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Democracia e as crises do sistema democrático: e agora, quem poderá nos defender?

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Democracia e as crises do sistema democrático: e agora,


quem poderá nos defender?
22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Carina Barbosa Gouvêa

A
palavra democracia é uma velha conhecida. Ela está presente na história, nos
contos, nos romances, no direito, nas constituições, engolfada pelas crises dos
sistemas democráticos e almejada pela alma humana. É uma técnica de liberdade,
um espírito livre, pleno de um sentido igualitário[1].

Representa uma indefinição semântica que traduz um processo sujeito a uma contínua invenção
e reinvenção. Percebe-se a pluralidade de núcleos que se submete às condições históricas e
altera-se naturalmente com a transição da conjuntura política de uma realidade para outra.
Possui vida há pelo menos dois mil e quinhentos anos, traduzindo significados diferentes para os
povos, tempos e lugares[2].Por isso, ela pressupõe e representa uma luta incessante pela justiça
social, como bem marcado por Julien[3]não podendo “resignar-se com as ‘favelas’, os alojamentos
insalubres, os salários miseráveis, as condições de trabalho infames”. É de Jackson[4]a afirmação
de que a visão do direito constitucional deve perceber a democracia como “uma árvore viva” –
uma metáfora que capta a ideia de que um documento “vivo” não é limitado por suas origens.

Contemporaneamente, as consciências legais investiram muito mais energia sobre os valores da


democracia, no sentido de vincular a legitimidade da governança, o que acabou permitindo
ampliar a visão de que a democracia hoje não se concretiza apenas pela possibilidade de escolha
de atores políticos, mas inclui ainda uma proteção constitucional que afirma: a superioridade da
carta fundamental; a existência de direitos fundamentais; a legalidade das ações estatais; um
sistema de garantias jurídicas e processuais[5]; a descentralidade do poder.

Na contemporaneidade, tem-se identificado crises em sistemas democráticos como sendo


atribulações do próprio ideal democrático, atrelando-se a ele noções de “morte”, “colapso” ou
“erosão”. Porém estas crises decorrem não da democracia em si – sendo ela imaculada em sua
essência, mas sim dos sistemas democráticos, materializados pela via do desenho institucional.
São os sistemas democráticos decantados na realidade que a corrompe, violenta e deturpa.

[6]
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A democracia representa o motor principal do modo de viver do governo[6]. A grande dificuldade


é determinar “o que é”, “como é” e “o que vem a ser”, uma vez que seu desenvolvimento não é
“linear, pois está sempre sujeito a tropeços e retrocessos”[7]. Pressupõe uma concepção dialógica
da política e a consideração desta como um processo racional de discussão dos problemas e
alternativas, de forma a obterem-se soluções justas, ou pelo menos razoáveis, de ordenação da
vida comunitária e não apenas para fornecer aberturas processuais à prossecução de interesses
privados ou à otimização de preferências subjetivas[8].

Significa dizer que não basta que se faça menção ao seu nome para legitimar sua atuação,
representando, segundoSen[9], um sistema exigente e não apenas uma condição
mecânica.Percebe-se aí o irrealismo desta noção simples e unitária, tendo em vista que a
democracia não se configura em uma coleção de indivíduos entre si, mas tem por destinatário
um conjunto complexo de classes, raças, clãs, estamentos, grupos religiosos, cujo poder e
influência variam enormemente de época a época e de país a país[10].

Tem uma importância construtiva, especialmente com a garantia da discussão aberta, do debate,
da crítica e do dissenso, que são fundamentais para o processo de geração de escolhas[11]. Como
explica Rancière[12], na democracia o sujeito define a si mesmo, a partir de seu lugar central na
atividade política. Não só é um rompimento da lógica da separação absoluta entre governante e
governado, mas a ruptura da ideia segundo a qual todo tipo de distribuição de poder significa
um modelo preexistente. O desenvolvimento da democracia se tornou e é o principal
instrumento para a defesa, seja dos direitos de liberdades, seja os nascidos das revoluções[13].

A decadência do sistema democrático tem sido usada por alguns estudiosos para capturar a
degradação incremental[14]das estruturas[15]e substância[16]da democracia constitucional
liberal[17]. Abre-se caminho para o exercício do “legalismo autocrático”, “retrocesso
constitucional”, “enfraquecimento oportunista e reacionário das estruturas democráticas por
atores políticos” que, em muitas das vezes, são expressos em contextos políticos que
caracterizam um declínio da fé pública na democracia.

A crise econômica, a insatisfação popular crescente com a segurança e a corrupção, o


crescimento e desenvolvimento social são fatores, dentre muitos outros, que contribuem para a
potencialização da crise do sistema democrático. Onde o sistema não responde, ele pode ser
capturado por interesses de elites que estrategicamente atuam para ascender ao poder,
principalmente com promessas retóricas e vazias para a solução da crise.

São as relações construídas na arena pública, levando em conta o pluralismo de interesses


representados, que contribuirão para a formação de uma sociedade verdadeiramente
emancipada, responsável e promotora dos direitos e garantias, bem como determinarão e
[18]
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controlarão a atuação pública, a incluir-se aí a própria ação do poder judiciário[18]. Como? Esta é
uma pergunta que pretendemos responder nas próximas sessões.

Repensar a democracia nos moldes até então forjados, de controle de poder pelo próprio poder,
da ideia de soberania popular e representatividade, acaba por justificar uma doutrina puramente
teórica para o governo[19].

Como a democracia não constitui retórica e necessita de promoção, portanto, não basta a mera
enunciação de seu nome para denominar um ambiente democrático. Sendo híbrida, é ao mesmo
tempo um fim e um meio. Fim porque vai acomodar os principais fundamentos de uma
sociedade igual e participativa e meio porque vai exigir uma variação de intérpretes e
mecanismos para sua realização e promoção do desenvolvimento humano[20]. Para Gouvêa, se
fim e meio ao mesmo tempo, necessita que haja conexão entre o direito e as estruturas formais
do poder, podendo-se aqui pensar em uma democracia cooperada. O que seria uma alternativa
para enfrentar as atuais crises dos sistemas democráticos.

E esta se concretiza pela intervenção também da força humana.

E agora, quem poderá nos defender?

Carina Barbosa Gouvêa é professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da


Universidade Federal de Pernambuco.

[1]
FERREIRA, Pinto. A constituição e o poder de reforma constitucional. 3 ed. Recife: Faculdade
de Ciências Humanas de Pernambuco, Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino, p. 167.

[2]
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001, p. 13.

[3]JULIEN, Claude. O suicídio das democracias. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1975.

[4]JACKSON, Vicki C. Paradigms of public law: transnational constitutional values and democratic
challenges. International Journal of Constitutional Law, 2010, Vol. 8, Nº 03, p. 517-562.

[5]
GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 209.

[6]
Democracia para as Nações Unidas constitui um ideal universal e é um dos valores
fundamentais que compõe a organização.
[7]
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[7]
GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 210.

[8]
MANIN, Bernarb. La democracia de los modernos: los principios del gobierno representativo.
Trad. Clara Gimenéz. Revista Sociedad da Facultad de Ciencias Sociais(UBA), 1995, p.1-20.

[9]SEN, Amartya. Democracy as a universal value. Journal of Democracy, Vol. 10, Nº 3, 1999, p. 3-
17.

[10]COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 70.

[11]
GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos Estados
em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1. ed.
Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016.

[12]RANCIÈRE, Jacques. Ten theses on politics. Theory & Event, Vol. 5, Issue 3, 2001, p.1-16.

[13]BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 6ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 2000, p. 41-44.

[14]Incremental porque a degradação é progressiva.

[15]Referem-se às instituições democráticas, como as esferas governamentais, provedores de


justiça, Organizações Internacionais, dentre outros.

[16]Se refere ao conteúdo e procedimento para operacionalização do sistema de governança


democrático.

[17]DEMOCRATIC DECAY. Democratic Decay Resource (DEM-DEC): Bibliografy update. January


2019.

[18]SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.
273.

[19]GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos Estados


em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1. ed.
Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016.

[20]
GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos

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Estados em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1.
ed. Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016.

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José Nunes (@nunescnt) é


doutorando em direito na
Universidade de Brasília.

e-mail: nunescnt@gmail.com

blog: josenunes.com.br

OBSERVATÓRIO DA DEMOCRACIA

O Observatório é uma forma de refletirmos


sobre os desafios da democracia e da
constituição.

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