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SEPARAÇÃO DOS PODERES,

COOPERAÇÃO CONSTITUCIONAL
E LEALDADE INSTITUCIONAL

Raoni Macedo Bielschowsky*

Introdução
“Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder limite o poder”1. A clássica frase do
Barão de Montesquieu no Espírito das Leis retrata uma das constru-
ções teóricas mais influentes da cultura política do ocidente: que
as funções do Poder estatal devem ser distribuídas, repartidas e
institucionalizadas em poderes, autônomos, que mutuamente se
controlam através da faculdade de estatuir e da faculdade de impedir2.
O triunfo político dessa construção pode ser reconhecido desde a
gênese do constitucionalismo, quer na América – com todas suas
peculiaridades jurídico-políticas –, quer no constitucionalismo eu-
ropeu continental – já, inicialmente, com o art. 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão em França3.
Fato é que com a complexidade e velocidade da dinâmica
política; com o avanço da estrutura constitucional, passando histo-
ricamente pela criação e reconhecimento de instrumentos de con-
trole jurídico de constitucionalidade; com a ampliação do rol dos

* Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mi-


nas Gerais; mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Di-
reito da Universidade de Lisboa; bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte; Brasil; rmabiel@hotmail.com.
Montesquieu, Do espírito das leis, tradução Cristina Murachco (São Paulo:
1

Martin Fontes, 2005), 166. A passagem está no Capítulo IV do livro décimo


da obra: “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela dis-
posição das coisas, o poder limite o poder. Uma constituição pode ser tal
que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não
fazer aquelas que a lei permite”.
2
Montesquieu, Do espírito das leis, 172.
3
Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direi-
tos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
DOI: 10.17931/dcfp_v1_art12
Raoni Bielschowsky • 153
direitos fundamentais; com a intensificação da influência mútua de
um poder constituído na esfera de atuação dos outros, em nome
do controle e interdependência dos poderes, inerente à teoria dos
freios e contrapesos4; por muitas vezes é gerado, dentro do pró-
prio Estado, um ambiente de insegurança chegando, por vezes, a
uma verdadeira conformação de guerrilha institucional. Nesse sen-
tido, um dos elementos necessários ao triunfo da própria estrutura
constitucional de separação dos poderes é o princípio da lealdade
institucional, decorrência da própria ideia republicana e de vontade
de Constituição. Assim sendo, este trabalho tem por objetivo fazer
uma apresentação do delineamento, causas e consequências desse
princípio, ainda pouco trabalhado no debate político-institucional
brasileiro, mas que há algum tempo já é presente no debate jurídi-
co-político europeu.

Separação dos poderes como distinção entre as fun-


ções estatais e sua repartição em diversos órgãos/
instituições
Historicamente a preocupação com controle do Poder em
muito se confunde com a própria história do ordenamento político5.
De fato, a necessidade de organizar o político limitando as forças
estatais – quer do ponto de vista interno, quer do ponto de vista
externo – sempre foi uma questão de extrema relevância para a for-
mulação do Estado Moderno.
A separação dos poderes do modo como foi mais fortemen-
te introduzida e consolidada na cultura constitucional, é apenas um
dos critérios possíveis de divisão do poder estatal. Na verdade, a
identificação de funções inerentes ao Estado (ou, mais precisamen-
te, ao ordenamento político) é tema recorrente desde a Antiguidade
por pensadores como Aristóteles e Cícero, antes mesmo de o Es-
tado Moderno ser constituído como tal. Portanto, a grande pecu-
liaridade que diferencia a doutrina da separação dos poderes dos
4
Raoni Bielschowsky, “O Poder Judiciário na doutrina da separação dos
poderes: um quadro comparativo entre a ordem brasileira e a ordem por-
tuguesa”, Revista de informação legislativa 195 (2012): 269-290.
5
Ernst-Wolfgang Böckenförde, História da Filosofia do Direito e do Estado:
antiguidade a idade média, tradução Adriana Beckman Meirelles. (Porto
Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2012), 21.
154• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
modelos de divisão do poder anteriores é o fato de que com ela – já
nas formulações de Locke e, especialmente, de Montesquieu – não
se propõe apenas a distinção de diferentes funções estatais, mas,
também, a separação da competência ordinária para desempenhar
essas funções entre distintas instituições, distinguindo, logo, poderes
de funções6. Assim sendo, o que faz a fórmula até hoje adotada parti-
cular é a ideia de especialização orgânico-funcional no desempenho
de cada um dos três poderes7.
É de se destacar que mesmo essa estrutura se deu de for-
ma significativamente diferente quando comparados os arranjos
institucionais matrizes de França e Estados Unidos da América do
Norte8. Em França, via de regra, optou-se, ainda que não sempre,
por uma estrutura parlamentarista, com uma separação dos pode-
res um tanto mais fluida, havendo certa primazia do parlamento
diante dos demais poderes. Esse é um modelo que originariamen-
te privilegia formas de controle político-subjetivo entre os poderes
em detrimento de controles jurídico-objetivos dos atos dos poderes.
Essa estrutura historicamente tendeu a ser predominante do cená-
rio europeu.
Nos Estados Unidos da América do Norte, por seu turno,
com seu presidencialismo e influenciados pelos Federalist Papers
foi-se desde cedo instaurado um regime de separação dos poderes
muito mais estanque e atomizado, ainda que atento à formulação
dos checks and balances. Desse modo, na realidade estadunidense
configurou-se, desde sempre, a primazia de mecanismos de contro-
le jurídico-objetivo na interação entre os poderes.
Assim, esses distintos formatos de disposição institucional,
combinados à diferença existente entre as matrizes jurídico-cultu-
rais e à ordem de primazia das fontes jurídicas (Romano-Germâni-
ca e Anglo-americana, respectivamente) não implicam apenas em
6
Eros Grau, O Direito posto e o Direito pressuposto, 8 ed. (São Paulo, Malhei-
ros, 2011), 230.
7
Para aprofundamento sobre a doutrina da separação dos poderes, remeto
a Nuno Piçarra, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucio-
nal: contributo para o estudo da suas origens e evolução (Coimbra: Coim-
bra Editora, 1989).
8
Há de se registrar que antes das revoluções americana e francesa, a Guerra
Civil inglesa desdobrou-se num sistema muito próprio de organização do
Poder. Para maiores aprofundamentos M. J. C. Vile, Constitucionalism and
Separation of Powers, 2 ed. (Indianapolis, Liberty Fund, 1998).
Raoni Bielschowsky • 155
diferentes modelos da relação entre executivo e legislativo, mas
também em diferentes papeis destinados ao poder judiciário em
cada um dos modelos.
Desde essas duas bases, combinadas às mais diversas reali-
dades político-culturais, desenvolveram-se um sem número de ou-
tros formatos de sistemas de governo – repúblicas ou monarquias
parlamentaristas, repúblicas semipresidencialistas, presidencialis-
tas etc9 –, por vezes com maior preponderância do Poder Executivo,
noutras do Legislativo e, desde 1945, com a ampliação do papel do
Poder Judiciário na dinâmica política da maior parte dos Estados
do mundo constitucional desde a jurisdição constitucional10.
Em todos esses arranjos – ao menos em tempos de Democra-
cia Constitucional11 – a separação dos poderes efetivamente tem se
mostrado arma (muito) potente para a limitação do Poder estatal, e
continua encontrando, ainda hoje, caríssimo apreço e proteção nas
mais diversas ordens constitucionais. Portanto, a máxima de Mon-
tesquieu de que um poder limite outro poder continua bastante em
voga.
Porém, diante de todas essas estruturas, uma questão deve
ser colocada: que força tem a capacidade de sustentar e integrar o
Estado evitando e solucionando as crises advindas das tensões en-
tre os poderes constituídos?

Cooperação constitucional
Uma das soluções propostas para a manutenção da har-
monia intraestatal, por exemplo, foi aquela pensada por Benjamin
Constant e – por influência de por Pedro I (Pedro IV de Portugal)
– concretizada nas Cartas Políticas brasileira de 1824 e Portuguesa
de 1826. Ela consistia na da criação de um quarto poder (pretensa-

9
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed.
(Coimbra: Almedina, 2003), 588.
10
Na realidade americana, desde o século XIX o poder judiciário, mais pre-
cisamente a Supreme Court, sempre teve atuação e peso político-institucio-
nal bastante mais marcante. Enquanto isso, nos países de tradição roma-
no-germânica o judiciário tomou maiores proporções a partir do segundo
pós-guerra, sendo paradigmático o papel do Bundesverfassungsgericht na
estrutura jurídico-política da Lei Fundamental de Bonn.
11
Raoni Bielschowsky, Democracia Constitucional (São Paulo: Saraiva, 2013).
156• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
mente neutro) que teria como função harmonizar e equilibrar os de-
mais poderes dentro do Estado: o Poder Moderador12. Essa respos-
ta institucional teve vida curta tendo sido oficial e definitivamente
excluída da ordem constitucional brasileira em 1891 e da lusitana
em 1911.
De outra parte, algumas democracias parlamentaristas e
semipresidencialistas até hoje depositam na figura do Presidente
– Chefe de Estado – alguma função de mediação entre o governo
(executivo) e parlamento (legislativo), através de várias competên-
cias de controle político-subjetivo que vão desde a possibilidade
de dissolução de gabinete ao chamamento de novas eleições parla-
mentares, conforme diferentes desenhos institucionais13.
Entretanto, independentemente de imaginar-se a possibili-
dade de uma “autoridade neutra” (moderadora) que pudesse di-
rimir as questões e celeumas que surgissem entre os três poderes
do Estado; ou de partir-se desde a circunstância mais corrente de
separação tripartite do Poder, em todos os diversos formatos que
essa se apresenta, a antiga questão da Satira romana permanece:
Quis custodiet ipsos custodes?
De fato, quem vigiará os vigilantes? Quem controlará a legiti-
midade (e mesmo validade) da atuação daquele que tem força para,
de fato, do Poder abusar? Afinal, não será essa mesma uma das
questões de fundo do constitucionalismo: a de impedir que as for-
ças fáticas de poder oprimam e se imponham ilegitimamente sobre
a coletividade e sobre os indivíduos? Não será, talvez, essa a grande
questão do constitucionalismo, em suas diversas fases e, sobretudo,
desde o debate sobre quem é o soberano14? Não será essa, exatamente,
o principal tema pretendido pela conciliação definitiva entre consti-
tucionalismo e democracia15?

12
Notas sobre o desvirtuamento das ideias de Constant sobre o Poder
Moderador na Carta Constitucional de 1824: Paulo Bonavides, “O poder
moderador na constituição do império”, Revista de informação legislativa 41
(1974): 27-32.
13
Para o exemplo português, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Os
poderes do Presidente da República (Coimbra: Coimbra Editora, 1991).
14
Peter Caldwell, Popular sovereignty and the crisis of german constitucional
Law: the theory and practice of Weimar constitutionalism (Durham: Duke
University Press, 1997), Kobo edition.
15
Gilberto Bercovici, “Constituição e Política: uma relação difícil”, Lua
Nova 61 (2004): 6; Bielschowsky, Democracia Constitucional.
Raoni Bielschowsky • 157
Nesse sentido, quanto à limitação do Poder, Lowenstein
identifica que:

“com o tempo foi-se reconhecendo que a melhor maneira de


alcançar este objetivo é fazendo constar freios que a socie-
dade deseja impor aos detentores do poder na forma de um
sistema de regras fixas – ‘a constituição’ – destinadas a limitar
o exercício do poder político. A constituição se converteu as-
sim no dispositivo fundamental para o controle do poder”16.

Portanto, mais que um poder que controle outro poder (estrutu-


ra que continua sendo chave para a composição do Estado de Direi-
to), o arranjo do constitucionalismo pretende que a normatividade
(força normativa da Constituição) controle o Poder. E talvez seja mes-
mo nessa zona mais etérea e imaterial que se coloque as possibilida-
des do projeto do Estado de Direito; desde a normatividade de uma
cultura específica: da cultura constitucional.
De certa forma é nesse sentido que Hesse trata da necessi-
dade de uma vontade de Constituição quando trata da força normativa
da Constituição. Vontade, essa, que deve ser vivida por todos os ci-
dadãos da comunidade jurídico-política, mas que é especialmente
importante aos atores dos poderes constituídos17.
E é exatamente nesse sentido, quanto aos atores dos poderes

16
Karl Loewenstein, Teoria de la constitución, 2 ed., trad. (Barcelona: Ariel,
1976), 149: “con el tiempo se ha ido reconociendo que la mejor manera de
alcanzar este objetivo será haciendo constar frenos que la sociedad desea
imponer a los detentores del poder en forma de un sistema de reglas fijas
- «la constitución» - destinadas a limitar el ejercicio del poder político. La
constitución se convirtió así en el dispositivo fundamental para el control
del proceso del poder”
17
Konrad Hesse, A força normativa da constituição, trad. Gilmar Ferreira
Mendes (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991), 19, “pode-se
afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se pre-
sentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos princi-
pais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder
(Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zurVerfas-
sung). (...) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição
depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De to-
dos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concep-
ção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille
zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente”.
158• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
constituídos, que se pode identificar a necessidade de um princípio
genérico de Cooperação Constitucional, do qual se desdobram, por
um lado, as ideias de leal colabração (Leale Collaborazione)18 e fidelidade
federal (Bundestreue)19 e, de outro, o princípio da lealdade institucio-
nal20.
O tratamento dos conceitos de leal colaboração e fidelidade fe-
deral demandaria trabalho autônomo e destacado, por isso, aqui se
faz apenas o registro de que ambas as ideias estão relacionadas à
repartição vertical dos poderes, portanto, ao federalismo, ao pacto
federativo e à questão da autonomia local e regional21. Já a ideia de
lealdade institucional é relacionada à separação horizontal dos pode-
res, logo, quanto às relações institucionais entre Executivo, Legisla-
tivo e Judiciário, e seus agentes.
Essas construções estão sob a influência do conceito de inte-
gração de Rudolf Smend22. O autor constrói a ideia de uma unidade
espiritual da comunidade no Estado a partir do processo da síntese
de atividades (integração funcional23) e de valores (integração pessoal
e integração material24). Para ele esses “são processos incessantes que
corroboram a realidade dinâmica e espiritual do Estado. Partindo
deles, a Constituição é a transcrição jurídico-normativa dos diver-
18
Di Carmela Salerno, “Note sul principio di leale collaborazione prima
e dopo la riforma del titolo V dela Costituzione”, Amministrazione in cam-
mino; Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzionale
di leale collaborazione” (versão provisória: http://costituzionale.unipv.it/
Gruppo%20di%20Pisa/presentation/gratteri.pdf).
19
Stephen Korioth. Rudolph Smend, in Jacobson e Schlink, Weimar: a juris-
prudence of crisis, Berkley/Los Angeles, University of California Press,
2002, p. 208; Rudolf Smend, Constitución y Derecho Constitucional, trad. José
Mª Beneyto Perez (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985)
235.
20
Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os
poderes públicos: alguns aspectos gerais”, Revista Direito e Política 1 (2012):
62-72.
21
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 561.
22
Expressamente relacionando a leal colaboração e a Bundestreu desde
Smend, Andrea Gratteri, “La faticosa emersione del principio costituzio-
nale di leale collaborazione”, 1-3. Relacionando a lealdade institucional à
integração smendiana: Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional
nas relações entre os poderes públicos”, 66.
23
Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 78 e ss.
24
Smend, Constitución y Derecho Constitucional, 93 e ss.
Raoni Bielschowsky • 159
sos processos integradores da realidade estatal”25. Assim, a coope-
ração constitucional apresenta-se como uma das faces dessa integra-
ção, a partir da conexão que a normatividade constitucional possui
com o comprometimento de cada cidadão e cada agente político
com a eficácia da Constituição26.

Lealdade institucional
E é nessa linha que se desenrola o princípio da lealdade ins-
titucional27, relacionado à separação e convivência entre os (três)
poderes constituídos. Trata-se de um princípio de cooperação e le-
aldade que deve ser observado entre as instituições e seus agentes
com o objetivo de contribuírem para fazer eficaz a ordem constitu-
cional.
Portanto, esse conceito compreende basicamente duas di-
mensões: uma positiva e outra negativa28. A primeira envolve a
mutua cooperação entre os diversos órgãos, com a finalidade de
realizar os objetivos constitucionais, de modo a permitir o funcio-
namento desse sistema com o mínimo de atritos possível. Enquanto
isso, a segunda dimensão abrange o dever dos titulares dos poderes
de respeitarem-se mutuamente, renunciando a práticas de guerrilha
institucional e abuso do poder. Com isso Jaime Valle identifica que
a:

“A cooperação entre os órgãos constitucionais decorrente do

25
Pablo Lucas Verdú, “Reflexiones en torno y dentro del concepto de cons-
titucion. La constitucion como norma y como integracion política”, Revista
de Estudios Políticos 83 (1994): 27.
26
Hesse, Konrad. “Constitución y Derecho Constitucional.” In Manual
de derecho constitucional, ed. por Ernst Benda et al. Tradução de Antonio
López Pina. 2 ed (Madrid: Marcial Pons, 2001), 9.
27
À semelhança da lealdade institucional a doutrina italiana tem identifica-
do o princípio da leal cooperação: Roberto Bin, “Il Principio di Leale Coope-
razione nei Rapporti tra Poteri”, Rivista di Diritto Costituzionale 2001 (2001):
3-13.
28
Canotilho mesmo trabalha como face positiva e face negativa. Contudo não
se trata de face positiva no sentido de benéfica e negativa no sentido de
maléfica, mas sim, no sentido de proativa e de abstenção/contenção, res-
pectivamente. Por isso mesmo, preferimos tratar por dimensões positiva e
negativa, Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
160• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
princípio da lealdade institucional resultaria assim não ape-
nas da obrigação de obtenção de ciência para o conjunto da
atividade estadual, mas sobretudo da necessidade de evitar
o risco de desagregação do Estado induzido pela existência
de uma multiplicidade de centros de poder estadual isolados
que poderiam bloquear mutuamente a respectiva actuação”.29

Essa construção nos desperta a reflexão sobre a possibilida-


de e necessidade de pensar-se uma cooperação constitucional – que
nos parece inerente ao princípio republicano e ao próprio Estado
Democrático de Direito –, relativa, inclusive, a uma deontologia po-
lítica fundada no respeito dos agentes e das instituições por seus
pares, dentro de um apurado sentido da responsabilidade e inte-
gração (em liberdade) no Estado. Nesse sentido, identifica-se com
os efeitos regulatórios principais do princípio da lealdade institucio-
nal seu desdobramento em três vertentes: enquanto elemento de
interpretação constitucional e legal; enquanto fonte de deveres e
adstrições no exercício de poderes; e enquanto limite ao abuso de
poderes30.
Não deixa de chamar atenção o fato de ser característico do
conteúdo do princípio sua elasticidade, estando mais nítido quan-
do observado desde casos concretos da dinâmica jurídico-política.
De fato, seu teor é dificilmente observável de modo estático, sendo,
pois, mais compreensível, quando notado na vivência das institui-
ções, dos poderes e dos agentes estatais, quando em sua interação
com, e sob, as regras constitucionais organizatórias. Essa caracterís-
tica, no entanto, não importa em ausência de natureza jurídica ao
princípio, apesar de poder significar algum déficit de operatividade
e judiciabilidade. Em que pese esses déficits, é de se destacar que o
caráter de menor densidade e maior indeterminação normativa não
é raro entre os princípios constitucionais, bem como, entre as de-
mais normas de função quando contrastadas às normas de controle,
nos termos da classificação de Forsthoff. Desse modo, parece-nos
que é de se reconhecer que o princípio da lealdade institucional cons-
titui, juntamente com os demais princípios jurídicos, critério de de-
cisão de casos concretos. Isso porque, independentemente de pos-
29
Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os
poderes públicos”, 64.
30
Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os
poderes públicos”, 70.
Raoni Bielschowsky • 161
suir ou não instrumentos de coerção próprios, ele, enquanto norma
jurídica, é vinculador da atuação dos agentes estatais31.
Além disso, reiteramos que nos parece ser possível dizer
que é apenas nesse ambiente normativo mais imaterial e impalpá-
vel que se coloca a possibilidade de estabilidade e unidade de um
Estado que se pretenda Estado Constitucional; de um Estado que se
pretenda Estado de Direito.
Até como indício do fato da estrutura jurídico-constitucional
se equilibrar muito mais sobre bases institucional-normativas, que
sobre bases factuais de Poder32, vale destacar que mesmo em tem-
pos de temerário e questionável ativismo e alargamento da atuação
do poder judiciário, Dieter Grimm não nos deixa esquecer que:

“não há ‘oficial de justiça’ em matéria constitucional. Isso


mostra que não só constitucionalismo, mas também o contro-
le judicial de constitucionalidade depende de bases culturais.
Uma jurisdição constitucional efetiva requer uma cultura
política efetiva em que, em geral, as decisões da corte sejam
aceitas mesmo por aqueles que estão no poder e o sentimento
constitucional seja tão grande que o desrespeito implique um
custo muito alto para os políticos”33

Destarte, mesmo contemporaneamente, quando muito se


fala de uma possível supremacia do poder judiciário frente os demais
poderes constituídos, é necessário ter-se em conta que, especial-
mente no que diz respeito a questões constitucionais e a possíveis
disputas institucionais entre os poderes, o poder judiciário na ver-
dade tem muito pouca autonomia para de fato impor suas decisões.
Assim, força de eficácia de tais determinações sustenta-se basica-
mente sobre o arranjo institucional do Estado de Direito. Dito por
outras palavras, a real força impositiva das decisões judiciais, ao
menos, em matéria constitucional, depende maximamente da coo-
peração dos demais poderes e de sua atuação com lealdade institu-
cional e em cooperação constitucional.
31
Jaime Valle, “O princípio da lealdade institucional nas relações entre os
poderes públicos”, 70.
32
Se não toda a estrutura jurídico-constitucional, pelo menos de sua nor-
matividade de cumeada, especialmente as regras e princípios constitucio-
nais.
toDieter
33
Grimm,
do Estado “Jurisdição
4 (2006): 10. constitucional e democracia”, Revista de Direi-
162• Separação dos poderes, cooperação constitucional...
O mesmo se aplica, entretanto, para as relações entre Execu-
tivo e Legislativo. Quem detém o Poder não deve dele abusar. E a
reciprocidade leal é assim, talvez, uma das forças mais importantes
para a manutenção da harmonia e da unidade do Poder estatal.

Conclusão
Portanto, devem os poderes respeitar-se mutuamente, de
modo a garantir a estabilidade da ordem constitucional. Isso por-
que são justamente a estabilidade e a integração normativa da co-
munidade jurídico-política que possibilitam mais determinante-
mente a unidade (em pluralidade) do Estado de Direito. Unidade e
estabilidade, essas, que se colocam muito mais sobre bases de cariz
cultural e de respeito mútuo entre os cidadãos e instituições, que
sobre o jogo e/ou embate de forças antagônicas dentro da vida do
Estado. A cooperação constitucional e a lealdade institucional são, as-
sim, desdobramentos necessários da própria ideia de unidade da
Constituição e do Poder.
Destarte, é extremamente importante para o equilíbrio entre
as instituições e para a manutenção da harmonia dentro do Esta-
do que todos os poderes contenham-se espontaneamente quanto a
suas competências, no exercício de suas funções34.
Nunca será demais lembrar que para a Democracia Constitu-
cional o soberano é o Povo, enquanto legítimo fundamento, destina-
tário e ator da ação política. O Poder, mesmo estatal, utilizado con-
tra esse soberano é ilegítimo, passando de oficial a oficioso. Assim,
aquele que abusa do Poder desde dentro do Estado acaba atentar
contra a própria existência da ordem constitucional ao ocasionar
uma dentre duas situações mais claras: ou incorrerá no risco de ero-
dir – e mesmo implodir – sua própria solidez institucional, gerando
prejuízos e dificuldades ao reconhecimento da legitimidade de suas
próprias decisões pelos demais órgãos do Estado e pela própria so-
ciedade civil, o que acaba por dificultar a capacidade de tornar essas
decisões eficazes, prejudicando a própria força normativa e arranjo
constitucional; ou, de outra parte, abusará do Poder pela força de
forma ilegítima, conseguindo, assim, impor faticamente sua von-
tade, mas, também, ferindo de morte o grande projeto político da
cultura do constitucionalismo: o Estado de Direito.
34
Quanto ao judiciário não raro fala-se de self-restrain, por exemplo.
Raoni Bielschowsky • 163

Referências
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