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1 - INTRODUÇÃO
No paradigma jurídico tradicional os animais, embora seres vivos dotados de
sensibilidade e de movimento próprio, nunca foram considerados pela sua natureza
intrínseca, mas em função de um interesse humano subjacente. O direito positivo
brasileiro, inspirado na doutrina romana clássica, trata os animais – via de regra –
sob a ótica privatista, o que se pode perceber facilmente pelas expressões ‘res’,
“semoventes”, “propriedade”, “recurso” ou “bens”. Pela visão clássica a Natureza
perde sua característica holística (‘um todo vivo’) para se tornar mero conjunto
de recursos. O que acaba justificando a proteção da fauna, segundo essa linha de
raciocínio, não é o direito à vida ou ao bem estar que cada animal deveria ter
assegurado em face de sua individualidade, apenas a garantia da biodiversidade.
Daí porque o sistema jurídico pátrio vinculou os animais antes à sua utilidade prática
do que ao respeito que se deve nutrir pelos seres vivos.
Isso se deve ao antropocentrismo. Reforçada pelo método de Descartes
(1596-1650), que no século XVII consideraria os animais meros autômatos
insuscetíveis à dor física, a postura antropocêntrica ainda tem sido a causa principal
da crise de valores que assola a humanidade. Ao negar aos bichos qualquer
possibilidade de valorização ética, sob o fundamento de que se eles possuíssem
alma a teriam revelado através da palavra, o cientificismo se impôs como doutrina
preponderante, permitiu a ascenção do racionalismo e fez com que o homo sapiens
fosse sucedido pelo conceito moderno do homus economicus. Vê-se, no mundo
contemporâneo, a derrocada de antiga concepção estóica da natureza, que desloca
o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o
usufruir. Essa postura pragmatista, permitindo o amplo domínio do homem sobre o
planeta, propagou-se na cultura ocidental a ponto de buscar um significado funcional
para tudo o que existe. Sobre os ditames da deusa-razão, o mundo se tornaria o
mundo dos homens – usufrutuários da natureza e dos animais –, concepção essa
que causou um inegável estreitamento dos nossos valores morais.
(*)
artigo escrito antes da promulgação de Lei Estadual nº 11.977, de 25.08.05.
2 - EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
A Constituição Federal de 1988, em seu primoroso artigo 225 par. 1º, inciso
VII, garantiu a proteção e a preservação de todos os animais que compõem a
3 - RETRATOS DA CRUELDADE
Ao tipificar como crime a conduta de quem “Praticar ato de abuso, maus-
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos
ou exóticos” (artigo 32 caput da Lei nº 9.605/98)), o legislador ambiental houve
por bem estender seu manto protetor a todos os animais que estejam em território
brasileiro, a fim de salvaguardá-los de abusos e maus tratos. Acontece, porém, que
a realidade do dia-a-dia é bem diferente daquilo que se vê no papel. Basta um
passeio pelos arredores da cidade para encontrar cavalos fatigados suportando o
duro fardo de uma carroça, sob chibatadas e açoites. Basta ver o que acontece
com os cães levados aos Centros de Controle de Zoonoses. Basta conhecer a
rotina dos biotérios e dos centros de experimentação animal, que sacrificam milhares
de animais em prol da chamada pesquisa científica. Basta assistir aos rodeios e às
vaquejadas, cujas provas de montaria e de laço movimentam cifras milionárias sob
um falso argumento cultural. Basta ler os jornais ou assistir a documentários
ecológicos na televisão para constatar a ousadia dos traficantes e receptadores de
animais silvestres, que submetem as vítimas da caça a autênticas barbaridades.
Basta andar um pouco pela zona rural para descobrir que galos e cães são utilizados
clandestinamente em rinhas e que é freqüente o abate clandestino de animais.
Basta investigar o destino de algumas espécies caçadas para descobrir que elas
servem às fábricas de couros e de peles. Basta saber, também, o que acontece
dentro dos matadouros, em que a indústria da carne promove a matança de animais
em ritmo industrial, utilizando-se muitas vezes de métodos cruentos e macabros.
Em nome de determinados preceitos religiosos, aliás, bovinos são submetidos ao
doloroso ritual da jugulação cruenta.
Não menos triste é a situação dos animais abandonados à própria sorte,
principalmente cães e gatos, que procuram restos de comida pelas ruas, sujeitando-
se a envenenamentos, agressões e a atropelamentos. Se capturados pela carrocinha,
são exterminados nos Centros de Controle de Zoonoses. Outros acabam destinados
aos laboratórios de pesquisa, sofrendo o martírio da vivissecção. Já os cavalos e os
burros, atrelados às carroças, cumprem – sob chicotadas – sua sina servil.
Igualmente dramática é a situação dos animais criados nas fazendas industriais,
cuja vida tão breve e sofrida cessa de forma ainda mais cruel nos matadouros. E a
lista da crueldade não para por aí. Continua nos zoológicos insalubres, que se
transformam em vitrines vivas para a satisfação da curiosidade humana. Também
nos circos, que subvertem a natureza intrínseca dos animais a ponto de fazer deles
fantoches amedrontados. Nos criadouros que fornecem carne de javali, de tartaruga,
de jacaré ou de avestruz a paladares exóticos. Nas associações de passeriformes,
cujos aficcionados se comprazem em privar as aves de seu natural dom de voar.
Também nos pesque-pagues e nas competições de pesca esportiva, onde a
recreação humana se perfaz à custa do sofrimento dos peixes Isso tudo sem falar
das impressionantes estatísticas da matança animal que se vêem, diuturnamente,
nos CCZ, nos laboratórios científicos e nos abatedouros comerciais. Em que pese
a vigência de tantas leis de proteção animal, essa lista parece não ter fim. Cabe ao
Ministério Público, órgão legitimado à defesa jurídica dos animais, lutar contra
tantos abusos e ilegalidades.
A violência contra os animais alcança também os domésticos. Segundo
dados do IBGE, a população canina no Brasil representa 1/7 da população humana,
ou seja, 22 milhões de animais. Embora a maioria dos cães possua um lar que lhe
permita, em tese, viver de forma digna, os animais abandonados representam
30% daquele total. Há, portanto, cerca de 7 milhões de cães largados à própria
sorte. Eles sentem fome e sede, querem se abrigar do frio e da chuva, buscam,
carinho e felicidade. Rejeitados pelos donos ou enxotados em cada esquina,
acabam vítimas da violência urbana, da indiferença dos homens e dos veículos
que matam. Permanecem à mercê da famigerada carrocinha, que os levará – se
capturados - aos galpões em que o massacre é institucionalizado, até porque
nem todos os municípios brasileiros desenvolvem programas de controle de
natalidade (esterilização) ou campanhas pedagógicas (posse responsável, adoção
voluntária, educação ambiental) em relação aos animais, cujo destino acaba sendo
o extermínio nos Centros de Controle de Zoonoses. Somente no município de
São Paulo, centenas de animais saudáveis perdem a vida em um procedimento
que – enfemisticamente – se denomina eutanásia. Como bem enfatiza a advogada
Vânia Rall Daró, de Bauru, o procedimento adotado pelos CCZ nada tem a ver
com suposta morte piedosa: “Se considerarmos que para caracterizar a
eutanásia é necessário haver um estado de sofrimento causado por uma
doença incurável, poderemos deduzir indubitavelmente que nos centros de
controle de zoonoses nacionais não ocorre uma verdadeira eutanásia, uma
vez que os animais mortos, via de regra, não apresentam dores insuportáveis
decorrentes de doença irremediável. Nesse sentido, a morte provocada não
representa um alívio, muito menos um benefício para os animais assim
tratados, constituindo, isto sim, um extermínio” (in “Aspectos legais da
eutanásia”, palestra proferida no 3o Congresso Brasileiro do Bem-Estar Animal,
Embu das Artes, outubro de 2000).
de modo diverso ao Código Civil, alterando a perspectiva privada que recaía sobre
as espécies nativas. De certa forma, ela representou um passo necessário para a
mudança de postura que se concretizaria, duas décadas depois, com o advento da
Constituição Federal de 1988.
A situação dos animais poderia ser melhor não fossem certos subterfúgios
legais que, em termos práticos, transformam uma lei proibitiva em permissiva de
comportamento cruel. A caça, cuja modalidade profissional é vedada no Brasil, acaba
sendo aceita para fins científicos e de subsistência, com respaldo dos próprios órgãos
técnicos que deveriam combatê-la. No Estado do Rio Grande do Sul, o IBAMA
liberou a caça amadora em sete municípios, possibilitando aos aficcionados do pseudo-
esporte a perseguição e o abate de marrecas, lebres, pombas e pássaros-pretos.
Este mau exemplo encontra amparo legal na própria legislação faunística brasileira,
que proíbe a caça, salvo “se peculiaridades regionais comportarem o exercício”
(art. 1o § 1o da Lei nº 5.197/67) ou nas hipóteses em que houver “a devida permissão,
licença ou autorização da autoridade competente” (art. 29, caput, da lei nº 9.605/
98). A perseguição e o abate de um animal, realizadas pelo homem nas áreas de
caça, são condutas pusilânimes e cruéis, que se perfazem em condições absolutamente
desiguais. Registre-se, entretanto, que em louvável sentença proferida em 28 de
junho de 2005, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul impediu a concessão, pelo
IBAMA, de licenças para caça amadora em território gaúcho. Que essa decisão
possa ser em breve confirmada pela Superior Instância, acabando-se de vez com a
vergonha que ainda representa a caça em território brasileiro.
O costume de manter pássaros presos em gaiolas também pode caracterizar
crime ambiental, haja vista os diversos subterfúgios utilizados pelos caçadores.
Aves silvestres apreendidas em gaiolas, se comprovada sua origem ilegal, devem
ser encaminhados a centros de readaptação (viveiros) que lhes permitam posterior
soltura em seu habitat. De acordo com a Instrução Normativa nº 06, de 25.4.2002,
do IBAMA, todos os criadores amadoristas de passeriformes da fauna silvestre
brasileira precisam estar cadastrados no referido Órgão até 31/12/2002. Quanto
aos criadores comerciais, devem observar as normas ditadas pelas Portarias 117 e
118, do IBAMA. Há que se dizer, todavia, que este tipo de prática – o de criar aves
em cativeiro – não deixa de ser uma violência à natureza desses animais. Nada
justifica o confinamento de uma ave para mero deleite humano, ainda que inexista
a intenção de comercializá-lo. A mera ausência de intuito negocial na conduta do
indivíduo que a mantém em cativeiro não deveria favorecer o criador, porque o
simples fato de um pássaro ser privado de seu dom de voar já constitui, do ponto de
vista moral, uma crueldade. Na prática, os criadouros regulamentados e a origem
estrangeira da maioria das aves destinadas ao comércio autorizam, do ponto de
vista legal, a prisão perpétua dessas frágeis criaturas aladas, as quais padecem –
quase sempre em minúsculo cárcere – por um crime que não cometeram. Os
ser substituído, anos mais tarde, pela Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67). Em
1981, quando a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) ensaiava
seus primeiros passos, o então promotor público Renato Guimarães Júnior já antevia
o futuro do Ministério Público como defensor da natureza (in “O Futuro do Ministério
Público como Guardião do Meio Ambiente e a História do Direito Ecológico”. São
Paulo, Justitia, vol. 43, 1981), vaticínio esse que se concretizaria – pouco depois –
com a edição da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.437/85). Não se pode esquecer,
todavia, que desde 1934 os promotores já estavam legitimados a representar os animais
em juízo, por força do Decreto federal nº 24.645. Em original análise dos paradigmas
éticos do nosso sistema jurídico, o procurador de Justiça Antonio Herman Vasconcellos
e Benjamin vislumbrou no Decreto 24.645 “a primeira incursão não-
antropocêntrica do século XX, muito antes da era do ambientalismo”. Para ele,
o decreto getulista que estabelece medidas de proteção aos animais, tanto na esfera
penal como no âmbito civil, ainda está em vigor: “Na época em que foi editado, o
Decreto nº 24.645/34 tinha força de lei. Logo, só lei aprovada pelo Congresso
Nacional poderia revogá-lo. Neste ponto, cabe lembrar, o Decreto nº 24.645,
de 10.7.34, de evidente (e surpreendente) orientação biocêntrica, foi
promulgado na mesma década do nosso primeiro Código Florestal, extremamente
antropocêntrico” (in “A Natureza no Direito Brasileiro: Coisa, Sujeito ou Nada
Disso”. Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, ano
I, nº 2, julho de 2001). Oportuno ressaltar, a propósito, que ao prever a representação
dos animais na relação processual (munus esse atribuído ao Ministério Público ou às
sociedades protetoras), tal diploma os tratou não como coisa ou objeto, mas como
legítimos sujeitos jurídicos.
Àqueles que insistem em considerar superado o Decreto nº 24.645, sob o
argumento de que seus dispositivos não têm aplicabilidade prática, ainda mais depois
do advento do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, é preciso dizer que os termos abrangentes
do diploma getulista – reconhecimento dos animais como seres tutelados do Estado,
representação processual pelo Ministério Público, hipóteses típicas de maus tratos,
etc. - não foram revogados por nenhuma lei posterior a ele, nem expressa nem
tacitamente. Ainda que assim não fosse, sua natureza é a de lei – porque outorgada
durante o regime do Governo Provisório – de modo que somente uma outra lei
poderia inviabilizá-la, o que até o momento não aconteceu. Dessa maneira, mesmo
que as situações de maus tratos ali contempladas possam ser definidas, atualmente,
sob a ótica de crime ambiental, não se pode ignorar que o Decreto nº 24.645 traz o
animal, individualmente considerado, como destinatário da tutela jurídica – e não a
fauna em abstrato ou o ambiente natural – circunstância essa que estabelece uma
distinção valorativa entre os dois diplomas e que permite conciliá-los entre si, ainda
que, do ponto de vista teleológico, haja similitude conceitual entre os dois
ordenamentos. O Código de Caça, paradoxalmente, tratava os animais silvestres
porque o princípio constitucional protetivo dos animais (que diz respeito à vida) se
sobrepõe às normas civis alusivas ao direito de propriedade (que trata das coisas).
Se qualquer cidadão pode agir diante de uma ocorrência de crueldade, ao promotor
de Justiça essa faculdade se transforma em dever de ofício, porque a Instituição
detém uma parcela do próprio poder público, incumbindo-lhe defender e proteger a
sociedade que representa. Afinal, dentre as funções inerentes ao Parquet, como
órgão receptivo das demandas sociais, está aquela relacionada à ordem jurídica
justa. Neste sentido, a educação deve se voltar para o exercício da cidadania e
para a tutela dos oprimidos, alcançando também os animais que sofrem.
Dentre os princípios constitucionais que informam a política de proteção à
fauna, no Brasil, podem ser enumerados os seguintes: a) da legalidade: enquanto
é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é
permitido fazer o que a lei autoriza (art. 37 caput das CF), concluindo-se que a
matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança da sociedade fere esse
princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saudável, pelo fato dele
não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de
alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder
público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme
preconizado no art. 225 caput, inciso VI, da CF e art. 2o, X, da Lei nº 6.938/81; d)
da precaução: os objetivos do Direito Ambiental, também nas questões relacionadas
aos animais, exigem ações preventivas, mesmo porque o sofrimento e a morte
costumam ser irreparável; da representação: os animais, em razão de sua peculiar
condição e porque criaturas tuteladas pelo Estado, precisam ser devidamente
representados em juízo, atribuição essa que normalmente toca ao Parquet.
A ação do Ministério Público em defesa da fauna possui extraordinária
importância social. Não é preciso muito esforço imaginativo, aliás, para evocar
hipóteses capazes de inspirar a atuação dos promotores que desempenham as
funções de curadores do ambiente e dos animais. Dentre tantas medidas permeadas
pelo ideal de justiça e pela ética da vida, algumas merecem ser lembradas: processar,
na esfera penal e cível, aqueles que praticam crueldade para com os animais;
opor-se aos espetáculos que utilizam animais para fins de diversão pública,
notadamente circos, rodeios e vaquejadas; exigir a utilização de métodos substitutivos
à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça impunemente a
vivissecção. E mais: combater a criação de animais pelo método da produção
intensiva, em que a avidez do lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos
confinados; lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a um
padecimento atroz, devido à ausência de prévia insensibilização; atuar contra a
caça, ocontrabando de animais, a indústria de peles e a biopirataria; conscientizar
os homens do caráter sagrado da vida; resgatar, enfim, a individualidade dos animais,
como seres sensíveis que são.
5 - ASPECTOS PRÁTICOS
Afora o eficaz instrumento processual representado pela ação civil pública,
que normalmente precede de inquérito civil ou de peças de informação, a promotoria
de justiça costuma se utilizar – no âmbito administrativo – dos Termos de
Compromisso e Ajustamento de Conduta (TAC), previstos no artigo 5o, § 6o, da
Lei nº 7.347/85: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados
compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante
cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Esse tipo de
ação preventiva, embora de natureza cível, pode evitar a ocorrência de maus tratos,
repercutindo assim no âmbito penal. Trata-se de uma transação administrativa
celebrada, normalmente, entre o Ministério Público e o(s) pretenso(s) autor(es) do
dano ambiental, visando a prevenir o litígio (evitar o ajuizamento de ação civil
pública) ou a encerrá-lo (celebrar acordo na ação em andamento). Importa dizer,
em termos práticos, que o Termo de Compromisso e Ajustamento de Conduta –
como título executivo extrajudicial que é – assume vital importância na solução dos
problemas relacionados ao ambiente, a exemplo das ocorrências que envolvam
situações de maus tratos a animais. Uma vez firmado, implica em obrigação de
fazer ou de não-fazer à parte compromissada, sob pena de multa diária, só podendo
ser desconstituído por decisão judicial. Sua validade é ampla, tanto que se mostra
capaz de vincular a pessoa jurídica – prefeitura, por exemplo – àquilo que se acordou,
independentemente da transitoriedade do poder político municipal. Enquanto uma
lei pode ser revogada, o TAC não, de modo que obrigação assumida permanece
íntegra e, em caso de descumprimento, torna-se passível de execução. Ao buscar
a utilização desse recurso para a proteção dos animais, impedindo ou cessando
práticas agressivas, cruéis ou abusivas, o que normalmente inspira o promotor de
justiça é o princípio da prevenção. Como louvável tentativa de evitar um dano em
potencial, à natureza ou aos animais, ou, então, de corrigí-lo, o TAC deve enfrentar
não apenas o problema em si, mas as suas causas. Nada mais justo e coerente.
Afinal, o Direito precisa se projetar muito além da perspectiva repressoras e
punitivas, assumindo uma postura pedagógica hábil a prevenir o dano.
atual estado de coisas. As leis, por si só, não têm a capacidade de mudar
mentalidades, porque o equilíbrio social preconizado pelo Direito vigora em meio a
fragilidades e a incertezas. É preciso que as pessoas apurem sua sensibilidade
para respeitar os animais pelo que eles são, jamais em função de sua serventia.
Nesse contexto, a questão ética não pode permanecer ignorada. Alega-se que a
suposta graduação intelectual entre as espécies serve de parâmetro para conferir
aos homens a exclusividade de obter direitos, como se os animais fossem
insignificantes do ponto de vista moral. Na verdade, a tutela jurídica da fauna não
se vincula, necessariamente, ao bem estar humano. Ela basta por si. Afinal, o
discurso ético em favor dos animais decorre não apenas da dogmática inserida
neste ou naquele dispositivo legal protetor, mas dos princípios morais que devem
nortear as ações humanas. O direito dos animais envolve, a um só tempo, as teorias
da natureza e os mesmos princípios de Justiça que se aplicam aos homens em
sociedade, porque cada ser vivo possui singulariedades que deveriam sempre ser
respeitada. A postura compassiva perante a vida precisa se somar aos deveres
humanos relacionados ao respeito e à proteção dos animais, erigindo-se tudo isso
em uma única e relevante questão filosófica.
6 - JURISPRUDÊNCIA CRIMINAL
Rodeio – ação penal proposta contra organizadores do Vale Rodeio Show, em
São José dos Campos, por abuso e maus tratos a animais – responsabilidade
penal em face do uso de ‘corda americana’ em touros e cavalos, à guisa de
sedém – comprovação de que se trata de equipamento capaz de provocar dor
– Condenação dos réus a pena de multa – Infringência ao artigo 32 caput da
Lei nº 9.605/98 c/c artigo 71 caput do Código Penal – Prescrição reconhecida,
posteriormente, pela Superior Instância, prejudicado o exame de mérito (autos
nº 813/98, 4a. Vara Criminal de São José dos Campos).
Farra do boi – crueldade a animais – alegação de que se trata de
manifestação cultural – inadmissibidade – A obrigação de o Estado garantir
a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e
difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso
VII do artigo 225 da CF, no que veda a prática que acabe por submeter os
animais à crueldade - Aplicação do art. 225 § 1o, VII, da CF – Voto vencido
(RE nº 153.531-8 – Santa Catarina, 03.06.1997, RT 753/101).
Caça – crime contra a fauna praticado dentro de unidade de conservação –
indivíduo surpreendido em atos de caça, após abater um uru em reserva
florestal - infringência ao art. 29, § 4o da Lei 9.605/98 – Pena corporal
substituída pela restritiva de direitos, ou seja, prestação de serviços à
comunidade (TRF 4a. Reg., Acr. 96.04.63430-5/SC, 1a. T., Rel. Juiz Vladimir
Freitas, j. 15.06.1999).
7 - JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
Crueldade em rodeio – Ação civil pública ajuizada pela Promotoria de
Cravinhos a fim de impedir rodeio. Festa regional que envolve maus tratos e
crueldade. Utilização de instrumentos e métodos que causam sofrimento a
cavalos e touros na arena. Concedida liminar para que os responsáveis pelo
evento abstenham-se de usar sedém, esporas de formato pontiagudo ou
cortantes e de sinos no pescoço dos animais, porque se constituem meios
dolorosos de instigação (proc. nº 937/95, Comarca de Cravinhos).
Abuso em circo – Ação civil pública movida pelo Ministério Público contra
companhia circense que pretendia utilizar animais em exibições públicas.
Hipótese de abuso, consistente em obrigar tigres, macacos, elefante, urso,
lhamas e cães, dentre outros bichos, a perfazer atividades estranhas à sua
natureza. Pedido de liminar deferido, vedada a apresentação dos animais no
circo. Decisão de natureza satisfativa, extinguindo-se o feito sem julgamento
de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC (autos nº 585/03, 3ª Vara
Cível de São José dos Campos).
Mortandade de peixes – Ação civil pública proposta pela Promotoria de
Sorocaba contra indústria local. Redução do oxigênio da água provocada
pela diminuição da vazão nas barragens de usina hidrelétrica de
responsabilidade da requerida. Indenização pleiteada em vista da conseqüente
mortandade de peixes do rio Sorocaba (proc. nº 2.110/93, 5a Vara Cível de
Sorocaba).
TV Animal – Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal
contra rede emissora de televisão que exibia imagens de maus tratos a
animais, dentre as quais luta livre entre caranguejos. A requerida, abstendo-
se de fazê-lo, passou a veicular campanhas ecológicas. Acordo homologado
(proc. nº 89/00377540/7, da 19a Vara da Justiça Federal).
Abate cruel – Matadouro municipal que vinha abatendo gado a marretadas,
método esse vedado por lei em razão do sofrimento imposto ao animal.
Ação civil pública proposta na comarca de São Bento do Sapucaí.
Municipalidade condenada a adequar o matadouro às especificações
modernas e a substituir o sistema arcaico de abate pelo método científico-
humanitário (proc. nº 284/92, comarca de São Bento do Sapucaí).
Apreensão em circo – Utilização irregular de animais silvestres em circo.
Acomodações inadequadas e falta de registro dos animais no Ibama.
Ocorrência de maus tratos, ensejando ação civil pública pelo Ministério
Público. Recurso contra decisão judicial que liberava os animais ao depositário,
sendo provido para que o agravado faça a entrega dos animais à Fundação
Zoológico da cidade do Rio de Janeiro (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, Agravo de Instrumento nº 108.871-5, São Sebastião).
Fechamento de zoológico – Ação Civil Pública interposta pelo Ministério
Público Estadual em favor de 30 animais da fauna silvestre aprisionados em
condições cruéis. Estabelecimento particular montado em desconformidade
à lei. Ofensa ao decreto nº 24.645/34. Pedido de fechamento do zôo com a
reintegração dos bichos, na medida do possível, ao seu habitat natural (proc.
nº 218/88, comarca de Aparecida).
Jegue no carnaval - Ação civil pública, com pedido de liminar, movida pela
Promotoria de Justiça da comarca de Porto Seguro/BA, em face da
exploração abusiva de um animal para o divertimento humano. Bloco
carnavalesco “Jegue Elétrico” cujo mascote – um jumento extenuado –
puxava carroça com carga estimada em 300 kg de equipamentos sonoros,
com 2.000 watts de potência. Hipótese típica de abuso em animal de tração
(proc. nº 535549/99, Vara Cível da comarca de Porto Seguro).
Instrumentos de tortura – Ação civil pública relacionada à proteção dos
animais utilizados em rodeios. Proibição de uso de sedém, peiteiras e esporas,
equipamentos que causam dor e tormento. Pedido do Ministério Público julgado
procedente, com declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, da
Lei Estadual nº 10.359/99 (proc. nº 326/99, 5ª Vara da comarca de Itu).
Irregularidades em canil – Ação civil pública ambiental, com pedido de
tutela antecipada, em face de um canil que submetia animais a maus tratos.
Solicitação ministerial no sentido de o requerido cuidar adequadamente de
todos os animais sob sua tutela e resguardar-lhes a integridade física, abstendo-
se de quaisquer atos ou condutas que possam caracterizar maus tratos, abuso
ou crueldade (proc. nº 1.647/01, Vara Cível da comarca de São Vicente).
Dano moral – Ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra
emissora de televisão que, durante filmagens de uma minissérie, perdeu animal
em risco de extinção (leopardo) cedido por determinada ONG mediante
delegação do Ibama. Objetivo de obter reparação pelos danos materiais e
morais ocasionados à fauna silvestre brasileira, haja vista o misterioso
desaparecimento do felino sem que houvesse a devida cautela pela rede
televisiva (proc. nº 2.335/01, 4ª Vara Cível da comarca de Jundiaí).
Jugulação cruenta – Matadouro que perfazia abate de animais
inobservando os termos da Lei do Abate Humanitário. Realização do ritual
muçulmano, sem prévia insensibilização dos bovinos. Crueldade reconhecida.
Ação civil pública julgada parcialmente procedente, declarando-se incidenter
tantum a inconstitucionalidade da lei estadual nº 10.470/99 (proc. nº 2.144/
03, 7ª Vara Cível de São José dos Campos).
Inquérito Civil – Retenção de navio – Procedimento instaurado pela
Promotoria de São Sebastião contra navio estrangeiro que derramou 20.000
litros de óleo nas águas litorâneas brasileiras, ocasionando sérios danos à
fauna ictiológica – Medida cautelar de Produção Antecipada de Provas para
permitir imediato exame pericial na embarcação – Navio retido no porto até
a prestação de caução no valor de US$ 10 milhões, para garantir a indenização
dos danos ambientais sofridos (autos. nº 429/91, comarca de São Sebastião).
Entre o fim do século XIX e meados do século XX, nos Estados Unidos,
tornaram-se célebres dois tipos de entrenimento popular associados a aberrações: os
terríveis “museus da moeda”, nos quais se mostrava aos espectadores – a título
supostamente educativo – pessoas vítimas de deformações e anomalias genéticas,
ao preço de uma moeda de prata. Também se tornaram famosos os “circos itinerantes”
Barnum & Bayle’s Circus, bem como o Sell’s Circus, cujas “atrações” eram anuncia-
das a altos brados pelas ruas. Nesses circos de horrores, em que se atraía a platéia
com um sádico apelo à curiosidade, exibiam-se seres humanos deformados, ora com
três pernas ou quatro braços, homens padecendo de obesidade mórbida, outros de
anorexia, mulheres barbadas, gêmeos siameses, pessoas com elefantíase, homem
com duas cabeças, etc. (in “Freaks, Aberrações Humanas – a exploração de fenô-
menos físicos humanos em circos e espetáculos itinerantes”, Editora Livros e Livros).
Interessante notar que a vida dos animais mantidos hoje nos circos itinerantes
não difere muito daquela rotina de humilhação a que eram submetidas as pessoas
fisicamente deformadas. Assim como é desonroso exibir a miséria humana, também
é desonroso e cruel exibir animais para nosso divertimento. Mas a conhecida lei do
mais forte, que determina aquilo que podemos chamar “ética da dominação”, fez
com que o ser humano se regozijasse em subjugar as demais criaturas. Isso nos
propiciou, ao longo dos séculos, a aura de superioridade que vem dificultando nosso
verdadeiro processo evolutivo.
É o que constatou o zoólogo Desmond Morris, especialista em comportamento
animal:
“Uma das conseqüências ainda sentidas da atitude que considera o
homem superior aos animais é o que pode ser chamado de Caricatura
dos Animais. Para torná-los inofensivos, transformamo-os em
caricaturas engraçadas, como se fossem impostores ridículos apenas
de nosso escárnio (...) O fato de que cada um desses animais artistas é
grandemente superior à raça humana em determinados aspectos é
cuidadosamente ignorado. Somos nós que decidimos as condições nas
quais eles devem se apresentar e essa condições são sempre nossas, de
modo que nossa posição não fique ameaçada” (in “O Contrato Animal”,
Editora Record, p. 40).
Ora, o que significa estalar o chicote para que os tigres se curvem resignados
ou que saltem em direção ao fogo? Qual a função do bastão que faz um mamífero
de quase uma tonelada se deitar diante do domador? Por que os camelos se ajoelham
e os cavalos correm em círculos? E o urso ciclista, como desenvolve tal façanha?
Já os macacos chimpanzés, por acaso têm alguma afinidade ou afeição à música
humana a ponto de fazê-los rebolar no picadeiro? Quem fornece resposta a essas
indagações é Desmond Morris:
2. DOS FATOS
O circo ___________, que já anuncia sua estréia aqui em ___________,
não foge à regra das companhias circenses que insistem em manter animais atuando
dessa forma em seus espetáculos. Isso porque, a exemplo de outras empresas do
gênero, faz com que os bichos executem números antromorfizados, conduta essa
que, segundo o parecer técnico que instrui esta inicial, da lavra da bióloga
_________________, revela-se hostil à natureza deles. Conforme se verifica do
expediente encaminhado à promotoria (cópia anexa), a requerida pretende a
utilização dos seguintes animais no picadeiro:
• 3 dromedários (dois machos e 1 fêmea)
• 1 camelo
• 4 lhamas (dois machos e duas fêmeas)
• 6 tigres siberianos (quatro machos e duas fêmeas)
• 3 tigres filhotes (2 machos e 1 fêmea)
• 1 chimpanzé (fêmea)
• 1 urso (Fêmea)
• 1 avestruz
• 3 jumentos (um macho e duas fêmas)
• 3 mini-pôneis (machos)
• 3 cavalos
• 1 égua
• 7 patos
• 5 ovelhas
• 3 carneiros
• 1 ganso (fêmea)
• 4 galos
• 4 galinhas
Sabe-se, ainda, que o circo ________________ possui à sua disposição
uma elefanta, de nome ______. Esse animal, ao que consta dos informes anexos,
costuma ser freqüentemente utilizado para fazer propaganda do circo, mantido
acorrentado defronte aos locais em que se instala a lona dos picadeiros, à guisa de
“anúncio vivo”, em condições extrememente hostis à sua natureza. Permito-me
juntar, a propósito, uma fotografia da silhueta do elefante _____em meio à
desoladora realidade circense, registro obtido por ocasião da temporada transcorrida
no município de Bauru, no mês de dezembro de 2000. Inúmeros protestos
organizados por associações de proteção animal já foram realizados, em São Paulo,
com o propósito de livrar ______de sua triste sina servil, sem que até hoje nada se
conseguisse de concreto em favor dela. Que a esperança de se libertar esse animal
do jugo do circo possa ser concretizada pelo Poder Judiciário de _____________,
fazendo cessar, enfim, tamanha injustiça...
Não é preciso muita imaginação, aliás, para deduzir as anômalas performances
desses animais em cena, algo certamente incompatível ao compartamento que
teriam se não fossem subjugados pelo duro adestramento. Elefante forçado a sentar
em uma banqueta e a deitar-se no palco, tigres saltando em meio a argolas de fogo
ou pulando de um lado para outro ao estalar da chibata, urso ou macacos ciclistas,
cavalos e camelos simulando passos de dança, bichos domésticos saltando de
grandes alturas ou fazendo demonstrações de equilíbrio, tudo isso em situações
capazes de ofender o preceito constitucional que veda a submissão de animais à
crueldade (artigo 225 § 1o, VII, da CF) e o próprio dispositivo ambiental que tipifica
abuso e maus tratos para com animais (artigo 32 da Lei nº 9.605/98). Conforme se
verifica do artigo “Circo: diversão ou castigo?”, publicado no boletim Notícias da
Arca (anexo), os métodos de adestramento são, invariavelmente, cruéis.
Pouca gente sabe que, por trás das cortinas do circo, os animais cativos
cumprem, em silêncio, um perpétuo martírio. Retirados de seu habitat ou impedidos
de viver de acordo com sua própria natureza, recebem – desde cedo – cruel
condicionamento. Precisam aprender a executar os números impostos pelos
domadores para, assim, conquistar cada vez mais a simpatia do público pagante.
Quanto mais insólitas suas apresentações, melhor para a companhia circense.
Especializados em fazer tigres saltarem em meio a argolas incandescentes, a
exigirem obediência aos leões apenas com o estalo dos chicotes, a ensinar macacos
e ursos equilibrarem-se em biciclos, a mandar um elefante sentar em uma banqueta,
a organizarem um balé de cãezinhos vestidos como gente, os profissionais da doma
impõem sua vontade pela força bruta.
Não há escolha para os animais cativos. Longe dos olhos da platéia, os
treinamentos condicionantes desafiam sua natureza intrínseca, mediante comandos
verbais, espancamentos, aplicações de choques elétricos, privações alimentares,
tudo isso para exigir dos animais um comportamento antropofomórfico. O que era
natural transforma-se, pelo medo, em comportamento induzido e/ou condicionado,
cujas ações e gestos acabam sendo direcionados, pelos animais, aos fins que se
lhes impuseram. Algo que a ciência comportamental denomina fator condicionante
externo, segundo a precisa análise da bióloga Fernanda Malagutti Tomé:
“Pode-se afirmar, portanto, que a utilização de animais como ‘artistas’
nos picadeiros de circo decorrre de um condicionamento
comportamental que lhes contradiz a prória natureza (...) A modificação
essencial do comportamento, em todas essas hipóteses, mostra o
3. DO DIREITO
Do ponto de vista moral e ecológico, a tutela dos animais, sabiamente
preconizada no artigo 225 § 1o, VII da atual Carta Magna, restou viabilizada – em
sede penal – com a vigência da Lei dos Crimes Ambientais. O legislador ordinário,
seguindo o mandamento constitucional impeditivo das práticas que coloquem em
risco a função ecológica da fauna, que provoquem a extinção das espécies ou,
então, que submetam os animais à crueldade, estendeu a proteção jurídica da fauna
de modo a abranger os bichos silvestres (aqueles que vivem livres em seu habitat
peculiar), os exóticos (originários de outros países), os migratórios (espécies
nômades, que atravessam fronteiras), os domésticos (animais já habituados ao
convívio humano, em regra mansos) e os domesticados (espécies silvestres que se
tornaram dependentes do homem), sejam eles do meio terrestre, aéreo ou aquático.
Ainda que aparentemente as leis ambientais brasileiras priorizem a tutela da
fauna silvestre, por estar ela inserida no contexto dos ecossistemas e da
biodiversidade, não se pode esquecer que nossa Constituição Federal vedou a
submissão de animais à crueldade, fazendo-o em sentido amplo. Desse modo, a
fauna doméstica e a domesticada, nativa ou exótica, normalmente submetida às
regras civis do direito de propriedade, também mereceu a atenção do legislador e,
via de conseqüência, a tutela jurídica pelo Ministério Público.
Afinal, o índice de crueldade em relação a esses animais, vítimas de um
perverso sistema econômico ou das inúmeras expressões da maldade humana, na
cidade ou no campo, é impressionante. A lei brasileira, ao incriminar as práticas
que submetam os bichos a atos cruéis – abusos, maus-tratos, ferimentos ou
mutilações – ergueu voz em favor da incolumidade de todas as espécies, permitindo
concluir que, na hipótese do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, o bem jurídico preponderante
é o respeito devido aos animais. Estes, e não a coletividade, é que devem figurar
como sujeitos passivos proponderantes no crime de crueldade.
Acontece que nos circos a natureza dos animais acaba sendo subvertida por
um alienante discurso cultural relacionado à suposta finalidade recreativa da fauna.
Transformados em mercadoria de troca ou propriedade particular, tornam-se os
animais mudos escravos, peças de reposição, fantoches de uma triste comédia. O
cruel adestramento, mediante açoites e punições, faz com que eles obedeçam ao
comando do domador, anunciado pelo estalo da chibata. Assim, tigres saltam em
meio a argolas de fogo, ursos pedalam bicicletas, chimpanzés dançam com roupas
femininas, gatos pulam de grandes alturas, elefantes sentam-se em banquinhos,
leões se curvam em resignação.
Tamanha opressão não se limita aos picadeiros ou aos treinos, mas às
contínuas viagens dos circos itinerantes, sob chuva e sol, calor e frio, em estradas
áridas e turbulentas. Privados de liberdade e de respeito, os animais mantidos circo
formam um triste comboio de resignados prisioneiros. O aplauso do público, ao
final de cada apresentação deles, representa – na realidade – um inconsciente
estímulo à insensibilidade humana.
campo, de sol a sol, sob açoites. É o que também ocorre nos picadeiros de circo,
quando os animais se vêm forçados a perfazer, em cena, condutas que normalmente
não fariam. Esses bichos aprenderam, desde cedo, que não têm escolha: devem
sempre atender ao comando do domador. O que não se costuma contar, todavia, é
a forma como se realiza a doma, invariavelmente permeada pela violência física e
píquica. Todos esses procedimentos, enfim, são abusivos.
Sobre isso os atestados veterinários se calam. Sobre isso o IBAMA não se
manifesta. Sobre isso, porém, o parecer da bióloga Fernando Malagutti Tomé é
elucidativo: a análise comportamental e etológica de um animal submetido ao
trabalho comprova que a atividade circense é abusiva em relação aos bichos, sejam
eles silvestres, exóticos, domésticos ou domesticados. Se a nossa Carta da República
veda expressamente a crueldade para com animais, evidente que aquilo que acontece
com os bichos destinados ao circo deve ser objeto de tutela jurídica.
Mesmo que o circo ____________ tenha atendido às exigências técnicas
do IBAMA, ou que tente demonstrar – mediante a juntada de pareceres ou
atestados veterinários - que seus animais estejam com boa saúde e sem quaisquer
lesões físicas, isso não afasta a motivação precípua desta ação. Afinal, o cerne da
questão ora discutida não se esgota no aval administrativo, tampouco se limita às
conclusões veterinárias superficiais, projetando-se muito além disso, a ponto de
alcançar aspectos de natureza biológica, psíquica e comportamental dos animais,
com implicações de ordem cultural e filosófica, além do alcance jurídico do conceito
de abuso e crueldade. Assume o tema, conseqüentemente, um interesse JURÍDICO
relevante, porque os atos de abuso para com animais também foram considerados
pelo legislador como crime ambiental.
Ora, o caráter itinerante de uma companhia circense não atende às
necessidades biológicas de seus animais, cuja vida se resume a pequenos
deslocamentos entre a carroceria dos caminhões de transporte, a baia ou as jaulas
e o picadeiro dos espetáculos. Seria temerário afirmar que os animais vivam felizes
desse jeito, quando se sabe que sua natureza intrínseca opõe-se ao cativeiro. Um
contrasenso, ademais, falar em bem-estar de uma elefanta usado geralmente como
propaganda e/ou chamariz ao público, acorrentado à vista do público no local em
que se pretende realizar o espetáculo. Como sustentar que animais nessas condições,
encarcerados em pequenas celas e longe de seu habitat - geográfico e climático,
forçados a fazer aquilo que naturalmente não fariam, são bem tratados?
Interessante frisar que, na hipótese específica dos circos, os animais utilizados
no picadeiro costumam executar seus números depois de um cruel adestramento,
em que não raras vezes o fornecimento de comida fica condicionado, à guisa de
recompensa, ao êxito da performance. Fere o bom senso dizer que essas
apresentações demonstram habilidades animais em função dos treinamentos
impostos pelo domador. Tão absurdo quanto um felino saltar em meio ao fogo é
ver ursos, leões e tigres resignando-se ao estalo das chibatas, enquanto um elefante
se ajoelha, um macaco dança com saias e eqüinos são forçados a executar os
passos de um balé deprimente, sob a batuta da insensibilidade humana.
Circo com animais, embora há quem diga constituir uma tradição, não é
cultura. Trata-se, na realidade, de uma inequívoca demonstração de violência para
com criaturas subjugadas, que não podem fugir nem se defender. O artigo 215 da
Constituição Federal, que assegura a todos o direito à cultura – repita-se –, não
prevalece diante da norma do artigo 225 § 1o, VII, em que o próprio Poder Público
recebeu a incumbência de proteger a fauna, vedando que animais sejam submetidos
à crueldade. Inexiste conflito de normas. O direito à vida digna e ao bem estar de
um ser senciente não pode sucumbir diante de um mau costume, tampouco
compactuar com a violência que recai sobre os animais escravizados em circos.
Vale lembrar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal, ao proibir a
famigerada farra do boi, reconheceu sua insconstitucionalidade em face do preceito
protecionista dos animais proclamado pelo artigo 225 § 1o, VII, da Constituição
Federal. O ministro Francisco Rezek, relator dessa histórica decisão, assim se
pronunciou: “Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática
dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação
cultural, com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para
com os animais, e a Constituição não deseja isso” (Recurso Extraordinário nº
153.531/8/SC; RT nº 753/101).
De fato, o mandamento magno acima referido não se limitou em garantir a
variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da
moral. Ao impor expressa vedação à crueldade para com os animais, como que
admitindo a prática da maldade e do sadismo humano sobre outras criaturas, nosso
legislador constitucional admitiu a possibilidade de o animal ser considerado sob a
perspectiva ética e, portanto, sujeito jurídico passível de tutela mediante
representação processual adequada (substituído, no caso, pelo Ministério Público,
a quem incumbe a proteção jurídica dos animais).
Sobre esse tema, interessante evocar o douto magistério de Antonio Herman
Vasconcellos e Benjamin, Procurador de Justiça e mestre em Direito Ambiental:
“Nos últimos anos vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito
Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora, exossistemas), sob uma
diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico próprio (...) O
reconhecimento de direito aos animais – ou mesmo à natureza – não leva ao
resultado absurdo de propor que seres humanos e animais tenham os mesmos
ou equivalentes direitos...” (in “A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou
nada disso”. São Paulo, edição da Escola Superior do Ministério Público, 2001). O
5. DO PEDIDO PRINCIPAL
Diante de todo e exposto e da documentação inclusa, que se torna parte
integrante desta peça inaugural, propõe o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SÃO PAULO a presente ação, com fulcro na Lei n° 7.347/85, para que a
empresa _______________ PRODUÇOES ARTISTICAS LTDA seja condenada
à:
I) OBRIGAÇÃO DE NÃO-FAZER:
a) ABSTER-SE DE UTILIZAR ANIMAIS NOS ESPETÁCULOS –
SHOWS, PERFORMANCES E DEMONSTRAÇÕES DE DESTREZA EM
QUAISQUER CONDIÇÕES OU CIRCUNSTÂNCIAS, SEJA DURANTE A
TEMPORADA DE 2005 (a partir de ________), SEJA EM DATAS FUTURAS;
b) ABSTER-SE DE EXIBIR ANIMAIS ENJAULADOS OU ACOR-
RENTADOS, COMO PROPAGANDA, DENTRO OU FORA DO LOCAL EM
QUE ESTIVER INSTALADO O CIRCO.