados a Nimb, o deus da sorte e do azar, e a Hyninn,
o deus da trapaça e dos ladrões, o jogam. E é bem possível, que, no decorrer das histórias de seu jogo de
RPG, os personagens se deparem com uma mesa de Cavillan. E mais: que sejam convidados a arriscar seus
bens nele!

Eis, então, mais um motivo para a simplicidade do Cavillan. Ele pode ser usado em jogo e, por
isso, requer rapidez. Abaixo, seguem as regras passo a passo do Cavillan. Às vezes, ao invés de rolar
dados e testar perícias de jogos, como as presentes em muitos sistemas, é bem mais interessante conflitar
os jogadores com o próprio jogo. Eis porque, então, as regras para este jogo do mundo de Arton são
apresentadas a seguir.

Parte I – O Cavillan e a vida real

Desnecessário dizer: o Cavillan é um jogo de sorte que envolve a aposta de dinheiro. Porém, ele
é um tipo de entretenimento originário do mundo de Arton, um cenário de fantasia medieval desenvolvido
para partidas de RPG. Qualquer aposta que ocorra durante uma partida (meramente ficcional) de Cavillan
deve ser encarada só e somente só como ilustrativa.

Para utilizar o Cavillan em seus jogos, serão necessários alguns acessórios: um baralho tradicional
(que será adaptado para o Cavillan) e marcadores, que servirão para assinalar a quantia de tibares (a
moeda do Reinado) gasta no jogo. Os marcadores podem ser representados, por exemplo, por grãos de
feijão, de arroz e/ou de milho (que substituiriam moedas de cobre, prata e ouro, respectivamente), bem
como pelas peças coloridas que representam soldados no jogo WAR® de estratégia. Evite utilizar moedas
de verdade, para não gerar dúvidas a respeito dos jogos de RPG, já tão atacados por preconceitos infundados.

Parte II – Do Baralho Tradicional para o Baralho de Ahlen

O baralho do Cavillan, conhecido como um tipo de baralho de Ahlen, é bem diferente do baralho
tradicional. Ele é composto por apenas 36 cartas, divididas em quatro tipos de naipe, cada naipe
representando um Caminho.
O Caminho do Rei, simbolizado pelo naipe preto de cetros, pode ser representado com o naipe
preto de espadas. A carta do Cetro pode ser representada pelo Rei de espadas. Os sete soldados – as cartas
de um a sete do naipe de cetros – podem ser representados pela seqüência de ás a sete de espadas, e a carta
do Punho Direito, pelo dez de espadas.
O Caminho da Rainha, simbolizado pelo naipe vermelho de coroas, pode ser representado com
o naipe vermelho de copas. A carta da Coroa pode ser representada pela Dama de copas. Os sete servos –
as cartas de um a sete do naipe de coroas – podem ser representados pela seqüência de ás a sete de copas,
e a carta do Punho Esquerdo, pelo dez de copas.
O Caminho da Riqueza, simbolizado pelo naipe vermelho de moedas, pode ser representado
com o naipe vermelho de ouros. A carta da Moeda pode ser representada pelo Valete de ouros. Os sete
escravos – as cartas de um a sete do naipe de moedas – podem ser representados pela seqüência de ás a
sete de ouros, e a carta da Espada, pelo dez de ouros.
O Caminho da Sorte, simbolizado pelo naipe preto de dados, pode ser representado com o naipe
preto de paus. A carta do Dado pode ser representada pelo Coringa preto. Os sete loucos – as cartas de um
a sete do naipe de dados – podem ser representados pela seqüência de ás a sete de paus, e a carta da
Adaga, pelo dez de paus.
Lembre-se que as cartas dez não são mais fortes que os sete e os outros números. Eles apenas
representam os zeros do Cavillan: os Punhos, a Espada e a Adaga.

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Crônicas Artonianas II
Parte III – Os Três tipos de Cavillan

O Cavillan pode sofrer modificações em algumas regras dependendo do número de jogadores.


Sendo assim, o número de jogadores divide o Cavillan em três tipos: Os 7 Tibares, para um número de
jogadores de dois a sete; A Mão Fantasma, para oito jogadores; e O Toque do Inimigo, para nove jogadores.

Parte IV – As Regras para o Cavillan dos 7 Tibares

• 1o Passo: Apostas na mesa

O Cavillan nunca deve começar sem apostas. Antes de iniciar-se uma partida, todos os jogadores
devem pôr uma quantidade igual de tibares na mesa (a ser definida pelos próprios jogadores). Como este
tipo de Cavillan é jogado por, no máximo, sete jogadores, o maior número de moedas, se a quantia da
aposta for um único tibar, será de sete tibares, vindo daí seu nome.

• 2o Passo: Embaralhado e Distribuição de Cartas

Um único jogador deve embaralhar as cartas. Após isso, este mesmo jogador queimará a última
carta do monte, isto é, revelará à mesa qual era a última carta. Então, ele deve distribuir em sentido anti-
horário quatro cartas para cada jogador, finalizando em si mesmo.

• 3o Passo: A Troca

Cada jogador analisará suas cartas e julgará se quer trocar uma delas. Apenas uma carta pode
ser trocada. Ela deve ser descartada sem ser revelada, posta num monte de descartes e substituída por
uma carta do monte original. O primeiro a trocar deve ser o jogador à direita daquele que distribuiu as
cartas (que, por sua vez, é o último a trocar). Se sete jogadores estiverem jogando, sobrarão justamente sete
cartas para a troca. A troca não é obrigatória. Neste caso, o jogador baixa suas cartas (sem revelá-las),
indicando que não quer trocar.

• 4o Passo: Mais Apostas

Depois de trocar sua carta (ou não), um jogador pode crer que sua mão vá vencer a partida. Ele
pode, então, pôr na mesa até o dobro da quantia inicial (definida no 1o Passo) para prolongar a partida,
obrigando os outros jogadores a não descer suas mãos, ainda.
Neste momento, um jogador, descrente que sua mão vencerá a do adversário, deve desistir,
fugindo do jogo e baixando suas cartas (cabendo a ele revelar ou não quais são), abrindo mão dos tibares
na mesa. Embora não seja regra um jogador não revelar suas cartas, é aconselhável que as cartas sejam
mantidas em segredo, para não atrapalhar os blefes e outras estratégias daqueles que continuarem na
mesa.
Os jogadores que acreditarem que sua mão tem certa chance podem cobrir o adversário, colocando
uma quantia na mesa igual àquela que o adversário pôs. Neste caso, estes jogadores ainda concorrem à
aposta na mesa, mas a partida acaba aqui e as cartas são conflitadas.
Outro jogador pode, no entanto, pôr na mesa uma quantia maior que aquela posta pelo adversário.
Neste caso, ele estará desafiando o outro jogador e a partida se prolongará mais, aumentando as chances
de que a aposta cresça. Assim, os outros jogadores podem cobrir outra vez a nova quantia, pagando para
ver a mão do jogador; podem fugir intimidados; ou podem lançar mão de uma quantia ainda maior,
repetindo o ciclo.
Caso, na primeira rodada, nenhum jogador acrescente quantia, depois das trocas, as cartas devem
ser reveladas e conflitadas.

• 5o Passo: Conflitando as cartas

Antes de se revelar as cartas que se tem na mão, o jogador deve organizá-las. Primeiro, devem
vir as cartas de cetros, depois as de coroas, depois as de moedas e só depois as de dados. Caso o jogador
possua cartas de mesmo naipe, ele deve ordená-las por valor. A tabela a seguir define os valores das

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Crônicas Artonianas II
cartas. Para um mesmo caminho (naipe), o valor da carta aumenta da esquerda para a direita (na tabela),
isto é, uma carta da direita sempre vencerá uma carta da esquerda. Para cartas de naipes diferentes, vale a
regra de que, primeiramente, uma carta das colunas à esquerda é sempre mais fraca que as das colunas à
direita, e, depois, as cartas das linhas superiores sempre vencerão as das linhas inferiores.

— TABELA DE ORGANIZAÇÃO DOS VALORES —


0 1 2 3 4 5 6 7 Líderes
Rei ! Punho Dir. 1 ce 2 ce 3 ce 4 ce 5 ce 6 ce 7 ce O Cetro
Rainha ! Punho Esq. 1 co 2 co 3 co 4 co 5 co 6 co 7 co A Coroa
Riqueza ! A Espada 1 mo 2 mo 3 mo 4 mo 5 mo 6 mo 7 mo A Moeda
Sorte ! A Adaga 1 da 2 da 3 da 4 da 5 da 6 da 7 da O Dado

* ce=cetros; co=coroas; mo=moedas; da=dados.

Depois de organizadas as cartas, os jogadores revelarão sua mão. Para dois, três ou quatro
jogadores, descer a mão de uma vez e revelar as cartas não complicará o jogo. Mas, para mais jogadores, a
coisa pode acabar ficando bagunçada. Por isso, é aconselhável proceder da seguinte forma: caso a aposta
inicial não seja alterada, é o distribuidor de cartas quem desce primeiro; caso a aposta seja alterada, é o
desafiador (o último que pagou mais e que foi coberto) que deve descer (continuando, então, no sentido
horário). Aquele que ganhar a primeira leva de cartas, deve iniciar a segunda leva (sempre em sentido
horário), e assim por diante. Cada jogador abaixa sua primeira carta (de acordo com a ordem acima);
aquele cuja carta for a mais forte, vence a primeira leva, ficando a carta virada para cima, enquanto as
perdedoras, para baixo. As segundas cartas de cada mão são descidas (a começar pelo jogador que venceu
a primeira leva) e comparadas entre si, como na primeira vez, e o mesmo deve ser feito com as terceiras e
quartas cartas. O jogador que tiver mais pontos, isto é, aquele que venceu mais levas, ganha o dinheiro da
aposta.

Exemplo:
Jihlian sai com a mão (7mo/6mo/2da/Adg), enquanto Grillen obtém (7co/5mo/Esp/1da). Note que ambas
as mãos já estão organizadas e que estamos supondo que as trocas já foram feitas.
Jihlian confronta o sete de moedas contra um sete de coroas de Grillen. O sete de coroas está numa linha
superior ao sete de moedas, assim, vencendo-o. Depois, o seis de moedas de Jihlian é conflitado com um cinco de
moedas de Grillen. Como o seis de moedas está à direita do cinco de moedas na tabela, ele vencerá. Na terceira leva, a
carta de Jihlian é o dois de dados, e a de Grillen, a Espada. Devemos notar, primeiro, que o dois de dados está na coluna
à direita da coluna dos Zeros, assim, vencendo. Note que o fato da Espada estar numa linha superior à linha do dois de
dados não garante vitória, isto é, a análise das colunas prevalece sobre a análise das linhas, por isso, o Punho Direito
nunca vence a Coroa, o três de dados sempre vai vencer todos os 2’s, 1’s e 0’s, e o Cetro, dessa forma, é a carta mais
poderosa do jogo. Na quarta e última leva, as cartas conflitadas são a Adaga e o um de dados, sendo a Adaga, a carta
mais fraca do jogo, derrotada. Perceba que Jihlian venceu duas levas e Grillen também...

• 6o Passo: E se der empate?!

É possível, sim, que ocorram empates no Cavillan. Restritamente, podemos dizer que o empate
só existe entre dois ou quatro jogadores, porque se um jogador consegue vencer três levas, será impossível
que exista outro jogador com o mesmo número de pontos – existirá apenas um outro jogador que venceu
só uma leva.
Então, quando dois/quatro jogadores empatarem, a mesa de jogo pode optar por uma das duas
regras seguintes:

i) Um novo jogo deve ser iniciado entre os jogadores que empataram. A antiga quantia da aposta
deverá ficar na mesa, para ser somada à nova quantia da aposta desta nova partida. Quando um empate
acontece, os jogadores ficam em grande excitação e tensos o bastante para que um final das novas partidas
seja acompanhado de gritos de alegria (pela parte do vencedor) e de raiva (pela parte do perdedor) –
sempre trazendo indignação, brigas e desesperos em nome dos tibares que se somaram na mesa.

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Crônicas Artonianas II
ii) A opção (i) é muito bem aceita por criar expectativas em torno da vontade de saber quem
será o futuro dono da quantia de tibares que só faz crescer. Mas, se, por exemplo, empatam dois jogadores
numa partida que continha sete, os outros cinco jogadores, caso estivessem desejosos de prosseguir
apostando em partidas vindouras, se sentiriam entediados por esperar que a nova partida de desempate
acabasse. E se, ao invés de acabar, a nova partida resultar num outro empate? Certamente os jogadores
restantes abandonariam a mesa em busca de outra. Isso – sabem bem os jogadores que empataram – não
traz lucro algum, pois, mesmo que a quantia cresça num desempate, numa partida de muitos jogadores
o prejuízo é muito menor, e a quantia angariada pode ultrapassar aquela conseguida numa nova partida.
Por isso, em casos com este, a quantia de tibares duma partida que resultou em empate é dividida entre
os empatados. Caso a divisão não seja exata, o resto da divisão deve ficar para aquele jogador que venceu
a primeira leva.

• 7o Passo: O Toque de Nimb – Uma regra especial...

Todo jogo que se preza possui regras especiais, detalhes essenciais que dão forma e vida à
idéia do jogo. Mesmo o Cavillan, jogo simples, rápido e descomplicado, as possui. Nas outras modalidades
de Cavillan, veremos a regra da Vitória dos Covardes, para o Cavillan da Mão Fantasma, e a regra da
Grande Virada, para o Cavillan do Toque do Inimigo, inclusive sendo esta regra citada por Jihlian a
Grillen, no conto.
Para o Cavillan dos 7 Tibares, também temos uma regra especial, e é a chamada regra do
Toque de Nimb. Ela recebe esse nome justamente por envolver a carta do Dado. E complicar um pouco
mais a ordem de poder das cartas do baralho...
Esta regra prega que, se o Dado está na mão de um jogador, as outras três cartas terão seu
poder aumentado (em um “nível”). Isto é, utilizando a Tabela, as cartas de uma coluna, além de vencer
todas as cartas das colunas à esquerda, também vencerão as cartas da coluna imediatamente à direita.
Isto quer dizer, por exemplo, que, na presença do Dado, um três passa a vencer, também, um quatro; um
quatro passa a vencer, também, um cinco, e assim por diante. Esta regra, no entanto, não vale para as
cartas Zeros e Líderes: a primeira, por pregar a fraqueza repulsiva destas cartas; a segunda, apenas por
não ter um efeito realmente válido (já que não há colunas à direita da coluna dos Líderes). Obviamente,
o jogador em cuja mão está o Dado, deve baixar toda a mão no momento do conflito de cartas (para
mostrar, de fato, que ele é um tocado por Nimb), já que descer uma carta por leva apenas isolaria as três
cartas da carta do Dado, “invalidando” seu efeito.

Exemplo:
Jihlian, cuja mão é (7co/4co/4da/1da), joga contra Grillen, que possui mão (6ce/4ce/Dad/Adg). Na primeira
leva, normalmente o seis de cetros perderia para o sete de coroas; mas como Grillen possui o Dado, a carta seis passa
a vencer a sete, já que esta última é uma carta de valor imediatamente maior que o valor seis. Perceba que o Toque
de Nimb não se influencia por naipes: independente do Caminho, qualquer seis venceria qualquer sete, assim como
qualquer quatro venceria qualquer cinco, etc.
Na segunda leva, o quatro de coroas perde para o quatro de cetros, independente do Toque de Nimb. Isto
é, a relação entre cartas de mesmo naipe continua a mesma – não é afetada pelo Toque de Nimb.
Na terceira leva, o Dado, uma carta Líder, vence, normalmente, qualquer outra (que não os outros três
Líderes), vencendo, então, o quatro de dados.
Na última leva, a Adaga perde para o um de dados. Note que a Adaga, como qualquer outro Zero, não
vence as cartas dos 1’s, mesmo com a presença do Dado.
Perceba que, sob o Toque de Nimb, a mão mais poderosa do jogo continua a ser ainda a Mão dos Líderes,
mas a mão (7ce/7co/7mo/Dad) passa a vencer a (Cet/Cor/Moe/7da)!

• 8o Passo: Fim?

Uma única partida de Cavillan pode dar certo prejuízo, dependendo da quantia a ser apostada
por cada jogador, definida no primeiro passo. Mas os praticantes deste jogo pregam o costume de que
um jogador raramente terá sorte se abandonar a mesa antes de serem feitas pelo menos três partidas,
onde as apostas podem se acumular ou não, dependendo de acordos entre os jogadores. É comum o

117
Crônicas Artonianas II
número de partidas variar entre três e nove. Dizem que ultrapassar nove partidas provoca a ira de Hyninn
e Nimb...

Parte V – As Regras para o Cavillan da Mão Fantasma

O Cavillan da Mão Fantasma difere do dos 7 Tibares por conter oito jogadores. São poucas as
diferenças deste tipo de Cavillan para o anterior. A crucial está mesmo na quantia de jogadores, que acarreta
a distribuição de 32 cartas e a sobra de apenas quatro no monte. Neste tipo de Cavillan, não se queima a
última carta do baralho. Mas as quatro cartas que sobram são mantidas secretas. Não há a troca de cartas
na Mão Fantasma, que recebe este nome justamente pela mão de quatro cartas que sobra no monte. Após
os jogadores analisarem as cartas que receberam (e alterarem a aposta, se for conveniente), eles devem
diretamente conflitar as cartas. Neste momento, a mão fantasma é desvirada pelo distribuidor de cartas e
suas cartas são organizadas normalmente. As cartas da mão fantasma conflitarão como se fossem as da
mão de mais um jogador, e, caso ela vença, a aposta continuará na mesa, para ser somada à quantia da
nova partida que se iniciar.
Atente para o fato de que um empate também pode ocorrer entre jogador(es) e a Mão Fantasma.
Neste caso, é desnecessária e dispensável a partida de desempate – a quantia da aposta deve ser dividida
entre o jogador que empatar e a mesa. A quantia obtida pela mesa, obviamente, deve ser somada à quantia
da partida seguinte (da mesma forma que ocorre quando a Mão Fantasma ganha por completo).

Uma outra regra especial do Cavillan da Mão Fantasma é a conhecida Vitória dos Covardes.
Esta regra consiste na vitória automática para aquele jogador que sair com a Mão dos Zeros, isto é, com os
Punhos, a Espada e a Adaga. É só mais uma alusão entre várias outras presentes no Cavillan: a de que os
covardes, na verdade, sempre ganham uma luta – principalmente aquelas contra um inimigo do qual
pouco se sabe (no caso, a Mão Fantasma).
Aqui, note duas coisas: 1) se a Mão dos Zeros sair para a Mão Fantasma, ela não vencerá a
partida. A regra da Vitória dos Covardes se aplica apenas aos jogadores. 2) Um jogador possuindo a Mão
dos Zeros não precisa declarar sua vitória imediatamente: ele pode tentar aumentar a aposta através de
blefes ou esperar que os outros façam isso por ele – afinal, só para os tolos os covardes fogem; na verdade,
eles sempre ganham uma luta.

Parte VI – As Regras para o Cavillan do Toque do Inimigo

Este tipo de Cavillan é jogado por nove pessoas. Isto acarretará na distribuição de todo o monte
de cartas, sem sobrar carta alguma. Obviamente, assim como na Mão Fantasma, não se queima a última
carta, contudo, ainda assim haverá uma fase de troca de cartas, mas que ocorrerá entre os próprios jogadores
– eis o porquê do nome O Toque do Inimigo. A troca de cartas ocorrerá no sentido horário, contrário ao
sentido de distribuição de cartas. Depois disso, os jogadores poderão alterar a aposta se quiserem e então
conflitarão suas cartas. A troca de cartas pode, ou não, ser obrigatória – isso dependerá da palavra da
maioria dos jogadores. Se a troca não for obrigatória (o que é incomum), um jogador que não queira trocar
deve passar a carta que receber para o próximo jogador.
É neste tipo de Cavillan que ocorre a chamada regra da Grande Virada. Este nome vem associado
a dois fatos: um é o fato de que as cartas devem ser trocadas entre os jogadores no sentido horário (que
é contrário ao sentido da distribuição das cartas); o outro é que os Zeros (os Punhos, a Espada e a Adaga)
invertem a ordem de fraqueza, isto é: a Adaga passa a vencer a Espada, que passa a vencer o Punho
Esquerdo, que vence o Punho Direito, que perde para todos, tornando-se a carta mais fraca do jogo. Essa
inversão de valores acarreta, também, na inversão da ordem de poder entre os Caminhos. Assim, na Tabela
de Organização dos Valores (ver Parte IV – O Cavillan dos 7 Tibares, 5o Passo) fica valendo o seguinte: as
cartas das colunas à direita ainda vencem sempre as cartas das colunas à esquerda, mas as cartas das linhas
superiores tornam-se mais fracas do que as cartas das linhas inferiores.
Este tipo de Cavillan às vezes é chamando de Cavillan de Hyninn e Nimb. Este título se espalhou
porque, certa vez, numa mesa, dois jogadores começaram, um, com a Mão da Liderança, título dado à mão
cujas quatro cartas são as dos Líderes dos caminhos (Cetro, Coroa...), e outro, com uma incompleta Mão
dos Zeros, faltando-lhe apenas a Adaga. Como a troca fazia-se obrigatória naquela partida, aquele cuja
vitória estava garantida teve de abrir mão da carta do Dado, e aquele cuja derrota estava por um fio, viu

118
Crônicas Artonianas II
chegar às suas mãos a carta da Adaga. A partir daí, muitos outros nomes surgiram, como Os Ladrões de
Nimb, ou Os Ladrões de Sorte, intitulando os jogadores por roubarem a sorte e/ou o azar uns dos outros...
Esta indefinição de nomes é comum porque este tipo de Cavillan raramente é jogado (devido à quantidade
de jogadores). A Mão Fantasma, por sua vez, apesar de incomum também, mantém seu nome quase
inalterável, justamente por ser tão característico.

Parte VII – Nomes e Alcunhas para o Cavillan

Assim como em muitos outros jogos, algumas combinações de cartas no Cavillan levam nomes
especiais. Além da Mão dos Zeros e da Mão dos Líderes, outras mãos ganham denominações que suscitam
idéias e filosofias próprias de um jogo de Ahlen. Temos A Elite do Rei para (Cet/7ce/6ce/5ce), A Escolta
da Rainha para (Cor/7co/6co/5co), Caçadora de Tibar para (Moe/7mo/6mo/5mo) e A Companhia dos Loucos
para (Dad/7da/6da/5da). Outros nomes são A Mão da Ascensão para (7ce/7co/7mo/Dad), lembrando
que os menores podem subjugar os líderes; Mão Rasa para mãos de cartas baixas (as compostas por 1’s e
2’s, por exemplo); Corte dos Sete (ou dos Seis, dos Cinco, etc) para mãos compostas apenas por sete, ou seis,
ou cinco, etc... Outros nomes, obviamente, podem surgir e variar, de acordo com a região dos reinos onde
o Cavillan é conhecido.

Parte VIII – Um Breve Glossário para o Cavillan

Adaga, A: carta zero do Caminho da Sorte; a carta mais fraca do jogo. Abreviação: Adg.
Caminhos: cada um dos quatro Caminhos do Cavillan: o caminho do Rei, da Rainha, da Riqueza e da
Sorte. Às vezes são usados como sinônimos de naipes.
Cetro, O: carta líder do Caminho do Rei. É a mais poderosa carta do jogo. Abreviação: Cet.
Cetros: naipe símbolo do Caminho do Rei. Caracterizado como uma haste inclinada com uma
circunferência em uma de suas extremidades. É de cor preta. Abreviação: ce.
Coroa, A: carta líder do Caminho da Rainha. É a segunda carta mais poderosa do jogo. Abreviação: Cor.
Coroas: naipe símbolo do Caminho da Rainha. Caracterizado como um esboço simples de uma coroa de
quatro pontas. É de cor vermelha. Abreviação: co.
Dado, O: carta líder do Caminho da Sorte. É a quarta carta mais poderosa do jogo. Abreviação: Dad.
Dados: naipe símbolo do Caminho da Sorte. Caracterizado como um quadrado de cor preta com um
ponto branco em seu centro. Abreviação: da.
Escravos: as sete cartas do Caminho da Riqueza entre a Moeda e a Espada.
Espada, A: carta zero do Caminho da Riqueza. É a segunda carta mais fraca do jogo. Abreviação: Esp.
Leva: cada uma das quatro rodadas correspondente ao confronto das quatro cartas das mãos dos jogadores.
Líderes: as quatro mais fortes cartas do Cavillan – o Cetro, a Coroa, a Moeda e o Dado.
Loucos: as sete cartas do Caminho da Sorte entre o Dado e a Adaga.
Mão Fantasma, A: modalidade de Cavillan própria para partidas com oito jogadores.
Moeda, A: carta líder do Caminho da Riqueza; a terceira carta mais poderosa do jogo. Abreviação: Moe.
Moedas: naipe símbolo do Caminho da Riqueza. Caracterizado como uma circunferência de cor vermelha.
Abreviação: mo.
Punho Direito, O: carta zero do Caminho do Rei; a quarta carta mais fraca do jogo. Abreviação: PDr.
Punho Esquerdo, O: carta zero do Caminho da Rainha; a terceira carta mais fraca do jogo. Abreviação:
PEq.
Sete Tibares, Os: modalidade de Cavillan própria para partidas de dois a sete jogadores.
Servos: as sete cartas do Caminho da Rainha entre a Coroa e o Punho Esquerdo.
Soldados: as sete cartas do Caminho do Rei entre o Cetro e o Punho Direito.
Toque do Inimigo, O: modalidade de Cavillan própria para partidas com nove jogadores.
Zeros: as mais fracas cartas do Cavillan – a Adaga, a Espada e os Punhos.

(Parte do conto Aprendiz de Cavillan)

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Girotto, Frederico Amorin,
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Classes de Prestígio I (Netbook D20)

A Noiva Sorridente

Royal Hunt - S.A.I.

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