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Revisão da Teoria da Separação dos Poderes do Estado

Marília Costa Barbosa


Escola Superior do Ministério Público do Ceará e Universidade Estadual do Ceará

Resumo:

O artigo apresenta uma análise da Teoria da Separação dos Poderes do Estado, enfatizando a
virtude de conceitos que tal teoria preserva, tendo em vista que a tripartição das funções legislativa,
executiva e judiciária entre órgãos distintos do Estado vem sendo suscitada desde a Antiguidade e guarda
aplicabilidade nos dias atuais. Abordando sua interpretação clássica e o contexto histórico em que foi
consagrada, busca confrontar o entendimento que Teoria da Separação dos Poderes possuiu no passado
com o sentido que hoje ela exprime, depois de ter passado por uma revisão que a fez acompanhar a
evolução do aparato estatal e da sociedade.

Palavras-chave: Estado. Separação dos Poderes. Montesquieu. Garantia da liberdade. Eficiência


estatal.

Introdução
Grande parte dos sistemas constitucionais que abraçam o ideal democrático alberga em
seus fundamentos o Princípio de Separação dos Poderes do Estado.
Posto como uma das mais permanentes garantias da liberdade, o Princípio de Separação
dos Poderes, embora tenha sido positivado através da revolução constitucionalista do final do
século XVIII, tem raízes muito mais profundas, tendo em vista que a preocupação de atribuir as
funções fundamentais do Estado a órgãos distintos é objeto de reflexão e discussão desde os
primórdios da organização estatal.
A separação dos poderes do Estado tem suas bases definidas por meio de uma teoria,
que se desenvolveu ao longo do tempo, através da reflexão de filósofos que remontam à
Antigüidade, consagrando-se efetivamente após a análise de Montesquieu, no século XVIII.
Esse verdadeiro axioma é tão antigo quanto sólido, pois ainda perdura nos presentes
dias, conservando uma virtude de conceitos que atravessou os séculos.
Rev. Cient. Fac. Lour. Filho – v.5, n.1, 2006 2

Mas, para que esse postulado pudesse se amoldar às necessidades sócio-políticas


crescentes e mutantes, o entendimento primário que se deu à clássica Teoria de Separação dos
Poderes do Estado teve de ser revisto, depois de ter chegado ao ponto de ser alvo de duras
críticas por alguns doutrinadores da atualidade, que defenderam estar a teoria totalmente
refutada.
Dessa forma, para que o tema venha a ser descortinado com mais segurança, é
imprescindível que se faça uma verificação acerca da evolução da Teoria clássica de Separação
dos Poderes, para depois situá-la no Estado contemporâneo.
O presente trabalho busca ressaltar, portanto, a importância de se fazer um estudo sobre
a interpretação e os objetivos que a Teoria da Divisão dos Poderes do Estado tem assumido,
depois de passar por uma revisão que lhe conservou a aplicabilidade na época atual, dando-lhe
uma nova roupagem.

1 Precursores de Montesquieu na Abordagem da Separação dos Poderes do


Estado

Desde a Antigüidade Clássica, sobretudo a partir das obras de Aristóteles, é possível


identificar que em todo governo existem três funções essenciais, cada qual encarregada de uma
incumbência específica: a de legislar, a de executar as leis e a de julgar os conflitos.
O filósofo Aristóteles, através de uma reflexão e de uma análise descritiva da estrutura
política da Grécia Antiga, já distinguia que o governo se compunha de três partes: aquela que
deliberava acerca dos negócios do Estado; uma segunda, que exercia a magistratura (definida
como uma espécie de função executiva); e a terceira, que abrangia os cargos de jurisdição. Essas
três partes do governo, descritas por Aristóteles, guardam estreita semelhança com as funções
ou poderes do Estado que hodiernamente são reconhecidos nas sociedades politicamente
organizadas.
Na concepção aristotélica, o Poder Deliberativo possuía como principais incumbências
as decisões soberanas acerca da promulgação das leis, da guerra e da paz, da ruptura dos
tratados, das penas de morte, de banimento e de confisco, assim como a prestação de contas aos
magistrados. As Magistraturas caracterizavam-se essencialmente pelo exercício da função de
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ordenar, mas também julgavam e deliberavam a respeito de matérias específicas. E os Tribunais


ocupavam-se dos julgamentos em geral, decidindo sobre as questões que envolviam o exame da
conduta dos magistrados, as malversações financeiras, os crimes de Estado ou atentados contra
a Constituição, as multas contra as pessoas públicas e privadas, os contratos, bem como
questões criminais e relativas a estrangeiros, havendo ainda os juízes singulares para os casos
mínimos.
Em sua produção literária A Política, o célebre pensador grego menciona:
Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o
legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando
estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem,
e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. (ARISTÓTELES,
1991, p. 113).

É pertinente salientar que Aristóteles não chegou a formular uma completa teoria acerca
da separação dos poderes do Estado, mas sua grande contribuição representa o fundamento para
uma reflexão mais ampla sobre o tema, na medida em que demonstra a existência de funções
distintas no governo, além de enfatizar o perigo de se atribuir a um só ente o exercício do poder.
Nesse sentido, Dallari (2000, p. 216-217) faz referência a Aristóteles afirmando que:
O antecedente mais remoto da separação dos poderes encontra-se em
Aristóteles, que considera injusto e perigoso atribuir-se a um só indivíduo o
exercício do poder, havendo também em sua obra uma ligeira referência ao
problema da eficiência, quando menciona a impossibilidade prática de que
um só homem previsse tudo o que nem a lei pode especificar.

Posteriormente, no segundo século antes de Cristo, surgem os estudos de Políbio,


historiador grego que encontra na República Romana uma organização balanceada, onde, de
certa forma, as três forças constitutivas do poder, representadas pelo Consulado, Senado e Povo,
estabeleciam uma espécie de controle um sobre o outro.
De acordo com a Tese do Governo Misto de Políbio, o sucesso romano estava assentado
nessa tripartição de poder, onde a cada poder estatal foram dadas uma atribuição peculiar e a
possibilidade de vigilância sobre o outro. Esse contexto pode ser visualizado através dos estudos
de Norberto Bobbio, em sua Teoria das Formas de Governo, quando dedica um capítulo a
Políbio:
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A composição das três formas de governo consiste no fato de que o rei está
sujeito ao controle do povo, que participa adequadamente do governo; este,
por sua vez, é controlado pelo senado. Como o rei representa o princípio
monárquico, o povo o princípio democrático e o senado o aristocrático, o
resultado dessa combinação é uma nova forma de governo, que não coincide
com as três formas simples retas – porque é composta -, nem com as três
formas corrompidas – porque é reta. (BOBBIO, 1994, p. 70).

Ao observar a estrutura e o funcionamento do governo da República Romana, Políbio


destacou aspectos da organização estatal que podem ser considerados como primórdios para
uma posterior teorização sobre a necessidade de controle mútuo e de cooperação entre os
poderes do Estado. Assim é que Bobbio (1994, p. 71), citando uma passagem do Livro VI da
História de Políbio, destaca que “como dessa forma cada órgão pode obstaculizar os outros ou
colaborar com eles, sua união é benéfica em todas as circunstâncias, de modo que não é
possível haver um Estado melhor constituído”. (grifos do autor).
Gradativamente, na proporção em que o aparato estatal foi se desenvolvendo e em
função dos grandes conflitos político-sociais acontecidos ao longo dos tempos, a idéia de
divisão das funções do Estado foi se delineando mais firmemente.
No século XIV, mais precisamente no ano de 1324, aparece a obra Defensor de Pacis,
de Marsílio de Pádua, estabelecendo uma distinção entre o poder legislativo e o executivo. Essa
distinção era baseada na existência de uma oposição entre o povo, que chamava de primeiro
legislador, e o príncipe, a quem atribuía a função executiva, podendo-se também vislumbrar aí
uma tentativa inicial de afirmação da soberania popular.
No começo do século XVI, o Estado francês já havia dividido suas funções por três
poderes distintos: o Parlamento, que exercia a função legislativa; o Rei, encarregado da função
executiva; e um Poder Judiciário independente. É o que se pode constatar através dos registros
existentes na obra O Príncipe, de Maquiavel.
Entretanto, o primeiro enfoque doutrinário dado à separação dos poderes do Estado
ocorreu no século XVII, com a obra de John Locke.
Tomando como parâmetro o Estado inglês de seu tempo, Locke identificava quatro
funções, exercidas por dois órgãos de poder. Um desses órgãos era o Parlamento, a quem cabia
a função legislativa. O outro órgão era representado pelo Rei, que acumulava três funções: a
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função de executar as leis, de fazê-las obedecidas, se necessário com o auxílio da força; a


função federativa, que tratava das relações exteriores, caracterizando-se como o poder de fazer a
guerra e a paz; e a função identificada como o poder de fazer o bem público sem se subordinar a
regras, através da qual se permitia uma ampla esfera de discricionariedade ao governante,
devendo-se observar, contudo, que o filósofo inglês em foco defendia a corrente de oposição
expressa ao absolutismo.
Ressalte-se, no entanto, que o maior empenho de Locke, como pensador, consistiu em
ditar uma teoria política baseada na liberdade do homem e em seus direitos naturais, mas sem se
preocupar com os mecanismos de garantia dessa liberdade e desses direitos.
Tal fato faz com que se atribua a Montesquieu a análise científica da separação dos
poderes e a sua consagração como teoria. Mesmo tendo se inspirado no sistema político da
Inglaterra, é mérito deste filósofo francês trazer a lume as técnicas da liberdade e os
instrumentos de sua proteção, que foram compendiados no princípio da separação e equilíbrio
de poderes do Estado.
Essa questão é muito bem realçada por Paulo Bonavides (1995, p. 141), quando
assevera que:
Locke vira apenas o homem e sua liberdade, o homem e seus direitos
naturais, sem ter visto o homem e a garantia dessa mesma liberdade e desses
mesmos direitos. (...) Dizer que Montesquieu foi apenas o vulgarizador da
Constituição inglesa, o discípulo fervoroso de Locke, seria fazer grave
injustiça ao pensador que se serve do comentário à liberdade inglesa para
tirar do exemplo da ilha vizinha, por um glorioso equívoco a técnica
horizontal da separação de poderes e associá-la à técnica vertical dos corpos
intermediários, lançando assim ao liberalismo as bases sobre as quais
assentou no Ocidente a moderna experiência governativa do século XIX.

Dessa forma, é possível afirmar que cada um dos pensadores que antecedeu
Montesquieu na abordagem da divisão dos poderes deu sua valiosa colaboração para a
formulação da teoria, destacando aspectos do governo de sua época que serviriam de base para
uma reflexão mais específica e aprofundada sobre o tema.
Mas, foi através de Montesquieu que esse aspecto político do Estado ganhou destaque e
maior projeção, acabando por tornar-se um dos dogmas das Constituições democráticas.
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2 Montesquieu e a Consagração da Teoria da Separação dos Poderes

A Teoria da Separação dos Poderes do Estado é abordada por Montesquieu no Livro XI


de sua obra Do Espírito das Leis, aparecida em 1748, que trata das leis que formam a liberdade
política.
Segundo Montesquieu, a liberdade política seria encontrada nos governos moderados,
quando nestes não houvesse abuso de poder, sendo necessário para isso que um poder viesse a
constituir um freio para o outro. Esse mecanismo de controle entre os poderes só poderia ser
posto em prática através do expediente constitucional de se atribuir as três funções do Estado a
órgãos diferentes.
É nesses termos que Montesquieu (2000, p. 205) preleciona:
Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o poder
legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se temer que o
monarca ou o senado promulguem leis tirânicas, para aplicá-las
tiranicamente. Não há liberdade se o poder judiciário não está separado do
legislativo e do executivo. Se houvesse tal união com o legislativo, o poder
sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, já que o juiz seria ao
mesmo tempo legislador. Se o judiciário se unisse com o executivo, o juiz
poderia ter a força de um opressor. E tudo estaria perdido se a mesma pessoa,
ou o mesmo corpo de nobres, de notáveis, ou de populares, exercesse os três
poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a execução das resoluções públicas e
o de julgar os crimes e os conflitos dos cidadãos.

Assim é que o filósofo francês distingue as três funções do Estado como poderes
diversos e inconfundíveis, cuja atuação harmônica possibilitaria a desconcentração das
atribuições estatais, evitando, dessa maneira, o abuso de poder.
O Poder Legislativo teria como incumbências a elaboração das leis, sua correção ou ab-
rogação; o Poder Executivo das Coisas que Dependem do Direito das Gentes (executivo) seria
competente para a promoção da política externa e da segurança; e o Poder Executivo das Coisas
que Dependem do Direito Civil (judiciário) teria na sua esfera de competência a punição dos
crimes e o julgamento das pendências entre particulares.
No entanto, Montesquieu vai além da simples atribuição de funções específicas a cada
um dos poderes, como forma de se evitar o abuso e garantir a liberdade, o notável pensador
admitiu nesses poderes duas faculdades: a de estatuir e a de impedir.
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Consiste a faculdade de estatuir em ordenar por si mesmo ou corrigir o que há sido


ordenado por outrem. Já a faculdade de impedir compreende o direito de anular uma resolução
ou uma decisão política legal.
Dessa forma, Montesquieu firmou o sistema de freios e contrapesos, conferindo ao
poder executivo participação legislativa, por sua faculdade de impedir. Recusando ao poder
legislativo qualquer participação na execução, consagrou-lhe, todavia, o direito de examinar o
modo pelo qual se executam as leis por ele elaboradas, sendo ainda este poder composto de duas
câmaras, com forças mutuamente equilibradas, munidas das respectivas faculdades de impedir e
estatuir, uma em relação à outra.
Não atribuiu Montesquieu as faculdades mencionadas ao poder judiciário, porque, de
acordo com a sua concepção, somente os poderes legislativo e executivo seriam essencialmente
políticos. Tal fato é constatado pelas palavras de Paulo Bonavides (1995, p. 161), quando
comenta o pensamento do filósofo:
Poderes políticos por excelência, vivem o executivo e o legislativo no sistema
representativo um drama de equilíbrio, solicitando nas suas relações mútuas
um conjunto de mecanismos constitucionais que impeçam a absorção de um
pelo outro, em ordem a torná-los efetivamente separados e harmônicos entre
si. Não só reconheceu Montesquieu a inevitabilidade de legítimas
interferências recíprocas, como se capacitou da imperiosa necessidade de
andarem os poderes em concerto, visto que seu repouso ou imobilidade, qual
seria de desejar, é contrariado pelo movimento necessário das coisas. (grifo
do autor).

A Teoria da Separação dos Poderes, à época em que foi analisada por Montesquieu,
tinha um objetivo bem definido: criar meios que assegurassem a liberdade dos indivíduos. Isto
porque, situando no tempo e no espaço a obra Do Espírito das Leis, é possível perceber que,
através dela, Montesquieu consegue expressar toda a sua aversão ao Regime Absolutista, que
tanto assolou a França no século XVII e início do século XVIII, com a total aniquilação das
liberdades fundamentais. E foi este cenário político que contribuiu para que a teoria liberalista
de Montesquieu tivesse acolhida.
A divisão dos poderes do Estado representava assim uma tese que punha a salvo as
garantias individuais de liberdade e contribuía para o extermínio da tirania, numa época em que
justamente se buscavam meios para enfraquecer o poder do Estado. Como a interferência estatal
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na vida social era repudiada, desejava-se que o Estado exercesse apenas o papel de vigilante e
conservador das situações estabelecidas pelos indivíduos.
Com efeito, o ideal de liberdade preconizado por Montesquieu, que assumiu suas
principais feições na separação dos poderes, foi fortemente incorporado às bases nascentes da
organização constitucional do Estado Moderno.
Sustentava-se que a função limitadora exercida pela Constituição somente estaria
completa se fosse aliada à separação dos poderes do Estado.
Foi nesse contexto que surgiu, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, aprovada na França, declarando em seu artigo XVI que qualquer sociedade na qual a
garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem
constituição.
O movimento constitucionalista, como um todo, passou a manifestar a necessidade de
divisão dos poderes do Estado, como garantia da liberdade.
James Madison, um dos colaboradores na formulação da Constituição norte-americana,
estava bem consciente dessa exigência. Na obra O Federalista, escreveu:
A acumulação de todos os poderes, legislativos, executivos e judiciais, nas
mesmas mãos, sejam estas de um, de poucos ou de muitos, hereditárias,
autonomeadas ou eletivas, pode-se dizer com exatidão que constitui a própria
definição da tirania. (MADISON, 1959, p. 47).

Esse pensamento está claramente refletido na Constituição dos Estados Unidos de 1787,
que dedica o artigo primeiro ao legislativo, o artigo segundo ao executivo e o terceiro ao
judiciário, não admitindo interferências recíprocas nem a transferência de poderes, ainda que
parcial e temporária.
O sistema de separação dos poderes, já então consagrado nas Constituições, passou a ter
realce no meio daqueles que procuravam a democracia através dos seus ditames. Uma vez
associado à idéia de Estado Democrático, determinou o aprimoramento da construção
doutrinária conhecida como sistema de freios e contrapesos, cujas bases já haviam sido
denotadas por Políbio e lançadas por Montesquieu.
O sistema de freios e contrapesos determinava que os atos praticados pelo Estado
poderiam ser de dois tipos: atos gerais e atos especiais.
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Os atos gerais seriam aqueles praticados somente pelo poder legislativo, consistindo na
emissão de regras gerais e abstratas que não poderiam prever a quem iriam atingir no momento
de sua emissão. Dessa maneira, estando a competência do poder legislativo restrita aos atos
gerais, não haveria atuação concreta desse poder na vida social, não dispondo de meios para
privilegiar pessoas ou grupos determinados.
Os atos especiais caberiam ao poder executivo, que só atuaria depois de emitida a
norma geral. Este poder teria à sua disposição meios concretos para agir, mas estaria impedido
de atuar discricionariamente pelo fato de já ter seus atos especiais limitados pelos atos gerais do
legislativo.
O poder judiciário seria o responsável pela função fiscalizadora, atuando sempre que
houvesse exorbitância de qualquer dos poderes, podendo obrigar aquele que desobedecesse a
seus limites a permanecer dentro da sua respectiva esfera de competência.
Com a doutrina dos freios e contrapesos, a configuração da tripartição dos poderes
ganha ainda mais corpo. Contudo, é importante reforçar que a Teoria da Separação dos Poderes,
tal como foi concebida classicamente, consagrou-se como pressuposto do Estado Liberal, numa
época em que se pretendia reduzir ao mínimo a atuação estatal.
No final do século XIX, após a teoria da tripartição dos poderes já ter se convertido em
dogma, a crise do Estado Liberal e suas repercussões sócio-econômicas começaram a criar
novas exigências, que atingiram profundamente o papel do Estado. Houve uma mudança nos
objetivos sociais de redução da atuação do Estado, que passou a ser cada vez mais solicitado a
agir.
Nesse momento histórico não mais se exigia uma limitação rígida das ações do Estado,
o que muitas vezes engessava o desempenho de suas funções, mas reclamava-se uma atuação
estatal que atendesse às exigências da sociedade, cada vez mais graves e urgentes, primando
pela sua eficiência.
Surge, pois, a necessidade de adaptar a clássica separação dos poderes a essas novas
aspirações, mantendo-se, entretanto, a sua função de frear a invasão do Estado na esfera
individual.
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3 Revisão da Teoria Clássica: Colaboração entre os Poderes do Estado

A exigência social de que o Estado desempenhasse suas atribuições com maior


eficiência fez com que houvesse uma ampliação da esfera de ação estatal, o que intensificou sua
participação nos diversos setores da sociedade.
A clássica Teoria da Separação dos Poderes, proposta com o fim exclusivo de
enfraquecer o poder concentrado do Estado no século XVIII, passou então a ser alvo de várias
críticas.
Questionava-se que a separação dos poderes existia como um cenário, donde os
argumentos da democracia e liberdade individual faziam parte, todavia, a estrutura estabelecida
deixava muito a desejar no plano da eficácia, pois faltava a coordenação necessária entre os
poderes.
Uma rígida separação entre os poderes do Estado e suas funções passou a ser vista como
fato inviável dentro da engenharia constitucional de determinada sociedade. Por outro lado,
percebia-se que seria incoerente suprimir o Princípio de Tripartição da estrutura organizacional
de um Estado Democrático de Direito, uma vez que isto representaria um risco e uma afronta
expressa às conquistas alcançadas através da legitimidade liberal, nas quais estão assentados os
pilares da democracia.
Dessa forma, foi a necessidade de aliar a democracia da tradicional separação dos
poderes à eficiência do sistema político que impôs nova visão à Teoria. Esta nova visão
começou a ser suscitada ao longo do Estado Social e conserva aplicabilidade ainda hoje, em
tempos de neoliberalismo.
Para permitir a adequação do Princípio de Tripartição dos Poderes ao bom desempenho
das atividades do Estado, surgiram novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo,
executivo e judiciário.
Os poderes do Estado deixaram de ser interpretados como efetivamente separados e
rigidamente especializados, para serem compreendidos como distintos e coordenados. Fez-se
necessária a interpenetração entre os poderes, com o intuito de viabilizar a prática
governamental, em oposição à intangibilidade recíproca que antes os caracterizava.
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Paulo Bonavides (2005, p. 555) acentua muito bem a importância da manutenção do


Princípio de Separação dos Poderes na atualidade, depois de estar este desvinculado da rigidez
que o marcava no passado:
A verdade é que ele tomou nas formas constitucionais contemporâneas,
depois de iluminado por uma compreensão interpretativa sem laços com a
rigidez do passado, um teor de juridicidade só alcançado por aqueles axiomas
cuja importância fundamental ninguém contesta nem fica exposta a sérias
dúvidas doutrinárias (...) Com efeito, poderia afigurar-se um anacronismo,
reproduzir aqui as lições dos constituintes e publicistas do liberalismo que,
durante o curso dos séculos XVIII e XIX, vazaram, em fórmulas lapidares,
tanto nas Constituições como nas páginas de doutrina, a intangibilidade da
separação de poderes. Mas nunca essa censura se poderia fazer àqueles
autores e àquelas Constituições que ainda no fim do século XX mantêm o
princípio em apreço como uma das pedras inquebrantáveis do edifício
constitucional, cavando alicerces que, se abalados fossem, fariam desabar
toda a construção. (grifos nossos).

Assim, a Teoria da Separação dos Poderes teve que passar por uma revisão, através da
ampliação de seus conceitos e da sua adaptação à realidade sócio-política, permanecendo nas
Constituições democráticas com a idéia de colaboração de poderes.
A colaboração entre os poderes do Estado tornou-se possível através de técnicas que
coadunaram a autonomia organizacional de cada poder com a possibilidade de
intercomunicação de funções, desempenhadas sistematicamente em cooperação mútua.
Desse modo, a nova acepção da divisão de poderes materializou-se por meio da
independência orgânica e da harmonia entre os órgãos legislativo, executivo e judiciário,
especialmente nos sistemas presidencialistas.
Segundo José Afonso da Silva (2004, p. 110), atualmente, a independência dos poderes
significa:
(a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do
governo não depende da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no
exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares
consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na
organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as
disposições constitucionais e legais.

Percebe-se, portanto, que a independência orgânica é entendida como a possibilidade


de cada poder se auto-organizar e desempenhar suas funções típicas sem se subordinar aos
outros, estando apenas sujeitos aos ditames legais.
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Contudo, a independência e a divisão de funções entre os poderes não são absolutas.


Além do respeito às prerrogativas de cada poder, a harmonia pressupõe interferências
funcionais, conforme bem salienta José Afonso da Silva (2004, p. 110-111), valendo-se do
modelo constitucional brasileiro para explicar a maneira pela qual a harmonização entre os
poderes se dá:
Se ao Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais, estabelece-se
um processo para sua formação em que o Executivo tem participação
importante, quer pela iniciativa das leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas a
iniciativa legislativa do Executivo é contra-balanceada pela possibilidade que
o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até de
rejeitá-lo. Por outro lado, o Presidente da República tem o poder de veto, que
pode exercer em relação a projetos de iniciativa dos congressistas como em
relação às emendas aprovadas a projetos de sua iniciativa. Em compensação,
o Congresso, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, poderá rejeitar
o veto, e, pelo Presidente do Senado, promulgar a lei, se o Presidente da
República não o fizer no prazo previsto (...) Se os Tribunais não podem
influir no Legislativo, são autorizados a declarar a inconstitucionalidade das
leis, não as aplicando neste caso. O Presidente da República não interfere na
função jurisdicional, em compensação os ministros dos tribunais superiores
são por ele nomeados, sob controle do Senado Federal, a que cabe aprovar o
nome escolhido (...) Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e
do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão
a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que
não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de
atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente
colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para
evitar distorções e desmandos. (grifo do autor).

Por sua vez, é oportuno fazer aqui uma diferenciação entre distinção de funções e
separação de poderes, embora entre ambas as expressões haja uma conexão necessária.
A distinção de funções constitui a especialização de tarefas governamentais, tendo em
vista a sua natureza (legislativa, executiva e jurisdicional), sem considerar os órgãos que as
exercem. Enquanto que a separação de poderes consiste na existência de órgãos diferentes, onde
cada qual desempenha uma das funções governamentais.
Diante do entendimento que se dá à Teoria da Divisão dos Poderes no presente,
compreende-se que no seu fundamento há uma separação de poderes, onde cada função
governamental é exercida preponderantemente por um órgão específico, no entanto, essa
distribuição de funções para cada órgão não é estanque.
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Os poderes encontram previsão constitucional para participar das atribuições uns dos
outros, desempenhando funções atípicas, a fim de que os problemas do Estado sejam resolvidos
com a rapidez exigida pelos atuais tempos. Contudo, vale frisar que estas funções atípicas são
secundárias ou subsidiárias, ocorrendo apenas por deferência e nos limites do próprio texto
constitucional.
Exemplos latentes de funções atípicas podem ser encontrados na vigente Constituição
Federal brasileira, que adota no seu Artigo 2º o Princípio de Separação dos Poderes, afirmando
serem estes independentes e harmônicos entre si.
O Artigo 62 da Carta Magna permite ao Presidente da República a adoção de medidas
provisórias com força de lei, e o Artigo 68 traz a possibilidade de delegação, por parte do
Congresso Nacional, de atribuições legislativas ao Presidente da República, através das leis
delegadas. No caso do Legislativo, vale citar o Artigo 51, inciso IV, que atribui à Câmara dos
Deputados competência privativa para dispor sobre sua organização administrativa, bem como
o Artigo 52, inciso I, que dá competência ao Senado Federal para processar e julgar o
Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, e os Ministros de
Estado e Comandantes da Forças Armadas nos crimes conexos. Ao Poder Judiciário, o Artigo
96, inciso I, alínea a, da Lei Maior dá competência privativa para eleger seus órgãos diretivos e
elaborar seus regimento internos, dispondo sobre o funcionamento dos seus órgãos
jurisdicionais e administrativos.
Esses são apenas alguns dispositivos que demonstram como o Princípio de Separação
dos Poderes tem se amoldado à conjuntura constitucional contemporânea.
Portanto, a Teoria da Divisão dos Poderes, depois de revisada e ampliada, passa a
admitir que o relacionamento entre os órgãos de poder do Estado obedece aos princípios da
harmonia e dos vasos intercomunicantes, isto é, o Estado só funciona bem quando as suas
atividades fundamentais são exercidas por poderes distintos em colaboração, buscando como
principal objetivo a garantia do bem-estar da coletividade.
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Conclusão

A Divisão de Poderes do Estado, onde cada função governamental é exercida por um


órgão específico, sempre foi um importante instrumento de preservação do exercício social da
liberdade humana, em qualquer gênero de organização do Estado.
Prova disso é o valor que este postulado conserva, sendo suscitado desde a Antigüidade
pelos grandes pensadores, até o presente, onde permanece como princípio das Constituições dos
Estados contemporâneos.
Entretanto, seria inconcebível querer-se que a Teoria da Separação dos Poderes
mantivesse a mesma interpretação, desde a sua consagração no século XVIII, até hoje, em pleno
século XXI. Isto porque tal teoria, como proposição fundamental para o exercício do poder, teve
que necessariamente acompanhar a evolução do aparato estatal e da sociedade.
Concebida para evitar os abusos de poder do Estado, através de um mecanismo que
enfraquecesse a sua intromissão na esfera individual, a clássica Teoria de Separação dos
Poderes foi revisada para ser mantida, pois sua rigidez passou a representar um entrave ao
desempenho eficiente das atribuições estatais.
A solução alcançada foi a ampliação dos conceitos da teoria, passando a ser entendida
como instrumento de garantia da desconcentração das funções do Estado e de desempenho
eficaz destas funções. Conciliar essas duas nuances na mesma teoria tornou-se possível através
da associação da idéia de independência orgânica entre os poderes, com a idéia de
harmonização entre os mesmos.
A separação dos poderes do Estado admitiu em seus fundamentos a interpenetração
entre as funções exercidas por cada poder. Assim é que, atualmente, não se fala mais em
intangibilidade e indelegabilidade entre os poderes do Estado, e sim em colaboração entre os
poderes distintos.
A Teoria da Separação dos Poderes, na época presente, conserva a atribuição das
funções legislativa, executiva e judiciária a órgãos especializados, que possuem autonomia
organizacional e não estão subordinados uns aos outros para o regular desempenho de suas
funções típicas, devendo guardar obediência apenas à Constituição e às leis. Contudo, passou a
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admitir interferências recíprocas entre os poderes e o exercício de funções atípicas por cada um,
dentro dos limites expressos na Constituição.
Dessa forma, a revisão da Teoria da Separação dos Poderes adaptou o dogma clássico à
realidade da necessária prestação estatal eficiente, e continua gozando de prestígio, sendo
considerada uma das mais sublimes garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Revision of the Theory of the Separation of the Powers of the State

Abstract:

The article presents an analysis of the theory of the Separation of the Powers of the State,
emphasizing the virtue of concepts that the theory preserves, tends in view that the tripartite of the
legislative functions, executive and judiciary among organs different from the State it has been raised
from the antique and guard applicability in the current days. Approaching its classic interpretation and the
historical context in that it was consecrated, search to confront the understanding that the Theory of the
Separation of the Powers possesses in the past as the sense that today it expresses, after having gone by a
revision that made to accompany the evolution of the State apparatus and of the society.

Keywords: State. Separation of the Powers. Montesquieu. Warranty of freedom. State efficiency.

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