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hegemonia

A primeira recorrência do termo “hegemonia” está no Q 1, 44, 41, no qual


encontramos a expressão “hegemonia política”, expressão introduzida por G. entre
aspas, para indicar a sua particular valência em relação à genérica acepção de
“preeminência”, “supremacia”, que se encontra em sequência no mesmo
apontamento, constituindo um espectro extremamente amplo de significados em
um âmbito de contextos que vai da economia até a literatura, da religião até a
antropologia, da psicologia até a linguística. Trata-se, além do mais, de distinções –
usando a terminologia gramsciana – “metódicas” e não “orgânicas” como aparece
claro até à última recorrência do termo (Q 29, 3, 2.346 [CC, 6, 146]): “Sempre que
aflora [...] a questão da língua, isso significa que uma série de outros problemas está
se impondo: a formação e a ampliação da classe dirigente, a necessidade de
estabelecer relações mais íntimas e seguras entre os grupos dirigentes e a massa
popular-nacional, isto é, de reorganizar a hegemonia cultural”. Hegemonia cultural
que, por sua vez, não se deve contrapor à política, como testemunha o uso de
expressões como “hegemonia político-cultural”, “político-intelectual”, “intelectual,
moral e política” e similares, além da tese pela qual “a filosofia da práxis concebe a
realidade das relações humanas de conhecimento como elemento de ‘hegemonia’
política” (Q 10 II, 6, 1.245 [CC, 1, 315]).
No que diz respeito ao significado que deve ser atribuído a “hegemonia”, desde
o início (Q 1, 44, 41), G. oscila entre um sentido mais restrito de “direção” em
oposição a “domínio”, e um mais amplo e compreensivo de ambos (direção mais
domínio). Com efeito, ele escreve que “uma classe é dominante em dois modos, isto
é, é ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes
adversárias. Portanto, uma classe desde antes de chegar ao poder pode ser ‘dirigente’
(e deve sê-lo): quando está no poder torna-se dominante, mas continua sendo
também ‘dirigente’”. A oscilação prossegue nos apontamentos sucessivos, criando
não poucas dificuldades interpretativas, que podem ser explanadas pelo menos em
parte fazendo referência ao contexto. No Q 1, 48, 59, por exemplo, entre “exercício
‘normal’ da hegemonia no terreno que se tornou clássico do regime parlamentar [...]
caracterizado por uma combinação da força e do consenso que se equilibram”
(hegemonia como direção mais domínio), e situações nas quais “o aparelho
hegemônico racha e o exercício da hegemonia torna-se sempre mais difícil”
(hegemonia versus domínio). Tais situações, definidas como “crise do princípio de
autoridade”-“dissolução do regime parlamentar” e em seguida “crise orgânica” ou
explicitamente “crise de hegemonia” (Q 13, 23, 1.603 [CC, 3, 60]), podem ser
assimiladas àquelas nas quais o Estado não se desenvolveu ainda plenamente: é o
caso dos Estados Unidos, onde (Q 1, 61, 72) “a hegemonia nasce da fábrica e não
precisa de tantos intermediários políticos e ideológicos”, porque “não se verificou
ainda (senão esporadicamente, talvez) algum florescimento ‘superestrutural’, por isso
ainda não se pôs a questão fundamental da hegemonia”. No Q 6, 10, 692 [CC, 1,
433] G. dirá que “a América ainda não superou a fase econômico-corporativa,
atravessada pelos Europeus na Idade Média”; no Q 8, 185, 1.053 [CC, 3, 286] o
juízo será estendido a cada nova forma estatual: “Se é verdade que nenhum tipo de
Estado pode deixar de atravessar uma fase de primitivismo econômico-corporativa,
disso se deduz que o conteúdo da hegemonia política [...] deve ser
predominantemente de ordem econômica”.
O terreno no qual se desenvolve a “luta pela hegemonia” é o da sociedade civil
(Q 4, 46, 473). A relação entre hegemonia e sociedade civil já havia sido tematizada
em Q 4, 38, 457-60, dedicado a “Rapporti tra struttura e superstrutture” [Relações
entre estrutura e superestruturas]. G. distingue três momentos: o primeiro é
“estreitamente ligado à estrutura”; o segundo “é a ‘relação de forças’ políticas”; o
terceiro “é o da “relação das forças militares”. O segundo momento passa por
diversas fases, que culminam naquela “mais abertamente ‘política’ [...] na qual as
ideologias precedentemente germinadas vêm a contato e entram em embate, até que
somente uma delas, ou pelo menos uma só combinação delas, tende a prevalecer, a
se impor, a se difundir sobre toda a área, determinando, além da unidade econômica
e política, também a unidade intelectual e moral, em um nível não corporativo, mas
universal, de hegemonia”. A essa altura, o grupo até então subalterno pode sair “da
fase econômico-corporativa para elevar-se à fase de hegemonia político-intelectual
na sociedade civil e tornar dominante na sociedade política”. O tema é desenvolvido
particularmente no Q 6: no Q 6, 24, 703 [CC, 3, 225], G. preocupa-se em
especificar o “sentido em que é muitas vezes [grifo meu – n.d.r] usada nessas notas
(isto é, no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre a
inteira sociedade)”; no Q 6, 81, 751 [CC, 3, 235] já desde o título é enunciado o
nexo entre “Hegemonia (sociedade civil) e divisão dos poderes”. No Q 7, 83, 914
[CC, 3, 265], falando daquilo “que se chama ‘opinião pública’”, G. dirá que ela
“está estreitamente ligada à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a
‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (idem). A
aparente contradição com a precedente identificação entre hegemonia e sociedade
civil resolve-se levando em consideração a polissemia dos dois conceitos e do
conceito de Estado: em uma série de notas, de fato, G. entende “Estado = sociedade
política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (Q 6, 88, 763-4
[CC, 3, 244]). Em outro grupo de parágrafos dedicados à crítica da história ético-
política de Croce, entendida como tentativa de “tradução”, parcial e unilateral, do
conceito de hegemonia, ao contrário, G., ao opor-se à excessiva contraposição entre
“o aspecto da história correlativo à ‘sociedade civil’, à hegemonia”, e “o aspecto da
história correspondente com a iniciativa estatual-governativa” (Q 7, 9, 858), insiste
na hegemonia como elemento de conexão entre a sociedade civil e a sociedade
política. A rejeição da contraposição crociana entre os dois aspectos não implica,
além do mais, a aceitação de sua identificação bruta proposta por Gentile, para o
qual, afirma G. “hegemonia e ditadura são indistinguíveis, a força é pura e
simplesmente consenso: não se pode distinguir a sociedade política da sociedade
civil: existe só o Estado e, naturalmente, o Estado-governo” (Q 6, 10, 691 [CC, 1,
436-7]).
Contudo, no momento em que desmascara a posição de Gentile como mera
hipostatização do regime totalitário imposta pelo partido fascista, G. distingue entre
situações nas quais “o partido é portador de uma nova cultura e se verifica uma fase
progressista” e outras nas quais “o partido quer impedir que outra força, portadora
de uma nova cultura, torne-se ‘totalitária’; verifica-se então uma fase objetivamente
regressiva e reacionária” (Q 6, 136, 800 [CC, 3, 254]). A diferença entre
totalitarismo fascista e comunista consiste, portanto, no fato de que o primeiro
tende a reabsorver a sociedade civil dentro do Estado, reduzindo a hegemonia à
força, ao passo que no segundo “o elemento Estado-coerção [está] em processo de
esgotamento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de
sociedade regulada (ou Estado ético, ou sociedade civil) [...]. Na doutrina do Estado
x sociedade regulada, de uma fase em que Estado será igual a Governo, e Estado se
identificará com sociedade civil, dever-se-á passar a uma fase de Estado-guarda-
noturno, isto é, de uma organização coercitiva que protegerá o desenvolvimento dos
elementos de sociedade regulada em contínuo incremento e que, portanto, reduzirá
gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas”, até “uma era de liberdade
orgânica” (Q 6, 88, 763-4 [CC, 3, 245]). A partir do Q 6, 138, 802 [CC, 3, 255] G.
descreve a longa luta pela instauração desse novo modelo de organização social com
o conceito de guerra de posição, que demanda “uma concentração inaudita da
hegemonia”. No Q 8, 52, 973 essa estratégia é contraposta à trotskista da revolução
permanente: “O conceito de 1848 da guerra de movimento em política é
justamente o da revolução permanente: a guerra de posição, em política, é o
conceito de hegemonia”.
Quanto aos protagonistas de tal guerra, na fase inicial da reflexão no cárcere, a
atenção aparece centrada sobre a classe: em Q 1, 44, 40-1 lemos que “todo o
problema das várias correntes políticas do Risorgimento [...] se reduz a esse
fundamental: que os moderados representavam uma classe relativamente
homogênea, de modo que a direção sofreu oscilações relativamente limitadas, ao
passo que o Partido de Ação não se apoiava especificamente em nenhuma classe
histórica e as oscilações sofridas por seus órgãos dirigentes, em última análise,
compunham-se segundo os interesses dos moderados”. Uma visão que, ao pressupor
um nexo bastante mecânico entre estrutura e superestrutura, reduziria a luta pela
hegemonia a epifenômeno da luta de classe no terreno das relações de produção. Em
seguida G. atenuará tais rigorismos, escrevendo já no Q 6, 200, 839-40 [CC, 2,
149-50] que “no desenvolvimento de uma classe nacional, ao lado do processo de
sua formação no terreno econômico, deve-se levar em conta o desenvolvimento
paralelo nos terrenos ideológico, jurídico, religioso, intelectual, filosófico etc. [...].
Mas cada movimento da ‘tese’ leva a movimentos da ‘antítese’ e, portanto, a
‘sínteses’ parciais e provisórias”.
No entanto, G. desenvolveu um ulterior agente da influência hegemônica,
representado pelo intelectual: tangível já desde a nota Q 1, 44, 41 – na qual os
expoentes do partido moderado eram definidos “intelectuais orgânicos” ou
“condensados”, “vanguarda” de sua própria classe –, o peso dos intelectuais conhece
um notável incremento a partir do Q 4, 49, com a ampliação do próprio conceito,
que se estende até compreender, além dos intelectuais profissionais, industriais,
cientistas, eclesiásticos, empregados e assim por diante, e chegando a concluir, na
segunda redação do Q 12, 1, 1.516 [CC, 2, 15], que “todos os homens são
intelectuais”, embora “nem todos os homens tenham na sociedade a função de
intelectuais”. Desde o Texto A (Q 4, 49, 476) é atribuída aos intelectuais “uma
função na ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e no
domínio sobre ela que se encarna no Estado, função essa que é exatamente
‘organizativa’ ou de conexão”. O estudo do papel dos intelectuais como
“funcionários” ou, como G. afirmará no Texto C (Q 12, 1, 1.519 [CC, 2, 21]),
“‘prepostos’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da
hegemonia social e do governo político”, implica o aprofundamento de outro tema
esboçado no Q 1, o dos sistemas ou aparelhos hegemônicos: antes de tudo as
instituições educacionais no sentido mais amplo do termo, já que (Q 10 II, 44,
1.331 [CC, 1, 398]) “toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação
pedagógica”. Assim, as empresas jornalísticas, as organizações repressivas legais e
ilegais, mas também, como se diz no Q 8, 179, 1.049 [CC, 3, 284], “uma
multiplicidade de outras iniciativas e atividades ditas privadas”, incluindo “as obras
pias e as doações beneficentes” (Q 14, 56, 1.715 [CC, 2, 188]). A progressiva perda
de importância da classe em relação aos intelectuais no exercício da hegemonia, que
deve ser correlacionada à sua frequente substituição por “grupo” ou “agrupamento
social” (por exemplo, na nova redação de Q 1, 44 em Q 19, 24 [CC, 5, 62]), torna
possível um nexo menos mecânico entre o plano econômico e o hegemônico;
efetivamente é verdade, como se lê em Q 4, 49, 474-6, que “cada grupo social,
nascendo sobre a base originária de uma função essencial no mundo da produção
econômica, cria junto, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais”;
todavia, “a relação entre os intelectuais e a produção não é imediata, como acontece
para os grupos sociais fundamentais, mas é mediata [...] por dois tipos de
organização social: a) pela sociedade civil [...] b) pelo Estado” e além disso, pela
existência de “categorias intelectuais preexistentes” que representam “uma
continuidade histórica ininterrupta nem pelas mais complicadas mutações das
formas sociais e políticas”.
Além do mais, é necessário considerar a progressiva emergência, a partir de Q 5,
127, 662 [CC, 3, 222], do papel do partido concebido como “moderno Príncipe”,
já que “na realidade de qualquer Estado, o ‘chefe de Estado’ [...] é exatamente o
‘partido político’”, que tem “o poder de fato”, exerce a função hegemônica (e,
portanto, equilibradora de interesses diversos) na “sociedade civil”. O partido se
apresenta como portador de um modelo distinto de democracia substancial, mesmo
não sendo completamente antitético, em relação à democracia parlamentar formal,
como demonstra uma série de notas tardias em que esta última é reavaliada em
contraposição ao “parlamentarismo negro”, tácito ou implícito, representado pelo
corporativismo fascista, mas imputável também ao regime stalinista (“a autocrítica
da autocrítica”, a “liquidação” de Trotski e assim por diante: Q 14, 74 [CC, 3, 319]
e Q 14, 76 [CC, 3, 321]), em que é claro que se deve “excluir cuidadosamente cada
aparência de apoio às tendências ‘absolutistas’” (Q 14, 76, 1.744 [CC, 3, 321]). Isto
permite a G. instituir, em Q 8, 191, 1.056 [CC, 3, 287], um nexo entre “Hegemonia
e democracia. Entre os muitos significados de democracia, parece-me que o mais
realista e concreto se possa deduzir em conexão com o conceito de hegemonia. No
sistema hegemônico, existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos
dirigidos” (idem): essa é a particular acepção gramsciana do centralismo
democrático, que “consiste na pesquisa crítica [...] para distinguir o elemento
‘internacional’ e ‘unitário’ na realidade nacional e local” (Q 9, 68, 1.140). Sobre o
nexo entre elemento nacional e internacional G. voltará até o Q 14, 68, 1.729 [CC,
3, 314-5]: “Por certo, o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o
ponto de partida é nacional [...]. O conceito de hegemonia é aquele em que se
reúnem as exigências de caráter nacional”.
A centralidade do papel do partido na luta pela hegemonia torna menos
mecânica a relação entre o plano estrutural e os superestruturais; além do mais,
desde Q 7, 24, 871 [CC, 1, 238] G. havia recorrido exatamente ao conceito de
hegemonia para combater “a pretensão (apresentada como postulado essencial do
materialismo histórico) de apresentar e expor cada flutuação da política e da
ideologia como uma expressão imediata da infraestrutura”. Deriva disso a crítica de
toda interpretação economicista do materialismo histórico, que se torna cada vez
mais serrada à medida que G. percebe quanto ela é difundida e de como representa
um obstáculo para o alcance da hegemonia ideológica por parte da mesma filosofia
da práxis. Diversamente daquilo que se afirma, por exemplo, no Q 4, 14, 436 [CC,
6, 360], onde se lê que “o materialismo histórico não sofre hegemonias, começa ele
mesmo a exercer uma hegemonia sobre o velho mundo intelectual”, no Q 16, 9,
1.860-1 [CC, 4, 37-8], inovando em relação ao Texto A de Q 4, 3, G. reconhece, ao
contrário, que esse “é a concepção de um grupo social subalterno, sem iniciativa
histórica, que se amplia continuamente, mas de modo inorgânico, e sem poder
ultrapassar um certo grau qualitativo que está sempre aquém da posse do Estado, do
exercício real da hegemonia sobre toda a sociedade”. De modo que não se trata, para
G., de superar o horizonte do marxismo, mas, ao contrário, de voltar às suas fontes
originárias: deriva daqui a atribuição a Lenin, a partir de Q 4, 38, 465, da
paternidade do próprio conceito de hegemonia que, aliás, representa “a contribuição
máxima de Ilitch à filosofia marxista, ao materialismo histórico, contribuição
original, criadora”. E é justamente por meio de Lenin que G. retorna a Marx: em Q
10 II, 41.X, 1.315 [CC, 1, 384], inovando em relação à primeira redação, escreve
que efetivamente já em Marx “está contido também in nuce o aspecto ético-político
da política ou a teoria da hegemonia e do consenso, além do aspecto da força e da
economia”.
BIBLIOGRAFIA: COSPITO, 2004; DE GIOOVANNI, GERRATANA, PAGGI, 1977; D’ORSI, 2008; FRANCIONI, 1984.

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