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EDIÇÃO 53

Out. / Nov. 2020


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ENTREVISTA - PÁG. 4 CAPA- PÁG. 7 MATÉRIA - PÁG. 10 MATÉRIA - PÁG. 13


A professora Tereza Rodrigues Especialistas do IBDFAM Histórias de famílias; como Novas leis e projetos buscam
Vieira trata do fenômeno sob opinam sobre a presença a Justiça recepciona esses romper aspecto antropocentrista
a perspectiva do Biodireito dos pets nas famílias seres sencientes do Legislativo
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AMIGO É COISA
PARA SE GUARDAR
Ainda que por vezes tratados como sexto se a agressão resultasse na mor- dos animais não humanos, tornando-os
membros das famílias, os animais de te do animal. sujeitos de direitos despersonificados. É
estimação ainda estão longe da prote- muito significativo esse paralelo com a
ção ideal e de um tratamento adequado Com a nova norma, o crime deixa nova proposta aprovada, pois não criaria
pelo ordenamento jurídico brasileiro. O de ser considerado de menor potencial uma distinção especifista”, afirma.
carinho e o cuidado dedicado a eles vai ofensivo, diminuindo a chance de o pro-
de encontro à legislação que ignora a cesso criminal ser suspenso e possibi- Nesse sentido, é importante romper o
senciência dos pets, tratando-os como litando que a autoridade policial chegue aspecto antropocentrista e buscar pelo
coisas e objetos de posse. Ao passo que mais rápido à ocorrência. O criminoso menos a sua mitigação por uma ideia de
novas normas e projetos de leis se confi- será investigado e não mais liberado proteção e de características biocêntri-
guram, nota-se o avanço da discussão e após a assinatura de um termo circuns- cas. Para ele, fica claro e evidente mais
da abordagem do tema pela Justiça. tanciado, como ocorria antes. Além de um passo no ordenamento jurídico para
ter registro de antecedente criminal, o ruptura entre os animais e coisas, como
Em setembro, foi sancionada a nor- infrator poderá ser levado à prisão em o Código Civil os chama.
ma que altera a Lei de Crimes Ambien- caso de flagrante.
tais (n. 9.605/1998) para aumentar a “Com essa lei sancionada, estamos
pena para maus-tratos contra animais. O tabelião de notas e registrador civil mais próximos do rompimento desse
A Lei n. 14.064/2020 criou um item es- Thomas Nosch Gonçalves, membro da paradigma e da noção de seres sen-
pecífico para a proteção de cães e ga- Comissão de Notários e Registradores cientes. Entretanto, ainda está longe de
tos. O texto, de autoria do deputado do IBDFAM, destaca que a lei vem para solucionar toda sua irradiação dos ani-
Fred Costa (Patriota-MG), havia sido auxiliar e proteger os animais, mas res- mais não humanos no ordenamento ju-
aprovado pelo Congresso em setembro, salta que, em um primeiro momento, só rídico, seu recorte é muito específico”,
com relatoria do senador Fabiano Con- os cães e gatos. Isso leva à seguinte per- diz o tabelião.
tarato (Rede-ES). gunta: os outros animais sencientes não
serão tutelados? SUI GENERIS
De acordo com a nova lei, a pena
passa a ser de dois a cinco anos de re- ANTROPOCENTRISMO Engana-se quem acha que as tra-
clusão, além de multa e proibição de tativas dos animais pararam por aí.
guarda de animais. Antes, a punição “O texto criminaliza especificamente Thomas Nosch Gonçalves destaca que
ia de três meses a um ano de deten- os maus-tratos contra essas duas es- outros projetos estão sendo analisados
ção, considerando animais silvestres, pécies, que representam a maior parte na Câmara e no Senado, como o PL
domésticos ou domesticados, nativos dos animais domésticos no país. É im- n. 27/2018. De acordo com a propos-
ou exóticos, não apenas cães e gatos. portante salientar que existem ideias e ta, os animais não humanos possuem
A pena poderia ser aumentada em um projetos que mudam a natureza jurídica natureza jurídica sui generis e são su-
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LEGISLAÇÃO

vo disposição especial que os proteja, “Tanto para os mais radicais, que


jeitos de direitos despersonificados, os animais são submetidos ao regime acreditam na necessidade de proteção
dos quais devem gozar e obter tutela dos bens”. isonômica, tanto para os antropocen-
jurisdicional em caso de violação, ve- tristas médios quanto para os especifis-
dado o seu tratamento como coisa. O No Brasil, por sua vez, a jurispru- tas, ficará uma margem hermenêutica
dispositivo abrange direitos para todas dência e a doutrina se dividem em ba- ao intérprete para solução do caso, que
as espécies de animais, cada um com sicamente três correntes. A primeira se muitas vezes poderá modular a efetivi-
sua especificidade. dedica a elevar os animais ao status de dade dos direitos animais. De qualquer
pessoa, haja vista que, no cerne da te- forma, com aprovação do referido pro-
“Esses avanços acontecem como mática, todos nós somos animais, de- jeto, teremos a concretização dos direi-
consequência da consciência nascida vendo, assim, serem atribuídos direitos tos fundamentais, além do cumprimen-
nas últimas décadas. Nas sociedades de personalidade para eles. to parcial da Declaração Universal dos
preocupadas com os direitos humanos Direitos Animais de 1978, que o Brasil
existe uma corrente, em nível interna- A segunda corrente, aplicada inte- é signatário, havendo lei em sentido es-
cional, que visa estabelecer as bases gralmente na nova lei, defende uma trito para proteção e tutela dos animais,
do respeito que deve regular o relacio- separação de conceitos com a intenção alterando substancialmente nosso or-
namento de pessoas com os seres vivos de diferenciar “pessoa” de “sujeito de denamento jurídico”, aponta.
do ambiente deles e especialmente com direitos”, possibilitando a irradiação do
animais”, destaca. ordenamento jurídico aos animais, sem DESPROPORCIONALIDADE
atribuir-lhes propriamente uma perso-
Ele ressalta que a causa dos direitos nalidade dita. Já a terceira, defende que Apesar de ser vista por muitos como
dos animais não é antagônica à dos di- se mantenha a visão de hoje, ou seja, um avanço, há quem aponte despro-
reitos dos humanos. Para ele, “presumir que sejam considerados semoventes e porcionalidade na Lei n. 14.064/2020,
e atribuir-lhes características inferio- classificados como “coisa”. já que alguns crimes contra humanos
res e limitativas é algo extremamente têm punição mais branda. O membro
curioso e paradoxal quando analisamos “Ainda existe uma quarta corrente, da Comissão de Notários e Registra-
nossas semelhanças com os animais, baseada no atual arcabouço jurídico dores do IBDFAM ressalta que, no âm-
principalmente ao sabermos que parti- de teoria de bens, devendo ser aplica- bito criminal, essa pena não fará mui-
lhamos mais de 98% do nosso DNA com da até que seja editada lei que altere o to alarde porque entra na hipótese da
os chimpanzés ou, inclusive, o fato de status dos animais no Código Civil e na negociação punitiva do acordo de não
ser possível a xenotransplantação”. legislação competente. Para aplicação persecução penal, e do ponto de vista
dessa corrente, atualmente, existe uma prático não haverá reclusão. Ou seja,
DIREITO COMPARADO concepção moderna na relação jurídi- não é mais crime de menor potencial
ca, à qual parte da doutrina apelidou de ofensivo da Lei dos Juizados.
Vários países preocuparam-se com ‘elemento funcional’. A ideia é oferecer
esse tema e já o normatizaram, a exem- uma explicação convincente de sua tese Por outro lado, é necessário um es-
plo e semelhança do PL n. 27/2018. Na- sobre a ligação dos efeitos da relação forço hermenêutico sobre essa ques-
ções como a Áustria e Suíça indicam jurídica, que dá dinamismo aos elemen- tão. “Essa ‘desproporcionalidade’ já
expressamente que os animais não são tos da relação. Ou seja, a função teria existe no próprio Direito Penal quando
coisas. Por outro lado, França e Portugal um elemento integrador e justificador, olhamos para aspectos patrimoniais e
dispõem que se trata de seres dotados tornando-se possível e suficiente uma direitos de personalidade”, pondera.
de sensibilidade. relação jurídica sem sujeitos, aplicando
integralmente aos animais, de acordo “Existe, sim, uma incompatibilidade
Segundo Nosch, o Código Civil ale- com o caso concreto”, revela Thomas. axiológica do bem jurídico protegido.
mão prevê, em seu § 90-A, que “os ani- No entanto, muitas vezes, uma situação
mais não são coisas, mas protegidos Com essas observações expostas, social pede uma resposta penal para
por leis especiais. Eles são regulados ele salienta que o Código Civil alemão fins educativos. Existe total proporcio-
pelas regras relativas às coisas, com as foi inovador em separar as “coisas” dos nalidade dentro do sistema nesse au-
necessárias modificações exceto se de “animais”, e que esse tipo de entendi- mento de proteção aos animais, até por
outra maneira for previsto”. Já o Código mento, a ser aplicado em parte no Bra- sua hipervulnerabilidade, já que eles
Civil francês diz que “os animais são se- sil, é um avanço imensurável, apesar não têm a isegoria, capacidade de falar
res vivos dotados de sensibilidade. Sal- dos aspectos práticos serem complexos. e ser ouvido”, conclui Nosch.
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