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INTRODUÇÃO

Utilizando-se do método lógico sistemático, servindo-se tanto das técnicas indiretas


de documentação, como das técnicas direta intensiva e extensiva, pretende-se analisar a
adaptação do transexual na sociedade, adequação com relação à nova personalidade que irá
possuir após a cirurgia para readequação genital, a problemática legal, jurisprudencial e
doutrinária para obter o direito a um prenome compatível com sua nova sexualidade e
como os tribunais estão decidindo no que concerne o registro civil para alteração de
prenome do transexual.
A sensibilidade geral verifica a angústia daqueles seres que se sentem
inconformados com a sua aparência física sexual, com a qual os brindou a natureza,
porquanto são compulsoriamente condenados a suportar uma dicotomia entre seu sexo
físico e seu sexo psíquico, inconciliáveis e totalmente antagônicos.
Para essas pessoas, em alguns países do mundo, encontrou-se uma suposta saída
para o problema, autorizando-se a cirurgia para readequação genital na qual o indivíduo
altera suas genitálias para dar aparência que pertence ao sexo oposto, bem como a
alteração do assento civil de acordo com sua nova sexualidade.
No entanto, no Brasil, além do procedimento lento, árduo, e que depende de um
trabalho minucioso feito por uma equipe médica de alto gabarito que analisam o paciente
antes da cirurgia, desenvolvendo, durante um período mínimo de dois anos, trabalhos de
triagem, análises psicológicas, entrevistas, exames médicos pré-operatórios e outros
exames necessários, deparamos com alguns problemas que não estão ao alcance desses
profissionais da saúde, trata-se de amparo legal para esse transexual pós-cirurgia.
Visa-se ilustrar, neste trabalho, a necessidade de tutela legal para esse transexual
que após uma cirurgia delicada possa ter o amparo da justiça para assegurar a sua
readequação na sociedade, tendo o direito de alterar seu prenome e sexo no registro civil de
acordo com a sua nova condição física, defendendo assim a sua dignidade e a sua nova
sexualidade.
No mundo hodierno, às vias do século XXI, tratar a respeito de certos assuntos
considerados polêmicos faz-se necessário, apesar da ínfima quantidade de publicações a
respeito do tema. Dissertar sobre a questão da possibilidade de o transexual mudar o nome
e o sexo no Registro Civil de Pessoas Naturais, assim sendo, é de suma importância, haja
vista as inovações trazidas pelo Novo Código Civil. A sociedade já não é a mesma dos
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anos 20. Apesar de em alguns pontos o Novo Código Civil ser completamente inovador,
em outros, em contrapartida, não há sequer menção a respeito.
Com as avançadas tecnologias, em que já é possível descobrir-se se o nascituro
apresenta doenças crônicas, apresentando-se, inclusive, diagnósticos, onde também já é
possibilitada a cirurgia de mudança de sexo, urge perpetrar-se um estudo acerca do tema,
nas trilhas da história, seguindo o fio da justiça.
O homem, em sua ação consciente, é agente e sujeito da história. Os
acontecimentos históricos são relevâncias de uma infinidade de vontades, transformadas
em ações. Ao agirem em busca de determinados fins individuais ou coletivos, movidos por
interesses materiais ou por razões espirituais, os homens fazem a sua história.
O tema ganhou impulso em meados do século XX, com os avanços técnicos por
que passou as ciências médicas, possibilitando a realização da cirurgia adaptativa, também
denominada cirurgia de trangenitalização, muito embora estudos deixem evidente que a
questão, apesar de atual, tem suas raízes fincadas desde os nossos antepassados.
No decorrer das linhas desta obra, por conseguinte, também será de nosso interesse
o respeito à dignidade da pessoa humana. Afinal de contas, não é porque alguém não se
sente à vontade, física e psicologicamente, com seu corpo que, uma vez que se dispõe à
transmudação do sexo, terá como sanção a repulsa da sociedade. Isto porque, acima de
tudo, há proteção constitucional à pessoa, conforme pode ser observado no art. 5º, caput e
inc. X, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação.

Assim sendo, é preciso, deixar de lado todos os possíveis preconceitos que possam
ter relação com a matéria.
Vale ressaltar que é com a mudança que se chega ao progresso. A aceitação da
possibilidade da mudança do nome nos cartórios de registro civis brada em favor daqueles
que serão os beneficiários, os transexuais.
Para desenvolvimento do presente trabalho utilizou-se uma pesquisa doutrinária,
jurisprudencial, artigos eletrônicos, além da legislação vigente pertinente ao assunto.
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Insta salientar, que é de maneira precisa, porém não muito exaustiva, que se busca
discutir o tema da possibilidade de mudança do prenome e gênero sexual do transexual
submetido a cirurgia de transgenialização do sexo, analisando casos concretos e situações
atuais, afim de se alcançar uma somatória de valores, em favor destes seres humanos que
tanto buscam sua identidade sexual.
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CAPÍTULO I - DA PERSONALIDADE E A QUESTÃO DA SEXUALIDADE

1.1 Personalidade

A preocupação de vários países, em proteger a pessoa humana contra as agressões e


ameaças advindas de outros homens, é antiqüíssima. No Brasil, a solução foi engenhosa,
somente em fins do século XX, com o advento da Carta Constitucional de 05 de outubro de
1988, se pudemos construir a dogmática dos direitos da personalidade, ante a noção de
respeito à dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 1ª, III. E assim, o artigo 5º, X,
dispõe expressamente sobre os direitos de personalidades: “X – são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
A personalidade é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira
utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do
ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros
bens.
Assim, dispõe o art. 2º do Código Civil de 2002: “A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”.
Geralmente, os direitos da personalidade decompõem-se em direito à vida, à
própria imagem, ao nome e à privacidade. Mas, não há que se entender que nossa lei, ou
qualquer lei comparada apresente um número fechado para elencar os direitos da
personalidade.

1.2 Conceito de Personalidade para a Psicologia

A característica mais notável do homem é sua individualidade. É uma criação


singular das forças da natureza. Nunca houve nem haverá uma pessoa exatamente como
ela. Lembremos as impressões digitais: são singulares.
Vieira (1996) cita que “todas as ciências, entre as quais a psicologia, tende, por
razões lógicas, a esquecer esse fato notável da individualidade”. De outro lado, na vida
diária, não corremos o risco de esquecer que a individualidade é a marca suprema da
natureza humana. Durante toda a nossa vida de vigília, e mesmo durante os sonhos, o
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individuo reconhece e enfrentam as pessoas como indivíduos separados, distintos e


singulares. É sabido que nasceram e morreram em momentos definidos e que, durante suas
vidas, manifestaram um padrão específico de traços mentais e físicos. Considera-se a
singularidade da hereditariedade e do ambiente de cada pessoa, isso é inevitável.
Analisando esse preâmbulo, pode-se considerar que a personalidade é a
organização mental total de um ser humano, em qualquer estágio de seu desenvolvimento.
Trata-se da soma total do efeito provocado por um indivíduo na sociedade, hábitos ou
ações que conseguem influir em outras pessoas. São respostas apresentadas pelos outros ao
indivíduo, considerado como estímulo o que os outros pensam de você. Abrange todos os
aspectos do caráter humano, do intelecto, do temperamento, da habilidade, da moralidade e
todas as atitudes constituídas durante a vida da pessoa. É o conjunto organizado de
processos e estados psicológicos que pertencem ao indivíduo. É a organização dinâmica,
no indivíduo, dos sistemas psicofísicos que determinam seu comportamento e seu
pensamento característicos.

1.3 Conceito de Personalidade para o Direito

Segundo Diniz (2002): “A personalidade é o conceito básico da ordem jurídica, que


a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos
constitucionais de vida, liberdade e igualdade”.
Para Gomes (1993), sob a denominação de direitos da personalidade,
compreendem-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina
moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade.
Liga-se à pessoa a idéia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para
adquirir direitos e contrair obrigações. Deveras, sendo a pessoa natural (ser humano) ou
jurídica (agrupamentos humanos) sujeito das relações jurídicas e a personalidade a
possibilidade de ser sujeito, ou seja, uma aptidão a ele reconhecida, toda pessoa é dotada
de personalidade.
O direito objetivo autoriza a pessoa a defender sua personalidade, de forma que, os
direitos da personalidade são os direitos subjetivos da pessoa defender o que lhe é próprio,
ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria etc. Por
outras palavras, os direitos da personalidade são direitos comuns da existência, porque são
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simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a
natureza lhe deu, de maneira primordial e direta.

1.4 Os Direitos da Personalidade

O começo da personalidade civil do homem começa do nascimento com vida, tendo


este todos os seus direitos garantidos como pessoa. Desta maneira, basta estamos vivos
para sermos considerados pessoa, e como pessoas, pela lei dos homens, têm direita a
personalidade, que são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis,
ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inespropriáveis.
Os direitos da personalidade são aqueles nos quais o bem tutelado não é externo à
pessoa, mas intrínseco a ela, referindo-se aos seus atributos essenciais e às exigências de
caráter existencial ligadas à pessoa humana enquanto tal. Esses são direitos generalizados:

São naturalmente concedidos a todos, pelo simples fato de estar vivo, ou pelo só
fato de serem: extrapatrimoniais: uma vez que são insuscetíveis de avaliação
econômica; absolutos, porque impõe-se à coletividade o dever de respeitá-los;
indisponíveis: pois seu titular não pode deles dispor, sendo, portanto,
irrenunciáveis, impenhoráveis e inalienáveis; imprescritíveis: uma vez que uma
lesão a um direito da personalidade não enseja perecimento da pretensão
ressarcitória ou reparadora; intransmissíveis: extinguindo-se com a morte do seu
titular. (CUPIS, 2004, p.59-60).

Os direitos supra citados são, assim, direitos que devem necessariamente


permanecerem na esfera do próprio titular, e o vínculo que a ele os liga atinge o máximo de
intensidade. Na sua maior parte, respeitam ao sujeito pelo simples e único fato de sua
qualidade de pessoa, adquirida com o nascimento, continuando todos a ser-lhe inerentes
durante toda a vida, mesmo contra a sua vontade, que não tem eficácia jurídica.
Já Diniz (2006), vai mais além, caracterizando os direitos da personalidade como:
absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis,
impenhoráveis e inexpropriáveis.
Para Venosa (2002) : “os direitos da personalidade, são inatos ou originários,
vitalícios, perenes ou perpétuos, inalienáveis e absolutos”.
No entanto, os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade
humana, e extinguem-se com a morte, mas há resquícios que podem a ela se sobrepor,
quando a ofensa à honra dos mortos atingirem seus familiares.
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Portanto, os direitos da personalidade são direitos subjetivos de natureza privada.


Dentre os direitos subjetivos de que o homem é titular pode-se facilmente distinguir duas
espécies diferentes, a saber: uns que são destacáveis da pessoa de seu titular e outros que
não o são. Assim por exemplo, a propriedade ou o crédito contra um devedor constitui um
direito destacável da pessoa do seu titular; ao contrário, outros direitos há que são inerentes
à pessoa humana e, portanto a elas ligados de maneira perpétua e permanente, não se
podendo mesmo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou
intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra.
Os direitos que serão tratados no presente estudo são os que tutelam a integridade
física, expressa na proteção jurídica da vida, do próprio corpo e que tratam, ainda, da
liberdade do titular de se submeter ou não a qualquer tipo de exame ou tratamento médico.
Assim, tais direitos são da maior importância nos debates sobre os atos de
disposição do próprio corpo, no que diz respeito à cirurgia de transgenitalização e à
disponibilidade do nome e do gênero sexual como elementos principais da identificação
pessoal, para efeitos de alteração nos registros civis.

1.4.1 O Direito ao Próprio Corpo

Ninguém pode ser constrangido à invasão de seu corpo contra sua vontade, há
limites morais e éticos que são recepcionados pelo direito, conforme dispõe o art. 13 e
parágrafo único do Código Civil de 2002:

Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,


quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os
bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para
fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

No que tange à exigência médica 1, deve-se assinalar que, apesar de ter a pessoa a
prerrogativa de dispor de seu corpo, por exemplo, autorizar ou não a realização de uma
cirurgia, há situações em que o estado de saúde do paciente é de urgência extrema, sem
possibilidade de a pessoa manifestar essa vontade inclusive por inconsciência; nesse caso,
pode o médico realizar os procedimentos necessários, tomando as medidas
profissionalmente indicadas para preservação da vida humana.

1
CANIATO, Maria Cecilia Garreta Prats. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Harbra Ltda, 2004.
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O direito ao próprio corpo abrange tanto a sua integralidade como as partes dele
destacáveis e sobre as quais exerce o direito de disposição. Consideram-se, assim, coisas
de propriedade do titular do respectivo corpo.
Conforme Bittar (1989, p.76): “que sendo a pessoa a união entre o elemento
espiritual (alma) e o elemento (corpo), exerce este a função natural de permitir-lhe a vida
terrena: daí porque, em sua integridade, deve ser conservado e protegido na órbita
jurídica”.
Assim, a regra é de preservação do corpo, sendo defeso o ato de sua disposição
quando importar em qualquer limitação permanente da integridade física ou contrária aos
bons costumes, exceto exigência médica.
O parágrafo único do art.13, retrotranscrito, permite a realização de transplante de
partes do corpo humano, na forma estabelecida em lei especial. Atualmente é a Lei n.
9.434, de 4 de fevereiro de 1997, regulamentada pelo Decreto n. 2.268/97, que dispõe
sobre “a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano vivo para fins de transplante
e tratamento, com as alterações determinadas pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001.

1.4.2 O Direito ao Nome

O Código Civil no art. 16 estatui: “toda pessoa tem direito ao nome, nele
compreendidos o prenome e o sobrenome.” E somente ao titular cabe-lhe poder de gozo de
seu nome, ou seja, o poder de usar o nome a fim de gozar daquela identidade pessoal para
realização da qual ele pertence.
Após o nascimento, nos é atribuído um nome que não tivemos a oportunidade de
escolhermos. Em princípio, conservaremos esse nome por toda a vida, como marca
distintiva na sociedade. Mesmo após a morte, o nome da pessoa continua a ser lembrado e
a ter influência. Ainda que assim não tenha ocorrido, o nome da pessoa falecida permanece
na lembrança daqueles que lhe tinham uma grande estima.
Para Venosa (2002), “o nome é um atributo da personalidade, é um direito que visa
proteger a própria identidade da pessoa, com o atributo da não-patrimonialidade”.
Segundo Cupis (2004), “o direito ao nome é, portanto, um daqueles direitos da
personalidade que não são inatos. É um direito essencial, mas não inato”.
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O nome representa, sem dúvida, um direito inerente à pessoa humana, portanto um


direito da personalidade, segundo no entender de Silvio Rodrigues2.
É relevante colocar que em regra, dois são os elementos constitutivos do nome:
prenome, próprio da pessoa, distingue-a dos outros componentes do mesmo grupo familiar;
e o sobrenome, que designa a pessoa à família qual pertence, e distingue-a dos sujeitos
componentes das outras famílias, os quais podem ter o mesmo nome próprio (CC, art. 16).
O prenome pode ser livremente escolhido, desde que não exponha o titular ao
ridículo, caso em que poderão os oficiais de Registro Público, recusar-se a efetuar registro
(parágrafo único do art. 55 da Lei n. 6.015/73).
Logo, o prenome do ser simples ou duplo, ou ainda triplo ou quádruplo, como se dá
em famílias reais (Carolina Louise Marguerite, princesa de Mônaco). Já o sobrenome, por
ser um sinal que identifica sua filiação ou estirpe, é imutável, podendo advir do apelido de
família paterno, materno ou de ambos. Pode ser simples ou composto e acompanhado das
partículas de, do, da, dos e das.
Assim, o nome da pessoa civil é inalienável, imprescritível e protegido
juridicamente (CC, arts. 16, 17, 18, 19 e 20). É uma qualidade peculiar de cada ser, e um
dos principais direitos personalíssimos ou da personalidade. Para a pessoa natural o seu
nome tem a mesma importância de sua capacidade civil e dos demais direitos inerentes à
personalidade.

1.5 Da Sexualidade

Segundo Choeri3, há uma íntima ligação entre o transexualismo e os direitos da


personalidade, no que tange à identidade pessoal e à disponibilidade sobre o próprio corpo.
O tema transexualismo e identidade pessoal está intimamente ligado a estudo sobre
os direitos da personalidade, porquanto através dele se pode refletir sobre a disponibilidade
do corpo humano, para efeitos de cirurgia de redesignação sexual e sobre a disponibilidade
do nome e do gênero sexual, para efeitos de alteração nos registros civis.
Em regra, os padrões sexuais já vêm preestabelecidos, pois ou os indivíduos são
homens ou são mulheres. Nesse sentido, se o indivíduo possui identidade sexual diferente

2
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. v.1, 34.ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 72-73
3
CHOERI, Raul. Transexualismo e identidade pessoal: cirurgia de transgenitalização. In: BARBOSA,
Heloiza Helena & BARRETO, Vincente de Paulo (org). Temas de Biodireito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
p.234-235.
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do padrão conservador imposto - se é transexual, por exemplo -, será considerado pela


sociedade como um ser estranho, anormal, por não se enquadrar no modelo oficial de
sexualidade. Os chamados desvios sexuais são tidos como uma afronta à moral e aos bons
costumes, sendo alvo de rejeição social.
Dias (2000), como pertencente a um ou a outro sexo é feita no momento do
nascimento, de acordo com o aspecto de sua genitália externa. Contudo, a determinação do
sexo não decorre exclusivamente de características físicas exteriores. A aparência externa
não é a única circunstância para a atribuição do gênero, pois com o lado externo concorre o
elemento psicológico, ou seja, parâmetros ligados à personalidade da pessoa humana.

1.5.1 Formas de Identificação Sexual

A sociedade e o direito reconhecem, tão somente, a existência de dois sexos:


feminino e masculino. Com isso o indivíduo sempre será identificado como pertencente a
um desses sexos, inclusive, para o exercício de seus direitos, sejam eles de qualquer
natureza.
Quanto ao conceito básico de sexo, temos segundo o dicionário de medicina Vieira
(1976, p.7), define sexo é o “conjunto de características estruturais e funcionais que
distinguem o macho da fêmea.”
Não se pode mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação
plurivetorial4. Em outros termos, o sexo é a resultante de um equilíbrio de diferentes
fatores que agem de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social.
Os autores citados, assim como diversos outros 5, classificaram o sexo de uma forma
pluridimensional, não mais considerado como apenas um elemento fisiológico, definindo-o
como o somatório de alguns critérios, os quais se passam para a análise de suas
particularidades.
Dentre as inúmeras formas de identificação social, reputam-se as analisadas a
seguir como as mais importantes.

4
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 127.
5
Autores como Jeam Claude Nahoum, Antônio Chaves e Matilde Josefina Sutter, citados por Ana Paula
Ariston Barion Peres e o Instituto Médico-Legal de São Paulo, citado por Tereza Rodrigues Vieira,
classificam a palavra "sexo" de uma forma pluridimensional. Existem diferenças em suas classificações, mas
todos os autores concluem que não somente a parte biológica, mas também a psicossocial é necessária à
definição do sexo do indivíduo.
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1.5.2 Sexo Genético ou Cromossômico

O sexo genético é definido com a fecundação, quando o cromossomo "X", presente


no óvulo une-se ao cromossomo "X" ou "Y", contido no espermatozóide. Caso ocorra a
união do cromossomo "X" do óvulo com o "X" do espermatozóide constituirá um
indivíduo "XX", que pertencerá ao sexo feminino. Em ocorrendo a junção do cromossomo
"X" do óvulo ao "Y" do espermatozóide, o indivíduo terá constituição "XY", pertencendo
ao sexo masculino.
Ocorre que, em algumas vezes, a união dos cromossomos "X" e "Y" pode não
acontecer, o que acaba por desencadear doenças genéticas, como a síndrome de Klinefelter
e a síndrome de Turner.
Na síndrome de Klinefelter a constituição genética do indivíduo é representada pela
trissomia dos cromossomos sexuais, XXY, sugerindo a bissexualidade cromossomial, onde
aparece a cromatina, não obstante o indivíduo ser, aparentemente, do sexo masculino.
Já na síndrome de Turner ocorre a monossomia do X, sendo representado pelo sinal
"XO", onde o aspecto feminino é normal, porém, não há presença de cromatina, nem de
ovários.

1.5.3 Sexo Gonádico

O sexo gonadal aparece ainda na vida intra-uterina do feto, por volta dos quarenta
dias de gestação6, definindo o sexo, com o surgimento de testículos ou ovários. Até este
período, os fetos possuem gônadas primitivas, que não se distinguem o que só ocorre no
período já mencionado.
O sexo gonático7 pode ser definido como a constituição das estruturas sexuais
internas e externas, que somente se diferenciarão quando alcançarem um certo grau de
amadurecimento.
A síndrome sexual8 pode ser desencadeada pelas alterações que o ritmo cerebral
dos indivíduos pode sofrer no período fetal, não fazendo à diferenciação sexual cerebral do
6
Esta informação é precisada por MODAY, que afirma que "o sexo gonadal surge em torno dos quarenta a
quarenta e cinco dias após o início da vida intra-uterina (...)". MODAY apud VIEIRA, Tereza Rodrigues.
Mudança de Sexo - Aspectos Médicos, Psocológicos e Juídicos. São Paulo: Santos, 1996, p. 12.
7
SPENGLER, Fabiana Marion. União Homoafetiva: o fim do preconceito. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2003, p. 23.
8
PERES, Ana Paula Barion. Transexualismo. O direito a uma nova Identidade Sexual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 73.
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indivíduo seguido a diferenciação sexual traçada pelo cariótipo e, posteriormente, pelos


hormônios gonádicos.

1.5.4 Sexo Morfológico

O sexo morfológico ou somático é aquele resultante da soma das características


genitais (estruturas genitais internas e externas) e extragenitais somáticas (caracteres
secundários). Os caracteres secundários desenvolvem-se no decorrer do tempo, exercendo
além da função diferencial a função pré-copulatória, isto é, a largura da pelve, mamas,
pêlos pubianos, entre outros.
Conforme pondera Vieira (1996, p.13) ao citar Klabin, que não se pode utilizar o
padrão genital de forma isolada, para indicar o sexo, pois é possível que ocorram
anormalidades nos órgãos genitais. Além disso, esta forma de classificação do sexo
geralmente coincide com a inscrição do Registro Civil, pois os órgãos genitais externos
definem o sexo do indivíduo.

1.5.5 Sexo Legal

Este é o sexo que encontramos registrado na certidão de nascimento do indivíduo,


junto ao Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais. Também chamado de sexo
jurídico. Resulta da observação dos órgãos sexuais externos, quando do nascimento da
criança. Esta descrição é retirada da declaração de nascimento que é expedida pela
maternidade ou hospital em que ocorreu o parto.
Em sendo a certidão de nascimento expedida por um órgão dotado de fé pública,
possui a presunção relativa de veracidade. Esta relatividade se dá em decorrência da
possibilidade de anulação do referido registro frente a algum erro ou falsidade, o que pode
vir a acontecer, nos casos de intersexualidade, ou seja, aqueles indivíduos que possuem
sexo dúbio.
Problema maior é quando se trata de transexualismo, onde o sexo jurídico da pessoa
é idêntico ao seu sexo biológico, porém, difere do sexo psicológico, o que acarretará
grandes constrangimentos e complicações jurídicas, como se verá a diante. Muito mais do
que a diferenciação entre homem e mulher, o sexo é utilizado para determinar o papel
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social que o indivíduo exercerá em meio a sociedade, que determina que alguns desses
papéis fosse exercidos pelo homem e outros pelas mulheres.

1.5.6 Sexo de Criação

O sexo de criação é aquele que é definido pelo modo e pelo meio em que a criança
foi criada e educada. Assim, os maiores responsáveis pela definição deste sexo são os pais,
os professores, ou seja, todos aqueles que sejam responsáveis direta ou indiretamente pela
formação da criança. A educação ocorre, geralmente, de forma que o sexo de criação seja o
mesmo que o sexo legal.
É nesse sentido que se manifesta:

A consciência que se tem de ser do gênero masculino ou feminino é, portanto,


adquirida e induzida pelo comportamento e pelas atitudes dos pais, dos
familiares e do meio social a que se pertence, além da percepção e interiorização
das experiências vividas. (ARAÚJO, 2000, p.47).

Na maioria das vezes, não há problemas quanto ao sexo de criação, pois este é
idêntico aos sexos biológico e legal, estando o indivíduo em harmonia sexual. Existem os
casos dos transexuais, no entanto, que desenvolvem uma identidade sexual diversa do sexo
de criação, que é determinada por um outro critério de identificação sexual, o sexo
psicossocial, conforme se verá.

1.5.7 Sexo Psicossocial

O sexo psicossocial é a mais importante modalidade sexual, visto que se houver


desequilíbrio entre os diversos critérios de definição do sexo, o mais relevante é o sexo
psicológico ou psicossocial.
O sexo psicossocial é, então, o resultado de uma combinação de fatores e interações
genéticas, fisiológicas e psicológicas que acontecem e se formam dentro do meio onde o
indivíduo se desenvolve.
Peres (2001), afirma que: “aquelas diferenças hormonais existentes na fase intra-
uterina, que definem o sexo masculino ou feminino, apesar de serem reduzidas com o
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nascimento, poderão ser mantidas ou estimuladas, dependendo do ambiente em que a


criança cresce”.
É nesse sentido que se reafirma a importância do sexo psicossocial na formação do
indivíduo, pois ele sozinho pode divergir das outras modalidades sexuais. E é este o caso
dos transexuais, onde o indivíduo é, de forma biológica, normal, com seu sexo legal
conferindo com o biológico e sendo criado e educado desta forma. Porém, quando se
analisa este indivíduo de forma psicossocial, ele identifica-se com o sexo oposto ao que
consta no seu registro.
Em face de todo o exposto, que se conclui que para se verificar o sexo do indivíduo,
não se pode analisar somente sua constituição biológica, pois, como visto, são vários os
fatores que influem nesta definição. Então, é preciso que se definam quais os fatores que
serão considerados quando houver a desarmonia dos elementos determinantes do sexo.

1.6 O Transexual Diferenças e Semelhanças com outros Tipos Sexuais

Importante nos referirmos aos conceitos de transexual primário e secundário, bem


como as diferenças existentes entre os conceitos de transexualismo, homossexualismo,
travestismo, bissexual e intersexualismo, para que não haja erros de conceituação e para
que o transexual seja de forma absoluta não mais confundida com nenhuma dessas outras
denominações que passaremos a expor a partir de agora.
O transexual primário é aquele que, desde os primeiros anos de vida, de forma
precoce, já possui vontade compulsiva em pertencer ao sexo oposto. Essa vontade perdura
de maneira imperativa e só cessa com a realização da cirurgia de transgenitalização.
No entanto, o transexual secundário aquele que vem desenvolver tendências
transexuais em idade mais avançada, nele encontrando-se alternadamente fases de
atividade homossexual e de travestismo.
Já homossexual reconhece a sua identidade, aceita seu órgão genital, inclusive
sendo para o mesmo zonas erógenas onde obtém prazer. Em contrapartida, o transexual
pertence psicologicamente ao sexo biológico oposto. O fato de ter nascido com genitais
diversos do que deseja em seu sexo psíquico é explicado como sendo uma aberração da
natureza.
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O travesti caracteriza-se pela satisfação que possui em utilizar roupagem do sexo


feminino, seja por defesa ou fetichismo. Além disso, reconhece o seu sexo biológico,
enquanto o transexual tem uma verdadeira repulsa por seus genitais externos.
Logo, o travesti se transveste, porém, não possui qualquer problema com relação ao
seu sexo, desta forma, pode agir como homem que isso não interfere em seu psíquico, não
lhe causa nenhum distúrbio neurológico.
Para a Psicologia, a homossexualidade é encarada como um distúrbio de identidade,
e não como uma doença. Também não é hereditária, nem uma opção consciente ou
deliberada, desta forma o homossexual tanto masculino como feminino sente atração por
pessoas do mesmo sexo, sem, em hipótese geral se sentir como uma pessoa do sexo oposto,
ou ter o desejo desenfreado de passar por uma readequação genital para que,
definitivamente, seja considerado do sexo oposto.
Bissexual tem atração sexual por indivíduos ora do sexo masculino, ora do sexo
feminino, com características próprias que, de certa fora, oscila entre o heterossexual e o
homossexual, sem que isso leve à renúncia de uma das duas identidades, enquanto o
transexual não admite a hipótese de manter relações sexuais com pessoas de sexo biológico
ao seu.
O intersexualismo, também denominado de hermafroditismo, é aquele possuidor de
sexo dúbio, devendo se submeter à cirurgia para adequação do sexo genético, gonodal e
fenotípico, que deve ser realizada após um estudo detalhado da identidade e do sexo
psicossocial desenvolvido. Já o transexual possui apenas características físicas de apenas
um sexo. O que ocorre é a não identificação com essas características.

1.7 O Transexualismo Conceito e Considerações Históricas

O transexualismo pode ser conceituado de várias formas, mas é certo que pode ser
considerado como um transtorno sexual, pois consiste na disposição psíquica do sexo
oposto ao biológico.
Fragoso (1981, p. 199-304), afirma que: “entende-se por transexualismo uma
inversão da identidade psicossocial, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-
compulsiva, que se manifesta pelo desejo de reversão sexual integral”.
26

Segundo Lucarelli (1981)), para a Associação Paulista de Medicina: “transexual é o


indivíduo com identidade psicossexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o
desejo compulsivo de mudança dos mesmos”.
Para Sutter (1993, p.35), “transexual é o indivíduo que recusa totalmente o sexo que
lhe foi atribuído. Identifica-se psicologicamente com o sexo oposto, embora
biologicamente não seja portador de qualquer anomalia”.
A Classificação Internacional das Doenças (CID10 - F.64.0) define o
transexualismo como um desejo imenso de viver e ser aceito como membro do sexo
oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de
seu próprio sexo anatômico e o desejo de se submeter ao tratamento hormonal e cirurgia,
para seu corpo ficar tão congruente quanto possível com o sexo preferido.
Assim, transexual é aquele indivíduo portador de um distúrbio de identidade sexual
que manifesta, com convicção permanente, a vontade de viver como membro do sexo
oposto ao seu.
Logo, o transexualismo é uma síndrome complexa, que se caracteriza pelo
sentimento intenso de não pertencer ao sexo anatômico, sem por isso manifestar distúrbios
delirantes, e sem bases orgânicas (como o hermafroditismo ou qualquer outra anomalia
endócrina).
Esta síndrome foi individualizada em sua forma moderna por um médico alemão
emigrado aos Estados Unidos, Harry Benjamin 9, e após, sob diversas formas, pouco a
pouco admitida nas nosografias psiquiátricas. Ela figura hoje no manual-diagnóstico
publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM 4), não sob o título de
"transexualismo", mas como "distúrbio de identidade de gênero". Que o "gênero" possa
minimamente parecer uma noção mais clara que a de "sexo" consagra o triunfo em
psiquiatria de uma concepção sociológica particular da identidade, e por si só esse fato
exige uma análise.
A possibilidade técnica de satisfazer as demandas de adequação vindas dos
transexuais, graças aos hormônios e aos progressos da cirurgia plástica, contribuiu para dar
ao transexualismo, a partir dos anos 50, uma coloração distinta das demais descrições.
Desde então, a liberdade de escolha do sexo vem em primeiro plano, como
possibilidade de construção de identidade sexual e de obter-se para ela a sanção social com
os direitos referentes (casamento, inseminação artificial ou de parceria, adoção, a questão

9
BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
27

do nome), acompanhada de uma denúncia dos obstáculos a essa escolha que mobiliza para
fins militantes, freqüentemente com sucesso, os instrumentos habituais da crítica dos
preconceitos (como a sociologia comparada, que acentuou, no feminismo recente, a
distinção entre o gênero e o sexo natural, bem como diversos argumentos biológicos que
relativizam o dimorfismo homem/mulher).
De uma situação individual de início absolutamente marginal, passou-se assim,
como o atestam todas as estatísticas dos países desenvolvidos, a um crescimento
exponencial de demandas de "mudança de sexo" e a sex ratio, que inicialmente guardava
uma proporção de uma mulher para oito homens solicitando hormônios e cirurgia, é agora
de uma para três.10

10
Quantos transexuais existem hoje? Não se sabe. As estimativas oscilam devido à antiguidade das práticas
clandestinas e da vontade da imensa maioria dos (as) operados (as) de desaparecer no anonimato, uma vez
modificado seu estado civil. Haveria cerca de 50.000 nos Estados Unidos e 3.000 na França.
28

CAPÍTULO II – TRANSEXUAL FRENTE À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


2.1 O Transexualismo e o Estado Democrático

A idéia de considerar as minorias é característica da democracia, já que o Estado


Democrático é pluralista.
Quando falamos em Estado Democrático, referimo-nos, portanto, a um sistema que
protege o interesse das minorias, querem sejam elas: raciais, políticas, econômicas ou
sociais.
Não se pode conceber um Estado Democrático sem a vontade da maioria. Seus
valores devem prevalecer suas idéias predominarem. Isso não significa o aniquilamento da
vontade dos grupos minoritários, seus valores e suas idéias. Seus temores também deve ser
objeto de proteção do Estado.
O Estado Democrático deve-se caracterizar pelo equilíbrio entre a vontade da
maioria e o considerar a minoria, acolhendo-a sempre que possível desde que tal
acolhimento não represente uma ameaça real aos valores escolhidos pela maioria.
Conviver com a opção sexual do transexual, no caso não se trata de opção, mas de
conviver como um quadro psicológico sobre o qual o indivíduo não tem qualquer controle,
permitir a busca de sua felicidade, é também revelar o grau de democracia da sociedade, já
que essa felicidade dependerá da identificação do sexo psicológico com o biológico. Os
valores morais, que dominam a sociedade, permitirão o convívio com o bem-viver do
indivíduo transexual? Com a resposta, chega-se ao grau de democracia existente em nossa
realidade jurídica.
Não se pode mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação
plurivetorial. Em outros termos, o sexo é resultante de um equilíbrio de diferentes fatores
que agem de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social.
Assim, fatores genéticos, endócrinos, somáticos, psicológicos e sociais se integram
para definir a situação de uma pessoa em termos sexuais. As implicações jurídicas serão
decorrentes dessa integração. A busca da unidade é, portanto, o ponto mais importante da
identificação sexual de um indivíduo. A identificação entre os diversos fatores
caracterizadores da sexualidade é que determinará ser ou não uma situação revestida de
normalidade.
Em caso de divergência, no entanto, o aspecto psicológico é o que deve apresentar
maior relevância, como bem analisado por muitos juristas, onde, havendo desarmonia entre
29

eles, ou seja, os componentes para determinação do sexo, o componente que apresenta


maior relevância é o psicológico.
Como se sabe, o artigo 13 do Código Civil atual e seu parágrafo único prevêem o
direito de disposição de partes, separados do próprio corpo em vida para os fins de
transplante ou não.
Quanto à eventual mudança de sexo do indivíduo do sexo masculino para o sexo
feminino, já que ocorrerá uma "disposição de parte do corpo" à luz do dispositivo acima
mencionado, podem ser feitas duas interpretações.
A primeira, mais liberal, permitiria a mudança do sexo masculino para o feminino,
já que muitas vezes a pessoa tem os ditos choques psicológicos graves, havendo a
necessidade de alteração, para evitar que a mesma, por exemplo, se suicide. Por diversas
vezes surgirá um laudo médico apontando tal situação do transexual, o que se enquadra na
exigência médica.
Entretanto, a segunda parte do comando legal veda a disposição do próprio corpo se
tal fato contrariar os bons costumes, conceito legal indeterminado, a ser preenchido pelo
magistrado, dentro do sistema de cláusulas gerais adotado pela codificação. De acordo com
uma segunda visão, mais conservadora, a mudança de sexo estaria proibida se isso
ocorresse.
Quanto a tal discussão, a maioria dos estudiosos é adeptos da primeira corrente,
inclusive de acordo com o enunciado n. 6 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I
Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2002, cujo teor segue: "Art. 13: a
expressão "exigência médica", contida no art.13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto
ao bem-estar psíquico do disponente.
A cirurgia de redesignação de sexo pode configurar-se, assim, como tentativa de
permitir ao transexual buscar melhor integração individual e social. Configura-se, na
realidade, como uma das poucas saídas para que o transexual se apresente à sociedade de
forma mais íntegra, eliminando, ao menos em parte, a dualidade que traz consigo.
Advertido dos riscos e dos limites da cirurgia, o transexual escolhe o melhor caminho a ser
seguido. Fica advertido de que a cirurgia apresenta riscos e que ele poderá não obter os
resultados desejados.
Feito o acompanhamento a que se refere à resolução do Conselho Federal de
Medicina, com a equipe multidisciplinar, advertido formalmente dos limites da cirurgia e
de seus riscos, o transexual, se decidir submeter-se a ela, deve ter o direito de realizá-la,
30

inclusive por conta do Estado. Não se pode pretender que o Estado não financia tal
operação. Não se trata de uma intervenção estética, mas de algo necessário à integridade
psíquica do paciente. Portanto, no direito à saúde, não se pode deixar de compreender o
direito que o transexual tem de, por meio da cirurgia, tentar aproximar-se da realidade
social e de sua integridade psíquica.

2.2 Importância das Normas-Princípio e sua Primazia em Relação às Regras

Nader (2003, p. 38), “é observando a natureza humana, verificando o que lhe é


peculiar e essencial, que a razão induz aos princípios do Direito Natural”. Durante muito
tempo o pensamento jusnaturalista esteve mergulhado na religião e concebido como de
origem divina.
O princípio encontra-se em posição hierárquica superior em relação às regras. Os
mais diversos autores reconhecem essa característica, da qual se pode retirar algumas
conclusões. De outra parte, também salientam a importância dos princípios.
Pois bem, no que concerne à primeira observação a ser feita a respeito desse tema,
lembra-se, que violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A
desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.
O princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras, pois determina o
sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a
globalidade do ordenamento jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras,
no sentido que vai daquelas para estas.
Em sua natureza jurídica, os princípios constitucionais têm normatividade
incontestável, quer dizer, contém-se nas normas jurídicas do sistema fundamental. Estas
normas, nas quais residem os princípios constitucionais, são superiores a quaisquer outras,
em razão do conteúdo expresso ou implicitamente nelas formalizados.
Assim, o princípio constitucional predica-se diferentemente de qualquer outro
princípio ou valor prevalente na sociedade, mas não juridicizado, por carecer da
normatividade que o torna impositivo ao acatamento integral. Esta qualidade talvez
represente o maior avanço a que chegou o constitucionalismo contemporâneo, pois a
31

normatividade dos princípios alterou a face e o coração do conceito de Constituição. A


norma que dita um princípio constitucional não se põe à contemplação, como ocorreu em
períodos superados do constitucionalismo; põe à observância do próprio Poder Público, do
Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da qual participam.
A Constituição deve ser compreendida como um sistema aberto de regras e
princípios. Não é possível conceber um sistema jurídico formado apenas por regras, pois
este, embora pudesse ser considerado um “sistema de segurança” não permitiria a sua
própria complementação e o seu desenvolvimento.
Da mesma forma, um sistema exclusivamente constituído por princípios seria
inaceitável, por conduzir à indeterminação e incerteza, devido à inexistência de regras
precisas.
Diante dessa perspectiva, depreende-se que o sistema constitucional deve ser
constituído por regras e princípios, e que os últimos, em razão de sua referência a valores,
são o fundamento das regras jurídicas, ligando todo o sistema constitucional de modo
objetivo.

2.3 Princípios Inerentes

Os princípios inerentes ao Estado Brasileiro são considerados os valores


primordiais, imediato, os quais nunca podem ser deixados de lado.
A Constituição de 1988, no Título I, ao tratar dos princípios fundamentais que
norteiam a República Federativa do Brasil, destaca, no art. 1º, inc. II e III, a valorização da
cidadania e da dignidade da pessoa humana, elegendo, desta forma, valores humanistas
como alguns dos princípios objetivos do Estado e da sociedade. A obrigação de garantir o
bem-estar do cidadão, de zelar por sua dignidade e pelo livre desenvolvimento de sua
personalidade é amparada constitucionalmente. Desses princípios fundamentais extraem-se
outros, como as garantias e os direitos individuais e coletivos, arrolados no art. 5º, as
garantias e direitos sociais do indivíduo, constantes do art. 6º, e o direito à saúde, física e
psíquica, promovido no art. 196.
O princípio da dignidade humana é a base para sociedade desenvolvida. O
fundamento jurídico da dignidade humana manifesta-se, em primeiro lugar, no princípio da
igualdade. O princípio igualdade não sustenta o tratamento igual aos cidadãos, ao contrário,
busca tratamento equilibrado mantendo o respeito aos grupos minoritários.
32

Todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, o que é vedado são
as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos
casos desiguais, à medida que se desigualam, somente terá como lesado o princípio
constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma
finalidade acolhida pelo direito.
Ao explicar o princípio da igualdade Bastos (1998, p.165-198), indaga o que
significa igualdade e responde dizendo que: “se traduz numa relação entre dois entes
quando estes apresentam às mesmas características, a mesma estrutura, a mesma forma,
quando, enfim, não apresentem desigualdade que se nos afigurem relevantes”.
A complexidade do princípio ora em estudo, fez com que a doutrina melhor
explicasse denominando igualdade substancial e formal. Aquela é o tratamento igual e
uniforme a todos os homens, é a busca pela paridade dos homens quanto a seus direitos e
deveres. Pelo princípio da igualdade substancial todo ser humano deve ser tratado da
mesma forma, a regra deve ser a mesma para todos independentes da situação concreta que
se encontra o homem.
Já o principio da igualdade formal diz respeito ao valor da pessoa humana e exige o
respeito incondicional a sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si,
que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e
das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se o homem é sempre
membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e
valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social.

2.4 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A origem etimológica do termo dignidade é a expressão latina dignitas, que


significa respeitabilidade, prestígio, consideração, estima. Porém, neste estudo, aplica-se o
conceito de Dignidade da Pessoa Humana, encontrado na doutrina jurídica-constitucional
No entanto, Sarlet (2004), define o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
como sendo: “qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano,
constituindo-se em meta permanente da humanidade, do Estado e do direito, sendo ainda a
dignidade algo real, inerente à pessoa humana”. Ressalta-se ainda que esse assuma posição
de destaque, servindo como diretriz material para a identificação de direitos implícitos
33

(tanto de cunho defensivo como prestacional) e, de modo especial, sediados em outras


partes da Constituição.
A dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, constitui valor-guia de
toda a ordem jurídica, caracterizando-se indispensável para a ordem social.
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e
pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma
existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde
a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais
não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade
da pessoa humana e esta, por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e
injustiças.
Pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana está na qualidade intrínseca e
distinta de cada ser humano, por este ser titular de direitos e deveres fundamentais, que,
sendo respeitados e assegurados pelo Estado, proporcionam condições mínimas para uma
vida digna em harmonia com os demais seres humanos.
O que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial é que ele
nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo. Como diz Kant 11: "o homem, é,
duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio
para o uso arbitrário desta ou daquela vontade".
Conseqüentemente, cada homem é fim em si mesmo. E se o texto constitucional diz
que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil,
importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função
do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador constituinte, para reforçar a idéia
anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da
organização do Estado.
Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de
inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se que cada
pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros
objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e um dos
elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro.

11
KANT, I., Immanuel - Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 68.
34

No entanto, tomar o homem como fim em si mesmo e que o Estado existe em


função dele, não conduz ao profissional do direito a uma concepção individualista da
dignidade da pessoa humana, ou seja, que num conflito indivíduo versus Estado,
privilegie-se sempre aquele. Com efeito, a concepção que aqui se adota, denominada
personalista, busca a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e
coletivos; inexiste, portanto, aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o
predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as
circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como, também, a
preeminência de um ou outro valor.
A pessoa é, nesta perspectiva, o valor último, o valor supremo da democracia, que a
dimensiona e humaniza. É, igualmente, a raiz antropológica constitucionalmente
estruturante do Estado de Direito, o que não implica um conceito ficcista da dignidade da
pessoa humana. Ao contrário, sendo a pessoa unidade aberta, sugere uma integração
pragmática.
Com efeito, ensina Jorge Miranda (1991): "a dignidade pressupõe a autonomia vital
da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e
às outras pessoas".
A pessoa é um minimun invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar,
diga-se que a dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto; porquanto, ainda que
se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode
nunca sacrificar, ferir o valor da pessoa.
A dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas:
uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha ser objeto de
ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, coerentemente, que:
"ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III,
CF). Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do homem
como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; a
garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da
personalidade; a libertação da "angústia da existência" da pessoa mediante mecanismos de
socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de
condições existenciais mínimas, como por exemplo, o direito a retificação do prenome aos
transexuais.
35

Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada pessoa,
que supõe, de um lado, o reconhecimento da total auto disponibilidade, sem interferências
ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de cada homem; de
outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que
uma predeterminação dada pela natureza.
Vê-se que a proclamação do valor distinto da pessoa humana teve como
conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem. A dignidade da
pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte
jurídico-positiva dos direitos fundamentais, a fonte ética, que confere unidade de sentido,
de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais.
Daí falar-se, em conseqüência, na centralidade dos direitos fundamentais dentro do
sistema constitucional, que eles apresentam não apenas um caráter subjetivo, mas também
cumprem funções estruturais, são conditio sine qua non del Estado constitucional
democrático.
Igualmente, como posiciona a respeitável doutrina12:

A fundamentalidade destes direitos, tanto formal como material, ou seja, as


normas de direito fundamental ocupam o grau superior da ordem jurídica; estão
submetidas a processos dificultosos de revisão; constituem limites materiais da
própria revisão; vinculam imediatamente os poderes públicos; significam a
abertura a outros direitos fundamentais.

Dessa maneira, a interpretação dos demais preceitos constitucionais e legais há de


fazer-se à luz daquelas normas constitucionais que proclamam e consagram direitos
fundamentais, as normas de direito fundamental.

2.5 A Dignidade Humana e a Questão da Identificação Civil

No entendimento de Alves13:

A complexidade humana é incontestável, e a identidade sexual reflete a própria


personalidade do indivíduo que deve encontrar na sua identificação civil a
harmonia necessária para o pleno desenvolvimento de sua capacidade cognitivo-
comportamental.

12
ALEXY, Robert, op. cit., p. 503 e segs.; CANOTILHO, J.J. Gomes - Direito Constituiconal, p. 498 e segs,
que, aliás, diz ser a dignidade da pessoa humana "a raiz fundamentante dos direitos fundamentais".
13
ALVES, Elizabete Lanzoni. Transexualismo e as novas diretrizes jurídicas. Disponível em
http://www.casadaculturajuridica.com.br/artigos/my_aj06.htm. Acesso em 09 jul 2006.
36

Será justo e condizente ao ser humano que nega a sua identidade, que repudia com
fervor as características físicas com as quais a mãe natureza o brindou, que busca
incessantemente uma harmonia entre a sua psique e o seu estado físico, que sofre imensos,
árduos e reiterados preconceitos da sociedade e da família por não se identificar consigo
mesmo, poder alterar as suas características físicas mediante procedimento cirúrgico
complexo, doloroso e arriscado, e não receber por parte do Estado uma resposta favorável
ao seu interesse em mudar de nome?
Esta dignidade deve ser entendida de acordo com os valores pessoais do indivíduo,
independente dos valores atribuídos como normais pela comunidade e grupo social em que
o indivíduo esteja inserido, como bem demonstra Neves14, nos seus ensinamentos jurídicos.
A dignidade pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito
incondicional a sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o
mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das
situações sociais em que ela concretamente se insira.
Assim, se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma
classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz aos modos de existência comunitária
ou social. Será por isso inválido e inadmissível, o sacrifício do valor e dignidade pessoal, e
benefício simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito
portador do valor absoluto não é comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora
socialmente em comunidade e na classe.
O transexual, por ser um indivíduo diferente dos padrões normais e por fazer parte
de um grupo marginalizado pela sociedade não deve ver olvidar os seus direitos
fundamentais, o direito à integridade psíquica, à imagem, à intimidade, ao sigilo, à
disponibilidade sobre o próprio corpo e, principalmente, à identidade. Após a cirurgia, ao
adquirir um novo corpo, o indivíduo estaria amparado também pelo direito à imagem, pois
ele quer mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de tolher a
divulgação de sua atual imagem violaria esse direito.
O transexual tem direito ao sigilo e à intimidade, uma vez que o ato cirúrgico
praticado deve permanecer em sigilo, pois qualquer forma de exibição traria conseqüências

14
NEVES, Castanheira apud FARIAS, Edilsom Ferreira de. Colisão de direitos à honra, à intimidade, à vida
privada, e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris,
2000. p.60-61.
37

negativas para o bem estar e a moral do indivíduo. Além disso, as particularidades de sua
vida privada devem permanecer si lentes por mais que o indivíduo se exponha ao público.
Não haveria justificativo dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de
um ser humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações
constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de
identificação.
O princípio jurídico da proteção a dignidade da pessoa humana tem como núcleo
essencial à idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesmo, não podendo ser
instrumentalizada ou descartada·, pois lhe são atribuídas características que lhe
individualiza e representa uma identidade pessoal.
O reconhecimento da dignidade humana é elemento essencial na sociedade
conceituada como um Estado Democrático de Direito, que promete aos indivíduos, muito
mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de
suas liberdades.
A leitura de toda legislação e normas estabelecidas socialmente devem ter como
norte a dignidade da pessoa humana, inclusive para sua aplicação aos casos concretos
levados ao conhecimento do Poder Judiciário. Qualquer decisão dos tribunais que firam a
dignidade de qualquer pessoa necessita ser reformada, posto que se confronta com um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

2.6 Princípios da Integridade Física e Psíquica

A doutrina predominante, praticamente não adota a concepção unitária do direito à


integridade do homem, possuidor de um direito à integridade psicofísica, preferindo dar
tratamento separado por intermédio de duas tipificações, tutelando um direito à integridade
física e um direito à integridade psíquica, possuindo, ambos os direitos, a natureza de um
direito de personalidade.
Insta salientar, que essa dicotomia tradicional não consegue alcançar à ampla e
verdadeira tutela que se deve outorgar à pessoa humana, pois nenhum dos dois direitos,
isoladamente, protege o direito à integridade do corpo humano, o direito à saúde, de um
modo geral, e um direito ao pudor, estando nesses inseridos o direito à integridade
psicofísica, visto de um modo unitário, abrange todos esses tipos e subtipos sob a mesma
denominação, tutelando esses direitos de uma vez só, já que a psique pertence à estrutura
38

do indivíduo, compõe a pessoa, integrando-se à própria personalidade e a tutela do


indivíduo deve-se fazer por inteiro como um todo.

2.7 O Direito à Intimidade

O Direito Constitucional anterior, em nada tratou especificamente sobre a


privacidade, em especial, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 e as
Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967.
Todavia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo II,
inciso XII, assegura que: “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua
família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à honra e reputação. Toda
pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 arrola o que ela denomina de direitos e
deveres individuais e coletivos. Não menciona aí as garantias dos direitos individuais, mas
elas estão lá. Esse dispositivo começa a enunciar o direito à igualdade de todos perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza. Embora seja uma declaração formal, não deixa de
ter sentido especial essa primazia ao direito de igualdade. Em seguida, o dispositivo
assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
E já noutro dispositivo, a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à
imagem pessoal. Assim, é que, em seu inciso X do artigo 5º, a Constituição Federal
pontifica: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”.
Portanto, erigiu, expressamente, esses valores humanos à condição de direito
individual, mas não os fez constar do caput do artigo. Isto leva à conclusão de que esses
valores (a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem) constituem um direito conexo
ao direito à vida, este preconizado no caput do art. 5º da CF/88.
O direito à intimidade é quase sempre considerado como sinônimo do direito à
privacidade. Esta é a terminologia do direito anglo-americano. A nossa recente Carta
Constitucional distinguiu a mesma situação com dois nomes distintos, quando se sabe que
a intimidade do cidadão é sua vida privada, no recesso do lar. A tutela constitucional,
39

assim, visa proteger as pessoas de dois atentados particulares, ou seja, ao segredo da vida
privada (direito à intimidade) e à liberdade da vida privada (direito à vida privada).
Assim, intimidade é o status ou situação daquilo que é intimo, isolado, só.
Há um direito ou liberdade pública de se estar só, de não ser importunado,
devassado, visto por olhos estranhos. A noção de intimidade ou de vida privada é
vinculada à noção relativa e subjetiva de espaço e tempo, o que explica a dificuldade do
tema.
Segundo Dotti15, "a intimidade se caracteriza com a esfera secreta da vida do
indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais".
Para Cupis16, "a intimidade como o modo de ser da pessoa, consiste na execução do
conhecimento de outrem do quanto se refira à pessoa mesma".
Intimidade revela, assim, a esfera secreta da pessoa física, sua reserva de vida,
mantendo forte ligação com a inviolabilidade de domicílio, com o sigilo de
correspondência e com o segredo profissional.
Convém assentar, afinal, que, embora em algumas situações os direitos à
intimidade, à honra e à imagem possam aparecer entrelaçados, estes não podem ser
confundidos. Tanto é que, com o direito à intimidade, o legislador visa proteger o
indivíduo da intromissão alheia na sua vida particular; com o direito à honra busca-se
preservar a personalidade de ofensas que a depreciem ou ataquem sua reputação e com o
direito à imagem procura-se coibir a exposição indevida da imagem da pessoa.

2.6.1 Direito à Intimidade Sexual

A segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica


para a construção do direito à orientação sexual, como direito pessoalíssimo atributo
inerente e inegável da pessoa humana. A espécie humana foi a única em que já ocorreu a
separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função procriativa.
Dessa separação, e na própria medida em que ela ocorreu, nasceu a liberdade de
orientação sexual, que se tornou inerente à espécie humana.

15
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação, p. 90
16
DE CUPIS, ADRIANO. Os Direitos da Personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim e Miguel
Caeiro. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961, p. 115.
40

Indivíduos de ambos os sexos passaram a ter a opção de tecer e suster uma relação
sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo,
o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas.
Todos dispõem da liberdade de optar, desimportando o sexo da pessoa eleita, se
igual ou diferente do seu.
Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas recebe
o repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado
em função de sua orientação sexual.
Como orientação sexual só é passível de distinção diante do sexo da pessoa
escolhida, é direito que goza de proteção constitucional ante a vedação de discriminação
por motivo de sexo.
O gênero da pessoa eleita não pode gerar tratamento desigualitário com relação a
quem escolhe, sob pena de estar diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou
diferente do sexo da pessoa escolhida.
Dito impedimento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional.
Está posto na Convenção Internacional Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San
José, dos quais o Brasil é signatário. Como preceitua o § 2º do art. 5º da CF 17, são
recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais, A
ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de
homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja
pelo princípio da igualdade.
A orientação que alguém imprime na esfera de sua vida privada não admite
restrições a quaisquer direitos. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, aí está incluída a opção sexual que se tenha.
CAPÍTULO III - REDESIGNÇÃO DO ESTADO SEXUAL E A ALTERAÇÃO DO
REGISTRO CIVIL
3.1 Da Cirurgia de Redesignação do Estado Sexual

A questão do transexual vem à tona nos dias de hoje sempre que se discute a
identidade sexual da pessoa e livre disposição de partes do próprio corpo. A partir do
reconhecimento da existência de uma sexualidade discrepante daquela física, mais

17
§ 2º do art. 5º da CF: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.
41

precisamente oposta ao gênero que revela sua aparência, podemos evoluir para um
conceito de pertinência sexual psíquica que não se limita à preferência sexual.
O avanço a medicina quanto aos transplantes continua a levantar dúvidas éticas,
morais, religiosas e jurídicas.
Durante muitos anos, o Conselho Federal de Medicina considerava que a cirurgia
de redesignação do estado sexual, possuía caráter mutilante e não corretivo e, portanto,
crime de lesão corporal. Somente em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de
Medicina publicou a Resolução de número 1.482/97. Após essa Resolução, os médicos
foram liberados, eticamente, para a realização dessa cirurgia, no Brasil.
Em 2002, o Conselho Federal de Medicina, demonstrando, novamente, sua
sensibilidade com o assunto, editou a Resolução de nº. 1.652/02, revogando a Resolução
1.482/97. Essa Resolução, em vigor até os dias atuais, permite a realização da intervenção
cirúrgica. No entanto, a seleção dos pacientes é muito rigorosa, sendo obrigatória à
avaliação do paciente por uma equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra,
cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, por um período não inferior a
dois anos.
A intervenção cirúrgica para redesignação do estado sexual do transexual tem como
objetivo adaptar a realidade do indivíduo transexual, harmonizando-o com o sexo psíquico
ou psicossocial.
O transexual acredita insofismavelmente pertencer ao sexo contrário à sua anatomia
e por isso se transveste. Para ele, a operação de mudança de sexo é uma obstinação. Em
momento algum vive, comporta-se ou age como homem. Quando o faz é sob condições
estressantes que podem conduzi-lo a conseqüências neuróticas e até psicóticas. Estas
podem chegar a ponto de induzi-lo à automutilação da própria genitália e, em certos casos,
ao suicídio.
O primeiro paciente submetido à intervenção cirúrgica para mudança de sexo foi o
ex-combatente norte-americano George Jorgensen. Em 1952, ele fora operado, em
Copenhague, pelo cirurgião plástico Paul Fogh-Andersen, adotando o nome de Christine
Jorgensen.
No Brasil, a primeira cirurgia de redesignação do estado sexual ocorreu em 1971,
com o transexual Waldir Nogueira e foi realizado pelo cirurgião Roberto Farina. A cirurgia
foi um sucesso, porém, intentada a ação de mudança do nome e do estado sexual no
registro de nascimento do indivíduo, o Ministério Público, tomando conhecimento,
42

denunciou o médico como incurso na prática de crime de lesões corporais de natureza


gravíssimas. Condenado o réu a dois anos de reclusão, em primeira instância, foi o mesmo
absolvido em segundo grau, entendendo-se que não houve ação dolosa em sua atividade
profissional, porquanto visava curar o paciente ou reduzir-lhe o sofrimento físico e mental.
O assunto em questão despertou o interesse da doutrina, com relação ao poder que
o ser humano tem sobre seu próprio corpo e se esse poderia ser exercido sem qualquer
restrição.
Segundo SALGADO 18:

Embora admitindo o direito de disposição do homem sobre partes do corpo,


restringem esta faculdade a certas hipóteses e determinados órgãos, limitando
este poder de disposição para alguns princípios regras (...). A permissibilidade
tem a medida nos atos que visem à manutenção de integridade física da pessoa
ou quando esta é ofendida para salvar a própria vida, que é o bem jurídico maior,
como no caso de amputação de partes doentes do corpo.

Tem-se que o princípio da indisponibilidade do corpo humano está perdendo a


rigidez, admitindo-se a cirurgia no transexual com o objetivo de transformar a vida, deste
indivíduo, para melhor e sociável. Neste campo o Biodireito se desenvolve em face o
surgimento da quarta geração dos direitos fundamentais em que o intuito básico é a busca
do equilíbrio.
Segundo Diniz (2006, p.127-128): “as operações de mudança de sexo em
transexual, em princípio, são proibidas por acarretarem mutilação, esterilidade, perda de
função sexual orgânica”. Sendo a favor da supressão de partes do corpo humano para
preservação da vida ou da saúde do paciente, quando por exigência médica.
Já para Rodrigues (2006, p.69):

Enquanto homossexual é antes de tudo um efeminado, de certo modo resignado


com seu gênero, o transexual, ao contrário, é um indivíduo de extrema inversão
psicossexual, circunstância que o conduz a negar o seu sexo biológico e a exigir
a cirurgia de reajuste sexual, a fim de poder assumir a identidade de seu
verdadeiro gênero, que não condiz com seu sexo anatômico. (RODRIGUES,
2006, p.69).

18
Murilo Rezende Salgado, foi professor titular de instituições de direito privado da Universidade para o
Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina. RT 491, Setembro, 1976.
43

Em que poderia a cirurgia de mudança sexo prejudicar outros? Que prejuízo


poderia causar a terceiros o exercício do direito ao próprio corpo, a busca da paz e da
coerência entre o estado psicológico e o biológico?
Poder-se-ia argumentar que haveria uma mutilação do corpo, com a retirada do
pênis. Mas o estado de necessidade justifica plenamente a escolha. E, ademais, como já
visto, o paciente passaria obrigatoriamente, pelo acompanhamento de uma equipe
multidisciplinar que seguiria o caso, por, no mínimo, dois anos. Médicos, especialistas em
diversas áreas, são ouvidos para bem distinguir um caso real de outro ligado à neurose ou à
esquizofrenia ou a um estado passageiro de entusiasmo inconseqüente.
O argumento, portanto, da lesão corporal deve ser deixado de lado, sob pena de não
ser aceito a existência do estado de necessidade e, portanto, há necessidade de reformular
todo o sistema do Código Penal.
Se o estado de necessidade permite a extinção da vida de outrem, em circunstâncias
irreversíveis, como não permitir, com base no estado de necessidade, a retirada de parte do
corpo que, para o indivíduo, não tem função de órgão sexual? O conflito entre a lesão do
corpo e a busca da felicidade é a melhor opção, com larga vantagem sobre a mutilação
apontada no primeiro caso.
A Constituição Federal não veda a orientação sexual dos indivíduos, em seu art. 5.º.
Dispondo, no art. 199, § 4.º, que: "A lei disporá sobre as condições e os requisitos que
facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante,
pesquisa e tratamento,...".
No dia 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor o Novo Código Civil, dispondo no
artigo 13, caput e parágrafo único:

Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,


quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os
bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de
transplante, na forma estabelecida em lei especial.

De acordo com a regra esculpida no caput do artigo supracitado, a cirurgia de


redesignação do estado sexual é permitida pela nossa legislação, pois a mesma só é
realizada por exigência médica, após a obrigatoriedade do preenchimento dos seguintes
requisitos: desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os
genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do
44

sexo oposto; permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos; ausência de outros transtornos mentais; a seleção dos pacientes para cirurgia de
transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-
psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, por no mínimo dois anos de
acompanhamento conjunto; após diagnóstico médico de transexualismo; ser maior de 21
(vinte e um) anos; ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia; e
consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução CNS n. 196/96. Esse
procedimento é de fundamental importância, pois a cirurgia é irreversível. Somente após
cuidadosamente emitidos os laudos médicos, o Conselho Federal de Medicina autoriza à
cirurgia, por possuir a mesma um caráter terapêutico, necessária ao tratamento psicológico
do transexual.
Vale ressaltar que com a cirurgia a sensibilidade, no local, não é perdida, pois não
atinge nervos, e só poderá ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos
adequados à pesquisa.
O permanente conflito a que se submete o transexual, ao viver em um corpo que
julga ter sido um erro biológico, submete-o a uma condição marginal, um martírio diário.
Essa situação não atende ao princípio maior da Constituição Federal, o da dignidade da
pessoa humana, que é o objetivo do Estado, promover o bem-estar e felicidade de todos.
Para tanto, o judiciário precisa colaborar, concedendo ao transexual o ajuste de sua
identidade, para impedir que a infelicidade e a angústia promovam a indignidade que o
indivíduo vivia antes da cirurgia de adequação do sexo.
Para uma visão do quadro genérico da normatividade, a lei alemã de 15 de agosto
de 1969 admite alteração de sexo, a juízo da ciência médica, para curar ou aliviar o
paciente de enfermidades, perturbações e sofrimentos psíquicos graves vinculados com
uma sexualidade anormal.
Nos Estados Unidos, em Illinois, a autorização vem datada de 1961; na Louisiana, a
partir de 1968; na Califórnia, a partir de 1977; em Nova York a autorização surgiu em
1971. No Canadá, a partir de 1973 a operação de mudança de sexo tornou-se autorizada.
Na Europa a questão já não é mais tão polêmica. O Tribunal Europeu de Direitos do
Homem tem reconhecido direito de os transexuais realizarem a operação, com base no
mencionado art. 8 da Convenção Européia dos Direitos do Homem, que regula a vida
privada e familiar das pessoas, pronunciando-se, inclusive, contra os países signatários que
negavam o pedido de autorização judicial para realização da cirurgia.
45

Já foram feitas mais ou menos 26 cirurgias no Brasil para mudança de sexo e o


nosso país é o primeiro da América Latina a realizar esta operação, já feita a muitos anos
nos EUA e na Europa.

3.2 A Importância da Identidade Sexual Frente ao Ordenamento Jurídico

Com a evolução do direito, hoje já se fala em direitos clássicos e novos direitos da


personalidade. Os direitos clássicos da personalidade são tidos como a estrutura, são elas a
dignidade, a igualdade, a solidariedade, a liberdade, a cidadania e a justiça.
Atualmente, tem sido alvo de grandes discussões e tem comportado entendimentos
diversos no sistema jurídico brasileiro a questão da mudança do nome civil pelo transexual
que foi submetido à cirurgia de mudança de sexo, pelo fato de não termos leis específicas
regulando o caso. Todavia, é preciso que os legisladores, que representam o ordenamento
jurídico pátrio, atenham-se a essa realidade, que está cada vez menos rara.
Durante muitos anos, a doutrina e a jurisprudência se orientaram no sentido de não
admitir a troca de nome e de sexo, ao fundamento de que a ablação de órgão para
constituição do sexo oposto não se mostra suficiente para a transformação, pois, a
conceituação de mulher decorre da existência, no interior do corpo, dos órgãos genitais
femininos: dois ovários, duas trompas que conectam com o útero, glândulas mamárias e
algumas glândulas acessórias etc.
Assim, só se admitia a retificação do registro civil para a mudança de sexo quando
tivesse havido engano no ato registral ou após exames periciais e intervenções cirúrgicas
para a determinação do sexo oposto. (RT, 662/149).
No entanto, como bem explica Alves, (2002, p.66):

A complexidade humana é incontestável, e a identidade sexual reflete a própria


personalidade do indivíduo que deve encontrar na sua identificação civil a
Harmonia necessária para o pleno desenvolvimento de sua capacidade cognitivo-
comportamental. Negar a possibilidade da alteração do registro civil às pessoas
que realizam cirurgia de transgenitalização é negar a própria existência do direito
como sistema jurídico voltado à proteção dos bens jurídicos fundamentais e à
realização do bem comum.

Comprovada a alteração do sexo, impor a manutenção do nome do outro sexo à


pessoa é cruel, sujeitando-a uma degradação que não é consentânea com os princípios de
justiça social.
46

Por ser o transexual um indivíduo diferente dos padrões normais e por fazer parte
de um grupo marginalizado pela sociedade não deve ver olvidar os seus direitos
fundamentais, o direito à integridade psíquica, à imagem, à intimidade, ao sigilo, à
disponibilidade sobre o próprio corpo e, principalmente, à identidade. Após a cirurgia, ao
adquirir um novo corpo, o indivíduo estaria amparado também pelo direito à imagem, pois
ele quer mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de tolher a
divulgação de sua atual imagem violaria esse direito.
Não haveria justificativo dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de
um ser humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se expor a situações
constrangedoras e humilhantes quando solicitado, por exemplo, os documentos de
identificação.
A cirurgia de redesignação do sexo não resolve todos os problemas do transexual,
pois o Estado, mesmo após a adequação do sexo, muitas vezes nega o pedido de alteração
do prenome e do sexo nos documentos do indivíduo.
Assim questiona Araújo (2002): “... ora, como poderia alguém passar por um
processo cirúrgico, em busca da sua melhor adaptação, tentando a junção do sexo
psicológico com o biológico e, ao mesmo tempo, ser considerado pelo Estado como do
sexo originário?”
Há incoerência evidente. Se a medicina, a psicologia e a psiquiatria entendem que a
cirurgia é necessária, como forma de eliminação da angústia, para o direito o indivíduo
ainda viverá a mesma angústia.
O descompasso entre a identidade física e a jurídica espanta a todos e prejudica o
transexual, que sofre constantes situações humilhantes, por portar documentos que o
identifiquem como do sexo oposto ao aparente.
Esta situação se resolveria com a concessão da retificação do registro civil do
transexual, se fazendo a alteração do seu prenome e do seu sexo.
Entretanto, a lei brasileira ainda não prevê expressamente esta possibilidade,
protegendo o nome do cidadão como um elemento inerente ao direito personalidade,
permitindo-se a modificação, conforme a Lei de Registros Públicos nos casos de erro de
grafia ou quando o prenome expor seu portador ao ridículo (art. 55 e art. 58). No entanto,
nestes casos não há vedação expressa de nenhuma lei brasileira, restando em clara omissão
legal, onde o juiz Vladimir Abreu da Silva19, de Campo Grande, MG, citado por Maria
19
Processo 2000.0013605-5 - 2.ª Vara da Fazenda Pública e Registros Públicos. Juiz: Vladimir Abreu da
Silva. Data do julgamento: 28/11/00.
47

Berenice Dias, ressalta que se a legislação não autoriza expressamente a mudança de sexo,
perante o registro civil, em decorrência da transformação plástico-reconstrutiva da
genitália externa, também não veda tal possibilidade, ou seja, a legislação é omissa a
respeito da matéria.
Em tais casos deve o juiz se valer dos princípios gerais de direito, notadamente
aqueles insculpidos na Carta Magna. Assim, o direito à identidade está constante na
Constituição Federal, dentro do princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto,
homem e mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência.
Todavia, há situações carentes de proteção jurídicas, ou lacunas, que devem ser
solucionadas pelos princípios gerais do direito, analogia, pela equidade e pela doutrina, que
manifesta a preocupação de estudar e compatibilizar novas situações a serem positivadas.
A utilização dos princípios gerais do direito nos casos de lacuna da lei 20 é verificada sua
utilidade através de sua correspondência às situações fáticas e necessidades sociais.
O que se busca dizer, a respeito da aplicação da analogia para possibilitar a
mudança do prenome nos cartórios civis é mais condizente com o fazer justiça do que
qualquer outra coisa. Isso porque, em sendo isso possível, estará sendo cristalizado o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um
palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no
campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito à
identidade pessoal e um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal
é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos,
com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito
que tem todo o sujeito de ser ele mesmo.
Portanto, diante de inúmeras decisões contraditórias e omissões na Lei, cabe ao
julgador aplicar os princípios morais, da equidade e justiça, conforme afirma o
desembargador Moacir Adiers21: “Com efeito, o direito vivo tem sido buscado e
correspondido e atendido pelos Juízes, na falta de disposições legais e expressas”. No
Brasil, aí está o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a
busca da justiça.
20
ALVES, Elizabete Lanzoni. Transexualismo e as novas diretrizes jurídicas. Disponível em
http://www.casadaculturajuridica.com.br/artigos/my_aj06.htm. Acesso em 09 jul 2006.
21
RJTJRS, Abril de 1998, Ano XXXIII, N.º 187, pág. 274-282. Apelação Cível n.º 597134964 - 3.ª Câmara
Cível - São José do Norte.
48

Um caso concreto ocorrido na comarca de Bom Despacho/MG. R.J.C., propôs ação


de Retificação de Registro Civil, pleiteando a retificação de seu registro de nascimento,
com alteração do prenome e o sexo. Insta salientar que a ilustríssima representante do
Ministério Público, Drª Daniza Maria H. Biazevic 22, hoje Representante do Ministério
Público da 2ª Vara da Comarca de Iturama-MG., deu parecer favorável ao pedido,
fundamentando seu parecer nos artigos 55, 56, 57, 63, 66, 109, 110 da Lei 6.015/73 e na
Lei 9.708/98, cumulado com os artigos 1º, III, IV; e 5º, caput, X, da Constituição Federal e
artigo 16 do Código Civil Brasileiro, além de doutrina e outros julgados com decisões
favoráveis, em suma, vejamos:

Assim, o fato de ser a parte autora da ação um transexual e exteriorizar tal


orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido
por apelido que constitui prenome feminino, está justificada a pretensão já que o
nome registral está em descompasso com àquela identidade, sendo capaz de
levar seu usuário a situações vexatórias ou de ridículo. (...) Do mesmo modo,
verifica-se que a requerente não pleiteia a presente ação para simplesmente fugir
à identidade. Sendo assim, é evidente que o pedido do autor não se encontra
eivado de dolo, malícia ou objetivos escusos, nem prejudicará terceiros, visando
tão somente o bem estar próprio. (...) Em uma sociedade que se diz democrática
e pluralista, o direito não pode servir como obstáculo, e sim deve ser instrumento
de proteção às conquistas e demandas sócias.

Uma das questões que se põem é: os transexuais que obtiveram a modificação do


registro de nascimento poderão casar e adotar crianças dentro das condições do direito
comum? Ainda não há posições seguras a respeito.
Outras questões jurídicas relevantíssimas são colocadas, muitas sem resposta 23,
dentre as quais se tem:

1) Transexuais operados poderiam ser sujeitos passivos ou ativos no crime de


estupro?
2) Deve constar, no registro civil, o sexo psicológico, biológico e/ou sexo
adquirido?
3) A indicação do termo transexual no assentamento do redesignado não fere o
princípio do respeito à vida privada?
4) Deverão as leis trabalhistas e de seguridade social sofrer adaptações? Uma
mulher que mude seu sexo terá a exigência de seu período de contribuição
aumentado em mais cinco anos para efeito de aposentadoria, como se homem o
fosse?24

22
Processo nº 0074.06.032114-3. Retificação de Registro Civil. Relatório do Ministério Público. Comarca de
Bom Despacho/MG. 24/07/2006.
23
Para esses e outros questionamentos, cf. Raul CHOERI, em “Transexualismo e identidade...” op. cit,.
pp.250 a 253.
24
O art. 201, § 7º, inciso I da Constituição Federal assegura aposentadoria no regime geral de previdência
social quando preenchidas as condições de 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem, e 30 (trinta)
49

5) Deverá o transexual, antes da cirurgia, ser solteiro, viúvo ou divorciado ou


não possuir filhos?
6) A redesignação deverá aparecer no registro civil do filho?
7) Poderá o redesignado contrair matrimônio?
8) Preservar-se-ia o direito de procriação para o redesignado, permitindo-se a
fertilização in vitro utilizando gametas congelados antes da cirurgia?
9) Qual a validade do consentimento de um indivíduo psiquicamente desviante
para fins da disponibilidade de seu corpo?25

Essas são questões a serem enfrentadas pelo direito. Suas respostas, ainda não
encontradas, deverão sempre se guiar pela proteção da dignidade da pessoa humana, para
que se possa acompanhar as mudanças sociais protegendo a pessoa em todas as suas
manifestações.

3.3 A Alteração do Registro Civil

Com todo o entrave e a árdua superação no campo médico, os indivíduos


redesignados ainda têm de buscarem o judiciário, no intuito de retificar o seu registro civil,
no que tange o seu prenome e estado sexual, visto que o mesmo não condiz com a sua atual
realidade.
Todos nós sabemos a importância do nome na vida do indivíduo. O nome é fator de
identificação e individualização do sujeito perante a sociedade.
A alteração é de fundamental importância na vida do indivíduo, pois de nada
adianta ostentar um prenome pelo qual não é reconhecido, que não o identifica e não
exprime a realidade. Porém, ainda existe uma expressiva corrente jurisprudencial contrária
a essa retificação do registro civil do transexual, mesmo após a intervenção cirúrgica
realizada, muitas vezes, no exterior.
Em matéria de RT, CHAVES26, discorreram sobre algumas sentenças favoráveis a
respeito da alteração do registro civil de transexual:

No Rio Grande do Sul até 03/09/87 já haviam ocorrido pelo menos oito casos de
autorização judicial para que homens, que se submeteram a cirurgia para
mudança de sexo no Exterior, conseguissem a retificação do registro civil, com a
troca do primeiro nome e da menção do sexo. Desses, sete casos ocorreram em
Porto Alegre e um em Pelotas. O Juiz da Vara de Registros Públicos de Porto

anos de contribuição, se mulher; 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher.
25
KONDER, Carlos Nelson. “O Consentimento no Biodireito: Os Casos dos Transexuais e dos Wannabes”.
In Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 15, jul.-set. 2003, p. 66 e ss.
26
Antonio Chaves, professor das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo. RT 707, Setembro, 1994.
50

Alegre, Oswaldo Peruffo, disse que “certamente já autorizei meia dúzia” à


mudança de registro, em processos que ingressaram a partir de 1985.

Diante da legislação atual, a primeira resposta que nos vem à mente, quando nos
indagamos acerca da mudança do prenome do transexual que fora exposto à cirurgia de
mudança de sexo, é pela impossibilidade de qualquer alteração do assento do registro civil
da pessoa natural, tendo em vista a adoção, pelo Direito brasileiro, do princípio da
imutabilidade do nome da pessoa, que diz respeito ao prenome e ao patronímico.
A adequação do prenome ao sexo deveria ser permitida no Brasil, consubstanciada
ao direito de identidade pessoal do transexual. Tal alteração enfrenta a barreira da
imutabilidade prevista na Lei dos Registros Públicos. A imutabilidade poderá expor o
transexual operado ao ridículo.
A imutabilidade do nome, contudo, não deve ser interpretada em grau absoluto. O
atual Código Civil trouxe muitas mudanças relativas aos direitos da personalidade e ao
estado da pessoa, contudo, o legislador silenciou-se em relação à mudança de sexo,
admitindo, porém, a doutrina e a jurisprudência, a alterações no assento de nascimento de
alguém somente diante de comprovada inexatidão, relativamente ao sexo de pessoa, por
ocasião da declaração, nos casos de intersexualismo e por anomalias supervenientes que
desenvolvam no indivíduo características sexuais do sexo oposto ao constante no assento
de nascimento.
Ensina Miranda (1971, p.284), “que a função identificativa do nome não bastaria
para considerá-lo imutável e inalterável”. Segundo o autor, não haveria um princípio
jurídico de imutabilidade do prenome e do sobrenome. Nosso sistema jurídico é que tem
adotado, por tradição, a regra jurídica da imutabilidade do prenome.
A doutrina tem apresentado inúmeras controvérsias no tocante à possibilidade de o
transexual redesignado obter a alteração do seu estado sexual e de seu prenome junto ao
assento de seu registro civil, pendendo a maior parte dos autores pela negativa desta
possibilidade, diante da legislação vigente. Alegam que o registro público deve ser preciso
e regular, constituindo a expressão da verdade, e a operação de mudança de sexo atribui ao
interessado um sexo que não tinha, nem poderá ter, porque o fim da procriação nunca será
atingido, pois não se terá nem um homem nem uma mulher, jamais será uma mulher, na
concepção física, afinal não terá ovário, trompas, útero e os demais órgãos necessários para
a reprodução.
51

No entanto, a outra parte da doutrina admite a alteração no registro civil do


indivíduo com fundamento no caput do artigo 58 supracitado, substituindo o seu prenome
pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no ambiente em que vive. Pois, o
transexual almeja adotar o nome pelo qual é reconhecido, e fundamentam que a
personalidade da pessoa é o maior bem que possui e deve ser respeitados evitando, desta
forma, vexames para o transexual na vida em sociedade.
Assim, defendendo a possibilidade de os transexuais se submeterem à cirurgia
transformadora e admissibilidade de alteração do estado da pessoa no assento de
nascimento, encontramos Chaves (1986), o qual diante de algumas decisões de tribunais
brasileiros, que reconhecem a possibilidade de mudança de sexo, assim exalta: “...a
mudança de sexo reconhecida pela Justiça é um alento para um número infindável de
transexuais que existem no Brasil...”.
Também defendendo a licitude da intervenção cirúrgica, invoca Pereira (1991,
p.25): “o direito à liberdade de o transexual proceder à cirurgia necessária para alcançar a
modificação anatômica”. E defende, inclusive, a possibilidade de retirada de partes do seu
corpo, para alcançar o seu objetivo. Manifesta-se, ainda, o citado mestre, em sentido
positivo, pela alteração do estado sexual e do prenome do redesignado no registro,
afirmando ser a mudança cirúrgica do sexo de transexuais um caso excepcional, que
justifica esta alteração.
No tocante ao art. 56 da Lei dos Registros Públicos, permite que o interessado: “no
primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador
bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a
alteração que será publicada pela imprensa”.
Segundo Venosa (2006, p.196): “após esse prazo, qualquer alteração só poderá ser
efetuada por exceção e motivadamente e só será permitida por sentença, de acordo com o
art. 57 da Lei nº 9.708/98”.
Há ainda, a permissão por lei, da modificação do sobrenome no caso de
reconhecimento de paternidade ou maternidade (Lei n. 6.015/73, arts. 59 e 60), bem como
da aquisição do sobrenome decorrente de ato jurídico, como adoção, negatória de
paternidade, casamento ou por ato de interessado, mediante requerimento ao judiciário.
A Lei dos Registros Públicos n. 6.015 de 31 de dezembro de 1973, no art. 58,
dispunha originalmente que o prenome era imutável. A redação original do parágrafo único
do mencionado artigo admitia a mudança do prenome por evidente erro gráfico, bem como
52

na hipótese do parágrafo único do art. 55. No entanto, a Lei n. 9.708, de 18-11-98, deu
nova redação a esse dispositivo: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua
substituição por apelidos públicos notórios”. E no parágrafo único dispôs que não se
admite a adoção de apelidos proibidos em Lei.
Assim, o transexual operado teria base legal para alterar seu prenome, substituindo-
o pelo apelido público notório com que é conhecido, no meio em que vive. Não se pode,
portanto etiquetar o transexual, obrigando-o a carregar, ao assumir a nova vida, o estigma
da transexualidade.
A possibilidade de alteração do prenome por apelido público notório atende à
evolução social brasileira, abrindo importante brecha na regra que impunha a imutabilidade
do prenome, passando ser relativa. Contudo, a jurisprudência, abre exceções, cabendo ao
juiz avaliar a notoriedade do apelido mencionado na lei, ao caso concreto. Levando, ainda,
em consideração o disposto no parágrafo único do art. 55 da Lei nº 6.015/73.
Esse princípio de imutabilidade sofreu mitigação, contudo, no entender da Moraes
(2003): “as regras gerais que regem o direito ao nome civil delineiam-se, como não poderia
deixar de ser, à luz dos valores constitucionais, dentre os quais, o maior deles, a dignidade
da pessoa humana”.
A mitigação da regra da imutabilidade do prenome encontra sua justificativa
principal nesta dignidade. Assim é que, na prática, a jurisprudência tem garantido que o
direito da personalidade a real e adequada individualização da pessoa suplante a tradicional
proibição de alteração do prenome, principalmente através do alargamento da exceção da
"exposição ao ridículo", podendo-se bem entender esta expressão “expor ao ridículo seu
portador”, em sentido ainda mais amplo, como representativa do que não é condigno à
individualização da personalidade humana.
Conforme prevê a própria Lei 6.015/73, os casos de substituição do prenome, não
só o prenome poder ser ridículo, como a própria combinação de todo o nome. Um prenome
ridículo é muito mais grave, pois, é como a pessoa é costumeiramente chamada em seu
meio social. No entanto, prenome e o sobrenome, não devem provocar a galhofa da
sociedade.
Portanto, embora o princípio da inalterabilidade do nome seja ordem pública,
vejamos as exceções que se inserem numa interpretação extensiva da lei, quando: 1)
expuser o seu portador ao ridículo; 2) causar embaraços no setor eleitoral e comercial; 3)
houver mudança de sexo, mediante intervenções cirúrgicas; 4) houver apelido público
53

notório; 5) for necessária a alteração de nome completo para proteção de vítimas e


testemunhas de crimes, bem como de seu cônjuge, convivente, ascendentes, descentes e
dependentes; 6) houver erro gráfico evidente (arts. 50 e 110 da Lei. 6.015/73).
Desse modo, as alterações do prenome para o sexo biológico e psíquico
reconhecido pela medicina, harmonizam-se não só com nossa Constituição, mas também
com a Lei dos Registros Públicos, não conflitando com seu artigo 58.
Assim, os pedidos de retificações de nome devem ser plenamente justificáveis e
provados, bem como as decisões judiciais devem ser proferidas com cautela, evitando que
os tribunais contrariam o espírito da lei, permitindo a alteração do nome por mero
capricho, quando não com o sentido de burlar terceiros.
Todavia, dentre doutrinadores que admitem a alteração no registro civil do
transexual, alguns discutem se deve ou não constar ressalvas no registro civil, quanto à
antiga personalidade do registrado.
No entender de alguns para salvaguardar os direitos dos transexuais e de terceiros
(Direito Previdenciário, Direito de Família, etc.), o Registro Civil do transexual deverá
conter a aludida alteração e somente poderá ser expedida a pedido do interessado ou
mediante determinação judicial. No entanto, a retificação não deverá constar em outros
documentos, a exemplo, da Carteira de Identidade, do Cadastro de Pessoas Físicas, da
Carteira de Trabalho, dentre outros.
Assim, Nery Junior (2003, p.287), entende que: “se foi constatada a mudança de
sexo, o registro deve fazer a acomodação”. Segundo seu entendimento, os documentos têm
de ser fiéis aos fatos da vida e deve haver segurança nos registros públicos. Fazer a
ressalva é uma ofensa à dignidade humana.
Todavia, na concepção de Amorim (2003, p.63), “embora não haja legislação a
respeito do assunto, somente a jurisprudência admite essa retificação, porém, seus efeitos
serão ex nunc, ou seja, o passado não se apaga”. A utilização da identidade vigorará a
partir do trânsito em julgado da decisão judicial.
Uma solução apontada pelo Presidente da Associação Brasileira dos Advogados
Criminalistas, Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso, pela segurança dos registros, que mesmo
que retificado o nome o original ainda constaria o antigo para efeito de registro.
A solução torna-se inviável, pois contraria o princípio da igualdade fazendo com
que o indivíduo transexual fosse reconhecido, pois sua identificação seria diferente,
levando, desta forma, ao vexame.
54

Desta forma, apesar das contradições existentes na doutrina, ante a questão da


permissão ou não da retificação do registro civil do transexual, o juiz deve atentar para a
aplicação das melhores soluções aos casos concretos, evitando-se a marginalização do ser
humano, com a aplicação da lei.

CAPÍTULO IV - O TRANSEXUALISMO E A JURISPRUDÊNCIA

4.1 O Transexualismo e a Legislação Brasileira

Questões das mais discutidas e em voga no direito privado são aquelas que
envolvem a possibilidade de mudança de registro do nome do transexual.
55

Portanto, conforme já conceituado, o transexual não se confundo com: o


homossexualismo (atração por pessoa do mesmo sexo); o bissexualismo (atração por
pessoa do mesmo sexo e do sexo oposto, comomitantemente); o travesti (satisfaz em usar
roupagem do sexo feminino, aceita seu órgão genital); e o intersexual ou hermafrodita
(possui sexo dúbio). Trata-se de uma situação diferenciada, que merece tratamento
diferenciado, consagração da especialidade, de acordo com a segunda parte do princípio
constitucional da isonomia, ou seja, a lei deve tratar de maneira desigual os desiguais.
Como bem menciona Mello (2001, p. 10): “A Lei não deve ser fonte de privilégio
ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar
equitativamente todos os cidadãos”.
Inicialmente, discute-se a possibilidade do transexual submeter-se a uma
intervenção cirúrgica, em decorrência dos choques psicológicos que o acometem. Em
decorrência disso, surge à discussão sobre a possibilidade da alteração da identidade civil
pelo Poder Judiciário.
No entanto, não existe no Brasil uma legislação segura regularizando sobre a
realização de cirurgia da transgenilização pelo transexual e alteração do prenome e sexo,
mediante autorização judicial. O Conselho Federal de Medicina tenta minimizar o
problema, conforme já visto.
Temos no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 70-B, elaborado pelo Deputado
Federal José Coimbra, que visa regulamentar a situação dos transexuais, sobretudo
positivar a possibilidade da mudança do prenome e do sexo nos registros públicos. Esse
projeto, limita-se a incluir um novo parágrafo ao art. 129 do Código Penal (Decreto –lei nº
2.848 de 07 de dezembro de 1940) e atribuir nova redação ao art. 58 da Lei nº 6.015 de 31
de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos).
A inclusão do parágrafo 9º ao art. 129 do Código Penal visa possibilitar a
realização da cirurgia de trangenilização, deixando assim de ser considerada lesão
corporal. Em contra partida o médico que venha a operar um transexual no Brasil, deve
evidenciar todo procedimento necessário para tal, para que tal ato não incida no crime de
lesão corporal, mesmo a Resolução n.º 1.652 de 06 de novembro de 2002 permitindo tal
cirurgia, o tema é polêmico e poderia, eventualmente, ensejar uma noticia criminis e
posterior processo judicial.
Com a alteração da lei penal passa a conduta do médico ser lícita e jurídica. A nova
redação atribuída pelo projeto ao art. 58 da Lei de Registros Públicos, traz três parágrafos:
56

o primeiro é reprodução do primitivo parágrafo único, sem modificação de conteúdo; o


segundo trata da possibilidade de alteração do prenome quando a pessoa houver se
submetido à cirurgia de alteração de sexo e mediante autorização judicial; e o terceiro, trata
da alteração do documento de identidade e do registro de nascimento, devendo ser
averbado nestes documentos por tratar-se de pessoa transexual.
A CCJR (Comissão de Constituição e Justiça e de Redação) da Câmara, também
apresentou uma emenda aditiva, acrescentando mais um parágrafo, com a seguinte redação
"§ 4º: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante
determinação judicial". É uma forma de proteger a intimidade do transexual. E um
procedimento já adotado nos casos de adoção plena.
Esse projeto de Lei, se aprovado, será a primeira lei brasileira a tratar do assunto.
Entretanto, este projeto tem sido alvo de algumas críticas, em virtude da ausência, no seu
texto, de pontos primordiais para a análise da questão.
Ao se reportar ao tema, Peres (2001), teceu algumas considerações, no sentindo de
que o referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para
a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado
civil do transexual para que possa se submeter à operação e deixou de estabelecer as
garantias para que ele exerça os direitos decorrentes de seu novo estado sexual.
Conseqüentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim,
também deixou de fixar os respectivos deveres.
O que se devem evidenciar, ao volver os olhos para esta questão, é que realmente o
referido projeto já nasceu precisando de reformas. Uma vez que o mesmo ainda não foi
aprovado, ainda há tempo para ser retificado. Os comentários acima transcritos são
realmente condizentes à nova vida societária. Além disso, fazer com que essas garantias
sejam implantadas vai beneficiar ainda mais esta parcela da população que é sempre alvo
de tantos preconceitos. Tendo seus direitos resguardados, poderão, assim, reclamar dos
mesmos quando houver transgressão. Assim sendo, essas lacunas que ainda imperam
precisam ser desmoronadas, em nome da justiça.
Sem dúvidas que as lacunas devem ser preenchidas não só tendo como parâmetro o
novo Código Civil Brasileiro e com a Lei de Registros Civis, mas com vistas à
Constituição Federal de 1988.
57

Nesse sentido, merecem aplicação os princípios do Direito Civil Constitucional: a


valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), e da isonomia (art. 5º,
"caput", da CF/88).

4.2 O Transexualismo e o Entendimento dos Tribunais Internacionais

Justifica-se a analise do tema no direito comparado por força do disposto no art. 17


da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que preceitua:"As leis, atos e sentenças de
outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil,
quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes."
A contrário senso, se as leis, atos, sentenças e quaisquer declarações de vontade de
outros países não atentem contra a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes
poderão ser aceitos no Brasil.
A idéia de globalização no mundo moderno não é mais uma aspiração. A tendência
que se observa no mundo é a de alterar-se o registro adequando-se o sexo jurídico ao sexo
aparente.
O deferimento do novo registro, no entanto, em linhas gerais, tem sido permitido
em países europeus. Na Inglaterra, por exemplo, o procedimento se faz de forma
administrativa, desde que o interessado declare, sob penas de lei, que houve equívoco em
seu assentamento inicial. A recusa de tal declaração impede que o transexual tenha seu
registro averbado, de forma que permanecerá com seu sexo original.
A Suécia a muito legislou sobre o tema, em 21 de abril de 1972, promulgou lei que
permite a retificação do registro do transexual, desde que solteiro, com mais de dezoito
anos e estéril. Essa lei sueca não só a proíbe a divulgação de qualquer menção sobre o
processo de alteração de sexo como determina punição de qualquer funcionário que, tendo
notícia do fato por dever de ofício, divulgue informações do tema.
Na Alemanha lei promulgada em 10 de setembro de 1980, acolhendo a
jurisprudência daquele país promulga lei que dispõe sobre o transexualismo da
modificação do prenome e sexo no assento de nascimento. Também na Itália, sob a
influência da jurisprudência e doutrina, em 14 de abril de 1982, foi promulgada a Lei 164,
permitindo a retificação do sexo e alteração do prenome no registro de nascimento dos
transexuais.
58

Nos EUA, a cirurgia e alteração do nome são amplamente praticadas sob a forma
de autorização judicial e não há restrições quanto ao casamento posterior. Em alguns
Estados americanos, o sexo originário do transexual operado é omitido para efeitos de
identificação pessoal, salvaguardando-o de eventuais discriminações sociais. Há,
entretanto, severidade quanto à verificação de fraude, caso o casado omita sua condição de
transexual redesignado, podendo haver a anulação do casamento ou a decretação do
divórcio.27
Hoje, Alemanha, Itália, Portugal, Suécia, Bélgica e França já seguem a orientação
da legalidade das operações e da alteração dos registros civis.28
Na França, as decisões autorizam a mudança de registro civil do transexual. Num
primeiro momento, o Poder Judiciário francês tratou apenas de reconhecer o direito de
alteração de registro civil, caso não houvesse participação voluntária do requerente em sua
nova situação. Desse ponto de vista, passou-se a entender o sofrimento do transexual e, por
conseqüência a deferir o pedido de alteração do registro civil do transexual operado.
A jurisprudência francesa tem, portanto, deferido o pedido de retificação do
assentamento do registro civil de maneira pouco uniforme, sob o fundamento de que
haveria um sofrimento muito grande do transexual.

4.3 O Transexualismo e o Entendimento dos Tribunais Brasileiros

A doutrina brasileira, consoante pudemos observar, mostra-se extremamente


vacilante em relação à correspondente modificação do estado sexual e do prenome dos
transexuais após a realização da cirurgia redesignação de sexo, em seu assento de
nascimento. Mais controvertido e vacilante do que a doutrina mostra-se a jurisprudência
brasileira, que, até há pouco tempo, negava, peremptoriamente, a possibilidade de o
transexual submeter-se não só “à terapia cirúrgica criminosa”, mas, principalmente, era-lhe
vedada a alteração do status sexual e do prenome no registro civil.
Atualmente, parte da jurisprudência evolui, reconhecendo a situação peculiar do
transexual, entendendo que este merece tratamento especial. Alguns juízos monocráticos, e
também, os tribunais, vêm admitindo, nestes últimos anos, modificações atinentes ao
próprio estado de pessoa, em comprovados casos de intersexualismo, estendendo a mesma

27
Raul CHOERI. Transexualismo e identidade: cirurgia de transgenitalização. 2001, p. 254 a 255.
28
Raul CHOERI, em “Transexualismo e identidade...” op. cit., p. 255.
59

proteção aos transexuais verdadeiros. Citaremos como exemplo, a ementa de recente


decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo29:

Retificação do Registro de Nascimento em Relação ao Sexo. Tendo a pessoa


portadora de transexualismo se submetido à operação para transmutação de suas
características sexual, de todo procedente o pedido de retificação do assento de
nascimento para adequá-lo à realidade.

Uma decisão judicial de grande repercussão foi a que, pioneiramente, concedeu


autorização ao líder do Movimento de Transexuais de Campinas a se submeter à cirurgia,
com base na Resolução 1.492/97, do Conselho Federal de Medicina. O paciente conhecido
como Bianca Magro, manifestou ainda o seu intuito de pleitear a retificação da identidade
civil.
Outro caso que constituiu um importante precedente “Luís Roberto Gambine
Moreira”, a conhecida transexual Roberta Close, após muitos pleitos infrutíferos, obteve
decisão favorável à mudança do nome e de sexo no registro civil. A esse respeito, veja-se
notícia colhida na internet, no site da Universidade 30, em que a advogada da transexual
leciona:
A ex-modelo lutava por isso há anos. Um primeiro pedido foi negado em 1991.
(...) O Direito deve reconhecer a evolução da ciência médica, mudando também
as normas, já que o objetivo a existência do Direito é o homem. Roberta provou
com recentes exames periciais que é mulher.

Destaca a professora Tereza e advogada da requerente, que se respaldou, para a


defesa, no artigo 1º, inciso III da Constituição, que estabelece como premissa da República
Federativa do Brasil o respeito ao indivíduo, e acrescentou:

(...) Roberta foi examinada por dez profissionais especialistas: três


endocrinologistas, um psiquiatra, dois geneticistas, um cirurgião plástico, um
neuropsiquiatra, um médico-legista e uma psicóloga, todos pertencentes aos mais
renomados órgãos de saúde de São Paulo e do Rio de Janeiro. (...) O
representante do Ministério Público declarou que: “se faz necessário eliminar as
situações de constrangimento, com intensa dor moral, porque passa a requerente,
ao ter que exibir no meio social identidade que não é a sua realidade.

A juíza Leise Rodrigues Espírito Santo esclareceu, em sua decisão, que:

Esta ação é diversa daquela promovida em 1991, por possuir nova causa de pedir
e se fundamentar em diagnósticos resultantes de recentes descobertas médicas.

29
TJSP – Ap. 128.972-5 – 3ª Câm. Cível – j. 03.09.2003 – rel. Des. Vianna Cotrim - RT 637/170.
30
internet, no site.
60

(...) em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta inequívoco


que a parte requerente não possui tão somente perfil psicológico feminino, mas
também possui caracteres biológicos próprios de uma mulher, sendo, portanto,
indiscutível seu direito de pleitear a alteração de nome civil e sexo, por ser
inaceitável que suporte os danos causados pelas complicadas transformações e
diferenciações ocorridas em seu corpo no momento da gestação.

Na ação promovida por Roberta Close, em 1991, inicialmente o pedido foi acolhido
em primeira instância, mas reformado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que
decidiu pela impossibilidade de alteração da certidão de nascimento no que tange ao nome
e ao sexo por tratar-se de ‘operação plástica’, prevalecendo o sexo biológico em relação ao
psíquico, sob o argumento de ser, a cirurgia, mutilatória, e que, assim, não teria o condão
de transformar o sexo, uma vez que não seria essa uma questão de escolha. Segundo esse
julgado, o sexo biológico, determinado no nascimento, prevalece em relação ao psíquico.
Para se ter uma idéia da gravidade dos desdobramentos das questões aqui
suscitadas, é relevante trazer à análise um caso exposto por Tepedino (2004):
Após dez anos de vida conjugal na Dinamarca, com um marido francês e um filho
adotado segundo a legislação francesa, um brasileiro transexual, chamado Juracy, veio ao
interior da Bahia visitar a família. Decidiu, então, com o marido, adotar uma criança
abandonada, José, com seis anos de idade, ‘à moda brasileira’, ou seja, registrando-a como
filha do casal. Juracy foi presa pela Polícia Federal no momento em que pretendia obter o
passaporte para José, tendo-lhe sido imputada a prática dos crimes de uso de documento
falso (art. 304, CP), promoção de ato destinado ao envio de criança para o exterior (art. 239
da Lei nº 8.069/90) e falsidade ideológica (art.299, CP), além de ter sido questionada pelo
Ministério Público a adoção de uma criança por um casal de homossexuais.
A partir daí, a vida da família transformou-se em um verdadeiro pesadelo, no qual
se produziram danos irreparáveis. Juracy foi recolhida ao pavilhão masculino do
aterrorizante presídio de Água Santa, no Rio de Janeiro, onde foi submetida, certamente a
mais vil degradação. Seus filhos, o maior deles um adolescente estudioso, responsável e
poliglota, segundo consta nos autos, foram recolhidos a um asilo de menores. O pai,
também denunciado, foi posto em liberdade mediante o pagamento de fiança, afirmando
em juízo desconhecer inteiramente, assim como o filho adolescente, a transexualidade de
Juracy. Ambos os réus foram absolvidos no processo criminal, tendo a 1ª Turma do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria de votos, mantido a sentença,
rejeitando o recurso interposto pelo Ministério Público. A referida decisão foi proferida na
61

Apelação Criminal nº 92.18299-0/RJ, julgada em 08 de março de 1993, tendo por relatora


a Des. Tânia Heine, com a seguinte ementa:

Criminal – Uso de Documento Falso – art. 304 do CP. I – Utilização de certidão


de nascimento falsa para obtenção de passaporte para o menor. II – Constatação
de que a mãe do menor, constante do registro, era transexual operado e que se
casara no exterior com um francês, utilizando falsa certidão de nascimento. III –
A omissão da legislação brasileira quanto aos transexuais que se submeteram a
cirurgia para troca de sexo, impossibilitando-os de legalmente alterarem a
certidão de nascimento, gera situações como a dos autos, por inexigibilidade de
outra conduta. IV – Se a jurisprudência tem entendido que inexiste o delito se a
falsa identidade visa a esconder passado criminoso, também se aplica à hipótese
de esconder o sexo original. V – O artigo 304 do CPB exige, além do dolo, a
intenção de obter vantagem ou causar prejuízo, o que incorre no presente caso.
VI – Recurso improvido.
Há, também, decisões contra a concessão da altera, que se baseiam no art. 348 do
Código Civil, pelo qual não se pode requerer estado contrário àquele contido no registro e
nascimento, salvo por prova de erro ou falsidade do registro. Aqui, cabe colacionar
jurisprudência citada por Spengler31, ao tratar sobre o tema:

REGISTRO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO.


NOME E SEXO. TRANSEXUALISMO. SENTENÇA INDEFERITÓRIA DO
PEDIDO. Embora para mudança de suas características sexuais, com a
extirpação dos órgãos genitais masculinos, biológicos e somaticamente continua
sendo do sexo masculino. Inviabilidade da alteração, em face de inexistência de
qualquer erro ou falsidade no registro e porque não se pode cogitar dessa
retificação para solucionar eventual conflito psíquico com o somático. Apelação
não-provida. Voto vencido.

Observa-se, assim, que o entendimento de alguns dos juízes é no sentido de acolher


o pedido de alteração do nome e do estado sexual daqueles que submeteram à cirurgia,
enquanto que nos tribunais superiores tem-se negado tais possibilidades nos casos de
transexuais operados fora do país.
Por oportuno, interessante apontar que mesmo a jurisprudência paulista, por vezes
apontada como "conservadora" de forma injustificada, já tem deferido a mudança de sexo,
bem como a alteração do registro civil do transexual.

REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual -


Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a
mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar -
Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a
manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento -
Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo
31
RJTJRS, Abril de 1998, Ano XXXIII, n.º 187, pág. 274-282. Apelação Cível n.º 597134964 - 3.ª Câmara
Cível - São José do Norte.
62

morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do


prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental -
Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a
integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos
previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do
Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher
integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de
nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao
sexo.32

A decisão demonstra a ciência do relator do acórdão em relação ao preceito


máximo da proteção da dignidade da pessoa humana, bem como a evolução da
jurisprudência na aplicação do Direito Civil Constitucional.
Como não poderia ser diferente, há decisão semelhante também no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, tido como pioneiro em relação a diversas questões jurídicas:

REGISTRO CIVIL. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade.


Apelido público e notório. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal
orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido
por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome
registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, o
nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de
levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo. Ademais , tratando-se de
um apelido público e notório justificada esta a alteração. Inteligência dos arts.56
e 58 da Lei n. 6.015/73 e da Lei n. 9.708/98.33

Na realidade, a última decisão percorre caminho um pouco diferente, mencionando


a possibilidade de alteração do nome, substituindo-o por apelido notório, pelo que consta
na Lei de Registros Públicos (arts. 56 e 58), aplicando-se a teoria da aparência e a
relevância que a pessoa assume no meio social.
Aliás, quando o art. 1º do novo Código Civil, prevê que toda a pessoa é capaz de
direitos e deveres na ordem civil, está denotando esse caráter, inserindo o conceito de
pessoa como ser integrado ao meio, à ordem civil que o circunda.
Entende-se que o fundamento de proteção da dignidade da pessoa humana é o mais
correto e pertinente. Na realidade, o segundo acórdão também a esse princípio faz
referência implícita, ao mencionar a situação de ridículo a que muitas vezes o transexual é
submetido. Na maioria das vezes, surge evidente impacto no interlocutor do transexual,
que tem acesso visual à pessoa, ao confrontá-lo com a sua identificação civil.
32
Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de
Direito privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V. U.
33
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00394904NRO-PROC70000585836, DATA: 31/05/2000,
Sétima Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, ORIGEM ESTEIO.
63

Essa situação ocorre no comércio, em hotéis e até mesmo quando o transexual vai
procurar um emprego, fazendo com que o mesmo esteja à margem da sociedade, gerando
lesão ao seu bem maior que é a sua dignidade. Aliás, de nada adianta ter um QI acima da
média34, se emprego ou atividade profissional o transexual tem dificuldade de
desempenhar.
Tudo isso justifica as razões pela qual a corrente positiva entende que deve ocorrer
a alteração do registro do nome. Como conseqüência, deve nele constar como sexo o
feminino e não a qualificação de "transexual" ou "transgênero" como entendem alguns
doutrinadores. Essas denominações, não enquadrada em sexo masculino ou feminino,
podem ser tidas até como mais discriminatória do que a manutenção do nome anterior.
Exemplificando, eis a questão: em um restaurante ou local público, qual o toilet que
deve ser utilizado pelo transexual operado? Logicamente o feminino, já que ele se
identifica com pessoa desse sexo em sua plenitude. Se assim o é na prática, também deve
ser na teoria, pois, a aplicação do direito deve ser adaptada ao meio social, melhor
concepção do princípio da socialidade (art. 3º, I da CF/88), um dos baluartes da nova
codificação privada, como aponta o próprio Reale (1996).
O argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo
transexual operado não pode prosperar. Isso porque é comum que o próprio transexual
revele ao pretenso parceiro a sua situação. Primeiro, porque a patologia lhe traz choques
psíquicos graves. Segundo, temendo represálias ou manifestações agressivas futuras.
Nesse contexto, em situações tais, deve o transexual estar movido pela boa-fé, sob
pena até de sua conduta ser enquadrada dentro do conceito de abuso de direito, previsto no
art. 187 do novo Código Civil, a ensejar a sua responsabilização civil.
Cumpre lembrar que esse entendimento visa à inserção social do transexual, que
sofre rejeição da própria família, tendo em vista a tríade "dignidade-solidariedade-
igualdade". Vale apontar também, que o direito à opção sexual constitui um direito da
personalidade, inerente à liberdade da pessoa e à sua dignidade.
No entanto, as divergências de jurisprudências sobre a alteração do prenome e sexo
do transexual, existem não só entre tribunais pátrios, mas também dentro do mesmo
tribunal, é de suma importância mencionar algumas dessas divergências.

34
Em testes aplicados em transexuais apurou-se que possuem, em regra, um quociente intelectual (QI) entre
106 e 118, isto é, um pouco superior à média.
64

4.3.1 Jurisprudências Pátrias – Posições divergentes

Registro civil. Pedido de alteração do nome e do sexo formulado por


TRANSEXUAL primário operado. Desatendimento pela sentença de primeiro
grau ante a ausência de erro no assento de nascimento. Nome masculino que, em
face da condição atual do autor, o expõe a ridículo, viabilizando a modificação
para aquele pelo qual é conhecido (Lei 6.015/73, art. 55, par. único, c.c. art.
109). Alteração do sexo que encontra apoio no art. 5o, X, da Constituição da
República. Recurso provido para se acolher a pretensão. É função da jurisdição
encontrar soluções satisfatórias para o usuário, desde que não prejudiquem o
grupo em que vive, assegurando a fruição dos direitos básicos do cidadão"
(Quinta Câmara da Seção de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo. Apelação Cível nº 165.157.4/5. Apelante: Adão Lucimar. Apelado:
Ministério Público - Data do julgamento: 22/03/2001. Votação unânime):

Registro Civil – Assento de nascimento – Retificação para mudança de sexo e


nome – Admissibilidade apenas nos casos de intersexualidade – Despojamento
cirúrgico do equipamento sexual e reprodutivo e sexo psicologicamente diverso
das conformações e características somáticas ostentadas que, configurando
transexualismo, não permitem a alteração jurídica. (TJSP, Ap. 148.078, relator:
Flávio Pinheiro, julgado em 06/08/1991).

Registro Civil. Pedido de retificação do prenome e do sexo constantes do


assentamento de nascimento do postulante na serventia de Registro Civil das
Pessoas Naturais. Pessoa que, inobstante nascida como do sexo masculino, desde
a infância manifesta comportamento sócio-afetivo-psicológico próprio do
genótipo feminino, apresentando-se como tal, e assim aceito pelos seus
familiares e integrantes de seu círculo social, sendo, ademais, tecnicamente
caracterizada como transexual, submetendo-se a exitosa cirurgia de transmutação
da sua identidade sexual originária, passando a ostentar as caracterizadoras de
pessoa do sexo feminino. Registrando que não é conhecido pelo seu prenome
constante do assentamento em apreço, mas pelo que pretende substitua aquele.
Conveniência e necessidade de se ajustar a situação defluente das anotações
registrais com a realidade constatada, de modo a reajustar a identidade física e
social da pessoa com a que resulta de aludido assentamento. Parcial provimento
do recurso, para determinar que sejam promovidas as alterações pretendidas no
aludido assentamento. (TJEJR, Ap. 2005.001.17926, relator: Nascimento Povoas
Vaz, julgado em 22/11/2005).

Como se pode verificar através do site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, esse
ainda permanece bastante conservador em ralação à matéria, há três ementas disponíveis,
apesar de recentes, ou seja, do ano de 2003, 2005 e 2006, todas com posições negativas,
vejamos uma delas:

Civil. Estado individual. Imutabilidade. Cirurgia de transgenitalização.


Autorização judicial. Pedido. Impossibilidade jurídica. O art. 13, ""caput"", do
Código Civil (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002) veda o ato de disposição
do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física
ou contrariar os bons costumes, salvo por exigência médica. A exigência médica
a que se refere o dispositivo do Código Civil deve ser entendida como a
necessidade imperiosa de transformação ou de remoção de órgão do corpo,
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cientificamente provada, em decorrência de patologia grave e curável,


exclusivamente, por meio daqueles procedimentos interventivos extremos. O
sexo, como estado individual da pessoa, é informado pelo gênero biológico. O
sexo, do qual derivam direitos e obrigações, procede do Direito e não pode variar
de sua origem natural sem legislação própria que a acautele e discipline. Nega-se
provimento ao recurso. (TMG, Ap. 1.0672.04.150614-4/001(1), relator: Almeida
Melo, de 12/05/2005)

Porém, o Tribunal do Rio Grande do Sul, de forma pioneira e diversamente do que


acontece em outros respeitáveis tribunais pátrios, tem albergado as postulações dos que,
submetidos à cirurgia de transgenitalização, buscam a correspondência de uma nova
identidade civil, afastando a possibilidade de inúmeros problemas derivados da veracidade
do conteúdo do registro feito quando do nascimento.
A posição majoritária da jurisprudência gaúcha tem sido a de compreender estas
novas realidades sociais, permitindo que seus titulares obtenham a sua redesignação
sexual, pois o registro público, além do efeito constitutivo, tem outros comprobatórios e
publicitários, sendo preciso afastar-se de uma vocação estritamente legalista ou de
conselho religioso, para enfrentar os desafios do tempo moderno, neste sentido:

Registro Civil. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade.


Apelido Público e Notório. O fato de o recorrente ser transexual e
exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como
mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino,
justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo
masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro esta em
descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a
vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e
notório justificada esta a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n.
6015/73 e da Lei N. 9708/98. Recurso Provido. (11 FLS.) (Apelação
Cível Nº 70000585836, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em
31/05/2000)
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CONCLUSÃO

A questão do transexualismo é bastante polêmica e tem relevo para diversas áreas


do conhecimento.
A mudança de nome do transexual é uma forma de satisfazer as necessidades
pessoais do indivíduo que se submeteu à cirurgia de transgenitalização, pondo fim a
conflitos pessoais e corroborando para o bem estar psíquico do transexual. Com a mudança
do nome e do sexo no registro civil, o transexual deixa de passar por situações humilhantes
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e vexatórias, além de ver atendido o seu direito à identidade, à honra, à integridade


psíquica e à vida privada.
É preciso, assim, haver uma releitura dos institutos jurídicos até então existentes,
para que haja uma retificação, na forma de complemento diante das novas realidades que
se descortinam aos nossos olhos. É preciso mudar. Já afinal de contas, é a justiça, que lança
olhos para o futuro, evidenciando um equilíbrio cada vez maior na balança do
conhecimento.
Lamentavelmente nossas leis, costumes, tradições não têm um mínimo de
compreensão, tolerância e consideração para aqueles que a natureza ou a vida criou uma
situação esdrúxula, paradoxal, dissonante quanto à perfeição de sua sexualidade, o
condenado inexoravelmente a uma vida miserável dentro do mais aviltante dos
ostracismos.
Neste momento encontram-se nos transexuais, infelizes seres humanos que têm de
lutar contra tudo e contra todos, desafiando tradições ortodoxas, tabus milenares, leis mais
agidas, para conseguir o mínimo de respeito, dignidade para alcançarem a felicidade que é
tudo o que eles almejam e que nossa sociedade lhes nega que é o direito a um nome
compatível com sua atual situação sexual após a cirurgia.
De nada adianta a cirurgia para readequação do sexo para que esses seres humanos
possam viver com dignidade e satisfação, se, quando estão satisfeitos com seu corpo e
prontos para viverem com dignidade, deparam com uma sociedade preconceituosa, com
uma legislação aquém da realidade atual.
As feridas, anteriormente trabalhadas e cicatrizadas por uma equipe
multidisciplinar, ao qual se dedicaram dois anos para que esse ser humano pudesse ter uma
vida digna, voltam a se abrir, pois, da felicidade de uma cirurgia bem sucedida, deparam
com uma sociedade que vem de encontro a sua nova realidade.
É preciso, antes de tudo, despir-se de todos os possíveis preconceitos que possam
ter relação com a matéria. Afinal, tal qual mineradores nas entranhas, no coração do solo,
buscaremos encontrar e burilar tamanha preciosidade para o atual ordenamento jurídico.
Urge deixar claro que é com a mudança que se chega ao progresso. A aceitação da
possibilidade da mudança do nome nos cartórios de registro civis brada em favor daqueles
que serão os beneficiários, os transexuais.
O deferimento da alteração no registro civil, no entanto, em linhas gerais, tem sido
permitido em países europeus. Na Inglaterra, por exemplo, o procedimento se faz de forma
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administrativa, desde que o interessado declare, sob penas de lei, que houve equívoco em
seu assentamento inicial. A recusa de tal declaração impede que o transexual tenha seu
registro averbado, de forma que permanecerá com seu sexo original.
Na França, as decisões autorizam a mudança de registro civil do transexual. A
jurisprudência francesa tem, portanto, deferido o pedido de retificação do assentamento do
registro civil, de maneira pouco uniforme, sob o fundamento de que haveria um sofrimento
muito grande do transexual.
O legislador nacional poderia servir-se da experiência de outros países que trataram
o tema, como, por exemplo, a lei italiana nº 164, sobre retificação de sexo, de 14 de abril
de 1982, que estabelece em seu artigo 5º, que as sentenças de retificação de sexo do
transexual devem conter apenas a indicação de seu novo sexo e seu nome. A idéia é
cancelar o passado do transexual.
O transexual que se submeteu à cirurgia tem direito ao esquecimento de sua
situação, como forma de dignidade humana. Não é obrigado a carregar por toda a vida a
situação de dualidade já tão minorada pela cirurgia.
Portanto, o transexual tem o direito, integrar-se socialmente, sem qualquer
referência ao seu estado anterior, ou o seu estado de transexualidade. A nova vida do
transexual deve ser aceita para sua integração social. Seu passado deve ser esquecido,
como forma de abandono de sua dualidade. A partir da cirurgia e da retificação do registro
civil, o transexual tem direito ao esquecimento de sua situação anterior, o que ocorre com a
impossibilidade de menção a seu estado anterior ou mesmo a “transexual”. A omissão dos
dados anteriores é a única maneira de preservar a dignidade da pessoa humana, como
princípio constitucional a ser seguido.
É inconcebível que o Estado tenha interesse em preservar a situação de angústia do
transexual. Não se trata de não incentivar a felicidade do indivíduo, mas de impedi-la. Ao
determinar o registro como “transexual” em seus assentamentos civis, impedir seu
casamento, o estado não deixa de incentivar a felicidade dos indivíduos, ao contrário, age
de forma a impedir a felicidade, o que é um descumprimento mais grave do seu objetivo
fundamental, fixado no artigo 3º, IV, da Constituição federal. Omitir-se, deixando de
propiciar a felicidade, seria grave. Agir, por meio do Poder Judiciário, impedindo a
integração social é mais grave.
O tema empolgante e essencial deve ser tratado e solucionado. O operador do
direito não pode emperrar o sistema, pelo simples fato de não concordar ou discriminar o
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transexual ou qualquer outro que não se adeqüe aos padrões projetados. Existindo o fato
deve-se dar uma solução justa e digna, pautada nos princípios básicos da sociedade
mundial, liberdade, solidariedade, dignidade, justiça e cidadania.
Hoje, ainda a sociedade exclui pessoas do seu convívio. Pessoas que não
correspondem o traçado pela sociedade não fazem parte, são os excluídos.
É preciso que os magistrados, ao aplicarem o direito, diante das lacunas,
sobrelevem os princípios gerais do direito de forma imparcial, visando proteger o
transexual, na medida em que o mesmo é um cidadão merecedor de respeito como
qualquer outro.
Logo, o presente trabalho tentou demonstrar o problema do transexual, pois desta
forma acredita-se que a solução virá mais rápida. O desconhecimento faz com que
prevaleça o preconceito e a adesão às regras preestabelecidas.
Concluí-se que há necessidade de reforma nas leis, que por mais que nossos
legisladores tentem adequar leis para suprir as exigências de uma sociedade globalizada
que se transformam radicalmente dia a dia, essas entram em vigor já totalmente defasadas.
Ainda no presente estudo deparou-se com preconceitos de alguns tribunais, que, muitas
vezes possuem um conhecimento científico aquém da realidade apresentada dia a dia.
Logo, o que se tem de concreto para amparar os direitos desses seres humanos é
meramente doutrinário, princípios constitucionais e vagamente encontrados em leis que
precisam de lapidação para fazer valer o direito à tutela jurisdicional para esses indivíduos.
Não pode o judiciário ficar insensível a esse aspecto da realidade social, de modo a
deixar indefinida uma situação que reclama solução.
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