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Em Direção À Juristocracia – As

Origens E Consequências Do
Neoconstitucionalismo
22 de novembro de 2020 Marianna Medina

Palácio da Justiça de Bruxelas Imagem de Laurent Verdier por Pixabay


Palácio da Justiça de Bruxelas Imagem de Laurent Verdier por Pixabay

Passados mais de quinze anos da sua primeira publicação, o tema central


da obra Towards Juristocracy – The Origins and Consequences of the
New Constitucionalism, permanece igualmente atual e oportuno,
especialmente se considerarmos o panorama jurídico e político brasileiro
vigente.

De autoria do Professor de Ciência Política e Direito da Universidade de


Toronto, o israelense Ran Hirschl, o livro em tela tem como objetivo
investigar de forma aprofundada os impactos sociopolíticos da
transferência de poder das instâncias legislativa e executiva para o Poder
Judiciário.

Os primórdios desse fenômeno remontam ao período pós-Segunda


Guerra Mundial, e vem sendo observado em diversas democracias ao
redor do planeta, tendo por escopo, em tese, assegurar a observância de
direitos e garantias fundamentais equitativamente a todos os cidadãos, e,
em última análise, sustentar a existência mesma do Estado Democrático
de Direito.

O estudo em questão demonstra sua pertinência, uma vez que, como


bem apontado pelo autor, até o seu lançamento, as pesquisas existentes
sobre a matéria restringiam-se apenas ao cenário verificado na atividade
da Suprema Corte norte-americana, tornando, por conseguinte, o exame
do evento bastante limitado.

Dessa forma, visando a contornar as deficiências próprias da inspeção


isolada do exemplo nacional restrito supracitado, Hirschl, ao desenvolver
o seu notável trabalho, explorou o episódio em países localizados em
continentes diversos, como Canadá, Israel, Nova Zelândia e África do Sul,
na tentativa de traçar pontos em comum presentes em suas perspectivas
políticas, que levaram à concentração de competências atípicas ao Poder
Judiciário, bem como verificar os resultados efetivos obtidos pelos
respectivos regimes democráticos, por meio da prática em discussão.

O ilustre filósofo e jurista norte-americano Ronald Dworkin, que defendia


um Poder Judiciário dotado de superpoderes, apoiava essa configuração,
afirmando que democracias maduras devem se proteger contra a tirania
da decisão da maioria por meio da constitucionalização de direitos e
possibilidade de revisão judicial [1]. Contudo, como bem observado por
Hirschl, nenhum dos seis livros de Dworkin sobre constitucionalismo cita
qualquer trabalho empírico envolvendo as origens e as consequências da
constitucionalização de direitos e da revisão judicial [2].

Em que pese o viés inequivocamente progressista presente no


pensamento do Professor Hirschl, que se torna evidente à medida que
progredimos na leitura do seu estudo, me parece razoável a conclusão de
que a transferência de poder das esferas legislativa e executiva para o
Poder Judiciário ocorre, no geral, voluntariamente, sob a condição de os
interesses e preferências ideológicas daquelas serem acolhidos e
prestigiados nas decisões proferidas, ao mesmo tempo em que podem se
ver livres tanto da responsabilidade política quanto do ônus da opinião
pública desfavorável no caso de julgamento de questão controversa de
natureza política, do qual resulte solução impopular.

Ainda, ressalta o autor que, com base na análise da situação sociopolítica


dos países investigados, a ampliação da competência do Poder Judiciário
surge também conforme as elites econômicas nacionais perdem
representatividade nas instâncias políticas, com a consequente perda de
influência sobre elas, servindo, assim, como uma maneira de blindar-se
das vicissitudes próprias da democracia, tentando, dessa forma, manter
incólumes os seus interesses e seu status quo de forma geral, visto que
possuem mais facilidade em acessar diretamente à cúpula da justiça,
inclusive.

Outrossim, Hirschl aponta as próprias ambições das elites judiciais no que


tange ao aumento de sua ingerência política e reputação internacional
como outra causa a impulsionar o agigantamento do seu poder.

Por outro lado, concorda o autor que, ocasionalmente, as cortes


supremas podem proferir decisões antiestablishment, inovadoras, acerca
de questões políticas fundamentais.

Contudo, prossegue Hirschl, essas raras ocasiões de interferência judicial


indesejada na esfera política não possuem a capacidade de transformar
as metanarrativas formativas de um dado governo ou alterar seus padrões
historicamente arraigados de desigualdades políticas. Tampouco, conclui
o autor, tais desvios judiciais têm a probabilidade de sobreviver à
resistência de longa data de uma recalcitrante e ainda mais poderosa
esfera política.

É de suma importância, ainda, destacar que essa transformação das


instituições judiciais em agentes políticos significantes não está limitada
nacionalmente. Podemos citar como exemplo, atuando de forma
supranacional, a Corte de Justiça Europeia, que não só tem o poder de
interpretar os tratados sobre os quais a União Europeia está firmada,
como também vem ganhando um status cada vez mais importante
reconhecido pelos poderes legislativos, executivos e judiciários dos
países-membros, ao lidar com disputas interestatais legais e econômicas.

Além disso, observamos que as atuais discussões em torno da adoção de


uma constituição global, assim como de um tribunal internacional
permanente para processar e julgar crimes de guerra e violações de
direitos humanos, também sugerem que a legislação, as Cortes em geral,
e a constitucionalização de direitos em particular, têm se tornado cada
vez mais fatores-chave na política internacional.

Retomando os casos específicos de constitucionalização de direitos e


revisão judicial ocorridos em diferentes momentos no Canadá, Israel,
Nova Zelândia e África do Sul, analisados minuciosamente pelo autor,
chegou ele à conclusão, em resumo, de que a hipertrofia do Poder
Judiciário não foi suficiente, por exemplo, para promover maior igualdade
social e implementar os chamados direitos fundamentais de segunda
dimensão, ou seja, aqueles de caráter social, econômico e cultural, e que
conferem ao cidadão o direito de exigir uma prestação positiva por parte
do Estado.

Para Hirschl, ao contrário, a chamada “juristocracia”, nos diversos


cenários supracitados, teria servido apenas para promover os direitos
fundamentais de primeira dimensão, que são aqueles que exigem que o
Estado se abstenha de intervir na esfera privada do indivíduo, possuindo,
portanto, natureza negativa.

Dessa forma, afirma o autor que a transferência significativa de poder


para a instância judicial teria revelado uma tendência a adotar conceitos
estreitos de direitos, enfatizando, assim, o individualismo e os aspectos
antiestatistas dos direitos constitucionais.

Entretanto, Hirschl reconhece e enfatiza que os direitos constitucionais


nunca são interpretados ou implementados em um vácuo ideológico ou
político. A interpretação judicial e a implementação de direitos
constitucionais dependem em grande medida da atmosfera ideológica,
restrições institucionais específicas, e metacondições sociais e
econômicas dentro das quais elas operam.

Independentemente dos resultados diametralmente opostos ocorridos


nos casos investigados no livro, quando comparados ao caso brasileiro, o
resultado observado pelo autor, em relação aos efeitos que derivam do
fenômeno ora abordado, parece ser o mesmo em qualquer país onde se
verifique a existência de um Poder Judiciário que exerce a sua função
extrapolando e violando os parâmetros jurídicos estabelecidos para a
preservação de um regime de governo considerado democrático: a
deterioração da imagem pública das cortes supremas como sendo órgãos
autônomos e fontes de decisões apolíticas; seu uso reiterado pela
oposição para desgastar o governo vigente, além da garantia de decisões
alinhadas com os interesses políticos e as preferências ideológicas
daqueles que transferiram seus poderes aos órgãos judiciais.

Cabe ressaltar que não é o objetivo do presente texto esmiuçar


individualmente a constitucionalização de direitos e a consequente prática
do ativismo judicial nos países tomados como exemplo pelo autor.
Entretanto, a menção, ainda que en passant, às origens e consequências
advindas do referido processo, é imprescindível para que seja possível
traçar um paralelo com a hipertrofia do Poder Judiciário ocorrida no Brasil,
bem como com todos os efeitos nefastos causados pela invasão judicial
praticamente ilimitada nas demais esferas de poder.

Antes de adentrar no caso brasileiro, é importante destacar que mesmo


ferrenhos defensores e promotores do ativismo judicial nunca
conseguiram demonstrar solidez em seus argumentos.

Por exemplo, em In Taking Rights Seriously, Ronald Dworkin admite que,


em nome de afirmar “valores perenes” de sociedades particulares, os
juízes inevitavelmente terão de fazer escolha entre valores [3]. Embora,
conscientemente, busquem decidir com base em princípios objetivos, é
difícil enxergar como poderiam deliberar sobre “valores perenes” próprios
de uma sociedade, sem que haja interferência de suas próprias
preferências pessoais e opiniões políticas. Nesse ponto, Dworkin
praticamente assume o papel antidemocrático desempenhado pelos
órgãos judiciais, tendo em vista que decisões que geram impacto político,
por exemplo, deveriam ser determinadas pelo Poder Legislativo,
composto por representantes do povo democraticamente eleitos
exatamente para o exercício dessa função.

Também não merecem prosperar os argumentos desenvolvidos pelo


constitucionalista norte-americano John Hart Ely. De acordo com o seu
entendimento, a corte não estaria preocupada em rejeitar leis das quais
discordam, mas apenas em derrubar normas quando aferido o mau
funcionamento do próprio processo democrático. Ainda, de acordo com o
citado jurista, as cortes, no procedimento de revisão judicial, devem
promover “a realização de um processo político aberto a todos, baseado
na igualdade, e em uma consequente aplicação do dever do
representante de igual preocupação e respeito tanto em relação às
minorias quanto às maiorias” [4].

Mais uma vez, não é possível aceitar e concordar com esse tipo de
raciocínio, já que, como bem apontado por Hirschl, a democracia exige
que a escolha de valores políticos reais seja feita por representantes
eleitos e responsáveis, em vez de juízes que não se submeteram a
qualquer processo eleitoral.

Ainda, dentre os doutrinadores entusiastas do ativismo judicial, podemos


citar Bruce Ackerman, constitucionalista norte-americano, e sua
concepção dualista de elaboração de leis como justificativa para a revisão
judicial [5].

Segundo Ackerman, diferentemente da legislação ordinária, a elaboração


de leis de estatura constitucional é o resultado legítimo de uma
mobilização política em grande escala, de um vasto número de cidadãos
ao longo de um substancial período de tempo.

Ao examinar uma lei ordinária, as cortes protegem, em vez de destruir, a


verdadeira vontade democrática do povo da forma como foi expressa
durante raros momentos históricos nos quais foram confeccionadas leis
constitucionais.

Aqui, como diversos estudiosos do tema argumentam, a distinção feita


entre política constitucional e política ordinária é dúbia. Primeiramente,
questiona-se se as revisões constitucionais adotadas durante o que
Ackerman descreve como raros momentos constitucionais, refletem
verdadeiramente a vontade popular de um vasto número de cidadãos
durante um período substancial de tempo.

Em segundo lugar, não fica claro se os julgamentos políticos históricos


como, por exemplo, aquele referente à questão da separação da província
de Québec do Canadá, refletem ou criam momentos constitucionais. E o
mais importante: talvez nem todas as revoluções constitucionais
ocorridas sob o neoconstitucionalismo se encaixem na definição de
Ackerman relativa a momentos históricos genuínos durante os quais a
vontade popular provocou a elaboração de leis de magnitude
constitucional.

Dessa forma, tem-se que toda a base em que se sustenta a tese dualista
de elaboração de leis como justificativa para a revisão judicial, cai por
terra.

A maior parte dos críticos da chamada “juristocracia”, dentre os quais se


encontra a autora do presente artigo, preocupa-se com a natureza
contramajoritária e as credenciais democráticas questionáveis acerca das
escolhas fundamentais morais realizadas por pessoas que não foram
eleitas para esse mister: juízes estranhos à referida função,
principalmente no que concerne à formação da jurisprudência envolvendo
os direitos ora em análise.

Finalizada a imprescindível introdução ao tema acima aduzida, passemos,


então, a abordar o contexto brasileiro.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, trata


especificamente do Supremo Tribunal Federal do artigo 101 ao artigo 103-
A, traçando basicamente os parâmetros de sua composição e
competência para processar e julgar feitos, todos eles, em tese,
envolvendo controvérsias materialmente constitucionais, não sendo
permitida a análise de questões fáticas já resolvidas em instâncias
judiciais inferiores, essas competentes para a análise das provas colhidas
durante a instrução processual.

Como acertadamente apontado por Ran Hirschl, no sentido de que não


há interpretação ou implementação de direitos constitucionais que se dê
em um vácuo ideológico ou político, é de importância lógica destacar a
indicação política de cada um dos onze ministros que atualmente
compõem o Supremo Tribunal Federal:

1. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, indicado por seu primo, o então
Presidente da República filiado ao PRN, Fernando Collor de Mello, e
empossado em 13 de junho de 1990;

2. Gilmar Ferreira Mendes, indicado pelo Presidente da República filiado


ao PSDB, Fernando Henrique Cardoso, e empossado em 20 de junho de
2020;

3. Enrique Ricardo Lewandovski, indicado pelo Presidente da República


eleito pelo PT, Luís Inácio Lula da Silva, e empossado em 16 de março de
2006;

4. Cármen Lúcia Antunes Rocha, igualmente indicada pelo Presidente da


República eleito pelo PT, Luís Inácio Lula da Silva, e empossada em 21 de
junho de 2006;

5. José Antônio Dias Toffoli, também indicado pelo Presidente da


República eleito pelo PT, Luís Inácio Lula da Silva, e empossado em 23 de
outubro de 2009;

6. Luiz Fux, indicado pela Presidente da República filiada ao PT, Dilma


Rousseff, e empossado em 03 de março de 2011;

7. Rosa Maria Pires Weber, também indicada pela Presidente da República


eleita pelo PT, Dilma Rousseff, e empossada em 19 de dezembro de 2011;
8. Luís Roberto Barroso, mais um indicado pela Presidente da República
do PT, Dilma Rousseff, e empossado em 26 de junho de 2013;

9. Luiz Edson Fachin, último indicado pela Presidente da República do PT,


Dilma Rousseff, e empossado em 16 de junho de 2015;

10. Alexandre de Moraes, então membro do partido político PSDB,


indicado pelo Presidente da República filiado ao MDB, Michel Temer, e
empossado em 22 de março de 2017, e, por fim:

11. Kassio Nunes Marques, indicado pelo atual Presidente da República,


no momento sem filiação partidária, Jair Bolsonaro, e empossado em 05
de novembro de 2020.

Feito esse breve esboço sobre o perfil político predominante na Suprema


Corte nacional, é possível afirmar, sem mais delongas, que o pensamento
hegemônico que paira na cúpula do nosso Poder Judiciário é, sem
quaisquer dúvidas, norteado por ideias e pela agenda – usemos um termo
mais palatável aos leitores mais sensíveis – progressistas.

Nesse ponto, já podemos apontar uma diferença contundente entre os


casos analisados por Ran Hirschl em seu estudo sobre a “juristocracia” e
o caso judicial brasileiro específico, cuja corte máxima há muitos anos não
pode ser caracterizada apenas como protetora dos chamados direitos
constitucionais de primeira dimensão. Ao contrário, não só o Supremo
Tribunal Federal em inúmeras decisões, não é exagero dizer, absurdas e
inconstitucionais, determina que o Estado avance sobre a esfera privada
do indivíduo, como também interfere de forma agressiva em
competências exclusivas dos Poderes Executivo e Legislativo nacionais,
além de avocar para si decisões que sequer deveriam adentrar as suas
portas, já que não envolvem questões de cunho formal e/ou
materialmente constitucional.

Para ilustrar o cenário judicial brasileiro acima delineado, vale destacar


algumas decisões que se tornaram emblemáticas quando tratamos do
desequilíbrio existente entre os poderes que constituem a nossa
república, sobressaindo o Poder Judiciário como um superpoder,
estabelecendo, dessa forma, violação inequívoca ao regime democrático
preconizado pela nossa Carta Magna.

Em consulta ao sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, em matéria


publicada em 18 de agosto de 2004 [6], relembramos o julgamento das
ADIs 3105 e 3128, que resultou, por sete votos a quatro, na decisão pela
constitucionalidade do artigo 4º da Emenda Constitucional 41/03, que
instituiu a cobrança previdenciária sobre a parcela de proventos e
pensões de inativos e pensionistas. À época, sustentou o então Ministro
Cezar Peluso que “o regime previdenciário público tem por escopo
garantir condições de subsistência, independência e dignidade pessoais
ao servidor idoso, mediante o pagamento de proventos de aposentadoria
durante a velhice, e, conforme o artigo 195 da Constituição, deve ser
custeado por toda da sociedade, de forma direta e indireta, o que bem
poderia chamar-se de princípio estrutural da solidariedade”. Ou seja,
podemos concluir, portanto, que com base em um princípio fluido como o
da solidariedade, foi possível violar direitos e garantias fundamentais
individuais expressos na Constituição, como o direito à propriedade e a
garantia ao direito adquirido – artigo 5º, caput e inciso XXXVI,
respectivamente, ambos possuindo natureza de cláusula pétrea, inclusive.

Em 29 de novembro de 2016, a 1ª Turma da Suprema Corte afastou a


prisão preventiva de acusados da prática de aborto. Insta salientar as
palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, que se utilizando do
expediente da interpretação conforme a Constituição, afastou a tipicidade
dos fatos criminosos em tela, previstos nos artigos 124 a 126 do Código
Penal, para os casos de interrupção voluntária da gravidez efetivada no
primeiro trimestre de gravidez. De acordo com as palavras do Ministro, a
criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de
gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não
observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. Entre os bens
jurídicos violados, apontou a autonomia da mulher, o direito à integridade
física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade
de gênero – além da discriminação social e o impacto desproporcional da
criminalização sobre as mulheres pobres [7]. Ou seja, um Ministro da
Suprema Corte, evidentemente destituído de qualquer conhecimento
científico acerca do tema, violou bem jurídico penalmente tutelado – vida
– por meio do seu discurso, além de afrontar de forma obscena matéria
que deveria ser discutida pelo Congresso Nacional, dado que legislar,
nunca é demais lembrar, constitui função típica do Poder Legislativo.

Merece igualmente destaque, mormente pela reiterada usurpação de


competência do Poder Legislativo, a decisão do Supremo Tribunal Federal
que, em 04 de maio de 2011, reconheceu a união homoafetiva no
julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132 [8]. Imbuídos do espírito da não
discriminação extraído do artigo 3º, IV, da Constituição da República,
assim como utilizando-se da interpretação conforme a Constituição do
artigo 1.723 do Código Civil, porém esquecendo-se convenientemente de
um dos princípios básicos da hermenêutica constitucional, que preconiza
que o texto da lei é o limite para a sua interpretação, os Ministros, de
forma unânime, ignoraram o que dispõe o artigo 226, §3º, da Carta
Magna: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento”. É muito difícil concluir que, de acordo com
os parâmetros traçados pelo ordenamento jurídico pátrio, o referido tema
deveria ter sido debatido em ambas as casas do Congresso Nacional,
pelos representantes do povo legitimamente eleitos justamente para o
exercício dessa atividade?

Já em matéria publicada em 18 de abril de 2017 [9] no sítio eletrônico já


citado acima, vemos a curiosa, para dizer o mínimo, decisão da 1ª Turma
do Supremo Tribunal Federal que ao julgar inviável recurso interposto pelo
Clube de Regatas Flamengo, confirmou e proclamou o Sport Club do
Recife como único campeão brasileiro de futebol de 1987. Não creio que
comentários adicionais precisem, possam ou devam ser feitos acerca de
um julgado dessa natureza realizado por uma corte dita constitucional.

Outro desatino em termos de invasão de competência do Poder


Legislativo, se deu em 13 de junho de 2019, durante o julgamento da ADO
26 e do MI 4733, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal, por
maioria de votos, decidiu pelo enquadramento da homofobia e da
transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo – Lei 7.716/1989
[10]. No caso em tela, não só houve usurpação de competência
legislativa, como há clara dificuldade na aplicação prática dos novos tipos
penais criados pela Suprema Corte, já que há evidente violação aos
princípios da tipicidade estrita e da anterioridade da lei penal, esse último
consagrado no artigo 1º do Código Penal. Como deveria ser elaborada a
tipificação da conduta no requerimento de condenação formulado pelo
Ministério Público em uma denúncia? Como deveria ser elaborado o
dispositivo da sentença que viesse a condenar o réu por quaisquer dos
tipos penais supracitados? Não há justificativa constitucional para a
atuação dos Ministros, assim como tampouco há resposta para as
dúvidas ora suscitadas.

Vale ainda lembrar outra decisão recente em que o Ministro Alexandre de


Moraes, em 29 de abril de 2020, monocrática e liminarmente, suspendeu
a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da
Polícia Federal feita pelo Presidente da República, alegando inobservância
dos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do
interesse público. [11] Ora, Alexandre Ramagem até aquele momento
ocupava o cargo de Diretor-Geral da Agência Brasileira de Inteligência
(ABIN), cargo esse também de competência privativa do Presidente da
República, quanto à escolha e nomeação, após aprovação do nome pelo
Senado Federal, conforme disposto no parágrafo único, do artigo 11, da
Lei 9.883/1999. Cabe ainda, por óbvio, ressaltar que o artigo 2º-C, da Lei
9.266/1996, dispõe que o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal é de
nomeação do Presidente da República. Dessa forma, após a decisão de
Moraes, Alexandre Ramagem, por ter sido impedido de assumir o posto
de chefia em tela, voltou ao comando da ABIN. A pergunta, portanto, que
até o presente momento permanece sem reposta é: que interesses teriam
efetivamente norteado a decisão em análise, uma vez que Alexandre
Ramagem já ocupava anteriormente cargo igualmente de escolha
privativa do Presidente da República? Quaisquer que tenham sido tais
interesses, a conclusão aqui converge em um único sentido: não há
justificativa para violação tão hostil à separação dos Poderes, preceito
fundamental previsto no inciso III, §4º, do artigo 60, da Constituição da
República.

A essa altura do artigo, seria lógico tecer comentários acerca dos infames
Inquéritos 4.781 e 4.282, ambos manifestamente inconstitucionais,
repletos de uma série de vícios devidamente ignorados por quase todos
os Ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal. As duas peças
investigativas encerram um verdadeiro festival de horrores, não deixando
nada a dever a qualquer regime político totalitário. Há aberração jurídica
para todos os gostos: investigação iniciada pela própria corte a fim de
apurar condutas supostamente virtualmente perpetradas contra seus
membros; decisão promovendo censura de veículo jornalístico; ausência
de fato certo a ser investigado; atipicidade das condutas perquiridas;
negativa de acesso aos autos dos inquéritos à defesa dos investigados;
mandados de busca e apreensão e prisões efetuados sem qualquer
respaldo legal etc. Vimos até mesmo o Ministro Luís Roberto Barroso
flexibilizando a noção de soberania nacional em prol do que seriam
consideradas as dependências do Supremo Tribunal Federal em casos de
crimes supostamente praticados contra os seus membros em ambiente
virtual. Como não é o objetivo desse artigo aprofundar o assunto em
discussão, considerando que inúmeros doutrinadores especializados já o
examinaram exaustivamente, faço a presente menção apenas para não
deixar passar em branco tamanha afronta ao Estado Democrático de
Direito, tão citado e “festejado” por Ministros da Suprema Corte, mas que,
infelizmente, quando mencionado é sempre esvaziado de qualquer
conteúdo. Apenas a título de curiosidade, deixo ao leitor alguns links
acerca do objeto aqui tratado [12] [13] [14] [15] [16] [17] .

Poderíamos comentar inúmeras decisões oriundas do Supremo Tribunal


Federal, questionáveis no que tange, em resumo, à sua própria
competência. Contudo, como a atuação da cúpula do Poder Judiciário
nacional ao longo do tempo, a meu ver, já está razoavelmente aqui
esboçada, finalizo com mais um exemplo não menos digno de destaque.
Em 19 de agosto de 2020, na ADPF 635, o plenário da corte concedeu
medida liminar para traçar parâmetros relativos à segurança pública do
estado do Rio de Janeiro, envolvendo operações policiais, determinando,
entre outras medidas, a restrição do uso de helicópteros apenas aos
casos de estrita necessidade, comprovada por meio da produção de
relatório circunstanciado ao término da operação. Como se não bastasse,
no início do mês acima referido, o Ministro Edson Fachin suspendeu a
realização de incursões policiais em comunidades do estado do Rio de
Janeiro enquanto perdurasse o estado de calamidade pública decorrente
da pandemia da Covid-19. A decisão determinava que as operações
fossem restritas aos casos excepcionais, devendo ser informadas e
acompanhadas pelo Ministério Público [18]. Aqui podemos observar, mais
uma vez, a intromissão indevida do Poder Judiciário em matéria de
competência do Poder Executivo, ao traçar metas e determinar medidas
sobre o assunto em referência.

Por fim, não nos esqueçamos que estão ainda pendentes de julgamento
pela Suprema Corte as ADPFs 462, 466 e 578, bem como a ADI 5668,
todas tendo por objeto a inserção da ideologia de gênero no ensino
escolar. Desnecessário afirmar, mais uma vez, que a matéria citada sequer
deveria ser apreciada pela cúpula do Poder Judiciário pátrio [19]. As
razões já foram aduzidas de forma extenuante ao longo do texto.

Ante o exposto, vê-se que as conclusões a que chega Ran Hirschl, após
analisar o panorama político-jurídico de quatro nações soberanas
distintas, não se amoldam exatamente ao que ocorre no Brasil em termos
de ativismo judicial. Decerto, a atuação do Poder Judiciário nacional tem
por objetivo avançar a sua autoridade e influência perante os demais
poderes, e, de quebra, ainda dar aquela turbinada previsível em sua
projeção internacional, quando procura implementar à risca os princípios
progressistas em voga, bem como satisfazer, na medida do possível, tudo
o que dita a agenda 2030 da ONU. Assim, longe de proteger os chamados
direitos fundamentais de primeira dimensão, ou seja, aqueles direitos que
o cidadão pode fazer valer contra o Estado, o Supremo Tribunal Federal
vem realizando toda sorte de arbitrariedades e aberrações jurídicas,
transformando o texto constitucional promulgado em 1988 em uma
massa de moldar, sendo possível tomar a forma que for mais conveniente
aos membros da Suprema corte em um determinado momento político.
Encerro esse artigo, como não poderia deixar de ser, com um alerta para
que nós, operadores do direito, permaneçamos vigilantes quanto ao
cumprimento do que preconiza a Constituição da República, que longe de
ser perfeita, ao menos deve ser fonte de segurança jurídica para o nosso
ordenamento. A batalha será longa e árdua para que possamos ter a
chance de restaurar e assegurar a ordem e o cumprimento efetivo às
normas no país, tendo em vista que o Estado Democrático de Direito
proclamado no caput, do artigo 1º, da nossa Carta Magna, provou ser
nada mais que uma mera exortação em vez de garantia categórica aos
cidadãos brasileiros.

[1] Ver Ronald Dworkin, A Bill of Rights for Britain (London: Chatto and
Windus, 1990).

[2] Mark Graber, “Constitutional Politics and Constitutional Theory: A


Misunderstood and Neglected Relationship”, Law and Social Inquiry 27
(2002): 309-338, 315.

[3] Ver Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (London: Duckworth,


1978).

[4] Ver John Hart Ely, Democracy and Distrust (Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1980), 87-88.

[5] Ver Bruce Ackerman, We the People: Foundations (Cambridge, Mass.:


Harvard University Press, 1992).

[6] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=63276

[7] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=330769
[8] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=178931

[9] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=341015

[10] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=414010

[11] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=442298

[12] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=408958

[13] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=406357

[14] Ver
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/mandado27maio
.pdf

[15] Ver http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=446572&ori=1

[16] Ver https://www.youtube.com/watch?v=efoDqGroaF0

[17] Ver https://www.youtube.com/watch?v=IOISvSMFfYY

[18] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=449833

[19] Ver http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?


idConteudo=451941&caixaBusca=N

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