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DAS PESSOAS FÍSICAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE

A PERSONALIDADE E A CAPACIDADE NO NOVO CÓDIGO CIVIL

Gustavo Pereira Leite Ribeiro∗

SUMÁRIO: 1. Introdução: o conceito jurídico de pessoa – 2. Personalidade – 2.1.


Aquisição de personalidade e o problema da situação jurídica do nascituro – 2.2.
Extinção da personalidade – 2.2.1. Morte real – 2.2.2. Morte presumida – 2.2.3.
Comoriência – 3. Capacidade – 3.1. Regime jurídico das incapacidades de fato –
3.1.1. Absolutamente incapazes – 3.1.2. Relativamente incapazes – 3.1.3.
Interdição – 3.2. Capacidade de fato plena – 3.2.1 Emancipação – 4. Referências
bibliográficas.

ABREVIATURAS: CC – Código Civil (Lei 10.406/2002). CP – Código Penal


(Decreto-lei 2.848/40). CPC – Código de Processo Civil (Lei 5.869/1973). ECA –
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 6.069/1990).

1. INTRODUÇÃO: O CONCEITO JURÍDICO DE PESSOA

Etimologicamente, a palavra pessoa deriva do substantivo latino persona,


originalmente utilizado para designar a máscara que os atores usavam em suas apresentações
teatrais, com a finalidade de tornar a sua voz mais vibrante e sonora. Em sua evolução semântica, o
termo passou a denominar o personagem representado e, a seguir, estendeu o seu sentido para
indicar, vulgarmente, o ser humano.1


Doutorando e Mestre em Direito Privado pela PUC/Minas. Professor de Direito Civil no Centro Universitário UNA e no Centro
Universitário NEWTON PAIVA. Bolsista da CAPES.
1
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 21.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.281.
Contudo, o termo pessoa pode assumir diversos significados, em função do contexto no
qual é utilizado ou estudado. Na acepção jurídica, designa o ente a quem se atribui direitos e
obrigações.2 É o sujeito de direito.3 É o centro para imputação de direitos e deveres.4 É o
destinatário de normas jurídicas.5 Em síntese, considera-se pessoa a entidade investida de
personalidade jurídica.

A ordem jurídica conhece duas espécies de pessoas. As pessoas naturais, também


conhecidas como pessoas físicas, são aqueles entes constituídos por uma estrutura psicofísica. São
os seres humanos. As pessoas jurídicas, também denominadas coletivas, são aqueles entes formados
por um conjunto de pessoas ou por um acervo patrimonial, constituídos na forma da lei para o
atendimento de uma finalidade específica. São as associações, sociedades e fundações.

Vale registrar que o ordenamento jurídico disciplina as espécies de pessoas de maneira


diversa, levando em conta as suas peculiaridades. Orlando Gomes adverte que “não se lhes aplicam
as mesmas regras quanto ao começo e fim da personalidade, nem quanto à capacidade, pelo que não
podem ser tratadas indistintamente”.6 Neste capítulo, estudaremos as normas jurídicas aplicáveis às
pessoas naturais.

2. PERSONALIDADE

Tradicionalmente, a personalidade é definida como a aptidão para titularidade de


posições jurídicas. É uma qualidade que torna possível aos seus detentores figurar em relações
jurídicas, como titulares de direitos e obrigações. Ela não é propriamente um direito, mas o
pressuposto que permite ao indivíduo ingressar e transitar no mundo jurídico. Em síntese, podemos
afirmar que direitos e deveres são apenas atribuídos aos agentes que possuem personalidade. Basta
que o ordenamento jurídico confira um único direito ao indivíduo para que possamos considerá-lo
portador de personalidade jurídica.

Interessante destacar que a personalidade jurídica não é natural ao ser humano. Tanto
não é natural que já existiram seres humanos que não eram reputadas pessoas, como os escravos,
considerados coisas e possuindo valor essencialmente patrimonial. Além disso, a personalidade
também pode ser atribuída a determinados entes que não correspondem aos seres humanos, como as

2
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, p.166.
3
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.229.
4
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.35.
5
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, 2004, v.1, t.3, p.16
6
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.142.

2
associações, as sociedades e as fundações. Portanto, a personalidade é um atributo extrínseco aos
entes que a possuem.

Trata-se ainda de um atributo jurídico. Cabe ao ordenamento jurídico fixar os seus


destinatários e os seus contornos. A propósito, adverte Clóvis Beviláqua: “na personalidade,
intervém um elemento, a ordem jurídica, do qual ela depende essencialmente, do qual recebe a
existência, a forma, a extensão e a força ativa”.7

2.1. AQUISIÇÃO DE PERSONALIDADE E O PROBLEMA DA SITUAÇÃO JURÍDICA


DO NASCITURO

Atualmente, não mais existindo a escravidão, todos os seres humanos são considerados
sujeitos de direito. Importante então fixar o momento a partir do qual o ser humano reúne as
condições necessárias para receber do ordenamento jurídico o atributo da personalidade. Duas
importantes teorias se difundiram na tentativa de equacionar o problema: a primeira, natalista,
postula que a personalidade civil deve começar a partir do nascimento com vida, enquanto a
segunda, concepcionista, defende que a personalidade civil deve ter seu início na concepção do ser
humano, ainda dentro do ventre materno.8

Conforme dispõe a primeira parte do art. 2º do Código Civil, parece que a aquisição da
personalidade pelo ser humano se dá mesmo do seu nascimento com vida. Aliás, o mencionado
dispositivo sempre foi tradicionalmente interpretado no sentido de se ressaltar o nascimento com
vida como fator decisivo para atribuir ao ser humano personalidade jurídica.

Nascimento ocorre com a separação do feto do ventre materno, podendo ser natural ou
artificialmente. A vida extra-uterina tem como referencial a respiração, revelada, por exemplo, pelo
choro, pelos batimentos cardíacos, pelos movimentos do diafragma ou dos músculos de contração
voluntária. Contudo, havendo dúvida sobre o nascimento com vida, a comprovação da respiração é
feita por exames que se fundamentam na densidade do pulmão que recebeu ou não ar atmosférico,
dentre os quais se destaca a docimasia hidrostática de Galeno. Em termos simples, o referido exame
consiste na inserção do pulmão do recém-nascido em uma bacia com água. Caso o pulmão bóie, ter-
se-á comprovado a respiração e, conseqüentemente, o nascimento com vida. Caso o pulmão afunde,
ter-se-á comprovado que o recém-nascido não chegou a respirar, nascendo morto.9

7
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.81
8
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, v.1, p.173.
9
Cf. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998, p.244-245.

3
Interessante polêmica se instaura na determinação do momento de aquisição da
personalidade no ordenamento jurídico brasileiro, quando analisamos a situação do nascituro.
Nascituro é o que está por nascer, mas já concebido no ventre materno.10 É o ser humano já
concebido, mas que ainda se encontra em desenvolvimento do útero da mãe. Conforme já
mencionado, dispõe o nosso Código Civil, na primeira parte de seu art. 2º, que a personalidade
jurídica é adquirida pelo ser humano a partir do seu nascimento com vida. No entanto, a segunda
parte do elencado dispositivo codificado enuncia que a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro. Desta forma, percebe-se que o ordenamento jurídico confere proteção ao ente
que se desenvolve no útero, denominado, como vimos, nascituro. Há que se ressaltar, como o faz
Jussara Maria Leal de Meirelles, a ambigüidade trazida pelo art. 2º do Código Civil, pois “a
primeira parte do citado dispositivo legal pretende afirmar que antes do nascimento com vida
inexiste personalidade e, portanto, não haveria direitos a proteger; entretanto, a segunda parte
assegura proteção aos direitos do nascituro, ainda que não dotado de personalidade jurídica”.11

A doutrina majoritária atesta que nosso Código Civil adotou a teoria natalista,
possuindo o nascituro apenas uma singela expectativa de direito. Assinala, por exemplo, San Tiago
Dantas que “antes do nascimento a posição jurídica do nascituro não é, de modo algum, a de um
titular de direitos subjetivos; é uma situação de mera proteção jurídica, proteção que as normas dão,
não exclusivamente às pessoas, mas até às coisas inanimadas”. E continua, o autor: “estas normas
não estão reconhecendo nesses seres inanimados uma personalidade, mas considerando bens que
interessam ser guardados, de certa forma. Elas os cercam de proteção e é o que acontece com o
nascituro. Ele é protegido, mas não se lhe confere nenhum direito subjetivo”.12 A seu turno, Caio
Mário da Silva Pereira leciona que “o nascituro não é ainda uma pessoa, não é um ser dotado de
personalidade. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e
adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas,
se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de
personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já é ele sujeito de direito. Tão
certo é isto que, se o feto não vem a termo, ou se não nasce vivo, a relação de direito não se chega a
formar, nenhum direito se transmite por intermédio do natimorto, e a sua frustração opera como se
ele nunca tivesse sido concebido, o que bem comprova a sua inexistência no mundo jurídico, a não
ser que tenha nascimento”.13 E conclui, o autor: “assentado o começo da personalidade no
nascimento com vida, somente a partir de então existe uma pessoa em que se integram direitos e

10
AMARAL, Francisco. Direito civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.220.
11
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.51.
12
DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.134.
13
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.217.

4
obrigações. Até aí o que há são direitos meramente potenciais, para cuja constituição dever-se-á
aguardar o fato do nascimento e a aquisição da personalidade”.14

Este posicionamento encontra ressonância em nossa jurisprudência majoritária, como


pode ser observado nas ementas seguintes: “CIVIL. NASCITURO. Proteção de seu direito, na
verdade proteção de expectativa, que se tornara direito, se ele nascer vivo. Venda feita pelos pais a
irmã do nascituro. As hipóteses previstas no código civil, relativas a direitos do nascituro, são
exaustivas, não os equiparando em tudo ao já nascido” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Recurso Extraordinário 99038. Relator: Francisco Rezek. Julgamento: 18/10/1983).
“ILEGITIMIDADE DE PARTE. ATIVA. OCORRÊNCIA. INVESTIGATÓRIA DE
PATERNIDADE AJUIZADA POR FUTURA MÃE DE NASCITURO. INADMISSIBILIDADE.
Ausente a personalidade, ao nascituro falta a capacidade de ser parte e de se fazer representar em
Juízo. Embora a lei ponha a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, a personalidade civil
do homem começa do nascimento com vida” (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível
181.471-1. Relator: Marcus Andrade. Julgamento: 15/04/93). “AÇÃO ORDINÁRIA DE
INDENIZAÇÃO. Pretendido recebimento do seguro DPVAT, em razão de acidente fatal que
vitimou sua esposa e filho por nascer [...] Natimorto que não tem personalidade jurídica material,
que o autorize a reclamar o seguro, direito este que não se estende ao seu genitor” (PARANÁ.
Tribunal de Justiça. Apelação Cível 0221930-7. Relator: Carvilio da Silveira Filho. Julgamento:
02/03/2004)

No entanto, outros juristas preferem contrariar a maior parte da doutrina, afirmando,


com ênfase, que por meio de uma interpretação sistemática do próprio Código Civil torna-se
transparente a adoção da teoria concepcionista. Criticando a posição assumida pelos adeptos da
teoria natalista, afirma-se que expectativa de direito é direito subjetivo com eficácia suspensa ou em
formação, o que implica em reconhecer o nascituro como titular de direitos em formação, o que
pressupõe titularidade, obviamente, personalidade”.15 Ressalta-se, ainda, que o código destaca
situações em que o nascituro se apresenta como sujeito de relações jurídicas. E, na lógica do sistema
legal, só pode ser titular de direito quem for detentor de personalidade, donde concluir-se que,
formalmente, o nascituro tem personalidade jurídica.16 O nascituro é titular do direito de nascer
(ECA, art. 7º). Possui capacidade sucessória, podendo ser beneficiado por testamento (CC, art.
1.798). Pode receber doação, devendo a aceitação ser realizada por seu representante legal (CC, art.
542). Pode ser-lhe nomeado curador para a defesa de seus interesses (CC, art. 1.799). Pode pleitear

14
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.221.
15
AMARAL, Francisco. Direito civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.221
16
AMARAL, Francisco. Direito civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.221

5
o reconhecimento de paternidade em face de seu suposto pai (CC, art. 1.609, parágrafo único),
assim como também requerer alimentos.17 Na esfera penal, o nascituro pode ser sujeito passivo do
crime de auto-aborto (CP, art. 124).

Apesar de algumas imprecisões técnicas, encontramos decisões judiciais que têm


reconhecido uma série de direitos ao nascituro, o que só é possível se o considerarmos como
detentor de personalidade civil. Vejamos algumas delas: “DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS.
MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. NASCITURO. DIREITO AOS
DANOS MORAIS. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. [...] O
nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo
conhecido em vida tem influência na fixação do quantum” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
Recurso Especial 399028. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento: 26/02/2002).
“REGISTRO PÚBLICO. NATIMORTO. ATRIBUIÇÃO DE NOME. DIREITO DA
PERSONALIDADE. A personalidade começa com o nascimento com vida, porém o nascituro,
aquele que ainda está no ventre materno, que possui expectativa de adquirir personalidade, goza dos
direitos inerentes a ela, como o nome. O natimorto é equiparado ao nascituro, tendo direito de
receber um nome, ter sua imagem preservada e ser sepultado. No assento de óbito do natimorto
deverá constar, além desta condição, um nome dado pelos pais e o prenome destes” (MINAS
GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0079.06.249018-4/001. Relator: Nilson Reis.
Julgamento: 07/11/2006). “FAMÍLIA. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E ALIMENTOS.
NATUREZA PERSONALÍSSIMA DA AÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITO DO
NASCITURO. São legitimados ativamente para a ação de investigação de paternidade e alimentos o
investigante, o Ministério Público, e também o nascituro, representado pela mãe gestante” (MINAS
GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0024 .04.377309-2/001. Relator: Duarte Costa.
Julgamento: 10/03/2005)

Outras decisões judiciais paradigmáticas afirmam enfaticamente a personalidade


jurídica do nascituro: “SEGURO-OBRIGATÓRIO. ACIDENTE. ABORTAMENTO. DIREITO À
PERCEPÇÃO DA INDENIZAÇÃO. O nascituro goza de personalidade jurídica desde a concepção.
O nascimento com vida diz respeito apenas à capacidade de exercício de alguns direitos
patrimoniais” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 70002027910.
Relator: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Julgamento: 28/03/2001). “CERTIDÃO DE
NATIMORTO. CONFECÇÃO INDEFERIDA EM RAZÃO DA IDADE GESTACIONAL. O
conceito de natimorto colhido da medicina – a partir da vigésima segunda semana de gestação – não

17
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p.86-
87.

6
pode afastar a pretensão à confecção de certidão de natimorto, se a legislação civil confere
personalidade jurídica ao nascituro desde a concepção” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de
Justiça. Apelação Cível 70013935192. Relator: José Trindade. Julgamento: 22/06/2006). “DPVAT.
EVENTO MORTE. NASCITURO. [...] O nascituro, porque provido de personalidade jurídica
desde o momento da concepção, também é sujeito da cobertura conferida pelo seguro DPVAT,
sendo devido o pagamento da indenização em caso de a interrupção da gestação decorrer de
acidente de trânsito” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Recurso Inominado
71000856724. Relator: João Pedro Cavalli Júnior. Julgamento: 23/02/2006).

Contudo, afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria concepcionista


não resolve completamente a questão. Espera-se que o legislador não use palavras inúteis na
descrição de hipóteses normativas, razão pela qual se torna necessário indagar sobre a importância
do nascimento com vida para a disciplina das pessoas naturais.

Parece-nos que o nascimento com vida não tem o condão de determinar a atribuição de
personalidade ao ser humano, contudo, possui significativa relevância na dimensão de sua
capacidade de direito. Apesar de possuir personalidade, ao nascituro não são conferidos todos os
direitos que compõem a extensa seara do ordenamento jurídico civil, mas apenas aqueles que
direitos que lhe são expressamente tipificados em lei. A capacidade de direito do nascituro é
limitada, tornando-se genérica apenas a partir do seu nascimento com vida.18

Se o nascituro vier a nascer com vida, a sua capacidade de direito alarga-se, adquirindo
uma aptidão para titularidade de qualquer direito ou obrigação estabelecidos pelo ordenamento
jurídico, desde que não incorra em nenhuma restrição legal. Se nascer morto, a lei o considera como
não tendo chegado a existir, no que tange sua esfera jurídica patrimonial. A propósito, assinala
Pedro Pais de Vasconcelos: “a morte pré-natal não desencadeia a sucessão. [...] Os direitos
patrimoniais e outros que seriam suscetíveis de sucessão serão extintos retroativamente. Os direitos
que o pré-nascido tenha adquirido por doação ou sucessão, e cuja administração foi exercida pelos
pais ou outras pessoas a quem caberia a sua administração após o nascimento, cessam
retroativamente e tudo se passa como se não tivesse chegado a existir. E conclui: “é uma ficção
legal imposta pragmaticamente pela necessidade de simplificar a complexidade da vida e da
morte”.19

Mais problemática do que a situação jurídica do nascituro, parece-nos ser a situação


jurídica do embrião, que nem se quer foi suscitada novo Código Civil, surgindo como uma das
situações mais inquietantes do desenvolvimento biotecnológico. Diante das técnicas de reprodução

18
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.81.
19
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.74.

7
assistida, a concepção, isto é, a fusão dos gametas masculino e feminino pode dar-se fora do corpo
da mulher, podendo, inclusive, o embrião ser armazenado por um período de tempo indeterminado
através de um processo de congelamento com nitrogênio.20 Adverte Jussara Maria Leal de Meirelles
que os embriões congelados e mantidos em laboratório não encontram a devida proteção na clássica
normativa civilística, não se enquadrando nas molduras da categoria abstrata de sujeito de direito
adotada pelo nosso direito privado.21 No entanto, na opinião da autora, tendo em vista a
proximidade individual existente entre um determinado embrião e a pessoa humana, impõe-se o
reconhecimento de se respeitar e proteger juridicamente este novo ente.22 O grande desafio é
justamente determinar como deverá ser realizada essa proteção.

Recentemente, foi publicada a Lei nº 11.105/2005 que permitiu a utilização de células-


tronco embrionárias obtidas de embriões congelados para fins de pesquisa e terapia. A manipulação
de embriões humanos trata-se, acima de tudo, de discussão moral e deve ser enfrentada com cautela,
todavia, parece que nosso legislador preferiu mesmo se aproximar da tese que considera o embrião
simples objeto de direito. Vale registrar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei no
6.960, de 2002, que propõe mudanças na redação do art. 2º do Código Civil. Segundo o referido
projeto de lei, o art. 2º passaria a estender a mesma proteção jurídica conferida ao nascituro também
ao embrião. Ao resguardar os direitos do embrião, nosso ordenamento jurídico estará suscitando a
discussão acerca da atribuição de personalidade a este novo ente. Diante deste artigo como justificar
legalmente o descarte de embriões? A sua utilização para pesquisa? E até mesmo a criopreservação?

2.2. EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE

A existência jurídica da pessoa natural termina com morte, conforme teor da primeira
parte do art. 6º do nosso Código Civil. Assim, a constatação da morte determina a supressão da
personalidade jurídica conferida ao ser humano pelo sistema legal. Por conseqüência, o falecido
deixa de ser destinatário de normas jurídicas, não podendo mais ser considerado sujeito de direitos
ou de deveres.

Sabe-se que os efeitos jurídicos da morte manifestam-se nas relações de que o falecido
era parte, extinguindo-as ou modificando-as, conforme sejam intransmissíveis ou transmissíveis.
Dentre as diversas vicissitudes da morte, podemos citar: a abertura da sucessão, com a transmissão

20
Sobre as repercussões jurídicas da utilização das técnicas de reprodução assistida, cf. o nosso RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite.
Breve comentário sobre aspectos destacados da reprodução assistida. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (org.). Biodireito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002, p.283-303.
21
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.51-56.
22
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.149-
150.

8
imediata do patrimônio do falecido aos seus herdeiros (CC, art. 1784); a extinção de contratos
personalíssimos, como o contrato de prestação de serviço (CC, art. 607) e o contrato de mandato
(CC, art. 682, II); o pagamento de prêmio em virtude de contrato de seguro de vida (CC, art. 757); a
extinção de usufruto (CC, art. 1410, I); a dissolução de sociedade conjugal (CC, art. 1571, I); a
extinção do poder familiar (CC, art. 1635, I).

2.2.1. MORTE REAL

A princípio, a morte é verificada perante o cadáver. Trata-se da morte real, configurada


por meio da cessação das diversas funções orgânicas responsáveis pela vida do ser humano. Sabe-
se, contudo, que as funções vitais do organismo não se interrompem em simultâneo, sendo a morte
produzida não em um instante, mas por etapas sucessivas, em determinado espaço de tempo, o que
acabou exigindo a eleição de certo momento para a sua determinação jurídica.23

Tradicionalmente, a morte era verificada pela falência das funções cardíaca e


respiratória. No entanto, o desenvolvimento tecnológico exigiu uma revisão de tais critérios, uma
vez que se tornou possível estender indefinidamente os sinais vitais de uma pessoa por meio de
aparelhos, assim como executar a remoção e a transplantação de diversos órgãos e tecidos do corpo
humano. Atualmente, a morte é determinada pela “cessação irreversível de todas as funções do
encéfalo, incluindo o tronco encefálico, onde se situam as estruturas responsáveis pela manutenção
dos processos vitais autônomos, como a pressão arterial e a função respiratória”.24 Os critérios para
o diagnóstico da morte encefálica são determinados pela Resolução no 1.480/97 do Conselho
Federal de Medicina, conforme o disposto no art. 3º da Lei no 9.434/97, que trata dos transplantes
de órgãos.

Importante também destacar que a morte real será atestada por médico, que declarará a
causa e o momento do falecimento, levados em conta na lavratura do registro de óbito junto ao
cartório civil.

2.2.2. MORTE PRESUMIDA

A morte presumida é aquela “declarada por decisão judicial decorrente da falta de


indício de materialidade do fato, ou seja, pela ausência de cadáver”.25 Em algumas situações, apesar
da morte real ser extremamente provável, torna-se inviável a sua efetiva comprovação, em função

23
Cf. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998, p.281-283.
24
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.45.
25
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, v.1, p.324.

9
da impossibilidade de recuperação do cadáver ou da inexistência de outras provas que atestem
cabalmente o acontecido. Quando o desaparecimento de alguém tenha ocorrido em determinadas
circunstâncias que não permitam duvidar de sua morte, apesar de não ter sido possível encontrar ou
identificar seu cadáver, considera-se, para fins jurídicos, a pessoa natural falecida.

Importante destacar que a morte presumida resultará sempre de um provimento judicial,


iniciado por qualquer interessado na constatação do evento, por exemplo, esposa, companheira,
pais, filhos, credores.

A primeira hipótese de morte presumida, conforme a segunda parte do art. 6º do Código


Civil, é aquela decorrente da ausência.26 Presume-se a morte do ausente, depois de transcorridos dez
anos do trânsito em julgado da sentença que concede a abertura da sucessão provisória ou após o
transcurso de cinco anos das últimas notícias do ausente, quando este já contar com mais de oitenta
anos. Importante ressaltar que a declaração judicial de ausência, comprovando-se o simples
desaparecimento do indivíduo do seu domicílio, não significa certeza do óbito. Somente verificar-
se-á morte presumida nos casos autorizativos da abertura da sucessão definitiva dos bens do
ausente, disciplinados nos arts. 37 e 38 do Código Civil.

As outras hipóteses de morte presumida encontram-se elencadas no art. 7º do Código


Civil, que não apresenta correspondente no código anterior, constituindo, portanto, inovação
legislativa. A morte presumida poderá ser declarada, sem a decretação de ausência, quando for
extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida, como nas situações de pessoa
desaparecida em virtude de naufrágio, de acidente aéreo ou de catástrofes naturais muito graves
(CC, art. 7º, I). Poderá também ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência,
quando alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos
após o termino da guerra (CC, art. 7º, II). Assinala Caio Mário da Silva Pereira que o desaparecido
pode ser militar ou não, uma vez que as guerras modernas atingem também as populações civis,
com bombardeios, campos de concentração, deslocamento para trabalhos forçados.27 Adverte Sílvio
de Salvo Venosa que o termo guerra deve ser entendido com elasticidade, devendo compreender
também revolução interna e movimentos semelhantes, como exercícios bélicos.28

A declaração da morte presumida, em qualquer das hipóteses do dispositivo legal em


comento, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a
sentença fixar a data provável do falecimento. Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona

26
A ausência é conceituada como o desaparecimento de uma pessoa de seu domicílio, sem dar notícias do lugar onde se encontra,
nem deixar procurador para administrar seus bens, acarretando dúvida a respeito de sua existência. A ausência é caracterizada
conforme dispõe o art. 22 do Código Civil.
27
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.225.
28
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006, v.1, p.158.

10
Filho, a declaração de morte presumida deve ser obtida através de procedimento de justificação, nos
termos da Lei no 6.015/73 e conforme disciplinado pelos arts. 861 a 866 do Código de Processo
Civil.29

No entanto, parece-nos que o procedimento de justificação não é adequado para a


constatação e declaração da morte presumida. Sabe-se que a ação de justificação tem por finalidade
a simples constituição de documento, especialmente a partir de relato testemunhal sobre
determinado fato ou relação jurídica, para servir como meio de prova.30 Sua natureza é de jurisdição
voluntária, não havendo contenciosidade. Seu procedimento é extremamente célebre, não admitindo
defesa nem recurso. Por conseguinte, o juiz não faz senão observar o cumprimento das formalidades
legais, não decidindo coisa alguma, não se manifestando sobre o mérito da causa. A propósito,
assinala Humberto Theodoro Júnior: “não há contraditório na justificação e nela o juiz nada decide,
limitando-se a aferir, extrinsecamente, a observância das formalidades legais, sem pronunciamento
algum sobre o conteúdo da prova colhida”. Continua o autor: “a função do magistrado é similar à do
tabelião, que assenta em suas notas o que lhe declaram outras pessoas, para documentação e
publicidade”. E conclui: “é, assim, a justificação simples meio de documentar prova testemunhal,
com eventual cotejo de documentos, prova essa cuja valoração só há de ser feita pelo juiz da ação
ou pela autoridade administrativa perante quem deva ser utilizada”.31

Entendemos que a morte presumida somente poderá ser constatada e declarada por meio
de uma ação declaratória inominada, sendo devidamente respeitados o princípio do devido processo
legal e seus corolários. Todos os interessados (notadamente, os sucessores do presumível falecido)
devem ser citados e poderão amplamente participar da construção do provimento jurisdicional,
apresentando e impugnando razões e provas. Além disso, nesta ação, o juiz definitivamente emitirá
julgamento acerca do mérito da constatação da morte presumida, o que, evidentemente, garante uma
maior segurança jurídica. Lembre-se, inclusive, que o pedido de declaração da morte presumida é
condicionado, conforme dispõe o art. 7º do Código Civil, ao esgotamento das buscas do suposto
morto, cabendo ao juiz examinar o prévio atendimento ao requisito, o que, obviamente, não poderia
ser feito em sede de ação de justificação. Parece-nos que deve se dar prevalência à segurança
jurídica ante as graves conseqüências advindas da constatação da morte presumida, o que é
potencialmente alcançável através da ação declaratória, mesmo que o procedimento desta venha a
ser um pouco mais demorado. Afinal, uma vez declarada a morte presumida, proceder-se-á a
sucessão direta dos bens do morto presumido.

29
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. Saraiva: São Paulo, 2006, v.1, p.131.
30
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 27.ed. Rio de Janeiro, 1999, v.2, p.513.
31
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 27.ed. Rio de Janeiro, 1999, v.2, p.516.

11
2.2.3. COMORIÊNCIA

Por fim, no que tange à morte, devemos analisar o art. 8º do Código Civil. Segundo se
depreende do enunciado do mencionado dispositivo legal, se dois ou mais indivíduos falecerem na
mesma ocasião, não se podendo averiguar quem faleceu primeiro, presumir-se-ão simultaneamente
mortos. Trata-se do instituto da comoriência, singelamente definido como “a presunção de morte
simultânea de pessoas reciprocamente herdeiras”.32 A presunção, elemento essencial da definição
apresentada, pode ser compreendida como a conseqüência que sistema jurídico deduz de certos
fatos, e que fica estabelecida como verdadeira, mesmo sendo obtida por meio de um exame baseado
em indícios. Vale dizer, é o resultado de um julgamento fundado em aparências.

Se, por exemplo, no mesmo acidente, morrem João e seu filho José, este, sem
descendentes, ambos serão reciprocamente herdeiros, conforme a ordem fixada no art. 1.829 do
Código Civil. Para evitar-se conflito de interesses entre pessoas diretamente ligadas aos falecidos,
por exemplo, seus cônjuges, estabelece a lei presunção de morte simultânea, não havendo, portanto,
transmissão de direitos entre eles. Imagine, no exemplo citado, que João tenha falecido antes de
José, a herança daquele será dividida em partes iguais entre sua esposa e seu filho e, após a metade
da herança se agregar ao patrimônio de José, será transferida para a esposa deste. Diversa solução
ocorreria se o filho falecesse antes do pai.

Ora, em caso de falecimento sem possibilidade de fixação do momento exato das


mortes, o ordenamento jurídico firma a presunção de óbito simultâneo, que acaba por elidir a
possibilidade de transmissão de bens entre os falecidos e, conseqüentemente, determina a abertura
de cadeias sucessórias distintas. Desta forma, no nosso exemplo, o cônjuge de cada um dos
falecidos arrecadará integralmente a herança deixada por seu respectivo marido.

Importante destacar que só faz sentido falarmos em comoriência quando os falecidos


são reciprocamente herdeiros, pois o objetivo do instituto é resolver dúvidas sobre a distribuição da
herança. A relevância da comoriência está, portanto, no seu efeito, que é a intransmissibilidade de
bens entre comorientes, como se entre eles não tivesse havido qualquer vínculo sucessório. A
propósito, a jurisprudência assinala: “INVENTÁRIO. HABILITAÇÃO. COMORIÊNCIA. Não
havendo prova da precedência das mortes, a presunção legal é a da comoriência, ou seja, da
simultaneidade dos falecimentos, não havendo transmissão de direitos entre os comorientes.” (RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento 70005129416. Relator: José
Ataídes Siqueira Trindade. Julgamento: 28/11/2002). “INVENTÁRIO. COMORIÊNCIA.
INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE SEGURO DE VIDA. Tendo o casal e os filhos falecidos

32
AMARAL, Francisco. Direito civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.226.

12
simultaneamente, vítimas de acidente automobilístico, não se operou sucessão entre aqueles, nem
entre aqueles e estes. Assim, a indenização decorrente de apólice de seguro de vida em grupo, em
que os consortes constavam reciprocamente como beneficiários, é de ser paga de forma rateada aos
herdeiros de ambos.” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento
598569952. Relator: Maria Berenice Dias. Julgamento: 28/11/2002).

Há quem afirme que a comoriência trata-se de uma presunção absoluta, que não pode
ser elidida por prova em contrário.33 No entanto, a melhor doutrina, inclusive majoritária, defende
que se trata de uma presunção relativa, podendo ser desconstituída mediante apresentação de prova
idônea em sentido oposto.34 A propósito, mais uma vez, a jurisprudência é valiosa:
“COMORIÊNCIA. Falecendo os pais e os filhos em um mesmo desastre, e havendo o atestado de
óbito do filho declarado que este falecera cinco minutos após seus pais, a herança daqueles cabe a
este. Prevalência do documento médico que atestou o momento do óbito do filho como posterior ao
dos pais. Comoriência, tão-só, quanto a estes. Desconstituição do atestado de óbito do filho por
ação própria, se for o caso. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento 144.514-4/1.
Relator: Alfredo Migliore. Julgamento: 18/04/2000).

3. CAPACIDADE

Inicialmente cabe afirmar que a capacidade é um atributo da personalidade, razão pela


qual podemos afirmar que só possui capacidade quem, obviamente, é detentor de personalidade.
Enquanto a personalidade designa a aptidão para a aquisição de direitos e deveres, a capacidade
exprime a medida dessa aptidão. Assim, a personalidade existe ou não existe, não podendo ser
graduada ou restringida, mostrando-se como um conceito de natureza qualitativa. Diferentemente, a
capacidade pode ser limitada por lei, podendo ser atribuída de forma mais ou menos ampla aos
sujeitos de direito, o que evidencia o seu caráter quantitativo.

Parece-nos que a capacidade se revela como a medida jurídica da personalidade, uma


vez que dimensiona os direitos e os deveres que podem ser titularizados e exercidos pela pessoa.
Tradicionalmente, a doutrina conhece duas modalidades de capacidade:

A capacidade de direito, também conhecida por capacidade de gozo, designa a medida


das posições jurídicas que podem ser ocupadas pelo ser humano.35 Por meio da capacidade de gozo
se busca identificar quais direitos e deveres podem ser titularizados por uma pessoa. Reconhece-se

33
COSTA LOURES, José; GUIMARÃES, Taís Maria Loures Dolabela. Novo código civil comentado. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, p.13.
34
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.314-315.
35
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, 2004, v.1, t.3, p.294.

13
esta espécie de capacidade como uma aptidão concreta para a titularidade de determinados direitos e
deveres.36

A capacidade de direito não pode ser completamente suprimida, todavia, o ordenamento


jurídico pode privar a pessoa de certos direitos.37 Caio Mário da Silva Pereira adverte, com razão,
que a privação total da capacidade de direito implicaria a frustração da personalidade, aniquilando o
ser humano do mundo jurídico.38

Como já se disse, a partir do nascimento com vida, a capacidade de direito torna-se


genérica, possuindo o indivíduo aptidão para ocupar qualquer posição jurídica, desde que não
enquadrado em alguma restrição legal. Exemplos interessantes de incapacidade de direito podem
ser encontrados nos artigos 1.618 e 1.735, ambos do Código Civil. No primeiro, percebe-se que a
pessoa que ainda não completou dezoito anos tem a sua capacidade de direito limitada no que diz
respeito à adoção, não possuindo aptidão para se apresentar como adotante. No segundo, percebe-se
que a pessoa declarada pródigo tem a sua capacidade de direito limitada no que diz respeito à tutela,
não possuindo aptidão para se apresentar como tutor.

Encontramos também hipóteses especiais de restrição da capacidade de direito no art.


1.521, que veda ao casado a titularidade de contrair novo matrimônio, enquanto não for dissolvida a
união conjugal anterior; no artigo 1.872, que veda ao cego e ao analfabeto a titularidade do direito
de testar por meio de testamento cerrado; no artigo 1.641, que veda ao idoso a titularidade do direito
de estipular livremente o regime de bens de seu casamento.

A capacidade de fato, também conhecida por capacidade de exercício, exprime a


medida das posições jurídicas que podem ser exercidas pessoal e livremente pelo ser humano.39 Por
meio da capacidade de fato se busca identificar quais direitos e deveres podem ser exercidos de
maneira autônoma pela pessoa. Reconhece-se esta modalidade de capacidade como uma aptidão
concreta para o exercício livre e direto de direitos e deveres.40

Sobre a capacidade de fato também esclarecedora é a lição de Manuel Domingues de


Andrade: “trata-se da idoneidade não só para exercitar direitos ou cumprir obrigações como
também para os adquirir ou as assumir, e para fazer tudo isso pessoalmente, por ato próprio e
exclusivo da pessoa visada, sem haver lugar à intervenção dum representante legal (designado por
outro modo que não pelo próprio representado) ou ser necessário o consentimento de outra pessoa

36
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.89.
37
DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.135.
38
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.263.
39
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, 2004, v.1, t.3, p.294.
40
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.89.

14
(também não designada por aquela). Note-se aliás que, falando de atuação própria e exclusiva da
pessoa capaz de exercício, compreendemos nesta fórmula a atuação desenvolvida por um
representante voluntário ou procurador (escolhido pelo próprio representado)”.41

Esclarecedora é a situação da propriedade. Não havendo qualquer restrição específica


sobre a titularidade do direito de propriedade, uma pessoa de apenas oito anos de idade poderá ser
proprietária de um imóvel urbano, contudo, não terá aptidão para praticar, autonomamente, atos de
aquisição, locação ou venda do referido bem, que deverão ser realizados por meio de seu
representante legal. A seu turno, também elucidativa é a situação envolvendo o casamento. A
pessoa que ainda não completou os dezesseis anos de idade não possui aptidão para ser titular do
direito de casar, conforme teor do art. 1.517 do Código Civil. Entre os dezesseis e os dezoito anos, a
incapacidade do menor deixa de ser de direito e passa a ser de fato. Neste intervalo etário, o menor
pode se casar, desde que autorizado por seus pais ou tutor.

Embora sejam manifestações da personalidade jurídica, pressuposto de todos os direitos


e deveres, a capacidade de direito representa uma posição estática do sujeito, enquanto a capacidade
de fato traduz uma atuação dinâmica.42 A primeira é aptidão para a titularidade de direitos e
deveres, a segunda, a possibilidade de praticar atos com efeitos jurídicos. A importância da
distinção reside em tornar claro que a titularidade de direitos não fica prejudicada pela
impossibilidade de seu exercício pessoal e livre.43

3.1. REGIME JURÍDICO DAS INCAPACIDADES DE FATO

Segundo Manuel Domingues de Andrade, a capacidade de fato trata da aptidão de um


sujeito para produzir efeitos jurídicos a partir de sua mera atuação pessoal.44 Obviamente, não são
todos os indivíduos que podem válida e eficazmente produzir efeitos jurídicos a partir de sua
atuação pessoal. Desta forma, podemos falar em limitação da capacidade de fato ou, de outro modo,
do regime jurídico das incapacidades.

Mais uma vez, a lição de Manuel Domingues de Andrade é preciosa: “se a capacidade
de direitos não pode faltar de todo a um sujeito jurídico, outro já o caso da capacidade de exercício.
Pode haver – e há na realidade – pessoas em sentido jurídico destituídas, até por completo, desta
capacidade. Ela pressupõe, com efeito, na pessoa uma vontade consciente e a aptidão para

41
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.31.
42
AMARAL, Francisco. Direito civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.227.
43
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.90-91.
44
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.31.

15
determinar de modo legalmente reputado normal, e portanto para gerenciar com mediano
conhecimento de causa, sagacidade e prudência os seus interesses. Ora isto nem sempre se verifica.
Por isso a lei, admitindo embora a capacidade como regra geral, claramente reconhece como
possível a incapacidade”.45

A tarefa do ordenamento jurídico é declarar quais pessoas são privadas da capacidade


de fato e em que medida. Indicam-se aquelas pessoas que não podem atuar isoladamente na esfera
jurídica por lhes faltar, basicamente, discernimento, isto é, aquele conjunto de aptidões intelectuais
que possibilitam a manifestação de vontade livre e consciente, a fim de administrar efetivamente
seus próprios interesses. A falta de capacidade é mensurada em graus, gerando uma incapacidade
total ou absoluta e outra incapacidade parcial ou relativa, dependendo de fatores como a idade e o
estado de saúde da pessoa.

Contudo, não basta ao ordenamento jurídico simplesmente privar as pessoas de


capacidade de fato. É preciso suprir tal incapacidade, pois os atos jurídicos que interessam aos
incapazes devem ser praticados, especialmente para atender suas expectativas de vida. Neste
sentido, assinala João Manuel de Carvalho Santos: “a necessidade de tornar possível o exercício da
personalidade a alguns que não poderiam por si exercê-la, em razão da incapacidade, forçou o
legislador a prever os meios de suprir, integrar a atividade jurídica daquelas pessoas”. E o autor
conclui: “do contrário, os incapazes ficariam afastados da comunhão social, verdadeiramente
privados do exercício de seus direitos, se não houvesse uma pessoa designada pela lei, para dirigir
sua pessoa, administrar seus bens e defender seus interesses; enfim, uma pessoa que sirva de
intermédio ou de assistente nas suas relações jurídicas com terceiros, agindo juridicamente em
nome do incapaz ou em companhia dele”.46

Desta forma, o ordenamento jurídico deverá produzir instrumentos para suprir a


incapacidade de uma pessoa. Realça-se então o valor dos institutos da representação e da
assistência. O instituto da representação é utilizado para suprir a incapacidade absoluta, por ele
“agirá em substituição do incapaz o seu representante legal, produzindo-se na esfera jurídica
daquele os respectivos efeitos jurídicos”.47 Por sua vez, o instituto da assistência é utilizado para
suprir a incapacidade relativa, por ele “será facultado ao incapaz agir ele mesmo, contanto que
intervenha o consentimento de certa pessoa ou entidade”.48

45
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.32.
46
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.281.
47
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.33.
48
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.33.

16
A incapacidade absoluta designa completa vedação ao exercício de direitos e deveres
pelo seu titular. O absolutamente incapaz não participa direta e pessoalmente de relações jurídicas,
sendo sua vontade considerada irrelevante. Ele não pode sozinho praticar atos jurídicos válidos e
eficazes, razão pela qual o ordenamento jurídico confere-lhe um representante para velar pelos seus
interesses. O representante executa atos jurídicos em nome do incapaz, sem qualquer interferência
deste. Se o absolutamente incapaz sozinho praticar algum ato jurídico, a hipótese é de nulidade (CC,
art. 166). Isso significa que tal ato poderá ser anulado, deixando de produzir efeitos, bastando que o
vício seja adequadamente alegado, que pode ser feito a qualquer tempo (CC, art. 168).

A incapacidade relativa designa a parcial vedação ao exercício de direitos e deveres


pelo seu titular. O relativamente incapaz pode sozinho praticar alguns atos jurídicos que lhe são
expressamente permitidos pelo ordenamento jurídico, devendo praticar todos os demais auxiliado
por outrem, razão pela qual se lhe confere um assistente. O relativamente incapaz em razão da idade
pode sozinho elaborar testamento (CC, art. 1.860), ser mandatário (CC, art. 666) ou servir de
testemunha (CC, art. 228), enquanto o incapaz em razão da prodigalidade pode sozinho praticar
qualquer ato jurídico que não importe perda patrimonial (CC, art. 1.782). Cabe ao assistente
colaborar com o relativamente incapaz na execução daqueles atos jurídicos que não podem ser
realizados de maneira autônoma, agindo juntamente com o assistido. Assim, o incapaz acaba
participando direta e pessoalmente de relações jurídicas, mesmo que algumas vezes não seja de
maneira autônoma. Se o relativamente incapaz sozinho praticar algum ato jurídico que não lhe é
autorizado, a hipótese é de anulabilidade (CC, art. 171). Isso significa que tal ato poderá ser
anulado, deixando de produzir efeitos, desde que não seja ratificado pelo assistente do incapaz (CC,
art. 172) ou convalidado pelo decurso do tempo, caso o vício não seja alegado no prazo de dois anos
(CC, art. 179).

3.1.1. ABSOLUTAMENTE INCAPAZES

Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, são absolutamente incapazes, conforme


dispõe o art. 3º do Código Civil: os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática de atos jurídicos; e, os
que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.49

A primeira categoria de absolutamente incapazes é constituída pelos menores de


dezesseis anos. O legislador pressupõe que até o atingimento de tal idade, o jovem ainda não
apresenta a maturidade e a experiência necessárias para atuar na ordem civil, isto é, ainda não

49
Segundo o art. 5º do revogado Código Civil, eram considerados absolutamente incapazes: os menores de dezesseis anos; os loucos
de todo gênero; os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade; e, os ausentes, declarados tais por ato do juiz.

17
possui discernimento suficiente para distinguir o que lhe convém ou não. A fixação do limite de
dezesseis anos é arbitrária, não encontrando amparo em nenhum critério preciso de mensuração da
maturidade, que, de fato, é adquirida gradualmente e não em um instante, assim como é alcançada
por cada pessoa em tempos diferentes.50 Contudo, o estabelecimento de certo limite, mesmo que
aleatório, faz-se necessário para atribuir um mínimo de segurança às relações jurídicas, uma vez que
seria impossível a averiguação individual do grau de discernimento de cada pessoa para cada ato
jurídico a ser praticado.51

A segunda categoria de absolutamente incapazes é constituída por aquelas pessoas que


não têm o discernimento necessário para a prática de atos jurídicos, em decorrência de enfermidade
ou deficiência mental. Inova o Código Civil ao criar uma hipótese de incapacidade mais ampla para
abarcar aquelas pessoas atingidas por doença ou insuficiência psíquica, abandonando a clássica e
criticada expressão loucos de todo gênero, utilizada pelo revogado Código Civil.

Entenda-se por enfermidade toda anomalia que comprometa as funções psíquicas do


indivíduo, enquanto por deficiência mental o atraso no desenvolvimento psíquico. É necessário
ressaltar que não basta que a pessoa seja portadora de uma moléstia qualquer para que tenha sua
capacidade de fato totalmente limitada, pois somente será considerada absolutamente incapaz se,
em decorrência da enfermidade ou do retardo, não puder discernir o que lhe convém ou não. Caso
tenha discernimento para determinar e defender seus interesses na ordem civil, o enfermo não será
considerado absolutamente incapaz. Neste sentido, já afirmava Clóvis Beviláqua que são os “casos
de insanidade mental permanente ou duradoura que determinam a incapacidade, desde que se
caracterizem por uma grave alteração nas faculdades mentais, seja a inteligência, a emotividade ou
o querer”. E conclui: “se as alterações das faculdades mentais não são graves, embora duradouras, e
permitem ao paciente reger a sua pessoa e os seus bens, não há necessidade nem conveniência de
feri-lo com a incapacidade absoluta”.52

Finalmente, devemos ainda alertar que nosso ordenamento jurídico não considera
válidos os atos dos alienados, embora praticados nos intervalos lúcidos, recusando-lhes, assim,
qualquer fase de capacidade no transcurso da alienação.53 Nesta situação, João Baptista Villela
critica a posição adotada pela sistemática do novo código, que não acompanhou as mudanças
operadas na ciência psiquiátrica. Conforme o autor, “depois da grande revolução da psiquiatria
biológica, reverteu-se a situação anterior na qual os casos de enfermidade mental intermitentes se

50
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.110.
51
ANDRADE, Manuel Domingues. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1997, v.1, p.32.
52
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, v.1, p.178-179.
53
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.257.

18
compunham fundamentalmente de longos períodos de enfermidade, intervalados por períodos de
lucidez. Hoje, segundo depoimentos dos especialistas na área médica, é possível por meio do
controle por drogas, se não eliminar totalmente o período de enfermidade, reverter a situação para o
estado anterior; ou seja, podemos ter longos tempos períodos de sanidade pontuados por pequenos
lapsos de enfermidade. Então, não há mais sentido estabelecermos uma incapacidade de caráter
permanente e duradouro, quando a situação, em razão dos progressos médicos, mudou
radicalmente”.54

A terceira categoria de absolutamente incapazes é constituída por aquelas pessoas que


não podem exprimir sua vontade, ainda que por motivo transitório. Mesmo não sendo portadoras de
enfermidade ou deficiência psíquica, as pessoas que não conseguem manifestar sua vontade, livre e
consciente, por qualquer causa duradoura ou temporária, também serão consideradas absolutamente
incapazes. Nesta categoria se enquadram, por exemplo, o dependente de tóxico e o ébrio eventual
que, sem haverem evoluído ainda para um quadro clínico, estejam sob o efeito do entorpecente ou
da bebida,55 assim como as pessoas que se acham em estados de coma, de agonia ou hipnótico.56

Sobre a comentada categoria, não podemos deixar de mencionar a autorizada e


contundente crítica de João Baptista Villela, que pedimos licença para transcrever: “no art. 3º, há
uma solução, absolutamente, a meu ver, estapafúrdia, que se expressa no inc. III. Nele, na lista dos
absolutamente incapazes, estão aqueles que, ainda por motivo transitório, não possam exprimir sua
vontade. Estes são declarados incapazes, quando, na verdade, eles estão momentaneamente
incapazes. Mas essa definição de incapacidade do Código não é uma descrição de um estado
factual, porém de uma limitação jurídica. Dizer que uma pessoa que está, por exemplo, sob
anestésico, é incapaz para os atos da vida civil no sentido descritivo, é o mesmo que dizer que o
paralítico está incapacitado de andar”. E continua: “na verdade, a pessoa que esteja submetida a
uma suspensão provisória do seu estado de consciência não é uma incapaz; está momentaneamente
limitada no exercício de sua capacidade. Nenhum de nós que tenha passado por uma anestesia, por
exemplo, terá sido considerado incapaz para sempre. Mas o Projeto não limita o tempo de duração;
ou seja, aqui houve um concurso de equívocos, entre eles o mau uso do verbo ser pelo verbo estar”.
Conclui o autor: “a pessoa que está momentaneamente, transitoriamente, sem condições de exprimir
a sua vontade não é incapaz; ela está incapaz. Mas essa incapacidade, digamos, que se expressa pelo
verbo estar, o Código não tem de anunciá-la. Dizer que a pessoa que não pode exprimir sua vontade

54
VILLELA, João Baptista. Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no projeto do novo Código Civil. In:
AA.VV. Comentários sobre o projeto do código civil brasileiro. Conselho da Justiça Federal: Brasília, 2002, p.43-44.
55
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. Saraiva: São Paulo, 2006, v.1, p.93.
56
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.280-281.

19
é incapaz, nesse sentido factual, significa uma tautologia; seria mesmo que dizer que a pessoa que é
paralítica não pode andar”.57

Interessante destacar que os ausentes foram suprimidos do rol dos absolutamente


incapazes no novo Código Civil. Já se afirmava que a ausência não é propriamente um caso de
incapacidade, mas é instrumento jurídico pelo qual se protegem os interesses daquele que se afastou
de seu domicilio, sem deixar procurador ou representante, e do qual não há notícia, instituindo-se
uma curatela.58 Não há incapacidade por ausência, mas tão somente a necessidade de proteger o
desaparecido em relação a sua impossibilidade material de cuidar de seus bens e interesses. Tanto é
assim que os atos jurídicos praticados efetivamente pelo ausente, no local onde se encontrar, são
reputados perfeitamente válidos e eficazes.

Outra importante inovação legislativa foi a supressão da hipótese de incapacidade


exclusiva para os surdos-mudos. Assinala Clóvis Beviláqua: “se o surdo-mudo pode exprimir a sua
vontade, de modo satisfatório, é porque possui uma inteligência normal, capaz de discernimento e
de adaptação ao meio social; se não consegue exprimir-se, de modo satisfatório, é porque sofre de
uma lesão central, que o isola do mundo e o torna alienado”.59 Continua o autor: “se a surdo-mudez
depende de perturbações mentais, deve o indivíduo ser declarado incapaz por este motivo e não pelo
primeiro. Porém, se a surdo-mudez é devida a causas locais, ocorridas após o nascimento, as quais
constituem a maioria dos casos, então o indivíduo não é incapaz de modo algum, e terá apenas a
impossibilidade de fato de celebrar certos atos e contratos, impossibilidade que pode remover,
autorizando alguém a representá-lo”.60 Não devemos esquecer que com o enorme desenvolvimento
tecnológico criaram-se vários suportes que possibilitam a manifestação da vontade pelo surdo-
mudo, por exemplo, os computadores. Pelo exposto, parece-nos inútil o elenco de uma hipótese
exclusiva de incapacidade para o surdo-mudo, o que, de fato, acabou corrigido no novo Código
Civil.

3.1.2. RELATIVAMENTE INCAPAZES

Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, são relativamente incapazes, conforme


dispõe o art. 4º do Código Civil: os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos; os ébrios

57
VILLELA, João Baptista. Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no projeto do novo Código Civil. In:
AA.VV. Comentários sobre o projeto do código civil brasileiro. Conselho da Justiça Federal: Brasília, 2002, p.44.
58
DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.141.
59
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, v.1, p.180
60
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.102.

20
habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento
reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e, os pródigos.61

A primeira categoria de relativamente incapazes é constituída pelas pessoas maiores de


dezesseis anos e menores de dezoito anos. Nessa faixa etária, acredita-se que o convívio social e
familiar proporcionou ao jovem um significativo amadurecimento.62 Admite-se que o indivíduo já
atingiu certo grau de desenvolvimento intelectual, que o possibilita influir diretamente nas situações
jurídicas que dizem respeito à sua pessoa e aos seus bens, mesmo não podendo agir com plena
autonomia. Interessante, inclusive, destacar aquela regra insculpida no art. 180 do Código Civil que
determina a impossibilidade do menor relativamente incapaz se eximir do pagamento de uma
obrigação, se dolosamente ocultou a sua idade ou declarou-se maior, no ato de se obrigar. Percebe-
se que, nesta circunstância, o ato jurídico do menor será considerado válido e eficaz, apesar da falta
de assentimento de seu assistente.

A segunda categoria de relativamente incapazes é constituída pelos ébrios habituais, os


toxicômanos e, os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido. As pessoas
viciadas em bebidas alcoólicas ou em tóxicos podem ser consideradas relativamente incapazes,
desde que o uso habitual dessas substâncias entorpecentes reduza, sem privar totalmente, seu
discernimento. Note-se que não é o simples uso de álcool ou de tóxico que determina o
enquadramento na hipótese de incapacidade em comento, mas o grau de dependência destes
expedientes ao qual está submetido o indivíduo.63 Também o portador de enfermidade mental que
tenha apenas minimizada a sua capacidade de entendimento e autodeterminação será considerado
relativamente incapaz.

A terceira categoria de relativamente incapazes é constituída pelos excepcionais, sem


desenvolvimento mental completo. Percebeu o legislador que os excepcionais, ou seja, aqueles
acometidos por anomalia congênita que impossibilita o pleno desenvolvimento mental, podem
apresentar apenas redução na percepção da realidade, não justificando, portanto, que sejam
impossibilitados de atuar na vida civil, exigindo-se apenas que sejam assistidos. É o que ocorre, por
exemplo, com as pessoas acometidas pela Síndrome de Down.

A quarta e última categoria de relativamente incapazes é constituída pelos pródigos.


Considera-se pródigo é “aquele que desordenadamente gasta e destrói a sua fazenda, reduzindo-se à

61
Segundo o art. 6º do revogado Código Civil, eram considerados relativamente incapazes: os maiores de dezesseis anos e os
menores de vinte e um anos; os pródigos; e, os silvícolas.
62
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.97.
63
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.312.

21
miséria por sua culpa”.64 Os pródigos são “pessoas que, por irreprimível impulso, desfazem de seus
bens, mediante gastos injustificáveis, compras ou vendas desastrosas, esbanjando o seu
patrimônio”.65 A prodigalidade é tratada como um desvio comportamental, que acarreta
repercussões negativas no patrimônio de uma pessoa, razão pela qual a incapacidade dela
decorrente, conforme dispõe o art. 1.782 do Código Civil, alcança somente os atos jurídicos de
natureza patrimonial, por exemplo, empréstimo, quitação, venda, troca ou doação.66 O pródigo não
fica impedido de praticar, sem assistência do curador, atos jurídicos extrapatrimoniais e de mera
administração.

3.1.3. INTERDIÇÃO

Excluída a hipótese de incapacidade decorrente da idade, exige-se o reconhecimento


judicial de sua causa geradora. Por meio do procedimento de interdição se obtém o reconhecimento
da incapacidade de uma pessoa, por se amoldar nas situações descritas pelo artigo 3º, em seus
incisos II e III, e pelo artigo 4º, em seus incisos II a IV, ambos do Código Civil.

O referido procedimento é disciplinado nos artigos 1.767 a 1.783 do Código Civil,


assim como nos artigos 1.177 a 1.186 do Código de Processo Civil. A ação de interdição pode ser
proposta por cônjuge, companheiro, pais, irmãos, tutor ou algum parente próximo. Também pode
ser promovida pelo Ministério Público.

Em termos simples, requerida a interdição, por meio de petição manejada por


interessado, este deverá demonstrar a sua legitimidade e especificará fatos que revelem a
incapacidade do interditando para reger a sua pessoa e administrar os seus bens. Recebida a petição,
o juiz determinará a citação do interditando, convocando-o para uma entrevista na qual realizará um
interrogatório sobre a sua vida, seus negócios e o que mais lhe parecer razoável para atestar o
eventual comprometimento da capacidade. A seguir, será concedido ao interditando prazo para
elaborar defesa técnica, apresentando sua contestação ao pedido formulado pelo autor da ação.
Decorrido o prazo, o juiz designará perito médico para realizar avaliação completa sobre a situação
físico-psíquica do interditando. Ressalte-se que é imprescindível a realização de perícia médica para
detectar a existência de incapacidade e sua extensão, sob pena de o processo ser anulado. A
propósito, aponta a jurisprudência: “INTERDIÇÃO. CONVICÇÃO DO JUIZ DA
INCAPACIDADE DA INTERDITANDA BASEADA EM ATESTADO MÉDICO E EM SEU
INTERROGATÓRIO. AUSÊNCIA DE PERÍCIA MÉDICA. NULIDADE DA SENTENÇA. A

64
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.111.
65
NADER, Paulo. Curso de direito civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.1, p.198.
66
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. Saraiva: São Paulo, 2006, v.1, p.98.

22
perícia médica em processo de interdição é exigência legal e o perito deve apresentar laudo
completo e circunstanciado do estado do interditando, sob pena de anulação parcial do processo”
(MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0000.00.200268-1. Relator: Abreu Leite.
Julgamento: 15/05/2001).

Passada a instrução do processo, será proferida decisão de mérito. Se declarada a


interdição, o juiz deverá assinalar o grau da incapacidade do interdito, nomear-lhe curador para
zelar pelos seus interesses e fixar os limites da curatela. Ressalte-se que o curador deve ser,
preferencialmente, seu cônjuge ou companheiro. Na falta destes, o curador será o pai ou a mãe do
interdito. Faltando qualquer destes, a curadoria deverá ser exercida pelo descendente que se mostrar
mais apto, sendo que os mais próximos precedem aos mais remotos. Finalmente, na falta das
pessoas mencionadas, o juiz escolherá livremente o curador.

Vale registrar que a sentença de interdição produz efeitos desde sua prolação, embora
sujeita a apelação. Deverá também ser registrada no cartório civil para que produza efeitos perante
terceiros. Mais do que isso, ressalte-se que a interdição não é irreversível. Uma vez cessada a sua
causa, o interditado pode requerer a desconstituição da declaração judicial de incapacidade. O
requerimento será apensado aos autos da interdição, devendo ser ouvidos o curador e o órgão
ministerial, assim como realizado exame pericial.

Sabe-se que a partir da sentença de interdição, os atos jurídicos eventualmente


praticados pelo interditado, sem a assistência ou representação do curador, serão reputados
defeituosos, assim passíveis de anulação. Interessante polêmica se instaura diante do
questionamento sobre a validade dos atos jurídicos praticados pela pessoa em estado de
incapacidade antes da sentença de interdição.

Não há uma resposta legal para a questão, a doutrina tem entendido que a sentença de
interdição possui natureza declaratória, razão pela qual se pode mesmo reconhecer a incapacidade
de uma pessoa antes de sua interdição, desde que a causa da incapacidade seja ignorada pela outra
parte que age de acordo com a boa-fé. A propósito, assinala Silvio Rodrigues: “o interesse geral,
representado pelo anseio de infundir segurança nos negócios jurídicos, impõe que se prestigie a
boa-fé. Dessa maneira, devem prevalecer os negócios praticados pelo amental não interditado
quando a pessoa que com ele contratou ignorava e carecia de elementos para verificar que se tratava
de um alienado. Entretanto, se a alienação era notória, se o outro contratante dela tinha
conhecimento, se podia, com alguma diligência, apurar a condição de incapaz, ou ainda, se da

23
própria estrutura do negócio ressaltava que seu proponente não estava em seu juízo perfeito, então o
negócio não pode ter validade, pois a idéia de proteção à boa-fé não mais ocorre”.67

A jurisprudência caminha no mesmo sentido, conforme pode-se verificar as ementas


seguintes: “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PROVA. INTERDIÇÃO. [...] Os atos praticados pelo
interditado anteriores à interdição podem ser anulados, desde que provada a existência de anomalia
psíquica - causa da incapacidade - já no momento em que se praticou o ato que se quer
anular”(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 255.271. Relator: César Asfor
Rocha. Julgamento: 28/11/2000). “ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. DOAÇÃO.
INCAPACIDADE MENTAL DA DOADORA . PROCESSO DE INTERDIÇÃO EM CURSO.
ILICITUDE DO ATO JURÍDICO. NULIDADE. Comprovado que a escritura de doação ocorreu
quando já em curso processo de interdição da doadora, inclusive com apresentação de laudo pericial
dando conta de que a doadora padece de enfermidade mental que determina a incapacidade absoluta
para os atos da vida civil, não se mostrando lúcida e em perfeitas condições de discernir o caráter do
ato praticado, é de se considerar a invalidade do negócio e de suas escriturações e, em
conseqüência, dos atos a eles supervenientes” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação
Cível 1.0024.05.703913-3/001. Relator: Duarte de Paula. Julgamento: 22/11/2006). “DIREITO E
PROCESSO CIVIL. INTERDIÇÃO. ATOS ANTERIORES À SENTENÇA. NULIDADE.
IMPRESCINDIBILIDADE DE PROVA CONVINCENTE E IDÔNEA. Para resguardo da boa-fé
de terceiros e segurança do comércio jurídico, o reconhecimento da nulidade dos atos praticados
anteriormente a sentença de interdição reclama prova inequívoca, robusta e convincente da
incapacidade do contratante” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 9.077.
Julgamento: 25/02/1992). “NULIDADE DE ATO JURÍDICO PRATICADO POR INCAPAZ
ANTES DA SENTENÇA DE INTERDIÇÃO. RECONHECIMENTO DA INCAPACIDADE E DA
AUSÊNCIA DE NOTORIEDADE. PROTEÇÃO DO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. A decretação
da nulidade do ato jurídico praticado pelo incapaz não depende da sentença de interdição.
Reconhecida pelas instâncias ordinárias a existência da incapacidade, impõe-se a decretação da
nulidade, protegendo-se o adquirente de boa-fé com a retenção do imóvel até a devolução do preço
pago, devidamente corrigido, e a indenização das benfeitorias, na forma de precedente da Corte”
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 296.895. Relator: Carlos Alberto
Menezes Direito. Julgamento: 06/05/2004)

67
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.46-47.

24
3.2. CAPACIDADE DE FATO PLENA

A princípio, a capacidade de fato plena é adquirida no momento em que a pessoa física


atinge os dezoito anos, conforme dispõe o caput do art. 5º do Código Civil. A partir daí o ser
humano fica habilitado para praticar, por si só, todos os atos jurídicos da vida civil.

Importante ressaltar que a fixação deste limite de idade constitui verdadeira opção de
política legislativa. O legislador pressupõe que o jovem com dezoito anos já possui a maturidade e
discernimento necessários para atuar, pessoalmente, nas relações jurídicas, defendendo e
fomentando os seus próprios interesses.

3.2.1. EMANCIPAÇÃO

A capacidade de fato também pode ser adquirida por meio da emancipação. Considera-
se emancipação a aquisição da capacidade de fato antes da idade legal.68 Trata-se do ato pelo qual o
menor se liberta, seja do poder familiar, seja da tutela, cessando, desde logo, a incapacidade de
fato.69 Vale dizer, a emancipação designa a atribuição de plena capacidade de fato ao indivíduo que
ainda não completou os dezoito anos de idade, assim tornando-o apto para o exercício dos atos
jurídicos da vida civil, sem necessidade de assistência ou representação. Considera-se ato jurídico
irrevogável, isto é, uma vez emancipado, o jovem não retorna ao estado de incapacidade, exceto se
a antecipação da capacidade de fato considerar-se nula.70 Existem três modalidades de
emancipação: voluntária, judicial ou legal.

A emancipação voluntária (CC, art. 5º, parágrafo único, inciso I) se dá pela outorga dos
pais, ou de um deles na falta do outro. A concessão deverá ser declarada por meio de escritura
pública lavrada no cartório de notas, considerada elemento substancial de validade jurídica,
devendo o beneficiário contar, ao menos, com dezesseis anos completos. Ressalte-se que esta
modalidade emancipação não depende de homologação judicial para produzir seus efeitos jurídicos
esperados, sendo necessário apenas o registro da escritura pública no cartório cível competente.

A emancipação voluntária sempre deve ser concedida em benefício do menor, razão


pela qual se tem entendido que ela não exime os pais da responsabilidade civil por ato ilícito de seu
filho, assim como não determina, necessariamente, a extinção de pensão alimentícia.
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MENOR PÚBERE. ATO ILÍCITO PRATICADO POR MENOR.
EMANCIPAÇÃO DE MENOR. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. LEGITIMIDADE

68
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, v.1, p.194.
69
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.295-296.
70
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006, v.1, p.153.

25
PASSIVA. O pátrio poder é munus publico, é poder-dever, é encargo irrenunciável, insusceptível de
renuncia ou autodestituição, e o genitor que dele se exonera, pela emancipação voluntária do menor
púbere, em desacordo com a eventual imaturidade psíquica do filho menor, não evita a
responsabilidade civil solidária, sendo parte legítima ad causam passiva na ação de reparação de
danos por ato ilícito do filho” (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível
1995.001.07652. Relator: Carpena Amorim. Julgamento: 06/02/1996). “RESPONSABILIDADE
CIVIL DOS PAIS PELOS ATOS DOS FILHOS MENORES. EMANCIPAÇÃO. A emancipação
concedida pelo pai ao filho menor é liberalidade exclusivamente benéfica deste. Tem a finalidade
de liberá-lo da assistência, facilitando-lhe a prática dos atos jurídicos. [...] Nestas circunstancias a
delegação total da capacidade, outorgada pelo pai ao filho menor, não compreende exoneração da
responsabilidade, que não se substitui, nem se sucede, para delir a solidariedade nascida do ato
ilícito. Não é nulo, mas ineficaz, o ato da emancipação, em face de terceiros e do menor, prejudicial
pela totalidade da carga na obrigação de indenizar, por isso cognoscível o defeito e pronunciável de
oficio, no próprio processo” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível
186065454. Relator: Clarindo Favretto. Julgamento: 18/08/1988). “PENSÃO ALIMENTÍCIA.
MAIORIDADE CIVIL DA ALIMENTANDA. VÍNCULO DE PARENTESCO. Ainda que se
reconheça que a obrigação decorrente do pátrio poder tenha se encerrado com a emancipação da
filha, por força do vínculo de parentesco, persiste o direito à prestação de alimentos se a
alimentanda dos alimentos necessitar” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível
1.0145.01.031790-0/001. Relator: Maria Elza. Julgamento: 11/12/2003)

A emancipação judicial (CC, art. 5º, parágrafo único, inciso I) é aquela que decorre de
provimento judicial, no caso de divergência entre os pais ou no caso tutela, devendo o emancipando
contar com, no mínimo, dezesseis anos completos. No caso de desacordo entre os pais, uma vez que
o poder familiar sobre os filhos é exercido em conjunto, assegura-se a qualquer um deles recorrer ao
juiz para a solução do desacordo.71 No caso de tutela, não tendo o tutor poder suficiente para
emancipar o menor, caberá ao juiz verificar se o tutelado está em condições de ser declarado
plenamente capaz.72

O procedimento desta hipótese de emancipação está disciplinado nos artigos 1.103 a


1.112 do Código de Processo Civil. Em síntese, requerida a emancipação, por petição, conforme o
caso, de um dos pais, do tutor ou do menor, o juiz determinará a citação de todos os interessados,
inclusive, do Ministério Público. A seguir, serão produzidas as provas destinadas a demonstrar a
aptidão ou não do emancipando para reger sua pessoa e seus bens, tendo o magistrado ampla

71
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006, v.1, p.152-153.
72
CARVALHO SANTOS, José Manuel de. Código civil brasileiro interpretado. 10.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v.1,
p.297.

26
liberdade de investigação. Feita a prova, o juiz decidirá sobre a conveniência da emancipação,
levando em conta os interesses do menor. A sentença que conceder emancipação deverá ser
registrada no cartório civil para produzir efeitos em face de terceiros.

Por fim, a emancipação legal (CC, art. 5º, parágrafo único, incisos II ao V) é aquela na
qual a incapacidade cessa pela ocorrência de certo evento disposto em lei. Basta que o jovem se
amolde a uma das hipóteses legais para que adquira a capacidade plena. A emancipação legal é
automática, não sendo preciso nenhum outro ato complementar.

A primeira hipótese decorre do casamento. Adverte Clóvis Beviláqua não ser “razoável
que o chefe de uma família se ache sob a autoridade de outrem, que as graves responsabilidades da
sociedade doméstica sejam assumidas pela intervenção, ou sob a fiscalização, de um estranho”.73 A
emancipação é uma conseqüência imediata do casamento reputado válido, sendo a atribuição de
plena capacidade aos casados irreversível, ainda que a sociedade conjugal venha a ser dissolvida
pela viuvez, pela separação ou pelo divórcio.74 No casamento da pessoa menor de idade, o
interessado deve ter, ao menos, dezesseis anos, sendo necessário também autorização de ambos os
pais, conforme consignado no art. 1.517 do Código Civil. No entanto, o casamento pode ser
realizado, excepcionalmente, se o interessado não tiver alcançado a idade núbil, em caso de
gravidez, à luz do disposto no art. 1.520 do Código Civil.

A segunda hipótese decorre do exercício de emprego público efetivo. Segundo Sílvio


Rodrigues, “a regra inspira-se na idéia de que, se o próprio poder público reconhece no indivíduo
maturidade para representá-lo, ainda que numa área pequena de sua atividade, incompreensível
seria continuar a tratá-lo como incapaz”. E continua: “seria incongruente que, confiando ao menor
uma responsabilidade decorrente do exercício de cargo público, tivesse aquele ainda responsável ou
representante legal”.75

Advertem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que a expressão emprego
público utilizada no enunciado normativo codificado não é tecnicamente adequada, pois acaba por
limitar a finalidade da norma.76 A norma objetiva emancipar a pessoa que efetivamente possua e
exerça um conjunto de atribuições estatais, que, por sua vez, podem ser inerentes a um cargo ou
emprego público.77 De qualquer modo, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho apontam

73
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, v.1, p.196.
74
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.57.
75
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.58.
76
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. Saraiva: São Paulo, 2006, v.1, p.107.
77
O cargo público e emprego público constituem em unidades de atribuições conferidas ao servidor público, sendo que se
diferenciam tendo em vista a natureza do vínculo jurídico que liga o servidor ao Estado. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o
ocupante de emprego público tem um vínculo contratual, sob a regência da CLT, enquanto o ocupante do cargo público tem vínculo

27
que a referida hipótese de emancipação restou esvaziada na sistemática do novo Código Civil,
perdendo sua importância prática. Para os autores, “tal conclusão se dá pela circunstância de que
dificilmente a lei admitirá o provimento efetivo em cargo ou emprego público antes de dezoito
anos, até mesmo porque esta é a idade mínima admitida para a capacidade plena trabalhista [vide
art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal de 1988]. E, como se sabe, atingido esse patamar de
dezoito anos, já estará adquirida a plena capacidade civil”.78

A terceira hipótese decorre da colação de grau em curso de ensino superior. Parece-nos


que dificilmente alguém se emancipará através desta hipótese legal, uma vez os cursos de ensino
fundamental e médio duram cerca de onze anos e o curso de ensino superior tem duração de, no
mínimo, três anos. Desta forma, será raro uma pessoa graduar-se antes de completar seus dezoitos
anos. Contudo, relevante destacar que a referida disposição direciona-se aos superdotados, vale
dizer, pessoas portadoras de altas habilidades, que possuem direito a um atendimento educacional
condizente com as suas características específicas, inclusive, a aceleração do programa escolar
regular, conforme exposto no art. 4º, III e no art. 59, I e II, da Lei 9.394/96, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional.

A quarta hipótese de emancipação legal se dá pelo estabelecimento civil ou comercial,


ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos
completos tenha economia própria. Silvio Rodrigues assinala que a iniciativa do menor, no sentido
de produzir a sua própria manutenção pela execução atividade econômica, revela maturidade
adequada para passar ao rol dos capazes.79 E continua: “aliás, seria ilógico que, para cada um dos
atos que tivesse que praticar apresentasse ou devesse apresentar autorização paterna. Ademais, as
pessoas que com ele negociam, crentes de que está habilitado, tanto que publicamente exerce uma
atividade que envolve a assunção de obrigações, seriam prejudicadas, em sua boa-fé, se os atos por
elas praticados pudessem ser anulados, em virtude da menoridade do outro contratante”.80

A nova sistemática codificada apresenta inovações em relação a disciplina da matéria no


revogado Código Civil. Em primeiro lugar, pode-se observar a criação de um limite mínimo de
idade para a cessação da incapacidade por esta hipótese de emancipação. Em segundo lugar,
percebe-se que a emancipação pode também ser obtida por meio de relação de emprego, desde que,
em função dela, o jovem passe a ter economia própria.

estatutário, regido pelo Estatuto dos Funcionários Públicos que, na União, está contido na lei que institui o regime único – Lei no
8.112/90” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.420-421).
78
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 8.ed. Saraiva: São Paulo, 2006, v.1, p.108.
79
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.59.
80
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.59.

28
Ainda sobre esta hipótese de emancipação, não podemos deixar de recorrer à asseverada
crítica do Professor João Baptista Villela: “[...] essa linguagem que se usa e abusa hoje, muitas
vezes empregada em sentido absolutamente impróprio, está a determinar não uma relação de
causalidade, mas uma relação de dependência. Ora, se trato de economia própria em função do
estabelecimento, estou exigindo que o estabelecimento seja um prius em relação à economia
própria. Portanto, o que o Projeto [hoje, nosso código vigente] está dizendo é que primeiro tenho de
ter o estabelecimento e depois tenho que ter a economia própria, o que é um desastre completo. Por
quê? Porque a lógica correta que está presente no Código Civil hoje [atualmente, nosso revogado
código], ainda que incompletamente formulada, é a de que o menor, por sua capacidade de
planejamento e de conservar interesses, supre a falta de amadurecimento biológico, revelando-se
pessoa habilitada a operar no mundo das relações privadas, das relações sociais e econômicas do
Direito Privado”. E continua: “[...] em termos atuais, o estabelecimento civil ou comercial explicita
uma capacidade que o menor já tinha. Digamos que o estabelecimento é aquele marco de
visibilidade que o menor apresenta e que faz presumir nele tudo aquilo que é necessário para que se
reconheça o exercício da capacidade de fato. O Projeto [hoje, nosso código vigente] diz que o
menor tem que ter economia própria em função dos estabelecimentos; portanto, está dizendo, em
bom português, que ele se estabelece, mas como ainda não tem economia própria, porque esta tem
de ser obtida em função do estabelecimento, ele se estabelece sem ser capaz, com isso criando um
enorme problema. E, se ele desenvolver o seu estabelecimento num período em que não tem
capacidade, obtendo economia própria por meio dessa atividade, então, terá a emancipação”.81

Interessante observar que o novo Código Civil enuncia que a capacidade plena pode ser
atingida através da relação de emprego, desde que, em função dela, o jovem passe a ter economia
própria. No entanto, não devemos esquecer que o salário é inerente à relação de emprego,
constituindo, na verdade, expressão de uma economia própria. Parece-nos que o novo Código Civil
está utilizando uma tortuosa fórmula que leva a concluir que a simples relação de emprego é causa
efetiva de emancipação. Em nosso país, tal possibilidade legal pode ensejar várias injustiças.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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81
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AA.VV. Comentários sobre o projeto do código civil brasileiro. Conselho da Justiça Federal: Brasília, 2002, p.42-43.

29
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