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Sombras de Lenórienn

Por Bruno “Elerion Zariael” Schlatter

Não há como dizer exatamente quanto tempo fiquei


preso em Lenórienn. Meses? Anos? Para mim Depois de pouco tempo já era impossível acreditar que
pareceram séculos. Mas isso não importa. Quando não. A tentação em me entregar, em simplesmente
se é prisioneiro de alguém a quem se odeia, e desistir de tudo, era muito forte. Valia a pena seguir
principalmente quando é esse sentimento é adiante? Eu poderia facilmente acabar com o meu
recíproco, o tempo passa devagar demais para que sofrimento me atirando em cima de um soldado
faça diferença contá-lo. Mas ainda lembro bem do qualquer, esperando ser empalado em sua lança. E ele
que vi - e, acredite, você não gostaria sonhar com adoraria fazer isso. Se sobreviver era difícil, morrer
isso todas as noites. seria muito fácil. Mas eu sobrevivi.

Vocês certamente já ouviram outros depoimentos de Minha chance de fugir apareceu quando, certo dia, foi
fugitivos como eu, o que pode ajudá-los a ter uma levado até a minha cela um novo grupo de
idéia da situação da cidade. Mas podem ter certeza de prisioneiros. Eram três humanos - um guerreiro cujo
que a realidade é muito pior. É preciso ver seus nome esqueci, um paladino de Tanna-Toh chamado
parentes e amigos morrendo todos os dias nas mãos Johran Ravyus, e uma clériga de Valkaria chamada Gil
dos seus piores inimigos para realmente entender o Gradian. Contaram-me que eram enviados dos reinos
terror que se sente. É necessário ver os símbolos mais do norte com a missão de recuperar os tesouros
sagrados da sua deusa sendo profanados de todas as perdidos da capital élfica. Já haviam perdido vários
maneiras imagináveis para saber o que isso representa. companheiros até serem pegos por uma patrulha ao
tentar entrar na cidade.
Não tentem mentir dizendo que vocês entendem -
vocês não entendem. As cicatrizes deixadas pela Acho que agora posso entender porque foi justamente
ocupação de Lenórienn não são do tipo que fecham neste dia que recebemos a visita do estranho
com o tempo. Em algumas décadas talvez seus netos encapuzado. Havia dois servos de deuses no grupo, e
estejam ajudando a reconstruí-la, mas nós ainda estes eram o sacrifício preferido das divindades
estaremos chorando a sua perda. E mesmo assim, profanas a que os malditos adoravam. Assim, faz
aquilo que tenho mais claro em minha memória não sentido que interessasse a ele vê-los livres, e
são as marcas do que vivi neste período, mas sim o acabassem libertando também quem estivesse com
que presenciei durante minha fuga. eles.

---------------------- É claro que não tínhamos como saber disso na época,


mas que outra escolha havia? Pode parecer estranho
Caso ainda lhes interesse saber, meu nome é que tenhamos questionado pouco quando ele nos tirou
Zairandlhenta Lhynfolan, mas podem me chamar daquela cela e deu-nos mantos como o dele para nos
de Zairand. Já fui um pequeno artista de disfarçar, prometendo nos levar para fora da cidade.
Lenórienn, e um dos sobreviventes do massacre a Mas não havia mais nada a fazer. O que quer que
cidade. Assim como outros que tiveram a mesma pretendesse, não poderia ser pior do que parmanecer
falta de sorte, fui feito prisioneiro e escravo dos ali.
invasores.
Assim, saímos da masmorra e seguimos em direção a
O que vi e vivi a partir de então dificilmente será Nyatar, a grande biblioteca. Segundo o nosso salvador,
qualquer novidade para vocês. Chacinas, trabalhos havia uma passagem secreta que terminava em um
brutais, profanações de estátuas e templos... Fui ponto distante da floresta de Myrvallar, de onde
obrigado a presenciar e - que a Deusa me perdoe - até poderíamos facilmente achar o caminho até um grupo
a colaborar com tudo isso. Perdi a fé e a esperança de guerrilha contra a Aliança Negra.
muitas vezes. Teria nossa amada Glórienn nos
abandonado?

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Foi um caminho tortuoso, certamente. A cada passo masoquista, era brilhantemente perturbadora, enquanto
que dávamos meu coração se despedaçava mais o sadismo era visível nos olhos do goblinóide. Por
profundamente ao ver o inferno em que Lenórienn mais terrível que a cena pudesse parecer para um elfo,
havia se transformado. Estátuas mutiladas de aquele trabalho não era menos do que uma obra-
Glórienn, estandartes ostentando crânios élficos como prima.
troféus, tropas de goblinóides portando armas e
uniformes que pertenceram ao exército real. Aquela Infelizmente, não pude apreciar a beleza assustadora
que já foi a mais bela cidade sobre a face de Arton era daquela imagem por muito tempo. A exclamação de
agora uma grande mancha negra em meio a floresta de surpresa do paladino havia alertado para a nossa
Myrvallar. Nenhum elfo mereceria ver isso. presença uma patrulha de hobgoblins que agora vinha
em nossa direção. Antes que eu pudesse perceber o
Por mais estranho que possa parecer, não tive medo de que estava acontecendo, o guerreiro humano já havia
sermos descobertos. Acho que, naquele momento, eu se atirado contra os inimigos com uma fúria
realmente havia desistido. Não havia mais nada a impressionante, e quase tão rapidamente já estava
perder - ou sairia daquele inferno, ou morreria ali empalado em uma das lanças que os soldados
mesmo. Talvez por isso tenha começado a soluçar portavam. Pelo menos isso deu tempo suficiente para
quando finalmente estávamos nos aproximando de que nosso guia prepara-se um feitiço, criando uma
nosso destino. O pesadelo estava finalmente chegando muralha de fogo que separou os dois lados da batalha
ao fim - mais alguns metros, e eu estaria livre! e nos deu algum tempo para fugir.

---------------------- Por sorte conseguimos entrar no prédio rapidamente,


sem chamar muito mais atenção. No entanto, havia
Eu já podia ver a entrada de Nyatar quando algo diferente. Talvez fosse o impacto imediato da
Johran exclamou a todo volume o nome de sua cena que havia acabado de presenciar, mas eu já não
deusa, chamando a atenção de todos. Me lembro via destruição por todos os lados. Passávamos por
bem da expressão de surpresa que havia em sua salas e mais salas e víamos sempre a mesma mesma
facem, e não era um espanto infundado, como pude paz e tranqüilidade que se esperaria em qualquer
ver ao quase instintivamente olhar na mesma biblioteca. Nada de livros profanados, nem redutos de
direção. Nada do que tenha vivido durante todos cultura transformados em alojamentos de soldados:
meus anos como prisioneiro poderia ter me apenas hobgoblins estudando os segredos de obras
preparado para aquela visão. Dentro de uma casa ancestrais. Por mais incrível que possa parecer, a
élfica convertida em alojamento militar havia um cultura élfica, ou pelo menos uma parte dela, estava
hobgoblin... sendo preservada.

Pintando! ----------------------

Foram apenas alguns instantes, mas pude observar A passagem na biblioteca passava por diversos
bem o trabalho dele. Em meio a um campo de batalha túneis subterrâneos. Nosso guia parecia conhecer
coberto por flechas incandescentes, uma jovem bem os caminhos - certamente não era a primeira
donzela élfica era agarrada por um soldado hobgoblin. vez que guiava ex-prisioneiros através dele.
Certamente uma imagem chocante para um elfo, mas Conseguimos chegar até a saída rapidamente e sem
havia algo mais naquela tela. O traço das figuras, a grandes incidentes.
combinação de cores... Tudo lembrava muito um estilo
artístico comum na época da invasão da cidade - era Foi então que, após recebermos as últimas instruções
óbvio pra mim que ele o havia aprendido ao observar de nosso misterioso salvador, perguntei sua identidade
obras de artistas élficos. - e hoje não tenho certeza se realmente gostaria de
saber. Talvez fosse melhor alimentar fantasias de que
E não era apenas isso. A vivacidade da imagem era tal fosse um elfo idealista, bravamente conduzindo
como poucos destes artistas, mesmo entre os mais fugitivos para fora deste pesadelo, ou talvez até
célebres, jamais conseguiram imprimir em suas obras. mesmo algum humano ou anão comovido com a
O contraste entre a suavidade e a robustez dos dois situação dos prisioneiros da cidade. Mas não era nada
personagens era expresso de forma fantástica. A disso.
expressão da elfa, um misto de pânico e gozo

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O maldito era um hobgoblin.

Reagi a revelação com bastante ingratidão, pulando


sobre o desgraçado, agarrando-o pelo pescoço e
jurando morte ao mesmo indivíduo que há pouco
havia me salvado. Felizmente, Gil e Johran me
impediram de cometer algo mais grave, me dando
algum tempo para me recompor e ouvir a sua história.

Pelo que entendi, ele não via o que estava fazendo


como uma traição ao seu povo - pelo contrário, da
forma como via, os traidores eram aqueles que
tomaram a cidade, abandonando seu verdadeiro senhor
por um deus alheio em troca de uma vitória fácil na
guerra. Ele ainda promoteu que um dia ofereceria
pessoalmente nossas vidas ao grande Hurlaagh antes
de partir de volta pelos túneis.

Também seguimos nosso caminho, até chegarmos a


este acampamento onde estamos relatando nossas
histórias a vocês. Mas eu certamente não sou mais o
mesmo depois de tudo o que vi. Não consigo mais
odiar os goblinóides como fazia antigamente. Se o
contato com a cultura élfica os tornou capazes de criar
obras tão sublimes, talvez os tenha tornado capaz de
mais. Não me surpreenderia se, uma vez diminuídas as
necessidades militares da ocupação, eles formassem
uma civilização tão magnífica quanto a nossa já foi
um dia.

O que digo pode parecer uma blasfêmia contra nosso


povo e nossa Deusa, mas na verdade não é. Mesmo
que tentassem vocês não poderiam entender, pois não
viram o que eu vi. E, mesmo que tivessem visto,
dificilmente entenderiam. É necessário ter a
sensibilidade de um elfo - de um artista elfo - para
realmente entender o que aquilo siginifica, e o que
pode representar.

Talvez Glórienn não tenha nos abandonado, afinal.


Talvez esteja apenas nos ensinando uma lição. De
forma dolorosa e traumática, é bem verdade, mas,
vendo como éramos arrogantes e intolerantes antes da
queda de Lenórienn, não posso deixar de pensar que é
uma lição realmente necessária.

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