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OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

Ana Selma Moreira1


SUMÁRIO: Introdução. 1 O amparo constitucional como direito fundamental dos animais não
humanos. 2 Animais não humanos como sujeitos de direitos. 3 A ruptura paradigmática rumo ao
reconhecimento dos direitos fundamentais dos animais não humanos. Considerações finais.
Referência das fontes citadas.

RESUMO: Este capítulo tem como objetivo analisar os direitos fundamentais dos animais não-
humanos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil baseando-se nos princípios
da fraternidade e da diversidade. Estruturado pelo método dedutivo, tem como fontes de pesquisa
legislação, doutrina, jurisprudência, artigos científicos e periódicos. A pesquisa foi dividida em
três partes fundamentais, sendo a primeira voltada ao amparo constitucional como direito
fundamental dos animais não humanos. Em sequência, abordou-se sobre os animais não
humanos como sujeitos de direitos, pelo prisma do reconhecimento de seus direitos
fundamentais. Por fim, a abordagem versou sobre uma ruptura paradigmática rumo ao
reconhecimento dos direitos fundamentais dos animais não humanos com o abandono do
paradigma antropocêntrico ainda presente no indivíduo, no meio social e no ordenamento
jurídico infraconstitucional, para uma nova postura ética animalista.
ABSTRACT: This chapter aims to analyze the fundamental rights of non-human animals
provided for in the Constitution of the Federative Republic of Brazil based on the principles of
fraternity and diversity. Structured by the deductive method, its research sources are legislation,
doctrine, jurisprudence, scientific articles and journals. The research was divided into three
fundamental parts, the first of which focused on constitutional protection as a fundamental right
of non-human animals. Subsequently, non-human animals were approached as subjects of rights,
through the prism of the recognition of their fundamental rights. Finally, the approach dealt with
a paradigmatic break towards the recognition of the fundamental rights of non-human animals
with the abandonment of the anthropocentric paradigm still present in the individual, in the
social environment and in the infraconstitutional legal order, for a new animalistic ethical
posture.

PALAVRAS-CHAVE: Animais não humanos. Direitos Fundamentais. Senciência.


KEYWORDS: Non-human animals. Fundamental rights. Sentience.

1
Doutoranda e Mestre em Ciência Jurídica. Pós-graduada em Perícia Criminal e Biologia Forense e em Direito
Processual Civil. Advogada. Vice presidente da Oscip Vita Sacer - Resoluções para o Meio Ambiente. Membro do
Laboratório de Educação em Direitos Humanos e Cidadania da UNIFEBE.
INTRODUÇÃO

Ao longo do tempo os animais não humanos foram dominados e subjugados pelos


animais humanos, que se utilizam deles como meio de transporte, entretenimento, alimento,
experimento e tantas outras formas de exploração mantidas na atualidade. Mesmo com a garantia
constitucional dos direitos fundamentais, o ser humano é especista e se mantém alheio ao
reconhecimento dos animais não humanos como sujeitos de direitos.
A presente pesquisa objetiva realizar uma abordagem a partir da relação de direito natural
entre os seres vivos e ao que lhes são fundamentais e a interdependência destes seres até o
reconhecimento dos direitos fundamentais garantidos na ordem constitucional vigente.
O modelo utilitarista e antropocêntrico presente na atualidade é questionado e leva a uma
necessidade de mudança de postura, com embasamento ético, que enseja uma ruptura
paradigmática a garantir a efetividade no cumprimento das normativas constitucionais que
vedam a crueldade e garantem tratamento digno às espécies.
Para o estudo que se apresenta foi necessário buscar elementos que fundamentem os
animais não humanos como seres sencientes e conscientes, a exemplo da Declaração de
Cambridge e o tratamento dispensado aos animais não humanos no âmbito internacional. A
análise do modelo legislativo infraconstitucional brasileiro está espelhada em uma sociedade que
ainda deve avançar na busca de uma tomada de consciência que urge chegar, para deixar os
animais não humanos livres de um domínio descabido e arbitrário, violador dos direitos
fundamentais constitucionais.

1. O AMPARO CONSTITUCIONAL COMO DIREITO FUNDAMENTAL DOS


ANIMAIS NÃO HUMANOS
Existem direitos que nascem com cada ser, são direitos naturais, como o direito à vida, a
liberdade, à maternidade e tantos outros que são imutáveis e inerentes aos seres vivos. A
sociedade necessita do Estado para que organize um conjunto de normas jurídicas de amparo a
esses direitos, para que não sejam objeto de violação, garantindo-se uma proteção integral.
Apesar das garantias pelo Estado à proteção dos direitos naturais que ora restam
positivados, Carvalho2 afirma que as normas constitucionais, sua interpretação e concretização
espelham os valores básicos da sociedade e como a relação do homem com os animais não

2
CARVALHO, Gabriela Franziska Schoch Santos. A tutela jurídica dos animais: evolução histórica e conceitos
contemporâneos. In: Congresso Brasileiro de Direito Ambiental, 21., 2016, São Paulo. Anais eletrônicos 2016, v.
II, p. 719-732. Disponível em: http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20161118140350_2664.pdf
. Acesso em: 09 de jun. 2020. p.729
humanos é complexa e contraditória, não é surpreendente que as normas jurídicas também o
sejam.
Ernandorena3 explica que no Brasil, só em meados do Século XX teve início o processo
de reconhecimento dos direitos dos animais não humanos, que encontrou seu clímax na
Constituição Federal de 1988. Afirma o autor que é flagrante o descompasso da legislação
brasileira em face do direito das nações mais avançadas e da percepção de grande parte da
sociedade em relação aos seres não humanos, implicando na necessidade de atualização da
legislação, para além da postura conservadora do Congresso Nacional a respeito da matéria –
ainda que se tenha presente que a lei, por si só, não se constitua numa resposta absoluta.
Mas, antes de abordar sobre tais contradições, é importante evidenciar que o estudo
sistemático da natureza ganhou força apenas no século XIX, mas foi no século XX que se passou
a observar uma muito mais intensa produção legislativa no Brasil em favor da causa animal.
Silvestre4 aponta que especialmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
o texto passou a prever a proteção da fauna e a vedação à crueldade contra os animais não
humanos, com isso, a Constituição deixou de reconhecer a proteção dos animais exclusivamente
como garantia de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado, passando a legitimar o
dispositivo como uma norma autônoma, assegurando, assim, que os animais não devem ser
reduzidos à mera condição de elementos ambientais.
Sobre o assunto, observam Medeiros e Albuquerque5:
É notório assegurar, portanto, que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a
proteger de forma deliberada a questão do ambiente. Contudo, tal fato não descarta uma
abordagem, mesmo que discreta e progressiva, de uma orientação protecionista das
Constituições brasileiras anteriores, nem que fosse somente ligada ao fato da repartição
da competência legislativa e administrativa entre os membros da Federação,
circunstância que possibilitou a elaboração de legislação protetiva do ambiente como foi
o caso do Código Florestal, do Código de Água e de Pesca, dentre outros.

Porém, uma vez concretizado o direito constitucional de proteção aos animais não
humanos, segundo o entendimento de Silva6, o legislador não pode simplesmente eliminar as
3
ERNANDORENA, Paulo Renato. A mudança do Código Civil Francês estabelece um dever jurídico de
fraternidade para com os animais? III Congresso Nacional de Cominhão e Direito. [recurso eletrônico on-line]
Modo de acesso: https://indd.adobe.com/view/035b834c-d090-4b8c-b019-a089308ccb7c 262-270. Acesso em
06.06.2020. p.268.
4
SILVESTRE, Gilberto Fachetti; LORENZONI, Isabela Lyrio. A tutela jurídica material e processual da
senciência animal no ordenamento jurídico brasileiro: análise da legislação e de decisões judiciais.HIBNER,
Davi Amaral. RBDA, SALVADOR, V.13, N. 01, PP. 55-95, Jan-Abr 2018. P.57
5
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; ALBUQUERQUE, Letícia. Constituição e animais não humanos:
um impacto no Direito Contemporâneo. In: CONPEDI/UNINOVE, 22., 2013, São Paulo. Sociedade Global e
seus impactos sobre o estudo e a afetividade do Direito na contemporaneidade. Anais... Florianópolis: FUNJAB,
2013, v. II, p. 134-158. p.149.
6
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Fundamentos do direito animal constitucional. In: CONPEDI/FMU, 18.,
2009, São Paulo. Estado, Globalização e Soberania: o direito do século XXI. Anais eletrônicos… São Paulo, 2009a,
p. 11126-11161. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009a. Disponível em: Acesso em: 12 abr. 2016. p. 11142.
normas (legais), pois isto equivaleria a subtrair às normas constitucionais a sua eficácia jurídica,
já que o cumprimento de um comando constitucional acaba por converter-se em uma proibição
em destruir a situação instaurada pela Constituição. Nisso consiste a regra do não retorno da
concretização ou não retrocesso, fundada também no princípio da confiança inerente ao Estado
de Direito.
Assim dispõe o texto constitucional em seu artigo 225, §1º, inciso VII7:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[...]
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais
a crueldade.
O texto constitucional garante os direitos fundamentais dos animais não humanos,
compreendidos nestes direitos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à
perpetuação da espécie, o direito a cumprir sua função ecológica e o direito ao tratamento sem
crueldade. Tais direitos não podem ser transacionados, fracionados ou desconsiderados e por
serem os animais não humanos vulneráveis, deve ser garantido a eles o acesso à justiça em caso
de violação de seus direitos fundamentais.
Sobre o acesso à justiça, é importante citar as palavras de Felipe8:
[...] ou a justiça é para todos, ou ninguém a deve reivindicar para si. Em primeiro lugar,
porque os bens naturais e ambientais não são propriedade humana, em segundo lugar,
porque os interesses básicos dos animais não humanos e seus respectivos direitos
fundamentais à vida e à integridade física e emocional, de acordo com o seu padrão
morfogenético e o seu éthos específico, são os mesmos interesses fundamentais
humanos. Para ela, não há justiça na violação dos direitos fundamentais dos animais não
humanos para extração de mais-valia para humanos, seja este benefício o parque de
diversões (circos, arenas, aquários, zoos e cercados), a mesa, a moda ou a terapia. Em
terceiro lugar, porque a vida que tempos o dever de assegurar para as gerações futuras
não se reduz à vida dos filhos e netos com genoma humano, e sim à vida dos filhos e
netos de todas as espécies do planeta ora atingidas pela dieta omnis vorax mortal.
A garantia constitucional dos direitos fundamentais dos animais não humanos impõe aos
animais humanos deveres de respeito à natureza de maneira ampla. É neste contexto que é
necessário o reconhecimento dos direitos dos animais não humanos como sujeitos de direito que
são. Infelizmente há um contraste cultural que ainda não permitiu aos animais humanos
compreender de maneira integral o alcance da norma constitucional. A utilização dos animais
não humanos para satisfazer necessidades humanas vem de longa data e o paradigma
antropocêntrico implicou em normas infraconstitucionais que desconsideram a amplitude dos
direitos fundamentais aqui mencionados.
7
BRASIL, Constituição da República Federativa. In:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm, acesso em 09.06.2020.
8
FELIPE, Sônia T. CARNELATRIA: escolha omnis vorax mortal. Implicações éticas animais e ambientais da
produção, extração e do consumo de carnes. São José: Ecoânima, Ed. Da Autora, 2018. P.295/296.
2. ANIMAIS NÃO HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITOS
Não é de hoje que o animal humano se utiliza do animal não humano para satisfazer suas
necessidades, sejam elas de entretenimento, vestuário, ensino, experimentação, transporte e até
mesmo de se alimentar. Isso se dá pela compreensão humana como resquício de um
antropocentrismo arraigado que até o momento ainda impera, inclusive em nosso ordenamento
jurídico infraconstitucional.
Apesar de muitas práticas humanas de violação de direitos fundamentais dos animais já
serem proibidas, como é o caso das rinhas de galo e da farra do boi, o homem ainda não mudou
sua postura diante dos animais não humanos, com uma compreensão ampla de suas condições
físicas, emocionais e biológicas, a partir de estudos já concretos e publicados a respeito.
Sobre o assunto, esclarece Brügger9:
Charles Darwin já havia descrito mais de vinte tipos diferentes de emoções nos animais,
como pesar, desespero, ternura, devoção, mau humor, amuo, determinação, ódio, culpa,
desamparo, perplexidade e vergonha. Mas hoje sabemos – pela Declaração de
Cambridge sobre Consciência– que todos os mamíferos, aves e animais, como os
polvos, possuem os substratos neurológicos associados aos estados conscientes e à
capacidade de exibir comportamentos intencionais. Está comprovado que vários
animais experimentam não apenas estados emocionais relativamente simples como a
alegria, a angústia ou o medo, mas também são capazes de estabelecer regras complexas
de convivência social e de exibir comportamentos relacionados ao luto, honra, empatia
e justiça.
Ainda há muita falta de informação e de sensibilidade dos animais humanos com relação
aos animais não humanos. As condutas cotidianas se “reproduzem” automaticamente sem que
haja um questionamento se há ética ou não nas ações perpetradas contra os animais não
humanos. As pessoas comem carne porque sempre comeram e muitas delas ainda mencionam
que se “parar para pensar” sobre o que estão comendo, não comeriam. Quantos de nós já
ouvimos algo semelhante!
Segundo a Declaração de Cambridge10:
A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados
afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos
neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência
juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais.
Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a
possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos,
incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos,
também possuem esses substratos neurológicos.

9
BRÜGGER, Paula. O apocalipse da pecuária: uma síntese caleidoscópica dos riscos e possibilidades de
mudança. In: Revista Brasileira de Direito Animal. V.13. N2. P.7-23. Mai-Ago 2018. p.12.
10
DECLARAÇÃO DE CAMBRIDGE, 2012, disponível em:
http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2019/06/declaracao-de-cambridge-
portugues.pdf. Acesso em: 10/06/2020.
Após a declaração de Cambridge, os estudos sobre a senciência 11 animal foram
intensificados e a luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais não humanos ganhou ainda
mais força. Muitos países, a exemplo da Áustria, Alemanha, França e Suíça, já compreendem os
animais não humanos como sujeitos de direitos, porém, ainda há muito o que avançar sobre o
direito dos animais não humanos no âmbito nacional e internacional.
No Brasil, o amparo constitucional é amplo, porém, a legislação infraconstitucional ainda
tem uma abordagem antropocêntrica sobre o tema. Piffer e Merizio12 apontam que a legislação
civil brasileira caracteriza o animal não humano como bem móvel e há muito tempo não mais se
aceita essa classificação. Para as autoras, fazendo-se uma análise jurídico-normativa, o Brasil
está atrás de outros países, mas, por mais que o direito dos animais ainda não seja encarado como
um ramo independente do direito, estando intimamente ligado ao direito ambiental, é assunto que
merece atenção e estudos mais aprofundados.
O paradigma antropocêntrico está presente no ordenamento jurídico brasileiro violando o
direito dos animais não humanos e não os enxergando como sujeitos de direito que são. O
homem explora animais não humanos em laboratório, alimenta o agronegócio pela pecuária, pela
indústria leiteira e dos ovos, promove “entretenimento” à sua espécie com zoológicos, aquários,
jogos a estilo rodeio e vaquejadas, sempre amparado por uma legislação infraconstitucional
permissiva.
Para Brügger13 o ensino das ciências da vida baseado em “modelos animais” reproduz
diversos traços marcantes de nossa cultura “não ambiental”, pois legitima a visão dos animais
não humanos como meras ferramentas, recursos para nos servir. Isso desenvolve um
processo de insensibilidade nos estudantes com relação à vida, pois ressalta o valor
instrumental, em detrimento do valor intrínseco dos outros animais.
Silvestre14 explica que o ordenamento jurídico brasileiro muito relutou para conferir aos
animais tutela jurídica que possuísse alguma relevância prática. Para ele a história e as
peculiaridades do país, bem como sua predominante feição agropecuarista, contribuíram para a
11
A senciência é definida como a presença de estados mentais que acompanhem as sensações físicas (sentir dor,
medo, angústia, prazer e alegria), é encontrada em alguns animais não-humanos. Mais especificamente nos
vertebrados e em alguns animais invertebrados. BOFF, Salete Oro; CAVALHEIRO, Luana Rocha Porto. RBDA,
SALVADOR, V.12, N. 01, PP. 108-132, JAN - ABR 2017. p.118
12
PIFFER, Carla; MERIZIO, Pietra. O direito dos animais não humanos na união europeia e no Brasil: aspectos
relevantes no direito comparado. IN: MOREIRA, Ana Selma (Org). EU SOU ANIMAL: o reconhecimento da
vulnerabilidade dos animais não humanos. Joinville: Manuscritos Editora, 2020. p.223
13
BRÜGGER, Paula. Vivissecção: fé cega, faca amolada? In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS,
Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER; Tiago (Org.). A dignidade da vida e
os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p.
145-174. p.166.
14
SILVESTRE, Gilberto Fachetti; LORENZONI, Isabela Lyrio. A tutela jurídica material e processual da
senciência animal no ordenamento jurídico brasileiro: análise da legislação e de decisões judiciais. p. 90
construção de uma noção antropocêntrica e utilitarista em relação à fauna, concepção esta,
inclusive, ainda dominante.
Na obra Libertação Animal, Singer15 já abordou que a extensão do princípio básico da
igualdade de um grupo para outro não implica que devemos tratá-los da mesma maneira, ou que
devamos conceder-lhes os mesmos direitos. Isso significa que ter uma postura ética com relação
aos animais não humanos não significa tratá-los como humanos.
Para Singer16 o que devemos ou não fazer depende da natureza dos membros de cada
grupos. O princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico, mas
sim igual consideração. Igual consideração por seres diferentes pode levar a
tratamentos e direitos distintos.
Sarlet e Fensterseifer17 explicam que os desenvolvimentos em torno da natureza
relacional e comunicativa da dignidade da pessoa humana contribuem para a superação de uma
concepção eminentemente especista (biológica) e, portanto, necessariamente
reducionista e vulnerável. Para eles, a atribuição de “dignidade” a outras formas de vida ou
à vida em termos gerais transporta a ideia de respeito e responsabilidade que deve
pautar o comportamento do ser humano para com tais manifestações existenciais.
Nesse contexto, é importante compreender as palavras de Brügger 18 que clama por um
despertar político-social:
É preciso, urgentemente, que a população entenda a interconexão das mais diversas
formas de opressão para que os poucos políticos e membros da sociedade em geral que
lutam contra elas não esmoreçam em batalhas inglórias. Existe hoje um retrocesso
socioambiental e ético que há muito não se via: é projeto de lei para a legalização da
caça (PL6268); é exportação de gado vivo em “navios da morte”; é emenda à
constituição para maquiar de “cultura” a crueldade inerente às vaquejadas (EC 96)50, e
a lista continua. Há ainda os ataques aos povos indígenas e quilombolas e o consequente
aumento da violência no campo, perda de biodiversidade linguística, etc. Todas essas
abominações se encontram inextricavelmente ligadas à forma dominante de produzir
“comida” (na verdade, commodities) em nosso país. Em termos de justiça
intergeracional, fica a pergunta: que legado estamos deixando para as crianças e os
jovens de hoje? E para os que nem nasceram?
É necessário que os humanos compreendam a amplitude da norma constitucional
brasileira, a qual estampa uma proteção integral aos animais não humanos. Impõe-se uma nova
postura de consciência moral e jurídica, de respeito e proteção, avançando na legislação
brasileira para um efetivo tratamento digno aos animais não humanos como sujeitos de direitos.
15
SINGER, Peter. Libertação animal. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 5.
16
SINGER, Peter. Libertação animal. p. 5.
17
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade
da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Albert; MEDEIROS, Fernanda
Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER; Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos
fundamentais 86 para além dos humanos: uma discussão necessária. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 175-
205. p. 191.
18
BRÜGGER, Paula. O apocalipse da pecuária: uma síntese caleidoscópica dos riscos e possibilidades de
mudança. p.16
É neste sentido que Piffer e Merízio19 se manifestam por uma luta que deve calcar-se,
inicialmente, na evidência de que os seres não humanos em nada são compatíveis com as coisas,
pelo singelo fato de compor a espécie animal, da qual fazemos parte: “Nós sofremos, eles
também; nós sentimos dor, os não humanos também; nós necessitamos de proteção jurídica,
eles igualmente. Somos todos sujeitos personificados”.
Ernandorena20 complementa:
De mais a mais, os animais são seres indefesos, sendo um imperativo ético o dever dos
homens de tutelá-los e protegê-los em sua maior amplitude. Assim como no passado se
venceram tantas infâmias, como a escravidão e o menoscabo aos direitos das mulheres e
das crianças, aproxima-se a encruzilhada evolutiva do abolicionismo animal.
Brügger21 explica que a educação ambiental deve rejeitar o antropocentrismo e o
especismo22, bem como todas as formas de exercer domínio sobre o outro. A partir de uma
educação adequada, de uma tomada de consciência a respeito da interdependência dos seres
vivos, destaca-se que o reconhecimento dos animais não humanos como sujeitos de direitos é um
debate importante e de interesse de todos os membros da sociedade.
A luta pelo reconhecimento do direito dos animais não humanos é de todos, pois somos
seres vivos interligados e que fazemos parte de uma biodiversidade que mantém a vida que
interessa a todos nós. A proteção e a defesa dos animais não humanos é um dever constitucional,
porém, é necessária a quebra de paradigma que demanda uma mudança de postura, a qual afeta
diretamente os animais humanos, para tanto, a informação, o estudo e a empatia são necessários
para seguirmos adiante.

3. A RUPTURA PARADIGMÁTICA RUMO AO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS
A dominação dos animais humanos sobre os animais não humanos nasceu nos
primórdios, quando da organização da humanidade e persiste ainda nos dias atuais; Conforme
Nascimento e Nascimento23, apesar de verificada na História a transição do antropocentrismo

19
PIFFER, Carla; MERIZIO, Pietra. O direito dos animais não humanos na união europeia e no Brasil: aspectos
relevantes no direito comparado. p.227.
20
ERNANDORENA, Paulo Renato. A mudança do Código Civil Francês estabelece um dever jurídico de
fraternidade para com os animais? p.268.
21
BRÜGGER, Paula. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos;
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004b. p.165
22
O especismo pode ser definido como qualquer forma de
discriminação praticada pelos seres humanos contra outras
espécies. SINGER, Peter. Ética prática. 2. ed. Trad.: Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. p.25
23
NASCIMENTO, Eliana Maria de Senna do; NASCIMENTO, Lucas André do. O direito da natureza e sua
justiça: o direito originário dos animais não humanos como pressuposto do direito positivado pelos animais
não humanos. IN: MOREIRA, Ana Selma (Org). EU SOU ANIMAL: o reconhecimento da vulnerabilidade dos
animais não humanos. Joinville: Manuscritos Editora, 2020. p.19
para o biocentrismo, depois para o ecocentrismo, ainda não se viu a concretude do
antiespecismo, pela constatação da convivência harmônica e respeitosa entre todas as formas de
vida, humana e não humana no planeta Terra.
Ainda existe um modelo social que impera, um modelo antropocêntrico e utilitarista que
eleva o animal humano em detrimento do todo ecológico, com vistas às falhas tentativas de
domesticar a natureza. Para Bodnar, Bodnar e Silva 24, essa relação de superioridade dispensada
pelo animal humano desvirtua a visão de interdependência ecológica, cujo teor demonstra que os
padrões econômicos nos moldes da atualidade, embora aparentemente se relacionem à qualidade
de vida, caminham para a instabilidade da vivência social tanto atual quanto intergeracional.
Na compreensão de Santana25, para o neo-utilitarismo de Singer, se os interesses dos
animais sencientes forem levados em consideração em igualdade de condições com os interesses
humanos, chegaremos à conclusão de que a experimentação animal e o consumo de
carne, por exemplo, trazem mais malefícios que benefícios para a sociedade, uma vez
que o sofrimento a eles infringido é tão grande que se sobrepõe a qualquer
consequência benéfica produzida.
Neste raciocínio, importa trazer as palavras de Regan26:
Entre os bilhões de animais não-humanos existentes, há animais conscientes do mundo
e do que lhes acontece? Se sim, o que lhes acontece é importante para eles, quer alguém
mais se preocupe com isso, quer não? Se há animais que atendem a esse requisito, eles
são sujeitos-de-uma-vida. E se forem sujeitos-de-uma-vida, então tem direitos,
exatamente como nós.
Sujeitos de direito, sujeitos de uma vida! Desde 1934 já se tratava no Brasil a respeito da
necessidade de proteger os animais não humanos dos atos de crueldade dos humanos, neste
intuito foi editado o Decreto n°. 24.645/3427. Até os tempos atuais o Ministério Público é o
substituto processual dos animais não humanos que, já naquele Decreto, nos termos de seu art.
2°, § 3°, se dispunha: § 3º - Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do
Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das Sociedades Protetoras de
Animais.

24
BODNAR, Zenildo; BODNAR, Robertoa Terezinha Uvo; SILVA, Andressa de Souza da. A relação tóxica entre
abelhas e agrotóxicos: danos emergentes. IN: MOREIRA, Ana Selma (Org). EU SOU ANIMAL: o
reconhecimento da vulnerabilidade dos animais não humanos. Joinville: Manuscritos Editora, 2020. p.289
25
SANTANA, Heron José de. Abolicionismo Animal. 2006. 210 p. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Centro de
Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. p.72.
26
REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. 1. ed. Porto Alegre: Lugano, 2006.
P.65/66.
27
BRASIL. DECRETO Nº 24.645/34. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D24645.htm, acesso em 13.06.2020.
Medeiros e Albuquerque28 destacam que, em que pese a leitura primeira e antropocêntrica
que pode ser feita do caput do artigo 225 da atual Constituição Federal, cumpre destacar o
conjunto que alberga um ideal biocêntrico, pois somente através da preservação da vida que se
alcançará o equilíbrio proposto pelo legislador.
Para Silvestre29, se a Constituição da República Federativa do Brasil positivou o
reconhecimento do direito autônomo dos animais à tutela, desfazendo a antes obrigatória
correlação com a tutela do meio ambiente, muitas vezes vista como justificável apenas em
função do interesse de pessoas. Vê-se, nesse contexto, um importante papel a ser cumprido pela
jurisprudência e pela doutrina brasileiras, na medida em que terão o papel de preencher a
cláusula geral consubstanciada na palavra “crueldade” trazida pelo texto constitucional, a partir
do caso concreto, o que, cumpre observar, trata-se de medida mais eficiente se comparada à
definição da expressão por lei, tendo em vista a incessante transformação da sociedade em que
vivemos.
É fato que não se pode manter o antropocentrismo como o pilar de uma estrutura global a
partir do reconhecimento da interdependência dos seres. O direito dos animais não humanos está
em evidência não só pelos abusos praticados pelos animais humanos, mas por uma tomada de
consciência que vem crescendo a cada dia e que se choca com uma necessidade de ruptura de
paradigma que exige a mudança de postura diante da vida de cada ser.
Os fenômenos ambientais, o avanço da ciência, os litígios que envolvem os animais não
humanos, o trabalho dos ativistas e de grupos afetos às “causas dos animais não humanos e de
meio ambiente”, estampam a necessidade de uma atuação eficaz dos representantes estatais para
proteção dos bens jurídicos tutelados, dentre eles, a vida.
Sustentam-se as palavras de Boff30:
Todos os seres humanos têm o dever ético de cuidar dos animais, pois a
sustentabilidade, tomada na sua multidimensionalidade, pressupõe o equilíbrio entre
todos os seres vivos, uma “ecologia integral”, com o reconhecimento do lugar do ser
humano em sintonia com os demais seres. Portanto, pensar em sustentabilidade é
reconhecer que os direitos humanos e dos animais são compatíveis. Reconhecer e
defender os direitos dos animais contribui tanto para a superação de problemas sociais
quanto para a preservação ambiental, almejando o bem comum, inclusive entre as
gerações, levando em consideração a responsabilidade ética sobre tudo o que se deve
uns aos outros e ao planeta que nos abriga.

28
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; ALBUQUERQUE, Letícia. Constituição e animais não humanos:
um impacto no Direito Contemporâneo. p.154.
29
SILVESTRE, Gilberto Fachetti; LORENZONI, Isabela Lyrio. HIBNER, Davi Amaral. A tutela jurídica
material e processual da senciência animal no ordenamento jurídico brasileiro: análise da legislação e de
decisões judiciais. p.91
30
BOFF, Salete Oro; CAVALHEIRO, Luana Rocha Porto. Aproximação entre ética animal e ética da vida.
p.126/127
Em 2009 a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 22 de abril como o Dia
Internacional da Mãe Terra31 para que os Estados-Membros reconhecessem que a Terra e seus
ecossistemas é lar comum e por este motivo, faz-se necessária harmonia com a Natureza para
alcançar um justo equilíbrio entre as necessidades econômicas, sociais e ambientais do presente e
do futuro.
Brügger32 explica a corrente abolicionista para a qual, independentemente do quanto
acreditamos “tratar bem” os animais não humanos, estes não devem nos servir como alimento,
como peças do vestuário, como sujeitos de testes em experimentos cirúrgicos, toxicológicos,
militares ou espaciais, entre outros, e não devem tampouco ser objetos de pretensas formas de
diversão ou esporte, cultos religiosos, ou quaisquer outras práticas que não sejam de seu
interesse como indivíduos ou, pelo menos, como espécie, sendo esta última bastante representada
pelos adeptos do veganismo33 e pelos ativistas da causa animal.
Com a ideia abolicionista e o reconhecimento dos direitos dos animais não humanos, é
necessário abordar sobre os direitos de solidariedade, como é o caso
especialmente da qualidade ambiental, que passam a conformar o conteúdo da dignidade
humana, ampliando o seu âmbito de proteção. Sarlet e Fensterseifer 34 falam em uma nova
dimensão ecológica para a dignidade humana, em vista especialmente dos novos desafios
existenciais de índole ambiental a que está submetida a existência humana neste
mundo “de riscos” contemporâneo.
Nascimento e Nascimento35 explicam que o direito positivado, respeitado o direito da
natureza, pode ser denominado de Direito Ambiental Planetário e, deve estar consubstanciado na
Fraternidade e na Solidariedade, para ter-se esperanças de um futuro com dignidade para os

31
UNITED NATIONS. Harmony with Nature. Disponível em: http://www.harmonywithnatureun.org/. Acesso em
08.09.2018.
32
BRUGGER, Paula. Nós e os outros animais: especismo, veganismo e educação ambiental. Linhas Críticas,
Brasília, v. 15, n. 29, p. 197-214, 2009. p.9. Disponível em:
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/viewFile/6409/5784. Acesso em 15.09.2018.
33
O veganismo é uma proposta de conduta ética que prega a libertação dos animais não-humanos por meio da
abolição de todas as formas de exploração que lhes são impostas por nós. Na dieta vegana estão excluídos todos os
ingredientes de origem animal, como ovos, laticínios e mel (e qualquer tipo de carne, evidentemente), além de itens
que contenham ingredientes de origem animal. Quanto ao vestuário, não se utiliza couro (ou qualquer outro tipo de
pele), lã ou seda e, no geral, quaisquer produtos ou itens que tenham sido testados em animais, ou que contenham
ingredientes de origem animal (por exemplo, cosméticos, produtos de limpeza, aditivos de alimentos, objetos de
decoração etc.). O princípio abolicionista, norteador do veganismo, exclui também o comércio de animais de
estimação, o uso de animais para esportes ou diversão, a vivissecção, etc. BRUGGER, Paula. Nós e os outros
animais: especismo, veganismo e educação ambiental. p.13.
34
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade
da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. p. 181.
35
NASCIMENTO, Eliana Maria de Senna do; NASCIMENTO, Lucas André do. O direito da natureza e sua
justiça: o direito originário dos animais não humanos como pressuposto do direito positivado pelos animais
não humanos. p.33
animais humanos e não humanos, com vida plena e saudável, seja para as gerações atuais ou
futuras.
Sobre o tema, destacam-se as palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar
Mendes:
[...] pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as
diferenças e as particularidades humanas em todos os seus aspectos. A tolerância em
tema de igualdade, nesse sentido, impõe a igual consideração do outro em suas
peculiaridades e idiossincrasias. Fraternidade no judiciário: Numa sociedade marcada
pelo pluralismo, a igualdade só pode ser igualdade com igual respeito às diferenças.
Enfim, no Estado democrático, a conjugação dos valores da igualdade e da fraternidade
expressa uma normatividade constitucional no sentido de reconhecimento e proteção
das minorias. [...] Se, por um lado, a clássica concepção liberal de igualdade como um
valor meramente formal há muito foi superada, em vista do seu potencial de ser um
meio de legitimação da manutenção de iniquidades, por outro o objetivo de se garantir
uma efetiva igualdade material deve sempre levar em consideração a necessidade de se
respeitar os demais valores constitucionais. [...] Assim, o mandamento constitucional de
reconhecimento e proteção igual das diferenças impõe um tratamento desigual por parte
da lei. O paradoxo da igualdade, portanto, suscita problemas dos mais complexos para o
exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais.36
Carvalho37 explica que a tutela biocêntrica amplia o âmbito da tutela dos animais: ela não
se baseia mais exclusivamente na avaliação do bem-estar animal, mas exige um respeito geral a
sua integridade física e psíquica, mesmo quando a interferência do ser
humano ou a instrumentalização do animal não seja dolorosa.
A fraternidade pode ser a solução para muitos dos problemas que envolvem a relação dos
animais humanos e não humanos. Diante da fraternidade, livrar-se-iam os animais não humanos
da fome, da sede, do desconforto, da doença e da injúria. Ainda, garantir-se-ia a liberdade para
expressar comportamentos naturais das espécies sem o medo e o estresse38.
Ernandorena39 afirma que é preciso, operar a transposição do direito fraterno, de caráter
inclusivo, para todas as dimensões relacionais, ainda que seja preciso uma volta às origens,
dilema que a (pós)modernidade terá que resolver, a partir da aceitação de que a fraternidade é um
atributo biológico – e não apenas cultural como se pode crer – estando presente tanto em animais
quanto humanos, a mostrar que só a unidade entre homem e natureza é capaz de mitigar o mal
estar da civilização contemporânea.
Enquanto ainda se fala sobre o reconhecimento dos animais não humanos com o sujeitos
de direitos e sobre a quebra do paradigma antropocêntrico, faz-se necessário considerar que a

36
Ministro Gilmar Mendes - STF Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental –
ADPF 186-2/DF
37
CARVALHO, Gabriela Franziska Schoch Santos. A tutela jurídica dos animais: evolução histórica e conceitos
contemporâneos. p.731.
38
MOREIRA, Ana Selma. A FRATERNIDADE e os animais não humanos. In:
https://clicnavegantes.com.br/colunas/__trashed-2/, acesso em 13.06.2020.
39
ERNANDORENA, Paulo Renato. A mudança do Código Civil Francês estabelece um dever jurídico de
fraternidade para com os animais? p.268.
ética da vida é mais abrangente que a ética dos animais, pois compreende de uma forma total os
seres existentes no planeta terra, enquanto a ética dos animais de um modo diferente propõe a
consideração moral a apenas alguns seres, estipulados por tais animalistas, como merecedores de
maior proteção moral em relação a outros seres (animais invertebrados). 40
A ruptura paradigmática que envolve a mudança do pensamento sobre a relação do
homem com a natureza é necessária, até porque muitas catástrofes ambientais são provocadas
pelas ações humanas e, conforme Capra e Mattei41, o sistema jurídico atual é como uma madeira
podre, na qual é difícil pôr fogo. Qualquer estratégia única está condenada ao fracasso e por isso
todos devem unir forças em vista de um objetivo comum que é o direito ecológico.
A mudança na estrutura de um sistema inicia com uma nova postura ética que deve surgir
do meio social, assim, cabe a cada membro da sociedade compreender as consequências das
ações colocadas em prática e agir, baseando-se nos princípios da fraternidade e da diversidade, a
transformar o planeta em um lugar saudável para todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Anos de sofrimento, de tratamento indigno, de injustiças sofridas pelos animais não
humanos ao longo da história fazem com que o reconhecimento dos direitos fundamentais dos
animais não humanos esteja na ordem do dia. Não é admissível que o ser humano ainda acredite
no antropocentrismo e se mantenha especista em suas relações com outros seres.
No âmbito internacional, muitos países já compreendem os animais não humanos como
seres que merecem tratamento digno e condizente com suas espécies, a exemplo da Áustria,
Alemanha, França e Suíça. No Brasil, apesar do artigo 225, § 1º, inciso VII da constituição
garantir os direitos fundamentais dos animais não humanos, não é difícil constatar a violação
destes direitos com o consentimento do animal humano.
As normas infraconstitucionais ainda permitem a utilização de animais não humanos para
alimento, entretenimento, transporte, experimentos, mesmo com violação constitucional. A
compreensão dos princípios da fraternidade e da diversidade podem levar o ser humano a uma
quebra de paradigma que ensejará a uma mudança de postura ética animalista.
Reconhecer os animais não humanos como sujeitos de direitos que são fará com que os
animais humanos deixem de tratá-los como “coisas” e reconheçam a sua senciência, o que levará
a um abolicionismo desejado e necessário para que o planeta efetivamente seja de todos e para
40
BOFF, Salete Oro; CAVALHEIRO, Luana Rocha Porto. Aproximação entre ética animal e ética da vida.
p.126.
41
CAPRA, Fritjof; MATTEI, Hugo. A revolução ecojurídica: o direito sistêmico em sintonia com a natureza e a
comunidade. ed. Cultrix, 2018. p.265
todos, sob o prisma do aporte ecológico.

REFERÊNCIAS DA FONTES CITADAS


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