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O Vintismo: história de uma corrente doutrinal

Autor(es): Pereira, António Silva


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/41522
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-8925_31_21

Accessed : 17-May-2021 14:01:51

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António Silva Pereira * Revista de Historia das Ideias
Vol. 31 (2010)

O VINTISMO - HISTÓRIA DE UMA CORRENTE DOUTRINAL

À memória de /. S. da Silva Dias

Tem expressão significativa em Portugal, quer desde o movimento


de 24 de Agosto de 1820, quer desde as duas décadas anteriores, com
particular expressão, pelo que a este período respeita, na imprensa
portuguesa editada no estrangeiro, a tentativa de fundamentar as teses
liberais mediante o recurso a uma análise do processo histórico nacional,
visando descortinar nele prolegómenos do liberalismo.
Trata-se de uma tarefa laboriosa de cuja sinceridade ou bom funda­
mento podemos, por vezes, duvidar. Pretende-se na realidade definir
uma lógica do desenvolvimento do passado, perseguindo um elaborado
arquétipo histórico. A sustentação advocatória de um passado de constitu­
cionalismo vigente nas épocas mais assinaladas da nossa história revela,
em nosso entender, adiantaremos desde já, uma forma de doutrinarismo.
É frequente, nos teóricos e defensores do sistema liberal, entendido
como Estado de direito, o recurso à história pátria para tentar comprovar
que os conceitos de liberdade, de segurança e de propriedade indivi­
duais, de soberania, de representatividade parlamentar, entre outros,
bem como as instituições políticas que lhes conferiram expressão,
não constituíam produtos abstractos do espírito humano em época
recente, mas emergências de uma "realidade" secular da Nação.

* FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

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Afirma-se, dentro desta tendencia, com efeito, que houve no país


ante-liberal um transtorno de leis, de hábitos e de costumes políticos.
A uma ordem político-jurídica supostamente fixa e igual para todos,
tinha-se substituído uma prática política arbitrária. Escreveria Freire de
Carvalho em 1819:

"Esta vontade arbitrária não é outra coisa senão o poder absoluto


de uns poucos de servos da coroa que, sem nenhuma responsabilidade,
tão arbitrariamente dispõem da pessoa do rei como das pessoas dos
vassalos. Não poderemos à vista disso negar que a nossa pátri a está em
actual revolução. Que os ministros que proíbem ou matam os escritos
públicos vivem em uma muito perigosa equivocação. E quando eles
sufocam as luzes com o pretexto de sufocar revoluções, não fazem
mais nada do que perpetuar as mesmas revoluções e de facto incorrem
na mesma nota e delito de revolucionários que indevidamente e por
equivocação atribuem aos outros que só escrevem para destruir a
actual revolução,,(1).

O articulado do pensamento liberal, no caso vertente, tem como


propósito, a nível do explícito, restabelecer um equilíbrio que teria sido
bloqueado pelos séculos mais próximos, manifestamente revolucionários
porque institucionalmente constituídos ao revés do sentido natural da
marcha das estruturas políticas nacionais. Revolução seria, dentro deste
teor de análise, a oposição ao normal desenvolvimento das instâncias de
liberdade de acção e de pensamento que pudessem assegurar as garantias
individuais e colectivas e colocar obstáculo eficaz aos abusos do poder
estatal. Ora, assim pretendia José Liberato, a sociedade portuguesa
pretérita, antes de ser sufocada pelo absolutismo, tinha, justamente,
sido uma sociedade em que os limites do poder político se encontravam
definidos e os direitos individuais assegurados1 (2).
Dentro destes parâmetros surgem como revolucionários aqueles que
subvertem o estabelecido pelo sistema de representação nacional inerente
à natureza político-institucional portuguesa, dando curso ao despotismo,
ao poder absoluto e à servidão. Regeneradores serão quantos pretendem
devolver ao império da lei os indivíduos e as instituições marcadas

(1) O Campeão Portuguez, vol. I, n° 5,1819, pp. 161-162.


(2) Idem, pp. 168-170.

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pelo abuso, prepotência, injustiça e privilégio. Ou, dito de outro modo,


para se acabar com esse contranatural estado de revolução outro meio não
haveria que não fosse o restabelecimento das antigas leis e liberdades e,
fundadas nelas, proclamar as garantias individuais(3).
Sendo a edificação do Estado de direito o propósito maior do
Vintismo, bem poderemos compreender a relevância dos princípios
consagrados no decreto das bases da Constituição para a delineação de
um perfil consistente da liberdade civil e política na jovem sociedade
liberal portuguesa, e para a instituição dos modelos normativos que
pudessem garantir esse perfil, em moldes, agora (1820), e finalmente,
perfeitamente concretos e objectivos.
O projecto das bases constitucionais apresentado às Cortes para
discussão, em 8 de Fevereiro de 1821, produto do labor da comissão
parlamentar integrada por Bento Pereira do Carmo, José Ferreira de
Moura, Manuel Borges Carneiro, João Maria Castelo Branco, Manuel
Fernandes Tomás, enuncia não só os princípios programáticos que
regerão a orgânica e os limites do poder político (com o princípio
basilar da separação dos poderes), mas os que assegurarão os direitos
e liberdades fundamentais do homem e do cidadão e determinarão a
primazia absoluta da lei, criada por órgão nacional parlamentar, isto é,
a legalidade da administração e do poder.
No que diz respeito aos direitos individuais dos cidadãos, estabeleceu-
-se que o texto constitucional deveria consagrar a liberdade, a segurança
e a propriedade dos cidadãos. Define-se, de imediato, a liberdade
como a faculdade que assiste a cada um de fazer tudo quanto não seja
expressamente vedado pela lei, coordenando-se simultaneamente a
observância das leis com a conservação da liberdade. A garantia da
segurança pessoal residirá substancialmente na protecção estatal,
extensiva a todos os cidadãos, asseguradora do livre exercício dos
direitos individuais.
A prisão sem culpa formada não é admitida, excepto nos casos
expressamente previstos na lei, devendo, mesmo nesses, o juiz comunicar
ao preso, no prazo de vinte e quatro horas, por escrito, os fundamentos
da prisão. Contempla-se o direito de propriedade como um título
inviolável que confere ao cidadão a plena disposição dos bens dentro do

(3) Cf. idem, p. 168.

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respeito da lei. São previstas indemnizações adequadas para compensar


as expropriações impostas por necessidade pública e urgente.
A liberdade de expressão de pensamento é concebida como uma
questão chave na área dos direitos e garantias fundamentais. A liberdade
de imprensa é, por isso, consagrada sem dependência de censura prévia.
Os autores e editores dos textos serão demandados judicialmente pelos
abusos de liberdade de publicação. No caso específico dos escritos que
versem religião ou moral permanece, no entanto, a possibilidade de
censura por parte dos prelados, mas a posteriori.
O privilégio de foro próprio é expressamente afastado, consignando-
-se o princípio de que a lei é igual para todos. As penas deverão ser
proporcionadas aos delitos e não serão transmissíveis da pessoa do
delinquente, sendo, em consequência, abolidas a infâmia e a confiscação
de bens. O acesso aos cargos públicos é concedido a todos, sendo o
critério de escolha, unicamente, as capacidades e aptidões de cada um.
No respeitante à organização do poder do Estado o articulado do
documento contemplava a definição da Nação; o estatuto da religião
católica; o modelo monárquico constitucional hereditário de governo;
a dinastia reinante e a sua ordem de sucessão; o conceito de soberania;
a prerrogativa exclusiva da Nação de elaborar a sua lei constitucional.
Pretende-se consagrar que o texto constitucional, compromitente do
Estado de direito, proponha os seus próprios mecanismos de revisão para
que se convertam em obstáculo a uma contínua instabilidade do sistema
jurídico. Reitera-se ainda, cuidadosamente, a divisão ou separação dos
poderes do estado (legislativo, executivo, judicial), bem como se consigna
a organização do sistema de contribuições e impostos, e a estrutura
e finalidade das forças armadas. Finalmente, entende-se a lei como a
vontade dos cidadãos declarada pelos seus legítimos representantes
constituídos em assembleia nacional(4).
São as bases da Constituição, como se torna notório, um enunciado
de tudo o que é essencial, melhor diremos, de tudo o que caracteriza um
Estado de direito. Trata-se, portanto, inevitavelmente, de um projecto
inovador, avançado, moderno, sem paralelo com o que quer que tivesse
existido no passado, no âmbito dos direitos e liberdades individuais ou da

(4) Vide Decreto das Bases da Constituição Política, Lisboa, 13 Mar. 1821,
in Collecção de legislação portugueza das Cortes de 1821 a 1823.

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organização do estado. Este diploma legal é mesmo, assim o entendemos,


a expressão do mais urgente apelo da consciencia cívica dos regeneradores,
o qual era o de dotar a Nação de uma Constituição política.
Apesar da modernidade indesmentível e da completa inovação do
texto do decreto, devemos reconhecer uma fundamentação, ou tentativa
de fundamentação, historicista das bases da Constituição, desde logo nas
próprias palavras do deputado Pereira do Carmo, membro da comissão
parlamentar encarregada de elaborar o diploma:

"Os membros da comissão - diria o deputado - bem longe de se


entranharem no labirinto das teorias dos publicistas modernos, foram
buscar as principais bases para a nova constituição ao nosso antigo direito
público, posto acintemente em desuso pelos ministros despóticos que
lisonjeavam os reis à custa do povo. Assim, senhores, quando procla­
maram no art. 18°, secção 2a, o princípio fundamental da soberania e
independência da nação, nada mais fizeram do que renovar o que já
por muitas vezes se havia proclamado nas épocas mais assinaladas da
nossa história. Proclamou-se em Lamego a soberania e independência da
nação quando os portugueses puseram a coroa na cabeça do vencedor
de Ourique, o senhor D. Afonso Henriques. Proclamou-se a soberania e
independência da nação quando as cortes do reino fizeram rei, na cidade
de Coimbra, ao senhor D. João I, tronco da sereníssima Casa de Bragança.
Proclamou-se a soberania e independência da Nação quando, em 1640,
esmigalhamos os ferros com que nos agrilhoaram os Filipes e colocámos
no trono português o senhor D. João IV de saudosa memória. Proclamou-
-se a soberania e independência da nação quando em 1668, as cortes de
Lisboa depuseram, por ser incapaz de reinar, ao senhor infante D. Pedro.
Proclamou-se enfim a soberania e independência da Nação nas cortes
de 1679 e 1697 em que se dispensaram e derrogaram alguns capítulos das
de Lamego àcerca da sucessão da coroa; porque, reconhecendo o senhor
D. Pedro II que os não podia derrogar nem dispensar, salvo em cortes,
confessou à face do mundo inteiro que a nação era soberana e que só à
nação competia tocar nas Leis Fundamentais do Estado.
Eis aqui, senhores, como este princípio do nosso Evangelho político,
que tanto assusta hoje os monarcas da Europa era reconhecido e praticado
em Portugal havia bem perto de seiscentos anos. Mas tais doutrinas não
serviam nestes últimos tempos; e em seu lugar se deixou livremente
correr ou, para me explicar melhor, mandaram que se acreditasse que o

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Revista de Historia das Ideias

poder dos reis vinha imediatamente de Deus: ideia sacrílega e absurda


que marca profundamente até onde havia chegado a nossa degradação!
Porém hoje, senhores, os portugueses reassumindo os seus imprescritíveis
direitos, proclamam de novo este princípio fundamental do seu pacto
social. E a Europa, espantada ao brado da nossa regeneração política,
ficará convencida de que nem os partidos nem as facções tiveram a mais
escassa influência em nossos esforços, tão gloriosos como afortunados,
mas unicamente o desejo de reconquistar nossa bem entendida liberdade,
isto é, aquela que tanto se afasta do despotismo como da anarquia"(5).

Inovação e Tradição

Este tipo de tendência recuperadora, de enunciação mais ou menos


clara de um passado de contitucionalismo reportado às épocas mais
assinaladas da nossa história, de intenção declarada de reestruturação
da nossa bem entendida liberdade, de projecção no passado de uma
prefiguração da imagem da realidade presente, atravessa várias correntes
de pensamento que procuraremos caracterizar de seguida.
A pedagogia política liberal desenvolvida a partir de Londres,
subordinada ao conceito de constitucionalismo histórico, por Hipólito
da Costa, é visivelmente marcada pela matriz da história, em termos de
experiência e de razão.
Assume o princípio de que as leis fundamentais de um estado
constituem os limites naturais dentro dos quais é permitido o exercício
dos poderes políticos e das funções estatais, lançando-se, nas páginas de
o Correio Braziliense, na ensaística jurídico-política, na convicção de que a
discussão fundamentada das matérias de direito público da sua pátria e
o seu virtual cotejo com institutos similares de outras nações, se bem que
com óbvia preferência pelas instituições britânicas, constitui seguramente
matéria de interesse cívico numa sociedade que se reconheça constituída
pacticiamente e em que se consagre o princípio de que o exercício do
poder deve ter por objecto o interesse dos súbditos. Quando assim
não seja viverá a sociedade sob o império do direito da força, que é o

(5) D.C., I, 13.11.1821, pp. 79-80. Cf., pela ineludível similitude, Agustin

Arguelles, Discurso preliminar a la Constitución de 1812, pp. 67-70.

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anti-direito, na iminência permanente de uma reacção baseada no


mesmo princípio(6).
Empenhado na participação cívica e no combate anti-absolutista
entende que um conhecimento mesmo superficial da história da sua
pátria seria o suficiente para demonstrar que o espírito de cidadania e o
valor nacional se apagaram ou extinguiram na razão directa do avanço
do despotismo e obscurantismo (indissociáveis um do outro), coveiros da
liberdade dos portugueses, não ignorando, como afirma, que a tarefa a
que se obriga, de publicar um conjunto de ensaios sobre as instituições
políticas de Portugal e, nomeadamente, sobre as excelentes virtualidades
da antiga constituição portuguesa, deverá atrair sobre si a animadversão
de muitos dos seus concidadãos(7).
Tendo como objectivo a regeneração da nação portuguesa, pensa poder
alcançá-lo, não através da razão filosófica mas sim mediante uma leitura
(a sua leitura) da história de antigas instituições políticas. É inegável
que o modelo britânico, que bem conhece, pesa na sua interpretação.
De acordo com a sua análise não deveriam os portugueses dar ouvidos
à facção de reformadores franceses que mais não propiciava do que um
acumular de misérias nas nações que acolhiam os seus pontos de vista
políticos(8). Na Constituição antiga de Portugal(9), lida numa tentativa de
acomodação à dialéctica da história pátria, se achariam os alicerces de
uma regeneração liberal do seu país:

"Um governo popular é, na minha opinião, o mais bem calculado


para sacar a público os talentos que há na nação e para desenvolver o
entusiasmo que resulta de se considerarem todos os cidadãos em via de ter
parte ou voto na administração dos negócios públicos. Mas, quando assim
falo, entendo o chamamento de Cortes e outras instituições que formavam
a parte democrática da excelente Constituição antiga de Portugal.
Não quero pois entender, de forma alguma, por governo popular,

(6) Correio Braziliense, vol. Ill, Ago. 1809, pp. 181-182; Idem, vol. Ill, Out. 1809,
p. 371; Idem, vol. V, Out. 1810, p. 407 ss.; Idem, vol. VII, Ago. 1811, p. 185 ss.
(7) Correio Braziliense, vol. Ill, Set. 1809, p. 175 ss.
(8) Idem, vol. Ill, Dez. 1809, p. 622.

<9) Idem, vol. IX, Jul. 1812, p. 95.

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a entrega da autoridade suprema nas mãos de populaça ignorante, porque


isso é o que constitui verdadeiramente a anarquia"(10).

A degradante situação em que Portugal se encontrava por força do


regime absolutista, não podia, no pensamento de Hipólito da Costa,
deixar esquecer aquilo que ele pretende ter sido a antiga experiência
democrática nacional:

"Nem por isso se segue que a nação portuguesa não tenha obrado
feitos gloriosos e que os seus antigos não estabelecessem tais leis e tal
constituição política, que apenas em alguns pontos tem que ceder à
constituição inglesa, que a Europa iluminada tanto admira. É verdade que
a demasiada e ilegal acumulação de poder na coroa pôs em desuso muitas
instituições úteis e algumas até essenciais à constituição do Estado; e os
partidistas do despotismo e algumas pessoas tímidas ou venais, tentaram
negar, mesmo em Portugal, a existência ou ao menos os poderes de várias
corporações a que competiam direitos hoje exercitados pela coroa; mas,
ainda assim, ninguém se atreveu a revogá-los expressamente. Em um
ponto, na verdade, devo dar a decidida preferência, senão à Constituição,
ao menos aos ingleses como nação. E é que havendo eles recebido de seus
antepassados uma constituição livre, livre a têm mantido para transmitir
não só pura mas ainda melhorada à sua posteridade, custanclo-lhes isto
muitas despesas, muito sangue e muitos incómodos. Ao mesmo tempo
que os portugueses, desde que fizeram um bem sucedido esforço contra
a tirania de Filipe II e seus imediatos sucessores, se entregaram a uma
criminosa indolência deixando ao ministro do dia usurpar os direitos que
lhe parecia e menosprezar as instituições antigas que faziam a glória da
nação e serviam de mola real ao patriotismo dos indivíduos"* (11).

Aimprescritibilidade dos foros da nação, a legitimidade das garantias


fundamentais do cidadão, a cobertura jurídica e constitucional desses
postulados, já homologados pelos nossos antigos, são aspectos que
vincam, enfim, a construção manifestamente doutrinarista do jornalista
político londrino.

mIdem, vol. II, Fev. 1809, p. 175.


(11) Hem, vol. Ill, Ago. 1809, pp. 176-177.

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A mesma preocupação de fundamentar historicamente as teses


liberais bem como o conceito chave de regeneração se encontra em
José Liberato Freire de Carvalho. No Ensaio historico-político sobre a consti­
tuição e governo do reino de Portugal procura convencer o leitor de que o que
está em causa e o que se pretende é uma verdadeira e generosa restituição
de nossas antigas e primordiais instituições políticas, agora simplesmente
modificadas segundo o progresso das luzes do século e as alterações
inevitáveis que o tempo tem feito na organização interna das diversas
ordens do Estado(12).
No seu dizer "as formas constitucionais ou as cortes em Portugal,
têm sido em todos os tempos conhecidos a coisa mais sagrada e
importante que politicamente temos possuído e delas sempre depen­
deram essencialmente, assim como ainda hoje dependem, as nossas
liberdades. É uma instituição muito sagrada porque sem haver sido
sancionada na sua origem por lei alguma escrita, de que as histórias
façam menção, sempre gozou do carácter de uma certa lei natural que,
sem necessitar escrever-se com caracteres humanos, passa de geração
em geração gravada na memória e no coração dos homens',(13).
E não hesita em prosseguir uma argumentação que projecta, no
passado uma prefiguração da realidade presente:
y/Se o primeiro rei, o criador da monarquia, não foi absoluto,

mas antes um verdadeiro rei constitucional, nenhum dos seus sucessores


pode legalmente arrogar-se um direito que expressamente lhe está vedado
pelas leis fundamentais da monarquia. E ainda outra conclusão mais se
pode tirar, a qual é: que todos os reis sucessores de D. Afonso Henriques
que têm assumido arbitrariamente este poder, têm igualmente cometido
uma manifesta usurpação, e bem assim será ela cometida por todos os
que desde hoje em diante tentarem assumir esse mesmo poder absoluto
e arbitrário,,(14).

O mesmo tratadista, que foi responsável pela publicação de O Campeão


Portuguez, em Londres, chegará mesmo, em artigo de fundo datado de
Setembro de 1819, a enunciar, proclamando a urgência de Portugal aceder

(12) Ensaio historico-político sobre a Constituição e Governo do reino de Portugal,

ed. Hector Bossange, Paris, 1830, cap. II.


{13)Idem, cap. X.
{u)Idem, cap. XII.

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Revista de Historia das Ideias

à realidade liberal, tudo o que é essencialmente caracterizador de um


estado de direito modelado pelos princípios do liberalismo, ou seja: a
electividade, por sufrágio, das cortes e a competência exclusiva destas
em matéria de legislação, de impostos e de empréstimos públicos; os
três poderes do estado e a sua autonomia; as liberdades de pensamento,
de consciência e de imprensa; as garantias individuais; a precedência
do processo à prisão; a inamovibilidade dos juízes; a livre empresa; a
propriedade privada. Este amplo programa de um Estado de direito
legitima-o o tratadista com a história. Ou seja: considerando-o a prolação
e desenvolvimento de embriões políticos gerados pela dinâmica social,
só abusiva e transitoriamente interrompida pela revolução, isto é, pela
anti-historicidade do absolutismo:

'Temos mostrado em geral que todo o país em que há um transtorno


absoluto de leis, hábitos e costumes, e em que, por conseguinte,
tudo depende da arbitrária vontade dos que mandam, esse país está em
estado de actual revolução. Mostrámos mais, por factos particulares,
que na monarquia portuguesa há esse transtorno absoluto de leis, hábitos
e costumes, porque entre nós tudo hoje se faz em virtude de leis modernas,
arbitrárias, bárbaras ou contraditórias, com desprezo e quebrantamento
manifesto de nossos bons usos e liberdades; logo, coerentemente, se segue
como primeira conclusão, que a monarquia portuguesa está em estado
de actual revolução. Segue-se ainda, como segunda conclusão, que se o
actual ministério que governa em nome de el-rei, acusa, proíbe e persegue
os escritos ou jornais políticos que fomentaram revoluções nos domínios
portugueses, está ele em uma muito perigosa equivocação; porque os
jornais políticos tão longe estão de fomentar revoluções que, antes pelo
contrário, muito abertamente censuram os abusos dos ministros que
trabalham por perpetuar a revolução na monarquia portuguesa. Para se
falar correctamente não são revolucionários os jornais, são revolucionários
os ministros que enganam ou não desenganam el-rei e transtornam e
quebrantam todos os dias nossas melhores leis, bons usos e costumes.
Para se acabar por uma vez com a revolução em que estamos,
não há outro meio senão o de restabelecer nossas antigas leis e liberdades,
e fundadas nelas proclamar solenemente as garantias individuais a que
tem direito todo o homem que vive em sociedade como cidadão, homem
livre e não escravo. Estas garantias, bem e maduramente pesadas, são de
tanto interesse para o rei, ministros e grandes como para todo c corpo dos

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governados. Nós passamos a numerá-las não só para mostrarmos a el-rei


e seus ministros as seguranças civis de que precisamos e deles esperamos
receber, mas para servirem como de índice das matérias políticas que
incessantemente e gradualmente serão tratadas no Campeão Portuguez"{l5).

Não se afasta da tese de José Liberato, quer analítica quer tipológica­


mente, o esquema teórico-político de João Bernardo da Rocha Loureiro.
Os memoriais publicados por João Bernardo no jornal O Portuguez
têm como unidade temática um constitucionalismo que, por um lado,
está atento à justiça social do século e, por outro, é sensível à fundamen­
tação histórica das teses liberais na perspectiva de um Estado de direito.
Nos Memoriais a Dom João VI o jornalista faz ver, seguindo um caminho
que consideramos doutrinarista, que "a monarquia portuguesa foi, desde
o seu princípio, constitucional, sendo por as cortes temperado o poder
real, e foram essas mesmas cortes que formaram o pacto nacional com
Afonso Henriques, o qual delas recebeu a coroa com certas condições.
E sempre, depois disso, elas se costumaram ajuntar para os negócios do
governo do reino e sempre foram tidas como parte essencial e integrante
da monarquia. Que direito tinha então Pedro II para abolir essa nossa
antiga Constituição que havia dado o trono ao nosso primeiro rei da
primeira linhagem, assim como ao primeiro da segunda dinastia,
donde Pedro II derivava os direitos de sucessão ao trono? A doutrina
que seguem os procuradores da Coroa de V.M. é de que os direitos da
coroa nunca prescrevem. Pois saiba V.M. que o mesmo acontece com os
direitos dos povos que são tanto mais sagrados e imprescritíveis que os
dos reis, quanto mais que os reis são feitos para os povos e não os povos para
os reis. Restaurar a nossa antiga constituição é uma restituição de justiça
e se o confessor de V.M. não fosse como todos os confessores de reis,
ele lhe intimaria em nome de Deus que, sem essa restituição, V.M. em
boa consciência não podia estar assentado sobre o trono,,(16).
Segundo Loureiro, o reino tinha chegado a um estado de profunda
decadência económica e política, não obstante se poder orgulhar de um
passado comprovativo das qualidades dos portugueses. O "despotismo",
no dizer do jornalista, era a causa fundamental da situação. Coonestado
pela monarquia absoluta ele corrompe, destrói e subverte a máquina 15 16

(15) 0 Campeão Portuguez, vol. I, n° 5, Set. 1819, pp. 160-170.


(16) Memoriais a Dom João VI, ed. G. Boisvert, II, p. 140.

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Revista de Historia das Ideias

governativa, a sociedade, os cidadãos. A terapia regeneradora deste estado


de coisas seria o constitucionalismo. Uma Constituição análoga à inglesa
reatava, em seu juízo, a tradição política nacional de limitação de poderes
descricionários do trono e restabelecia as cortes portuguesas, ao mesmo
tempo que operava a mudança das estruturas políticas impostas ao país
pelo absolutismo. É tangível em Loureiro a preocupação de fundamentar
a existência de uma tradição constitucionalista nacional, plano de que
parte para proceder à exortação do monarca.
A estabilidade do trono, segundo o politólogo, assegura-se somente
na vigência de um sistema constitucional, em nome da sabedoria e da
prudência política. Esta não exclui, antes engloba, a sabedoria histórica.
Na ideia de Constituição restaurada está, justamente, contida uma tal
associação; não tem mesmo sentido sem ela. Uma lei fundamental
salvaguarda a defesa dos povos contra os governos despóticos{17\ muitas
vezes prolixamente légiférantes mas cultores da repressão e iniquidade, e
afasta os inconvenientes graves, sob o ponto de vista jurídico e adminis­
trativo, resultantes de legislação avulsa e contraditória.
As cortes, no juízo do autor, temperaram desde sempre o poder
real. Assim, e dentro desta linha doutrinária, o pacto social remonta aos
primórdios da monarquia portuguesa17 (18). A doutrina e a praxe absolutistas
afiguram-se-lhe excrescências numa monarquia que, tradicionalmente,
aceitava, como aspectos integrantes da sua essência, formas embrionárias
de parlamentarismo(19). E esses "tumores", se se apresentam como ofensivos
da racionalidade filosófica do liberalismo, não se apresentam menos
como fractura ou contra-senso histórico.
Confrontaram-se, como temos demonstrado, os políticos e juristas
do primeiro liberalismo português com a tarefa que se apresentava
como imperativo nacional, da regeneração. Tarefa que tinha, em nosso
entender, como objectivo exponencial a institucionalização do Estado
de direito(20). Esse propósito encontrava-se compaginado com o apelo à

(17) O Portuguez, vol. I, n° 3,10.VII.1814, pp. 195-215.


(18) O Portuguez, vol. I, n° 6,10.IX.1814, pp. 482-490.
(19) Idem, ibidem.
(20) Vide J. A. Maravall, El mito de la "tradición " en el constitucionalismo español,

p. 5 ss.; J. M. Pérez-Prendes, Cortes de Castila, p. 43 ss.; J. M. Romero Moreno,


Proceso y derechos fundamentales en la España del siglo XIX, p. 64 ss.

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O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

historicidade do sistema representativo pátrio(21). O que se passou com


os jornalistas emigrados, passou-se igualmente corn a imprensa vintista
e com os deputados em cortes.

Revolução e Historicismo

Borges Carneiro, logo em 1820, visando os defensores da monarquia


pura, opina que, verdadeiramente, são os absolutistas que devem
ser considerados revolucionários, porquanto teriam desrespeitado os
princípios tradicionais de uma monarquia conducente ao estado de
direito, temperada por determinados princípios e leis fundamentais.
De acordo com uma linha historicista de argumentação pretende que o
poder absoluto deve ser considerado anómalo face à história nacional,
em virtude do seu afastamento das públicas liberdades. É esclarecedor
do seu pensamento este passo:

"Tal é o imperfeito quadro dos males que nos oprimem. Aqueles,


contudo, que deles são causa ou que se interessam na conservação de
tantas calamidades, disseram: tudo está bem. Há sim descontentes que
censuram a administração de que somos artífices; porém são portugueses
degenerados, inovadores, sectários da irreligião e de novas e perversas
doutrinas, espíritos revolucionários, invejosos da fortuna alheia, que só
querem senhorear-se eles mesmos da riqueza e do poder(22). Nós porém
lhe tornaremos o que há muito dizíamos em nossos corações: Vós sois os
inovadores, vós os revolucionários, que derribastes as nossas antigas cortes

(21) Vide Almeida Garrett, O dia 24 de Agosto; Castelo Branco, D. C. 1,13.11.1821,

pp. 80-81; Vide, em sentido oposto, Marquez de Penalva, Dissertação a favor da


monarquia, onde se prova pela razão, authoridade e experiência ser este o melhor e mais
justo de todos os governos; e que os nossos Reis são os mais absolutos e legitimos senhores
de seus reinos, pp. 108-109; e também, Resposta que deu o Desembargador Paschoal José
de Melo Freire às censuras que sobre o seu Plano do Novo Codigo de Direito Publico de
Portugal fez e appresentou na Junta da Revisão o Doutor António Ribeiro, pp. 65-66 e
84 ss. Esta Resposta está incorporada no impresso de António Ribeiro dos Santos,
Notas ao Plano do Novo Codigo de Direito Publico de Portugal do Doutor Paschoal
José de Mello, feitas e apresentadas na Junta de Censura e Revisão pelo Doutor António
Ribeiro em 1789.
(22) Borges Carneiro, Portugal Regenerado em 1820, pp. 58-59.

583
Revista de Historia das Ideias

e os antigos princípios de uma monarquia temperada, para exigirdes um


poder absoluto e despótico, a cuja sombra mantendes o vosso egoísmo e
a vossa prevaricação. Vós sois os irreligiosos que pervertestes a doutrina
de Jesus Cristo para amontoardes riquezas e exercitardes cruéis tiranias.
Jesus Cristo era pobre, a vós nenhumas pompas abastam; Jesus Cristo
manso e humilde de coração, vós insaciáveis de torturas e cárceres para
manterdes vossa grandeza e orgulho; Jesus Cristo não queria um reino
deste mundo, vós ambicionais governar tudo a torto e a direito, e exercer
um império absoluto sobre quantas acções os homens possam fazer.
Nós lhe diremos com o ilustre jurisconsulto Gerard Noodt, que a nenhum
partido pode ser suspeito: Se um povo, diz este escritor, chega a sofrer
os últimos lances da crueldade ou da soberba, deverá ele, depois de
consumida toda a paciência, levar a sua cobardia até esperar que desça
Deus do céu a lançar seus raios sobre os inimigos do género humano?
E não deverá antes esforçar-se para antecipar a vontade do mesmo Deus
que, como autor da natureza quer que sejam reprimidos tais agressores
dos direitos do homem?"(23).

É dentro deste horizonte que Manuel Fernandes Tomás, ao pôr em


destaque uma das traves mestras do Estado de direito liberal, a igualdade
civil dos cidadãos, sem discriminações nem privilégios, recorre à história
para fundamentar a sua proposta:

"Nossos maiores, persuadidos desta verdade, formaram o seu código


penal, mas não se esqueceram, ao mesmo tempo, do regimento das mercês:
antes de o haver escrito, a prática inalterável de as conceder fa2;ia uma lei
consuetudinària, que nunca se alterava porque um português zeloso de
ganhar sempre o primeiro lugar nos perigos e nos trabalhos, quando se
tratava de servir a pátria, não se contentava como segundo quando ela
cuidava de dar um prémio. O prémio trazia então anexa a lembrança da
honra, porque nunca se via concedido senão ao benemérito. Enquanto
nossos avós ouviram esta linguagem a história da sua vida foi a história
dos heróis em toda a casta de virtudes cívicas e escusado é dizer que eles
acharam pequeno o mundo conhecido para nele adquirirem tanta glória
quanta seu coração ambicionava. Mas depois que, por um transtorno
absoluto de ideias de justiça e de decoro, o crime se viu enfeitado com os

(23) Borges Carneiro, Portugal Regenerado em 1820, pp. 59-60.

584
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

adornos da virtude, à qual só coube em sorte o vilipêndio e a perseguição,


nossos males encheram as medidas do sofrimento. Reunidos neste lugar
para lhes pormos o termo, nosso dever é tomar todas as medidas para
que se fírme o império da lei: de outro modo não tornaremos a ser o que
fomos"(24) *.

A sua preocupação de fundamentar historicamente as teses liberais


comprova-se também quando, no parlamento, se ocupa da discussão do
veto e da sua dilação nas mãos do rei, questão importante num sistema
representativo de governo:

"Devemos lembrar-nos que não vamos fazer coisa nova em Portugal.


Nas antigas cortes o rei, em certas matérias, nunca oferecia o seu veto.
Devemos lembrar-nos que agora lhe concedemos um favor e mercê
de que ele não gozava antigamente. Outrora, em Portugal, quando se
legislava sobre certas matérias, o rei nunca oferecia veto nem embaraço
algum. Porventura quando as cortes decretavam tributos tinha o rei veto?
Nem por vinte dias, nem por vinte horas. Quando determinavam que
se fizesse a paz com esta ou com aquela nação, tinha lá veto? Nenhum.
Pois há-de-se confiar tanto nas antigas cortes e tão pouco nas actuais?
Que razão de diferença há entre nós e aquelas cortes?"(25>.

Também em Almeida Garrett a interpretação da situação política


ante-vintista e do complexo de ideias e tendências cristalizadas no
24 de Agosto é consonante com as doutrinas de matriz histórica que
temos vindo a analisar.
No seu dizer, a monarquia portuguesa possuía uma constituição
antiga nas suas leis fundamentais (as leis fundamentais do reino), normas
essas estabelecedoras, por forma pacticia, dos limites do poder régio.
Assim se garantia a segurança dos direitos essenciais da Nação. A sua
expressão institucional não foi, naturalmente, diz Garrett, tão cautelosa
e rigorosa quanto o espírito do século hoje (1821) requeria:

"Não os declarou por aqueles termos que as ciências modernas têm


adoptado, que a filosofia e a política usam hoje, que são muito bem
requeridos e necessários num livro clássico destinado à pública instrução.

(24)Fernandes Tomás, D. G, IV, 3.X.1821, p. 2489.


<25) Fernandes Tomás, D. C, IV, 2.XI.1821, p. 2905.

585
Revista de Historia das Ideias

Mas que por faltarem ou serem outros num venerando e antiquíssimo


código político das leis fundamentais duma nação lhe não diminuem
o vigor, a força, o valor e a qualidade e princípio de obrigar, não só os
povos mas os soberanos, em tudo o que eles literalmente expressam e em
tudo o que por analogia, por identidade, por seu espírito ou sentença se
dever e puder subentender. Isto posto, se um rei ou por si ou por seus
indignos ministros, infringir, esquecer, abusar ou preterir algum dos
artigos destas leis fundamentais, quer tácitas quer expressas, este rei será
um tirano e seus ministros sacrílegos réus do maior dos atentados, dum
crime de lesa-nação"(26).

Empenha-se Garrett na especiosa demonstração de que a nação


conheceu os benefícios de uma antiquíssima constituição, tendo caído
no envilecimento cívico resultante do desrespeito de princípios
fundamentais dos pactos originários e soçobrado frente a um despotismo
anti-histórico, subversor dos foros da sociedade política portuguesa.
Cumpridas pelos povos as condições do contrato de sociedade, o rei
que a elas falte torna-se um déspota e, por esse facto, desliga os súbditos
das obrigações naturais em que se tinham constituído perante a coroa.
A Nação pode, por conseguinte, e em nome do próprio passado experien-
cial da sociedade histórica que configura, reclamar e reassumir os seus
direitos civis e políticos.
Procurando sintetizar o seu pensamento, escreverá Garrett: "De tudo
o que tenho exposto, que é inegável, devemos necessariamente concluir
que o governo de Portugal até ao dia 24 de Agosto era tirânico, despótico
e injusto. E, em consequência, que a nação portuguesa desligada,
pela falta de cumprimento, pelo desprezo das condições de seu contrato,
do vínculo, da obrigação, tinha todo o direito de abolir um tal governo,
de clamar pela sua liberdade e restaurá-la"(27).
Segundo julgamos, em face do exposto, o esforço constitutivo de
um Estado de direito, configurado como estado constitucional, a que os
vintistas meteram ombros, assumindo simultaneamente um im perativo
histórico, o interesse de classe, e um dever, a consciência de cidadania,
está ligado a um importante aspecto do tradicionalismo liberal

(26) Almeida Garrett, O dia 24 de Agosto, in Obras completas, vol. II, p. 508.
(27) Almeida Garrett, O dia 24 de Agosto, in Obras completas, vol. II, p. 506.

586
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

português(28), a uma tendência evocativa e recuperadora que entende o


movimento vintista como expressão de uma regeneração política, como
intenção declarada de reestatuição das primitivas liberdades nacionais
(mesmo que essas liberdades pertençam muitas vezes ao domínio da
intenção e não ao da realidade histórica), como consciência supostamente
bem fundamentada de um passado de "constitucionalismo" que impor­
tava ampliar e actualizar.
Acrescentaremos que esta tendência doutrinal que é objectivamente
historicista não deve, por um lado, ser identificada com o conceito de
conservantismo nem, por outro, desvinculada do complexo de ideias
políticas e sociais do liberalismo europeu franco-britânico.
O liberalismo português colheu influências fundamentais da filosofia
política francesa e das bases constitucionais do Estado de direito liberal
britânico.
Influências não menos importantes foram por ele colhidas da corrente
que procurava na história a fundamentação das mesmas teorias políticas.
Assim, só por um inaceitável simplismo metodológico se poderá ver
no constitucionalismo português de 24 de Agosto um produto de mera
importação. As influências directamente alienígenas entrecruzaram-se
com outras que emanavam de instituições e movimentações culturais
implantadas no país.

Constituição e Liberdade

A rejeição de análises metafísicas ou meta-históricas da realidade


social, o desenvolvimento da consciência do valor da acção política,
a fundamentação pacticia e jusnaturalista da liberdade e do direito
de cidadania, o problema da igualdade e a sua solução no estado de
direito, ganham vulto no corpo de doutrina que enforma o Estado

(28) Oliveira Martins, História de Portugal Lisboa, 1886, t. II, pp. 251-262;

e Portugal Contemporâneo, Lisboa, 1883,1.1, pp. VI-VII, 56-57, 75, 81, 393; Graça e
J. S. da Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, p. 668 ss.; Carlos
Corona, Revolución y reacción en el reinado de Carlos IV, pp. 111-388; Miguel Artola,
Los orígenes de la España contemporánea, 2a ed., p. 464 ss.; Miguel Artola, Constitución
y carta como modelos constitucionales, p. 869 ss.; Joel Serrão, Da "Regeneração"
à República, p. 39 ss.

587
Revista de Historia das Ideias

constitucional português. A organização política e económica ante-


-constitucional, consagradora de privilégios, colocava sérios entraves
ao desenvolvimento da burguesia, radicando antagonismos sociais.
A ofensiva desencadeada contra o aparelho de estado fez aceder ao poder
político uma mentalidade laica, naturalista, anti-escatológica, interessada
na reintegração dos cidadãos na posse das liberdades fundamentais, no
contexto do Estado de direito(29).
O Estado de direito liberal vintista é o produto do encontro de uma
leitura da história nacional com as suscitações práticas e teóricas do
liberalismo europeu. Não quer isso dizer que não seja igualmente o
produto do encontro das forças burguesas e pequeno-aristocráticas com
uma ideologia que apelava para mudanças estruturais ao nível social,
político e económico.
No Estado de direito não basta a existência de um qualquer sistema
de leis, é necessário que a autoridade legislativa seja oriunda de uma
representação nacional, eleita democraticamente: "A Nação é livre e
independente e não pode ser património de ninguém. A ela somente
pertence fazer, pelos seus deputados juntos em cortes, a sua Constituição
ou Lei Fundamental, sem dependência de sanção do Rei [...]. Lei é a
vontade dos cidadãos declarada pela unanimidade ou pluralidade dos
votos de seus representantes juntos em cortes, precedendo discussão
pública. A lei obriga os cidadãos sem dependência da sua acei1:ação"(30).
A lei, postulada nestes termos, goza de indisputada primazia,
porquanto resulta da representação da própria autoridade nacional,
não podendo ser produzida senão pela assembleia nacional legalmente
eleita. A ratio legisladora não pode ser modificada senão pelos seus
próprios mecanismos e nunca por disposições jurídico-administrativas
das instâncias executivas ou judiciais do estado. A lei é igual para
todos os cidadãos, reconhecendo-se em todos os homens a mesma
dignidade e não se admitindo o privilégio de foro próprio(31). A vigência,

(29) Elias Diaz, Teoria general del estado de derecho, p. 21 ss.; Idem, Estado de derecho
y sociedad democrática, p. 17 ss.; Bartolomé Clavero, Institución politica y derecho:
acerca del concepto historio-gráfico de "estado moderno", p. 43 ss.; Romero Moreno,
Proceso y derechos fundamentales en la España del siglo XIX, p. 70 ss.
mVide Constituição Politica da Monarchia Portugueza, art. 27° ss..
(31) Vide Constituição...., art. 9o; Cf. Agustin de Arguelles, Discurso preliminar a

la Constitución de 1812, edição Centro de Estudios Constitucionales, p. 95.

588
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

constitucionalmente postulada, de um regime de separação dos poderes


políticos, é também um elemento integrador do Estado de direito.
Como acentuaria o deputado Castelo Branco durante a discussão das
bases da Constituição portuguesa:

"O homem, sempre insaciável de poder, querendo atribuir tudo a


si, como ponto único, uma vez armado de autoridade, ora lisonjeando
o forte, ora aterrando o fraco, lhe é fácil fazer calar a lei e erigir-se em
árbitro supremo. Desde logo suas vontades vêm a ser ordens irresistíveis,
porque ele é ao mesmo tempo o legislador e o executor da lei. Os inte­
resses complicados da sociedade fazem que muitos tirem partido da
mesma desordem e a sustentem. Os outros não podem resistir-lhe e
insensivelmente se acomodam à escravidão. Quando as coisas chegam a
este ponto, o pacto social desaparece, os direitos do homem são quimeras
e tudo se refere ao déspota de cujo arbítrio pendem os destinos gerais.
Tais eram as circunstâncias a que desgraçadamente nos víamos reduzidos
e de que só podia salvar-nos o heroico esforço com que fizemos reviver
o pacto social e recobrámos nossos direitos atropelados e esquecidos.
E por isso que a comissão propondo as bases da constituição, principiou
por declarar os direitos individuais do cidadão que a mesma constituição
deve garantir, como fim principal da sociedade e à conservação dos quais
tudo deve concorrer.
Mas seria em vão que se trabalharia por pôr em toda a evidência os
direitos do homem social, por os afiançar com toda a solenidade, uma vez
que se não fizesse por emendar os defeitos da nossa antiga constituição.
Nossos maiores ou por demasiada sinceridade ou por excessiva confiança
nas brilhantes qualidades de nossos antigos reis, não acautelaram o abuso
que um dia poderiam vir a fazer do poder. É certo que distintamente do
Rei confiaram a um congresso nacional a autoridade de fazer as leis e
impor os tributos, mas esse congresso era de tal maneira organizado que
melhor vinha a ser o órgão do interesse das classes que da vontade geral
da nação. E assim mesmo por falta de regularidade na sua convocação e
dissolução ele era pouco próprio para manter o equilíbrio entre o poder
legislativo que lhe competia e o executivo confiado ao rei. Também
aconteceu, como era de esperar, que a influência das cortes acabasse
em pouco, que todas as suas funções se reduzissem a meras súplicas,
até desaparecer o seu mesmo nome e o rei reunir em si todos os poderes,
constituindo um governo verdadeiramente absoluto e despótico que

589
Revista de Historia das Ideias

pouco tardaria a lançar-nos no abismo de que jamais surgiríamos.


Para restabelecer a liberdade da nação e a fazer durável, incumbia à
comissão propor o modo que lhe parecesse mais conveniente a fim de
realizar a separação e independência dos três poderes e estabe lecer entre
eles o equilíbrio necessário, como única medida indispensável,,(32).

A doutrina da separação dos poderes do estado, formulada claramente


por Montesquieu com base na análise das instituições políticas britâni­
cas, visa impedir a concentração do poder nas mãos do executivo,
garantindo, desse modo, o respeito pelas liberdades fundamentais.
No Estado de direito, a competência de criação das normas jurídicas cabe
exclusivamente ao órgão parlamentar representativo da nação (art. 105°
da Constituição de 23 de Setembro de 1822), o poder executivo compete
ao rei (artigos 121° e 122°) e o poder judicial exclusivamente aos juízes
(art. 176°). Esta limitação recíproca dos poderes de estado constitui,
obviamente, um instrumento contra o absolutismo político.
Com efeito, na sua luta e oposição expressa às excepções e aos privi­
légios, no seu combate pela Constituição e pelo Estado de direito, na
sua insistência na ideia de que a monarquia portuguesa se iniciara
constitucionalmente com uma representação nacional e de que a semente
daninha do poder absoluto só ganhara dimensão à custa da obliteração
progressiva das instituições constitucionais pretensamente existentes
na história nacional, os tradicionalistas liberais portugueses no seu
combate em prol da regeneração e da consolidação em bases estáveis
dos princípios do Estado de direito, parecem ter presentes as palavras
de Benjamin Constant: "Quand les gouvernements offrent aux peuples
des améliorations législatives les peuples doivent leur répondre en
leur demandant des institutions constitutionnelles. C'est dans les
constitutions, dans les peines qu'elles prononcent contre les possesseurs
infidèles de l'autorité, dans les droits qu'elles assurent aux citoyens, dans
la publicité surtout qu'elles doivent consacrer, c'est là que réside la force
coercitive nécessaire pour contraindre le pouvoir à respecter les lois"32 (33).

(32) Castelo Branco, D. G, 1,13.11.1821, pp. 80-81.


(33) Benjamin Constant, Commentaire sur l'ouvrage de Filangieri, in Oeuvres de
G. Filangieri, pp. 206-207.

590
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

O abismo entre o conceito e a experiencia governo constitucional-


-governo absoluto, marcava, assim, a dialéctica do processo histórico
português.

Historia e Contrato Político

Na sistemática política europeia surge, desde cedo, a atitude metódica


do recurso à história para denunciar o uso arbitrário do poder político,
a ruptura de contratos políticos historicamente definíveis, a violação das
leis fundamentais do Estado, o desrespeito pelas liberdades individuais.
Pensava-se que a liberdade não tinha brotado nas lutas sociais do
século XIX sem antecedentes históricos, e que muito do que se consi­
derava agora racional (liberal) retomava e desenvolvia embriões de
séculos atrás, bloqueados pelo século mais próximo. As teses do liberalis­
mo apresentavam-se, desta maneira, como expressões de uma raciona­
lidade (progressista) cujas raízes mergulhavam não apenas no abstracto
de uma lógica filosófica mas no concreto de uma lógica histórica.
Não se trata, portanto, de uma atitude exclusiva dos tratadistas e
politólogos portugueses do século dezanove, empenhados em funda­
mentar e legitimar o Estado de direito liberal.
Podem apontar-se como expoentes desse método de análise teórico-
-política, Claude Mey, Blackstone e Montesquieu. O método "histórico",
com a sua dimensão concretista e experiencial, opõe-se ao método
"filosófico", com tudo o que neste havia de raciocínio abstracto. O desfa­
samento que se verifica quando se confronta um Claude Mey com um
d'Holbach é análogo ao que sobressai no cotejo de Montesquieu com
Rousseau. Os teóricos que recorrem à história, importa dizê-lo, não são
os ideológica ou partidariamente mais moderados. Se "filosofia", no caso
vertente, não é sinónimo de radicalismo, tão pouco "história" é sinónimo
de moderantismo político.
Processa-se em várias bases, no século XVIII, o movimento doutrinário
de reacção contra o absolutismo. Do que recorre ao método histórico
oferece-nos um bom exemplo a obra de Claude Mey, Maximes du droit
public françois, tirées des capitulaires, des ordonnances du royaume et des
autres monuments de l'histoire de France. Situa-se Mey na linha polémica
do racionalismo contra o despotismo e contra o proprio absolutismo:

591
Revista de Historia das Ideias

"Les rois sont pour les peuples et non les peuples pour les rois.
La première de ces vérités dérive de l'institution même de la puissance
royale. Est-ce pour l'utilité personnelle du monarque ou pour l'avantage
des sujets, qu'a été établie cette puissance? Qui peut douter que l'intérét
des peuples n'ait été le fondement et l'origine du trône? L'autorité du
gouvernement suppose des hommes à gouverner; et le gouvernement a
pour fin la paix et la tranquilité publique, l'intérét des citoyens, le bonheur
de la société, dont le prince est le chef. C'est ce que la droite raison dicte à
ceux qui la consultent; c'est ce qu'elle apprit aux anciens philosophes"(34).

A lei natural é, para Claude Mey, a fonte originária de todo o direito.


E esse direito primordial, gravado no espírito dos homens pela razão,
permite aos jurisconsultos aceder à motivação fundamental e à natureza
essencial da instituição política do poder(35). O soberano encontra
justificação para o seu múnus na felicidade e mesmo na afeição dos
súbditos, uma vez que existe e foi instituído para os servir. Trata-se de
uma titularidade de deveres imperativos, inseparáveis da instituição
monárquica, resultantes da doutrina do direito natural, dos difames da
recta consciência e das luzes da razão(36).
Insistirá Mey na tónica de que faz parte da essência de todo e
qualquer estado monárquico ser governado mediante leis. Sem tal não
se diferenciaria dos impérios despóticos. No despotismo, a vontade
do soberano, é a única lei actuante. Se nesses estados se observam
algumas normas de conduta social, é porque todas as sociedades exigem
um mínimo de ordenamento, mais se tratando de usos e costumes
aprovados ou tolerados pelo príncipe do que de leis verdadeiras.
O déspota suspende-as ou modifica-as quando e como bem entende e
os seus sucessores perpetuam este comportamento.
Nas monarquias, sempre pelo ensinamento de Mey, o processo
é substancialmente diferente. Possuem leis e devem ser governadas
segundo princípios de justiça. Nelas, o poder arbitrário é desconhecido;
o que conta é a lei e não a vontade do monarca. O príncipe não pode,
mediante um acto de vontade absoluta, impedir a execução da lei nem
privar os indivíduos dos direitos que lhes são titulados. A necessidade de

(34)Claude Mey, Maximes du Droit Public..., 1.1, p. 20.


{35)Idem, p. 87.
{36)Idem, ibidem.

592
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

que haja normas jurídicas nas monarquias arrasta consigo a exigência de


que as mesmas sejam fixas e estáveis. A instabilidade das leis faria reviver
o caos, a confusão e, finalmente, o despotismo, pois que a existência da
lei estaria na dependência estrita da vontade do monarca. Assim, as leis
variariam tanto quanto agradasse ao príncipe. Este haveria de as anular,
modificar ou restabelecer segundo o seu poder descricionário. Teríamos,
como corolário, uma diferença ilusória entre o déspota que controla os
povos pelo simples desígnio da sua vontade e o monarca que, embora
constrangido a manifestar as suas decisões sob um aparelho legal,
não gere, todavia, um governo menos arbitrário(37).
Aperquisição histórica das instituições políticas, no quadro intelectual
europeu da resistência ao absolutismo, assume-se igualmente nas
teorizações de Boulainvilliers e de Blackstone.
O conde de Boulainvilliers representa uma corrente de fundamentação
monárquica anti-absolutista, na qual não se vislumbra confusão do
conceito de monarquia com o conceito de absolutismo. No seu entender
não deve silenciar-se a perversão institucional e política consumada
com Luís XIV. Afigura-se-lhe indigna a atitude daqueles que fazem
profissão de fé no não reconhecimento de outro princípio de governo
que não seja o despotismo do rei e dos seus ministros, associado a uma
obediência passiva dos súbditos, iniquamente despojados das suas
liberdades fundamentais(38). Crente de que a regra mais segura para o
esclarecimento do seu intento político seria buscar nas realidades da
história as "verdades" experimentais competentes, afirmaria:

'Alors j'appelle à mon secours l'exemple des siècles passés, non que
je suis prévenu de l'antiquité au-delà des termes raisonables, mais parce
qu'il y aurait de l'aveuglement à rejetter du régime d'une monarchie les
moyens qui l'ont maintenue pendant le cours de treize siècles, pour en
substituer de nouveaux qui n'ont rien de plus recommandable que de
faciliter un pouvoir despotique plus convenable au génie des peuples
orientaux, tels que les persans et les turcs, qu'a notre constitution [...]

(37) Claude Mey, ob. cit., t. II, pp. 177-178.


(38) Cf. Boulainvilliers, Etat de la France, dans lequel on voit tout ce qui regarde
le Gouvernement Ecclesiastique, le Militaire, la Justice, les Finances, le Commerce,
les Manufactures, le nombre des Habitants, et en général tout ce qui peut faire connoître
à fond cette Monarchie, 1.1, p. 105.

593
Revista de Historia das Ideias

Je ne craindrai donc point de rappeller, par le moyen de l'histoire, nos


usages présents à leur véritable origine; de découvrir les principes du
droit commun de la Nation, et d'examiner avec ordre ce que l'on y a
changé dans la suite des années. La justice ou l'injustice de ce changement;
quand le dessein y a eu part, ou la force des idées populaires, lorsqu'il
est nécessaire de la rapporter aux différents caractères des hommes qui
ont vécu dans l'etendue d'un si grand nombre de siècles"(39).

Em conclusão, e sempre pelo pensamento político de Boulainvilliers,


o poder arbitrário, o despotismo, a opressão, devem considerar-se
novidades que só obtiveram consagração em instituições modernas.
O exercício arbitrário do poder político encontra condenação inevitável
na lógica da história francesa(40).
De modo idêntico, William Blackstone procura na história das institui­
ções britânicas os argumentos necessários para condenar a ruptura do
contrato político original, a subversão dos preceitos da constituição nacio­
nal, a violação das leis fundamentais do estado, o desrespeito pelas
liberdades individuais. Os conceitos de liberdade, de história, de razão,
de natureza, perpassam continuamente no seu discurso. A teoria das liber­
dades civis e políticas tem no passado nacional a melhor comprovação.

"First by the great charter of liberties which was obtained, sword in


hand, from king John, and afterwards, with some alteration, confirmed
in parliament by king Henry the third, his son. Which charter contained
very few new grants. But, as sir Edward Coke observes, was for the
most part declaratory of the principal grounds of the fundamental laws
of England. [...] After a long interval, by the petition of right which was
a parliamentary declaration of the liberties of the people, asserted to by
king Charles the first in the beginning of his reign. Which was closely
followed by the still more ample concessions made by that unhappy
prince to his parliament, before the fatal rupture between them; and by
the many salutary laws, particulary the habeas corpus act passed under
Charles the second.
To these succeeded the Bill of rights, or declaration delivered by the
lords and commons to the prince and princess of Orange, 13 February

(39) Boulainvilliers, ob. cit., pp. 109-111.


mIdem, ob. cit., p. 53 ss.

594
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

1688, and afterwards enacted in parliament, when they became king and
queen, which declaration concludes in these remarkable words: 'and
they do claim, demand and insist upon, all and singular the premises
as their undoubted rights and liberties'. And the act of parliament itself
recognizes 'all and singular the rights and liberties asserted and claimed
in the said declaration to be the true, ancient and indubitable rights of the
people of this kingdom'. Lastly, these liberties were again asserted at the
commencement of the present century, in the act of settlement, whereby
the crown was limited to his present majesty's illustrious house: and
some new provisions were added at the same fortunate era, for better
securing our religion, laws and liberties; which the statute declares to be
'the birthright of the people of England', according to the ancient doctrine
of the common law"(41).

Assim, como vimos, para Blackstone, o espírito da liberdade encontra­


re vasado no concreto dos institutos da constituição histórica inglesa,
nos termos de verdadeiros contratos políticos celebrados entre os reis
e os povos.
É também muito saliente no esforço fundamentador dos liberais
espanhóis este tipo de discurso centrado no apelo à historia do sistema
representativo pátrio. Martinez Marina é o expoente desta corrente
doutrinal em Espanha.
Segundo o seu modo de ver, as monarquias primitivas da península
ibérica foram de natureza constitucional. O poder régio estava limitado,
tendo um perfil muito diverso daquele que adquiriu no final do século
XVIII. Os antigos soberanos não eram legisladores, segundo afirma, mas
proponentes ou executores das leis. O valor destas assentava no consenso
da comunidade, derivando a sua legitimidade da aprovação pública.
Por outro lado, precisa ainda Marina, 'fios antiguos reyes nunca fueron
considerados como soberanos que dominan à sus subditos, sino como
ciudadanos empleados a dirigir à sus iguales".
O esquecimento intencional desta realidade tradicional nas sociedades
hispânicas, teve como resultado que a autoridade régia tenha deixado
de ser "lo que debiá" e que, portanto, no limiar do século XIX não se
conhecesse outra lei além da que traduzia "la voluntad del monarca y
los caprichos de sus ministros".

(41) Blackstone, Commentaries on the Laws of England, 1.1, pp. 127-128.

595
Revista de Historia das Ideias

O despotismo é, precisamente, isso. A subordinação da lei ao rei,


a usurpação de poderes pela realeza, o esquecimento das prerrogativas,
dos direitos e da dignidade dos povos. Tal estado de coisas, acentua
Martinez Marina, é contranatural face à historia, e traduz-se no m viver
político "sin las primeras nociones de libertad civil y politica, sin ideas
de constitución ni de leyes fundamentales, ni de cortes"(42).
Como se comprova, no pensamento do tratadista, a liberdade,
enquanto produto político institucionalizado, não brotou, na Espanha,
de lutas políticas circunstanciais, as que levaram à abertura das cortes
de Cádis.
Pelo contrário, a obra das Cortes de Cádis, teria, segundo Marina,
as raízes mergulhadas num imperativo histórico - a tradição política
do país. Esse imperativo, suspenso na sua vigência e travado no seu
desenvolvimento pelo absolutismo, seria, então, retomado, desenvolvido
e actualizado pelos caditanos, não no esforço arcaizante de restituição da
Espanha ao seu passado, mas no esforço de conduzir o passado político
e institucional espanhol ao presente a que, naturalmente, segundo
Martinez Marina acredita, teria chegado, se o livre desenvolvimento
da sua dialéctica não tivesse sido interceptado pelo absolutismo
monárquico(43).
Martinez Marina, produto intelectual da confluência do iluminismo
e do liberalismo, afirma que a origem das calamidades políticas
consubstanciadas no antigo regime se situa na "geral e crassa ignorância
em que estava a Espanha acerca da sua arriscada situação e do infeliz
estado dos seus verdadeiros interesses. Jazia o povo espanhol num
profundo esquecimento das suas prerrogativas, da sua dignidade e
dos seus direitos: sem as primeiras noções de liberdade civil e política,
sem ideias de constituição nem de leis fundamentais, nem de cortes,
sem saber que estas tinham sido em todos os tempos o apoio da monar­
quia e o remédio dos males políticos da nação"(44).
E, não só não considerava natural esta situação política, como a
entendia como uma violência à face da história. Segundo ele, as suas

(42) Martinez Marina, Teoria de las Cortes o grandes juntas nacionales de los reinos

de Leon y Castilla, 1.1, pp. 30-31.


mIdem, pp. 70-71.
(44)Teoria de las cortes..., Madrid, 1813,1.1, p. XXXI.

596
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

contradições comportavam a inelutabilidade de uma superação, fosse


pacífica ou fosse revolucionária(45).

Estado e Lógica Política

A lógica política, de dimensão historicista, de Claude Mey,


Boulainvilliers, William Blackstone e Martinez Marina tem parentesco
com a de Fénelon e Saint-Simon, sobretudo com a de Montesquieu.
O De l'Esprit des Lois é uma ampla análise dos problemas do estado
à luz do processo histórico. Montesquieu procura 1er nos factos do
passado a revelação primitiva, embora imperfeita, de teses em processo
no presente liberal. Escrevendo numa época em que o absolutismo
se achava instalado no trono francês e no da maior parte dos estados
europeus, defrontou-se com a tarefa teorética de demonstrar que a
liberdade era, tendencialmente, plurissecular e conatural ao próprio
estado monárquico.
O recurso a uma argumentação de tipo histórico era também imposto
a Montesquieu pela consciência de um processo político que colocava,
frente a frente, a monarquia absoluta e a monarquia mista, a última das
quais comportava um lugar importante para as reivindicações da nobreza
e dos corpos intermediários.
Este processo entreabria a porta à reestatuição de um regime represen­
tativo e, portanto, à reestatuição dos direitos fundamentais do indivíduo.
As suas repercussões eram, por conseguinte, da maior importância no
pensamento de um doutrinário preocupado com soluções políticas que
formalizassem, dentro de um estado monárquico, as teses do liberalismo.
Daí o empenho que pôs na comprovação objectiva, através dos exemplos
e lições da história, de que a monarquia absoluta, antítese do estado
assente no respeito pelas liberdades e garantias fundamentais, era um
regime anómalo e ao revés das tradições francesas e dos ensinamentos
da história(46).

(45) Idem,
p. LXX.
(46)Montesquieu, De l'Esprit des Lois, t. II, livros XXVII, XXVIII, XXX, XXXI,
pp. 195-278 e 296-403.

597
Revista de Historia das Ideias

O pensamento de Rousseau parte de outros pressupostos. Aponta


para a regeneração da historia pela natureza. No entanto, tal como
Montesquieu, pretende uma reformulação do presente através de uma
reavaliação do passado. Pôr a história de acordo com a natureza acaba
por ser, no fim de contas, pôr o hoje numa consonância (evoluída ou
avançada) com a dialéctica (primitiva) do ontem, por mais recuado que
se encontre na escala do tempo.
Desenvolvendo uma fundamentação abstracta das teses liberais,
apresentando um alicerce filosófico para o discurso político, Rousseau
objectiva o homem-cidadão como vocação e destino do estado.
Consagra, portanto, a cisão entre a ordem político-jurídica e a ordem
individual. O viver associativo, que as contingências do humano
solicitam imperiosamente, implica o estabelecimento de poderes que
regulem as diversas esferas de actividade e as tornem compatíveis com
a integridade do indivíduo. Segundo o pensador de Genebra, o que
historicamente se tem verificado, é que leis iníquas regendo durante
séculos a convivência política, acabaram por destruir o estádio remoto
de uma existência em liberdade e harmonia. O desejo de assumir o poder
político, a busca incessante da metodologia da sua posse e conservação,
a insaciabilidade social de alguns, levaram a cabo, gradualmente, o
ilegítimo sancionamento dos desvios da lei natural.
Na óptica rousseauniana, o filósofo, se busca compatibilizar a inte­
gridade do indivíduo com a convivência política, encaminha-se, conse­
quentemente, para a fundamentação do Estado de direito. No quadro
de tal análise, a liberdade individual bem como a liberdade colectiva,
são tributárias de um contrato social. Dessa forma, pactua-se uma trans­
ferência de direitos naturais, da esfera individual para a esfera colectiva.
Essa transferência não constitui uma alienação pura e simples mas sim
uma alienação condicional e precária. Sem ela, os interesses e objectivos
comuns à sociedade, no sentido de homens socialmente congregados,
não se realizam bem; tão pouco se realizam bem se a transferência não
envolver a instauração de um poder político suficientemente forte e
habilitado, se bem que livremente consentido. O indivíduo, na teorização
rousseauniana, afirma-se como fulcro e destinatário, legitimador e
requisicionário da estatalização.
Ultrapassando o contratualismo empírico de Grócio, Hobbes ou
Locke, operando o trânsito dos direitos naturais para os direitos positivos,
redefinindo em termos de valor a alienação da liberdade, iria Rousseau

598
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

estabelecer os termos de um novo contrato de sociedade que patenteia


o próprio fundamento teórico do Estado de direito(47).
Acentue-se, para terminar, que o método histórico e o método
filosófico de fundamentação do liberalismo têm grande autonomia de
processos. São, no entanto, rigorosamente, dois métodos de análise
teórico-política. Carece de base a doutrina que nega ao primeiro o
carácter de método e o pretende reduzir às simples dimensões de
um oportunismo. O que distingue os dois métodos não se situa desse
lado. Situa-se, sim, do lado da via de acesso às (mesmas) conclusões
sistemáticas relativas ao Estado de direito.

Fundamentação Histórica das Teses Liberais

No respeitante ao nosso país, a preocupação de encontrar na história


pátria as sementes da liberdade e os fundamentos das teses liberais,
é uma constante no quadro do pensamento doutrinário que estamos
a analisar. Na mente dos teóricos do tradicionalismo liberal português,
não havia qualquer hesitação em sustentar a ideia de que a monarquia
nascera e se desenvolvera rigorosamente constitucional, projectando,
assim, no passado nacional uma tendência anti-despotista e as linhas
germinativas das garantias jurídicas.
Os historicistas não preconizavam qualquer forma de restauração
do passado ou de regresso ao passado(48). Preconizavam, pelo contrário,
o desenvolvimento do que nele se continha embrionariamente e a sua
complementação com os produtos do discurso humano e da dialéctica da
história(49). Em termos de mentalidade, de tipo de raciocínio, de objectivos,
o tradicionalismo liberal está nos antípodas do tradicionalismo contra-
revolucionário^.

(47)Rousseau, Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique.


m Génio Constitucional n° 1, 2 Out. 1820, pp. 1-3 e 4-5; Génio Constitucional
n° 5,6 Out. 1820, pp. 1-2; Regeneração de Portugal n° 6,23 Set. 1820, pp. 1-2; Minerva
Constitucional n° 3,18 Nov. 1820, pp. 1-3.
m Génio Constitucional n° 2,3 Out. 1820, pp. 1-2; Génio Constitucional n° 9,11

Out. 1820, pp. 1-2; Campeão Lisbonense, suplemento ao n° 171, 25 Fev. 1823, p. 2.
(50)O Portuguez Constitucional, n° 51, 21 Nov. 1820, pp. 1-2; O Portuguez

Constitucional n° 31,9 Fev. 1821, pp. 1-4; O Analista Portuense, n° 43,11 Abr. 1822,

599
Revista de Historia das Ideias

Assinale-se ainda que o método histórico de fundamentação do


liberalismo não foi um acidente mas uma constante do pensamento
liberal português no Io quartel do século XIX(51). E não só uma constante,
mas uma dominância, mesmo que, por vezes, sofra a "contaminação" da
filosofia. Moderados e radicais usam-no, aliás, com a mesma frequência(52).
Por outro lado, é para o Estado de direito liberal e não para a correcção
do absolutismo ou para a reposição da antiga monarquia mista, que os
nossos historicistas constitucionais se orientam(53).
Dentro deste horizonte de pensamento, merecem um especial
destaque José Liberato Freire de Carvalho, João Bernardo da Rocha
Loureiro e Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça.

História e Revolução em José Liberato

No jornal O Campeão Portuguez, publicado em Londres, de 1819 a


1821, e no Ensaio historico-politico sobre a constituição e governo do reino
de Portugal, o politologo emigrado José Liberato Freire de Carvalho
desenvolve, ao longo de centenas de páginas, com grande capacidade
discursiva, as seguintes ideias capitais: urgia reestatuir a nossa bem
entendida liberdade; era imperioso estar consciente da existência de um
passado de constitucionalismo reportável às épocas mais assinaladas da nossa
história, que importava ampliar e reformar; era necessário estabelecer
uma coordenação entre o combate político dos liberais no presente de
1820-1823 e as realidades das instituições pátrias de outros tempos.
Remontando o contrato político da monarquia a Lamego, José Libe­
rato traça um quadro da recepção e consagração históricas do princípio
da representatividade popular, da confirmação e legitimação do rei pelos

pp. 1-3; O Analysta Portuense, n° 39, 30 Mar. 1822, pp. 1-2; Campeão Lisbonense,
n° 170, 26 Fev. 1823, pp. 1-2.
(51) 0 Portuguez Constitucional, n° 2, 23 Set. 1820, pp. 1-2; O Portuguez
Constitucional, n° 4, 26 Set. 1820, pp. 1-2; O Portuguez Constitucional Regenerado,
n° 6,7 Ago. 1821, pp. 1-3; O Portuguez Constitucional Regenerado, n° 7,8 Ago. 1821,
pp. 1-2.
(52) o Portuguez Constitucional, n° 27, 23 Out. 1820, pp. 1-2; O Portuguez
Constitucional, n° 28, 24 Out. 1820, pp. 1-2; O Patriota, n° 3, 29 Set. 1820, pp. 1-3.
(53) Génio Constitucional, n° 11,13 Out. 1820, pp. 1-2; Campeão Lisbonense, n° 167,

19 Fev. 1823, p. 1; Campeão Lisbonense, n° 2, 23 Out. 1823, pp. 1-2.

600
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

povos; assinala, em suma, aquilo que, no seu entender, foi o percurso


histórico de um pacto político plurissecular.
Nesse traçado da Magna Carta portuguesa, adquirem especial relevân­
cia a crise dos fins do século XIV e o resgate da nacionalidade em 1640.
O rompimento revolucionário (nesta acepção, porquanto ao revés do
sentido da história) da linha político-institucional portuguesa dá-se, então,
no século dezoito. O pacto político que é fundamento do poder impõe
deveres recíprocos. O seu desacatamento por parte da coroa, traduzido
no desrespeito dos direitos fundamentais dos povos, constitui, no teor
do pensamento descrito, o único fermento das convulsões sociais, que
podem levar à destruição dos regimes:

"Desde a criação da monarquia constitucional em Lamego, onde o


povo português exerceu por um modo o mais amplo e mais conspícuo
os seus direitos de soberania, continuou este sistema legal de governo,
com uma ou outra alteração própria da civilização dos tempos, até à
extinção da primeira linha directa na pessoa de el-rei D. Fernando.
Em todo este período prosperou muito a nação, porque cresceu em
território, limpando-o completamente dos seus inimigos com muito
valor e prudência, e adquiriu ao mesmo tempo muito vigor interno pelas
riquezas que foi sucessivamente ganhando por efeito das boas leis e da
geral economia e boa administração dos seus príncipes. Mas isto assim
devia acontecer; porque as leis não eram um resultado das paixões ou
interesses deste ou daquele homem, mas da combinação dos trabalhos e
das luzes dos representantes da nação, reunidos em Cortes.
Também os reis eram os primeiros em as cumprir, porque elas eram
igualmente obra sua, e só podem ser bem executadas quando dimanam da
vontade expressa do rei e do povo. Assim a este sistema de representação
nacional devemos atribuir não só a robustez que logo na sua infância
adquiriu Portugal, mas todos os prodígios para que ele já se estava prepa­
rando, e que tão heroicamente depois executou.
Na exaltação de D. João I ao trono português tornou a nação a exercer
amplissimamente os seus direitos de inalienável soberania, porque não
só contra toda a força de Castela teve um rei da sua escolha, mas firmou
ainda a monarquia com novas leis. Este vigor, que o povo português então
mostrou também se comunicou não só ao monarca que havia escolhido,
porém a todos os seus filhos e directos sucessores; e Portugal então tanto
cresceu em liberdade como em força e poder. Do tronco ilustre desta

601
Revista de Historia das Ideias

segunda linha dos nossos reis saíram todos os grandes instrumentos


da nossa glória, e então não houve atrevimento que não cometêssemos,
não houve maravilha que não fizéssemos, e não houve conquistai que não
tentássemos e que não conseguíssemos.
Uma circunstância importante, que se deve notar, e que jamais
convém esquecer, é que em todo o período desde D. João I até ao fim do
reinado de D. Manuel, nunca como então foram as Cortes tantas vezes
e tão regularmente convocadas, e nunca, por consequência, como em
todo aquele tempo foi a nação política e civilmente mais livre. Do que
necessariamente resulta, que à liberdade das suas instituições, e à prática
delas é que Portugal deveu os seus triunfos, o seu poder, a sua grandeza,
e a sua glória. Sendo esta uma verdade de facto, e tão palpável que
ninguém a pode negar, com toda a justiça também se pode concluir,
que começando nós logo depois a decair da nossa primitiva prosperidade,
e decaindo com ela simultaneamente o exercício dessas mesmas
instituições liberais pela menos frequência de chamamento de Cortes,
a esta última circunstância se deve também atribuir, como primeira
causa, a nossa decadência, que foi a precursora de todos os males,
e de todas as desgraças que depois nos tornaram um dos povos mais
miseráveis da Europa. É, portanto, um facto histórico inegável, que a
monarquia portuguesa foi criada essencialmente constitucional com
uma representação nacional; que enquanto esta esteve em pleno vigor
nós fomos ricos, poderosos, grandes, e respeitados; e que ao passo que
estas belas instituições se foram esquecendo, tanto por abuso da coroa
como por desleixo e indiferença dos povos, todas as nossas coisas foram
gradulamente a pior, até chegarmos ao estado deplorável em que hoje
se vê a nação, oprimida pelo despotismo mais absurdo e pela tirania
mais feroz"(54).

José Liberato, como se pode constatar, funda o seu raciocínio numa


lógica do desenvolvimento do passado nacional decorrente daquilo
que nele se continha, segundo o seu modo de ver, embrionariamente(55).
Ou seja, a obra de regeneração política desejada por um importante sector
do pensamento liberal português tem as raízes mergulhadas num
imperativo histórico, que é a tradição política do país, interpretada na

WEnsaio Historico-político..., pp. 6-7.


<55)0 Campeão Portuguez, Londres, I, n° 5, Set. 1819, p. 161 ss.

602
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

sua dinâmica(56). Note-se, entretanto, que não nos deparamos aqui com
nenhuma postura interpretativa conservantista(57) 58.
Essa tradição política, travada no seu desenvolvimento e suspensa na
sua vigência pelo despotismo absolutista, seria retomada, desenvolvida e
actualizada pelos tradicionalistas liberaism, não num esforço anacrónico
de devolução de Portugal ao passado, mas num esforço progressista
de encaminhar o passado institucional e político nacional ao presente
a que teria chegado se tivesse havido um desenvolvimento normal da
dialéctica da sua história(59).
A partir da ideia de tradição fundamentava-se ou validava-se a ideia
de inovação. Mesmo que para tal fosse necessário tomar por autêntico
aquilo que se sabia ou suspeitava ser apócrifo:

"Mostramos, pela breve exposição de nossos antiquíssimos costumes


políticos, que o ajuntamento de nossos congressos nacionais, últimamente
denominados Cortes, era uma verdadeira lei, ou tradição pátria,
imemorial e sem data, a qual com toda a justiça podemos chamar lei
da terra: assim não sendo ela dádiva de rei ou governante, mas a pura
expressão do instinto e da vontade do povo, não lhe pode ser roubada
sem grande injustiça e grande perigo do mesmo roubador! E da mesma
exposição se pode ou deve também concluir, que quando o nosso primeiro
rei D. Afonso convocou as Cortes de Lamego no ano de 1143, tanto não
concedeu com isto favor ou privilégio algum aos Portugueses que ia
governar com o alto carácter de rei, que antes é de toda a verosimilhança
fora a isso obrigado, para obter legitimamente a sua nova dignidade,
e sujeitar-se à lei comum da terra, em virtude da qual se podia reinar.
E esta, que nós chamamos verosimilhança, se converte com efeito em
uma luminosa evidência quando, sabemos que os concílios ou congressos
dos Godos, e mais povos que anteriormente nos governaram, eram o único
tribunal competente em que não só se faziam as leis fundamentais para

{56) O Campeão Portuguez, Londres, IV, n° 36, Jun. 1821, p. 194 ss.
(57) 0 Campeão Portuguez, Londres, III, n° 28, Out. 1820, p. 187 ss.
(58) 0 Campeão Portuguez, Londres, I, n° 11, Dez. 1819, p. 352 ss.
(59) O Campeão Portuguez, Londres, II, n° 21, Maio 1820, p. 99 ss; Idem, Londres,

II, n° 22, Maio 1820, p. 335 ss; Idem, Londres, II, n° 20, Abril 1820, p. 259 ss; Idem,
Londres, II, n° 18, Mar. 1820, p. 181 ss; Idem, Londres, II, n° 16, Fev. 1820, p. 107
ss; Idem, Londres, II, n° 14, Jan. 1820, p. 35 ss;

603
Revista de Historia das Ideias

a sucessão dos tronos, e o regimento dos que a eles deviam subir, mas
ainda se confirmavam de facto as deposições e as entronizações dos reis.
Seja ou não verdadeiro o texto das Cortes de Lamego que hoje
correm entre nós com este nome, pode-se contudo afirmar com toda
a probabilidade, senão com toda a certeza, que estas ou outras Cortes
necessariamente se haviam de juntar nesse tempo, pois que pelo direito
público peninsular daquela idade só elas podiam sancionar, e tornar
legítima a suprema autoridade do novo rei, e da nova monarquia.
Como porém esse mesmo texto das Cortes de 1143, vulgarmente chamadas
de Lamego, seja hoje geralmente admitido entre nós, e forme uma parte
mui essencial do nosso actual direito público, por isso mesmo que temos
por leis fundamentais as que nessas Cortes se dizem promulgadas; a ele
convém que rigorosamente nos cinjamos, e por ele examinemos a porção
de liberdade política que daí nos veio, e a que todos os Portugueses,
ou como nação ou como indivíduos, temos um direito indisputável.
Pondo, portanto, de parte todas as suposições, e tomando, como
devemos fazer, as Cortes de Lamego por verdadeiras, vemos que a
monarquia Portuguesa nasceu, e se criou rigorosamente constitucional,
e que os reis Portugueses, na elevação do seu primeiro tronco, longe de
terem assumido um poder absoluto, antes formalmente o abjuraram,
dando uma prova evidente de que o complemento da sua autoridade
suprema dependia essencialmente da vontade da nação, representada
pelas diversas ordens do Estado,,(60).

Esse recurso à história pátria para comprovar que as instituições


constitucionais, as liberdades e garantias individuais, a igualdade legal,
não constituem produtos abstractos do espírito humano em época recente
mas sim emergências da realidade secular da nação, é constante em
José Liberato.
Afirma, em doutrina, que houve no país ante-liberal um transtorno
de leis, de hábitos e de costumes. Em vez de legislação fixa e igual para
todos, havia uma vontade arbitrária que destruía num dia os diplomas
feitos na véspera, ou que cumpria, quando e como lhe aprazia, as dispo­
sições legais. *

m Ensaio Historico-politico..., pp. 10-11. Cf. O Portuguez Constitucional Regene­

rado, n° 6, pp. 1-3, 7 Ago. 1821.

604
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

Essa vontade arbitrária, sublinharia José Liberato, "não é outra coisa


senão o poder absoluto de uns poucos de servos da coroa que, sem
nenhuma responsabilidade, tão arbitrariamente dispõem da pessoa do rei
como das pessoas dos vassalos. Não poderemos à vista disso negar que
a nossa pátria está em actual revolução. Que os ministros, que proibem
os escritos públicos, vivem em uma muito perigosa equivocação. E que
quando eles sufocam as luzes como pretexto de sufocar revoluções não
fazem mais nada do que perpetuar as mesmas revoluções, e, de facto,
incorrem na mesma nota e delito de revolucionários, que, indevidamente
e por equívoco, atribuem aos outros, que só escrevem para destruir a
actual revolução"(61).
Esta argumentação tinha como objectivo restabelecer um equilíbrio
que teria sido bloqueado pelos séculos mais próximos, manifestamente
revolucionários porquanto institucionalmente constituídos ao revés do
sentido e evolução das estruturas políticas nacionais.
Revolução seria, dentro deste teor de análise, a abusiva oposição ao
normal desenvolvimento das instâncias de pensamento e de acção que
caracterizavam uma sociedade (de leis e costumes) asseguradora das
garantias individuais e colectivas, e obstaculizadora dos abusos do poder
monárquico. Tal teria sido a sociedade portuguesa antes de sufocada
pelo absolutismo político.
Toda a construção teórica de José Liberato gira em torno do propósito
de romper com a situação contranatural das estruturas políticas,
da máquina governativa e do aparelho administrativo do país ante-
-vintista, marcados pelo poder absoluto, substituindo-a pela vigência das
garantias individuais(62) e da liberdade política, mediante a reassunção
e desenvolvimento de embriões de séculos atrás, bloqueados pelo
absolutismo(63):

/7As Cortes de Lamego devem portanto ser hoje defendidas e


sustentadas por nós não como forma essencial de um governo inalterável e
constante que nos haja de eternamente reger, porque todas as instituições

(61) 0 Campeão Portuguez, Londres, I, n° 5, Set. 1819, pp. 161-162. Cf. O Portu-
guez Constitucional Regenerado, n° 7, 8 Ago. 1821, pp. 1-2.
(62) 0 Campeão Portuguez, Londres, II, n° 13, Jan. 1820, p. 3 ss.; Idem, Londres,
I, n° 12, Dez. 1819, p. 381 ss.
(63) 0 Campeão Portuguez, Londres, III, n° 26, Ago. 1820, p. 65 ss.

605
Revista de Historia das Ideias

humanas estão sujeitas a alterações e mudanças necessárias, mas sim


como um principio de direito público português indestrutível e perpétuo,
sobre o qual só podem estar fundadas as diversas formas políticas com
que qualquer futuro governo se possa variar.
E qual é este princípio, que deve ser indestrutível e perpétuo? É o
direito que em consequência das ditas Cortes, tem a nação Portuguesa
de ser necessariamente chamada, nos seus representantes, para a formação
das leis, para a imposição e continuação dos tributos públicos e para a
manutenção da propriedade e segurança pessoal de cada indivíduo,
assim como para a manutenção da propriedade e segurança de todo o
corpo político. E quais são as formas porque estes princípios se podem
convenientemente pôr em execução? Estas são indefiníveis, porque
dependem essencialmente dos progressos e do adiantamento das luzes
do século, e bem assim das necessidades e desejos da nação"{64).

Aspirando a uma sociedade que assegurasse os direitos e liberdades


fundamentais e que colocasse obstáculo eficaz aos abusos do poder do
Estado, o autor apela para a revitalização da representação nacional
(Cortes) inerente à primitiva essência político-institucional portuguesa.
Só um Estado de direito modelado pelos princípios do liberalismo
poderia servir a regeneração da Pátria. É com a história, obviamente,
que esse estado é legitimado pelo autor.
Dentro deste quadro, não são revolucionários aqueles que pretendem
devolver ao império da lei as instituições e situações marcadas pelo
abuso, privilégio e injustiça.
Assim, os actos de autoridade que desrespeitam a liberdade do
indivíduo, afiançada quer pelo passado quer pelos progressos do espírito,
ainda quando invoquem o bem do estado, não têm justificação social64 (65).
Se a função natural do cidadão é contribuir para a edificação
da sociedade e fomentar o seu progresso, impossível será esperar
que assim actué sem que sinta garantida a sua vida e integridade.
As tendências intimidad vas que se desenvolvem nas sociedades despóticas,
tornam-se nas sementes da subversão e da revolução que os reis, afinal,
tanto receiam:

(64) Ensaio historico-político..., pp. 6-7; Idem, p. 10; Idem, p. 11.


(65) 0 Campeão Portuguez, Londres, I, n° 1, Jul. 1819, p. 9 ss.

606
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

'Temos mostrado em geral que todo o país em que há um transtorno


absoluto de leis, hábitos e costumes, e em que por conseguinte tudo
depende da arbitrária vontade dos que mandam, esse país está em
estado de actual revolução. Mostrámos mais por factos particulares que
na monarquia portuguesa há esse transtorno absoluto de leis, hábitos e
costumes, porque entre nós tudo hoje se faz em virtude de leis modernas,
arbitrárias, bárbaras ou contraditórias, com desprezo e quebrantamento
manifesto de nossos bons usos e liberdades; logo coerentemente se segue,
como primeira conclusão, que a Monarquia Portuguesa está em estado
de actual revolução.
Segue-se ainda, como segunda conclusão, que se o actual ministério,
que governa em nome de el-rei, acusa, proíbe e persegue os escritos ou
jornais políticos que fomentarem revoluções nos domínios portugueses,
está ele em uma muito perigosa equivocação; porque os jornais políticos
tão longe estão de fomentar revoluções que, antes pelo contrário,
muito abertamente censuram os abusos dos ministros que trabalham
por perpetuar a revolução na Monarquia Portuguesa. Para se falar
correctamente não são revolucionários os jornais, são revolucionários
os ministros, que enganam ou não desenganam el-rei e transtornam e
quebrantam todos os dias nossas melhores leis, bons usos e costumes.
Para se acabar por uma vez com a revolução em que estamos,
não há outro meio senão o de restabelecer nossas antigas leis e liberdades,
e fundadas nelas proclamar solenemente as garantias individuais a que
tem direito todo o homem que vive em sociedade como cidadão, homem
livre, e não escravo. Estas garantias, bem e maduramente pesadas, são de
tanto interesse para o rei, ministros, e grandes, como para todo o corpo
de governados"(66) 67.

Segundo o modo de ver de Freire de Carvalho, em consonância, de


resto, com as teorizações de além-fronteiras, os direitos da coroa estão
conexionados, irrecusavelmente, com os direitos dos povos, ou, diga-se
de outro modo, o poder político resulta de um contrato de sociedade{67).

(66) 0 Campeão Portuguez, Londres, I, n° 5, Set. 1819, pp. 160-169.


(67) O Campeão Portuguez, Londres, I, n° 11, Dez. 1819, p. 352 ss; Cf. O Campeão
Portuguez, Londres, I, n° 9, Nov. 1819, p. 275 ss. e O Campeão Portuguez, Londres,
III, n° 30, Dez. 1819, p. 315 ss.

607
Revista de Historia das Ideias

A autoridade do monarca tem a sua raiz natural na vontade geral.


Os actos arbitrários da autoridade pública são, então, obviamente
injustificáveis face à natureza contratual do poder(68).
O chamamento do passado institucional do país compagina-se
intimamente, em Liberato, com uma atitude de modernidade sensível
aos progressos do espírito humano (as luzes do século). Afasta-se,
obviamente, de uma contemplação arqueológica do antigo constitucio­
nalismo português.

Constitucionalismo Histórico em Rocha Loureiro

João Bernardo da Rocha Loureiro desenvolve nas páginas de O Portu-


guez, particularmente numa série de memoriais programáticos, uma
rigorosa e empolgante análise da situação política, económica e judicial
da nação portuguesa, dedicando especial atenção à decadência a que se
chegara nas décadas que antecederam a eclosão do Vintismo.
É muito evidente em Loureiro a preocupação de sustentar os
princípios do Estado de direito(69) e de fundamentar a existência de uma
tradição constitucional portuguesa(70):

(68)0Campeão Portuguez, Londres, I, n° 11, Dez. 1819, p. 354.


m O Portuguez, Londres, vol. I, 6 Set. 1814, pp. 482-490.
mVide Memorial UI, in O Portuguez, Londres, voi. VII, 37, Maio 1817,

pp. 700-719. Escrevia Ribeiro dos Santos: "As leis fundamentais do Estado,
sem exceptuar as mesmas de Lamego, longe de deverem ficar em arcano
e confusão, devem ser as primeiras que mais se declarem e se ponham em
maior luz; para que os povos e os príncipes saibam exactamente os seus foros
e conheçam todos sem alguma dúvida e controvérsia, sempre arriscada em
semelhantes matérias, quais são os sagrados direitos por que uns imperam e
outros obedecem, e quais os ofícios que se devem mutuamente. São bem sabidas
na história antiga e moderna as perturbações e males que têm resultado a muitas
nações da Europa da ignorância e confusão em que estavam as leis fund amentáis
e constitucionais de seus Estados. Convém pois que não haja entre nós ideias
vagas e confusas destas leis" (Notas ao Plano do Novo Codigo de Direito Publico
de Portugal do Doutor Paschoal José de Mello, Feitas e Appresentadas na Junta da
Censura e Revisão pelo Doutor António Ribeiro em 1789, Coimbra, Na Imprensa
da Universidade, 1844, pp. 9-10. Sobre o pensamento de António Ribeiro dos
Santos, vide José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII
- António Ribeiro dos Santos.

608
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

"Senhor! Houve tempo, quando eu que então era advogado da Casa da


Suplicação em Lisboa tinha por ofício requerer a V.M. alguns desagravos
de injustiças e ilegalidades cometidas por os juízes contra os direitos de
indivíduos que eram vassalos ou viviam sob as leis e autoridade de V.M.,
e então por vezes alcancei reparação dos agravos nascidos da ignorância
ou corrupção dos juízes inferiores e algumas outras vezes não obtive
melhoramento, e nessa suprema Relação se punha o último selo à injustiça
das instâncias inferiores sem haver outro recurso para onde apelar ou
agravar. Hoje em dia, quando já não sou advogado dessa Casa, quando
já não vivo sob as leis de V.M., quando já em mim não podem ter nem
mero nem misto império as decisões dos magistrados e governadores
portugueses, alargou-se o meu ofício de advogado (nem conhece limites
a província em que eu devo entender), aumentaram-se os meus clientes
(nem pode subir a mais o seu número), requeiro perante uma nova
autoridade que no mundo não conhece superior. Numa palavra, sou
escritor e advogado, não só para as pequenas pendências de Portugal,
mas para as causas de todo o mundo. Não só para os vassalos e sujeitos
das autoridades portuguesas, mas para todo o género humano"(71).

Segundo Loureiro, o reino tinha chegado a um estado de decadência


profundamente contrastante com um passado glorioso, penhor das
elevadas capacidades dos portugueses. Essa situação de decadência não
resultava senão dos abusos da monarquia absoluta.
A solução era a recuperação dos usos e das instituições políticas que
a história portuguesa afiançava:

"Tantos e tão altos feitos que nós obrámos (tais e tantos que hoje
pareceriam incríveis se não fossem tão bem averiguados) quando
cometidos por tão poucos braços, a despeito de tão poderosos inimigos,
provam nos antigos Portugueses uma força de carácter quase superior à
humanidade, costumes nobilíssimos e puros, educação estremada, cultura
de ciências e finalmente, a prática de todas as virtudes que exaltam as
nações assim como enobrecem os particulares. V.M. o pode bem saber.
Seus mestres lhe terão dito que espelho e exemplo de educação pública
deu a seus vassalos na pessoa dos príncipes seus filhos o primeiro avó

(71)0 Portuguez, Londres, I, 6 Set. 1814, p. 482 ss. Cf. O Analysta Portuense,

n° 43,11 Abr. 1822, pp. 1-3.

609
Revista de Historia das Ideias

de V.M. João Io, e o como eles cultivaram as ciências e virtudes que lhes
mostraram caminho e lhes abriram as portas do Oriente.
Os livros que então e no século seguinte se escreveram mostram
claramente que passos de gigante nós adiantámos na carreira das boas
letras e o quanto éramos dignos de senhorear as nações menos instruídas
do que nós. Que, ao fim, deve V.M. saber que, depois da restauração das
letras e científicos inventos, vão e devem ir sempre par a par ciência,
liberdade e dominação - ignorância, despotismo e decadência.
Destarte e com esse segredo, alcançámos nós, se não o sermos
os primeiros navegantes (que muitos povos nos precederam em a
navegação), por o menos o fazermos a maior época na história dos
descobrimentos. E tivemos a honra de ensinar a náutica aos senhores
Holandeses e Ingleses que dividiram nossos despojos assim como se
enriqueceram com os nossos conhecimentos. Nem eles são tão ingratos
e orgulhosos que deixem de o confessar e, ainda que o quisessem ser, os
seus livros que estão cheios de termos náuticos portugueses provariam
o nosso magistério e a sua confusão.
Assim obtivemos nós por algum tempo o fazermos o comércio de
todo o mundo e adquirir um imenso império superior ao de Alexandre
e de Trajano. Vimos reis suplicantes ou prisioneiros em Lisboa, como
em outro tempo os havia visto Roma dentro do recinto de seus muros.
Recebemos embaixadas de muitos soberanos não só do Oriente, mas
também da Europa que no-los mandava reverente quando esta parte
do mundo não tinha laços tão estreitos como hoje nem regia a etiqueta
moderna das embaixadas. Assim, finalmente, demos tal brado de nós e
das nossas cousas nos confins da terra que as últimas nações chamavam
nosso rei o Imperador e Lisboa a capital da Europa.
Que somos nós hoje? Ainda hoje possuímos, é verdade, uma extensa
porção de território tal e tanto que poderia, sendo bem aproveitado,
formar domínios mui poderosos para dez nações independentes.
Porém, como o possuímos nós? Por a mercê, desprezo ou ciúme das
outras nações. Estamos tão fracos e desmantelados (por culpa do governo,
eu o provarei a V.M.) que ao momento que fôssemos acometidos por um
inimigo poderoso, veríamos cair em seu poder os vários membros da
monarquia portuguesa. Quem defende Portugal de ser presa de Espanha
tão fácil como o foi a Filipe II? Só o mau governo e fraqueza de Espanha.
Quem tolheria aos Ingleses, se quisessem, mandar uma expedição a tomar
posse das nossas ilhas e possessões da índia?

610
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

Hoje somos os tributários da indústria estrangeira. Não fazemos, como


em outro tempo, tratados de conquistadores. Antes, pelo contrário, todos
os que fazemos são asselados por a ignomínia e com renúncia expressa
dos nossos interesses, honra, carácter e dignidade nacional. De concessão
em concessão, aonde iremos parar? Que nos ficará para conceder?
Como podemos esperar de satisfazer com submissões o orgulho e ambição
insaciável dos estrangeiros? E quando lhe tivermos concedido tudo,
que nos ficará? Como poderemos, sem cair no ridículo e sem sofrer
castigo que escarmente a fraca vaidade, usar esse tom altivo que bem
cabe a uma nação independente? Em que estado está a nossa agricultura,
artes e ciências?,,{72)

João Bernardo da Rocha Loureiro prosseguirá a análise de uma


conjuntura em que o desgoverno financeiro, a incapacidade política,
o desrespeito pelos direitos essenciais dos cidadãos, geraram uma
situação calamitosa prenunciadora de convulsões públicas. É com
preocupação que procura advertir o rei do perigo efectivo que representa
manter no poder os adeptos saudosistas das velhas instituições, da
sociedade de privilégios, da aristocracia prepotente.
Deve acentuar-se, sem nenhuma dúvida, que o tradicionalismo liberal,
se bem que comporte um uso doutrinarista da nossa história constitu­
cional, não dissimula nem fundamenta qualquer espécie de moderantismo.
Encontramo-lo, por igual, em liberais avançados como Fernandes
Tomás e em radicais como Castelo Branco e Borges Carneiro. E alguns
dos seus teóricos, como Rocha Loureiro e José Liberato, tomaram, de 1820
a 1823, dentro e fora das cortes, posições características não só de um
Estado inequivocamente de direito, mas de um Estado liberal avançado.
Apercepção, por parte de Loureiro, de que era urgente uma mudança
superadora dos gravíssimos problemas que marcavam a sociedade
portuguesa, e de que essa mudança podia (devia) fazer-se sob o
patrocínio e iniciativa do monarca, sem mais demoras e com verdadeiro
espírito de reforma pública, está patente nas seguintes palavras:

{72)Vide Memorial 11, in O Portuguez, Londres, vol. VI, 36, Abr. 1817, pp. 581-

-619. Cf. O Portuguez, Londres vol. I, 3 Jul. 1814, pp. 195-215; João Bernardo da
Rocha Loureiro, Memoriais a Dom João VI, ed. Georges Boisvert.

611
Revista de Historia das Ideias

"Enquanto eu não perder a esperança das reformas capitais que se


hão mister na administração do governo português, sempre se me verá
o defensor natural dos princípios moderados da reforma e o campeão da
augusta Casa de Bragança, ainda menos por os direitos da legitimidade
do que por a firme convicção em que estou de que essa familia é a que
melhor nos convém para nos reger com moderação. Pois são necessários
os heróis para fazer conquistas, mas não para bem governar os povos
que são protegidos por uma Constituição.
Senhor! Vai-se chegando o tempo de se cumprirem as profecias que
eu fui obrigado a fazer em terra alheia, pois na minha pátria não seria
salvo o mostrar espírito profético. V.M. vê-se agora embaraçado e perplexo
com os negócios de casa e de fora como nenhum outro monarca senão
seu sogro e cunhado, Fernando VII que Deus guarda por um contínuo
milagre. Já os soberanos que nenhum escrúpulo tiveram de repartir entre
si como rebanhos milhões de povos que os não queriam por soberanos,
ousam pedir contas a V.M. de uma invasão para a qual, ainda que injusta,
ninguém as devia pedir a um monarca independente, e ousam ameaçá-lo
se V.M. não obedecer. Que se fará em tão apertado lance? Obedecer será
deixar de ser rei, envilecer-se o soberano na opinião de todo o mundo e
envilecer a sua nação.
Porém, o repugnar cumprir os mandatos da aristocracia dos governos
parece impossível, segundo hoje nos vemos fracos e coitados. Que se
há-de fazer? V.M. tem colónias na Europa, Ásia, África, as quais podem
ser conquistadas logo que forem invadidas. O seu novo reino do Brasil
(bem o têm mostrado os últimos acontecimentos) está caindo aos
pedaços. Nenhuma parte dele tem forças que possam resistir aos inimigos
estrangeiros ou domésticos. Em qualquer parte um regimento pode fazer
uma revolução e o espírito público que não é favorável ao governo, bem
longe de a atalhar, há-de favorecê-la.
A enchente das luzes que há já penetrado até à vilanagem, as últimas
revoluções, o estabelecimento de dois governos livres em o Antigo e Novo Mundo
que são como o padrão por onde os povos que não são livres querem
aferir os seus governos, o aumento da indústria, luxo, necessidades e
ambição, e infinitas outras cousas que enfadaria repetir, tudo isso fez que
o mundo, comparado com o que foi há 30 anos nos pareça hoje mais novo
do que a Noé pareceria o mundo renovado depois do dilúvio universal.
É portanto necessário um novo sistema de reger que não seja a rotina
antiga do velho gabinete, pois se o bom governo deve ir passo a passo

612
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

com a opinião e espírito público, bem claro se vê que ele deve mudar suas
medidas, acomodando-as às variações desse mesmo espírito público,
que o contrário será querer remar contra a maré"(73).

A superação do status quo político e o percorrer dos trilhos da moderni­


dade, far-se-iam, como se torna evidente, no entender de Loureiro,
sob o signo da história. E isto porque a revitalização de um pacto social
emergente do passado era uma atitude que se plasmava na própria lógica
da história portuguesa.
Constituição seria o remédio, numa palavra! E o constitucionalismo
proposto não era um contra-senso histórico. Era o retomar do próprio
sentido da história(74).
Não hesita Rocha Loureiro em denunciar o aproveitamento que os
fundibulários anti-liberais faziam da ignorância e preconceitos reinantes
na sociedade portuguesa, com a finalidade política de apresentarem a
recuperação da dignidade nacional e da plenitude da cidadania, como
uma ameaça à monarquia hereditária:

"Qual é o espantalho de que se V.M. arreceia dando a seu povo, como


é de justiça, uma livre Constituição? Teme acaso que o povo representado
lhe tolha os recursos pecuniários que se hão mister para o custeio do
governo? Oh! vãos temores! Não vê V.M. que sua pessoa está sendo agora
um dos reis mais absolutos da terra, Senhor, sem freio de honras, vidas e
fazendas e contudo, a despeito de assenhorear um dos mais vastos e ricos
territórios do mundo, está sendo ao mesmo tempo um dos mais pobres e
miseráveis. O mesmo passa por Fernando VII. Esteja certo, Senhor, que o
poder ilimitado de impor tributos não é o segredo donde fundam rendas,
que a opinião dos homens que escondem e negam à circulação os seus
capitais é cem vezes mais poderosa do que o monarca o mais despótico
e absoluto. A abundância é companheira inseparável da liberdade.
Senhor! Não pense V.M. que os seus Portugueses lhe pedem uma
liberdade que venha a destruir o trono e confunda todas as ordens e
todas as classes. Oh, não! Isso não é liberdade (e dar-lhe esse nome é

(73) O
Portuguez, I, 3,10.VII.1814, p. 195 ss.
(74) Cf. José Liberato Freire de Carvalho, "Ao Mui Alto e Mui Poderoso Senhor
Dom João VI, Rey do reino unido de Portugal, Brazil e Algarves", in O Campeão
Portuguez, vol. 1,1 Jul. 1819, pp. 9-30.

613
Revista de Historia das Ideias

prostituir o nome da virtude, aplicando-o a fins profanos). Esse estado é


o de licenciosidade, e Deus nos guarde dele, que antes eu quero mil vezes
o raio de um rei déspota ameaçando minha cabeça do que quero ter o
povo por tirano como o qual não há outro mais furioso. Porém não é essa
a liberdade que lhe demandam os seus Portugueses, nem eles querem
ver a confusão e anarquia do povo governando só e individualmente,
quando ele é o que sempre deve obedecer.
Todos os votos dos bons Portugueses são o receber uma Constituição
livre que o trono firme e consolide, ao passo que defenda os direitos do
povo fraco e mesquinho contras as invasões dos poderosos. Não é isso
justiça e bom direito? V.M. que é de quem o povo espera a Constituição,
tem a sonda e prumo na mão, e por isso melhor julgará do fundo que é
necessário à nau do Estado para vogar sem haver perigo de se adiantar
muito, a ponto de ficar encalhado o trono português. Sobre este ponto
não são necessários muitos conselhos, que mais acontece serem os reis
nas suas concessões ao povo tachados de mesquinhos do que de mui
liberais e muito menos, de pródigos.
O conselho, nesse caso, que se faz necessário, é o de advertir a V.M. que
no caso de se resolver (como é de justiça e necessidade) a dar (não digo
bem) a restituir a Constituição livre ao seu povo, não se haja por maneira
que dê a conhecer temor ou mesquinheza.
Dê a Constituição quanto antes. Assim parecerá tê-la dado por vontade
e não por força. Dê-a com ânimo liberal, por maneira que mereça o nome
de Constituição livre, e dela resulte ao povo o bem que se espera, pois se
V.M. concede só uma parte do todo que deve conceder, essa parte nenhuns
bons efeitos produzirá. Pelo contrário será origem de intestinas desordens
e facções, por uma parte o povo querendo ganhar terreno e adiantar-se
até aonde lhe convém, por outra parte a coroa disputando-lhe palmo a
palmo esse terreno. V.M. pode considerar que a causa que mais influiu
no fado do infeliz Capeto de França foi essa sua tibieza, mesquinhez e
irresolução nas concessões que obrigado fez aos Franceses, convidando
a ajuntarem-se os notáveis e os Estados Gerais. Se ele desse logo ao seu
povo essa mesma Constituição que hoje tem, não se teriam visto tantas
catástrofes, tantos rios de sangue"(75).

(75) Vide Memorial III, ed. Georges Boisvert. Cf. José Liberato, ob. cit., pp. 287-288
e 376-378. Cf. Benjamin Constant, ob. cit., pp. 206-207.

614
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

Denuncia-se, como vemos no discurso político de Loureiro, a vontade


arbitrária de um governo que marcha em direcção contrária à da cons­
ciência culta da sociedade portuguesa.
Preconiza-se o estabelecimento de uma praxe política coonestada pela
história, de limitação dos poderes discricionários do trono, de segurança
das pessoas, de garantia da propriedade e dos bens, de liberdade ideoló­
gica, política e religiosa, de representação juspolítica do povo por inter­
médio de uma assembleia nacional, ou seja, pelo restabelecimento das
Cortes, assumindo este último aspecto, no esquema de pensamento do
jornalista emigrado o papel determinante na regeneração política do país.

Teses e Métodos de Hipólito da Costa

Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, nas páginas


do Correio Braziliense, que editou em Londres, irá denunciar, com
assinalável capacidade crítica, o obscurantismo, o poder discricionário,
a arbitrariedade e a injustiça, que via instalados na sua pátria.
Manejando com à vontade um conjunto de preceitos fundamentadores
da liberdade, desde conceitos da escola racionalista de direito natural até
princípios teóricos do constitucionalismo histórico europeu, procurará
Hipólito da Costa transmitir aos seus leitores a seguinte convicção:
o estado de decadência a que Portugal tinha chegado, no plano político
(aquele que mais o preocupava), e também no plano económico,
tinha como causa o despotismo coonestado pela monarquia absoluta.
O remédio para o coma político seria uma regeneração que se deveria
empenhar em: restringir a autoridade ilimitada dos governantes;
assegurar a liberdade de expressão de pensamento; restabelecer a
balança de poderes, contendo dentro de justos limites cada um dos corpos
do Estado; garantir, numa situação de reestatuição de Cortes, ampla
liberdade à assembleia legislativa da nação.
No estudo que faz de instituições e princípios do direito público
português, usa o método de comparar essas normas e instituições
com modelos, virtualmente similares, do constitucionalismo britânico,
parecendo não duvidar de que os antigos portugueses tivessem já usufruí­
do de uma consti tu i cã o(76).

(76) Vide Correio Braziliense, Londres, voi. Ill, Ago. 1809, p. 175 ss.; Correio Brazi­

liense, Londres, vol. Ill, Set. 1809, p. 303 ss.; Correio Braziliense, Londres, vol. Ill,

615
Revista de Historia das Ideias

Pensa Hipólito da Costa que um conhecimento mesmo superficial da


historia seria o suficiente para demonstrar que o espírito de liberdade
e o culto da cidadania se extinguiram na razão directa do avanço da
arbitrariedade política.
Um governo que não tolera a livre formação de opinião e a livre
expressão do pensamento, afiança Hipólito, comete um atentado contra
a consciência humana e avilta a sociedade.
Qualquer governo está sujeito ao erro, à corrupção e à inépcia.
Por isso, a denúncia, controlo e correcção das arbitrariedades dos
governos despóticos, só possíveis dentro de um quadro de liberalismo,
merecem todo o empenho do jornalista:

"Eu não empreendo o panegírico mas a justificação da Constituição


Portuguesa. E, portanto, não deixarei de confessar os defeitos, quando
os houver, assim como intento mostrar-lhe as perfeições. A obscuridade
em que agora se acha a nação Portuguesa, decerto, não é devida à
pequenez de seu território; e se as minhas multiplicadas ocupações me
permitirem continuar esta série de ensaios, não só mostrarei, que os
antigos Portugueses estabeleceram uma constituição assaz sábia, e bem
calculada, para fazer prosperar o Estado, mas que, em consequência
disso, fizeram uma figura no Mundo tanto ou mais brilhante do que a
maior parte dos Estados da Europa, que se lhe avantajavam em território,
e população; e os nomes Portugueses que ainda conservam inumeráveis
portos, rios, ilhas, e mares do oriente, são um padrão das vitórias dos
portugueses, que só um céptico poderia pôr em questão.
O mais leve conhecimento da história portuguesa será bastante para
mostrar, que o espírito público, e até o valor da nação se foram extinguindo
à proporção, que a ignorância e o despotismo solaparam a liberdade dos
Portugueses. O despotismo favorece sempre a ignorância; esta é o único
apoio do despotismo; porque a força está da parte da multidão, e só as

Out. 1809, p. 371 ss.; Cf. Blackstone, Commentaries on the laws of England, t. I,
p. 125 ss.; De Lolme, Constitution de l'Angleterre, ou état du gouvernement anglais
comparé avec la forme républicaine et avec les autres monarchies de l'Europe, t. II, p. 239
ss.; Mey, Maximes du droit public françois, tirées des capitulaires, des ordonnances du
royaume et des autres monuments de l'histoire de France, 1.1, pp. 19-20; D'Holbach,
La politique naturelle ou discours sur les vrais principes du gouvernement, 1.1, p. 91.

616
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

nações erradas, e prejuízos fomentados pelo mesmo despotismo, é que


podem conter em sujeição abjecta essa multidão, que possui o poder físico.
Mas deixando à parte as noções meramente especulativas, e teóricas
de governo, reduzindo esta matéria a certos pontos essenciais, tomarei
em cada um deles um período na história de Portugal, e o compararei
com o seu correlativo na de Inglaterra; depois mostrarei os progressos de
declinação em uma parte, e os de perfeição na outra; trazendo a história
destes pontos de direito público, enquanto eles forem susceptíveis disso,
até aos tempos em que vivo; sendo, como sou, testemunha da grande
prosperidade de uma nação, e da quase aniquilação da outra.
Há também alguns pontos de direito particular, que merecem ser
examinados, juntos com os de direito público; já pela sua íntima conexão
com os princípios da constituição política, já pela influência que tem, no
gozo da liberdade individual; e estes serão tratados, da mesma maneira,
historicamente,,(77).

A monarquia portuguesa tinha, segundo Hipólito da Costa, na sua


origem, um pacto do rei com o povo, em que uma assembleia política,
que seria o conclave de Lamego, reconheceu como rei D. Afonso
Henriques. No entanto, Hipólito não consegue ser claro e inequívoco
quanto ao problema da definição e limites do poder régio.
Sustenta a ideia de que o seu poder tem uma origem consensual
e de que, por conseguinte, se é titular de direitos é também titular de
obrigações.
Obrigações essas que ultrapassam o plano ético, no sentido de que
têm, seja tácita seja expressamente, uma configuração jurídica.
Julga certo que a existência e funcionamento de cortes em Portugal,
ao longo da sua história, denota limitação da forma absoluta de governo:

"Souberam os antigos Portugueses combinar as suas instituições


políticas de maneira que puseram barreiras legais ao poder mais forte,
que é a autoridade suprema; e tiveram a felicidade de encontrar Monarcas
de assaz probidade, para cooperar, com os povos, no estabelecimento e
mantença dos direitos nacionais. 77

(77) Correio Braziliense, Londres, vol. Ill, Ago. 1809, p. 177 ss.; Cf. Génio
Constitucional, n° 11, pp. 1-2,13 Out. 1820.

617
Revista de Historia das Ideias

É o fim a que me proponho, nesta série de ensaios, o mostrar, que


os Portugueses devem estar satisfeitos com a forma de Governo que
possuem; porque ela não só é boa, mas até é superior à maior parte
das outras que existem na Europa. Para melhor o demonstrar tratei de
fazer o paralelo da constituição portuguesa com a inglesa, porque esta
é reconhecida pela melhor; e se eu mostrar que a portuguesa ainda a
excede, em muitos pontos, parece-me que tenho conseguido o provar
que os Portugueses devem amar a sua Pátria, como aquela que é capaz
de os fazer felizes, e não prestar ouvidos a essa facção de reformadores
franceses, que não fazem senão acumular misérias, sobre as nações, que
têm a infelicidade de os ouvir.
Os direitos que sempre gozaram as Cortes da nação, e que os Reis de
Portugal cuidaram sempre de defender e conservar, faz o objecto deste
número dos meus ensaios.
Os Reis de Portugal concordando com a nação na promulgação de leis,
que só tendiam a limitar o poder dos grandes e poderosos, sem exceptuar
nem o monarca, mostraram que eram Portugueses de coração, e que se
um tal Rei era o primeiro português por sua alta dignidade, devia ser
respeitado como o primeiro cidadão por suas virtudes cívicas, obrando a
benefício de seus compatriotas. Sem dúvida se achará isto, examinando
a constituição das Cortes, em Portugal, sua origem e poderes.
A primeira ideia de Cortes, e de parlamento inquestionavelmente se
deduz das Nações do Norte da Europa, que se estabeleceram em Portugal,
e em Inglaterra. Em nenhuma daquelas nações costumavam os povos
entregar ao seu primeiro magistrado, chefe, ou Soberano, todo o poder
de governar, sem reserva ou restrição. Era costume de todos estes povos
congregar-se em assembleias, onde se discutiam, e decidiam os negócios
de maior importância para a nação; não se confiando jamais, nestes casos,
de um só homem, o qual pode suceder, que obre contra o interesse dos
povos e venha o mal, a ser depois irremediável"(78).

Assinala ainda Hipólito da Costa, que em Portugal, ao contrário do


que sucedeu em Inglaterra, nunca os povos tiveram o cuidado de reduzir
a escrito declarações formais que tornassem claros e indisputáveis os
direitos que, quando reunidos em cortes, lhes pertenciam. Nesse sentido,

(78) Correio Braziliense, Londres, vol. Ill, Set. 1809, p. 306. Cf. Pereira do Carmo,
D.C.G.E.N.P., Lisboa, vol. I, n° 13,1821, pp. 79-80.

618
O Vintismo - Historia de uma Corrente Doutrinal

observa que, "não obstante estes exemplos do poder das Cortes em


Portugal, de que o Parlamento em Inglaterra não produz maiores provas,
são os direitos das cortes disputados, mal interpretados ou negados
pelos aduladores, e parasitas; não por outra razão senão porque,
em Portugal, não cuidaram em passar a escrito, como se fez em Inglaterra,
estas resoluções e declarações supremas de toda a nação, que, abaixo
do direito natural, formam a mais respeitável autoridade, que pode
prescrever limites à liberdade natural do homem,,(79).
Como se torna evidente, pensa Hipólito da Costa que a autoridade
ilimitada do monarca era em Portugal uma tendência ao revés das tradi­
ções históricas pátrias. As antigas gerações teriam definido instituições
políticas livres e fundadas no respeito dos interesses dos povos, podendo
assim falar-se de constitucionalismo e contenção do poder régio.
Movendo-se pelo propósito de promover um governo representativo,
assegurar a liberdade da nação, garantir os direitos dos povos, preservar
a dignidade do trono, Hipólito da Costa reafirmará sempre que é nas
instituições portuguesas pretéritas, lidas com acomodação à dialéctica
da história, que se acham os melhores alicerces para a reconstrução
liberal do país79 (80).
Em suma, para Hipólito da Costa, os portugueses, atingidos na
época moderna por uma perversão do poder monárquico a que chama
despotismo, ao invés de procurarem a regeneração da Pátria na razão
filosófica, que poderia abrir caminho a um governo popular (o que,
em absoluto, lhe desagrada), devem procurar na razão histórica o melhor
e mais sólido esteio para a edificação de um Estado constitucional.

(79)Correio Braziliense, Londres, vol. Ill, Set. 1809, p. 307 ss.. Cf. O Portuguez

Constitucional, n° 27, 23 Out. 1820, pp. 1-2. Vide Burlamaqui, Principes du droit de
la nature et des gens, 1.1, pp. 2-3.
m Correio Braziliense, Londres, vol. Ill, Out. 1809, p. 371 ss. Cf. O Patriota,

n° 3, 29 Set. 1820, pp. 1-3.

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