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O Poder Judiciário na doutrina da

separação dos poderes


Um quadro comparativo entre a ordem brasileira e a
ordem portuguesa

Raoni Bielschowsky

Sumário
Delimitação do plano de estudo. 1. Evolu-
ção histórica. 1.1. Realidade inglesa de Cons-
tituição mista. 1.2. A separação dos poderes
em Montesquieu. 1.3. Separação dos poderes
na Revolução Francesa. 1.4. Separação dos
poderes na América. 1.5. Doutrina da sepa-
ração dos poderes e atual estágio do Estado
de Direito. 2. Papel do Poder Judiciário no
esquema constitucional. 2.1. Princípio da
separação dos poderes nas Constituições do
Brasil. 2.2. Princípio da separação dos poderes
nas Constituições de Portugal. 2.3. Princípios
regentes do Poder Judiciário. 2.4. Particulares
diferenças entre o tratamento constitucional
do Poder Judiciário no Brasil e em Portugal. 3.
Influência dos Poderes Legislativo e Executivo
na estrutura do Poder Judiciário. 3.1. Influência
do Poder Legislativo. 3.2. Influência do Poder
Executivo. 4. Poder Judiciário e atuação sobre
os demais poderes. 4.1. Eficácia dos direitos
fundamentais e proteção das minorias. 4.2.
Efetivação de direitos sociais. 4.3. Sentenças
de caráter normativo. Conclusão.

Delimitação do plano de estudo


A história do desenvolvimento da forma
do Estado em muito se confunde com a
história do controle do poder na socieda-
de. A necessidade de limitação das forças
Raoni Bielschowsky é Mestrando em Ciên-
cias Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito estatais tanto do ponto de vista interno,
da Universidade de Lisboa; Professor Substituto como do ponto de vista externo, sempre foi
da Universidade Federal do Rio Grande do uma questão de extrema relevância para a
Norte e Advogado. formulação do modelo de Estado moderno.

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Nessa esteira, o princípio da separação analisadas e realmente entendidas conjun-
de poderes, junto ao Constitucionalismo e tamente1.
à prescrição de direitos fundamentais do Assim, uma das vertentes mais impor-
cidadão, foi uma das formulações liberais tantes da ideia de separação dos poderes é
que mais prestígio obteve ao longo da a de que só o poder pode limitar o poder,
história do Estado moderno. Seu escopo “pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir,
de limitar o poder por meio da distinção il faut que, par la disposition des choses, le
entre as funções estatais e sua repartição pouvoir arrête le pouvoir”, e por isso, dividi-lo
em diversos órgãos/instituições encontra entre diferentes instituições é a forma mais
ainda hoje caríssimo apreço e proteção adequada de impedir abusos.
constitucional. Estabelecida essa divisão e separação
Sem prejuízo de várias outras formula- do poder, gerou-se muita discussão acerca
ções teóricas, a concepção consolidada por de quais as funções exatas a serem desem-
Montesquieu (2007) no décimo primeiro li- penhadas por cada um dos poderes do
vro, capítulo VI do Espírito das Leis, baseada Estado, quais os limites de atuação de cada
em uma divisão tríplice do poder estatal – poder. Inicialmente, as maiores questões
Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder travaram-se no sentido de delimitar as
Judiciário – foi aquela que encontrou maior fronteiras de competência e atuação do
difusão, aceitação e aplicação constitucional Poder Legislativo e do Poder Executivo,
nos ordenamentos contemporâneos. por estarem primordialmente ligados à
É bem verdade que a separação dos atividade política do Estado. Todavia,
poderes é apenas um dos critérios possíveis com o avanço do Estado de Direito, com o
da divisão do poder estatal, suscetível de sistema de controle de constitucionalidade
ser feita por diversas formas e critérios. A e, de forma ainda mais acentuada, após o
identificação de várias funções inerentes reconhecimento dos direitos sociais (que,
ao Estado é tema recorrente desde a An- via de regra, exigem uma prestação positi-
tiguidade. Mas a grande peculiaridade va do Estado para sua efetivação), o Poder
que diferencia a separação dos poderes Judiciário ganha cada vez mais projeção
dos modelos de divisão do poder que o no controle da atividade estatal, muitas
antecedeu é o fato de que a separação dos vezes acabando por delinear os contornos
poderes em Locke (2008) e Montesquieu do próprio modelo de Estado de Direito
(2007) não propõe apenas a distinção de contemporâneo. Assim, a discussão quanto
diferentes funções estatais, mas também à colocação e papel do Poder Judiciário no
a separação dessas funções entre distintas clássico modelo de separação dos poderes
instituições. Destarte, é a ideia de especia- ganha cada dia maiores dimensões.
lização orgânico-funcional que faz especial Por isso, é necessária uma visão histó-
a fórmula da separação dos poderes. rica, política e constitucional da constru-
Além disso, apenas com a concepção da ção do modelo de separação dos poderes
separação dos poderes é que surge a cone- para se entender seu real sentido, e, por
xão desse sistema organizativo do Estado conseguinte, entender qual o verdadeiro
com a proteção aos direitos fundamentais. papel que o Poder Judiciário pode e deve
Assim sendo, a materialização desse es- assumir na atuação estatal. Além disso,
quema só ocorre no constitucionalismo, é necessário dispor sobre a atual confi-
enquanto modelo organizatório do Estado
de Direito (MIRANDA, 2008a, p. 374-375). 1
Veja-se no artigo 16o da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão como são tratados correlata-
Desse modo é imperativo reconhecer o mente estes três fenômemos: “A sociedade em que não
quão indissociáveis são essas três estruturas esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabele-
do Estado liberal, e como elas só podem ser cida a separação dos poderes não tem Constituição”.

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guração constitucional dada ao princípio 1. Evolução histórica
da separação dos poderes, e ao Poder
Judiciário, tendo em conta a evolução e 1.1. Realidade inglesa de
as transformações que sofreu o Estado em Constituição mista
sua forma e fins, desde o momento liberal
até hoje. Apesar de já na antiguidade, seja em
Para uma melhor configuração do pa- Aristóteles2, seja em Cícero, se encontrarem
pel do Poder Judiciário na separação dos destacadas as funções do Estado, a história
poderes, é necessária uma análise histórica da separação dos poderes na modernidade
desse postulado. Para tanto, neste traba- tem seu berço na sociedade inglesa, espe-
lho, parte-se de uma análise da realidade cialmente nos séculos XVI e XVII. Mesmo
do rule of law britânico e das formulações que antes da modernidade, já com alguma
de separação do poder estatal feitas por recorrência, tenha sido identificada e des-
Locke – momento imediatamente ante- tacada na atividade estatal uma série de
rior à autonomização do Poder Judiciário funções3, foi no momento da construção do
no Espírito das Leis; a seguir trabalha-se Estado liberal que ganhou força a ideia de
a clássica formulação de separação de distinção das funções do Estado e, mais que
poderes de Montesquieu; e em seguida isso, da distribuição dessas tarefas nas mãos
investigam-se as duas principais experi- de mais de um titular/instituição, com o
ências históricas do conceito: a Revolução intuito de assim limitar o poder.
Francesa e a Revolução Americana. Neste Na Inglaterra, o passado distante da
último ponto, cabe uma ressalva quanto à separação dos poderes remonta à Magna
ordem cronológica seguida. Sem prejuízo Carta e tem seu ponto de chegada na Glo-
do fato de que a Independência Americana rious Revolution e no Bill of Rights de 1688.
(1776) tenha ocorrido treze anos antes da 2
“Hay teóricos de la política que pretenden haber
Revolução Francesa (1789), o principal encontrado en la Política de Aristóteles el núcleo de
marco histórico para a consolidação e la moderna separación de poderes. El Estagirita dis-
configuração do Poder Judiciário nos tinguió tres partes o segmentos – el término griego
Estados Unidos da América foi a criação/ es µοΐραι – en las funciones estatales – (...) (‘las deli-
beraciones sobre asuntos de interés común’); (...) (‘la
reconhecimento do controle de constitu- organización de cargos o magistraturas’); y (...) (‘la
cionalidade que só viria a ocorrer em 1803 función judicial’). No se puede dejar de adminirar la
no caso Marbury v. Madison, julgado pelo modernidad del padre de la ciencia política, cuando
Chief Justice John Marshall. Esse fato justifi- AL principio de esta exposición declara que la dife-
rencia entre lãs diversas constituciones – es decir, en
ca que aqui seja antes tratada a Revolução expresión aristotélica de la diferencia entre estas ca-
Francesa e apenas depois se parta para o tegorías no puede equipararse con la exigência actual
tratamento da realidade americana. E por de separación de funciones tal como se ha pretendido
fim, delineando essencialmente o papel deducir Del texto en cuestión. De la exposición que
sigue a lãs citas mendionadas, resulta que Aristóteles
do Poder Judiciário no atual estágio do intento – lo cual ya es en si mérito considerable – um
Estado de Direito. análisis de lãs funciones estatales según su substan-
Em seguida abordar-se-á o tratamento cia. Nada permite deducir que Aristóteles obsevase
constitucional dado ao Poder Judiciário nas empíricamente o desease teóricamente la atribuición
de estas três funciones a diferentes órganos o per-
Cartas de Brasil e Portugal ao longo da his- sonas. Y justamente em este punto yace la impor-
tória, seguindo-se para uma abordagem da tancia ideológica de la doctrina de la separación de
influência que o Poder Legislativo e o Poder poderes Del liberalismo constitucional de la primera
Executivo exercem no Poder Judiciário. E época. El constitucionalismo de la Antigüedad no
se adscribió a la teoria de la separación de poderes”
por fim, tratar-se-á das principais projeções (LOEWENSTEIN, 1976, p. 56, 57).
do Poder Judiciário sobre esses outros dois 3
Comumente três, como se segue no modelo de
poderes do Estado. Montesquieu (2007).

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A Magna Carta imposta ao rei João sem legiferante era atribuída a uma assembleia
Terra estabeleceu direitos e deveres recípro- composta pelos três estratos da sociedade:
cos entre o rei e os barões. Esse documento o rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos
previu um Grande Conselho que, composto Comuns. Diferentemente, à mesma época,
pelos barões mais influentes, tinha a fun- a Europa continental via o avanço do regi-
ção de dirimir os litígios existentes entre me absolutista e a concentração cada vez
o rei e seus vassalos, bem como autorizar mais intensa do poder estatal nas mãos do
a cobrança de tributos aos nobres e ao monarca e seus subordinados.
clero. Desse modo, apesar de não se poder A separação dos poderes na história
afirmar que o Grande Conselho desempe- político-constitucional britânica foi conse-
nhasse funções propriamente legislativas, quência direta da necessidade de cumpri-
seguramente o intuito de sua criação foi o mento do rule of law, e essa, por sua vez,
de limitar o poder real. uma das questões fundamentais em jogo
Assim, especificamente na história durante a Guerra Civil Inglesa (1642-1649).
inglesa, muito mais do que a necessidade Para a concretização desse sistema jurídico,
de equilibrar o poder dentro do Estado, a era imprescindível não se acumularem nas
divisão entre Rei e Parlamento objetivara mãos de apenas um órgão, ou do monarca,
o equilíbrio e estabilidade social entre as funções de criação e de execução das
as forças que compunham a sociedade leis (na qual se incluía a função jurisdi-
estamental da época, ainda formada nos cional). Isso porque, apesar de no direito
moldes medievais. Na história político- anglo-saxão viger o regime de common
-constitucional britânica, a origem do prin- law – e por isso ser seu sistema jurídico
cípio da separação dos poderes relacionou- primordialmente baseado em precedentes
-se à necessidade de limitação dos poderes jurisprudenciais –, os atos normativos do
da coroa, impondo barreiras ao arbítrio e o Parlamento passaram a ganhar cada vez
respeito às liberdades individuais. mais importância a partir do século XVII; e
Na ilha da Bretanha, diferentemente nesse tempo, ganharam caráter inovador de
do que ocorreu no continente europeu, direito, deixando de ser considerados como
houve uma transição quase que direta do atos meramente reconhecedores de um
Estado estamental medieval para o Estado direito natural preexistente. Com isso, na
constitucional-representativo, sendo pra- Inglaterra, a lei solidificou sua condição de
ticamente – mas não inteiramente – desco- fonte do Direito (MIRANDA, 2003, p. 44).
nhecida uma fase de Estado absolutista. A A solidez da monarquia mista inglesa
monarquia constitucional inglesa formou- fica clara quando o rei Jaime I resiste em
-se a partir de um gradativo processo de reconhecer sua sujeição à lei, intentando,
transformação dos estamentos em órgãos como monarca abalizado por um direito
do Estado (PIÇARRA, 1989, p. 42). E, por divino, permanecer para além e acima da
isso, já no século XV, a Constituição mista norma legal. Todavia, o sistema de rule of
da Inglaterra repartia o poder entre rei, lor- law e os juristas seiscentistas ingleses funda-
des e comuns, baseando-se em um sistema mentaram uma sólida construção jurídica
de rule of law, que de per si, já se apresentava de que todos, inclusive o rei, estariam su-
como um instrumento limitativo do poder jeitos às prescrições legais. Essas, por sua
absolutista4. Consequentemente, a função vez, só poderiam ser criadas ou alteradas
por um específico processo legislativo.
4
“Com a expressão rule of law designam-se os
princípios, as instituições e os processos que a tradição
e a experiência dos juristas e dos tribunais mostraram deve dar aos indivíduos a necessária protecção contra
ser essenciais para a salvaguarda da dignidade das qualquer exercício arbitrário do poder” (MIRANDA,
pessoas frente ao Estado, à luz da idéia de que o Direito 2003, p. 76, 77).

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No entanto, com o reinado de Carlos O que une ambas as realidades é a busca
I, a Inglaterra sofreu seus “Eleven years de um modelo que consagre a lei enquanto
of Tyranny”, e assim, seu momento mais base da liberdade do indivíduo. Seja na
próximo de um modelo absolutista de Inglaterra, seja na França, a separação dos
Estado. Houve a dissolução do terceiro poderes e as tentativas de limitação do po-
Parlamento, e dessa forma, ao menos mo- der estatal vêm ao encontro do argumento
mentaneamente, o princípio representativo liberal defendido por Locke – o da proteção
ficou minimizado na sociedade inglesa. da liberdade e esfera particular de cada
Sem prejuízo dessa constatação, houve – indivíduo (COMPARATO, 2006, p. 70).
em razão da necessidade de lançamento Diante dessa conjuntura, Locke (2008)
de impostos – a convocação de um “Curto identificou quatro funções do Estado e
Parlamento” e, posteriormente, de um propôs uma divisão do poder entre duas
“Longo Parlamento”. instituições. Por isso, deve-se analisar sob
Foi justamente o “Longo Parlamento” três níveis o modelo de separação lockeano.
que marcou severa oposição ao reinado São eles o aspecto funcional, o institucional
de Carlos I e reavivou o confronto entre e o socioestrutural. O autor inglês identifi-
o poder do rei e o poder das assembleias. cou quatro poderes/funções no Estado: a
A partir de então, o abuso de poder, nor- legislativa; a executiva (responsável pela
malmente vinculado à figura do monarca, execução das regras dentro de espaço nacio-
passou a ser também vinculado a atos abu- nal); a federativa (que abarcava as relações
sivos dos órgãos parlamentares, conhecidos externas); e a prerrogativa (que consistia na
como bill of attainder, em que a assembleia tomada de decisões em casos de exceção à
impunha, por meio de atos legislativos, Constituição) (LOCKE, 2008, p. 163 et seq).
pena de morte sem a necessária observância Do ponto de vista institucional, havia de
do due process. É nessa época, por exemplo, um lado o Parlamento, repartido em Câma-
que se intensificou o uso do instrumento ra dos Lordes e Câmara dos Comuns, que
do impeachment contra titulares de cargos juntas ao rei exerciam as funções legislati-
públicos5. Ou seja, a realidade inglesa da vas; e, por outro lado, a Coroa, que exercia
separação dos poderes enquanto separação as outras três funções, inclusive o poder de
orgânico-pessoal das funções do Estado julgamento (pois os tribunais eram vincu-
para a efetivação de um modelo de rule of lados ao rei). E na esfera socioestrutural,
law surgiu também, em grande parte, em dividia-se o Povo, os Lordes e a Casa Real
razão dos abusos de uma assembleia onipo- (CANOTILHO, 2003, p. 580).
tente, acumuladora dos poderes de legislar Dessa forma, no modelo proposto por
e de julgar. Ao contrário do que acontecerá Locke, o Poder Judiciário não recebera tra-
na França, em cuja revolução liberal a tamento autônomo, e sim fora vinculado ao
importância da separação dos poderes se Poder Executivo e, consequentemente, ao
destaca primordialmente como forma de rei. Possivelmente esta, entre todas, era a
controlar o poder do monarca absoluto. mais significativa diferença entre o modelo
de Montesquieu (2007) e o de Locke (2008).
5
Esse instrumento já é a origem do instrumento
republicano homônimo, cuja origem remonta a 1376. 1.2. A separação dos poderes
À época, tratava-se de processo proposto pela Câma- em Montesquieu
ra dos Comuns e julgado pela Câmara dos Lordes.
Esse poder da assembleia de ao mesmo tempo editar É no Décimo-Primeiro Capítulo, mais
as lei e julgar os casos foi, já na Inglaterra do século
especificamente no Livro VI, nomeado Da
XVI, um dos fatores de maior importância para o
reconhecimento da necessidade de separação dos constituição da Inglaterra, que Montesquieu
poderes e sua posterior concretização (PIÇARRA, descreve seu modelo tripartidite de sepa-
1989, p. 48). ração dos poderes. Pouco importa se esse
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modelo de separação apresentado foi real- Executivo, incumbido então de julgar os
mente original ou se apenas representou crimes e conflitos entre os particulares
uma mera descrição da realidade inglesa, (MIRANDA, 2004)6.
ou ainda, se ele já fora mais bem ou mais Para além disso, o Capítulo da VI do
mal descrito por autores pretéritos – o fato é Décimo Primeiro Livro do Espírito das
que a construção da separação dos poderes leis ainda apresenta outra importante for-
ali descrita é até hoje a base daquela ado- mulação referente às formas de controle
tada pelos Estados ocidentais. Como já foi interpoderes, traduzindo a concepção dos
dito, desde a antiguidade já se reconhecia a checks and balances. É bem verdade que não
existência de diversas funções estatais, mas se vê, no modelo de tripartição descrito
a não acumulação dessas funções na mão no Espírito das leis, uma imiscuição de um
de apenas um governante/instituição não poder sobre as funções do outro, tal qual é
era preocupação recorrente na formação do aquela exigida pelo atual estágio do Estado
Estado até a Guerra Civil Inglesa. de Direito. Contudo, Montesquieu já previ-
Nessa esteira, na formulação de Mon- ra a necessidade de mecanismos de controle
tesquieu (2007), também se identificam interpoderes ao descrever a faculdade de
os três níveis – funcional, institucional e estatuir (faculté de statuer) e faculdade de
socioestrutural – encontrados no modelo impedir (faculté d’empêcher)7.
de divisão do poder apresentado por Locke Desse modo, a concepção de uma forma
(2008). Todavia, a organização e critério de de Estado dividido funcional e institu-
separação dentro desses três níveis apre- cionalmente em três poderes – um com a
sentou significativas diferenças. competência de legislar, outro com a com-
Do ponto de vista funcional, na sepa- petência de administrar e outro encarrega-
ração do autor francês, há a identificação do de dirimir conflitos – foi consolidada.
das clássicas funções legislativa, executiva Igualmente, a ideia de interdependência
e judiciária; portanto, há a ideia de uma ou harmonia entre esses poderes também
divisão tripartite do poder estatal que até ficara inicialmente delineada, com as
hoje perdura como aquela mais difundida. ideias de faculdade de estatuir e faculdade
No plano institucional, identificaram-se de impedir8 – sem prejuízo, todavia, das
também três órgãos: o parlamento, o gover- profundas alterações que essa estrutura
no, e agora, autonomamente, os tribunais. sofreria nos Estados Unidos da América em
Desse modo, Montesquieu (2007) descre-
veu um modelo em que as três funções 6
“Tampouco existe liberdade se o poder de julgar
essenciais do Estado estavam distribuídas não for separado do poder legislativo e do executivo.
em três instituições distintas e separadas. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre
Diferentemente do que formulara Locke a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois
(2008), que, apesar de identificar quatro o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao executivo,
o juiz poderia ter a força de um opressor” (MONTES-
funções estatais, apenas as distribui entre QUIEU, 2007, p. 168).
duas instituições, o Parlamento e a Coroa. 7
“Chamo faculdade de estatuir ao direito de orde-
E ainda, do ponto de vista socioestrutural, nar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado
continuou-se o mesmo substrato composto por outrem. Chamo faculdade de impedir o direito de
anular uma resolução tomada por outrem” (MON-
por povo, nobreza e Coroa, já base da Cons- TESQUIEU, 2007, p. 172, 173).
tituição mista inglesa e da formulação de 8
Concepção essa mais profundamente trabalhada
separação dos poderes lockeana. por Bolingbroke em diversos estudos esparsos, em que
Desse modo, foi na formulação de esse autor previa uma ideia de equilíbrio e controle
recíproco dos poderes, empregando expressões como:
Montesquieu que primeiro se reconheceu freios recíprocos, controles recíprocos, retenções e
um Poder Judiciário funcional e institucio- reservas recíprocas, entre outras (SCHMITT, 2001,
nalmente autônomo, destacado do Poder p. 187).

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1803 com a implementação do controle de Nesse ambiente, ascende a separação
constitucionalidade. dos poderes como princípio caríssimo do
Estado de Direito liberal. Isso porque é
1.3. Separação dos poderes na indissociável o sistema ambicionado pelos
Revolução Francesa ideais revolucionários, baseado na legali-
A separação dos poderes em Montes- dade e na segurança jurídica, do esquema
quieu (2007) é peça importantíssima no de separação dos poderes.
ideário revolucionário francês. Isso porque Todavia, há de se ter em conta, que, se
a nova ordem a ser instaurada, o Estado uma das principais razões do surgimento
de Direito liberal, contrapunha-se à ordem da separação dos poderes para a concretiza-
anterior, o Estado absolutista, e, portanto, ção do rule of law na Inglaterra fora limitar
a desconcentração do poder e sua con- tanto o poder da Coroa, como também um
sequente limitação foi um dos objetivos poder por vezes abusivo das assembleias,
primordiais do movimento revolucionário. na França a principal força a ser limitada
No estágio despótico do Estado francês, era a do rei absolutista. Enquanto na Grã-
o poder estava basicamente concentrado -Bretanha se vivia uma monarquia mista,
nas mãos do monarca e de seus funcioná- representativa, na França a revolução libe-
rios delegados. A liberdade dos indivíduos ral teve por objetivo justamente acabar com
estava à mercê de leis que correspondiam à o sistema monárquico, que em seu caso não
própria vontade de quem as executava, ou admitia a representatividade das demais
seja, à vontade do rei. Essa fase é expressa camadas sociais em ascensão, nomeada-
maximamente pela famosa frase de Luís mente a burguesia.
XIV, o Rei Sol: “L’État c’est moi”. O mo- Além disso, a Revolução Francesa, em
narca era o soberano, o poder estatal estava muito marcada pela obra de Rousseau
em suas mãos e era exercido conforme (2006), que identificava no poder legisla-
sua consciência, já que a lei, na verdade, dor um papel de primariedade, instituiu
representava tão somente a vontade do rei um regime parlamentar. Assim, o papel
formalizada. Enquanto isso, do ponto de judiciário na estrutura estatal fora em boa
vista da produção, o sistema de produção medida diminuído e absorvido pelo poder
feudal evolui para o capitalismo comercial. do Parlamento. Mais ainda com o entendi-
E enquanto o poder político se mantivera mento da exegese como método primordial
nas mãos da nobreza, o poder econômico de interpretação legal.
passou a ser detido pela burguesia. Por essa mesma razão, há de se identi-
Essa é a atmosfera da Revolução France- ficar que na França houve uma separação
sa, que tem por base a questão da liberdade menos rígida do que aquela ocorrida na
individual do cidadão sobre o poder estatal. Revolução Americana que adotara o siste-
Com Rousseau (2006), o soberano do poder ma presidencialista.
nacional não mais é o seu agente (o prín-
cipe), e sim o povo que o exerce por meio
de seus representantes. Assim, a liberdade como expressão da vontade geral; em vez do exercício
do poder por um só ou seus delegados, o exercício por
do príncipe enquanto ser escolhido para
muitos, eleitos pela coletividade; em vez da razão do
governar o povo cede lugar à vontade da Estado, o Estado como executor de normas jurídicas;
lei, e o Estado, em vez de obedecer à von- em vez súbditos, cidadãos, e atribuição a todos os
tade do agente do príncipe, deve executar homens, apenas por serem homens, de direitos con-
sagrados nas leis. E instrumentos técnico-jurídicos
normas jurídicas9.
principais tornam-se, doravante, a Constituição, o
princípio da legalidade, as declarações de direitos,
9
“Em vez de tradição, o contrato social; em vez a separação dos poderes, a representação política”
da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei (MIRANDA, 2003, p. 45).

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1.4. Separação dos poderes na América do Presidente. Todavia, enquanto na França
se viu, ao menos a priori, a força estrangu-
Já na América, a separação de poderes ladora do parlamento, nos EUA a figura
ocorre de forma diversa daquela vista na executiva do Presidente sempre teve papel
Europa. As diferenças principais podem privilegiado dotado de grande autonomia e
ser explicadas por basicamente dois fatores independência no desempenho das funções
preponderantes. Primeiramente, as razões executivas e grande liberdade política.
que motivaram a Revolução Francesa e O segundo ponto fundamental que di-
aquelas que resultaram na independência ferencia o modelo americano de separação
das colônias inglesas na América do Norte dos poderes é o sistema de common law, que,
foram distintas, em que pesem as raízes por ser baseado sobretudo em precedentes
iluministas de ambas. E em segundo lu- jurisprudenciais (stare decisis) – ainda que
gar, o sistema jurisdicional baseado em não exclusivamente –, deu maior possibi-
precedentes judiciais (stare decisis) típico lidade para o surgimento do controle de
do modelo de common law, adotado pelos constitucionalidade.
anglo-americanos, em oposição ao sistema Desde o reconhecimento da possibili-
de civil law vigente em quase toda Europa dade do controle de constitucionalidade
continental, foi responsável em grande das normas e atos estatais pelo Poder Ju-
medida pelo desenvolvimento do controle diciário10, a verificação de adequação dos
de constitucionalidade.
Primeiramente, um dos objetivos po- 10
Inicialmente consagrado no caso Marbury v. Ma-
líticos principais da Revolução Francesa dison, decidido pelo Chief Justice Marshall na Suprema
Corte dos Estados Unidos da América, em que de
foi a dissolução e contraposição ao antigo forma lapidar decidiu pela possibilidade do controle
regime. Ou seja, a derrubada de um mode- de constitucionalidade. Ao menos um trecho da decisão
lo em que o rei concentrava praticamente vale ser transcrito: “It is emphatically the province and
todo o poder estatal, e em resposta a isso, duty of the judicial department to say what the law is.
Those who apply the rule to particular cases, must of
a revolução na França propunha que fosse necessity expound and interpret that rule. If two laws
instalada uma nova ordem, a do Estado li- conflict with each other, the courts must decide on
beral. Na América do Norte, por outro lado, the operation of each. [5 U.S. 137, 178] So if a law be
o objetivo político primordial foi a eman- in opposition to the Constitution: if both the law and
the Constitution apply to a particular case, so that the
cipação das colônias inglesas americanas, court must either decide that case conformably to the
até então massacradas política e, sobretudo, law, disregarding the Constitution; or conformably to
tributariamente pelo Parlamento da metró- the Constitution, disregarding the law: the Court must
pole. Ou seja, enquanto os revolucionários determine which of these conflicting rules governs
the case. This is of the very essence of judicial duty.
franceses tinham como principal adversário If then the courts are to regard the Constitution; and
o Rei da França, os colonos americanos ti- he Constitution is superior to any ordinary Act of the
nham por oposição principal a política do Legislature; the Constitution, and not such ordinary
Parlamento inglês. Assim, a separação dos act, must govern the case to which they both apply.
Those then who controvert the principle that the Con-
poderes na Revolução Americana deu-se de stitution is to be considered, in Court, as a paramount
forma mais acentuada, derivando para um law, are reduced to the necessity of maintaining that
modelo presidencialista que não coincidia courts must close their eyes on the Constitution, and
see only the law. This doctrine would subvert the
com a responsabilidade política de um
very foundation of all written constitutions. It would
órgão perante os outros. declare that an act, which, according to the principles
Ainda assim, não há que se falar em and theory of our government, is entirely void, is yet, in
absoluto isolamento entre os três poderes practice, completely obligatory. It would declare, that
if the legislature shall do what is expressly forbidden,
na democracia americana. Isso fica claro na such act, notwithstanding the express prohibition, is
presença de institutos como o veto presi- in reality effectual. It would be giving to the legislature
dencial, ou a possibilidade de impeachment a practical and real omnipotence with the same breath

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atos públicos deixou de ser meramente resposta ao fracasso do Estado liberal. Elas
política, e passou a ser, primordialmente, variaram desde modelos fora do Estado
da esfera jurídica. de Direito, como o fascismo e o nacional-
Esse foi o primeiro modelo de controle -socialismo na extrema direita, ou ainda
de constitucionalidade surgido em 1803 o regime socialista marxista-leninista na
com o caso Marbury v. Madison, em que o extrema esquerda, até a reformulação desse
Chief Justice Marshall reconheceu a cada modelo por meio do Estado Social.
tribunal ou juiz dos Estados Unidos da Foi, primeiramente, na Constituição me-
América o dever e o poder de julgar os xicana de 1917 e na Constituição de Weimar
casos diretamente de acordo com a Cons- de 1919, e, posteriormente, em uma série
tituição americana, inclusive, se necessário de Constituições subsequentes à Segunda
para isso fosse, afastar a aplicação de uma Guerra Mundial, que se foi incorporando
lei que se mostrasse incoerente com a nor- esse novo modelo do Estado Democrático
ma constitucional. Assim, desde então se de Direito. A partir de então é reconhecido
vê que o Poder Judiciário, mais que vincu- ao Estado o dever de estruturar, planear e
lado à lei, encontra-se vinculado à norma modificar a sociedade em vista da promo-
hierarquicamente superior que se impõe ao ção da justiça social e da persecução do
legislador e ao administrador do Estado no interesse comum. Nesse passo, identifica-se
exercício do poder. a reconciliação entre sociedade e Estado,
Desse modo, o papel do Poder Judiciá- marcadamente divididos durante a época
rio, antes considerado praticamente nulo liberal. Assim, nas palavras do Professor
e limitado a ser simplesmente a boca que Jorge Reis Novais (2004, p. 30 et seq.), “A
pronuncia as palavras da lei (MONTES- expressão Estado social procura sintetizar
QUIEU, 2007, p. 172,175), passou a ter o sentido desse processo concertado de
preponderante papel para a efetivação da estadualização da sociedade e de recíproca
ordem constitucional. socialização do Estado”.
Com o Estado social, para além das
1.5. Doutrina da separação dos poderes e garantias individuais e da limitação do
atual estágio do Estado de Direito poder – valores presentes já no ideário do
Em fins do século XIX e início do século Estado liberal –, cabe agora também ao apa-
XX, o Estado de Direito sofreu profundas rato estatal garantir a igualdade material e
alterações. O modelo liberal, com sua marca assegurar os direitos sociais, que passam
individualista, mostrava-se insuficiente por um processo de reconhecimento de
para atender às demandas da sociedade sua jusfundamentalidade. Esses “novos
e, por isso, a configuração do Estado de direitos fundamentais” não podem ser
Direito e seus fins foi alvo de uma grande concretizados mediante uma abstenção do
renovação. Estado; ao contrário, exigem da máquina
Sobretudo após a Primeira Grande estatal prestações positivas em favor do
Guerra, várias alternativas surgiram em cidadão.
Todas essas alterações projetam particu-
which professes to restrict their powers within narrow lares transformações na própria concepção
limits. It is prescribing limits, and declaring that those
limits may be passed at pleasure. That it thus reduces
da divisão dos poderes. Isso porque para
to nothing what we have deemed the greatest improve- além da segurança jurídica, princípio tão
ment on political institutions – a written constitution caro ao Estado liberal, ganha muita força a
– would of itself be sufficient, in America where written ideia de provimento de condições materiais
constitutions have been viewed with so much rever-
ence, for rejecting the construction. But the peculiar
para o adequado e livre desenvolvimento
expressions of the Constitution of the United States do indivíduo e da proteção de sua digni-
furnish additional arguments in favour of its rejection”. dade humana.

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 277


Assim, as relações entre os poderes do 2. Papel do Poder Judiciário no
Estado sofrem profunda revisão. Vê-se, esquema constitucional
pois, uma relativização das fronteiras entre
Legislativo e Executivo. A atividade norma- 2.1. Princípio da separação dos poderes
tiva da Administração passa a ser cada vez nas Constituições do Brasil
mais comum, como, por exemplo, na am-
pliação de sua competência para iniciativa A Constituição da República Federativa
de leis – ainda que estejam sempre sujeitas do Brasil de 1988 traz expressamente no
à aprovação pelo Parlamento; e na esfera de artigo 2o a concretização de um modelo
competência do Poder Legislativo surge a de tripartição do Poder, tal qual o traçado
figura de atos desvinculados do tradicional por Montesquieu (2007)12. Adota-se assim,
conceito de lei, geral e abstrata, como é o uma classificação orgânico-formal, em
caso das leis-medidas. que cada função do Estado se identifica
No que diz respeito ao papel do Poder propriamente com um órgão específico:
Judiciário, este ganha muito maior inde- Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder
pendência e projeção para o triunfo do Judiciário.
Estado Democrático e Social de Direito. É Para José Afonso da Silva (2007, 2008),
também no início do século XX que começa a nomenclatura utilizada no artigo 2o da
a surgir o modelo europeu de controle de CRFB/1988 (“São Poderes da União inde-
constitucionalidade11, e, portanto, a difusão, pendentes e harmônicos entre si”) é própria
para além da América, de mecanismos de da divisão de poderes no Presidencialis-
controle da superioridade hierárquica da mo. Isso porque, segundo o doutrinador
Constituição sobre as leis. brasileiro, no regime Parlamentarista, tal
Com o Estado social, na atividade de cláusula não teria sentido com essa redação,
fiscalização do adequado cumprimento por prevalecer o princípio da colaboração
constitucional, o controle dos atos da Ad- entre os poderes13.
ministração ganha destaque no que diz Assim, por independência deve-se en-
respeito ao cumprimento de prestações tender: a) uma maior rigidez entre a sepa-
essenciais à efetivação de direitos funda- ração e individualização de competências
mentais (sobretudo dos direitos sociais). de cada órgão; b) significa ainda que, após
Além disso, hodiernamente, não apenas o a investidura de determinado titular no
controle sobre o Poder Executivo é presente órgão, sua permanência ocorre indepen-
na esfera de competência do Poder Judiciá- dentemente da confiança ou vontade de
rio, como também, o controle das ações e até outro; c) que, no exercício das atribuições
mesmo omissões do Poder Legislativo, por que sejam próprias dos órgãos que repre-
intermédio de instrumentos como as sen- sentam, seus titulares não necessitam de
tenças aditivas e o mandado de injunção. autorização, ou mesmo de consultar outros
órgãos; d) e ainda, que na organização de
11
O controle jurisdicional das leis firma-se em dois
seus respectivos serviços, cada um é livre,
modelos historicamente reconhecidos no Estado de Di- estando vinculado apenas às disposições
reito ocidental. O primeiro é o americano, surgido no legais e constitucionais (SILVA, 2007, p. 44).
caso Marbury v. Madison. O segundo sistema surge em
inícios do século XX, a partir da Constituição austríaca
de 1920, sob os argumentos desenvolvidos por Hans 12
CRFB/1988 “Art. 2o São Poderes da União,
Kelsen. Esse modelo fundamenta-se basicamente em independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
um controle abstrato e concentrado das normas, feito Executivo e o Judiciário”.
por uma corte constitucional. Para esse controle, não 13
Aqui deve-se fazer a ressalva de que a consti-
há a necessidade de haver um caso concreto a se ana- tuição portuguesa de 1911 trazia esta mesma “Inde-
lisar, mas tão somente a viabilidade e conformidade pendes e harmónicos entre si”, ainda que não seguisse
da lei aos preceitos constitucionais. um regime presidencial.

278 Revista de Informação Legislativa


E por “harmonia entre os poderes” brasileiro, o texto constitucional, apenas
compreendem-se as “normas de cortesia no esparsamente fazer alusão expressa aos
trato recíproco e no respeito às prerrogati- termos Poder Legislativo, Poder Executivo
vas e faculdades a que mutuamente todos e Poder Judiciário, já que não traz qualquer
têm direito”. Por mais rígida que possa artigo específico a respeito das relações en-
ser a distinção das funções do poder e sua tre os poderes do Estado, como sempre foi,
separação em diferentes órgãos no Presi- e ainda é, praxe na história constitucional
dencialismo, não há como se dizer que essa brasileira. Isso decorre essencialmente do
individualização e independência sejam momento ditatorial então vigente, seguin-
absolutas. Sempre serão necessárias áreas do uma linha semelhante à Constituição
de interferência e controle mútuos entre os portuguesa de 1933.
Poderes, seja em consequência do modelo Para fechar o ciclo de Constituições
de freios e contrapesos (checks and balances), brasileiras, resta a Constituição imperial
em nome do equilíbrio do poder dentro outorgada em 1824, que, seguindo a formu-
do Estado, ou ainda em decorrência da lação de Benjamin Constant, excepcional-
realidade de unicidade do Poder do Estado. mente trazia um quarto poder do Estado,
Essa linha de redação – “independentes também confiado ao imperador, o poder
e harmônicos entre si” – já fora adotada nas moderador: “Art. 10. Os Poderes Políticos
Constituições de 1896, 1946, 1964 e 1988. reconhecidos pela Constituição do Imperio
Sem prejuízo de outros dispositivos que do Brazil são quatro: o Poder Legislativo,
tratem especificamente de cada um dos po- o Poder Moderador, o Poder Executivo, e
deres, na Constituição dos Estados Unidos o Poder Judicial”.
do Brasil de 1946 o artigo 36 trazia: “Art.
36 – São Poderes da União o Legislativo, 2.2. Princípio da separação dos poderes
o Executivo e o Judiciário, independentes nas Constituições de Portugal
e harmônicos entre si”. Em redação seme- Enquanto isso, historicamente as Cons-
lhante, também na Carta de 1967, que teve tituições portuguesas, à exceção da Consti-
seu texto mantido pela Emenda Constitu- tuição ditatorial de 1933, sempre trouxeram
cional no 1 de 1969: “Art. 6o – São Poderes expressamente dispositivos referentes à
da União, independentes e harmônicos, o separação dos poderes no Estado (MIRAN-
Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Nos DA, 2004, p. 17 et seq.).
textos constitucionais de 1891 e de 1934, Também sem detrimento de demais
havia prescrição similar, mas com texto um dispositivos constitucionais a respeito dos
pouco diferente: “Art. 15 – São órgãos da contidos nas cartas históricas, no texto da
soberania nacional o Poder Legislativo, o Constituição de 1822 vê-se: “artigo 29. O
Executivo e o Judiciário, harmônicos e inde- Governo da Nação Portuguesa é a Monar-
pendentes entre si” (1891), e “Art. 3o – São quia constitucional hereditária, com leis
órgãos da soberania nacional, dentro dos fundamentais, que regulem o exercício
limites constitucionais, os Poderes Legisla- dos três poderes políticos”; “artigo 30.
tivo, Executivo e Judiciário, independentes Estes poderes são legislativo, executivo, e
e coordenados entre si” (1934). Observe-se judicial. O primeiro reside nas Cortes com
nesses dois artigos a utilização da expressão dependência da sanção do Rei (art. 110, 111
órgãos de soberania, ainda hoje utilizada e 112). O segundo está no Rei e nos Secre-
na Constituição da República Portuguesa, tários de Estado, que o exercitam debaixo
mas desde 1934 abandonado na cultura da autoridade do mesmo Rei. O terceiro
constitucional brasileira. está nos Juízes. Cada um destes poderes é
É interessante notar que na Carta di- de tal maneira independente, que um não
tatorial de 1937, criada pelo Estado Novo poderá arrogar a si as atribuições do outro”.

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 279


Já na Constituição de 1826, vê-se a foi tida em apreço à ideia de unicidade do
mesma estrutura elaborada por Benjamin Poder estatal. Todavia, desde a reforma
Constant, com a presença do Poder Mode- constitucional de 1997, a redação do artigo
rador. Assim como a Constituição de 1824 2o dispõe:
do Brasil, essa carta portuguesa também “Artigo 2o (Estado de direito demo-
fora outorgada por Dom Pedro IV (Pedro I, crático) A República Portuguesa é
do Brasil): “Artigo 10. A divisão e harmonia um Estado de direito democrático,
dos Poderes Políticos é o princípio conser- baseado na soberania popular, no
vador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais pluralismo de expressão e organiza-
seguro meio de fazer efectivas as garantias, ção política democráticas, no respeito
que a Constituição oferece”; “Artigo 11. Os e na garantia de efectivação dos
Poderes Políticos reconhecidos pela Cons- direitos e liberdades fundamentais
tituição do Reino de Portugal são quatro: e na separação e interdependência de
o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o poderes, visando a realização da de-
Poder Executivo e o Poder Judicial”. mocracia económica, social e cultural
Na Constituição portuguesa de 1838 e o aprofundamento da democracia
delineou-se da seguinte forma: “Artigo 33. participativa.” [grifo acrescido]
A Soberania reside essencialmente em a Portanto, não há como negar que a
Nação, da qual emanam todos os poderes Constituição portuguesa também preze o
políticos”; “Artigo 34. Os poderes políticos modelo de separação dos poderes, ainda
são o Legislativo, o Executivo, e o Judiciá- que prefira tratar das relações entre os
rio. § 1o – O Poder Legislativo compete às órgãos de soberania, em vez de, utilizar a
Cortes com a Sanção do Rei. § 2o – O Exe- nomenclatura “poderes do Estado”.
cutivo ao Rei, que o exerce pelos Ministros
e Secretários de Estado. § 3o – O Judiciário 2.3. Princípios regentes do Poder Judiciário
aos Juízes e Jurados na conformidade da Ao Poder Judiciário é confiada a fun-
Lei”; “Artigo 35. Os poderes políticos são ção jurisdicional do Estado exercida pelos
essencialmente independentes: nenhum tribunais e juízes singulares. Portanto, sua
pode arrogar as atribuições do outro”. atividade, muito mais que política, tem
E ainda na Constituição de 1911: “Ar- caráter essencialmente técnico. Nesse sen-
tigo 6o São órgãos da Soberania Nacional tido, o Professor Gomes Canotilho chega a
o Poder Legislativo, o Poder Executivo e expor que “organizatória e funcionalmente,
o Poder Judicial, independentes e harmó- o poder judicial é, portanto, ‘separado’ dos
nicos entre si”. Nessa passagem é interes- outros poderes” (CANOTILHO, 2003, p.
sante observar a utilização da terminologia 657).
independentes e hamónicos entre si, assim Essa separação dos tribunais tem por
como até hoje, via de regra, ocorreu nas finalidade, basicamente, garantir a inde-
Constituições brasileiras (ARQNET, [s.d.]). pendência dos agentes que desempenham
Inicialmente, a Constituição da Repú- essa função, e ainda garantir a liberdade na
blica Portuguesa de 1976 optou por não sociedade e para os cidadãos.
utilizar terminologia “poderes do Estado”, A característica de não ter esse poder
encontrando-se em seu lugar a identifica- um caráter de representatividade, no senti-
ção dos órgãos de soberania (nos artigos do de seus membros não serem eleitos pelo
110o e 111o, n. 114). A opção em boa parte
Artigo 110o (Órgãos de soberania) 1. São órgãos
14
órgãos de soberania são os definidos na Constituição.
de soberania o Presidente da República, a Assembleia Artigo 111o (Separação e interdependência) 1. Os
da República, o Governo e os tribunais. 2. A formação, órgãos de soberania devem observar a separação e a
a composição, a competência e o funcionamento dos interdependência estabelecidas na Constituição.

280 Revista de Informação Legislativa


povo – ao menos na imensa maioria dos e ainda internamente, são autônomos, não
Estados de Direito ocidentais – não o reduz estando subordinados a qualquer comando
a uma posição de subordinação aos demais hierárquico quando no exercício da função
Poderes (órgãos de soberania) do Estado. jurisdicional.
Assim, os tribunais não exercem direção Quanto ao princípio da exclusividade
política no Estado, e no desempenho da da função de julgar, é também inerente
função jurisdicional, seu papel, por muitas à separação dos poderes a especificidade
das vezes, consiste em tomar decisões de orgânico-institucional do Poder Judiciário
caráter contramajoritário, para somente de exercê-la. Essa reserva de jurisdição é
assim poderem efetivamente garantir a importante, sobretudo para estabelecer
concretização da Constituição, da lei e dos limites à atuação do Poder Legislativo e do
direitos fundamentais (DWORKIN, 2007, Poder Executivo.
p. 220 et seq). Princípio caríssimo também é o da
Diante disso, é possível estabelecer imparcialidade dos juízes, do qual se des-
como princípios estruturantes do Poder membram os institutos do impedimento e
Judiciário, de modo que todos guardem da suspeição processual, além de algumas
íntima relação com o modelo de separação vedações constitucionais aos agentes do
dos poderes: o princípio da independência Poder Judiciário (artigo 216o da CRP e art.
(o qual pode ser desmembrado em outros 95, parágrafo único da CRFB). A título
princípios); o princípio da exclusividade da exemplificativo, pode-se levantar, como
função de julgar; o princípio da imparciali- vedações constantes de forma semelhante
dade; o princípio da irresponsabilidade dos nos ordenamentos constitucionais de Por-
magistrados; o princípio da autoadminis- tugal e Brasil, o fato de os juízes em exer-
tração; e o princípio da fundamentação das cício não poderem desempenhar qualquer
decisões judiciais. outra função pública ou privada, salvo a
O princípio da independência dos de magistério. Constante no ordenamento
tribunais e magistrados é constitucional- constitucional português no artigo 216o, 2,
mente consagrado tanto na Constituição e na Constituição brasileira sob a insígnia
de Portugal (artigo 203o) como na do Brasil do art. 95, I (ao tratar da vitaliciedade),
(sobretudo, arts. 2o, 96 e 99). Este princípio confere-se aos juízes irresponsabilidade
se apresenta em diversas dimensões. A pri- por suas decisões tomadas no desempenho
meira delas a ser elencada é independência da função jurisdicional. O fato de no Brasil
funcional, que em muito abarca o conteúdo ser possível o impeachment de Ministros do
central do princípio da independência, pois Supremo Tribunal Federal pelo Senado Fe-
consiste na vinculação do juiz unicamente deral não compromete a consagração desse
às fontes de direito constitucionalmente princípio pelo ordenamento brasileiro. Isso
asseguradas. Em um segundo momento, há porque esse instrumento republicano só po-
que se falar na independência pessoal dos derá ser utilizado quando do cometimento
juízes, que para tanto é conexa a determina- de crime de responsabilidade, e jamais em
das garantias naturais a esses agentes, tais razão de sua atuação como magistrado.
como a inamovibilidade e a de autonomia O Poder Judiciário ainda é regido pelo
no exercício da função jurisdicional. Há ain- princípio da autoadministração. Isso quer
da uma dimensão referente a uma indepen- dizer que ele tem autonomia de gestão
dência coletiva dos magistrados enquanto interna. A principal forma pela qual se
corporação. Por fim, há uma dimensão de realiza essa autoadministração é por meio
independência interna e externa. Externa- dos órgãos colegiados basicamente forma-
mente, os juízes são independentes frente a dos por próprios juízes. No Brasil, com a
qualquer órgão externo ao Poder Judiciário, Emenda Constitucional no 45, foi criado o

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 281


Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B), e por haver ao lado da magistratura ordi-
em Portugal existe com esse fim o Conselho nária uma magistratura administrativa e
Superior da Magistratura (artigo 218o), o fiscal e uma magistratura constitucional
Conselho Superior dos Tribunais Adminis- independentes, dado o aspecto sui generis
trativos e Fiscais (artigo 217o), o Conselho do Tribunal Constitucional e sua posição na
Superior do Ministério Público (artigo estrutura no Estado português. Entende-se
220o/2). Esses Conselhos, tanto no Brasil assim, em Portugal, Poder Judiciário como
como em Portugal, são majoritariamente aquele correlato tão somente à magistratura
compostos por juízes (variando a forma de ordinária, em face de sua competência geral
composição, naturalmente) e compete-lhes para julgamento (CANOTILHO, 2003, p.
basicamente o controle da atuação admi- 661 et seq.).
nistrativa e financeira do Poder Judiciário No Brasil, o Ministério Público é con-
e do cumprimento dos deveres funcionais siderado instituição essencial à função
dos juízes. jurisdicional, mas autônomo e apartado
Por fim, há ainda o princípio da fun- do Poder Judiciário, ao passo que em Por-
damentação das decisões. Esse princípio tugal, o Ministério Público é considerado
adquire grande relevância dentro do Estado órgão do poder Judicial, ainda assim, é
Democrático de Direito, principalmente instituição dotada de autonomia, estando
pelo fato de os membros do Poder Judiciá- seus membros vinculados apenas a critérios
rio não gozarem de representatividade, por de legalidade. O Ministério Público não
não serem eleitos diretamente pelo povo. exerce propriamente a função jurisdicional,
Assim, é por intermédio da fundamentação mas auxilia os tribunais e juízes para o seu
que se pode aferir a legalidade, imparciali- desempenho.
dade e correição das decisões.

2.4. Particulares diferenças entre o


3. Influência dos Poderes
tratamento constitucional do Poder Legislativo e Executivo na
Judiciário no Brasil e em Portugal estrutura do Poder Judiciário
Algumas diferenças têm de ser tratadas Como dito, é próprio do princípio da
quando se fala nos poderes Judiciário de separação de poderes uma ideia de inter-
Portugal e Brasil. Primeiramente, o Brasil dependência e harmonia entre os órgãos de
segue o princípio de unidade de jurisdição, soberania. Seja quando determinado órgão
visto que a função de julgar está concentra- exerce função que não lhe é própria, seja
da em apenas uma organização judiciária. quando um órgão desempenha determi-
Em contrapartida, em Portugal as funções nada competência para atos de controle de
judiciais são divididas entre a magistratura determinadas atividades de um dos outros
ordinária, a magistratura administrativa e poderes do Estado.
fiscal e a magistratura constitucional. Por
3.1. Influência do Poder Legislativo
isso mesmo, enquanto no Brasil há quatro
tribunais superiores15, e apenas um tribunal
3.1.1. Brasil
supremo (Supremo Tribunal Federal), em
Portugal há quatro tribunais supremos16, No Brasil, a CRFB identifica, entre
outras competências do Poder Legislativo
15
Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior sobre o Poder Judiciário as de: a) aprovar a
do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral, Superior nomeação de Ministros dos Tribunais Supe-
Tribunal Militar.
16
Supremo Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal
riores e de juízes, nos casos estabelecidos na
Admnistrativo, Tribunal Constitucional e Tribunal Constituição, nomeados pelo Presidente da
de Contas. República (art. 52, III, a e b); b) legislar sobre

282 Revista de Informação Legislativa


organização judiciária (arts. 48, IV, 93, I, d, dos treze juízes do Tribunal Constitucional;
II, 124, parágrafo único, 121, 113); c) pro- b) escolher o Provedor de Justiça; c) esco-
cessar e julgar o Presidente da República, lher sete vogais do Conselho Superior da
o Vice-Presidente, os Ministros de Estado, Magistratura; c) promover o processo de
os Comandantes das Forças Armadas, os acusação contra o Presidente da República
Ministros do Supremo Tribunal Federal, por crimes praticados no exercício das suas
os membros do Conselho Nacional de Jus- funções e decidir sobre a suspensão de
tiça e do Conselho Nacional do Ministério membros do Governo, no caso de crime de
Público, o Procurador-Geral da República responsabilidade; d) eleger os membros do
e o Advogado-Geral da União nos crimes Conselho Superior do Ministério Público
de responsabilidade (arts. 51, I, 52, I e II); d) que lhe competir designar; e) em competên-
conceder anistia, apesar de decisão judicial cia absoluta, legislar sobre a organização,
com trânsito em julgado (art. 48, VIII); e) funcionamento e processo do Tribunal
criar Comissões Parlamentares de Inquéri- Constitucional; f) existe ainda a previsão
tos com “poderes investigatórios próprios concernente aos inquéritos legislativos, em
das autoridades judiciais, além de outros que as Comissões Parlamentares de Inqué-
previstos nos regimentos das respectivas rito “gozam de poderes de investigação
Casas” (art. 58, § 3o); f) indicar um cidadão próprios das autoridades judiciais”, apesar
de notável saber jurídico e reputação iliba- de que “o valor jurídico das conclusões do
da para compor o Conselho Nacional de inquérito não é o mesmo da sentença judi-
Justiça (103-B, XIII). cial” (CANOTILHO, 2003, p. 636).
Há ainda na CRFB uma particularidade Além dessas prescrições constitucionais
referente ao artigo 52, X, que prevê compe- quanto à influência do Poder Legislativo na
tência do Senado Federal para suspender a alçada do Poder Judiciário, há a proibição
execução de lei declarada inconstitucional de ingerência do legislador na reserva de
por decisão definitiva do Supremo Tribunal jurisdição, problema comum não apenas
Federal. Esse dispositivo é alvo de grandes a Portugal e Brasil, mas também a todos
discussões quanto a sua eficácia e sentido. os Estados Democráticos de Direito. Esse
Se, por um lado, há quem defenda que o fenômeno consiste justamente em vedar
Senado Federal tem discricionariedade ao Poder Legislativo o exercício da função
para alargar os efeitos de declaração inci- jurisdicional e a prática dos atos reserva-
dental de inconstitucionalidade proferida dos aos órgãos do Poder Judiciário. Essa
pelo Supremo Tribunal Federal, por outro, preocupação tem origem justamente nos
há quem identifique absoluta vinculação bill attainder ingleses já mencionados. Os
daquela Câmara à decisão do Tribunal; e, maiores exemplos desse fenômeno são as
ainda, há uma corrente que entende, sob leis interpretativas, leis-medida, as conva-
o argumento de mutação constitucional, lidações legislativas e as leis retroativas.
que esse artigo teria perdido sua eficá- O que é comum a todas essas espécies le-
cia (BROSSARD, 1976; JACQUES, 1976; gislativas é o fato de elas não apresentarem
MELLO FILHO, 1984; MENDES, 1999a, formalmente as características tradicionais
1999b; MORAES, 2007b; TAVARES, 2001; de lei, abstração e generalidade17.
VELOSO, 2000).

3.1.2. Portugal 17
.... “o declínio do conceito clássico de lei: o le-
Em Portugal, a influência exercida pelo gislador não se limita mais a editar comandos gerais
e abstratos; a aparência da generalidade de uma lei é
Poder Legislativo sobre o Poder Judiciário só uma questão de formulação lingüística – com isso,
se observa, sobretudo, na competência da um comando concreto reveste a forma de norma geral”
Assembleia da República de: a) eleger dez (GRAU, 2005, p. 255).

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 283


Quanto às leis interpretativas, a função de Ministros dos Tribunais Superiores (art.
de interpretação e aplicação do ordenamen- 104); c) a escolha de magistrados nos termos
to jurídico está inserida na função jurisdi- da Constituição (art.107, 111-A); d) a conces-
cional. Portanto, cabe aos tribunais e aos são de indulto e a comutação de penas, com
magistrados a interpretação legítima das audiência, se necessário, dos órgãos institu-
leis e da Constituição. Quando leis interpre- ídos em lei (art. 84, XII); e) a nomeação dos
tativas têm o intuito de induzir, ou mesmo, membros do Conselho Nacional de Justiça,
forçar os agentes do Poder Judiciário a um depois de aprovada a escolha pela maioria
sentido da lei, e assim, “julgar por outros absoluta do Senado Federal (art. 103-B §2o).
meios”, não há como admitir esses atos no
esquema constitucional de Separação dos 3.2.2. Portugal
Poderes, por estarem eivados de inconsti- Considerando-se o sistema semi-pre-
tucionalidade. sidencial português, aqui se tratará con-
Apesar de o tema das leis-medidas juntamente dos papéis do Presidente da
estar muito relacionado à relação entre República e do Governo, como Poder Exe-
Poderes Legislativo e Executivo, há al- cutivo18. Assim, podem-se enumerar como
gumas situações em que ele se relaciona principais influências desse poder no Poder
com a ingerência do Poder Legislativo na Judiciário as competências do Presidente
reserva da função jurisdicional. Isso ocorre, da República de: a) nomear e exonerar,
sobretudo, em dois casos: o de leis indivi- sob proposta do Governo, o Presidente do
duais expropriatórias e o de leis de anistia. Tribunal de Contas e o Procurador-Geral;
Independentemente da situação, qualquer b) nomear dois vogais do Conselho Supe-
desses atos legislativos deve ter caráter de rior da Magistratura; c) ouvido o Governo,
excepcionalidade estrita, para só assim não indultar e comutar penas; d) requerer ao
ferirem o princípio da reserva de jurisdição. Tribunal Constitucional a apreciação pre-
E, por fim, pode-se falar nas convalida- ventiva da constitucionalidade de normas
ções legislativas e nas leis retroativas. As constantes de leis, decretos-leis e conven-
primeiras têm o escopo de tornar válidos ções internacionais; e) requerer ao Tribunal
atos originalmente viciados, durante ou Constitucional a declaração de inconstitu-
mesmo findos os processos que assim o cionalidade de normas jurídicas ou, ainda,
declararam; as segundas o de alterar retro- a da inconstitucionalidade por omissão.
ativamente a diligência da reserva jurisdi-
cional, modificando “as regras do jogo” já
4. Poder Judiciário e atuação
durante o processo. Em todos esses casos,
deve-se sempre observar o princípio da pro-
sobre demais poderes
porcionalidade tendo por objetivo manter Hodiernamente, a atuação do Poder
o equilíbrio entre os Poderes no Estado de Judiciário sobre os demais poderes tem
Direito (CANOTILHO, 2003, p. 674,675). papel preponderante para a manutenção
do equilíbrio no Estado Democrático de
3.2. Influência do Poder Executivo Direito. Mais que isso, por suas característi-
3.2.1. Brasil
18
Sem desconsiderar a identidade dos órgãos de
O Poder Executivo também exerce sua soberania, que são distintos em quatro, baseado em
influência sobre o Poder Judiciário. Entre as um formato de separação “funcional” e “competen-
atividades mais importantes dessa ordem cial” do poder estatal. Todavia, essa opção do consti-
tuinte português de forma alguma poderia significar
trazidas na CRFB, pode-se elencar: a) a seu desprezo às dimensões fundamentais da clássica
escolha de Ministros do Supremo Tribunal “divisão dos poderes” (MIRANDA, 2004, p. 19 et seq;
Federal (art. 101); b) a escolha e a nomeação CANOTILHO, 2003, p. 657).

284 Revista de Informação Legislativa


cas de imparcialidade, e de relativo caráter A própria possibilidade de declaração
apolítico, o Poder Judiciário adquiriu fun- de inconstitucionalidade de uma lei em
ção imprescindível no controle dos abusos controle abstrato por si só já demonstra essa
do poder estatal, seja aqueles cometidos assertiva. Nesse caso, o Poder Judiciário
por ações/omissões do Poder Executivo, está invalidando um ato normativo típico
seja os cometidos pelo Poder Legislativo. do Poder Legislativo em nome de um di-
Muitos são os campos em que se pode reito insculpido na Carta Magna. Isso, sem
identificar essa influência dos tribunais na detrimento de a lei eivada de inconstitu-
atuação dos demais Poderes, e por vezes cionalidade ter sido editada por legítimos
esse fenômeno também é conhecido como representantes escolhidos pelo povo. Essa
“Judicialização da Política”. Todavia, isso é a lógica no atual Estado Democrático de
se dá em grande parte justamente pelo fato Direito, caracterizado em grande parte pela
de a própria Constituição ter forte carga questão da Lógica Democrática vs. Lógica
política, e desse modo, o controle de cons- Constitucional.
titucionalidade de atos praticados pelos Entre as situações em que se tem visto
Poderes do Estado, inevitavelmente, terá maior e mais marcante atuação judiciária,
alguma carga semelhantemente política. vale destacar: a situação da eficácia dos
Ainda que os Poderes Executivo e Legis- direitos fundamentais e proteção das mi-
lativo sejam peculiares em virtude de sua norias; a efetivação de Direitos Sociais que,
legitimidade fundamentada na representa- via de regra, exige uma prestação positiva
tividade, os tribunais têm sua legitimidade da Administração Pública; e o caso das
argumentativamente abalizada (GARCIA, sentenças de caráter normativo, tais como
2005, p. 979). Assim, deve o Poder Ju- o mandado de injunção, as sentenças in-
diciário fiscalizar a correta aplicação do termédias ou mesmo o instituto da súmula
ordenamento jurídico, das normas consti- vinculante, em que a decisão jurisdicional
tucionais e infraconstitucionais. Contudo, revela peculiar característica normativa.
há uma margem de liberdade valorativa
reservada ao exercício do poder político 4.1. Eficácia dos direitos
pelos agentes do Poder Executivo e Legis- fundamentais e proteção das minorias
lativo para a concretização dos dispositivos Os direitos fundamentais, principal-
constitucionais que, portanto, não podem mente os direitos, liberdades e garantias,
ser controlados pelos tribunais. Nessa linha são as maiores armas constitucionais contra
limítrofe, travam-se as maiores discussões o abuso das maiorias. Eles funcionam como
quanto ao campo de atuação do Poder Ju- trunfos contra o próprio poder do Estado e
diciário para a manutenção do equilíbrio contra a própria comunidade que não pode
no Estado de Direito. restringi-los indiscriminadamente.
Nessa esteira, a própria separação Assim, os direitos fundamentais consis-
dos poderes deve ser encarada como um tem em limites ao próprio poder político,
princípio do Estado de Direito, e por essa incluindo o legislador, que não pode dis-
condição, sua aplicação não pode ser feita por de seu núcleo irredutível nem mesmo
de forma negativa ou positiva. Não há que quando tal restrição poderia representar
se falar em observância ou inobservância um benefício para a maioria da popula-
do princípio da separação dos poderes, e ção. São interesses individuais oponíveis,
sim numa relativização de sua aplicação. inclusive ao interesse coletivo. De outro
Em alguns momentos estarão mais claros modo, se fossem os direitos fundamentais
os limites de sua vinculação; em outros, que tivessem de se adequar aos interesses
distintos valores sobressair-se-ão quando das maiorias, sua prescrição constitucional
da aplicação no caso concreto. seria inócua (NOVAIS, 2004, p. 602 et seq).

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Nesse contexto, é imprescindível o para a efetivação desses direitos, e em que
papel do Poder Judiciário ao controlar o passo a Constituição e a lei são impositivas
respeito a essa limitação pelo poder po- de determinadas condutas judicialmente
lítico. Esse balanceamento é intrínseco à exigíveis.
própria estrutura do Estado Democrático Para uma melhor delimitação do espaço
de Direito. de atuação do Poder Judiciário sobre o Po-
der Executivo, é interessante a diferencia-
4.2. Efetivação de direitos sociais ção entre os atos de governo e atos adminis-
Sobretudo no início do século XX, trativos. Enquanto aos primeiros se vincula
ocorreu uma mudança essencial do papel a ideia de manifestação do poder político,
do Estado. Houve uma passagem de um e por isso têm seu controle pelos tribunais
momento liberal, em que Estado e socie- reduzido, sendo mais intensamente alvo
dade se encontravam apartados, para um de controle político (basicamente controle
modelo de Estado de Direito Social, em que parlamentar e eleitoral); os segundos estão
o coletivo ganha força sobre o particular. adstritos essencialmente pela legalidade, e,
Ocorre nesse momento o reconhecimento assim mesmo, sujeitos a um controle juris-
de direitos sociais e o Poder Judiciário tem dicional mais intenso. Tal caracterização
sua atuação sobre o Poder Executivo mar- não exclui, absolutamente, a apreciação dos
cantemente alargado. atos de governo pelos tribunais, no que diz
O modelo de Estado de Direito Liberal respeito às suas formas e adequação cons-
foi vastamente difundido desde as revolu- titucional, mas tão somente destaca que,
ções do século XVIII, principalmente, de na prática desses, a diferença da prática
forma mais genérica, durante todo o século dos atos administrativos apresenta maior
XX. Principal questão na defesa dos direitos campo de liberdade política do agente,
do cidadão era a contraposição entre Estado mas não pode jamais se desvirtuar de seu
e sociedade, e por isso, era de grandíssima sentido e finalidade constitucional, ou seja,
relevância o resguardo a direito intimamen- a promoção e a proteção da dignidade da
te ligados às liberdades individuais, que, pessoa humana e a persecução do bem
por sua vez, exigiam do Estado um dever comum.
muito mais de abstenção que um dever de
4.3. Sentenças de caráter normativo
prestação19. No início do século XX, muda-
-se o paradigma de atuação estatal, ocorren- Para além da questão a respeito da influ-
do a conciliação entre Estado e Sociedade, e ência do Poder Judicial no Poder Executivo
assim o reconhecimento dos ditos Direitos no que concerne a efetivação de direitos
Sociais (PIÇARRA, 1989, p. 171 et seq). sociais via sindicação judicial, há de se
Nesse estágio do Estado Constitucional, a destacar a questão referente a sentenças de
efetivação de Direitos Fundamentais não caráter normativo, tais quais as sentenças
mais se resume a uma abstenção estatal, aditivas (também nomeadas manipulativas
mas exige também prestações positivas. e modificativas em Portugal) e o mandado
Nesse sentido, surge importante questão de injunção no Brasil.
referente a definir quais as margens de O juiz inequivocamente exerce uma
discricionariedade do agente do Poder Exe- “missão legislativa” (RIGAUX, 2000, p.
cutivo na opção pelos melhores caminhos 322), que é acentuada quanto mais alta é
sua hierarquia jurisdicional. Isso porque, ao
tentar superar os entraves da hermenêutica
Ainda que essa regra de forma alguma seja
19

absoluta, pois por muitas vezes, é comum à defesa


constitucional para deduzir uma liberdade
dessas liberdades a necessidade de uma conduta não explicitada pelo agente legiferante, o
positiva Estatal. julgador está a “preencher o silêncio do

286 Revista de Informação Legislativa


legislador”. O mesmo ocorre quando o juiz prerrogativas inerentes à nacionalidade,
está a confrontar normas de mesmo nível à soberania e à cidadania. Assim, pode o
hierárquico. Poder Judiciário emanar decisão com o
Essa característica é ainda mais mar- caráter de determinar qual conduta deve
cante quando da necessidade de a resposta regulamentar o exercício desses direitos
judicial ampliar e, por vezes, até mesmo enquanto permanecer omisso o legislador20.
criar norma diante de uma inconstitucio- Em ambos os casos, o que é comum
nal inércia legislativa. Não se trata de uma nesse tipo de atuação do Poder Judiciário
declaração de inconstitucionalidade por é o caráter normativo dessas sentenças e,
omissão; mais que isso, as sentenças de por sua vez, o desempenho da função de
caráter normativo têm o intuito de contor- elaboração de normas que é tipicamente
nar determinadas omissões do Parlamento exercida pelo Poder Legislativo. No entan-
mediante sentenças que ou “criam norma”, to, tem de se ter em conta que, enquanto a
ou estendem os efeitos de determinado separação dos poderes é a forma difundida
preceito normativo. de organização do poder estatal no Estado
Considere-se o caso das sentenças adi- de Direito, ela não pode ser entendida fora
tivas em Portugal. No seu julgamento, o do constitucionalismo.
tribunal não avalia propriamente a consti- Passado um momento liberal em que
tucionalidade do texto normativo em tela se depositava na lei – de forma quase ab-
quanto aos preceitos por ela prescritos, soluta – o poder inovador do ordenamento
mas sim, quanto aos pontos em que a lei foi jurídico, estando o poder das assembleias
omissa de forma a não cumprir o imperati- limitado apenas por instrumentos de con-
vo constitucional. Desse modo, a sentença trole político como o veto presidencial na
tem por escopo estender ou acrescentar o América, tem-se hoje que o maior e mais
elemento que falta. Fundamentalmente, a eficiente mecanismo de controle do poder
argumentação basilar para essa prática está dentro do Estado é a Constituição21.
justamente no princípio da igualdade. Isso Sendo a Constituição escrita o docu-
porque a intenção das sentenças aditivas é mento básico de ordenação do Estado e,
justamente de nivelar os indivíduos quan- ainda, o quadro dos direitos fundamentais
do uma lei, ao atribuir um direito ou uma de uma sociedade, não há que se falar em
vantagem, ou adstringir um dever ou um outro instrumento mais limitador de pos-
ônus, o faz sem fundamentar-se em um síveis abusos do poder Estatal. O princípio
discrímen constitucional juridicamente
relevante. Assim, invocando valores e 20
Sem prejuízo de este instituto já ter sido alvo de
interesses constitucionais que se projetam diferentes formulações doutrinárias e jurisprudenciais
nessa situação, restabelecer a igualdade no que diz respeito a sua forma e efeitos, variando en-
(MIRANDA, 2008b, p. 88 et seq). A legitimi- tre uma Teoria não concretista, uma Teoria concretista
geral, concretista intermediária e concretista individu-
dade dessas sentenças é vinculada ao fato al. Hodiernamente o Supremo Tribunal Federal tem
delas limitarem-se a “revelar ou a indicar o compreendido no sentido de uma concretista geral,
um princípio, ou uma norma constitucional MI-670, 708 e 712. Para um apanhado da história dos
vocacionadas para o preenchimento de um efeitos do Mandado de Injunção e o entendimento no
STF brasileiro (MORAES, 2007b, p. 169 et seq).
vazio jurídico carente de integração imedia- 21
“con el tiempo se ha ido reconociendo que la
ta” (MORAIS, 2005, p. 241). mejor manera de alcanzar este objetivo será haciendo
No Brasil, em sentido semelhante, há o constar frenos que la sociedad desea imponer a los
instituto do mandado de injunção que terá detentores del poder en forma de un sistema de reglas
fijas – ‘la constitución’ – destinadas a limitar el ejercício
lugar sempre que a falta de norma regula- del poder político. La constitución se convirtió así en el
mentadora torne inviável o exercício dos dispositivo fundamental para el control del processo
direitos e liberdades constitucionais e das del poder” (LOEWENSTEIN, 1976, p. 149).

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da separação dos poderes, consagrado nos da separação dos poderes do Estado, foi
textos constitucionais, acaba por ser mais aquela descrita por Montesquieu (2007) em
um artifício para a garantia dessa ordem. O Espírito das leis, que identificou a separa-
Pouco há a se acrescentar a respeito da ção orgânico-funcional em três poderes, o
superioridade hierárquica das normas cons- Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
titucionais sobre lei e demais atos do Estado. Além da adoção de uma concepção
Desde o reconhecimento da possibilidade tripartite, com o Poder Judiciário autono-
do controle de constitucionalidade das nor- mamente solidificado, em O Espírito das leis
mas e atos estatais pelo Poder Judiciário, a vem a consolidar-se uma concepção que já
verificação de adequação dos atos públicos ganhava força desde as revoluções inglesas,
deixou de ser meramente política e passou a do checks and balances, que em Montes-
a ser, primordialmente, da esfera jurídica. quieu (2007) ganhou formas na faculdade
Assim, o Poder Judiciário, antes con- de estatuir (faculté de statuer) e na faculdade
siderado praticamente nulo e limitado a de impedir (faculté d’empêcher).
ser simplesmente a boca que pronuncia as Em seguida, na França, em razão da
palavras da lei (MONTESQUIEU, 2007, p. luta contra o antigo regime maximamente
172, 175), hoje tem, para além de qualquer exposto pelo poder absoluto do rei, con-
outro, o papel de fazer efetiva a ordem jugado com o papel desempenhado pelos
constitucional. Isso porque qualquer lei juízes na manutenção do antigo regime
só pode existir conforme a Constituição, e da forte influência rousseauana sobre
e qualquer omissão que funcione como os revolucionários, o papel do Judiciário
empecilho para a efetivação da norma cons- na estrutura estatal foi diminuído e em
titucional deverá também ser contornada. boa parte absorvido pelo poder do Parla-
mento e, mais ainda, com o entendimento
da exegese como método primordial de
Conclusão
interpretação legal.
Em face disso, conclui-se que a separa- Nos Estados Unidos da América, por
ção dos poderes surge no momento liberal sua vez, a independência foi marcada pri-
como uma das alternativas de divisão do mordialmente por uma separação do poder
poder, e que junto com o constitucionalis- muito mais rígida, vista na implementação
mo e com o reconhecimento dos direitos do modelo presidencialista. Mais que
fundamentais, representa o maior e mais isso, o sistema jurisdicional baseado em
firme contributo para o modelo de Estado precedentes judiciais, típico do modelo de
de Direito hoje existente. Common Law, fomentou naquela cultura
Sem prejuízo de outras formulações da jurídica o desenvolvimento do controle de
separação dos poderes, foi na Inglaterra, constitucionalidade.
na separação proposta por Locke (2008), Desde o reconhecimento da possibilida-
que primeiramente se viu a divisão do de do controle de constitucionalidade das
poder Estatal não somente sob uma ótica normas e atos estatais pelo Poder Judiciário
meramente funcional, mas também sob em 1803, a verificação de adequação dos
uma perspectiva orgânico-institucional, atos públicos deixou de ser meramente
dividindo o poder entre o Parlamento e a política, e passou a ser, primordialmente,
Coroa. Entretanto, ainda não se vislumbra- da esfera jurídica. Desse modo, o papel
va a autonomização orgânica de um Poder do Poder Judiciário passou a ter prepon-
Judiciário. derante papel para a efetivação da ordem
Todavia, a formulação nesse sentido constitucional.
que historicamente marcou e influenciou Em inícios do século XX, o modelo
fortemente o formato atual da estrutura liberal de Estado mostra-se ineficiente

288 Revista de Informação Legislativa


para atender às demandas dos cidadãos e É inevitável, portanto, reconhecer a
da comunidade. Em resposta, surge uma evolução da importância do Poder Judici-
série de modelos alternativos, entre eles ário, concebido inicialmente por Montes-
o Estado Democrático e Social de Direito. quieu como um poder nulo, hoje projeta
Esse modelo reconhece direitos sociais, que inequívoco papel na Estrutura do Estado,
são direitos fundamentais que, via de regra, desempenhando importante papel no
exigem uma prestação estatal positiva. É controle das atividades estatais, e no res-
também no início do século XX que surge peito à Constituição, e assim, tornando-se
na Áustria, o modelo europeu de controle imprescindível para o triunfo do Estado
de constitucionalidade de natureza abstrata Democrático de Direito.
e concentrada.
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histórica constitucional consagrou a sepa- Referências
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