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A RESPONSABILIDADE DOS TUTORES NA GUARDA E


ALIMENTAÇÃO DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO EM CASOS DE
DIVÓRCIO DO CASAL.

Juliana E. D. de Sousa – Estudante de Direito 3º Semestre – RA - M


Marcos M. Lopes – Estudante de Direito 3º Semestre – RA – M
Rodrigo A. Rabelo – Estudante de Direito 3º Semestre – RA - M
Silmeire dos Santos – Estudante de Direito 3º Semestre – RA - M

Resumo: Dentre os diversos arranjos familiares existentes atualmente, a família


multiespécies, composta tanto por humanos quanto por animais de estimação, tem aumentado
no contexto social. Nessas famílias, verifica-se que muitos casais optam por não ter filhos ou
adiam a maternidade/paternidade, cuidando dos seus pets como membros da família. Com
essa nova configuração familiar e o crescente vínculo entre os humanos e os animais de
estimação, houve o crescimento das demandas no judiciário envolvendo a guarda desses
animais como ponto central nos processos de divórcios. Surge então a necessidade de
pensarmos sobre a responsabilidade dos tutores na guarda e manutenção de seus pets em casos
de divórcio e os impactos jurídicos e civis que essa dinâmica acarreta.

Palavras-chaves: Família multiespécies. Guarda. Direito Civil. Animais de estimação.

Abstract: Among the different family arrangements, the multi-species family composed of
both humans and animals has increased in the social context. In these families, it appears that
many couples choose not to have children or postpone motherhood or fatherhood, taking care
of their pets as a family member. With this new family configuration and the growing bond
between humans and pets, there was an increase in demands in the judiciary involving these
animals as a central point in divorce proceedings. Then arises the need to think about the
responsibility of tutors in the custody and maintenance of their pets in case of divorce and
legal and civil impacts that this dynamic entails.

Keywords: Multi-species Family. Guardianship. Civil Law. Pets.

Sumário: Introdução – 1. A evolução histórica dos direitos dos animais e a guarda


compartilhada – 2. Conclusão - 2.1 - Bibliografia
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Introdução

O objetivo deste presente artigo é o de estudar e compreender os impactos civis e


jurídicos provocados por uma nova dinâmica familiar que tem crescido cada vez mais nos
últimos anos, não somente no Brasil, mas também no mundo todo, composta não apenas por
seres humanos, mas também por animais de estimação, por cachorros e gatos que ganham um
novo status no seio familiar, deixando de ser uma coisa, um objeto, para ser considerado um
ser senciente, dotado de sentimentos, consciência e alvo de afeição por parte dos demais
integrantes do núcleo familiar, passando, assim, a ser considerado como membro da família.
Nasce assim a família multiespécies, composta tanto por humanos quanto por
animais de estimação. Nessas famílias, verifica-se que muitos casais optam por não ter filhos
ou adiam a maternidade ou paternidade, cuidando dos seus pets como membros da família,
chegando ao ponto de, muitas vezes, organizar festas de aniversários para eles, sem contar o
crescente e lucrativo mercado pet, com creches e demais produtos e serviços voltados para
pet, um setor que, só em 2021, movimentou R$ 49,9 Bilhões de reais no Brasil.
Com essa nova configuração familiar e o crescente vínculo entre os humanos e os
animais de estimação, houve o crescimento das demandas no judiciário envolvendo a guarda
desses animais como ponto central nos processos de divórcios.
Surge então a necessidade de nos aprofundarmos na pesquisa sobre os impactos que
essa nova tendência traz ao ordenamento jurídico, sobretudo ao Direito Civil, e também à
sociedade, uma vez que será cada vez mais essencial pensar sobre a responsabilidade dos
tutores na guarda e manutenção de seus pets em casos de divórcios.
Para atingir esse objetivo, usaremos o método dedutivo, estudando como o Poder
Judiciário tem lidado com as questões de guarda compartilhada e procurando compreender
como a legislação civil será afetada.

1 - A evolução histórica dos direitos dos animais e a guarda compartilhada

Para se compreender a família multiespécies, mister se faz tecer algumas


considerações a respeito dos direitos fundamentais dos animais. Do ponto de vista filosófico,
alguns estudiosos já teciam pensamentos no que diz respeito à proteção dos animais, como é
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o caso do teólogo inglês Humphry Primatt que, em 1776, já falava sobre o dever da compaixão
dos homens para com os animais, influenciando a maior parte do pensamento contemporâneo
sobre o tema. Segundo Primatt, a ética deveria sempre seguir o princípio da coerência,
mantendo um julgamento imparcial também para com os animais
Bentham (1789), assim como Primatt, defendia que o ser humano possui um dever
ético e moral em relação aos animais, uma vez que são seres vulneráveis e capazes de sofrer.
Para o filósofo, não é a racionalidade que define o dever moral de cuidado, mas sim,
o sofrimento, a senciência do ser, que é justamente o fio condutor da corrente utilitarista, que
fundamenta o ativismo em defesa dos animais, e segundo a qual a felicidade é o fator de
primordial da vida, sendo um direito de todo ser senciente e o bem-estar e os prazeres são os
instrumentos para se concretizar esse direito.
E é a busca por esse bem-estar que norteia a família multiespécies ela pode ser
definida por uma relação humano-animal no qual a felicidade e a saúde do pet norteiam suas
ações, sendo formados vínculos afetivos tão fortes que os humanos reconhecem os animais de
estimação como verdadeiros membros da família, até mesmo como filhos.
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela
UNESCO, foi uma das primeiras iniciativas em âmbito internacional criadas para aumentar a
proteção dos animais, reconhecendo o direito destes à vida, ao respeito e ao amparo aos maus-
tratos, sendo que o seu 6o. artigo afirma que “cada animal que o homem escolher para
companheiro tem direito à uma duração de vida conforme a sua longevidade natural, e o
abandono de um animal é um ato cruel e degradante.”
Ou seja, de acordo com a Declaração, o animal doméstico deve ter um tratamento
digno e que valorize o seu bem-estar e a saúde, valores que também estão em evidência com
o crescimento das famílias multiespécies.
Segundo Fiuza1, a proteção dos animais tem como parâmetro geral o princípio da não
maleficência, ou, em outras palavras, são protegidos aqueles animais que não nos sejam
maléficos, embora o autor reforça que esse princípio é um parâmetro geral, uma vez que até
mesmo os animais que nos sejam perigosos podem receber proteção, como é o caso dos ratos,
cuja forma de eliminação não pode ser cruel a eles.
É possível então enquadrar os animais de estimação nessa lógica e considerá-los
como dignos de proteção, tal como ocorre com os animais criados soltos no meio ambiente e

1
FIUZA, Cesar. Direito Civil- Curso Completo. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
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protegidos tantos pela Constituição Ambiental quando pela Constituição da República


Federativa do Brasil, a qual, em seu artigo 225, estabelece a proteção dos animais, inclusive
quanto à proibição de submetê-los à crueldade.
Assim, verifica-se que os animais não humanos gozam de especial proteção, haja
vista que a Constituição lhes garante o direito à vida, à integridade física, ao equilíbrio
ecológico e a não submissão a crueldade.
Porém, quando se adentra no Código Civil, o código vigente, de 2002, relega ao
animal o status de coisa, todavia, tendo em vista a proteção dos direitos dos animais, é
impossível considerar os animais como se coisas fossem, como bem pontua Fiuza:

“(...) em relação à natureza jurídica dos animais, o senso comum jurídico tem vivido
um dilema, pois analisando o fato de que os animais não são considerados sujeitos
de direito, também não poderiam ser considerados objetos, uma vez que a lei dispõe
de direitos aos animais, porém, objetos não possuem direitos, logo, animais são
objetos, e sim, sujeitos de direitos. (FIUZA, 2014)”

No caso específico da ruptura das famílias multiespécies, ainda não existe nenhuma
lei disciplinando o tema no Brasil, porém, já é possível encontrar tal avanço em legislações
estrangeiras, como a Constituição Portuguesa, que estabelece que os animais são dotados de
sensibilidade e objeto de proteção jurídica,
Já na Espanha, no ano de 2010, um juiz da cidade de Badajoz, Luis Romualdo
Hernández concedeu a guarda alternada de um cão a um ex-casal, levando em consideração
os novos significados construídos pela sociedade urbana e os animais de estimação.

“(...) Seja como for, o cão continua a nos procurar, a vigiar nossos rebanhos e
propriedades, trabalhar em múltiplas tarefas, como detectar explosivos ou drogas,
auxilia-nos em operações de resgates, ajudam pessoas com deficiências, etc. E,
acima de tudo, talvez por causa dessa relação inata especial, o principal papel do
cão é nos fazer companhia. E dessa companhia, como consequência lógica, nascem
grandes e sinceros afetos. (HERNANDEZ, 2010)”

Corroborando com essa nova realidade e prática social, o Poder Judiciário brasileiro
também encontra precedentes, como é o caso de decisão proferida em primeira instância pelo
juiz Roberto hiroshi Morisugi2, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Santo André, julgou
procedente o pedido do requerente de visitar o seu cachorro Luke, o qual ficou com a ex-
cônjuge após um divórcio beligerante em 2020.

2
Procedimento Comum Cível 1015140-49.2020.8.26.0554 - Consultado em 21/05/2022
5

De acordo com Morisugi,

“(...) O fim do relacionamento e da boca convivência entre as partes não pode ser
óbice à visitação ao animal. Outrossim, é fato incontroverso que a aquisição se deu
na constância do casamento e não foi comprovada a falta de vínculo afetivo com o
animal ou que este seria maltratado de alguma forma quando em companhia com o
requerido. Inclusive, as postagens de mídias sociais juntadas ao processo
comprovam que o requerido sente falta da convivência com o cão Luke. (Morisugi,
2020)”

Morisugi prossegue em sua decisão afirmando que

“(...) Em síntese, a aquisição do cão “Luke” ocorreu na constância do casamento,


ainda que a iniciativa tenha sido da autora. De todo modo, independentemente
dessa iniciativa, a aquisição durante o matrimônio, que perdurou entre 21.06.2014
e 03.12.2018, gerou laço emocional que justifica a convivência do requerido com o
animal (Morisugi, 2020”

Por fim, em sua decisão, Morisugi determina o direito à guarda compartilhada do cão
Luke entre o ex-casal, determinando inclusive regras para a entrega e devolução do animal, a
divisão de despesas e a obrigatória alternância dos feriados de final de ano.

2 - Conclusão

As modificações no conceito de família, a inclusão do afeto permeando as relações


sociais e a ampliação das famílias multiespécies, sem a promulgação de lei específica sobre o
assunto, têm exigido dos operadores do direito a utilização da analogia para resolver questões
atinentes à guarda dos animais após o divórcio ou com o fim da união estável. As contribuições
dos filósofos Piter Singer e Hans Jonas foram fundamentais para marcar o surgimento da visão
moderna e para estabelecer a relação entre homem e animal.
Foi a partir de suas indagações que os indivíduos passaram a perceber seus animais
de estimação por outra perspectiva, em que a troca de afetos, os cuidados com os animais se
assemelham aos de um filho.
A afirmação de que uma espécie não humana pode assemelhar-se em alguns aspectos
ao homem, contribuiu para aproximar os indivíduos das demais formas de vida, reforçando,
assim, o papel garantidor defendido por Hans Jonas, por meio do qual, não serão observados
apenas os interesses particulares dos indivíduos.
Os pensamentos reflexivos desses filósofos podem facilmente ser colocados em
prática, já que não apresentam complexidade em seus raciocínios, pois ocorre apenas a
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aplicação de respeito e igualdade para com todos os seres vivos, não os subjugando pelas suas
possíveis vulnerabilidades.
O tema em questão, ainda, é tratado com muita estranheza por parte dos juristas
defensores do tradicionalismo e patrimonialismo, amplamente difundido no Código Civil de
1916, entretanto a defesa dos direitos subjetivos do homem, elencados com afinco na
Constituição Federal de 1988, juntamente com o Código Civil de 2002, permitem aos juristas
modernos aplicar analogicamente as leis vigentes, a fim de garantir aos animais o amplo
acesso aos seus direitos básicos.
As demandas referentes à guarda de animais de estimação são fontes de provas de
que as vivências sociais são intrínsecas ao Ordenamento Jurídico e que, por mais que este
busque calar-se, torna-se necessária a criação de leis que discorram sobre a possibilidade da
aplicação de um sistema semelhante ao de guarda e visitas aos animais de estimação, já que a
família multiespécies vem se tornando recorrente, e como toda formação familiar, esta pode
dissolver-se. Enquanto o Poder Legislativo não acompanha as nuances da sociedade, o Poder
Judiciário acertadamente tem conseguido avançar e trazer soluções como a guarda
compartilhada aos divorciados e ex-companheiros que almejam continuar participando do
convívio com o animal.

2.1 - Bibliografia

BATTESTIN, Cláudia; GHIGGI, Gomercindo. O Princípio Responsabilidade de Hans


Jonas: Um Princípio Ético para os Novos Tempos. N.º 06, Santa Maria. Thaumazein, 2010.
COELHO, Gabriela. STJ se divide sobre dever de o Judiciário regulamentar guarda de
animais. ConJur, 2018. Disponível em: Acesso em: 19 de Maio de 2022
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família. 10.. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo.
Revista dos Tribunais, 2015.
FIUZA, César. Direito Civil - Curso Completo, 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014
FROEHLICH, Graciela. Entre Índices e Sentimentos: Notas Sobre a Ciência do BemEstar
Animal. Ano 2. N.º 04. Revista Florestan, 2015. JONAS, Hans. O Princípio
Responsabilidade: Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica. Rio de Janeiro.
Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4ª Ed. São Paulo. Saraiva, 2011.

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