Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
GALVÃO DE SOUSA
DO MESMO AUTOR
E A
Política e Teoria do Estado, São Paulo, 1957 (Edição Saraiva)
Verfassungsrechtsentwicklung in Brasilien, Tübingen, 1958.
ELABORAÇÃO
Perspec,tivas históricas e sociológicas do direito brasileiro, São
Paulo, 1961.
Introdução à História do Direito Político Brasileiro, 2.11, edição
1962 (Saraiva).
O Brasil no Mu11do Hispâ11z'.co, São Paulo, 1962. LEGISLATIVA
Legalidade e Segurança· Nacional, São Paulo, 1962.
Socialismo e Corporati1,ismo em face da Encíclica Mater et Ma.
gistra, Petrópolis, 1963.
Capitalismo, Socialismo e Comunismo, São Paulo, 1965.
Raí:;es históricas da crise política brasileira, Petrópolis, 1965.
Iniciação à Teoria do Estado, São Paulo, 1967 (}. Bushatsky -
Editôra).
Remarques sur l'idée de Constitution et la significatio.n sociolo
giqu.e du Droit Co.nstitu�ionnel, Tübingen, 1967.
SÃo PAULO
1970
UXORI DILECTISSIMJE
ALEXANDRA.
La maduración cultural de un pueblo se realiza
en un lento predominio del derecho escrito sobre la
costumbre, de la unidad o la estructuración sobre
el localismo tribal, del plano teórico sobre la pura
adaptación al medio. Sin embargo, también en este
orden la salud consiste en una tensión y equilíbrio
entre lo ideal y lo real, en una permanente toma
de contacto con la realidad en la que no se abstrac
tice el saber ni se reduzca la vida y las relaciones
de los hombres a esquematismos artificiales e in
fecundos. AI modo como la virtud es en el hom
bre una tensión y armonía de sus facultades, así
también la sana vida de los pueblos debe siempre
apoyarse en las realidades concretas de la agrupa
ción local o profesional y en los límites y dimensio
nes creados por la historia y la tradición.
Rafael Cambra
1
'\
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Surgindo de uma transformação do direito consuetudinário, suas portas e janelas abertas para os ventos ideológicos da época.
as primeiras leis, na generalidade dos povos, representam uma Dava-se grande crédito ao poder transformador das leis, sem
continuidade histórica, tal qual ocorre com o costume. Desde levar devidamente em conta as tradições e os costumes. A pleto
as sociedades mais antigas, as grandes codificações têm raízes ra da lei fazia lembrar o dito de Tácito: corruptíssima: re publica
na história. Eminentemente histórico é o direito romano, desde plurimae leges. E o abstracionismo sobrepunha-se ao sentido da
as suas manifestações primitivas até à fase áurea assinalada pela historicidade do direito.
ação do pretor, mantendo-se êsse mesmo caráter na obra dos Para isto contribuíram também as concepções racionalistas
grandes jurisconsultos e na codificação justinianéia. As nações do direito natural, difundidas já no século XVII e que haveriam
constituídas ao longo da Idade Média oferecem-nos o espetáculo de provocar mais tarde a reação da escola histórica e do positi
de um grande respeito à tradição, sem que a uniformidade das vismo jurídico.
sistematizações legislativas venha impedir as variedades resul Foi sobretudo nos domínios do direito público - e particular
tantes da fôrça do localismo, dando origem não só a usos e mente do direito constitucional - que se fêz sentir a influência
costumes mas ainda a normas de direito escrito, caso êste bem das ideologias, desviando as instituições jurídicas da sua linha
expressivo no direito foraleiro, entre os povos da península ibérica. de formação histórica. E compreende-se que assim tenha sido,
A centralização operada na fase das n10nfü·quias absolutas, dadas as relações entre o direito constitucional e os aconteci
com a tendência para uma uniformização maior das normas de mentos mais relevantes da vida política, mais diretamente sujei
direito, não chegou a privar estas mesmas normas das suas raízes tos àquela influência.
históricas. Fato bastante significativo, e que vem a propósito No Brasil, como em vários outros países, pode notar-se um
lembrar, foi o ocorrido após a anexação da Alsácia à França, contraste entre o desenvolvimento do direito privado e o do direi
exatamente quando o absolutismo chegava ao climax com Luís to público. Ao contrário de nossas Constituições políticas, o
XIV. Pois a recomendação feita então por êste soberano, no nosso Código Civil reflete as condições do meio ambiente e
reconhecimento de uma legítima autonomia regional, condensou respeita o direito tradicional, não obstante críticas que lhe pos
�se nestas palavras cuja _transcrição dispensa qualquer comentário: sam ser dirigidas neste sentido. Lacerda de Almeida - em
il Jaut ne point toucher aux u.sages du. pay s d' Alsace. artigos publicados pelo fornal do Comércio e reunidos posterior
A partir do século XVIII a influência do elemento ideológico mente no volume intitulado O Código Civil visto por alto -
foi crescendo na política européia. A Revolução francêsa fazia-se denunciou a infiltração, no Código, de princípios individualistas
em nome de abstrações, iniciando a era dos slogans. A liber avessos à formação nacional. Ainda assim prevaleceu a fideli
dade revolucionária, suprimindo as liberdades concretas das dade à tradição, de se notar na concepção do casamento, na
comunidades locais e dos grupos profissionais, preparava o terre regulamentação da propriedade e mesmo no direito das obriga
no para a massificação da sociedade e para a centralização esta ções. As Ordenações do Reino - vigentes ainda entre nós
tal. A igualdade perante a lei, proclamada com ênfase, não quando em Portugal não eram mais do que uma reminiscência
impedia a formação do grande capitalismo, acentuando cada vez histórica - não deixaram de ser a principal fonte do Código.
mais a diferença de nível ele Yida entre as classes sociais. E o E se da legislação passarmos para a doutrina havemos de verificar
princípio da soberania do povo, inscrito no preâmbulo das cons igualmente entre os nossos civilistas uma inspiração no direito
tituições, significava teàricarnente a transferência do poder histórico, bem diversa da fascinação exercida sôbre os constitu
supremo do monarca para a coletividade enquanto, de fato, quem cionalistas do Império pelo liberalismo doutrinário francês e sôbre
o passava a exercer eram pequenas minorias manipuladoras da os da República pela organização política dos Estados Unidos.
opinião pública. É bem de ver que afirmar a historicidade do direito não
Com tudo isso a política legislativa não podia deixar de ser significa assumir uma posição de conservadorismo estático, nem
também alterada. As constituintes e os parlamentos tinham as tampouco negar que o direito deva ser um elemento propulsor
E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 17
16 A HISTORICIDADE DO DIREITO
da dinâmica social e do progresso. Pelo contrário, o verdadeiro do subjetivismo do pensamento moderno e da prevalência das
progresso só pode dar-se mediante o aperfeiçoamento humano e modas ideológicas sôbre o senso histórico.
social, que uma ruptura com o passado impossibilitaria, pois nos Passa-se com o direito o mesmo que com a arte. Reduzindo-o
privaria das contribuições legadas pelo esfôrço das gerações que ao fato e ao texto da lei, o positivismo jurídico é comparável
nos precederam, ao qual devemos somar o nosso, na marcha da ao naturalismo que se cinge a imitar a natureza. Não restam
civilização. ao positivismo senão critérios meramente utilitários para inspirar
Se o progresso técnico se faz freqüentemente por substituição a elaboração legislativa, fazendo desaparecer, com a negação do
- devendo notar-se, porém, _ que as inovações resultam de expe fundamento transcendente da ordem jurídica, a própria idéia de
riências anteriores e de conquistas a nós transmitidas antes de justiça. E o racionalismo jurídico, deduzindo more geometrico
serem superadas - no concernente à vida social e às instituições de princípios abstratos a norma legal, lembra as formas extra
as transformações mais fecudas são aquelas que resultam de uma vagantes da arte moderna desvairadamente subjetivista, a culmi
adaptação feita com sabedoria e prudência. narem na arte abstrata de nossos dias. A inspiração do artista
A sabedoria deve c-Jnduzir o legislador a colher as lições e a prudência do legislador defrontam-se, cada qual a seu modo,
da história, "mestra aa vida" e "política experimental". A pru com realidades que lhes importa respeitar e não lhes é lícito des
dência legislativa consiste principalmente em prever, em anteci truir ou mutilar a seu gôsto. Se a norma de direito em si
par-se a situações futuras, em medir as conseqüências de determi mesma é abstrata, ela deve ser elaborada tendo em vista as condi
nadas prescrições. Agindo desta forma o legislador manifesta ções da sociedade concreta à qual vai aplicar-se e as do momen
consciência não apenas do passado histórico, mas também do to histórico de sua feitura.
momento histórico em que viYe. A missão do legislador é traçar normas de caráter geral,
Aliás a história não deve ser considerada simplesmente um sem ter em vista casos particulares. O contrário ocorre com o
retrospecto do passado, um museu de antigüidades. Mais ainda, juiz, a quem cumpre dizer o direito em cada caso singular que
é a própria vida, é a tradição que vai passando de geração em 1he é apresentado. Por isto mesmo, a sentença - aplicando a
geração, de tal maneira que se nós somos o que somos é em norma de caráter genérico - é uma disposição individualizada
virtude da herança histórica que recebemos. É a nossa vida e concreta.
antes de nós, no dizer muito expressivo de João Ameai, cumprin Mas o juiz <leve observar a lei e, acima de tudo, orientar as
do acrescentar: é a vida que continua conosco. Não foi em vão suas decisues pelos pr111c1pius universais de justiça, isto é, prin
que o Padre Antonio Vieira chegou a escreYer a história do cípios de máxima generalidade. Por sua vez, o legislador, em
futuro! bora lhe caiba iormular preceitos num plano abstrato, não pode
Daí não cabe, no entanto, concluir que seja a história uma deixar de atender à realidade concreta do meio social em que as
espécie de entidade metafísica, segundo a consideram aquêles leis vão ter vigência.
que dela fazem uma fôrça misteriosa a impelir de modo fatal a Assim o abstrato e o concreto no direito não se excluem,
evolução da humanidade. Tnl concepção, delinenda no século antes se conjugam tanto na atividade legislativa como na juris
passado por pensadorPs e-orno Marx, Comte e os e,·olucionistas. dicional. .Para ser justa, a decisão judiciária deve estar vincula
é a do progrPssismo ele nossos dias, ensinnndo que a suprem� da a um preceito que é abstrato. 1: para ser aplicável, a norma
sabedoria co11sislP em deixar-se leYar passivamente pelo "movi legal abstrata supoe da parte do legislador o conhecimento dos
mento da história". elementos concretos em função dos quais deve ser formulada.
O autor da presente monografia rejeita liminarmente êsse Numa ação reivindicatória, por exemplo, a sentença reconhe
historicismo radical, e procura esclarecer o wrdadeiro significado
ce ser determinada coisa de alguém uma vez provado tratar-se
da historicidade do direito na formação e no desenvolvin��nto das
sociedades políticas, em oposição ao abstracionismo jurídico, fruto do legítimo proprietário. Ou seja: aplica, num caso concreto, o
18 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 19
princípio de justiça segundo o qual se deve dar a cada um o longa tradição padecem também na atualidade uma crise institu
que é seu. cional. A explicação desta crise pode ser dada por causas rela
Quanto à atividade legislativa, um exemplo podemos encon cionadas com fatos históricos de repercussão universal: as guer
trar na legislação reforente às locações de imóveis u,rbanos. ras, as revoluções, as transformações da era tecnológica ou a
Normas distintas se estabelecem para os casos de locação comer explosão demográfica. Entre tais causas cumpre colocar as
cial ou residencial, e os critérios adotados pelo legislador numa legislações inadequadas às condições efetivas e à formação tradi
época de grande estabilidade econômica não servem para os cional dos povos a que se destinam.
períodos de desvalorização monetária. Além disso é preciso levar Donde a importância do tema em tôrno do qual - segundo
em conta os costumes ou práticas sociais correntes, como as rela o enunciado no título desta monografia - algumas breves consi
cionadas com a sublocação, a transferência de locatário, o paga derações se reunem nas páginas seguintes.
mento de luvas e outras. A consideração dos casos concretos
sugere o preceito legal abstrato, traduzindo-se neste um princípio
de justiça ou uma norma Je segurança em têrmos que à prudên
cia do legislador compete formular devidamente.
No mesmo sentido podemos observar que as reformas
agrárias, ensaiadas em vários países, pecam muitas vêzes por
estabelecerem um mesmo padrão legislativo para regiões bastante
diversificadas umas das outras, quer pelo grau de desenvolvimento,
quer pelo tipo de cultura agrícola ou pastoril dominante em
cada uma.
Nos domínios do direito público tem sido freqüente a elabo
ração de leis em antagonismo com as realidades históricas. É
o caso, entre tantos outros, do regime federativo no Brasil, im
plantado afoitamente e sem corresponder ao desenvolvimento
orgânico da sociedade, contràriamente ao que se deu nos Estados
Unidos ou na Suíça.
O direito penetra cada vez mais a vida humana. Os Esta
dos modernos regulamentam uma série de atividades exercidas
outrora à margem da disciplina legal. Do nascimento à morte
estamos cercados de normas jurídicas que dispõem sôbre particula
ridades do proceder de cada um de nós. Assim o direito está
presente nos mais variados momentos de nossa existência. E
por isso mesmo paradoxal que as legislações se achem, por vêzes,
tão afastadas da realidade e num conflito com a vivência histórica
das sociedades.
Esta situação não é apenas a de novos Estados que surgem
inopinadamente, como acontece hoje no continente africano, onde
se adotam com sofreguidão os padrões dos Estados nacionais do
Ocidente, aplicando-os a sociedades ainda em fase de organização
tribal. Nações com a sua ordem jurídica sedimentada numa
Capítulo I
SOCIEDADE, DIREITO E IIISTóRIA
1. O homem e a sociabilidade.
2. A historicidade humana.
3. A historicidade do direito.
4. Antagonismo entre o direito e a história.
5. Permanência e renovação na vida do direito.
!
!
li
;
Capítulo I
sôbre as formigas ou as abelhas, as suas observações haveriam Por outras palavras, a natureza humana está aberta para
de coincidir com as do famoso entomologista francês Fabre, a história, e o homem, embora não seja um mero produto do
relatando no século passado a vida dos insetos, ou ainda poste meio, muito deve, na maneira de ser individual e concreta, ao
riormente com as de Maeterlinck. Há, nos agregados animais, momento histórico em que vive, ao ambiente no qual cresce
uma fixidez que contrasta com a pluralidade de formas dos e é educado, como também ao atavismo, que o prende aos ante
agrupamentos humanos. Os animais não são suscetíveis de passados mais remotos.
progresso, nem de história. Só podem ser objeto da história Daí a importância da tradição na vida dos homens e das
natural. sociedades. Todo homem é uma tradição acumulada, e pres
cindir da tradição seria o mesmo que renunciar à memória.
2. As variações das sociedades, no tempo e no espaço, Mas cada um de nós mantém em si algo de incomunicável e
decorrem da liberdade, elemento sem o qual não podemos profundamente pessoal, que muito longe está de poder reduzir
explicar a ação dos homens na formação das sociedades. E -se ao reflexo de uma pretensa consciência coletiva.
justamente em virtude dêste elemento - o livre arbítrio, ine Não há um homem igual a outro, nem no físico, nem no
rente aos sêres de natureza racional - pecam pela base as psíquico. Cada qual é um ser distinto e irredutível na cadeia
interpretações que pretendam enquadrar a história em esque das gerações, porém não pode ser integralmente compreendido
mas de cunho determinista. As sociedades formam-se, progri fora da seqüência dessas gerações e dos acontecimentos de que
dem ou entram em declínio sem que as fases do seu desenvol participa ou tem notícia.
vimento se apresentem de um modo necessário e uniforme. Nestes têrmos, dizer que o homem é um ser histórico não
Sendo racional, livre e sociável, o homem é conseqüente implica a aceitação do historicismo, se por tal expressão enten
mente um ser histórico. Desde logo vemos, pois, que a histo dermos os sistemas filosóficos que sustentam a existência de
ricidade humana não se opõe à afirmação de uma natureza ou fôrças imanentes no mundo real, a presidirem o desenvolvi
essência comum a todos os homens e invnri,ívcl no longo da mento do homem e das coisas, daí decorrendo a negação de
história, em ambientes e condições diferentes. O que podemos uma essência humana supra-histórica (2) .
dizer é que esta natureza se concretiza nos indivíduos em um
determinado meio histórico, de que os homens são tributários,
aí recebendo os elementos de formação pessoal ele tifo grande segundo a qual a tendência intelectual reage perante determinados ·
importância na constituição elo caráter ( l) . motivos" (Psicologia e:cperimentol, E. Subirana S.A., Barcelona, 1952,
p. 360). Quanto ao temperamento, concerne ao organismo, signi
ficando a energia do tonus vital, a harmonia ou discórdia das ativi
(1). O homem é um ser inteligente e livre. A racionalidade é dades vitais (:'llalapert, apud Palmés). Na caracterologia contempo
o elemento que o constitui essencialmente, distinguindo-o dos demais rânea, o têrmo caráter é usado para designar o complexo unitário
sêres. Tal é a sua natureza, considerada como expressão da essên de formas da vida psíquica, que dá ao comportamento de alguém
cia metafísica. Mas o homem completo, na sua essência física, um traço ou modo de ser particular, uma estrutura resultante da
compreende outros predicados: é livre, capaz de se admirar e de ação recíproca do indivíduo e do ambiente.
rir, capaz de transformar as coisas exteriores e inventar coisas (2). Na linha do idealismo germânico, o historicismo chega
(homo faber), sociável, inclinado a brincar e a jogar (homo ludfn.,), ao ponto culminante com Hegel. Da filosofia hegeliana origina-se
histórico. A essência física, por sua vez, realiza-se nos homens de o materialismo histórico de ;\larx, con.iungando-a com o materialis
maneira diferente e peculiar a cada um. Os psicólogos distinguem, mo de Fcuerbach. O neo-iclealismo encontra na Itália seu máximo
na individualidade humana, o 11a/11ral, o caráter e o temperamento. representante em Croce, para quem a história é o desenvolvimento
Diver1:cm quanto à definição dêstes conceitos, sendo que para LA do espírito, que compreende tôda a realidade. Entre outras mani
VAISSIJ'::RE e PALi\lí::S o natural é o "conjunto de disposiç.ões nativas festações do historicismo, as posições relativistas de Dilthey e Spen
que inclinam o apetite intelectual a reagir de tal ou qual maneira gler contrastam com as de Troeltsch e l\Ieinecke, que afirmam a
perante determinados motivos" e o caráter é a "disposição habitual transcedência de Deus sôbre a história.
26 A HISTORICIDADE DO DIREITO
3. As mesmas considerações sôbre a historicidade do Afirmar a historicidade do direito não é, pois, necessària
homem podem aplicar-se à historicidade do direito. O fato de mente, sustentar o historicismo relativista, que caracterizou em
reconhecermos no direito algo de concreto, que se realiza na parte a reação levada a efeito, na centúria passada, contra o
vida dos povos dentro das condições que lhes são peculiares, apriorismo ou abstracionismo anti-histórico do pensamento ilu
não acarreta de maneira nenhuma a negação de valores absolu minista (4).
tos pressupostos pela ordem jurídica positiva. Assim, a idéia
de direito natural está muito longe de se opor à da formação 4. Sob a influência de tal abstracionismo, a Revolução
histórica do direito, a não ser em certas modalidades que assu de 1789 rompeu com o direito histórico, e essa influência se
miu sob a influência do racionalismo posterior a Grócio. As irradiou pelos demais países nos quais penetraram os princípios
críticas feitas ao direito natural pelos adeptos do positivismo revolucionários. A crise do direito, em nossos dias, prende-se
jurídico procederam de um grande equívoco, sôbre o qual não a êsse antagonismo entre as fórmulas legais e a realidade social,
é preciso insistir, pois êste tem sido suficientemente desfeito
a qual é inseparável da história. No dizer de Julián Marías,
por numerosos autores (3).
«a história se encontra no próprio seio da sociedade, e esta só
Mérito indiscutível da escola histórica, no século XIX,
foi chamar a atenção dos juristas para a formação orgânica da historicamente é inteligível» (5). O individualismo jurídico,
sociedade e do direito, em oposição ao jusnaturalismo raciona proveniente da Revolução, e o coletivismo dos Estados totalitá
lista e às concepções individualistas oriundas da «filosofia das rios partem de uma concepção de sociedade em que se prescin
luzes» do século XVIII. Mas daí a negar a existência de de da experiência histórica, suscitando assim aquêle antagonis
princípios universais, que constituem o fundamento do direito mo entre o direito e a vida.
positivo, vai um passo muito grande. No campo do direito constitucional o abstracionismo jurí
dico tem produzido os mais devastadores efeitos. Isto se deve,
em grande parte, ao papel desempenhado pelas ideologias na
(3). Obra que definitivamente esclarece o assunto é a de H.
ROMMEN, Die ewige Wiederkehr des Naturrechts. Em tradução vida dos povos, do século XVIII em diante. Constituições,
francesa: Le Droit Naturel. Histoire. Doctrine. Egloff, Paris. O destinadas a ser a lei fundamental na organização de uma
problema do direito natural cm face da historicidade do direito foi sociedade, tornaram-se instrumentos de desorganização, pela
suscitado por J. J. BACHOFEN cm sua aula inaugural de 7 de violacão da ordem natural e pelo desrespeito à formação histó�
l\Iaio de 1841 na Universidade de Basiléia (El derecho natural y el
derecho histórico, tradução e introdução de Felipe González Vicen, rica. , É verdade que em nossos dias, segundo tem sido notado,
Instituto de Estudios Políticos, Madrid, 1955). Cumpre não esque
cer o livro de Sil'IION DEPLOIGE, Le conflii de la morale et de la
sociologie, Paris, Nouvclle Librairic Nationale. Mais recentemente, (4). As expressões apriorismo e abstracionismo são empregadas,
além de outros, L. STRAUSS, Natural Right and History, The Uni em sentido pejorativo, para indicar abusos de processos normais do
versity of Chicago Press, 19f>2. Finalmente, veja-se nos Anales de pensamento, em si mesmos legítimos. Assim, quanto ao abstracio
la Cátedra "Francisco Suárez", da Universidade de Granada, (Julho nismo, eis corno o conceitua LALANDE, no Vocabulaire technique et
Dezembro 1964), o estudo, com ampla bibliografia, de JOSE DELGA critique de la Phi/osophie: "A). Abuso das abstrações. B). Es
DO PINTO, Derecho. Historia. Derecho Natural. Reflexiones acer pecialmente, em \V. James (que parece ter criado esta palavra)
ca dei problema de la oposición entre la e.xistencia de[ Derecho tendência a tornar as abstrações pelo equivalente das realidades
Natural y la histo.ricidad de los Ordenes Jurídicos. A propósito e concretas de que elas conservam um certo aspecto somente. Ver
elegantemente, ROLAND MASPÉTIOL: "Não há nenhuma contradi The mea�ing of tr11tl1, cap. XIII". Sôhre os diversos sentidos do
ção em conceber o direito ao mesmo tempo corno imergido na histó "concreto" e do "abstrato" em geral e particularmente no direito;
ria e corno portador de urna seiva eterna animando as constantes KARL ENGISH, Die Idee der konkretisierung in Recht und Rechtswis
de seus revestimentos temporários" (Resposta ao inquérito Qu'est-ce senschaft unserer Zeit, Carl \Vintcr, Heidelberg, 2." ed., 1968.
que la philosophie du droit? em Archives de Philosophie du Droit, (5). JULIÃN MARíAS, La estructura social, Sociedad de Estu
Sirey, tomo VII, 1962, p. 138). dios y Publicaciones, :Madrid, 1955, p. 32.
28 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 29
parece que estamos assistindo ao crepúsculo das ideologias. operadas na legislação em função das transformações sociais,
Nem por isso os efeitos conturbativos dos sistemas abstracio a sistematização legislativa através dos códigos e também as
nistas de idéias deixaram de se fazer sentir, sendo particular inovações resultantes dos movimentos revolucionários. Assim
mente perceptíveis nas crises políticas e econômicas. como a natureza não procede por mutações súbitas e violentas
As normas jurídicas em discordância com a formacão do - natura 11011 facit saltus - da mesma forma as leis tanto
povo para o qual são elaboradas suscitam o conflito ;ntre o mais eficazes se mostram quanto mais adaptadas aos costumes,
direito abstrato e o direito histórico, entre a Iccralidade e a observarido, em suas alterações, uma linha de continuidade
legitimidade ,entre o Estado e a Nação.
b
hi�tórica da qual resultam a estabilidade e a ordem, o que
A sociedade política, que no mundo greco-romano foi a ev1dentement não quer dizer estagnação.
Cidade e depois o Império, assume atualmente a feicão do . O direito nasce de fatos ocorridos entre os homens ou que
Estado nacional. Por sua vez tem sido êste enquadrado nos interferem nas relações humanas. Ex facto oritur ius. Con
moldes do Estado de direito, cujo significado essencial está seqüe1:te;:1ente é algo de concreto, e não um produto cerebrino,
na subordinação dos governantes a uma ordem normativa de uma ideia pura, embora naqueles fatos estejam encarnadas
justiça, consubstanciada no regime constitucional. idé�as que movem_ o homem, ser racional, e o impelem à ação,
Quando fundado numa concepção meramente legal ou cohmando determinados fins.
racional da legitimidade - segundo a terminologia de Max Sendo o direito um elemento imprescindível à vida social
Weber - o Estado de direito torna-se algo de desentranhado e dado o cunho histórico das sociedades civis ou políticas na;
quais a ordem jurídica positiva alcança maior grau de f�rma
da realidade. A estruturação constitucional da sociedade e do
lismo e coerção, segue-se que essa historicidade deve existir
poder deve ser empreendida levando-se em conta os dados da também no direito. Surge êste, nas sociedades por êle disci
realidade social e o desenvolvimento histórico do direito. Tal plinadas, como um fator de conservação, ordem e estabilidade,
afirmação pode pm-ecer um truísmo sem maiores conseqüên
mas ao mesmo tempo de desenvolvimento e progresso. Per
cias, mas o fato é que, perante a crise do senso comum rei manência e variação, vetera et nova, de tal maneira que não
nante no pensamento· jurídico-político de nossos dias, nunca se deve dizer que o jurista, pela formação do seu espírito, seja
é demais insistir em certas verdades elementares e por vêzes apen�s um elemento conservador, pois lhe cumpre também,
esquecidas (6).
especialmente no campo da doutrina e enquanto legislador,
traçar diretrizes para o futuro, sentindo a sua época e pressen
5. A vida do direito é a sua história, isto é. os fatos que tindo a marcha dos acontecimentos. Mais do que um conser
lhe dão ori�em, a gênese consuetudinária da norma jurídica, vad�r '... devemos considerar o jurista um homem a serviço da
o desenvolvimento gradual das instituições, as modificações trad1çao, tomando-se esta palavra no seu significado etimoló
gico (de traclere), como a entrega ou transmissão de um certo
(6). Ver �fARCEL DE LA BIGNE DE VILLENEUVE, La crise
patrimônio de cultura, compreendendo os valores dominantes
d 11 "Sens Co11'.rnun" 1"11-� lcs Scicnccs Sociales, Rccucil Sircy (cspc numa sociedade e que vão passando de geração a geracão. A
_
c1almcnte o livro primc1ro, capítulos II e IV). Quanto ao Esta J tradição inclui a idéia de progresso, e até mesmo é umi condi
ele direito do liberalismo, .\HTUHO ENHIQVE S.ÚIPAY. La cri.�i� ção sine qua 11011 para haver progresso, sendo êste impossível
dei E.�lado l!': Dercclw libcrnl-burgaés, Editorial Losada · S.A., Bue
nos A!rcs. Sobre a� formas de lcgilimicladc segundo �IAX ,vEBER s�� as_ aquisições dos que nos precederam, quer no domínio das
vcr cles�e autor W1rts�haft un<l Gesellschaft (tradução espanhola; c1encias e no das artes, quer no das relações sociais.
, _
Economra y Socreda<(, l•ondo de Cultu1·a Economico, llfcxico, vol. IV) A permanência resulta da continuidade histórica as varia
e JOHANNES WJNCI<ELMANN, Legitimittit und Legaliliit in Ma:r. ções ou as inovações significam a continuacão da' história
l".'eber Herschaf'fssozolouie, 1952, J.C.B. l\Iohr (Paul Sieheck) Tü-
bmgen. f:sses dois aspectos podem muito bem notar-s� na jurisprudên�
30 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 31
eia: o juiz, longe de ser um mero aplicador mecamco da lei, O j-.1rista, pois, em relação à história pode achar-se numa
exerce uma função renovadora e mesmo criadora, não só nos sit,.1ação mais passiva, e de receptividade, ou desempenhar um
países da common law, em que lhe cabe «fazer a lei» (juige pa:?el atívo e transformador. No primeiro caso, êle faz histó
made law), mas também nos de predominância legislativa. B ria, tom;:mdo-se esta como o conhecimento dos fatos passados;
certo que, ao dar a sentença, o juiz não tem podêres discricio no segundo caso, êle faz a história, isto é, contribui, dentro do
nários e não pode formular regras de caráter geral ou desco seu âmbito de ação, para imprimir um certo sentido ao desen
nhecer o direito vigente, mas tem uma liberdade de julgamento rolar do processo histórico (1 O) .
que se manifesta sobretudo em face das lacunas ou das ins·.1fi
ciências da ordem jurídica positiva (7) . Nos p3íses de tradi
ção romano-germânica o juiz está mais adstrito à lei, mas nem
por isso deixa de existir essa liberdade, qt:.e é a maior no sis
tema da common law (8).
Quando, para interpretar uma lei, procuramos conhecer
a intenção do legislador e as condições em que ela foi elabo
rada, temos um conhecimento de tipo histórico. E quando o
magistrado mitiga o rigor da lei CJm a eqüidade, ou alarga a
interpretação diante de condições novas ou de situações impre
vistas, então· êle se torna um agente da dinâmica social, que
aliás deve ser ordenada pelo direito. A palavra alemã Aii3le
gung diz bem desta ampliação interpretativa, e no mesmo sen
tido a técnica jurídica anglo-americana distingue a interpreta
tion da construction (9).
1. Direito e sociedade.
2. Da família à sociedade política.
3. A pluralidade de ordenamentos jurídicos.
4. Fontes do direito.
5. A noção de direito desfigurada no formalismo
legalista.
6. O meio social e as fontes formais do direito.
7. O juiz em face da lei.
8. A tarefa legislativa e os absolutismos modernos.
Capítulo II
A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAS SOCIEDADES
POLlTICAS E DO DIREITO
(1). Donde os aforismos ubi societas ibi ius e ubi ius ibi
societas.
36 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 37
sociedade gera a idéia elo direito como simples produto da Na tipologia das sociedades políticas - desde a tribo. a
_
vontade, através cio contrato (acôrclo ele vontades) e ela lei, mais elementar ele tôdas, até ao Estado nacional moderno, m
considerada uma expressão ela não menos hipotética vontade cluindo-se a aldeia, a cidade, a sociedade feudal e as diversas
geral. modalidades ck Império - cumpre ressaltar um característico
importante de cada uma dessas formações sociais. Trata-se
2. Sendo a família a primeira e a mais natural elas sempre de uma reunião ele grupos constituindo a sociedade
sociedades, a ordem jurídica que a rege decorre imediatamen global, que nunca é formm.ln diretaméntc por indivíduos des
te ela própria natmeza. A missi:ío elos cônjuges é assinalada vinculados de lacos anteriores cm círculos mais limitados. Por
pelas disposições peculiares ao respectivo sexo, e a autoridade outras palavras,, a sociedade política é uma sociedade ele so
cabe naturalmente a quem tais disposições indicam para a eiecl a eles.
chefia. Da mesma forma a finalidade principal do casamen Essa verdade elementar, posta de lado pelas modernas
to - a procriação - traz como conseqüência a dependência teorias contrntualistas, já era ensinada com simplicidade e cla
dos filhos em relaçã8 aos pais e o direito dêstes à educa.:;:ão reza por Aristóteles, no início de sua Política, ao mesmo tempo
da prole.
em que dirrnava a sociabilidade natural do homem.
Um conjunto de famílias vivendo no mesmo território e
acrescido de outros grupos que se vão conslituindo com' o Famílias, aldeias, cidades agrupam-se na paulatina consti
correr do tempo, forma a sociccl.'.ide civil ou no.lítica. tuição de uma socieelaele mais é1mpla que seja auto-suficiente
Estas duas expressões, afins pela origem ctimolócrica (de e cap:-iz de prover-se a si mesmJ, contribuindo para que todos
Civitas ou ,ró\t; ) , são empregadas por vêzes com idêntica
0
aquêles seus elementos rnmponen Lcs encontrem os meios dos
significação, mas há autores cujo critério adotado é o da distin quais precisam a fim de realizar os próprios objetivos.
ção. entre mnb:-i�,. . Consideram então na sociedade civil aquêle Quanto mais complexc1 a socied::ide - com o crescimento
, da população, o incremento chis relações socinís e o dese!wol
con1unto cli: familias e ele grupos de base territorial, profissio
nal ou ideológica, restringindo a sociedade política à superes vimento das ciências e das artes -- mai.s numerosos e vanaclos
trntma (jLTr: se estende por sôbrc tais agrupamentos, sem se são os grupos que se intercalam entre os indivíduos e o Estado,
confundi!' com tks e organizando-os através elo direito (2). quer se trate cio Estado-cidade cio mundo ílntigo, quer do
Estado-nação ele nossos dias.
(2) . . \ssilll, HOl..l'.·,D ).fASPf;'fIOL, cm La SociNé Poliliq11e et Tal é, sem düvida, o processo natural e orgânico de
/e Drnil, 11:diliuns '.l!ontrhreslien. No mesmo scnlido escrevia SO- formação das sociedades política:;. A cxpress5o «natural» não
1:TA;-.:o DE SOCI'..-\ em sens Princípios gPrais cil' Direi/o Público e é empregada aqui na mesma forma pcl,1 qual significa a ori
Conslit_ucional (18!!3): "'A socicd:u!e tem uma vida própria; em gem e a formação dos organismos vivos, seu crescimento, sua
:;cu sc10 se dcsen\'oh·em as ciências, as artes e as indústrias os
inslitutos de caridade. a religião, as relações de família e todo� os vida e sua morte. /\ organicidaclc soci:-il 6 um resultado da
uulros elcmcnlos essenciais ao mo\'imento ela associação humana. sucessão histórica, e em meio à diversificação das sociedades
- Nesse grancle concêrto social aparece também o Estado como políticas, das formas ele Estado e clc1s formas de govêrno, o
um instituto destinado a garnntir o desenvolvimento pac.Ífico e mesmo processo constitutivo sempre se observa. Não há so
harmônico da vida social; é um elemento externo, um coeficiente
extrín�cco que intel'\'ét:i, �Juc se justapõe no concêr!o social pela ciedade política sem que os indivíduos :;ejam nela integrados
necessidade de manter mcolumes a vida e o direito dos associados" através dos corpos intcr1Y1cdi,irios; se a socil '.chclc é. muito sim
(p. 63). Obser·va Jellinek que o Estado é uma forma de sociedade ples, através apenas elas famílias, como ocorre com as ti-ibos
que gera, por sua vez, novos grupos. E exemplifica: a burocracia
ou as aldeias.
e o exército não são apenas inslituições do Estado, mas também
grupos sociais (G. JELLINEK, Aligemeine Staatslehre, 3.• edicão, Isto pode clar..se pelo desenvolvimento ele uma tribo,
Berlim, 1922, p. 96). quando os descendentes de um tronco ancestral comum vão
38 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 39
constituindo novas famílias sob a dependência do chefe de da sociedade global supõe ordenamentos anteriores, existentes
família mais velho. É o caso das sociedades patriarcais. Ou no interior daqueles grupos constitutivos.
P?de ocorrer pela reunião de famílias procedentes de pontos Em se tratando do Estado moderno - organização jurídica
diversos e localizadas no território da futura urbs, que será a da comunidade nacional - e diante de tal corolário, vemos
base da Civitas. Nesta hipótese a margem da livre iniciativa desde logo que as concepções que dêle fazem a fonte única do
dos homens é maior, podendo chegar mesmo a um contrato direito não resistem à prova da história e da observação socio
social, segundo o exemplo freqüentemente citado dos peregri lógica. O monismo estatal, tanto quanto o individualismo
nos do Mayflower, caso êste típico de indivíduos que emigram contratualista, fazendo da sociedade política uma soma de in
de um país para fundar uma sociedade nova. divíduos, prescinde dos corpos intermediários e, desta forma,
prepara o Estado totalitário. Tais concepções correspondem,
aliás, à estrutura da «sociedade de massas» de nossos dias,
3. Quer pela sua formação histórico-natural, quer pela
sua estrutura íntinia, as sociedades polític.as apresentam um entendendo-se por «massa» o aglomerado informe e por «povo»
o conjur:to orgânico de famílias e outros grupos sociais (4) .
caráter comunitário, no sentido de que a coesão entre seus
membros se prende a uma atividade espontânea é'. um gênero de
vida em comum, assinalado pelo fato de vários indivíduos 4. A problemática das fontes do direito tem sido, nestes
pertencerem a um grupo independentemente de sua iniciativa últimos anos, objeto de valiosas indagações da parte de juris
ou deliberação (3) . tas, de sociólogos e de juristas-filósofos. Não é possível esque
cer, a propósito, o nome de Gény, a quem tanto se deve ha
Assim, a tribo, prolongamento da família, é uma comuni ver sido superada, na França, a estreita e unilateral concepção
dade estabelecida por vínculos de sangue ou parentesco, a que reduzia o direito à lei, e até mesmo ao Código e à Consti
Cidade é uma comunidade de vizinhm1ca e a Nacão é uma tuição, em se tratando do direito civil e do direito político
comunidade fundada principalmente na �ontinuidad; histórica. respectivamente. Por sua vez a sociologia tem contribuido
Firmado o princípio de que a sociedade política é uma para alargar os horizontes dos juristas, permitindo-lhes abran
sociedade complexa, constituída por sociedades menores, daí ger tôda a complexidade da vida social em que as normas de
decorre um corolário de grande alcance na maneira de conceber direito são elaboradas, e tornando insustentável o monismo
o d�re�to, ou, mais precisamente, a ordem jurídica. Desde que daquelas concepções segundo as quais há uma identidade en
o direito, como elemento de conservação e coesão, é um requi tre a ordem jurídica e a ordem estatal (5).
sito de tôda sociedade, segue-se que o ordenamento jurídico A expressão «fontes do direito» tem um sentido metafó
rico .e de vários modos os juristas a têm empregado com
referência à formação da norma. Significando uma nascente
(3). Lembremos a distinção de Tõnnies entre comunidade
( Gemeinschaft) e sociedade ( Gesellschaft), categorias sociológicas
fundamentais, sendo a noção de sociedade, no sentido estrito, apli
cável aos grupos de formação contratual. O vínculo existente na (4). Amplo e vigoroso estudo sôbre o assunto é o de JUAN
Gesel/schaft é o contrato, explícito ou implícito. A associação in VALLET DE GOYTISOLO, Sociedad de masas y Derecho, Taurus,
dustrial ou comercial e a sociedarle anônima por ações são forma,; Madrid, 1969.
típicas desta categoria. Quanto à Gemeins.chaft, frisando a idéia (5). Veja-se GEORGES GURVITCH, Sociology of Law, Philo
de que seus membros pertencem ao grupo naturalmente e não são sophical Library and Alliance Book Corporation (há uma tradução
apenas sócios numa associação de fundamento contratual (caso êste portugue�a editada no Brasil). Quanto à obra de Gény, além dos
das "sociedades"), Jules Monnerot prefere traduzir aquela expres seus clássicos Méthode d'interprétation et sour.ces en droit privé
são, em língua francêsa, por appartenance em lugar de communauté positif e Science et technique en droit privé positif, ver o Recuei/
(J. MONNEROT, Les faits soci-aux ne sont pas des choses,· Gallimard' d'études sur les sources du droit en l'honneur de François Geny,
3.• ed., págs. 144 a 152). 3 volumes, Recuei[ Sirey.
40 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 41
de água, a palavra «fonte» indica origem, princ1p10 ou causa. Tal autoridade não é necessàri,1111ente a que exerce a
Aplicada na linguagem jurídica, assume por sua vez diversas soberania política, porquanto pode tratar-se da autoridade
significações: pode designar o fundamento do direito (6), sua social existente no interior ele um daqueles grupos intermediá
origem histórica (7), o órgão de publicidade da lei (8), mas rios. As normas de direito não emanam, pois, exclusivamente
é sobretudo usada para manifestar as diversas modalidades de do poder político e são geradas em diforentcs meios sociais
normas vigentes numa determinada ordem jurídica positiva. aos quais cabe também a expressão «fontes do direito». É
f:ste último significado é, sob o aspecto técnico-jurídico, o a nomenclatura adotada por Goff redo Telles Junior, ensinando
mais corrente, distinguindo-se as fontes formais das fontes que referidos grupos possuem «n sua ordenação jurídica inter
materiais ou reais. São fontes formais a lei escrita, os costu na» e «são fontes inexauríveis de nornrns» (10).
mes, os estatutos, os contratos coletivos de trabalho, sem falar A norma de direito surge, pois, num determinado meio
na jurisprudência e na doutrina. Quanto às fontes materiais social procedente de uma autoridade que a elabora e impõe.
ou reais - assim chamadas porque fornecem a matéria daque Não basta, porém, considerar a norma e o seu suporte, a
las normas e são fatos da realidade social dando conteúdo à autoridade. O que dá propriamente existência e valor jurídico
regra de direito - encontram-se nos acontecimentos sociais à norma é o ato do detentor ela autoridade, elaborando-a e
mais variados, em movimentos políticos, nos proselitismos tornando-a obrigatória. Donde, em última análise, estar a
ideológicos, na atuação dos grupos de pressão, etc. fonte do direito num ato jurídico ( 11).
Pelas fontes formais manifesta-se a vontade social domi
nante, mediante um imperativo que se torna regra de caráter
obrigatório. Esta regra tem, pois, o suporte de uma autori (10). Divide o autor os grupos constitutivos da sociedade po
lítica em grupos domésticos, culturais, econômicos, recreativos e
dade capaz de exigir o seu cumprimento, razão pela qual há religiosos. Acrescenta o "grupo político", acentuando que os grupos
autores para os quais a expressão «fonte do direito» diz respei anteriormente mencionados ,·ivem dent 1·0 dêslc último. "ou melhor,
to primordialmente à autoridade que impõe coercltivnmente a dentro de grupos polilicos hierarquizados C\lunicípios, Províncias,
norma (9). Nações, Estados)". Parlindo da verdade clemeular - "não hú socie
dade sem direito" - afirma a seguir q11c cada grupo "hf, de pos
suir portanto a sua ordenação jurídica interna" (GOFFREDO TEL
LEs' JUNIOR,' .4. dcmocrncia e o Brnsil, Editôrn Hevisla dos Tribu
(6). f: o sentido filosófico. Assim, escren Del Vcrchio qne "o nais, 1965, págs. 31-35).
direito tem sua fonte essencial na natureza humana" (Lc probleme (11). Dai o dizer �IIRCEA D.Jl:VARA que a no�·fio de fonte do
des sources du droit positif, .4nnuaire dr. l'lnstillll lnternational .de direito positivo se reduz à de um ato jurídico, eJHJnanto criador de
Philosophie du Droit et de Sociologie Juridiquc, trabalhos da primeira normas individuais ou gerais, que presidem o curso da viela social
sessão, 1934-1935, Recuei! Sirey, p. 21). (Le problcme des so1ll'c<'s, p. 101). Veja-se também. nesta l'itada
(7). Fontes históricas do direito. Assim é que dizemos ser o obra, a comunicação de 1\1. N. N. ALEXEIEV,L'acle .i11ridiq11e cn;n
direito romano uma fonte do direito civil moderno, e as Ordena leur comme source primaire du droit (pngs. 188-208). Por sua ,·ez
ções fontes do Código Civil Brasileiro. Legaz y Lacambra considera fonte de direito o "fato criador de
(8). Fontes literárias: a imprensa oficial, que torna púlJ lica, direito", por conseguinte "causa de sua origem", e assim define a
as leis depois de promulgadas e sancionadas, ou repositórios, cole fonte formal do direito: "Todo ato de criação jurídica constatí1vel
ções, obras de sistematização que nos transmitem o conhecimento de modo indubitável na experiência histórica do Direito, por meio
do direito de épocas pretéritas. elo qual uma intuição ou um pensamento jurídico ó transmitido cm
(9). Segundo Gurvitch, fonte do direito positivo quer dizer "a norma de Direito, ou pcl 0 qual uma certa realirladl' vital-soriel se
autoridade qualificada sôbre a qual se apoia a fôrç.a obrigatória de conycrlc cm rC'alidadC' jurídica". E acrescenta: ''A fonte formal de
uma regra jurídica e que, por sua própria existência, encarnando Direito é a criação; a norma jurídic' a o criado; a fonte ó o meio
valores, dá a garantia da eficiência real desta regra" (ver o citado pelo qual a autoridade criadora de Direito expressa sua Yontade
volume Le probleme eles sources, Annuaire de l'lnstitut International de criação jurídica, e o resultado dêste processo é a norma" (L.
de P/iilosophie du Droit et de Sociologie Juridique, p. 117). LEGAZ Y LACAMBRA, lntroducción a la Ciência dei Derecho, Bosch,
42 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 43
Er.tendendo-se por ato jurídico a manifestação de vontade 5. Durante muito tempo, per:naneceu generalizado entre
com v:stas a produzir um efeito de direito, tal noção é os juristas o critério segundo o qual a noção de direito se
perfeitamente aplicável à lei, tanto quanto ao contrato. A reduzia a um duplo aspecto: de um lado, a norma ou «direito
diferença está em que o contrato produz efeito entre as partes, objetivo», e de outro o poder moral de agir denominado «direi
ao passo que a lei, dispondo por via geral, estabelece uma to subjetivo». Era uma simplificação exagerada, que desfi
situação jurídica que vai abranger numerosos sujeitos de direito gurava a complexidade do fenôme:10 jurídico e lhe encobria
independentemente da sua vontade. Daí a noção de atos sub a significação mais profunda. Postergava-se o principal, isto
jetivos e a de atos regras, tendo êstes por objeto a promul é, o direito na sua acepção primeira, a coisa devida a alguém
gação, reforma ou revogaç20 de uma norma d-e direito, e por justiça, a ação justa, o iustum dos romanos, a hominis ad
destinando-se aquêles a produzir, modificar ou extinguir uma hominem proportio de Dante. Com tôda a precisão, o direito
situação particular. objetivo é exatamente o ius, objeto da justiça, sendo esta a
Mas o que importa aqui observar é que tais atos regras vontade constante e perpétua de dar a cada um o que
não são apenas os procedentes do poder legislativo do Estado. é seu (12).
Dada a formação da sociedade política pela agregação de gru Na definição clássica de justiça dada por Ulpiano ressalta
pos sociais dotados de maior ou menor autonomia, bem como a primitiva acepção. E na mesma passagem do Digesto, logo
de um poder normativo e disciplinar interno, cumpre reco a seguir, vêm formulados os preceitos ft:ndamentais do direito
nhecer, ao lado dos atos oriundos da autoridade pública sobe e definida a iuris prudentia, ou ciência do direito, como iusti
rana (leis e regulamentos), os emanados das autoridades atque iniusti scientia. Para os romanos o conhecimento do
grupais ou corporativas (estatutos, regulamentos de asso:.:ia direito consistia, pois, em discernir o que é justo, e não sim
ções, sindicatos, ordens profissionais, etc.). plesmente em saber as leis. Muito longe estavam êles de red�
Em suma, considerando a origem e formação das normas zir o direito a um conjunto de regras, e jamais lhes passaria
jurídicas na sociedade política, e tomando a expressão «fontes pela mente que um dia um professor de direito viesse dizer
do direito» nos diversos· sentidos que lhe têm sido atribuídos, que não ensinava o direito civil, mas se limitava à exegese
podemos assim repartir tais fontes: do Código.
Daquela desfiguração da noção de direito, resultou a idéia
1) o meio social onde são geradas as norrr_as (socieda do direito objetivo como sendo simplesmente o conjunto de
de política soberana ou grupos componentes); normas expressas pelas fontes formais, a lei, o costume...
2) a autoridade qualificada, que as torna j·1ridicamente Ora, se o direito se manifesta pela lei, que mede a atividade
válidas; dos homens com vistas a assegurar a justiça nas suas relações,
êle r:ão é entretanto uma criação da lei. Suas nascentes tra
3) o ato jurídico que lhes dá existência; zem-no à superfície depois de gerado nos filões que correm
em camadas mais profundas. As chamadas dentes formais» li
4) a própria norma de direito, em suas dEerentes mo
dalidades.
exteriorizam as «fontes reais». I•
(12). D. 1.1.10,2: Iustitia est constans et perpetua voluntas 111
ius su11m cuique lribuendi (Ulpiano). LUIS LEGAZ Y LACAMBRA, 111
Barcelona, 1943, págs. 345-346). Num sentido amplo e aceitando em La realidad dei derecho ( separata de Estuclios l!uidicos Varias
uma definição comum, NORBERTO BOBBIO considera fontes de di pelo Cenlenario de la Ley del Notariado) faz ver que "o sentido
reito "os fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender / Ili\
originário da palavra Direito não é o de nc-rma" e que "os romanos
a produção de normas jurídicas" (Teoria dell'ordinamento giuridico, nunca chegaram a uma concepção normativista do direito, apesar de
G. Giappichelli, Turim, págs. 34-35). 1 li
terem dado os primeiros passos nesse sentido" (págs. 161 e 163).
44 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 45
Quanto ao direito civil, e condensando o pensamento de ordem estabelecida na divisão acima: meio social, autoridade,
Gény, escreve Bonnecase: «As fontes reais do direito civil são ato da autoridade, norma de direito. Nas sociedades políticas
os elementos geradores do direito civil; reduzem-se a duas: cabe considerar a autoridade do legislador e a do juiz, ou então
o elemento experimental e o elemento racional. O elemento a de quem as enfeixe nas suas próprias mãos, exercendo
experimental é representado pelos dados variáveis do meio cumulativamente a função legislativa e a judiciária.
social e também pelos da natureza humana, no que ela tem O princípio da separação de podêres, posto em prática
ao mesmo tempo de tangível e de permanente; o meio social nos Estados modernos, não impediu de forma nenhuma que
postula, com efeito, por si mesmo, regras de direito que são as autoridades judiciárias viessem a constituir fontes do direi
a condição ele sua existência, como a natureza humana postula to. Sem entrar aqui na indagação do valor e do alcance da
de sua parte outras tantas ditadas pela sua essência biológica. jurisprudência, importa considerar a missão do juiz à luz
Em cada fase da história o meio social reclama, por exemplo, da noção fundamental de direito - isto é, a idéia do justo -
uma regulamentação apropriada e diversa das sucessões e dos e não se prender a uma concepção excessivamente legalista da
testamentos; ao contrário, de um modo geral, a natureza huma ordem jurídica.
na postulou sempre uma organização da família repousando
sôbrc princípios imutáveis de moralidade. M2s o elemento 7. Oportunas considerações são feitas a propósito por
experimental do direito sàmente chega a forne�er diretrizes Michel Villey, comentando o estudo de Engish sôbre o racio
suscetíveis de serem transformàdas cm regras ele direito desde cínio jurídico. Autores recentes chegaram ao extremo de
que sofra a ação do elemento racional, seu regulador su concluir que o juiz, ao dar a sentença, não deduz a sua solução
premm> (13). de um texto legal, mas deixa levar-se por uma intuição espon
tânea ou um sentimento irracional e instintivo de eqüidade,
6. O meio social, com as suas peculiaridades, correspon procurando em seguida acomodar tal solução ela melhor manei
de à comunidade política organizada ou àquêles grupos meno ra possível aos dispositivos da lei. Engish julga esta análise
res que a constituem. · É o ambiente no qual surgem as um tanto sumária. E Villey, jurista-filósofo ele apurado senso
normas jurídicas. São as diferentes instituições dando margem histórico, pondera que «efetivamente a lei (ou a regra deriva
à multiplicidade das fontes do direito. No dizer de Sanli Ro da da lei, e que lhe é assimilada) ocupa um lugar mais impor
mano, «o direito é também norma, mas além de norma e, tante no espírito do juiz: serve-lhe de fio condutor, de eixo,
freqüentemente, antes de ser norma, é organização ou corpo de auxiliar, ele guia na procura de uma solução justa; por
social, e é isto que comunica à norma, a um SCi.l produto ou vêzes também de barreira fixa. » Mas esta procura da solução
derivação, a natureza jurídica» ( 14). justa é o essencial na atividade do juiz, determina tudo o mais,
A autoridade estabelece a vinculação entre o meio social habilita o magistrado a dizer o direito. Donde o prosseguir
- onde se encontram as fontes reais do direito - e as normas o citado autor: «O juiz tem em vista a solução justa, boa,
às quais atribuímos o caráter de fontes formais. Donde a aceitável, proveitosa; que ela seja conforme à lei, é uma segun
da exigência. Tanto assim que êle ultrapassa esta regra, in-
(13). Jl.'.LIEN BONNEC.\SE, Oú cn est lc Droit Civil? in Ca
hic,rs de la Nuuuclle Journée, n.O 4, Paris, Librairie Bloud & Gny,
1 !J2fl, ]l. fi2. da atuação de um poder, produzindo-se entre os membros do grupo
(14). SANTI ROMANO, Principii di Diritto Costituzionale manifestações tle comunhiío ele caráter durúvel, dirigidas pelos órgãos
gencrale, 2." ed., lllilão, Dott. A. Giuffre Ed., 1947, p. 56. Na co do poder e reguladas juritlicamenlc. Cf. :\1. HAlJHIOU, La Théorie
nhecida defini�,ão ele Haul"iou, a instiluiçã0 é uma idéia - idée ele l'lnstitution ci de la Fondation (essai de vitalisme social), in
<l'oeuure ou d'entreprise - que se realiza num meio socinl mercê Cahiers de la Nouvelle Journée, volume citado, p. 10.
46 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 47
flecte-a, contorna-a, algumas vêzes dela se liberta. Eis a razão por isso mesmo, de uma função de caráter técnico, que supõe
pela qual a jurisprudência vem a ser em definitivo mais rica especialização e apurada competência.
do que o corpo das leis, e pode constituir, como se diz, uma Ao absolutismo monárquico, que fazia da lei a expressão
fonte autônoma» (15). da vontade do príncipe, vimos suceder o absolutismo demo
Evidentemente para bem desempenhar sua alta missão, o crático, dela fazendo a expressão da vontade do povo, através
juiz não se pode deixar conduzir por um critério subjetivista de seus representantes ou pseudo-representantes. Num caso
que sacrifique a solução justa ao seu poder exercido discricio e noutro abriram-se as portas para o mais desenfreado subjeti
nàriamente. Se isto é verdade no tocante àquêles que devem vismo, agravado pela influência das ideologias dominantes na
definir de um modo concreto as situações jurídicas, mediante política moderna e que naturalmente se tem feito sentir tam
a aplicação da lei com um sentido superior de justiça e eqüi bém sôbre a política legislativa.
dade, da mesma forma aos encarregados de elaborar a lei Essas duas formas de absolutismo fazem do direito
cumpre orientar-se pela objetividade do direito e não por sub produto da vontade humana e atribuem uma função criadora
jetivismos que os levam a arrogar-se uma espécie de onipotên ao ato do legislador - o monarca soberano ou o mandatário
cia criadora dentro da ordem jurídica. do povo soberano - quando promulga a lei. Foi sobretudo
o individualismo jurídico que contribuiu para difundir tal
8. A tarefa legislativa é complexa e delicada. Iniludí concepção voluntarista do direito, reduzido às duas categorias
veis responsabilidade pesam · sôbre os ombros dos que são fundamentais do contrato e da lei. Deixando de procurar nas
chamados a traçar normas disciplinadoras da vida em socieda realidades sociais e históricas os elementos de inspiração para
de. Tal encargo requer necessàriamente o conhecimento da a norma jurídica, o legislador passou a transpor nas constitui
natureza humana, do meio social e da formacão histórica do ções e nos códigos os pressupostos ideológicos da sua mente.
povo a que se destine a legislação a ser elab�rada. Trata-se, Assim se explica o desprêzo pelo direito histórico, na ânsia
de construir uma sociedade nova. As construções artificiais
começaram a prevalecer sôbre a constituitão natural e histó
(15). M:JCHEL VILLEY, Une définition elu elroit, in Arcl1ives rica das comunidades políticas, e o direito abstrato suplantou
ele Philosophie elu Droit, Sirey, tomo IV, 1959, (volume consagrado o direito fundado na tradição dos povos.
ao tema Droit et Histoire), p. 52. O estudo mencionado é o de
ENGISH, Einführuna in elas juristische Denken. Urban Büchcr 20, Tal predomínio da ideologia sôbre a história recebeu seu
Kohlhammer. Significativos os depoimentos de Julien Bonnecase em grande impulso da revolução intelectual operada na Europa
1925 e Michel Villey em 1959. Dizia o primeiro: "Vivemos numa durante o século XVIII, como se dirá a seguir.
época do triunfo da noção de direito sôbre o texto da lei" (obra
citada, p. 54, em nota). E o segundo vem declarar que, observando
o trabalho de juristas profissionais, verifica ser a lei, para êstes,
um instrumento. "A regra escrita é menos o polo e o têrmo de
seus pensamento do que etapa provisória, ponto de referência, por
vêzes de limite. Daí eu concluo que a verdadeira fonte do direito
está situada acima da lei, e a.cima de tôda regra." (p. 53). E dando
testemunho do que ocorre na França: "Nossos programas. lenta
mente, evoluem: aos cursos de "Código Napoleão" (base dos · estudos
quando foram fundadas as novas faculdades de direito) tendem
entre nós progressivamente a se acrescentar ou a se substituir en
sinamentos históricos, econômicos, sociológicos, das "ciências polí
ticas", aos quais nós acabamos de injetar uma adição maciça de
)
"trabalhos práticos". O ensino francês toma consciência de que o
1
direito é algo bem diferente da aplicação das leis" (lugar citado).
li
111
1 ll
Capítulo III
O ILUMINIS:lYIO DO SÉCULO XVIII E
SUAS REPERCUSSÕES NA POL!TICA
E NO DIREITO
tante os vãos esforços restauradores da Santa Aliança, e rece Observa-o, com a acuidade de sempre, Marcel De Corte,
bida pelas elites dirigentes das novas gerações americanas. As fazendo ver que o ser humano, na estrutura do seu pensamen
transformações ocorridas - que por vêzes se davam no con to, foi atingido naquela época por uma profunda mutação,
texto histórico dos fatos, como foi o caso do sistema parla caracterizada por êstes dois traços salientes: l.º) - o predo
mentar na Inglaterra - freqüentemente eram determinadas mínio do abstrato sôbre o concreto; 2. 0) - a ruptura do equi
pelo abstracionismo ideológico, ou por êste desviadas de sua líbrio entre o espírito e a vida. Esta dissociação e aquêle
significação original, gerando em ambos os casos instituições abstracionismo foram muito bem apreendidos por Michelet, no
jurídicas desentranhadas da realidade. prefácio de sua Histoire de la Révolution Française. «Grande
século XVIII!» exclamava em arroubos o historiador. E pros
2. Percebeu-o Candido Mendes de Almeida, donde seguia dizendo que êste século «fundou a liberdade sôbre a
aquela referência que, no prefácio ao Código Filipino, faz às emancipação do espírito, até então ligado pela carne, ligado
reformas pombalinas, comparando-as ao terremoto que, na pelo princípio material da dupla encarnação teológica e polí
mesma época de Pombal, assolou Lisboa ( 1) . Mas o efeito tica, sacerdotal e real». Com efeito, o vago deísmo dos filó
do iluminismo em Portugal e nos outros países da Europa não sofos substitui a crença num Deus pessoal, uno e trino, e na
se limitava a um repúdio de valores e métodos tradicionais. Encarnação do Filho de Deus; o Estado deixa de estar encar
Surgia uma nova mentalidade, um nôvo modo de pensar, um nado na pessoa do soberano - l'État c'est moi, segundo a
nôvo processo de sintetização· das idéias em contraste com o famosa frase atribuída a Luís XIV - e torna-se uma entidade
�rocesso habitual da inteligência no conhecimento do ser, isto abstrata, uma arquitetura da inteligência aplicada à vida social;
e, no contacto com as coisas do mundo que nos cerca sem as e o próprio homem tende a ser uma abstração (2).
visões de uma fantasia desfiguradora. Esta revolução mental Poderíamos acrescentar: a soberania dilui-se no povo,
afastava a inteligência humana da realidade - encerrando-a transformado por sua vez numa poeira de indivíduos, em
no subjetivismo, que aliás na filosofia moderna despontou com lugar da comunidade nacional orgânica, com suas hierarquias,
Descartes - e não admira que as conseqüências dela decorren suas divisões naturais, seus grupos históricos. O que quer
t�s fôssem, entre outras, concepções jurídicas e reformas polí dizer que cada um dêsses indivíduos é um ser irreal, o Cidadão
_
ticas situadas no plano das puras abstrações. abstrato e desencarnado, átomo sôlto, fora das comunidades
As idéias políticas do iluminismo começaram por vicejar nas quais concretamente um homem vive, pensa, trabalha, tem
na época do «despotismo esclarecido», mas foi com a Revolu seus interêsses e está ligado ao seus próximos por laços
afetivos.
ção de 1789 que verdadeiramente se corporificaram. Daí por
· diante instituições prefabricadas pela razão pura eram impos Uma desagregação completa: a inteligência separada do
seu objeto, o homem desvinculado da sociedade, a legislação
tas em nome do povo por minorias dirigentes, segundo o padrão
desligada do direito histórico (.3) . Tudo isto como resultado
das legislações revolucionárias da França, como aconteceu nas daquele duplo conflito, entre o abstrato e o concreto e entre
Cortes de Cádiz, na Constituinte de Lisboa e em assembléias o espírito e a vida.
congêneres de outros países do Velho e do Nôvo Mundo.
Sigamos Marcel De Corte em continuação às suas ponde Dêsse dissídio maniqueísta entre o espírito e a vida,
rações sôbre o assunto: «Se denominamos espírito o conjunto latente no pensamento racionalista moderno, resultou a anti
das faculdades superiores do homem e vida a gama das potên nomia da Razão Pura e da Razão Prática em Kant, dualismo
cias obscuras que o põem em relação imediata com o mundo, donde procedem as escolas filosóficas de Marburgo e de Ba
o fazem perceber diretamente sua realidade, o enraízam no den, das quais por sua vez provêm sistemas de filosofia do
ser, o tornam capaz de comungar com a sua presença, e cujos direito bem característicos, quais sejam, o normativismo de
nomes são de uma desconcertante banalidade: sensação, senso Kelsen e o culturalismo de Radbruch respectivamente.
comum, bom senso, sentimento, instinto, etc ..., a grande obra Na oposição do romantismo ao pensamento iluminista
do século XVIII foi a de dissociá-los. No homem normal o nota-se o mesmo conflito. Os românticos alemães exaltavam
espírito e a vida são complementares: a vida nutre o espírito os valores vitais e procuravam o concreto, repelindo os abstra
e o espírito esclarece a vida. cionismos desencarnados da experiência humana. Assim deve
«Quando o espírit0 é consoante com a vida, êle ajusta entender-se a escola histórica do direito, de que foi precursor
seus pensamentos à realidade com a qual a vida o põe em Adam Müller, um dos maiores românticos. A integração do
contacto, êle os confronta com a experiência e lhes ilumina as indivíduo na comunidade foi um dos temas de predileção do
riquezas escondidas. E por isso a apreensão vital da realida romantismo: o assunto preocupou intensamente a Novalis e
de, a tomada direta dos sêres e das coisas, a profundidade da aos irmãos Schlegel, sendo que para Arnim a verdadeira vida
çXperiência vivida são de uma importância essencial para o do indivíduo está na comunhão com os grupos históricos (5) .
conhecimento. Tôda a substância do espírito depende de sua
amplitude e de sua intensidade, como as flores e as frutas de 3. Entre os autores do século XVIII cuja influência
uma árvore são tributárias da robutez, da abundância e da mais se fêz sentir na vida política, e de um modo particular
penetração das raízes. na obra legislativa da Revolução de 1789, não é possível dei
«Ao contrário, quando o espfrito se divorcia da vida, êle xar de lembrar desde logo Jean-Jacques Rousseau. Dirigindo
não dispõe senão de pensamentos mornos, cxangues, desencar -se não apenas à razão, como faziam os filósofos da época,
nados. Desvitalizado, deixa de estar presente no mundo por mas ao sentimento dos leitores, Rousseau tornou-se a mola pro
intermédio da vida. Incapaz de alcançar o real, não atinge pulsiva da nova ideologia. O Contrat social era o manual de
senão os seus próprios pensamentos. Constroi para si um Robespierre e das assembléias revolucionárias, que nele tive
mundo interior de que êle é o senhor absoluto porque a vida ram um Corão, segundo o dito de Mallet du Pan. Inspirou
não lhe evoca mais as exigências da realiclítdc» (4).
a Declaracão dos direitos do Homem e do Cidadão e forneceu
elementos-· para justificar a violência dos jacobinos (6).
filósofos políticos como Rousseau e Mably, um historiador como
Raynal, economistas como Turgot, Gournay e a escola do laisser
faire, homens de letras como La Harpe, l\Iarmonlel, Didcrot.
(4). MARCEL DE CORTE, obra citada, págs. 257-258. Para (5). Ver a respeito JACQUES DROZ, Le romantisme allemand
et l'État, Payot, Paris, 1966. Augusto Guilherme Schlegel combatia
exemplificar no campo da economia, aqui vai um caso bem frisante
nos sequazes da Revolução o modo anti-histórico de pensar e acon
contado pelo autor. Em perspectiva nitidamente mecanicista, ex
selhava ao seu irmão Frederico a leitura das "Reflexões sôbre a
cluida tôda finalidade, a economia não tem outro objetivo senão o
Revolução na França" de Burke, expressão máxima, na Inglaterra,
da conformidade ao modêlo racional e abstrato escolhido, ao protó
de uma visão histórica da sociedade e do direito (págs. 55 e 56).
tipo. Tout croit si bien dans mon systême, disait un économ ist e
distingué, s'il n'y avait ce diable de consommate11r! (p. 279). Como (6). Ce Contrat social, qui dissout les sociétés, fut le Coran
se o consumidor não devesse ser o objeto principal das preocupa eles discoureurs de 1789, des Jacobins de 1790, das républicains de
ções do economista. Quantos planejamentos ou planificações eiva 1791 et eles forcenés les plus atroces. (Mercure britannique, t. II, p.
dos dêsse espírito abstracionista! 350, apud H. DELASSUS, Vérités sociales et erreurs démocratiques,
56 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 57
No sonhador genebrino tem-se apontado o pai do roman A volta ao natural é a sua idéia dominante. A natureza que
tismo (7). Há na sua obra traços que ficarão caracterizando tem em vista, porém, não é a cio homem histórico e sim a do
o movimento romântico: o lirismo, a exaltação do indivíduo, homem abstrato, em face da qual Joseph de Maistre dirigia
a presença atuante da sensibilidade. Nada, porém, de mais as suas críticas às Constituições francesas (9).
oposto ao pensamento dos românticos alemães, preocupados Rousseau é, na verdade, uma expressão típica da atitude
com os fundamentos históricos e tradicionais da sociedade, do mental abstracionista, tão difundida no século XVIII. É o
que o abstracionismo rousseauniano e a racionalização da vida seu expoente, no dizer de Miguel Reale: «o apriorismo de
política delineada no Contrat social. Rousseau, a abstração dos dados históricos, e a sua preferência
Rousseau por um lado está na linha do pensamento por argumentos conjecturais baseadós em elementos intultiva
romântico, ao qual se antecipa. Mas por outro, cede ao racio mente alcançados, tudo é apenas o caso particular e, digo mes
nalismo da sua época. Como nota Solari, êle veio dar uma mo, exponencial de uma atitude generalizada do espírito na
base emotiva à concepção racionalista, então dominante, do França do século XVIII, o que o leva, metodolàgicamen.te, a
direito natural. No estado de natureza vê, da mesma forma fazer «tabula rasa» da história, transformando a velha idéia
que Hobbes, o aspécto sensível e instintivo do homem. Mas do «contrato social» em uma hipótese explicativa da ordem
à liberdade natural, própria daquele estado, contrapõe a liber humana, análoga às concebidas pelos físicos para a explicação
dade civil, decorrente da alienação ou entrega total cios indi da ordem cósmica» (10).
víduos à sociedade mediante o pacto social. Segue-se então Por isso mesmo não admira que o seu nome esteja
ao estado de natureza um estado de razão, a sociedade se vinculado ao liberalismo do século XIX, decorrente daquele
reconstroi por uma planificação racional e a lógica prevalece abstracionismo do século anterior e com os seus regimes cons
sôbre o sentimento (8). Aí vemos aquêle mesmo antagonis titucionais edificados à base da mesma «abstração dos dados
mo entre o espírito e a vida, peculiar aos homens do iluminis históricos». O pensamento de Rousseau é mais democrático
mo, manifestando-se agora pelo dissídio entre as fôrças vitais do que liberal, tendo inspirado a democracia jacobina. A
espontâneas e a disciplina da sociedade contràtualmente or organização concebida nas páginas do Contrat social corres
ganizada. ponde plenamente à idéia do Estélclo totalitário. Mas o pres
É certo que Rousseau não participa do entusiasmo dos suposto sociológico ou o esquema ela sociedade política segun
iluministas pelas «luzes» do progresso científico e da civiliza do o liberalismo - o Estado sem «sociedades parciais» e
ção. Chega mesmo, na sua dissertação premiada pela Aca
demia de Dijon, a considerar que o progresso das ciências e
das artes não só não contribuiu para a nossa felicidade, mas (9). Ver principalmente o capítulo VI de Considérations sur
aumentou o mal-estar dos homens e favoreceu a corrupção. l-a France. Escreve ALEXANDRE CORREIA: "O filosofismo do
séc. XVIII quis fazer da politica um departamento da matemática;
tudo deveria ser de antemão calculado, como se cada homem fosse
uma unidade matemática, abstrata: origem da sociedade, do govêr-
Desclée, De Brouwer & Cie. págs. 36-37). Ver também L. VEUIL 110, das constituições políticas, etc., tudo isto existe em função de
LOT, Le siecle de Voltaire, in lllélanges, IV. P. Lethielleux, Paris, um princípio abstrato a priori; as leis fazem-se para o homem e
1934, p. 95. não para os homens. Housscau é a persofinicação dêsse estado de
(7). C. SENTROUL, Le romantisme {rançais, in Anuário da espírito. O conde de l\laislre, pelo cunlrál'Ío, repete-nos a cada
Faculdade Livre de Filosofia e Letras agregada à Universidade de momento que é preciso fazer da política uma ciência experimental"
Lovaina, 1916, São Paulo, p. 23. (A. política de José de Maistre, separata do Anuário da Faculdade
(8). G. SOLARI, Individualismo e diritt.0 privato, volume I de de Filosofia Sedes Sapientiae, vol. 21, 1963-1964, p. 29-30).
Filosofia del diritto privato, G. Giappichelli, Turim, 1939, págs. 108 (10). MIGUEL REALE, Horizontes do direito e da história,
a 125. Edição Saraiva, 1956, p. 156.
58 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 59
tendo diante de si o povo constituído por indivíduos �ôl meio físico e social no condicionamento das instituições, tudo
tos (11) - ali se delinea, como que a anunciar a famosa Lei isto naturalmente não permite enquadrar suas concepções no
Chapelier, que veio suprimir as corporações de ofício e vedar abstracionismo que viciou a mente de muitos de seus contem
as associações operárias. A legislação revolucionária pôs em porâneos. Entretanto, não parece exagerado dizer que o pró
prática os ensinamentos de Rousseau, não só destruindo o regi
prio Montesquieu não foi inteiramente isento dêste vício, quer
me corporativo, mas ainda impondo a Constituicão civil do
Clero e dissolvendo as congregações religiosas, be�1 como ani pelo seu acentuado legalismo, podendo conduzir a uma visão
quilando as antigas regiões autônomas e substituindo-as pelos deturpada e unilateral do direito, quer por haver eleva
departamentos estatalizados. do o sistema de govêrno da Inglaterra a um plano abstra
to e ideal (14).
Ê o que nos faz ver Francois Gazier: «Às instituicões A separação de podêres foi o legado de Montesquieu ao
complexas do Antigo Regime, viZ1-se assim suceder um apare 0
O primeiro pertence ao século XVII. O segundo, pela sua pio da separação de podêres, quando naquele país - depois da
obra sôbre o espírito das leis, é com razão considerado revolução de 1688 - já se afirmava o primado do Parlamento cm
sentido contrário a êste princípio. l\Iontesquieu, preocupado sem
um dos precursores da sociologia jurídica (13). A erudicão pre com "as leis", dava-lhes mais atenção do que à experiência
histórica de Montesquieu, sua preocupação em estabelecer, as jurídica. Assim é que escreve: Ce 11' est point à moi à examiner si
relações entre a organização política e as circunstâncias variá les A.nglais fouissent actuellement de cette liberié, uu nun. ll me
veis dos diferentes povos, a importância que soube dar ao suffit de dire qu'elle est établie par leurs lois, et .ie n'en cherche
pas davantage. (De l'esprit des fois, liv. XI, cap. VI). Tal era o
seu entusiasmo pelas instituições inglêsas, que chegava a exagerar
nelas os fôros da respeitável genealogia que ostentam: Si l'on veut
(11). Assim concluia Rousseau o capítulo III do livro II do [ire l'admirable ouvrage de Tacite sur les moeurs eles Germains, on
Contrai social: ll importe dane pour avoir bien l'énoncé de la vo verra que c'est d'eux que les Anglais on tiré l'idée ele leur gouvcr
lonté générale qu'il n'y ait pas de société partielle dans l'État. nement politique. Ce beau systeme a été trouvé elans les bois
(12). F. GAZIER, Les institutions administratives française (idem). Num breve e penetrante confronto de l\Iontesquieu com
s, Vico, nota l\IIGUEL REALE (obra citada, p. 129) que a erudição
Les Cours du Droit, 1966-1967.
histórica daquele não foi sempre "animada de verdadeiro senso de
(13). G. GURVITCH, obra citada.
historicidade".
60 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 61
ção». Mably, que considerava falsas as idéias fundamentais o despotismo do Parlamento ou o fortalecimento do Executivo,
da obra de Montesquieu, foi entretanto um fervoroso adepto segundo se tratasse de regime parlamentar ou presidencial
da separação de podêres. Rousseau e Mirabeau combateram respectivamente. Da mesma forma pela qual a Declaração
-na, mas o seu triunfo estava assegurado pela influência da de Direitos, nessas mesmas constituições, se reduzia geralmen
Constituição americana e das Constituições francesas, que a te a uma formulação platônica, em que as liberdades concretas
acolheram. Finalmente, Kant, em cuja filosofia jurídica estão dos homens eram sacrificadas nas aras da Liberdade abstrata
os pressupostos fundamentais para uma sistematização lógica do Cidadão.
do liberalismo, aceitou-a também, embora tivesse sabido miti Tudo isso provinha de uma concepção abstracionista do
gá-Ia, preocupando-se com a coordenação entre os podêres e homem, suscitando por sua vez a confiança cega e ilimitada
assim procurando pôr a salvo a unidade do Estado, comprome no legislador, procedendo êste, ao elaborar a lei, como se
tida pelo princípio em questão se aplicado rlgidamente (15). estivesse fazendo deduções para resolver um problema de ma
A separação de podêres era vista por Montesquieu como temática. Foi o que Taine, nas páginas de Les origines de la
um meio de evitar o abuso do poder. Tal o seu objetivo, ao France contemporaine, soube mostrar tão sugestivamente (17).
formular referido princípio. Em face da monarquia absoluta,
queria assegurar as liberdades mediante a limitação do poder 5. Mably e Raynal, contemporâneos de Rousseau, ambos
real, como, aliás, por outra maneira se fizera nas monarquias na mesma linha do iluminismo enciclopedista, manifestam de
tradicionais européias. Espírito conservador, que se inspirava um modo acentuado essa tendencia da sua época e vêem os
em grande parte na tradição aristocrática da França, preconi seus livros alcançar uma grande difusão. Adiantando-se a
zava, ao contrário de Rousseau, a manutenção dos corpos Comte, com um lineamento da teoria dos três estados, Con
intermediários, de sorte que da sua obra pode deduzir-se uma dorcet, sem o sentimentalismo de Rousseau, leva mais longe
dupla modalidade de limitações ao poder político: a limitação o racionalismo que gera o abuso do método dedutivo. A seu
horizontal, pela divisão dos podêres do Estado, e a vertical, ver a única obrigação social é obedecer à razão coletiva da
através das autoridades sociais devidamente reconhecidas na maioria. Repudiando as instituições inglêsas, repele igualmen
queles corpos ou grupos autônomos. Achava-se então em te a política de Montesquieu pelo seu caráter empírico (18).
decadência o regime corporativo, e Montesquieu não cogitou Do outro lado da Mancha, no país que inspirara Montes
com maior atenção da possibilidade de ser o mesmo revitali quieu, William Blackstone, autor dos freqüentemente citados
zado, preferindo apelar para aquêle expediente condensado na «Comentários às Leis da Inglaterra», aceitava a teoria da di-
conhecida frase: Pour qu'on ne puisse abuser du pouvoir, il
faut que, par la disposition eles choses, !e pouvoir arrête le
pouvoir (16). (17). Por sua vez, Oliveira Martins, no seu Porlngal contem
porâneo, mostra, de um modo não menos sugestivo, o que foi o
A experiência política dos povos mostrou a ineficácia de racionalismo político aplicado ao direito constitucional português,
tal expediente, ocorrendo aqui o mesmo que com as garantias em oposição sistemática ao nacional e ao histórico. "Os números
de direitos. Os textos constitucionais, afirmando a indepen governam o mundo, tinha dito Pitágaros; e os novos idealistas
dência e a harmonia dos podêres, não bastavam para evitar cortaram, riscaram círculos, números, votos, censos; e, depois de
tudo bem regulamentado, •esperaram que do proces,so somatório
viesse a genuína expressão da vontade dos indivíduos soberanos"
(OLIVEIRA MARTINS, Portugal contemporâneo, 1907, Parceria An
(15). :\1ARCEL DE LA BIGNE DE VILLENEUVE, La fin dn tonio Maria Pereira, Lisboa, p. 437).
príncipe de Séparation des Po1woirs, Recueil Sirey, 1934, págs. 27 (18). Ver de CONDORCET o Tableau liistorique eles progres de
a 30. l'esprit h11main e De la nature des pouvoirs politiques dans une
(16). De l'esprit des !ois, liv. XI, cap. IV. nation libre.
62 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 63
v1sao de podêres, sem dar muita atenção aos fatos da vida que não tivera entre os gregos, muito menos entre os romanos,
inglêsa, e também admitia, na esteira de Rousseau, a idéia do nem tão pouco na escolástica medieval, cuja tradição, perdida
contrato social como um pressuposto explicativo de ordem para além dos Pirineus, se conservava por mais tempo na
racional. Espanha e em Portugal.
Os enciclopedistas encontravam um intérprete na Inglater Na Alemanha do século XVIII Thomasius e Wolff são
ra em William Godwin, entusiasta da idéia do progresso e da os nomes mais famosos dessa escola, precedidos por Pufendorf
perfectibilidade humana, como Condorcet, e sonhador de uma no século XVII. Wolff foi uma expressão altamente caracte
sociedade igualitária em que não mais se fizessem necessários rística da Aujklarung. Chegou a ser chamado o segundo
os governos ( 19). Ao seu lado mais três nomes podem ser praeceptor Germaniae, tal a influência que exerceu como di
lembrados, a denotarem o reflexo do iluminismo no pensa vulgador da filosofia de Leibniz, influência manifestada mais
mento político inglês: Richard Price, defensor dos colonos pelos livros publicados, atingindo um grande número de leito
americanos sublevados e dos revolucionários franceses (20); res, do que pelas suas preleções na Universidade de Halle.
Joseph Priestley, que, entre suas meditações teológicas e as Tendo-se dedicado à filosofia, à matemática e às ciências natu
experiências químicas que o levavam a isolar o oxigênio, en rais, deixou, nos oito volumes do Ius naturae methodo scienti
contrava tempo para discorrer sôbre o contrato social, a liber fica pertractatum, uma exposição de todo o seu sistema.
dade natural e a liberdade política e civil, mitigando suas
abstrações com um certo utilitarismo (21); e o irrequieto Tom Dos mais representativos da escola são ainda Burlama
Paine, envolvido nos acontecimentos políticos da América e qui (23), na Suíça, e Filangieri (24), na Itália, tendo Bene
da França, popularizando as idéias da democracia individualis detto Croce dito dêste último que pregou o Evangelho da
ta, com uma concepção dos direitos do homem derivada de razão (25).
Rousseau (22) . Jusnaturalismo racionalista e «filosofia das luzes» conju
garam-se para imprimir às especulações filosóficas sôbre o
6. A escola do direito da natureza e das gentes, consti direito uma nova direção, que se refletiu no domínio da elabo
tuída depois de Grócio, contribuiu poderosamente para criar ração legislativa. A essas duas correntes de pensamento
êsse estado de espírito propenso ao abstracionismo. Seus cumpre acrescentar o liberalismo econômico, desde as suas
adeptos davam ao direito natural um sentido anti-histórico, primeiras manifestações com os fisiocratas até a sua formula
ção por Adam Smith num sentido mais acentuadamente indi
vidualista.
(19). Enquiry concerning Political Justice, 1793.
(20). Observations on the Nature of Civil Liberty and the
A teoria das liberdades econômicas como direitos inatos e
Justice and Policy of the War with America, 1776. eternos provinha de Locke e, através do jusnaturalismo da
(21). AnEssay on the First Principies of Government, 1768 e época iluminista, chegava a Smith, que na França, acom-
Lectures on History and General Policy, 1788.
(22). The Rights of Man, 1791-1792. Esta obra foi dividida
em duas partes, publicadas com um ano de intervalo, tendo sido a (23). Príncipes du droit naturel (1747) e Principes du droit
primeira dedicada a ·washington e a segunda a La Fayette. Na politique (1751), reunidos posteriormente nos três volumes de Prin
primeira parte o autor se opõe com veemência às "Reflexões" de cipes du droit naturel et politique (1763).
Burke e defende a política da Constituinte. O livro contém uma (24). Scienza della Legislazione (1780-1785).
tradução da Declaração dos Direitos de 1789. De sua difusão e in
(25). Apud PAUL HAZARD, La pensée européenne au XVIII
fluência bem se pode avaliar tendo presente que em menos de dois
anos foram vendidos nada menos de duzentos mil exemplares (Cf. eme siecle, Éditions Contemporaines, Boivin et Cie., Paris, 1946, t.
I, p. 206.
G. SOLAR!, obra citada, p. 291, nota 4).
64 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 65
panhando a êste país o jovem Duque de Buccleuch de quem austríaca. E o princ1p10 kantiano da autonomia da vontade
era preceptor, fazia relações com Voltaire, Turgot e Quesnay. chegou a ser apontado como a chave para a compreensão do
Para os fisiocratas, seguindo Quesnay, a economia política pensamento jurídico do Visconde de Seabra e do Código civil
era a ciência do direito natural aplicada às sociedades civiliza português de 1867 (28).
das, tirando os seus preceitos do conhecimento da «ordem natu Códigos civis e constituições políticas do século XIX
ral e essencial das sociedades políticas» (Mercier de la Rivie manifestam em vários países quanto se generalizou o abstra
re), da qual devia decorrer a «constituição do govêrno mais cionismo anti-histórico, gue teve por ponto de partida a revo
vantajoso ao gênero humano» (Dupont de Némours). Algu lução intelectual operada com o iluminismo.
mas de suas concepções, sôbre o valor da agricultura, o direito
de propriedade e a sociabilidade humana, eram fundadas na
expenencia. Antecipavam-se mesmo à moderna idéia do
«direito social» (26). Mas restringiam a noção de «ordem
natural» à esfera da economia, considerando o Estado uma
organização artificial e mecânica. Atribuindo ao «natural»
o sentido de «espontâneo», contrapunham à ordem vigente no
mundo das relações econômicas a ordem voluntária imposta
pelo Estado.
Em fins do século XVIII o racionalismo ingênuo
cede lugar ao criticismo. Coube a Kant dar uma expressão
radical ao subjetivismo do pensamento moderno. E foi êle
também que forneceu os elementos para a teorização da ordem
jurídica individualista e do nôvo Estado de direito, decorren
tes da Revolução francesa, gue tanto o impressionara, que
brando-lhe a frieza habitual (27).
Kant vinha substituir o direito natural pelo direito
racional e, com a «Crítica da Razão Pura», derrubava a meta
física wolffiana, para depois, mediante a «Crítica da Razão
Prática», colocar o princípio da autonomia da vontade como Révolution Française, in Revue Philosophique, número especial con
pedra angular do edifício da sua filosofia moral. sagrado a Revolução de 1789 em face do pensamento moderno, 1939,
Setembro0 Dezembro, págs. 394-425). Veja-se a obra fundamental a
Sua influência ultrapassou os limites da filosofia especula êste respeito de JACQUES DROZ, L' Allemagne et la Révolution Fran
tiva e mesmo da filosofia do direito. Receberam-na também çaise, P.U.F., especialmente o capítulo l da segunda parte (filosofia
política de Kant). Quanto à influência de Rousseau sôbre Kant,
os legisladores. É de se notar particularmente na codificação foi tão profunda que Delbos chega a dizer que a Rousseau, mais
talvez do que a Hume, conviria a expressão famosa de haver des
pertado Kant do seu sono dogmático (V. DELBOS La philosophie
(26). G. GllRVITCH, L'idée du droit social, Recueil Sirey, 1932, pratique de Rant, segunda edição, Paris, Lib. Félix Alcan, págs.
págs. 236 a 260. 115-116).
(27). P. SCHnECl{ETI refere-se ii "ligação profunda e essen (28). Ver o que escreveu a respeito FRANCISCO JOSÉ VELO
cial que une entre si a Revolução de 1789 e a filosofia de Kant", ZO, no estudo Orientações filosóficas do Código de 1867 e do futuro
não vacilando em dizer qne "ambas eram dois frutos amadurecidos Código, publicado na revista Brotéria e transcrito em Scientia Jurí
na mesma árvore da autêntica tradição cartesiana" (Rant et la dica, tomo XVI (Março-Junho 1967), págs. 155 a 235.
Capítulo IV
AS CODIFIC_,_t\_ÇÕES DO DIREITO CIVIL
afãs ideológicos pelos quais o jurista vem a cair num alhea víduo, muito contribuíram o protestantismo e a filosofia car
mento em relação ao sentido mais profundo da formação na tesiana.
cional e das instituições tradicionais, cuja revisão nur:ca deve As modificações introduzidas no direito privado pelos
significar uma subversão total. fins do século XVIII obedecem a uma inspiração individualis
Ora, acor:.tece que as primeiras grandes codificações ta, cosmopolita e excessivamente valorizadora da sistematiza
foram redigidas no clima do iluminismo e quando as idéias ção legislativa.
do liberalismo revolucionário se propagavam entre os juristas Destinando-se a assegurar ao indivíduo as prerrogativas
e os homens de prestígio político. Ressentiram-se, pois, muitas decorrentes da própria natureza, que lhe permitem desenvolver
vêzes - mais umas, outras menos - das influências de maior a personalidade e exercer amplamente a liberdade, os Códigos
fôrça na época de sua elaboração. Solari, em obra fundamen geralmente têm em vista um mundo jurídico formado apenas
tal sôbre o assunto, depois de ter feito notar que o direito de rela:;:ões interindividuais, com menosprêzo pelo caráter ins
privado consagrado nos Códigos modernos deve aos jusnatura titucional dos grupos. Nesse mundo a figura típica é o con
listas as suas bases filosóficns, assim se refere às influências trato ou acôrclo de vontades, sendo êste conceito aplicado até
recebidas pelos Códigos civis ela Prússia, da Franca e da mesmo ao casamento, sem se levar em conta a instituição da
Áutria: «Na codificação prnssiana com efeito é ev'iclente a família com as suas exigências, decorrentes também da ordem
influência do eudemonismo jurídico dominante na Alemanha natural e dos fins superiores da sociedade. Na sistemática de
com a escola de Wolff; no Código francês a fôrça da tradição tais Códigos prevalece a consideração do direito individual (2) .
jurídica em união com a corrente liberal inglêsa e fisiocrática Estamo, em face do indivíduo «considerado como a única
acabou por triunfar sôbre as doutrinas absolutistc1s de Montes realidade, abstraído da história da própria sociedade», daí
quieu e ele Rousseau, enquanto o Código austríaco deve con resultando que «o direito público, quando não é sacrificado
siderar-se mais diretamente inspirado nos princípios da filoso aos fins do indivíduo, é fruto do acôrdo dos particulares e
fia kantiana» ( 1) . deriva por contrato do direito individual» (3).
Donde o podermos dizer com Solari: «A codificação não
2. Segundo observa o mesmo autor, a escola do direito deve considerar-se de um ponto de vista puramente técnico ou
natural, em suas aplicações ao direito prindo. manifesta-se na
forma de um racionalismo subjetivisté1. Trat,1-se do direito
natural posterior a Grócio e desviado da traclicão escolástica (2). C. BEUDANT, Le droit individual et l'État, 2.• edição,
Paris. 1891.
medieval, que a partir do século XV 1 con1-inua,�a sendo culti
(3). G. SOLAR!, obra citada, p. SG. Cf. J. BREEfE DE LA
vada com brilho na Espanha e em Portugal mas se tornava cada GRESSAYE e :u. LABORDE-LACOSTE, Introd11ction générale à l'é
vez mais desconhecida nos países de i:ilém-Pirincus. Aquê]e trule d11 Droit, Recuei) Sircy, 1!14.í, p. 31: "Em suma, só o indivíduo
racionalismo subjetivista inseria-se na linha ele pensamento tem di re itos; a sociedade civil. representada pelo Estado, não tem
vindo da Renascença e que conduziria ao individualismo da senão deveres: respeitar us direitos individuais e assegurar a sua
coexistência". A cuneepção individualista exerceu imensa influência
Revolução de 1789. Para preparar êste individualismo, cujas sôbre tôda a organi;rn,ão política, civil, econômica e social na Fran
origens mais remotas estão na exaltação renascentista do ü1cli- ça e nos países da Europa e da Amél'ica que adotaram as idéias da
R.evolucão francês a: "Do ponto de ,·ista civil, o indivíduo deve ter
0 meio . de salvaguardar sua liberdade; na família êle poderá divor
(1). G. SOLAR!, obra citada, págs. 12 e S8-S9. Qnant0 i!O ciar-se; a propriedade individual lhe conferirá um domínio absoluto
Código Civil francês cnmpre destaear uma notá,-el tese recentemen sôbre a coisa, mesmo o direito de destruí-la por puro capricho;
te publicada: ANDRÉ-JEAN ARNAUD, Les origines docfrinales du enfim, a vontarle das partes, melhor que a do legislador, regulamen
Corle Civil {rançais, Paris, Lihrairie Générale de Droit et de Juris tará as relações entre indivíduos; daí a preponderância do contrato,
pn1dence, 1969. não passando a lei de um mal necessário" (idem).
! 1
1
72 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 73
jurídico, nem como simples coleção de máximas jurídicas da codificacão. Passou-se com o Código Civil francês algo
tendentes a satisfazer a necessidade de uniformização legisla de semelha{1te ao ocorrido com a Constituição dos Estados
tiva e as exigências da prática, nem ainda como um instru Unidos. Esta última, elaborada com algumas influências ideo
mento de unificação política e legislativa. Escopos de tal lógicas peculiares à época, teve sobret�d� o cunl:o de um inst�·u
natureza poderão certamente apressá-la e favorecê-la, porém mento pragmático dentro das cond1çoes reais �as colomas
não a explicam, sobretudo não constituem a sua razão de ser. inglêsas então emancipadas. Tratava-se de u�1rn lei em �onfor
A codificação significa mais do que a unificação formal do midade com o direito histórico. Outras naçoes do continente,
direito privado: ela é a expressão positiva de um sistema que posteriormente procurarnm organizar-se segun�o o exe1�1-
filosófico, ela foi no século XVIII a atuação da idéia indivi plar da democracia norte-americana, ao_ ª?� tarem este padrao
dual na ordem das relações civis. Por êste aspecto a codifi constitucional instauravam uma ordem Jund1ca sem fundamen
cação corresponde no campo do direito privado àquilo que tacão na reaÚdade histórica e, por isso mesmo, destinado a
foram as Declarações de direitos e as Constituições no campo pr�vocar ou agravar constantes crises polít_icas. Por sua_ vez ,º
do direito público, outras tantas expressões de um determinado Código Napoleão não foi um corpo de leis meramen_te_ ideolo
credo filosófico. Como estas últimas eram dirigidas a garan gico, pois até pelo contrário estava ba�eado_ na tracl1çao fran
tir a liberdade política dos cidadãos nas suas relações com o cesa, mas para povos de formação jurídica diferente se tornava
Estado, assim as codificações objetivavam assegurar a liberda naturalmente inadequado.
de civil do indivíduo na sua vida privada contra as indevidas
ir.gerências do poder político. O movimento ele emancipação 4. O direito romano, na medida em que servia de base
política não podia anelar separado do movimento de emancipa à legislação civil moderna, era por alguns �on�id_erado uma
ção civil: as Constituições e os Códigos consubstanciam a expressão do direito natural. E a seu respeito e mteressante
ambos» ( 4) . notar a diferenca de critério com q ue o consideravam os juris
O cosmopolitismo de tal concepção é uma conseqüência tas medievais e, aquêles que, depois ela Renascença, começaram
de ter a mesma como ponto de partida o indivíduo isolado, a estudá-lo segundo o mos gallicus. N� Idade Média houve
expressão da natureza humana em abstrato - independente uma adaptação do direito romano à sow::clade d�quel� ten:p�,
mente das contingências e circunstâncias concretas que diversi comparável à assimilação ela fil�sofia grega_ p�la filosofia crista.
ficam os indivíduos entre si - e desvinculado dos grupos nos Os comentaristas e os que cultivavam o direito romano segun
quais exerce a sua atividade, ou seja, o homem do «estado de do o mos italicus não foram meramente receptivos, mas exerce
natureza», cuja imagem, antes de Rousseau, havia sido delinea ram urna atividade criadora, pela qual merecem um paralelo
da por outros autores, particularmente Hobbes e Locke. com os próprios juristas de Roma. Assim os julga Koschaker,
opondo-lhes os que adotaram o 1110s gallicus, para os quais o
3. Se as declarações de direitos traduziam uma aspira direito romano era tomado na sua significaç5o original, sem a
ção sem fronteiras, da mesma forma as constituicões deveriam preocupação de juristas práticos e criadores (5).
estabelecer um regime ideal válido para todos o; povos, e até
mesmo os códigos civis surgiam, aos olhos de muitos, à ma
neira de uma racionalização da vida jurídica em plano abstrato. (rl). P. J(OSCl·L\KEH, EurOJJll U C'l Dercclro R.om,mo, Editorial
Nesse sentido o Código modêlo por excelência foi o Revista de Derccho Privado, l\[adrid, págs. 179-180. Esncvc o mes
francês, seguido por legisladores de outros povos no trabalho mo autor: "O jurista medieval se acerca do Corpus luris autoritário
cm atitude submissa e com uma carência total de sentido histórico".
Faltava-lhe, é verdade, o sentido histórico do direito romano, que
os humanistas se empenharam em reviver no seu significado autên
(4). G. SOLAR!, obra citada, p. 57. tico. !\Ias depois do humanismo - com o mos gallicus - se por
74 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 75
O direito romano era a ratio scripta. O nôvo Código cinava o direito natural racionalista . O Código prussiano
devia ser expressão da razão universal, revestido por isso oes obedecia à tendê ncia <lc tudo pr�ve:· com a lei e abranger em
mo do atributo da imutabilidade. Na França a reverência ao seus artigos todos os casos P?SS!Vcis . Ao magistrado preten
seu texto chegava ao máximo com a escola de exegese, colocan deu-se mesmo vedar qualquer mterpretação ela lei, e uma outra
do-o acima de qualquer interpretação que não fôsse a de ordenação do mesmo Frederico determinava que, em caso de
descobrir a intenção do legislador. Todo o direito devia caber silêncio ou ambigüidade do texto, se recorresse a uma Comissão
definitiva e exaustivamente dentro dêle, não sendo de admirar, legislativa. Tal ori�1�tação_ r�ão pr�valeceu n o Código, dispon
diante dêsse fetichismo da lei, que um professor de Direito do êste que, ao dec1d1r , o Jll!Z devia atender ao motivo da lei
tivesse chegado a dizer: «Eu não conheço o direito civil; só e s�ndo esta omiss�, aplic�r os princípi_os gerais do própri�
ensino o Código Napoleão» (6). Ilusão desfeita pelo rcta:ha Código ou recorrer a analogia tendo em vista casos semelhantes
mento a que, com o correr dos anos, foi submetido êsse meEmo legalmente previstos.
Código, cujos dispositivos começaram a ser alterados por nu
merosas leis promulgadas para atender a novas situações, 6. Na França a obra da codificação foi p reparada pelas
gerando por vêzes a «revolta dos fatos contra o Código», segun ordenações do chanceler D'Aguesseau e pelas grandes sistema
do a expressão de um conhecido autor (7). tizações de Domat e Pothier. Depois de 1789. a idéia de um
Código não podia deixa!· de sofr�r a influência dos princípios
5. Do projeto do Código Civil prussiano foi dito ter inspiradores da Revoluçao. Por isso mesm o quando a Conven
sido uma «idealizacão do direito romano» (8). Quando ção começou a empreender os tra balhos de elaboracão da lei
Frederico Guilherme, I encarregou Samuel von Cocceji de ela unificadora elo direito civil clesde logo o inclivieluali;mo então
borá-lo, tinha em vista um direito territorial estável e eterno. dominante a:-sinalou 0� projetos de l 793 e 1794. Era o tempo
Por sua vez Frederico o Grande, confirmando a nomeação, em que a lei Chapelle!· dava ui:1 ?olpe ele morte no regime
pela ordenação de 31 de Dezembro de 1746, recomendava que corporativo e em que tnu_�f�va ª ideia de Rousseau condenando
se estabelecesse um nôvo direito prussiano baseado sôbre a tôda sociedade intermedrnna e colocando ·o indi víduo só em
razão pura e sôbre os princípios constitucionais do País, bloss face elo Estado. Restava. ª f�mília, associação natural ainda
auf die Vernunft uncl Landesverfassung. reconhecida pelos revoluc101:ªn?s,_ mas os primeiros dispositi
Monarca perfeitamente ajustado ao modêlo ideal de vos votados nas leis que mstituiam o divórcio reduziam o
sobenrno do despotismo esclarecido, Frederico II tinha a sua casamento a t1m instituto de caráter meramente contratual
mentalidade formada pelo iluminismo cio século XVIII e patro- fazendo-o depender exclusi�amente ela vontade dos côn iu�
r,es (9) . Aquêles dois pr�Jetos apresentados na Conven �ão
foram seguidos de um terceu�o: no tempo do Diretório, tei�do
um lado se recupero u êsse Sl'niid[) histórico do direito romano, por
outro se perdeu o senso da historicidad<' do direito vivo, tão apura por principal autor Ca!nbace_res e revestindo-se dos mesmos
do no jurista mectieval, para o qual o direito romano era concebido característicos elos antenores, i sto é, um cunho acentuadamente
como um elemento integrante do direito vigente e transform;,tlo
pelas condições da época.
(6). Apuct J. BONNECASE, Scicnce clu Droit ct Ronrnnlisl'H', (9). o divórcio, por decreto. de• 20 . de Setembro de . 179. 9�, era
Recuei! Sire:,-, 1!J28, p. 9. adm itido pela vontade de um so conJnge e Por incomp:itibilidade
(7). GASTON l\IOHIN, La révoltc eles fails conlrc le Goele, rn20. de gên io. Pelos clccrctos_ rle 23 e 28 de Abril de li9-1, podia ser
Do mesmo autor: La loi et le contrnt. Décadence de leur sozwerii pronunciado pela separaça? de _f �t� dura n_t e mais de seis mese s. A
neté, 1927 e La réuolle du droit contre /e Code, Recuei! Sircy, 1945. tendência individualista e 1guahtana mamf est ava-se também no en
(8). LANDSBEHG, Geschicl1te der deutschen Rechtswissenschaft, fraquecimento da ª\it. 01:ida�e patern� _e n a_ plena equiparação entre
e o e admm1stra çao da sociedacte conjugal.
apud SOLA.RI, obra ci tada, p. 79. os cônjuges quanto a dH ç a
76 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 77
i�di;7i?ualista� com o desprêzo pelos elementos empmcos e tribuindo para a secularização do direito e para o triunfo do
lustoncos. 1 ratava-se de um código filosófico, concebido como individualismo.
que fora do tempo e do espaço, um código da natureza segundo
esta se apresentava à ótica dos revolucionários. 7. :Êste individualismo, vamos encontrá-lo também no
Entretanto, as tendências para o fortalecimento da autori Código austríaco, sob a modalidade que assume com a filosofia
d�de e a resta�ração da ordem nos dias do Consulado impri jurídica de Kant. A Áustria oferece-nos um exemplo bastante
miram nova orientação aos trabalhos de elaboracão do Códiao 0
esclarecedor das influências exercidas no terreno da legislação
Surgiu êste afinal como obra da vontade de Napoleão e d� pelo racionalismo do século XVIII, ali se manifestando suces
mente de Portalis (10). Ora, convém lembrar que êste jurista, sivamente através do iluminismo e do criticismo. O iluminis
vulto proeminente na Comissão nomeada pelo decreto consular mo predomina mercê da atuação de José II, um dos monarcas
de 24 Thermidor do Ano . VIII (12 de Agôsto de 1800), pou que mais se deixaram impregnar pelos ideais da Aufklarung, e
cos anos antes, quando exilado na Alemanha, escrevera precisa inspira o projeto primitivo redigido por uma comissão sob a
mente um «Ensaio sôbre o uso e o abuso do espírito filosófico presidência de Martini. O espírito do criticismo kantiano
no século XVIII», criticando acerbamente a filosofia dos En passa a prevalecer na fase derradeira, graças à contribuição
decisiva dada por Zeiller, relator da comissão revisora do
ciclopedistas e da Convenção. Portalis passou dois anos em
projeto Martini e fiel intérprete do pensamento jurídico do
Hol �t.ein, residindo no castelo de Emkendorf, propriedade da
filósofo de Konigsberg (11).
familia dos Reventlow, centro de reação pietista contra o livre
No projeto primitivo - o Urentwurf devido principal
pensamento e o racionalismo. Seu filho José casou-se com a
mente a Martini, que era professor de Direito Natural e de
filha adotiva de Fritz von Reventlow, que muito apreciava a Direito Romano na Universidade de Viena - reflete-se o
conversação do jurista francês. Durante os anos passados na eudemonismo jurídico próprio do iluminismo, segundo as mes
Alemanha, Portalis teve oportunidade de entrar em contato mas diretrizes ideológicas do Código Civil prussiano. Num
com Niebuhr, Klopstock, Jacobi e outros, sendo-lhe dado con caso e noutro a sistematização do direito e as inovações intro
siderar as ressonâncias da Revolução francesa no pensamento duzidas são bem explicáveis dado o ambiente reinante em tôrno
alemão e firmar as suas convicções favoráveis a um regime daquelas figuras típicas do «despotismo esclarecido»: Frederico
moderado e de base histórica, tal como resultava das idéias da Prússia e o Imperador José II. Entendia-se o fim do Esta
políticas do romantismo naquele país. Voltou à França depois do - die allgemeine Wohlfart - em função do progresso a
do golpe de Estado do 18 Brumário, chegando a ser Conse ser promovido, mediante reformas sociais e jurídicas, pelo
lheiro de Estado. Na Comissão encarregada do projeto do soberano dotado de amplos podêres para retirar o seu povo do
Código Civil, entre Tronchet, representante da corrente revolu obscurantismo .em que, ao ver dos iluministas, o traziam emper
cionária, e Bigot-Préameneu, expressão do Antigo Regime, rado as velhas tradições. A felicidade individual e o aperfei-
Portalis foi quem marcou o Código com seus tracos caracterís
ticos, realçados no famoso «Discurso preliminar>;, Escapando (11). No reinado de Leopoldo I fôra feita uma compilação legis
de ser o Código filosófico e abstrato anunciado pelos trabalhos lativa, o Code.-c .-111striac11s. Para o conhecimento do direito privado
ela Convenção e reintegrado na tradição constituída desde os territorial existiam a Kompi/ation der l}ier Doktoren ( 16fi7) e O jlro
jeto de Landtafel de Schwarz, ainda mais antigo (1609). A Impe
tempos do chanceler D'Aguesseau, nem por isto deixou o Code ratriz Maria Teresa nomeou urna Kompilationslwmission, tendo em
Napoléon de ser um instrumento da ação revolucionária, con- vista a unificação do direito civil nos Estados austríacos. Ao Codex
Theresianus daí r esultante (1776) seguiram-se o Josej'iniscbes Geselz
buch (1786), o westgalizisches Gesetzbuch (1797) e finalmente o
(10). G. SOLAR!, obra citada, p. 167. allgemeine bürgerliche Gesetzbuch (1811).
l
1
78 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 79
çoamento coletivo deviam ser a meta do legislador, a contri ou no conceito de obrigação. Em alguns pontos - como em
buir de um modo positivo não só para a segurança dos súditos matéria de culpa ou no concernente às relações patrimoniais
mas também para a satisfação das necessidades e tendências entre os cônjuges - o critério seguido afasta-se do pensamento
da natureza humana. Neste sentido era bem significativo o jurídico kantiano.
artigo primeiro do projeto primitivo, considerando jurídico O direito das sucessões foi uma das partes do Código mais
tudo o que é bom em si mesmo e que, nas suas relações e assinaladas pelo cunho individualista. Neste sentido é interes
conseqüências, produz efeitos benéficos em vista do bem estar sante confrontar - como o faz Solari - as posições de Kant,
geral, assim confundido o campo do direito com o da mo Martini e Zeiller. Kant só considerava de direito natural a
ral (12).. Acolhiam-se os ensinamentos do jusnaturalismo sucessão testamentária. Para Martini o direito hereditário se
racionalista, traçando uma programação para a ordem jurídica apresentava como conseqüência do domínio, resultando da
positiva, na idéia de que os direitos naturais, imperfeitos e faculdade reconhecida a cada um de dispor livremente daquilo
indeterminados, encontram na vontade do príncipe a condição que lhe pertence. Quanto a Zeiller, recusando a justificação
formal e necessária para que passem a vigorar como direitos dêsse direito em princípios de razão, procurava fundamentá-lo
positivos e perfeitos. Por outro lado procurava-se coligir as em motivos de direito público. O respeito escrupuloso à
normas consuetudinárias e de direito escrito existentes, harmo vontade declarada ou presumida do testador constituiu o eixo
nizando-as entre si segundo um critério racional e aperfeiçoan em tôrno do qual foi a matéria regulamentada pelo Código.
do-as com as licões tiradas dos melhores intérpretes, bem como O ponto de vista do direito real. dependendo da vontad� do
do cotejo com �s leis estrangeiras (13) . titular, prevalecia sôbre as considerações decorrentes dos mte
A êsse eudemonismo iluminista opôs-se Kant com a sua rêsses da família (14) .
noção de direito como conjunto de condições limitativas ela As regulamentações do Código prussi�no a�inentes .ªº
liberdade e tendo em vista essencialmente a sua coexistência. ,
assunto procediam ao mesmo tempo elo respeito a liberdade m
Na época da revisão do Urentwurf austríaco o racionalismo dividual e às exigências da vida familiar, daí decorrendo o
wolffiano, inspirador dos sistemas de direito natural ensinados sistema testamentário e o sistema sucessório doméstico, êste
ao tempo de Martini, começava a perder o seu prestígio ante a tratado no direito de família e aquêle no título consagrado à
poderosa crítica kantiana. Vimos então uma nova orientação aquisição da propriedade. O Código f7an�ês dispõe s?bre a
nos trabalhos do Código, devida ao relator Zeiller. orientação _
matéria no Livro UI, ao tratar da aqms1çao da propriedade.
esta em que o ponto de vista form61 é mais acentuado na E no Código austríaco o direito hereditário . foi colocado ent!e
elaboracão da norma jurídica, distinta da moral, sendo porém _
os direitos reais, ao lado da posse, da propnedade, da serv1dao
o rigor�so formalismo apriorístico de Kant atenuado por con
e do penhor.
siderações práticas em vista elos objetivos da legislação civil.
Descendo a particularidades, é de se notar a influência
de Kant na doutrina da posse acolhida pelo Código austríaco, 8. O direito civil português, da Lei . da _Boa . Raz�o .ªº
no modo de entender as relações entre posse e propriedade, Código de 1867, acusa na elaboração legislativa mfluencias
procedentes das mesmas correntes de idéias que �tua_ram na
.
França e nos países germânicos. Assim: numa pnme1ra fas:
(12). O citado artigo tlefine o direito alies was an sich selbsl domina o jusnaturalismo abstrato e se . difunde, sob o patr�c1-
gzzt ist, was nach seinen Ve.rhiiltnissen und Folgen etwas Guies nio de Pombal, a mentalidade progressista dos homens do 1lu-
enlhü.lt, oc!er heruorbringt, uncl zur allgemeinen Wohlfart beilragt.
( 13). À comissão encarregada elo Código Teresiano era reco
mendado ter sempre em vista "o direito universal da Razão" (das
allgemeine Recht der Vernunft). (14). G. SOLA.RI, obra citada, págs. 274-275.
80 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇAO LEGISLATIVA 81
minismo, ao passo que o individualismo crítico marca, através processos de interpretação e de integração das lacunas da lei,
do Visconde de Seabra, a obra da codificação (15). a adaptação do direito das Ordenações à linha doutrinária
Regia-se o direito civil em Portugal pelas Ordenações Fili oriunda da «filosofia das luzes». A nova hermenêutica adicio
pinas, especialmente no seu livro IV, corpo de leis que desde nava-se às reformas legislativas - levadas a efeito no tocante
1603 - durante o domínio espanhol - sucedera às Ordena aos emprazamentos, aos contratos de usura, ao concurso de
ções Afonsinas e às Manuelinas e que tinha por complemento credores, à regulamentação jurídica dos vínculos e ao direito
as chamadas leis extravagantes. Tratava-se de uma legislação das sucessões - como um elemento a mais para impulsionar
antiquada, prolixa e inçada de defeitos, que, uma vez atuali a transformação da ordem jurídica.
zada e sistematizada, devia assim mesmo fornecer o material Desprezando o direito· canônico e o direito romano, admitia
para a codificação, pois apesar de tudo se adaptava às realida êste último na qualidade de direito subsidiário somente quando
des sociais da vida portuguêsa. Estendendo-se ao Brasil, ficou seus dispositivos fôssem conformes àquela I3oa Razão consti
vigorando entre nós por mais tempo, até aos primeiros anos tuída pelos «primitivos princípios, que contêm verdades essen
da República, antes de ser promulgado o Código Civil brasilei ciais, intrínsecas e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos
ro, posterior de cinqüenta anos ao Código Civil português. havia estabelecido e que os direitos divino e natural formali
Dêsse rumo comecava a desviar-se o direito lusitano na zaram para servirem de regras morais e civis», e ainda pelas
época pombalina, com 'as reformas legislativas então operadas, «outras regras que, de universal consentimento, estabeleceu o
e pela propagação das idéias e dos métodos do jusnaturalismo direito das gentes para direção e govêrno de tôdas as nações
racionalista e do usus modernus pandectarum. A publicação civilizadas» ou pelas «leis políticas, econômicas, mercantis e
do Verdadeiro Método de Estudar de Luís António Verney, marítimas que as mesmas nações cristãs têm formulado com
em 1746, abria uma nova fase no ensino universitário e marca manifestas utilidades do sossêgo público, do estabelecimento
va o início da difusão daquelas idéias. da reputação e do aumento dos cabedais dos povos, que com
Se bem que se exaltassem algumas tradições jurídicas as disciplinas destas sábias e proveitosas leis vivem felizes à
nacionais, o que sobretudo passou a prevalecer daí em diante sombra dos tronos e debaixo dos auspícios dos respectivos mo
nos trabalhos legislativos foi a preocupação com as transforma narcas e príncipes soberanos». Tudo numa linguagem bem
ções havidas nas nações «polidas» e «iluminadas» - segundo característica do tempo.
a linguagem então usual - e com o critério elástico e impreciso Por sua vez os Estatutos Pombalinos da Universidade de
da Boa Razão, a recta ratio dos jusnaturalistas, erigida pela Coimbra fixavam regras para orientar o intérprete no sentido
famosa lei de 18 de Agôsto de 1769 em suprema instância da de verificar a conformidade ou não dos preceitos de direito
sistemática legislativa. romano com o princípio estabelecido por aquela lei, acrescen
Esta lei - refletindo as mesmas tendências inspiradoras tando mais um critério interpretativo, a saber, «o uso moderno
do Código da Prússia e do Código Teresiano, no seu apêlo ao das mesmas leis romanas entre as sobreditas nações, que hoje
direito universal da Razão - vinha permitir, mediante novos habitam a Europa», sendo tidas por aplicáveis tais leis quando
referidas nações as observem e as guardem.
Dispunham a seguir os Estatutos que «para se instruírem
(l:i). Além elas obras citadas ele CANDIDO l\rENDES DE AU.rEI no dito uso moderno se aproveitarão os professores do útil e
DA e FHAi\:CISCO JOSÉ \'ELOZO, ver L. CABRAL DE :MONCAD,\, apreciável trabalho que para o mesmo fim se acha já feito por
Estudos ele História do Direito, volume I, Acta Universitatis Conim
bricen.çis, 1948, p. :ns e seguintes, e GCILHERl\lE BRAGA DA grande número de jurisconsultos em diferentes livros». Era
cnuz, Formaçíio histórica cio moderno direito privado português e isto fazer das obras de Heineccius, Thomasius, Struve, Stryck,
brasileiro, in Scientia lllridica, tomo IV (Março-Junho 1955), p. 234 Bohmer e outros, fontes subsidiárias do direito, orientação que
e seguintes. veio efetivamente a vingar nos assentos da Casa da Suplicação,
1
:
lJ,_
E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 83
82 A HISTORICIDADE DO DIREITO
Capítulo V
TENSÃO ENTRE A NORMA E A
REALIDADE NO DIREITO
CONSTITUCIONAL
il!
1 1
��.
Capítulo V
TENSÃO ENTRE A NORMA E A REALIDADE
NO DIREITO CONSTITUCIONAL
regime de absolutismo, quando a !ex suprema se identifica Surgem por tal forma as constituições como produto da
com a vontade do príncipe. Lembremos a respeito os diversos vontade dos homens que, na qualidade por êlcs invocada de
significados de !ex f 1mdamcntalis dados por Carl Schmitt, entre representantes do povo, reunidos em assembléias de podêres
os quais a noção kelseniana de constituição como norma última especiais, redigem a lei fundamental do Estado. Têm, pois,
num sistema de imputações normativas ( 1) . as mesmas um caráter convencional, ainda no caso das cartas
Finalmente num terceiro sentido, ainda mais estrito, a outorgadas, pois estas vêm a ser o resultado de uma declaração
constituição designa uma espécie de contrato, pelo menos táci da vontade cio titular da soberania reconhecendo os direitos
to, entre os governantes e os governados, pelo qual aquêles dos seus súditos e comprometendo-se a respeitá-los.
têm os seus podêres limitados e devem reconhecer a êstes
certos direitos ou liberdades intangíveis. 2. A experiência da União americana nos apresenta as
Na primeira destas acepções, a palavra constituição não atividades dos fundadores de um nôvo Estado, ao qual cumpria
c.e restringe ao Estado ou às sociedades políticas, e ao lado do dar uma estrutura constitucional. Vinham desempenhar a
direito constitucional elo Estado podemos assim falar no direito tarefa quando as idéias do século XVIII começavam a tomar
constitucional da família ou no ela emprêsa econômica. Desta conta das elites dirigentes. E embora se tratasse de homens
acepção de maior amplitude. destaca-se o terceiro e estritíssimo práticos, que além do mais tomavam por fonte de inspiração
sentido, o da constituição como lei pactuada entre os gover o direito histórico das primeiras cartas de colonização, não dei
nantes e os governados, idéia a que _iá obedece a Magna Cnrta xaram assim mesmo ele receber o influxo de um Locke, de
de João Sem Terra - um dos primeiros e raros textos escritos um Montesquieu, de um Rousseau (3).
da constituição britânica - e que modernamente encontra sun O constitucionalismo na Inglaterra e nos Estados Unidos
expressão na constituição como lei magna elaborada por um partiu do reconhecimento de direitos preexistentes: liberdades
poder revestido de função criadora na ordem jurídica, o poder e privilégios a defender, observância ele certas práticas consue
constituinte (2) . tudinárias, direitos assegurados por textos antigos. A Decla
No primeiro caso tomamos a palavra co11stituição por tação da Independência das treze colônias americanas, em
analogia com a constitutio corporis, ao passo que neste derra 1776, invocava para justificar a emancipação uma série de
deiro significado ela se prende à derivação ele cum slatucrc, medidas ilegais e arbitrárias do Rei da Inglaterra, pelas quais
que lhe pode ser também atribuída. Depois ela primeira cons o sistema das leis inglêsas era abolido e novos tributos eram
tituição política escrita e sistemática elos Y-:stados modernos, a impostos, com violação das antigas cartas e sem o consenti
Constituição americana. promulgada prcci�arncnte nos fins do mento dos súditos. O Rill of Rights ele 1689 reafirmava «os
século XVIII, vemos genernlizar-se o regime constitucional à verdadeiros. antigos e incontestáveis direitos do povo». Refe
base de leis fundamentais elaboradas por assembléias consti rindo-se à Magna Carta, à Petição de Direitos e ao Bill de 1689,
tuintes, estatuindo a disciplina do poder em função de princí Freeman observa que nenhum dêsses documentos políticos
pios eivados de um abstracionismo jurídico e decorrentes de trouxe o estabelecimento de alguma coisa nova. Êles vinham
idéias semeadas 118 época iluminista. reforçar a proteção de direitos de que os inglêses gozavam
desde longa data. Nas grandes lutas políticas o clamor públi
(1). CARL SCHl\IITT. VerfassHngslehre, § f>, 3.• edição, Duncker
& Hnmblot. Berlim, p. 42.
co não se levantava propugnando novos princípios, mas exigin-
(2). Trata-se então da constituição política. Sôhrc a mo
derna teoria do poder constitninte, além da obra citada de
CARL SCH�IITT, \'Cr EGON ZWEIG, Die Lclire von Po1woir Consti (3). Assim é que o Esprit eles Lois adquirira uma grande auto
tuant: Ein Beilrug zum Staalsrecl1t der franzosischen Revolulion, ridade entre os homens da república nascente. Cf. J. BRYCE, La
Tübingen, J. C. B. l\Tohr (Paul Sicheck), 1909. République Américaine, trad. francêsa, V. Giard & Briere, t. I, p. 53.
90 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 91
do o melhor cumprimento das leis em vigor ou a reparação estatal, funda por tal fato o Estado e o poder que se exercerá
dos agravos sofridos em razão do desprêzo ou do olvido das _
em seu nome, e determina as condições nas quais os gover
leis ( 4) . nantes serão habilitados a usar dêste poder e os governados
Os direitos eram considerados na sua concretização obrigados a se submeter ao mesmo» (5).
histórica e não somente enquanto predicados da natureza abs Se as leis pouco valem sine moribus, sem estarem assenta
trata do homem. Assim a constituição política resultava de das na realidade social e no direito histórico, isto também é
um desenvolvimento orgânico, isto é, histórico, do direito. Daí verdade em se tratando da lei fundamental do Estado, mesmo
o se ter dito da constituição britânica: it had not been made, na hipótese de um nôvo regime político a estruturar, quando
but had grown. E embora não se possa a rigor dizer o mesmo importa ajustar instituições a um determinado meio, levando
do direito constitucional americano, onde é maior a intervencão em conta os hábitos sociais, as tradições locais e regionais, o
do elemento deliberativo e consensual no sentido da forma�ão caráter geral do povo, enfim todo um background psico-socio
de novas normas de direito, mesmo aí vemos o cunho da hi;to lógico, político e econômico. Nesta subestrutura se a�ha o que
ricidade a contrastar com o abstracionismo das fórmulas cons há de mais fundamental ou constitucional numa naçao, a sua
titucionais adotadas nos países hispanoamericanos, a exemplo constituicão social, o suporte da constituição política. Esta
aliás da França revolucionária, das Côrtes de Cádiz e da Cons última 1{ão deve ser um produto concebido apriorlsticamente
tituinte de Lisboa. ou fabricado como um artefato, pois não é obra de engenho
Foi com a Revolução de 1789 que tal abstracionismo mecânico mas de prudência legislativa, e o legislador prudente
começou a imperar na elaboração do direito constitucional. A sabe auscultar os condicionalismos sociais.
ordem tradicional era abatida para se ccnstruir, em seu lugar,
a sociedade nova. A constituição tornava-se a pedra angular 3. Segundo a concepção democrática da Constituinte
do edifício a ser erigido, sua promulgaçfo uma espécie ele ato francesa e das que nela se inspiraram, a vontade d? f:ºV?,
solene de fundação do Estado e seu texto a fonte última dos criadora da ordem política, tem em si mesmo a ratw 1uns,
direitos e das liberdades dos cidadãos. A essência da teoria independentemente de quaisquer con?ições. �essa vontade
revolucionária do poder constituinte e da constituição, ato colocava Sieyes a origem de tôda legalidade, cnsmamento con
dêsse mesmo poder, está na idéia da criação ex nihilo da ordem tido no panfleto Qu'est-ce-que le Tiers État?, a reproduzir a
jurídica positiva pelo povo, através de seus representantes tese de Rousseau afirmando ser a vontade do povo sempre
devidamente credenciados para o exercício elas funções cons reta. Os constituintes Camus e Teilhard, na sessão de 1.º de
tituintes. Junho de 1790, afirmavam que a �ssembléi� ti�1l:a o pod�r de
Ê o que faz ver Georges Burdeau com as seguintes pala mudar a religião. E assim a teoria revoluc1onana conferia ao
vras: «A constituição não é a descrição de práticas mais ou poder constituinte - observa-o o historiador -�lbert Mathiez
menos similares, não é mesmo um conjunto de instituicões às , 1
_ uma ditadura ilimitada em todos os do1111111os. «Todo o
quais um consentimento tácito do povo conferiria un� valor poder à Constituinte» era o pensamento que precedia de mais
discutível, não é tampouco a tradução cm regras jurídicas de _
de um século o dito de Lenin: «todo o poder aos sov1ets».
um estado de fato antigo, é um ato voluntário e refletido pelo Poder ambicionando a ser verdadeiramente criador, no dizer
qual o soberano define o Poder que se inscreve na instituição de Marcel de la Bigne de Villeneuve: «Criar, o têrmo é bem
( 4). EDWARD A. FREEl\IAN, Le déueloppement de la consti i'5). G. BURDEAU, Traité de Scicnce Politique, t. III, Le statut
tution anglaise, tratl. de Alexandre Dchaye, Paris, Guillaumin et du ;ouuoir dans l'État, Paris, Lihrairie Générale de Droit ct de
Cie., Édit., 1877, p. 61. Jurisprudence, p. 42,
92 E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 93
A HISTORICIDADE DO DIREITO
significativo, pois uma criação consiste em tirar uma coisa do vem dominando do século XVIII até aos nossos dias. As leis
nada. Outrora esta faculdade era atribuída a Deus. Os passam, assim, a ser elaboradas sem o cuidado prévio de um
deputados não hesitam em avocá-la. Aos seus olhos o texto devido conhecimento do meio social e histórico para o qual
constitucional que dão à luz é mais do que uma lei por elevada se legisla.
e venerável que queiram fazer esta noção, mais mesmo do que
uma disposição hiperlegislativa ou superlegislativa do mais 4. A pretensão de infalibilidade e onipotência dos
alto grau que seja positivamente imaginável. É uma revelacão legisladores foi denunciada, no século passado, por Rosmini.
qu� participa da natureza divina». O mesmo pensamento, c�m O grande pensador italiano, que contribuiu poderosamente
maiores arroubos, será o dos membros da Convencão. «Ei-la» para a restauração da metafísica e viveu a crise espiritual de
- exclamava Barrere - «essa Constituição tão d;sejada que, sua época inteiramente devotado à filosofia especulativa e às
como as Tábuas de Moisés, só pôde sair da Montanha Santa questões religiosas, teve também uma inclinação muito acen
no meio de raios e relâmpagos! E não se diga que é obra de tuada para a ciência política, participando das preocupações
alguns. Em poucos dias recolheu-se a luz de todos os de seus contemporâneos em face da agitação revolucionária.
séculos» (6). Grande metafísico, não caiu entretanto, ao versar temas polí
Com tal concepção o poder legislativo se crê infalível e ticos, no vício da «política metafísica», segundo a expressão
todo poderoso, encerra-se orgulhosamente na sua auto-suficiên de Augusto Comte com referência a Rousseau e mais homens
cia e não sente as limitações que o legislador prudente forço de 1789. Impugnou a ideologia que, proveniente da França,
samente enxerga em tôrno de si e dentro de si mesmo. A inspirava em muitos países da Europa e da América a implan
verdade, norma de ação, deixa de ser a adequação entre a tação da nova ordem constitucional. Nos seus projetos de
inteligência e a realidade, chegando-se, num extremo de idea Constituição para o Estado romano, nos seus ensaios sôbre a
lismo, a transformar o ideal no real. Tudo isto, fruto daquela «constituição natural da sociedade civil» e sôbre a «constitui
mentalidade impregnada de subjetivismo abstracionista, que ção segundo a justiça social», Rosmini procurava afastar os
legisladores do lirismo revolucionário, trazendo-lhes à conside
ração o fato político segundo critérios de objetividade socio
(6). i\IARCEL DE LA BIGNE DE VILLENEUVE, L'Activité lógica.
Éfatique, n. Sircy, 1954, págs. 398-399. Sôbrc o mesmo tema, veja-se
EGON ZWEIG, obra cilada. Observando a influência da atmosfera
Fazia ver que há duas modalidades de constituição polí
do século das "luzes" nas primeiras constituições escritas, diz J{ARL tica: uma, formada gradualmente, sem um plano preconcebido,
LOE,VENSTEIN: "Esfor�·ou-sc por transpor as ciências mecânicas à sob o impulso das fôrças sociais ou das aspirações populares;
ciência do govêrno. Uma Constituição bem ordenada com uma série
de controles e contrapesos (cheks and balances) destinados a garan
outra, criada de um jacto, produto de uma ideologia, saindo
tir as liberdades, devia permitir obter, por uma separação funcional da mente do legislador como Minerva da cabeça de Jú
dos podêres, o equilíbrio ideal das fôrças sociais". E prossegue: piter (7). As constituições anteriores a 89 pertencem ao
"No seu otimismo ingênuo, os teóricos políticos e os próprios polí
ticos acreditaram que bastaria uma Constituição bem ordenada, isto
primeiro tipo, por exemplo a da República de Veneza e
é, bem equilibracla, para obter uma sociedade igualmente hem orde a da Inglaterra. As outras têm sua filiação na França
nada. Ignorando as tenl ações demoníacas do poder político, a Cons revolucionária.
tituição escrita ofereceria automàlicamenle a solução de todos os
males sociais e asseguraria a felicidade dos povos· por ela regidos"
(Ré{le:r:ions sur la 11aleur des Constitutions, in Re11ue Française d l'
Science Potilique, vol. II, n.0 1, janeiro-março 1952, p. 10). Do mesmo (7). A. ROS'.\IINI, Progetli di Cosliluzione. Saggi edili ed ine
autor: \1 0/k und Parlament nach der Staatslheorie eles franzosischen diti sullo Stuto. Fratelli Bocca Edil., l\iilão, 1952: La Costituzione
Natio11alvcrsam111lung von 1789, l\Iunich, 1922. secando la giustizia soziale (p. 67 e seguintes).
94 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 95
Até o tempo em que escrevia Rosmini, a Franca tivera dez a Camboja ou a Tangânica? O certo é que elas não têm ne
constituições, algumas em vigor por menos de un; ano. Esta nhuma aparência de leis confeccionadas, sob medida, para a
instabilidade foi também a de constituições doutros países deri nossa terra» (9).
vadas do modêlo parisiense. O mesmo autor, nas páginas do Desde os primeiros líderes, na época da independência,
�eu trabalho . Alcune parole sopra diverse cose che passano - c::imo Miranda na Venezuela e José Joaquim da Maia no
zntorno � noz, enumera as constituições de países europeus de Brasil, - até os homens de govêrno, os reformadores e os
3 de Ma10 de 1791 a 24 de Agôsto de 1829, isto é, num perío criadores de constituições, todos se achavam, em maior ou
do de trinta e oito anos e a!guns meses. Chegavam elas a menor dose, impregnados das fórmulas anglo-saxônias sem um
_
152, das quais 12 nunca aplicadas. As que vigoraram não conhc:cimento suficiente da vida do povo no interior do país
ultrapassavam, em 1829, dezesseis anos de existência. (10).
N? sua linguagem de polem:sta o filósofo peninsular As constituicões vinham a ser assim obra de homens ins
concl�ia qu� as abstrações políticas da Revolução francêsa tmíd::is ao sabor' de influências estrangeiras, desenraizados de
_ sua terra e de sua gente e vinculados aos interêsses da classe
erm:n rnsufic1entes para fundar um govêrno durável e reduziam
a vida dos Estados à curta existência dos insectos. social dominante. Eram as «elites marginais» de que nos fala
Oliveira Vianna nos volumes de Instituicões Políticas Brasileiras.
A ccnstituição como carta ideológica,, redigida em função de
. �.. A elaboração das constituições políticas num plano certas concepções políticas, deixava de ser um instrumento
1deolog1co e segundo uma técnica meramente formalista susci
pragmático destinado a preservar as liberdades concretas, e des
tou a oposição entre o direito constitucional e a realidade cons
ta forma perdíamos o sentido daquele constitucionalismo inci
titucional (8).
pient:: que havíamos herdado dos portuguêses e espanhóis com
Um tal antagonismo resuita patente na formação constitu o regime foraleiro.
cional do Brasil e, ainda mais, na dos povos vizinhos e irmãos O abstracionismo da ideologia liberal e o formalismo ju
da lberoamérica. Mostra-nos a história dêstes povos o des rídico obnubilavam a visão das fontes reais do direito. E assim
prêzo de todo um patrimônio institucional rico em elementos se acentuava, no campo do direito constitucional, a tensão en
aptos a permitir a estruturação dum regime autênticamente tre a norma e a realidade.
popular, cujos caminhos se perderam com o transplante de Em presenca da distincão entre fontes formais e fontes
fórmulas democráticas para nós sem sentido, colhidas na expe reais do direito, a constitui�ão política significa propriamente
riência de outros países, principalmente na dos Estados Unidos. a constituicão f ;rmal. Trat;-se da constituição jurídica da so
cieda:le política ( rró7.t;, Civitas, Estado-nação). Quando ela é
Daí o escrever o Professor Goffredo Telles Junior: « Para
que povo, para que país, teriam sido escritas as Constituicões
republicanas do Brasil? Para os Estados Unidos da América? (9). GOFFREDO TELLES .JONIOR, obra citada, p. f,.
Para a Inglaterra? Para a França? Ou, talvez, p::ira o Congo, (]O). O con t l'astc enl re as cidades mais importantes do 1 i tora],
onde dominavam ns homens da "república das letras", e a zona rural
do interior - salientado cnt1·e nó� por Euclides da C.unha - for
neceu na Argentina, ampla matéria de discussiíes a propósito do
(8). GEOHGES DASKALAKIS, Droil constit111ion11el e/ réalité tema '"civilização ou harhúric". Ver FER:-.lfN CHAVEZ, Í.Í1Jilización
ronsti/11/ionnd!e, tese apresentada ao Congresso Internacional de 11 barbarie. El liberalismo !J el mayismo en la _historia !J en
Jurist�s de Atenas, em Junho de 1955, Comple-rendu du Congre /n /a cultura argentinas,
. Editorial Trafac, Buenos Aires. Ver tam
.
terna(1011al de .lurzstes, Haia, págs. 41-45. J{ARL LOEWENSTEIN bém, quanto à Argentina, A�Tl:�0 ENRiquE SAl'IIPA Y, ,L� fi�osofiu
artigos citados, in Revue Française de Science Politique, vol. II, nú� dd iluminismo !l la Const1luczon argentzna de 1953, Edllonal De
meros 1 e 2. Palma, 1944.
96 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 91
elaborada levando devidamente em conta os dados reais do país dos grupos manipuladores da opinião pública, na realidade cons
a que visa reger, aquela tensão não se manifesta de modo muito titucional hispano-americana, são exemplos que bem ilustram a
sensível. Mas quando a constituição formal não corresponde à hipótese de Aristóteles: conflito entre a constituição real, oli
realidade constitucional histórico-política, então vê-se aparecer gárquica, e a constituição formal, que é geralmente uma carta
o que Georges Daskalakis chama a paraconstituicão e a contra ideológica democrática.
constituição. Na primeira hipótese (paraconstitt;icão) a cons
tituição permanece em vigor, mas se vê modific;da 'nas suas 6. Aliás, nas democracias modernas, a realidade dos gru
�plicações, _ por regras de direito escrito, pelos costt;mes, pel; pos mais ou menos esotéricos e do poder econômico, que faz
mterpretaçao, pelos usos constitucionais. Na segunda hipótese do poder político seu instrumento, é a fonte da contraconsti
(�ontraconstituição), a constituição torna-se um chijfon de pa tuição, enquanto o princípio da origem popular do govêrno
p_1er e as yrátic s políticas são r dicalmente contrárias ao espí- é a expressão teórica da constituição formal. Cumpre consi
_ _ ?_ ? derar ainda a importância do poder militar, cuja influência
rito e as mstitu1çoes fundamentais do regime constitucional for
malmente estabelecido (11). política não pertence apenas à história, mas avulta em nossos
Esta distinção já era esboçada por Aristóteles, no livro V dias, dando margem a que se comece a falar de Estado mili
da Polí tica, onde o estagirita pondera que as democracias podem tarista ( 13).
_ O prisma pelo qual os juristas estudam o direito é o das
ser mais ou menos democráticas e as oligarquias, mais ou me
nos oligárquicas. Assim, a constituição pode ser democrática e fontes formais. Êste formalismo, legítimo em si mesmo, deve
o govêrno, oligárquico. ser completado por uma visão sociológica do fenômeno jurídico,
particularmente necessária ao legislador. No tocante às consti
Se no Brasil e nos países ibero-americanos, a constraconsti tuições, temos visto que, elaboradas segundo os preceitos da
tuição tem prevalecido com freqüência, isto se deve ao abstra técnica jurídica seguidos pelos legisladores constituintes, elas se
cionismo anti-histórico de suas leis fundamentais, inspiradas no subordinam a diretrizes ideológicas e dependem também das
«idealismo utópico» das elites dirigentes, ao qual as realidades circunstâncias históricas que condicionam os movimentos polí
sociais e as práticas políticas trazem um desmentido sem ape ticos, as revoluções e as reformas legislativas. Daí o dizer
lação (12). O caudilhismo e o predomínio das oligarquias ou Manuel García-Pelayo que «o Direito constitucional vigente,
como todo Direito, não é a pura norma, e sim a síntese da ten
(11). GEORGES DASKALARIS, obra citada, púgs. 41-45. Por
são entre a norma e a realidade com que ela se defronta» (14).
�ua vez, KARL LOEWENSTEIN (H.F.S.P., vol. II. púgs. 20-22) refere A paraconstituição é uma conseqüência do desenvolvimen
-se às constitui�·ões "nominais" e :is constitnições "semânticas". to do direito constitucional quando se quer fazer da constitui
(12). Quanto ao Brasil, ver principalmente OLIVEIRA VIANNA, ção jurídico-formal um sistema completo, uma carta ideológica
O idealismo na evoluçiío política do Império e da República 1922
Biblio teca d' "O Estado de S. Paulo", n. 0 1; O ideali.rn10 da Consfi�
abrangendo tôda a sistemática do Estado no concernente à orga
l11içlÍo, 2.• ediçiio :rnmentnda, Compnnhin Editôra Nacional (Brasi nização dos podêres públicos e à garantia das liberdades. Êstes
liann, n.• 141); e lnslillliçDl's políticas brasileiras, Livraria José dois aspectos do problema são convergentes, apresentando-se a
O!ympio Etlitôra, 1949; ALBEHTO TORRES, A. Oraanizaçíío Nacional,
Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914; VICTOR NUNES LEAL,
Coronelismo, en.1:a<l11 e voto (0 município e o regime representativo
(13). FRED J. COOK, The Warfare State (em tradução de Fer
no Brasil), Rio de Janeiro, 1948; COSTA PôRTO, Pinheiro Machado
nando Castro Ferro: O Estado militarista, Editôra Civilização Bra
I' seu tempo, Livraria José Olympio Editôra, 1951; J. P. GALV.1..0 DE
SOUSA, lntroduçíí.o à llistória do Dil'eito Político Brasileiro 2.ª edi sileira, Rio de Janeiro, 1964).
�·ão, Ed. Saraiva, São Paulo, 1962 e a citada obra de GOFFREDO ( 14). M. GARCIA-PELAYO, Derecho Constitucional Comparai/o,
TELLES JUNIOR, A democracia e o Brasil. 2.• ediçã.o, Manuales de la Revista de Occidente, Madrid, p. 20.
: jl
-�
·�
.
,; 1·:,
E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 99
98 A HISTORICIDADE DO DIREITO .
constituição ao mesmo tempo como uma técnica do pode:- e ato do Poder Comtituinte, cujas funções, é certo, podem caber : l·j": 1'_'
'·
uma técnica da liberdade. No seu significado oriainal, a ccm ao Legislativo ordinário mas somente nas hipóteses expressa '1'•'•..
1
, .. ,
tituição é precisamente um instrumento de estrutur�ção pragmá mente previstas pela própria constituição. ,. .
!
O princípio do contrôle da constiUcionalidade das leis e 1 1 '.'
tica do poder político e de defesa das liberdades. Mas ela ten ,:
de a se transformar numa carta ideológica na qual êstes dois dos atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário é uma bar 1 /•
asp�ctos fazem parte de um enquadramento mais amplo, sub reira levantada às práticas contraconstitucionais, que entretanto ·, ;·'l
metido ao processo de um.a certa dialética. Pode acontecer en podem de fato existir, escapando a tal contrôle.
: :,
tão, que a constituição seja completada ou modificada na' sua Finalmente deve notar-se que as ccnstituições políticas do -.'
: 1·,!
,-'•
aplic�çã?, por �ovas normas decorrentes da legislação, da juris tipo de uma carta ideológica abarcam todo o direito constitu 1 1·'.
prudencia ou sunplesmente da interpretação do texto constitu cional, seja a sua matéria ampla ou restrita. Elas tendem a
cional. Além destas regras jurídicas, certas práticas políticas fazer com o direito constitucional o que se tentou fazer na Fran
podem completar a estrutura constitucional, hipótese esta veri ca com o direito civil na época da codificação. O direito civil
ficada, por exemplo, com o regime de partidos formado em transbordou os diques dentro dos quais procuraram encerrá-lo,
e aos poucos foi sendo modificado e fragmentado por leis que
muitos povos cuja constituição não o prevê. Assim, no Brasil,
alteraram o Código Napoleão. Semelhante fragmentação é mais
a Constituição de 1946 estabeleceu o princípio da pluralidsde difícil nas constituições, em virtude do princípio da intangibi
partidária, enquanto as Constituições anteriores eram omissas lidade constitucional, vindo daí os conflitos entre a constituição
a respeito desta matéria. Um oütro exemplo que pode ser lem jurídica e a realidade constitucional. A realidade transborda
brado, entre nós, é o pretenso parlamentarismo do Império, tipi do esq·1ematismo das constituições ideol5gicas e suscita normas
camente paraconstitucional, por se ter formado à margem de de tipo paraconstitucional ou contraconstitucional (15).
qualquer dispositivo que o tivesse instituído na Carta de 1824.
Se a constituição é :mais um instrumento pragmático do 7. Numa ccnferência de ampla ressonância proferida em
que uma carta dogmática, então as normas complementares da 1930, René Capitant sustentava que o costume não era so
lei fundamental geralmente se adicionam ao seu texto por um mente um dado complementar, mas um dado primordial da
crescimento orgânico na linha do direito histórico, sem uma organização consUucional da III.ª República Francesa, cujas
ruptura com o que já estava estabelecido e sem se opôr aos instituicões essenciais não figuravam nos textos escritos e até
dispositivos constitucionais. A Constituição dos Estados Uni se ach�vam em oposição aos textos. Assim, das quatorze atri
dos nos fornece um exemplo significativo desta hipótese, com buições iniciais do Presidente da República somente duas subsis
o sistema dos a,;wndments acrescentados ao texto constitucio tiam, pelas quais �le podia manifestar pessoalmen�e �ua autori
nal. Daí o dizer-se que, no caso em aprêço, a constituicão dade: a escolha dJ Presidente do Conselho e o direito da gra-
não é um edifícb completo, mas a fundação ou o alicerce, de ça (16).
um edifício.
m uma e�
Quando a lei constitucional e a lei ordinária não se dis (15). Kas épocas revolucionárias, quando se -�anté
idade da const1-
bilida de e a estabil
tinguem por uma diferença substancial - haja vista o caso da trutura constitucional, a intangi
revolucionúrio, que se in
tuicão �edem ante as faculdades do poder
Inglaterra - não se pode falar de paraconstituição, pois a ela ves-te no exercício do Poder Constituinte. É
o que explica, entre nós,
boração em matéria constitucional fica sendo processo normal os Atos Institucionclis e Compl ement ares em face das Constituições
nos trabalhos do Parlame:1.to. Nos países de constituicão es de 1946 e de 1967. E-GUETZÉ-
(16). Apud :\IARCEL PRÉLOT, prefácio a MIRKIN
crita e rígida, pelo contrário, a diferenciação entre constituicão VITCH, Les Const!tution s europé ennes, Presse s Univer sitaires de
e lei ordinária torna-se mais acentuada, sendo a primeira �m France, t. I, p. X. 11
11
1 [
fó[
100 A HISTORICIDADE DO DIREITO
o declínio da lei resultante da decadência dos corpos legisla meiro livro de sua obra. E mais recentemente a escola germâ
tivos, manifestamente inoperantes para superar aquela crise, nica de direito público veio apontar na soberania um atributo
além de cada vez mais ineficientes diante das condições da ou qualidade do poder, consistindo na faculdade de decidir em
sociedade hodierna, em via de profundas transformações, ao última instância (3).
dealbar da era tecnológica, e vendo seus alicerces vacilarem O que cumpre aqui é frisar a íntima relação existente
ante a subversão mundial organizada. entre a soberania e a lei, sendo esta uma emanação do poder
Nesses têrmos, podemos considerar a problemática da ela soberano e uma expressão da vontade do seu titular. Que veult
boração legislativa na atualidade sob três prismas diversos: le roy si veult la loy diziam juristas medievais, e esta fór
l .º). em sua fundamentação teórica; 2.º). no concernente à mula viria a alcançar a plenitude da sua significação com as
crise do poder legislativo; 3.0). no tocante às relações entre a monarquias absolutas, acolhendo o preceito romano: quod prin
função legislativa e a representação política. cipi placuit legis habet vigorem. As leis eram as ordenações
O primeiro aspecto é jurídico-filosófico; o segundo, so dos príncipes, cujo poder só por isto não se deve pensar que
ciológico; o terceiro, estritamente jurídico. fôsse discricionário, sobretudo nas monarquias temperadas me
dievais, em que limitações de ordem moral ou procedentes das
2. Foi no século XVI - exatamente quando os Estados soberanias sociais então existentes o continham dentro dos qua
modernos começaram a se constituir na Europa sôbre as ruínas dros do que poderia ser considerado uma realização antecipada
do feudalismo - que pela primeira vez se empregou a palavra da concepção do Estado de direito, elaborada posteriormente
«Estado» para significar uma sociedade independente politica (4). Por sua vez, os senhores feudais exerciam o poder legis
mente organizada (2). Encontramo-Ia com êste sentido naquela lativo, o que era uma conseqüência da fragmentação da sobe
célebre obra de Maquiavel enaltecedora do princípio da razão rania característica daquele regime (5). Na época do absolu
de Estado. E no mesmo século em que o secretário da chan tismo, ao mesmo tempo em que punha em prática uma polí
celaria florentina escreveu O Príncipe, o jurista angevino Jean tica centralizadora, o poder real procurava libertar-se daquelas
Bodin compunha outra obra destinada igualmente a tornar-se limitações, que em certos países - como nos reinos da penin-
clássica na história do pensamento político, Os Seis Livros da
República, dando aí o devido realce à noção fundamental cm (3). No dizer de Basdevant, "a soberania do Estado ocupa na
tôrno da qual veio a corporificar-se modernamente a teoria do obra dos juristas alemães contemporâneos um lugar preponderante.
Estado: o conceito de soberania. São êles os mestres atuais da teoria da soberania do Estado, como
Desde Bodin até Rousseau - o teórico da soberania po o foram outrora os juristas franceses, em seguida à obra de Jean
Bodin" (apud H. HELLER, La Soberania, tradução e estudo prelimi
pular na democracia revolucionária - êsse conceito ficou sen nar de ;\lario de la Cueva Universidad Nacional Autónoma de !\lé
do a expressão do poder do Estado, caracterizado por sua uni xico, 1!)65, pág. 79). Em ;e tratando do conceito de soberania, n_ão
dade e indivisibilidade. «Poder absoluto e perpétuo de uma é possível esquecer êste ensaio critico do pranteado professor alemao.
República», assim o definia Bodin no capítulo oitavo do pri- (4). O sistema de freios e contrapesos, imaginado por il!ontes
quieu e seus seguidores, de cerlo modo se re�lizava na mo��rquia
tradicional e representativa que despontou na e�Joca d�s �0�1c11Ios de
Toledo e floresceu em Portugal e noutros reinos h1spamcos. :'\[as
(2). Na sua primitiva significação o têrmo "estado" (status} diferentemente do que propunha o autor do Espírilo dns Leis -
designava a condição jurídica da pessoa (status libertatis status uma divisão do poder do Estado - êlc era ali resullantc do reco
_
familiae, status civitatis}. Posteriormente foi empregado c�mo ex nhecimento das soberanias sociais, isto é, das autondadcs dos gru
pressão de ordem social ou estamento (clero, nobreza, povo: os três pos ou corpos intermediários em face da soberania do Estado.
estados). A sociedade política soberana era a Civitas em Roma 0 (5). Cf. ÉMILE CHÉNON, llistoire générnle du droit frnnçais
hnJ?eriinn ou o Regnum na Idade Média. Cf. G. JELLINEK, All�e public et privé des origines à 1815, tomo I (2.ª parte: período feudal
H,
mezne Staatslehre, Berlim, 3.• edição, 1922, pág. 12!) (livro cap. V). e costumeiro), Recuei! Sirey, 1926,
106 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 107
sula ibérica, mercê do regime das liberdades locais asseguradas der do Estado, reparte-o em três podêres distintos e a um dêles
pelas cartas de foral - eram particularmente eficientes. atribui a função legislativa. Numa primeira fase de sua apli
Ao absolutismo monárquico sucedeu o absolutismo demo cação, ela tendia a significar uma separação rígida de podêres,
crático, transferindo do rei para o povo o poder absoluto (6). que a experiência política mostrou ser irrealizável. Numa fase
Na França, onde com Luís XIV a monarquia absoluta alcança posterior seus intérpretes favoráveis davam ma�s _ênfase à� ha:
ra o seu maior esplendor, na França de Bodin que foi também monia e à colaboração entre os podêres do que a mdependencia 1
1
a segunda pátria de Rousseau, o «poder absoluto e perpétuo», dos mesmos (10).
com a Revolução, passou a ser exercido pela «vontade geral»
e, sendo esta soberana, tornou-se a detentora exclusiva do po 3. Foi assim que vimos a função legislativa exercida
der legislativo (7). Abriram-se assim as portas para o absolu também pelo Poder Executivo, um dos três podêres da repar
tismo de Estado num grau não atingido sob a realeza absoluta ticão clássica inspirada em Montesquieu e cuja denominação
(8). Ripert diz mesmo que aquela transferência do poder p�r si só manifesta a intenção inicial dos adeptos dê�te �istema.
absoluto - do rei para o povo - chega a encobrir a criação Ao Legislativo caberia dar as normas gerais const1tut1vas d�
de um nôvo poder, pois nunca o rei de França teve o poder ordem jurídica e norteadoras da ação governamental e admi
legislativo na sua plenitude, ou, pelo menos, um poder compa nistrativa. Os órgãos encarregados do govêrno e da admi�1istra
rável ao de um parlamento moderno. E acrescenta: «Sob a ção teriam, pois, uma tarefa de certo modo subo�dm�da,
Revolução caem todos os podêres, os do rei, da Igreja, dos cumprindo-lhes executar diretrizes traçadas pelo Leg1slat1vo.
costumes provinciais, dos parlamentos, das corporações. Só res No sistema parlamentar de govêrno mais se acentuava a pre
ta uma autoridade: a assembléia encarregada de fazer as leis. ponderância dêste último, uma vez que o Gabinete não. era
Ela detém o poder legislativo no seu absolutismo» (9). mais do que um agente da maioria parlamentar. Mas amda
A unidade da soberania, afirmada por Bodin e levada pela com o presidencialismo o princípio da divisão de pod�res,
Revolução de 1789 - na linha do pensamento rousseauniano acolhido primeiramente pela Constituição elos Estados Um?os,
- a uma espécie de totalitarismo da soberania, excluídas as mal disfarçava a predominância teoricamente dada ao Leg1sl�
soberanias sociais, não se compadece com a teoria da divisão tivo, aliás explicável em virtude da conexão e�tre a soberama
de podêres vinda de Montesquieu. Esta teoria fragmenta o po- e a função de legislar (11). Donde o falar Wilson no «govêr-
(6). Além da obra de G. RIPERT já citada, veja-se também (10). Em conferên cia proferida no �c1:°inário _ sôbre a R�f?rma
llrAXIl\IE LEROY, La loi (Essai .sur la théoric de l'autorité dans la Legislati va no Brasil p romovid o pela Un1vers1 dacle de Brasilia, o
démocratie), V. Giard & E. Briere, Paris, l!lOS. Professor Giuseppe Bcttiol fêz ver que hoje "nã� se trata .'.'penas
(7). Residindo a soberania essencialmente no exercício do po de dividir, mas também de organizar, de h_arn�on1zar cnt'.·e _eles �s
der legislativo, Rousseau não admite o sistema representativo, pelo vários podêres do Estado. O Estado const1ll�non_al de d1re1�0 nao
qual o povo se despoja dêste poder (Contrai social, liv. I, capítulos se prende apenas à atividade do Poc!er Lcg1sla _ �JV0, �as ha _u1?�
e varios
l e 2, 1. II, c. 15). Daí o preconizar a democracia direta. Por ordenada e harmônica correlação e s1stcmat1zaçao cnt1 os
ontro lado, sendo a volonté générale sempre reta (1. If. e. III), na necessid ade mesma, última fons legum, sugere, antes
1 )odêrcs. A
visão abstracionista de Rousseau, isto fazia desaJ)arecer aos seus de qualriucr
· outra consideração, que ao Exccuti,·o deve sar reco-
. ·
· 1 ativa atraves · <1 os e1 ecretos"
olhos o J)erigo de um regime de arbítrio. l · do O iiodcr de intervenção ]cg1s
n1ec1 . ..
(8). Daí nm passo para o Estado totalitário, cujas origens, na do Poder Legisla tivo no Brasil, B ras1l!a , , 1, pag,
196(' · �· .
?50)
(Reforma
democracia revolucionária francêsa, foram apontadas por, entre (11). Essa predominância é naturalmente mais acentua?ª. cm
outros, J. L. TALMON, The origins of iotalil-J.rian democracy, Lon se tratando do Legislativo 01·dinário, isto é, do Poder Const1tumte _
dres, Secker & ,varburg, 1952. (ver Capítulo V, números 1 e 2). Sôbre o princípio da separaçao
(9). G. RIPERT, obra citada, p. 5. de podêres e o malôgro de sua fórmula, entendida segundo uma
E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 109
108 A HISTORICIDADE DO DIREITO
no congressional», expressão que corresponde a uma interpre a especialização por vêzes necessária para tratar dêstes assun
tação constitucional daquele país feita segundo os cânones de tos. Conseqüentemente o Poder Legislativo vê-se forçado a
um liberalismo ortodoxo. A tal predomínio teórico não cor contar com a assessoria de técnicos em determinadas matérias
respondeu a realidade dos fatos da vida política, antes pelo ou confiar a alguns de seus membros, mais habilitados
contrário o Poder Executivo foi, com o correr do tempo, fazen conforme as questões de que se trate, a elaboração da lei.
do sentir não apenas uma independência crescente em relacão Daqui resulta a delegação interna, pela qual uma câmara legis
ao Legislativo, mas até mesmo uma influência cada vez ru'ais lativa confia a comissões especializadas o encargo dessa elabo
ração. E não são raros - antes cada vez mais freqüentes -
acentuada sôbre êste (12). O que se dava nos Estados Unidos
os casos dos projetos de lei oriundos de órgãos ou entidades
ocorria noutros países, e essa influência do Executivo não era extra-legislativas, vinculados à administracão - isto é ao Po-
tão sàmente de natureza política, pois alcançava o seu reconhe der Executivo - ou mesmo de caráter p;rticular.
cimento jurídico através da prática da delegação ou habilitação
legislativa. Circunstâncias peculiares a épocas de crise forca Nesse sentido o exemplo dado pelo Parlamento britânico
é dos mais significativos. Há projetos de lei, vindos do govêr
vam a intervenção do Executivo no domínio legislativo. Os
processos mais morosos de elaboração da lei nos parlamentos no ou de grupos não oficiais, que, uma vez apresentados ao
eram incompatíveis com a urgência requerida por determinadas plenário parlamentar, aí simplesmente recebem um «sim» ou
matérias a serem legalmente disciplinadas. Daí o generalizar um «não». Na introducão de Wade às últimas edicões do
-se o uso dos decretos-leis procedentes do Executivo, com ou clássico Law of the Con;titution de Dicey, mostra aquêle pro
sem delegação do Legislativo. Sempre se admitiram relacões fessor de Cambridge que participam assim da feitura da lei não
entre os podêres, cabendo normalmente ao Executivo a sa1�cão apenas departamentos oficiais do Estado, mas ainda entidades
ou o veto dos projetos encaminhados pelo Legislativo, e pod�.n sociais independentes, como o Unemployment Assistance Board
do também o Executivo ter a iniciativa das leis. Mas ultima e o Agricultura! Marketing Board. E conclui afirmando que «a
mente esta iniciativa foi avultando a ponto de chegar o govêrno supremacia política do Parlamento como um órgão elaborador
a comandar tôda a atividade legislativa. da lei torna-se cada vez mais uma ficção» (13).
A tarefa da elaboração legislativa torna-se cada vez mais Se isto ocorre com o Parlamento da Inglaterra, isto é, no
complexa, dada a diversidade de assuntos sôbre que incide e país de origem do parlamentarismo, em sua terra de eleição e
onde é tão vigoroso o corpo representativo, não admira que
noutros países se registre também um esvaziamento sensível do
rígida separação entre os mesmos, um trabalho definitivo, é o de Poder Legislativo no que diz respeito à sua atividade específica.
;1[.'\HCE_L DE LA BIGNE DE VILLENEUVE, La fin du príncipe de
separa/1011 dcs pouvoirs, anteriormente citado. A tônica atual do regime inglês recai mais sôbre o Gabi
(12). Nos Estados Unidos, essa influência foi a princípio cer nete do que sôbre o Parlamento. Na França, a Constituição
ceada_ pelo Judi�iário, do1�de o fa�oso "govêrno dos juízes" com que de 1958 anulou o parlamentarismo. E mesmo nos países pre 11
se_ quis caracterizar o regime americano. Entretanto depois de Fran sidencialistas - onde o princípio da separação de podêres mais
klrn. R?os:velt, fazendo a sua politica do Ncw Deal triunfar sôbre
, ..
as l1m1taçoes que lhe opunha a Côrte Suprema, ninguém mais pode nltidamente se configura - o Executivo chama a si a tarefa
falar nem no congressional oovcrnmcn/ ('V. ,vrLSON, 1885-) nem que outrora era da competência exclusiva do Legislativo.
no youvernement des juoes (E. LAl\lBEHT, 1!)21). O Executiv� aca
h�u por p�·:va)ecer _ de um modo incontestável, ao mesmo tempo em
q _1c a Un_iao ia afirmando cada vez a sua supremacia perante os (13). A. V. DICEY, lntrocl11ction to lhe siucly of the Law of the
Estados, ficando por tal forma comprometido o sistema de freios e
Constitution, 9.• edição com introdução e apêndice de E. C. S. WADE,
cont:apesos ?º planto horizontal (divisão de podêres) e no 1Jlano
Londres, Macrni!lan & Co. Ltd., 1950, p. XLIV.
vertical (regime federativo).
110 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 111
4. Os parlamentos de hoje, ao mesmo tempo em que se sua tribuna, nas Côrtes de Madrid, as ficções de um falso siste
viram diminuídos no exercício da função legislativa, por outro ma representativo; António Sardinha antecipando-se em Portu
lado vão perdendo o prestígio que chegaram a desfrutar como gal, no plano doutrinário, ao Estado corporativo; e o chanceler
órgãos da representação popular. Dollfuss na Áustria, antes dos dias trágicos do Anschluss. Da
O Estado Liberal foi organização típica da classe social mesma forma pronunciavam-se juristas do porte de um Laband
dominante após a Revolução de 1789, isto é, da burguesia. na Alemanha, um Enrique Gil Robles na Espanha ou um
Todo o seu sistema representativo refletia os interêsses desta Hauriou na França (14) .
classe, cujas correntes de opinião se dividiam nos diversos par Opondo-se à extensão da noção jurídica de mandato à
tidos políticos. À medida que o proletariado foi grangeando representação política, constitucionalistas faziam ver a inade
maior prestígio e adquirindo fôrça política, o sistema começou quação de um tal paralelo, enquanto sociólogos apontavam para
a vacilar, e grande parte da representatividade se transferia a inautenticidade de um sistema representativo construído com
para os sindicatos, excluídos da participação nas decisões do preterição dos grupos naturais e históricos que formam a socie
Estado, reservada apenas às organizações partidárias. Por isso dade política.
é que na Inglaterra o Parlamento conseguiu manter essa repre Um ponto nevrálgico que está na raiz dêsse sistema -
sentatividade que as câmaras de deputados noutros países iam decorrente do mito da vontade geral representada nos parla
perdendo, pois lá os partidos se achavam vinculados às classes mentos - é a confusão estabelecida entre dois conceitos real
e aos corpos intermediários, sendo o trabalhismo a expressão mente distintos: autoridade e representação. Considera-se que
das aspirações do operariado das Trade Unions. os deputados - mandatários da vontade do povo - represen
Entre nós, os partidos da primeira república tinham um tam a coletividade e devem, por isso mesmo, exercer o poder
cunho acentuadamente oligárquico, distribuindo-se aliás pelos legislativo. Pois êste poder é a manifestação, por excelência,
Estados da Federação como manifestações diversas do partido da soberania, e o pressuposto de tal concepção é que a sobera
único, o Partido Republicano. Depois de 1930, a multiplica nia pertence ao povo. Daí o serem a função legislativa e a
ção dos partidos e o aparecimento de formações políticas im função representativa atribuídas ao mesmo órgão.
provisadas e sem tradição· permitiam a ascensão dos demagogos
e arrivistas, a disputarem com os continuadores da oligarquia Ora, a verdade é que a representação consiste essencial
a liderança política. mente numa espécie de vínculo entre a sociedade e o poder.
Sua razão de ser, a idéia que lhe deu origem e o princípio
Na Europa, entre as duas guerras mundiais, a impopula
natural que a justifica, é exatamente levar ao conhecimento
ridade dos parlamentos favoreceu os movimentos tendentes à dos governantes as aspirações dos governados e os interêsses
implantação de um regime ditatorial e carismático, em que a dos grupos componentes da sociedade política. Isto deve ser
representação se transferia das assembléias desmoralizadas e dis
feito de um modo tal que permita ao mesmo tempo um certo
tanciadas do sentir do- povo para indivíduos de exceção, que
contrôle elo poder político pela sociedade. Um dos motivos
sabiam aproveitar-se das circunstâncias para se fazerem passar
por oráculos da alma nacional. Antes, porém, que isto acon
tecesse na Itália com o fascismo e na Alemanha com o nacional (14). Para Lahand "juridicamC'nlc falando, os mC'mhros cio
-socialismo, já pensadores e líderes políticos infensos aos regi Reichstag não rC'])rcscntam ninguém". Por sua VC'Z i\l. Hauriou, cri
mes de arbítrio e visceralmente contrários a qualquer manifes ticando a teoria moderna tia representação, que pretende as�imilar
tacão de estatismo absorvente denunciavam a ausência de a representação política ao mandato, diz que "a praga do direito
constitucional francês é a teoria jurídica ela representação, que pro
ve�dadeiro sentido representativo nos parlamentos do Estado cede da mania metafísica de tudo reduzir n um só princípio". Cf.
liberal burguês. Tais foram, entre outros, La Tour du Pin e MARCEL DE LA BJGNE DE VILLENEUVE, Trai/é généi-al de l'État,
Charles Maurras na França; Vázquez de Mella destruindo, da II, R. Sirey, 1931, págs. 59-60.
112 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 113
principais da reumao das primeiras assembléias representativas mente o que deve ser preceituado na lei. Isto é objeto da
- as Côrtes hispânicas, o Parlamento inglês, os Estados gerais prudência do legislador, e ao bom legislador não devem faltar
na França - era o de autorizar a tributação, em virtude do nem o senso das realidades históricas, nem a capacidade de
princípio segundo o qual ninguém deve pagar imposto sem prever de algum modo as conseqüências de um dispositivo legal.
prévio conhecimento e sem ter dado o seu consentimento. A Quanto à técnica legislativa, pode ser considerada do
elaboracão do areamento voltou a ser, nos parlamentos moder ponto de vista material ou formal, segundo se trate, respectiva
nos, m�téria de fundamental importância por dizer respeito à mente ' do conteúdo da lei - isto é, dos atos a serem discipli-
devida aplicação da atividade do Estado e das finanças públi nados - ou da regulamentação dêstes atos pela aplicação de
cas com vistas a atender os interêsses da comunidade.
conceitos jurídicos, incluindo presunções, ficções e outros pro
Dessa simples idéia originária e básica da representação cessos característicos da construção do direito positivo. Para
decorre que todos os elementos da sociedade civil devem ser esta regulamentação requer-se a atividade dos juristas, pois só
representados perante o Estado e que os mais credenciados os conhecedores da ciência do direito estão em condições de
para falar em nome de cada grupo, de cada entidade organiza elaborar tecnicamente uma lei, sob o ponto de vista formal.
da, de cada classe são os membros destas parcelas do todo so Mas a matéria da legislação depende de vários outros conheci
cial. Ora, evidentemente não são êles os mais competentes mentos, a respeito dos quais o legislador tem que receber dados
para o exercício da função legislativa (15). concretos de quantos estejam devidamente capacitados a for
necê-los (17) .
5. A elaboração da lei comporta dois aspectos distintos: Referindo-se a questões gerais e de princípios, a legislação
o político e o técnico. tem um caráter predominantemente político. Mas à medida
O primeiro é aquêle pelo qual a obra legislativa se consi em que dispõe sôbre diversas manifestações da vida nacional,
dera em função do bem comum da sociedade política, numa exercendo sôbre elas um certo contrôle pelas diretrizes que
perspectiva muito ampla permitindo medir os interêsses em fixa, a lei passa a assumir um cunho acentuadamente técnico,
jôgo num determinado momento histórico, harmonizá-los, sub
metê-los a uma disciplina fundada na justiça e enquadrada
numa ordem que proteja as liberdades e mantenha incólume ( 17). A lei não deve ser o produto da razão estabelecendo nor
a segurança (16). Ao poder cabe julgar o que é necessário mas num plano abstrato. Ela colhe, por assim dizer, um direito
preexistente nos costumes e em normas difusas na vida social. Co
ou conveniente a uma determinada sociedade, e conseqüente- loca-se aqui o problema das fontes do direito, examinado anterior
mente (cf. Cap. II, números 3 e 4). Na dissertação apresentada ao
concurso para a cátedra de Direito Constitucional na Faculdade de
(15). O autor dest::is linhas, 11or m:iis de unrn vez, já te;-e Direito da Universidade de São Paulo, o Prof. l\fANUEL GONÇAL
ocasião de versar o assunto, especialmente em A.llloridade e repre VES FERREIRA FILHO fez ver que "o pensamento medieval não
senlnçíio no direito moderno, comunicai;ão apresentada i1 IV.• Jorna concebia a criação de leis mas somente a descabe ria de leis", pois
da Franco-Latino-Americana ele Direito Compar:ido (São Paulo, "de certo modo a lei se prova, não se cria e essa prova só pode provir
1954) e reproduzida no livro Política e Teoria do Estado, Edição de quem a pratica, da Comunidade tôda, ou de sua valenlior pars, os
Saraiva, São Paulo, 1957. barões e os líderes do tiers état que agem aí como testemunhas"
(16). Encontrar o justo meio entre a segurança e a liberdade, (Do processo legislativo, São Paulo, 1968, p. 29). Sôbre o problema
eis a grande questão dos nossos dias. Cf. RENf: MARCIC, 'Vom da elaboração do direito positivo, considerações de magno alcance
Gesetzessfaat zum Richterstaat (Der Weg zwiscl1en Sicherheit und são feitas por JOSf: CASTAN TOBEf:IAS em Teoria de la aplicación
e investigación dei derecho. Instituto Editorial Reus, Madrid, 1947
Freiheit), Viena, Springer-Verlag, 1957. Ohra fundamental, em que (elaboração criadora por vias legislativa, consuetudinária e jurispru
se encontram também profundas considerações sôbre a historicidade
dencial; e elaboração reconstrutiva por via científica ou por via
do direito. prática).
114 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 115
não apenas no sentido da técnica jurídica, mas ainda no de cas, com que derrubar o princípio segundo o qual o ordena
outras técnicas, cuja importância cresce d:a a dia, com a com mento legislativo é definitivo e completo para colocar o juiz
plexidade cada vez maior da vida social. em condições de dar uma solução a todo e qualquer caso, sem
Quando as leis versavam quase exclusivamente sôbre recorrer à eqüidade. Norberto Bobbio faz ver que tal princí
questões de ordem geral, era mais fácil a sua elabora,;ão nos pio foi oriundo da teoria jurídica européia de origem romanís
parlamentos, onde sempre havia juristas capacitados a :)rientar tica: no Corpus Iuris via-se o direito por excelência, ali enun
a redação dos diplomas legais segundo os cânones da técnica cié.do de uma vez para sempre, contendo as regras mediante
do direito. Desde que a multiplicação da vida social veio a é.S quais o intérprete poderia resolver todos os problemas jurí
ser mais e mais regulamentada pelas normas emanadas do Po dicos. Essa confiança cega na auto-suficiência da lei, transpor
der Legislativo, êste começou a sentir a sua insufü::iência. tada pela escola de exegese para a codificação, suscitava uma
donde o aceitar ou solicitar a colaboração de órgãos externos he::-menêutica em que o método da extensio prevalecia sôbre
para bem cumprir a sua tarefa. Daí também a importâncié. a equidade e o princípio da autoridade sôbre a natureza das
que foram adquirindo as comissões internas nos parlamentos" coisas (19).
constituídas de deputados habilitados, pela sua especialização, Absorvendo todo o direito e sendo a expressão da vontade
a melhor contribuir para a elaboração de determinadas leis. do Estado, a lei excluía conseqüentemente as normas jurídicas
Isso explica ainda a preferência dada, por vêzes, a leis <::_ue não fôssem emanações do poder estatal. Produto da
fixadoras de princípios gerais ou normas de orienta;:ão - razão abstrata, traduzia-se nos preceitos coercitivamente impos
standards - deixando-se aos regulamentos de competência do tos por uma decisão de autoridade detentora da soberania
Poder Executivo a complementação da regra legislativa, em política, não admitindo esta a concorrência de nenhuma autori
dispositivos mais voltados para os pormenores. dade social e de qualquer ordenamento jurídico extra ou infra
valente. O voluntarismo conduzia logicamente ao positivismo
6. Foi vã a pretensão de reduzir o direito à lei escrita, jurídico, e êste ao absoluto estatismo. A tese da auto-suficiên
e a lei a uma criação do poder legislativo do Estado, encon cia legislativa era ao mesmo tempo uma afirmação do mono
trando sua perfeição nas constituições e nos códigos elaborados pólio do direito pelo Estado.
com o ilusório intento de abranger, de um modo exaustivo, Tal miragem da ordem jurídica não podia deixar de ser
tôda a realidade. rejeitada por sociólogos e por juristas dotados de visão histó
Ela resultou de uma atitude mental abstracionista e de ricD-sociológica. No confronto da sociedade com o Estado,
uma falta de visão histórica na consideracão do fenômeno era-lhes dado observar numerosos grupos não estatais com capa
jurídico (18). cidade normativa e disciplinar. Aliás, salutares tendências do
A sociologia jurídica - de Ehrlich a Gurvitch - forneceu pensamento contemporâneo indicam uma volta ao sentido da
argumentos, advindos do conhecimento das realidades históri- historicidade do direito, ao mesmo tempo em que a sociedade,
por seus grupos naturais e históricos, reage contra a tirania
absorvente dos totalitarismos hodiernos (20).
(18). A perspectiva histórica cio direito é salientada, do ponto
de vista filosófico, por MIGUEL REALE em O direito como experiên
cia (Edição Saraiva, São Paulo, 1968). Distinguindo entre a norma (19). N. BOBBIO, obra citada, págs. 131-141.
tiviciade jurídica abstrata e a normatividade concreta, conclui que (20). RENÉ :\IARCIC, na obra citada (nota 16), aponta, entre
"a r_orma jurídica não pode ser vista como um modêlo lógico defi outras notas características do "nôvo pensamento jurídico", o afas
nitivo: é um modêlo ético-funcional, sujeito à prudência �xigida tamento do subjetivismo com uma orientação mais acentuada para
pelo conjunto das circunstâncias fálico-axiológicas em que se acham a estrutura objetiva do direito, a afirmação da prepositividade do
situ::cdos os seus destinatários" (p. 200). direito, o reconhecimento do concreto como fonte do direito e a
116 A HISTORICIDADE DO DIREITO E A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA 117
Depois destas considerações finais e tendo em vista o que pretender que neles estejam
foi dito nos capítulos anteriores, podemos, para concluir, esta contidas tôdas as hipóteses
belecer o seguinte cotejo entre uma concepção abstracionista dum ramo de direito.
do direito - como a encontramos em doutrinas jurídico-polí
ticas desde os tempos do jusnaturalismo racionalista e do ilumi 4. A Constituição: a) - 4. A Constituição é a lei
nismo - e uma concepção de base histórica: é a lei magna ou fundamen fundamental do Estado, e
tal, de que dependem as ou pode fixar alguns princípios
DIREITO HISTÓRICO: tras leis; b) - contém vir gerais a serem observados
DIREITO ABSTRATO: pela legislação ordinária, o
tualmente todos os preceitos
1. A ordem jurídica po da legislação ordinária (21) . que não. quer dizer que
1. Tôda a ordem jurídica contenha, nem mesmo im
está compreendida no direito sitiva é constituída pelo or
denamento estatal e por ou plicitamente, os preceitos
do Estado, sendo êste uma dos diversos ramos do di
criação do Poder Legislativo. tros ordenamentos, corres
pondentes aos grupos ou reito (22) .
corpos intermediários que
formam a sociedade política
ao longo do seu desenvolvi
mento histórico.
2. A legislação estatal é 2. O direito do Estado
suficiente para resolver to apresenta lacunas em face
dos os casos da vida jurídica. dos casos da vida jurídica.
INDICACÕES
' BIBLIOGRÁFICAS
ir!
): '
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS