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A HORA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS


FERNANDO ARAÚJO

Retrieved on: 22.08.2019 13:19


2003

Fernando Araújo

A hora dos
direitos dos animais
À Rosário, em comemoração do seu mestrado, mais um livro sobre gatos.

"Um discurso sobre a condição animal - não nos


iludamos - refere-se também à condição humana" I

'Gallo, Alain & Fabienne de Gaulejac, "Qu'est-ce que la «Condition Animale»?",


in Cyrulnik, Boris (org.), Si les Lions Pouvaient Parler. Essais sur la Condition Animale,
Paris, Gallimard, 1998, 315.
1. Querelle des Bêtes:
A Arquitrave da Bioética?

"A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a


sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não repre­
sentam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o
teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo
nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à
sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fra­
casso do homem, o desaire fundamental que está na origem de
todos os outros" - Milan Kundera 2

Cheguei à análise do tema dos direitos dos animais pela via das
minhas leituras de bioética. Poderá porventura afigurar-se menos claro que
este tema pertença ainda aos domínios da bioética, ou mesmo que consti­
tua um caso-limite nessa disciplina - sendo de êsperar que uma tal inte­
gração cause estranheza àqueles que estão habituados a abordar a bioética
de uma perspectiva estritamente centrada em interesses humanos.
E no entanto, se a bioética é o estudo da dimensão moral de acções e
intenções que se referem ao suporte vital da existência, às condições e atri­
butos físicos da vida terrena - mesmo que seja apenas o estudo daqueles
que respeitam directamente à espécie humana "-"-'; então é insofismável a
integração do problema do estatuto dos não-humanos no quadro geral das
considerações da bioética, a menos que se pretenda que o suporte material

2 Kundera, Milan, A Insustentável Leveza do Ser (trad. p/ Joana Varela), Lisboa,


Dom Quixote, 2000, 329 (para algumas das citações fundamentais nesta área, cfr. Wynne­
Tyson, Jon (org.), The Extended Circle: A Common Place Book of Animal Rights, New
York, Paragon House, 1985).
8 Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética?

da existência humana não assenta em pura animalidade, ou que subsiste


em total isolamento relativamente às demais manifestações de vida no pla­
neta, ou que - mais subtilmente - se alegue que da partilha de situações
vitais não decorre paralelismo eticamente relevante.
Mas, a ser assim, o que seria a bioética, o que traria ela de novo rela­
tivamente à ética tradicional, se ela perpetuasse uma concentração exclu­
siva nos problemas da acção livre do ser humano, se ela se afadigasse
ainda nessa indagação centrípeta dos corolários individuais, sociais, colec­
tivos, da autonomia da consciência, na exploração dos meandros explíci­
tos da linguagem articulada da nossa recriação cultural do mundo - gas­
tando-se na exploração dos meandros do formalismo, da «teoria geral»
analítica, da meta-ética?314
Quando a bioética espraia as categorias da ética para a consideração
do impacto que, na nossa existência, na nossa felicidade, na assunção e
cumprimento dos nossos deveres, na sedimentação da nossa personali­
dade, têm aspectos involuntários do nosso suporte vital - a nossa morta­
lidade, a nossa morbilidade, a nossa vulnerabilidade, a nossa dependên­
cia, a nossa animalidade -, não está ela já a abrir caminho a um
«descentramento» da ética relativamente à consideração isoladora (e exal­
tadora) da condição humana? Não está ela a legitimar a consideração nive­
ladora de interesses e problemas exclusivamente humanos (ou, ao menos,
apresentados como exclusivamente humanos, seja lá isso o que for) com
interesses e problemas que conseguimos reconhecer em todos aqueles que,
partilhando a sua existência terrena com a espécie humana, também mani­
festam nessa existência a sua mortalidade, a sua morbilidade, a sua vulne­
rabilidade, a sua dependência, a sua animalidade?
É a esperança de que esse «trânsito temático» se transforme numa
evidência que me levou a escrever este livro - e também a esperança de
que, desse «descentramento» da bioética, possamos tirar um proveito
pragmático, o de mais harmoniosamente colocarmos a nossa racionalidade

3 Sublinhando o valor dessa evolução, no final do século XX, da ética no sentido de


uma vertente «aplicada», depois de se ter demorado tão longamente em vertentes analíti­
cas, formais e meta-éticas, cfr. Goffi, Jean-Yves, "Droits des Animaux et Libération Ani­
male", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 890.
4 Para uma crítica mais ampla ao estéril «academismo» na ética, cfr. Posner, Richard
A., The Problematics of Moral and Legal Theory, Cambridge Mass., Belknap Press, 1999,
43n67, 84.
A Hora dos Direitos dos Animais 9

ao serviço da animalidade, tanto a da nossa espécie como a das demais, e


assim podermos contribuir para um progresso da bioética no seu sentido
mais nobre, o da formulação de princípios e de deveres que, em vários
domínios éticos e jurídicos5 , melhor coadunem a nossa consciência moral
com o respeito pelas mais diversas formas de vida terrena: o respeito de
uma vida que quer viver por outras vidas que querem igualmente viver,
para usarmos a fórmula da «ética da reverência» de Albert Schweitzer; um
progresso que ao menos contribua para a diminuição do sofrimento expe­
rimentado por essas formas de vida (tanto a vida humana como a vida não­
humana), quando essa diminuição está ao alcance da nossa conduta, tor­
nando a vida - toda a vida - , se não menos absurda e contingente, ao
menos mais suportável.
Advirta-se o leitor de que o que se segue é escassamente original, e
se limita a remeter, as mais das vezes, para um debate que se desenvolve
encarniçadamente em várias frentes, em ambientes culturais muito evoluí­
dos e vibrantes. Com efeito, um dos aspectos mais férteis da evolução da
bioética (lato sensu) tem sido o do aumento da consideração pelo estatuto
moral, jurídico e político dos animais, mormente depois da agitação filo­
sófica causada pelas obras pioneiras de Tom Regan6 e de Peter Singer7 -
o primeiro representando uma vertente mais radical, que reclama a «liber­
tação» através do reconhecimento de direitos subjectivos aos animais, o
segundo animando uma vertente mais moderada, mais permeável à solu­
ção da simples salvaguarda do «bem-estar animal», mesmo que em detri­
mento de direitos individuais de seres não-humanos, mais aberta a um
cômputo mecânico de interesses em confronto, de acordo com critérios e
ditames utilitaristas. O pulular de referências bibliográficas nas notas (e a
bibliografia de cerca de 600 títulos) servirá ao menos para demonstrar a
amplitude e intensidade que o assunto alcançou já em debates genuina-

5 Só em termos jurídicos, refiramos que esta matéria prende-se com domínios tão
variados como o direito ambiental, o direito de propriedádé, o direito penal, o direito da
caça, dos transportes, a responsabilidade civil de detentores de animais, a regulamentação
da actividade agrícola, da pecuária, da veterinária, da experimentação científica, dos jar­
dins zoológicos, etc. - cfr. Antoine, Suzanne, "Le Droit de l' Animal, Évolution et Pers­
pectives", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 946-947.
6 Regan, Tom, The Case for Animal Rights, Berkeley, University of Califomia Press,
1983.
7 Singer, Peter, Animal Liberation, New York, New York Review of Books, 1975
(21990).
10 Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética?

mente intelectuais - e deveria resguardar-me contra alegações de frivoli­


dade ou irrelevância do tema que me proponho analisar.

l .a) Um debate criativo?


Julgo também dever advertir o leitor para a modéstia dos meus pro­
pósitos, que são sobretudo os de estimular um debate criativo sobre o tema,
e não tanto de fornecer soluções políticas específicas - talvez prematuras
num ambiente cultural desabituado de colocar este tipo de questões, senão
mesmo avesso a todas as novidades, sobretudo as que surjam revestidas da
roupagem da radicalidade. Muitas consequências práticas podem decorrer
tanto das posições que me limitarei a descrever como das que perfilharei;
mas, não sendo um militante destas - ou de outras - causas, poupar-me­
ei de formular propostas que, tendo o mérito de aditar combatividade e fina­
lidade às proposições subsequentes, poderiam esbarrar com implicações de
ordem pra,gmática que complicariam - e complicam já - a clareza dos
princípios. Procurarei ficar-me, portanto, pelo incitamento ao debate cria­
tivo, esforçando-me por formular as interrogações mais pertinentes, con­
quanto não me coíba de deixar transparecer, agora e no final desta obra, as
minhas convicções pessoais acerca daquilo que é eticamente possível
depois de se admitir o já referido «descentramento da bioética».
Mas tenho a aguda consciência dos riscos, seja o de uma agressivi­
dade e impaciência militantes - subscrevendo a observação de Menezes
Cordeiro de que "é de recear que o exagero possa prejudicar uma evolu­
ção rápida do problema"S - , seja o de um exGesso de pedagogismo, que
pudesse sugerir que presumíamos esprits sinijJlistes entre os leitores; seja
ainda, quiçá precipuamente, o risco de cair num exercício especulativo
intimidativo que por seu lado sugerisse que tudo se reduz a um pretexto
para devaneios teoréticos, para a cobertura, com «pinturas de guerra filo­
sóficas», de um tema trivial - num esforço de apropriação temática por
(e para) um grupo de iniciados, num abuso da velha máxima esotérica do
"omne ignotum pro mirifico". Por outras palavras, esforçar-me-ei por que
a sofisticação analítica, que pedirei emprestada aos autores que li, não se
transforme em mistificação.

8 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Português. / - Parte Geral. Tomo


li - Coisas, Coimbra, Almedina, 2000, 214.
A Hora dos Direitos dos Animais 11

l .b) A sucessão de paradigmas


Ao invés, e por seu lado, é uma espécie de mistificação que parece
tornar os animais não-humanos em larga medida invisíveis para a moral,
para a política e para o direito actuais, em resultado de uma peculiar con­
jugação de condicionamento de paradigmas e de multiplicação de convic­
ções, todos tão arreigados que eles são o alicerce da plausibilidade, da sen­
sação de «adequação inteligível» que veda monotonicamente a admissão
de paradigmas conflituantes, estruturando acriticamente o entendimento
que predomina, mesmo quando - como veremos - esse entendimento
não é compatível sequer com sentimentos de compaixão mínima que pos­
samos nutrir por algumas das espécies que não a nossa9, e portanto é sus­
ceptível de provocar sérios conflitos de valores.
Como tantas vezes resulta desses casos de incongruência profunda,
de «dissonância cognitiva» IO, a cidadela das convicções é rodeada de uma
muralha de rejeição irónica: há muito que aqueles que defendem o reco­
nhecimento dos direitos dos animais, sabendo que vão defrontar tradições,
interesses e hábitos mentais muito profundamente arreigados, sabem que
têm que expor-se ao ridículo ll - um tipo de menosprezo sarcástico (e
medroso) pela «macacada» dos direitos dos animais que aparece já, na sua
forma mais rematada, em A Vindication of the Rights of Brutes, de Thomas
Taylor I2, que não passa de uma paródia aos Rights of Man de Thomas
Paine e à Vindication of the Rights of Women de Mary Wollstonecraft 13.
Mas essa possibilidade torna, se possível, mais interessante ainda o
desafio, mais potencialmente férteis as conclusões. Se agitar águas faz
sempre correr o risco de afrontar misoneísmos, de ferir o «pathos eterna-

9 Cfr. Wise, Steven M., Rattling the Cage. Toward Legal Rights for Animais, Lon­
don, Profile Books, 2001, 74.
10 Cfr. Festinger, Leon, A Theory of Cognitive [)issonance, Stanford, Stanford Uni-
· ._,.. ,..
versity Press, 1957. ·
11 Veja-se, por exemplo, a advertência inicial de Thomas Young, em An Essay on
Humanity to Animals, London, T. Cadell, 1798, 1 (agora reimpresso em Garrett, Aaron V.
(org.), Animal Rights and Souls in the Eighteenth Century, 6 vols., Bristol, Thoemmes
Press, 2000, V).
12 Taylor, Thomas, A Vindication of the Rights of Brutes, Boston, Benjamin Sweet­
ser & William Burdick, 1795.
13 Cfr. Eckersley, Robyn, "Natural Justice. From Abstract Rights to Contextualised
Needs", Environmental Values, 3 (1994), 161-172.
12 Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética?

lista» que associa gozo estético à ideia de imutabilidade 14, não é de subes­
timar, mas também não é de recear, o afinco com que todos nos esforça­
mos por preservar as nossas convicções básicas - com que, monotonica­
mente, tendemos a rejeitar e a desconsiderar todos os dados anómalos, ou
a absorvê-los por forma a obtermos a sua compatibilização com as nossas
convicções se estas estão ameaçadas, não sendo invulgar remetermos os
novos dados para a tal «periferia irónica» que defende o sanctus sancto­
rum das nossas convicções fundamentantes.
Tudo isso contribuiria para a perenidade das convicções partilhadas,
se não nos fosse possível ultrapassarmos a «incomensurabilidade não­
racional» de dois paradigmas que se sucedem (para usarmos a linguagem
celebrizada por Thomas Kuhn 1 5) - o que muitas vezes, no entanto, se
conseguirá obter por um «salto intuitivo», pela súbita iluminação do que
havia de insuficiente no paradigma anterior, ou do que há de revelador no
novo paradigma.
Quanto mais uma teoria sacode os fundamentos das nossas convic­
ções, mais feroz será, em suma, a batalha a travar pela sua aceitação - até
que um salto de fé, mais do que uma indução monotónica a partir dos fac­
tos adquiridos, desperte um sentido de plausibilidade e de adequação esté­
tica das novas teorias 1 6.
Acredito que a causa dos direitos dos animais desperta precisamente
um tal confronto paradigmático, e por isso terei, porventura vezes de mais,
de abandonar o terreno da pura confrontação dialéctica em favor de uma
argumentação que, para·ser minimamente congruente, tem que àceitar ali­
cerces novos e rejeitar alguns lugares comuns da nossa cultura herdada -
atento à advertência de Noam Chomsky de que "quando entramos na
arena do argumento e do contra-argumento,' da táctica e da praticabili­
dade técnica, da citação e das notas de pé de página, quando aceitamos a
legitimidade de debatermos certas questões, a nossa humanidade já se
perdeu"l7. Tanto pior se este expediente de procurar congruência interna

14 Cfr. Lovejoy, Arthur O., The Great Chain of Being. A Study of the History of an
ldea, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1964, 12 ( 11936).
15 Kuhn, Thomas S., The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, University of
Chicago Press, 1962.
16 Cfr. Weinberg, Steven, "The Revolution that Didn't Happen",New York Review of
Books, 45 (8/10/98), 51.
17 Chomsky, Noam, American Power and the New Mandarins, Harmondsworth,
Penguin, 1969, 11.
A Hora dos Direitos dos Animais 13

num novo «refúgio de convicções» acentuar a impressão de fuga ao argu­


mento racional a partir do espaço público da conversação, ou agravar a
impressão de irracionalidade, de fanatismo ou de ridículo - porque, num
espaço cultural de tolerância, esse é o preço mínimo da afronta à conti­
nuidade.
E, no entanto, há já vitórias averbadas para o novo paradigma bioé­
tico-jurídico - dando esperanças de que a «dissonância cognitiva», a
«esquizofrenia moral» que revelamos no tratamento dos não-humanos l8 ,
possa ser resolvida em favor da consagração daquele paradigma como
novo lugar comum da nossa inteligência civilizacional; com o proveito
adicional de pragmaticamente se propiciar uma reponderação (e porven­
tura um reforço) dos próprios direitos humanos, agora não apenas em fun­
ção da humanidade dos seus titulares, mas também da sua própria anima­
lidade (dos seus interesses e prerrogativas como seres vivos, dos seus
problemas de sobrevivência física e de determinismo genético, indepen­
dentemente da caracterização específica das suas manifestações de vida, e
da «qualidade» que possa associar-se à experiência subjectiva dessas
manifestações 19).
Desde a Primavera de 2000 que a Harvard Law School dispõe de um
curso de «Animal Rights Law», inaugurado por Steven Wise20. A posição
professada para o estabelecimento daquele curso foi, muito conciliatória e
cautelosamente, a de que os não-humanos, não tendo personalidade jurí­
dica nem dispondo, por ora, de direitos subjectivos, gozam no entanto de
protecção especial dos seus interesses, o que suscita problemas específicos
de legitimidade processual na defesa des_ses interesses - justificando a
pressão que se tem verificado no sentido da consagração de alguns direi­
tos em favor de alguns animais: por exemplo, direitos à integridade e à
liberdade corporal de alguns primatas superiores (além do ser humano).
Seguiram-se, à iniciativa de Harvard, cursos de «Direitos dos Animais»

18 Cfr. Francione, Gary L., "Animais as Property", Animal Law, 2 (1996), i .


19 Para Paul Taylor encontra-se a í a fronteira entre animalidade e moralidade n o ser
humano: enquanto animais queremos sobreviver e reproduzir-nos, e é enquanto agentes
morais que podemos interrogar-nos se a nossa sobrevivência e a nossa reprodução são
impulsos a satisfazer incondicionadamente, se são fins válidos face a uma ordem mais
ampla (e subtil) de interesses - Cfr. Taylor, Paul, Respect for Nature. A Theory of Envi­
ronmental Ethics, Princeton, Princeton University Press, 1986, 52.
20 O já citado autor de Rattling the Cage.
14 Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética?

nas Universidades de Duke e de Georgetown - mais duas instituições


universitárias respeitáveis2I .
Alguns alegarão que essas iniciativas não chegam para denotar uma
mudança de paradigma, ou uma aceitação ao menos dessa nova temática
dentro do cânone central da nossa cultura. Alguns dá-las-ão, pelo contrá­
rio, como indícios apenas da amplitude com que vanguardas intelectuais
- mais ou menos esotéricas - encontram acolhimento no meio universi­
tário. Outros argumentarão, por outro lado, que esse apadrinhamento de
novas disciplinas mais não é, substancialmente, do que uma «domestica­
ção», uma nova forma de converter o tradicional activismo da «libertação
animal», com os seus gestos violentos e o seu radicalismo espectacular,
numa forma não menos eficiente, mas mais «integrada», de assegurar o
proselitismo da causa22.

l .c) O pecado da displicência


Nenhuma dessas querelas me distrairá, contudo, do meu propósito,
que é, insisto, o de estimular um debate criativo sobre o tema. Tenho a pro­
funda convicção de que um reconhecimento de direitos aos não-humanos,
por mitigado ou confinado que fosse, influenciaria directa e profunda­
mente os estudos culturais e o acervo conceptual das próprias «ciências
humanas», que mais não seja porque se exigiria que estas passassem a
espelhar a crescente consciencialização com os temas do bem-estar animal
e do equilíbrio ambiental - integrando a sensibilidade ao «descentra­
mento bioético» dentro dos cânones da produção cultural, e consumando,
ao menos, um pequeno «deslizamento» de paradigma23.
Como bem sublinha o art. 14.º da Convenção Europeia para a Pro­
tecção dos Animais de Companhia24, a questão do bem-estar dos animais

2 1 Cfr. Kolber, Adam, "Standing Upright: The Moral and Legal Standing ofHumans
and Other Apes", Stanford Law Review, 54 (2001), 164.
22 Cfr. Arles, Paul, Libération Animale ou Nouveaux Terroristes? Les Saboteurs de
l'Humanisme, Villeurbanne, Golias, 2000; Guither,Harold D., Animal Rights. History and
Scope of a Radical Social Movement, Carbondale, Southem Illinois University Press, 1998.
23 Cfr. Simons, John, "The Longest Revolution: Cultural Studies after Speciesism",
Environmental Values, 6 (1997), 483-497.
24 Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, de 13 de
Novembro de 1987 (aprovada pelo Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril).
A Hora dos Direitos dos Animais 15

- e, diríamos também, a dos· direitos dos animais - depende crucial­


mente de esforços generalizados de informação e de educação, que pri­
meiro visem a tomada de consciência quanto às situações em que, propo­
sitada ou inadvertidamente, os animais são colocados em posições de
vulnerabilidade e de sofrimento potencial ou actual, para depois mais
amplamente generalizarem a percepção da insustentabilidade moral da sis­
temática instrumentalização dos interesses dos não-humanos aos interes­
ses da espécie humana.
Talvez o título deste livro devesse referir-se a «direitos dos não­
humanos», e não a «direitos dos animais», pois é evidente que a dicotomia
«seres humanos / animais» é um pouco bizarra, e decerto perniciosa
quando sugere já o carácter único e incomparável da espécie humana,
quando deixa subentendido que ela não é uma espécie animal. Por isso,
deveríamos preferir a dicotomia «animais humanos/ animais não-huma­
nos», mas não será de admirar que frequentemente façamos uma referên­
cia simples à categoria «animais» por contraposição à categoria «huma­
nos», pagando assim tributo a uma convenção linguística que não é fácil
de erradicar, neste que pode ser um ponto de transição entre paradigmas.
Não quero terminar esta introdução sem algumas palavras de agrade­
cimento. Em primeiro lugar, ao Prof. Doutor Oliveira Ascensão, que acei­
tou que eu expusesse o tema num Curso de Pós-Graduação em Direito e
Bioética e se dispôs a debater, com a probidade intelectual e a firmeza de
convicções que todos lhe reconhecem, algumas ideias que destoam tanto
das suas. Em segundo lugar, ao Dr. António Maria Pereira, pioneiro e com­
batente de primeira linha - com um ardor militante e uma congruência de
atitudes de que não sou pessoalmente capaz - , e ainda ao Dr. Pedro de
Azeredo Perdigão e ao presidente do CEDA, Miguel Moutinho, pelas pala­
vras de incitamento que me foram dirigindo. Por fim, ao Eng. Carlos Pinto,
que generosamente aceitou a publicação deste manifesto heterodoxo na
Livraria Almedina.
Se eles pudessem lê-lo, dedicaria es(e livro também àqueles seres
humanos dependentes que, não tendo atingido áinda a «idade da razão» ou
tendo passado para lá dela, estão, de uma forma extrema, à mercê da nossa
consideração pelos interesses vitais da sua anima/idade, à mercê do nosso
respeito pelo suporte físico da sua humanidade. Tal não sendo possível,
limito-me ,a uma exortação ao leitor, exortação com que rematarei este
livro, procurando manter-me fiel às palavras de um sábio gaúcho que sem­
pre habitou o meu panteão intelectual:
16 Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética?

"( ...) tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escri­
tor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a
nossa, é acender a sua lâmpada. fazer luz sobre a realidade de seu
mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos
ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a
despeito da náusea e do horro r. Se não tivermos uma lâmpada eléc­
trica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risque­
mos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos
nosso posto" - Erico Veríssimo25 .

Não mais do que um riscar de fósforos, pois, contra a tirania moral,


política e jurídica que tão amiúde (sempre?) e displicentemente, ou
inconscientemente, a nossa espécie exerce sobre outras formas de vida, em
desrespeito pelos valores vitais cuja preservação é, creio bem, o objecto
principal e mais legítimo da bioética.

2s Veríssimo, Erico, Solo de Clarineta. Memórias, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, I, 58 .


2. A Humanidade do Respeito

"Gostam das aves aquele velhote e aquela velhinha que nos magros
parques parisienses dão de comer aos pombos, e de que tão injus­
tamente troçamos, pois graças àquele bater de asas que os rodeia
entram em relação com o universo" - Marguerite Yourcenar 26/27 .
"Relativamente à parte da criação que é viva apesar de desprovida
de razão, a violência mesclada de crueldade no modo de tratar dos
animais é ainda mais profandamente contrária ao dever do homem
para consigo mesmo, visto que isso entorpece no homem a simpa­
tia para com o sofrimento daqueles, enfraquece e paulatinamente
aniquila uma disposição natural, muito proveitosa para a morali­
dade na relação com os outro s homens - ainda que, entre outras
coisas, seja consentido aos homens matar os animais de uma forma
célere (sem tortura), ou impor-lhes um trabalho (já que os próprios
homens têm que se lhe submeter) na condição de que ele não
exceda as suas forças; em contrapartida há que condenar as expe­
riências no decurso das quais os animais são martirizados ·por
meros objectivos especulativos, .quando se poderia atingir os mes­
mos fins sem recorrer a elas" - Immanuel Kant 28/2 9 .

26 Yourcenar, Marguerite, O Tempo, Esse Grande Escultor (trad. p/ Helena Vaz da


Silva), Lisboa, Difel, 1981, 118-124. Trata-se de uma longa meditação teriofílica - a espa­
ços poética, muitas vezes dorida e crua, mas das mais belas da literatura moderna.
27 "Quem nos ensina mais do que os animais dá· te/rá, e quem mais do que as aves
do céu nos torna sábios?" - Job, 35:11.
28 Kant, Immanuel, Die Metaphysik der Sitten, Zweiter Theil. Metaphysische
Anfangsgrüride der Tugendlehre, Kant 's gesammelte Schriften, Werke, Sechster Band. Die
Religion innerhalb der Grenzen der blojJen Vernunft, Die Metaphysik der Sitten (heraus­
gegeben von der Koniglich PreujJischen Akademie der Wissenschaften), Berlin, Georg Rei­
mer, 1914, 443 [doravante, AK = Akademie-Ausgabe] .
29 Para um apontamento especialmente revelador da teriofilia em Immanuel Kant,
cfr. Kritik der praktischen Vernunft, AK, V, Berlin, Georg Reimer, 1913, 76.
18 A Humanidade do Respeito

2 .a) A teriofilia
O sentimento de amor pelos animais (descontada a perversão da bes­
tialidade) humaniza ou degrada a nossa humanidade? No seu sentido ori­
ginal, a teriofilia - noção pioneiramente elaborada e vulgarizada por
George Boas (noção que não deveria confundir-se com a de zoo.filia por­
que em rigor esta última abarca igualmente a espécie humana na sua ani­
malidade, enquanto aquela se refere em exclusivo à relação com os não­
humanos, sendo contudo que empregaremos as duas expressões como
sinónimos) 30 - designa uma mescla de solicitude e de compaixão, por um
lado, e por outro uma crença primitiva na superioridade dos não-humanos,
um fascínio pela pureza inimputável e determinista da «naturalidade»
deles, pela sua não-maculação por uma «intencionalidade» - um fascínio
como aquele que se denota no "efficit in avibus divina mens" de Cícero3 1 ,
ou em Jeremias 8:7.: "Até a cegonha conhece as estações que Deus lhe
indica; e a rola, o grou, a andorinha sabem o tempo das suas migrações.
Mas o meu povo não conhece os mandamentos de Deus"32.
E assim, se por um lado essa teriofilia humaniza e enobrece, exalta a
condição humana que é capaz de sentimentos de abnegação em proveito
de outras espécies, que é capaz de abster-se de retirar proveito de situações
de vulnerabilidade e de dependência em que de facto outras espécies se
tenham visto colocadas, por outro lado ela permite espelhar o carácter
decaído da nossa humanidade, servindo de pretexto à humilhação refle­
xiva da nossa condição de espécie . - no que ela comporta de não-natural,
de alienado, de capaz de, na sua própria perfectibilidade, insinuar as raí­
zes da sua desnaturação e da sua incompletude, furtanqo-se cruamente à
harmonia «poética» que faz de cada não-humano um testemunho elo­
quente do determinismo criador da natureza3 3 e um apoio à projecção da

30 Cfr. Boas, George, The Happy Beast in French Thought of the Seventeenth Cen­
tury, New York, Octagon Books, 1971, 1-2, 24-25, 47-49 ( 11933); Gill, James E., "Therio­
phily in Antiquity: A Supplementary Account", Journal of the History of ldeas, 30 (1969),
40 1 -412; Lovejoy, Arthur O., George Boas & al., Primitivism and Related ldeas in Anti­
quity, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1997, 389-420 ( 11935).
3 1 Cicero, M.T., De Divinatione Liber Prior , LIII, 120.
32 Sobre os pássaros como «humanidade metafórica», e os cães como «humanidade
metonímica», cfr. Lévi-Strauss, Claude, La Pensée Sauvage, Plon, 1962, 274.
33 A propósito dessa «dimensão poética» que se alberga na causa teriofílica, é de assi­
nalar a obra semi-ficcionada do escritor sul-africano J.M. Coetzee, As Vidas .dos Animais
A Hora dos Direitos dos Animais 19

liberdade que recria a «natureza humana» abrindo o seu próprio caminho


pela existência, e faz de cada ser humano, um potencial transgressor desse
determinismo, um «anfíbio» expulso do éden, mais maculado do que eno­
brecido pelo divórcio das demais espécies. Não o esqueçamos, na tradição
bíblica as primeiras obras da · criação são imediatamente julgadas como
boas enquanto que o homem o não, é, porquanto o ser humano é livre de
ser bom ... e de o não ser34/3 5.
Degradação ou humanização? Uns reconhecerão que a teriofilia é o
remate congruente da bioética - seja ou não necessária, para tanto, uma
«estrada de Damasco» , como o foi para Michael A. Fox, que se opunha à
inclusão dos animais numa comunidade ética com os humanos por lhes fal­
tar a auto-consciência crítica pressuposta nessa pertença, mas alterou .a sua
convicção logo após a publicação do livro em que expendia essas noções36.
Outros denegrirão a teriofilia, seja (na pjor das hipóteses) como uma atitude
perversa, como um dispêndio de energias para com objectos inadequados
da nossa atenção moral; seja (na melhor das hipóteses) como uma triviali­
dade, inócua e irrelevante, uma alienação cultural que não é capaz de tem­
perar, na humanidade, os piores instintos civilizacionais, e passa à margem
deles, com gritante indiferença,: dando-se como ilustração do argumento as
provas da entusiástica teriofilia de Adolf Hitler, ou o progresso oficial que
as doutrinas zoófilas conheceram nos regimes nazi e fascista37 - o que seria

[(trad. p/ Maria de Fátima St. Aubyn), Lisboa, Temas e Debates, 1999], um conto ou meta­
narrativa em duas partes, "Os Filósofos e os Animais" e "Os Poetas e os Animais", com­
plementadas por quatro reflexões de especialistas, ehtre as quais a do próprio Peter Singer,
também ela apresentada sob forma ficcional - um pouco ao estilo de Jostein Gaarder.
34 Cfr. Baratay, Éric, "L'Anthropocentrisme du Christianisme Occidental", in Cyrul­
nik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 1431.
35 Veja-se o curioso paralelo com a cosmogonia platónica, exposta no Protágoras de
Platão: "E assim fez Epimeteu, o qual, não sendo muito arguto, esqueceu que tinha distri­
buído pelos animais selvagens todas as qualidades que tinha para conferir - pelo que,
quando chegou ao homem, que ainda não tinha sido cónie�plado, ele ficou absolutamente
perplexo. Enquanto ele estava nesta perplexidade, Prometeu surgiu para inspeccionar a
distribuição, e verificou que todos os outros animais estavam adequadamente dotados,
enquanto que só o homem permanecia nú e descalço, sem um leito e sem armas de defesa".
3 6 Cfr . Fox, Michael A., The Case for Animal Experimentation, Berkeley, University
of Califomia Press, 1986; eiusdem, "Animal Experimentation: A Philosopher's Changing
Views", Between the Species, 3 (1987), 55-60; eiusdem, "On the «Necessary Suffering» of
Nonhuman Animais", Animal Law, 3 (1997), 25ss..
37 Cfr. Bocquet, Edmond, La Protection Pénale des Animaux dans les Législations
20 A Humanidade do Respeito

prova até da aberração moral extrema de que são capazes os totalitarismos,


não fosse perceber-se a falácia ínsita no argumento, falácia que nos levaria
a termos de sustentar que os Volkswagens são maus automóveis porque
Hitler também apoiou, com não menos entusiasmo, a sua produção38.

2 .b) O tema dos «deveres indirectos»


O que se afigura mais pacífico, até por ser precedido de uma longa
tradição no pensamento ocidental, abundantemente documentada3 9, é o
entendimento, hoje conotado com o nome de Kant - e justamente, dada
a formulação, já transcrita, de Die Metaphysik der Sitten (e com parale­
lismo em escritos contemporâneos40 ) - de que a teriofilia vale ao menos

Française et Etrangeres, Paris, Recuei! Sirey, 1934; Giese, Clemens Heinrich & Waldemar
Kahler, Das deutsche Tierschutzrecht, bestimmungen zum schutze der Tiere (Tierschutz­
gestz, Schlachtgesetz, Eisenbahnverkehrsordnung, Reischjagdgesetz, Reichsnaturschutz­
gesetz, Strassenverkehrsordnung, mit den dazu ergangenem verordnungen) , Berlin, Dunc­
ker & Humblot, 31944; Philipp, Feliciano, Protection of Animais in ltaly, Roma, Ente
Nazionale Fascista per la Protezione degli Animali, 1938.
3 8 Cfr. Bratton, Susan Power, "Luc Ferry's Critique of Deep Ecology, Nazi Nature
Protection Laws, and Environmental Anti-Semitism", Ethics and the Environment, 4
(1999), 3-22; Kalechofsky, Roberta, "Nazis and Animals: Debunking the Myth", The Ani­
mais' Agenda, 16 (1996), 32ss..
39 Cfr. Attfield, Robin,. The Ethics of Environmental Concern, Oxford, Blackwell,
1983, 37; Baird, Robert M. & Stuart E. Rosenbaum (orgs.), Animal Experimentation: The
Moral lssues, Buffalo NY, Prometheus Books, 1991; Bleich, J. David, "Judaism and Ani­
mal Experimentation", e Gaffney, James, "The Relevance of Anima) Experimentation to
Roman Catholic Ethical Methodology", ambos in RegãiJ., Tom (org.), Animal Sacrifices.
Religious Perspectives on the Use of Animais in Science, Philadelphia, Temple University
Press, 1986, 61ss., 149ss.; Harrison, Peter, "Animal Souls, Metempsychosis, and Theodicy
in Seventeenth-Century English Thought", Journal of the History of Philosophy, 31
(1993), 519-544; Hastings, Hester, Man and Beast in French Thought of the Eighteenth
Century, Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1936, 242ss.; Maehle, Andreas-Holger,
"Literary Responses to Animal Experimentation in Seventeenth- and Eighteenth-Century
Britain", Medical History, 34 (1990), 27ss.; Passmore, John, "The Treatment of Animals",
Journal of the History of Ideas, 36 (1975), 195ss.; Shugg, Wallace, "Humanitarian Attitu­
des in the Early Animal Experiments of the Royal Society", Annals of Science, 24 (1968),
227-238.
40 Como Berchtold, Leopoldo, Ensaio sobre a Extensão dos Limites da Beneficência
a Respeito, Assim dos Homens, Como dos Mesmos Animaes, Lisboa, Régia Oficina Tipo­
gráfica, 1793; Bougeant, Guillaume Hyacinthe, Amusement Philosophique sur le Langage
A Hora dos Direitos dos Animais 21

como veículo de aperfeiçoamento moral nas relações entre humanos; de


que ela vale em função de um objectivo vincadamente antropocêntrico, de
que ela é um «ensaio» de «ética do respeito» que, adquirida e formada na
compaixão para com os animais, aproveita depois, na sua forma acabada,
à intersubjectividade humana. O entendimento, em suma, de que as obri­
gações para com os não-humanos não passam de «deveres indirectos»,
deveres para com os homens por intermédio da nossa conduta com os ani­
mais - como se a zoofilia fosse uma pedagogia e uma antecâmara da
filantropia4 1142 •
Nessa formulação de antropocentrismo mais radical, a atenção para
com os «animais» seria assim uma propedêutica à humanização das rela­
ções entre pessoas - dado em especial o facto de muitos desses animais
se encontrarem em situações de dependência ou vulnerabilidade face aos
interesses humanos, e mais ainda face a interesses económicos, perante os
quais a ausência de um «mercado de reciprocidades» impediria uma con­
sideração equilibrada: tomando, alegoricamente, os animais nos «mais
pobres dos mais pobres» (os sujeitos a uma «vida de cão»), merecedores
ao menos de um gesto de respeito, de comiseração - e, se não uma recon­
sideração rawlsiana de uma nova «comunidade animal» em que fôssemos
compelidos a encarar, a partir de um «véu de ignorância», as possibilida­
des futuras da nossa metempsicose, da reincarnação em não-humanos,
associando a justiça a uma minimização das possibilidades de sofrimento
máximo em qualquer animal dotado de sensibilidade, ao menos o recurso
a «preços hedónicos» que permitissem reintroduzir, de uma forma explí­
cita e computável, o valor do bem-estar animal naquela ponderação parti­
cular e social de custos e benefícios que tende a privilegiar a «via do mer-

des Bêtes, Geneve, Droz, 1954 ( 11739); Boullier, David Renaud, Essai Philosophique sur
l 'Âme des Bêtes, Précédé du Traité des \fois Principes qui Servent de Fondement à la Cer­
titude Morale, Paris, Fayard, 1985 ( 1 1728, 21737); Daggett, Herman, The Rights of Ani­
mais. An Oration Delivered at Providence College, Sépie'Iríber 7, 1 791, New York, Ameri­
can Society for the Prevention of Cruelty to Animais, 1926; Oswald, John, The Cry of
Nature. Or, an Appeal to Mercy and to Justice, on Behalf of the Persecuted Animais, Lon­
don, J. Johnson, 1791; Young, Thomas, An Essay on Humanity to Animais, London, T.
Cadell & W. Davies, 1798.
4 1 Cfr. Agulhon, Maurice, "Le Sang des Bêtes. Le Probleme de la Protection des Ani­
maux en France au x1xe Siecle", in Cyrulnik, B . (org.), Si les Lions ..., cit., 1185.
42 Sobre a dificuldade de destrinça entre deveres «directos» e «indirectos» no direito
positivo, cfr. Kolber, A., "Standing Upright...", cit., 177 .
22 A Humanidade do Respeito

cado», com a sua articulação de custos e benefícios explicitados e quanti­


ficados43 .
Para mantermos perfeita congruência com esta visão antropocêntrica
mais radical, deveríamos sustentar que o problema do bem-estar dos ani­
mais não passa de um problema estético - o sentimento de choque e de
repulsa que move alguns de nós contra espectáculos de crueldade, contra
a violência manifesta e deliberada imposta aos não-humanos -, não cons­
tituindo um verdadeiro problema ético, como seria comprovado através da
amplitude com que admitimos a necessidade do sofrimento e da elimina­
ção de animais, com que tomamos por respeitáveis e não-frívolas várias
formas de crueldade massificada sobre alguns deles .
Mas adoptar-se essa perspectiva é ainda expor os não-humanos à
sobre-determinação amoral, pretensamente «neutra», do nosso interesse,
deixando-os à mercê de uma degradação perversa da representação desse
interesse, que «desliga» a sua solicitude quando tudo parece ir bem . Por
outro lado, a nossa representação estética do bem-estar animal pode estar
mal informada, bloqueando o acesso à nossa compaixão e simpatia de mani­
festações que possam parecer ser de contentamento ou de segurança,
quando pode suceder que sejam o seu inverso: é o que tende a ocorrer no
caso dos jardins zoológicos, nos quais, como já se tem dito, se sacrifica o
«gorila concreto» ao «gorila abstracto», por exemplo impondo-se aos ani­
mais condicionamentos comportamentais violentos, ou provocando-se con­
dições de procriação teratológica através do drástico estreitamento da diver­
. sidade genética de cada espécie representada, já para não falar do sofrimento
causado pelo simples confinamento territorial44 - tendendo nós a conside­
rar, tão frequentemente, que essa grave degradação da qualidade de vida dos
animais em cativeiro, mesmo quando nos · apétcebemos deia45, é compen-

43 Cfr. Miller, Peter, "Do Animais Have Interests Worthy of Our Moral Interest?'\
Environmental Ethics, 5 (1983), 3 19-334; Sprigge, Timothy L.S., "Respect for the Non­
Human", in Chappell, T.D.J. (org.), The Philosophy of the Environment, Edinburgh, Edin­
burgh University Press, 1999, 117- 134; Shepard, Paul, The Others: How Animais Made Us
Human, Washington DC, Island Press, 1995.
44 Pense-se na ansiedade do animal enjaulado que não consegue assegurar, dentro do
seu espaço confinado, a «distância crítica» que, permitindo-lhe a fuga, evitasse a sua agres­
sividade defensiva - cfr. Ellenberger, Henri, "Jardin Zoologique et Hôpital Psychiatri­
que", in Brion, Abel & Henry Ey (orgs.), Psychiatrie Animale, Paris, Desclée de Brouwer,
1964, 574-575.
45 Aquilo que tantos visitantes de jardins zoológicos tomam por comportamentos
A Hora dos Direitos dos Animais 23

sada pelo aumento da sua longevidade46, ou, nas versões modernas do Tier­
garten (tributárias do pioneirismo de Carl Hagenbeck47), sucessoras do
paradeisos persa, do vivarium romano e da «ménagerie» iluminista48, por
pretensas reconstruções de «ecossistemas» e por colecções de animais com
afinidades filogenéticas (bastando pensar-se que os dados da genética apon­
tam para o facto de qualquer população com menos de 500 indivíduos ter
uma elevadíssima probabilidade de extinção por acidentes reprodutivos e
por degeneração endogâmica49 - ainda que se reconheça que a reprodução
em cativeiro é para muitas espécies ameaçadas a última oportunidade)50.

bizarros, cómicos até, dos animais, são na realidade manifestações de profundas alterações
psíquicas e fisiológicas. Há -por isso nos jardins zoológicos essencialmente uma «desnatu­
ração», uma «conservação» de animais que são roubados à natureza e ficam perdidos para
essa mesma natureza; pelo que há quem sugira ironicamente a designação de «jardins zoo­
ilógicos» - cfr. Nouet, Jean-Claude, "Zoos", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions . .., cit.,
547, 552.
46 Cfr. Allen, Robert D. & William H. Westbrook (orgs.), The Handbook of Animal
Welfare: Biomedical, Psychological, and Ecological Aspects of Pet Problems and Control,
New York, Garland, 1979; Appleby, Michael C., What Should We Do About Animal Wel­
fare?, Oxford, Blackwell Science, 1999; Appleby, Michael C. & Barry O. Hughes (orgs.),
Animal Welfare, Wallingford, CABI, 1997 ; .Clough, Caroline E. & Barry Kew, The Animal
Welfare Handbook, London, Fourth Estate, 1993; Ng, Yew-Kwang, "Towards Welfare Bio­
logy: Evolutionary Economics of Animal Consciousness and Suffering", Biology and Phi­
losophy, .10 (1995), 255-285 ; Webster, John, Animal Welfare. A Cool Eye Towards Eden,
Oxford, .Blackwell Science, 1995.
47 Cfr. Hagenbéck, C., Von Tieren und Menschen. Erlebnisse und Erfahrungen, Ber­
lin, Deutsches Verlagshaus, 1908.
48 Cfr. Ellenberger, Henri, "Jardin Zoologiqué et Hôpital Psychiatrique", in Brion, A.
& H. Ey (orgs.), Psychiatrie Animale, cit., 560ss..
49 É impossível compaginar os desígnios da biodiversidade com as condições de
criação de animais domésticos e de abate, e de animais em cativeiro - bastando pensar­
mos no quanto é difícil respeitar os limites da consanguinidade, que impõem a inexistên­
cia de antepassados comuns nas cinco gerações anteriores às dos progenitores. Enquanto a
selecção natural tende a ser estabilizadora de um polimorfismo genético, a selecção artif­
i

cial, porque é direccionada, tende a reduzir a variabiÍid�dé' genética nas populações. Cfr.
Denís, Bernard, "La Fabrication des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit.,
713, 720.
5 0 Cfr. Druckler, Geordie, "Toward a More Appropriate Jurisprudence Regarding the
Legal Status of Zoos and Zoo Animais", Animal Law, 3 (1997), 189ss.; Dunlap, Julie &
Stephen R. Kellert, "Zoos and Zoological Parks", in Reich, Warren Thomas (org.), Ency­
clopedia of Bioethics, Revised Edition, New York, Simon & Schuster - Macmillan, 1995,
184-187; Hancocks, David, A Dijferent Nature.: The Paradoxical World of 'Zoos and Their
Uncertain. Future, Berkeley, University of Califomia Press, 2001, passim; Jamieson, Dale,
24 A Humanidade do Respeito

Em suma, não se humaniza a espécie- humana reduzindo as demais


espécies à irrelevância moral, tomando-as ornamentos de uma mundivisão
auto-complacente ou «consoladora», e ignorando-as em tudo o resto.
O choque estético com a revelação dos extremos de crueldade por
que passámos já na nossa relação histórica com outras espécies pode cons­
tituir uma fronteira sólida, uma última barreira, um derradeiro ponto de
apoio à nossa moralidade teriofílica - que, revelando-nos os limites da
perfídia na consciência humana, nos permite, por um lado, apreciar alguns
avanços culturais que possam ter ocorrido, por exemplo em relação à
forma crudelíssima como os animais eram ostensivamente tratados na tra­
dição Greco-Romana (contrastando com protestos esparsos, como os de
Plutarco e de Cícero) e ainda o eram os cavalos-mineiros no Germinal de
Zola5 1 , ou na forma como se tem expandido a censura social dos espectá­
culos com animais, ou do sofrimento infligido na experimentação labora­
torial e na exploração industrial da vida dos não-humanos; e nos permite,
por outro lado, estabelecer a comprovação empírica da existência de uma
correlação entre crueldade para com os animais e atitudes de violência e
de propensão criminal5 2 - correlação que tem ajudado à adopção, por
algumas ordens jurídicas, de medidas sancionatórias da crueldade para
com os animais como meios de prevenção geral, como meios de política
criminal5 3.

"Zoos and Animal Welfare", in Bekoff, Marc & Carron A. Meaney (orgs .) , Encyclopedia
of Animal Rights and Animal Welfare, Westport CT, Greenwood Press , 1 998 , 376-377 ;
Jamieson, Dale, "Zoos Revisited" , in Chappell, T.D .J. (org.), The Philosophy of the Envi­
ronment, cit., 1 80- 1 92; Kreger, Michael D., "History of Zoos" , in Bekoff, M. & C .A. Mea­
ney (orgs .) , Encyclopedia of Animal Rights..., cit., 369�370; Loisel , Gustave, Histoire des
Ménageries de l'Antiquité à Nos Jours, 3 vols ., Paris, O. Doin , 1 9 1 2; Malamud, Randy,
Reading Zoos. Representations of Animais and Captivity, New York, New York University
Press , 1 998 .
5 1 Cfr. Cyrulnik, Boris, "Les Animaux Humanisés", in Cyrulnik, B . (org.) , Si les
Lions..., cit., 48 .
52 Está hoje comprovado que existe um passado de violência com animais numa ele­
vada percentagem de assassinos em série, como o «Son of Sam» (David Berkowitz) , o
«Boston Strangler» (Albert DeSalvo) , Jeffrey Dahmer, etc . - cfr. Lockwood, Randall &
Frank R. Ascione (orgs .) , Cruelty to Animais and Interpersonal Violence. Readings in
Research and Application, West Lafayette lnd., Purdue University Press , 1 998 .
53 Cfr. Hutton, J. S . , "Animal Abuse as a Diagnostic Approach in Social Work" , in
Katcher, Aaron Honori & Alan M . Beck ( orgs.), New Perspectives on Our Lives With Com­
panion Animais, Philadelphia PA, University of Pennsylvania Press , 1 983 , 444-447 .
A Hora dos Direitos dos Animais 25

Um problema estético, porventura; mas porque haveria a nossa ética


de pôr-se em desacordo com a nossa sensibilidade, porque lhe seria
vedado servir os nossos sentimentos de afeição e de repulsa - como se
não passássemos de «anjos descarnados», narcotizados? Não foi o abate
de animais nas ruas, e a «violência zoocêntrica», que acirrou os ânimos
teriofílicos e levou ao surgimento das primeiras leis de protecção, nomea­
damente a «Lei Grammont» de Julho de 1 8505 4 - embora, mais lamenta­
velmente, tenha também levado à «anestesia» da ocultação do abate,
gerando uma moratória para a abolição do sofrimento com ele conexo?55

2 .c) A «linguagem dos direitos»


e o objectivo do «descentramento»
Mas seria demasiado fácil darmos a zoofilia, ou a zoofobia, como
meras questões de sensibilidade «epidérmica», nas quais a nossa persona­
lidade moral não estaria - subentende-se - inteiramente empenhada. A
humanização que é reclamada pode ser a do mero acatamento externo de
normas de conduta, sem necessidade de assunção de uma verdadeira e pró­
pria «ética do respeito» por parte de todos os destinatários dessas normas;
mas as normas, essas, não podemos dispensá-las de reflectirem material­
mente essa ética, sob pena de não poderem servir de denominadores
comuns na intersubjectividade, de se inutilizarem como vectores da lici­
tude na conduta humana.
Por outro lado, seria demasiada ingenuidade pensar-se que a reforma
dos direitos dos animais, o plasmar-se na «linguagem dos direitos» das
proposições essenciais da causa zoofílica, se poderiam alcançar a partir
do interior dos próprios sistemas jurídicos, sem serem impostos a partir
do exterior, a partir da sedimentação costumeira de uma nova perspectiva

54 Sobre a Lei Grammont e os seus antecedentes, cfr. Agulhon, Maurice, "Le Sang
des Bêtes. Le Probleme de la Protection des Animaux en France au XJXe Siecle", in Cyrul­
nik, B. (org.), Si les Lions . .., cit., 1192ss.; Ferry, Luc & Claudine Germé (orgs.), Des Ani­
maux et des Hommes. Anthologie des Textes Remarquables Écrits sur le Sujet du XVe Sie­
cle à Nos Jours, Paris, Librairie Générale Française, 1994, 457-465.
55 Cabet, na sua Voyage en /carie (1840), tinha já imaginado o afastamento dos mata­
douros para as periferias das cidades, poupando aos habitantes citadinos o cruento espectá­
culo do abate na via pública - Cabet, Étienne, Oeuvres, Paris, Anthropos, 1970, I, 43-44.
26 A Humanidade do Respeito

axiológica, mesmo que difusa e inorgânica. Terá que ser a sociedade, com
novos hábitos e convicções, a impor ao Direito o reconhecimento de que
há alguns seres não-humanos que não só têm interesses que não podem
ser objecto de comércio, que não podem ser postos em causa ou aliena­
dos a troco de quaisquer benefícios, por mais elevados que esses benefí­
cios sejam56, mas também - · mais crua e crucialmente - têm capacida­
des de satisfação e sofrimento que, no seio da experiência terrena,
são directamente comensuráveis com os da espécie humana, disputando
legitimamente com ela os meios escassos com os quais todas as formas
de vida dotadas de sensibilidade aumentam a satisfação e reduzem o
sofrimento.
Quando se fala de «direitos dos animais», notemo-lo, pode ter-se em
vista dois propósitos distintos:
1) o de deixar assente que a apropriação humana. do mundo animal
não é um facto evidente ou incontrovertido - e que por isso
existe um programa de defesa sistemática dos interesses em jogo
(usando-se a expressão, pois, no mesmo sentido em que ela ocorre
quando se trata de referir os «direitos» de categorias de pessoas);
2) o de procurar a consagração de uma genuína personalidade jurí­
dica nalguns não-humanos, mesmo fazendo tábua-rasa daquilo
· que possa entender-se como distintivo da espécie humana, ou da
liberdade de conduta que exista para a normalidade dos indiví­
duos dentro desta espécie5 7 .
Conquanto possamos, uma vez por outra, referir-nos a um só desses
propósitos, temos para nós que só a prossecução simultânea de ambos faz
sentido - se é uma verdadeira «juridicidade» que se trata de constituir, na
tutela de interesses individuais e colectivos dos não-humanos, e não que­
remos ficar pelas «meias-tintas» bem-intencionadas de simples proclama­
ções enfáticas.
Porisso há que transcender o radicalismo antropocêntrico - que em
breve assimilaremos ao preconceito do «espec(smo» - através do «des­
centramento da (bio)ética», o remate de outros «descentramentos» anti-

56 Cfr. Francione, G.L., "Animais as Property", cit., iv-v; Wicklund, Petra Renée,
"Abrogating Property Status in the Fight for Animal Rights", Yale Law Journal, 107
(1997), 569ss.
5 7 Cfr. Goffi, Jean-Yves, "Droits des Ariimaux et Libération Animale", in Cyrulnik,
B. (org.), Si les Lions ... , cit., 891.
A Hora dos Direitos dos Animais 27

narcísicos a que a história cultural tem submetido a nossa espécie58, reco­


nhecendo que as similaridades básicas que se tomam por relevantes para
unirem todos os humanos transcendem as fronteiras da espécie, havendo
entre as espécies de animais sensíveis diferenças de grau apenas, e não de
uma índole mais profunda e irredutível.
Tudo se jogará, pois, no interior da espécie humana, por um esforço
de aculturação, de estabelecimento de novos hábitos e convicções, come­
çando pelos pontos mais imediatos e «epidérmicos» da revulsão pelo sofri­
mento e da compaixão pela sorte dos não-humanos - podendo friamente
admitir-se que, aí onde a partilha de valores não seja culturalmente adqui­
rida e o objectivo axiológico se afigure mais remoto, a revulsão e a com­
paixão são atitudes tão condicionáveis e transmissíveis como quaisquer
outras que sejam objecto de publicidade, merecendo por isso figurar na
ribalta da opinião pública59.
Alguns alegarão que se trata aí de uma via perigosa, a do apelo emo­
cional ao culto de valores transpersonalistas, potencialmente totalitários e
susceptíveis de degradarem o sistema jurídico em puro sentimentalismo -
um dos riscos que, diz-se, espreita sempre a aplicação do direito quando
ela dá o flanco ao subjectivismo, ao ascendente de critérios idiossincráti­
cos, pessoais, talvez mesmo inarticuláveis, inefáveis, pré-racionais. Mas
como subestimar a consideração do elemento afectivo - incluindo o sen­
timento da compaixão para com outras espécies - , agora que as ordens
jurídicas reconhecem generalizadamente a ressarcibilidade de danos
morais, e o ascendente cultural da percepção da emotividade há-de pesar
na aferição axiológica que é cometida ao julgador não-andróide? Aliás,
cabe perguntar muito singelamente, porque não haveria a mesma lei, que
reconhece já os danos morais resultantes da perda de um animal de com­
panhia60, de atribuir direitos a não-humanos, alicerçada na mera compai-

5 8 Estamos a falar dos três «descentramentos» ,1,ucessivamente operados por Copér-


. . ./. ,,,
nico, Darwin e Freud - cfr. Brenot, Philippe, "La Honte des Origines", in Cyrulnik, B .
(org.), Si les Lions..., cit., 146.
59 Finsen, Susan, "Obstacles to Legal Rights for Animais. Can We Get There From
Here?", Animal Law, 3 ( 1997), ii.
60 Considera-se os animais de companhia como uma sub-espécie dos animais domés­
ticos. Veja-se, a título de curiosidade, o anexo da Portaria n.º 1427/200 1, de 15 de Dezem­
bro, que no seu art. l .º classifica os «carnívoros domésticos» em: a) Animais de compa­
nhia; b) Animais com fins económicos; c) Animais para fins militares; d) Animais para
investigação científica; e) Cão de caça; t) Cão-guia.
28 A Humanidade do Respeito

xão que alguns deles nos mereçam em função da sua vulnerabilidade, da


sua exposição ao sofrimento e à malícia, da sua partilha do mesmo meio e
dos mesmos recursos em que se move a espécie humana, da sua proximi­
dade e do seu condicionamento pela nossa espécie - focalizando nesses
direitos um dever geral de respeito, socialmente sancionável - ?6 1
Outros verão nessa proposta de transposição para os domínios do jurí­
dico do «descentramento ético» um perigoso sintoma de decadência civiliza­
cional, um enfraquecimento da solidez axiológica que assegurou o avanço da
hunw.nização por entre as águas turbulentas da História, um enfraquecimento
agora propiciado pela generalização de uma sensação de segurança econó­
mica nas sociedades mais evoluídas, que alegadamente conduziria à multi­
plicação de valores pós-materialistas, de valores que se prendem com a esco­
lha de «estilos de vida», com ênfase em questões de qualidade ambiental e de
reconhecimento da pluralidade das formas de vida - com a consequência
patológica de a «insegurança ontológica» de uma vida cultural fugidia, frágil,
em que as relações humanas se estiolam, fazer ingressar certos não-humanos,
e em particular os animais de companhia, em espaços emocionais tradicio­
nalmente reservados às relações da sociabilidade humana62 , preenchendo,
não raro, o vazio de convívio gerado pelo declínio da fanu1ia extensa -
fazendo, por exemplo, com que as suas mortes possam suscitar genuínos sen­
timentos de luto que perduram para lá da compaixão imediata pelo próprio
animal63 - , e evoluindo para formas de «zoolatria», de «petishism»64 , de

6 1 Cfr. Barton, Miles, Direitos dos Animais (trad. p/ Espirídia Viterbo), Porto, Edin­
ter, 1988; eiusdem, Porque Maltratámos os Animais? (trad. p/ Rui M_ário Oliveira Correia),
Porto, Asa, 1990; Kelch, Thomas G., "The Role of The Rationàl and the Emotive in a
Theory of Animal Rights", Boston College Environmental Ajfairs Law Review, 27 (1999),
34-36; Wise, Steven M., "Recovery of Common Law Damages for Emotional Distress,
Loss of Society, and Loss of Companionship for the Wrongful Death of a Companion Ani­
mal", Animal Law, 4 (1998), 33ss..
62 Veja-se, por exemplo, Franklin, Adrian, Bruce Tranter & Robert White, "Explai­
ning Support for Animal Rights: A Comparison of Two Recent Approaches to Humans,
Nonhuman Animais, and Postmodernity", Society & Animals, 9 (2001), 127-144.
63 Cfr. Phineas, Charles, "Household Pets and Urban Alienation", Journal of Social
History, 7 (1974), 340; Stewart, Mary, "Loss of a Pet - Loss of a Person. A Comparative
Study of Bereavement", in Katcher, A.H. & A.M. Beck (orgs.), New Perspectives on Our
Lives. . ., cit., 390-404.
64 Um neologismo para designar o «fetichismo com animais de companhia (pets)»,
forjado pela aglutinação «pet» + <1etishism» = «petishism» .
A Hora dos Direitos dos Animais 29

«cinofilia» e «ailurofilia», de devoção obsessiva que podem constituir preo­


cupantes subversões de prioridades culturais65 .
Mas não deve o Direito, bem pelo contrário, fazer-se espelho dessa
«sensibilidade cultural» que, liberta episodicamente (nalguns pontos do
mundo) da premência da afirmação dos valores humanitários - porque
liberta dos acidentes que colocam em cheque aqueles valores - , pode
agora concentrar-se num outro tipo de esforço axiológico? Um facto que
parece crescentemente constatável é o de que mesmo aqueles que não
adoptam atitudes teriofílicas militantes ou radicais experimentam, nas
sociedades culturalmente mais evoluídas, a já referida «dissonância cog­
nitiva» entre as suas convicções dominantes e as práticas de exploração,
opressão e violência sobre não-humanos.

2 .d) A consagração de uma nova sensibilidade


Porque não haveríamos de reconhecer, mesmo sem qualquer parti­
pris progressista, a possibilidade, ou porventura até a necessidade, de
colocar o Direito ao serviço da solução de genuínos conflitos de deveres
emergentes da inserção dos agentes morais em diferentes comunidades éti­
cas - dadas as plúrimas solicitações valora.tivas que se multiplicam e dis­
putam em sociedades livres -, facultando a conciliação de alguns desses
deveres através dos veículos da comunidade e da «simpatia», da solidarie­
dade e do reconhecimento da partilha de interesses ? 66
É verdade que, como melhor veremos adiante, a solução jurídica pode
ficar prejudicada pela complexidade do tema, com a variedade de situações,
com a desigual relevância de contextos, com a especial opacidade da vivên­
cia de interesses intraduzíveis e inarticuláveis - e até pela inexistência de
um princípio fundamentante único para o reconhecimento de direitos aos
não-humanos, embora tenhamos acabado de sugerir que o princípio da
··/ /

65 Cfr. Digard, Jean-Pierre, "La Compagnie de l'Animal", in Cyrulnik, B. (org.), Si


les Lions ..., cit., 1037.
66 Cfr. Callicott, J. Baird, "Animal Liberation and Environmental Ethics:
Back Toge­
ther Again", Between the Species, 4 (1988), 163- 169; eiusdem, "Moral Monism in Envi­
ronmental Ethics Defended", Journal of Philosophical Research, 19 (1994), 51-60; eius­
dem, "The Search for an Environmental Ethic", in Regan, Tom (org.), Matters of Life and
Death: New lntroductory Essays in Moral Philosophy, New York, McGraw Hill, 3 1993,
322-382.
30 A Humanidade do Respeito

compaixão deve bastar para uma atribuição elementar desses direitos67. Em


todo o caso, o termos volvido mais intensamente a nossa atenção para os
interesses dos não-humanos tenderá a objectivar uma ética de respeito, que
reservávamos para os humanos dependentes e agora pode espraiar-se, sem
solução de continuidade, para lá dos domínios da espécie humana.
E por isso, para resolvermos a «dissonância cognitiva» que se insi­
nuou nos quadros de coexistência em meios culturalmente mais evoluídos,
tenderemos crescentemente a aceitar que há limites no modo como lidamos
com não-humanos, e que esses limites derivam da consideração da própria
natureza desses animais, e não de um desejo de acatamento de puras con­
venções, ou de uma extrapolação mais ou menos arbitrária dos sentimentos
de comiseração para com outros seres humanos, ou de um acatamento de
puros ditames de «humanidade» cuja revelação abarcaria, como faceta inci­
dental e caprichosa, o tratamento dos animais não-humanos. Uma ética
objectivada, pois, porque o juízo negativo perduraria como reflexo das suas
consequências para as vítimas não-humanas, mesmo relativamente a um
acto indetectado por outros seres humanos que não o perpetrador68.
Já no século XVIII Humphrey Primatt sustentava que a diferença de
meios e de estatuto moral, e mesmo a insusceptibilidade de representação
de interesses no jogo social, tomava mais chocante a crueldade para com
não-humanos do que a crueldade praticada entre seres humanos - acres­
centando subtilmente que, negando-se a alma e a vida eterna aos animais
não-humanos, a estes se negaria também a possibilidade de redenção do
sofrimento que lhes fosse infligido neste mundo, um sofrimento que pas­
saria a ser, pois, um dano irreparável, mais grave ainda do que aqueles
danos que fossem resgatáveis pela salvação de um ju(zo redentor69. E é
também no século XVIII que, em plena ofensiva emancipadora da condi­
ção humana, se lançam as raízes de uma zoofilia naturalista - susten­
tando-se por um lado, e em tributo aos argumentos antropológicos de Jean­
Jacques Rousseau, que a crueldade humana para com os animais não é
senão a expressão do processo de desnaturalização, de desenraizamento,

67 Cfr. Kelch, T.G., "The Role of the Rational. . . ", cit., l ss..
68 Cfr. La Follette, Hugh, "Animal Rights and Human Wrongs", in Dower, N. (org.),
Ethics and the Environment, Aldershot, Gower Press, 1989, 80; Taylor, Angus, "Animal
Rights and Human Needs", Environmental Ethics, 1 8 ( 1 996), 249-260.
69 Cfr, Primatt, Humphrey, A Dissertation on the Duty of Mercy and Sin of Cruelty
to Brute Animais, London, T. Cadell, 1 776, 35-36, 4 1 -43 (agora reimpresso em Garrett,
A.V. (org.), Animal Rights and Souls . . ., cit., III).
A Hora dos Direitos dos Animais 31

do homem, um fruto amargo da sua alienação de si mesmo e do seu con­


texto originaFº; e incrementando-se por outro lado a empatia com o sofri­
mento dos não-humanos, que será uma das facetas notáveis do roman­
tismo7 1 , desembocando em modernas propostas de um «contrato natural»
decalcado do «contrato social», como forma genérica de sintetizar uma
ética de respeito7 2/7 3 - e isto malgrado as dificuldades que o paradigma
contratualista é capaz de causar nestes domínios, e de que falaremos
adiante (Capítulo 1 3).
A «sensibilidade moderna» encontra-se adequadamente figurada
numa perspectiva heideggeriana, segundo a qual é fácil conceber-se um
conceito de liberdade que não seja co-extenso com a esfera dos interesses
humanos, e que tenha em atenção a própria necessidade de «residirmos»
num contexto ambiental do qual as espécies não-humanas fazem parte
necessária, tendo pois que ser ponderados, e equilibrados, os interesses
delas com os nossos - fazendo com que a questão das similitudes entre
espécies, a insistência antropomórfica, possa ser desvalorizada face à via­
bilidade de convertermos a própria percepção das diferenças entre huma­
nos e não-humanos em fundamento de deveres específicos de benevolên­
cia que impendem sobre os agentes morais: um respeito pelo estranho que
é muito menos instintivo, e por isso será mais imperativo, do que aquele
que nos suscita a consideração da individualidade do nosso semelhante14.

70 Veja-se, a esse respeito, Oswald, John, The Cry of Nature, or an Appeal to Mercy
and to Justice, on Behalf of the Persecuted Animais, London, J. Johnson, 1791, 77-78
(agora reimpresso em Garrett, A.V. (org.), Animal Rights and Souls . . ., cit., IV), os seus
argumentos vegetarianos (ibid., 32) e as suas alegações contra a «coisificação» de seres
vivos e sensíveis (ibid., 86).
7 1 Cfr. Engell, James, The Creative Jmagination: Enlightenment to Romanticism,
Cambridge Mass., Harvard University Press, 1981, 143-160; Thomas, Keith, Man and the
Natural World: A History of the Modem Sensibility, New York, Pantheon Books, 1983.
72 Cfr. Serres, Michel, Le Contrat Naturel, Pw;is, François Bourin, 1990; Arluke,
Arnold & Clinton R. Sanders, Regarding Animais, Phiradé)pfíia, Temple University Press,
1996; Dumas, Denis, "Peut-il y Avoir un Contrat Naturel? La Raison Modeme au Tribunal
de l'Écologie", Dialogue, 31 (1992), 292-310.
73 Veja-se algumas ideias similares em: Burgat, Florence, Animal, Mon Prochain,
Paris, Odile Jacob, 1997; Morris, Desmond, The Animal Contract. Sharing the Planet,
London, Virgin, 1990.
74 Cfr. Cave, George S., "Animais, Heidegger, and the Right to Life", Environmen­
tal Ethics, 4 (1982), 249-254; Schalow, Frank, "Who Speaks for the Animais? Heidegger
and the Question of Animal Welfare", Environmental Ethics, 22 (2000), 259-271.
32 A Humanidade do Respeito

Essa «sensibilidade» permite apartar a compaixão pelos animais da


sua conotação romântica e ingénua, levando a concebê-la, antes, como o
próprio cimento da ética que alimenta o reconhecimento de direitos dos
animais - a (bio)ética assente numa «simpatia esclarecida» pela condição
dos não-humanos, respeitadora das condições naturais (e amorais) do con­
texto do seu desenvolvimento, não limitadora da compreensão simpática
às manifestações antropomórficas, à maior proximidade das espécies não­
humanas em relação à nossa, à inserção dos animais na nossa iconografia
cultural ou no espaço da nossa emotividade 75.
Com efeito, seria uma perversão cruel dos desígnios teriofílicos
subordinarmos os interesses de emancipação de algumas espécies não­
humanas a essas relações de proximidade antropomórfica - resgatando
da opressão e do sofrimento apenas os animais «simpáticos», os animais
dóceis, os animais previsíveis na sua submissão, os «animais-adornos», os
«animais-brinquedos»76, um pouco como se esse resgate fosse um prémio
atribuído aos não-humanos pelo seu acatamento dos ditames da sociabili­
dade humana, ou um prémio pelos caprichos da estética.
E no entanto essa perturbadora e insinuante instrumentalização con­
verteu-se num pilar na aculturação humana, e por isso, em vez de inutil­
mente se afadigar em combatê-la na sua posição inextricável, a causa
teriofílica deve procurar reorientá-la para valores mais edificantes, redefi­
nindo-a como um processo de «empatia» que, na educação e na auto-iden­
tificação, no recurso a imagens antropomórficas de não-humanos para a
aculturação das crianças, gere laços de afinidade com ícones ariimais, com
esses «animais-brinquedos», que incuta sensibilidade à raíz de animali­
dade que se alberga no suporte da nossa exist�ncia, e que, antecedendo e
sobrevivendo às convenções assépticas e -despersonálizadas do mundo
adulto, é mais autenticamente humana.

75 Cfr. Fisher, John A ., "Taking Sympathy Seriously", Environmental Ethics, 9


(1987), 197-215 . Cfr. também: Wolf, Ursula, Das Tier in der Moral, Frankfurt am Main,
Klostermann, 1990.
7 6 Sobre os animais-brinquedos, os «peluches vivos», cfr. Rossant, Lyonel & Valérie
Villemin, "L'Animal et le Développement de l'Enfant", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ... , cit., 1306-1325 .
A Hora dos Direitos dos Animais 33

2 .e) Ética e dependência


Por seu lado, há também algo de benigno e aproveitável no «ponto de
vista adulto», dado que, tendendo à redução dos animais de companhia a
factores de conduta infantil perpetuada, perenemente dependentes dos
nossos cuidados e capazes de reciprocarem com afecto e até com imprevi­
sibilidade divertida, gera em torno deles uma predisposição zoófila, con­
vertendo os não-humanos numa espécie de símbolos de rebelião contro­
lada, de expressões de uma natureza não totalmente dominável, em
redutos iconográficos de uma autenticidade, de uma espontaneidade
lúdica perdidas em nós - e ao mesmo tempo em objectos mais adequa­
dos da solicitude ética que dedicamos aos seres vivos dependentes77 .
Mas a ética do respeito é uma ética de humanidade - tendo para nós
que seria absurdo sustentar-se uma ética que não fosse, ao menos em
última instância, antropocêntrica (nos seus propósitos, na sua linguagem,
nos seus destinatários). Aprendermos a lidar com os não-humanos vale
antes de tudo pelo que isso incute de reverência pelas multiformes expres­
sões de vida, e de vida sensível, no nosso planeta. Mas vale também, aces­
soriamente mas com mais ambição axiológica, para «descentrar» a ética
humana dos seus paradigmas de autonomia e de razão triunfante, levando­
ª a considerar formas não inteiramente autónomas nem racionais de
expressão da própria natureza humana.
Como subtilmente observa Alasdair Maclntyre, quando os estudos de
filosofia moral se debruçam sobre situações de in.capacidade ou de depen­
dência, referem-se a elas como possíveis alvos de benevolência da parte de
agentes morais que aparentemente não sofrem de deficiência ou de depen­
dência, o que contribui para sugerir que os «incapazes» são «os outros», e
que os preceitos éticos se nos dirigem como seres perfeitamente indepen­
dentes (e invulneráveis)7 8 . Uma ética centrada em tais convicções tem,

77 Cfr. Fiedler, Leslie, Freaks: Myths and lmdges of the Secret Self, New York,
Simon & Schuster, 1978, 28; Serpell, James & Elizabeth Paul, "Pets and the Development
of Positive Attitudes to Animals", in Manning, Aubrey & James Serpell (orgs.), Animais
and Human Society, London, Routledge, 1994, 127-144.
7 8 Maclntyre, Alasdair, Dependent Rationai Animais. Why Human Beings Need the
Virtues, Chicago, Open Court, 1999, 2; eiusdem, "The Need for a Standard of Care", in
Francis, Leslie & Anita Silvers (orgs.), Americans with Disabilities. Expioring lmplications
of the Law for Individuais and lnstitutions, New York, Routledge, 2000, 81-86. Cfr. ainda:
Bronze, Fernando José, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2002,
34 A Humanidade do Respeito

admitamos, um longo caminho a percorrer, se ela deve considerar o mundo


(humano e não-humano) como ele é.
Tal como numa família, podemos ingressar na comunidade ética, ou
na sociedade política, como indivíduos, mas não nos é possível sairmos
pela porta pela qual entrámos - porque nos enredamos numa teia de
dependências e de responsabilidades mútuas que fazem de nós o espelho
de obrigações definidas por outros, ou em função de outros, e a nossa per­
sonalidade deixa de ser um aglomerado de titularidades e de legitimidades
individualmente identificáveis para se funcionalizar a um empenho, um
compromisso, uma abnegação sem retribuição, sem reconhecimento79,
para com aqueles que dependem de nós, daqueles em função dos quais
somos significantes e infungíveis80/8 I . Sublinha-o Eva Feder Kittay, numa
das mais «copernicianas» das modernas reflexões sobre a ética: "Os vín­
culos de uma sociedade humana não ligam apenas aqueles que volunta­
riamente conseguem assumir obrigações e que são capazes de alcançar
igualitariamente os benefícios da cooperação mútua. Não se encontram
nessa posição, nem aqueles que são dependentes, nem aqueles a quem foi
cometido cuidarem dos dependentes" 82.

104n5; Waller, Bruce N., The Natural Selection of ÀÜtonomy, Albany NY, SUNY Press,
1998.
79 Às vezes indutora de pobreza, como é enfatizado em: Cicchino, Peter M. , "Buil­
ding on Foundational Myths: Feminism and the Recovery of «Human Nature»: A Response
to Martha Fineman", Journal of Gender, Social Policy & The Law, 8 (2000), 73.
80 Incondicionalmente significantes e infungíveis para aqueles que nos amam a par­
tir da sua dependência. Cfr. Becker, Lawrence C. , "The Good of Agency", in Francis, L. &
A. Silvers (orgs.), Americans with Disabilities . . . , cit., 54-63.
81 Cfr. também: Fineman, Martha Albertson, "Cracking the Foundational Myths:
Independence, Autonomy, and Self-Suffi.ciency", Journal of Gender, Social Policy & The
Law, 8 (2000), 14.
82 Kittay, Eva Feder, Love 's Labor. Essays on Women, Equality, and Dependency,
London, Routledge, 1999, 27; eadem, "At Home with My Daughter", in Francis, L. & A.
Silvers (orgs.), Americans with Disabilities . . . , cit., 64-80.
3. A «Especista» Soberba Humana

"A presunção é a nossa enfermidade natural e original. A mais


calamitosa e frágil de todas as criaturas é o homem, e ao mesmo
tempo a mais orgulhosa" - Montaigne 8 3 .
"Não existe qualquer razão objectiva para tomarmos os interesses
dos seres humanos como mais importantes do que os dos outros
animais. Podemos destruir os outros animais mais depressa do que
eles nos podem destruir a nós; essa é a única base sólida para a
nossa alegação de superioridade. Damos valor à arte, à ciência e
à literatura porque essas são actividades nas quais pontificamos.
Mas as baleias podem prezar os jorras de vapor, e os burros podem
achar que um bom zurro é mais requintado do que a música de
Bach. Não podemos refutá-los senão através do exercício de poder
arbitrário. Todos os sistemas éticos dependem em última análise da
força bélica" - Bertrand Russell 84 .

3 .a) O que é o «especismo»


De onde emerge o preconceito «especista», a ideia de que a espécie
humana não apenas é única - o que seria tautológico num certo sentido,
em face dos requisitos daquilo que identific� qyqlquer espécie - mas é
incomensurável nas suas características essenciais? E como sobrevive essa
tese a constatações empíricas de comensurabilidade entre espécies - ao

8 3 Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, Paris, Librai­


rie Générale Française - Le Livre de Poche, 1972, II, 91.
84 Russell, Bertrand, "If Animais Could Talk" (1932), in Mortais and Others: Ber­
trand Russell's American Essays 1 931-1935 (Harry Ruja, ed.), London, Allen & Unwin,
1975, 120-121.
36 A «Especista» Soberba Humana

facto, por exemplo, de partilharmos mais de 98% do nosso DNA com os


chimpanzés B S/86, ou de serem possíveis as xenotransplantações, ou as
«zoonoses» B7?
Da sublimação de um instinto defensivo, que faz depender a identi­
dade de meras relações de pertença, que receia a dissolução dessa identi­
dade no reconhecimento do respectivo suporte animal? Do medo - que
associaremos adiante à mensagem cartesiana (Capítulo 7) - de que o des­
tino transcendente da alma se veja comprometido com a constatação da
sua indelével materialidade sublunar? Da vaidade, que permite ao homem
comparar-se a Deus, e demarcar-se das demais criaturas, concedendo-se o
lugar de topo na «escala» e presumindo de lhes atribuir características
«inferiores» e limitativasBB ? Da insegurança que advém da consciência da
liberdade e da inerente falibilidade, por contraposição com o aparente
determinismo absoluto da causalidade eficiente que rege o comportamento
dos não humanos? Da recusa de acompanharmos Montaigne na humi­
lhante insistência de que "podemos bem reconhecer, na maior parte das
suas obras, como os animais têm uma excelência superior à nossa e como
a nossa arte é fraca a imitá-los"89? Do facto insofismável de a reflexão
sobre a condição animal ser uma indagação acerca do lugar que nos atri­
buímos a nós próprios no seio dos seres vivos?9<l

8 5 Mais do que 98%, - se pensarmos que uma parte do DNA é inerte em termos de
informação genética. Cfr. Goodall, Jane, "The Conflict Between Species in an Ever More
Crowded World", Animal Law, 4 (1998), iss.
86 Os chimpanzés estão geneticamente (e tamb�m· morfologica e bioquimicamente)
mais próximos dos humanos do que dos gorilas. E contudo, a distância de 2% do DNA
pode não ser de modo algum despicienda, se pensarmos nas profundas diferenças que
encontramos na espécie humana, a qual está apesar disso ligada, toda ela, por uma simili­
tude de 99,99% do DNA - cfr. Kolber, A., "Standing Upright...", cit., 169.
87 A existência de «zoonoses», ou seja, de doenças «sem fronteiras», transmissíveis
irrestritamente entre as espécies, constitui um dado objectivo contra as «barreiras especis­
tas». As zoonoses pode ser causadas pelos mais diversos agentes patogénicos: parasitas
(ténias, toxoplasmose), bactérias (salmonelas, tuberculose), vírus (raiva, gripe). Cfr. Bru­
gere-Picoux, Jeanne, "Maladies Sans Frontieres. Les Agents Transmissibles Non Conven­
tionnels ou «Prions»", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 783.
88 Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 92.
89 Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 95.
90 Cfr. Cyrulnik, Boris, "Les Animaux Humanisés", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ... , cit., 29.
A Hora dos Direitos dos Animais 37

Talvez haja algum apoio no facto de a crença na santidade das bases


da idiossincrasia de um grupo, reforçada não-raro pela adulação recíproca
dos seus membros, frequentemente evoluir para uma crença na sua supe­
rioridade9 I, um «narcisismo de espécie» que não seria maligno se não se
degradasse num «autismo de espécie», que nos irresponsabiliza e insensi­
biliza face a outras formas de vida e a outras formas de consciência e de
realização92.
É certo que sem alguma medida de antropocentrismo nos seria
impossível erigirmos uma ética minimamente compreensível e eficaz -
pelo que o preconizado «descentramento» não pode ter como consequên­
cia uma descaracterização pura e simples do meio em que o diálogo ético
emerge, floresce e se consuma, dos pressupostos de inteligibilidade em
que assenta, e por isso não se deve deixar contaminar pelo entusiasmo com
que alguma militância teriofílica denuncia o antropocentrismo e alguns
dos seus «erros sistémicos», como o do antropomorfismo alegadamente
subjacente à forma como são delineados e demarcados os interesses dos
não-humanos, uma forma fragilmente propensa à mais elementar das ins­
trumentalizações9 3.
Defender o «descentramento» não é sustentar um qualquer «recentra­
mento» noutras espécies, nem pode servir para recobrir uma simples misan­
tropia - porque se assim fosse a causa teriofílica estaria mortalmente
ferida pela frivolidade, e teríamos que nos virar contra ela apelando aos
seus cultores, como o faziam os operários de oitocentos: "Nous supplions
ces honorables amis des quadrupedes d ' arrêter un instant leur zele chari­
table pour le reporter sur des sujets plus élevés et plus dignes d 'intérêt"94.
Mas não é menos certo que o respeito ético e jurídico pelos interes­
ses dos animais tem ganho foros de irreversibilidade em muitos meios
sociais e culturais, tornando-se hoje praticamente impensável que um filó­
sofo moral formule um apelo genérico à subalternização ou à instrumen­
talização pura e simples de todos os interesses dos animais, ou defenda

91 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 3 1 3.


92 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 266.
93 Cfr. Leahy, Michael P.T., Against Liberation: Putting Animais in Perspective,
London, Routledge, 1 99 1 ; Schmahmann, David & Lori J. Polacheck, "The Case Against
Rights for Animals", Boston College Environmental Affairs Law Review, 22 ( 1 995), 747ss..
94 É um apelo do jornal operário L'Atelier de 30 de Junho de 1 850, cit. in Agulhon,
Maurice, "Le Sang des Bêtes. Le Probleme de la Protection des Animaux en France au
XIXe Siecle", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions . . ., cit., 1 1 96- 1 1 97.
38 A «Especista» Soberba Humana

uma ética antropocêntrica escamoteando completamente a consideração


dos direitos dos animais 95 .
Mas não será o próprio antropomorfismo, melhor, a «ilusão antropo­
mórfica» que projecta sobre os animais as nossas perspectivas humanas,
investindo-os de qualidades da nossa espécie - mesmo na sua vertente
estilizada e caricatural, mais precisamente a «ilusão zoomórfica», que
toma os animais como ornamentos exemplares de algumas qualidades
humanas, como pontos de referência de qualidades absolutas 96 - um indí­
cio ambivalente da nossa arrogância especista, na medida em que, se por
um lado projecta sobre alguns animais algumas virtudes cuja amplitude
estaria sempre dependente de uma consciência reflexiva do mérito e de
uma capacidade contra-factual de transgressão - consciência e capaci­
dade que não se detectam neles - , por outro lado os toma por ícones de
uma moralidade sem mácula, por manifestações (epifanias?) de uma ani­
malidade impoluta que torna os próprios seres humanos naturalmente
bons?97
Se pensássemos em qualidades morais aferidas exclusivamente em
termos de conduta exteriorizada (descontada a intencionalidade e o
mérito), o que dizer, por exemplo, em relação a tantos cães que conseguem
demonstrar, com impecável constância, alguns dos melhores traços rela­
cionais da conduta humana - lealdade, coragem, alegria, disponibilidade,
dedicação - sem evidenciarem nenhum dos mais graves defeitos da con­
duta humana - avareza, mesquinhez, indiferença, ódio - ?98
Por exemplo, na Grã-Bretanha oitocentista era prevalecente a ideia
de que os cães eram geralmente melhores exemplos morais do que os seres
humanos, uma espécie de crianças que nunca cresciam o suficiente para

95 Cfr. Jamieson, Dale, "Ethics and Animais: A Brief Review", Journal of Agricul­
tura[ and Environmental Ethics, 6 - Supplement (1993), 15-20.
96 Sobre a «ilusão antropomórfica» e a sua demarcação face à «ilusão zoomórfica»,
cfr. Ellenberger, Henri, "Jardin Zoologique et Hôpital Psychiatrique", in Brion, A. & H. Ey
(orgs.), Psychiatrie Animale, cit., 559.
97 Haveria ainda a distinguir a «zoomania», que procura na natureza não-humana
espelhos de virtudes, a «zooantropia» que assenta na identificação despersonificante das
motivações humanas com as não-humanas, do «zoomorfismo» que procura decalcar da
«naturalidade animal» paradigmas de conduta humana - cfr. Bensch, Claude, "La Nudité
Primale", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 172-173.
9 8 Cfr. Kelch, Thomas G., "Toward a Non-Property Status for Animais", New York
University Environmental Law Journal, 6 (1998), 539.
A Hora dos Direitos dos Animais 39

premeditarem, para traírem ou criticarem, para desobedecerem ou para


demonstrarem ingratidão99 . Não conseguira o cão de Ulisses reconhecer o
dono, 20 anos volvidos? E na Grã-Bretanha setecentista, não tinha já Wil­
liam Smellie observado que, pelo seu comportamento, até os castores se
revelavam mais republicanos do que os seres humanos? 100 E o que dizer
até da laboriosa formiga, antes e depois de La Fontaine?lOI

3 .b) O imperativo pragmático: a ética para lá da autonomia


A arrogância especista torna-se ainda mais chocante e insustentável
se adaptarmos uma atitude pragmatista quanto aos desígnios da ética, e a
subordinarmos a um juízo de eficiência existencial na promoção de certos
fins tangíveis e intelectualmente insofismáveis - na ausência dos quais a
ética terá sido um devaneio fútil, sem projecção no estado efectivo do
mundo tal como ele pode ser vivenciado. Nesse sentido, não será crucial
nem comprometedor admitir-se que as diferenças de facto, taxonómicas,
entre humanos e não-humanos são demonstrativas de um estatuto moral
superior dos humanos, por evidenciarem que os seres humanos desenvol­
vem vidas morais autónomas e incomensuravelmente mais complexas:
porque precisamente essa «superioridade natural» deveria impor, aos seres
superiores, um nivelamento voluntário de estatutos morais em torno da
capacidade de sofrimento e da vontade individual de auto-preservação
(real ou presumida, como sucede igualmente com casos humanos margi­
nais, com casos de dependência l02), pois, insistamos, é só da manifestação

99 Cfr. Lansbury, Coral, The Old Brown Dog. Women, Workers, and Vivisection in
Edwardian England, Madison, University of Wisconsin Press, 1985, 17 1.
100 Smellie, William, The Philosophy of Natural History, Edinburgh, Bell & Brad­
fute &e., 1799, II, 419-420 (agora reimpresso em Garrett, A.V. (org.), Animal Rights and
Souls . . . , cit., I) .
101 "Vai ter com a formiga, preguiçoso! Observa o seu comportamento e aprende!
Ainda que não tenha nem chefe, nem governador, nem superior, contudo sabe que deve tra­
balhar bem no Verão, juntando alimento com vista ao Inverno"; "As formigas - que são uns
animaizinhos sem defesa mas que sabem guardar no Verão a comida para o Inverno" -
Provérbios, 6: 6; 30: 25.
102 Cfr. Pluhar, Evelyn B., Beyond Prejudice: The Moral Significance of Human and
Nonhuman Animais, Durham NC, Duke University Press, 1995; eadem, "Is There a Moral
Relevant Difference Between Human and Animal Nonpersons?", Journal of Agricultura[
Ethics, 1 (198 1), 59-68.
40 A «Especista» Soberba Humana

do sofrimento e do apego à integridade corporal que conseguimos retirar


sinais tangíveis e intelectualmente insofismáveis, pragmáticos, da maior
ou menor eficiência mundanal da experiência ética.
A já referida proposta de Alasdair Maclntyre é a de que ultrapasse­
mos as nossas esquizofrenias culturais recorrendo aos fundamentos bioló­
gicos da ética, negando que a ética seja somente uma mera construção
social, uma convenção à mercê da nossa arrogância de espécie; a proposta
é a de que procuremos afinidades com a conduta e com a integração
ambiental de outras espécies e formas de vida, por forma a não nos demar­
carmos delas com critérios de superioridade, o que nos obrigaria a reme­
diar, timidamente e ad hoc, a condição ética dos seres humanos menos
dotados, mais debilitados e dependentes - que somos todos nós, num
qualquer grau, num ou em vários momentos da nossa existência _ 103 .
Vamos indagar, de seguida, as razões historico-culturais que ditaram
a soberba da nossa espécie, e que se prendem essencialmente com uma
visão hierárquica, estratificada, dos domínios da existência, que não podia
deixar de colocar-nos numa posição exaltada e triunfante na «ordem das
coisas». Mas reconsideremos já a fundamental fragilidade que se insinua
no antropocentrismo, quando este procura fazer derivar proposições éticas
uniformes de uma «natureza humana» pretensamente descarnada e «uni­
versalizável», como se fôssemos sempre os mesmos «autómatos morais»
ao longo da nossa existência individual, sempre igualmente capazes de nos
representarmos um quadro de valores invariável, capazes de o pormos em
prática de um modo uniforme, tanto ao longo do ciclo de vida como trans­
versalmente em todos os estratos socioculturais, capazes de respondermos
por todos os nossos actos e omissões - capazes, no limite, de sermos soli­
tários timoneiros da nossa existência individual por entre todos os ventos
e marés.
Uma tal natureza humana não existe. Como lapidarmente sustentava
David Hume, "o defeito comum dos sistemas que têm sido propostos pelos
filósofos para explicarem o funcionamento do espírito é o de suporem tais
subtileza e requinte no pensamento que eles não apenas excedem a capa­
cidade de meros animais, mas até a de crianças e a de pessoas comuns da
nossa própria espécie, as quais são, todavia, susceptíveis das mesmas
emoções e sentimentos das pessoas mais dotadas de génio e de entendi-

1 03 Cfr. Maclnty re , A. , Dependent Rational Animais . . ., cit., passim .


A Hora dos Direitos dos Animais 41

mento. Tal subtileza é prova inequívoca da sua falsidade, porque contrá­


ria à simplicidade com que se manifesta a verdade de um sistema" I04.
Diríamos, assim, que o «descentramento bioético», mais do que uma
mortificação da nossa soberba de espécie, muito mais do que um risco
intelectual, poderá ser uma necessidade propedêutica para o recentra­
mento dos valores éticos e jurídicos em torno de uma visão mais aberta e
pragmática das diversas manifestações de que se compõe a «natureza
humana», dentro de um espectro que conduz da animalidade à transcen­
dência supererogatória da vontade livre e bem-formada, e que regressa à
animalidade sem embaraços nem degradação ética - porque ocorre numa
teia de interdependências que nos deixa tanto à mercê uns dos outros como
apoiados uns nos outros; numa teia que não deliberámos nem podíamos
deliberar, porque ela é inevitável (e por isso não é negociável, não é con­
tratualizável), constituindo o suporte da própria existência da espécie
naqueles momentos em que os animais dessa espécie se encontram depen­
dentes e não conseguiriam sobreviver sozinhos .
Os progenitores humanos que, como quaisquer mamíferos, suportam e
defendem os primeiros anos de vida extra-uterina da sua prole não fazem
mais do que deixarem-se conduzir por uma necessidade biológica - por
mais que a aculturação perverta nalguns casos essa necessidade e confira
mérito à resistência a essa perversão - ; em verdade, os progenitores não
aceitam como deveres os actos de que depende a sobrevivência das crianças
humanas, porque mesmo aí onde a preservação de uma natureza humana
impoluta não permitisse uma intencionalidade violentadora da sua própria
viabilidade como espécie, e o Direito, portanto, não tivesse de assumir, pelo
estabelecimento de normas de conduta, a defesa dos interesses desses seres
humanos dependentes, o «gene egoísta» que se perpetua através da sexuali­
dade determinaria sempre eficientemente essa defesa na maioria dos mem­
bros da espécie - como o faz com todos os mamíferos - .
Admitamos, todavia, que uma das prerrogativas da nossa liberdade é
a de podermos converter em dever e deliberação a própria necessidade
causal - é a capacidade de interferirmos, ao menos parcialmente, em
facetas do determinismo da nossa existência (uma capacidade cuja legiti­
mação constitui o próprio cerne da bioética como ordem valorativa). Mes­
mo assim, a nossa consciência reflexiva, a capacidade de nos destacarmos

104 Hume, David, A Treatise of Human Nature (L.A . Selby-Bigge & P.H . Nidditch ,
eds.), Oxford, Clarendon, 1989, 177.
42 A «Especista» Soberba Humana

da urgência imediata dos nossos desejos, de imaginarmos futuros alterna­


tivos e indiferenciadamente plausíveis, a capacidade de reconhecermos os
interesses das crianças indefesas que já fomos ou de nos representarmos os
interesses dos idosos dependentes em que podemos transformar-nos, é
capaz de transmitir-nos e incutir-nos a crucial essencialidade moral da
noção de dependência e de endividamento recíproco que permitem a vida
dos dependentes e que conferem significado à vida daqueles de quem
outros dependem; é capaz de fazer-nos perceber que o florescimento da
natureza humana - de toda a natureza humana, na sua infinita variedade
- depende crucialmente do apoio que recebemos nos momentos de maior
vulnerabilidade e dependência do nosso ciclo de vida individual, apoio
que, nem sempre podendo retribuir no momento em que o recebemos,
somos necessariamente forçados a prestar em certas circunstâncias de assi­
metria e não-reciprocidadeI 05 .
Por isso, mesmo que não reconhecêssemos o império daquela neces­
sidade determinista de que dependem o sucesso da nossa anima/idade, a
nossa perpetuação genética e a defesa da espécie humana, mesmo assim,
por simples «reciprocidade egoísta» e diálogo com aquele «outro» que
somos nós mesmos noutros passos da nossa existência (como se se tratasse
de «fantasmas de Natais passados» e «génios de Natais futuros»), teríamos
que reconhecer que a única atitude racional e sólida de «universalização»
da ética requer a identificação e respeito por situações em que não dispo­
mos ainda, ou deixámos de dispor, das características em que se alicerça a
nossa «arrogância de espécie» - situações em que, por outras palavras, a
defesa dos nossos interesses sensoriais e vitais seria fragilizada pela refe­
rência a «direitos humanos», sempre culturalmente contingentes, por mais
santificados que eles sejam, e sairia reforçada por uni reconhecimento,
mais inequívoco, de direitos inerentes a todas as formas de existência sus­
ceptíveis dos mais elementares interesses vitais e sensoriais - dentro ou
fora da nossa cultura, dentro ou fora da nossa espécie, até - .
A nossa arrogância «especista» é, pois, pouco inteligente e constitui
um mau ponto de apoio a uma estratégia adaptativa dentro do «concerto
de espécies» de que depende, em parte, a biodiversidade do planeta. E
poderá ser essa uma das razões pelas quais algumas das mais poderosas
inteligências da espécie humana têm, desde há muito, manifestado o seu
credo «descentrado». No satírico "Gryllus" de Plutarco, Ulisses tenta em

10 5 Cfr. Maclntyre, A., Dependent Rational Animais . . ., cit., passim.


A Hora dos Direitos dos Animais 43

vão convencer um dos seus companheiros, transformado em porco por


Circe, acerca das vantagens de ser homem; ao que o porco Gryllus (outrora
um advogado) contrapõe que em matéria de bravura, temperança, simpli­
cidade e satisfação de vida, os animais são moralmente superiores ao
homem 106 . Nas pitorescas palavras de La Fontaine: "Chers amis, voulez­
vous hommes redevenir? / On vous rend déjà la parole. / Le Lion dit, pen­
sant rugir: / Je n 'ai pas la tête si folle; / Moi renoncer aux dons que je
viens d 'acquérir? / J 'ai griffe et dent, et mets en pieces qui m 'attaque. / Je
suis Roi: deviendrai-je un Citadin d 'lthaque? / Tu me rendras peut-être
encor simple Soldat: / Je ne veux point changer d 'état. (...) Tout bien con­
sidéré, je te soutiens en somme / Que scélérat pour scélérat, / Il vaut mieux
être un Loup qu 'un Homme: / Je ne veux point changer d 'état. / Ulyssefit
à tous une même semonce, / Chacun d 'eux fit même réponce, / Autant le
grand que le petit." 1 07.

10 6 Plutarch, Moralia. XII - Bruta Animalia Ratione Uti (trad. p/ Harold Chemiss &
William C. Helmbold), Cambridge Mass., Harvard U.P., 1957 (Loeb, 406). O episódio é
referido também por Erasmo no Elogio da Loucura, XXXV.
10 7 La Fontaine, Jean de, Les Compagnons d'Ulysse, in Fables, Paris, Flammarion,
1995, XII. Cfr. Bronze, F.J., Lições..., cit., 104n6.
4. A «Cadeia do Ser» e a Demarcação
entre Espécies

"Todos os raciocínios, todas as condutas neste domínio têm o


homem por única referência. Nenhum animal é naturalmente útil
ou nocivo; nenhuma espécie é superior ou inferior a outra, cada
uma tem as suas próprias características" - Jean-Claude Nouet 1 0 8 .

4 .a) Tudo feito para o homem?


O antropocentrismo teleológico das tradições aristotélica, estóica e
cristã, a ideia de que tudo foi criado para o homem, de que o «espectáculo
da natureza» gravita em tomo dos desígnios da condição humana, é, como
o caracteriza Arthur Lovejoy, "um dos mais curiosos monumentos da imbe­
cilidade humana" I09 . Em todo o caso, esse «teleologismo imperial» venceu
as tendências animistas, mecanicistas e vitalistas que com ele originaria­
mente disputaram a primazia cultural, e acabou por dominar, praticamente
incontestado, até ao triunfo científico do darwinismo, momento a partir do
qual se tomou crescentemente claro - e não apenas para os cientistas -
que o mundo da visão tradicional, o mundo bem ordenado, um mundo trans­
parente e submisso na sua inteligível servidão ao bem-estar humano, tinha
sido criado, não por uma Providência sobre-humana, mas pelos gregos.
É só com o darwinismo, com efeito, que generalizadamente se pres­
cinde da ideia de uma supra-ordenação cósmica, de um significado total do
devir, e por isso se prescinde também da atribuição de uma teleologia glo-

108 Nouet, Jean-Claude, "Protection ou Respect de l' Animal?", in Cyrulnik, B . (org.),


Si les Lions ... , cit., 1096.
1 09 Lovejoy, A .0., The Great Chain of Being, cit., 186.
46 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

bal a um Demiurgo, a um Supremo Arquitecto. Deixa de entender-se como


necessário, ou até como possível, que todo e qualquer ser vivo apareça, ou
deva aparecer, no «teatro do mundo» munido de um significado latente, de
um desígnio predeterminado, de um papel e de um estatuto definidos num
enredo fixo ou numa «ordem das coisas»: alegadas superioridades e inferio­
ridades entre seres vivos dissolvem-se em pura relatividade contextual, den­
tro de um processo cego, casual e puramente cumulativo I I0/ 1 1 1 .
Até esse momento «copemiciano», poucas serão, como veremos, as
vozes dissonantes face a um antropocentrismo de matriz teológica, assente
na ideia de que o homem foi constituído depositário e guardião das demais
espécies terrenas, e de que estas outras espécies ficaram, em contrapartida,
colocadas ao seu serviço e à sua mercê 1 12.
Mesmo nos registos da civilização helénica mais arcaica, o estatuto dos
não-humanos aparece já revestido de características de outorga sagrada de
divindades providenciais, dentro de uma mecânica natural insondável, des­
crita em termos mitológicos e centrada nos interesses da espécie humana
(presumindo-se, já então, que existem interesses comuns ao todo da espécie

1 10 Charles Darwin começa por fornecer uma visão puramente animal da espécie
humana (em nome da unidade do mundo biológico) em On the Origins of Species by
Means of Natural Selection, or Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life
(11859), e só mais tarde versa especificamente o problema da colocação da espécie humana
no contexto natural, em The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex ( 1 1871).
Entre ambas as obras, a diferença está em que na segunda se admite que o mecanismo da
selecção natural se encontrar ele próprio submetido a uma dinâmica evolutiva - e que por
isso o mecanicismo evolutivo possa ceder, nas sociedades humanas, à prevalência de estra­
tégias altruístas, solidaristas, e outras. Cfr. Tort, Patrick, "Darwinisme Social: La Méprise",
in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 602-603.
1 1 1 Cfr. Dombrowski, Daniel A., The Philosophy of Vegetarianism, Amherst, Uni­
versity of Massachusetts Press, 1984, 84; Brumbaugh, Robert S., "Of Man, Animals, and
Morais: A Brief History", in Morris, Richard Knowles & Michael W. Fox (orgs.), On the
Fifth Day - Animal Rights and Human Ethics, Washington DC, Acropolis Books, 1978,
11; Petrinovich, Lewis F., Darwinian Dominion. Animal Welfare and Human Interests,
Cambridge Mass., MIT Press, 1999; Racheis, James, Created from Animais. The Moral
Implications of Darwinism, Oxford, Oxford University Press, 1990; Wise, Steven M.,
"How Nonhuman Animais Were Trapped in a Nonexistent Universe", Animal Law, 1
(1995), 36, 39.
1 12 Cfr. Finkelstein, Jacob J., "The Ox that Gored", Transactions of the American
Philosophical Society, 71/2 (1981), 7-8, 39; Guerrini, Anita, "The Ethics of Animal Expe­
rimentation in Seventeenth-Century England", Journal of the History of Ideas, 50 (1989),
391ss.; Harrison, P., "Animal Souls... ", cit., 519ss ..
A Hora dos Direitos dos Animais 47

humana). Não havendo lugar ao acaso - rejeição de Tyché que denota «hor­
ror vacui» - , tendo-se tudo por sobredeterminado, e reduzindo-se o conhe­
cimento à descoberta, à revelação, desse plano providencial, compreende.,.se
que o acesso a esse plano através do conhecimento - primeiro o conheci­
mento mítico, depois o racional - tenha deixado a espécie humana numa
posição privilegiada quanto à tradução do plano providencial e quanto à con­
formação valorativa com os seus propósitos teleológicos; sendo disso um
típico corolário - formulado já por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias -
a convicção de que era próprio, e exclusivo, do humano o cultivo de valores
como a justiça, por contraposição à «condição animal», limitada, na sua vida
de relação, ao recurso à violência 113.
Séculos volvidos, Thomas Hobbes, no Leviathan e no De Cive, reti­
rará corolários de um similar entendimento dualista para a sua concepção
da condição dos não-humanos: visto que estes não faziam parte do «pac­
tum subjectionis» através do qual os humanos alcançavam a paz e se liber­
tavam do «estado de natureza», eles não apenas ficavam irremediavel­
mente presos a um tal «estado de natureza», como ainda podiam
livremente matar humanos e ser mortos por humanos sem que se verifi­
casse qualquer injustiça - visto, muito singelamente, não ocorrer o valor
justiça no estado de natureza _ 1 1 4.
Mas fora Aristóteles a rematar esse filão do determinismo helénico,
insistindo em que toda a natureza é teleológica, o que significa que todos
os processos naturais estão dirigidos a um determinado fim e se definem
em função dele: complementando, afinal, o «princípio de plenitude» que
Platão formulara já, a ideia de que a vida mais não é do que a realização
de todas as possibilidades de existência que se contêm em potência nas
ideias que correspondem às formas vivas, e que portanto a natureza é uma
grande «ordem cósmica» dentro da qual cada uma dessas formas vivas
ocupa uma posição estanque e rígida, numa confirmação viva e perma­
nente da imobilidade e congruência inteligível desse «grande esquema das
coisas» que a tudo confere um sentido, dessa «Grande Cadeia do Ser» 1 1 5 .

1 13 Cfr. Wise, S.M., "How Nonhuman Animais . . . ", cit., 20; eiusdem, Rattling the
Cage, cit., 1 1.
1 14 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 4 1.
1 15 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 52-53 ; Wise, S.M., "How
Nonhuman Animais. . . ", cit., 23 ; Bekoff, Marc, "What is a «Scale of Life?»", Environ­
mental Values, 1 ( 1992), 253-256.
48 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

4 .b) O «Direito Natural» como «Programa da Natureza»


Se há momentos em que os filósofos conseguem libertar-se dos pre­
conceitos da sua época e questionar os seus pressupostos básicos, há outros
momentos em que eles podem tornar-se nos defensores mais sofisticados e
eloquentes dos preconceitos dominantes (como sucedeu com a justificação
aristotélica da escravatura), ou em veículos de difusão e sedimentação de
convicções imobilistas e refractárias ao progresso cultural, os mais eficien­
tes e conservadores paladinos da ordem estabelecida l l 6. Foi o que se verifi­
cou, na matéria em apreço, com a transmissão, pela via estóica, das convic­
ções teleologistas do aristotelismo ao mundo romano e ao mundo cristão.
É efectivamente com os estóicos que a ideia de «direito natural», com
a sua vertente moral e a sua autonomia face às determinações (falíveis e
violáveis) da lei positiva, faz a sua entrada e reforça a ideia de supra-orde­
nação cósmica, até a um extremo fatalista: o curso dos eventos passa a
tomar-se como a tradução, a face visível, de um determinismo universal,
recôndito e imanente, por força do qual o papel que é cometido a cada
organismo vivo continua a ser exclusivo e rigidamente demarcado - não
apenas vedando todas as comparações niveladoras e todas as transposições
de estatutos de cada classe e grupo, mas ainda legitimando a ideia de que
os seres inferiores estariam manifesta e fatalmente subordinados aos inte­
resses dos seres superiores, e isto não apenas no confronto entre espécies
mas também no seio das próprias relações intersubjectivas dentro da espé­
cie humana, na sua suposta dispersão por estamentos l l 7.
Nesta visão, que é basicamente intelectualista, o desprezo pelo esta­
tuto dos animais tornava-se consequência aparentemenJe inevitável -
fora do círculo pirronista, praticamente só Poifírio e Plutarco se notabili­
zarão como vozes discordantes l l 8, e mesmo assim antropocêntricas l l 9 - ;
e sublinhámos aparentemente porque muito haveria a dizer sobre o avanço

1 16 Cfr. Singer, Peter, Libertação Animal (trad. p/ Maria de Fátima St. Aubyn), Porto,
Via Óptima, 2000, 221.
117 Cfr. Wise, S.M., "How Nonhuman Animais . . . ", cit., 26-30.
1 18 Cfr . Plutarch, Moralia. XII- Bruta Animalia Ratione Uti. De Solertia Animalium
(trad. p/ Harold Chemiss & William C. Helmbold), Cambridge Mass., Harvard U.P., 1957
(Loeb, 406); Porphyre, De l'Abstinence (trad. p/ J. Bouffartigue & M. Patillon), Paris, «Les
Belles Lettres», 1979, III, 152ss ..
1 1 9 Cfr. Harrison, Peter, "The Virtues of Animais in Seventeenth-Century Thought",
Journal of the History of ldeas, 59 (1998), 464.
A Hora dos Direitos dos Animais 49

representado pela noção helénica de «oikeiosis» no sentido do aperfeiçoa­


mento do sentimento de pertença a uma comunidade natural, uma comu­
nidade mais vasta e harmónica do que aquela que liminarmente se poderia
conceber - com a sua conotação exclusivamente antropológica - a par�
tir das proclamações de fé cosmopolita I20.
É por vincada influência estóica que, muito antes dos cartesianos, e
sem sequer recorrer aos dualismos que serão tão caros a estes, já Fílon de
Alexandria sustentará que, sendo os animais desprovidos de razão e de
capacidade para reflectirem sobre as suas próprias opções, ele são absolu­
tamente determinados na sua conduta, cabendo-lhes na «Escala do Ser»
uma posição intermédia e subalterna face aos interesses dos seres racio­
nais: os animais «irracionais» seriam mecanismos perfeitos, puros instru­
mentos, admiravelmente dotados, sob uma perspectiva teleológica, para
servirem os fins transcendentes da humanidade 12 I .
E não há tese estóica mais lapidarmente exposta do que aquela que se
formula nas normas justinianeias: "O Direito natural é o que a natureza
inculca em todos os animais. De facto, o Direito não é próprio apenas do
género humano mas de todo o animal, quer tenha nascido no céu, quer na
terra, quer no mar" I 22 , Uma subaltemidade escrita na «ordem das coisas»,
no «cosmos bem-ordenado», pois, conquanto não uma escravidão irres­
trita, ou uma justificação para o espezinhamento ou para o uso da violên­
cia contra as demais espécies pela espécie colocada no apex do Direito
natural - reconhecendo-se que, tal como sucedia com os escravos, os
não-humanos gozavam de uma «liberdade natural» que só era restringida
pelas normas convencionais e discriminat9rias do ius gentium I23 , gerando-

120 Por entre uma vasta literatura, cfr. Engberg-Pedersen, Troeis, The Stoic Theory of
Oikeiosis. Moral Development and Social lnteraction in Early Stoic Philosophy, Aarhus,
Aarhus University Press, 1990; Sorabji, Richard, Animal Minds and Human Morals - The
Origins of the Western Debate, London, Duckworth, 1993.
12 1 Cfr. Philonis Alexandrini, De Animalibus a<Jversus Alexandrum (trad. p/ Abraham
Terian), Ann Arbor, Scholar Press, 1981, §§ 45 e 84. , · ·/ '
122 "lus naturale est, quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani
generis proprium, sed omnium animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium
quoque commune est" (D. 1.1.1.3, Ulpianus 1 inst.); "lus naturale est quod natura omnia
animalia docuit. nam ius istud non humani generis proprium est, sed omnium animalium,
quae in caelo, quae in terra, quae in mari nascuntur" (1 . 1.2.pr). Cfr. Cordeiro, A. Mene­
zes, Tratado ... /- li- Coisas, cit. , 2 17.
12 3 É possível multiplicar as expressões eloquentes dessa dualidade estóica que se
encontra nos textos justinianeus, mas limitemo-nos a algumas: "Manumissiones quoque
50 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

-se, por isso, uma tensão similar àquela que se registou entre o direito
natural que, em nome da «liberdade natural», proscrevia a escravatura, e o
direito das nações que, em nome de uma prática civilizacional expressiva
de interesses, a admitia; uma tensão que durou quase dois mil anos, até ao
triunfo do entendimento abolicionista do direito natural - mas que, como
observa Steven Wise, subsiste ainda no caso dos não-humanos I24 .
Um dos equívocos básicos da «Grande Cadeia do Ser» (da scala natu­
rae) foi ter-se tomado o «plenumformarum», não como um simples inventá­
rio apres-coup, mas como um predeterminado «programa da natureza» que
se consumaria nessa «plenitude actual», como comprovativo de uma predis­
posição - e não de uma predisposição qualquer, mas de uma vontade pro­
videncial omnipotente, antropomórtica na sua infinita bondade, tal como ela
passava a conceber-se com o triunfo generalizado dos monoteísmos I25/ I26.
Decisiva para a ideia de uma «Grande Cadeia do Ser» é, insista-se, a
convicção de que, subjazendo-lhe uma ordenação divina, nada deveras
existe por acaso, de que tudo serve uma teleologia, de que nenhuma poten­
cialidade fica por realizar-se num «princípio de plenitude» que é tanto o
efectivar de tudo o que é conceptualmente pensável como é o desenrolar
de um enredo significante - ainda que o significado só seja acessível no
fim dos tempos - , convertendo a ligação entre «mundo inteligível» e
«mundo sensível» num princípio de determinismo cósmico 127 ; e de que o

iuris gentium sunt. est autem manumissio de manu missio, id est datio. libertatis: nam
quamdiu quis in servitute est, · manui et potestati suppositus est, manumissus liberatur
potestate. quae res a iure gentium originem sumpsit, utpote cum iure naturali omnes liberi
nascerentur nec esset nota manumissio, cum servitus esset if1cognita: sed posteaquam iure
gentium servitus invasit, secutum est bene.ficium manumissionis. et cum uno naturali
nomine homines appellaremur, iure gentium tria genera esse coeperunt: liberi et his con­
trarium servi et tertium genus liberti, id est hi qui desierant esse servi" (D. 1.1.4, Ulpianus
1 inst.); "Servitus est constitutio iuris gentium, qua quis domínio alieno contra naturam
subicitur" (D. 1.5.4.1, Florus 9 inst.). "Servitus autem est constitutio iuris gentium, qua
quis domínio alieno contra naturam subicitur" (1. 1.3.2).
124 Cfr. Wise, S .M., Rattling the Cage, cit., 33.
125 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 244.
126 Sobre a inferiorização dos animais como corolário da «grande cadeia do ser», ver
também: Maybury-Lewis, David, Millennium: Tribal Wisdom and the Modem World, New
York, Viking, 1992, 36-37; Milner, Richard, The Encyclopedia of Evolution: Humanity 's
Search for lts Origins, New York, Henry Holt, 1990, 201.
1 21 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 52; Wise, S .M., Rattling the
Cage, cit., 11-16.
A Hora dos Direitos dos Animais 51

que é «inferior» só ganha sentido, e esgota esse sentido, «ao serviço»


daquilo que se tenha por superior, dentro da distribuição de papéis deter­
minada pelo Pantocrator: não admira que o aristotelismo tenha servido tão
perfeitamente as necessidades de hierarquização, demarcação e exaltação
axiológica das supervenientes religiões monoteístas, tenha funcionado tão
solidamente como seu suporte filosófico .

4:c) A «ilusão finalista» e a estratégia da . inferiorização


A tradição da «Cadeia do Ser» é também, como dissemos, a da sepa­
ração rígida entre espécies, a do estabelecimento de classes e famílias
estanques - castas que replicam, mesmo no seio de cada espécie, essa
nitidez classificativa na diversidade da criação. A classificação não se tem
por um exercício intelectual arbitrário, porque o realismo subjacente ao
intelectualismo aristotélico imputa à própria realidade essas categorias de
inteligibilidade: tudo pode classificar-se porque todas as classes possíveis
existem já, em consequência da aplicação do princípio da plenitude - nos
termos do qual se teria por inconcebível que uma espécie intermédia entre
duas espécies existentes, se fosse possível e conceptualmente pensável,
deixasse de existir, não havendo, pois, nenhum tertium genus aguardando
no limbo da. sua mera potencialidade, nenhum hiato na plenitude já reali­
zada, toda ela analisável em classe estanques, mas perfeitamente contí­
guas l28. · Em particular, a negação de qualquer «ser intermédio» entre o
homem e os outros animais visará também evitar as complicações que
resultariam da condição do hominídeo, se ele devesse ser tomado por um
«híbrido quase-humano» - razão pela qual mesmo os pensadores cristãos
que mais concessões fizeram ao evolucionismo tiveram que postular que
os hominídeos pré-históricos eram já detentores de uma capacidade inte­
lectual única entre as espécies, eram plenamente humanos, por um «salto
qualitativo» de ingresso na espécieI29/130. , ' ,

12 8 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 58.


12 9 Cfr. Teilhard de Chardin, Pierre, L'Apparition de l'Homme, Paris, Seuil, 1956, 136
130 A taxonomia moderna designa por «hominídeos» certas espécies de primatas que
começaram a autonomizar-se anatomicamente há aproximadamente 20 milhões de anos -
cfr. De Waal, Frans, Good Natured: The Origins of Right and Wrong in Humans and Other
Animais, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1996, 4.
52 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

Outro corolário do princípio da plenitude é o de que um mundo racio­


nal deve exibir todos os graus de imperfeição, visto eles serem reflexos da
especificação de diferenças conceptuais entre criaturas e espécies - e é
nesse ponto que aquele princípio se casa com a tradição da «Cadeia do
Ser», mormente com a ideia de que existe uma «escala de perfeição» que
é ilustrada com a diversidade das formas de vida, cada uma delas repre­
sentando, na sua essência, um determinado grau de imperfeição, de afas­
tamento da condição de criatura eleita pelo Criador; e assim, tal como
nenhuma possibilidade pensável deixa de realizar-se, também nenhuma
imperfeição concebível deixa de se manifestar na «actualidade» das mul­
tiformes manifestações da vida 1 3 1 / 1 3 2 .
O grau máximo de perfeição seria representado pela inteligência
humana, o que conferia à nossa espécie não apenas o seu lugar proemi­
nente e incomensurável, mas ainda lhe atribuía a possibilidade de, nas
categorias universais em que se decompunha, fosse a própria realidade
observada (como defendiam os realistas) fosse o entendimento do obser­
vador (como sustentavam os nominalistas), perceber os factores de infe­
riorização «ontológica» das espécies não humanas - São Basílio Magno,
por exemplo, sustentando que os animais não eram verdadeiramente inte­
ligentes, mas que compensavam essa deficiência com um excesso de sen­
sibilidade, e Santo Ambrósio seguindo neste ponto tanto São Basílio
Magno como Fílon de Alexandria 1 33 -.
Bem poderá João de Salisbúria, já no «vôo crepuscular» da escolás­
tica, denunciar a querela dos universais como "logomaquia estéril" e apelar
para uma certa moderação céptica, que pudesse resultar num abranda­
mento da exaltação antropocêntrica com a particularidade e a superiori­
dade da razão humana 1 34 . Tarde de mais: a tradição da «Grande Cadeia do

13 1 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 65ss..


132 Por isso, insistamos, é que é tão perturbadora, ao nível dos princípios, a busca de
«elos perdidos» na evolução das espécies, através da «paleozoologia», do estudo de ani­
mais desaparecidos, seja por vestígios, seja por «genética regressiva» - cfr. Delort,
Robert, "La Zoohistorie", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 28 1.
133 Basile de Césarée, Homélies sur l'Hexaéméron (trad. p/ Stanislas Giet), Paris,
Éditions du Cerf, 1949, 501; Sancti Ambrosi, Hexaemeron Libri Sex De Opere Sexti Diei,
in Opera Omnia l/l (J.-P. Migne, ed., Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, 14 1),
Paris, s.n., 1845.
134 Cfr. Gilson, Étienne, History of Christian Philosophy in the Middle Ages, New
York, Random House, 1955, 150- 153; Ioannis Saresberiensis, Polycraticus, in Opera
A Hora dos Direitos dos Animais 53

Ser» tinha-se já envolvido com o contemptus mundi, uma tendência mís­


tica para virar costas ao mundo e concebê-lo como uma espécie de não­
entidade, um platónico mundo de sombras de que deveríamos resgatar-nos
por ascensão da «Escala do Ser» - como eloquentemente se ilustrará
ainda, séculos volvidos, na obra de São Roberto Bellarmino, De Ascen­
sione Mentis in Deum per Scalas Rerum Creatarum ( 1 6 1 5) 13 5 _ Como
comenta Peter Green a propósito da astronomia helenística, "combinados
um com o outro, Heráclides e os epiciclos de Biparco asseguraram que o
mundo ficaria entregue, por quase dois milénios, ao ascendente do ani­
mismo e do determinismo cósmico dos Estóicos, à medieval escala do ser,
e ao gozo fatalístico-preditivo da astrologia"l 36.
As concepções teleológica e hierárquica da natureza e das relações
sociais já levaram, ao longo da história - e desgraçadamente levam ainda
- , a diversas afirmações que não se confinam ao estatuto dos não-huma­
nos, e que hoje se revelam patentemente absurdas: a «ilusão finalista» de
que as marés existem para propiciar a entrada e saída dos navios dos por­
tos , de que os papagaios e os touros só existem para nosso entretenimento,
de que as árvores só existem para nos proporcionar sombra e frutos , de que
os suínos só existem para nossa alimentação e os cavalos para nosso trans­
porte, de que algumas raças humanas são inferiores e estão predispostas ao
serviço das outras , de que as mulheres existem para servir os homens ou
para agradar-lhes 1 37 . Proposições teleologistas que não se distinguem das
classificações propostas por Aristóteles, as quais, ao admitirem uma escala
de participação na «alma racional» a partir de uma base de teleologismo
antropocêntrico e androcêntrico, subalternizavam a condição das mulhe­
res e tomavam concebível a condição do «escravo natural» , de alguém
naturalmente predisposto à servidão, dentro da própria espécie humana 13 8.
Esse teleologismo antropocêntrico sempre esbarrou com a simples
constatação da ostensiva inadaptação de certos animais às suas putativas

Omnia VII (J.-P. Migne, ed., Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, 199), Paris, s.n.,
1900, cols. 635ss..
135 Cfr. Lovejoy, A.0., The Great Chain of Being, cit., 90-91.
136 Green, Peter, Alexander to Actium. The Historical Evolution of the Hellenistic
Age, Berkeley, University of Califomia Press, 1990, 462.
137 Essa «ilusão finalista» pode ser entendida como uma perversa decorrência da
«domesticação». Cfr. Baratay, Êric, "L'Anthropocentrisme du Christianisme Occidental",
in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions . .., cit., 1442.
1 3 8 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 9, 12.
54 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

finalidades instrumentais: se os peixes existem para fornecer alimento aos


humanos, porque é que não crescem nas árvores, porque é que se abrigam
em locais tão remotos e inóspitos para o homem? E porquê animais apa­
rentemente inúteis, e até animais agressivos e perigosos para o homem?
Porquê dotar escravos, «raças inferiores», mulheres, da mesma inteligên­
cia humana que lhe permitiria atitudes de rebelião? O teleologismo susci­
tava até uma questão adicional particularmente espinhosa: porque é que o
homem ficara dependente de seres «inferiores» para a sua sobrevivência?
Entre as respostas que foram sendo dadas em socorro da «Escala do
Ser», avultam as de que:
- a expulsão do paraíso teria feito de alguns animais instrumentos
de mortificação da humanidade (uma visão perfilhada por Santo
Agostinho);
- a diversidade dos animais seria uma representação simbólica pre­
disposta à edificação moral da humanidade, cada animal incorpo­
rando motivos para a reflexão humana 1 39 , cada animal demons­
trando uma perfeita harmonia com as determinações da Providência
- mesmo que, por uma teleologia de desígnios insondáveis, a con­
duta determinista dos animais se afigurasse inexplicável ou desar­
mónica - , que só o homem teria a arrogância de pretender desa­
fiar (uma variante da visão augustiniana l40);
- sendo a diversidade de espécies uma demonstração do poder da
Providência e um reflexo do princípio da plenitude na «Cadel.a do
Ser», seriam possíveis inferências analógicas entre as espécies
sem risco de confusão de planos - e entre essas infe.rências esta­
ria a de que os não-humanos gozariam tamõém de uma «liberdade
natural» que os faria desviarem-se da sobredeterminação provi­
dencial, tornando-se ocasionalmente inúteis, rebeldes ou agressi­
vos (o que aparece sugerido em São Tomás de Aquino l4 l ).

1 39 Pense-se nos desígnios de mortificação da soberba humana que se acoitam em


textos como o Testamento de um Burro (do século XIII), com origem no célebre Testa­
mentum Porcelli do século IV. Cfr. Bakhtine, Mikhai1, L'Oeuvre de François Rabelais et
la Culture Populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance (trad . p/ Andrée Robe!), Paris,
Gallimard, 1970, 348.
140 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animals... ", cit., 464-465.
14 1 Na Summa Theologiae, Prima Secundae, 40, 3.
'
"'
A Hora dos Direitos dos Animais 55

Nessa mesma linha, São Tomás de Aquino admitirá que os não­


humanos têm genuínas capacidades de raciocínio e são dotados de uma
inteligência específica, indo nesse ponto muito além do que Aristóteles
alguma vez admitira ou Descartes admitirá 142. Todavia, quando, muito
antes de Kant, o mesmo São Tomás de Aquino disseca o argumento dos
«deveres indirectos», dos efeitos humanizadores da abstenção de cruel­
dade para com os animais, esforçar-se-á habilmente por desligar esse argu­
mento de qualquer linha de raciocínio que promovesse um «direito à vida»
entre os não-humanos. Na Summa Theologiae 1 43 , analisando a tese de
Santo Agostinho de que aos animais irracionais não se aplica o manda­
mento do «não matarás» porque eles não pertencem à espécie humanaI44,
o Doctor Angelicus dá o seu assentimento, invocando a «ordem das coi­
sas» para sustentar que aquilo que é mais imperfeito deve ser colocado ao
serviço daquilo que é mais perfeito, defendendo que os animais, sendo
meros sujeitos mecânicos de leis causais, estão «naturalmente escraviza­
dos» aos interesses do homem.
Também na Summa Contra Gentiles São Tomás de Aquino, reto­
mando um entendimento já consagrado em OrígenesI45 e em Santo Agos­
tinho 146, se afadiga na demonstração de que a Providência Divina deu pre­
ferência às criaturas racionais sobre as demais, dado que aquelas
sobressaem na «perfeição da sua natureza» e na «excelência dos seus fins».
As criaturas racionais são causa sui, as demais são geradas como escravas
das criaturas livres, como se demonstraria através das dotações naturais
com que são providas pelo Criador. E daí a ilação de que seria de refutar a
opinião daqueles que julgavam ser pecado matar animais irracionaisI 47/I48.

142 Cfr. Summa Theologiae, Prima Secundae, Q. 13, 2/3, "Utrium Electio Conveniat
Brutis Animalibus" ; Aristotle, History of Animais. Books 7-10 (trad. p/ D.M. Balme), Cam­
bridge Mass., Harvard U.P., 1 99 1 , VIII-IX, 558a20, 608a l 7, 6 10b22, 6 1 2a l (Loeb, 439);
Sorabji, R., Animal Minds . . ., cit., 12-20. ,
143 Summa Theologiae, Secunda Secundae Partii; Qu'aéstio 64, art. 1 , ad. 3.
144 Civitas Dei, I, 20.
145 Contra Celsum, IV, 54.
146 Confessiones, 13. 23. 33. Cfr. Muratova, Xénia, "Adam Donne Leurs Noms Aux
Animaux", Studi Medievali, 1 8 ( 1 977), 368-373.
147 Summa Contra Gentiles, Livro 3b, Cap. CXII. Cfr. Warren, Mary Anne, Moral
Status. Obligations to Persons and Other Living Things, Oxford, Clarendon, 1 997, passim.
14 8 Sobre a posição de S. Tomás de Aquino acerca do estatuto dos não-humanos, cfr.
ainda: Macintyre, A., Dependent Rational Animais . . ., cit., 53-55.
56 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

Retenhamos também, dos argumentos teleológicos, a exploração até


ao limite da ideia de uso figurativo e ornamental dos animais, do «etolo­
gismo» ou «efeito-fábula» dos animais - o já referido recurso caricatural,
hoje repristinado através do uso intensivo de animais na literatura, nos
«cartoons»I49 (mas também no «gorila abstracto» dos jardins zoológicos)
- , que conduziu à redução do interesse pela base naturalista, «fisioló­
gica», das paixões dos animais, em favor da sua reconsideração simbólica,
como se de cifras, de motivos alegóricos de edificação, se tratasse -
como se essas paixões não fossem tanto efeitos externos de um processo
causal, mas antes sinais providenciais para nosso uso, uma galeria panorâ­
mica de condutas, virtudes e vícios estilizados e associados simbolica­
mente a cada tipo de animal, adornos colocados pela Providência no cami­
nho da realização individual dos membros da espécie humana, uma
colecção de caracteres simplificados, de aproximações fragmentárias a
virtudes alegadamente só descortináveis, no seu conjunto completo, na sua
máxima perfeição, no ser humano i so.

4 .d) O assalto céptico à «Cadeia do Ser»


É com as guerras de religião e com o declínio da «respublica chris­
tiana» que algumas vozes dissonantes vão fazer-se ouvir contra o monoli­
tismo da «Cadeia do Ser» e contra os seus corolários «especistas».
Foi Michel de Montaigne que primeiro ateou o fogo da discussão em
torno do estatuto dos animais, ao defender a superior moralidade e racio­
nalidade das espécies não-humanas, e foi Descart�s que ajudou a perpetuar
a discussão sustentando a tese oposta, a da falta�de racionalidade, de mora­
lidade e até de consciência nos não-humanosI SI .
A estratégia iconoclasta de Montaigne e dos seus seguidores, visando
arredar a humanidade do seu «pedestal antropocêntrico», é nítida - e

1 49 Sobre a iconografia «mediática» dos animais, basta pensarmos nas inúmeras


adaptações dos contos de Grimm e de Perrault, O Livro da Selva de Kipling, o João Capelo
Gaivota de Richard Bach, A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson de Selma Lagerlõf,
White Fang de Jack London, os animais da banda desenhada, do cinema, da televisão -
cfr. Rossant, Lyonel & Valérie Villemin, "L' Animal et !e Développement de l'Enfant", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 1320-1321.
1 5 0 Harrison, P., "The Virtues of Animais. . . ", cit., 468, 470.
1 5 1 lbid., 463.
A Hora dos Direitos dos Animais 57

pode até diminuir a genuinidade da motivação teriofílica, trazendo para


primeiro plano o estratagema retórico da crítica oblíqua, que exalta as vir­
tudes do que nos está distante como forma de pôr em causa aquilo que nos
é mais próximo e esteja mais arreigado e invisível (e por isso não-anali­
sado) nos nossos hábitos 1 52.
Na sua "Apologie de Raimond Sebond", de 1 5 80, Montaigne não se
limita a reiterar ou a compilar a tradição etnológica, como o faziam os Bes­
tiari medievais (e depois Conrad Gessner e Ulisse Aldrovandi 1 5 3), ou
mesmo a tradição lógica e epistemológico-teriofílica que remontava a Crí­
sipo e a Plutarco, resolvendo colocar maior ênfase na vertente ética da
consideração pelas características dos animais - naquilo que essa consi­
deração permite descortinar nos próprios animais, e naquilo que essa
mesma consideração pode determinar como máximas da nossa conduta -.
No fundo, Montaigne ataca obliquamente um dos pilares da humani­
tas clássica, o praestare bestiis - um pilar que até então apenas fora posto
em causa pelo cepticismo pirronista, com os seus ataques à pretensa vali­
dade absoluta, e incomensurabilidade, das características intelectuais da
espécie humana 1 5 4, e se mantivera incólume com a propensão medieval
para a redução dos animais a motivos ornamentais e de edificação moral
- bloqueando a sua consideração como contrapontos à «natureza
humana», ou como vislumbres da mais recôndita animalidade humana 1 55 .
Com efeito, enquanto que para os estóicos os animais não-humanos
deviam integrar-se num «contínuo» da Criação, na «Cadeia do Ser», numa
posição necessariamente inferior e incomparável à dos humanos, para os
cépticos não há qualquer drama em admitir-se a racionalidade não-humana
e concomitantemente a paridade entre espécies, dado até o estatuto pro­
blemático que se atribui à própria racionalidade humana 1 5 6. Segundo o
entendimento céptico, para os animais não existe sequer a angústia de ten-

152 Cfr. Budiansky, Stephen, /f a Lion Could 'Fqlk...4-TJimal Intelligence and the Evo­
lution of Consciousness, New York, Free Press, 1998; xxiii.
153 Cfr. Bodson, Liliane, "L'Histoire des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions . . ., cit., 238.
154 Friedrich, Hugo, Montaigne (trad. p/ Dawn Eng), Berkeley, University of Cali­
fomia Press, 1991, 121 (11949).
155 Cfr. Foucault, Michel, Histoire de la Folie à l 'Âge Classique, Paris, Gallimard,
1976, 31.
156 Já que "da «natureza racional» não se infere forçosamente a ... dignidade ética!"
- Bronze, F.J., Lições . . ., cit., 450n l 06.
58 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

tarem conhecer ou explicar o mundo para viverem nele, e por isso é-lhes
mais imediatamente acessível a integração na natureza e uma vida harmo­
niosa e pacífica. Dito de outro modo, e com uma tonalidade mais antropo­
cêntrica, para os cépticos não existe nenhuma ligação necessária ou
demonstrável entre a realidade física e os estados mentais, nenhuma
garantia metafísica, ou anima mundi, que assegure a realidade e a fiabili­
dade desse contacto, pelo que para o homem esse desejo de conhecimento
como condicionamento da acção pode permanecer indefinidamente como
um conatus frustrado 157 .
Montaigne adita a esses precursores pirronistas o quantum satis de
teriofilia para encontrar a pedra angular, a «petra scandali», de um «des­
centramento ético» que se abre à consideração da paridade de condições
naturais de todas as espécies - uma espécie de antecâmara do darwi­
nismo: "A Natureza acolheu universalmente todas as criaturas; e não há
nenhuma que ela não tenha fornecido plenamente de todos os meios
necessários à conservação do seu ser" 158, sustentará, numa hábil variante
do princípio da plenitude; não sendo por acaso que, de todas as teses de
Montaigne, será esta da paridade com os animais, dadas as suas corrosivas
incidências nos fundamentos da «Cadeia do Ser», que causará maior repú­
dio da parte de teocratas como BossuetI 59/I 60.
No fundo, trata-se de um regresso a Plutarco: este tinha sustentado,
nos Moralia, os argumentos pitagóricos favoráveis à existência de um
espírito em todas as formas de vida, e é só o preconceito teológico cristão
relativo à dignitas, depois· prolongado pelo neoplatonismo de Pico della
Mirandola, que vedou a evolução dessa ideia, ao menos até ao ressurgi­
mento de correntes cépticas e à iniciativa de MontaigneI 6 l

1 57 Cfr. Floridi, Luciano, "Scepticism and Animal Rationality", Archiv filr . Ges­
chichte der Philosophie, 79 (1997), 45ss..
1 58 Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 96.
1 59 Cfr. Bossuet, Jacques Bénigne, Traité de la Concupiscence, Paris, Éditions F.
Roches, 1930, 58-59.
160 E no entanto, é difícil de descortinar em que é que a passagem citada de Mon­
taigne se distingue desta outra (de sabor panteísta) de São João da Cruz: "De todas as cria­
turas - não somente as superiores, mas também as inferiores, em conformidade com o
que cada uma recebeu em si mesma de Deus - se eleva uma voz em testemunho daquilo
que Deus é; cada uma à sua maneira exalta Deus, dado que Deus nelas habita" (cit. in
Hyland, J.R., God 's Covenant with Animais. A Biblical Basis for the Humane Treatment of
All Creatures, New York, Lantern Books, 2000, xii).
161 Cfr. Friedrich, H., Montaigne, cit., 1 21-122.
A Hora dos Direitos dos Animais 59

Pierre Gassendi foi também um adepto moderado da teriofilia, ou ao


menos, a par de Marin Mersenne e de Leibniz, um oponente da forma
extrema do mecanicismo cartesiano - o que em parte poderá atribuir-se ao
facto de a relativa secularização do antropocentrismo nos séculos XVII e
seguintes impelir ao estudo empírico da natureza e à percepção de diferen­
ças efectivas entre espécies, mais do que o fazia o seu antecessor, mais cen­
trado em puros preconceitos e dedutivismos assentes na exegese bíblica 162.
Mais notórios teriofilistas serão, no século XVII, Pierre Charron e
Marin Cureau de la Chambre, perpetuando a mensagem de Montaigne -
e por intermédio deste as de Plutarco e de Raymond Sebond - , terçando
armas contra os cartesianos, e encontrando nos neo-aristotélicos - que
apesar de tudo admitiam nos não-humanos uma «alma animal», embora
apenas uma «alma sensível», ficando reservada para os homens a «alma
racional» - aliados ocasionais, ainda que relutantes I 63/ I 64. Bernard de
Fontenelle sustentou opiniões teriofílicas e anti-antropocêntricas a partir
da sua hipótese sobre a pluralidade dos mundos, a exemplo, aliás, do que
já sucedera com Giordano Bruno.
Já Espinoza foi essencialmente anti-teriofílico, ao mesmo tempo que
se revelava anti-antropocêntrico 1 65 . Espinoza adopta até uma posição mais
restritiva do que aquela que associaremos a Descartes, porque . supera a
questão do sofrimento animal com a simples alegação de que a diferença
fáctica relativamente à espécie humana justifica toda e qualquer instru­
mentalização às necessidades e fins dos humanos I 66 . Christiaan Huygens,

1 62 Cfr. Boas, G., The Happy Beast ..., cit., 91, 132-135, 141-142; Harrison, P., "Ani­
mal Souls. . . ", cit ., 520; Kulstad, Mark, "Leibniz, Animais, and Apperception", Studia
Leibnitiana, l 3 (1981), 25-60; Miles, Murray, "Leibniz on Apperception and Animal
Souls", Dialogue, 33 (1994), 701-724; Rosenfield, Leonora Cohen, From Beast-Machine
to Man-Machine. Animal Soul in French Letters from Descartes to La Mettrie, New York,
Octagon Books, 1968, 10-13, 25, 110-114, 175-176, 188, 204, 271-272 ( 11940).
163 Harrison, P., "The Virtues of Animais... ", eit., 4)1 .
1 64 Sobre a teriofilia de Pierre Charron, cfr. ainda: Bo�s, G., The Happy Beast ..., cit.,
56-61.
165 Cfr. Lloyd, Genevieve, "Spinoza's Environmental Ethics", Inquiry, 23 (1980),
293-311; Martinengo-Cesaresco, Evelyn, The Place of Animais in Human Thought, Lon­
don, T. Fisher Unwin, 1909, 353; Naess, Ame, "Environmental Ethics and Spinoza's Ethics
and Comments on Genevieve Lloyd's Article", lnquiry, 23 (1980), 313-325; Rosenfield,
L.C., From Beast-Machine ..., cit., 69-70, 126-127.
166 Berman, David, "Spinoza's Spiders, Schopenhauer's Dogs", Philosophical Stu­
dies, 29 (1982/83), 202-209; Macintosh, J.J., "Animais, Morality and Robert Boyle", Dia-
60 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

por seu lado, terá sido representante de uma sensibilidade teriofílica mode­
rada, capaz de reconhecer sensibilidade, e um embrião de racionalidade,
aos animais, preservando contudo a noção de superioridade da espécie
humana 1 67.
Entretanto, graças em especial à militância do anatomista Jean Rio­
lan II ( 1 5 80- 1 657), difunde-se progressivamente a oposição à vivissecção,
que se sustentou ser não apenas cruel como cientificamente ilegítima,
dadas as diferenças anatómicas entre a espécie humana e as demais - o
que levou alguns a qualificar os praticantes da vivissecção como carnicei­
ros, capazes de virem a legitimar, com a sua conduta, a própria vivissec­
ção humanal 68. Multiplicam-se, nos séculos XVII e XVIII, os estudos que
versam a experimentação animal e a vivissecção, quase todos em tom vee­
mentemente condenatóriol 69.
A confluência da tradição primitivista com as tendências naturalistas
da estética e da ética, por um lado, e com o empirismo epistemológico, por
outro, será característica da «revolução cultural» do iluminismo. Um dos
fascínios que resultam dessa confluência foi o do estudo da etologia como
forma de captação do que há de «natural» - ou seja, de «animal» - no
próprio comportamento dos humanosl 70, procurando a explicação da
humanidade através da descrição da animalidadel 7 1 . Não se tratava agora

togue, 35 (1996), 443-444; Oster, Malcolm R., "The «Beam of Diuinity»: Animal Suffe­
ring in the Early Thought of Robert Boyle", British Journal for the History of Science, 22
(1989), 151-179.
167 Cfr. Wolloch, Nathaniel, "Christiaan Huygens's Attitude toward Animais", Jour­
nal of the History of ldeas, 61 (2000), 420.
168 Cfr. Maehle, A.-H., "Literary Responses . . . ", cit., 31, 34-35; Maehle, Andreas­
Holger & Ulrich Trõhler, "Animal Experimentation from Ántiquity to the End of the Eigh­
teenth Century: Attitudes and Arguments", in Rupke, Nicolaas A. (org.), Vivisection in His­
torical Perspective, London, Croom Helm, 1987, 21-23.
169 Cfr. Guerrini, A., "The Ethics of Animal Experimentation . . . ", cit., 391-407; Bra­
die, Michael, "The Moral Status of Animais in Eighteenth-Century British Philosophy", in
Maienschein, Jane & Michael Ruse (orgs.), Biology and the Foundations of Ethics, Cam­
bridge, Cambridge University Press, 1999, 32-51; Daly, Macdonald, "Vivisection in Eigh­
teenth-Century Britain", British Journal of Eighteenth-Century Studies, 12/1 (1989),
57-67; Maehle, Andreas-Holger, Kritik und Verteidigung des Tierversuchs: Die Anfiinge
der Diskussion im 1 7. und 18. Jahrhundert, Stuttgart, Franz Steiner, 1992.
11 0 Cfr. Vauclair, Jacques, "Deux Approches pour Étudier la Cognition Animale: Pro­
gramme Généraliste et Programme Écologique", in Cyrulnik, B. (org .), Si les Lions ..., cit., 349.
11 1 Cfr. Armengaud, Françoise, "Au Titre du Sacrifice: L'Exploitation Économique,
Symbolique et ldéologique des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 883.
'
�.
A Hora dos Direitos dos Animais 61

tanto de reclamar o tratamento «humano» (humanitário) dos animais,


como de explorar um comparativismo que tinha de prescindir de trunca­
gens taxinómicas, se não tinha mesmo que conduzir à convicção sobre a
arbitrariedade da taxinomia, como resultou da notória insistência de James
Burnett, Lord Monboddo, quanto à genuína natureza humana dos orango­
tangos 1 72.
Sem qualquer desígnio valorativo manifesto, limitando-se à fria apa­
rência de simples constatações de facto, tanto Jean-Jacques Rousseau, no
seu Discours ( 1 753), como Monboddo, no seu Origin and Progress of
La,nguages ( 1 770), sustentarão a ideia de pertença de homens e primatas
superiores a uma mesma espécie, sendo a linguagem humana um traço dis­
tintivo menor, um artifício que alguns membros dessa grande espécie
teriam desenvolvido 1 7 3. Um mesmo «contínuo natural» é subentendido no
empirismo céptico e anti-intelectualista de David Hume, que argumentará
que os animais, tal como as pessoas, não se apercebem nunca de quaisquer
nexos reais entre objectos, e que a inteligência «animal», tal como a
humana, resulta apenas da experiência e do hábito, não havendo, afinal,
qualquer solução de continuidade entre as formas de expressão de inteli­
gência em todos os seres vivos: "a razão não é senão um instinto maravi­
lhoso e ininteligível nas nossas almas" I 74!I75.
A causa teriofílica setecentista será ainda reforçada por duas obras de
referência, de Guillaume Bougeant 1 7 6 - que tem de original e contun­
dente a sugestão irónica de que, se se voltasse a conceber os animais, mas
agora como criações demoníacas, o sofrimento que lhes fosse infligido

172 Cfr. a Introdução em Garrett, A.V. (org.), Animal Rights and Souls .. ., cit., I, vi.
1 73 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 235; Wokler, Robert, "Per­
fectible Apes in Decadent Cultures: Rousseau's Anthopology Revisited", Daedalus, 107
( 1978), 107- 134.
174 Cfr. Hume, D., A Treatise. . ., cit., 178- 179.
1 75 Também tem sido notado que uma fonte de· pe�anente confusão é o facto de
usarmos a mesma terminologia, indiferentemente, para designarmos fenómenos que ocor­
rem em espécies e contextos muito diferentes - e que por isso pode gerar a ilusão de con­
tiguidade ou de continuidade entre fenómenos que, apesar de merecerem uma só desig­
nação («inteligência», por exemplo) são na realidade incomensuráveis. Cfr. Verdoux,
Hélene, "Modeles Animaux et Psychopatologie", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions...,
cit., 504.
1 7 6 Bougeant, Guillaume Hyacinthe, Amusement Philosophique sur le Langage des
Bêtes, Geneve, Droz, 1954 ( 1 1739).
62 A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies

não afectaria a bondade divina - , e de David Boullierl 77 , que ambos serão


utilizados como base do artigo "Âme des Bêtes", da Encyclopédie 1 7 8.
Mas nem tudo, entre as obras dos iluministas mais proeminentes, é
expressão de vanguardismo nesta causa. Alexander Pape, por exemplo,
representará um curioso sincretismo setecentista entre adesão às noções da
«Grande Cadeia do Ser» e formulação de proposições teriofílicas, como
resulta do contraste entre o seu artigo "Against Barbarity to Animais", no
Guardian de 1 7 1 3, e o An Essay on Man de 1 734 179. E Immanuel Kant,
pesem embora os seus sentimentos teriofílicos, não se furtará a empregar
como premissa, na Crítica da Razão Pura, o conceito de «Cadeia Contí­
nua das Criaturas» Iso.
"Mas a história da ideia da Cadeia do Ser (...) é a história de um
falhanço"l 8 1 : o darwinismo entronca já nas expressões do iluminismo
declinante, e em larga medida receberá deste último o impulso decisivo
para se converter numa mundivisão inteiramente mecanicista e seculari­
zada - na qual as ideias de pré-ordenação, e mais ainda as de teleologia ou
de hierarquização necessária, deixam de fazer sentido fora do estreito cír­
culo dos juízos de valor, da intencionalidade axiológica aposta aos factos.
Quererá isso dizer que a demarcação entre espécies assente na
«Grande Cadeia do Ser» é coisa do passado - entre nós, que somos mani­
festamente herdeiros culturais do iluminismo e começamos já a assimilar
alguns dos corolários do naturalismo darwinista?
- Não: ainda hoje a «concepção personalista do Direito» ass�nta em
larga medida no atavismo da «Cadeia do Ser», buscando nesse
velho avatar teocrático um fundamento para que, por uma ques-

1 77 Boullier, David Renaud, Essai Philosophique sur l 'Âme des Bêtes, Précédé du
Traité des Vrais Príncipes qui Servent de Fondement à la Certitude Morale, Paris, Fayard,
1985 ( 1 1728, 2 1737).
1 7 8 Para uma resposta britânica a Bougeant, que denota uma muito mais aguda sen­
sibilidade ao estatuto moral dos animais, cfr. Hildrop, John, Free Thoughts upon the Brute­
Creation. Or, An Examination of Father Bougeant 's Philosophical Amus.ement &e. ln Two
Letters to a Lady, London, R. Minors, 1742/3 (agora reimpresso em Garrett, A.V. (org.),
Animal Rights and Souls . . ., cit., 1).
1 79 Cfr. Nicolson, Marjorie & G.S. Rousseau, «This Long Disease, My Life» . Ale­
xander Pope and the Sciences, Princeton NJ, Princeton University Press, 1968, 87-109.
1 80 Kant, 1., Kritik der reinen Vernunft, zweite Auflage 1 787, AK, III, Berlin, Georg
Reimer, 19 11, 44 1 [A668 / B696].
1 8 1 Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 329.
,.\
A Hora dos Direitos dos Animais 63

tão de «hierarquia», se obste a que os deveres dos seres humanos


para com os animais venham a consubstanciar-se em verdadeiros
direitos dos animais I B2.
- Não: essa concepção «personalista» continua, monotonicamente,
a entrincheirar-se numa convicção difusa, «metafísica», relativa à
condição «sobrenatural» do homem, sugerindo que as relações e
valores das próprias sociedades humanas podem ser isoladas e
desenquadradas de qualquer contexto natural, são uma espécie de
«Olimpo glorificado», deslocalizado (utópico), de geração espon­
tânea e auto-sustentado i 8 3.
- Não: no plano da axiologia jurídica, sempre tão refractária a novi­
dades, os valores do «personalismo» são assumidamente os da
arrogância especista, os da demarcação exclusivista e conserva­
dora - valores que ecoam mesmo nas palavras de eminentes
juristas que abraçaram a causa do bem-estar animal: "Cristalino é
que, com base numa concepção filosófica do Direito de tipo per­
sonalista, as normas jurídicas e todas as actividades que se exer­
cem à sua sombra visam sempre colocar a pessoa humana no
cume dos respectivos objectivos, e nunca secundarizá-la ou
sobrevalorizar outras realidades que devem estar inferiormente
localizadas" 1 84 .

182 Cfr. Wetlesen, Jon, "Animal Rights or Human Duties?", Archiv für Rechts- und
Sozialphilosophie, Beiheft 61 (1994), 163-173.
18 3 Cfr. Passmore, John, "Philosophy and Ecology", in Brinkmann, Klaus (org.),
Ethics: The Proceedings of the Twentieth World Congress of Philosophy, Bowling Green
OH, Philosophy Documentation Center, 1999, I, 141-150.
184 Gouveia, Jorge Bacelar, "A Prática de Tiro aos Pombos, a Nova Lei de Protecção
dos Animais e a Constituição Portuguesa", Revista Jurídica do Urbanismo e Ambiente, 13
(2000), 241 (cfr. a bibliografia aí indicada).
5. A Tradição Religiosa

" E assim dei-me conta de que Deus permite que o mundo continue
no curso do pecado para poder pôr à prova a humanidade, e para
que os próprios homens verifiquem que não são melhores do que os
animais. Pois tanto estes como aqueles respiram o mesmo ar, todos
têm o mesmo destino, todos morrem. A humanidade não tem reais
vantagens sobre os animais, e tudo é efémero. Todos vão para o
mesmo lugar, todos foram feitos do pó, e todos para o pó hão-de
voltar" - Eclesiastes , 3 : 1 8-20 1 85 .
"Pas de bête que n 'ait un reflet d 'infini; / Pas de prunelle abjecte
et vile qui ne touche / L'éclair d 'en haut, parfois tendre et parfois
faro uche; / Pas de monstre chétif, louche, impur, chassieux, / Qui
n 'ait l 'immensité des astres dans les yeux." - Victor Hugo 1 86 .

5 .a) A ambiguidade cristã sobre a condição animal


Há uma razão particularmente profunda: que subjaz à persistência cul­
tural do preconceito «especista», e essa é a adição de motivos religiosos a
esse preconceito. Como sugerimos já, de acordo com a tradição judaico­
cristã o homem é tomado como um «microcosmos», uma espécie de epí­
tome da variedade das espécies, uma síntese das qualidades exemplar­
mente ilustradas nos animais não-humanos -:;;- tomando-se tal ideia como
princípio hermenêutico, tropológico, de interpretação das Escrituras, o que
permitia a São Gregório sustentar que a evangelização "a todas as criatu­
ras" , expressa no Evangelho de São Marcos [ 1 6: 1 5], afinal designava ape-

1 8 5 Sobre o passo subsequente -Eclesiastes, 3 : 21, veja-se novamente as maravilho­


sas reflexões de Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse Grande Escultor, cit., 118-124.
1 8 6 Hugo, Victor, "La Légende des Siecles", in La Légende des Siecles - La Fin de
Satan - Dieu (Jacques Truchet, ed.), Paris, Gallimard - Pléiade, 1950, 655.
66 A Tradição Religiosa

nas os homens como destinatários, e não as demais espécies (um entendi­


mento restritivo que só será posto em crise com São Francisco de Assis).
E no entanto, o uso retórico da dualidade «micro- / macrocosmos»
permitia até sugerir que, tal como os animais se tinham revoltado contra o
domínio humano após a expulsão do Éden, também as paixões humanas se
revoltavam contra uma razão ferida e deficiente; pelo que, sendo o
homem, de certo modo, a síntese de todos os animais, o conhecimento de
si próprio reclamaria o conhecimento dos outros animais, e através deles a
revelação da sua animalidade - uma animalidade simbólica, por um lado,
das máculas e deficiências da razão, por sua vez representada no destino
subalterno e passivo dos não-humanos; e por outro lado, uma animalidade
simbólica também de uma natureza edénica, uma animalidade mais repre­
sentativa, até na sua passividade determinista, dos desígnios directos do
Criador I87/ I 8 8. Afinal, a já sugerida tensão dialéctica entre teriofilia e anti­
teriofilia dentro do antropocentrismo - começando pela concepção de
que os não-humanos não participaram no pecado original e por isso per­
maneceram num estado natural de maior pureza, concluindo que, em con­
trapartida, eles são inferiores ao ser humano, o qual, apesar da imperfeição
da sua vontade, é ainda a criatura mais perfeita (e aperfeiçoável) e a que
tem o poder de domínio sobre as demais, um poder efectivo alegadamente
demonstrativo da corroboração divina 1 89.
A complicar esta dualidade está o facto de interferir aqui um terceiro
plano, o da correlação entre a ascensão dos monoteísmos e o declínio das
formas de santificação da vida não-humana, a multiplicação de éticas de
mortificação ascética e de contemptus mundi, glorificando o desenraiza­
mento das comunidades naturais em favor de folJllaS de vita contemplativa
face às quais se tomava insignificante o quadro biológicÕ da vida humana,
ou seja, a integração da espécie humana num habitat, numa cadeia ali­
mentar, em simbioses não criadas por qualquer deliberação sua, e antes
herdadas do próprio processo evolutivo em que essa espécie não passava,
naturalisticamente, de uma entre tantas outras perpetuando-se genetica­
mente e combatendo pela sua sobrevivência 1 90.

187 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animais... ", cit., 466-467, 475-476.
188 Sobre as bases religiosas e filosóficas da consideração pelos animais, cfr. Cor­
deiro, A. Menezes, Tratado ... /- li- Coisas, cit., 212-214.
18 9 Cfr. Wolloch, N., "Christiaan Huygens's... ", cit., 430-431. Cfr. ainda: Ariansen,
Per, "Anthropocentrism with a Human Face", Ecological Economics, 24 (1998), 153-162.
1 90 Cfr. Shepard, P., The Others . . ., cit., passim.
A Hora dos Direitos dos Animais 67

A coincidência destes três vectores, e de outros mais, bastaria para


desmentir a ideia de que existiu, ou existe, unanimidade no entendimento
cristão sobre o estatuto dos animais, e mais ainda a ideia de que os pensa­
dores cristãos tenham estado, ou estejam, imunes a profundas contradições
em sede de avaliação do estatuto dos não-humanos 1 9 1 ; mas bastaria tam­
bém, por seu lado, para podermos lamentar - como o faz profunda e repe­
tidamente Andrew Linzey - que o sentimento de espanto pela maravilha
da criação, representada na variedade e perfeição das criaturas e das espé­
cies, apareça tão eloquentemente espelhado nas Escrituras mas não tenha
tido correspondência adequada (ao menos numa «ética de respeito» por
essa maravilha) em séculos de tradição religiosa subsequente 1 92.
São ambiguidades e hesitações muito subtilmente representadas no
carácter parcelar e incompleto do esforço iconoclástico contra os «ídolos
pagãos», que deixou ainda a iconografia cristã repleta de animais nos mais
diversos degraus da hierarquia teológica - num culto que abomina o
«Bezerro de Ouro» mas venera o Messias como «Cordeiro de Deus», que
deixa o leão simbolizar São Marcos, a águia o apóstolo São João, que se
coenvolve em infinitas «nuances» animistas e panteístas, até ao sabor de
ritos locais, que transforma em athleta Dei São Cristóvão, um gigante
cinocéfalo e antropófago, que adopta a fábula de Androcles e do leão como
episódio da vida de São Jerónimo, que admite que São Roque tenha sido
alimentado por um cão, que multiplica exemplos de «patronos de animais»
na sua hagiografia _ 193.

19 1 Cfr. Linzey, Andrew, Christianity and the Rights of Animais, New York, Cross­
roads, 1991, 22, 36-39; cfr. ainda: Drewermann, Eugen, Da Imortalidade dos Animais.
Uma Esperança para as Criaturas que Sofrem (trad. p/ Anneliese Mosch), Mem Martins,
Inquérito, 1996; Linzey, Andrew, Animal Theology, London, SCM Press, 1994; Linzey,
Andrew, "Animal Theology", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Ani­
mal Rights. . ., cit., 283-284; Linzey, Andrew, The Place of Animais in Creation: A Chris­
tian View, Philadelphia, Temple University Press, 1986; ),.i9zey, Andrew & Dan Cohn­
Sherbok, After Noah: Animais and Liberation of Theology, London, Mowbray, 1997;
Linzey, Andrew & Dorothy Yamamoto (orgs.), Animais on the Agenda. Questions About
Animais for Theology and Ethics, Urbana, University of Illinois Press, 1998; Linzey,
Andrew & Tom Regan, Animais and Christianity: A Book of Readings, New York, Cross­
roads, 1988; Webb, Stephen H., On God and Dogs: A Christian Theology of Compassion
for Animais, Oxford, Oxford University Press, 1998.
1 92 Linzey, A., Animal Theology, cit., passim.
1 93 Cfr. Preece, Rod, Animais and Nature: Cultural Myths, Cultural Realities, Van­
couver, UBC Press, 1999, 127.
68 A Tradição Religiosa

São ambiguidades que permitem também a coexistência com formas


de abuso dos animais que sobreviveram da linhagem pagã e se reforçaram,
à margem da religião, com o adensamento civilizacional do individua­
lismo, com um obsessivo «antropocentrismo» que é a faceta patológica do
processo de emancipação política e social das culturas ocidentais, o preço
a pagar pelo estabelecimento de prioridades nesse esforço emancipador 1 94.
São ambiguidades que explicam ainda porque é que a moral cristã,
aparentemente tão aberta à compaixão e à consideração do «mal radical»
do sofrimento encontrado em todas as formas vivas, possa reagir à ideia de
«direitos dos animais» como se ela constituísse um desafio aos seus fun­
damentos cosmológicos, como se ela fosse o rematado reflexo de uma
interrogação sobre questões fundamentais da vida num contexto de secu­
larização e modernização - uma nova «religião» concorrente, fornecendo
aos novos «crentes» formas de encararem questões da justiça, do bem e do
mal, do sofrimento, da ordem e do caos, à luz de um novo propósito reden­
tor, agora o da «salvação» dos animais 1 95.
E no entanto, se é certo que foi o texto bíblico que, desde as suas pri­
meiras linhas, arreigou a convicção da subalternidade dos animais aos inte­
resses ao homem, também é certo que no texto bíblico o «domínio» assim
consagrado envolvia um dever de solicitude que não se alarga a simples ins­
trumentos inertes, não vivos - o dever de solicitude do bom pastor que,
embora ponha o bem-estar dos seus animais ao serviço dos seus interesses,
reconhece ao menos a necessidade de preservação desse bem-estar, um tipo
de «cultura pastoralista» que parece oposta à licença da opressão e violência
para com os animais, sugerindo antes bondade e diligência 1 96.
«Domínio» não significa, pois, na linguagem bíblica, subjugação
despótica: até porque a proeminência dos interesses humanos só fazia sen­
tido dentro do quadro mais geral da Criação, não sendo dado ao homem
dispor dos frutos da Criação senão dentro de limites que assegurassem a
respectiva preservação, e, através dela, da vida terrena - toda ela,
incluindo a vida humana. Mesmo a «propriedade» dos animais era expli-

1 94 Cfr. Linzey, A. & D. Cohn-Sherbok, After Noah . . ., cit., passim; O'Neill, Onora,
"Environmental Values, Anthropocentrism, and Speciesism", Environmental Values, 6
(1997), 127-142.
1 95 Cfr. Sutherland, Anne & Jeffrey E. Nash, "Animal Rights as a New Environ­
mental Cosmology", Qualitative Sociology, 17 (1994), 171-186.
1 96 Cfr. Passmore, John, Man 's Responsibility for Nature: Ecological Problems and
Western Traditions, London, Duckworth, 1974, 9.
A Hora dos Direitos dos Animais 69

citam.ente funcionalizada: "O homem de bem cuida das necessidades dos


seus animais" 197. Aliás, a simples concepção do homem como «imagem e
semelhança» do Criador, descontado o óbvio propósito antropomórfico,
não podia deixar de significar que a natureza moral do Criador era trans­
mitida às suas criaturas humanas, e com ela a incondicionada solicitude
pela Criação 1 9B .
Não é, de resto, o próprio texto bíblico que faz da humanidade origi­
nal uma comunidade vegetariana, uma comunidade à qual só depois do
Dilúvio é autorizado o consumo de carne 1 99? Não é a Bíblia que, como já
vimos, realça a partilha de destino de todas as espécies neste «vale de
lágrimas»? Não é também a Bíblia que se multiplica em ilustrações do
carácter moral, e até ocasionalmente da superioridade intelectual, dos não­
humanos - como fica eloquentemente consignado no episódio da
«jumenta de Balaão»200, que é também, muito significativamente, um epi­
sódio de notória brutalidade sobre os animais20 1 ?
Podemos assim concordar com aqueles que têm sustentado que o
franciscanismo não é propriamente um fenómeno isolado e original, antes
representa o culminar de uma evolução milenar de humildade e respeito
pelo mundo natural muito presente na literatura monástica, em especial na
exaltação do eremita do deserto que, como um «Novo Adão», se reconci­
lia com a natureza através da provação, da contemplação (uma contem­
plação que é socialmente escapista, mas não o é em termos de «concen­
tração sobre o real»), do labor e da prece202 - pondo-se afinal de acordo
com a subtil alusão bíblica, de que "não foi o espiritual que veio antes,
mas o natural; depois dele, o espiritual"20J.
Isso não quer dizer que não haja elementos de originalidade no pen­
samento franciscano, em especial a sua concepção de um panteísmo bene-

1 97 Provérbios, 12:10.
1 98 Cfr. Linzey, A., Christianity and the Rights 0fArJj11JlllS, cit., 25-28; Muratova, X.,
"Adam . . . ", cit., 368ss..
1 99 Genesis, 1:29 e 9:3. Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 17 .
200 Números, 22: 21-38.
201 Muito evocativo de um lugar paralelo nas Mil e uma Noites, o episódio do falcão
que salva do envenenamento um rei e o seu cavalo. Cfr. Budiansky, S., lf a Lion Could
Talk. . ., cit., xiv.
202 Cfr. Bratton, Susan Power, "The Original Desert Solitaire: Early Christian
Monasticism and Wildemess", Environmental Ethics, 10 (1988), 31-53.
203 Coríntios /, 15: 46.
70 A Tradição Religiosa

volente e criativo, envolvendo a solicitude caritativa para com cada indi­


víduo de cada espécie animal, e portanto sem apelos a sínteses salvíficas;
mas cremos que muita da ênfase nessa originalidade serviu inicialmente
puros propósitos hagiográficos204. Por outro lado, não podemos deixar de
partilhar das cautelas com que Peter Singer encara o franciscanismo como
proposta de amor indiscriminado por todas as criaturas e obras da criação,
providas ou desprovidas de sensibilidade: "Embora este tipo de amor extá­
tico universal possa constituir uma fonte de compaixão e bondade, a
ausência de reflexão racional pode também neutralizar as suas conse­
quências benéficas"205.

5 .b) A teodiceia do sofrimento animal


Para aqueles que, dentro da tradição bíblica, fazem assentar a sua
teriofilia numa concepção da bondade divina e do sustento providencial de
todas as criaturas - quando não mesmo no puro e simples panteísmo -,
suscita-se um outro problema, tão difícil como recorrente, o problema do
sofrimento animal consentido pela omnipotência divina, isto é, a inserção
da dimensão não-humana dentro do tema mais amplo da teodiceia.
Para alguns, a resposta será simples: por exemplo, para aqueles antro­
pocentristas que vejam nos animais meros ornamentos teleologicamente
pré-ordenados à mortificação, à edificação e ao sustento da espécie
humana, o sofrimento dos animais é um espectáculo e uma advertência
simbólica, uma simples consequência do pecado dos homens, a desapare­
cer com a redenção da espécie humana206.
Outros, mais cientes do carácter espinhoso, quase intratável, da «teo­
diceia do sofrimento animal», reconhecerão a sua incapacidade para des­
cortinarem uma solução segura, como o fez o teísta C.S. Lewis: "Tanto
quanto sabemos os animais não são capazes de pecados nem de virtudes:

204 Cfr. Hughes, J. Donald, "Francis of Assisi and the Diversity of Creation", Envi­
ronmental Ethics, 18 (1996), 311-320.
20 5 Singer, P., Libertação Animal, cit., 185.
20 6 Cfr. Dean, Richard, An Essay on the Future Life of Brutes. Introduced with
Observations upon Evil, lts Nature and Origin, 2 vols., London, G. Kearsly, 1768, I, 74
(agora reimpresso em Garrett, A.V. (org.), Animal Rights and Souls . . ., cit., II). Richard
Dean é um líder nas investidas contra a posição cartesiana quanto ao mecanicismo animal
(id., II, 80).
J.
A Hora dos Direitos dos Animais 71

e por isso nem podem merecer o sofrimento nem podem ser melhorados
através dele"207. Outros, como Alvin Plantinga, atribuíram o sofrimento
dos animais à presença de um obscuro «princípio do mal»208 , enquanto
outros, defrontados com a perplexidade, recuaram para posições cartesia­
nas e negaram pura e simplesmente a existência de sofrimento nos animais
- ao menos, de um sofrimento comensurável com aquele que os huma­
nos experimentam - 209.
Quanto a este último ponto, é inegável que nos seres humanos adul­
tos se forma uma distinção clara entre dor e sofrimento, a primeira assente
na sensibilidade e o segundo na capacidade de «meta-representação» inte­
lectual das experiências, que transforma as emoções em angústias - e faz
da própria representação um motivo de penosidade, independentemente
da dor que se experimenta nos eventos que são objecto dessa representa­
. ção2 1012 1 1 . Mas esta «nuance conceptual» pouco faz para resolver o pro­
blema da teodiceia, porque nem mesmo dentro da própria espécie humana
a questão tem a ver com a intensidade ou com a capacidade de represen­
tação ou de alongamento temporal da dor (por antecipação ou por persis­
tência), tendo antes a ver com a intenção dos desígnios divinos que são
postulados pela teodiceia, e que, dada a omnipotência divina, impõem ou
consentem qualquer tipo de dor, por ínfima ou transitória que essa dor seja.
Para John Hick, que assume uma posição próxima da de Alvin Plan­
tinga, o sofrimento animal, não tendo a dimensão de castigo ou de edifi­
cação, inscreve-se no contexto mais geral do «mal natural», ou seja, do
mal necessário para que Deus permaneça a uma distância epistémica da

207 Lewis, C.S., The Problem of Pain, New York, MacMillan, 1962, 129; cfr. Weir,
Jack, "Virtue Ethics", in Bekoff, M . & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal
Rights . . ., cit., 357-358.
20 8 Plantinga, Alvin, God and Other Minds, Ithaca, Comell University Press, 1967,
149ss..
20 9 Cfr. Harrison, Peter, "Theodicy and Animal Pairt'.', Philosophy, 64 ( 1989), 79-92.
2 10 Cfr. Dennett, Daniel C., Kinds of Minds, New York, Basic Books, 1996, 164-167;
Harrison, Peter, "Do Animais Feel Pain?", Philosophy, 66 (199 1), 25-40.
2 11 Também há quem faça a distinção entre dor e sofrimento sublinhando que, na pró­
pria espécie humana, pode ocorrer a primeira sem que ocorra o segundo, mormente quando
não se manifesta uma conduta visando terminar aquela, como no caso de quem «corre por
gosto», ou no caso da dor experimentada num estado de delírio. Cfr. Hare, R.M., Moral
Thinking, Oxford, Clarendon, 198 1, 93; Lewis, David, "Mad Pain and Martian Pain", in
Block, Ned (org.), Readings in the Philosophy of Psychology, Cambridge Mass., Harvard
University Press, 1980, I, 2 16-222.
72 A Tradição Religiosa

humanidade (para que haja liberdade humana sem que ao mesmo tempo a
existência divina se torne implausível, dentro de um contexto factual em
que está excluído o «paraíso hedónico» e tem de mediar entre ambos os
planos de existência o facto do mal radical). Contudo, também John Hick
não resiste a, distinguindo dor de sofrimento, recusar aos animais não­
humanos a capacidade de sofrimento (um argumento perigoso, como
vimos, já que excluiria também a possibilidade de sofrimento nas crianças
e em «casos marginais»2 12), o que, ou deixa a dor animal à margem da teo­
diceia, ou atinge os fundamentos desta fazendo-a coexistir com um facto
insofismável mas teleologicamente absurdo, ou ainda (terceira hipótese)
leva novamente a conceber a dor animal como uma realidade instrumental
em relação aos desígnios de edificação moral e espiritual da humani­
dade2 1 3 - isto é, conduziria, em última análise, a um novo absurdo, o da
conversão da arrogância especista em fundamento da própria teodiceia2 1 4,
um perigoso passo na direcção idolátrica do antropomorfismo teogónico,
agora erigido em ponto de apoio da soteriologia.
Para Peter Geach, o sofrimento animal é um mal genuíno, mas a bon­
dade divina não alastra particularmente para essa área de sofrimento, visto
faltar-lhe o suporte físico que seria requerido por uma genuína simpatia
para com esse sofrimento2 1 5. Mas, pergunta-se: não seria essa limitação
vencida pela omnisciência divina? Que faltará à divindade para ela ser
incapaz de uma empatia com o sofrimento animal, uma empatia que é pra­
ticamente espontânea no todo da espécie humana, uma empatia que a
nossa humanidade, quando não está profundamente tolhida por preconcei­
tos insensibilizadores, tão facilmente alcança?

212 Cfr. Dombrowski, Daniel A., Babies and Beasts: The Argument from Marginal
Cases, Urbana, University of Illinois Press, 1997, passim.
2 1 3 Cfr. Hick, John, Evil and the God of Lave, New York, Harper and Row, 1978,
313ss.; cfr. ainda: Robinson, William S., "Some Nonhuman Animais Can Have Pains in a
Morally Relevant Sense", Biology and Philosophy, 12 (1997), 51-71.
2 1 4 Cfr. Betty, L. Stafford, "Making Sense of Animal Pain: An Environmental Theo­
dicy", Faith and Philosophy, 9 (1992), 65�82.
2 1 5 Geach, Peter, Providence and Evil, Cambridge, Cambridge University Press,
1977, passim. Cfr. ainda: Lynch, Joseph, "Harrison and Hick on God and Animal Pain",
Sophia, 33 (1994), 62-73; Linzey, Andrew, "Theodicy", in Bekoff, M. & C.A. Meaney
(orgs.), Encyclopedia of Animal Rights . . ., cit., 297-299; Paterson, R.W.K., "Animal Pain,
God and Professor Geach", Philosophy, 59 (1984), 116-120.
A Hora dos Direitos dos Animais 73

O problema do sofrimento animal afigura-se deveras intratável para


0 ponto de vista teísta, e não surpreende que uma tão manifesta insufi­
ciência teórica ajude a agravar a crise da tradição bíblica num mundo já
extensamente secularizado que, perante problemas tão graves e manifes­
tos, pragmatica e urgentemente reclama soluções; nem surpreende que a
zoofilia envergue tão frequentemente as vestes de uma pseudo-religião
que, explorando as perplexidades da tradição religiosa dominante, instala
nesse «vazio conceptual» algumas noções basilares mais consonantes com
a sensibilidade contemporânea Uá que a ágora não passa sem ídolos).
6. Lese-Majesté: O Julg amento dos Animais

6 .a) A reposição da «Escala do Ser»


Uma das consequências mais bizarras do conceito de «Grande Cadeia
do Ser» é a aparente legitimação dos julgamentos dos animais, o uso de
formalismos judiciais para reafirmar a «ordem pré-estabelecida», a pre­
texto ou não de relações intersubjectivas envolvendo a responsabilidade
dos detentores de animais por danos causados por estes. Nos termos da
sacralização do antropocentrismo, compreende-se que se tenha concebido
que um não-humano que lesava ou matava um humano cometia um ver­
dadeiro crime, visto que o seu gesto representava objectivamente uma
insurreição contra a ordem hierárquica estabelecida pelo Criador, que
colocava o homem numa posição incomensuravelmente superior à dos
não-humanos, uma posição valorativamente inexpugnável2 1 6.
A pena capital aplicada aos animais «perpetradores» significava
ainda, para os respectivos detentores, a perda de instrumentos envolvidos
no acto lesivo, a perda de elos, inertes ou não, na cadeia causal - e a res­
tituição desses instrumentos ao seu Criador Original, em recomposição
derradeira dessa «aberração cósmica», dessa rebeldia luciferina contra a
«escala do ser» - como ficava devidamente enfatizado com a circunstân­
cia de o primeiro animal a ser julgado (simbolicamente) ser a serpente que
invadira o paraíso edénico2 1 7. Mais, pois, dÓ·qué simples precursor da prá­
tica dos deodandos, da «devolução ao Criador» dos animais julgados, o
julgamento dos animais revestia-se amiúde de uma coloração mais ambi­
ciosa e profunda, a de uma reacção contra a ofensa da própria ordem cós-

216 Cfr. Finkelstein, J.J., "The Ox that Gored", cit., 28, 58, 73.
211 Cfr. Cyrulnik, Boris, "Les Animaux Humanisés", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ..., cit., 37.
76 Use-Majesté: O Julgamento dos Animais

mica, especificamente aquela de que se tinha plasmada no tecido, na inte­


gridade e na essência das comunidades humanas, e defendida por institui­
ções sacralizadas de administração de justiça2 1 s . O julgamento dos ani­
mais era, pois, também uma advertência para os «perpetradores»
humanos, especialmente para os casos de atentado à hierarquia e à estrati­
ficação social.
Entendamo-nos: é claro que muitos julgamentos de animais foram
assumidamente exercícios de crueldade pura - aquela mesma que alimen­
tava tantas «tradições rurais»2 19 -, recobertos de uma grotesca roupagem
«legalista»220. Mas esses acessos colectivos de crueldade não requereriam
uma formalização ou uma cobertura ideológica permanente, nem justifica­
riam o carácter recorrente, praticamente universal e estruturante, desse
emprego de instituições centrais na base juridico-política de sociedades
suficientemente evoluídas. E no entanto esses julgamentos de animais pare­
cem ser um fenómeno universal, ainda que dele praticamente só haja regis­
tos europeus - o que se compreende porque só no espaço europeu eles se
revestiram das formalidades de verdadeiros julgamentos - 22 1 .
Por outro lado, esses «julgamentos» parecem ser, com surpreendente
frequência, o oposto de uma pura crueldade para com animais, visto que
nalguns casos havia o propósito de se evitar uma eliminação sumária
(como sucederia mais plausivelmente hoje, no caso de animais perigosos),
sendo que a crueldade que, como é evidente, ressaltava mesmo assim des­
ses processos judiciais não era distinta daquela a que estavam sujeitos os
próprios seres humanos, só não sendo assim quando a ratio decidendi par­
tia da associação dos animais a práticas de feitiçaria e bestialidade _ 222.

218 Cfr. Finkelstein, J.J., "The Ox that Gored", cit., 26-28.


219 Sobre as brutalidades ligadas à domesticação nos meios rurais, desde a violência
laboral até aos «jogos» cruéis, cfr. Weber, Eugen, Peasants into Frenchmen, Stanford,
Stanford University Press, 1976, 381-382.
220 Como fica bem claro no «julgamento dos gatos» narrado em Damton, Robert,

The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History, New York, Vin­
tage, 1985, 77.
22 1 Cfr. Cohen, Esther, "Law, Folklore and Animal Lore", Past and Present, 110

(1986), 18.
222 Cfr . Newman, Graeme, The Punishment Response, Philadelphia, J.B. Lippincott,

1978, 93; Serpell, James A., "Science and the History of European Attitudes to Animais",
in Hicks, E.K. (org.), Science and the Human-Animal Relationship, Amsterdam, SISWO,
1993, 39-49.
A Hora dos Direitos dos Animais 77

Com efeito, era comum que os animais acusados fossem sujeitos aos
mesmos métodos de interrogatório e de execução que cabiam aos humanos,
sendo a observância do pro forma do interrogatório, como é óbvio, um sim­
ples prurido de preenchimento de todas as formalidades requeridas para o
julgamento. Incluía-se, na tramitação desses «julgamentos», até as execu­
ções em efígie para os animais que tivessem fugido, e naturalmente a indi­
gitação de advogados para representarem os interesses dos acusados223 .
A abundância de formalismos, a sua associação a tramitações de sen­
tido inequívoco nos julgamentos de humanos e a específica atribuição de
culpa a animais individualizados desmentem aqueles que alegam que o
julgamento de animais, e até de objectos inanimados - lembremos Xer­
xes a mandar vergastar o Helesponto224 - , não passou de uma forma oblí­
qua de penalizar (pela perda e confiscação) os detentores negligentes des­
ses animais e objectos, e em particular naquelas situações em que se
revelava impossível encontrar o detentor ou provar a sua culpa, já para não
dizer o seu conhecimento da própria actividade lesiva, e por isso era neces­
sário agir in rem225 - o que significaria escamotear-se, entre outros, a evi­
dência das atribuições separadas de culpas ao animal e ao seu detentor226.
Significaria igualmente escamotear-se abundantes dados etnográfi­
cos e históricos que demonstram que em diversos lugares e tempos se
encarou a possibilidade de um contínuo jurídico que legitimasse os julga­
mentos de animais - seja no sentido de os excluir da comunidade da
espécie humana, sancionando-os pela lesão de particulares interesses
humanos, num puro gesto de cruel arrogância especista, seja no sentido de
os proteger através de uma consideração niveladora dos seus interesses
com os dos humanos.

223 Cfr. Berman, Paul Schiff, "An Anthropological Approach to Modem Forfeiture
Law. The Symbolic Function of Legal Actions Against Objects", Yale Journal of Law &
the Humanities, 11 (1999), 29; eiusdem, "Rats, Pigs/!llld,Statues on Triai: The Creation of
Cultural Narratives in the Prosecution of Animais and-In:animate Objects", New York Uni­
versity Law Review, 69 (1994), 288-289; eiusdem, "An Observation and a Strange but True
«Tale»: What Might the Historical Triais of Animais Tel1 Us About the Transformative
Potential of Law in American Culture?", Hastings Law Journal, 52 (2000), 123-150.
224 Hérodote, Histoires, V. 25, Paris, «Les Belles Lettres», 1946, 32.
225 Cfr. Berman, P.S., "An Anthropological Approach. . . ", cit., 35.
226 Cfr. Berman, P.S., "An Anthropological Approach . . . ", cit., 29-30; Breyer, Amy
A., "Asset Forfeiture and Animal Cruelty: Making One of the Most Powerful Toais in the
Law Work for the Most Powerless Members of Society", Animal Law, 6 (2000), 203ss ..
78 Use-Majesté: O Julgamento dos Animais

Ilustração desta última hipótese é a de casos de «comunidades mis­


tas» em que se reconhece já algum estatuto ético-jurídico aos animais -
como sucede, por exemplo, em certas comunidades norueguesas, nas
quais, de cada vez que um urso mata um animal domesticado, um perito é
chamado a determinar os motivos aparentes do lesante, a eventual con­
causalidade da vítima, os efeitos nocivos na agressividade das crias que
tivessem assistido, etc., antes de se proceder à condenação, ou absolvição,
do urso227 .
Exemplo histórico notável é o do Prytaneum, o tribunal ateniense
especializado no julgamento criminal de animais homicidas - e também
de mortes causadas por objectos inanimados ou por pessoas desconhecidas
- , lugar de forte simbolismo cívico e de grande densidade ritua122s, no
qual uma pena comum era a do banimento do animal229 - pena que per­
durou na história230. É certo que aí o julgamento dos animais tinha um
intuito predominantemente ritualista e propiciatório, visto ser difundida a
crença de que a impunidade concedida a um animal causador de danos ou
de morte a humanos poderia desencadear as Fúrias (em reacção à hubris,
à «lesão cósmica»)23 1 .
Outros exemplos históricos curiosos são os de Bartholomé Chasse­
née, defendendo no tribunal eclesiástico de Autun um grupo de ratos acu-

227 Cfr. Naess, Ame, "Self-Realization in Mixed Communities of Humans, Bears,


Sheep and Wolves", Inquiry, 2? (1979), 231-241 (237); cfr. ainda: Cohen, E., "Law, Fol­
klore. . . ", cit., 6-37 ; Ward, Elaine M., Indigenous Peoples Between Human Rights and
Environmental Protection. Based on an Empirical Study of Greenland, Copenhagen,
Danish Centre for Human Riglits, 1993 ; Wenzel, George W., Animal Rights, Human Rights.
Ecology, Economy and ldeology in the Canadian Arctic�Toronto, University of Toronto
Press, 1991.
228 Cfr. Finkelstein, J.J., "The Ox that Gored", cit., 58; Berman, P.S., "An Observa­
tion... ", cit., 145-146; Jones, John Walter, The Law and Legal Theory of the Greeks. An
Introduction, Aalen, Scientia Verlag, 1977, 256-257; Rousselet, M., Histoire de la Justice,
Paris, Presses Universitaires de France, 1968, 11; Todd, Stephen C., The Shape ofAthenian
Law, Oxford, Clarendon, 1993, 275.
22 9 Cfr. Platão, As Leis, Livro IX; MacDowell, Douglas M., Athenian Homicide Law
in the Age of the Orators, Manchester, Manchester University Press, 1963, 86-87.
23 0 Ainda em 1994 o Governador de New Jersey baniu do Estado um cão que tinha
mordido alguém, dando esse banimento como alternativa à eliminação física. Cfr. Berman,
P.S., "An Anthropological Approach. . . ", cit., 31.
23 1 Cfr. Berman, P.S., "An Anthropological Approach. . . ", cit., 22-23 ; eiusdem, "An
Observation... ", cit., 161-162.
A Hora dos Direitos dos Animais 79

sados de terem destruído as reservas de cevada (no século XVI), a acusa­


ção de franciscanos no Maranhão contra formigas que teriam corroído os
alicerces das suas celas (no século XVIII), ou a exec11ção pública, no
século XIV, de um porco acusado de infanticídio232, de um burro acusado
de ofensas corporais233 , de galos e de touros234. São exemplos tão bizar­
ros, até nas suas implicações valorativas para a perspectivação do nosso
passado civilizacional, que eles se rodearam de uma ampla margem de efa­
bulação e superstição, e constituíram matéria-prima para romancistas -
sendo porventura a mais delirantemente imaginativa versão literária de jul­
gamento de animais aquela de que é autor Julian Barnes235/23 6.

6 .b) Uma bizarria sintomática


Diremos, em suma, que o julgamento dos animais (e de coisas),
quando não foi fruto de pura irracionalidade apaixonada - e foi-o fre­
quentemente - , não deixou de desempenhar funções políticas relevantes,
sejam as funções similares às das actuais normas de confiscação (de
«perda a favor do Estado»), sejam ainda funções de prevenção geral atra-

232 Cfr. Berman, P.S., "Rats, Pigs, and Statues ... ", cit., 288ss.; Boyer, R., Les Crimes
et les Châtiments au Canada Français, Montréal, Le Cercle du Livre de France, 1966, 70;
Dietrich, G., Les Proces d 'Animaux du Moyen-Âge à Nos Jours, Lyon, Bosc, 1961, 3 1-32;
Evans, E.P., The Criminal Prosecution and Capital Punishment ofAnimais, London, Faber
and Faber, 1987, 18-19, 123-124, 140 ( 1 1906) (com uma lista mais completa nas pp.
265ss.); Finkelstein, J.J., "The Ox that Gored", cit., '62-68; Koestler, A. & A. Camus, Réfle­
xions sur la Peine Capitale, Paris, Calmann-Lévy, 1957, 67; Cohen, E., "Law, Folklore... ",
cit., 14-17; eadem, The Crossroads of Justice. Law and Culture in Late Medieval France,
Leiden, E.J. Brill, 1993, 110, 120- 12 1; Tester, Keith, Animais and Society. The Humanity
of Animal Rights, London, Routledge, 199 1, 74; Berman, P.S., "An Observation... ", cit.,
126ss.; Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 35ss..
233 Cfr. lmbert, J., La Peine de Mort, Paris, Aonand Colin, 1967, 13.
234 Sobre um caso de galos queimados vivos erir 1474, ou o julgamento de um touro
«assassino» em 1499, cfr. Vartier, J., Les Proces d 'Animaux du Moyen Âge à Nos Jours,
Paris, Hachette, 1970, 64, 70.
235 Bames, Julian, A History of the World in JQ Chapters, London, Jonathan Cape,
1989, 6 1-80 (sem esquecermos o julgamento da cabra Djali, que acompanhava Esmeralda,
na Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo).
236 O filme The Advocate, de 1994 (realizado por Leslie Megahey), retrata um advo­
gado estabelecido em Abbeville em 1452, e especializado na defesa de animais em pro­
cesso-crime - cfr. Kolber, A., "Standing Upright...", cit., 179-180.
80 Lese-Majesté: O Julgamento dos Animais

vés da repressão penal directa, determinando que uma violação da lei fosse
acompanhada de uma «narrativa» através da qual o transgressor simbólico
da ordem estabelecida seria degradado e excluído (com similitudes com o
regime da «noxaê deditio» e dos deodandos - um regime tornado obso­
leto pelo aumento dos riscos conexos com o aprofundamento da civiliza­
ção industrial e da interdependência económica23 7), reafirmando-se a coe­
são social através do mecanismo da aplicação de uma ordem jurídica
uniforme, até aos extremos de uma acção não deliberada e verdadeira­
mente não imputável, mas suficientemente anómica e destrutiva para
constituir um perigo a ser afastado por todos os meios238 .
É curioso notar-se que a matéria da responsabilidade animal por
danos nasceu rodeada de ambiguidades que ditaram oscilações profundas
nas soluções dominantes, que vão das «noxales actiones» romanas até aos
preceitos bíblicos que cominam também um castigo para o animal239 -
passando pela notável lei mesopotâmica, com um pendor mais sensível às
incidências económicas, e menos propenso à sacralização dos interesses
humanos, do que a lei bíblica, mais próxima aquela, pois, das modernas
ordenações jurídicas, na forma de tratamento das condutas <lanosas dos
animais em termos de indemnização da vítima mais do que em termos de
castigo do animal, mais orientada em termos de reparação do que de puni­
ção. E no entanto, contra a própria tradição bíblica e teológica, São Tomás
de Aquino sustentará ele próprio que é blasfémia a imputação de respon­
sabilidade criminal aos animais irracionais, já que eles são meros instru­
mentos da Providência, elos inimputáveis numa cadeia causal teísta240 -

237 Cfr. Berman, P.S ., "An Anthropological Approàch . ..", cit., 27-28, 31-32; Boyer,
R ., Les Crimes. . ., cit., 71; Finkelstein, Jacob J ., "The Goring Ox: Some Historical Pers­
pectives on Deodands, Forfeitures, Wrongful Death and the Westem Notion of Sove­
reignty", Temple Law Quarterly, 46 (1973), 171-172; Wise, S .M ., Rattling the Cage, cit.,
40ss ..
23 8 Cfr. Berman, P.S ., "An Anthropological Approach ...", cit., 3-5, 19-20, 38-39
(remetendo para a noção de «narrativa jurídica» em: Brooks, Peter, "The Law as Narrative
and Rhetoric", in Brooks, Peter & Paul Gewirtz (orgs.), Law 's Stories. Narrative and Rhe­
toric in the Law, New Haven Conn., Yale University Press, 1996, 14ss.; Cover, Robert M .,
"Nomos and Narrative", Harvard Law Review, 97 (1983), 4ss.). Preferindo o conceito de
«significado social» ao de «narrativa», cfr. Lessig, Lawrence, "The Regulation of Social
Meaning", University oJ Chicago Law Review, 62 (1995), 943ss ..
239 Cfr. Exodus, 21:29-30 .
240 Cfr. Berman, P.S ., "Rats, Pigs, and Statues ...", cit., 311.
A Hora dos Direitos dos Animais 81

mantendo-se nessa linha de pensamento a prática do abate dos animais


desligada de quaisquer conotações de sanção24 I _
Uma simples bizarria, estes «julgamentos» , um simples fait-divers,
pois, a arquivar nos gavetões poeirentos das curiosidades históricas? Cremos
que sim, embora haja nos «julgamentos dos animais» muito de sintomático,
quer quanto à artificialidade e violência em que assentam algumas das
demarcações entre espécies , quer quanto à persistência histórica de simbo­
lismos que obnubilaram profundamente dados naturalísticos aliás evidentes
- como essa da inimputabilidade, que tolheria sempre qualquer considera­
ção de responsabilidade, criminal ou outra, entre os não-humanos .
É verdade que alguns problemas axiologicamente mais agudos, como
o da predação animal - os extremos de violência e de destruição de que
é capaz a animalidade (nos não-humanos tanto como em nós) - levaram
ainda, tão recentemente como no século XIX, à reconsideração da hipótese
de uma «criminalidade naturalística» alastrando para a própria esfera da
violência e da morte entre não-humanos , notabilizando-se na conceptuali­
zação de uma tal possibilidade o afamado Cesare Lombroso 242 .
Mas afigurar-se-á agora mais claro porque é que as práticas antigas
de criminalização e castigo judicial dos animais por danos causados por
estes não podiam sobreviver ao colapso das convicções que davam o
mundo natural como um domínio dividido por fronteiras traçadas por
autoridade divina, ou por atribuições divinas de superioridade de umas
espécies sobre outras - colapso provocado primeiro pela separação ilu­
minista entre ciência e teologia, depois pela despromoção darwinista do
estatuto único ou privilegiado da espécie .humana -. E também porque é
que o carácter «exemplar» dos julgamentos dos animais, o seu escopo inti­
midativo-preventivo , a sua intenção simbolicamente perpetuadora da
estratificação social, não podiam também eles sobreviver à maré-alta das
ideologias igualitárias , republicanas e democráticas , nas próprias comuni­
dades humanas .

24 1 Cfr. Evans, E.P., The Criminal Prosecution .. ., cit., 53-55; Finkelstein, J J., "The
Ox that Gored", cit., 70; Berman, P.S ., "An Observation . . . ", cit., 152-153 ; Wise, S .M., Rat­
tling the Cage, cit., 27, 76.
242 Cfr. Lombroso, Cesare, L'Homme Criminel. Criminel Né, Fou Moral, Épilépti­
que, Crirninel Fou, Criminel d'Occasion, Crirninel par Passion, Paris, Félix Alcan, 21895,
I, 28-34 . Já antes (ibid., 8) Lombroso relatava um caso de excomunhão de ratos em Autun,
e um caso de maldição proferida contra lagartas em Turim.
82 Lese-Majesté: O Julgamento dos Animais

Desenhando-se assim uma tendência evolutiva que, conquanto não


seja inelutável e determinista, no entanto aponta no sentido de uma rea­
preciação do estatuto recíproco das espécies que, tendo já proscrito que,
em nome de uma aparência de legitimação jurídica, se exerça a violência
ou a opressão sobre os não-humanos, parece sugerir à nossa cultura, e par­
ticularmente à nossa sensibilidade ética e jurídica que, esbatidas estas con­
vicções fundas sobre a estruturação da natureza (tal como se esbateram as
convicções sobre o carácter «natural» da estratificação social) , não sub­
siste nenhuma barreira objectiva à atribuição de direitos aos animais243 ,
porque não subsiste nenhuma necessidade de manter os animais do «lado
de fora» de uma fronteira de exclusão.

243 Cfr. Wise, S .M., Rattling the Cage, cit., 46-48.


7. Questões de «alma» entre Cartesianismo
e Revolução Darwinista

"Mas sob a Lua niio há nada que niio seja mortal e caduco, salvo as
almas atribuídas à espécie humana pela providência divina, enquanto
que acima da Lua tudo é eterno" - Marco Túlio Cícero 244 .
"Na Holanda discute-se agora, alto e bom som, se os animais são
máquinas. As pessoas até se divertem a ridicularizar os cartesia­
nos, por estes conceberem que um cão que é agredido emite um som
que é similar ao de uma gaita de foles quando é comprimida" -
Gottfried Leibniz 245.

7 .a) O conceito mecanicista de «animalidade»


Com o mecanicismo cartesiano, uma nova analogia surge, mas agora
a que assimila os animais a máquinas - aparentemente sem lugar a atri­
buições anímicas, ainda que René Descartes admita a existência de pai­
xões nos animais, reduzindo-as contudo a uma dimensão automática e cor­
poral, não reflexiva nem auto-consciente246/247.

244 "infra autem iam nihil est nisi mortale et caducum praeter animos munere deo­
rum hominum generi datos, supra lunam sunt aeterlia ;�:nnia" - M.T. Cícero, De Re
Publica Liber Sextus, XVII ( «Somnium Scipionis» ).
245 Leibniz, G .W., Carta de 1648 a Ehrenfried Walter von Tschimhaus, in Leibniz,
Gottfried Wilhelm, Philosophical Papers and Letters (trad. p/ Leroy E. Loemker), Dor­
drecht, Reide!, 21969, 275-276.
246 Descartes, René, "Animals Are Machines", in Regan, Tom & Peter Singer (orgs.),
Animal Rights and Human Obligations, Englewood Cliffs NJ, Prentice-Hall, 21989; cfr.
ainda: Boas, G., The Happy Beast . . . , cit., 90n201; Cottingham, John, "A Brote to the Bro­
tes? Descartes' Treatment of Animais", in Moyal, Georges J.D. (org.), René Descartes. Cri-
84 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

O mecanicismo compreende-se, porque ele pouco mais é do que o


eco de uma vastíssima mudança de paradigmas científicos - decerto a
mais vasta da história anterior ao século XX248 - , mas uma perplexidade
assalta-nos, a mesma que se reflecte no sarcasmo de Leibniz: como pode­
ria Descartes arvorar esse mecanicismo em método exclusivo de explica­
ção do comportamento de animais - que, como o seu nome indica, são
seres animados, dotados de um princípio anímico de conduta? Como
poderia Descartes fazer tábua-rasa das expressões de sofrimento, de medo,
de alegria, de afecto, em que tantos animais que partilham o nosso habitat
são tão pródigos - dirigindo precisamente algumas dessas expressões
para nós humanos?249
O erro reside na «ânsia sistematizadora» tão característica de Des­
cartes, e que o deixa a meio caminho entre o dedutivismo escolástico e o
empirismo iluminista; o erro insinua-se no pendor dogmático-axiomático
com que ele pretendia instaurar na variegada confusão sublunar o mesmo
tipo de «certezas dedutivistas» que a revolução científica parecia ter defi­
nitivamente estabelecido quanto ao comportamento dos corpos celestes.
O sistema tinha que ser coeso e estanque, não abrindo o flanco a
nenhuma incongruência que se lhe revelaria fatal: e daí a radicalidade do
mecanicismo cartesiano, movido pela necessidade de resolver algumas
perplexidades teóricas que sempre decorreriam de proposições tão ele­
mentares como a respeitante à existência de uma «alma animal» (uma
expressão aparentemente redundante e tautológica). Mas como poderia o

tical Assessments, 4 vols., London - New York, Routledge, 1991, IV, 323ss.; Harrison,
Peter, "Descartes on Animais", Philosophical Quarterly, 42. (1992), 219-227; eiusdem,
"The Virtues of Animais . . . ", cit., 463-484; Maclntyre, A.,Dependent Rational Animais. . .,
cit., 13-14, 32; Shugg, Wallace, "The Cartesian Beast-Machine in English Literature (1663-
1750)", Journal of the History of ldeas, 29 (1968), 279-292.
247 Sustentando a versão mais radical da tese cartesiana de ausência de sensações nos
animais, cfr. Steiner, Gary, "Descartes on the Moral Status of Animais", Archiv für Ges­
chichte der Philosophie, 80 (1998), 268-291.
24 8 Cfr. Araújo, Fernando, Adam Smith. O Conceito Mecanicista de Liberdade,
Coimbra, Almedina, 2001, 655ss., 697ss ..
249 Note-se, todavia, que o mesmo Leibniz recusava a natureza reflexiva à racionali­
dade animal - mas admitindo, com modéstia anti-especista, que o próprio ser humano tem
a sua conduta habitualmente determinada por esse tipo de racionalidade não-reflexiva, e
que por isso a animalidade predomina na conduta humana. Cfr. Leste!, Dominique, "Des
Animaux-Machines aux Machines Animales", in Cyrulnik, B . (org.), Si les Lions..., cit.,
681-682.
A Hora dos Direitos dos Animais 85

«sistema» admitir uma verdadeira alma nos não-humanos sem se envolver


perigosamente na indagação sobre a imortalidade dessa alma? Como
poderia fazê-lo sem sugerir um nivelamento ou indiferenciação entre a
espécie humana e as demais, desmentindo a tradição bíblica ?250 Como
poderia fazê-lo sem cair no risco de apresentar a condição humana como
um fruto de pura materialidade, com uma «alma» tão mortal como o seu
suporte corpóreo (como teria que suceder a uma «alma» não-humana),
sem uma natureza ou vocação transcendentes e supra-históricas?
Os dualismos cartesianos teriam sido em vão se ele tivesse cometido
a incongruência de admitir a evidência de uma verdadeira «alma» nos ani­
mais, sem a remeter à subaltemidade de uma «alma animal» - agora sim,
reduzida à condição de uma redundância vazia. E neste ponto Descartes
poderia até invocar o prestigiado antecedente de Plutarco, o qual, à sua
maneira, advertira já contra os perigos, seja da atribuição de uma alma
imortal aos animais - "não será uma prova temível a atribuição de razão
a animais que não dispõem de um conhecimento intrínseco de Deus?"25 1
-, seja até da atribuição a estes de uma alma meramente mortal, já que,
alegava também Plutarco, isso abriria a hipótese de que a alma humana
também pudesse ser meramente mortal (não sendo a imortalidade inerente
ao conceito de «alma»).
É ainda uma outra necessidade de congruência que dita a negação
cartesiana da capacidade de dor e de sofrimento dos não-humanos: pois a
inocência associada à ostensiva falta de liberdade nestes tomaria o sofri­
mento dos animais, ou até a simples possibilidade de qualquer sofrimento
neles, uma prova da deficiência da justiça divina. Malebranche explicita­
mente o reconhecerá, sustentando que a hipótese dos «animais-mecanis­
mos» é necessária para não se pôr em crise a noção da bondade divina -
pois se os animais pudessem sentir, o sofrimento que experimentassem
seria um injusto castigo de inocentes - 252.
E é também para fugir dos «baixios teológicos» que o cartesianismo
propõe o desvio da ciência para a investigação ,das causas do comporta­
mento animal, em busca de demonstrações de perfeição em animais-

25 0 Uma das tradições bíblicas, melhor dizendo...


25 1 Plutarch, Moralia. XII- De Solertia Animalium (trad. p/ Harold Chemiss & Wil­
liam C. Helmbold), Cambridge Mass., Harvard U.P., 1957, 531 (Loeb, 406).
25 2 Cfr. Malebranche, Nicholas, "De la Recherche de la Verité", in Oeuvres (Gene­
vieve Rodis-Lewis ed.), Paris, Gallimard / Pléiade, 1979, I, 467.
86 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

máquinas que postulariam a perfeição do seu Criador, desistindo de atri­


buições de significados, antropomórficos ou outros, a essas condutas -
perdendo o «bestiário», na ciência, o seu aspecto alegórico e o seu escopo
moralizador tão dominantes até então, e que perdurarão intactos até aos
nossos dias, como vimos, apenas na literatura e no uso ornamental e cari­
catural da iconologia animal25 3.
E no entanto, Descartes parecia prometer uma sólida aliança à causa
zoófila, pois ele é um dos coveiros da «Grande Cadeia do Ser», opondo­
se, nos seus Principia Philosophiae, ao teleologismo antropocêntrico, con­
cordando com Leibniz e Espinoza na proposição de que "non omnia homi­
num causa fieri"25 4 . Só que logo numa das primeiras reflexões conhecidas
de Descartes sobre os animais, nas suas Cogitationes Privatae, avança-se
com a observação de que "o alto grau de perfeição evidenciado nalgumas
das suas acções faz-nos suspeitar de que os animais não possuem livre­
arbítrio". A ênfase desloca-se da visão «micro-cósmica» do homem como
epítome das qualidades naturais, como ápice teleológico da criação, para a
visão, não menos antropocêntrica, da autonomia de um espírito que não
participa inteiramente das leis mecanicistas que regem a parte inferior da
criação, porque delas é capaz de se libertar através do uso reflexivo e
intencional da sua «alma racional»255/25 6.
Quando Descartes enfatiza o grau de perfeição causal evidenciado
pelos não-humanos, fá-lo já para sublinhar a prisão mecanicista que
decorre dessa perfeição, desse carácter rematado que não pode ser acres­
centado ou aperfeiçoado pela conduta dos animais - como o não podia
ser, nessa era pré-cibernética, pelas máquinas em geral. Não surpreende,
pois, que o argumento a:nti-teriofílico se concentre, no IJiscours de la
Méthode, na demonstração da falta de racionálidade nos não-humanos,

25 3 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animais... ", cit., 482-483.


254 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 188.
255 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animais ... ", cit., 479.
256 Contra Descartes, Pascal recusava-se a reconhecer nos animais uma conduta
puramente mecanicista, por insistir que a competência dos animais pode ser mecânica,
mas não o é a vontade de utilização dessa competência, não sendo possível ignorar,
segundo Pascal, que os animais, antes de serem instrumentos, eram também objectos da
afectividade humana e geradores de sentidos através da alteridade. Cfr. Lestel, Domini­
que, "Des Animaux-Machines aux Machines Animales", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ... , cit., 682.
A Hora dos Direitos dos Animais 87

usando como bases demonstrativas a falta, neles, tanto de linguagem como


de intencionalidade teleológica aparente nos actos 257/258.

7 .b) Dogmatismo e crueldade, a árvore e os seus frutos


A arrogância dogmática deste «espírito de sistema» era tanta que os
seus ecos continuam a reverberar nos mais diversos domínios, e não ape­
nas no do estatuto dos não-humanos. Mas não se pense que as proposições
cartesianas não despertaram reacções imediatas: Henry More, por exem­
plo, tentará obter de Descartes um esclarecimento quanto aos excessos
mecanicistas da sua posição, procurando saber porque é que a simples
necessidade de congruência interna de argumentos leva à desconsideração
de evidências empíricas, como "ilia vulpium canumque astutia et sagaci­
tas", e porque é que tudo é encaminhado para um dualismo, quando pos­
sivelmente não se trata de "aut sensu spoliare, aut donare immortalitate".
Descartes, em resposta, admitirá a existência de uma anima corporea mas
não de uma mens, sugerindo, quanto à "astutia et sagacitas", que não se
trataria senão de perfeição mecânica dos instintos, susceptível de "a sola
membrorum conformatione profecta explicare"259.
Também Pierre Gassendi objectará a Descartes, insistindo que as
diferenças entre humanos e não-humanos são essencialmente de grau,
devendo admitir-se somente que os animais não raciocinam tão perfeita,
nem tão amplamente, como o faz a maior parte dos seres humanos - não
sendo por isso ·necessário reduzir os animais não-humanos a autómatos
mecanicistas incapazes de qualquer impuÍso livre -. Mas a estas objecções
Descartes não responderá260.
Como parece que não há nada (e o seu contrário) que não tenha sido
sustentado já na história das ideias, também já há quem tenha tentado rea-

257 ln Oeuvres de Descartes, Paris, Vrin, V I, 56.


25 8 Diogo Barbosa Machado, na Bibliotheca Lusitana, II, 807, IV, 196, dá Jorge
Gomes Pereira, Doutor de Medicina, como precursor das opiniões de Descartes, não ape­
nas a relativa à ausência de linguagem nos animais, mas também a respeitante à concepção
mecanicista de entes privados de «alma sensitiva».
259 Cartas DXXXI e DXXXVII in Oeuvres de Descartes, cit., V, 244-245, 276.
260 Cfr. Gassendi, Pierre, Objectiones Quintae ln Meditationem II, e Descartes, René,
Quintae Responsiones, ambos in Oeuvres de Descartes, cit., V II, 268-274, 359.
88 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

bilitar a imagem anti-ambientalista e anti-zoófila de Descartes, subli­


nhando o facto de ele não subscrever uma «teoria de domínio antropocên­
trico» e antes ter apontado para a necessidade de integração numa harmo­
nia cósmica, precursora do ecocentrismo - sendo ponto central a
circunstância de, para Descartes, o dualismo primordial ser, não aquele
que separa humanos e não-humanos, mas antes o que se dá entre corpo e
alma, um dualismo que, ocorrendo apenas na nossa espécie, tomaria
inquestionável o carácter único do ser humano, que seria o único ser ter­
reno verdadeiramente dotado de alma26 I .
Mas isso é novamente sublinhar que a anti-teriofilia de Descartes e
dos cartesianos não é tanto o resultado de uma sensibilidade teriofóbica
como o produto de uma obsessiva insistência na coesão de um sistema
axiomático, de um sistema determinista em todos os domínios exteriores à
esfera da liberdade humana. E por outro lado, não é descabido julgarmos
pragmaticamente a árvore pelos seus frutos, e nesses termos diremos que
bem pode Descartes ter sido não mais do que um agnóstico em matéria de
«alma animal», mais preso pela indemonstrabilidade do que pela implau­
sibilidade de uma experiência sensível dos animais que fosse comensurá­
vel e assimilável à dos seres humanos, bem pode ele ter resistido à con­
vicção íntima de que os animais eram deveras autómatos insensíveis, bem
pode ele ter sido sensível à simbiose afectiva, à relação «conivente» com
os animais de companhia262 : o que conta é que muitos dos seus seguido­
res o levaram à letra - como se ilustra na observação já citada de Leib­
niz, ou no episódio narrado por Fontenelle, de que teria encontrado Male­
branche a dar pontapés a uma cadela, tranquilo na sua alegação de que o
acto era inócuo, dada a falta de sensibilidade por parte do objecto das suas
agressões263 - ; o que conta é que a posição cartesiana constituiu, na prá-

26 1 Cfr. Wee, Cecilia, "Cartesian Environmental Ethics", Environmental Ethics, 23


(2001), 275-286.
262 Já em 1586 Étienne Pasquier observara que a relação do homem com um cão de
companhia é essencialmente baseada na «conivência», no sentido de que o animal não ofe­
rece uma resistência cega à intencionalidade humana, antes lhe reage e a gratifica. Mais
tarde, Maupertuis lembrará que pode partir-se um relógio, mas que partir um animal é
matd-lo, porque o animal não é um objecto inerte, mas uma presença. Cfr. Leste!, Domi­
nique, "Des Animaux-Machines aux Machines Animales", in Cyrulnik, B . (org.), Si les
Lions ..., cit., 684-685.
263 Cfr. Cottingham, John, "A Brute to the Brutes? Descartes' Treatment of Ani­
mais", in Moyal, G J.D. (org.), René Descartes. Criticai Assessments, cit., IV, 323ss.;
A Hora dos Direitos dos Animais 89

tica, um poderoso estímulo à difusão da prática da vivissecção, à perpe­


tuação da crueldade e da indiferença264.
Por ironia, no rescaldo do cartesianismo a visão mecanicista dos ani­
mais acabou transferida para o próprio paradigma das ciências humanas
emergentes, multiplicando-se formas de análise mais ou menos explicita­
mente centradas no «homem-máquina» - destacando-se La Mettrie nes­
tas «subversões materialistas do cartesianismo»265 - , as quais, aliadas
posteriormente ao evolucionismo e às teses da fundamental comunicabili­
dade de todos os entes vivos dentro de um processo selectivo comum, tor­
naram por sua vez insustentável a radicalidade da demarcação cartesiana
entre a espécie humana e as demais266.
Mas - insistamos - o legado mais perene e terrífico do cartesia­
nismo foi, por entre as demarcações especistas consentidas (ou impostas)
pelos seus dualismos, a ideia de que a própria dor e o sofrimento eram
dados exclusivos da experiência humana, e de que por isso os não-huma­
nos poderiam ser entregues a todo e qualquer tipo de destino às mãos dos
interesses humanos, sem necessidade de consideração pelo nível de bem­
estar resultante da instrumentalização daquelas formas de vida - havendo
ainda hoje quem seriamente argumente com a noção de que os não-huma­
nos, mesmo os «primatas superiores», não experimentam dor nem ansie­
dade267, sendo todavia mais numerosos aqueles que, com maior subtileza

Macintosh, JJ., "Animais, Morality and Robert Boyle", cit., 437; Harrison, P., "Animal
Souls... ", cit., 521-524; Maehle, Andreas-Holger & Ulrich Trõhler, "Animal Experimentation
from Antiquity to the End of the Eighteenth Century:Attitudes and Arguments", in Rupke, N.A.
(org.), Vivisection. . ., cit., 26-27; Passmore, J., "Toe Treatment of Animais", cit., 204; Rosen­
field, L.C., From Beast-Machine. .., cit., 18-21, 41-43, 69-70, 265-269; Shugg, W., ''Toe Carte-
sian Beast-Machine... ", cit., 279ss.; Wolloch, N., "Christiaan Huygens's... ", cit., 416-418.
264 Cfr. Guerrini, A., "The Ethics of Animal Experimentation... ", cit., 406-407;
Maehle, Andreas-Holger, "The Ethical Discourse on Animal Experimentation, 1650-
1900", in Wear, Andrew, Johanna Geyer-Kordescb. & Roger French (orgs.), Doctors and
Ethics: The Earlier Historical Setting of ProfessiondlEthiés, Amsterdam - Atlanta, Rodopi,
1993, 203-251; Maehle, Andreas-Holger & Ulrich Trõhler, "Animal Experimentation from
Antiquity to the End of the Eighteenth Century: Attitudes and Arguments", in Rupke, N.A.
(org.), Vivisection. . ., cit., 23-24.
265 Cfr. Lestel, Dominique, "Des Animaux-Machines aux Machines Animales", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ... , cit., 682.
266 Cfr. Araújo, F., Adam Smith.. ., cit., passim; Rosenfield, L.C., From Beast­
Machine .. ., cit., 141-153.
26 7 Cfr., por exemplo, Leahy, M.P.T., Against Liberation. . ., cit., 124-131, 222-228.
90 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

(e afastamento do cerne da argumentação cartesiana), recorrem a alega­


ções de incomensurabilidade entre o sofrimento animal e o sofrimento
humano - seja por razões fisiológicas, seja pela alegada insusceptibili­
dade de representação e antecipação das condições sofrimento - , alega­
ções abundantemente contraditadas, por exemplo em três «clássicos» dos
anos oitenta, de Tom Regan 268, Bernard Rollin269 e Andrew Rowan270/27 l .
Menos terrífico, mas não menos perene e nocivo, é o legado carte­
siano da dualidade «corpo-alma», naquilo que ela acarretou de negação da
anima/idade na espécie humana, e por isso de desnaturalização da própria
percepção que a humanidade faz de si mesma, exaltando-se como centro
descarnado de imputação de atributos morais, imune a todas as fragilida­
des, contingências ou dependências - como se fossemos hospedeiros de
um parasita fantasmagórico e imortal, capaz de subverter a uma lógica sin­
gular e irredutível a nossa própria condição de «nativos intelectuais do pla­
neta», elevando-nos, mesmo aqui na nossa «passagem terrena», à condi­
ção de «anjos invulneráveis»272.
Que fazer do legado cartesiano? Renegar-lhe as conotações mais
absurdamente cruéis e insensibilizadoras, decerto; mas o que dizer das
implicações teológicas? Algumas poderão constituir artigos de fé - a atri­
buição de uma alma aos humanos e a sua recusa aos não-humanos, por
exemplo - , mas não podem servir de premissas morais, e muito menos
servem de base a decisões científicas ou de política de investigação, já por­
que tais atribuições são crescentemente controvertidas no todo social, já
porque elas não são verdadeiramente susceptíveis de demonstração ou
comprovação - sendo que, na dúvida, a nossa humanidade nos impõe
deveres, tanto de abstenção como de colaboração, mas sempre no sentido

268 Regan, Tom, All that Dwell Therein. Animal Rights and Environmental Ethics,
Berkeley, University of Califomia Press, 1982, 6-27.
269 Rollin, Bernard E. , The Unheeded Cry. Animal Consciousness, Animal Pain, and
Science, Oxford, Oxford University Press, 1989, 107-201.
210 Rowan, Andrew N., Of Mice, Models, and Men. A Criticai Evaluation of Animal
Research, Albany NY, SUNY Press, 1984, 77-83.
21 1 Cfr. ainda: Smith, Jane A. & Kenneth M. Boyd (orgs.), Lives in the Balance: The
Ethics of Using Animais in Biomedical Research, New York, Oxford University Press,
1991; Smith, Richard, "Animal Research: The Need for a Middle Ground", British Medi­
cal Journal, 322 (3/2/2001), 248-249.
212 Cfr. Mason, Jim, An Unnatural Order. Uncovering the Roots of Our Domination
of Nature and Each Other, New York, Simon and Schuster, 1993, 37.
A Hora dos Direitos dos Animais 91

da diminuição ou da erradicação do sofrimento em todas as formas de


vida.
Alguns refugiar-se-ão numa espécie de «isolacionismo biológico»,
ou de «bio-cartesianismo», alegando que a peculiaridade da espécie
humana deriva do facto de os nossos estados mentais não serem inteira­
mente deriváveis do respectivo suporte fisiológico273 ; mas, novamente, a
ser verdade essa proposição, como justificaria ela, por um lado, a indife­
rença a estados de sofrimento que, porque são diferentes dos nossos, não
teríamos legitimidade para avaliar - e menos ainda para desvalorizar -?
E por outro, como justificaria ela a quebra do isolacionismo que consiste
na extrapolação de resultados de sofrimento animal, provocados na «expe­
rimentação animal», para efeitos de prevenção do sofrimento humano,
mais a mais se a expressão mental do sofrimento é de certo modo separada
de um suporte orgânico?27 4/27 5
Mas a estocada mais dura a esta forma cartesiana, e a outras formas
ainda, de exclusivismo especista, temo-la por dada, há mais de dois sécu­
los, por David Hume, fazendo-se arauto, com a contundência habitual, de

273 Essa estratégia está hoje profundamente desacreditada, em larga medida graças a:
Damásio, António R., Descartes ' Error. Emotion, Reason, and the Human Brain, New
York, G.P. Putnam, 1994; eiusdem, The Feeling of What Happens. Body and Emotion in
the Making of Consciousness, New York, Harcourt Brace, 1999; eiusdem, Looking for Spi­
noza. Joy, Sorrow, and the Feeling Brain, Orlando Fla., Harcourt, 2003.
274 Cfr. La Follette, Hugh & Niall Shanks, "The Origin of Speciesism", Philosophy,
71 ( 1996), 5 1-56; Kelch, T.G., "Toward a Non-Property Status... ", cit., 556ss.; Brown,
Les, Cruelty to Animais. The Moral Debt, Basingstoke, Macmillan, 1988; Carson, Gerald,
Men, Beasts, and Gods. A History of Cruelty and Kindness to Animais, New York, Scrib­
ner, 1972, 36-42.
275 Mas porque haveríamos nós de ser forçados a optar pelo dualismo ou pelo
monismo, se ambos são, afinal, formas reducionistas? Ninguém no seu perfeito estado pro­
curará compreender o que se escreve neste livro, seja analisando a tinta, o papel, as opções
tipográficas, seja atribuindo o que nele está escrito ,a Ull) �spírito descarnado, liberto dos
constrangimentos da materialidade, da «geração e corrupção» (para usarmos uma termino­
logia aristotélica). Porque haveriam as demais expressões vivas da inteligência, tanto a
humana como a não-humana, de ser reconduzidas a uma pura base neurofisiológica (a
encadeamentos de impulsos neuronais), ou de ser atribuídas, em alternativa, a uma «alma»
de geração sobrenatural? Porque haveríamos nós, por isso, de nos enfeudar ao monismo
materialista ou ao dualismo idealista, se nem um nem outro isoladamente explicam sequer
o facto tão elementar de esta frase (que vai acabar em «sentido») fazer sentido? Veja-se a
este respeito as subtis interrogações de: Vidal, Jean-Marie, "Des Machines, des Animaux
et des Hommes?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ... , cit., 335-336.
92 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

uma revolução científica que ele próprio só podia difusamente pressentir:


"Tão ridículo como negar-se uma verdade evidente é empregar-se muito
esforço a defendê-la; e nenhuma verdade se afigura mais evidente do que
a de que os animais são tão dotados de pensamento e de razão como os
homens. Os argumentos neste sentido são tão óbvios que nem mesmo os
mais estúpidos e ignorantes deixam de compreendê-los"276.

7 .e) A revolução darwinista


Como apontámos já, no século XVIII o debate passa a centrar-se
menos na preocupação com a demonstração da superioridade da espécie
humana dentro da «Cadeia do Ser» e com os requisitos lógicos do postu­
lado da imortalidade da alma, e mais sobre a própria natureza dos animais
- mormente no contexto em que se admitiria que o próprio homem emer­
gisse, através da educação, da tábua-rasa do «bom selvagem». A seculari­
zação, de mistura com os rápidos avanços na antropologia, na biologia e
na zoologia277 e com a emergência das ciências humanas e sociais, mais
tarde complementadas pela «revolução darwinista» , provocaram entre tan­
tas outras consequências a da passagem à consideração autónoma da
índole dos não-humanos, à sua «emancipação» do servilismo e do meca­
nicismo, e à emergência, finalmente com pleno alcance ético - dado o
nivelamento existencial de todas as formas de anima/idade, humana ou
outra - , dos temas do bem-estar animal e do combate à crueldade contra
os animais278.
O darwinismo aliou-se, numa das suas vertentes, com uma tensão
progressista que se rebelou contra o inegualitarismo irremediável que
parecia transparecer na concepção de «Grande Cadeia do Ser»279. Como
já tivemos ocasião de notar, é o darwinismo que destrói - no plano da
ciência, primeiro, no plano cultural e axiológico, depois - a distinção
entre criaturas «superiores» e «inferiores» , insistindo na igual adaptabili-

276 Hume, D., A Treatise . . ., cit., 176.


277 A expressão «zoologia» surge em meados do século XV II, com a restrita acepção
de «estudo dos animais dos quais é possível extrair drogas, remédios», para só no século
XV III se ter tornado sinónimo de «wografia».
27 8 Cfr. Hastings, H., Man and Beast . . ., cit., passim.
279 Cfr. Lovejoy, A.O., The Great Chain of Being, cit., 247.
A Hora dos Direitos dos Animais 93

dade ambiental de cada espécie, demonstrada pelo seu sucesso dentro do


processo evolucionista, um processo de flutuações e acasos dentro do qual
não é possível discernir uma predisposição teleológica, a qual, aliás, pas­
sava a poder ser dispensada. E é uma «revolução científica» tão forte e
radical que hoje é raro encontrar-se um cientista que não subscreva as teses
básicas do evolucionismo (e não ironize com o criacionismo defendido no
«Scopes Trial», no Tennessee de 1 925), ao mesmo tempo que, paradoxal­
mente, a ordem jurídica continua a fazer assentar muitas das suas distin­
ções em taxonomias e hierarquizações que o evolucionismo desacreditou,
continuando cegamente a perpetuar o "hominum causa omne ius constitu­
tum" do Digesto2SO.
É verdade que, como também dissemos, o darwinismo não irrompe «a
partir do nada», não é um fenómeno de geração espontânea ou um rasgo de
génio isolado: a exegese histórica das atitudes humanas em relação às espé­
cies não-humanas traz interessantes ensinamentos, entre os quais avulta o de
que a atitude «preservacionista» antecede historicamente o triunfo do evo­
lucionismo, predominando já, por razões de «naturalismo estético», por
exemplo na taxinomia de Lineu - havendo até quem sugira que esses ante­
cedentes contaminam também as modernas defesas dos direitos dos animais,
centradas nessa vontade estética e instrumentalizadora2s1.
E também já sublinhámos que o darwinismo tem, como fenómeno
cultural, diversas vertentes, algumas das quais (as que vão desembocar ao
«darwinismo social», por exemplo) poderiam ser tomadas como fatalistas
demonstrações da naturalidade do espezinhamento dos interesses, do bem­
estar e de alegados «direitos» de outras espécies por parte daquela espécie
que soube triunfar na luta evolucionista (uma espécie de mega-«Juízo de
Deus», sancionando valorativamente a partir de uma ordem de factos2S2) .
O impacto do darwinismo foi, por isso, também algo ambíguo nesta área,
visto que para uns ele não fazia senão demonstrar, no plano dos factos,

280 D. 1.5.2, Hermogenianus 1 iuris epit.. Cf/Wis�,'S.M., Rattling the Cage, cit., 21-
-24. E ainda: Byrne, Richard W., The Thinking Ape: Evolutionary Origins of Intelligence,
Oxford, Oxford University Press, 1995.
28 1 Cfr. Hargrove, Eugene C., "Foundations of Wildlife Protection Attitudes",
Inquiry, 30 (1987), 3-31.
282 As próprias expressões «adaptação» e «evolução» revelam uma fundamental
ambiguidade, uma nebulosa oscilação entre o determinismo mecanicista e a intencionali­
dade teleologista (e daí que eles sugiram um movimento «ascensional» que não é valorati­
vamente neutro).
94 Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista

essa superior capacidade da espécie humana em termos de «luta pela


sobrevivência», em termos de «adequação ao nicho ecológico» - ao
mesmo tempo que parecia igualmente legitimar a exploração dos animais
não-humanos como parte de uma estratégia de sobrevivência, sobretudo
aquela que fosse ditada pela escassez alimentar - ; sendo que, para outros
(a maioria da comunidade científica, e hoje a maioria dos cultores da bioé­
tica), o darwinismo destruía, como dissemos, a visão hierárquica e teleo­
lógica da natureza, destronando a espécie humana da posição privilegiada,
exaltada, que lhe era atribuída por aquela visão - que passava a ser subs­
tituída por uma outra visão mais desapaixonada, naturalística e pragmá­
tica, reportada à coexistência das espécies na partilha dos recursos do
nosso planeta, capaz, pois, de encarar os problemas da condição dos seres
vivos em termos mais igualitários e menos discriminadores28 3. Talvez
nada seja mais revelador dessa fundamental ambiguidade do que a atitude
que Marx e Engels tomaram face ao darwinismo, primeiro, e depois face
ao darwinismo social - uma atitude de aplauso do primeiro que se con­
verteu em veemente repúdio do segundo284.

28 3 Cfr. Fox, Michael W., "Man and Nature: Biological Perspectives", in Morris,
R.K. & M.W. Fox (orgs.), On the Fifth Day . .., cit., 12 1- 123; Kelch, T.G., "Toward a Non­
Property Status. .. ", cit., 559-560; Rollin, B.E., The Unheeded Cry . . ., cit., 72.
284 Num primeiro momento, Marx e Engels reconhecerão em Darwin a transposição
para a natureza do tipo de conflitualidade que se detectava no seu espaço social coevo, uma
espécie de «naturalização do social»; e depois denunciarão nos darwinistas a transposição,
para o plano social e com o intuito de legitimar a perpetuação dos poderosos, do princípio
da sobrevivência dos mais aptos, um tipo de «socialização do natural». Cfr. Tort, Patrick,
"Darwinisme Social: La Méprise", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 618.
8. Libertação - I - Podem Eles Sofrer?
Devem Eles Sofrer?

"A questão não é: Podem eles raciocinar? nem: Podem eles falar?
mas: Podem eles sofrer?" - Jeremy Bentham 2 8 5 /28 6 .

"Confrontados com o não-humano, com o não-linguístico, perde­


mos a capacidade de transcender a contingência e a dor através da
apropriação e da transformação, e ficamos apenas com a capaci­
dade de reconhecer a contingência e a dor. A vitória final da poe­
sia na sua imemorial querela com a filosofia ( . . .) consistiria na
resignação à ideia de que este é o único tipo de poder sobre o
mundo que podemos esperar ter. Porque essa seria a suprema
renúncia à convicção de que, no «mundo lá fora», há uma verdade
a ser descoberta, e não apenas poder e dor." - Richard Rorty 2 8 7 .

8 .a) O interesse no não-sofrimento


Admitamos que um dos cernes da moralidade humana senão
mesmo o seu cerne vital, o seu núcleo mais relevante - é a tentativa de

28 5 Bentham, Jeremy, An lntroduction to the Principies of Morais and Legislation


(J .H. Bums & H.L.A. Hart, eds.), London, Athlone Press, 1970, 2,89 (Cap . XVII, Secção l ,
nota 2). Cfr. Goffi, Jean-Yves, "Droits des Animaux et Libéràtion Animale", i n Cyrulnik,
B. (org.), Si les Lions ... , cit., 903 ; Morgan, Bronwen, "Oh, Reason Not the Need: Rights
and Other Imperfect Altematives for Those Without a Voice", Law & Social lnquiry, 24
(1999), 295ss..
28 6 Sobre esta já célebre observação de Bentham acerca da capacidade de sofrimento
dos não-humanos, cfr. a Introdução em Garrett, A.V. (org.), Animal Rights and Souls.. ., cit.,
I, v-vi.
28 7 Rorty, Richard, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge Uni­
versity Press, 1999, 40.
96 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

erradicação da violência e do sofrimento do plano da coexistência. Muitas


razões poderíamos aduzir em favor desta asserção; bastemo-nos com duas:
- a de que a experiência de sofrimento infligido é um mal inequívoco
para qualquer ser sensível, não reclamando quaisquer qualidades
na vítima, não dependendo de nada que não seja uma sensibilidade
básica, uma capacidade de experimentar dor - haja ou não esta­
dos mentais associados à representação dessa experiência -;
- a de que, nas sociedades humanas, a experiência de sofrimento
infligido e não-consentido atenta contra os próprios fundamentos
da gregariedade da nossa espécie, cabendo perguntarmos, em
casos de persistência irremediável daquelas formas de sofrimento,
se devemos algum respeito à sociedade e aos nossos semelhantes,
e se não seria preferível um «estado de natureza» no qual pudés­
semos ao menos usar plenamente os recursos de auto-defesa de
que somos naturalmente dotados para a nossa sobrevivência.
Assim sendo, poderíamos ligar a capacidade de sofrimento, tão ine­
quivocamente quanto é possível, a uma propriedade moral, a propriedade
de uma acção e de uma experiência - independentemente dos mecanis­
mos de suporte dessa acção e dessa experiência. E se existe um funda­
mento para a moralidade humana - se a moralidade aponta para uma rea­
lidade que lhe seja prévia e exterior - , então esse fundamento será
certamente o desejo de estabelecermos, no nosso espaço vital, as condi­
ções de uma existência segura e livre de medo e de sofrimento.
Nessa medida, a moralidade poderia assegurar-nos um trânsito irres­
trito entre a condição humana e a condição não-humana, na medida em
que pudesse discernir-se, na relativa opacidade da expressão externa da
experiência alheia - tanto na humanidade que julgamos partilhar com
todos os da nossa espécie como na animalidade que inequivocamente par­
tilhamos com as demais espécies - , os traços do sofrimento e da ausên­
cia dele2 88 .
Além disso, o facto de se centrar a análise na capacidade de sofri­
mento como pré-requisito para a existência de interesses permitiria defen­
der a tese da igualdade de consideração de interesses entre humanos e não­
humanos sem nos embrenharmos numa indagação sobre a natureza

288 Cfr. La Follette, H. & N. Shanks, "The Origin of Speciesism", cit. , 50; Kay, Lor­
raine, Living Without Cruelty, London, Sidgwick & Jackson, 1990.
A Hora dos Direitos dos Animais 97

essencial dos direitos289, sem termos de repisar as longas veredas - tam­


bém elas contingentes, lembremo-lo - da conquista do Direito pela
humanidade.
Por outro lado, se o princípio de igualdade que releva é aquele que se
reporta aos interesses, então a igualdade de situações para seres igual­
mente capazes de sofrimento é aquilo que pragmaticamente conta. A capa­
cidade para sofrer não é apenas mais uma característica, como a capaci­
dade para «falar» ou «raciocinar», que sirva de fundamento para uma
demarcação entre seres que merecem ou não uma consideração ética
plena; a capacidade de sofrimento é o próprio requisito para a existência
de interesses, é a condição para que se possa falar de interesses e referir­
-lhes qualquer valoração ética. Se um ser não for capaz de sofrer, não há
nada a tomar em consideração do ponto de vista ético. Mas se for capaz de
sofrimento, não é o facto de não usar uma linguagem inteligível ou de não
ser capaz de fabricar utensílios que pode ser motivo para se desconsiderar
esse sofrimento290.
Insistamos, os próprios seres humanos - alguns permanentemente,
muitos deles na velhice e na doença, todos eles na infância - têm incapa­
cidades e dependências na forma de recorrerem à sua linguagem e à inten­
cionalidade da sua razão, e por isso a plena consideração (bio)ética dos
seus interesses deve assentar noutros critérios que não os da racionalidade,
da reciprocidade, da intencionalidade expressiva ou do uso de linguagem
articulada. Dito de forma mais crua ainda, se fossemos assentar a discri­
minação em «capacidades racionais» e aceitássemos qualquer grau de
sofrimento nos seres discriminados, seríamos levados à conclusão de que
as crianças, os deficientes profundos e os irreversivelmente incapacitados
entre os humanos poderiam justificadamente ficar mais expostos ao sofri­
mento do que os demais membros da sua espécie, e até do que muitos não­
humanos29 1.
Com efeito, se a fronteira dos «interesses relevantes» deve estabele­
cer-se no limiar da capacidade de sofrer, essa detecta-se directamente por
expressões externas de dor, medo e ansiedade em muitos não-humanos -

28 9 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 7.


2 90 Cfr . Singer, Peter, Ética Prática (trad. p/ Álvaro Augusto Fernandes), Lisboa,
Gradiva, 2000, 75-78.
29 1 Singer, P., Ética Prática, cit., 80. Cfr. Pluhar, E.B., "Is There a Moral Relevant
Difference... ", cit., 59-68; eadem, Beyond Prejudice . . ., cit., passim.
98 Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

o «síndrome geral de adaptação»292 - , ou indirectamente pela existência


de um sistema nervoso similar ao dos seres humanos. Poderá argumentar­
se que, na detecção e avaliação directa da experiência do sofrimento, há
limiares a partir dos quais se torna crescentemente difícil discernir a exis­
tência de capacidade de sofrimento em seres não-humanos293 ; mas poderá
sempre replicar-se que não é menos difícil detectar essa capacidade de
sofrimento em seres humanos colocados em situações extremas, mor­
mente em estados vegetativos.
Mas mesmo que, cedendo às teses «especistas», reconhecêssemos
que os interesses humanos devem sempre prevalecer sobre os de outras
espécies, mesmo assim isso não justificaria todo o tipo de exploração e
experimentação dolorosa sobre os não-humanos, dada a assimetria que
existe entre a comissão de um dano e a omissão de auxílio para remoção
de um dano (se não existisse uma tal assimetria, impor-se-ia a exploração
e experimentação não-consensuais nos próprios seres humanos). Ora não
será sempre evidente que, mesmo que o mal evitado pela experimentação
seja superior ao mal perpetrado através dela, o desnível entre os dois males
seja tão óbvio e pronunciado que ele supere a assimetria entre comissão e
omissão - sobretudo quando o mal causado às cobaias é perfeitamente
determinado e perceptível e o ganho para os seres humanos, em termos de
mal prevenido, é meramente provável, ou mesmo menos do que isso, cons­
tituindo um benefício difuso, indeterminável. No extremo, poderia até
adoptar-se relativamente a essa assimetria uma atitude libertária, nos ter­
mos da qual, nestas áreas em· que não é concebível uma compensação que
elimine todos os danos294, nunca haveria qualquer justificação para qual­
quer sacrifício de qualquer criatura (humana ou não-humana) em benefí­
cio de outra, nenhum «cálculo hedónico» a sustentar o sacrifício de um

292 As reacções fisiológicas dos animais que lhes aumentam a capacidade de fugirem
ou reagirem a agressões, acompanhadas de sinais externos e de modificações de compor­
tamento, evidenciam aquilo que é por vezes designado como «síndrome geral de adapta­
ção», cuja manifestação é tão reveladora da aptidão vital do animal como é indiciadora de
sofrimento efectivo, de um stress de medo, conflito e frustração que acompanha o processo
de readaptação a circunstâncias de «desequilíbrio». Cfr. Dawkins, Marian Stamp, Animal
Suffering. The Science of Animal Welfare, London, Chapman & Hall, 1980, passim.
293 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 160-161.
294 Uma indemnização integral e efectiva que permitisse constatar, num cômputo
final, a ausência de qualquer dano - de modo tão inequívoco como é possível com o
«Óptimo de Pareto» de que falam os economistas cultores da «Análise de Bem-Estar».
A Hora dos Direitos dos Animais 99

indivíduo em proveito da massa, razão pela qual toda a experimentação


com sofrimento deveria ser banida, fosse qual fosse o benefício, e o
número de beneficiários, correspondentes295/296.

8 .b) Bem-estar e comensurabilidade


Questão conexa com esta, e não menos decisiva, é a da quantificação,
ou da atribuição de valores discretos, a realidades que são indefiníveis,
incomparáveis e até inefáveis, como a da intensidade do sofrimento ou do
benefício que podem resultar para qualquer ser vivo de qualquer circuns­
tância da sua existência.
É verdade que em parte o recurso a «direitos» procura evitar as arma­
dilhas do utilitarismo, como a da aparente legitimação da escolha entre
interesses conflituantes, sendo que a invocação de «direitos» tenta tornar
incomensuráveis alguns desses interesses - por exemplo, proscrevendo o
grande mal do sofrimento mesmo quando o somatório de pequenas satis­
fações derivadas da situação de que emerge o sofrimento pudesse aparen­
temente servir para contrabalançá-lo, ou evitando a comparação de situa­
ções de necessidade extrema entre humanos e não-humanos, quando se
possam dar por equivalentes os interesses em jogo (por exemplo, blo­
queando a hipótese de justificação de morte de humanos como meio de se
evitar a morte de não-humanos).
A simples fórmula maximizadora do utilitarismo permitiria efectiva­
mente a prevalência de interesses vitais dos não-humanos sobre os huma­
nos, bastando que se conferisse alguma ponderação aos interesses dos não­
humanos e que estes fossem em número suficiente para que o somatório
dos seus interesses pesasse decisivamente na equação. Por isso um «sis­
tema de direitos» evita comparações pura e simplesmente, estabelecendo
partições e limites naquilo que, de outro m9do, poderia configurar-se

2 95 Cfr. La Follette, Hugh & Niall Shanks, "Util-izing Animals", Journal of Applied
Philosophy, 12 (1995), 15-16, 18-19.
2 96 Cfr. ainda: Anderson, Warwick, "A New Approach to Regulating the Use of Ani­
mals in Science", Bioethics, 4 (1990), 45-54; D'Amore, Emanuela, "Normativa che Regola
l'Utilizzo degli Animali a Fini Sperimentali o Scientifici", e Delpire, Veronique C. &
Michael Balls, "La Regolamentazione della Sperimentazione Animale a Livello Europeo",
ambos in Mannucci, Anna & Mariachiara Tallacchini (orgs.), Per un Codice degli Animali,
Milano, Giuffre, 2001, 225-236, 237-250.
100 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

como um contínuo de valorações - por exemplo, discriminando entre


interesses «vitais», «relevantes mas não vitais», e «periféricos»297 .
Contudo, essa classificação suscita o mesmo problema de todas as
classificações: ou há tantas classes quantos os casos particulares, e essa
«escala 1: 1 » é inútil; ou as classes têm uma determinada extensão, mas
passam a englobar situações cuja diversidade pode não ser adequadamente
abarcada, dada a inexistência de sub-classes (será todo o sofrimento não
trivial e não-fatal englobável numa só classe, por exemplo?).
E no entanto a comensurabilidade é frequentemente indispensável,
por exemplo na experimentação animal, na qual se presume que o sofri­
mento das cobaias é recoberto ao menos por uma probabilidade de bene­
fício para os seres humanos, ou no tratamento das espécies protegidas, em
que se presume, ao invés, que a actividade humana é que é susceptível de
lesar interesses prioritários dessas espécies, e é o benefício para os seres
humanos que deve ceder. Pense-se num exemplo, mais trivial ainda, de
comensurabilidade de interesses: a multiplicação das estradas acarreta ris­
cos crescentes de morte com sofrimento para animais selvagens, e é de
admitir que a partir de certo momento isso ocorra acompanhado de incre­
mentos despiciendos no bem-estar dos humanos, com escassas diminui­
ções do congestionamento e das demoras do tráfego obtidas pelo alarga­
mento da rede viária - e que por isso exista um «nível óptimo» de
construção de estradas que equilibra o bem-estar humano com o sacrifício
de vidas não-humanas. E no entanto, sabemos que a consideração exclu­
siva dos interesses vitais dos animais selvagens levaria a uma escassez
absoluta de estradas e à saturação total da rede viária, daquelas poucas
estradas remanescentes (se as · houvesse) em que nenhqma vida não­
humana fosse posta em risco. O bem-estar, a vida até, de muitos humanos
poderia ser sacrificada nessas estradas, em benefício dos interesses de
espécies não-humanas298/299.

297 Como o faz VanDeVeer, Donald, "Interspecific Justice", lnquiry, 22 (1979), 55-70.
298 Cfr. Frank, Joshua, "A Constrained-Utility Altemative to Animal Rights", Envi­
ronmental Values, 11(2002), 49-62.
299 Antes que se pense que soçobrámos no «especismo», esclareça-se que o raciocí­
nio é aplicável também ao sacrifício de vidas humanas, e que a expansão da rede viária não
somente agrava a probabilidade de acidentes de trabalho na construção das vias, mas tam­
bém, aumentando a quilometragem disponível e diminuindo o congestionamento (permi­
tindo incrementos nas médias de velocidades de circulação), agrava a probabilidade de per­
das de vidas humanas.
A Hora dos Direitos dos Animais 10 1

Que padrão adoptaremos, pois, na medição desse sofrimento, na gra­


duação da sua intensidade, na avaliação da sua diminuição ou ausência?
Aceitemos o de «bem-estar animal», definido na sua máxima amplitude
como "estado de equillbrio fisiológico e etológico do animal" pelo art. 3.º,
e) do Decreto-Lei n.º 64/2000, de 22 de Abril3ºº, reconhecendo todavia
que o conceito é eminentemente relativizável e dúctil, aferindo-se o bem­
estar em termos contextuais que se prendem com a posição que um deter­
minado indivíduo ocupa num processo de adequação ao seu meio
ambiente - envolvendo por isso também a verificação de ausência de
uma ansiedade que denotasse a sobrecarga dos seus sistemas de controle e
de adaptação biológica (fisiológica, imunológica ou comportamental), e
não a simples ausência de dor30 1 . Todavia, é bom lembrá-lo, em especial
num momento em que a consideração autónoma do bem-estar animal se
liberta das grilhetas da «apropriação» e começa a ser objecto de uma con­
sideração não-instrumentalizada302, as dificuldades de definição não cons­
tituem prova de não-existência.
Têm-se multiplicado testes de «bem-estar ambiental» com não­
humanos, mas os paradigmas de experimentação têm sido variáveis e con­
testados, até por serem inconclusivas as escolhas de animais confrontados
com condições artificiais para as quais não são naturalmente preparados
- postulando-se neles uma autonomia cuja amplitude, decalcada da de
um adulto humano, é, no mínimo, discutível.
Um dos pontos mais controvertidos é o do pressuposto de que um
grupo de escolhas individuais possa ser tomado imediatamente por repre­
sentativo de uma espécie inteira, sem se admitir variações de preferências

3 00 Decreto-Lei que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 58/CE/
/ 1998, do Conselho, de 20 de Julho.
3 0 1 Cfr. Broom, D.M., "A Usable Definition of Animal Welfare", Journal of Agri­
cultura[ and Environmental Ethics, 6-Supplement ( 1993), 15-25; Fraser, David, P.A. Phil­
lips & B.K. Thompson, "Environmental Preference Test�ng to Assess the Well-Being of
Animais - An Evolving Paradigm", Journal of AgricÚltural and Environmental Ethics, 6
- Supplement (1993), 104- 114.
3 02 Já em 1998 um tribunal reconheceu, nos Estados Unidos, que a solidão de um
chimpanzé na sua jaula de um jardim zoológico (o Long lsland Game Farm Park and Zoo)
violava "o bem-estar psicológico dos primatas" que encontraria protecção no Animal Wel­
fare Act federal; tanto ou mais importante, reconhecia-se legitimidade processual activa a
qualquer visitante de um jardim zoológico (cfr. Animal Legal Defense Fund lnc. v. Glick­
man, 332 U.S.App.D.C. 104, 154 F.3d 426 (D.C.Cir. 09/01/ 1998)). Cfr. Kolber, A., "Stan­
ding Upright...", cit., 198ss..
102 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

entre membros de uma espécie - ao contrário do que nunca deixamos de


reconhecer aos vários grupos de que se compõe a espécie humana. Essa,
aliás, uma das razões pelas quais soluções aparentemente tão intuitivas
como a da formulação do conceito de bem-estar animal como estado de
«felicidade (líquida de sofrimento)» esbarram com problemas de univer­
salização, além das flagrantes dificuldades quanto à mensuração que per­
mitisse converter essa noção num conceito cientificamente operativo303 .
Mais subtilmente ainda, nem sempre a aferição do «bem-estar
ambiental» dos animais leva na devida conta o facto de as escolhas e pre­
ferências reveladas dos não-humanos não terem que ser perfeita e mecani­
camente funcionalizadas à obtenção das condições objectivamente mais
favoráveis à sua sobrevivência, integridade, saúde ou sucesso reprodutivo
(tal como elas podem ser racionalmente apreciadas à luz dos conhecimen­
tos científicos) - ou seja, nem sempre se aceitando que a ausência de um
«arbítrio» (que procuramos reservar ao uso pleno da autonomia humana)
impeça alguma margem de imprevisibilidade na etologia animal, porque
os animais não são autómatos, nem corolários de uma sobredeterminação
teleológica304.
Essas dificuldades não têm, contudo, entravado a busca de uma base
objectiva para o estudo do sofrimento animal - seja como veículo emo­
tivo de estados de medo, dor, privação, seja como mecanismo evolutivo de
reacção ao perigo e de defesa da integridade corporal, seja ainda como
expressão de frustração generalizada de instintos naturais _ 305 .
Por outro lado, seria uma cruel ironia que nem mesmo o facto cru do
sofrimento - que pode ser constatado da forma mais imediata e menos
equívoca - deixasse de servir de base sólida para uma posição (bio)ética,
por permitirmos a sua implicação numa qualquer cadeía de subtilezas
bizantinas em tomo de categorias explicativas que resolvêssemos apor­
lhe. Aceitemos, por isso, o critério legal do "estado de equiltbrio", asso­
ciando-o a uma rudimentar capacidade de desequilíbrio, uma capacidade
de distinguir - não na consciência (se existe) mas na conduta revelada -

303 Cfr. Ng, Y.-K., "Towards Welfare Biology . . . ", cit., 255-285.
304 Cfr. Fraser, D., P.A. Phillips & B .K. Thompson, "Environmental Preference Tes­
ting . . . ", cit., 104-114.
305 Cfr. Dawkins, Marian Stamp, "From an Animal's Point of View: Motivation, Fit­
ness, and Animal Welfare", Behavioral and Brain Sciences, 13 (1990), 1-61; eadem, Ani­
mal Sujfering. . ., cit., passim.
A Hora dos Direitos dos Animais 103

uma diferença entre bem-estar e ausência de bem-estar, entre sofrimento e


ausência de sofrimento30 6; admitindo até, em consequência lógica, que
esse requisito mínimo de exteriorização de uma conduta diferenciada e
expressiva de graus de equilíbrio e desequilíbrio não possa ser universal­
mente atingida, excluindo permanentemente, portanto, alguns seres vivos,
e porventura até alguns animais307 .
É o facto bruto do sofrimento que importa - e importa decerto como
uma evidência que largamente transcende as palavras com que, procu­
rando categorizá-lo e torná-lo inteligível, o truncamos e diminuímos já.
Todos aqueles que leram os abundantes testemunhos do sofrimento de ani­
mais em laboratório e nas cadeias de produção alimentar - seja na Liber­
tação Animal de Peter Singer, seja em tantas outras obras30 8 - terão já
experimentado, na inefável revulsão por algumas práticas descritas e na
poética simpatia para com as suas vítimas, essa impotência para traduzir a
contingência e a dor em palavras, para apropriar e «domar» a crueza dessa
realidade refractária aos nossos juízos de «consolação moral».
Essa inapropriabilidade em palavras, essa insusceptibilidade de tradu­
ção adequada em expressões do facto do sofrimento, essa resistência a uma
redução a conceitos inermes, em parte explica - sem justificar - a radica­
lização dos métodos de alguns defensores da «libertação animal»; e explica
também - também sem a justificar - a relativa complacência da comuni­
cação social, sobretudo quando ela, ao mesmo tempo que generosamente se
, desdobra em sensacionalismos acerca da sorte de espécies animais exóticas,

306 Que não tem que ser permanentemente revelada, mas deve ter sido revelada num
momento qualquer da existência - e daí o carácter crucial da personalidade, ou da iden­
tidade, como susceptibilidade de se reconhecer, por permanência inter-temporal, que
aquele animal, humano ou não-humano, já foi capaz de exprimir prazer ou sofrimento num
momento da sua vida, ainda que não seja capaz de fazê-lo agora.
307 Veja-se um argumento similar em Gouveia, J.B., "A Prática de Tiro aos Pom-
bos...", cit., 253. ,,
308 Cfr. Eisnitz, Gail A., Slaughterhouse: The Shócking Story of Greed, Neglect, and
lnhumane Treatment lnside the U.S. Meat lndustry, New York, Prometheus Books, 1997;
Goodkin, Susan L., "The Evolution of Animal Rights", Columbia Human Rights Law
Review, 18 (1987), 259ss.; Lynch, Michael, "Sacrifice and the Transformation of the Ani­
mal Body into a Scientific Object. Laboratory Culture and Ritual Practice in the Neuros­
ciences", Social Studies of Science, 18 (1988), 265-289; Mason, Jim & Peter Singer, Ani­
mal Factories, New York, Crown Publishers, 1980; Picard, Gilbert & Odile Martin,
L'Enfer des Animaux, Paris, Le Carrousel-FN, 1986; Patterson, Charles, Eternal Treblinka.
Our Treatment of Animais and the Holocaust, New York, Lantern Books, 2002.
104 Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

em liberdade ou em cativeiro, escamoteia regularmente (com poucas inter­


mitências) a massificação do sofrimento animal nas cadeias de produção ali­
mentar ou nos laboratórios, dos animais mais comuns, em locais próximos
de todos nós309 - vergada quiçá ao peso da rotina, acomodada à «esquizo­
frenia moral» que não minimiza o sofrimento dos animais em nome de uma
maximização de eficiência na sua exploração, ou desinteressada porque as
circunstâncias da exploração não são exóticas, e os animais não são raros
nem «bonitos», e no seu «emporcalhamento», na sua «estupidez galinácea»,
no seu «avacalhamento», são uma afronta, uma subconsciente ameaça, à
animalidade humana que tenta libertar-se dos comportamentos que vê irres­
tritamente expressos nesses animais (antropocentricamente «despudora­
dos», estadeando aquilo que em nós procuramos ocultar3 1 0) que partilham o
seu espaço vital - devendo nós ao menos, em respeito por eles, subscrever
a observação relativista de Heráclito, de que os porcos se lavam na lama e
de que a poeira é o banho das aves de terreiro3 1 1 .

8 .c) Liberdades básicas e progresso jurídico


O facto cru do sofrimento, pois, sem sofismas, impondo a urgência do
reconhecimento de meios ao menos paliativos, como as liberdades básicas
que hoje, lenta mas firmemente, as ordens jurídicas começam a reconhecer
- o que se espelha já na Directiva n.º 58/CE/1 998, do Conselho, de 20 de
Julho3 1 2, quando, no n.º 8 do ·seu Anexo A, relativo às condições de explo­
ração pecuária, estabelece que o respeito pela "liberdade de movimentos
própria dos animais" deve "permitir que os animais se levantem, deitem e
virem sem quaisquer dificuldades", numa formulação que já não se afasta
daquela em que tem insistido Peter Singer: "Estas «cinco liberdades bási­
cas», como foram posteriormente designadas - voltar-se, limpar-se, levan­
tar-se, deitar-se e estender os seus membros - são ainda negadas a todas

309 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 202.


3 10 Cfr. Cyrulnik, Boris, "Les Animaux Humanisés", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ..., cit., 13, 15.
3 1 1 Diels-Krantz, Die Fragmente der Vorsokratiker, DK B 37 (Columella, Res Rus­
tica, VIII, 4, 4).
3 12 Directiva que estabelece as normas mínimas relativas à protecção dos animais nas
explorações pecuárias, transposta para a ordem jurídica interna pelo já referido Decreto-Lei
n.º 64/2000, de 22 de Abril.
A Hora dos Direitos dos Animais 105

as galinhas de aviário, a todos os suínos em compartimentos e acorrenta­


dos, a todas as vitelas em compartimentos"3 1 3.
O combate ao sofrimento é, pois, pragmaticamente, o ponto mais
firme e mais inequívoco da causa teriofílica, e por isso também a van­
guarda do progresso jurídico nestes domínios. Forneçamos alguns exem­
plos, sem procurarmos ser exaustivos.
O acento tónico da Declaração Universal dos Direitos dos Animais3I4
encontra-se no seu art. 3. 0 , 1 e 2, que estabelece a proibição de maus tra­
tos e de actos cruéis, e restringe a morte de animais a casos de «necessi­
dade», no pressuposto de celeridade e de ausência de dor e de angústia no
procedimento.
Também entre nós o art. l .º, 2 da Lei n.º 92/95, de 1 2 de Setembro,
estabelece um dever geral de socorro relativamente a animais doentes,
feridos ou em perigo - sem restrições, e temperado apenas por um crité­
rio de razoabilidade, da «medida do possível», que aliás pode dizer-se
subentendido em todos os deveres de comissão, os deveres de agir juridi­
camente consagrados (e que o Direito, em respeito pela liberdade indivi­
dual, tende a estabelecer com grande comedimento e com abundante apelo
a juízos de razoabilidade).
A Convenção Europeia sobre a Protecção dos Animais de Abate3I 5
não põe em causa o abate - como aliás se afigura razoável dentro de uma
perspectiva antropocêntrica, mesmo a mais mitigadamente antropocên­
trica. A prioridade desloca-se, antes, para a eliminação do sofrimento e da
dor, ainda que o Preâmbulo da Convenção seja desnecessariamente gros­
seiro ao explicitar que "o medo, a angústia, as dores e o sofrimento do ani­
mal durante o abate podem ter influência sobre a qualidade da carne", o
que equivale a uma instrumentalização completa do facto do sofrimento, e
por isso a uma desconsideração da experiência individual da vítima3I 6. Em

3 13 Singer, P., Libertação Animal, cit., 134. Cfr. Travaglini, Franco, "II Benessere
Animale e il Caso della Gallina Ovaiola", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.), Per
un Codice..., cit., 177-198.
3 14 Proclamada na UNESCO em 15 de Outubro de 1978, reformulada em 1989. Cfr.
Nouet, Jean-Claude, "Protection ou Respect de !'Animal?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions..., cit., 1100.
3 15 Concluída no seio do Conselho da Europa e aprovada entre nós pelo Decreto n.º
99/81, de 29 de Julho.
3 16 Sirva de consolo à causa teriofílica a constatação de que essas expressões instru­
mentalizadoras, se são degradantes para a humanidade no tratamento dos animais, ao
106 Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

todo o caso, o articulado da Convenção indicia já uma maior consideração


pelo facto individual do sofrimento, seja quando preconiza um «atordoa­
mento» que se revele capaz de "eliminar todos os sofrimentos evitáveis
aos animais" (arts. 1 .º, 2 e 1 6.º, 1 ), seja quando estabelece que os mata­
douros devem propiciar condições que permitam "poupar aos animais,
tanto quanto possível, agitação, dores e sofrimentos" (art. 2.º, 4), proi­
bindo ainda que durante o transporte os animais sejam "assustados",
"excitados" ou ''feridos" (arts. 4.º, 3 e 4, e 5.º) 3 17 - um conjunto de sal­
vaguardas em tudo similares às que constam da Directiva n.º 86/ 1 1 3/CEE,
do Conselho, de 25 de Março, relativa a protecção das galinhas poedeiras
criadas em bateria3 18, da Directiva n.º 9 1/629/CEE, do Conselho, de 1 9 de
Novembro, relativa às normas mínimas de protecção de vitelos de criação
e engorda3 19, e da Directiva n.º 9 1/ 630/CEE, do Conselho, de 1 9 de
Novembro, relativa às normas mínimas de protecção de suínos320/3 2 I.
Mais especificamente, o «manuseio» dos animais para abate com
"excitação, dor ou sofrimento" é expressamente proibido no art. 3.º da
Directiva n.º 93/ 1 1 9/CE, do Conselho, de 22 de Dezembro3 2213 23. Quanto
à protecção dos animais durante o transporte, rege hoje o Decreto-Lei n.º
294/98, de 1 8 de Setembro, que intensifica ainda mais os requisitos de pro­
tecção de bem-estar3 24, e agrava a correspectiva responsabilidade dos

menos, na medida em se cinjam ao jogo conceptual e não se convertam em práticas cruéis,


poupam os animais a qualquer novo sofrimento, imunes que eles são àquela forma de
sofrimento que parece ser peculiar da espécie humana, e que é a humilhação moral. Cfr.
Rorty, R., Contingency . .., cit., 73-95.
3 17 Cfr. ainda o art. 4. 0 , 2, da Portaria n.º 761/90, de 29 de Agosto.
3 18 Transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei 406/89, ele 16 de Novembro.
3 1 9 Transposta pelo Decreto-Lei n.º 270/93, de 4 de Agosto.
320 Transposta para o nosso direito pelo Decreto-Lei n.º 113/94, de 2 de Maio.
32 1 Cfr. Ercoli, Tessa, "La Macellazione", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.),
Per un Codice ..., cit., 199-210; Hodges, John & ln K. Han (orgs.), Livestock, Ethics, and
Quality of Life, Wallingford, CABI, 2000.
322 Directiva respeitante à protecção dos animais no abate e ou occisão, transposta
para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei n.º 28/96, de 2 de Abril.
323 Nos seus Anexos B (Requisitos aplicáveis ao encaminhamento e à estabulação
dos animais nos matadouros) e C (Imobilização dos animais antes do atordoamento, abate
ou occisão), a Directiva n.º 93/119/CE especifica alguns deveres, como o de evitar quedas,
contusões, ferimentos, sustos, agitação, brutalidades, e a imobilização ou a suspensão antes
do atordoamento ou do abate.
324 Por exemplo no transporte intracomunitário de animais (art. 4. 0 do Decreto-Lei
n.º 294/98, de 18 de Setembro).
A Hora dos Direitos dos Animais 107

reterinários. E o mesmo resulta dos art. 4.º e 7 .º do Regulamento de Iden­


Vficação, Registo e Circulação de Animais, anexo ao Decreto-Lei n.º
� 38/99, de 24 de Agosto, nos quais se dispõe que as marcas de exploração
e de identificação dos animais não podem interferir no seu bem-estar,
e�pecificamente provocando sofrimento.
Este combate jurídico, que começa assim a averbar os seus primeiros
u
s cessos legislativos, não ignora - muito pragmaticamente também -
que a maior parte do sofrimento infligido nos animais é resultado da cria­
ção de condições artificiais pelo homem, pelo que a falta de intencionali­
dade ou de crueldade de agentes envolvidos na concepção ou manutenção
dessas condições artificiais não minimizam o resultado negativo. Os
exemplos vão desde as mais inócuas «domesticação» e «adopção» de ani­
mais de companhia - mais inofensivas apenas na aparência, já que tam­
bém elas envolvem, como o demonstra a «antropozoologia» (o estudo das
relações do homem com os animais) 325, desenraizamento, desnaturação e
desprotecção contra o abandono - até à «exploração industrial» e à sub­
missão sistemática de não-humanos a condições laboratoriais extremas.
Pense-se, por exemplo, nos «sistemas de criação intensiva», nos
quais o estabelecimento de condições de total fragilização do bem-estar
dos animais faz com que a manutenção de níveis aceitáveis de salvaguarda
dos interesses daqueles dependa de cuidados frequentes do homem (por
exemplo, de inspecções diárias, admitindo-se que no espaço de algumas
horas a saúde e o bem-estar dos animais possam degradar-se gravemente)
- como expressamente se assinala nos arts. l .º e 5 .º do Protocolo de Alte­
ração à Convenção Europeia Relativa à Protecção dos Animais nos Locais
de Criação, de 6 de Fevereiro de 1 992 326.
Pense-se também na alimentação do animais de criação, que pode ela
própria causar-lhes sofrimentos e danos irreparáveis, como ficou demons­
trado pela epidemia da BSE - e como de resto era já consignado no art.
6.º da Convenção Europeia Relativa à Protecção dos Animais nos Locais
de Criação327 . Ou na guarida dos animais�- susoeptível também ela de cau-

325 Cfr. Bodson, Liliane, "L'Histoire des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions..., cit., 251.
326Protocolo aprovado entre nós pelo Decreto n.º 1/93, de 4 de Janeiro .
Convenção de 10 de Março de 1976, na redacção do Protocolo de Alteração de 6
32 7
de Fevereiro de 1992. Cfr. também o Decreto-Lei n.º 2 14/200 1, de 2 de Agosto, e os Decre­
tos-Leis n.08 247/2002, de 8 de Novembro, 304/2000, de 23 de Novembro, 25 1/2000, de 13
108 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

sar danos aos animais abrigados, por exemplo interferindo e adulterando


os seus ritmos circadianos por privação da luz natural, ou por sujeição a
iluminação ou escuridão permanentes328 .

8 .d) O abandono
Pelas mesmas razões que respeitam aos elos de dependência e desna­
turalização que fragilizam os animais, mas também pelas menos nobres
razões de que se envolvem sentimentos antropocêntricos de preferência
afectiva, de protecção discriminada, a ordem jurídica tem sido particular­
mente zelosa na especificação das salvaguardas contra o sofrimento dos
animais de companhia - sem dúvida os mais acarinhados mas também os
mais contingentemente expostos de todos os não-humanos, até na medida
em que, em razão da sua «antropização», do efeito mimético induzido pela
simbiose da domesticação329, a sua sobrevivência, a sua segurança, o seu
bem-estar, são postos em causa pelo simples facto do abandono pelos
humanos.
Assim, por exemplo, a Convenção Europeia para a Protecção dos
Animais de Companhia, de 1 3 de Novembro de 1 987 330, parte do reco­
nhecimento de que "o homem tem uma obrigação moral de respeitar todas
as criaturas vivas", mas logo lhe adita a perspectiva antropocêntrica de
que os animais de companhia valem sobretudo como contributos para a
qualidade de vida dos seus detentores. E no art. 3.º, se taxativamente se
condena, no n.º 2, o abandono dos animais de companhia33 1, no n.º 1 timi-

de Outubro, 243/2000, de 27 de Setembro, 157/2000, de 22 dê Julho, 133/2000, de 13 de


Julho, 310/99, de 10 de Agosto, e 181/99, de 22 de Maio.
3 28 Como se estabelece no n.º 13 do Anexo A da Directiva n.º 58/CE/1998, do Con­
selho, de 20 de Julho, transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei n.º
64/2000, de 22 de Abril, "Os animais mantidos em instalações fechadas não devem estar
nem em permanente escuridão, nem serem expostos à luz artificial sem que haja um
período adequado de obscuridade".
3 29 Cfr. Delort, Robert, "La Zoohistorie", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit.,
270.
Aprovada pelo Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril.
33 0
O que se coaduna com a recomendação contida no art. 14.º, d), no sentido de
33 1
haver um esforço de educação que advirta para "os riscos resultantes da aquisição irres­
ponsável de animais de companhia que conduza a um aumento do número de animais não
desejados e abandonados".
A Hora dos Direitos dos Animais 109

amente estabelece-se que causar dor, sofrimento ou angústia a um animal


e companhia é igualmente proibido, mas apenas se se verificar a inutili­
ade da circunstância causal.
Note-se que, em termos reveladores de uma «hominização» implí­
c ta, à dor e ao sofrimento dos animais de companhia é agora acrescentado
upi tertium genus, a «angústia», uma representação psicológica de anteci­
pação de dor ou sofrimento que postula uma certa consciência de identi­
dade (a capacidade de imaginação da continuidade e contiguidade dos
estados de consciência que medeiam entre o momento de angústia e o
momento de verificação do sofrimento efectivo), e portanto a estabilidade
intertemporal de um centro de atribuição e de imputação de consciência
interessada, um embrião de personalidade individual, em suma - por
chocante que a conclusão possa soar ao antropocentrismo dos nossos pre­
conceitos personalistas _ 33 2.
A lei atende de vários modos à situação especial de contingência e
dependência dos animais de companhia, não raro dando a entender que a
violência que sobre eles se cometa, e em particular o abandono, constitui,
por causa dos antecedentes de criação de laços de reciprocidade e de
dependência com seres humanos, da «desnaturação» extrema em que se
faz assentar a sua instrumentalização, a forma mais injustificada, mais
juridica e eticamente censurável, de crueldade contra os animais (não
sendo sequer recoberta, do ponto de vista antropocêntrico, de uma tenta­
tiva de justificação económica ou científica)333 ; uma crueldade mesmo
quando não é mais do que por omissão, por negligência ou por abandono
que esses animais de companhia são privados daquelas condições artifi­
ciais (engendradas por seres humanos) de que são feitos depender tanto o
seu bem-estar como a sua sobrevivência334, são abandonados sem serem

332 Cfr. Moberg, G.P. & J.A. Mench (orgs.), The Biology of Animal Stress. Basic
Principies and Implications for Animal Welfare, Wallipgford, CABI, 2000.
333 Cfr. Rollin, Bernard E., "Social Ethics, VetetináryMedicine, and the Pet Over­
population Problem", Journal of the American Veterinary Medical Association, 198 (1991),
1153-1156; eiusdem, "Animal Welfare, Science, and Value", Journal of Agricultura[ and
Environmental Ethics, 6-Supplement (1993), 44-50; eiusdem, Farm Animal Welfare.
Social, Bioethical, and Research Issues, Ames, Iowa State University Press, 1995. Cfr.
ainda: Beyer, Gerry W., "Pet Animais: What Happens When Their Humans Die?", Santa
Clara Law Review, 40 (2000), 617ss ..
334 Cfr. Castignone, Silvana, "II «Diritto ali' Affetto»", in Mannucci, A. & M. Tal­
lacchini (orgs.), Per un Codice..., cit., 121-130.
110 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

entregues à guarda de outrem33 5, são removidos, seja de um ambiente


doméstico seja de instalações comerciais, industriais ou laboratoriais, e
são deixados na via pública33 6; uma crueldade que, em casos mais nítidos
de interdependência e simbiose, é tão censurável na sua desumanidade (até
na sua ingratidão) que é qualificada como crime337/33 8 - ultrapassando,
portanto, a elevada muralha contra-ordenacional de que já são rodeados os
deveres para com esses animais de companhia, sancionando pesadamente
o desrespeito pelas condições de alojamento, a venda de animais feridos
ou doentes, a violação do dever de cuidado dos animais que crie perigo
para a vida ou integridade física de outrem, a brutalidade com os animais,
as amputações puramente cosméticas, a promoção de lutas entre animais,
como resulta do art. 68 .º, 1, f) e g), 3, a) a d), do Decreto-Lei n.º 276/200 1,
de 17 de Outubro.

8 .e) Incomensurabilidade e o «direito ao não-sofrimento»


Apesar do que fica dito, é legítimo sustentar-se ainda que algo existe
no sofrimento humano que é incomensurável com o sofrimento animal:
- seja para mais, na possibilidade de humilhação através do simples
uso linguístico, na possibilidade de antecipação do sofrimento

335 Como resulta da redacção do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 91/2001, de 23 de Março:
"Considera-se abandono de animais a remoção efectuada pelos respectivos donos, pos­
suidores ou detentores de cães ou ·gatos para fora do domicílio ou dos locais onde costu­
mam estar confinados, com vista a pôr termo à propriedade, posse ou detenção dos ani­
mais citados, sem transmissão dos mesmos para a guarda e r:esponsabilidade de outras
pessoas, das autarquias locais e das sociedades zoófilas".
33 6 Veja-se o art. 1. 0 , 3, d) da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, que proíbe o acto
consistente em "abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido
mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação
comercial ou industrial".
337 Por conjugação dos arts. 6.º, 1, h) e 30.º da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n.º
173/99, de 21 de Setembro), o abandono dos animais "que auxiliam e acompanham o caça­
dor no exercício da caça" é um crime punível com pena de prisão até 6 meses ou com pena
de multa até 100 dias.
33 8 A crueldade pode também encontrar-se na exposição, e condições de exposição,
de animais destinados ao comércio de animais de companhia: por isso o art. 27 .º, 2 e 3 do
Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro (que regulamenta o Decreto n.º 13/93, de 13
de Abril), admite a exposição de cães e gatos, mas só a partir da 6ª semana de idade, e só
por 15 dias no caso do alojamento em gaiolas.
A Hora dos Direitos dos Animais 111

através da representação de sofrimento futuro, na possibilidade de


discernimento, em pequenos e remotos indícios, de probabilida­
des de desfecho doloroso, na possibilidade de angústia;
seja para menos, na capacidade de discernirmos consequências
inócuas em ameaças que se nos dirigem, de percebermos o que é
um «simulacro» ou uma «graça pesada», na capacidade de calcu­
larmos estratégias minimizadoras e erradicadoras de futuro sofri­
mento, na capacidade até de descontarmos o sofrimento que
suportamos com o bem, ou o mal menor, que esperamos alcançar
através dele.
E essa incomensurabilidade, que afinal se prende basicamente com a
capacidade de representação do sofrimento, pode legitimar que, em situa­
ções de sofrimento generalizado, se sustente que os interesses da espécie
humana prevaleçam sobre os das demais espécies - apenas porque a
representação amplia o sofrimento, dá-lhe dimensões bem mais vastas do
que aquelas que se confinam ao facto bruto da dor física ou da ansiedade
que imediatamente a rodeia33 9. Não se vislumbra, nessa desigual conside­
ração de interesses desiguais, qualquer violação de um princípio equita­
tivo, o qual só imporia tratamento indiscriminado relativamente a interes­
ses que se pudessem considerar, de um modo relevante, equiparáveis340.
Mas isso não implica que subscrevamos a forma mais rudimentar de
utilitarismo que justificaria o mal dos não-humanos através do bem que,
para os humanos, com aquele mal se alcançaria. Que um estado de neces­
sidade legitime a prevalência dos interesses humanos quando haja colisão
com os interesses de não-humanos, atendendo à maior força dos interesses
humanos - no sentido de poder discernir-se, em muitas situações, que o
sacrifício dos interesses humanos ocasionaria um sofrimento mais amplo
do que aquele que seria experimentado pelos não-humanos - , é argu­
mento que se afigura aceitável. Mas já não se aceitará, fora desse extremo
de necessidade, que um bem seja justificq,ção de um mal, que um bem
possa alicerçar-se pacificamente no sacrifícío permanente de bens alheios,
por maior que seja a incomensurabilidade dos bens em presença.
Em bom rigor, nem mesmo em estado de necessidade é clara essa
ponderação utilitarista dos bens em presença - ao menos dentro da espé-

339 Singer, P., Ética Prática, cit., 79.


340 Cfr. Sapontzis, Steve F., Morais, Reason, and Animais, Philadelphia, Temple Uni­
versity Press, 1987, 78-79.
112 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

cie humana, a qual continua (e continuará) a penalizar o homicídio com


finalidade antropofágica mesmo no caso mais extremo de necessidade,
dada a constatação de que os antropófagos, por mais numerosos que eles
sejam, poderão retirar benefícios para a sua sobrevivência apenas à custa
do interesse que a vítima teria também na sua sobrevivência (mesmo que
o sacrificado seja apenas um indivíduo contra uma multidão).
Nem mesmo a pena de morte pode satisfatoriamente alicerçar-se num
cálculo utilitarista, que procurasse uma justificação para aquela a partir do
incremento dos sentimentos de segurança e de vingança que pudessem
fazer-se derivar da execução de um criminoso especialmente perigoso,
sendo sórdido e inaceitável que esses sentimentos, ainda que legítimos,
pudessem converter-se no veículo cruel de denegação de um direito fun­
damental que ninguém estaria disposto a conceber como uma decorrência
da sua inserção numa sociedade - ainda que não seja de excluir a funda­
mentação dessa pena de morte num estado de necessidade extrema, no
qual a sobrevivência da própria sociedade fosse posta em causa, e o pavor
provocado pela actividade criminosa ameaçasse atirar o todo colectivo
para a anomia do medo (tendo, num caso desses, a pena de morte a mesma
fundamentação que legitima o uso defensivo da força militar).
Não admitimos, pois, que um direito fundamental seja posto em
causa pelo benefício, por máximo que fosse, que pudesse fazer-se retirar
da respectiva violação - e mesmo o apelo à necessidade envolveria ine­
vitavelmente juízos quanto ao valor relativo das vidas em presença e
quanto à admissibilidade de instrumentalização de direitos absolutos a
interesses34 1 . Admitir que a maior importância do sofrimento humano seja
capaz de desfazer esse nó górdio pode bem constituir um último resquício
(e bem cruel, por sinal) de «especismo antropocêntrico» de que o nosso
espírito não é capaz de libertar-se, quando submete a questão às categorias
etico-jurídicas.
Em todo o caso, parece que a admissão de um raciocínio utilitarista
quanto ao sacrifício dos sofredores não-humanos em casos de conflito e de
extrema necessidade (incluindo os de absoluta incompatibilidade de inte­
resses) já se apresenta como menos cruel do que aquela posição, celebri­
zada por Jan Narveson, que refuta o conceito de direitos dos animais sus­
tentando que uma ética de egoísmo racional é capaz de reconhecer a

341 Cfr. Francione, Gary L., "Animal Rights and Legal Welfarism: «Unnecessary»
Suffering and the «Humane» Treatment of Animais", Rutgers Law Review, 46 ( 1995), 730.
A Hora dos Direitos dos Animais 113

capacidade de sofrimento dos animais sem por isso ver-se compelido a


estender-lhes o manto protector da moral ou do direito342; posição que
alguns autores têm atacado por outra via, contrapondo-lhe o argumento
dos «casos marginais», ou seja observando que essa mesma posição de
egoísmo racional conduziria à exclusão do reino da moralidade dos seres
humanos «marginais», ou seja, daqueles que não exibissem as qualidades
de autonomia plena, ou a capacidade de ingressarem naquele «espaço
público» de diálogo racional dentro do qual se exprime e sustenta o
«egoísmo racional» 343 .
Será pois, em suma, justificável a extensão aos não-humanos de um
«direito ao não-sofrimento» que ao menos bloqueasse a comissão e a
negligência causadoras de sofrimento, e até o cálculo utilitarista, salvo nos
casos de mais extrema necessidade? A resistência cultural que uma tal
medida decerto suscitaria parece desaconselhar a via da proclamação de
direitos absolutos ou «fundamentais», ao menos sem que previamente
existam consensos acerca do que seja a «necessidade» justificadora do
sofrimento e da morte dos animais, em especial para se determinar em que
casos é que a conveniência para os humanos deveria ceder perante a sal­
vaguarda irredutível de um tal direito absoluto ao não-sofrimento .
Talvez esse «direito ao não-sofrimento dos animais» seja justificável
de um ponto de vista pedagógico, porque deixaria de poder sustentar-se a
admissibilidade social da crueldade irrestrita ou da eliminação com sofri­
mento de qualquer animal, e exigir-se-ia até, talvez, que se discriminasse
entre animais em função da sua capacidade representativa, isto é, da capa­
cidade de, para além da dor imediata, anteciparem um grau de satisfação
futura e manifestarem a ansiedade causada por iniciativas humanas que os
privassem dessa satisfação . Mesmo na sua formulação mais mitigada, o
«direito ao não-sofrimento dos animais» retiraria à arrogância antropocên­
trica (à ideia de homem como único «fim em si mesmo») a sua faceta tirâ­
nica e cruel, obrigando-a à reponderação gos interesses em causa, mesmo
na sua mera instrumentalidade 344 - despettaÍÍão-a para o elementar requi-

342 Narveson, Jan, "Animal Rights", Canadian Journal of Philosophy, 7 (1977), 161-
178; eiusdem, "On a Case for Animal Rights", Monist, 70 (1987), 31-49.
343 Cfr. Jamieson, Dale, "Rational Egoism and Animal Rights", Environmental
Ethics, 3 (1981), 167-171. Cfr. ainda: DeGrazia, David D ., "Autonomy of Animais", in
Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal Rights ..., cit., 83-85 .
344 Cfr . Francis, Leslie Pickering & Richard Norman, "Some Animais Are More
Equal Than Others", Philosophy, 53 (1978), 507-527.
114 Libertação - 1 - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

sito moral que nos veda que apreciemos um bem, o bem do antropocen­
trismo, sem levarmos em conta o mal em que se alicerça, o mal que con­
sente ou o mal que produz.

8 .f) Devem eles sofrer? Nietzsche em Turim


Se algum bem for discernível num utilitarismo antropocêntrico e
hedonista, que dá prioridade à obtenção e manutenção de níveis de bem­
estar agregado entre os humanos, poderá ser o de que ele, se não pactuar
com a total insensibilização ao sofrimento provocado nos não-humanos,
permite concluir que o espectáculo desse sofrimento constitui por sua vez
um factor de perda de bem-estar humano - a mesma perda de bem-estar
que conduziu irreversivelmente à loucura Friedrich Nietzsche, depois de
ele ter assistido, nas ruas de Turim, à violência exercida por um carroceiro
sobre um cavalo (o mesmo Nietzsche que, em Para lá do Bem e do Mal,
já sublinhara que quase tudo o que designamos como «civilização supe­
rior» assenta na espiritualização e aprofundamento da crueldade, na sua
«divinização»345 )346 -, e por isso acabaria por determinar a necessária
internalização das «externalidades negativas» àqueles que provocassem a
diminuição daquele valor agregado, já que imporia, como mínimo de com­
pensação, a substituição dos animais eliminados por outros animais cuja
capacidade de bem-estar fosse capaz de provocar, a humanos tanto como
a não-humanos, a recuperação dos níveis agregados de bem-estar - ser­
vindo pois como salvaguarda pragmática e económica contra atitudes des­
trutivas sistemáticas ou generalizadoras, mesmo quando elas não tivessem
a crueldade, a gravidade ou a amplitude que reclamam a reacção penal347.
Além de que, lembremo-lo, o combate ao sofrimento, a todas as for­
mas reveladas de sofrimento, parece ser o objectivo mais radicalmente
fundamentante e mais inequívoco de toda a moralidade que se reporte às

345 Cfr. Burgat, Florence, "Les Habits de la Cruauté", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ..., cit., 1229.
346 Cfr. Chamberlain, Lesley, Nietzsche in Turin. An lntimate Biography, London,
Picador, 1997; Verrecchia, Anacleto, la Catastrofe di Nietzsche a Torino, Torino, Einaudi,
1978.
347 Cfr . Singer, Peter, "Utilitarianism", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Ency­
clopedia of Animal Rights ..., cit., 343-344.
A Hora dos Direitos dos Animais 115

condições da vida terrena - que não se deixe embalar por universos con­
tra-factuais ou por esperanças redentoras que, de uma penada, compensa­
riam numa única justificação remota todo o sofrimento acumulado -. Aqui
neste «vale de lágrimas» é a urgência do sofrimento que deve mobilizar­
nos moralmente, como seres humanos e como seres vivos: nas palavras de
Richard Rorty, "O simplesfacto de sermos humanos não nos faz partilhar
um elo comum. Porque a única coisa que partilhamos com todos os outros
seres humanos é o mesmo que partilhamos com todos os outros animais
- a capacidade de experimentarmos dor "348!349.
«Devem eles sofrer ?>> - um dos pontos menos óbvios, mas cruciais,
da campanha pelos direitos dos animais tem sido o do combate à «huma­
nização forçada» dos animais e do seu habitat, o emprego de animais em
espectáculos e exibições, a exploração ostensiva do seu sofrimento, o seu
uso em experiências de hibridização e de «apuramento de raças» - não
raro com resultados grotescos que apenas servem interesses lúdicos - , e
até em jardins zoológicos, nos quais os interesses científico e de preserva­
ção muitas vezes se cruzam subtilmente com uma reafirmação de poder
humano sobre o destino das demais espécies. Isto para não se falar já na
castração e esterilização sistemáticas de animais domésticos, amplamente
apoiada em argumentos preventivos contra os riscos de sobrepopulação,
mas tantas vezes ditada, nos casos individuais, pelos objectivos da simples
redução dos animais a «autómatos dóceis» através da negação dos seus
impulsos sexuais, da sua conduta menos «aculturável» (o caso mais
extremo e cruel de «falácia patética», de projecção dos nossos condicio­
namentos culturais sobre os animais)35 0.

34 8 Rorty, R., Contingency . . ., cit., 177. ,. .


349 Já na própria zoofilia oitocentista se verificava um 'apego materialista ao hedo­
nismo e à fruição da vida terrena, um culto imanentista e panteísta e uma profunda des­
confiança, senão mesmo aversão, face ao teísmo dualista, à ideia de um Deus que, para
redimir, tudo tiranizaria, tudo subjugaria, tudo negaria a troco da esperança numa reden­
ção final - cfr . Agulhon, Maurice, "Le Sang des Bêtes. Le Probleme de la Protection des
Animaux en France au XIXe Siecle", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 1206.
35 0 Cfr. Allen, Robert D. & William H. Westbrook, "The Pet Paradox", in Allen, R.D.
& W.H. Westbrook (orgs.), The Handbook of Animal Welfare, cit., 3-14; Tuan, Yi-Fu,
Dominance and Affection: The Making of Pets, New Haven, Yale University Press, 1984.
1 16 Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

8 .g) Devem eles sofrer? Sangue na arena


«Devem eles sofrer ?» - é a pergunta que deve dirigir-se aos princi­
pais adversários da causa teriofílica, àqueles que sustentam a legitimidade
cultural do espectáculo do sofrimento dos animais, a tradição tauromá­
quica e circense, as lutas de cães e de galos, e possivelmente as corridas
de cavalos e de galgos, formas de exploração dos animais "para diverti­
mento do homem" que são severamente condenadas pelo art. 10.º, 1 da
Declaração Universal dos Direitos dos Animais35 1/35 2.
"Que prazer pode um homem civilizado retirar do espectáculo de
um fraco ser humano a ser dilacerado por um animal poderoso, ou
de um esplêndido animal a ser trespassado por uma lança?" -
Marco Túlio Cícero 353 .
"umaferroadafina,funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os den­
tes, e arqueou-se, num ímpeto. Desgraçadamente, não podia nada.
O senhor homem sabia bem quando e como as fazia. Mas por que
razão o espetava daquela maneira?" - Miguel Torga3 54.
"Est-ce là un spectacle fait pour une nation magnanime ? et com­
ment l 'Espagne n 'a-t-elle pas eu encore un Las Casas pour les ani­
maux?" - Étienne Pariset355 .

Não nos alongaremos muito sobre o fenómeno das touradas - por­


que ele não é melhor nem pior do que outras formas de bárbaro deleite
com o sofrimento, que outrora tomou por objecto também seres humanos.
Nem cometeremos o erro de considerarmos esses espectáculos como

35 1 Tal como o são as exibições e concursos de animais, formas culturalmente asso­


ciadas com manifestações teriofílicas mas que a Declaração Universal dos Direitos dos
Animais toma por "incompatíveis com a dignidade do animal" (art. 10.º, 2) .
352 Cfr. Weisberg, Lisa, "Legislative Proposals Protecting Animals in Entertainment:
At the Crossroads" , Pace Environmental Law Review, 16 ( 1 998) , 1 25ss . .
353 "sed quae potest homini esse polito delectatio, cum aut homo imbecillus a valen­
tíssima bestia laniatur aut praeclara bestia venabulo transverberatur?" - M. Tvlli Cice­
ronis Epistvlarvm Ad Familiares Liber Septimvs, 1 , M. Cícero S . D. M. Mario , Ser. Romae
a.u.c. 699 .
354 Torga, Miguel, Bichos. Contos, Coimbra, s .n., 191995 , 1 1 1 .
355 Étienne Pariset, fundador da Société Protectrice des Animaux ( 1 846) , cit. in Agu­
lhon, Maurice , "Le Sang des Bêtes . Le Probleme de la Protection des Animaux en France
au XIX• Siecle" , in Cyrulnik, B . (org.), Si les Lions ..., cit., 1 1 94 .
A Hora dos Direitos dos Animais 117

sobrevivências de formas mais primitivas da nossa civilização - porque


isso seria ainda dignificá-los como tradição, além de que seria cometermos
uma grave injustiça para com aqueles que, desde sempre, se insurgiram
contra a sórdida crueldade na qual o principal espectáculo é, afinal, forne­
cido pelos próprios espectadores e consiste na exibição da mais abjecta
cobardia de que a espécie humana é capaz, o gozo alarve com a fragilidade
e com a dependência alheias 356.
Em abono da nossa tradição jurídica, reconheça-se que as touradas
chegaram a estar proibidas entre nós, por Decreto de 1 2 de Setembro de
1 836 - logo revogado pela Lei de 20 de Junho de 1 837 - com o funda­
mento de serem "um divertimento bárbaro e impróprio das Nações civili­
zadas, que servia unicamente para habituar os homens ao crime e à fero­
cidade"351. A meio caminho ficou - como forma humanizadora paliativa
- a proibição dos touros de morte, estabelecida pelo Decreto n.º 1 5355,
de 14 de Abril de 1 928 35 8, diploma revogado pela Lei n.º 1 2-B/2000, de 8
de Julho, que já fez descer a proibição dos espectáculos tauromáquicos em
que seja infligida a morte às reses neles lidadas para os mais brandos
domínios do contra-ordenacional - parecendo traduzir um refluxo cultu­
ral em direcção de uma barbarização dos costumes - , numa tendência
rematada pela Lei n.º 1 9/2002, de 3 1 de Julho, que altera as Leis n.º 92/95

356 Cfr. , por exemplo , Bivar, Carlos, Protecção aos Animais, Lisboa, Imp. Baroeth,
1944; Cordeiro, J. Alcino, Animais. Disposições Legais sobre Aguilhão, Cães, Maus Tra­
tos, Matança Clandestina, Pombos Correios, etc., Póvoa de Varzim, s.n., 51969; Viana,
Júlio Mário, Influência da Protecção aos Animais na Moral e na Educação Cívica dos
Povos, Lisboa, Of. de S. José, 1932; e os panfletos da Sociedade Protectora dos Animais:
Colecção de Leis e Posturas Camarárias Cominativas de Maus Tratos aos Animais, Porto,
Tip. Mendonça, 1942 ( 1 1923); Leis, Posturas Camarárias e Instruções Gerais Relativas a
Maus Tratos aos Animais, Lisboa, S.P.A. , 31947 (21940; 1 1932); Protecção aos Animaes.
Projecto de Lei Apresentado à Assembleia Nacional Constitucional, Porto, s.n. , 1911;
Requerimento a sua Magestade El-Rei Pedindo a Abolição das Touradas em Portugal, Lis­
boa, Typ. Mattos Moreira, 1876; Touros de morte?!.,,Nãgl,Representação da Sociedade
Protectora dos Animais, Lisboa, Of. de S. José, 1930; · Um Golpe na Rotina, Porto, s.n. ,
1909; Liga Nacional de Defesa dos Animais , Leis, Posturas Camarárias e Instruções
Gerais Relativas a Maus Tratos aos Animais, Lisboa, s.n., 1934; Sociedade Protectora dos
Animais Domésticos, Comemorações, 1897-1947 - 50.º aniversário, Funchal, Tip.
Comércio do Funchal, 1947; União Zoófila, Instruções a Todos os Amigos dos Animais,
Lisboa, s.n. , 1957.
357 Gaspar, Alfredo, "Sobre o Crime de Maus Tratos a Animais", Scientia luridica,
35 (1986), 171.
35 8 Transcrito em Cordeiro, A. Menezes, Tratado ... /- II- Coisas, cit., 222n822.
118 Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer?

e 1 2-B/2000, admitindo uma «autorização excepcional» para a realização


de espectáculos com touros de morte, quando haja uma tradição de incum­
primento à anterior lei "como expressão de cultura popular" - o que
representa, mais do que o prémio da ilegalidade; uma quase total capitula­
ção no continuado esforço de aculturação que, timidamente embora, o
legislador parecia ter empreendido desde 1 836 3 59.
A própria lei de protecção aos animais, o diploma mais amplo e ambi­
cioso entre nós publicado quanto à consagraçãg genérica de direitos dos
animais - Lei n.º 92/95, de 1 2 de Setembro - , ficara já muito enfraque­
cida pela admissão da prática das touradas (art. 3.\ 2), agravada ainda pela
admissão do recurso nas touradas, e na arte equestre, a instrumentos que
manifestamente causam sofrimento nos animais (art. 1 . º, 3, b)), e agravada
ainda pela sua apatia face à prática da caça, admitindo até que nas activi­
dades venatórias haja lugar a "confrontar moralmente animais uns contra
os outros" (art. l.º, 3, t) ) 3 60.
O que nos conduz directamente a ponderarmos o que significam
essas normas que, consentindo os mais insustentáveis e moralmente degra­
dantes ataques ao interesse dos não-humanos numa existência livre de
sofrimento, no entanto se reclamam, sem qualquer hesitação ou remorso,
como promotoras do «bem-estar animal», no seu ambíguo propósito de
«protecção» 36 1 - ambíguo e talvez sinistro, a «protectora» Parca com a
sua gadanha conduzindo, psicopompa, os animais para o seu Tártaro...
«Devem eles sofrer ?» - não, não devem, em circunstância alguma.

359 Veja-se a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal· de Justiça.de 27/9/2001, no


qual se reconhecia às associações zoófilas, como titulares do interesse difuso de protecção
dos direitos dos animais, um interesse em agir no sentido da proibição das touradas de
morte, esoecificamente no sentido do requerimento de providências cautelares e de fixação
de sanções pecuniárias compulsórias (R. 2345/01 - Col. Jur., 2001, 3, 41). Cfr. ainda o
art, 441.º, § único, do Código Administrativo, que equipara às associações humanitárias as
associações que tenham por objecto principal a protecção dos animais (um paralelismo
poderosamente sugestivo).
360 Veja-se especialmente a nova redacção dada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho.
3 61 Ambíguo porque a ideia de «protecção» é arrogante e antropocêntrica, postulando
a «superioridade» da nossa espécie quando sugere que lhe está cometido fornecer o «tecto»
(veja-se o parentesco etimológico entre «protecção» e «tecto») às demais espécies; facto
que tem levado alguns a preferirem a ideia de «respeito» pelas espécies. Cfr: Nouet, Jean­
Claude, "Protection ou Respect de l'Animal?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit.,
1100-1101.
9. A Frag ilidade da Solução do «Bem-Estar»

Parece, pois, que a simples salvaguarda do «bem-estar animal» é uma


finalidade jurídica que subalterniza os interesses dos animais, e que os
deixa expostos até à invocação do mais trivial dos interesses humanos: por
exemplo, o interesse da caça «como desporto», do tiro aos pombos, dos
espectáculos circenses e tauromáquicos.
Compreende-se que, perante a generalização do aparente «comedi­
m�nto» das ordens jurídicas positivas na salvaguarda do «bem-estar»,
muitos militantes da «libertação animal» se sintam frustrados e passem a
apoiar acções ilegais e violentas362 - como tem sucedido com a poderosa
confederação Animal Liberation Front (ALF), apologista da «acção
directa>>, da inflamação retórica e da concertação clandestina, tudo com o
fito de acelerar a adopção de atitudes de protecção substantiva e efectiva
para os animais vitimizados, que têm por desconsiderados pelas procla­
mações «vazias» da «promoção do bem-estar animal», as quais são enca­
radas como mistos de manobras dilatórias e de indesejáveis contempori­
zações363 .
A própria definição de «bem�estar», que tentámos formular do modo
mais elementar e inequívoco, pode ter algo a ver com a questão, quando
ela se coenvolve na expressão do zelo humanitário para com a condição
animal, acabando por cingir�se a uma rematada expressão de antropocen­
trismo: é que o simples direito a um tratamento «humano» seria cruel­
mente auto�referente, visando literalmente mais o melhoramento moral

362 Cfr. Kniaz, Laura G.,. "Animal Liberation and the Law: Animais Board the
Underground .Railroad", Buffalo Law Review, 43 ( 1995); 800.
363 Cfr. Silverstein, Helena, Unleashing Rights: Law, Meaning, and the Animal
Rights Movement, Ann -Arbor, University of Michigan Press, 1 999, 143, 765, 781, 793;
Tresl, Jacqueline, "The Broken Window: Laying Down the Law for Animais", Southern
Illinois University .Law Journal, 26 (2002), 292.
1 20 A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar»

dos homens do que especificamente uma salvaguarda que não estivesse


contingentemente exposta à moralidade do agente humano, que se tradu­
zisse em interesses incompreensíveis ou inefáveis a partir do discurso
moral tradicional, um discurso não-«descentrado». Tem que haver uma
forma qualquer, mais firme e inequívoca, de avaliar a efectividade das
medidas propostas para defesa dos interesses dos animais364.
Compreende-se por isso o pendor mais vincadamente jusnaturalista
da posição de Tom Regan, porque na essência a sua atitude alerta para a
necessidade de uma prévia reformulação dos valores condicionantes das
soluções jurídicas, como pressuposto de uma mais eficaz consagração dos
interesses dos não-humanos. A sua posição, é certo, evolui a partir de
objecções iniciais contra o utilitarismo - a incapacidade do utilitarismo
hedonista para defender interesses minoritários ou «marginais» contra a
avassaladora proeminência das massas, a abertura do utilitarismo à recon­
sideração constante dos direitos em atenção aos interesses subjacentes
(fragilizando o respeito pelos direitos e autorizando a frustração de expec­
tativas jurídicas) - .
Mas essa posição de Tom Regan acaba por centrar-se na ênfase no
carácter absoluto, sagrado, dos direitos dos animais - significando-se com
isso que o respeito pelos interesses dos não-humanos não pode ficar depen­
dente de reavaliações de interesses ou de definições do que seja, ou o bem­
estar individual, ou o bem-estar agregado de uma espécie. Os direitos dos
animais não podem ser tidos como «direitos de segunda», como afloramen­
tos de um discurso jurídico bem intencionado mas inconsequente; para Tom
Regan, eles têm que ter um carácter absoluto, o mesmo carácter absoluto
que permite aos direitos humanos fundamentais sobreviverem em «casos
marginais», isto é, que permite o reconhecimento de direitos intangíveis a
seres humanos que disponham de menos consciência reflexiva e de menos
capacidade de reciprocarem e de experimentarem sensorialmente um bem­
estar mínimo do que alguns não-humanos - por exemplo, seres humanos
em situações vegetativas com baixa esperança de vida365.

364 Laura Kniaz sugere a sujeição dessas medidas a 5 questões: 1 ) como é que a
norma define «animal»? 2) em que género de actividades se proíbe a crueldade? 3) qual é
a relevância da culpa na incriminação dos perpetradores? 4) a norma tem sido efectiva­
mente aplicada? 5) a moldura punitiva é suficientemente dissuasora? - cfr. Kniaz, L.G.,
"Animal Liberation... ", cit., 792.
365 Cfr. Regan, Tom, "Animal Rights, Human Wrongs", Environmental Ethics, 2
(1 980), 99- 1 20; eiusdem, "Animal Rights and the Law", St. Louis University Law Journal,
A Hora dos Direitos dos Animais 12 1

9 .a) A questão do sofrimento «necessário»


Além disso, a consagração do «bem-estar animal» constitui uma bar­
reira defensiva demasiado ténue, visto que o conceito deixa subentendido
que a exploração das espécies não-humanas não suscita questões difíceis
e é pacificamente aceite, como se se tratasse de uma regra que não reclama
justificação especial enquanto se mantiver dentro do âmbito do binómio
«necessidade / conveniência», binómio em que prepondera a maximização
do proveito económico que possa retirar-se imediatamente daquela explo­
ração - legitimando assim, desde o início, um máximo de instrumentali­
zação que nada impedirá que se converta em subalternização permanente
do interesse dos não-humanos na preservação do seu próprio bem-estar.
Por outras palavras, como impedir que a evolução civilizacional
humana, multiplicando as necessidades secundárias e os requisitos quali­
tativos e quantitativos de que depende o bem-estar, transforme progressi­
vamente «conveniências» em «necessidades» (económicas, científicas,
lúdicas, culturais, até religiosas), desdobrando-se em justificações para o
sacrifício do interesse dos não-humanos, pacificando consciências com
«imperativos de progresso» - ainda que o faça dentro do círculo restrito
do antropocentrismo, e por isso de forma inteiramente inalcançável e irre­
levante do ponto de vista do sofrimento dos animais - ?
Quererá alguém sustentar, por absurdo, que os não-humanos deveriam
consolar-se moralmente com a constatação de que o seu sofrimento contri­
bui para o progresso - científico, económico, ecológico - ? Que eles
deveriam reduzir-se à subalternidade teleológica, e suportarem resignada­
mente o seu sofrimento como expressão da sua natureza ancilar perante a
inelutabilidade - e supremacia axiológica - do progresso humano? Ou ao
invés, como já vimos, que eles deveriam render-se às alarvidades da barbá­
rie humana, em nome da venerável respeitabilidade das tradições - lúdi­
cas, propiciatórias, bélicas - ? Mesmo que antropomorficamente admitís­
semos a possibilidade de uma tal consciência moral (sem cairmos no
problema mais grave da determinação da personalidade dos não-humanos),

3 1 ( 1987), 5 13ss.; eiusdem, "Animais, Treatment of," in Becker, Lawrence C. & Charlotte
B. Becker (orgs.), Encyclopedia of Ethics, New York, Garland, 1992, II, 42-46; Regan,
Tom, "Ethical Perspectives on the Treatment and Status of Animais", in Reich, W.T. (org.),
Encyclopedia of Bioethics, cit., 159- 17 1; Regan, Tom, "Animal Rights", in Bekoff, M. &
C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal Rights. . ., cit., 42-43.
122 A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar»

como admitiríamos nos não-humanos uma instrumentalização ética radical


que recusaríamos sempre aos membros da nossa espécie?
Pior ainda, o combate ao sofrimento é dotado da sua própria urgên­
cia, e cabe perguntar-se pragmaticamente o que é que, no movimento do
«bem-estar animal», permite uma tão ampla e longa transigência com a
exploração dos animais, reclamando regulação em vez de abolição ime­
diata de todas as situações em que aquele sofrimento se revela: quanto
sofrimento acumulado, quanto tempo transcorrido, são necessários para
que deixe de se aceitar a verificação dessa categoria difusa do «bem�estar
animal», para que haja uma reacção?366 Não bastaria isso para, mesmo
dentro dos limites da estrita legalidade, se passar a uma militância ime­
diata?367
O conceito de «sofrimento necessário», subentendendo a possibili­
dade de subalternização de interesses vitais a desígnios superiores, vem
perturbar muito as coisas neste domínio, e naturalmente a admissão
daquele conceito transfere o problema para a determinação do que seja
«necessidade» . Mas mesmo isso não impedirá a constatação de que a
defesa do «bem-estar» tende a ser sempre, até por definição, demasiado
condescendente com o sofrimento «desnecessário» de animais não-huma­
nos, mormente quando, proscrevendo a crueldade (a inflicção de sofri­
mento tido por «desnecessário»), não proíbe a geração de sofrimento que
seja considerado «justificado» por interesses humanos «relevantes», como
os interesses económicos comuns - enquanto que, como vimos, é indife­
rente e imperceptível para a vítima não-humana a circunstância de existir
ou não um intuito cruel, ou uma justificação humanamente «respeitável»,
por parte do causador desse sofrimento, e é o facto bruto da dor e da ansie­
dade a única coisa que é experimentada, a única coisa que releva _ 368.
E é por isso que os partidários do «bem-estar animal» concentrarão
os seus argumentos em tomo do tema da justificação dos sacrifícios

366 Cfr. Francione, Gary L., Rain Without Thunder. The ldeology of the Animal Rights
Movement, Philadelphia, Temple University Press, 1996, 1-3 1.
367 Martha Nussbaum elogia Steven Wise por fazê-lo, quebrando o impasse «esqui­
zofrénico» que nos sensibiliza para o sofrimento animal mas nos faz pactuar com ele, nos
fornece os pensamentos mas não nos bloqueia os actos; por se pôr em marcha, mesmo sem
esperar que haja consenso em tomo da definição conceptual dos direitos dos animais -
Nussbaum, Martha C., "Animal Rights: The Need for a Theoretical Basis", Harvard Law
Review, 114 (2001), 1509- 15 12.
368 Cfr. Kelch, T.G., "Toward a Non-Property Status... ", cit. , 540-541.
A Hora dos Direitos dos Animais 123

admissíveis que devam ser suportados pelos não-humanos, enquanto que


os defensores dos «direitos dos animais» tenderão a insistir no argumento
de que existe pelo menos um núcleo de interesses intangíveis e absolutos
que não podem ser equacionados numa ponderação com vantagens de
bem-estar, sejam elas quais forem e seja qual for o respectivo titular - e
que nenhuma ideia de «sacrifício», com a sua carga sugestiva e idealiza­
dora da violência exercida sobre animais369, pode recobrir com a aparên­
cia de uma «legitimação transcendente».
Em abono dessa última posição, registe-se que a ponderação de inte­
resses humanos e não-humanos, requerida pelos defensores do «bem-estar
animal» para se determinar o que é um tratamento aceitável e o que é sofri­
mento «desnecessário» dos animais, introduz tantas especificações e
admite tantas excepções que essa ponderação redunda amiúde num exer­
cício fútil e desequilibrado, muitas vezes fazendo prevalecer os mais tri­
viais interesses humanos - lúdicos, rituais, pseudo-científicos - face aos
interesses mais fundamentais e prementes dos não-humanos na fuga ao
sofrimento e à morte3 70.
Dito de outra forma, a perspectiva do «bem-estar animal», favore­
cendo a «coisificação» e a apropriação dos não-humanos pelos humanos
- dando estes por curadores dos interesses daqueles (se é que àqueles são
reconhecidos interesses) - , parte logo do princípio de que é generica­
mente admissível a instrumentalização desses interesses dos animais, que
essa instrumentalização é «necessária» quando é recoberta por alguma ins­
tituição social reconhecida, e que «crueldade» é apenas aquilo que de
algum modo interfere com a exploração económica dos animais e não
releva para ela, ou seja, aquilo que não é indispensável aos desígnios da
funcionalização aos interesses «normais» dos humanos, e por isso se possa
afigurar gratuito, irrelevante ou nocivo àquela funcionalização3 7 I . Com­
preende-se por isso que um texto tão avançado como o norte-americano
«Animal Welfare Act» desconsidere completamente, por razões alegada­
mente «económicas», a sorte e o sofrimento dÔs animais «de criação»,
domesticados no meio rural - para grande fúria da teriofilia norte-ameri-

369 Cfr. Balibar, Étienne, "Violence: Idéalité et Cruauté", in Héritier, Françoise


(org.), De la Violence, Paris, Odile Jacob, 1996, 68-71.
3 70 Cfr. Francione, G.L., "Animal Rights and Legal Welfarism . . . ", cit., 723.
37 1 Cfr. Francione, G.L., "Animal Rights and Legal Welfarism . . . ", cit., 739-740.
124 A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar»

cana37 2, que apela para a consagração, nesse mínimo, ao menos das «cinco
liberdades» que a Europa já consagrou373 .
Pela mesma razão se compreende o sucesso da perspectiva mais
ténue e inconsequente do apelo ao «bem-estar animal», visto que ela é
compatível com o mais arreigado antropocentrismo, posicionando-se, em
conformidade, como o «denominador mínimo» do consenso social que,
excluídas certas perversões teriofóbicas, é capaz de formar-se em torno da
definição do nível aceitável de «bem-estar» que deva ser respeitado nos
não-humanos - e portanto, em suma, um esforço positivo naqueles
ambientes em que uma consciência colectiva difusa e incipiente, ou uma
noção mal informada da imperatividade moral ou jurídica, tolham inicia­
tivas fortes que, em vez de esperarem pelo apoio do consenso social, pro­
curem dirigi-lo ou corrigi-lo, tomando a dianteira rumo a fins morais reco­
nhecidamente válidos.
Mas cabe perguntar:
- poderá conceber-se um consenso forte em sociedades plurais, que
não partilham quadros de valores, mais a mais quando a fragmen­
tação axiológica é presidida por tradições que não são propria­
mente teriofílicas?
- não será perigoso, para a liberdade política, presumir-se a exis­
tência de valores objectivos, reconhecidos, evidentes, que balizas­
sem o espaço público da opinião, encerrando-o, ou prescindissem
dele - arvorando como propósito da lei a consagração de virtu­
des ao serviço das quais a colectividade se colocaria, em abjecta
subserviência? Não é a política das virtudes e das evidências a
política do monolitismo doutrinário, do terror?
E assim, se é compreensível a impaciência dos defensores dos direi­
tos dos animais, dos militantes da «libertação animal», com aquilo que
eles consideram ser a inerme complacência das preocupações com o bem­
estar dos animais, que coexistem com o desrespeito de interesses e com a
violência generalizada e quotidiana, guardando a boa consciência com
simples proclamações de princípios, programas e intenções dentro de um

37 2 Cfr. Havercamp, Steven J., "Are Moderate Animal Welfare Laws and a Substai­
nable Agricultura! Economy Mutually Exclusive? Laws, Moral Implications, and Recom­
mendations", Drake Law Review, 46 ( 1998), 667.
373 Cfr. Tresl, J., "The Broken Window... ", cit., 286; Havercamp, S.J., "Are Mode­
rate Animal Welfare Laws.. . ", cit., 675.
,,,;_

A Hora dos Direitos dos Animais 125

quadro jurídico que «enjaula» os não-humanos na categoria das coisas -


numa espécie de dualidade esquizofrénica entre retórica de compaixão e
prática de indiferença37 4 - , também é compreensível a cautela daqueles
que sustentam que, por ora - e sem embargo de ser desejável uma revo­
lução de mentalidades que permita ir mais longe - , a melhor defesa dos
direitos dos animais ainda se encontra nas normas que protegem apenas
reflexamente os interesses dos não-humanos através da protecção directa
de interesses humanos com eles conexos - mormente os interesses dos
proprietários na não-vandalização dos seus bens e no não-esgotamento dos
seus recursos -; como é compreensível também o optimismo daqueles que
sustentam que a panóplia de leis de protecção do bem-estar animal já é
suficiente para se poder reconhecer, em muitas ordens jurídicas, que a
«revolução esperada» ocorreu já, embora subrepticiamente, e que já é
efectiva a atribuição de verdadeiros direitos aos não-humanos37S .

9 .b) A timidez dos progressos jurídicos


É nesses termos que devem ser entendidos os compromissos e hesi­
tações de que são compostos textos fundamentais para o progresso jurídico
da causa zoófila, como o «Animal Welfare Act» norte-americano, que,
sendo tido como não mais do que um mero embrião, muito incipiente, de
uma possível «Carta dos Direitos do Animal» 37 6, tem sido severamente
criticado pelo facto de os seus princípios não serem postos em prática na
maior parte dos casos, gerando-se um comprometedor hiato entre a
«nobreza» do que é estatuído e a exiguidade da sua eficácia377 , mormente

374 Cfr. Francione, Gary L., Animais, Property, and the Law, Philadelphia, Temple
University Press, 1995 ; eiusdem, Rain Without Thunder ..., cit.; eiusdem, Introduction to
Animal Rights: Your Child or the Dog?, Philadelphia, Tempfe'University Press, 1999.
375 Entre estes últimos, cfr. Wise, Steven M., "Hardly a Revolution: The Eligibility
of Nonhuman Animais for Dignity-Rights in a Liberal Democracy", Vermont Law Review,
22 (1998), 910-913 .
376 Cfr. Tresl, J., "Toe Broken Window . . . ", cit., 282; Mendelson, Joseph, "Should
Animais Have Standing? A Review of Standing Under the Animal Welfare Act", Boston
College Environmental Ajfairs Law Review, 24 (1997), 795 .
377 Cfr. Francione, G.L., Animais, Property, and the Law, cit., 65-89, 185-248;
Rikleen, Lauren S ., "The Animal Welfare Act: Still a Cruelty to Animais", Boston College
Environmental Affairs Law Review, 7 (1978), 129ss..
126 A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar»

por não estarem adequadamente previstos os meios adjectivos, proces­


suais, capazes de porem em acção os direitos consagrados378 ; o mesmo
podendo dizer-se da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que
é ambígua, por exemplo, na matéria da protecção aos animais domésticos,
visto que aponta para a preservação das "condições de vida e de liberdade
que são próprias da sua espécie" (art. 5.º, 1 ), uma fórmula vaga e algo
redundante, já que, como referimos, a integração dessas espécies no habi­
tat humano e - subentende-se - a sua dependência alimentar face à acti­
vidade produtiva humana não permitem abstractamente traçar uma fron­
teira de demarcação de interesses próprios dissociáveis dos interesses
humanos, deixando de poder referir-se «condições de liberdade» pró­
prias37 9.
No seio da União Europeia, o Protocolo sobre Bem-Estar Animal é,
também ele, seja demasiado modesto, seja ambíguo, por exemplo na sua
ressalva das práticas religiosas, das tradições culturais e dos regionalismos
como actos admissíveis, já que a consideração da relevância desses parti­
cularismos pode comprometer o respeito efectivo pelo bem-estar animal,
fazendo o interesse conexo àquelas práticas sobrelevar, como regra, ao
interesse dos animais no não-sofrimento3 80 .
Também a já mencionada Convenção Europeia sobre a Protecção dos
Animais de Abate, de 1 98 1 , admite derrogações amplas que praticamente
inutilizam o objectivo da preservação do bem-estar animal ou da proscri­
ção do sofrimento, visto que, entre outros38 1, admite abates segundo rituais
religiosos (art. 1 7 .º, 1) ; e isto independentemente de qualquer requisito
quanto ao bem-estar dos animais abatidos - ainda que no n.º 2 do mesmo

37 8 Cfr. Tresl, J., "The Broken Window . . . ", cit., 282-283; Mendelson, J., "Should
Animais Have Standing? . . . ", cit., 801.
379 Quanto à posição da Declaração relativa aos animais domésticos, ressalvar-se-á
a firme condenação do abandono como "acto cruel e degradante" (art. 6.º, 2); mas já
quanto a um direito a uma "longevidade natural" (art. 6.º, 1), ele afigura-se singularmente
desprovido de objecto, se pensarmos que as condições ambientais são decisivas para a
determinação dessa longevidade.
3 80 Cfr. Camm, Tara & David Bowles, "Animal Welfare and the Treaty of Rome -
A Legal Analysis of the Protocol on Animal Welfare and Welfare Standards in the Euro­
pean Union", Journal of Environmental Law, 12 (2000), 202-203; Spedding, C .R.W., "Ani­
mal Welfare Policy in Europe", Journal of Agricultura[ and Environmental Ethics, 6-Sup­
plement (1993), 110-117.
3 8 1 Como abates "de emergência", sem atordoamento.
A Hora dos Direitos dos Animais 127

artigo se estabeleça o dever das autoridades de velarem no sentido da eli­


minação de "dores ou sofrimentos evitáveis" por ocasião dessas formas
especiais de abate (subentendendo-se que a «necessidade» do abate ritual
torna inevitáveis algumas dores e sofrimento), e o art. 1 9.º exija a certifi­
cação dos «sacrificantes» pelos organismos religiosos (o que é irrelevante
do ponto de vista do sofrimento infligido).
Já seria de esperar que a Lei da Caça fosse um espelho do que de mais
antropocêntrico a nossa sociedade é capaz: não frustrando expectativas, o
diploma actualmente em vigor (Lei n.º 1 73/99, de 2 1 de Setembro) con­
sagra alguns princípios de ecocentrismo mitigado, como fica consignado
nas referências à "gestão sustentada dos recursos cinegéticas", a "gestão
optimizada" de recursos renováveis, ao "uso racional" visando a produção
sustentada "no respeito pelos princípios da conservação da natureza e dos
equilíbrios biológicos" (arts. 1.º e 3. 0 , 1 , a)), à necessidade de "preserva­
ção do potencial biológico das espécies cinegéticas e a manutenção da
biodiversidade e dos equilíbrios biológicos do meio" e especificamente ao
respeito pelos estádios de reprodução, de dependência e de migração das
espécies (art. 5.º, a), c) e d)) - e tudo isto com a mais soberana indife­
rença pelo sofrimento ocasionado pela maior parte das actividades vena­
tórias, e bem pelo contrário centrando as suas preocupações na sustentabi­
lidade ecológica e cinegética como requisitos de perpetuação daquela
actividade, independentemente de ela constituir, ou não, um mero desporto
brutal, independentemente de nela se recorrer, ou não, a meios extrema­
mente violentos e cruéis para com as suas vítimas3 82.

382 Cfr. Cartmill, Matt, A View to a Death in the Morning: Hunting and Nature
Through History, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1 993 ; eiusdem, "History of
ldeas Surrounding Hunting", in Bekoff, M . & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Ani­
mal Rights . . ., cit., 1 97- 1 99; Causey, Ann S., "Fair Chase", in Bekoff, M. & C.A. Meaney
(orgs.), Encyclopedia of Animal Rights .. ., cit., 202-203 ; Dizard, Jan E., Going Wild: Hun­
ting, Animal Rights, and the Contested Meaning �of Náture, Amherst, University of Massa­
chusetts Press, 1 999; King, Roger J.H ., "Environmental Ethics and the Case for Hunting",
Environmental Ethics, 1 3 ( 1991), 59-85 ; Loftin, Robert W., "The Morality of Hunting",
Environmental Ethics, 6 (1984), 24 1 -250; Loftin, Robert W. & Ellen Klein, "Hunting", in
Reich, W.T. (org.), Encyclopedia of Bioethics, cit., 1 87- 1 90 ; Pacelle, Wayne, "Hunting", in
Bekoff, M . & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal Rights . . ., cit., 1 96- 1 97 ; Pao­
lillo, Giuseppe, "Tutela della Fauna o Massacro Legalizzato?", in Mannucci, A. & M. Tal­
lacchini (orgs.), Per un Codice . .., cit., 1 3 1 - 1 60; Vamer, Gary, "Environmental Ethics and
Hunting", in Bekoff, M. & C.A . Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal Rights . . ., cit.,
200-20 1 .
128 A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar»

Como sugerimos já, a própria lei de protecção aos animais - Lei n.º
92/95, de 12 de Setembro - é demasiado vaga, ao ponto de tomar-se
ambígua, quanto à justificação da violência contra os animais e quanto à
necessidade do sofrimento. Veja-se o art. 1 .º, 1: "São proibidas todas as
violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os
actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento
cruel e prolongado ou graves lesões a um animal".
Claro que se compreende que, da perspectiva de um animal incapaz
da percepção inteligente da convencionalidade das práticas sociais huma­
nas, possa, por exemplo, afigurar-se como violenta a submissão a medidas
profilácticas, como a vacinação, ou o confinamento da sua «liberdade
natural» para efeitos de transporte em segurança; genericamente, dir-se-á
mesmo que a falta de percepção inteligente da convencionalidade, da
intencionalidade, das práticas humanas poderá até gerar no animal a per­
cepção de que toda a restrição da sua «liberdade natural» é o primeiro acto
de um processo violento, por exemplo de uma agressão predatória contra
a qual os seus instintos estão predispostos. Estaríamos, nesses poucos
casos - e porventura também nos de interferência humana na predação
natural, como veremos adiante (Capítulo 2 1) - diante de exemplos de
«violência» justificada.
Mas não seria porventura possível demarcar-se melhor aquilo que
possa entender-se como justificação de toda a violência, procedendo a
uma enumeração, já que, como acabámos de referir, o bem-estar dos ani­
mais reclama a ausência de qualquer tipo de violência, vista a incapaci­
dade das vítimas para discernirem a relevância da justificação? Pense-se
que é precisamente essa incapacidade de di,scemimento da intencionali­
dade humana que conduz à proibição da imposição aos animais de esfor­
ços excessivos383 - porque, para lá do sofrimento adveniente do excesso,
não existe para o animal a capacidade de representação das finalidades
supererogatórias que justificariam moralmente, no ser humano, um
excesso espontâneo, livremente assumido. Porque não fazer o mesmo rela­
tivamente à demarcação das possibilidades de inflicção de sofrimento aos
animais, em geral?
Mais grave, o art. l .º, 1, da Lei n.º 92/95 proíbe apenas a provocação
de sofrimento cruel e prolongado e de graves lesões, subentendendo-se a
contrario que são consentidos tanto um sofrimento breve e negligente, por

3 83 Art. l .º, 3, a) da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro.


A Hora dos Direitos dos Animais 129

mais agudo que seja para a vítima, como lesões ligeiras no animal. E
quanto à experimentação científica, ainda que com a ressalva de se exigir
uma "comprovada necessidade", o art. l.º, 3, e) da mesma Lei - um
diploma que assume a defesa do bem-estar animal como sua finalidade
precípua, lembremos - , apenas proíbe "dores ou sofrimentos considerá­
veis", o que só pode querer significar que as dores e os sofrimentos
«comuns» são genericamente admitidos, e que uma difusa comprovação
de «necessidade» permite ampliar até ao limite do imaginável a intensi­
dade dos sofrimentos infligidos às cobaias.
«Devem eles sofrer?» - não, não devem, pelo que há muito caminho
a percorrer na protecção jurídica do bem-estar animal. ..
10. E a Incomparabilidade
dos Direitos Humanos?

"É de um extremo pessimismo não tentar alterar as nossas atitudes


a pretexto de que poderíamos começar a tratar os seres humanos
deficientes mentais com a mesma falta de consideração que temos
hoje para com os animais, em vez de conceder aos animais a preo­
cupação acrescida que temos hoje pelos seres humanos deficientes
mentais" - Peter Singer384 .
"Condenar os animais pela não-inteligência é abrir a porta à morte
dos deficientes e dos incapazes" - António Menezes Cordeiro38 5/38 6 .

10 .a) Nós e eles


Todas as considerações que tecemos anteriormente poderão ser muito
interessantes, muito atendíveis , dirão alguns, mas elas esbarram numa
constatação não menos insofismável - e que é a de que existe uma fron­
teira de incomparabilidade que veda o acesso irrestrito de não-humanos a
protecções e salvaguardas profundamente embebidas de uma lógica e de
uma intenção exclusivamente humanas , o acesso a uma linguagem etico-

384 Singer, P., Ética Prática, cit., 98.


38 5Cordeiro, A. Menezes, Tratado .. . /-li - Coisas, cit., 2 14. Cfr. DeGrazia, David,
Taking Animais Seriously. Mental Life and Moral Status, Cambridge, Cambridge Univer­
sity Press, 1996.
386 "Yet it would be monstrous in our culture to deduce that severely retarded human
beings are entitled to no more consideration than animais or even that they are entitled to
less consideration than the smartest animais, who are smarter than the dumbest people;
just to refer to people as «dumb» grates on our sensibilities" - Posner, R.A. , The Proble­
matics .. . , cit., 49 .
132 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

jurídica criada por seres humanos para seres humanos, compreensível e


aproveitável apenas, na sua fundamental convencionalidade, por seres
humanos.
O argumento, em suma, é de que não pertencem à espécie humana -
é o argumento do «especismo» (um termo inventado por Richard Ryder387),
denunciado por Peter Singer como um critério moralmente irrelevante e
inaceitável:
- seja porque, sendo a igualdade de estatuto uma ideia moral, uma
proposição prescritiva, e não uma asserção de facto, da constata­
ção de uma desigualdade fáctica não se retira, nem pode retirar-se,
um corolário moral e jurídico (senão, legitimaríamos jurídica e
moralmente o racismo, por exemplo), e nenhuma desigualdade
empiricamente verificada pode entravar a vontade de extensão de
princípios igualitários, seja a que domínios for388 ;
- seja porque a simples ocorrência espontânea de sentimentos de
compaixão altruísta pelos não-humanos denunciaria por si mesma
a falta de congruência dos nossos sentimentos «especistas» (se a
linguagem etico-jurídica é tida por privativa dos humanos por
intenção dos seus criadores, que razão veda que essa intenção
evolua no sentido da inclusão de não-humanos?).
Em defesa do «especismo», há quem sustente que a atribuição de
direitos aos animais seria uma forma de parodiar os direitos humanos, de
sabotar a coesão das sociedades humanas e os respectivos «adquiridos
culturais», fazendo colidír direitos de humanos com direitos de não­
-humanos e desconsiderando o próprio cimento da coesão social, que é o
da primazia conferida aos direitos humanos e Q, d·a salvaguarda dos mes­
mos direitos3 8 9.

38 7 A expressão «speciesism» surge pela primeira vez utilizada em Ryder, Richard,


"Experiments on Animais", in Godlovitch, Stanley, Roslind Godlovitch & John Harris
(orgs.), Animals, Men and Morais: An Inquiry into the Maltreatment of Non-Humans, Lon­
don, Gollancz, 1971, 81. Cfr. também Ryder, Richard, "Sentientism", in Cavalieri, Paola &
Peter Singer (orgs.), The Great Ape Project: Equality Beyond Humanity, New York, St.
Martin's Press, 1995, 220.
388 No que Peter Singer é secundado por Harold Hannah, que reforça a ideia de que
se trata de uma pura questão convencional, valorativa e prescritiva, inteiramente à mercê
de uma deliberação moral. Cfr. Hannah, Harold W., "Animais as Property - Changing
Concepts", Southern Illinois University Law Journal, 25 (2001), 580.
389 Cfr. Schmahmann, D.R. & L.J. Polacheck, "The Case Against... ", cit., 747ss ..
A Hora dos Direitos dos Animais 133

Mas será que degrada, verdadeiramente? Ou não será antes que tudo
não passa de mais uma expressão do medo das origens390, da rejeição da
nossa animalidade, albergados ambos no desprezo e no ridículo com que
designamos as «bestas» ? 39 1
O argumento da incomparabilidade e da degradação dos direitos, des­
graçadamente, não é novo na história das ideias: ele é recorrente na xeno­
fobia das sociedades fechadas, na estratificação das sociedades de castas,
já foi usado contra a atribuição de direitos aos «escravos naturais» com a
alegação de que isso degradaria os direitos dos homens livres, e contra o
reconhecimento da igualdade jurídica dos sexos em nome da govemabili­
dade da família ou da salvaguarda de prerrogativas «básicas» da parte
masculina da nossa sociedade.
E se pudesse discernir-se, nessa vontade de comparação de estatuto
etico-jurídico entre homens e animais, uma vontade deliberada e perversa
de humilhação da humanidade? É que, como já referimos, há quem
entenda que a defesa dos direitos dos animais, e sobretudo a militância da
«libertação animal», não passam de formas de devoção que vieram preen­
cher o vazio deixado pelo declínio das religiões392 - formas expostas,
pois, a extremos de fanatismo e de desumanidade decalcados de provectos
delírios de devoção.
Mesmo sem fanatismo, é também compreensível o receio de um certo
tipo de «panteísmo animista» que poderia designar-se como «francisca­
nismo jurídico»393 , uma atitude onirico-beatífica que tudo dissolveria em
indiferenciação contemplativa, retirando aos direitos humanos a força ideo­
lógica e combativa que só séculos de esforço cultural permitiram consoli-

390 "L'humanité dans son ensemble ressemble aux parvenus honteux de leur humble
origine. Ils éloignent d 'eux ce qui le suggere. Que sont d 'ailleurs les «grandes» ou les
«bonnes» familles, sinon celles ou notre naissance fangeuse est le plus soigneusement
camouflée?" - Bataille, Georges, "Histoire de l'Émtisl@�, apud CEuvres Completes,
,· ·
Paris, Gallimard, 1976, V III, 52.
39 1 O insulto usando referências a animais remete-nos para a contiguidade entre
espécies, que reclama a degradação metafórica dos animais como barreira defensiva, tal
como a proibição do incesto nos demarca sexualmente dos nossos parentes mais próximos
- cfr. Leach, Edmund, "Anthropological Aspects of Language. Animal Categories and
Verbal Abuse", in Lenneberg, E.H. (org.), New Directions in the Study of Language, Cam­
bridge Mass., MIT Press, 1964, 23-63.
392 MacDonald, Rhona, "How Animal Passions Became Aroused", British Medical
Journal, 322 (27/1/2001), 244.
393 Cfr. Gouveia, J.B., "A Prática de Tiro aos Pombos...", cit., 242-243.
134 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

dar - dificultando a identificação da personalidade e da capacidade jurídi­


cas, turvando a separação entre titulares e objectos de situações jurídicas.

1 O .b) O «especismo» como «lealdade à espécie»


O moderno debate filosófico sobre os direitos dos animais é inaugu­
rado em 1 97 1 pela já referida antologia de Stanley Godlovitch (e outros),
Animais, Men and Morais, e é nele que, como referimos, o termo «espe­
cismo» vem polarizar os novos dados da contenda ideológica394/395.
Um dos primeiros vectores do «anti-especismo» centra-se no ataque
à «falácia naturalista», há muito denunciada por David Hume, da transição
imediata do plano das asserções de facto para o plano dos juízos de
valor396: a diferenciação entre espécies é um facto, decerto, mas o que
implica isso em termos de valor?
Prevenindo as investidas daqueles que não se intimidassem com essa
primeira barreira - puros fatalistas, puros deterministas, materialistas ou
jusnaturalistas - , o «anti-especismo» imediatamente ergueu outra, a res-

394 Godlovitch, S., R. Godlovitch & J . Harris (orgs.), Animais, Men and Morais ...,
cit., 81 .
395 Cfr. Fjellstrom, Roger, "Specifying Speciesism", Environmental Values, 11
(2002), 63-74; Ryder, Richard D., Animal Revolution: Changing Attitudes Towards Spe­
ciesism, Oxford, Basil Blackwell, 1989; Ryder, Richard D., The Political Animal. The Con­
quest of Speciesism, Jefferson NC, McFarland, 1998; Steinbock, Bonnie, "Speciesism and
the ldea of Equality", Philosophy, 53 (1978), 247-256.
396 "/ cannot forbear adding to these reasoni'l;gs an obser-vation, which may,
perhaps, be found of some importance. ln every system of morality, which I have hitherto
met with, I have always remark'd, that the author proceeds for some time in the ordinary
way of reasoning, and establishes the being of a God, or makes observations concerning
human affairs; when of a sudden I am surpriz'd to find, that instead of the usual copula­
tions of propositions, is, and is not, / meet with no proposition that is not connected with
an ought, or an ought not. This change is imperceptible; but is, however, of the last conse­
quence. For as this ought, or ought not, expresses some new relation or affirmation, 'tis
necessary that it should be observ'd and explain'd; and at the sarne time that a reason
should be given, Jor what seems altogether inconceivable, how this new relation can be a
deduction from others, which are entirely different from it. But as authors do not commonly
use this precaution, I shall presume to recommend it to the readers; and am persuaded, that
this small attention wou'd subvert all the vulgar systems of morality, and let us see, that
the distinction of vice and virtue is not Jounded merely on the relations of objects, nor is
perceiv'd by reason." - Rume, D ., A Treatise ..., cit., 469-470 (Book III, Part I, Section 1).
A Hora dos Direitos dos Animais 135

peitante aos já referidos «casos marginais»: mesmo que aceitássemos a


possibilidade de se edificar uma axiologia de base puramente fáctica,
como encarar a constatação de que não se encontra nenhum «defeito» em
não-humanos que não se encontre também nalguns membros da espécie
humana - qualquer pessoa sabendo que, por exemplo, existem seres
humanos que se encontram de tal modo incapacitados que a sua interacção
com o seu meio ambiente é muitas vezes menos activa, significativa e indi­
vidualmente compensadora do que aquela de que é capaz, por exemplo,
um cão saudável397 - ? Aliás, a própria condição moral passiva também é
problemática - no sentido de que não é óbvio quem são os seres cujo tra­
tamento merece uma avaliação moral, mormente, como referimos já,
quando a passividade é dependência, é incapacidade de reciprocar _ 3 98.
Um argumento forte do outro lado é o de que o «especismo» assenta
num facto inequívoco dos nossos afectos - uma «preferência pela espécie»
que, sendo expressão de determinismo genético, é comum a todas as espé­
cies animais399 - ; mas o problema, também aí, está em fazermos derivar a
nossa moral desses nossos sentimentos. É evidente que a maior parte das
pessoas têm uma relação mais estreita com um ser humano afectado com a
mais grave deficiência mental, ou com um ser humano em fase terminal e
vegetativa, do que com qualquer animal não-humano, e seria absurdo negar
ou censurar esses sentimentos. Contudo, derivar as nossas obrigações
morais de tais sentimentos autorizaria todas as atitudes egocêntricas, etno­
cêntricas, xenófobas e racistas400 - não podendo esses sentimentos, por
outras palavras, ser fonte de deveres universalizáveis, não podendo, pelo
simples facto de balizarem (contingentemente) a conduta individual, con­
verter-se em prescrições (necessárias) para a conduta de todos.
Outro poderoso contra-argumento é o de que a compaixão altruísta
por não-humanos, longe de ser uma prova contra o «especismo», pode
antes ser uma subtil expressão desse mesmo «especismo»: veja-se o facto
da preferência, já detectada, pela consagração de direitos dos animais de

397 Cfr. Francione, G.L., "Animals as Property", cit., iv.


39 8Cfr. Miller, Harlan B., "Science, Ethics, and Moral Status", Between the Species,
10 (1994), 1-2.
399 Richard Posner não hesita em usar este argumento, dizendo que é por determi­
nismo biologico-genético que preferimos a nossa espécie e que nos causam repulsa os nive­
lamentos inter-específicos - cfr. Posner, Richard A., The Problems of Jurisprudence,
Cambridge Mass., Harvard University Press, 1990, 347-348.
400 Cfr. Singer, P., Ética Prática, cit., 97.
136 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

companhia em detrimentos dos interesses dos demais não-humanos, apre­


sentando-se a defesa daqueles «direitos» como uma expressão privilegiada
de afecto humano (até «humanizador», na perspectiva kantiana) pelos ani­
mais - o que precisamente poderá ter-se por mais uma expressão de pre­
conceito «especista», reveladora da falta de disposição para alargarmos a
não-humanos o âmbito das nossas máximas morais e jurídicas, cingindo-o
ao domínio mais restrito das demonstrações mais antropocêntricas do
nosso afecto, e deixando-o à mercê dos nossos «bons sentimentos»: o que
se assemelha singularmente à proverbial (e tão denunciada) arrogância
civilizacional que apresentava a defesa dos direitos de minorias humanas
como expressão de especiais sentimentos de simpatia, afinidade ou comi­
seração para com elas, o que na realidade não passa de uma típica suges­
tão de petulância estigmatizadora e discriminatória40 I _
Voltemos à «lealdade à espécie», reconhecendo que o conceito de
espécie é definido pela compatibilidade genética para efeitos de reprodu­
ção, pelo limite máximo da hibridização natural - para nos perguntarmos
se essa característica genética, essa necessidade, não deverá ter, no caso da
espécie humana, um alcance que demarque nas suas fronteiras a área dos
direitos subjectivos402. Não seria então o «especismo» o legítimo corolá­
rio de um condicionamento biológico, a validação axiológica de condições
de sucesso na evolução darwinista?403
Talvez não, de uma simples perspectiva estritamente determinista: é
que, por exemplo, se porventura a preservação da biodiversidade for bene­
ficiada com o reconhecimento dos direitos dos animais, poderemos até
sustentar que um tal reconhecimento é uma estratégia adaptativa bem
sucedida - é um modo de reforçar, no ser humano, uma conduta que
melhora as suas condições de sucesso ecológico e evolucionista.

40 1 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., ii.


402 Cfr. Wilson, Edward O., The Diversity of Life, Cambridge Mass., Belknap Press,
1992, 38.
403 Prende-se com essa visão axiológica do evolucionismo a «rejeição das origens»,
que chegou a ser tão intensa que houve quem pensasse em inverter essa cadeia evolucio­
nista, e procurasse demonstrar que os hominídeos de que começavam a descobrir-se vestí­
gios fósseis não eram senão descendentes degenerados de uma espécie humana que, na sua
normalidade, seria já tão desenvolvida como nós a conhecemos - ideia que casava com a
da «degenerescência rácica» estudada na antropologia «nosográfica», que Lombroso cele­
brizará - cfr. Brenot, Philippe, "La Honte des Origines", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ..., cit., 137- 140 .
A Hora dos Direitos dos Animais 137

Talvez não também, agora de uma perspectiva axiológica: é que se o


«especismo» fosse uma expressão mecanicista, necessária, da nossa estra­
tégia adaptativa como espécie , e por isso adquirisse um sentido nomoló­
gico forte, o sentido de uma inevitabilidade, não haveria «não-especistas»
entre os seres humanos ! E mesmo que os nossos instintos fossem invaria­
velmente «especistas» - tendo nós visto que o não são - , ainda assim a
nossa moralidade nos imporia que «filtrássemos» esses impulsos com o
crivo da nossa liberdade , porque (lembremos Hume) os nossos impulsos
não são , em si mesmos, morais nem imorais: pelo que , mesmo que o
«especismo» fosse algo de natural , isso não seria por si só razão para que
a moralidade o permitisse ou promovesse404 .
Mais subtilmente, dir-se-á que essa «lealdade à espécie» não assenta
em quaisquer alegações relativas a diferenças de características empíricas
entre animais , mas baseia-se apenas no sentido de coesão e familiaridade
que espontaneamente decorre da pertença à mesma «família biológica» ,
uma razão afectiva - e por isso poderosa - para a discriminação, como já
argumentava Robert Nozick em "About Mammals and People"405 . Em todo
o caso, esse mesmo argumento poderia ser usado para justificar a discrimi­
nação entre humanos assente em quaisquer outros «sentimentos de per­
tença» , como já vimos suceder, caracteristicamente, em sociedades fecha­
das . Além disso, se admitimos que a simples filiação humana não basta para
converter um ente num ser humano dotado de capacidade moral (que nega­
mos aos incapazes e demais «casos marginais») , então a descrição da per­
tença ao genótipo da espécie sempre deixaria de ter repercussões normati­
vas406 - argumento que retomaremos (no Capítulo 1 3) para analisar
a perspectiva contratualista que nega a atribuição de direitos aos animais .
A argumentação «especista» teria, pois , algo de paradoxal: é que se
ela pretende demarcações relevantes entre a espécie humana e as demais
- por exemplo , sublinhando a capacidade moral e jurídica como caracte­
rística exclusiva da nossa espécie - p9de estar a reforçar, não factores de
.,--: ,,.

404 Cfr. Post, Stephen, "The Emergence of Species Impartiality: A Medical Critique
of Biocentrism", Perspectives in Biology and Medicine, 36 (1993), 294; La Follette, H. &
N. Shanks, "The Origin of Speciesism", cit., 44; Watson, Richard A., "A Critique of Anti­
Anthropocentric Biocentrism", Environmental Ethics, 5 (1983), 245-256.
40 5 Nozick, Robert, "About Mammals and People", The New York Times Book
Review, 27/11/1983, 11.
40 6 Cfr . Singer, Peter, Rethinking Life and Death, Oxford, Oxford University Press,
1995, 204-205.
138 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

diferenciação exoneradora, mas sim elementos estruturantes de deveres


acrescidos para com as demais espécies, deveres que estas espécies não
podem, pelas suas limitações naturais, assumir para connosco, podendo no
limite fazer-se decorrer daqui um dever de consagração incondicionada de
direitos dos animais: incondicionada no sentido de não poder depender de
qualquer verificação de reciprocidade, e de poder erigir-se em simples
imperativo da nossa liberdade moral - a mesma que tem feito cair as bar­
reiras discriminatórias entre os seres humanos.
Podemos assim concordar com lmmanuel Kant quando ele assevera
que "mesmo a criança, mal sai do seio materno, parece, diversamente de
todos os outros animais, entrar neste mundo chorando por esta única razão:
a de ter por constrangimento a sua incapacidade de se servir dos seus mem­
bros, proclamando imediatamente a sua pretensão à liberdade (da qual
nenhum outro animal tem uma noção)"407; porque dessa asserção «pseudo­
especista» podemos fazer derivar o imperativo moral de colocarmos a nossa
moral e o nosso direito - como criações incondicionadas da liberdade que
se manifesta na nossa razão prática - ao serviço de valores que não nos
coloquem em dissonância com os nossos sentimentos, incluindo os espontâ­
neos sentimentos de afinidade e compaixão «não-especistas».
Reformulando o carácter paradoxal a que há pouco nos referíamos,
digamos que o paralelo com o movimento de generalização e de universa­
lização dos direitos humanos, sendo mais do que evidente, tornou mais
notória e frágil a barreira especista de discriminação contra os outros ani­
mais - e que, por isso, o que se ganhou em coesão interna na defesa dos
direitos humanos, e aparentemente na consolidação do núcleo da «incom­
parabilidade especista», serviu também para perturbar a barreira de exclu­
são, tornando-a cada vez menos sustentável (lamentando alguns, por isso,
a estreiteza da fronteira que eles vêm separar o uso do abuso da «lingua­
gem dos direitos»).
Mas talvez o que haja de mais grave no «especismo» - como no
«sexismo», e no «racismo», etc. - não é simplesmente a circunstância de

407 "Ja das Kind, welches sich nur eben dem mütterlichen Schooj3e entwunden hat,
scheint zum Unterschiede von allen andern Thieren blos deswegen mit lautem Geschrei in
die Welt zu treten: weil es sein Unvermogen, sich seiner Gliedmaj3en zu bedienen, für
Zwang ansieht und so einen Anspruch auf Freiheit (wovon kein anderes Thier eine Vors­
tellung hat) sofort ankündigt" - Kant, I., Anthropologie in Pragmatischer Hinsicht, AK,
V II, Berlin, Georg Reimer, 1917, 268.
A Hora dos Direitos dos Animais 139

se derivar juízos de valor a partir de meras diferenciações de facto, de se


buscar relevância na irrelevância, nem o facto de se sugerir ou presumir a
relevância moral dessas distinções factuais (saltando por cima da espi­
nhosa questão da perda de liberdade moral que adviria da violação dessa
fronteira entre ser e dever-se,-408); mas é antes, e talvez sobretudo, a cir­
cunstância de o «especismo» representar a tendência para o conformismo
acrítico com juízos estigmatizadores absolutizados, como se não houvesse
falibilidade, evolução e perfectibilidade - historicidade - nos juízos
morais. Por isso, um mínimo de precaução deveria impor cautela na for­
mulação de juízos morais absolutos, categóricos, que já tantas vezes, no
passado - e porque não no presente e no futuro? - vieram a revelar-se
obsoletos e retrospectivamente trágicos: porque não haveria a nossa civi­
lização de estar a cometer em relação aos não-humanos alguns dos erros
que outrora foram cometidos em relação às mulheres, aos estrangeiros e
aos escravos, e que ainda presentemente são cometidos entre nações,
raças, sexos, ou religiões?409
Em suma, a insustentabilidade toma-se aparente quando considera­
mos que o «especismo»:
- erradamente presume que as desigualdades empiricamente verifi­
cadas «contaminam» os juízos de igualdade, confundindo descri­
ção com prescrição4IO;
- promana de preconceitos presos de uma determinada contextuali­
dade cultural e histórica, inescapável decerto, mas por isso mesmo
legitimadora de uma relativização auto-referencial;
assenta em demarcações generalizadoras que admitem óbvias
excepções individuais, excepções que outrora serviram para a
«promoção» do sexo «inferior» e das raças e castas «inferiores»
(quando membros desse sexo, raça ou casta demonstravam quali­
dades mais salientes do que as da média dos grupos alegadamente
«superiores»).

408 Cfr. Racheis, James, "Darwin, Species, and Morality", Monist, 10 (1987), 98-99.
409 Cfr. La Follette, H. & N. Shanks, "The Origin of Speciesism", cit., 41-42.
4 10 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 3-4.
140 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

1 O .e) Equiparação ou banalização? O especismo


«moderado»
Quanto ao argumento da banalização dos direitos humanos, recorra­
mos à citação com que abrimos o capítulo: é evidente que o «anti-espe­
cisrno» pretende precisamente o inverso dessa banalização: é porque se pre­
tende que nenhum ser vivo susceptível de sofrimento veja o seu interesse em
não sofrer banalizado ou instrumentalizado a interesses alheios4 I I que se
insiste na necessidade de alargamento da esfera de consideração moral a
esses interesses vitais dos não-humanos. Seria, pois, absurdo que se defen­
desse a banalização dos interesses humanos e da consideração por eles até
ao nível que actualrnente cabe aos não-humanos, pois é precisamente a exis­
tência de um nível desses que se censura e se pretende abofü412.
Permita-se-nos a conclusão irónica de que o que está em jogo é, corno
sustentam os argumentos «especistas», um problema de banalização: só que
do que se trata não é da banalização dos direitos humanos mas antes, e ao
invés, da banalização dos interesses dos não-humanos em resultado de urna
«santificação» exacerbada dos interesses humanos, urna «santificação» dos
direitos humanos que serve também corno estratégia de repúdio e demarca­
ção da anirnalidade, urna promoção indiscriminada dos interesses humanos
que, para lá dos impasses de indecidibilidade que causa dentro da própria
espécie humana - se tudo é «sagrado», se tudo é «prioritário», nenhum
interesse pode prevalecer sobre nenhum outro _ 4 1 3 , subrepticiamente tenta
furtar os direitos humanos ·à questão da anirnalidade humana e à considera­
ção de «casos marginais», e até a distrair-nos dos problemas graves que são
suscitados pelos próprios conflitos entre interesses humanos vitais que ocor­
rem nos limites da bioética4 I 4 - urna atitude imobilista e de sacrifício de
interesses animais que outrora foi, com mais frequência, literalmente apli­
cada em rituais expiatórios e propiciatórios.

4 1 1 Interesses que não sejam, eles mesmos, interesses em não sofrer, pois senão terá
que se recorrer a um critério genérico de colisão de direitos que, nessa última e excepcio­
nal instância, não repugnará que seja «especista», preferindo poupar os humanos - até em
atenção à incomensurabilidade do sofrimento humano -.
4 1 2 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 18; Tester, K., Animals and Society . . ., cit.,
passim.
4 1 3 Cfr. Araújo, Fernando, A Procriação Assistida e o Problema da Santidade da
Vida, Coimbra, Almedina, 1999, l l 5ss ..
4 1 4 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 206.
A Hora dos Direitos dos Animais 141

Quererá isto dizer que a humanidade, num esforço ético e jurídico


as sional, se prepara para se libertar das grilhetas do especismo? Não
cen
confundamos a realidade com os nossos desejos, e reconheçamos que,
com mais ou menos «dissonância cognitiva», os preconceitos que alicer­
çam o especismo são, como sublinhámos, frutos naturais de uma determi­
nada contextualidade cultural e histórica, que podemos relativizar e criti­
car, mas que por ora é inescapável.
Por exemplo, pode legitimamente perguntar-se se uma certa forma de
«especismo indirecto» não será por ora insuperável, quando avaliamos o
bem-estar dos animais, o valor e a qualidade da sua vida, de acordo com
critérios de avaliação que são inevitavelmente antropocêntricos e até
antropomórficos4 15 . Com alguma dose de conformismo, há mesmo quem
defenda formas mitigadas de especismo, sublinhando que o favoritismo
em relação aos humanos é mais uma questão de condutas do que de opi­
niões, e que por isso não tem que se atribuir um sentido necessariamente
pejorativo à expressão; havendo também quem insista que o tratamento
deplorável que é tantas vezes reservado aos não-humanos é mais fruto de
outros preconceitos e vícios mais arreigados, do que propriamente expres­
são de uma vontade deliberada e militante de afirmar uma «superioridade
da espécie», como se de uma ideologia se tratasse4 I 6.
Efectivamente, como melhor veremos adiante a propósito da distinção
entre os problemas do sofrimento e da morte, e da admissibilidade do abate
sem sofrimento (Capítulo 24), nem todos os argumentos que discriminam
entre as espécies são militantemente «especistas» - sendo por isso que
alguns dos mais radicais defensores dos direitos dos animais não hesitam
em reconhecer, por exemplo, que só o ser humano tem uma dimensão bio­
gráfica e uma capacidade de formação de preferências orientadas para o
futuro, uma «futuridade» relevante que confere significado especial ao seu
«direito à vida»4 17. Mais amplamente ainda, admite Peter Singer que "o
especismo é uma atitude tão insinuante e gerier.alizada que mesmo aqueles

4 15 Cfr. Frey, Raymond G., "Moral Standing, the Value of Lives, and Speciesism",
Between the Species, 4 ( 1 988), 1 99; Brennan, Andrew, "Toe Moral Standing of Natural
Objects", Environmental Ethics, 6 ( 1 984), 35-56; Clark, Stephen R.L., Animais and Their
Moral Standing, London, Routledge, 1 997; Goodpaster, Kenneth, "On Being Morally Con­
siderable", Journal of Philosophy, 75 ( 1 978), 308-325.
4 16 Cfr. Holland, Alan J., "On Behalf of a Moderate Speciesism", Journal of Applied
Philosophy, l ( 1 984), 281 -29 1 .
4 1 7 Cfr . Racheis, J., Createdfrom Animais ... , cit., 1 99; contudo, cfr. Frey, Raymond
142 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

que atacam uma ou duas das suas manifestações - como o abate de ani­
mais selvagens efectuado por caçadores, ou a experimentação cruel ou as
touradas - participam, eles próprios, noutras práticas especistas. Isto
permite que os atacados acusem os seus adversários de incoerência"4I 8 .
Essa incoerência pode derivar de uma fragilidade central do «anti­
especismo», e que reside na dificuldade em evitar, no calor dos argumen­
tos, cair-se num igualitarismo extremo que nivelaria a vida humana com a
vida não-humana no plano das representações de que pode depender a
avaliação tanto dos interesses como da sua violação e do sofrimento
conexo, ou incorrer-se na confusão entre dever de não-discriminação e
avaliação indiscriminada de realidades com valores distintos - confusão
que levaria a conclusões insustentáveis em casos extremos de conflitos de
interesses com desfechos de «vida ou morte», com o eventual sacrifício de
humanos em favor de não-humanos (porque, por exemplo, estes seriam
mais numerosos do que aqueles, ou porque se confrontariam «espécies
ameaçadas» com «casos humanos marginais») -, conduzindo assim à
própria degradação do valor ético do igualitarismo como dever indiscri­
minado de solicitude, um valor que, na sua centralidade moral, não é, nem
pode ser, afectado por corolários não-intuitivos4I 9/420.
A charneira do anti-especismo deve ser, por essa razão, a da insistên­
cia na igual consideração de «interesses comparáveis» das diversas espé­
cies - abrindo por isso caminho à admissão de que haja interesses incom­
paráveis, de que haja incomensurabilidade de posições - . Por isso se
pode reconhecer um «qualified speciesism», uma vontade de transcender
as ilações a partir de uin mero reconhecimento de diferenças de facto, para
fazer assentar as distinções em razões meta-éticas42I .

G., "Content, Value, and Richness of Animal Life", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.),
Encyclopedia of Animal Rights . . . , cit . , 116-118.
4 18 Singer, P., Libertação Animal, cit., 2 15.
4 1 9 Cfr. Michael, Mark A., "Environmental Egalitarianism and «Who Do You Save?»
Dilemmas", Environmental Values, 6 (1997), 307-326.
420 Pela mesma razão, Richard Posner receia que a multiplicação de direitos, por
exemplo os atribuídos aos animais para abate, venha a repercutir-se no custo da produção
alimentar, agravando problemas de pobreza e de carência que já são muito graves na espé­
cie humana - cfr. E-mail Interview with Judge Richard A. Posner (June 10, 2001), cit. in
Tresl, J., "The Broken Window... ", cit., 287, 308.
42 1 Cfr. Racheis, J., Created from Animais. . . , cit., 182- 183. Cfr. VanDeVeer, D.,
"Interspecific Justice", cit., 55-79.
A Hora dos Direitos dos Animais 143

Poderíamos assim, sem problema, reconhecer que, como traços defi­


nidores da normalidade da espécie humana - excluindo dessa definição
os «casos marginais» que teriam que ser ad hoc abrangidos por simples
ligação genética à espécie (servindo agora o «especismo» como mera
forma de «repescagem» de casos anormais) - , temos a liberdade moral,
no sentido de autodeterminação e de susceptibilidade de transcender o
simples automatismo reactivo; a capacidade de agir com reciprocidade de
forma discriminada e intencional; a capacidade de deliberar uma abnega­
ção altruísta como regra de conduta422; a capacidade de condicionamento
(e auto-condicionamento) através da simples persuasão. Podendo admitir­
se igualmente, e em contrapartida, que estes não são traços normais em
qualquer espécie não-humana, novamente admitindo-se casos marginais e
contra-exemplos parciais423 .
Falemos, por fim, de uma equiparação pragmática, que busca reco­
lher, da experiência dos direitos humanos, apenas os exemplos já remata­
dos, já testados, por forma a aprender com eles o rumo a tomar para uma
sensata e duradoura consagração dos direitos dos animais. Assim, quando
a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 1 978, remata com
uma exigência de salvaguarda dos direitos dos animais num plano similar
ao da defesa dos direitos do homem (art. 14.º, 2), tal, insistamos, não deve
entender-se como uma tradução de um propósito de confusão de planos,
de indiscriminação, de banalização ou degradação dos direitos humanos,
mas antes como a expressão do mais modesto objectivo de busca de luga­
res paralelos, de concretização detalhada de consagrações já alcançadas
noutras áreas do Direito424 . Por exemplo, pense-se na densificação do con­
ceito de "limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho",
que o art. 7 .º da Declaração faz corresponder a um direito dos «animais de
trabalho»; ou, mais expressivamente ainda, pense-se na explicitação do
respeito que o art. 1 3.º, 1 da Declaração impõe pelo animal morto, ou na

422 Porém, sobre o «altruísmo recíproco» (não deliberado) como estratégia evolu­
cionista, cfr. Noe, Ronald, "Biological Markets: Partner Choice as the Driving Force
Behind the Evolution of Mutualisms", in Noe, Ronald, Jan A.R.A.M. van Hooff & Peter
Hammerstein (orgs.), Economics in Nature. Social Dilemmas, Mate Choice and Biological
Markets, Cambridge, Cambridge University Press, 200 1, 95-96.
42 3 Cfr. Steinbock, B., "Speciesism ... ", cit., 247-256.
424 Cfr. Voice, Paul, "What Do Animais Deserve?", South African Journal of Philo­
sophy, 14 (1995), 34-38.
144 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

exploração de corolários normativos para a interdição de divulgação de


cenas violentas de vitimização de animais, salvo para efeitos pedagógicos,
que consta do n.º 2 do mesmo art. 13.º. Porque não haveria de aproveitar­
se o já extenso património da consagração dos direitos humanos para
«queimar etapas» no progresso da causa dos direitos dos animais -
demonstrado que está que o que nesta se visa não é a banalização daque­
les direitos humanos - ?425
Mas é evidente que a última palavra não foi dita ainda (e natural­
mente nunca o será) nesta questão da comparabilidade entre direitos
humanos e direitos dos não-humanos. Ilustremo-lo com um debate entre
dois nomes sonantes no mundo da ética e do direito.
Entre 1 1 e 15 de Junho de 200 1, a revista Salon (www.salon.com)
assistiu a uma acesa discussão, sobre este tema, entre Peter Singer e
Richard Posner. Peter Singer começou por insistir na necessidade de rea­
linhamento, em plano de paridade, dos interesses humanos e não-huma­
nos, pondo cobro à sistemática inferiorização dos interesses destes últi­
mos, ou à sua consideração instrumentalizada às finalidades humanas; não
se trataria, em contrapartida, de reclamar uma paridade de direitos, dada a
convencionalidade destes, sendo absurda a atribuição do direito de votar
aos não-humanos426, ou a sua responsabilização criminal - tal como ela
seria absurda relativamente a seres humanos inimputáveis. A paridade dos
interesses deveria decorrer da resposta à questão dos casos marginais: qual
a característica moralmente relevante que todos os seres humanos têm em
comum e que nenhum _não-humano apresenta?
Na sua resposta, Richard Posner recusa que existam para os seres
humanos deveres para com as outras espécies que derivem da inclusão
destas últimas num mesmo universo moral; no mesmo universo de «sus-

425 Lembremos que já Aristóteles contava a história da mula que, terminada a sua
longa carreira de transportadora de materiais de construção para a Acrópole, foi na sua
velhice recolhida e alimentada a expensas do erário público, como um vulgar trabalhador
- Aristóteles, Historia Animalium, V I, 577b30 - 578a l .
426 Adam Kolber chama a atenção para a ambiguidade desta asserção: de facto, os
não-humanos (e alguns «casos humanos marginais») não poderão desempenhar esponta­
neamente os actos que formalmente integram o acto de votar; mas daí ,não deve fazer-se
decorrer que os não-humanos (ou aqueles mesmos «casos humanos marginais») estejam
privados de representação política, nem deve retirar-se maquiavelicamente a conclusão de
que a atribuição de direitos aos animais poderia ser «minada» por uma sub-representação
- cfr. Kolber, A., "Standing Upright ... ", cit ., 201-202.
A Hora dos Direitos dos Animais 145

ceptibilidade de sofrimento» - começando pela constatação de que esses


deveres não existem verdadeiramente sequer para o todo da humanidade,
esgotando-se frequentemente nas fronteiras daquilo que individualmente
cada ser humano identifica com aquilo que sente serem as suas comuni­
dades (como sentir compaixão pelo sofrimento do animal distante, se nem
mesmo pelo ser humano distante somos capazes de uma genuína comise­
ração?). Por isso Posner ataca aquilo que implicitamente considera ser o
doutrinarismo «anti-especista» como uma bizarria filosófica que tenta
fazer tábua-rasa de um dado elementar de identificação e pertença.
Por causa deste último argumento, Peter Singer acusa Posner de paro­
quialismo e de isolacionismo, censurando-o por querer dar valor moral a
percepções de senso comum que podem revelar-se racionalmente insus­
tentáveis e puramente preconceituosas - como o racismo ou a xenofobia,
por exemplo, que poderiam fazer-se decorrer de uma mesma indiferença
pelos interesses de seres humanos distantes de nós - .
Richard Posner replicará acusando Peter Singer de tentar ocultar a
consequência lógica a que conduz a sua peculiar conjugação de utilita­
rismo e de «anti-especismo», nomeadamente a possibilidade de se sacrifi­
car vidas humanas em favor de vidas não-humanas, ou de se justificar o
sofrimento humano em situações de conflito com um mais generalizado
interesse no não sofrimento dos não-humanos.
São argumentos e contra-argumentos que nos são já conhecidos, e
deste debate entre dois intelectuais de nomeada o que mais ressalta é,
como dissemos, o seu carácter inconclusivo. O que não pode deixar de
evidenciar, sem parti-pris, que a indecisão das dúvidas intelectuais que
dividem as opiniões neste tema não são motivo suficiente para se entra­
var ou protrair algumas medidas pragmáticas que preservem permanente­
mente interesses básicos de não-humanos e imponham, pelo intermé­
dio de normas jurídicas, um respeito generalizado por essas medidas de
salvaguarda.
Tal como felizmente tem sucedido em'matéria de progresso na con­
sagração juridico-política dos direitos humanos, não é moralmente admis­
sível que um dos mais benignos e louváveis aspectos da ética e da juris­
prudência - que é o de darem azo a intermináveis discussões, e se
alimentarem dessa inesgotável e perpétua vivacidade - se converta num
perverso entrave à adopção de soluções que pragmaticamente atendam aos
mais urgentes interesses daqueles (humanos e não-humanos) que não que­
rem, nem merecem, ver a qualidade da experiência da sua vida ser imo-
146 E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos?

lada, ou até ser diminuída ou posta em causa, no ardor de querelas inte­


lectuais, pelo simples facto de não terem aptidões para participarem nes­
sas querelas, ou pela elementar circunstância de se encontrarem sub-repre­
sentados nesses debates doutrinários.
11 . «Especismo» Não-Humano:
Uns Mais I guais?

" O reconhecimento de direitos fundamentais a chimpanzés e bono­


bos assinalará um passo decisivo no sentido da abolição dos abu­
sos irrestritos cometidos contra eles, tal como a consagração dos
direitos humanos foi um marco na repressão das violências que
cometemos uns contra os outros" - Steven Wise427 .

1 1 .a) Onde pararíamos? Nos direitos das bactérias?


Outra objecção comum que é formulada ao reconhecimento de direi­
tos aos animais consiste na aparente insusceptibilidade de estabelecimento
de fronteiras a essa atribuição: quebrada a barreira do «especismo»
humano, onde travaríamos nós aquele reconhecimento? Como discrimina­
ríamos nós entre espécies «merecedoras» e «não-merecedoras» desse
reconhecimento? Através da capacidade de sofrimento? Porventura tería­
mos aí um critério tão sólido quanto possível - mas mesmo assim, como
fugir da suspeita de antropomorfismo na configuração ou aferição dessa
capacidade de sofrimento? E, mais grave, como fugiríamos nós à alegação
de que, em vez de termos abolido o vício de r;:tFjocínio que denunciámos
no «especismo», o teríamos apenas transportado para longe de nós,
fazendo-o novamente renascer, agora como factor de discriminação entre
espécies não-humanas? Por outro lado, seria razoavelmente admissível
que fugíssemos a esta questão e sustentássemos que um. aceitável sistema
(bio)ético subsistira ainda - assente numa omissão e num equívoco?

427 Wise, S .M ., Rattling the Cage, cit., 237 .


148 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

Na verdade, o problema do «especismo entre animais» arranca de


uma premissa taxonómica indemonstrada, tão indemonstrada como a
«Cadeia do Ser», e que é a de que existe um contínuo entre todas as for­
mas de vida428 . Se aceitássemos a realidade objectiva de uma agregação
de todos os animais como seres dotados de uma «anima» que denota capa­
cidade de sofrimento, não restam dúvidas de que, de acordo com o crité­
rio pragmático que adoptámos, a atribuição de direitos a qualquer das
espécies animais envolveria o alastramento dessa atribuição a todas; toda­
via, aceitarmos que o critério de atribuição de direitos deveria ser o da
relevância dos interesses, e especificamente dos interesses de prevenção
do sofrimento, não postula uma igualdade ou um nivelamento indiscrimi­
nado em termos de capacidade de formar e satisfazer desejos reportados a
esses interesses (ou até de projectá-los para uma futuridade hedónica), e
isso certamente é distinto em várias espécies de animais (diferente nos pri­
matas e nos insectos, para darmos dois exemplos extremos).
O facto de termos aceite que existe uma forma mitigada de especismo
que é culturalmente inescapável permite-nos até aproveitar dele a ideia de
que a ética envolve escolhas valorativas difíceis, e de que o erro que o
«especismo» comete é essencialmente o de procurar arrancar juízos de
valor a partir de demarcações de facto que são frágeis - não é o erro de
insistir na necessidade de demarcações que, em nome dos valores que são
protegidos, devem existir algures, ao menos no limite para lá do qual os
valores salvaguardados, ou os interesses a que eles se reportam, nem
sequer são já detectáveis.
Dito de outra forma, a erradicação de sofrimento e a protecção daque­
les que são capazes de sofrer de uma forma detectável, discernível, é tarefa
indeclinável de uma moral que não precisa de ter-se por infalível, por com­
pleta, por omnisciente ou definitiva para começar a lançar sobre as situa­
ções da vida o seu manto protector. Se isso envolve uma separação entre
espécies animais, e ficam do lado desprotegido espécies que erradamente
julgámos incapazes de ansiedade e de dor, isso é um preço aceitável se, em
contrapartida dessa falibilidade, encontrarmos um «universo moral» den­
tro do qual a proibição da crueldade, do sofrimento infligido e injustifi­
cado, seja uma marca efectiva da nossa capacidade de melhorarmos um

428 Para uma defesa particularmente eloquente e «anti-especista» do «contínuo»


entre não-humanos e humanos, cfr. Maclntyre, A., Dependent Rational Animais. . ., cit., 48-
50, 54-58, 82-83, 155 .
A Hora dos Direitos dos Animais 149

pouco a qualidade da existência dos seres vivos (daqueles para os quais


julgamos ser experienciável essa qualidade). Errámos? Corrigiremos, a
moral não desce, já definitiva, «em epifania» sobre a humanidade, ela é um
norte para a perfectibilidade de seres livres que traçam o seu próprio cami­
nho através da sua existência (se é que há um «caminho» ... ).
Por agora, procuremos resolver o problema insistindo no carácter
arbitrário, puramente instrumental e menosprezável, de muitas demarca­
ções entre espécies429 - imposições de inteligibilidade sem as quais «o
Sol doira», e que por isso não devem servir de critérios últimos de legiti­
mação ou de balizamento da nossa conduta moral: pois quem seria a pes­
soa bem formada que seria insensível ao sofrimento de um animal apenas
com a alegação de que «não é dos nossos», assumindo a fronteira da espé­
cie como limite da sua sensibilidade, e com ela dos seus deveres morais e
jurídicos? E que pessoa bem formada faria recair os seus impulsos de mal­
vadez sobre um animal indefeso, alegando que o fazia apenas porque o
animal em causa teria sido considerado uma das «espécies excluídas»,
uma espécie que não sofre? E que pessoa bem formada não suspenderia
imediatamente qualquer acção tomada sobre esse mesmo animal, ao pri­
meiro indício de uma expressão de sofrimento - mesmo que contra ela
militasse a mais categórica e autorizada «taxinomia do sofrimento»,
mesmo que ela destoasse dos conhecimentos disponíveis no «estado da
ciência» - ?
Mas o facto de as demarcações entre espécies serem arbitrárias e
imprecisas retira, por sua vez, algum peso às críticas que são dirigidas à
materialidade da demarcação - como as que são formuladas pela maior
parte dos ambientalistas, que alegam logo com a estreiteza dos critérios
que cingem a consideração moral a um pequeno subconjunto dos seres
vivos430, como se essa «zoofilia elitista» sofresse de uma miopia congé­
nita, e fosse de facto possível discernir-se objectivamente, nos factos, uma
amplitude óptima (ou máxima) para_a demarcação do ·universo da morali­
dade, e, através dela, da juridicidade. Aliás, os defensores da «ecologia

429 Cfr. Hull, David L., "The Ontological Status of Species as Evolutionary Units",
in Ruse, Michael (org.), Philosophy of Biology, New York, Macmillan, 1989, 146- 155.
43 0 Cfr. Callicott, J. Baird, "Animal Liberation: A Triangular Affair", Environmental
Ethics, 2 (1980), 3 18-324; Rolston III, Holmes, Environmental Ethics: Duties to and
Values in the Natural World, Philadelphia, Temple University Press, 1988; Wenz, Peter S.,
Environmental Justice, Albany NY, SUNY Press, 1988.
150 O «Especismo» Não-Humano: Uns Maislguais?

profunda» vão muito mais longe, e partem do princípio de que toda e qual­
quer discriminação entre seres vivos no planeta é injustificável, conver­
tendo-se numa violência contra animais «inferiores» e até contra seres
vivos inanimados - como já se tem alegado que sucede com o «chauvi­
nismo animal» contra as plantas43 I .
O facto de haver fronteiras difusas não impede, todavia, que, além ou
aquém dessa zona nebulosa, de penumbra, os casos não-marginais sejam
tratados com uma segurança de princípios que não está dependente da
legitimidade ou da solidez de quaisquer demarcações. Já o defendemos
por outro prisma, quando insistimos no facto de a luta pelos direitos dos
animais não reclamar a degradação dos direitos humanos, e bem pelo con­
trário poder tomar-se até como uma forma de, pela extensão de domínios,
reforçar e exaltar ainda mais a protecção da condição humana - agora
não exclusivamente na sua humanidade, mas também na sua anima/idade
-: sabemos bem que um paciente humano em estado comatoso irreversí­
vel e terminal não tem, nem poderá vir a ter, uma vida sensorial e mental
tão rica como a de um chimpanzé adulto e saudável43 2; mas que implica
isso? Que consideramos que aquele paciente abandonou a espécie
humana? Que deixou de merecer a protecção jurídica? Que essa protecção
pode ser-lhe negada apenas com o fito de se evitar confusões de estatutos
na fronteira entre humanos e não-humanos?
Não, reservamos-lhe, a esse paciente comatoso e terminal, indepen­
dentemente de ele se encontrar ou não na «penumbra fronteiriça», o trata­
mento ético e jurídico que formulámos para o cerne de normalidade com
que definimos a espécie humana e, decerto com alguma falibilidade, dese­
nhámos o perfil do agente moral e do .sujeito jurídico. As fronteiras não
interferem nessa solidez de princípios; porque haveriam elas de interferir
na consagração dos direitos dos animais, e mais crucialmente no seu
direito ao não-sofrimento, só pela circunstância de, lá nos confins, haver
casos em que é difícil ou inconclusivo determinar-se se subsiste uma capa­
cidade de sofrimento?
Haverá não-humanos que evidenciem, sem qualquer margem para
dúvida, uma capacidade de sofrimento, isto é, que exteriorizem aquilo que,

43 1 Cfr. Arbor, J.L., "Animal Chauvinism, Plant-Regarding Ethics and the Torture of
Trees", Australasian Journal of Philosophy, 64 ( 1986), 335-339.
43 2 Cfr. Cigman, Ruth, "Death, Misfortune, and Species Inequality", Philosophy and
Public Affairs, 10 ( 1981), 47-64.
A Hora dos Direitos dos Animais 151

dentro da limitação inescapável do nosso antropomorfismo, interpretamos


como expressão de sofrimento? Haverá espécies não-humanas em que seja
possível, com o limitado rigor da ciência, identificar um cerne de norma­
lidade que se caracterize, entre outras capacidades, pela de sofrimento?
Haverá espécies em que essa identificação não é possível (por ora), seja
num núcleo de normalidade, seja em «casos marginais», seja num só caso
individual? Porque não haveremos nós, nessas condições, de abarcar na
protecção ética e jurídica espécies inteiras, excluindo outras?
Não percamos de vista, aqui, o elemento teleológico da valoração,
que sobreleva à constatação de elementos factuais que pudessem querer
carrear-se - erradamente - em seu apoio433 ; não se trata de discriminar
por discriminar, de nos comprazermos em juízos de indeferimento e de
exclusão, mas sim de encontrarmos um âmbito minimamente operativo e
sólido dentro do qual possamos identificar destinatários adequados à trans­
formação que, pela imposição de valores e pela conformação de condutas,
pretendemos instaurar no «estado do mundo». É de salvação, ou «liberta­
ção», que se trata - e por isso a demarcação é apenas uma medida de eco­
nomia, uma forma de nos prevenir que uma sacralização indiscriminada de
todas as formas de vida poderia, revelando-se inoperante ou inalcançável,
deixar expostos aqueles que, em atenção à sua sensibilidade, mais sofrem
efectivamente com a ausência de protecção. Se é de «especismo» que se
trata, tanto pior para a congruência dos nossos argumentos, que nada .
valem perante a necessidade vital, urgente, daquela protecção; observe­
mos, com Peter Singer, que "em última instância, nenhuma fronteira ética
arbitrariamente traçada pode ser segura. É melhor encontrar uma fron­
teira que possa ser defendida aberta e honestamente"434!435.
Mais ainda, temos. desconsiderado até agora o facto de haver formas
de vida que são ecologicamente incompatíveis, isto é, que são absoluta­
mente perigosas quando coexistem - e que, quando uma dessas formas
de vida é, ou uma espécie veg�tal, ou uma daquelas espécies animais nas
quais é indiscernível a capacidadtfde sofrimento, e as vítimas, potenciais

433 Cfr. Kelch, T.G., "Toward a Non-Property Status. . . ", cit., 531ss ..
434 Singer, P., Ética Prática, cit., 98.
435 Por essa mesma razão, o Great Ape Project foge de estabelecer uma fronteira
especista em tomo dos primatas, e declara-se «agnóstico» quanto à possibilidade, e mérito,
da expansão a outras espécies do tipo de tutela jurídica que é reclamada para aquelas espé­
cies de primatas - cfr. Kolber, A., "Standing Upright. ..", cit., 182.
152 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

ou actuais, são membros das espécies animais nas quais essa capacidade já
foi detectada, pode até considerar-se haver um dever moral, que pode con­
solidar-se juridicamente, de sacrifício das espécies perigosas, no sentido
da sua erradicação absoluta dentro do meio ecológico partilhado com as
vítimas (ainda que o extermínio total, em todos os ambientes, possa ser
desaconselhado pelo valor autónomo da biodiversidade).
Por isso, ao argumento de «ladeira escorregadia» que, contra a aboli­
ção do «especismo», formulou o professor Richard A. Epstein, da Chicago
Law School, que julgava que a atribuição de direitos aos animais podia ser
rebatida com a interrogação "será que às bactérias também seriam reco­
nhecidos direitos?"436, responderemos que não, que não deveriam ser
reconhecidos quaisquer direitos às bactérias, seja porque, que se saiba, não
se suscita quanto a elas o problema do sofrimento (taxinomicamente, são
até geralmente consideradas vegetais), seja porque, coexistindo no mesmo
ambiente de animais ostensivamente capazes de sofrimento, algumas delas
têm a aptidão de provocarem ou agravarem estados de sofrimento, ou até
de provocarem a morte437. Responderemos nas palavras coloridas de
Miguel Torga, que, de um vinhateiro, observava que "deitava enxofre e
sulfato nas videiras, simplesmente para defender a vida. É certo que
matava vida. Mas unicamente aquela que, errada e parasitária, estava
desde a nascença a soldo da morte"438.

1 1 .b) Normalidade, identidade genética, «valor intrínseco»


É verdade que a discriminação entre 1:1ão-humanos é, também ela,
mais um corolário da «Escala do Ser», e é sem dúvida essa a razão pela
qual Lineu (Carl Linnaeus) baptizou uma espécie como a dos «primatas»,
sublinhando-lhe a primazia entre as espécies animais43 9 . Contestar-se-á
com a maior facilidade, decerto, esse expediente taxonómico que recobre
os mesmos desejos de dominação e de exclusão que sempre sustentaram a

436 Cfr. Glaberson, William, "Legal Pioneers Seek to Raise Lowly Status of Ani­
mais", The New York Times, 18/8/1999.
437 Refutando também a «ladeira escorregadia» de Richard Epstein, cfr. Kolber, A.,
"Standing Upright...", cit., 182n l 20.
43 8 Torga, Miguel, Bichos, cit., 66.
439 Como sublinha Brenot, Philippe, "La Honte des Origines", in Cyrulnik, B. (org.),
Si les Lions ..., cit., 130.
A Hora dos Direitos dos Animais 153

estratificação social entre os humanos. Mas não parece menos evidente


que, à luz dos modernos ensinamentos da etologia, é possível discernir
nuances valorativamente relevantes e diferenciadas na conduta de indiví­
duos dentro de uma mesma espécie não-humana: e por isso, mesmo que
não se queira reconhecer uma plena autonomia moral ou uma perfeita
consciência ética a todos os indivíduos não-humanos ou à normalidade de
qualquer espécie não-humana, o facto é que é facilmente constatável que
há indivíduos de algumas espécies que se distinguem moralmente de
outros indivíduos da mesma espécie, e que o mesmo se pode asseverar
quanto à normalidade de casos entre espécies distintas - denotando que
há, digamos assim, uma gradação de «moralidade revelada» que não se
pode considerar irrelevante para uma hierarquização ética440, uma grada­
ção daquilo que poderíamos designar como um «valor intrínseco» que,
sendo individualmente variável, explica porque deve ser discriminado (e
dúctil à precisa aferição de danos e ganhos) aquele dever de solicitude
humana para com os não-humanos, que precisamente se pretenderia con­
signar como «direito dos animais», e que, nos termos lapidares de Jenni­
fer Everett, se reporta ao combate a todas as formas de sofrimento, mesmo
as resultantes da predação natural: "Quando criaturas com valor intrín­
seco estão ameaçadas por condutas gravemente lesivas que não são em si
mesmas injustas nem resultam de injustiças, os agentes morais têm deve­
res básicos de assistência para com eles, desde que essa assistência seja
claramente necessária para que essas criaturas desenvolvam as suas
capacidades naturais"44 1 .
Por outro lado, a própria validade objectiva das demarcações, já de si
problemáticas, agrava-se com a mais recente possibilidade de alastra­
mento, ao reino animal, dos organismos transgénicos - acelerando-se a
partilha genética interespecífica, abolindo-se algumas barreiras de repro­
dução, sexuada ou assexuada, que separavam famílias dentro da taxinomia
animal, turvando-se mais ainda critéJjmddentificadores de pertença ao
próprio núcleo de normalidade de cada espécie442. É evidente que a prá-

440 Cfr. Johnson, Lawrence E., "Can Animais Be Moral?", Ethics and Animais, 4/2
( 1983), 6 1 .
44 1 Everett, Jennifer, "Environmental Ethics, Animal Welfarism, and the Problem of
Predation: A Bambi Lover's Respect for Nature", Ethics and the Environment, 6 (2001), 54.
442 A hibridização e os «transgénicos» suscitam problemas de fronteira particular­
mente complexos: a partir de que momento existe uma nova forma de vida? A adição de
um só gene ao património genético de um indivíduo basta para ele ser excluído da sua espé-
1 54 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Igutiis?

tica científica e tecnológica que está subentendida nessa possibilidade de


criação de transgénicos pode, e muitas vezes deve, ser moralmente verbe­
rada como frívola e perigosa, como um atentado à identidade genética das
espécies e dos indivíduos, como um atentado à «perfeição essencialista»
que, com ou sem preconceito teleológico, possa ser discernida entre os
não-humanos443 . Mas é evidente que a censura não é capaz de extinguir a
chama da curiosidade científica, não pode constituir um entrave à explo­
ração científica do potencial benéfico que se acoite na hibridização e em
novas formas de vida, nem pode ser base de condenação à morte dos indi­
víduos criados por essa via, uma vez eles gerados - e por isso o problema
(o problema da susceptibilidade de discriminação ética entre espécies ani­
mais) não se eclipsa por simples repúdio moral ou por aversão conserva­
dora contra o experimentalismo biológico444.
A complicação. é completa se, com a manipulação genética, se abrir
a possibilidade da anestesia permanente, ou seja, da produção de indiví­
duos, senão mesmo de espécies, imunes à dor. Para além do carácter ques­
tionável de uma tal criação de híbridos - podendo seriamente duvidar-se,
seja da utilidade de criação de cobaias desprovidas de um elemento que,
para a normalidade da espécie a que elas pertençam, se revele essencial na
interacção com o ambiente e na sinalização das estratégias de defesa e de
sobrevivência (a capacidade de dor é uma forma de sinalização com
grande eficiência adaptativa), seja das premissas etico-científicas . de uma
tão extrema instrumentalização de sinais vitais dos não-humanos, reduzi­
dos da sua condição animal a uma condição «pseudo-vegetal» - , subsis­
tirá sempre a dúvida quanto àquilo que verdadeiramente é a anestesia

cie? Mas então o que teria sucedido em consequência dos impactos genéticos causados
pelos vírus na evolução do património genético da espécie humana? · - cfr. Denis, Bernard,
"La Fabrication des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 711.
443 Cfr. Donnelley, Strachan, Charles R. McCarthy & Rivers Singleton Jr., "The
Brave New World of Animal Technology", Hastings Center Report, 24/1-Supplement
(1994), S l -S31; Sellers, Michael E., "Patenting Non-Naturally Occurring Man-Made Life:
A Practical Look at the Economic, Environmental, and Ethical Challenges Facing «Animal
Patents»", Arkansas Law Review, 47 (1994), 269ss..
444 O problema surge com muito mais premência para a espécie humana com os pro­
gressos tecnológicos que propiciam a clonagem reprodutiva e a mais ampla manipulação
genética das células reprodutoras. Para meditarmos nas consequências, lembremos a deli­
rante (mas profunda .. . ) efabulação de Vercors, em Les Animaux Dénaturés (Paris, Albin
Michel, 1952), sobre a hipótese de criação de hominídeos por hibridização entre a nossa
espécie e a de outros primatas (os «tropis», «paranthropus greamiensis»).
A Hora dos Direitos dos Animais 155

experimentada por um ser incapaz de nos transmitir um testemunho íntimo


que nos seja plenamente inteligível, podendo bem dar-se o caso de a mani­
pulação genética ter bloqueado, não a percepção individual da agressão
externa, mas o meio de expressão do sofrimento na conduta do animal
afectado (um bloqueio na manifestação, não na sensação)445.
Resolvamos esta complicação máxima com um critério de razoabili­
dade e segurança: não será, no universo de protecção etico-jurídica dos
interesses dos não-humanos, de admitir a exclusão daqueles exemplares
em que tenha sido induzida, por hibridização ou manipulação genética,
uma alegada anestesia permanente - que mais não seja porque, objecti­
vamente mutilados numa aptidão básica e crucial ao desenvolvimento e à
sobrevivência, se poderia contrapor que esses exemplares seriam vítimas
de um sofrimento permanente, de uma inaptidão particularmente debili­
tante para desenvolverem no seu meio ambiente as suas potencialidades
normais.
De passagem, assinale-se que muitos têm considerado a clonagem
como a mais grave e fundamental violação dos direitos dos animais que
alguma vez foi concebida e, nalguns casos, já consumada446. Outros têm
assumido uma posição de muito maior abertura447 , ainda que esta posição
permissiva seja atacada a partir de princípios de precaução, a reclamarem
uma consolidação científica mais completa, e uma ponderação criteriosa
de custos e benefícios face aos riscos éticos, filosóficos e políticos ineren­
tes a uma tal técnica448. Os riscos da clonagem podem ser analisados basi­
camente em três vertentes: 1 ) o valor ético da tecnologia e do propósito
tecnológico, 2) os riscos de generalização da clonagem em termos de inte-

445 Cfr. Macer, Darryl, "Uncertainties About «Painless» Animais", Bioethics, 3


(1989), 226-235.
446 Cfr. Rifkin, Jeremy, "Dolly's Legacy: The Implications of Animal Cloning", The
Animais ' Agenda, 17 (1997), 31; Costa, Patrizia; "La Transgenesi Animale tra Speranze
Scientifiche e Problematiche Etiche", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.), Per un
Codice ... , cit., 251-268.
447 Cfr. Rollin, Bernard E., The Frankenstein Syndtome: Ethical and Social Issues in
the Genetic Engineering ofAnimais, Cambridge, Cambridge University Press, 1995; eius­
dem, "Send in the Clones ... Don't Bother, They're Here", Journal ofAgricultura[ and Envi­
ronmental Ethics, 10 (1997), 25-40.
448 Cfr. Miller, Lantz, "Filling the Gaps in the Risks vs. Benefits of Mammalian
Adult-Cell Cloning: Taking Bernard Rollin's Philosophy lts Next Step", Journal of Agri­
cultura[ and Environmental Ethics, 11 (1998), 1-16.
156 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

gridade e identidade genética dos seus produtos, 3) os danos específicos


causados a um indivíduo, humano ou não-humano, gerado ou «modifi­
cado» por essa técnica449.
É legítima - e crucial neste ponto - a interrogação acerca dos limi­
tes morais da modificação genética que pode ser imposta pelo homem aos
animais domésticos e de companhia (presumindo-se que os animais selva­
gens conseguem estar ao abrigo dessa manipulação), sendo de perguntar­
se se não existe ao menos um interesse de integridade genética que deva
ser associado ao conceito de bem-estar animal450, questão que tem sido
retomada relativamente aos animais de criação e de abate, com incidências
específicas quanto à manipulação genética da cadeia alimentar, quer a
humana quer a não-humana45 1 - devendo admitir-se que a não-patentea­
bilidade da manipulação genética de espécies animais é ainda porventura
o mais poderoso dissuasor contra iniciativas nesta matéria - porque é um
dissuasor económico452.
Prende-se com isto uma outra questão, que é a da integração ambien­
tal de espécies híbridas e transgénicas - sendo de questionar se essas
espécies devem ser protegidas como formas incrementadoras da biodiver­
sidade e da reserva genética das demais espécies, ou se elas devem ser
combatidas como «intrusas» na ordem natural das espécies autóctones, e
se elas têm, à luz de critérios ecocêntricos, biocêntricos e zoocêntricos,
«valor intrínseco»453/45 4, ou se pelo contrário poderá recair sobre elas um

449 Cfr. Rollin, B.E., "Send· in the Clones... ", cit., 25-40.
45 0 Cfr. Albrecht, Michelle K., "Genetic Engineering of Domestic Animais: Human
Prerogative or Animal Cruelty?", Animal Law, 6 (2000), 233ss.; Sando(e., Peter, Nils Hol­
tug & H.B. Simonsen, "Ethical Limits to Domestication"; Journal of Agricultura[ and
Environmental Ethics, 9 (1996), 114-122.
45 1 Cfr. Thompson, Paul B., "Ethical Issues in Livestock Cloning", Journal of Agri­
cultura[ and Environmental Ethics, 11 (1999), 197-217; eiusdem, "Ethics and the Genetic
Engineering of Food Animais", Journal of Agricultura[ and Environmental Ethics, 10
(1997), 1-23.
452 Cfr. arts. 48.º, 2 e 49.º, l, b) do Código da Propriedade Industrial (Decreto-Lei
n.º 16/95, de 24 de Janeiro de 1995).
453 Cfr. Verhoog, H., "The Concept of Intrinsic Value and Transgenic Animais",
Journal of Agricultura[ and Environmental Ethics, 5 (1992), 147-160.
454 Sobre o debate entre «deontologistas» e «utilitaristas» em torno da definição de
«valor intrínseco» dos animais, cfr. Anderson, James C., "Species Equality and the Foun­
dations of Moral Theory", Environmental Values, 2 (1993), 347-365.
A Hora dos Direitos dos Animais 157

estigma similar àquele que durante tanto tempo, lamentavelmente, perse­


guiu a mestiçagem na espécie humana455 .

1 1 .c) A discriminação entre espécies não-humanas


Parece, em síntese, não haver nada de particularmente refractário à
admissão de um reconhecimento discriminado de direitos aos animais, mais
intenso em função da densidade dos interesses que possa ser associada à
inteligência e à emotividade reveladas na conduta dos membros de cada
espécie não-humana. Nem a tarefa é especialmente complexa, em particular
se a compararmos com as perplexidades em que se enreda o combate pelos
direitos humanos, face às exigências do relativismo cultural:
- Por um lado, não nos é possível oferecer, dos interesses dos mais
cerebral e emotivamente sofisticados dos não-humanos, senão um
panorama rudimentar, uma paleta de experiências que, vencida a
barreira comunicativa ou empática, não deixa nunca de ser muito
limitada e linear (o que em parte explica a fortíssima tentação car­
tesiana para a descrição mecanicista do comportamento animal)456;
- Por outro lado, a possibilidade de hierarquização de interesses
entre espécies não-humanas tem, entre outras virtualidades, a de
permitir configurar uma via paulatina e progressiva de «conquista
de direitos» nestes domínios, atendendo prioritariamente àqueles
que mais susceptíveis fossem de sofrer pelo desvirtuamento das
condições da sua existência, ou pelo sacrifício indiscriminado e

455 Bastará pensar-se na conotação pejorativa da expressão «mulato», derivada de


«mula», um híbrido estéril, tendo havido até quem inicialmente se convencesse que a mes­
tiçagem levaria ao esgotamento da espécie... por esterilização ! - cfr. Poliakov, Léon, "Le
Fantasme des Êtres Hybrides et la Hiérarchie des Races aux XV IIIe et XIXe Siecles", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 1169-1170. ,.
456 Por isso há também quem conteste radicalmente a noção de «indivíduo não­
humano», ou mais precisamente a legitimidade da análise individual dos comportamentos
não-humanos, sustentando que estes indivíduos não têm qualquer especialidade «biográ­
fica» que os distinga das características da espécie, sendo as leis da espécie que ditam toda
a sua actividade (sendo, pois, que qualquer «comportamento desviante» comportaria o
desaparecimento físico do indivíduo, e daí a importância da normalidade da espécie e da
eliminação dos «casos marginais», dos «rogues», na luta pela sobrevivência). Cfr. Thérien,
Gilles, Ratopolis, Presses de l'Université du Québec, 1977, 50.
158 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

irreflectido da qualidade da sua existência em nome de finalida­


des exclusivamente humanas, avultando entre aquele os «grandes
primatas» 457 .
Nesse aspecto, estaríamos apenas, e uma vez mais, a extrapolar para
os domínios não-humanos aquilo que pacificamente aceitamos entre nós,
e que é que haja, dentro de limites aceitáveis, um «princípio de proporcio­
nalidade» que legitime uma atribuição discriminada e gradativa de direi­
tos - que autorize que, nos casos em que a atribuição de um direito
dependa da verificação de uma qualidade, se imponham restrições ao gozo
ou exercício de um direito em função do carácter marginal ou «menos do
que normal» da verificação da qualidade a que o direito é associado45 8 .
É verdade que a graduação «especista» de interesses entre não­
humanos pode facilmente ser desvirtuada por desígnios menos aparentes
- como exemplarmente sucede com o «Compromise Requirement
View», de Roger Crisp, que retira do argumento utilitarista-pragmatista
da erradicação do sofrimento argumentos a favor da especial protecção
dos animais domésticos e de companhia, alegando que o maior somatório
de sofrimento, e o mais agudo, ocorre na instrumentalização e sacrifício
de animais intensivamente criados no contacto humano - seja porque
infligir-lhes dor e ansiedade, ou abatê-los, constituiria a violação de um
«contrato de simbiose», mais grave ainda do que o abandono, seja tam­
bém porque o sofrimento desses animais seria capaz de induzir, por sua
vez, um sofrimento particularmente insuportável aos espectadores huma­
nos, um sofrimento somável aos das próprias vítimas para efeitos de cál­
culo hedónico45 9.
É evidente o «especismo» antropocêntrico de que enferma um tal
entendimento, que insinua puros critérios estéticos de «familiaridade com
os humanos» numa avaliação de interesses que é literalmente vital da pers­
pectiva da vítima - percebendo-se que, por isso, Peter Singer prefira, in
dubio, o nivelamento do interesse no não-sofrimento entre todas as espé­
cies que sejam capazes de sofrer, enquanto que muitos outros continuam,
cientes embora dos riscos, a insistir na discriminação ética e jurídica na

457 Cfr. Kelch, T.G., "Toward a Non-Ptoperty Status . . . ", cit., 584.
45 8Cfr. Gewirth, Alan, Reason and Morality, Chicago, University of Chicago Press,
1978, 121.
459 Cfr. Crisp, Roger, "Utilitarianism and Vegetarianism", International Journal of
Applied Philosophy, 4 (1988), 41-49.
A Hora dos Direitos dos Animais 159

consideração de «bens» adequados a cada espécie460, enquanto que ainda


alguns outros reclamam uma consideração mais completa e minuciosa das
implicações morais do sofrimento46 I, e outros por fim, levando ao extremo
o postulado «anti-especista», se recusam a admitir que haja valores pró­
prios das espécies - até mesmo o «direito» de protecção de que benefi­
ciariam as espécies ameaçadas - , insistindo que uma ética genuína nasce,
se fundamenta e se esgota dentro de um plano de consideração exclusiva
de interesses e problemas individuais462.
A graduação de direitos poderia ser facilitada também pela escolha da
«dignidade» como base de atribuição, o que não repugnaria desde que se
prescindisse do sentido forte de «autonomia kantiana», que excluiria tam­
bém todos os «casos marginais» entre os humanos, para se adoptar um
conceito menos exigente e realista de «autonomia», que abarcaria situa­
ções humanas e não-humanas de insuficiência de capacidades cognitivas
para realizar escolhas perfeitamente racionais, mas escolhas racionais
mesmo assim (como parece ser possível, por exemplo, no caso dos chim­
panzés e bonobos, os chimpanzés pigmeus [pan paniscus])463 - havendo,
no entanto, quem receie que esta abordagem pela via da «dignidade» seja
demasiadamente restritiva, resultando numa atribuição de direitos a um
número muito pequeno de animais não-humanos464.
Seja pela via da «capacidade de sofrimento», seja pela da «digni­
dade», seja por outra qualquer, o que é certo é que esta perspectiva discri­
minadora e incrementalista da consagração dos direitos dos animais,
sobretudo se abarcar inicialmente apenas um núcleo de primatas superio­
res, se afigura como desnecessariamente «especista» . De facto, o «prima­
tocentrismo» pode trazer com ele um novo desvirtuamento de critérios de
demarcação elementares e sólidos: porque, se é certo que os notáveis pro­
gressos da psicologia animal, quer em termos evolucionistas quer em ter­
mos comparativos, podem ser utilizados na determinação do bem-estar
desses primatas, e até na crescente admissã� �e uma intencionalidade na
.
460 Anderson, J.C., "Species Equality ... ", cit., 347-365; Lombardi, Louis, "Inherent

Worth, Respect, and Rights", Environmental Ethics, 5 (1983), 257-270.


46 1 Anderson, J.C., "Species Equality ... ", cit., 347-365.
462 Cfr. Russow, Lilly-Marlene, "Why Do Species Matter?", Environmental Ethics,
3 (198 1), 10 1-112.
46 3 Cfr. Kolber, A., "Standing Upright...", cit., 178n I 02; Wise, S.M., "Hardly a Revo­

lution... ", cit., 873-900; eiusdem, Rattling the Cage, cit., passim.
464 Kelch, T.G., "The Role of the Rational...", cit., 15.
160 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

percepção e defesa dos seus interesses465, e de uma capacidade de trans­


missão e partilha de crenças, desejos e finalidades, por exemplo em com­
portamentos colectivos de defesa contra predadores comuns466, esse des­
lumbramento com a revelação de universos mentais tão ricos em
indivíduos não-humanos não deve desviar-nos a atenção do facto de que o
critério decisivo para a inclusão dentro de uma comunidade ética é o da
capacidade de sensibilidade e de sofrimento, e que essa, como já referi­
mos, não está dependente de uma peculiar sofisticação das capacidades
cognitivas de cada espécie467.

1 1 .d) Comecemos pelos chimpanzés !


Mas do que não há dúvida é de que hoje a vanguarda da defesa dos
animais é representada pela obra contundente e persuasiva de Steven
Wise, Rattling the Cage468 - ocupando uma posição proeminente em ter­
mos de projecção mediática mas também de impacto intelectual e acadé­
mico (como o atestam as reacções de «pesos-pesados» como Martha Nuss­
baum469 e Richard Posner470) -, que defende uma tese assumidamente
«primatocêntrica», abertamente apologista de uma solução gradual, incre­
mentalista, de difusão de direitos pelas diversas espécies não-humanas.

465 Tudo está em não se recusar que no comportamento dos não-humanos se descu­
bram «graus de intencion�idade», como os que são abstractamente definidos por Daniel
Dennett - cfr. Gallo, Alain & Fabienne de Gaulejac, "Qu'est-ce que la «Condition Ani­
male»?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions... , cit., 314.
466 Cfr. Stich, Stephen P., "Do Animais Have Beliefs?", Austr.alasian Journal of Phi-
losophy, 57 (1979), 15ss..
467 Cfr. Bekoff, Marc, "Deep Ethology, Animal Rights, and the Great Ape/Animal
Project: Resisting Speciesism and Expanding the Community of Equals", Journal of Agri­
cultura[ and Environmental Ethics, 10 (1997/98), 269-296; eiusdem, "Social Cognition:
Exchanging and Sharing Information on the Run", Erkenntnis, 51 (1999), 617-632; Bekoff,
Marc & Jamieson Dale, "Reflective Ethology, Applied Philosophy, and the Moral Status of
Animais", Perspectives in Ethology, 9 (1991), 1-47 ; Brown Jr., Stuart M ., "On Self-Cons­
ciousness and the Rights of Nonhuman Animais and Nature", Environmental Ethics, 2
(1980), 95 ; Fox, Michael W., Concepts in Ethology. Animal Behavior and Bioethics, Mala­
bar Fia., Krieger, 21998; eiusdem, Laboratory Animal Husbandry. Ethology, Welfare, and
Experimental Variables, Albany NY, SUNY Press, 1986.
46 8 Wise, S.M., Rattling the Cage, cit. ( 1 1999).
469 Nussbaum, M.C., "Animal Rights . . . ", cit. , 1506-1550.
470 Posner, Richard A., "Animal Rights", Yale Law Journal, 110 (2000), 527-542.
A Hora dos Direitos dos Animais 161

A posição fundamental de Steven Wise é - nem mais nem menos -


a de que chimpanzés e bonobos devem ser reintegrados no género Homo,
de que teriam sido arbitrariamente excluídos por Lineu47I, e que em con­
sequência lhes devem ser reconhecidos a personalidade jurídica e o direito
fundamental de preservação da sua integridade física e da sua liberdade de
conduta natural, devendo imediatamente ser considerados como genocí­
dio, e por isso imediatamente proibidos, todos os actos de rapto, comércio,
encarceramento e vivissecção de chimpanzés e bonobos472. A ideia vinha
já consagrada, em termos mais amplos, no Great Ape Project, com o qual
se pretende a atribuição de um estatuto pessoal - mesmo que, pontual­
mente, não todos os traços da personalidade jurídica - aos símios antro­
póides, gorilas, orangotangos, chimpanzés e bonobos, e.. . à espécie
humana473 . O subtítulo, e lema, do projecto é porventura mais eloquente
ainda: «Equality Beyond Humanity» 414.
A familiaridade entre todos os grandes primatas, comprovada inicial­
mente por simples morfologia externa e por alguns paralelos etológicos,
está hoje confirmada pela genética - que, como referimos já, nos informa
que temos 98% do nosso DNA partilhado com os chimpanzés - ; mas, por
tudo o que acabámos de sublinhar, não é esse parentesco que é decisivo -
embora manifestamente também não seja (ao menos emotiva e estetica­
mente) indiferente - .
Para Steven Wise, o que impressiona especialmente é o grau de
ostensiva autonomia, de consciência e de inteligência, de que chimpanzés
e bonobos dão mostras, ainda que de formas diferentes475, tornando-os vir-

47 1 Sustenta-o o célebre Richard Dawkins (autor do Gene Egoísta): "there is no natu­


ral category that includes chimpanzees, gorillas and orangutans but excludes humans" -
Dawkins, Richard, "Gaps in the Mind", in Cavalieri, P. & P. Singer (orgs.), The Great Ape
Project .. ., cit., 82.
472 Cfr. Wise, S .M ., Rattling the Cage, cit., 6-7, 137 .
47 3 Não deixa de nos ocorrer o romance de Óavid'Garnett, A Man in the 'Zoo (London,
Chatto & Windus, 1924), no qual se narrava a história de um indivíduo que se oferecia a um
jardim zoológico para ser enjaulado e aí representar, entre as demais, a espécie humana.
474 Cfr. Kolber, A., "Standing Upright ...", cit., 164, 179.
475 Os chimpanzés são muito mais violentos do que os bonobos, formam sociedades
patriarcais muito mais opressivas, enquanto que entre os bonobos predomina a igualdade
dos sexos, notando-se que as fêmeas agem muitas vezes na dissipação das tensões poten­
cialmente violentas, e até organizadamente bélicas, que se formam nas sociedades dos
bonobos. Cfr. Wrangham, Richard & Dale Peterson, Demonic Males: Apes and the Origin
of Human Violence, New York, Houghton Mifflin, 1996, passim.
162 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

tualmente indistinguíveis, na sua conduta e na sua interacção com o meio,


de «casos marginais» entre os seres humanos - e nem sequer os casos
mais extremos - ; sendo assim, sustenta que lhes sejam atribuídas as mes­
mas prerrogativas de personalidade que são reconhecidas a seres humanos
com autonomia diminuída, mormente os seres humanos que não estejam
em condições de jogarem o jogo da afirmação e da auto-tutela dos seus
direitos, os seres humanos que não dominem a linguagem e as convenções
necessárias para o sucesso naquele jogo.
Dito de outro modo, para Steven Wise - que neste ponto está muito
longe de estar só - não há, no que é eticamente relevante, senão ínfimas
distinções de grau entre todos os grandes primatas, demonstrando a com­
paração espécie a espécie (entre a normalidade nuclear das espécies) que
as capacidades psicológicas dos grandes símios, a sua sensibilidade à dor
e ao prazer, a consistência das suas preferências hedónicas, a capacidade
de problematização contextual e de geração de estratégias maximizadoras
de ganhos e minimizadoras de perdas, a sua inteligência não-reflexiva e
não-verbal, não são muito diversas das dos humanos na sua natureza e for­
mas de manifestação476. Assim sendo, tratar-se-ia, para já, de vedar a
experimentação animal com recurso a esses primatas superiores, e depois
de protegê-los contra caçadores, traficantes e agricultores - uma forma,
pois, de se ir avançando, paulatina mas seguramente, através do estabele­
cimento e satisfação de prioridades.
Especificamente quanto a características genericamente aceites como
identificadoras da presença de uma personalidade - mormente manifes­
tações de racionalidade e de auto-percepção capazes de sustentar uma
identidade congruente ao longo do tempo - , . torna-se . claro que muitos
dos primatas superiores são capazes de resolver problemas e de aprender
a usar instrumentos477, de ter escolhas consistentes com motivações dura­
douras, são capazes de inferências e de generalizações, e são ainda capa­
zes de formar coligações, de ter comportamentos dissimulados e oportu­
nistas47 B, de desenvolver estratégias de longo prazo, de reciprocarem tanto

47 6 Cfr. Gomez, Juan Carlos, "Are Apes Persons? The Case for Primate Intersubjec­
tivity", Etica & Animali, 9 (1998), 51-63; Krause, Mark A., "Perspectives on Domestic and
Captive Animais: Biological Continuity and Great Ape Rights", Animal Law, 2 (1997),
171ss ..
477 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 190ss..
47 8 Sobre a «estratégia de batota» entre os não-humanos, cfr. Nunn, Charles L. &
Rebecca J. Lewis, "Cooperation and Collective Action in Animal Behaviour"; Noe,
A Hora dos Direitos dos Animais 163

a actos de colaboração como a actos hostis479, de escolherem parceiros de


cooperação em função da habilidade revelada480, de se absterem de tirar
proveito de momentos de fragilidade de outros membros das suas comu­
nidades48 I - e, quando adquirem os rudimentos da linguagem humana
(da linguagem gestual), são comprovadamente capazes de construir frases,
de aludir a objectos ausentes e de nomeá-los mesmo quando não se trate
de pedi-los, de rememorar episódios, de dizer mentiras, de formular gene­
ralizações de preferências de acordo com um quadro valorativo explícito,
de se reconhecer ao espelho, de ensaiar frases em situações de isolamento,
de contornar as suas limitações simbólicas pela invenção de novos artifí­
cios comunicativos, capazes, por fim, de assumir uma atitude embaraçada
quando são descobertos em infracções ao seu comportamento esperado482.
Isso parece denotar que, em alguns dos primatas não-humanos, existe
uma intencionalidade comportamental - a capacidade de escolherem
finalidades, de predisporem meios à prossecução delas e de medirem o
grau de sucesso nas suas aproximações a essas finalidades48 3/484. Poderia

Ronald, "Biological Markets: Partner Choice as the Driving Force Behind the Evolution of
Mutualisms"; Bshary, Redouan, "The Cleaner Fish Market", todos in Noe, R., J.A.R.A.M.
vanHooff & P. Hammerstein (orgs.), Economics in Nature . . ., cit., 46-48; 95-97; 147-150.
479 Sobre estratégias de reciprocidade e de pseudo-reciprocidade entre não-humanos,
cfr. Barrett, Louise & S. Peter Henzi, "The Utility of Grooming in Baboon Troops";
Bshary, Redouan, "The Cleaner Fish Market", ambos in Noe, R., J .A.R.A.M. vanHooff &
P.Hammerstein (orgs.), Economics in Nature . . ., cit., 131-135; 147-148.
480 Sobre a racionalidade das estratégias de cooperação animal, cfr. Nunn, Charles L. &
Rebecca J. Lewis, "Cooperation and Collective Action in Animal Behaviour"; Barrett, Louise
& S. PeterHenzi, "The Utility ofGrooming in Baboon Troops", ambos in Noe, R., J.A.R.AM.
vanHooff & P.Hammerstein (orgs.), Economics in Nature . . ., cit., 49-62; 120-124.
48 1 Sobre o exercício de «tolerância» entre não-humanos, como simples corolário de
uma estratégia dominante de reciprocidade, de «tit-for-tat», cfr. VanHooff, Jan A.R.A.M.,
"Conflict, Reconciliation and Negotiation in Non-Human Primates: The Value of Long­
Term Relationships", in Noe, R., J.A.R.A.M. van fü>off,& P.Hammerstein (orgs.), Econo­
mics in Nature. . ., cit., 81-85.
482 Cfr. De Waal, F., Good Natured . . ., cit., em especial o Cap. III; Leste!, Domini­
que, "Les Singes Parlent-ils Vraiment?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ... , cit., 993.
48 3 Cfr. Tomasello, Michael & Josep Call, Primate Cognition, New York, Oxford
University Press, 1997, v; Strauss, D.F.M., "Thought and Language: On the Line of
Demarcation Between Animal andHuman Abilities", South African Journal of Philosophy,
13 ( 1994), 175- 182.
484 Sobre «crenças» e «intencionalidades» nos animais não-humanos, cfr. ainda
Maclntyre, A., Dependent Rational Animais . . ., cit., 33-38, 57-58.
1 64 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

aditar-se a isso também uma capacidade ocasional de «metarepresenta­


ção» - ou seja, uma aptidão dos primatas não-humanos que lhes permite
aperceberem-se de que existem estados mentais diferentes dos seus, sub­
jectividades diversas da sua48 5 -, enriquecida por uma (limitada) capaci­
dade linguística e de aprendizagem simbólica486, apontando até para uma
rudimentar capacidade de assimilação de deveres gerais de conduta em
contextos de alteridade.
Porque é que, então, tarda ainda esse "estatuto jurídico semi­
humano" para os chimpanzés e bonobos? Talvez esteja aí, nesse primeiro
passo - como bem sublinham Sue Savage-Rumbaugh487 e Donald Grif­
fin488 -, já erguida a barreira irracional de medo que, afadigando-se em
demarcações axiológicas entre humanos e não-humanos, tenta proibir des­
crições do comportamento animal que envolvam a referência a estados
intencionais - com receio de que esse «lese-majesté» que seria a trans­
gressão dos ditames mais restritivos do behaviorismo mecanicista, do
paradigma «estímulo-resposta», pudesse redundar em degradação da
«posição exaltada» da espécie humana dentro da «Escala do Ser».
E no entanto, muito poderíamos dizer sobre essa «posição exaltada»,
até no que respeita ao seu núcleo essencial - o de uma sensibilidade que
se adensa com a representação da contingência e do futuro, o de uma capa­
cidade de inteligência reflexiva que se destaca do seu contexto imediato e
é capaz de se projectar em generalizações valorativas, o de uma «metare­
presentação» que faz a personalidade alimentar-se do contexto vivencial
sem perder o carácter inefável da sua intimidade, desdobrando-se em mani­
festações de complementaridade e interdependência intencionais entre
humanos - , podendo nós legitimá-la, ou contestá-la, pelos seus frutos, que
não parecem, para lá do plano das intenções, terem conseguido muito em
termos de erradicação do sofrimento, antes parecem ter-se refinado na con­
cepção de meios de generalização instantânea da violência e da morte.
Bastemo-nos com os dados que nos são fornecidos através do padrão
analítico da ciência económica, que tem vindo a aperceber-se de que o

48 5 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 194ss..


4 86 lbid., 217-230.
48 7 Cfr. Savage-Rumbaugh, Sue & Roger Lewin, Kanzi: The Ape at the Brink of the
Human Mind, New York, Wiley, 1994, 20, 252.
488 Cfr. Griffin, Donald R., Animal Thinking, Cambridge Mass., Harvard University
Press, 1984, vii.
A Hora dos Direitos dos Animais 165

paradigma de actividade de um agente racional, ou hiper-racional, ava­


liado como uma estratégia de maximização da utilidade subjectiva espe­
rada por formas de decisão bayesiana, ou por estratégias de interacção
optimizadas de acordo com os princípios da teoria dos jogos, não corres­
ponde minimamente a uma descrição das propriedades reais, empíricas, da
actividade humana real - presa que esta está de custos na obtenção e pro­
cessamento da informação relevante, e em especial em custos de tempo,
susceptível que é de variação das suas preferências, de contaminação por
«erros sistémicos» na formação das suas convicções e na sua interacção
com a informação adquirida (de incapacidade de rectificação de todos os
erros através de aprendizagem), incapaz que é de uma coordenação espon­
tânea numa interacção estratégica em casos em que nem todos os interve­
nientes sejam dotados de racionalidade equivalente ou em que existam
vários «equilíbrios de Nash» simultaneamente possíveis489, incapaz que é,
em suma, de transcender a sua própria racionalidade limitada490.
Aliás, bem poderão alguns observar que os «macacos de Borel»
poderiam demorar milhões de anos a aprender a dactilografar antes de -
caso o conseguissem - se abalançarem a escrever um soneto de Shakes­
peare49 I; a espécie humana teve também ela que aguardar milhões de anos
antes que surgisse um Shakespeare a escrevê-los. Poderão responder-nos:
o facto é que a evolução ditou que, no mínimo, a espécie humana fosse à
frente no domínio e desenvolvimento de uma consciência reflexiva e autó­
noma, de uma intencionalidade que sobreleva às limitações que, por ora,
impendem sobre os demais primatas superiores. Mesmo que aceitássemos
o ponto, que é duvidoso (seja em atenção aos «casos marginais», seja em

489 Cfr. Hammerstein, Peter, "Games and Markets: Economic Behaviour in Humans
and Other Animais", in Noe, R., J.A.R.A.M. van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Econo­
mics in Nature . .., cit., 1-4.
490 Além dos clássicos de Herbert Simon, cfr. Aranson, P.H., "Rational Ignorance in
Politics, Economics and Law", Journal des Économistes e( (ÜJS Études Humaines, I ( 1989),
25-42; Becker, Gary S. & K.M. Murphy, "A Theory óf Rational Addiction", Journal of
Political Economy, 96 ( 1988), 675-700; Binmore, K.G., "Learning to Be Imperfect",
Games and Economic Behaviour, 8 ( 1995), 56-90; Hart, O.D ., "Is «Bounded Rationality»
an Important Element of a Theory of Institutions?", Journal of lnstitutional and Theoreti­
cal Economics, 146 ( 1990), 696-702; Ponti, G., "Splitting the Baby in Two: Solving Solo­
mon 's Dilemma with Boundedly Rational Agents", Journal of Evolutionary Economics, 10
(2000), 449-455.
49 1 Prigogine, Ilya & Isabelle Stengers, Entre le Temps et l'Éternité, Paris, Fayard,
1988, 88.
166 O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais?

atenção às intencionalidades detectadas nalguns desses primatas superio­


res), sempre poderíamos contrapor-lhe a sua menor relevância valorativa,
e até a sua menor relevância empírica: é que «intencionalidade» e «inteli­
gência adaptativa» são conceitos objectivamente distintos, sendo que uma
não assegura a outra. Pense-se na extrema aptidão evolucionista de alguns
vírus (o da raiva, que induz nos portadores um comportamento que asse­
gura a sua transmissão, ou o HIV, que ataca o próprio mecanismo imuni­
tário na sua base - duas demonstrações de «inteligência diabólica» que
evidentemente dispensam a referência à subjectividade «intencional» da
causalidade volitiva492), e na extrema inaptidão adaptativa que, do ponto
de vista de perpetuação e evolução genética de uma espécie, se revela na
intencionalidade humana do desenvolvimento de armas de destruição
maciça ou da proliferação de métodos anti-concepcionais.
Atentos, pois, ao perigo de que também aqui se insinue o velho para­
digma da «Cadeia do Ser» - já que a ênfase no «parentesco próximo» dos
primatas superiores pode sugerir que perfilhamos a ideia de evolucionismo
como «ascensão linear», quando todos os vestígios da evolução das espé­
cies apontam para a diversidade, para a ramificação estanque por acumu­
lação de acidentes, sem qualquer linearidade que pudesse alicerçar um
postulado teleológico - e também atentos aos riscos inerentes à pura con­
vencionalidade de demarcações, «especistas» ou outras - já que, como
nota Steven Pinker com a sua alegoria dos «elefantes behavioristas», é
sempre possível apresentar as mais patentes e radicais diferenças como
meras «questões de grau» entre formas «aparentadas», e vice-versa493 -,
reconheçamos ao menos, pragmaticamente, que esta solução gradualista,
por mais «especista» que seja, começou já a dar os seus frutos, sendo os
mais notáveis, porventura, os da proibição, rio Reino Unido e na Nova
Zelândia, de experimentação em primatas superiores, em todos os «homi­
nídeos» 494: o que constitui inequivocamente uma vitória na incipiente
caminhada da atribuição de direitos a (alguns) animais, naquilo que mais
conta para os próprios animais - ainda que devamos insistir 'que, para
efeitos de edificação e consolidação da Ética, e particularmente de uma
«Ética do Respeito», não interessa o que os sentimentos do animal repre-

492 Cfr. Budiansky, S., lf a Lion Could Talk. . ., cit., 29-30.


493 Cfr. Pinker, Steven, The Language lnstinct, New York, Morrow, 1994, 332-333.
494 As proibições datam respectivamente de 6/11/1997 e de 7/10/1999. Cfr. Kolber,
A., "Standing Upright...", cit., 165; Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 75, 181.
A Hora dos Direitos dos Animais 167

sentam para o próprio animal - o que pode nem sequer ser atingível -
mas apenas o que esses sentimentos representam para o homem, o modo
como atingem a inteligibilidade, como lhe despertam uma determinada
atitude, atitude que, no plano dos factos, é o único resultado que a Ética
pode pretender alcançar495.

495 Cfr. Lestel, Dominique, "Des Animaux-Machines aux Machines Animales", in


Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 696.
12. Linguagem e Pensamento Não-Humanos

"Se um leão fosse capaz de falar, nós não seríamos capazes de o


compreender" - Ludwig Wittgenstein496 .
"Em geral, parece de facto que quanto mais desenvolvida for a vida
consciente do ser, quanto maior for o grau de autoconsciência e de
racionalidade e mais vasto o leque de experiências possíveis, tanto
maior seria a nossa preferência por esse tipo de vida, se tivéssemos
de escolher entre ela e a de um ser com um nível inferior de cons­
ciência ( ...) mas ( ... ) não éfácil preferir a vida de um ser humano à
vida de um animal sem manifestar, ao mesmo tempo, a preferência
pela vida de um ser humano normal relativamente à vida de um
outro ser humano com um nível intelectual semelhante ao de um
animal não humano" - Peter Singer497 .
" O que é que um animal vê e pensa, experimenta e sente? A resposta
mais cautelosa é: absolutamente nada. Isso não significa que os ani­
mais sejam desprovidos de sensibilidade, ou que eles não passem de
máquinas estúpidas. O que isso significa muito simplesmente é que
pode não haver uma forma compreensível de descrever como são as
representações do mundo para um animal. Sabemos que falta aos
animais uma representação linguística do mundo. Mas as represen­
tações não-linguísticas podem assumir formas que são literalmente
indescritíveis - seja em termos visuais, seja em termos simbólicos,
seja em que termos for" - St;phen Budiansky49 8.
-. �: ,,.

496 Wittgenstein, Ludwig, Philosophical lnvestigations, II. xi. 220 (= Tratado


Lógico-Filosófico / Investigações Filosóficas [trad. p/ M.S. Lourenço], Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987, 596). Cfr. Budiansky, S., lf a Lion Could Talk .. . , cit., xxi: "Mas
isso é uma petição de princípio: se um leão fosse capaz de falar, provavelmente seríamos
capazes de o compreender. Só que ele já não seria um leão; ou melhor, a sua mente não
seria já a de um leão".
497 Singer, P., Ética Prática, cit., 127-128.
49 8 Budiansky, S., lf a Lion Could Talk .. . , cit., 73.
170 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

1 2 .a) Racionalidade , um exclusivo humano?


Contra a integração plena dos não-humanos numa comunidade ética,
e contra a irrestrita extensão, àqueles, do manto protector do Direito, mili­
tam razões fortes que não é possível ignorar nem é útil contornar: os ani­
mais não-humanos não são agentes morais, não têm normalmente uma lin­
guagem verbal e articulada499, aparentemente não conseguem transmitir
entre eles noções abstractassoo, e não podem representar-se perante um sis­
tema de tutela jurídica, cujo sentido pleno certamente escapa ao mais
arguto dos não-humanos (que igualmente parecem não cultivar sentimen­
tos de pudor nem dispor de auto-consciência e de capacidade de angústia
com abstracções, não desenvolvem ritos funerários, não usam o fogo nem
fabricam utensíliosso I ) .
Esta é a visão racionalista, cartesiana, do problema dos direitos dos ani­
mais, e temos que conceder, a essa perspectiva, que não é possível, nem con­
veniente, «macaquear» o sistema jurídico que vigora entre os seres humanos
adultos normais através de uma equiparação plena: manifestamente, não é
disso que se trata, e poderia até considerar-se de uma extrema crueldade atri­
buir aos não-humanos direitos que reclamam plena autonomia moral e plena
capacidade de exercício - um subtil exercício maniqueísta, que perante a
constatação de que, por exemplo, os animais não são capazes de se repre­
sentarem os deveres emergentes de um contrato, triunfantemente concluiria
pela conveniência de se lhes não atribuir ou reconhecer direito nenhum502.
O que temos que admitir é que a objecção racionalista bloqueia a atri­
buição plena - mas sabemos já que a existência de «casos marginais»
dentro da espécie humana demonstra que a protecção plena do Direito não
requer, daqueles que gozam daquela protecção, a capacidade plena de

499 Embora, como referimos, alguns chimpanzés e bonobos, e até gorilas, tenham já
sido ensinados a dominar sintacticamente uma linguagem gestual articulada.
500 Meditemos, contudo, nas citações supra de Ludwig Wittgenstein e de Stephen
Budiansky, para reconhecermos que é impossível ser-se categórico neste ponto.
50 1 Cfr. Gallo, Alain & Fabienne de Gaulejac, "Qu'est-ce que la «Condition Ani­
male»?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 3 14.
5 02 "There is a sad poverty of imagination in an approach to animal protection that
can think of it only on the model of the civil rights movement. It is a poverty that reflects
the blinkered approach of the traditional lawyer, afraid to acknowledge novelty and there­
fore unable to think clearly about the reasons pro or con a departure from the legal status
quo" - Posner, R.A., "Animal Rights", cit., 539.
A Hora dos Direitos dos Animais 17 1

exercerem todos os direitos, e menos ainda de conhecerem e compreende­


rem todos os recantos e minúcias em que se desdobram os modernos sis­
temas jurídicos (pois de outra forma, só possivelmente um ente imortal e
omnisciente teria tempo e capacidade para abarcar toda a panorâmica dos
frutos inesgotáveis da imaginação jurídica - e a humanidade ficaria tam­
bém ela desprotegida) .
Nem todos os seres humanos são agentes morais , mas isso não tende
a retirar-lhes a protecção da moralidade social e do Direito: muito pelo
contrário . Não caiamos , pois , na tentação de reclamar o domínio da lin­
guagem como indício de humanidade , por respeito à parte infantil (de
«infante», que não fala) da nossa própria espécie , e até por respeito a
minorias autistas e afásicas ; nem caiamos , mais coloridamente, no ridículo
da arrogância sarcástica do Cardeal de Polignac , que alegadamente desa­
fiara um chimpanzé no Jardin du Roi: "Fala, e baptizar-te-ei/" 503.
Insistamos enfaticamente: a racionalidade que é específica dos seres
humanos é requerida apenas para a integração plena num contexto social
e político , na assunção de deveres e no exercício de direitos explícitos , não
sendo sequer extensiva a todos os membros da espécie humana. Podería­
mos sustentar que o que é específico e valorativamente relevante na huma­
nidade é o dom da identidade, da consciência da personalidade - o dom
de cada um se compreender a si mesmo como uma existência continuada
e única, que transporta consigo um acervo de memórias e se representa
uma futuridade prenhe de possibilidades de realização - ; mas essa iden­
tidade parece importar mais para o «direito à vida» do que para os direitos
de protecção contra o sofrimento , pragmaticamente mais relevantes e atri­
buíveis em função de capacidades mais elementares - capacidades que ,
como já vimos , não servem para traçar as fronteiras entre a espécie
humana e (algumas) espécies não-humanas 5 04 .
E mesmo essa ligação entre «direito à vida» e «consciência reflexiva
da identidade» é eminentemente problemática, até para a nossa espécie,
visto que não só há seres humanos acidentalmente desprovidos de auto­
consciência, temporaria ou definitivamente - sem que se questione o seu
direito à vida - , mas há, entre as pessoas com consciência reflexiva da
sua personalidade , diferentes graus de rememoração e de projecção da

Cit . in Wokler, R. , "Perfectible Apes . . . ", cit., 107- 134 .


50 3
Cfr. La Follette, Hugh , "Animal Rights and Human Wrongs" , in Dower, N . (org.),
5 04
Ethics and the Environment, cit., 85 .
172 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

«futuridade», pelo que se deveria então dizer que dentro da espécie


humana há diferentes graus de direito à vida505 .
Como todos os juristas sabem, ou deveriam saber, a atribuição de
direitos a nascituros, a incapazes, até a entes colectivos puramente con­
vencionais, demonstra que o que é decisivo para a atribuição de direitos é
o reconhecimento social de interesses relevantes - mas esses interesses
relevantes são igualmente detectáveis nos não-humanos: um interesse em
nascer506, um interesse em sobreviver (ao menos como espécie), um inte­
resse em experimentar um grau de bem-estar consistente com o normal
desenvolvimento de aptidões inatas, um interesse na protecção contra a
violência. Um interesse que se manifesta, tanto nos humanos como nos
não-humanos, através do instinto, "essa voz de Deus à qual todos os ani­
mais obedecem" , nas palavras de Immanuel Kant 507.
Tal como não discriminamos fundamentalmente entre humanos em
função da sua «intencionalidade» e da sua «inteligência adaptativa», tam­
bém não parece que esse possa ser um critério aceitável para uma demar­
cação jurídica absoluta entre a espécie humana e as demais . De novo res­
salvemos que, como se verá a propósito da questão do abate, poderá
quando muito reconhecer-se, relativamente a alguns dos não-humanos,
que a falta de consciência reflexiva e de potencialidade para adquirirem
esse tipo de consciência poderá afastá-los do campo de aplicação de um
«utilitarismo de preferências» (ou «de regras»), que se dirige à apreciação
individual das condutas e por isso se concentra na valorização existencial
da personalidade , deixando-os mais expostos aos corolários puramente
quantitativo-distributivos, despersonalizados, do utilitarismo hedonista -
mais expostos à desconsideração do «direito à vida» - .
E no entanto, mesmo que sustentemos que a atribuição de personali­
dade jurídica, plena ou mitigada, deve centrar-se no critério da complexi­
dade emotiva - na capacidade de formarem e exprimirem espontanea­
mente impressões e preferências - e não da habilidade intelectual, e por

50 5 Cfr. Valastro, Alessandra, "Spunti per una Riflessione sull'Uccisione Ingiustifi­


cata di Animali", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.), Per un Codice ..., cit., 95- 110.
506 Sendo que os próprios nascituros humanos são, salvo quanto à pertença genética
à espécie, pura animalidade, desprovidos que estão ainda de qualquer contacto com a acul­
turação que os integrará e identificará com a espécie.
5 07 "Der lnstinct, diese Stimme Gottes, der alle Thiere gehorchen" - Kant, 1 ., Muth­
maj3licher Anfang der Menschengeschichte, AK, V III, Berlin - Leipzig, Walter de Gruy­
ter, 1923, 111.
A Hora dos Direitos dos Animais 173

isso sustentemos que não há barreiras aparentes à atribuição de personali­


dade aos animais50 8 , em todo o caso a distância que vai do «pleno» ao
«mitigado», e a graduação que é possível entre espécies não-humanas,
parecem aconselhar que acompanhemos um pouco os passos da «psicolo­
gia animal» no seu desafio à «hubris» da inefabilidade, à falta de comuni­
cação entre nós e os outros animais, que Montaigne, comparando-a ironi­
camente à falta de comunicação entre franceses e bascos, sublinhava ser
tão atribuível a eles como a nós509 .
Temos dado de barato que a capacidade reflexiva, a auto-consciência,
é exclusiva da espécie humana - seguindo nisso uma tradição antropo­
cêntrica bem estabelecida5 10 . Mas não deveríamos nós remeter-nos aqui ao
silêncio, reconhecendo a inconclusão em que nos deixa a intraduzibili­
dade?5 11 Poderíamos talvez tentar socorrer-nos mais uma vez da subtileza
de lmmanuel Kant, que num passo (desconsiderando as advertências
nominalistas de Hume quanto à «ficção» da identidade5 1 2 ) reconhece o
carácter único da personalidade humana - "a natureza humana tem essa
propriedade particular (que falta ao animal) de reforçar e prolongar a
sensação de algumas impressões localizadas através da atenção que lhes

5 08 Cfr. Midgley, Mary, "Persons and Non-Persons", in Singer, Peter (org.), ln


Defense of Animais, New York, Basil Blackwell, 1985, 52ss.; Regan, T., The Case for Ani­
mal Rights, cit., 235-241. Contudo, cfr. Warren, Mary Anne, "Difficulties with the Strong
Animal Rights Position", Between the Species, 2 (1987), 161-173.
509 Cfr. Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 92.
5 1 0 "Abgesehen von der den Menschen vor allen anderen Thieren auszeichnenden
Eigenschaft des SelbstbewujJtseins, welcher wegen er ein vernünftiges Thier ist" - Kant,
1 ., Verkündigung des nahen Abschlusses eines Tractats zum ewigen Frieden in der Philo­
sophie, AK, VIII, Berlin - Leipzig, Walter de Gruyter, 1923, 414.
5 1 1 É também isso que Robert Nozick fundamentalmente recomenda, quando critica
as teorias éticas que, como a de Bentham, situam o «bem» em «estados mentais» expe­
rienciados por seres sensíveis - cfr. Nozick, Robert, Anarchy, State, and Utopia, New
York, Harper and Row, 1974, 42-45.
5 1 2 "all the nice and subtile questions concerni,;g personal identity can never pos­
sibly be decided, and are to be regarded rather as grammatical than as philosophical dif­
ficulties. ldentity depends on the relations of ideas; and these relations produce identity, by
means of that easy transition they occasion. But as the relations, and the easiness of the
transition may diminish by insensible degrees, we have no just standard, by which we can
decide any dispute concerning the time, when they acquire or lose a title to the name of
identity. All the disputes concerning the identity of connected objects are merely verbal,
except so far as the relation of parts gives rise to some fiction or imaginary principie of
union" - Hume, D., A Treatise. . . , cit., 262.
174 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

é dispensada"5 13 - , para noutro passo, ao ilustrar o conceito de analogia,


sustentar que é através da analogia com a nossa motivação racional que
somos capazes de atribuir as actividades dos animais a um instinto que,
nas suas relações com os efeitos que gera, é similar à operação da razão
sobre a acção humana livre, permitindo-nos também reconhecer que os
animais agem movidos por representações (não sendo, pois, máquinas
como o sustentava Descartes): tudo para concluir que, malgrado as dife­
renças específicas, os animais são - em boa consonância com a sua linha
de argumentação antropomorfista - genericamente idênticos ao homem,
enquanto seres vivos5 14.
Será verdadeiramente que é vedado a todos os não-humanos terem
um rudimento de consciência reflexiva - que ao menos permita uma
rememoração de detalhes empíricos susceptível de constituir, para o indi­
víduo, uma base de aprendizagem adaptativa, mesmo que não, evidente­
mente, para uma articulação e transmissão abstracta? Será que essa expe­
riência animal é sempre «relacional», «imersa» na transitoriedade de um
contexto - como a experiência que nós temos do que nos circunda
quando estamos absortos ou exclusivamente concentrados numa tarefa? É
a posição de Peter Carruthers, por exemplo5 15 , refutada por William
Robinson, que contrapõe que uma tal teoria «relacional» da consciência
deve ser complementada por uma perspectiva «intrínseca» que abandone
a sua dependência exclusiva das premissas evolucionistas5 1 6.

1 2 .b) Subjectividade não-humana e inteligência animal


Que nos indica esta subtileza da «psicologia animal»? Decerto acon­
selha-nos a não fazermos depender dela a defesa dos interesses básicos dos

5 1 3 "die menschliche Natur von der besonderen Beschaffenheit ist (die das Thier
nicht hat), durch Aufmerksamkeit auf gewisse locale Eindrücke das Gefühl derselben zu
verstarken oder auch anhaltend zu machen" - Kant, I., Anthropologie in Pragmatischer
Hinsicht, AK, V II, Berlin, Georg Reimer, 1917, 212.
5 1 4 Cfr. Kant, I., Kritik der Urtheilskraft, AK, V, Berlin, Georg Reimer, 1913, 465n.
5 1 5 Cfr. Carruthers, Peter, "Brute Experience", Journal of Philosophy, 85 (1989),
258-269; eiusdem, The Animais /ssue. Moral Theory in Practice, Cambridge, Cambridge
University Press, 1992; Carruthers, Peter & Peter K. Smith (orgs.), Theories of Theories of
Mind, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
5 16 Cfr. Robinson, W.S., "Some Nonhuman Animais... ", cit., 51-71.
A Hora dos Direitos dos Animais 175

não-humanos, pois pragmaticamente uma tal dependência transferiria para


os defensores do bem-estar animal o ónus da prova da conexão dos direi­
tos com a evidência (mais ou menos antropomórfica) de uma determinada
subjectividade, quando a verdade é que o bem-estar pode perfeitamente
aferir-se por simples reacções comportamentais, sem reclamar atribuições
mais ou menos sofisticadas àqueles estados de consciência subjectiva. Não
percamos de vida as limitações que a «falta de empatia» pode causar - já
que, ao contrário do Dr. Doolittle dos filmes, não comunicamos verbal­
mente com os animais -, cingindo o estudo do comportamento animal à
revelação de uma «subjectividade vista do exterior», uma «angeschaute
Subjektivitiit» S 17.
É que a impunidade do desrespeito pelos interesses dos animais pode
efectivamente agravar-se com o pretexto de que falta ainda progredir na
descoberta de propriedades psicológicas de que fizéssemos depender a
determinação e o balizamento daqueles interesses; devendo, pois, em
alternativa, admitir-se que a defesa do bem-estar animal reclama apenas
asserções provisórias e até a abertura à consideração do carácter essen­
cialmente refutável e problemático de muitas das concepções dominantes
- no fundo, a mesma ideia a que recorremos já a propósito da nebulosi­
dade das fronteiras de demarcação entre espécies; a mesma ideia que pre­
side, no contexto mais amplo da temática ambiental, aos princípios da pre­
caução e da prevenção5 18 .
É verdade que podemos desafiar a «hubris» da inefabilidade através
da adopção das (aparentemente) cautelosas premissas etologistas -
olhando apenas para traços comportamentais e evitando atribuições de
«pseudo-intencionalidade». E assim diríamos que é discernível, na racio­
nalidade, uma vertente «relacional» que é facilmente verificável nos pri­
matas superiores e em muitos mamíferos - especificamente a percepção
de situações decisórias e a interacção com os membros da espécie, com­
petindo, cooperando e evoluindo na cooperação com vista à obtenção de
·'

5 17 Cfr. Buytendijk, F.J.J., L'Homme et l 'Animal. Essai de Psychologie Comparée


(trad. p/ Rémi Laureillard), Paris, Gallimard, 1965, 22; Thines, Georges, Existence et Sub­
jectivité. Études de Psychologie Phénoménologique, Bruxelles, Éditions de l'Université de
Bruxelles, 1991, 128.
5 1 8 Cfr. Bisgould, Lesli, "Animal Oppression and the Pragmatist", Animal Law, 3
(1997), 39ss.; Haynes, Richard P., "Do Regulators of Animal Welfare Need to Develop a
Theory of Psychological Well-Being?", Journal of Agricultural and Environmental Ethics,
10 (2001), 231-240.
176 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

certos fins partilhados - , e uma vertente «deliberativa», que envolve


aspectos introspectivos, auto-identificativos e personalizadores, e que está
ausente de praticamente todas as espécies não-humanas, com a possível
excepção de alguns primatas - mas que está igualmente ausente, não o
esqueçamos, de muitos membros da espécie humana5 I9.
A analogia antropomórfica a partir de manifestações de racionalidade
«relacional» pode ser deveras impressionante, e é ela que em larga medida
explica a longuíssima tradição histórica de reconhecimento da inteligência
dos animais - mesmo que em desafio da visão dominante da «Grande
Cadeia do Ser». Aliás, a ideia de que existiria uma espécie de hierarquia filo­
génica quanto à capacidade mental dos animais é anterior às descobertas do
evolucionismo e às percepções de contiguidade entre espécies5 20, e precede
extensamente as muito mais modernas discriminações assentes na sensibili­
dade, na capacidade de sofrimento, das diversas espécies.
E aqui nem sempre o antropomorfismo ditou as suas leis: quando a
teriofilia soube expurgar os seus intentos edificadores e humanizadores,
ocasionalmente foi capaz de reconhecer que é unicamente à nossa insufi­
ciência cognitiva, à nossa incompreensão ou à insensibilização induzida
pelos nossos preconceitos, que se deve a ideia de que os animais não pos­
suem uma inteligência e uma linguagem que lhes permitem levar - do
ponto de vista evolucionista e de integração ambiental - vidas tão bem
sucedidas como as nossas, se não mais5 2 I. E não faltou mesmo quem,
como John Bulwer, em Chirologia. Or the Natvrall Langvage of the Hand
( 1 644), sustentasse que a mais natural das linguagens, a linguagem gestual
e corporal, seria sobrevivência de uma comunicação animal comum que

5 1 9 Cfr. Hartshome, Charles, "Foundations for a Humane Ethics", in Morris, R.K. &
M .W. Fox (orgs.), On the Fifth Day..., cit., 160-162; Kelch, T.G., "Toward a Non-Property
Status . . .", cit., 565-566; Schmahmann, D .R. & L.J. Polacheck, "The Case Against. . . ",
cit., 747 .
5 20 Cfr. Maehle, Andreas-Holger & Ulrich Trohler, "Animal Experimentation from
Antiquity to the End of the Eighteenth Century: Attitudes and Arguments", in Rupke, N .A.
(org . .), Vivisection in Historical Perspective, cit., 14-47 ; Maehle, Andreas-Holger, "Cruelty
and Kindness to the «Brute Creation» . Stability and Change in the Ethics of the Man-Ani­
mal Relationship, 1600-1850", in Manning, A. & J. Serpell (orgs .), Animais and Human
Society, cit., 81-105.
5 2 1 Cfr. Létard, Étienne, Marcel Théret & Michel Fontaine, "Évolution des Concep­
tions de l' Homme au Sujet de l' Activité Mentale des Animaux depuis I' Antiquité jusqu'au
Xxe Siecle", in Brion, A. & H . Ey (orgs .), Psychiatrie Animale, cit., 41-67 .
A Hora dos Direitos dos Animais 177

teria sobrevivido à confusão de Babel - sendo por isso a linguagem ver­


bal e articulada um sucedâneo imperfeito e fragmentado522 .
Como exemplos notáveis desse respeito histórico pela inteligência
animal, pense-se no proverbial Cão de Crísipo, que alegadamente era
capaz de, numa encruzilhada de três caminhos, seguir sem hesitar, e sem
necessidade de comprovação, um trilho por um desses caminhos depois de
ter tido uma comprovação negativa quanto à continuação do trilho nos
outros dois, parecendo portanto resolver um trilema através de um silo­
gismo anapodíctico523 - uma variante céptica do «cão-filósofo» de Pla­
tão524, que ressurge, séculos volvidos, no Prólogo de Gargantua525 , e que
ressurgirá sempre que, no intento céptico, houver a necessidade de
demonstrar a «não-excepcionalidade» da inteligência humana, como
forma de aplacar a «soberba especista». Pense-se também no exemplo da
ardilosa raposa de Plutarco, que tenta ouvir o ruído da água sob o gelo para
calcular a respectiva espessura, antes de decidir-se a passar, ou não, sobre
ele5 26.
Pense-se também, seja na adaptabilidade simbiótica dos animais
domésticos - que tão bem sucedidos são na aprendizagem de comporta­
mentos não-inatos, comportamentos de que depende a maximização do seu
bem-estar e a minimização da violência -, seja na já referida capacidade de
domínio sintáctico de uma linguagem gestual abstracta e convencional por
parte de alguns chimpanzés, bonobos e até gorilas, capazes de evoluírem
para uma sofisticada insinceridade, para atitudes repetidas de repressão, de
dissimulação, de exacerbação de impulsos básicos, capazes de evidenciarem
uma curiosidade inteligente e adaptativa para com o seu meio ambiente, de
darem sinais de tédio e de pânico (de extrema ansiedade sem dor), de evi­
denciarem preferências no seu relacionamento social, de demonstrarem
afecto pela sua prole e até de desenvolverem estratégias dolosas e de para-

522 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animais. .",. qi� ., 476 .
:
52 3 Cfr. Sextus Empiricus, Outlines of Pyrrhonism (trad. p/ R.G. Bury), Cambridge
Mass ., Harvard U .P., 1933, I, 43 (Loeb, 273); eiusdem, Against the Logicians (trad. p/ R .G.
Bury), Cambridge Mass ., Harvard U.P., 1935, II, 379 (Loeb, 29 1); Montaigne, Michel de,
"Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 106 . Cfr. Floridi, L., "Scepticism . ..",
cit., 27-57 .
524 Platão, A República (trad. p/ Maria Helena da Rocha Pereira), Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 4 1983, 84-85 [375d-376b] .
525 Rabelais, Oeuvres Completes, Paris, Seuil, 1973, 39 .
526 Montaigne, Michel de, "Apologie de Raimond Sebond", in Essais, cit., II, 10 1- 102.
178 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

sitismo agressivo relativamente ao comportamento dos seus semelhantes527,


e capazes ainda de, com grande plausibilidade, se atribuírem reciprocamente
estados mentais distintos e interagirem consistentemente com essa represen­
tação exterior5 28 - tudo características que, por exemplo, não estamos à
espera de ver evidenciadas em bebés humanos529 .
Pode dizer-se que foi o declínio do behaviorismo que autorizou a eto­
logia a atribuir estados mentais aos não-humanos, não se cingindo a um
plano mais prudente de mera descrição de condutas reveladas, incorrendo
com isso nos riscos do antropomorfismo daquela «falácia da intencionali­
dade» que postula, na conduta dos animais, uma imaginada relação com
estados mentais complexos - quando, como temos sugerido, é no mínimo
prematuro postular-se um contínuo entre os estados mentais de humanos e
de não-humanos5 30 .

5 27 Sobre a agressão como estratégia evolucionista, cfr. Van Hooff, Jan A.R.A.M.,
"Conflict, Reconciliation and Negotiation in Non-Human Primates: The Value of Long­
Term Relationships", in Noe, R., J.A.R.A.M. van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Econo­
mics in Nature ..., cit., 67-71, 76-79.
5 28 Cfr. Byme, R.W., The Thinking Ape. . ., cit., 146, 154. Há também quem conjec­
ture a existência de uma similar capacidade nalguns cetáceos.
5 29 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 13. Cfr. Achim, Stephan, "Are Animais
Capable of Concepts?", Erkenntnis, 51 (1999), 79-92; Allen, Colin & Marc D. Hauser,
"Concept Attribution in Nonhuman Animais: Theoretic�al and Methodological Problems in
Ascribing Complex Mental Processes", Philosophy of Science, 58 (1991), 221-240; Goo­
dall, Jane, "Chimpanzees - Bridging the Gap" e Ryder, Richard, "Sentientism", ambos in
Cavalieri, P. & P. Singer (orgs.), The Great Ape Project . . ., cit., 12, 220; Goodall, Jane, &
Steven M. Wise, "Are Chimpanzees Entitled to Fundamental Legal Rights?", Animal Law,
3 (1997), 61ss ..
53 0 Cfr. Allen, Colin & Marc Bekoff, Species of Mind: The Philosophy and Biology
of Cognitive Ethology, Cambridge Mass., MIT Press, 1997 ; Allen, C. & M.D. Hauser,
"Concept Attribution... ", cit., 221-240; Bekoff, Marc, "«Do Dogs Ape» or «Do Apes Dog»
And Does lt Matter? Broadening Deepening Cognitive Ethology", Animal Law, 3 (1997),
13ss.; eiusdem, "Deep Ethology . . . ", cit., 269-296; Bekoff, M. & J. Dale, "Reflective Etho­
logy . . . ", cit., 1-47; Eddy, Timothy J., Gordon G. Gallup Jr. & Daniel J. Povinelli, "Attri­
bution of Cognitive States to Animais: Anthropomorphism in Comparative Perspective",
Journal of Sociallssues, 49 (1993), 87-101; Singer, Peter, The Expanding Circle. Ethics
and Sociobiology, Oxford, Clarendon, 1981.
A Hora dos Direitos dos Animais 179

1 2 .e) Linguagem humana e inefabilidade


Lembremos que, de acordo com os pressupostos evolucionistas de
sucesso das espécies, a sobrevivência das espécies não-humanas não
esteve, e parece não estar nem poder estar , dependente da sua capacidade
de problematização das suas situações vivenciais em termos lógicos e arti­
culados: pode uma parte limitada da linguagem humana ser ensinada a
alguns primatas53 I (e uma parte mais ampla da linguagem animal de que
os humanos também dispõem ser ensinada aos animais domésticos), e
podemos comprazer-nos muito com os resultados dessa aprendizagem.
Mas, não nos esqueçamos, essa linguagem não é necessária à sobrevivên­
cia, ao bem-estar e à socialização desses não-humanos - tal como não é
necessária à sobrevivência, ao bem-estar e à socialização dos seres huma­
nos a aprendizagem da linguagem dos não-humanos (e espera-se que
nunca o venha a ser... 5 32) _ 533.
Os chimpanzés «falam», reconheçamo-lo, se estiverem integrados
em comunidades híbridas com humanos, se tiverem a percepção dos
ganhos que lhes podem advir do domínio de uma linguagem que, não lhes
sendo espontânea, em todo o caso lhes traz recompensas da parte dos
humanos; nesse sentido, o ser humano torna-se, naquele contexto, numa
peça essencial do dispositivo simbólico do chimpanzé, é instrumental para
a estratégia comunicativa deste - uma estratégia que não tem «conteúdo
narrativo» nem apoio reflexivo, nem se exprime introduzindo condicionais
hipotéticos nem metáforas, e por isso é estritamente uma linguagem objec­
tiva, performante, indicativa: talvez os chimpanzés nos «manipulem»
quando parece que nos «falam»534.
É aí que intervém a «hubris» da inefabilidade, porque o sucesso
adaptativo dos não-humanos nos desafia a reconsiderarmos as vantagens

531 E, sem domínio sintáctico , aos papagaiÓs ... - -


532 Sem desconsiderarmos o género de «distopia» que explora o receio de domínio
pelos não-humanos - seja o dos Yahoos escravizados pelos Houyhnhnms nas Viagens de
Gulliver, seja a servidão descrita por Pierre Boulle no Planeta dos Macacos, seja até , mais
subtilmente, o Dr. Jekyll dominado pelo Mr. Hyde .
533 Mais ainda: "Um mundo sem palavras deixaria de ser humano, mas sê-lo-ia
ainda um mundo sem animais?" - Cyrulnik, Boris , "Les Animaux Humanisés" , in Cyrul­
nik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 55 .
534 Cfr. Lestel, Dominique, "Les Singes Parlent-ils Vraiment?" , in Cyrulnik, B .
(org.), Si les Lions..., cit., 1003-1007 .
180 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

objectivas da nossa forma lógica de pensamento sobre modos não-estrutu­


rados, ou estruturados de modo diferente e não inteiramente compreensí­
vel, de pensamento que pragmaticamente conduzem os animais à satisfa­
ção das suas necessidades vitais, tanto as individuais como as colectivas535
- caso em que, descontado o antropomorfismo, não poderíamos concluir
que o Cão de Crísipo ou a Raposa de Plutarco fossem as mais rematadas
demonstrações de «inteligência animal».
Sejamos optimistas, e reconheçamos que a barreira da inefabilidade
pode poupar-nos também de não poucos embaraços, dada a complexidade
que se desenvolveu já em tomo do próprio estatuto da consciência humana,
envolvendo, entre muitas outras, a colisão entre «representacionalistas» que
associam a ideia de consciência a uma mera sensação de subjectividade, e
«representacionalistas de segundo grau» que associam a consciência a sen­
sações objectiváveis por um juízo de simpatia, aquilo que designam por
«consciência fenoménica», sem excluirmos ainda aqueles que sustentam o
carácter único, irredutível e inefável, da própria consciência humana5 36.
Veja-se só em que complicações inextricáveis poderia envolver-se o
tema, se houvesse que recorrer-se a analogias entre «estados mentais» e
«intencionalidades» em seres humanos e não-humanos, mesmo quando
elas fossem impelidas por espontâneas «empatias teriofílicas», quando a
«balcanização» é completa quanto ao que significa, para seres humanos
capazes de «simpatia» e de «solidariedade especista», uma coisa aparen­
temente tão básica como o possuir-se uma consciência - façamos, aju­
dados por Steven Wise, uma enumeração somente das 10 mais populares
escolas nesta matéria: «identity theorists», «eliminative materialists»,
«logical behaviorists», «emergent materialists», «functionalists», «biolo­
gical naturalists», «constructive naturalists», «substantive dualists»,
«new mysterians» e «mind agnostics» 537 .

535 Cfr. Strauss, D.F.M., "Thought and Language . . . ", cit., 175-182.
53 6 Entre os primeiros, Dretske, Fred, Naturalizing the Mimi, Cambridge Mass., MIT
Press, 1995; Kirk, Robert, Raw Feeling, Oxford, Clarendon, 1994; entre os segundos, Car­
ruthers, Peter, Language, Thought and Consciousness, Cambridge, Cambridge University
Press, 1996; Dennett, Daniel, Consciousness Explained, London, Penguin, 1991; Rosen­
thal, David M., "Thinking that One Thinks", in Davies, Martin & Glyn W. Humphreys
(orgs.), Consciousness, Oxford, Blackwell, 1993, 197-223; entre os últimos, Chalmers,
David J., The Conscious Mind, Oxford, Oxford University Press, 1996; Nagel, Thomas,
The View from Nowhere, Oxford, Oxford University Press, 1986.
537 Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 130-131.
A Hora dos Direitos dos Animais 181

É essa complexidade perceptiva, que se traduz numa margem não


despicienda de inefabilidade, que é por sua vez capaz de perpetuar consi­
derações sobre a justificabilidade de um sofrimento «necessário»: é a assi­
metria de percepções derivada da impossibilidade que os não-humanos
têm de traduzirem o seu sofrimento em linguagem humana (embora as
suas expressões imediatas de dor sejam as mesmas com que a dor se
exprime na animalidade humana, e portanto possa configurar-se para nós
um dever moral de transcendermos essa barreira proibitiva) que basica­
mente aparenta legitimar um sofrimento que utilitariamente se instrumen­
taliza à obtenção de benefícios generalizados - apenas porque essa ins­
trumentalização é um artifício articulado, uma técnica de ponderação que
obviamente tende a privilegiar benefícios articulados em detrimento de
danos inarticuláveis, uma técnica que afinal enraíza hábitos e perpetua e
universaliza tradições que esbatem a consciência da opressão ou a percep­
ção de alternativas à inflicção do sofrimento538 .
E é a mesma maldição da inefabilidade que leva reputados cientistas
a concluírem que, sendo impossível transformar o dado empírico da
«experiência» dos não-humanos, como «fenómeno não-consciente», num
objecto adequado de consideração moral, essa «experiência» deveria per­
der toda e qualquer prioridade axiológica, julgando-se até intolerável o
dispêndio, na redução da dor não-consciente, de meios escassos que deve­
riam ser dedicados prioritariamente ao alívio do sofrimento consciente53 9 .
Contra este entendimento militam posições não-cognitivistas na
ética, sustentando o argumento de que o que conta é a consideração do
facto bruto do sofrimento, e que a sensibilidade ou «emocionalidade» que
permitem experimentá-lo são características partilhadas por humanos e
não-humanos, ainda que a comprovação dessa partilha seja essencialmente
problemática, ou difícil, ou - admitamos - impossível, dada a barreira
da inarticulação5 40. Com efeito, todas as provas fisiológicas atestam que
os vertebrados partilham muito similares estruturas neurológicas de trans­
missão da dor5 4I; mas isso faz-nos regressar à- necessidade de transição
analógica e simpática como veículo para a reconstituição do que seja a

53 8 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., v.


539 Cfr. Carruthers, P., "Brute Experience", cit., 258-269.
540 Cfr. Dixon, Beth A., "Animal Emotions", Ethics and the Environment, 6 (2001),
22-30.
54 1 Cfr. DeGrazia, D., Taking Animais Seriously. .., cit., 105-115.
182 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

«consciência não-humana», do que seja o «estado final» daquela trans­


missão: terão os animais uma mera consciência «representacionalista de
primeiro grau», numa fronteira onde se esbatem as distinções entre expe­
riência consciente e não-consciente (como a que sucede numa caminhada
absorta, ou sonâmbula)? Serão as suas vivências acessíveis através do «fil­
tro» das categorias da nossa empatia?542
Parece em todo o caso altamente improvável que, salvo no caso de
alguns primatas, a consciência animal chegue ao grau da «consciência
fenoménica», isto é, a um grau de correspondência entre aquilo que é
experimentado pelo animal e aquilo que a consciência humana é capaz de
projectar sobre essa experiência, quando tenta reconstruí-la como vivência
a partir do seu interior. Seria possível até um argumento evolucionista: é
duvidoso que uma capacidade de consciência «de segunda ordem» tivesse
evoluído desacompanhada de uma capacidade superior de raciocínio -
embora o caso seja eminentemente duvidoso no caso dos primatas supe­
riores, mormente dos chimpanzés.
Assim sendo, resta apurar se o que é decisivo é a demonstração (por
impressionante que seja) de superiores capacidades de experiência, ou
antes a muito mais confinada capacidade de percepção de desejos «de pri­
meira ordem» que possam ser frustrados, dando origem a um sofrimento
com o qual os seres humanos podem comunicar «por simpatia» - talvez
possam, embora eventualmente se venha a concluir que não são moral­
mente compelidos a fazê-lo543 .

542 O «salto» não intimida R.M. Hare, que, colocando-se empaticamente na posição
de uma truta, sustenta que preferiria a existência de uma truta de viveiro à de uma truta
«selvagem», e preferi-la-ia decerto à não-existência - visto que, num viveiro, a existên­
cia decorreria sem insegurança nem privações alimentares, normalmente a morte ocorreria
com o mínimo de sofrimento, sem aquela exposição prolongada e angustiante às agressões
predatórias associadas à cadeia alimentar: cfr. Hare, R.M., "Why I Am Only a Demi-Vege­
tarian", Essays on Bioethics, Oxford, Clarendon, 1 993, 228.
543 Cfr. Carruthers, Peter, Language, Thought and Consciousness, Cambridge, Cam­
bridge University Press, 1998, 133-163; e ainda: Buytendijk, F.J.J., O Homem e o Animal.
Ensaio de Psicologia Comparada (trad . p/ Álvaro Simões), Lisboa, Livros do Brasil, 1979;
Chauvin, Rémy, A Etologia. Estudo Biológico do Comportamento Animal (trad. p/ Rui de
Espiney), Lisboa, António Ramos, 1977; eiusdem, Dos Animais e dos Homens (trad. p/
Maria Assunção Santos), Mem Martins, Terramar, 1990; Danysz, Pernette, A Inteligência
dos Animais (trad. p/ Alberto Candeias), Lisboa, Estúdios Cor, 1965; Dawkins, Marian
Stamp, Compreender o Comportamento Animal (trad. Augusta Gaspar), Lisboa, Fim de
Século, 22000; Lorenz, Konrad, Três Ensaios sobre o Comportamento Animal e Humano
A Hora dos Direitos dos Animais 183

1 2 .d) A simpatia e as aporias da alteridade


Por outro lado, e como temos repetidamente sublinhado, a «intencio­
nalidade» que pressupomos como indício de inteligência no núcleo normal
da espécie humana é em larga medida fruto das necessidades específicas
de socialização no habitat humano, incomunicável às necessidades natu­
rais das demais espécies; e assim, conquanto seja possível ensinar a alguns
primatas os rudimentos da expressão dessa intencionalidade, o facto é que,
no seu habitat natural, esses primatas não-humanos não são defrontados
com membros da sua espécie que deliberada e previsivelmente interajam
com a sua intencionalidade subjectiva - e daí a «crueza» que observamos
nas relações sociais e políticas entre esses primatas (a mesma «crueza»
que a nossa moralidade se esforça por excluir), relações que nunca se sub­
mergem numa convencionalidade que é o somatório e a sedimentação do
entrecruzamento dessas intencionalidades reveladas e adivinhadas por
analogia544/545.
Mas mesmo a universalização de condutas morais, a explicitação dos
pressupostos institucionais do intercâmbio social, a emergência de uma
intencionalidade discernível, articulável, partilhável, são impotentes,
como já referimos, para ultrapassarmos satisfatoriamente a barreira filosó­
fica do «pensamento dos outros», para assegurarmos a fuga ao solipsismo
entre humanos - porque na essência o conteúdo da consciência de outrem
não é para mim alcançável, senão através de inferências que sou obrigado

(trad. p/ Noémia Seixas), Lisboa, Arcádia, 1975; Menault, Ernesto, A Inteligência dos Ani­
mais (trad. p/ Alexandre da Conceição), Porto, Educação Nacional, 21935; Povinelli,
Daniel, "Chimpanzee Theory of Mind? The Long Road to Strong Inference", in Carruthers,
P. & P.K. Smith (orgs.), Theories of Theories of Mind, cit., 293-329; Richmond-Watson,
Zoe, Os Direitos dos Animais, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987; Vauclair, Jacques, A Inte­
ligência dos Animais (trad. p/ Catarina Rocha Lima),Lisp,o�, Livros do Brasil, 1992; Ver­
beek, Yves, As Linguagens Animais (trad. p/ Mário Dias Correia), Lisboa, Amigos do
Livro, 1978.
544 Cfr. Wise, S.M ., Rattling the Cage, cit., 168ss.; Tomasello, M. & J. Call, Primate
Cognition, cit., passim.
545 No entanto, sobre formas de coligação e estruturação política entre os babuínos,
cfr. Noe, Ronald, "Biological Markets: Partner Choice as the Driving Force Behind the
Evolution of Mutualisms"; Barrett, Louise & S. Peter Henzi, "The Utility of Grooming in
Baboon Troops", ambos in Noe, R., J.A.R.A.M. van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Eco­
nomics in Nature .. ., cit., 97-99; 120-121.
184 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

a fazer, a partir da pura revelação comportamental dos outros, com os


dados da minha própria experiência interior, postulando isomorfismos
com racionalidade e parcimónia, e de acordo com juízos de verosimi­
e
lhança de similitude.
Por isso, também com a humanidade e dentro dela tudo tem de resu­
mir-se a uma «identificação imaginativa», pois uma teoria moral que fizesse
depender a inclusão dos animais, humanos ou não-humanos, no espaço
moral dentro do qual se atendesse adequadamente aos interesses deles, do
refinamento de uma exótica capacidade de empatia com a sensibilidade pró­
pria de outros indivíduos e de outras espécies estaria em graves dificuldades
para se livrar do seu confinamento a um exercício mental ao alcance de ape­
nas um número restrito de pessoas especialmente dotadas546.
E mesmo assim, o que fazer com os casos opostos de excesso de
empatia, ou seja, de subversão simbólica do estatuto natural de certos ani­
mais que são tão fundamente integrados no nosso habitat, na nossa domes­
ticidade, na nossa experiência comum, que tantas e tantas vezes nos é mais
fácil simpatizar com eles e envolvê-los na nossa solidariedade e na nossa
protecção afectiva, do que o é transportarmos esses sentimentos para
outros seres humanos - seja em razão da distância, seja em razão de
divergências de códigos de valores, pervertidas em bases para a intolerân­
cia - ? Pense-se, por exemplo, na forma como o cão doméstico tem sem­
pre existido como animal «intersticial», numa oscilação precária, em ter­
mos simbólicos, entre o animal superior e a pessoa inferior, entre o
«espelho de virtudes» e o ·«pária universal», o «underdog» 547 , uma oscila­
ção que nos priva da capacidade de apreciação da sua natureza básica por­
que recobre esta de dimensões metafóricas com as quais tendemos a inte­
ragir, numa mutualidade afectiva que tem muito a pouco a ver com os
impulsos naturais do animal e muito com as nossas projecções do que sig­
nifica a aliança voluntária que os cães domésticos fazem com os seres
humanos - sendo também dessa oscilação que resulta a demonização da

546 Cfr. Goldman, Alvin, "Empathy, Mind and Morais", in Davies, Martin & Tony
Stone (orgs.), Mental Simulation, Oxford, Basil Blackwell, 1995, 186ss.; Gordon, Robert,
"Sympathy, Simulation and the Impartial Spectator", Ethics, 105 (1995), 727-742; Hare,
R.M., Moral Thinking, cit., 119-121; Singer, P., The Expanding Circle . . ., cit., l O l ss., 123-
124 (para lá da Theory of Moral Sentiments, de Adam Smith).
547 Cfr. Ellenberger, Henri, "Jardin Zoologique et Hôpital Psychiatrique", in Brion,
A. & H. Ey (orgs.), Psychiatrie Animale, cit., 575.
A Hora dos Direitos dos Animais 185

algumas reacções «não-domesticadas» dos cães, base para atribuições


mais ou menos assustadoramente lincantrópicas548/549.
Mas pode haver muito mais do que antropomorfismo na exploração
«simpática» de similitudes entre o sistema de convicções e desejos huma­
nos e aquele que muitas vezes parece transparecer das condutas de muitos
mamíferos superiores - mesmo prescindindo, pelo que se viu, de recons­
truções conjecturais sobre os estados interiores de percepção e de atribui­
ções de intencionalidade -; efectivamente, se nos ativermos apenas às pro­
priedades causais e expressivas de qualquer sistema de convicções e
desejos, poderemos relativizar a questão, limitando-nos à afirmação de
que alguns animais possuem inequivocamente um centro causal de con­
duta que tem a funcionalidade que em nós é assegurada por um sistema de
convicções e desejos - seja qual for o nome que prefiramos dar a essa
funcionalidade não-humanasso .
Por outras palavras, a incompetência linguística (verbal) e a falta de
indícios directos de consciência reflexiva não desmentem a existência de um
horizonte de desejos, crenças e interesses nos animais não-humanos, nem
obstam ao respectivo reconhecimento e à ênfase que neles se coloque. O que
seja esse horizonte é de somenos importância, se aceitarmos fazer derivar
um estatuto etico-jurídico a partir de uma fundamentação alternativa, menos
contingentemente presa das limitações da «psicologia anima1»ss 1 , mais
aberta à consideração objectiva das capacidades de processamento de infor­
mação e de aprendizagem dos não-humanos, de adaptação e de integração
nos seus ambientes peculiares, de consistência no recurso ao conhecimento
adquirido; mais aberta, pois, à consideração daquilo que genericamente
possa entender-se como a «inteligência anima1»ss 2 .

548 Cfr. Serpell, James, "From Paragon to Pariah: Some Reflections on Human Atti­
tudes to Dogs", in Serpell, James (org.), The Domestic Dog, Cambridge, Cambridge Uni­
versity Press, 1995, 254.
549 Apesar dos esforços para a constituição de uma zoologia «positiva», o pavor de
uma animalidade percebida como espaço natural da <<loucura» não deixou de povoar as
representações clássicas do «inferno», do poder subterrâneo do Mal, até ao momento em
que a Filosofia, centrada num desígnio antropológico, retirou desapaixonadamente à ani­
malidade a sua conotação de «pura negatividade», permitindo a sua reconsideração no
panorama geral das manifestações terrenas da vida - cfr. Foucault, M., Histoire de la
Folie à l 'Âge Classique, cit., 168-170.
55 0 Cfr . Stich, S.P., "Do Animals Have Beliefs?", cit., 15-28.
55 1 Cfr. Miller, P., "Do Animals Have Interests ... ", cit., 319-333.
55 2 Mas também, na amplitude desta formulação relativista, não se poderia dizer o
186 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

Pragmaticamente, se fugirmos de atribuições metafísicas quanto a


«linguagens privilegiadas» e «estatutos ontológicos» do conhecimento e
nos remetermos às singelas constatações empíricas da etologia compa­
rada55 3, poderíamos alterar completamente a argumentação, passando a
centrar-nos na simples admissão de que a conduta de alguns animais seria
mais facilmente explicável e previsível se lhes atribuíssemos a capacidade
de raciocinarem, de formarem conceitos abstractos e de pautarem a sua
conduta por eles, por exemplo de formarem uma «teleologia cognitiva» na
formação de crenças e desejos554. Não havendo imputação metafísica, um
tal expediente explicativo nem sequer seria suspeito de antropomorfismo,
pois se limitaria a aplicar aos não-humanos um recurso que usamos tam­
bém na alteridade entre humanos, reduzindo-nos uns aos outros a simpli­
ficações que buscam, no suporte da «personalidade» revelada na exterio­
rização consistente de uma conduta, a estabilidade e a previsibilidade de
atitudes cuja motivação mais profunda e genuína pode bem escapar�nos -
e que podemos pragmaticamente dispensar.
Não esqueçamos por fim que, dentro dessa alteridade que se desen­
volve na nossa espécie, e mesmo descontando a margem de opacidade na
intersubjectividade, emerge mais uma vez o problema dos «casos margi­
nais» - impedindo que se confunda capacidade ética (susceptibilidade de
emissão de juízos morais) com estatuto ético (susceptibilidade de consi­
deração moral de interesses próprios) - mais um afloramento da distin­
ção entre exercício e gozo de prerrogativas individuaissss.
Destas «aporias da- alteridade» retira Steven Wise algumas conclu­
sões que, no seu entender, são requeridas pelo propósito de não-contami­
nação com preconceitos «especistas» e simplificações grosseiras - como
a de que «inteligência» e «inteligência humana» são sinónimos - ; con­
clusões que ele sintetiza em três regras:

mesmo das espécies vegetais? Cfr. Schull, Jonathan, "Are Species Intelligent?", Behavio­
ral and Brain Sciences, 13 (1990), 63-108.
55 3 Rosa, Humberto D., "Ética e Ciências Biológicas: Fundamentos de uma Relação
Crescente", in Silva, João Ribeiro, António Barbosa & Fernando Martins Vale (orgs.), Con­
tributos para a Bioética em Portugal, Lisboa, Cosmos, 2002, 172-173.
554 Cfr. Achim, S., "Are Animais Capable... ", cit., 583-596; Dreckmann, Frank,
"Animal Beliefs and Their Contents", Erkenntnis, 51 (1999), 597-615.
555 Retirando daí o corolário de que deveria ser reconhecido um estatuto ético até a
seres inanimados, cfr. Brennan, A, "The Moral Standing.. .", cit ., 35-56.
A Hora dos Direitos dos Animais 187

- só com a maior dificuldade poderemos alguma vez encarar a possi­


bilidade de nos colocarmos com justiça no «quadro da natureza»;
- devemos usar do maior cepticismo relativamente a todos os argu­
mentos que conduzam à conclusão de que somos «seres superiores»;
- devemos evitar argumentos interessados quando avaliamos capaci­
dades mentais.
Regras que têm em comum o facto de se oporem ao predominante
«cânone de Morgan», uma presunção que pretende vedar-nos a aceitação
de qualquer alegação de capacidades nos animais, salvo em casos de abso­
luta certeza em contrário - uma regra que nada prova, mas decerto evi­
dencia uma subjacente «arrogância especista»556, a mesma que, nas pala­
vras subtis de Franck Tinland, fez do «estado selvagem» um «degré zéro
d 'humanité» a partir do qual todas as histórias conjecturais da humanidade
foram sendo elaboradas - precisamente para sublinhar que o que é pró­
prio do humano é a rejeição da animalidade557, a superação do instinto, da
violência e da barbárie pela conduta raciona1sss, num esforço de alarga­
mento do próprio horizonte existencial559.

1 2 .e) A nossa animalidade


E no entanto. . . insistamos que apesar do orgulho que, como espécie,
depositamos na normal autonomia da nossa consciência, a ponto de a colo­
carmos como alicerce, como pressuposto, da nossa moralidade, a depen-

55 6 «Cânone de Morgan», por referência a Conway Lloyd-Morgan, um anti-darwi­


nista. Cfr. Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 12 1- 123; Sober, Elliot, "Morgan's Canon",
in Cummins, Denise Dellarosa & Colin Allen (orgs.), The Evolution of Mind, New York,
Oxford University Press, 1998, 225-234.
557 Cfr. Tinland, Franck, L'Homme Sauvage: Homo Ferus et Homo Sylvestris, de ['A-
nimal à l'Homme, Paris, Payot, 1968, 250. ,.
55 8 Nas palavras de Immanuel Kant, "Os vícios emergem geralmente da violência
cometida contra a natureza pelo estado civilizado, e no entanto o nosso destino de homens
é o de sairmos do estado natural de barbárie inerente à nossa animalidade. A arte perfeita
regressa à natureza" - Kant, 1., Über Piidagogik, AK, IX, Berlin - Leipzig, Walter de
Gruyter, 1923, 492.
559 Voltando a Immanuel Kant, "Porque o facto de ele possuir uma razão não o eleva
nada, quanto ao seu valor, acima da animalidade, se ela não deve servir-lhe senão para
aquilo que, nos animais, ressalta do instinto" - Kant, 1., Kritik der praktischen Vernunft,
AK, V, Berlin, Georg Reimer, 19 13, 61.
188 Linguagem e Pensamento Não-Humanos

dência e a vulnerabilidade são dados inerradicáveis da nossa condição


existencial - e por isso é que a comunidade e a solicitude comunitária
pelos seus membros é tão importante no condicionamento do estatuto
moral dos membros da espécie humana - e é marca de humanitarismo.
Nisso não nos distinguimos, pura e simplesmente, de outros animais gre­
gários (como gorilas, golfinhos, leões, elefantes) que cooperam, que se
protegem mutuamente, que se sacrificam pelo bem comum e que ultra­
passam os limites da sua solicitude habitual no apoio aos desvalidos - na
forma como, em geral, todas as espécies que conhecem longos períodos de
dependência infantil se organizam e impõem condutas comuns para prote­
gerem o seu legado genético contra agressões externas.
Neste ponto, afigura-se hoje claramente demonstrada a capacidade de
socialização complexa de que são capazes os primatas, embora evidente­
mente essa complexidade, que alguns têm caracterizado até como «maquia­
vélica» pela forma como nela se revelam e formam relações de poder560, não
chegue para alicerçar as capacidades cognitivas extremamente sofisticadas
que se manifestam nas sociedades humanas, tal como as sociedades não­
humanas não foram suficientemente motivadoras para formarem completa­
mente as capacidades cognitivas e comunicativas das «crianças selvagens»,
para fazerem florescer nelas aquela aptidão humana que permite transcender
as limitações comportamentais da pura animalidade5 6 1 1562 .

560 Cfr. Griffin, Donalçl R., Animal Minds, Chicago, University of Chicago Press,
1992, 199; Nunn, Charles L. & Rebecca J. Lewis, "Cooperation and Collective Action in
Animal Behaviour", in Noe, R., J.A.R.A.M. van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Econo­
mics in Nature. . ., cit., 57; Vauclair, Jacques, Animal Cognition. An lntroduction to Modern
Comparative Psychology, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1996, 134-135.
56 1 Cfr. Chauchard, Paul, Sociedades Animais, Sociedade Humana, Lisboa, Dom
Quixote, 1974; De Waal, Frans, Chimpanzee Politics. Power and Sex Among the Apes, Bal­
timore, Johns Hopkins University Press, 2 1998; Lane, Harlan L., The Wild Boy ofAveyron,
Cambridge Mass., Harvard University Press, 1976; Tinland, F., L'Homme Sauvage..., cit.,
passim; Tomasello, Michael, The Cultural Origins of Human Cognition, Cambridge Mass.,
Harvard University Press, 1999.
562 Sobre a multiplicação de casos de «meninos-selvagens», e a ocasião para a refle­
xão sobre a animalidade da espécie humana, cfr. Douthwaite, Julia, "Rewriting the Savage:
The Extraordinary Fictions of the «Wild Girl of Champagne»", Eighteenth-Century Stu­
dies, 28 (1994/95), 163-192; Novak, Maximilian E., "The Wild Man Comes to Tea", in
Dudley, Edward & Maximilian E. Novak (orgs.), The Wild Man Within: An lmage in Wes­
tern Thought from the Renaissance to Romanticism, Pittsburgh, Univ. of Pittsburgh Press,
1972, 183-221.
A Hora dos Direitos dos Animais 189

Retomando as sábias considerações de Alasdair Maclntyre, lembre­


mos que a nossa maturidade moral não é o súbito despertar de um «sen­
tido interno», a revelação emergente de características inatas incompará­
veis e únicas da nossa espécie, mas é, mais modestamente, a aquisição de
um hábito de raciocínio prático independente, uma capacidade de reflec­
tirmos sobre as nossas necessidades, as nossas dependências morais e o
modo como, nos círculos da nossa coexistência - do círculo familiar ao
social - , vamos encontrando resposta a essas dependências, antecipando­
as ou mitigando-as, e é nessa avaliação consciente e nessa assunção das
instituições comunitárias como resposta às nossas dependências e às
dependências de outros que finalmente nos distinguimos dos não-huma­
nos, sendo neste último plano que faz sentido falarmos de uma prática vir­
tuosa, uma prática de internalização reflexiva dos hábitos de dádiva e de
permuta que dominem as comunidades - ainda que ela não deixe de ser
basicamente pragmática e eudemonista, endereçada às nossas necessida­
des mais elementares, e não haja uma passagem irreversível da dependên­
cia para a independência moral, visto que a nossa «razão prática» não é,
afinal, mais do que uma reelaboração de necessidades e motivações pré­
linguísticas e pré-racionais, e por isso nos faz transcender mas não aban­
donar a nossa animalidade constitutiva563 .

563 Sobre este entendimento que tão amplamente esbate a demarcação entre a mora­
lidade humana e os códigos de conduta com que podemos interpretar os não-humanos, ver,
além de Maclntyre, A., Dependent Rational Animais..., cit. (na perspectiva aristotélico­
tomista), e de Kittay, E.F., Love's Labor..., cit., ainda: Reinders, Hans S., The Future of the
Disabled in Liberal Society. An Ethical Analysis, Notre Dame IN, University of Notre
Dame Press, 2000; Winnicott, Donald W., The Family and Individual Development, Lon­
don, Routledge, 1992 (na perspectiva estritamente psicológica).
1 3. A Objecção Contratualista - A Força
do Paradigma
Tendo já defrontado algumas das teses e preconceitos básicos que
têm servido para fundamentar a oposição ao reconhecimento de direitos a
todo e qualquer não-humano, poderá afigurar-se tarefa menor - e quiçá
mesmo redundante e inútil - encarar a objecção contratualista, a qual
aparenta pouco trazer de novo para a consideração do tema.
Não podemos rejeitar o cabimento dessa reserva, pelo que muito do
que verdadeiramente importa para compreendermos a objecção contratua­
lista e lidarmos com ela, estruturando a respectiva refutação, o omitiremos
de seguida, visto que se trata de argumentos já abordados e utilizados a
propósito do «especismo» e do problema dos «casos marginais».
Sucede, todavia, que o paradigma contratualista é, sem sombra de
dúvida, o mais utilizado na fundamentação da ética e do direito - ele é o
cânone do constitucionalismo, do liberalismo, da defesa dos direitos
humanos, da própria identificação do que sejam imputabilidade, respon­
sabilidade, autonomia moral, o próprio cânone do que, no seu limite cen­
tral, tende a ser a identidade axiologicamente relevante da humanidade. E
sucede, por isso, que esse carácter paradigmático reforça decisivamente a
atitude de «exclusividade especista», ainda que lhe não adite argumentos
verdadeiramente originais.

1 3 .a) Só há deveres quando existe reciprocidade?


Que sugere, pois, o «cânone contratualista» em desfavor da consa­
gração de direitos dos animais? Muito simplesmente, que os não-humanos,
sendo «irracionais»564, são incapazes de celebrarem contratos e de agirem

5 64 Como na dicotomia kantiana entre "vernünftigen und vernuriftlosen Thiere" -


Kant, 1., Die falsche Spitzjindigkeit der vier syllogistischen Figuren erwiesen, AK, II, Ber­
lin, Georg Reimer, 19 12, 60.
1 92 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

em termos de reciprocidade, incapazes que são de se representarem o que


é um dever565 , o que é o interesse no cumprimento de um dever ou na
tutela de expectativas creditícias; incapacidades que alegadamente os dei­
xariam de fora do cerne da moralidade que é a aplicação da «Regra de
Ouro», tomando-os insusceptíveis de um estatuto moral pleno e da capa­
cidade de gozo de direitos566, seja como indivíduos seja mesmo como
espécies567 - sendo, no entanto, que, como sabemos, um tal argumento
desconsideraria, quer os «casos marginais» dos seres humanos a que não
reconhecemos capacidade de exercício, quer ainda os interesses dos nas­
cituros e das gerações futuras, que por definição não estão em condições
de entrarem, em cada momento presente, em relações de reciprocidade
connosco568 .
Além disso, muito haveria a dizer acerca da sacralização do contra­
tualismo como paradigma etico-jurídico, bastando pensarmos que, no
limite, uma aceitação incondicionada da vontade contratual envolveria a
validação de todos e quaisquer pactos, mesmo daqueles que tivessem fins
imorais ou ilegais, bastando, para aquela aceitação, a verificação do con­
sentimento livre e esclarecido das partes - pelo que se tem reconhecido
universalmente que um qualquer «princípio do dano» deve ser usado como
salvaguarda contra a perversão dos fins da vontade contratual através de
abusos ou da má fé569.
Por outro lado, o paradigma contratualista envolve-se com o «espe­
cismo» de uma forma falaciosa, que viola uma distinção básica que é pre­
ciso estabelecer: é que a necessidade de universalização dos juízos éticos
faz com que eles se separem necessariamente das condições da sua ori-

5 6 5 E daí que Kant sublinhasse que, na sua pêrspectiva, "O homem é o único animal
que tem o dever de trabalhar" - Kant, I., Über Piidagogik, AK, IX, Berlin - Leipzig,
Walter de Gruyter, 1923, 471.
5 66 Cfr. Voice, P., "What Do Animais Deserve?", cit., 34-38.
5 67 Já que, da perspectiva contratualista, cabe também perguntar onde é que se
encontra, na sociabilidade animal, a demonstração de sentimentos anti-especistas generali­
zados, onde é que sentimentos afectuosos e altruístas que transcendam as barreiras das
espécies são definidores da normalidade de qualquer espécie - exceptuando a humana.
5 68 Com muita crueza mas também com impecável congruência, sustentava Kant que
"Em estado de embriaguez, o homem deve ser tratado apenas como um animal, não como
um homem" - Kant, I., Die Metaphysik der Sitten, Zweiter Theil. Metaphysische Anfangs­
gründe der Tugendlehre, AK, V I, Berlin, Georg Reimer, 1914, 427.
5 6 9 Cfr. Rowlands, Mark, "Contractarianism and Animal Rights", Journal of Applied
Philosophy, 14 (1997), 235ss..
A Hora dos Direitos dos Animais 193

gem, pelo que é possível explicá-los pela sua origem, mas a sua justifica­
ção transcende essa origem. Assim sendo, impõe-se a conclusão de que a
origem humana e comunitária da ética não significa que só os seres huma­
nos, ou os membros de uma determinada comunidade, aqueles iluminados
nos seus juízos de mérito por uma «lei interior»570, ou aqueles que gozas­
sem de plena autonomia e de plena consciência que os habilitasse a reci­
procarem dentro do nexo das relações humanas no seio de uma comuni­
dade restrita (excluindo portanto os deficientes profundos, as crianças, os
doentes terminais vegetativos, mas também as gerações futuras, os mete­
cos, os gentios, as minorias e as castas inferiores), devam ser objecto
exclusivo dos juízos de que se compõe essa ética57I . Se não pudesse extra­
vasar os domínios precisos da sua primeira formulação e do seu original
âmbito de vigência, como poderia alguma vez um sistema moral alcançar
a universalidade que o contratualismo precisamente reclama, desde Kant,
para a validação de todo e qualquer juízo ético?
Desconsideremos, por momentos, o problema dos «casos humanos
marginais» - com o fito de retoricamente evidenciarmos o quanto a sua
consideração é decisiva. Imaginemos que toda a espécie humana é consti­
tuída exclusivamente por adultos não-deficientes, todos igualmente infor­
mados e racionais, todos munidos de uma vontade bem-formada e suscep­
tível de auto-disciplina57 2, todos igualmente poupados a situações de
carência económica extrema, de estigmatização ou de exclusão social.
Poderíamos então pacificamente admitir que, num tal ambiente de igual­
dade perfeita, os «direitos» fossem definidos como pretensões correlacio­
nadas com deveres, que «direitos» fossem, não todas as vantagens atribuí­
das pelo sistema jurídico, mas apenas aquelas que tivessem defronte delas
verdadeiros deveres, legalmente sancionados - subscrevendo afinal a
velha estrutura dualista de Hohfeld, acrescentássemos ou não a ela o requi­
sito da necessidade de algum estatuto moral, de alguma vontade ou capa-

570 Observava Kant que " Um animal privado de razão não pratica qualquer virtude.
Essa omissão não é portanto um vício (demeritumJ. Porque ele não violou qualquer lei
interior" - Kant, I., Versuch den Begriff der negativen GrojJen in die Weltweisheit einzu­
führen, AK, II, Berlin, Georg Reimer, 1912, 183.
57 1 Cfr. Singer, P., Ética Prática, cit., 100-101.
57 2 Pois nas palavras de Immanuel Kant "A disciplina transforma a animalidade em
humanidade. Um animal já é tudo pelo seu instinto, tendo uma razão externa providenciado
imediatamente tudo para ele. Por seu lado, o homem necessita da sua própria razão" -
Kant, I., Über Padagogik, AK, IX, Berlin - Leipzig, Walter de Gruyter, 1923, 441.
194 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

cidade de representação, para que existisse uma verdadeira titularidade


jurídica daqueles «direitos» 573 .
Chegaríamos assim à posição de Tibor Machan, que faz a sua recusa
do conceito de «direitos dos animais» assentar precisamente no pressu­
posto de que as categorias «direitos» e «deveres» devem ser reservadas a
verdadeiros «agentes morais», capazes de activamente reciprocarem os
direitos que lhes são reconhecidos com os deveres que assumem - numa
perfeita simetria (mas, julgamos nós, uma simetria inútil que apenas revela
enamoramento pela forma, uma vontade de «geometrismo» ). Os animais
não-humanos, sublinha Tibor Machan, porque não se defrontam com o
poder de configurarem as suas vidas, de as conduzirem de acordo com
representações valorativas, não se vêm obrigados a enfrentar os dilemas e
angústias que derivam dessa responsabilidade pela conduta e pela identi­
dade individual, dessa necessidade de escolher - uma premissa que
parece mais evidente do que verdadeiramente o é, e que alguns começam
já a contestar57 4. Por isso, conclui, a ponderação do destino dos animais
não-humanos em termos de direitos subjectivos seria uma transposição,
intelectualmente ilegítima, do plano humano para o plano não-humano,
uma forma desproporcionadamente enfática de sublinhar os deveres dos
humanos na preservação de condições de bem-estar e segurança que temos
razões para acreditar que são apreciadas pelos animais não-humanos -
uma forma deslocada, visto que direitos elementares como o de proprie­
dade ou o de liberdade de expressão não poderiam ser atribuídos sem
absurdo, alega, a não-humanos575 .
Como refutar este entendimento? De várias formas, começando até
pela constatação de que se tem subestimado a capacidad� de reciprocar,
que é mais do que evidente em animais de companhia, até com assunção

573 Cfr. Hohfeld, Wesley Newcomb, Fundamental Legal Conceptions as Applied in


Judicial Reasoning, and Other Legal Essays, New Haven, Yale University Press, 1923, 33,
36-38, 71-72; Wellman, Carl, Real Rights, Oxford, Oxford University Press, 1995, 8, 80-
82, 105-136, I 60ss.; eiusdem, The Proliferation of Rights. Moral Progress or Empty Rhe­
toric?, Boulder Col., Westview Press, 1999.
574 Por exemplo, Frans De Waal tem reunido provas da capacidade de transmissão
cultural entre primatas não-humanos, sustentando que o alegado «carácter único» da cul­
tura humana deve ser posto em cheque e revisto - cfr. De Waal, Frans, The Ape and the
Sushi Master.Cultural Reflections by a Primatologist, New York, Basic Books, 2001, 28.
5 75 Cfr. Machan, Tibor R., "Do Animais Have Rights?", Public Affairs Quarterly, 5
(1991), 163-173.
A Hora dos Direitos dos Animais 1 95

de comportamentos de uma constância e de uma fortaleza que nem sem­


pre a frivolidade e a acrasia humanas permitem alcançar - pelo que, ao
menos nesse âmbito, não seria impossível conceber-se um elo emocional
no qual se transcendesse a contraposição de mundos e surgisse uma sim­
biose que propiciasse ao próprio homem um rumo de edificação moral57 6.
Mais decisiva é a constatação de que, mesmo no seio da espécie
humana e até dentro do pressuposto rígido da relação entre iguais, há
muito foi já estabelecido que pode haver deveres sem direitos correspon­
dentes, não podendo ser de excluir a existência de deveres para connosco
próprios - embora a concepção seja problemática -, tal como pode
haver direitos sem deveres correspondentes, sendo por isso que da exis­
tência de deveres para com os animais e da dicotomia hohfeldiana nada se
pode retirar de conclusivo577 .
A concepção hohfeldiana, sugestiva na sua formulação dicotómica,
no entanto subentende a existência de um permanente potencial de conflito
de interesses para que a super-estrutura dos direitos faça inteiro sentido. E
no entanto, o «adquirido civilizacional» dos direitos pode fazer todo o sen­
tido fora de qualquer contexto de confrontação ou de dialéctica de interes­
ses: por exemplo, o direito de livre expressão é antes de mais um poten­
cial de desenvolvimento das capacidades de expressão de conteúdos de
pensamento, e a sua consagração justifica-se como sinalização social inde­
pendentemente de qualquer confrontação efectiva que possa ocorrer por
força do seu exercício.
A noção de «dever geral de respeito», a que tentaríamos recorrer para
salvar a dicotomia hohfeldiana, pode revelar-se, num tal exemplo, singular­
mente desprovida de conteúdo. A tensão de interesses que aquela dicotomia
subentende reporta-se antes, e sobretudo, ao remédio jurídico da litigiosi­
dade, que pressupõe a existência substantiva de direitos, e não é ele mesmo
constitutivo desses direitos - devendo reconhecer-se que os direitos não
emergem como soluções ad hoc no seio das sçluções litigiosas5 7 B - . E por
isso se tem observado tanto que a concepção- "líohfeldiana enferma de

576 Cfr. Webb, S .H., On God and Dogs. . ., cit., passim.


5 77 Cfr. Hart, H .L.A., "Are There Any Natural Rights?", in Waldron, Jeremy (org.),
Theories of Rights, Oxford, Oxford University Press, 1 984, 80-82; Wellman, Carl, A
Theory of Rights. Persons under Laws, lnstitutions and Morais, Totowa NJ, Rowman &
Allanheld, 1 985, 22; White, Alan R ., Rights, Oxford, Clarendon, 1 984, 62-64 .
57 8 Ao menos desde os tempos remotos em que a actio precedia a sedimentação do ius.
196 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

escassez, como que enferma de superabundância de elementos para a defi­


nição do conceito de direito579.
No plano politico-constitucional, a fundamentação contratualista
adita novos argumentos contra o reconhecimento de direitos aos animais,
mormente aquele que faz o «contrato social» vincular exclusivamente
aqueles que possam ser participantes racionais numa «posição original» a
partir da qual, numa base de reciprocidade e imparcialidade, seja possível
subordinar-se a coexistência a critérios materiais de justiça.
Contra este argumento, lembremos uma vez mais a multiplicidade de
situações de dependência e os «casos humanos marginais» (a cuja consi­
deração regressamos agora), nos quais a reciprocidade não tem qualquer
hipótese de operar; e sublinhemos também que é manifesta a convencio­
nalidade de uma construção contratualista que faz tábua-rasa do peso da
tradição civilizacional no confinamento das hipóteses de reciprocidade
mesmo entre seres humanos que seriam capazes dela, mas que não são
ouvidos nem achados na conformação concreta das instituições em que
nascem já enquadrados. Consideramos, a propósito, que um dos motores
do romantismo foi precisamente o intuito de devolver à noção de natureza
humana a vontade luciferina de marginalidade, de rejeição das convenções
legitimadoras que, presumindo consensos, se revelavam perpetuadoras de
conformismos tradicionalistas, salientando o romantismo uma criatividade
idiossincrática que, especialmente plasmada na realização artística, não
está menos disponível para nos auxiliar na edificação não-pactuada de
uma existência individual.
Argumentemos ainda que é legítimo perguntar se não será uma outra
realidade «fundacional» que suscita a nossa adesão à construção contra­
tualista, um pré-entendimento do que seja a justiça, uma vontade comu­
nitária de inclusão e de partilha, sem a qual a teoria contratualista se con­
finaria a uma mera consagração do fait accompli, a uma explicação
da necessidade da sociedade, da moral e do direito que cada momento
histórico consagraria. Ora, se nem todos os «contratos constitucionais»
são legítimos e se a sua legitimidade deve ser aferida por valores previa­
mente partilhados acerca do que seja uma coexistência justa, a proemi­
nência de tais valores autoriza-nos a concluir que nada impede em prin-

579 Cfr. Singer, Joseph William, "The Legal Rights Debate in Analytical Jurispru­
dence from Bentham to Hohfeld", Wisconsin Law Review (1982), 975ss..
A Hora dos Direitos dos Animais 197

cípio que configuremos um contrato original no qual alguns animais não


são excluídos580.
Bem pelo contrário, nem sequer estaríamos desacompanhados se,
invertendo a tendência dominante do contratualismo, procurássemos reti­
rar desse «cânone» argumentos favoráveis ao reconhecimento de direitos
aos animais, sustentando por exemplo que essa seria a única base sólida de
uma verdadeira juridicidade, dado o facto de efectivamente existirem,
implícitos no jogo social e no nosso modo de relacionamento com os ani­
mais, embriões de um verdadeiro pacto social de coexistência com os não­
humanos5 B I . Antes de prosseguirmos, deixemos claro que não é unanimi­
dade o que se regista no campo contratualista, no qual cabem aqueles que,
mais «canonicamente», multiplicam os argumentos contra o conceito de
direitos dos animais, como o faz Peter Carruthers58 2 , aqueles que, a partir
de premissas pragmatistas-wittgensteinianas, defendem o bem-estar ani­
mal contra aquilo que eles consideram serem os excessos da «libertação
animal», o que pode ser ilustrado pelo exemplo de Michael Leahy 58 3, mas
também aqueles que, como Raymond Frey, defendem a inclusão dos ani­
mais numa comunidade ética com os homens e apenas objectam à insis­
tência na paridade de estatutos ou na indiscriminação de interesses58 4.
Temos assim que o contratualismo assenta numa confusão entre
direitos primários e direitos morais, e, ao tentar ilegitimamente ligar os
direitos individuais à capacidade consciente e plena de reciprocação, faz
tábua-rasa do ponto óbvio de que os direitos «intrínsecos» não são menos
convencionais do que quaisquer outros, exprimindo basicamente o valor
aparente de uma entidade viva585 . Insistamos, por isso, acompanhando
agora Onora O'Neill, que o facto de todo o raciocínio ético ser inevita-

5 80 Cfr. Pluhar, E.B., Beyond Prejudice ..., cit., 235; Racheis, James, "Do Animais
Have a Right to Liberty?", in Regan, T. & P. Singer (orgs.), Animal Rights and Human
Obligations, cit., 221-222; Rodd, Rosemary, BiologJ1 Et!Jiçs, and Animais, Oxford, Cla­
rendon, 1990, 241-250.
5 8 1 Cfr. Rowlands, Mark, Animal Rights: A Philosophical Defence, Basingstoke,
Macmillan, 2000, passim.
5 82 Carruthers, P., The Animais /ssue ..., cit., passim.
5 8 3 Leahy, M.P.T., Against Liberation ..., cit., passim.
5 84 Frey, Raymend G., Interests and Rights: The Case Against Animais, Oxford, Cla­
rendon, 1980.
5 8 5 Cfr. Povilitis, Anthony J., "On Assigning Rights to Animais and Nature", Envi­
ronmental Ethics, 2 (1980), 67-71.
198 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

velmente antropocêntrico, na medida em que é gerado por seres humanos


e toma os agentes morais por seus destinatários, não impõe que o conteúdo
dessa ética seja «especista», no sentido de dar preferência à própria espé­
cie desses agentes morais (como se se tratasse de uma forma de autismo
que nada reconhece para lá dos horizontes internos da sua congruência),
sobretudo se a ética for baseada no conceito de «dever» S86 .
Como já dissemos, o contratualismo é também tributário, neste tema
dos direitos dos animais, de várias correntes de pensamento, todas elas
aproximadamente convergentes no antropocentrismo - porque o contra­
tualismo não dispensa em princípio a exaltação da «superioridade» que vê
demonstrada na habilidade de manipulação de símbolos, de adopção de
procedimentos e de sujeição a instituições de que convencionalmente as
sociedades humanas fazem depender a tutela permanente e sancionável de
interesses - · uma convencionalidade que, por definição, tende a excluir
todos aqueles humanos e não-humanos que não são dotados da capacidade
de destreza simbólica dentro da rigidez de ditames procedimentais e insti­
tucionais, ditames cuja teleologia e «semântica» estão inteiramente depen­
dentes de uma determinada convencionalidade axiológica, e que empres­
tam aos contratos todo o seu vasto alcance cultural e simbólico.
O domínio dos pressupostos do contratualismo, alcançável apenas
com a plenitude das aptidões racionais, toma-se assim uma meta valora­
tiva em si mesma, um galardão do processo ascensional que, emulado da
própria ascensão simbolizada na «Escala do Ser», culminaria na autono­
mia moral e jurídica como marca suprema de uma humanidade descar­
nada - e toma-se por isso, analiticamente, tautologicamente, demonstra­
ção de uma «superioridade» da espécie. Lancemos mão, uma vez mais, das
palavras de Immanuel Kant, tão cruciais na «canonização» do paradigma
e neste ponto tão reveladoras: "À finalidade da humanidade está assim
ligada na nossa própria pessoa a vontade da razão, por consequência o
dever de nos tornarmos dignos da humanidade através da cultura em
geral, de adquirir ou desenvolver a faculdade adequada à realização de
todo o tipo de fins possíveis, na medida em que ela possa encontrar-se no
próprio homem, ou seja um dever de cultivar as disposições primitivas da
nossa natureza, aquilo através de que essencialmente o animal ascende
até ao homem: sendo por isso um dever em si mesmo"587 .

586 Cfr. O 'Neill, O., "Environmental Values . . . ", cit., 127-142.


58 7 "Mit dem Zwecke der Menschheit in unserer eigenen Person ist also auch der
A Hora dos Direitos dos Animais 199

Parecia assim resolvida em favor do antropocentrismo a tensão com


a teriofilia que procurava determinar se a bondade era um dado natural que
só a nossa artificialidade convencional e a nossa deliberação consciente
conseguiriam depravar - argumento que vai evoluindo desde Charron,
emDe la Sagesse ( 1 60 1 ), até Jean-Jacques Rousseau588 -, ou se ela era,
pelo contrário, a consumação de um processo de aculturação ascensional
que redimia o homem do «pecado original» da sua animalidade. De certo
modo, o triunfo do contratualismo foi também propiciado, desde cedo,
pela revelação da ambiguidade subjacente às invocações da «natureza»,
que num dos seus sentidos poderiam ser interpretadas como apelos à reso­
lução violenta dos problemas sociais, como rejeições de todo o adquirido
da cultura e da moralidade, de toda a convenção social de auto-domínio
dos impulsos incompatíveis com a coexistência - apresentando-se assim
o contratualismo como bastião de resistência contra a «lei da selva».
Além disso, não tardava já a fulcral cisão entre «ser» e «dever-ser» em
que David Hume insistiria, colocando-a como condição de existência de
uma moralidade livre, com as suas consequências anti-miméticas, tal como
não tardaria o renascimento iluminista de uma propensão anti-naturalista
expressa em proposições neo-estóicas, aliando-se neste ponto com o carte­
sianismo e com o mecanicismo que tanto tinham feito já para desacreditar
os raciocínios por analogia que tinham assegurado o prestígio da escolástica
e do aristotelismo, florescimentos afinal do programa baconiano que pres­
crevia o domínio sobre a natureza, e não a conformação a eia58 9 .

1 3 .b) Implicações rawlsianas


Eis, pois, a razão tradicional que explica a resistência contratualista à
consagração de direitos dos animais, muito eloquentemente consignada na

� - -:- ,,.
Vernunftwille, mithin die Pflicht verbunden, sich um die Menschheit durch Cultur übe-
rhaupt verdient zu machen, sich das Vermogen zu Ausführung allerlei moglichen Zwecke,
so fern dieses in dem Menschen selbst anzutreffen ist, zu verschaffen oder es zu fordern, d.
i. eine Pflicht zur Cultur der rohen Anlagen seiner Natur, als wodurch das Thier sich alle­
rerst zum Menschen erhebt: mithin Pflicht an sich selbst" - Kant, I., Die Metaphysik der
Sitten, Zweiter Theil. Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre, AK, V I, Berlin,
Georg Reimer, 1914, 392.
5 88 Cfr. Harrison, P., "The Virtues of Animais . .. ", cit., 472.
5 89 [bid., 477, 479-480.
200 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

posição de John Rawls, que em A Theory of Justice recusa a existência de


deveres estritos de justiça para com quem não tenha uma capacidade de
entendimento do que seja a justiça590. Não quer dizer que tal seja a última
palavra no assunto, no campo contratualista, havendo até quem sustente
que ao menos uma inclusão de facto na rawlsiana «posição original» evi­
taria tensões na legitimação de algumas instituições sociais e poderia con­
tribuir para tomá-las insuspeitas de «chauvinismo especista», dada a
necessidade de «descentramento» da bioética59 I; ou dada, mais especifi­
camente, a evidente manifestação de elementos de autonomia em muitos
desses não-humanos592.
Se procurarmos analisar as incidências pragmáticas das escolhas a
que procedem os participantes na «posição inicial» rawlsiana, pode enten­
der-se que do facto de os animais nela não participarem resulta não pode­
rem eles beneficiar do travão que às escolhas é posto pela regra da unani­
midade, não se lhes podendo aplicar necessariamente deveres de
reconhecimento e de compaixão - não estando garantido para eles, em
suma, o automatismo que assegura a justiça das decisões gerais e abstrac­
tas tomadas na posição inicial. Razão mais do que suficiente para, do
campo dos defensores dos direitos dos animais, se elevarem vozes a
denunciar a deficiência, neste aspecto particular, do contratualismo rawl­
siano, e a insistirem na necessidade da sua reformulação59 3.
Com efeito, a construção hipotética do «véu de ignorância» não
parece comportar a inclusão no universo das pessoas morais daqueles que
não participam da posição original - mas veja-se, no entanto, o entendi­
mento de autores como Donald VanDeVeer, que admitem essa possibili­
dade por analogia com os «casos humanos marginais», _ recusando-se a
admitir que seja justa uma sociedade assente num pacto que, alastrando do
universo das partes para abranger todos os seres humanos, contudo exclui

590 Cfr. Rawls, John, A Theory ofJustice, Cambridge Mass., Belknap Press, 1971, 512.
59 1 Cfr. Singer, Brent A., "An Extension of Rawls' Theory of Justice to Environ­
mental Ethics", Environmental Ethics, 10 (1988), 217-231; Clark, Stephen R. L., "Anthro­
pocentrism: Humanism", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal
Rights . . . , cit., 68-69.
592 Cfr. Elliot, Robert, "Rawlsian Justice and Nonhuman Animais", Journal of
Applied Philosophy, 1 (1984), 95-106; eiusdem, "Moral Autonomy, Self-Determination
and Animal Rights", Monist, 70 (1987), 83-97.
593 Cfr. Pritchard, Michael S. & Wade L. Robinson, "Justice and the Treatment of
Animais: A Critique of Rawls", Environmental Ethics, 3 (1981), 55-61.
A Hora dos Direitos dos Animais 201

animais sensíveis ou é indiferente às condições que provocam o sofri­


mento destes594 •
Mas, fazem notar alguns partidários da tese contratualista, a posição
de Donald VanDeVeer não seria, por sua vez, isenta de dificuldades, já que
a extensão da posição original a mais seres desprovidos de razão do que os
incapazes humanos agravaria em extremo a selecção dos bens primários
através do pacto social (insistem: o que significará a liberdade de expres­
são, ou o direito de propriedade, para um chimpanzé?). O contrato «explo­
diria» em prerrogativas crescentemente desligadas de interesses relevantes
ou de poderes efectivos, aditando-se a deveres puramente contratuais
outros deveres de natureza muito distinta, deveres de compaixão, por
exemplo, deveres desligados da ponderação de interesses no quadro con­
tratual original, provocando-se assim uma cisão entre facetas que não cus­
tará a reconhecer que são incindíveis no todo que constitui a personalidade
moral - esse todo que se presume conseguir revelar preferências através
de opções contratuais «constituintes» 595.
Mas será verdadeiramente essa capacidade de «sentido de justiça»
um requisito da personalidade moral, como postula o contratualismo rawl­
siano? E se for, o que dizer das observações da etologia e da sociobiologia
que têm evidenciado copiosamente as capacidades que diversos animais
têm de proceder a intercâmbios mútuos e cooperativos com vantagem
social - por exemplo, o estabelecimento de relações hierárquicas para a
partilha de comida dentro de uma alcateia, a qual com extrema eficiência,
recorrendo a um ritual rígido, a uma «etiqueta», propicia alimento a todos
os lobos sem necessidade de recurso a manifestações de força - ?596 Não
são elas manifestações inarticuladas de um «sentido de justiça» que bene­
ficia o maior número, maximizando a gratificação individual e o ganho
colectivo com um mínimo de custo e de sofrimento?
E o que dizer da «escala dos bens primários»? Se, como sustenta
Rawls, é racional não subordinar as liberdades individuais a vantagens
socio-económicas, então porque não se há-de integrar nessas liberdades a
de usufruir de um mundo ecologicamente equilibrado, abarcando nele a

594 Cfr. VanDeVeer, Donald, "Of Beasts, Persons, and the Original Position", Mind,
62 (1979), 368-377; Gimeno, Paul, "L'Animal, l'Environnement et la Justice selon Rawls",
Critique, 58 1 (1995), 734-751.
595 Cfr. Pritchard, M. & W. Robinson, "Justice and the Treatment.. . ", cit., 55-6 1.
59 6 Cfr. Elliot, R., "Rawlsian Justice...", cit., 95-106.
202 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

coexistência com o bem-estar animal, tanto para as gerações presentes


como para as futuras (visto que o «véu de ignorância» faz perder à defini­
ção de justiça uma referência generacional) - em termos mais absolutos
e menos expostos ao jogo socio-económico do que o tradicional meca­
nismo da internalização das externalidades negativas, em termos mais ade­
quados à compatibilização de bens primários entre todos os seres vivos
dotados de sensibilidade -?597
Já o argumento da falta de reciprocidade é mais difícil de rebater: é
que pode admitir-se a máxima amplitude na permuta de benefícios e pre­
juízos entre humanos (pressupondo-se que a liberdade entre agentes
morais lhes permitirá qualquer escolha ou ponderação que eles estejam
dispostos a aceitar), mas o mesmo não é manifestamente possível quanto
ao sacrifício de interesses vitais de não-humanos a interesses frívolos ou
periféricos dos humanos - pois aí, a maior parte das vezes, são os inte­
resses humanos que prevalecem efectivamente, seja porque os não-huma­
nos não podem reciprocar (ou são colocados em situação de não poderem
reciprocar) com benefícios que, satisfazendo a frivolidade humana, dis­
pensassem o sacrifício dos interesses vitais dos não-humanos, seja ainda
porque os agentes humanos podem razoavelmente contar com a impuni­
dade completa da consumação em actos desse desequilíbrio entre os inte­
resses em presença, porque aos não-humanos falta (natural ou artificial­
mente) a capacidade para retaliarem sobre interesses vitais dos
humanos598 .
Que a questão é muito mais complexa quando se admite um nivela­
mento de interesses, prova-o o seguinte exemplo: pode querer poupar-se a
vida de animais que seriam sacrificados no d�senvolvimento de um cos­
mético; mas se esse cosmético é desenvolvido apesar disso - sem testes
laboratoriais com cobaias - , e se por exemplo se prova que existe o risco
de ele ser carcinogénico, e apesar disso há consumidores dispostos a acei­
tar o risco, pode perguntar-se se a ponderação de direitos não passa a refe­
rir-se ao confronto de interesses vitais, e não já ao confronto de um inte­
resse vital com um interesse frívolo. Ou de novo o exemplo viário: a falta
de construção de estradas por respeito a interesses vitais de espécies amea-

597 Tal a proposta de: Singer, B.A., "An Extension of Rawls' Theory ... ", cit., 217-231.
59 8 Muitos opositores da prática da caça «desportiva» admitiriam que a sua repug­
nância pela prática se reduziria, e que a prática, não deixando de ser frívola, passaria a ser
mais leal, se as vítimas dispusessem de armas iguais às do caçador ...
A Hora dos Direitos dos Animais 203

çadas pode converter-se numa armadilha contra os interesses vitais daque­


les que ficam privados do uso dessas estradas e se defrontam com o uso de
uma rede viária mais obsoleta e congestionada599. Parece, nesses casos­
limite de colisão entre interesses comensuráveis, que um «especismo
moderado», eventualmente de matriz contratualista, é uma solução inesca­
pável - mas perturbadora mesmo assim.
Talvez fosse concebível a possibilidade de transcendência do puro
antropocentrismo a partir de uma «ética do discurso» que levasse em conta
o gradualismo da condição comunicativa entre humanos e não-humanos, e
assim desmentisse o carácter único, irredutível e dominante da «condição
moral» dos humanos600. Todavia, não é de considerar-se a «ética do dis­
curso» como fundamento viável da abordagem zoófila e ambientalista,
visto que aparentemente nada se ganha em relação à reflexão moral mono­
lógica num contexto em que não há comunidade articulada de expressão
de interesses, e em que mesmo os interesses conscientes (se os há) não
conduzem a uma identidade socio-cultural - salvo a hipótese de espúrias
atribuições antropomórficas _ 60 1 .
Não menos espúria, chocante até, será, da perspectiva contratualista
do direito, o decalque da «libertação animal» sobre movimentos de eman­
cipação assinalados ao longo do progresso da história humana, porque
aquilo de que aí se tratou foi de promover a integração plena no jogo da
intersubjectividade a seres aos quais se reconhecia naturalisticamente as
aptidões para essa integração. Chocante pela «despromoção» que, para o
antropocentrismo, será a equiparação da condição humana com a condição
animal; espúria porque, na ausência de aptidões para uma reciprocidade
útil e relevante, o reconhecimento de direitos será quando muito, dessa
perspectiva contratualista, um gesto caritativo similar àquele que estende
o «manto protector» do direito a casos humanos marginais - enredando­
se aqui o contratualismo numa perigosa desconsideração desses «casos
marginais» quando sugere que os frutos de um gesto de comiseração não

599 Cfr. Coursey, Don L. , "The Revealed Demand for a Public Good: Evidence from
Endangered and Threatened Species", New York University Environmental Law Journal, 6
(1998), 4 11ss.; Frank, J., "A Constrained-Utility . . . ", cit., 49-62.
600 Cfr. Skirbekk, Gunnar, "Discourse-Ethical Gradualism: Beyond Anthropocen­

trism and Biocentrism?", in Brinkmann, K. (org.), Ethics..., cit., I, 95- 106.


60 1 Cfr. Krebs, Angelika, "Discourse Ethics and Nature", Environmental Values, 6
( 1997), 269-280.
204 A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma

podem const1tmr verdadeiros direitos, por ficarem contingentemente


dependentes de uma conduta de respeito que não pode ser efectivamente
reclamada pelos presumidos beneficiários: o que novamente revela o
quanto exíguo seria o universo moral contratualista, que em rigor deveria
ser restrito a adultos independentes, perfeitamente racionais e autónomos,
pequenos «demiurgos» dos seus próprios universos existenciais.
Censurar-me-ão alguns por, mesmo assim, ter feito concessões dema­
siadas ao contratualismo, ou por ter perdido demasiado tempo com ele.
Não creio: apenas pretendi incutir a convicção de que, a partir do interior
da sua lógica própria, dado o seu estatuto paradigmático na nossa cultura
ética e jurídica, o contratualismo só pode ser refutado pragmaticamente,
atendendo, não à solidez da sua congruência interna, mas aos seus resulta­
dos práticos - resultados que são, muito singelamente, os do especismo,
os da perpetuação da indiferença e da sobranceria do antropocentrismo
perante o sofrimento animal, os da desconsideração dos próprios «casos
humanos marginais» (e são por isso, neste último caso, resultados revela­
dores do facto de o contratualismo assentar numa visão truncada da natu­
reza humana). Dissemo-lo logo no início deste livro: é possível que a argu­
mentação deva aqui interromper-se, porque os termos em que ela se funda
num paradigma e em tomo dele gravita são porventura ilegítimos, e não é
à força de um puro choque de argumentos que se transitará de um para­
digma para outro.
14. A Resistência Económica

"a man who has never been engaged in trade himself may undoub­
tedly write well upon trade, and there in nothing which requires
more to be illustrated by philosophy than trade does" - Samuel
Johnson (sobre Adam Smith)602 .

Um dos pontos mais fracos da legislação que hoje atende já, de forma
extensa, aos interesses dos animais no seu bem-estar reside nas concessões
que as normas jurídicas têm feito - e não deixarão de fazer tão cedo - a
formas de exploração animal que, não obstante acarretarem frequente­
mente situações de sofrimento generalizado nas suas vítimas, são cruciais
para a manutenção de um nível económico de bem-estar humano que asso­
ciamos ao progresso civilizacional; formas de exploração que parecem
assim justificadas - ainda que pela problemática via do utilitarismo hedó­
nico, o «Calcanhar de Aquiles» da análise económica - pelos interesses
da alimentação e da saúde humanas, colocando os animais ao serviço da
indústria pecuária ou da investigação científica (involuntariamente, é
certo).
Resistem assim muitos à consagração de direitos dos animais, sus­
tentando que não deve interferir-se na sua exploração económica, de que
depende tão extensamente a prosperidade dos humanos e até a possibili­
dade de progressiva minimização da fome · e dé erradicação de algumas
doenças. O argumento parece razoável, respeitável mesmo, até ao
momento em que lhe descobrirmos o pressuposto «especista», porque o
mesmíssimo argumento da conveniência da exploração ter-nos-ia trazido

602 Boswell, James, Life of Johnson, Oxford, Oxford University Press, 1987, 682-
683 (entrada de 16 de Março de 1776).
206 A Resistência Económica

até hoje numa total complacência com todo o tipo de práticas e usos ape­
nas pelo facto de existirem, ou de consistirem numa tradição, e trazerem
proveito a alguém, ou a uma maioria, ou a todos, coisa que não aceitamos,
e nunca deveríamos ter aceitado, entre humanos - razão pela qual se uni­
versalizou o combate à prática imemorial do esclavagismo, aliás tão van­
tajosa para alguns, ou para muitos, ou para todos os não-escravos603 •
Além disso, o facto de naturalisticamente alguém estar nµma posição
de vantagem não coloca o Direito do seu lado, nem lhe confere uma legi­
timação moral, pois senão reger-nos-íamos pela «lei da selva», seríamos
conformistas e deterministas, fatalistas - enquanto que, muito pelo con­
trário, o Direito deve empenhar-se no nosso esforço civilizacional de acul­
turação, reprimindo práticas que, por mais instintivas ou arreigadas que
sejam, violam interesses alheios ou ferem a consciência social.
Antecipemos, neste ponto, a resposta àqueles que, na insistência
teriofílica num «contínuo evolucionista» com repercussões anti-especis­
tas, vêem vedada a demarcação entre natureza e moral que nos permite
emitir juízos valorativos apesar dos factos ou contra eles: o facto de haver
parasitismo ou predação natural não dá aos seres morais o direito de livre­
mente se tornarem parasitas ou predadores, nem tolhe a capacidade de se
censurar a inflicção de sofrimento que resulte de quaisquer formas de
parasitismo ou de predação, por mais naturais que essas formas sejam.
Pela mesma razão, o facto de haver relações de domínio absoluto e de
irrestrita opressão e violência entre indivíduos e espécies não-humanas
nada autoriza aos seres humanos - não deve pacificar-lhes a consciência
quanto ao sofrimento que infligem, mesmo na mais proveitosa, útil ou pro­
missora das suas actividades económicas ou científicas.
Mas porque haveríamos nós de presumir que a análise económica é
invariavelmente cúmplice da exploração violenta dos não-humanos? Por­
que não haveríamos nós de reconhecer que essa mesma análise econó­
mica, não estando necessariamente conotada com um qualquer sistema de
valores em especial, pode ser posta ao serviço da teriofilia, como o foi já
ao serviço da causa ambientalista?604

603 Cfr. Spiegel, Marjorie, The Dreaded Comparison: Human and Animal Slavery,
NY, Mirror Books, 1996 ( 1 1988).
604 Cfr. Brent, Robert J ., Applied Cost-Benefit Analysis, Cheltenham, Edward Elgar,
1997 ; Fisher, Anthony C., Environmental and Resource Economics. Selected Essays of
Anthony C. Fisher, Aldershot, Edward Elgar, 1995 ; Folmer, Henk, H . Landis Gabei & Hans
A Hora dos Direitos dos Animais 207

Basta talvez reconhecermos que muita da invisibilidade dos interes­


ses dos animais pode ser fruto da sua insusceptibilidade de tradução
directa em valores económicos, a dificuldade da sua transposição para
aquela fácil quantificação e contabilização de interesses que é pressuposta
nas trocas de mercado, no intercâmbio de direitos e na permuta de utilida­
des através dos quais a sociedade vai afectando e reafectando os seus
recursos e satisfazendo as suas necessidades. A falta de uma «voz» exclui
os não-humanos de uma participação naquelas, mas isso pode constituir
mais uma razão para que se deva reconhecer a necessidade ou a justiça de
representação dos interesses animais por uma «voz» humana - mormente
se se admitir que nem todos os participantes na actividade económica
estão atordoados pela eficiência do seu mecanismo optimizador e são
capazes de perceber, para lá dos horizontes da gratificação imediata dos
seus ganhos de bem-estar material, valores cuja consagração não deve
estar dependente da «voz» que eles tenham, por algum acaso, já alcançado
dentro do jogo convencional do «mercado». Por isso não chocará que o
mesmo tipo de raciocínio que nos faz reclamar justiça redistributiva e a
reinserção no mercado daqueles que, caindo na pobreza, se tenham visto
excluídos e desprovidos de «voz» no mercado605 possa ser utilizado para
conferir a visibilidade requerida - a quantificação contabilizável - pela
mecânica das trocas a interesses animais e ambientais, por exemplo recor­
rendo aos já referidos «preços hedónicos», à «avaliação contingente» e à
amplitude máxima que é hoje reconhecida à «análise custo-benefício» 606.
Dando assim a adequada medida da grande amplitude dos interesses
envolvidos, a análise económica abriria, seja uma perspectiva racional

Opschoor (orgs.), Principies of Environmental and Resource Economics. A Guide for Stu­
dents and Decision-Makers, Cheltenham, Edward Elgar, 1 995 ; Hartwick, John M . &
Nancy D. Olewiler, The Economics of Natural Resource Use, New York, Harper & Row,
1 986; Hodge, Ian, Environmental Economics. Individual Incentives and Public Choices,
New York, St. Martin's Press, 1 995; Tietenberg, J'om, Environmental and Natural
Resource Economics, New York, HarperCollins, 3 1 992; TÚ�er, R. Kerry, David Pearce &
Ian Bateman, Environmental Economics. An Elementary Introduction, Baltimore, Johns
Hopkins University Press, 1 993.
605 No frio eufemismo de Adam Smith, aquela «procura real» que se viu privada de
meios de conversão em «procura efectiva» ...
606 Cfr. Adams, John, "The Emperor 's Old Clothes: The Curious Comeback of Cost­
Benefit Analysis", Environmental Values, 2 ( 1 993), 247-260; Brouwer, Roy, Neil Powe, R.
Kerry Turner, Ian J. Bateman & Ian H. Langford, "Public Attitudes to Contingent Valua­
tion and Public Consultation", Environmental Values, 8 ( 1 999), 325-347 .
208 A Resistência Económica

para a sua compatibilização optimizadora, seja até o caminho para o aban­


dono da fácil «coisificação» dos animais e da perspectiva da apropriação
- para o abandono de tendências de extrapolação ilegítima a partir da
«mudez económica» dos interesses dos animais, que, mais do que tende­
rem a absolutizar os poderes de disposição do «detentor» dos animais e a
furtá-lo de uma vigilância social, trazem com elas a absurda e perigosa
presunção de que o interesse económico do «proprietário» está necessa­
riamente alinhado com o bem-estar do animal .
Na realidade, a expansão social da consciência teriofílica terá como
consequência directa o agravamento, em extensão e profundidade, daquilo
que pode considerar-se ser a extemalização negativa associada à violência
e à crueldade para com os animais: a «disposição de aceitar» o sacrifício
dos interesses dos animais, ou a «disposição de aceitar» uma compensação
social que «intemalize» no perpetrador essa extemalidade negativa, rea­
proximando o bem-estar social de um «óptimo paretiano», poderão subir
drasticamente, justificando a aplicação de sanções crescentemente mais
pesadas, mais dissuasoras, aumentando afinal a eficiência económica da
prevenção geral . Inversamente, o efeito negativo sobre o bem-estar social
da crueldade para com os animais pode fazer crescer, com não menos
amplitude, uma altruísta (ou hetero-específica) «disposição de pagar» pela
protecção dos animais; caso em que a existência de elevados «custos de
transacção», mormente na coordenação dos interesses difusos que se con­
gregam naquela «disposição de pagar», pode tomar evidente, em puros ter­
mos económicos, que a solução mais eficiente é a da consagração de direi­
tos dos animais, titulando neles o ponto de referência do óptimo de
bem-estar social, poupando-os às transacções custosas que seriam necessá­
rias para remediar uma defeituosa atribuição inicial de direitos, conferindo­
lhes uma eficácia que advém da protecção coactiva do Estado - numa rec­
tificação da ineficiência causada por uma tal «falha de mercado» 607 .
Poderia ser assim que se verificasse, por uma atribuição de direitos
que compensasse a assimetria inicial de custos de transacção na prossecu­
ção de interesses conflituantes, o princípio económico de que, entre maxi­
mizadores de ganhos, as trocas voluntárias farão os bens «gravitarem»
para os seus usos socialmente mais benéficos - um corolário do «Teo­
rema de Coase», que sustenta que, na ausência de «custos de transacção»,

607 Sobre os conceitos e terminologia da «análise de bem-estar» , cfr . Araújo, Fer­


nando, Introdução à Economia, Coimbra, Almedina, 2002, 235ss . .
A Hora dos Direitos dos Animais 209

essa mesma «gravitação» sucederia independentemente da distribuição


inicial de direitos - . Em todo o caso, note-se, mesmo a «indiferença axio­
lógica» desta forma de reafectação eficiente de recursos não permitiria que
se considerasse admissível a escravatura como ponto inicial de distribui­
ção de direitos60 8, já que, embora fosse admissível que os incentivos do
trabalho livre levassem muitos escravos a comprarem a sua liberdade,
puros juízos de eficiência comparativa, ou de maximização utilitária,
poderiam levar ao resultado inaceitável da perpetuação da escravatura609
- um resultado que aconselha prudência na transposição analógica do
argumento para os domínios dos direitos dos animais .
Numa outra vertente, a análise económica denuncia os efeitos desas­
trosos que podem advir de uma deficiente definição dos direitos de apro­
priação que conduza à sobre-exploração dos recursos comuns, a «tragédia
dos baldios» 6 1 0/6 1 1 - denúncia que pode também servir de segunda linha
de salvaguarda contra a destruição maciça de recursos animais, visto que
a multiplicação e especificação de direitos, apesar de efeitos negativos
como o da «saturação jurídica» (os «anti-commons» 6 1 2) ou da «coisifica­
ção» dos animais, permitiria mais facilmente a generalização de transac­
ções num «mercado de direitos» no qual os custos e benefícios associados
ao sacrifício de interesses seriam explicitados e contabilizados, e final­
mente equilibrados até um ponto óptimo, como por exemplo sucede com
o recurso a «quotas negociáveis» no acesso a recursos comuns .
É verdade que isso está já assegurado até certo ponto por meio da
definição de valores de mercado para muitos animais, ou mais precisa­
mente para aqueles que estão sujeitos a exploração económica - mas tal

608 Dworkin, Ronald M., "Is Wealth a Value?", Journal of Legal Studies, 9 (1980),
191ss.; Kronman, Anthony T., "Wealth Maximization as a Normative Principie", Journal
of Legal Studies, 9 (1980), 227ss ..
609 Posner, Richard A., "The Ethical and Political Basis of the Efficiency Norm in
Common Law Adjudication", Hofstra Law Review, 8 (1980), 501-502.
6 10 Cfr. Hardin, Garrett, "The Tragedy of the Commons", Science , 162/3859 ( 1968),
1243-1248.
6 1 1 Desmentindo o fundamento da interpretação histórica de Garrett Hardin, cfr. Cox,
Susan Jane Buck, "No Tragedy of the Commons", Environmental Ethics, 7 (1985), 49-61.
6 1 2 Cfr. Buchanan, James M. & Yong J. Yoon, "Symmetric Tragedies: Commons and
Anticommons", Journal of Law & Economics, 43 (2000), 1-13; Heller, Michael A. &
Rebecca S. Eisenberg, "Can Patents Deter Innovation? The Anti-commons in Biomedical
Research", Science , 280 ( 1998), 698-701.
210 A Resistência Económica

não significa que a apropriação seja uma solução universalmente desejá­


vel ou até aconselhável, se não perdermos de vista a já referida, e insus­
tentável, presunção de que o interesse económico do «proprietário» é a
melhor salvaguarda do bem-estar do animal. Mas não restam dúvidas de
que os mecanismos da apropriação, da titularização quantificada, da cria­
ção de um «mercado de direitos», podem ajudar a proteger os interesses de
alguns não-humanos, especificamente daqueles animais de companhia
que, sem valor de mercado e sem aparente «utilidade produtiva», estão
mais expostos ao abandono e se afiguram, à ordem jurídica, insusceptíveis
de lesão ressarcível nos termos habituais dos danos patrimoniais6 1 3 .
Mas que a apropriação, se é capaz de assegurar a existência de um
interesse económico na preservação e sustentação de algumas espécies
animais, não é capaz de prevenir minimamente a maior lesão que é a do
interesse vital no não-sofrimento, prova-o o facto de a inflicção de sofri­
mento ser mais insidiosa - mais generalizada e mais arreigada no pro­
cesso de desenvolvimento económico e civilizacional, e por isso menos
isolável e susceptível de tratamento separado do que as mais visíveis e iso­
láveis práticas venatórias6 I4, circenses e outras - na indústria alimentar e
na experimentação animal, áreas nas quais não existem deficiências de
apropriação6 I5; isto para não falarmos já, em termos de «escolha pública»,
na possibilidade de «captura», pela indústria alimentar e pela comunidade
científica, dos legisladores, dos governantes ou dos reguladores a quem
seja cometida a tarefa de zelarem pela salvaguarda dos interesses dos não­
humanos6 I 6.
Em suma, nenhuma mão invisível salva os animais através do mer­
cado, e por isso a condição animal é também um ,desafio aos fundamentos
da análise económica.

613 Cfr. Hannah, H.W., "Animais as Property . . . ", cit., 574.


614 Veja-se a denúncia da argumentação relativa à «necessidade» do tiro aos pombos
em Gouveia, J .B ., "A Prática de Tiro aos Pombos ...", cit., 256; mas veja-se, em contrapar­
tida, a decisão de que as provas de tiro aos pombos não são incompatíveis com a defesa do
património cultural, constitucionalmente tutelada, nem são abrangidas pela Lei n.º 92/95 ,
no Acórdão da Relação de Lisboa de 7/6/200 1 (R. 3499/0 1 - Col. Jur., 200 1 , 3, 1 1 1 ).
6 1 5 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., x, 21.
6 1 6 Como muitos alegam que terá acontecido com a aplicação do norte-americano
Animal Welfare Act de 1 970. Cfr. Kelch, T.G., "Toward a Non-Property Status ... ", cit.,
542-543.
15. Direito à Vida? - I - Os Argumentos
da «Não-Identidade» e da
«Omnipotência»

" Your children are not your children. / They are the sons and
daughters of Life 's longing for itself. / They come through you but
notfrom you, / And though they are with you, yet they belong not to
you. / ( . . .) / You are the bows from which your children as living
arrows are sent forth. / The archer sees the mark upon the path of
the infinite, and He bends you with His might that His arrows may
go swift and far." - Khalil Gibran6 1 7 .

Passemos agora a uma outra questão, não menos melindrosa do que


as anteriores, que é a do «direito à vida» dos não-humanos: o puro «direito
à vida», ou seja, um direito ao prolongamento da existência até aos seus
limites naturais, que é uma questão inteiramente demarcável da da «quali­
dade de vida» e da do sofrimento - e isto mesmo relativamente à espécie
humana, como se evidencia quando surgem na medicina (e na bioética)
problemas de eutanásia passiva, de tratamentos fúteis e de cuidados palia­
tivos, ou até, mais generalizada e subtilmente, problemas de prioridade no
acesso a cuidados médicos, de formação dfle «filas de espera» para trata-
- -' '
mentos vitais.
Sustentaremos que o «direito à vida» não existe, nem faria signifi­
cado, para muitos dos não-humanos aos quais inequivoca e imperiosa­
mente deve ser reconhecido um direito ao não-sofrimento - e até, numa
clara concessão ao especismo (o autor é fruto da sua época), que nenhum

6 1 7 Gibran, Khalil, "On Children", in The Prophet, New York, Knopf, 1923, IV.
2 12 Direito à Vida?

dos não-humanos tem um «direito à vida» se um tal direito colide, no


limite, com o direito à vida de seres humanos6 I 8 .

1 5 .a) Não fomos nós ·que os criámos?


Teremos que abordar o tema sob várias perspectivas, e c0meçaremos
por uma breve alusão à mais subtil de todas - que é a que nega um
«direito à existência» a todos os seres cuja vida se deve a uma deliberação
contingente de outrem (contingente no sentido de que essa deliberação
podia não ter surgido, e sem ela não se verificaria a existência daquele ser).
É um argumento que vemos frequentemente utilizado, seja pelos defenso­
res das touradas, seja pelos das experiências sem anestesia, ou com vivis­
secção, com cobaias, seja pelos defensores da caça: sem touradas os «tou­
ros de lide» nem sequer teriam sido gerados e criados, sem aquelas
experiências o mesmo se diria da maioria das cobaias, sem a «caça des­
portiva» não se preservariam ou multiplicariam, por falta de valor econó­
mico, espécies cinegéticas e respectivos habitats - chegando os defenso­
res deste último «desporto» a sustentar uma sua alegada índole
«pró-ambiental» 6 19, conferindo-lhe a nobreza de uma "maneira de se
encontrar com as forças elementares do mundo"620.

6 I 8 Como cruamente observa Clifton Perry, se não fosse a salvaguarda de um espe­


cismo de última instância poderíamos chegar a conclusões moralmente repugnantes. Por
exemplo, o argumento de Peter Singer contra a criação de animais para abate, que é o de
aumentarem o sofrimento quando há recursos alimentares desperdiçados, poderia condu­
zir-nos à solução de darmos prioridade ao consumo de cadáveres humanos, nos quais se
encontram proteínas animais já disponíveis. Cfr. Perry, Clifton, "We Are What We Eat",
Environmental Ethics, 3 ( 198 1), 341-350. Em abono da verdade, diga-se que o argumento
não atinge relevantemente a posição de Peter Singer, se levarmos em conta a sua profissão
de fé vegetariana (melhor, «vegan» ), que em parte assenta na convicção do desperdício que
há no consumo de carne: "São necessários cerca de onze quilogramas de proteínas em
ração para produzir meio quilograma da proteína que chega aos humanos. Recuperamos
menos de 5 por cento daquilo que investimos ( ...) meio quilo de carne exige cinquenta
vezes mais água do que a quantidade equivalente de trigo" - Singer, P., Libertação Ani­
mal, cit., 155, 157.
6 1 9 Cfr., por exemplo, Loftin, R.W., ''The Morality of Hunting", cit., 24 1-250.
620 Para usarmos a sugestiva expressão de Miguel Torga, Novos Contos da Monta­
nha, Coimbra, s.n., 15 199 1, 55.
A Hora dos Direitos dos Animais 2 13

É um argumento que se aproxima daquele que, para a espec1e


humana, foi formulado por Derek Parfit, e por ele caracterizado como o
problema da «não-identidade»: terá um ser humano direitos contra os seus
progenitores pelo facto da sua própria concepção, poderá ele (ou alguém
em sua representação) responsabilizá-los por uma «vida indevida»? Se tal
for entendido como possível - e tem-no sido já - não podem os proge­
nitores defender-se com a alegação de que a decisão «indevida» é de tal
modo constitutiva da identidade do queixoso que, se essa decisão não
tivesse tido lugar, o queixoso não existiria, pura e simplesmente?6211622
O argumento da «não-identidade» sugere a denegação selectiva do
«direito à vida» a algumas espécies não-humanas, em particular aos ani­
mais «criados para morrerem» - os animais «de criação», «de abate», «de
aviário» - , e mais apropriadamente ainda aos animais «geneticamente
desenhados» pelo engenho humano - híbridos, cruzamentos e apuramen­
tos de raças - , animais cuja identidade genética é efectivamente, toda ela,
o produto contingente de uma deliberação. O mesmo argumento, como
acabámos de ver, é ardilosamente arrastado para uma denegação do
«direito ao não-sofrimento» relativamente a animais «criados para sofrer»,
como alegadamente o seriam os «touros de lide», os «galos de combate»,
alguns recursos venatórios e algumas cobaias, convertendo-se numa espé­
cie de «argumento de omnipotência»: qualquer sorte que fosse reservada a

62 1 Ofereçamos um exemplo sugestivo: uma mulher é desaconselhada pelo seu


médico de engravidar durante um período de seis meses, dada a presença de uma qualquer
patologia transitória. Mesmo assim ela engravida, provocando lesões que determinarão no
seu filho uma vida com qualidade diminuída, uma vida de sofrimento e de dependência, de
tratamentos médicos constantes e dispendiosos . Poderá o filho reclamar dos seus progeni­
tores o ressarcimento dos danos patrimoniais e não-patrimoniais manifestamente emergen­
tes da decisão «indevida» de não adiar o momento da concepção? Mas - e aqui está o
ponto da «não-identidade» a perturbar a conclusão - não poderão os progenitores defen­
der-se alegando que, a ser adiada a decisão por seis meses, o ente gerado não seria aquele
que reclama, mas seria uma pessoa diferente, gerada por um' óvulo e por um espermato­
zóide diferentes, sujeita a condições diferentes de gestação? Não seria ele, em termos gené­
ticos e de vivências, quando muito o «irmão» daquela «não-identidade» que resultaria de
uma decisão «devida»? O leitor concordará que não há aqui uma resposta evidente.
622 Sobre o problema da «não-identidade», veja-se os difíceis, mas extremamente
férteis e subtis, capítulos 16 ("The Non-Identiry Problem"), 17 ("The Repugnant Conclu­
sion"), 18 ("The Absurd Conclusion") e Apêndice G ("Whether Causing Someone to Exist
can Benefit this Person") de Parfit, Derek, Reasons and Persons, Oxford, Clarendon, 1987,
351ss., 487ss. ( 1 1984). Cfr. ainda: Singer, P., Ética Prática, cit., 142- 145.
214 Direito à Vida ?

esses animais seria compensada com o facto da existência, que não ocor­
reria sem aquela sorte predestinada. A existência, mesmo que curta e arti­
ficialmente degradada a partir de um certo ponto, seria já por si mesma um
«bem em si mesmo», um bem incomensuravelmente superior à «não-exis­
tência», e por isso o beneficiário deveria entender-se à mercê da graciosa
complacência do seu «demiúrgico» benfeitor - legitimado este a retirar
aquilo que, desde o início, poderia ter decidido não outorgar. Reduzindo
«ad absurdum» o argumento, dir-se-ia que ele sugere que certos animais
devem pagar com a vida . . . o benefício da vida que lhe demos ! Ficando sem
se saber, depois desse «pagamento», em que é que consistiria verdadeira­
mente o benefício «líquido» daquela vida, o excedente de benefício em
relação ao custo...
Sublinhámos já que somente em relação a alguns animais é que pode­
ria conceber-se que o problema da «não-identidade» fragilizaria o respec­
tivo «direito à vida» - numa perversa consequência da simbiose que é a
domesticação, a qual, como anteriormente se viu, tem por efeito primor­
dial a geração de elos de fragilidade e de dependência perante o domínio
que os seres humanos exercem no meio ambiente e cultural no qual aque­
les animais são forçados a ingressar.

1 5 .b) A emancipação das criaturas


A transposição do «argumento da omnipotência» para o plano estri­
tamente humano esclarece a sua inconsistência: Poderíamos nós destruir
uma vida só porque ela foi gerada por meios artificiais de procriação, ou
até por clonagem? Seria lícita a criação de unia «raça de escravos», de
anencefálicos ou de anestesiados «repositórios de órgãos»? Uma vida
«artificialmente» engendrada, ou intencionalmente direccionada para uma
instrumentalização - a concepção de um irmão para se contornar o pro­
blema de rejeição num transplante de medula - fica «contaminada» por
esse intuito instrumentalizador? Fica à mercê dessa instrumentalização,
fica vinculada a submeter-se-lhe? É uma «vida de segunda», dispõe ela de
algo menos do que a potencialidade de realização contida numa existência
comum? Nem vale a pena responder623.

623Ou talvez possa responder-se de forma alegórica: poderei eu reclamar a exclusi­


vidade da «interpretação autêntica» deste livro, vedando interpretações divergentes da
A Hora dos Direitos dos Animais 215

O problema não é, neste ponto, perfeitamente transponível, por


directa analogia, da espécie humana para as demais, dado o especial
alcance que, para a normalidade da espécie humana, tem a representação
do que é a vida e do que significa a privação da vida em termos de frus­
tração de um plano de «futuridade biográfica». A transposição, por miti­
gada que seja, deve contudo ser tentada, porque a generalização da morte
infligida nos animais está, ·na maior parte dos casos, indissociavelmente
aliada à generalização do sofrimento - seja o sofrimento ínsito no acto
que provoca a morte, seja o prolongado sofrimento da existência que pre­
cede esse acto - , caso em que se impõe refutar tanto o argumento da
«não-identidade» (que subentende a legitimidade do arbítrio gerador de
decisões cruéis) como até o «argumento da substituição», um argumento
de utilitarismo hedónico que Peter Singer perfilha, e que subalterniza o
«direito à vida» sustentando que a procura de animais abatidos garantirá a
substituição de cada animal morto por uma nova vida, preservando assim,
ao menos no pressuposto da fungibilidade individual, o total da espécie e
o nível de «quantidade de vida» ou de «bem-estar agregado».
São argumentos que não conflituam com o «direito ao não-sofri­
mento» nem o diminuem, porque a ausência de representação de um «sen­
tido da vida», a fungibilidade individual dentro de uma espécie, até o pro­
veito humano retirado do abate de animais, mesmo que pacificamente os
quiséssemos admitir como elementos legitimadores da morte de alguns
seres não-humanos, não são comensuráveis com o sofrimento que preceda
essa morte624. Podendo mesmo sustentar-se que, em casos em que não haja
forma de infligir a morte sem sofrimento - sem sofrimento físico ou psí­
quico, como estamos dispostos a admitir quanto a espécies em que nor­
malmente é mais evidente a manifestação de sensibilidade e de inteligên­
cia - , haja um incondicionado «direito à vida» de não-humanos.
Entronca nestas considerações a perspectiva ambiental, porque o
«sofrimento» de que se trata não pode ser reduzido a um simples antropo­
morfismo - por mais que a sensibilidade fíurnána seja aqui decisiva para

minha, com o argumento de que foi esse o propósito que, como autor, me moveu a escre­
ver o livro, e que num pressuposto diferente (o da liberdade de interpretação, o de «eman­
cipação do texto» face à minha intenção criadora) jamais teria escrito este livro, podendo
assim ter obstado de forma mais categórica e definitiva àquelas interpretações divergentes?
O leitor que medite na citação de Khalil Gibran, e que responda!
624 Cfr. Singer, P., Ética Prática, cit., 140ss ..
216 Direito à Vida?

apoiar as asserções valorativas que haja a formular - ; com efeito, cabe


perguntar que sentido faz a criação de espécies cuja oportunidade de
sobrevivência, em qualquer habitat, natural ou artificial, é inteiramente
descurada, e se não há uma perversa gratificação de «instintos criativos»
naqueles que geram formas de vida que, não dispondo de uma viabilidade
de auto-sustentação, ficam propositadamente abandonados a uma insupe­
rável dependência, sendo-lhes negada, em suma, uma faceta crucial da sua
qualidade de vida625 . Replicariam alguns entusiastas do «argumento da
omnipotência» que o problema da qualidade de vida dessas criaturas de
aviário, de viveiro ou de laboratório é também ele um problema artificial,
porque esses seres nunca conheceram uma vida melhor e não sofrem com
a comparação de situações existenciais - o que novamente seria evadir a
questão relevante, e que é que o respeito pelo bem-estar animal é um dever
exclusivamente humano, e que as limitações cognitivas dos não-humanos
não servem de apoio à nossa sobranceria nem podem servir de pretexto à
nossa indiferença pela condição animal, não nos exonerando moralmente
da crueldade que para nós seria privarmo-los de um grau de bem-estar que
eles podem nunca ter experimentado e decerto não se podem representar
abstractamente, mas que nós sabemos existir626.
Com efeito, os problemas da «não-identidade» e da «omnipotência»
resolvem-se moralmente por apelo à imaginação moral dos agentes huma­
nos - capazes que eles são de se representarem contra-factuais, realida­
des alternativas (projectadas tanto na sua própria «futuridade» como na
dos seus semelhantes e na de outros seres sensíveis), criações livres da sua
ética que se transformam, por acção moral, em factos tangíveis de um
mundo valorativa e efectivamente melhor. O mal que possa existir na abso­
luta instrumentalização da existência de alguns não-humanos não é um
obstáculo intransponível, é antes um desafio lançado à nossa capacidade
de realização moral, ao nosso desejo de aperfeiçoamento, que especifica­
mente permita, no caso, que a maldade intencional que conduziu à exis­
tência não se transmute num mal experimentado nessa existência, como se
o valor vivencial desta não transcendesse as causas remotas da sua gera­
ção, ou como se o ser vivo não fosse totalmente inocente quanto a elas.

625 Veja-se um argumento paralelo em Gouveia, J.B., "A Prática de Tiro aos Pom­
bos...", cit., 257.
626 Cfr. Burgat, Florence & Robert Dantzer, Les Animaux d'Élevage Ont-Ils Droit au
Bien-Être?, Paris, lnstitut National de la Recherche Agronomique, 2001.
16. A Colisão de Interesses entre Humanos
e Não-Humanos , e a Complicação
dos «Direitos»

1 6 .a) Necessidade e direito


Quando é preciso escolher entre salvar um animal não-humano e um
ser humano, só é moral escolhermos salvar este e sacrificar aquele - é
uma constatação óbvia que nada implica em termos de estatuto moral ou
jurídico, já que também temos, em casos de estado de necessidade e de
legítima defesa própria ou alheia, individual ou colectiva, critérios de
prioridade no salvamento de seres humanos sem que isso implique desi­
gualdade moral ou jurídica entre beneficiados ou prejudicados, sem que
essa graduação envolva, em relação a uns ou outros, juízos valorativos
absolutos. O facto de salvar primeiro o meu filho e só depois o meu vizi­
nho não significa que considere este último um ser desprovido de estatuto
moral ou de direitos; o facto de se estabelecer prioridades de tratamento
em função da «qualidade de vida» esperada nos pacientes não significa
que se esteja a condenar alguém à morte através de critérios morais ou
jurídicos de avaliação - e poderíamos multiplicar os exemplos. Além
disso, a maior parte das situações das nossas relações com os outros ani­
mais não são de escolha crucial entre interesses humanos e interesses não­
humanos, mas sim de conciliação possíve(co'IÍío é exuberantemente evi­
denciado pela prolongada coexistência entre a maior parte das espécies do
planeta.
Parece por isso deslocada, exagerada, a posição que se opõe a qual­
quer nivelamento de interesses entre humanos e não-humanos, entrinchei­
rando-se no entendimento rígido da incomensurabilidade do estatuto jurí­
dico associado a cada uma das posições: de um lado alegadamente o
direito, conferindo aos seres humanos a protecção dos seus interesses pela
218 A Colisão de Interesses entre Humanos e Não-Humanos

via forte da apropriação e da legitimidade do livre exercício de quaisquer


prerrogativas (nos limites da reciprocidade e dos deveres de abstenção), do
outro a instrumentalização assumida dos interesses não-humanos, conver­
tidos em meios para fins humanos627. É verdade que, dentro de uma pers­
pectiva neo-malthusiana, essa demarcação permanente pode afigurar-se
mais justificada, mormente se atendermos à crescente pressão demográfica
e económica sobre recursos partilhados entre as espécies62 8 , aumentando o
potencial de conflito entre a espécie humana e as demais629, tal como a
«luta pela sobrevivência» dentro de um «nicho ecológico» assegura a pere­
nidade das colisões de interesses entre espécies não-humanas630.
A colisão de interesses pode ainda, por outro lado, ser exacerbada, em
vez de ser resolvida, pelo recurso irrestrito à «linguagem dos direitos» , com
a sua ênfase na litigiosidade e na igualdade de armas entre seres indepen­
dentes - fazendo tábua-rasa da missão protectora que o direito deve
desempenhar, com prioridade, quanto àqueles desvalidos cujos interesses
não encontram na sua própria independência individual a representação e
defesa bastantes. Esta a razão, aliás, pela qual a preferência pela «linguagem
dos direitos» por parte de abordagens não-antropocêntricas (notoriamente a
linhagem argumentativa de Tom Regan) tem sido entendida, por alguns pen­
sadores de pendor utilitarista, como uma solução precária e vacilante, ao
menos enquanto não for acompanhada de uma explicitação do valor ponde­
rado dos interesses das várias espécies, uma explicitação não deduzida de
quaisquer «diferenças naturais» , antes o resultado de um consenso político
e da criação de um espaço · de negociação dos interesses dos animais63 l /63 2.

627 Cfr. Francione, G.L., "Animais as Property", cit.,}i; 'eiusdem, "Animal Rights and
Legal Welfarism ... ", cit., 721.
628 Sobre a legitimidade do abate ou esterilização de populações animais que amea­
çam as colheitas, cfr. Midgley, Mary, "Beasts versus the Biosphere?", Environmental
Values, 1 (1992), 113-121.
62 9 Propondo meios de conciliação parcial dos objectivos de desenvolvimento rural
e de preservação ecológica (mormente propondo que haja menos «apartheid de espécies
selvagens» que, tomando-as invisíveis para os votantes, tende a legitimar decisões demo­
cráticas que são nocivas para elas), cfr. Kiley-Worthington, Marthe, "Wildlife Conserva­
tion, Food Production and «Development»: Can They Be Integrated? Ecological Agricul­
ture and Elephant Conservation in Africa", Environmental Values, 6 ( 1997), 455-470.
63 0 Goodall, J ., "The Conflict ... ", cit., iss ..
63 1 Cfr. Frank, J., "A Constrained-Utility .. . ", cit., 49-62; Wellman, C., The Prolife­
ration of Rights. . ., cit., passim.
632 Além disso, é de não esquecer que a «linguagem dos direitos» não passa de uma
A Hora dos Direitos dos Animais 219

1 6 .b) Os custos da justiça


Têm-se multiplicado as constatações de que a sobrevalorização do
«dis curso jurídico» como forma de abordagem de questões sociais e vitais
pode redundar numa perda de valores comunitários e na inviabilização de
consensos, exacerbando a litigiosidade e a recriminação, alicerçando uma
auto-complacente «cultura da lamúria», permitindo que os órgãos de deci­
são e de resolução de conflitos caiam no impasse e na inacção política,
ficando à mercê das alegações «de direito» de grupos de pressão633 . A
ênfase ilimitada em titularidades individuais desvaloriza as responsabili­
dades colectivas e conduz a discussões infindáveis - senão a argumentos
intratáveis - entre interesses e privilégios escudados em pretensões
«absolutas», conduzindo à saturação e à desconsideração de problemas tão
relevantes como o dos custos dos direitos e o da optimização dos recursos
colectivos, e à pulverização, à «balcanização», da sociedade política em
inúmeros microcosmos de direitos minoritários (que não recuam perante
qualquer consideração de primazia de valores que pudessem ter-se por
superiores, como os da coesão social).
Isto tudo sucede ao mesmo momento em que, imparável, a presença
«jurídica» do Estado se expande exponencialmente, multiplicando-se em
minúcias reguladoras que não poupam os recantos da existência humana,
tentando erradicar sistematicamente as margens da discricionariedade na
conduta individual - o que equivale a dizer, irresponsabilizando-a e reti­
rando-lhe iniciativa, «à sombra da lei» _ 634. O que, avaliado com algum

«linguagem», presa da sua própria convencionalidade contextual, pelo que pragmatica­


mente ela não conta tanto como a adopção de medidas efectivas (por mais desgarradas e
menos fundamentadas que sejam) que tenham por efeito a imediata redução do sofrimento
experimentado pelos animais - cfr. Silverstein, H., Unleashing Rights ..., cit., 30.
6 33 Cfr. Garry, Patrick M., A Nation of Adversaries. How the Litigation Explosion Is
Reshaping America, New York, Plenum, 1997, 1-11, 15, 95-96; Hughes, Robert, Culture of
Complaint. The Fraying of America, New York, Oxford University Press, 1993, passim;
Olson, Walter K., The Litigation Explosion. What Happened When America Unleashed the
Lawsuit, New York, Dutton, 1991, 4-6. Contra a ideia de que tenha havido verdadeira exa­
cerbação de litigiosidade, cfr. Galanter, Marc, "Beyond the Litigation Panic", in Olson,
Walter (org.), New Directions in Liability Law, New York, The Academy of Political
Science, 1988, 18ss.; Galanter, Marc, "Real World Torts: An Antidote to Anecdote", Mary­
land Law Review, 55 (1996), 1093-1160.
6 34 Cfr. Etzioni, Amitai, The Spirit of Community. Rights, Responsibilities, and the

Communitarian Agenda, New York, Crown, 1993, 5, 12; Glendon, Mary Ann, Rights Talk.
220 A Colisão de Interesses entre Humanos e Não-Humanos

optimismo, ainda se sustentará ser o preço razoável a pagar pela expansão


do círculo dos direitos até ao limite das suas possibilidades - abrangendo
cada vez mais pessoas, abarcando cada vez mais situações, tornando-se
cada vez menos elitista e discriminador, garantindo, ao menos abstracta­
mente, o acesso à justiça a um número crescente de interesses tradicional­
mente enfraquecidos 635 .
Bem poderá um defensor da «via dos direitos» alegar que essas reper­
cussões colectivas são ocupação da administração da justiça, e que por
isso seria irrealista esperar de alguém que contabilizasse, na defesa das
suas prerrogativas, a «externalidade» do incremento da litigiosidade e da
saturação do aparelho judiciário. É uma alegação pertinente, e decerto
seria inaceitável que se hesitasse no caminho de atribuição de direitos aos
animais com o argumento de que «já não cabem» na tutela eficiente que o
Direito pode dispensar (como seria inaceitável pensar-se, pelo mesmo
motivo, numa denegação de justiça aos recém-chegados a uma sociedade
humana).
Mas o facto é que, mesmo refugiada em puro individualismo, a abor­
dagem do conflito de interesses pela «via dos direitos» não se furta, tam­
bém ela, a um «cálculo hedónico» - como Tom Regan é forçado a reco­
nhecer com a introdução «ad hoc» do seu «worse-off principie», nos
termos do qual a prevalência dos interesses maioritários deveria ser con­
trariada quando as perdas sentidas pela minoria fossem manifestamente
maiores do que aquelas que sentiria qualquer membro da maioria em qual­
quer outra das opções disponíveis, só devendo ser contrariada nesse
caso636 - . Pode, por exemplo, um defensor de «direitos» sustentar, con­
tra o utilitarismo, que um grande mal não pode ser compensado por uma
miríade de bens particulares do maior número; mas cedo acabará por
admitir simples comparações quantitativas de bens particulares, por «cor­
tes» no contínuo da experiência inefável da subjectividade de cada ser,
como seja o facto elementar de o sofrimento de dois seres se revestir apa­
rentemente de maior gravidade objectiva do que o sofrimento de um só.

The Impoverishment of Political Discourse, New York, Free Press, 1991, x-xii; Howard,
Philip K., The Death ofCommon Sense. How Law Is Suffocating America, New York, Ran­
dom House, 1994, 51, 177-178.
635 Cfr. Walker, Samuel, The Rights Revolution. Rights and Community in Modern
America, New York, Oxford University Press, 1998.
636 Cfr. Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 308.
A Hora dos Direitos dos Animais 221

Afigura-se assim que o reconhecimento de direitos absolutos aos ani­


mais, por mais imperativa que ela seja em situações de conflitos de inte­
resses com humanos em que a incapacidade (ou diminuta capacidade) de
formar e satisfazer desejos e de exprimi-los articuladamente no contexto
convencional da juridicidade pode converter-se numa inevitabilidade de
sofrimento, depende, crucialmente, da aplicação casuística de alguns cri­
térios, como aqueles que Tom Regan propõe: a) o «miniride principie», o
de que deve ceder o conjunto menor de direitos individuais; b) o «worse­
off principle», o de que, em situações de incomparabilidade de danos, deve
minimizar-se o sofrimento do indivíduo que ficará pior.
A partir destes termos, só obstariam à atribuição de direitos absolutos
aos animais alguns riscos de morte para os humanos, dado que, como refe­
rimos, mesmo sem preconceito «especista» podemos admitir que o dano­
morte é incomensuravelmente maior para os humanos do que para os não­
humanos. Mas as mesmas ressalvas casuísticas poderiam por sua vez
legitimar o sofrimento instrumentalizador dos não-humanos quando hou­
vesse sérios objectivos de investigação médica e a possibilidade de salvar
vidas humanas. Bem pode Tom Regan opor-se a isso, alegando que não é
moralmente permissível transferir-se um risco ou um dano para um indi­
víduo que não tem capacidade para voluntariamente aceitar ou rejeitar essa
transferência637; a verdade é que mais esta ressalva «ad hoc» não livra o
«worse-off principie» das críticas adequadas às formas mais rudimentares
de utilitarismo - se é preciso optar entre o salvamento de um ou de trinta
mineiros, poderá presumir-se que o sofrimento deles é homogéneo, por
forma a optar-se pela solução minimizadora do total de sofrimento? E se
o mineiro isolado está numa situação mais desesperada, ou enfrenta uma
morte com mais sofrimento do que os outros trinta? E se as probabilidades
de resgate com sucesso são diferentes?63 8 Parece que, mesmo nessa ver­
tente de insistência em «direitos», não há muita alternativa ao recurso a
ponderações de utilidade, com valores esperados e com considerações de
riscos, com funções de probabilidades de cÍanós639 - ao recurso a objec-

6 37 Por exemplo, o que se diria de um casal que matasse um filho ainda bébé quando
nascesse um irmão mais novo, alegando que aquele não se representava ainda a sua futu­
ridade moral e que o nascimento do novo filho ia deixar incólume o bem-estar agregado?
6 3 8 Cfr. Fuller, Lon, "The Case of the Speluncean Explorers", Harvard Law Review,
62 (1949), 616-645; Suber, Peter, The Case of the Speluncean Explorers. Nine New Opi­
nions, London - New York, Routledge, 1998.
6 39 Cfr. Frank, J., "A Constrained-Utility... ", cit., 49-62.
222 A Colisão de Interesses entre Humanos e Não-Humanos

tivações que, por mais toscas e «salomónicas» pareçam, são o único ponto
de apoio pragmático com que podemos contar para decidirmos relevante­
mente na protecção de interesses vitais.
Insistamos que a solução através de «conflitos de direitos» não pode
deixar de implicitar algumas escolhas valorativas subjacentes, e que por
isso a simples existência de um mecanismo de solução de conflitos, por
mais ágil e bem oleado que esteja, não resolve nada se essas escolhas sub­
jacentes nele não transparecerem: quando, como no exemplo de Tom
Regan, é preciso decidir, num grupo de quatro pessoas e um cão, quem
lançar fora do barco salva-vidas para que os outros sobrevivam, bem pode­
mos reconhecer a todos um mesmo valor intrínseco e um mesmo interesse
aparente em não serem sacrificados, mas cedo concordaremos com o pró­
prio Tom Regan - mais propriamente com aquilo que ele identifica como
o «princípio do respe\tO» - que o quadro de oportunidades de vivência
que é destruído pela morte imediata (aquilo que temos designado por
«representação de futuridade») é bem mais amplo nas pessoas do que no
cão; e isso conduzir-nos-á à conclusão de que seria igualmente legítimo
sacrificar cem cães, um a um, para salvar um único náufrago humano.
Mas, a dúvida subsistirá, quem somos nós para ajuizar o que é um quadro
de oportunidades de vivência de um cão, encarado do prisma subjectivo
desse cão? E que legitimidade teria essa representação, mesmo que mera­
mente conjecturada, se nós a proibiríamos para legitimar o sacrifício dos
náufragos humanos incapazes, ou mais idosos, em benefício de cães sau­
dáveis e jovens? E essa representação conjectural, mesmo entre humanos,
não feriria o princípio da igual consideração de interesses? Parece, afinal,
que entrar neste jogo de ponderações casuísticas é fazer extensas conces­
sões ao utilitarismo hedónico, com a sua consâbida inaptidão para traçar a
distinção «nuancée» entre interesses humanos e interesses não-humanos,
a «fronteira epistémica», eticamente relevante, entre o que é «prosseguir
interesses» e «ter interesses» 640/64 1 .

640 Defendendo que esta última distinção não é um critério de demarcação relevante
para efeitos éticos, cfr. Sapontzis, Steve F., "The Moral Significance of lnterests", Envi­
ronmental Ethics, 4 (1982), 345-358.
641 Algumas críticas inspiradas em Heidegger e numa «ética de solicitude» são diri­
gidas a este «utilitarismo quantitativo», que é muito lesto no estabelecimento de princípios
igualitaristas entre humanos e não-humanos (em tudo aquilo em que esse igualitarismo não
prejudique o esforço de erradicação do sofrimento individual), mas se revela impotente
para resolver conflitos de interesses e, mostrando-se complacente com o abate sem sofri-
A Hora dos Direitos dos Animais 223

1 6.c) Igualitarismo ou maniqueísmo?


A alternativa, a do «entrincheiramento» na irredutibilidade, na inco­
mensurabilidade, na inefabilidade de interesses, de representações de inte­
resses e de capacidades existenciais, também não é melhor, por aquilo que
já sugerimos: porque ela promana de um radicalismo maniqueísta, como
aquele que foi celebrizado por Carl Cohen, com a provocatória dicotomia
"your baby or your dog", um pseudo-dilema642; mas também porque atra­
vés dela a «via dos direitos» pode redundar numa «santificação indiscri­
minada», a qual dificulta escolhas que, por serem desagradáveis, nem por
isso são menos inevitáveis - entre outras, a escolha dos animais de com­
panhia que devem ser protegidos e dos que devem ser eliminados numa
situação de escassez de recursos para os próprios humanos, a quantidade
de sacrifícios e o nível de sofrimento individual que são justificados nos
não-humanos em nome do salvamento de uma vida humana (por exemplo,
abatendo animais saudáveis para recolha de órgãos para xenotransplanta­
ção643), a limitação, por esterilização e eutanásia, de uma sobrepopulação
de animais de companhia que redunde numa elevada probabilidade de
abandono, a admissibilidade civilizacional de hábitos alimentares e de
vestuário apoiados numa indústria que massifica o sofrimento dos não­
humanos644 . Nada disto é resolvido através da simples adopção do princí­
pio da santificação dos interesses humanos, através da constante e monó­
tona insistência na «eminente dignidade da pessoa humana», porque não
se descortinam, nessas proclamações, quaisquer respostas satisfatórias
para aquelas escolhas difíceis.

mento, não fornece uma base sólida para a condenação do extermínio em massa, do geno­
cídio de não-humanos. Cfr. Cave, G.S., "Animais, Heidegger. . . ", cit., 249-254.
642 Cfr. La Follette, H. & N. Shanks, "UtiUzing j\nimals", cit., 1 4. Cfr., mais
amplamente, Dombrowski, D.A., Babies and Beasts . . ., cit.; Michael, M.A., "Environmen­
tal Egalitarianism . . . ", cit., 307-325 ; Wilson, Scott, "Carruthers and the Argument From
Marginal Cases", Journal of Applied Philosophy, 18 (200 1 ), 135- 1 47.
643 Cfr. Caplan, Arthur L., "Is Xenografting Morally Wrong?", in Caplan, A. L. &
Daniel H. Coelho (orgs.), The Ethics of Organ Transplants: The Current Debate, Amherst
NY, Prometheus Books, 1 998, 123 ; Hoffman, Traci J., "Organ Donor Laws in the U.S. and
U .K.: The Need for Refonn and the Promise of Xenotransplantation", Indiana lnternatio­
nal & Cornparative Law Review, 10 (2000), 371-372.
644 Cfr. Frank, J., "A Constrained-Utility . . . ", cit., 58ss..
224 A Colisão de Interesses entre Humanos e Não-Humanos

É por isso que é impossível abandonar ou desdenhar totalmente as


propostas de «igualitarismo inter-específico» como critério de decisão em
conflitos de interesses, seja aproveitando o reconhecimento da sensibili­
dade dos animais para ponderação dos méritos das partes645, seja explo ­
rando as possibilidades de «mutualidades de serviços», de permutas de
«bons ofícios» que têm sido tantas vezes observadas, seja nas simbioses
entre não-humanos, seja na solicitude moral da zoofilia humana na sua
interdependência com as demais espécies646 .
Todavia, uma tal posição de «pluralismo biocêntrico» deve ser acom­
panhada de algumas salvaguardas, sob pena da sua insustentabilidade como
forma de convicção humana - devendo nós reconhecer que alguma plau­
sibilidade, alguma razoabilidade e respeitabilidade, são requeridas para que
se dê a adopção generalizada de um entendimento moral. Entre as salva­
guardas poderíamos enumerar um princípio de defesa humana, admitindo
a destruição de não-humanos que se revelem perigosos para os seres huma­
nos mesmo dentro dos seus habitats naturais, respeitados alguns princípios
de proporcionalidade entre essa destruição e os fins preventivos, repressi­
vos ou reparadores que sejam visados; e um princípio de preservação
humana, admitindo o sacrifício dos meios de subsistência de indivíduos,
espécies ou ecossistemas não-humanos quando exista um conflito extremo
de interesses de cuja solução dependa a sobrevivência de indivíduos huma­
nos, respeitado o imperativo de restituição, de reconstituição natural,
quando esse conflito de interesses se atenue ou desapareça647.
Em suma, é possível optar-se pela atribuição de direitos aos animais
sem deixar de admitir-se o sacrifício desses mesmos direitos em casos de
conflito com os direitos dos seres humanos - quando exista, casuística-

645 Cfr. VanDeVeer, D., "Interspecific Justice", cit., 55-79.


646 Para uma enumeração e análise de exemplos de «mutualismo entre espécies», cfr.
Noe, Ronald, "Biological Markets: Partner Choice as the Driving Force Behind the Evolu­
tion of Mutualisms"; Bshary, Redouan, "The Cleaner Fish Market"; Hoeksema, Jason D.
& Mark W. Schwartz, "Modelling Interspecific Mutualisms as Biological Markets", todos
in Noe, R., J.A.R.A.M. van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Economics in Nature .. ., cit.,
99-106; 146-170; 176-181.
647 Cfr. Post, S., "The Emergence . . . ", cit., 289-300; Sterba, James P., "Environmen­
talism: The Human Bias in Traditional Ethics and How to Correct lt", in Three Challenges
to Ethics: Environmentalism, Feminism, and Multiculturalism, Oxford, Oxford University
Press, 2001, 33-34; cfr. ainda: Sterba, James P. (org.), Earth Ethics. Environmental Ethics,
Animal Rights, and Practical Applications, Englewood Cliffs NJ, Prentice Hall, 1995.
A Hora dos Direitos dos Animais 225

mente e de uma perspectiva inescapavelmente antropocêntrica, uma proe­


minência flagrante de interesses humanos -. Quando exista uma convicção
fundada de que o sofrimento foi evitado nesse choque de direitos, o sacri­
fício do direito dos animais perde muita da sua relevância pragmática, já
que o seu significado social e convencional escapa obviamente à percep­
ção dos não-humanos: se for evitado o sofrimento, é por exemplo possível
sustentar que o simples cativeiro não é uma violência, mormente se even­
tualmente se reconhecer que essa é a solução imediata para a sobrevivên­
cia de indivíduos ou de espécies ameaçados, um contributo no interesse da
biodiversidade que transcenda o respeito dos direitos individuais dos ani­
mais, como transcenderia, nalguns casos extremos, o respeito pelos direi­
tos individuais dos humanos648 .

Cfr. Bostock, Stephen St. C., Zoos and Animal Rights: The Ethics of Keeping Ani­
64 8
mais, London, Routledge, 1993, passim.
1 7. A Sacralização do Não-Humano

17 .a) Há um intuito radical de «recentramento»?


Chegados a este ponto poderá ter ocorrido ao leitor que, por detrás
das denúncias da «arrogância especista», da «sacralização» dos direitos
dos humanos nos conflitos e nas partilhas de interesses com os não-huma­
nos, se insinua o pólo oposto de uma tensão dialéctica, a posição simétrica
daquela que é denunciada - e simetricamente também tão insustentável
como aquela - , um pólo que poderíamos caracterizar como «especismo
anti-humano» , ou como «sacralização do não-humano»: na caricatura
orwelliana do Triunfo dos Porcos, a aplicação do princípio «quatro patas é
bom; duas patas é mau»649.
Ao pormos a questão nestes termos, deslocamos agora a atenção para
os pontos de contacto da causa teriofílica com algumas formas de «religião
secular» e de radicalismo activista, para atitudes culturais que, nos pres­
supostos em que assentam e nos meios que empregam, fazem episodica­
mente assemelhar a causa da «libertação animal» com o movimento eco­
logista - embora, como veremos adiante (Capítulos 1 9 a 2 1 ), os pontos
de divergência entre esses vectores de militância sejam muito mais exten­
sos do que aquilo que é normalmente percebido.
No fundo, o que é notável é que a caUSjl dos direitos dos animais se
tem envolvido, nas suas margens, com uma <<étíéa da virtude» que, uma
vez mais - como sempre sucedeu ao longo da história do pensamento -,
aparenta legitimar o recurso à violência dentro do «bom combate» contra
aqueles que, por ignorância ou má-fé (tertium non datur, aparentemente)
resistem a converter-se à «evidência»: um resultado irónico dentro de um

649 Cfr. Kolber, A., "Standing Upright...", cit., 186n l 42.


228 A Sacralização do Não-Humano

campo que enfatiza em extremo a erradicação da violência e do sofrimento


como meta mais nobre da moralidade humana6so.
De facto, a causa da «libertação animal» tem atraído para o seu seio
alguma militância fervorosa que não tem recuado de usar os «grandes
meios» da violência fanática, nem tem dispensado formas de congregação
ritual pseudo-religiosa. Mais benignamente, a «causa dos animais»,
assente que está numa sensibilidade etico-jurídica e numa consciência
ambiental que são capazes de despertar em todos nós os mais nobres e
honoráveis sentimentos - e até os mais sólidos e universais, como sejam
os de repulsa perante a crueldade e de solicitude para com as vítimas -
corresponde também a uma certa «estética civilizacional» que impõe
deveres morais em função da sua congruência com aquilo que seja enten­
dido como a vanguarda, o cúmulo de sofisticação comportamental dispo­
nível em cada estádio do progresso social.
O mesmo impulso do «radical chie» teve como uma das suas deriva­
ções mais recentes o «veganismo», uma variedade extrema de vegetaria­
nismo que, em nome da zoofilia, recusa, ou total, ou parcialmente quando
não haja alternativas, qualquer uso de produtos de base animal - e não
apenas na alimentação, o que envolve naturalmente uma auto-disciplina de
observância que pode conduzir a extremos supererogatórios, extremos que
novamente fazem surgir o espectro da «ética da virtude» 65 1. Vimos já que
o utilitarismo de Peter Singer vai ao ponto de não se opor radicalmente ao
abate indolor de alguns indivíduos de algumas espécies não-humanas;
veja-se agora como, apesar desse aparente pragmatismo, se dá o «salto de
fé» em direcção ao absolutismo ético: "Ao mesmo tempo que fazemos

65 0 Permito-me recordar ao leitor que eu próprio tive, logo de início, o receio de que
a alegação da impotência dos argumentos face a uma sucessão de paradigmas pudesse ser
interpretada como uma concessão a esse tipo de «conversão pela espada»...
65 1 Cfr. Dombrowski, D.A., The Philosophy of Vegetarianism, cit.; Franklin, Adrian,
Animais and Modem Cultures. A Sociology of Human-Animal Relations in Modernity,
London, SAGE Publications, 1999; Herzog,Harold A., "«The Movement Is My Life». The
Psychology of Animal Rights Activism", The Journal of Social /ssues, 49 (1993), 103-119;
Jasper, James M. & Dorothy Nelkin, The Animal Rights Crusade: Growth of a Moral Pro­
test, New York, Free Press, 1992; Groves, Julian McAllister, Hearts and Minds: The Con­
troversy over Laboratory Animais, Philadelphia, Temple University Press, 1997; Newkirk,
Ingrid, Free the Animais! The Untold Story of the Animal Liberation Front and lts Foun­
der, « Valerie», Chicago, Noble Press, 1992; Sperling, Susan., Animal Liberators: Research
and Morality, Berkeley, University of Califomia Press, 1988.
A Hora dos Direitos dos Animais 229

todas estas coisas, há uma outra que podemos fazer e é de suprema impor­
tância: é sobre ela que assentam e é ela que confere coerência e signifi­
cado a todas as outras actividades desenvolvidas em nome dos animais.
Essa coisa é assumirmos a responsabilidade das nossas próprias vidas,
tornando-as tão isentas de crueldade quanto possível. O primeiro passo é
deixarmos de comer animais". Contra a indústria alimentar, que considera
ser a exploração sistemática do sofrimento, concluirá: "Daí a necessidade
de cada um de nós deixar de comprar os produtos da criação moderna de
animais - mesmo que estejamos convencidos de que não seria errado
comer animais que tivessem vivido de modo agradável e morrido de forma
indolor"65 2 •
Concedamos a Peter Singer que uma simples ponderação de interes­
ses poderá fazer-nos ao menos questionar se os prazeres do nosso paladar
podem justificar dietas carnívoras que determinem sofrimento, privações,
tédio e violência em animais de criação e de abate65 3 - sendo pois que a
«roupagem radical» pode servir ao menos para agitar as consciências
daqueles que, lamentando o facto bruto do sofrimento «industrial» dos
não-humanos quando não se limitam a remetê-lo para a obscuridade654, se
esquecem (ou querem esquecer) que eles são, através do mercado, os últi­
mos beneficiários dessa cadeia de sofrimento, eles são a única razão de ser
dessa «indústria»655 .

65 2 Singer, P., Libertação Animal, cit., 149, 152. Cfr. Rifkin, Jeremy, Beyond Beef·
The Rise and Fall ofthe Caule Culture, New York, Dutton, 1992; Walters, K. & Lisa Port­
mess (orgs.), Ethical Vegetarianism: From Pythagoras to Peter Singer, Albany NY, State
University of New York Press, 1999.
65 3 Cfr. Singer, Peter, "Utilitarianism and Vegetariap!sm", Philosophy and Public
Affairs, 9 (1980), 325-337; Crisp, R., "Utilitarianism and Vegetarianism", cit., 41-49.
654 Pode até sustentar-se que a industrialização gerou a nova categoria do «animal­
oculto», ou seja, do não-humano que é afastado da nossa vista, não porque a sua presença
constituísse uma ameaça física ou um desafio à nossa animalidade, mas porque, na lógica
da exploração maciça, aviltámos tanto a sua liberdade e identidade natural que o espectá­
culo se tomaria doloroso, obsceno. Cfr. Leste!, Dominique, "Des Animaux-Machines aux
Machines Animales", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 691-692.
655 Cfr. Denis, Bernard, "La Fabrication des Animaux", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ..., cit., 712.
230 A Sacralização do Não-Humano

1 7 .b) Simbiose e jainismo


Já referimos também que as religiões tradicionais contribuíram tanto
para a sacralização como para a demonização dos não-humanos, e em
resultado disso se estribaram em normas disciplinadoras da nossa relação
com os animais - bastando pensarmos nos preceitos que, em quase todas
elas e em nome dos mais diversos valores e tabus, condicionam tempora­
ria ou permanentemente a ingestão de carne ou induzem práticas vegeta­
rianas, e impõem compaixão mesmo para com animais que não idolatram,
limitando o recurso a sacrifícios rituais ou verberando directamente o
espectáculo da crueldade com animais656.
Que eu saiba, só uma religião vai até ao fim na congruente explora­
ção dos seus propósitos de sacralização de todas as formas de vida animal,
humana e não-humana: o Jainismo, que respeita até a vida de um mos­
quito, em nome da proscrição de toda a lesão a quaisquer formas de vida
animal (o voto pranatipata-viramana). Quanto a todas as outras religiões,
perdura a ambígua estratégia de demarcação de espécies, que até um certo
ponto visa reforçar relações de identificação e pertença (afinal, aquilo que
religa as ,pessoas numa religio) , tanto mais importantes quanto possam
subsistir, na dimensão mítica pré-religiosa, impulsos animistas ou totémi­
cos que, ao menos simbolicamente, desembocariam na indiferenciação
entre espécies65 7.
Mas essa indiferenciação seria boa ou má? Má, evidentemente ! Lem­
bremo-lo, se ela fosse tomada à letra - como às vezes parece sê-lo em
expressões «pseudo-jainistas» da «ecologia profunda» - , teríamos que
deixar todos os micróbios ter livre curso no desenvolvimento do seu para­
sitismo patológico nas espécies animais, tanto a humana como as não­
humanas; e talvez nem mesmo em legítima defesa pudéssemos abater ani­
mais que nos atacassem a nós ou às espécies não-humanas, pois isso

656 Para o caso do Islão, cfr. Izzi Dien, Mawil, The Environmental Dimensions of
lslam, Cambridge, Lutterworth, 2000; Masri, B.A., "Animal Experimentation: The Muslim
Viewpoint", in Regan, T. (org.), Animal Sacrifices . . ., cit., 171-197.
657Cfr. Lawrence, Elizabeth Atwood, "Cultural Perceptions of Differences Between
People and Animais. A Key to Understanding Human-Animal Relationships", Journal of
American Culture, 18 (1995), 75-82; Rollin, Bernard E., "Morality and the Human-Animal
Bond", in Katcher, A.H. & A.M. Beck (orgs.), New Perspectives on Our Lives . . ., cit., 500-
510; Shepard, Paul, Thinking Animais. Animais and the Development of Human lntelli­
gence, New York, Viking Press, 1978.
A Hora dos Direitos dos Animais 231

envolveria, como é bom de ver, o risco de destruirmos a maior parte dos


micro-organismos vivos dentro deles, por exemplo parasitas (que não nos
tinham atacado ... ). Lembremos também que a indiferenciação entre espé­
cies desconsidera o problema do sofrimento:
- seja o das «nuances» representativas que podem tornar algum do
sofrimento humano incomensurável com o de outras espécies,
dando prioridade aos humanos no combate pela erradicação do
sofrimento - e emprestando à «ecologia profunda» uma colora­
ção vagamente totalitarista e sinistra, pois no esforço de deposição
do antropocentrismo esquece aquela incomensurabilidade e é
capaz de anunciar a sua preferência pelo salvamento de espécies
em vias de extinção, mesmo quando isso acarrete um muito maior
sofrimento na nossa espécie, ou envolva o sacrifício de vidas
humanas65 8;
- seja ainda o das diferenciações entre espécies que permitem colo­
car - aparentemente em todas as circunstâncias - o chimpanzé
à frente da amiba na ordem de prioridades daquele combate.
Mas será toda a indiferenciação má - para usarmos o qualificativo
propositadamente ingénuo - ? Não, decerto não aquela que, fora de áreas
de conflito e de disputa de recursos escassos, permite uma riqueza sim­
biótica que é a própria assinatura da vida na Terra. Pode ser ilegítima a
sacralização do não-humano, tal como a sacralização do humano, mas ape­
nas porque elas são exclusivas e pretendem uma afirmação à custa da
negação do outro pólo da tensão dialéctica. Mas, pese embora o constante
renovar de nuvens malthusianas no horizonte, não é isso que globalmente
resulta da convivência da quase inesgotável variedade de formas de vida
animal. Isso encoraja-nos a encerrarmos este capítulo numa nota concilia­
tória, tributária quiçá de uma mescla de franciscanismo e de jainismo,
exemplarmente representada na atitude do tio Toby, que, no final do Tris­
tram Shandy, liberta uma mosca porque o munqo é suficientemente grande
. , ,

65 8 Cfr. Luke, Tim, "The Dreams of Deep Ecology", Tetos, 76 (1988), 81, 87 . Cfr.
ainda: Fox, Michael Allen, "Vegetarianism", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs .), Ency­
clopedia ofAnimal Rights. .., cit., 349-351; Gunn, Alastair S., "Why Should We Care About
Rare Species?", Environmental Ethics, 2 (1980), 17-37; Varner, Gary, "Vegetarian Diets:
Ethics and Health", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs .), Encyclopedia of Animal
Rights . . ., cit., 351-352; Waller, David, "A Vegetarian Critique of Deep and Social Eco­
logy", Ethics and the Environment, 2 (1997), 187-197 .
232 A Sacralização do Não-Humano

para que haja lugar para os dois "- go, poor devi!, get thee gone, why
should I hurt thee? - This world surely is wide enough to hold both thee
and me"659!660.

659 Steme, Laurence, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, Har­
mondsworth , Penguin, 1 985 , 1 3 1 . Sobre o «shandyismo» , cfr. Bronze, F.J., Lições..., cit.,
484n205 .
660 Cfr. a visão tradicional , «não-shandyana» , em: Nicholson , George, On the Pri­
meval Diet of Man. Vegetarianism and Human Conduct Toward Animais (Rod Preece , ed.) ,
Lewiston NY, E. Mellen Press , 1999 ( 1 1 80 1 ) .
18. O Pro gresso das Ciências
e o Problema da Experimentação

"se forçar um rato a escolher entre morrer de fome e atravessar


uma grelha electrificada para obter comida nos diz algo sobre as
reacções dos seres humanos ao stress, temos de pressupor que o
rato sente stress neste tipo de situação" - Peter Singer66 1 .

1 8 .a) Um obstáculo à liberdade de investigação?


Um caso particular, mas especialmente sério e simbólico, de conflito
de interesses entre humanos e não-humanos é o que respeita à admissibi­
lidade de experimentação científica destrutiva, mutiladora ou simples­
mente dolorosa para as cobaias. O interesse do progresso da ciência, a
veneração pela ciência, tudo têm sobrelevado na nossa sociedade, ao
menos desde o iluminismo662, e ninguém contestará que é a liberdade de
investigação e de experimentação que tem permitido a multiplicação de
descobertas que, mais do que fazerem recuar as fronteiras do desconhe­
cido e alargarem o domínio da compreensão teorética da realidade, têm
consequências práticas no aumento de expectativa de vida e de qualidade
de vida - e não apenas dos humanos, mas também de muitas espécies
não-humanas, tanto as domesticadas como as' selvagens, não podendo hoje

66 1Singer, P., Ética Prática, cit., 85.


662 Era essa veneração pelo progresso das ciências que deixou muitos iluministas
zoófilos numa posição ambígua quanto à vivissecção, ainda quando reconheciam que podia
haver sofrimento inútil no sacrifício das cobaias . Cfr. Young, Thomas, An Essay on Huma­
nity to Animais, London, T. Cadell, 1798, 170-171 (agora reimpresso em Garrett, A.V.
(org.), Animal Rights and Souls. . ., cit., V).
234 O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação

admitir-se uma perspectiva de preservação sustentável das espécies e da


biodiversidade que não envolva o emprego intensivo daquilo que de
melhor a ciência é capaz, na observação, na experimentação, na aplicação
tecnológica.
Assim sendo, a atribuição de direitos aos animais, e especialmente de
um direito ao não-sofrimento infligido na experimentação, pode entravar
o progresso científico, lesando os interesses da própria espécie a que per­
tençam as cobaias . Mas o problema, sublinhemo-lo já, não está cingido ao s
direitos dos não-humanos, e o mais visível entrave ao progresso científico
nesta matéria está associado à consagração dos direitos humanos, os quais,
vedando a experimentação não-consentida sobre «cobaias humanas», e
proibindo mesmo, em muitos casos, a experimentação consentida, limita
ou impede o recurso à investigação aplicada sobre as únicas «cobaias» que
asseguram a relevância dos resultados para os seres humanos - sendo que
relativamente às cobaias não-humanas se suscita um problema de transpo­
sição de resultados que pode não sobreviver à fronteira entre as espécies,
como o assinala a supracitada observação de Peter Singer - .
Com efeito, ao mesmo tempo que muitos defendem a experimenta­
ção irrestrita em animais, sustentando que a análise «custo-benefício»
demonstra ganhos inequívocos, espectaculares até, em termos de pro­
gresso científico, médico e veterinário663 , muitos desses entusiastas insis­
tem nas teses «especistas» que, em bom rigor, destroem aquilo que, para o
antropocentrismo que perfilham, é a principal base justificativa da experi­
mentação animal, nomeadamente a possibilidade de transposição e extra­
polação dos resultados para a espécie humana.
Por seu lado, o anti-especismo, que é uma. proposição valorativa
orientada para a reestruturação dos juízos de valor que retiram corolários
das diferenças de facto entre espécies, propõe a exclusão dessas diferenças
inter-específicas como critério moral ou jurídico, mas como é óbvio não

663 Cfr. Cohen, Carl , "The Case for the Use of Animais in Biomedical Research",
New England Journal of Medicine, 3 1 5 ( 1 986) , 868 (cfr. todavia: Cohen , Carl & Tom
Regan , The Animal Rights Debate, Lanham, Rowman & Littlefield , 200 1 ) . E também há
quem considere seriamente a hipótese de objecção de consciência - cfr. Francione , Gary
L. & Anna E. Charlton , Vivisection and Dissection in the Classroom: A Cuide to Cons­
cientious Objection, Jenkintown, American Anti-Vivisection Society, 1 992; Vallauri , Luigi
Lombardi , "L'Obiezione di Coscienza Legale alia Sperimentazione Animale, ex - Vivi­
sezione (Legge 12 Ottobre 1 993 n. 4 1 3)", in Mannucci , A. & M. Tallacchini (orgs.) , Per un
Codice... , cit . , 269-284.
A Hora dos Direitos dos Animais 235

intenta desmentir o facto da existência dessas diferenças (tal como o anti­


racismo milita pela irrelevância moral e jurídica das diferenças raciais,
mas pacificamente reconhece a existência dessas diferenças - das quais
precisamente entende não ser derivável qualquer corolário).
Ambos, pois, especismo e anti-especismo, reconhecem que as espé­
cies não-humanas são de facto diferentes da espécie humana, e diferentes
umas das outras, em termos anatómicos, fisiológicos, histológicos, gené­
ticos e imunológicos. O anti-especismo esforça-se por não retirar corolá­
rios valorativos dessas diferenças (embora nem sempre resista à incon­
gruência de utilizar a linguagem do antropomorfismo para enaltecer
afinidades inter-específicas e suscitar sentimentos de proximidade afec­
tiva - o que é uma forma de explorar axiologicamente o diminuto grau
de diferença entre as espécies), enquanto que o especismo faz tudo depen­
der de uma «evidência valorativa» que julga poder associar às diferenças
entre espécies.
É aí que a defesa da experimentação animal entra em paradoxo com
as premissas do especismo - porque a experimentação assenta no pres­
suposto de uma afinidade entre espécies que o especismo desvaloriza ou
desconsidera, afinidade que deveria também ela, na própria lógica do
especismo, ter um alcance valorativo - nomeadamente o de não permitir
discriminações quanto a expressões de sofrimento equiparável, e por isso
vedar a experimentação sobre não-humanos quando nela se detectasse um
sofrimento que nunca poderia ser imposto numa experimentação sobre
seres humanos.
Acresce que as indicações disponíveis apontam para situações díspa­
res quanto à transposição inter-específica de resultados da experimenta­
ção. Por exemplo, quanto à famigerada talidomida, ela nunca tinha sido
experimentada em não-humanas grávidas antes de ser ministrada a pacien­
tes humanas, e só depois se apurou que tinha efectivamente efeitos terato­
génicos em ratos, coelhos, e três espécies de macacos664; mas a experi­
mentação teria sido inconclusiva na maior pai'te das demais espécies, nas
quais ela se revelou inócua quanto a efeitos teratogénicos665 .

664 Botting, J.H., "Various Fallacies Persist in Vivisection Debate", British Medical
Journal, 322 (30/6/2001), 1603.
665 Cfr. Lewis, P., "Animal Tests for Teratogenicity: Their Relevance to Clinical
Practice", in Hawkins, D .F. (org.), Drugs and Pregnancy: Human Teratogenesis and Rela­
ted Problems , Edinburgh, Churchill Livingstone, 1983, 17.
236 O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação

A situação fica assim dilemática: ou se opta pela similitude e há pros­


crição moral da experimentação animal, ou se opta pela não-similitude, e
daí decorre a inutilidade da experimentação. As diferenças entre espécie s
não podem ser tais que, ao mesmo tempo, justifiquem a experimentação
extrapolável de umas para outras e vedem a generalização de juízos valo­
rativos sobre os estados de sofrimento verificados em qualquer delas. Em
poucas palavras, a validade científica implica a invalidade moral, e a vali­
dade moral comprometeria a validade científica666 .
Parece, pois, demonstrado que é a irracionalidade do «especismo»,
mais do que a respeitabilidade da prática científica, que nos leva a admi­
tirmos a experimentação animal com situações de sofrimento que não tole­
raríamos em cobaias humanas - porque jamais aceitaríamos a banalização
dos interesses de membros da nossa espécie a ponto de os considerarmos
instrumentos de experimentação, adereços de laboratório, matéria-prima
de cujo sofrimento fosse possível abstrair, ou que fosse possível recondu­
zir a uma mera «ponderação hedónica» 667.

1 8 .b) O silenciamento das cobaias


Quanto à comunidade científica envolvida na experimentação, a opo­
sição ao reconhecimento de direitos aos animais é aberta e tende a ser gene­
ralizada668, o que se compreenderá em função da unilateralidade de pers­
pectiva que é de esperar de praticantes que vêm a sua actividade ameaçada
por pruridos deontológicos «importados» de fora da comunidade científica
- exigências que hão-de afigurar-se, à primeira vi�ta, como simples obstá­
culos à liberdade de investigação, a carecerem dê justificação rigorosa. Por
outro lado, a experimentação sobre animais, como já sucedia na linhagem
histórica da vivissecção, tende a rodear-se de uma retórica defensiva que, no
entender de muitos, é a melhor marca de que uma descrição linear de factos

666 Cfr . Racheis, J ., Created from Animais . . ., cit., 220.


667 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 64.
668 Cfr. Kortlandt, Adrian, "Spirits Dressed in Furs?", in Cavalieri, P. & P. Singer
(orgs.), The Great Ape Project. . ., cit., 142.; Vale, Fernando Martins, "Ética da Prescrição
Médica no Tratamento e na Investigação. Algumas Reflexões sobre a Verdade Científica",
in Silva, J.R., A. Barbosa & F.M. Vale (orgs.), Contributos..., cit., 492. Contraponha-se a:
Osswald, Walter, "A Experimentação Animal", in Archer, Luís, Jorge Biscaia & Walter
Osswald (orgs.), Bioética, Lisboa, Verbo, 1996, 329-333.
A Hora dos Direitos dos Animais 237

ern si mesmo inexpressivos e controvertíveis ganhou pretensões de conver­


são em tese científica669 - sendo particularmente sintomático o emprego,
nos relatórios, de perífrases e vozes passivas que sugerem que o protago­
nismo das experiências cabe a objectos físicos e a situações, e não a cobaias
capazes de espontaneidade e de sensibilidade670.
Mais ainda, a descrição das experiências é muitas vezes conduzida
com o objectivo de sugerir a ausência de deliberação humana, como se
tudo decorresse de um automatismo tecnológico de que o cientista fosse
rnero espectador - incapaz, subentende-se, de evitar ou mitigar o sofri­
mento que é consequência necessária de um processo irreversível, uma
vez iniciado - , ilibando moralmente a participação do cientista. Aliás, a
própria «preparação» das cobaias visa, na maior parte das vezes, destruir
qualquer aparência de «naturalidade» no processo experimental, criando a
ilusão de um ambiente asséptico e controlado, no qual o sofrimento pode­
ria acabar por parecer também ele ilusório ou artificial, um pequeno
sobressalto dentro de uma plácida sequência de eventos67 I _
Compreende-se assim a veemência com que a causa teriofílica se tem
obstinado na recusa do estatuto de moralidade a qualquer princípio que
justifique, em nome da ciência, o sofrimento, a vivissecção e a morte de
não-humanos porque não são humanos, sustentando que um tal princípio
não é mais do que a cobertura ad hoc de uma violência, uma violência
tanto mais gritantemente imoral quanto é certo que ela é cometida contra
seres indefesos67 2.

669 Cfr. Latour, Bruno, Science in Action, Milton Keynes, Open University Press,
1987, 48.
670 Cfr. Gross, Alan G., The Rhetoric of Science, Cambridge Mass., Harvard Uni­
versity Press, 1990, 73; cfr . também Bazerman, Charles, Shaping Written Knowledge . The
Genre and Activity of the Experimental Article in Science, Madison, University of Wis­
consin Press, 1988.
67 1 Cfr. Knorr-Cetina, Karin D., "The Ethnogqtphic Study of Scientific Work.
Towards a Constructivist Interpretation of Science", in Knorr-Cetina, Karin D. & Michael
J. Mulkay (orgs.), Science Observed: Perspectives on the Social Studies of Science, Lon­
don, Sage, 1983, 119; Knorr-Cetina, Karin D., The Manufacture of Knowledge. An Essay
on the Constructivist and Contextual Nature of Science, Oxford, Pergamon, 1981; Lynch,
Michael, Art and Artifact in Laboratory Science. A Study of Shop Work and Shop Talk in a
Research Laboratory, London, Routledge, 1985, 151-152; eiusdem, "Sacrifice and the
Transformation of the Animal Body into a Scientific Object. Laboratory Culture and Ritual
Practice in the Neurosciences", Social Studies of Science, 18 (1988), 265-289.
672 Cfr. Sapontzis, Steve F., "We Should Not Allow Dissection of Animals", Journal
238 O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação

É verdade que, no debate sobre a experimentação animal e tendo em


atenção a seriedade dos interesses em causa, já tem sido observado que os
activistas dos direitos dos animais se têm esforçado por racionalizar as
suas emoções, enquanto que os defensores da experimentação, ao invoca­
rem a relevância humana (e mesmo não-humana), a urgência do progresso
da ciência, têm tentado «emocionalizar» a sua racionalidade673 .
Lembremos, até por referência à tradição da vivissecção, que a justi­
ficação da imposição de sofrimento �m cobaias não-humanas requereria a
identificação de uma diferença específica que justificasse uma permanente
diversidade de tratamento entre cobaias humanas e não-humanas, mor­
mente a demonstração de que os animais são autómatos despojados de
qualquer capacidade identificável de sofrimento, como outrora foi susten­
tado pelos cartesianos. Admitamos, por hipótese, que essa diferença espe­
cífica é a da já referida incomensurabilidade de capacidade de sofrimento
da espécie humana - a tal capacidade de representação e antecipação que
amplifica psicologicamente as dimensões do sofrimento - ; pois mesmo
assim seria ainda necessário encontrar um outro argumento para excluir da
experimentação involuntária os seres humanos acidentalmente desprovi­
dos de capacidade sensorial, de capacidade de experimentar ou exprimir
aquela forma peculiar de sofrimento, e por isso também incapazes de
comunicação inteligível daquela diferença específica com base na qual se
discriminaria contra os não-humanos674.
Peter Singer não hesita sequer em avançar com um daqueles argu­
mentos cuja contundência tem contribuído para a sua (boa e má) reputa­
ção: visto que uma experiência com animais que seja irrelevante para os
seres humanos causa sofrimento sem qualquer contrapartida, violando o
princípio da igualdade na consideração de interesses, deveríamos libertar­
nos do preconceito especista reclamando dos cientistas uma fundada
demonstração das razões pelas quais eles preferem experimentar em não­
humanos e recusam a experimentação em seres humanos com lesões cere-

of Agricultural and Environmental Ethics, 8 ( 1995), 181- 189; eiusdem, Morais, Reason,
and Animais, cit., passim.
673 Cfr. Groves, J.M., Hearts and Minds. . . , cit., 14; Nelkin, Dorothy & James L. Jas­
per, "The Animal Rights Controversy", in Nelkin, Dorothy (org.), Controversy: Politics of
Technical Decisions, London, Sage, 1992, 38.
674 Cfr. La Follette, Hugh, "Animal Rights and Human Wrongs", in Dower, N. (org.),
Ethics and the Environment, cit., 84-85 .
A Hora dos Direitos dos Animais 239

brais profundas e irreversíveis que os deixem com um grau de consciên­


cia, e de interacção com o meio, inferiores aos de animais sujeitos à expe­
rimentação675 - mais uma vez o argumento dos «casos marginais», agora
num corolário que só não é mais chocante porque paira sobre a experi­
mentação animal uma suspeita de irrelevância ocasional, de que são pro­
vocadas dores consideráveis nas cobaias sem a mais leve esperança, em
muitos casos, de que dessas experiências resultem benefícios significati­
vos para os seres humanos ou para outros animais: "geralmente o que é tão
perturbador acerca dos exemplos de investigação (...) é que, apesar do
sofrimento suportado pelos animais, os resultados obtidos, mesmo aque­
les relatados pelos próprios investigadores, são triviais, óbvios ou sem
significado" 676.
Replicando a Peter Singer, poderíamos adiantar alguns argumentos
não-especistas contra a paridade entre cobaias humanas e não-humanas,
seja remetendo para a referida incomensurabilidade das experiências men­
tais associadas ao sofrimento, seja - agora tendo em conta também os
«casos humanos marginais» - critérios mais objectivos de longevidade
natural (de expectativa de vida sem sujeição à experimentação), de fecun­
didade média (de substituibilidade «quantitativa» das cobaias), de homo­
geneidade genética, de fraca «elasticidade» a alterações contextuais sus­
ceptíveis de induzir ansiedade e sofrimento677 .

1 8 .e) A redução do sofrimento


Há, pois, que reflectir sobre o que se faz na experimentação com ani­
mais, e isso independentemente de se reconhecer que ela tem sido útil,
que ela se traduziu num progresso científico, biomédico, que não há suce­
dâneo para ela - bastando preocuparmo-nos antes com o grau, com a
intensidade da experimentação, com a sua utilidade em todos os casos,
com a necessidade ou inevitabilidade de todos ós- procedimentos de que
ela se tem composto, começando pelos mais destrutivos e cruéis, e termi­
nando nos limites de transponibilidade indutiva, analógica, dessas expe-

675 Cfr. Singer, P., Ética Prática, cit., 87.


67 6 Singer, P., Libertação Animal, cit., 33, 45-46.
677 Cfr. Goffi, Jean-Yves, La Philosophie et Ses Animaux. Du Statut Éthique de
['Animal, Nimes, Jacqueline Chambon, 1994, 285-286.
240 O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação

riências noutras espécies para o proveito dos valores de preservaç ão e


melhoria da qualidade de vida da nossa espécie . Nestes casos de dúv ida,
não hesitamos em perfilhar a ideia de que o ónus da prova recai sobre os
perpetradores de actos destrutivos e violentos na experimentação , v isto
que são esses que cometem o dano sobre as cobaias , é do lado deles que
parte essa comissão que é prima facie moralmente censurável , especifi­
camente quando lhe faltem as provas , seja de uma vantagem esmagadora
e inequívoca, seja de uma inevitabilidade678 . Por exemplo , uma «análise
custo-benefício» que se reporte à experimentação animal não pode objec­
tivamente escamotear a referência a potenciais custos dessa experimenta­
ção , como o da transmissão às populações humanas de patologias pre­
sentes em outras espécies - como sucedeu já com um vírus presente nos
símios (o SV40 ) , transmitido através de uma vacina, e como se especula
também que tenha sucedido com o HIV - , nem pode furtar-se à consi­
deração , já referida, dos potenciais ganhos comparativos da experimen­
tação em cobaias não-humanas face à experimentação em cobaias huma­
nas , mormente quando o recurso a estas últimas determinaria ipso facto ,
dada a presença da «armadura jurídica» em toda a sua plenitude , a elimi­
nação de todos os procedimentos causadores de sofrimentos desnecessá­
rios ou não-consentidos , coisa que não sucede manifestamente no domí­
nio da experimentação animal 67 9 .
Pense-se novamente no problema d a transposição inter-específica de
resultados, e constatar-se-á que milita contra a experimentação animal o
facto de existirem muitas substâncias que são profundamente lesivas para
cobaias animais e podem ser benéficas para o homem - como a insulina
ou a penicilina, por exemplo . E pense-se também. que anos e anos de expe­
rimentação em animais nada adiantaram para o�estabelecimento da relação
entre inalação de tabaco e cancro de pulmão , a qual acabou por decorrer
exclusivamente , em termos de um mínimo de validação estatística, de
observações clínicas em seres humanos 680 .
Admitamos que a oposição entre cientistas e activistas quanto ao
estatuto das cobaias é muito mais fruto de atitudes políticas do que de ver­
dadeiras divergências de convicção teórica, e que por isso será possível

678 Cfr. La Follette, H. & N. Shanks, "Util-izing Animals", cit., 23.


679 Cfr. ibid., 19-20.
680 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 53, 81.
A Hora dos Direitos dos Animais 241

uma convergência construtiva68 I. Por um lado, os critérios de solução de


conflitos de interesses entre espécies, se recusarem «santificações» de
parte a parte, poderão sempre casuisticamente proporcionar compromissos
razoáveis e necessários - pense-se no exemplo da pesquisa no combate à
SID A, que se entende não poder fazer-se sem experimentação em prima­
tas _ 68 2. Por outro, o próprio progresso da ciência pode vir a propiciar, a
breve trecho, sucedâneos da experimentação animal, mormente abrindo o
recurso à experimentação em células, tecidos e órgãos clonados (poupando
também aos não-humanos a sua instrumentalização na prática da xeno­
transplantação) - embora sejam legítimas as reservas quanto à clonagem
de células reprodutivas e à criação de indivíduos clonados, seja por razões
de princípio que se prendem com a identidade genética e com a biodiver­
sidade, seja em termos de risco de transposição de resultados a partir de
material geneticamente modificado, seja ainda por razões de repugnância
moral quanto às hipóteses do clone cujo sofrimento é recoberto por argu­
mentos de «não-identidade» e de «omnipotência», ou do clone permanen­
temente anestesiado; havendo a acrescer a tudo isto os alarmismos que
costumam acompanhar invariavelmente os últimos progressos da enge­
nharia genética e da biotecnologia683 .
Por ora, o mínimo em que pode insistir-se é na vertente paliativa das
consequências da experimentação animal, de acordo com o princípio dos
três Rs: "replacement, reduction, refinement"684 - sendo que, na experi­
mentação, "replacemenf' significa a utilização progressiva de objectos des­
providos de sensibilidade (por exemplo, a análise a nível de tecidos, de célu­
las, de reacções bioquímicas), "reduction" a utilização de um número cada
vez menor de cobaias, "refinement" a redução ao estritamente necessário

68 1 Cfr. Vamer, Gary E., "The Prospects for Consensus and Convergence in the Ani­
mal Rights Debate", Hastings Center Report, 24/1 (1994), 24-28.
68 2 Cfr. Bium, Deborah, The Monkey Wars, New York, Oxford University Press,
.. ,
1995.
683 Cfr. Kress, Jack M., "Xenotransplantation: Ethics and Economics", Food Drug
Law Journal, 53 (1998), 353ss.; Thompson, P.B.., "Ethics and the Genetic ... ", cit., 1-23 ;
eiusdem, "Ethical Issues... ", cit., 197-217.
684 Smith, Richard, "Animal Research: The Need for a Middle Ground", British
Medical Journal, 322 (3/2/2001), 248-249; Ogden, Bryan D., "Principles of Animal
Research: Replacement, Reduction, Refinement, and Responsibility", Animal Law, 2
(1997), 167ss.; Hawkins, Penny, "Joumal Editors Could Help Raise Profile of Three Rs of
Animal Research", British Medical Journal, 322 (30/6/2001), 1603 .
242 O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação

dos procedimentos susceptíveis de causar ansiedade ou sofrimento nas


cobaias68 5. É aliás nesse sentido que deve ser interpretada a proibição, pelo
art. 8.º, 1 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de toda e qual­
quer forma de experimentação animal que implique sofrimento físico ou psi­
cológico, e isto sem qualquer ressalva de subordinação a qualquer interesse
humano; porque logo do n.º 2 do mesmo artigo, que recomenda o desen­
volvimento de técnicas de substituição, resulta que o abolicionismo não é
senão um objectivo remoto, a reclamar passos intermédios686.
Não é efectivamente plausível pensar-se na hipótese de abolição
súbita da experimentação animal, ou de erradicação absoluta do sofri­
mento a ela conexo. Num contexto democrático, é de prever antes que haja
pequenos incrementas, pequenas reformas, substituição de procedimentos,
alteração paulatina da percepção pública em relação ao estatuto dos ani­
mais não-humanos, aos seus interesses, e ao interesse vital do não-sofri­
mento687. É por isso que, em nome do pragmatismo, tantos defensores dos
direitos dos animais concedem a subsistência de experimentação com ani­
mais, dentro de um princípio de acatamento dos «três Rs» - reconhe­
cendo que se trata de um mal necessário, e que a mesma razão que justi­
fica que, em nome de interesses vitais para indivíduos humanos ou para a
espécie humana, nos auto-defendamos contra formas de vida agressivas ou
patogénicas, ou até que encontremos noutras espécies formas do nosso
sustento alimentar, também pode justificar que removamos, através da
experimentação, obstáculos à subsistência e ao progresso do bem-estar da
nossa e de outras espécies688/68 9.

68 5 Cfr. Smith, Richard, "Animal Research: The Need for a Middle Ground", British
Medical Journal, 322 (3/2/200 1), 248.
686 Quanto à experimentação, o dispositivo comunitário é frouxo e vincadamente
antropocêntrico, visto que assume que impõe apenas "normas mínimas", proscreve quais­
quer formas de "dor, sofrimento, aflição ou dano permanente" mas apenas quando sejam
"desnecessariamente infligidos", admitindo que nalguns casos eles sejam "inevitáveis",
caso em que se prescreve o dever de reduzir ao mínimo esses "padecimentos" - veja-se a
Directiva n.º 86/609/CEE, do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, transposta para a
ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei n.º 129/92, de 6 de Julho.
68 7 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 86.
688 Entre todos, Lehman, Hugh, "On the Moral Acceptability of Killing Animais",
Journal of Agricultura[ Ethics, 1 ( 1988), 155- 162.
689 E no entanto, cfr. Gluck, John P. & S.R. Kubacki, "Animais in Biomedical
Research: The Undermining Effect of the Rhetoric of the Besieged", Ethics and Behavior,
1 (199 1), 157- 173.
A Hora dos Direitos dos Animais 243

De que outra forma, com efeito, poderiam os não-humanos beneficiar


d aquele direito que a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, no seu
art. 2 .º, 2, in fine, diz assistir-lhes, que é o direito a beneficiarem dos pro­
gressos científicos e veterinários, estabelecendo a Declaração para o homem
"o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais"690?
Parece impor-se, deste modo, a necessidade de formulação de normas
internacionais relativas à salvaguarda do bem-estar animal na experimen­
tação científica - com «Códigos de Conduta» que sejam algo mais do que
«soft law», prevendo no mínimo poderes de supervisão de comissões de
ética69 I. Mais amplamente, de uma tal iniciativa «juridificadora» pode­
riam resultar mais amplos frutos, mormente no «adensamento ético» do
debate científico - um dos propósitos principais da bioética. Interessaria
afastar, da análise do problema do bem-estar animal, o preconceito de que
a ciência é perfeitamente neutra a valores, para enriquecer a discussão
científica do tema com dados valorativos, os quais, como já vimos, tão
agilmente se insinuam nas próprias asserções empíricas - por exemplo,
na referência ao sofrimento animal, a qual, desprovida da conotação ética
e da compreensão da subjectividade, até da própria inefabilidade dos esta­
dos individuais de percepção e sensibilidade, poderia regressar aos qua­
dros mecanicistas do «fisicalismo» cartesiano, legitimando implicitamente
a subalternização do «bem-estar animal» a considerações alegadamente
superiores de bem-estar - considerações antropocêntricas, como a de que
o bem-estar é antes de mais um fruto da produtividade económica humana,
coadjuvada por instrumentos, tanto inertes como vivos _ 692.

690 Cfr . Aureli, Donatella & Anna Mannucci, "II Veterinario come Mediatore
Sociale", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.), Per un Codice .. ., cit., 295-306; Rollin,
Bernard E., "Veterinary Ethics", in Bekoff, M. & C.A . Meaney (orgs.), Encyclopedia of
Animal Rights . . ., cit., 354-356.
69 1 Cfr. Allen, Don W., "The Rights of Non-Human Animals and World Public Order:
A Global Assessment", New York Law School Law Review, 28 (1983), 377ss.; e, para o
específico caso australiano, Andersen, W., "A New Approach . . . ", cit ., 45-54.
692 Cfr. Rollin, B.E., "Animal Welfare.. . ", cit., 44-50.
1 9. O Choque da Teriofilia
com o Ambientalismo - I
Uma Questão de Sensibilidade?

1 9 . a) A «Ecologia Profunda»
A causa dos direitos dos animais diverge amplamente do quadro
valorativo que subjaz às ponderações ecológicas mais radicais, e nomea­
damente à «ecologia profunda», conquanto a radicalidade das duas abor­
dagens, e a ênfase comum na necessidade de «descentramento» da bioé­
tica, possam sugerir uma maior afinidade, e tenham já propiciado alianças
políticas ocasionais.
A tese central da «ecologia profunda», desde a sua formulação inicial
em Ame Naess693 , passando pela sua consagração em James Lovelock694,
é a de que o desenvolvimento e o bem-estar de todas as formas de vida na
Terra têm um valor próprio e objectivo, independente de juízos de valor
(mormente de juízos de utilidade) por parte de uma só espécie, como é a
espécie humana.
A Terra é considerada um sistema fechado e orgânico, no qual tudo
depende de tudo, e não há, por isso, lugar a juízos de irrelevância, seja
formulados sobre o presente, seja projectados sobre o futuro, mesmo o
futuro mais remoto - já que todas as repercussões de todas as decisões
se farão sentir e se esgotarão nesse sistema fechado que não tem outra
alternativa que não seja a de se perpetuar pela auto-preservação e pela
auto-regeneração, por se tratar, em suma, de um invólucro finito para as

693 Naess, Ame, "The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement",
lnquiry, 16 (1973), 95-100.
694 Lovelock, James, Gaia: Um Novo Olhar Sobre a Vida na Terra (trad. p/ Maria
Georgina Segurado), Lisboa, Edições 70, 1989 .
246 O Choque da Teria.filia com o Ambientalismo

manifestações da vida, um pouco como uma nave espacial que tem que
transportar consigo todos os sistemas de apoio à manutenção da vida (0
que ficou consignado na metáfora da «spaceship earth», celebrizada por
Kenneth Boulding69 5).
Deste entendimento resultam corolários de «descentramento ético» ,
com crescente ênfase na desumanização, e depois até na «desanimaliza­
ção», como sejam:
- a biodiversidade, contribuindo para a prossecução das finalidades
de preservação da vida no planeta, é também em si mesma dotada
de um valor intrínseco;
- só a prossecução de necessidades vitais da espécie humana per­
mitiria a esta a interferência no desenvolvimento daqueles fins, e
especificamente a redução da riqueza e diversidade da vida;
- a moral da espécie humana deve adequar-se a essa perspectiva
biocêntrica ou ecocêntrica, em que impera o biossistema global
(«Gaia»), e a própria subsistência da espécie humana, como a de
qualquer outra espécie, está contingentemente exposta a conside­
rações sobre a «economia» do biossistema como um todo;
- a bioética transformar-se-ia numa «ética ambiental», centrada em
juízos de compatibilidade com o sistema holístico, e subordinada à
«santificação da biosfera» e aos respectivos interesses de equilí­
brio696 - sendo arredada deste «sistema holístico» a possibilidade,
seja de reconhecimento de esferas de interesses puramente indivi­
duais, seja de atribuição de direitos e prerrogativas individuais.
Facilmente se perceberá que o encadeamento destes corolários torna
problemática a sua articulação com a matéria dos direitos dos animais -
na qual predominam ainda juízos relativos ao vàlor ético e jurídico de indi­
víduos humanos e não-humanos, e o pano de fundo do condicionamento
ambiental tem uma relevância meramente indirecta697 -.

695 Boulding, K., "The Economics of the Coming Spaceship Earth", in Jarrett, Henry
(org.), Environmental Quality in a Growing Economy, Baltimore, Johns Hopkins Univer­
sity Press, 1966, 3-14.
696 Sobre a centralidade do conceito (ou preconceito) de «equilíbrio ambiental», ou
«homeostase», e as ambiguidades que se acumulam em seu torno, cfr. Shrader-Frechette,
K.S. & Earl D. McCoy, "How the Tail Wags the Dog. How Value Judgments Determine
Ecological Science", Environmental Values, 3 ( 1994), 107-120 .
697 A ênfase no problema do sofrimento denota que a análise se centra no nível indivi­
dual, o único em que efectivamente (não-alegoricamente) o sofrimento pode ser experimentado.
A Hora dos Direitos dos Animais 247

Por isso se compreenderá também que alguns dos defensores dos


direitos dos animais, como Tom Regan, tenham denunciado o carácter
totalitário do «fascismo ecológico», ou «eco-fascismo» 698 , que eles vêm
representado na «ecologia profunda», enquanto os ambientalistas acusam
os defensores do bem-estar animal de "ódio pela natureza"699 - sendo de
reconhecer, para lá dos epítetos, que há decerto muito antropomorfismo
que se alberga na teriofilia700, mas também que a «ecologia profunda» é,
no seu afã de combate à «cega preferência pelo presente» que resulta da
existência de elevadas «taxas sociais de desconto», um prolongamento no
tempo de algumas ideologias historicistas de «futurismo moral», de apelos
salvíficos ao «sacrifício do presente» que a nossa civilização tem apren­
dido a associar às «tentações totalitárias» 10 1 ...
Dir-se-ia que essa mera possibilidade de desenvolvimento lógico em
consequências pró-totalitárias bastaria para incutir sensatez nesta forma
peculiar de «descentramento», para moderar os ímpetos, quer do ecocen­
trismo originado na obra de Aldo Leopold702/70 3, quer do biocentrismo,
centralmente representado pela obra de Paul Taylor704.

69 8 Cfr. Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 36 1-362.
699 Cfr. Hettinger, Ned, "Valuing Predation in Rolston's Environmental Ethics:
Bambi Lovers versus Tree Huggers", Environmental Ethics, 16 ( 1994), 3.
700 Mas também na «ecologia profunda», quando nas campanhas tende a utilizar as
imagens mais «temurentas» dos animais (as crias de elefante, as focas-bébé), recorrendo
ao mesmo aproveitamento dos sentimentos de afeição generalizadas pelos animais que
dizem desdenhar na causa teriofílica. Cfr. Milliet, Jacqueline, "La Part Féminine dans le
Phénomene Animal de Compagnie", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions..., cit., 1092; Wal­
ler, D., "A Vegetarian ... ", cit., 187- 197. Cfr. ainda: Sapontzis, Steve F., "Environmental
Ethics versus Animal Rights", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Ani­
mal Rights. . ., cit., 16 1- 162.
70 1 Além disso, e como bem observava Fredric Jameson, é, no presente momento
civilizacional, mais fácil vislumbrar-se uma hecatombe de S:?lapso ecológico do que o fim
histórico do capitalismo.. . - Cfr. Jameson, F., The Seeds of Time, New York, Columbia
University Press, 1994, xii; cfr. ainda: Sperling, S., Animal Liberators. . ., cit., passim;
Sutherland, A. & J.E. Nash, "Animal Rights... ", cit., 171-186.
7 02 Leopold, Aldo, A Sand County Almanac, Oxford, Oxford University Press, 1949;
cfr. Callicott, Baird, ln Defense of the Land Ethic. Essays in Environmental Philosophy,
New York, SUNY Press, 1989.
703 Sobre a evolução da perspectiva ecocêntrica, cfr. Attfield, Robin, The Ethics of
Environmental Concern, cit., passim.
704 Taylor, Paul, Respect for Nature, cit., passim.
248 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

E no entanto a maré-alta da consciência ambiental acabou por ter um


impacto e uma difusão muito céleres por todo o mundo, a ponto de, nu m a
grande maioria de países - novamente com o pioneirismo dos Estados
Unidos da América705/706 -, muitos valores ecológicos e biológicos terem
visto a sua consagração apoiar-se na própria tutela penaF07, e encontrarem
eco na axiologia constitucional, subordinando os meios públicos à preser­
vação do ambiente e dos interesses da «biosfera» - o que não pode dei­
xar de surpreender, dada a amplitude do «descentramento ético» que tais
princípios subentendem já, e que vão muito mais além daquilo que por sua
vez é reclamado, em termos de descentramento, pela própria causa zoófila.
É isso que explica as alianças políticas ocasionais a que já aludimos,
e em especial explica porque é que a causa dos direitos dos animais tem
«aproveitado a boleia» dos pioneirismos ambientalistas, mascarando tacti­
camente as suas divergências de fundo.

1 9 .b) O conceito de «valor intrínseco»


Pense-se, por exemplo, no aproveitamento «jusnaturalista» que Tom
Regan fez da noção de valor intrínseco, não-instrumental, buscada nos

705 São vários os textos legislativos norte-americanos relevantes em matéria de pro­


tecção ambiental das espécies animais, como o Animal Welfare Act, 7 USC 2131-2159, o
Humane Slaughter Act, 7 USC 1901-1906, o Antarctic Conservation Act, o Bald and Gol­
den Eagle Protection Act, o Endangered Species Act, 16 USC 1531-1544, o Fur Seal Act,
o Laboratory Animal Welfare Act, o Marine Mammal frótection Act, 16 USC 1361-1407,
o Airborne Hunting Act, 16 USC 742j- l , o Wild Free-Roaming Horses and Burros Act, 16
USC 1331-1340, o Dolphin Protection Consumer Information Act, 16 USC 1385, o Bald
and Golden Eagle Protection Act, 16 USC 668-668d.
706 Cfr. Frasch, Pamela D., Bruce A. Wagman & Sonia S. Waisman (orgs.), Animal
Law. Cases and Materiais, Durham NC, Carolina Academic Press, 22002; e ainda: Bissell,
Steven J., "Hunting in the United States", in Bekoff, M. & C.A. Meaney (orgs.), Encyclo­
pedia of Animal Rights. . ., cit ., 201-202; Kelch, T.G., "Toward a Non-Property Status. . . ",
cit., 543-544; Mann, Joe, "Making Sense of the Endangered Species Act: A Human-Cen­
tered Justification", New York University Environmental Law Journal, 1 (1999), 246ss.;
Phillips, Mary T. & Jeri A. Sechzer, Animal Research and Ethical Conflict, New York,
Springer, 1989, 17-34, 179-197 .
101 Directa quando se entende constituir um crime de dano a sua lesão, indirecta pela
possibilidade de lesão de interesses ambientais através de crimes de perigo comum: veja­
se o exemplo do Código Penal e dos crimes previstos na Lei da Caça.
A Hora dos Direitos dos Animais 249

quadros da «ética ambiental», dela recolhendo algumas subtis ambiguida­


des, que não têm contribuído pouco para uma certa radicalização de pro­
pósitos em qualquer dos campos, como sejam as de que:
a) só merece o nosso respeito incondicionado aquilo a que reconhe­
çamos valor intrínseco (o que pode sugerir que esse «reconheci­
mento» pode não ser mais do que a projecção de uma mais ou
menos contingente vontade de respeitar, novamente antropocên­
trica);
b) ter valor intrínseco confere uma superioridade sobre o que não
tem valor intrínseco, que passa ipso facto a ter valor meramente
instrumental (aplicando-se a esta demarcação ambígua as mesmas
observações da alínea anterior);
c) tudo o que tem valor intrínseco tem o mesmo valor intrínseco -
sendo que quanto à aparência categórica desta última ambigui­
dade, remetendo para uma alegada impossibilidade de mensura­
ção ou de graduação708, o que tem sido denunciado709, há que
reconhecer que ela tem o estatuto lógico da proposição «se todas
as pessoas têm um peso, todas têm o mesmo peso».
Numa primeira abordagem, dir-se-á que a noção de «valor intrín­
seco» é, apesar do seu objectivismo (de assentar na falível impressão de
que é possível uma evidência objectiva, «ontológica», quanto ao «valor»
de seres e de coisas), inteiramente benigna e pedagógica até no seu rea­
lismo ingénuo, esforçando-se por furtar o acatamento de normas ao arbí­
trio dos destinatários através da ideia de que os valores são meramente
descobertos e não «gerados pelo avaliador», não sendo frutos da sua pura
subjectividade7 IOl7 I I ,
Efectivamente, pode conceber-se a ideia de «valor intrínseco» como
um limite à conduta alheia, que impõe a quem reconheça esse valor a
obrigação de preservá-lo - uma convenção de simples intento pragmá­
tico, que visa impor uma conduta de ab�tenção através da formação de
, ,

708 Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 240-241.
7 09 Cfr. Taylor, Paul, "Inherent Value and Moral Rights", The Monist, 70 (1987), 17.
1 10 Cfr. Rolston III, H., Environmental Ethics. . ., cit., 116.
1 1 1 Acusando Rolston de relativa insensibilidade ao valor intrínseco dos animais -
dada a sua aceitação até de práticas venatórias, que assimila à predação carnívora entre
espécies - , e de alinhar com os ambientalistas numa indiferença às manifestações de cons­
ciência e de capacidade de sofrimento na natureza, cfr. Hettinger, N ., "Valuing Predation... ",
cit., 3-20.
250 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

uma convicção - . Nesse sentido, do mesmo modo que se reconhece


valor intrínseco a circunstâncias ambientais, menos custaria ainda reco­
nhecer esse valor intrínseco aos animais, e até reconhecê-lo como algo de
permanente e não-contingente, na forma de direitos - sobretudo se se
levar em conta que, ao contrário do que sucede com entes inanimados,
esses animais têm uma existência que não depende inteiramente da pre­
sença e dos juízos de um observador, não são de modo algum puros
objectos fenoménicos1 1 2 .
A própria ausência de paridade e de potencial reciprocidade entre a
«esfera humana» e a «esfera ambiental», e até entre a «esfera animal» e a
«esfera inanimada» da natureza, permitem em suma encarar o biocen­
trismo e o ecocentrismo como não mais do que formas indirectas de antro­
pocentrismo, que basicamente visam incutir o respeito pelo papel de enti­
dades não-humanas e não-animais dentro do equilíbrio global do nosso
biossistema7 1 3 .

1 9 .c) Pragmatismo pedagógico, ou totalitarismo?


Por outras palavras ainda, poderia sustentar-se, numa interpretação
benevolente, que existe um desígnio pragmático que preside à adopção da
«ecologia profunda», que se prende com as necessidades de sucessão de
paradigmas, e nomeadamente com a necessidade de minimizar concessões
e atrasos na imposição .de uma «normatividade ecológica» que trouxesse
ao Direito uma consciência de limites (de sustentabilidade, entre outras),
de incerteza (reclamando a precaução e a prevenção) e de necessidade de
reformulação conceitual, naquelas áreas de fronteira nas quais as tradicio­
nais noções jurídicas nunca captariam com a celeridade necessária as sub­
tilezas das novas entidades ecologicamente relevantes7 1 4.
Como pedagogia axiológica, poderia até sublinhar-se a possibilidade
de a ideia de «valor intrínseco» ser expandida analogicamente, a partir do

1 12 Cfr . Sprigge, T.L.S., "Non-Human Rights: An Idealist Perspective", Inquiry, 27


( 1984), 439-46 1.
7 1 3 Cfr. Luke, T., "The Dreams . . . ", cit., 82-83.
7 1 4 Cfr . Tallacchini, Mariachiara, Diritto per la Natura. Ecologia e Filosofia del
Diritto, Torino, Giappichelli, 1996, passim; Comstock, Gary, "How Not to Attack Animal
Rights from an Environmental Perspective", Between the Species, 4 (1988), 177- 178.
A Hora dos Direitos dos Animais 251

centro dos agentes morais até à periferia das pessoas morais que não são
agentes , e por fim até aos sujeitos morais que não são pess oas , des tac ando
nos organismos vivos a sua capacidade de existência autóno ma, susceptí­
vel de organização e reprodução espontâneas , ou seja, o seu grau de simi­
litude a verdadeiros e plenos agentes morais 7 I S - uma ilusão antropo ­
mórfica, decerto , mas porventura útil para aqueles que não quisess em
aventurar-se pelos bastidores das convicções socialmente partilhadas , em
busca dos fundamentos de uma abnegação ética com sacrifício do presente
dentro de um quadro de ganhos e perdas do qual a reciprocidade está
ausente .
Contudo , a insistência na objectividade do «valor intrínseco» , seja do
ambiente, seja dos animais , não se coaduna com a sofisticação relativista
(e nominalista) que hoje é reclamada pela generalização de sociedades
humanas plurais e tolerantes , nas quais a coexistência não depende de
«unanimismos» , e dispensa, desconfiando profundamente deles , dos
desígnios centrípetos das «conversões às evidências». Nesses termos , pode
considerar-se que o discurso ecologista, com as suas tendências meta-nar­
rativas e a sua propensão para converter-se numa «Weltanschauung», é
dissonante em relação à tendência pós-moderna que fez decair as utopias
políticas e fragmentar o dogmatismo científico , como assinala Luc Ferry
logo nas primeiras páginas de A Nova Ordem Ecológica7 16 , um ataque em
forma à «deep ecology» e ao ecofeminismo - que logo prossegue com a
especificação dos seus receios , orientados para a evolução pró-totalitária
do doutrinarismo zelota e radical que se refugia nas causas ambientalistas ,
e até nos seus pendores nostálgicos (de uma pureza pristina) ou futuristas
(da «restauração» romântica de uma ordem purificada) 7 1 7 .
Alguns dos argumentos de Luc Ferry, admitamos , são excessivos ,
mormente quando conota as posições da «ecologia profunda» com o tota­
litarismo das leis nazis de protecção aos animais "pelo seu valor intrín-

7 1 5 Subscrevendo essa ideia - bizarramente evocativa dos atavismos da «Cadeia do


Ser» - cfr. Wetlesen, J., "Animal Rights or Human Duties?", cit., 163- 173.
7 1 6 Ferry, Luc, A Nova Ordem Ecológica. A Árvore, o Animal e o Homem (trad. p/
Luís de Barros), Porto, Asa, 1993.
7 1 7 A sua posição, de receio dos «alçapões totalitaristas» que se encontram no radi­
calismo ecológico, não deixa de evocar a de Luhmann, Niklas, Ôkologische Kommunika­
tion. Kann die moderne Gesellschaft sich auf okologische Gefarhdungen einstellen?, Opla­
den, Westdeutscher, 2 1988.
252 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

seco"718 - , tendo razoavelmente de se reconhecer que essa assimilação


não pondera suficientemente a relação, na ideologia nazi, do ambienta­
lismo naturista com o racismo, um cruel expediente retórico que (trans­
pondo do especismo para o racismo, numa inversão da sequência habitual)
visava retratar como «natural» a existência de "Untermenschen"719172o .
Luc Ferry abusa, em suma, de um «sofisma disjuntivo» que acaba por
redundar em maniqueísmo, «arrumando» em dicotomias posições que só
por mero acaso coincidem e não se conseguem fazer derivar umas das
outras72 1.

1 9 .d) Contradições, convergências e ambiguidades


O facto é que, como já dissemos, as ocasionais alianças políticas, a
partilha de preocupações básicas convergentes722 e até a compatibilidade

718 Veja-se o Código Penal do III Reich, de 26 de Maio de 1933, que sancionava a
crueldade contra os animais, por julgá-la contrária aos bons costumes - cit. in Ferry, L. &
C. Germé (orgs.), Des Animaux et des Hommes, cit., 50.
7 1 9 Cfr. Bratton, S.P., "Luc Ferry's Critique of Deep Ecology ... ", cit., 3-22.
720 E também não parece resistir, como já vimos, ao «contra-argumento dos Volks­
wagens». Refutando como um mito a tradição de que a teriofilia fosse um alicerce da ideo­
logia nazi, cfr. Kalechofsky, R., "Nazis and Animais...", cit., 32.
12 1 Como judiciosamente observa Armengaud, Françoise, "Au Titre du Sacrifice:
L'Exploitation Économique, Symbolique et Idéologique des Animaux", in Cyrulnik, B.
(org.), Si les Lions ..., cit., 884-885.
722 Cfr. Callicott, J.B., "Animal Liberation: A Triangular Affair", cit., 311-338; eius-
dem, "Animal Liberation and Environmental Ethics . . . ",. cit., 163- 169; eiusdem, ln Defense
of the Land Ethic. . ., cit.; eiusdem, "Moral Monism... ", cit., 51-60; eiusdem, "The Search
for an Environmental Ethic", in Regan, T. (org.), Matters of Life and Death . . ., cit., 322-
382; eiusdem, "«Back Together Again» Again", Environmental Values, 1 (1998), 461-475;
eiusdem, "Whaling in Sand County: The Morality of Norwegian Minke Whale Catching",
in Chappell, T.D.J. (org.), The Philosophy of the Environment, cit., 156-179; Heeger,
Robert & Frans W.A. Brom, "Intrinsic Value and Direct Duties: From Animal Ethics
Towards Environmental Ethics?", Journal of Agricultura[ and Environmental Ethics, 10
(2001), 241-252; Jamieson, Dale, "Animal Liberation is an Environmental Ethic", Envi­
ronmental Values, 1 (1998), 41-57; Johnson, Edward, "Animal Liberation versus the Land
Ethic", Environmental Ethics, 3 (1981), 265-273; Norton, Bryan G., "Environmental
Ethics and Nonhuman Rights", Environmental Ethics, 4 (1982), 17-36; Varner, Gary E.,
"Can Animal Rights Activists Be Environmentalists?", in Marietta Jr., Don E. & Lester
Embree (orgs.), Environmental Philosophy and Environmental Activism, Lanham MD,
Rowman & Littlefield, 1995, 169-201; Varner, G .E., "The Prospects for Consensus... ",
A Hora dos Direitos dos Animais 253

de alguns dos objectivos da militância não têm impedido a subsistência,


por entre lamentos manifestados por ambos os campos723, de um cisma
entre ambientalismo e zoofilia, entre os baluartes mais radicais dos
«defensores das árvores» e dos «defensores dos animais», mormente a
propósito do problema da predação natural e da reacção humana na defesa
de um «direito ao não-sofrimento»724, e também da compaginação do res­
peito pelos interesses individuais dos animais com os interesses colectivos
de sustentação ambiental dos seus habitats725.
Os ecologistas, e em especial os «holistas» seguidores de Aldo Leo­
pold e de J. Baird Callicott, tendem a acusar os defensores dos direitos dos
animais de excessivo individualismo e de antropomorfismo726, quando a
verdade é que o esforço «anti-especista» parece sugerir precisamente o
contrário, a capacidade de transcender as fronteiras implícitas no juízo
ético de reabilitação da condição dos não-humanos também como espé­
cies. Em todo o caso, mesmo de uma relação de hostilidade ou de indife­
rença entre . espécies - tanto mais plausível a indiferença quanto mais
levarmos em conta a separação de «habitats» naturais das várias espécies
- é possível fazer nascer, para os seus destinatários humanos, uma ética

cit., 24-28; eiusdem, ln Nature 's lnterests? lnterests, Animal Rights, and Environmental
Ethics, New York, Oxford University Press, 1998; Warren, Mary Anne, "The Rights of the
Nonhuman World", in Hargrove, Eugene C. (org.), The Animal Rights!Environmental
Ethics Debate: The Environmental Perspective, Albany NY, SUNY Press, 1992, 185-210;
Westra, Laura, "Ecology and Animals: Is There a Joint Ethic of Respect?", Environmental
Ethics, 11 (1989), 215-230.
7 2 3 Cfr. Jamieson, D ., "Animal Liberation . . . ", cit., 3-24; e as críticas a essa posição
em Callicott, J.B ., "«Back Together Again» Again", cit., 461-475; Crisp, Roger, "Animal
Liberation is not an Environmental Ethic: A Response to Dale Jamieson", Environmental
Values, 1 (1998), 476-478 .
7 24 Cfr. Benton, Ted, Natural Relations. Ecology, Animal Rights, and Social Justice,
London, Verso, 1993 ; Everett, J ., "Environmental .Ethics, Animal Welfarism . . . ", cit., 42-
67 ; Hettinger, N ., "Valuing Predation . . .", cit., 3-20; ,Mid�Íey, M ., "Beasts Versus the Bios­
phere?", cit., 113-121; Sapontzis, Steve F., "Predation", in Bekoff, M. & C .A . Meaney
(orgs.), Encyclopedia ofAnimal Rights .. ., cit., 275-276; Stewart, Kristin L., "Dolphin-Safe
Tuna: The Tide is Changing", Animal Law, 4 (1998), l l l ss . .
7 2 5 Cfr. Midgley, M ., "Beasts Versus the Biosphere?", cit., 113-122.
7 26 É que a ênfase individualista da teriofilia, a sua concentração no problema do
sofrimento, choca com dois conceitos da maior importância para os ecologistas: aptidão e
selecção natural. Cfr. Aitken, Gill, "Conservation and Individual Worth", Environmental
Values, 6 (1997), 439-454 .
254 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

de respeito pelos animais que seja ao mesmo tempo compatível com a con­
sideração de um ética ambiental «holística»727 .
Note-se, de passagem, que o «holismo» gerado na ecologia é em bom
rigor extensível também aos domínios da teriofilia. É que nela, tal como
no ambientalismo, o raciocínio parte da constatação da ausência de dife­
renças essenciais (registo ontológico) para a insistência na necessidade de
não-discriminação nos pontos relevantes (registo normativo), seja em ter­
mos de inserção numa comunidade biótica (a tese da deep ecology), seja
em termos de simples erradicação do sofrimento (tese utilitarista), sendo,
portanto, que neste segundo caso a «libertação» se confina aos seres sen­
síveis, únicos titulares de interesses - mas o faz uniforme e globalmente,
sempre de acordo com o mesmo critério de harmonia agregada728 .
Voltando ao problema dos «direitos», sugerimos já que ele pode nascer
de colisões de interesses mas não se esgota neles, e que a atribuição de direi­
tos substantivos a indivíduos não-humanos, para ser uma verdadeira atribui­
ção, deve impor o respeito, a proibição de interferência em interesses rele­
vantes, mesmo quando não estejam em jogo interesses cruciais para
qualquer das espécies envolvidas - não permitindo afinal que uma certa
impressão de normalidade dissolva em irrelevância a posição do núcleo de
interesses que pode ser associado a cada indivíduo não-humano. Ora, como
sabemos que não é um interesse exclusivamente humano o da preservação e
sustentação de um determinado habitat natural, e que todos os animais par­
tilham esse interesse de um modo não-trivial (um interesse não-conflituante
enquanto se mantém um equilíbrio populacional ou os habitats não se degra­
dam), cá temos uma boa base «holística» de convergência entre a causa
teriofílica e as preocupações da «ecologia profunda»729.
Do lado ambientalista, existe também a impressão de que os defen­
sores dos direitos dos animais, na medida em que insistem na associação
de «valor intrínseco» a «estatuto moral», tendem a desconsiderar o valor
intrínseco do ambiente, aceitando-o apenas como valor instrumental para
aquele conjunto restrito de seres vivos aos quais é possível atribuir um
estatuto moral - os únicos em relação aos quais a causa zoófila concebe-

7 27 Cfr. Westra, L., "Ecology and Animais... ", cit., 2 15-230.


7 28 Cfr. Ost, François, A Natureza à Margem da Lei. A Ecologia à Prova do Direito
(trad. p/ Joana Chaves), Lisboa, Instituto Piaget, 1997, 245, 259; e ainda: Duarte, Maria
Manuela dos Anjos, Opções Ideológicas e Política Ambiental, Coimbra, Almedina, 1999.
7 29 Cfr. Taylor, A., "Animal Rights and Human Needs", cit., 249-264.
A Hora dos Direitos dos Animais 255

ria que haja verdadeiros deveres morais -. Não admira, pois, que os
ambientalistas suspeitem que o movimento de «libertação animal» venha
não só a aceitar como toleráve�s muitas práticas lesivas do ambiente, ape­
nas porque o bem directamente lesado não é um ser vivo e sensível dotado
das características que permitem a sua consideração moraF30, mas tam­
bém que promova, ou aplauda a promoção, de medidas intencionalmente
dirigidas à «correcção» de aspectos ambientais que, para aquele movi­
mento, se afigurem como veiculadores de sofrimento.
Contrapor-se-á a isto que a própria «ética ambiental» é, intencional­
mente ou não, uma confluência de muito variadas perspectivas das huma­
nidades e das ciências, especialmente apta, no seu eclectismo necessário,
para espelhar o pluralismo dos interesses socio-políticos e para, quando se
esquiva da congruência fanática, se dissolver em proclamações programá­
ticas não raro inconsequentes73 I, e que por isso falta um ponto focal mais
nítido em direcção ao qual se exorte a causa teriofílica a evoluir.
Em ilustração dessa fundamental ambiguidade que perpassa o
ambientalismo, pense-se na discussão em torno do papel «natural» da
caça. Para alguns ambientalistas, ela deveria constituir a mais grave viola­
ção da integridade ambiental, e não apenas em termos da ansiedade, sofri­
mento ou perturbação dos padrões de conduta e da existência normal dos
animais perseguidos, nem apenas em função do risco que faz incorrer à
subsistência das espécies, mas também, e muito antes de qualquer verifi­
cação de danos tão aparentes, por força do dano mais subtil e decisivo que
é a anomalia da simples interferência ecológica, da simples presença do
homem fora do seu habitat e dentro do das espécies perseguidas, bulindo
com a respectiva normalidade, como observador cuja presença atenta já
contra um certo tipo de «privacidade ambiental» das espécies, suscitando
reacções de defesa dos seus perturbados interesses de segurança, de terri­
torialidade e de procriação - razão pela qual possivelmente até os «foto­
safaris» deveriam ser proibidos732/733.

730 Cfr. Everett, J ., "Environmental Ethics, Animal Welfarism... ", cit., 44; Jamieson,
Dale, "Rights, Justice, and Duties to Provide Assistance: A Critique of Regan's Theory of
Rights", Ethics, 100 (1990), 349-362.
73 1 Cfr. Potter, Van Rensselaer, "Fragmented Ethics and «Bridge Bioethics»", Has­
tings Center Report, 29/ 1 (1999), 38-40.
732 Cfr. Kawall, Jason, "Is (Merely) Stalking Sentient Animais Morally Wrong?",
Journal of Applied Philosophy, 17 (2000), 195-204.
733 Pela mesma razão, todos os zoólogos tendem hoje a ser «comportamentalistas»,
256 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

Para outros ambientalistas, bem pelo contrário, a caça é (dentro dos


limites da sustentabilidade, entenda-se) um acto «natural» de predação das
espécies animais pelo homem, e só a «caça desportiva» é objecto de cen­
sura73 4. Assim, tanto a «ética da terra», de Aldo Leopold, como o primiti­
vismo inspirado em Ortega y Gasset73 5 parecem justificar a caça como
acto natural (um acto amoral, pois, axiologicamente neutro) de predação
por parte da espécie humana, ou como um regresso a formas mais «sau­
dáveis» de integração na natureza, mesclando motivos darwinistas com
uma fixação na morte e na violência, como se estes fossem matrizes cul­
turais tradicionais a regatearem a primazia com o desejo civilizacional de
prevalência de uma vida moralmente justa - uma «cristalização» de
ideais românticos de fascínio pelo pré-racional, pelo telúrico, pelo urânico,
como «formas perdidas» de uma autenticidade humana que só se recobra­
ria, em promeneur solitaire, pagando tributo ao ritual da predação e do
sangue, na voragem do sofrimento736. A ambivalência sobre o tema não
podia ser maior nem mais manifesta.

1 9 .e) Da santificação ao relativismo


Além disso, se já censurámos à teriofilia os seus excessos de «santi­
ficação», o que dizer do ambientalismo? É que santificar tudo aquilo que
integra o ambiente como dotado de valor intrínseco - deixando equivo­
camente subentendido · que tudo o que tem valor intrínseco tem o mesmo

a limitar-se à observação dos animais no seu habitat, procurando provocar o mínimo pos­
sível de interferências. E isto porque cada vez menos se aceita que uma «espécie» seja ape­
nas um legado genético de traços anatómicos e fisiológicos, para se lhe acrescentar requi­
sitos respeitantes à etologia e à ecologia, respeitantes ao espaço natural de manifestação
irrestrita de condutas - cfr. Nouet, Jean-Claude, "Zoos", in Cyrulnik, B. (org.), Si les
Lions ... , cit. , 544, 549.
734 Coisa que, do ponto de vista dos defensores dos direitos dos animais, é patente­
mente absurda, visto que em matéria de minimização do sofrimento o intuito «desportivo»
ou «não-desportivo» é totalmente irrelevante (apenas denunciando antropocentrismo na
sua pior faceta, que é a da indiferença ao sofrimento alheio, alicerçada na existência de uma
razão exculpativa para o acto danoso).
735 Veja-se o «Prólogo» à obra do Conde de Yebes, Veinte Anos de Caza Mayor
(1942), in Ortega y Gasset, José, Obras Completas, Madrid, Alianza Editorial / Revista de
Occidente, 1983, V I, 419-491.
736 Cfr. King, R.J.H., "Environmental Ethics ... ", cit. , 59-85.
A Hora dos Direitos dos Animais 257

valor intrínseco - , não pode deixar de paralisar algumas decisões prag­


máticas que sejam reclamadas por colisões de interesses, bloqueando o
sacrifício de alegados «valores intrínsecos» quando houvesse valores,
mesmo valores instrumentais, superiores: por exemplo, o extermínio de
uma praga de insectos que ameaçasse destruir uma colheita, ou uma pas­
tagem. Tudo poderia redundar num beatífico, mas inconsequente, «estupor
contemplativo», numa combinação de resignação fatalista e imobilista
com um jainismo levado «à outrance» - como melhor veremos a propó­
sito do problema da predação natural (Capítulo 2 1 ) .
Mais uma vez, poderia porventura sustentar-se, romanticamente, que
uma tal santificação indiscriminada da natureza constituiria um regresso a
formas civilizacionais mais conformes e integradas nos ritmos ambientais,
mais «edénicas»: só que um tal «ecologismo primitivo» nunca existiu,
como tem sido abundantemente provado por Jared Diamond, com as suas
demonstrações de que as sociedades pré-industriais destruíram habitats e
dizimaram espécies, esgotaram recursos e deterioraram as bases materiais
das suas próprias economias, não tendo havido nessas populações primiti­
vas qualquer conduta «ambientalmente correcta» nem qualquer amor
genuíno pelo valor da natureza, como seria de esperar em contextos de
maior ignorância relativamente aos valores em jogo e aos meios de res­
peitá-los - o que por sua vez evidentemente impede que se lhes estenda
a censura que cabe à persistência actual de atitudes similares7 37 .
Não admirará, pois, que nenhum defensor do ambientalismo, tal
como nenhum dos mais acrisolados defensores dos direitos dos animais,
seja capaz de resistir à conciliação do objectivismo dos «valores intrínse­
cos» com algumas regras de conflitos capazes de resolverem os impasses,
ou de salvaguardarem a prevalência última dos interesses humanos - no
campo teriofílico, pensemos nas prioridades admitidas por Paul Taylor7 38,
no critério utilitarista de Peter Singer, no apelo «especista» de James
Sterba7 39, na reponderação para efeitos de cadeias alimentares admitida
por J. Baird Callicott740 , e mesmo no «worse-off principie» de Tom Regan.

737 Cfr. Diamond, Jared, The Third Chimpanzee: The Evolution and Future of the
Human Animal, New York, HarperCollins, 1 992, passim.
73 8 Cfr. Taylor, Paul, Respect for Nature, cit., passim; eiusdem, "Inherent Value and
Moral Rights", The Monist, 70 (1987), 17ss..
739 Cfr. Sterba, J .P., Three Challenges to Ethics . . ., cit., passim.
740 Cfr. Callicott, J. Baird, "The Search for an Environmental Ethic", in Regan, T.
(org.), Matters of Life and Death . . ., cit., 322ss..
258 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

Aliás, que coisa mais antropocêntrica haverá do que esse reconheci­


mento de um «valor intrínseco» que é colocado como condição de «digni­
dade», como pressuposto de atribuição de direitos, ou seja, de adopção de
atitudes de respeito para com os interesses de entes vivos, se somos força­
dos a admitir que essa noção de «valor intrínseco» é eminentemente sub­
jectiva e relativizável a cada contexto cultural?74I Por exemplo, se um cão
é essencialmente encarado como um animal de companhia - caso da
Europa - o seu valor intrínseco é o centro de imputação de direitos, e 0
seu bem-estar pode ser tão zelosamente observado como sucederia com
uma vaca sagrada na Índia; mas se o mesmo cão é tido como um animal
de trabalho ou como um animal de abate, destinado à alimentação humana
- caso do Extremo Oriente - , a sua exclusão do círculo social humano
fá-lo ter essencialmente um valor de uso, um valor funcional e instrumen­
talizado, vendo o seu bem-estar ser tão despromovido e banalizado como
o é o das vacas na Europa1 4211 43. E não seríamos nós arrastados para o con­
formismo perante tradições lesivas do ambiente e do bem-estar animal, se
essas tradições demonstrassem a inexistência de reconhecimento de «valor
intrínseco» nos interesses lesados? Que pedagogia poderia haver, então?
Concentrando-nos um pouco mais nas incidências sobre o nosso
tema, admitamos que a própria concepção do que é «um animal» é cultu­
ralmente «construída», isto é, está fragilmente presa de crenças civiliza­
cionais, ideológicas, religiosas - a decisão quanto ao carácter mais ou
menos sagrado do animal, a sua domesticação, a sua integração em pro­
cessos produtivos como matéria-prima ou como coadjuvante instrumental
no processo produtivo, o seu simbolismo mais ou menos «simpático» ou
«feroz», até a sua posição num processo evolutivo, tudo isso dependendo

74 1 Cfr. Gewirth, Alan, "Human Dignity as the Basis of Rights", in Meyer, Michael
J. & William A. Parent (orgs.), The Constitution of Rights. Human Dignity and American
Vaiues, lthaca NY, Comell University Press, 1992, 10- 12, 2 1-24; Gewirth, Alan, Self-fui­
fillment, Princeton NJ, Princeton University Press, 1998, 159ss..
742 Cfr. Baker, Steve, Picturing the Beast. Animais, ldentity and Representation,
Manchester, Manchester University Press, 1993; Franklin, A., Animais and Modem Cuitu­
res. .., cit.; Guha, Ramachandra, "The Authoritarian Biologist and the Arrogance of Anti­
Humanism. Wildlife Conservation in the Third World", The Ecoiogist (27/2/1997), 14- 19.
743 Isso não impede que haja clivagens dentro de uma mesma cultura - por exem­
plo, quanto à comestibilidade de caracóis, rãs ou ostras - animais cuja ingestão causa
repugnância no mesmo meio em que o seu consumo é mais massificado. Cfr. Fischler,
Claude, "Le Comestible et I' Animalité", in Cyrulnik, B. (org.), Si ies Lions... , cit., 95 1-952.
A Hora dos Direitos dos Animais 25 9

de uma descrição «contaminada» por aquelas crenças, a qual por sua vez
condiciona aquilo que julgamos legítimo na nossa forma de relação com
os animais . A descrição, em suma, condiciona a prescrição744 . Mais relati­
visticamente ainda, subscrevamos a observação de que aquilo que salva
muitos animais de acabarem na frigideira é o facto de acidentalmente lhes
termos atribuído um nome próprio745 .
Descontado o antropocentrismo - porventura inevitável - não é, de
facto, irrelevante nem ocioso colocar-se a interrogação acerca da definição
cultural do conceito de «animalidade», visto que ela representa coisas dis­
tintas para o público em geral, para os zoologistas, para os ambientalistas
e para os apologistas da «libertação animal», sem que se tome evidente se
alguns destes sentidos, ou todos, são demasiado parciais e deslocados para
uma determinação do conceito-base, para a definição de espécie, de habi­
tat, de processo evolutivo, e para a convergência entre as perspectivas
individual e global dos interesses da sustentabilidade do ecossistema e da
sobrevivência e bem-estar animais746 .
A avaliação etico-jurídica, por sua vez, pode assumir duas formas
(não estanques) no que respeita à condição animal:
a) uma forma assumidamente antropocêntrica, que só reconhece nos
animais o valor que eles têm para nós, daí resultando que muitas
«espécies protegidas» só o sejam quando não interferem signifi­
cativamente na nossa cadeia alimentar, e que espécies que nos são
inúteis sejam facilmente reconcebidas como nocivas - pense-se
no exemplo dos ratos, cujo extermínio é muitas vezes abertamente
prosseguido, até por «razões ambientais»;
b) uma forma não-antropocêntrica, «essencialista» ou «não-instru­
mentalizadora», que procura transcender os condicionamentos
culturais para reconhecer um valor aos animais que não seja
dependente dos interesses humanos - ou até da proeminência
desses interesses na eventualidade de conflitos, bastando tomar-se
por exemplo um eventual «direito à identidade genética» que se

744 Cfr . Budiansky, Stephen, The Covenant of the Wild: Why Animais Choose
Domestication, New York, William Morrow, 1 992, passim.
745 Observação que reproduzimos de: Fischler, Claude, "Le Comestible et 1 'Anima­
lité", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions. . ., cit., 955.
746 Cfr. Lawrence, E.A., "Cultural Perceptions ... ", cit., 75-82; Lee, Keekok, "An
Animal: What Is lt?", Environmental Values, 6 (1997), 393-410.
260 O Choque da Teriofllia com o Ambientalismo

agudizará com a ampliação de possibilidade de manipulação bio ­


tecnológica das espécies7 47 .
Quando, apesar disso, se entra pelo campo das considerações do rela­
tivismo cultural, tanto o ambientalismo como o combate pelos direitos dos
animais podem sair enfraquecidos, pois ficam vedadas formulações objec­
tivistas-realistas ou alegações de superioridade moral de qualquer sistema,
remetendo as proposições morais para um plano predominantemente des­
critivo, aberto ao pluralismo . O caso só não é grave porque a posição rela­
tivista é facilmente compaginável com o pragmatismo, sendo dentro do
nosso contexto cultural específico, relativizado a esse contexto, que é de
esperar alguma eficácia na definição e defesa de direitos, sendo exclusi­
vamente aí que aparecem as descrições relevantes e condicionantes
daquilo por que tomamos o ambiente, as espécies, os animais - cada ani­
mal - , sendo também a partir daí que podemos tentar uma evolução das
nossas convicções sobre o estatuto e os interesses que estamos dispostos a
associar aos animais e ao seu habitat .
Com efeito, e em contrapartida, o apelo à universalidade de valores
transcendentes, se estes não têm um reflexo na nossa cultura, torna mais
lenta e difícil a prossecução de causas relevantes: pode ser que um dia a
nossa cultura aceite como um dado objectivo que todas as vacas são sagra­
das, e que por isso a sua integração em processos produtivos ou na cadeia
alimentar humana é algo de moralmente condenável: mas enquanto isso
não sucede, é decerto mais razoável tratarmos da salvaguarda dos interes­
ses vitais das vacas não-sagradas, na sua condição de animais integrados
em processos produtivos e em cadeias alimentares. A exigência de uma
revolução poderia converter-se em pretexto para a não-evolução, mais a
mais porque não se afigura ainda ser muito evidente para todas as culturas
que os animais não-humanos, ou que os interesses ambientais, têm o tal
«valor intrínseco», a ser salvaguardado por um esquema de protecção
similar àquele que agora se consolida e internacionaliza relativamente aos
«direitos do homem» .
Talvez a solução seja a oposta daquela que a exaltada absolutização
da «ecologia profunda» sugere: talvez a via seja a da adopção de um «con­
textualismo» de base casuística, que prescinda de «super-teorias» e de
«meta-narrativas», e antes remeta para o horizonte pragmático das nossas

147 Cfr. Clark, Stephen R. L., "Species-Essentialism", in Bekoff, M. & C.A. Meaney
(orgs.), Encyclopedia of Animal Rights . .., cit., 319-320.
A Hora dos Direitos dos Animais 26 1

decisões existenciais, pois é por esse horizonte referencial que em larga


medida «guiamos» as nossas respostas adaptativas, que depois recobrimos
com um discurso moral de alcance mais abstracto. Evitar-se-iam desse
modo generalizações que se desviassem do âmbito de compreensão das
nossas decisões imediatas: assim, por exemplo, na experimentação animal
seria de atender à percepção contextual da capacidade de sofrimento de
uma cobaia, admitindo-se que aí onde ela não fosse perceptível por qual­
quer alteração de conduta poderia partir-se do princípio de que não ocorre
deveras sofrimento748 - sem termos que nos envolver em intermináveis
investigações sobre a sensibilidade de todas as cobaias em todos os con­
textos, sem termos que remeter para um inesgotável debate sobre a natu­
reza do que seja o sofrimento ou a percepção do sofrimento, enquanto que,
à espera de uma atitude prática, cada uma das cobaias em cada um dos
diversos contextos possíveis continuaria exposta a sofrimentos .
Só que esta solução «nuancée» não satisfaz manifestamente as pers­
pectivas «entrincheiradas» dos absolutismos éticos, que tanto no ambien­
talismo como na defesa dos direitos dos animais se têm concentrado na
separação entre juízos morais e juízos pragmáticos, no sentido de obterem
formulações morais de validade universal e não-contingente, condicionan­
tes dos juízos pragmáticos e não condicionadas por estes: esforços, pois,
no sentido da erradicação de quaisquer relativismos culturais nesta maté­
ria, de qualquer «ser» antes do «dever-ser» ; esforços meta-éticos a favor
do objectivismo, da «ontologização», de um modo decalcado daquele que
já se sedimentou internacionalmente a propósito dos direitos fundamentais
- com ou sem falácias «especistas», com ou sem realismo ingénuo à mis­
tura - , e já tem averbado tantos progressos na sacralização de certos valo­
res ambientais749 .
Podemos admitir sem qualquer hesitação que não é negligenciável o
contributo que, para o anti-antropocentrismo, resultaria do reconheci­
mento do valor intrínseco dos animais - sendo que um tal reconheci­
mento decerto acentuaria o «argumento dos casos marginais», o da funda­
mental arbitrariedade de demarcação entre espécies dotadas de um igual
«valor intrínseco», deixando transparecer o especismo latente.

74 8 Cfr. Crisp, Roger, "Particularizing Particularism", in Hooker, Brad & Margaret


Olivia (orgs.), Moral Particularism, Oxford, Clarendon, 2000, 23-47 .
749 Cfr. Clarke, Paul & Andrew Linzey, Political Theory and Animal Rights, London,
Pluto Press, 1990, passim.
262 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

Quem sabe até se não deveríamos abandonar imediatamente os nossos


pruridos nominalistas (o autor fala por si) e aceitar que «valor intrínseco» é
já aquela sensibilidade consciente que a psicologia animal e a etologia têm
detectado em muitos mamíferos e aves, uma capacidade de sofrimento de
que pode derivar-se o reconhecimento universal de direitos básicos dos ani­
mais, uma demarcação objectiva, realista, daquilo que é permissível na
nossa conduta para com os animais, mormente em termos de lhes infligir­
mos esse sofrimento? Algo que nasce e se manifesta fora de nós, e que por
isso constitui um limite objectivo à nossa liberdade de acção?750
Mantenhamos, apesar disso, uma saudável atitude céptica (o autor
fala novamente por si), traduzida na reserva anti-objectivista e anti-rea­
lista, na consciência de que os valores são algo de culturalmente edificado,
algo que não nos é dado «descobrirmos» empiricamente, e quando muito
apenas reconstruirmos racionalmente, se é que admitimos que a nossa
racionalidade é capaz de um grau aceitável de incondicionamento, ou seja,
que é capaz de se transformar numa linguagem universal independente das
crenças locais que a tenham alimentado originariamente - propósito
especialmente difícil quanto aos animais, relativamente aos quais, como
vimos, a própria descrição é tão condicionante das prescrições morais que
possamos endereçar a cada uma das várias espécies75 I - . Atenhamo-nos
ao casuísmo indutivo, para não cairmos numa abstracção axiomatizadora
sem relevância prática por falta de complexidade e de ductilidade às sub­
tilezas da experiência efectiva e pragmaticamente vivida, uma abstracção
que se multiplicaria em meras proclamações de vontade dirigidas à consi­
deração de uns poucos valores abstractos.
Com estas precauções, reconheçamos a verdade poética que se insi­
nua no ponto de convergência entre teriofilia e «deep ecology», entre
«libertação animal» e «land ethic» - pois elas apontam para um «sum­
mum bonum» que não se esgota na utilitarista ausência de sofrimento mas
antes reclama a integridade, a estabilidade e a harmonia de uma «comuni­
dade biótica» 75 2, apoiada numa perfectibilidade que é a vocação última da

75 0 Cfr. Allen, C. & M. Bekoff, Species of Mind ... , cit., passim; Dawkins, Marian
Stamp, Through Our Eyes Only? The Search for Animal Consciousness, Oxford, Oxford
University Press, 1998; DeGrazia, D., Taking Animais Seriously . . ., cit., passim.
75 1 Cfr. Nagel , Thomas, "Value", in Racheis, James (org.. ), Ethical Theory. l - The
Question of Objectivity, Oxford, Oxford University Press, 1998, Cap. V III.
75 2 Cfr . Callicott, J .B., "Animal Liberation: A Triangular Affair", cit., 311-338.
A Hora dos Direitos dos Animais 263

nossa consciência moral, que faz com que o mundo «pule e avance» de
cada vez que o homem sonha -. Tudo está, pois, em aproveitar, desse
anelo de qualidade existencial, a sua vocação policêntrica - mesmo que
não ecléctica - , resgatando-a de perversões totalitárias 753.

753 Cfr. Rabb, J. Douglas, "From Triangles to Tripods: Polycentrism in Environmen­


tal Ethics", Environmental Ethics, 14 (1992), 177-183.
20. Biodiversidade e Espécies Ameaçadas

"A perfeição da espécie transcende a perfeição do indivíduo, tal


como a forma transcende a matéria. Por isso a multiplicação das
espécies é um contributo maior para o bem do universo do que a
multiplicação de indivíduos dentro de uma só espécie" - São
Tomás de Aquino754 .

20 .a) Indivíduo ou espécie?


É a espécie, não o indivíduo, que o ambientalismo coloca nas suas
preocupações quanto à condição animal - é para com a espécie que o
ambientalismo concebe que existam deveres directos, reservando para os
indivíduos dessas espécies meros deveres indirectos155 - . Não surpreen­
derá, por isso, que o Direito, no qual as categorias do ambientalismo se
expandiram de forma tão súbita e extensa, dê especial relevo a essa dimen­
são «globalizadora» que se traduz na preservação das espécies e no valor
da biodiversidade, objectivos de «sustentabilidade» formuláveis, em ter­
mos pragmáticos e antropocêntricos, como desígnios de "continuidade de
utilização dos recursos naturais", para empregarmos a expressão do art.
2.º da Lei n.º 1 1 /87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), reafirma­
dos mais explicitamente nas alíneas d) e j) do a�t; 4.º do mesmo diploma,
quando "a preservação do património genético e da sua diversidade" e "a
permanência da vida selvagem" são postas ao serviço da edificação de um

754 "Bonitas speciei excedit bonitatem individui, sicut formale id quod est materiale.
Magis igitur addit ad bonitatem universi multitudo specierum quam multitudo individuo­
rum in una specie" - São Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles, lib . 2, cap. 45, n. 6.
755 A observação é de: Kolber, A ., "Standing Upright. ..", cit., 1 77.
266 Biodiversidade e Espécies Ameaçadas

"ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento


social e cultural das comunidades"756/757.
É verdade que algum «descentramento ético» se detecta, quando o
art. 1 6.º, 1, da mesma Lei de Bases do Ambiente estabelece que a neces­
sidade de preservação das espécies da fauna visa garantir "o seu potencial
genético e os habitats indispensáveis à sua sobrevivência". Mas que é
ainda o bem arreigado antropocentrismo que dita a lei, resulta bem claro
até de instrumentos internacionais - bastando, para ilustrá-lo, uma passa­
gem do art. l .º da Convenção Quadro sobre a Diversidade Biológica, que
sublinha o valor da preservação da biodiversidade como um passo instru­
mental e intermédio para "a utilização sustentável dos seus componentes
e a partilha justa e equitativa dos benefícios que advêm da utilização dos
recursos genéticos"758.
A razão para esta ênfase «holística» ou «globalizante» como veículo
da juridificação da condição animal, encontra-a Ronald Dworkin na cir­
cunstância de tender a haver, por razões estéticas de «abstracção panorâ­
mica», mais respeito pelos processos de evolução de que resulta a diversi­
dade das espécies do que pelos indivíduos concretos que as compõem;
como se o mecanismo biológico tivesse um significado normativo para
nós, vedando-nos a interferência num processo de criação, de selecção e
de destruição que as demais espécies se impõem naturalmente umas às
outras - bastando inferirmos que, em termos darwinistas, cada espécie
bem sucedida na evolução representa a eliminação de espécies que teriam
sucedido se fossem mais· aptas do que aquelas - . Essa a razão também
pela qual, mesmo se estivéssemos dispostos a admitir seres transgénicos,
animais e vegetais, teríamos dificuldade de reconhecer a essas espécies
transgénicas um «valor intrínseco» comparável ao das espécies «natural­
mente formadas», ainda que os indivíduos de qualquer espécie, natural ou
«artificial», não se distingam na sua experiência vital em consequência

75 6 Cfr. Babbitt, Bruce, "Between the Flood and the Rainbow: Our Covenant to Pro­
tect the Whole of Creation", Animal Law, 2 (1996), 1ss . .
757 Sobre o «valor de reserva» e o «valor de legado» que se associam à preservação
das espécies, fazendo derivar deles uma posição drasticamente anti-teriofílica, cfr. Cooper,
David E., "Human Sentiment and the Future of Wildlife", Environmental Values, 2 (1993),
335-346.
75 8 Art. 1.0 da Convenção Quadro sobre a Diversidade Biológica, assinada no Rio de
Janeiro em 5 de Junho de 1992, e aprovada, para ratificação, pelo Decreto n.º 21/93, de 21
de Junho.
A Hora dos Direitos dos Animais 267

desse acidente na sua geração7 59. E também não é de rejeitar que essa pre­
ferência pela consideração da espécie em detrimento do indivíduo seja
uma imposição estética da nossa sensibilidade pós-moderna, que favorece
o valor contemplativo da integração ambiental dessas espécies, em nome
de uma vontade de «harmonia cósmica»760.

20 .b) O apoio da zoofilia na causa ambiental


Vimos anteriormente quais os motivos da tensão, ora latente ora
patente, que corre entre os campos ambientalista e zoofílico. Procuremos
agora motivos de convergência, mormente os que permitam colocar os
avanços culturais, políticos e jurídicos da causa ambiental ao serviço da
causa dos direitos dos animais. Com efeito, no seio de uma evolução
célere das formas de representação de interesses, tanto individuais como
gerais ou difusos, e das formas de legitimação que tão amplamente passa­
ram a abarcar os valores ambientais, seria tão estranho que os animais não­
humanos fossem deliberadamente excluídos76I como o seria que a causa
que os apoia não aproveitasse as sinergias com um movimento afim e que
lhe leva tanta vantagem como vanguarda (aproveitamento que se espera­
ria que permitisse uma evolução da actual protecção de espécies para uma
futura protecçãQ dos indivíduos integrantes dessas espécies762).
Exemplifiquemos: na dúvida quanto a «qualidades relevantes» dos
animais (inteligência? sensibilidade? vulnerabilidade? linguagem?) e no
meio de um debate, possivelmente irresolúvel, sobre a conexão entre
características próprias dos animais e a defesa dos respectivos interesses
vitais através de direitos, não seria de aplicar-se o mesmo princípio de pre­
venção que hoje domina a atitude jurídica perante as questões ambientais?
O mesmo princípio que a Convenção Quadro sobre a Diversidade Bioló­
gica tão eloquentemente enuncia no seu preâmbulo, o de que quando

759 Cfr. Dworkin, Ronald, Life 's Dominion: An Argument about Abortion, Euthana­
sia, and Individual Freedom, New York, Alfred A. Knopf, 1993, 78-79.
760 Cfr. Cooper, O .E., "Human Sentiment .. . ", cit., 335-346.
76 1 Cfr. Stone, Christopher D., "Should Trees Have Standing? - Toward Legal
Rights for Natural Objects", Southern California Law Review, 45 (1972), 453-455.
762 Para usarmos uma dicotomia também presente em: Gouveia, J .B., "A Prática de
Tiro aos Pombos ...", cit., 239.
268 Biodiversidade e Espécies Ameaçadas

"exista uma ameaça de redução ou perda substancial da diversidade bio­


lógica, não deve ser invocada a falta de completa certeza científica como
razão para adiar a tomada de medidas destinadas a evitar ou minimizar
essa ameaça"?763 Não seria esse princípio de prevenção um veículo
extraordinário para a promoção imediata do bem-estar animal e para a
minimização do sofrimento , uma espada para cortar o nó górdio dos deba­
tes entre defensores e opositores dos direitos dos animais - debates de
que os principais interessados se encontram naturalmente excluídos?
Nenhum defensor dos direitos dos animais poderá de boa fé conside­
rar como negativa a protecção especial que o Direito reserva aos animais
selvagens - em consonância com o art. 4.º da Declaração Universal dos
Direitos dos Animais - , ainda que essa protecção resulte apenas de razões
ambientais e de preservação da biodiversidade, ainda que na essência seja
ignorado o bem-estar dos indivíduos e apenas se realce a sua liberdade de
crescimento e de reprodução nas condições ambientais que lhe sejam pró­
prias como espécie .
Poderá também esse defensor dos direitos dos animais lamentar a
incongruência da Declaração Universal dos Direitos dos Animais , que ao
mesmo tempo despromove os interesses individuais dos não-humanos e se
encrespa contra o «genocídio» que associa à eliminação maciça de animais
selvagens , incluindo a poluição e a destruição de habitats como vias para o
genocídio (art. 1 2 .º)764/765 - como se, além disso, os animais domésticos ,

7 6 3 Veja-se, a esse propósito, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/99, de 17


de Maio, que visava a criação de uma Comissão de Coordenação Interministerial que asse­
gurasse, à luz dos valores daquela Convenção e por exigência da Lei de Bases do Ambiente,
o desenvolvimento de uma "estratégia nacional de conservação da natureza e da biodiver­
sidade", e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 152/2001, de 11 de Outubro, que adopta
essa "Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade" (enumerando,
no seu n.º 10, alguns princípios fundamentais da política de conservação da natureza: a) Prin­
cípio do nível de protecção elevado; b) Princípio da utilização sustentável dos recursos bio­
lógicos; c) Princípio da precaução; d) Princípio da prevenção; e) Princípio da recuperação; f)
Princípio da responsabilização; g) Princípio da integração; h) Princípio da subsidiariedade; i)
Princípio da participação; j) Princípio da cooperação internacional).
7 64 A dualidade de planos também se revela subtilmente no facto de os animais sel­
vagens serem objecto de estudo zoológico e biológico, enquanto que os animais domésti­
cos são objecto da «ciência veterinária» - cfr. Bodson, Liliane, "L'Histoire des Animaux",
in Cyrulnik, B. (org .), Si les Lions..., cit., 243 .
7 6 5 Que há, nesta promoção da poluição a «instrumento de genocídio», um doutrina­
rismo difícil de sustentar, toma-se claro quando consideramos que toda a actividade pro-
A Hora dos Direitos dos Animais 269

pela sua proximidade ao homem, não fossem mais susceptíveis ainda de eli­
minação maciça, sobretudo por motivos económicos, ou até como se os ani­
mais domésticos não fossem já eles próprios o produto de um outro «geno­
cídio», correspondente ao seu desenraizamento de um anterior ambiente
natural -. Mas o mesmo zoófilo não poderá deixar de reconhecer o quão
poderosas são a regulação jurídica e a proibição absoluta de exploração ou
extermínio de certas espécies animais para ultrapassar os impasses e inefi­
ciências advindos daquelas «falhas de mercado» que limitam a formação
espontânea de equilíbrios ecológicos em torno da actividade produtiva
humana, e limitam também a harmonização de interesses ambientais pela
simples via dos incentivos7 66: o quão poderosos têm sido instrumentos jurí­
dicos como a Convenção sobre Zonas Húmidas de Importância Internacio­
nal, especialmente como Habitat de Aves Aquáticas767, a Convenção sobre
o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagens Amea­
çadas de Extinção7 68, a Convenção sobre a Conservação das Espécies
Migradoras Pertencentes à Fauna Selvagem7 69, a Directiva Europeia relativa
à conservação dos habitats naturais e da flora e fauna selvagens770, e ainda,
a nível interno, o Decreto-Lei n.º 204/90, de 20 de Junho, que estabelece
medidas de protecção de animais selvagens, necrófagos e predadores, ou o
Decreto-Lei n.º 75/9 1, de 14 de Fevereiro, que visa a protecção das aves sel­
vagens e a salvaguarda dos respectivos habitats77 1.

dutiva é inevitavelmente poluente, pelo que uma equiparação daquele teor conduziria, se
interpretada literalmente, à paralização da actividade produtiva, ao sacrifício completo, e
exclusivo, dos interesses da espécie humana.
7 66 Cfr. Gare, Arran E., Postmodernism and the Environmental Crisis, London, Rou­
tledge, 1995, 77-78.
7 67 Convenção sobre Zonas Húmidas de Importância Internacional, especialmente
como Habitat de Aves Aquáticas, concluída em Ramsar no Irão, em 2 de Fevereiro de 1971,
aprovada pelo Decreto n.º 101/80, de 9 de Outubro.
7 68 Convenção sobre o Comércio Internacional !las Espécies de Fauna e Flora Sel­
vagens Ameaçadas de Extinção, assinada em Washington �Ín Março de 1973, aprovada
para ratificação pelo Decreto n.º 50/80, de 23 de Julho.
7 69 Convenção sobre a Conservação das Espécies Migradoras Pertencentes à Fauna
Selvagem, concluída em Bona em 24 de Junho de 1979, aprovada para ratificação pelo
Decreto n.º 103/80, de l l de Outubro.
770 Directiva n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de Maio, relativa à conservação dos
habitats naturais e da flora e fauna selvagens, transposta para o direito interno pelo
Decreto-Lei n.º 226/97, de 27 de Agosto.
11 1 Para uma panorâmica dos avanços legislativos nesta área, cfr. Ziekow, Jan, Tiers-
270 Biodiversidade e Espécies Ameaçadas

Nestes instrumentos jurídicos, o que sobreleva é a proibição de cap­


tura, detenção e abate intencionais de espécies selvagens, e colateralmente
a perturbação do respectivo «habitat», especialmente os locais de repouso,
de hibernação e de reprodução, e o comércio de animais ou de produtos
obtidos a partir do animal - como resulta da enumeração contida no art .
6.º da Convenção Relativa à Protecção da Vida Selvagem e do Ambiente
Natural na Europa (Convenção de Berna) 772.
O Decreto-Lei n.º 3 1 6/89, de 22 de Setembro, que entre nós regula­
menta a matéria, conquanto seja exemplarmente zeloso na enumeração
dos meios de caça que são proibidos (art. 7 .º), porque exaustivamente
proscreve todos aqueles que são, ou cruéis, ou especialmente eficientes na
destruição maciça de membros das espécies protegidas, contudo admite,
com grande amplitude (no seu art. 8.º, 1 ), derrogações dominadas por pro­
pósitos de prevalência indiscriminada dos interesses humanos, como os
que se reportam a "danos importantes nas culturas, nas florestas, nas
águas, na caça, nas pescas e no gado" (alínea b)) ou à "prossecução de
fins de investigação e de educação" (alínea d)). O potencial de conflito,
dir-se-ia, impede soluções categóricas e absolutas773.
E no entanto elas surgem pela via da responsabilidade civil e crimi­
nal, como resulta do estabelecimento de um regime de responsabilidade
objectiva por "danos significativos no ambiente, em virtude de uma acção
especialmente perigosa" (arts. 40.º, 1 , e 4 1 .º, 1 , da Lei n.º 1 1/ 87, de 7 de
Abril - Lei de Bases do Ambiente - ), cumulável com um regime de
tutela criminal (art. 46.º da mesma Lei de Bases do Ambiente e arts. 278.º
a 28 1 .º do Código Penal), o que não deixa de traduzir, embora mitigada­
mente, uma especial severidade que se insinua na avaliação dos danos cau-

chutz im Schnittfeld von nationalem und internationalem Recht. Tierschutzrechtliche Ein­


griffs-, Einfuhr-, Haltungs- und Ausstellungsverbote im Lichte von Verfassungs-, Gemeins­
chafts- und V olkerrecht, Berlin, Duncker & Humblot, 1999.
772 Convenção Relativa à Protecção da Vida Selvagem e do Ambiente Natural na
Europa, de 19 de Setembro de 1979, aprovada pelo Decreto n.º 95/81, de 23 de Julho.
773 Veja-se um lugar paralelo no art. l .º do Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril,
que regulamenta a matéria da protecção do lobo ibérico, e que especifica que as proibições
principais incidem no abate ou captura (alínea a)), na deterioração ou destruição do seu
habitat (alínea b)) e na sua perturbação, particularmente em períodos de dependência ou de
reprodução (alínea c)), para depois, no seu art. 2.0 , 1, admitir derrogações dominadas por
interesses de defesa da propriedade (alínea b)), ou por fins de investigação e de educação
(alínea d)).
A Hora dos Direitos dos Animais 27 1

sados a «elementos ambientais» que têm a peculiaridade de evidenciarem


sensibilidade e capacidade de sofrimento774 . Veja-se em especial o art.
278 .º do Código Penal, que sob a epígrafe "Danos contra a Natureza" faz
corresponder a pena de prisão até 3 anos ou a pena de multa até 600 dias 77 5
à eliminação de exemplares de fauna até ao desaparecimento, ou até ao
risco de desaparecimento, de uma ou mais espécies animais numa certa
região, ou que resulte em perda importante na população de uma espécie
animal legalmente protegida77 6 - transparecendo aqui uma dualidade de
planos que é explicitada no art. l .º, 4 da Lei n.º 92/95, de 1 2 de Setembro,
quando esta estabelece a distinção entre medidas gerais de protecção dos
animais, que se subentende visarem a salvaguarda do bem-estar individual
dos animais, e medidas de protecção de espécies em vias de extinção, rela­
tivamente às quais predomina o objectivo de preservação global dos ecos­
sistemas e das espécies .
Vemos assim como a causa da protecção dos animais pode beneficiar
do «élan» da legiferação ambiental, ainda que o mais lídimo sentimento
teriofílico não seja compatível com a aceitação passiva da prevalência
invariável dos interesses da espécie por sobre os interesses individuais,
aplicando aos não-humanos aquilo que não aceitamos na nossa espécie,
mormente que a existência e o destino individuais sejam inteiramente fun­
cionalizados a uma «identidade da espécie», a um «destino genético», à
mecânica da disputa da sobrevivência dentro de um «nicho ecológico»
apresentado como o resultado harmónico de um determinismo de custos e
benefícios genéricos, como uma «mão invisível» dentro de um «mercado
biológico» 777 .

774 Cfr., a propósito, Fiandaca, Giovanni, "Prospettive Possibili di Maggiore Tutela


Penale degli Animali", in Mannucci, A. & M. Tallacchini (orgs.), Per un Codice... , cit., 79-94.
77 5 Ou a pena de prisão até 1 ano, ou uma pena de multa, no caso de negligência.
77 6 Cfr. também: Santoloci, Maurizio, "l,'art. 727 dei Codice Penale nell'Attuale
Posizionamento Giuridico e Sociale", in Mannúccí; A. & M. Tallacchini (orgs.), Per un
Codice... , cit., 49-70.
777 Sobre o conceito evolucionista de «mercado biológico», cfr. Noe, Ronald, "Bio­
logical Markets: Partner Choice as the Driving Force Behind the Evolution of Mutua­
lisms", Barrett, Louise & S. Peter Henzi, "The Utility of Grooming in Baboon Troops",
Bshary, Redouan, "The Cleaner Fish Market", Hoeksema, Jason D. & Mark W. Schwartz,
"Modelling Interspecific Mutualisms as Biological Markets", todos in Noe, R., J.A.R.A.M.
van Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Economics in Nature. . . , cit. , 93- 1 1 3; 1 2 1 - 14 1 ; 1 65-
1 69; 1 73- 1 82.
272 Biodiversidade e Espécies Ameaçadas

Isso não significa desencanto com a via jurídica - até porque esta
não está irreversivelmente comprometida com a preferência pela consi­
deração dos valores da biodiversidade e do «valor intrínseco» da natu­
reza, nem com a desconsideração pela individualidade dos seres não­
humanos. Bem pelo contrário, não pode excluir-se que a ênfase na
linguagem dos direitos venha a tornar-se uma derradeira salvaguarda con­
tra a sobrecarga dos recursos e contra a degradação da biodiversidade
através da disseminação universal de uma «ética da compaixão», que
parta da repulsa instintiva com o espectáculo do sofrimento individual
para o reconhecimento de que o respeito pela diversidade e pela dimen­
são das espécies é um contributo indispensável para que esse sofrimento
individual se dissipe ou desapareça - conciliando assim a preservação
«holística» dos ecossistemas com uma compaixão individualizada, con­
cretizada, dirigida a seres reais, como o reclama qualquer genuíno sis­
tema ético - 77 8, vencendo essa bizarria, esse barroco «sofisma de com­
posição», que sacraliza axiologicamente o todo ao mesmo tempo que se
obstina na recusa de reconhecimento de um estatuto moral ou jurídico aos
indivíduos de que esse todo se compõe779.

77 8 Cfr. Norton, B .G., "Environmental Ethics ...", cit., 17-36.


779 Cfr. Dworkin, R ., Life 's Dominion . . ., cit., 75.
21 . O Choque da Teriofilia
com o Ambientalismo - II
O Problema da Predação Natural

2 1 .a) A legítima defesa dos que sofrem


A tensão entre as perspectivas «globalizadora» e «individualizadora»
não se resolveu ainda completamente, faltando considerar aquele que é
porventura o ponto mais difícil, o da atitude a tomar perante a predação
natural.
Com efeito, se a causa teriofílica se centra na protecção contra a vio­
lência, esta protecção, para ser completa, deveria envolver a interferência
humana nos mecanismos da predação natural, sem qualquer preocupação
relativamente à possibilidade de essa interferência perturbar o equilíbrio
dos ecossistemas e das cadeias alimentares - e até relativamente à possi­
bilidade de daí advir mediatamente um grau superior de sofrimento para
um maior número de indivíduos. A reacção defensiva perante o facto bruto
da violência estaria legitimada por uma elementar avaliação da adequação
circunstancial dos meios - não perdendo essa legitimidade em função da
ponderação de consequências e derivações remotas que indirectamente
tornassem inapropriados tais meios.
Não poderíamos, de resto, reagir à predação natural entre não-huma­
nos de forma diversa daquela que corresponde à predação natural que
recaia sobre seres humanos: a defesa por todos os meios, mesmo meios
mortíferos, contra qualquer animal atacante - e em especial contra os
grandes predadores da humanidade que são os micróbios patogénicos.
Agir de forma diferente não seria pôr em prática uma insustentável con­
vicção «especista»?
Note-se, de passagem, que é o receio de predação natural de não­
humanos sobre a vida, a saúde, a segurança, mas também sobre a proprie-
274 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

dade e demais interesses materiais de seres humanos que leva muitos a


manifestarem preocupação com as incidências da «libertação animal», por
temerem que esta noção seja interpretada no sentido de remoção das bar­
reiras que evitam a interferência nociva dos não-humanos no ambiente e
nas actividades dos seres humanos, quer nas actividades humanas que por
sua vez não sejam nocivas para os não-humanos, quer na própria situação
dos não-humanos que beneficiam da sua relação simbiótica com os seres
humanos780 .
Contra essa reacção indiscriminada à predação natural militam
vários argumentos, começando por aquele que sublinha que alguma da
repugnância estética que resulta do espectáculo da predação natural só se
converte em juízo moral por meio de uma ilegítima extrapolação, para esse
contexto, de uma intencionalidade antropomórfica que só faz sentido
associada à conduta de seres humanos livres que não se encontrem em
estado de necessidade, mas não o faz decerto conexa com a conduta de
não-humanos que não têm outra alternativa para sobreviverem: poderá,
por exemplo, um leão alimentar-se no seu meio natural sem recorrer à pre­
dação violenta, ele que não sobreviveria com uma dieta herbívora, ele que
não dispõe (como dispõem outros animais) de meios para anestesiar as
vítimas?
Outro argumento é o de que a predação natural é um meio, por exce­
lência, de eliminação dos mais fracos, dos doentes, dos velhos, contri­
buindo para o melhoramento das aptidões médias das populações que
sobrevivem, contrariando explosões populacionais e desequilíbrios ali­
mentares e ecológicos - aspecto em que a predação natural revela espon­
taneamente maior adequação «malthusiana» do que aquela que tende a ser
evidenciada pela predação humana, bastando pensar-se que, na caça, a per­
seguição das espécies pode ocorrer independentemente das dimensões das
populações (e daí a recorrente «tragédia dos baldios» nas actividades
venatórias), e vitima prioritariamente os indivíduos mais aptos, os mais
«belos troféus», reduzindo a aptidão média das espécies perseguidas.
Contra o combate indiscriminado à predação natural acrescenta-se
ainda a constatação de que este tipo de predação causa deveras sofrimento
nas vítimas, mas esse sofrimento indizível, conquanto seja precedido de
sucessivos momentos de alarme e de ansiedade na expectativa do ataque,
tende todavia a ser relativamente breve - e por isso muito notoriamente

7 80 Cfr. Hannah, H.W., "Animais as Property ... ", cit., 582.


A Hora dos Direitos dos Animais 275

menor do que o sofrimento prolongado que é infligido pelas explorações


industriais a certas espécies animais, como porcos e galinhas, um sofri­
mento que, ao abrigo das especiosas noções de «omnipotência» e de «não­
identidade», amiúde abarcará, sem pausas (sem tréguas), a totalidade da
existência de cada indivíduo78 1 .
Outro argumento ainda é o de que a predação natural só deve real­
mente constituir um problema moral quando haja um mínimo de possibi­
lidades de interferência viável no comportamento dos predadores não-hu­
manos - por exemplo, evitando-se essa predação em jardins zoológicos,
ou a predação sobre animais domésticos ou entre eles - , sendo comple­
tamente irrealista que, em nome do escopo de erradicação do sofrimento,
se tivesse a grandiosa ilusão da possibilidade de «eticização integral da
natureza», suspendendo (quiçá por decreto ... ) o funcionamento de todas as
cadeias alimentares não-herbívoras.
Quanto a este último argumento, o respeito pela natureza diferen­
ciada de cada espécie reclama que a defesa contra a predação natural dis­
crimine entre animais domesticados e animais selvagens, sendo mais con­
gruente com o respeito de um animal selvagem o princípio da
não-interferência na predação, ou até, genericamente, o respeito pelas
vicissitudes da sua existência, que deverão tomar-se, por uma questão de
respeito, como manifestação das suas capacidades naturais78 2: mesmo nas
piores provações do seu esforço de sobrevivência, o interesse do animal
selvagem é, podemos presumi-lo, o de não ser privado das suas capacida­
des - não existindo qualquer interesse em ser adoptado por humanos, em
trocar a sua sobrevivência por um desenraizamento da sua existência, em
ver permanentemente frustrado o conjunto total das suas manifestações
instintivas78 3. Em ver, em suma, a predação natural ser substituída por

78 1 Cfr. Loftin, Robert W., "The Medical Treatment of Wild Animais", Environmen­
tal Ethics, 7 ( 1985), 23 1-239; Rolston, Holmes, "WildAnimals, Duties to" , in Bekoff, M.
& C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia ofAnimal Rights . . . , �ft., 262-264.
782 Sobre estratégias predatórias, problemas de coordenação e «efeito de boleia» na
produção de bens colectivos em comunidades animais, cfr. Nunn, Charles L. & Rebecca J.
Lewis, "Cooperation and Collective Action in Animal Behaviour"; Hoeksema, Jason D. &
Mark W. Schwartz, "Modelling Interspecific Mutualisms as Biological Markets"; Dunber,
Robin I.M., "The Economics of Male Mating Strategies" , todos in Noe , R., J.A.R.A.M. van
Hooff & P. Hammerstein (orgs.), Economics in Nature.. . , cit . , 43-5 1 , 56-60; 179- 18 1; 262-
-264 ..
78 3 Cfr. Comstock, G., "How Not to Attack . . . ", cit., 178.
276 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

uma predação humana, não menos predatória pelo facto de não causar tão
directa, intensa e ostensivamente o sofrimento das vítimas.
Reconhecendo que o combate à predação natural é possível e legí­
timo em certas condições, uma parte dos deveres de protecção do bem­
estar animal consagrados no direito dirige-se já à própria defesa contra a
violência e predação entre espécies. Veja-se, por exemplo, o que se esta­
belece quanto aos animais de abate pela Convenção Europeia sobre a Pro­
tecção dos Animais de Abate78 4, a qual, depois de no seu art. 5.º, 1 , esta­
belecer que "os animais deverão ser deslocados recorrendo-se à sua
natureza gregária" (por forma a reduzir a sua ansiedade no transporte para
os matadouros), determina no seu art. 7. º, 5, que "os animais naturalmente
hostis entre si, devido à sua espécie, sexo, idade ou origem, deverão ficar
separados". Veja-se também a disposição específica para os animais de
companhia, no art. 8.º, 1 , b) do Decreto-Lei n.º 276/200 1, de 1 7 de Outu­
bro78 5, norma em que se prevê que "Os animais devem dispor do espaço
adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas, devendo o
mesmo permitir : ( ... ) b) A fuga e refiigio de animais sujeitos a agressão
por parte de outros"; ou a disposição para os animais nas explorações
pecuárias, regendo o n.º 14 do Anexo A da Directiva n.º 58/CE/ 1 998, do
Conselho, de 20 de Julho786, que dispõe que "Os animais criados ao ar
livre devem dispor, na medida do possível e se necessário, de protecção
contra (... ) os predadores"787.

784 Convenção Europeia sobre a Protecção dos Animais de Abate, concluída no seio
do Conselho da Europa e aprovada pelo Decreto n.º 99/81, de 29 de Julho.
78 5 Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, que estabelece as normas legais ten­
dentes à aplicação em Portugal da Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de
Companhia (regulamentando o Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril).
786 Directiva n.º 58/CE/1998, do Conselho, de 20 de Julho, transposta para a ordem
jurídica interna pelo Decreto-Lei n.º 64/2000, de 22 de Abril.
78 7 Veja-se ainda disposições similares na Convenção Europeia sobre a Protecção
dos Animais em Transporte Internacional, de 13 de Dezembro de 1968, aprovada pelo
Decreto n.º 33/82, de 11 de Março, ou na Directiva n.º 91/628/CEE, do Conselho, relativa
à protecção dos animais durante o transporte, transposta pelo Decreto-Lei n.º 153/94, de 28
de Maio (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 294/98, de 18 de Setembro).
A Hora dos Direitos dos Animais 277

2 1 .b) A não-interferência na «predação selvagem»


Mas quanto à predação entre animais selvagens, o que fazer, se
somos espontaneamente movidos por um sentimento de compaixão para
com animais vítimas de ataques? Bastará porventura atentarmos, como se
disse, na demarcação entre morte «natural» e «não-natural», a primeira
abarcando os resultados da predação entre espécies não-humanas, a
segunda cingida à intencionalidade humana, a primeira impondo resigna­
ção, a segunda reclamando indignação?788
Como já vimos, é próprio dos ambientalistas denunciarem a índole
anti-ecológica e o romantismo antropomórfico que julgam reconhecer na
insistência teriofílica com o tema da erradicação do sofrimento, e isso
leva-os a qualificarem como uma intolerável arrogância anti-natural qual­
quer esforço de interferência no mecanismo da predação selvagem, na
qual o sofrimento é uma inevitabilidade, ou mesmo qualquer tentativa de
condenação moral da predação - existindo, do campo dos defensores dos
direitos dos animais, quem alegue que aquela «arrogância anti-natural»
pura e simplesmente não existe, e que a causa zoófila é inteiramente com­
paginável com o respeito total pelas cadeias alimentares, que são cadeias
naturais de predação789.
Mas que o problema não se resolve de forma tão simples, atesta-o a
presença de radicalismos «entrincheirados» em ambos os campos, como
tivemos repetidamente ocasião de observar: neste caso, o radicalismo da
«perspectiva dos direitos» no campo teriofílico contra a «ética da não­
interferência» no campo ambientalista.
A «perspectiva dos direitos» pode resumir-se à combinação de duas
proposições já nossas conhecidas: a) todos os «sujeitos de uma vida» têm
um «valor intrínseco», que não está contingentemente preso da qualidade
da sua existência ou da sua utilidade para outros (ou de outra qualquer
base de avaliação subjectiva); b) as criaturas com valor intrínseco têm um
direito fundamental ao respeito por parte dos ágentes morais, e sobre estes
impende um dever de respeito pelos detentores desses direitos.
Assim, a atribuição de direitos aos animais seria uma posição conso­
nante com as nossas intuições básicas relativas, que nos sugerem, quanto
a um número amplo de animais, que eles têm uma vida mental complexa

7 88 Cfr. Dizard, J.E., Going Wild . . ., cit., passim.


7 89 Cfr. Everett, J ., "Environmental Ethics, Animal Welfarism. . . ", cit., 42-67.
278 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

e uma percepção «forte» dos seus interesses - cabendo, por isso, o ónus
da prova a quem quisesse recusar aquela atribuição, demonstrando não
apenas a inexistência, ou insuficiência, de dados mentais capazes de con­
ferir autonomia aos animais, mas evidenciando também, com a sua sim­
ples atitude de recusa, os perigos que adviriam, seja do «chauvinismo
especista», seja da «dissolução antropomórfica», ambos erros (simétricos)
que não permitiriam fazer jus ao «valor intrínseco» que pudesse reconhe­
cer-se a esses (alguns) não-humanos como «sujeitos de uma vida» 79o .
Nestes termos, poderia dizer-se que a defesa contra a predação dos
animais decorreria, não da verificação do sofrimento causado pela preda­
ção (visto que os direitos das vítimas não dependem da subsistência, ou
não, da qualidade de vida individuaF 9 I ), mas antes da verificação de uma
de duas outras circunstâncias: ou a violação deliberada de um dever de res­
peito por parte de um agente moral - o que imediatamente tornaria irre­
levante o fenómeno da predação selvagem -, ou a violação de valores
morais transcendentes que impusessem, em reacção à violação, o dever
imediato de oposição humana à predação animal - uma espécie de reac­
ção punitiva pela lesão grave a valores estruturantes da moralidade ou da
juridicidade, do mesmo género que vimos fundamentar o «julgamento de
animais» .

2 1 .c) Predação e «valor intrínseco»


Por seu lado, a «ética da não-interferência» da «ecologia profunda»
representa um descentramento inegualitário, visto que nega ao homem
uma presença activa nos ecossistemas que adrriite pacificamente aos não­
humanos - quando é facto que uma consciencialização acerca dos pró­
prios interesses humanos e da sustentabilidade das soluções antropocêntri­
cas asseguraria uma convergência de interesses que tornaria menos
importante o expediente inegualitarista7 92. Mas a «sacralização» do não­
humano gera as suas próprias perplexidades em matéria de predação sel-

790 Veja-se a síntese em: Goffi, Jean-Yves, "Droits des Animaux et Libération Ani­
male", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 898.
79 1 Cfr. Regan, T., The Case for Animal Rights, cit ., 357; Everett, J., "Environmen­
tal Ethics, Animal Welfarism . . . ", cit., 52-53.
792 Cfr. Watson, R.A., "A Critique ...", cit., 245-256.
A Hora dos Direitos dos Animais 279

vagem: é que, ao contrário do que parece sugerir-se com a afirmação de


que a predação animal tende a ser mais equilibrada e ecologicamente sus­
tentável do que a predação humana, o facto é que aquela primeira forma
de predação pode ser «genocida», corno aliás resulta das proposições cen­
trais do darwinisrno acerca do processo de selecção natural das espécies.
Qual, afinal, o «valor intrínseco» das espécies, que «imperativo de preser­
vação» se refere absolutamente às espécies - o «síndrome de Arca de
Noé» - , se ao próprio mecanismo que as destrói deve ser deixado, res­
peitosamente, livre curso?79 3 Isto para não levarmos em conta também o
inevitável subjectivisrno que interfere na definição de «espécies ameaça­
das», aquelas para as quais se pudesse admitir, em nome de um patente
conflito entre sobrevivência e predação, urna derradeira interferência
humana nos mecanismos da predação natural, e que faz novamente peri­
gar as pretensões de objectividade da noção de «valor intrínseco» 794 .
As fragilidades ficam patentes, julgamos, nessas expressões extremas
que tendem a caricaturar-se reciprocamente e a interagirem com versões
demasiado ingénuas ou absurdas das teses opostas. Por exemplo, se não
nos deixarmos cair na tentação de caracterizar a posição teriofílica «forte»
corno urna intenção de «policiamento da savana», reconheceremos corno
inteiramente razoáveis alguns afloramentos de um dever humano de auxí­
lio contra a predação:
- pense-se, por exemplo, na possibilidade de salvar da predação
natural as crias de urna espécie ameaçada, quando o predador tem
alternativas para a sua alimentação, ou até quando não é de ali­
mentação que se trata (o leão que mata as crias para despertar o
instinto sexual numa leoa) ;
- pense-se também na justificação moral que pode haver para se
desferir um «tiro de misericórdia» que abrevie o sofrimento da
vítima de um prolongado ataque de predadores, quando a vítima

793 O «síndrome de Arca de Noé» designa-o antropocentrismo da posição ambienta­


lista que se preocupa com a preservação das espécies contra a lógica de uma vida que é por
definição evolutiva, e cujas formas de manifestação não se deixam fixar, «conservar», defi­
nitivamente - e o faz com o escopo de preservar os «efectivos» de um «património gené­
tico», como se a base genética das formas de vida da Terra fosse propriedade da espécie
humana - cfr. Nouet, Jean-Claude, "Zoos" e "Protection ou Respect de !'Animal?", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 551, 1098-1099.
794 Cfr. Gunn, A.S., "Why Should We Care... ", cit., 17-37 .
280 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

não consegue já fugir e por isso a própria alimentação e sobre vi­


vência dos predadores não é posta em causa795 .
Além disso , a posição «consequencialista» de que deriva a vers ão
«forte» da teriofilia é eminentemente respeitável: se o valor de um acto
depende das suas consequências pragmáticas , dois actos com as mesmas
consequências - nomeadamente, a predação humana e a predação não­
humana, se ambas resultam em sofrimento para as vítimas - devem, em
princípio, ter a mesma avaliação ética e conduzir ao mesmo tipo de reac­
ção; princípio tanto mais relevante quanto mais se der o caso de a vítima
não possuir a capacidade de representação de um contexto interpretativo
do facto bruto do sofrimento , aditando-lhe ou não a censura em função de
uma intencionalidade revelada.
Em todo o caso, é contestável essa interpretação do que seja o «conse­
quencialismo» , pois ela sugere que são equiparáveis condutas morais e
comportamentos que não podem ser moralmente avaliados - quando o ade­
quado seria ponderar-se as consequências alternativas para condutas igual­
mente acessíveis a um único agente moral; entender-se de outro modo pode­
ria até ter uma consequência particularmente perversa, qual fosse a de
sugerir que ficavam autorizadas aos seres humanos todas as violências sobre
os não-humanos , desde que o sofrimento resultante fosse marginalmente
inferior ao que resultaria da predação natural ( até ao limite de se invocar
uma causa virtual com relevância negativa, nomeadamente a inevitabilidade
de um sofrimento maior, a qual deixaria os não-humanos à mercê de um
«abreviamento caritativo» pela inflicção de um sofrimento menor)796.
Em contrapartida, por mais que se imponha, àquele que lamenta o
sofrimento ocasionado pela predação natural , o dever de abstenção , um
dever de respeito e «modéstia» perante a natureza e perante a manifesta­
ção dos seus mecanismos , ele poderá reagir:
- seja invocando que essa complacência não é a norma no que res­
peita aos assaltos da natureza contra a condição humana, e que a
ética é, ao menos em parte, uma rebelião da nossa liberdade con­
tra os constrangimentos da natureza;
- seja sublinhando que o nosso impulso altruísta e a nossa comisera­
ção fazem também elas parte da natureza, e nem sequer são carac-

795 Cfr. Sapontzis, Steve F., "Predation" , Ethics and Animais, 5/2 (1984), 27-38;
eiusdem, Morais, Reason, and Animais, cit., passim.
796 Cfr. Everett, J ., "Environmental Ethics, Animal Welfarism . . . ", cit., 48-49 .
A Hora dos Direitos dos Animais 281

terísticas exclusivas da espécie humana797 , pelo que a reacção con­


tra a predação animal pode ser também ela tida como a manifesta­
ção de um mecanismo evolutivo que subtilmente pretende ditar as
suas leis erguendo-se acima do limitado círculo da violência.
Estranhamente, nada disto é aproveitado pelo ponto de vista «deonto­
logista», representado por Tom Regan, o qual começa por aceitar, sem com­
plexos, a noção de deveres de «policiamento ético» da natureza, insistindo
que o estatuto de direitos que seja reconhecido aos não-humanos, para ser
tomado a sério, nos investirá de deveres de prevenção da utilização dos ani­
mais (seja por humanos, seja por não-humanos) como meros «receptácu­
los» de violação da sua segurança e integridade: "Tal como o nosso dever
negativo de não-interferência na vida dos outros não consiste exclusiva­
mente em concentrarmo-nos no nosso egoísmo, também o nosso dever de
tratamento respeitoso dos animais implica mais do que a nossa diligência
no respeito evidenciado por eles. Visto que eles têm uma pretensão legítima
a um tratamento respeitoso, nós temos o dever primário de assisti-los
quando outros os tratam de forma que viola os seus direitos"7 98.
Mas logo de seguida Tom Regan enreda-se em dificuldades, ao subli­
nhar que se trata apenas, nessa interferência na predação natural, do exercí­
cio de um dever de protecção contra verdadeiras violações de direitos, e
essas pressupõem a intervenção causal de um agente moral - pelo que a
situação exclui a predação natural, que é uma violência à margem de consi­
derações de justiça799: mas é manifesto que esta posição não satisfaz, já que
a não aplicamos a seres humanos - que protegemos mesmo contra agres­
sões inocentes, reconhecendo aos membros da nossa espécie um direito à
vida e à integridade física que não está dependente do apuramento das moti­
vações (ou da ausência delas) no causador do dano. Poderíamos ir mais
longe, de resto, e reconhecer que o nosso «especismo» não é tão impenetrá­
vel que, nesta matéria de protecção contra a violência, não estejamos tam­
bém culturalmente condicionados a defender os animais de companhia nos
mesmos termos em que o fazemos com os séres humanos, ainda que even­
tualmente não com a mesma prioridade800. Talvez Tom Regan devesse ter

797 Cfr. Callicott, J .B., /n Defense ofthe Land Ethic. . ., cit., 96-97; Everett, J., "Envi-
ronmental Ethics, Animal Welfarism... ", cit., 56-61.
79 8 Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 282-283.
799 lbid., 285.
800 Cfr. Jamieson, D., "Rights, Justice... ", cit., 349-362.
282 O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo

admitido, mais modestamente, a insinuação de critérios «especistas» na sua


construção, já que o reconhecimento de um superior «valor intrínseco» à
espécie humana explicitaria melhor a sua posição quanto à predação natural,
tomando claro que, no seu entendimento, se restringe à nossa espécie 0
dever moral de defesa contra aquele tipo de predaçãoso 1 .
Questão diversa, mas não menos importante, é a da eventual futili­
dade da interferência nos mecanismos da predação selvagem, que pode­
ríamos aproximar da questão do valor ecológico do tratamento médico de
animais selvagens - que não-poucos considerarão, também ela, uma prá­
tica pouco esclarecida quanto às suas incidências biológicas e um desper­
dício de recursos escassos na tentativa de rectificação pontual de proces­
sos de selecção natural que subsistem e subsistirão omnipresentes na
existência individual dos membros dos ecossistemas não-humanos _ so2 .
Demos o exemplo do leão que, no seu espaço de liberdade natural,
não tem alternativa a ser um predador violento . Usemo-lo para refutar o
«argumento ingénuo» contra o vegetarianismo, que invoca contra os vege­
tarianos a naturalidade da alimentação carnívora e omnívora entre não­
humanos: é que esses não-humanos não são capazes de deliberação livre
através de estados mentais de representação, a maior parte deles não são
capazes de uma aproximação sequer ao tipo de condicionamento delibe­
rado da conduta que associamos à intencionalidade dos seres humanos
normais, o que veda aos carnívoros não-humanos a possibilidade de se
recondicionarem nos seus hábitos alimentares em tributo a uma convicção
ética803 . Mais amplamente ainda, não esqueçamos que a nossa autonomia
nos responsabiliza, e que a posição que tomemos quanto ao estatuto da
predação animal não pode servir de justificação para o grau de diligência
e respeito que tenhamos pela condição não-humana, mesmo que ela nos
forneça ilustrações tão constantes e ementas de violência irrestrita: como
nota Peter Singer, "não podemos fugir às responsabilidades imitando
seres que são incapazes de fazer essa escolha"80 4.

80 1 Cfr. Ferré, Frederick, "Moderation, Morais, and Meat", Inquiry, 29 (1986), 391-
406; Wenz, P.S ., Environmental Justice, cit., passim.
802 Cfr. Loftin, R.W., "The Medical . . . ", cit., 231-239.
80 3 Cfr. Alward, Peter, "The Naive Argument Against Moral Vegetarianism", Envi­
ronmental Values, 9 (2000), 81-89; Benatar, David, "Why the Naive Argument against
Moral Vegetarianism Really is Naive", Environmental Values, 10 (2001), 103-112 .
804 Singer, P., Ética Prática, cit., 91 .
22. A Via dos Direitos Subjectivos

"Alguns animais não humanos são pessoas, de acordo com a nossa


definição do termo ( ... ) Defendi que, se a vida humana possui
mesmo um valor especial ou um direito especial a ser protegida,
possui-os em virtude de a maioria dos seres humanos serem pes­
soas. Mas, se alguns animais não humanos também forem pessoas,
a vida desses animais tem de possuir o mesmo valor especial ou
direito à protecção" - Peter Singer805 .

22 .a) Interesses, subjectividade e direitos


Deve-se a Tom Regan, como temos referido, a visão mais «jusnatu­
ralista» relativamente aos direitos dos animais, centrada na ideia de que
não há diferença substancial nenhuma entre espécies que justifique, só por
ela, a redução do valor intrínseco dos não-humanos e, com ela, a recusa de
reconhecimento de um estatuto jurídico pleno806.
A via habitual da concepção dos direitos dos animais apresenta os
interesses como fundamento dos direitos, de acordo com o silogismo:
- só os seres com interesses têm direitos;
- os animais não-humanos têm interesses;
- ergo, os animais não-humanos têm direitos80 7.
Compreende-se por isso a preocupação com a demonstração de que
os animais têm interesses, no mais amplo dos sentidos possíveis - no sen­
tido de que são capazes de apreciar bens por eles mesmos (de evidenciar
preferências congruentes), são capazes de experimentar sofrimento e de

805 S inger, P., Ética Prática, cit., 1 36.


80 6 Cfr. Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 243 , 276-279 .
80 7 Cfr. Frey, R.G., lnterests and Rights . . ., cit., 5ss..
284 A Via dos Direitos Subjectivos

promover atitudes minimizadoras desse sofrimento, são capazes de cum­


prir deliberadamente funções essenciais à sua sobrevivência e perpetuação
genética: de que são, em suma «sujeitos de uma vida»sos , que têm, mais
do que uma «vida», uma verdadeira «existência»809.
Mas a asserção de que os animais têm interesses é problemática: se 0
que queremos sustentar é que «ter um interesse» equivale a afirmar que
existem bens que são objectivamente favoráveis a uma entidade, que há
coisas que objectivamente a favorecem ou desfavorecem, então decerto os
animais têm interesses, mas tem-nos também um automóvel: por exemplo,
o automóvel tem interesse em que existam pneus e combustível para que
possa desempenhar as suas funções.
Se, pelo contrário, ter interesses implica que exista, por parte do
beneficiário da satisfação desse interesse, uma consciência reflexiva, a
percepção de si mesmo que propicia a comparação valorativa entre o
estado subjectivo que antecede e aquele que sucede à satisfação ou frus­
tração desses interesses - e mesmo que não insistamos na ideia de que só
há interesses se houver emoções relativas a convicções e desejos - , é difí­
cil (no mínimo), dada a ausência de uma linguagem partilhada, provar a
existência dessa percepção nos animais, mesmo naqueles com mais mani­
festas aptidõesSI0/8 1 1.
Conceder um direito subjectivo é titular em alguém um centro de
imputação de prerrogativas de defesa: reconhecer um direito é admitir em
outrem uma determinada legitimidade reactiva - que tem a ver com essa
vontade comum de se lhe conceder uma defesa mais intensa e institucio­
nal de interesses seus (diferentes dos nossos interesses), e não tem a ver
com o reconhecimento de quaisquer propriedades naturais (sejam estas, ou

808 Cfr. Feinberg, Joel, "The Rights of Animais and Unbom Generations", in Blacks­
tone, William T. (org.), Philosophy & Environmental Crisis, Athens Ga., University of
Georgia Press, 1974, 43-68; Regan, T., The Case for Animal Rights, cit., 243.
809 Pode sustentar-se que «existir» é mais do que «viver», no sentido de que existir
pressupõe uma interacção com o ambiente, com a «circunstância», que pode envolver uma
«subjectividade» se existe uma receptividade a significações inteligíveis, no sentido de
ocorrer a criação e a reacção a essas significações - cfr. Buytendijk, F.J.J., L'Homme et
['Animal. .., cit., 22.
8 1 0 Cfr. Frey, R.G., lnterests and Rights . . ., cit., 19, 78-85, 122-123, 127.
8 1 1 Sustentando precisamente que muitos animais demonstram domínio d e uma lin­
guagem expressiva de desejos e convicções, veja-se Vauclair, J., Animal Cognition ..., cit.,
10 1- 105, 137-145.
A Hora dos Direitos dos Animais 285

não, as mesmas que reconhecemos em nós próprios). Não adianta sofismar


neste ponto, alegando razões sobre-humanas para a criação e atribuição de
direitos, tanto aos seres humanos como aos animais: nada nem ninguém
partilha com a espécie humana a responsabilidade cultural pela concepção
dos direitos, pelos critérios da sua atribuição ou negação, pelas condições
de que emerge uma personalidade juridicamente reconhecida.
Assim sendo, se reconhecermos que alguns actos cometidos contra a
sensibilidade e a inteligência dos animais, ou de certos animais, são abso­
lutamente censuráveis - especificamente os que consistem em causar
sofrimentos desnecessários - , não custa a admitir a concessão de «direi­
tos mínimos» que titulem e tornem clara a dimensão absolutamente per­
versa do acto lesivo, identificando a vítima dentro de uma teia de relações
valorativas de solidariedade e de respeito entre «seres vivos merecedores
de protecção».
Se afastarmos do nosso espírito, na medida do possível, a propensão
para o antropomorfismo, reconheceremos imediatamente que a legislação
atribui já, um pouco por toda a parte, direitos aos animais, especificamente
quando reage, ou legitima reacções, contra condutas que lhes ferem inte­
resses subjectivos, como os interesses no não-sofrimento e na qualidade de
vida - havendo precisamente quem entenda que esta é a forma mais efi­
ciente de protecção dos direitos dos animais, e a sua forma mais rematada
e lídima de atribuição, por comparação com a alternativa da extensão aos
animais de direitos configurados originalmente para seres humanos, cen­
trados no reconhecimento de uma «personalidade jurídica» que pode ser
(veremos) pragmaticamente irrelevante para a promoção dos interesses
que possam ser percebidos e experimentados pelos seus titulares não­
humanoss 12. Em termos mais sugestivos, se do que se trata não é de
«macaquear» a personalidade jurídica dos humanos, então a panóplia de
deveres humanos para com as demais espécies e para com os indivíduos
membros dessas espécies é já suficientemente densa para se poder susten­
tar a existência de verdadeiros direitos "dos animais8 1 3 .
Estaria assim concluída, na sua parte mais significativa, a jornada
jurídica da teriofilia - não sendo necessário expender mais razões em

Cfr. Schmahmann, D.R. & L.J. Polacheck, "The Case Against. .. ", cit., 761.
8 12
Cfr. Tannenbaum, Jerrold, "Animais and the Law: Property, Cruelty, Rights", in
8 13
Mack, Arien (org.), Humans and Other Animais, Columbus, Ohio State University Press,
1995, 167.
286 A Via dos Direitos Subjectivos

apoio da consagração de direitos dos não-humanos, e podendo reorientar­


-se as energias para a educação de hábitos, para a pedagogia, para a sim­
ples criação de condições de acatamento das soluções já plenamente con­
sagradas na letra da lei.

22 .b) Conquistas, atavismos, hesitações


A realidade não é, contudo, esta. É certo que a «linguagem dos direi­
tos» tem averbado progressos muito significativos na cobertura do domí­
nio dos interesses dos não-humanos, e que o acatamento literal da totali­
dade das normas protectoras desses interesses seria já muito próxima de
uma situação óptima, ao menos na perspectiva de uma teriofilia não-radi­
cal. Contudo, a distância que vai das palavras aos actos denota, além de
um enraizamento de hábitos abusivos que é refractário a toda a pedagogia
moral, também que essa «linguagem dos direitos» pode ter ido já longe de
mais, no sentido de se antecipar demasiado àquela pedagogia, tomando
inevitável uma extensa margem de inoperância, a ponto de ser legítimo
perguntar-se se os intuitos mais relevantes da juridificação resistem à ava­
lanche regulamentadora, à entropia normativa - questão que é extensível,
de resto, a todos os domínios do Direito8 I 4.
Em todo o caso, pese embora essas disfunções, a «hora dos direitos
dos animais» tem sido assegurada por uma paulatina sedimentação de
deveres e salvaguardas respeitantes a interesses vitais, sendo sustentável
que se chegou a um «ponto de não-retomo» para lá do qual deixa de haver
contingência dos direitos perante medidas avulsas de protecção e pode
começar a falar-se da consagração de direitos efêctivamente oponíveis em
todas as circunstâncias - oponíveis a indivíduos humanos, oponíveis às
suas instituições, até oponíveis ao Estado8 I 5.
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da UNESCO, não
hesita em dar por assente a ideia de que "todo o animal possui direitos" -
estabelecendo-o logo nos considerandos do seu Preâmbulo8 I 6.

81 4 Cfr. Sumner, L.W., The Moral Foundation ofRights, Oxford, Clarendon, 1987 , 15-18.
8 1 5 Cfr. Godkin, Susan , "The Evolution of Animal Rights" , Columbia Human Rights
Law Review, 18 (1987), 259ss . .
8 1 6 Cfr. Chapouthier, Georges, Au Bon Vouloir de l'Homme, /'Animal, Paris, Denoel,
1990; eiusdem, Les Droits de l'Animal, Paris, P.U F., 1992; Chapouthier, Georges & Jean-Claude
Nouet (orgs.), Les Droits de l'Animal Aujourd'hui, Condé-sur-Noireau, Arléa-Corlet, 1997.
A Hora dos Direitos dos Animais 287

Pense-se, por exemplo, no Protocolo sobre Bem-Estar Animal da


União Europeia8 I7, com a sua referência à condição de «seres sensíveis»
dos animais - não os reduzindo a meros bens ou produtos agrícolas - , o
que pragmaticamente só pode querer significar um intuito de consideração
autónoma, personalizada e universalmente oponível, de interesses e pro­
blemas de indivíduos não-humanos8 I 8 .
Pense-se também no caso da Alemanha, em que desde 1 990 o BGB
deixou de considerar os animais como coisas (§ 90a) 8 1 9/820 , e onde, a par­
tir de Maio de 2002, a Constituição passou a consagrar o dever estadual de
protecção e de respeito pelos direitos dos animais, funcionalizando-os
embora, juntamente com as «bases naturais da vida», ao interesse das
gerações vindouras (art. 20a), havendo o propósito - largamente maiori­
tário no Bundestag - de forçar uma reponderação, a nível constitucional,
dos estatutos relativos dos direitos de humanos e não-humanos, e, para já,
a prevalência de alguns direitos dos animais sobre interesses religiosos e
científicos dos humanoss21 1s22.

8 1 7 Aditado em 1 de Maio de 1999 ao Tratado de Amsterdão (um protocolo com o

mesmo valor jurídico das normas do Tratado, por força do disposto no art. 239.º deste). O
Bem-Estar Animal já era referido no art. 36.º do Tratado da Comunidade Europeia, tendo
também sido aditada ao Tratado da União Europeia uma Declaração sobre o Bem-Estar Ani­
mal . Cfr. Camm, T. & D. Bowles, "Animal Welfare and the Treaty of Rome. . . ", cit., 197-198,
200ss. Cfr. ainda: Brooman, Simon & Debbie Legge, Law Relating to Animais, London,
Cavendish, 1997; Tallacchini, Mariachiara, "Appunti di Filosofia della Legislazione Ani­
male" e Salvi, Maurizio, "Integrità e Valore Intrinseco negli Animali . II Caso Olandese",
ambos in Mannucci, A. & M . Tallacchini (orgs.), Per un Codice..., cit., 35-48, 211-224.
8 1 8 Cfr. Camm, T. & D. Bowles, "Animal Welfare and the Treaty of Rome . . . ", cit.,

204; Spedding, C .R .W., "Animal Welfare Policy in Europe", cit., 110-117 .


8 1 9 Cfr. Cordeiro, A. Menezes, Tratado. ../- li- Coisas, cit., 212, 224.
820 Para uma perspectiva da evolução da consciência teriofílica em terras alemãs, cfr.

Kaiser, Dieter (org.), Wir toten, was wir lieben. Das Geschiift mit geschützten Tieren und
Pflanzen, Hamburg, Hoffman & Campe, 1989; Kaplan,,Heln.111t Friedrich, Sind wir Kanni­
balen? Fleischessen im Lichte des Gleichheitsprinzips, Frankfurt am Maio, Peter Lang,
1991; eiusdem, Tierrechte . Die Philosophie einer Befreiungsbewegung, Gõttingen, Echo,
2000; Maehle, A.-H., Kritik und Verteidigung des Tierversuchs, cit.; Teutsch, Gotthard
Martin, Soziologie und Ethik der Lebewesen. Eine Materialsammlung, Frankfurt am Maio,
Peter Lang, 1975; eiusdem, Tierversuche und Tierschutz, München, Beck, 1983 .
82 1 Quanto aos interesses científicos, o objectivo prioritário enunciado no debate

político era o de limitar a investigação em cosmética e em medicamentos de venda livre,


sempre que ela envolva experimentação em animais .
822 Cfr. Caspar, Johannes, Tierschutz im Recht der modernen lndustriegesellschaft.
288 A Via dos Direitos Subjectivos

Pense-se também no notável pioneirismo brasileiro, representado no


Decreto-Lei n.º 24645, de 10 de Julho de 1934, que estabelece que "Todos
os animais existentes no País são tutelados do Estado", que "Os animais
serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus
substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais",
e ainda que "As autoridades federais, estaduais e municipais prestar ão
aos membros das sociedades protetoras de animais a cooperação neces­
sária para fazer cumprir a presente lei" (arts. l .º e 2.º, § 3. 0 , e 1 6. º), e
sobretudo se centra numa detalhadíssima enumeração de "maus tratos" no
seu art. 3. º, a qual continua em vigor823, proibindo as touradas, por exem­
plo824, e inserindo subtis ressalvas que excluem do conceito de «maus-tra­
tos» as operações que beneficiem exclusivamente o animal, que defendam
o homem ou que sirvam o interesse da ciência (art. 3.º, IV), além de serem
excluídos da protecção os animais «daninhos» (art. 1 7 .º) 8 25/826.
Para se ter uma medida do pioneirismo e da sofisticação conceptual
desse Decreto-Lei n. 0 24645, destaque-se a título de exemplo algumas

Eine rechtliche Neukonstruktion auf philosophischer und historischer Grundlage, Baden­


Baden, Nomos, 1999; eiusdem, Zur Stellung des Tieres im Gemeinschaftsrecht, Baden­
Baden, Nomos, 2001; Hillmer, Clemens Christoph, Auswirkungen einer Staatszielbestim­
mung »Tierschutz« im Grundgesetz, insbesondere auf die Forschungsfreiheit, Frankfurt am
Main, Lang, 2000; Küpper, Georg, Recht und Ethik im Umwelt- und Tierschutz, Baden­
Baden, Nomos, 2002; Leondarakis, Konstantin, Tierversuche - Kollisionen mit dem Tiers­
chutz. Das verwaltungsrechtliche Gestattungsverfahren for Tierversuche, Gõttingen, Cuvil­
lier, 2001; Leven, Claudia, Tierrechte aus menschenrechtlicher Sicht. Der moralische Status
der Tiere in Vergangenheit und Gegenwart unter besonderer Berücksichtigung der Totungs­
problematik im Praferenz- Utilitarismus von Peter Singer, Hamburg, Kovac, 1999; Precht,
Richard David, Noahs Erbe. Vom Recht der Tiere und den Grenzen des Menschen, Hamburg,
Rotbuch, 1997; Sandkühler, Hans Jõrg (org.), Naturverstandnisse, Moral und Recht in der
Wissenschaft. Zur Problematik von Tierversuchen, Frankfurt am Main, Peter Lang, 2000.
823 A enumeração é retomada pelo art. 64.º do Decreto-Lei n.º 3688, de 3 de Outu­
bro de 1941, complementado por diplomas como as Leis de Protecção à Fauna - Lei n.º
5197, de 3 de Janeiro de 1967, Lei n.º 7653, de 12 de Fevereiro de 1988 - e a Lei da Expe­
rimentação Animal - Lei n.º 6638, de 8 de Maio de 1979 - , e para essa mesma enume­
ração ainda remete implicitamente o art. 32.º da Lei n.º 9605, de 13 de Fevereiro de 1998
(complementado pelo art. 17.º do Decreto n° 3179, de 21 de Setembro de 1999).
824 Já eram proibidas no Brasil por força do Decreto n.º 16590, de 1924.
825 Já se lamentará a ressalva do tiro aos pombos, no art. 3.º, XXV III do Decreto-Lei
n.º 24645.
82 6 Cfr. em geral: Dias, Edna Cardozo, A Tutela Jurídica dos Animais, Belo Hori­
zonte, Mandamentos, 2000.
A Hora dos Direitos dos Animais 289

soluções que propõe para problemas que já abordámos: considera-se inte­


grada na categoria de «maus-tratos» a omissão de eutanásia activa a ani­
mais em sofrimento prolongado (art. 3.º, VI), não se fazendo ressalva para
a situação da predação natural, a qual é prevenida pela proibição de traba­
lho em conjunto de animais de espécies diversas (art. 3.º, VIII), de encer­
ramento de animais com outros que os aterrorizem ou molestem (art. 3.º,
XXII), ou de entrega de animais vivos à alimentação de outros (art. 3.º,
XXVI). Um nobre exemplo, pois, hoje continuado pela Constituição Fede­
ral do Brasil, ao estabelecer, no art. 225 .º, § 1, VII, que incumbe ao Poder
Público "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais à crueldade".
Também no caso português, pese embora as naturais resistências que
o movimento suscita e os obstáculos legais que permanecem, a evolução
jurídica neste ponto tem sido sensível - e a atestá-lo estão os numerosos
diplomas, de origem nacional e internacional, que temos referido e que
directa ou obliquamente estabelecem uma protecção permanente e univer­
sal de interesses, a ponto de podermos ver neles prefigurados verdadeiros
direitos dos animais.
É verdade que o Código Civil ainda concebe os animais como coisas
móveis, susceptíveis de aquisição por ocupação (arts. 13 18.º e 1322.º, 2),
ou por «guarida ordenada por indústria do homem» ( 1320.º, 1), mas ime­
diatamente ressalva a consideração pelo "estado de liberdade natural" dos
animais «bravios», ainda que o faça apenas para permitir a sua inclusão na
categoria de «res nullius» (art. 13 19.º), como resulta mais claro do art.
60.º do Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro, quando especi­
fica que: "2 - Considera-se ocupado o animal que durante o acto venató­
rio for morto ou apanhado pelo caçador, pelos seus cães ou aves de presa.
3 - O caçador adquire o direito à ocupação do animal logo que o fere,
mantendo esse direito enquanto for em sua perseguição"821!828.
O mesmo Código Civil revela - em �boa' congruência com o seu
ponto de partida - insensibilidade à questão do bem-estar animal, a qual
releva apenas indirectamente, por reflexo nos interesses patrimoniais (e

827 Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro (Desenvolve o regime jurídico


estabelecido pela Lei da Caça, Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro).
828 Contra a redução de um animal selvagem a res nullius, cfr. Nouet, Jean-Claude,
"Protection ou Respect de !'Animal?", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions . .., cit., 1102.
290 A Via dos Direitos Subjectivos

não-patrimoniais) daquele que usufrui da companhia do animal ou 0


explora; e daí, por exemplo, a imposição, ao parceiro pensador, de dili­
gência na guarda e tratamento dos animais (art. 1 1 24 .º), ou os deveres
impostos ao achador de animal perdido (art. 1 323 .º, 4) .
É a mesma lógica que faz integrar a violência sobre animais na cate­
goria dos «crimes de dano», categoria para a definição da qual a «domes­
ticidade» e a «utilidade para o homem» são critérios decisivos829, e de que
decorrem notórias consequências de desprotecção - seja pelo facto de o
sofrimento individual do próprio animal ser desconsiderado, seja porque
ficam impunes os danos causados em animais pelo próprio detentor, seja
ainda pela natureza semipública do crime, que limita a capacidade de reac­
ção penal -; circunstância que não surpreende porque ela decorre de um
longo «torpor especista» que fez com que, em Portugal, quase até ao final
do século XX a punição da violência contra os animais fosse ainda timi­
damente regida por normas de 1 9 1 9, nomeadamente pelo Decreto n.º
5650, de 1 0 de Maio de 1 9 1 9, e pelo Decreto n.º 5864, de 1 2 de Junho de
1 9 1 9 8 30 .
Isso não impede, como observámos, que o «sono dogmático» tenha
sido sacudido, em boa medida pela via das fontes do direito internacional
e do direito comunitário, mas também pela crescente difusão, no meio
judiciário, de uma consciência do tema do bem-estar animal e dos objec­
tivos éticos e civilizacionais da protecção dos animais, de uma percepção
da acrescida importância que a zoofilia desempenha nos bons costumes8 3I .

22 .c) Riscos de personalização da condição animal


Nada disto significa, ou implicita sequer, que o simples «entusiasmo
teriofílico» basta para aplanar todas as dificuldades que se antevêem na
adopção plena do novo paradigma, e de que podemos enumerar algumas:
- o declínio do paradigma da «coisificação» e da «apropriação» dos
animais não irá agravar, seja os problemas do abandono dos ani-

82 9 Cfr . o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/1995 (P. 48 125 - Col.


Jur., 1995, 3, 216).
830 Cfr. Gaspar, A., "Sobre o Crime...", cit., 167-168.
83 1Veja-se a amostragem de algumas asserções já produzidas no foro, em Gouveia,
J.B., "A Prática de Tiro aos Pombos...", cit., 249-250.
A Hora dos Direitos dos Animais 291

mais domésticos (pois o que seria então «abandono»?), seja o


perigo de «tragédia dos baldios» por saturação da exploração de
recursos deficientemente apropriados?
- a atribuição de direitos aos animais, gerando a falsa impressão de
reconhecimento de uma correspectiva responsabilidade, não
poderia ser aproveitada numa tentativa de exoneração da respon­
sabilidade de detentores ou exploradores dos animais por danos
causados por esses animais - como ela resulta hoje dos arts.
493.º, 1 e 502.º do Código Civil, respectivamente em termos de
presunção de culpa e de responsabilidade objectiva, reforçadas
por responsabilidade contra-ordenaciona183 2 e criminal833 - ,
aumentando, por essa via, o risco na sociedade humana, pelo
incentivo à criação, aquisição e detenção de animais perigosos?
- a mesma atribuição de direitos aos animais não poderá vedar a
«ocupação» ou destruição livres de animais ferozes e maléficos,
ditada hoje pelo art. 132 1.º do Código Civil em atenção à neces­
sidade de prevalência de interesses humanos vitais em caso de
conflito?
- mas, nesse caso, não deveria o mesmo Estado, que protege os ani­
mais nocivos e impede a sua detenção e destruição, assumir gene­
ralizadamente um dever de indemnização - como o faz já relati­
vamente a algumas espécies ameaçadas, nomeadamente, no caso
português, em relação ao lobo ibérico834 - ?
Obstáculo mais difícil, seja ao progresso das normas atributivas de
direitos, seja à eficácia dessas normas, é a prevalência, no próprio cerne da
concepção do Direito, de critérios antropocêntricos não-analisados, de ver­
dadeiros postulados contra os quais vêm esbarrar-se os novos paradigmas

832 Nos termos do art. 68.º, 3, a) do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, que
estabelece as normas legais tendentes a pôr em aplrçação ,em Portugal a Convenção Euro­
peia para a Protecção dos Animais de Companhia (regulamentando o Decreto n.º 13/93, de
13 de Abril) . Daí igualmente a obrigatoriedade de uso, por todos os cães na via pública, de
coleira ou peitoral, e de açaimo ou trela (art. 16.º do Anexo à Portaria n.º 1427/2001, de
15 de Dezembro).
833 Pense-se na responsabilidade criminal que caiba, seja pela difusão de animais noci­
vos através da sua «pseudo-domesticação» (art. 281.º, 1, a) do Código Penal), seja pelo uso
desses animais como instrumentos em crimes contra a vida ou contra a integridade física.
834 Nos termos do art. 6. 0 , 1, da Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto, e do art. 9.º do
Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril.
292 A Via dos Direitos Subjectivos

do «descentramento (bio)ético» , liderados, como já referimos, pelas preo­


cupações ambientais, que se têm encarregado de abrir caminho, tempe­
rando, com considerações pragmáticas sobre a «imanência» em que
decorre a experiência da vida, os propósitos de «transcendência» em que
o antropocentrismo procura refugiar-se835 .
Por isso é comum que, sob a aparência de uma exigência de realismo
e de rigor, o antropocentrismo tente impor aos defensores do novo para­
digma do «descentramento» o próprio jogo do «especismo» , desafiando­
os a definirem fronteiras de relevância para a atribuição e negação de
direitos, a elegerem um «ponto de apoio» em que se alicerce inequívoca e
permanentemente o «ingresso na família dos sujeitos de direito» dos não
humanos - um «abre-te Sésamo» , um «santo-e-senha».
Temos jogado esse jogo e feito concessões ao especismo, mormente
com o objectivo de evidenciarmos que esse obstáculo não é particular­
mente difícil, e que vários critérios podem ser apresentados para sustentar
aquele «ingresso no clube» de alguns não-humanos - já que, por sinal,
esses mesmos critérios podem servir para a «não-exclusão do clube» de
alguns seres humanos, os já tão repetidamente referidos «casos margi­
nais». Mas para que ninguém fique com a impressão de que evadimos a
questão, aqui vai mais um elenco de «critérios fundacionais» para a atri­
buição de direitos subjectivos aos não-humanos - podendo até admitir-se
que a verificação de qualquer um dos poderosos critérios que se seguem
baste para aquela atribuição - :
a) inteligência (capacidade decisória identificável e compreensível);
b) auto-domínio (capacidade de condicionamento da conduta através
da aprendizagem);
e) capacidade de expressão de desconforto, de ansiedade e de dor;
d) capacidade de interacção e reciprocidade;
e) capacidade de preferência moral pela própria espécie.
Talvez só na espécie humana se encontrem indivíduos capazes de
exibir cumulativamente todas estas características, mas em contrapartida,
lembremo-lo, há muitos seres humanos incapazes de, temporaria ou per­
manentemente, exibir qualquer uma destas mesmas características83 6.

8 35 Veja-se, por exemplo, Tribe, Laurence H., "Ways Not to Think About Plastic
Trees: New Foundations for Environmental Law", Yale Law Journal, 85 (1974), 1315ss..
8 3 6 Cfr. McCartney-Smith, Enger, "Can Nonhuman Animals Find Tort Protection in
a Human-Centered Common Law?", Animal Law, 4 (1998), 184-188.
A Hora dos Direitos dos Animais 293

22 .d) Haverá limites naturais?


No nosso entender, mais importante ainda é que a insistência «fun­
dacionalista» num ponto de apoio axiomático para a variedade de explica­
ções contextuais que a nossa cultura fornece aos direitos é manifestamente
empobrecedora. Pense-se, por exemplo, na liberdade que nos reservamos
para abarcar na protecção dos direitos os objectos da nossa compaixão,
tomando a «esfera dos direitos» uma questão de inclusão ou exclusão de
um universo de «prerrogativas alheias» que condicionam a nossa conduta
- nomeadamente o nosso respeito movido originariamente pela nossa
compaixão837 .
A aceitarmos essa «disponibilidade cultural» do Direito (sem hipos­
tasiarmos «âncoras» meta-jurídicas, sem condicionarmos o acatamento
das normas à nossa percepção de uma outra ordem para lá delas), o esta­
tuto natural dos animais não-humanos deixa de ser decisivo para a sua
inclusão ou exclusão dentro de uma teoria da justiça - tal como a inclu­
são da «subjectividade animal» na esfera do jurídico (mesmo que queira­
mos despromovê-la à condição de ficção jurídica, mais uma entre tan­
tas838) deixará de constituir uma ameaça à liberdade dos «detentores» dos
animais, porque o que cabe naquela subjectividade e na respectiva tutela
jurídica será o que resultar da vontade política dentro do pluralismo moral
que se manifesta nas sociedades abertas, exactamente como aceitamos que
suceda, a nível planetário - e de modo particularmente dúctil e evolutivo
nos sistemas de «common law» 839 -, com a tutela jurídica da subjectivi­
dade humana8 40, incluindo nesta, por sua vez, os próprios poderes limita­
dos que integram a «liberdade» dos detentores dos animais. Para darmos
apenas um exemplo, não nos está vedado explorarmos a via improvável e
discutível, mas não impensável - e até com um impecável «pedigree»
lockeano - , do direito à «auto-apropriação» do corpo como base para a
atribuição equitativa de direitos ao animal contra o seu detentor, de direi­
tos incindíveis de uma «liberdade natural» d� não-humano, que reduzi-

8 37 Cfr. Kelch, T.G., "The Role of the Rational.. .", cit., 1-4 1.
8 38 Cfr. Gaspar, A., "Sobre o Crime...", cit., 162.
8 39 Cfr. Wise, S.M., "Hardly a Revolution ... ", cit., 793ss..
840 Cfr. Garner, Robert, "Animal Rights, Political Theory and the Liberal Tradition",
Contemporary Politics, 8 (2002), 7-22; eiusdem, Animais, Politics, and Morality, Man­
chester, Manchester University Press, 1993.
294 A Via dos Direitos Subjectivos

riam a titularidade jurídica a um novelo de poderes-deveres funcionaliza­


dos à tutela dos interesses «corporizados» no animal84 1.
Por outro lado, temos já sublinhado que não se trata de «macaquear»
os direitos humanos - conquanto se tente aproveitar, deles, o «élan»
civilizador e humanizador para ensaiar, em espaços de crescente abertura
intelectual e de pluralidade axiológica, a evolução paradigmática. Não se
trata, em absoluto, de reclamar tratamento idêntico, mas sim de exigir
consideração imparcial de interesses, respeitando diferenças: nomeada­
mente, dada a impossibilidade de inserção normal dos animais não-huma­
nos dentro das referências e práticas convencionais que regem as socie­
dades políticas, seria absurda a atribuição de direitos políticos,
económicos e sociais directamente aos animais não-humanos842 - mas
exclusivamente pela mesma razão que tornaria absurda a atribuição aos
seres humanos do sexo masculino de direitos relativos ao estado de gra­
videz, em nome de um princípio de igualdade - . Que um homem não
possa engravidar, não se vê que seja motivo de desconsideração genérica
dos seus interesses; porque havia de sê-lo, para um animal, a circunstân­
cia de não só não poder participar integralmente na sociedade humana
como ainda não ter interesse aparente em fazê-lo? Poderão as mulheres
(férteis) desconsiderar moral ou juridicamente quem não pode engravi­
dar, só por esta circunstância? Poderão os seres humanos desconsiderar
moral e juridicamente os não-humanos, só pela circunstância ... de eles
não serem humanos?
Por outro lado, como também já observámos, a própria convenciona­
lidade da «linguagem dos direitos» dentro do código político de uma
comunidade denota por si mesma a sua irrelevância para a solução prag­
mática dos problemas que vitimam os animàfa não-humanos, porque sem-

84 1Cfr. Favre, David, "Equitable Self-Ownership for Animais", Duke Law Journal,
50 (2000), 473-502 (em especial, 481-482n29). Cfr. também: Chanteur, Janine, Du Droit
des Bêtes à Disposer d'Elles-Mêmes, Paris, Seuil, 1993.
842 E mesmo assim... há quem sustente, a partir da consideração dos casos marginais
na espécie humana, que se estes não perdem a cidadania pelo facto de terem as suas capa­
cidades gravemente diminuídas (ou de as não terem adquirido plenamente ainda), que a
prova de capacidade de formulação de valorações morais minimamente inteligíveis noutros
primatas deveria franquear-lhes o ingresso numa verdadeira cidadania política, com um
poder de representação nos interesses colectivos das comunidades humanas. Cfr. Acker­
man, Bruce A., Social Justice in the Liberal State, New Haven, Yale University Press,
1980, 73-75, 80.
A Hora dos Direitos dos Animais 295

pre se procurará, independentemente da convenção dominante, a justifica­


ção moral autónoma para uma situação de sofrimento que é equiparável
em todo o espectro da animalidade (seja humana, seja não-humana) 843;
não podendo, por outras palavras, a fronteira convencional do direito posi­
tivo servir (monotonicamente) de pretexto para uma «miopia axiológica»
que só aceitaria o «ingresso» . .. dos «que já entraram» !
Seria despropositado, contudo, usar-se o tema dos direitos dos ani­
mais, ou uma qualquer transição paradigmática, para pôr em causa, ou fra­
gilizar, o sistema de direitos subjectivos que vigora, como um adquirido
civilizacional, em espaços de crescente liberdade política - e que só faz
pleno sentido no seio de relações intersubjectivas que decorram entre seres
humanos adultos e independentes, capazes de colocar as comunidades em
que se inserem ao serviço de uma «linguagem dos direitos» através da qual
reconhecem obrigações e pretensões subjectivas na divisão do trabalho e
na partilha de recursos, através da qual projectam o progresso moral da
vida de relação, o que, sendo naturalmente vedado aos não-humanos 844,
torna por isso inútil, frívolo até, associar-se um reconhecimento de direi­
tos a um propósito de equiparação material, ou até de indiferenciação,
entre os direitos dos animais e os direitos dos humanos, o que só se con­
seguiria por meio de um drástico empobrecimento de conteúdo (de adqui­
rido civilizacional) desta última categoria de direitos845 .
Por isso se compreendem algumas posições restritivas que não se
esgotam em puros atavismos especistas e antes insistem na estreita linha
divisória entre «direitos» e «direitos subjectivos», como o faz Joel Fein­
berg, que admite em princípio o reconhecimento de «direitos» tanto aos
seres humanos como aos não-humanos, mas em ambos os casos apenas
como indivíduos e não como espécies, tal como o admite para gerações
futuras, embora contingente da efectivação futura da sua existência -
excluindo, pois, e independentemente de qualquer «valor intrínseco» que
lhes seja reconhecido, as espécies animais na sua globalidade, todo o reino
vegetal e mineral, e as potencialidades déexistência humana e animal que

84 3 Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 2, 8.


844 Cfr. Kelch, T .G., "The Role of the Rational . ..", cit., 5-6; Milne, A .J.M ., Human
Rights and Human Diversity. An Essay in the Philosophy of Human Rights, Albany NY,
SUNY Press, 1 986 , 1 1 5ss ..
84 5 Cfr. Regan, T ., The Case for Animal Rights, cit., 324.
296 A Via dos Direitos Subjectivos

não cheguem à existência846/847; mas que dessa posição de princípio evo­


lui para a definição de «direito subjectivo» como uma pretensão substan­
tiva, a requerer certas qualidades que não são discerníveis, seja nos não­
humanos, seja nas gerações futuras - nomeadamente uma capacidade
para reclamar o conteúdo da pretensão a que cada direito subjectivo dá
cobertura848 .
Trata-se afinal de uma variante da «teoria realista», que rejeita como
absurda a noção de «direitos subjectivos» desacompanhados de um reco­
nhecimento do poder do titular para usar desses direitos como remédios
circunstanciais; e das teorias que concebem os direitos como salvaguardas
contra políticas que procurassem interferir em interesses fundamentais, ou
como razões justificativas da solução institucional de conflitos de interes­
ses, ou como limites operativos à liberdade alheia; e das teorias que põem
ênfase na alteridade, na interacção dinâmica entre seres reflexivos que pro­
jectam nas normas os seus desígnios sociais, etc.: porque todas essas teo­
rias assentam, como já temos realçado, no pressuposto de uma racionali­
dade partilhada dentro de um espaço de pura convencionalidade, fora da
qual aparentemente não faria sentido falar-se de direitos849.
Talvez devêssemos entrar aqui em considerações acerca da «natu­
reza» dos direitos subjectivos (supondo-se que essa natureza existe e que
a designação recobre apropriadamente uma «família» de fenómenos); para
não nos enredarmos numa «querela dos universais», contentemo-nos em
definir ad hoc os direitos subjectivos como pretensões estáveis permanen­
temente tuteladas pelo Direito, e nesse sentido simples e pragmático não

846 Cfr. Feinberg, Joel, "The Rights of Animais and Unbom Generations", in Blacks­
tone, W.T. (org.), Philosophy & Environmental Crisis, cit., passim. Contra, Goffi, Jean­
Yves, "Droits des Animaux et Libération Animale", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions. . .,
cit., 892-897.
847 Contra o conceito de direito perfilhado por Feinberg, retirando a conclusão de que
os animais não têm direitos, cfr . McCloskey, H.J., "Moral Rights and Animais", Inquiry,
22 (1979), 25-54; cfr. Regan, Tom, "McCloskey on Why Animais Cannot Have Rights",
Philosophical Quarterly, 26 (1976), 25 l ss . .
848 Criticando como inconsistentes e insustentáveis estas exigências, cfr. Markie, Peter
J., "Feinberg on Moral Rights", Australasian Journal of Philosophy, 62 (1984), 237-245.
849 Cfr. DonneJJy, Samuel J.M., The Language and Uses of Rights. A Biopsy of Ameri­
can Jurisprudence in the Twentieth Century, Lanham Md., University Press of America,
1994, 15, 25, 45; Hart, H.L.A., "Are There Any Natural Rights?", in Waldron, J. (org.), Theo­
ries of Rights, cit., 83-89; Milne, A.J.M., Human Rights . . ., cit., 102; Sumner, L.W., The
Moral Foundation of Rights, cit., 163, 188; Wise, S.M., "Hardly a Revolution . . . ", cit., 816.
A Hora dos Direitos dos Animais 297

há obstáculos à inferência de que existem já direitos subjectivos dos ani­


mais - mesmo que eles não possam exercer esses direitos senão através
da representação, o que aliás acontece também quanto aos «casos huma­
nos marginais», e sucede além disso com muitos outros direitos de seres
humanos, quando na sua formulação actual só possam ser assegurados por
«acção afirmativa» dos Estados.

22 .e) O que queremos do Direito?


Não haveria, assim, necessidade de nos remetermos à modéstia de só
vislumbrarmos iniciativas de «protecção do bem-estar», na medida em que
admitisse ser já possível falar de verdadeiros direitos subjectivos 850 . Con­
tudo, lembremos que as questões de nomenclatura são secundárias, se o
que releva é a protecção efectiva de interesses, mormente quando nos refe­
rimos a animais que não possuem a capacidade de perceber a convencio­
nalidade que subjaz aos resultados; e que de certo modo nós próprios,
humanos, só estamos dispostos a aceitar como direitos regras e limitações
de conduta na medida em que lhes reconheçamos um alcance benéfico,
avaliando a árvore pelos seus frutos - sendo que é isso que significa colo­
carmos o Direito ao serviço dos nossos fins.
Que queremos nós da ordem jurídica, efectivamente? A transforma­
ção do Direito não o é de uma instituição externa e independente, des­
prendida da experiência quotidiana e comum, mas é-o sim de uma ordem
de «entendimentos» que perpassam pelo todo dessa experiência social,
não lhe sendo possível a imunização completa a essas «contaminações»
pelos valores que imperam já no seio da sociedade, mesmo antes de a
comunidade dos juristas se debruçar sobre eles e lhes dar uma cobertura
legitimadora. Não existe Direito apenas nos nossos contactos com autori­
dades, com tribunais e advogados - existe também na própria conven­
cionalidade de quase todas as nossas relações sociais, na nossa percepção
da liberdade política, na nossa identidade civilizacional, nos lugares­
comuns informais com que vamos balizando a nossa forma aculturada de
coexistência, na forma como designamos os nossos interesses, os nossos
pontos de conflito, as nossas ambições e limitações.

850 Cfr. Francione, G.L., Animais, Property, and the Law, cit. , 253.
298 A Via dos Direitos Subjectivos

A ideia de «legalidade», a «linguagem dos direitos», aparecem amiú­


de como árbitros hegemónicos da nossa prática social, como geradores de
significados condicionantes da nossa aceitação e acatamento dos interes­
ses alheios, e portanto como alicerces essenciais para a criação e perpe­
tuação da «sociedade civi1»85I ; também por isso eles se projectam no
plano constitucional, seja porque é nesse plano que mais facilmente se
espelhará uma dimensão programática e dirigente do Direito (aquilo que
uma sociedade fundamentalmente espera dela mesma), seja também por­
que muitas dessas normas programáticas não podem frequentemente ter­
se por mais do que simples e directos apelos a princípios de éticass2.
A «abordagem dos direitos» dificulta naturalmente a adopção de uma
perspectiva não-antropocêntrica na consideração ética dos interesses que
possam ser associados aos seres vivos - salvo, notoriamente, o caso do
«direito à vida» dos não-humanos, mais agil e firmemente defensável a
partir da «abordagem dos direitos» do que a partir de qualquer alternativa
utilitarista85 3 - . Poderá mesmo dizer-se que essa «abordagem dos direi­
tos » é a forma mais rematada de antropocentrismo, por ser expressão da
crónica vontade de gerir, regular, dirigir, ordenar, classificar, hierarquizar
- e através deles subordinar e instrumentalizar o destino de seres vivos
que são felizes sem direitos, que viveriam ainda, cumprindo um qualquer
destino, mesmo se o homem nele não interferisse85 4.
8 5 1 Cfr. Garth, Bryant G. & Austin Sarat, "Justice and Power in Law and Society
Research: On the Contested Careers of Core Concepts", in Garth, Bryant G. & Austin Sarat
(orgs.), Justice and Power in Sociolegal Studies, Evanston IL, Northwestem University
Press, 1 998, l ss.; Ewick, Patricia & Susan S . Silbey, The Common Place of Law. Stories
from Everyday Life, Chicago, University of Chicago Press, 1 998, 20-22; Kahn, Paul W.,
p
The Cultural Study ofLaw. Reconstructing Legal Scholarshi , Chicago, University of Chi­
cago Press, 1 999, 124ss . .
8 5 2 Cfr. Dworkin, Ronald, "The Moral Reading and the Majoritarian Premise", in
Freedom 's Law. The Moral Reading of the American Constitution, Cambridge Mass., Har­
vard University Press, 1 996, 7- 1 0 .
8 53 Bastará pensarmos, invocando um princípio de precaução, que um «abolicio­
nismo substantivo» bloqueará a inflicção da morte, enquanto que o utilitarismo, autori­
zando-a, provocará um desfecho por definição irreversível sem que seja possível asseve­
rarmos que a justificação presente manterá a sua validade no futuro (imagine-se que
supervenientemente se descobre que a falta de expressão de sofrimento no processo que
conduziu à morte do animal resulta de uma deficiência de comunicação, e não numa falta
de sensibilidade).
8 54 Cfr. Nouet, Jean-Claude, "Protection ou Respect de l' Animal?", in Cyrulnik, B.
(org.), Si les Lions..., cit., 1 097 .
A Hora dos Direitos dos Animais 299

Em todo o caso, Tom Regan tenta uma fundamentação dos direitos


dos animais que guarda as suas distâncias da posição kantiana - que só
admite deveres indirectos para com os animais, que são deveres directos
para com a humanidade - , e da posição utilitarista - que, como temos
visto, tudo faz derivar da vontade de erradicação do sofrimento, aliada ou
não, neste ponto, a uma «ética da compaixão» - . E fá-lo tanto porque sus­
tenta que há deveres directos para com os animais, como porque julga dis­
cernir na posição utilitarista fragilidades «especistas», aliadas a uma fun­
damental irrelevância de atitudes éticas que se concentrem em motivações
subjectivas que podem não se traduzir numa prática lesiva, e decerto não
são discerníveis por não-humanos enquanto não são vitimizados por actos.
Essa a razão pela qual Tom Regan entende que é crucial começar por pos­
tular-se a existência de direitos subjectivos conexos com um «valor intrín­
seco», objectivo, dos animais - pois isso transferiria o ónus da justifica­
ção para quem quer que, com os seus actos, procurasse infligir algum
sofrimento em animais855 .
A dicotomia entre as perspectivas utilitarista e kantiana tem implica­
ções práticas de maior alcance: a primeira, mais individualista, incidindo
sobre as consequências das opções racionais nas preferências de agentes,
privilegiará os resultados da liberdade das escolhas, e das trocas, na pro­
moção dos interesses humanos, não-humanos e ambientais; a segunda,
mais «solidarista», incidindo na adequação deontológica das condutas à
identidade do agente, privilegiará os resultados do processo democrático
de decisão na configuração de uma vontade colectiva. E por isso é possí­
vel conceber-se que, aí onde falhem as respostas espontâneas das trocas,
do mercado, para a promoção do bem-estar animal ou da preservação das
espécies, haja ou não «falha de mercado», os valores morais que estejam
em jogo - e em perigo - devam ser promovidos por um processo kan­
tiano de reconhecimento colectivo85 6 .
Contra esta segunda via «de consensos» poderia militar a constata­
ção de que o sistema jurídico está já saturado'pela consideração dos sim­
ples interesses humanos, e de que a extensão da tutela jurídica aos inte­
resses dos animais só poderia agravar essa saturação muito para lá dos
limites da praticabilidade - mas o facto é que, queira-se ou não, os ani-

Cfr. Regan, T., "Animal Rights, Human Wrongs", cit. , 99-120.


8 55
Cfr. Sagoff, Mark, "On the Value of Endangered and Other Species", Environ­
85 6
mental Management, 20 (1996), 897-9 11.
300 A Via dos Direitos Subjectivos

mais estão já, com mais ou menos «santificação», envolvidos nesse sis­
tema, seja como objectos de apropriação, seja como bens produtivos ou
bens alimentares, seja como instrumentos de geração de danos, seja como
companheiros, como guias, como protectores - seja ainda somente como
seres sensíveis que nos merecem respeito, ou como espécies cuja preser­
vação nos é preciosa.

22 .f) A representação dos animais


Resta ainda considerar o problema da representação dos direitos dos
animais. À primeira vista, o argumento de que os animais não podem
defender-se juridicamente, nem representar-se sequer o que são os direitos
que lhes atribuiríamos, é cruel, porque fomos nós que convencionámos a
inferioridade deles com base, quer na sua inacessibilidade ao nosso sis­
tema convencional de avaliação da coexistência, quer na crua constatação
da desproporção de forças: a incapacidade que os não-humanos têm de tra­
var uma guerra organizada contra os humanos (com a possível excepção
dos vírus), face à nossa muito visível capacidade de promovermos o exter­
mínio de espécies inteiras 857 .
Pensando no problema da representação, diremos que a questão dos
direitos dos animais pode e deve ser dividida, visto que não parece já plau­
sível atacar-se em bloco a ideia de uma atribuição genérica, que encontra
já consagração legal num empenho na promoção universal e não-contin­
gente de alguns aspectos do bem-estar animal. O que falta, em muitos
casos, é apenas a especificação de meios de acção qJJe assegurem a defesa
espontânea e individual de interesses de animais, complementando a dili­
gência de instituições públicas e colectivas na defesa de interesses difusos
de classes inteiras de animais (permitindo uma defesa individualmente tão
efectiva como o é hoje a defesa dos interesses de menores, de deficientes
e de pessoas colectivas)858 . Do campo teriofílico elevam-se múltiplos ape­
los no sentido de os juristas tomarem em mãos a defesa dos direitos dos

8 57Cfr. Wise, S.M ., Rattling the Cage, cit. , 14-15 .


8 58Cfr. Beauchamp, Tom L., "Moral Standing of Animais", in Bekoff, M. & C.A .
Meaney (orgs.), Encyclopedia o fAnimal Rights... , cit. , 248-250; Sunstein, Cass R., "Stan­
ding for Animais (With Notes on Animal Rights)", UCLA Law Review, 47 (2000), 1333ss .;
Wise, S .M ., "Recovery of Common Law Damages ...", cit., 33ss . .
A Hora dos Direitos dos Animais 30 1

animais por todos os meios que estão já ao seu alcance, sem mais delon­
gas - lançando mão, por exemplo, das inúmeras normas que reprimem a
crueldade sobre os animais - , sobretudo sem terem que estar à espera de
ulteriores «revoluções legislativas» que provavelmente nunca surgirão8 59;
sendo exemplo disso a «rede» de 700 advogados que compõem hoje, nos
Estados Unidos, o Animal Legal Defense Fund (ALDF), dispostos a uma
incansável defesa dos direitos dos animais - e não somente dentro do sis­
tema judicial norte-americano860.
O obstáculo maior à efectivação dos direitos dos animais é o da res­
pectiva praticabilidade contenciosa, é o da legitimidade processual e da
representação em juízo, visto que se poderá questionar o nexo legitimador
entre o «representante» e o animal, nos casos em que se trate directamente
da reparação de interesses do animal86 1 . Por um lado, a óbvia incapacidade
de exercício, pelos animais, dos direitos que convencionalmente lhes
sejam atribuídos não obsta a que estes direitos sejam sistematicamente
exercidos por representantes não-núncios, precisamente da mesma forma
que o são para os incapazes humanos862. Por outro lado, a legitimidade
processual daqueles que queiram representar os interesses dos animais
pode, de iure condendo, ser associada legislativamente à posição de inte­
resse que as pessoas possam ter no bem-estar de animais específicos -
seja porque lhes foi ilegitimamente negada informação, seja porque são
afectadas pelo espectáculo do sofrimento, seja porque têm um título qual­
quer que envolve a tutela da vida desses animais - , por forma a que, atra­
vés do Direito, se exprima qual é o juízo público acerca da premência e
prioridade dos interesses em jogo863. Nada de transcendente, como se vê,

859 Cfr. Silverstein, H., Unleashing Rights ... , cit., 17; Tresl, J ., "The Broken Win­
dow . . . ", cit., 277.
8 60 Cfr. Tresl, J., "The Broken Window . . . ", cit., 280; Frasch, P.D., B.A. Wagman &
S .S. Waisman (orgs.), Animal Law, cit., 747; Chamgers, Steve Ann, "Animal Cruelty
Legislation: The Pasado Law and lts Legacy", Animal Law; z (1996), 194.
86 1 Cfr. Schmahmann, D.R. & L.J. Polacheck, "The Case Against . . . ", cit., 773-774.
8 62 Cfr . Feinberg, Joel, "The Rights of Animais and Unbom Generations", in Blacks­
tone, W.T. (org.), Philosophy & Environmental Crisis, cit., 47-48.
86 3 Cfr. Stone, C.D., "Should Trees Have Standing?... ", cit., 450ss.; Sunstein, Cass
R., "The Expressive Function of Law", University of Pennsylvania Law Review, 144
(1996), 2021ss.; eiusdem, "Standing . . . ", cit., 1333ss.; e mais especificamente: McDonald,
Karen L., "Creating a Private Cause of Action Against Abusive Animal Research", Uni­
versity of Pennsylvania Law Review, 134 (1986), 399ss ..
302 A Via dos Direitos Subjectivos

separa os direitos dos animais de uma plena e perfeita representatibilidade


em juízo, e parecer-nos-ia, mais do que especista, especiosa também, uma
argumentação que esboçasse a denegação dos direitos dos animais com
base em simples argumentos adjectivos.
Em último recurso, se entendêssemos estar-nos vedada a via dos
«direitos subjectivos», seria sempre possível conceber-se uma «ética
ambiental» que fosse ao mesmo tempo antropocêntrica e que preservasse
os interesses dos animais através de uma imposição de obrigações morais
indirectas para com eles, à maneira kantiana - visto que, como temos
insistido, a incapacidade que os não-humanos têm de discernir a intencio­
nalidade do sofrimento que lhes é deliberadamente causado tornaria o
reconhecimento directo de deveres morais irrelevante para a preservação
da qualidade existencial dos não-humanos864.
Assim, quando não seja possível oferecer aos animais um quadro
jurídico de salvaguarda personalizada e plena, restará conceber que a
forma como lhes seja imposto sofrimento pode ofender uma ética de com­
paixão «não-especista» que os seres humanos - alguns ou todos - culti­
vem, uma ética com deveres agravados pela incapacidade de essas vítimas
de sofrimento poderem discernir uma intencionalidade causal e poderem
interagir com ela, seja prevenindo-a, seja reagindo a ela. Uma tal «ética de
respeito» contribuiria para a diminuição efectiva do sofrimento de seres
vivos. Fá-lo-ia de forma decerto menos culturalmente respeitável e sólida
do que a que se obteria com a consagração de direitos subjectivos dos ani­
mais - mesmo assim,faute de mieux, uma forma eticamente impecável e
pragmaticamente relevante865 .

864 Sendo assim, a imposição aos humanos de deveres de cuidado e suporte relativa­
mente aos não-humanos provavelmente faria mais sentido pragmático do ponto de vista
destes últimos - facilitando até a generalização do respeito junto daqueles que são refrac­
tários ao simbolismo da atribuição de direitos subjectivos aos não-humanos .
865 Cfr. Ariansen, P., "Anthropocentrism . . . ", cit., 1 53 - 1 62.
23 . O Obstáculo da Apropriação

"Será assim tão chocante, tão revolucionário, a lei finalmente


reconhecer que um animal não é um saco de cimento ( . . . ) ?" -
Jean-Claude Nouet866
"A ideia de coisa como algo de totalmente submetido à vontade
humana deve ser abandonada. (... ) Parece de resto claro que a ideia
de coisa está moldada sobre a de objecto inanimado, sendo, por isso,
distorciva quando aplicável aos animais. ( . . . ) A tutela dos animais
integra, pois, plenamente, a cláusula dos bons costumes e, por essa
via, o coração do Direito civif' - António Menezes Cordeiro867 .

Podemos concordar com Steven Wise, quando este aponta para a


«muralha jurídica» que sempre tem separado a consideração dos interes­
ses de humanos e de não-humanos e que tem permitido a subalternização
das vidas, liberdades, sofrimentos dos não-humanos até aos mais triviais
interesses humanos - e quando encontra no alicerce dessa muralha o
facto de o Direito nunca ter prescindido da «coisificação» dos animais,
mesmo quando a ciência e a filosofia, após hesitações de séculos, recua­
ram já das suas proclamações instrumentalizadoras e demonstram hoje
uma generalizada abertura para a consideração de interesses próprios dos
indivíduos não-humanos868 .
Como vimos, é possível fazer derivar algumas vantagens práticas da
admissão de «apropriabilidade» dos animais - começando até pelo ele-

8 66 Nouet, Jean-Claude, "Protection ou Respect de l' Animal?", in Cyrulnik, B. (org.),


Si les Lions... , cit., 1102.
86 7 Cordeiro, A. Menezes, Tratado ... /- II- Coisas, cit., 225 .
8 6 8 Cfr . Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 4.
304 O Obstáculo da Apropriação

mentar dever de «apropriação» dos animais domésticos, significando


«apropriação», neste contexto, apenas «não-abandono» . Teoricamente, a
tradição lockeana de legitimação da propriedade não pode ser negligen­
ciada, porque a «inapropriabilidade» generalizada seria profundamente
desestimulante e irresponsabilizante, desenraizaria os fundamentos mate­
riais (os mais poderosos) do nosso esforço, da nossa diligência, da nossa
solicitude: nesse sentido, não podemos afastar como absurda a opinião
kantiana sobre a domesticação, que é a de que o esforço humano de con­
dicionamento dos não-humanos se incorpora como «valor» ( «valor extrín­
seco» talvez seja a designação adequada), e que portanto essa domestica­
ção transforma os animais em obras do homem, que ele passa a ter o
direito de usar, abater e consumir como propriedade sua 869 - embora,
como terá percebido já o leitor mais atento, algo haja a dizer sobre o
«argumento de não-identidade» que se insinua nesta observação de Kant.
Mas mesmo aceitarmos a «apropriação» dos animais não implica
nada de muito particular, visto que, pese embora a longa história do insti­
tuto, o direito de propriedade é uma convenção humana e não uma carac­
terística dos objectos físicos, algo de inerente à natureza das coisas, sendo
sempre de conceber alguma amplitude na redefinição dos poderes ínsitos
na apropriação e nos requisitos de legitimação da propriedade870 .
Além disso, a fragilidade do título que os humanos se arrogam ter
sobre os outros animais fica - mesmo nos termos restritivos e categóri­
cos das regras vigentes - claramente denotada na situação de fuga de um
animal selvagem, a qual faz perder imediatamente qualquer legitimidade
daquele que dele se tenha «apropriado» momentaneamente. Se o mesmo
não sucede quanto aos animais domésticos e domesticados, isso não
impede que a estes se atribua, se não uma «personalidade», ao menos um
«interesse de auto-apropriação» que, se se conceber que está permanente­
mente subordinado, como «corpus», a um título de apropriação jurídica
por parte de um ser humano, investe este último no dever de representar e
defender aquele interesse - mormente as suas incidências no bem-estar
efectivamente experimentado dentro daquela esfera de «personalidade» ou
de «auto-apropriação» - , e ainda no dever de assumir uma responsabili­
dade objectiva pelos actos voluntários do animal «apropriado»; deveres

Cfr. Kant, 1., Die Metaphysik der Sitten. Erster Theil. Metaphysische Anfangs­
8 69

gründe der Rechtslehre, AK, VI, Berlin, Georg Reimer, 1914, 345.
870 Cfr. Favre, D., "Equitable . . . ", cit., 479-480 .
A Hora dos Direitos dos Animais 305

em contrapartida dos quais se lhe reconhecerá a legitimidade da fruição ou


exploração em exclusivo da companhia, do esforço, dos produtos ou da
carne do animal doméstico, e o direito à apropriação da prole87 1 .
Dir-se-ia, pois, que da relação simbiótica da «domesticação» emerge
uma forma de propriedade vinculada, uma espécie de relação fiduciária ou
de tutela em que tanto o «dono» do animal como o próprio animal têm uma
titularidade sobre os mesmos interesses, ainda que com diferentes obriga­
ções e benefícios, poderes e vínculos - podendo sustentar-se que essa
separação entre os dois títulos só não ocorre explicitamente com mais fre­
quência porque não existem valores económicos em jogo que normal­
mente ultrapassem os custos de transacção que seriam exigidos pela expli­
citação do conteúdo daquela relação simbiótica 87 2/87 3.
Há efectivamente quem entenda que essa relação simbiótica - até
pelas implicações afectivas que tantas vezes a rodeiam, e que podem pro­
jectar-se decisivamente na própria formação da personalidade humana,
como se espelha na admissibilidade de ressarcimento de danos não-patri­
moniais causados a «animais de estimação» 87 4/87 5 - envolve um contrato
implícito entre o homem e os animais domesticados. Tratar-se-ia de algo
de muito similar à ficção daquele «contrato social» que teria retirado a
humanidade do «estado de natureza» integrando-a num espaço de cultura,
apresentando aquele «contrato de domesticação» as mesmas limitações de
irrevogabilidade e de falta de consenso efectivo, mas distanciando-se
daquela ficção paradigmática pela ostensiva e irremediável falta de con-

87 1 Cfr. ibid., 481-484. Cfr. ainda: Palmer, Clare, "The ldea of the Domesticated
Animal Contract", Environmental Values, 6 (1997), 411-425.
87 2 Cfr. Favre , D., "Equitable . . . ", cit., 486-489.
873 Cfr. Mazzoni, Cosimo Marco, "I Diritti degli Animali: Gli Animali Sono Cose o
Soggetti dei Diritto?" , in Mannucci , A . & M. Tallacchini (orgs .) , Per un Codice ..., cit., 111-
-120; Newell , B arbara, "Animal Custody Disputes: A Growing Crack in the «Legal Thing­
hood» of Nonhuman Animais" , Animal Law, 6 (2000) , l 7.9ss.; Wise , Steven M., "Animal
Thing to Animal Person - Thoughts on Time, Place and Theo�ies", Animal Law, 5 (1999) ,
6 l ss.; eiusdem, "The Legal Thinghood of Nonhuman Animais", Boston College Environ­
mental Affairs Law Review, 23 (1996) , 47 l ss..
8 74 Cfr. Hannah , H.W., "Animais as Property... ", cit., 573.
875 Veja-se , entre nós , o Acórdão da Relação de Coimbra de 6/3/85 (R. 11580 BMJ
345/456) atribuindo danos patrimoniais e não-patrimoniais por morte de um animal domés­
tico - referindo-se , na fundamentação , à mágoa do dono pela perda de um animal por
quem tinha grande estima. Cfr. Costa , António Pereira da , Dos Animais. O Direito e os
Direitos, Coimbra , Coimbra Editora, 1998 , 67 , 81.
306 O Obstáculo da Apropriação

sentimento constituinte e pela preexistência de relações permanentes de


domínio, que a domesticação se limita a perpetuar876/877 .
Em que direitos e deveres poderia analisar-se esse «contrato de
domesticação»? Ou, adoptando outra perspectiva, como poderia temperar­
se e funcionalizar-se a «apropriação» dos animais domésticos?
Talvez possamos começar por nos socorrer do art. 4.º da Convenção
Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, o qual especifica
os deveres do detentor (que talvez pudéssemos designar como «tene­
dor»8 78 , mas certamente que não como «possuidor», expressão que é
empregue na versão portuguesa da Convenção879)880, sendo de sublinhar,
no preceito, o estabelecimento dos deveres de impedir a fuga do animal,
de proporcionar-lhe exercício adequado, e de alimentá-lo suficientemente;
deveres a que se acrescentam, na mesma Convenção, a proibição de trei­
nos que excedam as capacidades naturais do animal e lhe causem sofri­
mento, recomendando-se o treino por especialistas (arts. 7 .º e 14.º, a)), e
a subordinação, a considerações de bem-estar individual dos próprios ani­
mais de companhia, da sua utilização em "publicidade, espectáculos,
exposições, competições ou manifestações similares" (art. 9.º, 1).
A funcionalização dos poderes do detentor do animal doméstico, na
medida em que implica deveres para com este mas também deveres para

87 6 Cfr. Palmer, C., "The Idea ... ", cit. , 4 1 1 -425.


877 A simbiose com os animais domésticos teria feito complementar as tradicionais
relações de predação e de parasitismo com um «contrato de confiança», que denotaria con­
vergência e complementaridade de interesses, que indicaria que é próprio do homem comu­
nicar e interagir com esses animais, tomando-se isso parte da própria identidade cultural do
homem. Cfr. Lestel, Dominique, "Des Animaux-Machíiies aux Machines Animales", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions . . . , cit. , 694-695 .
878 Expressão a que Vaz Serra recorre, por tradução do germânico «Halter» . Cfr.

Serra, Adriano Vaz, "Responsabilidade pelos Danos Causados por Animais", Boletim do
Ministério da Justiça, 86 ( 1 959), 23, 58.
879 O reparo contra a expressão «possuidor» aparece em: Cordeiro, A. Menezes, Tra­

tado... /- II- Coisas, cit., 21 9.


88 0 A confusão entre «detenção» e «posse» reemerge, por exemplo, nas definições

contidas no art. 2.º, c) e d), do Regulamento de Identificação, Registo e Circulação de Ani­


mais, anexo ao Decreto-Lei n.º 338/99, de 24 de Agosto: "Detenção - a posse, numa base
permanente ou temporária, inclusivamente durante o transporte, no mercado ou no mata­
douro, dos animais abrangidos pelo presente diploma"; "Detentor - qualquer pessoa sin­
gular ou colectiva responsável pelos animais, numa base permanente ou temporária,
inclusivamente durante o transporte, no mercado ou no matadouro, dos animais" .
A Hora dos Direitos dos Animais 307

com outros seres humanos, mormente no que respeita à possível integração


do animal no habitat humano, torna-se mais nítida ainda no Decreto-Lei n.º
276/200 1, que no seu art. 7 .º, 1 e 2, assume expressamente a prioridade da
promoção do bem-estar animal, tornando esta promoção condição sine qua
non da detenção dos animais de companhia, ao mesmo tempo que no seu art.
6.º especificava já o dever especial de cuidado do detentor, que essencial­
mente consiste na obrigação de evitar que o animal "ponha em risco a vida
ou a integridade física de outras pessoas" - questão que por sua vez
entronca também na própria responsabilidade penal por difusão de animais
nocivos ou por detenção de animais perigososS S l /882.
São de realçar também os arts. 8 .º e 9 .º do Decreto-Lei n.º 276/200 1,
que regulam as condições de alojamento que se entende serem minimamente
compatíveis com o bem-estar dos animais de companhia, nomeadamente
atendendo às necessidades de integridade física, de exercício, de refúgio e
esconderijo, de reprodução e protecção de crias, e genericamente todas as
necessidades associadas à expressão confortável dos comportamentos natu­
rais dos animais. O art. 1 2 .º do mesmo diploma detalha as condições de ali­
mentação e abeberamento dos animais de companhia, e em consonância
com os ditames do bem-estar dos animais, vai ao extremo de exigir "um pro­
grama de alimentação bem definido"883. E os arts. 1 0 .º e 65 .º, 1, do mesmo

88 1 Um caso recente e impressionante foi o da condenação criminal de Marjorie


Knoller e Robert Noel pela morte de Diane Alexis Whipple, morte infligida em Janeiro de
200 1, em San Francisco, por cães da raça «Presa Canario» de que o casal Knoller-Noel era
detentor (temporário). Knoller, presente no ataque, estava sujeita a uma pena de 15 anos
(mínimo) a perpétua (por homicídio em segundo grau), e Noel, que não estava presente, a
4 anos de prisão (por homicídio involuntário). A alegação assentou no dolo eventual (sabia­
se que, mais tarde. ou mais cedo, aqueles animais atacariam alguém, visto que tinham sido
treinados para o efeito). A parceira homossexual da vítima, Sharon Smith, pediu também
uma indemnização por «wrongful death» . Depois de o tribunal de recurso ter afastado a
acusação de homicídio em segundo grau, em Julho de 2002 foi proferida uma sentença por
homicídio involuntário, aplicando-se a pena máxiqJ.a (4 anos), com a alegação de que Mar­
jorie Knoller e Robert Noel sabiam que os cães eram perÍgosos e que seria impossível con­
trolá-los em certas situações, como aquela que efectivamente veio a ocorrer.
882 Veja-se as reflexões genéricas que já surgiam em: Thorne, Julie A., "If Spot Bites
the Neighbor, Should Dick and Jane Go to Jail?", Syracuse Law Review, 30 (1988), 1445ss ..
88 3 Veja-se também, para os animais nas explorações pecuárias, a exigência de ali­
mentação "com uma dieta equilibrada", que consta do n .º 17 do Anexo A da Directiva n .º
58/CE/1998, do Conselho, de 20 de Julho, transposta para a ordem jurídica interna pelo
Decreto-Lei n.º 64/2000, de 22 de Abril). Cfr. ainda Cohn, Pricilla, "The Thirsty Cow and
an Important Distinction", Animal Law, 3 (1997), 3 l ss . .
308 O Obstáculo da Apropriação

Decreto-Lei n.º 276/200 1, ao estatuírem que as condições de transporte dos


animais de companhia devem visar a protecção não apenas dos próprios ani­
mais transportados como também da segurança de pessoas e outros animais,
e ao condicionarem a licença de detenção de animais de companhia sempre
que houver risco, tanto para o bem-estar dos animais como para a segurança
e tranquilidade de pessoas, outros animais e bens, são exemplares no seu
«descentramento valorativo» e no nivelamento das perspectivas de cada
espécie cujos interesses estejam em confronto, caso a caso884 .
Isso não significa que se haja abandonado o antropocentrismo, como
resulta muito claramente da subsistência de soluções de «eliminação ime­
diata» quanto a animais agressores - sem sequer o «arremedo de julga­
mento» de antanho - , em clara disparidade relativamente aos agressores
humanos, e sem que possa dizer-se que a diferença de tratamento entronca
na problemática dos fins das penas e que só os agressores humanos apre­
sentam perspectivas de regeneração através da expiação, pois a mesma
«perfectibilidade» se detecta em todo e qualquer animal susceptível de
adestramento (haja ou não representação da sobredeterminação teleoló­
gíca que subjaz à expiação) .
A «detenção» dos animais é, por isso, também para eles uma «con­
denação à contingência» de uma existência que dependerá literalmente da
supressão de alguns instintos: veja-se o art. 20 .º do Decreto-Lei n.º
276/200 1 , que impõe, em caso de agressão por parte do animal a outra pes­
soa que não o detentor, a imediata recolha do animal a um centro de reco­
lha e sua posterior occisão (sem sofrimento), "não tendo o seu detentor
direito a qualquer indemnização" - sendo de sublinhar como, numa
única e simples norma, se casa o reconhecimento da sensibilidade dos ani­
mais (a possibilidade de sofrimento) com a sua «reificação» a elemento
patrimonial do respectivo detentor.
Vemos assim como a legislação avançou já na definição do que seja
uma «relação de domesticação», que possa eventualmente substituir-se ao
paradigma da apropriação, quando tiver chegado o momento de se abolir,
local ou universalmente, a redução dos animais a coisas. Todavia, essa
legislação deixa ainda muitas «clareiras» no desenho daquela relação:

884 Cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 26/6/2001, que define os parâmetros da


razoabilidade da permanência de animais de companhia no uso habitacional do arrenda­
mento (R. 5403/01 - Col. Jur., 2001, 3, 124), e também o que se dispõe nos arts. 115.º a
120.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas .
A Hora dos Direitos dos Animais 309

- pense-se na multidão de problemas que gravitam em torno do


«argumento da não-identidade» - Tem o homem o direito de levar
a hibridização de espécies até certos limites, a ponto de fazer perder
uma identidade genética, ou a ponto de gerar deformações ou sofri­
mentos graves aos indivíduos gerados por aquele processo? Será
porventura lícito ao homem induzir, pela hibridização, característi­
cas que tornam insustentável a inserção ecológica do animal - seja
o animal anormalmente agressivo, que faz perigar a subsistência
qualitativa de todos os seres vivos que lhe estão próximos, seja o
animal inerme e inerte, incapaz de assegurar a sua sobrevivência
com atitudes defensivas minimamente eficazes? - ;
- ou pense-se ainda na responsabilidade humana relativamente aos
excessos populacionais de animais de companhia - caso em que
existe a possibilidade, ou o dever até, de colocar o problema do
direito à protecção, ou do direito à vida, de animais que passam a
ser indesejados por aqueles de cujo desejo a sua existência começou
por depender, razão pela qual há quem defenda que a via a seguir
aqui já é a dos deveres absolutos de respeito, não a dos direitos sub­
jectivos, embora fique sem se saber em que é que esta mudança de
ênfase consiste, ou o que é que ela consegue resolver885 .
Talvez tudo esteja em reformular-se, mais amplamente, o conceito de
«apropriação», pondo-o mais em harmonia com os desígnios de integração
ambiental dos seres humanos, limitando-lhes os impulsos para a «desna­
turalização» e para a «violência» cometida contra um contexto de sobre­
vivência partilhada, o contexto de um planeta único que prodigaliza a
todas as formas vivas, sem excepção nem indeferimento, a dádiva comum
dos seus recursos.
Poderá porventura descortinar-se aqui o embrião de uma resposta
satisfatória às exigências de socialização que atravessaram, centradas num
exclusivismo antropocêntrico, os século� XIX e XX, agora convertidas
numa partilha inter-específica, num «socialismo biológico»? Talvez não,
porque referimos já os riscos e inconvenientes que podem resultar do
abandono (ou ao menos do abandono abrupto) da noção de apropriação -
mormente numa cultura materialista como a nossa, na qual a perspectiva
de apropriação exclusiva é o único verdadeiro e sólido fundamento para a

88 5 Cfr. O'Neill, O., "Environmental Values . . . ", cit., 127- 142.


310 O Obstáculo d a Apropriação

diligência dos seres humanos no cumprimento daquilo que possa entender­


se serem os seus deveres.
E no entanto talvez seja de reconhecer que os desafios colocados pela
«libertação animal» são de tal ordem que eles reclamam uma reformula­
ção da ética tradicional, sobretudo dos seus pressupostos individualistas e
atomísticos - que têm que ser, no mínimo, complementados por noções
de «propriedade vinculada» e de poder-dever relativamente a valores
intrínsecos, e talvez moralmente prioritários, de entes desprovidos, eles
mesmos, de uma consciência moral 886 - entes de uma vulnerabilidade e
de uma dependência tão manifestas que a sua protecção nos investe num
dever muito particular e intenso, ao cumprimento do qual fica reservada a
possibilidade de revelação plena da nossa humanidade ética.

886 Cfr. Gunn, Alastair S., "Traditional Ethics and the Moral Status of Animais",
Environmental Ethics, 5 (1983), 133-154.
24. Direito à Vida? - II - Os Limites
da Não-Personalidade

"They have none of those long-protracted anticipations of future


misery which we have. The death they suffer in our hands com­
monly is, and always may be, a speedier, and by that means a less
painful one, than that which would await them in the inevitable
course of nature" - Jeremy Bentham887 .
"Quando chegamos aos animais que, tanto quanto podemos dizer, não
são seres autoconscientes, a argumentação contra a sua morte pro vo­
cada é mais frágil. Quando não estamos a tratar de animais cons­
cientes de si como entidades distintas, o mal de provocar uma morte
indolor decorre da perda de prazer que acarreta. Quando a vida
tirada não teria sido agradável, ponderados todos osfactores, não se
comete qualquer mal directo. Mesmo quando o animal cuja morte foi
pro vocada pudesse vir a ter uma vida agradável, é pelo menos defen­
sável que não há mal algum quando o animal a matar foi, em resul­
tado da sua morte, substituído por outro animal com uma vida igual­
mente agradável. Adaptar esta perspectiva implica que se defenda
que um mal feito a um ser existente pode ser compensado por um
benefício conferido a um ser ainda não existente. Assim, é possível
encarar os animais não autoconscientes como permutáveis entre si, o
que não se verifica com os seres autoconscientes. Quer isto dizer que,
em certas circunstâncias - quar.zdo os animais têm uma vida agra­
dável, são mortos sem dor, a sua vida' não causa sofrimento a outros
animais e a morte de um animal torna possível a sua substituição por
outro que, a não ser assim, não teria vivido - , a morte de animais
não autoconscientes pode não ser um mal" - Peter Singer888 .

88 7 Bentham, J., An lntroduction to the Principies of Morais and Legislation, cit.,


Cap . XVII, Secção 1, nota 2.
888 Singer, P., Ética Prática, cit., 152.
312 Direito à Vida? - li - Os Limites da Não-Personalidade

24 .a) Morrer, mas sem sofrer


Demos já uma indicação de que o utilitarismo (em especial a variante
perfilhada por Peter Singer) reconhece que a questão do abate dos animais,
se separada do problema do sofrimento, é mais complicada e menos
importante do que este: o direito ao não-sofrimento sobreleva a tudo, e
aplica-se, sem paradoxo, mesmo nos casos individuais em que se não reco­
nheça o direito à vida.
Poderá parecer estranho, mas que é ainda a questão do sofrimento que
ocupa o primeiro lugar mesmo em casos que envolvem seres humanos,
podemos facilmente demonstrá-lo com o contraste que se estabelece entre
critérios de salvamento de vida, relativamente fáceis de formular (pense-se
nos critérios de qualidade de vida como bases de estabelecimento de priori­
dades no acesso a meios hospitalares escassos889), e a dificuldade, porven­
tura insuperável, de discernimento entre graus de sofrimento expressos por
diferentes indivíduos (não havendo nenhum critério aceitável de estabeleci­
mento de prioridades no acesso a cuidados paliativos) 890 .
Temos assim que a consagração do direito à vida é problemática para
a maior parte dos não-humanos, mormente porque a perda instantânea e
indolor da consciência que acompanha a vida pode não envolver uma ante­
cipação, uma representação interpretativa e projectiva que, prefigurando
uma «futuridade hedónica», associe a angústia e o medo à simples ideia de
morte, e mais ainda à ideia de morte provocada e violenta. Nem mesmo
uma indiferença epicurista perante a morte89 I libertará o ser humano de
um medo gerado pela representação das circunstâncias mortíferas, da pos­
sibilidade de elas se fazerem acompanhar de sgfrimento, e de elas consti­
tuírem a suprema injustiça de uma morte infligida por outrem, por alguém
que se arroga um poder de terminar vidas alheias sem encarar a possibili­
dade de reciprocidade ou universalização no exercício desse poder (sem
consistência moral, portanto) . Como este tipo de representação da morte
estará vedado à maior parte dos não-humanos, o dano que para eles repre­
senta a morte há-de ser incomensuravelmente menor do que aquele que

Cfr. Araújo , F., A Procriação Assistida . . ., cit., 128ss. .


88 9
Cfr. Singer, P., Libertação Animal, cit., 16, 19 .
8 90
89 1 Cfr.Araújo , F., Adam Smith . . ., cit., 39 l ss. (o Cap . VII.2 , "Psychotanasia e o Medo
da Morte").
A Hora dos Direitos dos Animais 313

aflige, já à distância, os seres humanos - que chegarão, em desespero, a


ver na própria morte uma hecatombe inutilizadora do «sentido da vida».
Bem pode o art. l .º da Declaração Universal dos Direitos dos Ani­
mais estabelecer que "Todos os animais nascem iguais perante a vida e
têm os mesmos direitos à existência", ainda que não especifique se se trata
do direito à existência de indivíduos - o que parece coadunar-se com a
noção preambular de que "todo o animal possui direitos", ou com a noção
do art. 2.º, 1 , de que "Todo o animal tem o direito a ser respeitado", sig­
nificando "todo o animal" o mesmo que "cada animal", cada indivíduo de
cada espécie - , ou se se trata antes de um direito à existência da espécie,
colectivamente considerada, de acordo com os valores da biodiversidade
- o que parece resultar da ênfase que o Preâmbulo coloca na necessidade
do reconhecimento, pela espécie humana, do "direito à existência das
outras espécies animais", do facto de se proibir o extermínio de outros ani­
mais pelo homem "como espécie animal" (art. 2.º, 2).
O facto é que essa mesma Declaração acaba por admitir a morte de
não-humanos «por necessidade», impondo-se apenas a ressalva do bem­
estar do animal sacrificado (art. 3.º, 2), sendo assim que acaba por preva­
lecer um critério utilitarista mais vincadamente antropocêntrico (coadu­
nando-se com o Preâmbulo, quando este estabelece o princípio kantiano
dos deveres indirectos, ou seja, de que "o respeito dos homens pelos ani­
mais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante"). E para que
não subsistam dúvidas quanto àquilo que a Declaração entende ser a tal
«necessidade» perante a qual cede o sacrossanto «direito à existência»,
basta constatar que a Declaração admite pacificamente a existência de ani­
mais «criados para alimentação», cuja morte não é questionada, desde que
ela seja precedida de alimentação, alojamento, transporte e abate em con­
dições que não causem "nem ansiedade nem dor" (art. 9.º).
Uma admissão dessas esvazia de conteúdo a proclamação categórica
do art. 1 1.º da Declaração Universal dos� Direitos dos Animais, de que a
morte desnecessária de um animal é um <<crime contra a vida», um «bio­
cídio» - porque, muito simplesmente, não há definição do que seja
«necessidade», o que, como vimos, permite a maior amplitude de uma
interpretação estritamente antropocêntrica. Aliás, no seu afã ambientalista,
assente numa preferência indisfarçada pelos animais selvagens, o art. 1 2.º,
1 da Declaração acaba por legitimar uma preocupante interpretação a con­
trario: é que, se se entende como «crime contra a espécie» a morte de um
grande número de animais selvagens, então a morte de grande número de
3 14 Direito à Vida? - II - Os Limites da Não-Personalidade

animais domésticos (art. 5 .º) , de animais de companhia (art . 6 .º), de ani­


mais de trabalho (art. 7 .º) , de cobaias (art . 8 .º) e de animais de criação e
para abate (art . 9 .º) não pode em caso algum subsumir-se a essa categoria
do «genocídio» , tornando-se mais fácil ainda a sua cobertura pela ampla
indeterminação do conceito de «necessidade» (económica , sanitária, eco­
lógica, ou outra qualquer) - deixando , a fortiori, a morte de indivíduos
dessas espécies não-selvagens especialmente desprotegida em termos de
qualificação jurídica.

24 .b) O interesse subjectivo na sobrevivência


Mas não será esta dicotomia entre «direito ao não-sofrimento» e
«direito à vida» mais uma manifestação, esta agora particularmente cruel,
de especismo? Quando se admite, com os utilitaristas , que os animais cria­
dos para abate (ou as cobaias 892) não são detentores de um valor individual
de existência que imponha um dever de abstenção, e apenas representam
um «valor hedónico agregado» que pode ser reposto, em cada abate, pela
criação de um novo indivíduo da mesma espécie - não estamos nós a
impor aos não-humanos uma solução que nunca admitiríamos para os
seres humanos , em relação aos quais repugna a simples sugestão de fungi­
bilidade entre indivíduos? Não estamos nós a fazer renascer a restrição da
ética ao domínio dos agentes morais , fazendo tábua-rasa do facto de nem
sequer todos os seres humanos terem capacidade de agir moralmente?89 3
Por outras palavras , é legítima a questão de saber-se se um animal
tem um interesse na sua própria vida - se tirar-lhe a vida sem sofrimento
viola algum interesse específico, tal como pacificamente se tem admitido
que suceda com os humanos - havendo quem se obstine na defesa do
reconhecimento de um interesse na persistência da vida por parte de indi­
víduos não-humanos , denunciando as limitações do «utilitarismo das pre­
ferências» (de Peter Singer) para negar esse interesse894 .

892 Cfr. Francis , L.P. & R . Norman , "Some Animais . . . ", cit., 507-527 ; Narveson , Jan,
"Animal Rights Revisited" , in Miller, Harlan B. & William H. Williams (orgs.) , Ethics and
Animais, Clifton NJ , Humana Press , 1 983 , 45-59.
893 Cfr. Pluhar, Evelyn B . , "Utilitarian Killing, Replacement, and Rights", Journal of
Agricultura/ Ethics, 3 ( 1 990), 147- 1 7 1 .
894 Cfr. Johnson, Lawrence E. , "Do Animais Have an Interest ln Life?" , Australasian
Journal of Philosophy , 6 1 ( 1 983) , 1 72- 1 84.
A Hora dos Direitos dos Animais 315

Admitamos que, uma vez mais, o especismo ressurge como um obs­


táculo intransponível dentro do nosso contexto cultural. Pode chocar que se
queira restringir o «direito à vida» à condição de agente moral ou de «ser
racional», negando-o a meros «pacientes morais» e a «seres irracionais»
quando estes últimos não pertencem à espécie humana (antes desta última
ressalva, o argumento ainda não é especista). Mas o facto é que a nossa cul­
tura associa à racionalidade a possibilidade de concepção de um «dano
deôntico» com o qual é possível uma simpatia abstracta e uma avaliação
precisa das consequências de condutas lesivas e contrárias a um código de
conduta explícito895/896. Como temos insistido, a incomensurabilidade será
porventura um «erro de paralaxe» do nosso antropocentrismo, mas o facto
é que a capacidade de representação da identidade, a sedimentação de uma
experiência pretérita e a capacidade autoconsciente de perspectivar abs­
tractamente o desenvolvimento futuro, tomam a vida humana individual
uma representação que é em si mesma valiosa, que constitui um bem -
para muitos, o bem absoluto, o único fim em si mesmo, a cuja preservação
todos os outros valores devem subordinar-se. E a incomensurabilidade
axiológica nem sequer constitui um problema intratável, dado ser possível
compatibilizar a igualdade de consideração de interesses com a prioridade
concedida a interesses de seres autoconscientes, desde que com isso não se
queira sugerir, como é óbvio, que a autoconsciência possibilita a existência
de lesões de interesses que não existem para aqueles cuja única diferença é
a de não disporem de autoconsciência897 .
Acompanhamos aqui Peter Singer: matar uma pessoa humana que
tenha escolhido não viver pode, nalguns casos extremos e dentro de algu­
mas comunidades e sistemas jurídicos, não constituir um crime porque se
atende ao respeito pela sua autonomia, que não é violada. E por isso se dirá
que a escolha pela vida, para ser feita com autonomia, implica a com­
preensão da diferença entre morrer e continuar a viver, e por isso, de certo
modo, implica também a capacidade de representação de uma identidade
intertemporal, a capacidade de autoconsciência como entidade distinta que
permanece ao longo do tempo, que por isso a si mesma se reconhece numa
história pessoal passada e se projecta numa perspectiva de futuro - sendo

895 Cfr. Paske, Gerald H., "Why Animais Have No Right To Life: A Response to
Regan", Australasian Journal of Philosophy, 66 ( 1 988), 498-5 1 1 .
896 Cfr., todavia: Johnson, L.E., "Do Animais Have an Interest ln Life?", cit., 172- 1 84.
897 Cfr. Singer, P., Ética Prática , cit., 82, 94 .
316 Direito à Vida? - li - Os Limites da Não-Personalidade

que é isso que permite estabelecer uma distinção entre pessoas e seres
conscientes e sensíveis, reservando-se àquelas o alcance pleno do «direito
à vida» e a estes o alcance pleno do «direito ao não-sofrimento» B98. Com
efeito, pode sustentar-se que não é apenas o passado filogenético que
separa a espécie humana das demais, mas também é a memória histórica,
a capacidade de acumulação de um acervo de rememoração simbólica e de
condicionamento do presente em função dessa «sedimentação de identi­
dade», que é exclusiva da espécie humana899 .
Parece-nos, pois, confusão ilegítima e desnecessária a inclusão, no
mesmo plano, da morte e do sofrimento - como acontece no art. 1 . º, 1,
da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro - , visto que sabemos que, no pre­
sente estádio civilizacional, e a menos que subscrevamos uma pura «ética
vegetariana» e preconizemos uma truncagem na tradicional cadeia ali­
mentar do habitat humano, temos de admitir, para os animais de criação,
a sua morte, desde que desacompanhada de sofrimento, sem ser preciso
recorrer-se ao expediente interpretativo de se considerar essa morte abran­
gida pela ressalva da «necessidade» enunciada no texto do mesmo artigo,
já que essa «necessidade» será uma causa exculpativa excepcional, a reco­
brir casos de sofrimento inevitável - o que não se pode aceitar que cor­
responda à prática habitual do abate dos animais. Aliás, a mesma Lei n.º
92/95 estabelece essa demarcação entre morte e sofrimento logo na alínea
c) do n.º 3 do seu art. l .º, visto que sem hesitações prescreve a eutanásia,
"uma morte imediata e condigna", quando não sejam já possíveis o trata­
mento e a recuperação de animais enfraquecidos, doentes ou idosos.
E o mesmo poderia dizer-se, aliás, quanto a um «direito à reprodu­
ção» ou à «geração de vida», não podendo excluir-se que a incapacidade
de representação das consequências de explosões populacionais torne os
não-humanos inaptos para determinarem a cadência de geração de nova
vida que seja compatível com a sustentação de indivíduos ou de espécies,
seja em termos puramente naturais ou ambientais, seja mesmo em termos
de compatibilidade com as limitações económicas da espécie humana que
sustente esses não-humanos900 - sendo assim de admitir-se a prática da

89 8 Singer, P., Ética Prática, cit., 116-121.


8 99 Cfr. Leste!, Dominique, "Des Animaux-Machines aux Machines Animales", in
Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 683.
900 Cfr. Rolston, Holmes, "Endangered Species", in Bekoff, M. & C.A. Meaney
(orgs.), Encyclopedia of Animal Rights .. ., cit., 154-156.
A Hora dos Direitos dos Animais 317

esterilização indolor de animais domésticos e de companhia, como resulta


por exemplo do art. 22.º do Decreto-Lei n.º 276/200 1 , de 1 7 de Outubro.
Não esqueçamos, contudo, que esta dicotomia entre «direito ao não­
sofrimento» e «direito à vida» pode esconder uma preocupante confluên­
cia entre dor e sofrimento, mormente o facto de a morte ser, nalguns casos,
a culminação e o produto de um processo de sofrimento, permitindo até
usar a morte como um estalão absoluto para a comparação de modos de
sofrimento entre as espécies90 I , ou permitindo mesmo subscrever-se um
conceito não-antropocêntrico de «tragédia», se admitirmos que existe um
mesmo sentido trágico na «perda de potencial» associada à morte de
alguns indivíduos não-humanos (tal como estamos invariavelmente dis­
postos a reconhecer que sucede com a extinção total de uma espécie não­
humana), e se percebermos que a própria morte, mesmo para aqueles que
conceptualmente a não representam, é muito frequentemente a culminação
máxima de um transe de sofrimento e ansiedade de animais cujos instin­
tos estão, em termos evolucionistas, predispostos à sua auto-preservação
corporal902. Não é só porque vem acompanhada de sofrimento que a perda
de uma vida, a diminuição - mesmo que só numa unidade - da presença
de vida no nosso planeta, a redução do âmbito da nossa simbiose, é um
mal: um mal necessário nalguns casos, mas sempre um motivo de interpe­
lação para a consciência moral daqueles que disponham da consciência e
do poder para minimizar esse mal.

90 1 Cfr. Morton, Adam, "A Note on Comparing Death and Pain", Bioethics, 2 ( 1 988),
1 29- 1 35 .
90 2Cfr. Putman, Daniel, "Tragedy and Nonhumans", Environmental Ethics, 1 1
( 1 989), 345-353 .
25. Libertação - II - As Lições
da História Humana

"Quando as mulheres começaram a reivindicar o direito ao voto ou


a igualdade genérica de direitos, não faziam ideia ao certo onde é
que as suas reivindicações nos conduziriam . Não sabem ainda;
nem eu o sei. Mas estou confiante de que se trata de uma mudança
para melhor, mesmo que muitas das implicações particulares das
alterações verificadas só venham a tornar-se claras com o tempo.
O mesmo pode dizer-se do nosso tratamento dos animais" - Hugh
La Follette903 .
"Há muito tempo aprendemos a domesticar animais selvagens.
Aplicámos esse conhecimento para praticarmos a escravatura
entre humanos. Mas tal como a domesticação de animais selvagens
serviu como um princípio ilegítimo para a prática da escravatura
entre humanos, também a destruição do esclavagismo e de todos os
seus afloramentos pode ser vir de modelo à legítima abolição da
escravatura de chimpanzés e bonobos" - Steven Wise904 .

25 .a) O Direito como instrumento libertador


Vimos já que uma das formas de libertação dos animais não-huma­
nos poderia envolver a abolição dos direitos reais que sobre eles incidem
- mas seria um passo arriscado, vista a forma como as ordens jurídicas
modernas ligam a assunção de deveres e a responsabilidade individual à
apropriação privada. Seria, aliás, cruelmente irónico que a libertação fosse

903 La Follette, Hugh, "Animal Rights and Human Wrongs", in Dower, N. (org.),
Ethics and the Environment, cit., 89.
904 Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 261.
320 Libertação - II - As Lições da História Humana

acompanhada de uma desvalorização dos animais dentro do contexto eco­


nómico das trocas de mercado - embora, naturalmente, seja inevitável
alguma desvalorização em consequência da limitação dos poderes do
«dono» do animal, começando pelos poderes de disposição905 .
Que a desconsideração jurídica pelos interesses dos animais é relativi­
zável aos ordenamentos jurídicos em que ocorre, e depende de uma inten­
ção discriminatória, pode ser ilustrado pela própria história do direito, com
exemplos como o da consagração e superação do esclavagismo - e muito
particularmente com soluções como aquela que, em finais do século XVIII,
a Inglaterra adoptou, decretando que qualquer escravo que por qualquer
motivo ficasse sob a sua jurisdição seria imediatamente liberto, destruindo­
-se imediatamente a legitimação proprietária do «dono» do escravo906.
Ultrapassada a maior parte dos preconceitos que asseguravam a per­
petuação da opressão e da desconsideração dos interesses dos não-huma­
nos, reconheçamos que nada «está escrito» num pretenso «direito natural»
a respeito das relações entre espécies ou a respeito da primazia dos inte­
resses humanos - pese embora as proclamações bíblicas que, como
vimos, nem sequer são elas mesmas conclusivas . Assim sendo, nada obsta
a que a «libertação animal» progrida através do próprio Direito, seja em
soluções imperativas, seja mesmo - mais eficientemente porventura -
pela multiplicação de instrumentos jurídicos privados através dos quais
sejam assumidos deveres para com o animal pelo próprio titular do
«direito» sobre ele, de forma a auto-limitar os poderes inerentes a esse
direito e a elevar a consideração dos interesses do animal, num gesto simi­
lar ao da histórica manumissão dos escravos .
A via mais eficiente será, como é óbvio, a dq pioneirismo doutrinal
da própria lei, limitando os poderes inerentes à titularidade sobre os ani­
mais, e multiplicando os deveres que implicitam a consideração da auto­
propriedade equitativa do animal sobre o seu próprio corpo e interesses;
dando, pois, um passo suplementar àqueles que já foram dados no sentido
da regulamentação da propriedade e exploração dos animais, e no sentido
do combate aos tratamentos cruéis e desumanos - em especial porque
muito daquilo que está já consagrado em sede de direitos dos animais se
limita a investir o Estado em poderes de protecção, enquanto que a nova
orientação poderia começar logo por abrir caminho à legitimidade privada

905 Cfr. Favre, D ., "Equitable... ", cit., 495 .


906 Cfr. ibid., 478; Wise, S.M., Rattling the Cage, cit., 102ss..
A Hora dos Direitos dos Animais 321

na representação dos interesses do animal, tanto a legitimidade do dono


como representante dos interesses do animal (essencialmente os interesses
não-patrimoniais), como a legitimidade directa do dono como guardião e
proprietário jurídico (sobre o qual repercutem danos patrimoniais), como
ainda a legitimidade de terceiros como representantes de interesses difu­
sos e não-titulados, em especial os conexos com a repulsa causada pelo
espectáculo do sofrimento animal.
Na realidade, e como temos insistido, já que os não-humanos não
teriam maneira de se aperceber da convenção jurídica que lhes atribuísse
direitos ou que os integrasse numa nova forma de apropriação, ou os
«libertasse» de formas de apropriação tradicionais, tudo se passa, e se
esgota, na transformação do modo de lidarmos com os interesses dos ani­
mais, e na educação dos seres humanos na sua forma de integração no qua­
dro geral do relacionamento natural entre as espécies, na preservação da
vida e da biodiversidade907 - tudo na estrita medida em que essa trans­
formação de fundo pudesse confluir num resultado tangível, experienciá­
vel, pelos próprios animais, dentro do seu confinamento perceptivo.

25 .b) Paralelismo com a discriminação de grupos humanos


Dir-se-ia que um tal movimento tem pouco a ver com antecessores
seus que se reportaram exclusivamente às sociedades humanas - não
fosse dar-se o caso de, num caso como no outro, a «libertação» se centrar
basicamente num desmentido de uma concepção hierárquica da realidade,
que aparenta legitimar ascendentes, primazias, privilégios, instrumentali­
zações e opressões. Se a «hora dos direitos dos animais» vem anunciar
uma nova via de desenvolvimento da juridicidade, porque não há-de ela de
trilhar os caminhos que esses embates de vanguarda têm seguido?90 8
Com efeito, não foram apenas os não-humanos que sofreram, e
sofrem, as consequências práticas da adopção de um conceito de «Escala
do Ser» - nos termos do qual, recordemo-lo, todas as discriminações

907 Cfr. Favre, D., "Equitable ... ", cit., 491ss. , 494ss., 497ss ..
908 Comentando o livro de Steven Wise, Rattling the Cage, Robert Verchick sustenta
que ele "marks what could become one of the groundbreaking civil rights battles of the next
generation" - Verchick, Robert R.M. , "A New Species of Rights", California Law
Review, 89 (200 1), 207.
322 Libertação - li - As Lições da História Humana

valorativas pareciam ficar autorizadas pelas diferenças fácticas ou natu­


rais, visto que estas passavam a ter-se por confirmações da colocação de
todos os organismos vivos, plantas, animais, numa posição necessária,
permanente e apropriada dentro de uma determinada hierarquia significa­
tiva, dentro de um plano providencial mais vasto. Não fazendo sentido
procurar-se similaridades entre seres colocados em posições diferentes -
visto que tal contribuiria para esbater as fronteiras pré-ordenadas -, pode­
riam atribuir-se características valorativas aos seres humanos e negá-las
aos outros animais, tal como se podiam atribuir características axiologica­
mente relevantes a certos grupos humanos, negando-as aos demais.
Por isso fazia sentido denegar a justiça tanto aos escravos como aos
não-humanos, indiscriminadamente, ainda que não se procurasse violentar
a constatação empírica da pertença dos escravos à espécie humana909 :
lembremos Aristóteles, fazendo assentar a sua teoria do «escravo natural»
na ideia de um «instrumento animado» (empsychon organon) , que viveria
exclusivamente pelos sentidos e para os sentidos, ainda que pertencesse à
espécie humana9 IO; lembremos também que ainda no século XIX, em boa
medida fruto da arrogância do ethos colonialista, era comum associar-se a
sensibilidade à dor e ao sofrimento a factores culturais e educativos, infe­
rindo-se uma menor sensibilidade à dor nas «classes inferiores», nas
«raças inferiores», nos «selvagens» e, claro, nos animais (dando-os a todos
como exemplos de uma certa invulnerabilidade associada a «rusticidade»),
espelhando uma vez mais uma ideia hierárquica da natureza9 1 1 .

909 Cfr. Wise, S.M. , "How Nonhuman Animals .. . " , cit., 25-26. Cfr . ainda: Anderson,
J.C. , "Species Equality ... ", cit., 347-365.
9 1 0 Aristóteles, Ética a Nicómaco, 8.11.6-7, 1161b4-5; Ética a Eudemo, 1215h35;
Política, 1.2.4, 1253h30ss. - cfr. Green , P. , Alexander to Actium. . . , cit., 383.
9 1 1 Cfr. Buettinger, Craig, "Women and Antivivisection in Late Nineteenth-Century
America" , Journal of Social History, 30 (1997), 857-873; Drummond, William Hamilton ,
The Rights of Animais. And Man's Obligation to Treat Them with Humanity, London , J.
Mardon , 1838; Elston , Mary Ann , "Women and Anti-Vivisection in Victorian England" , in
Rupke, N.A. (org .. ), Vivisection in Historical Perspective , cit., 259-294; Engelhardt,
Édouard, De l'Animalité et de Son Droit, Paris, A. Chevalier-Maresco, 1900; Fairholme,
Edward G ., A Century of Work for Animais. The History of the Royal Society for the Pre­
vention of Cruelty to Animais, 1824-1924 , New York, E.P. Dutton , 1924; Hamley, Edward
Bruce, Our Poor Relations. A Philowic Essay, Boston , J.E. Tilton, 1872; Nicholson,
Edward Williams Byron , The Rights of an Animal. A New Essay in Ethics , London , C.
Kegan Paul, 1879; Pemick, Martin S. , A Calculus of Suffering: Pain, Professionalism, and
Anesthesia in Nineteenth Century America, New York, Columbia University Press , 1985,
A Hora dos Direitos dos Animais 323

Também aqui caberia observar que o mesmo instrumento de liberta­


ção - o Direito - é o principal instrumento de opressão, e que por isso
uma revolução interna tem que ocorrer para que lhe sejam substituídos os
paradigmas fundamentais; também aqui, por outras palavras, poderia ree­
mergir a já tradicional crítica de que a veneração pelo Direito é uma forma
de serem perpetuadas as relações de poder, oferecendo-se aos desfavore­
cidos uma ilusão de ordem, de segurança e de subordinação à justiça que
lhes apazigua o impulso para a rebelião, uma ilusão de ordem que além
disso reforça contra eles a comunidade dos favorecidos, unificados pela
sua adesão a um ritual de acatamento que é ele próprio santificado.
Essa libertação, para constituir missão ou dever directo dos humanos
face aos não-humanos, há-de prender-se com um desígnio não-antropomór­
fico de florescimento da índole «natural» de cada indivíduo em cada espé­
cie, isto é, de emergência de um contexto de minimização do sofrimento e,
dentro dele, de uma conduta não pautada por ansiedade nem balizada por
violência humana, seja ela acompanhada ou não de uma consciência sub­
jectiva das virtualidades individuais dessa manifestação de potencialidades
(bastando que haja uma conduta «liberta», haja ou não a fruição perceptiva
desse estado de liberdade) - sendo a criação das condições que propiciam
esse florescimento um objecto adequado de preocupação (bio)ética9 1 2 .
É verdade que a nossa arrogância especista, a nossa vaidade antropo­
cêntrica, encaram com relutância a hipótese de a «libertação animal» ser
decalcada dos movimentos de libertação social e política que têm tido
lugar na história, dada a alegada incomensurabilidade dos interesses
humanos e não-humanos - e dado até, mais subtilmente, o facto de essa
convergência tender a esbater uma demarcação fundamental entre aquilo
que é adequado aos interesses de humanos e aos interesses de não-huma­
nos, fazendo correr o risco de tudo se dissolver em antropomorfismo.
Mais importante se afigura ser a representação da autonomia e da
capacidade comunicativa que são pressupostas num tal movimento, para

4, 1 48- 1 67 ; Richards, Stewart, "Vicarious Suffering, Necessary Pain . Physiological


Method in Late Nineteenth-Century Britain", in Rupke, N.A . (org.), Vivisection. . . , cit. ,
125- 1 48; Salt, Henry Stephens, Animais' Rights. Considered in Relation to Social Pro­
gress, Clarks Summit Pa., Society for Animal Rights, 1 980 ( 1 1 892); Singer, Peter, Ethics
into Action:Henry Spira and the Animal Rights Movement, Lanham MD, Rowman & Lit­
tlefield, 1 998; Turner, James, Reckoning with the Beast: Animais, Pain, and Humanity in
the Victorian Mind, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1 980.
9 1 2 Cfr. Heeger, R. & F.W.A . Brom, "Intrinsic Value . . . ", cit. , 24 1 -252.
324 Libertação - II - As Lições da História Humana

que os seus beneficiários se possam considerar «libertados», o que efecti­


vamente pareceria desaconselhar o recurso a essa forma de designação
para o movimento de reconhecimento de direitos aos animais, não fosse o
caso de ser a nós que o imperativo de «libertação animal» se dirige, e ser
na nossa escala de valores que se joga, em exclusivo, a fundamentação e a
avaliação do que, em obediência a princípios éticos, tenhamos feito ou dei­
xado de fazer9 1 3.
Também é verdade que, como já temos assinalado, alguns excessos
radicais, em palavras e actos de «libertação animal», têm levado muitos a
assumirem uma reacção defensiva, de profunda desconfiança perante
aquilo que, de uma certa perspectiva - a do contra-movimento «Putting
People First», por exemplo9 1 4 - , se apresenta como um culto neo-pagão
que ataca a ciência e os fundamentos da racionalidade, e parece querer ins­
taurar, quiçá literalmente, «o fim da macacada».
Não é com reacções medrosas, contudo, que faremos justiça a uma
ideia cuja hora chegou9 15. Pelo contrário, à medida que a história nos vai
permitindo perceber, em retrospectiva, que muitas das distinções em que
assentou a concepção da nossa humanidade, da nossa integração socio­
política, foram construções culturais débeis que o tempo se encarregou de
esbater, e que a credibilidade racional das barreiras que subsistem deve ser,
a essa luz, reavaliada e refundamentada, pode bem ser que as distinções
categóricas entre humanos e não-humanos, que agora são assaltadas de
todos os quadrantes, devam ser também elas reformuladas, tomando
necessário envolver a defesa da dignidade dos seres humanos num reco­
nhecimento de uma dignidade que transcende as fronteiras da espécie
humana, que se reforça mais pela integração do que pela demarcação,
mais pela universalidade da condição animal do que pela especificidade da
condição humana9 1 6.

913 Cfr. Lamb, David, "Animal Rights and Liberation Movements", Environmental
Ethics, 4 (1982), 215-233.
9 1 4 Cfr. Deal, Carl, The Greenpeace Guide to Anti-Environmental Organizations,
Berkeley, Odonian Press, 1993, 83-84.
9 1 5 Veja-se a exortação nesse sentido, em: Posner, R.A., "Animal Rights", cit., 527.
9 1 6 Cfr. Cartmill, M., A View to a Death in the Morning. .., cit., 223.
26. Um Projecto de Guerra Perpétua:
O Ecofeminismo
"O homem, relutante em aceitar a sua dívida para com uma mãe
física, criou uma realidade alternativa, um heterocosmos, para se
conceder a si próprio uma ilusão de liberdade" - Camille Paglia9 I 7

26 .a) O androcentrismo patriarcal


E se a atribuição de direitos aos animais for um esforço inglório, des­
provido de utilidade? Se os direitos não passarem de veículos de repressão
e de perpetuação do status quo, de expressões de interesses arreigados no
tecido sociopolítico, insusceptíveis, por isso, de constituírem, a se, fron­
teiras de salvaguarda e de demarcação face às expressões contingentes do
poder social? Se os direitos forem redutíveis a letra morta «programática»,
à mercê da evolução cultural e ideológica, não direitos positivos imunes a
tais contingências e capazes de antagonizá-las?
É esse cepticismo radical face à «linguagem dos direitos» que carac­
teriza tanto a «Criticai Legal Theory» como a posição das feministas
perante o problema da condição não-humana - neste segundo caso, por­
que é credo feminista9 I 8 que os direitos têm sido historicamente, e conti­
nuam a ser, veículos de dominação e expl_�ração machista, podendo por

9 1 7 Paglia, Camille, Sexual Personae. Art and Decadence from Nefertiti to Emily
Dickinson, London, Penguin, 199 1, 9.
9 18 Um credo dominante, dentro de uma pluralidade de orientações que caracteriza o
movimento. Cfr. Bartlett, Katharine T., "Cracking Fundations as Feminist Method", Jour­
nal of Gender, Social Policy & The Law, 8 (2000), 32; eadem, "Gender Law", Duke Jour­
nal of Gender Law & Policy, 1 ( 1994), l ss.; Chamallas, Martha, lntroduction to Feminist
Legal Theory, Gaithersburg MD, Aspen Law & Business, 1999, 3 1-112.
326 Um Projecto de Guerra Perpétua: O Ecofeminismo

isso converter-se facilmente, de reflexos de uma ordem androcêntrica, em


instrumentos de supremacia antropocêntrica 9 1 9 .
Ecofeministas como Carol Adams sublinham que o feminismo não é
um método de análise das relações entre mulheres e homens , não se esgota
e nem sequer se centra nesse tema, mas pretende ser antes um método ana­
lítico que revela o carácter convencional , socialmente construído , da rea­
lidade - e dos propósitos políticos que subjazem a essa reconstrução con­
vencional da experiência comum920/92I .

9 1 9 Cfr. Adams, Carol J, "Bringing Peace Home: A Feminist Philosophical Perspective on


the Abuse of Women, Children, and Pet Animais", Hypatia: A Journal of Feminist Philosophy,
9 ( 1994), 63-84; Adams, Carol J. (org.), Ecofeminism and the Sacred, New York, Continuum,
1993; Adams, Carol J. & Josephine Donovan (orgs.), Animais and Women. Feminist Theoreti­
cal Explorations, Durhiµn, Duke University Press, 1995; Benton, Ted, "Animal Rights: An Eco­
Socialist View", in Gamer, Robert (org.), Animal Rights. The Changing Debate, Basingstoke,
Macmillan, 1996, 19, 32-37; Crittenden, Chris, "Subordinate and Oppressive Conceptual Fra­
meworks: A Defense of Ecofeminist Perspectives", Environmental Ethics, 20 ( 1998), 247-263;
Dixon, Beth A., ''The Feminist Connection between Women and Animais", Environmental
Ethics, 18 ( 1996), 181-194; Donnelly, Samuel J.M., The Language and Uses of Rights. .., cit.,
38-42; Donovan, Josephine, "Animal Rights and Feminist Theory", Signs. Journal of Women in
Culture and Society, 1 5 ( 1990), 350-375; Donovan, Josephine & Caro! J. Adams (orgs.), Beyond
Animal Rights: A Feminist Caring Ethic for the Treatment of Animais, New York, Continuum,
1996; Gaard, Greta, "Women, Animais, and Ecofeminist Critique", Environmental Ethics, 18
( 1996), 439-44 1 ; Gruen, Lori, "Animais", in Singer, Peter (org.), A Companion to Ethics,
Oxford, Blackwell, 1 99 1 , 343-353; Gruen, Lori, "Dismantling Oppression: An Analysis of the
Connection Between Women and Animais", in Gaard, Greta (org.), Ecofeminism: Women, Ani­
mais, Nature, Philadelphia, Temple University Press, 1 993, 60-90; Gruen, Lori, "On the Oppres­
sion of Women and Animais", Environmental Ethics, 18 ( 1996), 44 1 -444; Houde, Lincoln J. &
Connie Bullis, "Ecofeminist Pedagogy: An Exploratory Case", Ethics and the Environment, 4
(1 999), 143- 174; Kheel, Marti, "Nature and Feminist Sensitívity", in Regan, T. & P. Singer
(orgs.), Animal Rights and Human Obligations, cit., 26 lss.; Kheel, Marti, "From Heroic to
Holistic Ethics: Toe Ecofeminist Challenge", in Gaard, G. (org.), Ecofeminism ..., cit., 243-27 1 ;
Plumwood, Vai, "Integrating Ethical Frameworks for Animais, Humans, and Nature: A Criticai
Feminist Eco-Socialist Analysis", Ethics and the Environment, 5 (2000), 285-322; Plumwood,
Vai, Feminism and the Mastery ofNature, London, Routledge, 1 993 ; Silverstein, H ., Unleashing
Rights ..., cit., passim; Sterba, J.P., Three Challenges to Ethics ..., cit., passim; Twine, Richard T.,
"Ma(r)king Essence - Ecofeminism and Embodiment", Ethics and the Environment, 6 (200 1),
3 1 -58; Warren, Karen J., Ecofeminist Philosophy: A Western Perspective on What lt Is and Why
lt Matters, Lanham MD, Rowman & Littlefield, 2000; Warren, Karen J., ''The Power and the
Promise of Ecological Feminism", Environmental Ethics, 12 ( 1990), 125- 146.
920 Cfr. Adams, Carol J., Neither Man nor Beast. Feminism and the Defense of Ani­
mais, New York, Continuum, 1 994, 1 4 .
92 1 Sobre as pretensões metodológicas d o feminismo, cfr. Bartlett, Katharine T.,
A Hora dos Direitos dos Animais 327

Tomemos por exemplo a posição de Mary Midgley, que defende que


o conceito de direito subjectivo está de tal modo ferido de ambiguidade
que ele é inutilizável na defesa do bem-estar animal, residindo o problema
basicamente na obsessão dualista com demarcações e hierarquizações -
a partir das quais se tenta fazer derivar uma escala de salvaguardas e de
prerrogativas que, na falta de partilha daquelas convicções dualistas, não
se tornam evidentes, antes ficam a pairar num limbo de ambiguidade922 .
Em contrapartida, há quem acuse Mary Midgley de, com as suas alegações
anti-jurídicas, querer repristinar essas mesmas distinções da «Cadeia do
Ser», através de uma discriminação assente nos factos da sociabilidade e
da inteligência de cada espécie - o que poderia redundar numa exposição
dos animais «inferiores» ao sofrimento923 .
Poderá o moderno movimento teriofílico resistir ao radicalismo des­
tas abordagens, aparentemente tão bizantinas? Poderão os seus princípios,
aparentemente tão escorreitos, tão linearmente deriváveis de éticas tradi­
cionais, tão compatíveis com formulações jurídicas rematadas, resistir aos
assaltos iconoclastas do pós-modernismo?924
Poderá o radicalismo ecofeminista, por seu lado, comprovar alega­
ções como a de que a teriofilia é uma «fachada ideológica» que visa repri­
mir minorias justificando-se com a necessidade de repressão de «práticas
desviantes» de crueldade para com os animais (os abates rituais, por exem­
plo)? Poderá o mesmo radicalismo comprovar a sua tese de que a repres­
são dessas práticas minoritárias é, em si mesma, uma crueldade não menos
grave do que aquela que os «opressores de minorias» julgam descortinar
no sacrifício ritual de animais?925

"Feminist Legal Methods", Harvard Law Review, 103 (1990), 829ss.; Littleton, Christine
A., "Feminist Jurisprudence: The Difference Method Makes", Stanford Law Review, 41
(1989), 75 l ss.; MacKinnon, Catharine A., Toward a Feminist Theory of the State, Cam­
bridge Mass., Harvard University Press, 1989, 106- 125; Schroeder, Jeanne L., "Abduction
From the Seraglio: Feminist Methodologies and the Logic of lmagination", Texas Law
Review, 10 (199 1), 109ss..
922 Cfr. Midgley, Mary, Animais and Why They Matter, Harmondsworth, Penguin,
1983, 61-64; Kheel, Marti, "The Liberation of Nature: A Circular Affair", in Donovan, J.
& C.J. Adams (orgs.), Beyond Animal Rights . . ., cit., 17-22.
923 Cfr. Bekoff, M., "What is a «Scale of Life?»", cit., 253-256.
924 Cfr. Singer, P., "Utilitarianism and Vegetarianism", cit., 327.
925 Cfr. Birke, Lynda, "Exploring the Boundaries: Feminism, Animals and Science",
in Adams, C.J. & J. Donovan (orgs.), Animais and Women . . ., cit., 49ss .. Veja-se passagens
similares em: Adams, Carol J., The Sexual Politics of Meat. A Feminist- Vegetarian Criti-
328 Um Projecto de Guerra Perpétua: O Ecofeminismo

Poderá, por fim, o ecofeminismo provar que a opressão dos animais,


o sexismo e o racismo são na verdade formas sobrepostas e comunicantes
de violência, sistemas concatenados de domínio, sintomáticos de um pro­
blema mais vasto que respeita à própria base do tecido social, e que é o
propósito de domínio através da exclusão e da discriminação?926
Com efeito, algumas feministas, procurando a radicalização e a poli­
tização, tomam a questão do sofrimento dos animais como um mero sin­
toma de uma deficiência estrutural mais ampla e intratável, e por isso pre­
conizam a resistência a um sistema de identificação social e político que,
na opinião delas, tende a estigmatizar e a ostracizar as causas, isolando-as
e atribuindo-as a «lobbies» identificados - remetendo-as imediatamente
para o plano de motivações minoritárias e marginais - 927 .
Assim sendo, é timbre das ecofeministas desconsiderarem quase
completamente os pioneirismos de Tom Regan e de Peter Singer - enten­
dendo que essa linguagem perpetua os dualismos mecanicistas da episte­
mologia cartesiana - , recusando mais intensamente ainda o pressuposto
da dominação humana sobre a natureza, propondo as ecofeministas, em
alternativa, um paradigma de reciprocidade e de troca - à margem das
relações de «força» 928 - e de um «conhecimento emocional» alegada­
mente requerido pela avaliação dos resultados das práticas opressivas dos
animais, e requerido também por qualquer projecto credível de edificação
de uma «ética de apoio aos animais» 929.
Por outras palavras, o pioneirismo de Regan e Singer resume-se, na
visão radical, a uma mais ou menos bem-intencionada «libertação animal
patriarcal» que peca por ser restritiva, exclusivista e demasiado agressiva
para com aqueles que demoram a abandonar as grilhetas de uma cultura

cal Theory, New York, Continuum, 1 990; Baker, Steve, The Postmodern Animal, London,
Reaktion Books, 2000; Noske, Barbara, Beyond Boundaries: Humans and Animais, Mon­
treal, Black Rose Books, 1 997 ; Plumwood, V., Feminism . .., cit., passim.
92 6 Cfr. Adams, C .J . , Neither Man nor Beast. . . , cit., 79; Lacroix, Charlotte A ., "Ano­
ther Weapon for Combating Family Violence: Prevention of Animal Abuse", Animal Law,
4 ( 1 998), 33ss ..
927 Cfr. Kappeler, Susanne, "Speciesism, Racism, Nationalism . . . or the Power of
Scientific Subjectivity", in Adams, C.J. & J. Donovan (orgs.), Animais and Women. . ., cit., 324.
928 Cfr. Kelch, T.G ., "Toward a Non-Property Status .. .", cit., 574-577.
92 9 Cfr. Adams, C .J ., Neither Man nor Beast... , cit., 1 38; Donovan, J., "Animal
Rights and Feminist Theory", cit., 365 ; Birke, Lynda I.A., Feminism, Animais and Science.
The Naming of the Shrew, Buckingham, Open University Press, 1 994, 1 35 .
A Hora dos Direitos dos Animais 329

predominantemente antropocêntrica, de uma cultura assente nos valores


do conforto doméstico e da domesticação - propondo muito desse radi­
calismo, em contraponto, a exploração das possibilidades de multiplicação
de uma variedade de vozes e narrativas que se vão sedimentando em novas
teorias, dentro de um ambiente relativista e pluralista, liberto das insegu­
ranças «ontológicas» que explicam em larga medida o zelo demarcador93 0 .
A esse androcentrismo individualista da «linguagem dos direitos» contra­
põem as ecofeministas a teoria da «ética do cuidado», como base edifica­
dora de uma nova «ontologia social», uma visão da «sociedade bem orde­
nada», depurada enfim dos constrangimentos do dualismo axiológico para
poder dar livre curso à solicitude, à devoção, à abnegação93 I .

26 .b) A denúncia dos dualismos hegemonistas


Para o ecofeminismo, tudo se jogaria, pois, na contraposição entre
«profanação do corpo ctónico e imanente feminino» e «sacralização do
espírito transcendente masculino», uma dicotomia concebida para justifi­
car a humilhação e subjugação de todos os que se encontrassem no «lado
errado» dessa dicotomia, todos aqueles que fossem representados como
sendo sobredeterminados pela sua natureza (sexual, animal), sendo nesses
termos que a condição feminina acabava por encontrar-se «do mesmo lado
da trincheira» com a condição não-humana, partilhando com esta a sua
situação de desconsideração ética e jurídica93 2, uma degradação «cere­
bral» e dualista operada sobre tudo o que fosse representável como «cor­
póreo», animal, vulnerável 933 - compreendendo-se por isso o zelo bata­
lhador do ecofeminismo contra os discursos e práticas «dominantes» do

93 0 Cfr. Vance, Linda, "Beyond Just-So Stories: Narrative, Animais, and Ethics", e
Luke, Brian, "Taming Ourselves or Going Fera]? Toward a Nonpatriarchal Metaethic of
Animal Liberation", ambos in Adams, C.J. & J. Donovan (orgs.), Animais and Women . . .,
cit., 165, 175, 18 1- 183, 3 12-3 15.
93 1 Cfr . Slicer, Deborah, "Obligations to Animais Are Not Necessarily Based on
Rights", Journal of Agricultura/ and Environmental Ethics, 8 (1995), 16 1- 1 70; Plumwood,
V., "Integrating... ", cit., 285-322.
932 Cfr. Adams, C.J. (org.), Ecofeminism and the Sacred, cit., passim.
933 Cfr. Birke, Lynda, "Animal Rights: Ecofeminists' Perspectives", in Bekoff, M. &
C.A. Meaney (orgs.), Encyclopedia of Animal Rights . . ., cit ., 48-49; Twine, R.T.,
"Ma(r)king Essence... ", cit., 31-58.
330 Um Projecto de Guerra Perpétua: O Ecofeminismo

«hegemonismo androcêntrico» 93 4, mobilizando em seu apoio a causa


ambiental e zoófila, às quais apenas censura a «ingenuidade» de tomarem
por antropocentrismo aquilo que não passa de androcentrismo, e por isso
se concentrarem sobre aquilo que é apenas um sintoma do domínio preva­
lecente na sociedade humana, sem avançarem decididamente para as pró­
prias raízes do mal, que seriam as relações de poder935 .
Uma moral de sentimentos, afinal, reabilitadora da nossa faceta emo­
tiva, descartando a demarcação kantiana entre direito e moral, fazendo-os
ambos comunicarem na sua dimensão existencial, no plano da experiência
concreta, como David Hume, na Treatise, já advertira ser não só desejável
como até, de certo modo, inevitável93 6 - uma moral de sentimentos muito
evocativa do neo-estoicismo da Theory of Moral Sentiments de Adam
Smith, refira-se de passagem937 - . É em nome dessa possibilidade de
«comunicação simpática» com a condição dos não-humanos que se per­
mite à causa radical optar pela denúncia de todos os dualismos, de todas
as dicotomias - sublinhando que a contraposição binária pressupõe já um
parti-pris por um dos termos tidos por antagónicos - ; denúncia que con­
duziu do estruturalismo para o pós-estruturalismo.
Daí que a abordagem feminista dos direitos dos animais procure for­
mular princípios não-dualistas e não-hierárquicos das relações entre huma­
nos e não-humanos, por forma a erradicar contraposições e «tensões dia­
lécticas» aparentemente legitimadoras de relações de poder; daí também
que a análise pós-moderna não rejeite a condição de objectos que é atri­
buída aos animais - mas apenas porque desvaloriza a dicotomia «sujei­
tos/ objectos» - , e que essa análise ironize sobre os esforços zoofílicos
no sentido da atribuição aos animais de uma condição de «sujeitos»,

934 Veja-se um exemplo em Houde, L.J . & C. Bullis, "Ecofeminist Pedagogy . . . ", cit.,
143-174; Simons, J., "The Longest Revolution . . . ", cit. , 483-497; eiusdem, Animal Rights
and the Politics of Literary Representation, New York, Palgrave, 2001.
935 Acusando ambas as formas radicais de serem manifestações de uma misantropia
degenerada, cfr. Fox, Warwick, "The Deep Ecology-Ecofeminism Debate and Its Paral­
lels", Environmental Ethics, 11 (1989), 5-25.
936 Cfr. Lind, Mareia, "Hume and Moral Emotions", in Flanagan, Owen & Amelie
Oksenberg Rorty (orgs.), ldentity, Character, and Morality. Essays in Moral Psychology,
Cambridge Mass., MIT Press, 1990, 133ss.; Luke, Brian, "Justice, Caring, and Animal
Liberation", in Donovan, J. & C.J. Adams (orgs.), Beyond Animal Rights. . . , cit., 82-86;
Warren, K.J., "The Power . . . ", cit., 125ss . .
937 Cfr. Araújo, F., Adam Smith ... , cit., 998ss . .
A Hora dos Direitos dos Animais 33 1

quando é notório o declínio do valor da «subjectividade» no pensamento


pós-moderno (de que valeria o esforço de «descentramento», se ele mais
não fizesse do que encaminhar para um novo «recentramento», ou para
uma multiplicação de «centros» ?)938.
Com efeito, a aliança da teriofilia com o pós-modernismo não se faz
sem riscos, já que a obsessão com textos, narrativas, discursos, represen­
tações, simbolismos e planos de análise - o próprio âmago da ironia rela­
tivista e «redescritora» que anima a vanguarda bem-pensante - pode tur­
var a percepção clara dos factos crus do sofrimento e da crueldade,
submersos estes na floresta luxuriante da alusão ornamental, da pose
desencantada, da reconstrução simbólica, do bon mot939.
Em contrapartida, a zoofilia aprende, nesta dissolução relativista do
pós-estruturalismo, a identificar a questão dos direitos dos animais como
uma construção convencional reportada a uma prática social, uma criação
historicamente conotada, poupando a causa à ingénua fragilidade de uma
insistência no carácter «natural» de deveres para com os animais, numa
espécie de «fetichismo a-histórico» com a juridificação, reorientando-a
antes para a insistência naquilo que, em cada momento histórico, é pensá­
vel em matéria de direitos a atribuir ou reconhecer aos não-humanos, numa
militância que não consente desfalecimentos, já que a descontinuidade do
histórico desligaria sempre a reflexão teriofílica de quaisquer reflexões pre­
cedentes, por mais afinidade abstracta que existisse a coligá-las940/94 1 .
Contudo, retenhamos de Tom Regan algumas das críticas fundamen­
tais que endereça ao ecofeminismo, e em especial às ideias de que: a) não
vale a pena estender aos animais direitos morais que alegadamente espe­
lhariam preconceitos androcêntricos, insistindo Regan no singelo facto de
as ideias não ficarem «contaminadas de androcentrismo» pelo simples
facto de serem formuladas inicialmente por homens e defendidas por eles;
b) o que é próprio de uma ética ecofeminista é a sua concentração na noção
de «solicitude», alegando Regan que uma tal atitude tenderia a perpetuar a
noção preconceituosa de que a visão feni'iniría: é dominada pela subjectivi-

93 8 Cfr. Adams, C.J., Neither Man nor Beast . . . , cit., 12; Birke, L.I.A ., Feminism,
Animais and Science . . . , cit., 1 44. Veja-se também o trabalho pioneiro, e largamente entu­
siástico, de Haraway, Donna J., "Primatology Is Politics by Other Means", in Bleier, Ruth
(org.), Feminist Approaches to Science, New York, Pergamon, 1 986, 77- 1 1 8 .
939 Cfr. Birke, LI .A., Feminism, Animais and Science. . . , cit., 1 46.
940 Cfr. Tester, K., Animais and Society . . . , cit., 77, 1 94- 1 95.
94 1 Veja-se a crítica a estas posições em Baker, S ., Picturing the Beast .... , cit., 212-217.
332 Um Projecto de Guerra Perpétua: O Ecofeminismo

dade e pela irracionalidade, que é fundamentalmente incapaz de protagoni­


zar, em pleno, o diálogo que lidera o contexto cultural (e jurídico, e ético)
mais sofisticado na nossa contemporaneidade, diálogo que ainda insiste em
alicerçar em direitos, e não em transitórias convergências de bons senti­
mentos, a tutela mais sólida dos interesses socialmente relevantes942.
Também é fundamentalmente contestável, no ecofeminismo, a asser­
ção de que é ainda o poder patriarcal que oprime igualmente os não-huma­
nos com a sua irreprimida «vontade de domínio», não apenas porque, como
acabámos de ver, os paralelismos gratos ao ecofeminismo tendem a descen­
trar as mulheres relativamente ao núcleo civilizacional da socialização, mas
também porque o dever de libertação dos animais impende sobre as mulhe­
res como seres humanos, independentemente de quaisquer agravos civiliza­
cionais que elas tenham contra a organização patriarcal do poder, sendo que
a luta contra esta organização não domina aquela outra luta, nem a inutili­
zaria se socialmente viesse a registar-se um maior nivelamento entre os
sexos - devendo reconhecer-se que uma guerra interminável entre os
humanos jamais justificaria a instrumentalização ou a vitimização das
demais espécies ou o prolongamento da guerra mais perene e cruel que já
movemos contra algumas delas943, nem tão-pouco uma transposição de pla­
nos que voltasse a reduzir os não-humanos a ornamentos de um contexto
dialéctico que, tudo demarcando à volta da «guerra dos sexos», voltaria a
recentrar a condição animal na «gravitação» da espécie humana944/945.

942 Cfr. Regan, Tom, "Obligations to Animais are Based on Rights: Individual Rights
Are Not Grounded in Prejudice", Journal of Agricultura[ and Environmental Ethics, 8
(1995), 171-180.
943 Já Samuel Pufendorf, no De Jure Naturae et Genti�"m (1672), insistia que a guerra
da espécie humana contra os não-humanos se distingue das guerras entre humanos pelo
facto dequela, ao contrário destas, ser universal, perpétua e irrestrita, distinguindo-se tam­
bém pelo seu carácter inteiramente desnecessário e desigual, o que para Pufendorf consti­
tuiria um dano para o todo da sociedade e até uma afronta ao Criador - cfr. Burgat, Flo­
rence, "Les Habits de la Cruauté", in Cyrulnik, B. (org.), Si les Lions ..., cit., 1231-1232.
944 Cfr. Dixon, B.A., "Toe Ferninist Connection... ", cit., 181-194. Contra: Gaard, G., "Wo­
men, Animais... ", cit., 439-441, e Gruen, L., "On the Oppression ... ", cit., 441-444, que acusam
Beth Dixon de não perceber as ligações simbólicas que existem entre as duas classes de vítimas
da opressão patriarcal, e de não abarcar na sua análise o carácter problemático da demarcação
entre humanos e não-humanos, o qual denotaria já por si mesmo a vontade opressiva, numa es­
pécie de «deslizamento categórico» entre dois tipos de opressão. Cfr. ainda: Dixon, Beth A., "On
Women and Animais: A Reply to Gruen and Gaard", Environmental Ethics, 20 (1998), 221-222.
945 Num novo ataque às posições de Beth Dixon, insistindo em que existe um qua-
A Hora dos Direitos dos Animais 333

dro geral de vontade de domínio e uma comunidade emotiva entre oprimidos, infiltrados já
nas categorias do entendimento e nas próprias formas de legitimação moral e política, cfr.
Crittenden, C., "Subordinate ... ", cit., 247-263; e, mais genericamente, Warren, K .J., Ecofe­
minist Philosophy..., cit., passim.
27. Uma Síntese das Teses em Confronto

Procuremos fazer uma síntese sistematizadora, já que manifesta­


mente nos encontramos num domínio de fracos consensos, no qual se
defrontam posições extremas e dificilmente conciliáveis - que vão do
reconhecimento à absoluta recusa do simples conceito de «direitos dos
animais».
Diríamos que as teses centrais podem dividir-se entre admissões
indirectas e directas de um estatuto moral próprio dos animais não-huma­
nos (ou de alguns deles), as primeiras funcionalizando essa admissão à pri­
mazia dos valores antropocêntricos, as segundas assentando num «des­
centramento» da ética, ou da bioética.

I. Teses indirectas - entre elas destacaríamos as posições cristã, car­


tesiana, kantiana e contratualista.

a) visão cristã:

Havendo uma «hierarquia de seres vivos» no topo da qual estão colo­


cados os seres humanos, os que estão numa posição subalterna devem ter
os seus interesses igualmente subalternizados; aqueles que, no topo, são
capazes de uma determinação racional das suas acções são os únicos mere­
cedores «em si mesmos» de uma consideração moral946. Uma variante
considera que a hierarquia dos seres vivos fica claramente demonstrada
pela posição de cada animal dentro da «cadeia alimentar», sendo que o
interesse daqueles que se encontram em posições inferiores, mormente o
seu interesse na sobrevivência, tem naturalmente que ceder aos «impera­
tivos» da heterofagia.

946 Cfr. Regan, T. & P. Singer (orgs.), Animal Rights and Human Obligations, cit., 4-12.
336 Uma Síntese das Teses em Confronto

b) tese cartesiana:

Sendo os não-humanos desprovidos de alma, sendo o seu comporta­


mento susceptível de uma descrição puramente externa e mecanicista (a
mais parcimoniosa), os dados da consciência animal, mesmo que existis­
sem, seriam irrelevantes, seja para a explicação do comportamento dos
animais não-racionais, seja consequentemente para a determinação da
conduta humana face às demais espécies - sendo que por sua vez a con­
duta humana é racional, «intencional» e linguisticamente articulável, tor­
nando-se por isso um caso único de insusceptibilidade de redução a uma
explicação mecanicista947 .

e) tese kantiana:

Só os seres humanos conseguem libertar-se do jugo das «paixões» e


dos instintos, e por isso só deles é exigível o distanciamento crítico de que
podem emergir preceitos (violáveis) de conduta que convocam a autonomia
da conduta. Como a única bondade intrínseca incondicionada que existe é a
de uma vontade bem formada e como os animais são desprovidos dessa von­
tade, eles não têm valor intrínseco, e servem apenas para objectos da edifi­
cação moral da conduta humana, pelo exercício de deveres indirectos.

d) visão contratualista:

A moralidade e o direito só podem ser considerados como justos se


pudessem ter sido escolhidos racionalmente em determinadas condições
- condições de generalidade e abstracção que, permitindo um equilíbrio
pactuado entre representações individuais de interesses, naturalmente con­
ferem primazia à consideração dos interesses daqueles que participam (ou
poderiam participar) nesse contrato, só extravasando reflexamente para os
não-participantes .

I . 1 . Implicações das teses indirectas -

Os interesses dos animais não são directamente relevantes para a con­


sideração da moralidade, da juridicidade, da justiça, das nossas opções de

947 lbid., 1 3 - 1 9 .
A Hora dos Direitos dos Animais 337

conduta. São-no indirectamente, porque a lesão de um «interesse» de um


animal há-de ser, muitas das vezes, uma lesão directa do património do seu
proprietário, ou uma lesão de valores não-patrimoniais daqueles que
tenham com o animal uma ligação afectiva socialmente aceitável, ou
daqueles cuja sensibilidade seja gravemente afectada pelo tratamento
inconsiderado dos «interesses» de um não-humano. Mais ainda, o trata­
mento dos animais pode ser envolvido num acervo de deveres morais e
jurídicos estritos na medida em que ele seja tido por revelador da própria
índole moral e cívica - da humanidade - do agente humano, na medida,
em suma, que se conceba que os deveres indirectos para com os animais
são deveres directos para com os seres humanos948 .

1.2. Argumentos contrários às teses indirectas -

O principal argumento é o dos «casos marginais», ou seja, a ideia de que


os motivos que são invocados para a desconsideração directa dos interesses
dos não-humanos são aplicáveis, qua tale, a «casos marginais» de seres
humanos que não são dotados daquelas características que as «teses indirec­
tas» insistem em reservar à espécie humana. Outro argumento contra as
«teses indirectas» alega que elas são incapazes de fundamentar o dever abso­
luto de respeito pelos interesses dos animais - por exemplo, o dever de abs­
tenção de crueldade mesmo em circunstâncias em que o acto cruel seria inde­
tectado e não lesaria valores patrimoniais ou não-patrimoniais que não os do
próprio perpetrador - , muito em especial porque, não havendo um dever
absoluto e directo de respeito pelos animais, o que se fizesse contra estes
jamais se poderia entender como indiciador de «desumanidade» do agente949 .

II. Teses directas - distinguiríamos entre interpretações inegualitá­


rias e igualitárias, e nestas últimas destacaríamos as posições de Peter
Singer e de Tom Regan.

11. 1. A desigualdade dos não-humanos -

Aqueles que aceitam o carácter único da «sensibilidade» dos animais


(ou de alguns deles) tendem a aceitar a possibilidade de consideração

94 8 Cfr. Carruthers, P., The Animais /ssue . . . , cit., 1 53- 1 54 .


949 Cfr. Nozick, R ., Anarchy, State, and Utopia, cit., 36.
338 Uma Síntese das Teses em Confronto

directa dos respectivos interesses, interesses que são, de uma forma qual­
quer, «percebidos» por esses seres vivos, sendo pois experimentada tam­
bém, de uma forma axiologicamente significativa, a lesão desses interes­
ses (sendo perceptíveis graus de satisfação e insatisfação, de segurança e
ansiedade, no comportamento exteriorizado por esses animais).
Entre os argumentos que têm sido usados em apoio desta variante
inegualitária das teses directas, destacam-se aqueles que sustentam que é
exclusivo da espécie humana:
a) a consciência autónoma e reflexiva, alegando alguns que esses
são requisitos imprescindíveis para um estatuto moral pleno;
b) a intencionalidade moral, que confere aos actos humanos uma
dimensão nuancée que escapa à previsibilidade de simples reac­
ções mais ou menos mecânicas e instintivas - permitindo a sedi­
mentação de uma «personalidade moral» através do uso da liber­
dade de acção;
e) a pertença a uma comunidade moral, que seria requisito necessá­
rio à consagração de verdadeiros deveres e direitos, pois é só num
contexto de reciprocidade generalizada e de consciência racional
dos termos da interdependência que se afigura possível (e rele­
vante) enunciar abstractamente esses direitos e deveres;
d) a personalidade jurídica: se entendermos que o conceito de direito
(subjectivo) pressupõe o de dever (de respeito pelos direitos
alheios), então deveríamos restringir o reconhecimento de direitos
a entes capazes de assumirem deveres em contrapartida daqueles
direitos, capazes de se integrarem numa comunidade regida por
princípios de reciprocidade e capaz de discernir formas legítimas
e ilegítimas de prossecução de interesses próprios no seio dessa
comunidade. Mais ainda, como o conceito de dever não postula o
de direito, não seria necessário reconhecermos direitos aos ani­
mais para assumirmos deveres para com eles (embora se reco­
nheça que a «linguagem dos direitos» reforça a protecção subjec­
tiva dos interesses, conferindo ao titular desses interesses uma
identidade e uma sede de imputação de pretensões legítimas, que
não podem ser violadas em total impunidade). Em todo o caso,
como o conceito de direito é uma criação cultural convencional,
não nos é vedado concebermos que o único requisito para o reco­
nhecimento de direitos é a constatação de um esforço de prosse­
cução de interesses próprios «cristalizado» na permanência de
A Hora dos Direitos dos Animais 339

uma conduta, seja esse esforço, ou não, intencional e reflexivo -


sob pena de novamente contendermos com a protecção jurídica de
«casos marginais», ou remetermos o critério da tutela jurídica
para o plano puramente factual da existência de quaisquer carac­
terísticas mais ou menos arbitrariamente escolhidas950.

Il.2. A igualdade dos não-humanos -

É a tese de que os não-humanos são merecedores não só de uma con­


sideração valorativa directa, como do reconhecimento de um estatuto
moral e jurídico em paridade com o dos humanos.

a) A posição utilitarista de Peter Singer:

Para Peter Singer, a igualdade é a dos interesses a serem considera­


dos, visto que se afigura moralmente imperativo que devotemos uma
mesma consideração a todos os objectos possíveis das nossas acções,
ainda que não pressuponhamos a igualdade efectiva entre eles. Assim
sendo, ou pressupomos a absoluta igualdade de condições de todos os
seres humanos - o que se afigura contra-intuitivo - ou reconhecemos
que, na sua diversidade, pode haver, nalguns casos, mais denominadores
comuns com animais não-humanos do que aqueles que possam encontrar­
se permanentemente entre todos os membros da espécie humana (mais
afinidade na animalidade do que na humanidade, em especial se levarmos
em conta os «casos marginais» entre os humanos). Ora, se não admitimos
discriminações entre seres humanos apesar das diferenças entre eles, fica
clara a ilegitimidade de uma demarcação «pseudo-factual» entre os seres
humanos e alguns não-humanos, que não passaria, assim , de uma discri­
minação igual àquelas que proscrevemos dentro da nossa espécie - isto
é, que proscrevemos quando ela pretenda ter. �m alcance axiológico.

b) A posição «jusnaturalista» de Tom Regan:

Opondo-se às concessões feitas pelo utilitarismo de Peter Singer,


Tom Regan sustenta o reconhecimento directo e irrestrito de direitos aos

950 Cfr. Feinberg, Joel, "The Rights of Animais and Unbom Generations", in Blacks­
tone, W.T. (org.), Philosophy & Environmental Crisis, cit . , 43-68.
340 Uma Síntese das Teses em Confronto

animais com base no reconhecimento de um «valor intrínseco» , o valor de


se ser «protagonista de uma vida» , um valor único e irredutível ao qual
devemos respeito, fazendo dele um fim em si mesmo. O que conta moral­
mente, sustenta Regan, não é o interesse que é atingido pela nossa conduta,
mas sim a individualidade do titular desse interesse, sob pena de instru­
mentalizarmos os indivíduos aos interesses, e especialmente aos interesses
do maior número - não querendo isso dizer, todavia, que não haja direi­
tos que devam prevalecer por efeito de uma colisão, apenas vedando que
eles sejam considerados pela pura óptica dos interesses.
28 . Exortação: O Desafio de Uma Bioética
«Descentrada»

"Lever le silence qui entoure ce massacre trouble impardonnable­


ment une fête qui en passe par le sacrifice animal. Mais notre luxe
le plus profond tient surtout dans la superbe ignorance de la dou­
leur tonitruante d 'animaux dont nous avons manqué la rencontre et
qui, au fond de leur cachot, attendent quelque chose que nous ne
leur donnons pas" - Florence Burgat95 1
"A dúvida de nós próprios parece-me ser a marca característica da
primeira época da história humana na qual um número apreciável
de pessoas foi capaz de separar a pergunta «Acreditas e desejas
aquilo em que nós acreditamos e desejamos?» da pergunta «Estás
a sofrer ?»" - Richard Rorty95 2

Muita da admiração que temos pelo comportamento contextual dos


animais deriva de uma visão profundamente antropocêntrica, pois reclama
deles o decalque das nossas capacidades intelectuais e emotivas, o reco­
nhecimento, neles, dos nossos pensamentos e das nossas motivações para
lhes dispensar uma consideração especial, como se essa consideração não
fosse mais do que uma excepcional extensão (lo nosso especismo - como
se a glória máxima da existência de um animal fosse o reconhecimento da
sua quase-humanidade! E no entanto o ascendente do evolucionismo sobre
a biologia e a ecologia ensinaram-nos já que a vida gera diversidade, inco­
mensurabilidade entre as condições de adaptação e sobrevivência das

95 1 Burgat, Florence, Animal Mon Prochain (1997), cit. in Cyrulnik, B . (org.), Si les
Lions ..., cit., 915.
95 2 Rorty, R., Contingency . . ., cit., 198.
342 Exortação: O Desafio de uma Bioética «Descentrada»

espécies e dos indivíduos - sendo tão razoável esperar de uma zebra que
partilhe dos processos mentais humanos como o seria esperar que 0
homem tivesse a pele listrada953.
Se pensarmos melhor, conviremos que o que há de mais admirável no
comportamento dos não-humanos deriva habitualmente de aptidões que
nada têm a ver com o uso deliberado da razão ou com o âmbito da cons­
ciência tal como os humanos a percebem - e diminui-se quando se con­
fina à imitação da conduta humana. Mesmo o facto de muitas das posições
teriofílicas se centrarem na apologia da inteligência animal, sem prestarem
atenção à estupidez que o comportamento reactivo e adaptativo dos não­
humanos possa ocasionalmente demonstrar, denota a vontade antropocên­
trica de valorizar nos animais aquilo que mais pode assemelhá-los aos
humanos - e aquilo que, por ironia, mais irremediavelmente os inferio­
riza954. Isso parece especialmente nítido na prefiguração de «estados de
consciência», de «intencionalidade», como causas eficientes da conduta
animal, quando muita dessa conduta pode ser explicada por processos psi­
cológicos e fisiológicos que dispensam prefigurações de subjectividade
para serem eficientes - como os próprios seres humanos aprenderam a
dispensá-las na descrição de iterações algorítmicas em que é decomponí­
vel muita da «inteligência» reactiva e adaptativa tanto dos seres humanos
como dos não-humanos e das próprias máquinas955 .
Com efeito, a forma de processamento mecânico de dados que hoje
predomina no universo informático não deriva directamente do protótipo
do silogismo aristotélico nem está dependente, como este, de uma lingua­
gem articulada e expressiva, antes emerge de sequências de manipulação
simbólica que não está dependente do alcance semântico de cada passo
intermédio - e por isso é capaz de chegar à mesma eficiência racional que
era alcançável através do silogismo em linguagem natural, ou até de ultra­
passá-la, liberto que está das ambiguidades que são susceptíveis de inter­
ferir no raciocínio silogístico95 6. Ora a dispensa dessa conotação semân-

953 O argumento surge em Budiansky, S., lf a Lion Could Talk. .., cit., xiii.
954 Thomdike, Edward L., Animal lntelligence, New York, Macmillan, 1911, 22-25.
955 Como vimos, tem-se designado por vezes como «cânone de Morgan» esse prin-
cípio de parcimónia analítica que dispensa atribuições psicológicas sofisticadas para expli­
car comportamentos simples - cfr. Morgan, C. Lloyd, An lntroduction to Comparative
Psychology, London, W. Scott, 1894, 242-259.
956 Cfr. Gardner, Howard, The Mind's New Science. A History of the Cognitive Revo­
lution, New York, Basic Books, 1987, 16ss..
A Hora dos Direitos dos Animais 343

tica permanente, dessa referência a conteúdos de pensamento em cada ite­


ração, despromove o carácter único que era tradicionalmente associado ao
raciocínio humano, à «inteligência» da nossa espécie, pondo-a a par, em
termos de pura capacidade de «processamento», com o funcionamento de
autómatos e de seres vivos não-humanos.
Porquê, então, tanta obstinação na vontade antropocêntrica de medir
os animais pela sua «inteligência proto-humana»? Talvez esteja aí um
último avatar da velhinha «Cadeia do Ser», agora sob a roupagem neo-dar­
winista de que «a ontogenia repete a filogenia», e de que cada indivíduo
vivo seria tanto mais «realizado» quanto mais se aproximasse de «formas
superiores» de vida - esquecendo nós, tantas vezes, que a diversidade
ecológica dita formas incomensuráveis de aptidão adaptativa e nega a
existência objectiva de «superioridades» entre essas formas. Por exemplo,
como poderemos ter a certeza de que somos, nós ou alguns outros prima­
tas superiores, mais inteligentes - nesse sentido - do que o proverbial­
mente «estúpido» peixinho de aquário? Como poderia esse peixinho
demonstrar as suas aptidões de uma forma comensurável com a nossa, ele
que não dispõe de braços, mãos, polegares oponíveis, ou de um sistema
visual e vocal adaptado à comunicação atmosférica? Como chegaríamos
ao seu «processador inteligente», se o interface (se os «periféricos» com
que interage com o seu mundo) nos é tão pouco familiar - sendo que essa
nossa familiaridade não é critério de sucesso evolutivo - ? 95 7 Por
absurdo, estaríamos nós dispostos a concluir algo sobre as capacidades
mentais de um cego por não ter respondido a um teste de QI escrito?958
Pelo contrário, porque a evolução não é uma «escala ascendente»,
mas antes uma miríade de processos distintos de adaptação, a vida das
espécies actuais (ao menos daquelas que não se encontram em risco de
extinção pelo processo de predação natural) pode ser tomada como uma
demonstração de que a «vida viável» é igual partilha de «inteligência evo­
lutiva»; de que, nesse sentido, todas as forma� �e vida demonstram, no seu
nicho ecológico, a mesma «inteligência»959 .

957 É a pergunta que se faz MacPhail, Euan, "Cognitive Function in Mammals: The
Evolutionary Perspective", Cognitive Brain Research, 3 ( 1996), 280.
95 8 Interroga-se Budiansky, S., lf a Lion Could Talk. . ., cit., 11. Cfr. Pagge, Thomas,
"Justice for People with Disabilities: The Semiconsequentialist Approach", in Francis, L.
& A. Silvers (orgs.), Americans with Disabilities . . ., cit., 34-53.
959 MacPhail, Euan, "Comparative Psychology of Intelligence", Behavioral and
Brain Sciences, 10 (1987), 648-650 .
344 Exortação: O Desafio de uma Bioética «Descentrada»

A forma linguística como a espécie humana consegue assegurar a sua


integração ecológica é evidentemente única e descontínua em relação às
outras formas adaptativas perfilhadas pelas demais espécies - mesmo as
mais gregárias e comunicativas - , porque ela consiste numa forma geral
e infinitamente dúctil de manipulação simbólica que permite ao seu deten­
tor distanciar-se do seu comportamento, e reflectir tanto sobre esse com­
portamento como sobre a sua própria inteligência abstracta, o modo como
se desenvolve essa aptidão linguística960 - libertando-se da simples e
imediata interacção com os estímulos da realidade percebida para poder
«deslizar» para os domínios do contra-factual e hipotético, ensaiando abs­
tractamente soluções antes de adoptar uma, comparando situações passa­
das e presentes, aprendendo e transmitindo o conhecimento adquirido.
Essa aptidão permite, assim, um processo extremamente acelerado de
aprendizagem, preservação e transmissão de dados cruciais à adaptação
ecológica, muito mais rápido do que aquela «aprendizagem cega» que a
própria evolução propicia, com as suas longuíssimas iterações de tentativa
e erro e de eliminação dos inaptos - com a «libertação» que é propiciada
com a redução de objectos a símbolos96 1, e com a vantagem «popperiana»
de a aptidão linguística facultar ainda formas exógenas de selecção, per­
mitindo que as palavras e as ideias se choquem e degladiem em vez de os
seus possuidores se verem forçados a fazê-lo pessoal, fisicamente, o que
revela uma «inteligência suplementar» que era suposto preservar a vida
dos seus possuidores, se não fosse o pernicioso hábito humano de «mou­
rir pour des idées» ...
Mesmo a mais superficial observação do comportamento de animais
não-humanos tornará perceptível o uso pragmático. da linguagem como
modo de influenciar o comportamento alheio - só que de um modo ime­
diato, ou seja, sem a intermediação de uma «meta-representação» da capa­
cidade de influência da linguagem nos conhecimentos e nas convicções
alheias, isto é, sem uma representação da capacidade de representação nos

960 Cfr . Gervet, Jacques, A. Gallo, R. Chalmeau & M. Soleilhavoup, "Some Prere­
quisites for a Study of the Evolution of Cognition in the Animal Kingdom", Acta Biotheo­
retica, 44 (1996), 42.
96 1 Os nomes das coisas são também um veículo «libertador», na medida em que nos
permitem libertar-nos do infantil «fascínio com as coisas», substituindo-o pela manipula­
ção simbólica e pela reconstrução referencial puramente alusiva - como se sublinha em
Thom, René, Esquisse d'une Sémiophysique, Paris, InterÊditions, 1988, 274.
A Hora dos Direitos dos Animais 345

outros. Por isso é inútil procurar classificar os não-humanos em função da


proximidade que evidenciem a um comportamento atribuível a essa «cons­
ciência reflexiva» de segundo grau, porque, em todo o caso, é manifesto
que eles conseguem interagir entre eles, e com o meio, sem o contributo
dessa sofisticação linguística ( «sofisticação» que só será, pois, motivo de
distinção de uma perspectiva estritamente antropocêntrica)962.
Abandonemos, assim, a nossa visão «centrada», e façamos dos direi­
tos dos animais a marca do respeito que temos pela radical particularidade
que, na ordem da natureza, cada espécie representa, e cada experiência
individual de sensibilidade constitui, por mais dissimilares que elas sejam
em relação àquilo que julgamos serem as nossas próprias natureza e expe­
riência. Restringirmos a disciplina jurídica da nossa conduta ao plano da
intersubjectividade humana é insensibilizarmo-nos voluntariamente à
dádiva de diversidade que compõe a natureza, é tentarmos demarcar-nos
de um meio pelo qual a nossa conduta inevitavelmente se espraia, ferindo
interesses e experiências vitais individualizadas, as diversas manifestações
da vida, tanto humana como não-humana - afinal, o plano da nossa pró­
pria animalidade, da nossa condição de criaturas mortais, da nossa inser­
ção na ecologia planetária, plano sem o qual a nossa humanidade nada sig­
nificaria, nada significando também os preceitos do Direito que
pretendessem, apesar de uma tal truncagem, ao mesmo tempo espelhar e
servir essa humanidade.
Alasdair Maclntyre concluía o seu After Virtue com a observação de
que "estamos à espera, não de um Godot, mas de outro - sem dúvida
muito diferente - São Bento"963 , alguém capaz de propor novas formas
de comunidade quando em tomo as trevas caem.
Concluirei, por mim, com a exortação que tinha prometido, aprovei­
tando esta já longa digressão sobre os direitos dos animais para encontrar
um último motivo de edificação para a condição humana - porque é de
bioética que se trata, ética da vida, antes de maispÉtica,
· ' endereçada a seres
humanos.

962 Cfr. Asendorp, Jens B. & Pierre-Marie Baudonniere, "Self-Awareness and Other­
Awareness: Mirror Self-Recognition and Synchronic Imitation Among Unfamiliar Peers",
Developmental Psychology, 29 (1993), 89; Schull, Jonathan & J. David Smith, "Knowing
Thyself, Knowing the Other: They're Not the Sarne", Behavioral and Brain Sciences, 15
(1992), 166-167.
963 Maclntyre, Alasdair, After Vírtue. A Study in Moral Theory, London, Duckworth,
22002, 263.
346 Exortação: O Desafio de uma Bioética «Descentrada»

Pensarmos no estatuto moral e jurídico dos não-humanos permite­


nos reflectir nas possibilidades de reestruturação ética da nossa comuni­
dade, uma reedificação que transcenda uma base de igualdade entre indi­
víduos para se recolocar numa base de igualdade entre relações e
dependências - apontando, não para os direitos que nos são devidos em
paridade de circunstâncias com todos os outros indivíduos integrantes da
sociedade, mas para os direitos que melhor servem as relações particula­
res que cada um de nós estabelece, que melhor nos permitem desempe­
nharmos as responsabilidades em que somos investidos, e em que outros
são investidos, para cuidarmos das nossas vulnerabilidades e dependências
partilhadas, numa simbiótica mutualidade de bons ofícios que, mais do
que uma estática proclamação de igualdades atomísticas e intersubjecti­
vas, deve ser tomada como o bem social primário, o «bem comum» por
excelência964.
Nesse aspecto parece ter cabimento apelarmos uma última vez à con­
sideração dos «casos humanos marginais», à reflexão sobre a sua conti­
guidade com o não-humano: é que a moralidade humana tem muito a
aprender com a condição dos humanos deficientes, no que ela possa deno­
tar de expressão de humanidade sem plena autonomia, de necessidade de
formas de respeito sem reciprocidade, até de simpatia e compaixão em
contextos inexpressivos, contextos de vivências insondáveis para aqueles
de quem esses seres humanos dependem, momento em que deve florescer
uma misericórdia que transcende os nossos sentimentos de solidariedade
(especista ou outra) e nos transporta para a representação daquilo que
poderíamos ser naqueles extremos de vulnerabilidade e dependência,
como quaisquer seres vivos capazes de sofrimento, humanos ou não965 .
A nossa moralidade, e o direito que a serve, têm muito a aprender, em
suma, tomando aguda consciência da contingência e vulnerabilidade da
nossa condição, que só transitoriamente é a de seres capazes de autonomia
moral, mas que é sempre, do princípio ao fim, antes e depois desse flores­
cimento fugaz, na infância, na velhice, na doença, uma condição de ani­
mais dependentes966 .

964 Cfr. Kittay, E.F., Love's Labor . . ., cit., 28.


965 Cfr. Maclntyre, A ., Dependent Rational Animais . . ., cit., 123-126, 1 36- 1 40 .
966 Cfr. Maclntyre, A., Dependent Rational Animais . .., cit., 1 -8.
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,,
Ind1ce
.

1 . Querelle des Bêtes: A Arquitrave da Bioética? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7


1 . a) Um debate criativo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
1 . b ) A sucessão de paradigmas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1 . c) O pecado da displicência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
2 . A Humanidade d o Respeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
2 . a) A teriofilia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
2 . b) O tema dos «deveres indirectos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
2 . c) A «linguagem dos direitos» e o objectivo do «descentramento» . . 25
2. d) A consagração de uma nova sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
2 . e) Ética e dependência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3 . A «Especista» Soberba Humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3 . a) O que é o «especismo» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3 . b) O imperativo pragmático: a ética para lá da autonomia . . . . . . . . 39
4 . A «Cadeia do Ser» e a Demarcação entre Espécies . . . . . . . . . . . . . . . 45
4 . a) Tudo feito para o homem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
4 . b) O «Direito Natural» como «Programa da Natureza» . . . . . . . . . . 48
4. c) A «ilusão finalista» e a estratégia da inferiorização . . . . . . . . . . . 51
4 . d) O assalto céptico à «Cadeia do Ser» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
5 . A Tradição Religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
5 . a) A ambiguidade cristã sobre a condição animal . . . . . . . . . . . . . . . 65
5 . b) A teodiceia do sofrimento animal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
6 . Lese-Majesté: O Julgamento dos Animais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
6. a) A reposição da «Escala do Ser» . . . . . . � . . . . -. . . . . . . . . . . . . . . 75
6. b) Uma bizarria sintomática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
7. Questões de «alma» entre Cartesianismo e Revolução Darwinista . . . . 83
7 . a) O conceito mecanicista de «animalidade» . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
7 . b) Dogmatismo e crueldade , a árvore e os seus frutos . . . . . . . . . . . 87
7 . c) A revolução darwinista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
8 . Libertação - I - Podem Eles Sofrer? Devem Eles Sofrer? . . . . . . . . 95
8 . a) O interesse no não-sofrimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
8 . b) Bem-estar e comensurabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
378 Índice

8 . c) Liberdades básicas e progresso jurídico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104


8 . d) O abandono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
8. e) Incomensurabilidade e o «direito ao não-sofrimento» . . . . . . . . 1 10
8 . f) Devem eles sofrer? Nietzsche em Turim . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 14
8 . g) Devem eles sofrer? Sangue na arena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
9 . A Fragilidade da Solução do «Bem-Estar» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 19
9 . a) A questão do sofrimento «necessário» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
9 . b) A timidez dos progressos jurídicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 25
1 0 . E a Incomparabilidade dos Direitos Humanos? . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
1 0 . a) Nós e eles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
1 0 . b) O «especismo» como «lealdade à espécie» . . . . . . . . . . . . . . . 1 34
10. c) Equiparação ou banalização? O especismo «moderado» . . . . . 140
1 1 . O «Especismo» Não-Humano: Uns Mais Iguais? . . . . . . . . . . . . . . . . 147
1 1 . a) Onde pararíamos? Nos direitos das bactérias? . . . . . . . . . . . . . 147
1 1 . b) Normalidade , identidade genética, «valor intrínseco» . . . . . . . 1 52
1 1 . c) A discriminação entre espécies não-humanas . . . . . . . . . . . . . . 1 57
1 1 . d) Comecemos pelos chimpanzés ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 60
1 2 . Linguagem e Pensamento Não-Humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 69
1 2 . a) Racionalidade, um exclusivo humano? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 70
1 2 . b) Subjectividade não-humana e inteligência animal . . . . . . . . . . 1 74
1 2 . c) Linguagem humana e inefabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 79
1 2 . d) A simpatia e as aporias da alteridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 83
1 2 . e) A nossa animalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 87
1 3 . A Objecção Contratualista - A Força do Paradigma . . . . . . . . . . . . . 191
1 3 . a) S ó h á deveres quando existe reciprocidade? . . . . . . . . . . . . . . . 191
1 3 . b ) Implicações rawlsianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 99
14. A Resistência Económica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
1 5 . Direito à Vida? - I - Os Argumentos da «Não-Iden,tidade»
e da «Omnipotência» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . -: . . . . . . . . . . . . . . 211
1 5 . a) Não fomos nós que os criámos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
1 5 . b ) A emancipação das criaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214
1 6 . A Colisão d e Interesses entre Humanos e Não-Humanos ,
e a Complicação dos «Direitos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
1 6 . a) Necessidade e direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
1 6 . b ) O s custos d a justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
1 6 . c ) Igualitarismo o u maniqueísmo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
1 7 . A Sacralização do Não-Humano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
1 7 . a) Há um intuito radical de «recentramento»? . . . . . . . . . . . . . . . 227
1 7 . b) Simbiose e jainismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230
1 8 . O Progresso das Ciências e o Problema da Experimentação . . . . . . . 233
1 8 . a) Um obstáculo à liberdade de investigação? . . . . . . . . . . . . . . . 233
A Hora dos Direitos dos Animais 379

1 8. b) O silenciamento das cobaias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236


1 8. c) A redução do sofrimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
1 9. O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo - I - Uma Questão
de Sensibilidade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
1 9. a) A «Ecologia Profunda» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
1 9. b) O conceito de «valor intrínseco» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
1 9. c) Pragmatismo pedagógico, ou totalitarismo? . . . . . . . . . . . . . . . 250
1 9. d) Contradições , convergências e ambiguidades . . . . . . . . . . . . . . 252
1 9. e) Da santificação ao relativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
20. Biodiversidade e Espécies Ameaçadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
20. a) Indivíduo ou espécie? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
20. b) O apoio da zoofilia na causa ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267
2 1 . O Choque da Teriofilia com o Ambientalismo - II - O Problema
da Predação Natural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
2 1 . a) A legítima defesa dos que sofrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
2 1 . b) A não-interferência na «predação selvagem» . . . . . . . . . . . . . . 277
2 1 . c) Predação e «valor intrínseco» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
22. A Via dos Direitos Subjectivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
22. a) Interesses , subjectividade e direitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
22. b) Conquistas , atavismos , hesitações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 286
22. c) Riscos de personalização da condição animal . . . . . . . . . . . . . 290
22. d) Haverá limites naturais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
22. e) O que queremos do Direito? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297
22. t) A representação dos animais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300
23. O Obstáculo da Apropriação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
24. Direito à Vida? - II - Os Limites da Não-Personalidade . . . . . . . . 311
24. a) Morrer, mas sem sofrer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 312
24. b) O interesse subjectivo na sobrevivência . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 14
25. Libertação - II - As Lições da História Humana . . . . . . . . . . . . . . 319
25. a) O Direito como instrumento libertador . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319
25. b) Paralelismo com a discriminação de grupos humanos . . . . . . . 321
26. U m Projecto de Guerra Perpétua: O Ecofeminismo . . . . . . . . . . . . . . 325
26. a) O androcentrismo patriarcal . . . . . ·� · . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
26. b) A denúncia dos dualismos hegemonistas -. . . . . . . . . . . . . . . . . 329
27. Uma Síntese das Teses em Confronto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
28. Exortação: O Desafio de Uma B ioética «Descentrada» . . . . . . . . . . . 34 1
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347

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