Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
anos 20. Apesar de em alguns pontos o Novo Código Civil ser completamente inovador,
em outros, em contrapartida, não há sequer menção a respeito.
Com as avançadas tecnologias, em que já é possível descobrir-se se o nascituro
apresenta doenças crônicas, apresentando-se, inclusive, diagnósticos, onde também já é
possibilitada a cirurgia de mudança de sexo, urge perpetrar-se um estudo acerca do tema,
nas trilhas da história, seguindo o fio da justiça.
O homem, em sua ação consciente, é agente e sujeito da história. Os
acontecimentos históricos são relevâncias de uma infinidade de vontades, transformadas
em ações. Ao agirem em busca de determinados fins individuais ou coletivos, movidos por
interesses materiais ou por razões espirituais, os homens fazem a sua história.
O tema ganhou impulso em meados do século XX, com os avanços técnicos por
que passou as ciências médicas, possibilitando a realização da cirurgia adaptativa, também
denominada cirurgia de trangenitalização, muito embora estudos deixem evidente que a
questão, apesar de atual, tem suas raízes fincadas desde os nossos antepassados.
No decorrer das linhas desta obra, por conseguinte, também será de nosso interesse
o respeito à dignidade da pessoa humana. Afinal de contas, não é porque alguém não se
sente à vontade, física e psicologicamente, com seu corpo que, uma vez que se dispõe à
transmudação do sexo, terá como sanção a repulsa da sociedade. Isto porque, acima de
tudo, há proteção constitucional à pessoa, conforme pode ser observado no art. 5º, caput e
inc. X, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação.
Assim sendo, é preciso, deixar de lado todos os possíveis preconceitos que possam
ter relação com a matéria.
Vale ressaltar que é com a mudança que se chega ao progresso. A aceitação da
possibilidade da mudança do nome nos cartórios de registro civis brada em favor daqueles
que serão os beneficiários, os transexuais.
Para desenvolvimento do presente trabalho utilizou-se uma pesquisa doutrinária,
jurisprudencial, artigos eletrônicos, além da legislação vigente pertinente ao assunto.
13
Insta salientar, que é de maneira precisa, porém não muito exaustiva, que se busca
discutir o tema da possibilidade de mudança do prenome e gênero sexual do transexual
submetido a cirurgia de transgenialização do sexo, analisando casos concretos e situações
atuais, afim de se alcançar uma somatória de valores, em favor destes seres humanos que
tanto buscam sua identidade sexual.
14
1.1 Personalidade
simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a
natureza lhe deu, de maneira primordial e direta.
São naturalmente concedidos a todos, pelo simples fato de estar vivo, ou pelo só
fato de serem: extrapatrimoniais: uma vez que são insuscetíveis de avaliação
econômica; absolutos, porque impõe-se à coletividade o dever de respeitá-los;
indisponíveis: pois seu titular não pode deles dispor, sendo, portanto,
irrenunciáveis, impenhoráveis e inalienáveis; imprescritíveis: uma vez que uma
lesão a um direito da personalidade não enseja perecimento da pretensão
ressarcitória ou reparadora; intransmissíveis: extinguindo-se com a morte do seu
titular. (CUPIS, 2004, p.59-60).
Ninguém pode ser constrangido à invasão de seu corpo contra sua vontade, há
limites morais e éticos que são recepcionados pelo direito, conforme dispõe o art. 13 e
parágrafo único do Código Civil de 2002:
No que tange à exigência médica 1, deve-se assinalar que, apesar de ter a pessoa a
prerrogativa de dispor de seu corpo, por exemplo, autorizar ou não a realização de uma
cirurgia, há situações em que o estado de saúde do paciente é de urgência extrema, sem
possibilidade de a pessoa manifestar essa vontade inclusive por inconsciência; nesse caso,
pode o médico realizar os procedimentos necessários, tomando as medidas
profissionalmente indicadas para preservação da vida humana.
1
CANIATO, Maria Cecilia Garreta Prats. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Harbra Ltda, 2004.
18
O direito ao próprio corpo abrange tanto a sua integralidade como as partes dele
destacáveis e sobre as quais exerce o direito de disposição. Consideram-se, assim, coisas
de propriedade do titular do respectivo corpo.
Conforme Bittar (1989, p.76): “que sendo a pessoa a união entre o elemento
espiritual (alma) e o elemento (corpo), exerce este a função natural de permitir-lhe a vida
terrena: daí porque, em sua integridade, deve ser conservado e protegido na órbita
jurídica”.
Assim, a regra é de preservação do corpo, sendo defeso o ato de sua disposição
quando importar em qualquer limitação permanente da integridade física ou contrária aos
bons costumes, exceto exigência médica.
O parágrafo único do art.13, retrotranscrito, permite a realização de transplante de
partes do corpo humano, na forma estabelecida em lei especial. Atualmente é a Lei n.
9.434, de 4 de fevereiro de 1997, regulamentada pelo Decreto n. 2.268/97, que dispõe
sobre “a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano vivo para fins de transplante
e tratamento, com as alterações determinadas pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001.
O Código Civil no art. 16 estatui: “toda pessoa tem direito ao nome, nele
compreendidos o prenome e o sobrenome.” E somente ao titular cabe-lhe poder de gozo de
seu nome, ou seja, o poder de usar o nome a fim de gozar daquela identidade pessoal para
realização da qual ele pertence.
Após o nascimento, nos é atribuído um nome que não tivemos a oportunidade de
escolhermos. Em princípio, conservaremos esse nome por toda a vida, como marca
distintiva na sociedade. Mesmo após a morte, o nome da pessoa continua a ser lembrado e
a ter influência. Ainda que assim não tenha ocorrido, o nome da pessoa falecida permanece
na lembrança daqueles que lhe tinham uma grande estima.
Para Venosa (2002), “o nome é um atributo da personalidade, é um direito que visa
proteger a própria identidade da pessoa, com o atributo da não-patrimonialidade”.
Segundo Cupis (2004), “o direito ao nome é, portanto, um daqueles direitos da
personalidade que não são inatos. É um direito essencial, mas não inato”.
19
1.5 Da Sexualidade
2
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. v.1, 34.ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 72-73
3
CHOERI, Raul. Transexualismo e identidade pessoal: cirurgia de transgenitalização. In: BARBOSA,
Heloiza Helena & BARRETO, Vincente de Paulo (org). Temas de Biodireito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
p.234-235.
20
4
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 127.
5
Autores como Jeam Claude Nahoum, Antônio Chaves e Matilde Josefina Sutter, citados por Ana Paula
Ariston Barion Peres e o Instituto Médico-Legal de São Paulo, citado por Tereza Rodrigues Vieira,
classificam a palavra "sexo" de uma forma pluridimensional. Existem diferenças em suas classificações, mas
todos os autores concluem que não somente a parte biológica, mas também a psicossocial é necessária à
definição do sexo do indivíduo.
21
O sexo gonadal aparece ainda na vida intra-uterina do feto, por volta dos quarenta
dias de gestação6, definindo o sexo, com o surgimento de testículos ou ovários. Até este
período, os fetos possuem gônadas primitivas, que não se distinguem o que só ocorre no
período já mencionado.
O sexo gonático7 pode ser definido como a constituição das estruturas sexuais
internas e externas, que somente se diferenciarão quando alcançarem um certo grau de
amadurecimento.
A síndrome sexual8 pode ser desencadeada pelas alterações que o ritmo cerebral
dos indivíduos pode sofrer no período fetal, não fazendo à diferenciação sexual cerebral do
6
Esta informação é precisada por MODAY, que afirma que "o sexo gonadal surge em torno dos quarenta a
quarenta e cinco dias após o início da vida intra-uterina (...)". MODAY apud VIEIRA, Tereza Rodrigues.
Mudança de Sexo - Aspectos Médicos, Psocológicos e Juídicos. São Paulo: Santos, 1996, p. 12.
7
SPENGLER, Fabiana Marion. União Homoafetiva: o fim do preconceito. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2003, p. 23.
8
PERES, Ana Paula Barion. Transexualismo. O direito a uma nova Identidade Sexual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 73.
22
social que o indivíduo exercerá em meio a sociedade, que determina que alguns desses
papéis fosse exercidos pelo homem e outros pelas mulheres.
O sexo de criação é aquele que é definido pelo modo e pelo meio em que a criança
foi criada e educada. Assim, os maiores responsáveis pela definição deste sexo são os pais,
os professores, ou seja, todos aqueles que sejam responsáveis direta ou indiretamente pela
formação da criança. A educação ocorre, geralmente, de forma que o sexo de criação seja o
mesmo que o sexo legal.
É nesse sentido que se manifesta:
Na maioria das vezes, não há problemas quanto ao sexo de criação, pois este é
idêntico aos sexos biológico e legal, estando o indivíduo em harmonia sexual. Existem os
casos dos transexuais, no entanto, que desenvolvem uma identidade sexual diversa do sexo
de criação, que é determinada por um outro critério de identificação sexual, o sexo
psicossocial, conforme se verá.
O transexualismo pode ser conceituado de várias formas, mas é certo que pode ser
considerado como um transtorno sexual, pois consiste na disposição psíquica do sexo
oposto ao biológico.
Fragoso (1981, p. 199-304), afirma que: “entende-se por transexualismo uma
inversão da identidade psicossocial, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-
compulsiva, que se manifesta pelo desejo de reversão sexual integral”.
26
9
BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
27
do nome), acompanhada de uma denúncia dos obstáculos a essa escolha que mobiliza para
fins militantes, freqüentemente com sucesso, os instrumentos habituais da crítica dos
preconceitos (como a sociologia comparada, que acentuou, no feminismo recente, a
distinção entre o gênero e o sexo natural, bem como diversos argumentos biológicos que
relativizam o dimorfismo homem/mulher).
De uma situação individual de início absolutamente marginal, passou-se assim,
como o atestam todas as estatísticas dos países desenvolvidos, a um crescimento
exponencial de demandas de "mudança de sexo" e a sex ratio, que inicialmente guardava
uma proporção de uma mulher para oito homens solicitando hormônios e cirurgia, é agora
de uma para três.10
10
Quantos transexuais existem hoje? Não se sabe. As estimativas oscilam devido à antiguidade das práticas
clandestinas e da vontade da imensa maioria dos (as) operados (as) de desaparecer no anonimato, uma vez
modificado seu estado civil. Haveria cerca de 50.000 nos Estados Unidos e 3.000 na França.
28
inclusive por conta do Estado. Não se pode pretender que o Estado não financia tal
operação. Não se trata de uma intervenção estética, mas de algo necessário à integridade
psíquica do paciente. Portanto, no direito à saúde, não se pode deixar de compreender o
direito que o transexual tem de, por meio da cirurgia, tentar aproximar-se da realidade
social e de sua integridade psíquica.
Todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, o que é vedado são
as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos
casos desiguais, à medida que se desigualam, somente terá como lesado o princípio
constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma
finalidade acolhida pelo direito.
Ao explicar o princípio da igualdade Bastos (1998, p.165-198), indaga o que
significa igualdade e responde dizendo que: “se traduz numa relação entre dois entes
quando estes apresentam às mesmas características, a mesma estrutura, a mesma forma,
quando, enfim, não apresentem desigualdade que se nos afigurem relevantes”.
A complexidade do princípio ora em estudo, fez com que a doutrina melhor
explicasse denominando igualdade substancial e formal. Aquela é o tratamento igual e
uniforme a todos os homens, é a busca pela paridade dos homens quanto a seus direitos e
deveres. Pelo princípio da igualdade substancial todo ser humano deve ser tratado da
mesma forma, a regra deve ser a mesma para todos independentes da situação concreta que
se encontra o homem.
Já o principio da igualdade formal diz respeito ao valor da pessoa humana e exige o
respeito incondicional a sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si,
que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e
das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre
membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e
valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social.
11
KANT, I., Immanuel - Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 68.
34
Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada pessoa,
que supõe, de um lado, o reconhecimento da total auto disponibilidade, sem interferências
ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de cada homem; de
outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que
uma predeterminação dada pela natureza.
Vê-se que a proclamação do valor distinto da pessoa humana teve como
conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem. A dignidade da
pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte
jurídico-positiva dos direitos fundamentais, a fonte ética, que confere unidade de sentido,
de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais.
Daí falar-se, em conseqüência, na centralidade dos direitos fundamentais dentro do
sistema constitucional, que eles apresentam não apenas um caráter subjetivo, mas também
cumprem funções estruturais, são conditio sine qua non del Estado constitucional
democrático.
Igualmente, como posiciona a respeitável doutrina12:
No entendimento de Alves13:
12
ALEXY, Robert, op. cit., p. 503 e segs.; CANOTILHO, J.J. Gomes - Direito Constituiconal, p. 498 e segs,
que, aliás, diz ser a dignidade da pessoa humana "a raiz fundamentante dos direitos fundamentais".
13
ALVES, Elizabete Lanzoni. Transexualismo e as novas diretrizes jurídicas. Disponível em
http://www.casadaculturajuridica.com.br/artigos/my_aj06.htm. Acesso em 09 jul 2006.
36
Será justo e condizente ao ser humano que nega a sua identidade, que repudia com
fervor as características físicas com as quais a mãe natureza o brindou, que busca
incessantemente uma harmonia entre a sua psique e o seu estado físico, que sofre imensos,
árduos e reiterados preconceitos da sociedade e da família por não se identificar consigo
mesmo, poder alterar as suas características físicas mediante procedimento cirúrgico
complexo, doloroso e arriscado, e não receber por parte do Estado uma resposta favorável
ao seu interesse em mudar de nome?
Esta dignidade deve ser entendida de acordo com os valores pessoais do indivíduo,
independente dos valores atribuídos como normais pela comunidade e grupo social em que
o indivíduo esteja inserido, como bem demonstra Neves14, nos seus ensinamentos jurídicos.
A dignidade pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito
incondicional a sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o
mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das
situações sociais em que ela concretamente se insira.
Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma
classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz aos modos de existência comunitária
ou social. Será por isso inválido e inadmissível, o sacrifício do valor e dignidade pessoal, e
benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito
portador do valor absoluto não é comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora
socialmente em comunidade e na classe.
O transexual, por ser um indivíduo diferente dos padrões normais e por fazer parte
de um grupo marginalizado pela sociedade não deve ver olvidar os seus direitos
fundamentais, o direito à integridade psíquica, à imagem, à intimidade, ao sigilo, à
disponibilidade sobre o próprio corpo e, principalmente, à identidade. Após a cirurgia, ao
adquirir um novo corpo, o indivíduo estaria amparado também pelo direito à imagem, pois
ele quer mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de tolher a
divulgação de sua atual imagem violaria esse direito.
O transexual tem direito ao sigilo e à intimidade, uma vez que o ato cirúrgico
praticado deve permanecer em sigilo, pois qualquer forma de exibição traria conseqüências
14
NEVES, Castanheira apud FARIAS, Edilsom Ferreira de. Colisão de direitos à honra, à intimidade, à vida
privada, e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris,
2000. p.60-61.
37
negativas para o bem estar e a moral do indivíduo. Além disso, as particularidades de sua
vida privada devem permanecer si lentes por mais que o indivíduo se exponha ao público.
Não haveria justificativo dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de
um ser humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações
constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de
identificação.
O princípio jurídico da proteção a dignidade da pessoa humana tem como núcleo
essencial à idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesmo, não podendo ser
instrumentalizada ou descartada·, pois lhe são atribuídas características que lhe
individualiza e representa uma identidade pessoal.
O reconhecimento da dignidade humana é elemento essencial na sociedade
conceituada como um Estado Democrático de Direito, que promete aos indivíduos, muito
mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de
suas liberdades.
A leitura de toda legislação e normas estabelecidas socialmente devem ter como
norte a dignidade da pessoa humana, inclusive para sua aplicação aos casos concretos
levados ao conhecimento do Poder Judiciário. Qualquer decisão dos tribunais que firam a
dignidade de qualquer pessoa necessita ser reformada, posto que se confronta com um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
assim, visa proteger as pessoas de dois atentados particulares, ou seja, ao segredo da vida
privada (direito à intimidade) e à liberdade da vida privada (direito à vida privada).
Assim, intimidade é o status ou situação daquilo que é intimo, isolado, só.
Há um direito ou liberdade pública de se estar só, de não ser importunado,
devassado, visto por olhos estranhos. A noção de intimidade ou de vida privada é
vinculada à noção relativa e subjetiva de espaço e tempo, o que explica a dificuldade do
tema.
Segundo Dotti15, "a intimidade se caracteriza com a esfera secreta da vida do
indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais".
Para Cupis16, "a intimidade como o modo de ser da pessoa, consiste na execução do
conhecimento de outrem do quanto se refira à pessoa mesma".
Intimidade revela, assim, a esfera secreta da pessoa física, sua reserva de vida,
mantendo forte ligação com a inviolabilidade de domicílio, com o sigilo de
correspondência e com o segredo profissional.
Convém assentar, afinal, que, embora em algumas situações os direitos à
intimidade, à honra e à imagem possam aparecer entrelaçados, estes não podem ser
confundidos. Tanto é que, com o direito à intimidade, o legislador visa proteger o
indivíduo da intromissão alheia na sua vida particular; com o direito à honra busca-se
preservar a personalidade de ofensas que a depreciem ou ataquem sua reputação e com o
direito à imagem procura-se coibir a exposição indevida da imagem da pessoa.
15
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação, p. 90
16
DE CUPIS, ADRIANO. Os Direitos da Personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim e Miguel
Caeiro. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961, p. 115.
40
Indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação
sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo,
o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas.
Todos dispõem da liberdade de optar, desimportando o sexo da pessoa eleita, se
igual ou diferente do seu.
Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas recebe
o repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado
em função de sua orientação sexual.
Como orientação sexual só é passível de distinção diante do sexo da pessoa
escolhida, é direito que goza de proteção constitucional ante a vedação de discriminação
por motivo de sexo.
O gênero da pessoa eleita não pode gerar tratamento desigualitário com relação a
quem escolhe, sob pena de estar diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou
diferente do sexo da pessoa escolhida.
Dito impedimento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional.
Está posto na Convenção Internacional Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San
José, dos quais o Brasil é signatário. Como preceitua o § 2º do art. 5º da CF 17, são
recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais, A
ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de
homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja
pelo princípio da igualdade.
A orientação que alguém imprime na esfera de sua vida privada não admite
restrições a quaisquer direitos. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, aí está incluída a opção sexual que se tenha.
CAPÍTULO III - REDESIGNÇÃO DO ESTADO SEXUAL E A ALTERAÇÃO DO
REGISTRO CIVIL
3.1 Da Cirurgia de Redesignação do Estado Sexual
A questão do transexual vem à tona nos dias de hoje sempre que se discute a
identidade sexual da pessoa e livre disposição de partes do próprio corpo. A partir do
reconhecimento da existência de uma sexualidade discrepante daquela física, mais
17
§ 2º do art. 5º da CF: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.
41
precisamente oposta ao gênero que revela sua aparência, podemos evoluir para um
conceito de pertinência sexual psíquica que não se limita à preferência sexual.
O avanço a medicina quanto aos transplantes continua a levantar dúvidas éticas,
morais, religiosas e jurídicas.
Durante muitos anos, o Conselho Federal de Medicina considerava que a cirurgia
de redesignação do estado sexual, possuía caráter mutilante e não corretivo e, portanto,
crime de lesão corporal. Somente em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de
Medicina publicou a Resolução de número 1.482/97. Após essa Resolução, os médicos
foram liberados, eticamente, para a realização dessa cirurgia, no Brasil.
Em 2002, o Conselho Federal de Medicina, demonstrando, novamente, sua
sensibilidade com o assunto, editou a Resolução de nº. 1.652/02, revogando a Resolução
1.482/97. Essa Resolução, em vigor até os dias atuais, permite a realização da intervenção
cirúrgica. No entanto, a seleção dos pacientes é muito rigorosa, sendo obrigatória à
avaliação do paciente por uma equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra,
cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, por um período não inferior a
dois anos.
A intervenção cirúrgica para redesignação do estado sexual do transexual tem como
objetivo adaptar a realidade do indivíduo transexual, harmonizando-o com o sexo psíquico
ou psicossocial.
O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário à sua anatomia
e por isso se transveste. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação. Em
momento algum vive, comporta-se ou age como homem. Quando o faz é sob condições
estressantes que podem conduzi-lo a conseqüências neuróticas e até psicóticas. Estas
podem chegar a ponto de induzi-lo à automutilação da própria genitália e, em certos casos,
ao suicídio.
O primeiro paciente submetido à intervenção cirúrgica para mudança de sexo foi o
ex-combatente norte-americano George Jorgensen. Em 1952, ele fora operado, em
Copenhague, pelo cirurgião plástico Paul Fogh-Andersen, adotando o nome de Christine
Jorgensen.
No Brasil, a primeira cirurgia de redesignação do estado sexual ocorreu em 1971,
com o transexual Waldir Nogueira e foi realizado pelo cirurgião Roberto Farina. A cirurgia
foi um sucesso, porém, intentada a ação de mudança do nome e do estado sexual no
registro de nascimento do indivíduo, o Ministério Público, tomando conhecimento,
42
18
Murilo Rezende Salgado, foi professor titular de instituições de direito privado da Universidade para o
Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina. RT 491, Setembro, 1976.
43
sexo oposto; permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos; ausência de outros transtornos mentais; a seleção dos pacientes para cirurgia de
transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-
psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, por no mínimo dois anos de
acompanhamento conjunto; após diagnóstico médico de transexualismo; ser maior de 21
(vinte e um) anos; ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia; e
consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução CNS n. 196/96. Esse
procedimento é de fundamental importância, pois a cirurgia é irreversível. Somente após
cuidadosamente emitidos os laudos médicos, o Conselho Federal de Medicina autoriza à
cirurgia, por possuir a mesma um caráter terapêutico, necessária ao tratamento psicológico
do transexual.
Vale ressaltar que com a cirurgia a sensibilidade, no local, não é perdida, pois não
atinge nervos, e só poderá ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos
adequados à pesquisa.
O permanente conflito a que se submete o transexual, ao viver em um corpo que
julga ter sido um erro biológico, submete-o a uma condição marginal, um martírio diário.
Essa situação não atende ao princípio maior da Constituição Federal, o da dignidade da
pessoa humana, que é o objetivo do Estado, promover o bem-estar e felicidade de todos.
Para tanto, o judiciário precisa colaborar, concedendo ao transexual o ajuste de sua
identidade, para impedir que a infelicidade e a angústia promovam a indignidade que o
indivíduo vivia antes da cirurgia de adequação do sexo.
Para uma visão do quadro genérico da normatividade, a lei alemã de 15 de agosto
de 1969 admite alteração de sexo, a juízo da ciência médica, para curar ou aliviar o
paciente de enfermidades, perturbações e sofrimentos psíquicos graves vinculados com
uma sexualidade anormal.
Nos Estados Unidos, em Illinois, a autorização vem datada de 1961; na Louisiana, a
partir de 1968; na Califórnia, a partir de 1977; em Nova York a autorização surgiu em
1971. No Canadá, a partir de 1973 a operação de mudança de sexo tornou-se autorizada.
Na Europa a questão já não é mais tão polêmica. O Tribunal Europeu de Direitos do
Homem tem reconhecido direito de os transexuais realizarem a operação, com base no
mencionado art. 8 da Convenção Européia dos Direitos do Homem, que regula a vida
privada e familiar das pessoas, pronunciando-se, inclusive, contra os países signatários que
negavam o pedido de autorização judicial para realização da cirurgia.
45
Por ser o transexual um indivíduo diferente dos padrões normais e por fazer parte
de um grupo marginalizado pela sociedade não deve ver olvidar os seus direitos
fundamentais, o direito à integridade psíquica, à imagem, à intimidade, ao sigilo, à
disponibilidade sobre o próprio corpo e, principalmente, à identidade. Após a cirurgia, ao
adquirir um novo corpo, o indivíduo estaria amparado também pelo direito à imagem, pois
ele quer mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de tolher a
divulgação de sua atual imagem violaria esse direito.
Não haveria justificativo dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de
um ser humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações
constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de
identificação.
A cirurgia de redesignação do sexo não resolve todos os problemas do transexual,
pois o Estado, mesmo após a adequação do sexo, muitas vezes nega o pedido de alteração
do prenome e do sexo nos documentos do indivíduo.
Assim questiona Araújo (2002): “... ora, como poderia alguém passar por um
processo cirúrgico, em busca da sua melhor adaptação, tentando a junção do sexo
psicológico com o biológico e, ao mesmo tempo, ser considerado pelo Estado como do
sexo originário?”
Há incoerência evidente. Se a medicina, a psicologia e a psiquiatria entendem que a
cirurgia é necessária, como forma de eliminação da angústia, para o direito o indivíduo
ainda viverá a mesma angústia.
O descompasso entre a identidade física e a jurídica espanta a todos e prejudica o
transexual, que sofre constantes situações humilhantes, por portar documentos que o
identifiquem como do sexo oposto ao aparente.
Esta situação se resolveria com a concessão da retificação do registro civil do
transexual, se fazendo a alteração do seu prenome e do seu sexo.
Entretanto, a lei brasileira ainda não prevê expressamente esta possibilidade,
protegendo o nome do cidadão como um elemento inerente ao direito personalidade,
permitindo-se a modificação, conforme a Lei de Registros Públicos nos casos de erro de
grafia ou quando o prenome expor seu portador ao ridículo (art. 55 e art. 58). No entanto,
nestes casos não há vedação expressa de nenhuma lei brasileira, restando em clara omissão
legal, onde o juiz Vladimir Abreu da Silva19, de Campo Grande, MG, citado por Maria
19
Processo 2000.0013605-5 - 2.ª Vara da Fazenda Pública e Registros Públicos. Juiz: Vladimir Abreu da
Silva. Data do julgamento: 28/11/00.
47
Berenice Dias, ressalta que se a legislação não autoriza expressamente a mudança de sexo,
perante o registro civil, em decorrência da transformação plástico-reconstrutiva da
genitália externa, também não veda tal possibilidade, ou seja, a legislação é omissa a
respeito da matéria.
Em tais casos deve o juiz se valer dos princípios gerais de direito, notadamente
aqueles insculpidos na Carta Magna. Assim, o direito à identidade está constante na
Constituição Federal, dentro do princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto,
homem e mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência.
Todavia, há situações carentes de proteção jurídicas, ou lacunas, que devem ser
solucionadas pelos princípios gerais do direito, analogia, pela equidade e pela doutrina, que
manifesta a preocupação de estudar e compatibilizar novas situações a serem positivadas.
A utilização dos princípios gerais do direito nos casos de lacuna da lei 20 é verificada sua
utilidade através de sua correspondência às situações fáticas e necessidades sociais.
O que se busca dizer, a respeito da aplicação da analogia para possibilitar a
mudança do prenome nos cartórios civis é mais condizente com o fazer justiça do que
qualquer outra coisa. Isso porque, em sendo isso possível, estará sendo cristalizado o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um
palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no
campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito à
identidade pessoal e um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal
é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos,
com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito
que tem todo o sujeito de ser ele mesmo.
Portanto, diante de inúmeras decisões contraditórias e omissões na Lei, cabe ao
julgador aplicar os princípios morais, da equidade e justiça, conforme afirma o
desembargador Moacir Adiers21: “Com efeito, o direito vivo tem sido buscado e
correspondido e atendido pelos Juízes, na falta de disposições legais e expressas”. No
Brasil, aí está o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a
busca da justiça.
20
ALVES, Elizabete Lanzoni. Transexualismo e as novas diretrizes jurídicas. Disponível em
http://www.casadaculturajuridica.com.br/artigos/my_aj06.htm. Acesso em 09 jul 2006.
21
RJTJRS, Abril de 1998, Ano XXXIII, N.º 187, pág. 274-282. Apelação Cível n.º 597134964 - 3.ª Câmara
Cível - São José do Norte.
48
22
Processo nº 0074.06.032114-3. Retificação de Registro Civil. Relatório do Ministério Público. Comarca de
Bom Despacho/MG. 24/07/2006.
23
Para esses e outros questionamentos, cf. Raul CHOERI, em “Transexualismo e identidade...” op. cit,.
pp.250 a 253.
24
O art. 201, § 7º, inciso I da Constituição Federal assegura aposentadoria no regime geral de previdência
social quando preenchidas as condições de 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem, e 30 (trinta)
49
Essas são questões a serem enfrentadas pelo direito. Suas respostas, ainda não
encontradas, deverão sempre se guiar pela proteção da dignidade da pessoa humana, para
que se possa acompanhar as mudanças sociais protegendo a pessoa em todas as suas
manifestações.
No Rio Grande do Sul até 03/09/87 já haviam ocorrido pelo menos oito casos de
autorização judicial para que homens, que se submeteram a cirurgia para
mudança de sexo no Exterior, conseguissem a retificação do registro civil, com a
troca do primeiro nome e da menção do sexo. Desses, sete casos ocorreram em
Porto Alegre e um em Pelotas. O Juiz da Vara de Registros Públicos de Porto
anos de contribuição, se mulher; 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher.
25
KONDER, Carlos Nelson. “O Consentimento no Biodireito: Os Casos dos Transexuais e dos Wannabes”.
In Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 15, jul.-set. 2003, p. 66 e ss.
26
Antonio Chaves, professor das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo. RT 707, Setembro, 1994.
50
Diante da legislação atual, a primeira resposta que nos vem à mente, quando nos
indagamos acerca da mudança do prenome do transexual que fora exposto à cirurgia de
mudança de sexo, é pela impossibilidade de qualquer alteração do assento do registro civil
da pessoa natural, tendo em vista a adoção, pelo Direito brasileiro, do princípio da
imutabilidade do nome da pessoa, que diz respeito ao prenome e ao patronímico.
A adequação do prenome ao sexo deveria ser permitida no Brasil, consubstanciada
ao direito de identidade pessoal do transexual. Tal alteração enfrenta a barreira da
imutabilidade prevista na Lei dos Registros Públicos. A imutabilidade poderá expor o
transexual operado ao ridículo.
A imutabilidade do nome, contudo, não deve ser interpretada em grau absoluto. O
atual Código Civil trouxe muitas mudanças relativas aos direitos da personalidade e ao
estado da pessoa, contudo, o legislador silenciou-se em relação à mudança de sexo,
admitindo, porém, a doutrina e a jurisprudência, a alterações no assento de nascimento de
alguém somente diante de comprovada inexatidão, relativamente ao sexo de pessoa, por
ocasião da declaração, nos casos de intersexualismo e por anomalias supervenientes que
desenvolvam no indivíduo características sexuais do sexo oposto ao constante no assento
de nascimento.
Ensina Miranda (1971, p.284), “que a função identificativa do nome não bastaria
para considerá-lo imutável e inalterável”. Segundo o autor, não haveria um princípio
jurídico de imutabilidade do prenome e do sobrenome. Nosso sistema jurídico é que tem
adotado, por tradição, a regra jurídica da imutabilidade do prenome.
A doutrina tem apresentado inúmeras controvérsias no tocante à possibilidade de o
transexual redesignado obter a alteração do seu estado sexual e de seu prenome junto ao
assento de seu registro civil, pendendo a maior parte dos autores pela negativa desta
possibilidade, diante da legislação vigente. Alegam que o registro público deve ser preciso
e regular, constituindo a expressão da verdade, e a operação de mudança de sexo atribui ao
interessado um sexo que não tinha, nem poderá ter, porque o fim da procriação nunca será
atingido, pois não se terá nem um homem nem uma mulher, jamais será uma mulher, na
concepção física, afinal não terá ovário, trompas, útero e os demais órgãos necessários para
a reprodução.
51
na hipótese do parágrafo único do art. 55. No entanto, a Lei n. 9.708, de 18-11-98, deu
nova redação a esse dispositivo: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua
substituição por apelidos públicos notórios”. E no parágrafo único dispôs que não se
admite a adoção de apelidos proibidos em Lei.
Assim, o transexual operado teria base legal para alterar seu prenome, substituindo-
o pelo apelido público notório com que é conhecido, no meio em que vive. Não se pode,
portanto etiquetar o transexual, obrigando-o a carregar, ao assumir a nova vida, o estigma
da transexualidade.
A possibilidade de alteração do prenome por apelido público notório atende à
evolução social brasileira, abrindo importante brecha na regra que impunha a imutabilidade
do prenome, passando ser relativa. Contudo, a jurisprudência, abre exceções, cabendo ao
juiz avaliar a notoriedade do apelido mencionado na lei, ao caso concreto. Levando, ainda,
em consideração o disposto no parágrafo único do art. 55 da Lei nº 6.015/73.
Esse princípio de imutabilidade sofreu mitigação, contudo, no entender da Moraes
(2003): “as regras gerais que regem o direito ao nome civil delineiam-se, como não poderia
deixar de ser, à luz dos valores constitucionais, dentre os quais, o maior deles, a dignidade
da pessoa humana”.
A mitigação da regra da imutabilidade do prenome encontra sua justificativa
principal nesta dignidade. Assim é que, na prática, a jurisprudência tem garantido que o
direito da personalidade a real e adequada individualização da pessoa suplante a tradicional
proibição de alteração do prenome, principalmente através do alargamento da exceção da
"exposição ao ridículo", podendo-se bem entender esta expressão “expor ao ridículo seu
portador”, em sentido ainda mais amplo, como representativa do que não é condigno à
individualização da personalidade humana.
Conforme prevê a própria Lei 6.015/73, os casos de substituição do prenome, não
só o prenome poder ser ridículo, como a própria combinação de todo o nome. Um prenome
ridículo é muito mais grave, pois, é como a pessoa é costumeiramente chamada em seu
meio social. No entanto, prenome e o sobrenome, não devem provocar a galhofa da
sociedade.
Portanto, embora o princípio da inalterabilidade do nome seja ordem pública,
vejamos as exceções que se inserem numa interpretação extensiva da lei, quando: 1)
expuser o seu portador ao ridículo; 2) causar embaraços no setor eleitoral e comercial; 3)
houver mudança de sexo, mediante intervenções cirúrgicas; 4) houver apelido público
53
Questões das mais discutidas e em voga no direito privado são aquelas que
envolvem a possibilidade de mudança de registro do nome do transexual.
55
Nos EUA, a cirurgia e alteração do nome são amplamente praticadas sob a forma
de autorização judicial e não há restrições quanto ao casamento posterior. Em alguns
Estados americanos, o sexo originário do transexual operado é omitido para efeitos de
identificação pessoal, salvaguardando-o de eventuais discriminações sociais. Há,
entretanto, severidade quanto à verificação de fraude, caso o casado omita sua condição de
transexual redesignado, podendo haver a anulação do casamento ou a decretação do
divórcio.27
Hoje, Alemanha, Itália, Portugal, Suécia, Bélgica e França já seguem a orientação
da legalidade das operações e da alteração dos registros civis.28
Na França, as decisões autorizam a mudança de registro civil do transexual. Num
primeiro momento, o Poder Judiciário francês tratou apenas de reconhecer o direito de
alteração de registro civil, caso não houvesse participação voluntária do requerente em sua
nova situação. Desse ponto de vista, passou-se a entender o sofrimento do transexual e, por
conseqüência a deferir o pedido de alteração do registro civil do transexual operado.
A jurisprudência francesa tem, portanto, deferido o pedido de retificação do
assentamento do registro civil de maneira pouco uniforme, sob o fundamento de que
haveria um sofrimento muito grande do transexual.
27
Raul CHOERI. Transexualismo e identidade: cirurgia de transgenitalização. 2001, p. 254 a 255.
28
Raul CHOERI, em “Transexualismo e identidade...” op. cit., p. 255.
59
Esta ação é diversa daquela promovida em 1991, por possuir nova causa de pedir
e se fundamentar em diagnósticos resultantes de recentes descobertas médicas.
29
TJSP – Ap. 128.972-5 – 3ª Câm. Cível – j. 03.09.2003 – rel. Des. Vianna Cotrim - RT 637/170.
30
internet, no site.
60
Na ação promovida por Roberta Close, em 1991, inicialmente o pedido foi acolhido
em primeira instância, mas reformado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que
decidiu pela impossibilidade de alteração da certidão de nascimento no que tange ao nome
e ao sexo por tratar-se de ‘operação plástica’, prevalecendo o sexo biológico em relação ao
psíquico, sob o argumento de ser, a cirurgia, mutilatória, e que, assim, não teria o condão
de transformar o sexo, uma vez que não seria essa uma questão de escolha. Segundo esse
julgado, o sexo biológico, determinado no nascimento, prevalece em relação ao psíquico.
Para se ter uma idéia da gravidade dos desdobramentos das questões aqui
suscitadas, é relevante trazer à análise um caso exposto por Tepedino (2004):
Após dez anos de vida conjugal na Dinamarca, com um marido francês e um filho
adotado segundo a legislação francesa, um brasileiro transexual, chamado Juracy, veio ao
interior da Bahia visitar a família. Decidiu, então, com o marido, adotar uma criança
abandonada, José, com seis anos de idade, ‘à moda brasileira’, ou seja, registrando-a como
filha do casal. Juracy foi presa pela Polícia Federal no momento em que pretendia obter o
passaporte para José, tendo-lhe sido imputada a prática dos crimes de uso de documento
falso (art. 304, CP), promoção de ato destinado ao envio de criança para o exterior (art. 239
da Lei nº 8.069/90) e falsidade ideológica (art.299, CP), além de ter sido questionada pelo
Ministério Público a adoção de uma criança por um casal de homossexuais.
A partir daí, a vida da família transformou-se em um verdadeiro pesadelo, no qual
se produziram danos irreparáveis. Juracy foi recolhida ao pavilhão masculino do
aterrorizante presídio de Água Santa, no Rio de Janeiro, onde foi submetida, certamente a
mais vil degradação. Seus filhos, o maior deles um adolescente estudioso, responsável e
poliglota, segundo consta nos autos, foram recolhidos a um asilo de menores. O pai,
também denunciado, foi posto em liberdade mediante o pagamento de fiança, afirmando
em juízo desconhecer inteiramente, assim como o filho adolescente, a transexualidade de
Juracy. Ambos os réus foram absolvidos no processo criminal, tendo a 1ª Turma do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria de votos, mantido a sentença,
rejeitando o recurso interposto pelo Ministério Público. A referida decisão foi proferida na
61
Essa situação ocorre no comércio, em hotéis e até mesmo quando o transexual vai
procurar um emprego, fazendo com que o mesmo esteja à margem da sociedade, gerando
lesão ao seu bem maior que é a sua dignidade. Aliás, de nada adianta ter um QI acima da
média34, se emprego ou atividade profissional o transexual tem dificuldade de
desempenhar.
Tudo isso justifica as razões pela qual a corrente positiva entende que deve ocorrer
a alteração do registro do nome. Como conseqüência, deve nele constar como sexo o
feminino e não a qualificação de "transexual" ou "transgênero" como entendem alguns
doutrinadores. Essas denominações, não enquadrada em sexo masculino ou feminino,
podem ser tidas até como mais discriminatória do que a manutenção do nome anterior.
Exemplificando, eis a questão: em um restaurante ou local público, qual o toilet que
deve ser utilizado pelo transexual operado? Logicamente o feminino, já que ele se
identifica com pessoa desse sexo em sua plenitude. Se assim o é na prática, também deve
ser na teoria, pois, a aplicação do direito deve ser adaptada ao meio social, melhor
concepção do princípio da socialidade (art. 3º, I da CF/88), um dos baluartes da nova
codificação privada, como aponta o próprio Reale (1996).
O argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo
transexual operado não pode prosperar. Isso porque é comum que o próprio transexual
revele ao pretenso parceiro a sua situação. Primeiro, porque a patologia lhe traz choques
psíquicos graves. Segundo, temendo represálias ou manifestações agressivas futuras.
Nesse contexto, em situações tais, deve o transexual estar movido pela boa-fé, sob
pena até de sua conduta ser enquadrada dentro do conceito de abuso de direito, previsto no
art. 187 do novo Código Civil, a ensejar a sua responsabilização civil.
Cumpre lembrar que esse entendimento visa à inserção social do transexual, que
sofre rejeição da própria família, tendo em vista a tríade "dignidade-solidariedade-
igualdade". Vale apontar também, que o direito à opção sexual constitui um direito da
personalidade, inerente à liberdade da pessoa e à sua dignidade.
No entanto, as divergências de jurisprudências sobre a alteração do prenome e sexo
do transexual, existem não só entre tribunais pátrios, mas também dentro do mesmo
tribunal, é de suma importância mencionar algumas dessas divergências.
34
Em testes aplicados em transexuais apurou-se que possuem, em regra, um quociente intelectual (QI) entre
106 e 118, isto é, um pouco superior à média.
64
Como se pode verificar através do site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, esse
ainda permanece bastante conservador em ralação à matéria, há três ementas disponíveis,
apesar de recentes, ou seja, do ano de 2003, 2005 e 2006, todas com posições negativas,
vejamos uma delas:
CONCLUSÃO
administrativa, desde que o interessado declare, sob penas de lei, que houve equívoco em
seu assentamento inicial. A recusa de tal declaração impede que o transexual tenha seu
registro averbado, de forma que permanecerá com seu sexo original.
Na França, as decisões autorizam a mudança de registro civil do transexual. A
jurisprudência francesa tem, portanto, deferido o pedido de retificação do assentamento do
registro civil, de maneira pouco uniforme, sob o fundamento de que haveria um sofrimento
muito grande do transexual.
O legislador nacional poderia servir-se da experiência de outros países que trataram
o tema, como, por exemplo, a lei italiana nº 164, sobre retificação de sexo, de 14 de abril
de 1982, que estabelece em seu artigo 5º, que as sentenças de retificação de sexo do
transexual devem conter apenas a indicação de seu novo sexo e seu nome. A idéia é
cancelar o passado do transexual.
O transexual que se submeteu à cirurgia tem direito ao esquecimento de sua
situação, como forma de dignidade humana. Não é obrigado a carregar por toda a vida a
situação de dualidade já tão minorada pela cirurgia.
Portanto, o transexual tem o direito, integrar-se socialmente, sem qualquer
referência ao seu estado anterior, ou o seu estado de transexualidade. A nova vida do
transexual deve ser aceita para sua integração social. Seu passado deve ser esquecido,
como forma de abandono de sua dualidade. A partir da cirurgia e da retificação do registro
civil, o transexual tem direito ao esquecimento de sua situação anterior, o que ocorre com a
impossibilidade de menção a seu estado anterior ou mesmo a “transexual”. A omissão dos
dados anteriores é a única maneira de preservar a dignidade da pessoa humana, como
princípio constitucional a ser seguido.
É inconcebível que o Estado tenha interesse em preservar a situação de angústia do
transexual. Não se trata de não incentivar a felicidade do indivíduo, mas de impedi-la. Ao
determinar o registro como “transexual” em seus assentamentos civis, impedir seu
casamento, o estado não deixa de incentivar a felicidade dos indivíduos, ao contrário, age
de forma a impedir a felicidade, o que é um descumprimento mais grave do seu objetivo
fundamental, fixado no artigo 3º, IV, da Constituição federal. Omitir-se, deixando de
propiciar a felicidade, seria grave. Agir, por meio do Poder Judiciário, impedindo a
integração social é mais grave.
O tema empolgante e essencial deve ser tratado e solucionado. O operador do
direito não pode emperrar o sistema, pelo simples fato de não concordar ou discriminar o
69
transexual ou qualquer outro que não se adeqüe aos padrões projetados. Existindo o fato
deve-se dar uma solução justa e digna, pautada nos princípios básicos da sociedade
mundial, liberdade, solidariedade, dignidade, justiça e cidadania.
Hoje, ainda a sociedade exclui pessoas do seu convívio. Pessoas que não
correspondem o traçado pela sociedade não fazem parte, são os excluídos.
É preciso que os magistrados, ao aplicarem o direito, diante das lacunas,
sobrelevem os princípios gerais do direito de forma imparcial, visando proteger o
transexual, na medida em que o mesmo é um cidadão merecedor de respeito como
qualquer outro.
Logo, o presente trabalho tentou demonstrar o problema do transexual, pois desta
forma acredita-se que a solução virá mais rápida. O desconhecimento faz com que
prevaleça o preconceito e a adesão às regras preestabelecidas.
Concluí-se que há necessidade de reforma nas leis, que por mais que nossos
legisladores tentem adequar leis para suprir as exigências de uma sociedade globalizada
que se transformam radicalmente dia a dia, essas entram em vigor já totalmente defasadas.
Ainda no presente estudo deparou-se com preconceitos de alguns tribunais, que, muitas
vezes possuem um conhecimento científico aquém da realidade apresentada dia a dia.
Logo, o que se tem de concreto para amparar os direitos desses seres humanos é
meramente doutrinário, princípios constitucionais e vagamente encontrados em leis que
precisam de lapidação para fazer valer o direito à tutela jurisdicional para esses indivíduos.
Não pode o judiciário ficar insensível a esse aspecto da realidade social, de modo a
deixar indefinida uma situação que reclama solução.
70
REFERÊNCIAS
AMORIM, José Roberto. Direito ao Nome da Pessoa Física. São Paulo: Saraiva, 2003.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998.
BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
CANIATO, Maria Cecilia Garreta Prats. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Harbra
Ltda, 2004.
CHAVES, Antônio. Direito à Vida e ao próprio corpo. 2. ed. revista e ampliada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 1. 18. ed. De acordo com o
novo código civil (Lei. n . 10.406, de 10 – 1 – 2002 ). – São Paulo: Saraiva, 2002.
_________. Curso de Direito Civil Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense. 1993.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
LUCARELLI, Luiz Roberto. Aspectos Jurídicos da Mudança de Sexo. v. 35, São Paulo:
Revista da PGE, 1981.
72
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso Básico de Medicina Legal. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 1995.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
PERES, Ana Paula Barion. Transexualismo: o direito a uma nova Identidade Sexual. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
73