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POLÍTICAS

EDUCACIONAIS:
REFLETINDO SOBRE
SEUS SIGNIFICADOS

Denise Silva Araújo*


Maria Zeneide C. M. de Almeida**
Resumo: neste texto, assume-se como objetivo conceituar
políticas educacionais, com base em sua compreensão como
política pública. Busca-se estabelecer suas relações com os
movimentos da sociedade civil, a fim de contribuir para uma
compreensão da realidade educacional como um campo
singular e contraditório de disputa. O texto divide-se em duas
partes, quais sejam: Conceituando Política como Atividade
Constituidora da Condição Humana e Políticas Educacionais
no Contexto das Políticas Públicas.

Palavras-chave: políticas educacionais, políticas públicas,


Estado, educação

s ações e orientações do Estado interferem no cotidiano de


A cada instituição educativa e dos sujeitos que a constroem.
Desde a quantidade de dias letivos, o conteúdo e a metodologia
trabalhada no interior de cada sala de aula sofrem as
determinações das políticas públicas para a educação.
Compreender estas determinações e como elas se constroem, nas
relações sociais, é fundamental para que o professor possa se
posicionar criticamente perante elas e participar efetivamente na
construção de políticas educacionais que sirvam para contribuir
na superação das injustiças e da exclusão social a que está
submetida grande parte da população brasileira.
Esta postura exige, porém, que se compreenda como se
constituem as políticas educacionais, pois, como dizia Paulo
Freire (1980), ninguém transforma aquilo que não conhece. É
com esse objetivo que se propôs, neste texto, abordar a educação
como política pública inserida nas contradições da sociedade
mais ampla na qual está compreendida.
Neste texto, resultante de uma pesquisa de cunho teórico-
descritivo-bibliográfico, assume-se como objetivo situar o aluno
dos cursos de formação de professores, em nível de graduação e
pós-graduação, no campo de conhecimento de políticas
educacionais. Para empreender esta análise, torna-se necessário
discutir inicialmente os conceitos de política e de Estado,
segundo distintas vertentes analíticas. Busca-se, para esta tarefa,
o apoio teórico de clássicos como Aristóteles, Rousseau, Locke,
Hobbes, Marx e Engels. Em seguida, de posse destes conceitos,
analisa-se a educação como política pública. Para tanto,
recorreu-se a autoras como Arendt, Azevedo e Brzezinski.
O texto divide-se em duas partes: a primeira,Conceituando
Política como Atividade Constituidora da Condição Humana e a
segunda, Políticas Educacionais no Contexto das Políticas
Públicas.

CONCEITUANDO POLÍTICA COMO ATIVIDADE


CONSTITUIDORA DA CONDIÇÃO HUMANA

Antes de tudo, é importante refletir sobre o que é política.


Para muitas pessoas, esta palavra evoca imagens de campanhas
eleitorais, partidos, propagandas, poluição visual às vésperas de
eleição. Outros podem lembrar-se da atuação de políticos
profissionais, na maioria das vezes, maus políticos. Isto faz com
que várias pessoas tomem aversão a tudo o que diz respeito à
política. Mas será que política é isso mesmo? Ou melhor, será
que política é só isso?
Este é um tema muito complexo para ser tratado com
rapidez, pois seu uso corrente está permeado por uma
multiplicidade de significados que foram construídos na história
da humanidade e por diferentes sentidos adquiridos na
experiência de vida de cada pessoa. Por isso, vamos voltar um

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pouco na história para refletir sobre o significado deste termo tão
polêmico.
Em sua definição clássica, o termo política emana do
adjetivo politikós, originado de polis1, que se refere a tudo que
se relaciona com a cidade, portanto ao urbano, público, civil.
A obra A política, de Aristóteles, é considerada a primeira
obra sobre este tema, pois introduz a discussão sobre o Estado e
as formas de governo. A obra seminal de Aristóteles (2008)
consiste em um marco divisor para as ideias de liberdade de agir
e de pensar, do convencimento pelo diálogo e pela persuasão,
que repercutirá daí em diante naquilo que pensarão os homens
sobre o sentido e a utilidade da política no cotidiano da polis e
da vida em sociedade, conforme lembra arendt (apud
BRZEZINSKI, 2009, p. 2):
Como os atenienses orgulhavam-se de conduzir seus assuntos
políticos pela fala e sem uso de violência, distinguindo-se nisso
dos bárbaros, eles acreditavam que a arte mais alta e
verdadeiramente política era retórica, a arte de
persuasão.

Como analisa Brzezinski (2009, p. 2): “[...] Persuadir


(peithein) era a forma de falar em Atenas. Ter habilidade para
usar a palavra (logos), efetivar a comunicação, portanto
persuadir, transforma o homem em ser político”.
Com o decorrer do tempo, o significado grego da política
como a arte do bom convívio entre os diferentes na polis passa a
ser cada vez mais compreendido como um ideal inatingível nas
sociedades modernas e contemporâneas. Política passou a
designar “[...] um campo dedicado ao estudo da esfera de
atividades humanas articulada às coisas do Estado” (SHIROMA;
MORAES; EVANGELISTA, 2002, p. 7).
Nesse sentido, o termo refere-se hoje especialmente ao
conjunto de atividades, que, de alguma maneira, são atribuídas
ao Estado moderno, ou que dele emanam. Vale a pena, neste
momento, nos perguntarmos, então, o que é Estado?, qual sua

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função?, como surgiu? A resposta a estas perguntas não é muito
simples. Podemos agrupar as várias formas de responder a esta
pergunta em dois grandes grupos de teorias a seguir:
• Teorias com enfoque liberal: baseiam-se numa interpretação
feita pela burguesia nos diferentes momentos da história do
capitalismo. Consideram que o Estado é neutro e está acima
dos interesses das classes sociais, pois tem como objetivo a
realização do bem comum e o aperfeiçoamento do organismo
social no seu conjunto.
• Teorias com enfoque marxista: fundamentam-se em uma
concepção de sociedade dividida em classes antagônicas, com
interesses divergentes, o que inviabiliza a ideia de um Estado
neutro, voltado para o bem comum. Segundo este enfoque, o
Estado é uma instituição política que representa os interesses
de uma classe social dominante, que prevalece sobre o
conjunto da sociedade. Apenas no nível aparente, estes
interesses apresentam-se como interesses universais, de todo o
corpo social. Este enfoque constitui, desse modo, uma crítica
ao enfoque liberal de Estado.
Três teóricos europeus são considerados os fundadores do
pensamento político e podem nos ajudar a compreender melhor
a construção do conceito burguês de Estado moderno: Thomas
Hobbes (1588-1651), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778).
Para Hobbes (1983), teórico político e filósofo inglês, o
Estado soberano significava a realização máxima de uma
sociedade civilizada e racional. Ele defendeu que, em estado
natural, sem o jugo político do Estado, os homens viveriam em
liberdade e igualdade segundo seus instintos. Somente o Estado,
um poder acima das individualidades, garantiria segurança a
todos, pois o egoísmo, a crueldade,a ambição, naturais dos
indivíduos, gerariam uma luta sem tréguas, levando-os à ruína.
Para evitar este fim e promover o bem comum, os homens
selariam um pacto, um contrato, que evita a sua destruição.
Hobbes (1983, p. 103) atribui a este contrato social a origem do
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Estado, de poder absoluto, justificando assim seu surgimento e
necessidade:

[...] O fim último, causa final e desígno dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao
introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual temos
que viver nos Estados, é o cuidado com sua própria
conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o
desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a
consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões dos
homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em
respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de
seus pactos e respeito àquelas leis da natureza [...].

John Locke, filósofo predecessor do Iluminismo2, tinha


como noção de governo o consentimento dos governados diante
da autoridade constituída, defendia a ideia de que o homem seria
livre no seu estado natural. Para evitar que um homem pudesse
subjulgar o outro a seu poder absoluto, os homens, por meio de
um contrato social, delegaram poderes ao Estado, que deveria ter
o papel de assegurar seus direitos naturais, assim como a sua
propriedade, que ele explica da seguinte forma:

Se o homem no estado da natureza é tão livre, conforme


dissemos, se é senhor da sua própria pessoa e posses, igual ao
maior e a ninguém sujeito, por que abrirá mão ele dessa
liberdade, por que abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao
domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio
responder que, embora ao estado da natureza tenha tal direito,
a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente
exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto
quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco
observadores da equidade e da justiça, a fruição da
propriedade que possui neste estado é muito insegura, muito
arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma
condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos
constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade
juntarse em sociedade com outros que já estão unidos, ou
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pretendem unir-se, para mútua conservação da vida, da
liberdade e dos bens a que chamo de ‘propriedade’ (LOCKE,
1978, p. 82).

Vale destacar que se, para Hobbes (1983), o contrato


social resulta num Estado Absoluto, para Locke (1978) o Estado
poderia ser feito e desfeito, como qualquer contrato, caso o
Estado ou o Governo não o respeitarem.
O ideário do liberalismo clássico, formulado a partir do
século XVII, foi sofrendo adaptações e modificações à medida
que o capitalismo avançava e delineva com maior clareza a
estrutura de classes, que se tornou elemento central na economia
e na política. O Estado Liberal burguês, gradualmente,
incorporou o aumento dos direitos políticos do cidadão, como
garantia de sua legitimidade e forma de assegurar a participação
no poder e seu controle, duas dimensões fundamentais na
organização da democracia (AZEVEDO, 2004).
Para Jean-Jacques Rousseau, fundador da concepção
democrática-burguesa, a sociedade civil também nasceria por
meio de um contrato social. Para ele, porém, diferente de
Hobbes, os homens são naturalmente bons, sendo a
sociabilização a culpada pela sua “degeneração”. O Contrato
Social para Rousseau (1983) é um acordo entre indivíduos para
se criar uma sociedade, e, só então, um Estado. Isto quer dizer
que o Contrato é um pacto de associação, não de submissão,
pois, segundo Rousseau (1983, p. 44),

[...] só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de


acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem,
comum, porque se a oposição dos interesses particulares tornou
necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acrodo
destes mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de
comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não
houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem,
nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base
nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada.

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Para o filósofo genebrino, porém, os homens não podem
renunciar aos princípios da liberdade e igualdade, pois ao povo
pertence a soberania. Em suas próprias palavras,

[...] Afirmo, pois que a soberania não sendo senão o exercício


da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que
nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si
mesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade
(ROUSSEAU, 1983, p. 44-5).

Ele enfatizava que não há liberdade onde não existe igualdade.


Ao contrário de Locke (1978), Rousseau (1983) percebia no
surgimento da propriedade a origem de todos os males da
humanidade3.
A teoria política desenvolvida por Karl Marx (1818-1883)
consiste em uma crítica categórica à concepção burguesa de Estado,
que o compreende como agente da “sociedade como um todo”. A
teoria marxista rejeita a possibilidade da existência de um “interesse
nacional”, pois, para Marx, a base da sociedade, da sua formação, das
instituições e regras de funcionamento, das ideias e dos valores são as
condições materiais, ou seja, as relações sociais de produção.
Neste enfoque, o Estado é compreendido como uma ‘estrutura
de poder’ que aglutina, sintetiza e coloca em movimento a força
política da classe dominante. Para ele, o Estado moderno é apenas um
comitê para administrar os assuntos comuns da burguesia, o que o
torna um mecanismo destinado a reprimir a classe oprimida e
explorada.
No pensamento marxista, o Estado consiste numa organização
burocrática4, isto é, um conjunto de instituições e organismos, ramos e
sub-ramos, com suas respectivas burocracias, que exerce a dominação
das classes exploradas, por meio do jogo institucional de seus
aparelhos. Desse modo, em condições historicamente determinadas, o
Estado desempenha a função de reprodutor das relações econômicas e
políticas de classe e de moldar aquilo que os liberais chamam de
sociedade.
Visto que não existe organização social sem Estado, pelo menos
após a divisão da sociedade em classes antagônicas, esse Estado é
sempre aquele que traduz o pensamento dos dominantes, ou seja,

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aquele que constrói as condições para o máximo
desenvolvimento daquelas classes. Segundo Marx e Engels
(2001, p. 47),
[...] a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e
do mercado mundial, conquistou finalmente o domínio político
do estado representativo moderno. O poder político do Estado
moderno nada mais é do que um comitê para administrar os
negócios comuns de toda a classe burguesa..

Para Antonio Gramsci5 (1891-1937), político comunista e


antifascista italiano, filósofo e cientista político marxista, é
impossível, exceto nas ditaduras, a existência do domínio bruto
de uma classe social sobre a outra por meio, apenas, do Estado-
coerção. Uma classe dominante, para assegurar-se como
dirigente, deve construir um conjunto de alianças e obter o
consenso passivo das classes e camadas dirigidas. A classe
dominante, muitas vezes, sacrifica parte dos seus interesses
imediatos e supera o horizonte corporativo na busca de articular
alianças e construir uma hegemonia6 ética e política.
O Estado moderno, na concepção gramsciana, não poderia
constituir-se somente como instrumento de coerção a serviço da
classe dominante, pois para poder manter-se, a força deve
revestir-se de consenso, isto é, combinar coerção e hegemonia.
Ao analisar os mecanismos de construção desta hegemonia,
Gramsci elabora um conceito de Estado ampliado, que
compreende o Estado composto por dois segmentos distintos, a
sociedade política e a sociedade civil. Esta distinção é tão sutil
quanto complexa (GRAMSCI, 1978; MACCIOCCHI, 1980).
Sociedade política consiste no Estado-coerção, formado
pelos mecanismos que asseguram o monopólio da força pela
classe dominante, como a burocracia executiva e policial-militar.
Sociedade civil é composta pelo conjunto das organizações
responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias: o sistema
escolar, a Igreja, os sindicatos, os partidos políticos, as
organizações profissionais, as organizações culturais e os meios
de comunicação e de massa. Ambos atuam, porém, com a
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mesma finalidade: manter e reproduzir a dominação da classe
hegemônica. A sociedade civil corresponde à função de
“hegemonia” que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto do
corpo social e a sociedade política, à “dominação direta” ou
comando, que se expressa por meio do Estado e do poder
“jurídico” (GRAMSCI, 1978; MACCIOCCHI, 1980).
Resumindo, o Estado seria a sociedade política
gramsciana. A sociedade civil representa a nova determinação
apresentada por Gramsci que, no começo do céculo XX, assume
crescente grandeza com os partidos de massa, sindicatos de
trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após
sua evolução histórica que a sociedade civil pôde ser capturada
teoricamente. Antes disso, o Estado-coerção era muito superior
em sua base material para se permitir tal percepção.
Para a discussão do que é política e Estado, não se pode
prescindir das contribuições da pensadora Hannah Arendt (1906-
1975)7, uma cidadã inteiramente do século XX. Embora tenha se
inspirado nos exemplos e ensinamentos dos antigos e,
particularmente, dos clássicos gregos como Platão e Aristóteles,
produziu suas análises sobre os grandes conflitos
contemporâneos, como o nazismo e outras formas de
totalitarismo estatal. Suas obras privilegiam a crítica
contundente às formas coercitivas de governo e busca evidenciar
a fragilidade dos modelos opressivos que recorrem à dominação
pela força, pela exclusão social e suspensão da liberdade. Sua
principal obra, A condição humana (1958), trata de experiências
políticas fundadoras da vida dos homens na sociedade, no
mundo. Suas obras priorizam as reflexões sobre a política
tomada como sua referência fundante para compreender a crise
da modernidade, em suas diferentes esferas tanto no espaço do
público como do espaço privado. Neste estudo, tomamos como
referência suas obras e seus ensaios sobre política e seus
diferentes sentidos.
Para a autora, “a política trata da convivência entre os
diferentes” e surge das necessidades humanas de “organização
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para certas coisas comuns” a todos, por isso tem como seu
principal pilar a pluralidade dos homens e o agir “entre-os-
homens” (ARENDT, 1998, p.21-3).
Esse ensinamento buscado na inspiração socrática mostra a
importância que tinha para os gregos a convivência na pólis, ou
seja, da garantia do respeito às leis e regras de comportamento e
compreensão do papel que cada homem deveria exercer para o
bom funcionamento tanto do espaço privado como do público.
Para Arendt (2008, p. 82), tanto na compreensão do seu
sentido no senso comum, como no pensamento cristão ocidental,

[...] Política e governo, ou exercício do poder, foram


confundidos e passaram a ser considerados, ambos, como
reflexos da corruptibilidade da natureza humana, da mesma
forma como registro dos feitos e sofrimentos dos homens
passou a ser visto como reflexo da sua pecaminosidade.

As críticas apresentadas nas obras de Arendt sobre o


autoritarismo e os regimes totalitários, como já mencionamos,
demonstram a crise da capacidade de persuasão no governo e no
agir ‘entre-homens’, nos tempos modernos. Para a autora, os
pressupostos da filosofia política baseada nos princípios da ética
e da pluralidade entre os homens deveriam orientar o governo
das “coisas comuns” a todos e pautar as ações e políticas do
interesse de todos. Por outro lado, os caminhos percorridos pelos
póssocráticos, passando pelos iluministas e contemporâneos
forjaram abismos entre os discursos e as práticas dos políticos e
governantes na sociedade moderna.

POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO CONTEXTO DAS


POLÍTICAS PÚBLICAS

O conceito gramsciano de sociedade civil e sociedade


política é fundamental para compreendermos o que vêm a ser
políticas educacionais e para situá-las no interior das políticas
públicas.
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De acordo com a teoria gramsciana, nas sociedades de tipo
ocidental, como a brasileira, a hegemonia (que se realiza nas
diversas instâncias da sociedade civil) não pode ser
negligenciada pelos grupos sociais dominados, que pretendem
modificar sua condição e assumir o comando do conjunto da
sociedade. É importante para as classes subalternas construir
uma contra-hegemonia, articulando-se para interferir nos
sindicatos, partidos políticos, meios de comunicação, escolas e
demais instituições que constroem a hegemonia ética e política.
É neste processo que as políticas educacionais são produzidas.
As políticas educacionais situam-se no âmbito das
políticas públicas8 de caráter social e representam

[...] a materialidade da intervenção do Estado, ou o ‘Estado em


ação’. [...] Sendo assim, quando se enfoca as políticas públicas
em um plano mais geral e, portanto, mais abstrato isto significa
ter presente as estruturas de poder e de dominação, os conflitos
sociais infiltrados por todo o tecido social e que tem no Estado
o lócus de sua condensação [...] (AZEVEDO, 2004, p. 5).

As políticas educacionais, nessa perspectiva, não são


estáticas, mas dinâmicas, ou seja, estão em constante
transformação. Para compreendê-las, é necessário entender o
projeto político do Estado, em seu conjunto, e as contradições do
momento histórico em questão.
Se compreendermos a política como a arte de administrar
o bem público, toda política deveria ser considerada pública ou
social. Entretanto, nas sociedades em que os meios de produção
são apropriados por uma determinada classe social, o Estado
acaba por ser apropriado, também, por esta classe, a fim de gerir
seus interesse econômicos.
Desse modo, na sociedade capitalista, o Estado assume a
função de impulsionar a política econômica, tendo em vista a
consolidação e a expansão do capital, favorecendo, assim,
interesses privados em detrimento dos interesses da coletividade,

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o que carateriza a política econômica pelo seu carater antissocial
(SAVIANI, 2007).
Os efeitos gerados por esta polítca econômica
concentradora de riqueza, contraditoriamente, ameçam a
continuidade do sistema econômico capitalista. Para
contrabalancear estes efeitos, o Estado precisa promover
políticas públicas ou políticas sociais nas áreas de saúde,
habitação, assistência e previdência social, cultura e educação.
Azevedo (2004, p. 58) analisa as políticas educacionais no
âmbito das políticas sociais e da ação do Estado, que deve ser
compreendida “[...] para além de uma concepção abstrata dos
‘requerimentos da cumulação’, que pouco auxilia na apreensão
do fenômeno em sua concretude e complexidade”.
Nas sociedades capitalistas, embora o Estado esteja
submetido aos interesses gerais do capital na organização e na
administração do público, as políticas públicas, especialmente as
de cunho social, são produto das lutas, pressões e conflitos entre
os grupos e classes que constituem a sociedade. Em síntese, as
políticas públicas são o resultado de barganhas e conflitos,
consensos e embates entre os diferentes grupos ou classes que
compõem determinada sociedade.
A autora adverte que isto não significa que não se deve
considerar a dimensão econômica intrínseca às políticas
públicas, mas indica a possibilidade de se analisar o grau de
importância das diferentes áreas e setores de atividade na sua
relação com o projeto de sociedade dominante, buscando
compreender a dialética entre a intervenção estatal e a estrutura
da organização social. Desse modo, pretende salientar

a amplitude do espaço ‘político’ das ‘políticas públicas’,


prefigurando-o na dialética da relação entre a reprodução
global das sociedades e a reprodução de cada setor específico
para o qual se concebe e se implementa determinada política
(AZEVEDO, 2004, p. 59).

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As políticas educacionais emanadas do Estado, como
qualquer outra política pública, implicam em escolhas e decisões
que envolvem indivíduos, grupos e instituições e, portanto, não
são fruto de iniciativas abstratas, mas constroem-se na
correlação entre as forças sociais, que se articulam para defender
seus interesses. Desse modo, para entender como se elaboram as
políticas públicas em uma determinada sociedade, é preciso
analisar seus significados históricos.
Ao longo da História do Brasil, a educação redefiniu seu
perfil ao mesmo tempo reprodutor e inovador da estrutura social,
ou seja, ela consiste em uma das maneiras que a sociedade
estabelece para produzir e reproduzir suas formas de
organização do trabalho e da vida. A educação modela aptidões,
comportamentos, atitudes, valores, conceitos e preconceitos, que
são necessários a cada forma de organização social, e a escola é
um dos locais privilegiados para sua realização. Por isso, o
Estado brasileiro, à medida que foi, gradualmente, se
organizando e fortalecendo, tomou para si a tarefa de instituir as
bases da educação escolar nacional.
É, portanto, nas relações sociais e históricas que devem ser
compreendidas as políticas educacionais. Elas são reflexo das
relações de dominação e poder que se estabelecem na sociedade,
mas, também, espaço de embates e contradições, de lutas pela
hegemonia do controle da vida política.

[...] não se pode esquecer que a escola e principalmente a sala


de aula são espaços em que se concretizam as definições sobre
política e o planejamento que as sociedades estabelecem para si
próprias como projeto ou modelo educativo que se tenta por em
ação. O cotidiano escolar, portanto, representa o elo final de
uma complexa cadeia que se monta para dar continuidade a
uma política – a uma policy - entendida aqui como programa de
ação (AZEVEDO, 2004, p. 59).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Retomando as contribuições de Hannah Arendt em seu
ensaio sobre a “Crise da Educação,” no qual ela analisa o
desencanto da sociedade norte-americana com os desacertos do
seu sistema educacional, lembra a autora que, entretanto, essa
crise educacional revela

[...] as questões principais do nosso século [séc.XX] e não


podem ser analisadas como ‘um fenômeno local’ de um país ou
região, mas como um dos maiores desafios que a sociedade
contemporânea apresenta para os governos em geral.

Se compreendemos que as políticas educacionais são


construídas nos embates da sociedade civil, concluímos que é
impossível o professor se manter neutro diante das lutas das
entidades nas quais seus pares se articulam a fim de conquistar
melhores condições para a educação nacional, pois quem não se
posiciona a favor das forças de mudanças está contribuindo para
a permanência da situação de injustiça e de desigualdade social
que marca a nossa sociedade e nossa educação. Como dissemos,
ninguém é capaz de transformar o que não conhece. Deste modo,
torna-se fundamental o estudo das políticas educacionais, nos
cursos de formação de professores que pretendem contribuir na
preparação de profissionais críticos, capazes de se posicionar
diante das exigências da realidade social e educacional.
A importância deste campo de conhecimento deve-se ao
fato de contribuir para a compreensão da vida educacional
alicerçada nas dinâmicas sociais, políticas e legais. Contempla
temas como globalização, Estado, sociedade e educação;
legislação educacional, estrutura e funcionamento do ensino;
políticas de inclusão/exclusão; financiamento da educação;
formação e profissionalização docente; expansão e qualidade do
ensino, dentre outros que afetam a vida cotidiana das instituições
educativas escolares e não escolares. O conhecimento das
políticas educacionais é essencial, portanto, para a formação de
um professor que saiba refletir e agir de forma coerente com
suas opções éticas, teóricas e políticas.
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Maria Helena Souza Patto recorre às contribuições de José
Maria Azanha acerca da formação docente, que critica a ênfase
nos conhecimentos e aprendizagens de cunho metodológico a
que, segundo ambos os autores estão submetidos os cursos de
Licenciaturas no Brasil. Para ele, estes cursos “[...] nada mais
visam do que à transmissão de tecnologias mal fundamentadas e
inaplicáveis às condições efetivas de ensino [...]” (AZANHA
apud PATTO, 2004, p. 63).
Nesse sentido, Patto (2004, p. 66) cita as teses de Azanha,
que rejeitam, de um lado, “o discurso das secretarias de
Educação que atribuem a má qualidade da educação a defeitos
morais dos professores” ou sua formação acadêmico-teórica
precária; e de outro, os “diagnósticos psicológicos que
responsabilizam alunos por dificuldades de escolarização”.
A autora recorre, ainda, à crítica às teses sobre Feuerbach,
de Karl Max, que reafirma que a concepção transformadora da
sociedade “[...] só pode ser concebida [...] como práxis [...]
como uma ação sobre o real” (PATTO, 2004, p. 66).
Hanna Arendt destaca a importância e o papel da educação
como uma das atividades essenciais na sociedade humana, uma
vez que tem como tarefa a renovação do mundo, “[...] que
jamais permanece tal e qual é, porém renova-se continuamente
através do nascimento e da vinda de novos seres humanos [...]”
que nele chegam. Assim, a pensadora indaga a razão de as
políticas públicas terem falhado nesse sentido:

Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que


efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais
são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem
dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom
senso? [...] O que podemos aprender dessa crise acerca da
essência da educação [...]? Ou seja, sobre a obrigação que a
existência de crianças impõe a toda sociedade humana?
(ARENDT, 1992, p. 234).

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Para Arendt, é por amor ao mundo, que os adultos
precisam educar suas crianças – novos seres “chegantes” ao
mundo. Essa é uma tarefa para a família, para o professor e para
os governos. A crise da educação nos tempos modernos indica
um problema político com o qual as autoridades educacionais
foram incapazes de lidar a tempo. Superar essa grande distância
entre o passado e as necessidades do presente tem sido o maior
desafio das políticas educacionais contemporâneas. É preciso
salvar nossas crianças do mundo que já está posto e proteger o
mundo do que elas se tornarão no futuro se não forem educadas
hoje.

Notas
1
Polis: termo grego que se refere a cidade, compreendida como a comunidade
organizada, formada pelos cidadãos, isto é, pelos homens nascidos no solo da
Cidade, livres e iguais (CHAUÍ, 2003).
2
Iluminismo ou Esclarecimento (em alemão Aufklärung, em inglês Enlightenment,
em italiano Illuminismo, em francês SiècledesLumières, em espanhol Ilustración):
designa uma época da história intelectual ocidental. Iluminismo é um conceito que
sintetiza diversas tradições filosóficas, correntes intelectuais e atitudes religiosas. O
uso do termo Iluminismo na forma singular justifica-se, contudo, dadas certas
tendências gerais comuns a todos os iluminismos, nomeadamente, a ênfase nas
ideias de progresso e perfectibilidade humana, assim como a defesa do
conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e ideologias
tradicionais. O Iluminismo é, para sintetizar, uma atitude geral de pensamento e de
ação. Os iluministas admitiam que os seres humanos estão em condição de tornarem
este mundo um mundo melhor – mediante introspecção, livre exercício das
capacidades humanas e do engajamento político-social (SITE:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/ Iluminismo>, 2008).
3
Do contrato social: obra prima do suíço Jean-Jacques Rousseau, em que ele expõe a
sua noção de homem, de Estado e de sociedade. Para obtê-la na Internet, acesse:
<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf, 2008>.
4
Para compreender a concepção marxista de Estado, vale a pena ler o Manifesto do
Partido Comunista, disponível, no site: <http://ateus.net/ebooks/geral/marx_
manifesto_comunista.pdf>.
5
Antonio Gramsci: político, filósofo e cientista político, comunista e antifascista
italiano, nascido em Ales, em 22 de janeiro de 1891, e falecido em Roma, em 27 de
abril de 1937. A influência de Gramsci encontra-se associada, sobretudo, aos mais
de trinta cadernos de análise histórica e filosófica que escreveu durante o período em
que esteve na prisão, conhecidos como Cadernos do Cárcere, que contêm o
112 educ , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 97-112, jan./jun. 2010.
pensamento maduro de Gramsci sobre a História da Itália e o nacionalismo, bem
como ideias sobre teoria crítica e educacional que são frequentemente associadas
com o seu nome.
6
Em política, o conceito de hegemonia foi formulado por Antonio Gramsci para
descrever o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre outra,
particularmente da burguesia sobre o proletariado e outras classes de trabalhadores.
7
Johanna Arendt nasceu em Hannover (Alemanha) em 14 de outubro de 1906, numa
família de origem judia. Estudou e doutorou-se pela Universidade de Heidelberg,
sob a orientação de Martin Heidegger e Karl Jaspers. Foi perseguida pelo nazi-
facismo. Aproximou-se dos frankfurtianos, como Walter Benjamin. Tornaram-se
amigos nos tempos de refugiados alemães judeus e comunistas. Exilou-se em Paris e
faleceu em Nova York em 1975. Sua principal obra, A condição humana (1958),
trata de experiências políticas fundadoras da vida dos homens na sociedade, no
mundo. Suas obras priorizam as reflexões sobre a política tomada como sua
referência fundante para compreender a crise da modernidade em suas diferentes
esferas, tanto no espaço do público, como no do privado. Nesse estudo, tomamos
como referência suas obras e ensaios sobre Política e seus diferentes sentidos.
(c.f.citações e referências).
8
Políticas públicas: este é um conceito que comporta várias significações. Para
alguns, pode parecer uma redundância, visto que toda política, pela própria natureza
etimológica da palavra, é essencialmente pública. Este termo pode referir-se a
diferentes áreas ou campos de atuação governamental, por exemplo política
econômica, políticas sociais, ou, ainda, ambientais. Pode remeter aos processos
próprios da ação política, no que diz respeito aos instrumentos, regras e organização
das forças que se enfrentam ou se articulam no espaço dos embates. Pode significar,
ainda, as instituições políticas, como o Estado e suas normas, regras e marcos
jurídicos.
Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro.Tradução: Mauro de Almeida. 3. ed.


São Paulo: Perspectiva, 1992.
ARENDT, H. O que é política? Fragmentos das obras póstumas. Tradução Reinaldo
Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
ARENDT, H. A promessa da política. Tradução Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro:
Difel, 2008.
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Pedro Constantin Tolens. 5. ed. São Paulo:
Martins Claret, 2008.
AZEVEDO, J. M. Lins de. A educação como política pública. 3. ed. Campinas:
Autores Associados, 2004.
BRZEZINSKI, I. Política: conceito bastante complexo. Goiânia, 2009. [Texto
elaborado para a disciplina de Políticas Educacionais – PPGE/PUCGOIÁS].

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CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Petrópolis: Paz e Terra, 1980.
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HOBBES, T. Leviatãou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo:
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LOCKE, J. Carta acerca da Tolerância:segundo tratado sobre governo; Ensaio acerca
do entendimento humano. Tradução de AnoarAiex e Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo:
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MACCIOCCHI, M.-A. A favor de Gramsci. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret,
2001.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, ensaio sobre a origem das línguas:
discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; discurso
sobre as ciências e as artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. 3. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).
SAVIANI, D. Da nova LDB ao Fundeb: por uma outra política educacional.
Campinas: Autores associados, 2007.
SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M. de; EVANGELISTA, O. Política
educacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SITE: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Iluminismo>. Acesso em: 26 jun. 2008.
SITE: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2008.
EDUCATIONAL POLICIES: A REFLECTION ON THEIR MEANINGS
Denise Silva Araújo, Maria Zeneide C. M. De Almeida

Abstract: the aim of this text is to classify educational policies, based on their
understanding as public policy. It sets out to establish their relationship with civil
society movements, in order to contribute towards an understanding of educational
reality as a unique and contradictory field of dispute. The text is divided into two
parts: it classifies policy as a constitutive activity of the human condition and
educational policies in the context of public policies.

Keywords: educational policies, public policies, State, education.

114 educ , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 97-112, jan./jun. 2010.


9
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Pedagoga pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Professora na UFG e na Graduação e no
Programa de Mestrado e Doutorado de Educação da PUC/GO. Coordenadora do Colegiado
das Licenciaturas da PUC/GO. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Educação (Nuppe). E-
mail: deniseucg@gmail.com.
**
Doutora em História pela UnB. Mestre em História e Filosofia da Educação (Unicamp).
Pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Professora no
Promgrama de Mestrado em Educação do PPGE da PUC/GO, vinculada à linha de pesquisa
Estado e Políticas e Instituições Educacionais. E-mail: zeneide7@bol.com.br.

educ , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 97-112, jan./jun. 2010. 115


ADRIANE GUIMARÃES DE SIQUEIRA LEMOS
Secretaria de Estado da Educação de Goiás (SEDUCGO), Goiânia, Goiás,
Brasil

___________________________________________________

___________________________________________________
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.
LEMOS, A. G. de S.

_________________________________________________________________________________________
ADRIANE GUIMARÃES DE SIQUEIRA LEMOS: Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Mestra em
Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Especialista em
Psicologia dos Processos Educativos, pela Universidade Federal de Goiás; em Docência no
Ensino Superior, pela Faculdade Alfredo Nasser; em Psicopedagogia com ênfase no ensino
especial e educação inclusiva, pela Faculdade de Tecnologia Equipe Darwin - FTED.
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás e complementação na área de
Português em Curso de Formação Pedagógica - PREFOP pela Universidade Estadual Vale
do Acaraú. Professora da Secretaria Estadual de Educação de Goiás (SEDUCGO).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9041-1879
E-mail: adrianegsiqueira@hotmail.com
_________________________________________________________________________________________

Este periódico utiliza a licença Creative Commons Attribution 3.0, para periódicos de acesso aberto
(Open Archives Iniciative - OAI).
IP
~

Luiz Carlos de Freitas

,~ REFORMA EMPRESARIAL
DA EDUCAÇÃO
Nova direita, velhas ideias
~-

1ª edição

EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo• 2018


Copyright© 2018, Expressão Popular

Revisão: Nilton ¼ana e Lia Urbini


' SUMÁRIO

Diagramação e capa: Zap Design

'
:.,

Dados lntet:nacionais de C 9 talogação-na-PublicaÇ,ã0 (CIP


Freitas, Luiz"earlos de. -·,i. · -~, -
F863r A reforma empresarial da educação: nova dire1ta, velhas Introdução ........................................................................................... 9
ideias. / Luiz Carlos de Freitas.-- 1.ed.- São Paulo :
Expressão Popular, 2018,. Origens e fundamentos da reforma. ; breve contextualização .................... 13
160 p.
Os novos _"reformadores" ......................................................................... 31
lndexacto..em GeoDados - http://www.geodapos.uem.br.
ISBN_978-~5-7743-3_4f-5. . '• . Privatização ou publicização? Existe "meia" privatização? ........................ 49
1. Educação - Reforma. 2. Escola pública -ÔÕalidade. Ev1·d·enc1a
· ·emp1nca,
' · et1ca
' · e pnvauzaçao
· · . · ..................................................
. . 59
3. Educação - Privatização: 1. Título.
Padronização, testes e accountability: a dinâmica da déstruição ............... 77
.CDU 37
CDD370 Obstruindo a qualidade da escola pública: mais implicações éticas ......... 87
Catalogação na l?ublicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Controlar o processo, precarizar o magistério .......................................... 103
Impactos nos estudantes: "toda a escola, seeentido!''.. ............................... 113
Todos os direitos roscrvados. Um outro horizonte é possível ................................................................. 125
Nenhuma parte desie li~Í-o pode ser ütilizada
ou reproduzida sem a autorização dá editora. Uma proposta para a resistência .............................................................. 133

l" edição: novembro de 2018


Referências ........................................................................................... 145
3• r~impressão: outubro.de 2019

EXPRESSÃO POPULAR
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1J ed.expressaopopular
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y
,..,,

f
1
INTRODUÇÃO

Ao final da década de 1990, uma coalizão de centro-direita


entre o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e o en-
tão Partido da Frente Liberal (PFL), hoje denominado Partido
Democratas (DEM), introduzia no Brasil, de forma sistemática e
oficial, um movimento pelas "referências nacionais curriculares".
A implantação de processos de avaliação de larga escala na
educação que iriam se articular com estas referências já havia
sido ensaiada nos idos de 1988 e oficializada em 1994 pelo go-
verno de Itamar Franco (Horta Neto, 2018). Disso resultaram
os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) e o fortale-
cimento dos processos de avaliação do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (Saeb), ingredientes básicos para um sistema de
responsabilização (accountability).
Diane Ravitch (2011) descreve como estes movimentos, que
também ocorriam nos Estados Unidos na década de 1990, em
plena vigência do neoliberalismo, foram sequestrados pela "re-
forma empresarial da educação" com a lei No Child Left Behind
(NCLB) no início dos anos 2000, abrindo oficialmente, naquele
país, a era da accountability (p. 31).

9
,,,.

A coalizáo PSDB/PFL governou o Brasil por oito anos, mas Com isso, membros da equipe do PSDB que haviam iniciado
não conseguiu eleger-se para um terceiro mandato, assumindo o debate sobre as referências nacionais curriculares, dando
o governo em 2003 uma coa:lizão liderada por um partido origem aos Parâmetros Curriculares Nacionais ao final dos anos
que prometia dar outra direção para a educação, o Partido 1990, retornaram a postos-chave do Ministério da Educação,
dos Trabalhadores (PT): entrava em cena a proposta de um agora tendo como ministro José Mendonça Filho, filiado ao
capitalismo desenvolvimentista (Berringer, 2015). 1 Quanto de DEM, restabelecendo, na esfera deste ministério, a coalizão de
fato
,... aquele processo
.. iniciado
.. . pela
- coalizão de centro-direita centro-direita PSDB/DEM dos anos 1990.
pr~dominantemente neoliberal foi alterado nos governos que Mas se os personagens são quase os mesmos, 2 os tempos são
se ~eguiram é rnatéria aberta a exame. Mas creio que se pode outros. Como mostra Casimiro (2018), uma "nova direita" se
dizer, fazendo justiça, que a nova coalizão petista não foi uma estruturou no Brasil desde a redemocratização dos anos 1980,
linha nem reta e nem célere em direção à reforma empresarial imersa no tecido social com organizações da sociedade civil que
como teria sido se a coalizão PSDB/PFL tivesse permanecido no criam uma estrutura alargada de influências. O mesmo acon-
p~der. teceu nos Estados Unidos a partir dos anos 1950, tendo seus
Ainda não temos uma teorização acabada que possa dar conta etêitos mais visíveis em 2010 na "guerra contra Obarna", du-
das mudanças pelas quais passou o país mais recentemente, rante sua campanha presidencial, na qual os milionários irmãos
culminando com o golpe jurídico-parlamentar em 2016 que Koch gastaram cem milhões de dólares para combatê-lo. Algo
afastou a coalizão do PT do poder, mas pode-se dizer que 2016 diferente começava a atingir a política estadunidense (MacLean,
representa um momento de inflexão na política brasileira, não 2017, p. XIX).
por acaso com o apoio incondicional do PSDB e do antigo PFL, É possível que o impeachment da presidenta Dilma, e mais
agçra DEM - sem contar o Partido do Movimento Democrático especificamente as manifestações de rua em 2013, sejam um marco
Brasileiro (MDB), de cujas fileiras era o vice-presidente na r na percepção pública desta forma de conceber a política no Brasil,
coalizão PT-MDB, elevado pelo golpe à condição de presidente especialmente com a eclosão do Movimento Brasil Livre (MBL),
da República em 2016, com o impeachment da presidenta Dilma ,. do Movimento Escola sem Partido e um conjunto de candidatos
,
Rousseff. Mas pode-se dizer que 2016 representa um momento "outsiders" na campanha presidencial brasileira de 2018.
em que sai de cena o desenvolvimentismo, cedendo lugar a uma Aquele debate sobre referências nacionais curriculares dos
retomada do liberalismo econômico (neoliberalismo) na política anos 1990 agora tem lugar em vários países sob a forma de "bases
brasileira (Berringer, 2015). nacionais comuns curriculares", no interior de um movimento
global de reforma da educação que pede mais padronização,
1/,

1 ~
O capitalismo desenvolvimentista é uma proposta alternativa ao liberalismo eco- ~-

nômico e não supõe, necessariamente, uma vinculação com posições nas quais o 2
De fato, quem estruturou a retomada em 2016 foi Maria Helena Guimarães de
desenvolvimentismo conduza ao socialismo. O socialismo não é uma alternativa Castro, secretária adjunta do Ministério, que já havia estado no governo anterior
~ ao liberalismo econômico, mas ao próprio capitalismo (Bresser-Pereira, 2017). do PSDB/PFL ao final dos anos 1990.

10 11

testes e responsabilização (accountability) na educação (Sahlberg,


2011), atropelando a diversidade e os Estados nacionais, já que o
capital financeiro rentista (criador do neoliberalismo) opera de
forma supranacional (Chaui, 2018).
'
;~

ORIGENS E FUNDAMENTOS DA REFORMA:


BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

Que agenda está embutida neste retorno? O que significa este


movimento rnundial que proclama reformas para que a educa-
ção seja de qualidade para todos? Qual qualidade? Quem são
estes reformadores? O que de fato pretendem e por quais meios
atuam? Estas são questões importantes se queremos organizar
uma resistência qualificada a esta forma de fazer política edu-
cacional.

Apesar da origem deste movimento ser, na sua prática po-


lítica, híbrida, remonta ao nascimento de uma "nova direita"
que procura combinar o liberalismo econômico (neoliberal, no
sentido de ser uma retomada do liberalismo clássico do século
XIX) com autoritarismo social. A investida mundial deste mo-
vimento teve sua origem nos problemas econômicos do final da
década de 1970 com a primeira crise do petróleo (associada a
outros fatores econômicos) ainda na vigência do Estado de bem-
-estar social. Nas palavras de Bresser-Pereira:
O surgimento de um segundo liberalismo econômico radical - os
Anos Neoliberais do Capitalismo - foi uma resposta a esses fatos.
[...] Grandes intelectuais liberais, como Friedrich Hayek, Karl
Popper, Milton Friedman e James Buchanan, desempenharam
um papel ideológico estratégico na conversão dos departamentos
econômicos das principais universidades em modelos neoclássicos
hipotético-dedutivos abstratos, cujo papel era legitimar o liberalismo
econômico. (Bresser-Pereira, 2017, p. 698)

Entre 1930 e 1970, enquanto se difundia a abordagem neoli-


beral, o mundo experimentou o avanço do Estado de bem-estar
social, baseado numa concepção desenvolvimentista de capita-

12 13
1
~
1'-~
;,_r

lismo que foi uma tentativa de sair da crise do primeiro ciclo do O governo de coalizão do PT que assumiu em 2003
liberalismo clássico, que se esgotou no início do século passado representou um m01nento no qual as forças desenvolvimentistas
em meio à Primeira Guerra Mundial e à crise de 1929. No en- nacionais procuraram enfrentar o setor empresarial e político
tanto, novos problen1as econô1nicos fizeram c01n que no con1e- vinculado ao neoliberalismo daquela época, que pretendia apoiar
ço dos anos 1980 o neoliberalismo se tornasse hegemônico nos seus lucros na "mais-valia" das cadeias produtivas internacionais
Estados Unidos (com Reagan) e na Inglaterra (com Thatcher), (cf. Berringer, 2015). Combalida ao final de treze anos no
expandindo-se para outros países. poder, a coalizão petista foi vencida por esta "nova direita" que,
NaAmérica Latina, o esgotamento da primeira onda neoliberal associada a outras vertentes políticas, organizou com apoio
nos anos 1990, seguido da ascensão de governos progressistas jurídico, parlamentar e midiático o golpe de 2016, por dentro
ocorrida em seguida, ·criou a iiusão de que o neoliberalismo da "democracia liberal", corroendo suas instituições.
havia passado. Produziu também um efeito complementar: A "nova direita" neoliberal disputou intensamente os rumos
chamou nossa atenção para o lado das reformas econômicas e da educação brasileira, inclusive no~_governos da coalizão do PT
seus impactos, retirando a nossa atenção do lado obscuro do (2003-2016) de dentro e de fora destes. Neste período, expandiu-se
neoliberalismo - sua ligação política com os conservadores, seu com a organização de uma rede de influências com novos partidos
significado ideológico e os métodos pelos quais se propaga e políticos, fundações, inserção na mídia, organizações sociais,
resiste. Não levamos a sério o fato do liberalismo econômico institutos e associações, e ampliou seu apoio entre empresários e
retornar como um movimento de resistência mundial às teses políticos (cf. Casimiro, 2018).
progressistas e não ter compromisso com a democracia, mas É importante termos pelo menos uma visão geral de como
apenas com a instauração do livre mercado - o que surpreendeu este movimento se organizou nos últimos anos, deixando
o "socialismo democrático" e a "social-democracia", que tinham a esquerda perplexa (em especial a social-democracia) ante
na democracia liberal seu parâmetro constitutivo. as estratégias postas em marcha por uma "nova direita" que
Na visão destes "novos liberais'',3 o liberalismo diz respeito não hesitou em usar recursos que julgávamos superados nos
à extensão do controle do governo em relação à economia domínios da democracia liberal. É importante anotar que tal
(que deve ser mínimo), enquanto a democracia diz respeito à cenário não é específico do Brasil, pois estas forças políticas
forma de manutenção do poder (Selwyn, 2015). Neste sentido, ganharam destaque em vários países, com consequências visíveis
a democracia é apenas "desejável", mas não é uma condição que Giroux (2017) resume da seguinte forma:
necessária ao neoliberalismo. Os direitos políticos não gozam de No meio de um enorme ataque global ao Estado do bem-estar social
garantia incondicional sob o novo liberalismo econômico. e às cláusulas sociais, alimentadas por políticas neoliberais, o con-
trato social central das democracias liberais foi destruído e com ele
também qualquer noção viável de solidariedade, justiça econômica
e bem comum. O progresso foi transformado em seu oposto e regis-
3 Para um exame da constituição e crescimento desta vertente política reacionária tra mais desigualdades, sofrimentos e violência. A antiga linguagem
no Brasil, ver Casimiro, F. H. (2018). dos direitos coletivos deu lugar ao discurso dos direitos individuais,

14 15
,rr

e o vocabulário da colaboração e solidariedade foi deslocado pelo


tivo era organizar uma agenda e impulsionar discretamente um
discurso do individualismo radical e o ethos áspero da sobrevivência
do mais forte. A 'liberdade' se transformou em sinônimo de interes- movimento político que formasse novas lideranças em postos de
se próprio desenfreado e em uma racional para abdicar de qualquer comando chave.
senso de responsabilidade moral e política. (p. 1) Como mostra ·MacLean, na história do desenvolvimento
Mas como chegamos a isso? da "nova direita" neoliberal, educação e economia estiveram
Um livro recente de Nancy MacLean (2017), Democracy in próximas. Foi procurando barrar a atuação do Estado, que
chains: the deep of the radical right's stealth plan for America, nar- através da Corte Suprema estadunidense havia decretado o
ra como se desenvolveu a agenda desta "nova direita" nos Esta- fim da segregação racial nas escolas americanas, que Buchanan
dos Unidos, que se difundiu também pelo mundo, produzindo implementou a ideia da "escolha da escola" pelos pais (vouchers),
a situação descrita acima por Giroux. ajudando a separar a juventude branca da juventude negra nas
O título do livro é bastante sugestivo - Democracia aprisio- escolas do sul dos Estados Unidos, nos idos dos anos 1950
nada - e recupera o trabalho de James McGill Buchanan4 e seu (veja também Ravitch, 2011, p. 134-135). A ideia havia sido
papel na estruturação de um projeto propulsor de um conjunto proposta por Milton Friedman (1955), um economista da
de ideias do liberalismo econômico nos Estados Unidos que se direita neoliberal americana, e seria usada pelo entorno político
alinhava com a produção dos economistas neoclássicos e a es- de Buchanan, para que os segregacionistas pudessem combater a
cola de economia austríaca de L. von Mises e F. A. Hayek. Para dessegregação "imposta" pela Corte Suprema Americana. 6
Monbiot (2017), "o livro é o capítulo que faltava para se enten- Friedman e Buchanan, embora no mesmo grupo de
der a política dos últimos cinquenta anos". economistas como Mises e Hayek,7 tinham diferenças
O trabalho descreve o braço político do neoliberalismo, cons- metodológicas: Friedman, mais técnico, advogava que a economia
truído com base na atuação discreta de James Buchanan em era uma ciência positiva e que não deveria fazer julgamentos
seu Center for Study of Public Chóice, financiado pelos irmãos morais. Buchanan era tão devotado quanto Friedman à tarefa de
Charles e David Koch, do setor petroquímico estadunidense. 5 restringir o controle do Estado sobre a sociedade, mas assumia
Tinha como objetivo treinar uma nova geração de pensadores também a tarefa de organização do enfrentamento político. 8
para lutar pelo livre mercado e pela retomada do liberalismo 6
Friedman reconheceu esta apropriação de suas ideias com finalidade de segregar
clássico, em contraposição às ameaças da planificação da eco- a escola, mas seu compromisso maior era combater o "controle" do governo
nomia postas pela social-democracia e pelo socialismo. O obje- (Ravitch, 2011, p. 134-135).
7
Embora comungando dos mesmos propósitos políticos da nova direita,
Friedman também tinha diferenças com Hayek no que diz respeito às propostas
econômicas - ver Gamble (1988, p. 43-44). A nova direita não é um bloco
4
Toda a documentação referente a este movimento conduzido nos Estados Unidos homogêneo de proposições econômicas.
por Buchanan, falecido em 2013, está na George Mason University em Virgínia, 8
Charles Koch refere-se a Friedman como alguém que quer "fazer o governo fun-
onde MacLean realizou sua pesquisa. cionar mais eficientemente quando o verdadeiro libertário deveria destruí-lo
) Segundo Castells (2018), os irmãos Koch também financiam o Movimento Bra- pela raiz". E continua: "Na verdade, eles tentam ajudar o governo a entregar me-
sil Livre (MBI ) r,t) Brar.il. lhores resultados, o que só pode prolongar a doença" (MacLean, 2017, p. 135).

16 17
~

A ideia dos vouchers usada para manter processos de Ludwig von Mises em 1922 (Mises, 2009), em 1927 (Mises,
segregação racial nos anos 1950 foi vendida pelo neoliberalismo 2010), e por Frederick A. Hayek em 1944 (Hayek, 2010).
como "direito democrático dos pais a escolher a escola de seus Para Mises (2010) e para Hayek (2010) a social-democracia,
filhos", mais tarde remasterizado também como o "direito dos o socialismo e o nazismo eram produto das deturpações das te-
pobres de escolher estudar nas mesmas escolas particulares que ses do liberalismo clássico, e deveriam ser combatidas - incluin-
os ricos frequentam". Como veremos, a experiência mostrou que do a tese nascente do Estado de bem-estar social, que duraria
esta proposta continuou seu caminho original de amplificar a até o início dos anos 1970. Para eles, toda vez que a democracia
segregação das escolas (não só por raça, mas por gênero e nível liberal falha em garamir a liberdade econômica, permitindo que
socioeconômico), criando "trilhas" que escolhem os estudantes seja cerceado o "direito natural" de acumular privadamente, ela
segundo o dinheiro que carregam no bolso: uma elite (branca e compromete a liberdade social e pessoal. E somente pode haver
mais rica) estuda em escola privada e quando necessário tem os liberdade, no seu sentido pleno, se houver liberdade econômi-
vouchers para pagá-la com dinheiro público; uma classe média ca, livre mercado e garantia do direito de cada um acumular
branca estuda em escolas privadas de menor custo ou públicas propriedade privada, por "seus mÚitos". Esta concepção de so-
terceirizadas e pode também pagá-las com voucher, adicionando ciedade tem consequências, pois está baseada na sobrevivência
algum pagamento extra; e os muito pobres (e negros) continuam do mais forte, por um lado, e na ideia de que há algo mais im-
estudando nas escolas públicas que sobreviveram à privatização, portante do que a própria democracia, ou seja, o livre mercado
ou nas terceirizadas de baixa qualidade. gerador da "liberdade" social e pessoal, por outro.
A principal proposta da nova direita para elevar a qualidade Descrevendo como Buchanan constrói sua agenda política em
da escola (inserção da escola no livre mercado pelos vouchers)
1 meio a estes autores, 9 MacLean (2017) revela uma das suas ideias
adotada pela reforma empresarial da educação vem imersa,
portanto, nas sangrentas lutas raciais estadunidenses dos anos
1950 (mas que duram até hoje), usada como proteção para uma
1 centrais: a redistribuição de renda através de impostos, que obrigam
alguns a financiar o bem comum ou a promover a justiça social
para outros, não passa de uma tentativa de tomar pela força algo
elite branca, mostrando sua vocação darwinista, que combina
a ideia de sobrevivência do mais forte com um "livre mercado"
1

que tais "tomadores" não têm moral para exigir, ou seja, tomar o
fruto do esforço pessoal daqueles que foram bem-sucedidos. Para
concorrencial. f· ele, proteger o bem-estar é proteger o indivíduo destas formas de
MacLean (2017) descreve como a lógica da agenda de Bucha-
9
nan estava baseada na proclamação de que "liberdade" pessoal As ideias de Buchanan em alguns aspectos eram até mais radicais que as do próprio
e social é igual a "capitalismo sem restrições", sem interferência Hayek. Enquanto "Milton Friedman e F. A. Hayek concordavam que os funcio-
nários públicos tentavam sinceramente fazer o correto pelos cidadãos, mesmo que
de governos que acabam se comprometendo, por interesses nos eles contestassem os métodos, Buchanan acreditava que o governo havia fracassa-
votos, com "maiorias fracassadas" - leia-se, menos favorecidas do por causa da má-fé: porque ativistas, eleitores e autoridades usavam a conversa
socioeconomicamente. Décadas antes, tais ideias tinham sido do interesse público para mascarar a defesa de seus próprios interesses pessoais às
custas [sic] dos outros" (MacLcan, 2017, p. XXXI). Apesar destas diferenças, todos
colocadas em cena como reação à Revolução Russa de 1917 por apoiaram a ditadura militar de Pinochet no Chile, em 1973.
!\! 1

. !

18 19

1
--
"gangsterismo" estatal legalmente autorizado, que retiram o fruto Inglaterra quanto R. Reagan nos Estados Unidos, responsáveis
do seu trabalho a título de promover a justiça social (p. XXIII). pela onda neoliberal dos anos 1980.
Buchanan escreveu em 2005: uma pessoa que fracassa em guardar Bresser-Pereira considera que o neoliberalismo teria entrado
dinheiro para suas necessidades futuras "deve ser tratada como em colapso com a crise financeira de 2008, reiterada pela crise
um membro inferior da espécie, similar [...] aos animais que são política do Brexit em 2016 na Inglaterra, complementada pela
dependentes" (MacLean, 2017, p. 212). eleição de Don.ald Trump nos Estados Unidos (Bresser-Pereira,
Para Buchanan, todo o mal começa quando os indivíduos, 2017, p. 701). No entanto, seria mais correto interpretar que,
que isoladamente não têm poder, se juntam para formar no melhor dos casos, estamos falando do final da atual fase do
movimentos para se foàalecer numericamente e influenciar o neoliberalismo. Nada impede que tenhamos outras fases ou que
governo, fazendo com que este ouça seus-desejos e atue por eles. isso varie de país para país.
Tais movimentos incluem a organização dos trabalhadores e Não se pode também perder de vista que, ao final do primei-
os movimentos de defesa dos direitos humavos. Ele pensa que ro período do liberalismo clássico (1929), o evento mais impor-
toda vantagem que um grupo majoritário pode, devido ao seu tante ocorrido em plena queda deste foi a Revolução Socialista
número, impor a uma minoria não constitui persuasão, mas sim de 1917 na Rússia (deixando de lado a própria Primeira Guerra
coerção sobre a minoria, uma violação da liberdade individual Mundial iniciada em 1914, ela mesma uma das causas dessa
daqueles que honestamente pagam impostos. Contra isso, é queda). Há, portanto, uma motivação ideológica para o retor-
preciso barrar a "corrupção governamental" feita por grupos no do neoliberalismo, alimentada permanentemente pelo medo
organizados que pressionam e tornam os membros do governo da Revolução Socialista Russa e sua proposta de planificação
receptivos a tais demandas (MacLean, 2017, p. XXIV). da economia {medo estampado em cada página das publicações
Em 1947, Hayek organizou uma sociedade internacional em políticas de Mises [2010 e 2009] e Hayek [2010]). Mesmo com
Mont Pelerin, nos Alpes Suíços, que depois passou a se chamar a queda do Leste Europeu, este medo continua a mobilizar o
Sociedade Mont Pelerin. Inicialmente reunia quarenta intelec- neoliberalismo, como um movimento de alcance mundial desti-
tuais alinhados ao pensamento liberal (incluindo Friedman e nado a eternizar o liberalismo econômico.
Buchanan), de dez países diferentes.
10 Face às contradições sociais que se avolumam e à possibili-
Hayek naturalizou-se na Inglaterra e tanto ele como Mises dade de que os governos sejam pressionados pelas massas insa-
(que se naturalizou nos EUA) estiveram longo tempo nos Estados tisfeitas a assumir teses contrárias ao liberalismo econômico, a
Unidos.11 Suas teses influenciaram tanto M. Thatcher na democracia liberal representativa já não é vista como um con-

°
1 Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_Mont_Pelerin>. Acesso em 3 de de Chicago) e Mises (na Universidade de Nova York) tiveram seus salários
pagos por dez anos, para divulgar suas ideias, pelo William Volker Fund, uma
agosto de 2018. fundação empresarial nos Estados Unidos. O mesmo fundo financiou também
11 Buchanan fez seu doutorado na Universidade de Chicago, onde estava Milton
Friedman. Esta universidade foi instalada na virada do século XX com aporte de a ida do grupo para a reunião da Sociedade de Mont Pelerin, convocada por
recursos de, tlí'a.gnataJ. D. R0ckcfeller. Na mesma época Hayek (na Universidade H:>y,.1,- na S,,íça em 1947 (MacLean, 2017, p. 39).

1
20 21
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i•d\

trato social seguro, como reconhecem Giroux (2017) e Castells A questão, portanto, não tem apenas um lado econômico,
(2018) - que dê garantias à existência do livre mercado, assegu- como querem fazer parecer os empresários. É também ideológica,
rando a continuidade dos processos de acumulação individual no sentido de dar garantias à defesa da apropriação privada e
de riquez.a que, para os refundadores do liberalismo, são a base sua acumulação contínua que, nas formas democráticas liberais
da ordem social liberal. Para Chomsky (Polychroniou, 2018): vivenciadas, não teria demonstrado estar suficientemente
j O projeto Reagan-Thatcher para fortalecer o poder irrestrito dos ne-
protegida ou seria ineficaz para barrar reivindicações de grupos
j1
1,
gócios, levado à frente e expandido por seus sucessores, foi o reflexo organizados, que promovem a cooptação de políticos contra o
político de uma campanha coordenada pelas classes empresariais de- livre mercado. E o livre mercado é fundamental para que os
dicada a reverter a 'crise da democracia' dos anos 1960 que preocu- indivíduos, lançados nele, tenham "liberdade" para construir
pava profundamente as elites liberais internacionais, que devotaram
sua trajetória a partir do mérito e esforço pessoal.
a primeira das principais publicações da Comissão Trilateral a esta
séria enfermidade. Sua principal preocupação era o crescente engaja- Para Bresser-Pereira, "o regime de política neoliberal foi uma
mento das classes populares na arena política forçando suas deman- tentativa fracassada de retornar-ao capitalismo liberal, que, entre
das e o Estado, o que impunha muita pressão, ameaçando o domínio o início do século XIX e 1929:~também produziu crescimen-
do mundo dos negócios. (p. 1) to lento, alta instabilidade financeira e profunda desigualdade"
'
t('
:.j'.
1·1 A "nova direita" e seus aliados passam a implementar um (2017, p. 701). Com isso, o autor reitera sua confiança nas estra-
:1\i conjunto de reformas que desestruturam a luta dos trabalhado- tégias econômicas e sociais do "capitalismo de desenvolvimen-
.;i,
,;] res e colocam novos marcos de precarização da força de traba- to", e nós retornamos, como que circularmente, à questão da
:11
,! lho, ao mesmo tempo que recompõem as garantias do processo eficácia da coalizão do PT que governou de 2003 a 2016 procu-
1
de acumulação. rando implementar exatamente a tese desenvolvimentista: quais
Para o neoliberalismo, as garantias deveriam ser incluídas nas os ganhos reais havidos para os trabalhadores e, mais que isso,
constituições nacionais de forma a se tornar praticamente irre- qual a sua sustentabilidade, frente ao autoritarismo neoliberal?
vogáveis, mesmo por caminhos que pudessem significar uma Esta, no entanto, não é uma questão para este texto.
i
;1 ruptura com as teses da democracia liberal. Afinal, o que está Que elementos podemos colher para nossa análise, neste rá-
,: ,i:
l,'. ,!\ em jogo é a própria "liberdade pessoal e social" que precisa ser pido cenário?
t ':i defendida a qualquer custo para deter a ideia de uma economia Como cenário geral, devemos registrar, em primeiro lugar,
11
ir~~, planificada (contrária ao livre mercado), de onde - dizem - ad- a ênfase mercantil e conco"encial que atinge todos os aspectos da
vêm o "esquerdismo" e o "comunismo". A ação do liberalismo vida, transformando direitos sociais em ..serviços" a serem adqui-
econômico é, portanto, proativa, presciente de um risco futuro. ridos, além de transformar cada indivíduo em um "vendedor de si
!' Isso explica sua narrativa belicosa permanente contra a "social- mesmo" em um livre mercado (Chaui, 2017). Por este caminho,
-democracia", o "esquerdismo" e o "comunismo" - mesmo que desenvolve-se um imaginário social legitimador de um indivi-
não estejam no horizonte imediato. dualismo violento (mascarado de empreendedorismo) que lança
a juventude em um vácuo social, no qual conta apenas o pre-

22 23
'!li'"

sente, a "luta pela sua própria sobrevivência" ou, como aponta como aliás tem feito: fases de liberalismo com fases de desenvol-
Giroux (2017): vimentismo (Bresser-Pereira, 2017). Mas nenhuma das soluções
(pela coalizáo do PT ou pelo neoliberalismo) parece nos levar
A antiga linguagem dos direitos coletivos deu lugar ao discurso dos
·direitos individuais; e o vocabulário da colaboração e solidariedade a uma situação na qual tais contradições sejam resolvidas e a
foi deslocado pelo discurso do individualismo radical e o ethos áspe- educação pública esteja a salvo. O "desenvolvimentismo" não
ro da sobrevivência do mais forte. A 'liberdade' se transformou em é o fim da história e a "nova direita" tem um lado reacionário
sinônimo de interesse próprio desenfreado e em uma racional para
e golpista, corroendo a lógica da democracia liberal por dentro,
abdicar de qualquer senso de responsabilidade moral e política. (p. 1)
sempre que necessário, o que não pode ser novamente ignorado.
Neste caminho, o indivíduo cria para si uma narrativa na Não podemos esquecer que Hayek, mentor do neoliberalismo,
qual se vê como parte do mercado e, portanto, competindo com visitou o Chile durante a ditadura militar de Pinochet e, em
seus semelhantes pelo seu próprio sucesso, que só dependeria carta ao The Times (Selwyn, 2015), afirma não ter conhecido
dele mesmo. Empurrado pelas alteraçóes-~~s regras das relações nenhum chileno que houvesse dito que sob Pinochet havia
trabalhistas, o livre mercado passa a ser â única possibilidade menos iiberdade do que sob Allencle~ o presidente deposto pelo
de que ele exercite a sua "liberdade" de ser bem-sucedido - em sangrento golpe militar.
confronto com seus semelhantes - sem interferências do Estado Para Hayek a democracia é um meio e não um fim. Ele sepa-
(e dos sindicatos). Ao eliminar direitos sociais, transformando- ra o liberalismo econômico da democracia. A democracia é de-
-os em "serviços a serem adquiridos", o neoliberalismo derruba a sejável para o liberalismo, mas não é uma condição necessária.
proteção social, que tornou o trabalhador mais exigente (e mais Selwyn (2015) afirma que:
caro) frente ao empresário - exatamente por contar com prote-
Hayek influenciou Margaret Thatcher e, através dela, muitos políticos
ção social do Estado (p. ex. saúde, educação, previdência, leis e ideólogos do partido conservador contemporâneos, incluindo os que
trabalhistas). Desprotegido, o trabalhador acaba por ser obriga- estavam à frente do atual Partido Conservador na Grã-Bretanha. Em
do a aceitar as imposições do mercado. 12 outra carta ao The Times intitulada 'os perigos para a liberdade pessoal',
ele endossou Thatcher reafirmando que o mercado é 'indispensável
Em segundo lugar, não acreditamos que uma solução para para a liberdade individual', enquanto a urna 'não é'. (p. 1)
este novo patamar de contradições sociais esteja à vista pela
via da conciliação de classes (proposta pela coalizão do PT). Ele também esteve três vezes no Brasil no período de 1977 a
Também não vemos razão para imaginar que a era econômica 1981, durante a nossa ditadura civil-militar, a convite da antiga
neoliberal, ou mesmo a política da "nova direita", possa estar revista Visdo, editada por Henry Maksoud, 13 que também
chegando ao seu final. Pode ser que, para amenizar os horrores participava da sociedade de Hayek. 14
do neoliberalismo, o capitalismo seja obrigado a alternar etapas,
13
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_HayekHayek_no_Brasib. Aces-
12 sado em 3 de agosto de 2018.
Isso, associado às alterações tecnológicas no interior da produção e à guerra con- 14
tra as centrais sindicais e movimentos sociais, compõe o cenário de contraposi- Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_Mont_Pelerin>. Acessado em 3
de agosto de 2018.
ção à queda nas taxas de acumulação de riqueza.

24 25
Assim, os refundadores do liberalismo econômico apoiaram ao livre mercado (base da "liberdade"), justifica-se a "legítima
a ditadura chilena: Friedman assessorou o governo do Chile no defesà', reiterando-se que os fins justificam os meios.
combate à inflação, mas manteve uma postura mais distante, Não que este pensamento seja exatamente uma surpresa, pois,
embora tenha sido criticado por isto publicamente, enquanto neste sentido, não há diferença alguma entre o golpe militar ocor-
que Buchanan e Hayek - este último um entusiasta do regime rido em 1964 e o golpe jurídico-parlamentar de 2016, em quepe-
chileno - deram apoio consistente à ditadura, e saíram ilesos da sem as condições econômicas e os meios utilizados pela "velha di-
crítica (MacLean, 2017, p. 155-156). reita" terem sido diferentes. Provavelmente o que choca é a defesa
Esta é a face autoritária da "nova direita" neoliberal que foi explícita e aberta destas teses de maneira organizada e militante,
deixada de lado nos últimos anos pela política de esquerda, e formando uma frente jurídica, parlamentar e midiática em defesa
pode ser um fator importante para se entender ós recentes acon- delas e que não hesita em fazer uso de recursos jurídicos ilícitos
tecimentos no Brasil pós-2014. (lawfare) contra quem considere ser seu inimigo. A insegurança
Dessa forma, compreende-se que estes -defensores do jurídica torna-se mecanismo de censura e ameaça difusa, perpas-
liberalismo econômico abram mão dã democracia para garantir sando toda a sociedade, em um_processo crescente de "judicializa-
o que conceituam como "liberdade", legitimando golpes militares ção" da vida social, em substituição à própria política.
e/ou jurídico-parlamentares-institucionais. Compreende-se, tam- Além do lawfare, a atuação destas forças inclui: limitar ou
bém, o motivo da violência política estar colocada na ordem do dificultar o voto do cidadão, ou pelo seu oposto, facilitar para
dia como forma de barrar as teses de qualquer movimento que que o cidadão não se manifeste nas eleições (voto não obriga-
envolva minimamente algum tipo de planejamento econômico tório, por exemplo); impedir os processos de organização social
com algum papel relevante do Estado. O Estado é visto como dos mais desfavorecidos; não transferir impostos para os menos
algo que atrapalha a liberdade individual de competir ao olhar favorecidos e barrar os processos de redistribuição de renda; des-
para o bem-estar do coletivo. truir a organização dos trabalhadores, a atuação dos sindicatos e
Mas o mais grave é que a "nova direita" radical avançou para um confederações; destruir a atuação e organização dos movimentos
entendimento que seria considerado, até pouco tempo, desprovido que lutam pelos direitos humanos; atuar contra os imigrantes e
de ética: os fins justificam os meios. E talvez seja exatamente esta a contra ações de preservação do meio ambiente; desregulamentar
sua característica atual marcante: não importam os meios quando· a atuação das corporações; privatizar tudo que for possível; pro-
se trata de defender o livre mercado que, segundo eles, funda a por formas de proteção constitucional quase que irrevogáveis,
liberdade pessoal e social. E se é para tal, a subjetividade neoliberal que evitem o impacto de eventuais decisões contrárias ao livre
fica em paz com golpes de Estado e golpes institucionais. mercado, entre outras. Tudo isso em alto e bom som. 15
Esta forma de pensar se espraia por vários espaços: atinge os
políticos nos Congressos Nacionais e nas Assembleias, os no-
15
Não temos como considerar aqui outro fator que recai dramaticamente sobre a
vos partidos políticos, membros do Judiciário e outros órgãos de autonomia dos Estados nacionais, oriundo da configuração da sua dívida públi-
controle e a mídia, fortalecendo a lógica de que, frente à agressão ca, que os torna reféns do rentismo. Sobre isso ver Dowbor (2017).

26 27
~
Neste quadro, é compreensível que movimentos destinados qualidade, sendo barrados em sucessivos testes; os professores de
a cercear a liberdade docente como o "Escola sem Partido" menor qualidade devem sucumbir aos de maior qualidade, sen-
(Ação Educativa, 2016) estejam simultaneamente presentes do demitidos. Tal como na "empresa", os processos educativos
à implementação acelerada das reformas constitucionais e têm que ser "padronizados" e subn1etidos a "controle".
do Estado, após 2016, incluindo a reforma da educação, com No plano social não é diferente: os desfavorecidos devem ser
autoria e financiamentó empresarial. 16 Tais iniciativas têm uma confrontados com sua condição ou perecer, pois não é justo que
mesma origem ideológica: o neoliberalismo, nos termos de J. o "gangsterismo" do Estado, retirando dos mais ricos que hones-
Buchanan e de Hayek (2010) e Mises (2010) - uma verdadeira tamente enriqueceram, opere qualquer processo de redistribui-
paranoia ideológica que enxerga "esquerdismo" e "comunismo" ção de renda: "devem ser- tratados como animais que não têm
em tudo que cheire à defesa dos interesses populares pelo Estado, independência" (Buchanan, 2005).
flertando com o fascismo e com o "darwinismo social". _ Nestas condições, a educação está sendo sequestrada pelo
E esta é uma razão que deveria ser sufi_çiente para nos afas- empresariado para atender a seus-objetivos de disputa ideológi-
tarmos dessas concepções de sociedade (e de educação), mes- ca. A educação, vista como um "serviço" que se adquire, e não
mo que os resultados acadêmicos de suas políticas educacionais mais como um direito, deve ser afastada do Estado, o que justi-
viessem a ser eficazes: tendo assumido tal darwinismo social no fica a sua privatização. Do ponto de vista ideológico, a privati-
âmbito da sociedade, justificando-o pela sobrevivência do indi- zação também propicia um maior controle político do aparato
víduo mais forte na concorrência do livre mercado, quer agora escolar, agora visto como "empresa", aliado à padronização pro-
levá-lo para as escolas e disputar a hegemonia na formação da movida pelas bases nacionais comuns curriculares e pela ação do
juventude dentro de sua lógica. Para esta vertente, se o mun- movimento "escola sem partido", este último, um braço político
do é pautado pela concorrência, há que se preparar as crianças da "nova" direita na escola.
para "competir" nele, tal como ele é. Nenhuma perspectiva de No campo técnico, a reforma permite o alinhamento da es-
humanização ou transformação social é agregada aos processos cola às necessidades dos novos processos produtivos, coordena-
educativos, daí seu caráter reacionário e conservador. do pela OCDE e agências internacionais, visando a inserção das
É esta visão social que também embasa as "soluções" propos- cadeias produtivas nacionais na lógica das cadeias internacio-
tas pela engenharia da reforma empresarial na educação. Pen- nais, o que exige um alinhamento com as necessidades da Revo-
sando a escola corno uma "empresa", as escolas de menor quali- lução Industrial 4.0 e as reformas que ela demanda. 17
dade devem sucumbir às de maior qualidade, sendo fechadas; os Temos, em breve síntese, as origens e objetivos da reforma
estudantes de menor desempenho devem sucumbir aos de maior empresarial da educação sobre os quais precisamos nos debruçar
e aprofundar estudos para organizar a resistência. Importa
dizer desde já que o fato da reforma ter origem no processo de
16 Avelar e Balt (2017) mapeiam o grau de influência do empresariado e suas or-
ganizações na definição da base nacional comum curricular da educação básica
17
brasileira. Veja também Bascos (2018) e Libâneo e Freitas (2018).

28 29
F'

consolidação da "nova direita" não significa que ela encontre OS NOVOS "REFORMADORES"
apoio apenas em seus formuladores originais. Voltaremos a isso.
Por ora, devemos apenas ressaltar que, apesar do enfrentamento
a estas ideias representado pelo "desenvolvimentismo"
implementado pela coalizão do PT, não podemos deixar
de levar em conta que se nos basearmos no que se fez para
defender a "educação pública de gestão pública" dos ataques do
liberalismo e da reforma empresarial da educação neste recente
período que se encerrou em 2016 sob a coalizão do PT, vamos
ver que - 1nesmo na hipótese de Bresser-Pereira estar certo
quanto ao fim do neoliberalismo, e mesmo que fosse possível a
continuidade de um governo baseado no desenvolvimentismo - O neoliberalismo olha para a educação a partir de sua concep-
ainda assim haveria alta probabilidade de que continuássemos ção de sociedade baseada emum livre mercado cuja própria lógica
com dificuldades para nos opormos às ideias difundidas pela produz o avanço social com qualidade, depurando a ineficiência
reforma empresarial da educação e defendermos uma "educação através da concorrência. Segundo essa visão, a generalização desta
pública de gestão pública", exatamente porque ela não se limita concepção para todas as atividades do Estado produzirá uma so-
à "nova direita" - seu estágio mais desenvolvido, objetivo desta ciedade melhor. Os cidadãos estão igualmente inseridos nessa ló-
análise inicial. gica e seu esforço (mérito) define sua posição social. É dessa visão
de mundo que advêm as finalidades que ele atribui à educação.
O modelo fundamental das relações humanas nessa sociedade
é o "empreendimento" que expressa o "empreendedorismo" dos
seres humanos, constituindo a fonte de liberdade pessoal e social
e cuja organização mais desenvolvida é a "empresa".
Com tal concepção, o Estado é o principal inimigo da geração
da qualidade social, pois é um mau gestor (Schuler, 2017) e impe-
de o funcionamento da lógica do mercado, devendo, portanto, ser
reduzido a um mínimo e - mais importante - sem possibilidade
de interferir no mercado, o que atrapalharia sua lógica natural.
Considerando esses fundamentos, a fronteira de eficiência do
sistema educacional seria atingida quando a atividade educacio-
nal estivesse sob controle empresarial concorrendo em um livre
mercado, sem intervenção do Estado. Nisso consiste o modelo

30 31
pr---
final pensado para a educação (e outras áreas sociais) pela "nova Não incomoda o neoliberal se o sistema público remanes-
direita" neoliberal. Essa é sua proposta mais desenvolvida e serve cente for dedicado a atender aqueles pais que "fraca~saram" na
para ela como um ponto de referência. ' vida. Novamente, é uma questão de mérito. O Estado nesse
Nesse modelo, pais portadores de vouchers distribuídos pelo caso faz uma operação de resgate para evitar o pior - no entan-
Estado "escolhem" ·no mercado as escolas de seus filhos, consi- to, sem intervir no mercado educacional.
derando a qualidade que elas oferecem, a qual é certificada por Esse é o cenário mais desenvolvido. Nele não há necessidade
avaliações nacionais (Friedman, 1955; Chubb & Moe, 1990). de que nos preocupemos com a organização em si das escolas,
Os pais deixam de ser "usuários" de um serviço público e pas- qualificação de professores, condições de funcionamento e
sam a ser "clientes" de empresas educacionais às quais pagam outras. O mercado, através 9-a concorrência, vai moldando (e
com os vouchers recebidos. precificando) cada proposta -feita pelas empresas educacionais
Há um patamar básico de contratação de escolas coberto e cuida das condições de qualificação e oferta. Nesse caso, as
pelo voucher distribuído pelo governo,-mas os pais podem colo- provedoras de educação priva~á são empresas, em si mesmas
car mais dinheiro de seu próprio orçamento se entenderem que operando com os procedimentos típicos da organização
querem uma escola de melhor qualidade (e mais cara). Isso é vis- empresarial. Quem não o fizer vai à falência e é eliminado do
to como algo "natural" já que os pais diferem entre si quanto ao mercado. Assim, é o mercado que faz a depuração da qualidade,
mérito acumulado, sendo essa "diferença" fundamental para se pois escolas de pouca qu;ilidade não serão "escolhidas" pelos
motivar o progresso da sociedade. Uma intervenção do Estado pais e irão à falência como qualquer empresa.
destinada a eliminar essa diferença é vista como algo indevido Mas esse é o cenário final. No entanto, há que se chegar
que desestimula a busca pelo mérito pessoal, sendo ainda uma a ele partindo da realidade atual, e aí entram em jogo outras
injustiça com aquele que se "esforçou". formulações. Onde é possível uma opção imediata pelos vou-
A qualidade da escola, portanto, é uma mercadoria que está chers, esta é a preferida, pois insere de forma rápida a educa-
disponível em vários níveis e que pode ser "comprada" pelos ção no mercado, fora da rede pública. No entanto, o que se
pais. Compete ao Estado apenas garantir o básico para o cida- tem hoje, na maior parte, é um sistema educacional com es-
dão, expresso no valor do voucher. colas inseridas em redes públicas que funcionam "protegidas"
Preferencialmente não deve haver sistema público de educa.,; do mercado. Daí serem, segundo o neoliberalismo, ineficazes.
ção, mas se houver ainda alguma estrutura, ela é mais uma com- Aumentar sua qualidade dependeria de se criar uma estratégia
petidora nesse mercado, portanto, sua própria qualid_ade, segun- de inserção destas redes na lógica do mercado descrita ante-
do este pensamento, melhora pela concorrência.1 riormente. No caso de não se poder instalar diretamente os
vouchers, resta desenvolver a privatização_ por dentro das redes
1
As experiências, como veremos mais adiante, mostram, no entanto, que as esco- de ensino, ou combinar as duas estratégias.
las públicas que permanecem transformam-se em "guetos" acolhendo a pobreza
extrema desestruturada e os que não se enquadram nas exigências das escolas de O procedimento mais geral consiste em· introduzir, em al-
mainr qualidade. gum grau, os parâmetros de funcionamento de uma empresa

32 33
no interior do serviço público, criar ferramentas de aferição e
alimenta a certeza dos reformadores com este caminho não
certificação da qualidade (externamente às escolas), dar visibi-
são os dados científicos de uma eventual "política pública com
lidade das avaliações na mídia e condicionar os recursos hoje
evidência", mas a crença de que se o método funciona corri as
disponíveis a metas de aumento da qualidade das redes e das
empresas, também funcionará com as escolas (Castro, 2011).
escolas. Para tal, deve-se estabelecer um processo de alinha-
É crença nas teses do liberalismo e na dinâmica empresarial, e
mento das atividades das escolas com os resultados esperados,
não "ciência".
em uma dinâmica que imite, pelo menos, a lógica de funcio-
Duas ferramentas que mostram como as redes públicas
namento empresarial. Isso implica dispor de informações ao
caminham em direção à privatização total podem ser encontradas;
nível das escolas para que se possa estabelecer algum grau de
a Network for Public Education criada nos Estados Unidos para
planejamento (e pressão sobre cada uma delas).
resistir ao neoliberalismo na educação juntamente com a Schott
Criada a dinâmica, as escolas que não conseguem atingir
Foundation for Public Education (2018) possuem uma ferramenta
a meta de qualidade são a.companhadas - para novamente
que indica como os estados americanos estão incorporando
introduzir mais formas de operação típicàs das e.r:npresas, por
a lógica p.rivatista. O mesmo pode· sei ew::ontrado no Brasil
exemplo, reestruturação com demissão dos profissionais, bônus
com uma ferramenta disponibilizada pelo Grupo de Estudos e
por mérito ou pagamento por valor agregado, uso de consultorias
Pesquisas em Política Educacional (Greppe) (2018) - um grupo
privadas - e, no caso de não reagirem positivamente aumentando
de pesquisa interinstitucional com sede na Unicamp.
sua qualidade, devem ser 1) fechadas e seus alunos transferidos
Entender os objetivos finais desse processo e os meios de
para outras escolas públicas mais eficazes; 2) terceirizadas para
destruição da escola pública que são postos em marcha é
empresas privadas que operam escolas públicas; ou 3) uma
fundamental para que se possa organizar a resistência.
combinação entre terceirização e vouchers.
Numa tentativa de elencar as posições que repercutem
Estas ações são fundamentais para, em primeiro lugar, criar
esse movhnento, reunimos três denominações que podem ser
um mercado inicial através de terceirização das escolas públi-
encontradas no âmbito da política educacional. Uma, vinda da
cas - visando a constituição do futuro mercado de vouchers
tradição estadunidense, o denomina de "reforma empresarial"
- e, em segundo lugar, colocar em prática um processo de des-
(Ravitch, 2011). A outra é uma formulação que procura ressaltar
truição das redes públicas pela transferência dos recursos pú-
sua amplitude internacional-;chamando-o de Movimento Global
blicos para as empresas terceirizadas contratadas para operar
da Reforma Educacional (Sahlberg, 2011). Há ainda uma
escolas públicas, subfinanciando as públicas e derrubando sua
terceira denominação advinda do campo da gestão, que chama
qualidade.
este movimento de "nova gestão pública" (Ball & Youdell, 2007;
Dessa forma, as redes públicas vão sendo colocadas em um
Verger & Normand, 2015).
"vetor de privatização", no qual elas podem ser vistas como
Há alguma dificuldade para se configurar a política
mais distantes ou mais próximas de seu estágio final de pri-
educacional da "nova direita" que advém de sua própria natureza
vatização e inserção em um livre mercado educacional. O que
fluida e multifacetada, abrangendo diferentes temáticas

34
35
,,,.
educacionais de forma interativa, movendo-se em uma massa de defesa do livre mercado e pelas ideias de "escolha da escola" de
dados quantitativos que procura dar legitimidade a uma série de Milton Friedman (Friedman, 1955), 6 membro do grupo neoli-
".receitas" práticas aparentemente isoladas. 2 beral estadunidense que tinha como braço político-ideológico
Essa característica mutante advém de seus próprios funda- James Buchanan e financiamento dos irmãos Koch, entre ou-
mentos. Referindo-se à busca incessante do neoliberalismo por tros, como vimos. Nos Estados Unidos, a aplicação desses prin-
uma economia de mercado ideal, Bresser Pereira escreve: cípios na educação teve sua estreia formaF no estado do Texas
A fim de aumentar a competitividade externa de um país e reduzir com G. W. Bush- usado como "exemplo de sucesso" para gene-
a carga tributária, os neoliberais estão permanentemente envolvidos ralizá-la no país posteriormente.
em reformas que nunca terminam, porque a complexidade do capita- A educação é isolada dos seus vínculos sociais e passa a ser
lismo contemporâneo exige maior regulação por parte do Estado, e
os neoliberais não reconhecem essa restrição estrutural [...] Os ideólo-
vista como uma questão puramente de gestão. Imaginando
gos neoliberais estão sempre exigindo novas 'reformas' que finalmente "consertar" as escolas pela sua inserção no livre mercado e com
- prometem - transformarão uma economia em economia de mercado propostas restritas às variáveis intraescolares, secundarizam a
'ideal'. (Bresser Pereira, 2017, p. 699, grifos meus) importância das variáveis extraescolares, entre elas o impacto
Este também é o espírito das intermináveis reformas propos- das condições de vida das crianças na sua educação. Tal postu-
tas pelo neoliberalismo para a área da educação, sempre em bus- ra advém da recusa de levar em conta restrições estruturais no
ca de um sistema de educação "ideal" 3 que nunca funciona4 e processo educativo e da concepção depreciativa que o neolibe-
está sempre dependente de novas reformas. Este sistema ideal ralismo tem do serviço público e do magistério, que se expressa
nada mais é do que o estabelecimento de um padrão hipotéti- no desejo de "tornar o professor (e a escola) o único responsá-
co5 de se fazer a educação puxado, em última instância, pela vel" pela aprendizagem e uma vez tendo identificado "o respon-
sável", promover políticas de "responsabilização verticalizadas"
2
Veja-se um dos primeiros documentos que sintetizaram as propostas da reforma como forma de pressioná-lo. No entanto, como bem resume Di
empresarial no Brasil e que pode ser encontrado em: <https://issüu.com/ Cario (2010):
casadosaber/does/ a_transforma__ o_ da_ qualidade_ da_ educa__ o_no _ brasi>
feito por sete fundações e ONGs em 2010 (Parceiros da Educação, 2010). Em
2011 passou a orientar a educação do Estado de São Paulo.
3 Um ponto alto do delírio neoliberal na busca por um "sistema ideal" é a Lei predizer que "o PIB do Brasil pode crescer 751% até 2095 se o país der um salto
No Chi/d Left Behind nos Estados Unidos, implantada em 2002, na qual em educação" (Caieiro, 2015). Em outro estudo afirmou que "substituir 5% a
eles chegaram a determinar que no ano de 2014 todas as crianças e jovens 8% dos professores de baixo desempenho por professores de desempenho médio
estadunidenses fossem proficientes em Leitura e Matemática. Um rotundo poderia aproximar os EUA do topo dos rankings internacionais de Matemática
fracasso. Assim como não reconhecem restrições estruturais na economia, e Ciências, gerando um valor de US $ 100 trilhões". Para tal, seria necessário
também não reconhecem restrições estruturais na educação; "universalizar a matrícula no Ensino Médio e ter um nível de 'habilidades
4
Veremos o próprio caso estadunidense mais adiante. Veja-se também o caso do básicas' para todos os estudantes" (Horn, 2011).
6
Estado de São Paulo que está há quinze anos envolvido com tais reformas sem Confira também em Ravitch (2011, p. 134/5).
7
resultados. Embora suas primeiras manifestações datem de 1983, com a elaboração de um
5 Bem conhecidas são as peripécias de Eric Hanushek e seu ferramental relatório chamado A Natíon at Risk. Para uma análise detalhada desta evolução,
"hi1-1v,ético-dc:dutivo". Em um estudo que coordenou para a OCDE, -:-hegou a ver B~stos (2018, p. 136-144).

36 37
Ili'

[... ] no cenário geral [da pesquisa], cerca de 60% dos resultados educacional como principal fonte de mudança"; e) "políticas de
do desempenho são explicados pelas características básicas responsabilização baseadas em testes" que envolvem "processos
do estudante e da família (a maioria não é observável, mas de credenciamento, promoção, inspeção e, ainda, recompensa
provavelmente pertence à variável renda/pobreza). Os fatores de
escolaridade observáveis e inobserváveis explicam cerca de 20%,
ou punição de escolas e professores"; e finalmente f) um "maior
sendo a maior parte (10-15%) efeitos do professor. O resto da controle da escola com uma ideologia baseada no livre mercado"
variação (cerca de 20%) é inexplicável (erro). Em outras palavras, que expandiu a escolha da escola pelos pais e a terceirização.
embora as estimativas precisas variem, a preponderância das A expansão desse padrão de se pensar e fazer educação, seja
evidências mostra que as diferenças de desempenho entre os
dentro de um país, seja ao redor do mundo, num cenário de
estudantes são predominantemente atribuíveis a fatores fora das
escolas e salas de aula (Hanushek et ai., 1998; Rockoff, 2003; globalização rentista e tecnológica, permitiu criar "escala de
Goldhaber et ai. 1999; Rowan et ai., 2002; Nye et ai., 2004). operação", tornando os processos educativos mais atrativos
Agora, para ser claro: isso não significa que os professores não aos investimentos transnacionais, à atuação de_ indústrias e
sejam realmente importantes, nem que o aumento da qualidade do
prestadoras de serviço dos países centrais, que podem ampliar sua -
9
professor só possa gerar pequenas _melhorias. (p.
operação também na periferia do sistema - reproduzindo o ciclo
Este movimento de reforma da educação concebe a mudança de colonização científica, cultural e tecnológica. Não por acaso,
como um fenômeno que, uma vez adotado no centro, se difunde seu motor está localizado na Organização para Cooperação
via gestão para todos os níveis dos sistemas de ensino, até chegar e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e em órgãos de
no professor e no estudante - um movimento que tem sido cha- financiamento internacional (BIRD e Banco Mundial).
mado de top-down - de cima para baixo. Outra denominação deste movimento é proposta por Diane
Há várias denominações para o processo. Sahlberg (2011, Ravitch (2013): "reforma empresarial" (corporate reform). Ela
p. 177-179) o chama de Movimento Global da Reforma usa criticamente o termo "reforma" e define seu significado:
Educacional. 8 Com este nome, capta sua expansão mundial
'Reforma' realmente não é um bom nome, porque os defensores dessa
e elenca as seguintes características: "a) padronização da causa não procuram reformar a educação pública, mas transformá-la
e na educação"; b) ênfase no ensino de "conhecimentos e em um setor empreendedor da economia. Os grupos e indivíduos
habilidades básicas dos alunos em Leitura, Matemática e que constituem o movimento de reforma de hoje se apropriaram da
palavra 'reforma' porque tem conotações positivas no discurso político
Ciências Naturais, tomados como principais alvos e índices
americano e na história americana. Mas as raízes desse movimento
de reformas educacionais"; e) ensino voltado para "resultados de reforma podem ser atribuídas a uma ideologia radical que tem
predeterminados, ou seja, para a busca de formas seguras e de uma desconfiança fundamental em relação à educação pública e uma
baixo risco para atingir as metas de aprendizagem", o que afeta hostilidade ao setor público em geral. O movimento de 'reforma' é
na verdade um movimento de 'reforma empresarial', financiado em
a criatividade das crianças e a autonomia dos professores; d) grande parte por grandes fundações, gerentes de fundos hedge de
"transferência de inovação do mundo empresarial para o mundo Wall Street, empreendedores e o Departamento de Educação dos
EUA. O movimento está determinado a cortar custos e maximizar a
concorrência entre escolas e entre professores. (Ravitch, 2013, p. 19)
8
Global Educational Reforro Movement (GERM).

39
38
Alguns preferem denominar este movimento de "nova portanto, mais visível em todas as suas formas. 10 A importância
gestão pública" (Verger & Normand, 2015). Discutiremos, de se conhecer o mais desenvolvido está em que, a partir dele,
mais adiante, as restrições que temos a essa denominação, pois pode-se observar melhor a sua dinâmica, constituição e formas
como assinalam Verger e Normand (p. 601): "O programa da que o caracterizam. Isso, no entanto, não implica afirmar que tais
Nova Gestão Pública não implica uma retirada do Estado do aspectos se repetirão de maneira idêntica em outros países, pois
âmbito dos serviços públicos, mas supõe repensar as funções tais processos são imersos em contradições locais e resistência.
governamentais da gestão destes serviços." Porém, essa não é a Examinando a experiência estadunidense, nota-se que apesar
proposta dos neoliberais que está na origem deste movimento. da vinculação da reforma empresarial da educação aos refunda-
Eles não pensam em reposicionar a gestão estatal, mas em dores do liberalismo, os "reformadores" operam cm redes difusas
eliminá-la, instaurando um mercado empreendedor na área. de influência, construindo alianças mais amplas com acadêmi-
Seu propósito é destruir a "educação pública de gestão pública" cos, grandes empresários, !"entistas e suas fundações, 11 políricos
e não apenas redefini-la - pelo menos como objetivo final. Os no interior de instâncias l~gislativas 12 e do governo, institutos,
neoliberais querem o Estado apenas como provedor de recursos centros e organizações sociais, indústria educacional e a mídia,
públicos, não como gestor. imersos no tecido social, construindo a legitimação de sua con-
Nesta última denominação, incluímos aqueles que cepção de sociedade e de educação. Um recente estudo de Avelar
divergem do radicalismo neoliberal e desejam uma "reforma e Bali (2017) mostra como no Brasil a reforma se constrói por
do Estado", como propõe Bresser-Pereira, alguns setores da meio dessas redes de alianças.
social-democracia e a terceira via (Chaui, 1999) - que têm Do ponto de vista das finalidades da educação, embora nem
como horizonte o fortalecimento do terceiro setor (organizações sempre explícitas, os reformadores visam a implementação de
sociais e regulação). reformas educacionais para, por um lado, garantir o domínio de
O movimento da reforma empresarial da educação (termo
pelo qual optamos) desenvolveu-se nas últimas décadas em 10
Na verdade, como se viu anteriormente, da mesma forma que os Estados
escala mundial, mas pelo menos dois países planejaram sua Unidos abrigaram o desenvolvimento do neoliberalismo que se manifestou com
Reagan, também este movimento apareceu na Inglaterra com Thatcher. Embora
educação com base nele e de forma mais extensa - Estados um exame da realidade inglesa não faça parte deste estudo, não consta que a
Unidos da América e Chile9 - tornando-se locais privilegiados Inglaterra tenha tido mais sorte do que os Estados Unidos com estas políticas
para se encontrar esse fenômeno de maneira mais desenvolvida e, educacionais decorrentes do neoliberalismo, nem mesmo com o aparecimento
do "New Labor" com Tony Blair e a sua terceira via, que se seguiu a Thatcher
(Power & Gewirtz, 2001). Uma análise da experiência mexicana também está
disponível em Villarreal, Ferreiro, & Mendoza, 2018.
11
A filantropia é peça-chave na propaganda e no financiamento da privatização da
9 No Chile, os "Chicagos boys" (economistas treinados na Universidade de
educação.
Chicago) tiveram papel relevante no planejamento econômico da ditadura de 12
No Brasil se articulam em torno das Comissões de Educação do Senado e da
Pinochet, que se constituiu em um experimento neoliberal. Buchanan foi um
Câmara e também cm Frentes Legislativas. Nos Estados Unidos a American
dos que contribuiu para a redação da nova Constituição da ditadura chilena
Legislative Exchange Council (Alec) produz "modelos de leis" para as
(Monbio~. 2017). Assemh!eias Legislativas dos estados votarem (MacLe::.::., 2017, p, XIX).

40 41
competências e habilidades básicas necessárias para a atividade guns destes são contra a privatização e outros aderem às pro-
econômica revolucionada pelas novas tecnologias e processos de postas de privatização por "concessão de escolas à iniciativa
trabalho (Revolução 4.0) e, por outro, garantir que tal iniciativa privada", por meio de processos mistos de gestão. E há os que
se contenha dentro da sua visão de mundo que se traduz em um defendem a privatização neoliberal, envolvendo a criação de
status quo modernizado. O objetivo final deste movimento é a um livre mercado concorrencial na área da educação, ancorado
retirada da educação do âmbito do "direito social" e sua inser- nas ideias de Milton Friedman (Friedman, 1955), influencia-
ção c01no "serviço" no interior do livre mercado, coerentemen- do pelas teses de F. A. Hayek. Também existem os que se de-
te com sua concepção de sociedade e de Estado. Em passagem claram apolíticos e acabam sendo capturados, na prática, por
pelo Brasil, Eric Hanushek (2018), do conservador think tank uma dessas posições. A. hegemonia de nma ou de outra dessas
americano Hoover Institution, conhecido apoiador da reforma posições varia na dependência das redes locais de influência.
empresarial estadunidense, afirmou: No Brasil essas ideias se agrupam de várias formas, uma delas
como um movi1nento pretensamente "apolítico" sob o manto
Com a introdução da inteligência artificial; autómaçâo e robôs, a
economia está mudando mais rapidamente do que V'imos no passa- de serem "todos pela educação" (Martins, 2016).
do. Diante desse cenário, a importância da _Educação de qualidade Essa atividade difusa que os reformadores desenvolvem é vi-
torna-se muito mais importante. As pessoas que se ajustarem a essas tal para que estabeleçam a hegemonia das suas concepções e
mudanças e se adaptarem às novas indústrias serão as 'vencedoras'.
também para viabilizar a "construção" de um mercado educa-
Por outro lado, aquelas que estão presas aos velhos empregos serão as
'perdedoras econômicas' do futuro. É essencial que os jovens atuals cional inicial, onde não exista. Como corretamente afirma Har-
desenvolvam as habilidades necessárias para essa economia em rápi- vey (2007), no desenvolvimento do neoliberalismo:
da mudança. Em outras palavras, se no futuro o Brasil tiver apenas
[...] se os mercados não existirem (em áreas como terra, água, edu-
esses trabalhadores insuficientes, sem essas habilidades cognitivas
cação, saúde, seguridade social ou poluição ambiental) então eles
necessárias, será muito difícil para a economia brasileira crescer e
devem ser criados, pela ação do Estado se necessário. Mas além desta
acompanhar o resto do mundo.
tarefa, o Estado não deve aventurar-se. A intervenção nos mercados
É preciso considerar que, embora com origem na direita (uma vez criados) deve ser mantida em um mínimo [...] (p. 118).
neoliberal estadunidense, este movimento não se esgota nela. No entanto, mapear a forma rizomática como este movimen-
Esta é a sua forma mais desenvolvida. No entanto, ela se es- to constrói sua hegemonía não explica as próprias categorias que
praia para posições de centro-direita, liberais e até de centro- dão conteúdo a ela. Para entendermos como essa máquina apoia-
-esquerda. Do ponto de vista ideológico, o movimento pela da em posições políticas diversas gera um vetor em direção à pri-
reforma empresarial da escola não é um bloco homogêneo. vatização e ao livre mercado na educação, é necessário encontrar
Ele se soma a outras posições políticas que taticamente lhe são suas categorias explicativas fundamentais e desvendar sua dinâ-
úteis para chegar a seus fins. ·Há liberais-democratas e sociais- mica, questão à qual voltaremos.
-democratas cuja aspiração sincera é ter unia escola pública De imediato, basta reforçar que, a despeito destas várias
que garanta o "direito à aprendizagem" e ensine a todos: al- intencionalidades, esse movimento não só tem sido capturado

42 43
r
pela lógica neoliberal centrada na "empresa" como modelo social Para estudarmos esse movimento, acreditamos ser útil que
como também vê nele uma oportunidade de investimento que nossa abordagem leve em conta as concepções de sociedade14 e
faz girar a roda do lucro desde pequenos negócios até grandes educação (enquanto finalidades da educação) postas pelo
corporações, subordinando os objetivos da educação, mesmo liberalismo econômico e sua reforma educacional, por um lado,
a despeito dos bem intencionados, aos interesses hegemónicos e por outro> que explicite as categorias mobilizadas na dinâmica
de administradores de fundos de investimento (Galzerano, de sua legitimação (econômicas e culturais) e que constroem o
2016; Kenji, 2018; Ravitch, 2013) e das necessidades do caminho da inserção da educação no livre mercado.
campo empresarial, acuado pelas demandas dos trabalhadores Associando-se essas duas esferas de análise, nos obrigamos
e pelas transformações nos processos produtivos (Hanushek, a analisar e entender a dinâmica constitutiva da reforma e sua
2018), as quais são dissimuladas na expressão "competências e finalidade, bem com a sair do âmbito da crítica e pensar as
habilidades para o século XXI". direções de superação da proposta neoliberal - pelo menos no
Tendo como intencionalidade última produzir a melhoria âmbito da resistência a ela.
da qualidade da educação por meio da concorrência entre O presente texto é uma tentativa de apontar nessa direção;
escolas e entre professores em um livre mercado, desenvolveu contudo, é um trabalho que exige a junção de pesquisadores e
um "conceito de qualidade da educação" que implica o grupos de pesquisa que examinem, às vezes isoladamente e às
afastamento do governo da gestão da educação (ainda vezes conjuntamente, os variados aspectos da reforma empre-
que não de seu financiamento), como forma de permitir a sarial. É uma tarefa, portanto, coletiva, que envolve profissio-
operação da livre iniciativa educacional dentro das regras nais de vários campos.
do mercado (e não dos governos). 13 É surpreendente que se Nos limites deste estudo, em partes anteriores, acreditamos
tenha justificado essa abordagem com a afirmação de que ela ter fornecido, ainda que de forma limitada, o entendimento
diminuiria a segregação escolar, quando o fato de se lançar a de sociedade e de educação que subjaz à reforma. No que
educação (escolas, professores e estudantes) em uma espécie resta dele, procuraremos, como primeiro passo, justificar a
de "darwinismo social" somente poderia, como aconteceu, nossa preferência por chamarmos esse movimento de reforma
vir a agravar os processos de segregação - produto da própria empresarial da educação (Ravitch, 2011), nome decorrente
concepção meritocrática que está na base do neoliberalismo. da tradição da resistência estadunidense. Como se verá, isso
não é trivial. Em seguida, vamos sugerir um conjunto de
categorias (e sua dinâmicà) numa. tentativa de desvendar
13
alguns de seus mecanismos de legitimação. Procuraremos
Este processo possui uma ampla variedade de formas de privatizac;:ão que vão
desde assessorias, privatização de serviços de apoio, parcerias público-privadas,
14
terceirização de escolas, modalidades de "vouchers", aquisição de sistemas de en- Pela discussão das finalidades da educação, inevitavelmente estaremos discutin-
sino e materiais didáticos entre outras. Um levantamento destas formas pode ser do a atual forma de organização social sob o capitalismo (a exploração institucio-
encontrado em Ball & Youdell (2007). No entanto, as modalidades de vouchers nalizada, a precarização do trabalho, suas consequências sociais) e suas formas
é- '!""' instituem o verdadeiro livre mercado. de superação.

44 45
.
'i,

discutir, simultaneamente, os dados disponíveis que apontam Gewirtz, 2001), especialmente em países que já estão há mais
os problemas já visíveis na experiência da refor.ma empresarial tempo lidando com esse movimento, mas significa reconhecer
da educação, principalmente a estadunidense, e que, em nossa que tais categorias, por si, não são suficientes para explicar a
opinião, inviabilizam eticamente sua implementação no Brasil constituição e dinâmica desse movimento.
como política pública. A reforma constrói diferentes caminhos para se tornar hege-
Nascido, como vimos, no âmbito do liberalismo econômico, mônica. No Brasil, como mostramos na introdução deste estu-
pensamos que a sua categoria central esteja representada pela do, depois de um ensaio nos anos 1990, retornamos à proposta
privatização. Tal categoria está no centro da concepção da refor- neoliberal a partir de um golpe jurídico-midiático-parlamentar
ma pois ela remete à própria forma de organização da atividade (2016) que acelera a implantação da reforma empresarial, mas
privada: a empresa, modelo de gestão que a "nova direita" assu- ainda não há u_ma política econômica implantada que possa ser
me, supondo sua operação em mn livre mercado. denominada neoliberal, dada a atuação da coalizão petista até
Rod Paige (apud Au, 2009, p. 51), secretário do Departa- 2016, que procurou, bem ou mal, orientar-se pelo desenvolvi-
mento de Educação de G. W. Bush, responsável pela implanta- mentismo. No Chile, a ditadura militar de 1973 implantou tan-
ção da reforma empresarial da educação estadunidense, afirma- to o liberalismo econômico quanto a reforma da educação, si-
va em 2003: multaneamente, como un1a política oficial e, como vimos, sob
Henry Ford criou uma empresa de classe mundial, líder em seu se- orientação direta dos mentores do liberalismo econômico. Em
tor. Mais importante, a Ford não teria sobrevivido à competição se
Porto Rico, a implantação se dá, neste momento, após a passa-
não houvesse ênfase nos resultados. Precisamos ver a educação da
mesma maneira. Boas escolas funcionam como um negócio. Eles se gem do furacão Maria.
preocupam com os resultados, avaliam rotineiramente a qualidade e No entanto, a Inglaterra e os Estados Unidos foram os cen-
medem as necessidades das crianças que servem. tros difusores desta proposta e nestes países ela teve sua implan-
Será necessário levarmos em conta tanto as formas de se tação de forma diferenciada (com a exceção de Nova Orleans
conceber a privatização das escolas nas propostas alternativas ao em que a implantação se deu a partir do desastre do furacão
neoliberalismo (desenvolvimentismo, terceira via, por exemplo) Katrina), a partir de uma evolução disputada no plano políti-
quanto também sob o próprio neoliberalismo, para em seguida co e ideológico, que se tornou hegemônica a partir da década
apontarmos as demais categorias que desvelam a dinâmica de seu de 1980, juntamente com o próprio desenvolvimento e afirma-
processo de construção e legitimação no sistema educacional. ção das concepções de sociedade e educação do liberalismo eco-
Ressaltemos que esse caminho não pretende diminuir a nômico, frente às crises dos anos 1970 (Ravitch, 2011; Bastos,
importância do estudo das consequências culturais da reforma 2018; Gamble, 1988).
empresarial e que ajudam a formular urna resistência objetiva A investigação das categorias e da dinâmica de instalação,da
a ela, como por exemplo a questão da dominação cultural, do reforma nos vários países (especialmente nos países originários
não reconhecimento do diferente ou o desrespeito (Power & da proposta) associada à crítica das suas finalidades educativas
(que têm origem na concepção de sociedade e educação visua-

46 47
•rn
lizada pelo liberalismo econômico) certamente deverá incorpo- PRIVATIZAÇÃO OU PUBLICIZAÇÃO?
rar o estudo das consequências educacionais, sociais, culturais e EXISTE "MEIA" PRIVATIZAÇÃO?
econômicas (reiteradas ou adicionadas pela reforma), permitin-
do que se tenha uma visão mais holística de seus processos ope-
rativos que sirva para apoiar_ a resistência, independentemente
da forma como ela se instalou nos países.

Para o neoliberalismo, o parâmetro de funcionamento da


sociedade é a própria "organização empresarial", tomada como
modelo racional de organização, apagando a historicidade das
"instituições" e transformando-as em miniorganizações empre-
sariais de prestação de serviços - saúde, educação, segurança,
previdência etc. (Chaui, 2018). Esta concepção de sociedade
corrói a escola como uma instituição social, alterando a concep-
ção de educação e a própria política educacional. Operando em
redes difusas, o neoliberalismo constrói um vetor em direção a
essa concepção de organização social que tem por base a privati-
zação dos espaços institucionais do Estado - ele mesmo, agora,
visto também como uma grande empresa.
Como vimos, a modalidade de privatização por vouchers
(dinheiro passado diretamente aos pais) proposta pela política
neoliberal é o seu nível mais elevado de privatização e permite o
livre mercado pleno, 1 sem interferências do governo (cf. Chubb
& Moe, 1990). As demais modalidades (Ball & Youdell, 2007),

É a preferência do governo Trump neste momento nos Estados Unidos.

48 49
~!

incluindo a terceirização de escolas à iniciativa privada lucrativa a escola a caminho da privatização plena da educação, ou seja,
ou não (ONGs), são mecanismos intermediários que, entre sua inserção no livre mercado, como uma organização empresa-
outras consequências, criam. mercado e a ambiência necessária rial, sem contar que a transferência para as organizações sociais
para se chegar aos vouchers. (ONGs) insere de imediato as escolas em formas de controle
A modalidade de privatização por terceirizaçáo de escolas tem político e ideológico ditadas pelas mantenedoras privadas (ou
sido diferenciada indevidamente dos processos de privatização e confessionais) dessas cadeias, retirando as escolas do âmbito do
acabou sendo incorporada por sociais-democratas (de direita e de controle público.4
esquerda), por exemplo, assumindo a concepção de que "publicizar" Como aponta P.eter Greene (2016, p. 1), a propósito das esco-
a educação estatal, à moda "não estatal", não seria privatizar. Aqui las estadunidenses terceirizadas (charters):
vamos encontrar, além de sociais-democratas, os defensores das Uma escola charter [terccirizada] sem fins lucrativos é tão ruim (e
teses do capitalismo desenvolvimentista (Bresser-Pereira, 2017) da rentável) quanto as que têm fins lucrativos. [...] Fingir que existe uma
diferença substancial entre as charters com lucro e as charters sem
terceira via de A. Giddens (Chaui, 1992). fins lucrativos é ignorância ou engano deliberado. [...] uma escola
A distinção entre "privatização" ;- "pub1icização" aparece ·~ charter sem fins lucrativos é apenas uma escola com fins lucrativos
na proposta de reforma do Estado feita por Bresser-Pereira que tem um bom plano de lavagem de dinheiro.
(Brasil, 1995) no governo de Fernando Henrique Cardoso. No caso da educação, o estágio final deste processo é a insti-
Como na "publicização" a escola é "concedida à gestão privada" tuição de modalidades de vouchers que permitam aos pais a livre
(usualmente a organizações sociais sem fins lucrativos) mas "escolha" da escola dos seus filhos, em um mercado competiti-
continua sendo do Estado, não ocorrendo sua alienação física a vo, transferindo recursos públicos para as escolas privadas (com
terceiros, ou seja, sem que haja venda do patrimônio, então não ou sem fins lucrativos). Depois que se terceiriza uma escola por
haveria, também, segundo eles, privatização. 2 Argumentam, concessão, pouco importa se o governo manda ele mesmo o di-
ainda, que a concessão à iniciativa privada se faz em um ambiente nheiro para a escola, ou se ele o faz através da família. O impac-
de "regulação" feita pelo Estado que disciplina as atividades das to na "educação pública de gestão pública" é devastador, já que
organizações sem fins lucrativos prestadoras de serviço. não existem dois "dinheiros": um para o Estado dar aos pais,
A questão é que não existe "meia privatização". Não exis- que o encaminham à escola particular, e outro para o Estado
te "quase" mercado. 3 Uma vez iniciado o processo, coloca-se financiar as escolas públicas (cf. Lafer, 2018).
2
Na "publicização" almeja-se criar o "público não estatal" que seria uma forma
híbrida entre.o "privado puro" e o "público estatal". Há, dentro do próprio Par-
tido dos Trabalhadores, quem ache correta esta visão, considerando inclusive,
que ela não é privatização. Mesma posição é defendida por Raquel Teixeira, do tempo, começaram a tomar o lugar das escolas públicas fechadas pela política
PSDB, que comanda a privatização via escolas charters na Secretaria de Educa- de accountability.
4
ção do Estado de Goiás. Os processos de regulação não são suficientes para garantir o controle público.
3
Nos Estados Unidos as escolas terceirizadas chamadas charters começaram para Trump promove neste momento nos Estados Unidos ampla "desregulação" no
gerar inovações que deveriam ser tran~fe::das r-ara a escoh. pública. Em pouco Departamento de Educação.

50 51
" Milton Friedman (1955) sistematizou a proposta dos vouchers vem o controle público. O perigo é que as escolas privadas que aceitam
en1 um texto clássico: vouchers públicos possam se tornar altamente regulamentadas, limi-
tando sua liberdade, originalidade e autonomia. Como muitas escolas
O governo, preferencialmente as unidades governamentais locais,
charter, as escolas privadas que aceitam vouchers podem parecer e agir
daria a cada criança, através de seus pais, uma soma específica [de
mais como escolas públicas, diminuindo sua capacidade de inovação.
dinheiro] a ser usada unicamente no pagamento de sua educação
Eles poderiam ser obrigados a fazer os mesmos testes padronizados
geral; os pais estariam livres para gastar essa soma em uma escola
ou a seguir o mesmo currículo padronizado (McDonald, 2018, p. 1).
de sua escolha, desde que esta atendesse a certos padrões mínimos
estabelecidos pela unidade governamental apropriada. Tais escolas Como se vê, as escolas privatizadas por concessão à iniciativa
seriam conduzidas sob uma vari~dade de auspícios: por empresas
privada (com ou sem fins lucrativos) não são a opção preferida
privadas operadas com fins lucrativos, instituições sem fins lucrati-
vos estabelecidas por doações privadas, entidades religiosas e algu- dos privatistas, pois elas poderiam vir a ter que se submeter a
mas até mesmo por unidades governamentais (p. 14). alguma regulação estatal. O que esses setores privatistas defen-
dem, hoje, é evoluir para novas formas de implementar os vou-
F riedman faz uma clara separação entre financiar a educação
chers originalmente propostos por Friedman, para impedir tal
e gerir a educação. O papel que o governo passa a ter é o de
controle do Estado:
administrar o repasse de recursos públicos aos pais e não
a gestão em si das escolas - ainda que se admita que ele até Vouchers são apenas um dos quatro mecanismos de escolha [dos pais]
da escola básica, juntamente com créditos fiscais individuais, bolsas
pode ter "algumas unidades". No melhor dos casos, o governo
de crédito fiscal e Contas de Poupança da Educação (ESAs). As ESAs
é mais um "concorrente" no mercado educacional. Note-se permitem que as famílias reservem uma parte de seus dólares de
que não se trata de que o Estado tenha uma rede de escolas e impostos da escola pública em uma conta de poupança aprovada pelo
as "conceda à iniciativa privada", nos termos da proposta dos governo - se elas deixarem de frequentar a escola pública. Embora
ainda abrindo a possibilidade de aumentar a regulação e a supervisão
defensores da terceira via ou da publicização no modelo do
do governo, as ESAs diferem dos vouchers em reconhecer que a
desenvolvimentismo. Também não se trata de manter o Estado educação é muito mais ampla do que a escolarização (McDonald,
no papel de "regulador" do mercado educacional, pois na visão 2018, p. 1).
do livre mercado o Estado não deve intervir. O movimento para livrar-se do controle do governo e de
Até mesmo a formulação inicial de Friedman, admitindo suas escolas por meio das "contas de poupança da educação"
que o Estado poderia estabelecer "padrões mínimos" de fun- prevê até o uso dos recursos para a instrução das crianças em
cionamento das escolas para que fossem elegíveis para receber suas próprias casas (homeschooling), 5 incentivando processos de
o dinheiro dado aos pais, é hoje questionada, advogando-se que "desescolarização" e ainda pagamento de aulas particulares,
isso já seria uma interferência indevida do Estado no mercado aprendizado online, aulas comunitárias, materiais escolares em
educacional: casa, escolas particulares e até mesmo aulas de faculdades
É claro que Friedman argumentou que os vales deveriam ser destina- desde que a criança não frequente uma escola pública.
dos a escolas que atendam a 'padrões mínimos especificados'. Aqui é
onde os vouchers podem ficar complicados. Com o dinheiro público
5
Sobre homeschoolingver Barbo5a, 2016.

52 53
'T
.,

Portanto, não parece que estejamos apenas frente a uma de- damente - tanto do ponto de vista do locus de poder quanto dos
manda por uma· " nova gestao .. pu'blº1ca", ou por um "quase mer-'- métodos. A concepção de sociedade neoliberal coloca a "organi-
cado", mas frente a uma demanda de inserção da atividade edu- zação empresarial" no centro das políticas sociais e do próprio
-F cacional no livre mercado pleno, o que equivale a promover a Estado (Chaui, 2018).
,.,;_· destruição do sistema educacional público e do éontrole estatal A destruição do sistema público se dá paulatinamente pela
·:::;:; · (regulação) das escol?-~ - incluindo eliminar seus· sistemas de introdução dos objetivos e processos das organizações empre-
~ '.· gestão democrática -, os quais seriam, nessa visão, os responsá- sariais no interior das instituições públicas.7 Com isso, a esco-
~: veis por impedir o lLyre funcionamento das leis de me.reado em· la passa a ser uma "empresa" educacional, com procedimentos
-~:f:.. ambiente educacionai. Trata-:-se de que a escola .seja vista como operacionais e não mais procedimentos típicos de uma institui-
• ~+-uma "organização e~presarial" de prestação de "serviços". ção pública, homogeneizando-a na forma de uma "operação em-
-~~.;__ •___Como se nota, ,i("educação pública de gestão pú~lica" bra- presarial" com objetivos, processos, tempos e formas de controle
., Jt'l~L.: =.sileira encontra-se e.!Il risco tanto pdas teses da "nova direita'' definidos (Chaui, 2018),
~«;:.: neoliberal quanto pelo capi~a-lismo des~~volviment~sta_ e. p~las Isso ainda permite que outro objetivo central do neolibera-
. --'""'.., ~- · ·teses de centro-esquerda soc1a1s-democrat1cas. E aqui oao existe lismo seja atingido: ao obter, pelo acesso à gestão, o controle_ do
_~~;~~~"it:1!1e~~~:}: educação ~pública é fundamental. Um
ataque
6
processo educativo da juventude, instala a hegemonia das ideias
í..k~~~-'-"es:cola-públka.d.e gêstão pública" é um ataque ·à dertiocracia. neoliberais - e permite, por exemplo, a atuação de movimentos
.;;~·--· .. Pot isso, com o· i~tuito mais dé curvar a vara em outra di- como o da "escola sem partido" que coíbe as demais visões alter-

e
C--- ·
._i;;e.
·reção do que criar tima polêmica, tenho preferido a denomina- .
·""-Ç~-O es~adunidense (~avitch, 2013, p.19) de reforma empresarial_
da educação (Frei% 2012; 2014) pois caracteriza o "modelo
: ·=-;; - empresarial" que se;;..quer para a escola (e para todos os direi-
- :.SJ_-.:...,· tos sociais) e define~ a autoria, financiamento e intencionalidade
nativas ê críticas no interior das escolas.
Chamar a reforma de "nova gestão pública" remete às for-
mas de gestão e ao mesmo tempo permite a ocultação dos reais
promotores da "reforma": empresários compromissados com a
agenda neoliberal do livre mercado e seus aliados.
· ~ · - da proposta de forma mais direta: destruir o sistema público Neste sentido, a terceirização da atividade escolar para orga- _
t,,.,__ de educação e não ó dotar de uma nova gestão pública. Para a nizações sociais (por exemplo, as escolas charters) inicia o pro-
l~
sobrevivência do público, é preciso que se distinga radicalmen-
te entre público e privado. Público é um bem-comum gerido
cesso de criação do mercado educacional e impulsiona a destrui-
ção do sistema público de educação ao drenar recursos para a
~- democraticamente, .é uma "instituição" social; privado é uma iniciativa privada (Arsen, DeLuca, Ni & Bates, 2015), substituir
· propried:ide de ·alguém, uma."organização" administrada priva- suas formas institucionais de funcionamento público por formas
de "gestão empresarial" e permitir a emergência de um merca-
----
';.. 6 . A ideiade que à educação para ser emancipadora deva ficar fora do Estado,
defendida por Marx~ precisa ser devidamente contextualizada rio presente mo-
7
mento histórico: Hoje, -ficar fora do Estado é ficar diretamente nas mãos dos Para um balanço dest~ inserção do privado no público no Brasil, consulte-se o
empresários e da filantropia, mapeamento feito pelo qr~ppe_ (2018).

54 55
r-
das leis do mercado. 9 Da mesma forma, a social-democracia (seja
do que impulsiona todo um processo de privatização radical da a do PT ou a da terceira via) e o capitalismo desenvolvimentista,
educação de longo prazo. 8 Recente relatório (Lafer, 2018, p. 3) cada um por seu caminho, conduz igualmente à destruição do
concluiu que: sistema público de educação e prepara o caminho neoliberal.
[...) os estudantes de escolas públicas de comunidades de três distri- A alternativa da "publicização", ou seja, da terceirização de
tos escolares da Califórnia estão- arcando com o custo da expansão
escolas públicas para organizações sociais sem fins lucrativos
descontrolada de escolas privadas. Em 2016-17, as escolas charter
ocasionaram um déficit fiscal líquido de US$ 57,3 milhões para o não é uma alternativa à privatização, mas apenas um passo
Distrito Escolar Unificado de Oakland, US$ 65,9 milhões para o inicial. A destruição do sistema público de educação é a agenda
Distrito Escolar Unificado de.San Diego e US$ 19,3 milhões para oculta da reforma empresarial. Não existe "meia" privatização
o Distrito Escolar de East Side Union do Condado de Santa Clara.
ou "quase-mercad o. ,, 10
[...) Quando um aluno deixa uma escola da comunidade e vai para
uma escola charter, sua parcela de financiamento proporcional vai
com ele, enqmmto o distri_to continua sendo responsável por muitos
custos que esses fundos apoiavam. Isso intensifica a pressão fiscal
para cortar serviços essenciais, como aconselhamento, bibliotecas e
educação especial, e aumentar o tamanho das turmas nas escolas das
comunidades.
Com isso, o setor público vai sendo asfixiado enquanto a ini-
ciativa privada se desenvolve utilizando o dinheiro público que
deveria estar sendo aplicado na expansão da educação pública. A
reforma empresarial da educação tem uma agenda oculta no seu
discurso da "qualidade da educação para todos" que está além
das formas que vai assumindo: trata-se da destruição do sistema
público de educação, por meio de sua conversão em uma orga-
9
Falabella, descrevendo a implantação do modelo privatista no Chile pelo golpe
nização empresarial inserida no livre mercado. militar de Pinochet, diz: "Los discursos de la época promueven con fuerza la
A utopia que move a reforma é o funcionamento pleno propagación de la educación privada y la delimitación de la pública. En palabras
do mercado educacional, visto como um processo que se de Pinochet 'la posibilidad que d Estado expanda aún más su labor educacional
debe considerarse improbable [...] por consiguiente, se estimulará con energía
autoaperfeiçoa, na medida em que avança para sua destinação la ayuda que d sector privado presta' (Carta ai Ministro, 1979). La educación
final: a autorregulaçáo concorrencial da qualidade da educação privada se visualiza como una provisión que supera la calidad de la pública, pues
(ou seja, a sobrevivência do-mais forte) inserida na lógica radical responde a los princípios de la libertad de elección, emprendimiento y eflciencia.
Los resultados [desta política] son bastantes efectivos: en 1979 la educaci6n
privada representa un 19% dei total de la oferta, mientras en 1990 aumenta a un
8 Este aspecto fica cada vez mais claro na realidade estadunidense com a política 42% (Mineduc, 2001)" (Falabella, 2015). -
10
de Donald Trump escolhendo para Secretária da Educação uma bilionária que De certa forma, a Inglaterra (com a terceira via) é o melhor exemplo de como não
se dedica a incentivar a política de vouchers. Em seu programa, Trump prometeu é possível termos "meia privatização".
dedicar vinte bilhões de dólares para a política de vouchers.

57
56
EVIDÊNCIA EMPÍRICA, ÉTICA E PRIVATIZAÇÃO

Até aqui explicitamos o que nos parece ser a categoria cen-


tral da reforma empresarial da educação, ou seja, a privatiza-
ção. Em todas as experiências de implantação da reforma a
privatização está presente, e nos espaços em que a reforma foi
imposta pela violência política ou da natureza, ela está presen-
te desde o primeiro momento. A privatização intensiva quando
possível ou, em alguns casos, a criação de um vetor de privati-
zação progressivo, estão destinadas, igualmente, a transformar
o "direito à educação" em um "serviço" a ser adquirido, em
última instância, por vouchers (e suas variantes) de "provedores
privados" de educação.
Mas que resultados estas políticas de privatização têm gerado
onde foram aplicadas? Um sistema baseado em "provedores pri-
vados de educação" conduziria a uma educação melhor?
Já vimos que; do ponto de vist~ da concepção de sociedade e
de educação, isso não pode ser respondido positivamente. A pro-
posta da reforma empresarial é conservádora e reacionária, con-
duzindo a uma sociedade individualista com as consequências já
descritas por Giroux (2017). Além disso, coloca como finalidade

59
,.
·l

para a formação da juventude seu enquadramento na lógica de A despeito dos problemas técnicos, a questão é que a produ-
exploração do status quo, sendo este apenas tecnologicamente ção de "política com evidência", ao centrar-se na organização e
modernizado (Revolução 4.0). Ainda que construa alianças com análise dos números, oculta as concepções que jazem a estes e
outras visões e se manifeste pelo seu contrário, propondo "edu- impede uma discussão sobre a concepção de educação e de so-
cação para todos", trata-se, como veremos, de uma educação de- ciedade1 que deve orientar o qtK entendemos por ser uma boa
sigual e que aprofunda a segregação ao longo do sistema educa- educação. E ao não discutir, impõe aquela que emerge junta-
cional, amplificando sua elitização - ou seja, garantindo que a mente com os números. Mesmo os métodos quantitativos par-
escola seja adaptada às novas exigências do status quo sem sair de tem de conceitos, pois os números representam quantidades de
seus limites e sem gerar demandas "indevidas" que pressionem qualidades (Faccenda, Dalben & Freitas, 2011).
o Estado econômica ou politicamente. Dessa forma, reunir "evidência empírica definitiva" não é a
Essa avaliação dos impactos formativos é importante porque é proposta deste texto. Pensamos que há uma tarefa mais urgente
preciso ter em mem:e que para efeito de analisar uma política pú- a ser feita: reunir um conjunto de estudos significativos que, pela
blica, não é condição suficiente apresentar "evidências empíricas" gravidade dos impactos negativos que revela (para a escola, para o
dos resultados de aprendizagem dos estudantes em testes, sem le- magistério ou para os estudantes), permite antever o ''potencial
var em conta uma análise das finalidades educativas atribuídas à de danos" já causado e ainda a causar pela reforma empresarial
educação. Nos limites deste estudo, no entanto, esta é uma tarefa - cuja gravidade recomenda uma prudente interdição ética -
que só podemos tangenciar. Este é um primeiro ponto. independentemente dos resultados imediatos passíveis de serem
O segundo diz respeito à própria busca da "evidência elencados nos testes padronizados ou por outras medidas.
empírica". Tornou-se recorrente a produção de relatórios de Esta tarefa, hoje, está mais fácil de justificar-se, pois até mes-
"evidência empírica" (uma espécie de "cartilha" do que funciona mo a reforma empresarial começa a descolar-se àa importân-
em educação (Christophe, Elacqua, Martinez, & Araujo e cia dos testes padronizados, ainda que oportunistamente, como
Oliveira, 2015) como arma de convencimento, como se fosse única forma de aferir a qualidade dos sistemas de ensino (Hitt,
possível reunir um conjunto de estudos definitivos a favor ou McShane & Wolf, 2018).
contra determinada prática educativa. Eles têm uma utilidade A nosso favor, argumentamos que as pesquisas com alertas
do ponto de vista da organização da pesquisa científica, sobre as implicações nefastas da aplicação de uma dada política
mas isso não significa que possam ser usados para orientar têm primazia e necessitam ser levadas em conta antes. Políticas
a implantação de políticas públicas, a chamada "política com para as quais não tenhamos clareza sobre seus danos devem ser
evidência". Think tanks com farto finandamento empresarial aplicadas em ambientes controlados e livres de impactos para a
se dedicam a esta tarefa de "revelar a verdade". Boa parte destes vida das pessoas, até que tenham condição de ganhar aplicação
relatórios não sobrevive a uma análise rigorosa utilizando-se mais segura em sistemas de ensino (Freitas, 2013).
critérios que orientam a elaboração de meta-análises rigorosas
(Rothstein, Sutton, & Borenstein, 2005). 1
Ver, por exemplo, Christophe . .Elacqua, Martinez & Arau_io e Oliveira (2015).

60 61
P:f'
~r

Isso posto, vale a pena lembrar que a privatização da gestão (2014), feita no National Education Policy Cemer, mostrou as
fragilidades dessa meta-análise.
da educação, na proposta da reforma, caminha, fundamental-
mente, por duas maneiras não excludentes entre si: pela terceiri- Na meta-análise, os autores mostram que o desempenho dos
zação das escolas, concedidas à iniciativa privada; e pela adoção estudantes frequentando escolas charters é melhor do que o das
de programas de. vouchers. Deixaremos de lado, por ora, aquelas escolas públicas, em Matemática, por uma margem que varia de
formas de privatização por meio de introdução de paradigmas 0,03 e 0,08 desvio padrão (dp), o que é um efeito muito pequeno.
de gestão privada para gestores públicos, parcerias e assessorias. Lopes alerta ainda que a meta-análise desses autores, apesar de
Em relação à experiência com a terceirização de escolas, que descrever a limitação metodológica dos estudos revisados, se
nos Estados Unidos são conhecidas como escolas charters, os esquece desses limites ao tirar conclusões.
resultados não são animadores, seja em relação à segregação Ameta-análise também procuraavaliarseos efeitos encontrados
escolar (Frankenberg, Siegel-Hawley & Wang, 2011), seja em mudam com a passagem do tempo. Inexplicavelmente, mesmo
relação ao próprio desempenho acadêmico das crianças que não encontrando cliterenças significativas, os autores afirmam
frequentam ess;:s escolas (Center for Public Education, 2015; que há uma tendência positiva 2 para quem frequenta as escolas
Dobbie & Fryer, 2017). Os resultados indicam que a segregação charters, o que é um claro exagero da magnitude dos efeitos.
Para Lopes:
escolar não foi afetada significativamente e o desempenho das
crianças que deixam a escola pública e vão para as terceirizadas Uma leitura mais honesta dos resultados seria a de que eles são
consistentes com a grande quantidade de estudos sobre as escolas
é, no melhor dos casos, indistinguível, quando comparados.
charters: os resultados gerais dos testes para as escolas públicas e para
Um estudo conduzido por Waddington & Berends (2018) as escolas charters são em grande medida indistinguíveis (p. 11).
mostra um cenário pior. Alunos que estudaram com vouchers
Citamos essa meta-análise (e sua revisão) porque, iguais a
sofreram uma perda média de desempenho de 0,15 desvios pa-
essa, existem dezenas de outros relatórios e informes circulando
drão em Matemática durante o primeiro ano ao frequentar uma
corno se estivessem revelando verdades, mas que apresentam
escola particular em comparação com os alunos pareados que
problemas que não resistiriam a uma análise metodológica. 3
permaneceram em urna escola pública. Essa perda persistiu, in-
dependentemente da extensão de tempo passado na escola parti-
cular. Em Leitura não foram observados efeitos estatisticamente
2
significativos. Os autores escrevem no site do CRPE apresentando o estudo: "charters school
effect sizc has risen for both Math and Rcading over time, though this trend
Um estudo do Center on Reinventing Public Education is not statistically significant" (cf. <https:/lwww.crpe.org/publications/meta-
(CRPE) da Universidade de Washington, por meio de uma me- analysis-litcrature-cffcct-charter-schools-student~achievcmcnt>).
3
ta-análise conduzida por Betts e Tang (2014) com 52 estudos, Eis aqui uma tarefa que cabe às universidades assumir: submeter à rigorosa
an:ilise a produção de think tanks, institutos e ONGs empenhados cm divul-
tentou mostrar que as escolas terceirizadas (charters) atendem gar as "vantagens" da reforma empresarial. Como exemplo deste compro-
melhor os estudantes do que as públicas, particularmente em misso, citamos o National Education Policy Center, no Colorado, USA-,
<https://nepc.colorado.edu/>.
Matemática. No en!anto, uma revisão deste estudo _por Lopez

63
62
r
1

Recentemente, um relatório do Center for Research on são, no entanto, arbitrárias e não suportadas por outras pesquisas
Education Outcomes (Credo) informou uma pequena superioridade no campo. Isso levanta preocupações sobre a utilidade prática
dos resultados do estudo do Credo. Além disso, os pesquisadores
de determinados tipos de escolas charters, especialmente grandes tomaram várias àecisóes metodológicas duvidosas que ameaçam
redes sem fins lucrativos (Credo, 2017). O estudo usa dados dos a validade do estudo. Vários dos problemas sinalizados por estes
anos letivos de 2011-2012 a 2014-2015 em 24 Estados, Washington revisores do estudo já foram levantados cm revisões de estudos
D.C. e Nova York. Suas principais conclusões são: anteriores do Credo. Especificamente, que os estudos do Credo
tendem a sobrevalorizar efeitos de tamanho pequenos; não justificam
• as organizações escolares do tipo charter têm seus efeitos os pressupostos estatísticos subjacentes às comparações entre grupos
mais fortes com populações tradicionalmente carentes, realizadas; e não levam em conta ou reconhecem o grande volume
como estudantes negros e hispânicos; de pesquisa sobre escola charter, além de seu próprio trabalho ou
• os operadores de escolas charter que possuem status sem as limitações inerentes à abordagem de pesquisa que adotam. (p. 1)
fins lucrativos obtêm ganhos acadêmicos significativa- Não são válidos, portanto, os clamores dos defensores
mente maiores do que aqueles com uma orientação para de escolas charters, advogando que elas seriam a saída para a
fins lucrativos. Os operadores com fins lucrativos têm re- melhoria da qualidade das escolas, numa tentativa de justitlcar
sultados que são, na melhor das hipóteses, iguais quando a inserção da escola pública no mercado concorrencial.
comparados aos alunos de escolas públicas tradicionais Durante décadas a reforma repetiu que os testes padronizados
em leitura ou piores em matemática. eram a maneira mais rápida e eficiente de avaliar a qualidade
• Mesmo depois de controlar as diferenças nas populações da educação e o impacto das políticas públicas. No entanto,
estudantis, a eficácia das organizações das escolas charter mais recentemente, desestimulados pelas pequenas diferenças
varia entre os Estados. nos testes que comparam o desempenho dos alunos nas escolas
• As escolas charters online continuam a apresentar de- charters ou com vouchers versus escolas públicas, tem-se investido
sempenho acadêmico significativamente mais fraco etn na medição da qualidade da educação por meio de possíveis
Leitura e Matemática, em comparação com suas contra- efeitos de longo prazo gerados pelas escolas charters ou pelos
partes nas escolas públicas. programas com vouchers.
O relatório d5! 2017 seccionou as escolas charters por tipos de Um estudo de Hitt, McShane & Wolf (2018, p. 2) concluiu que:
organização. No entanto, esta e outras decisões metodológicas Nossos dados geram sérias dúvidas sobre o uso de testes padronizados
do Credo foram consideradas inadequadas por uma revisão do como métrica exclusiva ou principal para avaliar programas escolares. Se
estudo conduzida por Miron & Shank (2017). Para estes: os ganhos nas pontuações de teste não são uma condição necessária nem
suficiente para produzir ganhos de longo prazo em resultados cruciais
O estudo constatou que os estudantes de escolas charter apresentam dos alunos, as abordagens atuais de accountability dos programas de
ganhos ligeiramente maiores em desempenho do que seus pares escolha escolares são, na melhor das hipóteses, questionáveis.
estudando em escolas públicas convencionais, especialmente
estudantes em escolas charte1· operadas por certos tipos de Os reformadores se complicaram com suas próprias fórmulas.
organizações. As distinções do Credo entre tipos de organização Depois de usar as avaliações baseadas em testes padronizados

64 65
r
para desmoralizar as escolas públicas, encontram-se com a No entanto, a versão final de outro estudo conduzido por
missão de mostrar que as suas receitas milagrosas funcionam Waddington e Berends (2018) sobre vouchers em Indiana mostra
melhor, totnando como evidência o impacto nos mesmos testes que os estudantes com vouchers não recuperaram a queda no
padronizados. Não podendo, estão investindo na construção de desempenho em Matemática (-0,15 dp) que tiveram no primeiro
"evidências" baseadas em impactos de longo prazo. ano de transferência para uma escola privada, não importando
Embora seja louvável que os reformadores revejam seu feti- quanto tempo tenham ficado na escola. Em Leitura não houve
che pelos testes, o fato é que a tentativa dos autores de validar a diferença significativa.
"escoiha da escola" a partir de uma meta-análise, com uma mu- Com os problemas recorrentes das políticas de privatização
dança de enfoque de última hora que aposta em resultados de neoliberal estadunidenses, no começo de 2018, um seminário
longo prazo positivos, não é bem-sucedida, "pois o relatório está no conservador American Enterprise Institute, nos Estados Uni-
repleto de inúmeras inconsistências internas na discussão e tra- dos, procurou examinar o conjunto das políticas de responsa-
tamento de um conjunto de estudos que foram selecionados por bilização conduzidas nos governos Bush e Obama. 5 Entre os
métodos questionáveis" (Lubienski & Brewer, 2018, p. 2, 9-10). textos; pode ser encontrado um estudo de Egalite (2018) sobre a
A tentativa de justificar a qualidade de uma proposta educa- privatização por escolas charters.
cional a partir de efeitos de longo prazo tem dificuldades metodo- Referindo-se também aos efeitos de longa duração das
lógicas que não são nada desprezíveis, seja pelas exigências meto- escolas charters, a autora escreve que os dados indicam que as
dológicas inerentes aos procedimentos de meta-análise, seja devido mesmas escolas charters (em nível de high school), com impactos
ao número de fatores que afetam o desenvolvimento e a vida dos inexpressivos nos testes de desempenho dos seus estudantes,
alunos. Os reformadores não percebem que o erro está em querer têm mostrado resultados positivos de longo prazo, o que inclui
enquadrar a educação em um modelo do tipo "causa-efeito". aumento na conclusão da graduação, frequência e permanência
A questão dos efeitos de longo prazo já havia aparecido, de na faculdade (college) e até ganhos na vida adulta. Ela ainda
forma marginal, em um dos relatórios do Center for Research on afirma que, se basearmos nossa percepção sobre as escolas
Education Outcomes (Credo, 2013). Nele os autores apontam charters somente nas pontuações dos testes, corremos o risco de
que à medida que os alunos são transferidos para programas descuidarmos de impactos de longo prazo (p. 29). A autora cita
de vouchers em escolas charters e permanecem neles, melhoram a seu favor os estudos de Booker, Sass, Gill & Zimmer (2011) e
(0,08) seu desempenho ao longo de quatro anos (em termos Sass, Zimmer, Gill & Booker (2016).
de dias de aprendizagem a mais, obtido em comparação com Mas os estudos destes autores tratam basicamente dos efei-
estudantes da escola pública), a despeito de que no primeiro ano tos durante o Ensino Médio (high school), quando já ocorreram
ele seja inferior (-0,08).4 processos de segregação na escola fundamental. Em outro es-

5 Os textos deste seminário podem ser encontrados em <http://www.aei.org/


4 Este argumento repercutiu por aqui entre os apoiadores da privatização da
events/bush-obama-school-reform-lessons-learned/>.
educação no Brasil (Schuler, 2017).

66 67
tudo dos mesmos autores (2014) podemos encontrar resultados ligados à indústria educacional das escolas charters, as grandes
semelhantes, mas como eles mesmos advertem: "Exatamente o beneficiárias dessas medidas que privatizaram quase totalmente
que as escolas charter estão fazendo para produzir efeitos positi- a educação em Nova Orleans.
vos substanciais em termos de resultados educacionais e ganhos No entanto, a questão é que a estratégia dos Recovery School
salariais é uma questão em aberto" (p. 27). District (RSD), ou seja, a estratégia do Estado assumir as escolas
A expectativa de que ganhos de longo prazo compensariam a de baixo desempenho em Louisiana não melhorou a posição
pouca evidência de sucesso dos alunos nos testes tem sido difícil de delas nas avaliações nacionais. O leve aumento das notas em
se confirmar. Na contramão desta esperança, temos os dados do Leitura (de 253 para 257 pontos) e Matemática (de 266 para 273
Texas, um dos primeiros Estados a adotar accountability. Um estu- pontos) não melhorou a posição de Louisiana em relação aos
do feito por Oohbie e Fryer (2017) mostra que, em média, as escolas demais estados estadunidenses, medido pelo Naep - a avaliação
charter não têm impacto positivo nos resultados dos testes, e ainda de larga escala estadunidense para a Educação Básica. Ele
têm impacto de longo prazo negativo nos ganhos no mercado. continuou sendo o 47° em Matemática e em Leitura caiu de 46°
Mais recentemente também tem havido um grande debate para 47°. A análise conclui que "os dados sugerem que a reforma
sobre os resultados da privatização por charters em Nova educacional controlada privadamente e imposta de cima para
Orleans. A cidade é mais um caso atípico e que ainda precisa ser baixo a Nova Orleans falhou" (Cimarusti, 2015).
adequadamente compreendido, antes de se fazer política pública No entanto, mais recentemente, Harris e Larsen (2018)
baseada nele. Em 2003, a Assembleia Legislativa da Louisiana, realizaram estudos em Nova Orleans e sugerem que as
Estado onde.6ca Nova Orleans, criou o Recovery School District proficiências dos estudantes, de forma geral, melhoraram (1 O
(RSD), qué permitia ao Estado assumir as escolas dos distritos a 67%) entre outros indicadores como graduação ao final do
com baixo desempenho nos testes. Ensino Médio (3 a 9%), graduação na faculdade (3 a 5%). Mas
Em 2005, com o K.atrina, a Assembleia Legislativa voltou a como adverte o próprio autor: "[...] não acho que possamos
agir aprovando ~ Lei 35 que reduziu o limite de desempenho das extrapolar Nova Orleans para a maior parte do país. É mais
escolas em testa i ·· · rtir do qual uma escola poderia ser assumida adequado tratá-la como um cenário do melhor caso".
pelo Estado par reestruturada. Com isso, mais de 100 das Em 2015, em estudo anterior sobre Nova Orleans, o mesmo
124 escolas acab., ,. sendo assumidas pelo Estado de Louisiana, autor afirmou, a propósito de resultados semelhantes, que os
a partir de um modelo de privatização por terceirização de gestão estudantes desfavorecidos se beneficiaram, mas parecem ter se
(escolas charters), após o furacão Katrina devastar a região. Hoje beneficiado menos do que outros grupos; o sistema continuava
Nova Orleans tem apenas quatro escolas públicas de gestão focado mais fortemente ainda em uma prestação de contas
pública - 92% dos alunos são atendidos por escolas charters. baseada em testes, podendo reduzir o foco em outras metas
A estratégia tem sido aclamada como modelo nacional educacionais como criatividade e cultura (Ravitch, 2018). Em
e considerada muito importante para o desenvolvimento relação aos resultados dos estudos atuais, em recente entrevista
educacional por lobistas, reformadores empresariais e ,ongêneres (Harris, 2018), o autor destaca que existem outros fatores

68 69
'!'

específicos de Nova Orleans a serem considerados, por exemplo, Há resultados da aplicação destas políticas de privatização
o desejo da população de sair de uma catástrofe natural. também no Chile que, como nos Estados Unidos, revelam re-
Outros estudos também contrariam uma visão otimista da sultados preocupantes, com efeitos colaterais indesejáveis que
privatização por terceirização em Nova Orleans ·(Adamson, não podem ser negligenciados.
Cook-Harvey & Darling-Hammond, 2015). Para estes autores Um dos apelos dos vouchers e das escolas charters era que, ao
há um alto grau de segregação em Nova Orleans: se inserir a educação na concorrência do livre mercado, estas
As reformas de Nova Orleans criaram um conjunto de escolas alta-
aumentariam a qualidade da educação e fechariam a diferença
mente estratificadas por raça, classe e vantagem educacional, ope- de desempenho entre estudantes mais ricos e mais pobres, dimi-
rando em uma hierarquia que fornece tipos de escolas muito dife- nuindo a segregação.
rentes a diferentes tipos de crianças. As escolas mais seletivas, de O maior experimento social com vouchers é o do Chile, ini-
maior alcance, com melhores recursos e mais procuradas dentro des-
se sistema estão fora do alcance da grande maioria dos estudantes
ciado com a ditadura militar do general A. Pinochet implantada
das escolas públicas de Nova Orleans. Os alunos mais favorecidos em 1973 e com ajuda de Friedman, Hayek e Buchanan. Hoje
frequentam escolas no topo da hierarquia, enquanto os mais necessi- sabemos que o Chile se tornou, sob estas políticas, mais segrega-
tados frequentam escolas na parte inferior. [...] do {Unesco, 2017, p. 23).
Os estudos sobre os efeitos das reformas de Nova Orleans no desem-
penho dos alunos variam substancialmente em suas conclusões com
Um estudo de Trevifio et al., (2018) examinou 56 estudos
base nas métricas e comparações usadas. Avaliar os efeitos das refor- empíricos sobre o uso de vouchers no Chile. Destes, 45 foram
mas é difícil porque as mudanças demográficas da cidade dificultam publicados em veículos com revisão por pares; os demais fo-
a análise de tendências com grupos comparáveis ao longo do tempo ram publicados como relatórios de pesquisa ou documentos de
e as mudanças nas notas de corte estaduais nos testes e nos sistemas
de classificação de responsabilização inflacionaram o desempenho
trabalho. Dos estudos, 35 foram quantitativos, quatorze foram
escolar em todo o estado (p. 9-11). qualitativos e sete foram métodos mistos.
Os resultados indicam que as
Em uma investigação independente Kimmett (2015) relata que,
famílias [de classe média] não escolhem as escolas, mas são as escolas
entrevistando professores, pais e estudantes:
que escolhem as famílias e estudantes. Os pais podem escolher
Os membros da comunidade lamentaram o fechamento de escolas pú- apenas onde entregar um pedido de matrícula; se o candidato for
blicas que serviam como centros nos bairros. Os estudantes de escolas
charters 'no excuses' descreveram que se sentiam como se estivessem em
uma prisão. Os professores se sentiam desmoralizados por não terem voz criminação com implicações culturais muito graves. Convertem-se em formas
na sala de aula. Os pais queixaram-se de falta de professores negros. Em de controlar bolsões de pobreza e não em formas concretas de superação das
entrevista após entrevista, as pessoas diziam a mesma coisa: o sistema condições destas populações. No Brasil, há o risco de um instrumento já dis-
não coloca as necessidades das crianças em primeiro lugar. 6 ponível (ADE) ser usado para permitir ações deste tipo e que está contido em
uma deliberação do Conselho Nacional de Educação estabelecendo os Arranjos
de Desenvolvimento Educacional - ADEs (Brasil, 2011). A experiência inglesa
6
A prática de identificar "zonas" de atendimento prioritário, usualmente envol- (terceira via), criando as Education Action Zones (EAZ), é examinada por Po-
vendo populações mais pobres, além de não ter· resolvido os problemas a que se wer & Gerwitz (2001) e pode ser uma importante contribuição para uma análise
propõe, tem graves implicações para estas populações, pois caracteriza uma dis- crítica desta proposta.

70 71
~

aceito, as famílias de classe média têm o 'privilégio' de complementar estudantes, passou, em 1985, para 33%, chegando a atender nos
o voucher com recursos próprios e pagar por uma escola de maior
anos que se seguiram a mais de 50% da demanda. Para o autor:
demanda (p. 4).
[...] a brecha entre de,;empenho dos estudantes no Chile e a resultan-
Em relação aos estudantes mais pobres, "a compeuçao os te divisão econômica está crescendo. Três quartos das matrículas de
relegou a escolas de baixo desempenho e altamente segregadas". escola pública no Chile são alunos de renda familiar pertencentes aos
Para escapar a esta situação os pais destas crianças precisam ter 40% mais baixos. Apenas 10% dos estudantes desfavorecidos usam
vouchers para frequentar escolas privadas. 90% dos alunos de escolas
mais capital econômico e social. "No entanto, as famílias mais particulares vêm dos 60% de renda familiar superior.
pobres que não têm esses recursos não têm outra opção senão
matricular-se na escola pública local- o padrão para aqueles que Esta inversão do financiamento retira os estudantes mais mo-
não têm nada a oferecer além de seus vouchers" (p. 4-5). tivados e os da classe média da escola pública e os desloca para
Mas, além de não resolver os problemas de segregação, os a iniciativa privada, enquanto reserva as escolas públicas para as
populações mais pobres e mais difíceis de ensinar, reservando a
vouchers adicionaram problemas graves:
eles uma escola com seu orçamento dilapidado pelo desvio de
estudantes em condições de discriminação e exclusão generalizada;
baixa confiança pública; foco em habilidades acadêmicas visíveis e recursos públicos para a iniciativa privada.
uma negligência que acompanha a educação cívica; e um profundo Outros estudos sobre o Chile têm chegado a conclusões se-
desconforto estudantil (p. 5). melhantes (Elacqua, 2009; Mizala & Torche, 2012; Portales,
Enquanto os reformadores tropeçam nos números em busca 2012; Valenzuela, Bellei & Rios, 2008).
do sistema educacional "ideal", juntam-se evidências de que os A pesquisa sobre os vouchers, tanto nos Estados Unidos quan-
efeitos indesejáveis presentes nestas políticas recomendam que to no Chile, não cessa de apontar problemas com a qualidade
elas não sejam universalizadas em redes de ensino, pois, como se e com a segregação (cf. Dynarski, Rui, Webber, Gurmann &
constata no Chile, a implementação universal dos vouchers "não Bachman, 2018; Figlio & Karbownik, 2016; Mills, Egalite &
só não cumpriu seus objetivos originais, mas também provocou Wolf, 2016; Dynarski, 2016; Tel1, 2016).
vários resultados prejudiciais adicionais" (p. 6). Em uma perspectiva mais ampla, um estudo com dezessete
Para Michael Pons (2012), um especialista em programas países que participam do Programa Internacional de Avaliação
que usam vouchers, o Chile representa um exemplo puro do de Alunos (Pisa) administrado pela OCDE, feito por Baum
programa de vouchers desenhado por Milton Friedman em (2018), com o objetivo de examinar a efetividade de suas parcerias
1955. Para este autor, foram feitas, sob a ditadura de Pinochet, público-privadas (PPP) na área da educação, afirma:
duas grandes mudanças: "primeiro, a autoridade sobre as Em resumo, as escolas de PPP não estão melhorando a eficiência
escolas foi transferida do governo federal para o municipal" e produtiva da maioria dos sistemas educacionais; e, na maioria
dos países, eles estão reforçando as disparidades sociais, servindo
"segundo, cada estudante recebeu um voucher com recursos desproporcionalmente os estudantes nos quineis de renda mais alta.
para matricular-se em uma escola pública ou privada". Com Essas descobertas têm implicações diretas para a política educacio-
essas medidas, a escola privada, que em 1980 atendia 12% dos nal globalmente. Em grande parte da literatura existente, a inclusão

72 73

',
de PPPs em estruturas de políticas de educação é justificada pelo nativa, pelos graves problemas já apontados nos estudos atuais
seu potencial para melhorar a eficiência produtiva no sistema edu- (não se caracterizam por resultados de aprendizagem significa-
cacional sem afetar negativamente a eficiência social. Os resultados
tivamente superiores às atuais escolas públicas e aprofundam a
desta pesquisa pedem cautela contra as expectativas de desempenho
superior dentro dos modelos de PPP de educação. Além disso, os go- segregação).
vernos com interesse político em tais intervenções devem estar cien- Se os efeitos práticos da privatização não se cumprem, há
tes dos impactos potenciais de tais programas em populações menos outros que se viabiliza.m, por exemplo, a transferência da gestão
favorecidas socialmente. (p. 23-24)
pública da escola pará a iniciativa privada - um ambiente mais
No Brasil, já há indícios de que tais políticas interferem na «confiável" do ponto de vista ideológico.
escola pública ampliando a segregação ou deslocando popula- É importante que tenhamos isso claro, pois a privatização
ções estudantis entre escolas. por vouchers é uma categoria central da reforma empresarial da
Um estudo de Girotto & Cassio (2018) pesquisou as escolas da educação. Seu fracasso desmonta o conjunto da proposta e re-
cidade de São Paulo e verificou que a implantação de um progra- vela que sua manutefi'Çáo como alternativa ao ensino público só
ma de adoção de Ensino Médio em tempo integral (em parceria se sustenta pelas necessidades de controle político e ideológico
com a iniciativa privada) tem provocado a expulsão de matrículas do aparato escolar, para que ele atenda a interesses específicos
de alunos com menor nível socioeconômico, melhorando os re- de uma parcela da população - os próprios empresários e suas
sultados destas escolas nas avaliações em larga escala. Tal efeito corporações -·, o que representa uma dupla interdição ética: pelos
é contrabalançado pelo efeito negativo nas unidades escolares no números e pelas finalidades.
entorno destas escolas, nas quais se observa diminuição da quan-
tidade de estudantes com nível socioeconómico mais elevado.
A iniciativa foi criada em 2012 como parte do "Programa Edu-
cação - Compromisso de São Paulo", instituído em 2011 com um
grupo de quinze ONGs lideradas pela Parceiros da Educação. Em
2017, 308 unidades escolares da rede estadual faziam parte do
Programa, cinquenta delas na cidade de São Paulo.
A despeito dos números que os sucessivos estudos vão geran-
do, suficientes para nos acautelarmos frente a essas políticas, é
preciso insistir que é uma batalha não só entre números, mas
que envolve também concepções de educação e de sociedade.
A análise conjunta dos resultados práticos e das consequências
formativas indica que os processos de privatização (por terceiri-
zação a provedores de educação com ou sem fins lucrativos ou
por vouchers) eticamente n:ío têm sustentação corno uma alter-

74 75
f,j
PADRONIZAÇÃO, TESTES E ACCOUNTABILITY:
A DINÂMICA DA DESTRUIÇÃO

No bloco anterior, examinamos as formas de privatização e


suas consequências. Cabe considerarmos, agora, outras catego-
rias da reforma empresarial responsáveis pelo que chamamos
anteriormente de vetor de privatização nas redes públicas.
A privatização plena da educação retira o aluno da escola pú-
blica e o transfere para a escola privada ou terceirizada por meio
de vouchers, em um livre mercado. Corresponde à forma mais de-
senvolvida na qual desaparece a escola pública como "instituição"
e emergem os "provedores privados de educação". Mas, na maio-
ria das vezes, é preciso que as redes públicas de ensino caminhem
em direção a esse estágio final através de um processo progressivo
e que vai legitimando-se paulatinamente no âmbito da sociedade.
Aqui, também, o parâmetro continua sendo a forma de or-
ganização empresarial, mas como um processo em constitui-
ção no interior do "serviço público", convertendo-o em "serviço
privado". A introdução da lógica empresarial vai criando novas
exigências para as escolas públicas (com redução de financia-
mento desviado para pagamento das terceirizadas, o que drena
recursos do sistema público) que as tornam objeto de sanção/re-

77
li
,1
~
['

fP
1
direcionamento de sua atuação e até mesmo de seu fechamento, gestores. 1 A qualidade da educação torna-se também uma questão
transformando-as em mais terceirizadas. dos "Tribunais de Contas", nos vários âmbitos da administração,
A terceirização de escolas para a iniciativa privada com ou sem que passam a poder vetar gestores e rejeitar as suas prestações de
fins lucrativos é um mecanismo que permite a criação de um mer- contas anuais.
cado inicial que no futuro passá a ser objeto dos vouchers. Ela é A mera existência das metas e dessas leis de responsabilização
um mecanismo de rompimento do monopólio estatal e facilitador (com apoio da mídia) cria pressão sobre os gestores que passam
da constituição de um livre mercado educacional. Como já disse- a recorrer cada vez mais a consultorias e empresas, introduzindo
mos anteriormente, constituído o mercado, tanto faz se o Estado na vida das escolas soluções privatizantes, reproduzindo
paga diretamente às escolas terceirizadas ou se os pais levam dire- internamente os mecanismos de pressão sobre gestores
tamente em vouchers eles mesmos o dinheiro para a escola. intermediários, professores e estudantes. 2
Para Castro (2011, p. 1), defensor da reforma empresarial, já Como sempre se soube nos meios educacionais, a pun.1çao
temos acúmulo suficiente sobre teoria organizacional para iden- não é um instrumento duradouro para se educar. Um estudo que
tificarmos o que é fundamental para qualquer organização: examinou as políticas de responsabilização americanas (NCLB)
Nos últimos anos, explicitam-se os critérios da boa gestão: 1) defi- entre 2003 a 2011 conclui que o "maior rigor na implementação
nir objetivos claros (o piano sobe ou desce?); 2) quantificar as metas [de accountability] resultou em pequenas melhorias no de-
(sem medir não sabemos onde estamos); 3) compartilhar as metas sempenho de Matemática da oitava série, mas não teve nenhum
com os colaboradores; 4) criar instrumentos para acompanhar o
funcionamento, passo a passo; e 5) criar mecanismos para premiar,
efeito na Matemática da quarta série ou nos resultados de
punir e corrigir os desvios. Leitura" (Wong, Wing, Martin & Krishnamachari, 2018).
Base nacional comum, testes e responsabilização e outros dis-
Os passos indicados por ele podem ser vistos nos procedi-
.i. positivos da reforma são mecanismos implantados de cima para
mentos da reforma empresarial da educação: padronização atra-
baixo e ancorados em leis3 que, na prática, levam as redes pú-
vés de bases nacionais curriculares (etapas 1 e 3), testes censitá-
rios (etapas 2 e 4) e responsabilização verticalizada (etapa 5). A
1
Tramita no Congresso Nacional a Lei de Responsabilidade Educacional com
lógica esperada é que, definindo o que se deve ensinar, a escola
essa finalidade.
saberá o que ensinar, os testes verificarão se ela ensinou ou não, e 2
Á capacidade das redes públicas para responder às demandas é dificultada por
a responsabilização premiará quem ensinou e punirá quem não leis que fixam tetos para investimento (teto de gastos) e contratação de pessoal
(Lei de Responsabilidade Fiscal) que asfixiam o setor público e impedem sua
ensinou. A isso a reforma chama de "alinhamento". expansão e funcionalidade. No caso da lei de responsabilidade fiscal, ela impede
Uma vez instalado o ciclo, leis passam a regulamentar os a contratação de pessoal (professores, por exemplo) mas libera a contratação de
processos de responsabilização e a definir como o cumprimento empresas terceirizadas.
Í'· 3
Todos estes instrumentos estão ancorados em leis. Envolvem a) a lei de
r\i ou não das metas afeta o acesso a recursos federais ou locais (editais responsabilidade educacional e do sistema nacional de educação em tramitação
de licitações específicos, acesso a programas ou dotações especiais,
l·:
no Congresso; b) instrumentos legais que regulam o Sistema Nacional de
bônus de mérito etc.), e definem também a responsabilização dos Avaliação da Educação Básica (Saeb); e c) os que regulam a base nacional comum
,, curricular (Brasil, 2017).

78 79
T
blicas a recorrer a uma séne de possibilidades de privatização Em vez de cuidar da remoção das condições que impedem
por dentro do sistema público (Ball & Youdell, 2007; Adrião, et o setor público de ampliar sua qualidade (por exemplo: instalar
al. 2016), que conduzirão, em algum tempo, a própria retirada turmas menores,5 eliminar o professor horista, combater a po-
da escola do âmbito do setor público, reinserindo-a em um breza, entre outras), essa política não reconhece limites estru-
turais da ação da escola e prega a definição de "padrões" que
mercado educacional pleno.
Estes mecanismos estão e1n uma dinâmica: bases nacionais permitam a "elevação da régua" nos testes (Semell, 2018), ou
curriculares (tanto relativas ao que deve ser ensinado aos estudan- seja, acrescentam mais exigências sem remover os impedimenros
tes nas escolas quanto relativas à formação dos profissionais da que afligem as redes públicas. Nessas condições, mais escolas
educação) fornecem as competências e habilidades para "padroni- tendem a falhar, e consequentern.ente mais escolas se tornam
zar" o ensino e a aprendizagem; os testes (usualmente censitários) candidatas à privatização por terceirização ou vouchers. Cria-se
cobram a aprendizagem especificada pela base e fornecem, por um "culto à nota mais alta" que tudo justifica: inclusive o fecha-
sua vez, elementos para inserir às escolas em um sistema meri- mento das escolãs e sua conversão em escola terceirizadas, ini-
tocrático de prestação de contas (accountability) de seu trabalho, ciando o processo de constituição de um mercado educacional.
alimentando a competição entre escolas e professores. Neste pro- Como é típico da reforma empresarial, essas ações, aparente-
cesso, as escolas que "falham" nas metas ficam vulneráveis à pri- mente sem relação, se articulam em uma engenharia de "alinha-
vatização. O número de escolas que falham pode ser aumentado mento" (bases/ensino/avaliação/responsabilização), eliminando
com o manejo do rigor das bases curriculares e/ou dos testes. Ór- a diversidade e deixando pouco espaço para a escola ou para o
gãos de controle fustigam gestores e redes públicas. A mídia cria magistério criar, sendo sufocado por assessorias, testes, platafor-
um senso comum favorável às reformas, recorrendo a avaliações mas de ensino online e manuais igualmente desenvolvidos e pa:-
internacionais da educação brasileira para exaltar o caos educacio- dronizados a partir das bases nacionais comuns. Tais processos
nal existente, ou contrasta escolas públicas com escolas privadas constituem-se em uma violência que impõe a manifestações cul-
de bom desempenho e dá publicidade a casos de sucesso (p. ex. turais diferenciadas um mesmo padrão oficial, marginalizando
Sobral, no estado do Ceará) que possam ser elevados à condição e deslegitimando, por exemplo, os povos do campo. Somente
de modelo, sugerindo a viabilidade destas políticas. com a aprovação nos testes padronizados e com o domínio das
A finalidade última dessa engenharia é criar as condições habilidades e competências básicas oficiais considera-se que o
para induzir a privatização da educação, estipulando metas que
desra meta em <https://avaliacaoeducacional.com/2018/06/11/monitoramento-das-
são difíceis de serem atingidas, nas condições atuais de funcio- metas-do-pne-relatorio-ii/> . Nos Estados Unidos a NCLB fixou o ano de 2014 para
namento da educação pública, desmoralizando a educação pú- que todas as escolas estadunidenses fossem proficientes em Leitura e Matemática
- um objetivo que se sabia desde o início inatingível. O prazo não foi cumprido,
blica e o magistério.4
mas durante este processo acelerou-se a privatização das escolas consideradas
"fracassadas". Ver balanço das políticas Bush e Obama em Egalite (2018).
5
Veja literatura mostrando o impacto positivo de turmas menores na qualidade da
• Um bom exemplo disso na realidade brasileira é a estratégia 7.2 (a e b) da meta 7
educação em Schanzenb'.!-::h (2014).
do Plano Nacional de Educação em vigência. Confira a avaliaç,.1u '-i_UC e ínep faz

80 81
aluno está apto a conviver com as "exigências do século XXI" - o que se considera uma "boa aprendizagem", entendida como
tudo o rn.ais está descartado e se transforma em algo "opcional", uma coleção de habilidades e competências em disciplinas básicas
já que não é chancelado pelas avaliações nacionais. (usualmente Português e Matemática). Coloca-se a ênfase no
Os resultados das avaliações passam a guiar a vida escolar. "direito de aprender" e não no "direito de ser educado", o qual é
A elevação da nota da escola é estabelecida como referência de mais amplo; 6 e por meio de uma segunda redução define-se que
qualidade, o que leva à ocultação do debate sobre as finalidades a qualidade da aprendizagem se mede pelas médias de desempenho
educativas, favorecendo a captura da ação pedagógica pelo status dos estudantes de uma escola: se ela sobe, há qualidade; se cai,
quo. Emery (2005), analisando o nascimento desse movimento não há. 7 Por este veio "positivista" tudo que não for referente
dentro dos Estados Unidos, afirma que: ao básico (Português e Matemática, no máximo Ciências) e não
puder ser medido em testes fica de fora e é desestimulado.
Um dos efeitos dos testes de alto impacto que estou segura que
agradou aos dirigentes empresariais é que o debate histórico Recente esforço de um grupo de pesquisadores brasileiros
público sobre quais deveriam ser as finalidades da educação [...], do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais,
foi eliminado. Em seu lugar, o aumento das pontuações nos testes responsável pelo planejamento das avaliações de larga escala,
tornou-se um fim em si mesmo [...] (p. 1). procurou mostrar a inadequação de se to1nar como única
E, com isso, decreta-se que não é mais necessário discutir referência os resultados cognitivos dos testes (Santos, Horta Neto
o que entendemos por uma "boa educação para a juventude", & Junqueira, 2017), no entanto, foi liminarmente censurado
assumindo-se as demandas do status quo vinculadas às novas pela direção do órgão, comprometida com modelos de reforma
necessidades de preparação de mão de obra, na forma de com- empresarial.
petências e habilidades (para o século XXI) - matéria-prima das A insistência da reforma empresarial para que a escola se
bases nacionais curriculares. restrinja à "aprendizagem das disciplinas básicas" é uma demanda
Por esta via, cria-se uma identidade entre boa educação de longa data do status quo, assustado com a possibilidade de
e elevação das notas da escola nas "disciplinas básicas" de que os processos de trabalho inevitavelmente baseados em maior
Leitura, Matemática e Ciências, em avaliações de larga escala uso de tecnologia, ao demandarem mais instrução, acabem
censitárias baseadas em testes (Ravitch, 2010). Este movimento é por "educar demais a mão de obra", levando-a_ a níveis de
impulsionado por agências internacionais como o Banco Mundial, conscientização maiores que mobilizem e coloquem em xeque
o BIRD e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento o próprio status quo. 8
Econômico (OCDE) - especialmente colocando as avaliações do
Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa) - como 6
Mesmo quando se incluem as chamadas "habilidades socioemocionais", como o
referência para a avaliação de políticas educacionais em âmbito nome diz, vêm na condição de mais "habilidades a serem ensinadas". Além disso,
internacional (Libâneo & Freitas, 2018). isola-se o direito de aprender de outros direitos que são fundamentais para se ter
condições de aprender (saúde, renda, habitação etc.).
Nesse processo, são feitas duas reduções: na primeira, 7 Ver Ravitch, 2010.
reduz-se o foco do que se considera uma "boa educação'; para 8
Daí a cruzada contra as disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.

82 83
,- Daí porque a reforma empresarial defende também a Com a ênfase no "básico" das "disciplinas básicas" e sua ava-
profissionalização no Ensino Médio (implementada pela atual liação em testes padronizados, desenvolve-se um discurso técnico-
reforma do Ensino Médio com a desculpa de que hoje ele não é -científico de legitimação que tem forte aceitação do senso comum
"atrativo") criando uma linha de exclusão que vai do Ensino Médio (e na mídia) e cria uma pressão sobre as redes de ensino que, junta-
para as empresas (profissionalização precoce dos mais pobres), em mente com os fatores descritos anteriormente, acaba por demandar
detrimento de uma linha de inclusão que vá do Ensino Médio para a adoção da política da reforma empresarial pelos governos.
o Ensino Superior (reservado à elite do Ensino Médio). Sem essa No entanto, como uma organização complexa, a escola permi-
profissionalização, uma parcela da juventude fica algum tempo te um grande conjunto de vivências, organizadas ou não, que vão
dentro do sistema de Ensino Médio e sai, denunciando sua má muito além das médias obtidas em duas ou três das disciplinas,
formação através da evasão; com a profissionalização precoce, essa como hoje estão começando a admitir, por conveniência própria,
mesma parcela é desviada para o trabalho, saindo ofi~almente alguns reformadores empresariais (Egalite, 2018; Hitt, McShane &
das estatísticas de. abandono escolar, sem que se tenha que alterar W~f, 2018). Um estudo conduzido no Laboratório de Observação
a qualidade de ensino para atender a todos. e Estudos Descritivos (Loed), da Faculdade de Educação da Uni-
A reforma empresarial costuma argumentar que a "base" camp, identificou, com a participação dos professores, 23 dimen-
pode ser modificada nos estados, incluindo outros conteúdos, sões de qualidade na escola (Sordi, Varani & Mendes, 2017). Isso
no entanto, isso é enganoso. Primeiro, porque não há educação ·revela como estamos diante de um campo variado e que não se
de tempo integral cuja escala permita aos estados irem além do limita ao desempenho do aluno em testes - embora possa incluí-lo.
básico em escala significativa de escolas, segundo, porque há um Pouco a pouco, os processos de avaliação baseados em testes
sistema de avaliação nacional que é construído sobre o que está vão criando o que Madaus, Russell e Higgins (2009, p. 96-101)
definido como "básico", e dessa forma o que for acrescentado chamaram de uma "elite técnica". Esta elite fala a linguagem
pelos estados não é incluído nas avaliações nacionais. esperada por essas políticas, e isola-se do campo da educação
Mais recentemente, ancorado em duvidosos conceitos em fundações e think tanks voltados a dar cobertura técnica
(Smolka, Laplane, Magiolino & Dainez, 2015), as bases na- em defesa de determinadas posições teóricas, bem como em
cionais têm incluído as chamadas habilidades socioemocionais organizações sociais e empresas prestadoras de serviços de ava-
(Brasil, 2017). Amplia-se a padronização para áreas relativas ao liação da educação para governos e secretarias de educação.
desenvolvimento da personalidade dos estudantes, ampliando- Seus vereditos são suportados por algoritmos e modelos
-se igualmente os processos de violência cultural. Como tais matemáticos impenetráveis para quem não se especializa neles,
aspectos poderão ser incluídos em avaliações nacionais (e, por- fazendo com que se imponham como referência científica para
tanto, na prática das escolas), abre-se um perigoso precedente o diagnóstico do estado da educação nacional e convertendo-se
quanto ao controle moral da formação dos estudantes, com em fonte de poder econômico e político.9
repercussões danosas na formação dos jovens e na convivência
9 No Brasil, essa elite téc:r1ic? reúne-se na Associação Er:isileira de Avaliação (Abave).
das escolas.

84 85
Isolados do campo da educação, com uma visão estreita dos OBSTRUINDO A QUALIDADE DA ESCOLA
processos educativos, restrita ao âmbito das próprias tecnologias PÚBLICA: MAIS IMPLICAÇÕES ÉTICAS
de medição, a maioria transforma-se em uma verdadeira "câmara
1
! de eco" de si mesmo, em geral capturada pelo status. quo.
1!!
'í,fj
Para Madaus et al. (2009), apesar de prevalecer na sociedade
,,
'j]

a compreensão de que a tecnologia é fundamentalmente neutra,


'
a tecnologia dos testes, como toda tecnologia, cria novas pos-
sibilidades, mas os usos que são feitos com os testes produzem
consequências não planejadas que tornam os testes associados à
responsabilização verticalizada usados nestas políticas um "pa-
radoxo de boas e más notícias" (p. 104). Não foi outro senão o
j/
. '!
! ,,,;
caminho dos "paradoxos" a trilha percorrida pela reforma em-
presarial da educação em um dos países que mais aplicou esta
política, os Estados Unidos da América, cujos resultados já estão Quais os resultados práticos desses processos que visam a
disponíveis para exame. 10 constituição de um vetor de privatização para as redes públicas?
Depois de mais de quinze anos de políticas de testes e responsa-
bilização verticalizada, determinadas de forma centrali7.ada por
Washington, 1 os Estados Unidos puseram fim, em 2015, à lei
1Vo Child Left Behind (NCLB) aprovando novo dispositivo le-
.i \,
gal, a lei Every Students Succeeds (ESSA). Com isso, embora
tenham sido mantidos os testes, abriu-se um período na política
educacional estadunidense em que os estados têm mais auto-
nomia para desenhar seus próprios sistemas de avaliação, po-
dendo incluir outras dimensões para além dos testes cognitivos.
Na verdade, se exige pelo menos mais uma dimensão além dos
resultados dos testes.

j:! 10
Nos limitaremos a trazer mais elementos da aplicação dessa política nos Estados 1
Os Estados Unidos passaram pela Lei No Chi/d Left Behind (NCLB) aprovada
r,, ! Unidos, mas também é interessante examinar sua trajetória no Chile e no México. em 2002 pelo governo Bush, e passaram pelo programa Race to the Top (RTT)
Pode-se consultar também o relatório da Unesco (2017) sobre Monitoramento do governo Obama, iniciado em 2009, implementado enquanto ainda não se
i'
Global da Educação, p. 17-26 da versão resumida, para uma visão mais geral. aprovava a reautorização da NCBL, que viria a ser chamada Every Student Suc-
1
ji, Uma boa exposi.çiio deste movimento também é encontrada em Bastos, 2018. ceeds Act (ESSA) em 2015. Ver também Bastos (2018, p. 144 e seguintes).

86 87
Isso colocou na pauta dos estados estadunidenses perspecti- para o funcionamento da reforma empresarial pelo seu potencial
vas para inovar seus sistemas de prestação de contas. Mas o peso de controle e padronização.
da lei NCLB ainda é grande e as consequências nefastas desta Avaliando a política de testes e accountability dos EUA, Carlson
política continuarão ameaçando aquele país por muito tempo. 2 (2018) considera que, embora ela tenha produzido alguma melho-
A avaliação americana de larga escala feita pelo governo fe- ria nas médias de aprendizagem dos estudantes em Leitura e Ma-
deral não é censitária como no Brasil, e sim amostral. Mas as temática, a interpretação destes resultados não é simples e direta.
avaliações são censitárias e têm que envolver pelo menos 95% Segundo ele, existem várias razões para que tais pontuações
da população estudantil. A nova lei aprovada em 2015 não é possam ter aumentado: podem refletir ganhos de aprendizado
um grande avanço, mas mostrou que os movimentos antitestes e do aluno naqueles aspectos testados; podem refletir uma maior
anti-accountability conseguiram arranhar a impenetrável filoso- familiaridade desenvolvida pelo aluno a esse tipo de avaliação,
fia da NCLB e seu lobby empresarial. sem refletir de fato uma maior aprendizagem; podem refletir
Após esse período de testes e accountability regado a tentati- uma maior ênfase das escolas e professores na preparação dos
vas de motivar professores com bônus e pagamento variável por alunos para a realização de testes e/ou ensino de estratégias para
valor agregado baseado em testes dos estudantes, há indicações maximizar seu desempenho neles; e finalmente, pode ser que
cada vez mais consistentes apontando que tais políticas fracas- a melhoria nos testes seja produto de manipulação baseada em
saram e produziram uma estagnação na qualidade da educação fraudes de vários tipos. O problema é que não há como saber
pública (Carlson, 2018; Loveless, 2018; Koretz, 2017 e Hansen, qual destas possíveis causas para o aumento das notas está
Levesque, Valam & Quintero, 2018; Ravitch, 2013; Mathis & atuando em um determinado caso (Carlson, 2018, p. 13).
Trujillo, 2016; \Vong, Wing, Martin & Krishnamachari, 2018). O balanço que D. Koretz (2017) faz sobre o período corrobora
Foram apresentados vários textos em um seminário do a posição de Carlson. A suposição dessas políticas era que medir
conservador American Enterprise lnstitute em 2018 para o desempenho dos estudantes por meio de testes permitiria
avaliação das dificuldades das políticas educacionais dos governos usar tais medidas para criar incentivos para obter· um melhor
Bush e Obama. 3 Vamos examinar aqui aqueles que destacam desempenho do aluno. "Se nós recompensamos as pessoas por
as políticas de testes e accountability elaborados por D. Carlson produzir o que queremos [...] eles produzirão mais daquilo que
(2018) e o exame dos primeiros resultados da implantação do queremos. As escolas serão melhores e os estudantes aprenderão
Common Core, a base nacional comum curricular estadunidense mais" (Koretz, 2017, posição 141). Contudo este raciocínio não
para Língua Inglesa e Matemática, feito por T. Loveless (2018). se mostrou, segundo ele, tão simples, "e as evidências mostram
Destacamos esses dois aspectos porque os consideramos centrais claramente que esta abordagem falhou". Isso, continua o autor,
não quer dizer que não produziu nenhum resultado, mas
eles foram poucos e pequenos. Os poucos resultados foram
2
Sobre isso pode-se ver Ravitch (2011 e 2013). amplamente contrabalançados por sérios e extensos efeitos
3 Os textos deste seminário podem ser encontrados em d1ttp://www.aei.org/
events/bush-obama-school-reform-lessons-learned/>. negativos (Koretz, posição 141).

88 89
Quais são estes efeitos negativos? O autor indica que essa Também podemos aprender com os anos de account,1bility
1:1 política levou os professores a gastar grande tempo em várias estadunidense que a sustentação e permanência desse tipo de
1'1 formas indesejáveis de preparar o estudante para os testes; política necessita ter uma comunidade de adeptos que a defenda
levou ao aumento da manipulação e inflação das notas, bem quando atacada. Mas essas políticas não têm uma população
[
~i corno a fraudes que conduziram a prisões; e criou um estresse cativa que as defenda. No caso dos EUA, a pesquisa anual
desnecessário entre professores e pais e, mais importante ainda, Gallup aponta que a sua rejeição passou de 27% para 46% entre
entre os estudantes (Koretz, 2017, posição 149). Ele ainda agrega 2005 e 2010 (Carlson, 2018, p. 21).
que há crescente evidência sugerindo que, contrariamente às Outro aspecto apontado diz respeito ao estreitamento do
expectativas de se usar essas políticas para fechar as diferenças conceito de educação. Como tais políticas reduzem o conceito
de aprendizagem entre estudantes mais pobres e mais ricos, elas de educação ao de aprendizagem de Leitura e Matemática em
criar2m uma ilusão de que estas diferenças são menores do que testes padronizados, usualmente de múltipla escolha, e induzem
na realidade são (Koretz, posição 162). a escola a se concentrar nessas disciplinas, elas esvaziam a ênfase
No Brasil, um estudo de Capocchi (2017) procura verificar se da· escola em outràs disciplinas como as Artes, História, Filo-
há evidência empírica do emprego de estratagemas indesejados sofia etc. Isso fez com que cada vez mais fosse sendo colocado
associados à accountability nas avaliações em larga escala do Saeb em debate a questão das finalidades da educação, levando a um
(eliminação de estudantes de baixo desempenho das avaliações, clamor por um conceito mais amplo de educação.
além de fraudes). A resposta que o estudo fornece é que ela Baseado nessas dificuldades colhidas durante quinze anos
existe e de modo consistente com o indicado em literatura de aplicação de testes e accountability nos Estados Unidos,
internacional (p. 164). Carlson (2018) arrisca duas previsões para o futuro: 1) essas
l
Para Carlson (2018), as determinações da NCLB eram cla- políticas mostraram que há um movimento de mudança da
ras para que os estados se concentrassem no ensino de Língua ênfase das condições (imputs) para um aumento da informa-
Inglesa e Matemática e davam poucos incentivos para que se ção sobre o desempenho dos estudantes (outputs). "O proble-
trabalhassem outras áreas ou aspectos do desenvolvimento das ma não foi termos mais informações sobre os estudantes e as
crianças e jovens. O autor entende que há evidências empíricas escolas, mas o que foi feito com estas informações"; 2) no lon-
acumuladas que mostram que tais preocupações não eram in- go prazo é possível que a política determine aos Estados que
fundadas.
produzam mais informações sobre seus estudantes e escolas,
Ele também aponta que alguns estados, fugindo das conse- mas que deixe aos estados, distritos e pais a decisão sobre como
quências negativas associadas aos testes, também definiram o usar tais informações (p. 27).
nível de proficiência do aluno à sua própria maneira, baixando Esses resultados eram previsíveis e foram alertados por
0
nível de exigência nos testes estaduais em vez de elevá-los. Foi Campbell (1976) há bastante tempo, e os Estados Unidos
0
caso da Carolina do Sul entre 2005 e 2009 e também de Nova pagam um preço alto por terem se negado a colocar atenção na
York (Carlson, 2018, p. 17). chamada "lei de Campbell":

90 91
Quanto mais um indicador social quantitativo é usado para a tomada O autor inicia sua análise pelo impacto da lei No Chi/d Left
de decisão social, mais sujeito ele estará a pressões de corrupção e Behind (NCLB), que também era baseada em "padrões" de
mais apto estará a distorcer e corromper os processos sociais que ele
pretende monitorar.
aprendizagem, ainda que diferentes do Common Core. 5 Em um
dos estudos que o autor aponta, conduzido por Wong, Cook e
Não é outra a opinião de Diane Ravitch (2012): Steiner (2009), foi usada a variação nas pontuações da avaliação
A Lei de Campbell nos ajuda a e11tender por que o No Chi/d Left nacional estadunidense, o National Assessment of Educational
Behind e o Race to the Top são prejudiciais à educação. Eles co- Progress (Naep) para medir o impacto dos padrões da NCLB nas
locaram pressão sobre os professores, diretores, distritos escolares e
estados para que obtivessem pontuações cada vez mais altas. Como escolas. Dois delineamentos de séries temporais interrompidas
vimos em Atlanta e em Washington, D.C., este tipo de pressão pode são implementados. Um conjunto de análises é feito em âmbito
levar educadores a trair seu dever ético, alterando os resultados dos nacional e contrasta escolas públicas e católicas, as últimas,
testes. Como vimos no estado de Nova York, este tipo de pressão
ao contrário das públicas, supostamente fora do alcance das
pode levar um Departamento de Educação Estadual a reduzir a exi-
gência de aprovação em testes estaduais, de modo a aumentar as medidas da NCLB; o outro é feito no âmbito estadual e-contrasta
taxas de proficiência. (p. l) os estados cujos padrões de proficiência resultam em escolas que
precisam implementar muitas mudanças exigidas pela NCLB,
Se a política de testes e accountability não foi bem-sucedida,
com aqueles estados cujos padrões exigem menos mudanças nas
outro componente da reforma empresarial da educação
escolas - um indicador do rigor do sistema de responsabilização.
estadunidense encontra grande dificuldade para provar sua
As análises mostram que a NCLB melhorou consistentemente
eficácia, pelo menos até este momento: trata-se da ideia de um
a Matemática, tanto na 4a quanto na 8ª série. No entanto, a
"padrão" nacional de aprendizagem, que nos Estados Unidos é
Leitura na 4a série não foi afetada positivamente na Naep em
conhecido como Common Core4 (padrões para Língua Inglesa
nenhuma análise.
e Matemática) e que no Brasil está sendo implantado de forma
Como advertem Loveless e os próprios autores, esses dados
mais ampla, para todas as disciplinas da escola, com o nome de
devem ser relativizados, pois ao se medir o impacto da NCLB
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
sobre o Naep não é apertas o efeito da NCLB que está sendo
Em recente _balanço da implementação dos "padrões" de
captado, mas sim uma série de outras variáveis oriundas das po-
aprendizagem estadunidenses (No Chi/d Left Behind e Common
líticas públicas em geral. No entanto, o estudo põe em evidência
Core) nos Estados Unidos, T. Loveless (2018) - do conservador
a ineficácia dos padrões nacionais para alterar o desempenho
Brooking lnstitution - mostra um quadro pouco alentador.
em Leitura.
Loveless ainda cita o estudo exploratório de Whitehurst
4
Common Core State Standa~ds lnitiative é um esforço conjunto da National (i009) feito com M. Croft, do Brown Center, para avaliar a re-
Governors Association Center for Best Practices e do Council of Chie/ State School
Officers para desenvolver padrões comuns pata o ensino da Língua Inglesa e
Matemática para a Educação Básica estadunidense. Bill Gates financiou boa 5 O movimento pelo desenvolvimento de referências curriculares teve início nos Es-
parte deste esforço. tados Unidos no começo d0s anos 1990, conforme descreve Ravitch (2011, p. 31).

92 93
l
;I lação entre a qualidade dos "padrões" de conteúdo de Matemá-
tica, adotados pelos estados dos EUA (usando as classificações
dos padrões estaduais em Matemática feitas separadamente pela
de "teoria da qualidade"; b) fugindo das consequências do NCBL
que levaram alguns estados dos EUA a baixar suas exigências nos
testes estaduais para não perder recursos federais, o Common Core
Fundação Fordham e pela Federação Americana de Professores), propõe elevar a régua e exigir objetivos mais rigorosos. Com isso,
e o desempenho dos estudantes no Naep (2000-2007). Os pes- escolas e estudantes responderiam alcançando esses objetivos mais
quisadores concluem que: elevados, pressuposto que o autor chama de teoria dos "padrões
Seja examinando os resultados dos estudantes brancos ou negros de desempenho rigorosos"; e c) o terceiro pressuposto afirma que
para cada ano dos resultados do Naep ou para os ganhos em pon- a padronização é mais eficiente, evitando-se gasto de tempo e
tuação ao longo de qualquer período de tempo, não encontramos dinheiro com manuais e materiais de ensino que são feitos para
nenhuma associação estatisticamente significativa e os tamanhos de
efeito foram muito pequenos. (Whitehurst, 2009, p. 6)
atender as preferências de cada um dos estados, e produzindo
ganhos na qualidade dos materiais unificados pela base comum,
Os autores registram que os resultados do trabalho são cor- com a vantagem adicional de que quando os alunos mudam de
roborados por um estudo de 2008 do National Center for Edu- estado para estado, eles não enfrentam defasagens de conteúdo.
cation Statistics. Para eles, "há um argumento racional feito a· Loveless chama este pressuposto de "teoria da padronização"
favor de que bons padrões de conteúdo possam ser uma pré- (Loveless, 2012, p. 8).
-condição para as reformas desejáveis, mas atualmente é apenas Contudo, Loveless (2012) considera que não se deve esperar
isso - um argumento" (Whitehurst, 2009, p. 7). muito do Common Core.Na realidade ele representa mais uma boa
Em um relatório de 2012 do Brown Center ReportonAmerican intenção, e estas nem sempre são realizáveis. Há uma diferença
Education (BCR), Loveless (2012) examinou os pressupostos e entre o currículo pretendido e o currículo implementado: "O
os impactos do Common Core americano no desempenho dos currículo implementado é o que os professores ensinam. Se isso
estudantes no Naep e também concluiu que a qualidade dos difere de estado para estado é em grande parte desconhecido; o
"padrões" não teve impacto significativo no desempenho dos que é mais revelador é que pode diferir dramaticamente de sala
estudantes (p. 6-14). de aula para sala de aula em uma mesma escola" (p. 13).
Loveless (2018) reafirma os resultados obtidos neste estudo O autor conclui dizendo:
de 2012 indicando que a qualidade dos padrões estaduais não
Assim como o brilho do consenso em torno NCLB desbotou depois
está correlacionada com os escores estaduais no Naep (p. 9-10). de alguns anos, as rachaduras estão agora aparecendo na parede de
O relatório do Brow Center também ratifica o que já havia apoio ao Common Core. Não deixe a ferocidade do debate que se
apontado Whitehurst (2009). aproxima te enganar. A evidência empírica sugere que o Common Core
terá pouco efeito sobre o desempenho dos estudantes americanos. A
Para Loveless (2012), o movimento estadunidense pela base
nação terá que procurar em outro lugar as maneiras de melhorar suas
nacional curricular está ancorado em três pressupostos: a) o escolas (Loveless, 2012, p. 14). 6
desempenho dos estudantes aumentará porque os alunos vão
estudar em um currículo melhor, pressuposto que o autor chama 6
O autor reafirma estas ideias em Loveless, Z018.

94 95
Em seu texto mais recente apresentado no seminário do padronização da educação, mas apenas como uma aspiração
American Enterprise Institute, de 2018, Loveless relata estudos em sua forma mais geral. Porém, quando eles começam
que realizou com o Naep - avaliação de larga escala do Ensino a ser adotados e começam a ser associados a siste1nas de
Básico estadunidense -, classificando os estados em estados responsabilização rotulando as escolas que não atingem o padrão
de forte ·e de média adoção do Common Core e uma terceira com.o "fracassadas", o suporte diminui, especialmente quando
categoria de não adotantes (Loveless, 2015). O estudo mostra os "padrões" são vinculados a testes, sendo difícil manter o
que os ganhos no período 2009-2013 favorecem estados de apoio obtido durante seu planejamento inicial. Pelo menos nos
implementação forte, que aumentaram 1,9 pontos no Naep em Estados Unidos, o público "ama suas escolas locais" (Loveless,
Matemática no oitavo ano do Ensino Fundamental, enquanto 2018, p. 17).
os implementadores médios ganharam 1,0 ponto. Mas os Para ele, há ainda outro problema: padrões impostos vertica-
estados não adotantes
. ganharam
. 0,6 pontos. Como se pode ver, lizadamente encontram uma grande dificuldade em serem im--
a vantagem que separa os est;:i.dos de forte adoção do Comrrion plementados no dia adia da escola.
Core dos estados não adotantes do Common Core é somente de Essas duas constatações de Loveless são as que têm sido ou-
1,3 pontos na escala, o que é bastante pequena (cerca de 0,035 vidas também aqui no Brasil, na implantação de nossa BNCC.
desvio padrão). . · . Os planejadores se esquecem de que no interior de cada escola
O estudo foi repetido para o período 2013-2015, atualizando há uma "política local" que não se resume às críticas que sim-
a classificação dos estados quanto à implementação do Common plistamente os reformadores empresariais formulam. Tais crí-
Core (Loveless, 2016). ticas afirmam que na escola há apenas uma oposição ao novo
Tomando todo o período, 2009 a 2015, o autor observa que e apenas um favorecimento do corporativismo do magistério
se na primeira fase da pesquisa, nos primeiros anos de Common e dos sindicatos. Afirmam que na escola (especialmente se os
Core (2009-2012), o estudo apontava uma pequena vantagem estudantes vão mal) o magistério pensa somente em si e não
para os estados que adotaram o Common Core; no período nos estudantes. Com isso, perante a opinião pública, a reforma
seguinte (2013-2015) todas as comparações favoreceram os procura colocar-se como uma defensora da inovação e dos estu-
estados que não optaram pelo Common Core (entre 1,1 a 2,4 dantes mais desfavorecidos, tenta aparecer como a única que se
pontos no Naep). Loveless enfatiza que todos os estados dos preocupa em fechar as diferenças de aprendizagem entre os mais
EUA, independentemente de adotarem entusiasticamente o pobres e os mais ricos.
Common Core ou desenvolver seus próprios "padrões", estavam Essa visão simplista da "política interna" da escola é seu
com os resultados do Naep estagnados de 2009 a 2015 (Loveless, primeiro grande fracasso, e lança as bases para os demais. Os
2016, p. 16). reformadores subestimam o poder da vida escolar na imple-
Loveless (2018) ainda destaca algumas das Hçóes aprendidas mentação de suas reformas. Na verdade, sua proposta é feita
com a experiência estadunidense na implantação de sua base contra os atores da escola, baseada em uma responsabilização
nacional curricular. Segundo de, o público em geral gosta da verticalizada e autoritária. A experiência estadunidense capta

96 97
esse dilema da reforma: "os defensores dos 'padrões' retratam a nos testes que "alinharam" a avaliação ao ensino pelo Common
reforma da educação como um problema de engenharia" - diz Core naquele estado, feito por meio de um contrato milionário
Loveless (2018, p. 18). (39 milhões de dólares) c11m a Pearson, lnc. (multinacional
Essa característica pode ser vista na fala de representantes do inglesa que opera no campo da avaliação). A avaliação começou
governo brasileiro, quando afirmam que o fundamental é "ali- a ser aplicada em 2013 para Língua Inglesa e Matemática,
nhar" o currículo e os exames nacionais com os "padrões", evo- atingindo 1,2 milhão de alunos.
cando ideias que se podem encontrar no NCLB estadunidense. Passados seis anos, os pesquisadores quiseram conhecer
Mas como aponta Loveless, "alinhamento não é sinônimo de melhor os resultados dos testes aplicados verificando como eles
qualidade" (2018, p. 18). estavam funcionando, tomando como referência especialmente
Os "padrões" supõem uma determinada visão de mundo que · aquelas questões que não eram de múltipla escolha, mas que
deveria orientar as escolas, mas tais escolhas dos planejadores (e exigiam construir uma resposta e destinavam-se a avaliar o
suas visões de mundo) não são automaticamente coincidentes pensamento de nível superior e a capacidade de raciocínio
com as dos profissionais da escola. Há vida inteligente no inte- crfrico, prometida pelo Comrnon Core. Essas questões exigem
rior das escolas, suficiente para submeter à crítica as ideias que que o aluno escreva sua resposta em vez de apenas selecionar
rondam a reforma empresarial da educação. uma, como nos itens de múltipla escolha.
Como afirma Loveless (2018), o "Common Core está no Os pesquisadores colocaram atenção no número total e na
purgatório das políticas públicas". Para o autor, não sabemos porcentagem de alunos que receberam zero neste tipo de respos-
se ele está funcionando e nem quando irá funcionar. Não ta, e como isso evoluiu ao longo do tempo - inclusive com foco
descartando outras possibilidades, o autor recomenda que se em estudantes com necessidades especiais, estrangeiros apren-
coloque entre as hipóteses a de que "os padrões simplesmente dendo o inglês e membros de grupos raciais e étnicos. Os pes-
não funcionam'' (p. 24). quisadores escolheram estudar essas respostas porque quando
O estado de Nova York adotou o Common Core em 2011. Entre o aluno recebe zero nelas, isso reflete a incapacidade completa
os argumentos - como acontece també1n no Brasil - estava o dele lidar com a questão, sendo uma resposta "totalmente im-
elogio dos "padrões" por serem mais desafiadores para o sistema precisa, ininteligível ou indecifrável" (p. 1-2).
escolar, com exigências mais altas que preparariam melhor os Os dados que obtiveram revelaram:
estudantes para a faculdade e as carreiras do século XXI. Além • um aumento abrupto no percentual de estudantes que
disso, alegaram que os padrões estimulariam o desenvolvimento receberam zero nas questões construídas em 2013,
do pensamento crítico, a capacidade de lidar com materiais mais quando os testes foram alinhados ao Common Core;
complexos, as habilidades de analisar informações, usar fatos e • aumentos particularmente acentuados, sustentados ao
apresentar evidências de forma lógica. longo do tempo, na porcentagem de zeros para os alunos
Recentemente, um estudo conduzido por Smith & Jacobowitz das 3ª e 4a séries e para os alunos estrangeiros aprendendo
(2018) procurou examinar a qualidade das respostas dos alunos Inglês e alunos com necessidades especiais;

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Em seu texto mais recente apresentado no seminário do padronização da educação, mas apenas como uma aspiração
American Enterprise Institute, de 2018, Loveless relata estudos em sua forma mais geral. Porém, quando eles começam
que realizou com o Naep - avaliação de larga escala do Ensino a ser adotados e começam a ser associados a siste1nas de
Básico estadunidense -, classificando os estados em estados responsabilização rotulando as escolas que não atingem o padrão
de forte ·e de média adoção do Common Core e uma terceira con10 "fracassadas", o suporte diminui, especialrnente quando
categoria de não adotantes (Loveless, 2015). O estudo mostra os "padrões" são vinculados a testes, sendo difícil manter o
que os ganhos no período 2009-2013 favorecem estados de apoio obtido durante seu planejamento inicial. Pelo menos nos
implementação forte, que aumentaram 1,9 pontos no Naep em Estados Unidos, o público "ama suas escolas locais" (Loveless,
Matemática no oitavo ano do Ensino Fundamental, enquanto 2018, p. 17).
os implementadores médios ganharam 1,0 ponto. Mas os Para ele, há ainda outro problema: padrões impostos vertica-
estados não ad~tantes ganharam 0,6 pomos. Como se pode ver, lizadamente encontram uma grande dificuldade em serem im--
a vantagem que separa os estados de forte adoção do Common plementados no dia a-dia da escola.
Core dos estados não adotantes do Common Core é somente de Essas duas constatações de Loveless são as que têm sido ou-
1,3 pontos na escala, o que é bastante pequena (cerca de 0,035 vidas também aqui no Brasil, na implantação de nossa BNCC.
desvio padrão). · Os planejadores se esquecem de que no interior de cada escola
O estudo foi repetido para o período 2013-2015, atualizando há uma "política local" que não se resume às críticas que sim-
a classificação dos estados quanto à implementação do Common plistamente os reformadores empresariais formulam. Tais crí-
Core (Loveless, 2016). ticas afirmam que na escola há apenas uma oposição ao novo
Tomando todo o período, 2009 a 2015, o autor observa que e apenas um favorecimento do corporativismo do magistério
se na primeira fase da pesquisa, nos primeiros anos de Common e dos sindicatos. Afirmam que na escola (especialmente se os
Core (2009-2012), o estudo apontava uma pequena vantagem estudantes vão mal) o magistério pensa somente em si e não
para os estados que adotaram o Common Core; no período nos estudantes. Com isso, perante a opinião pública, a reforma
seguinte (2013-2015) todas as comparações favoreceram os procura colocar-se como uma defensora da inovação e dos estu-
estados que não optaram pelo Common Core (entre 1,1 a 2,4 dantes mais desfavorecidos, tenta aparecer como a única que se
pontos no Naep). Loveless enfatiza que todos os estados. dos preocupa em fechar as diferenças de aprendizagem entre os mais
EUA, independentemente de adotarem entusiasticamente o pobres e os mais ricos.
Common Core ou desenvolver seus próprios "padrões", estavam Essa visão simplista da "política interna" da escola é seu
com os resultados do Naep estagnados de 2009 a 2015 (Loveless, primeiro grande fracasso, e lança as bases para os demais. Os
2016, p. 16). reformadores subestimam o poder da vida escolar na imple-
Loveless (2018) ainda destaca algumas das lições aprendidas mentação de suas reformas. Na verdade, sua proposta é feita
com a experiência estadunidense na implantação de sua base contra os atores da escola, baseada em uma responsabilização
nacional curricular. Segundo ele, o público em geral gosta da verticalizada e autoritária. A experiência estadunidense capta

96 97
Devemos aprender com o NCLB e com o Common Core dos
• uma diferença substancial na pontuação de zeros entre
estudantes negros e hispânicos 'versus' estudantes brancos EUA. Foram quinze anos esperando pelos resultados que, de
fato, não vieram. Um estudo de Hansen et ai. (2018) retrata o
e asiáticos; e
11:
• um número substancial de estudantes obtendo zero em pelo que foi a ilusão da era da accountability forte. Respondendo à
menos metade das questões de respostas construídas. (p.2) pergunta "o que as últimas duas décadas de resultados do Naep
O estudo põe em dúvida exatamente o potencial do Common nos dizem sobre a era da NCLB?", os autores afirmam:
1 Core para operar a elevação do pensamento crítico e a aprendizagem A responsabilização baseada em testes, peça central da NCLB, prova-

1 de níveis mais complexos, prometidas na implantação da base velmente teve efeitos profundos na tomada de decisões escolares. Nas
palavras de Daniel Koretz (2017), 'Entre em quase todas as escolas, e
j curricular no estado de Nova York. você entrará em um mundo que gira em torno de testes e pontuações
,l A trajetória dos "padrões" nacionais estadunidenses levanta de testes, dia após dia e mês após mês.' Se este enfoque implacável
questões éticas: temos direito de submeter gerações de crianças e foi saudável é um assunto de debate feroz. Por um lado, a prestação
de contas da NCLB pode ter chamado a atenção das escolas para as-
jovens a experimentação massiva, sem que tenhamos suficiente
suntos particularmente ·importantes, incentivando-as a ensinar bem
evidência que aponte a ausência de impactos negativos sobre as matérias e melhorando nossa compreensão sobre o desempenho dos
os estudantes e alguma possibilidade concreta de sucesso alunos por subgrupo e localidade. Por outro lado, pode ter desviado a
nestas políticas? Quais os riscos que são suportáveis em um atenção das escolas de outras responsabilidades i..nportantes - incluin-
do a preparação dos alunos como cidadãos - e levou a abordagens
empreendimento de escala nacional? instrucionais com maior probabilidade de melhorar as pontuações dos
Os estudos disponíveis certamente não têm o caráter de con- testes do que desenvolver conhecimentos e habilidades significativos.
clusivos, mas colocam uma séria dúvida na certeza com que os (Hansen, Levesque, Valam & Quintem, 2018, p. 12)
reformadores tratam a questão da base• nacional comum, os tes-
Embora as pontuações do Naep possam refletir muito mais do
tes e sua accountability verticalizada, principalmente porque con-
que apenas os efeitos da NCBL, as medidas de desempenho revelam
vertem tais iniciativas em experimentos sociais em escala, quan-
uma estagnação ao longo do tempo, como apontam os autores:
do eles podem significar mais décadas perdidas para a educação
Desde os primeiros anos da NCLB, as pontuações se estabilizaram
(Guisbond, Neil & Schaeffer, 2012; Mathis & Trujillo, 2016).
em grande parte nos níveis de desempenho nacional que muitos
Os reformadores empresariais admitem que a implantação americanos consideram abaixo do esperado, deixando ainda grandes
de uma base nacional sofre correções de rota, mas como aponta lacunas entre grupos historicamente favorecidos e desfavorecidos.
Lovcless (2018), para que uma rota seja corrigida é preciso que se (Hansen, Levesque, Valant & Quintem, 2018)
conheça a direção a seguir. Com os estudos, ainda que iniciais, Talvez seja por isso que a Nova Zelândia7 esteja sustando sua
indicando ausência de eficácia e com os defensores das bases na- base nacional comum alegando que a ideia carece de evidência.
cionais pedindo mais tempo para uma conclusão sobre os seus
efeitos no desempenho dos estudantes (Polikoff, 2017), não pa- 7 · Cf. em Stuff, 2018. Acessível em <https://www.stuff.eo.nz/national/
rece que tenhamos atingido um patamar que pudesse motivar os cducation/ 1O12877571government-moves-to-scrap-national-standards-and-
charter-schools>.
riscos de sua aplicação em e:::çala.

100 1 101

Ji
~
1

O novo mm1stro da Educação da Nova Zelândia, Chris CONTROLAR O PROCESSO,


Hipkins, ao assumir no início de 2018, enviou um projeto de lei PRECARIZAR O MAGISTÉRiO
que "acaba com os padrões nacionais do governo anterior e com
as experiências das escolas charters". Segundo o ministro a nova
legislação é "apoiada pela grande mabria do setor educacional".
Tanto os padrões nacionais corr.o as escolas charters foram· condu-
zidas com base em ideologia e não em evidências. Ambos foram re-
jeitados pela grande maioria do setor educacional. O forte ponto de
vista do governo é que não há lugar para eles no sistema educacional
da Nova Zelândia.

A fixação em soluções como as que acabamos de examinar


rcm um deito dr:unático para os países que entram nesta políti-
ca: como vimos, elas não geram rnais qualidade, além disso, adi-
cionam efeitos colaterais negativos (padronização cultural, mais As políticas descritas fracassaram. nos seus objetivos
segregação), destroem a escola pública (sugando seus recursos fi- declarados de trazer melhoria à qualidade da educação e
nanceiros) e ainda impedem que elas construam, conjuntamen- combater a segregação, no entanto, foram bem-sucedidas na
te com suas redes públicas, soluções alternativas para melhorar indução da privatização da educação. Um balanço das escolas
a qualidade de sua educação. O fato é que para melhorarmos a charters durante os governos Bush e Obama mostra que elas
educação não existe somente a alternativa da inserção da educa- aumentaram de 2% para 7% nos Estados Unidos durante
ção no livre mercado, regada a poiíticas de accountability, currí- estes governos (Egalite, 2018; National Center for Education
culo padronizado e testes censid.rios. Statistics, 2018), mesmo com a qualidade da educação
As estratégias alternativas precisam ganhar espaço para se- estagnada.
rem construídas com parâmetros diferentes dos que orientaram Neste caminho da destruição da educação pública, outro
até agora a reforma empresarial da educação. Trata-se de cons- dos objetivos da reforma associado à privatização, de caráter
truirmos um tipo de responsabilização que seja horizontalizado, ideológico, também foi sendo cumprido: controlar o processo
que aposte nos nossos professores, estudantes e gestores. Que educativo, colocando a escola sob formas de administração
seja planejada com eles e não contra eles. empresarial. Guiados por seu projeto político-ideológico, não
são poucas as vantagens que encontram nisso: permite o controle
da gestão, fazendo com que esta assuma um estilo empresarial
e impedindo com isso a gestão democrática da escola com
uma concepção pública, como um "bem comum"; e permite
o controle dos profissionais da educação, por quem nutrem

102 103
1.
.t.

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