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UMA CONVERSA ENTRE IGUAIS: O PRINCÍPIO DA TOLERÂNCIA

A CONVERSATION BETWEEN EQUALS: THE PRINCIPLE OF TOLERANCE

Luiz Carlos Avila Junior1

SUMÁRIO: Introdução. 1. Uma conversa entre iguais: o princípio da tolerância.


Considerações finais. Referência das fontes citadas.

RESUMO: O ensaio pretende contribuir para a construção e desenvolvimento de que a


participação popular na produção e efetivação dos direitos é essencial em uma ordem
jurídica pluralista, de forma que a construção não se pode dar por meio de combate mas
sim através do princípio da tolerância.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Pluralismo. Participação Cidadã. Igualdade.
Tolerância.

ABSTRACT: The essay intends to contribute to the construction and development that
popular participation in the production and realization of rights is essential in a pluralist
legal order, so that construction cannot take place with combat but through the principle
of tolerance.
KEYWORDS: Constitution. Pluralism. Citizen Participation. Equality. Tolerance.

INTRODUÇÃO
Vivenciamos tempos difíceis, tempos sombrios, de desintegração política e
jurídica. Tempo de polarização, em que pretende-se que ideias vençam não por serem
melhores, ou por formar um consenso mas sim por ter a capacidade de falar mais alto.
Foi atribuída toda a responsabilidade de entrega das promessas humanistas e
civilizatórias ao Estado [ente governamental], contudo, com a demonstração inequívoca

1
Advogado, sócio do Avila Junior Sociedade de Advogados. Doutorando em ciência jurídicas pela
Universidade Autónoma de Lisboa, área de pesquisa direito constitucional. Mestre em Ciências Jurídicas
pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e pela Universidad de Alicante (Espanha) [em regime de
dupla titulação]. Pós Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IDPEE em parceria com a
Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pelo Centro e Ensino Superior dos Campos Gerais –
CESCAGE. Presidente da Comissão de Direito Constitucional – OAB Itajaí -SC 2019-2021 / 2022-2024.
Investigador Integrado do grupo de investigação sobre Cultura de Paz e Democracia do Centro de
Investigação Ratio Legis.
E-mail: junior@avilajunior.adv.br Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3415162026748966

1
de que o exercício governamental embora muito possa fazer à sociedade, não é o melhor
conceito de direito, especialmente no sentido de que vivemos em uma sociedade aberta,
como verdadeiros criadores do direito, portanto, policêntrica, passamos a compreender
que a preservação do mundo comum, exige a permanência do espaço em que cada
indivíduo é visto e ouvido pelos demais.
A democracia se vê em erosão e plenamente desafiada, observa-se que o
tradicional, mas insuficiente, conceito de governo do povo pelo povo, tem servido para
atender privilégios de uma minoria, que busca cada vez mais sufocar vozes contrárias.
Uma sociedade que se vê as voltas do cansaço, que já não fala mais em morte
democrática por um “golpe” mas sim por morte lenta, a partir de um grande
desmantelamento de conquistas civilizatórias, uma morte até mesmo do recurso à
memória, quando esta não se desvirtua.
Urge fazer esse resgate! A questão é, como se pode fazer isso, uma das possíveis
respostas, é ampliar a participação da sociedade na construção de uma sociedade mais
justa, em que a dignidade humana não seja retórica mas efetiva.
Isso exige a fluência pacífica de uma ordem jurídica pluralista, que somente pode
ser atingida através da presença do princípio da tolerância que conforme uma conversa
entre iguais.

1. Uma conversa entre iguais: o princípio da tolerância

Há uma ideia geral de que o constitucionalismo é um modelo comum em quase


todo o mundo, principalmente no sentido de premissas. Isso ocorre, com grande razão,
no cânone de que há dois momentos significativos e impactantes no constitucionalismo
contemporâneo, em termos mundiais.
O primeiro momento é o a compreensão do constitucionalismo antes da segunda
guerra, no qual a Constituição, essa era basicamente um documento formal, facilmente
manipulável, e por dizer em verdadeiro caráter simbólico, isso oportunizou a que os
poderes instituídos utilizassem do Direito de forma subversiva culminando com a guerra
e as barbáries perpetradas.
Não se pode esquecer que para além dos impactos do combate militar/bélico,
colhe-se que nos países ocupados pela Alemanha nazista, a Segunda Guerra Mundial
constituiu uma experiência primordialmente civil, marcada pela repressão, exploração,
pelo extermínio e pelo abuso de poder que dispunha o Estado ocupante sobre as rotinas

2
e vidas de milhões de pessoas, transformadas diretamente ou indiretamente em
prisioneiros fosse sob o aspecto militar, fosse sob o aspecto da ordem jurídica instituída.
Com o fim da Segunda Guerra, sobreveio a consciência de que era necessário,
uma completa ruptura com o sistema anterior, revolucionando nosso estar no mundo e
obviamente o sistema jurídico ou constitucional destacando-se uma tríplice sacralidade
para que se evitasse barbáries como as vivenciadas: [1] A discussão sobre o alcance do
princípio da legalidade; [2] a dignidade da pessoa humana; [3] o rompimento com o
autoritarismo.
Essa base, de fato, pode ser tida como comum no constitucionalismo
contemporâneo, especialmente na Europa e na América Latina. Contudo, é preciso
reconhecer que existem diferenças abismais entre os mais diversos países e
Constituições e mais, como esses países lograram em assentar a legitimidade de seus
pactos.
Para isso, no nosso entender, é essencial reconhecer a tipologia constitucional do
País para se evidenciar minimamente aquilo que é fundamental, o que é acidental e
aquilo que advém de experiências comuns.
Bruce Ackerman2, propõe uma tríplice tipologia para classificar as Constituições
que em linhas gerais podem ser divididas em: [1] Constituições que resultaram em
completa ruptura com a ordem considerada ilegítima pelos insurgentes ou
revolucionários; [2] que através da convergência com reivindicações formuladas pelos
líderes moderados de movimentos e concessões estratégicas do detentor do poder,
revigorando a legitimidade, ao menos em parte, do sistema anterior; [3] resultado de
uma construção de elite, hipótese em que a população em geral permaneceu
relativamente passiva ao esfacelamento das estruturas do governo e esse vácuo de poder
foi ocupado por lideranças e movimentos não contemplados na velha ordem, dando
ensejo a um rearranjo do pacto.
Temos defendido3 que a Constituição Brasileira não é tipicamente uma
Constituição revolucionária, tampouco que pode ser considerada uma Constituição fruto
de vivência cidadã da população, e por consequência, os pronunciamentos do texto
constitucional podem ser chamados de uma construção de elite.

2
ACKERMAN, Bruce. Constituições revolucionárias: liderança carismática e Estado de Direito. São
Paulo: Editora Contacorrente, 2022, p. 23
3
AVILA JUNIOR, Luiz Carlos. Constituição material e a mutação pelos costumes de natureza
constitucional. In: ROSÁRIO, Pedro Trovão; DAL RI, Luciene; HAMMERSCHMIDT, Denise. Direito
Constituiconal Luso e Brasileiro na Contemporaneidade. Porto: Editorial Juruá, 2018, p.103-131

3
Ninguém desconhece que houve participação popular na constituinte que
culminou com a Constituição Brasileira de 1988, essa participação formulou 122
propostas de emendas populares e resultou em 24 comissões ou subcomissões,
entretanto, (foram)eram formadas ou sofriam(sofreram) grande pressão de grupos de
interesse como igrejas, partidos políticos e sindicatos, não se evidenciando nenhum
caráter dialógico ou deliberativo efetivo.
A sociedade brasileira da época contava com menos de 40% da população com
ensino fundamental completo, 20% com ensino médio concluído e menos de 10% com
ensino superior.
Há diversas manifestações, como de Miguel Reale, de que a elaboração de uma
Constituição era tarefa para juristas, de forma a conter qualquer participação popular,
José Sarney argumentava que a constituição podia tornar o País ingovernável.
O medo implantado pelo regime militar quanto a manifestações populares,
encontrava-se presente e fez com que efetivamente a participação popular fosse
diminuta.
Definir a Constituição Brasileira como uma construção de elite, implica em
reconhecer que a mudança de regime ocorreu sem uma revolta popular, sendo nítido que
houve um “pacto” com a preservação de poderes da antiga elite, gerando uma
constituição que ambos os lados se comprometeram com novas regras do jogo e que
resultaram em tirar o vento das velas tanto do movimento autoritário quanto do
movimento insurgente.
Pode-se dizer se quisermos estabelecer alguma nomenclatura que a Constituição
brasileira de 1988 é uma Constituição reconciliadora de principiologia sociológica, isto
porque: [1] Apresenta forma de ser e não deve ser; [2] Construção de Instituições do
Presente através de relações econômicas e políticas; [3] Legitimidade permanente na
sociedade e não encapsulada na normatividade; [4] Vigência suscetível a mudanças ou
transformações.
Compreender essa tipologia constitucional é essencial, para que se possa
entender as vicissitudes que a Constituição brasileira escrita pode sofrer. Claramente em
uma sociedade aberta [em que tem lugar o surgimento de novos valores/pluralismo] a
constituição também é aberta, isto é, sensível ao influxo de novos conteúdos e novos
valores.
Em nossa compreensão sequer as cláusulas pétreas estão imunes a esse
permanente processo de vicissitudes ou mutação, essas cláusulas não podem ser objeto

4
de eliminação ou revogação – eis que altera a centralidade da Constituição – e
consequentemente causam um rompimento constitucional, mas podem sofrer alteração
no seu significado. De forma que, a interpretação ou compreensão constitucional deve
ocorrer em conformidade com as expectativas normativas que continuamente emergem
das práticas sociais.
Anotamos por cautela, que não se está a dizer que a democracia ou soberania
popular é absoluta, ao revés há uma limitação cíclica, entre Constituição e Democracia
de forma especialmente a conter a ditadora da maioria, e isso ocorre especialmente pela
ideologia da Constituição.
Essas considerações importam principalmente em dois pontos no tema central
aqui tratado – o princípio da tolerância – o primeiro é que embora a Constituição
brasileira seja uma construção de elite ou uma constituição reconciliadora não significa
que com o desenvolvimento da sociedade brasileira, essa não tem convergido e
aprimorado o texto constitucional por diversas alterações formais e informais.
O segundo ponto é justamente diferenciar a compreensão do texto de 1988
quanto ao princípio da tolerância com a compreensão que temos atualmente.
Pois bem, desde o preâmbulo da Constituição Brasileira fica claro a pretensão de
instituir e consolidar um Estado Democrático de Direito que preza pelos direitos
fundamentais e humanos, sobretudo pela igualdade e justiça como valores supremos de
uma sociedade pluralista.
Não se olvide que o preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, ostenta uma
normatividade jurídico-constitucional indireto, pois tem a mesma origem do texto
constitucional e ostenta caráter de vetor interpretativo.
Já o artigo Primeiro prevê como fundamentos do Estado Brasileiro, entre outros,
a dignidade da pessoa humana e o pluralismo. O artigo terceiro estabelece que:
Constituem objetivos fundamentais: I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária; III ... reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
É incito a tais objetivos e fundamentos o reconhecimento da existência do
princípio da tolerância, que tem como propósito encontrar arranjos harmônicos, essência
da ordem constitucional pluralista, consensuais e estabilizadores entre os tantos direitos
dos direitos.

5
Ademais, também por previsão da cláusula de abertura, contida no artigo quinto,
parágrafo segundo, considerando ainda que em 1995 a ONU elaborou a “Declaração de
Princípios sobre a Tolerância” não se pode negar a existência e vigência na ordem
constitucional brasileira do princípio da tolerância.
Não se pretende aqui, até pelo exíguo tempo, adentrar em discussões filosóficas
da tolerância, mas sim tratar sob o aspecto conceitual do direito.
Justificamos previamente a existência de vicissitudes ou mutação constitucional,
porque o princípio da tolerância no momento constitucional de 1988 estava muito mais
atrelado ao carácter de reconciliação com o regime antecedente, assim como do embate
entre capitalismo e socialismo do que com quaisquer outros vetores constitucionais.
Note-se que a igualdade naquele momento se dava com fundamento na
redistribuição de riquezas, enquanto, que hoje tem fundamento no reconhecimento das
diferenças.
Hoje, a sociedade brasileira, entende que tratar a todos como dignos de igual
respeito e consideração significa respeitar seus projetos pessoais de vida e suas
identidades culturais particulares e próprias, nutrindo-se, da supremacia do princípio da
dignidade humana, e isso é tolerância.
O conceito de tolerância tem uma definição bastante salutar na declaração de
princípios sobre a tolerância da ONU, artigo primeiro, item 1.1:
A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da
diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e
de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É
fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a
liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a
harmonia na diferença. Não só um dever de ordem ética; é igualmente
uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna
a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma
cultura de paz.
Podemos definir o princípio da tolerância a partir de diferentes parâmetros:
Quanto à sua natureza específica: como um campo jurídico constitucional
composto por uma série de diretrizes que pretendem conduzir que o exercício da
pluralidade transcorra com harmonia de forma a construir uma sociedade mais
democrática, justa e fraterna. Note-se que uma sociedade se torna democrática na
medida em que o sistema jurídico está comprometido com a proteção das liberdades
individuais, com os direitos dos direitos e com práticas igualitárias.
Quanto o seu status jurídico: como princípio constitucional de natureza
fundante da cultura jurídica moderna.

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No status teórico: campo jurídico que incorpora uma série de reflexões sobre
conteúdos como igualdade, critérios de tratamento diferenciado, comportamento
egoístico, decisões majoritárias e proteção de minorias.
Não pode passar sem registro que em geral, os indivíduos buscam naturalmente
sua própria felicidade, ou seja, há um comportamento egoístico individual, e isso
converte para que um processo de decisão majoritária tende a produzir resultados que
estão mais próximos da parcialidade do que qualquer outro.
Entretanto, quando pensamos em grupo e/ou mais em um Estado Democrático
de Direito passamos a perseguir a felicidade de todos os membros, e encontramos no
princípio da tolerância a hipótese para conter a parcialidade e criar mecanismos para
proteção de minorias (sejam elas, vulneráveis ou não).
Fato é que reconhecendo que a nossa sociedade é complexa, integrada por
pessoas marcadas por novas formas de identidade, pela diversidade e desigualdade,
precisamos encontrar novos modelos de construção de um direito democrático, novas
formas de expressão política e até jurídica que o voto e o sufrágio.
Para isso é essencial que desenvolvamos padrões que multipliquem a
modalidade e os níveis de participação da sociedade nos paradigmas do direito (sejam
novos ou recorrentes).
É ínsito então que possamos traçar paralelos de “conversa entre iguais” que
passa objetivamente pelas algumas fases, essências, a serem fortalecidas. O ponto de
partida é propriamente o fortalecimento da igualdade, ninguém desconhece que todos os
seres humanos são diferentes, entretanto todos compartem da mesma dignidade, todos
tem o mesmo valor, os mesmos direitos e obrigações, não se trata apenas de argumentar
[limitadamente] de que uma pessoa - um voto, trata-se do reconhecimento pela ordem
legal que compele em olhar para além do aspecto democrático, no sentido de escolha,
ou seja para a criação de uma consciência moral e ética que reconheça a necessidade de
equilibrar as condições entre os seres humanos e abomine qualquer ação que dificulta
ou desconsidera a igualdade, pois representa a violação a algum direito fundamental4.
Vale dizer, a concretização do princípio da igualdade depende de um critério
diferenciador e de um fim a ser alcançado, fins diversos levam consequentemente a
utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados
a realização de determinados fins; outros, não5.
4
Tal como a não discriminação, liberdade, propriedade, dignidade.
5
AVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16 Ed. – São
Paulo: Malheiros, 2015, p. 193

7
O paradoxo do princípio da igualdade que se pode elaborar quando
consideramos que há quem pensa que este direito se manifesta ainda sob a forma de
orientações genéricas, como uma forma débil empregada aos princípios, expressa o
perigo que a não concretização traz ao Estado-Nação.
Por isso é preciso demonstrarmos que esse princípio goza efetivamente de um
assentimento comunitário inclusivo, de um consenso quanto ao seu conteúdo, de forma
que em grande parte sua concretização advém de decisões de instâncias judiciais que
atendem a movimentos sociais, e que fazem valer os direitos fundamentais como
verdadeiro trunfo contra a maioria.
No segundo ponto é necessário o fortalecimento de medidas de inclusão e
proteção de minorias, o Supremo Tribunal Federal, brasileiro, em 13 de novembro de
2007, no voto do Ministro Carlos Ayres Britto, já entendia que:
“(...) nunca é demasiado lembrar que o preâmbulo da Constituição de 1988
erige a igualdade e a justiça, entre outros, ‘como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’, sendo certo que reparar ou
compensar os fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade
jurídica é política de ação afirmativa que se inscreve, justamente, nos
quadros da sociedade fraterna que a nossa Carta Republicana idealiza a
partir de suas disposições preambulares”6
O tema central voltou a ser debatido pela na ADPF 186, merecendo ser extraída
da ementa:
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material,
previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o
Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um
número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural,
seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de
maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado,
de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de
situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos
institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação
puramente formal do princípio da igualdade.
...
IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro
histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais
em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua
compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente
considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre
outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico
sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
...
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas
criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à
sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes
considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

6
RMS 26.071 - CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 13/11/2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008
PUBLIC 01-02-2008 EMENT VOL-02305-02 PP-00314 RTJ VOL-00205-01 PP-00203 RMP n. 36, 2010, p.
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VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na
discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver
condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que
lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se
benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social,
mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado
dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se
pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a
proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. 7
Ora, se para ampliar ou melhor para dar efetividade a igualdade, são necessárias
medidas de justiça compensatória ou restaurativa as quais se denominam de ações ou
política pública afirmativa, é inegável que se se esta diante um instituto jurídico
constitucional, que visa conferir não uma constituição tomada em tiras, mas uma
Constituição por inteiro e que cumpra suas promessas humanísticas, isto porque
Constituição não é proposta, não é sugestão, não é conselho, não é aviso, é lei e
fundamental, quer dizer, aquela que estrutura e garante os direitos das pessoas, de
cada um e de todos.8
O terceiro ponto, precisamos reconhecer que o elemento mais marcante da
modernidade são os desacordos e consequente pluralismo. Pensamento único é para
ditadores. Verdade absoluta é para tiranos. A democracia é plural em sua essência. E é
esse princípio que assegura a igualdade de direitos individuais na diversidade dos
indivíduos.9
O pluralismo não é exclusivamente limitado a ideias, opiniões, mas também a
pluralidade de direitos que vigoram numa mesma sociedade, o que conduz à questões
primordiais e cíclicas até com o princípio da igualdade. E nisso há uma questão
relevante do próprio conceito de direito que adotamos, se considerar o conceito de
direito as normas expressas na sociedade estaremos renunciando a capacidade
inovadora, programática e corretiva do direito:
O direito não é uma coisa que exista por si e em si. Mas antes é algo que só
existe porque alguém (algum grupo) fala dele, o designa, o refere, dando-lhe
um determinado conteúdo e delimitando-lhe um certo campo de aplicação no
plano da prática social. Isto quer dizer que, para grupos diversos de
interlocutores, pode haver diversos direitos. E que, por isso, o mundo da vida
pode ser contado diversamente do ponto de vista do direito; ou seja, pode ser
objeto de várias narrativas jurídicas, cada uma das quais dando relevância a
factos e comportamentos diferentes, e aplicando a uns e outros diferentes
avaliações jurídicas. 10
7
ADPF 186, Relator (a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009
8
ADPF 548 MC-Ref, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2018, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020
9
Ibidem
10
HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático: prospectivas do direito no
século XXI. Coimbra: Almedina, 2019, p. 13

9
Evidentemente que é central a uma ordem jurídica pluralista, a liberdade, dar voz
ao direito para encontrar arranjos harmónicos dos inúmeros direitos que partilham a
sociedade.
A democracia impõe e exige um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual
todos tenham direito a voz, para expor suas convicções, suas visões, suas necessidades;
somente nessa forma é que a democracia pode ser firmar e progredir, por isso é
essencial:
Pensamento único é para ditadores. Verdade absoluta é para tiranos. A
democracia é plural em sua essência. E é esse princípio que assegura a
igualdade de direitos individuais na diversidade dos indivíduos.11
Não se descuida que a ordem jurídica pluralista implica em aquisições
modificativas e/ou transformadoras da sociedade que ocorrem paulatinamente [de
maneira contínua] e embora recebam um influxo oriundo de ordens externas
[internacionais] as transformações ou modificações tem início na ordem e vivência
interna, podendo, até projetar-se a posteriori em plano internacional.
Tal ponto implica que, compreender a Constituição [pluralista e democrática] é
ter em mente que o influxo comunicativo é cíclico, isto é, a Constituição envia a
sociedade diretivas de uma construção mais digna e recebe diretivas das fontes de
direito originadas na sociedade como o costume constitucional ou de natureza
constitucional, que pode ter sido originado ou decorrente de movimentos sociais ou tão
somente de práticas sociais.
De uma forma a distinguir sistema e entorno, possibilitando a observação
[daquelas pressões exteriores] em um espécie de auto-organização, de modo ficar claro
que a Constituição alarga ou diminui seus limites a partir dessa relação simbiótica entre
o interno [operativo – formal/material da Constituição] e externo [cognitivo –
categorização das fontes], tomando-se em conta que as ideias e os fundamentos
metaéticos da Constituição vão para além daquelas pensadas pelo poder constituinte
originário, com ênfase no caráter vivo da Constituição.
É que, a propriedade de transformação contrapõe-se, inclusive, às condições
rígidas e programáticas, seja pela vedação de se observar o futuro como o futuro do
passado, quanto prioritariamente pela essência democrática da Constituição.
Estas constatações, conduzem ao que para entendemos como o quarto ponto
essencial. O diálogo aberto e ampliação da participação popular, potencializando o
caráter deliberativo que culminam por atrair alterações constitucionais no sentido que
11
ADPF 548 MC-Ref, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2018, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020

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promova genuinamente um processo de correção mútua, pode ser efetivado através de
participantes não necessariamente dos Poderes Instituídos, tais como: [1] Doutrina; [2]
Audiências Públicas; [3] Consultas Públicas; [4] Outros participantes do processo como
o Amicus Curiae; [5] Movimentos sociais.
A ampliação da participação popular, do diálogo aberto não objetiva substituir o
direito maioritário por um direito contra-maioritário. Objetiva que os direitos das
minorias sejam ouvidos, refletidos... ponderando-se equilibradamente e com tolerância
todos os interesses em presença.
De forma que ao se estabelecer uma conversa entre iguais ampliamos o
reconhecimento de normas constitucionais para além do conceito cômodo do
positivismo para um conceito policêntrico que compõe fatores e participação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O reconhecimento, respeito e garantias aos direitos humanos e fundamentais, é
indiscutivelmente o coração do Estado de Direito, e isso exige a efetividade de uma
ordem jurídica pluralista na qual a igualdade esteja presente, que as participações dos
cidadãos, numa conversa entre iguais, sejam para além do sufrágio a deconstruir uma
sociedade livre, justa e solidária; que garanta o desenvolvimento nacional, erradique a
pobreza e a marginalização, reduza as desigualdades sociais e regionais; promova o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação, conforme o insculpido no artigo 3° da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Parafraseando Cármen Lúcia12, isso exige tolerância, sem tolerância não se
conversa, se combate. Não há sociedade que se sustente vivendo em estado de rixa, ao
invés do diálogo; de conflito, ao invés de consenso; de confronto, ao invés de consenso.
O diferente faz parte. Aliás, o diferente faz cada ser humano ser o que é, a diferença
torna cada ser humano único porque desigual em sua identidade, conquanto igual em
sua dignidade.
Ao nosso sentir a ausência de tolerância constitui o dilema mais marcante na
civilização atual, ninguém que apresente um grau mínimo de reflexão consciente é
capaz de sustentar que a redução da diversidade humana não resultaria em uma
verdadeira tragédia.

12
ADPF 548 MC-Ref, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2018, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020

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Evidentemente que não se trata de tolerar tudo, sendo razoável a não tolerância
àquilo que afronta os vetores fundantes do constitucionalismo contemporâneo
especialmente a dignidade da pessoa humana.
A chave de concretização, dos objetivos constitucionais é o princípio da
tolerância, com o qual se torna possível estabelecer uma conversa entre iguais, que
através de diálogo aberto e ampliação da participação popular, potencializando o caráter
deliberativo que culminam por atrair alterações constitucionais no sentido que promova
genuinamente um processo de correção mútua.
O que permite afirmar que a hipótese proposta, isto é, do fortalecimento e
respeito ao princípio da tolerância, através de uma conversa entre iguais, converge para
apontar à crescente relevância do diálogo e respeito, como espécie de ligações,
estabelecendo pontes capazes de conectar em vários níveis uma sociedade melhor,
especialmente pensando na Justiça entre as gerações sempre baseadas na paz e nos
direitos humanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ACKERMAN, Bruce. Constituições revolucionárias: liderança carismática e Estado
de Direito. São Paulo: Editora Contacorrente, 2022, p. 23
AVILA JUNIOR, Luiz Carlos. Constituição material e a mutação pelos costumes de
natureza constitucional. In: ROSÁRIO, Pedro Trovão; DAL RI, Luciene;
HAMMERSCHMIDT, Denise. Direito Constituiconal Luso e Brasileiro na
Contemporaneidade. Porto: Editorial Juruá, 2018, p.103-131
AVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 16 Ed. – São Paulo: Malheiros, 2015, p. 193
BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: RMS 26.071 - CARLOS BRITTO,
Primeira Turma, julgado em 13/11/2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008 PUBLIC 01-
02-2008 EMENT VOL-02305-02 PP-00314 RTJ VOL-00205-01 PP-00203 RMP n. 36,
2010, p. 255-261
BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADPF 548 MC-Ref, Relator(a):
CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/2018, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020
BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADPF 186, Relator(a): RICARDO
LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO

12
ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-
00230-01 PP-00009
HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático:
prospectivas do direito no século XXI. Coimbra: Almedina, 2019, p. 13

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