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SEMINÁRIO CIDADANIA, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 27/04/2023

EROSÃO E APODRECIMENTO CONSTITUCIONAL: CONCEITO, FATORES E


SOLUÇÕES

1. CONCEITO:
As obras que tratam de decadências constitucionais, fazem uma abordagem mais
liberal de democracia, característica dos próprios Estados, como é o caso da Polônia,
Hungria e Estados Unidos e não trazem particularidades de contextos plurais e
complexos socialmente como, os localizados no hemisfério sul. Numa sociedade
multicultural, plural e complexa, não é possível que os cidadãos mantenham unidos por
um consenso de valores, mas somente por um consenso sobre os procedimentos que
legitimam a criação de direitos e o exercício de poder. Para que haja compreensão dos
problemas que ocorrem em um estado democrático, é necessário entender o que é
identidade constitucional1.

Para tanto, Emílio Peluso Neder, consegue aliar o conceito de “erosão


constitucional”, levando em consideração o caso brasileiro, a partir dos conceitos de
identidade constitucional, crise constitucional e erosão democrática. Os fenômenos da
erosão constitucional ocorrem no âmbito das normas constitucionais e das instituições e
no âmbito dos direitos e identidade constitucional, englobando uma lenta e contínua
deterioração de um projeto constitucional.

A identidade constitucional num Estado complexo e plural, possui relação com


outras identidades, como as de caráter nacional, religiosa e cultural ao mesmo tempo
que se distancia para criar “sua própria imagem” 2. Isso ocorre para que essa identidade
seja de fato implementada, caso contrário (se não criasse nenhuma relação ou se
mostrasse somente de forma negativa em relação às demais), não seria possível adquirir
um sentido “suficientemente determinado ou determinável” 3 . A oposição a identidades
em razão da complexidade também se revela importante, sobretudo, para impor limites
a outras identidades relevantes. Por exemplo, num Estado com cultura discriminatória e

1
Habermas, Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 376
2
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. trad. Menelick de Carvalho Netto. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 23.
3
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. trad. Menelick de Carvalho Netto. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 22
opressão de minorias, necessita de direitos constitucionais antidiscrimnatórios. Para
Emílio Peluso Neder Meyer:

A identidade constitucional ajuda a identificar quem são os destinatários


dessas soluções [constitucionais]. Ela coopera mostrando quais identidades
que o sujeito constitucional deve incorporar e como os princípios abstratos
devem interagir com histórias concretas e particulares. A identidade
constitucional deve também fazer uma adequada interligação entre as
prescrições textuais e as condições históricas e sócio-políticas. Assim, se a
Constituição de 1988 estabelece uma identidade constitucional e um projeto
constitucional, os seus objetivos socioeconómicos, desenvolvidos a partir de
uma sociedade profundamente desigual, implicam certamente a prossecução
de projetos políticos que efetivamente reduzam estas desigualdades.

A identidade constitucional também ajuda a identificar os momentos de crise


constitucional, que é considerada “um momento de verdade: um ponto de virada,
quando as condições antes e depois desse momento são muito mais diferentes umas das
outras do que antes e depois da “maioria” dos outros momentos” 4. As crises na maior
parte das vezes, não ocorrem de forma “abrupta” mas “com o desenrolar de pressões ou
ações acumuladas por um longo período de tempo”5. Para Emílio Peluso Neder Meyer,
a partir da identidade constitucional, crise constitucional e erosão democrática, tem-se
que:

Erosão constitucional representa uma situação prolongada no tempo em que


diferentes desafios à estrutura constitucional ocorrem de forma recorrente,
sem que, por si só, representem uma disrupção a todo o sistema
constitucional. No entanto, em uma análise individual, todos esses desafios
debilitam um aspecto do projeto principal definido por uma constituição. A
erosão constitucional não pode ser simplesmente comparada a uma única
ruptura, pois isso seria equivalente a derrubar uma constituição - por
exemplo, na situação de um golpe militar. A erosão constitucional descreve
as circunstâncias pelas quais um sistema é continuamente desafiado,
prejudicando a possibilidade de que a identidade constitucional permaneça a
mesma. Nesse sentido, o conceito se complementa com a ideia dos processos
incrementais de erosão autoritária (Ginsburg e Huq), decadência democrática
(Daly) ou retrocesso autoritário (Haggard e Kaufman). A diferença,

4
MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford; New York: Hart Publishing, 2021,
p. 6.
5
MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford; New York: Hart Publishing, 2021,
p. 9.
entretanto, pode ser situada no fato de que a erosão constitucional ocorre no
nível das normas constitucionais, instituições, direitos e identidade6.

Para o autor, uma constituição se opõe a qualquer tipo de o autoritarismo.


Constituição só é constituição, enquanto permanece na defesa ativa, atenta e constante
contra o autoritarismo.

2. FATORES DA EROSÃO/APODRECIMENTO CONSTITUCIONAL

2.1. Por Emílio Peluso Neder (erosão constitucional no Brasil)

Justiça de transição tardia e incompleta: magistrados e militares procuraram e


seguem procurando controlar a transição brasileira de seu período ditatorial mais
recente para o atual contexto democrático. Apesar dos esforços e avanços no que diz
respeito a rememoração e reparação das vítimas do Estado de exceção (um dos pilares
da justiça de transição), pouco foi feito em outros dois aspectos pilares relevantes: a
efetivação de reformas institucionais e a responsabilização dos agentes por crimes
contra a humanidade (com base na ADPF 153/STF). Também não houve mudanças
significativas nas forças armadas após o fim da ditadura de 1964-1985 e a própria
instituição não mudou o seu posicionamento sobre o regime ditatorial, contribuindo
para que, ainda hoje, movimentos de extrema-direita e, atualmente, o próprio Governo
Federal comemorem o dia 31 de março de 1964 como uma revolução e “um marco para
a democracia brasileira". Esse fator ajuda a explicar, também, a retomada da
participação do Exército na política brasileira.

Medidas tomadas no governo Temer também abriram o caminho para que, em


2018, 72 militares fossem eleitos e o próprio Jair Bolsonaro, conhecido por ter sido
capitão no exército, e tendo por vice o general Hamilton Mourão, após tomar posse,
passasse a preencher gabinetes e ministérios com membros das forças armadas. Para o
autor nesse momento abre-se espaço para o chamado “pretorianismo”, isto é, “a
ausência de um efetivo controle civil sobre os militares”

A militarização da segurança pública ajuda a compreender a formação e o papel


das milícias no Estado brasileiro, desvelado com o assassinato de Marielle Franco e a
6
MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford; New York: Hart Publishing, 2021,
p. 8-9.
eleição de Jair Bolsonaro para a presidência. As milícias são organizações criminosas
paramilitares, estruturadas a partir da articulação do aparato policial, com comerciantes
e empresários (responsáveis pelo financiamento) e políticos (para institucionalização de
seus interesses). O engajamento político das milícias é caracterizado também pela
formação de um contingente de votos nos territórios por elas dominados. A participação
das milícias na política e os seus vínculos com representantes eleitos (e até mesmo com
a presidência), além de representar sistemáticas e amplas violações à ordem
constitucional, mostram “os riscos de uma aceitação geral da participação ilegal e
inconstitucional na política”
Constitucionalismo instável: remete aos tribunais que trilharam num caminho
perigoso de colocar em prática uma plataforma instável de constitucionalismo, contrário
ao que determina a CRFB/88.
A Operação Lava-Jato também é um símbolo desse processo. A operação, tanto
por parte do Judiciário, quanto do Ministério Público, foi marcada pela
espetacularização do processo penal, abuso de poder, vazamentos seletivos e suspensão
ilegal de sigilo de informações politicamente sensíveis, flexibilização de garantias
constitucionais em prol de pretensa excepcionalidade da situação, instabilidade de
entendimentos, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, e uma maior
preocupação com a opinião pública do que com a força normativa da Constituição.
Além disso foi decisiva para o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff
e prisão do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes do trânsito em julgado.
Fortes laços que unem autoritarismo e neoliberalismo: o neoliberalismo, está
em permanente tensão com a democracia e suas instituições. A adoção de políticas de
cunho neoliberal, acabam por aprofundar desigualdades socioeconômicas, contrariando
o projeto constitucional traçado pela Constituição de 1988, que trouxe uma série de
direitos e objetivos socioeconômicos que implicam “a busca por projetos políticos que
de fato reduzam essas desigualdades”. Embora tenha havido avanços significativos na
distribuição de renda entre 2001 e 2015, com a contínua redução do índice GINI, após
2015 esta tendência se inverteu.
As sucessivas medidas de cunho neoliberal, implementadas de maneira acelerada
no governo Temer e sem o devido e prévio debate legislativo democrático,
representaram o abandono do “propósito de promover a pacificação social por meio da
conciliação de conflitos distributivos para se comprometer com a promoção unilateral
dos interesses de mercado”. Algumas destas medidas representaram a ampliação do
projeto neoliberal no Brasil – sendo o marco desse processo a EC nº 95. O avanço de
uma agenda que contraria o projeto constitucional e o aprofundamento das
desigualdades ajudam a explicar a descrença da população na legitimidade das
instituições democráticas.
Ausência do binômio independência-responsividade: a independência no
Brasil adquiriu contornos corporativos, prejudicando a implementação de mecanismos
de responsividade. Isso traz consequências para democracia, como a distância se cria do
Poder Judiciário para com a sociedade, gerando decisões desastrosas e o estímulo na
criação de juízes protagonistas, que passam a dar decisões não jurídicas, mas morais,
econômicas e políticas, como aconteceu com o juiz Sérgio Moro na Lava Jato (lawfare).

Outros elementos do processo de erosão constitucional brasileiro podem ser


apontados, como o caráter fragmentário do pemedebismo; a desconexão entre partidos e
sociedade e o crescimento de reivindicações antissistema; os avanços de uma pauta
religiosa valorativa e de uma moral conservadora; o posicionamento da elite brasileira
em relação à democracia; o antipetismo e a rejeição ao progresso econômico e social
das classes vulneráveis; e o caráter propagandístico (e cíclico) do discurso
anticorrupção.

2.2 Por Jack M. Balkin (The cycles constitutional time)


Os fatores são definidos em três ciclos:
1º ciclo: -ascensão e queda dos regimes políticos (democracia, autoritarismo e
totalitarismo); Inspiração Stephen Skownek;
-existência de um partido dominante que constrói coalizão governante capaz de
mantê-lo no poder por amplos períodos, construindo o espaço do possível na política e
as bases da agenda pública. Para Balkin, o ciclo temporal age lentamente para
fragilização de um regime político, com a geração de novos pontos de veto, obstáculos e
conflitos de interesses.
- 5 fatores determinam o fim de um regime político: a) partido dominante; b)
mudanças demográficas; c) reorganização do sistema partidário; d) reorientação de
objetivos e agendas de governança; e) mudanças de composição do judiciário e de
doutrinas impostas por tribunais.
2º ciclo: polarização e despolarização. A polarização é causada pela
desigualdade de renda.
3º ciclo: Elementos da podridão constitucional.
-Crise constitucional: hipóteses
a) Não aderência explícita de agentes públicos às regras constitucionais
b) Aderência a uma constituição cujos resultados são catastróficos do ponto de
vista da sociedade como um todo
c) Quando o desacordo sobre o significado constitucional atinge um ponto
extremo de violência civil

A crise ocorre quando a Constituição não funciona mais como instrumento


capaz de viabilizar a política.
-decadência de características do sistema constitucional que sustentam
valores democráticos (soberania popular) e republicanos (prevalência do bem público)
- a podridão opera-se por um declínio gradual dos valores, até mesmo
mediante a destruição de normas e instituições que fornecem uma plataforma política
para busca do bem comum por pessoas que discordam entre si. Se a crise é
compreendida como ruptura quase absoluta da constituição como reguladora da política,
a podridão é um processo gradual de erosão das instituições democráticas que pode
corroer lentamente as estruturas constitucionais a partir do seu interior. Fatores que
geram a podridão: polarização política, desigualdade econômica, desconfiança e falha
em políticas públicas.
-eleições colocadas em descrédito para atingir fins estratégicos de
determinadas correntes políticas
- a desconfiança também faz parte do ciclo de degradação constitucional

Papel da Constituição da lógica de ciclos de podridão e renovação: criar


mecanismos que preservem valores democráticos e republicanos até que um novo ciclo
se inicie.

2.3 Por Wojciech Sadurski. Deterioração democrática na Polônia.


Fatores:
i. promoção de alterações legislativas rápidas e radicais e ataques a organizações
não-governamentais;
ii. edição de nova legislação regulamentando meios de comunicação;
iii. enfraquecimento e captura da Corte Constitucional, com a remoção de juízes
experientes com a redução da idade de aposentadoria;
iv. promoção de ataques específicos aos presidentes de cortes superiores; v.
reformulação da autoridade administrativa judicial6, e
vi. Identificação da União Europeia como entidade ilegítima e violadora da
soberania.

3. SOLUÇÕES DE PROBLEMAS PARA CASOS DE DEGENARAÇÃO,


EROSÃO E APODRECIMENTO CONSTITUCIONAL

a) Convocação de uma nova constituinte


b) Decisões pautadas na resiliência constitucional: Trata-se de oferecer as
próprias condições para a resistência e a contraofensiva diante dos ataques que a
constituição sofre. O conceito que condensa essas possibilidades – sobrevivência,
resistência, contraofensiva – e permite uma reinjeção de ânimo nas esperanças
democráticas é o de “resiliência constitucional. Para Emílio Peluso Neder, a
Constituição de 1988 provê instituições e arranjos institucionais “que não apenas a
protegem de abuso, mas também oferecem respostas para o futuro”, mesmo após a EC
95.

Para o autor:

A resiliência constitucional não depende apenas do design, dos arranjos. O


desenho constitucional é uma característica essencial de qualquer democracia
constitucional, mas, como já mencionado, a política democrática é
alimentada pelos dispositivos constitucionais aos quais está conectada. A
sociedade civil, a mídia livre e o ativismo digital constitucionalmente
embasado podem cooperar no controle da autocracia e do populismo.

“a Constituição de 1988 parece ser uma constituição adequada para promover


uma cultura constitucional no Brasil – ao menos (ou para a perspectiva mais
relevante) aos olhos da sociedade civil”. Logo, não cabe falar em uma nova
Constituição: “as ferramentas para que nos regeneremos da erosão
constitucional brasileira estão presentes na Constituição de 1988”

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