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LAERTE FERNANDO LEVAI 583

Proteção Jurídica da Fauna(*)


Laerte Fernando Levai
Promotor de Justiça

Sumário: 1 - Introdução; 2 - Evolução Legislativa; 3 -


Retratos da Crueldade; 4 - O Papel do Ministério Pú-
blico; 5 - Aspectos Práticos; 6 - Jurisprudência Crimi-
nal; 7 - Jurisprudência Cível; 8 - Modelo de Ação Civil
Pública (Abusos sobre Animais em Circo);

1 - INTRODUÇÃO
No paradigma jurídico tradicional os animais, embora seres vivos dotados de
sensibilidade e de movimento próprio, nunca foram considerados pela sua natureza
intrínseca, mas em função de um interesse humano subjacente. O direito positivo
brasileiro, inspirado na doutrina romana clássica, trata os animais – via de regra –
sob a ótica privatista, o que se pode perceber facilmente pelas expressões ‘res’,
“semoventes”, “propriedade”, “recurso” ou “bens”. Pela visão clássica a Natureza
perde sua característica holística (‘um todo vivo’) para se tornar mero conjunto
de recursos. O que acaba justificando a proteção da fauna, segundo essa linha de
raciocínio, não é o direito à vida ou ao bem estar que cada animal deveria ter
assegurado em face de sua individualidade, apenas a garantia da biodiversidade.
Daí porque o sistema jurídico pátrio vinculou os animais antes à sua utilidade prática
do que ao respeito que se deve nutrir pelos seres vivos.
Isso se deve ao antropocentrismo. Reforçada pelo método de Descartes
(1596-1650), que no século XVII consideraria os animais meros autômatos
insuscetíveis à dor física, a postura antropocêntrica ainda tem sido a causa principal
da crise de valores que assola a humanidade. Ao negar aos bichos qualquer
possibilidade de valorização ética, sob o fundamento de que se eles possuíssem
alma a teriam revelado através da palavra, o cientificismo se impôs como doutrina
preponderante, permitiu a ascenção do racionalismo e fez com que o homo sapiens
fosse sucedido pelo conceito moderno do homus economicus. Vê-se, no mundo
contemporâneo, a derrocada de antiga concepção estóica da natureza, que desloca
o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o
usufruir. Essa postura pragmatista, permitindo o amplo domínio do homem sobre o
planeta, propagou-se na cultura ocidental a ponto de buscar um significado funcional
para tudo o que existe. Sobre os ditames da deusa-razão, o mundo se tornaria o
mundo dos homens – usufrutuários da natureza e dos animais –, concepção essa
que causou um inegável estreitamento dos nossos valores morais.
(*)
artigo escrito antes da promulgação de Lei Estadual nº 11.977, de 25.08.05.

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Importa ressaltar, porém, que embora submetidos a trabalhos forçados, às


prisões perpétuas, ao matadouro, às arenas públicas, ao extermínio sistemático, ao
desprezo e ao abandono, à ponta dos arpões, às gaiolas, aos obscuros centros de
experimentação, dentre outras tantas tiranias ditadas pela espécie dominante, os
animais têm a capacidade de sentir e de sofrer. Seus órgãos vitais possuem função
similiar aos humanos, tanto que eles reagem como nós aos estímulos dolorosos. O
sistema límbico (responsável pelas emoções e sentimentos) é semelhante em todos
os mamíferos, embora no homem o córtex cerebral (responsável pela reflexão)
seja bem mais desenvolvido que nos animais. Desse modo, o sistema nervoso
central está organizado morfológica e funcionalmente segundo o mesmo modelo
estrutural, variando de acordo com as características peculiares de cada espécie.
É o que constatou a professora Irvênia Luiza de Santis Prada, especialista em
neuroanatomia animal e titular emérita na Faculdade de Medicina Veterinária e
Zootecnia da Universidade de São Paulo: “É possível afirmar que os mamíferos,
em situações adversas, podem vivenciar processos de sofrimento mental”,
porque “em todos eles a organização é a mesma do ser humano”, surgindo
evidências “de que os animais são seres afetivos”, que “têm sensibilidade,
maior ou menor, segundo a espécie e o próprio indivíduo, sensibilidade essa
para a qual não estamos, de modo geral, despertados” (in “Alma dos Animais”,
Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 1997).
Diante dessas considerações todas é possível concluir que a fauna – longe de
representar apenas um componente essencial ao equilíbrio da natureza ou ao bem
estar psíquico do homem – é composta de criaturas que sentem e que sofrem. A
garça-vermelha não é apenas uma ave brasileira de interesse ecológico, mas, acima
de tudo, um ser vivo. Também o mico-leão-dourado, embora reconhecidamente em
extinção, é um primata que merece ser protegido como outro qualquer, porque dotado
de sensibilidade. As capivaras e os búfalos, ainda que possam estar proliferando em
regiões nas quais a interferência do homem provocou desequilíbrio ambiental, não
merecem a execução sumária por nós determinada. Argumento semelhante acaba
se aplicando aos animais domésticos, que costumam viver apenas em função de
determinado interesse humano. Em suma, a política de proteção à fauna parece não
se importar com as espécies enquanto tais, mas em face de uma possível utilidade –
econômica, alimentar, estética, cultural, ecológica, etc. – que os animais possam vir a
ter em relação aos homens. Tal paradigma precisa mudar. E o Ministério Público,
instituição historicamente vocacionada à defesa dos fracos e oprimidos, precisa fazer
algo antes que seja tarde demais.

2 - EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
A Constituição Federal de 1988, em seu primoroso artigo 225 par. 1º, inciso
VII, garantiu a proteção e a preservação de todos os animais que compõem a

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fauna brasileira – sejam eles silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou


exóticos – proibindo a prática da crueldade: “Incumbe ao Poder Público proteger
a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam
os animais à crueldade”.
Não foi nada fácil, contudo, atingir esse nível de evolução jurídico-ambiental.
É que durante mais de quatro séculos, no Brasil, os animais estiveram à margem
da lei. Ainda que uma ou outra norma os tenha contemplado de maneira compassiva,
nosso sistema jurídico sempre retirou do animal qualquer possibilidade de valorização
ética, vinculando-o a interesses mercantis ou a questões de ordem sanitária. Em
um passado não muito remoto, enquanto os bichos silvestres podiam ser livremente
caçados nas matas, os animais domésticos tinham seu destino sacramentado pelo
homem, qual seja, a servidão. No alvorecer do século XX, já reconhecida a teoria
evolucionista e seu impacto filosófico sobre as crenças religiosas, a idéia de se
conferir proteção jurídica aos animais – criaturas sensíveis e submetidos às mesmas
leis de causa e efeito que regem a vida – ganhou força. Embora as pioneiras
organizações e leis favoráveis aos animais tenham surgido na Inglaterra, século
anterior, foi na Itália que um pensamento mais generoso encontrou campo fértil
para florescer. Isso se deu em 1928, quando o professor de Filosofia de Direito da
Universidade de Ferrara, Cesare Goretti, escreveu um primoroso ensaio
desvinculando os animais da perspectiva privada inserida na terminologia jurídica
representada pelas expressões ‘coisas’ e ‘bens’. Seu trabalho, intitulado “L’animale
quale soggeto di diritto”, teve o mérito de rebater o clássico conceito de que os
animais são objetos passíveis de uso, gozo e fruição, para reconhecê-los como
detentores de uma capacidade jurídica sui generis.
Os primeiros passos legislativos do nosso País rumo a um ordenamento jurídico
que se propusesse a coibir atos de maus tratos aos animais foram dados, ao menos
no plano teórico, com a outorga do Decreto federal nº 24.645/34, de Getúlio Vargas,
quando – de modo surpreendente para os padrões da época - os animais foram
considerados sob uma perspectiva biocêntrica, deferindo-se ao Ministério Público a
sua representação em Juízo. Alguns anos mais tarde, com o advento do artigo 64 da
Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688/41), a crueldade para com os
animais firmou-se como conduta típica, apesar da brandura de sua reprimenda legal.
Assim, até março de 1998, o ato de maltratar animais domésticos era uma simples
infração contravencional, apenada invariavelmente com multa. Essa situação estendeu-
se até a entrada em vigor da Lei dos Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98),
que criminalizou, de modo amplo, as agressões à fauna.
A Lei de Proteção à Fauna (Lei federal nº 5.197/67), ao substituir o antigo
Código de Caça (Decreto-lei nº 5.894/43) no trato das questões relacionadas aos
animais silvestres, proibiu a caça profissional e fez com que os bichos da selva

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mudassem de status, deixando de ser produtos pertencentes ao caçador (res nullius)


para se tornarem propriedade do Estado. Também a pesca, seja comercial, esportiva
ou científica, foi disciplinada pelo Decreto-lei nº 221/67, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 7.679/88. Ainda no âmbito federal há que se lembrar da
Lei 6.638/79, estabelecendo normas para a vivissecção de animais e, também, da
Lei nº 7.173/83, que regula o funcionamento de jardins zoológicos. Pouco depois
foi editada a Lei nº 7.643/87, destinada a coibir a pesca e o molestamento intencional
dos cetáceos, sendo cominada rigorosa pena ao infrator (2 a 5 anos de reclusão).
Duas outras leis surgidas na década de 80 permitiriam o efetivo exercício da tutela
jurídica do ambiente e dos animais: a Lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio
Ambiente) e a Lei nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), instrumentos processuais
largamente utilizados pelo Ministério Público no exercício de seu mister. Após a
promulgação da atual Carta Magna, em 1988, que dedicou um capítulo exclusivo à
tutela ambiental, a proteção à fauna se incorporou à legislação da maioria dos
Estados brasileiros, cujas constituições – em consonância ao mandamento supremo
- vedam as práticas da caça e da crueldade para com os animais. Tornou-se a
fauna, sob a ótica do legislador, bem ambiental de uso comum do povo. Em meados
dos anos 90, com o incontrolado avanço das descobertas científicas na área da
biogenética e em face dos riscos inerentes a tal atividade, foi editada a Lei da
Engenharia Genética. Mais recentemente, a Lei de Biossegurança permitiu aos
pesquisadores a polêmica manipulação de células-tronco. A transgenia, a clonagem
de seres vivos e a utilização de células-tronco embrionárias tornam-se grandes
desafios éticos no novo milênio.
Para garantir a tutela da fauna brasileira, nos termos do artigo 225 § 1o, inciso
VII, da Constituição Federal, impôs-se ao poder público a obrigação de preservar e
de proteger os animais. Inspirado nesse preceito, a Lei dos Crimes Ambientais (Lei
nº 9.605/98) – que alcança todas as espécies - comina pena de três meses a um ano
de detenção, e multa, àquele que “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou
mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”
(art. 32 caput), estabelecendo a mesma reprimenda para “quem realiza experiência
dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos,
quando existirem recursos alternativos” (art. 32 § 1o) e, mais que isso, aumentando
a pena de um sexto a um terço, “se ocorrer a morte do animal” (art. 32 § 2o). Bem
ou mal, tais dispositivos permitem a movimentação da máquina judiciária em favor
dos animais, embora as penas corporais possam ser substituídas por prestação de
serviços à comunidade, mediante a imposição de tarefas de natureza ambiental que
permitam ao infrator, em tese, ressocializar-se ou ao menos se conscientizar de seu
erro. Tratando-se de infrações de natureza pública incondicionada, surge o Ministério
Público (estadual ou federal, dependendo da hipótese) como órgão legitimado ao
exercício dessa relevante função, agindo – por substituição processual – em nome
daqueles que não têm como se manifestar.

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É equivocado entender a tutela constitucional dos animais em função apenas


do interesse ecológico, porque o legislador – ao vedar a crueldade – inseriu no texto
magno um imperativo moral categórico que se relaciona à dignidade e ao bem-estar
de todas as criaturas vivas, preceito esse que restou viabilizado – em sede penal –
com o surgimento da Lei dos Crimes Ambientais. O legislador ordinário, seguindo a
norma constitucional impeditiva das práticas que coloquem em risco as funções
ecológicas da fauna, que provoquem a extinção das espécies ou, então, que submetam
os animais à crueldade, ampliou a proteção jurídica da fauna de modo a abranger os
bichos silvestres (aqueles que vivem livres em seu habitat peculiar), os exóticos
(originários de outros países), os migratórios (espécies nômades, que atravessam
fronteiras), os domésticos (animais já habituados ao convívio humano, em geral
mansos) e os domesticados (espécies silvestres que se tornaram dependentes do
homem), sejam eles do meio terrestre, aéreo ou aquático. As classificações técnicas
e/ou terminológicas da fauna, entretanto, nada interferem naquilo que se deve priorizar:
o respeito à vida. Pouco importa se trate de um mamífero, de uma ave, de um peixe
ou de um inseto; pouco importa vivam esses animais soltos ou em cativeiro; pouco
importa estejam ou não em perigo de extinção; pouco importa se o destino deles será
o consumo humano... O que se precisa levar em conta é o aspecto moral de nossa
conduta. Se todos os animais têm a capacidade de sofrer, imperioso que os protejamos
e o defendamos, independentemente de sua condição.
Ainda que, a princípio, as leis ambientais brasileiras priorizem a proteção da
fauna silvestre, por estar ela inserida no contexto dos ecossistemas e da
biodiversidade, não se pode esquecer que nossa Constituição Federal também vedou
a submissão de animais à crueldade, fazendo-o em um dispositivo de inegável
conteúdo moral. Desse modo, a fauna doméstica e a domesticada, embora
normalmente submetidas às regras civis do direito de propriedade, também
mereceram a atenção do legislador, cabendo-lhes a tutela jurídica pelo Ministério
Público. Afinal, os índices de crueldade em relação a esses animais, vítimas da
indiferença, da cultura desvirtuada, da insensibilidade pública, do sistema capitalista
de produção ou do próprio sadismo humano, seja na cidade ou no campo, são
impressionantes. A lei brasileira, ao incriminar as práticas que submetam os bichos
a atos cruéis - abusos, maus-tratos, ferimentos ou mutilações – ergueu voz em
favor da incolumidade de todas as espécies, permitindo-nos concluir que, na hipótese
específica do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, o bem jurídico preponderante é o respeito
devido aos animais.
Apesar do comando constitucional que veda a submissão de animais à
crueldade, os atentados contra a fauna brasileira continuam ocorrendo em larga
escala. A lista dos animais em risco de extinção – objeto da Portaria nº 1.522/89,
do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis), ampliada pela Portaria nº 45/N/92 – chega a 212 espécies, segundo

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relatório do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) divulgado em junho


de 2002. Enquanto o mico-leão-dourado, a lontra, o peixe-boi, o veado-campeiro e
o jacaré-do-papo-amarelo integram a relação original, o lobo-guará, o tatu-bola, o
flamingo, a ararinha-azul e o cervo-do-pantanal, dentre outros tantos, vieram se
somar à lista dos animais em perigo. Inexiste lei capaz de deter o avanço da perfídia
humana diante do binômio oferta & procura, regra esta que impulsiona o mercado
clandestino dentro e fora do nosso País. Não é para menos: o tráfico de animais
movimenta anualmente milhões de dólares no mundo todo, perdendo apenas para o
tráfico de drogas e de armas.
Cumpre lembrar que a fauna brasileira ocupa uma posição privilegiada nas
estatísticas mundiais da biodiversidade: 524 tipos de mamíferos, 1.622 espécies de
aves, 468 tipos de répteis, 517 de anfíbios e cerca de 3.000 espécies de peixes,
além de 15 milhões de insetos (in “Cartilha da Fauna”, editada pela Promotoria de
Justiça de Salvador a propósito do I Seminário Internacional de Direito Ambiental
da Fauna, em outubro de 2001). Para a salvaguarda dos animais silvestres, foram
aqui ratificados dois tratados internacionais: a CITES (Convenção sobre o Comércio
Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagem em Perigo de Extinção,
firmada em Washington, em 3.3.1973 e aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo
nº 54/75) e a Convenção Sobre a Diversidade Biológica (firmada no Rio de Janeiro
durante o Encontro da Terra, em 5/6/1992, e aqui aprovada pelo Decreto Legislativo
nº 02/94). Dentre as leis federais que criminalizam condutas atentatórias à fauna
brasileira merecem distinção a Lei nº 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna) e, mais
recentemente, a Lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), cujo capítulo V,
seção I, relaciona as hipóteses típicas referentes à caça ilegal de animais selvagens
e respectivas variantes, a crueldade contra animais silvestres, domésticos ou
domesticados, nativos ou exóticos e, ainda, aos atentados à fauna marinha. À frente
desse vasto mosaico jurídico está a própria Constituição Federal de 1988, cujo
capítulo VI - Do Meio Ambiente - erigiu a fauna à condição de bem de uso comum
do povo, essencial ao equilíbrio ecológico e à sadia qualidade de vida, incumbindo
ao Poder Público o dever de preservá-la e protegê-la para as presentes e futuras
gerações.
Em suma, o dispositivo magno consagrado no artigo 225 § 1o, inciso VII, da
CF contém o fundamento para a tutela da fauna no Brasil, reunindo – a um só
tempo – o aspecto ambiental e o ético. Poucos os países do mundo que contemplam
a proteção da fauna no plano constitucional. Sua norma protetora, aliás, inspirou a
maioria dos constituintes estaduais, tanto que a Constituição do Estado de São
Paulo menciona textualmente seu intuito protetor em relação aos animais silvestres,
aos exóticos e aos domésticos (art. 193, X), proibindo a caça, sob qualquer pretexto,
em território paulista (art. 204). Em termos instrumentais, o Ministério Público
vem se utilizando da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e da Lei da Ação

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Civil Pública, as quais propiciaram – nas últimas décadas – significativos resultados


práticos em favor da fauna maltratada. Tudo isso sem esquecer que o Decreto nº
24.645/34 – ainda em vigor - estabelece que “todos os animais existentes no
País são tutelados do Estado” (art. 1o) e que “os animais serão assistidos em
juízo pelos representantes do Ministério Público...” (art. 2o § 3o), como que
legitimando o Parquet à defesa jurídica da fauna brasileira. Armas legais, portanto,
já temos inúmeras. Basta apenas querer lutar...

3 - RETRATOS DA CRUELDADE
Ao tipificar como crime a conduta de quem “Praticar ato de abuso, maus-
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos
ou exóticos” (artigo 32 caput da Lei nº 9.605/98)), o legislador ambiental houve
por bem estender seu manto protetor a todos os animais que estejam em território
brasileiro, a fim de salvaguardá-los de abusos e maus tratos. Acontece, porém, que
a realidade do dia-a-dia é bem diferente daquilo que se vê no papel. Basta um
passeio pelos arredores da cidade para encontrar cavalos fatigados suportando o
duro fardo de uma carroça, sob chibatadas e açoites. Basta ver o que acontece
com os cães levados aos Centros de Controle de Zoonoses. Basta conhecer a
rotina dos biotérios e dos centros de experimentação animal, que sacrificam milhares
de animais em prol da chamada pesquisa científica. Basta assistir aos rodeios e às
vaquejadas, cujas provas de montaria e de laço movimentam cifras milionárias sob
um falso argumento cultural. Basta ler os jornais ou assistir a documentários
ecológicos na televisão para constatar a ousadia dos traficantes e receptadores de
animais silvestres, que submetem as vítimas da caça a autênticas barbaridades.
Basta andar um pouco pela zona rural para descobrir que galos e cães são utilizados
clandestinamente em rinhas e que é freqüente o abate clandestino de animais.
Basta investigar o destino de algumas espécies caçadas para descobrir que elas
servem às fábricas de couros e de peles. Basta saber, também, o que acontece
dentro dos matadouros, em que a indústria da carne promove a matança de animais
em ritmo industrial, utilizando-se muitas vezes de métodos cruentos e macabros.
Em nome de determinados preceitos religiosos, aliás, bovinos são submetidos ao
doloroso ritual da jugulação cruenta.
Não menos triste é a situação dos animais abandonados à própria sorte,
principalmente cães e gatos, que procuram restos de comida pelas ruas, sujeitando-
se a envenenamentos, agressões e a atropelamentos. Se capturados pela carrocinha,
são exterminados nos Centros de Controle de Zoonoses. Outros acabam destinados
aos laboratórios de pesquisa, sofrendo o martírio da vivissecção. Já os cavalos e os
burros, atrelados às carroças, cumprem – sob chicotadas – sua sina servil.
Igualmente dramática é a situação dos animais criados nas fazendas industriais,
cuja vida tão breve e sofrida cessa de forma ainda mais cruel nos matadouros. E a

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lista da crueldade não para por aí. Continua nos zoológicos insalubres, que se
transformam em vitrines vivas para a satisfação da curiosidade humana. Também
nos circos, que subvertem a natureza intrínseca dos animais a ponto de fazer deles
fantoches amedrontados. Nos criadouros que fornecem carne de javali, de tartaruga,
de jacaré ou de avestruz a paladares exóticos. Nas associações de passeriformes,
cujos aficcionados se comprazem em privar as aves de seu natural dom de voar.
Também nos pesque-pagues e nas competições de pesca esportiva, onde a
recreação humana se perfaz à custa do sofrimento dos peixes Isso tudo sem falar
das impressionantes estatísticas da matança animal que se vêem, diuturnamente,
nos CCZ, nos laboratórios científicos e nos abatedouros comerciais. Em que pese
a vigência de tantas leis de proteção animal, essa lista parece não ter fim. Cabe ao
Ministério Público, órgão legitimado à defesa jurídica dos animais, lutar contra
tantos abusos e ilegalidades.
A violência contra os animais alcança também os domésticos. Segundo
dados do IBGE, a população canina no Brasil representa 1/7 da população humana,
ou seja, 22 milhões de animais. Embora a maioria dos cães possua um lar que lhe
permita, em tese, viver de forma digna, os animais abandonados representam
30% daquele total. Há, portanto, cerca de 7 milhões de cães largados à própria
sorte. Eles sentem fome e sede, querem se abrigar do frio e da chuva, buscam,
carinho e felicidade. Rejeitados pelos donos ou enxotados em cada esquina,
acabam vítimas da violência urbana, da indiferença dos homens e dos veículos
que matam. Permanecem à mercê da famigerada carrocinha, que os levará – se
capturados - aos galpões em que o massacre é institucionalizado, até porque
nem todos os municípios brasileiros desenvolvem programas de controle de
natalidade (esterilização) ou campanhas pedagógicas (posse responsável, adoção
voluntária, educação ambiental) em relação aos animais, cujo destino acaba sendo
o extermínio nos Centros de Controle de Zoonoses. Somente no município de
São Paulo, centenas de animais saudáveis perdem a vida em um procedimento
que – enfemisticamente – se denomina eutanásia. Como bem enfatiza a advogada
Vânia Rall Daró, de Bauru, o procedimento adotado pelos CCZ nada tem a ver
com suposta morte piedosa: “Se considerarmos que para caracterizar a
eutanásia é necessário haver um estado de sofrimento causado por uma
doença incurável, poderemos deduzir indubitavelmente que nos centros de
controle de zoonoses nacionais não ocorre uma verdadeira eutanásia, uma
vez que os animais mortos, via de regra, não apresentam dores insuportáveis
decorrentes de doença irremediável. Nesse sentido, a morte provocada não
representa um alívio, muito menos um benefício para os animais assim
tratados, constituindo, isto sim, um extermínio” (in “Aspectos legais da
eutanásia”, palestra proferida no 3o Congresso Brasileiro do Bem-Estar Animal,
Embu das Artes, outubro de 2000).

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É necessário esclarecer que o proprietário assume responsabilidades em


relação ao bem estar de seu animal de estimação, mesmo porque a crueldade pode
se configurar tanto na forma ativa (mediante uma ação agressiva) quanto pela omissão
(abandonar, deixar morrer de sede ou inanição). As espécies mais comuns de animais
de companhia são os cães e os gatos. Depois vêm os pássaros, os peixinhos e os
coelhos. Se se tratarem, porém, de répteis, roedores ou mesmo aracnídios, a situação
se torna complicada. Isso porque, nos grandes centros urbanos, animais silvestres e
exóticos têm despertado o interesse de gente que, inconseqüentemente, priva-lhes
de seu habitat para mantê-los dentro de casa. Há aqueles que se comprazem em ter
consigo – em condomínios residenciais - iguanas, furões, salamandras, jibóias ou
escorpiões, muitas vezes de procedência ilícita; outros, mais ousados, convivem com
animais selvagens aparentemente mansos, como leões, tigres ou jacarés, sem atentar
para a Portaria do IBAMA nº 108/94 (Mantenedores da Fauna Silvestre Exótica),
que regulamenta as condições de sua estadia em residências, zôos e circos. A Portaria
nº 29/94, também do IBAMA, dispõe sobre a importação de animais, restringindo a
entrada de determinadas espécies no Brasil, além de vedar seu comércio. São
considerados animais exóticos, também, chinchila, hamster e iguana. O problema
maior surge quando os proprietários destes bichos – passado o modismo, com receio
de serem autuados ou, tão somente, por causa dos custos de sua manutenção –
decidem livrar-se deles, largando-os sem qualquer critério em terrenos baldios, parques
urbanos ou nas margens de rios.
Especificamente sobre os animais silvestres, seu drama não se restringe à
ação maléfica dos caçadores, mas à perda de seu habitat em face de ações humanas
agressivas – queimadas, desmatamentos, expansão urbana e pecuária – que,
invariavelmente, possuem motivação econômica. Isso para não falar do uso abusivo
ou criminoso de certos herbicidas e agrotóxicos, capazes de envenenar a terra e
poluir as águas, atingindo os ecossistemas com suas cadeias alimentares, interferindo
nos ciclos biológicos e, em conseqüência, matando os próprios animais que deles
fazem parte. E pensar que o artigo 1o da Lei nº 5.197/67 trata da fauna sob ampla
perspectiva: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu
desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a
fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais, são
propriedade do estado, sendo proibido a sua utilização, perseguição,
destruição, caça ou apanha”. Pode parecer, à primeira vista, que todos os animais
silvestres pertencem à União, haja vista a concepção privada do direito civil
brasileiro, que considera objeto (res) tudo o que não é humano. Tal dispositivo
legal, porém, precisa ser corretamente interpretado: ele não submete os animais a
um pretenso regime de propriedade pelo Estado, apenas os sujeita ao domínio
eminente da Nação, na condição de bens ambientais. A Lei de Proteção à Fauna
de 1967, apesar de suas lacunas e contradições, teve o mérito de tutelar os animais

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de modo diverso ao Código Civil, alterando a perspectiva privada que recaía sobre
as espécies nativas. De certa forma, ela representou um passo necessário para a
mudança de postura que se concretizaria, duas décadas depois, com o advento da
Constituição Federal de 1988.
A situação dos animais poderia ser melhor não fossem certos subterfúgios
legais que, em termos práticos, transformam uma lei proibitiva em permissiva de
comportamento cruel. A caça, cuja modalidade profissional é vedada no Brasil, acaba
sendo aceita para fins científicos e de subsistência, com respaldo dos próprios órgãos
técnicos que deveriam combatê-la. No Estado do Rio Grande do Sul, o IBAMA
liberou a caça amadora em sete municípios, possibilitando aos aficcionados do pseudo-
esporte a perseguição e o abate de marrecas, lebres, pombas e pássaros-pretos.
Este mau exemplo encontra amparo legal na própria legislação faunística brasileira,
que proíbe a caça, salvo “se peculiaridades regionais comportarem o exercício”
(art. 1o § 1o da Lei nº 5.197/67) ou nas hipóteses em que houver “a devida permissão,
licença ou autorização da autoridade competente” (art. 29, caput, da lei nº 9.605/
98). A perseguição e o abate de um animal, realizadas pelo homem nas áreas de
caça, são condutas pusilânimes e cruéis, que se perfazem em condições absolutamente
desiguais. Registre-se, entretanto, que em louvável sentença proferida em 28 de
junho de 2005, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul impediu a concessão, pelo
IBAMA, de licenças para caça amadora em território gaúcho. Que essa decisão
possa ser em breve confirmada pela Superior Instância, acabando-se de vez com a
vergonha que ainda representa a caça em território brasileiro.
O costume de manter pássaros presos em gaiolas também pode caracterizar
crime ambiental, haja vista os diversos subterfúgios utilizados pelos caçadores.
Aves silvestres apreendidas em gaiolas, se comprovada sua origem ilegal, devem
ser encaminhados a centros de readaptação (viveiros) que lhes permitam posterior
soltura em seu habitat. De acordo com a Instrução Normativa nº 06, de 25.4.2002,
do IBAMA, todos os criadores amadoristas de passeriformes da fauna silvestre
brasileira precisam estar cadastrados no referido Órgão até 31/12/2002. Quanto
aos criadores comerciais, devem observar as normas ditadas pelas Portarias 117 e
118, do IBAMA. Há que se dizer, todavia, que este tipo de prática – o de criar aves
em cativeiro – não deixa de ser uma violência à natureza desses animais. Nada
justifica o confinamento de uma ave para mero deleite humano, ainda que inexista
a intenção de comercializá-lo. A mera ausência de intuito negocial na conduta do
indivíduo que a mantém em cativeiro não deveria favorecer o criador, porque o
simples fato de um pássaro ser privado de seu dom de voar já constitui, do ponto de
vista moral, uma crueldade. Na prática, os criadouros regulamentados e a origem
estrangeira da maioria das aves destinadas ao comércio autorizam, do ponto de
vista legal, a prisão perpétua dessas frágeis criaturas aladas, as quais padecem –
quase sempre em minúsculo cárcere – por um crime que não cometeram. Os

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LAERTE FERNANDO LEVAI 593

certificados de transações passeiformes, nesse contexto, acabam se tornando o


mandado de prisão das aves, enquanto que as anilhas simbolizam suas algemas.
Várias situações referentes a crimes contra a fauna e suas respectivas
sanções poderiam ter sido previstas no decreto regulamentador nº 3.179/99.
Não o foram, contudo. Perdeu-se, assim, uma excelente oportunidade para
coibir determinadas práticas que atentam contra o bem-estar dos animais e
que, de alguma forma, estimulam a incondicionada exploração desses seres.
Da mesma forma, o depósito de um animal ao próprio autor da infração –
hipótese comum em face da omissão do poder público em destinar locais
próprios para o acolhida, o tratamento ou à soltura desses bichos – acaba
contrariando o próprio sentido finalístico da lei ambiental. É o que acontece
no Estado de São Paulo, onde a Polícia Ambiental editou o Boletim Técnico
nº 02, de 15 de agosto de 2000, que trata da guarda doméstica de espécie
silvestre a título de estimação. A respeito desse problema a Promotoria do
Meio Ambiente de São Paulo expediu aos 14 de outubro de 2004 a seguinte
Recomendação: “Que a Polícia Ambiental do Estado de São Paulo aplique as
sanções cabíveis, tanto administartivas quanto penais, nos casos em que haja tráfico
de animais ou manutenção irregular destes em cativeiro, tendo em vista seu dever
legal. Que apreenda os animais encontrados, para que não continuem sob a posse
dos autuados, e que providencie a devida destinação das aves”.
Permitidas, toleradas ou clandestinas, pouco importa, todas essas práticas
demonstram a hipocrisia das atitudes e sentimentos humanos, como se o animal
nada mais significasse do que um mero objeto de recreação, divertimento ou mórbido
prazer. Não se deveria admitir nenhuma forma de esporte ou de lazer, nenhuma
manifestação cultural ou lúdica, em detrimento de animais subjugados, sob pena de
se adotar a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios.

4 - O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO


Até antes da década de 80 as ações processuais visando à defesa ambiental e
dos animais eram raras, fundamentadas quase sempre no Código Florestal e no
artigo 64 da Lei das Contravenções Penais. As constituições republicanas de 1934,
1937, 1946 e 1967, preocupadas apenas em garantir os “recursos naturais” do país,
atribuíram competência à União para legislar sobre florestas, águas, riquezas do
subsolo, caça e pesca. Uma visão mais patrimonial do que ecológica, em que a flora
e a fauna eram vistas como bens suscetíveis de valor econômico. De fato, o Código
Civil de 1916 inseriu os animais (domésticos e silvestres) na seara privatista,
classificando-os como bens móveis (artigo 47) ou coisas sem dono (artigo 593). Isso
explica porque nosso primeiro diploma legislativo sobre animais silvestres – o velho
Código de Caça (1943) – assumia uma posição nitidamente ofensiva aos bichos, até

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594 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

ser substituído, anos mais tarde, pela Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67). Em
1981, quando a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) ensaiava
seus primeiros passos, o então promotor público Renato Guimarães Júnior já antevia
o futuro do Ministério Público como defensor da natureza (in “O Futuro do Ministério
Público como Guardião do Meio Ambiente e a História do Direito Ecológico”. São
Paulo, Justitia, vol. 43, 1981), vaticínio esse que se concretizaria – pouco depois –
com a edição da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.437/85). Não se pode esquecer,
todavia, que desde 1934 os promotores já estavam legitimados a representar os animais
em juízo, por força do Decreto federal nº 24.645. Em original análise dos paradigmas
éticos do nosso sistema jurídico, o procurador de Justiça Antonio Herman Vasconcellos
e Benjamin vislumbrou no Decreto 24.645 “a primeira incursão não-
antropocêntrica do século XX, muito antes da era do ambientalismo”. Para ele,
o decreto getulista que estabelece medidas de proteção aos animais, tanto na esfera
penal como no âmbito civil, ainda está em vigor: “Na época em que foi editado, o
Decreto nº 24.645/34 tinha força de lei. Logo, só lei aprovada pelo Congresso
Nacional poderia revogá-lo. Neste ponto, cabe lembrar, o Decreto nº 24.645,
de 10.7.34, de evidente (e surpreendente) orientação biocêntrica, foi
promulgado na mesma década do nosso primeiro Código Florestal, extremamente
antropocêntrico” (in “A Natureza no Direito Brasileiro: Coisa, Sujeito ou Nada
Disso”. Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, ano
I, nº 2, julho de 2001). Oportuno ressaltar, a propósito, que ao prever a representação
dos animais na relação processual (munus esse atribuído ao Ministério Público ou às
sociedades protetoras), tal diploma os tratou não como coisa ou objeto, mas como
legítimos sujeitos jurídicos.
Àqueles que insistem em considerar superado o Decreto nº 24.645, sob o
argumento de que seus dispositivos não têm aplicabilidade prática, ainda mais depois
do advento do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, é preciso dizer que os termos abrangentes
do diploma getulista – reconhecimento dos animais como seres tutelados do Estado,
representação processual pelo Ministério Público, hipóteses típicas de maus tratos,
etc. - não foram revogados por nenhuma lei posterior a ele, nem expressa nem
tacitamente. Ainda que assim não fosse, sua natureza é a de lei – porque outorgada
durante o regime do Governo Provisório – de modo que somente uma outra lei
poderia inviabilizá-la, o que até o momento não aconteceu. Dessa maneira, mesmo
que as situações de maus tratos ali contempladas possam ser definidas, atualmente,
sob a ótica de crime ambiental, não se pode ignorar que o Decreto nº 24.645 traz o
animal, individualmente considerado, como destinatário da tutela jurídica – e não a
fauna em abstrato ou o ambiente natural – circunstância essa que estabelece uma
distinção valorativa entre os dois diplomas e que permite conciliá-los entre si, ainda
que, do ponto de vista teleológico, haja similitude conceitual entre os dois
ordenamentos. O Código de Caça, paradoxalmente, tratava os animais silvestres

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LAERTE FERNANDO LEVAI 595

como bens passíveis de apropriação pelo caçador, acentuando a desigualdade jurídica


que se aplacaria, depois, na Lei de Proteção à Fauna. Posteriormente, sob inspiração
da Carta Política de 1988, a Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) passa a
tutelar a fauna sob a perspectiva de bem ambiental. E o novo Código Civil Brasileiro
(Lei nº 10.406/02), em vigor a partir de 11.01.2003, embora continue se referindo
aos animais como bens suscetíveis de movimento próprio (artigo 82), suprimiu, o
dispositivo que lhes considerava “coisas sem dono” para acrescentar um preceito
inovador: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as
suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas” (artigo 1228 § 1o).
A história do direito ambiental brasileiro revela que, até um passado recente,
pouco ou nada se fez para coibir a devastação da natureza ou proteger os animais
de tantas agressões. Derrubaram-se matas e florestas sob a justificativa da
expansão urbana ou em prol das pastagens, sem que se percebesse a dimensão
dos danos causados à fauna silvestre, haja vista que muitos bichos – perdidos seu
habitat – acabaram sucumbindo. O crescimento urbano desordenado também
gerou situações de descaso e de abandono em relação aos animais domésticos, os
quais costumam ser exterminado com o aval do próprio poder público. Substituído
o modelo pastoril agrícola pelo tecnológico, os chamados ‘animais de criação’
passaram a ter uma vida anti-natural e opressiva, aglomerados em recintos insalubres
para gerar aumento de produção. A par disso, nos centros de pesquisa científica e
nas universidades de biomédicas, os animais-cobaias são utilizados em larga escala.
As estatísticas da matança de animais, seja na indústria, seja no CCZ, seja na
pesquisa, seja na caça, somam-se aos abusos perpetrados contra eles nas atividades
supostamente recreativas ou culturais, como rodeios, vaquejadas, circos, farra do
boi... Era preciso que algum órgão público, diante de tantas ignonímias e atrocidades
humanas, assumisse a defesa do ambiente e dos animais maltratados. Coube ao
Ministério Público, por força de dispositivos constitucionais, esse relevante papel,
iniciado sob os auspícios da Lei nº 6.938/81 e que se consagrou pela
instrumentalização da Lei nº 9.437/85. A Lei dos Crimes Ambientais, no âmbito
penal, permite hoje a ampla responsabilização dos infratores pelos crimes contra a
fauna –pessoas físicas e jurídicas, inclusive – o que não deixa de constituir um
grande avanço legislativo.
Daí a conclusão de que o Ministério Público é – do ponto de vista legal – a
Instituição mais preparada para exercer a proteção jurídica dos animais. Os crimes
contra a fauna têm natureza pública incondicionada, de modo que a iniciativa da
ação penal independe de qualquer manifestação particular de vontade. Nem mesmo
ao dono do animal doméstico maltratado cabe se insurgir contra a tutela do Estado,

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596 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

porque o princípio constitucional protetivo dos animais (que diz respeito à vida) se
sobrepõe às normas civis alusivas ao direito de propriedade (que trata das coisas).
Se qualquer cidadão pode agir diante de uma ocorrência de crueldade, ao promotor
de Justiça essa faculdade se transforma em dever de ofício, porque a Instituição
detém uma parcela do próprio poder público, incumbindo-lhe defender e proteger a
sociedade que representa. Afinal, dentre as funções inerentes ao Parquet, como
órgão receptivo das demandas sociais, está aquela relacionada à ordem jurídica
justa. Neste sentido, a educação deve se voltar para o exercício da cidadania e
para a tutela dos oprimidos, alcançando também os animais que sofrem.
Dentre os princípios constitucionais que informam a política de proteção à
fauna, no Brasil, podem ser enumerados os seguintes: a) da legalidade: enquanto
é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é
permitido fazer o que a lei autoriza (art. 37 caput das CF), concluindo-se que a
matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança da sociedade fere esse
princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saudável, pelo fato dele
não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de
alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder
público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme
preconizado no art. 225 caput, inciso VI, da CF e art. 2o, X, da Lei nº 6.938/81; d)
da precaução: os objetivos do Direito Ambiental, também nas questões relacionadas
aos animais, exigem ações preventivas, mesmo porque o sofrimento e a morte
costumam ser irreparável; da representação: os animais, em razão de sua peculiar
condição e porque criaturas tuteladas pelo Estado, precisam ser devidamente
representados em juízo, atribuição essa que normalmente toca ao Parquet.
A ação do Ministério Público em defesa da fauna possui extraordinária
importância social. Não é preciso muito esforço imaginativo, aliás, para evocar
hipóteses capazes de inspirar a atuação dos promotores que desempenham as
funções de curadores do ambiente e dos animais. Dentre tantas medidas permeadas
pelo ideal de justiça e pela ética da vida, algumas merecem ser lembradas: processar,
na esfera penal e cível, aqueles que praticam crueldade para com os animais;
opor-se aos espetáculos que utilizam animais para fins de diversão pública,
notadamente circos, rodeios e vaquejadas; exigir a utilização de métodos substitutivos
à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça impunemente a
vivissecção. E mais: combater a criação de animais pelo método da produção
intensiva, em que a avidez do lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos
confinados; lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a um
padecimento atroz, devido à ausência de prévia insensibilização; atuar contra a
caça, ocontrabando de animais, a indústria de peles e a biopirataria; conscientizar
os homens do caráter sagrado da vida; resgatar, enfim, a individualidade dos animais,
como seres sensíveis que são.

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LAERTE FERNANDO LEVAI 597

Possui o Ministério Público plenas condições para assumir a tutela jurídica da


fauna, no afã de livrá-la das maldades, dos padecimentos e das torturas que a
humanidade lhe impinge. Nenhum outro órgão estatal possui à sua disposição tantos
instrumentos administrativos e processuais hábeis a impedir situações de maus tratos
a animais. Se os promotores de justiça e os procuradores da república utilizassem
todas as armas que a lei põe a seu alcance, em prol dos verdadeiros ideais de justiça,
talvez um mundo menos violento pudesse amanhecer, sem cabrestos, sem correntes,
sem chibatas, sem degolas, sem incisões, sem extermínios, sem jaulas, sem arpões e
sem gaiolas, em que se garantisse o respeito pela vida, a integridade física e a liberdade.

5 - ASPECTOS PRÁTICOS
Afora o eficaz instrumento processual representado pela ação civil pública,
que normalmente precede de inquérito civil ou de peças de informação, a promotoria
de justiça costuma se utilizar – no âmbito administrativo – dos Termos de
Compromisso e Ajustamento de Conduta (TAC), previstos no artigo 5o, § 6o, da
Lei nº 7.347/85: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados
compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante
cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Esse tipo de
ação preventiva, embora de natureza cível, pode evitar a ocorrência de maus tratos,
repercutindo assim no âmbito penal. Trata-se de uma transação administrativa
celebrada, normalmente, entre o Ministério Público e o(s) pretenso(s) autor(es) do
dano ambiental, visando a prevenir o litígio (evitar o ajuizamento de ação civil
pública) ou a encerrá-lo (celebrar acordo na ação em andamento). Importa dizer,
em termos práticos, que o Termo de Compromisso e Ajustamento de Conduta –
como título executivo extrajudicial que é – assume vital importância na solução dos
problemas relacionados ao ambiente, a exemplo das ocorrências que envolvam
situações de maus tratos a animais. Uma vez firmado, implica em obrigação de
fazer ou de não-fazer à parte compromissada, sob pena de multa diária, só podendo
ser desconstituído por decisão judicial. Sua validade é ampla, tanto que se mostra
capaz de vincular a pessoa jurídica – prefeitura, por exemplo – àquilo que se acordou,
independentemente da transitoriedade do poder político municipal. Enquanto uma
lei pode ser revogada, o TAC não, de modo que obrigação assumida permanece
íntegra e, em caso de descumprimento, torna-se passível de execução. Ao buscar
a utilização desse recurso para a proteção dos animais, impedindo ou cessando
práticas agressivas, cruéis ou abusivas, o que normalmente inspira o promotor de
justiça é o princípio da prevenção. Como louvável tentativa de evitar um dano em
potencial, à natureza ou aos animais, ou, então, de corrigí-lo, o TAC deve enfrentar
não apenas o problema em si, mas as suas causas. Nada mais justo e coerente.
Afinal, o Direito precisa se projetar muito além da perspectiva repressoras e
punitivas, assumindo uma postura pedagógica hábil a prevenir o dano.

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598 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

Inúmeras situações irregulares envolvendo animais podem ser solucionadas


por intermédio do Termo de Ajustamento de Conduta. No Guarujá, em 1999, a
então promotora Martha Pacheco Machado de Araújo firmou acordos dessa natureza
em relação às práticas de “vaquejada”, “farra do boi”, “provas de laço e derrubada”,
assim como o uso de “sedéns”, “peiteiras” e “esporas” nas provas de montaria em
rodeios, festas de peões, feiras de exposição de animais e similares (inquérito civil
nº 06/99 – Meio Ambiente – Guarujá). Fê-lo, dois anos mais tarde, no setor de
zoonoses local, logrando evitar com isso a indiscriminada matança de animais pela
Municipalidade (Procedimento Investigatório nº 11/97 – Meio Ambiente – Guarujá).
Daí porque tal via administrativa mostra-se hábil a evitar ou a corrigir danos ao
ambiente e a fauna, credenciando o Ministério Público a exercer, em plenitude, a
tutela jurídica dos animais. Apesar da reconhecida eficácia do inquérito civil e da
ação civil pública, um termo de ajustamento de conduta bem elaborado tem a
vantagem da celeridade na reparação do dano ambiental.
O promotor de justiça, ao receber notitia criminis versando sobre crime contra
a fauna, poderá requisitar à autoridade policial a lavratura de Termo Circunstanciado
ou a abertura de Inquérito Policial, caso haja necessidade de se investigar a autoria
ou obter prova da materialidade delitiva. Se suficientes as informações e, sendo o
delito de menor potencial ofensivo e o infrator primário, o expediente será encaminhado
ao Juizado Especial Criminal para fins de eventual transação penal. Tudo isso sem
prejuízo de algumas medidas profiláticas que podem ser adotadas pela própria
promotoria, por exemplo, visitas periódicas ao CCZ; orientação formal às Delegacias
de Ensino informando a respeito da proibição de atividades didáticas relacionadas à
vivissecção de animais em salas de aula ou perante alunos menores de idade;
estreitamento de contato com os órgãos ambientais e com as ONGs que atuam na
comarca e que podem colaborar no combate aos crimes contra a fauna; pedidos de
fiscalização oficial sobre a atividade dos condutores de carroças, nas lojas de aves e
pet-shops, nos criadouros, nos matadouros e, também, nas empresas de espetáculos
públicos que se utilizam de animais.
Verifica-se, diante do vasto leque de situações capazes de gerar abusos e
maus tratos, que a atuação preventiva pela promotoria de Justiça pode impedir,
interromper ou minimizar o sofrimento dos animais submetidos ao jugo humano. A
crueldade que se alastra nas cidades e no campo, assim como aquela praticada nas
arenas públicas ou dentro dos laboratórios, não é menos relevante do que a conduta
imoral dos caçadores que retiram animais da selva e os vendem a traficantes e
contrabandistas. É preciso que a população saiba que matar, perseguir, prender ou
agredir animais é crime. Os infratores, caso denunciados, podem ser levados ao
banco dos réus por infração aos artigos 29 ou 32 da Lei dos Crimes Ambientais, isso
sem prejuízo das medidas correlatas de ordem civil e administrativa. Por isso é que
as ocorrências de caça abusos e maus tratos aos animais precisam ser levados ao

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conhecimento das autoridades, o que não deixa de representar um exercício de


cidadania. Caso contrário, a omissão ou a indiferença das pessoas somente aumentará
a impunidade e a sensação de descrédito na justiça. Deve o Ministério Público, de
sua parte, agir com sensibilidade e bom senso diante de cada caso, sem jamais perder
de vista que – do outro lado – está uma criatura que não pode se defender.
O promotor Marcelo Pedroso Goulart, ao discorrer sobre o novo perfil
institucional do Parquet, observa que “o papel fundamental que está reservado
ao Ministério Público brasileiro, enquanto instituição, deve ser entendido na
inteireza de sua função política, como canal de demandas sociais, a alargar
o acesso à ordem jurídica justa. Supõe a educação para o exercício da
cidadania” (in “Ministério Público e Democracia”. Leme: Editora de Direito,
1998). Não se pode mais conceber – em pleno século XXI – que a Instituição
permaneça alheia aos problemas que surgem ao seu redor, como se aquilo que não
estiver nos autos não existisse no mundo. Os legisladores constitucionais, facultando
ao Ministério Público a instauração de procedimentos para apurar qualquer ofensa
aos direitos que lhe cabem proteger (art. 129, III, da CF), possibilitou ao Parquet o
alargamento de seus horizontes institucionais. Assim, a atuação extrajudicial e
preventiva, diante de um fato potencialmente lesivo - com objetivos transacionais
ou pedagógicos – permite ao promotor alcançar resultados mais rápidos e eficazes
do que aqueles obtidos pelas vias processuais, em que a multiplicidade de recursos
e o duplo grau de jurisdição acarretam, inevitavelmente, a morosidade do provimento
judicial. Na esfera criminal, embora o legislador tenha fixado reprimendas muito
brandas àqueles que agridem animais, não se deve esquecer que uma boa proposta
de transação penal ao infrator (nas hipóteses em que a Lei nº 9.099/95 a permite),
seja ela de cunho reparatório ou educativo, costuma alcançar resultados mais
eficazes do que a mera imposição de pena.
Nunca é demais lembrar que no Brasil está em vigor a Lei federal nº 9.795/
99, que trata da Política Nacional de Educação Ambiental. A formação do caráter
de uma criança depende muito daqueles que lhe ensinarão os valores supremos da
vida, em que se inclui o respeito pelas plantas e pelos animais. Não há outro jeito
de mudar nossa caótica realidade social senão pelo aprendizado de princípios
verdadeiramente compassivos. A educação ambiental, se adequadamente ensinada,
tem a responsabilidade de levar as pessoas à reflexão. Por intermédio dela é que
se podem obter transformações, propiciando um mundo mais justo para todas as
espécies que aqui habitam. Cabe à educação ambiental, enfim, mostrar que a
natureza e os animais merecem ser protegido pelo que eles são, como valor em si,
não em vista do benefício que nos podem propiciar.
Apesar da vigência de tantas leis ambientais em nosso país - tenham elas
natureza proibitiva ou permissiva, sejam elas eficazes ou inócuas, possuam ou não
intenções dissimuladas-, somente um sério trabalho pedagógico pode alterar nosso

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600 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

atual estado de coisas. As leis, por si só, não têm a capacidade de mudar
mentalidades, porque o equilíbrio social preconizado pelo Direito vigora em meio a
fragilidades e a incertezas. É preciso que as pessoas apurem sua sensibilidade
para respeitar os animais pelo que eles são, jamais em função de sua serventia.
Nesse contexto, a questão ética não pode permanecer ignorada. Alega-se que a
suposta graduação intelectual entre as espécies serve de parâmetro para conferir
aos homens a exclusividade de obter direitos, como se os animais fossem
insignificantes do ponto de vista moral. Na verdade, a tutela jurídica da fauna não
se vincula, necessariamente, ao bem estar humano. Ela basta por si. Afinal, o
discurso ético em favor dos animais decorre não apenas da dogmática inserida
neste ou naquele dispositivo legal protetor, mas dos princípios morais que devem
nortear as ações humanas. O direito dos animais envolve, a um só tempo, as teorias
da natureza e os mesmos princípios de Justiça que se aplicam aos homens em
sociedade, porque cada ser vivo possui singulariedades que deveriam sempre ser
respeitada. A postura compassiva perante a vida precisa se somar aos deveres
humanos relacionados ao respeito e à proteção dos animais, erigindo-se tudo isso
em uma única e relevante questão filosófica.

6 - JURISPRUDÊNCIA CRIMINAL
Rodeio – ação penal proposta contra organizadores do Vale Rodeio Show, em
São José dos Campos, por abuso e maus tratos a animais – responsabilidade
penal em face do uso de ‘corda americana’ em touros e cavalos, à guisa de
sedém – comprovação de que se trata de equipamento capaz de provocar dor
– Condenação dos réus a pena de multa – Infringência ao artigo 32 caput da
Lei nº 9.605/98 c/c artigo 71 caput do Código Penal – Prescrição reconhecida,
posteriormente, pela Superior Instância, prejudicado o exame de mérito (autos
nº 813/98, 4a. Vara Criminal de São José dos Campos).
Farra do boi – crueldade a animais – alegação de que se trata de
manifestação cultural – inadmissibidade – A obrigação de o Estado garantir
a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e
difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso
VII do artigo 225 da CF, no que veda a prática que acabe por submeter os
animais à crueldade - Aplicação do art. 225 § 1o, VII, da CF – Voto vencido
(RE nº 153.531-8 – Santa Catarina, 03.06.1997, RT 753/101).
Caça – crime contra a fauna praticado dentro de unidade de conservação –
indivíduo surpreendido em atos de caça, após abater um uru em reserva
florestal - infringência ao art. 29, § 4o da Lei 9.605/98 – Pena corporal
substituída pela restritiva de direitos, ou seja, prestação de serviços à
comunidade (TRF 4a. Reg., Acr. 96.04.63430-5/SC, 1a. T., Rel. Juiz Vladimir
Freitas, j. 15.06.1999).

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LAERTE FERNANDO LEVAI 601

Animal exótico – Introdução de espécime animal no País sem autorização


– artigo 31 da Lei nº 9.605/98 – Retroatividade – CP, art. 2o – Transação –
Lei nº 9.099/95, art. 76 – Como a lei retroage em favor do réu, converte-se
o julgamento em diligência, sem exame da sentença condenatória na lei
revogada (Lei nº 5.197/67, art. 4o), a fim de que seja tentada a transação
(TRF 4a. Reg., Acr. 98.04.04227-0/RS, 1a. T., Rel. Juiz Ramos de Oliveira, j.
20.06.1998).
Briga de galos – A briga de galo, embora para os galistas constitua um esporte,
é evidentemente um ato de crueldade para com os animais, isto porque os
galos, quando levados à rinha, enfrentam-se em duelo mortal, sangrando-se,
cegando-se e brigando até que um deles caia prostrado ao chão e mortalmente
ferido (TACRIM-SP, Rel. Mendes França, RT 302/448).
Envenenamento – Comete infração de crueldade aquele que, dolosamente,
ministra substância venenosa a animal inofensivo, causando-lhe sofrimento
e morte – Hipótese de condenação (TACRIM-SP, RHC, Rel. Albano
Nogueira, JUTACRIM 55/126).
Crueldade – Indivíduos que, a golpes de enxada, quebram a perna de um
equino abandonando-o sem socorro – infração caracterizada – Condenação
mantida – Protege a lei os animais não só por sentimento de piedade como
tamb[em para educar o espírito humano, a fim de evitar que a prática de
atos de crueldade possa transformar os homens em seres insensíveis ao
sofrimento alheio (TACRIM-SP, Rel. Mendes França, RT 295/343).
Corpo-de-delito – Os maus tratos a animal, aplicados com crueldade, podem
provar-se indiretamente, prescindindo-se, pois, do exame de corpo-de-delito
direto (TACRIM-SP – AC – Rel. Andrade Vilhena – RT 437/367).
Coureiro – Indivíduo surpreendido ao transportar, ilegalmente, peles de jacaré
– Infração à Lei de Proteção à Fauna – Condenação mantida (RT 542/370).
Caça esportiva – habeas-corpus impetrado em favor de caçador amadorista
– Denegação da ordem – Não pode o remédio heróico ser utilizado para
tornar o impetrante imune à ação fiscalizadora do Estado na defesa da fauna
silvestre (TRF, 4a. Reg. 1/106, rel. Juíza Ellen Nortfleet).
Apreensão de peles – 4.490 peles de diferentes animais da fauna silvestre
brasileira em poder do acusado – Presumível atividade comercial espúria –
Infração ao art. 3o da Lei nº 5.197/67 (TRF- 1a Reg., Acr 0111736-AM, 3a
T., j. 22.06.94, Rel. Juiz Fernando Gonçalves).
Venda de aves silvestres – O ato de oferecer à venda pássaros não
provenientes de criadouros devidamente legalizados, sem autorização da
autoridade administrativa competente, configura o crime previsto no art. 3o

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602 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

c/c 27 da Lei de Proteção à Fauna (TRF-4a Reg., Acr 0414666-RS, 1a T., j.


16.12.93, Rel. Juiz Vladimir Freitas).
Aves em gaiola – Configura o crime de comércio de espécimes da fauna
silvestre a manutenção, em casa, de dezenas de avesm com gaiolas e
alçapões, com evidente propósito mercantil (TRF-4a Reg., Acr. 95.04.13978-
7/RS. 1a. T., j. 12.12.95, Rel. Juiz Vladimir Freitas).
Tráfico de animais – Indivíduo flagrado transportando 312 pássaros e 40
macacos, para fins de comercialização no Rio de Janeiro – Intenção em
realizar o tipo descrito no art. 3o da Lei nº 5.197/67 – Apelação do réu
improvida (TRF-2a Reg., Acr. 02081-EWS, 2a T., j. 22.02.95, Rel. Juiz
Rogério Carvalho).
Apanha de ovos – É típica a conduta de apanha de sete ovos de ema e o
abate de um tatu peludo. Trata-se de crime de ação múltipla. A conduta
descrita não é algo insignificante e próprio da comunidade interioranam de
modo ao Direito Penaç manter-se alheio. Ao contrário, constitui dano ao
Meio Ambiente (TRF- 4a Reg., Acr. 94.04.49850-5/RS, 1a Turma, j. 21.11.95,
Rel. Juiz Carlos Sobrinho).
Comercialização de aves nativas - Constitui crime contra o meio ambiente
a comercialização de pássaros silvestres (art. 29, § 1º., inc. III, da Lei nº
9.605/98). Não exclui a tipicidade da conduta o fato de não se encontrar as
espécimes apreendidas na “Lista Oficial de Espécie de Fauna Silvestre
Ameaçada de Extinção”. O crime praticado contra espécie rara ou
considerada ameaçada de extinção constitui causa de aumento da pena de
metade (§ 4º., art. 29, Lei nº 9.605/98). É inaplicável à hipótese o princípio
da insignificância. Considerar atípica a conduta de alguém que é encontrado
com pequena quantidade de pássaros, é oficializar a impunidade. Deixar de
reprimir a conduta dos infratores significa conceder-lhes salvo-conduto e
incentivá-los à prática que poderá levar ao extermínio da fauna nacional.
Recurso provido” (TRF 1ª. Reg. – 4ª T. – Acv 1999.01.00.117497 – DF –
Rel. Mário César Ribeiro – RT 786/750).
Pesca predatória – indivíduo flagrado pescando com tarrafa durante a
piracema – Infringência ao art. 34, caput e II da Lei nº 9.605/98 – Condenação
do réu (TACRIM-SP – 2ª Câm. – Ap. 1203.581 – 6 – Rel. Silvério Ribeiro).
Inconstitucionalidade – Briga de galos. A Lei nº 2.895/98, do Estado do
Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre
‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão desses animais a
tratamento cruel, o que a CF não permite no artigo 225, § 1o, VII. Cautelar
deferida, suspendendo-se a eficácia dessa lei carioca (RHC-34936, RTJ-
39152, RTJ-6/411).

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LAERTE FERNANDO LEVAI 603

Circo – Animais silvestres utilizados em atividade circense – Maus tratos em


razão de acomodações inadequadas e falta de registro no Ibama – Apreensão
em sede cautelar e entrega ao depositário “Zôo Rio” as espensas do proprietário
– Encaminhamento imediato – Recurso provido (Agravo de Instrumento nº
108.871-5 – São Sebastião/SP, 14.12.1999, RTJ ESP 226/209).
Aves aprisionadas – Apanha e venda de pássaros da fauna silvestre
brasileira – O apelante, por trazer canários-chapinha dentro de caixote com
fundo falso, demonstrou consciência da ilicitude – Condenação mantida por
crime contra a fauna – Mesmo se os animais não se destinassem ao comércio,
a condenação foi acertada – Apelo conhecido e improvido (TRF-1a. Reg.,
Acr 90.01.05870-1/MG, 22.04.1991).
Pesca proibida – Crime ambiental do art. 34 caput da Lei nº 9.605/98 –
Pesca em lugar interditado por órgão competente – A análise do bem jurídico
tutelado deve levar em conta a especial importância das espécies aquáticas
existentes nos lugares interditados para a pesca (como no Parque Nacional
Lagoa do Peixe) – Nesse contexto, mesmo a captura de poucos animais
constitui dano relevante, ensejando a tipicidade penal (TRF 4a. Reg., Acr.
2000.711.011647-0/RS, 02.08.2001).
Molestamento de cetáceos – crime contra a fauna marinha. Cinegrafistas
que, no intuito de filmar uma baleia franca e seu filhote, atropelaram de
barco os cetáceos, molestando-os intencionalmente. O tipo penal ao se referir
a molestamento intencional não exige um fim especial de agir, apenas a
conduta dolosa genérica e voluntária. Independentemente da Portaria nº
2306/90, do Ibama, determinando entre outros aspecos a mantença de
distância mínima de 100 metros por parte do condutor da embarcação e, no
caso de aproximação voluntária do animal, o desligamento do motor, tais
cuidados constituem, antes e tudo, regras do bom senso. Hipótese de
condenação dos réus, por infração aos artigos 1o e 2o da Lei nº 7.643/87
(Acórdão nº 054361-9, Santa Catarina, decisão de 16.11.2000).

7 - JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
Crueldade em rodeio – Ação civil pública ajuizada pela Promotoria de
Cravinhos a fim de impedir rodeio. Festa regional que envolve maus tratos e
crueldade. Utilização de instrumentos e métodos que causam sofrimento a
cavalos e touros na arena. Concedida liminar para que os responsáveis pelo
evento abstenham-se de usar sedém, esporas de formato pontiagudo ou
cortantes e de sinos no pescoço dos animais, porque se constituem meios
dolorosos de instigação (proc. nº 937/95, Comarca de Cravinhos).

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604 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

Abuso em circo – Ação civil pública movida pelo Ministério Público contra
companhia circense que pretendia utilizar animais em exibições públicas.
Hipótese de abuso, consistente em obrigar tigres, macacos, elefante, urso,
lhamas e cães, dentre outros bichos, a perfazer atividades estranhas à sua
natureza. Pedido de liminar deferido, vedada a apresentação dos animais no
circo. Decisão de natureza satisfativa, extinguindo-se o feito sem julgamento
de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC (autos nº 585/03, 3ª Vara
Cível de São José dos Campos).
Mortandade de peixes – Ação civil pública proposta pela Promotoria de
Sorocaba contra indústria local. Redução do oxigênio da água provocada
pela diminuição da vazão nas barragens de usina hidrelétrica de
responsabilidade da requerida. Indenização pleiteada em vista da conseqüente
mortandade de peixes do rio Sorocaba (proc. nº 2.110/93, 5a Vara Cível de
Sorocaba).
TV Animal – Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal
contra rede emissora de televisão que exibia imagens de maus tratos a
animais, dentre as quais luta livre entre caranguejos. A requerida, abstendo-
se de fazê-lo, passou a veicular campanhas ecológicas. Acordo homologado
(proc. nº 89/00377540/7, da 19a Vara da Justiça Federal).
Abate cruel – Matadouro municipal que vinha abatendo gado a marretadas,
método esse vedado por lei em razão do sofrimento imposto ao animal.
Ação civil pública proposta na comarca de São Bento do Sapucaí.
Municipalidade condenada a adequar o matadouro às especificações
modernas e a substituir o sistema arcaico de abate pelo método científico-
humanitário (proc. nº 284/92, comarca de São Bento do Sapucaí).
Apreensão em circo – Utilização irregular de animais silvestres em circo.
Acomodações inadequadas e falta de registro dos animais no Ibama.
Ocorrência de maus tratos, ensejando ação civil pública pelo Ministério
Público. Recurso contra decisão judicial que liberava os animais ao depositário,
sendo provido para que o agravado faça a entrega dos animais à Fundação
Zoológico da cidade do Rio de Janeiro (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, Agravo de Instrumento nº 108.871-5, São Sebastião).
Fechamento de zoológico – Ação Civil Pública interposta pelo Ministério
Público Estadual em favor de 30 animais da fauna silvestre aprisionados em
condições cruéis. Estabelecimento particular montado em desconformidade
à lei. Ofensa ao decreto nº 24.645/34. Pedido de fechamento do zôo com a
reintegração dos bichos, na medida do possível, ao seu habitat natural (proc.
nº 218/88, comarca de Aparecida).

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LAERTE FERNANDO LEVAI 605

Jegue no carnaval - Ação civil pública, com pedido de liminar, movida pela
Promotoria de Justiça da comarca de Porto Seguro/BA, em face da
exploração abusiva de um animal para o divertimento humano. Bloco
carnavalesco “Jegue Elétrico” cujo mascote – um jumento extenuado –
puxava carroça com carga estimada em 300 kg de equipamentos sonoros,
com 2.000 watts de potência. Hipótese típica de abuso em animal de tração
(proc. nº 535549/99, Vara Cível da comarca de Porto Seguro).
Instrumentos de tortura – Ação civil pública relacionada à proteção dos
animais utilizados em rodeios. Proibição de uso de sedém, peiteiras e esporas,
equipamentos que causam dor e tormento. Pedido do Ministério Público julgado
procedente, com declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, da
Lei Estadual nº 10.359/99 (proc. nº 326/99, 5ª Vara da comarca de Itu).
Irregularidades em canil – Ação civil pública ambiental, com pedido de
tutela antecipada, em face de um canil que submetia animais a maus tratos.
Solicitação ministerial no sentido de o requerido cuidar adequadamente de
todos os animais sob sua tutela e resguardar-lhes a integridade física, abstendo-
se de quaisquer atos ou condutas que possam caracterizar maus tratos, abuso
ou crueldade (proc. nº 1.647/01, Vara Cível da comarca de São Vicente).
Dano moral – Ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra
emissora de televisão que, durante filmagens de uma minissérie, perdeu animal
em risco de extinção (leopardo) cedido por determinada ONG mediante
delegação do Ibama. Objetivo de obter reparação pelos danos materiais e
morais ocasionados à fauna silvestre brasileira, haja vista o misterioso
desaparecimento do felino sem que houvesse a devida cautela pela rede
televisiva (proc. nº 2.335/01, 4ª Vara Cível da comarca de Jundiaí).
Jugulação cruenta – Matadouro que perfazia abate de animais
inobservando os termos da Lei do Abate Humanitário. Realização do ritual
muçulmano, sem prévia insensibilização dos bovinos. Crueldade reconhecida.
Ação civil pública julgada parcialmente procedente, declarando-se incidenter
tantum a inconstitucionalidade da lei estadual nº 10.470/99 (proc. nº 2.144/
03, 7ª Vara Cível de São José dos Campos).
Inquérito Civil – Retenção de navio – Procedimento instaurado pela
Promotoria de São Sebastião contra navio estrangeiro que derramou 20.000
litros de óleo nas águas litorâneas brasileiras, ocasionando sérios danos à
fauna ictiológica – Medida cautelar de Produção Antecipada de Provas para
permitir imediato exame pericial na embarcação – Navio retido no porto até
a prestação de caução no valor de US$ 10 milhões, para garantir a indenização
dos danos ambientais sofridos (autos. nº 429/91, comarca de São Sebastião).

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606 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

Inquérito Civil – Veículos de tração animal – Maus tratos a eqüinos explorados


na zona urbana – Adolescentes conduzindo carroças – Investigação que
redundou em TAC celebrado pelo Ministério Público gaúcho em 20.08.2002,
figurando como compromissárias a Secretaria de Transportes e a Polícia
Ambiental (IC nº 86/01, ação conjunta entre a Promotoria de Defesa do Meio
Ambiente e a Promotoria da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS).
Inquérito Civil – Vivissecção de animais – Universidade que perfaz
experimentação didática nos cursos de graduação e pós-graduação, sem
adotar os métodos alternativos preconizados na lei ambiental – Crueldade
para com os animais utilizados à guisa de cobaias (IC nº 41/03, 4ª Promotoria
de São José dos Campos).
Espetáculos cruéis – Espetáculos públicos que abusavam de animais,
submetendo-os a procedimentos incompatíveis com sua natureza, conforme
apurado no Inquérito Civil nº 06/99 – Responsabilidade municipal na
concessão de alvarás - Ajustamento de conduta celebrado entre o Ministério
Público e a Prefeitura, com o intuito de impedir atos cruéis - Proibição de
práticas como “vaquejada”, “farra do boi”, “bulldogging”, “pega garrote” e
quaisquer outros eventos que envolvam laçadas ou derrubadas de animais,
assim como o uso de “sedéns”, “peiteiras” e “esporas” nas provas de montaria
em rodeios, festas de peões, feiras de exposição de animais e similares
(TAC celebrado na Promotoria do Meio Ambiente de Guarujá, aos 05.08.1999,
pela promotora Martha Pacheco Machado de Araújo).
SCZ de Guarujá – Captura e matança generalizada de cães e gatos errantes
– Cadáveres dos animais deixados a céu aberto, no aterro sanitário do município
– Ausência de política pública de esterilização, adoção e posse responsável –
Ajustamento de conduta firmado com a Municipalidade, estipulando-se
inúmeras obrigações de não fazer – Vedação à captura de animais não nocivos
e que não estejam doentes, salvo para fins de vacinação, tratamento médico e
castração – Garantia do retorno dos animais ali recolhidos ao lugar em que
viviam, exceto nos casos de reconhecida necessidade da eutanásia - Proibição
do uso de câmara de gás ou de qualquer outro método que cause sofrimento
aos animais – Implantação dos serviços de registro e de atendimento médico
veterinário gratuito – Melhorias nas dependências do SCZ – Treinamento
técnico trimestral, garantido o acompanhamento das entidades de proteção
animal – Obrigatoriedade de comunicação escrita à autoridade policial e à
Promotoria sempre que o SCZ tiver conhecimento de ocorrência de maus
tratos (TAC firmado por Martha Pacheco Machado de Araújo, então promotora
de Justiça do Meio Ambiente de Guarujá, aos 26.04.2001).
CCZ de São Vicente – TAC firmado pelo Ministério Público com a Prefeitura,
em São Vicente, objetivando à proibição da morte, no CCZ local, de animais

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LAERTE FERNANDO LEVAI 607

recolhidos da ruas e que não sejam nocivos à saúde e à segurança de seres


humanos, bem como daqueles que não estejam em fase de doença terminal
ou que possam ser tratados – Dentre as outras obrigações de fazer incluem-
se o controle de população felina e canina do município, a implantação de
serviço permanente de castração no CCZ, a obrigatoriedade do registro de
animais e as melhorias nas condições de alojamento animal. Dentre as
obrigações de não-fazer, a abstenção de recolher – a pedido do dono – animais
saudáveis para sacrifício no CCZ, e a não-cessão de animais para fins de
experimentos ou vivissecção (TAC celebrado aos 2.2.2002 pelo promotor
Fernando Reverendo Vidal Akaoui).
CCZ de Salvador – Mudanças estruturais no CCZ de Salvador/BA –
Ajustamento de conduta entre o MP baiano e a Prefeitura – Necessidade
de melhorar as condições dos animais ali recohidos, propiciando-lhes
vacinação, esterilização, registro e adoção, além de contínuo tratamento
médico-veterinário – Proibição do sacrifício indiscriminado de animais (TAC
firmado pelo promotor Luciano Rocha Santana, aos 03.07.2002).
Proibição de rodeio – ACP proposta pela Promotoria do Meio Ambiente
de São José dos Campos contra evento que promove rodeio – Concedida
liminar para que a requerida se abstenha de usar sedém e esporas nos animais
submetidos à montaria, vedada também a realização de provas de laço –
Sentença julgada procedente nos termos da pretensão ministerial, já transitada
em julgado sem interposição de recurso (autos nº 1.200/03, 6ª. Vara Cível da
comarca de São José dos Campos, juiz Marcius Geraldo Porto de Oliveira).
Briga de galos – Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo
procurador-geral da República contra a lei estadual nº 11.344/00, de Santa
Catarina, que disciplinava a criação, exposição e realização de competições
entre galos combatentes. O relator da ação, ministro Eros Grau, do STF,
decidiu que o legislador catarinense ‘ao autorizar a odiosa competição entre
galos, ignorou o comando constitucional’ (ADIN nº 2514, STF).
Caça amadora no RS – ACP ajuizado por associação civil contra o IBAMA,
discutindo a proibição da caça amadorista no Estado do Rio Grande do Sul –
Julgada parcialmente procedente para reconhecer que a caça amadorista, a
caça recreativa e a caça esportiva não podem ser liberadas nem licenciadas
pelo IBAMA, porque não têm atividade socialmente relevante, não condizem
com a dignidade humana, não contribuem para a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária e, principalmente, porque submetem os animais à
crueldade (Processo 2004.01.00.021481-2, sentença proferida aos 28.06.2005
pelo juiz federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, da Vara Federal Ambiental,
Agrária e Residual de Porto Alegre/RS).

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608 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

8 - MODELO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ABUSOS SOBRE ANIMAIS


EM CIRCO)

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO


DA____VARA CÍVEL DA COMARCA DE ___________________.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por intermédio


dos Promotores de Justiça que a presente subscrevem, nos termos do artigo 129, III,
da Constituição Federal, artigo 5º, caput da Lei Federal n° 7.347/85, artigo 103, VIII,
da Lei Complementar Estadual n° 743/93 e, ainda, com fundamento no artigo 225, §
1º, VII, da Constituição Federal, artigo 193, X, da Constituição Estadual, artigo 1° e
seguintes do Decreto n° 24.645/34 e artigo 32 caput da Lei Federal n° 9.605/98, vem
respeitosamente perante Vossa Excelência propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL


COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
a ser analisado liminarmente inaudita altera pars
contra o circo _______________________________, pessoa jurídica
portadora do CNPJ nº __________________________, sediada na Avenida
___________ , cidade de _______________, ora representado por seus sócios
_________________, RG __________ e CPF ______________ e
____________, RG _____________ e CPF _________________, pessoas
essas responsáveis pelo espetáculo circense previsto para se apresentar no período
de____ a ___ do mês de _____ do corrente ano, na avenida __________, defronte
ao Shopping ______, nesta cidade e comarca, motivando-se a ação do Parquet
em vista dos notórios ABUSOS a que são submetidos os animais utilizados em
circo, conduta essa que se traduz em crueldade, conforme se depreende das razões
de fato e de direito a seguir aduzidas.
1. INTRODUÇÃO
Os circos que utilizam animais em exibições e espetáculos públicos constituem,
ainda hoje, uma forma de celebrar o triunfo brutal do homem sobre a natureza. Sua
história se confunde com a saga da dominação humana, em remotas eras, quando
guerreiros e caçadores retornavam à sal comunidade exibindo escravos aprisionados
durante os combates e animais exóticos capturados em terras distantes. Das olimpíadas
gregas surgiram os primeiros números circenses, realizados inicialmente sem o uso

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LAERTE FERNANDO LEVAI 609

de animais, apenas com o talento de malabaristas e trapezistas. Tais demonstrações


de habilidade humana, apresentadas nos anfiteatros do Império Romano, como o
antigo Circo Máximo (366 a.C.) foram, depois, desvirtuadas com as provas de força
e subjugação. É o que ocorreu no célebre Coliseu de Roma (90 d.C.), onde se exibiam
lutas sangrentas de animais exóticos e de gladiadores. Na época de Nero tais
espetáculos tornaram-se ainda mais cruéis, com a matança cruenta de milhares de
homens e de animais. Vieram, posteriormente, as companhias mambembes de circo,
que percorriam os lugarejos levando consigo inúmeros animais subjugados.
Com as grandes navegações e a anexação de novas terras à sanha
imperialista da realeza européia, o sofrimento dos animais atingiu proporções ainda
maiores. Na corrida pelas ‘riquezas naturais’ dos territórios conquistados vários
bichos foram aprisionados nos continentes americano, asiático e africano – onças,
macacos, tigres, elefantes, girafas, ursos, aves e rinocerontes – todos eles
transportados em condições precárias, nos porões das caravelas e das galés, em
penosa travessia pelos oceanos. Grande parte desses animais cativos morria no
trajeto. Os sobreviventes, utilizados como símbolo de ostentação pelas Cortes,
acabavam às vezes sendo destinados aos circos. Outros eram negociados com as
companhias mambembes ou com os zoológicos da época.
Informam os registros históricos que, pelas ruas de Lisboa antiga, diversas
formas de escravidão eram ostensivamente apresentadas pela Corte, em funesto
desfile onde seguiam, subjugados, homens africanos e animais selvagens arrancados
de sua terra. D. Manuel, tido como o Venturoso, durante seus habituais passeios
do Paço da Ribeira até o Rossio, gostava de se fazer seguir por um exótico cortejo
zoológico, repleto de paquidermes acorrentados, felinos enjaulados, símios
barulhentos e pássaros aprisionados, todos vindos de lugares distantes (in “A Fauna
Exótica dos Descobrimentos”, Portugal: Edição ELO, 1993). Muitos desses animais
cativos passaram a serem exibidos publicamente, ensejando demonstrações de
coragem e destreza do domador, o qual os submetia a dolorosos procedimentos de
adestramento. Aqueles que não resistiam ao cárcere e aos castigos físicos
encontravam apenas na morte a sua libertação.
Depois da montagem do primeiro circo com picadeiro, pelo inglês Philip
Astley, em 1770, outras capitais européias o fizeram. Em meados do século XIX o
Rio de Janeiro passou a integrar a rota de algumas companhias circenses
estrangeiras, embora por aqui já estivesse instalado, desde 1830, o circo Bragassi.
Não é difícil imaginar quanto sofrimento vem sendo impingido, desde então, aos
animais cativos, para que perfaçam seus números extravagantes nos picadeiros,
como tigres saltando por argolas de fogo, elefantes sentados sobre banquinhos,
leões resignados pelas chibatas, ursos e macacos pedalando bicicletas, cães andando
sobre duas pernas, coelhos e pombas sufocados no fôrro de cartolas, cavalos se
ajoelhando submissos, etc.

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610 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

Entre o fim do século XIX e meados do século XX, nos Estados Unidos,
tornaram-se célebres dois tipos de entrenimento popular associados a aberrações: os
terríveis “museus da moeda”, nos quais se mostrava aos espectadores – a título
supostamente educativo – pessoas vítimas de deformações e anomalias genéticas,
ao preço de uma moeda de prata. Também se tornaram famosos os “circos itinerantes”
Barnum & Bayle’s Circus, bem como o Sell’s Circus, cujas “atrações” eram anuncia-
das a altos brados pelas ruas. Nesses circos de horrores, em que se atraía a platéia
com um sádico apelo à curiosidade, exibiam-se seres humanos deformados, ora com
três pernas ou quatro braços, homens padecendo de obesidade mórbida, outros de
anorexia, mulheres barbadas, gêmeos siameses, pessoas com elefantíase, homem
com duas cabeças, etc. (in “Freaks, Aberrações Humanas – a exploração de fenô-
menos físicos humanos em circos e espetáculos itinerantes”, Editora Livros e Livros).
Interessante notar que a vida dos animais mantidos hoje nos circos itinerantes
não difere muito daquela rotina de humilhação a que eram submetidas as pessoas
fisicamente deformadas. Assim como é desonroso exibir a miséria humana, também
é desonroso e cruel exibir animais para nosso divertimento. Mas a conhecida lei do
mais forte, que determina aquilo que podemos chamar “ética da dominação”, fez
com que o ser humano se regozijasse em subjugar as demais criaturas. Isso nos
propiciou, ao longo dos séculos, a aura de superioridade que vem dificultando nosso
verdadeiro processo evolutivo.
É o que constatou o zoólogo Desmond Morris, especialista em comportamento
animal:
“Uma das conseqüências ainda sentidas da atitude que considera o
homem superior aos animais é o que pode ser chamado de Caricatura
dos Animais. Para torná-los inofensivos, transformamo-os em
caricaturas engraçadas, como se fossem impostores ridículos apenas
de nosso escárnio (...) O fato de que cada um desses animais artistas é
grandemente superior à raça humana em determinados aspectos é
cuidadosamente ignorado. Somos nós que decidimos as condições nas
quais eles devem se apresentar e essa condições são sempre nossas, de
modo que nossa posição não fique ameaçada” (in “O Contrato Animal”,
Editora Record, p. 40).
Ora, o que significa estalar o chicote para que os tigres se curvem resignados
ou que saltem em direção ao fogo? Qual a função do bastão que faz um mamífero
de quase uma tonelada se deitar diante do domador? Por que os camelos se ajoelham
e os cavalos correm em círculos? E o urso ciclista, como desenvolve tal façanha?
Já os macacos chimpanzés, por acaso têm alguma afinidade ou afeição à música
humana a ponto de fazê-los rebolar no picadeiro? Quem fornece resposta a essas
indagações é Desmond Morris:

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LAERTE FERNANDO LEVAI 611

“Se, por acaso, eles possuírem uma característica inegavelmente


superior à nossa, então temos de aplicar uma nova regra. Tal regra
estabelece que se um animal é particularmente bom em alguma coisa,
precisamos planejar um espetáculo que diminua essa qualidade. O
exemplo mais óbvio é a força bruta. O leão, o tigre e o elefante são
claramente mais fortes do que nós, por isso organizamos espetáculos
em que sejam dominados pela habilidade e pela astúcia humanas. O
domador de leões estala seu chicote e o leão pula, atravessando um
arco; o treinador de elefantes levanta seu bastão e o poderoso animal
curva-se diante de nós. Fez-se do leão um medroso covarde para a
nossa diversão, e o eleante foi transformado em um idiota pesadão e
desajeitado. Nós nos divertimos e aplaudimos essa encenação cruel
do poder do homem sobre a natureza” (in Obra citada, p. 41, grifos nossos).
Impossível não ver que um animal cativo, utilizado por toda sua vida em
exibições circenses, está em permanente situação de sofrimento. Ainda que receba
alimentação, que tenha a assistência de veterinário ou um abrigo contra intempéries,
nada pode ser comparado àquilo que lhes foi tirado, o seu bem mais precioso, a
liberdade. Viajando nas carrocerias dos caminhões, de sol a sol, em pequenas jaulas,
para depois apresentarem nos picadeiros o número que lhe condicionaram pela
violência, esses animais padecem em resignado silêncio. O aplauso inconsciente da
platéia, ao final de cada exibição, é o mais doloroso estímulo para que esse abuso
continue se prolongando no tempo, sem que os adultos – ou as crianças ali levadas –
percebam seu equívoco ao prestigiar esse triste espetáculo de dominação humana.
Caçados ou subjugados, pouco importa, os animais de um modo geral têm
permanecido à margem da lei. Apesar da vigência de um estado de direito em
território brasileiro e do amplo mosaico normativo ambiental, de se lamentar que
nossos legisladores – preocupados com a proteção dos homens em sociedade –
não titubeiem em excluir os animais de qualquer perspectiva ética. O Direito e as
relações jurídicas, via de regra, refletem os interesses econômicos preponderantes,
afastando-se cada vez mais das leis da natureza, as quais existem
independentemente da vontade dos homens. Destinados à labuta, ao divertimento
público, à alimentação ou à vaidade de seus algozes, durante séculos os animais
vêm cumprindo em silêncio sua triste sina servil. Se o regime de escravidão africana
iniciou-se no Brasil em 1549, ao cabo de três séculos ele estaria extinto. Os animais,
ao contrário, continuaram submetidos aos grilhões da insensibilidade humana.
Circo com animais, portanto, é uma atividade cruel e abusiva. Deforma a
realidade natural e atenta contra a dignidade dos seres vivos transformados em
escravos. Também é um espetáculo anti-pedagógico, porque se propõe a transformar
uma conduta artificial e violenta em uma realidade cultural. Os adultos deveriam
refletir sobre isso antes de levar as crianças aos circos que exploram animais.

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612 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

2. DOS FATOS
O circo ___________, que já anuncia sua estréia aqui em ___________,
não foge à regra das companhias circenses que insistem em manter animais atuando
dessa forma em seus espetáculos. Isso porque, a exemplo de outras empresas do
gênero, faz com que os bichos executem números antromorfizados, conduta essa
que, segundo o parecer técnico que instrui esta inicial, da lavra da bióloga
_________________, revela-se hostil à natureza deles. Conforme se verifica do
expediente encaminhado à promotoria (cópia anexa), a requerida pretende a
utilização dos seguintes animais no picadeiro:
• 3 dromedários (dois machos e 1 fêmea)
• 1 camelo
• 4 lhamas (dois machos e duas fêmeas)
• 6 tigres siberianos (quatro machos e duas fêmeas)
• 3 tigres filhotes (2 machos e 1 fêmea)
• 1 chimpanzé (fêmea)
• 1 urso (Fêmea)
• 1 avestruz
• 3 jumentos (um macho e duas fêmas)
• 3 mini-pôneis (machos)
• 3 cavalos
• 1 égua
• 7 patos
• 5 ovelhas
• 3 carneiros
• 1 ganso (fêmea)
• 4 galos
• 4 galinhas
Sabe-se, ainda, que o circo ________________ possui à sua disposição
uma elefanta, de nome ______. Esse animal, ao que consta dos informes anexos,
costuma ser freqüentemente utilizado para fazer propaganda do circo, mantido
acorrentado defronte aos locais em que se instala a lona dos picadeiros, à guisa de
“anúncio vivo”, em condições extrememente hostis à sua natureza. Permito-me
juntar, a propósito, uma fotografia da silhueta do elefante _____em meio à
desoladora realidade circense, registro obtido por ocasião da temporada transcorrida
no município de Bauru, no mês de dezembro de 2000. Inúmeros protestos
organizados por associações de proteção animal já foram realizados, em São Paulo,

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LAERTE FERNANDO LEVAI 613

com o propósito de livrar ______de sua triste sina servil, sem que até hoje nada se
conseguisse de concreto em favor dela. Que a esperança de se libertar esse animal
do jugo do circo possa ser concretizada pelo Poder Judiciário de _____________,
fazendo cessar, enfim, tamanha injustiça...
Não é preciso muita imaginação, aliás, para deduzir as anômalas performances
desses animais em cena, algo certamente incompatível ao compartamento que
teriam se não fossem subjugados pelo duro adestramento. Elefante forçado a sentar
em uma banqueta e a deitar-se no palco, tigres saltando em meio a argolas de fogo
ou pulando de um lado para outro ao estalar da chibata, urso ou macacos ciclistas,
cavalos e camelos simulando passos de dança, bichos domésticos saltando de
grandes alturas ou fazendo demonstrações de equilíbrio, tudo isso em situações
capazes de ofender o preceito constitucional que veda a submissão de animais à
crueldade (artigo 225 § 1o, VII, da CF) e o próprio dispositivo ambiental que tipifica
abuso e maus tratos para com animais (artigo 32 da Lei nº 9.605/98). Conforme se
verifica do artigo “Circo: diversão ou castigo?”, publicado no boletim Notícias da
Arca (anexo), os métodos de adestramento são, invariavelmente, cruéis.
Pouca gente sabe que, por trás das cortinas do circo, os animais cativos
cumprem, em silêncio, um perpétuo martírio. Retirados de seu habitat ou impedidos
de viver de acordo com sua própria natureza, recebem – desde cedo – cruel
condicionamento. Precisam aprender a executar os números impostos pelos
domadores para, assim, conquistar cada vez mais a simpatia do público pagante.
Quanto mais insólitas suas apresentações, melhor para a companhia circense.
Especializados em fazer tigres saltarem em meio a argolas incandescentes, a
exigirem obediência aos leões apenas com o estalo dos chicotes, a ensinar macacos
e ursos equilibrarem-se em biciclos, a mandar um elefante sentar em uma banqueta,
a organizarem um balé de cãezinhos vestidos como gente, os profissionais da doma
impõem sua vontade pela força bruta.
Não há escolha para os animais cativos. Longe dos olhos da platéia, os
treinamentos condicionantes desafiam sua natureza intrínseca, mediante comandos
verbais, espancamentos, aplicações de choques elétricos, privações alimentares,
tudo isso para exigir dos animais um comportamento antropofomórfico. O que era
natural transforma-se, pelo medo, em comportamento induzido e/ou condicionado,
cujas ações e gestos acabam sendo direcionados, pelos animais, aos fins que se
lhes impuseram. Algo que a ciência comportamental denomina fator condicionante
externo, segundo a precisa análise da bióloga Fernanda Malagutti Tomé:
“Pode-se afirmar, portanto, que a utilização de animais como ‘artistas’
nos picadeiros de circo decorrre de um condicionamento
comportamental que lhes contradiz a prória natureza (...) A modificação
essencial do comportamento, em todas essas hipóteses, mostra o

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614 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

desenvolvimento de uma reação animal a determinado estímulo externo


nele induzido” – parecer técnico anexo.
Importa lembrar, nessa linha de raciocínio, que o reconhecimento científico
de que homens e animais possuem semelhante estrutura morfológica,
comportamental e neurofisiológica, provém das teorias evolucionistas de Charles
Darwin, que, em 1872, publicou seu derradeiro livro: “A expressão das emoções
no homem e nos animais”. Essa obra, que assim como a célebre “Origem das
Espécies” (1859), teve o mérito de desafiar o mito bíblico da criação, mostrando
que os animais têm emoções – afeto, raiva, medo, ciúme, solidão, alegria, tristeza
– manifestadas por meio das expressões. Contrariando o pensamento científico de
seu tempo, ao assegurar que os organismos seriam meras modificações de um
arquétipo central, Darwin demonstrou que o desenvolvimento embriológico nos
animais tende a seguir a linha evolutiva de cada raça. Sua tese, certamente, deu
origem – tempos depois - ao estudo biológico comportamental, hoje um dos ramos
da neurociência.
A obra de Darwin, em suma, fez desmoronar velhos tabus. Todos os seres
vivos, homens ou animais – demonstrou ele – fazem parte de uma mesma escala
evolutiva e, de acordo com as características de cada espécie, têm uma forma
peculiar de demonstrar emoções e sentimentos. A capacidade de raciocínio, correlata
ao formato e à dimensão de cada cérebro, não implica em maior ou menor
sensibilidade, de modo que soaria preconceituoso estabelecer distinções entre as
espécies com base em critérios fisiológicos ou em seu grau de discernimento.
Sabe-se, pelos estudos comparativos de DNA, que os chimpanzés possuem 98%
da carga genética do homem, o que abaliza a tese darwiniana sobre a descendência
humana do macaco. Provou-se, posteriormente, além da similitude na estrutura
nervosa dos animais, a existência de sistema límbico (responsável pelas emoções)
em todos os mamíferos, o que demonstra sua capacidade de sentir dor e exercer
funções mentais.
Hoje é indubitável, do ponto de vista científico, que os animais experimentam
sensações subjetivas múltiplas, porque suas atitudes – diante de situações adversas
– assemelham-se àquelas assumidas pelo homem frente às adversidades. O sistema
nervoso central, tanto o do homem como o dos animais, está organizado morfológica
e funcionalmente segundo o mesmo modelo estrutural, variando de acordo com as
características peculiares de cada espécie. Esta, aliás, é a constatação da professora
Irvênia Luiza de Santis Prada, especialista em neuroanatomia animal e cujos
alentados estudos projetaram novas luzes à compreensão da matéria.
Partindo da premissa de que na base do encéfalo reside o mecanismo
neurológico responsável pelos instintos de autopreservação, de reprodução, de
respiração, de agressividade e de demarcação territorial (existente nos peixes, nos

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LAERTE FERNANDO LEVAI 615

anfíbios e nos répteis) e que em sua parte frontal-superior encontram-se as


estruturas relacionadas à expressão de comportamentos e emoções (existente em
todos os mamíferos), com a ressalva de que no homem apenas o córtex cerebral é
mais desenvolvido que nas demais espécies, conclui a ilustre pesquisadora da USP:
“Quanto mais desenvolvido o sistema nervoso de uma determinada espécie
animal, maior capacidade terá os indivíduos dessa espécie de se expressar
em comportamentos mais elaborados” (in “Alma dos Animais”. Campos do
Jordão: Editora Mantiqueira, 1997).
Apesar dessas evidências todas, a teoria do animal machine – em que René
Descartes, no século XVII, equiparava os animais a meros autômatos incapazes
de raciocinar ou de sentir dor, como se as reações do corpo constituíssem apenas
reflexos a estímulos externos – continua a fazer escola. Ao negar aos bichos qualquer
possibilidade de valorização ética, sob o fundamento de que se eles possuíssem
alma a teriam revelado através da palavra, o antropocentrismo se impôs como
doutrina dominante, permitindo a ascenção do racionalismo, e de certa forma, o
ímpeto comercial que se utiliza economicamente dos animais sem nenhum
questionamento de ordem moral.
Em termos biológicos existe, porém, uma essência única comum aos seres
vivos, apesar de algumas diferenças estruturais na organização funcional do sistema
nervoso de cada espécie. O mecanismo da dor, associado a uma ação de causa e
efeito e que se relaciona, em regra, à destruição de células ou tecidos do organismo,
é semelhante em todas as criaturas. Esse fenômeno também se manifesta no campo
psíquico, quando a angústia decorrente do confinamento de um animal livre, por
exemplo, pode levá-lo à morte. A dor é universal. Não há porque graduá-la com
base na diferença entre as espécies.
Acontece que a avidez materialista, não raras vezes, desloca o eixo da ação
do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o usufruir. Permite-
se o amplo dominio do homem sobre o planeta, como que tentando buscar um
significado funcional para tudo o que existe. Sobre os ditames da deusa-razão o
mundo se torna o mundo dos homens, concepção essa que levou a um inegável
estreitamento dos nossos valores morais. Diante da competitividade imersa nas
leis de mercado, sucumbe a virtude, a complacência, a temperança, o senso de
justiça e os sentimentos de compaixão que se deve ter pelas criaturas escravizadas
ou sumariamente condenadas pelo homem. Cabe ao Direito, em face dessa situação
opressiva que hostiliza os mais fracos, resgatar o verdadeiro sentido do Justo.

3. DO DIREITO
Do ponto de vista moral e ecológico, a tutela dos animais, sabiamente
preconizada no artigo 225 § 1o, VII da atual Carta Magna, restou viabilizada – em

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616 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

sede penal – com a vigência da Lei dos Crimes Ambientais. O legislador ordinário,
seguindo o mandamento constitucional impeditivo das práticas que coloquem em
risco a função ecológica da fauna, que provoquem a extinção das espécies ou,
então, que submetam os animais à crueldade, estendeu a proteção jurídica da fauna
de modo a abranger os bichos silvestres (aqueles que vivem livres em seu habitat
peculiar), os exóticos (originários de outros países), os migratórios (espécies
nômades, que atravessam fronteiras), os domésticos (animais já habituados ao
convívio humano, em regra mansos) e os domesticados (espécies silvestres que se
tornaram dependentes do homem), sejam eles do meio terrestre, aéreo ou aquático.
Ainda que aparentemente as leis ambientais brasileiras priorizem a tutela da
fauna silvestre, por estar ela inserida no contexto dos ecossistemas e da
biodiversidade, não se pode esquecer que nossa Constituição Federal vedou a
submissão de animais à crueldade, fazendo-o em sentido amplo. Desse modo, a
fauna doméstica e a domesticada, nativa ou exótica, normalmente submetida às
regras civis do direito de propriedade, também mereceu a atenção do legislador e,
via de conseqüência, a tutela jurídica pelo Ministério Público.
Afinal, o índice de crueldade em relação a esses animais, vítimas de um
perverso sistema econômico ou das inúmeras expressões da maldade humana, na
cidade ou no campo, é impressionante. A lei brasileira, ao incriminar as práticas
que submetam os bichos a atos cruéis – abusos, maus-tratos, ferimentos ou
mutilações – ergueu voz em favor da incolumidade de todas as espécies, permitindo
concluir que, na hipótese do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, o bem jurídico preponderante
é o respeito devido aos animais. Estes, e não a coletividade, é que devem figurar
como sujeitos passivos proponderantes no crime de crueldade.
Acontece que nos circos a natureza dos animais acaba sendo subvertida por
um alienante discurso cultural relacionado à suposta finalidade recreativa da fauna.
Transformados em mercadoria de troca ou propriedade particular, tornam-se os
animais mudos escravos, peças de reposição, fantoches de uma triste comédia. O
cruel adestramento, mediante açoites e punições, faz com que eles obedeçam ao
comando do domador, anunciado pelo estalo da chibata. Assim, tigres saltam em
meio a argolas de fogo, ursos pedalam bicicletas, chimpanzés dançam com roupas
femininas, gatos pulam de grandes alturas, elefantes sentam-se em banquinhos,
leões se curvam em resignação.
Tamanha opressão não se limita aos picadeiros ou aos treinos, mas às
contínuas viagens dos circos itinerantes, sob chuva e sol, calor e frio, em estradas
áridas e turbulentas. Privados de liberdade e de respeito, os animais mantidos circo
formam um triste comboio de resignados prisioneiros. O aplauso do público, ao
final de cada apresentação deles, representa – na realidade – um inconsciente
estímulo à insensibilidade humana.

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LAERTE FERNANDO LEVAI 617

A legislação brasileira – independentemente de seu pretenso contexto


ecológico – protege os animais todos, colocando-os a salvo de maus tratos e
crueldades, direito esse projetado no âmbito constitucional.
A Constituição da República, no capítulo do Meio Ambiente, assim dispõe:
Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1° – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais à crueldade.
A Constituição Estadual também é explícita nesse sentido:
Art. 193 – O Estado, mediante lei, criará um sistema da administração da
qualidade ambiental, proteção e controle e desenvolvimento do meio
ambiente e uso adequado de recursos naturais para organizar, coordenar
e integrar as ações de órgãos e entidades da Administração Pública
direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, a fim de:
(…)
X – proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais
silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em
risco a sua função exológica e que provoquem extinção de espécies ou
submetam os animais à crueldade, e fiscalizando a extração, produção,
criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de
seus espécimes e subprodutos.
O antigo Decreto nº 24.645/1934, ainda vigente, trata das medidas de proteção
aos animais:
Art. 1° – Todos os animais no país são tutelados do Estado.
Art. 2°, § 3°: Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes
do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das
sociedades protetoras dos animais.
Já a Lei de Crimes Ambientais (Lei federal n° 9.605/1998), finalmente,
contempla o seguinte tipo:
Art. 32 – Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais
silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

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618 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

Dentre os princípios constitucionais da ordem econômica, relacionados no


artigo 170 da Constituição Federal, está o da defesa do meio ambiente, no qual se
inclui a proteção aos animais. Isso porque a Constituição pôs a natureza – da mesma
forma que a fauna – na condição de bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida. Como bem anotou o jurista José Afonso da Silva, a defesa do meio
ambiente – elevada ao patamar de princípio da ordem econômica – tem o efeito de
condicionar a atividade laborativa ao respeito à natureza e, por conseguinte, aos
animais que o legislador protegeu da crueldade: “… contra a terminologia direitos do
homem, objeta-se que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-
se que só o ser humano pode ser titular de direitos. Talvez já não seja mais assim,
porque, aos poucos, se vai formando um direito especial de proteção aos animais.
Nessa mesma linha de raciocínio, conclui o ilustre constitucionalista, a defesa do
meio ambiente é um daqueles princípios “que possibilitam a compreensão de que
o capitalismo concebido há de humanizar-se” (in “Curso de Direito Constitucional
Positivo”, São Paulo: Editora Malheiros, 2001).
Se conjugados entre si os mandamentos do artigo 225, § 1º, VII, da
Constituição Federal – proibitivo da crueldade contra animais – e do artigo 32 da
Lei de Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98), que incluíram todos os animais
em seu manto protetivo, inclusive os domésticos e os exóticos utilizados em exibições
circenses, não será difícil concluir que a tutela da fauna alcança também os animais
sujeitos às normas civis que regem o direito de propriedade, porque aquele dispositivo
magno possui um conteúdo moral que se afasta da vertente antroponcêntrica do
direito ambiental brasileiro.
Em que pese o teor dos dispositivos constitucionais que no artigo 5º da Carta
Política asseguram a qualquer indivíduo o livre exercício de qualquer trabalho, ofício
ou profissão (inciso XIII) e o direito de propriedade (inciso XXII); que no artigo 6º
relaciona o trabalho como direito social ; que no artigo 170 estabelece os princípios
gerais da atividade econômica, assegurando a todos o livre exercício de qualquer
atividade comercial (parágrafo único), não se pode esquecer que – por outro lado –
o legislador ambiental também tutelou os animais, como criaturas sensíveis que são,
vedando as práticas que os submetam à crueldade. O mandamento do artigo 225 §
1o, VII da Constituição Federal, se confrontado com aqueles outros, prevalece.
Não existe hierarquia entre as normas constitucionais, cujos dispositivos
devem conciliar desenvolvimento econômico, bem estar humano e meio ambiente
sadio. Se o artigo 215 § 1o resguarda as manifestações da cultura popular e o
artigo 225 protege os animais da submissão à crueldade, evidente que o exercício
de um espetáculo público não pode atentar contra seres vivos, mesmo porque o
artigo 170, VI, da CF estabelece a defesa do ambiente como princípio geral da
atividade econômica.

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LAERTE FERNANDO LEVAI 619

Daí a conclusão de que o espírito protecionista do direito ambiental não se


deve ater somente ao viés ecológico, que classifica a fauna como recurso natural
ou bem difuso, tampouco se curvar a preceitos de ordem econômica e laborativa,
mas viger em função daquilo que a Constituição preconiza no artigo 225, § 1º, VII:
vedação à crueldade. Ora, se a norma constitucional trata de uma prática correlata
à desumanidade – crudelis, que, em sentido próprio, é aquele “que gosta de fazer
correr sangue, e daí: cruel, desumano, insensível” (professor Ernesto Faria,
“Dicionário Escolar Latino Português”. Rio de Janeiro, FAE, 1985), ou, então,
“qualidade de cruel ou o ato cruel” (professor Antenor Nascentes, “Dicionário de
Sinônimos”. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981) – erigindo o dever de proteção
aos animais em relevante questão moral, foi porque reconheceu que um ser vivo,
longe de constituir mera res ou bem de consumo, é capaz de vivenciar dores,
aflições, angústias e sofrimentos. Esse dispositivo supremo, tanto na Constituição
Federal (art. 225) como na Constituição Estadual (art. 193), deve preponderar
sobre aqueles relacionados ao labor, à economia ou à propriedade, porque o bem
supremo de qualquer criatura é a vida.
O conflito constitucional de normas, no caso dos animais submetidos às
agruras do circo, é apenas aparente, porque um dispositivo que se opõe àquilo que
mais angustia qualquer ser vivo - a dor do cativeiro e da vida antinatural - jamais
poderia ser esmagado por interesses econômicos e privados, relacionados a uma
pseuda função recreativa da fauna. Como bem sintetizou a magistrada Teresa
Ramos Marques, relatora de um Acórdão que julgou procedente ação do Ministério
Público visando à não-utilização de instrumentos torturantes em animais de rodeio,
“não se desfaz a crueldade por expressa disposição de lei” (Apelação Cível nº
168.456-5/5-00, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).
É certo que o circo __________ apresentou, na promotoria, atestados
veterinários recentes comprovando que seus animais estão com boa saúde,
devidamente vacinados e vermifugados. É certo, também, que juntou uma cópia de
sua pretensa regularidade junto ao IBAMA, documento esse datado de
___________. Isso tudo, porém, não afasta a motivação da presente ação pública
ambiental, porque o cerne da questão ora discutida não se restringe a seus aspectos
veterinários. Com efeito, a promotoria não está afirmando que os animais do circo
____________ sofrem maus tratos e/ou ferimentos físicos. Está dizendo que,
usados da forma como o são, sofrem flagrantes ABUSOS. E a lei ambiental é
clara em tipificar, no delito que define situações de crueldade para com animais
(art. 32 da Lei nº 9.605/98), quatro verbos distintos: mutilar, ferir, maltratar e abusar.
O que nos interessa, aqui, é o conceito de abuso, incluído naquele tipo penal
de conteúco misto. Significa uso incorreto, despropositado, indevido, demasiado,
cruel. Em suma, o mau uso. Caracteriza-se, por exemplo, na hipótese do cavalo
submetido ao pesado fardo das carroças. Também os bois que uxam o arado no

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620 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

campo, de sol a sol, sob açoites. É o que também ocorre nos picadeiros de circo,
quando os animais se vêm forçados a perfazer, em cena, condutas que normalmente
não fariam. Esses bichos aprenderam, desde cedo, que não têm escolha: devem
sempre atender ao comando do domador. O que não se costuma contar, todavia, é
a forma como se realiza a doma, invariavelmente permeada pela violência física e
píquica. Todos esses procedimentos, enfim, são abusivos.
Sobre isso os atestados veterinários se calam. Sobre isso o IBAMA não se
manifesta. Sobre isso, porém, o parecer da bióloga Fernando Malagutti Tomé é
elucidativo: a análise comportamental e etológica de um animal submetido ao
trabalho comprova que a atividade circense é abusiva em relação aos bichos, sejam
eles silvestres, exóticos, domésticos ou domesticados. Se a nossa Carta da República
veda expressamente a crueldade para com animais, evidente que aquilo que acontece
com os bichos destinados ao circo deve ser objeto de tutela jurídica.
Mesmo que o circo ____________ tenha atendido às exigências técnicas
do IBAMA, ou que tente demonstrar – mediante a juntada de pareceres ou
atestados veterinários - que seus animais estejam com boa saúde e sem quaisquer
lesões físicas, isso não afasta a motivação precípua desta ação. Afinal, o cerne da
questão ora discutida não se esgota no aval administrativo, tampouco se limita às
conclusões veterinárias superficiais, projetando-se muito além disso, a ponto de
alcançar aspectos de natureza biológica, psíquica e comportamental dos animais,
com implicações de ordem cultural e filosófica, além do alcance jurídico do conceito
de abuso e crueldade. Assume o tema, conseqüentemente, um interesse JURÍDICO
relevante, porque os atos de abuso para com animais também foram considerados
pelo legislador como crime ambiental.
Ora, o caráter itinerante de uma companhia circense não atende às
necessidades biológicas de seus animais, cuja vida se resume a pequenos
deslocamentos entre a carroceria dos caminhões de transporte, a baia ou as jaulas
e o picadeiro dos espetáculos. Seria temerário afirmar que os animais vivam felizes
desse jeito, quando se sabe que sua natureza intrínseca opõe-se ao cativeiro. Um
contrasenso, ademais, falar em bem-estar de uma elefanta usado geralmente como
propaganda e/ou chamariz ao público, acorrentado à vista do público no local em
que se pretende realizar o espetáculo. Como sustentar que animais nessas condições,
encarcerados em pequenas celas e longe de seu habitat - geográfico e climático,
forçados a fazer aquilo que naturalmente não fariam, são bem tratados?
Interessante frisar que, na hipótese específica dos circos, os animais utilizados
no picadeiro costumam executar seus números depois de um cruel adestramento,
em que não raras vezes o fornecimento de comida fica condicionado, à guisa de
recompensa, ao êxito da performance. Fere o bom senso dizer que essas
apresentações demonstram habilidades animais em função dos treinamentos

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LAERTE FERNANDO LEVAI 621

impostos pelo domador. Tão absurdo quanto um felino saltar em meio ao fogo é
ver ursos, leões e tigres resignando-se ao estalo das chibatas, enquanto um elefante
se ajoelha, um macaco dança com saias e eqüinos são forçados a executar os
passos de um balé deprimente, sob a batuta da insensibilidade humana.
Circo com animais, embora há quem diga constituir uma tradição, não é
cultura. Trata-se, na realidade, de uma inequívoca demonstração de violência para
com criaturas subjugadas, que não podem fugir nem se defender. O artigo 215 da
Constituição Federal, que assegura a todos o direito à cultura – repita-se –, não
prevalece diante da norma do artigo 225 § 1o, VII, em que o próprio Poder Público
recebeu a incumbência de proteger a fauna, vedando que animais sejam submetidos
à crueldade. Inexiste conflito de normas. O direito à vida digna e ao bem estar de
um ser senciente não pode sucumbir diante de um mau costume, tampouco
compactuar com a violência que recai sobre os animais escravizados em circos.
Vale lembrar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal, ao proibir a
famigerada farra do boi, reconheceu sua insconstitucionalidade em face do preceito
protecionista dos animais proclamado pelo artigo 225 § 1o, VII, da Constituição
Federal. O ministro Francisco Rezek, relator dessa histórica decisão, assim se
pronunciou: “Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática
dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação
cultural, com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para
com os animais, e a Constituição não deseja isso” (Recurso Extraordinário nº
153.531/8/SC; RT nº 753/101).
De fato, o mandamento magno acima referido não se limitou em garantir a
variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da
moral. Ao impor expressa vedação à crueldade para com os animais, como que
admitindo a prática da maldade e do sadismo humano sobre outras criaturas, nosso
legislador constitucional admitiu a possibilidade de o animal ser considerado sob a
perspectiva ética e, portanto, sujeito jurídico passível de tutela mediante
representação processual adequada (substituído, no caso, pelo Ministério Público,
a quem incumbe a proteção jurídica dos animais).
Sobre esse tema, interessante evocar o douto magistério de Antonio Herman
Vasconcellos e Benjamin, Procurador de Justiça e mestre em Direito Ambiental:
“Nos últimos anos vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito
Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora, exossistemas), sob uma
diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico próprio (...) O
reconhecimento de direito aos animais – ou mesmo à natureza – não leva ao
resultado absurdo de propor que seres humanos e animais tenham os mesmos
ou equivalentes direitos...” (in “A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou
nada disso”. São Paulo, edição da Escola Superior do Ministério Público, 2001). O

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que se espera dos homens, enfim, é uma “mudança de paradigma na dogmática


jurídica”, devolvendo-se aos animais o direito que se lhes tiraram pela força.
Aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional,
que vêem a pessoa humana como única destinatária das normas legais, que vinculam
o respeito à vida em função do bem-estar da espécie dominante, que defendem a
função recretiva ou cultural da fauna e que consideram os animais ora coisas ora
como bens ambientais, afastando sua realidade sensível, rendem – deste modo –
uma infeliz homenagem à intolerância, à insensatez e ao egoísmo.
Importa dizer, enfim, que a postura complacente em relação à vida e à
dignidade das criaturas não se esgota em determinada corrente de pensamento,
tampouco se restringe a definições conceituais relacionadas a essa ou aquela forma
de agir. O animal merece consideração pelo que é, pelo caráter ímpar de sua
existência, pelo fato de, simplesmente, estar no mundo.
Embora seres dotados de sensibilidade e percepção, os animais são
comumente tratados como escravos e, por isso mesmo, sujeitos a dominialidade
privada. A etóloga inglesa Jane Godall, em seus escritos sobre a exploração humana
sobre os animais, disse que se pudéssemos tão somente superar a crueldade com
a compaixão, talvez fôsse possível criar uma “ética nova e sem fronteiras, uma
ética que respeitasse todos os seres vivos” (in “Uma Janela para a Vida” – Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991).
A proposta de um circo sem animais, que encontra boa aceitação entre as
crianças, vem ganhando adeptos no mundo inteiro. A propósito dessa evidência,
Silvana Castignone, professora de Filosofia de Direito na Universidade de Gênova,
sustenta que os circos podem ser espetáculos muito bonitos, desde que se atenham
aos seus próprios artistas, aos seus palhaços, aos seus exercícios de acrobacia,
agilidade e destreza, livrando os animais de constrangimentos desnecessários.
Propõe essa ilustre jurista italiana, a exemplo de algumas entidades de
proteção animal de seu País, interessantes sugestões para o problema: 1) proibição
do uso de animais em espetáculos; 2) incentivo aos circos que deixarem de utilizar
animais nas exibições; 3) recenseamento dos animais presentes nos espetáculos
circenses e sua transferência para centros de reabilitação à vida selvagem ou em
áreas de acolhimento. A idéia de um circo sem animais, adotada por diversas
companhias da Austrália, do Canadá e dos EUA, já inspirou vários seguidores aqui
no Brasil, conforme exemplos do Circo Spacial, do Circo Popular, do Circo Trapézio,
do Circo Voz, da companhia Intrépida Trupe, do Circo da Alegria, dentre outros
(documentação anexa). Leis proibitivas de circos com animais, aliás, vêm surgindo
em diversas cidades brasileiras, o que acena para uma mudança de mentalidade.
No município gaúcho de São Leopoldo foi aprovada, em 05 de abril de 2002,
uma lei proibindo a estadia de espetáculos circenses, teatrais e similares que se

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LAERTE FERNANDO LEVAI 623

utilizem de animais silvestres ou domesticados, nativos ou exóticos, em suas


apresentações (Lei municipal nº 5.087/02).
Em Brotas, interior paulista, dispositivo semelhante foi inserido na recente
legislação que dispõe sobre a expedição de alvará para espetáculos públicos,
constando de seu artigo 3o que “os animais utilizados nos espetáculos públicos
deverão ter sua dignidade corporal e psicológica respeitadas, sendo vedado
submetê-los a qualquer atividade não condizente com seu comportamento e
características naturais, bem como expô-los a maus tratos, ou mantê-los em
condições precárias de higiene” (Lei nº 1.773/01).
Mais recentemente, em Campinas, foi aprovada a Lei Municipal nº 11.492/
03, cujo artigo 1o dispõe: “Fica proibida a utilização de animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou não, em espetáculos circenses ou
similares realizados no município de Campinas”.
Aqui em ____________, embora ainda não haja uma lei específica versando
sobre circos, existe um diploma que proíbe a realização de rodeios, touradas e
atividades similares que provoquem maus tratos, crueldade ou sacrifício de animais
(Lei nº _________). É possível compreender, em meio ao leque das chamadas
‘atividades similares’, a conduta de subjugar animais para que eles realizem, no
picadeiro, performances contrárias à sua natureza.
O uso de animais em circos não é somente uma questão jurídica passível de
questionamento mediante ação civil pública. Ela também envolve aspectos etológicos,
culturais, pedagógicos e sobretudo filosóficos. Necessário convencer as pessoas
de que circo com animais não é sinônimo de alegria, porque sua apologia da
dominação corrompe a pureza infantil. É preciso coragem, enfim, para mostrar a
dolorosa verdade dos picadeiros, afastando o véu que encobre a miserável condição
dos animais que nele atuam.

4. DO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA


Um dos princípios fundamentais do Direito Ambiental é o da prevenção, na
medida em que a atuação eficaz é aquela que se faz presente no momento anterior
à consumação do dano. Por isso é que se mostra necessária, desde já, a medida
acautelatória visando a salvaguardar desses abusos os animais (tigres, urso,
dromedários, chimpanzé, cavalos, avestruz, lhamas, dentre outros) que a requerida
pretende trazer nas exibições do CIRCO __________, cuja temporada em
______________ está sendo anunciada para o próximo dia _____ de ________,
com apresentações vespertinas e noturnas, especialmente aos sábados e domingos.
De rigor, para evitar o perecimento do direito – mesmo porque o circo possui
caráter itinerante – a concessão de medida liminar capaz de livrar os animais da
injusta opressão humana. A documentação que instrui esta peça, assim como a

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624 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

legislação em vigor acena para o reconhecimento da presença dos requisitos legais.


A inequívoca verossimilhança da alegação advém da divulgação do evento e da
plausibilidade de sua realização. Ademais, o fundamento do pedido é extremamente
relevante e, segundo as provas documentais juntadas com a inicial, atestam a
plausibilidade da ocorrência de crueldade para com os animais, o que contraria o
artigo 225 § 1o VII, da Constituição Federal e o artigo 32 caput da Lei dos Crimes
Ambientais. Assim sendo, requer-se, liminarmente, seja VEDADA à requerida a
utilização ou a exibição de quaisquer animais no espetáculo circense em questão, sob
pena de multa diária no valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), nos termos do
artigo 461 § 4º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das providências cabíveis
quanto ao crime de abuso e maus tratos contra animais (art. 32 da Lei nº 9.605/98).
Para que se possa viabilizar o efetivo cumprimento da medida cautelar requer
a Promotoria designação de um Oficial de Justiça para comparecer pessoalmente
ao local do evento e, assim, zelar pela fiel observância da ordem judicial, requisitando-
se o concurso da Polícia Militar Ambiental com o mesmo propósito.
De rigor, ainda, que se oficie à Prefeitura Municipal dando ciência da liminar,
a fim de que eventual alvará de funcionamento concedido ao empresário do CIRCO
_____________, seja – no que se refere apenas à permissão para o uso de
animais nos espetáculos – devidamente cassado.
Quanto aos demais atrativos do circo – balés, equilibristas, palhaços, mágicos,
trapezistas, malabaristas e números musicais – nada temos que opor, muito pelo
contrário, porque atividades que se realizam sem a utilização de animais oprimidos.

5. DO PEDIDO PRINCIPAL
Diante de todo e exposto e da documentação inclusa, que se torna parte
integrante desta peça inaugural, propõe o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SÃO PAULO a presente ação, com fulcro na Lei n° 7.347/85, para que a
empresa _______________ PRODUÇOES ARTISTICAS LTDA seja condenada
à:
I) OBRIGAÇÃO DE NÃO-FAZER:
a) ABSTER-SE DE UTILIZAR ANIMAIS NOS ESPETÁCULOS –
SHOWS, PERFORMANCES E DEMONSTRAÇÕES DE DESTREZA EM
QUAISQUER CONDIÇÕES OU CIRCUNSTÂNCIAS, SEJA DURANTE A
TEMPORADA DE 2005 (a partir de ________), SEJA EM DATAS FUTURAS;
b) ABSTER-SE DE EXIBIR ANIMAIS ENJAULADOS OU ACOR-
RENTADOS, COMO PROPAGANDA, DENTRO OU FORA DO LOCAL EM
QUE ESTIVER INSTALADO O CIRCO.

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LAERTE FERNANDO LEVAI 625

c) PROVIDENCIAR AOS ANIMAIS EXÓTICOS CATIVOS, ORA


MANTIDOS NAS DEPENDENCIAS DO CIRCO, REMOÇÃO PARA LOCAL
ADEQUADO A SUA NATUREZA, INCLUINDO-SE NESTA PRETENSÃO
A ELEFANTA ________.
II) FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA:
Em caso de descumprimento das obrigações estipuladas nos tópicos
anteriores, a requerida ficará sujeita ao pagamento de uma prestação pecuniária
equivalente a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por dia (com correção monetária
pelos índices oficiais e observados o disposto nos artigos 11 da Lei nº 7.347/85 e
632, 642 e 643 do Código de Processo Civil), sem prejuízo das medidas
administrativas visando à eventual interdição ou ao fechamento do estabecimento
comercial ora requerido.
Diante de todo o exposto requer o Autor a citação da ré – nos termos do
artigo 172, § 2°, do Código de Processo Civil – para contestar a presente ação civil
pública, sob pena de revelia e confissão, isentando-se o Ministério Público do
pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, à vista do que dispõe o
artigo 18 da Lei n° 7.347/1985 e o artigo 87 do Código de Defesa do Consumidor,
assegurada a realização de suas intimações processuais na forma do artigo 236, §
2°, do CPC.
Protestando comprovar o alegado por todos os meios probatórios legalmente
admitidos, como oitiva de testemunhas, inspeção judicial, juntada de outros artigos,
pareceres e documentos.
Dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil
reais).
Termos em que,
P. Deferimento.
Local, data,
Promotor de Justiça

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626 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

9. MODELO DE TAC (ANIMAIS DE TRAÇÃO)

TERMO DE COMPROMISSO E AJUSTAMENTO DE CONDUTA


INQUÉRITO CIVIL nº _____

Aos __ dias do mês de ____ do ano de ____, na sede da PREFEITURA


MUNICIPAL DE ____________, rua ______, nesta cidade e Comarca, onde
compareceu o representante do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO, ________, Promotor de Justiça de ______________, ora denominado
compromitente, fazendo-se presente o Excelentíssimo Senhor Prefeito _________,
representando a Prefeitura Municipal de _________, ora denominada
compromissária, presentes também a DD. Secretária de Transportes, ___________,
a DD. Secretária do Meio Ambiente, _____________, o DD. Secretário de
Desenvolvimento Social, ____________ e o DD. Secretário de Saúde,
_____________, comparecendo ainda – como órgão de apoio – a Polícia Militar do
Estado de São Paulo, aqui representada pelo Major PM. ____________, Comandante
Interino do 1o BPM/I, pelo Tenente Coronel PM. ___________ e pelo 1o Tenente
PM. ________, Comandante do 3º Pelotão de Policiamento Ambiental, foi celebrado
este COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA nos seguintes termos:
Cláusula primeira: Compromete-se a PREFEITURA MUNICIPAL, doravante
denominada compromissária, a exercer – a partir desta data – atividades de orientação
e controle sobre os Veículos de Tração Animal (VTAs) em _____________, fazendo-
o mediante ação integrada entre a Secretaria de Transportes, a Secretaria de
Desenvolvimento Social, a Secretaria de Saúde e a Secretaria de Planejamento e
Meio Ambiente, com o objetivo de promover medidas educativas e sociais relacionadas
ao tráfego de carroças, à análise sócio-econômica da família beneficiária dessa
atividade, aos necessários cuidados com a saúde e o bem estar dos animais utilizados
em serviços de tração e, enfim, aos princípios de educação ambiental hábeis a incluí-
los, também, na esfera das preocupações morais humanas.
§ único – para a consecução dessas metas serão efetuadas reuniões
periódicas com os condutores de VTAs em cada região do município, com a
participação de representantes das referidas Secretarias Municipais, a saber:
Secretaria de Desenvolvimento Social (que organizará o cadastro social dos
inscritos), Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente (que os orientará sobre
aspectos de limpeza pública e educação ambiental), Secretaria de Transportes
(responsável pelas normas de trânsito, segurança do veículo e posse do animal) e
Secretaria de Saúde (que garantirá, por intermédio de atendimento veterinário no
Centro de Controle de Zoonoses, os devidos cuidados para com o animal de tração).

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LAERTE FERNANDO LEVAI 627

Cláusula segunda: a compromissária realizará, no prazo de 6 (seis) meses a


partir desta data, o cadastramento de todos os condutores de carroça residentes e
domiciliados na comarca de _________, com a individualização dos animais
utilizados em tais serviço, documento esse válido por 1 (um) ano e que dependerá,
para ser expedido, de prévia avaliação médico-veterinária do animal.
§ 1º – no preenchimento desse cadastro o condutor de VTA subscreverá
declaração perante a Secretaria de Saúde (Centro de Controle de Zoonoses)
responsabilizando-se por zelar pelo bem estar do animal então registrado, evitando
que ele trabalhe de modo ininterrupto, sem água ou alimento suficientes, em eventual
estado de prenhez, ferido, extenuado ou adoentado, além de ficar ciente de que
abusos e maus tratos infligidos aos animais constituem crime ambiental (artigo 32
da Lei nº 9.605/98).
§ 2º – após um 1 (ano) da expedição de seu documento cadastral, o condutor
de VTA, para renová-lo, deverá contatar o Centro de Controle de Zoonoses a fim
de submeter à reavaliação médico-veterinária o animal utilizado no serviço de tração.
Cláusula terceira: agindo como órgão de apoio, a Polícia Militar do Estado
de São Paulo atenderá as ocorrências envolvendo hipóteses de abusos e maus
tratos aos animais - seja o VTA carroça, charrete ou carro de boi -, ação essa
restrita à comarca de ____________, incluídos os distritos de ____________ e
___________, devendo aquela Corporação encaminhar cópia dos T.O.s ou dos
respectivos A.I.A.s à apreciação da Promotoria de Justiça.
§ 1º – nas zonas urbanas a ação preventiva contará com o auxílio da Polícia
Militar, sem prejuízo da atividade pedagógica desenvolvida pelos Agentes de Trânsito,
pelos Fiscais de Posturas Municipais e pelos Guardas Municipais em serviços de
rotina.
§ 2º – na zona rural e nos locais de difícil acesso esse mister será exercido
preferencialmente pela Polícia Ambiental, em razão da natureza de suas funções.
Cláusula quarta: a compromissária manterá, às suas expensas, local destinado
a abrigar os animais porventura recolhidos das ruas, resgatados em decorrência de
abandono e/ou crueldades, assim como aqueles que, por incapacidade física ou
moléstia, forem considerados inaptos aos serviços de tração.
§ único – os lugares ora disponíveis para essa acolhida encontram-se no
Centro de Controle de Zoonoses, município de ____________ e, na zona rural, no
distrito de ______________.
Cláusula quinta: com o propósito de coibir abusos e maus tratos a animais, o
Município disponibilizará à comunidade – para denúncias - a seguinte linha telefônica:
______________.

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628 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

§ único – paralelamente a essas medidas, os guardas civis municipais, os


agentes de trânsito e os fiscais de posturas serão orientados a tomar as devidas
providências sempre que constatarem animais de tração em situações abusivas,
seja por excesso de carga no veículo, seja por inflição de castigos com chicotes,
chibatas, paus ou varas, seja por motivo de debilidade física que incompatibilize
eqüinos, muares, asininos, bovinos ou caprinos com o trabalho exigido, seja ainda
por outros aspectos relacionados no artigo ___ da Lei Municipal nº _________.
Cláusula sexta: Sempre que a fiscalização municipal ou policial surpreender
menores de 18 anos conduzindo VTA, deverá levar o fato ao conhecimento do
Conselho Tutelar ou dos órgãos assistenciais de atendimento a crianças e adolescentes
sediados na Comarca, para a adoção das medidas legais cabíveis (artigo 101, 126 e
129 do Estatuto da Criança e do Adolescente), incumbindo-lhe – antes disso –
providenciar a recolha do animal (na hipótese de abusos e maus tratos) ou sua entrega
ao proprietário e/ou responsável (se não verificados atos de crueldade).
§ 1º – Caberá à Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente, mediante a
realização de campanhas educativas junto às escolas do município, ensinar crianças
e adolescentes que a exploração incondicionada dos animais, além de levar à
insensibilidade diante da dor alheia, atenta contra a própria Natureza.
Cláusula sétima: a compromissária, pela Secretaria de Desenvolvimento Social,
fará um levantamento sócio-econômico dos condutores de VTAs no município de
____________, a fim de orientá-los socialmente visando a recolocá-los no mercado
de trabalho, evitando também a evasão escolar e o trabalho de menores, sugerindo –
sempre que preciso – a inscrição das pessoas reconhecidamente necessitadas nos
programas assistenciais da Municipalidade.
§ 1º – durante as reuniões previstas no parágrafo único da cláusula primeira
deste Termo, a Secretaria de Desenvolvimento Social, já na posse do endereço
residencial dos proprietários e/ou condutores de VTA, agendará visita de Assistente
Social para avaliar a situação dessas famílias, particularmente crianças e
adolescentes, objetivando impedir o trabalho infanto-juvenil e providenciar seu
encaminhamento ao ensino escolar obrigatório.
§ 2º – nessas ocasiões os condutores de VTA serão também orientados acerca
da obrigatoriedade de perfazer sua gratuita inscrição na Prefeitura Municipal e de
observar o estado e o tratamento dispensado a seu animal (artigo 330 da Lei Municipal
nº____).
Cláusula oitava: concomitantemente ao agendamento das visitas domiciliares,
a Secretaria de Saúde – pelo Centro de Controle de Zoonoses – elaborará o
cronograma de avaliação veterinária aos animais submetidos aos serviços de tração,
a ser realizada de forma regionalizada, encaminhando relatório circunstanciado à
Promotoria de Justiça sempre que constatar hipóteses de abusos e maus tratos.

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LAERTE FERNANDO LEVAI 629

Cláusula nona: para a hipótese de injustificado descumprimento dos termos


deste acordo, a compromissária sujeitar-se-á ao pagamento de multa diária equivalente
a 1 (um) salário-mínimo, a ser depositada no Banco Nossa Caixa, ag. 0935-1, c/c
13.00074-5, em favor do Fundo Estadual de Defesa e Reparação de Interesses
Difusos (conforme os termos do Decreto Estadual nº 27.070, de 8 de junho de 1987),
fixando-se o prazo de 1(um) ano para a consecução das medidas ora propostas e
ajustadas.
Cláusula décima: tornar-se-á o presente documento, uma vez firmado e
subscrito pelas partes acordantes e devidamente homologado pelo Eg. Conselho
Superior do Ministério Público (artigo 9º da Lei nº 7.347/85), título executivo
extrajudicial, fixada a competência do juízo da comarca de ____________.
Lido e achado conforme vai este Termo devidamente assinado pelo Ministério
Público na pessoa do PJ de ________, então compromitente, pelo Excelentíssimo
Senhor Prefeito Municipal, representando a compromissária, pelos DD.
Representantes das Secretarias Municipais de Transportes, Desenvolvimento Social,
Saúde, Planejamento e Meio Ambiente, cientificados neste ato, ainda, os dignos
representantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Nada mais. Eu, _____,
Oficial de Promotoria, o lavrei.
_________________________________________
Promotor de Justiça
_______________________________________
Prefeito Municipal
__________________________________________
Secretária de Transportes
____________________________________________
Secretária do Meio Ambiente
___________________________________________
Secretário de Desenvolvimento Social
__________________________________________
Secretário de Saúde
___________________________________________
Major PM / Comandante Interino do 1o BPM-I
__________________________________________
Tenº Cel. PM / Comandante do 46º BPM-I
___________________________________________
1º Tenente / 3º Pelotão de Policiamento Ambiental

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630 MANUAL PRÁTICO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE MEIO AMBIENTE

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