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REGIME DO ESTADO E REGIME CONSTITUCIONAL

Luís Pereira Coutinho*

1. A noção de regime do Estado

À primeira vista, a expressão “regime do Estado” ou “regime estadual” encerra


um paradoxo, senão mesmo um erro conceptual, já que aí se tem o Estado como um
regime político. Ora, a Política moderna ter-se-á caracterizado essencialmente por não
confundir Estado e governo, soberania e regime político, reduzindo este último a um
“princípio numérico” pelo qual “a pessoa jurídica do soberano é instituída numa entidade
individual ou coletiva”1. Ou seja, o Estado será uma forma política caracteristicamente
moderna (correspondente a todas as unidades políticas que possam dizer-se “Estados”) e
não um regime, este último variável de Estado para Estado, consoante esse seja
monárquico, aristocrático, democrático, etc.

Nestes termos, haverá uma cisão cortante entre Política aristotélica e Política
moderna. Se a primeira teve como objeto os regimes políticos, teorizando-os na sua
diversidade, a segunda é constitutiva da nova forma política do Estado, este último
definido pelo seu poder característico – a soberania -, ao qual podem corresponder
indiferentemente distintos regimes políticos ou formas de governo. Do mesmo modo, se
a Política aristotélica se centrou nas particularidades dos regimes – isto é, nos regimes
considerados nos seus elementos externo e interno, este último correspondente à conceção
de justiça própria de cada um2 –, a nova ciência do Estado abstrai dessas particularidades.

* Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Investigador do ICJP-CIDP –


Centro de Investigação de Direito Público.
1
Cfr. JEAN BODIN, Les Six Livres de la Republique, reimpressão da edição de 1583. Darmstadt, Scientia
Verlag Aalen, §§ I, 8 ; II, 1.
2
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso Teoria dos Regimes Políticos, Lisboa, AAFDL, 2013, pp. 13 segs.
2

Dir-se-á que a vantagem da Política moderna residiu precisamente aí, isto é, na


configuração de uma nova forma política que já não dependesse de um qualquer
parâmetro substantivo de justiça ou correspondente princípio de legitimidade. Recorde-
se que, na conceção aristotélica, a Política relevara essencialmente da partilha de uma
linguagem moral (isto é, de uma linguagem sobre o sentido da justiça) pelos membros da
comunidade política. Essa linguagem – ordenadora do ser humano como “animal
político” – consubstanciaria, enquanto elemento interno de cada regime, o cimento
agregador da polis, presidindo à sua configuração institucional e determinando os seus
fins3. Neste sentido, à monarquia corresponderia uma conceção monárquica de justiça, à
aristocracia uma conceção aristocrática, etc. É este esquema que ainda presidirá à Política
medieval, em que o “reino” é súmula e expressão de uma conceção hierarquizada de
justiça de base teológica4.

Ora, o propósito fundamental da nova ciência do Estado terá sido a navegação de


uma tempestade – assim na imagem de Jean Bodin5 – traduzida na fragmentação moral e
religiosa que marcou a modernidade europeia. Não podendo, em tal cenário, o cimento
da política residir na partilha de parâmetros substantivos, a forma do Estado não poderia
pressupor a existência de uma comunidade política no sentido aristotélico. Neste
contexto, a Política moderna exterioriza-se num poder soberano, relevando a unidade
política sobretudo da comum obediência ao mesmo e já não da partilha de parâmetros
morais ou religiosos.

Uma contraposição demasiado simplista entre Política moderna e Política


aristotélica poderá conduzir, no entanto, a uma cegueira quanto aos pressupostos da
modernidade política. Com efeito, será um erro conceber a Política moderna como
exclusivamente centrada no Estado enquanto forma exterior a que não correspondem
quaisquer pressupostos. Ao Estado não deixou de corresponder uma racionalidade que
teve de ser aceite (por governantes e governados) para que a correspondente forma
política se tenha possibilitado.

3
V. ARISTÓTELES, Política, trad. A. Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, Lisboa, Veja, 1998,
em especial, §§ I, 1253a; V, 1301a32-33 e 1309a35-40.
4
V. TOMÁS DE AQUINO, La Royauté, trad. de De regno ad regem Cypri por D. Carron, Paris: Vrin,
2017.
5
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., §§ I,2; III, 4.
3

Curiosamente, os fundadores da ciência do Estado – sobretudo Jean Bodin e


Thomas Hobbes – não ocultaram essa dimensão interna. Recorde-se que, nestes, o Estado
é, antes de mais, uma representação, por cuja via os seres humanos (re)configuram a sua
coexistência política e consideram instituída a autoridade a que devem obediência. Sendo
certo que tudo assenta agora na imaginação de um poder cuja instituição já não dependa
de uma conceção da justiça ou do bem, não deixa de se explicitar a racionalidade que
preside à instituição do soberano e à sua ação.

Em Bodin, recorde-se, essa racionalidade já nada tem que ver com a “a justiça e a
honestidade” (a respeito das quais qualquer acordo seria impossível), antes se prendendo
exclusivamente com a prossecução da utilidade ou “proveito público”. À utilidade pública
corresponde uma utilidade privada dos cidadãos referida ao que lhes é “comum” e não ao
que os divide. Nesta lógica, dedicando “fidelidade, submissão, obediência, ajuda e
socorro” ao soberano, os cidadãos conhecem “a mais forte proteção possível”, vendo
garantidas, “por força das armas e das leis, as suas pessoas, bens e famílias”6.

Deste modo, a soberania reflete um corpo social composto por unidades


primordiais – indivíduos igualmente centrados na proteção das suas “pessoas, bens e
famílias”. O soberano que garante o “proveito público” é o reflexo desses novos cidadãos,
abstraindo tanto quanto eles das divisivas considerações substantivas que os encerram em
grupos desavindos7. Pode então dizer-se que a soberania é a representação conveniente a
um corpo social concomitantemente repartido e unificado em indivíduos, associando-se-
lhe “uma figuração tão nítida quanto nova da comunidade política”8.

Essa figuração reflete-se fundamentalmente num “poder absoluto e perpétuo”,


cujo titular é nele “investido”. Para o efeito, não importa que se trate de um monarca, da
“menor” ou da “maior parte do povo”, isto é, que o Estado seja “real”, “aristocrático” ou
“popular”. Ou seja, a configuração concreta do poder (o seu “princípio numérico”) deixa
de ser um elemento essencial, precisamente na medida em que a autoridade política já

6
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., § I, 6, 7.
7
O conceito de “cidadão” de Bodin já nada tem que ver com o “animal político” de Aristóteles. Se este
último se referia à linguagem moral da polis – sendo o homem “animal político” porque se move nessa
linguagem –, a qualidade de cidadão em Bodin releva exclusivamente da relação de sujeição estabelecida
com o poder soberano. Note-se que esta não é uma relação de sentido único – o seu sentido não se esgota
na obediência devida pelo súbdito àquele poder. Está em causa, antes, uma “obrigação mútua entre o
soberano e súbdito”, o qual “pelo reconhecimento e obediência que recebe daquele”, lhe deve “ajuda e
proteção”, v. idem, I, 6.
8
Cfr. SIMONE GOYARD-FABRE, L’État: Figure Moderne de la Politique, Paris, A. Colin, 1999, p. 12.
4

não dependa de um qualquer ideário substantivo de legitimidade. Qualquer autoridade


pode ser eficaz na garantia da utilidade dos cidadãos, desde que não seja minada por
divisões e por correspondentes “sedições e tumultos”9. Confirma-se, pois, que, na
indiferença valorativa da soberania – na sua estrita ordenação segundo interesses –, se
encontra precisamente a sua vantagem10.

A geometria política de Bodin irá encontrar-se presente, de pleno, na arquitetura


hobbesiana do Estado moderno. Com efeito, em Hobbes, a fundação do Estado significa
uma refundação instrumental da Política: a nova representação política, se efetivamente
unificadora e pacificadora, refletirá uma nova racionalidade e, do mesmo modo, um novo
homem, o qual uniformemente conceba o novo poder como assente numa relação
funcional entre proteção e obediência. Ou seja, a racionalidade inerente à fundação do
Estado – que deve presidir à sua ação – é a racionalidade de seres humanos que se
autorrepresentam como vinculados a interesses, aqueles que se prendem “com a sua
própria conservação e com uma vida mais satisfeita”, assim marcada pela segurança, pela
prosperidade e pelo exercício pacífico de uma “liberdade inofensiva”11. São precisamente
esses seres humanos que se concebem, no âmbito de um hipotético contrato original,
como membros de uma unidade política representada por um soberano, autoridade a que
é devida incondicional obediência, já que só assim podem ser garantidas as referidas
utilidades.

Face ao exposto, o que se observa é que, tal como na Política aristotélica, na


Política moderna, a configuração da autoridade política reflete uma linguagem sobre o
homem (uma conceção da “natureza humana”, se assim se preferir). Se, em Aristóteles,
essa fora a linguagem moral internalizada pelo homem como “animal político”, na
Política moderna, trata-se de uma linguagem em cujo âmbito os seres humanos se
ordenam numa lógica de interesse ou utilidade. Deste modo, e socorrendo-nos da
classificação de Max Weber, está aqui fundamentalmente em causa a contraposição entre
dois tipos de racionalidade; entre racionalidade valorativa, por um lado, e racionalidade

9
Cfr. J. BODIN, Les Six Livres cit., § I, 8; II, 1; IV, 7.
10
Para mais desenvolvimentos sobre a geometria política de Jean Bodin, v. o nosso O Estado como
Representação: Do Momento Hobbesiano aos Problemas Contemporâneos, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 56
segs.
11
Cfr. THOMAS HOBBES, Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa,
INCM, 1994, cap. XVII; cfr. T. HOBBES, On the Citizen [De Cive], trad. Richard Tuck / Michael
Silverthorne. Cambridge, Cambridge University Press, 1998, § XIII, 6.
5

instrumental, por outro12. Na Política aristotélica, a todos e a cada um dos regimes


políticos (monarquia, aristocracia, democracia, etc.) corresponderia uma racionalidade
valorativa (internalizada pelo homem como ente que se determina segundo a linguagem
moral da polis). Já na Política moderna, o Estado é o produto e o agente de uma
racionalidade instrumental, agora tida como determinante “natural” do ser humano.

Deste modo, o Estado moderno não se reduz a uma mera forma política exterior,
mas depende da internalização de uma linguagem e correspondente racionalidade. É neste
sentido que o Estado é um regime político novo, isto é, uma forma política que – não
deixando de se contrapor aos regimes aristotélicos – não deixa de ter uma lógica interna.
A soberania é, tanto o eixo estruturante dessa forma política, como a expressão dessa
lógica, havendo uma relação indissociável entre as suas características de poder e a sua
funcionalidade à utilidade dos cidadãos. Com efeito, é na medida em que um poder
represente um corpo de cidadãos, prosseguindo uma salus publica que se reconduz à
satisfação dos seus interesses, que o mesmo é continuamente representado como soberano
pelos mesmos cidadãos13/14.

Em suma, e caso nos socorramos dos termos de Montesquieu, podemos dizer que,
ao Estado como regime, corresponde então um novo “princípio de governo”, que já não
se confunde com os princípios dos regimes políticos tradicionais (nomeadamente, com
uma qualquer conceção de “virtude” ou de “honra”), antes se reconduzindo ao interesse
e à imaginação política que o serve15.

12
MAX WEBER. Economy and Society: An Outline of Interpretative Sociology, trad. E. Fischof et al,
Berkeley / Los Angeles, University of California Press, 1978, pp. 24 segs.
13
Recorde-se que “a obrigação dos súbditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura
também o poder mediante o qual ele é capaz de os proteger”, cfr. T. HOBBES, Leviatã cit., cap. XXI. Neste
passo, Hobbes formula o cerne da racionalidade instrumental que subjaz ao Estado, definindo a “relação
entre proteção e obediência” que lhe subjaz, fora da qual nenhum Estado poderá subsistir duravelmente.
14
Recorde-se que, na obra de Hobbes, a salus publica é definida na perspetiva dos súbditos – dos
“benefícios” ou “vantagens” que lhes correspondem –, traduzindo-se na sua defesa comum contra inimigos
externos, na preservação da paz interna, no seu enriquecimento “tanto seja quanto compatível com a
segurança pública” e na fruição de uma “liberdade inofensiva”, cfr. T. HOBBES, On the Citizen cit., § XIII,
6.
15
Sobre os princípios do governo, v. MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, trad. Miguel Morgado,
Lisboa: Edições 70, 2011, em especial, Livros III, IV e V. Note-se que Montesquieu não deixou de
contrapor aos regimes políticos tradicionais – assentes na “virtude”, na “honra” ou no “medo” – um regime
caracteristicamente moderno, a república moderna, cujo princípio de ação seria o interesse ou a ambição.
Regressaremos aqui, já que, a respeito da construção do Estado constitucional a reflexão de Montesquieu
sobre a república moderna virá a cruzar-se com o discurso do Estado.
6

2. O regime constitucional como compleição do regime do Estado

Tendo por motor uma racionalidade política de natureza instrumental, o novo


regime do Estado caracteriza-se também por um novo tipo de dominação ou legitimidade
política. Com efeito, no novo contexto, esta não se poderia traduzir numa “legitimidade
tradicional” (presa à partilha de parâmetros substantivos) e ainda menos se poderia
reconduzir a uma “legitimidade carismática”. Pelo contrário, a Zweckrationalität,
prosseguida em cenário de complexidade crescente, exigia a despersonalização do poder,
isto é, uma “eliminação do seu seio [de] todos aqueles elementos pessoais, irracionais,
que escapem ao previsível”16. Exigia-se, pois, um novo tipo de legitimidade – “legal-
racional”, nos termos de Max Weber. Com efeito, a utilidade pública e correspondente
utilidade privada dos cidadãos, seria tanto mais garantida quanto se verificasse uma
objetivação da dominação política, ou seja, quanto mais o arbítrio se encontrasse excluído
da ação soberana e a sua previsibilidade fosse assegurada no âmbito de um sistema de
normas.

Esta lógica foi formulada inicialmente por Bodin, para quem, como já vimos, a
soberania não se traduz num poder concreto, mas numa abstração jurídica (um “poder
perpétuo e absoluto”). Deste modo, o soberano é-o no âmbito de uma norma ou princípio
(a soberania), sendo investido no âmbito de uma correspondente ordem impessoal e
servindo consequentemente o “proveito público”. Reflexamente, os cidadãos, mais do
que obedecer à pessoa do soberano, obedecem a essa ordem impessoal, em cuja
estabilidade e racionalidade vêm garantidas as suas “pessoas, bens e famílias”. Hobbes
prossegue na linha de Bodin, institucionalizando plenamente o papel do soberano
enquanto ofício, isto é, enquanto poder impessoal a ser prosseguido – por um monarca ou
por uma assembleia – segundo a lógica representacional do Estado. Mais ainda, clarifica-
se em Hobbes que esta lógica só é verdadeiramente prosseguida se o soberano agir
genericamente através da lei, isto é, através de um sistema de leis caracterizado pela
formalidade, publicidade, prospetividade, clareza e coerência interna. Com efeito, só

16
Cf. MAX WEBER, Economy and Society cit., p. 975.
7

assim os cidadãos conseguem escapar à lógica obstrutiva do conflito, vendo garantida a


satisfação eficaz e imparcial dos seus interesses17.

O que podemos observar perante isto é que a ideia de “legalização do domínio


político” associada à noção moderna de Constituição, se encontra já esboçada nos
fundadores da Política moderna18. Mais ainda, pode dizer-se que a Constituição moderna
corresponde a uma formulação apurada, bem como a uma consumação, da lógica de
objetivação do domínio político que já se encontra presente no conceito de soberania de
Bodin. Com isto, não se pretenderá, claro está, desmentir que, para o desenvolvimento da
noção moderna de Constituição como “lei que estabelece o poder político e regula o seu
exercício”, tenha sido essencial o concurso de outros desenvolvimentos, formulados por
Dieter Grimm como “condições para a emergência do constitucionalismo” e que se
prendem sobretudo com um liberalismo económico emergente19.

Com efeito, é em cenário de desenvolvimento do liberalismo económico, que se


compreende que a pretensão de objetivação da dominação política tenha sido
acompanhada por uma pretensão de restrição do poder à tarefa de “garantir e coordenar a
liberdade”, assim convertida em “condição do bem-estar geral”. Ou seja, pressupondo-se
que a utilidade seria tanto mais garantida quanto fosse servida pela eficiência inerente ao
funcionamento livre do mercado, a receita traduzir-se-ia na libertação da sociedade e
correspondente limitação negativa do poder do Estado, designadamente por via da sua
“constitucionalização” e correspondente desdobramento em diferentes poderes. Em
suma, a constitucionalização do poder do Estado consubstancia o reflexo de um “bem-
estar geral processualizado”, assim identificado com “os resultados de um processo
social”20.

A ideia da livre concorrência de interesses e ambições como melhor garantia


possível do bem-estar geral perpassou também, a um outro nível, na própria configuração
constitucional das instituições políticas, o que se observa sobretudo no caso americano.

17
Cfr. DAVID DYZENHAUS, “Hobbes and the Legitimacy of Law”, Law and Society, 2001/20, pp. 461
segs.. V. também, do mesmo autor, “Hobbes on the Authority of Law”, in Hobbes and the Law, eds. David
Dyzenhaus / Thomas Poole, Cambridge, Cambridge University Press, 2012, pp. 186 segs. Por ultimo, The
Long Arc of Legality: Hobbes, Kelsen, Hart, Cambridge: Cambridge University Press, 2022, em especial,
pp. 88 segs.
18
Sobre a noção moderna de Constituição, v. por todos DIETER GRIMM, Constitutionalism: Past,
Present, and Future, trad. Dev Josephs, Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 3 segs.
19
Idem, pp. 6 segs.
20
Idem, pp. 8-10.
8

Na verdade, a separação de poderes – a par do federalismo – não corresponde apenas a


um mecanismo de limitação do poder que liberta a sociedade. Trata-se sobretudo de um
mecanismo de canalização e contraposição de interesses e ambições, em termos que
encorajam à partida a competição entre os mesmos para garantir afinal a sua moderação
e correta articulação. É precisamente esta a dinâmica que Montesquieu já considerara
encontrar-se presente nas instituições políticas inglesas e que James Madison preconizou
como motor a presidir ao funcionamento da república americana21.

Tendo isto em consideração, torna-se possível compreender ser o regime


constitucional liberal uma declinação depurada, bem como uma consumação, do regime
do Estado. Na verdade, neste regime, se o quisermos caracterizar em essência, a
dominação legal-racional, o dito “governo constitucional”, é a manifestação exterior de
uma racionalidade instrumental, tanto mais sancionada quanto se pressuponha que o bem-
estar geral resulta da sua livre prossecução.

Para a internalização deste esquema contribuiu decisivamente a formulação dos


interesses numa “vida segura, pacífica e próspera” – assente na propriedade e numa
“liberdade inofensiva” – com recurso a uma linguagem de “direitos”, isto é, um
desdobramento do bem-estar a cujo serviço o Estado se encontra em interesses declarados
como “direitos do homem e do cidadão”. Mais ainda, logrou-se assim a formulação de
uma nova linguagem de integração política, já que são esses direitos – nos termos de
Siéyès – “que levam os cidadãos a serem semelhantes”, isto é, cuja comum titularidade
lhes permite conceber-se integrantes de uma unidade política (a nação) que se representa
em Estado22.

Neste contexto, pode dizer-se que é no discurso do constitucionalismo


(considerados os seus essentialia, traduzidos nos “direitos do homem e do cidadão” e,
bem assim, no governo representativo e na separação de poderes que lhes são
instrumentais), que se encontra, por excelência, a chave da integração política moderna.
Com efeito, trata-se, esse, do discurso que, enquanto desagrega o corpo social em

21
JAMES MADISON, “The Federalist n. 10” (1787), in Madison Writings, New York, The Library of
America, 1999, pp. 160 segs. V. também a carta a Thomas Jefferson, datada de 24 de outubro de 1787 e
publicada na mesma coleção, p. 142 segs. Para mais desenvolvimentos sobre a conceção de uma “república
moderna” cuja lógica assenta na concorrência e contraposição de interesses e ambições, v. Luís Pereira
Coutinho, Teoria dos Regimes cit., pp. 75 segs.
22
Cfr. SIÉYÈS, O que é o Terceiro Estado?, trad. Teresa Menezes. Lisboa, Temas e Debates, 2008, pp.
164-165.
9

indivíduos, os congrega numa nação e explica a sua comum representação em Estado, em


termos que permitem agora um corte definitivo com os resquícios tradicionais ou
carismáticos da pré-modernidade política. Dito de outro modo, o discurso
constitucionalista terá correspondido à nova linguagem política na qual o regime do
Estado moderno – na sua forma depurada de regime constitucional – encontra o seu
elemento interno, residindo aí a base ideológica que subjaz à vigência da lei constitucional
com que o Estado ora se identifica.

Nos termos de Carré de Malberg, engendra-se assim uma nação moderna que tem
por seu representante e agente uma “pessoa jurídica do Estado” desdobrada nos órgãos
previstos numa lei constitucional. Com efeito, é precisamente o regime constitucional
formado por esses dois elementos (discurso constitucionalista e lei constitucional, nação
e Estado) que o mestre de Estrasburgo virá a formular como “regime estadual”23. Ou seja,
podemos bem reinterpretar a teoria do Estado de Carré de Malberg – a teoria de uma
nação que se personifica em Estado, concebido este como pessoa jurídica que se estrutura
nos termos de uma lei constitucional24 – como teoria do regime constitucional. Nesta
teoria, o elemento interno do regime – o princípio constituinte do Estado constitucional,
dito “soberania nacional” – encontra-se numa nação que se forma como corpo político
unificado na linguagem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O elemento
externo, por seu turno, encontra-se na vigência de uma lei constitucional e no
correspondente governo legal-racional por órgãos constitucionais que, como tais,
representam aquele corpo.

Nestes termos, e em suma, se a modernidade política se desenvolveu numa lógica


marcadamente anti-aristotélica, o resultado em que essa culmina – o regime
constitucional – acaba paradoxalmente por não ser irreconhecível para alguém formado
na teoria dos regimes políticos que parte do Estagirita. Com efeito, ao constitucionalismo

23
De facto, o mais consumado teórico do Estado do século XX – Carré de Malberg – não deixou de se
referir a um “regime estadual”, aquele em que uma nação enquanto corpo de cidadãos se personifica num
Estado que se identifica com a Constituição O contexto em que o fez não deixa de ser muito esclarecedor.
O que esteve então em causa foi uma oposição à “teoria da força” de Duguit, a qual Carré de Malberg
recusou como incompatível com qualquer “regime estadual”. Ora, ao opor-se assim a Duguit, o mestre de
Estrasburgo trazia à tona era a lógica do Estado, recordando que este não é uma realidade exterior ao ser
humano traduzida num mero poder ou “força”. Enquanto “regime”, o Estado apenas se viabiliza por lhe
corresponder um poder político suscetível de ser representado pelos cidadãos. Assim na razão em que
satisfaça as suas utilidades, já que esses raciocinam na lógica instrumental de que o Estado é produto e
agente, v. RAYMOND CARRÉ DE MALBERG, Contribution à la Théorie Générale de l’État, I, Paris:
Recueil Sirey, 1920, p. 198 segs.).
24
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso O Estado cit., pp. 83 segs.
10

corresponde afinal uma certa linguagem da justiça – se bem que agora assente numa
solução formalizada25 – que se pretende integradora de uma comunidade política. Na
medida em que essa comunidade (a nação) se personifique ou represente em Estado (num
Estado que se identifica com a lei constitucional) é esse elemento interno que se projeta
em certa configuração institucional do poder político (o elemento externo do regime
constitucional).

3. Princípio constituinte e facto constituinte

Nos termos expostos, uma Constituição em sentido moderno (uma lei


constitucional) pressupõe uma nação cujo cimento político agregador se encontra no
discurso constitucionalista (sumulado na Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América ou, em termos teoricamente mais sofisticados, na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão). Terá sido precisamente isto que Hannah Arendt
formulou a respeito do “corpo político da república americana”, esclarecendo que, se o
compreendermos “em termos dos seus dois maiores documentos”, a Declaração de
Independência, em torno de cujo ideário se formou a nação americana, proporciona “a
única fonte de autoridade, da qual a Constituição deriva a sua legitimidade”26. Ora, Arendt
nada mais faz aqui do que refletir, para o caso americano, a teoria constitucional moderna,
tal como formulada em Siéyès e depurada em Carré de Malberg.

Com efeito, se bem entendida, a teoria do poder constituinte corresponde a uma


teoria do regime constitucional, traduzindo-se esse poder no elemento interno do mesmo
regime. Neste sentido, o poder constituinte é um princípio do constitucionalismo, isto é,
não lhe corresponde um ideário de legitimidade que possa ser alheio ao discurso
constitucionalista. Na exata medida em que seja impensável uma Constituição “em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação de poderes”,
é inconcebível um poder constituinte que possa subsistir fora desse discurso27. Ou seja, o

25
No dizer de Grimm, à emergência do constitucionalismo corresponde a “formalização” do “problema da
justiça” preconizada pelo liberalismo económico e político, v. Constitutionalism…, p. 8.
26
Cfr. HANNAH ARENDT, Sobre a Revolução, trad. I. Morais, Lisboa: Relógio d’Água, 2001, p. 239.
27
Artigo 16.º da Declaração de 1789.
11

poder constituinte (a “soberania nacional”) cumpre-se necessariamente na vigência de


uma lei constitucional que espelhe o discurso constitucionalista (e esgota-se aí, já que
“nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane
expressamente”, isto é, qualquer poder não constituinte é estritamente constituído28).

A vigência de uma lei constitucional não depende apenas da mera proclamação


do princípio constituinte (ou da aprovação solene de um texto), antes implicando a
internalização deste princípio (do discurso constitucionalista que lhe corresponde) por
uma comunidade política, em termos que a determinam a reconhecer autoridade à sua
Constituição e a ter-se consequentemente como representada pelos órgãos aí previstos.
Por outras palavras, o poder constituinte não se cumpre na “Constituição como ato”, mas
na “Constituição como realização”29.

É neste sentido que o poder constituinte, sendo à partida um princípio do


constitucionalismo, se consuma como facto. Afirmando que assim é, Carré de Malberg
sustenta em conformidade que, ao jurista de direito constitucional, apenas caberá atestar
retrospetivamente tal facto, sendo inconsequente a tentativa de conceber o problema do
poder constituinte como um “problema jurídico”. Nas suas palavras, “tudo o que o jurista
pode fazer é constatar que o Estado se encontra formado a partir do momento em que a
coletividade nacional, fixada em dado território, possua, de facto, órgãos que exprimam
a sua vontade (…). Quanto a saber por que processo jurídico tais órgãos terão sido
constituídos, não só não é esse um problema capital da ciência do direito público, como
não é de todo em todo um problema jurídico”30.

Nestes termos, um regime constitucional suporá que se encontre resolvido o


problema político do poder constituinte, vigorando já uma “Constituição como
realização”. Ou seja, haverá um regime constitucional quando uma nação seja já, de facto,
representada pelos órgãos instituídos pela lei constitucional, e tal em virtude de se
encontrar politicamente integrada em torno do discurso constitucionalista de que essa lei
é expressão (isto é, em torno dos princípios da soberania nacional, do governo
representativo e da separação de poderes como princípios instrumentais à garantia dos

28
Artigo 3.º da Declaração de 1789.
29
Para a distinção entre “Constituição como ato” (constitution as act) e “Constituição como realização”
(constitution as achievement), v. D. DYZENHAUS, The Long Arc cit., pp. 149 segs.
30
Cfr. Contribution cit., I, p. 61 segs. e II, p. 490 segs.
12

direitos individuais). Tal equivale a dizer que a eficácia do direito constitucional (o facto
constituinte) se traduz na eficácia do discurso constitucionalista que lhe subjaz (“eficácia
discursiva” ou “eficácia juspolitista”)31.

É essa eficácia que Carré de Malberg pôde pressupor no momento em que


concebeu a sua teoria, que coincidiu com o auge da III República francesa. Na verdade,
à lei constitucional de 1875 (mais precisamente, às leis constitucionais em que essa se
desdobrou) corresponderia eficácia discursiva, isto é, integração política em torno do
discurso constitucionalista aí refletido. Ou seja, na III República, encontrava-se
finalmente resolvido em França o problema do poder constituinte como problema de facto
(de eficácia ou não do discurso de 1789). Pode, pois, dizer-se que se encontrava então
preenchido o elemento interno do regime constitucional. Em contraponto, os retumbantes
“momentos constituintes” que haviam antecedido a III República – desde logo, o de 1789-
1791 – haviam gerado pouco mais do que “folhas de papel, de maior interesse para os
eruditos e especialistas do que para o povo”32.

De facto, o pleno estabelecimento de um regime constitucional – a inerente


eficácia discursiva do constitucionalismo – não se possibilitou em França antes da III
República, como de resto não se possibilitou noutros quadrantes europeus,
designadamente no quadrante germânico, até ao século XX. De resto, terá sido
precisamente a incipiência do regime constitucional neste último contexto que conduziu
a que, aí, o problema do poder constituinte se tenha colocado com tanta insistência, ao
mesmo tempo que se desvirtuava. Na verdade, a luta entre partidários da “soberania
monárquica” e partidários da “soberania popular” (ou entre “constitucionalismo
revolucionário” e “constitucionalismo restauracionista”) terá relevado, no quadrante
germânico, como noutros quadrantes europeus, de uma impossível integração política em
torno do ideário constitucionalista. Perante a persistência de conceções adversas de
legitimidade ou dominação política, este ideário não logrou impor-se e estabilizar-se, não
logrando o princípio constituinte da soberania nacional converter-se em facto
constituinte.

31
Para a noção de “eficácia discursiva” ou “eficácia juspolitista”, em termos que permitem compreender
que a eficácia do direito constitucional corresponde na verdade à eficácia dos “enunciados justificativos”
que determinam a sua qualidade de “direito”, v. PIERRE-MARIE RAYNAL, De la Fiction Constituante:
Contribution à la Théorie du Droit Politique, Paris, L’Harmattan, 2019, pp. 264 segs.
32
Cfr. Sobre a Revolução cit., pp. 153-4.
13

4. Uma ciência do direito constitucional independente da política?

4.1. Uma abordagem do regime constitucional que considere o seu elemento


interno – isto é, do Estado constitucional como reflexo de um ideário constitucionalista –
encontra-se distanciada da “ciência do direito constitucional”, esta última comummente
reconduzida, ora à exegese da lei constitucional, ora à determinação dos “princípios
jurídicos positivos” e conceitos que a estruturam. Para este desenvolvimento terá
contribuído decisivamente a afirmação da ciência jurídica a partir de pressupostos
positivistas, mais precisamente a partir dos pressupostos de “isolamento” característicos
do positivismo epistémico.

Neste último contexto, recorde-se, o direito é matéria de conhecimento e não de


valoração, devendo a atenção do jurista focar-se exclusivamente no direito positivo em
termos independentes de quaisquer pressupostos ou valorações33. Dito de outro modo,
numa lógica em que “o jurídico não pode ser conhecido senão a partir do jurídico”34, o
direito positivo – o único “direito” concebido como o sendo – tem-se como cognoscível
na sua validade independentemente de quaisquer considerações de legitimidade, ou seja,
o problema do conhecimento do direito é “isolado” do problema do fundamento do
direito35. No plano do direito constitucional, tal significa que o seu conhecimento é
isolado do problema político do poder constituinte, que já vimos não ter sido resolvido
no contexto europeu continental de oitocentos, salvo no que toca à III República francesa.
De resto, terá sido precisamente a conflitualidade em torno deste problema que explica a
tentativa de isolar o conhecimento do direito constitucional da sua (contextualmente
impossível) resolução.

Tal como inaugurado no contexto germânico de oitocentos pela “jurisprudência


dos conceitos”, o positivismo epistémico não correspondeu, note-se, a um simples
“positivismo da lei” com a inerente redução da tarefa da ciência jurídica à exegese

33
Cfr. NORBERTO BOBBIO, Iusnaturalismo y Positivismo Jurídico, trad. de E. Diaz et al. da 2.ª edição,
Madrid, Trotta, 2015, pp. 105 segs., em especial, p. 128.
34
Cfr. ERNST-WOLFGANG BÖCEKENFÖRDE, Gesetz und gesetzgebende Gewalt, 2.ª ed., Berlim:
Duncker und Humblot, 1981, 193 segs.
35
Cfr. N. BOBBIO, Iusnaturalismo cit., pp. 105 segs.
14

legislativa. Admitiu-se, pelo contrário, que “qualquer lei será sempre uma apreensão
incompleta e apenas parcial da matéria jurídica”36. Nesta linha, o que sobretudo esteve
em causa foi a recondução do direito positivo a um sistema, cabendo à ciência jurídica
um trabalho construtivo dos princípios ou conceitos que o estruturam37.

Ora, a transposição deste método para a ciência do direito público – feita pela
escola Gerber-Laband – empenhou-a numa “construção neutra” do direito constitucional,
assim emancipada de qualquer fundamentação. Silenciaram-se assim aqueles propósitos
políticos, monárquicos ou revolucionários, que, à altura, ainda se digladiavam entre si.
Recorde-se que a dita escola se desenvolve na segunda metade de oitocentos, depois da
Revolução de 1848, precisamente num cenário de pacificação do conflito que – nas
décadas anteriores – opusera partidários da soberania monárquica a partidários da
soberania popular. E não pode deixar de se dar razão a Schmitt quando afirma que não
haveria melhor forma de garantir essa pacificação do que a traduzida numa “evasão” à
“questão política” do poder constituinte38.

Ou seja, a transposição do “método jurídico” para este âmbito terá pretendido


caucionar o direito constitucional positivo como tal, servindo a construção de um Estado
de direito formal (formal porque correspondente a uma estrutura jurídica “isolada” de
todas e quaisquer pretensões substantivas originárias ou superabundantes à positividade).
Com efeito, o direito constitucional e o Estado que lhe corresponde reconduzem-se agora
a uma estrutura conceptual depurada de “materiais não jurídicos”. O Estado é assim
reduzido a um esqueleto jurídico, isto é, a uma “pessoa jurídica”, desdobrada em “órgãos”
a que correspondem “competências”. Qualquer Estado – seja qual for a sua matriz
constituinte e sejam quais forem os seus fins – pode ser assim conceptualizado e sê-lo-á
necessariamente por uma juspublicística formalizada e autónoma, cujo objeto será o
direito positivo (qualquer direito positivo, com o qual a pessoa jurídica do Estado
necessariamente se identificará).

36
Cfr. PUCHTA apud OLIVIER JOUANJAN, Une Histoire de la Pensée Juridique en Allemagne (1800-
1918), Paris, PUF, 2005, p. 223
37
Para a caracterização da jurisprudência dos conceitos, cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do
Direito, trad. José Lamego, Lisboa, Gulbenkian, 1997, pp. 21 segs.
38
Cfr. CARL SCHMITT, Constitutional Theory, trad. de Jeffrey Seitzer, Durham, Duke University Press,
2008, p. 63
15

Não deixou, note-se, de ser denunciado o engano traduzido na tentativa assim feita
de conceber uma ciência do direito constitucional independente da política – ou, noutros
termos, um direito constitucional independente do ideário constitucionalista. Como desde
logo detetou Georg Jellinek, a escola Gerber-Laband “apropria-se de muitos conceitos
fundamentais da literatura política do seu tempo”, nomeadamente do conceito
constitucionalista de personalidade jurídica do Estado, dando o “valor de evidências
jurídicas” a “resíduos depositados por teorias políticas”39. No mesmo sentido, clarifica
Michael Stolleis, que “os praticantes do método jurídico, ao mesmo tempo que expressam
o seu desdém por uma abordagem filosófica do Estado, retiram os instrumentos do seu
construtivismo jurídico da mesma caixa de ferramentas”40.

Se a abordagem da escola Gerber-Laband contribuiu para a estabilização de um


Estado constitucional enquanto Estado de direito formal41 – havendo uma clara conexão
entre o positivismo epistémico e o chamado “constitucionalismo liberal” alemão42 –, o
seu preço acabou por se revelar muito elevado. Com efeito, um Estado constitucional sem
constitucionalismo (sem poder constituinte) foi facilmente reduzido pelos seus
adversários a um “Estado-máquina”. O ataque, se bem que antecipado no “fin de siècle”43,
viria a ocorrer com toda a intensidade no período de Weimar, momento em que se fez
corresponder ao Estado constitucional, ora uma incapacidade de gerar integração política
em seu torno44, ora um impossível esquecimento do “político” (um “político” que
conheceria inevitavelmente a sua “vingança”45).

O debate, eufemisticamente declarado como “luta dos métodos” (Methodenstreit),


acabou por se traduzir numa dupla cegueira, isto é, numa luta entre não declarados
defensores do Estado constitucional (não declarados porque os seus pressupostos
positivistas impossibilitavam-nos de explicitar os pressupostos constitucionalistas do
Estado constitucional, isto é, de o configurar como regime constitucional com um

39
Cfr. GEORG JELLINEK, Teoría General del Estado, trad. de Fernando de Los Rios da edição de 1911,
Mexico: Fundo de Cultura Economica, 2000, p. 102.
40
Cfr. MICHAEL STOLLEIS, Public Law in Germany, 1800-1914, trad. de Pamela Biel, Nova Iorque /
Oxford: Berghan Books, 2001, p. 420.
41
Nas palavras de Jouanjan, se a intenção declarada já não é a de “realizar o ideal”, facto é que não se deixa
de “idealizar o real”, o “positivo”, cfr. Une Histoire cit., p. 231.
42
Para mais desenvolvimentos, v. o nosso Positivismo Epistémico e Constitucionalismo Liberal +
43
Cfr. M. STOLLEIS, Public Law cit., pp. 438 segs.
44
Cfr. RUDOLF SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, trad. J.M. Beneyto Pérez, Madrid,
Centro de Estudios Constitucionales, 1985, pp. 37 segs.
45
Cfr. C. SCHMITT, O Conceito do Político, trad. de Alexandre Franco de Sá, Coimbra, Edições 70, 2015,
p. 41 segs.
16

correspondente elemento interno ou dimensão constituinte) e adversários de uma “teoria


jurídica do Estado” (estes últimos, na verdade, adversários do Estado constitucional
porque incapazes de conceber outra formulação deste que não a fornecida por essa “teoria
jurídica”, encarando-o, pois, como inevitavelmente desprovido de qualquer dimensão
“política” ou “constituinte”).

4.2. Porventura paradoxalmente, a crise de Weimar foi vivida ao mesmo tempo


que o regime constitucional conhecia uma formulação acabada na teoria do Estado de
Carré de Malberg, isto é, na sua conceção do Estado constitucional como representação
ou personificação da nação – uma nação que não se deixa conceber fora do discurso
constitucionalista que a define como soberana e em que se integra politicamente como
tal.

De facto, o mestre de Estrasburgo explicita sem ambiguidades a dimensão


prescritiva que subjaz ao Estado constitucional (isto é, formula o elemento interno ou
constituinte do correspondente regime constitucional). É certo que, enquanto proclamado
positivista, Carré de Malberg se afirma tributário de pressupostos de “isolamento”46. No
entanto, não está em causa um positivismo epistémico que encare o direito constitucional
como “objeto” a conhecer em termos “livres de valores”. Pelo contrário, está em causa
conceber o Estado que lhe corresponde estritamente a partir da linguagem
constitucionalista da Revolução Francesa, tomando-se, pois, o discurso valorativo da
Declaração de 1789 como base da teoria47. Raciocinando-se nesta lógica prescritiva,
concebe-se assim o discurso constitucionalista como discurso constituinte do Estado, isto
é, como discurso fora do qual este último não se deixa conceber ou representar (tal como

46
A sua obra fundamental Contribution à la Théorie Générale de l’État tem como subtítulo Spécialment
d’après les données fournies par le droit constitutionnel français. Sobre a radicação de Carré de Malberg
em pressupostos de “isolamento”, cfr. P-M RAYNAL 2019: 267.
47
Conforme assinala Troper (“The French Tradition of Legal Positivism”, in The Cambridge Companion
to Legal Positivism, eds. Torben Spaak / Patricia Mindus, Cambridge, Cambridge University Press, 2021:
pp. 137 e 144 segs), “este documento, como o seu próprio título indica, não é um ato de vontade, mas uma
declaração” de princípios que antecedem qualquer vontade. Carré de Malberg aceita como boa essa
pretensão da Declaração de 1789 e é nessa razão que se torna possível articular o seu proclamado
positivismo com a dimensão normativa da sua teoria. Na verdade, supõe-se que aos “dados fornecidos pelo
direito constitucional francês” – e primeiramente correspondentes à Declaração de 1789 – corresponderiam
princípios válidos para todos os Estados, os quais os revolucionários teriam “descoberto”.
17

não se deixa conceber uma “Constituição” se não estiver “assegurada a garantia dos
direitos nem estabelecida a separação de poderes”48).

Reitere-se que, em Carré de Malberg, o Estado é entendido como pessoa jurídica


desdobrada em órgãos constitucionais que, no seu conjunto, representam a nação. A
nação, por seu turno, é concebida como uma entidade abstrata, detentora de uma
soberania insuscetível de concretização num qualquer indivíduo ou conjunto de
indivíduos (isto é, de materialização como mera “vontade do rei” ou “vontade do povo”
enquanto conjunto numérico de cidadãos)49. Ou seja, a soberania nacional é um princípio
do discurso constitucionalista (da Declaração de 1789), que se cumpre ou atualiza como
“facto” no momento em que um corpo político se agrega ou unifica em seu torno, assim
se formando como “nação” representada pelos ditos órgãos. É neste sentido que não
cumpre falar no poder constituinte como vontade antecedente à vontade dos órgãos
constitucionais (poderes constituídos). No que cumpre falar é numa dimensão constituinte
ou interna do regime constitucional que existe a partir do momento em que a nação se
forma e, na mesma medida, a sua Constituição corresponde a uma “realização” e não a
um mero “ato”50.

Carré de Malberg tem bem presente que a sua teoria é, antes de mais, uma teoria
do discurso constitucionalista, isto é, da constituição que subjaz à Constituição e que,
portanto, define esta última em termos prescritivos, bem como o Estado que lhe
corresponde. Com efeito, teorizar o Estado como representação da nação (uma nação cuja
vontade apenas pode ser expressa por diferentes órgãos constitucionais) significa afirmar
os princípios do constitucionalismo, nomeadamente a separação de poderes, contra
quaisquer pretensões assentes numa ideologia política de soberania (democrática ou
monárquica), a qual resultaria inevitavelmente na preeminência inquestionada de um
poder concreto (do povo ou do rei). Clarificando-o, o professor de Estrasburgo afirma que
a sua teoria tem “por utilidade dar uma base jurídica firme ao sistema moderno de
limitação dos poderes” com reflexa garantia dos direitos dos cidadãos51.

48
O artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
49
Mesmo pelo povo enquanto conjunto numérico de cidadãos, divergindo assim a soberania nacional da
soberania popular, cfr. R. CARRÉ DE MALBERG, Contribution cit., II, pp. 27-28, 57-58 e 109 segs.
50
Sobre a Constituição como realização, v. novamente D. DYZENHAUS, The Long Arc cit., pp. 149
segs.
51
V. R. CARRÉ DE MALBERG, Contribution cit., I, pp. 28 segs. ; II, pp. 30 segs.
18

Nestes termos, não existe qualquer contradição entre a adesão de Carré de


Malberg a pressupostos de “isolamento” e a sua adoção de um discurso que de nenhum
modo se pode considerar “livre de valores”52. Reitere-se que não está agora em causa uma
insularidade da ciência jurídica perante todas e quaisquer valorações. O que está em
causa, insista-se, é uma explícita afirmação da especificidade do discurso
constitucionalista (da constituição subjacente à Constituição) no confronto com
conceções políticas ou sociológicas que o pudessem desvirtuar e, sobretudo, que
pudessem comprometer os seus propósitos (fundamentalmente, a separação dos poderes
e a garantia dos direitos)53.

Importa precisar que, tal como reconstruído por Carré de Malberg, o discurso
constitucionalista desdobra-se essencialmente num conjunto de conceitos (soberania
nacional, representação, Constituição, personalidade jurídica do Estado, órgão). Trata-se,
esses, de conceitos constitutivos e não de conceitos ontológicos, ou seja, de conceitos que
criam as próprias “realidades” a que se referem e que se cumprem no momento em que
essas ganham existência (isto é, no momento em que o discurso constitucionalista que os
formula tem eficácia juspolitista, sendo as “realidades” correspondentes aceites como tais
pela nação que se integra em torno desse discurso)54. Ter presente a natureza constitutiva
dos conceitos centrais do constitucionalismo é tanto mais relevante quanto assim se
garanta uma definição estritamente jurídico-política dos mesmos, a única definição
concordante com os propósitos desse discurso. Precisamente o contrário sucede com a
utilização de conceitos (ou pseudo-conceitos) ontológicos (como os de “soberania do rei”,
“soberania do povo”, etc.). Estes últimos, diga-se, não deixam de ser, tanto quanto os
conceitos constitutivos, criadores das realidades a que se referem, apenas se distinguindo
por ocultarem a sua natureza criadora. Como é bom de ver, o engano, consciente ou
inconsciente, serve propósitos ilimitadores do poder. É que se revela sempre impossível

52
Diferentemente, considerando essa contradição como irresolúvel e a partir daí qualificando o positivismo
de Carré de Malberg como um “positivismo impossível”, v. DIDIER MINEUR, Carré de Malberg: Le
Positivisme Impossible, Paris, Michalon, 2010, em especial, p. 39.
53
Em termos próximos, afirma Éric Maulin que o que está agora em causa é conceber, em razão de certos
propósitos normativos, “uma realidade jurídica efetivamente independente do mundo empírico”, na qual o
Estado constitucional a vontade dos seus órgãos como equivalentes à vontade da nação, se deixam
equacionar, v. ÉRIC MAULIN, La Théorie de l’État de Carré de Malberg, Paris, PUF, 2003, p. 154 segs.
54
Sobre conceitos constitutivos e a sua distinção de conceitos ontológicos, v. M. TROPER, “Souveraineté
et Représentation”, in Les Défis de la Représentation, eds. Manuela Albertone / Dario Castiglione, Paris,
Classiques Garnier, 2018, pp. 75 segs.
19

impor contornos ou limites jurídicos ao que é “real” (o “povo soberano” ou o “rei


soberano”) e assim pretensamente independente do mundo da linguagem.

Em suma, o isolamento “positivista” do discurso jurídico-político significa agora


a não contaminação dos conceitos do constitucionalismo por quaisquer pretensões
soberanistas que apelem a pseudo-realidades pré ou extra-discursivas (anteriores ou
exteriores ao discurso constitucionalista refletido na lei constitucional) para justificar
abusos de poder (não há agora outra soberania que não aquela que se exprime na
Constituição e segundo a Constituição). Dito de outro modo, trata-se de preservar, na sua
pureza, o elemento interno ou dimensão constituinte do regime constitucional.

Curiosamente, ao rever deste modo o sentido do “isolamento” originalmente


proposto pela escola Gerber-Laband, o professor de Estrasburgo explicita a conexão que
sempre existiu entre essa escola (na medida em que se tenha centrado no conhecimento
da Constituição positiva ao arrepio de pretensões políticas) e o constitucionalismo (na
medida em que defenda a Constituição positiva contra pretensões políticas alheias ao seu
ideário). De facto, explicitam-se os propósitos liberais que se haviam sempre encontrado
implícitos no positivismo epistémico, ao mesmo tempo que se superam os seus equívocos,
nomeadamente, o equívoco maior traduzido em ignorar-se ser o direito constitucional
impensável fora do discurso valorativo que o constitui como direito.

Ao mesmo tempo que resgata o “isolamento” dos equívocos do positivismo


epistémico, Carré de Malberg retoma, em atmosfera liberal, aquilo que definira a Política
moderna desde a sua matriz hobbesiana, isto é, a sua consciente natureza constitutiva de
uma nova forma política (o Estado) em razão de certos propósitos políticos. Neste
sentido, pode dizer-se que é na Contribuição de Carré de Malberg que o discurso
constitutivo do Estado moderno e do seu direito se converte verdadeiramente num
discurso constitucionalista. Mais: é no mestre de Estrasburgo que Hobbes encontra o seu
mais notável sucessor, capaz enquanto tal de uma conversão teórica do regime do Estado
num regime constitucional, assim na plena consciência de que o que está em causa é a
enunciação de uma linguagem política em que o Estado (ou a Constituição que lhe
corresponde) se representa (agora como expressão da soberania nacional e, desse modo,
como pessoa representante da nação).
20

5. A constituição subjacente à Constituição

Como assinalado, no discurso constitucionalista como discurso político


constitutivo do Estado constitucional, está em causa uma constituição política (o elemento
interno do regime constitucional) subjacente à lei constitucional com que o Estado se
identifica (o elemento externo do regime constitucional). Importa aqui diferenciar esta
proposta da que surge na Teoria da Constituição de Schmitt. De facto, uma constituição
política-discursiva do direito constitucional positivo (um discurso constitucionalista que
se revê na sua vigência e explica a sua autoridade) nada tem a ver uma “Constituição em
sentido absoluto” no sentido schmittiano.

Recorde-se que, para Schmitt, uma lei constitucional é apenas uma “Constituição
em sentido relativo” que pressupõe e se valida numa decisão substantiva, esta última
correspondente à unidade existencial de um povo e à sua ordem política concreta55.
Assim, a verdadeira Constituição – aquela que o é “em sentido absoluto” – traduz-se nessa
decisão substantiva, a qual, por definição, “não pode ser contida num estatuto ou numa
norma”56. Tal é suficiente, por si só, para clarificar a oposição de Schmitt ao discurso
constitucionalista no sentido acima referido (isto é, no sentido sustentador e não
relativizador de uma lei ou estatuto constitucional). A um nível mais profundo, tal
evidencia a oposição de Schmitt a toda a modernidade política tal como esta se
desenvolveu a partir de Hobbes.

A tradição hobbesiana evidenciara uma confiança plena na capacidade da razão


para determinar a ordem política que convém aos seres humanos, tendo
consequentemente engendrado um discurso racional constitutivo do Estado e do direito
que lhe corresponde. Tal culminou no constitucionalismo, precisamente enquanto
discurso jurídico-político orientado para a vigência de uma lei constitucional enquanto
ordenação legal-racional do Estado. Ora, a teoria schmittiana evidencia uma lógica
radicalmente distinta. Com efeito, a decisão schmittiana nada tem de racional, no limite
nada tem de discursivo, sendo o exato oposto de uma linguagem que se cumpra no Estado
como ordenação legal-racional.

55
V. C. SCHMITT, Constitutional cit., pp. 75 segs.
56
Idem, pp. 59 segs.
21

A decisão schmittiana é a concretização existencial de um “político”


invariavelmente traduzido na inclusão de amigos e na exclusão de inimigos. Isto é, trata-
se da afirmação, por um povo, da sua própria existência como unidade política exclusiva
com uma ordem política concreta, afirmação essa que se manifesta exemplarmente na
aclamação da pessoa que represente essa unidade57. Para Schmitt, o Estado – um “Estado”
cujo conceito “pressupõe o conceito do político” – é essa ordem política concreta58.

Ao relegar um sentido “absoluto” ou “autêntico” de Constituição para um âmbito


existencial e inescapavelmente irracional, Schmitt estará a afirmar a indomabilidade do
“político” nesse sentido existencial. Com efeito, corresponde-lhe uma conceção de
legitimidade que nunca se deixará encerrar “em leis, normas ou em qualquer instrumento
que contenha normas”59. Ora, nada poderia ser mais adverso à tradição hobbesiana e,
depois, constitucionalista, a qual se cumpre na identificação entre legalidade e
legitimidade e, desse modo, na construção do Estado como pessoa jurídica, cuja ação, se
legítima, é invariavelmente legal-racional60.

Em suma, o entendimento schmittiano de Constituição é radicalmente


anticonstitucionalista, não podendo ser maior a distância que existe entre a sua
“Constituição em sentido absoluto” e o discurso constitucionalista. Não importa agora
avaliar as razões subjacentes a esse anticonstitucionalismo, se relevantes de um estrito
existencialismo político, se de uma visceral oposição ao racionalismo/constitucionalismo
moderno em virtude do empobrecimento antropológico implicado na inerente afirmação
de uma racionalidade instrumental e correspondente legitimidade legal-racional.
Sublinhe-se apenas que Schmitt contrapõe a esse racionalismo um radical irracionalismo,
sem que verdadeiramente compreenda que o que está em causa no primeiro – no seu

57
Como é bom de ver, esta representação não pode ser confundida com a representação em sentido
hobbesiano. Em Hobbes, a representação é uma realidade da linguagem cujo sentido é normativo (isto é, o
conceito hobbesiano de representação é um conceito normativamente constitutivo e não ontológico). Já em
Schmitt, a representação é uma realidade efetiva cujo significado não normativo se cumpre na sua própria
atualização. Como sintetiza Dyzenhaus, o que está em causa em Schmitt “é o que é representado e não o
que deve ser representado”. Nesta razão, acrescenta Dyzenhaus, é mesmo duvidoso que se possa falar de
verdadeira “representação” em Schmitt, sendo difícil compreender como entendimento deste último “possa
impedir o princípio da representação de colapsar no princípio da identidade ou vice-versa”, v. Legality and
Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar, Nova Iorque: Oxford University
Press, 1997, P. 55.
58
Cfr. C. SCHMITT, O Conceito cit., p. 41 segs.
59
Cfr. C. SCHMITT, Constitutional cit., p. 65.
60
A prerrogativa assume em Hobbes um significado excecional, sendo a lei a forma privilegiada da ação
do Estado, o que precisamente traduz a racionalidade do Estado como representação, v. THOMAS POOLE,
“Hobbes on Law and Prerrogative”, in Hobbes and the Law cit., pp. 68 segs.
22

assumido “desencantamento” – é a imaginação política possível em contexto de


fragmentação moral e religiosa.

Um outro entendimento anticonstitucionalista de Constituição foi recentemente


defendido por Martin Loughlin. Para este último, a verdadeira Constituição corresponde
a uma “Constituição do Estado”, no sentido de “narrativa” em que “território, povo e
aparelho de poder” se alinham de dada forma e em que, por conseguinte, se forma uma
identidade política coletiva61. Ainda que Loughlin se diferencie de Schmitt por não
conceber essa “Constituição do Estado” como pertinente de um plano estritamente
existencial, facto é que opõe o seu “poder” a uma qualquer “ideologia constitucionalista”.
Com efeito, o autor tem como inconsequente um qualquer discurso de identificação do
Estado com a lei constitucional, afirmando que a autoridade desta última apenas se poderá
estabelecer em termos dialéticos com o “poder dessa narrativa”62.

Como vimos acima, no constitucionalismo, não há uma “narrativa” do Estado que


se possa diferenciar da sua configuração como Estado constitucional. Dito de outro modo,
no constitucionalismo, a única lógica política admissível releva da implementação de um
regime constitucional, que, como tal, tem como elemento externo um Estado que se
esgota no direito constitucional. Dizer isto não significa evidentemente dizer que, ao
regime constitucional, não correspondam determinados pressupostos materiais. Com
efeito, a comunidade política que se concebe como nação personificada em Estado é
logicamente antecedida por um conjunto de pessoas assente em determinado espaço
geográfico suscetível de domínio eficaz (isto é, de domínio capaz de defender esse espaço
de ameaças externas e de garantir internamente o gozo dos direitos e o cumprimento dos
deveres em que o estatuto de cidadania se desdobra).

Nestes termos, um regime constitucional – ou, desde logo, um regime do Estado


– traduzirá sempre uma invenção ou reinvenção política que transforma certos
pressupostos materiais em “elementos do Estado”. De facto, esse regime não se deixa
instaurar no vácuo, isto é, não implica – nem poderia implicar – uma criação ex nihilo
daqueles pressupostos. Há, pois, “factos brutos” (uma multidão e um espaço geográfico
suscetível de domínio eficaz) que antecedem o Estado e que têm de ser juridicamente

61
Cfr. MARTIN LOUGHLIN, Against Constitutionalism, Cambridge MA: Harvard University Press, 2022,
p. 57 segs.
62
É assumida a inspiração de Loughlin em Hermann Heller, para quem “a relação entre normatividade e
realidade é dialética”, idem, p. 60.
23

concebidos (ou reconcebidos) como seus “elementos” (povo, território e poder político)
para que haja um Estado.

A dificuldade de implementação de um regime constitucional pode relevar da


dificuldade em converter os referidos pressupostos materiais em elementos próprios da
construção jurídico-política de um Estado constitucional. É o que sucede quando este seja
antecedido por um grupo (ou por grupos) de pessoas cuja cultura tradicional persista e se
mostre resistente à sua conversão numa nação moderna ou povo (isto é, num corpo de
cidadãos com direitos e deveres iguais). É também o que sucede quando um regime
constitucional se pretenda sobrepor a regimes constitucionais existentes, convertendo-os
em meras estruturas federadas de um pretenso “constitucionalismo supraestadual”,
“supranacional” ou “cosmopolita”. É efetivamente provável que nações longamente
personificadas em Estados constitucionais ofereçam resistência à sua integração política
numa nova nação ou união de nações personificada num novo Estado (por muito que este
se formule como reflexo de uma mera “comunidade de direito” ou como impossivelmente
correspondente a uma “Constituição” sem povo).

Regressando a Loughlin, a sua tese – se a lemos bem – dirige-se sobretudo contra


declinações contemporâneas do constitucionalismo, traduzidas, por um lado, num
constitucionalismo justicialista que menoriza qualquer dimensão democrática e, por
outro, um constitucionalismo cosmopolita arvorado em “discurso autónomo de
legitimação”63. O autor poderá ter razão no seu ceticismo em torno dessas declinações,
mas o seu erro traduz-se em tomar a parte pelo todo, confundindo as ditas com o
constitucionalismo tout court64. Quanto ao contemporâneo justicialismo, esse não seria
seguramente caucionado, nem pela original declinação revolucionária do
constitucionalismo, nem pela sua reformulação kelseniana65. Quanto ao dito
“constitucionalismo cosmopolita”, dificilmente encontraremos formulações clássicas do
constitucionalismo que preconizem a instauração de um regime constitucional no vácuo.

63
Idem, p. 188.
64
Sobre diferentes declinações do discurso constitucionalista, v. MAURIZIO FIORAVANTI,
Constitucionalismo: Experiencias Históricas y Tendencias Actuales, trad. A. Mora / M. Martinez, Madrid:
Trotta, 2014.
65
Recorde-se que Kelsen formula a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis numa lógica
de preservação das estruturas formais de um Estado constitucional e do pluralismo democrático que
considera dever perpassar nessas estruturas. Nestes termos, o que está em causa sobretudo é a garantia das
minorias, nomeadamente da sua participação democrática, v. HANS KELSEN, “A Jurisdição
Constitucional (Exposição de Hans Kelsen)”, in Jurisdição Constitucional, trad. Sérvulo da Cunha, São
Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 121 segs.
24

Pelo contrário, terá estado sempre presente a ideia de que esse passa por uma efetiva
imaginação ou reimaginação política de dada comunidade como comunidade
constitucional (com a inerente conversão de certos pressupostos materiais em elementos
do Estado, agora do Estado constitucional).

Ao ignorá-lo, Loughlin acaba na verdade por opor a lógica política de uma


pretensa “Constituição do Estado” – que tem como inquebrantável – a uma qualquer
imaginação constitucionalista. Ou seja, perante o inescapável “poder narrativo” do
“político” (correspondente à “Constituição do Estado”), um qualquer discurso
constitucionalista revelar-se-á sempre ineficaz. Chegamos assim a um resultado
perigosamente próximo do irracionalismo de Schmitt, descrendo-se à partida da
possibilidade de o discurso constitucionalista se revelar efetivamente conformador de
uma ordem política (isto é, consubstanciar o elemento interno de um correspondente
regime constitucional efetivamente existente).

A tese de Loughlin é tanto mais surpreendente quanto o discurso constitucionalista


não seja afinal senão uma compleição do discurso do Estado moderno. De facto, e como
vimos, neste esteve sempre em causa uma reimaginação da ordem política como Estado,
em termos que refletem um discurso racional (o discurso de Bodin e de Hobbes). Ou seja,
não se pode falar de uma “Constituição do Estado” a que se tenha procurado sobrepor,
depois, uma “falsa consciência” traduzida na “ideologia do constitucionalismo”. Do que
se deve falar é do regime do Estado moderno (que teve sempre, como elemento interno,
um discurso racional dele configurador), a que se sucede o regime constitucional (cujo
elemento interno é um discurso constitucionalista que não negou o discurso do Estado,
antes o desenvolveu e consumou).

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