COOPERAÇÃO CONSTITUCIONAL
E LEALDADE INSTITUCIONAL
Introdução
“Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder limite o poder”1. A clássica frase do
Barão de Montesquieu no Espírito das Leis retrata uma das constru-
ções teóricas mais influentes da cultura política do ocidente: que
as funções do Poder estatal devem ser distribuídas, repartidas e
institucionalizadas em poderes, autônomos, que mutuamente se
controlam através da faculdade de estatuir e da faculdade de impedir2.
O triunfo político dessa construção pode ser reconhecido desde a
gênese do constitucionalismo, quer na América – com todas suas
peculiaridades jurídico-políticas –, quer no constitucionalismo eu-
ropeu continental – já, inicialmente, com o art. 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão em França3.
Fato é que com a complexidade e velocidade da dinâmica
política; com o avanço da estrutura constitucional, passando histo-
ricamente pela criação e reconhecimento de instrumentos de con-
trole jurídico de constitucionalidade; com a ampliação do rol dos
Cooperação constitucional
Uma das soluções propostas para a manutenção da har-
monia intraestatal, por exemplo, foi aquela pensada por Benjamin
Constant e – por influência de por Pedro I (Pedro IV de Portugal)
– concretizada nas Cartas Políticas brasileira de 1824 e Portuguesa
de 1826. Ela consistia na da criação de um quarto poder (pretensa-
9
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed.
(Coimbra: Almedina, 2003), 588.
10
Na realidade americana, desde o século XIX o poder judiciário, mais pre-
cisamente a Supreme Court, sempre teve atuação e peso político-institucio-
nal bastante mais marcante. Enquanto isso, nos países de tradição roma-
no-germânica o judiciário tomou maiores proporções a partir do segundo
pós-guerra, sendo paradigmático o papel do Bundesverfassungsgericht na
estrutura jurídico-política da Lei Fundamental de Bonn.
11
Raoni Bielschowsky, Democracia Constitucional (São Paulo: Saraiva, 2013).
156• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
mente neutro) que teria como função harmonizar e equilibrar os de-
mais poderes dentro do Estado: o Poder Moderador12. Essa respos-
ta institucional teve vida curta tendo sido oficial e definitivamente
excluída da ordem constitucional brasileira em 1891 e da lusitana
em 1911.
De outra parte, algumas democracias parlamentaristas e
semipresidencialistas até hoje depositam na figura do Presidente
– Chefe de Estado – alguma função de mediação entre o governo
(executivo) e parlamento (legislativo), através de várias competên-
cias de controle político-subjetivo que vão desde a possibilidade
de dissolução de gabinete ao chamamento de novas eleições parla-
mentares, conforme diferentes desenhos institucionais13.
Entretanto, independentemente de imaginar-se a possibili-
dade de uma “autoridade neutra” (moderadora) que pudesse di-
rimir as questões e celeumas que surgissem entre os três poderes
do Estado; ou de partir-se desde a circunstância mais corrente de
separação tripartite do Poder, em todos os diversos formatos que
essa se apresenta, a antiga questão da Satira romana permanece:
Quis custodiet ipsos custodes?
De fato, quem vigiará os vigilantes? Quem controlará a legiti-
midade (e mesmo validade) da atuação daquele que tem força para,
de fato, do Poder abusar? Afinal, não será essa mesma uma das
questões de fundo do constitucionalismo: a de impedir que as for-
ças fáticas de poder oprimam e se imponham ilegitimamente sobre
a coletividade e sobre os indivíduos? Não será, talvez, essa a grande
questão do constitucionalismo, em suas diversas fases e, sobretudo,
desde o debate sobre quem é o soberano14? Não será essa, exatamente,
o principal tema pretendido pela conciliação definitiva entre consti-
tucionalismo e democracia15?
12
Notas sobre o desvirtuamento das ideias de Constant sobre o Poder
Moderador na Carta Constitucional de 1824: Paulo Bonavides, “O poder
moderador na constituição do império”, Revista de informação legislativa 41
(1974): 27-32.
13
Para o exemplo português, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Os
poderes do Presidente da República (Coimbra: Coimbra Editora, 1991).
14
Peter Caldwell, Popular sovereignty and the crisis of german constitucional
Law: the theory and practice of Weimar constitutionalism (Durham: Duke
University Press, 1997), Kobo edition.
15
Gilberto Bercovici, “Constituição e Política: uma relação difícil”, Lua
Nova 61 (2004): 6; Bielschowsky, Democracia Constitucional.
Raoni Bielschowsky • 157
Nesse sentido, quanto à limitação do Poder, Lowenstein
identifica que:
16
Karl Loewenstein, Teoria de la constitución, 2 ed., trad. (Barcelona: Ariel,
1976), 149: “con el tiempo se ha ido reconociendo que la mejor manera de
alcanzar este objetivo será haciendo constar frenos que la sociedad desea
imponer a los detentores del poder en forma de un sistema de reglas fijas
- «la constitución» - destinadas a limitar el ejercicio del poder político. La
constitución se convirtió así en el dispositivo fundamental para el control
del proceso del poder”
17
Konrad Hesse, A força normativa da constituição, trad. Gilmar Ferreira
Mendes (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991), 19, “pode-se
afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se pre-
sentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos princi-
pais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder
(Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zurVerfas-
sung). (...) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição
depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De to-
dos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concep-
ção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille
zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente”.
158• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
constituídos, que se pode identificar a necessidade de um princípio
genérico de Cooperação Constitucional, do qual se desdobram, por
um lado, as ideias de leal colabração (Leale Collaborazione)18 e fidelidade
federal (Bundestreue)19 e, de outro, o princípio da lealdade institucio-
nal20.
O tratamento dos conceitos de leal colaboração e fidelidade fe-
deral demandaria trabalho autônomo e destacado, por isso, aqui se
faz apenas o registro de que ambas as ideias estão relacionadas à
repartição vertical dos poderes, portanto, ao federalismo, ao pacto
federativo e à questão da autonomia local e regional21. Já a ideia de
lealdade institucional é relacionada à separação horizontal dos pode-
res, logo, quanto às relações institucionais entre Executivo, Legisla-
tivo e Judiciário, e seus agentes.
Essas construções estão sob a influência do conceito de inte-
gração de Rudolf Smend22. O autor constrói a ideia de uma unidade
espiritual da comunidade no Estado a partir do processo da síntese
de atividades (integração funcional23) e de valores (integração pessoal
e integração material24). Para ele esses “são processos incessantes que
corroboram a realidade dinâmica e espiritual do Estado. Partindo
deles, a Constituição é a transcrição jurídico-normativa dos diver-
18
Di Carmela Salerno, “Note sul principio di leale collaborazione prima
e dopo la riforma del titolo V dela Costituzione”, Amministrazione in cam-
mino; Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzionale
di leale collaborazione” (versão provisória: http://costituzionale.unipv.it/
Gruppo%20di%20Pisa/presentation/gratteri.pdf).
19
Stephen Korioth. Rudolph Smend, in Jacobson e Schlink, Weimar: a juris-
prudence of crisis, Berkley/Los Angeles, University of California Press,
2002, p. 208; Rudolf Smend, Constitución y Derecho Constitucional, trad. José
Mª Beneyto Perez (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985)
235.
20
Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os
poderes públicos: alguns aspectos gerais”, Revista Direito e Política 1 (2012):
62-72.
21
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 561.
22
Expressamente relacionando a leal colaboração e a Bundestreu desde
Smend, Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzio-
nale di leale collaborazione”, 1-3. Relacionando a lealdade institucional à
integração smendiana: Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional
nas relações entre os poderes públicos”, 66.
23
Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 78 e ss.
24
Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 93 e ss.
Raoni Bielschowsky • 159
sos processos integradores da realidade estatal”25. Assim, a coope-
ração constitucional apresenta-se como uma das faces dessa integra-
ção, a partir da conexão que a normatividade constitucional possui
com o comprometimento de cada cidadão e cada agente político
com a eficácia da Constituição26.
Lealdade institucional
E é nessa linha que se desenrola o princípio da lealdade ins-
titucional27, relacionado à separação e convivência entre os (três)
poderes constituídos. Trata-se de um princípio de cooperação e le-
aldade que deve ser observado entre as instituições e seus agentes
com o objetivo de contribuírem para fazer eficaz a ordem constitu-
cional.
Portanto, esse conceito compreende basicamente duas di-
mensões: uma positiva e outra negativa28. A primeira envolve a
mutua cooperação entre os diversos órgãos, com a finalidade de
realizar os objetivos constitucionais, de modo a permitir o funcio-
namento desse sistema com o mínimo de atritos possível. Enquanto
isso, a segunda dimensão abrange o dever dos titulares dos poderes
de respeitarem-se mutuamente, renunciando a práticas de guerrilha
institucional e abuso do poder. Com isso Jaime Valle identifica que
a:
25
Pablo Lucas Verdú, “Reflexiones en torno y dentro del concepto de cons-
titucion. La constitucion como norma y como integracion política”, Revista
de Estudios Políticos 83 (1994): 27.
26
Hesse, Konrad. “Constitución y Derecho Constitucional.” In Manual
de derecho constitucional, ed. por Ernst Benda et al. Tradução de Antonio
López Pina. 2 ed (Madrid: Marcial Pons, 2001), 9.
27
À semelhança da lealdade institucional a doutrina italiana tem identifica-
do o princípio da leal cooperação: Roberto Bin, “Il Principio di Leale Coope-
razione nei Rapporti tra Poteri”, Rivista di Diritto Costituzionale 2001 (2001):
3-13.
28
Canotilho mesmo trabalha como face positiva e face negativa. Contudo não
se trata de face positiva no sentido de benéfica e negativa no sentido de
maléfica, mas sim, no sentido de proativa e de abstenção/contenção, res-
pectivamente. Por isso mesmo, preferimos tratar por dimensões positiva e
negativa, Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
160• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
princípio da lealdade institucional resultaria assim não ape-
nas da obrigação de obtenção de ciência para o conjunto da
atividade estadual, mas sobretudo da necessidade de evitar
o risco de desagregação do Estado induzido pela existência
de uma multiplicidade de centros de poder estadual isolados
que poderiam bloquear mutuamente a respectiva actuação”.29
Conclusão
Portanto, devem os poderes respeitar-se mutuamente, de
modo a garantir a estabilidade da ordem constitucional. Isso por-
que são justamente a estabilidade e a integração normativa da co-
munidade jurídico-política que possibilitam mais determinante-
mente a unidade (em pluralidade) do Estado de Direito. Unidade e
estabilidade, essas, que se colocam muito mais sobre bases de cariz
cultural e de respeito mútuo entre os cidadãos e instituições, que
sobre o jogo e/ou embate de forças antagônicas dentro da vida do
Estado. A cooperação constitucional e a lealdade institucional são, as-
sim, desdobramentos necessários da própria ideia de unidade da
Constituição e do Poder.
Destarte, é extremamente importante para o equilíbrio entre
as instituições e para a manutenção da harmonia dentro do Esta-
do que todos os poderes contenham-se espontaneamente quanto a
suas competências, no exercício de suas funções34.
Nunca será demais lembrar que para a Democracia Constitu-
cional o soberano é o Povo, enquanto legítimo fundamento, destina-
tário e ator da ação política. O Poder, mesmo estatal, utilizado con-
tra esse soberano é ilegítimo, passando de oficial a oficioso. Assim,
aquele que abusa do Poder desde dentro do Estado acaba atentar
contra a própria existência da ordem constitucional ao ocasionar
uma dentre duas situações mais claras: ou incorrerá no risco de ero-
dir – e mesmo implodir – sua própria solidez institucional, gerando
prejuízos e dificuldades ao reconhecimento da legitimidade de suas
próprias decisões pelos demais órgãos do Estado e pela própria so-
ciedade civil, o que acaba por dificultar a capacidade de tornar essas
decisões eficazes, prejudicando a própria força normativa e arranjo
constitucional; ou, de outra parte, abusará do Poder pela força de
forma ilegítima, conseguindo, assim, impor faticamente sua von-
tade, mas, também, ferindo de morte o grande projeto político da
cultura do constitucionalismo: o Estado de Direito.
34
Quanto ao judiciário não raro fala-se de self-restrain, por exemplo.
Raoni Bielschowsky • 163
Referências
Bercovici, Gilberto. “Constituição e Política: uma relação difícil”,
Lua Nova 61 (2004): 5-24.