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ARTIGOS

OS DISCURSOS BÉLICO E DOS DIREITOS HUMANOS E A VIOLÊNCIA


INSTITUCIONAL NO BRASIL

THE WARFARE AND HUMAN RIGHTS DISCOURSES AND THE INSTITUTIONAL


VIOLENCE IN BRAZIL

Edson Luis de Almeida TELES

Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre o modo como as lutas específicas e a organização própria
de movimentos de direitos humanos são traduzidos, transitam, sofrem o bloqueio ou se potencializam na
relação com as instituições de Estado e suas políticas públicas. Para tanto, utilizaremos o recorte histórico
da democracia brasileira, desde a transição até o fim dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Uma
forte marca deste período foi a frágil garantia de efetivação dos direitos e o constante acionamento de
estados de exceção, os quais têm sido autorizados por uma estrutura jurídico política com forte legado
autoritário da ditadura civil militar (1964-1985). Trata-se de buscar compreender estratégias de governo ou
de produção de subjetividades controladas, em torno da articulação de discursos bélicos e enquanto
mecanismos de legitimação da violência nas práticas sociais e políticas.
Palavras chave: Transição. Estado de exceção. Direito à memória e à verdade. Discurso do poder soberano.
Discurso bélico.

Abstract: The objective of this article is to reflect on how the specific struggles and the organization of
human rights movements are translated, how they transit, suffer blockade or become more strengthened in
the relationship with State institutions and their public policies. In order to do that, we will use the historical
cropping of the Brazilian democracy, from the transition to the end of the National Truth Commission
work. A strong mark of this period was the fragile guarantee of effective rights and the constant activation
of states of exception, which have been authorized by a legal political structure with a strong authoritarian
legacy of the military civil dictatorship (1964-1985). The aim is to understand strategies of government or
production of controlled subjectivities, around the articulation of warfare discourses and as mechanisms for
legitimizing violence in social and political practices.
Keywords: Transition. State of exception. Right to memory and truth. Speech of sovereign power. War
speech.

Submetido em 04/10/2017.
Aceito em 20/05/2019.


Doutor em Filosofia. Professor de filosofia política no curso de Filosofia e no PPG em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp). Este artigo é resultado parcial de pesquisa realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp). Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Estrada do Caminho Velho, 333, Bairro dos
Pimentas, CEP: 07252312, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail <edsonteles@gmail.com>.

Socied. em Deb. (Pelotas), v. 25, n. 2, p. 45-58, maio/ago. 2019. ISSN: 2317-0204


Edson Luis de Almeida TELES

Introdução

A expectativa e a vontade de criação de uma ordem mundial emancipada e tolerante, a partir de


uma lógica dos direitos humanos, seria limitada em seu alcance segundo as críticas clássicas. Este limite se
encontra, por exemplo, no que Hannah Arendt analisou da situação vivida pelos apátridas (displaced persons1)
antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Desprovidos de pertencimento a um coletivo político, pátria ou
nação, milhões de seres humanos se viram sem instituições que os protegessem das violações por eles
sofridas. Pessoas sem “direito a ter direitos”. “(...) Perdiam seus direitos humanos, perdiam todos os direitos:
eram o refugo da terra” (ARENDT, 1989, P. 300).
Nestas condições e diante de tal insegurança, se fez necessário à filosofia interrogar o conceito de
homem, conhecer sua história e, principalmente, buscar compreender o poder de transformação ou de
manutenção de dominações estabelecidas no discurso e na estrutura dos direitos humanos. Não se trata de
dizer contra tais direitos ou de se opor ao conceito de humanidade implícito no cosmopolitismo deste
discurso. Sabemos que boa parte das garantias políticas e civis nas democracias contemporâneas advêm de
definições como as de “crime contra a humanidade” ou de “direito à memória e à verdade”. São conceitos
que se efetivaram em acontecimentos jurídicos, transformando o direito internacional e possibilitando certa
limitação na ação de violação da dignidade humana por parte dos estados e dos ordenamentos nacionais.
Contudo, os estados de direito, ao mesmo passo em que se fundamentam nos direitos humanos,
carregam em si as estruturas do estado de exceção. A prática de um estado de emergência constante tornou-
se paradigma para a governança2 e para a ação política. A medida de exceção não é apenas um direito especial
do Estado, mas um poder do soberano de suspender o próprio ordenamento.
As medidas de exceção não estão fora da jurisdição da estrutura legal, pois, em princípio, são
medidas soberanas de governos forçados a atitudes extremas diante de situações emergenciais. A medida de
emergência se assemelha ao direito à legítima defesa, que deveria ser considerado dentro de situação de
legalidade e, em favor desta ser acionado. É uma medida pertencente aos estados de direito. Na verdade,
mais importante do que a “verdadeira” necessidade é quem a diz. Não há necessidade em si, objetiva; há
um dizer sobre ela, subjetivo, que foi do rei, no Estado absoluto, depois dos militares, nas ditaduras e, no
estado de direito, é do Congresso Nacional, do poder executivo e, mais recentemente, acionado com
frequência no poder judiciário.
Desta forma, a mobilização que as críticas e lutas locais formula, enquanto saber político dos direitos
humanos, não invalida ou desconsidera as contribuições das reflexões globais à compreensão da ação

1
O termo displaced persons foi utilizado durante a Segunda Guerra “com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez
por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência”. A ideia era que o termo apátrida reconhecia, ainda que pela negação,
alguma origem a este ser humano. No caso das pessoas deslocadas, nenhum pertencimento lhes era concedido (ARENDT, 1989, p. 313).
2
Escolhemos o termo governança porque diz respeito a meios e processos utilizados para produzir resultados eficazes no trato das necessidades
básicas da população, o que, nos parece, marca a ação política democrática. Para James Rosenau, “governança é um fenômeno mais amplo que
governo; abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com
que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam
às suas demandas” (2000, pp. 15-16).

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política vinculada aos direitos humanos e às formulações das críticas fragmentárias. Estas, por sua vez,
possuem uma resistência ao efeito universalizante presente nos direitos, em seus discursos e práticas, bem
como apresentam certa suscetibilidade à captura efetivada pelos direitos e por suas críticas globais.
Desta forma, gostaríamos de ressaltar que os direitos humanos, para além do aspecto universal e,
por isto, totalizante da compreensão do agir e da condição humana, têm se constituído a partir de
formulações e instrumentos locais cujas efetividades dependem da suspensão, deslocamento, teatralização,
simulação da unidade do humano e de seus direitos conforme inseridos na reflexão político jurídica. Pelos
termos da totalidade do discurso sobre e dos direitos humanos, as críticas fragmentadas e locais sofrem
bloqueios ao serem acessadas pelas instituições do Estado e de seus parceiros, ambas constituídas através
da lógica de governo.
Quando discorremos sobre o caráter local de determinada crítica nos referimos às movimentações
e deslocamentos autônomos e descentralizados cujas produções não necessitam de validação autorizada ou
do especialista. São críticas que provêm, de modo geral, dos movimentos sociais e dos coletivos diretamente
envolvidos em lutas cotidianas, relacionados à experimentação dos danos sofridos pelos corpos e vidas em
conflito, geralmente, com os abusos produzidos e efetivados pelo Estado e suas instituições.
Trata-se, portanto, de uma revisita a autores clássicos da filosofia política contemporânea, em suas
abordagens da temática dos direitos humanos e de uma política voltada ao biológico, para explorar aspectos
da ação política diante do contexto histórico do processo de transição da ditadura para a democracia no
Brasil, bem como sobre os modos com que as lutas sociais se configuraram nesse processo.

1. O paradoxo das lutas dos direitos humanos

Temos historicamente acesso a uma série de críticas aos direitos. Desde a releitura de formulações
clássicas e tradicionais, como as de Burke, Marx e Arendt3 até as mais contemporâneas como as de Agamben
e Douzinas4. Em paralelo, há a produção de um outro campo crítico cuja principal diferença com esta
tradição tem sido seu deslocamento e distanciamento do debate universal sobre o discurso e as práticas dos
direitos humanos. A fragmentação destas críticas em relação ao conjunto formal e global da instituição dos
direitos confirma e colide com o caráter geral do humano representado nas leis e, inclusive, com o caráter
universal das próprias críticas produzidas pela Filosofia e pelas teorias do Direito.
Os direitos humanos, enquanto crítica do universal e das estruturas centralizadas, se organizam em
coletivos paralelos5 e se apresentam com duas características marcantes. A primeira delas traduz conteúdos
históricos de acumulação de saberes que foram produzidos na fricção constante das políticas públicas com

3
Sobre a crítica clássica aos direitos humanos cf. Reflexões sobre a revolução em França (BURKE, 1997); Sobre a questão judaica (MARX,
2010); e, Origens do totalitarismo (ARENDT, 1989).
4
Cf. Homo Sacer (AGAMBEN, 2002); e, O fim dos direitos humanos (DOUZINAS, 2009).
5
Por “coletivos paralelos” queremos significar os movimentos políticos que fazem uso do vocabulário de direitos humanos e de suas estratégias
mantendo, contudo, percursos autônomos aos institucionais ou os dos movimentos sociais tradicionais. E, com isto, produzem novos arranjos
para o vocabulário clássico, bem como outras estratégias e táticas de luta. O paralelismo os aproximam e distanciam da tradição.

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as demandas e os agires dos coletivos. Estes se movimentam em torno de determinadas questões,


diretamente relacionadas à violação da condição social de indivíduos ou grupos e à aplicação de uma força
de determinação das relações entre indivíduos, cidades, territórios, mobilidades, culturas etc., que bloqueiam
as potências de suas existências autônomas. O surgimento destes conteúdos históricos propiciou a coletivos
locais ou circunscritos a acontecimentos periféricos a produção de críticas aos direitos humanos e, por
corresponderem a processos históricos, estes saberes, não sem frequência, transitam entre coletivos
aparentemente distintos ou anacrônicos entre si6.
A segunda característica, própria da interpretação “periférica” dos coletivos paralelos, via certa
cultura dos direitos humanos, se define pela gama de saberes, estratégias e discursos por eles produzidos e
acionados, sendo considerados desqualificados, ingênuos, afetados, menores por parte dos especialistas. Até
legítimos e justos, mas insuficientes, inferiores ou abaixo do nível necessário para implementar políticas
públicas. A emergência destes elementos “menores” tornou-se possível pela visibilidade dos sujeitos
considerados “anormais”: tais como as mulheres, os gays, as lésbicas, os índios, os quilombolas, os
opositores, o corpo torturado, os transexuais, os craqueiros, os jovens negros das periferias, cujas
experiências contrastam com os saberes jurídico, médico, penal, reparatório, de governo.
A análise da crítica emergente nas estratégias e discursos dos coletivos de direitos humanos nos
convida a fazer uso da reflexão de Michel Foucault acerca dos saberes não científicos pois, tal como lemos
nos argumentos do filósofo francês, o “saber emergente”:

[...] não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber
particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que
deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam (2005, p.
12).

Acrescentaríamos à definição de Foucault a qualidade de não apenas se opor com contundência,


mas também de afetar as práticas de movimentos maiores fazendo-os transcender a simples soma de seus
componentes. Os percursos em paralelo destes coletivos, enquanto agentes menores, têm a potência de
fazer emergirem, com seus saberes, discursos e estratégias, esferas complexas. No entanto, sem serem
centrais, universais e hierarquizadas. O caráter emergente denota, portanto, o percurso histórico tradicional
dos direitos humanos somado às experimentações específicas e às produções localizadas, diversas, fazendo
suas ações surgirem à tona das práticas sociais mais visíveis.
Haveria da parte do saber centralizado e universal dos direitos humanos um processo de
disciplinarização e anexação dos saberes menores, locais e artesanais, industrializando-os através de uma
intensa luta político governamental. Este poder disciplinar irá incidir sobre os saberes locais, múltiplos e
independentes, inúteis e desqualificados, segundo a lógica de governo, através de sua normalização. O
dispositivo disciplinar ativará técnicas de classificação dos conteúdos e, também, dos sujeitos que os

6
Refiro-me, por exemplo, a adoção de um vocabulário contra o legado ou o espectro da ditadura militar, tanto pelos movimentos de vítimas
da ditadura militar, quanto pelo Movimento Mães de Maio, o qual denuncia o genocídio do Estado paulista contra centenas de indivíduos no
ano de 2006, em acontecimento relativamente distante do período militar.

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produzem e disseminam, ajustando-os a um saber unificado, eliminando diferenças, qualidades próprias,


incluindo-os nos parâmetros do conhecimento universal. Com isto, se buscará a centralização “piramidal”,
a qual “permite transmitir a um só tempo de baixo para cima os conteúdos desses saberes, e de cima para
baixo as direções de conjunto e as organizações gerais que se quer fazer prevalecer” (FOUCAULT, 2005,
p. 216).
Enquanto regime de produção do conhecimento as instituições e políticas de direitos humanos, sob
o ponto de vista da lógica de governo, organizam os processos de homogeneização dos saberes e das práticas
relacionadas aos direitos, trazendo como ônus as regras normalizadoras à população.
É interessante chamar atenção para dois aspectos paradoxais: o primeiro, é que se a normalização
elimina os saberes paralelos a ela, ao mesmo tempo, se alimenta e tem sua efetividade justamente extraída
da captura destes saberes; o segundo, é o fato de que o processo de centralização permitiu a produção de
políticas de reconhecimento e uma distribuição de saberes sobre a condição de subjetivações historicamente
submetidas à dominação, possibilitando a grupos de indivíduos algum instrumento para suas lutas.

2. As lutas periféricas e menorizadas

No contexto da redemocratização o conflito epistemológico entre as lutas específicas e as


tradicionais, por um lado, bloqueou e impediu saberes. Mas, por outro, criou uma proliferação da produção
deles ao ruminá-los nas entranhas das instituições e lançá-los de volta às extremidades dos conflitos políticos
e sociais. Nos territórios dos conflitos, os saberes autorizados e qualificados serão analisados, em alguma
medida descolonizados, e sofrerão a descentralização operada pelos sujeitos em luta.
A forma paralela e fragmentária das lutas periféricas – no sentido de se encontrarem fora do campo
principal das forças políticas tradicionais – constitui a fraqueza destas movimentações políticas, bem como,
sua força e capacidade de mobilização e transformação. Nestas lutas não se trata de saber prioritariamente
quem foi o vencedor e o vencido, mas como, quando, sob qual contexto os coletivos dispersos, junto com
os movimentos sociais mais tradicionais, tornaram-se fortes. Ou, do contrário, como determinados
movimentos se enfraqueceram? De que forma a ação política em torno das lutas dos direitos humanos
apareceu como um cálculo de forças e, em última instância, como pragmática e objeto do cálculo de
governo?
Neste contexto, por exemplo, é interessante notar como toda uma tradição de luta dos movimentos
feministas no país, nas lutas desde meados dos anos 70, é colocado na rota de uma captura das lógicas de
governo. Paralelamente, vê-se emergir uma imensa multiplicidade de coletivos nas escolas, universidades,
bairros, regiões, cidades, instituições, locais de trabalho etc. Poderíamos mesmo levantar a hipótese de que
a perda de potência de parte dos movimentos sociais tradicionais, especialmente com o início de um governo
composto por militantes e ativistas, pode ter sido a abertura para a criação ou o fortalecimento de coletivos
autônomos e paralelos ao processo tradicional.

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Assim, e de modo paradoxal, as ações de direitos humanos seguiram dois percursos, aqui também
em paralelo, mas sempre estabelecendo alguma forma de relacionamento. Por um lado, produzindo, por
meio dos conhecimentos históricos das teorias e da institucionalização, políticas públicas. Normalmente
conduzidas pelo Estado, nas últimas duas décadas ganharam forte acréscimo da estrutura das chamadas
organizações não governamentais, as ONGs, protagonistas no limite de funcionarem como executoras das
políticas institucionais.
Concomitante, o outro percurso se constitui no chão dos conflitos sociais, animado pelas demandas
locais, diversas, específicas. É ativado não por protagonismo de quem iria figurar como ator principal da
encenação. Mas como fruto da ação dos desqualificados, dos vitimizados, de quem está em condição
marginal nos projetos de direitos humanos, os que seriam seus objetos de incidência. Neste percurso, o
próprio sujeito menorizado assume para si a condução autônoma de seus atos.
A potência das ações de direitos humanos parece estar justamente na fricção entre os saberes
clássicos e institucionalizados e os sujeitos menores e suas experimentações singulares e locais. Desta forma,
de que se trata a crítica aos direitos humanos surgida, emergida, destes coletivos? Trata-se da história das
lutas sociais, daquilo que é produzido pelo acúmulo do saber acerca dos conflitos ou das estratégias neles
envolvidos. Tal como nas esferas complexas nascidas das ações de agentes menores, as memórias das
batalhas experimentadas formam territórios de relações políticas dos coletivos, paralelos de direitos
humanos que assim ganham solidez e relativa estabilidade de ação. Esta fricção ocorre com a contestação
dos discursos especializados, dos privilégios dos técnicos, da tirania das hierarquias. As memórias locais da
violação da dignidade humana e das lutas são utilizadas nas táticas e estratégias do presente.

3. Produção e efeitos da “justiça de transição”

Interessa-nos o olhar deslocado para as extremidades, em direção a uma cartografia de ação mais
regional, local, detalhada, onde as regras escritas e sua forma de organização se estendem às instituições,
técnicas e mecanismos normalmente violentos. Servimo-nos do campo experimental de lutas que nos
permitem acessar aspectos discursivos e estratégicos de investimento no valor da vida enquanto objeto do
regime de produção dos corpos dóceis, sofridos e atendidos pelos remédios dos direitos. Especialmente,
trataremos das reflexões sobre as políticas públicas de memória e verdade, traduzidas no Estado brasileiro
pelo discurso da justiça de transição7. Discurso este que está inserido em uma política global, com pretensões

7
A justiça de transição é uma política global, obtendo a recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) para sua aplicação. É
indicada para novas democracias surgidas após conflitos violentos ou ditaduras. Tem quatro eixos principais: (1) direito à reparação, pecuniária
e simbólica; (2) direito à memória para o esclarecimento dos fatos e homenagem às vítimas; (3) direito à verdade, com acesso às informações
de arquivos e comissões de apuração das violações; e, (4) direito à justiça para a investigação e responsabilização jurídica (OLSEN, PAYNE,
REITER, 2010). A principal estratégia de efetivação consiste em considerar os quatro eixos de ação como recomendações, negociando-os de
acordo com as situações locais e recompondo as diretrizes a partir da correlação de forças em disputa. A maior qualidade da estratégia de
justiça de transição é a maleabilidade de sua aplicação, característica que se caracteriza, paradoxalmente, como um mecanismo de bloqueio
das possibilidades de acesso a processos de ruptura e de transformações profundas. O direito se submete às condições políticas, as quais em
geral se encontram dominadas por forças e pactos de controle e de produção do consenso sob o silêncio e a invisibilidade das lutas pelos
direitos à vida. Curioso ler na página da ONU sobre “justiça de transição” o lema “Towards a just, secure and peaceful world, governed by the

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universais para países em saída de regimes políticos autoritários e violentos.


No Brasil, sob o manto de fundamentação, legitimação e produção de sujeitos estáveis e prontos a
se inserirem nas normas do estado de direito se produziu políticas de reparação, de mudança e inscrição de
nomes de vítimas da ditadura em logradouros, de institucionalização da Comissão Nacional da Verdade,
entre outras. Entretanto, isto não gerou processos de transformação, tais como a mudança do sistema de
segurança pública, militarizado e sob a ideologia do “inimigo interno”, ou os julgamentos penais dos
torturadores e assassinos publicamente identificados e impunes8. Mais grave, a permanência de mecanismos
autoritários ocorreu sob a justificativa de se aplicar uma política de reconciliação e consolidação da
democracia. Na administração da justiça de transição se reconhece discursivamente os limites das políticas
públicas indicando que, em casos de saída de regimes autoritários se deve fazer aquilo que é possível,
contudo, sem provocar instabilidades aos governos de consenso da democracia.
Neste sentido, mais do que procurar pelo quem da ação, aquele que decide9, trata-se de buscar o
objeto destas políticas, qual seu campo de incidência, de operação, onde efetivamente elas produzem efeitos.
Interessa-nos os processos, o que está entre os mecanismos. A partir das lutas emergentes na democracia
brasileira, como o caso dos conflitos em torno da “justiça de transição”, se buscará as formas de emergência
de corpos, saberes, técnicas, forças, desejos constituídos pelos efeitos de poder. Sendo assim, pensaremos
o poder como algo que se movimenta, em constante deslocamento e incidência, funcionando em rede, com
seus elementos podendo ser submetidos e, também, exercendo estes poderes.
Pensando em termos de lutas em torno dos direitos humanos, poderíamos dizer que nos interessa
mais as formas com que se produziu a exclusão de determinados indivíduos ou resistências, do que a
identificação da categoria dos excluídos. Em torno das lutas por memória e justiça sobre os crimes da
ditadura seria preciso entender como elas produziram, a partir de certo momento, um rendimento político,
um privilégio de governo, de condução de ações, sendo aos poucos colonizadas pelas políticas públicas,
pelo conhecimento verdadeiro e pelas instituições do estado democrático.
Dessa forma, para utilizar as políticas possíveis geradas pelo discurso da justiça de transição é
preciso estar preparado, condicionado, qualificar-se para pronunciá-lo, de modo que se determina um
conjunto reduzido dos especialistas autorizados a esta fala e a esta prática.
A retórica de um processo de transição permite à instituição afirmar-se como esfera de
concretização da consolidação da democracia e de seus mecanismos de justiça (TEITEL 2000), mesmo que

rule of law” (“Rumo a um mundo justo, seguro e pacífico, governado pelo Estado de Direito”). Paz, direito e governo, o fundamento de
legitimação de certo discurso verdadeiro dos direitos humanos. Disponível: https://www.un.org/ruleoflaw/thematic-areas/international-law-
courts-tribunals/transitional- justice/, acessado em janeiro de 2017.
Sobre as contradições e limites da “justiça de transição”, confrontar o
artigo Teles, E. e Quinalha, Renan. Achievements and Limits of Transitional Justice in Brazil (TELES e QUINALHA, 2015); e, o livro O
abismo na história (TELES, 2017).
8
A lista completa de responsáveis por graves violações de direitos humanos durante a ditadura pode ser consultada no Relatório Final da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), de dezembro de 2014, disponível em:
http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv
Acessado em setembro de 2017.
9
Preocupação fundamental na tese do estado de exceção nas democracias. Sobre ela Carl Schmitt escreveu: “soberano é aquele que decide
sobre a exceção” (AGAMBEN, 2002, p. 7).

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o país não tenha aberto um único processo penal contra os crimes da ditadura e nunca tenha aberto os
arquivos militares sobre os aparelhos de repressão política, as mortes e torturas e a localização dos corpos
dos desaparecidos políticos.
Sob as mesmas condições que permitiram a setores da sociedade elaborarem demandas por justiça
com proposições próximas das que seriam integradas ao discurso da justiça de transição, setores do estado
democrático, alegando a condição de exceção e de transição, aprovaram e mantiveram a interpretação
simbólica dos “dois lados” em conflito durante a ditadura. O pano de fundo para esta linha de ação do
governo democrático teria sido a constante ameaça de desestabilização política o que justificaria uma política
do possível, fundamentada na lógica da governabilidade e na retórica da paz e da reconciliação.
Lembramos que o caráter originário do novo regime sucessor da ditadura no Brasil foi justamente
o de ser a promessa de interrupção e reparação dos sofrimentos vividos no passado. No Brasil pós ditadura
nasce a democracia dos direitos humanos cuja legitimação central advém das narrativas de uma história de
violações, diante das quais haveria a esperança de se desfazer do passado indesejado com políticas de
diminuição dos sofrimentos sociais. A nova lei, a nova Constituição, de 1988, seria a promessa de novas
práticas, de produção de sujeitos universais – mulher, índio, idoso, adolescente, quilombola, trabalhador –
cujas naturezas eram a história de vitimizações contínuas. A nova lei, legitimada na fundamentação futura
de uma outra vida, seria a redenção para estes sujeitos.
A abordagem dos crimes da ditadura no presente nos coloca a questão se, e como, as ações de
direitos humanos das instituições estatais se aproximam e se distanciam de estruturas de segurança,
militarizadas, tendo em vista os discursos da vigilância para a proteção. Neste caso, em relação a movimentos
sociais contestatórios da violência do Estado, mas também, e justamente, na forma como se instituem as
políticas públicas.

4. Democracia dos direitos humanos ou do discurso bélico

Nossa proposição é a de que a democracia surgida no Brasil após a ditadura foi marcada, fato que
repercutiu nos anos seguintes, por dois discursos principais fundantes de sua legitimação. Por um lado, um
discurso do tipo soberano, totalizante e apostando na produção de um sujeito universal, o brasileiro, cujas
subjetivações circulariam em torno da cordialidade, orgulho, felicidade, nacionalismo moderado e
liberalismo político, entre outras características mais específicas do momento e do lugar. Por outro lado,
marca-se o discurso bélico, da sociedade cindida, reconciliada forçosamente para evitar o pior, das
subjetivações que se suportam, mas, até por isto, se odeiam, cujas relações seriam binárias e violentas. Se o
primeiro discurso “unifica” no sujeito “brasileiro”, o segundo divide drasticamente esta outra subjetividade.
Entretanto, se um parece colidir com o outro, no laboratório de experimentações de formas de vida
do país, foi justamente a junção dos dois discursos, aparentemente contraditórios, que produziu maiores e
mais fortes efeitos de poder para o novo regime democrático. Se o bélico fundamenta a sociedade dividida,

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o processo de transição logo tratou de fabricar o discurso da reconciliação e do consenso. Pela lógica da
diminuição do risco, sob a fórmula de se evitar os extremos – os binários se deslocam dentro de suas
próprias esferas e restariam sempre extremos que não se movimentam –, reúnem-se os elementos que
orbitam mais ao centro, os quais seriam maioria e, sob a astúcia da racionalidade política, exclui-se os restos
não pacificados. Produz-se o sujeito vitorioso do processo de transição.
É neste ponto do experimento bem-sucedido da democracia brasileira que se fundem os dois
discursos. Com a narrativa de construção do estado democrático de direito, soberano, centralizado, formado
pelos “brasileiros”, subjaz, franco e atuante, ainda que silencioso e rasteiro, o discurso do conflito, do
inimigo, das lutas que continuam, que permanecem enquanto constitutivas da existência do país. Os vivas à
democracia, ao estado de direito, à Constituição, às leis e à ordem, convivem com o ódio ao outro, o racismo
violento, o preconceito contra o nordestino, o desejo separatista, as homo trans lesbo fobias, o machismo,
a perseguição à militância política.
Assim como, e com a mesma importância para compreender o discurso dos direitos humanos,
subsiste o ódio à burguesia, ao patrão, ao policial, ao Estado. Poderíamos acrescentar: ao político, ao
corrupto, ao craqueiro, ao drogado, ao pobre, ao vizinho, ao torcedor do outro time. Enfim, a ideia de
sermos um único sujeito, universal, brasileiro, alegre e complacente, habita e, mais do isto, somente existe
em sintonia, choque e aliança com a subjetividade do ódio, da diferença não tolerada, da consideração do
outro, do estranho, estrangeiro, como aquele que não é “nós”.
Desta forma, podemos dizer que o discurso do poder soberano, centralizado, organizador da ordem
democrática, tem sua legitimidade enquanto fundação do novo regime e crítico da ditadura mantendo-nos
“livre” daquela outra forma de governo. Contudo, no mesmo passo de constituição da mudança de regime,
foi possível camuflar nas novas leis, muitas vezes envernizadas no discurso da união em torno da nova
ordem, velhas e atuantes estruturas e, mais do que isto, estratégias autoritárias, violentas e belicosas. As
estratégias possuem maleabilidade e plasticidade maior do que as estruturas. Estas habitam os espaços, as
instituições, as leis.

5. O caso da Comissão Nacional da Verdade

Um exemplo que nos parece apropriado para ilustrar as estruturas que se mantém, continuam, na
passagem da ditadura para a democracia, e que permanecem mesmo três décadas após, é a Lei de Segurança
Nacional (LSN), criada pelo estado ditatorial, incrementada em 1978 com os mecanismos de repressão do
Ato institucional número 5, sofre, com o processo de transição uma breve reforma para se adequar aos
novos tempos. Basicamente se mantém sua função de poder qualificar o “inimigo” interno como um
problema de segurança nacional, autorizando a militarização do processo. Na reforma, atenuou-se alguns
elementos marcadamente da ditadura, mas se manteve sua função. Até hoje não foi extinta.
Para entender a análise da democracia dos direitos humanos como produto da junção e dos conflitos

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entre dois discursos, o do poder soberano e o dos conflitos sociais permanentes, seria necessário
imaginarmos a possibilidade de haver sob a “ordem”, a “paz”, o “consenso”, a “reconciliação”, uma espécie
de continuidade de conflitos históricos e violentos. O momento originário da democracia brasileira é, sem
dúvida, marcado pelo terrorismo de Estado, pela tortura, assassinato e desaparecimento de opositores, pela
censura e perseguição, pela disseminação do ódio ao inimigo (podemos lembrar da campanha da ditadura
nos anos 70: “Brasil, ame-o ou deixe-o”). Some-se a isto, dezenas de anos anteriores de escravidão,
silenciamento de revoltas sob a força das armas, organizações e manifestações políticas reprimidas,
República federativa imposta pelos militares etc.
Aparentemente, a redemocratização do país significou, segundo estes discursos explicativos do
sucesso do regime político, a chamada reconciliação mediante as leis escolhidas pelos poderes legítimos e
sancionadas pelas vitórias de certa racionalidade política. Contudo, lá onde se encontram as lutas locais,
específicas, territorialmente circunscritas, a violência política permanece. Em muitos casos se poderia dizer
que aumenta e se torna mais contundente. Na política democrática, “não há sujeito neutro. Somos
forçosamente adversários de alguém” (FOUCAULT, 2005, p. 59).
Um modelo interessante de registro do discurso bélico histórico são as comissões da verdade. No
Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) incluiu em seu segundo artigo a ideia de produção de uma
verdade histórica imparcial. Supostamente, a instituição, símbolo das democracias herdeiras de regimes
ditatoriais, assumiria a “imparcialidade” de narrar a história do ponto de vista dos “democratas”, produzindo
um passado a partir do ponto de vista do consenso e da reconciliação dos conflitos vividos. É como se a
totalidade do discurso do poder soberano, unificado no projeto do estado democrático de direito, fosse a
efetivação do lado vencedor, tornado agora o universal. Vale para este modelo de instituição a assertiva de
Foucault, segundo a qual “a verdade é uma verdade que só pode se manifestar a partir de sua posição de
combate” (FOUCAULT, 2005, p. 61).
Por outro lado, pode se acrescentar que a verdade do discurso histórico começa onde cessa o
conflito, ou melhor, quando o conflito pode já ser astutamente articulado para o fortalecimento de alguma
das forças em combate. É a utilização da história como parte do cálculo da correlação de forças. Assim,
retomar a memória, colocá-la na narrativa e nos cálculos de determinadas forças políticas e transformá-la
em saber, é fortalecer alguns e enfraquecer outros. A história, e sua verdade, não somente nos fornece acesso
ao passado e contribui com sua análise, mas principalmente opera a modificação das relações de forças no
presente. Dizer que tal narrativa é a verdade sobre os processos políticos, ou o fato de se ter razão em seu
discurso, opera um controle e uma estratégia fundamental nos conflitos sociais.
Por isto cabe a questão, no caso da CNV, sobre quem ou o que operou em seu funcionamento? Quem se
fortaleceu, quem se enfraqueceu? Qual o sentido do termo “imparcial” no discurso de sua Lei e de seu
Relatório? E o que se produziu em seu entorno, fora de seus limites institucionais, tanto na disputa
discursiva, quanto especialmente, nas mecânicas e táticas de lutas?
Não é de se estranhar que um ano após a publicização do “Relatório Final da CNV”, manifestações

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em favor de uma intervenção militar no país puderam ser vistas em todo o país, nos protestos contra o
governo da presidenta Dilma Roussef. A ideia geral que se tentou estabelecer era a de que temos uma lei
equânime e que a democracia se fundou sob a reconciliação nacional. Mas de fato não foi nada disso, pois
vimos se estabelecer uma espécie de “verdade-arma”, como dizia Foucault, com base em uma relação de
força e em uma disputa desigual e violenta. Foi “a colonização e a pacificação autoritária” (FOUCAULT,
2005, p. 69).
Neste contexto político, a verdade será garimpada nos arquivos, na historiografia, nas narrativas
enquanto uma arma para uso em relações de força que, quanto mais se reforçam, tanto mais produzem
subjetivações atuantes em favor de um dos lados. Para este discurso bélico a universalidade do poder
soberano, ou dos direitos humanos, será sempre questionada ou limitada. Funcionará mais no sentido de
autorizar um dos lados em guerra a utilizar da ideia de humano universal para defender seu espaço e sua
ação, autorizando a exclusão do outro que lhe é menos humano ou incivilizado. No discurso dos direitos
humanos encontramos o desejo de produzir o sujeito universal, bem como é seu solo fértil a tese do conflito
constante perante o qual seus mecanismos de direitos protegem o justo e o verdadeiro.
Aparece, com o surgimento da democracia dos direitos humanos não o discurso do conflito entre
setores previamente conhecidos e que reproduzem violentas históricas. Mas o discurso do lado justo, da
vítima histórica, dos especialistas e mais capacitados, dos que dominam e sabem utilizar as normas e as leis,
dos verdadeiros representantes do universal. E agem justamente contra os outros, os que estão fora das
normas, os excluídos, e que constituem perigo à ordem e às leis. Este discurso bélico, somado ao universal
da teoria do poder soberano, passa a funcionar como fundamento da possibilidade de eliminação do outro,
colocando em funcionamento a normalização e o controle das relações sociais e políticas. E o agravante é
que o outro não é o totalmente estranho, uma espécie de não ser, mas justamente quem habita o mesmo
território, partilha de representações aproximadas. Produz-se o discurso contra os mesmos elementos que
os direitos instituídos ajudaram a constituir, pois estes outros são próximos dos legítimos e usufruem de
suas instituições e sociedade. O inimigo é interno. Lutar contra ele fortalece os autoritarismos,
conservadorismos e reacionarismos.
Há no discurso da democracia a função da memorização do heroico e justo, mobilizados
historicamente para consolidar o regime. A lembrança dos que morreram na luta contra a ditadura é um
valor discursivo, indica o lugar do nobre, do dedicado à construção do mundo em que vivemos, fiador das
promessas de tempos de igualdade e liberdade. Contudo, a astúcia deste discurso permite mobilizar esta
memória, mas não autoriza a responsabilização penal dos agentes do Estado implicados nas mortes e
desaparecimentos do período militar. Para a memória do consenso produzida na transição para a democracia
os grandes feitos podem ser acionados e mobilizados apenas como um objeto mítico do passado. Se houver
a possibilidade de sua assumpção como elemento de transformação do presente, imediatamente ocorre o
recuo e se apela à ideia de reconciliação. Esta é, junto com a pacificação, a indicação dos limites e bloqueios
no uso da história dos conflitos. “Vinculando e imobilizando, o poder é fundador e fiador da ordem”

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(FOUCAULT, 2005, p. 79). É um meio de fortalecer o poder centralizado sem, contudo, abrir esta
possibilidade aos movimentos sociais e coletivos.
É por isto que poderíamos dizer que a vitória de alguns é a derrota de outros. E mais: de alguma
outra perspectiva, o que parece vitória pode ser uma derrota. Conta-se a história do período ditatorial
conduzindo-a a uma compreensão universal do passado, como modo de não contar a história das lutas e de
seus valores. Bloqueio importante para evitar a continuidade das lutas periféricas, as que ocorrem nas
extremidades das leis, do poder unificado, das instituições. A história de ruptura é também uma forma de
continuidade. Questão apresentada no livro “O que resta da ditadura”:

[...] faz-se necessário mostrar, àqueles que preferem não ver, a maneira insidiosa que a
ditadura militar brasileira encontrou de não passar, de permanecer em nossa estrutura
jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas
sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas (TELES e
SAFATLE, 2010, p. 9).

Uma história heterogênea e conflituosa convive com o discurso da história única e vitoriosa. O que
é justo e equilibrado para uns aparecerá como violência e extorsão para outros. Este olhar se espraiará para
o Estado, as leis, as instituições, a ordem. Segundo Michel Foucault, esta história de denúncia, crítica,
resistência, será a “contra-história” que dissociará a unidade do poder e, acrescentamos, o universal dos
direitos humanos. O justo e verdadeiro da história unificada da democracia, que solidifica – e inclusive
imobiliza – o corpo social no novo regime, também divide, produz a sombra, silencia partes em outro corpo.
E é deste lugar excluído e subterrâneo que falará a narrativa dos injustiçados.

Conclusão

O discurso unificado da nova ordem democrática funciona baseado na representação política e nas
estruturas institucionais, enquanto o discurso da denúncia e das lutas encontra-se no cotidiano dos atritos
sociais, em torno da revolta, de um saber e de uma ação da resistência (por vezes da insurreição) e visando
subverter a ordem estabelecida. Isto não quer dizer que um pertence aos donos do poder e o outro aos
oprimidos. Ambos são dotados de ampla capacidade de dominação e de captura da ação política
transformadora. São discursos com aptidão para a astúcia, a metamorfose, o ardil. Encontram-se na maior
parte das vezes nas vozes democráticas ou de esquerda. Mas também podem ser ouvidos em vozes
conservadoras e de direita10.
Instituindo uma espécie de sociedade binária, a clivagem entre os lados em disputa ocorre por
aspectos históricos e políticos, em geral de grupos que habitam as mesmas esferas e territórios, mas que
possuem origens culturais, sociais e políticas diferentes. No fundo, o vínculo entre eles, determinando isto

10
As manifestações de rua em favor do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Roussef, entre 2015 e 2016, foi uma mostra do
uso conservador da condição discursiva do vitimado e revoltoso, agregado ao discurso do poder unificado, o qual aparecia renovado e
fortalecido após a consumação do processo político contra o governo deposto.

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que se convencionou chamar de sociedade, ocorreu através da violência dos choques, bloqueios e saberes
daí decorrentes. Do desentendimento, da ebulição do conflito, do encontro conturbador parece haver
emergido saberes sobre as práticas das lutas e do processo de transição à democracia. A redemocratização
confluiu para saberes da revolta, da luta nas ruas, da organização dos movimentos e de novas subjetivações
políticas, bem como para estratégias conservadoras, incremento da produção de subjetividades racistas e
preconceituosas – contra o nordestino, os negros, os pobres etc.
De modo particular, as democracias herdeiras de ditaduras, ao menos na experiência latino
americana, surgem centradas em ambos os discursos e perspectivas. E este discurso, em grande medida se
realização por meio do discurso dos direitos humanos. Na soberania, com a produtiva confusão entre
soberania nacional ou popular, e na questão da fundação do regime – por meio de processo de transição
controlado, consensual entre as elites, fruto da racionalidade política. Na revolta e no conflito, sob o signo
da promessa de se desfazer das injustiças ou mazelas do passado e de realização futura de algo que nos
coloque em seu “verdadeiro lugar”. Ambas as visões demandam a ordem e a lei, mas se sedimentam nas
normas, na disciplina e, principalmente, no controle e na vigilância.
Via um deslocamento silencioso e astuto, o binário ou heterogêneo se reestrutura no homogêneo
do brasileiro, cidadão de bem, pacífico. E o outro, inimigo ou desqualificado, nada mais será que um acidente
a ser contido e eliminado. No mais das vezes, será considerado como um estorvo a ser suportado.

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