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Democracia e cidadania

O Estado tem medo da filosofia em geral.

Friedrich Nietzsche

O Estado

A
tribui-se a Maquiavel a introdução do emprego do termo Estado (stato) e a Bodin, a sua
definição jurídica como poder estabelecido por lei; mas tanto a Antropologia como a So-
ciologia apresentaram um conceito descritivo de Estado, relacionado à vida social, muitos
séculos antes de esses pensadores políticos se manifestarem. O Estado, como categoria política,
surgiu quando o Poder, como domínio, pressão e orientação de certos elementos da sociedade sobre
outros, deixou de limitar-se à organização íntima e familiar da gens, do clã, ou mesmo da tribo,
para se tornar o domínio que passou a representar a sociedade de classes, como organização pública
da cidade. A Grécia Antiga deu o exemplo com o cidade-Estado ou pólis e depois seguiu-se-lhe o
cidade-Estado de Roma, dos germanos e de outros povos, até a Idade Média lhe acrescentar a sobe-
rania da Igreja e o convívio religioso moral das comunidades dos castelos feudais e do artesanato
das pequenas populações e da cidade.
A passagem seguinte, de Engels, é fundamental para o esclarecimento da origem do Estado:
[...] O processo de formação do Estado tem início com a crise das comunidades gentílicas (estágio de transição
entre a barbárie e a civilização), que tem sua origem com a expansão do comércio, do dinheiro, da usura, da pro-
priedade territorial e da hipoteca. [...] O regime gentílico já estava caduco. Foi destruído pela divisão social do
trabalho que dividiu a sociedade em classes e substituído pelo Estado. Já estudamos, uma a uma, as três formas
principais de como o Estado se construiu sobre as ruínas da gens (divisão social do trabalho, expansão do comér-
cio e do dinheiro, além é claro da propriedade privada). Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais
pura, mais clássica; ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classe que se desen-
volviam mesmo no seio da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica converteu-se numa aristocracia
fechada, entre uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu
a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a confundir-se a aris-
tocracia gentílica e a plebe. Entre os Germanos, por fim, vencedores do Império Romano, o Estado surgiu em
função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar
[...] O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é
“a realidade da ideia moral”, ou “a imagem e a realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da
sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento [...]. (ENGELS, 1987, p. 187-191)

A respeito da natureza do Estado, não só os doutrinários, os ideólogos, os filósofos e os juristas,


mas também os pensadores sociais e sociólogos adotam uma qualificação, ora não apropriada, ora sim-
plesmente formal, ora ambígua, como fenômeno social. Identificar o Estado com os chefes de grupos
sociais, com a elite da sociedade corresponde, pode dizer-se, a um modo de ver objetivo existente na
época histórica em que o Estado surgiu como entidade pública a impor-se às entidades familiares ou
privadas; ou então, corresponde a uma autodignificação pessoal como, por exemplo, a do monarca Luís
XIV da França: “o Estado sou eu (L’état c’est moi)”, ou, ainda, a de um papa estadista ou de um impe-
rador que não admite a ultrapassagem histórica. Por outro lado, invocar o pensamento filosófico grego,
ou mesmo, o de Hegel para justificar a “teoria orgânica” do Estado, o materialismo mecanicista de
Hobbes e o empirismo (baseado apenas na experiência e sem caráter científico) de Locke para falar de
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um Estado-máquina “como coisa feita pelo homem”;

IESDE Brasil S.A.


a doutrina da “vontade geral” de Rousseau para des-
crever o princípio de liberdade do Estado-contrato,
ou a do próprio Hegel, que considera o Estado “um
superorganismo” como realização do “espírito di-
vino” (justificação de que o nazismo e o fascismo
se aproveitaram); finalmente, invocar o marxismo e
referir o Estado de classe, de modo que a categoria
classe por si só interviesse direta e abertamente no
comando da sociedade. Todo esse pensamento polí-
tico, enfim, é pura doutrina e defesa ideológica, que
mantém o significado da natureza do Estado ainda
O pensamento do Iluminismo desempenhou um importante
papel na gênese da Revolução Francesa, que acabou com o por definir.
Antigo Regime e a hegemonia da aristocracia. Na gravura,
De qualquer modo, depois da noção nua e
aristocratas no Almoço de ostras, de Jean-François de Troy
(Museu Condé, Chantilly). pessoal de Estado, Marx e Engels não só explicam
sua origem social, como também reduzem a sua natureza a um domínio e engre-
nagem de determinada classe.
Sobretudo os juristas, que tanto procuram legitimar a figura do Estado, como
necessitam determinar o termo jurídico para o qualificar, servem-se da linguagem
comum usada até hoje pelos pensadores sociais, aceitam os termos já existentes de
governo, instituição e poder e confirmam, uns, que o Estado é o governo ou o seu
poder, e, outros, que é uma instituição.
Falar em Estado sem considerar as entidades públicas que o referem ou que
ele representa e sem ter em conta as regras sociais ou normas jurídicas que o defi-
nem é separá-lo de toda a realidade e torná-lo um conceito vazio, mesmo que lhe
chame governo, instituição e poder. Além disso, governo significa, em concreto,
uma pessoa singular ou coletiva, coisa que o Estado manifestamente não é. A
instituição nem formal nem juridicamente é uma pessoa, e como simples padrão
de comportamento, verificado em qualquer agrupamento social ou na sociedade
como um todo, é coisa bem diversa do que o Estado é como referência ou repre-
sentação de entidades públicas e como símbolo de prescrições, de poder, de admi-
nistração, de coerção, de outras potencialidades e atividades que as regras sociais
ou normas jurídicas lhe atribuem. O poder, quer físico, quer social, mesmo como
soberania ou autoridade, é mero aspecto do Estado, e é o Estado.
Portanto, o Estado não é o governo ou um órgão, nem uma instituição ou
simplesmente o poder. É de natureza bem mais complexa: é, antes de tudo, uma
expressão do poder político, isto é, do domínio e autoridade do governo, da admi-
nistração pública, das forças militares e policiais, dos tribunais e das assembleias
legislativas e parlamentares, enfim, de todas as entidades públicas sobre a socie-
dade como um todo; é a referência ou a representação de tais entidades públicas;
e é, ao mesmo tempo, o símbolo de prescrições, de soberania, de administração e
controle, de coerção, de outras potencialidades e atividades que as normas políti-
cas lhe atribuem.
Naturalmente que na sociedade capitalista, como sociedade de classes, a
classe burguesa, como única proprietária dos meios de produção, facilmente se
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torna possuidora do poder político, domina todas as entidades públicas, cria e


aplica todas as normas que regulam a vida política da sociedade.
Por isso, Engels diz:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter a contradição entre as classes, e como,
ao mesmo tempo, nasceu o conflito entre elas, é, por regra geral, o Estado da classe mais
poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio do Estado,
se converte também em classe politicamente dominante que adquire novos meios para a
repressão e exploração da classe oprimida. Assim [...] o moderno Estado representativo é
o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho [...] sendo assim, o Estado
é um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem [...]. (EN-
GELS, 1987, p. 193-194)

1. Problematização:

“Num estudo baseado em pesquisa realizada na França sobre a despolitização, Marcel Merle
faz distinção entre duas espécies de antipoliticismo ou atitude contrária à participação política:
a tática e a doutrinária.

O desinteresse pregado por motivos táticos é baseado na intenção de afastar o povo das decisões
políticas. Os grupos de tendência totalitária, que desejam decidir sozinhos, sem interferência
do povo, procuram desestimular a participação política. Através de um trabalho de propaganda,
tentam difundir a ideia de que o povo não pode e não quer perder tempo com problemas políti-
cos.

Paralelamente à divulgação de ideias visando desestimular a participação política dos cidadãos,


os grupos que tomam um governo e querem evitar que o povo exija procedimentos democráti-
cos e honestos costumam forçar a mudança das leis para concentrar em suas mãos a maior soma
possível de poderes. Desse modo, o povo sente que não influi de maneira alguma nas decisões e
que sua participação é apenas uma formalidade sem importância. E acaba por se desinteressar
até dessa participação formal, deixando o grupo dominante governar como quiser, sem nenhu-
ma responsabilidade”
(DALLARI, Dalmo de Abreu. Participação Política. São Paulo: Brasiliense, 1984.)
a) Com base no texto acima, responda: a quem interessa o desinteresse político?

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